Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
MINHA ATÉ À MORTE
A primeira vez que ele a viu, uma certeza insinuou-se de imediato. Ficou a vê-la a agitar os pompons vermelhos e brancos. Observou as madeixas de cabelo dourado recortadas contra o firmamento azul daquele dia de Verão. Memorizou o sorriso radiante que deixava entrever uns dentes muito brancos enquanto ela gritava, entoando os cânticos da claque feminina que acompanhavam os passos da coreografia executados no relvado do campo de futebol. Antes, ele tinha sentido fome, agora, olhava para ela e sentia-se saciado. Em tempos idos fora estéril, agora observava-a e sentia as entranhas a fervilhar.
Sabia tudo a respeito dela. Sabia que os pais eram pessoas muito respeitadas em Williamstown, uma posição única para os que não pertenciam ao meio académico naquele enclave universitário dedicado às artes liberais. Sabia também que a família dela era de boa cepa alemã, quatro gerações de gente loura e de pele clara proprietárias do estabelecimento principal da localidade, os Matthews, que viviam toda a sua existência sem nunca irem além de quatro quarteirões do lugar onde nasceram. Tinham propensão a morrer beatificamente durante o sono, com excepção do bisavô de Theresa, que falecera devido à inalação de fumo, quando tinha setenta e cinco anos, ao ajudar a salvar os cavalos da cavalariça em chamas de um vizinho.
Ele sabia que todas as tardes, depois do ensaio da claque, Theresa voltava apressadamente para casa a fim de ajudar os pais na loja. Limpava e arrumava as prateleiras mais pequenas onde estavam expostos os azeites importados, pasta de espinafre com noz-moscada e doces regionais de xarope de bordo em forma de folhas de castanheiro. Durante finais de Setembro e princípios de Outubro, altura em que Williamstown recebia inúmeros visitantes que soltavam exclamações de assombro ao verem as colinas cobertas de vegetação rasteira e arvoredo em tons de dourado e vermelho, Theresa tinha autorização para cortar o queijo de Vermont ou o torrão de chocolate que os turistas tanto apreciavam. Mas depois da estação do turismo, ela voltava a ter de se Ocupar das tarefas domésticas, limpando o pó as prateleiras aos quadrados azuis, varrendo o soalho de madeira sólida que já tinha cem anos, limpando as mesas de madeira de pinho tosco. Eram as mesmas tarefas que fazia desde os seus doze anos, tendo ele ouvido o pai dizer-lhe, meia dúzia de vezes numa única tarde, que ela nunca teria inteligência suficiente para fazer outra coisa além daquele tipo de trabalho.
Theresa nunca ripostava. Limitava-se a atar o avental de quadrados encarnados, baixava a cabeça de cabelos louros e continuava a varrer.
Era uma garota muito popular na sua turma da escola secundária, onde estudavam quase cem alunos; era afável sem ser muito dada, atraente, embora recatada. Enquanto as outras jovens de dezassete anos que estudavam na Escola Secundária de Mt. Greylock sucumbiam aos encantos da estrela da equipa de futebol, que não perdia uma oportunidade de as apalpar, do mesmo modo que não resistia à atracção da cerveja barata, Theresa voltava para casa às dez da noite quando Saía à sexta-feira e ao sábado.
Era uma rapariga muito, mas mesmo muito pontual, segundo o que a mãe de Theresa lhe dissera. Fazia sempre os trabalhos de casa como devia ser, ia à igreja e executava todas as tarefas de que estava incumbida. Nada de andar com drogados ou viciados no que quer que fosse: a sua Theresa, não. Ela nunca pisava o risco.
Era muito possível que Mrs. Matthews, na sua juventude, tivesse sido tão bonita como a filha; contudo, esses anos haviam passado num abrir e fechar de olhos. Actualmente, era uma mulher com um temperamento muito irritadiço e uns olhos de um azul esmaecido, um cabelo louro sem brilho e uma compleição amarelenta. Penteava o cabelo esticando-o tanto para trás que fazia com que a pele ao canto dos olhos ficasse repuxada; tinha o hábito de fazer o sinal da cruz, no mínimo, de dois em dois minutos, ao mesmo tempo que manuseava as contas do rosário. Ele conhecia bem o género. Rezava ao Senhor, pedindo-lhe que a livrasse de toda a espécie de malefícios. Também se sentia muito satisfeita por, na sua idade, já não ser forçada a ter relações sexuais. Nas noites de sexta-feira, quando Mr. Matthews bebia uma garrafa inteira de wild Turkey, ocasiões em que batia a torto e a direito na mulher e na filha, ela considerava que as duas mereciam aquele tratamento porque Eva tinha dado a maçã a Adão e, desde então, as mulheres andavam a expiar esse pecado.
Com cinquenta anos, Mr. Matthews tinha o aspecto que seria de esperar para aquela idade. Cabelo grisalho muito curto. Um rosto de expressão austera e o corpo magro. Os braços eram muito musculados, o que se devia ao facto de ter de pegar em sacas de farinha que pesavam cinquenta quilos e bidões de trinta e cinco litros de melaço para o fabrico de refrigerantes. Costumava andar num passo vagaroso pelo seu pequeno estabelecimento, como se fosse um imperador nos seus domínios. Enquanto a sua família trabalhava incansavelmente, ele gostava de se encostar ao balcão para dois dedos de conversa com os clientes, discutindo a descida do preço do leite ou os problemas que a gestão de um pequeno negócio acarretava. Tinha sempre uma arma carregada debaixo da cama e uma carabina pendurada na parte de trás da cabina da sua carrinha de caixa aberta. Uma vez por ano, abatia um veado de acordo com as leis que regiam a caça, mas, a fazer fé nos rumores que corriam pela localidade, caçava um segundo à margem da lei, apenas para provar que podia fazê-lo impunemente.
Ninguém lhe dizia como viver a sua vida, como gerir o seu negócio ou a sua família. O homem era teimoso que nem um burro e de vistas estreitas, um filho-da-puta estúpido.
Jim tinha passado apenas duas tardes na loja a observar pai, mãe e filha, ficando a saber tudo aquilo de que precisava. Os pais dela nunca conseguiriam fazer parte da alta sociedade, mas também não possuíam nenhum defeito genético ou tiques faciais. E a filha, a filha lindíssima, calada e obediente, era absolutamente perfeita.
Jim abriu a porta do seu carro e saiu. Estava pronto.
Acima de si, o firmamento exibia um azul primaveril. À sua frente, tinha as colinas de Berkshire, de um verde sem mácula, que serviam de moldura à Escola Secundária de Mt. Greylock. Abaixo de si, a extensa planura do vale estendia-se como uma toalha verde, campos infindáveis pontilhados aqui e ali por palheiros vermelhos e vacas leiteiras da raça Hohtein, malhadas de branco e preto. Aspirou profundamente a fragrância intensa dos pinheiros, o cheiro da relva acabada de cortar, olhando para as vacarias à distância. Ouvia os cânticos da claque.
- Vai à luta e ganha, vai à luta e ganha... - Observava as pernas esbeltas e compridas de Theresa, que se elevavam em direcção ao céu. - Nós somos da Greylock e temos muito orgulho. Se não nos ouvem, fazemos mais barulho.
Jim sorriu caminhando em direcção à luminosidade vibrante do sol primaveril. Conseguiu atrair o olhar de Theresa quando o corpo flexível caía fazendo uma espargata, com os pompons agitados no ar num gesto de vitória. Ela sorriu-lhe numa reacção automática ao sorriso dele.
Jim tirou os óculos de sol. Os olhos dela brilharam. Ele começou a esboçar o seu sorriso mais sedutor até ela ter enrubescido com todo o decoro próprio de uma menina, sentindo-se, por fim, forçada a desviar o olhar. Com uma inveja que nem sequer tentavam ocultar, os olhares das colegas de claque iam dela para ele. Algumas fizeram uma expressão sedutora de beicinho, enquanto uma outra, com um corpo muito desenvolvido para a idade, espetou os seios, numa tentativa frustrada de atrair a atenção dele.
Ele, porém, não afastou o olhar, nem por um segundo que fosse, de Theresa. Ela era a única que lhe interessava.
Jim virou-se ligeiramente, adoptando uma posição em que os raios solares se reflectiam no crachá da polícia preso no peito jovem e em excelente forma física. A cerca de trinta metros, por trás da vedação de rede, o olhar de Theresa prendeu-se ao seu crachá. Ele apercebeu-se imediatamente do nervosismo que a invadiu. Mas, depois, os belos olhos castanhos da jovem ergueram-se até ao rosto dele, procurando os seus.
Foi naquele preciso momento que soube que ela seria sua. Registou o momento exacto em que a prudência deixou o olhar dela, dando lugar a uma esperança vulnerável e trémula.
E a sensação de poder que se apoderou dele foi inimaginável.
Mentalmente, ouviu a voz do pai, no tom baixo e tranquilizador em que ele costumava falar antes de tudo ter descambado para uma situação infernal. O pai evocava uma parábola: um cágado e um escorpião estavam na margem de um rio cujo caudal fora engrossado pela cheia. Atemorizado, mas querendo fazer o que fosse mais correcto face à situação, o cágado disse ao escorpião que o levaria até à outra margem, transportando-o através das águas enfurecidas, caso prometesse que não lhe daria uma ferroada. O escorpião deu a sua palavra de honra ao cágado, subindo para a sua carapaça. Feito isto, os dois puseram-se a caminho, as patas curtas e fortes do cágado a agitarem-se vigorosamente. A corrente impelia-o para trás, mas o cágado continuava a nadar incansavelmente, tentando seguir em frente. A força das águas era cada vez maior. O cágado começou a sentir cansaço. Pouco depois, até mesmo o pouco peso do escorpião parecia arrastá-lo para o fundo. No entanto, o cágado estava determinado a não pedir ao escorpião que saísse de cima de si. O esforço estava a tornar-se insuportável, quando, por fim, avistou terra.
Mas foi então que o escorpião lhe deu uma ferroada. O ferrão penetrou-lhe profundamente na pele, injectando-lhe o seu veneno. Absolutamente desnorteado e chocado, o cágado olhou para trás, sentindo o ardor que o veneno lhe causava no sangue e, de um momento para o outro, as patas pareceram-lhe ser de chumbo. Estava incapaz de se mexer. Ambos começaram a afogar-se. No último instante, já com a água a encher-lhe a boca e as narinas, o pobre cágado gritou:
- Porque fizeste uma coisa destas? Por causa disso, ambos vamos morrer!
- Porque está na minha natureza - respondeu o escorpião com toda a simplicidade.
Jim gostava daquela história. Compreendia o significado. Também estava na sua natureza. Não lhe ocorria ocasião nenhuma em que não tivesse tido consciência de que era melhor do que os outros, mais inteligente do que os outros, mais rápido do que os outros, mais frio do que os outros.
Ele conseguia sempre aquilo que queria.
Naquele momento, sorria à jovem lindíssima de dezassete anos, Theresa Matthews. Posicionou-se de modo a que ela pudesse ver bem o crachá da polícia de Berkshire County; trabalhara com todo o afinco para ser merecedor daquele distintivo. Com todo o carinho, a sua mão percorreu o bastão preso no cinto da farda.
Olha para mim, Theresa. Olha para o teu futuro marido.
No princípio, as coisas tinham-se desenrolado com toda a simplicidade.
No princípio...
Cinco anos depois
Fora de casa, o sol abrasador que incidia sobre o deserto estava no seu zénite, branqueando ossos e ressequindo montanhas. Os cactos saguaro davam a impressão de cavalgar as ondas de calor, enquanto a salva-brava morria de insolação aos pés destes. Por toda a cidade de Nogales, as pessoas refugiavam-se em salas mergulhadas na penumbra, passando cubos de gelo pelo peito nu, amaldiçoando Deus por ter transferido o apocalipse de Agosto para Setembro.
Mas ele nem sequer se apercebera disso.
No oásis cheio de frescura da sua vivenda, estilo casa de rancho, J. T. Dillon encontrava-se esparramado de costas, tendo na mão direita o retrato de uma mulher sorridente e um garotinho lindíssimo numa moldura prateada. Na mão esquerda segurava uma garrafa vazia de tequila.
No tecto, por cima dele, uma ventoinha espalhava o ar na sala de estar. Estendera-se em cima de uma manta artesanal dos Navajos, que absorvia o suor do seu corpo. A sala estava bem arrumada e limpa, além de ter sido decorada com muito gosto com mobiliário em vime e iúcas de grande robustez.
Mas ele tinha deixado de reparar nesse tipo de pormenores depois do primeiro dia em que começara a beber tequila pura. Tal como qualquer fuzileiro, sabia que beber sem conta e medida era uma arte, e J. T. considerava-se o primeiro Miguel Angelo da Tequila Willie. O trago número um servia para cauterizar o tecido da garganta. O número dois queimava o sabor deixado pelo primeiro. Meia garrafa mais tarde, nenhum homem digno desse nome estremecia ao sentir a sensação de ardor da tequila pura, da mais barata, quando passava pelo esófago a caminho do estômago, e, mais cedo ou mais tarde, era excretada pelos intestinos.
No fim do primeiro dia, J. T. tinha ficado muito para lá de qualquer capacidade de pensamento racional. A ventoinha no tecto transformara-se numa ave pré-histórica e o sofá de vime num tigre deitado à espera da presa. O fuzileiro mais duro e mais impiedoso do mundo fora acometido por uma crise gravíssima de soluços. Quando fechava os olhos, tudo começava a andar às voltas, causando-lhe tonturas; portanto, passara a primeira noite com os dedos a manterem as pálpebras abertas e os olhos fixos no tecto durante horas a fio.
Agora, no seu quarto dia de tequila pura, sem ingerir mais nada, a sua faculdade de raciocínio desistira e a maior parte das funções do seu organismo rendera-se. A primeira parte a entregar-se fora o rosto. Estava sentado à beira da piscina, a bebericar uma Cuervo Golã da melhor qualidade quando, inesperadamente, teve noção de que não sentia o nariz. Tentou apalpá-lo com a ponta dos dedos... mas nada feito. O nariz desaparecera. Uma hora depois, as faces também levaram sumiço. Não restou qualquer vestígio dos pêlos da barba nem uma gota de suor ardente. Ele não tinha faces. Finalmente, e isto acontecera havia pouco, perdeu os lábios. Experimentou abri-los, mas constatou que não se encontravam onde deviam estar. Nada de lábios.
O que era uma grande chatice para beber, com a agravante de que ainda dispunha de umas boas vinte e quatro horas de bebedeira desregrada.
Com muita lentidão, começou a virar-se de lado, descobrindo que ainda lhe restavam os braços e uns resquícios de cérebro em salmoura. Fechou os olhos com força e, por trás das pálpebras, começou a ver imagens desfocadas que se sobrepunham umas às outras. Em tempos idos, fora um campeão como nadador e como atirador. Recordava-se do cheiro a cloro que tanto lhe agradava e do peso da espingarda com coronha de madeira de nogueira escura. Fora um fuzileiro de quem se dizia ter um ”talento em bruto, mas com muito potencial”, antes de lhe terem pedido que passasse à reserva.
Depois dos fuzileiros, seguiu-se um período em que foi mercenário, uma actividade de que ele nunca falara com ninguém porque, se o fizesse, seria depois obrigado a matar a pessoa com quem se abrisse. A imagem seguinte era menos definida, ainda de contornos pouco delineados, como se compreendesse que, até mesmo após quatro dias de tequila pura, continuava a ter o poder de magoar. Encontrava-se de regresso aos Estados Unidos. Rachel estava ao seu lado. Ele era um marido. Baixava o olhar, pousando-o no garotinho que lhe apertava a mão. Ele era um pai.
E agora era um bêbedo.
Entretanto, o criado, Freddie, aproximou-se tirando-lhe a moldura da mão e guardando-a no cofre onde ficaria até Setembro do próximo ano.
- Como está a sentir-se, senhor?
- Hum...
O seu iguana de estimação arrastou-se até à sala, com a cauda de um metro e vinte a fazer movimentos coleantes pelo chão de tijoleira vermelha. A tequila começou a gritar:
- Alerta vermelho! A Godzilla ataca! - A parte que continuava a raciocinar murmurou por entre lábios ressequidos que lhe pareciam de borracha: - Gluv, vai-te embora. Estou a falar a sério.
Ignorando abertamente o que ele lhe dizia, Glug instalou o corpo anafado numa área banhada por um raio de sol que, sorrateiramente, conseguira filtrar-se através da veneziana, procurando a posição mais confortável. T. gostava de Glug.
- Um pouco de água, senhor? - perguntou Freddie, cheio de paciência.
- Que dia é hoje?
- Treze, senhor.
- Sendo assim, dá-me outra margarita.
À distância, começou a ouvir-se o toque do telefone. O som da campainha fez com que J. T. gemesse, e quando o toque teve a ousadia de se repetir, ele começou penosamente a arrastar-se pára o pátio interior a fim de lhe escapar.
De imediato, o sol imobilizou-o, pregando-o como se fosse um martelo. A cambalear, conseguiu pôr-se de pé, mantendo os olhos semicerrados, o que conseguiu devido à muita prática; transpirava tequila pura por todos os poros.
Quando se mudara para o Arizona, haviam-lhe dito que o clima era Quente e seco. Sem dúvida que era quente e com certeza que era seco. ma merda! Quarenta e nove graus eram quarenta e nove graus. Ninguém no seu perfeito juízo estaria disposto a viver num lugar com temperaturas tão elevadas.
Nessas alturas, ria-se. Era a única lição valiosa que aprendera com o pai. As mulheres choravam. Os homens riam-se. Os choramingas gemiam. Os homens riam-se. Os lamechas queixavam-se. Os homens riam-se.
Quando Marion lhe telefonou para o informar de que o coronel estava a morrer de cancro na próstata, J. T. rira-se tanto que deixara cair o telefone.
Naquele momento, Freddie surgiu no pátio, com o seu fato de linho muito bem passado a ferro e uma postura austera.
- Telefone, senhor.
- Continuamos no dia treze? - perguntou J. T.
- Sim, senhor.
- Diz-lhes que desapareçam.
- É o Vincent - acrescentou Freddie sem se mexer. - Esta é a quarta vez que ele telefona. Afirma que o assunto é importante.
- Senhor...?
- O Vincent acha sempre que é importante.
- Mas ele recusa-se a desligar, senhor - insistiu Freddie, pousando o telefone no pátio interior. O fungar de desdém indicou claramente qual a opinião que tinha de Vincent. J. T. virou-se, estendendo-se de costas. Mas nem Freddie nem tão-pouco o telefone pareciam ter vontade de desaparecer.
De má vontade, J. T. pegou no aparelho.
- Estou aposentado, Vincent.
- Não me digas, meu velho. - A voz troante de Vincent fez com que J. T. esfregasse a testa. - Tenho uma para ti que vais adorar. É exactamente à tua medida.
- Hoje é dia treze.
- Pelo menos em metade do globo.
- Só aceito telefonemas depois do dia catorze e não aceito os teus telefonemas seja em que dia for. Estou aposentado.
- Dillon, espera até eu te dizer a quantidade de dinheiro envolvida...
- Não preciso de dinheiro - atalhou J. T. prontamente.
- Toda a gente precisa de dinheiro.
- Já te disse que não preciso de dinheiro. Não preciso de trabalhar. Estou reformado. Adeus.
- Ei, ei, ei! Aguenta aí! Deixa-te disso, ouve o que tenho a dizer-te, quanto mais não seja, em nome dos velhos tempos - insistiu Vincent. Ouve... Conheci uma mulher. Ela é absolutamente fantástica...
- É uma boa foda?
- Não era a isso que eu me estava a referir...
- Muito provavelmente é loura. Sempre ficaste caidinho pelas louras.
- J. T., não sejas idiota. Com certeza que eu não te teria telefonado por causa de uma pessoa qualquer... Sei que estás aposentado. Mas a verdade é que esta mulher está a precisar de ajuda. Ela está mesmo a precisar de ajuda.
- Ah, sim? Pega numa lista telefónica, procura o número do Saint Jude e liga para lá. Se alguém atender, não te esqueças de me dizer. É muito possível que um dia destes eu próprio tente ligar para lá. Adeus.
- J. T., não...
- Não estou interessado - atalhou este desligando o telefone.
Freddie continuava ali. Por cima do lábio superior via-se uma fiada de gotas de suor. J. T. abanou a cabeça.
- Porque estavas tão preocupado? - perguntou ao criado num tom de repreensão. - Com medo que eu aceitasse? Estavas com receio que eu decidisse abandonar isto tudo por um pico de adrenalina de trinta segundos? Freddie, pensei que nos conhecíamos muito melhor do que isso.
- Vou buscar-lhe outra margarita, senhor.
- Sim, faz isso, Freddie. Nós compreendemo-nos muito bem. - J. T. deixou cair a cabeça no chão banhado pelo sol abrasador que pareceu perfurar-lhe as pálpebras, até ter começado a ver as veias vermelhas a fazerem traços em ziguezague na carne.
Freddie retornou pouco depois, trazendo uma taça com o bordo coberto de sal fino e colocando-a junto da cabeça de J. T.
- Freddie?
- Sim, senhor?
- Se me passares outro telefonema, despeço-te.
- Sim, senhor.
- Até se for o coronel, Freddie. Estás a perceber?
- Claro que sim, senhor.
- Óptimo.
Freddie deu uma meia volta cheia de energia, saindo do pátio; J. T. não se deu ao trabalho de olhar para ele. Completamente vestido, entrou na piscina. Deixou-se ir até ao fundo. Não resistiu à força que o arrastava para baixo, uma vez que nunca se vira obrigado a lutar contra a água. Marion conseguira sempre fazer o que quisesse de um cavalo, e J. T. conseguira sempre fazer o que quisesse debaixo de água.
Os pés tocaram no fundo da piscina. Abriu os olhos e inspeccionou o seu domínio. As paredes interiores da piscina eram revestidas com pedras vermelhas salientes e o fundo dava a impressão de ter safiras espalhadas um pouco ao acaso.
A sensação de cócegas começou na base da garganta, a necessidade instintiva de respirar. Ele também não opôs resistência a isso. Limitou-se a aceitar. A necessidade, o pânico, o medo. Debaixo de água, sentia-se capaz de aceitar fosse o que fosse. Debaixo de água, finalmente, para ele o mundo fazia todo o sentido.
Mentalmente, começou a contar os segundos enquanto a comichão na garganta adquiria o estado quase total de asfixia. Não resistas, não resistas. Vai assimilando o ardor. Ultrapassou a marca dos dois minutos. Em tempos, conseguira aguentar-se quatro minutos, mas esse não seria o caso naquele dia.
Dois minutos e quarenta e cinco segundos. Não conseguia aguentar mais. Como se fosse propulsionado, subiu à tona de água. Quebrou a superfície com a respiração arfante, inspirando quatro golfadas de ar em simultâneo. As calças de ganga e a T-shirt estavam coladas ao corpo; na cabeça ouvia o rufar de um tambor.
As recordações continuavam bem presentes no seu pensamento. Rachel e Teddy. Riam-se. Sorriam. Gritavam. Morriam.
Todos os anos carregava a sua cruz. Eram cinco dias em que as recordações lhe assolavam a mente, relativas a um passado que ele não conseguia suportar esquecer.
Cinco dias de escuridão que o envolvia como um manto de nevoeiro, bloqueando a luz inteiramente.
Um minuto depois, J. T. começou a nadar. Continuou a nadar durante mais algum tempo. Acima de si, o cantar dos grilos começou a ouvir-se Pelo ar seco e o firmamento adquiriu uma tonalidade vermelho-sangue.
- Sente-se bem?
- Hem? - Azamboado, J. T. soergueu a cabeça. Tinha perdido a consciência com o rosto encostado ao chão do pátio. Sentia qualquer coisa húmida agarrada à pele. Roupas molhadas.
- Mister Dillon? Mister J. T. Dillon?
Entreabriu os olhos, mas as suas pupilas recusavam-se a cooperar. Sem saber explicar como, tudo lhe parecia vermelho, envolto em sombras e fealdade. Tentou focar a imagem. Começou a ver as linhas de um corpo humano defronte de si. Ela tinha cabelos pretos, o que fez com que se recordasse da cabeleira de Elvis. Deixou que a testa voltasse a cair contra o chão.
- Está a sentir-se bem?
- Esse assunto esteve sempre sujeito a algum debate - respondeu, não se dando ao incómodo de voltar a erguer o olhar. - Minha senhora, eu não quero comprar produtos nenhuns da Avon nem biscoitos das escuteiras. Por outro lado, se tiver trazido alguma Cuervo Golã, fico com duas caixas.
- Não sou vendedora da Avon.
- Azar seu. - J- T. pensou que só podia estar a morrer. Nunca, desde o seu primeiro dia na Academia Militar de West Point, se tinha sentido tão mal.
- Mister Dillon... - insistiu a mulher.
- Vá-se embora.
- Não posso.
- Dê uma volta de cento e oitenta graus e não deixe que o portão lhe bata no rabo quando sair.
- Mister Dillon... por favor, peço-lhe que ouça o que tenho a dizer-lhe.
Finalmente, conseguiu focar nela um olhar congestionado. Ela sentou-se na beira do assento de uma cadeira de jardim, como uma pomba escanzelada emoldurada por um arbusto ornamental. Era jovem. Um corte de cabelo bastante mau. E a cor de que estava pintado ainda era pior. Tentava mostrar-se indiferente, mas os joelhos de pele branca tremiam. J. T. gemeu.
- Minha senhora, é evidente que o seu lugar não é aqui.
- Eu... Oh... eu... - Interrompeu-se, pondo-se de pé numa postura rígida e endireitando os ombros. O rosto mostrava uma expressão resoluta, mas o resto da sua linguagem corporal destruía essa aparência de determinação. O fato demasiado branco que ela vestia estava muito amarrotado e não lhe assentava bem. Era óbvio que, recentemente, havia perdido muito peso e as olheiras que lhe sombreavam os olhos eram demasiado carregadas para poderem indicar sonhos doces.
- Mister Dillon...
- Freddie! - gritou J. T. a plenos pulmões. - Freddie!
Os lábios da mulher fecharam-se repentinamente.
- Ele saiu - informou ela momentos depois. Em seguida, num gesto metódico, começou a roer a unha do polegar direito.
- Saiu?! - perguntou ele voltando a gemer antes de sacudir o cabelo molhado. Os borrifos de água projectaram-se em todas as direcções; algumas gotas foram parar ao fato de seda que ela vestia, mas a mulher não mostrou qualquer reacção. J. T. passou os dedos pelo cabelo molhado, afastando as madeixas compridas que lhe tinham caído para o rosto e, uma vez mais, voltou a olhar para a visita que não fora convidada.
Ela mantinha uma certa distância, ditada pela prudência, mas suficientemente próxima para não demonstrar receio. Permanecia numa postura solidamente equilibrada, preparada para entrar em acção caso fosse necessário, pernas bem afastadas e um pé em posição recuada, peito para fora e braços soltos. Aquela postura deu a J. T. a sensação de déjà vu, como se sentisse que devia saber alguma coisa a respeito dela. Mas a intuição chegou e partiu num ápice e, além do mais, não estava com disposição para a aprofundar.
- O seu amigo foi-se embora - continuou ela. - Vi quando ele saiu de carro.
- Hum - fez J. T. sentando-se com alguma relutância. O mundo girava à sua volta, mas pouco depois endireitou-se. Levando em consideração que naquela altura o seu sangue era composto de noventa por cento de tequila, a sua visão era excessivamente nítida. Durante quanto tempo estivera inconsciente? Que quantidade de álcool teria excretado através dos poros? A verdade é que estava a ficar sóbrio com rapidez a mais.
Rasgou a camisola de algodão em vez de a despir, deixando-a cair no chão. Em seguida, foi a vez das calças de ganga que começou a desapertar.
- Quero contratar os seus serviços - adiantou a mulher, cuja voz tinha adquirido um ligeiro tremor.
- Assim está melhor - comentou.
- Não... não sei bem se isso será apropriado - continuou ela.
- Minha senhora, por acaso esta vivenda parece-lhe ser um convento? Trata-se de uma residência particular e eu sou a besta que está encarregada dela. E agora ponha-se daqui para fora imediatamente ou faça qualquer coisa de útil com essa boca! - Com estas palavras, brindou-a com um sorriso sardónico, após o que começou a afastar-se. Freddie deixara-lhe uma margarita na mesinha à beira da piscina. Já tinha aquecido com o calor, mas isso não o incomodou. De um único trago, tomou metade da bebida.
- Foi o Vincent que me mandou vir falar consigo - acrescentou a mulher atrás dele numa voz murmurada.
- Esse filho-da-puta... - ripostou J. T. numa voz arrastada e sem grande convicção. - Vou ter de o riscar da minha lista de pessoas a quem enviar cartões de boas-festas. - Bebeu a segunda metade da margarita. - Vou começar a contar até cinco. É melhor que tenha desaparecido até eu acabar de contar, caso contrário, que Deus a ajude.
- Por favor, importa-se de ouvir o que tenho a dizer-lhe?
- Um - começou ele como se não a tivesse ouvido.
- Tenciono pagar-lhe.
- Dois.
- O Vincent nunca me disse que você, além de bêbedo, é teimoso que nem uma mula!
- Três.
- Preciso de alguém que seja um profissional!
Ele virou-se para ela, com os braços cruzados diante do peito e uma expressão que não deixava adivinhar qualquer emoção.
- Quatro.
As faces dela ruborizaram-se. O sentimento de frustração imprimiu uma nova animação ao seu corpo, erguendo-lhe o queixo e pondo-lhe centelhas no olhar. Por breves momentos, ela ficou francamente bonita.
- Não tenciono sair daqui sem falar consigo! - gritou ela, desesperada. - Raios o partam, não tenho outra pessoa a quem recorrer! Se ao menos você deixasse de sentir tanta pena de si próprio, pelo menos durante o tempo suficiente para me ouvir...
- Cinco.
- Já lhe disse que não me vou embora. Não posso.
- Como queira - retorquiu J. T. com um encolher de ombros. Pousou o copo de onde bebera a margarita na mesa. Em seguida, tão nu como no dia em que nascera, a totalidade dos seus noventa quilos, apenas músculos e nervos, começou a avançar.
O suor perlava-lhe a parte superior do lábio. Os olhos dela adquiriram uma expressão perigosa. O seu olhar ia de um lado ao outro. Levou uma mão firme ao interior da sua carteira.
Ele prendeu-lhe um pulso ao chão com toda a força, colocando-se por cima dela e procurando imobilizá-la, ao mesmo tempo que tentava proteger dos pontapés dela algumas partes mais sensíveis da sua anatomia. A mulher conseguiu agarrar uma mão-cheia dos cabelos dele e puxou-os com toda a força.
- Merda! - praguejou J. T. conseguindo libertar a cabeça e agarrando-a pela cintura com as duas mãos, forçando o corpo a imobilizar-se no chão.
Ela retraiu-se, mas, quando olhou para ele, os seus olhos ainda continham o fogo da fúria que a invadia. Ele era maior e muito mais forte, e ela não estava a conseguir chegar a parte alguma. Ambos se encontravam bem cientes disso. Fez ainda uma última tentativa inútil para se libertar das mãos dele.
- Vamos lá - atacou J. T. de maneira muito pouco simpática. - Experimente outra vez. Está a pensar que eu, assim sem mais nem menos; vou mudar de ideias deixando-a ir em paz? Olhe bem para mim, minha linda. Saiba que o Vincent não lhe fez favor nenhum ao indicar-lhe o meu nome. Pareço o diabo e sou o diabo. A genética decidiu assumir a verdade daquilo que publicita.
- Eu tenho dinheiro - afirmou ela por entre a respiração entrecortada.
- E quem é que se interessa com isso?
- Cem mil dólares.
- Ah, minha doçura. Isso é um preço baixo de mais para mim.
- Engraçado, você não me parece nada ser um homem muito caro.
- Minha menina, não acha que tem que lhe baste para se preocupar para querer brigar comigo?
- Provavelmente - redarguiu ela num tom de gracejo -, mas tenho de começar por alguém. - Dito isto, desferiu um pontapé. Ele reagiu imediatamente, conseguindo aparar o golpe a tempo. Quando já começava a esboçar um sorriso de triunfo, a mulher ferrou-lhe os dentes no antebraço. J. T. empalideceu. Os músculos do pescoço ficaram tensos quando sentiu o corpo percorrido por uma dor aguda provocada pelos pequenos dentes muito brancos e cortantes que se cerraram num nervo.
A raiva, primitiva e feia, avolumou-se dentro dele. A necessidade de lhe pagar na mesma moeda. A necessidade de retribuir a mesma dor que lhe fora infligida. Sentia os tambores da selva nas veias e, de súbito, começou a ouvir as botas do pai a pisarem o soalho de madeira dura. O aperto da mão com que lhe agarrava o pulso intensificou-se. Ela gemeu.
- Foda-se! - praguejou ele puxando o braço que ela continuava a abocanhar. O sangue começou a escorrer para os pêlos, o que fez com que ele ficasse ainda mais furioso. Num movimento rápido, J. T. pôs-se de pé, cerrando os punhos, olhos negros, mal conseguindo conter a raiva que o assolava. Controlo, controlo. Detestava os homens que descarregavam a sua fúria nas mulheres. Controlo, controlo.
A Walther semiautomática prateada, calibre ponto vinte e dois, que surgira da carteira dela, naquele momento encontrava-se a escassos centímetros dos pés dele. Deu-lhe um pontapé, atirando-a para dentro da piscina. Mas aquilo não era o suficiente. A partir do momento em que alguém fazia com que se enfurecesse, não havia nada que bastasse para o apaziguar.
- Em que diabo é que você estava a pensar? - perguntou ele numa voz que mais parecia um rugido. Ela continuava deitada no chão do pátio, com a saia enrolada à altura das coxas, deixando ver umas pernas magras que estavam a precisar urgentemente de mais massa muscular. Mantinha o pulso dorido junto do peito. Era evidente que lhe doía bastante, mas não se queixava.
Ele voltou a praguejar, pensando em saltar para a piscina. Estava a precisar de uma bebida.
- Não devia atrever-se a atacar um fuzileiro - resmungou, furioso. - Que espécie de idiota pensa conseguir agredir um homem profissionalmente treinado para a guerra?
- Você estava a preparar-se para me atacar - alegou ela por fim num timbre de voz que mal se ouvia. Chegou o pulso mais junto do peito; os dedos dele haviam deixado vergões vermelhos na pele pálida. Sentiu-se envergonhado pela sua brutalidade.
- A minha intenção era levá-la ao colo para a pôr daqui para fora!
Ela não lhe deu resposta.
- Esta é a minha casa! - acrescentou J. T., espetando um dedo diante da cara dela. - Não tem o direito de entrar em casa dos outros sem ter sido convidada, sem que ninguém queira a sua presença... e...
- Sem ter o devido treino profissional? - adiantou ela.
- Precisamente!
Ela não lhe ripostou. Limitou-se a levantar-se com alguma dificuldade. Quando se pôs de pé, cambaleou ligeiramente. Não pareceu ter-se apercebido disso, começando a alisar a saia e fechando o casaco, como se isso, não se sabia porquê, pudesse protegê-la de qualquer mal.
- Sei muito bem que não me quer aqui. O Vincent está farto de tentar falar consigo pelo telefone, mas dizem-lhe que você nunca está em casa. E eu... eu não podia dar-me ao luxo de esperar por mais tempo. Por isso, consegui arranjar o seu endereço e decidi... bem, decidi vir até cá para falar consigo. Só lhe peço que me treine - acrescentou ela abruptamente. - Só quero que me proporcione formação militar, mais nada. Um mês do seu tempo. Pagar-lhe-ei cem mil dólares se me ensinar tudo o que sabe.
- Mas de que raio é que você...?
- Um mês é tudo o que lhe peço. Nem sequer terá de sair da sua vivenda, poderá continuar confortavelmente instalado, dizendo-me apenas o que devo fazer. Sou mais forte do que possa aparentar. Além disso, aprendo depressa. Não costumo queixar-me.
- Mas quem é você?
- Te... num... - começou ela, hesitante - Angela.
- Te... hum... Angela? Estou a ver. Pois bem, quanto mais não seja, só para não ficarmos calados, vamos lá a saber por que razão uma dona de casa como você precisa de treino militar, Te... hum... Angela?
- Ando a ser perseguida.
- Claro que sim. Quem?
- Quem o quê?
- Quem é que anda a persegui-la?
Ela remeteu-se ao silêncio. J. T. abanou a cabeça.
- Você não está a precisar de um mercenário, mas sim dos serviços de um psiquiatra.
- Um homem - adiantou ela por fim numa voz murmurada.
- Não me diga, a sério?
- O meu... - Interrompeu-se, dando a impressão de que debatia consigo mesma até que ponto devia dizer a verdade. - O meu marido. Ex-marido. Sabe como são essas coisas... - Ela falava depressa de mais. Lançou um olhar de relance a J. T. para ver se ele acreditava no que lhe dizia.
Ele voltou a abanar a cabeça, desta feita com uma expressão de desdém.
- Está a dizer-me que veio de tão longe até aqui apenas por causa de um qualquer arrufo doméstico? Minha senhora, uma vez que veio procurar um homem como eu, o mínimo que devia estar a acontecer-lhe era ser acossada por metade do cartel da droga de Medellin porque queriam o seu coirão. Por amor de Deus! Vá ao tribunal e peça uma providência cautelar que o proíba de se aproximar de si e deixe-me em paz e sossego.
- Está realmente convencido de que um bocado de papel é capaz de afastar um monstro? - perguntou ela com um sorriso de tristeza.
- É melhor do que contratar os serviços de um profissional. O que é que você fez, encontrou o Vince por acaso durante um chá da Tupperware? Você andava à procura de caixas de plástico que mantivessem os alimentos frescos, enquanto ele andava a reforçar os seus conhecimentos com depravados aposentados...
- Fomos apresentados por um amigo comum que percebeu que eu estava efectivamente a precisar de alguém que me ajudasse a sério.
- Ajudar a sério? - repetiu ele, escarninho. - Parece-me que anda a ver filmes a mais na televisão nas noites de domingo. Aconselho-a a ir falar com a polícia de Nogales. Posso desenhar-lhe um mapa.
- À polícia é que o deixou fugir - retorquiu ela em voz baixa. - E agora decidi recorrer a si.
A noite começou a descer com o seu silêncio; o único som que se ouvia era o da água a ondular contra a beira da piscina e o canto solitário dos grilos. Por trás dela, a folhagem dos arbustos era agitada pela brisa, e as pedras brancas do pavimento reflectiam a luz do terraço. A noite estava quente e de um negro purpurino, enganadora na sua suavidade.
- J. T. - começou ela a dizer numa voz sussurrada -, salvou os órfãos na Guatemala?
- O quê?! - ripostou ele, sentindo as batidas do coração demasiado aceleradas.
- O Vincent contou-me o que se passou com respeito a esses órfãos. Fez o que ele diz? Fez realmente o que ele diz que fez?
- Não, não. Não pode culpar-me disso. - Mas o desmentido dele foi demasiado precipitado, do que ambos tinham percepção.
- Um mês - repetiu ela. - Um mês de treino intensivo. Autodefesa, tiro, estratégias de evasão, vigilância furtiva...
- Controlo de populações e a compilação de informações. Emboscadas e contra-emboscadas. Atiradores emboscados e contra-atiradores emboscados. Evacuar e evasão, infiltração e penetração. Todos os bombons das forças especiais...
- Sim - confirmou ela.
- Não! Você não está a perceber. Pensa que as máquinas de matar se fazem da noite para o dia? Está convencida de que o Rambo surgiu da terra? São precisos muitos anos para se aprender a ter essa espécie de concentração. São precisas décadas para aprendermos a não nos preocupar com os outros, para termos um ser humano sob mira e não hesitar em disparar, como se o alvo não fosse mais do que a melancia que utilizamos para praticar tiro ao alvo.
O rosto dela empalideceu. Parecia ter ficado muito perturbada.
- Sim, passamos a ser apenas uma implacável máquina de matar. Portanto, ponha-se a andar daqui para fora e não volte.
- Eu... eu... entrego-me a si.
- O quê?!
- Estou pronta a dar-lhe o meu corpo durante um mês.
- Chiquita, terá mais hipóteses de ser bem-sucedida se pagar.
Ela sorriu com uma expressão contrita, de resignação, de quem sabia. Antes que ele a pudesse impedir, deixou-se cair de joelhos.
- Suplico-lhe - implorou, erguendo as mãos e unindo-as.
- Por amor de Deus! - J. T. atravessou o pátio pegando-lhe pelos ombros e começando a sacudi-la, como se ao abaná-la conseguisse agitar-lhe o cérebro a fim de lhe instilar algum bom senso.
- Por favor - continuou ela sem dizer mais nada. - Por favor.
Ele abriu a boca. Tentou gritar-lhe e tentou falar-lhe numa voz rosnada. Que diabo, naquele ponto da situação, até se ficaria pelo ranger de dentes. Mas as palavras recusavam-se a sair-lhe da boca. Tantos anos a levar uma existência perversa, mas, mesmo assim, continuava a ser possível frustrar os seus intentos com uma coisa tão simples como as palavras ”por favor”.
- Raios partam isto! Estamos a treze de Setembro e eu estou sóbrio. Haverá alguém que me arranje uma bebida!
Ela deu um passo, como para fazer o que ele pedira, mas logo de seguida cambaleou, como se as pernas fossem de gelatina, com os joelhos a dobrarem-se.
- Já chega. Para a cama! - ordenou ele possuído de uma grande fúria. - Só precisa de escolher um quarto, qualquer divisão da casa que tenha uma cama, e deite-se. Ainda tenho tequila que me chegue para umas duas horas; não quero voltar a vê-la até ao dia catorze, a menos que seja para me trazer uma garrafa e venha com uma laranja-lima no umbigo e sal fino nos seios. - Dito isto, J. T. apontou para as portas corrediças de vidro. - Fora da minha vista!
Obedientemente, ela deu um passo em frente, cambaleando tanto que corria o risco de cair redonda no chão.
Ele não tinha alternativa. Praguejando entre dentes, pegou-lhe ao colo. Sentiu que o corpo dela se contraía, punhos cerrados como se estivesse a preparar-se para o agredir, mas a fraqueza que se apoderara dela derrotou-a antes de ele poder fazê-lo. Ficou flácida nos braços dele como se fosse um balão a que tivessem tirado o ar. J. T. sentia distintamente o contorno das costelas. O odor dela chegava-lhe às narinas, os cheiros inconfundíveis da exaustão e do medo, além de um outro odor misterioso, mas mais cálido. Pouco depois, conseguiu identificar esse cheiro: pó de talco de bebé. Ela cheirava a pó de talco de bebé.
Foi por um triz que não a deixou cair.
Não queria saber. Recusava-se a saber.
O quarto que ficava mais próximo estava limpo e arrumado, graças a Freddie. Sem cerimónias, J. T. largou-a em cima da cama de casal.
- Trouxe alguma coisa?:
- Só um saco.
- Onde o deixou?
- Na sala de estar.
- Vou dizer ao Freddie que o leve para o quarto. Deixou o carro defronte da porta?
- Vim de táxi - respondeu ela.
- Usou um nome falso, Angela?
- Sim. E paguei em dinheiro.
- Nada mal - concedeu ele a contragosto.
- Estou a aprender - admitiu ela com toda a franqueza. - Estou a aprender.
- Muito bem, mas agora veja se aprende a dormir. É uma habilidade tão boa como qualquer outra.
Ela assentiu com a cabeça, mas os seus olhos castanhos não se fecharam.
- Você é um alcoólico?
- Às vezes - respondeu J. T.
- E o que é nas outras vezes?
- Um baptista. E agora veja se dorme.
- Sei por que razão salvou as crianças - acrescentou ela em voz baixa.
- Sim, isso mesmo. Boa noite.
- Porque tinha saudades da sua família.
É claro que ela estava enganada, uma vez que só constituíra família depois do episódio dos órfãos. E, no entanto, as palavras dela deixaram-no profundamente abalado.
- Você não sabe nada do que está a falar.
- Mas preciso de saber - retorquiu ela com um suspiro e os olhos a quererem fechar-se. - A minha filha e eu precisamos de si. É a única esperança que nos resta.
- Merda! - repetiu J. T., indo direito ao copo onde se preparavam as margaritas.
Meia-noite. Na baixa de Nogale, alguns dos bares começavam a abrir. Não era nada invulgar que J. T. saísse porta fora àquela hora da noite, vestindo umas calças de ganga e uma camisa de cambraia, a algibeira cheia de dinheiro e mãos desesperadas por uma cerveja. Por volta das três ou quatro da manhã, num passo cambaleante, regressaria a casa, trazendo a barriga cheia com umas doze cervejas e uma mulher pelo braço. As noites sucediam-se umas às outras.
Esta era a primeira vez que o homem se recordava de ter visto uma mulher a dormir no quarto de hóspedes, tendo trazido uma mala com as suas coisas. A primeira que tinha conhecimento da presença de uma mulher em casa que não estivesse a dormir na cama de J. T. Em vez disso, J. T. estava de cabeça baixa na sala de estar com o iguana a fazer-lhe companhia.
A casa encontrava-se mergulhada em silêncio, uma quietude tal que podia dizer-se que estagnara. E, contudo, o homem sabia que tudo se havia alterado. Decorridos três anos, o padrão tinha sido quebrado. As suas instruções eram bastante claras quanto a esse ponto.
Furtivamente, atravessou o vestíbulo às escuras, A sala de estar era banhada pelos raios de luar que lhe emprestavam uma tonalidade prateada. Num dos cantos havia um candeeiro pequeno com uma lâmpada que irradiava uma luz amarelada, iluminando os pés descalços de J. T. e o iguana. Nenhuma das duas criaturas se mexeu.
O homem virou costas, começando a percorrer silenciosamente o corredor até à porta do escritório. Pegou ao telefone; os muitos anos de prática permitiram-lhe fazê-lo sem qualquer ruído. Ligou um número que sabia de memória, tendo tido logo a precaução de colocar a mão na boca com o intuito de abafar a voz.
- Está cá uma mulher - disse assim que alguém atendeu no outro lado da linha.
- Uma mulher?!
- Veio por indicação do Vmccnt.
- Que raio de coisa! - Fez-se uma longa pausa. - Como é que ela se chama?
- Angela, mais nada. Mas não é o seu nome verdadeiro.
- É óbvio que não. Descrição?
- Vinte e tal anos, um metro e sessenta, cinquenta quilos, olhos castanhos, compleição clara, loura de nascença.
- Está armada?
- Com uma Walther calibre ponto vinte e dois, semiautomática.
- Hum... Um brinquedo de criança. Identidade.
- Nada.
- Deve ter qualquer documento de identificação.
- Não encontrei nada - insistiu o homem. - Passei revista à mala... até mesmo ao forro, à lata da laca, à escova do cabelo, às solas dos sapatos, enfim, a tudo. Tem muito dinheiro, mas não encontrei nada que a identifique. Ela fala com um sotaque que não sou capaz de reconhecer. Talvez seja de alguma localidade no Norte. Boston...
- É uma profissional?
- Não me parece. Não me dá a impressão de saber grande coisa.
- Levando em consideração as companhias habituais do J. T., o mais provável é ser uma assassina que matou o marido e os filhos à machadada.
- O que devo fazer?
- Ele retomou a actividade? - perguntaram com um suspiro do outro lado da linha.
- Ela está aqui, não é verdade?
- Raios o partam! Mas não te rales, eu trato do assunto. Mantêm-te calmo.
- De acordo.
- Fizeste bem em telefonar. Obrigado. Como... como é que ele está?
- Ele está a morrer - responderam depois de uma longa pausa. Está a sofrer muito, tem dores atrozes. Quer saber por que motivo o filho não está aqui.
- Ele pergunta por mim?
- Não, mas não te preocupes. Também não pergunta por mim. Sempre se interessou apenas pelo J. T.
- Claro que sim. - O timbre de voz era adequadamente contrito. Havia muito tempo que ele entregara toda a sua lealdade a um homem duro. A sua lealdade nunca sofrera qualquer vacilação; ao longo dos anos, muito simplesmente, tinha-se acostumado ao seu lugar. - Voltarei a ligar se houver alguma alteração.
- Faz isso mesmo.
- Boa noite.
- Sim, boa noite.
Com toda a cautela, pousou o auscultador no descanso. Mas isso não interessava. Alguém ligara a luz do tecto.
Começou a virar-se muito devagar. Deparou com J. T. encostado à ombreira da porta. Tinha os braços cruzados diante do tronco nu. Os olhos, apesar de muito congestionados, espelhavam determinação.
- Freddie, acho que chegou a altura de termos uma conversa.
Tess Williams despertou como havia aprendido a despertar, devagar, a pouco e pouco, de maneira a ficar totalmente alerta sem dar a perceber que estava acordada. A primeira coisa a despertar foram os ouvidos, procurando escutar o som da respiração de outra pessoa. A seguir, foi a pele que despertou para o dia, procurando a sensação escaldante a todo o comprimento do corpo do marido encostado às suas costas. Finalmente, quando os seus ouvidos não registaram nenhum som e a pele lhe deu a saber que se encontrava sozinha na cama, abriu os olhos que se dirigiram automaticamente para o roupeiro e para a pequena cadeira de madeira que, a meio da noite, prendera por baixo da maçaneta da porta como se fosse uma cunha.
A cadeira continuava como a colocara. Soltou a respiração que contivera até então e sentou-se. O quarto, onde era a única ocupante, já estava iluminado com o sol radiante do meio da manhã, banhando as paredes de adobe com os seus raios dourados e radiantes. O ar estava quente. Tinha a T-shirt colada às costas; talvez o suor se devesse à transpiração provocada pelos pesadelos que nunca chegavam a desaparecer por completo. Em tempos passados tinha gostado do amanhecer. Mas, actualmente, era-lhe difícil encarar as manhãs, embora não fossem tão difíceis como as noites, quando se deitava, permanecendo acordada enquanto tentava forçar os olhos a desistirem da vigilância em que se mantinham, sempre a tentar ver nas sombras, dando prioridade ao sono.
Conseguiste, pensou para consigo própria. Conseguiste realmente.
Durante os dois últimos anos andara numa fuga constante, sempre segurando a mão da filha de quatro anos na sua, tentando convencer Samantha de que tudo haveria de correr pelo melhor. Escolhera nomes falsos como se se tratasse de acessórios de vestuário, e novas moradas como se fossem peças sobresselentes. Mas a realidade é que nunca conseguira fugir inteiramente. Noite adentro, sentava-se na beira da cama da filha, afagando os cabelos louros de Samantha, mantendo o olhar sempre preso no roupeiro com uma expressão fatalista.
Sabia bem que género de monstros se escondiam dentro do roupeiro. Tinha visto as fotografias tiradas em locais onde eles haviam cometido crimes brutais. Há três semanas, o seu monstro particular conseguira evadir-se de uma prisão de segurança máxima depois de ter espancado dois guardas que morreram em menos de dois minutos.
Tess tinha telefonado ao tenente Lance Difford. Por seu lado, ele ligara a Vince. As rodas da engrenagem foram postas em movimento. Tess Williams tratara de esconder Samantha num lugar seguro, após o que viajara para tão longe quanto lhe foi possível. Depois disso, tinha viajado mais um pouco.
Começou por seguir de comboio, que a levou através dos campos verdejantes e ondulados da Nova Inglaterra, assim como pelas zonas industriais de metais retorcidos. Depois desta viagem, apanhara um avião, voando por cima de tudo o que se encontrava no solo, como se isso a ajudasse a esquecer, tendo percorrido tantas milhas que deixara o Outono para trás e quando voltou deparou com o Verão.
Aterrar em Phoenix foi como chegar a uma cratera lunar: tudo era avermelhado e coberto de poeira, uma paisagem flanqueada pelo azul das montanhas à distância. Nunca tinha visto cactos como aqueles; ali, as estradas eram todas ladeadas por cactos. Naquela região, os cactos cobriam o solo como se fossem um exército invasor.
A camioneta levou-a mais para o interior daquela terra que tão estranha lhe parecia. As colinas vermelhas tinham desaparecido e o Sol adquirira uma nova fúria. As placas que indicavam os nomes de cidades deram lugar a outras onde se lia:
ÁREA DA PENITENCIÁRIA ESTADUAL
É PROIBIDO PARAR PARA DAR BOLEIAS
Os vermelhos e castanhos tinham ficado para trás enquanto a camioneta seguia através de terras a que o sol dera tons de âmbar, branqueando os verdes da vegetação. As montanhas já não acompanhavam o percurso como avós complacentes. Naquelas terras estranhas e inóspitas do Sul do Arizona, até mesmo as colinas pareciam atormentadas, sendo metodicamente maltratadas pelos camiões ao serviço da actividade mineira e pelas máquinas escavadoras.
Era o tipo de região em que, quando uma pessoa se virava, esperava ver o OK Corral. O género de terra onde os lagartos eram maravilhosos e os coiotes deveras engraçados. O tipo de terra em que as rosas de estufa definhavam e os cactos agrestes viviam.
Perfeita.
Tess levantou-se da cama. Movimentava-se lentamente. Sentia a perna direita dorida e rígida, incómodo que era agravado por picadas na cicatriz irregular, como fantasmas do passado. O pulso esquerdo latejava, e em toda a volta tinha um círculo de nódoas negras arroxeadas. Sabia que não era nada de grave - o pai ensinara-lhe muita coisa a respeito de ossos fracturados. Dadas as circunstâncias em que a sua existência decorria, um pulso magoado era a menor das suas preocupações.
Concentrou a sua atenção na cama.
Começou a fazê-la sem ter noção do que fazia, entalando as pontas dos lençóis, de modo a que não se soltassem, e alisando a coberta com uma meticulosidade militar.
Quero que seja possível que uma moeda ressalte em cima dessa cama, Theresa. A juventude não é desculpa que justifique o desmazelo. Tens de continuar a tentar melhorar.
Deu consigo a virar a dobra do lençol por cima da coberta, enterrando as pontas dos dedos nas palmas das mãos. Num gesto deliberado e brusco, tirou a coberta da cama, atirando-a para o chão.
- Esta manhã não vou fazer a cama - anunciou ao quarto vazio. - Opto por não fazer a cama.
Também não tencionava fazer mais limpezas, tal como não lavaria a louça nem esfregaria os soalhos. Recordava-se bem de mais do cheiro a amoníaco quando lavava os vidros das janelas, as maçanetas das portas e o corrimão. Com o tempo, acabara por achar que aquele cheiro cáustico era reconfortante, um tipo de cheiro que lembrava uma limpeza a fundo.
Esta casa é minha, e não só parece limpa como também cheira a limpeza.
Certa ocasião, ela decidira lavar os caixilhos das janelas com amoníaco e Jim até a elogiara por isso. Ela brindara-o com um sorriso radioso e um ano depois estava casada com ele, grávida de oito meses e sempre ansiosa, como um cachorrinho de estimação, pelos cumprimentos que ele lhe pudesse dispensar.
Mais tarde, o tenente Difford tinha-lhe explicado que o amoníaco era uma das poucas substâncias que conseguiam remover as impressões digitais deixadas em qualquer superfície.
Agora, sempre que sentia o cheio a amoníaco ficava nauseada.
O seu olhar voltou a ser atraído para a cama com os lençóis em desalinho e a coberta caída no chão. Por breves momentos, o impulso, a necessidade premente de fazer a cama - pondo-a como devia ser porque era imperativo que tentasse melhorar a sua pessoa, era sempre necessário tentar melhorar - esteve quase a apoderar-se da sua vontade. O suor perlava-lhe a parte superior do lábio. Cerrou as mãos para as impedir de apanharem a coberta do chão.
- Não cedas. Ele condicionou a tua mente, Tess, mas tudo isso já ficou para trás. Pertences apenas a ti própria e és uma mulher determinada e forte. Tu venceste, que diabo! Venceste.
Mas estas palavras não serviram para lhe aplacar as inquietações. Aproximou-se da cómoda para ir buscar a arma que tinha na carteira. Só no último instante é que lhe ocorreu que a arma de calibre ponto vinte e dois tinha caído no chão do pátio.
Naquele momento, a arma encontrava-se na posse de J. T.
Tess imobilizou-se. Tinha de recuperar o seu revólver. Ela comia com a arma perto de si, dormia com a arma, andava sempre com a arma. Não podia ficar desarmada. Indefesa, vulnerável, fraca.
Que Deus lhe valesse. O ritmo da sua respiração acelerou-se, teve a sensação de que o estômago lhe caía aos pés e sentiu a cabeça a andar à roda. Percorreu o limiar do ataque de ansiedade prestes a desencadear-se, sentindo as tremuras e sabendo de antemão que a menos que conseguisse dominar as suas reacções acabaria por se despenhar no abismo.
Respira, Tess, respira. Mas o ar amistoso do deserto continuava a insinuar-se nos seus pulmões. Inclinou-se para baixo, colocando a cabeça à altura dos joelhos enquanto respirava fundo, forçando os olhos a fecharem-se.
- Posso acompanhá-la até casa?
Tess tinha ficado atordoada.
- Está a falar comigo? - Apertou os livros da escola contra a camisola que tinha o emblema da Escola Secundária de Mt. Greylock. Não conseguia acreditar que o polícia estivesse a dirigir-lhe a palavra. Não era o género de rapariga que despertasse a atenção dos jovens bem-parecidos.
- Não - respondeu ele na brincadeira. - Estou a falar com a relva. - Afastou-se do tronco da árvore a que se encostara, esboçando um sorriso que lhe fazia umas covinhas encantadoras no rosto. Todas as raparigas da turma de Tess falavam daquelas covinhas. - Você é a Theresa Matthews, não é verdade?
Ela assentiu com uma expressão apalermada. Tinha de se mexer. Sabia que precisava de se mexer. Já estava atrasada, tinha de ir para a loja, e o pai não tolerava faltas de pontualidade.
Mas continuou como se tivesse criado raízes, olhando fixamente para o rosto daquele belo jovem. Ele parecia ser tão forte. Um agente da lei. Decerto um homem íntegro... Por breves momentos, deu consigo apensar: ”Se eu te contasse tudo, estarias disposto a salvar-me? Haverá alguém que, por favor, me salve?”
- Muito bem, Theresa Matthews, sou o agente Beckett. Jim Beckett.
- Já sabia - retorquiu ela baixando o olhar que pousou no relvado. - Toda a gente sabe quem o senhor é.
- Posso acompanhá-la a casa, Theresa Matthews? Dá-me a honra de a acompanhar?
Mas ela continuava a sentir-se insegura, demasiado perturbada para poder falar. Com certeza que o pai a mataria. Somente as jovens promíscuas ou as mulheres demoníacas é que seduziam os homens para que as acompanhassem a casa. Mas a verdade é que ela não queria fazer nada que pudesse afugentar Jim Beckett. Estava sem saber o que fazer.
Ele inclinou-se para ela esboçando uma piscadela. Os olhos azuis eram tão cristalinos, tão serenos. Tão firmes.
- Vamos lá, Theresa. Ao fim e ao cabo, sou um polícia. Se não puder ter confiança em mim, em quem é que poderá confiar?
- Venci - disse entre dentes para os seus joelhos. - Raios partam isto tudo! Consegui vencer!
Mas apetecia-lhe chorar. Tinha vencido, mas a vitória soava-lhe a falso; o preço fora demasiado elevado. Ele fizera-lhe coisas que nunca deviam ter sido feitas; apoderara-se de coisas dela de que não podia ter sido despojada. Até mesmo agora, ele continuava no seu pensamento.
Um dia, que não estaria muito longe, ele matá-la-ia. Tinha-lhe jurado que haveria de arrancar-lhe o coração do peito enquanto ainda batesse, e Jim cumpria sempre o que prometia.
Tess forçou-se a erguer a cabeça e respirou fundo. Fez pressão com os punhos cerrados contra as coxas, com tanta força que deixou vergões avermelhados na pele.
- Luta, Tess. É tudo o que te resta. - Afastou-se da cómoda e aproximou-se da mala que Freddie tivera a amabilidade de levar para o quarto. Fora capaz de chegar ali, cumprindo o primeiro passo do seu plano. Em seguida, teria de conseguir fazer com que J. T. se dispusesse a treiná-la. Vagamente, recordava-se de haver mencionado a existência da filha quando falara com ele. Considerava que fora um grande erro. Nunca se devia dizer a quem quer que fosse mais do que o estritamente necessário, nunca se devia dizer a verdade desde que uma mentira fosse o suficiente.
Talvez J. T. já se tivesse esquecido disso. Não lhe parecera que ele estivesse sóbrio. Vincent devia tê-la advertido quanto ao vício dele pela bebida.
Tess não sabia grande coisa a respeito de J. T. Vince limitara-se a dizer-lhe que ele era o tipo de homem que podia fazer tudo o que decidisse fazer, mas que, aparentemente, não desejava fazer muita coisa. Criado no seio de uma família abastada da Virgínia que conhecia gente muito influente, tinha frequentado a Academia de West Point, estabelecimento militar que abandonara por razões desconhecidas, tendo-se alistado nos fuzileiros navais. Porém, algum tempo depois, deixou os fuzileiros, começando a trabalhar por conta própria, não tardando a adquirir a reputação de uma intrepidez que raiava a insanidade. Como mercenário, fora o responsável por façanhas que eram consideradas impossíveis de concretizar, mostrando-se indiferente a tudo o que não se pudesse medir por esses empreendimentos. Odiava a política e amava as mulheres. Mostrava-se fanático quanto ao cumprimento da sua palavra, sem se comprometer com o que quer que fosse além disso.
Cinco anos antes decidira pôr fim à sua actividade de mercenário sem apresentar qualquer explicação. À semelhança do filho pródigo, regressara à Virgínia e, num arroubo súbito de impetuosidade imperscrutável, decidira casar, adoptara o filho da mulher e instalara-se nos subúrbios, como se durante toda a sua vida tivesse sido, única e exclusivamente, um vendedor de calçado. Mais tarde, um rapaz de dezasseis anos com um Camaro novo, e uma carta de condução ainda mais recente, causou a morte da mulher e do filho numa colisão frontal.
Foi nessa altura que J. T. desapareceu no Arizona.
Nunca passara pela cabeça dela que ele bebesse. Também não esperara que ele continuasse a ter tanta força física. Imaginara que seria um homem mais velho, mais brando, senão mesmo um pouco passado, um homem que em tempos atingira toda a sua pujança, mas que agora tivesse começado a sofrer algum declínio físico. Ao invés, dera com ele a tresandar a tequila, embora com um corpo muito musculado e em excelente forma física. Movimentara-se com toda a agilidade, imobilizando-a no chão sem o mínimo esforço. Tinha cabelo preto, sem quaisquer falhas, e pêlos densos que lhe cobriam o peito e os braços.
Jim não tinha pêlos no corpo, tal como lhe faltava cabelo. A sua pele era macia como o mármore. Como um nadador, pensara ela; só muito mais tarde é que se apercebera de toda a extensão da sua ingenuidade. O toque das mãos de Jim sempre havia sido frio e seco, como se o homem fosse perfeito de mais para uma coisa tão comezinha como transpirar. A primeira vez que Tess o ouvira a urinar, experimentara uma vaga sensação de perplexidade; ele dava a impressão de se encontrar acima de tais funções biológicas tão básicas.
Jim sempre tivera a perfeição de um manequim. Quem lhe dera poder ter continuado a acalentar aquele pensamento por mais tempo.
Estava disposta a manter-se junto de J. T. Dillon. Em tempos, ele tinha salvo órfãos. Fora casado e tivera um filho. Havia destruído coisas por dinheiro.
Estava certa de que ele serviria para os seus objectivos.
E se o preço de a ajudar fosse excessivo para J. T. Dillor
Mas ela já possuía resposta para essa pergunta; passara vários anos a chegar a uma conclusão quanto a esse assunto.
Tempos houve em que Tess sonhara com um cavaleiro intrépido que viria em seu socorro. Alguém que jamais a agrediria fisicamente. Alguém que a abraçasse, dizendo-lhe que, finalmente, estava em segurança.
Agora recordava-se da sensação que tivera quando o dedo se apertara à volta do gatilho. A resistência do gatilho, o solavanco do gatilho, o troar da arma quando o projéctil fora disparado e o zumbido que lhe deixara nos ouvidos.
O cheiro acre da pólvora e o som do grito enrouquecido que Jim soltara. O barulho surdo que o corpo fizera ao cair no chão. O cheiro cru a sangue fresco que começara a formar uma poça na carpete da sala da sua casa.
Tess recordava-se de todas essas coisas.
Ela sabia que podia fazer qualquer coisa que decidisse fazer.
Mas agora já passava das nove e a data era catorze de Setembro. Tinha conseguido sobreviver a outro ano, apesar de estar de ressaca, desidratado e agoniado até aos poros da sua própria pele. Nada de mais tequila. Em vez disso, optou por beber cerveja.
Já ia na terceira quando Rosalita chegou para fazer a limpeza anual pós-orgia de bebedeira. Tendo nascido no seio de uma família com onze crianças, Rosalita servira-se dos seus instintos de sobrevivência para se tornar uma das melhores prostitutas de Nogales. J. T. conhecera-a durante a primeira semana depois de se ter mudado para Nogales, tendo-a engatado da maneira habitual. Com o decorrer dos anos, a relação que se estabeleceu entre os dois, de um modo qualquer, evoluíra em algo que nenhum deles se atrevia a rotular. Na qualidade de prostituta, Rosalita não tinha um pingo de moral nem de vergonha, mas, como mulher de negócios, os seus princípios de ética eram a toda a prova, a par de possuir a agressividade de um tigre. Ela era uma das poucas pessoas que J. T. respeitava, além de pertencer a um número de pessoas ainda menor em que ele confiava. Quem sabe se não se teriam tornado amigos.
Ela escarranchou-se em cima das pernas dele; vestia uma saia vermelha de um tecido transparente e uma blusa branca sem mangas que atava abaixo dos seios generosos. Com uma mão, J. T. agarrou-lhe uma anca. Ela não pareceu reparar. Toda a sua atenção estava concentrada no rosto dele.
Tinha coberto o torso nu de J. T. com uma toalha das mãos verde, já com bastante uso. Naquele momento, mexia a espuma de barbear numa pequena bacia que tinha ao seu lado direito, espalhando-a abundantemente pela cara de J. T. Rosalita achava que os homens deviam barbear-se à moda antiga - com uma navalha de barbear e muitas intenções demoníacas.
Ele tinha respeito suficiente pelo temperamento dela para se manter completamente imóvel.
Deixou-se ficar, observando o mundo a adquirir a tonalidade azulada e pouco definida do calor que ele começara a conhecer ao longo dos últimos anos passados ali; e até mesmo então, até mesmo naquele momento, ele sentiu quando ela entrou na sala.
Estava descalça, pelo que os seus passos na madeira dura eram silenciosos, mas anunciou ao mundo a sua chegada através da fragrância que usava. Ele tinha apenas seis anos quando o pai o ensinara a pôr as roupas que vestira a arejar, a lavá-las com sabão que não tivesse cheiro, e a bochechar com água oxigenada para que os veados não conseguissem farejar nada enquanto ele se aproximava furtivamente por trás deles. Nesses tempos, aceitara tais ensinamentos imbuído de uma admiração reverente. O seu pai, escorreito que nem a tira de um chicote, sempre direito que nem a vareta de uma espingarda e duro que nem uma cascavel, aos seus olhos, o pai era um ser omnipotente, o único homem que conhecia que era capaz de aniquilar um veado com hastes de seis pontas com um único tiro. Era inegável que o coronel tinha tido os seus talentos.
Rosalita avistou Angela na ombreira da porta. Imediatamente, os seus dedos enclavinharam-se no queixo dele.
- Hijo de puta - vociferou ela, furiosa.
- Angela, esta é a Rosalita, Rosalita, esta é a Angela. A Angela é, de momento, uma convidada da nossa estância turística de luxo. Quanto à Rosalita... o que é que havemos de dizer que és? Uma hospedeira e apresentadora de craveira internacional? - J- T. lançou um olhar de relance a Angela. - Todos os anos, no dia catorze de Setembro, a Rosalita vem cá a casa para me limpar. Pode-se dizer que é o seu programa de visita frequente da casa.
Angela fez um acenar de cabeça enquanto o seu olhar ia dele a Rosalita com um mal-estar que era notório. A tensão que pairava na sala era palpável.
- Muito prazer em conhecê-la - disse por fim, num tom de voz que era a expressão da cortesia.
Rosalita ficou como que hirta, mas depois começou a sorrir. Em seguida, desatou a rir. Repetiu as palavras que dirigiu a J. T. em espanhol, após o que se riu ainda com mais vontade. Muito prazer em conhecê-la... Não era coisa que habitualmente as outras mulheres dissessem às putas. Somente uma rapariga com bons princípios se sentiria compelida a dizer uma coisa daquelas; naquela fase da sua vida, Rosalita sabia que não tinha nada a recear das ditas ”meninas de bem”.
Pegou na navalha de barbear, empurrou a cabeça de J. T. para trás e expôs-lhe a garganta. Encostou a extremidade cortante à base do maxilar e fê-la deslizar lentamente para baixo, os olhos negros a chisparem.
Numa manifestação de nervosismo, Angela susteve a respiração.
- Ela ainda não pode matar-me - adiantou J. T. no mesmo tom com que falaria do tempo. - Sou um dos poucos homens que se pode dar ao luxo de lhe pagar o que ela vale.
Com quatro movimentos vigorosos, Rosalita barbeou-lhe o pescoço sem deixar um único pêlo. Em seguida, empurrou-lhe a cabeça para que ficasse de lado, concentrando a sua atenção numa das faces.
Finalmente, Angela decidiu-se a entrar na sala; vestia uma camisola branca de alças, já com bastante uso, e uns calções de caqui desfiados nas orlas que, muito provavelmente, noutros tempos lhe teriam assentado bem. Mas, agora, estavam-lhe muito largos. À luz do dia, o cabelo tinha um aspecto muito pior, mal pintado e cortado às três pancadas - como se ela usasse uma cabeleira postiça de qualidade inferior. Por nenhuma razão que pudesse explicar, aquilo irritou-o tremendamente.
- Como é que está o seu pulso? - perguntou-lhe numa voz rosnada que surpreendeu tanto Rosalita como a própria Angela.
- O meu pulso?! Ah... sim. Está óptimo. Apenas um pouco pisado.
- Ponha-lhe este gelo que está aqui.
- Não, não vale a pena. Nem sequer está inchado. - Começou a andar na ponta dos pés pela extremidade lateral da sala, de costas para a parede. Enquanto J. T. a observava, continuando a procurar alguma coisa que pudesse fazer para se sentir melhor, ela fez uma inventariação cautelosa de todas as saídas. Pelo menos, existira alguém que lhe dissera uma ou duas coisas.
O olhar de Angela prendeu-se no iguana, e ela franziu a testa.
- Verdadeiro - adiantou J. T.
- O quê?
- O iguana. Chama-se Glug. Está vivo.
- Oh! - exclamou Tess olhando para Glug durante uns momentos. A criatura não se mexeu. - Que é feito do Freddie? - perguntou a J. T.
- Dei-lhe um dia de folga.
- Deu-lhe um dia de folga?
- Sim - confirmou ele.
- Portanto, isso quer dizer que não há mais ninguém aqui?
- O mais provável é a Rosalita não gostar que lhe chamem ninguém.
- Mas ela não vive cá em casa, pois não?
- Não - retorquiu J. T.
- Portanto, hoje só você é que estará por aqui, não é verdade? - Era evidente que ela se sentia bastante enervada. A sua postura passou da descontracção ao estado de alerta. Pernas afastadas, ombros para trás, ancas em Posição de rotação para manter o equilíbrio. Tal como acontecera na noite anterior, a postura dela alertou-lhe o cérebro.
Abruptamente, reconheceu o que tinha diante dos olhos.
- Polícia.
Ela ficou como que petrificada.
- Hum... hum. Reparei nisso ontem... Você tem a postura de um polícia. Pés afastados, peito para fora para não perder o equilíbrio. A perna esquerda ligeiramente recuada a fim de manter o coldre fora do alcance de quem estiver à sua frente.
Tess pareceu sentir-se acossada.
Ele franziu o sobrolho, inclinando mais a cabeça de lado, de modo a facilitar a tarefa de Rosalita.
- No entanto, tenho a certeza de que não é da polícia. Nem sequer é capaz de empunhar uma arma.
- Não sou polícia nenhuma - confirmou ela num resmungo.
- Sendo assim, quem é você, Angela! E o que é que se passa com a sua filha?
- Que filha? - perguntou ela numa voz de falsete.
- Ora, deixe-se disso. Você nem sequer é capaz de mentir convincentemente.
- Nesse caso, vai ter de me ensinar como fazê-lo - ripostou ela com um sorriso contraído.
- Idiotas - atalhou Rosalita. Com um gesto brusco, pegou na toalha, limpando os restos da espuma de barbear que tinham ficado no rosto de J. T., o que fez com mais força do que era necessário. - Hombres y mujeres? Bah! Perritos e gatitas.
Com outro abanar de cabeça, apoiou a palma da mão no peito de J. T., firmando-se para se levantar do colo dele. J. T. imobilizou Rosalita, agarrando-lhe o pulso.
- Espera. - Torceu o corpo de forma lasciva colocando as ancas de linhas generosas contra as suas virilhas, numa posição de grande intimidade. Angela imobilizara-se, como se estivesse à espera de uma nova forma de ataque.
- Olha bem para ela - continuou J. T., apontando para Angela. - Olha para o corte de cabelo dela, Rosalita. Não podemos permitir-lhe que ande por aí numa figura destas.
Rosalita mirou Angela de alto a baixo com um olhar cheio de mordacidade. Era por de mais evidente que não se sentia nada bem impressionada com a aparência da outra.
- Não tenho estômago para suportar mais, Rosalita. Com um cabelo como aquele, só lhe falta coser uma tira com a palavra ”fugitiva” no casaco. Importas-te de tentar fazer qualquer coisa que melhore o aspecto dela? Vamos levar isso à conta da minha boa acção da década.
- Você é demasiado generoso - comentou Angela numa voz murmurada.
- É claro que estou disposto a pagar-te - acrescentou J. T. concentrando-se em Rosalita.
Pagamento foi a palavra mágica. Rosalita começou por pedir vinte, mas acabou por se ficar por dez. J. T. tirou a quantia estipulada do dinheiro para cortar o cabelo a uma Angela que se mostrava extremamente céptica, salientando que Rosalita, com certeza, não faria pior do que a própria Angela fizera. Momentos depois, Rosalita já tinha Angela sentada na cadeira até então ocupada por J. T., com a toalha verde à volta do pescoço. Enquanto lavava o cabelo de Angela, que depois começou a cortar com um jeito de quem entendia do assunto, J. T. instalou-se na beira do sofá, abrindo outra garrafa de cerveja, apesar do ar de censura com que Angela o brindou. Agora que ela tinha a mão no colo, podia ver o pulso. Verificou que estava muito pisado.
Portanto, agora deu-te para bateres em mulheres, J. T. Até onde é que tencionas descer com essa atitude aviltante?
Na quietude desconcertante que se abatera sobre a sala, ele não encontrou resposta à pergunta que fez a si mesmo. Nunca se considerara um homem excepcional, nem sequer um homem bom, mas nem por isso deixava de ter alguns princípios que lhe proporcionavam um certo bem-estar. Não mintas e não finjas. Não causes danos físicos a pessoas mais fracas do que tu - há um número suficiente de filhos-da-puta que andam por aí e que merecem esse tipo de tratamento. Nunca, mas nunca, magoes uma mulher.
Se Rachel o pudesse ver naquele momento, decerto que se sentiria envergonhada.
- Terminei - anunciou Rosalita.
Com relutância, J. T. virou-se para trás a fim de inspeccionar a nova aparência de Angela. Ficou imobilizado, demasiado atordoado para conseguir proferir uma única palavra.
Rosalita cortara a maior parte do cabelo de Angela. Agora tinha umas madeixas intrincadamente espetadas à volta das orelhas, uns tufos esparsos na nuca e umas farripas de franja na testa e junto dos olhos. O cabelo tão curto devia dar-lhe o aspecto de um adolescente, não fosse o pormenor de os jovens não terem, em geral, maçãs do rosto tão salientes, narizes tão pequenos nem lábios tão carnudos. Os adolescentes não tinham olhos amendoados de um castanho-dourado, emoldurados por pestanas exuberantes.
- Meu Deus! - exclamou, admirado. - Meu Deus! - Começou a andar de um lado para o outro. Nessa altura, J. T. já sentia a tensão a enrolar-se na sua barriga. - É... é um princípio. - A própria Angela dava a impressão de ter ficado um pouco atordoada ao ver aquela transformação quando se mirou num espelho de mão.
Entretanto, Rosalita afastou-se com a sua pequena bacia onde preparara a espuma para a barba, deixando os dois na sala de estar. Fez-se um silêncio de constrangimento. Os dedos de Angela começaram a agitar-se no colo como se não soubessem o que fazer.
- Quer ouvir um conselho? - perguntou J. T. de súbito. - É de graça.
- Isso não perfaz duas boas acções no mesmo dia? Pensei que você já tinha preenchido a sua quota-parte do ano.
- Apanhou-me num momento de fraqueza. Mas vamos lá a saber; quer o conselho ou não?
- Está bem.
- Pinte o cabelo - continuou ele, determinado. - É aí que está o truque dos disfarces... arranjar qualquer coisa que parece ainda mais genuína do que a pessoa que somos. Eu recomendaria um castanho-escuro ou acobreado, um tom qualquer que se ajuste à sua cor natural de cabelo. Então, ficará com outra aparência física, ainda que subtil. Neste momento, o seu disfarce é demasiado óbvio.
- Oh...
- Portanto, aí tem. Vá ao supermercado e compre tinta para o cabelo e verá que trinta minutos depois já terá outra aparência.
- Obrigada - agradeceu ela.
- O conselho não foi nada de especial - retrucou J. T. com um sorriso arreganhado.
- J. T. - começou ela. - Com respeito a ontem. Preciso de falar consigo; importa-se de...
- Tem fome? - atalhou ele virando-se para ela. - Precisa de se alimentar melhor. Posso preparar-lhe umas papas de aveia.
Ela hesitou, querendo obviamente retomar o assunto anterior.
- Com essa já são três boas acções - salientou.
- Culpe a maneira como fui criado. Acredite que é o que eu faço.
- Imagino que o pequeno-almoço seria boa ideia - concordou ela fazendo um gesto com a cabeça em direcção à garrafa de cerveja vazia que oscilava na ponta dos dedos dele. - Mas parece que você já tomou o seu.
- É verdade.
- Bebe sempre tanto?
- Apenas em excesso - respondeu J. T.
- O Vince não me disse que você era um alcoólico.
- Ao contrário do que diz, não sou um alcoólico, abstémia presumida - ripostou ele batendo com a garrafa na coxa. Ela falava com um determinado sotaque. Um sotaque do Norte. Denotava uma boa educação. O que teria trazido uma mulher do Norte com bons princípios até à fronteira com o México, percorrendo uma distância tão grande, exausta, mal alimentada e manifestamente aterrorizada?
O olhar dele prendeu-se nas coxas dela.
Merda!
Deu um passo em direcção a ela. Angela retraiu-se. Mas isso não interessava.
Ele acercou-se dela, apesar de Angela se ter inclinado toda para trás, como se quisesse afundar-se na cadeira. Exibia uns olhos muito abertos e receosos. Ele ignorou a perturbação que se espelhava no rosto dela, estendendo a mão e passando um dedo pela cicatriz feia que lhe desfigurava a coxa de pele clara. Era larga. Luzidia. Se fosse um rio, dir-se-ia que tinha muitos afluentes sinuosos, a espécie de cicatriz que teria tido origem numa fractura exposta em que o osso rasgara a carne.
- Foi ele que fez isto?
Ela não lhe deu resposta.
- Raios partam! Foi ele que lhe fez isto?
Ela abriu a boca, mas arrependeu-se, limitando-se a olhá-lo com fixidez.
- Quem diabo é você, Angela?
- Uma mulher que precisa que a ajudem.
- O seu marido era assim tão brutal?
- Não - respondeu ela sem rodeios. - Ele era muito pior.
Apesar destes pensamentos, detestava ver aquela cicatriz na coxa dela. Fazia com que pensasse em coisas que se empenhara em esquecer durante os últimos anos. Aquilo levava-o a querer encontrar o ex-marido de Angela para lhe desfazer o rosto com os seus próprios punhos.
Obrigou-se a expulsar a tensão que o invadia, bebendo um gole da cerveja. Só voltou a falar depois de ter a certeza de que a ira o tinha abandonado.
- Vou fazer as papas de aveia.
- Obrigada.
- Minha querida, ainda nem sequer as provou.
Angela foi com ele para a cozinha. J. T. tinha grande orgulho naquela divisão da casa: fora Rachel quem a desenhara. Ele sabia muito sobre piscinas e ao longo dos últimos dois anos adquirira vastos conhecimentos de arquitectura paisagística. No entanto, no tocante à decoração de interiores, os seus conhecimentos eram bastante limitados. Nos fuzileiros, pregava-se um cartaz que tivesse a fotografia de uma mulher sensual por cima da cama, e isso era considerado o toque final da decoração.
Rachel fora dotada de uma habilidade natural, o que lhe permitira desenhar a casa que tencionavam construir no estado de Montana, uma região onde o firmamento era infinito e em que se sentiriam sempre em liberdade. Ele iria aprender tudo sobre a criação de cavalos. Ela estudaria decoração de interiores. Talvez decidissem ter um segundo filho, dar uma irmãzinha a Teddy, com quem ele pudesse brincar. E o garoto e a irmã seriam criados como devia ser, sem a presença de quaisquer recordações más que os mantivessem acordados durante a noite quando já fossem adultos.
Porém esses sonhos tinham-se esfumado. A J. T. restava apenas a cozinha de Rachel, um espaço amplo e fresco com o chão de tijoleira vermelha e bancadas azul-claras. O fogão era grande e realçado por uma grinalda de malaguetas verdes. De uma armação metálica suspensa do tecto pendia uma grande colecção de tachos, panelas e frigideiras em cobre. J. T. colocara cada um no lugar onde calculara que Rachel os teria colocado; ouvira-a descrever cheia de entusiasmo, noite após noite, a cozinha dos seus sonhos quando ambos estavam deitados na cama, dando largas à imaginação como se fossem crianças.
- É uma cozinha muito agradável - comentou Angela, que ia atrás dele. - Costuma cozinhar muito?
- Não sei cozinhar absolutamente nada - replicou J. T., dirigindo-se para as portas corrediças de vidro que Rosalita deixara ligeiramente entreabertas. O calor filtrava-se como o tentáculo de um monstro. Fechou as portas.
- Não vai trancá-las?
- Trancar o quê?
- As portas.
- Não - respondeu ele.
Houve uma pequena pausa. J. T. ficou a olhar para os tachos e panelas, sem saber bem qual é que haveria de escolher. Há muito tempo que não tentava cozinhar o que quer que fosse; essa era uma tarefa que cabia a Freddie.
- Costuma trancar a porta da frente? - insistiu Angela.
- Não.
- Importa-se... importa-se que eu a tranque?
- Minha doçura, estamos em Nogales, ou melhor, nos arredores de Nogales. Aqui não precisamos de nos preocupar com esse tipo de coisas.
- Por favor - pediu ela num tom de súplica.
- Você está com medo - comentou. - Acredita que ele a seguiu até aqui? Esse seu ex-marido tão grande e tão mau?
- É bem possível. Ele é muito, mas mesmo muito bom a fazer isso.
- Mas disse-me que tinha pago todas as despesas com dinheiro e que usou nomes falsos - contrapôs J. T.
- Sim - confirmou ela.
- Então, não há razões para se preocupar. - J. T. virou-se para o fogão, mas ouvia os movimentos dela atrás de si; pouco depois escutou o estalido seco do fecho da porta corrediça a ser trancado. Fizesse-se como ela queria. Não achou que valesse a pena falar-lhe do pequeno arsenal que guardava no cofre, tal como não mencionou que até mesmo perdido de bêbedo era capaz de acertar na efígie de Lincoln numa moeda pequena a uma distância de duzentos metros. Se ela queria assim tanto que as portas estivessem trancadas, não seria ele quem se oporia.
Pôs a água a ferver. Abriu uma lata de papas de aveia, perguntando a si mesmo qual a quantidade que devia adicionar à água. Juntou metade, dizendo a si mesmo: ”Que se lixe!” Se era capaz de armadilhar explosivos, com certeza que também seria capaz de preparar umas simples papas de aveia.
- Regra geral, as pessoas medem a quantidade - disse Angela, que entretanto voltara para a cozinha.
- Eu gosto de viver perigosamente.
- Quero que me devolva a minha arma.
- A calibre ponto vinte e dois que está encharcada? Teria mais hipóteses com uma fisga.
- Quero que me dê a minha arma - insistiu ela.
Aquela insistência irritou-o. Havia gente a mais a pensar que as armas resolviam tudo. Mas não resolviam. O que ele tinha obrigação de saber. Não havia nada que não pudesse fazer com uma carabina e, contudo, todos os que tinha amado haviam sido destruídos. As armas não serviam para resolver absolutamente nada.
- Primeiro, vamos tratar da questão do pequeno-almoço. - Serviu as papas de aveia em duas tigelas. As papas tinham a consistência de cimento. Espalhou umas quantas passas nas duas tigelas, para que ela ingerisse mais ferro, e encheu dois copos de leite. Angela ficou a olhar para as papas de aveia como se fossem uma forma de vida que nunca tivesse visto. - Coma - disse-lhe J. T. - Os tipos duros nunca viram costas a uma refeição nutritiva. Que diabo, se estivéssemos lá fora, eu até lhe teria adicionado uns quantos bichinhos. Não sei se sabe, mas são quase exclusivamente compostos de proteínas.
- Não, não sabia - confessou ela e, por fim, um pouco a medo, encheu a primeira colher que levou à boca. Tinha os olhos fechados. Parecia uma criancinha, e J. T. deu consigo a pensar em Teddy uma vez mais, sentindo uma aguilhoada de emoção que era um misto de doçura e amargura. - Que porcaria! - comentou ela.
- Eu avisei-a de que não sabia cozinhar. - Comeu três colheradas seguidas. - Não mastigue, vai ver que conseguirá engolir com mais facilidade.
Angela tinha uma expressão horrorizada. Empurrou a tigela, afastando-a da sua frente, mas, com a mesma prontidão, ele voltou a empurrá-la para diante dela.
- Coma! - ordenou J. T. - Eu não estava a brincar há bocado... Os soldados comem tudo o que lhes põem à frente. Além do mais, você está a precisar de ferro, Rambo, portanto, deixe de sonhar com o serviço de quartos dos hotéis.
Durante alguns momentos, pareceu que ela se preparava para o desafiar. Pouco depois, porém, Angela voltou a pegar na colher, olhando para as papas de aveia como se fossem o cume de uma montanha que era obrigada a escalar.
- São apenas papas de aveia, Angela, e não o Armagedão.
Ela comeu tudo o que tinha na tigela, e em seguida levantou a louça da mesa sem dizer palavra. Depois, começou a lavar a louça com os movimentos coordenados de alguém que durante toda a sua vida executara tarefas domésticas.
- O que o levou a mudar-se para o Arizona? - perguntou Angela. Ruidosamente, empilhava os pratos acabados de passar por água ao lado do lava-louça. Ao que tudo indicava, o pulso magoado não a incomodava.
- Aqui a lei não exige o uso de capacetes - respondeu J. T.
- Oh... - Angela esgotara os assuntos de conversa. Ele próprio há muito que os havia esgotado. Mentalmente, começou a contar os segundos. Contou apenas até seis quando ela fechou a torneira, fitando-o com uma expressão muito determinada. - Eu não tenciono, repito, não tenciono ir-me embora - anunciou ela. - Preciso da sua ajuda. Mais cedo ou mais tarde acabará por se convencer do que lhe estou a dizer.
- Não vou convencer-me de nada disso. Tem estado sempre a mentir-me com quantos dentes tem na boca.
- Você não quer saber a verdade - ripostou ela estreitando os lábios.
- Conheço bem os homens como você. Não quer vir a envolver-se. Pensa que está muito feliz por viver num vácuo de autocomiseração.
- Autocomiseração, é isso o que se passa comigo? Primeiro foi o eu beber de mais e agora temos a autocomiseração. Costuma ver muitos programas de televisão da Oprah?
- Acredita que para si será muito melhor se não voltar a interessar-se pelo que possa acontecer aos outros.
- É capaz de me provar o contrário?
- Não preciso que se interesse com o que possa acontecer-me, Mister Dillon. Não preciso que se incomode com o meu bem-estar. Só pretendo que, em qualquer dos casos, me dê treino militar.
- Você quer que eu seja um cãozinho de estimação - corrigiu J. T. - Quer que eu ouça as suas mentiras, que faça como me pede, sem nunca questionar seja o que for. Sei bem como é que o seu raciocínio funciona. Eu também já vi os programas da Oprah.
Arrastou a cadeira para trás, levantando-se da mesa. Transpôs a barreira que era a bancada. Continuou a avançar; os olhos semicerrados eram fendas escuras. Viu que ela abria a boca, mas desta não saiu qualquer palavra de protesto. Angela recuou um passo, mas foi barrada pelo lava-louça da cozinha. Estava encurralada.
Ele encostou-a à bancada. A respiração dela começou a acelerar-se, mas nem por isso se mostrava mais disposta a ceder. Numa atitude de desafio, ergueu o queixo e não desviou os olhos que mantinha presos nos dele. J. T. inclinou-se para ela, achatando-lhe os seios contra o seu torso nu, premindo o corpo contra o dela para que Angela tivesse bem a noção do que seria capaz de fazer. Baixou a cabeça até ela poder sentir a sua respiração na face; numa tentativa vã de pôr distância entre si e J. T., Angela susteve a respiração.
- Não acredito em si - continuou ele numa voz perigosamente suave. - Não acredito que uma mulher abandonasse a filha, fazendo uma viagem em que percorreu metade do país para ir a casa de um mercenário apenas porque o ex-marido a persegue. Além do mais, não gosto que me mintam nem que tentem usar-me. - Apoiou as mãos firmemente em cima da bancada.
- E por que razão não pode uma mulher contratar os serviços de um profissional cheio de experiência? - Num gesto de nervosismo, Angela lambeu os lábios, mas, ao aperceber-se do que fazia, deteve-se, continuando com uma expressão de fúria. - Os maridos, namorados e pais passam a vida a matar mulheres.
- Contrate um guarda-costas - sugeriu J. T.
- Mas eu não quero nenhum guarda-costas! Quero aprender a lutar corpo a corpo. Quero aprender para poder proteger a minha filha. Estou farta de andar fugida, sempre acossada pelo medo. Você... - continuou Angela espetando um dedo no peito dele. - Você, provavelmente, não sabe nada sobre o que é uma pessoa sentir-se vulnerável, viver num temor constante. Mas eu sei como é. E estou farta de levar uma existência nesses termos. Quero recuperar a minha vida. - Dito isto, pegou numa das tigelas e partiu-a contra o interior do lava-louça. Pegou num dos cacos aguçados, empunhando-o como se fosse uma faca. - É possível que eu, em tempos, tivesse sido lenta a reagir. Talvez tenha chegado mesmo a pensar que se me portasse suficientemente bem, se fosse muito obediente, se mostrasse doçura, essa atitude bastaria para me manter a salvo de todas as adversidades. Pois bem, decidi deixar-me de ”doçuras”, tal como me deixei de ”obediências”. Portanto, não tente brincar comigo, Mister Dillon. Não faz a mais pequena ideia daquilo de que sou capaz!
Encostou o caco aguçado ao peito nu de J. T., com força suficiente para deixar marcas na sua pele. A extremidade do caco de louça percorreu o ziguezague da cicatriz que se estendia pelo esterno, O responsável por aquela cicatriz fora um homem conhecido pelo seu mau feitio, mãos ágeis e uma profunda falta de compaixão. J. T. perscrutou os olhos de Angela Para tentar descortinar se aquela faceta faria parte da sua maneira de ser.
Não lhe reconhecia agilidade de movimentos. Tal como não lhe reconhecia perícia. Mas no seu olhar descobriu algo melhor do que isso: falta de compaixão.
- Meu Deus, você é uma mulher perigosa!
- Estou a aprender - ripostou ela.
Naquele momento, ouviram um barulho inesperado que sobressaltou os dois. O soar agudo e penetrante de sirenes. Sirenes com o seu som pungente que se aproximavam da casa. J. T. deu um passo à retaguarda.
O seu primeiro pensamento foi para Marion, mas depois reparou na sua hóspede. Ela tinha ficado como que petrificada. E parecia aterrorizada. Por que razão os polícias haveriam de atemorizar uma mulher que andava fugida do ex-marido? E foi então que ficou com a certeza absoluta de que tinha sido usado.
- O que é que você fez?
- Nada. Absolutamente nada - respondeu ela numa voz que mal se ouvia.
O som das sirenes ouvia-se cada vez mais próximo. Três carros-patrulha, calculou ele. Três veículos da polícia que se aproximavam do seu caminho particular de acesso à casa, destruindo a sua paz e sossego.
- Por que motivo tem tanto medo? O que está a esconder-me?
Os olhos dela tinham deixado de espelhar determinação. Tentou afastar-se dele, mas o aperto era demasiado forte.
- Largue-me. Não fiz nada de mal. Só não quero que ninguém saiba que estou aqui. Muito em especial, os polícias.
- Não me diga que é assim tão tímida, Angela?.
- Não é seguro. Ele tem contactos...
- Ele. Com certeza, Angela, esse ”ele” tão omnipotente. O homem misterioso que talvez ande, ou talvez não, a persegui-la, que talvez tenha, ou não, causado a cicatriz que tem na perna, o homem que talvez exista ou talvez não. Começo a estar farto dele, Angela. Você quer que eu a ajude, mas, se é assim, vai ter de fazer muito mais para o conseguir.
- Mas não estou a mentir! O Jim quer ver-me morta. Não, ele quer que eu sofra atrozmente. Eu vi as fotografias. Vi bem o que ele fez...
A voz esmoreceu-lhe. Mas, depois, Angela ficou como louca, começando a bater furiosamente em J. T. Tentou ferir-lhe o ombro com o caco de louça, mas ele conseguiu esquivar-se à agressão, derrubando a arma improvisada que caiu da mão dela.
- Largue-me! - gritou ela tentando soltar-se.
As sirenes deixaram de se ouvir quando os carros-patrulha pararam com um chiar de pneus.
- Oh, meu Deus... - murmurou Angela. - Talvez ele já saiba que estou aqui.
As mãos de J. T. firmaram-se nos ombros dela, mas, inesperadamente, deixou de se sentir tão seguro. O medo que ela demonstrava era demasiado genuíno, o pânico que se apoderara dela era verdadeiro de mais. Agora começava a sentir os tremores que lhe sacudiam o corpo, abalando a sua constituição frágil.
- Fale comigo, Angela, diga-me a verdade. Vamos lá, seja sincera.
- Ele era polícia! Não está a perceber? O Jim era um chui!
Chocado, J. T. retrocedeu e, sem se aperceber do que fazia, largou-a.
Apesar de estar surpreendido, não sabia porquê. Não existia nenhuma regra que estipulasse que os agentes policiais eram obrigados a ser boas pessoas, do mesmo modo que não havia garantias de que os coronéis do exército, figuras respeitadas, não torturariam os seus familiares como passatempo. Angela colocou-se no meio da cozinha. Mantinha os braços à volta da cintura magra.
- Preciso que me devolva a minha arma. Dê-me a arma.
- Não posso fazer-lhe a vontade.
- Oh... de que é que tem receio? Pensa que vou tentar abrir caminho para sair daqui com uma arma que mais parece um brinquedo?
- Uma arma não lhe servirá de nada.
- É a única coisa que até agora me tem ajudado - retorquiu Angela começando a descrever círculos com uma rapidez estonteante. - Vou-me embora. Pode dizer-lhes o que bem lhe apetecer. Não vou permitir que me encontrem aqui. Estava convencida de que no seu trabalho a palavra confidencialidade tinha algum significado.
- Espere...
- Não tenho tempo - atalhou ela encaminhando-se para a porta da cozinha.
Ambos ouviram o barulho da primeira de várias portas de automóveis que eram abertas, e depois fechadas, com estrondo.
Angela não se virou. Segundos depois, J. T. ouviu a porta do quarto dela a fechar-se, e o barulho familiar da cavilha que trancava o puxador. Começou a imaginar a pequena Angela a saltar por cima da cabeceira da cama, agachando-se por detrás como o último homem a morrer na batalha de Álamo.
Ficou sozinho na cozinha, com a sensação desnorteante de que tudo havia fugido ao seu controlo. E se por acaso aquele ex-marido tivesse chegado efectivamente? Como é que nos últimos tempos ele se tinha preparado para uma eventualidade dessas? Como poderia manter-se à margem?
Foi então que começou a ouvir a voz através do megafone. Os seus ombros descontraíram-se. Os seus lábios esboçaram o trejeito de um sorriso. A voz não era a do grande, mau e demoníaco Jim.
Era apenas a sua irmã que fora chamada por Freddie e que chegava numa missão de socorro.
Marion Margaret MacAllister tinha cometido apenas dois pecados em toda a sua vida. O primeiro fora ter nascido em segundo lugar. O segundo, ter nascido mulher.
Ao longo do tempo, fizera os possíveis e impossíveis com o objectivo de rectificar estes dois pecados. No mundo dos homens do FBI, ela conseguia suplantar os seus colegas do sexo masculino, quer na carreira de tiro quer na luta corpo a corpo, tal como possuía mais capacidade de raciocínio do que qualquer um deles. A sua bela presença de loura fria tinha-lhe granjeado a alcunha de ”Homem de Gelo”. O que lhe agradava bastante.
Até há duas semanas, ocasião em que o seu mundo começara a desmoronar-se.
Acabara de completar trinta e quatro anos, tendo ficado para trás, uma vez mais, na altura das promoções, com o pretexto de que era demasiado nova. William Walker, que conseguira o posto que ela almejava para si própria, tinha apenas trinta e seis anos... e caíra nas boas graças da filha do director-adjunto. O pai de Marion estava a morrer de cancro da próstata, uma morte que se arrastava interminavelmente, e o marido, com quem casara dez anos antes, deixara-a, tendo-a trocado por uma empregada de mesa de um bar com apenas vinte e dois anos.
E foi nesta fase da sua vida que, na noite anterior, recebera o telefonema de Freddie. Tinha de reconhecer que J. T. sempre tivera um excelente sentido de oportunidade.
Fez um gesto aos colegas da polícia de Nogales para que se deixassem ficar para trás, aproximando-se sozinha da casa. Vestia o seu fato de calças e casaco preferido, em azul-marinho. Era elegante e muito formal. Também era um género de vestuário demasiado quente para o clima do Arizona. Concentrou-se na frescura do metal da arma que tinha presa junto às costelas enquanto a poeira que andava no ar lhe causava ardor nos olhos.
- Bom dia, Marion - saudou J. T. numa voz arrastada. Estava encostado à ombreira da porta, meio despido e com ar desmazelado, como se tivesse sido apanhado a meio de uma queca. - Que simpático da tua parte teres vindo visitar-me.
- Recebemos informação de um intruso. Portanto, vim investigar.
- E vieste de tão longe, de Washington?
- Nada é bom de mais para o meu irmão mais velho - retorquiu ela sorrindo com uma doçura cheia de ironia, sentindo a rara satisfação de ver que a sua farpa acertara em cheio. - Sai do caminho, J. T. Os agentes vão certificar-se de que não há nenhum intruso nas proximidades da tua casa.
- Não me parece.
- Jordan Terrance!
- Foi o Freddie que te ligou da cidade? - J. T. mudou de posição, cruzando os tornozelos de modo a ficar mais confortável. Ela tinha sabido através de Freddie que o irmão andava a beber excessivamente. Estivera à espera de ver os efeitos devastadores do álcool, mas J. T. sempre fora um filho-da-mãe cheio de sorte. Nem sequer os copos lhe haviam conseguido engrossar a linha da cintura nem fazer barriga. Continuava a ser o mesmo homem magro e bem musculado de que se recordava. O homem que em rapaz conseguira ganhar tudo o que era prémio de natação. O filho cuja pontaria fantástica ao tiro tornara o pai de ambos tão orgulhoso. A ela só lhe apetecia estrangulá-lo.
- O Freddie preencheu a participação - replicou ela com secura.
- Ah, e eu convencido de que ele e eu tínhamos chegado a um entendimento.
- O que queres dizer com isso?
Ostensivamente, J. T. começou a examinar as unhas das mãos.
- Sei que ele costuma telefonar-te, Marion. Também sei que é o espiãozinho do pai. Tanto tu como ele têm um medo tremendo de que um dia destes eu fique tão bêbedo que desate a contar a verdade. Mas não há razão para preocupações: há já algum tempo que ando a dizer a verdade, mas ninguém se mostra interessado em ouvi-la.
- Não percebo de que é que estás a...
- Mandei-o embora. Eu disse ao Freddie que fizesse de conta que tinha uns dias de férias a gozar... Não me pareceu que a pessoa que se encontra de visita quisesse ter a presença de público. Quanto a mim, bem... - Interrompeu-se com um encolher de ombros. - O Freddie sabe preparar umas belas margaritas. É evidente que agora vou ter de reconsiderar o seu regresso. Telefonar à polícia para participar a presença de um intruso... isso foi uma grande esperteza da parte dele. Estou desconfiado de que é muito mais esperto do que tu e eu pensávamos.
- Portanto, isso quer dizer que sempre há um intruso! Afasta-te para o lado.
- Não! - recusou J. T., peremptório.
- Raios te partam, J. T., sei muito bem que tens uma mulher dentro de casa. E o que é que sabes realmente a respeito dela? Olha bem para o que te aconteceu no passado...
- Deixa o meu passado fora do assunto.
- Vamos passar uma busca à casa, J. T. Quero que essa mulher se vá embora.
- Trazes um mandado de busca?
- Claro que não. Estamos a responder à participação de um intruso...
- E eu, na minha qualidade de proprietário desta casa, estou a dizer-te que não há intruso nenhum. E agora leva os teus homenzinhos de uniforme azul e vai intrometer-te noutra festa para que não foste convidada.
- Tu és um bêbedo teimoso, um filho da...
- Marion, nunca conseguiste aprender a ter maneiras.
- J. T., como tua irmã...
- Tu tens vergonha de mim, sentes-te constrangida por eu fazer parte da família e, nos dias francamente bons, desejarias que eu tivesse desaparecido. Estou bem ciente do que pensas, Marion. Estas trocas francas de mimos deixam-me todo lamechas e derretido por dentro.
- Assim Deus me ajude, J. T., que se eu encontrar nem que seja uma espingarda de pressão de ar em tua casa...
- Estamos no Arizona. As leis que regulamentam o porte de armas são muito frouxas. Temos de adorar esse pormenor em qualquer estado do país.
- Estou aqui para tentar ajudar-te, J. T., eu...
- Não, Marion, não estás. Continuas a fazer o que o pai te manda, o que ambos sabemos. - Subitamente, o tom de voz de J. T. suavizou-se. - Por que motivo nunca vens a minha casa apenas para me visitar, Merry Berrf. Porque é que contigo é sempre guerra?
Marion começou a sentir-se sufocada por causa dos botões da gola do casaco chegada ao pescoço e, por uns momentos, a cólera que sentia abrandou.
- Manda os chuis à sua vida. O pai nunca aprovou que os de fora metessem o nariz em assuntos de família. Ele já morreu?
- Não - respondeu Marion.
- É uma pena. Bem, foi um prazer conversar contigo. A sério que devíamos encontrar-nos com mais frequência.
- Não tenciono ir-me embora.
- Lamento muito, Marion. Sabes bem que gosto de ti, mas a verdade é que tenho uma certa alergia aos agentes federais. Sinto ter de confessar que me oriento por um código muito estrito que diz: ”Nada de chuis. Nada de agentes do FBI.” Isto no que diz respeito à minha propriedade.
- Tu és um grande sacana!
- Costumava rezar para que fosse esse o caso, mas o mais provável é eu ter herdado muito do coronel para que isso possa ser verdade. O que é uma grande pena.
A careta sorridente de J. T. informou Marion de que ele se mostrava inflexível. Na verdade, sempre fora teimoso que nem uma mula. Mas, por outro lado, era inegável que ela própria era capaz de ser tão teimosa como ele. Contudo, tinha as suas ordens dadas directamente pelo coronel.
- Muito bem. Eu deixo o meu crachá à porta.
- E quanto à banda que te acompanha? - notou J. T., acenando em direcção aos polícias que aguardavam ordens.
- Se nos puderes garantir que não há nenhum intruso dentro da tua casa, vou dizer-lhes que podem ir à sua vida.
- Oh, o intruso que está lá dentro, claro. Está-me a parecer que, de qualquer maneira, os rapazes de azul devem pôr-se a andar. - Dito isto, sorriu-lhe, e entrou fechando a porta.
Marion ficou ali a assar ao sol escaldante, com os três agentes da polícia a olharem para ela, à espera de instruções. Só lhe apetecia desatar a gritar e a praguejar, mas, mais do que isso, desejava esquecer-se de alguma vez ter conhecido o marido.
- Podem ir - disse aos agentes. - Tenho a situação sob controlo.
- Feito isto, bateu à porta da casa do irmão, preparando-se para o segundo assalto.
Tess estava sentada no chão com o ouvido encostado à porta do quarto onde dormira. Tinha tido o cuidado de trancar a porta, embora soubesse por experiência própria que não seria isso que impediria a entrada de alguém determinado. Continuava privada da sua arma, apesar de não ter a certeza do que faria caso a tivesse em seu poder. Era imperativo que ninguém soubesse que se encontrava ali, mas estaria tão desesperada ao ponto de disparar contra um agente do FBI a fim de manter a sua identidade em segredo?
Quando deu consigo a pensar que poderia limitar-se apenas a ferir a mulher, compreendeu que se sentia suficientemente desesperada.
Ouviu a troca de palavras que teve lugar na soleira da porta da frente. Agora, escutava a voz da mulher no corredor que dava para a sala de estar.
- Muito bem, J. T., onde é que ela está?
- Ela saiu por uns momentos. Fiquei com a impressão de que não nutria grande simpatia pela polícia.
- Oh? E por acaso isso, por si só, não te diz qualquer coisa, meu querido irmão!
- Apenas que passou algum tempo em Los Angeles.
- Desiste, J. T. Se a Lizzie Borden fosse viva, sem dúvida que viria ter contigo para que a ajudasses.
Tess queria levantar objecções àquele comentário, mas não podia arriscar-se a isso; eram muitos os jornais que se haviam referido a si como sendo a ”noiva de Frankenstein”. Os pasquins até tinham publicado uma suposta biografia intitulada:
”E FOI ASSIM QUE CASEI COM
O ASSASSINO DO MACHADO”
Os talk-shows da noite na televisão também contribuíram com algumas farpas.
Não gostava de pensar em Jim. Queria respostas definitivas, e a clareza que o conhecimento a posteriori proporcionava. Mas não beneficiava disso. Até mesmo decorridos tantos anos, as imagens continuavam pouco claras e desarticuladas na sua mente. A imprensa podia empacotar a sua história a seu bel-prazer. Mas tinha sido ela quem a vivera, e a verdade não lhe permitia esse luxo..
Jim Beckett havia sido um belo homem. Um indivíduo forte. Um agente de polícia com muitas condecorações, mas um homem solitário, que ficara órfão ainda em criança. A mãe fora uma mulher muito débil, sempre adoentada, dissera-lhe ele. Adoecera gravemente quando ele tinha apenas oito anos, enquanto o pai morria num acidente de viação quando seguia a grande velocidade para junto da mulher agonizante. Uma vez que não havia nenhum familiar que pudesse ficar com ele, foi colocado junto de pais adoptivos. Com o tempo, começou a apegar-se a essa família, mas a tragédia voltou a atingi-lo. Aos catorze anos, o pai adoptivo morreu num trágico acidente de caça. A mãe de adopção fez tudo ao seu alcance para que ele continuasse com ela, mas veio a sucumbir vítima de cancro da mama quando ele já andava na faculdade. Assim, Jim Beckett ficou sozinho no mundo, quando então, a viu pela primeira vez.
Aquando do quarto encontro, sentou-se no alpendre com ela, na cadeira corrida de balouço, em casa do pai dela, pegando-lhe na mão.
Theresa começou a dizer com uma expressão sombria -, sei o que se passa com respeito ao teu pai, a maneira como ele te trata, assim como à tua mãe. Compreendo o receio que deves sentir. Mas agora já não estás sozinha. Eu amo-te, minha querida. Somos muito parecidos. Tanto tu como eu não temos ninguém. Mas, a partir de agora, ficaremos juntos para sempre. Ninguém voltará a fazer-te mal.
E ela acreditara nas suas palavras. Nessa noite chorou encostada ao peito dele que a embalava, pensando: ”Finalmente, o meu cavaleiro chegou no seu cavalo branco.”
Seis meses mais tarde, era a noiva de Jim num dos maiores casamentos que Williamstown alguma vez tinha visto. Saiu de casa do pai. Já na nova casa que ambos passariam a partilhar, observou Jim a pendurar uma fotografia ampliada do casamento na parede por cima da prateleira da lareira. Era a primeira coisa que saltava à vista quando se entrava em casa dos Becketf o retrato enorme em papel lustroso do mais belo casal louro de Williamstown. As pessoas até lhes deram a alcunha de ”Ken” e ”Barbie”. Durante a lua-de-mel, Jim conversou com Tess, explicando-lhe que havia algumas regras que ela teria de seguir. Agora era uma mulher casada. A mulher de um agente de polícia. As regras eram bastante directas. De caminhar sempre dois passos atrás dele. Teria de lhe pedir autorização antes de comprar o que quer que fosse. Só podia usar roupas que ele aprovasse Devia manter a casa impecavelmente limpa e arrumada e preparar-lhe os bifes sempre mal passados. Nunca devia fazer-lhe perguntas sobre si próprio ou com respeito às suas idas e vindas.
Ela acenou num gesto de assentimento. Mas sentia-se confusa, apesar de lhe ter prometido que tentaria. Era uma recém-casada de apenas dezoito anos e queria ser a esposa perfeita.
Tess cometeu erros.
Na segunda noite depois do regresso da lua-de-mel, Jim pegou fogo ao vestido de noiva para a punir por ter comprado cartões sem lhe perguntar se podia. Ela implorou-lhe que não fizesse aquilo e ele também pegou fogo ao véu. Por princípio, ela não devia questionar as decisões do marido. Não podia esquecer-se de que nunca devia pôr em causa as suas acções.
Tess esforçava-se por se lembrar de todas essas regras. Fazia todos os esforços para se adaptar. Durante as primeiras semanas do casamento, ficou sem a maior parte dos seus bens pessoais que foram consumidos pelas chamas. Nestes incluíram-se o fato de membro da claque; a sua mantinha de quando era bebé; o livro de fim do curso secundário. Para alterar um pouco o procedimento, Jim decidiu retalhar o seu ursinho de peluche dos tempos de criança desfazendo-o em pequenos pedaços; posteriormente, queimou esses pedaços por ela não ter posto o jantar na mesa à hora certa. Jim disse-lhe que devia ser estúpida por ter perdido tantas das suas coisas; perante aquela situação, Tess esforçava-se ainda mais.
Não queria decepcionar a única pessoa que afirmava amá-la. Além do mais, ele não lhe batia. As vezes gritava-lhe. Jim era um homem muito rigoroso e, embora não hesitasse em lhe dizer que era estúpida, nunca lhe levantou a mão.
Tess sentia-se grata por isso.
Acabou por aprender. Ficou sem nada que ele pudesse destruir. Pouco tempo depois, descobriu que estava grávida, o que fez com que a sua vida assentasse. Jim mal conseguia esperar pelo dia em que seria pai. Quando Sam nasceu, ele foi visitá-la à maternidade, levando-lhe uma fiada de pérolas absurdamente cara. Disse a Tess que era uma mulher maravilhosa, que se portara muito bem.
E foi assim que ela se convenceu de que tudo continuaria a correr pelo melhor.
Dois meses depois, Jim anunciou-lhe que tinha chegado a altura de terem um segundo filho. Tess estava sentada à mesa das refeições, a dar de mamar a Samantha, sentindo-se tão exausta que mal conseguia manter os olhos abertos. Cometeu um erro. Esqueceu-se das regras e disse-lhe que não, alegando que não seria capaz de cuidar de duas crianças pequenas, ao mesmo tempo que teria de manter uma casa escrupulosamente limpa e arrumada. Jim ficou muito calado. Pousou o garfo, assestando nela os seus olhos penetrantes de uma tonalidade profunda de azul.
- Estás a dizer-me que não estás à altura da situação, Theresa? A pensar em magoar a Samantha? É isso que estás a tentar dizer-me? Estás a pensar em espancar o meu bebé? Sei que isso te está na massa do sangue.
Tess começou a chorar. Disse que não, que jamais seria capaz de fazer tal coisa. Mas viu na expressão do rosto do marido que ele não acreditava nela. Mais para o fim dessa mesma semana, Tess cometeu o seu primeiro acto de rebelião aberta: comprou um diafragma que escondeu por baixo do lavatório da casa de banho. Uma semana mais tarde, quando foi buscá-lo, viu um alfinete delicadamente pousado em cima da embalagem. Jim aproximara-se por trás dela, mostrando uma expressão implacável. Tess estava a chegar aos seus limites. Há dois meses e meio que mal conseguia pregar olho. Sentia-se exausta, avassalada e atemorizada perante a possibilidade de vir a fracassar na sua missão de mãe. Começou a chorar convulsivamente. Por fim, Jim mexeu-se. Ela retraiu-se toda, mas ele limitou-se a tomá-la nos braços, afagando-lhe os cabelos, tocando-lhe com ternura pela primeira vez em muitos meses e dizendo-lhe que tudo iria correr bem, afirmando-lhe que a ajudaria. Pousou-a no chão da casa de banho. Levantou-lhe a saia. E possuiu-a ali mesmo; Tess sentia-se demasiado cansada, demasiado chocada e dorida para se mexer ou protestar.
Depois, disse-lhe que desta feita queria um rapaz. Um rapazinho que se chamaria Brian, o nome do pai dele.
As ausências de Jim eram cada vez mais prolongadas e os regressos mais cruéis. Fizesse ela o que fizesse, para ele, nunca era suficientemente bom. Dizia que ela era uma má esposa e uma mãe horrível. Uma rapariga estúpida, muito estúpida mesmo, que devia sentir-se muito agradecida por ele ter concordado em casar-se com ela. Ele, Jim Beckett, um homem bem-parecido, encantador e muito respeitado, decerto poderia ter arranjado muito melhor.
Houve um dia em que a chamou à sala de estar, dizendo-lhe que ia sair. Estaria fora durante algum tempo. Talvez voltasse. Talvez não. Ainda não decidira. No entanto, em circunstância alguma, ela devia ir à cave.
- À cave? Por que motivo havia eu de ir à cave?
ir a cave.
- Porque eu te disse para não ires lá, agora vais ficar a pensar nisso. É o que estás a pensar fazer no preciso momento em que eu me for embora: ”O que é que ele tem na cave? Por que razão não hei-de ir à cave? O que é que ele escondeu na cave?” Semeei a sugestão na tua mente e, por isso, não terás descanso enquanto não fores à cave. Eu conheço-te por dentro e por fora, Theresa. Mas sei que sou capaz de te controlar.
- Não. Não vou à cave. Juro-te que não.
Porém, no exacto momento em que ele saiu de casa, os olhos dela foram automaticamente atraídos pela porta da cave. Levou a mão à maçaneta. Girou-a. Abriu a porta e ficou a olhar para o escuro...
Rapidamente, Tess bloqueou o resto das suas recordações. Levou as mãos às têmporas, fazendo pressão com a ponta dos dedos e começando a sentir o sabor amargo da bílis.
Havia dias em que conseguia recordar-se desses acontecimentos com objectividade. Era capaz de se distanciar do que acontecera, analisando cada episódio como se fizesse parte da vida de outra pessoa que não ela. Mas havia outros dias em que essa frieza não lhe era possível. Agora concentrava-se em respirar, sentindo o sol quente do Arizona.
Ao fundo do corredor, Marion e J. T. continuavam empenhados na sua guerra.
- Ele está às portas da morte, J. T. Não estamos a falar de nenhum estratagema perverso. - A voz de Marion denotava irritação. - O nosso pai está a morrer.
- O nosso pai? Não me parece. Ofereci-to quando tinhas catorze anos. Estávamos a jogar póquer, tanto quanto me recordo, e eu estava a ganhar-te por muitos pontos. Tu tiveste uma grande birra. Eu disse muito bem, perguntei-te qual era a coisa que desejavas mais do que tudo...
- Vai-te foder, Jordan Terrance!
- e tu respondeste-me que querias o ”paizinho” só para ti. Portanto, dei-to inteirinho, só para ti. Ainda hoje continuo a pensar que te coube a pior parte do negócio. Diz-me, Marion, por acaso também te terás esquecido desse acontecimento?
- Não me esqueci de nada, J. T. Limito-me a optar por me recordar apenas dos dias mais felizes. - Fez-se uma pausa muito prolongada até que Marion continuou. - Isto é por causa dela, não é verdade?
- Ela tinha nome, Marion - ripostou J. T. depois de uma segunda pausa. - Era um ser humano.
- Era uma prostituta mentirosa e manipuladora que conseguiu apanhar o pai num momento de fraqueza. Ele tinha acabado de se aposentar, estava bastante vulnerável, aberto a... às atenções femininas - retorquiu Marion.
- Com certeza que a mãe se sentirá muito feliz com essa análise da situação.
- A mãe tem mais macacos no sótão do que qualquer outra pessoa que eu conheço.
- Até que enfim existe uma coisa em que concordamos - redarguiu
- Mas a questão que importa é o facto de o pai ter cometido um erro...
- Um erro?! Ele engravidou uma garota de dezassete anos. O nosso pai, um pedófilo!
- Mas cuidou dela - contrapôs Marion.
- É assim que classificas a situação? - J. T. baixou o tom de voz, imprimindo-lhe uma entoação que fez com que os pêlos na nuca de Tess ficassem todos eriçados. Desta feita, Marion levou mais tempo a recompor-se, mas, quando lhe deu réplica, esta foi mordaz.
- Oh, isso mesmo. O pai é a origem de todos os males. Que diabo, até é muito possível que tenha sido ele a matar o Kennedy.
- Não poria as mãos no fogo por ele quanto a isso. Alguma vez tiveste oportunidade de ver atentamente as cassetes do JFK?
- Vê se cresces, J. T. Neste momento, o pai está a precisar de ti, embora só Deus saiba porquê. É possível que não gostes dele, talvez nunca sejas capaz de te entender com ele, mas, por amor de Deus, foi ele quem te deu vida. Foi ele que te proporcionou um tecto. Criou-te e sempre te deu tudo o que lhe pediste... o carro descapotável, os cargos que ocupaste em West Point, encobrimento... Tiveste tudo o que quiseste.
- O que continua a causar-te engulhos, não é verdade, Marion? - ripostou J. T. em voz baixa. - De facto, o Roger foi um prémio de consolação muito fraco.
- O Roger deixou-me, J. T. Mas obrigada por teres perguntado.
- O quê?! - exclamou J. T., que pareceu ter ficado genuinamente surpreendido, talvez até mesmo atordoado. - Marion, lamento muito. Juro-te, lamento imenso...
- Não vim aqui à procura da tua compaixão. Se proferires essas palavras mais uma vez que seja, vão precisar de supercola para voltar a juntar a tua cara. Não, não digas mais nada. Estou a ficar farta desta conversa... nunca chegamos a conclusão nenhuma. Tenciono ficar aqui durante sete dias, J. T. Sete dias para que possas ver a luz. Findo esse tempo, lavo as minhas mãos de toda esta trapalhada.
- Merry Berry...
- Não me chames isso! E diz à tua ”convidada” que se eu apanhar qualquer de vocês a fazer alguma coisa ilegal, por pouco que seja, não hesitarei em espetar com o coiro dos dois na choça! Estás a perceber?
- Não precisas de me gritar para que eu fique a saber o quanto te importas com o meu bem-estar.
- Olha, J. T., vai ver se chove!
Tess ouviu o barulho penetrante de saltos altos a pisarem o soalho de madeira dura. Os passos rápidos de alguém furioso que se aproximava; Tess escutou a sua respiração. Mas o barulho de passos desapareceu sem que a pessoa se detivesse. Num andar desabrido, Marion continuou em direcção ao quarto no fundo do corredor, onde a sua chegada foi pontuada pelo estrondo da porta quando se fechou.
Tess soltou a respiração. O seu corpo como que caiu desamparado contra a porta. Estava tudo bem. Portanto, aquela Marion era uma agente do FBI, mas também era irmã de J. T., e encontrava-se naquela casa por razões que não tinham nada a ver consigo.
Assim, encontrava-se a salvo, ninguém sabia quem era e continuava no Arizona.
Não se sentia capaz de suportar mais nada. A tarde ainda não chegara ao fim, mas o seu corpo esgotado exigia-lhe descanso. Arrastou-se para a cama, puxou a coberta até tapar a cabeça e deu as boas-vindas à sonolência.
Na cave fazia frio. Ela sentia uma corrente de ar, mas não foi capaz de descobrir de onde vinha. A luz era fraca, proveniente apenas de uma lâmpada, no tecto que alongava as sombras. Por baixo dos pés, sentia o chão de terra batida.
O que era aquilo encostado a um canto? Uma pá, uma serra e um martelo. Uma tesoura de poda e dois ancinhos. Teria ela visto Jim alguma vez a servir-se daquelas coisas? Também viu um bastão de basebol. Um bastão comprido e de madeira dourada. Tess pensara que ele tinha por hábito guardar os bastões de basebol no roupeiro dos casacos no vestíbulo. Porquê na cave? Era muito raro que qualquer um deles fosse à cave.
Cheirou-lhe a terra recentemente revolvida, o que a levou a encaminhar-se para o ponto de onde vinha o cheiro. No canto mais afastado, viu um montículo de terra perfeitamente moldada, como uma campa recente.
Não. Não, não, não.
Sentiu uma mão que lhe tapava a boca.
Tess gritou. Continuou a gritar, mas a palma da mão empurrava-lhe os gritos de volta à garganta. Sentiu-se imobilizada contra um corpo, começando a debater-se e a contorcer-se freneticamente. ”Deus Todo-Poderoso, ajuda-me!”
Uns dedos grossos pressionavam o seu maxilar com toda a força, imobilizando-lhe a cabeça.
- Pensei que não viesses aqui abaixo, Theresa. Estava convencido de que tinhas dito que não vinhas.
Tess choramingava inutilmente. Estava encurralada. Agora ele preparava-se para fazer qualquer coisa de terrível.
Sentia o braço dele a mexer-se atrás de si. Os seus olhos foram vendados por um lenço preto, bloqueando a luz, separando-a de tudo o que a rodeava.
Começou a gemer, tanto o temor que a avassalava.
Ele tapou-lhe a boca com uma fronha torcida, o tecido a fazer pressão contra a sua língua, lacerando as comissuras sensíveis dos lábios, como se fosse o freio de um cavalo.
Ele soltou-a e Tess caiu desamparada no chão.
- Eu disse-te que não viesses aqui, mas tu tinhas de vir, não foi, Theresa? Tinhas de saber. Não devias bisbilhotar se não quiseres saber as respostas.
Pegou-lhe com brusquidão, puxando-a até a pôr de pé e começando a arrastá-la pelo piso de terra batida. O cheiro acre era cada vez mais intenso. O cheiro a terra e outra coisa qualquer, algo adstringente. Cal. Cal fresca para disfarçar o cheiro a cadáveres em decomposição. Tess engasgou-se, sufocada pela fronha.
- É isso mesmo que estás a pensar. Encontras-te à beira de uma campa. Um pequeno empurrão e vais parar lá dentro. Cais dentro da campa. Queres saber o que é que encontrarias lá dentro?
Impeliu-a para a frente em direcção ao espaço vazio e ela soltou um grito que ficou embargado na garganta. Mas, com um safanão, ele puxou-a para trás, encostando-a si e rindo-se em surdina ao seu ouvido.
- Mas ainda não. Deixa-me mostrar-te tudo o resto.
Os dedos dele enclavinharam-se na mão dela, forçando-a a estendê-la. Ela suplicava, mas as palavras eram abafadas pela mordaça. Ele ia obrigá-la a tocar em qualquer coisa. Qualquer coisa em que sabia não querer tocar.
Sentiu que ele lhe mergulhava a mão num jarro de vidro. De formato arredondado e firme, sentindo formas inconsistentes e húmidas que deslizavam à volta dos seus dedos.
- Globos oculares - explicou ele em voz baixa. - Guardei os olhos de todas as mulheres que tive no passado. - Com brusquidão, tirou a mão de Tess para fora, mergulhando-a num outro recipiente. Cabelos. Longos e macios e macabramente humedecidos nas pontas. - Também lhes arranquei o escalpe - acrescentou ele numa voz sibilante.
Uma vez mais, tirou-lhe a mão para fora, mergulhando-lhe o punho cerrado dentro de outra coisa qualquer. Ela sentiu algo escorregadio, emaranhado e oleoso. Qualquer coisa que ficou presa nos seus dedos, enredada nos seus dedos.
- Tripas. Montes e montes de tripas... E aqui, minha doçura, temos a minha coroa de glória. O coração dela. O coração dela, quente e pulsante.
Obrigou-a a fechar os dedos em volta dessa massa. Os dedos dele rodearam-lhe a garganta. Começou a apertar, a apertar cada vez mais, enquanto a sua respiração se acelerava junto do ouvido dela, numa manifestação da excitação que o possuía.
- Tu não fazes a mais pequena ideia de quem eu sou, Theresa. Não tens a mais pequena noção.
E precisamente quando diante dos olhos dela começavam a aparecer pontinhos de luz, quando o abismo se abria à sua frente, sabendo ela que poderia despenhar-se e nunca mais teria de voltar a pensar, os dedos dele largaram-na e o ar entrou de rompante nos seus pulmões esfaimados por oxigénio.
Ele arrancou-lhe a venda dos olhos. Tess baixou o olhar, prendendo-o no sangue, uma quantidade tão grande de sangue. Virou-se para trás, demasiado horrorizada para poder fugir.
Viu o rosto dele com toda a nitidez. A sua expressão era de uma ironia maldosa e fria.
Tess despertou sobressaltada, o grito prestes a soltar-se-lhe dos lábios, o coração a bater desenfreadamente dentro do peito. Levou a mão à garganta, sentindo falta de ar. O suor escorria-lhe pelas faces como lágrimas.
Imobilizou-se por uns momentos antes de se levantar apressadamente da cama que lhe era estranha, ligando todas as luzes que conseguiu encontrar. O quarto estava muito mal iluminado. Ela precisava de mais luz, muita luz para conseguir dispersar as sombras que se emboscavam nos cantos.
Deu consigo defronte das portas do roupeiro, firmemente bloqueadas por uma cadeira. Abre a porra das portas! Certifica-te de que ele se foi embora, que venceste, tu venceste!
De súbito, com um grito de raiva, deu um pontapé na cadeira, rodou a maçaneta e abriu a porta com brusquidão.
- Vamos lá, meu sacana, onde é que estás?
Deparou apenas com cabides vazios que pareciam olhá-la fixamente. Respirou fundo e expirou, até que o seu corpo deixou de tremer.
Estás no Arizona. Estás em segurança. As tuas mãos não estão manchadas de sangue.
Era um coração de vaca. Um coração de vaca, esparguete em azeite, fitas de seda e bagos de uva sem casca. Os adereços de uma casa assombrada das brincadeiras de crianças da escola primária.
- Olha à tua volta, Theresa - dissera Jim depois de ter ligado a luz da cave. - Olha bem para aquilo que tanto te aterroriza. Se estás disposta a acreditar que bagos descascados de uvas são globos oculares, não admira que olhes para mim e vejas um monstro.
Ela caiu desamparada no chão.
Ele agachou-se até os seus olhos ficarem ao mesmo nível dos dela.
- Eu bem te disse para não vires à cave, mas, mesmo assim, vieste. Estás absolutamente determinada a acreditar que faço qualquer coisa de mal. Por que motivo tens o teu marido em tão pouca conta, Theresa? Porque decidiste na tua mente que terias de me recear?
Ela não foi capaz de lhe dar resposta.
- Sabes o que é que eu penso? Acho que a tua auto-estima anda muito por baixo, Theresa. Acho que o teu pai e o comportamento violento que teve para contigo te levaram a acreditar que não és nada. Agora tens este agente de polícia, bem-parecido, encantador e condecorado que te ama e não és capaz de acreditar nisso, não é verdade? Em vez de aceitares que um homem bom te ama, perguntas-te o que é que existe em mim que não bate certo. Estás obcecada com a ideia de que deve haver alguma coisa de mal em relação a mim. Sugiro que deixes de te concentrar nos meus problemas, Theresa, passando a dedicar um pouco mais de tempo a analisar os teus.
Dito isto, ele saiu da cave.
Tess deixou-se ficar caída no chão, perguntando a si mesma por que razão continuava a pôr em questão as acções do seu marido, um homem perfeito.
Jim tinha sido convincente até àquele ponto.
Mas depois surgiram outras recordações, outras imagens que se apoderaram dela. As mãos de Jim à volta da sua garganta, apertando-a para depois a soltar, acariciando-a, acalmando-a, sufocando-a. O taco de basebol a descrever um arco, assemelhando-se a uma varinha de condão à luz do luar A cortar o ar com um som sibilante. A sua coxa a dilacerar-se...
Correu para a porta, destrancou-a e conseguiu chegar à casa de banho a tempo de vomitar, sentindo-se violentamente nauseada.
- Isso deve-se a alguma coisa que eu lhe tenha dito? - perguntou J. T.que se encontrava na ombreira da porta.
Ela fechou os olhos com força. Continuava dobrada sobre o lavatório, com os braços a tremerem e as pernas pouco firmes. Na boca tinha o sabor da bílis. O sabor do desespero era, de longe, mais violento.
- por favor, vá-se embora - pediu ela num murmúrio.
- peço desculpa, mas em toda a Virgínia não há um único homem capaz de abandonar uma senhora que esteja a vomitar. É o encanto dos sulistas
Ela ouviu o barulho dos seus passos no chão ladrilhado, sentindo o cheiro ténue a cloro quando ele se aproximou. J. T. encostou o torso às costas dela. Tess retraiu-se e o estômago dele soltou um grunhido de censura.
- Só queria abrir a torneira - justificou-se ele. - Tem o mesmo sabor da água de canos enferrujados que costumávamos receber vinda de lonee do Colorado, mas a última vez que a analisei concluí que era melhor do que o vomitado. - Começou a afastar-se.
Com um suspiro, ela apanhou a água na mão em forma de concha e banhou o rosto e o pescoço, bebendo também alguma. De facto, tinha um sabor metalino e a ferrugem.
- Sente-se melhor? - perguntou J. T. momentos depois.
Ela fechou a torneira antes de se virar para ele. J. T. vestia apenas uns calções de banho muito descaídos sobre os quadris, deixando ver uma linha pouco definida de pele que o sol não havia bronzeado. A água gotejava-lhe dos ombros, escorrendo até à linha fina de pêlos na barriga plana.
- Tome.
- O quê?
A toalha, chiquita. Você está uma verdadeira lástima.
Só então é que ela reparou na toalha de mãos que ele lhe estendia. A medo, tirou-lha da mão. J. T. não fizera nada, mas, fosse como fosse, ela estava assustada. A experiência dizia-lhe que os homens - em especial os homens bem musculados - constituíam uma ameaça evidente para as mulheres. Não era capaz de imaginar o pai sem ver a sua fisionomia carnuda ficar vermelha quando ele erguia o punho grosso. Tal como não conseguia visualizar o ex-marido sem ver os seus olhos azuis, frios e impiedosos, a olharem para ela enquanto pegava fogo ao vestido de noiva.
No entanto, há quarenta e oito horas que chegara a casa de J. T. sem que tivesse surgido qualquer incidente de maior. Ele até lhe preparara o pequeno-almoço.
Além de a ter protegido da polícia. Decerto que se o homem tivesse tendências violentas, ela já teria visto alguma indicação nesse sentido.
Todavia, era preciso não esquecer que levara dois anos a aperceber-se da maneira de ser violenta de Jim.
Ergueu as mãos, massajando a testa. Queria ser dona de si mesma, queria poder confiar em si própria. Dois anos e meio depois de ter posto Jim na cadeia, continuava sem ter bem a certeza do que acontecera. Encontrava-se algures entre a antiga Theresa Beckett e a nova Tess Williams.
- Uma noite difícil para a leitora da Better Homes & Garden
- É aquele ponto reverso do tricô que me está a dar problemas murmurou ela. - Farto-me de ter pesadelos com receio de deixar cair uma malha.
- Ah, sim? E eu não sou capaz de parar de sonhar com fazer explodir igrejas. Venha até lá fora, o ar fresco faz maravilhas ao corpo.
Ele deu meia volta e Tess apercebeu-se de que estava à espera que o seguisse. Baixou o olhar para as pernas que a T-shirt púrpura da Faculdade Williams não cobria. Regra geral, não era seu costume seguir homens meio nus quando vestia apenas uma camisola de algodão. A mãe possuía convicções muito arreigadas quanto às mulheres que mostravam pele a mais. Apenas as de mau porte é que tinham esse descaramento, e essas iam direitinhas para o inferno, onde os pequenos diabinhos lhes faziam coisas horrorosas todas as noites, a fim de as castigarem por terem sido tão despudoradas.
A imagem de si própria na pele de uma mulher despudorada era tão absurda que, embora contra a sua vontade, teve de sorrir. Nunca fora do tipo mulher fatal, tal como nunca brilhara com fulgores ocultos. Sempre assumira o papel de consorte obediente e confusa. Agora era a mãe assustada e frágil. Todos os sinais indicavam que J. T. a achava tão atraente como um esqueleto animado. O que não a incomodava minimamente. Ela queria-o apenas pelas suas armas semiautomáticas.
Seguiu-o até à beira da piscina. J. T. refastelou-se numa das cadeiras, pegando numa cigarreira em ouro. Em cima da mesa de tampo de vidro encontrava-se uma embalagem de seis cervejas.
Ela envolveu o tronco com os braços, olhando para o firmamento de um azul profundo pontilhado de estrelas. Naquela altura do ano, as noites em Williamstown já seriam frias e límpidas, mas o ar estaria impregnado da fragrância rica e cediça das folhas que secavam e dos pinheiros que envelheciam, do vento refrescante e ligeiramente agreste que soprava das Berkshires. Imaginou o que a filha estaria a fazer naquele momento. Muito provavelmente, dormindo a sono solto, aconchegada na cama com a sua camisa de dormir de flanela cor-de-rosa e a sua boneca preferida, a que falava. Se fechasse os olhos, quase poderia sentir o aroma do champô infantil e do pó de talco.
Minha, querida, gosto tanto de ti.
- Você esteve a ouvir à socapa, não é verdade? - perguntou J. T.
- Sim - admitiu ela.
- Um hábito nojento. Quer um cigarro? - perguntou-lhe estendendo-lhe a cigarreira, mas logo a seguir arrecadou-a. - Já me esquecia. Você mal consegue andar... nada de cigarros. - Dito isto, expirou o fumo, encostando-se para trás e cruzando os pés.
- Não sabia que fumava - comentou ela.
- Tinha deixado de fumar.
- Quer dizer que saiu a meio da noite para comprar cigarros, de modo a poder recomeçar a fumar?
- Não. Surripiei os cigarros da Marion. Para sua informação, fui eu que a ensinei a fumar - acrescentou com um trejeito nos lábios. - Pelo menos, é o que me parece, se a memória não me atraiçoa. Terá de lhe perguntar se as recordações dela coincidem com as minhas.
- Fiquei com a impressão de que o amor fraterno é coisa que não abunda entre si e a sua irmã.
- Nunca gostei de remexer no passado.
- Ela é mesmo uma agente do FBI? - perguntou Tess num tom de voz neutro.
- É - confirmou J. T. enchendo o peito durante uma fracção de segundos. - E eficiente como poucos.
- Ouvi-a dizer que tencionava passar uma semana cá em casa.
- Assim é. Se por acaso você for uma vigarista, é melhor não lhe dizer nada, caso contrário, ela mete-a atrás das grades.
- E você permitiria que ela fizesse isso?
- Se for uma vigarista, sim.
- Muito bem. Você cobriu todas as possibilidades - reconheceu ela. - Caso continue aqui, não posso fazer nada que vá contra a lei. Mas se partir amanhã de manhã, bem... ter-lhe-ei poupado uma data de complicações.
- Não se deixe enganar pela minha beleza, minha doçura... não sou nenhum idiota.
Ela assentiu com a cabeça, voltando a concentrar o olhar no céu da noite. Sentia frio. Queria ir para dentro a fim de se deitar. Mas mostrava-se aterrorizada ante a perspectiva dos pesadelos que se apossariam dela.
- Um mês de treino militar - acrescentou J. T., inopinadamente. - Estou disposto a fazer isso.
- Sei que sim.
- Não se mostre tão presunçosa. Começamos amanhã, logo de manhã, às seis horas. Exercícios físicos, autodefesa, tiro com armas de pequeno calibre e tudo o mais. Garanto-lhe que vou deixá-la estoirada, transformando-a numa nova mulher.
- De acordo.
- Quer saber por que razão mudei de ideias?
- Não interessa.
- Interessa, sim, Angela. A mim interessa muito. - Fez um gesto com a mão em que abrangeu a vivenda, o jardim e a piscina. - Em boa verdade, tenho de lhe dizer que não sou dono disto; cada centímetro quadrado desta propriedade, cada seixo, cada cacto foi pago pelo meu pai. Pode-se dizer que continuo a viver a expensas dele. Posso continuar a usufruir de tudo isto, posso continuar a viver desta maneira para sempre, sob duas condições. A primeira não lhe diz respeito. A segunda é a de nunca mais retomar o ”negócio” de antigamente. Portanto, se aceitar treiná-la, posso vir a perder tudo isto. Parece-lhe que deva arriscar tudo por si, Angela?
- Não - respondeu ela com toda a sinceridade.
- Sendo assim, estamos de acordo. Faço-o por mim e não por si. Porque quero fazê-lo. Porque sofro do caso mais agudo de inveja de órfão em todo o mundo. - Dito isto, pegou na cerveja, levantou-se da cadeira e aproximou-se dela.
Tess sentia a tensão no corpo dele. Não era um homem que jogasse segundo as regras - muito provavelmente, teria feito explodir igrejas. J. T. mostrava uma cólera e um estado de espírito sombrios que ela não conseguia compreender. O homem era imprevisível, como um bocado de pedra em bruto. Quando se deslocava, não fazia o mais pequeno barulho. Depois da fachada enganadoramente suave de Jim, ele parecia-lhe de facto genuíno. Se aquele homem tivesse algum problema com quem quer que fosse, não envenenaria o cão nem pegaria fogo à garagem da pessoa em questão. Diria de modo frontal o que tinha a dizer. Não deixaria dúvida nenhuma a pairar no ar. Se tivesse conhecimento de um pai que espancava a filha, não trataria de sabotar o escadote de um qualquer armazém para que cedesse, fazendo com que o pai fracturasse uma perna. Iria falar directamente com o homem, assestando-lhe um murro em cheio na cara.
- Tem sonhado com ele, Angela?
- As vezes - confirmou ela.
- Quando foi a última vez que conseguiu dormir uma noite descansada?
- Eu... eu não sei dizer.
- Quando foi a última vez em que preparou uma boa refeição para si própria?
- Foi há muito tempo.
- Pois bem, tem de pôr cobro a isso - declarou ele percorrendo o braço dela com a ponta de um dedo. Angela estremeceu, abanando a cabeça. - Você deve estar uma sombra do que foi em tempos, Angela. Deixou-se ir abaixo. Agora é como um saco de ossos com umas olheiras muito fundas. Uma boa rajada de vento seria capaz de a arrastar para longe.
- A situação é difícil - retorquiu ela. - Nós... nós temos andado fugidas. Existem vários problemas...
- É duro, mas tem de aprender a compartimentá-los. A partir de agora, deve separar as coisas. Anda atemorizada, mas mesmo assim tem de conseguir dormir. Sente-se muito ansiosa, deve comer fruta e legumes. Tem de cobrir esses ossos para que depois possamos começar a falar de massa muscular. E pare de roer as unhas. Se não levar o seu corpo muito a sério, como pode esperar que os outros o façam?
- Um conselho bastante estranho vindo de si.
- Limito-me a aplicar a máxima: ”Faz o que digo, não olhes para o que faço.” - A mão dele demorou-se no braço de Angela. As pontas dos dedos eram ásperas e cálidas. Começou a desenhar formas langorosas, o que ela sentiu até à ponta dos dedos dos pés. Retrocedeu alguns passos. - O que estou a fazer não lhe agrada?
- Eu... não, não me agrada.
- Mentirosa - ripostou ele com uma risada.
- Ando à procura de um instrutor e não de outro erro.
- Ah, com que então é assim que você vê os homens. - J. T. começou a bater com a garrafa de cerveja no antebraço antes de a levar à boca para um gole generoso. - Vamos começar na piscina - continuou ele. Vamos tentar pô-la em forma sem partir nada.
- Tenho de confessar que não sou boa nadadora.
- Pensei que tinha dito que não costumava lamentar-se.
Ela ergueu o queixo numa atitude de desafio e ele riu-se.
- Tenho de reconhecer que você é bom. Tem espírito.
- Eu sou assim mesmo - retorquiu J. T. num resmungo. - Muito simplesmente, sou... brioso. - Voltou a rir-se, mas a seguir o seu olhar adquiriu uma expressão especulativa, acariciando-lhe a face. Levou o cigarro à boca. Enquanto inspirava o fumo, a ponta mantinha-se incandescente. Passaram-se vários segundos até começar a expelir o fumo.
Ela deu consigo a observar o círculo formado pelos lábios encimados por um bigode. Observou as madeixas compridas de cabelo preto e sedoso que lhe roçava pelos ombros. A luz do alpendre, bruxuleante, reflectia-se nele. Sentia uma grande vontade de tocar na pele de J. T. para saber se era tão cálida como lhe parecia. Mas, acto contínuo, baixou o olhar, tendo sido apanhada desprevenida pela sua própria reacção.
- Assustada? - perguntou-lhe ele numa voz murmurada e sensual, um timbre de voz de alguém muito vivido.
- Não - respondeu ela de imediato.
- Você está a tremer da cabeça aos pés. E eu nem sequer tentei nada. Ainda.
- Repito que não estou assustada! - insurgiu-se ela, mas a verdade é que estava, do que ambos estavam cientes. Sentia-se constrangida e tinha os pensamentos deveras confusos. Poderia ter confiança nele? Ou não o devia fazer? Devia rugir, devia desempenhar o papel de difícil? Devia aproximar-se mais, devia afastar-se? Aquelas dúvidas estavam a deixá-la completamente desnorteada.
Tomou uma decisão. Antes de perder a coragem, agarrou na garrafa de cerveja, tirando-a da mão dele. Encaminhou-se para a gravilha branca que rodeava o canteiro de cactos e despejou a cerveja.
- Acabou-se. Contratei os seus serviços. Quero que se mantenha sóbrio.
- Qualquer fuzileiro dispara com mais pontaria quando está bêbedo - ripostou ele incisivamente, não achando graça nenhuma à situação.
- Muito bem, J. T., na minha opinião, você não é um fuzileiro.
- Erro crasso, Angela. Erro crasso. - Com estas palavras, aproximou-se dela numa atitude cheia de determinação.
- Está a mostrar-se duro? - perguntou ela, desafiadora e sobranceira sem se mexer. - Já começou a sentir a falta da cerveja a esse ponto?
- Não é a falta da cerveja. Sexo. - Estendeu o braço com uma rapidez que a apanhou desprevenida. Com a palma da mão rodeou-lhe a cabeça, começando a esfregar-lhe o couro cabeludo com a ponta dos dedos. - Continua sem se mexer. Talvez queira beijar-me. Caso faça algo tão perigoso, acha que se sentirá mais forte? - Inclinou-se mais para ela. Dada a proximidade física, Angela conseguia ver o faiscar selvagem nos olhos dele, via cada pêlo da barba de vinte e quatro horas.
Pêlos faciais. Pêlos faciais genuínos que condiziam com os pêlos que ele tinha no peito. Ele não fazia a mais pequena ideia do efeito que aquilo produzia nela. Não tinha ideia do que era ver-se confrontada com um homem que era a expressão da frieza, única e exclusivamente, dos pés à cabeça.
- Vá lá, Angela, beije-me. Mostrar-lhe-ei a terceira coisa em que sou bom, mas mesmo muito bom. - Inclinou-se ainda mais para ela, mas não lhe tocou nos lábios. Ambos sabiam que ele não faria isso. Queria que fosse ela a beijá-lo.
Cautelosamente, ela ergueu uma mão e, hesitante, tocou nos pêlos curtos da barba. Eram mais sedosos do que havia imaginado. Sentiu um formigueiro nas pontas dos dedos. Ele susteve a respiração. Ela estava a aguentar-se com determinação. Com os dedos contornou-lhe o maxilar, familiarizando-se com a linha sólida e forte. Os seus dedos enredaram-se no cabelo de J. T.
- Por amor de Deus! Não sabe como beijar um homem? - Puxou-a bruscamente, encostando-a a si.
Ela deu-lhe um soco no ombro.
Ele grunhiu, mais devido à surpresa do que à dor, recuando um passo.
- É isto que, em princípio, devo fazer, não é verdade? - disse ela com firmeza. - Espera-se que tome uma atitude. Pois bem, eu faço. E já agora... - Arrancou o cigarro dos lábios dele. - Detesto o fumo de cigarros.
- Demasiado tarde. Devia ter desatado a rugir, Angela, sair do palco pela esquerda baixa enquanto teve oportunidade para o fazer.
Agarrou-a com facilidade, puxando-a com força e encostando-a a si. Num dado momento, ela estava junto do canteiro dos cactos e, no seguinte, encontrava-se encostada a um corpo cheio de ardor, sentindo as suas pernas aprisionadas por coxas bem musculadas, o tronco preso por braços vigorosos. Abriu a boca preparada para protestar, mas ele aproveitou a oportunidade, apoderando-se dos seus lábios.
Queria abandonar-se um pouco. Desejava enclavinhar os dedos nos seus ombros e agarrar-se a ele. Com um grito enrouquecido, começou a bater com os punhos fechados no peito de J. T., que a soltou.
- Sacana!
- Absolutamente. E não pode dizer que não a avisei.
Passou as costas da mão pelos lábios. Sentia-se como se tivesse sido posta a nu. Só lhe apetecia moê-lo de pancada, deixando-o feito em polpa.
- Não faça isso - disse ele.
- Deixe-me em paz!
- Ora, Angela, deixe-se disso, estava a ir tão bem. Não desista de mim, principalmente agora.
- Você é arrogante, um filho da...
- Assim está muito melhor. É a força de espírito que a manterá com vida, Angela. Nunca perca a força de espírito. E agora toca a ir para a cama.
- E você? - ripostou ela com uma expressão belicosa. - Tenciona ficar aqui fora toda a noite, ignorando o seu próprio conselho?
- Provavelmente - respondeu J. T.
Ela inclinou a cabeça de lado, avaliando-o de alto a baixo.
- Estou a ver - acrescentou com displicência. - A sua irmã chegou há apenas doze horas e você já está a deixar-se ir abaixo.
- Cale a boca, Angela!
- Porquê? Você pode baralhar-me as ideias, mas eu não posso fazer-lhe o mesmo... é isso? É possível que eu não seja muito forte fisicamente, e o mais provável é não acertar num boi que esteja à minha frente, mas sei muito bem como ligar os pontos. Você e a sua irmã têm opiniões muito divergentes e antagónicas com respeito ao vosso pai. Você parece querer manter um bom relacionamento com ela. Mas, por outro lado, ela parece querer vê-lo a arder na fogueira. Como estou eu a sair-me até agora?
- Vá para a cama - replicou ele num tom de advertência.
- Nem pensar, quando estou na mó de cima. Seja como for, o que é que o seu pai fez de tão mau?
- O que é que ele não fez? Boa noite.
- Ele batia-lhe? Sou muito experiente nesse tipo de comportamento.
- O seu pai batia-lhe? - perguntou J. T.
- Sempre que tinha oportunidade - respondeu ela sem mostrar qualquer emoção. - Continuo a odiá-lo por isso.
- Estou a ver. No entanto, devo dizer-lhe que acho esse tipo de ódio saudável. Eu próprio acredito firmemente nisso. Mas a Marion está em desacordo. Ela alega que o nosso pai era apenas um pouco rigoroso de mais.
- Mas você não concorda com essa análise?
- O coronel achava que a criação de uma criança era uma porra dum desporto sangrento. - Aproximou-se da mesa e levou outro cigarro à boca que acendeu, tragando o fumo. As mãos tremiam-lhe quase imperceptivelmente. - Vá para o quarto, Angela. Com certeza que terá coisas muito mais importantes com que se preocupar do que com a minha família disfuncional.
Mas ela não arredou pé. A partir daquele momento, tinham algo em comum, o que para ela era muito importante.
- E quanto à mulher?
- Que mulher? - perguntou J. T.
- A prostituta que teve um filho do seu pai.
- Sim, senhor... Não há dúvida de que você ouviu bastante do que não lhe dizia respeito.
- Sim - confirmou ela sem se mostrar minimamente envergonhada com a sua atitude.
- O meu pai arranjou uma amante que era uma prostituta de dezassete anos. Era o tipo de coisas que ele gostava de fazer. A rapariga engravidou. Portanto, o coronel pô-la na rua. Ela ficou na soleira da porta a implorar-lhe que lhe desse as suas roupas. Ele ordenou ao mordomo que soltasse os cães. Ela acabou por se ir embora.
- Só isso? - perguntou Angela.
- Claro que não. Em seguida, a rapariga tentou falar com a Marion. Não queria dinheiro para ela, mas para a criança prestes a nascer.
- Mas a Marion...
- Correu com ela. Durante toda a sua vida, a Marion sempre teve uma memória muito selectiva. O pai é o seu mais-que-tudo. Seja o que for que ele faça, está bem feito, caso contrário, o universo deixaria de existir. Se o papá disser que a rapariga é uma puta reles e mentirosa que ele nunca viu na vida, então, a rapariga nada mais é além de uma puta reles e mentirosa que ele nunca viu.
- Portanto, a rapariga veio ter consigo?
- Está a dizer-me que ainda não conseguiu deslindar esta história? - perguntou J. T. arqueando um sobrolho.
Angela respondeu que não com um abanar de cabeça.
- A rapariga chamava-se Rachel. O filho dela, o meu meio-irmão, era o Teddy.
- Oh... - fez Angela com a respiração suspensa, os olhos muito abertos enquanto as peças do quebra-cabeças se encaixavam na sua mente.
- Isso mesmo - continuou J. T. numa voz muito suave. - Eu casei com ela. E tenho de dizer que ela foi a melhor coisa que me aconteceu em toda a vida. - J. T. deixou cair a ponta do cigarro no chão, pisando-a com o tacão do sapato. Fez-lhe uma continência trocista, mas ela continuava sem saber o que dizer perante o que acabara de descobrir. - Veja se trata de dormir alguma coisa. Quero-a às seis da manhã na piscina. E mantenha-se afastada da Marion, Angie. Ela não gosta nada de si, e a Marion sabe como comer uma pessoa viva e palitar os dentes com os ossinhos. Temos muito orgulho nela, nem queira saber quanto.
Deixou-a sozinha no pátio, ouvindo a água a bater suavemente contra as paredes interiores da piscina, enquanto algures, à distância, um coiote ululava à Lua sem que esta lhe respondesse.
O que se segue é a primeira entrevista que teve lugar com Jim Beckett, conduzida pelo agente especial Pierce Quincy, coadjuvado pelo tenente Lance Difford da Unidade de Prevenção e Controlo do Crime da Polícia do Massachusetts. Decorreu no Instituto Correccional Cedar Junction, em Walpole. Realizou-se no dia 11 de Novembro de 1995. Jim Beckett tinha sido encarcerado há cerca de três meses. Esta entrevista foi gravada e filmada com a autorização do entrevistado.
- Há alguma questão que queira levantar?
BECKETT: Quincy? Como o fulano que desempenha o papel de magistrado na televisão?
QUINCY: Médico-legista.
BECKETT: Costumava ver esse programa quando era miúdo? Era o seu programa preferido?
QUINCY: Vi alguns episódios.
BECKETT: O que é que o seu pai fazia?
QUINCY: Era canalizador.
BECKETT: Não é uma profissão tão interessante como ser médico-legista. Estou a ver o seu ponto de vista.
DIFFORD: Deixa-te de tretas, Beckett. Não estamos aqui para te ver a fazer de psiquiatra do FBI. O Quincy só agora é que soube da tua existência, mas eu conheço-te de ginjeira, Beckett. Não te esqueças disso.
BECKETT: Tenente Difford, encantador como sempre. Aparte de que gostei mais quando era agente de polícia foi ter de me apresentar a cabrões idiotas como tu. O tenente de polícia grande e mau cuja experiência e sabedoria adquiridas nas ruas manterão todos em segurança durante a noite, quando é o teu próprio homem que anda lá por fora a interceptar louras doces para depois lhes limpar o sebo. Como é que vão as tuas insónias, tenente?
DIFFORD: Vai-te foder...
QUINCY: Muito bem, vamos lá tratar do que aqui nos traz. O tenente Difford tem razão, nunca tive oportunidade de o conhecer pessoalmente, Jim, mas tal não impede que saiba tudo a seu respeito. Também vi todos os ficheiros que tirou dos arquivos da Unidade de Apoio à Investigação Criminal, o que me leva a concluir que está familiarizado com as técnicas de elaboração do perfil psicológico dos assassinos em série. Tal como discutimos, esta entrevista é estritamente voluntária. Não recebe nada em troca, com excepção de uma quebra de rotina numa existência que aqui, em Walpole, deve ser bastante monótona. Apetece-lhe fumar um cigarro ou outra coisa qualquer?
BECKETT: Não fumo. O meu corpo é o meu templo.
DlFFORD: Deus nos valha...
BECKETT: Quero ver o perfil que fizeram a meu respeito.
QUINCY: Não estamos dispostos a fazer trocas, Jim.
BECKETT: Tem receio de que eu seja capaz de refutar tudo o que contiver, que veja todas as falhas? Ou receará que eu um dia consiga vir a utilizá-lo em meu benefício?
QUINCY: Tem um coeficiente de inteligência de cento e quarenta e cinco. Não subestimo esse pormenor, Jim.
BECKETT: Risos. Não é mau de todo, agente especial Quincy. Até é muito possível que venha a simpatizar consigo.
DIFFORD: Merda! Por acaso vocês dois vão começar a trocar cartas de amor, ou podemos dar andamento ao assunto?
BECKETT: Esperem aí. Já percebi tudo. Vocês dois estão a desempenhar o papel de polícia bom e polícia mau. O agente do FBI, sofisticado e de falas mansas, e o brutamontes, o polícia de giro iletrado. Por acaso já mencionei que tanto o FBI como as forças da lei locais desde mil novecentos e setenta e cinco não têm uma ideia original?
DIFFORD: Talvez, Beckett, Talvez estejamos a ser iguais a nós mesmos.
QUINCY: Jim, gostaria de começar pedindo-lhe que fizesse uma descrição de si próprio, pelas suas próprias palavras. Se fosse você a elaborar um perfil psicológico de si próprio, o que diria?
BECKETT: Não me parece, Quincy. Entre os que aqui estamos, você é que é o profissional. É a si que cabe começar. Se estiver a aproximar-se da verdade, dir-lhe-ei.
Pausa.
QUINCY: Muito bem. O FBI envolveu-se no caso aquando da descoberta do terceiro corpo nos arredores de Clinton, no Massachusetts. Posteriormente, determinou-se que era o cadáver da sexta vítima, mas na altura tínhamos apenas as pistas recolhidas com relação a outros dois homicídios para efeitos de comparação. A vítima era uma mãe de vinte e três anos que trabalhava num bar e que na altura regressava a casa vinda do trabalho. O automóvel dela foi encontrado na berma de uma estrada secundária muito isolada, com os vidros das janelas todos fechados e as portas trancadas. No interior, o porta-luvas estava aberto, as chaves encontravam-se na ignição e a sua mala de mão no assento do passageiro da frente. As roupas da vítima, cobertas de restolho do arvoredo das proximidades, foram encontradas, cuidadosamente dobradas e empilhadas, no porta-bagagem. Não foram descobertos quaisquer indícios de que ela tenha oposto resistência.
”A quatrocentos metros da viatura, o corpo foi encontrado dentro de uma vala. A vítima, completamente despida, tendo sido colocada de rosto para cima, com os braços e as pernas afastados. Alguém meteu um tronco de árvore dentro da vagina. Era evidente que o corpo havia sido disposto de modo a causar um grande choque. A vítima foi torturada sadicamente e violada. Foi difícil determinar a causa da morte. As meias de vidro da própria vítima foram atadas à volta do seu pescoço, estrangulando-a. Mais ainda, a cabeça da vítima foi brutalmente espancada com um objecto sem lâmina... Mais tarde concluiu-se que era o mesmo tronco de árvore que foi inserido na vagina.
”As nódoas negras à volta dos seios da vítima, nas nádegas e parte interior das coxas, são sinais reveladores de que o homicida desconhecido torturou a vítima demoradamente antes de a assassinar. A extensão das mutilações que lhe foram infligidas depois da morte, mais a posição muito exacta do cadáver, indicam que, provavelmente, ele passou pelo menos uma hora com a vítima depois de a ter assassinado. O suspeito também teve o cuidado de não deixar qualquer pista no local do crime, o que, de igual modo, lhe tomou algum tempo. Não encontrámos nenhuma impressão digital, cabelos, vestígios de sémen ou pedaços de tecido que o homicida tivesse deixado. A vítima exibia alguns ferimentos nas mãos, o que indica que tentou defender-se, mas a resistência foi pouca porque não tardou a ser manietada. Também não encontrámos qualquer vestígio de células da pele nem sangue debaixo das unhas.
”Teoricamente, acreditamos que o homicida se serviu de uma artimanha credível para atrair a sua vítima, de maneira a que ela saísse do automóvel. Feito isto, dominou a vítima, torturou-a, violou-a e matou-a com uma violência sádica. Depois, dispôs o corpo, revelando uma grande raiva na encenação após a morte, voltando em seguida ao carro dela, onde guardou as roupas no porta-bagagem, trancando as portas da viatura.
”Existem determinados aspectos deste crime que saltam à vista. Em primeiro lugar, temos o facto de o homicida ter conseguido atrair a vítima, fazendo com que ela deixasse a segurança que o automóvel lhe proporcionava, ao contrário de ter recorrido a um ataque frontal, o que nos sugere que o homicida daria a impressão de ser uma pessoa credível, não inspirando perigo e com grande capacidade de comunicação. O tempo que despendeu com a vítima indica que o assassino se sentia em segurança e confiante nas suas faculdades, o que lhe permitiria cometer o crime e escapar impunemente. Os testes laboratoriais revelaram traços de um espermicida e látex no interior da vagina da mulher, um indicador muito provável de que terá usado um preservativo durante a violação, tendo tido o cuidado de não o deixar no local do crime. Muito provavelmente, o suspeito já estaria numa fase em que viajaria com aquilo de que precisava para cometer os seus crimes: preservativos, luvas e talvez disfarces, os artigos de que necessitaria para levar a cabo os seus intentos. Finalmente, a intensidade de violência gratuita e a crueldade, combinadas com as mutilações chocantes e sádicas depois da morte, indicam-nos um homem que tem uma raiva quase inconcebível contra as mulheres.
”Estávamos na pista de um psicopata.
BECKETT: Por favor, continue; por fim, está a tornar-se bastante interessante.
QUINCY: O suspeito será possivelmente um homem de raça branca entre os vinte e muitos anos e os quarenta e poucos. A idade pode ser um aspecto muito difícil de determinar, mas, face à natureza elaborada do crime e mutilações, estimamos que a raiva homicida tenha principiado a desenvolver-se há algum tempo. O homicida já começara a refinar e a aperfeiçoar a sua técnica. O facto de ter recorrido a um estratagema, indica-nos a premeditação e o planeamento de um homem mais experimentado, o que nos leva a deduzir que terá entre trinta e trinta e cinco anos. Na nossa opinião, deve parecer encantador e carismático. Deve ser um indivíduo com um quociente de inteligência acima da média, socialmente com bastante à-vontade, um funcionário capaz e decerto casado, ou mantendo uma relação estável com alguém. Deve ser um indivíduo em boa forma física, habilidoso com as mãos e, provavelmente, a trabalhar numa profissão muito masculina. Terá um automóvel de quatro portas, de uma cor escura, do tipo preferido pela classe média, talvez uma viatura que em tempos terá sido um carro-patrulha da polícia. Deve ter passado algum tempo no serviço militar, mas a sua personalidade arrogante e egocêntrica fez com que não se enquadrasse nesse tipo de vida; assim, terá passado à reserva de maneira pouco honrosa. Plausivelmente, a sua folha de serviço registará agressões físicas e/ou infracções de natureza sexual de somenos importância. Talvez tenha sido detido por conduzir em estado de embriaguez. Mais ainda, a maneira como estrangulou a sua vítima é muito similar ao que se vê nas cadeias nos casos de violação, o que nos indica que este indivíduo talvez já tenha sido sentenciado a penas de prisão.
”É evidente que se considera um assassino sofisticado. As três mulheres eram jovens, muito bonitas e louras. Além do mais, as três por ele escolhidas eram vítimas que o forçaram a correr alguns riscos - não eram prostitutas nem strippers, mas sim mães, filhas e estudantes universitárias, todas com famílias que não tardariam a dar pela sua falta, fazendo pressão sobre a polícia para que a investigação não fosse sumária. O assassino, muito provavelmente, terá passado bastante tempo ao volante do seu automóvel andando ao acaso, sempre à espera de encontrar a mulher que lhe parecesse ser a mais adequada e no lugar mais apropriado...
BECKETT: Ele é um homem disciplinado?
QUINCY: Bem... tão disciplinado quanto um homicida maníaco pode ser.
BECKETT: Isso é disciplina, Quincy, acredite em mim. Quando o impulso de matar é assim tão forte, é preciso muita força de vontade e firmeza para esperar pela vítima mais adequada. Mas você não saberia nada a esse respeito. Duvido muito que alguma vez tenha sentido um impulso forte e apaixonado em toda a sua vida. E quanto a trofeus...?
QUINCY: De uma maneira geral, os assassinos em série guardam trofeus. Com base na inspecção que fizemos ao local do crime, é impossível dizer se falta alguma coisa. Talvez o homicida desconhecido tenha levado um anel para oferecer à mulher, de modo a poder experimentar um certo empolgamento de cada vez que olhar para ela. Mas quem sabe se não terá sido apenas uma madeixa de cabelo. No entanto, decerto que ele levará alguma coisa, o que o ajudará a reviver o crime mais tarde.
BECKETT: Vê? Está enganado. Eu não levei nada. Porquê ficar de posse do que quer que seja que pudesse ligar-me a um homicídio? O Bundy, o Kemper e outros assassinos em série pensaram que eram muito espertos, mas a verdade é que não passavam de animais furiosos e selvagens, bestas que eram escravos da sua própria fome. Não sou nenhum escravo, Quincy. Sei como dominar os meus impulsos. Limito-me ao meu padrão de actuação.
QUINCY: Padrão?!
BECKETT: Nunca conseguiu deslindar isso, pois não?
QUINCY: Os padrões são uma das coisas que Hollywood prefere. Ciclos lunares, numerologia, astrologia... Só muito raramente é que têm alguma coisa a ver com isso.
BECKETT: Estou inteiramente de acordo.
QUINCY: Sendo assim, o que quer dizer com isso de padrão?
BECKETT: Em princípio, você é que é o perito, senhor agente. Portanto, trate de descobrir.
Pausa.
QUINCY: E visitar as campas das suas vítimas?
BECKETT: Jamais.
QUINCY: Nunca foi a um cemitério? Nem sequer a um serviço religioso, uma vigília, qualquer coisa do género?
BECKETT: A chave é a disciplina.
QUINCY: E voltou ao local do crime? Podia fingir que ia lá na qualidade de agente de polícia.
BECKETT: Sou um polícia de Berkshire County. Por conseguinte, o que é que eu iria fazer ao local de um crime cometido em Clinton, no estado do Massachusetts? Insisto, a chave é a disciplina. Não estou a brincar consigo, agente.
DIFFORD: Isso é tudo uma merda! Tu gostas é de parecer omnipotente, Beckett. Se fosses um cabrão tão esperto, um cabrão tão disciplinado, tão controlado, como afirmas ser, neste momento não estarias atrás das grades.
BECKETT: Alguma vez te ocorreu que talvez não fosse má ideia fazeres dieta, DifTord? Olha bem para ti. Nos últimos tempos tens andado a dar de mais nos donuts.
DIFFORD: Tu voltaste por causa da Theresa, Beckett, tal como ela disse que farias. Qualquer homem com um mínimo de esperteza não teria vindo à cidade, mas tu não. Não podias deixar as coisas como estavam, nunca dePois do que ela te fez. Nessa ocasião não te mostraste muito disciplinado, pois não, meu grande filho-da-puta?
BECKETT: E onde é que tu estavas nessa altura, Difford? Quando eu meti as mãos à volta do pescoço da minha encantadora mulher e comecei a apertar, tirando a vida a pouco e pouco do corpo que se debatia, onde estava a protecção policial que, em princípio, ela devia ter? Onde é que estava o teu coirão gordo e calão?
QUINCY: Meus senhores...
BECKETT: O agente tem razão. Esta troca de galhardetes não contribui em nada para o avanço da ciência. Mas não posso deixar de dizer que não me sinto nada impressionado, agente Quincy. Nesta altura, até podia estar a recitar um belo livro. Vamos lá, agente especial. Assombre-me.
Pausa.
QUINCY: O seu primeiro assassínio não foi planeado.
BECKETT: Elementar. Qual o assassino que planeia o seu primeiro homicídio? Sente-se desejo e depois, num determinado momento, compreende-se que a oportunidade surgiu. Das duas uma: ou se age ou não se age. É precisamente isso que distingue os homens dos rapazes. É a diferença entre você e eu.
QUINCY: Você mandou-a parar por ir em excesso de velocidade. Tinha apenas a intenção de lhe passar uma multa absolutamente legítima. Na altura até se encontrava de serviço. Interrompa-me se eu estiver enganado, Jim. Mas então tem oportunidade de a ver melhor. Ela é loura, lindíssima e está sentada tão confiante ao volante do seu automóvel, pronta para lhe entregar a carta de condução e o título de registo de propriedade. Há algum tempo que você andava debaixo de alguma tensão. Tinha estado a beber...
BECKETT: Eu não bebo.
QUINCY: Mas andava sob tensão, uma tensão maior do que aquela a que o seu trabalho o obrigava. Apercebeu-se de que não havia ninguém nas proximidades, a estrada estava deserta, e aquela bela mulher ergue o olhar para si, esboçando um sorriso de quem pede desculpa.
BECKETT: Era evidente que ela me desejava.
QUINCY: Mas você foi descuidado, não é verdade, Jim? Pensou que tudo se relacionava com a capacidade de controlo, mas não teve nenhum. Deixou-se ir atrás dos seus instintos e deu-se conta no momento seguinte de que tinha violado uma mulher que depois matou; e tudo isto aconteceu com o seu carro-patrulha, impossível de passar despercebido, parado atrás do automóvel dela.
BECKETT: Mas não entrei em pânico.
QUINCY: O seu uniforme ficou rasgado, não é verdade? Tinha deixado sémen no corpo dela, pelo que corria o risco de vir a ser identificado através das análises ao ADN. O mais provável era alguém o ter visto quando a mandou parar. O que devia fazer a seguir?
BECKETT: É claro que lhe passei uma multa.
QUINCY: Sim, isso foi uma boa ideia. Entrou no seu carro. Contactou a central e fez o ponto da situação, dizendo que ia continuar com o serviço de patrulha. Mas não foi isso que fez. Optou por esconder o seu carro-patrulha e, em seguida, voltou ao local do crime. Vestiu a vítima e colocou-a dentro do automóvel, cobrindo-a com o cobertor que tirou do seu porta-bagagem, de modo a parecer que ela estava a dormir. Precisava de ocultar o corpo, mas não podia levar o carro dela para muito longe porque ficaria sem meio de transporte para poder voltar. Portanto, conduziu o automóvel dela até um lago que não ficava muito distante, sabendo de antemão que a água trataria de fazer o trabalho sujo por si. Só desejava que ela continuasse na água durante uns quatro ou cinco dias... É difícil recolher provas num corpo de alguém que, aparentemente, morreu de afogamento.
BECKETT: Em especial, um ano depois.
QUINCY: Teve muita sorte, não foi? A mulher foi dada como desaparecida e os seus superiores chamaram-no para saber se podia dar alguma informação, visto que lhe tinha passado uma multa. E você comportou-se com toda a frieza, como se não fosse nada consigo; tinha toda a papelada correctamente preenchida...
BECKETT: Eu já disse que a parte mais divertida foi ter de apresentar relatórios a tenentes que têm merda em vez de cérebro e que nunca suspeitaram de nada.
DIFFORD: Grande filho-da-puta, mas acabámos por te apanhar!
BECKETT: Dez cadáveres depois... de que vocês tenham conhecimento. Mas, Quincy, continuo a não estar nada impressionado. De acordo, o primeiro assassínio não foi planeado. Consequentemente, o cadáver foi largado num lago para ocultar o crime. O que tem toda a lógica. Diga-me alguma coisa de especial. Diga-me qualquer coisa que faça com que fique todo arrepiado.
QUINCY: Na noite em que matou a primeira vítima, a Lucy Edwards, a sua mulher estava na maternidade para dar à luz a sua filha. E essa foi a tensão psicológica que não foi capaz de aguentar, Jim. O nascimento da sua filha.
Pausa.
BECKETT: Essa é demasiado fácil. Tem a data na multa, pelo que sabe que ela desapareceu nesse dia.
QUINCY: Mas isso não significa que tenha sido assassinada no dia em que foi vista pela última vez. Sabe bem que é praticamente impossível determinar com exactidão a hora da morte de alguém cujo corpo esteve submerso durante um ano.
BECKETT: Continua a ser apenas uma questão de lógica.
QUINCY: Não, são dados estatísticos, Jim. Todos os homicidas têm qualquer coisa que desencadeia as suas acções. Com respeito aos assassinos desorganizados, geralmente é a perda do emprego ou uma confrontação de grandes proporções com a mãe. No caso dos assassinos organizados, como vocês, o nascimento do primeiro filho é o elemento que se encontra no topo da escala. Um novo membro da família, a sobrecarga financeira que isso acarreta... muito em particular para um agente de polícia que já vivia bastante além dos meios económicos de que dispunha. A sua arrogância é o seu calcanhar de Aquiles, Jim. Quer acreditar que é único. Quer pensar que é o melhor, mas, afinal, é tal e qual como os demais. Assim, podemos elaborar o seu perfil psicológico da mesma maneira como fazemos em relação aos outros, analisando a maneira como os outros agiram.
Pausa.
BECKETT: Sendo assim, não tem necessidade de falar comigo, não lhe parece?
QUINCY: O que estamos a tentar deslindar não é o quê, Jim. É, isso sim, o porquê. Matou dez mulheres louras, todas lindas e ternas, mulheres que se preocupavam com os outros. O que leva um homem a fazer uma coisa dessas?
BECKETT: Está a referir-se a observar uma mulher a suplicar que lhe poupem a vida, partir-lhe o pescoço e depois ir à maternidade para ver a filha acabada de nascer? Fique sabendo que essa foi uma boa noite. Alguma vez viu a minha filha, a Samantha? É uma garotinha maravilhosa, além de ser muito inteligente. Diz-lhe, Difford. Tu conheces a Sam. A Samantha é a melhor coisa que aconteceu em toda a minha vida.
DIFFORD: E se existir alguma justiça neste mundo, ela jamais virá a saber quem tu és, Beckett. A Theresa disse-lhe que tinhas morrido. Ela até comprou uma lápide. Tens uma lápide cor-de-rosa, Beckett. O que pensas disso?
BECKETT: Estás muito azedo, tenente.
QUINCY: Jim, por que razão matou essas mulheres?
BECKETT: Porque eram imorais, galdérias sem religião que mereciam morrer.
DIFFORD: Ele está a mentir. Ele não tem um único resquício de religião em todo o seu corpo.
BECKETT: Gargalhadas. Para variar, o Difford tem razão. Comecei a ficar muito farto da velha desculpa: ”A minha mãe obrigou-me a aprender a servir-me do penico apontando-me uma arma.”
QUINCY: Odiava a sua mãe?
BECKETT: Que mãe? A adoptiva ou a biológica? Na verdade, isso não interessa. Nenhuma das duas era merecedora do meu ódio.
QUINCY: Disse-me que se tem correspondido com o Edward Kemper Terceiro.
BECKETT: Com certeza. O Ed é um sujeito muito grande. Dois metros e dez e cento e cinquenta quilos de peso. O que é, convenhamos, uma grande quantidade de psicopatia. Não sei se sabem, mas eu faço ginástica todos os dias. Deitado consigo levantar mais de cem quilos. Beckett arregaça a manga da camisa e faz músculo para a câmara de filmar. Impressionante, não acham? Mas ainda me falta muito para poder chegar à força do Ed.
QUINCY: O quociente de inteligência do Ed também é de cento e quarenta e cinco. Sabia isso?
BECKETT: Ele é um homem de interesses variados e versado em várias áreas.
QUINCY: Ele também assassinou dez pessoas. Foi por causa disso que decidiu começar a escrever-lhe? No entanto, as vítimas que ele escolheu eram-lhe mais familiares... os avós, a mãe e o melhor amigo...
BECKETT: Sim, acho que o Ed leu um tudo-nada de Freud a mais. Só sabe falar do quanto odiava a mãe. Por amor de Deus, ele agrediu-a com um martelo! Mas depois decapitou-a e violou o cadáver. Chegou a altura de ele deixar isso para trás. Ouviu a história da laringe?
QUINCY: Sim, li os apontamentos relativos aos interrogatórios.
BECKETT: Não acha que isso é uma grande ironia? O pobre Ed traumatizado, que mijava na cama, a enfiar a laringe da mãe no triturador de lixo orgânico, como um último gesto simbólico, mas o triturador encravou e arremessou-lhe o aparelho da fala todo ensanguentado. O Ed disse: ”Até mesmo depois de morta ela continua a moer-me o juízo. Não consegui calar-lhe a boca!” Esta é uma das minhas histórias preferidas.
QUINCY: A sua mãe costumava chateá-lo? Ela era muito autoritária?
BECKETT: A minha mãe biológica era uma hipocondríaca patética e fraca que não tinha um único pensamento inteligente na cabeça. Quando morreu de repente, limitou-se a cumprir a sua própria profecia.
QUINCY: E quanto ao seu pai?
BECKETT: O meu pai era um bom homem. Não é para aqui chamado.
QUINCY: Acha que ele teria vergonha do seu comportamento, Jim?
BECKETT: Por que motivo?
QUINCY: Acho que ele teria vergonha, Jim. Parece-me que sabe isso. Estou em crer que a Jenny Thomson o deixou muito afectado.
BECKETT: Quem?
DIFFORD: Cos diabos! Sabes bem de mais de quem estamos a falar, Beckett. A pequena Jenny Thomson. A rapariga de dezassete anos de Enfield. A rapariga que decapitaste.
QUINCY: Não decapitou mais ninguém, Jim. Apenas ela. Também permitiu que ela se vestisse depois de a ter violado. Acho que ela fez com que se sentisse envergonhado. Também acredito que ela lhe disse que ia a caminho de casa no seu automóvel, depois de ter ido visitar o pai que estava a morrer no hospital. Explicou-lhe que ele precisava dela, que era a única razão que o levava a lutar pela vida. Que o amava profundamente. Mas ela viu a expressão no seu rosto. Tinha de a matar. O que não hesitou em fazer, mas não se sentiu bem consigo próprio depois de ter cometido esse crime, não reagiu como com as outras. Olhou as outras vítimas bem de frente, mas não foi o que aconteceu com a Jenny. Com as mãos, estrangulou-a pelas costas, mas, apesar disso, não ficou bem consigo próprio. Sentiu-se furioso porque não queria nada que o perturbasse. Por isso, decidiu cortar-lhe a cabeça, uma maneira clássica de despersonalização. Escondeu-a debaixo de um monte de folhas, sem ter sido capaz de olhar para o rosto dela. Deixou o corpo coberto e não exposto como o das outras vítimas. Mas, apesar disso, continuava a sentir vergonha pelo que tinha feito, não é verdade, Jim? Sempre que pensa nela, sente-se envergonhado.
BECKETT: Não.
DIFFORD: Estás a agitar-te na cadeira, Jim. Não me parece que estejas a sentir-te tão à vontade como até agora.
BECKETT: Fiquei com a perna dormente.
DIFFORD: Sim, Jim, claro que sim.
BECKETT: Fui visitar o pai da Jenny ao hospital.
QUINCY: O quê?!
BECKETT: As enfermeiras nunca conseguiram juntar as peças, pois não? Fui ao hospital. Queria ver por mim mesmo se o pai dela se encontrava realmente internado e se era verdade que estava a morrer. Não se pode confiar no que as mulheres dizem, muito em particular, depois de nos termos apoderado delas. Elas não hesitam em dizer o que quer que seja se pensarem que isso lhes poderá salvar a vida. Portanto, decidi ir ver com os meus próprios olhos.
”Encontrei-o numa tenda de oxigénio na Unidade de Cuidados Intensivos, Mister Quincy. Não podia receber visitas, mas eu disse às enfermeiras que andava a trabalhar no caso da filha e que tinha boas notícias para lhe dar. É evidente que elas permitiram que eu entrasse. Eram enfermeiras jovens. Uma delas até era muito bonita, mas morena.
”Inclinei-me até ficar com a cara encostada à tenda de oxigénio e comecei a falar-lhe sobre a filha e no facto de ela ser lindíssima, descrevi-lhe como ela gritara de maneira tão maravilhosa. Também lhe disse que ela me implorou para que não a matasse e que rezara a Deus, mas que Deus não a salvara. Ela pertencia-me, pelo que eu tinha o direito de a possuir. O homem morreu no dia seguinte.
”Quer saber de que massa é que eu sou feito, Mister Quincy? Se quiser compreender-me, esqueça essa treta de odiar a mamã ou de mijar na cama, a tortura de animais e o fogo posto, uma tríade que vocês desenvolveram. As coisas são muito mais simples do que isso. Há poder no mundo e é assim que eu sou.
”É o poder de estar sozinho com uma mulher e fazer com que ela nos suplique para que lhe poupemos a vida. É o poder de a ter de joelhos, observando-a enquanto implora a Deus para que intervenha. Mas Ele não intervém. Ela é minha. Eu sou o mais forte, sou o melhor. Antigamente, eu não conseguia compreender os oficiais nazis e o que fizeram durante o holocausto... Respeitava a disciplina que eles mostravam, mas não era capaz de compreender as suas acções. Mas agora compreendo. Entre os dedos, senti o bater da pulsação do coração e apertei. E... porra! Devo dizer que é a melhor sensação que se pode ter em todo o mundo!
DIFFORD: Tu estás é doente da cabeça, Beckett. Tens os miolos todos fodidos!
BECKETT: Deixa-te disso, Difford. São os fulanos como eu que permitem que continues a ter o teu emprego. Tu não passavas de um tenente de uma esquadra insignificante no cu-de-judas até eu ter entrado em cena. Eu fui o melhor que podia acontecer à tua carreira. Tinhas obrigação de gostar de mim.
QUINCY: Jim...
DIFFORD: Estás muito enganado, Beckett. Não és a pessoa mais poderosa do mundo. Essa honra cabe à Theresa.
BECKETT: O quê?!
DIFFORD: Ouviste bem o que acabei de dizer. Quem é que te arrumou, quem é que te pôs atrás das grades? Encara a situação de frente: casaste com uma rapariga de dezoito anos que julgaste poder dominar, manipular e aterrorizar até te sentires satisfeito. Mas em vez de fazer como tu querias, ela conseguiu decifrar a tua maneira de ser e de pensar. Ela descobriu quem tu eras e fez-te frente. Foi ela quem derrubou o omnipotente Jim Beckett.
BECKETT: A Theresa é uma mulher fraca e estúpida que nem sequer foi capaz de fazer frente ao próprio pai. Era preciso apenas elevar o tom de voz para que ela se encolhesse toda a um canto cheia de medo.
DIFFORD: Ela começou a elaborar um diário sobre a tua pessoa. Sempre que dizias que estavas de serviço, quando não era o caso. Sempre que aparecias em casa com arranhões ou marcas sem qualquer explicação...
BECKETT: A Theresa era uma mulher ciumenta.
DIFFORD: Ela registou a quilometragem do teu carro. Tinha um pequeno bloco de apontamentos, que constitui prova contra ti, onde escrevia todas as noites em segredo até ter compilado informações suficientes para poder contactar a polícia. E tu nunca desconfiaste de nada.
BECKETT: A Theresa não tem esperteza para isso!
DIFFORD: Foi ela que te entregou às autoridades, Jim. Tu traumatizaste-a, aterrorizaste-a. Queimaste tudo o que lhe pertencia, não te cansaste de lhe repetir que ela não valia nada, mas, apesar disso, ela fez-te frente.
BECKETT: Eu fi-la pagar por essa ousadia. Actualmente, sempre que ela der um passo, pensará em mim.
DIFFORD: E todas as vezes que ouvires a porta da tua cela a fechar-se, pensarás nela.
Pausa.
QUINCY: Uma última pergunta, Jim...
BECKETT: Sabes com que costumo sonhar, Difford? Sabes em que é que penso todas as noites? Sonho com o dia em que voltarei a ver a minha mulher. Imagino-me a envolver-lhe o pescoço com as mãos, sentindo as mãos dela a esbracejar contra o meu peito. Imagino como será sufocá-la até ficar à beira de perder a consciência. E depois, enquanto ela estiver caída no chão, a olhar para mim desesperadamente indefesa, pego numa navalha que tenha o gume da lâmina rombo e começo a decepar-lhe os dedos um a um. Em seguida, corto-lhe as orelhas. E depois é a vez do nariz. E por fim, arranco-lhe o coração do peito ainda a pulsar. Podes crer que há-de chegar o dia em que farei isso, Difford. E quando o fizer, tenciono enviar-te o coração pelo correio.
O tenente Richard Houlihan encaminhou-se para a frente da sala de reuniões, desligando o projector. Depois de ter feito um sinal, as luzes foram ligadas e sessenta e cinco agentes da polícia e do FBI pestanejaram para ajustar os olhos à luminosidade. A sala continha o grupo mais alargado de forças encarregadas de uma missão que o estado do Massachusetts alguma vez tinha visto. O segundo maior grupo de trabalho, constituído nos mesmos moldes, reunira havia dois anos e meio precisamente com o mesmo objectivo: descobrir o paradeiro do antigo agente de polícia e assassino em série Jim Beckett.
- Estamos cientes daquilo que temos pela frente - começou o tenente Houlihan sem qualquer preâmbulo. - O Jim Beckett sempre se vangloriou da sua inteligência superior e, na semana passada, mostrou-nos, uma vez mais, aquilo de que é capaz. As nove horas, o Jim Beckett era escoltado por dois agentes do Instituto Correccional de Walpole que o levaram do Bloco Dez para a Sala Multiusos, onde ficou registado que ele queria fazer alguma pesquisa de âmbito jurídico. Os guardas que o acompanharam procederam de acordo com as normas... as mãos de Beckett foram algemadas nas costas e puseram-lhe correntes nos tornozelos; nunca o perderam de vista. Contudo, não se sabe como, ele conseguiu abrir as algemas... acreditamos que conseguiu improvisar uma gazua... e, no preciso momento em que entraram nessa sala, ele virou-se contra os dois agentes. Em dois minutos, servindo-se apenas das mãos, espancou-os tão selvaticamente que os dois homens morreram. Um deles ainda conseguiu activar o alarme vermelho do seu radiotransmissor. Quando os guardas de Walpole chegaram à sala, noventa segundos depois, depararam com as algemas e as correntes dos tornozelos de Beckett no chão junto dos dois homens mortos... um sem o uniforme e o outro sem o rádio. Imediatamente, todos os blocos celulares foram trancados, o tenente de serviço transmitiu um alerta vermelho, dando-se início a uma busca de grandes dimensões. De uma maneira qualquer, durante este interim, o Beckett conseguiu entrar na central de comando depois de ter vestido um uniforme de guarda. À vista de todos os que se encontravam nas instalações principais, atacou o tenente e o guarda de serviço na central de comando dominando-os e apoderando-se da chave mestra, e destrancou o sistema de segurança, abrindo as portas de todas as celas e blocos.
”Durante o motim que se seguiu na penitenciária, o Beckett, com a maior das facilidades, saiu da prisão ainda vestido com o uniforme de guarda prisional. Só ao fim de oito horas é que se descobriu que ele se tinha evadido. Portanto, ele levava um avanço de oito horas. Desde então, ninguém lhe pôs a vista em cima. Não tenho a intenção de vos mentir - continuou o tenente. - As semanas que temos à nossa frente serão as mais difíceis das vossas carreiras. A unidade responsável pelo PSI, o Perímetro de Segurança Interior de Walpole fez uma busca minuciosa na área e imediações que se prolongou por quarenta e oito horas. Pediram o apoio das autoridades policiais da cidade, do condado e do estado. A Guarda Nacional ajudou as forças prisionais a procurarem o Jim Beckett. Mas sem resultado. A partir daí, o caso passou a ser do âmbito da Brigada Estadual de Captura de Evadidos. Durante a última semana passaram a pente fino as redondezas das localidades onde o Jim Beckett viveu, interrogando pessoas com quem se dava antigamente; numa palavra, viraram o estado de pernas para o ar. Constatou-se que o homem não tem nenhuns familiares, além da ex-mulher e da filha; também não mantém contactos nenhuns com a comunidade e não se lhe conhecem quaisquer amigos. O Centro Nacional de Informação Criminal emitiu um mandado de captura que abrange todo o país, mas, até à data, não se sabe nada sobre o paradeiro do homem. Resumindo e concluindo, a unidade responsável pela captura de fugitivos não conseguiu encontrar nenhuma pista, portanto, agora as investigações dependem inteiramente de nós. Vão ter de trabalhar com mais afinco do que nunca, sob uma pressão maior do que alguma vez sentiram. O governador está muito atento a este caso. O coronel da Polícia Estadual receberá relatórios todos os dias. Alguns de vós já se viram em situações como esta. Alguns fizeram parte da Missão Especial Vinte e Dois que foi constituída há dois anos e meio e que também teve por objectivo capturar o Jim Beckett. Dessa vez, ele conseguiu iludir os que o procuravam durante seis meses, até que, finalmente, surgiu na casa que estávamos encarregados de proteger. Nessa noite, por pouco a Theresa Beckett não morreu e isso, meus senhores, por nossa culpa.
”Nesta sala, temos três grupos de missões especiais que vão passar a trabalhar em três turnos de oito horas cada. Não pensem que só porque o vosso turno está a terminar poderão, muito simplesmente, ir para casa. Este caso é notícia na primeira página de todos os jornais... O número de emergência de combate ao crime regista, actualmente, duas mil chamadas por dia. Ninguém poderá largar o serviço até que tudo o que tenha acontecido durante o turno esteja devidamente registado, classificado e transmitido aos que entram de serviço. Na sexta-feira à noite, o Jim Beckett será o tema do programa de televisão America s Most Wanted; já tratámos de arranjar um grande número de voluntários que vão ajudar-nos a atender o número de emergência. Ele também consta da lista que o FBI divulga através da Internet dos criminosos mais procurados nos Estados Unidos: os agentes federais passar-nos-ão qualquer informação que recebam por esse meio.
”Sim, o trabalho será exaustivo, fastidioso e muito exigente. Sim, o moral vai andar muito por baixo e os nervos de todos andarão à flor da pele. Mas havemos de conseguir levar esta missão a cabo, minha gente. Em tempos, o Beckett foi um agente de polícia. Serviu-se do crachá para atrair mulheres jovens, fazê-las sair dos seus carros, e matá-las. Também atacou colegas de trabalho, assassinou brutalmente dois guardas de prisão. Não existe caso nenhum tão pessoal e mais importante do que este.
O tenente Houlihan retrocedeu um passo, permitindo que as palavras entrassem bem na cabeça dos que o ouviam. Quando os agentes começaram a inclinar-se para a frente, na expectativa do que ele diria a seguir, o plano que lhes permitiria capturar aquele filho-da-puta, ele retomou a palavra.
- Sabemos que o Beckett operou em quatro estados. Os outros estados já organizaram grupos de missões especiais de menor dimensão que coordenarão os seus esforços com os nossos. Connosco temos o tenente Richardson que veio de Nova Iorque... levantem-se, por favor. De Vermont, temos o tenente Chajet e, do Connecticut, o tenente Berttelli. Caso recebam qualquer telefonema destes homens ou dos seus agentes, façam tudo o que estiver ao vosso alcance para os ajudar no que for possível. Eles terão todo o prazer em retribuir o favor.
”A maior parte da investigação que abrangerá os quatro estados será coordenada através do Programa de Apreensão de Criminosos Violentos. Este sistema é da responsabilidade do FBI, tendo por finalidade reunir, coligir e analisar todos os aspectos da investigação por meio da tecnologia computorizada e de comunicações. Na hipótese de o Beckett atacar num outro estado, o computador reconhecerá o ”modo de operar” introduzido na base de dados, notificando as respectivas autoridades para que nos contactem. Vocês não precisam de compreender como é que este sistema funciona. Os vossos supervisores receberam formação nesse sentido, pelo que estarão em posição de vos prestar toda a assistência. O grande truque aqui é não perder tempo e partilhar imediatamente qualquer pista que vos surja no decurso da investigação. Devem informar logo o vosso supervisor. Acelerar o processo.
”Em conjunto com o Programa de Apreensão de Criminosos Violentos, o FBI está a facultar os seus meios com referência ao perfil psicológico de criminosos. Hoje temos connosco o agente especial Quincy, que acabámos de ver numa entrevista com o Jim Beckett. Ele vai apontar-nos os aspectos para que nos devemos manter mais atentos. Agente Quincy...
O tenente Houlihan afastou-se do estrado. Ninguém arredou pé. Os briefings dos agentes de polícia podiam ser ocasiões muito ruidosas, pontuadas por piadas bem-humoradas. Mas não era o caso naquela manhã. Todos os agentes se mantinham sentados em silêncio, pés bem apoiados no chão e olhares em frente. A gravidade do assunto em questão reflectia-se na fisionomia de cada um dos presentes e nos vincos que lhes franziam a testa.
O agente especial Quincy subiu ao estrado. Não lhe era difícil identificar-se com os agentes que mantinham os olhos fixos em si; tinha trabalhado como detective do Departamento de Homicídios em Chicago, e depois em Nova Iorque, antes de ter feito a sua licenciatura em criminologia e de integrar a Unidade de Apoio à Investigação Criminal da Academia do FBI, em Quântico. Actualmente, trabalhava em mais de cem casos ao mesmo tempo, sendo forçado a viajar durante duzentos dias do ano a fim de elaborar o perfil psicológico de suspeitos, aconselhar as forças da lei locais quanto à melhor maneira de conseguirem capturar esses criminosos, e ajudá-las depois nos interrogatórios a esses indivíduos. Era um trabalho bastante desgastante. Um conselho menos sensato e a investigação poderia enveredar pela direcção errada, custando vidas inocentes. Era uma missão deveras difícil que exigia oitenta horas de trabalho por semana e milhares de quilómetros percorridos. Até mesmo quando voltava a Quântico permanecia fechado num gabinete sem janelas situado dezoito metros abaixo do nível do solo. Dizia-se que esses escritórios ficavam a uma profundidade dez vezes superior à dos mortos.
Era uma profissão que se reflectia pela negativa na vida de todos os que o rodeavam. A primeira a queixar-se fora a mulher que não se conformava com as ausências do marido. Em seguida, protestara por ele trabalhar durante tantas horas. A juntar-se a isto, num sábado em que ele fizera ponto de honra em estar em casa, ela decepara acidentalmente um dedo enquanto cortava cenouras às rodelas. Entrou na sala de estar levando o dedo indicador e dando a impressão de estar prestes a cair desfalecida. Quincy olhara para a mão ensanguentada e o dedo decepado, e lembrara-se da cena do crime de Dahmer, o ”assassino vampiro”, das vítimas de Kemper, ouvindo-se em seguida a dizer: ”É apenas um arranhão, querida.”
Os papéis do divórcio tinham-lhe chegado na semana anterior.
No entanto, apesar de todos estes dissabores, Quincy não era capaz de desistir do seu trabalho. Jim Beckett estivera enganado aquando da entrevista; os que elaboravam perfis psicológicos no FBI compreendiam bem o que era paixão, obsessão e compulsão.
- O Jim Beckett é um psicopata na verdadeira acepção da palavra - começou Quincy. - A maior parte dos presentes, provavelmente, julgará saber do que é que eu estou a falar. Pois bem, estou aqui para vos dizer que não sabem. Esqueçam-se do que leram nos jornais. Esqueçam-se do que viram em filmes. Vou dizer-vos aquilo que devem procurar e é nisso que é necessário concentrarem os vossos esforços. Conhecemos este homem. Conhecíamo-lo quando matou a primeira vítima, tal como o conhecíamos quando regressou seis meses depois de ter desaparecido com o fito de assassinar a própria mulher. Conhecíamo-lo na cadeia tal como o conhecemos agora. Se trabalharmos em conjunto, vamos conseguir apanhá-lo.
”O Beckett é um mestre do disfarce. O seu quociente de inteligência, aliado a um encanto natural, permite-lhe enquadrar-se com todo o à-vontade em quase todas as situações. Há dois anos e meio, conseguiu, com muito êxito, furtar-se a uma das maiores caças ao homem na história da Nova Inglaterra durante seis meses. Continuamos sem saber onde é que ele se terá escondido, nem como conseguiu fazê-lo sem ter sido descoberto. Mas o ponto que quero salientar é este: esqueçam-se da sua aparência verdadeira. A partir deste momento, ele passa a ser o suspeito não identificado. E como qualquer indivíduo nestas circunstâncias, podemos capturá-lo sem uma descrição do seu aspecto físico. Podemos apanhá-lo por causa daquilo que ele é. Isso é um pormenor que nenhum indivíduo consegue alterar.
”Muito bem. O nosso suspeito é um psicopata de trinta e seis anos. Isto significa que é um indivíduo cujo cérebro está altamente compartimentado. Por um lado, tem perfeita consciência dos padrões e normas que regem a nossa sociedade. Sabe como enquadrar-se, como ser bem-sucedido e o que fazer a fim de cair nas boas graças das pessoas. É encantador e seguro de si mesmo. Por outro lado, considera que não tem de se cingir às regras da sociedade e que se encontra acima de qualquer pessoa que conhece. Não tem sentimentos de culpa nem de remorso, tal como não possui qualquer sentido de responsabilidade. Mente com facilidade e é um obcecado com a sua aparência. Do ponto de vista sexual, é uma pessoa extremamente activa e, de facto, não obstante o desdém aparente que nutre por todas as mulheres, depende inteiramente delas para afirmar o seu amor-próprio e identificação como pessoa. Não é capaz de viver sozinho. A qualquer altura da sua vida, terá sempre uma companheira.
”Isto pode não parecer grande coisa, mas a verdade é que nos proporciona muito com que trabalhar. Para começar, este não é um indivíduo que se mantenha escondido. Necessita de alguém que lhe faça companhia, tem de satisfazer os seus apetites sexuais e precisa de interagir com os outros, o que significa que, neste preciso momento, ele anda por aí, deslocando-se entre nós. É possível que seja o segurança que procura um emprego num pequeno colégio de Vermont, ou que tenha acabado de ser contratado pelo Departamento de Auto-Estradas do Connecticut. Os seus disfarces serão muito ”machos”... portanto, mantenham-se atentos aos bombeiros, trabalhadores da construção civil, seguranças, vaqueiros, etc., etc. Mente com grande facilidade, o que quer dizer que mais cedo ou mais tarde acabará por dar um passo em falso, revelando a sua verdadeira identidade.
”Em segundo lugar, é um indivíduo extremamente materialista e obcecado com a sua imagem. Antes de ter sido descoberto, mantinha uma casa perfeita, roupas sempre em perfeitas condições, o automóvel perfeito, porque completava o seu ordenado de agente de polícia através de fraudes com cartões de crédito e roubo. Nesta altura, com certeza que recorrerá a essas habilidades, também roubará automóveis, carteiras, etc., etc. Não se esqueçam de que o Bundy foi apanhado pela primeira vez na Florida por ser suspeito do furto de carros e cartões de crédito. Se receberem alguma comunicação relativa a um homem de raça branca de meia-idade, ou a uma loura bonita, envolvidos no roubo de automóveis, entrem imediatamente em acção.
”Em terceiro lugar, existe a necessidade que o Beckett tem de mulheres. Na prisão, ele envolveu-se com uma jovem loura, uma entusiasta de música rock, de nome Shelly Zane, que vivia na área de Walpole. Ela não é vista desde o dia em que ele se evadiu da cadeia. Muito provavelmente, é cúmplice dele. Na documentação que vos foi fornecida, encontrarão cópias das cartas que ele lhe enviou. Em grande parte, o conteúdo relaciona-se com o tipo de temas pornográficos comuns em qualquer prisão, mas a busca passada ao apartamento dessa Shelly proporcionou-nos a nossa primeira grande oportunidade. Se procurarem na secção assinalada com ”Possíveis Nomes Falsos” na pasta que têm na vossa mesa...
”Elaborámos esta lista com base na investigação que fizemos as últimas duas semanas que a Shelly passou em Walpole. De acordo com os registos telefónicos dela, fez ligações para vários estabelecimentos especializados em artigos médicos, assim como para vários departamentos da Direcção-Geral de Viação de diversos estados e várias conservatórias do Registo Civil do distrito. Achamos que ela anda a ajudar o Beckett a arranjar uma nova identidade, procurando informar-se de como poderá obter uma nova certidão de nascimento. Uma das opções, como é evidente, é encomendar certificados em branco num estabelecimento de artigos médicos, depois falsificar a assinatura de um médico e o carimbo do distrito. Este nível de falsificação, possivelmente, seria o suficiente para se arranjar uma carta de condução e um cartão da Segurança Social.
”No entanto, mais cedo ou mais tarde, o Beckett precisará de sair do país, e as certidões de nascimento são verificadas sempre que se pretende um passaporte. Tal como qualquer dos presentes que já tenha trabalhado nos crimes de fraude saberá, existe apenas uma maneira fiável para se conseguir uma certidão de nascimento ”genuína”. Vai-se à biblioteca da nossa localidade e nas microfichas que se encontram à disposição do público podemos inteirar-nos dos óbitos até encontrarmos uma criança que nasceu no mesmo ano que nós, mas que faleceu num outro distrito ou estado vários anos mais tarde. Desde que os distritos não procedam à correlação de dados respeitantes às certidões de nascimento e de óbito, a certidão de nascimento continuará no ficheiro. Muito simplesmente, só precisamos de pedir uma cópia dessa certidão no Registo Civil, e consideramo-la nossa.
”E tal como desconfiávamos, a bibliotecária da localidade onde ela vive informou-nos que a Shelly tinha passado quatro dias a consultar as microfichas de jornais antigos. Quando examinámos os mesmos jornais, descobrimos apenas quatro nomes que se ajustariam aos requisitos do Jim Beckett: Lawrence Talbert, Scott Hannah, Albert McDougal e Thad Johnson. Já tratámos de notificar o serviço que emite os passaportes para que nos contactem no caso de aparecer alguém que peça um passaporte em qualquer destes nomes. Existem boas possibilidades de o Beckett querer um passa-porte mais cedo ou mais tarde. Quando isso acontecer, estaremos preparados para o apanhar.
- O que é que o leva a ter tanta certeza de que ele quererá sair do país? - perguntou alguém sentado ao fundo da sala depois de ter levantado a mão.
- Boa pergunta e que nos leva à maior, e à última fraqueza do sujeito; não identificado: a ex-mulher, Theresa Williams. Tal como ouviu na gravação, a Theresa desempenhou o papel principal na identificação do Jim e da sua captura. Ele nunca lhe perdoou isso. Em cada dia que passou na cadeia, escreveu-lhe uma carta, e, em cada uma dessas cartas, descrevia com toda a exactidão a maneira como tencionava matá-la quando saísse. ”Neste momento, as mulheres da Nova Inglaterra, muito possivelmente - sentir-se-ão aterrorizadas e trancarão as portas de suas casas, mas, com toda a franqueza, acho que têm pouco a recear. Sem dúvida que o Beckett voltará a matar e, provavelmente, a Shelly Zane será a primeira vítima desde que ele se evadiu da penitenciária, o que acontecerá logo que ela deixar de lhe ser útil. Todavia, o seu verdadeiro objectivo, a meta suprema, é a Theresa.
”Ele não hesitará em assassiná-la. Há-de descobrir o paradeiro da filha, a Samantha, a quem, aparentemente, ele dedica um afecto genuíno. Feito isso, apressar-se-á a pôr-se ao fresco. Através do Programa de Apreensão de Criminosos Violentos, actuamos na maior parte do território dos Estados Unidos e da Europa. O Jim sabe isso. Calculamos que, dado o fascínio que mostrou pelos nazis fugitivos, que se dirigirá para o hemisfério sul, quer para o Brasil quer para a Argentina.
- E que parte do grupo especial de investigação é responsável pela protecção da Theresa Williams? - perguntou outro dos presentes depois de levantar a mão.
Os manda-chuvas trocaram olhares. O agente especial Quincy afastou-se para o lado e o tenente Houlihan aproximou-se do estrado.
- Miss Williams optou por não beneficiar da protecção policial que lhe oferecemos.
- O quê?! - Ouviu-se um coro de murmúrios.
O tenente Houlihan ergueu a mão para acalmar os presentes. A sua reacção havia sido precisamente a mesma quando Difford lhe telefonara, descrevendo-lhe o plano, absolutamente ridículo, em traços largos.
- Ela tem consciência de que corre perigo. Apesar disso, decidiu que tem mais hipóteses se estiver sozinha.
- Temos de ter, no mínimo, uns quantos agentes federais a protegê-la. Ele pode ir ter com ela, matá-la, e ninguém saberá de nada.
- Meus senhores, o local onde ela está só é divulgado quando estritamente necessário e indispensável; nenhum dos que se encontram nesta sala precisa de saber do seu paradeiro.
- E quanto à filha? - perguntou alguém depois de outro coro de resmungos.
- Ela está protegida e tem os seus próprios guardas. Nenhum de vós precisa de se preocupar com a segurança da garota.
Ouviram-se ainda mais resmungos. Os polícias não gostavam que se lhes ocultasse o que quer que fosse.
- E com respeito ao padrão a que o Beckett aludiu?
- Estamos a trabalhar nisso. Mais alguma pergunta?
Alguns responderam com um abanar de cabeça, enquanto outros trocaram olhares de dúvida. Para quem quer que estivesse a vê-los, todos pareciam estar já debaixo de uma grande tensão.
- Meus senhores, é tudo o que tenho a dizer-vos - concluiu o tenente Houlihan batendo no tampo do atril com o punho fechado.
As portas da frente abriram-se dando saída a uma torrente de agentes com uniformes azuis. Saíram para a luminosidade intensa do sol de Outono, pestanejando para ajustar os olhos à luz do dia. Alguns caminhavam aos pares, outros em pequenos grupos. Todos andavam com rapidez, homens e mulheres que tinham muito trabalho à sua frente.
Quando chegaram ao fundo do quarteirão, um dos homens separou-se dos colegas com um gesto casual de despedida, desaparecendo numa rua lateral, como se o seu carro-patrulha estivesse estacionado aí.
Mas ele não entrou em nenhum automóvel.
Continuou a caminhar por essa rua e quando chegou ao fundo do quarteirão continuou, percorrendo outro, ao que se seguiu um outro. Pouco depois, começou a fazer o mesmo caminho no sentido inverso; finalmente, quando teve a certeza de que não era seguido por ninguém, enfiou pelo meio de um arvoredo. Despiu o uniforme, deixando ver o vestuário cor de laranja habitual dos trabalhadores da construção civil. Tirou de trás de uma pedra grande um capacete que aí escondera previamente. Shelly tinha sido encarregada de arranjar os uniformes, seguindo as instruções que ele lhe dera, como seria de esperar. Ela incumbira-se bem dessa parte do trabalho.
Guardou o uniforme de polícia num saco de papel e voltou a entrar na civilização. Já tinha tratado de disfarçar a sua fisionomia com toda a mestria - um pequeno inchaço aqui, um vinco na pele ali - para ficar com um semblante completamente diferente. Depois de uma caminhada de quinze minutos chegou ao motel onde Lola Gavitz tinha um quarto.
- Querida, cheguei.
Assobiando, trancou a porta depois de ter entrado, e foi inspeccionar a parte de trás dos cortinados. Não se deu ao incómodo de acender as luzes. Atirou o saco para cima da cama de casal e às escuras dirigiu-se para a casa de banho.
Shelly estava nua e suspensa do chuveiro.
Tinha sido amordaçada com fita isoladora. Os pulsos e os tornozelos também estavam ligados com a mesma fita adesiva. Antes de ter enrolado a corda da roupa à volta do pescoço dela, Jim protegera-lhe a pele delicada com uma pequena toalha turca. A outra ponta da corda estava atada à volta da ponta do chuveiro, mantendo Shelly suspensa a cerca de oito centímetros do chão. O cenário clássico da morte por asfixia auto-erótica. Aprendia-se tanta coisa como agente da polícia!
Shelly poderia evitar que a corda da roupa a asfixiasse se colocasse os braços à volta da estrutura da ponta do chuveiro, firmando-se para elevar o corpo. Também podia impulsionar os pés para cima, apoiando-os na beira da banheira. É claro que nesse caso correria o risco de os pés resvalarem, e a queda repentina causar-lhe-ia a fractura do pescoço.
No entanto, devia ter ficado sem forças nos braços porque agora tinha os pés apoiados no bordo da banheira. Quando ele entrou na casa de banho, ela ergueu a cabeça, denotando um grande cansaço, o cabelo comprido e louro afastado dos olhos muito encovados.
Ele olhou para os pés dela. Fechou os dedos à volta do tornozelo. Só precisaria de dar um puxão.
Aterrorizada, ela revirou os olhos.
- O que é que te parece, Shelly? Queres continuar a viver?
Ela acenou que sim tão freneticamente quanto a corda da roupa à volta do pescoço lhe permitia.
- A polícia prevê que eu tenciono assassinar-te quando deixares de ter qualquer utilidade para mim. Achas que continuas a ser-me útil?
Mais acenos afirmativos com a cabeça.
Ele estendeu a mão e, lentamente, alargou o nó da corda. Ela caiu desamparada no fundo da banheira como se fosse um saco de batatas. Ele ficou a observá-la por uns momentos, demorando-se na cascata de cabelos louros e sedosos que caíam sobre a pele branca. Em seguida, desabotoou o fato-macaco de trabalhador da construção civil e largou-o no chão da casa de banho.
Shelly soergueu-se na banheira, reconhecendo a deixa que lhe era dada. Levantou o rosto e, de repelão, ele tirou a fita isoladora que lhe tapava a boca.
- Assim é que é, bonita menina. Não te esqueças de que tens de continuar a ser-me útil, Shelly. Tens de ser útil.
A boca dela fechou-se, envolvendo-lhe o pénis. Ele deixou-se relaxar gradualmente, entregando-se àquele sugar frenético. As mãos dele continuavam a afagar os cabelos louros de Shelly, apanhando-o às mãos-cheias e soltando-o. Durante uns momentos, permitiu-se imaginar que não era Shelly quem se encontrava de gatas defronte de si, mas sim Theresa. A sua estúpida mulher, Theresa.
Nunca a tinha forçado a fazer-lhe aquilo. Nunca a obrigara a fazer nenhuma das coisas que compelira as outras a praticar. Ao fim e ao cabo, ela era a sua mulher, a mãe da sua filha. Considerava que ela não era como as outras. Mas naquela altura via o erro na sua maneira de pensar.
Agora fantasiava tudo o que a obrigaria a fazer quando voltasse a encontrar-se com ela.
Fechou os olhos e as suas mãos cerraram-se à volta do pescoço de Shelly/Theresa.
- Hei-de encontrar-te, minha querida. Hei-de encontrar-te.
Ela estava a ir-se abaixo diante dos seus olhos. Há muito que o ritmo nas suas braçadas deixara de ter a energia necessária. Pouco mais fazia além de agitar a água e ele viu que o queixo lhe tremia. Vinte piscinas foram tudo o que ela conseguira fazer. Pouco mais de quatrocentos metros em comparação com os três mil que ele conseguia nadar. Deus lhes valesse; estavam em apuros.
Tinha começado por pô-la a fazer exercícios de ginástica. Ela não conseguia fazer uma única flexão de bruços. Muito bem. Os músculos dos braços eram um problema para algumas mulheres, além do mais, ela tinha uma constituição física particularmente franzina. Continuaram com exercícios de alongamento. A sua flexibilidade corporal era bastante boa. Fez vinte abdominais consecutivos, tendo conseguido sobreviver a vinte saltos com as pernas e braços abertos. Em seguida, J. T. passou aos exercícios em posição agachada... e foi por pouco que ela não tombou para cima dele. Ficou provado que os músculos dos braços e das pernas pareciam não existir, A mulher encontrava-se numa forma física absolutamente deplorável. Estava quase desprovida de massa muscular. Só pele e osso não eram boas armas para a luta corpo a corpo. - Outra vez - ordenou J. T.
- Não - recusou-se Angela, que se sentia demasiado exausta para imprimir determinação à palavra.
Ele olhou-a com uma expressão de reprovação que fez com que ela, muito frouxamente, desse início a outra piscina.
- Chama a isso estar em forma? - perguntou ele numa voz rosnada. Estava a precisar de um apito.
- Eu já lhe tinha dito que não nadava bem - alegou ela.
- Não me diga! Também não sabe fazer flexões nem exercícios em posição agachada como deve ser. Minha querida, como é que conseguiu viver até agora?
- As donas de casa não costumam imitar o ”Mister Músculos”! - ripostou ela, desabrida. Pelo menos, já era alguma coisa. Se tudo o mais viesse a falhar, quem sabe se ela não seria capaz de derrubar verbalmente aquele Jim grande e mau, fazendo com que caísse redondo no chão.
Ela chegou ao extremo oposto da piscina e, sem que ele a tivesse autorizado, agarrou-se à parede interior. Tinha os ombros a tremer. Encostou o rosto ao solo como se tivesse encontrado uma almofada para descansar. Parecia uma criança esgotada. O aspecto dela inspirava dó, e ele teve vontade de pegar-lhe ao colo, acalentá-la, e embalá-la até que adormecesse enquanto o lhe afagava o cabelo.
- Quer saber qual é o seu problema?
- Não, mas como toda a gente parece ter uma teoria...
Os lábios dela desenharam o sorriso enigmático de quem havia visto muito, o que significava que estava a aludir ao marido e ao baú cheio de segredos que não partilharia com quem quer que fosse.
- Você pensa de mais - adiantou J. T.
- Já tinha ouvido isso.
- Estou a falar a sério. Está agarrada à beira da piscina e a pensar que se sente cansada. Está a imaginar que sente dores nas pernas. Diga-me que estou enganado, Angela.
Finalmente, ela abriu os olhos, as pestanas molhadas.
- De acordo. Estou cansada e sinto dores nas pernas.
- Tem de descobrir a zona.
- A zona?!
- A zona. Nunca praticou nenhum desporto?
- Desporto?! - perguntou ela sem compreender.
- Desporto, Angela. Sabe de que é que estou a falar: futebol, basquetebol, hóquei em patins, natação e sei lá que mais. Se quiser, pode ver o significado da palavra no dicionário.
- Já fui chefe de uma claque.
- E esta? Porque é que eu ainda não tinha adivinhado isso?
- Não é tão fácil como toda a gente pensa - retorquiu ela de imediato. - é preciso muita flexibilidade e disciplina. Alguma vez conseguiu impulsionar a perna até acima do ombro? Não me parece. Praticávamos muito e eram exercícios brutais para os joelhos.
- Não estou a pôr isso em causa. A construção de pirâmides humanas e tudo isso também deve requerer alguma força.
- Sim, mas eu era uma das raparigas mais pequenas. Ficava sempre no topo e não na base.
- Alguma vez caiu? - perguntou J. T.
- Constantemente.
- E voltava a subir?
- Sempre - confirmou ela.
- Porquê?
- Porque é isso que se espera que façamos.
- Precisamente. Portanto, nem sequer pensava nisso. Não dizia: ”Estou muito dorida.” Ou: ”Tenho medo.” Ou ainda: ”Ela vai deixar-me cair outra vez.” Limitava-se a subir de novo porque era isso que se esperava que fizesse. E é isso exactamente o que estamos a fazer aqui, Angela. Você nada e continua a nadar sem pensar em seja o que for, porque é isso que eu espero que faça. E fará as flexões de bruços, marchará e fará todas as coisas até chegar ao limite das suas forças porque é o que tem de fazer. E depois, há-de chegar o dia em que descobrirá que se encontra na ”zona”, pelo que deixará de sentir as pernas, tal como não sentirá os braços. A sua pessoa existe apenas como instrumento de movimento. Isso é que é a ”zona”. A partir dessa altura, poderá fazer quase tudo o que se proponha fazer.
Ela parecia estar fascinada, como que hipnotizada. Mas ele não se sentia à vontade com ela a olhá-lo daquela maneira. Estava agora a falar-lhe de factos; não estava a revelar-lhe as leis do universo.
As pessoas tinham tendência para pensar que os soldados e os desportistas eram homens brutos. Mas isso não correspondia à verdade. As Forças Especiais da Marinha, os Boinas Verdes ou a Força de Reconhecimento dos Fuzileiros pareciam-se mais com contabilistas. Alguns eram suficientemente pequenos para terem merecido a alcunha de ”ratinhos”. Outros tinham quase dois metros e eram tão magricelas que mal pareciam poder caminhar se o vento fosse muito forte. O desempenho levado ao extremo não se relacionava com as características físicas, mas sim com as mentais. Tudo se resumia à capacidade de concentração e determinação. Conseguir encontrar essa zona interior em que se pode ter o universo sob mira num único acto, num movimento, num objectivo. Uma pessoa podia arrastar-se com a cara mergulhada na lama, sob uma chuva intensa e impiedosa, porque não se pensava no peso da mochila ou na frialdade da chuva, tal como não se pensava no sabor que a lama nos deixava na boca. Também ninguém recordava as escassas duas horas de sono da noite anterior ou os quase vinte quilómetros que havia corrido nessa mesma manhã; do mesmo modo, não se pensava nas duzentas flexões de bruços e duzentos abdominais que se tinha acabado de fazer. Concentrava-se única e exclusivamente no centímetro seguinte em que tinha de se arrastar e depois no centímetro a seguir. O mundo tornava-se um simples lugar.
E, por breves momentos, era-se capaz de fazer o que quer que fosse. Os ”supermachões” das Forças Especiais não eram nenhuns Arnold Schwarzeneggers. Eram monges budistas.
Os antigos membros das Forças de Reconhecimento dos Fuzileiros, como J. T. fora, eram os homens que compreendiam que a ”zona” não podia perdurar para sempre. Mais cedo ou mais tarde, o treino militar terminava, o combate acabava, tudo chegava ao fim e era-se o mesmo homem que sempre se havia sido, deitado na tarimba com a raiva a arrepanhar os músculos dos ombros e as recordações impiedosas que desfilavam pela mente.
Era nessa altura que se tomava uma bebida.
- Vou fazer outra piscina - ofereceu-se Angela. Os seus olhos tinham-se semicerrado. As palavras de incitação dele deviam ter resultado, a julgar pela expressão determinada que ela afivelara.
- Faça isso - incitou-a J. T.
Ela começou a nadar com mais força do que graciosidade. Não tinha nenhum fato de banho, razão por que usava uma T-shirt excessivamente grande para o seu tamanho e calções. O excesso de tecido transformava-se num peso morto, não tardando a abrandar-lhe a velocidade das braçadas. Mesmo assim, esforçava-se por continuar a nadar.
- Não consigo! - exclamou ela com falta de ar. - Meu Deus, isto é horrível!
- Você quer que as coisas sejam simples, mas não são.
- Ora, como raio é que você pode saber isso? Olhe bem para si! - ripostou ela com um acenar da mão na direcção dele. - O mais provável é conseguir apanhar cascavéis à mão. Até que ponto é que qualquer das coisas que estou a fazer foi difícil para si? Até que ponto é que foi difícil?
- Não muito - concordou ele calmamente. - Eu nasci para esta merda!
- Odeio-o! - ripostou ela descansando a testa no bordo da piscina.
- A sua filha... existe de facto?
De imediato, Angela retraiu-se, uma reacção que ele levou à conta de um sim.
- Sendo assim, pense nela. Não pense em si, concentre-se nela.
- O que é que você pensa que me permitiu chegar até aqui?
- Hum... - Ficaram em silêncio por momentos. - Que idade é que ela tem?
Angela dava a impressão de não saber até que ponto queria abrir-se com ele.
- Quatro - adiantou pouco depois. - Tem quatro anos.
- Deixou-a num lugar seguro?
- Tão seguro quanto é possível - respondeu Angela.
- Hum...
- Muito bem, está na hora de fazer outra piscina.
- Chiquita, você está bastante estafada - redarguiu J. T. mostrando-se surpreendido.
- Tenho de aprender a fazer isto. Se estou fraca, então só me resta ficar mais forte. Mais duas voltas, de acordo?
- Você é teimosa.
- Não sou nada teimosa - retorquiu ela mostrando-se perplexa.
- Claro que é teimosa. Conseguiu chegar até aqui, não é verdade? Como classifica isso?
- Desespero - respondeu ela com toda a franqueza.
- Não, acredite em mim - retrucou J. T. com um aceno de cabeça..- Você é teimosa.
- Acha mesmo que sim? - perguntou ela parecendo ter ficado satisfeita. - Portanto, sou teimosa. Óptimo. Vou precisar disso.
Recomeçou a nadar; ele continuava sentado no mesmo lugar, pestanejando enquanto perguntava a si mesmo se alguma vez conseguiria vir a compreendê-la. A mulher tinha garra. Deu consigo a pensar que gostaria de a ter conhecido antes de o mundo a haver deitado por terra. Tinha a impressão de que ela devia ter sido lindíssima. Uma mulher pequena, com um sorriso radioso e cabelos compridos e louros.
Jesus te valha, J. T. Desiste.
Atrás dele, a porta de rede foi corrida, abrindo-se.
- Que é feito da intrusa misteriosa?
- Oh, por amor de Deus - disse Marion encaminhando-se para a beira da piscina. - Ela parece estar prestes a afogar-se.
- É apenas a versão dela de nadar à cão.
- Estás a brincar comigo.
- Não. Continuas a acreditar que ela anda fugida?
- Não sei - respondeu Marion que, finalmente, pareceu mostrar algum cepticismo. - Ela não parece ser grande coisa, mas levando em consideração o tipo de pessoas com que habitualmente convives...
- Obrigadinho, Marion. Isso é uma simpatia da tua parte.
Ambos ficaram a olhar para Angela que, depois de ter chegado ao extremo da piscina, chamara a si todas as suas forças para poder nadar na direcção inversa. Foi um processo longo e penoso, quer para ela, quer para os que a observavam.
- Não acredito que um mês seja suficiente - comentou J. T. com um aceno de cabeça que mostrava descrença.
Por fim, Angela chegou junto dele e de Marion, o rosto vermelho do esforço. Agarrou-se ao bordo da piscina enquanto se procedia às apresentações. As duas mulheres mostraram tanto entusiasmo por se conhecerem como seria de esperar.
- Pode tratar-me pelo diminutivo L. B. - disse Angela.
- L. B.?!
- Lizzie Borden.
- Oh! - exclamou Marion, que teve o decoro de corar. - Tenho de confessar que não é nada do que eu esperava.
- Não sou nenhuma criminosa - retorquiu Angela tentando içar-se para sair da água, mas os braços exaustos recusaram-se a cooperar. J. T. agarrou-a pelos ombros, erguendo-a como se ela fosse uma pena. Angela voltou a concentrar a sua atenção em Marion. - Na verdade, até já tive oportunidade de trabalhar com o FBI.
- Quaisquer que possam ser os seus problemas, estou certa de que poderei recomendar-lhe um bom ramo das forças da lei...
- Não, não pode - atalhou Angela. - Já passei por todas. Trabalhei com todos os ramos das forças da lei. E fiquei com a certeza absoluta de que nenhuma está em condições de poder prestar-me qualquer ajuda. Aquilo de que estou a precisar é de uma pessoa como o seu irmão. O J. T. está disposto a ajudar-me.
- Espere um segundo - interveio J. T., dando um passo rápido atrás e acenando com as mãos num gesto de defesa. - Eu limito-me a tentar pô-la em boa forma física!
- Exactamente. E essa é a ajuda de que estou a precisar. Portanto, diga-me, sensei, meu mestre, o que é que se segue na sua lista?
- Como é que se chama? - perguntou Marion. - Se não tiver nada a esconder, com certeza que não verá inconveniente em dizer-me qual o seu nome verdadeiro.
- Não tenho nada a esconder e não quero dizer-lhe qual o meu nome verdadeiro. Não tem nada a ver com isso. Além do mais, se a memória não me atraiçoa, você disse ao J. T. que se encontrava aqui na qualidade de irmã dele e não de agente do FBI.
- Não ligue ao que ela diz, Angela. A Marion não é capaz de se calar... É mais forte do que ela.
- Estou a tentar oferecer os meus préstimos.
- Sendo assim, obrigada, mas não, muito agradecida. E agora, se me dão licença, só posso dar-me ao luxo de pagar um mês dos serviços de J. T. e ainda tenho muito que aprender. Já está na hora de comermos? Vou preparar as papas de aveia. O J. T. é um perigo com uma caçarola na mão.
Sem dizer mais nada, entrou em casa.
Marion soltou a respiração, num sibilar entre dentes.
- Por amor de Deus, J. T., em que é que te meteste?
- Só estou a prepará-la para que possa proteger-se pelos seus próprios meios, Marion. Que mal isso pode ter?
- Contigo, J. T., pode ser muito perigoso. Mas não interessa. Por agora, vou guardar a minha opinião sobre o assunto. E que tal se fosses beber outra cerveja?
- Não posso - replicou J. T.
- Não podes?!
- Concordei em deixar de beber durante um mês - respondeu ele com uma expressão carrancuda.
- Claro que sim, J. T. - retorquiu Marion arqueando um sobrolho numa expressão de dúvida.
- Raios partam isto! Não sou nenhum alcoólico!
- Claro que não és, J. T. - disse ela sorrindo docemente e afastando-se do irmão.
- A Polícia de Nogales vai enviar-vos por faxe, ainda esta tarde, algumas impressões digitais. Quero que vejam imediatamente na base de dados se consta alguma coisa a respeito da pessoa a quem pertencem. Telefonem-me para este número logo que souberem alguma coisa. Falem apenas comigo. Estamos entendidos? Não, não, tenho de recorrer à polícia... não disponho de nenhuma máquina de faxe onde estou. Trata-se de um assunto muito importante. Como polícias de uma pequena comunidade rural, com certeza que estarão dispostos a cooperar. Podemos confiar neles.
A noite já tinha caído. J. T. estava junto do grelhador às voltas com o churrasco; usava um avental alusivo ao amor ardente dos amantes da Luisiana e grelhava peitos de frango. Marion tratava da salada enquanto bebia cerveja atrás de cerveja, como se quisesse retomar o hábito que o irmão pusera de parte.
Tess não cozinhava nada. Tão-pouco ajudava no que quer que fosse, o que, aparentemente, não incomodava Marion nem J. T. Há sete anos que ninguém cozinhava nada para ela. Mas constatou que não era muito boa a deixar que os outros fizessem tudo por ela. Os dedos não paravam nas mãos pendentes ao lado das pernas enquanto a ansiedade se acumulava na sua barriga. Em princípio, devia ter uma aparência impecável para o jantar, com o cabelo bem penteado, bem maquilhada, vestida a primor. Samantha devia comer antes de ela se sentar à mesa para jantar, de modo a que a garota pudesse estar a brincar tranquilamente no seu pequeno parque onde Jim podia admirar a filha sem que esta o incomodasse. A mesa tinha de ser posta de uma determinada maneira, com velas acesas, flores frescas, garfos no lado esquerdo dos pratos e as colheres de sobremesa no topo, a faca e a colher ao lado direito. A vivenda com três quartos no andar superior devia estar sempre escrupulosamente limpa e arrumada. Com o soalho antigo de madeira sólida a cheirar a cera com fragrância de limão, as carpetes acabadas de aspirar e sem um único brinquedo de criança.
Jim escolhera aquela casa por causa do belo friso de madeira entalhada à volta da lareira e das janelas. Noutras casas antigas, há uma geração que se cometia o erro de pintar este trabalho em madeira de branco, bege ou verde-azeitona. Eram belos trabalhos antigos em madeira que deixavam de existir quando pintados. Mas não na casa deles. Jim tinha-a incumbido da tarefa de cuidar da moldura original em carvalho antigo como se estivesse a entregar-lhe uma gema preciosa. Conseguira sobreviver durante cento e vinte anos. Aquele ornamento dava à casa a classe e a elegância que se coadunavam com um agente de polícia condecorado. Deus a livrasse de acontecer algum percalço à prateleira da lareira, ao corrimão ou às ombreiras das portas enquanto ela fosse responsável pela sua manutenção.
Quando Samantha já tinha um ano, houve uma ocasião em que sujou as mãos numa colher cheia de molho de tomate. Acenara, muito contente, não tardando a ficar toda suja de vermelho, assim como as paredes e o peitoril em carvalho da janela. Apesar dos seus esforços, Theresa não conseguira remover totalmente duas das manchas que se haviam entranhado na tal madeira de cento e vinte anos. Tentou tirá-las com detergente e até com óleo. Acabou por optar por um naperom de renda, colocando-lhe uma planta em cima, na esperança de que Jim jamais viesse a descobrir que ela falhara na sua missão. Duas semanas mais tarde, ele arrancou-a da cama às duas da madrugada. Obrigou-a a ir à cozinha. Entregou-lhe lixa e um produto para tratamento da madeira. Ficou a observá-la até às sete da manhã, verificando como ela lixava e escurecia a madeira da moldura da janela; Jim tinha os braços cruzados e uma expressão carregada. Entretanto, Samantha começou a chorar no primeiro andar.
Jim obrigou-a a continuar a trabalhar, apesar dos braços doridos, das pálpebras a fecharem-se, e do choro da filha no pequeno quarto no andar de cima, a chamar por ela.
Tess agarrou um almofadão da sala de estar para impedir que os dedos continuassem a tremer. Mas esses dias já tinham ficado para trás. Caso lhe apetecesse, podia descansar. Tinha liberdade para vestir um par de calções velhos e uma T-shirt quando se sentava à mesa para jantar. Podia brincar com a filha na sala de estar sem se preocupar com qualquer peça de Lego que ficasse oculta debaixo do sofá, o que mais tarde lhe traria problemas. Também não era obrigada a maquilhar-se. Muito simplesmente, podia ser ela própria. Isto é, caso conseguisse vir a descobrir quem era essa pessoa.
Deitou-se de bruços e muito cautelosamente alongou as costas. Estava muito dorida. J. T. orientara-a através de uma série dura de exercícios de natação e levantamento de pesos. Concluiu que, ao fim e ao cabo, devia ter alguma massa muscular porque de certo era impossível que os ossos lhe doessem tanto.
- Tome dois Advil antes de se deitar - aconselhou J. T. quando ainda estava junto do grelhador. - Sentir-se-á agradecida pela manhã.
- Se conseguir sobreviver até lá - resmungou ela. Estendeu-se de lado. Estava toda dorida na região das costelas. Nunca se tinha apercebido de que aquela zona do corpo tinha músculos.
- A comida está pronta. É comer. Vamos dar um passeio depois do jantar. É importante que não fique com o corpo rígido.
- Auuu - fez ela.
- Não se esqueça: nada de lamúrias.
- Por amor de Deus, J. T., dá à mulher um copo de vinho e vê se te acalmas; senão, ainda acabas por a matar.
Tess olhou para Marion com perplexidade e depois gratidão. Durante grande parte do dia, Marion tinha-se mantido dentro de casa. Tess era capaz de se dirigir com exactidão para a parte da casa onde ela se encontrava, bastando-lhe seguir o cheiro dos cigarros que ela fumava uns atrás dos outros. Naquele momento, a agente do FBI vestia umas calças elegantes em linho e uma blusa de seda bege, de corte clássico, com mangas tufadas e punhos delicados. Com o cabelo todo penteado para trás e apanhado, umas argolas finas em ouro nas orelhas, um cinto estreito em couro dourado que lhe acentuava a cintura, parecia trajada para uma festa ao ar livre da classe média. No entanto, o seu semblante destruía essa impressão. Os traços fisionómicos delicados tinham-se eternizado numa expressão empedernida, os olhos azuis como que perpetuamente semicerrados, espelhando inflexibilidade e desconfiança. A sua maneira de andar, numa passada rápida e determinada, revelava uma mulher que não hesitaria em espezinhar quem quer que se atravessasse no seu caminho.
Se Marion MacAllister tivesse conhecido Jim Beckett, Tess tinha a certeza de que ela teria disparado a sua arma primeiro, guardando as perguntas para depois.
Comeram no pátio interior. Marion serviu uma salada com um molho vinagrete a acompanhar os peitos de frango, que J. T. grelhara, arroz de ervas aromáticas e fígado de galinha, e feijão-preto. Precisava de proteínas, disse-lhe J. T. servindo-lhe uma colherada suplementar de arroz e feijão.
Comeu tudo, descobrindo um apetite voraz que lhe era estranho. Começou a comer com os talheres que utilizava com movimentos delicados. Mas, a dada altura, desistiu deles e, seguindo o exemplo de J. T., começou a comer avidamente o frango com as mãos.
- O Freddie vai voltar? - perguntou com a boca cheia.
- Não - respondeu J. T. depois de ter trocado um olhar com Marion.
Esta respondeu com um encolher de ombros. Comeu apenas a salada e metade de um peito de frango. Depois de ter hesitado durante um bom minuto, Tess comeu a outra metade.
- Coma com calma - aconselhou J. T.
- Sei muito bem o que posso comer.
Ele soergueu um sobrolho, mas não lhe deu réplica. Apesar de todas as suas palavras de cautela, ele comeu dois peitos de frango e três porções de arroz e feijão-preto. Mastigava vorazmente, empurrando a comida com goles generosos de chá gelado.
De vez em quando, Tess apercebia-se de que o olhar dele se demorava na cerveja de Marion com uma vontade que lhe custava conter.
- Ora vamos lá a saber: o que é que hoje aprendemos no campo de treino dos fugitivos? - perguntou Marion por fim. Depois de ter acabado de comer, recostou-se para trás e acendeu um cigarro.
- Natação e pesos - adiantou Tess.
- Ela ainda tem de trabalhar muito até ficar em forma - acrescentou J T
A conversa esmoreceu. Em silêncio ouviam o canto distante dos grilos e o zunido sussurrante e ocasional dos colibris entre os cactos.
- Costuma nadar? - perguntou Tess a Marion.
- Um pouco.
- Ela pratica equitação - adiantou J. T. afastando o prato da frente. O seu olhar mantinha-se preso na irmã. - Pelo menos, praticava quando era mais nova.
- Mas já não pratico.
- Hum...
- Não me servia de nada - continuou Marion com rispidez. - Na vida real já ninguém pratica equitação. Não é uma aptidão que seja útil e rentável. Muito francamente, era uma perda de tempo.
- Achas que sim? - perguntou J. T. num tom de indiferença. Os seus dedos faziam girar o copo vazio à sua frente, descrevendo traços com o dedo na condensação da superfície do vidro. - Eu costumava ficar a ver-te quando montavas. Pensava que eras bastante boa.
- Vias-me a montar?
- Sim, via. Nunca consegui compreender como é que eras tão boa cavaleira. Uma coisinha tão pequena a mandar num animal que pesava cerca de seiscentos quilos, submetendo-o à sua vontade no picadeiro. Costumava pensar que pertencias mais ao cavalo do que a nós.
- Mas eu nunca dei por ti no picadeiro.
- Não queria interromper.
- Hum... - fez Marion. Este resmungo espelhava todo um mundo de suspeitas.
- E você, o que é que fazia? - continuou J. T. concentrando-se em Tess.
- Quem... eu?
- Estou a imaginar que teve uma infância como os demais, a menos que a história da cegonha, ao fim e ao cabo, seja verdadeira.
Aquela pergunta apanhou-a desprevenida. Não estava acostumada a que lhe fizessem perguntas a seu respeito.
- Fiz parte das escuteiras - respondeu por fim. - Não tenho nenhum passatempo, nem nada desse género. Depois da escola, tinha de trabalhar. Os meus pais eram donos de um armazém com uma pequena charcutaria. Queijos, doces e especialidades gastronómicas. Tinha muito trabalho.
- Pais da classe trabalhadora? - perguntou Marion. - Da Nova Inglaterra... não? Você fala com um sotaque do Norte. - Era evidente que ela, mentalmente, ia tirando apontamentos.
- Acalma-te, menina - advertiu J. T. num timbre aligeirado. Brindou Tess com uma careta risonha. - Perdoe à Marion, mas, ao contrário de si, nunca tivemos de trabalhar na nossa juventude... O nosso pai tomou a atitude mais inteligente, casando com uma mulher rica. E agora a Marion está decidida, custe o que custar, a ultrapassar esse estigma, transformando-se numa viciada no trabalho. Deixámos de poder levá-la onde quer que seja. O mais certo seria ela dar voz de prisão ao anfitrião pelo crime de evasão fiscal.
- Um de nós tinha de o fazer. Sem dúvida que não foste tu - ripostou Marion apagando o cigarro e estendendo a mão para outro. - Quer saber um pouco a respeito do seu herói? - perguntou dirigindo-se a Tess. - Pois bem, permita-me que lhe diga.
- Hum... hum... - fez J. T.
- O J. T. aos dezassete anos. Muito interessado em orientação topográfica. Sabe o que isso é?
Tess respondeu-lhe com um aceno de cabeça. A tensão instalou-se à mesa. J. T. não se tinha mexido, mas a sua expressão era mais carregada. Os vincos acentuaram-se aos cantos dos lábios. Marion inclinou-se para a frente e prosseguiu.
- É um desporto com origem na Escandinávia e que teve um grande incremento durante as duas guerras mundiais. Basicamente, uma pessoa é deixada sozinha com um mapa topográfico bastante pormenorizado de uma determinada área em que estão instalados treze pontos de controlo...
- Bandeirolas - explicou J. T.
- Seja: bandeiras que têm de encontrar. A pessoa em questão está munida de uma bússola, além do mapa; dispõe de três horas para conseguir encontrar o maior número possível de bandeirolas.
”Pode ser muito violento. Os trechos de caminhos a percorrer são pontuados com base no grau de dificuldade e os mais difíceis... os troços assinalados a vermelho e a azul... nem sequer são trilhos de floresta, são apenas bandeirolas deixadas na floresta. Temos de avançar por entre o matagal, escalar montanhas e atravessar rios de águas revoltas. As pessoas perdem-se. Sofrem lesões físicas. É preciso saber-se o que se está a fazer.
- Eu sabia bem o que estava a fazer - atalhou J. T. - Consegui encontrar o caminho de volta.
- Mas foi por pouco! - ripostou Marion que, uma vez mais, concentrou a sua atenção em Tess. - Portanto, aqui tem o J. T. com dezassete anos e já bastante arrogante. Acha que ele actualmente é suportável? Devia tê-lo conhecido nessa altura.
- Eu era um autêntico santo.
- Deixa-te disso. Estas competições de primeira classe são uma coisa muito importante. Compete-se por faixas etárias e ganham-se prémios. O nosso pai conseguia salientar-se sempre no percurso azul, o nível mais elevado. Ganhava sempre o primeiro prémio. E depois temos o J. T. Ainda era novo de mais para o trilho azul. Tinha apenas dezassete anos e o percurso mais difícil para ele era o vermelho e, de facto, ele era bom. Toda a gente pensava que ia conseguir ganhar... e todos falavam sobre o pai ganhar o azul, e o filho, o vermelho. O coronel até já andava a escolher o lugar onde colocaria os prémios na prateleira da lareira. - O olhar dela endureceu, erguendo o maxilar numa atitude de firmeza antes de continuar. - Manhã da competição. Manhã da competição. Acha que o J. T. fez a inscrição de acordo com a sua categoria no percurso vermelho? Não! Ele inscreveu-se no azul. Um miúdo de dezassete anos a inscrever-se no azul.
- Eu já tinha completado o vermelho - alegou J. T. - Queria qualquer coisa que fosse novidade.
- Mas terias sido o vencedor!
- Os trofeus não têm nenhum significado, apenas metal ordinário que fica a acumular poeira.
- E então? O que é que aconteceu? - perguntou Tess, impaciente por saber.
- Aqui o nosso Einstein - continuou Marion numa voz enrouquecida -, com grande entusiasmo, deu início à sua exploração topográfica. Três horas mais tarde, ninguém sabia do seu paradeiro. Duas horas depois, começam a organizar-se grupos de busca, quando, de súbito, se ouve um grande burburinho vindo do matagal. É o J. T. que surge como se quisesse levar tudo à frente e a praguejar. As mães apressam-se a tapar os ouvidos das crianças. Aparece com uma face toda arranhada, as mãos esfaceladas e num tornozelo tem uma tala improvisada com um galho de árvore. Ele tinha caído pela encosta de uma colina.
- São coisas que acontecem.
- Mas não teria acontecido se tivesses competido para a prova do percurso vermelho, como devias ter feito!
- Mas aconteceu. Além do mais, consegui retornar ao ponto de partida - justificou ele. Voltou-se para Tess com um sorriso malicioso. - Caminhei durante mais de três quilómetros com um tornozelo fracturado. É de alguém que tem cojones ou não?
- A mim parece-me mais um sinal de estupidez - atalhou Marion num resmungo.
- O coronel ficou muito impressionado - contrapôs J. T. num timbre de voz que era enganadoramente inocente, mas Marion retraiu-se. Era o tipo de proeza que o pai apreciava - continuou J. T. com os olhos presos na irmã. - Suportar a dor. Ter tomates. Continuar a andar apesar dos ossos partidos. Ser um homem com um ”H” grande.
Marion remeteu-se ao silêncio. O cigarro tremia-lhe entre os dedos.
- Não sei se sabes, mas ele estava enganado - prosseguiu J. T. Com a mão, afastou o copo que tinha à sua frente. - Ele devia ter autorizado que tu competisses, Marion. A expedição topográfica, a Sociedade da Representação da Guerra Civil. Ensinei-te como utilizar uma bússola... estás recordada disso?
- Não - foi a resposta sucinta.
- E quanto à minha espingarda de percussão? Ficavas a ver-me a entalhar a coronha de madeira escura de nogueira. Ainda te lembras disso ou também trataste de bloquear essa recordação, Marion? Deixaste todas as recordações da tua juventude para trás?
Com uma expressão obstinada, Marion continuava em silêncio.
- Eu recordo-me - continuou J. T. numa voz suave. - Lembro-me de te ver a observar-me a forjar o cano e o mecanismo de disparo. Levei um ano a entalhar o raio da coronha da espingarda e tu observavas-me todos os dias. Ainda me lembro de quando tentavas pegar-lhe... devias ter uns dez ou onze anos. Mas com quase um metro e quarenta de comprimento e uma parte da frente com um peso de quase seis quilos era demasiado grande para ti. Não conseguias levantar a extremidade do cano do chão. Por isso, foste tu que deitaste a pólvora e a bala, empurrando-as com o escovilhão. Eu ergui a espingarda até à altura da cintura de modo a poderes posicionar o cão parcialmente, colocar o fulminante e pôr o cão pronto a disparar. Só me restou levar a espingarda ao ombro, fazer pontaria e disparar. Não te lembras disso, Marion? Foda-se! Por acaso recordas-te de alguma coisa?
- Estás a mentir.
- Porquê, Marion? Por que razão haveria eu de mentir com respeito a uma coisa destas?
- Porque essa é a tua maneira de ser, J. T. Crias fantasias.
- Sobre espingardas de percussão?
- Não és capaz de suportar a verdade. Não suportas ter consciência de quanto o pai te deu, de quanto o pai te favoreceu, e de como conseguiste lixar tudo.
Os nós dos dedos de J. T. adquiriram uma coloração esbranquiçada. Em seguida, num gesto de repelão, afastou a cadeira da mesa.
- Com certeza, Marion, é isso mesmo. - Pôs-se de pé e começou a levantar a mesa. - Tudo se passou como tu imaginaste e o único crime do pai foi ter-te mantido à margem. Mas tu conseguiste ultrapassar essa rejeição. Se tivesses participado, terias sido capaz de ganhar o prémio da competição de orientação topográfica.
- Mas nunca viremos a saber isso, pois não? - retorquiu Marion.
- Não, nunca saberemos. Mas, pelo menos, tens os teus trofeus de equitação.
- E quem é que diabo se interessava pela equitação?
- Interessavas-te tu, Marion.
Esta levantou-se da mesa. Propositadamente, não olhou para J. T. Pegou em três pratos, fazendo mais barulho do que seria necessário e, num passo que denotava irritação, transpôs a porta corrediça de vidro.
O olhar de J. T. mantinha-se na porta. As mãos haviam-se imobilizado no ar segurando dois copos.
- Terá de a desculpar - murmurou a Tess pouco depois. - Ela é uma pessoa de emoções muito intensas. - Juntou mais alguma louça; os seus movimentos eram descoordenados. - Importa-se de me chegar essa saladeira?
- Eu ajudo-o - ofereceu-se Tess.
- Não tem de se sentir obrigada... Deve ter o corpo todo dorido.
Enquanto falava com brusquidão, J. T. não olhava para ela, mantendo os olhos fixos na mesa. Mesmo assim, ela apercebia-se do mau humor que começava a apoderar-se dele, contraindo-lhe os músculos do pescoço e arredondando-lhe os ombros. A iluminação do pátio reflectia-se na sua fisionomia, mas não conseguia penetrar o seu olhar velado. Apenas as mãos se mexiam, dedos compridos e cheios de calosidades que se estendiam, pegando na louça e empilhando-a. O barulho do entrechocar da louça, quando a levantava da mesa e a empilhava, era um som ritmado que traduzia a sua frustração e a sua cólera.
- Não se esqueça de tomar uns Advil - acrescentou J. T. com brusquidão e num tom autoritário. - E veja se descansa. Tem muito trabalho à sua frente e vai ser duro, Angie.
- De acordo - redarguiu ela, sem se mexer.
- Vá para dentro de casa, Angela.
- Posso ajudá-lo a levar alguma louça para dentro.
- Não preciso de ajuda nenhuma.
Ela continuava ao lado dele, sem saber muito bem o que queria e sem ter a certeza do motivo que a levava a manter-se ali. Observou atentamente a fisionomia de J. T., procurando qualquer coisa que até então lhe escapara. Mas a expressão que via no rosto dele não lhe permitia antever quaisquer milagres.
- Você... você e a sua irmã cresceram a fazer esse tipo de coisas, não foi?
- Que tipo de coisas?
- As expedições topográficas... e a representação da guerra civil. Cavalos e caça. Natação.
- Era eu que me dedicava a essas actividades e não a Marion. O coronel interessava-se mais pelo filho do que pela filha. O que resultou durante algum tempo. Mas depois comecei a ficar velho e teimoso de mais para aquilo, deixei de ganhar trofeus e fartei-me de disparar contra o Bambi. E quem sabe se o coronel não terá deixado de confiar em mim com uma arma nas mãos, na presença dele. O coronel não era estúpido.
Tess sentiu-se estremecer.
- Portanto, acabaram-se as expedições pai/filho ao ar livre - acrescentou J. T. - Em vez disso, comecei a fazer parte da equipa de natação, e fui campeão de estilo livre na Virgínia. O coronel pensava que a natação era para os mariquinhas. Acho que tinha alguma coisa contra os homens que rapavam os pêlos das pernas. - Levantou os copos da mesa.
- Quem me dera poder ter praticado todas essas actividades - observou Tess em voz baixa. - Quem me dera que a minha família se tivesse interessado por esse género de desportos. Também desejava ter tido um irmão mais velho, um tio ou alguém que me ensinasse a disparar, como defender-me e como sobreviver. Até mesmo como utilizar uma bússola. Gostaria de ter aprendido tudo isso há mais tempo.
- Sim, de facto, a Marion e eu éramos duros. Éramos mesmo muito duros. - Dito isto, levou a louça para dentro de casa. - Amanhã vamos começar com as armas de fogo.
Tess dormiu e, como era costume, Jim conseguiu encontrá-la em sonhos. Nas trevas da noite, deitada na cama e com as cobertas puxadas até ao queixo, ela viu-se de regresso a Williamstown.
”Ele vai sair do roupeiro”, imaginou ela. A mãe dissera-lhe que os monstros eram coisa que não existia, mas a mãe tinha-lhe mentido porque não quisera acreditar que houvesse pessoas como Jim Beckett.
”Ele vai sair do roupeiro. Corre, Tess, corre!”
Mas ela não conseguia correr. Não tinha músculos. Era como uma massa mole e sem forma, como uma pena de almofada fraca e indefesa.
À distância, começou a ouvir o choro de uma criança. Sabia que tinha de se mexer. Tens de proteger a Sam. Tens de proteger a Sam.
Mas era tarde de mais. A porta do roupeiro do quarto abriu-se e ele saiu, com um esgar sorridente e radiante, brandindo o bastão de basebol.
- Tiveste saudades de mim, Theresa? Senti muito a tua falta.
Ela choramingou. Ouvia a súplica que parecia borbulhar na sua garganta, sabendo de antemão que ia morrer. Samantha parara de chorar, talvez por pressentir a aproximação do perigo. ”Por favor, ela que se mantenha calada.” Se ao menos permanecesse calada durante o tempo suficiente...
Jim encostou-se à parede, batendo ao de leve com o extremo do taco de basebol no tornozelo.
- Onde é que a Sam está?
- Está fora - respondeu Tess numa voz que mal se ouvia. Não chores, Sam. Não chores.
- Diz-me. Eu sou o pai dela. Tenho direitos. - Ergueu o bastão e num passo vagaroso abeirou-se da cama. - Vou matar-te, Theresa. A Samantha será só minha e tu és demasiado patética para fazer alguma coisa que contrarie isso.
Ele ergueu o taco e ela começou a choramingar, mas estava como que petrificada a observar o trajecto em arco do bastão de basebol.
A casa estava mergulhada em silêncio, o seu bebé tinha-se calado. Não ouvia nenhum choro.
- A disciplina é a chave - murmurou Jim, e ouviu-se o som do taco a cortar o ar.
Tess acordou em sobressalto e aterrorizada, já a estender a mão para o telefone. Queria ligar para Difford a fim de ouvir a voz de Samantha. Com frenesi, os dedos enclavinharam-se no auscultador; permanecia deitada, com a respiração entrecortada e o suor a correr-lhe pelas faces.
Vagarosamente, obrigou os dedos a relaxarem. Era perigoso telefonar a Sam para a casa onde a garota se encontrava sob protecção policial; era perigoso fazer alguma coisa que estabelecesse qualquer ligação entre ela e a filha. Difford dissera-lhe que, se queria realmente que a filha estivesse em segurança, teria de a deixar.
E Tess viu-se forçada a concordar. Abraçara a sua menina, beijando a cabeça de onde vinha uma fragrância tão doce e deixara-a.
E agora encontrava-se na cama, dobrada sobre si mesma e abraçada à almofada como se fosse a filha, ansiosa por poder sentir o cheiro a pó de talco. No Massachusetts eram seis horas da manhã. Sam estaria na fase entre o sono e o despertar. Dormiria bem na casa sob a protecção da polícia ou teria pesadelos como às vezes lhe acontecia? Nessas alturas, Tess deitava-se na cama da filha, começando a segredar-lhe a história da Cinderela, com a filha aninhada nos seus braços, sentindo a fragrância do champô Johnson para bebé. Adormeciam juntas e pela manhã, à semelhança de qualquer criança, Sam sorria-lhe, sentindo-se feliz de novo.
Tess queria muito mais para a filha, mais do que andar fugida de cidade em cidade, vivendo sempre assolada pelo medo. Queria que Sam crescesse num ambiente que lhe inspirasse segurança e uma vida sem angústias. Queria que a filha tivesse noção de que era linda e amada, o que os pais da própria Tess nunca lhe haviam dito.
Desejava que a filha fosse feliz e esse anseio fez com que a escuridão a envolvesse como um cobertor de lã, abafando-a. Não sabia muito bem como poderia dar à filha a bênção da alegria. Do mesmo modo, não estava bem certa de como poderia ser uma boa mãe. Não tinha quaisquer exemplos que lhe servissem de modelo.
Quatro da madrugada. Com movimentos lentos, saiu da cama; toda ela tremia e sentia uma perna a latejar. Viu Jim a sair do roupeiro e ouviu o impacto seco do bastão de basebol quando a atingiu violentamente na perna.
Vou matar-te, Theresa. A Sam será só minha.
Com passos leves, Tess atravessou a casa em silêncio. Sem saber que mais fazer, decidiu seguir as indicações de J. T. Saltou para dentro da piscina e começou a nadar.
Edith Magher tinha muito orgulho no seu jardim. Durante toda a sua vida de adulta vivera sozinha, sem nunca ter conseguido encontrar o seu príncipe encantado e, quando chegou, aos quarenta anos, soube que estava destinada a ser uma solteirona sem filhos, não havendo nada que pudesse contrariar essa realidade. Assim, em vez de uma criança, adoptou o seu jardim, onde cada flor, cada caule e cada folha eram preciosos.
Trabalhava todos os dias no jardim, desde a Primavera até ao Outono. Pelas seis ruas estreitas que constituíam a sua pequena vizinhança, era do consenso geral que ela tinha o jardim mais bonito das redondezas e até mesmo aquele casal recém-chegado que comprara a vivenda de esquina tinha o cuidado de manter os seus avantajados labradores presos em casa.
Naquele momento, ela estava no jardim a preparar os canteiros de flores para o Inverno. Em Lenox, no Massachusetts, em finais de Setembro fazia quase sempre bom tempo, com a folhagem a adquirir matizes de um dourado quente, o céu de um azul inacreditavelmente radiante. No entanto, naquele ano, o tempo estava a arrefecer com uma celeridade invulgar. Nos boletins meteorológicos já tinham começado a avisar contra os malefícios da geada, e até mesmo os mais teimosos, os que nunca ligavam o aquecimento central antes do primeiro de Novembro, já haviam principiado a pensar duas vezes. Edith ainda não decidira se já estava disposta a ligar o aquecimento, mas não tinha dúvida de que teria de tratar do jardim. Acreditava convictamente que uma pessoa devia estar sempre preparada para o que desse e viesse, o que lhe permitira aposentar-se do seu emprego de caixa num banco quando completara os sessenta anos, em vez de ter de trabalhar que nem uma escrava até aos sessenta e cinco, como tantas pessoas eram obrigadas a fazer. A tarde estava perfeita para a jardinagem; o bordo frondoso e de grande porte que tinha no jardim reflectia toda uma miríade de tons dourados, e o Sol que se punha lentamente emprestava matizes mais profundos às folhas. Quando Edith inspirava profundamente, sentia as fragrâncias ricas da folhagem que secava, o cheiro a terra fértil e especiarias quentes. Eram várias as pessoas que costumavam tratar dos seus jardins pela manhã, mas Edith desde sempre preferira ocupar-se dessa tarefa ao cair da tarde.
Na véspera tivera conhecimento de que a sua vizinha, a muito querida Mrs. Martha Ohlsson, estava finalmente prestes a regressar da Florida. Perante a notícia de que aquele terrível assassino em série - o homem chamava-se Jim Beckett - se evadira recentemente da cadeia de Walpole, Edith aguardava com alguma ansiedade o regresso de Martha. Viver ao lado da casa vazia fazia com que se sentisse insegura e indefesa.
Todas as noites, quando fechava à chave o seu pequeno chalé com dois quartos, Edith recordava a si própria que não havia razão nenhuma para preocupações. A comunidade em que vivia era pequena e muito sossegada. O centro de Lenox exibia orgulhosamente as suas belíssimas residências antigas, estilo vitoriano, que, em tempos idos, haviam sido as casas de Verão da elite de Boston. Edith Wharton, ao construir a sua mansão nos arredores da cidade, fora a responsável pela fama de que Lenox viera a desfrutar. A vizinha Tanglewood exibia os seus terrenos de um verde luxuriante e uma vista de montanha de cortar a respiração às pessoas que apreciavam a música erudita da Orquestra Sinfónica de Boston, e uma mãe natureza ainda mais grandiosa. Entre Tanglewood e a mansão dos Wharton, Lenox recebia um número considerável de turistas durante os meses de bom tempo do Verão e do Outono com as suas cores fulgurantes.
Agora, graças àquele período de frio inesperado, Lenox já tinha começado a retomar o ritmo de vida dos seus Invernos, tranquilo e lento. Há vários anos que nada acontecia de especial na comunidade de Edith Magher; a última vez fora quando o filho mais velho dos Jones fracturara um braço num acidente de viação.
Todavia, de vez em quando, Edith tinha uma espécie de visões. Não eram muito frequentes - já haviam passado vários anos desde a última. Mas, actualmente, estava a passar por essa fase, pelo que, nalgumas noites, dava consigo acordada a ouvir o bater do seu próprio coração. Também olhava mais por cima do ombro, como se estivesse à espera de ver qualquer coisa horrível a todo o momento.
A sua tetravó, segundo constava, possuía o dom da clarividência. Edith não acreditava muito nesse tipo de coisas. Confiava apenas na terra, no poder da Natureza e na beleza do seu jardim.
Razão por que quando ergueu o olhar e viu a imagem efémera de uma rapariga loura e magra de pé, com o rosto ensanguentado, junto do tronco do velho carvalho, Edith sacudiu a cabeça e pensou: ”Não te atrevas a fazer-me isso.”
Educadamente, a visão desvaneceu-se.
Edith voltou para dentro de casa e preparou uma chávena de chá preto bem forte.
- Afaste-se daí.
- Porquê?
- Porque é uma figueira-da-índia.
Tess olhou para o cacto pouco alto, lanugento e grosso, e depois para os dedos longos e de pele bronzeada de J. T., que continuavam a agarrar firmemente o seu antebraço.
- E o que é que tem de mais?
- É uma opúncia, Angela. Está a ver todos aqueles espinhos muito pequenos e com aspecto aveludado? Acredite no que lhe digo, não pensará que são tão pequenos e aveludados quando aquela espécie de espigões se agarrarem à sua pele como se fossem ferrões curvos.
- Mas é apenas uma planta! - Todavia, ao dizer aquilo olhava para o cacto com desconfiança, dando mais um passo na direcção de J. T.
- É uma planta particularmente talentosa. - Largou-lhe o braço e afastou-se dela. Era evidente que adoptara uma atitude reservada.
Em contraste, Tess sentia-se optimista. Pensava que por muitas papas de aveia que J. T. a obrigasse a engolir ou o número de piscinas que nadasse, jamais seria capaz de ter tanta força como um homem.
Mas uma arma...
Quando J. T. tirou a pequena semiautomática prateada da caixa, ela acenou com a cabeça. Estava prestes a tornar-se uma atiradora de primeira classe. E essa seria a sua vantagem. Era possível que Jim fosse fisicamente mais forte do que ela e mais rápido, mas nem sequer o omnipotente Jim Beckett conseguiria ser mais veloz do que uma bala.
No deserto quente e poeirento de Nogales, pouco faltava a Tess para vir a ser o próximo James Bond... com licença para matar.
E estaria no quarto envolto em sombras, observando Jim a sair do roupeiro como o monstro da vida real que ninguém queria imaginar que existisse. Não voltaria a acobardar-se. Não hesitaria. Nunca mais voltaria a implorar pela sua vida e jamais tornaria a recear pelo bem-estar da filha. Sentia-se determinada a fazer-lhe frente, altaneira e régia, com uma expressão tão fria e composta como a de Marion. Apontaria a sua arma de calibre ponto vinte e dois e veria Jim a imobilizar-se, repentinamente pálido, apercebendo-se de súbito que agora era ela quem controlava a situação.
- Posso pegar-lhe? - perguntou em voz baixa.
- Isto não é nenhum brinquedo - disse ele com rispidez.
- Espero bem que não - replicou Tess.
- Não destrave o mecanismo de segurança, nunca coloque o dedo no gatilho, a menos que esteja preparada para disparar, e nunca aponte a arma a uma pessoa, nem sequer por brincadeira. Estas são as regras.
- Sim, senhor.
- Você não está a perceber o que lhe estou a dizer - acrescentou J. T. com um aceno de cabeça. - Você limit...
- Aquilo é o alvo? - interrompeu ela virando-lhe costas e sentindo o fluxo de adrenalina que lhe percorria as veias. A cerca de seis metros, havia dois fardos de palha que pareciam nascer da poeira amarelada do Arizona. Na parte da frente de cada fardo havia um alvo com círculos brancos e vermelhos, preso com pregos grossos nos quatro cantos. Os alvos não se encontravam muito longe. Eram de um tamanho bastante razoável. Tess acreditou que seria capaz de lhes acertar.
- Quando é que posso desbloquear o mecanismo de segurança?
- Desbloquear o mecanismo de segurança? Primeiro... não tem tampões para os ouvidos, tal como não tem protecção para a vista. Segundo... a arma não está carregada. Terceiro... onde é que aprendeu essa posição horrível?
As palavras ríspidas dele não tardaram a esfriar a euforia que Tess sentia, mas fez um aceno de assentimento. Encontrava-se ali para aprender. Ele ensiná-la-ia.
- Veja, é assim que se faz. - Os braços dele envolveram os dela, elevando-os a direito à sua frente e ajustando a maneira como ela empunhava a arma. As suas ancas ficaram como que aninhadas nas coxas de J. T., tão encostadas que Tess sentia o calor que irradiava dele. Apercebia-se de qualquer coisa dura que não cedia, encostada à nádega esquerda. A caixa que continha as balas, deduziu. Sentiu um vazio no estômago.
- Vamos começar com a posição weaver: empunhamos a arma com as duas mãos para termos um controlo melhor e contorcemos o corpo para não sermos um alvo tão fácil. Rosto para o lado, pés ligeiramente afastados para melhor equilíbrio. Agora estenda o braço direito em direcção ao alvo, servindo-se do esquerdo para o empurrar na direcção do peito, empunhando a arma com firmeza. Assim mesmo. Agora olhe no alinhamento do cano. Não feche um olho. Tem andado a ver demasiados filmes de acção.
Dito isto, afastou-se dela. Por pouco Tess não se desequilibrou.
- O que é que está a ver, Angela?
- Palha...?
- A sério? Concentre-se num dos círculos.
- Vou concentrar-me no centro do alvo - afirmou ela com uma expressão determinada. Cometeu o erro de se mexer, tendo desfeito a posição em que ele a colocara. Uma vez mais, J. T. voltou a posicioná-la, mostrando alguma impaciência.
- Ombros para baixo e braços estendidos a direito. Empunhe a coronha da arma no triângulo invertido entre o dedo indicador e o polegar. Agarre-a com firmeza. Está a ver a estria no cano da pistola?
Tess assentiu com a cabeça.
- Isso serve-lhe para orientar a mira. Deve alinhá-la exactamente entre os dois pontos de mira posteriores. Em seguida, deve apontar para o centro do alvo, tendo por mira o ponto logo acima do alinhamento do visor dianteiro, como se fosse uma lua cheia. Está a perceber?
- Já posso desbloquear o dispositivo de segurança? - perguntou ela depois de um aceno vigoroso de assentimento.
- De acordo. Mas primeiro vamos experimentar sem munições para você se habituar ao gatilho.
- Está bem. - Tess teve de fazer quatro tentativas antes de conseguir desbloquear o mecanismo de segurança.
- Muito bem - continuou J. T. com brusquidão. - Tem nas mãos uma pistola Walther de calibre ponto vinte e dois, semiautomática, exactamente como a que trouxe consigo. Não é uma arma muito potente nem muito precisa, mas em contrapartida é pequena, fácil de ocultar e fiável. Caso o alvo esteja próximo, acertará em parte dele. Portanto, para si, isso significa que deve deixar que o atacante se aproxime, depois fazer pontaria para o peito, que é o alvo maior, e quando começar a disparar não deve parar. Se atingir alguém com uma ponto vinte e dois apenas de raspão será o mesmo que atingir ao de leve um leão que se prepara para investir... Os seus disparos só servirão para o chatear.
- Isso dá-me muita confiança - ripostou ela com ironia.
- Alinhe os seus pontos de mira. Concentre-se no alvo. Respire fundo e expire devagar e depois contenha o resto do ar nos pulmões; agora comece a puxar o gatilho com firmeza. Muito bem. Dispare.
Tess premiu o gatilho. O primeiro puxão foi demorado. Os braços foram impulsionados para cima e os cotovelos imobilizaram-se, mas o gatilho recuou com mais facilidade do que ela esperara. O mecanismo do gatilho deu um estalido seco que ressoou quebrando o silêncio, um som oco devido à ausência de balas. Com mais entusiasmo, Tess continuou com movimentos rápidos e sacões curtos com o dedo indicador, fazendo tudo o que era necessário para disparar com a pistola de acção dupla.
- Parabéns - disse J. T. - Acabou de matar uma nuvem. - Começou a ensinar-lhe como municiar o carregador e a abrir a arma depois de a última bala ter sido disparada. Fazendo pressão num botão, o carregador era desengatado, podendo ser substituído por outro. Simples e fácil. Não havia nada mais simples nem mais fácil. A arma levava seis balas no carregador e uma suplementar no tambor, o que lhe permitiria disparar sete vezes até conseguir atingir o alvo.
Tess colocou os tampões para os ouvidos e os óculos de protecção; feito isto, assestou a mira da arma carregada nos fardos de palha que seriam sacrificados. Disparou a pistola, e o coice da arma fez com que saltasse como um coelho assustado ao ouvir o estampido.
- Deixe-me ser mais específico - insistiu J. T. numa voz arrastada colocando-se ao lado dela. - Antes de começar a disparar, deve abrir os olhos.
- E abri - afirmou Tess.
- Hum... hum. Experimente outra vez. O cão já está engatilhado devido ao primeiro puxão, portanto, não tem de apertar com tanta força. Não se esqueça de suster a respiração enquanto premir o gatilho. Caso contrário, o seu braço, automaticamente, será impulsionado para cima quando inspirar, e para baixo quando soltar a respiração. Vai querer minimizar o arqueado do movimento. Se a ajudar, imagine que o alvo é a minha cabeça - acrescentou com um sorriso cheio de doçura.
Tess puxou o gatilho seis vezes. Finalmente, conseguiu atingir um dos fardos de palha. Mas o alvo continuou intacto.
- Minha doçura, não sabia que gostava de mim.
- Cale a boca! - Tess deixara de se sentir ousada ou triunfante, e bem longe de estar pronta para a luta. Como era possível não acertar no alvo depois de ter disparado sete vezes?
Tentou pensar na chamada ”zona”. Esforçou-se por visualizar a filha, pensou naquela noite na cave, a sua mão à volta do coração de vaca, acreditando que se tratava de um coração a sério, um coração humano. Afastou aqueles pensamentos, firmando os pés.
- Talvez seja preferível voltar a tentar amanhã - sugeriu numa voz muito calma.
- Não. Não. Tenho de conseguir fazer isto.
- Ao fim e ao cabo, saber atirar não é uma coisa assim tão importante.
- Para mim, é a única coisa - ripostou Tess readquirindo a sua compostura.
- Faça como bem lhe aprouver. Sou apenas o professor. - A mão dele afastou-se do cotovelo de Tess. Ela sentiu-se sozinha. J. T. colocou outro carregador na pistola, entregando-lha.
Tess disparou a primeira bala. Quando puxou o gatilho, o coice foi muito acentuado e não acertou em ponto nenhum do fardo de palha. Sentindo-se furiosa e frustrada, baixou a arma e começou a puxar o gatilho como se estivesse a vingar-se de qualquer coisa. Por fim, conseguiu acertar numa das extremidades do fardo, após o que voltou a atingi-lo.
Mais quatro tiros vacilantes, cada um mais difícil do que o primeiro, mas mesmo assim não foi capaz de acertar em nenhum dos círculos vermelhos do alvo.
O carregador ficou vazio. Sentia um zunido intenso nos ouvidos. Tess continuou a puxar o gatilho até que J. T. lhe tirou a arma da mão. Estava de uma palidez acinzentada e com os olhos secos. Não conseguia olhar para ele. Observava fixamente os fardos de feno, perguntando-se como era possível disparar tão desastradamente.
”O que tencionas fazer, Theresa? Bater-me, castigar-me, disparar contra mim? Ambos sabemos que não tens estofo para isso. Nem sequer conseguiste fazer frente ao teu pai. Não foste capaz de proteger a tua mãe. Não és nada, Theresa. Absolutamente nada; além do mais, pertences-me.”
”Pára com isso, pára, pára!” Ela queria-o fora do seu pensamento.
- Angela - começou J. T. com uma expressão inflexível -, você pensa de mais.
- Juro que não estou a pensar!
- Tem de encontrar a ”zona”. Seja o que for que esteja a passar pela sua cabeça, tem de bloquear isso. É imperativo que expulse todos os pensamentos.
- Eu não tenho ”zona” nenhuma!
- Quer conseguir fazer isto, Angela? Encara este assunto com toda a seriedade? Esqueça-se da porra da arma e, em vez disso, veja se consegue adquirir alguma garra. Você é uma mulher tesa, já percebi isso. Mas a sua dureza tem origem na sua capacidade de resistência, o que não basta. Aposto que quando esse sujeito, o Jim, lhe batia, você não se rebelava. Aposto que, quando se sente ameaçada por alguém, se enrola numa pequena bola para conseguir sobreviver.
”O que é óptimo, se tudo o que pretende é sobreviver. Mas a verdade é que me procurou. Você disse-me que queria fazer mais do que esperar, mais do que aguentar. Informou-me que queria lutar. Portanto, aprenda a lutar. Não pode continuar a fechar os olhos com força para depois os arregalar. Tem de parar de estremecer quando ouve os disparos e deve abrir bem os ouvidos. Não me interessa o que a sua mãe possa ter-lhe dito, porque a verdade é que dos fracos não reza a história. O mundo será dos que conseguem completar a corrida, mantendo-se firmes no final.
- Como você - retorquiu ela com amargura.
- Parece-lhe que continuo a manter-me firme? Chiquita, tenho de lhe dizer que não está a observar atentamente. - Tirou o carregador vazio da arma e num único movimento cheio de agilidade substituiu-o por outro. Estendeu o braço. Olhou uma vez; deu a impressão de precisar apenas de um segundo. Em seguida, virou a cabeça para ela e puxou o gatilho. Tess retraiu-se ao ouvir o estampido do disparo, o que não aconteceu com ele. Continuou a premir o gatilho, pum, pum, pum, pum, o homem de pedra em acção. A arma ficou sem munições. A mão de J. T. pendeu paralela à perna.
O centro de círculos vermelhos do alvo tinha sido todo atingido.
- Meu Deus... - murmurou ela, assombrada.
Com brusquidão, J. T. colocou a arma na palma da mão dela.
- Pare de estremecer, pare de saltar. Comece a concentrar-se. Talvez tenha de aprender a odiar. Sei que no meu caso é uma coisa que resulta.
- De acordo - assentiu Tess. Era capaz de odiar. Odiara o pai sempre que ele lhe tinha levantado a mão num acesso de raiva. Odiava Jim por ter feito com que ela acreditasse que a protegeria de todo o mal, para depois a mergulhar num inferno mais profundo do que até mesmo o seu pai seria capaz de conceber. E também se odiava a si própria porque permitira que tanto um como o outro a magoassem, porque tinha levado vinte e quatro anos para chegar à conclusão de que a única alternativa era lutar; mas, apesar disso, continuava a ser muito pouco capaz de o fazer.
Assumiu a posição inicial de tiro. ”Imagina que tens o Jim à tua frente”, disse a si própria. ”Imagina as fotografias da polícia. Recorda-te de tudo o que ele fez.” Susteve a respiração. Começou a disparar. As lágrimas corriam-lhe pelas faces.
”Tu és cem, és estúpida. Não conseguiste ver quem ele era realmente. Não o impediste de continuar, e devias tê-lo feito mais cedo.”
”Mas descobri a sua verdadeira natureza antes de todos! Fui eu quem acabou por detê-lo. Raios partam isto, eu dei-lhe luta!”
”Tarde de mais e não com a eficácia que era necessária. Como pudeste permitir que ele te usasse como usou?”
”Eu pouco mais era do que uma garota, uma rapariga com as ideias muito baralhadas, a única razão por que ele me escolheu. Porque ele se apercebeu do quanto eu queria alguém que pudesse amar, e até que ponto precisava de alguém que me amasse.”
”Ele sabia que és fraca. Sabia que podia moldar-te a seu bel-prazer. E, verdade seja dita, não o decepcionaste.
- Pare com isso! - gritou J. T., tirando-lhe a arma da mão. - Que diabo pensa que está a fazer?
Tess pestanejou sucessiva e rapidamente. A pouco e pouco, saiu da abstracção em que mergulhara. Sentia os ouvidos a zunirem devido aos muitos disparos. Tinha as faces cobertas de uma poeira avermelhada. Olhou para ele. Olhou para os fardos de palha. A palha fora projectada em todas as direcções a partir do topo dos fardos; finalmente, conseguira acertar no círculo branco exterior do alvo com dois tiros. Mas os círculos vermelhos continuavam intactos.
- O seu problema é não prestar atenção - adiantou J. T., encolerizado. - Limita-se a premir o gatilho como se fosse um pistoleiro de cinema e nem sequer está concentrada no que pretende fazer. E isso, minha senhora, é uma blasfémia. Pura e simplesmente, uma blasfémia.
- Raios partam isto; estou a esforçar-me! - ripostou Tess furiosa, não com J. T., mas como se encontrava a jeito, foi nele que descarregou. Espetou um dedo no peito do homem. - Porra, eu contratei-o para me ensinar! Já que é assim tão bom, ensine-me a disparar esta coisa como deve ser.
- Como queira - respondeu ele, conciso. - Como queira. - Sem acrescentar mais nada, J. T. posicionou-se atrás dela, encostando o peito aos ombros dela, o baixo-ventre às ancas dela, as coxas às dela. O queixo de J. T. apoiou-se no ombro dela, e a sua respiração roçava-lhe o pescoço.
- Faça pontaria - ordenou J. T.
Tess ergueu a arma.
- Mantenha o alvo sob mira.
Ela concentrou-se no alvo.
- Eu disse para fazer pontaria, Angela! Em que é que tenciona acertar? Na terra? No céu? Num cacto? Dois fardos de palha não lhe chegam?
- Estou a fazer pontaria!
- Olhe para o fundo do cano, mulher. Imagine que o alvo é o seu marido - resmungou-lhe J. T. ao ouvido. - Faça de conta que é a cara dele que está no centro do alvo, minha doçura. Faça-o pagar a dobrar tudo o que ele lhe fez.
O corpo de Tess contraiu-se. Estendeu os braços a direito e semicerrou os olhos. De súbito, mostrava-se muito calma e fria. Assestou a mira no alvo, empunhando a arma com firmeza e sentindo um fluxo triunfante de adrenalina enquanto puxava o gatilho todo para trás.
A bala foi parar tão longe do alvo que teria de apanhar um comboio para poder regressar ao Arizona.
Tess ficou hirta, perplexa e chocada.
- Merda! - murmurou J. T. com um abanar de cabeça e descontraindo os ombros. Retrocedeu alguns passos. - Voltamos a tentar amanhã, Angela. Ainda tem três semanas e meia.
Ela voltou a olhar para o alvo, depois para a arma que continuava a empunhar. Tinha-a deixado ficar mal. Em princípio, a arma devia ser uma vantagem de que ela beneficiaria. Se não fosse capaz de acertar no alvo, como poderia vencer? Se não conseguisse lutar, correr ou disparar melhor do que Jim, como poderia vencê-lo?
- Mas eu consegui acertar-lhe numa ocasião.
- Disparou contra o seu marido?
- E consegui atingi-lo. Num ombro. Foi difícil. - Abanou a cabeça, aturdida. - Na altura, ele estava em movimento. Talvez tenha sido ele que foi ao encontro da bala.
- Você disparou contra o seu marido? - perguntou J. T. cujas sobrancelhas se uniram formando uma linha sólida e escura.
- Que outra coisa poderia ter feito? Deixar que ele me matasse com um taco de basebol?
- O quê.
Mas ela tinha deixado de lhe prestar atenção. Arremessou a pistola para o chão.
Bruscamente, J. T. fechou a mão no pulso dela.
- Não faça isso. Uma arma não é nenhum brinquedo. Se estivesse carregada, podia ter disparado acidentalmente contra os dois.
- Bem, pelo menos teria conseguido acertar em alguma coisa!
- Não descarregue as suas frustrações na arma nem em mim, Angela. Este tipo de coisas leva o seu tempo a aprender. Pensou que o dinheiro seria o suficiente para lhe comprar o certificado de atirador especial?
- Você não está a perceber! - gritou ela. O seu olhar focou-se nos dedos dele, firmes e fortes à volta do seu pulso. Aqueles dedos possuíam força suficiente para lhe partir um osso, da mesma maneira que os dedos de Jim lhe tinham torcido o pescoço. - Você não sabe, nem sequer compreende as coisas que ele fez. - A sua voz sucumbiu. - Eu menti-lhe, J. T. Menti-lhe.
- Não gosto nada de gente ment... - começou ele a dizer, adoptando uma atitude reservada.
- Pensei que se me ensinasse isto seria o suficiente. Mas temos de ver as coisas como elas são; três semanas e meia não chegarão para eu aprender. Vai ter de me ajudar - acrescentou ela num murmúrio. Vai ter...
- Não me diga o que eu tenho de fazer - atalhou ele. Soltou-lhe o pulso. Num movimento rápido, tinha-a sacudido como se ela mais não fosse do que o espinho irritante de um fruto da figueira-da-índia.
- Você não está a perceb...
- Cale a boca! - cortou ele, desabrido.
Foi então que Tess compreendeu que tinha agido mal. Acreditara que nada o afectaria, mas a verdade é que ele estava muitíssimo afectado. As feições contorcidas, os punhos cerrados junto às pernas. Viu cólera e raiva, e depois uma emoção demasiado poderosa para poder ser descrita. Era qualquer coisa que lhe fora instilada na altura da criação, e ele estava a ser consumido por isso de dentro para fora.
- O que é que se passa com as mulheres? É capaz de me dizer, Angela? Você chegou a minha casa, entrou na minha vida sem ter sido convidada e, que diabo, eu até permiti que ficasse. Digo-lhe quem sou, digo-lhe o que posso dar. E talvez eu seja uma pessoa difícil e rude. Talvez queira tanto beber uma cerveja que acorde a transpirar a meio da noite. No entanto, não toquei numa única bebida, minha doçura. Dei-lhe a saber o que estaria na minha mão proporcionar-lhe, você disse-me o que pretendia, e chegámos a acordo. E agora quer mudar as regras?
”Agora, de um momento para o outro, você quer mais e eu sou um sacana por não lhe dar mais? Minha senhora, já percorri o caminho dos heróis e deixe-me que lhe diga que a coroa de louros não se ajusta. E eu sei que não se ajusta. Nem sequer me esforço por fazer com que se ajuste. Estou-me nas tintas para o facto de não se ajustar. Recuso-me a voltar a entrar nesse jogo. Está a ouvir-me? Não quero voltar a entrar nesse jogo! - J. T. falava com tanta veemência que o cabelo se soltou da faixa elástica que o prendia e lhe tombou para o rosto. Tess sentia a respiração dele na sua face, a força que irradiava do corpo inclinado sobre ela.
- Mentiroso - disse ela simplesmente.
- O quê?! - exclamou J. T., contraindo-se como se o tivessem agredido. O dia já tinha nascido e o firmamento estendia-se num azul imenso, sem fim, como somente um céu do deserto consegue fazer. Mas ele limitava a visão dela apenas à sua presença, apenas à sua presença sombria, irada e ameaçadora.
Ela ergueu o queixo. Já que não tinha habilidade para disparar uma arma, só lhe restava expressar-se com coerência.
- Pode dizer o que lhe apetecer, mas a verdade é que sei mais a seu respeito do que pensa. Não é uma pessoa tão fria como pretende parecer. Interessa-se pelo bem-estar da sua irmã... e muito. Também é evidente que amava a sua mulher e o seu filho.
- Não haja dúvida de que constituem umas belas credenciais! A minha irmã odeia-me, a minha mulher e o meu filho estão mortos. Vou voltar para dentro de casa.
- Espere - pediu Tess estendendo as mãos para ele que lhes deu uma palmada para as baixar.
- Estava convencido de que você não confiava em ninguém, Angela! Pensei que tinha dito que conseguiria cuidar de si sem qualquer ajuda!
- Não sou tão capaz como julgava - retorquiu ela sentindo-se magoada com as palavras de J. T.
- Aprenda a ser melhor - disse ele com frieza, abrindo bruscamente o estojo onde guardou a pistola e as cápsulas das balas disparadas, e afastando-se sem dizer mais nada.
- Um dia de trabalho difícil, meu querido? - perguntou Marion num tom doce cheio de sarcasmo quando J. T., num passo brusco, voltou para junto da piscina.
- As mulheres são a origem de todos os males - rosnou J. T. antes de entrar intempestivamente em casa; atirou com o estojo da arma para dentro do cofre e fechou-o firmemente. Depois de ter tratado daquele pormenor, regressou à sala de estar, desapertando a braguilha das calças de ganga enquanto andava.
Abriu a porta corrediça de vidro na mesma altura em que Angela se preparava para fazer o mesmo. Ambos ficaram imobilizados. Ele foi o primeiro a falar com rispidez.
- A Rosalita ficou de lhe pintar o cabelo. Às três da tarde. Agora vá almoçar.
- Cobarde - ripostou ela, passando por ele com um olhar de arrogância. J. T. deixou-se ficar imobilizado por mais uns momentos, flexionando os dedos.
- Um arrufo de namorados? - perguntou Marion afivelando uma expressão de candura e bebendo um trago generoso da sua cerveja muito gelada. Uma das cervejas dele. Uma das suas cervejas preferidas.
- Merda! - Com um único movimento, despiu a camisola de algodão pela cabeça. Com duas sacudidelas rápidas, tirou as calças de ganga, deixando-as caídas no chão do pátio. Vestido apenas com uns calções, encaminhou-se para a piscina. Subiu para a prancha de saltos mais baixa e assumiu a posição de um corredor.
- Salto estilo bala de canhão?
- Observa e aprende, irmãzinha. - Correu até à extremidade da prancha estreita, dominando toda a sua energia, concentrou-se e depois saltou com o impacto de um relâmpago, todo dobrado sobre si mesmo, rasgando o ar como uma águia. Livre, suspenso, gracioso. Que se fodessem todos!
Mergulhou com toda a correcção, como uma flecha que perfurasse a piscina de águas azuis, indo velozmente até ao fundo.
E a multidão fica num verdadeiro frenesi.
Semper fidelis, meu amor. Quando se pertencia aos fuzileiros, assumia-se um compromisso para toda a vida.
Havia ocasiões em que ele sentia saudades desses tempos em que atravessara águas geladas ao lado de um companheiro, fazendo parte do grupo de reconhecimento hidrográfico. Surgiam furtivamente no horizonte, navegando até à praia onde escondiam a lancha. Em seguida, enquanto dois homens tomavam a dianteira estendendo uma corda de luzes fosforescentes ao longo de trezentos metros de oceano, um par de fuzileiros mergulhava a intervalos de vinte e cinco metros a fim de analisar a inclinação e consistência do leito do oceano; essa informação seria utilizada para uma campanha de desembarque de grandes dimensões. A compilação daquelas informações poderia durar umas oito horas. Oito horas num silêncio total e envoltos em escuridão, a andar pela água gelada, sentindo as pernas entorpecidas. As funções biológicas mais básicas tinham de ser satisfeitas durante esse período de oito horas. Os novatos sentiam-se constrangidos ou envergonhados. Os mais experimentados, muito simplesmente, aceitavam o calor da urina que, de repente, saía para a água gelada, como se o acto traduzisse uma atitude de camaradagem, uma espécie de partilha que os aproximava mais, um elo de ligação mais chegado do que mantinham com as esposas, mães ou irmãs. Era uma coisa impossível de explicar às mulheres. Elas não eram capazes de compreender.
Quando se era um fuzileiro, pertencia-se a alguma coisa, era uma união com algo sagrado. Ele tinha saído em missões com os seus camaradas, bons tipos que faziam um trabalho excelente e que nunca apresentavam desculpas para se furtar ao que quer que fosse. J. T. reconhecia a expressão nos olhos deles porque era exactamente a mesma expressão que os seus reflectiam. Soubera ler a firmeza nos maxilares, a determinação que era fruto de uma extraordinária força de vontade. Tinham-se sentado lado a lado em aviões militares, preparados para saltarem de pára-quedas a meio da noite até zonas que não conseguiam ver; no entanto, ninguém protestava, tal como ninguém se queixava. Em silêncio, haviam partilhado os seus medos, com os óculos de protecção embaciados devido ao calor do corpo. Então, quando a ordem era dada, todos se punham de pé ao mesmo tempo, alinhando-se em fila indiana, e cada um dava um empurrão no traseiro do que estava à frente, o sinal reconhecido universalmente como sendo: ”Salta e que Deus te acompanhe.”
Era uma vida de que ele gostara muito. Finalmente, julgara que tinha encontrado uma coisa que podia fazer, um lugar a que pertencia. Mas até mesmo os fuzileiros eram obrigados a acatar ordens, e a primeira vez que foi forçado a lidar com um oficial de patente superior, que era um hipócrita que espancava a mulher e que tinha merda na cabeça em lugar de miolos, perdera as estribeiras. Ainda tentara conter o mau génio. Tinha feito um esforço. Mas então começou a pensar em Merry Berry e em todas aquelas noites em que ouvira as botas militares do pai a percorrerem o corredor a caminho do quarto dela. Também pensava em todas as ocasiões em que tentara contar a alguém o que se passava na sua casa durante a noite, o que acontecia em segredo, e em todas as vezes em que o coronel o espancara por ter, segundo ele, ”espalhado rumores nojentos e muito feios”.
Tens algum problema em relação a mim, rapaz? Deves lutar como um homem, mostrar que chegas para mim e dares-me uma sova se fores capaz. Mas não deves andar por aí a espalhar mentiras, rapaz. Essa é a maneira de ripostar de um menino da mamã, de um mariquinhas pé-de-salsa.
Uma noite o seu comandante levantou a mão para bater na mulher, e J. T. descontrolou-se por completo. Espancou o homem com tanta violência que, por pouco, ele não morreu; gostaria de ter continuado a espancá-lo. Gostaria de lhe ter pulverizado a cabeça, tê-lo atirado para o chão e espezinhado até restar apenas uma massa informe. Foram precisos quatro homens para o afastar do oficial. E, para cúmulo, a mulher invectivou-o, chamando-lhe bruto e correndo para o marido que tinha ficado com a cara em muito mau estado, lançando os braços à volta do pescoço dele e encostando o olho negro ao ombro do seu agressor.
E aquele episódio ditara o fim de J. T. Dillon no Corpo de Fuzileiros.
Finalmente, começou a ver o que esperara ver: Marion, na beira da piscina, a tentar perscrutar a água.
Impulsionou-se firmando os pés no fundo e, subindo velozmente à tona da água, sacudiu a cabeça como se fosse um labrador molhado, salpicando a irmã generosamente.
- Isto é que foi um mergulho! - disse J. T, exultante, voltando a sacudir o cabelo.
- Oh... por amor de Deus! - Marion retrocedeu um passo, ficando a olhar para ele com uma expressão de censura. Em seguida, baixou o olhar para o seu top de seda sem alças todo salpicado de água. - Olha bem para o que fizeste, J. T.! Que coisa, até parece que tens seis anos!
- Descontrai-te, Marion. Queres nadar ou será que os agentes do FBI são demasiado duros para uma coisa tão trivial?
Ele conseguira o que queria em menos de trinta segundos. Marion era tão previsível como uma boneca a que se desse corda. Era o mesmo que andar com uma tabuleta que dissesse: ”EGO - CARREGUE AQUI PARA MELHORES RESULTADOS.”
- Vai-te foder! Sei nadar muito bem! - Desferiu um golpe no ar com o dedo indicador muito ossudo. - ”Suicidas.”
- ”Suicidas”?! Não sei, Marion. Isso é bastante sério para uma mulher. - J. T. continuou a andar pela água, sorrindo à sua irmã mais nova.
- Podes crer que vais pagar por isto, J. T. O primeiro a gritar que se rende perde. - Agarrou na parte de baixo do top e, para grande surpresa dele, despiu-o. J. T. tinha conseguido enfurecê-la e agora nada a deteria. Sabia que não se sentiria bem consigo própria, mas, ao fim e ao cabo, ela era uma mulher adulta; devia saber que não devia desafiá-lo sem ter ponderado as consequências. ”Suicidas” queria dizer nadar todo o comprimento da piscina, saltar para fora quando se chegasse ao fim e fazer cinco flexões de bruços, voltar a mergulhar e repetir a rotina sucessivamente. Era um exercício que exigia muita resistência por parte do torso, pelo que os homens tinham uma grande vantagem logo à partida. Não que Marion estivesse disposta a admitir uma coisa dessas.
Nunca aquela Marion perfeita e ambiciosa que ele conhecia.
Os calções de linho ficaram caídos no chão à beira da piscina. J. T. descobriu que até a roupa interior da irmã era muito prática - o sutiã cor-de-rosa era de licra, enquanto as cuecas eram menos reveladoras do que a parte de baixo de um biquini. Teria Roger ficado farto daquele tipo de roupa interior? Nem J. T. era suficientemente autodestrutivo para fazer aquela pergunta à irmã.
Nadou até ao extremo da piscina, elevou-se para sair e ficou de pé.
- Estás pronta?
Marion exibia um brilho no olhar e uma inclinação do queixo que indicava estar mais do que pronta. A sua intenção era poder esfregar o estrado de madeira com o traseiro dele. A irmã também se mantivera em boa forma física. Não se via gordura nenhuma naquele corpo, nem qualquer indício de fraqueza no seu olhar.
Com alguma expectativa, J. T. aguardava aquela espécie de competição.
- Partida!
Os dois saltaram ao mesmo tempo para a piscina, como focas que se levassem muito a sério.
De pé e ambos voltaram a mergulhar na piscina.
Todo ele era adrenalina e energia, e estava radiante.
Os primeiros comprimentos de piscina foram fáceis. Os pulmões começaram a consumir mais ar, os movimentos pareciam adquirir uma fluidez lenta com a consistência de borracha. Ouvia a respiração esforçada de Marion enquanto se baixava para completar as flexões de bruços. Por outro lado, não seria a sua própria respiração que ele ouvia?
Quando se levantaram do chão, ambos cambalearam um pouco, chocando um contra o outro e depois, como dois bêbedos, trocaram olhares de fúria antes de voltarem a mergulhar na piscina para continuar.
Ao cabo de quinze piscinas em comprimento, já tinham deixado de ser focas. Nem sequer eram morsas. Assemelhavam-se mais a garrafas com rolhas de cortiça a boiarem na água, esforçando-se desesperadamente por conseguir chegar a terra. J. T. tinha a sensação de que os seus pulmões haviam sido invadidos por um exército de formigas-vermelhas que o picavam com os seus ferrões, enquanto os seus bíceps eram tão obedientes como esparguete cozinhado de mais. As flexões de Marion faziam-na parecer uma tenda dos índios a oscilar ao sabor da brisa.
Apesar disso, ela não gritou que se rendia. Nunca Marion o faria. E ele também não gritou que se rendia. Nunca J. T. o faria. Chegou então à conclusão de que tinham mais em comum do que julgavam. Ambos eram de uma estupidez tal que as palavras não chegavam para a descrever, crianças fracas e feias determinadas a provar que não o eram.
Vá-se foder, meu coronel!
- Vais dizer que desistes, não é verdade? - perguntou J. T. sem fôlego.
- Vai-te lixar!
- Mas que linguagem é essa, Marion...
- Vai-te lixar.
Fez um último esforço e conseguiu sair da piscina, deixando-se cair no ptátio sobre o estômago como se fosse um peixe a debater-se com falta de ar e prestes a morrer. Ele era obrigado a seguir o exemplo da irmã. - Vamos dizer os dois ao mesmo tempo - sugeriu. - Tu estás a dizer que te rendes, meu grande cabeça de abóbora! exclamou ela de uma assentada, mal conseguindo respirar. - Ah, sim? Ora vamos lá a ver como é que te sais nas próximas flexões, Pocahontas!
Marion fechou os olhos enquanto gemia, mas não se mexeu nem tão-pouco disse que se rendia. J. T. concluiu que os dois podiam entrar naquele jogo. Deixou-se cair ao lado dela, concentrando-se na sensação cálida da terra firme que o chão do pátio lhe proporcionava. Invadido pela lassidão de um mundo desfocado a que a privação de oxigénio dava origem, pensava que se sentia melhor do que se sentira havia muitos dias. Como ouro líquido.
Sabia que se detestaria na manhã seguinte, mas, por outro lado, isso era algo que também se aplicava a inúmeras coisas que fizera na noite anterior. Pelo menos, era pouco provável que aquela prova de ”suicidas” o perseguisse com uma caçadeira carregada ou que lhe provocasse uma ressaca.
Entretanto, Marion começara a mexer-se. Firmou a palma das mãos no estrado de madeira, preparando-se para começar a erguer o corpo trémulo.
- Não estás disposta a desistir, pois não? - perguntou J. T., genuinamente perplexo.
- Não! - Rangeu os dentes e com um grunhido determinado soergueu o corpo. Os braços tremiam-lhe, descontrolados. Lenta e tão penosamente que ele teve de cerrar os dentes para poder observá-la, baixou-se na beira da piscina, levando o nariz ao chão. Podia-se dizer que executava os exercícios em boa forma.
- Um - começou a contar, triunfante, apesar de estar sem fôlego.
Perante a tenacidade dela, J. T. viu-se forçado a completar mais cinco flexões de bruços. Pensava filosoficamente que, mais cedo ou mais tarde, um deles teria de desistir, quando estivesse derreado por completo.
Uma hora mais tarde, os dois deixaram-se cair exaustos nas cadeiras do jardim. Não se mexiam. Também não falavam. Limitavam-se a estar estendidos - e estar estendido, de súbito, dava a sensação de ser uma tarefa bastante desgastante.
Através da porta de vidro, J. T. conseguia ver Rosalita inclinada sobre Angela, esta sentada, massajando-lhe a cabeça cheia de champô, lavando-lhe os cabelos curtos. Angela tinha mudado de roupa, vestindo uns calções velhos de caqui e um top branco sem alças. Do lugar onde ele se encontrava, conseguia ver as pernas dela sem qualquer obstrução, a maneira como a linha curvilínea das coxas se unia aos joelhos arredondados que, por seu turno, davam lugar a umas barrigas das pernas de linhas esguias, terminando nos tornozelos nus e de estrutura delicada.
Sempre adorara ver uns tornozelos nus. Tornozelos expostos e pés descalços. Considerava que os pés podiam ser extraordinariamente sensuais, muito em especial se fossem pequenos, graciosos e se as unhas estivessem pintadas com verniz vermelho-vivo.
Rachel costumava pintar as unhas dos pés. Às vezes, se J. T. se tivesse portado muito bem, ela permitia que ele lhe pintasse as unhas dos pés. Ainda se recordava das noites tardias de sábado, quando ela se deitava de costas em cima da colcha da cama e apoiava os seus pés pequenos e brancos no peito peludo dele. Nessas alturas, parecia descontraída, dando gargalhadas, conversando e rindo-se por causa de coisas triviais, enquanto os cabelos louros e compridos lhe emolduravam o rosto como se fossem um halo. A tarefa dele era aplicar cuidadosamente o verniz vermelho-vivo nas unhas dos pés, apreciando as manifestações de contentamento dela. Sempre gostara das noites de sábado.
E depois seguiam-se as manhãs de domingo, quando Teddy acordava e ia para a cama deles e, finalmente, J. T. conseguiu compreender o motivo por que as pessoas adoravam o cheiro a pó de talco.
Merda!
Não queria pensar em nada daquilo.
Eram lembranças que o deixavam sempre muito afectado. Não tinha a energia suficiente para suportar más recordações, nem tão-pouco força para as boas.
- Apetece-te falar sobre o Roger? - perguntou a Marion a propósito de nada.
- Não - respondeu ela sucintamente.
- Eu estava convencido de que vocês tinham um bom casamento... para além do facto de ele ter sido o homem de confiança que o coronel escolheu para teu marido e não ter um mínimo de qualidades que o redimissem.
- Por acaso não acabei de dizer que não queria falar do assunto?
- Sim, mas ambos sabemos que eu sou um grande filho-da-puta.
Ela mostrou-se carrancuda e ambos ficaram em silêncio.
- Ele deixou-me - disse Marion, por fim, num tom de voz que não traía a mínima emoção. - Conheceu uma empregada de mesa num bar qualquer e concluiu que ela era o amor da sua vida.
- Grande sacana!
- Isso mesmo. Acho que se pode dizer que tens toda a razão, J. T.
Ele fez um aceno de cabeça, mas não disse o que lhe ia na alma. Não tinha coragem para lhe fazer uma coisa dessas, não à orgulhosa Marion que ele se atreveria a jurar ter amado o tenente-coronel Roger MacAllister.
- Lamento muito, Marion - proferiu numa voz suave. - Eu... Quando a Rachel morreu... É uma situação muito difícil de encarar. Sei que é difícil.
Ela ficou em silêncio por uns momentos, até que se voltou para o irmão.
- Odeio-o, J. T. Não és capaz de imaginar como o odeio por me ter atraiçoado.
Ele sentiu vontade de lhe pegar na mão. Mas receava que, se cedesse a essse impulso, ela afastá-lo-ia com tanta rapidez que correria o risco de partir o pulso.
- Estás melhor assim - continuou J. T., mas as palavras pareciam carecer de convicção. - Ele não era suficientemente forte para ti, Marion. Precisas de um homem como deve ser e não de um burocrata qualquer do exército. Essa é a forma de vida mais degradante que se possa imaginar.
- Talvez sim - retorquiu ela pondo-se a olhar com fixidez para o firmamento.
- Já meteste os papéis para o divórcio?
- Já o devia ter feito. Mas acho que isso seria a morte do pai. Ele já anda furioso com o Roger e comigo por ainda não lhe termos dado nenhum neto.
- O pai já está a morrer, por isso, estou decidida a dar andamento ao divórcio. Se isso o matar um pouco mais depressa, bem... há um grande número de pessoas que pagariam de boa vontade para que tal acontecesse. Escusado será dizer que eu figuro à cabeça dessa lista, ou figuraria se tivesse dinheiro para o fazer. Agora já perdi tudo. - Os lábios dela estreitaram-se num esgar de censura, mas, ao contrário do que era habitual, Marion não deu continuidade ao assunto do coronel. - Acho que a Angela é uma fraude - acrescentou, abandonando os campos de batalha tradicionais e optando por um território desconhecido. - Ela mente com quantos dentes tem na boca.
- Não me digas, Sherlock Holmes!
- Por que razão, J. T.? Pensei que detestavas gente que mente. Imaginei que o teu código de moral, apesar de desvirtuado, não tolerava essa espécie de comportamento.
- Estou a ficar velho, Marion - replicou ele com um encolher de ombros. - O mundo está a deitar-me abaixo. - Virou-se para poder olhar para a mulher que era tema da conversa, os ombros cobertos por toalhas velhas, mantendo os olhos fechados enquanto o cabelo ficava como que a marinar. Recordou-se de quando ela lhe batera no peito com aquelas mãos muito pequenas que agora se agarravam aos braços do cadeirão. Ela era uma mulher inteligente, orgulhosa e muito determinada.
Disparara contra o marido que tentara agredi-la com um taco de basebol.
- Quero saber quem ela é de facto - acrescentou J. T. - Estarias disposta a ajudar-me, Marion?
Fez-se um silêncio que ameaçava eternizar-se.
- O que queres dizer com isso? - perguntou a irmã, mostrando-se bastante reservada.
- Estou de acordo contigo... Ela está a mentir; é evidente que o nome verdadeiro dela não é Angela. Normalmente, eu não daria continuidade a este assunto. É mau para o negócio. Mas agora quero saber. Quero conhecer a sua verdadeira identidade, que espécie de homem é o marido e que raio é que ele fez.
- Tens a certeza?
- Claro que sim - confirmou J. T.
- Estás a falar a sério? - insistiu Marion.
- Estou.
- Já comecei a tratar do assunto.
- O quê?
- Já recolhi as impressões digitais dela - retorquiu Marion muito calmamente. - Enviei-as por faxe para o laboratório a fim de serem analisadas na base de dados nacional. Já passaram vinte e quatro horas. Estou à espera de receber a qualquer momento um telefonema que me diga exactamente quem ela é.
A boca de J. T. abriu-se e fechou-se várias vezes. Queria manifestar a sua indignação, mas não foi capaz. Quando concordara com a estada da irmã em sua casa, teria pensado realmente que ela agiria de modo diferente?
A sua irmã Marion, orgulhosa, ambiciosa e determinada? Além do mais, queria conhecer a resposta.
- Conta-me o que descobrires - pediu em voz baixa, embora num tom autoritário. - E não informes mais ninguém. Caso ela tenha feito alguma coisa, Marion, se ela se meteu em algum problema, não quero que trates o caso como...
- Uma porra! É preciso não esquecer que sou uma agente federal...
- Não! Em primeiro lugar és minha irmã. Estás aqui na qualidade de minha irmã e é precisamente isso que quero que sejas. Só mais cinco dias, Marion; é pedir muita coisa? Por favor, quero que durante cinco dias te comportes apenas como minha irmã. Ao fim e ao cabo, não me importo por aí além em ser teu irmão. Tentarei não dar motivos para que te sintas constrangida.
Marion ficou em silêncio. Atordoada. O que não passou despercebido a J. T. Para variar, a frieza de Marion não estava a permitir-lhe manter a compostura.
- De acordo - cedeu ela por fim, parecendo estar tão chocada quanto ele com aquela resposta. - Prometo que te contarei o que descobrir, J. T. Depois fica ao teu critério como lidar com a situação. Durante cinco dias, mais nada.
- Obrigado. A sério que te fico muito agradecido.
Naquele momento, a porta corrediça abriu-se e Angela saiu para o pátio, mostrando-se um tanto embaraçada. Depois de lavado, o cabelo fora seco com um secador de mão, apesar de as pontas ainda parecerem um pouco humedecidas. Passou uma mão pelas madeixas curtas e entrelaçou as mãos diante de si.
- Então, o que é que acham? - perguntou.
Estava lindíssima. A luz do Sol, prestes a pôr-se, acentuava a cor castanha, emprestando-lhe centelhas de fogo. O rosto pálido tinha umas feições encantadoras, com uns olhos de expressão muito profunda. J. T. pensou que ela não se parecia nada com a mulher que era apenas umas escassas horas antes. O que o deixava assustado.
- Fica-lhe bem - disse, lacónico.
- Esse é o objectivo de qualquer disfarce, não é verdade? Ficar bem à pessoa.
- Você aprende depressa.
- É verdade - reiterou ela confiante. - Portanto, não tem de se preocupar comigo por causa das minhas pequenas explosões de temperamento, J. T., pode acreditar que hei-de acabar por endurecer. E creia que irei aprender a lidar com armas de fogo!
- Vais arrepender-te, J. T. - interveio Marion que abanava a cabeça, falando entre dentes. - Vais arrepender-te.
O jantar no pátio interior foi uma refeição efectuada em silêncio. J. T. grelhou postas de espadarte que Marion e Angela comeram sem fazer qualquer comentário. Assim que levaram a última garfada à boca, Angela levantou-se da mesa, pegou na louça e desapareceu na cozinha.
Marion acendeu um cigarro. J. T. pôs-se a olhar para as estrelas desejando que não sentisse a garganta tão seca. Apercebia-se do suor que começava a acumular-se por cima do lábio superior, nos ombros e nos braços. Disse a si mesmo que isso se devia ao calor, mas sabia que mentia a si próprio. Queria muito beber uma cerveja. Olhava para a de Marion, cobiçando-a como um homem perdido no deserto.
”Tens de encontrar a zona”, disse para consigo. ”Serve-te da zona.” Mas, entretanto, o telefone começou a tocar, quebrando-lhe a concentração.
Marion olhou-o de relance antes de se levantar para atender. J. T. ficou sentado a sós com os grilos e o olhar que continuava preso na cerveja da irmã.
”o um gole; talvez dois.”
”Mas deste a tua palavra de honra.”
”Ah, por amor de Deus, é apenas uma cerveja! O que é que pode existir de criminoso no facto de um homem beber uma cerveja? Seja como for, os homens nunca deviam dar ouvidos às mulheres; isso só serve para lhes arranjar problemas.”
”Não serás um alcoólico.”
”Tomar uma cerveja depois do jantar não é alcoolismo; é, isso sim, apenas desfrutar de uma cerveja. Somente uma. Durante o serviço militar eu bebia constantemente, tal como fazíamos todos. E éramos capazes de desempenhar a nossa missão? Claro que sim, sempre. A cerveja servia para nos acalmar. Meu Deus, como eu estou a precisar de me acalmar”
”Encontra a zona.”
”Vai-te foder, J. T.! Sabes bem que és um mentiroso, sabes muito bem que não existe ”zona” nenhuma. A única ocasião em que consegues encontrá-la é quando estás no teatro de operações, com os estampidos das espingardas a ecoarem pelo ar e sentes a adrenalina a zumbir-te nos ouvidos. São as únicas circunstâncias em que estás calmo, em que estás concentrado, em que te sentes em paz com o mundo, quando há alguém que tenta matar-te. E, muito simplesmente, isso é doentio.”
A sua mão estendeu-se como se tivesse vontade própria. Os seus dedos fecharam-se à volta da base fria da garrafa molhada.
Deus do céu, como ele estava sequioso. Os dedos tremiam-lhe. Ele queria, ele queria, ele queria.
Ouviu o barulho da porta de vidro a ser corrida para trás; ficou sobressaltado, e, com um sentimento de culpa, meteu a mão debaixo da coxa.
Marion saiu para o pátio, emoldurada pela resplandecente luz dourada. Aquela imagem sacudiu-o, transportando-o a tempos passados. Marion de pé ao fundo da sua cama, vestindo uma camisa de dormir branca até aos pés, os cabelos louros que lhe caíam pelas costas como uma cascata, contorcendo as mãos diante de si. Marion implorava-lhe que a salvasse enquanto o coronel batia violentamente à porta trancada do quarto do filho, exigindo que eles o deixassem entrar.
Mordeu o lábio inferior como se com isso quisesse conter aquelas recordações.
Ela deu um passo em frente seguido de outro. Pouco a pouco, o seu rosto começou a ficar visível. Estava invulgarmente pálida.
- A Angela não está na cozinha - informou numa voz murmurada..- Não consigo encontrá-la em lugar nenhum da casa.
- Quando o telefone tocou, era da Divisão de Informações. Já sei quem ela é, J. T. E, meu Deus, acho que me precipitei. Na verdade, é muito possível que eu tenha feito asneira e da grossa!
O tenente Lance Difford estava a ficar velho.
Tinha bem consciência disso nos últimos tempos. O seu cabelo começara a rarear de maneira bastante acentuada; custava-lhe mais levantar-se da cama pela manhã. O café também tinha começado a causar-lhe dores de estômago e, pela primeira vez na vida, estava a pensar seriamente em deixar de comer donuts e costeletas de vaca mal passadas.
Agora o tempo estava a ficar mais frio e, sim, as suas insónias cada vez o atormentavam mais.
Na verdade, ele não estava assim tão velho - não se podia dizer que com cinquenta anos de idade se estivesse a um passo da cova, pelo menos nos tempos que corriam. Nunca fizera planos para se aposentar da polícia até completar os sessenta. Era um bom tenente, um polícia decente e um homem respeitado. Em tempos, imaginara que passaria os seus dias a investigar casos de homicídio, ajudando o procurador de Hampden County a recolher provas contra criminosos que levaria a tribunal e, eventualmente, quando se aposentasse, mudar-se-ia para a Florida onde se dedicaria a visitar os campos de treino das equipas de basebol durante a Primavera.
Mas foi então que se descobriu o corpo de uma rapariga nos arredores de Ipswich; tinha a cabeça desfeita e havia sido estrangulada com as suas próprias meias de náilon, que continuavam enroladas à volta do pescoço. Oito meses depois desse caso, encontraram o cadáver de outra rapariga em Clinton, ao que se seguiram vários telefonemas da procuradoria de Vermont que queria comparar os dois locais onde os crimes haviam sido cometidos com os homicídios em Middlebury e Bennington.
Praticamente da noite para o dia, Difford passou de um trabalho de pouca importância nas forças policiais para um dos casos de maior relevância que o estado do Massachusetts alguma vez vira. No final, tinha poder para convocar um número inacreditável de homens com um simples estalar de dedos, reforços de várias forças do distrito, assim como de forças estaduais e do FBI. Todos queriam ajudar a capturar o homem que, provavelmente, teria assassinado quatro mulheres em três estados. Com a diferença de que depois passaram a ser cinco mulheres, depois seis e a seguir dez.
Difford tinha envelhecido durante esse período de tempo. As investigações exigiram seis equipas de trabalho que estavam em acção durante as vinte e quatro horas do dia, dia após dia, tornando-se a investigação criminal na história de todo o estado em que se registara a intervenção de mais homens de várias forças policiais.
- Aquilo que temos aqui, rapazes, é o maior assassino em série que a Nova Inglaterra viu desde os tempos do Albert DeSalvo em sessenta e sete. E sabem qitantos erros é que ele cometeu? Zero.
O agente especial Quincy mantivera-se de vigilância a cemitérios e cerimónias fúnebres sem qualquer resultado. Tinham contactado vários colunistas para que publicassem o perfil das vítimas, com o objectivo de manter os nomes e as tragédias bem vivos na memória do público. Quem sabe se o assassino não decidiria contactar alguém da sua intimidade para se gabar dos feitos. Talvez o indivíduo fosse até o empregado do bar onde os polícias da localidade costumavam parar, tentando obter mais pormenores junto dos agentes. Tinham levado a cabo tudo o que envolvera aquela investigação como se fosse um estudo teórico de criminologia, mas, não obstante todos esses esforços, continuaram a existir mais louras, filhas, esposas e mães, que saíram de casa nos seus automóveis para nunca mais voltarem ao próprio lar.
Houve então uma noite em que Difford recebeu um telefonema, não através da linha especial no serviço, mas sim pelo telefone da sua casa. A voz da mulher era tão abafada que ele mal conseguia entender as palavras.
- Acho que sei de quem é que andam à procura - sussurrou ela sem estar com qualquer preâmbulo. Difford imaginou a figura de uma mulher agachada dentro de um roupeiro, com a mão na boca a abafar-lhe a voz e os ombros descaídos numa postura de medo.
- Minha senhora...?
- É verdade que ele mata as vítimas com um bastão ou algo do género? É possível que seja um taco de basebol?
Diríbrd agarrou no auscultador do telefone com mais força.
- É possível, sim, minha senhora - replicou ele ponderadamente. - Gostaria de prestar declarações? Importar-se-ia de vir até à esquadra?
- Não. Não, não, de maneira nenhuma. Se o fizesse, ele não hesitaria em me matar. Sei que sim. - O seu tom de voz elevou-se uma oitava antes de se interromper. Difford ouvia a respiração funda, como se ela estivesse a tentar acalmar-se. - Sei quem ele é - continuou a mulher. - É a única explicação. Os bastões, o seu mau feitio, todas as horas que passa ausente de casa sem qualquer explicação... A expressão que eu às vezes via nos olhos dele. Mas eu não queria acreditar... - A voz esmoreceu. - Tem de me prometer que protegerá a minha filha. Por favor, prometa-me isso. Se o fizer, poderei dar-lhe algumas informações a respeito dele.
- Minha senhora...?
- Esse homem, esse assassino de que andam à procura... é um de vocês... Pertence à polícia.
Difford sentiu um calafrio, mas foi então que soube que a partir daquele momento seria apenas uma questão de tempo até o apanharem.
O promotor público de Hampden County tinha-se envolvido no caso a pedido do seu homólogo de Berkshire County, o que teve lugar assim que a equipa de investigação de Berkshire começou a suspeitar do possível envolvimento de um agente de polícia.
Na manhã seguinte, Difford combinou com o promotor público de Berkshire uma maneira de manterem o agente Jim Beckett ocupado durante essa tarde. Difford foi então falar com a mulher de Beckett.
Difford simpatizou com Theresa Beckett. Não sabia porquê. Estivera predisposto a detestá-la, a não ter grande opinião a seu respeito. Se a acusação que ela fazia ao marido tinha fundamento, então, ela era uma espécie de ”noiva de Frankenstein”. Que género de mulher se dispunha a casar com um assassino? Que tipo de força policial é que o tinha ao seu serviço?
Talvez fosse a maneira como Theresa se sentava à sua frente, tão jovem e assustada, mas, apesar disso, pronta a responder a todas as suas perguntas, uma a uma. Talvez fosse o modo como pegava na filha de dois anos ao colo, encostando-a ao pescoço quando a criança chorava e embalando-a suavemente, sussurrando-lhe vezes sem conta que tudo acabaria por se resolver pelo melhor. Talvez tivesse sido o abandono com que ela entregou a sua vida nas mãos deles. Cada pequeno pormenor perverso, falando com uma expressão que, inequivocamente, lhes dava a saber que faria o que estava certo, que precisava de fazer o que estava certo.
Durante essa primeira semana, conseguiram que ela lhes contasse tudo o que sabia. Encontravam-se com Theresa todas as tardes em locais previamente combinados, e dissecavam o seu casamento. Há quanto tempo é que ela conhecia Beckett? O que sabia a respeito da família dele? Como era ele como marido e como pai? Tinha um comportamento agressivo? Alguma vez tentara estrangulá-la? E quanto a sexo? Com que frequência? Ele entregava-se a alguma actividade de natureza sadomasoquista, asfixia, sodomia? Pornografia explícita?
E ela respondia. Havia ocasiões em que não era capaz de os olhar frontalmente. Noutras, as lágrimas caíam-lhe em silêncio pelas faces; no entanto, deu-lhes tudo o que eles lhe pediam, tendo-lhes fornecido ainda mais. Mantivera um registo das leituras que fizera ao conta-quilómetros do carro do marido ao longo de seis meses. Também anotara a hora a que ele saía de casa para ir trabalhar e a hora a que regressava, além de ter feito uma lista de todos os arranhões e nódoas negras inexplicáveis que ele apresentava no corpo.
Theresa disse-lhes que Jim Beckett usava uma cabeleira postiça. Pouco tempo depois de se terem casado, ele tinha rapado o cabelo, o peito, os braços, as pernas e os pêlos púbicos, tudo. O homem ficara sem um único pêlo, como uma escultura em mármore. O tipo de homicida que não corria o risco de deixar qualquer pêlo quando abandonasse o local do crime.
Também lhes comunicou que ele era um homem frio, arrogante e totalmente desprovido de remorsos. O género de indivíduo que não hesitaria em envenenar o cão do vizinho com o pretexto de o animal fazer as necessidades no seu relvado. Deu-lhes a saber que ele era implacável, a espécie de marido que levava sempre a sua avante. O tipo de indivíduo que sabia instintivamente como fazer com que as pessoas sofressem sem sequer precisar de erguer o punho.
E todas as tardes, quando guardavam os seus blocos de apontamentos, diziam a Theresa que necessitavam de informações mais conclusivas antes de poder actuar contra o agente Beckett, deixando-a para encarar sozinha o marido mais outra noite.
Por volta do sétimo dia, concluíram que já teriam o suficiente, mas, aparentemente, Beckett também pensava do mesmo modo. Nunca conseguiram descobrir quem havia sido o responsável pela fuga de informações, mas a verdade é que ele entrou numa pastelaria durante a sua hora de almoço e, apesar de seguido por dois agentes à paisana, não voltou a sair. Muito simplesmente, o homem como que se desvaneceu da face da Terra.
Foi nessa altura que decidiram avançar em força.
Difford ainda se recordava da expressão de Theresa, a maneira como abriu muito os olhos, o modo como o seu corpo oscilou nessa tarde quando abriu a porta aos investigadores que invadiram a sua casa. Todos usavam fatos com reservatórios de ar emprestados pelos bombeiros, equipamento que havia sido tratado em laboratório e com protecção para o cabelo, destinado a impedir que o local do crime pudesse ser contaminado. Davam a impressão de serem personagens saídas de um mau filme de ficção científica, sobrecarregados com o peso de todo aquele equipamento, gente que se deslocava com um roçagar fantasmagórico e que invadia a sua casa.
Samantha tinha começado a chorar, o que levou Theresa a telefonar à mãe para que fosse buscar a neta. Este assunto resolvido, sentou-se sozinha no sofá enquanto os homens arrancavam as tábuas de madeira dura do soalho, os azulejos do chão da cozinha, escavavam várias secções do chão de terra batida da cave, raspavam a argamassa que ligava os tijolos da lareira. Aspiraram todas as superfícies da casa com um aspirador especial extremamente potente que também sugava partículas de cabelo, assim como de poeira. Os sacos, e respectivo conteúdo, foram enviados para o laboratório de perícia criminal da polícia do Massachusetts a fim de serem analisados ao pormenor. As nódoas na alcatifa foram recortadas, tendo levado o mesmo destino, o que também aconteceu aos azulejos da cozinha. Mais tarde, os técnicos do laboratório criminal da polícia disseram que nunca tinham elaborado tantos relatórios sobre saliva de criança e pedaços de pêssego cuspido. Uma das porções de terra tirada do piso da cave revelou a existência de sangue bovino que já estaria ali há aproximadamente um ano.
Em seguida, trouxeram as luzes. A luz de quartzo de quinhentos watts que ajudava a realçar pêlos e fibras que eram invisíveis à vista desarmada. A luz de radiação ultravioleta, com uma lâmpada azulada fluorescente de cento e vinte e cinco watts, revelava a existência de cabelos, fibras e fluidos humanos, assim como impressões digitais. Por fim, até levaram equipamentos portáteis de laser e de raios infravermelhos. Tudo brinquedos com que os rapazes da investigação criminal nunca tinham oportunidade de brincar, para os quais nunca existiam fundos, e que agora lhes eram oferecidos por outros estados, outros departamentos das forças policiais e pelo FBI.
Metade das forças policiais do estado inspeccionava debaixo de cada pedra e galho de árvore, procurando o esquivo Jim Beckett, enquanto a outra metade desmantelava a sua casa, procurando provas dos crimes que ele havia cometido. A primeira descoberta foi uma provisão de pílulas anticoncepcionais para seis meses que estavam escondidas por trás de uma placa de isolamento no sótão, logo acima de umas caixas onde se lia:
ROUPAS VELHAS DA SAMANTHA; DOIS MESES
- São minhas - disse-lhes Theresa. O seu olhar fixou-se em Diffbrd. - Foram-me dadas por uma clínica em North Adams. Ele queria um segundo filho. Mas eu não podia... Não pude obrigar-me a isso. Por favor, não digam nada ao Jim. Não fazem ideia do que ele é capaz de fazer - acrescentou sem pensar.
Então, depois de as suas próprias palavras se terem registado no seu cérebro, como que se afundou no sofá. Um dos agentes, um perito em traumas de que as vítimas daquele tipo de maus tratos costumavam sofrer, sentou-se ao lado de Theresa, colocando um braço por cima dos ombros dela.
No roupeiro do vestíbulo da frente encontraram uma embalagem familiar de preservativos. Theresa disse que Jim nunca os usava, pelo que os preservativos foram enviados para o laboratório para que o látex de que eram feitos fosse analisado, o que permitiria comparar os resultados com os resíduos recolhidos no corpo das vítimas. Também descobriram cinco bastões de basebol, além do recibo para mais uma dúzia. Mais tarde, as análises feitas às cinzas da lareira revelaram traços do mesmo tipo de madeira de que os tacos eram feitos, além de uma componente química que se assemelhava ao envernizamento final.
Também recolheram quatro tubos de ensaio que continham quantidades medidas de um líquido azul que, posteriormente, depois de ter sido analisado, provou ser um soporífero, Halcion, assim como um compêndio sobre todos os artigos farmacêuticos, na prática, a bíblia da maior parte dos medicamentos, respectivos fabricantes, as propriedades e os efeitos secundários dos fármacos.
No sótão, por trás de uma tábua solta, retiraram uma arma de atordoamento e um macete de borracha. Todavia, não conseguiram estabelecer nenhuma ligação entre Jim Beckett e as suas vítimas. Não encontraram o tipo de trofeus que, regra geral, os assassinos em série guardavam, tal como não encontraram quaisquer vestígios de sangue ou de pêlos.
O que encontraram foram cópias de ficheiros que Beckett havia pedido à Divisão de Formação Profissional do FBI em Quântico. Eram dossiês que continham os perfis psicológicos e interrogatórios de vários assassinos em série. Beckett examinara-os, assinalando-os com vários apontamentos, como, por exemplo: ”O SEU PRIMEIRO ERRO. O SEU SEGUNDO ERRO. ISTO FOI FEITO SEM UM MÍNIMO DE CUIDADO.”
Já no fim da busca, descobriram um comentário final: A DISCIPLINA É A CHAVE.
E a semana transformou-se em seis meses sem terem conseguido descobrir quaisquer indícios que ligassem Jim Beckett aos crimes cometidos.
Naquele momento, Difford levantou-se do sofá. Olhou pela janela da casa sob protecção policial, reconhecendo o automóvel que se mantinha de vigilância no outro lado da rua. Foi ver se a porta da frente estava fechada à chave e depois, porque ainda se recordava do que acontecera naquela noite escura, tendo sempre bem presente o que sucedera nessa tal noite em que Jim Beckett havia regressado para se vingar, o tenente Difford inspeccionou o interior do roupeiro.
Não havia nada a assinalar.
Começou a percorrer o corredor da pequena vivenda abrindo a porta do último quarto. Samantha Beckett dormia banhada pela luz do luar, o seu rosto de pele aveludada e emoldurado por uns lindíssimos cabelos de um tom louro-dourado. Difford encostou-se à ombreira da porta, pondo-se a observar a garota.
Dava a impressão de ser invulgarmente pequena. Ainda chorava pela mãe. Havia ocasiões em que até chorava pelo pai. Mas devia ter em si muito do sangue de Theresa porque, com apenas quatro anos, já era uma garota cheia de fibra. Na maior parte das tardes, ela ganhava-lhe escandalosamente quando jogavam ao dominó.
Difford suspirou. Era verdade que se sentia velho, mas talvez aqueles fossem os dias mais propícios para isso.
- Meu Deus, Theresa, só espero que saiba o que anda a fazer - comentou num desabafo entre dentes. Aconchegou os cobertores abaixo do queixo de Samantha e só depois é que fechou a porta do quarto. - Falhei com a tua mãe - confessou no silêncio que se abatera sobre o corredor às escuras. - Mas estou determinado a não falhar contigo, miúda. Juro-te que não falharei quando mais precisares de mim.
Sentou-se na sala de estar depois de ter ligado a luz, mantendo o revólver regulamentar da polícia em cima das pernas.
Ainda não conseguira forçar-se a fechar os olhos.
Na semana anterior, os meios de comunicação social haviam perguntado a Difford que precauções deviam ser tomadas pelos cidadãos apreensivos, a fim de protegerem as suas vidas, agora que o terrível Jim Beckett conseguira evadir-se da cadeia. Ocorrera-lhe apenas uma única coisa para dizer.
- Fechem os roupeiros à chave.
Quando já passava das sete horas da tarde e continuavam sem qualquer sinal de Angela, J. T. admitiu perante si próprio que se sentia preocupado. Às sete e meia, desistiu de memorizar tudo o que via na ventoinha do tecto e vestiu umas calças de ganga.
Tinha um palpite, nada mais, mas era bom. Fora de casa estava fresco. O Outono aproximava-se do deserto, trazendo algum alívio depois do calor abrasador. O céu expulsara o Sol para dar lugar à Lua de uma brancura cerácea que começava a aparecer. Apenas a luminosidade que bastasse para se poder ver os cactos, semelhantes a soldados hirtos.
O deserto não estava em silêncio. Zumbia e pulsava com o coro rítmico e baixo dos grilos, o som espectral das rajadas de vento seco e o rufiar abafado de uma espécie de pica-paus entre os cactos. Algures muito ao longe ouvia-se o uivo solitário e pesaroso de um coiote isolado.
Avistou-a quando se encontrava a quase dez metros dela, abrandando a cadência da sua passada. Não chamou por ela porque não queria correr o risco de sobressaltar uma mulher armada. Mas, depois, concluiu que não a chamava simplesmente porque não lhe ocorria nada que lhe pudesse dizer.
Deixou-se ficar iluminado pela luz do luar, observando-a a apontar a arma descarregada aos fardos de palha e a puxar o gatilho. O que fazia continuamente. Em seguida, deslocou-se e apontou, experimentando várias posições, praticando uma sucessão de movimentos e disparos.
Uma vez a seguir à outra, sucessivamente.
Conseguia ver que os braços dela tremiam. Tinha percepção de que os dedos de Angela haviam inchado e perdido agilidade, mas nem por isso ela parou. Tivera o cuidado de trazer uma lanterna para iluminar os alvos e dava a impressão de não tencionar desperdiçar a luz. Ergueu a pistola e fez pontaria sobre o alvo, puxando o gatilho uma vez mais.
Ele apercebeu-se que quando ela apertava o dedo à volta do gatilho baixava também a boca do cano da arma; talvez pensasse que iria atingir o alvo, mas, na verdade, estava a disparar para o solo.
Muito tempo depois, Tess começou a caminhar de volta a casa, os dedos doridos de mais para os conseguir dobrar enquanto o braço era um feixe enodado de músculos. Tinha dores na palma da mão, assim como no bíceps. Não havia nada no seu corpo que não lhe doesse. Mas, pelo menos, tinha a satisfação de estar a esforçar-se.
Entrou no pátio interior. Assim que as suas mãos tocaram na porta corrediça de vidro para a abrir, teve a percepção de que não se encontrava sozinha.
Voltou-se para trás, com a arma descarregada encostada à perna nua, tentando ver por entre as trevas da noite.
Não o avistou. Mas sentiu a sua presença.
O olhar dele percorreu-a de cima a baixo. Sentiu que aquele olhar lhe tocava na face, começando a descer muito demoradamente, acariciando a garganta onde o latejar da pulsação era visível, passando aos seus seios, barriga e ancas. O olhar voltou a subir, instalando-se na sua boca.
Um fósforo cortou a escuridão com o seu clarão avermelhado. Ele levou a chama até junto dos lábios, protegendo-a com a mão em forma de concha, permitindo que se visse a linha do maxilar durante uma fracção de segundos. Inspirou o fumo do cigarro até a ponta do cigarro ficar incandescente. Em seguida, com duas sacudidelas rápidas, extinguiu a chama do fósforo.
A escuridão voltou a envolver os dois; a calma dera lugar a uma atmosfera palpitante e cálida. Ela apercebia-se do latejar rítmico da sua corrente sanguínea. Também sentia a atracção primitiva e feroz no olhar dele, cujos lábios se entreabriram.
Ele avançou alguns passos.
- Precisamos de conversar. - O braço de J. T. ergueu-se, deixando cair uma embalagem de seis cervejas em lata em cima da mesa do pátio. - São para si, Theresa Beckett. Comece a beber e conte-me tudo.
- Eles não conseguiam encontrá-lo. Disseram-me que o mantinham sob vigilância, que estavam a par de tudo o que ele fazia a qualquer momento, que eu me encontrava em segurança. Mas, então, houve uma tarde em que ele entrou numa pastelaria para nunca mais voltar a ser visto. O agente especial Quincy previu que o Jim acabaria por regressar. Dizia que, mais cedo ou mais tarde, o Jim voltaria para me matar.
- A senhora virou-se contra ele, Mistress Beckett, uma coisa que ele nunca imaginou poder vir a acontecer. Foi um golpe que deixou um homem como ele extremamente abalado. Agora, a única maneira de restaurar o seu ego, o seu amor-próprio, é matá-la. Portanto, ele há-de voltar. E pode crer que não vai esperar muito tempo.
- Fiz com que eles pusessem a Samantha a salvo. Não que acreditássemos que o Jim quisesse fazer-lhe mal... mas não podíamos correr esse risco. Eu continuei na nossa casa, noite após noite. Limitando-me a esperar. Durante seis meses.
Todas as noites, ela ficava deitada com as cobertas puxadas até ao queixo, com os ouvidos constantemente à escuta e os olhos bem abertos, sempre com o coração na garganta. O nervosismo era tal que roía as unhas até ao sabugo. Ficava sobressaltada ao mais pequeno ruído. Esqueceu-se de como viver, de como sentir. E o Inverno chegou pelas encostas das colinas, cobrindo Williamstown com um manto branco de neve.
”Procuraram-no por toda a parte, mas não tinham muitas pistas. Só muito raramente é que ele falava do passado, pelo que os agentes que procediam às investigações não conseguiram descobrir grande coisa. Todos os familiares dele já tinham morrido, assim como os pais adoptivos. Os únicos amigos que se lhe conhecia eram das forças policiais, sendo esses mais conhecidos do que amigos. Aparentemente, não havia lugar nenhum para onde ele pudesse ter ido; não obstante, como que levou sumiço, desapareceu por completo, como se nunca tivesse existido. Havia ocasiões em que eu perguntava a mim mesma se ele não seria apenas um fantasma horroroso. Imagino que os polícias tivessem começado a pensar a mesma coisa. Ao princípio, havia dez agentes permanentemente de vigilância à minha casa. Mas, depois, uma semana passou a ser dois meses, que deram lugar a quatro. E, em vez dos dez agentes, passaram a ser dois vestidos à paisana. E, inesperadamente, o Jim reapareceu.
O som de qualquer coisa a raspar ressoava no telhado.
Repentinamente, ela levantou-se da cama e num movimento brusco pegou no auscultador do telefone, carregando nos botões e marcando o número num grande frenesi.
O tenente Lance Difford atenderia, ela murmuraria o código e a polícia não tardaria a chegar a sua casa, se é que já não teriam dado por ele no telhado.
Tudo acabaria bem.
Não fosse o facto de o telefone não lhe dar sinal de linha.
- Tens estado à minha espera, querida esposa?
Ela ergueu o olhar.
E o marido saiu do roupeiro; usava o uniforme da polícia de Berkshire County, parecendo Robert Redford quando era mais novo. Empunhava um bastão de basebol em cuja extremidade ela viu umas manchas escuras e cabelos soltos.
Theresa atirou-se para a mesa-de-cabeceira, as unhas todas roídas a deslizarem sem conseguir firmar os dedos na superfície polida. E com uma agilidade perfeita, Jim investiu em frente agarrando-a por um tornozelo.
- Não! Não! - gritou ela, enclavinhando as mãos no colchão e magoando as pontas dos dedos no suporte da cama.
Ele atirou-a ao chão e ela caiu desamparada e com toda a violência, a respiração a fazer-se penosamente. Mas não se deu por vencida, tentando arrastar-se para se afastar, enquanto a mão dele lhe envolvia a barriga da perna.
- Onde está a Sam?
- Nunca conseguirás encontrá-la!
- Eles não te disseram aquilo que eu sou capaz de fazer, Theresa? Não te descreveram em pormenor como eu sinto prazer em infligir dor?
Os dedos dele fecharam-se com força em redor do tornozelo. Depois, ela começou a sentir a respiração dele quando se inclinou sobre as suas costas, imobilizando-lhe o pescoço contra a alcatifa com o antebraço. Jim voltou a falar. A sua voz envolvia-a como se fosse de veludo, suave, pesada e sufocando-a com cada palavra que proferia.
- Tu ajudaste-os, Theresa. Contaste-lhes coisas a meu respeito. Pensaste que eu deixaria passar isso impunemente?
Jim rodeou-lhe a garganta exposta com uma suavidade que era quase ternura. Theresa sentia o coração a bater acelerado como o de um rato capturado na base da palma da mão dele. Com lentidão, Jim começou a apertar, impedindo que o ar lhe entrasse nos pulmões.
Ele disse-lhe que devia opor-lhe resistência. Disse-lhe que gostava quando elas lhe davam luta.
Theresa esbracejava e esperneava, esforçando-se por firmar os calcanhares na alcatifa puída. Sabia que ele iria asfixiá-la a pouco e pouco, depois iria reanimá-la, recomeçando tudo de novo, para voltar a reanimá-la, um processo que se repetiria mais vezes. A dada altura, trataria de a violar, e, em seguida, de a torturar. E depois, quando finalmente já estivesse farto daquele desporto macabro, pegaria no bastão e ela sentir-se-ia grata por o seu tormento estar prestes a chegar ao fim.
Os dedos dela flexionaram-se, abrindo-se acima do aperto em que ele a mantinha. As suas ancas contorciam-se desesperadamente. Em pensamento, continuava a chamar a polícia. Tinha tanta certeza de que eles acabariam por se aperceber do que se estava a passar. A qualquer minuto, arrombariam a porta da frente. Chegariam para a salvar. Mas não apareceu ninguém.
Começou a ver pontos à frente dos olhos, luminosos e que lhe causavam tonturas. Sentiu que estava prestes a perder a consciência, afundando-se no nada, num vórtice escuro e em remoinho. Estava a morrer e parte dela encontrava-se demasiado aterrorizada, demasiado avassalada para se preocupar com a sua sorte.
”Se não resistires agora”, pensou mergulhada num estado de semiconsciência, ”vais morrer e daqui a alguns anos a tua filha nem sequer se recordará do teu nome.”
- Sei em que é que estás a pensar - segredou-lhe Jim ao ouvido. - Estás a olhar a fundo para dentro de ti, tentando encontrar a força de vontade necessária para me desafiares. Mas digo-te já que não possuis esse espírito de luta, Theresa. Fui eu que te tirei isso. Conheço-te bem desde o dia em que te vi pela primeira vez, tendo-te virado de dentro para fora e entrado dentro de ti, pelo que agora não resta absolutamente nada de ti própria. Cada pedaço de ti, cada pensamento que tenhas, na verdade, pertence-me por completo. Fui eu que te moldei. Estou dentro da tua mente. Sou o teu dono.
As luzes ficaram mais luminescentes por trás das pálpebras de Theresa. A sensação de ardor estendia-se dos pulmões a todo o peito. Os dedos dela ainda se mexeram debilmente, mas depois pararam.
As mãos de Jim deslizaram, afastando-se da garganta de Theresa, que aproveitou para lhe dar um murro em cheio no nariz.
Ele tombou para trás, soltando um grito gutural e ela não esperou. Estendeu a mão começando a procurar às cegas, querendo abrir a gaveta de baixo, esforçando-se por encontrar o puxador.
- Grande cabra! - invectivou ele saindo de cima dela. Ela ouviu o barulho sibilante do bastão a cortar o ar quando ele o ergueu.
- Por favor, por favor - suplicou Theresa numa voz enrouquecida, tirando a gaveta, num repelão, da mesa-de-cabeceira.
Ouviu-se um som agudo, um assobio. Theresa esquivou-se, rolando pelo chão sobre si mesma. O chão tremeu com o impacto do bastão quando bateu violentamente na alcatifa.
- Vou matar-te!
Ela chorava enquanto rebolava e continuava a chorar enquanto procurava qualquer coisa na forra da gaveta, mexendo entre tudo o que continha e rezando por um último milagre que lhe salvasse a vida.
Ouviu outro silvar cortante.
O bastão acertou-lhe na coxa.
Um estalar estrondoso, ao que se seguiu uma dor excruciante que lhe percorreu a perna. De súbito, Theresa deixou de ter medo, a exaustão desapareceu de um momento para o outro. Agora sentia-se francamente irritada.
Tentou pôr-se de pé, mas aquela dor intensa que a cegava impediu-a. As dores eram lancinantes, uma agonia insuportável que parecia rasgar-lhe a perna com uma violência que lhe levou lágrimas aos olhos. Pressentiu, mais do que viu, a trajectória em arco do Louisville Siugger autografado que se mantinha suspenso no ar.
Virou a cabeça. Ficou a olhar para ele, alto e majestoso, banhado por um raio prateado de luar, o cabelo postiço louro que lhe caía ondulado para a testa, o peito macio e sem nenhum pêlo, como se fosse uma estátua esculpida em mármore.
Theresa pensou que nunca ninguém lhe tinha dito que o diabo seria um ser maravilhoso.
O bastão abateu-se sobre ela.
A mão dela fechou-se à volta da arma que procurara tão freneticamente.
E ela deslocou-se apesar das dores excruciantes, gritando o terror, a agonia e a fúria que se haviam apoderado de si enquanto rolava sobre o fémur fracturado e erguia os braços trémulos.
O bastão bateu com um impacto tremendo na alcatifa.
Ela começou a disparar a arma.
- Você conseguiu atingi-lo - observou J. T. por fim. Ela já ia na quarta cerveja, o que lhe alterava ligeiramente o sentido de equilíbrio.
- Sim. - O seu olhar mantinha-se preso na água cintilante da piscina que reflectia a luz do luar. - Atingi-o num ombro, o suficiente para que ele perdesse a consciência. Os agentes no lado de fora da casa ouviram o som dos disparos e Difford entrou de rompante. Levaram-no, e o suplício chegou ao fim.
- Mas nunca deixou de andar atemorizada - adiantou J. T.
- Não. Ele tinha razão. Não fui capaz de o tirar do meu pensamento. Vendi a casa, peguei na Sam e fugimos. Andámos fugidas durante dois anos. Arranjei nomes novos e fomos para outras cidades. Actualmente, o meu nome é Tess Williams. Mas a Samantha trata-me apenas por ”mamã”. Não consegue manter-se a par dos nomes, o que faz com que tenha sempre receio de se poder enganar. Portanto, deixou de os aprender porque se sente muito assustada. Isto é uma situação horrível para uma criança tão pequena.
- Você fez aquilo que foi obrigada a fazer.
- Mas não foi o suficiente. Todas as noites eu sonhava com ele e, em sonhos, todas as noites, ele vinha atrás de mim. Um homem assim... não se lhe devia permitir que continuasse a viver.
- Não. Não devia.
- Na semana passada, ele matou dois guardas da prisão. Espancou-os até à morte. Não sei se sabe, mas ele tem muita força. Quem me dera que o estado do Massachusetts tivesse a pena de morte.
- Angela...
- É preferível que comece a tratar-me por Tess.
- Não, não me parece que deva fazer isso. A razão por que usa um nome falso é para se proteger. Com base em tudo o que acabou de me dizer, acho que é uma ideia excelente. Mas, Angie, a Marion recolheu as suas impressões digitais. Enviou-as por faxe para o FBI através da polícia de Nogales. Foi assim que eu vim a saber qual o seu nome verdadeiro.
- Oh... - proferiu Tess depois de alguns minutos de silêncio.
- A Marion limitou-se a agir de acordo com o seu trabalho. Ela sabia que você estava a mentir, o que a levou a querer investigá-la.
- Compreendo - retorquiu Tess.
- Ela tem noção de que fez asneira. Levando em consideração o passado do Beckett, é muito compreensível que tenha querido manter segredo sobre a sua identidade, até mesmo das forças da lei. Pois bem, esse já não é o caso. A Marion gostaria de tratar do seu problema. Escoltá-la-á pessoalmente até Quântico, instalando-a numa casa segura que será vigiada durante as vinte e quatro horas do dia.
- Por acaso você não ouviu o que acabei de lhe contar?
- A polícia cometeu um erro na primeira vez, mas, entretanto, aprendeu com esse erro...
- Isso não interessa! - ripostou ela tirando a mão da dele e pondo-se de pé. - Não está a perceber? Ele é um polícia. Conhece muito bem a maneira de agir dos colegas, pensa como eles. Desde que eu esteja com eles, não poderei estar em segurança porque... encaremos as coisas de frente, os polícias agem de acordo com regras, mas o Jim não obedece a nenhuma. Ele é capaz de prever o que farão a seguir, antecipando-se, e eu sou a que acabará por ficar sozinha, tendo de enfrentar um bastão de basebol. Recuso-me a passar por isso outra vez. Não tenciono ficar parada, como um rato estúpido, à espera que o gato me venha dar caça. J. T. ficou a olhar para ela mantendo-se em silêncio.
- É aqui que tenciono ficar - declarou Tess cheia de determinação. - Apesar de a polícia de Nogales conhecer a minha verdadeira identidade; o Jim não tem contactos nenhuns no Arizona, não é verdade? E quanto a esses agentes do FBI que a Marion contactou em Quântico, com certeza que se lhes poderá dizer que mantenham a boca fechada, não lhe parece?
- Vou falar com a Marion a esse respeito.
- Óptimo! Sendo assim, o assunto está resolvido. Você não compreende, J. T. Pensa que sim. Observa-me a tentar nadar e a disparar contra um fardo de palha e acredita que estou completamente indefesa. Mas há uma coisa em que sou boa. Conheço a maneira como o Jim Beckett raciocina. - Imprimiu um trejeito aos lábios. Tinha os olhos brilhantes devido à humidade das lágrimas. Com um gesto brusco, limpou-as com as costas da mão. - Vou ficar. Caso ele me descubra aqui, então, terei de lidar com ele. Ou você terá de lidar com ele. É muito possível que isso não lhe agrade, J. T., também pode ser que não concorde comigo, mas a verdade é que tive a esperteza de vir até aqui. Se existe alguma pessoa capaz de fazer frente ao Jim Beckett, acho que essa pessoa será um filho-da-puta arrogante e de mau feitio como você.
- Amanhã vamos voltar para a carreira de tiro, Angela. Terá oportunidade de provar que tudo o que sai da sua boca não são apenas bazófias, porque, minha doçura, a partir de agora, pode crer que vou ser muito duro consigo!
- Esplêndido!
- Talvez seja melhor ir-se embora agora, Angela, caso contrário, vou arrancar-lhe as roupas que tem no corpo, possuindo-a aqui mesmo no pátio.
- Oh...
- Ainda não se mexeu.
- É por causa da cerveja - apressou-se ela a assegurar-lhe, embora continuasse no mesmo lugar. Ele começou a avançar até que, por fim, ela pareceu dar sinais de vida. Atravessou o pátio num passo apressado, abriu bruscamente a porta corrediça de vidro e correu para dentro de casa. Ele imaginava-a a trancar o fecho da porta do quarto. J. T. deixou-se ficar sentado no pátio, ouvindo o cantar dos grilos enquanto pensava na história dela e olhava fixamente para as duas latas de Michelob que ainda estavam por abrir.
O Sol estava a pique, não tão abrasador como até então, já que, ao longo da semana, a pouco e pouco, vestira a pele de um benfeitor mais benigno. Acariciava as faces e os braços de Tess, esforçando-se por dar à sua pele um pouco de bronzeado.
No entanto, o resto do deserto permanecia acrimonioso. Os saguaros tinham um aspecto sinistro e trocista, enquanto a artemísia estremecia ao sabor da brisa. Numa corrida veloz, passou um cuco-da-califórnia. À distância, as colinas branqueadas pelo sol apresentavam um aspecto sombrio, sobrecarregadas com o peso dos muitos bairros pobres e centenas de cordas onde a roupa estava estendida a secar.
O mundo encontrava-se envolto em tons abafados de dourado, castanhos secos e verdes ressequidos pelo sol. Tess, no meio de tudo aquilo, vestida com um top branco sem alças, já bastante usado, e uns calções de caqui, sentia-se tão insípida e sem interesse como tudo o que a rodeava.
- Tenciona esculpi-los ou disparar contra eles? - perguntou J. T. com secura. Já tinha despido a camisola de algodão para apanhar um pouco de sol. Vestido com umas calças de ganga cortadas à altura dos joelhos, e calçado com umas sandálias muito puídas, tinha mais o aspecto de um enfadado surfista californiano do que um desesperado mexicano. Ao cabo de duas horas passadas a observar Tess a falhar os alvos, parecia realmente sentir-se enfadado.
Marion aparecera durante a primeira hora para oferecer os seus conhecimentos de perita. Como J. T., ela insistia em que Tess precisava de encontrar a tal ”zona”.
- Concentre-se - disse-lhe a agente especial inúmeras vezes. - Visualize a sua mão a estender-se até ao alvo, tocando no centro e disparando a bala mesmo em cheio.
Caso estes conselhos não dessem resultado, J. T. tinha tratado de modificar o revólver de calibre ponto vinte e dois de Tess, reduzindo a pressão no gatilho para que ela não precisasse de fazer tanta força, e desbastara a coronha de maneira a que se ajustasse melhor ao tamanho da mão dela. Existiam seis pontos fundamentais para se disparar com pontaria: a posição, o modo como se empunhava a arma, o controlo da respiração, o alinhamento da mira, o aperto no gatilho e o disparo do projéctil. Tess tentava agora concentrar-se em todos ao mesmo tempo, e isso dava-lhe dores de cabeça.
Ajustou os tampões nos ouvidos e distendeu os ombros, fazendo movimentos rotativos. Sentia as mãos e os braços a latejarem, uma moinha branda e constante. Precisou de reunir todas as suas forças para conseguir disparar repetidas vezes. Marion exibira ostensivamente os seus próprios antebraços atravessados por uma teia de tendões intrincados. Para vir a ser um agente, qualquer praticante tinha de conseguir puxar o gatilho de um revólver vinte e nove vezes em trinta segundos. Havia um grande número de elementos do sexo feminino que não eram capazes, mas Marion, rija e determinada, conseguira, e tinha músculos para o provar.
Tess começava a acreditar que não havia nada que os filhos da família Dillon não conseguissem fazer.
Não só não gostava da arma, como também não gostava do seu peso, da sensação ao pegar-lhe nem do estampido dos disparos. Na sua percepção, as armas continuavam a ser objectos inerentemente maléficos, demasiado poderosos e diabólicos. E talvez receasse acima de tudo que, quando começasse a empunhar uma arma com à-vontade, isso se tornasse um ponto de viragem na sua vida de onde não haveria retorno. Passaria a fazer parte, para todo o sempre, de um mundo de violência. Nunca mais conseguiria escapar a isso.
Tu fazes parte da violência., recordou a si mesma. As únicas opções são controlá-la ou ser vítima dela.
Tess respirou fundo. Disse a si própria que a arma era sua amiga. Não era a primeira vez que se servia dela e já lhe tinha salvo a vida. Haveria de conseguir controlar o medo, tal como acabaria por dominar a arma.
Assumiu a posição que J. T. lhe ensinara, nivelando os braços.
Muito bem, Tess. Você é uma máquina de matar implacável. Alinhar, inspirar, aguentar e apertar.
Puxou o gatilho. O barulho foi atroador. Saltou e fechou os olhos.
Era uma idiota.
Com uma atitude fatalista, despejou o carregador. Quando acabou, virou-se para J. T., que abanou a cabeça como fizera durante toda a tarde.
- Tess, por que razão tem tanto receio de um objecto inanimado?
- Não há nada de inanimado numa arma de fogo!
- Isso quer dizer que tem andado a ver filmes de mais da Disney.
Deu um passo em frente e agarrou-a pelo pulso. Passou um dedo cheio de calosidades pela sua coxa nua, roçando a orla dos calções de caqui.
Ela retraiu-se. Empalideceu. Corou.
- O que é que está a fazer? - perguntou Tess, furiosa.
- Bela cicatriz - disse ele. - Não aprendeu nada com isto?
- Ao que tudo indica, não o suficiente - ripostou, incapaz de o olhar de frente.
- Como... como é que ficou com essa cicatriz?
- Parece-me que foi na Guatemala. - J. T. continuava de pé diante dela. A sua mão permanecia na coxa.
- Parece-lhe?!
- É possível que tenha sido em El Salvador. Passado algum tempo, todas as florestas tropicais parecem iguais.
- Portanto, estava a lutar?
- Por causa de uma mulher lindíssima, tenho a certeza.
- Claro que sim. - A sua sensação era de que ele teria tido realmente muitas mulheres lindíssimas.
- É verdade. Penso que sim - continuou J. T.
- Estou a ver. Ao fim de algum tempo, todas as mulheres bonitas parecem iguais; é isso?
- Sem dúvida. Apenas têm um sabor diferente.
Tess afastou-se um pouco, tentando ocultar as suas emoções, apanhando as cápsulas vazias; contudo, era evidente que não estava a disfarçá-las muito bem.
- Ofendi-a? - perguntou J. T. decorridos uns momentos, num tom neutro, cruzando os braços diante do peito.
- Depois de ter passado uma semana na sua companhia? Não me parece.
- Portanto, agora está imune ao choque? É assim tão dura?
- Sou uma idiota que funciona na perfeição - garantiu-lhe ela.
- Óptimo - retorquiu J. T. - Sendo assim, não terá a mínima dificuldade em disparar a arma - acrescentou esboçando um sorriso sinistro. - Outra vez, Tess. Não vai sair daqui enquanto não conseguir fazer isso como deve ser. A arma é uma ferramenta. Tem de aprender a servir-se dela. - Com estas palavras, puxou-a, obrigando-a a dar meia volta rápida e encostando-a com força ao peito. - Vamos tentar uma experiência - murmurou. Com a face barbuda afastou o cabelo dela para trás até ficar com os lábios junto da orelha.
- De acordo - anuiu ela numa voz sussurrada. Tess passou a língua pelos lábios.
- Apanhe a arma para mim.
- Está bem.
- Coloque um carregador novo.
- Está bem.
- Faça pontaria para o alvo - continuou J. T.
Tess estendeu os braços a direito e assumiu a posição weaver. Ele passou as palmas das mãos pelos braços dela, fechando os dedos à volta dos pulsos.
- Tess, você já está a ficar com alguma musculatura.
Ela começou a tremer, um tremor que ele interpretou erroneamente.
- Chiquita, ainda nem sequer soltou o dispositivo de segurança.
- Estou só... O que é que está a fazer?
- Vou ser como a sua sombra. Você dispara e eu corrijo. Encoste-se a mim e descontraia-se. Vamos lá, minha doçura, relaxe o corpo. - Tocou-lhe nos braços ao de leve. Tess ficou ainda mais contraída. - Tess - murmurou ele. Os seus dentes fecharam-se no lobo da orelha dela, mordendo-a ligeiramente. - Descontraia-se.
- Oh, meu Deus - disse ela, sucumbindo.
- Eu sempre soube que este truque ainda havia de me dar muito jeito. - O corpo de J. T. mudou de posição, colocando-se de forma correcta e parecendo moldar o dela. Tess permitiu que ele o fizesse. Sentia os pêlos da perna dele, assim como os do peito, a barba áspera de doze horas. - Concentre-se no alvo - acrescentou J. T. - Fogo!
Tess fez como ele lhe ordenava. Puxou o gatilho para trás e os braços tremeram como que percorridos por espasmos. Ele segurou-os, mantendo-os direitos quando oscilaram para baixo, obrigando-os a elevarem-se.
Finalmente, depois de receber as orientações adequadas, ela conseguiu efectuar um disparo em que a bala foi projectada a direito e com pontaria, acertando no círculo exterior do alvo.
- Oh, meu Deus! Olhe para aquilo!
- Está a ver... - A voz dele segredava-lhe ao ouvido. - Não é tão difícil como pensava.
- Outra vez - pediu Tess numa voz sussurrada.
Esvaziou o carregador. Sempre que se preparava para disparar, o corpo dele contraía-se em redor do seu, impedindo a retracção automática do corpo dela, compensando o erro de modo a evitá-lo. Utilizaram outro carregador e o fardo de palha não ficou em muito bom estado.
- Óptimo - observou J. T. Retrocedeu, mas as suas mãos continuaram nos ombros dela.
Momentos depois, os dedos começaram a apertar os músculos contraídos de Tess, massajando-os, como se ela fosse uma atleta. Ela fechou os olhos, deixando que a cabeça lhe pendesse para a frente. J. T. fazia com que se sentisse descontraída, com o corpo solto. Dava-lhe a sensação de que seria capaz de fazer fosse o que fosse.
- Muito bem - disse J. T. afastando as mãos. Tess tentou não protestar. - Agora está na altura de experimentar sozinha. É exactamente como antes. Mantenha-se descontraída. Faça pontaria e dispare. Lembre-se de que a arma é apenas uma ferramenta na sua mão.
- Uma ferramenta - repetiu Tess obedientemente.
- Uma ferramenta. E é sua, Tess, você é que a controla. Não é a arma que a controla a si.
Ela respirou fundo e expirou através das narinas. Posicionou os pés e ergueu o revólver. Cerrou os olhos.
A arma era como uma extensão natural da sua mão. A sua ferramenta, controlada por ela, algo para ela utilizar. Não seria obrigada a puxar o gatilho a menos que quisesse fazê-lo. O que era uma fonte de força. O poder da escolha.
Ela escolheu puxar o gatilho. Um, dois, três, quatro, cinco.
E o alvo de papel voou com o impacto das balas.
Tess ficou a olhar como que hipnotizada. Sentia-se tão atordoada que nem era capaz de se mexer. E então voltou-se para ele, brindando-o com um sorriso glorioso de triunfo.
- Viu o que eu fiz? - gritou de contentamento, apontando com a mão esquerda, não fosse ele ter adormecido durante aquela ocasião memorável. - Viu aquilo!
- Conseguiu acertar no alvo. Sem a ajuda de ninguém, conseguiu acertar. - Então, J. T. fez uma coisa de que ela nunca o suporia capaz. Estendeu a mão e apertou a dela.
Tess ficou sem fala. Sentiu o aperto da mão dele, firme e confiante. Retribuiu com a mesma firmeza e segurança. De ovelha ranhosa para ovelha ranhosa. Ela tinha conseguido. Esboçou um sorriso rasgado e soltou um grito de triunfo.
- Matei o fardo de palha! Matei o fardo de palha! - Sem estar com cerimónias, entregou-lhe a arma e correu para a palha que tinha sofrido durante tanto tempo, inspeccionando o seu trabalho.
Descobriu outro buraco e também enfiou o dedo nesse. Deus do céu, o sorriso no seu rosto!
Quando é que ela se tinha tornado tão bonita? Tess virou-se para trás, olhando-o e voltando a sorrir-lhe. Em seguida, encostou a cabeça ao que parecia ser o trofeu do grande jogo e ele foi forçado a pestanejar devido ao aperto que sentiu no peito.
Naquele momento, ela era a imagem da perfeição, com o aspecto que devia ter tido desde a sua meninice. Uma pessoa cheia de vida e radiante, natural e inocente.
Aquele era a espécie de ocasião que um homem devia registar em película, passando a trazê-la sempre na algibeira, a fim de recordar aquele género de momentos noutras ocasiões mais sombrias.
O pensamento de J. T., implacável e impiedoso como sempre, visualizou outros instantâneos que ainda estariam para vir. Tess estendida no chão de cara para baixo na alcatifa, o rosto todo pisado e esfacelado por um bastão de basebol. Os contornos do corpo desenhados a giz branco. As roupas que vestia todas rasgadas.
Desviou o olhar, concentrando-se na terra que pisava.
”Não”, pensou. ”As coisas não chegarão a esse ponto.” Ao fim e ao cabo, a polícia não era assim tão estúpida. Que diabo! Talvez, naquela altura, Jim Beckett já estivesse fora do país, a beber ponche numa plantação nas Baamas.
Mas J. T. não acreditava em nada do que estava a pensar.
Que raio! Precisava desesperadamente de uma bebida!
Pensou que a sobriedade, por princípio, devia ser uma coisa boa; fazia com que um homem ficasse com as ideias mais claras, mais concentrado e alerta. Mas, no que lhe dizia respeito, o resultado era precisamente o oposto. Não conseguia dormir à noite. Andava constantemente irritado e a sua mente parecia afogar-se sob o peso das imagens que ele deixara de controlar.
Talvez um tipo como ele estivesse predestinado a embebedar-se. Talvez um tipo como ele só conseguisse funcionar efectivamente quando já estava com um grão na asa.
Reparava nos comentários mordazes de Marion. Recordava-se de coisas como os sonhos que o tinham assolado quando regressara aos Estados Unidos cinco anos antes, e as esperanças renovadas que acalentara logo depois de se ter casado.
Recordava-se da primeira vez em que tinha visto Rachel; ela estava com uma criança ao colo, que não parava de chorar, enquanto lhe dizia numa voz entrecortada que já não tinha dinheiro. O coronel pusera-a fora de casa, já gastara todas as suas poupanças e os homens não pagavam muito por uma mãe exausta. Decidira ir ter com ele porque não sabia a quem mais podia recorrer. E foi então que a primeira lágrima começou a correr-lhe pela face, grande e silenciosa, fazendo com que ela, manifestamente embaraçada, desviasse o olhar. Observava-a a tentar acalmar o bebé que não parava de gritar e a limpar as lágrimas que lhe molhavam o rosto. Ao ver que ele não dava resposta ao que lhe dizia, virara-lhe costas, afastando-se, os seus ombros estreitos numa postura mais digna do que ele imaginara ser possível. Foi nessa altura que soube que iria ajudá-la. O que quer que o coronel lhe tivesse feito, decerto seria merecedora de mais. Era uma pessoa muito melhor do que ele julgara.
Ainda mesmo nessa manhã, adormecera enraivecido pelo ar, e, quando despertou, deparou com Rachel à beira da cama. Estava capaz de jurar que era ela e não a Rachel que antes conhecera, mas sim a mulher que se tornara sua mulher. Tão maravilhosa, tão encantadora. Ela tinha-lhe sorrido, um sorriso suave e sereno. Sentira outra vez o coração despedaçar-se no seu peito.
Olá, querido, o Teddy e eu vamos numa corrida ao supermercado. Voltamos dentro de uma hora.. O que é que te apetece para o jantar!
E na noite anterior tinha tido mais sonhos. Desta vez, ele corria atrás do Camaro. Via-o com uma nitidez inacreditável. O miúdo, um miúdo idiota, conduzia no meio da rua, guinando de berma a berma. Mais adiante, via a luz dos faróis do automóvel de Rachel que se aproximava. Começou a gritar e a correr, mas o raio do Camaro seguia com tal velocidade que ele não conseguia apanhá-lo.
No último instante, o rapaz virou a cabeça; tinha deixado de ser um miúdo. Era um homem calvo e sem quaisquer pêlos com uns olhos azuis que reflectiam frieza. Jim Beckett. Beckett tinha um sorriso arreganhado e então J. T. olhou através do pára-brisas do carro que se aproximava, vendo o rosto de Tess que gritava, desesperada.
- Vamos celebrar - disse Tess que, num passo saltitante, se afastava do fardo de palha. - O que é que costuma fazer quando quer celebrar qualquer coisa?
- Celebrar uma matança coroada de êxito? - perguntou J. T., que com um sobressalto despertou dos seus devaneios.
- Sim. Uma matança com êxito. O que é que faz?
- Uns tragos puros de Cuervo Golã seguidos de uma sessão de sexo apaixonado e desenfreado. Quanto a mim, podemos ir a isso.
Ela corou, sentindo a respiração mais acelerada.
- Já sei - contrapôs Tess cheia de vivacidade sem olhar para ele -, vamos comprar morangos. Há algum lugar por aqui onde se possa arranjar morangos?
- Com certeza - respondeu J. T., continuando com o olhar preso no rosto dela.
Os lábios de Tess entreabriram-se. A língua saiu da boca para os humedecer. Tinha uns lábios muito suaves, como pétalas de rosa.
- E natas frescas - murmurou -, com bolo de manteiga e açúcar. É isso mesmo. Vou fazer um bolo de morangos para a sobremesa do jantar.
- Tess - atalhou J. T. numa voz enrouquecida -, pare de brincar comigo. - Agarrou-a pela mão e fazendo-a dar meia volta encostou-a ao peito, começando a devorar-lhe a boca. Descobriu aqueles lábios rosados, metendo a língua entre eles, ouvindo-a a arquejar e depois a suspirar.
Beijou-a com todo o ardor, como um homem que estivesse a afogar-se e tentasse desesperadamente chegar a terra. Os dedos dela enterraram-se nos braços dele com uma força que era fruto do desejo, tal como devia ser. Ele como que comeu os lábios dela, saboreando-a em pleno e consumindo-a. E Tess, avidamente, abriu a boca para ele, puxando-o mais para dentro de si.
Deus lhe valesse, ele estava a afundar-se e desejava afogar-se.
Como que muito à distância, ouviu-a a gemer. As mãos dele agarraram-se às nádegas dela, imprimindo movimentos de rotação às ancas contra a erecção do órgão sexual. As unhas dela deixavam vergões na sua pele.
Ela estava esfaimada. Uma das pernas já se esfregava contra a coxa dele. As pontas dos dedos de Tess percorriam os braços dele num toque à flor da pele, seguindo para a clavícula e depois emaranhando-se no cabelo. Puxou a cabeça de J. T.
- Meu Deus - disse ele numa voz rouca. - Você é brava.
- Muito bem - retorquiu Tess cerrando os dentes. Fendeu-lhe o lábio e, chocada consigo própria, afastou a cabeça de repelão.
Ele levou um dedo ao corte e, quando o afastou, viu que estava ensanguentado.
- Não me tinha apercebido de que gostava deste género de coisas, Tess. - Levou o dedo à boca, chupando o sangue até ficar limpo.
- Não sei o que estou a fazer! - Abruptamente, encostou a testa ao peito dele; os seus ombros começaram a tremer. - Lamento muito. Lamento muito. - Tess apanhou-o desprevenido com aquela crise de choro. A perplexidade era tanta que todo ele se contraiu, mas, então, houve um Instinto qualquer de outros tempos que renasceu para a vida. Vagarosamente, colocou um braço em redor dos ombros dela. Ela sentiu-se muito pequena junto dele. Com todo o cuidado, a outra mão envolveu-lhe a cabeça. O polegar de J. T. acariciou-lhe a face uma e duas vezes.
- Vai correr tudo bem - deu consigo a dizer numa voz que mal se ouvia. - Vai correr tudo muito bem. - Limpou-lhe as lágrimas da face; acariciou-lhe o pescoço. Ela sentia-se tão inacreditavelmente frágil.
- Quer falar sobre isso? - perguntou J. T. por fim.
- Sinto-me tão humilhada - replicou ela num gemido.
- Porquê? - Mudou de posição de modo a que ela ficasse mais confortável junto do seu peito, mas não a largou. Desconfiava que, se a soltasse, ela desataria a correr.
- Porque sou uma mãe de vinte e quatro anos e não sei como beijar. E também não sei o que fazer e não sei o que hei-de querer. Oh, meu Deus, toda esta situação é tão complicada... É de loucura. - Os ombros de Tess voltaram a ser sacudidos pelo choro.
- O seu marido foi o primeiro homem que conheceu?
- O único - confirmou ela.
- E era mau na cama?
- Sim, era. - Os braços dela fecharam-se à volta da cintura de J. T., agarrando-se mais a ele, que quase se esquecera daqueles arroubos de paixão. A doçura que era o toque de uma mulher. A sensação de grande conforto que eram capazes de proporcionar a um homem. e como podiam fazer com que ele se sentisse um ser de corpo inteiro.
E também sentia qualquer coisa que se rompia um pouco dentro de si. Mas J. T. não queria que isso acontecesse. Não, não queria mesmo que isso acontecesse. Pegou nas mãos de Tess e, rapidamente, tomando todo o cuidado possível para não a magoar, afastou-a do seu corpo.
- Agora tem muito tempo à sua frente para recuperar o que perdeu - disse com rigidez. O seu olhar abrangia o que se encontrava em redor sem se prender em nada, fixando-se em tudo menos nela. - O Jim Beckett era um canalha e você optou por deixá-lo. Agora tem toda a sua vida para descobrir o que nunca experimentou. Pode recomeçar tudo de novo; além disso, com vinte e quatro anos, ainda é jovem.
- Fui assim tão horrível? - perguntou Tess surpreendida.
- Não, nada disso, Tess. - Deus lhe valesse, ela estava a dar cabo dele. - Mas acontece que você... É como a maneira como disparou. Esforçou-se em excesso...
- Oh - fez ela contorcendo os lábios. - Portanto, isso quer dizer que também há uma ”zona” para beijar? Eu já devia ter adivinhado isso.
- Sim. Sabe como é... essas zonas são o diabo.
- Aposto que já as descobriu todas - continuou ela.
- Nem todas. Mas tiro ao alvo, natação... foder. Sim, pode-se dizer que tenho os meus pontos fortes.
Tess ficou em silêncio. J. T. aproveitou a oportunidade para aclarar a garganta. Sentia-a muito seca. Uma vez mais, ficou com uma vontade quase irresistível de beber uma cerveja. Qualquer tipo de cerveja. Podia ser da mais ordinária, ser-lhe-ia completamente indiferente.
- Devíamos voltar para dentro de casa.
- O que é que vamos aprender esta tarde? - perguntou Tess.
- Combate corpo-a-corpo.
- Não corpo contra bastão de basebol?
- Também abordaremos essa probabilidade - respondeu J. T. estremecendo.
- Está bem - retorquiu ela afastando-se depois de uns momentos de silêncio.
Continuava a ver o diabo do Camaro. E o som dos passos do pai a percorrer o corredor.
Abanou a cabeça vigorosamente. Afasta isso do teu pensamento, J. T. Tens de expulsar essas recordações. Mas os seus esforços não deram resultados positivos. Precisava de tomar uma cerveja.
- Sei onde o Jim Beckett está.
- Sim, minha senhora...?
- Tenho andado a vê-lo nos meus sonhos. Ele anda com uma mulher loura e ouço o som de água a gotejar. Agua a pingar muito espaçadamente. Gota... a gota... uma atrás da outra...
- Minha senhora...?
- Sinto o cheiro da neve acabada de cair e de pinheiros. Sim, ele foi para as montanhas. As belas, maravilhosas montanhas. É aí que ele há-de renascer.
- Hum... sim, minha senhora. E que montanhas são essas de que fala?
- Como é que hei-de saber, rapariga estúpida. Você é que é da polícia. Dei-lhe as indicações, agora só lhe resta segui-las!
Ouviu-se o clique do telefone quando foi desligado. A telefonista suspirou.
- Sim, minha senhora - disse em voz baixa.
Premiu o botão de recepção de telefonemas no teclado do seu terminal que, de imediato, acendeu uma luz indicando uma chamada acabada de chegar.
- Encontrei o Jim Beckett!
- E onde, senhor?
- Ele vive na minha rua, mesmo defronte de mim. Viu-o ontem à noite através da janela. Sabe... parti uma perna, mas isso não quer dizer que seja um inútil. Sentado à janela, vejo tudo e mais alguma coisa. E ontem à noite vi-o; estava junto à janela a discutir com uma mulher. Acredito que ele é bem capaz de a ter matado.
- Importa-se de me dizer o seu nome, Mister...
- Jimmy Stewart. Escreve-se J... i...
- Jimmy Stewart? Como o actor de cinema?
- Isso mesmo.
- Costuma ver muitos filmes do Hitchcock?
- Ora essa; sim, sim, claro que vejo.
- Muito obrigada, senhor. - Cortou a comunicação, o que desta feita foi por iniciativa dela. Uma vez mais, a luz do terminal voltou a piscar. Cinco mil telefonemas por dia e não havia sinais de que isso viesse a abrandar num futuro mais próximo.
- O Jim Beckett é meu vizinho, vive mesmo ao meu lado!
- Claro que sim, Mister...?
- Ele mudou-se para cá na semana passada. Fiquei logo desconfiado. Não sei se sabe, mas o homem é careca. Ele é irlandês, não é verdade? Nunca se pode confiar nesses irlandeses.
- Importa-se de me dizer o seu nome, Mister...?
- O meu nome? Para que precisa do meu nome?
- Apenas para o caso de ser necessário entrar em contacto consigo. Dentro em pouco será contactado por um agente de polícia que ouvirá o que o senhor tem a dizer.
- Não quero nenhum polícia em minha casa!
- Isso também pode ser feito através do telefone, mas tenho de tomar nota do seu nome.
- Que diabo, não quero nenhum polícia aqui. Todos vão pensar que sou um bufo. Ora eu não sou nenhum bufo!
- Claro que não, senhor, mas...
Quem estava do outro lado da linha desligou com bronquidão e a telefonista retraiu-se ligeiramente, mas não tinha tempo para estar com cogitações. A luz no terminal voltou a acender-se; com um suspiro de cansaço, premiu o botão de atendimento e recomeçou tudo uma vez mais.
No outro extremo da sala, o agente especial Quincy examinava as folhas de registo dos telefonemas recebidos, à procura de qualquer coisa que lhe despertasse a atenção. Tinha estado em Santa Cruz para investigar uma série de furtos e mutilações de cadáveres em campas. Levando em consideração que muitos assassinos em série mentalmente mais desorganizados começavam a praticar em cadáveres antes de passar a vítimas vivas, as forças policiais da localidade tinham decidido chamar o FBI logo no início das investigações. A esperança era conseguirem capturar o suspeito antes que mulheres jovens sofressem o mesmo destino que estava reservado aos mortos. Infelizmente, não estavam a ter grande sucesso. Às onze da noite, Quincy apanhara o último voo para Boston. Sentia-se exausto e tinha a roupa toda amarrotada, estando a precisar de um duche. Naquela altura, já se acostumara àquele desconforto.
Avançou até à décima página dos registos, mas continuava sem encontrar nada de especial. As pessoas que recebiam os telefonemas registavam o nome e o endereço, assim como o número de telefone e eventual pista de todos os que ligavam. Os agentes de serviço estavam incumbidos de passar a pente fino todos os registos, processo em que eliminavam mais ou menos oitenta por cento por não merecerem qualquer crédito; em dezoito por cento dos casos valia a pena ligar-se a quem telefonara enquanto dois por cento dos telefonemas obrigavam a um contacto pessoal. Desde ”o Jim Beckett e o Elvis” até a participações de furtos de automóveis, os agentes recebiam todo o tipo de informações.
Quincy pôs de parte a folha de registos servindo-se de uma segunda chávena de café. Instantâneo. Detestava aquela zurrapa. Só existiria justiça no mundo no dia em que os agentes da lei dispusessem de máquinas de cappuccino.
Entretanto, o tenente Houlihan avistou-o do outro lado da sala e aproximou-se.
- Você está com um aspecto horrível - declarou o tenente.
- Obrigado. Faz parte dos novos regulamentos do FBI. Todos os agentes têm de apresentar o aspecto de quem está sobrecarregado de trabalho, caso contrário, assumir-se-á que estão a ganhar de mais. Portanto, como é que as coisas estão a correr por cá?
- As más notícias são o facto de ainda não termos qualquer sinal do paradeiro do Jim Beckett. A boa notícia é que talvez tenhamos encontrado o Jimmy Hoflfa, aquele presidente do sindicato dos camionistas que desapareceu. E, já agora, também evitámos dois ataques de extraterrestres que tentavam derrubar o Governo dos Estados Unidos.
- Nada mau - comentou Quincy.
- Que tal está o café?
- Uma grande porcaria.
- Obrigado, temos muito orgulho nisso. Já reparou no frasco de tamanho familiar de leite de magnésia ao lado do café?
Quincy acenou que sim, acabando de beber o seu café. Não foi capaz de evitar um arrepio quando tomou o último gole, mas, pelo menos, sempre continha cafeína. Pousou a chávena, fez movimentos de rotação com o pescoço e esforçou-se por se sentir um ser humano. Acenou com a cabeça para o objecto em ouro pendurado num fio que Houlihan usava à volta do pescoço. Não se recordava de o ter visto até ao momento.
- Um novo berloque para dar sorte? - perguntou.
- É a minha aliança de casamento - respondeu o tenente Houlihan que, de súbito, se mostrava agitado e constrangido.
- A sério?
- Bem... para a minha mulher era muito importante que eu usasse aliança, apesar de eu me ter fartado de lhe dizer que na nossa profissão não era aconselhável fornecer muitas informações de natureza pessoal. Há três dias celebrámos o primeiro ano do nosso casamento. Foi então que soube que ela tinha mandado derreter a aliança para fazer esta medalha que me ofereceu. É uma solução que agrada muito aos dois. Quem sabe se não me dará sorte. Nos tempos que correm, um pouco de sorte até dava muito jeito. É casado?
- Divorciei-me recentemente.
- Terceira mulher - adiantou Houlihan apontando para o fio de ouro. - Ela é enfermeira nas urgências do hospital, o que conjuga muito melhor as nossas horas de trabalho. Chego a casa com um atraso de três Horas, digo-lhe que tenho muita pena, mas que houve um acidente de viação e que precisámos de duas horas para conseguir encontrar o braço do condutor da viatura acidentada; ela limita-se a fazer um aceno, dizendo-me que também chegou atrasada por causa de um tiroteio proveniente de um carro em movimento e que o jantar já está na mesa.
- Estou a ver onde quer chegar.
- Mas imagino que com todas as viagens que tem de fazer, as coisas devem ser difíceis. Nada se adequa mais a chui... ou a agente da polícia... do que a palavra d-i-v-ó-r-c-i-o.
Quincy encolheu os ombros. O fim do seu casamento continuava a incomodá-lo.
- Sim, mas os fulanos como o Bundy continuam a casar e a ter filhos, se bem que se encontrem no corredor da morte. Nunca hei-de conseguir compreender as mulheres.
- Mas não sente azedume por isso...
- Não, não sinto azedume por isso - concordou Quincy rindo-se, ainda que o fizesse com alguma relutância.
- Portanto, senhor agente especial, tem alguma notícia boa que me possa dar?
- Tenho novidades - replicou Quincy com um suspiro -, mas não me parece que sejam boas. - Conduziu Houlihan até um pequeno espaço de trabalho que conseguira reivindicar para seu uso exclusivo. Já tinha ligado o computador portátil que estava em pleno funcionamento. - Muito bem; sabemos que o Beckett segue um padrão.
- Conseguiu decifrar o padrão de actuação do Beckett?
- Conseguimos e sei que vai gostar do que lhe vou dizer. Temos andado a examinar a numerologia, astrologia e ciclos lunares. Pedi a um amigo que trabalha na CIA... um especialista em descodificação... que visse as longitudes e latitudes dos locais onde os crimes foram cometidos, tentando decifrar uma mensagem em código. Temos programas de informática que têm estado a analisar este tipo de dados, e isso porque sabemos até que ponto é que o nosso Jim pode ser esperto. E quer saber qual foi a resposta? Vou mostrar-lha. - Quincy virou o ecrã do computador de modo a que Houlihan pudesse ver.
- Merda! - exclamou o tenente.
- Absolutamente. Matéria de escola primária. Imagina como ele se deve ter rido quando estava na sua cela da prisão? O sujeito é tão esperto que faz com que a estupidez fique bem-vista. - Quincy abanou a cabeça. Estava tudo ali, no ecrã do computador, e ele tinha descoberto aquilo por mera obra do acaso. Estivera a fazer uma listagem ordenada, numa coluna, de todas as vítimas do sexo feminino. Seguidamente, elaborara outra lista que continha todos os locais onde os crimes haviam ocorrido, também por ordem, na coluna a seguir. Feito isto, observara esta coluna. Pegando na primeira letra de cada cidade e misturando-as, podia-se formar o nome de Jim Beckett. O canalha tinha escrito o seu nome com mulheres mortas.
- Dê-me aqui uma ajuda, agente. Qual é o significado disto?
- Significa que há método na loucura dele. Significa que a conversa dele sobre disciplina não é totalmente como fumo que não dá em nada. E, tenente, também significa que ele ainda não acabou.
- Com certeza que acabou, já tem letras suficientes para escrever o nome. Não falta letra nenhuma - retorquiu Houlihan.
- Estas são mulheres que estão mortas, tenente. É trabalho que ele fez no passado. Mas depois decidiu atacar a sua própria mulher em Williamstown...
- Mas não chegou a matá-la.
- Não, de facto não matou. Mas foi enviado para a cadeia onde matou dois guardas prisionais. No Cedar Junction, em Walpole.
O tenente Houlihan ficou em silêncio até que disse:
- ”W”. Ele queria a letra ”W”. Jim Beckett w. O que é que isso quer dizer?
- Significa que ele tem mais alguma coisa a dizer. Talvez Jim Beckett era1 qualquer coisa ou Jim Beckett quer2 qualquer coisa. Não sei dizer. Mas existe uma frase na cabeça dele e não terá descanso enquanto não conseguir tirá-la de lá para fora. Ele ainda não acabou, Houlihan. Ele ainda não acabou.
- Tenente - chamou uma voz do outro lado da sala. - Tenho o tenente Berttelli ao telefone. Está a ligar do Connecticut e quer falar consigo.
Houlihan e Quincy trocaram olhares. Houlihan atendeu no telefone que estava numa mesa perto. A conversa durou apenas alguns minutos.
- Encontraram a Shelly Zane. Quer vir?
- Quero. Em que cidade?
- Avon. Em Avon, no Connecticut. Quincy acrescentou-a à sua lista.
A viagem de automóvel até ao miserável motel de estrada nos arredores de Avon levou três horas. O fotógrafo que fora destacado para o local do crime tinha acabado naquele preciso momento, dando lugar aos agentes incumbidos da investigação que começaram a recolher possíveis provas. Dois agentes tentavam descobrir qual a melhor maneira de deslocar a enorme cama de casal que estava aparafusada ao soalho. Finalmente, decidiram que cortar as porcas contaminaria demasiado o local do crime, pelo que deram instruções a um novato para que fosse debaixo da cama para recolher os dedos da vítima.
Quando Quincy entrou, foi a primeira coisa com que deparou: o traseiro de um novato que saía de debaixo da cama enquanto estendia a mão para pegar nos dedos de Shelly Zane. Aqueles eram os jogos que Beckett gostava de praticar. Gostava de mutilar as mãos das suas vítimas, tal como gostava de fazer gato-sapato dos polícias. Naquele preciso momento, Jim Beckett estaria, provavelmente, a conduzir por uma auto-estrada algures, rindo-se com prazer ao imaginar um novato qualquer de gatas a apanhar os dedos e tentando não vomitar.
Quincy encaminhou-se para a casa de banho onde o corpo de Shelly Zane estava estendido no chão de azulejos rachados azuis entre a sanita e a banheira. Tinha os braços por cima da cabeça, com as palmas das mãos mutiladas viradas para cima, como se tivesse sido apanhada quando se rendia. A volta do pescoço, via-se um par de meias de vidro tão apertadas que quase desapareciam entranhadas na carne. Quincy já reparara na embalagem vazia de meias Hanes Alive Support no caixote do lixo. Bundy tinha dito, quando se gabava dos seus crimes, que possuíam uma grande capacidade tênsil, o que fazia com que fossem o garrote por excelência. Aparentemente, Beckett tinha prestado atenção a essa parte dos apontamentos tirados aquando do interrogatório de Bundy.
A lividez post-mortem era mais pronunciada na cabeça, acima do nó das meias, assim como nos braços e na parte inferior das pernas, o que indicava que ela tinha sido enforcada. À volta das meias atadas, a ruptura dos vasos sanguíneos dera uma coloração de um negro azulado ao seu pescoço. As hemorragias tinham escurecido o branco dos olhos, agora raiados de vermelho.
Na nuca viam-se várias camadas empastadas de sangue e matéria cerebral, que também salpicava as paredes. Beckett matara-a por estrangulamento e deixara-a cair no chão, e a seguir espancara-a com um objecto de madeira de extremidade arredondada. O homicídio típico de sevícias físicas brutais depois da morte.
Treze vítimas depois, a raiva assassina de Beckett era cada vez mais intensa.
Os contornos do corpo de Shelly Zane já haviam sido desenhados a giz no chão, o que era pouco habitual quando ainda se estava na fase da recolha de possíveis provas. Atrás dele, o tenente Berttelli desancava um jovem agente precisamente por causa disso. Muito provavelmente, o jovem teria sido o primeiro a chegar ao local do crime.
- Em que merda é que estavas a pensar? - perguntava-lhe o tenente aos gritos. - Não te ensinaram que nunca deves mexer em nada no local do crime até as fotografias terem sido todas tiradas? O que é que agora devo dizer ao promotor público? Que tenho uma data de fotografias fodidas de um cadáver fodido, cujos contornos já estão traçados a giz no chão, que nenhum cabrão de juiz aceitará como prova do crime?
- Juro que não fiz isso de...
- Bem, não foi a porra do giz sozinho, pois não?
- O Beckett... - interveio Quincy com toda a calma. O tenente Berttelli calou-se durante o tempo suficiente para prestar atenção. - O Beckett está bem familiarizado com as regras relativas à recolha de provas - continuou Quincy. - Além do mais, ele gosta muito de nos confundir. - O seu olhar fixou-se na mensagem presa na barriga de Shelly Zane.
- Os agentes deixaram-na para si - adiantou o tenente Houlihan. - A mensagem tinha o seu nome. Dizia em palavras simples escritas em letra de imprensa: ELA DEIXOU DE ME SER ÚTIL.
- Ele vai pôr-se a caminho - disse Quincy, agitado.
- Acha que ele vai em perseguição da Tess?
- Acho - confirmou o agente especial.
- Devíamos telefonar-lhe para a avisarmos.
- Pensei que não sabia onde ela estava - ripostou Quincy olhando-o com uma expressão carrancuda.
- Não posso dizer que saiba pessoalmente onde ela se encontra, mas conheço quem saiba - retorquiu o tenente Houlihan mostrando algum mal-estar. - Portanto, isso quer dizer que podia entrar em contacto com essa pessoa que, por seu turno, a avisaria; é isso?
- Sim, é mais ou menos isso.
- Tenente Houlihan, peço-lhe por tudo que não faça uma coisa dessas - advertiu Quincy.
- O quê?!
O agente especial fez um gesto, indicando a mensagem, e, pela primeira vez, Houlihan apercebeu-se da cólera que se espelhava nos olhos de Quincy.
- Não está a reconhecer aquelas palavras? Acha que é uma mera coincidência que ele esteja a usar a mesma frase que eu utilizei quando fizemos o ponto da situação há uma semana?
- Mas que grande merda! - exclamou Houlihan, que ficou branco como a cal.
- Está a perceber agora em que medida é que ele anda a brincar connosco? Aquela mensagem é uma mentira, tenente. E isso porque a Shelly Zane continua a ser-lhe útil. Você está a reagir ao assassínio que a vitimou. Está disposto a quebrar o silêncio, contactando essa pessoa que, por seu lado, entrará em contacto com a Tess...
- Que é precisamente o que ele espera que nós façamos. Ele anda a observar-nos, escondido seja lá onde raio for. No instante em que quebrarmos o silêncio, ele poderá ir no encalço dela. Mas que grande merda! - Em dez segundos, parecia que Houlihan tinha envelhecido vários anos. Quincy calculou que ele próprio teria o mesmo aspecto. - A Tess teve toda a razão quando optou por ir sozinha. Nós somos terrivelmente perigosos para ela. Beckett encontra-se perto de mais para conseguirmos vê-lo, ele esconde-se na nossa esteira. E não parará até conseguir encontrá-la. Ele tem a sua mensagem em mente, mas o seu objectivo supremo, a meta final, é assassinar a Tess. - Só Deus sabe como detesto este trabalho - desabafou Houlihan olhando para o cadáver da loura caída no chão da casa de banho. Susteve o olhar na mensagem que ele espetara na pele da barriga da vítima.:
- Eu também, tenente. Eu também.
Um homem novo, de semblante sombrio, entrou nas instalações do grupo especial encarregado das investigações, indo falar directamente com a agente de serviço na recepção, mostrando-lhe o seu crachá.
- Sou o detective Beaumont - apresentou-se. - Venho de Bristol County e trago uma mensagem urgente para o tenente Houlihan.
- Lamento muito, detective, mas, de momento, o tenente Houlihan não pode atendê-lo.
- Senhora agente, não está a compreender o que lhe estou a dizer. Este assunto é muito urgente, estou a dizer-lhe que é urgente. Acabei de vir de Bristol, uma viagem de quarenta e cinco minutos, para me certificar pessoalmente de que o tenente Houlihan recebe esta notícia. Preciso de falar com ele.
A agente vacilou. O detective Beaumont inclinou-se para a frente.
- Por favor. Nós julgamos saber qual o paradeiro do Jim Beckett. Portanto, preciso de avisar a Tess Williams ou o tenente Difford imediatamente. Tem de me ajudar, agente. Apressar o assunto.
Com um suspiro, ela acabou por ceder.
- Está a ver aquele homem ali? É o sargento Wilcox. Ele é que é o responsável pela casa sob protecção policial. É provável que ele o possa ajudar.
- O sargento Wilcox?
- Sim, é esse o nome dele.
- Muito agradecido, agente. Foi muito prestável.
Edith passou a mão pela camisa azul de flanela axadrezada, já bastante velha, para a alisar. Tentava conter a muita ansiedade que sentia sentada no alpendre da frente. Na noite anterior recebera um telefonema de Martha, informando-a de que chegaria às primeiras horas da manhã - a pobre mulher tinha vindo a guiar durante os últimos dias, fazendo uma viagem tão comprida desde a Florida. Mas Martha era assim mesmo. Já com sessenta anos, era tão orgulhosa e independente como poucas mulheres. Tinha mudado para aquela localidade apenas alguns anos antes, mas logo na primeira noite batera à porta da casa de Edith, fazendo-se acompanhar de uma garrafa de uísque. As duas mulheres sentaram-se no alpendre de Edith, abrindo a garrafa de quinze anos, tendo descoberto o amor que ambas partilhavam por charutos, e passaram as duas horas seguintes a concordar com o facto de não ter havido um único presidente capaz desde os tempos de Eisenhower.
Edith dava muito apreço àquele tipo de relações de amizade. Sentia-se velha de mais para estar com disparates. A maior parte das mulheres da sua idade que a visitavam começava a falar de saladas de gelatina e pouco depois saíam como se levassem fogo no rabo quando Edith as olhava bem de frente, dizendo enfaticamente:
- Mas quem diabo é que está interessado em gelatina? É a proliferação cada vez mais alargada de armas que me mantém acordada à noite!
Não queria perder tempo com banalidades. Toda a gente devia ir directamente aos assuntos, dizendo o que queria. Poupava tempo a todos.
Martha falava de forma lapidar. Havia ocasiões em que era capaz de ser imperiosa, mas Edith levava isso à conta de alguém que vivera sempre com a cabeça e ombros acima do resto. Martha era alta, e isso era dizer pouco. Descendia de suecos e herdara os ombros e altura impressionantes do pai, apesar de serem facetas pouco atractivas numa mulher.
A maior parte dos homens sentia-se intimidado caso tivesse de se aproximar de uma mulher com a constituição impressionante de Martha, mas, segundo constava, na sua juventude, conhecera um sueco igualmente impressionante e antes de ele ter falecido tiveram um filho louro de um tamanho bastante razoável. Edith não conhecia o filho da amiga. Com base nas poucas coisas que Martha mencionava ocasionalmente, ele era caixeiro-viajante, embora não soubesse o que é que ele vendia, nem o que o obrigava a viajar tão amiúdo. Martha não via o filho com muita frequência e, regra geral, não passava horas a fio a falar dele como muitas mães costumavam fazer.
O que Edith apreciava bastante. Tendo passado toda a sua vida sem filhos, tinha tendência a impacientar-se quando ouvia histórias intermináveis a respeito do filho de alguém que havia sido promovido e para que posto, ou sobre a filha de outro que dera à luz e quantos netos é que essa pessoa já teria. Deus nos valesse, o mundo já tinha população a mais com a consequente exaustão dos recursos naturais. Seria que as pessoas nunca se detinham um pouco para reflectir sobre esses assuntos?
Naquele momento, viu um Cadillac castanho antigo a dobrar a esquina, percorrendo a rua como um barco à deriva. Martha tinha chegado. Minutos depois, Edith trocava um aperto de mão vigoroso com a sua vizinha.
- Meu Deus, a Florida fez-te bem! - O cabelo louro de Martha, já muito grisalho, adquirira um branco de neve que parecia natural, em contraste com a pele bastante bronzeada. Há vários anos que não se viam, mas, depois de um breve olhar, Edith podia dizer que Martha era a mesma de sempre. Continuava a ter os mesmos olhos azuis com um brilho assombroso e uma pele aveludada; os Suecos envelheciam tão graciosamente. O gosto de Martha em matéria de vestuário também não mudara: naquele dia, vestia umas calças castanhas muito largas de um tecido sintético e uma camisa de flanela axadrezada de homem de uma medida maior que a sua. Usava um chapéu de palha de abas largas que lhe assentava precariamente na cabeça, sendo evidente que o pusera às três pancadas no último instante.
- A comida era boa de mais - dizia Martha numa voz arrastada e enrouquecida, dando palmadinhas na sua cintura bastante generosa. A sua maneira de falar continuava a ter um vago sotaque das montanhas suecas.
- Mas o clima era quente de mais. Sinto saudades da neve.
- É bom ter-te de volta - repetiu Edith dando-lhe outro aperto de mão. Estava a ser sincera. Fingia que não via determinadas coisas. Tentava fingir que não sentia determinadas coisas. Mas, nos últimos tempos, a atmosfera na comunidade em que viviam estava diferente. O que não agradava a Edith. Cada vez com mais frequência, dava consigo a olhar para a porta da casa ao lado da sua, pensando que aquela não era a melhor altura para viver tão perto de uma casa desabitada. - Deixa-me ajudar-te com as malas - ofereceu-se Edith que já se encaminhava para o porta-bagagem, tentando expulsar os arrepios que a percorriam. Não tinha paciência nenhuma para ”pressentimentos” ou ”visões”. Ninguém podia agir em conformidade com um pressentimento. - Não viajas com muita bagagem.
- Na minha idade quem é que precisa de muita coisa? - retorquiu Martha puxando duas malas de viagem. - E quanto à casa; há alguma novidade?
- Está tal e qual como a deixaste - respondeu Edith que tinha concordado em olhar pela casa quando Martha a informara de que ia passar uma temporada na Florida, e ia pôr à prova a sua habilidade a jogar golfe. Edith tinha uma chave da casa que lhe servia para lhe passar uma vista de olhos uma vez por mês. De tantos em tantos meses, Martha telefonava para saber se estava tudo bem, embora a conversa enveredasse depois pela política do país. Martha não gostava do presidente Clinton. Edith não suportava Newt. Ambas gostavam imenso daquelas conversas.
Edith virou-se para a porta da frente quando já puxava uma das malas de viagem. Mas então ficou petrificada, sentindo os pêlos na nuca todos eriçados.
A rapariga encontrava-se defronte da porta completamente nua. Àquela distância, conseguia ver a tatuagem de uma borboleta acima do seio esquerdo. Nada de muito grande ou de mau gosto. A borboleta era pequena, até mesmo graciosa, uma pequena centelha de cor que falava de um desejo nostálgico por outras paragens. Os cabelos louros caíam-lhe em cascata pelos ombros; era de esperar: as raparigas eram todas louras.
Edith ergueu o olhar, apesar de não querer ver mais do que já vira. Não avistou nada, nenhuma mensagem, nenhuma exigência que lhes pudesse dar uma pista. A rapariga fora deixada ali, toda nua e com o rosto ensanguentado; o seu olhar mostrava uma expressão vagamente contrita, como se soubesse que era tão indesejada na morte como o fora em vida.
- Vai-te embora, menina - disse Edith numa voz muito suave. - Não há nada que eu possa fazer por ti.
A rapariga, porém, teimosamente, continuava sem se mexer. Edith fechou os olhos com força e, quando voltou a abri-los, constatou que ganhara porque a rapariga tinha desaparecido. Tardiamente, apercebeu-se do olhar de interrogação que via na fisionomia de Martha.
- Estás a sentir-te bem?
Edith não lhe respondeu de imediato.
- Já ouviste falar daquele assassino em série que se evadiu da prisão?
- O quê?
- Jim Beckett, acho que é como ele se chama. Já matou dez mulheres e recentemente também assassinou dois guardas prisionais. Fugiu de Walpole. Não fica muito longe daqui.
Martha não proferiu qualquer comentário, mas, por breves momentos, Edith viu qualquer coisa que atravessou fugazmente aqueles olhos muito vivazes. Pareceu-lhe ter observado uma expressão de temor, um medo muito enraizado. Mas a mulher corpulenta recompôs-se rapidamente, endireitando os ombros largos.
- Vivemos numa comunidade pequena, Edith, um lugar tranquilo. Alguém como esse homem não teria qualquer razão para vir até cá.
Edith ficou a observar Martha durante mais algum tempo, mas a expressão na fisionomia da amiga não deixava adivinhar o que quer que fosse.
- Com certeza que tens toda a razão - disse Edith por fim. Todavia, não acreditava em si nem na outra. Incomodava-a bastante que tanto uma como a outra tivessem dito a primeira mentira entre as duas por causa de um homem como Jim Beckett. Era uma coisa que a incomodava e muito.
Quando a noite começou a cair, andava de um lado para o outro na sala de estar com energia suficiente para iluminar uma pequena cidade. Marion olhou-o de relance e voltou a guardar a cerveja no frigorífico. Regressou à sala com dois copos de água, dando um ao irmão.
- Por amor de Deus - disse Marion por fim -, assim fico com cabelos brancos! Senta-te.
Ele deu meia volta, começando a andar noutra direcção.
- Não estás a sentir? - perguntou à irmã.
- A sentir o quê?
- Tess, vá para o seu quarto.
- O quê?!
- Feche a porta à chave. Comece a tricotar uma camisola.
- Nem pensar. Se está a passar-se alguma coisa, quero saber o que é - ripostou, determinada.
O olhar de J. T. prendeu-se no da irmã. Marion fez um aceno de cabeça.
- Há apenas meia hora percorri todo o terreno, J. T. Não anda nada lá por fora a não ser o teu próprio estado de espírito sombrio. Não há razão para assustares a Tess.
- Ela é que quis ficar - interveio J. T.
- Um de vocês importa-se de falar de modo a que eu perceba? - pediu Tess num tom autoritário. Sentia um nó na barriga.
- Isto não me está a agradar nada - repetiu J. T. - O ar está diferente. Há qualquer coisa. Merda, temos de sair daqui para fora!
- O quê?!
- Ouviu bem o que eu disse - ripostou J. T. atravessando a sala em passadas largas. - Vão buscar as vossas carteiras, meninas, vamos cavar daqui.
- J. T., isso é um disparate...
- Tu tens amigos na polícia de Nogales, não é verdade, Marion? - atalhou J. T., interrompendo o seu andar agitado.
Ela respondeu com um aceno de cabeça, mostrando uma expressão circunspecta.
- Telefona-lhes. Diz-lhes que vamos sair por algumas horas. Diz-lhes que estamos preocupados por pensarmos que o ”intruso” poderá voltar. Pede-lhes que enviem um carro-patrulha que passe por aqui de trinta em trinta minutos.
- Não sei...
- Marion, que mal é que isso poderá fazer?
Foi o suficiente para a convencer. Enquanto Tess ia buscar um casaco leve, fez o telefonema. Tess voltou rapidamente à sala de estar; deixara de lhe apetecer estar sozinha.
Em silêncio, entraram no automóvel de Marion, três pessoas que olhavam para a paisagem envolta em sombras, tentando descortinar o que poderia andar pelas proximidades.
- Um bar? - perguntou Tess vinte minutos mais tarde, pondo-se a olhar incredulamente para a baiuca profusamente decorada com luzes de néon e de onde saía uma música estridente de rock’n’roll. - J. T., não me parece que isto seja boa ideia. E que tal se fôssemos ver um filme?
- As multidões são boas, Tess - replicou ele continuando a andar -, tal como um lugar que tem cinco saídas.
Marion e Tess trocaram olhares de dúvida. Num passo casual, J. T. entrou no bar, sendo óbvio que não era a primeira vez que ia ali.
O estabelecimento situava-se numa rua com muito movimento na baixa de Nogales, o tipo de bar que se publicitava com música muito alta e clientela barulhenta. Naquele momento, Bruce Springsteen ameaçava perfurar os tímpanos de todos os que se encontravam nas redondezas, com a interpretação mais estridente de Bom ton que Tess tivera oportunidade de ouvir. Suspensa do tecto, via-se uma bola de espelhos, estilo anos setenta, que girava freneticamente projectando uma miríade estonteante de reflexos de luz em forma de losango sobre a pista cheia de gente que sabia de facto como agitar o corpo ao ritmo da música. A luz não chegava aos cantos, o que permitia grandes espaços de escuridão onde ela mal conseguia distinguir casais em várias fases de intoxicação alcoólica e de exibição pública de afecto. Todos tinham as características fisionómicas de latinos.
Finalmente, J. T. deteve-se quando chegou a uma entrada vedada por uma cortina feita de longas tiras de contas de vidro cor de laranja e vermelhas. Afastou-as para o lado, segurando-as e indicando a Marion e a Tess que entrassem. Perscrutou o corredor atrás deles, e deixou cair a cortina de contas.
- Uma sala de jogos? - perguntou Marion, abespinhada. - Trouxeste-nos aqui por causa dos jogos de vídeo?
- São melhores do que cerveja, Marion. Ou será que os agentes especiais são duros de mais para máquinas de jogos electrónicos?
Tess olhava fixamente. Não estavam sozinhos na sala, de maneira nenhuma. Estava apinhada e cheia de sons que vinham das máquinas electrónicas de jogos. Ouviu o barulho de uma máquina de moedas, assim como o gorgolejar de uma qualquer personagem animada que estava a morrer. Quando os três entraram, vários homens ergueram o olhar, mostrando-se um tudo-nada surpreendidos, mas logo de seguida voltaram a concentrar-se no que estavam a fazer. O número de mulheres presentes era bastante reduzido. Uma destas, que vestia uma saia carmesim e um top que estava preso com alças finas no pescoço e nas costas, um conjunto extremamente reduzido, parecia o diabo em cima de rodas, sentada a uma das máquinas de jogos. Tinha atraído vários mirones, o que parecia não a incomodar por aí além.
Tess estremeceu.
- Vamos lá, minhas senhoras, só é preciso alguma coordenação entre a vista e as mãos.
- Não tenho nenhuma, mas obrigada - disse Tess.
Com outro olhar de censura e um suspiro de frustração, Marion desistiu de protestar e agarrou-se à máquina.
- Muito bem, estou a desafiar-te.
- Dois em três? - perguntou J. T.
- Quatro em sete. É evidente que não é a primeira vez que vens a este lugar.
- A pontuação mais elevada pertence-me.
- A sério? E até que ponto é que estavas bêbedo na altura?
- Sóbrio que nem um abade - respondeu J. T. numa voz arrastada.
- Por estas bandas, Marion, os flippers são um assunto muito sério.
- Pois, também o cultivo de algodão - resmungou ela.
- Tess - começou J. T., muito calmo -, fique de olho na porta, de acordo? Se entrar alguém de raça branca, avise-me. Não me parece que estejamos a ser seguidos, mas há já algum tempo que não brinco ao gato e ao rato. - Dito isto, meteu duas moedas de vinte e cinco cêntimos na máquina. Marion fez estalar os nós dos dedos e distendeu os braços. Os dois embrenharam-se naquele assunto muito sério que eram os flippers, mas Tess não era capaz de se descontrair com tal facilidade. O seu olhar não parava de se dirigir para a entrada, não fosse dar-se o caso de, por artes mágicas, Jim Beckett aparecer de repente.
Usou força a mais, pelo que a primeira bola prateada se escapou por entre as pás antes de ter feito grandes progressos. Deu uma palmada na máquina e recebeu um tilt.
- Descontrai-te, Marion. Não passa de uma máquina.
- Uma máquina de merda! - ripostou, irritada.
- Como queiras.
Ela atacou a segunda bola e, dado que tinha uma coordenação extraordinária e aprendia depressa, fez com que a máquina cantasse. Os seus olhos adquiriram um brilho ardente. E, por alguns momentos, ficou extremamente parecida com J. T.
v- Ela é formidável, não acha? - perguntou J. T. em voz baixa, - O que é que os vossos pais vos deram a comer quando eram pequenos? - perguntou depois de ter respondido afirmativamente com um aceno de cabeça.
- Mentiras. Mentiras puras. Ensinaram-nos a verdade do mundo desde que éramos muito pequenos. - Os seus lábios curvaram-se num sorriso arreganhado. - Está a ver algum problema à porta?
- Não - respondeu Tess.
- Hum... Talvez a Marion tivesse razão. Quem sabe se eu não estava apenas a precisar de uma bebida.
- Foda-se! - gritou Marion batendo na máquina. - Monte de sucata!
- Calma, minha querida. Não é culpa da máquina que eu seja melhor do que tu.
Marion encostou-se à parede junto de Tess, mas já não parecia estar descontraída. J. T. instalou-se, sentando-se diante da máquina, parecendo um comandante ao leme de um navio.
-Admite, Marion; devias ter-te alistado nos fuzileiros.
- Não, obrigada. Concluí que um Dillon a esmurrar oficiais de patente mais elevada era o suficiente.
- Acho que bastava tê-lo inscrito no Partido Comunista, mas o facto de ele ter dado uma sova à própria mulher pareceu-me justificar algo mais pessoal.
- O Partido Comunista?! - perguntou Tess sem compreender. Apesar disso, não estava bem certa de querer entender aquela conversa.
- West Point - adiantou J. T. - Inscrevi o director da academia no Partido Comunista. Eu odiava West Point.
- E foi por ter feito isso que o expulsaram?
- Não. Isso foi considerado uma partida de mau gosto, muito embora tivessem reconhecido que os rapazes são assim mesmo. Quando ele veio à minha procura e deu comigo na cama com a filha, isso é que fez com que eu fosse posto de lá para fora.
- Você seduziu a filha do director?
- Ele é um porco - atalhou Marion. - Não tem absolutamente controlo nenhum sobre os seus instintos.
- Porque partes do princípio de que fui eu que seduzi? - perguntou J. T. com expressão de inocência.
- Desiste, Jordan - retorquiu Marion com um abanar de cabeça de reprovação. - Se te deixassem à solta num convento de freiras, quando o dia chegasse ao fim, já todas teriam renunciado a Deus.
- Obrigado. Eu bem tento. - J. T. lançou um olhar a Tess que era claramente de predador. - Assustei-a?
- Quando? - perguntou ela, que estava a ter dificuldades de concentração.
- Há pouco. Quando pedi à Marion que ligasse para a polícia.
- Imagino que sim. Não me faltam motivos para me sentir receosa.
- Aqui pode contar tanto com a Marion como comigo, Tess. A Marion até tem autorização de disparar para matar.
- Ele tem razão - corroborou Marion. - Pelo menos, desta vez. Não é nada fácil conseguir ser um agente do FBI, e isso é ainda mais difícil no caso de uma mulher. Sou boa na minha profissão. Certificar-me-ei de que não lhe acontece nada de mal, Tess.
Tess não lhe deu resposta; não era a primeira vez que lhe diziam aquilo; contudo, nenhuma dessas garantias a tinha ajudado quando Jim saíra do roupeiro, brandindo um bastão de basebol que desferiu contra o seu ombro.
- Foi simpático o que você fez... ter deixado a cerveja - disse Tess.
- Mas a abstenção de bebidas alcoólicas está a deixá-lo com os nervos em franja.
- Sim, calculo que sim. Eu sabia das fases em que ele bebe tequila desregradamente, mas isso acontece apenas uma vez por ano e... bem, tendo em vista as circunstâncias...
- Está a referir-se à morte da mulher? - perguntou Tess.
- O Teddy teve morte imediata - continuou Marion com um aceno de cabeça afirmativo. - Mas a Rachel... Esteve em coma durante cinco dias. O J. T. não saiu da beira da cama dela no hospital, sempre a pegar-lhe na mão. Parecia ter tanta certeza de que ela acabaria por abrir os olhos, voltando a estar junto dele como antes. Muito simplesmente, não era capaz de a deixar. Essa é uma fraqueza na maneira de ser dele. - Marion afastou-se da parede a que se encostara. - Precisamos de saber aceitar as perdas e continuar. Mas o J. T. não parece ser capaz de fazer isso. Por muito irremediável que a situação seja, ele não desiste de tentar remediar o mal que está feito. O que é uma perda de tempo.
Entretanto, J. T. perdeu a sua vez e Marion aproximou-se da máquina de jogos, deixando Tess a digerir aquela catadupa inesperada de informações.
Só ao sétimo jogo é que os problemas tiveram início.
Tess nunca chegou a saber quem fora o responsável pelo burburinho. Num dado momento, olhava para J. T., que se preparava para colocar a pequena bola prateada na zona dos megapontos, para logo a seguir ouvir um grito que antecedeu um estrondo.
Todos se viraram ao mesmo tempo na mesma direcção.
Um homem, obviamente embriagado, inclinava-se sobre uma mulher que tinha estado a jogar na máquina dos carros. Ele apontava para ela, chamando-lhe toda a espécie de nomes obscenos em espanhol. Apesar de ter apenas metade do tamanho dele, ela não cedia um centímetro que fosse. Do alto da sua pequena estatura, gritava-lhe no mesmo tom.
O homem levou o braço atrás para tomar balanço e deu-lhe uma bofetada com tal impacto que a cabeça dela se virou involuntariamente para o lado. Foi projectada contra a máquina, caindo desamparado no chão.
- Por amor de Deus, não! - gritou Marion. Atirou-se ao braço de J. T., mas chegou tarde de mais. O irmão meteu-se de permeio na refrega.
Qual onda gigantesca e maciça, a pequena multidão que se encontrava presente concentrou-se; alguns dirigiram-se em turbilhão para a porta para escapar à confusão, enquanto outros se aproximavam mais do casal. Houve mais pessoas - homens muito musculados à custa de testosterona - que apareceram de rompante, à procura de um pouco de acção. Tess viu que a mulher se esforçava por se levantar do chão, mas desequilibrou-se, voltando a estatelar-se. Havia qualquer coisa escura e húmida que se agarrava ao cabelo da mulher. Sangue.
- Porra! - exclamou Marion abanando a cabeça; então, pareceu ter perdido a guerra que travava consigo própria, decidindo-se a avançar.
Tess olhou para J. T. Naquele momento, erguia o braço esquerdo a fim de se defender de um murro, ao mesmo tempo que recuava o direito para dar outro. Desviou o olhar para Marion que, determinada, continuava a andar em frente.
Respirou fundo e concentrou o olhar na mulher que continuava caída, avançando para o barulho.
Fazia muito calor. Todos suavam profusamente e no meio da confusão estavam tão encostados uns aos outros que até o ar pareceu ter ficado saturado de vapor de água. O barulho era infernal. Tess não era capaz de distinguir um único grito ou voz, ouvindo apenas a confusão ensurdecedora que cada vez era maior. O ar estava de cortar à faca. Tess era demasiado baixa para conseguir ver o que se passava à sua frente; também não tinha força para abrir caminho à cotovelada. Assim, empurrava os que surgiam à sua frente, como se estivesse a atravessar um denso matagal, tentando recordar-se do local onde vira a mulher pela última vez, a fim de se encaminhar nessa direcção.
De repente, viu-se numa espécie de pequena clareira, aproveitando para encher os pulmões de ar. Depois, como se estivesse a nadar, susteve a respiração e voltou a mergulhar no meio da multidão.
Um braço apanhou-a pelo ombro, fazendo com que cambaleasse. Outro impeliu-a para trás, permitindo-lhe recuperar o equilíbrio. Continuou a investir em frente, os punhos junto do corpo, as maxilas muito cerradas. Deram-lhe um encontrão e, momentaneamente aterrorizada, recorreu à musculatura recém-adquirida para o devolver. O corpo da pessoa cedeu de imediato. Tess ficou espantada consigo própria.
Continuou a avançar à força dos braços até que conseguiu chegar junto da mulher caída no chão, que gemia agarrada à cabeça. Tess agachou-se, observando-a com uma expressão de ansiedade.
Por cima das duas, ouviu-se um estrondo enorme. Simultaneamente, ambas viraram a cabeça, deparando com uma nova ameaça. Viram um homem ao seu lado que não olhava para elas, mas sim para outro que se preparava para o agredir. O primeiro empunhava a metade de uma garrafa partida de cerveja que mantinha defronte do corpo.
- Porra! - praguejou Tess.
Pelo canto do olho viu Marion que saía do ponto onde ouvira o estrondo, com o cabelo todo despenteado e a blusa rasgada. Nem sequer olhou para Tess ou para a mulher que continuava caída no chão. Seguiu directamente atrás do homem que brandia a garrafa partida. Ele tentou erguer o braço para a afastar de si.
Mas não teve a mínima hipótese. Dois golpes habilmente desferidos e Marion conseguiu pô-lo a contorcer-se no chão, com o braço levantado que ela torcia enquanto proferia um chorrilho de obscenidades. Entretanto, o homem que se preparara para investir contra o que estava no chão hesitou, sem saber bem que atitude tomar perante uma mulher. Marion decidiu o assunto por ele. O pé dela enganchou-se perfeitamente na parte de trás dos tornozelos do indivíduo e, com um puxão cheio de força, fez com que caísse todo esparramado no chão. De entre a multidão, elevou-se outro grito.
Tess parou de raciocinar. Estendeu a mão à mulher caída, ajudando-a a levantar-se. Esta agarrou-se logo à cabeça ensanguentada.
- Tenham cuidado! - advertiu Marion gritando.
Tess imobilizou-se. O homem que tinha dado origem a todo aquele tumulto estava ali, erguendo-se gigantesco acima delas, os olhos coruscantes de raiva. À guisa de arma, trazia a perna de uma cadeira.
Tess ficou a olhar para a madeira de contornos arredondados. Pensava que não tinha um aspecto tão contundente como um bastão de basebol.
O homem ergueu a perna da cadeira no ar.
E foi então que Tess começou a tremer; tinha o olhar preso nas imagens que subitamente desfilavam pelo seu pensamento. O bastão de basebol a descrever um arco descendente. O estalar do osso da sua coxa. A dor lancinante. O cheiro a sangue. O ter conhecimento das inúmeras vezes em que o bastão tinha cortado o ar na mesma trajectória até dilacerar carne e osso humanos.
Qual seria o som que viria de uma cabeça que fosse violentamente atingida por um bastão de basebol? Semelhante ao barulho da madeira a ser rachada? Ou seria mais como um melão que fosse esmagado?
Sentiu um rugir ensurdecido nos ouvidos.
Vagamente, ouviu o barulho da perna da cadeira a cortar o ar. Vagamente, viu o homem arremessado para a frente, e depois J. T. no seu lugar. A seguir, como se a sua voz viesse de muito, mas mesmo muito longe, ouviu Marion dizer:
- Meu Deus, J. T., ela vai desmaiar.
- Merda!
De súbito, sentiu uns braços fortes que a amparavam, mantendo-a a direito. Tess ficou como que possessa, esbracejando e arranhando tudo à sua frente, sem sequer se recordar contra o que é que lutava. Muito simplesmente, sentia que tinha de lutar.
A mão de J. T. agarrou as suas, prendendo-as junto ao peito.
- Calma, chiquita, já a tenho segura. Calma.
Tess encostou o rosto ao ombro dele, rezando para que J. T. não a largasse. Ele levou-a para fora do edifício, para o ar fresco da noite.
- Está a sentir-se bem? - perguntou J. T. meia hora mais tarde, quando já a instalava no sofá da sua sala de estar.
Marion tinha arrastado a mulher ferida para fora do bar, entregando-a aos cuidados de algumas pessoas que se encontravam no parque de estacionamento, após o que os três se apressaram a sair dali. Naquele momento, J. T. acariciava a face de Tess, passando-lhe depois a mão pelos cabelos. Tinha uma expressão muito concentrada enquanto procurava possíveis ferimentos.
- Sim. Sim, estou bem - murmurava Tess sentindo-se demasiado constrangida para o olhar de frente. J. T. e Marion tinham estado prontos a tomar o bar de assalto. Em contrapartida, ela vira uma perna de cadeira e por pouco não desmaiara. Não havia dúvida de que não prestava para nada.
- Não foi assim que eu imaginei que a noite acabaria.
- Suponho que seja um mau presságio quando a sua aluna quase vomita o almoço durante a primeira rixa de bar. Talvez na próxima vez em que o Jim aparecer, eu possa vomitar para cima dele em legítima defesa.
- Tess...
Entretanto, Marion voltou depois de ter dado uma vista de olhos pela propriedade, ligando a luz da sala de estar. Já falara com os colegas da polícia; não haviam dado por ninguém que rondasse as proximidades.
- Ficou ferido.
- Isto não é nada - disse ele olhando com indiferença para as mãos. Concentrou-se em Marion. - E tu?
- Estou óptima - respondeu Marion encostando-se à ombreira da porta. A blusa de seda que vestia estava rasgada e as calças de linho todas manchadas de cerveja. Tinha o cabelo despenteado, caindo-lhe em ondas douradas pelos ombros. O cabelo caído tirava-lhe dez anos.
- Devia usar sempre o cabelo caído - observou Tess inesperadamente. - Fica lindíssima.
- Atrapalha-me - replicou a agente especial que já tinha começado a entrançá-lo.
- Não vale a pena insistir - adiantou J. T. sem estar com meias-palavras dirigindo-se a Tess. - Ela gosta do estilo feminista militante.
- Prefiro o termo ”profissional”. Queres que vá buscar gelo para pores nos nós dos dedos?
- Como queiras - cedeu J. T.
Marion revirou os olhos, mas foi buscar gelo à cozinha.
Um silêncio feito de mal-estar instalou-se na sala. Tess não sabia o que fazer para o quebrar. Começou a examinar as mãos. Desejou ter os nós dos dedos magoados.
- Lamento muito - disse J. T. abruptamente.
- O que é que lamenta?
- Hum... a confusão no bar. De vez em quando, alguém decide começar uma rixa.
- E você queria uma rixa?
- Talvez quisesse - respondeu ele depois de uma pausa.
- Tanta natação... - começou Tess a dizer numa voz murmurada. - O levantamento de tantos halteres, as corridas, a prática de tiro, isto não é suficiente para si, pois não?
- Sou um tipo muito intenso.
Tess fitou-o, mas depois o seu olhar desviou-se para a porta que comunicava com a cozinha.
- J. T., por que razão você anda sempre tão zangado com o mundo?
- Quem... eu?
- A Marion também tem essa faceta.
- A Marion tem gelo nas veias. E é assim que lhe agrada ser.
- Em contraste consigo...
- Que tenho tequila. Tess, a noite foi muito comprida. Estamos todos a precisar de dormir.
- Esta noite... acreditou realmente que havia alguém a rondar a casa ou isso foi apenas uma desculpa?
- Não - respondeu J. T. de imediato, mas depois pareceu ter ficado perturbado. - Não sei. Talvez a Marion tivesse razão. É possível que seja apenas a ressaca a falar. Eu... ultimamente tenho andado um pouco com os nervos à flor da pele... - Interrompeu-se, olhando-a bem de frente. - Tess, quando as coisas começam a apertar, a Marion é a pessoa com quem poderá contar. Eu tenho talento em bruto, mas ela possui o dom de levar as coisas até ao fim. Enquanto eu me meto em problemas, ela certifica-se de que os assuntos são resolvidos. Nunca se esqueça disto; de acordo? Se as coisas começarem a dar para o torto, vá ter com a Marion. Ela saberá o que fazer para a proteger.
- Está enganado - retrucou Tess. - Quando as coisas começarem a dar para o torto, você será o único que pode ajudar-me, J. T. É a única pessoa que conheço que tem a intensidade de espírito suficiente para poder fazer frente ao Jim.
O corredor estava às escuras. Parecia interminável devido à escuridão, tão silencioso como um santuário. Os passos de Tess abrandaram. Os dele também. Quando chegaram à porta do quarto dela, Tess não a abriu. Encostou-se à ombreira e olhou fixamente para o rosto dele. Com o dedo, percorreu o arranhão ainda fresco que lhe desfigurava a face.
- Dói-lhe? - perguntou Tess.
- Não - respondeu J. T.
Os dedos dela envolveram-lhe o queixo, passando para os lábios, que afloraram.
- O que é que está a fazer, Tess?
- Nada - replicou ela, tocando-lhe no nariz, nas maçãs do rosto e nos olhos. A mão dela curvou-se em volta do pescoço, massajando os músculos tensos amontoados num feixe; Tess ouviu a respiração arfante que assolava J. T.
Agradava-lhe tocar-lhe. Sentia a força que existia nele, electrizante e tentadora, e que só muito a custo se continha. Concluiu que tinha agido acertadamente quando decidira vir ter com ele.
Tess havia encontrado o homem certo.
E desejava-o.
Contudo, sabia tão pouco sobre o desejo. Acreditava que ele fosse o género de homem que poderia ensinar essa matéria a fundo a qualquer mulher. O tipo de homem que atrairia uma mulher, deixando-a exausta de paixão.
Tess inclinou-se para a frente.
- Não faça isso - pediu J. T. agarrando-a pelos ombros e obrigando-a a retroceder, imobilizando-a. - Não faça isso.
- E porque não?
- Porque não é o que deseja verdadeiramente, Tess.
- Sou mais forte do que possa imaginar.;,
- Sim, mas talvez eu não seja. - Com estas palavras, J. T. largou-a.
- Boa noite.
- Mas...
O olhar dele impediu-a de continuar. Percorria-a de cima a baixo, como se a despisse. Ele aproximou-se mais. E depois ainda mais. Baixou a cabeça. Tess ficou com a respiração suspensa e abriu os lábios, preparada para se render a ele incondicionalmente.
- Vá deitar-se, Tess. E não se esqueça de trancar a porta. - Dito isto, começou a afastar-se pelo corredor.
- Mierda Nem sequer estás a tentar!
- Credo, minha senhora, como é exigente! - J. T. rolou, saindo de cima de Rosalita e deixando-se ficar deitado de costas, e pôs-se a olhar fixamente para as pás da ventoinha em movimento constante.
- Estás mudado - disse Rosalita sentando-se ao seu lado.
- Vieste-te duas vezes e continuas tão chateada que até falas como um gringo? - replicou J. T. arqueando um sobrolho. - Rosalita, tu és um Anticristo.
Ela não se mostrou irritada nem amuada. Em vez disso, parecia preocupada. O que ele detestava. Deus Todo-Poderoso, alguém o libertasse das mulheres da sua casa!
Como se estivesse a apalpar o terreno, ela passou a ponta de um dedo pela cicatriz que ele tinha à altura do tórax. J. T. mal conseguiu resistir ao impulso de afastar a mão dela.
- É por causa de la chiquita, não é? Tu gostas dela.
- Não gosto de ninguém, Rosalita. O que faz parte do meu encanto.
Não, verdade fosse dita, naquela noite ele não estava em si. Sentia-se tenso e dorido. Estava na cama com a melhor puta em toda a cidade de Nogales enquanto pensava noutra mulher.
Como ele a desejava. Queria possuí-la até ela não conseguir andar, até não poder manter-se de pé, até não ser capaz de respirar, até que tudo o que conseguisse fazer fosse gritar. E depois, queria voltar a possuí-la.
E depois disso!, perguntou uma voz na sua mente num sussurro. O que é que poderias dar a uma mulher como ela fora da cama, J. T.? O que tens para oferecer a uma mulher como ela.
Ela estava a mudar, de dia para dia tornava-se mais forte, mais capaz. Ele sabia porque já o vira antes. Observara uma mulher a crescer como pessoa, apercebendo-se de que não tinha apenas braços e pernas, mas que também podia correr, lutar, dar, tomar. Ela podia reclamar todas as suas partes que haviam sido roubadas por homens fisicamente mais fortes e cruéis, passando a fazer o que lhe desse na real gana.
Rachel optara por se entregar a ele. E ele tinha-a amado por isso, sem quaisquer condicionalismos.
Estendeu a mão para a mesa-de-cabeceira, pegando num maço amachucado de cigarros e batendo-o até soltar um. Levou-o aos lábios e acendeu-o. O tabaco tirava-lhe dez anos aos pulmões, mirrando-os. Devia odiá-lo. Mas adorava fumar. Muito simplesmente, era o seu estilo.
Rosalita continuava a observá-lo atentamente. Agora encostava o corpo ao dele. Ele podia deitá-la e penetrá-la outra vez; ela limitar-se-ia a suspirar de contentamento. Podia orientar a cabeça dela para baixo e ela não hesitaria em engoli-lo completamente. O que quer que lhe ocorresse, ela faria sem hesitações e, muito provavelmente, até era capaz de fazer umas quantas coisas de sua própria iniciativa que também desafiariam a imaginação de J. T.
Deixou-se ficar deitado, expelindo o fumo e ficando a observá-lo a subir em espiral até às pás da ventoinha.
- Vou buscar-te qualquer coisa para beber - ofereceu-se Rosalita saindo da cama e embrulhando-se no lençol. - Vais ver que depois te sentes melhor.
- Devias casar-te - disse J. T. casualmente. - Encontrar um marido e ter uns quantos miúdos em vez de andares por aí com sujeitos como eu.
A expressão de preocupação no semblante dela acentuou-se. Se ele dissesse ou fizesse mais alguma coisa que não estivesse de acordo com a sua maneira de ser habitual, a mulher estava disposta a apalpar-lhe a testa para ver se ele tinha febre, e, se necessário, chamaria o médico.
Abriu a porta e saiu para o corredor.
Naquela noite, quem é que ela teria mais possibilidades de encontrar, Tess ou Marion? A mulher que ele não queria salvar, mas que parecia acreditar ser o único capaz de o fazer? Ou a mulher que em tempos ele tentara salvar, mas que agora dava a impressão de pensar que ele era o diabo em pessoa?
- Não há dúvida de que Deus tem um estranho sentido de humor - resmungou J. T. para o tecto. - Um sentido de humor que consegue ser pior do que o meu.
O cigarro consumiu-se até começar a arder-lhe nos dedos. Deixou que a ponta caísse no chão, extinguindo-a com o polegar. Todas as manhãs deixava de fumar, retomando o hábito todas as noites. E naquela noite nem sequer o tabaco embotava o seu cérebro da maneira como era esperado que fizesse.
Continuava a pensar em Tess e pensar em Tess fazia com que se recordasse de Rachel. J. T. casara com Rachel por compreender que ela tinha sido uma mãe de dezoito anos que desejava o melhor para o seu filho. Casara com ela porque, se ela fosse tão manipuladora, perversa e corrupta como Marion dizia que era, então, a culpa caberia ao coronel por a ter moldado daquela forma.
Depois da cerimónia, o pai fora ter com J. T. para lhe dar um aperto de mão, declarando:
- A partir de agora, o Teddy passará a ter direito ao nome da família. Assim, tenciono mandar o meu segundo filho para West Point a fim de redimir os erros do primeiro. Eu sabia que farias o que está correcto, Jordan.
- Se voltar a tocar na Rachel ou no Teddy, não hesitarei em matá-lo - dissera J. T. ao coronel. - Está a perceber, paizinho.
Foi a única vez que J. T. viu o coronel empalidecer.
Durante os primeiros seis meses, ele e Rachel viviam juntos como duas pessoas que se conhecessem mal. Ela tinha o seu próprio quarto no apartamento em que viviam, e J. T., o seu. Quando falavam ou faziam alguma coisa em conjunto, era sempre algo relacionado com Teddy. Mas por vezes, já pela noite dentro, os dois sentavam-se à mesa da cozinha a beber cerveja enquanto iam revelando pequenas coisas a respeito um do outro.
Ela falou-lhe do padrasto que fizera com que lhe fosse impossível continuar a viver em casa. J. T. contou-lhe sobre a primeira vez em que o pai o havia chicoteado e do quanto estivera certo de que merecera esse castigo. Rachel recordou a ocasião em que tentara arranjar um emprego, para vir a compreender que ninguém estava disposto a dar emprego a raparigas de quinze anos sem eira nem beira. Ele falou-lhe da selva e das horas infindáveis sentado numa atmosfera saturada de humidade, à espera do momento certo para atacar e destruir.
Houve uma noite dessas em que ela lhe falou da primeira vez em que tinha vendido o seu corpo. Nessa altura, recitara em pensamento rimas infantis, a fim de conseguir abstrair-se do que estava a fazer. Consumado o acto, não tinha chorado. O homem pagara-lhe generosamente, pelo que ela não chorara. Limitara-se a embalar-se para a frente e para trás, esforçando-se por não se recordar da vida com que sonhara quando era criança.
Tanto um como o outro levavam uma vida que não fazia muito sentido, mas, de uma maneira qualquer, quando estavam sentados juntos até horas tardias da noite, conseguiam fazer com que as peças distorcidas e quebradas se ajustassem. Ofereciam um ao outro o perdão que nem um nem outro era capaz de conceder a si próprio. Em conjunto, planeavam um futuro. Começaram a construir uma nova vida.
Até que o garoto que havia sido espancado pelo pai começou a amá-la, e o adolescente que fora rejeitado pela irmã mais nova começou a amá-la, e o homem que tinha ido para fora a fim de lutar em guerras dos outros, porque deixara de lhe interessar morrer ou viver, começou a amá-la. Até que todas as partes alienadas, esperançosas e atemorizadas dele, sem exclusão, começaram a amá-la.
Mas depois Rachel saiu por uns momentos e foi morta.
Naquele momento, Rosalita voltou ao quarto. Parou aos pés da cama sorrindo.
Apenas durante um minuto, nos corredores sinuosos da sua mente, J. T. viu Marion, jovem e vulnerável. E as mãos da irmã mais nova estavam enclavinhadas e o seu rosto tinha uma expressão aterrorizada; fugira do monstro que ambos conheciam bem de mais. Esconde-me, J. T. Deus me ajude, por favor, por favor, por favor.
”Chiuuu”, murmurou em pensamento, cerrando os olhos com força.
Quando voltou a abri-los, viu Rosalita ao seu lado; o semblante dela já não reflectia preocupação, mas sim uma expressão de triunfo. Estendeu-lhe um copo com gelo.
Tequila com gelo e uma rodela de limão. J. T. ergueu o olhar fitando-a e ela sorriu-lhe, um sorriso que espelhava felicidade.
- Tu és sempre igual a ti próprio - disse ela simplesmente.
- E tu és o Anticristo - murmurou ele.
Os dedos de J. T. fecharam-se à volta do copo.
Marion entrou na sala de estar precisamente no momento em que uma mulher enrolada num lençol branco de algodão desaparecia no quarto do irmão. Durante uns momentos, Marion pensou que tinha visto um fantasma. Sacudiu a cabeça e dirigiu-se para o telefone.
Gostava da sala de estar quando a noite já ia adiantada. Havia ocasiões em que se dirigia para lá apenas para se sentar enquanto observava a Lua a deslizar através das persianas abertas, projectando a sua luz no mobiliário de vime. A um canto, o iguana dormia sob a luz de uma lâmpada de calor. Tirando a criatura, Marion estava completamente sozinha.
Ainda pensou em fumar um cigarro, mas sabia que J. T. era muito capaz de aparecer quando estivesse a fumar. Às vezes, enquanto se encontrava sentada às escuras, ele surgia no vestíbulo, saindo directamente para o pátio interior. Minutos depois de ter transposto a porta corrediça de vidro, ela ouviria o som de um mergulho executado na perfeição.
Marion respirou fundo, normalizando a respiração antes de pegar no telefone e só depois é que começou a ligar um número.
- Como é que ele está? - perguntou quando atenderam do outro lado da linha.
- Marion? - proferiu Roger, com a voz empastada pela sonolência. Onde ele se encontrava eram duas horas da manhã. Estaria ele a dormir com o seu novo brinquedo? Teria ela interrompido alguma coisa? Esperava que sim.
- Como é que ele está? - voltou a perguntar, desistindo das boas intenções de há pouco e levando um cigarro à boca. Tinha a mão a tremer.
- Marion, são duas horas da madrugada!
- Obrigada, Roger, mas sou muito capaz de ver as horas. Como é que ele está?
Roger suspirou. Marion julgou ter ouvido a voz segredada de uma mulher. Portanto, a empregada de bar estava com ele. Aquilo doía-lhe. Magoava-a mais do que julgara ser possível.
Eu amava-te, Roger. Amava-te mesmo.
- Ele está às portas da morte, Marion. Por amor de Deus, o que é que esperas que eu te diga? Os médicos receitaram-lhe medicamentos para as dores, mas, no estado em que ele se encontra, nem sequer isso é suficiente. Talvez ainda dure uma semana, possivelmente duas. Ou quem sabe se não morrerá já amanhã. Para bem dele, só espero que sim.
- Não é um pensamento muito caridoso com relação ao homem que consideravas o teu mentor, Roger. Mas, por outro lado, ambos sabemos a pouca importância que a lealdade tem para ti.
Roger ficou em silêncio. Ela imaginava a maneira como ele estaria a cerrar os lábios, franzindo a testa alta num sinal de grande tensão. Marion estivera casada com ele durante quase dez anos. Conhecia-o por dentro e por fora. Sabia que ele era fraco e que não tinha carácter. Também sabia que era um homem astuto e ambicioso. Sabia tudo o que houvesse a saber a respeito dele: tinha acreditado que isso era o que o casamento significava.
- Está bem, Marion - retorquiu Roger em voz baixa. - Sê amarga se é isso que queres. Mas não esqueçamos que foste tu que me telefonaste. Eu limito-me a ser o mensageiro que te diz que o teu pai continua na fase terminal de um cancro. Sente muitas dores e está desiludido. Geme e umas vezes grita pelo Jordan, outras pelo Teddy. Se quiseres que ele continue a viver nestas condições, isso é contigo. Quanto a mim, acho que é uma maneira atroz de se morrer.
- E quanto à Emma? - perguntou ela, em tom casual, referindo-se à mãe. Marion não gostava de Emma. Considerava que a mãe era uma mulher fraca, mais satisfeita com um mundo de fantasia do que preocupada em ser uma boa esposa do coronel. Mas a verdade é que Roger sempre tinha tido um fraquinho pela velha carcaça apesar de ela estar absolutamente demente.
- Também me preocupo com ela - replicou Roger, como seria de esperar. - Tem andado a citar as deixas da Sophia Loren no filme El Gd. Para ser franco, receio que um dia destes ela decida pespegar o cadáver dele em cima de um cavalo. Sabes que ela fica sempre pior quando está sob uma grande pressão.
- Pressão?! A mulher vai-se abaixo e fica tensa quando tem de decidir pela manhã qual o par de sapatos que há-de calçar!
- Marion... por que motivo ligaste?
- Queria certificar-me de que não tinha acontecido nada.
Fez-se outro longo silêncio. Desta feita, ela sabia que ele não estava a franzir o cenho. Em vez disso, sentia grande dificuldade em escolher as palavras mais adequadas. Roger era um homem muito diplomático, um manipulador nato. Imaginou que a sua carreira no exército continuaria a progredir de vento em popa.
- Marion... - começou ele num timbre de voz muito suave. Instintivamente, ela assumiu uma atitude rígida. - Sei que estás a passar por um período difícil. Tenho consciência de que te magoei...
- Magoar-me?! Magoar-me Foste tu que desfizeste o nosso casamento!
- Sei que sim, Marion. Mas...
- Mas o quê? Nós tínhamos uma relação de respeito, de amizade. Construímos uma vida em comum durante dez anos. Meu Deus, Roger, o nosso relacionamento era sólido.
- Não fosse o pequeno pormenor de ficares hirta sempre que eu te tocava.
Marion retraiu-se toda, sentindo o cigarro a arder-lhe nos lábios. Incapaz de respirar, não conseguia falar, nem sequer mexer-se.
- Lamento muito - continuou Roger. - Só Deus sabe o quanto lamento, Marion. Sei que isto dói. Mas como é que esperavas que eu reagisse a isso? Como poderia eu continuar a viver assim? Sou um homem, tenho necessidades...
- É o meu trabalho, não é verdade? Sempre tiveste ciúmes do meu trabalho, não foi? Sempre pensaste que exigia muito do meu tempo, que me impedia de ser a esposa e a anfitriã perfeitas. Além do mais, a minha carreira profissional é boa, tão boa quanto a tua... e sou mais forte do que tu. Sou melhor atiradora do que tu. Tu és... és apenas um burocrata do exército, enquanto eu sou a que vai à luta e estabelece a diferença! - Marion expressava-se com rispidez. Só essa cólera é que a impedia de se ir abaixo, desfazendo-se num milhão de cacos.
- Bem, eu não me teria importado de ter uma mulher que viesse a casa de vez em quando. Mas, de preferência, que não me comparasse sempre com o seu chefe ou com o seu amado pai. Consideras que isto era pedir de mais? - As palavras cuidadosamente urdidas como que lhe fugiam da boca. Ela sentiu uma satisfação sublime por isso.
- Tu és fraco! - ripostou ela. - Não tens fibra e és apenas metade do homem que o coronel é. Não és um tenente-coronel na verdadeira acepção da palavra, limitas-te a saber como praticar o jogo da política. Sinto-me satisfeita por teres saído de casa. É melhor assim. Continua a brincar com a tua miúda. Pelo menos, e finalmente, conseguiste encontrar uma pessoa em relação à qual és superior!
- Porra, Marion! Não faças...
Mas ela não ouviu o resto. Desligou o telefone com tanta violência que Glug se encolheu todo. Ficou a olhar para o iguana, desejando ansiosamente que ele se mexesse para poder ter uma justificação para o desfazer em pedaços.
Muito precavidamente, o animal fingiu que estava morto. Marion acendeu outro cigarro, inspirando o fumo acre até que as lágrimas lhe assomaram aos olhos. Toda ela tremia e sentia-se demasiado magoada, uma dor que penetrava até ao seu íntimo.
Apenas por uns momentos, Marion desejou poder enrolar-se sobre si mesma e chorar. Queria poder estender os braços e ter alguém que a abraçasse e que lhe segredasse palavras carinhosas ao ouvido.
Vai correr tudo bem, Merry Berry. Eu salvar-te-ei. Prometo que te salvarei.”
As palavras vinham de parte nenhuma, tão vagas como num sonho. Com os punhos fechados esfregou as faces, engolindo em seco apesar do aperto que sentia no peito.
Roger que fosse para o inferno. Ele era um homem fraco que se consolava durante a crise da meia-idade com uma rapariga de vinte e dois anos. Marion considerava-se a si própria mais forte do que a maior parte dos homens que conhecia. Um aspecto que os deixava a todos, sem excepção, enervados. Até mesmo nos anos noventa, os homens continuavam à espera de um pouco de lamúrias e de carências afectivas por parte das mulheres. Haviam-lhe dito que, como agente especial do sexo feminino, teria oportunidades iguais, mas depois tentavam evitar que ela visse cadáveres como se ela pudesse desmaiar. E depois, quando se baixava e investigava o local do crime, eles trocavam olhares por cima da cabeça dela como se fosse alguma lésbica disfarçada.
Afirmavam que a independência não os incomodava, mas depois mostravam uma grande perplexidade por ela não desatar a chorar nos braços deles a primeira vez que vira alguém assassinado. Diziam que compreendiam a força que ela mostrava, mas depois ficavam todos ressentidos quando ela os suplantava na carreira de tiro.
Não era ela que andava a mudar as regras. Tal como não era ela que andava a dizer que não havia nada a objectar com relação a uma coisa, embora esperasse outra. Tinha-se casado e havia sido fiel. Jurara fidelidade, coragem e integridade, não restando dúvidas de que era uma boa agente do FBI. Prometera ao coronel que só lhe daria motivos para se sentir orgulhoso e que estaria ao seu lado, pegando-lhe na mão quando morresse. Além disso, certificar-se-ia de que o seu funeral seria o melhor que até então algum homem tivera.
Sacudiu a camisa. Ajeitou o cabelo que penteara todo para trás, prendendo-o num carrapito. Disse a si mesma que estava apresentável, sentindo-se a pessoa mais forte que havia deste fado do inferno.
Em seguida, percorreu o corredor a caminho do seu quarto.
Quando passou pela porta do quarto de J. T. abrandou o passo. O impulso era tão forte que chegou a fechar a mão à volta do puxador. Abre a porta. Entra no quarto. Ele ajudar-te-á, ele ajudar-te-á. O Jordan poderá salvar-te.
Então, começou a recordar-se daquele dia da competição de orientação topográfica em que J. T. tinha participado, quando o pai regressara ao ponto de partida, mas o irmão não voltara. Mantivera-se por perto enquanto os adultos conferenciavam, agarrada ao estômago que sentia como se fosse um feixe de nós devido à fúria. Jordan tinha-se ido embora, conseguira fazer isso. Ele escapara, decidira fugir. O irmão deixara-a sozinha.
Porém, pouco depois, irrompeu do matagal cerrado. Em vez de se sentir aliviada, ela odiou-o ainda mais. Porque ele havia regressado, o sacana idiota, e, durante escassos momentos, Marion pensara que ele estava livre, acreditara que J. T. tinha, finalmente, escapado, pelo que ela nunca mais teria de se sentir receosa por ele.
Enquanto o coronel dava palmadinhas amistosas nas costas do filho, elogiando-o por ter continuado a caminhar apesar de ter um tornozelo fracturado, Marion refugiara-se no arvoredo e vomitara até deitar para fora tudo o que tinha no estômago.
- Odeio-te - murmurara ela, as palavras embargadas pelas lágrimas. Entrou de rompante no seu quarto. - Raios partam toda a gente desta casa! - resmungou. - Amaldiçoados sejam todos. - Com brosquidão, abriu a janela, foi buscar um maço de cigarros por encetar e bateu-o até soltar um deles.
Já tinha que lhe chegasse. Estava farta. Concedera a J. T. a semana que ele lhe pedira para se decidir. No dia seguinte, tencionava dar-lhe a última oportunidade para ver a luz. E depois deixaria aquela espelunca.
O cigarro tremia-lhe entre as mãos. Não conseguia acendê-lo. Partiu-o a meio, enojada consigo mesma, e pôs-se a olhar fixamente pela janela. Deu consigo com os braços à volta do corpo e, durante um momento inquietante, teve a sensação de que estava a ser observada.
Afastou-se bruscamente da janela e empunhou a arma, voltando para lá com o revólver já pronto para disparar. Aguçou o olhar para conseguir ver na noite, perscrutando em todas as direcções.
Merda, Marion, o que estás a fazer? Sobressaltada por causa das sombras, pronta para disparar contra os cactos? Foderam-te o juízo ou quê?
Baixou a arma e inclinou a cabeça para o peito.
- Vê se dormes um pouco - ordenou a si mesma. - Fecha a janela e vai para a porra da cama e vê se dormes!
Estendeu-se na cama. A noite estava calma e silenciosa. Apenas se ouvia o cantar incansável dos grilos que murmuravam por entre a escuridão. Agarrou-se à almofada e a exaustão como que se abateu sobre ela. Pouco depois, Marion dormia profundamente.
Meny Berry teve alguns sonhos.
Os dois primeiros foram pesadelos que não a deixaram sossegar, virando-se inquieta de um lado para o outro, enquanto os lábios se mexiam numa oração silenciosa. Uma figura alta e sombria entrou no quarto. Ouvia o som das botas de pára-quedista a pisarem o soalho de madeira dura e a ressonância provocava-lhe náuseas.
Mas depois a imagem desapareceu em espiral e ela tinha chegado ao Arizona. Corria em redor da hacienda, chamando pelo nome de J. T. Ela tinha de proteger... precisava de encontrar... Contornou a esquina e ali estava ele: o rosto de Jim Beckett encostado ao vidro da janela que ele lambia com a língua.
Marion murmurava enquanto dormia, tentando expulsar o sonho da sua mente. Sentia-se tão cansada e estava tão receosa. Agora nunca havia ninguém que a confortasse. Não tinha ninguém que se preocupasse com ela.
O sono apiedou-se dela, envolvendo-a num abraço mais suave.
Era pequena, pequena e forte. Montava um cavalo castrado de grande porte sem o mínimo esforço, sentindo a massa muscular do animal que se curvava, obedecendo às suas ordens.
- Mais depressa - sussurrava ao cavalo. - Mais depressa.
O cabelo esvoaçava atrás dela e o vento limpava as lágrimas que tinha nos olhos. Seguiam, ela e o cavalo, descrevendo círculos. Mais depressa, cada vez mais depressa. Até que ela viu o salto. O salto enorme que se agigantava à sua frente. Cavalgavam com demasiada velocidade, jamais conseguiriam ultrapassar aquela barreira. Freneticamente, puxou as rédeas, mas o cavalo rebelou-se contra o freio, torcendo a cabeça maciça.
Ouviu a voz de J. T. a chamar, suave mas muito nítida. Ele havia estado presente desde o princípio, fora de vista; contudo, ela soubera que ele se encontrava presente. Tinha contado com isso.
- Vais conseguir saltar, Merry Berry - gritava o irmão. - Vais conseguir.
Ela deu o salto. Ouviu-o a bater palmas.
E se bem que por apenas escassos momentos, Marion sentiu-se livre.
Jim estava preparado.
Nas horas de escuridão que antecediam o raiar do dia, encontrava-se sentado no quarto com as persianas todas corridas para baixo, acabando os seus preparativos. No chão, colocara dois ovos de plástico cheios de mástique de néon púrpura, uma caixa cheia de sacos de plástico transparente para sanduíches, dois sacos com enchimento para almofadas, quatro embalagens de colas para mulher, um lápis para pintar os olhos e uma cabeleira postiça de cor preta, bastante cara, com a garantia de que faria com que parecesse ”dez anos mais novo”, de acordo com o que o vendedor lhe dissera. Por último, tinha um uniforme da polícia de Middlesex County, tamanho grande, que fora roubado de um vestiário a um agente que, obviamente, passava a maior parte do seu tempo na Dunkin’ Donuts.
Sob a luz crua da lâmpada do candeeiro de mesa sem quebra-luz, Jim trabalhava no uniforme; os seus dedos compridos e magros descosiam meticulosamente os pontos que prendiam as divisas.
Na maior parte das circunstâncias, a presença de um uniforme, por si só, era o suficiente; ao olhar menos experimentado, todos os agentes de polícia pareciam iguais. Mas, na realidade, cada força, cidade e distrito tinham os seus próprios uniformes. A patente era indicada pela risca de uma determinada cor à altura da perna da calça, assim como os galões ou insígnias pregadas nas pontas dos colarinhos. Cada distrito também tinha um estilo diferente dos outros - desde as calças cortadas a direito as largas, assim como cores diversas - do castanho ao azul-marinho, passando pelo preto. Era preciso levar tudo isso em consideração, uma vez que nas próximas vinte e quatro horas aquele uniforme seria posto à prova, sendo atentamente examinado por pessoas que percebiam do assunto. Depois de ter conseguido chegar tão longe, Jim não tencionava estragar tudo por causa de uma coisa tão simples como uma divisa incorrecta ou um galão para que não teria explicação plausível.
Ao seu lado, tinha um livro cheio de ilustrações a cores que reproduziam todos os tipos de uniforme usados pelas forças da lei de cada estado e distrito. Também possuía um livro que ilustrava todas as insígnias e galões da polícia, podendo recorrer ainda à sua colecção pessoal que reunira ao longo dos sete anos em que fora agente de polícia. Tinha comprado alguns, enquanto outros furtara. Todos lhe eram úteis.
Após descoser a última insígnia, ergueu o uniforme azul-escuro, tamanho grande, sob a luz. Serviria para o efeito.
Pôs o uniforme de lado e concentrou-se nas coisas que colocara no chão. Começou pelo mástique que tirou do saco, começando a moldá-lo e dividindo-o por diversos sacos de plástico transparente. Quando estivesse dentro da boca faria com que as bochechas parecessem maiores. Cortou as pernas dos colãs, enfiando lá dentro o enchimento de almofadas e cosendo a parte de cima com uns pontos dados apressadamente. Coxas instantâneas num ápice e barrigas de Buda. A peruca e a maquilhagem seriam aplicadas apenas no último minuto.
Em seguida, foi buscar uma caixa de sapatos já muito antiga e começou a escolher alguns crachás e chapas de identificação até encontrar o que queria. Há cinco anos que tinha começado a roubar crachás. Os detectives e os novatos eram os mais fáceis - os detectives porque eram tão arrogantes que nem lhes passava pela cabeça que houvesse alguém que se atrevesse a ir às algibeiras dos seus casacos, e os novatos porque eram estúpidos. Jim cedo se apercebeu de que coisas como crachás autênticos poderiam vir a fazer-lhe jeito. Reunira a sua colecção muito criteriosamente. Depois, dois anos e meio antes, quando se apercebeu de que as suas actividades, de um momento para o outro, haviam passado a ser objecto de uma vigilância apertada, sempre seguido por dois agentes à paisana, decidira tratar dos últimos preparativos. Conseguira encontrar o esconderijo perfeito. Assim, foi aí que guardou todos os seus crachás, uma identificação falsa e uma boa quantia de dinheiro, assim como dois passaportes.
A sua diligência fora compensada. A polícia nunca descobriu essas actividades, apesar de ter passado dois anos na cadeia, sabendo que, mais cedo ou mais tarde, a sua oportunidade surgiria, o que lhe permitiria pegar nas coisas no ponto em que as deixara.
Seleccionou o galão mais apropriado e começou a coser a tira que tinha o nome. O êxito dependia em muito dos pormenores.
A conversa que entabulara com o sargento Wilcox tinha corrido bem, muito em particular depois de ter convidado o homem para almoçar, enchendo-o de Halcion. O bom do sargento pusera-se a dormir como uma criancinha enquanto Jim o levava de carro para fora da cidade, amarrando-o a uma árvore; feito isto, preparou o seu canivete suíço. Não precisou de muito tempo para obter todas as informações que pretendia.
Depois, telefonou à mulher do sargento para lhe explicar que a missão actual do marido exigia o maior secretismo. Assim, o sargento não poderia ir a casa durante os próximos dias, tal como não seria autorizado a telefonar. No final da semana, contavam poder dar-lhe mais informações.
Em seguida, ligou para as instalações do grupo especial encarregado das investigações e pediu para falar com o oficial de serviço, a quem disse que era o médico de Wilcox. O sargento tinha adoecido, sofrendo de um caso muito grave de envenenamento alimentar, pelo que teria de ficar de cama durante as próximas vinte e quatro horas. Claro que decorrido esse prazo, apresentar-se-ia imediatamente ao serviço. Nessa altura, o pior já devia ter passado.
Levantou-se, distendendo o corpo longo e muito bem musculado. Trezentas flexões de bruços e quinhentos abdominais por dia. Não tinha um único grama de gordura. Era possível que Ed Kemper fosse mais corpulento, mas numa competição de braço-de-ferro Jim estava confiante de que seria o vencedor.
Sacudiu os braços e as pernas em movimentos de descontracção. Ultimamente, não precisava de dormir mais de quatro horas. Havia-se instalado em si uma profunda calma. Naquela noite, o seu plano passaria à segunda fase e ele estava preparado. Tinha pensado em tudo e passara revista a tudo aquilo de que viria a necessitar. Era invencível, não porque isso fosse o que queria ser; era invencível porque trabalhara nesse sentido.
Durante dois anos, Jim estivera a apodrecer em Walpole. Dois anos encarcerado numa cela da ala de segurança máxima com um metro e oitenta por dois metros e quarenta, sendo-lhe permitido sair apenas durante uma hora diariamente, de segunda a sexta-feira. Até nessa altura era algemado e punham-lhe correntes nos tornozelos, antes de ser escoltado por dois guardas prisionais até à área de recreação da ala de segurança máxima - o que na realidade era apenas outra cela com uma superfície de um metro e oitenta por dois metros e quarenta no exterior da prisão, vedada por uma cerca em malha de ferro e a que haviam dado o nome de jaula dos cães. Não era permitido estarem mais de dois prisioneiros da segurança máxima no exterior ao mesmo tempo e, mesmo assim, cada um ficava na sua cela vedada, o que dificultava qualquer espécie de diálogo. Não que isso lhe interessasse. Nos últimos tempos, a população prisional da penitenciária de Walpole era dominada pelos ”reis latinos”. Como se ele quisesse misturar-se com um bando de nojentos indivíduos de origem hispânica que tinham os miolos todos fedidos.
Eles haviam desejado o seu coiro. Ele vira isso nos olhos deles quando passava escoltado pelas celas que ocupavam. Conseguia cheirar o ódio e a sede de sangue que exsudava da pele deles, como se isso lhe fosse arremessado através das interjeições sibiladas e sinais próprios de cada bando. Gostava de os olhar bem de frente, mirá-los de cima a baixo, porque eles pensavam que eram muito bons, quando, verdade fosse dita, não faziam a mais pequena ideia do que era ser realmente perverso. Apegavam-se uns aos outros como canalhas cobardes, passando drogas através de apertos de mão, cometendo assassínios por desaforos imaginários, convencidos de que isso os tornava homens. Mas não eram atitudes que tivessem o mínimo significado. Os guardas prisionais impuseram mais restrições. Walpole atingiu o nível mais elevado de segurança, tendo passado a ser um estabelecimento prisional em que qualquer contacto físico estava interdito. Face a isto, Jim deu consigo sentado defronte de Shelly na sala de visitas, separado dela por um vidro à prova de bala e insonorizado; finalmente, os guardas haviam descoberto que as namoradas passavam mais do que cuspo durante os beijos apaixonados.
Dois anos vestido com um fato-macaco prisional cor de laranja. Dois anos sentado sozinho numa tarimba, ouvindo através das paredes de pedra as reverberações de um ódio desenfreado e tácticas mal ponderadas. Dois anos sem qualquer actividade sexual.
Jurou a si mesmo que nunca mais voltaria a passar por aquilo. Arquitectara os seus planos com todo o cuidado, sem descurar um único pormenor. Nunca mais voltaria para a cadeia. E o dia da vingança não tardaria a chegar.
Todo nu, enrolou-se sobre si mesmo no divã sem lençóis. Adormeceu sonhando com a boca de Shelly a chupá-lo até ficar seco. Também sonhou com a sensação das suas mãos a fecharem-se à volta do pescoço dela, apertando, apertando, apertando...
- Hei-de encontrar-te, minha querida - murmurou no meio do sono. - Hei-de encontrar-te.
sono.
Tess estava pronta.
Despertou com os primeiros raios de sol, espreguiçando-se com lentidão. Os músculos recentemente adquiridos distenderam-se e contraíram-se. Era capaz de identificar o princípio dos bíceps e o emergir dos tríceps, assim como os quadríceps, ainda na sua infância. No centro do quarto, começou a fazer uma série de exercícios de aquecimento, sentindo-se satisfeita com a fluidez com que passava de um exercício ao outro.
Encontrava-se no bom caminho.
O seu olhar era atraído quase irresistivelmente para o telefone. Queria ligar a Sam. Desejava ouvir a voz doce da filha, para lhe dizer que tudo se resolveria em breve. Teria Difford o cuidado de Lhe aconchegar os cobertores à noite quando ela ia para a cama, ler-lhe-ia as histórias mais apropriadas? Observava-a enquanto ela comia a fruta, ou estaria ela a conseguir deixá-la sorrateiramente debaixo da mesa?
Só Deus sabia o quanto ansiava ouvir a voz da sua pequenina.
Para lhe dizeres o quê, Tess? Que não tardarás a voltar para casa? Que a salvarás do pai? Que estás a pôr a sua vida em perigo por lhe telefonares!
Cerrando os punhos, Tess desviou o olhar. Só mais algumas semanas e depois estaria em condições de dar caça a Jim. O pesadelo chegaria ao fim. Ela reclamaria o direito de viver com a filha. Daí para a frente, as duas viveriam felizes para sempre?
Tess não tinha a certeza de que continuava a acreditar nessas coisas.
Preparou-se para a sessão matinal de natação. Mas quando entrou na sala de estar ficou como que paralisada.
- É isso mesmo, J. T.! - resmungava Marion, furiosa. - Na verdade, o pai é o Darth Vader e eu sou a princesa Leia. E agora entra no lado sombrio para podermos dar início às hostilidades!
- Eu já te disse que não vou.
- Dei-te mais de uma semana, J. T. Durante quanto tempo tencionas continuar obcecado por um passado mítico?
- Para sempre parece-me ser uma boa data.
- Pára com isso! - ripostou Marion erguendo as mãos num gesto de frustração. - Pára com isso! O que é que se passa contigo? Tens de estragar sempre tudo aquilo em que tocas. Não és capaz de compreender que esta é a tua última oportunidade? Se te afastares do pai neste momento, nunca mais poderás arredar caminho. Ele está a morrer e jamais poderás resolver assuntos que continuam por resolver.
- Falas como se a vida fosse um melodrama de ópera italiana.
- E tu adoras odiá-lo, não é verdade, J. T.? Ele serve-te de desculpa para tudo e mais alguma coisa. Fizeste com que fosses expulso de West Point, mas culpaste o pai por isso. Deste um murro no teu comandante, também culpaste o pai. Bebes de mais e andas com putas a mais, tentas matar-te em selvas no fim do mundo em nome de causas por que ninguém se interessa e, que diabo, vamos lá a culpar o pai também por isso. Pois bem, quanto a mim, já chega. Amanhã de manhã vou voltar para Washington. Podes vir comigo para te redimires ou ficar aqui a apodrecer.
Havia um músculo no maxilar de J. T. que tremia. Abanou a cabeça.
- Tenho de continuar a treinar a Tess. Mesmo que fosse suficientemente estúpido para considerar a hipótese dessa viagem, agora não posso ir.
- Cobarde! Estás a servir-te da Tess como desculpa.
- Desculpa? Que diabo é que queres dizer com isso, Marion? Não és tu que não te cansas de me dizer até que ponto o Jim Beckett é perigoso? Primeiro dizes-me que a Tess precisa, e muito, que a ajudem, mas depois esperas que eu lhe vire costas para poder tratar de um assunto tão trivial como a morte do coronel?
O rosto de Marion passou por vários matizes de indignação.
- Leva-a contigo.
- Levá-la comigo?!
- Ouviste bem o que eu disse, J. T. Como não queres deixá-la sozinha e dizes que precisas de mais tempo para a treinar, então, leva-a contigo. Leva-a para Washington... Não é preciso ser nenhum cientista nuclear para se chegar a esta conclusão.
- Oh, mas que grande ideia, Marion! Tens toda a razão. Vou levar a Tess para Washington. Vou apresentá-la ao homem que maltratava a minha irmã e que violou a minha mulher. E para me certificar de que está realmente morto, tenciono deixá-la sozinha no quarto com ele. Ambos sabemos que nada poderá despertar o coronel para a vida como uma mulher bonita e jovem que está indefesa.
- Meu maldito filho da...
- Só espero que ele morra! - atalhou J. T. - E só então é que irei a Washington para poder dançar no funeral - acrescentou baixando o tom de voz. - Tenciono fazer uma cascata com copos de champanhe no centro do relvado da frente e dançar à sua volta enquanto canto: ”Ding-dong, o pai morreu”, para que todo o mundo me ouça.
- Tu és um caso perdido! Mas pior do que isso, estás bêbedo!
Tess olhava fixamente para J. T., à espera que ele refutasse aquela acusação, que afirmasse uma vez mais que era um homem que cumpria sempre a sua palavra.
- Desculpa, mas tenho de discordar do que dizes - retorquiu ele ao contrário do que ela esperava. - Tomei apenas uma bebida. Portanto, isso significa que estou igual a mim mesmo.
- Mas estás embriagado, J. T. E juraste que não farias isso. Violaste o teu próprio código moral, por muito desvirtuado que possa ser. Olha bem para ti. Olha para ti! Não consegues levar nada até ao fim, não és capaz de assumir compromisso nenhum. Muito embora sejas um ser humano cheio de talento, a tua vida não é nada para além de uma sucessão de fracassos. E agora estás a vender o futuro que pudesses vir a ter à larva que está no fundo da garrafa de tequila.
- Foi apenas uma bebida, Marion - alegou J. T.
- Não é preciso mais do que uma.
- E tu? - perguntou ele cerrando o maxilar e falando entre dentes.
- A filha perfeita do pai que nos espancava como passatempo. Mas ele fez pior do que isso, não é verdade, Marion? Podes viver toda a vida a negar o que se passou, mas acontece que eu também estava presente. Sei bem o que ele fez. Todas as noites, eu ouvia os passos dele no corredor, via-o a entrar no teu quarto. Não achas que tentei impedi-lo? Não te parece que eu... eu... meu Deus. Eu só queria matá-la.
- Não me envolvas nas tuas mentiras, J. T. - ripostou Marion cujo rosto adquiriu uma expressão empedernida.
- Não sou eu que levo uma existência de mentira. A ser alguma coisa, a minha vida é muito franca e aberta.
- Esquece - retrucou Marion, levantando as mãos num gesto de impotência. - Lavo as minhas mãos em relação a ti, J. T. Estás doente da cabeça e já não há nada que te possa ajudar. Destruíste a nossa família; estás ciente disso, não estás? Todo o trabalho esforçado do pai, todo o respeito que ele granjeou ao longo da vida, arruinados por tua causa. O que é inegável. Estou a perder o meu tempo contigo, portanto, vou pôr-me a andar daqui para fora! - Dito isto, deu meia volta e começou a dirigir-se para o corredor. Mas a mão de J. T. estendeu-se com rapidez, agarrando-a pelo pulso.
- Se mantiveres a mão por mais um minuto onde a tens, podes crer que ficarás sem ela - ameaçou ela baixando o olhar.
- Não vás - pediu ele; sem ligar importância às palavras da irmã, apertou ainda mais a mão.
- Não vás!
- Fica. Peço-te que fiques aqui, em minha casa, Marion. Não voltes para Washington e não voltes para junto dele. Deixa-o morrer. Deixa que o coronel morra. E depois disso, quem sabe se tu e eu... talvez possamos começar de novo. Por amor de Deus, Marion, tu és a minha irmã mais nova.
Marion ergueu o olhar vendo que os olhos dele tinham uma expressão de súplica. Repentinamente, deu meia volta, desferindo um golpe violento no antebraço do irmão que lhe soltou o pulso.
- Tu és um sacana fraco e cheio de comiseração por ti próprio, J. T. Podes crer que não existe maneira nenhuma de me arrastares contigo até ao fundo. - Com estas palavras, saiu de rompante, percorrendo o corredor como se fosse um tanque Sherman, mas não sem antes empurrar Tess para o lado. Segundos depois, ouviu-se o estrondo de uma porta a bater violentamente, assinalando a sua partida.
Devagar, J. T. começou a esfregar a região do braço onde a irmã lhe provocara um vergão avermelhado. Parecia perdido, como se não soubesse o que fazer consigo próprio.
Tess deu um passo em frente.
- Também se vai pôr a andar? Já se serviu enquanto a carne ainda está fresca?
- Não - replicou ela.
- E porque não? - No tom da voz dele não havia o mínimo vestígio de troça. Tão-pouco de sarcasmo ou desafio. Nunca havia passado pela cabeça de Tess que chegaria a altura em que sentiria saudades dessas facetas na maneira de ser dele.
- Não é divertido dar pontapés a um homem quando ele está por terra, pois não? - disse ela numa voz que mal se ouvia, procurando ver qual a reacção no rosto de J. T.
- Sim, suponho que isso seja verdade - replicou ele passado algum tempo e com os lábios a tremer.
Tess avançou outro passo, mas ele afastou-se, aproximando-se da mesa junto do sofá. Pegou na cigarreira em ouro de Marion, retirando mais ”um prego para o seu caixão”.
- Vá-se embora, Tess - disse J. T. riscando um fósforo. Levou a chama à ponta do cigarro e inspirou profundamente.
- Não posso.
- Não tivemos esta conversa antes?
- Sim, e dessa vez também ganhei. É uma das poucas coisas que sei fazer como deve ser... argumentar consigo.
- Isso não conta. Parece-me que toda a gente me ganha nesse campo.
- Você gosta realmente da Marion, não gosta? - perguntou Tess que queria tocar-lhe na mão. Desejava envolver os ombros dele nos seus braços, abraçando-o com força.
- Gosto. Mas a cada dia que passa, vou ficando mais velho e mais sensato.
- O seu iguana - recordou ela. Ele passava a vida a dizer a Marion que não podia fumar na presença de Giug.
O olhar de J. T. dirigiu-se para o seu animal de estimação; depois regressou a Tess, que quase via a escuridão que subitamente lhe velou os olhos. O escárnio implacável que dedicava a si próprio e que lhe havia sido instilado pelo pai e alimentado pela rejeição da irmã. A raiva autodestruidora acicatada pelo facto de reconhecer que a irmã tinha razão; havia fracassado em tudo o que se propusera fazer. De facto, tinha planeado a sua vida de modo a dar esse resultado.
Aquela expressão sombria assustou Tess. Tocava-lhe bem no íntimo. Fazia com que ficasse com pele de galinha nos braços e arrepios nas costas. A raiva de Jim aterrorizara-a por se ter revestido de tanta frieza. A cólera de J. T. comovia-a por ser tão genuína.
- J. T. - começou numa voz murmurada, estendendo-lhe a mão.
- Tem razão - disse ele, de súbito. Tirou o cigarro dos lábios. Com uma troça exagerada, pôs-se a olhar para a ponta incandescente do cigarro. Estendeu a mão esquerda.
- Não faça isso! - gritou Tess, mas era tarde de mais. Viu-o a esmagar a ponta incandescente do cigarro na palma da mão. - O que está a fazer? - A dor que ele devia ter sentido adivinhava-se na voz dela.
- Aquilo que me ensinaram a fazer - respondeu J. T.
- J. T... - Tess deu um passo, abeirando-se dele.
- Não faça o que está a pensar - disse ele numa voz rosnada. - Sou um sacana e um filho-da-puta e estou com os nervos em franja, ao ponto de ter deixado de me reconhecer em mim próprio. Se ficar nesta sala, não me responsabilizo pelas minhas acções.
- Não estou a pedir-lhe que o faça! - gritou ela. Dito isto, Tess avançou mais um passo... e depois outro. Posicionou-se firmemente no centro da sala. - Eu já vi o que é demoníaco, J. T. Vi o mau e vi o pior. E não é você, J. T. Você não é maldoso.
- Raios a partam! - praguejou ele. - Raios a partam! - Num acesso de fúria, atirou a cigarreira pelo ar, que foi cair com um som metálico no chão.
Tess manteve-se firme.
Ela continuava a manter-se firme.
- Vai desejar nunca me ter conhecido - advertiu ele. Logo a seguir acrescentou: - Raios nos partam aos dois. - Num passo decidido, avançou para Tess, que se sentia preparada.
As mãos dele fecharam-se à volta da cintura dela como se fossem um torno. Nada suave. Nada gentil. Ela não soltou um único som de protesto quando ele a empurrou para trás e a prendeu contra a parede.
Se a sua intenção fosse fugir-lhe, devia tê-lo feito mais cedo. Agora estava comprometida e não haveria maneira de poder parar. J. T. ergueu as mãos, apoiando-as na parede ao lado das faces dela.
- Está a pensar que não aceitarei a sua oferta? Pensa que vou cair em mim no último instante, afastando-me de si? Pensa que sou boa pessoa? Pensa que sou um homem decente? Então, não ouviu uma única palavra do que a Marion disse. - Furiosamente, prendeu o lábio inferior dela na boca, puxando-o com os dentes.
Tess enlaçou-o pelo pescoço e também começou a mordê-lo. Tudo aquilo era feito com brutalidade e crueza. Ele atacou-lhe a boca, ela retribuiu-lhe do mesmo modo. A vida de Tess tinha sido um mar de passividade e frieza, medo e rejeição. Mas agora avançava voluntariosa ao encontro da paixão.
O corpo dele fez pressão contra o dela, os quadris a mostrarem-lhe exactamente aquilo que ele queria, e exactamente aquilo que ela devia dar-lhe, porque a altura de dizer não tinha chegado e desaparecido e... minha querida, era agora ou nunca.
Ele enterrou os dentes na carne tenra acima da clavícula. Ela gritou e ele enfiou-lhe um dedo na boca como se fosse uma rolha. Ela mordeu e chupou o dedo, esfregando a língua ao longo do seu comprimento.
- Meu Deus, como você é gananciosa. - Os dedos dele investiram pelos calções abaixo, entrando nas cuecas dela para depois a penetrarem.
Tess voltou a gritar, mostrando-se chocada contra a sua própria vontade por sentir que não estava preparada, apesar do estímulo dele. J. T. abrandou o ímpeto. Ergueu a cabeça e olhou para ela com uns olhos que brilhavam.
- É mesmo verdade que você não sabe nada, não é? - perguntou ele numa voz enrouquecida.
- É - admitiu ela. - Não sei.
- Está muito atrasada - acrescentou ele entre dentes. - Muito atrasada.
- Sei que sim, sei que sim.
O dedo dele penetrou mais fundo, deslizando mais para dentro, alargando, procurando. A palma da mão dele colou-se a ela, esfregando ritmicamente, dando-lhe um compasso que ela compreendia.
Tess sentiu os mistérios ignorados do seu corpo. Cerrou os olhos e viu cores indescritíveis que se formavam por detrás das pálpebras.
- J. T. - disse num gemido. - J. T.
- Abre os olhos. Olha para mim. Quero ver. Quero ver tudo.
Os olhos dela entreabriram-se, brilhantes e vulneráveis. O dedo dele começou a movimentar-se cada vez com mais rapidez. No que ele fazia não havia um mínimo de ternura, apenas uma necessidade primitiva e crua.
Ela mordeu o seu próprio lábio.
- Agora - murmurou numa voz enrouquecida.
Ela atingiu o clímax, gritando e tremendo, como se estivesse a derreter-se de dentro para fora. Mal se deu conta de que estava a ser arrastada pelo chão. Ele rasgou a roupa dos dois e em seguida pôs-se em cima dela com mãos impacientes que lhe abriam as pernas. Esfregou-se contra ela, um último segundo de pressão tentadora.
- Segura-te a mim, Tess. Isto vai ser duro - murmurou-lhe numa voz arfante.
Penetrou-a com uma força ansiosa, e ela sentiu-se preenchida, aniquilada. Agarrou-se firmemente aos braços dele como se a sua vida dependesse daquilo.
O clímax foi atingido pelos dois em simultâneo, fluindo intempestivamente pela corrente sanguínea durante um momento que ficou suspenso no tempo, cortando-lhes a respiração e impedindo-lhes qualquer movimento; nem sequer sentiam a pulsação acelerada do coração.
Ele recuou abruptamente, como ela sabia de antemão que ele faria. J. T. levantou-se de repente, como ela esperara que fizesse. Baixou o olhar para Tess, o rosto com uma expressão imperscrutável.
- Não és obrigado a dizer nada - salientou ela. Sentia-se pisada e magoada, usada e abusada. E inacreditavelmente saciada. Mais sábia pelo poder dos mistérios e com um sentido de existência mais reforçado.
- Acho que não preciso de te perguntar se foi bom para ti - disse ela, orgulhosa de si própria, quando ele já se afastava.
- Magoei-te? - perguntou ele, detendo-se com a mão na porta corrediça de vidro.
- Não - respondeu Tess.
- Mas fui bruto.
- Não me queixei.
- Talvez devesses ter-te queixado.
- Já estás a culpar-te, J. T.? Acrescentando-me à longa lista de coisas pelas quais te censuras implacavelmente pela noite dentro? Conheço-te melhor do que julgas. Acredito mais em ti do que tu próprio. Portanto, não te incomodes a alimentar o ódio que sentes por ti por me teres mostrado as maravilhas de uma sensualidade primitiva e animal. Sou muito sincera quando digo que aceito toda a responsabilidade pelas minhas acções.
- Tess...
- J. T., se me pedires desculpa neste momento, jamais te perdoarei.
- Óptimo - ripostou ele, retraindo-se. Transpôs a porta de vidro e saltou para dentro da piscina.
- Não te esqueças, Tess - começou ela a dizer, falando consigo mesma -, de que és forte. És muito, muito forte.
Era um lugar extremamente imundo. Camionetas antigas em muito mau estado e Chevrolets azuis todos ameigados espalhados aqui e ali pelo parque de estacionamento. Era possível que em tempos tivessem existido traços feitos com tinta amarela no pavimento, mas agora estavam tapados pela poeira e pelos rolos de ervas e folhas secas, Afastado das ruas bem cuidadas do centro de Nogales, e dos muito norte-americanos McDonald’s, o bar situava-se no deserto, emoldurado por uma colina que se via à distância pontilhada pelas barracas do bairro pobre. Nada de paredes lisas de adobe ou telhados alegres em telha vermelha. Apenas madeira acinzentada que havia sido toscamente pregada com pregos tortos e ferrugentos numa atitude de determinação inquebrantável. O tecto era de chapa ondulada e nele viam-se vários pontos castanhos de ferrugem. Sempre que chovia, o bar dava a impressão de ser um tambor gigantesco.
Naquele momento, o ritmo da salsa filtrava-se das frestas na madeira, como se até a música estivesse desesperada por escapar daquele local soturno. O fumo evolava-se do interior, fiapos fantasmagóricos que se elevavam em direcção ao firmamento.
O estabelecimento era encimado por um letreiro em tubos de néon, que piscavam, intermitentes, anunciando que aquela espelunca tinha o nome de ”MANNY’S”. Apenas Manny’s.
Estafado. Poeirento. Esquecido.
Marion achou que era perfeito.
O automóvel azul de aluguer, de linhas modernas, não se coadunava com aquele lugar, mas, por outro lado, tão-pouco ela pertencia ali. Sem qualquer constrangimento, empurrou a porta abrindo-a e entrando na espelunca como a forasteira acabada de chegar à cidade. A música não parou à sua chegada, ao contrário dos clientes. Dois homens à sua esquerda, que jogavam bilhar numa mesa que já tinha visto melhores dias, interromperam o jogo erguendo o olhar. Por detrás do balcão estava um homem baixo e calvo que vestia um colete de ganga que deixava ver as tatuagens de serpentes nos braços, e que parou de tirar a cerveja. À direita de Marion havia pequenos grupos de homens e algumas mulheres que começaram por olhá-la de relance, mas que depois fixaram os olhares. Marion avançou até ao balcão.
- Quero um uísque. Puro.
O homem das serpentes ficou a olhar para ela. Ela retribuiu-lhe também com um olhar fixo. Ele continuava sem se mexer.
- Tem alguma coisa contra os dólares? - perguntou Marion com frieza.
- Não - respondeu o homem.
- Sendo assim, parece-me que podemos ser amigos. - Sacou de uma nota novinha em folha de vinte dólares que pousou decididamente no tampo do balcão.
O homem do bar foi buscar uma garrafa de uísque. Como se aquilo fosse um sinal, todos retomaram o que estavam a fazer quando ela entrara.
Marion não se virou para trás. Não olhou para os demais clientes. Ficou sentada ao balcão, sozinha, a ouvir as vozes em voz abafada. Não sabia falar espanhol, mas compreendia esse idioma razoavelmente bem.
Quando o homem lhe serviu a bebida, agradeceu-lhe com um brinde trocista. Ergueu o copo. Entreabriu os lábios rosados, inclinou a cabeça para trás e, de um só trago, bebeu o uísque todo.
Pousou o copo, batendo com o fundo no balcão. Engoliu o ardor que sentia no estômago. Em seguida, muito delicadamente, levou uma unha comprida e muito bem arranjada aos cantos da boca.
- Dê-me outro.
- Sí, senorita.
- Precisamente.
- Quero os meus Apple Jacks.
- Está bem, já vai - resmungou Difford, abrindo a porta com a biqueira do sapato enquanto tentava equilibrar os sacos de papel que continham as compras, para o que se servia dos braços, dedos e quadris. Com o seu casaco de Inverno, cor-de-rosa e com capuz, ela assemelhava-se a uma réplica em morango de Frosty, o ”Homem das Neves”. O cabelo louro espreitava da orla em pele branca do capuz. As faces tinham umas rosetas acentuadas que espelhavam saúde e felicidade. Era muito possível que o tempo continuasse ameno de mais para agasalhos de Inverno, mas a verdade é que Difford nunca se vira na contingência de vestir uma criança; por conseguinte, preferia pecar por excesso.
- Apple Jacks, Apple Jacks - cantarolava Samantha a plenos pulmões.
Difford resmungou, perguntando a si mesmo como é que as mães conseguiam aprender a lidar com os filhos, dando um pontapé à porta para a fechar. Mais alguns malabarismos e conseguiu chegar à cozinha exígua em tons de castanho, tendo deixado cair apenas duas laranjas.
Samantha correu atrás das laranjas que rolaram para o corredor, voltando a saltitar para a cozinha com as laranjas nas pequenas mãos enluvadas, como se fossem prémios. Brindou-o com um sorriso radiante e de triunfo. Naquele momento, não obstante todas as suas boas intenções, Difford sentiu um aperto no peito, compreendendo perfeitamente por que motivo as mães aturavam os filhos.
- Obrigado - agradeceu à criança com uma cortesia um tanto carrancuda, aceitando as laranjas que ela lhe dava. - Okay, agora os meus flocos! - acrescentou ela com um sorriso ainda mais rasgado. Samantha sentia-se absolutamente deleitada consigo própria, uma vez que os seus esforços persistentes tinham, finalmente, sido coroados de êxito, garantindo-lhe os flocos de cereal cobertos de açúcar. Ele mostrara-se tão cuidadoso, tentando comprar apenas alimentos que fossem saudáveis. Tess tinha-lhe dado uma lista dos produtos alimentares mais apropriados e, desde então, ele ia enchendo Samantha de Raisin Bran. Mas naquele dia, na loja, ela reparara nas embalagens de Apple Jacks, que se encontravam em promoção, expostas num lugar de destaque ao fundo de um dos corredores; e foi o fim das suas boas intenções. Samantha queria os APPle Jacks. Difford descobriu que era capaz de comandar o pessoal de uma esquadra, mas não uma garota determinada de quatro anos de idade. Assim, comprara os Apple Jacks. Duas caixas. Duas pelo preço de uma. Era fácil levá-lo à certa.
- Primeiro tens de almoçar - insistiu Difford.
A garota ficou amuada, o lábio inferior a fazer beicinho.
De imediato, ele entrou em pânico.
- Nem penses nisso - disse à garota ao mesmo tempo que abanava a cabeça.
- Uma nutrição adequada é muito importante. Temos peru fumado ou fiambre.
Samantha pôs-se a olhar para ele com aqueles olhos muito azuis que reflectiam inteligência. Tinha a cabeça inclinada de lado; nessa altura, ele já era capaz de interpretar os sinais. A garota estava a ver até que ponto conseguiria forçá-lo a ceder. Ele era o único culpado por aquele comportamento; nos primeiros dias, tinha-lhe dado o céu e a terra sempre que ela chorava. Sem perda de tempo, Samantha interiorizara essa lição, passando a comportar-se como um autêntico diabinho.
Obrigou-se a mostrar firmeza. Tinha de pensar nela como se fosse uma nova recruta, lembrou a si mesmo. Um novato que precisava de um pulso forte que o orientasse.
Decorrido um minuto, Difford venceu a batalha de vontades.
- Peru - decidiu a criança.
Difford fez uma careta risonha, sentindo-se ridiculamente orgulhoso de si mesmo. Não era muito frequente ganhar. Tess não o avisara em relação à capacidade de matreirice de uma criança daquela idade.
- Muito bem - disse Difford começando a arrumar os produtos de mercearia. Já tinha posto a mostarda, o pão e a maionese na mesa. A Samantha cabia a tarefa de acrescentar as fatias de peru, o que ela fez com vários floreados. Os dois sentaram-se à mesa muito simples de madeira, comendo em silêncio.
Difford previu que depois da refeição jogariam ao dominó. A garota continuava a ganhar-lhe sempre, mas com o tempo estava a ficar mais apto.
Pediu-lhe para ir buscar a caixa do jogo enquanto ele acabava de levantar a mesa e arrumar as coisas. Minutos depois, foi para a sala de estar onde costumavam jogar, sentando-se no chão com as pernas cruzadas. Estava a ficar com os joelhos perros.
Preparava-se para empurrar o cadeirão para trás quando reparou nos almofadões. Na véspera tinha-os colocado na região das costas para se sentar mais confortavelmente encostado ao sofá. Não era pessoa de grandes arrumações. Pensava que os tinha deixado no chão.
Reparou que alguém os arrumara, pondo um em cada canto do sofá.
Naquele momento, Samantha entrou na sala, trazendo a caixa onde as peças do dominó estavam guardadas.
- Sam, quero que vás para o teu quarto - disse à garota numa voz tão calma quanto lhe foi possível.
- Mas eu não fiz nada de mal!
- Sei que não, minha querida. - Os olhos de Difford percorreram a sala numa inspecção apressada enquanto levava a mão à arma que tinha por dentro do casaco. - Mas agora vamos brincar a um jogo novo, minha linda. Quero que vás para o teu quarto apenas durante uns minutinhos, está bem? Eu... eu vou ficar a preparar uma surpresa para ti aqui, na sala de estar.
- Não gosto dessa brincadeira! - ripostou a garota, que parecia estar perturbada, deixando cair a caixa do dominó para o chão e correndo a fungar para o quarto.
Difford não perdeu tempo. Olhando para o outro lado da rua, viu um carro verde, de um modelo antigo, estacionado na esquina. Ergueu a mão. Os dois agentes retribuíram-lhe com um aceno. Muito bem, os reforços continuavam a postos e estava-se em plena luz do dia. Se alguém tivesse tentado aproximar-se da casa sob protecção policial, os agentes teriam dado por isso.
Mesmo assim, passou revista à casa, empunhando a arma e com os olhos bem alerta enquanto ia de divisão em divisão. Na sala de estar não havia nada de anormal. Na casa de banho, incluindo o chuveiro, também estava tudo bem. Vagarosamente, entrou no seu quarto, mantendo o braço que empunhava a arma à sua frente, apontando-a para todos os cantos. Em seguida, encostou-se à parede e fez deslizar a porta do roupeiro com a biqueira do sapato. Deu um passo em frente e descreveu meia volta com toda a rapidez, ficando de frente para as suas roupas. Nada se mexia, nada bulia. Com o cano do revólver afastou os cabides uns dos outros. Não encontrou nada que não devesse estar ali.
Difford começou a respirar um pouco mais aliviado. Disse a si próprio que aquilo eram nervos, apenas nervos. A notícia do assassínio de Shelly Zane tinha-o deixado bastante afectado. O facto de saber que Jim Beckett andava à solta, à procura de Theresa, estava, sem sombra de dúvida, a mantê-lo acordado à noite.
Jim Beckett era apenas um homem. Tess tivera de o enfrentar numa ocasião. O tenente Houlihan e o agente especial Quincy faziam os possíveis e os impossíveis para que ela não voltasse a ver-se numa situação semelhante. Havia um grande número de gente boa que trabalhava naquele caso. Mais cedo ou mais tarde acabariam por apanhar Beckett.
Acabou de passar revista à casa, dizendo a Sam que aquilo fazia parte do jogo quando inspeccionou o quarto da garota, incluindo o roupeiro e por baixo da cama. Não lhe foi difícil ver que ela não acreditava nele.
Mas concluiu que não havia nenhum intruso dentro de casa. Estava tudo em ordem. Talvez ele se tivesse esquecido de que apanhara os almofadões do chão. Talvez tivesse sido Sam quem os apanhara.
Guardou a arma no coldre. Estendeu a mão a Sam, que lhe pegou sem qualquer hesitação.
- Dominó? - perguntou Difford.
- Eu quero a minha mamã.
- Eu... sei que queres.
- Sabe onde é que a minha mamã está? - perguntou a criança com o lábio de baixo a começar a tremer.
- Sim, minha querida, sei.
- Obrigue-a a vir para casa.
- Ela quer voltar para casa, Sam - retorquiu Difford, agachando-se diante da garota -, de verdade que quer. Ninguém gosta tanto de ti como a tua mamã. Mas primeiro ela tem de resolver alguns assuntos. Anda a tratar de fazer com que tudo esteja em segurança, percebes? E quando tudo estiver bem, ela virá buscar-te e vão ficar juntas para sempre.
- Mas eu quero que ela venha agora - insistiu Samantha numa voz que mal se ouvia.
- Sei que queres, Sam. Sei que sim. Mas agora vamos jogar ao dominó. - Conduziu-a para a sala de estar, sem saber que outra coisa poderia fazer.
Samantha não se sentou defronte dele como era costume. Em vez disso, instalou-se mesmo ao lado, com o seu ombro pequeno encostado ao corpo dele. Momentos depois, Difford colocou o braço grande à volta dos ombros da garota, dando-lhe umas palmadinhas desajeitadas.
Ela conseguiu esboçar um sorriso trémulo abrindo a caixa do dominó.
- A minha mamã vai chegar daqui a pouco tempo?
- Com certeza que sim - respondeu ele.
- E depois vamos ficar sempre juntas?
- Sim, minha querida. Verás que tudo há-de correr bem.
- Esta noite vamos poder ver outra vez o Parque Jurássico?
- De acordo - anuiu Difford, embora não conseguisse livrar-se da sensação de desconforto que sentia no peito. Voltou a bater-lhe afectuosamente no ombro. - De acordo.
Tess foi ter com J. T. Mas quando chegou ao pátio não viu ninguém. Sentiu uma aguilhoada de mal-estar.
Ouviu o barulho de alguém a andar no piso de gravilha. Com rapidez, voltou-se nessa direcção cerrando os punhos.
Tess deixou-se ficar no mesmo lugar, como se estivesse aparvalhada.
Pouco depois, J. T. voltou a aparecer no pátio, a arma pendente junto da coxa nua.
- Pensei ter ouvido qualquer coisa - justificou em voz baixa.
- Não vi nada - retorquiu Tess.
- Pois não, como é que podias ver se estavas a olhar para o meu traseiro?
- Estava apenas a admirar a vista - redarguiu ela, corando.
- Hum... - J. T. deu dois passos em frente e outro atrás, até que se imobilizou. - Imagino que estou com os nervos à flor da pele.
- Ontem à noite bebeste realmente? - perguntou ela depois de o fitar em silêncio por uns momentos.
- Bebi. Um gole. De tequila. Que Deus tenha piedade da minha alma.
- Acho que é um pouco tarde de mais para isso. - Ainda pensou em ralhar com ele, dizer-lhe que era um idiota. Acabou por concluir não ser necessário estar com essa atitude. Nunca ninguém fora tão inflexível e duro para com J. T. Dillon como o próprio J. T. Dillon. - Preciso de ti - proferiu.
- Não digas isso.
- Tarde de mais. Sabes bem o que tenho pela frente, J. T. A Marion contou-te o suficiente a respeito do Jim para saberes isso. Ele há-de vir à minha procura e é forçoso que eu esteja preparada para o enfrentar. A semana passada conseguimos avançar tanto. Já sou capaz de nadar durante mais tempo e já comecei a desenvolver alguns músculos. Também consigo disparar uma arma...
- Mal.
- Exactamente! Preciso de aprender mais. Preciso que me ensines mais. Que diabo, não me faltes agora! Será apenas por mais algumas semanas.
- Sou capaz de lidar com o meu problema - retorquiu J. T. com uma expressão austera.
- Tens a certeza? Contactar os Alcoólicos Anónimos não é um sinal de fraqueza. Admitir que se precisa de ajuda também não é um sinal de fraqueza.
- Estou óptimo! Não tens nenhum fardo de palha contra o qual disparar?
- Nenhum é tão divertido como tu. - Aproximou-se dele num passo determinado. Sentia o calor e a tensão que irradiavam do corpo dele, o que a pôs ao rubro.
- Gananciosa - observou ele numa voz segredada.
- Aprendi contigo.
- Se recomeçares a beber...
- Parei depois da primeira bebida - atalhou ele, interrompendo-a com brusquidão.
- Esplêndido. Só espero que te fiques por aí. E agora acho que deves ir ver se encontras a Marion.
- O quê?! - perguntou ele com os olhos arregalados e uma expressão de incredulidade.
- Ela precisa de ti, J. T.
- Tess, vê se abres os olhos - ripostou ele erguendo o antebraço e apontando para o vergão vermelho.
- Já abri e estou a dizer-te que ela precisa de ti. Porque pensas que ela fugiu, j. T.? Para que fosses atrás dela. Para que, finalmente, haja alguém que se mostre de facto preocupado com ela.
- A Marion era capaz de mastigar um tanque blindado ao pequeno-almoço, para depois cuspir pregos perfeitamente formados durante o resto do dia. Fim da história. - Dando a conversa por terminada, encaminhou-se para a porta de correr. - Continuas a querer um professor, não é verdade?
- Sim - confirmou Tess.
- Sendo assim, sai daí e deixa-te de conversas de treta. Isto não é o Clube Mediterrané. Vai vestir a porra do fato de banho. Vamos começar pelos halteres e acabar na piscina. Tens cinco minutos para te preparares.
- Ela está atemorizada - insistiu Tess seguindo atrás dele.
- Pára de te convenceres a ti própria! - ripostou ele, palavras que eram dirigidas aos dois.
- Posso oferecer-lhe uma bebida?
- Não estou a impedi-lo - retrucou Marion inclinando-se sobre a mesa de bilhar onde, lenta e metodicamente, batia todos os homens que se encontravam no bar. O Sol já se tinha posto. O interior do bar estava escuro e mais cheio de fumo do que antes. Havia algumas horas que os olhos dela se tinham ajustado à semiobscuridade, pelo que agora nem dava pelas mudanças no ambiente.
- Bola oito, buraco da esquerda - anunciou Marion. Alinhou o taco para a próxima jogada, puxou-o atrás e executou a jogada com mais força do que o necessário. Fez uma carambola para bater na bola número oito, impelindo-a pelo verde desbotado até à extremidade e, com um estalar seco e sonoro, forçou-a a entrar no buraco do canto.
Marion endireitou-se e levou o cigarro aos lábios. Inspirar. Expirar.
- Acho que me deve vinte dólares.
O homem começou a resmungar. Ela não fixara o nome dele. Era-lhe indiferente. Tinha-se mostrado melhor do que os outros, mas, mesmo assim, não se encontrava à altura dela. Com alguma relutância, deu-lhe o dinheiro da aposta. Ela acrescentou-o ao maço que já ganhara.
Virou-se para trás e examinou cuidadosamente o bar. Sentia uma espécie de formigueiro na nuca, a sensação de que estava a ser observada. Era evidente que todos os que se encontravam naquele bar merdoso tinham os olhos postos nela. Voltou-se de novo para a mesa de bilhar.
A bebida que pediu foi trazida por carne fresca. Ele sorriu-lhe, tentando cair nas graças dela; no entanto, Marion ainda não estava embriagada ao ponto de não se aperceber da expressão de predador por trás do sorriso do homem. Aceitou o copo, encostando a anca de linhas esbeltas à mesa de bilhar, numa atitude de abandono, olhando-o abertamente, uma vez que era essa a maneira como ele a fitava.
Era alto, com mais de um metro e oitenta. Por baixo do boné vermelho de pala, viam-se tufos de um louro semelhante a água de lavar louça, espetados como palha. Tinha bigode, uma barba curta e os braços bem musculados de um operário. Apesar disso, já apresentava um pouco de barriga. Em tempos devia ter sido um belo espécime masculino. Mas agora estava a caminho da meia-idade.
- Então, qual é o seu jogo? - perguntou o homem com uma piscadela de olho.
- Bola oito - respondeu ela com frieza. - Podemos apostar um contra três. As apostas começam com vinte dólares.
Ele cruzou os braços de maneira a dar realce aos bíceps.
- Gosta assim tanto de jogar bilhar?
- E você pensa que é realmente capaz de me engatar com uma bebida?
As faces dele coraram. Marion continuava a olhá-lo com fixidez. Regra geral, os homens não aguentavam que ela os olhasse fixamente. Todos fugiam com o rabo entre as pernas. Em seguida, costumavam apelidá-la de cadela.
- Muito bem - disse ele por fim, deixando-a surpreendida. - Eu jogo. Mas quero avisá-la desde já que jogo melhor do que aquilo a que você está habituada.
- Eu é que terei de ajuizar se é assim ou não. - De um só trago, acabou de beber o uísque, pegando no taco. Tinha a arma num coldre preso debaixo do braço, oculta pelo casaco. Gostava de a sentir ali, reconfortante e fria.
Ambos deram início ao jogo.
Sentes a minha falta, Roger, pensas em mim? Ou para ti não passo de uma cabra frígida, uma mulher com quem casaste por interesse, por causa das pessoas influentes que o meu pai conhece? Como é que uma reles empregada de bar consegue fazer de ti um homem tão feliz?
Inclinou-se mais para baixo e desfez a formação das bolas com uma tacada dada com fúria. Duas das bolas entraram logo. Inspirou outra golfada de tabaco purificador, começando a calcular a próxima jogada.
E tu, pai? Por que razão nunca chamas pelo meu nome? Não fui uma boa filha? Não fiz tudo o que me pedias!
Marion meteu mais três bolas e cedeu a vez ao seu oponente, que começou cheio de fanfarronice. Mas não conseguiu impressioná-la.
E depois vens tu, J. T. Saíste de casa para arruinar o nome da família. Não passas de um bêbedo, um fracassado, e depois dizes que sou como tu. Não sou nada como tu. Sou uma pessoa forte.
Entretanto, o seu adversário já tinha limpo a mesa de bilhar. Ela olhou para ele mostrando-se ligeiramente chocada.
- Eu avisei-a de que sabia o que estava a fazer.
Pousou o taco de bilhar enquanto ela contava três notas de vinte, que lhe entregou. O homem abanou a cabeça.
- Não acha que já chega de preliminares? Não está pronta para começarmos a jogar a sério?
Marion ainda pensou em fingir que se sentia indignada. Também lhe ocorreu fingir ignorância. Pousou o dinheiro e com um encolher de ombros, disse:
- Muito bem. O que é que tem em mente?
- Venha comigo, minha querida. Sou capaz de a foder até que todos os problemas lhe saiam da cabeça.
Ela ficou a olhar para ele. O homem já não estava na flor da idade, mas continuava a ter uns braços esguios e bem musculados. Sabia jogar bilhar e era mais homem do que qualquer outro dos que vira entrar naquele local.
Marion devia recusar a proposta. Era a boa filha que só tinha ido para a cama com Roger. Era a boa agente especial que sabia que não devia acompanhar um estranho.
- De acordo - aquiesceu ela. Pegou na sua bolsa e aceitou a mão forte que lhe prendia o braço enquanto a conduzia para a porta.
E tu ficavas como gelo sempre que eu te tocava., Marion continuava a não conseguir libertar-se da sensação de que havia alguém que a observava, imaginando que, caso se voltasse para trás, depararia com um par de olhos um tudo-nada acerados de mais, um tudo-nada sabedores de mais.
Marion não se virou para trás.
Já fora do bar, o ar estava fresco e revigorante, fazendo com que as narinas dela fremissem, como que ofendidas pela doçura depois do ambiente fédito no interior do bar. O firmamento estava de um negrume cerrado, bom para as actividades nocturnas.
O seu machão conduziu-a para uma pequena camioneta de caixa aberta. Não avistou mais ninguém no parque de estacionamento, mas isso não lhe causou apreensão.
Ele abriu a porta do passageiro da frente, segurando-a para ela entrar. Marion ficou sem saber se aquela atitude seria um sinal positivo ou não. Não lhe perguntou para onde é que iam, nem sequer pensou no que se estava a passar. Acendeu outro cigarro e desceu o vidro da janela para que o fumo pudesse sair.
Ele conduzia por um lugar ermo. Teria ele levado outras mulheres para ali? Seria ele casado, razão por que não poderiam ir para o seu apartamento? Mas isso eram pormenores que não interessavam a Marion. Não tinha nada a ver com isso. Acompanhava-o para o que desse e viesse.
- Este é um lugar onde nunca vem ninguém - disse ele olhando para ela com olhos de ver pela primeira vez. - Mas é muito agradável em ocasiões como a de hoje. Podemos cheirar a noite e olhar para as estrelas. Pensei que preferia isso a uma rulote que tresanda a cerveja e a chulé. Não sou dado a grandes limpezas.
- Por mim está bem.
- Tenho uma manta na parte de trás. O chão é macio - adiantou ele abrindo a porta da viatura.
Portanto, aquilo queria dizer que já tinha ido ali. Um pouso habitual do machão. Marion observava-o através do retrovisor lateral. Foi buscar um cobertor do exército que abriu e estendeu no solo. Nada de camas de ferro. Nada de algemas. Ao fim e ao cabo, apenas um Dom Juan. Marion abriu a porta do seu lado e saiu.
A noite estava fresca, desanuviando as brumas que lhe toldavam a consciência. Pouco depois, ele avançou agarrando-a e empurrando-a de encontro ao veículo. A língua dele apressou-se a entrar na boca dela.
O sabor como que a atingiu intensamente, uma intromissão que sacudiu a apatia em que mergulhara até que se sentiu a sufocar. Mas então recordou-se de que, em princípio, era aquilo que queria. Obrigou o corpo a relaxar. Colocou os braços em volta do pescoço dele, tentando não se retrair quando o peito forte do homem lhe esmagou os seios.
Ele baixou-se, ficando de joelhos e começando a desabotoar-lhe o casaco.
- Espere - disse ela. Não queria que ele descobrisse a arma. - Eu faço isso. Vá despindo a camisa.
Os olhos dele eram poços de luxúria. Os dedos grossos do homem dirigiram-se imediatamente para a camisa.
- Vire-se de costas - pediu Marion.
- Porquê?
- Foda-se, porque sou tímida! Já lhe disse para se virar de costas!
Ele encolheu os ombros, fazendo o que ela lhe pedia. Marion despiu o casaco, após o que desapertou a fivela do coldre, colocando-o no chão e tapando-o com o casaco.
Entretanto, ele virou-se para ela atacando-a e rasgando-lhe a blusa de seda. Encostou os dentes ao pescoço de Marion. As duas mãos fecharam-se na cintura estreita, após o que levou os dedos aos seios pequenos, começando a massajá-los como se com isso conseguisse fazê-los crescer mais, torná-los mais voluptuosos. Marion mantinha-se imóvel, com as mãos e os braços caídos.
Os dedos dele encontraram os colchetes do sutiã que conseguiu desapertar, desnudando-lhe os seios que ficaram expostos ao vento da noite. O frio fez com que os mamilos se tornassem rijos e ficassem espetados. O que ele levou à conta da sua habilidade, mostrando-se todo satisfeito consigo mesmo. Quente e húmida, a boca dele fechou-se num mamilo, começando a sugar vorazmente.
Marion baixou o olhar. Observou a cabeça dele que oscilava para cima e para baixo enquanto lhe lambia os mamilos. Ouvia-o a sorver, a grunhir e a gemer. As ancas dele começaram a agitar-se insistentemente.
Ia mudando de seio, o maxilar a trabalhar com todo o vigor.
Ela estremeceu. No seu subconsciente, pensou que as estrelas eram lindíssimas, sentindo-se muito pequenina sob o seu brilho.
Os dedos dele prenderam-se no cós elástico das calças de Marion, puxando-as juntamente com as cuecas muito práticas. Ela não protestou.
- Quem diria, és uma brasa! - disse ele. - És um bom pedaço de mulher, uma bela foda!
Com uma expressão abstracta, ela olhava para ele, perguntando a si mesma se o homem estaria de facto a olhar para o seu corpo. Não era uma mulher sensual. Tinha uns peitos achatados e as ancas eram quase inexistentes. Considerava-se demasiado magra, com um corpo de linhas estreitas. Roger queixara-se frequentemente, dizendo que no corpo dela não existia um único ponto que fosse macio. Toda ela era músculos e tendões. Havia jovens do sexo masculino com formas mais delicadas do que ela.
O machão baixou as calças. A picha saltou de modo que parecia ter uma mola, enorme e arroxeada, estranha e grotesca. Em comparação, o pénis de Roger era bem pequeno.
Marion deu um passo atrás. Mas era tarde de mais.
Ele empurrou-a para baixo, deitando-a no cobertor e afocinhando nos seus seios, com os dedos a apalpá-los dolorosamente.
- Querida, querida... - resmungava ele numa voz pastosa. - Oh, querida, querida...
Marion tentou bloquear os ouvidos para não ouvir a voz do homem.
- Beija-me. Vamos lá, minha querida, não sejas envergonhada. Beija-me. Toca-me. Perde a cabeça. - Premiu os lábios contra os dela, como se soubesse que ela precisava de encorajamento. Em seguida, agarrou-lhe a mão colocando-a à volta do pénis. Marion retraiu-se toda ao sentir o órgão genital a pulsar entre os seus dedos. Estava vivo. Ela devia querê-lo, devia maravilhar-se perante todo aquele vigor sexual. Devia gritar: ”Oh, sim, fode-me!”
Mas Marion só queria fugir. Ele pegou-lhe na cabeça.
- Costumas chupar? Vá lá, não sejas tímida. Engole tudo, querida. Vais gostar daquilo que te vou dar.
Antes que ela tivesse oportunidade de reagir, ele obrigou-a a baixar a cabeça. Agora, o pénis dele estava encostado à sua face, com um cheiro avassalador a algo almariscado.
- Vá lá, de que é que estás à espera? - Pela primeira vez, a voz dele denotava impaciência.
Beija a pilinha. Vamos lá, Marion, sabes bem o que eu quero. Sê uma menina bonita e abre a boca. Beija a pilinha. Beija a pilinha do papá.
Marion levantou a cabeça de repente, vomitando para cima das pernas dele.
- Foda-se, mas que merda é esta! - De súbito, ele recuou, sacudindo-a, furioso. Marion tombou de lado, continuando a vomitar uísque já azedo. Os ombros tremiam-lhe descontroladamente. Dobrou o corpo pequeno e nu sobre os joelhos, fechando-se para o mundo até o vazio de trevas estar completo, as recordações empurradas bem para o fundo e aferrolhadas.
Freneticamente, estendeu a mão para as suas roupas.
O machão aproximou-se dela, encolerizado e enraivecido. Ela não reflectiu, não estava em si. Investiu instintivamente contra ele e, cinco movimentos depois, o homem contorcia-se todo no chão sem sequer ter respiração para poder praguejar. Vestindo-se as três pancadas, Marion agarrou nas chaves do utilitário, dizendo-lhe que poderia ir buscar a viatura ao parque de estacionamento do bar.
Em seguida, subiu para a cabina, ligou a ignição e com o motor acelerado voltou à estrada longa e deserta.
Foge, Marion. Foge e não olhes para trás. Não vais querer saber o que se encontra atrás de ti. Tu nunca quiseste saber o que estava atrás de ti.
Pouco depois, vagarosamente, o seu olhar dirigiu-se para os pés da cama.
Ela estava ali, pálida e etérea, uma vez mais. Os cabelos louros e compridos caídos pelas costas num ondulado basto e solto. As mãos pequenas entrelaçavam-se e desentrelaçavam-se diante de uma camisa de dormir branca que adejava. A expressão dela comovia-o profundamente, implorando-lhe que a salvasse.
Ficou com a respiração presa na garganta. Disse a si mesmo vezes sem conta que aquilo era apenas uma recordação: uma recordação viva, que respirava, e que se encontrava aos pés da sua cama. Apertou os olhos com força para os fechar enquanto a sua mente gritava aflitivamente para que o demónio se fosse embora. Ele não podia salvá-la. Não a tinha salvo. Ele era nada.
Abriu os olhos.
Ela continuava no mesmo lugar.
Pela primeira vez, apercebeu-se de que ela não era uma criança. Aquela não era a pequena Merry Beny que saía dos seus pensamentos para o seu quarto. Aquela era Marion, adulta, viva e em carne e osso.
A mão de J. T. saiu de debaixo do lençol como se tivesse vontade própria, estendendo-se para ela. - Marion... - Mas a voz foi-se abaixo.
- Vim... - começou ela a dizer num sussurro. - Queria ver... se alguma vez tinha estado aqui. Se sentia... - Os olhos dela fecharam-se firmemente. - Não. Nunca aconteceu! Nunca, nunca aconteceu! - Pegou ”na parte de baixo da camisa de dormir e fugiu.
Extremamente chocado, deixou cair a mão no lençol. Não estava capaz de se mexer nem de respirar. Encontrava-se suspenso algures entre o passado e o presente; sentia o peito a arder, tamanho o sofrimento que o assolava. Elevou as pernas, girando-as por cima da beira da cama. Em duas passadas largas chegou à porta, abriu-a de um só gesto, completamente para trás, avistando por momentos parte da camisa de dormir branca antes de ela desaparecer no quarto. Foi atrás dela. Daquela feita, tinha de esclarecer o assunto de uma vez por todas.
A porta do quarto dela fechou-se com um grande estrondo, abalando toda a estrutura da casa silenciosa, trancando-se com um clique que não deixava lugar a dúvidas. J. T. começou a bater à porta freneticamente.
- Marion, deixa-me entrar! Podemos conversar sobre isto? Por amor de Deus, Marion! Ao menos uma vez na vida, não achas que devíamos conversar sobre este assunto? - Encostou a face à madeira da porta, consciente de que estava a suplicar, mas isso deixara de lhe interessar.
Do lado de dentro da porta ouviu um som estrangulado e roufenho. Ela estava a chorar. Marion, a mulher perfeita e fria, chorava convulsivamente.
- Marion - chamou numa voz enrouquecida. - Marion, Marion. Eu tentei. Esforcei-me tanto por te salvar. Deus sabe como eu tentei...
Todavia, não obteve qualquer resposta, apenas o som ensurdecido que era o choro penoso da sua irmã mais nova. Voltou a encostar a face à porta. Fechou os olhos e depois começou a bater furiosamente numa atitude de impotência com o punho fechado, sentindo uma necessidade premente de que ela o deixasse entrar, desesperado por poder entrar no quarto da irmã.
Marion, sei que falhei em relação a ti, Mas regressei. Regressei e tu já tinhas esquecido tudo - tanto os bons momentos como os maus - e foi aí que de novo falhei e tu também. Como é que podemos falhar assim um com o outro? Como é que pudemos servir o coronel da maneira como o fizemos?
Marion não abriu a porta, tal como não respondeu às suas súplicas. Frustrado, J. T. optou por começar a praguejar contra o coronel. Um homem com trinta e seis anos de idade que amaldiçoava o pai, ao mesmo tempo que se perguntava como é que um indivíduo adulto podia sentir tal receio.
Os minutos passavam. O choro convulsivo de Marion parou, dando lugar ao silêncio que reinava na casa escura e envolta em sombras.
- Marion...?
Não obteve resposta. Ela tinha chegado. Ela tinha partido. Ele encontrava-se precisamente no ponto de partida, com excepção da dor que lhe devorava o peito, a besta sinistra e enraivecida que ululava e rugia dentro do seu ventre.
- Está tudo bem.
- Dá-lhe até amanhã de manhã. Neste momento, não está preparada para te dar ouvidos.
- Eu tentei - disse ele em voz baixa com uma expressão abstracta. Fracassado, fracassado, fracassado. Mariquinhas pé-de-salsa, menino da mamã.
- Sei que sim - retorquiu ela tocando-lhe na face. - Está tudo bem. Tu eras apenas um garoto, J. T. A culpa não foi tua.
Ele premiu os lábios contra a mão dela, cerrando os olhos com força como se quisesse isolar-se da escuridão insuportável que vivia dentro de si há tanto tempo. Queria odiar alguém; por breves momentos, até quis odiá-la. Todavia, dentro de si não restavam energias suficientes para isso. Sentia-se como que espremido e vazio.
Ela ajudou-o a pôr-se de pé. Levou-o para o quarto, metendo-o na cama e aconchegando-o. J. T. deixou-se ficar deitado de costas a olhar fixamente para o tecto, a julgar que ia dar em doido com todas aquelas recordações. Queria uma bebida. Não haveria ninguém que lhe desse uma bebida?
Afasta isso de ti, afasta isso de ti, segredava-lhe a voz de Rachel em pensamento. Mas ele não conseguia. As recordações teimavam em persistir.
Tess puxou uma cadeira e sentou-se.
- Vou ficar contigo. Não deves estar sozinho numa noite como a de hoje. Sobretudo quando há tequila em casa.
- Pára com isso - resmungou ele. - Vai-te embora. Não te chega um ex-marido psicopata? Não és capaz de deixar o resto de nós em paz e sossego?
- Eu também já me senti mergulhada nessa escuridão, J. T. Sei que há ocasiões em que a luz nos parece estar muito distante. Todos nos perdemos nessa escuridão que é um lugar tão aterrador. Um lugar tão penosamente solitário.
As palavras dela magoavam-no, como que lhe esquadrinhavam o interior pondo-o a nu. J. T. pensava em todas aquelas noites em que ouvia os passos do coronel calçado com as botas de pára-quedista no soalho da casa. Sem ter ninguém em quem pudesse confiar, sem ninguém que o pudesse ajudar ou a Marion.
Noite após noite, deitado ali, ansiando por que aquilo parasse, precisando que parasse. E sempre a ter de enfrentar a situação sozinho.
Com um gemido, cedeu aos seus pensamentos. Agarrou Tess pela mão e puxou-a para a cama. Ela deslizou para junto dele sem se fazer rogada, tendo já começado a murmurar o seu nome.
- Eu sei - segredou-lhe ela com a boca junto do cabelo. - Eu sei.
- Não vou deixar-te - sussurrou-lhe Tess. - Não vou deixar-te.
As mãos dele firmaram-se nas costas dela, puxando-a mais para si.
Difford sentia-se inquieto.
Muito depois de o Sol se ter posto, ele e Sam jantaram macarrão com queijo. Viram o vídeo do Parque Jurássico e como as crianças conseguiram salvar-se do monstro. Difford passou uma vista de olhos pelo quarto de Samantha, mas não encontrou nenhum demónio debaixo da cama ou escondido no roupeiro. Depois de a ter deitado, aconchegou-lhe a roupa, afastando-lhe o cabelo da fronte e tirando-lhe a boneca muito sofisticada que falava e fazia mais coisas do que qualquer outra boneca de que ele ouvira falar até então. Naquela noite, a garota pediu-lhe que lhe lesse a história da Branca de Neve e os Sete Anões.
Ela acabou por adormecer. Difford foi para a sala de estar pondo-se a andar de um lado para o outro, perguntando a si mesmo por que motivo tinha os nervos em franja.
O telefone começou a tocar. Ficou tão sobressaltado que deu um pulo. Apressou-se a atravessar a sala, conseguindo atender antes do segundo toque - não queria correr o risco de acordar Sam.
- Tenente...?
- Sim - confirmou Difford num tom de voz cauteloso. Esperou pela frase em código que garantiria a autenticidade da identidade da pessoa do outro lado da linha.
- Chove nos planaltos de Espanha - disse quem lhe ligara. - Difford, fala o sargento Wilcox. Escute com atenção...
- Ouvi dizer que teve uma indisposição de estômago.
- Não. O que eu tive foi um caso grave de envenenamento com Halcíon.
- O quê?! - Naquele momento, Difford prestava toda a atenção à conversa.
- Não temos muito tempo, percebe? Ontem apareceu-nos um tipo que diz ser o detective Beaumont; afirmou que vinha de Bristol County com uma mensagem muito importante para si. O homem pôs a droga no meu café enquanto eu falava com ele na sala de interrogatórios.
- O Beckett!
- Sim, era o Beckett. Ele andou a espiolhar o meu bloco de apontamentos e fez-me algumas perguntas. Tenente, temos quase a certeza de que ele conhece o seu paradeiro, além de ter uma chave dessa casa. Temos de o tirar daí imediatamente.
Difford ficou em silêncio. Mas então, confrontado por fim com um perigo contra o qual poderia agir, sentiu-se calmo.
- Qual é o plano? - perguntou.
- Muito bem; assim que acabar de falar comigo, olhe pela janela. O agente Travis vai sair da viatura de vigilância... ele é um sujeito corpulento, portanto não poderá passar-lhe despercebido. Como quem não quer a coisa, casualmente, aproxime-se da porta da frente; até aqui tudo bem. Nada de movimentos súbitos. É possível que o Beckett esteja à coca. Talvez não fosse má ideia se levasse uma caneca de café para o agente. Até dará a impressão de que o homem vai buscar a sua dose diária de cafeína. Assim que ele entrar, feche a porta. Ele ajudá-lo-á a juntar as coisas da Sam. Em seguida, dirija-se para o automóvel que está na garagem...
- Espere - interrompeu Difford. Sentia as primeiras gotículas de suor na testa. - Se ele... hum... tem uma chave da casa, também pode entrar pela garagem. Há já algum tempo que não inspecciono a garagem. Foi coisa que não me ocorreu. Ele pode estar...
- Merda! - Fez-se uma pausa tensa. - Muito bem. Vou dizer isso mesmo ao agente Travis. Assim que ele estiver dentro de casa, começará logo por passar revista à garagem enquanto você lhe dá cobertura. Se não houver problema, vocês dois e a criança saem pela garagem. Manobras de evasão; e depois vêm imediatamente para a central. Alguma dúvida?
- Nenhuma - respondeu Difford. Desligou o telefone. Assomou à janela e afastou os cortinados para o lado. Sentia os pêlos na nuca todos eriçados. A sua respiração era curta e cava.
Viu a luz no interior do veículo estacionado no lado oposto da rua que se acendeu quando a porta se abriu, deixando ver um agente de polícia muito corpulento que saía pelo lugar da frente. Durante uns escassos momentos, avistou o segundo homem, inclinado para a frente, como se estivesse a apanhar alguma coisa do chão. A porta fechou-se ao mesmo tempo que a luz se apagou. O agente Travis olhou em redor. Difford viu a mão do homem apoiada no coldre desapertado do revólver.
- Mantenha-se calmo - disse em voz baixa ao agente mais novo. - Lembre-se de que só veio buscar um café.
Mas Difford, no ponto onde se encontrava, conseguia sentir a tensão do jovem. De súbito, naquele bairro tão sossegado, parecia que o mundo inteiro estava a observá-los.
O agente Travis avançou, atravessando a rua. Tardiamente, Difford apressou-se a ir à cozinha para encher uma caneca de café. Os seus olhos mantinham-se na porta que dava acesso à garagem.
Beckett desligou o telemóvel, pousando-o no chão. Nessa manhã tinha passado uma hora a imitar a voz do sargento Wilcox. O esforço fora recompensado.
Virou-se com uns movimentos um tanto desajeitados devido ao uniforme pesadamente enchumaçado. O seu ”parceiro” encontrava-se reclinado no lugar do passageiro da frente, tapado com um cobertor puxado até ao pescoço, de modo a dar a impressão de que estava a dormir. Sabendo de antemão que a luz do interior do carro iluminaria a sua figura, Beckett inclinou-se sobre o cadáver, endireitando as costas do assento para que a cabeça dele pendesse para a frente. O corpo já começava a apresentar sinais de rigidez, o que lhe dificultava a tarefa. Mas, por outro lado, Beckett estava muito habituado a manusear cadáveres. O truque estava em inclinar o corpo do homem no ponto do orifício na cintura deixado pela bala.
Beckett ergueu o olhar. Como seria de esperar, Difford encontrava-se do lado de dentro da janela da sala de estar, aguardando que o agente Travis saísse do seu automóvel.
- Farei o que puder para lhe ser útil - murmurou Beckett abrindo a porta do carro.
O som do bater à porta ecoou pela casa, embora o barulho não fosse muito intenso. Óptimo, pensou Difford. Pelo menos, o agente Travis pensava em Samantha. Aproximou-se da porta com a caneca de café fumegante que carregava na mão. Teve de resistir ao impulso que o levava a querer olhar por cima do ombro em direcção à porta que dava para a garagem.
”Mantém a calma, mantém a calma.”
- A senha - exigiu Difford através da porta trancada.
- Chove nos planaltos de Espanha.
Através do ralo da porta, Difford examinou o agente. O rapaz parecia ser muito novo, mas, por outro lado, a Difford todos pareciam jovens. Tratava-se de um sujeito corpulento que, era óbvio, estava a precisar de fazer mais ginástica. Deus lhe valesse, como é que um tipo como aquele fora destacado para a sua patrulha de reforço? Difford abriu a porta, apenas uma fresta; não estava a achar graça nenhuma.
Voltou a examinar o jovem agente, apenas por alto uma vez que ainda não desprendera a corrente de segurança. Difford não estava disposto a fazer nenhuma estupidez. O uniforme condizia, embora o rapaz ainda não tivesse nenhuma medalha de mérito.
- Identificação?
Obedientemente, o agente Travis apresentou o seu crachá. Tudo em ordem.
Difford desprendeu a corrente, estendendo-lhe a caneca de café.
- Tome lá e finja que não é nada consigo. Não se esqueça de que só veio para buscar o café. - O olhar dele percorreu tudo o que se encontrava nas imediações. Os candeeiros da rua criavam charcos de escuridão; sempre detestara candeeiros de rua. Até ao momento, nada bulia.
- Muito bem, entre.
O agente Travis entrou em casa, mostrando-se tenso e pouco à vontade sob o olhar perscrutador de Difford.
- Há quanto tempo é que entrou para a polícia?
- Há dois anos.
- Só dois anos e foi destacado para este serviço?
- Falta de pessoal. O tiroteio de Camarini e este caso estão a deixar-nos com falta de homens.
- Hum... Alguma vez esteve de vigilância a uma casa onde damos protecção a pessoas que correm perigo de vida?
- Fiz parte do caso Gingham. Foi por isso que eles me destacaram para aqui.
Finalmente, Difford cedeu. O caso de Todd Gingham correra muito mal. Pensaram que tinham um rapaz de dezanove anos que traficava em armas encurralado numa casa, em New Bedford. Os vizinhos viram-no a brandir uma arma, completamente alucinado. As forças especiais já haviam sido chamadas. Tomaram a casa de assalto com todos os meios ao seu dispor. Apesar disso, o rapaz conseguiu escapar pela porta das traseiras, tendo disparado contra uns quantos carros-patrulha. Foram precisos seis agentes e uma placagem em que o agente se atirou pelo ar para, por fim, conseguirem neutralizar a situação. Consequentemente, o agente Travis tinha estado na linha de fogo. Conseguira agir sob uma barragem de tiros, adrenalina e homens aos berros.
Difford começou a relaxar. Com um leve inclinar de cabeça, conduziu Travis para a porta da garagem.
- Deixe o café na mesa. Assuma o comando das operações. Já passei revista ao resto da casa. Se ele estiver cá, é ali que deve estar.
- Não, Difford. Ele está aqui mesmo. - O agente Travis movimentou-se com uma rapidez que Difford nunca teria pensado ser possível num homem tão gordo. Girou sobre si mesmo, levantou o braço arqueando-o e DifFord viu os olhos dele no mesmo segundo em que foi agredido com um murro violento que o outro lhe deu no queixo.
Caiu desamparado e com todo o peso do seu corpo, mas mesmo assim, conseguiu levar a mão ao coldre. Dispara, porra, dispara
O bastão apanhou-o em cheio no antebraço; atordoado, ouviu o estalar do osso que ficou fracturado. Sentiu que os dedos da mão se tornavam dormentes. O revólver saltou-lhe da mão, impulsionado pelo impacto, indo bater na parede.
Apanha-o pelos pés. Dá-lhe pontapés. Fá-lo cair por terra.
O tornozelo de Difford prendeu-se nos pés de Beckett. Puxou com força. O bastão apanhou-o na face quando Jim caiu. Escutou um zunido ensurdecedor nos ouvidos. Começou a sentir um sabor metálico na boca. Merda, aquilo escorria-lhe pelo queixo. O que teria acontecido aos seus dentes?
Apoiou o braço não lesionado no chão, começando a rastejar para ir buscar a sua arma. Mais depressa, mais depressa, mais depressa
Tess, peço desculpa. Peço desculpa.
Ouviu o roçagar de roupa, o que lhe deu a saber que Jim começava a pôr-se de pé. Chamou a si as energias que lhe restavam, obrigando-se a movimentar-se. A pistola estava tão perto, a cerca de seis metros, três metros... Se ao menos conseguisse estender a mão...
Beckett virou-se de repente, ficando de costas, para conseguir derrubar Difford que sentiu que o ar lhe abandonava os pulmões. Um par de mãos fechava-se à volta do seu pescoço começando a apertar. Debateu-se, contorcendo-se contra o chão. O mundo rodopiou em seu redor e sentiu-se a mergulhar na escuridão.
O vazio não lhe causou dores.
E teve a duração de um minuto, ao cabo do qual a pressão desapareceu. Instintivamente, os seus pulmões inspiraram, enquanto os olhos se esforçavam por ver. Numa imagem vaga, apercebeu-se de que Beckett se levantava. Viu a sua arma ser arremessada para longe com um pontapé. Beckett pegou numa cadeira da cozinha. Saiu para o corredor, prendendo-a entre o chão e a maçaneta da porta fechada do quarto de Samantha.
Foi então que Difford se deu conta do que o esperava. A cadeira dizia-lhe com toda a clareza que Beckett não queria que a filha acordasse e presenciasse o que iria acontecer.
Beckett voltou a percorrer o corredor no sentido inverso. Difford tentou impulsionar o corpo para se afastar, mas o braço partido recusava-se a mexer-se; sentiu que o sangue misturado com dentes se acumulava na garganta. Com muita dificuldade, conseguiu arrastar-se quase um metro, mas então apercebeu-se de que Beckett o agarrava pelo tornozelo, imobilizando-o por completo. Não era capaz de conter as suas próprias lamúrias.
- Tenho umas quantas perguntas a fazer-te - segredou-lhe Beckett ao ouvido. Ouviu um deslizar agreste.
A lâmina da navalha apareceu diante dos olhos de Difford.
- O sargento Wilcox foi fácil de mais - murmurou Beckett. - Alguma vez te apercebeste de que os polícias são os que menos resistência têm à dor? Passam toda a vida a estudar esse assunto, acreditando que, por terem feito isso, ficaram imunes. Pensam que é coisa que nunca lhes acontecerá.
- Filho-da-puta! - invectivou Difford, que mal conseguia respirar.
- Caladinho. Não acordes a Sam.
Difford fechou os olhos. Sentiu qualquer coisa a escorrer-lhe lentamente pelas faces. Era possível que fossem lágrimas.
- Dificulta-me a tarefa, Difford. Desafia-me. Eu quero ser desafiado.
Jim Beckett meteu mãos ao trabalho.
Beckett dirigiu-se para a sala de estar banhada pela luz fraca do luar. Começou por pegar no telefone, ligando para o agente de serviço na central.
- Bravo Catorze - disse, identificando-se. - Só para informar que está tudo normal.
- Entendido, Bravo Catorze.
- Volto a ligar dentro de uma hora - acrescentou o agente Travis cortando a comunicação.
Era uma hora da manhã. O novo turno chegaria às duas horas. Jim tinha de cumprir o horário que estabelecera a si próprio. Abriu a porta da garagem e arrastou para lá o corpo de Difford. Voltou à cozinha começando a limpar o sangue com papel absorvente. O sangue era uma substância pegajosa mais difícil de limpar do que as pessoas esperavam. Lera algures que um casal do Midwest tinha aberto um negócio que se dedicava à limpeza depois da morte. Homicídios e suicídios, eles tratavam de tudo, estando a ganhar muito dinheiro com esse negócio. Enquanto estivera na prisão, Beckett tentara escrever-lhes à procura de sugestões.
Mas, naquele momento, não tinha tempo para proceder meticulosamente. Limpou a maior parte, arrumando a mobília de modo a tapar o resto. Feito isto, despiu o uniforme enchumaçado que vestia por cima das calças de ganga e da camisola de algodão, atirando-o para dentro da máquina de lavar roupa numa divisão contígua à cozinha. Tencionava ligar a máquina antes de se ir embora. Tirou a cabeleira postiça e depois começou a remover a maquilhagem do rosto: não queria assustar Sam. Em consonância com aquela linha de raciocínio, foi procurar um boné de basebol de Difford para cobrir a cabeça calva.
Tinha-se esquecido da paixão de Difford por basebol. Se lhe tivesse ocorrido, teria assassinado o tenente com um bastão do jogo apenas pela ironia que isso teria.
Uma hora e vinte minutos; Jim começou a lavar escrupulosamente os braços e as mãos no lava-louça e só depois é que colocou a caneca de café no interior. Tinha deixado as suas impressões digitais em todas as superfícies em que tocara. Esse era o aspecto mais agradável, por agora poder ser ele próprio - já não necessitava de tentar ocultar a sua identidade. Podia dar-se ao luxo de deixar impressões digitais, cabelos e pêlos, assim como sangue, por onde diabo lhe apetecesse. Na qualidade de assassino evadido, o seu trabalho era muito mais fácil.
Por fim, dirigiu-se para o corredor, detendo-se à porta fechada do quarto de Sam. O nervosismo era tanto que sentia no estômago uma sensação absolutamente única. Como se estivesse a preparar-se para convidar, pela primeira vez, uma rapariga para sair com ele.
Esfregou as mãos nas coxas, concluindo que estava pronto.
Tirou a cadeira da cozinha com que trancara a porta; não ouvia movimento nenhum do outro lado. Difford não fizera muito barulho. Jim tinha contado com isso mesmo, uma vez que Difford haveria de tentar proteger Samantha, o que fora o caso. Girou a maçaneta e, muito casualmente, começou a abrir a porta.
A luz prateada de um raio de luar iluminava a cama como se fosse um holofote, realçando o cabelo de um louro branqueado que cobria parcialmente a face da criança.
Jim Beckett ficou a olhar para a sua pequenina com uma expressão de assombro; o amor que nutria pela filha floresceu dentro do seu peito.
As pálpebras da criança fremiram antes de abrir os olhos sonolentos e inocentes. Mas depois arredondaram-se, com o choque que sentiu. Com um dedo que premiu suavemente os lábios da garota, ele calou o grito prestes a sair.
- Sam... - murmurou.
Os olhos dela abriram-se ainda mais ao ouvir a voz dele.
- P... p... papá?
- Sim, meu amor - replicou ele sorrindo-lhe. Ela era pungentemente encantadora. Parecia uma criança perfeita.
- Voltaste.
- Claro que voltei, Sammy. Voltei para te levar. Nunca mais vamos separar-nos.
Finalmente, içou-se para fora da piscina e com as mãos sacudiu a água da pele. A luz do Sol começava a raiar acima da linha do horizonte. Deixou-se ficar por uns momentos, observando os raios solares que, de mansinho, começavam a filtrar-se por entre a folhagem do seu arbusto frondoso, banhando o jardim com a sua luminosidade.
Sabia o que tinha de fazer em seguida. Encaminhou-se para o quarto de Marion. A porta estava aberta, tal como ele esperava que estivesse. O quarto encontrava-se vazio, exactamente como ele sabia que estaria. Sentou-se na beira da cama. Passou a mão pela almofada que ela devia ter abraçado enquanto chorava até que acabara por adormecer.
Merry Berry, lamento tanto o que aconteceu.
- Eu devia ter acabado com ele - disse para o quarto silencioso. - Eu devia ter acabado com a vida dele.
Deu consigo diante do frigorífico aberto, olhando fixamente para as quatro garrafas de cerveja Carona Extra Gold. Gelada e macia quando deslizava pela garganta. Acalma os nervos... e não é isso que queres, J. T.? Qualquer coisa que sirva para te acalmar.
Qualquer coisa que faça com que esqueças porque nunca conseguiste ultrapassar o sentimento de rejeição como a Marion foi capaz de fazer.
Pensou em Tess, que ainda dormia na cama dele. Pensou na maneira como ela lhe aconchegara a cabeça entre os seus seios e lhe afagara o cabelo. Pensou na sensação que os lábios dela lhe proporcionavam quando os roçou ao de leve pela sua fronte.
Achou, irritado, que ela era uma idiota. Que diabo, talvez ambos fossem uns idiotas chapados.
A mão começou a afastar-se da garrafa de cerveja. Num passo determinado, voltou para a piscina recomeçando a nadar até ter completado mais cem comprimentos.
Quando já se encaminhava para dentro de casa, enquanto ia secando o cabelo com uma toalha, começou a ouvir a campainha do telefone. Não lhe prestou atenção. Tess apareceu ao fundo do corredor numa passada rápida que denotava urgência. Era óbvio que tinha andado à procura dele.
Depois de o ter visto no pátio, acto contínuo, os seus ombros relaxaram-se. Ele não lhe sorriu, mas também não lhe ralhou. Limitou-se a olhar para ela, que vestia uma camisola da Universidade Williams muitos tamanhos acima do seu. Sentiu um impulso quase irresistível de a abraçar.
O telefone continuava a tocar, insistente. Finalmente, ela decidiu atender.
- Sim... - Uma entoação de voz cautelosa. Os nós dos dedos de Tess ficaram brancos e o corpo começou a oscilar. Ergueu a cabeça e ele viu que os seus belíssimos olhos castanhos se dilatavam numa expressão de horror.
- A minha pequenina - disse ela numa voz que mal se ouvia. - A minha pequenina!
O telefone bateu com estrondo no chão ao mesmo tempo que ela também descaía, desamparada.
O agente especial Quincy esfregou a nuca. Pouco passava das dez e ele estivera toda a noite no local onde Difford fora assassinado. Durante os últimos três dias tinha dormido apenas oito horas e perdera quase três quilos, o que sentia no corpo.
- Diga-me qualquer coisa que seja boa.
- Finalmente, os Red Sox conseguiram ganhar um jogo.
- Tem de ser melhor - retorquiu Quincy fitando Houlihan com uns olhos congestionados.
- Lamento muito, mas não tenho mais nada de bom a dizer. Quando os agentes Campbell e Teitel chegaram para a mudança de turno às duas da manhã, depararam com o Harrison morto, baleado, no automóvel, e a casa sob protecção policial vazia. Os vestígios de sangue que foram encontrados no chão da cozinha indicam-nos que houve violência, mas ainda não conseguimos descobrir o paradeiro do corpo nem do automóvel do Difford. A Samantha e tudo o que lhe pertencia desapareceram. Além do mais, o armário das armas foi forçado e esvaziado. Não sabemos bem o que é que o Difford tinha lá dentro, mas, oficialmente, ele registou uma carabina Mossberg de calibre doze, um Smith à” Wesson de nove milímetros, a pistola regulamentar da polícia, uma Magnum Três, Cinco, Sete e, muito provavelmente, uma Smith ó” Wesson especial de calibre ponto trinta e oito. É possível que o Difford tenha acrescentado algumas surpresas a este inventário. Talvez uma caçadeira de canos serrados. Sabe bem como é que os polícias podem ser no respeitante a armas de fogo.
”Temos as impressões digitais, muito recentes, que o Beckett deixou no local do crime, além de papel absorvente com vestígios de produtos de maquilhagem, um uniforme da Polícia Estadual e um crachá da mesma polícia atribuído há quatro anos a um agente de nome Travis. O Beckett também nos deixou a peruca que usou, meias de náilon com enchimento e, sim, dois sacos de plástico cheios de mástique de um púrpura fluorescente. E também temos a mensagem que nos deixou... - Neste ponto, a voz do tenente Houlihan adquiriu uma entoação mais carregada. Acrescentou em voz baixa: - O Beckett escreveu: ”O sargento Wilcox manda os seus cumprimentos.” Há vinte e quatro horas que o Wilcox foi dado como desaparecido. A mulher estava convencida de que ele andava a trabalhar numa investigação especial, enquanto nós pensávamos que ele estava doente. É tudo o que sabemos, ainda não encontrámos qualquer sinal do corpo.
Quincy fechou os olhos com força e beliscou a cana do nariz onde sentia que a tensão se acumulara como um nó duro, fazendo pressão sobre os globos oculares, como se quisesse fazê-los sair das órbitas.
- E os vizinhos aperceberam-se de alguma coisa de anormal?
- Viram dois agentes sentados dentro de um carro que não tinha insígnia nenhuma durante a maior parte da noite. Um dos agentes dava a impressão de estar a dormir.
- Qual é a estimativa da hora da morte do Harrison? - perguntou Quincy.
- Seis horas da tarde. É provável que o Beckett o tenha baleado logo no início do turno, quando o Harrison entrou no automóvel.
- E as últimas notícias que foram recebidas do carro de vigilância foram à uma hora da manhã.
- Precisamente. O Difford comunicou com a central um pouco depois da meia-noite. Portanto, entre a meia-noite e as duas da manhã...
- Que maravilha. Chamaram a Guarda Nacional?
- Está a brincar? Qualquer pessoa que tenha capacidade suficiente para se vestir sozinha foi destacada por mim para integrar a caça ao Jim Beckett. Interditámos uma área de oitenta quilómetros quadrados. A fotografia da Samantha Williams foi enviada para todas as estações de televisão e jornais do país. Dentro em pouco, a imagem dela sairá em todos os pacotes de leite que são vendidos na porra do mundo livre.
- Já é um princípio.
- Vamos acabar por apanhá-lo, Quincy. Como diabo é que ele vai conseguir esconder uma garota de quatro anos? Não, finalmente, ele pôs um pé em falso e nós vamos dar-lhe caça ao coiro.
- Hummm... - Quincy não parecia muito convencido. Recostou-se para trás e começou a examinar o tecto branco feito de um material de má qualidade, do tipo que nas noites de pouco movimento também serviria para o lançamento de dardos, o que muito provavelmente acontecia. As luzes que se destinavam a atrair os insectos acentuavam o ressoar que sentia nas têmporas. Havia dias em que a pressão era tanta que só lhe apetecia fazer com que a cabeça desaparecesse com uma descarga de água na sanita; apesar disso, não se dispunha a mudar de profissão. Que tipo de sacana doente é que essa teimosia fazia dele? - Quer ouvir mais umas quantas ideias? - A razão por que fazia a pergunta prendia-se com o facto de a missão especial se encontrar sob a chefia de Houlihan, pelo que Quincy não queria dar a impressão de estar a puxar dos galões, sobrepondo-se ao outro. A coordenação entre as várias forças policiais nunca era fácil, até mesmo nas circunstâncias mais propícias, quanto mais quando ninguém pregara olho e o caso parecia prestes a ir por água abaixo.
- Ora essa, você é que é o Einstein. Se souber qual a fórmula secreta para apanharmos o Jim Beckett, deite-a cá para fora. Porra, o nosso departamento não consegue aguentar mais noites como esta! - O tom de voz de Houlihan tinha um cunho de azedume e mau humor que ambos partilhavam. Ao longo da sua carreira, Quincy tivera ocasião de ver oito polícias e dois agentes especiais de primeira água abatidos. Quantas vezes é que ele ouvira as armas a dispararem as suas salvas sinistras? Era uma situação que nunca se tornava mais fácil de suportar. Apesar da passagem do tempo, nunca deixava de ser menos pessoal.
- Recapitulando... sabemos que o Beckett adora a filha. Portanto, não nos parece que ela corra perigo. Assim, tem razão, devemos tirar todo o partido desse aspecto. Temos uma garota de quatro anos que é preciso manter satisfeita. O que é que as crianças de quatro anos querem?
- Quincy, sou o pai orgulhoso de dois dobermans. O que raio é que eu posso saber de miúdos?
- Humm... e eu nem sequer sei tratar de peixinhos-dourados de aquário.
- Espere aí um segundo. - O tenente Houlihan abriu a porta do gabinete e gritou: - Rich, chega aqui!
O detective da Brigada de Homicídios, um homem de meia-idade, apareceu alguns segundos depois. Também fora um dos que estivera a pé durante metade da noite, mas não fez qualquer comentário quanto a isso. Como todos os do grupo da missão especial de investigação, apresentava uma postura abatida e faces encovadas. Durante as últimas vinte e quatro horas tinham sabido que o tenente Difford e o agente Harrison haviam sido assassinados brutalmente. E o mais plausível era o sargento Wilcox ter tido o mesmo destino. Sentiam-se encolerizados. Queriam justiça, queriam vingança. As hipóteses de Beckett continuar com vida depois de ter sido capturado diminuíam exponencialmente - para grande pesar de Quincy. Continuavam a ter muito a aprender com um indivíduo como Beckett. Não fosse o facto de o preço estar a ficar demasiado elevado.
- Tens dois filhos, não é verdade? - perguntou Houlihan ao detective.
- Uma menina e um rapaz. Três e cinco anos, respectivamente.
- Esplêndido. Agora pensa como se tivesses quatro anos.
- Com a breca!
- Imagina que foste acordado a meio da noite - adiantou Quincy. - Estás cansado e mal-humorado. O mais certo é o Beckett ter sido obrigado a ir para um hotel, não?
Rich fez um aceno de cabeça antes de responder.
- Ele levou o carro do Difford, não é verdade? As crianças dormem muito bem em automóveis. Nós costumávamos andar de automóvel durante toda a noite quando os dentes começaram a nascer ao Shawn. Era a única maneira de ele conseguir dormir.
- Merda! Portanto, o Beckett, que muito possivelmente terá uma hora de avanço, pode continuar a conduzir até onde bem lhe apetecer. Mas... e pela manhã? Quando ela acordar, vai sentir-se assustada, insegura e mal-humorada...
- Happy meals - respondeu Rich sem um segundo de hesitação.
- O quê?
- A melhor forma de suborno em todo o planeta. Quando os miúdos estão embirrentos ou infelizes só precisamos de os levar a um McDonalds. O Beckett sabe cozinhar?
- Não, ele é um porco chauvinista.
- O que é um problema porque as crianças, principalmente as de quatro anos, não gostam muito de comer em restaurantes. Portanto, é bom inspeccionar todos os lugares que servem comida rápida. Ela vai precisar de comer e não há criança nenhuma que não prefira ir a um McDonald’s, a um Burger King ou similares. A publicidade que passa na televisão sobre esses lugares é uma autêntica lavagem ao cérebro dos miúdos.
- É isso mesmo - concordou Quincy com um aceno de cabeça. - Vamos arranjar um mapa para podermos calcular qual a distância que ele terá percorrido durante uma noite; feito isso, iremos a todos os lugares de comida rápida para mostrar a fotografia da garota. Posso pedir às unidades de operações no terreno que nos dêem uma ajuda.
- Por mim estou de acordo - anuiu Houlihan, conciso.
Rich foi dispensado.
- Também quero que o pessoal nos aeroportos se mantenha alerta. No LaGuardia, Logan, JFK, etc., etc. Pode tratar disso?
- É para já. Mas ele não vai tentar sair do país - retorquiu Quincy.
- Como é que pode ter tanta certeza?
- A Tess ainda está viva. Ele nunca sairá do país antes de conseguir apanhá-la.
- Não me parece. Como vai conseguir descobrir o paradeiro da Tess com uma criança de quatro anos sempre ao seu lado?
- Imagino que ele já tenha um plano. - Quincy inclinou-se para a frente. - Os aeroportos já foram alertados, tenente. O pessoal de serviço às portas de embarque dos voos internacionais tem a fotografia do Beckett desde que ele se evadiu da cadeia. Também podemos fornecer-lhes uma fotografia da Samantha, mas não me parece que ele esteja a preparar-se para fugir da capoeira, pelo menos para já. A Sam foi a primeira fase do plano. Matar a Tess Williams será a segunda.
- E depois abandonará o país... É isso?
- Não sei - admitiu Quincy.
- Não sabe? É o perito e não sabe?
Quincy deixou-se ficar em silêncio por uns momentos, dando a Houlihan tempo para respirar fundo e reflectir no que dizia. Quando o tenente conseguiu manter os punhos fechados junto das pernas, Quincy premiu algumas teclas do computador.
- Não se esqueça do padrão...
- Por amor de Deus, quero que o padrão se vá lixar! Nesta altura, o modo de agir dele adquiriu um cunho pessoal, não tem nada a ver com estatísticas.
- Ele está a recorrer aos dois. Pense, Houlihan. Ele utilizou a primeira letra dos nomes dos locais onde deixa os corpos das vítimas para os seus pequenos jogos. Dois guardas prisionais em Walpole, ”W”, Shelly Zane em Avon, ”A”, Harrison e, muito provavelmente, Wilcox, em Springfield, ”S”, o que forma a palavra ”was”. Jim Beckett era...
- O melhor - sugeriu Houlihan.
- O número um. Supremo. Pode ser muitas coisas. Mas o fulcro da questão é o facto de a frase estar por acabar. E ainda não encontrámos o corpo do Diffòrd. Tenho um palpite que me diz que ele tenciona deixá-lo algures, num local cuja primeira letra do nome lhe convenha. Talvez tenha feito o mesmo com o cadáver do Wilcox... Não saberemos até os encontrarmos. Mas o Beckett continua empenhado no seu pequeno jogo e ele costuma levar a cabo aquilo que começou. Talvez conclua os seus planos fora do país. Talvez decida interromper as suas actividades durante um ano, antes de concretizar os seus intentos. Mas sem dúvida que voltará a matar. Até conseguirmos apanhá-lo, ele não desistirá de encontrar a Tess Williams, além de perseguir outros.
O silêncio instalou-se entre os dois homens. A tensão que se apoderara de Houlihan reflectia-se nas linhas do maxilar, ao ponto de Quincy lhe ouvir o ranger dos dentes, tal a frustração que o assolava. Quincy não disse nada. Qualquer comentário agora só serviria para acender o rastilho da irritação do tenente. Deixou-se ficar à espera que ele tomasse a iniciativa.
- Eu ofereci-lhe protecção policial - continuou Houlihan abruptamente, num timbre de voz muito tenso. - Mas ela recusou. Não quer colocar-se sob a nossa protecção.
- Está a referir-se à Tess Williams?
- Sim. O Difford deixou o número de telefone em que a podemos contactar num cofre de banco. Desse modo, se lhe acontecesse alguma coisa de mal, nós podíamos informá-la. O Difford gostava de pensar em todos os ângulos, planear hipóteses para todas as contingências.
- O mais certo é o Beckett saber onde ela está - adiantou Quincy numa voz calma. - Deve ter conseguido extorquir ao Wilcox a morada da casa sob protecção policial. Sem dúvida que terá recorrido às mesmas tácticas que aplicou com o Difford.
- Sim. Que diabo de maneira de se deixar esta vida - comentou Houlihan, custando-lhe a engolir.
Ostensivamente endireitou os ombros.
- Falei com ela sem estar com meias-palavras. Dispus-me a proporcionar-lhe tudo o que estava ao meu alcance. Mas ela disse-me que a polícia já tinha feito bastante...
Quincy retraiu-se.
- Ela decidiu fazer as coisas à sua maneira.
- Deus nos valha.
- Arranjou um mercenário que tem andado a dar-lhe treino militar.
- Está a brincar! - retorquiu Quincy, incrédulo.
- Não. Decidiu que seria ela a tratar de se defender. - Houlihan tentou forçar uma gargalhada. - E alguém poderá censurá-la por isso?
- Esperemos que ela não cometa nenhuma estupidez - retorquiu Quincy com um abanar de cabeça que mostrava cansaço. - Isto é uma estupidez.
- Não és obrigado a estar aqui.
- Tess, pensa no assunto durante um minuto. O Beckett raptou a tua filha. Portanto, o que é que fazes? Vais ter com ele. Quais é que pensas que são as intenções dele?
Com uma expressão de teimosia, Tess olhava fixamente pela janela. Já passava da meia-noite e percorriam a auto-estrada do Massachusetts, seguindo a caminho de Springfield. O trânsito na estrada era bastante reduzido. A luz do luar brilhava com pouca intensidade, ao que se associava a chuva. Os limpa-pára-brisas funcionavam com o seu som ritmado e monocórdico, o único ruído que quebrava o silêncio no interior do carro de aluguer.
Sentado ao volante, J. T. sentia-se cansado e mal-humorado. Já começava a sentir a falta do sol e do deserto. Seis horas antes vestia uma camisola de algodão enquanto admirava o seu jardim. Mas agora era Rosalita que olhava pela vivenda e por Glug, enquanto ele e Tess seguiam a caminho de um estado tão frio que chegava ao ponto de ser inóspito. J. T. não gostava do Massachusetts. Boston tinha populações etnica mente representativas que eram oriundas de todo o mundo - irlandeses, italianos, chineses -, contudo, todos continuavam a ter de responder às mesmas três perguntas para poderem ser considerados verdadeiros autóctones de Boston. Os seus antepassados tinham chegado a bordo do Mayflowert Estudaram na Universidade de Harvard? Algum membro das respectivas famílias conhecia qualquer dos Kennedy?
Caso não respondessem afirmativamente a qualquer delas, o melhor era esquecerem o assunto. Podia-se viver em Boston até aos cento e cinquenta anos que, não obstante isso, nunca se seria considerado como um bostoniano genuíno.
- Tu disseste que o Beckett ama a Sam, não é verdade? - continuou J. T. insistente. - Por conseguinte, ela não corre nenhum perigo imediato.
- Não corre nenhum perigo imediato?! Por amor de Deus, ela foi raptada por um sadomasoquista, que também é um assassino em série, cujo passatempo preferido é violar e estrangular mulheres. Como é que ela poderá estar em segurança? Ele nunca lhe baterá, mas a verdade é que anda a monte. E se a polícia o encurralar? E se houver algum tiroteio? Deus me valha! O que poderá acontecer no caso de algum tiroteio?
- Tess...
- Não - interrompeu ela afastando-se de J. T. - Não me venhas com lugares-comuns!
- Com a breca... o que é que eu posso dizer agora? Ouve com atenção o que tenho a comunicar-te. Tu própria admitiste que eras o alvo principal desse Jim maldoso e perverso. Apesar disso, esta viagem está a pôr-te muito perto dele.
- Em qualquer dos casos, a polícia acha que ele sabe onde encontrar-me no Arizona.
- Sim, mas acompanhado de uma garota de quatro anos vai ser um pouco difícil para ele conseguir chegar até lá. Porra, Tess, estás a fazer exactamente o que ele quer!
- O Jim é um homem com muito expediente - retorquiu ela com um encolher de ombros. - Já deve ter congeminado uma maneira de levar os seus intentos avante. Mas agora vamos fazer as coisas à minha maneira.
- Ainda não estás preparada para isto - alegou J. T.
- Oh? Então, em que altura é que uma pessoa está preparada para fazer frente ao Jim Beckett? Depois de se ser um polícia da Brigada de Homicídios durante dez anos, vinte anos, trinta anos? Tenho muita pena, mas acontece que ele também os matou.
- Ao menos permite-me que te deixe num hotel - insistiu J. T. voltando a tentar -, enquanto eu vou à casa sob protecção policial para ver se consigo descobrir qualquer pista. Se ele deixou alguma coisa que nos indique as suas intenções, podes crer que a encontrarei. Depois, a partir daí, podemos prosseguir.
- Não! - recusou Tess, peremptória.
- Estás assim tão ansiosa por participares na acção?
- É a minha filha, o meu ex-marido, o meu problema.
- A tua morte...
Tess cerrou os maxilares.
- Tess... - continuou ele numa voz suave. - Durante quanto tempo mais é que tencionas punir-te?
- O quê?!
- Ouviste bem o que eu disse. Nos teus pensamentos existe mais qualquer coisa além do Jim Beckett e, minha querida, acho bem que deites isso cá para fora. Porque se fores procurá-lo com uma atitude de beligerância, sem ser de cabeça fria, ele come-te viva.
- Não sei de que estás para aí a falar.
- Estás exasperada - ripostou J. T.
- Ele assassinou o meu amigo! Ele raptou a minha filha!
- Não estou a referir-me ao que sentes por ele. Tu estás exasperada contigo própria.
- E por que razão é que eu devia sentir-me assim? Porque deixei a minha filha para que a pudessem levar? Porque saí do estado para que o Difford fosse assassinado em meu lugar?
- Porque a Samantha foi sequestrada enquanto tu fornicavas com um antigo mercenário, além de andares a brincar aos psicólogos com dois irmãos que só um assassino como Mason é que poderia ter amado? - terminou J. T. por ela. - Vamos lá, Tess. Tira isso do teu sistema. Põe tudo cá para fora. Bate-me, se for isso que te apetecer. Bate a ti mesma. Mas depois tenta ver as coisas com frieza e racionalidade. Porque não tenciono deixar-te sair deste carro até saber que a tua mente se encontra dedicada a cem por cento aos assuntos que é preciso resolver. Caso contrário, todos os teus esforços serão inúteis.
- Raios partam isto! - ripostou ela, desabrida. E, depois, bateu-lhe de facto. No ombro, com força. Em seguida, descarregou a fúria que a assolava no painel. Três vezes. J. T. continuava a sentir a raiva e a frustração que se haviam apoderado dela. - Eu devia ter ficado junto da Sam - murmurou Tess, sentindo-se infelicíssima. - Eu devia ter ficado junto da minha filha.
- Se o tivesses feito, também já estarias morta. Tu querias mudanças, Tess. E aqui as tens. Pára de representar o papel de mártir e aprende a fazer parte da cavalaria.
Começaram a passar por zonas residenciais nos subúrbios. J. T. deduziu que já estariam perto. Em voz baixa, Tess começou a dar-lhe indicações de como chegar à casa que estivera sob protecção policial. A maior parte das zonas residenciais das proximidades pareciam antigas, com as suas vivendas de piso único de estilo rústico, com as habituais duas janelas e uma chaminé e pouco mais. Era como viver numa caixa de cereais, pensou J. T.
Virou noutra rua. Àquela hora da noite não andava ninguém por ali. Os automóveis davam a impressão de estarem a dormir nos caminhos particulares de acesso as casas que pareciam agachadas sobre as suas fundações. Nem sequer uma única luz num alpendre que oferecesse uma réstia de conforto. J. T. olhou para Tess, que se mostrava muito pálida.
- Ainda estou muito a tempo de te levar a um hotel.
- Vai-te foder!
- Oh, sim, Tess. Não há dúvida que és dura.
Ela mostrou uma expressão carrancuda e pouco depois apontou para a vivenda como que aconchegada entre outras duas. Qual jibóia macabra, via-se a fita amarela que assinalava uma cena de crime, vedando-o a quem não fosse da polícia.
- Meu Deus! - resmungou. - Dêem-me um cacto em qualquer dia do ano.
Enfiou as mãos nos bolsos da frente das calças de ganga, curvando-se dentro do blusão de couro. Tess já saía pelo seu lado do carro, muito mais bem agasalhada para aquele clima rigoroso.
- Fica aqui - ordenou ele dirigindo-se para o passeio.
- Não. - Tess fechou a porta do automóvel e endireitou os ombros.
- Sou um profissional.
- E eu sou a cliente - alegou ela.
- Tess, só servirás para complicar as coisas e para atrapalhar. Portanto, volta para dentro do carro.
- Ele já se apoderou da Sam - retorquiu ela com uma expressão rebelde, olhando-o fixamente. - Como é que as coisas podem ficar mais complicadas?
- Podem e muito - replicou ele sem estar com rodeios. Continuou a mantê-la imobilizada, encostando-se mais a Tess. Como ela tinha aprendido! Era espantoso. Não se mostrava atemorizada, nem se retraía perante o perigo. Os olhos castanhos mantinham-se firmes. Ultimamente, era uma autêntica lutadora. Marion sentir-se-ia orgulhosa se a visse.
- O Beckett não é nenhum fardo de palha, Tess - observou J. T.
- Sei que não. Senti alguma piedade pelos fardos de palha, mas pelo Jim não sinto nenhuma - retrucou ela, empurrando-o com força, mas o corpo dele não cedeu.
- Para dentro do carro.
- Nem pensar - ripostou Tess, recalcitrante. Voltou a empurrá-lo e, enquanto ele firmava o corpo opondo resistência àquele esforço tão débil, ela esgueirou-se por baixo do braço dele. Passo, reviravolta e estava livre, começando a caminhar num andar apressado fora do alcance dele e esboçando um sorriso sarcástico. - Tens de admitir que estou a ficar muito mais capaz.
- Isto não é nenhuma brincadeira - comentou ele com uma expressão de censura. Queria que ela ficasse no automóvel. Queria que ela estivesse num lugar qualquer onde não tivesse de se preocupar com a sua segurança.
- Achas realmente que ele está aqui? - perguntou Tess encaminhando-se para a porta da frente. - Ele já conseguiu apoderar-se daquilo que veio buscar.
- Não me apetece correr riscos desnecessários. - J. T. reflectiu por uns momentos se devia dar-lhe um soco que a deixaria inconsciente para poder metê-la dentro do porta-bagagem até ter acabado aquilo que o levara àquela casa. Seria uma boa lição para ela, que estava a comportar-se de uma maneira irresponsável.
- Ele tem a Sam - repetiu ela num tom desapaixonado. - Vai ter de se manter junto dela durante a noite.
- Ou, então, tratará de encontrar uma loura deslumbrante que olhe por ela em lugar dele - adiantou J. T.
Tess deteve-se a pensar. J. T. apercebeu-se de um ligeiro tremor que lhe agitou o corpo. Apesar disso, Tess ergueu o queixo numa atitude voluntariosa. O vento soprava atrás dela, levando às narinas de J. T. o cheiro a chuva. Os raios de luar acentuavam as tonalidades acobreadas do cabelo de Tess, acariciando-lhe a fisionomia em forma de coração.
- Deus seja louvado... - murmurou, desviando o olhar. Ela estava maravilhosa, deslumbrante e não queria ver isso... uma vez que não sabia o que faria a coisas deslumbrantes e maravilhosas. Apesar dos seus trinta e seis anos de idade, a sua vida continuava condicionada por padrões antigos, seguindo em direcção ao mesmo fim amargo. J. T. odiava isso. - Trouxeste a tua arma?
- Sim - respondeu Tess, que agora parecia abalada.
- Então, trata de a empunhar.
- Achas que ele está ali dentro?
- Tira a merda da arma para fora! Queres brincar aos soldados? Então, fica sabendo que os soldados não questionam as ordens que lhes são dadas. Fazem como lhes dizem. Estás a perceber?
- Sim, senhor.
- É melhor que acredites nisso. - Sacou do revólver, destravando o mecanismo de segurança. Engatilhado e em posição de disparar, a única maneira como um fuzileiro fazia a sua entrada. - Vem atrás de mim e age como eu te disser. Não faças barulho e não te afastes. Se me desobedeceres uma única vez que seja, eu próprio dispararei contra ti.
- Sim, senhor.
- Sabes o que é um relógio?
Ela olhou-o com uma expressão exasperada que, claramente, afirmava que sabia muito bem o que era um relógio.
- Óptimo - acrescentou ele ignorando a atitude dela. - Se acontecer alguma coisa de inesperado, as coisas funcionarão assim: és responsável pela posição entre as seis e as doze, enquanto eu cubro a das doze às seis.
- Estás a referir-te... estás a referir-te a disparar, não é verdade?
- Bom... se achares por bem, podes apertar-lhe a mão; todavia, eu não recomendaria essa abordagem.
- Está bem, está bem - apressou-se ela a dizer.
O mal-estar voltara a apoderar-se dela. Mas, então, afastou a preocupação do rosto, endireitou os ombros, o pequeno soldado cheio de valentia. Ela estava a dar cabo de J. T.
- O carro - tentou ele uma última vez.
- Não - respondeu ela, determinada.
- Filha-da-puta teimosa!
- Sim. Vamos ficar aqui a falar toda a noite ou vamos resolver o que aqui nos trouxe?
- Como queiras - retorquiu ele, irritado. - Mas depois não digas que não te avisei.
- Não te preocupes. Dou-te autorização, incondicionalmente, para mandares gravar ”J. T. tinha razão” na minha pedra tumular.
- Está bem... obrigadinho. É com ansiedade que vou ficar à espera desse momento.
Muito bem, meu Deus, negociou despudoradamente em pensamento. Tens a Marion. Já tens a Rachel. Também tens o Teddy. O cancro da próstata do coronel foi um toque muito simpático e poético, embora tenha chegado com um atraso de trinta anos. Dá-me a Tess. Só Te peço que me deixes ficar com esta. E depois, se Tu estiveres de acordo, estou disposto a dizer que estamos quites. Acho que é um negócio muito bom.
Não recebeu qualquer resposta à sua proposta, mas, por outro lado, a verdade é que nunca obtinha resposta. Esboçou um sorriso sinistro.
- Vamos entrar.
Tess sentia-se como se fosse uma actriz substituta, pouco empenhada em decorar o seu papel.
O feixe de luz continuou sem dar tréguas a nada. As paredes iluminavam-se sempre que o feixe incidia sobre vários resíduos químicos. Quando ergueu o olhar, J. T. viu que a luz lhe permitia distinguir vários pontos escuros que descreviam uma linha curva pelo tecto, como se fosse um arco-íris. O padrão deixado por espargimento. Um indicador de agressões violentas com um objecto que não era aguçado, um objecto de madeira que podia ter sido o tronco do ramo de uma árvore, o cabo de uma esfregona ou um bastão de basebol.
Tess estava a sentir muito mais dificuldades em respirar. Apertou os olhos com força, imaginando Sam. Estás a fazer isto pela tua filha. Tens de ser forte por causa da tua filha.
- Não te vás abaixo - rosnou-lhe J. T. ao ouvido. Continuou em direcção à sala de estar.
Depois de ter respirado fundo, Tess seguiu-o. Ali havia menos confusão. O mobiliário dava a impressão de ter sido arrumado de novo, e apressadamente, por polícias que procuravam provas. Faltavam vários quadrados de alcatifa que haviam sido cortados a fim de serem enviados para os laboratórios. No entanto, era evidente que o acontecimento principal tivera lugar na cozinha. A sala de estar apresentava apenas alguns resíduos do que se passara.
- Deixa-te ficar aqui - disse J. T., sucinto. - Vou passar uma vista de olhos pelo resto da casa.
- E quanto às minhas responsabilidades entre as seis e as doze?
- A parede é a única coisa que permite que continues de pé. Não me parece que devamos forçar as coisas. - Sem dizer mais nada, J. T. começou a percorrer o corredor levando a lanterna. Tess firmou o aperto na [coronha da arma entre as palmas das mãos todas suadas. Cautelosamente, [começou a afastar-se da parede. Disse a si mesma que não ia vomitar, tal como não iria desfalecer. Recusava-se a sentir temor. Ia, isso sim, ser forte, ia ser dura.
Jim aproximou-se furtivamente por trás dela, enfiando-lhe um saco de plástico pela cabeça abaixo.
- Theresa - sussurrou-lhe ao ouvido. - Estou a ver que respondeste ao meu convite. E, pelo que me parece, trouxeste o teu mercenário para eu o matar.
Beckett. Mas como?
Apertou o dedo à volta do gatilho da sua pistola de nove milímetros, rolando sobre si mesmo e apoiando-se sobre a parte dianteira dos pés, precisamente no momento em que ouviu o som cortante de um bastão a ser desferido no sentido descendente. Saltou para o lado e disparou dois tiros. O bastão acertou com um impacto violento na cómoda.
Rodando a cabeça, J. T. avistou a sua arma. Atirou-se ao comprido. Simultaneamente, Beckett ergueu o bastão.
Rebolar e disparar, tal e qual como num treino de tiro, com a excepção de Beckett não ser nenhum alvo de cartão e de tudo aquilo ser muito a sério.
Recuou o dedo com toda a determinação, uma, duas, três vezes e, através do zunido com que ficou nos ouvidos, ouviu Beckett inspirar sofregamente. Apesar disso, voltou a levantar o bastão.
- Merda!
O bastão elevou-se.
Não havia mais tempo para poder pensar. A partir de então, tudo tinha o cunho da adrenalina. Tudo se relacionava com a raiva. E J. T. sentia muita raiva a acumular-se dentro de si.
Os seus lábios arreganharam-se. Encostou o braço ferido às costelas enquanto dava um forte chuto com o pé esquerdo. Acertou em cheio no joelho de Beckett, após o que ouviu o grunhido que o outro homem soltou ao ficar sem fôlego, sentindo que a sede de sangue aumentava.
Voltou a atacar, atingindo um estômago musculado semelhante a uma pedra. Depois de uma rotação rápida de trezentos e sessenta graus, voltou a desferir um golpe com o pé, acertando na parte superior do braço de Beckett. O bastão caiu para o chão. J. T. preparou-se para o assalto fatal.
Todavia, no preciso momento em que se atirava para a frente, Beckett conseguiu prender o pé entre os seus e J. T. saiu disparado a voar pelo ar. Caiu com grande violência, com as mãos demasiado entorpecidas para poderem amortecer o tombo. Sentiu que os pulmões ficavam privados de oxigénio quando o ar foi expelido numa lufada repentina e dolorosa, e que tinha o peito cheio de formigas em brasa.
Continuou a movimentar-se; o instinto gritava-lhe: Rebola, rebola, rebola ou morres.
Com muita dificuldade e a cambalear, conseguiu pôr-se de pé, tentando descobrir qual a posição de Beckett. Sentia que o mundo andava à volta, causando-lhe tonturas. Não era capaz de manter o equilíbrio. Também não conseguia encontrar o revólver.
Merda!, estava metido num grande sarilho. Concentra-te, porra, concentra-te
Por fim, o olhar toldado de J. T. conseguiu encontrar Beckett, uma sombra alta e extremamente pálida que tinha a aparência estranha de um fantasma. Precisou de um minuto para compreender porquê. Beckett, completamente calvo, não tinha um único cabelo na cabeça, nem quaisquer pêlos nas sobrancelhas. Dava a impressão de que os olhos se haviam encovado no rosto, ficando mais pequenos e penetrantes devido à ausência das sobrancelhas que teriam servido para os suavizar. Uma cabeça de serpente... era o que ele parecia.
Os dois homens olharam-se fixamente.
- A Theresa... - começou a dizer com ar casual quando já tinha passado uma perna por cima do peitoril.
- Por esta altura, parece-me que já não lhe restará oxigénio para respirar.
- Grande idiota! - acrescentou Beckett sorrindo, sarcástico. - Ela foi minha durante vários anos. Portanto, posso dizer-te que ela não vale os teus esforços.
- És um homem morto! - ripostou J. T.
- Ela é minha. Se a ajudares, também passarás a ser meu. Só tens de perguntar ao Difford quando voltares a vê-lo. - Com estas palavras, Beckett desapareceu saindo pela janela, e não havia nada que J. T. pudesse fazer que não custasse a vida de Tess. Apanhou a arma que estava caída no chão e, com o braço esquerdo encostado às costelas, correu para a sala de estar.
Deparou com Tess algemada à mesinha do café com um saco de plástico transparente enfiado na cabeça.
- Tess, Tess, acorda, vamos lá, acorda!
A cabeça dela pendeu para o peito.
Era preciso que saíssem dali. Naquele momento.
- O Jim... - proferiu Tess numa voz enrouquecida que mal se ouvia. Os olhos tinham uma expressão vidrada.
- Ele foi-se embora. Mas é possível que volte. Consegues andar?
- Eu tentei atingi-lo. Levantei a arma, mas...
- Não fales, tenta recompor-te. Vamos lá, Tess. - J. T. levantou a mesinha do café, passando a outra metade das algemas pela perna, libertando-a e arrastando-a até a pôr de pé. Tess encostou-se pesadamente a ele, continuando a respirar com dificuldade.
- Muito bem. Já estás a respirar. Vou começar a correr e cá vamos nós.
Puxou-a pela porta da frente para que saísse e foi como se a noite os esbofeteasse, qual mulher vingativa, gelada ao ponto de sentirem picadas nas faces.
Corram, parecia sibilar uma voz aos ouvidos dos dois.
- Ele morreu.
Marion desviou o olhar das chamas hipnotizantes que lhe haviam dado um rosado invulgar às faces. Sentava-se na beira de um banquinho forrado a pele branca. Couro italiano, de muito boa qualidade. Fora ela própria a escolhê-lo, assim como o sofá e a otomana a condizer. Eram peças que se enquadravam bem na decoração da sala, um pormenor minimalista em pele branca e vidros sem moldura. Sempre gostara daquela sala na sua casa geminada numa zona residencial para os mais abastados da Virgínia.
No entanto, depois dos tons cálidos de terra, verdes luxuriantes e os vermelhos do Arizona, achava que o branco era esmagador. E isso deixava-a ressentida.
- Ouviste o que eu te disse? - Roger estava junto da ombreira da porta, muito hirto, como se não soubesse se seria seguro entrar ou não. Ela fitou-o com frieza, sem mostrar o mais pequeno indício que pudesse ajudá-lo a decidir-se.
- Ouvi muito bem - retorquiu ela, bebendo de um só trago o resto do conhaque que até então tomara em pequenos goles.
- Pensei que numa altura destas quisesses ter estado à beira dele.
- É óbvio que não consegui chegar a tempo.
- Estás a sentir-te bem, Marion? Não me pareces... - A voz dele esmoreceu. A fisionomia reflectia uma preocupação genuína. Ela odiava aquela manifestação de pesar.
- Volta para a tua empregada de bar, Roger. Não preciso de ti aqui.
Ao contrário do costume, ele não lhe deu ouvidos. Em vez disso, entrou na sala de estar.
- E esta, Roger! - exclamou Marion arqueando uma sobrancelha. - Não me digas que a tua espinha dorsal se endireitou durante a minha ausência!
O semblante dele foi atravessado por um espasmo que acusava o golpe.
- Sei que este período tem sido difícil para ti, Marion - tentou ele corajosamente.
- Poupa-me.
- Compreendo que nesta altura deves estar a sofrer muito. Não posso continuar a ser o teu marido. Lamento muito. Mas pensei... pensei que poderia continuar a ser teu amigo.
- E por que razão é que eu precisaria de um amigo?
- Sei que o amavas - continuou Roger numa voz enrouquecida. - Eu também o amava, Marion. Ele era meu amigo, o meu mentor... Já comecei a sentir a sua falta. - A emoção espelhava-se-lhe no rosto. Antes que ele tivesse tempo para controlar as suas emoções, ela avistou o brilho de lágrimas sinceras.
Com uma expressão abstracta, ficou a olhar para ele. Também devia estar a chorar. Devia sentir tristeza e desgosto. Mas não sentia nada, como que se o que corresse nas suas veias fosse gelo, acabando por se congelar numa massa sólida no seu estômago. A partir da penúltima noite, a única coisa que sentia era uma emoção revestida de frieza.
Porque, por vezes, quando essa massa se fendia, via coisas que não queria ver, ainda que apenas de relance.
Roger avançou. Estava muito bem e com um ar distinto no seu fato completo; a luz que vinha do lustre de cristal reflectia o cabelo castanho-dourado e as feições correctas. O homem nascera em berço de ouro, sendo o epítome da elegância, refinamento e classe.
A primeira vez que Marion tinha visto Roger, vestia um vestido branco de um tecido diáfano e, num passo lento, descia a imponente escadaria em arco da residência dos pais, fazendo uma entrada teatral aquando da festa do seu décimo oitavo aniversário. Roger estava ao lado do coronel, envergando o uniforme militar de gala, olhando-a com uma expressão hipnotizada, enquanto a luz do lustre se reflectia no metal das medalhas que ostentava no peito. Supostamente, o olhar dela devia abranger todos os que se encontravam presentes, qual grã-duquesa que concedesse um privilégio real. Ao invés, limitara-se a concentrar o olhar em Roger. Imaginara que ele era o príncipe encantado que viera buscá-la para a levar para longe.
Se agora ele a enlaçasse nos seus braços, conseguiria fazer com que as imagens desaparecessem? Poderia ele salvá-la do gelo que estava a consumi-la?
Estou perdida dentro de mim mesma e ninguém consegue ouvir-me a chorar.
- Marion...
- Vai para casa, Roger. Não te quero aqui.
- Não é aconselhável ficares sozinha...
- Porra, vai para casa! Se não fores já para casa, vou telefonar à tua doce empregada de bar, dizendo-lhe até que ponto é que tu és realmente forte e valente! Sai imediatamente da minha casa! Sai da minha sala de estar. Vai brincar ao afilhado amargurado na tua própria casa!
Ele mostrava-se bastante combalido. Marion deu um passo em frente e ele retraiu-se recuando. A sua fisionomia reflectia uma grande amargura e a expressão nos seus olhos era acusadora; não precisava de mexer os lábios para que ela soubesse o que pensava.
Marion fria e sem sentimentos; a Marion frígida.
Por seu lado, ela recordava-se da vida partilhada pelos dois após um casamento de sonho. Recordava-se da ocasião em que, estando na casa de banho a lavar a cara, ele abrira a porta de rompante, entrara e, para grande assombro dela, abrira o fecho de correr da braguilha, começando a urinar na sanita. Ele olhara-a fixamente numa atitude de rebeldia. ”Depois de cinco anos de casamento, no mínimo, devíamos ter o à-vontade suficiente para mijarmos diante um do outro, Marion. Quero que entre nós exista essa espécie de intimidade” Ela limitara-se a fitá-lo, incapaz de ocultar o horror e a náusea que se espelhavam no seu semblante. Ele não voltara a repetir aquilo.
- Como queiras - disse Roger, que com uma expressão austera recuou até à porta. - Vou-me embora, uma vez que é isso que desejas.
- Quantas vezes é que tenho de te dizer que vás?
Ele abriu a porta, mas deteve-se o tempo suficiente para abanar a cabeça.
- Sempre foste muito reservada, Marion - acrescentou em voz baixa. - Mas não me lembro de alguma vez teres agido com tanta crueldade.
- Acontece que estou a ficar mais sensata.
- Não peques pela sensatez, Marion. Não te restam muitos amigos... apenas a Emma, que, aliás, desprezas, e o J. T., que odeias.
- A Emma não regula bem da cabeça e o J. T. é um bêbedo. Estou-me rigorosamente nas tintas para os dois.
- O J. T. é um bêbedo?!
- Sem sombra de dúvida! - respondeu ela categórica e com frieza. O menino bonito que Roger era desde sempre se sentira fascinado pelo irmão de Marion, e ainda mais fascinado pelo desdém que J. T. nem sequer tentava disfarçar.
- Foi por esse motivo que ele não voltou a casa do pai?
- Tenho a certeza que sim. Ele vai ter de enfrentar o problema, Roger. O meu irmão já não é nenhum rebelde fascinante. É, muito simplesmente, um alcoólico. E onde quer que ele esteja neste momento, tenho a certeza de que a tequila tem o nome Gold no rótulo.
O quarto de motel era em tons de castanho, castanho cor de merda. Chão castanho, camas castanhas e cortinados castanhos. Aquele quarto não teria agradado nem sequer a um caixeiro-viajante. Todavia, Tess pensou que era bastante adequado.
Telefonara ao tenente Houlihan para o pôr a par do que acontecera. O alerta geral difundido pelas forças policiais que procuravam Jím Beckett havia sido actualizado de acordo com as informações relativas à última vez em que fora visto, o que deu origem a que a procura se intensificasse ainda mais. O tenente queria que ela voltasse à base. Mas Tess não estava a ver que vantagens é que isso teria. Tornariam a colocá-la numa casa sob protecção policial onde teria de se limitar a esperar, tal como esperara durante dois anos e meio. O rato encurralado pelo gato, vivendo cada dia à espera que ele, finalmente, decidisse atacar. Não conseguia ficar durante mais tempo naquela expectativa atroz.
Estavas decidida a ser tão firme. Em vez disso, caíste direitinha na cilada que o Jim te armou.
Do saco de viagem tirou uma camisola grossa de lã. Tinha as mãos a tremer tão descontroladamente que precisou de fazer várias tentativas para conseguir vesti-la. Continuava a ouvir o bater dos dentes por causa do frio implacável que sentia.
Onde é que a Samantha está? Estará ela a perguntar por ti neste preciso momento? Estará toda encolhida a interrogar-se sobre o motivo por que não foste salvá-la}
Por que razão não salvaste a tua filha?
A noite estava demasiado escura. O quarto estava demasiado vazio. A verdade abateu-se sobre ela e não havia maneira de poder escapar-lhe: falhara em relação à filha quando esta mais precisara dela.
Naquele momento, J. T. entrou no quarto. Fechou a porta com estrondo, quebrando o silêncio.
- Estás bem?
- Não - respondeu Tess com rispidez.
- Bebe um copo de água. - Enquanto perguntava, enfiou-lhe um copo de plástico na mão. - Bebe tudo. Vê se te recompões. Precisamos de um novo plano de acção.
Por fim, ela olhou para ele enquanto se sentava a uma mesa castanha de muito mau gosto. J. T. aproveitara para comprar cigarros quando fora buscar gelo, e acendeu um. Servia-se apenas de uma mão. A outra continuava encostada às costelas.
- Estás magoado.
- Estou bem - retorquiu ele.
- Mas o teu braço...
- Sabes como tratar uma fractura óssea?
- Nem por isso. O meu pai costumava levar-me sempre, a mim e à minha mãe, ao serviço de urgência para podermos dizer ao pessoal médico, gente ingénua, que tínhamos caído pelas escadas abaixo.
- Pois bem, devo dizer-te que não vamos a nenhum serviço de urgência. Estou óptimo.
Tess desviou o olhar. O fumo acre do cigarro causava-lhe ardor nos olhos. Sentia no peito o nó quente e salgado das lágrimas, mas não era capaz de chorar.
Samantha. Difford. Que mais é que vais permitir que o Jim te tire?
- Consegui disparar contra ele - disse J. T. por fim. Os olhos de Tess arregalaram-se. - O Jim e eu tivemos um pequeno desaguisado no quarto das traseiras. Ele levou o bastão de basebol e eu levei a pistola. Na próxima vez, tenciono deixar a nove milímetros em casa e levar uma metralhadora Kalashnikov automática.
- E ele ficou ferido com gravidade?
- Não - respondeu J. T. numa voz que exprimia a fúria que sentia. - Provavelmente, ficou apenas com um ferimento superficial. Do que tenho a certeza é que isso não lhe atrasou os movimentos por aí além.
- Não consigo compreender por que motivo ele estava lá - murmurou Tess, pensativa. - O que o terá levado a voltar à casa e onde é que a Sam ficou?
- Ele voltou por tua causa, Tess. Planeou as coisas como se fosse uma venda de dois artigos pelo preço de um... apoderar-se da filha e matar a ex-mulher.
- Mas de onde é que ele terá vindo? - perguntou ela continuando a falar em voz baixa. - Num momento eu estava sozinha e no seguinte...
- Cometi um erro - admitiu J. T. contraindo os músculos do maxilar. - Não me certifiquei de que o perímetro estava bem protegido, tal como não passei revista à casa antes de te deixar sozinha. Mas a verdade é que nunca esperei... Bem, fiz asneira. Tão simples quanto isso.
- Não podias adivinhar - disse Tess.
- Mas devia ter previsto que isso pudesse acontecer.
- E agora... o que é que fazemos?
- Vamos dormir. Comer. Pela manhã, fazemos uma avaliação da situação.
Uma vez mais, um silêncio feito de tensão abateu-se sobre o quarto. Tess ligou o televisor para quebrar o silêncio. A primeira imagem que viu foi o rosto de Sam.
- Samantha Williams foi raptada na madrugada de ontem de uma casa que se encontrava sob protecção policial, em Springfield. O pai da menina, Jim Beckett, um assassino em série previamente condenado, já matou dois agentes de polícia; o homicida é perigoso e pensa-se que anda armado. Samantha tem quatro anos e veste um agasalho de Inverno cor-de-rosa, tem cabelos louros e olhos azuis. Quem tiver qualquer informação sobre o paradeiro de Samantha poderá ligar para o número de emergência que indicamos em rodapé.
”Uma vez mais, alertamos para o facto de Jim Beckett ser um homem perigoso, pensando-se que está armado, pelo que não deve ser abordado pelo público em geral. Faz-se frequentemente passar por agente de polícia ou guarda de segurança. Neste momento, a polícia, com a ajuda do FBI e da Guarda Nacional, está a passar a área em que o sequestro teve lugar a pente fino. Beckett evadiu-se há três semanas de um bloco de segurança máxima da penitenciária de Walpole, depois de ter assassinado dois guardas prisionais...
Tess não era capaz de afastar os olhos do ecrã. Apresentavam uma das fotografias de Samantha antes de ter começado a frequentar o jardim-escola. A garota olhava por cima do ombro com um sorriso que mostrava os dentes, os olhos azuis com uma expressão radiante e os cabelos louros presos em dois rabichos encaracolados nas pontas. Tess caiu de joelhos.
- Deita tudo cá para fora - aconselhou J. T. atrás dela numa voz calma. - Deixa sair tudo o que te vai na alma.
Mas ela não conseguia. Não era capaz de chorar. Não era capaz de gritar.
O que tencionas fazer, Theresa? Opor-me resistência: Ambos sabemos que és fraca de mais para isso.
- Não te deixes ir abaixo, Tess! - pediu J. T. num tom de voz um pouco mais desabrido. - Respira fundo. Se isso te ajudar, concentra-te na alcatifa.
És fraca e estúpida. Nem sequer foste capaz de fazer frente ao teu pai. O que fazias tu quando ele batia na tua mãe? Ficavas a ver? E o que é que fazias quando ele te batia? Esperavas!
- Tess, raios partam isto tudo, não faças isso! - J. T. agarrou-a pelos ombros, começando a abaná-la.
Durante uns momentos, ela oscilou como se fosse uma boneca de trapos. Parecia não ter forças. Não possuía massa corporal, nem músculos, nem ossos. Não tinha espírito.
- Tess? - chamou J. T. em voz baixa, mas nitidamente exasperado. - Minha querida, por favor...
A represa cedeu. Ela começou a chorar convulsivamente, sentindo a garganta a arder e os ombros sacudidos pela violência do choro. Tantas lágrimas de mágoa. J. T. sentou-se ao lado dela em cima da alcatifa de um mau gosto execrável. Passou o braço em bom estado pelos ombros dela, aninhando-a junto ao peito. Ela chorou com a cara encostada à camisola de algodão, lágrimas grossas que chegaram à pele dele e fizeram com que Tess se sentisse ainda pior. Ele passava-lhe a mão pelos cabelos.
- Acalma-te, vê se te acalmas. Estou aqui para te ajudar. Minha querida, vamos conseguir encontrar a Samantha. Prometo-te que haveremos de conseguir encontrar a Sam.
Mas ela chorava ainda mais sentidamente. J. T. começou a embalá-la junto do seu corpo.
- Não te reprimas, minha querida, chora à vontade. Sei o que estás a sentir - J. T. continuou a murmurar palavras de conforto, falando com a boca junto do cabelo dela. Tess encostou ainda mais o corpo tremente ao dele.
Abraça-me, abraça-me, abraça-me. Nunca mais me deixes ir.
- Eu sei o que sentes - continuava ele a sussurrar. - Compreendo bem o que sentes.
- Devias pôr gelo no braço - sugeriu Tess uma hora depois.
Ela tinha chorado e J. T. fumado. Agora, os dois estavam sentados na beira da cama demasiado mole, mostrando bem aquilo por que ambos haviam passado nos últimos tempos.
- Posso... posso ver?
Ele encolheu os ombros cerrando os lábios à volta do cigarro fino de papel branco. O fumo acre fez com que ela sentisse ardor nos olhos.
- Podes deixar de fumar?
- A troco dos meus cuidados de saúde - negociou ela.
- Pensei que não tinhas grandes conhecimentos de primeiros socorros.
- O suficiente para saber que não devo fumar, portanto, estou mais bem qualificada do que tu.
- A mesma Tess farisaica de sempre - murmurou.
Ela ignorou o comentário, ajoelhando-se na alcatifa castanha defronte dele. J. T. abriu os joelhos, permitindo que ela se aproximasse mais. As coxas dele roçaram pelos ombros dela. Tess colocou os dedos no braço magoado ouvindo a respiração arfante.
Ela já lhe dissera a verdade. Não tinha a mínima noção do que estava a fazer. Em casa da mãe, Tess aprendera a aplicar maquilhagem para disfarçar arranhões e nódoas negras e não mercurocromo. Aprendera a tratar de ossos quebrados com mentiras cuidadosamente ensaiadas que eram ditas aos que lhe prestavam cuidados de saúde. Também aprendera a fazer de conta que a maior parte dos espancamentos não doía.
Naquele momento examinava a lesão no braço de J. T., sem saber o que fazer. O antebraço esquerdo parecia estar inflamado; com uma cor vermelha de beterraba, inchado e muito quente ao toque. Ela arriscou-se a levantar o olhar; os seus dedos continuavam pousados ao de leve na pele dele, cuja face empalidecera, o lábio superior encimado por uma fiada de gotas de suor. Ela apercebia-se de que J. T. mordia o interior das faces para evitar soltar qualquer som.
- Acho que precisas de ser visto por um médico a sério - disse ela com muita calma.
- Faz o que puderes, Tess. Caso contrário, eu próprio tratarei do braço à maneira antiga.
- Amputação?
- Uísque - respondeu J. T.
- Oh... - fez ela, deixando cair algumas pedras de gelo para cima de uma toalha turca que colocou no braço dele numa tentativa para diminuir o inchaço. J. T. conseguia mexer um pouco os dedos da mão, mas não muito. Isso significaria que o braço não estava fracturado, tendo sofrido apenas uma contusão grave, ou quereria dizer algo mais perigoso? Tess não fazia a mais pequena ideia.
Finalmente, decidiu dar-lhe duas aspirinas que tirou da carteira.
- Só duas? O meu braço foi pulverizado por um bastão de basebol e dás-me duas aspirinas?
- Tens razão. - Tirou seis comprimidos. Ele engoliu todos de uma vez levando a mão à boca.
Tess sentou-se na beira da cama de casal, de um tamanho enorme, com os joelhos perto dos dele. Ambos tinham passado por muita coisa, mas nenhum dos dois sabia como traduzir isso por palavras. Ela havia-se deitado com ele, mas não sabia como pedir-lhe que a abraçasse. Tess chorara no ombro dele, todavia, não sabia como proporcionar-lhe algum conforto.
- Vais ficar a olhar para mim durante toda a noite?
- Talvez - respondeu Tess.
- Estás a fazer-me arrepios.
- Por que motivo viemos para um motel? Porque é que não fomos directo à polícia?
- Exactamente por isso... Por serem a polícia - respondeu J. T. depois de uns momentos de reflexão.
- Isso quer dizer que não confias neles?
- Não, calculo que não. O diabólico e perverso Jim parece saber como andar em círculo à volta deles. Acho que ficamos melhor por nossa conta.
- Tens o braço todo escavacado e foi por um triz que eu não morri. Importas-te de repetir o que acabaste de dizer?
- E ambos estamos vivos para podermos contar o que nos aconteceu. Portanto, até agora, isso dá-nos um bom avanço sobre a polícia.
- J. T, ele tem a minha filha.
- Havemos de acabar por encontrá-lo.
- Como? - perguntou Tess, desesperada, apercebendo-se do tom de histeria que transparecia da sua voz. - Vamos pôr um anúncio nas páginas amarelas? Vamos ler as folhas do chá?
- Não sei - admitiu J. T.
- Não sabes?. - Naquele momento, ela falava-lhe aos gritos, embora não tivesse sido sua intenção fazê-lo.
- Tess, não sou nenhum super-homem! Foda-se! Não possuo resposta para tudo. Estou a tentar acompanhar os acontecimentos tão depressa quanto me é possível - retorquiu J. T. tirando outro cigarro do maço para logo a seguir o partir acidentalmente em dois. - Merda! - exclamou num desabafo, tirando outro cigarro. - Que horas são?
- Três da madrugada! Há mais de vinte e quatro horas que ele tem a minha filha. Vinte e quatro horas e continuamos sem pista nenhuma!
- Sabemos que ele anda por esta área. Forçámo-lo a correr um risco quando voltou ao local do crime. Mais cedo ou mais tarde, o homem acabará por fazer asneira.
- Oh, mas que bela estratégia - observou Tess, sarcástica. - Há três anos que a polícia anda a utilizá-la e com tanto sucesso...
- Como queiras, Tess - ripostou J. T. numa voz cheia de frieza. - O que é que sugeres que façamos?
- Eu... eu... - Não sabia o que dizer. Só queria ver Jim morto. E também queria voltar a ter Samantha nos seus braços. Fechou os olhos. Respirou fundo e passou os dedos pelo cabelo. Subitamente, sentia-se demasiado exausta para poder raciocinar. A dor era demasiado profunda. Sentia umas dores de cabeça lancinantes e J. T. tinha toda a razão: ele não era nenhum super-homem. Ela era idiota e estava a ser disparatada por esperar tanto dele.
Aprendeste a defender-te sozinha. Tens de ser forte. Tens de chamar a ti toda a tua coragem para conseguires reaver a tua filha. Tess pôs-se de pé estendendo a mão a J. T.
- Vamos para a cama.
- Bem, minha doçura, vou tentar fazer tudo o que estiver ao meu alcance, mas até mesmo os meus talentos ficam limitados pela incapacidade de um braço - disse ele com ironia.
- Não te pedi que fodesses comigo - ripostou ela sem estar com meias-palavras. - Sei que não estás suficientemente irritado para fazer isso.
Os olhos negros de J. T. arredondaram-se, para logo a seguir se estreitarem perigosamente.
- Se eu fornico contigo por estar encolerizado, então, porque gostas tanto de mim?
- Luxúria. Pura luxúria. Não é isso que queres ouvir?
Ele não lhe deu réplica. Também não aceitou a mão que ela lhe estendia. Tess fez um aceno de cabeça, desgostosa perante a atitude de ambos. Por que razão não seria ele capaz de compreender que, para uma mulher como ela, nunca se trataria apenas de simples luxúria. Até mesmo quando ela desejava que fosse esse o caso.
Agarrou-lhe a mão direita porque sabia que ele jamais pegaria na sua e, com um safanão, obrigou-o a levantar-se. Ele ergueu-se acima dela, mostrando uma expressão que deixara de ser passiva e imperscrutável.
- Mudei de ideias - murmurou J. T. - Afinal, estou muito irritado.
- Uma porra é que estás! - Empurrou-o de modo a que ficasse deitado de costas. - Vais manter-te aí sossegadinho com o gelo no braço e fazer tudo o que eu te disser. - Tess pôs-se de joelhos em cima da cama, com o colchão a fazer uma cova perigosa. J. T. continuava a observá-la através de uns olhos que reflectiam uma expressão velada. Tess estendeu a mão para o candeeiro da mesa-de-cabeceira desligando a luz.
- Eu prefiro ver - disse J. T.
Os seios dela roçavam pelo seu peito. Ela afastou-se cautelosamente porque não queria prolongar o contacto físico, mas também não queria magoar-lhe o braço lesionado.
- Dorme - disse Tess.
- Dormir?
- É uma aptidão tão boa como qualquer outra, ou já te esqueceste? - Apenas até às oito da manhã.
- Como queiras. Apenas até às oito.
- Ele deve ter arranjado alguém para tomar conta da Samantha - insistia J. T. - Qualquer pessoa de família de que não tenhamos conhecimento. Uma pessoa amiga de há muito. Um cúmplice involuntário. Ele não podia limitar-se a deixá-la sozinha para voltar à casa onde matou o Difford.
- Não sei - retorquiu Tess. Estava instalada no colo dele enquanto examinava o braço. À luz da manhã conseguia estar com pior aspecto. Agora, J. T. perdera a pouca mobilidade que lhe restava nos dedos dessa mão.
- Pensa, Tess.
- Não tenho pensado noutra coisa! Estou a dizer-te que toda a família dele está morta. Quanto a amigos, foi coisa que ele nunca teve, apenas colegas de trabalho, portanto, não me ocorre ninguém a que ele pudesse recorrer. Por outro lado, o Jim tem muita facilidade em travar conhecimento com mulheres - continuou Tess. - Quem sabe se ultimamente não terá encontrado uma namorada certa. Não sei.
- Onde é que ele se escondeu a última vez que desapareceu?
- Não sei - admitiu ela.
- Ele esteve desaparecido durante seis meses e os chuis continuam sem saber como? - perguntou J. T., incrédulo.
- Tenho muita pena, J. T., mas, depois de o apanharem, não se pode dizer exactamente que ele se tenha prontificado a fornecer muitas informações. Isso é coisa que só acontece nos filmes.
- Onde é que eles procuraram a última vez?
- Ao princípio procuraram-no por toda a parte, tal como agora. A fotografia dele foi espalhada por todo o lado e criou-se um número de telefone de emergência para onde as pessoas podiam ligar para dar qualquer informação. Difundiram um mandado de captura por toda a Nova Inglaterra. À medida que o tempo foi passando, o grupo especial de trabalho começou a ficar mais reduzido e o esforço tornou-se menos intenso. As forças policiais não dispõem de orçamento que lhes permita manter esse nível de pessoal e diligência durante seis meses.
- Do que o Jim está bem ciente. Portanto, só teve de esperar que o número de agentes que procediam às investigações começasse a ser reduzido a pouco e pouco, até que se chegou ao ponto em que a casa sob protecção policial passou a ser vigiada apenas por dois agentes que trabalhavam por turnos com outros dois.
- Nós nem sequer tínhamos a certeza de que ele voltasse - disse Tess em voz baixa. - O Quincy pensava apenas que talvez fosse provável.
- Não sei se sabes, mas ele podia voltar a fazer isso.
- Mas ele tem a Samantha.
- Precisamente. Mais uma razão para ele não fazer ondas. Tem um lugar qualquer... assim como uma pessoa, provavelmente. Para já, vamos assumir que é assim. Serviu-se desse mesmo lugar quando desapareceu a última vez. Tens razão. Ele tenta não dar nas vistas e, daqui a seis meses, o grupo que procede às investigações estará reduzido a metade. Começarão a pensar que ele conseguiu escapar por entre as malhas da rede sem que dessem por isso; os homens serão destacados para outros casos mais actuais. Sim, se ele conseguir ser paciente, a estratégia poderá dar resultado.
- E é então que voltaremos a encontrá-lo - afirmou Tess simplesmente. - Mas não vou deixar a Samantha na posse dele durante seis meses ou mesmo um ano.
- Não discuto isso. Mas precisamos de um ponto de partida - retrucou J. T. - Precisamos de informações.
- Tens toda a razão, J. T. - concordou Tess respirando fundo. A entoação da sua voz traía-a. Ele começou a abanar a cabeça de imediato.
- Podemos levar o cavalo à água, Tess, mas não podemos obrigá-lo a beber.
- Não estou a brincar com nenhum cavalo. Estou a falar de ti e da tua irmã, assim como da minha filha que precisa de vocês dois!
- Estás a tentar fazer o papel de intermediária da reconciliação? - perguntou J. T., irónico.
- Limito-me a tentar fazer o que é melhor para a Samantha.
Ele retraiu-se todo, o que deu a saber a Tess que o golpe penetrara bem fundo. Saiu da cama, estabelecendo uma distância considerável entre os dois.
- É possível que a Marion não esteja disposta a ajudar. Principalmente, levando em consideração os sentimentos que eu lhe inspiro neste momento.
- Ela não te odeia mais do que tu a odeias.
- Descobriste isso na tua bola de cristal? - perguntou J. T., escarninho.
Tess aproximou-se dele, levando os dedos à clavícula de J. T. Não estava disposta a aceitar o distanciamento que ele queria impor, tal como não lhe permitiria que tentasse afastá-la.
- Tu não passavas de um garoto, J. T. Com certeza que ela compreenderá que não podias salvá-la, tal como não serias capaz de o fazer em relação a ti próprio.
- Salvá-la? Tess, ela nem sequer está disposta a admitir o que sucedeu!
- Sei que não. Uma reacção que não é invulgar nas vítimas de incesto...
- Nem sequer és capaz de o dizer, pois não? - perguntou ela num murmúrio.
- Não posso... não posso... É uma palavra tão feia.
O olhar de Tess continuava preso no rosto dele enquanto os seus dedos lhe massajavam os ombros tensos.
- Continuo a ver tudo com tanta clareza - acrescentou ele entre dentes. Mexeu-se ao toque das mãos dela, o corpo cheio de tensão. - Ela diz-me que isso nunca aconteceu, mas a verdade é que eu continuo a recordar-me de todos os pormenores. Todas as vezes em que ele nos bateu. Todas as vezes em que a vi aos pés da minha cama, implorando-me que a salvasse... - J. T. empurrou Tess para que se afastasse de si.
- J. T. - começou Tess.
- Pára com isso! - ripostou ele passando a mão direita pelos cabelos num movimento brusco. - Aconteceu. Mas apesar dele, continuámos a crescer. Só espero que apodreça no inferno.
- Mas isso não te impede de continuares a amar a tua irmã - retrucou Tess numa voz cheia de suavidade.
A mão de J. T. fechou-se num punho cerrado.
- Sim - replicou com alguma dificuldade olhando pela janela. - E ela continua a pensar que não tenho o juízo todo.
- Não me parece, J. T. Acho que ela já começou a pensar que tu tens razão e é isso que a deixa tão assustada. - Deu um passo em direcção a ele, estendendo a mão. J. T. retraiu-se.
- Não faças isso.
Tess hesitou, sentindo-se magoada com aquele gesto de rejeição. Obrigou-se a baixar a mão, deixando-a pender ao lado da perna sem desviar o olhar do rosto dele. Tess sabia que ele sofria, o que era bem palpável e visível no seu distanciamento. Deixa-me entrar, deixa-me ajudar-te um pouco que seja.
Mas J. T. mostrava-se inflexível e renitente. Tess não conhecia ninguém que conseguisse ser tão duro quanto ele era capaz de ser. Respirou fundo. Sentia ardor nos olhos.
- Muito bem - continuou Tess num tom de voz neutro. - Vou tomar um duche. Quanto a ti... quanto a ti, deves fazer o que te parecer melhor.
- Sim, é isso mesmo que vou fazer.
- O profissional és tu - concluiu ela.
No mesmo instante em que a porta da casa de banho se fechou depois de Tess ter entrado, J. T. foi buscar um cigarro. Antes teve o cuidado de abrir a janela, sentindo o impacto do frio inclemente da Nova Inglaterra. Feito isto, levou o cigarro aos lábios, acendeu-o desajeitadamente só com uma mão e inspirou o fumo, deleitado.
Fora de casa estava muito frio; embora o céu se apresentasse cinzento, a luminosidade chegava para lhe incomodar os olhos. Apesar disso, deixou-se ficar à janela, piscando os olhos e expelindo o fumo para a rua; fumou o primeiro cigarro mesmo até ao filtro. Logo a seguir, acendeu outro.
E só depois é que pegou no telefone. Enquanto marcava os números sentia os dedos a tremer. Disse a si mesmo que era por causa da nicotina. Marion atendeu ao terceiro toque. Durante um minuto, J. T. não conseguiu dizer uma única palavra.
- Estou? Quem fala? - perguntou Marion que já parecia estar irritada e ainda nem sequer sabia que era ele. J. T. ainda pensou em desligar, mas não o fez.
- Olá, Marion - disse por fim.
A irmã ficou em silêncio. Ele aproveitou para encher os pulmões com o fumo do cigarro. No outro lado da linha, estaria ela a fazer o mesmo? Era uma imagem bonita - um irmão e uma irmã que não conseguiam entabular uma conversa durante trinta segundos, mas, caramba, como eram capazes de fumar!
- Falas comigo ou continuas zangada? - perguntou J. T.
- Dá-me uma boa razão para falar contigo.
- Quero falar contigo sobre o Beckett.
- O Beckett?! - exclamou ela parecendo ter ficado desconfiada. - O que é que queres, J. T.?
- Não te vou pedir nada para mim, Marion, sei que a resposta seria negativa. A Tess é que precisa de ti. Convém não esquecer que este é o género de caso que pode construir uma carreira - replicou J. T. sem conseguir evitar uma certa agressividade no seu timbre de voz.
- Tens dois minutos para dizeres o que precisas ou desligar.
- Informações - retorquiu J. T., lacónico.
- Informações?
- O Beckett voltou para o Massachusetts. Mas antes matou o agente que tomava conta da filha da Tess e depois apoderou-se da criança.
- Oh, merda! - Ao contrário do costume, a voz de Marion era suave. O choque pareceu ser sincero.
- Creio que ele tem a Sam sequestrada em casa de alguma pessoa amiga - acrescentou J. T. em voz baixa -, mas a Tess não é capaz de pensar em ninguém a que ele pudesse ter recorrido. Os agentes do FBI são os que colocam os telefones sob escuta e que tratam de manter as pessoas suspeitas sob vigilância. Talvez estejam de posse de alguma informação que nos indique o local para onde ele foi... e quem poderá estar a ajudá-lo.
- Talvez sim - reconheceu ela. Ficou calada por uns momentos. Mas porquê recorrer a mim, J. T.? Porque não contactas o agente especial responsável pela investigação do caso? Se quiseres, posso informar-me sobre o nome do responsável.
- É isso que queres que eu faça, Marion? Queres que contacte o agente especial responsável pelo caso?
Desta vez, o período de silêncio foi mais alongado. Esqueceu-se do cigarro, só dando por ele quando começou a queimar-lhe os dedos.
- Eu vou ter contigo - declarou Marion abruptamente. - Onde é que estás?
- Num motel nos arredores de Springfield - respondeu ele, dando-lhe o número de telefone num tom de voz que se esforçou por manter neutro. Ainda não sabia bem o que é que devia sentir. Ou se devia sentir alguma coisa. - Ah, sim... dá-nos uma apitadela quando aterrares no Logan para eu te fornecer indicações de como chegares até aqui.
- Os voos diários são bastante fiáveis. Conto estar aí por volta do meio-dia.
- De acordo. - J. T. esperou que ela se despedisse para desligar o telefone. Ou que dissesse que se lembrara de qualquer coisa, talvez dos bons tempos. Os Verões quentes em que eles praticavam todo o estilo de mergulhos na piscina, ou o cair da tarde, quando ele ficava a vê-la a andar a cavalo, pensando que ela devia ser a rapariga mais graciosa em todo o mundo por conseguir montar com tanta perfeição um cavalo gigantesco.
- O pai morreu - adiantou ela de súbito.
- Estou a ver.
- O funeral é na próxima sexta-feira. Ele vai ser sepultado em Arlington com todas as honras militares.
- Hum...
- Tencionas vir ao funeral, J. T.?
- Não - respondeu ele, lacónico.
- O ódio que sentes continua a ser tão visceral?
- E o teu não é, Merry Berry?
Marion desligou o telefone e o sinal de linha desocupada encheu os ouvidos de J. T.
Interrompeu o duche de Tess. Ela deteve-se, com as mãos na cabeça, porque na altura aplicava champô no cabelo, olhando-o com uma expressão interrogadora. J. T. observou o corpo dela ligeiramente coberto por bolhas de espuma de sabonete. Os seus braços e pernas mostravam os contornos de músculos recentemente adquiridos. Já nem sequer conseguia recordar-se da aparência dela no primeiro dia em que a conhecera. Via apenas como ela era naquele momento e, aos seus olhos, Tess era lindíssima. O olhar de J. T. fixou-se no vergão avermelhado que ela tinha à volta do pescoço. O resultado do aperto do saco de plástico.
- O que é que estás a fazer? - perguntou ela com voz rouca, mostrando alguma insegurança.
- Ando à procura de alguém que me esfregue as costas.
- E o que te leva a pensar que eu faria uma coisa dessas?
- Sou um inválido, por isso, estou certo de que me ajudarás. - Puxou a cortina do chuveiro para o lado, alheado da água quente que lhe salpicou o peito. Levou a mão direita às calças e desabotoou-as com toda a rapidez.
Tess deixou-se ficar debaixo da água do chuveiro, de boca aberta a olhar para ele a despir-se. J. T. juntou-se a ela na banheira; com as pernas, J. T. rodeou as dela.
Sem dizer nada, tirou o sabonete das mãos de Tess. Começou a ensaboar-lhe os seios, passando ao ventre plano. Sentiu o frémito que percorreu a pele dela ao toque da sua mão. Continuando sem dizer nada, passou o sabonete pelo vergão vermelho que lhe circundava o pescoço, como se pudesse apagá-lo. Como se houvesse algum homem que possuísse esse poder. Deus era testemunha do quanto ele desejava possuir esse poder. Queria tornar o mundo melhor para ela. Desejava poder dar-lhe tudo o que não estivera ao seu alcance dar a Marion, tudo o que não pudera proporcionar a Rachel e a Teddy. Tinha falhado tantas vezes. Tinha medo de tentar, e ainda mais de deixar Tess sozinha à mercê de um homem como Jim Beckett.
Os seus dedos voltaram a massajar o vergão avermelhado. Pensou que, quando tornasse a encontrar Jim Beckett, a morte deste seria dolorosa e excruciantemente lenta.
Deus me valha! Deixa-me poder proporcionar segurança a uma única pessoa. Deixa que eu possa ajudar a Tess, deixa que eu possa ajudar a Samantha. Deixa-me estar à altura para poder comportar-me, finalmente, como um homem.
- Telefonaste à tua irmã, não é verdade? - perguntou Tess em voz baixa.
O polegar de J. T. acariciou-a outra vez vagarosamente, deixando que o silêncio respondesse por si.
- J. T., sinto-me tão orgulhosa de ti.
- Não preciso que te sintas orgulhosa de mim. - Largou o sabonete. Fitou-a bem nos olhos, à procura de algo que receava expressar por palavras. Os olhos dela eram tão grandes e límpidos. Confiantes. Que Deus o ajudasse. Que Deus a ajudasse.
Os dedos de J. T. deslizaram até à lanugem dos pêlos encaracolados, encontrando-a. Ela estava húmida, fremente, pronta. Tess arqueou o corpo contra o dele, os dedos a enterrarem-se-lhe nos ombros. Sussurrou o seu nome; o som da voz dela foi o suficiente para ele perder o domínio sobre si mesmo.
Ela incutia-lhe esperança. E talvez algo mais.
Tess encostou a testa ao peito dele e os dedos de J. T. começaram a movimentar-se.
- Eu sei - segredou ela com a boca encostada à pele dele -, mas, em qualquer dos casos, sinto-me orgulhosa de ti.
- Eu quero a mamã.
- Sei que queres. - Ele tocou ao de leve nos cabelos louros da criança que se amontoavam na fronha branca. Sam enterrou a cabeça ainda mais na almofada; não se podia dizer que estivesse a retrair-se, mas também não mostrava agrado pelo contacto físico. Depois do primeiro grande choque quando o viu, a garota mostrara-se ansiosa e perturbada. Não lhe opôs resistência, mas também não se agarrou à mão dele como em tempos costumava fazer. O que ele aceitou. Há dois anos que a filha não o via e, na verdade, ele não tinha o mesmo aspecto de antigamente. - Tal como eu já te disse, a mamã não vai voltar - continuou ele numa voz muito suave.
Sam começou a fazer beicinho. Os olhos azuis ficaram humedecidos.
- Mas ela prometeu-me
Jim não respondeu ao tom de queixa na voz da criança. Caso se com pensasse aquele tipo de comportamento com atenção, as crianças nunca chegavam a aprender. Ao invés, disse-lhe sem estar com rodeios.
- Sam, a Theresa mentiu-te.
- A mamã não fazia isso!
- Fazia, sim. Ela disse-te que eu nunca mais voltaria, não é verdade? - Com uma expressão muito pesarosa, Samantha acenou que sim. - Ela mentiu-te, Sam. Ela mentiu, mas não faz mal, porque agora estou aqui.
A garota choramingou um pouco, como se isso refutasse as palavras dele. Jim continuava sentado com toda a paciência. Finalmente, a garota limpou as lágrimas das faces e soltou um suspiro de garotinha que tinha o coração destroçado. Ele não lhe ofereceu consolo nem tão-pouco a abraçou. Limitava-se a aguardar. Dentro de algumas semanas, a imagem de Theresa começaria a desvanecer-se da mente de Sam e, passados alguns meses, a mãe parecer-lhe-ia um fantasma muito distante e, decorridos alguns anos, Theresa seria completamente esquecida. Começar tudo de novo, do zero, era a glória - o privilégio - da juventude.
Depois de Samantha ter recuperado a calma e deixado de chorar, ele aconchegou-lhe a coberta abaixo do pescoço, afagando-lhe o ombro.
- Tenho uma surpresa para ti - anunciou ele em tom casual, recompensando-a por ter conseguido lidar tão bem com as novas circunstâncias da sua vida.
- Uma surpresa?! - Samantha ficou a magicar naquilo durante uns momentos. - É o Toy Story! - A garota exibia uns olhos tão brilhantes que ele sentiu um baque por não se ter lembrado de lhe comprar o filme em vídeo. Agora não tinha tempo para tratar de coisas daquela natureza. O encontro desafortunado que tivera com Theresa na noite anterior dera origem a uma demora de alguns dias em relação ao seu plano, um luxo a que ele não se podia dar. Também, por baixo da camisola preta de gola alta e manga comprida, sentia o latejar do ombro ferido por uma bala. Tinha dificuldade em movimentar-se, do que se ressentia, furioso.
- Não é o Toy Story - esclareceu ele numa voz tensa. Samantha retraiu-se, fazendo com que ele se obrigasse a sorrir. Tinha-se esquecido do quanto as crianças podiam ser sensíveis. Assim que ele se descontraiu, a garota fez o mesmo. Uma vez mais, os olhos dela espelhavam uma expressão contemplativa.
- Vai... vai... - começou ela com um semblante extraordinariamente radiante. - Vai dar-me um maninho ou uma maninha?
Contra a sua vontade, Jim pestanejou, tal o choque que sentiu.
- Não - respondeu numa voz arrastada. - A mamã falou-te em arranjar-te um maninho ou uma maninha?
- Não, mas eu sempre quis ter um mano ou uma mana - replicou Sam com um abanar de cabeça que exprimia tristeza.
Ele sorriu e, ao contrário do que lhe era habitual, o gesto era genuíno. Desde o primeiro momento em que vira Samantha aninhada junto dos seios de Theresa, ficara fascinado pela filha. Metade dela era ele, metade dos seus genes. Via-se a si próprio nos olhos azuis que cintilavam. Ela já mostrava a promessa de vir a ser muito inteligente e determinada. Na sua infância nunca chorara tanto como a maior parte das crianças dessa idade. Era melhor do que tudo isso. Era uma garota doce, genuína e forte. Ela era o que de melhor havia nele.
- Papá - começou a garota num tom de exigência e impaciência. Foi uma atitude que lhe provocou um sorriso rasgado. Sentia uma grande satisfação por ela o ter tratado por papá.
- A surpresa é melhor do que um mano ou uma mana. Arranjei-te uma nova avó.
- Uma avó?! Está a dizer que a avó Matthews está aqui? - perguntou Samantha mostrando-se deveras intrigada.
- Não, é uma nova avó. Agora passas a ter duas.
- Duas avós - repetiu ela com um aceno lento de cabeça. - Quando é que ela chega?
- Amanhã de manhã. - Afastou-lhe o cabelo do rosto. - Vou ter de ir para fora durante algum tempo, mas, quando acordares, vais conhecer a tua avó. Ela é alta e gorducha e fala com um ligeiro sotaque que, tenho a certeza, vais achar muito engraçado. Deves fazer como ela te disser, SamEla vai tratar muito bem de ti.
Samantha não pareceu muito convencida.
- Confias em mim, Sammy? - perguntou ele passando-lhe um polegar ao de leve pela face.
Desta feita com mais lentidão, a garota acenou que sim.
- Óptimo. Prometo-te que trato de tudo. Dentro de apenas alguns dias já estarei de volta. E depois vamo-nos embora. Acho que vamos para um lugar onde faça bastante calor; o que é que te parece?
- E a mamã também vem connosco? - perguntou Samantha numa vozinha que mal se ouvia.
- Não - respondeu ele, lacónico.
- Só a nova avó e a avó Matthews?
- Não.
- Só... a nova avó?
- Talvez - respondeu ele depois de algum tempo, mostrando uns olhos imperscrutáveis. - Ainda não decidi isso.
Edith tinha acabado de se sentar no terraço, com a sua chávena de chá da manhã e uma manta de lã, quando a porta da frente da casa de Martha se abriu. Durante uns instantes, Edith ficou perplexa. Ainda estava escuro; Edith sempre fora uma pessoa que se levantava cedo e, ultimamente, as suas insónias obrigavam-na a pôr-se a pé antes do raiar do Sol. Às primeiras horas da alvorada, o ambiente que se respirava naquela comunidade voltava a ser quase normal, dir-se-ia mesmo que quase pacífico.
Mas a porta abriu-se e o silêncio foi quebrado. Edith sentiu os pêlos da nuca todos eriçados. Agarrou a caneca quente com mais força.
Martha saiu olhando para ela do outro lado.
Sentia-se uma atmosfera de tensão entre as duas. Era algo que tinha vindo a intensificar-se desde o regresso de Martha, assumindo forma e substância a partir de toda uma miríade de pequenas mentiras que, inexplicavelmente, haviam saído dos lábios das duas. Na véspera, adquirira o estatuto de permanência quando Martha, sem qualquer explicação, desaparecera. Edith tinha ido a casa da amiga para o charuto habitual da noite, deparando com a casa vazia. Vazia, assim sem mais nem menos. É claro que Martha não lhe devia explicações. A mulher era a única responsável pela sua própria vida, mas aquela ausência tão misteriosa, um desaparecimento sem qualquer justificação aparente, tinha desferido o derradeiro golpe na amizade frágil que existira entre as duas.
Aquilo fez com que Edith reflectisse em como conhecia pouco Martha, apercebendo-se de que a mulher quase não falava de si própria. Mudara-se para aquela localidade há dois anos, mantendo-se por ali durante algum tempo, após o que decidira ir para a Florida quase sem se despedir. Os telefonemas entre essa altura e o seu regresso tinham tornado aquela ausência menos notória, mas agora Edith prestava mais atenção ao que se passava à sua volta. Começava a dar-se conta de que, de facto, não conhecia minimamente a sua vizinha.
Entretanto, Martha saiu do seu terraço dirigindo-se até ao jardim de Edith.
Abruptamente, esta sentiu que os braços ficavam com pele de galinha. O ar como que começou a ulular à volta dos seus ouvidos. Soube sem precisar de se virar que as visões tinham voltado, as pobres raparigas torturadas que pairavam pelo terraço como se houvesse qualquer coisa muito importante que precisavam de lhe dizer, mas a morte tinha-lhes roubado a voz. A caneca de chá tremeu-lhe violentamente nos dedos, derramando a infusão que lhe escaldou as mãos.
- Edith - disse Martha detendo-se ao fundo dos degraus do alpendre.
Edith não lhe disse nada. Limitou-se a olhar para a vizinha. Dada aquela proximidade, podia ver as mudanças quase imperceptíveis. Naquele momento, os olhos de Martha estavam baços devido à exaustão e a uma grande ansiedade. Também se deslocava de modo diferente. Caminhava de forma rígida, como se a idade, finalmente e de repente, estivesse a fazer-se sentir com o seu grande peso.
- Martha - retorquiu Edith por fim.
- Peço desculpa por aparecer sem ter avisado.
- Não tem importância.
- Tenho uma visita - adiantou Martha endireitando os ombros. Só então é que o seu olhar foi ao encontro do de Edith. Uma atitude onde se adivinhava um ligeiro desafio.
- Uma visita? - Os pêlos continuavam a dançar nos braços de Edith como que impulsionados por uma electricidade estática que entrara em frenesi. Sentia o começo de um aperto no peito acompanhado de uma dor que lhe era familiar.
- É a minha neta.
- Tens uma neta?
- É a filha do meu rapaz. O caixeiro-viajante que anda sempre por fora.
- Estou a ver - disse Edith, cautelosa.
- Tive de me encontrar com ele inesperadamente. Aconteceu um imprevisto e ele precisa que eu olhe pela minha neta durante uns tempos.
- Hum... hum...
Martha voltou a olhar para ela. Naquela semiobscuridade que antecedia o raiar do dia, a expressão nos olhos dela parecia não ter vida, como se estivesse morta.
- Queres conhecê-la esta manhã?
Edith não sabia bem o que responder. Finalmente, decidiu assentir.
- Se for do teu agrado.
- Se... se me acontecer alguma coisa, és capaz de cuidar dela, Edith? Eu não teria o mínimo pejo em confiá-la a ti.
Uma vez mais, Edith apercebeu-se daquele olhar estranho. O olhar de alguém apenas parcialmente vivo. Da voz de Martha não transparecia nenhuma súplica, nem sequer medo. Era uma entoação de voz muito terra-a-terra, o que atemorizou Edith ainda mais.
- Sim - concordou numa voz que mal se ouvia. - Suponho que sim. Mas preciso de saber o endereço e o número de telefone do teu filho.
- Não te preocupes - replicou Martha com um encolher de ombros. - Ele saberá como encontrar-te.
Encontraram-se num pequeno restaurante, um daqueles lugares a que as pessoas levavam os filhos porque as sobremesas de sorvetes e frutas eram melhores do que os hambúrgueres, enquanto os clientes mais idosos reivindicavam o direito às mesas compartimentadas de canto onde se instalavam para se regalar com o prato especial, ”dois ovos, duas fatias de bacon e duas torradas pelo preço de dois dólares e vinte e dois cêntimos”.
Tendo por pano de fundo uma tapeçaria deveras extravagante onde se via um mar revolto de motivos florais em vermelhos e azuis, Marion sentou-se na mesa de um dos compartimentos com assentos de vinil castanho, esperando, impaciente, que o irmão e Tess chegassem.
Tinha as pernas, longas e esbeltas, cuidadosamente cruzadas. Mantinha as costas direitas que nem uma tábua. Vestira-se em consonância com a ocasião, um fato de calça e casaco azul-marinho enfeitado com um debrum dourado nos punhos e na gola. A elegância do traje era suficiente para despertar a admiração de um garoto de dois anos, que olhava como que hipnotizado para a postura erecta perfeita, talvez a pensar se devia fazer-lhe continência. Até mesmo o penteado era severo, com o cabelo rigidamente puxado para trás e preso no habitual rabo-de-cabelo, sem que houvesse um único cabelo solto para lhe emoldurar delicadamente as faces.
Marion baixou o olhar para o garoto que mal começara a andar, os seus olhos azuis com uma expressão fria e imperscrutável. Soltando um guincho de assombro, o rapazinho desatou a correr com as suas pernitas gorduchas. Marion limitou-se a levar o cigarro aos lábios de um rosa pálido, inalando o fumo.
- Estou a ver que conseguiste afugentar outro admirador - disse J. T. no seu falar arrastado, aproximando-se dela com Tess, que vinha logo atrás. Momentos mais tarde, já ele estava encostado à divisória da mesa, com o quadril espetado para fora. Trazia o braço ao peito.
- É uma prenda - disse ela expelindo o fumo para a cara do irmão, que fitou com um olhar firme, à espera de ver qual seria o primeiro a fazer com que o sangue corresse.
Tess, à cautela, posicionou-se entre irmão e irmã. Marion mimoseou-a com um olhar cheio de frieza.
- Está a brincar aos árbitros? - perguntou-lhe com ironia.
- Aparentemente - respondeu Tess, embora não parecesse muito satisfeita com a situação. Começava a deslizar pelo assento corrido da mesa quando Marion fez um aceno de cabeça.
- Aqui não. É demasiado público. - A agente especial, com a mesma atitude de grande frieza, pegou no maço de cigarros e conduziu-os para o fundo do restaurante, onde as salas reservadas para banquetes estavam vazias e abertas. Escolheu a mais pequena, fechando a porta depois de terem entrado e indicando as mesas vazias com um gesto da mão.
Tess optou por uma no centro da sala. J. T. sentou-se ao seu lado, enquanto Marion se sentava em frente dos dois.
- Muito bonito - comentou Marion acenando com o queixo na direcção do braço ao peito do irmão. - Isso é alguma moda nova?
- Foi o Beckett - retorquiu J. T., lacónico.
Marion arqueou uma sobrancelha, esmagando a ponta do cigarro e pegando no maço para tirar outro.
- Isso quer dizer que já o encontraste? Sendo assim, para que precisas de mim?
- Ele é que nos encontrou. Ontem à noite. - Resumidamente, pô-la ao corrente do sucedido; Tess também contribuiu com alguns pormenores que ele se esquecera de mencionar. Marion fumava sem parar e fazia acenos de cabeça.
Quando acabaram, esta dividiu igualmente o olhar de reprovação pelos dois. As forças da lei nunca encaravam com simpatia os civis que decidiam chamar a si a resolução de problemas que pertenciam aos profissionais da polícia, e Marion não era excepção.
- Sabem o que é que acontece quando se ligam eléctrodos a um psicopata, dizendo-lhe que vai sentir um choque? - perguntou Marion.
- Nem por isso - respondeu J. T. num tom grave. Tess apercebeu-se de que ele já tinha erguido todas as suas defesas.
Dando-se conta do mesmo, Marion concentrou a sua atenção em Tess.
- Nada - disse respondendo à sua própria pergunta.
- Nada?!
- Nada. A pulsação do coração não acelera e também não começa a suar. Não existe reacção absolutamente nenhuma, nem sequer medo da dor. Esta é a natureza dos psicopatas... impenetrável, fria e imune à dor. - Dizia isto com toda a calma, mas Tess já sabia onde Marion queria chegar. Apagou o cigarro. - Tal como me pediste, J. T., requisitei o ficheiro do Jim Beckett, que tive tempo de ler no avião durante a viagem. Só vos vou dizer isto uma vez... Não sabem em que é que se meteram; isto é de mais para vocês.
- Obrigado. Mas agora diz-nos o que é que consta do ficheiro.
O olhar de Marion continuava preso em Tess.
- O Jim Beckett é um psicopata na mais pura acepção da palavra. Você conseguiu não morrer às mãos dele uma vez, agora isso voltou a acontecer. Deve estar agradecida, Tess. Mas deixe que seja a polícia a tratar do assunto... deixe que seja o FBI a tratar do assunto... porque, da próxima vez, não terá tanta sorte. Não se pode dizer que o Beckett tenha cometido muitos erros.
- Não estou a planear pedir-lhe para dançar - interveio J. T. com cara de poucos amigos. - Além disso, estou velho de mais para sermões. Confia em mim ao menos uma vez na vida, Marion. Sei o que estou a fazer.
A linha dos lábios que ela mantinha cerrados indicava que duvidava do que ele dizia.
- Muito bem, deixemos os preliminares para trás. Diz-me onde é que ele está.
Marion acendeu outro cigarro.
- Deus me valha - disse ela, imitando a voz arrastada do irmão e o mesmo estado de espírito. - Tencionava trazer o mapa mágico que indica o seu esconderijo, mas devo ter-me esquecido dele no avião. E agora, o que podemos fazer?
- Que engraçadinha me saíste! - ripostou J. T.
- Aprendi contigo.
- Do que me sinto muito orgulhoso - retorquiu ele, sarcástico, com os olhos semicerrados e pondo-a no seu lugar. - Os amigos e conhecidos dele. Tu disseste que ele se evadiu com a ajuda de uma mulher que conheceu enquanto esteve preso.
- Morta.
- Morta?!
- O que quer dizer que ele matou a mulher que conheceu na cadeia. E, depois, conseguiu entrar na casa-forte?
- Não; depois sequestrou o sargento Wilcox que torturou e assassinou. Hoje, logo de manhã, o corpo foi encontrado por dois miúdos entre o arvoredo. O Beckett conseguiu cobrir tudo com pedras excepto as mãos. É claro que os animais começaram a comer as mãos do homem.
- Ele gosta de mutilar as mãos das pessoas - adiantou Tess numa voz sussurrada.
- É verdade - corroborou Marion olhando-a com uma expressão de curiosidade. - Em Quântico não sabem bem porquê. Talvez porque as mãos são uma parte do corpo humano que é muito pessoal. Ou talvez apenas porque torna o processo de identificação do corpo muito mais difícil.
- E já encontraram o corpo do Difford? - perguntou J. T.
- Não, mas encontraram o automóvel dele. A uma distância de trinta e dois quilómetros da casa do Difford, o que significa que, provavelmente, o Beckett tinha outra viatura estacionada aí para depois poder mudar de carro. O porta-bagagem do automóvel do Difford estava ensopado em sangue. O que nos leva a crer que está morto. Não sabemos por que motivo o Jim ficou com o corpo.
- E a Sam? - perguntou Tess. Não conseguiu ocultar o tom de súplica na sua voz.
- Nada - respondeu Marion desviando o olhar. - Eu... lamento muito.
- Ele disse-me que voltaríamos a ver o Difford.
- O quê?! - Tanto Marion como Tess ficaram com os olhos presos em J. T.
- Quando estávamos no quarto, ele disse-me: ”Quando voltares a ver o Difford, podes perguntar-lhe isso.”
- Portanto, pensas que o Difford continua vivo? - questionou Marion, duvidosa.
- Isso seria demasiado arriscado - respondeu J. T. com um aceno de cabeça -, muito em particular, com a Samantha por perto. Mas o perverso Jim Beckett não faz nada ao acaso. Ele guardou o corpo por uma razão qualquer. A nós só nos resta sermos mais espertos e anteciparmo-nos a ele. Ao fim e ao cabo, ele é tão eficiente a antecipar-se a nós.
- O padrão - disse Tess entre dentes. Sentia-se como que hirta e entorpecida. Estavam sentados numa sala de banquetes tão banal, num restaurante tão banal e numa cidade tão banal. E estavam a conversar casualmente sobre assassínios, tortura e a melhor maneira de usar um cadáver. Era por essa razão que Jim se entregava aos seus jogos. Porque mais do que em matar, ele sentia prazer em atormentar. Naquele preciso momento, ela tinha a certeza de que ele estaria algures a pensar naquilo em que havia transformado a vida dela, desfrutando de cada minuto. Contudo, Tess não queria dar-lhe essa satisfação.
- Padrão?! - perguntou J. T. sem compreender.
- Era ou esteve - adiantou Marion. - O Jim Beckett era...? O Quincy formulou algumas teorias. O Jim Beckett era o número um? O Jim Beckett esteve aqui? O Jim Beckett era o melhor? Seja o que for. O mais relevante é o facto de o Beckett formular o seu padrão com base no lugar onde deixa os corpos. Obviamente, foi por essa razão que levou o cadáver do Difford.
- Por outras palavras, o tempo está a faltar-lhe - sugeriu J. T. franzindo o cenho.
- E como é que tu vais de A a B? - perguntou-lhe Marion fitando-o com uma expressão intrigada.
- Bem... ele tem andado a matar em locais diferentes, não é verdade? No entanto, ele... por assim dizer, tem andado a reciclar os corpos. Em vez de ter deixado o Difford em Springfield, como aconteceu com os outros, levou o cadáver para outra cidade, obtendo assim outra letra. É evidente que pretende completar o que tem a dizer. Quem sabe se depois de se ter apoderado da Sam ele não terá decidido que quer resolver o assunto para poder prosseguir. Pensei que ele se manteria fora de circulação.
Tess começou a massajar as fontes. Continuava a não conseguir expulsar as imagens que lhe atormentavam o pensamento. A sua filha de quatro anos a ser conduzida num automóvel em cujo porta-bagagem se encontrava o cadáver de Difford.
- Olha uma coisa, Marion, o homem tem de ter um esconderijo ou um cúmplice - continuou J. T. - Com certeza que os teus colegas já começaram a investigar essa possibilidade.
- Oh, não, J. T., nem pensar... Achávamos que devíamos ficar sentadinhos a ver quantos chuis é que ele consegue matar. É claro que estamos a investigar isso! Mas tu sabes tão bem como eu que o ponto de partida mais lógico de qualquer investigação criminal tem por base os familiares e os amigos do suspeito. Acontece que o Beckett não tem nenhuns.
- Como podes ter tanta certeza?
- Já li os relatórios, como é evidente! Todos os membros da família dele já morreram...
- Investigaram as certidões de óbito? - atalhou J. T.
- Eles não são estúpidos, J. T.! Claro que investigaram.
- Não é impossível falsificar certidões de óbito. Até que ponto é que essa investigação foi meticulosa?
- O que queres dizer com isso? - perguntou Marion e, pela primeira vez, a segurança que mostrara até então ficou abalada.
- Quem está a tratar da investigação teve o cuidado de contactar os médicos ou os hospitais que assinaram as certidões de óbito? Sabes muito bem que é uma das maneiras mais elementares para se começar uma nova vida, assumindo outra identidade. Falsifica-se a nossa própria certidão de óbito; em seguida, passamos a utilizar a certidão de nascimento de outra pessoa como se fosse a nossa.
- Eu... confesso que não sei. Vou ter de lhes perguntar.
- Pergunta - disse J. T., peremptório.
- Muito bem, sim, senhor! Mas até mesmo assim, é muito difícil acreditar que algum membro da família dele tivesse fingido a sua própria morte para poder esconder um assassino. A hipótese mais plausível é ele ter feito novas amizades. O homem é muito bom a lidar com as mulheres... - Ao dizer isto, o olhar de Marion dirigiu-se para Tess.
Esta baixou a cabeça numa manifestação de constrangimento. Sim, ela era a ”noiva de Frankenstein”. Tinha cozinhado e tratado da roupa de um assassino. Até dera à luz uma filha gerada por ele. Havia noites em que ficava a ver Samantha a dormir placidamente, perguntando a si mesma se o mal podia ser transmitido pelos genes. Ninguém sabia o que dava origem a um psicopata. Já nasciam assim? Seriam as circunstâncias da vida que os moldavam posteriormente? Seria possível que transmitissem essa crueldade aos filhos?
- Se ele quisesse encontrar alguém que o ajudasse - perguntou J. T. suavemente, pegando-lhe na mão -, que tipo de pessoa é que devemos procurar?
Tess encolheu os ombros. Sentia-se outra vez bastante abatida, mas obrigou-se a reagir. Tinha de assumir uma atitude determinada. Não podia desistir. Não podia permitir que ele lhe ganhasse.
- Será uma mulher loura, bonita e apenas com vinte e poucos anos. Não será uma mulher com uma carreira profissional nem com um curso universitário. É possível que seja uma empregada de mesa, de motel ou qualquer empregada de uma lavandaria. Talvez mesmo uma recepcionista da polícia. Esta hipótese agradar-lhe-ia bastante.
- Isso dá-nos um critério de procura muito difícil - murmurou Marion. - Não que alguns agentes de polícia não adorassem a tarefa de catalogar todas as louras jovens e bonitas da área.
- Por outras palavras, não temos a mínima pista. Como é que um homem consegue matar dezasseis pessoas e raptar uma criança mesmo nas barbas da polícia sem deixar uma única pista?
- É a especialidade dele. Estudou o assunto a fundo. Ele é muito cui dadoso.
- A chave é a disciplina - murmurou Tess. Tinha os olhos fechados. Sentia um horror sem limites por conhecer a verdade. Não interessava que ele tivesse a filha de ambos. Não importava que houvesse assassinado Difford brutalmente. Jim ainda não tinha acabado. - Ele vai voltar a atacar. Ele acaba sempre aquilo que começa. Vai completar o padrão. Estou certa de que virá atrás de mim.
Em pensamento, viu Difford a dizer-lhe que tudo estava bem. Também viu Sam a perguntar-lhe por que motivo a mãe tinha de ir para longe, por que razão não podiam ficar juntas.
Viu-se a si própria diante do altar a dizer o ”Sim”.
- Tess, estás a sentir-te mal?
Ela virou a cabeça num movimento lento. Olhou fixamente para J. T. Perguntou-se se Jim Beckett também teria a intenção de o matar.
- Eu... estou a precisar de apanhar um pouco de ar fresco.
Marion e J. T. trocaram olhares.
- Por favor... volto dentro... de um minuto. - Com esforço, Tess levantou-se da mesa.
- Tess...
Ela abanou a cabeça, ignorando a mão que J. T. lhe estendia. Conseguiu chegar à porta da sala de banquetes, empurrando-a para a abrir e saindo ansiosamente para a luz do dia. O sol filtrava-se através dos vitrais com uma cercadura em azul e vermelho. Viu os reflexos nas suas mãos quando se encostou à parede do corredor. Pensou que se assemelhavam a sangue.
- Ela não parece lá muito bem.
- Ela é rija. Vai conseguir aguentar. - J. T. queria parecer firme, mas não conseguiu. Oferecer conforto não era o seu forte. Além do mais, testemunhar o sofrimento de Tess era algo que o deixava destroçado de uma maneira que não queria sentir.
Olhou para Marion. Tão-pouco ela se sentia tão calma como queria aparentar. Sempre que a irmã levava o cigarro à boca, J. T. via que tinha as mãos a tremer. Pouco depois, ela estendeu-lhe o maço de cigarros. Ele aceitou, acendendo um rapidamente. Ambos continuaram sentados a fumar.
- Como é que andas? - perguntou J. T. por fim, mais para quebrar o silêncio.
- Óptima. Estou a pensar em processar o Roger judicialmente, exigindo tudo o que ele possui, e ele possui muito. Fortuna de família. Que mais é que se pode querer?
- Danos físicos - sugeriu J. T. de uma maneira casual. - Se quiseres, posso ajudar-te a pegar fogo à casa dele. Sei uma ou duas coisas sobre a colocação de explosivos.
- A sério? Hum... fazê-lo explodir. E porque não? Até era capaz de ser divertido.
- Tu és uma profissional muito competente, Marion. Pensa em como poderias persegui-lo furtivamente. Seria um bom exemplo para centenas de mulheres que têm maridos que lhes são infiéis.
As comissuras dos lábios de Marion elevaram-se fugazmente. J. T. manteve o cigarro na mão para não ceder ao impulso de fazer qualquer coisa estúpida, como pegar na mão da irmã.
- Estou contente por teres vindo - optou por dizer abruptamente.
- E por que razão me pediste para vir? - O arremedo de sorriso de Marion tinha-se desvanecido. Agora mostrava frieza, mas, também, algum nervosismo.
- Porque preciso de algumas informações e sabia que tu podias facultar-mas.
- Por mais nenhuma razão?
- Por mais nenhuma razão - confirmou J. T. - E por que é que concordaste em vir?
- Porque quero apanhar o Beckett.
- Por mais nenhuma razão?
- Por mais nenhuma razão - afirmou ela.
- Ambos somos péssimos mentirosos, Marion.
Ela desviou o olhar, mas não sem que antes ele tivesse tido tempo de vislumbrar uma expressão de vulnerabilidade nos seus olhos. A tensão no corpo dele intensificou-se.
- Na próxima vez, o Beckett matar-te-á, J. T. - As palavras foram acompanhadas de um gesto com a cabeça que indicava o braço. - Com duas mãos em bom estado não conseguiste vencê-lo. O que tencionas fazer apenas com uma?
- Disparar a arma com mais rapidez.
- Não sejas estúpido. Pega na Tess e abandona o Massachusetts. O agente especial Quincy é um dos melhores do FBI. Ele tratará do assunto. - Marion fez uma pequena pausa. - Acho que vou tentar oferecer os meus serviços. O FBI continua a ter uma certa relutância em destacar os seus agentes do sexo feminino para a investigação de casos de crime violento. No entanto, estou numa fase em que a minha carga de trabalho é bastante reduzida. Sei que estão a precisar de reforços. Talvez se possa arranjar alguma coisa.
- Acreditas que serias capaz de apanhar o Beckett? - perguntou J. T. com indiferença.
- Sou uma profissional com todas as credenciais.
- Sim, Marion, também eu. Mas tu foste treinada para seguires regulamentos. Onde eu tenho estado, isso é coisa que não existe. O Beckett está muito familiarizado com as forças da lei. É capaz de antecipar os vossos movimentos, consegue pensar como vocês. Por outro lado, nunca teve oportunidade de se cruzar com pessoas da minha espécie.
- Oh, sim, J. T., sem dúvida que és um osso muito duro de roer e tens um braço nesse estado para o provar!
- Tanto a Tess como eu saímos dessa situação com vida. O que é mais do que qualquer das pessoas que por último se cruzou com o Beckett pode dizer.
- És tão arrogante! - desabafou Marion, furiosa, com um enérgico abanar de cabeça. - Se alguma vez tivesses a oportunidade de conhecer Deus, a primeira coisa que dirias seria perguntar-Lhe o que é que estava a fazer na tua cadeira.
- E desde que Ele se levantasse, cedendo-me o lugar, não teríamos problema nenhum.
- Desiste, J. T. Põe-te a milhas. Tu até és bom a fugir, porquê desistir agora?
- Não! - exclamou ele com uma expressão carrancuda.
- Porquê?
- Porque não tenho nada melhor para fazer do que chatear-te; porque é que pensaste que era? Marion, aceitei fazer uma coisa que me pediram, porra! Estou a tentar levar essa tarefa até ao fim. Não é isso que não te cansas de me dizer? Não é isso que sempre quiseste? - J. T. inclinou-se subitamente para a frente. - Além do mais, quero o Beckett. Quero vê-lo morto!
- Para que possas saber que és a coisa maior, pior e mais dura das redondezas?
- Não! - exclamou J. T. suficientemente irritado para ripostar com a verdade. - Para que a Tess consiga dormir à noite descansada. Para que possa reaver a filha. Para que duas pessoas possam dar continuidade às suas vidas, porque, sem sombra de dúvida, nós não estamos a ser muito bem sucedidos a dar continuidade às nossas.
- Não percebo do que estás para aí a falar.
- Percebes, sim, Marion - ripostou J. T. dando um murro na mesa. - Sei que percebes. Vejo-o nos teus olhos. E também sei que essa é a verdadeira razão por que vieste, tal como é a verdadeira razão que me levou a telefonar-te.
A expressão no rosto dela acendeu-se para a vida. Encheu-se de uma raiva venenosa que congelou o ar que ele tinha nos pulmões. Ele estava familiarizado com aquela cólera. Conhecia aquele tipo de ódio.
- Ele deixou-te tudo o que tinha, meu grande filho-da-puta! - invectivou Marion numa voz sibilada. - Ele deixou tudo para ti!
- Tu só sentias ódio por ele. Abandonaste-o, atiraste-lhe com tudo e mais alguma coisa à cara, denegriste o nome da família e tornaste-te um fracassado de primeira classe... Mas, apesar de tudo isso, ele deixou-te a quase totalidade da sua herança! A Emma fica com uma renda vitalícia que lhe permite ir às compras até que acabe por se passar completamente. Um filho que eu venha a ter também será beneficiário de um certo rendimento. E tu ficas com o resto. Sacana, meu grande sacana, sacana, sacana!
O rosto dela já não tinha uma expressão de frieza, mas sim de transtorno e angústia.
A mão de J. T. começou a tremer. Agora, as cartas estavam todas na mesa. E a verdade doía-lhe mais do que pensara ser possível.
- Não quero dinheiro nenhum. Recuso-me a aceitar essa herança. Podes ficar com tudo.
- Raios te partam, foi a ti que ele a deixou! O mínimo que podes fazer é aceitar!
- Não. Ele é que era o sacana, Marion, e esse testamento perverso revela-o. Podes ficar com tudo. Tu... tu mereces essa herança.
- Não estarás a querer dizer que fiz tudo para a merecer. - perguntou Marion.
O mundo parou de girar. J. T. não conseguia ter mão em todas as recordações, emoções e reacções que lhe desfilavam pelo pensamento.
- Portanto, tu recordas-te realmente - afirmou numa voz muito enfraquecida. - Recordas-te realmente.
- Não - negou ela, peremptória e de imediato. Nenhum deles acreditou no que ela dissera.
- Marion... - começou J. T. estendendo-lhe a mão. Acto contínuo, ela retraiu-se toda para trás. - O que ele te fez não tem qualificação - murmurou J. T. - Meu Deus, ele violou-te...
Toda ela estremeceu; apesar disso, ele sentia-se incapaz de parar. Era uma coisa que tinha de ser dita. J. T. não conhecia outra maneira que lhes permitisse dar continuidade às suas vidas.
- A culpa não foi tua, Marion. - As palavras saíam-lhe em catadupa. Dizia-as quase com um sentimento de desespero, sem saber durante quanto mais tempo ela lhe permitiria continuar e ainda tinha tanta coisa que queria dizer-lhe, que precisava de lhe dizer. - Tens de meter na tua cabeça que a culpa não foi tua. Não foi. Ele era um homem doente, com uma mente perversa, que nos arruinou como se fôssemos um mero passatempo. Mas agora está morto. Ele está morto e nós estamos vivos e está ao nosso alcance ultrapassar este problema. Vamos cerrar fileiras, tu e eu. Não te lembras? - perguntou J. T. tentando pegar na mão da irmã, mas ela continuava a rejeitar aquela manifestação de afecto.
- Deixa-me em paz - pediu ela numa voz que mal se ouvia. - Eu não sou nada como tu, J. T., não sou nenhuma bêbeda fracassada.
- Quando éramos miúdos, Marion, eu costumava desejar ser uma rapariga. Queres saber porquê?
Ela fitou-o com uma expressão dúbia.
- Para que ele te deixasse em paz - continuou J. T. - Deduzi que se tivesse nascido rapariga, pelo menos, ele ter-te-ia deixado em paz.
Olhou abertamente para a irmã, sem mais frases indirectas, sem erguer as defesas, sem qualquer protecção. Não podia ser mais sincero. E viu que o gelo começava a quebrar-se. Marion tinha-se ido embora, dando lugar à Merry Beny que se sentava à sua frente; dava a impressão de estar tão inacreditavelmente perdida e sozinha que ele sentiu o ardor de lágrimas nos olhos. Oh, céus, o que é que o coronel fizera aos dois? E por que razão agora, até mesmo depois da morte do homem, eles não conseguiam entender-se para resolver os seus problemas!
- Ainda me lembro dos fortes de almofadas - murmurou J. T. numa voz tão enrouquecida que não podia ser a sua. - Diz-me que ainda te recordas dos fortes que fazíamos com almofadas. Diz-me que ainda te lembras de como costumávamos atirar meias à criada que as arremessava contra nós logo a seguir, o que fazia com que guinchássemos, gritássemos de tanto nos rirmos.
Marion fez um aceno de cabeça. J. T. viu as lágrimas ao canto dos olhos da irmã.
- À noite vinhas ao meu quarto e ficávamos tapados debaixo dos lençóis com uma lanterna a ler os livros de banda desenhada do GI Joe. Tu gostavas da personagem chamada Snake. Acreditavas que ele haveria de chegar um dia para nos salvar.
- Não - protestou Marion, renitente.
- E andávamos sempre a mudar de casa, passando a vida a conhecer novas cidades, novas escolas e novos amigos, mas, pelo menos, tínhamo-nos um ao outro. No primeiro dia numa nova escola, tu costumavas dar-me a mão e eu dizia-te que tudo iria correr pelo melhor.
- Não - repetiu ela.
- E houve uma ocasião em que eu disse ao director da escola que o coronel nos batia. E também contei ao homem que o coronel ia ao teu quarto todas as noites...
- Não
- E ele disse-me que eu era um mentiroso e pôs-me de castigo por estar a espalhar falsidades. O coronel deu-me uma tareia tão grande que durante uma semana não consegui sentar-me, enquanto tu nem sequer falavas comigo. Eu não fazia a mais pequena ideia do que ele te teria dito nem por que motivo ninguém acreditava em mim. Porque é que não haveria alguém como o Snake que aparecesse uma noite para nos salvar.
- Raios te partam, raios te partam, raios te partam!
- Eu odiava-o, Marion. Mas nunca te odiei. Tu foste a única coisa boa da minha infância. A única pessoa que me inspirava esperança. A única que eu amava.
- Cala a boca! - ordenou ela. Não conseguiu conter as lágrimas, que começaram a correr-lhe livremente pelas faces. J. T. queria tanto tocar-lhe para a confortar. Ansiava por poder limpar-lhe as lágrimas e abraçá-la com força, porque também sentia as lágrimas nos seus próprios olhos, assim como a raiva que nunca desaparecia por completo porque haviam sido despojados de tanta coisa que jamais conseguiriam reaver. Agora restava apenas o vazio e a raiva, além de uma dor excruciante que ele nunca soubera como sarar. - Não quero ouvir mais nada! - retorquiu ela em voz baixa sentindo o coração destroçado. Enquanto J. T. olhava para a irmã, ela levou o cigarro à boca com uma mão que tremia tanto que só à terceira tentativa conseguiu metê-lo entre os lábios.
- Marion - continuou ele num tom cheio de veemência -, temos de falar sobre este assunto.
- Eu... eu não posso.
- Merry Berry...
Marion inclinou-se por cima da mesa com uns olhos azuis que exprimiam súplica e desespero.
- Jordan Terrance, se alguma vez gostaste de mim, então, vais jurar-me, neste preciso momento, que jamais voltarás a falar sobre o assunto do pai. Jura-me!
- Jura aquilo que te pedi! - exigiu ela, veemente.
- E acreditas que isso fará com que o assunto desapareça para sempre? -Jura.
Ele voltou a abanar a cabeça. Mas isso não a fez desistir. Ele suplicou-lhe, mas sem qualquer resultado. Marion estava irredutível e o sentimento de culpa que se apoderara dele era demasiado avassalador para o fazer continuar a insistir.
- Está bem, Marion. Como queiras.
Ela soltou a respiração, recostando-se para trás com um suspiro entrecortado de alívio.
- Não sou como tu - declarou ela pouco depois. - Tu tomaste a decisão mais acertada, J. T., quando decidiste deixá-lo. Ao odiá-lo com tal intensidade. Mas eu... eu não sou capaz. Dentro de mim vai uma grande confusão de pensamentos e... e eu não sou capaz de perceber o que me vai na mente. Costumava pensar que era uma pessoa forte, mas talvez isso não passe de uma ilusão. Talvez não seja capaz de lidar com a situação.
- Conseguiste chegar até aqui. Fala comigo. Ao menos confia em mim...
Marion virou a cabeça ligeiramente. A expressão nos seus olhos reflectia um enorme sentimento de culpa e cólera, assim como dor. J. T. começou a compreender até que ponto falhara durante tantos anos. Deus lhe valesse.
- Marion...
Ela desviou o olhar. Entretanto, J. T. começou a ouvir os passos de Tess atrás dos dois e, de um momento para o outro, a fisionomia de Marion fechou-se por completo. A irmã de J. T. desapareceu, restando apenas a agente especial do FBI, fria e severa. Ambos tinham crescido numa casa cheia de máscaras e onde todos os residentes eram artistas que mudavam rapidamente. Havia hábitos que nunca desapareciam.
- Não te esqueças de que juraste - recordou-lhe Marion entre dentes. - Espero que cumpras a tua palavra.
Tess chegou junto da mesa, anunciando sem qualquer preâmbulo:
- Tenho um plano. - Apoiou as palmas das mãos sobre o tampo da mesa. - Vamos voltar aonde tudo começou. Williamstown, a velha casa. Vamos dar ao Jim aquilo que ele quer mais do que qualquer outra coisa. Vamos proporcionar-lhe uma segunda oportunidade para poder matar-me.
- Mister Dillon, isto vai doer-lhe um bocado.
- Não me diga!
O médico agarrou nos dedos da mão do braço magoado de J. T. e começou a puxar com força. Tess ouviu o ranger e depois um estalo quando o osso se encaixou no lugar. J. T. empalideceu sentindo uma dor tão intensa que quase o cegava, mas não emitiu um único som. Os seus olhos continuavam vazios de qualquer expressão, presos na parede mais afastada, enquanto Tess se retraía por ele.
O médico concluiu o exame que fez ao osso recentemente alinhado, enquanto Tess e Marion aguardavam sentadas em cadeiras metálicas. Marion mantinha os olhos afastados do irmão. Observava tudo o que se encontrava no consultório exíguo - a marquesa, o tabuleiro onde estavam os instrumentos cirúrgicos, as radiografias tiradas ao braço esquerdo, colocadas no quadro luminoso na parede, a bancada cheia de compressas, vários abaixa-línguas e um aparelho para medir a tensão arterial. Quando o médico forçara o braço do irmão a endireitar-se, Marion retraíra-se. Mas, tirando esse momento, mantinha-se imóvel e em silêncio, como se nem sequer estivesse no consultório.
Tess reconheceu os sinais. Marion sentia as dores do irmão como se fossem suas e, resolutamente, isolava-se delas. Perguntou a si mesma quantas vezes eles teriam optado por aquela atitude de alheamento enquanto cresciam, deduzindo que teriam sido bastantes. Ela também se entregara às mesmas práticas, no focal muito remoto da sua mente onde se escondera de modo a não ouvir o barulho do pai a esbofetear as faces da mãe, ou a não sentir o corpo do marido em cima dela, numa actividade sexual desenfreada.
O passado aproximava-se furtivamente das pessoas e da maneira mais insidiosa.
Naquele momento, o médico acabou de secar a massa especial que agora envolvia a região inferior do cotovelo de J. T. até à palma da mão. Os dedos saíam absurdamente daquela prisão branca. O material era à prova de água, o que lhe permitia continuar a nadar. Além disso, o braço perdera temporariamente quase toda a mobilidade. Por fim, o médico entregou-lhe a faixa que ele teria de usar para manter o braço ao peito.
- Tem de dar a esse braço entre seis a oito semanas de repouso para que alcance boas condições de mobilidade; depois disso, ficará como novo.
- Hum... hum.
- Não é obrigado a trazê-lo ao peito, mas se eu estivesse no seu lugar era o que faria durante os primeiros dois dias para que o braço se mantivesse totalmente imobilizado, permitindo que a fractura comece a sarar.
- Hum... hum - repetiu J. T., atirando a faixa de pano para o chão.
- Nada de corridas ou outras actividades de esforço até à remoção desta massa - acrescentou o médico franzindo o sobrolho. - Se cair ou voltar a magoar esse braço, corre o risco de provocar uma fractura muito grave.
- Hum... hum.
- Tem alguma dúvida? - perguntou o médico mostrando um mal-estar cada vez maior.
Pela primeira vez, J. T. olhou com atenção para o homem. Tess reparou que o médico se retraía instintivamente. Não o censurava. J. T. estava com uma expressão demoníaca.
- Tratou de algum ferimento de arma de fogo nos últimos tempos?
- Como?!
- Tratou algum ferimento de bala? Provavelmente no ombro. O homem é careca e não tem sobrancelhas. Seria difícil esquecê-lo, caso o tivesse tratado.
O médico olhou para Tess e depois para Marion como se lhes pedisse que o ajudassem. Marion apresentou-lhe a sua identificação do FBI.
- Responda à pergunta dele.
- Ah... não. Sinceramente que não. No entanto, posso perguntar aos meus colegas, caso queiram. - A combinação da frieza de Marion com a ferocidade de J. T. fazia com que o médico, de repente, se mostrasse ansioso por ser prestável.
- Está a dizer-nos a verdade?
- Mister Dillon, sou um médico e não um bandido - protestou o médico sentando-se um pouco mais a direito, reclamando o respeito devido à sua dignidade.
- Se o senhor o diz... - redarguiu J. T. com um encolher de ombros e saindo da cadeira. - Quanto é que lhe devo?
Enquanto o médico piscava os olhos continuamente, J. T. tirava do bolso um maço, começando a contar notas de cem dólares.
No estacionamento do consultório do médico, Marion despediu-se. Tinha concordado em ir falar com o agente especial Quincy sobre a ideia de Tess, apesar de não ter passado despercebido a esta que Marion ficara duvidosa quanto à sensatez de ela vir a servir de isco.
Tess queria que ela expusesse a ideia a Quincy. Talvez ele a levasse mais a sério se lhe fosse apresentada por uma colega do FBI.
Marion encaminhou-se para o seu automóvel. Antes de abrir a porta, o seu olhar pousou de relance, e por duas vezes, em J. T.
- Não te esqueças - começou o irmão a dizer, mostrando-se circunspecto - de que podes telefonar-me... em qualquer altura.
Marion hesitou, mas depois acenou afirmativamente. Tess apercebeu-se de que J. T. soltava um suspiro de alívio. Ficou a olhar para a irmã que se afastava; os seus olhos tinham uma expressão velada.
- Sentes-te bem? - perguntou Tess em voz baixa.
- Uma maravilha!;
- Foi o que pensei. J. T. sentou-se no lugar do passageiro no carro de aluguer. Tess instalou-se ao volante, ligando a ignição. Perguntou-se se ele estaria disposto a adiantar-lhe alguma informação ou se a forçaria a arrancá-la dele, figurativamente, com um pé-de-cabra. Desconfiava que seria a última hipótese a verdadeira.
- Tens a certeza de que te sentes bem?
- Não quero falar a esse respeito - ripostou J. T.
- Talvez devesses falar.
- Deixa-me em paz, Tess.
- Quero fazer tudo por ti, J. T. - acrescentou ela incapaz de fazer como ele lhe pedia. - Tal como me apoiaste quando vim ter contigo.
- Quando a Marion se tornar uma assassina em série, podemos voltar a falar sobre isso.
- Não tem graça nenhuma.
- Não, suponho que não tenha - replicou ele olhando pela janela do carro. - Por favor, limita-te a conduzir. Aprecio muito a tua oferta, mas, por agora, só quero que continues a guiar.
Ela cedeu. Trinta minutos depois, entrava no parque de estacionamento do motel, desligando o motor e saindo do automóvel. Já tinha dado dois passos, quando ele, finalmente, se decidiu a falar.
- Vou dar uma volta de automóvel.
- J. T., isso é uma ideia péssima.
- É uma pena porque, seja como for, é o que tenciono fazer - afirmou J. T.
- E eu? O que é que estás à espera que eu faça? - perguntou Tess voltando-se para ele. - Ficar sentada a tricotar? Ou sozinha à espera do próximo ataque do Jim? Saíste-me um belo guarda-costas, não haja dúvida!
- Tens toda a razão. Entra para o carro.
- O quê?!
- Entra para o carro. Caso contrário, ficas apeada - redarquiu J. T., que já se sentara ao volante. Era evidente que o assunto já não estava aberto a discussão. Tess dirigiu-se para a porta do passageiro da frente, sentando-se com brusquidão e fitando-o com uma expressão de rebeldia.
- Não estás em condições de guiar apenas com um braço!
- Talvez tenhas razão - admitiu pondo o motor a funcionar. Olhou para ela durante o tempo suficiente para lhe sorrir sombriamente. - Aperta o cinto de segurança - acrescentou J. T. na sua voz arrastada, engrenando a mudança. Seguiu a grande velocidade, passando sucessivamente por vários cruzamentos enquanto Tess se segurava com toda a firmeza ao painel.
- Vai mais devagar! Por amor de Deus, vai mais devagar!
- Estás com medo, Tess? - perguntou ele falando entre dentes; virou-se para ela e fitou-a no momento em que se aproximava de uma curva apertada numa estrada secundária bastante estreita. - Que diabo, tu até estás disposta a enfrentar o Beckett. O meu estilo de condução devia ser bastante enfadonho quando comparado com isso.
- A esquina, a esquina! - gritou ela a plenos pulmões.
- Não há motivo para preocupações.
Tess sentiu que o coração lhe batia aceleradamente no peito. O suor que se acumulava por cima do lábio superior começou a escorrer-lhe para a boca. Agora compreendia o que ele fazia, e sabia que não abrandaria a velocidade a que seguiam. J. T. sentia-se encolerizado, e mostrava-o numa atitude infantil, egoísta e perigosa.
- Não vou mudar de ideias, J. T. E, muito francamente, estou farta de brincadeiras.
Ele não lhe respondeu. O maxilar mostrava determinação e os bíceps salientavam-se enquanto ele dominava a velocidade a que conduzia furiosamente, vergando o automóvel para que obedecesse à sua vontade. Num dos lados surgiu um caminho de terra batida que parecia ser muito irregular e abandonado. Talvez se destinasse a tractores e maquinaria pesada que não ultrapassavam pouco mais de sete quilómetros por hora.
Tess fechou os olhos com força.
Com o acelerador a fundo, J. T. atacou esse caminho. O carro passou por cima de uma elevação de terreno e, durante três segundos, foi projectado pelo ar. O veículo caiu violentamente sobre a terra fazendo com que os amortecedores acusassem o impacto; as portas do automóvel chocalharam e o porta-bagagem elevou-se. Tess sentiu os dentes a baterem uns nos outros e os ossos a estalarem. Ao seu lado, J. T. também acusou a violência do impacto, do que ela se apercebeu pela sua respiração.
Abriu os olhos, virando-se de súbito para ele.
- Já chega! - gritou-lhe. - Pára imediatamente com esta idiotice! Imediatamente!
Sem mais nem menos, J. T. travou de repente.
O automóvel parou com um solavanco violento. Por não estar à espera daquilo, Tess foi sacudida e projectada contra o painel, mas J. T. nem sequer lhe pediu desculpa. Abriu a porta de rompante e saiu disparado da viatura.
Vacilante, Tess seguiu-lhe o exemplo, agora sem a mínima intenção de recuar.
A poeira levantava-se em redor dos pés deles; de imediato, sentiram o frio do Outono na pele. Tess não avistou nenhuma casa nem qualquer viatura. À sua frente, via apenas campos planos e estéreis que começavam a ser cobertos por uma camada de geada, assim como os contornos pouco definidos de uma cordilheira.
Num passo cheio de vigor, J. T. contornou o automóvel, fitando-a com uns olhos acerados.
- Não vais servir de isco - declarou ele. - Não vou permitir.
Tess abriu a boca para argumentar, mas ele aproximou-se dela bruscamente, encostando-a ao carro, encurralando-a com o seu corpo. Sorriu-lhe, mas o sorriso não era nada agradável.
- Estás assim tão ansiosa por morrer, Tess?
- Não - respondeu ela com a respiração entrecortada. J. T. imobilizava-lhe as mãos junto ao corpo. Com um gesto brusco, conseguiu libertá-las colocando-as no peito dele. Se ele queria luta, ela responder-lhe-ia na mesma moeda. Já tinha aprendido a fazê-lo.
- Não vais para a frente com os teus planos - declarou J. T.
- Aí é que te enganas! Vou, sim!
- Os teus planos têm uma falha, Tess... Um homem como ele não receia a dor física; provavelmente, a única maneira de o deter será atingi-lo com um tiro certeiro. E depois, Tess, o que acontece?
- Ele estará morto.
- E a Sam? E quanto à tua filha? Se ele morrer, como é que vais conseguir encontrá-la?
- Eu... eu... - Ela não sabia. - Obrigo-o a dizer-me onde ela está - acrescentou teimosamente. - É isso que vou fazer.
- Raios te partam! - rugiu J. T. - Não te deixarei fazer isso!
- Uma porra é que não deixas! - vociferou Tess levantando as mãos para o empurrar.
- Estás a atacar um homem lesionado, Tess? - perguntou J. T. chegando-se mais a ela com uma expressão perigosa nos olhos.
- O que quer que dê resultado - retorquiu ela contorcendo as ancas para conseguir libertar-se dele. Mas foi inútil.
- Este homem lesionado está a tentar salvar a tua vida! - acrescentou ele, carrancudo, aproximando-se mais dela, o bafo quente na face de Tess.
- Salvar a minha vida? O que é que tu te interessas pela minha vida? Quando nem sequer reconheceste a sua existência durante as últimas duas horas!
- Estás a sentir-te melindrada? Só porque não te adulei nem olhei em adoração para os teus profundos olhos castanhos? - Abruptamente, a mão dele deslizou por baixo da camisola dela, fechando-se à volta do seio. Conhecia bem o seu corpo. Com um movimento do polegar, o mamilo começou a ficar rijo. Ela ressentiu-se por ele estar a fazer-lhe aquilo. Mesmo assim, arqueou o corpo, entregando-se à carícia, desejando que ele voltasse a tocar-lhe.
- Pensei em ti - afirmou J. T. numa voz sussurrada. - Pensei no teu seio na minha boca. As tuas mãos no meu cabelo. Pensei em arquear-te o corpo para trás e possuir-te. É isto que queres ouvir? É suficientemente romântico para o teu gosto, Tess? - Encostado a ela, imprimiu movimentos rotativos muito sugestivos aos quadris. Tess mordeu o lábio inferior, detestando-o por estar a fazer com que o desejasse e dando a entender que o assunto não tinha nada de especial.
- Maldito sejas! - exclamou ela numa voz enrouquecida.
À guisa de resposta, J. T. chegou a boca à dela mordendo-lhe o lábio inferior. As mãos dela abriram-se no peito dele. Enterrou os dedos nos ombros, puxando-o mais contra si enquanto a sua mente gritava com uma fúria cega, chamando-lhe louca.
- Pára com isso. Não sou o teu brinquedo! - protestou Tess afastando a cabeça para trás.
- Podias ter-me enganado - acrescentou ele enquanto o polegar recomeçava a acariciar-lhe o mamilo rígido de modo mais insistente.
Tess arqueou as costas, entregando-se à carícia da mão dele.
- Não importa - continuou ela numa voz enrouquecida pelo desejo. - Estou decidida a armar a minha cilada. Vou fazer o que planeei. Se quiseres ficar zangado comigo, muito bem. Se quiseres torturar-me até lá, óptimo. Mas sei que isso não tem qualquer significado para ti, pelo que não altera absolutamente nada!
Então, inopinadamente, J. T. afastou-se para trás. Ela gritou o seu desapontamento, sem vergonha, as mãos estendidas para ele. Num movimento cheio de agilidade, ele agarrou-a pelos ombros, fazendo-a girar sobre si mesma. Parou quando estava virada de frente para o carro, sentindo na orelha a respiração quente de J. T. Uma vez mais, os quadris dele faziam movimentos circulares muito sugestivos, o ventre encostado às nádegas dela.
- Desaperta as calças - pediu ele num murmúrio. - Fá-lo para mim.
Tess abanou a cabeça, mas as suas mãos procuraram o fecho de correr. Os dedos dele fecharam-se à volta da ganga grossa do cós das calças, empurrando-as para baixo no preciso instante em que ela abriu o fecho. Tess sentiu o ar frio do Inverno a envolver-lhe as ancas nuas. Sentiu que ele puxava a camisola dela para cima; apoiou as palmas da mão em cima do porta-bagagem.
- Não vou permitir que sirvas de engodo ao Beckett - repetiu ele numa voz rosnada.
- Não és capaz de me impedir - murmurou ela abrindo as pernas ainda mais.
- Porra! - exclamou ele, investindo com mais força. Ela gritou quando ele começou a penetrá-la. - Vou salvar-te, quer queiras quer não - acrescentou J. T. já com as ancas em acção. - Raios te partam, vou salvar-te. Vou salvar-te, quer queiras quer não!
- Não podes - ripostou ela num sussurro, mas depois deixou de conseguir pensar com coerência. O ar estava frio e revigorante, o corpo dele escaldava e estava duro.
A cadência dos movimentos aumentou e os ouvidos dela só conheciam os sons da pulsação cada vez mais acelerada e os grunhidos dele por entre uma respiração arfante. Sentia-o a entrar dentro de si, cada vez mais fundo. A união dele com ela. A percepção de que talvez tivesse pouco significado para ele, mas, para ela, aquilo era tudo. Sempre teria muito significado para Tess.
- Maldito seja o coronel! - exclamou ele bruscamente em voz baixa. - Maldito seja o Jim Beckett! Não permitirei que eles destruam mais ninguém. Não permitirei... - A voz dele esmoreceu num grito entrecortado. Penetrou-a ainda mais fundo, vindo-se dentro dela quando ela soltou o grito da libertação de toda aquela tensão.
Em seguida, ela murmurou o nome dele sabendo no seu coração que era tarde de mais para raciocinar com a cabeça. Tess compreendia a cólera que ele sentia, tal como compreendia os seus receios. Também compreendia as carências de J. T. Tinha penetrado por baixo da pele dele e visto todo o bem que ele era incapaz de reconhecer, o medo que ele tentava ocultar e a solidão que fingia não existir..
Tess amava J. T. Muito mais tarde, já depois de o Sol ter desaparecido, dando lugar a uma Lua recém-nascida que namoriscava o céu, foram para o quarto de outro motel. J. T. mantinha-se calado, a exemplo do que acontecera durante toda a tarde. Depois de ter largado o seu saco de viagem no chão, Tess entregou-lhe o frasco de aspirinas que levara consigo. Ele tirou oito, tomando-as todas de uma só vez. Cansado, J. T. começou a despir-se. Sem dizer palavra, Tess observava-o atentamente.
- Estás a deixar-me constrangido - resmungou J. T.
- Só estou a admirar-te. Já te disseram que és lindíssimo?
- A tensão fritou-te os miolos.
- Estou a falar a sério, J. T. Para mim és lindo.
Ele virou-lhe costas e foi para a cama. Tess começou a despir-se, e depois juntou-se a ele. Já tinham falado com o tenente Houlihan. Não havia sinal de Jim nem tão-pouco de Sam. Algures, não sabia onde, a filha dormia sozinha. Estariam a cuidar bem dela? Tê-la-iam alimentado como devia ser? Teria Jim o cuidado de lhe ler histórias antes de a aconchegar para dormir?
Tess chegara a um ponto em que não conseguia suportar o afastamento da filha. J. T. era o que desempenhava o papel do duro. Ela tinha consciência de que se sentia avassalada e atemorizada, quase desesperada. Com o corpo nu em forma de concha envolveu-se no dele, apesar de saber que aquele tipo de contacto não lhe agradava muito.
- Ela já começou a recordar-se - disse ele de súbito.
Tess imobilizou-se, mas depois passou os dedos pelos ombros dele num gesto silencioso de conforto.
- Estou certa de que a ajudarás.
- Ela obrigou-me a prometer-lhe que nunca mais voltaria a mencionar o nome dele.
- Tens de lhe dar tempo. Mais cedo ou mais tarde, ela vai ter necessidade de desabafar. Virá ter contigo e tu estarás receptivo para ouvir o que ela tiver a dizer.
- A Rachel costumava dizer-me que eu tinha de pôr as coisas para trás das costas. Que me agarrava de mais às recordações do passado.
- Talvez seja verdade.
- Eu falhei em relação a ela, Tess. Devias ter visto a expressão nos seus olhos... Nunca me tinha apercebido de como falhei quando ela mais precisava de mim até ver as recordações nos olhos dela.
- Não penses nisso...
- Não faças o que queres fazer - pediu ele a Tess.
- Tenho de fazer. Todos se bateram nesta batalha menos eu. Todos pagaram o preço menos eu.
- Isso quer dizer que só então é que te sentirás satisfeita? Quando ele, finalmente, conseguir matar-te? - A voz deixava adivinhar a tensão que ela lhe sentia nos músculos do corpo.
Tess abriu a boca para lhe responder, mas mudou de ideias, proferindo apenas:
- Não quero voltar a falar sobre esse assunto.
- Bom, mas eu quero. Vai para longe, Tess. Esconde-te num hotel qualquer do Arizona enquanto eu finjo que és tu quem está na casa.
- Tu estás ferido. - Quando sentiu a contracção nos músculos dele, Tess soube que tinha infligido um golpe incomensurável no seu orgulho masculino.
- Não confias em mim, Tess?
Ela encostou a face ao ombro dele. Os seus dedos percorreram-lhe os pêlos pretos do ventre.
- Não depende apenas de ti, J. T. - replicou ela num tom de voz suave -, tentar salvar o mundo. Ninguém tem força para isso. Seremos os dois na casa. Eu serei o engodo e tu estarás preparado para dar caça ao rato.
- Recuso-me a assistir à tua morte - retorquiu J. T.
- Não tenciono morrer.
- Estou tão farto de ver morrer aqueles a quem mais quero - continuou ele numa voz rouca.
- Amo-te - confessou Tess em voz baixa, agarrando-se mais a J. T. Os dois ficaram em silêncio.
Edith encontrava-se sentada na sala de estar da casa de Martha, segurando uma chávena cheia de chá preto enquanto observava a neta da amiga, que lia um livro instalada no sofá ao lado da avó.
Não se podia dizer grande coisa sobre aquela sala de estar. O sofá já era bastante velho e estava puído, tendo sido, muito possivelmente, comprado numa loja de mobílias em segunda mão. À semelhança das demais peças de mobiliário, em número reduzido, recordava a Edith o tipo de vestuário que Martha preferia - fora de moda, ecléctico e sem que as peças condissessem umas com as outras. As paredes não tinham um único retrato, um pormenor em que Edith nunca reparara. Em toda a casa, não havia um único retrato ou fotografia emoldurada.
Edith obrigou-se a voltar a olhar para a garota. Chamava-se Stephanie e dava a impressão de ser uma criança calada e tristonha. Vestia um fato de treino muito grosso e usava um boné de pala que lhe ocultava parcialmente os cabelos e os olhos. O rosto dela provocava em Edith uma vaga sensação de incómodo, como se já a tivesse visto sem saber onde. É claro que ela tinha tendência para achar que todas as crianças pequenas se assemelhavam.
Optou por se concentrar no seu chá enquanto Stephanie continuava a ler a história da Cinderela em voz alta.
Naquele momento, Edith imaginava a abóbora que se transformara num coche quando sentiu os braços percorridos por arrepios de frio.
Ergueu o olhar para logo a seguir desejar não ter feito isso.
Raparigas, tantas raparigas. Nunca tinha visto tantas raparigas juntas. Ali, naquela sala de estar, via as feições delas com tanta clareza que pensou que podia estender a mão para lhes tocar. Como era possível que Martha não as visse? Como é que Stephanie podia estar a falar de ratinhos que, por artes mágicas, se transformavam em lacaios enquanto meia dúzia de figuras etéreas andavam num corrupio de um lado para o outro, todas nuas e sem o mínimo pudor?
Sentia dores no peito, uma pressão que lhe apertava as costelas como um torno. Edith abriu a boca. Tentou gritar-lhes para que a deixassem em paz; era apenas uma mulher de idade que não sabia o que elas queriam.
Então, apercebeu-se de que não olhavam para ela, não lhe dirigiam as suas súplicas através de olhares torturados. Em vez disso, fitavam Martha e Stephanie, e a perturbação que sentiam era evidente.
Edith, num movimento repentino, sentou-se numa posição hirta. Entornou chá sobre as pernas, sem sequer sentir que estava a queimá-la.
- Martha! - chamou numa voz arquejante. - Corres perigo! Um perigo horrível... horrível!
Stephanie interrompeu a sua história olhando para Edith com os olhos azuis muito abertos. Martha levantou a cabeça com mais lentidão.
- Stephanie, por favor, vai para o teu quarto.
A garota levantou-se rapidamente do sofá, parecendo sentir-se aliviada por poder escapar. Em seguida, Martha voltou-se para Edith.
- Como é que soubeste?
- Eu costumo ver coisas - confessou Edith falando muito depressa. Nunca admitira aquilo em voz alta. Mas a verdade é que lhe aliviava o aperto que sentia no peito. Acrescentou com mais firmeza: - Vejo os mortos.
Os olhos de Martha arregalaram-se. Edith esperava ver uma expressão de choque, escárnio ou mesmo repulsa. Em vez disso, o olhar de Martha mostrou interesse, curiosidade.
- Costumas ver os mortos?
- Sim - confirmou Edith.
- E eles falam contigo?
- Não, limitam-se a aparecer-me, muito torturados, como se precisassem que eu compreendesse não sei bem o quê.
Martha inclinou-se para a frente, agarrando com força na mão da amiga. Tinha um aperto surpreendentemente forte.
- Conta-me - pediu numa voz segredada. - Conta-me tudo.
No quarto, Samantha afastou o ouvido da porta. Tinham-lhe ensinado como ligar para o 112, dando o seu nome completo, endereço e número de telefone. Mas naquele quarto não tinha telefone, e já não sabia qual era a sua morada e número de telefone. Naquele momento, não sabia o que devia fazer.
Pouco depois, aproximou-se da cama que passara a ser a sua há apenas alguns dias.
Sentou-se na beira passando a mãozita pelos cabelos da sua boneca.
- Está tudo bem - disse ao seu bebé. Voltou a fazer festas à bonita boneca cor-de-rosa. - A mamã não demora. A mamã está a chegar, e depois tudo correrá bem.
A polícia tentava recuperar o tempo perdido devido a erros do passado. Agora, todos os agentes que participavam nos briefings eram obrigados a identificar-se antes de entrar. Os responsáveis pelos três grupos de trabalho encontravam-se junto da recepcionista, confirmando pessoalmente a identificação dos seus homens. Este sistema dava origem a uma demora de quarenta e cinco minutos até que os homens se reunissem.
Tess sentava-se na primeira fila da sala, com J. T. ao seu lado. Marion sentava-se mais ao fundo e Tess continuava a perguntar a si própria se aquele distanciamento era intencional ou fortuito. Durante as últimas vinte e quatro horas, Tess e Marion tinham massacrado o agente especial Quincy e o tenente Houlihan até estes acabarem por concordar com o plano da primeira. Na noite anterior, Tess sentira-se triunfante; finalmente, havia qualquer coisa que estava prestes a concretizar-se. Nessa manhã, quando acompanhava as notícias na televisão, viu a fotografia da filha que apareceu outra vez, ainda que momentaneamente, no ecrã, e fora invadida por um terror indescritível.
- Muito bem, minha gente - começou o tenente Houlihan -, ouçam-me com atenção.
Quincy entrou na sala, caminhando num passo largo e com uma expressão preocupada; Houlihan lançou-lhe um olhar carrancudo. Quincy arrepiou caminho e, em vez de se encaminhar para o seu lugar na fila da frente, apressou-se a sentar-se ao lado de Marion. Houlihan retomou a palavra.
- Como sabem, formulámos uma nova estratégia com vista à captura do Jim Beckett. Hoje temos connosco, sentada aqui à frente, a ex-mulher do Beckett, a Tess Williams, que muitos de vocês já conhecem. Há dois anos e meio, ela concordou em ficar em sua casa, esperando que o Jim Beckett regressasse. Quanto a nós, comprometemo-nos a protegê-la e a capturar o marido. Não cumprimos integralmente a nossa parte do acordo. Agora, ela voltou a concordar em fazer o mesmo e, minha gente, desta vez vamos fazer as coisas como deve ser. Temos nesta sala três grupos de trabalho. Já fiz o ponto da situação com os vossos superiores hierárquicos que, posteriormente, vos porão ao corrente. Mas isto é o que precisam de saber neste momento. O Grupo de Trabalho A vai continuar a tentar descobrir o paradeiro da Samantha Williams e do Jim Beckett. Sei que o público continua a dar informações através do número de emergência. Além disso, foi sugerido que se averiguasse a validade das certidões de óbito dos familiares de Beckett. Vamos prolongar os turnos de trabalho de oito para doze horas...
Ouviram-se uns quantos gemidos de cansaço.
Mas Houlihan prosseguiu implacavelmente.
- Sim, minha gente, a vossa vida é uma chatice. Ponto seguinte, os grupos B e C são responsáveis pela protecção da Tess Williams com todos a alternarem em turnos de trabalho de oito horas. As vossas funções são constituídas por três objectivos principais: fazer o reconhecimento e proteger o perímetro de Williamstown, mantendo a casa escolhida para o efeito sob a vossa protecção e estando permanentemente preparados para qualquer assalto frontal. Os agentes passarão a trabalhar sempre aos pares. Alguns de vocês serão destacados para patrulhas a pé, enquanto outros se manterão de vigilância em veículos. A qualquer altura do dia ou da noite teremos sempre dez agentes de serviço. O FBI terá a responsabilidade de coordenar a vigilância e as escutas telefónicas. Também poderemos contar com a ajuda da Polícia de Intervenção. Não podemos mantê-los indefinidamente em alerta máximo, mas concordaram em ceder-nos três atiradores especiais que cobrirão a área, posicionados em telhados. Tal como terão oportunidade de ler nos vossos relatórios, foi assim que o Jim Beckett entrou na casa a última vez em que esteve lá. Desta feita, não vamos dar-lhe essa oportunidade.
Uma mão ergueu-se ao fundo da sala. Pertencia a um detective veterano que trabalhara nas investigações há dois anos e meio.
- Se me permite, e com todo o respeito, tenente, acho que não podemos manter este tipo de operação para sempre. Aquando da última vez, também começámos em alerta máximo e permanentemente preparados. Mas seis meses mais tarde, estávamos reduzidos a dois homens que mantinham a casa sob vigilância e nada de apoio de qualquer das brigadas de forças especiais. O que é que o leva a acreditar que desta vez será diferente? Temos orçamentos que não podemos exceder e também temos restrições de toda a ordem. E o Beckett está bem ciente desta realidade.
- É uma boa questão - retorquiu Houlihan com um aceno de aprovação. - Podemos aproveitar para discutir esse assunto. Agente especial Quincy... - acrescentou Houlihan afastando-se para o lado a fim de dar a palavra a Quincy, que se aproximou.
Este não olhou para J. T. nem para Tess. Vestia um fato azul-escuro e tinha uma aparência composta e reservada. Tess já tinha falado com ele em várias ocasiões; agora, como antes, as vidas dos dois estavam muito interligadas. Todavia, ele continuava a recusar tratá-la pelo seu nome próprio, e raramente falava com ela sobre assuntos que não estivessem relacionados com as investigações.
O trabalho dele ensinara-lhe a agir desapaixonadamente. As coisas que a deixavam horrorizada para ele eram meros lugares-comuns. Os aspectos que ela considerava serem intrusivos, para ele eram apenas parte do seu trabalho. As funções que ele exercia levavam-no até junto dos que viviam à margem da sociedade civilizada e ela acreditava que ele não conseguiria voltar a encontrar o caminho de retorno. Tess respeitava-o imenso e preocupava-se muito com ele.
Quincy começou como era seu costume, sem qualquer preâmbulo.
- Estamos convencidos de que não seremos obrigados a esperar muito tempo pelo próximo ataque do Beckett. Sem sombra de dúvida, ele já entrou em descompressão, ou seja, em descompensação.
- Por favor, fale de modo a que a gente perceba - resmungou o tenente Houlihan. - Nem todos possuímos licenciaturas.
- O Jim Beckett está a começar a desmoronar-se, a cometer erros - disse Quincy com toda a clareza.
Ouviu-se um coro de murmúrios de desacordo. O homem tinha assassinado três agentes de polícia no espaço de vinte e quatro horas. Isso não se enquadrava na definição que eles conheciam de uma pessoa que estivesse a desmoronar-se ou a cometer erros.
Quincy levantou a mão a pedir silêncio.
- Ouçam o que tenho para vos dizer. Os psicopatas são criaturas muito complexas. No entanto, sob vários aspectos, podemos compará-los a uma criança particularmente má.
Ouviram-se mais resmungos, mas Quincy não perdeu a paciência.
- Já ouviram as gravações. Portanto, sabem que o Jim Beckett considera que é um homem com um controlo sem precedentes. ”A disciplina é a chave”, uma frase que ele gosta muito de dizer. Não obstante, está redondamente enganado. Ele é dominado por uma compulsão que nem sequer ele próprio é capaz de explicar. Por um lado, considera que se encontra à margem da sociedade... uma consequência da neurose de que sofre. Por outro lado, bem no seu âmago, à semelhança de qualquer outra pessoa, tem necessidade de limites. À medida que comete os seus assassínios sem ser apanhado, atreve-se a façanhas cada vez mais ousadas e perigosas. Não apenas por uma questão de satisfação pessoal, mas também porque parte dele quer ser apanhado. A exemplo da criança que evolui num processo em que passa das birras aos pequenos crimes para chamar a atenção dos pais, o Beckett não hesitará em cometer assassínios cada vez mais arriscados com vista a chegar a essa barreira.
”Essa é a componente psicológica da descompensação. Os estudos científicos também indicam que existe uma componente fisiológica, mas não a compreendemos tão bem. Pensa-se que o acto de assassínio liberta substâncias químicas no cérebro. Os homicidas dizem que sentem uma espécie de euforia similar ao pico da exultação que um corredor sentirá. Antes de cometerem um assassínio, estão tensos, enervados e muito agitados. Depois do crime, sentem-se relaxados, calmos e muito serenos. Com o passar do tempo, o desejo, a necessidade de sentirem esta euforia, começa a comandar os actos do assassino. Começamos a ver espaços de tempo menores entre homicídios, os ciclos de tempo podem passar de seis meses a seis dias; no caso actual do Jim Beckett, estamos a falar de seis horas.
O silêncio instalou-se na sala.
- Na maioria dos casos, o assassino em série organizado começa a mostrar cada vez mais as características associadas a um toxicodependente. Em primeiro lugar, já não se mostra tão composto ou calmo. A saúde física começa a deteriorar-se. As substâncias químicas que são libertadas no cérebro e o fluxo constante de adrenalina interferem com as suas capacidades de funcionalidade. Como alguém que snifa cocaína, ele deixa de dormir, põe a comida de parte e começa a negligenciar a sua higiene pessoal. Em segundo lugar, os assassínios que comete são mais apressados e desesperados, o drogado necessita da sua dose. Também se tornam mais brutais; o assassino, que até então planeava ponderadamente os seus homicídios, adopta um estilo de ataque frontal... ataca e foge. Em terceiro lugar, o consumo de álcool e estupefacientes, regra geral, vai aumentando, uma vez que o homicida procura substitutos para conseguir os seus picos de euforia.
”Resumindo e concluindo, o assassino começa a agir irreflectidamente e torna-se vulnerável. Já tivemos oportunidade de ver este padrão de comportamento no Kemper, no Dahmer, no Bundy e em grande número de outros assassinos. E agora estamos a ver o mesmo padrão no Beckett. Observem.
Quincy fez um gesto com a mão e as luzes diminuíram de intensidade. Ligou um projector montado por cima de si, que apresentou na parede um gráfico composto por eventos e modos de operar. Era feito com traços vermelhos e azuis. As linhas azuis subiam exponencialmente no fim do gráfico.
- Antes de ir para a prisão, o Beckett matou dez mulheres durante um período de dezasseis meses. O que é indicado pelas linhas vermelhas, começando com o nascimento da filha e acabando oito meses mais tarde, antes de ter sido apanhado. As linhas azuis indicam o comportamento pós-prisão. Nos últimos tempos, ele matou seis pessoas em menos de quatro semanas. Começou por assassinar dois guardas prisionais. Ficou quieto durante três semanas. Mas depois, subitamente, em quatro dias, assassinou mais quatro pessoas.
”As mortes não foram todas necessárias. A Shelly Zane foi cúmplice dele e decerto teria continuado a ajudá-lo. O seu modo de agir quando entrou furtivamente na casa sob protecção policial podia ter sido menos violento. Ao princípio, o padrão de actuação era um corpo por cada letra. Por exemplo, matou uma mulher em Clinton, Massachusetts, para obter a letra ”C”. Mas agora assassina várias pessoas na mesma localidade. Por exemplo, dois guardas prisionais em Walpole a fim de ter a letra ”W”. Tanto o Wilcox como o Harrison foram mortos em Springfield, o que lhe deu a letra ”S”. Basicamente, ele passou a matar em demasia.
”Mais ainda: ele já não consegue dormir. Observem os últimos quatro dias indicados no mapa e reparem nas distâncias entre os locais onde os crimes foram cometidos. Primeiro, ele matou a Shelly Zane bem cedo, abandonando o cadáver em Avon, no Connecticut. Feito isto, vai de automóvel até à área de Springfield onde rapta, tortura e assassina Wilcox, oito horas mais tarde. Agora precisa de regressar ao local onde tem o seu esconderijo que, provavelmente, se situará fora da zona de Springfield, pois já revirámos toda essa área. Precisa de roubar um uniforme de polícia, arranjar um disfarce. E depois de ter feito isto, precisa de um lugar onde guardar as coisas. Necessita de fazer alguns telefonemas para cobrir eventuais pistas que possa ter deixado, etc., etc. Depois disso, ainda precisa de regressar de automóvel a Springfield, assumindo a identidade do agente Travis. Às seis horas da tarde do dia seguinte, apanha o Harrison de surpresa e mata-o a tiro. Depois deste assassínio, tem de se manter acordado dentro do carro que os agentes usam quando estão de vigia à casa. É uma da manhã e ele já não dorme há trinta e seis horas, mas nem por isso se coíbe de atacar o Difford. Em seguida, rapta a Sam. Agora tem de fugir durante toda a noite. Dentro do porta-bagagem do carro leva o cadáver do Difford, que não é nada pequeno. Talvez consiga dormir algumas horas logo ao princípio da manhã enquanto a Sam está adormecida. Mas ela não tarda a acordar e nessa altura vê-se forçado a cuidar da filha. Passaram quarenta e oito horas sem quase pregar olho e, em vez de ir para a cama nessa noite, ele regressa ao local onde assassinou o DifFord. Chegado aí, ataca Miss Williams e Mister Dillon, mas é ferido num ombro por uma bala. Uma vez mais, tem de voltar para o lugar onde se escondeu; está ferido e há cinquenta e seis horas que, praticamente, não dorme. Samantha não tardará a despertar, o que o impedirá de dormir durante mais um dia.
”Entretanto, ainda tem o corpo do DifFord e continua a ter algo que se assemelha a um plano. - Quincy interrompeu-se, olhando para Tess. Parece-me que a partir desta altura todos os esforços dele estão concentrados na senhora, Miss Williams. A raiva que ele tem dentro de si continua a crescer, a luxúria do sangue é uma coisa que se sobrepõe ao controlo das suas emoções. Se ele conseguir encontrá-la, entrará em acção. A sua ideia de servir de isco é, muito possivelmente, o melhor que poderíamos fazer. Mais cedo ou mais tarde, é inevitável que haja uma confrontação. É preferível que isso aconteça nos nossos termos em vez de nos vermos obrigados a cingir-nos aos termos dele.
O silêncio continuava a reinar na sala. Tess tinha a sensação de que aquela quietude ecoava dentro de si. Muito lentamente, fez um aceno de cabeça.
De súbito, ouviu-se a campainha de um telefone. Todos os presentes olharam em redor, sobressaltados e confusos. Momentos depois, concluíram que o toque parecia vir do fundo da sala.
- O meu telemóvel - murmurou Quincy. Tinha deixado a pasta ao fundo da sala. Com a cabeça, fez um gesto na direcção de Marion, que pegou no telefone, atendendo a chamada. Franziu a testa e depois tapou o bocal com a mão.
- É uma pessoa que diz chamar-se Lawrence Talbert e quer falar com o ”magistrado Quincy”.
Quincy ficou petrificado. Não disse nada e então Tess compreendeu. Era ele. Era Jim. Santa Mãe de Deus, era Jim!
Subitamente, Quincy começou a gesticular freneticamente e os agentes levantaram-se de imediato dos seus assentos. ”Localizem a origem da chamada, localizem a origem da chamada!”, eram palavras que eles desenhavam com os lábios, como se gritassem em silêncio.
Num passo lento, Marion encaminhou-se para a frente da sala entregando o telefone móvel a Quincy. Tinha um semblante muito calmo, muito senhora das suas emoções. Os dedos de Tess enterraram-se na coxa de J. T.
- Está? Quem fala, por favor? Bolas, sei que é você!
O olhar de Quincy dirigiu-se para a grelha do sistema de ventilação no tecto.
- Não, espere, não estou a compreender, explique-me o que quer dizer. Claro que não tenho nenhuma ferramenta à mão... - A sua voz era cada vez mais frenética, falava com uma entoação de urgência. Os nós dos dedos à volta do aparelho tinham adquirido uma coloração esbranquiçada. - Dê-me um minuto. Só preciso de ir buscar uma chave de parafusos. Sou um agente especial e não um homem que faz biscates. Espere... não ouvi o que disse. Importa-se de repetir isso? Acho que temos interferências na linha... Raios! - gritou Quincy exasperado.
Beckett tinha desligado e, numa manifestação muito rara nele, Quincy arremessou o telefone para a outra porta da sala. Bateu na parede do fundo partindo-se em vários bocados.
- Filho-da-puta! Grande filho-da-puta! - vociferou Quincy entre dentes. Baixou a cabeça, colocando-a entre os joelhos. Respirava com dificuldade, como se tivesse acabado de fazer uma corrida. Tinha o rosto perlado de suor. Vagarosamente, começou a endireitar-se e olhou para os rostos que tinham os olhos presos nele. Em seguida, voltou-se para a grelha de ventilação. - Um de vocês importa-se de me ir buscar uma chave de parafusos?
Ninguém se mexeu. Todos fixaram o olhar na grelha de ventilação no tecto alto. Tess sentia a histeria começar a fervilhar-lhe na garganta. Não existia lugar nenhum que fosse seguro. Nenhum lugar era sagrado. Jim ia aonde quer que fosse. Como uma epidemia de peste, ele contaminava tudo aquilo em que tocava. Ela própria sentia essa contaminação, bem dentro de si. Tess compreendia que, tal como acontecera a Quincy, ela tinha passado para lá dos limites do mundo civilizado e jamais conseguiria encontrar o caminho de regresso.
- Olha para mim - ordenou J. T. num tom autoritário colocando-se defronte dela. Tinha-se levantado, pousando as mãos nos ombros dela.
Tess, com alguma relutância, levantou a cabeça e o seu olhar foi ao encontro do dele, acerado e duro.
- Vem comigo, quero-te fora desta sala.
Entretanto, um dos presentes entregou a Quincy um canivete suíço que tinha uma chave de parafusos. Subiu para uma cadeira colocada directamente por baixo da grelha de ventilação.
- Não! - disse Tess peremptória a J. T.
- Raios partam isto! Não te sujeites a uma situação destas. É precisamente isso que ele pretende.
- Não posso sair daqui.
- Tess, que diabo...
- E se for... a Sam? - alvitrou ela numa voz rouca que mal reconheceu como sendo a sua. Não se tinha apercebido de toda a extensão dos seus próprios receios até os ter expressado em voz alta. Agora sentia um zunido tremendo nos ouvidos, pensando que talvez estivesse prestes a perder os sentidos.
Quincy conseguiu desaparafusar a grelha. Tess continuava como que transfigurada.
- Concentra-te em mim, Tess. Concentra-te só em mim.
O cheiro foi a primeira coisa a atingi-la. Sentiu-se engasgada. Começou a ver pontos de luz diante dos olhos. As lágrimas corriam-lhe pelas faces.
- Bem... encontrámos a cabeça do tenente Difford - ouviu Quincy dizer como se a voz dele viesse de muito longe.
Um dos agentes conduziu-os para a sala principal. J. T. foi buscar café para ambos. Tess deixou-se ficar de pé no centro da sala, permitindo que o barulho reconfortante das vozes e dos telefones a tocar se entranhasse bem nela.
A sala tinha um tecto alto e poucas janelas. Em tempos, aquele espaço devia ter estado dividido por cubículos, mas as divisórias haviam sido retiradas e substituídas por mesas bastante compridas. Os telefonistas sentavam-se lado a lado diante de terminais de computador, registando a chegada de telefonemas através do número especial, anotando o que as pessoas tinham a dizer. Os telefones não paravam de tocar.
Alguém tinha afixado cópias a preto e branco da fotografia de Samantha ao longo da parede. O rosto sorridente e inocente circundava a sala, recordando a todos o motivo por que se encontravam ali, a razão por que estavam a trabalhar tantas horas além do horário normal.
Tess sentia vontade de tocar nas fotografias, passar os dedos pela face pálida, como se isso pudesse trazer-lhe a filha de volta. Era estranho encontrar-se ali, no meio de tanta actividade, embora não participasse directamente em todo aquele movimento. Em tempos, Tess pensara que toda aquela actividade se concentrava na sua pessoa. Mas agora sabia que não era assim. Caso ela cessasse de existir no dia seguinte, nem por isso Jim deixaria de matar, enquanto a engrenagem da burocracia das forças da lei continuaria a trabalhar para tentar apanhá-lo.
Entretanto, J. T. voltou com um café morno para Tess. Quincy, acompanhado de Marion, chegou logo atrás dele.
- Sugeria que fôssemos para a sala de interrogatórios - adiantou Quincy. - O tenente Houlihan não deve tardar a juntar-se a nós.
Com estas palavras, levou-os para uma sala pequena que numa das paredes tinha um espelho que permitia ver para o outro lado apenas através de uma das faces. O mobiliário consistia apenas numa mesa quadrada e duas cadeiras metálicas desdobráveis. Com um pedido de desculpas em voz baixa, o tenente saiu para procurar mais três cadeiras.
- Como é que estás a aguentar-te? - perguntou J. T. a Tess.
- Tão bem como seria de esperar - respondeu ela depois de ter bebido um gole do café.
- Ele fez isto só para te deixar apavorada.
- Então é muito bom a fazer com que me sinta apavorada.
J.T. manteve-se junto dela. Tess sabia que ele estava ali para ver o que é que ela queria. Precisaria ela de o enlaçar nos seus braços? Talvez sentisse necessidade de encostar a face ao ombro de J. T. Pensou nisso; no entanto, não lhe parecia que ele pudesse proporcionar-lhe o tipo de conforto que expulsasse da sua mente a imagem da cabeça decapitada de Difford.
Verás que tudo acabará por correr bem, miúda. Prometo cuidar da Sam. O Houlihan e o Quincy acabarão por capturar o Beckett. Vai correr tudo bem, miúda.
Quincy voltou com as cadeiras e todos se sentaram. Momentos depois, o tenente Houlihan juntou-se a eles. O rosto ainda mostrava uma palidez acinzentada, e as rugas que lhe vincavam a testa traduziam frustração, cólera e dor.
- Nem vestígios de sangue - começou de imediato sem qualquer preâmbulo. - A cabeça foi decapitada imediatamente a seguir à morte, congelada para retardar o processo de decomposição lenta, e depois deixada na conduta do sistema de ventilação. O acesso à conduta pode ser feito através do telhado. O filho-da-puta deve ter rastejado para dentro da conduta na manhã em que ainda estávamos todos no local do crime para nos deixar este pequeno presente. - Tarde de mais, olhou fugazmente para Tess e Marion. - Peço desculpa - acrescentou entre dentes.
- Não tem importância - retorquiu Tess enquanto apertava o copo do café com mais força. - Estou a começar a habituar-me a conversas desta natureza.
- Como terá ele conseguido saber o número do telemóvel do agente especial Quincy? - perguntou Marion, ansiosa por deixar bem patente que fazia parte das forças da lei, não querendo ser considerada como uma observadora pouco resoluta. - Com certeza o seu número não consta de nenhuma lista telefónica.
- O Difford sabia o número do meu telemóvel - adiantou Quincy. - Assim como o Wilcox. O Beckett pediu-lhes que lho dessem ou então encontrou-o depois de os revistar.
Aquilo fez com que todos os presentes visualizassem a maneira como ele teria ”pedido” aquela informação e todos se agitaram desconfortavelmente nas suas cadeiras. Tess deu consigo a olhar de novo para J. T., que mantinha os olhos presos na parede oposta, mas ela via o seu maxilar cerrado. Não devia estar preocupado consigo próprio, isso não se coadunava com a sua maneira de ser. Mas ela deduziu que ele estaria a visualizar vividamente Jim Beckett a atacá-la ou a Marion. Tess fizera com que esse horror passasse a fazer parte do mundo dele. Aquilo parecia-lhe tão gritantemente injusto.
- Mas porquê apenas a cabeça? - perguntou Tess decorridos uns momentos.
- Não sei - respondeu Quincy.
- Tácticas para infundir terror - declarou J. T. - Com vista a desmoralizar as tropas.
Quincy franziu o cenho, mas não contradisse a opinião dele. Era óbvio que o agente especial, de uma integridade e correcção a toda a prova, não sancionava a existência de mercenários.
- Mas ele ainda tem o corpo do Difford - salientou Marion.
- Talvez sim - retrucou Quincy com um encolher de ombros. - Ainda ninguém passou revista aos porta-bagagens dos carros.
Todos ficaram em silêncio; o ar estava pesado e tenso.
- Acha que também precisa de protecção? - perguntou Tess numa voz suave. - Não se cansa de dizer que eu sou um alvo, mas a verdade é que ele concentra a sua atenção na maior parte das pessoas que contribuíram para que fosse capturado a primeira vez. O que se aplica a mim, ao Difford e a si, Quincy.
- Talvez essa perspectiva mereça alguma consideração.
- E se ele decidir usar a casa sob protecção policial como estratagema? A polícia estará vigilante porque estarei lá dentro, portanto, é possível que ele aproveite a oportunidade para o atacar a si, Quincy. Isso parece-me o género de plano que ele podia pôr em acção.
- Absolutamente - retorquiu Quincy tamborilando com os dedos no tampo da mesa. - Tenciono estar na carrinha de vigilância com o tenente Houlihan durante grande parte do tempo. Eles poderão cobrir-me.
- Os atiradores furtivos? - perguntou J. T. - Três não são nada para uma cidade.
- Mas Williamstown é uma cidade pequena - interpôs o tenente Houlihan. - Em apenas vinte minutos, podemos caminhar de um extremo ao outro. Basicamente, é um aglomerado de edifícios antigos que constituem o complexo da Universidade Williams, além de alguns estabelecimentos históricos à beira-mar que se destinam aos turistas. A casa da Tess situa-se em Elm Street, a uma distância de dez minutos da rua principal. Todo esse quarteirão é antigo, vivendas que foram restauradas e que se alinham em correnteza. Podemos posicionar os atiradores especiais nas esquinas, o que lhes proporcionará uma vista de toda a extensão da rua.
- Haverá uma esquina que não estará coberta.
- É verdade, mas a visibilidade é bastante boa. Podemos colocar um dos homens a meio do quarteirão, no lado direito, os outros dois nas esquinas do lado esquerdo, formando assim um triângulo em redor da casa da Tess. O que servirá para manter o telhado sob vigilância.
- E quanto aos agentes de polícia que estiverem de serviço? - insistiu J. T., que continuava a mostrar cepticismo. Era óbvio que a sua opinião não era muito favorável em relação à polícia nem aos seus esforços.
- Teremos uma carrinha principal que se manterá de vigilância, duas viaturas sem qualquer distintivo e três pares de agentes que percorrerão a cidade a pé. Estamos a falar de um complexo universitário com uma data de alunos jovens. Tencionamos alertar toda a gente para o perigo, mantendo uma forte presença policial por todo o recinto universitário. Os seguranças da Universidade Williams, juntamente com os agentes da polícia local, providenciarão no sentido de organizar patrulhas regulares.
- Hum... hum. Uma carrinha de vigilância não dará um pouco nas vistas quando estiver estacionada perto da casa?
- Não no caso de Elm Street, porque as outras ruas, Arnold, Hall, Maple e Linden, cruzam-se todas entre si. Vamos escolher uma delas como ponto de partida e andaremos de um lado para o outro entre essas artérias.
- O que é que vos leva a terem tanta certeza de que ele virá? - insistiu Marion sem se dirigir a ninguém em especial. - Foi assim que o apanharam a primeira vez, portanto, ele sabe que é arriscado. Em segundo lugar, isso não se enquadra no seu padrão de actuação. JIM BECKETT ESTEVE AQUI ou JIM FOI NÚMERO UM, faz todo o sentido. JIM BECKETT ERA... ou ESTEVE... ou FOI w? Não estou a ver como é que se enquadra.
- Ele virá - interveio Tess convicta.
- Porque está na fase de descompensação?
- Porque acaba sempre tudo o que começa - respondeu Tess num murmúrio. - Sempre.
- Tenho de admitir que não compreendo essa espécie de cólera - adiantou Marion recostando-se para trás.
- Não pode - interveio Quincy. - Você é mulher.
Quando Marion se preparava para protestar, com um gesto de cansaço, Quincy indicou-lhe que estivesse calada.
- Estou a falar de estatísticas e não de chauvinismo. A maior parte dos assassinos em série pertence ao sexo masculino. Talvez as suas tendências homicidas estejam relacionadas, em parte, com as hormonas, mas sem sombra de dúvida que se prende com o aspecto comportamental. Quando os homens se encolerizam, são ensinados a descarregar nos outros. Por outro lado, quando as mulheres se encolerizam, são ensinadas a recriminarem-se a si próprias. As vossas mães atormentam-vos, levando-vos a tornarem-se alcoólicas, anorécticas ou potenciais suicidas. Não se tornam assassinas em série. - O olhar dele concentrou-se em Tess. Continuou a falar com uma certa indiferença. - O Beckett virá, Miss Williams. E quando ele chegar, as coisas tornar-se-ão muito sangrentas.
Marion esperou que o irmão e Tess voltassem ao motel em que se haviam alojado antes de decidir o que fazer a seguir. Já passava das seis da tarde, mas a actividade na sala de operações não apresentava sinal de abrandamento. Os telefones continuavam a tocar e os telefonistas atendiam. O tenente Houlihan berrava a um jovem agente enquanto, simultaneamente, mastigava Tums para a azia. O ambiente no edifício era electrizante.
Ela continuou a andar, procurando uma sala de interrogatórios que estivesse desocupada ou um canto esquecido. Em vez disso, cruzou-se com o agente Louis, um jovem com cabelo cor de palha que, para o seu próprio bem, se parecia de mais com Richie Cunningham. Ele viu que ela se aproximava, ficando como que paralisado e engolindo em seco.
Nesse mesmo dia, ela já se cruzara com ele. Quem sabe se um dia o jovem não viria a ser um bom agente de polícia, mas, pessoalmente, pensava que ele tinha a espinha de uma alforreca. Por seu lado, ele dava a impressão de a considerar o equivalente humano a uma aranha do género da viúva-negra, à espera da oportunidade de o seduzir para que respondesse às suas perguntas, e, em seguida, com toda a calma, lhe mordera a cabeça para concretizar o acasalamento.
- Ando à procura do agente especial Quincy - disse Marion.
O agente Louis ficou sem palavras. Retrocedeu até à parede e apontou para o fundo do corredor. Com um aceno de cabeça, Marion recomeçou a caminhar, passando por ele. O suspiro de alívio que o jovem soltou foi bastante audível.
Foi dar com Quincy isolado no seu pequeno espaço, rodeado por fotografias de cenas de crimes. Ele não ergueu a cabeça de imediato. Marion aproveitou a oportunidade para olhar de fugida para as fotografias a cores. Não pareciam ter sido extraídas do ficheiro de Jim Beckett. A maior parte das vítimas naquelas fotografias era constituída por mulheres de meia-idade. Tinham sido selvaticamente esfaqueadas por uma lâmina serrilhada.
Quincy observava-as uma a uma, como se estivesse a baralhar cartas de jogar. Finalmente, soltou um suspiro, abanou a cabeça e pousou as fotografias, sem ter encontrado o que procurava.
- Outro caso? - perguntou ela num tom respeitoso. Instintivamente, assumiu a postura de um subalterno, pernas afastadas, ombros direitos e mãos atrás das costas.
- Santa Cruz - resmungou ele; o olhar continuava preso nas fotografias. - É capaz de acreditar que, em tempos, Santa Cruz era a capital do mundo dos assassinos em série com três deles em actividade? Mas agora apareceu outro. Isto faz com que uma pessoa se pergunte se há alguma coisa na água que aquela gente bebe.
Afastou a cadeira da mesa pouco estável. Marion viu o muito cansaço que se estampava no rosto dele. As mãos massajavam os músculos na base da nuca.
- E ela? - perguntou Marion, que de repente se sentiu demasiado enervada para lhe dizer qual o motivo que a levara a procurá-lo. Fez um gesto na direcção de um retrato emoldurado de uma morena sorridente.
- Oh... ela? É a minha mulher... quer dizer, a minha ex-mulher - explicou com um sorriso pesaroso. - O divórcio foi decretado há algumas semanas. Calculo que ainda esteja a adaptar-me à minha nova situação. Sempre viajei com a fotografia dela. Fazia-me sempre companhia em qualquer quarto de motel rasca ou esquadra de polícia. Agora, cheguei à conclusão de que consigo trabalhar sem a foto. É um disparate, não acha?
Pouco à vontade, Marion agitou-se; o desconforto que sentia aumentava ao tomar conhecimento de um pormenor tão pessoal.
- Não me parece. O meu... o meu marido e eu também nos separámos há pouco tempo. Ao fim de dez anos. É uma grande mudança.
- O casamento deve ser difícil quando se é uma agente especial - adiantou Quincy.
- É o que toda a gente diz.
- Mas é um lugar-comum, não é verdade?
- Não sei - respondeu Marion.
Ambos ficaram em silêncio, mas era demasiado inquietante tanto para um como para o outro.
- Em que é que lhe posso ser útil, agente Marion? - perguntou Quincy com alguma brusquidão.
- Quero... quero falar consigo a respeito do meu papel neste caso.
- O seu papel? Oficialmente, nem sequer está envolvida neste caso. Até ao momento, a sua participação é tão-somente circunstancial.
- Compreendo que seja assim. Mas gostaria de alterar essa situação, se for possível. Há muito tempo que tenho vindo a interessar-me por este género de investigação criminal.
- Já tenho a sua ficha.
Marion aguardava pacientemente.
- A sua folha de serviço é boa. Parece que por vezes pode ser bastante rígida, mas é capaz de manter a cabeça fria e tem uma capacidade analítica acima da média.
- Muito obrigada.
- Mas, tanto quanto me é dado saber, a sua experiência profissional incide mais no chamado crime de colarinho branco, em grande parte, fraudes bancárias...
- Também já investiguei alguns homicídios - interpôs Marion. - Negócios entre criminosos que deram para o torto, informadores que foram descobertos, esse tipo de ocorrências.
- Mas sempre no âmbito de casos de fraude.
- Os mortos são mortos, senhor. Foram crimes que estavam relacionados com o nosso trabalho e os locais onde foram cometidos passaram a estar sob a nossa alçada, pelo que tivemos de proceder a investigações a fim de apurar quem eram os culpados.
- A Unidade de Apoio à Investigação Criminal é diferente. É tudo o que fazemos. O chui típico talvez veja um homicídio escabroso duas ou três vezes por ano. É possível que enfrente um assassino em série uma vez em toda a sua carreira - disse Quincy apontando para as fotografias espalhadas sobre a mesa de trabalho. - Tudo o que eu vejo limita-se a isto. Cento e cinquenta casos de assassínio, violação, crimes de pedofilia e raptos. Eu lido apenas com os extremos, dia sim, dia não. Quer na estrada, quer no escritório, é só isto.
- Compreendo - anuiu Marion, lacónica.
- Estaria a mentir se dissesse que isto não nos afecta.
- Creio que seria capaz de lidar com esse trabalho - ripostou ela erguendo o queixo numa atitude voluntariosa.
- Parece-me que você não sabe bem o que ”esse trabalho” é - adiantou Quincy.
- Diz isso por eu ser mulher?
- Não me insulte, senhora agente. - A entoação da voz dele era uma advertência clara. Mesmo assim, ela persistiu.
- O senhor fala-me em estatísticas. Pois bem, as estatísticas do FBI indicam que as agentes especiais são destacadas, de forma desigual, para os crimes de colarinho branco e não para os casos de homicídio.
- Isso é o que se passa no FBI. Na Unidade de Apoio à Investigação Criminal, temos várias agentes responsáveis pela elaboração de perfis psicológicos... e devo dizer-lhe que são do mais competente que existe. E você não é uma delas, senhora agente. Elas comeram o pão que o diabo amassou. Foram polícias de giro, trabalharam no laboratório de medicina legal ou como criminologistas. Quando passaram a integrar a unidade, todas tinham uma experiência muito vasta em casos de homicídio. Se de facto estiver a encarar a sério a sua entrada para a Unidade de Apoio à Investigação Criminal, deve falar com o seu director a fim de que ele a destaque para casos diferentes. Tem de provar que é capaz de nadar na piscina das crianças antes de querer mergulhar no oceano.
- Mas acontece que é agora que eu tenho esta oportunidade - insistiu Marion num tom de voz firme, embora sentisse um ardor nos olhos. Estavam a pô-la no seu lugar, o que ela detestava. Havia ocasiões em que lhe parecia que toda a sua vida fora passada a ser posta no seu lugar por homens que deviam ter tido mais discernimento. Pessoas que deviam ter confiado mais nela. - Tenho algumas ideias - persistiu Marion sem desarmar.
- Senhora agente...
- Só lhe peço que me ouça. Já consultei o ficheiro do Jim Beckett. Tive oportunidade de falar bastante tempo com a Tess Williams. Está-me a parecer que é claro, penso que é óbvio, que o Jim Beckett tem um cúmplice. Foi o senhor quem disse que ele não é capaz de passar muito tempo sem a companhia de uma mulher. A Tess também afirmou que ele seduz e encanta mulheres como passatempo. Acredito que há alguém que o ajuda em tudo, alguém que também o ajudou há dois anos e meio quando ele saiu de circulação pela primeira vez. E acho que talvez saiba como encontrar essa pessoa.
Quincy parecia estar céptico, mas não a interrompeu. Marion continuou a falar, não fosse perder a coragem.
- Assumamos por uns momentos que a mulher não é uma estranha seleccionada ao acaso, mas sim alguém que ele já conhece há algum tempo. Isso significa que ele precisaria de manter essa relação até mesmo quando esteve encarcerado a cumprir pena de prisão.
- A Shelly Zane era a única visita que constava dos registos das pessoas que o iam ver.
- De acordo. Mas... e quanto a telefonemas? Verifiquei esse pormenor junto das autoridades prisionais de Walpole. O Beckett era um prisioneiro modelo. Não tinha nenhuma anotação no cadastro por faltas de disciplina e, por isso, apesar de estar encarcerado na ala de segurança máxima, tinha direito a quatro telefonemas por mês e cada um podia prolongar-se por um máximo de trinta minutos.
- Sei disso, senhora agente. E tal como deve ter tomado conhecimento em Walpole, esses telefonemas são monitorizados. Os prisioneiros têm de registar todos os números junto dos serviços de segurança para que sejam aprovados. Nem sequer são eles a marcá-los. Há um guarda que leva o telefone para a área das celas, liga-o à tomada, marca o número e depois passa-o por entre a portinhola para que o prisioneiro fale. É preciso marcar um número de segurança composto por quatro dígitos para se poder ligar qualquer número de telefone, o que impede que o encarcerado, sem que ninguém desse por isso, desligasse para depois ligar um número diferente. Se houver qualquer sinal que indique que alguém tenta ligar um número, a linha é cortada automaticamente. O sistema é bastante rígido, além de termos verificado todos os números de telefone que o Beckett nos indicou. Ele costumava ligar para a Shelly Zane duas vezes por mês, enquanto o advogado dele recebia os outros dois telefonemas.
- Sei que sim - retorquiu Marion obrigando-se a ser paciente. - Também investiguei o assunto. Sei que, se ele tentasse ligar um número directamente, a linha seria de imediato cortada, mas... e quanto a chamadas reencaminhadas?
- E quem é que reencaminharia uma chamada para um prisioneiro?
- A Shelly Zane.
Quincy ficou em silêncio por breves momentos e depois piscou os olhos.
- Não sei se a Zane tinha algum serviço de reencaminhamento de chamadas.
- Tinha. Verifiquei isso mesmo. E servia-se bastante desse serviço. Durante os últimos dois anos, as chamadas que ela recebeu foram encaminhadas para duzentos e quarenta e sete números diferentes. Compilei uma lista com esses números de telefone.
- Devíamos então investigar esse assunto - afirmou Quincy com um lento aceno de cabeça. - Podemos pedir ao Houlihan que ponha o Grupo de Trabalho A a verificar imediatamente esse ângulo. Sem dúvida que estão a precisar de algumas pistas fiáveis.
- Obrigada.
- Pode ficar na carrinha de vigilância comigo e com o Houlihan. A primeira coisa que tem de aprender a respeito das investigações que abrangem várias jurisdições territoriais... é a não pisar os calos das forças da lei locais.
Marion sabia reconhecer um sermão quando lho faziam.
- Gostaria muito de estar na carrinha. Muito agradecida.
- Sendo assim, estamos combinados. É possível que não concorde, mas até mesmo o simples convite para participar no trabalho de vigilância num caso como este é uma responsabilidade tremenda. Não arruine esta oportunidade. - Quincy falava com austeridade e num tom que dava o assunto por encerrado. A sua atenção já voltara a concentrar-se na colecção de fotografias escabrosas; era evidente que não queria continuar a conversa.
Com um aceno de cabeça à guisa de despedida, Marion deixou-o. Sentia um nó de frustração na garganta. Tinha desejado mais do que conseguira. Mais elogios pelas suas ideias, um grau de inclusão maior num mundo do crime violento dominado pelos homens. Também desejava que reconhecessem que era inteligente, conhecedora e competente. Em vez disso, fora tratada com a condescendência que qualquer novato teria merecido, após o que lhe haviam atirado um osso que se destinava a evitar que ganisse de mais.
Pensava que Quincy estava enganado. Marion tinha as suas próprias opiniões, as suas próprias ideias. E, subitamente, sentiu-se farta de passar a vida a jogar de acordo com as regras dos outros.
As oportunidades não eram dadas. As oportunidades criavam-se.
E Marion sabia bem como criar as suas.
O telefone começou a tocar no quarto do motel. Tess pegou no auscultador.
- Sim...? - O seu tom de voz era esperançoso. O tenente Houlihan dissera-lhe que lhe ligaria se soubessem mais alguma coisa sobre o paradeiro de Sam. Durante as últimas duas horas, enquanto o Sol se punha, Tess não despregara os olhos do telefone. O dia escurecera e tanto ela como J. T. sentiam-se demasiado deprimidos até mesmo para ligarem as luzes.
- Oh... Olá, Marion - saudou com desânimo. - Não, por aqui estamos óptimos. É apenas um motel... Já sabe como os motéis são. Sim, tem piscina para o J. T. poder nadar. Não me parece que tenha ajudado grande coisa. Está prestes a fazer um buraco na alcatifa de tanto andar. Quer falar com ele?
- Estou? - atendeu J. T. cautelosamente. - Não, não tem importância. A Tess está a fazer paciências e eu estou a dar em doido. Como de costume. - Fez um aceno de cabeça ficando a ouvir durante uns momentos. - Ele não era a pessoa mais indicada para ti - acrescentou finalmente. J. T. parecia estar pouco à vontade. - Tu... hás-de acabar por encontrar outra pessoa. Alguém melhor do que ele. É difícil. Acredito. Mas, como sabes, há mais marés do que marinheiros. - O olhar dele pousou em Tess. Alguns minutos depois, despediu-se da irmã e desligou o telefone. De imediato, recomeçou a andar de um lado para o outro.
- Ela está bem? - perguntou Tess numa voz calma
- Os papéis do divórcio chegaram hoje. A empregada telefonou-lhe para lhe dar a notícia.
- Oh... isso deve ser muito difícil para ela - observou Tess, genuinamente pesarosa. - Em especial agora, com tudo o que está a acontecer.
- Foi bom ela ter telefonado, J. T. Está a tentar aproximar-se de ti.
- Sim... mas eu não sou bom nestas coisas - retorquiu ele após uns momentos de silêncio.
- Estás a ir muito bem.
- Não sei o que é que se espera que eu diga.
- Nas mesmas circunstâncias, ninguém sabe. Alguma vez tiveste de tentar explicar a uma criança de quatro anos que o pai é um assassino? No fim, todos improvisamos à medida que vamos avançando.
- Hum... - J. T. continuava a mostrar-se tristonho. Tess levantou-se da cama e aproximou-se dele.
Os raios de luar delineavam o rosto dele, velando-lhe os olhos que estavam na sombra. Ela acariciou-lhe os ombros e depois a face. Avançou até o seu corpo roçar pelo dele. O semblante de J. T. mostrava dureza, o queixo e o maxilar exibiam linhas firmes e resolutas. O seu aspecto era de força e, subitamente, ela precisava dessa força.
- Abraça-me - pediu Tess envolvendo a cintura dele nos seus braços.
- Não estou... não estou... - Os braços dele enlaçaram-na. J. T. abraçou-a, mas parte dele continuava fora do alcance dela.
- Vamos para a cama - disse ela, afastando-se dele e pegando-lhe na mão.
- J. T., esta é a última noite que passamos juntos. Amanhã já estaremos em Williamstown. Sei que querias que eu fizesse as coisas de maneira diferente. Também sei que estás preocupado, receando que o pior possa acontecer. Mas eu tomei uma decisão. Aceito os riscos. E também sei que tenho esta noite e que gostaria de a passar contigo. Achas-te capaz de me fazer essa vontade?
Ele não sabia como responder-lhe.
Tess estava pálida e etérea, os olhos enormes, luminescentes e sabedores. J. T. pensou que, se continuasse em silêncio e se mantivesse distante durante o tempo suficiente, ela acabaria por desistir, afastando-se, furibunda. Mas tinha-se esquecido de como ela aprendera a lutar. Tess passou-lhe os braços pelo pescoço. Fez pressão com o seu corpo esbelto contra o dele.
Os lábios dela afloraram os dele e J. T. sucumbiu. Entreabriu a boca, beijando-a com toda a sofreguidão.
Ela não lhe saía do pensamento, como se o assombrasse e ele não queria ser assombrado. Consumia-o e ele não queria ser consumido. As emoções desfilavam atropelando-se umas às outras, fazendo com que o seu sangue fervilhasse. A voz de Marion não lhe saía da cabeça, o traço vago de vulnerabilidade sob as palavras desapaixonadas, a carência velada que ele não sabia como encarar. Continuava a ver Tess, os olhos dela dilatados pelo horror quando a grelha da ventilação fora desaparafusada, revelando, uma vez mais, aquilo de que Jim Beckett era capaz.
Marion e Tess. As duas mulheres que ele tanto amava, as mulheres em relação às quais falharia, tinha a certeza disso, quando elas mais precisassem dele. As mulheres que queria abraçar junto de si e as mulheres que também queria afastar porque não era capaz de suportar a sua própria fraqueza. Não conseguia encarar o facto de saber que Tess tinha razão; nunca conseguiria salvar o mundo sem a ajuda de alguém para fazer dele um lugar melhor.
Tess chegou-se mais a ele, um misto de fragilidade e força, de carência e generosidade. Ele beijou-a de forma irracional, tentando desesperadamente sobrepor-se à ânsia que o consumia, para esmagar a emoção sincera que sentia sob a intensidade do desejo sexual.
Obrigou-a a deitar-se na cama. Saboreou a doçura da sua pele e inspirou a fragrância suave e secreta do seu corpo. Sentia a pele de pétala de rosa de uma calidez infinita.
Tess estava convencida de que J. T. e Marion eram os duros - e ela não compreendia. O fogo que os havia forjado também os fizera quebradiços. Tess seria aquela que emergiria como aço de boa têmpera.
Ele cedeu ao abraço com que ela o puxava para si e à ansiedade que os seus lábios exprimiam.
Bruscamente, o seu modo de fazer amor tornou-se urgente e feroz, uma guerra que se combatia entre lençóis amarfanhados. Ela forçou-o a rolar, ficando deitado de costas e, sem qualquer resquício de pudor, escarranchou-se em cima dele.
- Amo-te, J. T. - sussurrou Tess. - Amo-te.
Finalmente, ele começou a mexer-se. As lágrimas brilhavam nas faces dela. Gemia enquanto o montava e deixou que ele a visse soltar um grito. Ele não podia desviar o olhar.
- Não faças isto - pediu J. T. entre dentes. - Meu Deus, não me faças isto.
Mas ela continuava a mexer-se. Subitamente, ele levou a mão direita à anca dela, os dedos a enterrarem-se na carne, o braço a estabelecer um ritmo frenético e acelerado. Os calcanhares de J. T. firmaram-se no colchão, dando-lhe um ponto de apoio para poder investir mais vigorosamente, impulsionando as ancas para cima. Com as suas lágrimas silenciosas, ela conseguira apoderar-se dele inteiramente e J. T. não sabia o que fazer.
A cabeça de Tess descaiu para trás enquanto o clímax se prolongava numa sucessão de espasmos, e dos lábios dela saía o nome dele. Mas ele não desistiu, continuando a mexer-se, incansável, impulsionando as costas dela para cima. Penetrava-a cada vez com mais força, o suor a acumular-se na pele e os lábios arreganhados deixando ver os dentes cerrados.
Com brusquidão, fez com que Tess saísse de cima dele, embora o seu corpo continuasse ligado ao dela, recomeçando o movimento de vaivém com toda a força. Tess ficou arquejante. Ele não conseguia parar. A libertação encontrava-se tão perto, mas ele não era capaz de lhe chegar. Estava impossibilitado de a abraçar, não podia dar-lhe as boas-vindas, porque sabia que quando chegasse seria como uma chuvada primaveril acompanhada da fragrância de rosas que faria com que se recordasse dela.
- Amo-te - murmurou ela com a boca junto do torso coberto de suor. - Amo-te.
Quando ele atingiu o clímax, soltou um grito animalesco.
- Eu sei - disse Tess num sussurro. - Eu sei.
Mais tarde, com os lençóis enrodilhados à volta das pernas dos dois, o suor a começar a secar nos corpos, J. T. proferiu:
- Amei a Rachel.
- Compreendo.
- Ela morreu - acrescentou ele.
- Sei que sim.
- Eu nunca lhe disse que a amava.
- Tenho a certeza de que ela sabia que a amavas.
- Mas nunca ninguém lhe disse isso. Nem o coronel, nem sequer os pais. Nem eu.
- Não o disseste por palavras, mas demonstraste-lhe por actos, J. T., e isso é o mais importante.
A cabeça dele virou-se para ela. As pontas dos dedos roçaram pelo braço de Tess.
- Há ocasiões em que te odeio.
- Sei que sim - retorquiu ela com toda a franqueza. - É por isso que sei que gostas de mim.
Pela manhã, os magros raios de um sol fraco bateram à janela, iluminando o quarto com sombreados de um cinzento-pardo. Tess foi a primeira a arrastar-se para fora da cama, indo logo para a casa de banho e fechando a porta sem olhar para trás.
Ele esperou até começar a ouvir o barulho da água a correr no chuveiro. Só então é que estendeu a mão para a mesa-de-cabeceira onde deixara o maço de cigarros. Tinha as mãos a tremer, tendo dificuldade em tirar um cigarro. Por fim, conseguiu extrair do maço o famigerado cigarro, que levou aos lábios, acendendo-o com um isqueiro de plástico e tragando profundamente o fumo. Encostou-se à cabeceira da cama, pondo-se a olhar para o tecto e observando as ténues espirais de fumo que se dissipavam enquanto se evolavam no ar das primeiras horas da manhã.
Sozinho, ele deixava de ter pretensões. Não fora o tipo de irmão que devia ter sido. Do mesmo modo, não fora o tipo de marido que devia ter sido. A sua vida começara com sofrimento e, desde então, várias camadas iam-se acumulando.
Naquela noite espalharia uma nova camada de mágoa. E ele queria que fosse aplicada como devia ser. Tinha receio que a besta que vivia nas suas entranhas impedisse que isso acontecesse. Dentro de si sentia uma cólera tremenda. E não conseguia deixá-la para trás. Compreendia tudo isso, perguntando a si mesmo se o facto de compreender faria realmente alguma diferença.
Por três vezes, os seus lábios formaram as palavras em silêncio antes de confiar o suficiente em si para lhes dar voz. Por fim, pronunciou numa voz segredada:
- Também te amo, Tess. - E um segundo depois: - O Jim Beckett é um homem morto.
- Muito bem... Aqui está - anunciou Marion. Fez um gesto na direcção da casa onde Tess vivera durante quatro anos, toda a sua vida de mulher casada. A vivenda fora vendida há dois anos, mas a polícia tratara de a confiscar. Os proprietários tinham sido obrigados a sair juntamente com o mobiliário, após o que a casa fora decorada apressadamente com peças em segunda mão que ninguém quisera.
Tess achou que a decoração era tão deprimente quanto o seu estado de espírito.
Na sala de estar, à sua esquerda, viu um sofá para duas pessoas, de um azul sujo, que fora colocado no centro da carpete castanha. As prateleiras castanhas cheias de livros de bolso tinham sido instaladas apressada e atabalhoadamente. Numa mesinha alguém colocara um televisor de um modelo muito antigo, mas com um aparelho de vídeo de aspecto mais moderno. O candeeiro de metal, como que empoleirado na prateleira por cima da lareira, era a única luz da sala. Às escadas situavam-se no lado oposto da entrada. A pequena cozinha, também em tons de castanho, ficava à direita. No primeiro andar, situava-se o quarto principal e mais outros dois. Tess detestava pensar no género de mobiliário que encontraria neles.
- A cozinha está bem equipada e abastecida - informou Marion. - Também tem um televisor, estantes e tudo o mais. Será precisamente como antes...
- O isolamento solitário - observou Tess.
- Não me parece que seja assim tão solitário - retorquiu Marion olhando de relance para J. T.
Este não olhou para nenhuma das duas. Começou a percorrer a sala de estar, espreitando pelas janelas de sacada da fachada.
- Temos estado a falar com alguma regularidade através do radiotransmissor da polícia - continuou Marion. - Não dizemos muito, apenas o suficiente para dar a entender a chegada de um ”pacote especial” a Williamstown, com a advertência de que deve ser ”manuseado com cuidado”. O Quincy tem a certeza de que o Beckett escuta as comunicações da polícia. Mais cedo ou mais tarde, ele acabará por saber desta informação e fará os seus planos.
- Quais são os telhados em que os atiradores especiais estão posicionados? - perguntou J. T.
- Um no outro lado da rua - começou Marion a apontar -, com uma linha de mira directa e sem obstruções até à porta da frente. E outros dois nas esquinas deste lado do quarteirão.
- Montes de chaminés e arcadas elaboradas. Quais são as hipóteses de uma linha de tiro a direito?
- Depende muito do local onde o Beckett estiver - replicou Marion com um encolher de ombros. - Em qualquer dos casos, eles hão-de dar pela chegada dele e o resto de nós tratará de se mobilizar.
- Hum... As janelas têm dispositivos de escuta?
- Todas. Todas as divisões estão sob escuta.
- E quanto à casa de banho? - perguntou Tess. Agora começava a recordar-se de todos os pormenores relativos à última vez em que estivera ali, pormenores que, muito convenientemente, enterrara no subconsciente. Ela odiava a última vez.
- Todas as divisões. Estamos a falar da sua vida, não é verdade?
- A sorte que eu tenho!
- Se precisar de alguma coisa, só tem de dizer em voz alta. Vamos manter-nos à escuta, minuto a minuto, dentro da carrinha.
- Imagino que isso queira dizer nada de sexo - observou Tess, trocista, tentando controlar a ansiedade.
- Só se o facto de ter público não a incomodar - atalhou Marion sem qualquer expressão. - Alguma dúvida?
- Arranjaste mapas do sistema de esgotos desta área? E quanto as tampas de entrada e quaisquer outras redes de sistemas subterrâneos?
- J. T., nós sabemos o que estamos a fazer.
- Não quero ver nenhuma viatura de manutenção nesta área. Quer da companhia dos telefones, quer da televisão por cabo ou da empresa de electricidade. Entra em contacto com eles e diz-lhes que se mantenham afastados, caso contrário, eu próprio darei uma mensagem aos motoristas. Não é nada difícil imaginar que o Jim, perverso como é, recorra a um estratagema desses.
- Também não vamos permitir que ninguém ande a vender enciclopédias porta a porta - assegurou-lhe Marion.
- Hum... - J. T. voltou-se para Tess. - E tu, estás bem?
- Óptima - respondeu Tess, forçando-se a esboçar um sorriso que tirasse a mordacidade das suas palavras. Não resultou. Continuava a sentir-se como um rato numa ratoeira. - Olhou de relance para Marion. Há alguma novidade quanto à Sam? - perguntou numa voz sumida, apesar de imaginar que não havia notícia nenhuma sobre a filha.
- Para já, não temos nada.
- E quanto ao corpo do Difford?
- Nada - replicou Marion.
- Que diabo, a equipa está a esforçar-se ao máximo! Assim que soubermos alguma coisa, informamos. Mas agora, se me dão licença, tenho de resolver algumas coisas pendentes. Volto ao fim da tarde. - Dito isto, Marion dirigiu-se para a porta. J. T. seguiu a irmã, alcançando-a quando ela já se encontrava à saída.
- Como é que estás? - perguntou de imediato, antes de perder a coragem.
- Óptima - respondeu ela passados alguns momentos. Olhou para Tess e depois para o irmão. - Parabéns.
- Pelo quê?
- Ela é uma mulher de fibra, J. T. Fico feliz por ti.
Ele mostrou-se carrancudo, mas acabou por ceder.
- Sim. De facto é. Obrigado. - Desviou o olhar por uns instantes. O firmamento tinha adquirido uma limpidez e uma luminosidade extraordinárias. - Ela merecia melhor - acrescentou ele.
- Tu não és assim tão mau.
- Não sou?
- Não és - repetiu Marion.
- Marion... - começou ele, sentindo um nó na garganta. Não conseguia soltar as palavras. Não era assim que as coisas se passavam entre os dois. Ficou-se por um afago fugaz no braço da irmã. - Mantém-me a par da situação entre ti e o Roger, de acordo? Não sou a pessoa mais indicada para dizer as palavras adequadas, mas sei que o amavas, Marion. Gostaria de ajudar no que for possível.
- J. T., lembras-te daquelas coisas horríveis que eu disse sobre a Rachel? - continuou Marion fixando o olhar no chão.
Ele assentiu. Recordava-se de tudo, palavra a palavra.
- Fui eu que lhe disse para ir ter contigo - confessou falando apressadamente. - Ela foi a minha casa à procura de ajuda. E eu... eu não fui capaz de a socorrer. Vi-a e só quis que ela se fosse embora. Nem sequer consegui olhar para ela. Uma pobre rapariga tão franzina e eu nem sequer fui capaz de olhar para ela. Uma estupidez, não achas? - perguntou Marion com um encolher de ombros. J. T. começou a perceber o que havia ficado por dizer. - Indiquei-lhe o teu nome. Disse-lhe que tu a ajudarias. Eu sabia... eu sabia que tu terias a coragem de fazer o que eu não podia.
- Fizeste o mais indicado, Marion. Obrigado.
- Ainda bem - retorquiu ela em voz baixa. Pareceu sentir-se mais aliviada. - Só queria que soubesses.
- Estarei ao teu lado quando precisares de mim, Marion. Quando estiveres preparada.
Ela voltou a sorrir, um sorriso trémulo e um tanto a medo. Num gesto fugaz, passou a mão pela face do irmão.
Dito isto, Marion saiu.
- Tens a tua arma?
- Sim - respondeu ela surpreendida.
- Queres praticar um pouco? Podemos praticar tiro as sombras sem balas.
- De acordo - disse Tess com um alívio que era palpável.
Estava preparado para o que desse e viesse.
Tess tirou a pistola da carteira.
- Estamos prontos, Tess. Vamos conseguir apanhá-lo.
- Era isso que o Difford costumava dizer - retorquiu ela com um sorriso de tristeza.
- Sim, já percebemos que o médico morreu. Só precisamos de verificar a veracidade desta certidão de óbito. Sim, minha senhora, vinte anos é muito tempo. Têm cópias nos arquivos do hospital? Ou talvez haja uma enfermeira ou outra pessoa que continue a trabalhar no hospital desde essa data. Sim, eu espero - disse o detective Epstein revirando os olhos. Detestava aquelas tarefas rotineiras.
Os pais adoptivos de Beckett tinham morrido há menos de dez anos, pelo que verificar as certidões de óbito dos dois não fora uma tarefa muito difícil. A sorte também estivera do lado deles com relação à certidão de óbito do pai biológico - um dos agentes que tinha estado no local do acidente há vinte anos ainda continuava ao serviço. O homem confirmou que James Beckett tinha chegado ao hospital já cadáver, vítima de um acidente de viação em que estiveram envolvidos quatro veículos.
Verificar a certidão de óbito de Mary Beckett fora mais difícil. O médico que assinara o original do óbito já falecera e os burocratas do hospital tinham assuntos mais importantes a tratar do que procurar nos arquivos a certidão de óbito de alguém que morrera há vinte anos.
Entretanto, a pessoa voltou à linha. O detective Epstein parou de girar o lápis que tinha na mão.
- Arquivos?! O que é que quer dizer com arquivos? Guardados em instalações separadas. Sim, claro que imagino que o hospital deva ter um grande volume de registos. E têm algum sistema de arquivo? Acha que pode mandar algum funcionário exausto procurar o que pretendemos? Bem, minha senhora, eu até nem me importava de enviar um agente, mas não vai permitir que vasculhemos os vossos arquivos sem sermos acompanhados por alguém dos vossos serviços, pois não? Foi o que pensei. Portanto, qual é a hora mais conveniente para si? Pois seja, uma hora. - O detective desligou o telefone e esfregou os olhos. Tecnicamente, o seu turno tinha acabado há duas horas. Estava prestes a prolongar-se por mais algumas.
A noite caía rapidamente. A primeira noite que Tess passaria na sua antiga casa, e o Grupo A sentia a pressão. Se conseguissem encontrar Jim e Samantha Beckett o mais depressa possível, poupariam uma data de problemas a todos os envolvidos. Naquele momento, o grupo era formado por doze agentes. Epstein fora incumbido de atestar a veracidade da última certidão de óbito. Havia quatro agentes destacados para descobrir a origem dos números de telefone das chamadas que Shelly Zane tinha reencaminhado ao longo dos últimos dois anos. Oito agentes continuavam a rever os registos dos telefonemas recebidos pelo número de emergência, à procura de uma pista, perseguindo fantasmas. Merda, aquele caso estava a dar cabo de todos.
Epstein conhecera Difford, e o tenente merecera-lhe um grande respeito. Numa ocasião, tinham ido juntos a um jogo dos Red Sox. Difford fora um dos poucos da localidade que se havia mantido leal aos Red Sox até mesmo durante os piores anos... ao longo dos muitos períodos em que a má sorte ameaçara eternizar-se.
- Andrews, estás disponível? - perguntou Epstein pegando no casaco.
- Só se tiver de estar.
- Tens de estar. Vai buscar o casaco. Temos onde ir.
- Onde é que vamos?
- A um armazém. Temos de procurar uma agulha num palheiro.
- Por amor de Deus, Epstein. Sabes mesmo proporcionar uns bons momentos a um tipo.
Marion estava sentada no meio do chão do gabinete que pedira emprestado. Encontrava-se rodeada por um mar de mapas, todos de cores diferentes em tons pastel; Da Nova Inglaterra, do Massachusetts, de Berkshire County e de Williamstown. Pareciam brincar à sua volta, sendo os detentores do segredo do elixir da longa vida.
Havia passado todo o dia a olhar atentamente para aqueles mapas, ao ponto de agora estar com a visão toldada. Também estava a sentir dificuldade em concentrar-se.
Por nenhuma razão especial, recordou-se de quando tinha sete anos, numa ocasião em que com J. T. se escondera atrás de um dos almofadões do sofá enquanto Melhelia, a criada da família, lançava outro par de meias dobradas, uma granada, por cima do perímetro defensivo que eram os almofadões decorativos.
Marion abanou a cabeça. Pestanejou três vezes antes de voltar a abrir os olhos de repente, tentando concentrar-se nos mapas. Não queria pensar em si própria nem nos dias que há muito pertenciam ao passado. Também não queria pensar na sombra que pairava atrás da Merry Berry sorridente, a sombra sinistra que manchava todos os contornos das suas recordações, mesmo das boas.
Marion queria pensar em Beckett. Queria conseguir passar furtivamente, colocando-se por detrás dos olhos do homem.
- Temos mais em comum do que possas imaginar - resmungou ela.
- Gelo. Tem tudo a ver com gelo.
Nada de empatia, nada de compaixão. Somente a prática fria e a impiedade eficiente do génio imoral. Nada de restrições, nada de limites. Caso se pudesse pensar numa determinada coisa, conseguir-se-ia levá-la a cabo.
Marion concentrou-se nos mapas, forçando a mente a instilar uma grande frieza no seu sangue. Concentração, concentração, concentração.
Alguém bateu à porta do gabinete, sobressaltando-a. Ficou mal-humorada, mas massajou a nuca e afivelou uma expressão neutra.
- Entre.
- Tem o Roger MacAllister na linha um para falar consigo - informou uma secretária falando por uma fresta da porta, sem a abrir mais.
- Diga-lhe que agora não posso atender.
- Ele já ligou várias vezes, senhora agente.
- Azar - ripostou Marion, voltando a concentrar-se no mapa de Williamstown. Com a ponta do dedo, percorreu várias artérias, tentando ver a pequena cidade tão pitoresca através dos olhos de Jim Beckett. Esforçando-se por a conhecer como ele a conhecia.
Jim Beckett era o número um. Jim Beckett esteve aqui. Jim Beckett esteve aqui.
Olhou fixamente para o mapa, concentrando-se ainda mais, olhando para o ponto onde a casa de Tess estava assinalada com um ”X” que ela própria fizera.
- Oh! - exclamou Marion por fim, o padrão a clicar na sua mente. - Oh...
Oito horas da noite. O Sol já se pusera, os candeeiros de rua já estavam ligados. Na carrinha branca, o tenente Houlihan e o agente especial Quincy permaneciam em silêncio. Os atiradores furtivos tinham ocupado as suas posições nos telhados; haviam calçado luvas de lã sem dedos para que as mãos não lhes arrefecessem. Ao fundo do quarteirão apareceu uma estudante universitária que usava colãs pretos, uma saia curta vermelha e uma camisa de flanela axadrezada bege, calçada com umas botas pretas e mochila às costas, dirigindo-se para casa; abriu a porta da frente e entrou.
Às seis da tarde, o pequeno quarteirão residencial tinha mostrado alguns sinais de vida. Mas agora as coisas começavam a acalmar-se. As poucas famílias que viviam naquela área estavam a jantar. Os estudantes universitários já haviam voltado a partir, a caminho dos divertimentos nocturnos de sexta-feira. Houlihan pressupunha que não veriam muito mais movimento até à uma ou duas da manhã.
Linden Street era um local bastante sossegado.
O radiotransmissor começou a dar uns estalidos secos, produzindo alguns sinais de vida. As brigadas de patrulha, a Alfa, a Beta e a Ómega entraram todas em contacto, informando que até ao momento não havia qualquer sinal da presença de Jim Beckett.
- Preparem-se para uma semana muito comprida - resmungou Houlihan, mal-humorado.
- Que é feito da agente MacAllister? - perguntou Quincy.
- Não sei. Ela é uma das suas agentes.
Quincy olhou outra vez para o seu relógio, franzindo o cenho.
- Nunca me passou pela cabeça que ela fizesse asneira logo de início - murmurou. Pôs-se a olhar de novo pela janela da carrinha. Detestava aquelas missões.
Por fim, Houlihan pegou no telemóvel, comunicando com a central.
- Há alguma novidade? - perguntou ao sargento de serviço.
- Não, meu tenente.
- Alguma coisa do Grupo A? Conseguiram descobrir qualquer pista sobre o paradeiro do Jim ou da Samantha?
- Não, meu tenente.
- As certidões de óbito já estão todas confirmadas? - continuou Houlihan numa voz insistente. Estava farto de ouvir ”Não, meu tenente.”
- Sim, meu tenente.
- Pensei que eles tinham uma pista, ou não?
- Acabei de falar pessoalmente com o detective Epstein. Encontraram uma cópia da certidão de Mary Beckett nos arquivos do hospital. Todos os membros da família dele já morreram, meu tenente. Se ele tem a ajuda de alguém, será de uma pessoa de que nunca ouvimos falar. Continuam a trabalhar na listagem das pessoas que ligaram a dar informações.
- Que maravilha! - resmungou Houlihan, carrancudo, após o que desligou o telefone. Quincy continuava em silêncio.
Com o olhar, abrangeram a rua, continuando à espera.
Marion mudou de roupa. Optou por um par de calças de ganga e uma blusa de gola subida de seda em tom de pêssego, indumentária que completou com um casaco de lã irlandesa feito à mão. Deixou o casaco desabotoado para poder sacar da arma com facilidade.
Aquelas roupas eram muito mais elegantes do que as que uma estudante universitária vestiria normalmente, mas, à primeira vista, serviriam para o efeito.
Tirou o primeiro gancho do cabelo, logo depois o segundo e o terceiro. As madeixas de um louro-claro desmancharam-se lentamente, como se receassem aquela liberdade inesperada. Pegou numa escova, penteando-se até ficar com reflexos luzidios.
Não tinha o cabelo encaracolado nem naturalmente ondulado. Apenas umas madeixas de um louro de linho que caíam até à região lombar. Acrescentou uma fita e pensou que se parecia com a menina da Alice no País das Maravilhas. Perfeito.
O relógio com dígitos fluorescentes indicava que eram vinte horas e trinta minutos; Marion vestiu o casaco de fazenda cinzento. O coldre de ombro causava-lhe algum desconforto físico. Presa no tornozelo tinha uma pistola de calibre ponto vinte e dois.
Tirou o crachá do FBI, observando-o uma última vez. Fidelidade, bravura e integridade, era o que rezava. Juro por minha honra que obedecerei e defenderei a Constituição dos Estados Unidos da América de todos os seus inimigos, estrangeiros e nacionais...
Pousou o crachá no centro da cama. Ainda havia um assunto de última hora que teria de resolver. Redigiu a pequena mensagem de maneira simples e sintética.
Recordo-me bem dos fortes de almofadas e dos livros de banda desenhada do G, tal como da noite em que ambos chorámos porque o Snake ainda não tinha chegado para nos levar com ele. Por vezes, ainda sonho com o coronel e ele está sempre entre as chamas do inferno enquanto os diabinhos lhe picam o corpo. Eu fico do lado de fora a ver as labaredas que irradiam um calor intenso, e penso sempre que não é o suficiente. Mas não existe nada que possa ser suficiente.
Fizeste bem em lembrar-te, mas eu preciso de esquecer.
Para bem de nós dois, recorda-me como eu era na minha juventude.
Merry Berry.
Deixou o bloco de apontamentos junto do telefone. Guardou dois carregadores suplementares na algibeira do casaco.
Cabeça ao alto e costas direitas, Marion saiu do quarto sem olhar para trás.
Edith estava sentada no alpendre da frente da sua casa, aconchegando o velho agasalho de caça mais junto do corpo. Fazia frio, mais do que devia para aquela estação do ano.
Tinha pensado que, depois de ter conversado com Martha sobre as suas visões, tudo passaria a correr melhor. Ambas haviam falado com toda a franqueza sobre o assunto. Martha receava o filho. Pensava que ele teria feito algumas coisas más e era isso que as raparigas mortas tentavam dizer a Edith. Nessa noite, Martha deixaria a pequena Stephanie em casa de Edith para poder ir à esquadra de polícia, com o que esta concordara prontamente.
Preparavam-se para entrar em acção. Ambas tinham um plano. As visões deviam desaparecer.
Mas enquanto estava sentada no alpendre da sua casa, Edith sentia um grande aperto no peito e os braços já começavam a ficar com pele de galinha. Ali sozinha, apercebeu-se de que estava amedrontada. Muito amedrontada.
Martha voltou a surgir no caminho particular de acesso à sua vivenda. Estava a carregar o porta-bagagem do seu automóvel. Havia algum tempo que ela começara a meter malas de viagem e sacos com provisões no porta-bagagem. Edith não fazia a mais pequena ideia de como Martha conseguira reunir tanta coisa.
Martha voltou a desaparecer no interior da casa. Deixara de caminhar com rigidez. Agora andava numa passada larga e muito determinada, quase como se fosse uma jovem cheia de desenvoltura. O plano que ambas haviam estabelecido produzira um efeito de euforia em Martha. Mas Edith desconfiava que aquilo seria sol de pouca dura. Os olhos de Martha estavam circundados por olheiras muito fundas e o olhar tinha aquele brilho demasiado cintilante de alguém que não dormia durante a noite.
Edith sentiu outro arrepio de frio, voltando a esfregar os braços. A rapariga tornou a surgir à sua frente - aquela que tinha a tatuagem da borboleta. Edith sacudiu a cabeça.
- Estou a fazer o que posso. Portanto, agora vai-te embora. Vai procurar a luz, faz o que tu e a tua gente costumam fazer.
Entretanto, Martha reapareceu com a mão de Stephanie na sua. As duas atravessaram o jardim e depois a pequena mão de Stephanie foi formalmente transferida para a de Edith, cuja pele tinha manchas escuras próprias da idade. A garotinha não parecia sentir-se muito satisfeita, mas não se queixou. Por baixo da pala do boné de basebol que nunca largava, mostrava a expressão resignada de alguém que já passara por aquela experiência.
Edith achava que a garota era muito resistente para os seus quatro anos.
- Se tudo correr bem, amanhã de manhã já estarei de posse de uma providência cautelar - disse Martha.
- E como é que uma providência cautelar servirá para te proteger do Jim Beckett? - perguntou Edith num resmungo.
De imediato, Martha ficou como que petrificada. Muito atentamente, olhou para Edith.
- Como é que tens conhecimento do Jim Beckett?
- Eu... - Os lábios de Edith mexiam-se sem que da sua boca saísse qualquer som. Era uma daquelas coisas que ela desconhecia que sabia até ter proferido as palavras em voz alta. - Eu só... Só sei que sei, mais nada.
Martha fez um aceno de cabeça, mas havia qualquer coisa de novo na sua expressão fisionómica. Algo que fez com que Edith se tivesse imobilizado por completo. Ao lado dela, Samantha sustivera a respiração; a garota também pressentira a aproximação do perigo.
A mulher idosa e a criança permaneciam lado a lado muito caladas.
Lentamente, Martha fez um menear de cabeça. Lentamente, começou a recuar.
Por fim, entrou no seu automóvel fechando a porta com estrondo. De súbito, Edith sentiu uma tontura; todo o seu corpo tremia.
Baixou o olhar para Stephanie, uma menina tão submissa, cujo cabelo era de um louro tão dourado como o de qualquer das raparigas etéreas que lhe assombravam o alpendre. Edith ficou a olhar para o velho Nissan castanho que naquele momento saía do caminho de acesso a sua casa.
E, de um momento para o outro, as visões desapareceram do alpendre da sua casa. Saltaram para dentro do automóvel, enchendo-o com os seus longos cabelos louros, faces sombrias e silenciosas. Estavam a chorar e a proferir lamentações fúnebres, arrancando os cabelos enquanto caíam do carro. Implorando que as socorressem.
Edith forçou-se a desviar o olhar, voltando a sentir aquela dor aguda no peito. Era como se estivesse a ser espetada por agulhas muito aguçadas. Uma dor lancinante.
O seu olhar concentrou-se outra vez no automóvel que já se afastava pela rua fora. O seu olhar prendeu-se no cabelo de Martha, demasiado branco, e ficou a saber. Sabia por que razão as visões tinham começado a aparecer-lhe. Sabia por que motivo eram piores quando Martha se encontrava presente. Também sabia por que razão a pele do rosto de Martha era tão aveludada, as mãos tão fortes e os ombros largos de mais.
Martha não era a mãe de Jim Beckett. Martha era Jim Beckett.
Subitamente, as luzes traseiras accionadas pela travagem ficaram de um vermelho vibrante. O carro já muito estafado deteve-se a meio da rua.
E Edith soube que Jim Beckett sabia que ela sabia.
Apertou a mão de Stephanie com mais força.
- Corre, miúda, corre - ordenou, puxando-a para fora do jardim. Foge comigo!
Tess afastou-se da janela. Virou-se para J. T. sentado na cadeira reclinada, fazendo girar a faca de mato que tinha nas mãos.
- Estás bem? - perguntou ele.
- O crepúsculo - foi tudo o que ela disse.
Marion percorria as ruas de Williamstown sem o mínimo receio.
Não era a primeira vez que fazia aquele reconhecimento, comparando determinados edifícios com a sua posição no mapa que gravara a fogo na mente. Houlihan não mentira - Williamstown era pequena. Estabelecida em 1753, com o nome de West Hoosuck, a cidade como que se aninhava nos Berkshires, com um complexo universitário que se estendia por cerca de cento e oitenta hectares. Estava rodeada por campos verdejantes que ondulavam ao sabor do vento, pontilhados por igrejas góticas, de traço imponente, construídas em pedra. Os edifícios de tijolos vermelhos com caixilharia branca acrescentavam um toque de prestígio. As montanhas elevavam-se majestosamente no horizonte.
Todavia, o coração de Williamstown era formado apenas por uns escassos quilómetros quadrados. Do ponto onde Marion se encontrava, perto de Hoxsey Street, podia caminhar até à casa de Tess, em Elm Street, em doze minutos. Se corresse, percorreria essa distância em seis minutos. Os estabelecimentos comerciais, concentrados numa única área, juntamente com várias pensões e casas de habitação, proporcionavam as condições ideais para que um criminoso pudesse atacar e fugir. E o movimento constante dos grupos de estudantes universitários e turistas permitiam que qualquer pessoa passasse despercebida.
Não era difícil a Marion compreender o motivo por que Jim Beckett se sentiria tentado a regressar à cidade.
Deixou-se ficar por Hoxsey Street. Perto, o complexo da Faculdade de Ciências era constituído por uma massa escura de edifícios envoltos numa espécie de penumbra, onde os pinheiros vetustos projectavam a sua sombra sobre um dédalo de caminhos reservados aos peões. O lado oposto da rua começava com a belíssima Casa Spencer construída em tijolo vermelho, sede de uma das muitas associações de estudantes que ladeavam a rua principal. O resto da rua era ocupado por vivendas antigas, no estilo tradicional, que haviam sido reconvertidas em pequenos apartamentos para os estudantes de Williamstown. O centro médico da população estudantil situava-se no outro extremo da rua.
Eram apenas nove e meia da noite, e na rua o tráfego automóvel fluía com regularidade. Os estudantes percorriam os caminhos para pedestres que começavam um quarteirão mais à frente, em Spring Street, cheia de movimento, levando-os até à Faculdade de Ciências, através de Hoxsey Street, passando pela correnteza de associações. Nessa noite, os estudantes caminhavam num passo enérgico integrados em vários grupos. Era evidente que haviam prestado atenção às advertências que os informavam da possibilidade de haver naquela área um assassino.
Mentalmente, Marion incitava-os. Corram, corram depressa. Acreditem que esta noite não vão querer cruzar-se com o Jim Beckett.
Jim Beckett esteve aqui.
Deu voltas e mais voltas à frase que não lhe saía da cabeça, acreditando que era a única frase que tinha razão de ser. ”Jim Beckett era o melhor” possuía um sentido pejorativo; ele diria: ”Jim Beckett é o melhor.” O mesmo se aplicava a ”Jim Beckett era o número um.”
Jim Beckett esteve aqui. A afirmação era arrogante e infantil em conformidade com a maneira de ser do homem. Ajustava-se a ele.
Nessa noite - ou talvez na noite seguinte, ou na outra - ele viria em perseguição de Tess. Mas também completaria o seu padrão. Acabava sempre aquilo que começava. Já não tinha tempo para acabar o que começara com relação aos nomes das cidades. Mas nada o impedia de o fazer com os nomes de ruas.
Tess vivia em Elm Street, o que proporcionava um dos ”E” em aqui.
Contudo, para começar, ele iria precisar da letra ”//”.
Marion deu meia volta, começando a caminhar para o lado de Hoxsey Street. Terminaria ali.
Virou, afastando-se da rua principal, seguindo um dos caminhos para peões que atravessava o complexo da Faculdade de Ciências. Sentia a gravilha a ranger enquanto andava.
Por ela passou um grupo de quatro estudantes que desapareceram mais à frente.
Avistou um segurança de uniforme azul, com os cabelos grisalhos espetados que saíam de dentro do boné, o qual se aproximava. A barriga rotunda tremia como se fosse de gelatina.
Marion abanou a cabeça, baixando o pescoço para o peito, defendendo-se do frio e continuando a caminhar. Outro agente de polícia aposentado que passara a pertencer às empresas particulares de segurança. Lento, em má forma física e absolutamente inadequado para fazer frente a um homem como Jim Beckett.
Pelo canto do olho, Marion viu que o segurança erguia a cabeça. Tinha muitas rugas no rosto. E uma papada muito avantajada.
A menos de trinta centímetros do indivíduo, finalmente, teve oportunidade de reparar nos olhos dele.
Uns olhos azuis muito límpidos. Gelo.
Marion levou a mão à arma. E ele atirou-se para a frente.
- Que é feito da Marion? - perguntou J. T. num resmungo. Estava na cozinha andando de um lado para o outro, enquanto Tess tentava matar o tempo preparando um prato de chili. Na altura mexia os feijões como se estivesse obcecada, acrescentando o chili moído com uma mão pesada.
Ele olhou para o relógio pela quarta vez em cinco minutos. Apenas nove horas e trinta e cinco minutos e eles já estavam a dar em doidos.
- Talvez ainda esteja no escritório - adiantou Tess.
- Talvez. - J. T. sentia a tensão acumular-se dentro de si. Tambores da selva com um ritmo da selva. Não conseguia parar sossegado.
Pegou no telefone e ligou para a carrinha. Foi o tenente Houlihan que atendeu ao primeiro toque; era uma linha segura.
- O que foi? - atendeu o tenente com brusquidão.
- Pensei que a Marion voltaria a passar pela casa uma vez mais - disse J. T.
- Parece que ela mudou de ideias.
Aquela resposta deixou J. T. muito irritado.
- Chame-a ao telefone - disse com rispidez.
- Não posso.
- Não pode?!
- Ela não está aqui. Não sei o que se passa. A última notícia que tivemos dela foi por parte do Grupo Alfa que a viu a andar por Hoxsey Street. Deve ter ido tratar de alguns assuntos de última hora. Vai ser divertido vê-la tentar justificar-se perante o Quincy. Ele não parece estar muito satisfeito.
- Por que razão haveria ela de andar pela cidade? - perguntou J. T. carregando o sobrolho ainda mais. - Isso não parece nada dela.
- Quanto a isso já não sei. Só sei que a semana tem sido bastante dura.
- Sim... mas posso dizer-lhe que a Marion não é exactamente fraca das canelas.
- J. T, ela não está sob o meu comando. Em princípio, devia ter chegado aqui às sete horas. Neste momento são nove horas e trinta e oito minutos e a última vez que soubemos dela andava a passear por Williamstown, vestindo roupas casuais e um casaco comprido. Os agentes que a viram disseram que quase não a tinham reconhecido por causa do cabelo solto.
- O quê! - As sinetas de aviso começaram a soar imediatamente na sua cabeça. Não quis acreditar nelas. - Ela vestia umas calças de ganga e o cabelo louro não estava apanhado. O tenente diria que ela se assemelhava a uma estudante universitária? Como uma aluna loura?
Fez-se uma pausa feita de atordoamento.
- Oh, merda!
- Grande idiota! - invectivou J. T. tão assolado por um misto de cólera e terror que a mão que segurava o auscultador tremia. - Não está a ver o que ela pretende fazer? Raios o partam! E raios a partam] - J. T. não esperou que o outro lhe desse réplica. Desligou o telefone com toda a força e sacou da arma que trazia no coldre.
Tess ficara a olhar para ele, a mão imobilizada na colher de pau que estava dentro do tacho de chili.
- Fecha a porta à chave depois de eu ter saído - ordenou sem estar com explicações. - Não te mexas, não pestanejes e não abras a merda da porta a ninguém. A ninguém Estás a ouvir o que te digo?
- S... sim - respondeu Tess num tom de voz que mal se ouvia. Ele já começara a correr para a porta. - Espera! Não podes...
Tarde de mais. Ele já tinha saído.
- Porra! - praguejou Houlihan levando a mão ao fecho da porta da carrinha. Mas Quincy apressou-se a estender a mão, impedindo-o de sair.
À volta deles, os radiotransmissores emitiam os seus estalidos secos num sinal de actividade. Os atiradores especiais informavam que J. T. saíra de casa a correr. O Grupo Alfa respondia a informações de distúrbios na associação de estudantes.
As coisas começavam a aquecer.
- Mantenha a calma - pediu Quincy. O aperto com que imobilizava a mão do outro afrouxou por um momento, mas não o seu olhar. - O Grupo Alfa vai ver o que se passa com relação a esse distúrbio. Podemos deslocar o Grupo ómega para o local onde a Marion foi vista pela última vez.
Houlihan cerrou os punhos, mas depois, com um suspiro, soltou a respiração.
- Sim, sim, façamos isso.
- Sente-se capaz de tratar da vigilância sozinho?
- O quê?
- A carrinha, é capaz de se desenrascar sozinho?
- Claro que sou...
- Óptimo. Neste momento, Miss Williams encontra-se em casa sozinha, Houlihan. O que não é aceitável. Tenho de ir até lá.
Houlihan ficou a pensar naquilo por uns momentos. Tinha os nervos em franja e agora, para cúmulo, havia uma agente desaparecida, e o irmão, um mercenário, à procura dela pelas ruas da cidade. Toda a gente queria saber que raio se estava a passar e que raio deviam fazer. Mas aquela não era a melhor altura para entrar em pânico. Ao fim e ao cabo, Beckett é que tinha razão. A disciplina era a chave. Houlihan respirou fundo antes de falar.
- Não se esqueça de que o Beckett tem com ele as armas que roubou da casa onde o Difford se encontrava. Já pôs o colete à prova de bala?
- Sim. Eu fico a vigiar do interior da casa. Você controla as coisas no lado de fora.
Quincy sacou da pistola de nove milímetros, destravando o mecanismo de segurança. De uma das gavetas do interior da carrinha tirou mais dois carregadores que guardou na algibeira. Fez um último aceno de cabeça a Houlihan antes de sair.
O tenente trancou a porta depois de ele ter saído. Agora estava sozinho. Os seus olhos esforçaram-se por perscrutar todas as sombras. Afundou-se no banco.
Eram nove horas e quarenta e um minutos, e a sua equipa dividira-se.
Aquilo não augurava nada de bom.
Na sala de operações, uma das telefonistas acenou com a mão ao sargento. Pediu a quem estava no outro lado da linha que aguardasse.
- Tenho uma mulher na linha que insiste em dizer que sabe onde o Jim Beckett se encontra.
- E onde é que ela diz que ele está?
A telefonista da polícia suspirou. Durante as últimas semanas julgara já ter ouvido tudo. Quando aquela investigação chegasse ao fim, teria perdido toda a fé na inteligência humana.
- A mulher afirma que a vizinha do lado é o Jim Beckett. Acontece que a vizinha da casa ao lado é uma mulher reformada de sessenta anos, da Florida.
- Portanto, essa mulher de sessenta anos reformada é que é o Jim Beckett?
- Sim, meu sargento.
- É claro que sim, onde é que eu tenho a cabeça? Porque me faz perder tempo com esse tipo de maluquices?
- Porque a mulher também afirma que tem a Samantha Williams em sua casa neste preciso momento. Disse-me que estava a ligar do telefone de uma estação de serviço e que a Martha lhes vai dar caça a qualquer altura, e que tem medo tanto por si própria como pela Samantha. Consegui ouvir ao fundo o barulho de trânsito automóvel, assim como o que me pareceu ser o choro de uma criança. Ela diz ainda que não tenciona desligar até enviarmos a cavalaria e eu acredito no que ela diz.
O sargento fez um gesto na direcção dos auscultadores que ela tinha na cabeça. Colocou-os nos ouvidos e premiu o botão de comunicação.
- Está lá? Fala o sargento McMurphy. Com quem é que estou a falar? Edith? Edith Magher? Em que é que lhe posso ser útil, Edith? - perguntou de cenho franzido. Editn Magher. Por que razão aquele nome lhe era familiar? Passou uma vista de olhos pela folha de registos de telefonemas enquanto ela continuava a falar à toa ao seu ouvido, referindo-se a raparigas mortas que assombravam o alpendre de sua casa e à vizinha de sessenta anos que gostava de fumar charutos, e que era muito alta e corpulenta de mais e com uns olhos muito azuis...
O sargento não encontrou o nome dela na folha de registo. Passou à folha seguinte que se referia a alguns dias atrás. Ouvia o choro em surdina de uma criança como ruído de fundo. A mulher dizia-lhe repetidamente que estava tudo bem, não havendo motivos para choros. E depois começou a falar das raparigas mortas que tinham entrado para um Nissan castanho que se afastou com Martha/Jim Beckett ao volante. Mas Martha/Jim Beckett sabia que Edith sabia. Mais cedo ou mais tarde, Martha/Jim viria para ajustar contas com ela.
O olhar do sargento caiu sobre a lista de números de telefone que o Grupo A andava a verificar. Subitamente, o número como que se acendeu diante dos seus olhos. Edith Magher. Shelly Zane tinha reencaminhado sete chamadas para o número de Edith ao longo dos últimos dois anos.
O sargento agarrou o ombro da telefonista com tanta força que esta se retraiu. Apontou furiosamente para o ecrã.
- O que é que esta porra indica quanto ao local de onde a pessoa está a telefonar? Preciso de saber qual o local e imediatamente!
Beckett começou por lhe imobilizar o braço. Marion não entrou em pânico nem sequer se debateu com grande vigor. Permitiu que ele a arrastasse para trás das árvores onde estariam mais isolados, enquanto arquitectava o melhor plano de ataque. Ele acreditava que ela estava completamente indefesa. Mas não estava. No entanto, Marion não queria abrir o jogo antes do tempo. Com um homem como Beckett, o factor surpresa era tudo.
Ergueu uma perna e pisou-lhe os dedos do pé com toda a força. Ele fez um movimento brusco afastando-se, mas a rapidez do impulso desequilibrou-o. Com outro movimento de contorção rápido, ela conseguiu libertar-se das mãos dele, deixando-o a agarrar apenas o casaco.
Marion deu meia volta, posicionando-se de frente para ele enquanto levava a mão à arma no coldre, mas ele deu-lhe um murro em cheio no queixo com os dois punhos cerrados e juntos. A cabeça dela tombou desamparada para trás.
Mexe-te, apesar das dores!, ordenou a si mesma. Sacou da arma e ele imobilizou-lhe o antebraço com o bastão. Os dedos de Marion ficaram entorpecidos. A arma oscilou e, por momentos, pensou que lhe ia cair da mão. Saltar-lhe-ia dos dedos e ela ficaria sem poder defender-se.
Não deixes cair a pistola!
Pegou-lhe com a mão esquerda, disparando três tiros sem ter feito pontaria.
Ele agachou-se e depois atirou-se a ela. Encostou-a de costas contra o tronco largo de uma árvore, com tanta força que ela ficou sem fôlego. Marion reagiu instintivamente, batendo-lhe na nuca com a coronha da arma. Ele grunhiu e apertou-a com mais força, o equivalente de dois anos de halterofilia no ginásio da cadeia. Com o ombro, Beckett fez pressão contra o diafragma de Marion, esmagando-lhe os pulmões que ficaram sem ar, ameaçando matá-la.
Estava impossibilitada de disparar contra ele. Não conseguia fazer com que as suas mãos funcionassem. Começou a ver pontos de luz diante dos olhos. Tentou erguer o joelho, movimento que ele abortou com toda a facilidade. Ela começou a puxar-lhe os cabelos e o resultado foi ter ficado com a cabeleira postiça na mão.
O mundo começou a rodopiar. Marion sentia o peito a arder. Todo o seu corpo gritava por oxigénio. A casca do tronco da árvore parecia querer entrar-lhe pelas costas. Existiam tantas maneiras de sufocar uma pessoa. Tinha-se esquecido dessa realidade. Mas que coisa para se esquecer.
Com um último pensamento racional, voltou a disparar a arma, que poderia pelo menos alertar para a sua posição. Em seguida, enterrou as unhas no ombro de Beckett, procurando o ferimento de bala bastante recente.
Mas isso já não tinha importância.
Beckett contou mais oito segundos, e o corpo dela tombou, desfalecido.
Deixou que ela caísse, recuando e cambaleando por uns momentos como se estivesse embriagado. Continuava a sentir a nuca a latejar por causa das pancadas que ela lhe dera. Quando tentou focar o olhar em Marion, começou a ver a dobrar.
Mas Jim Beckett não tinha tempo para aquelas fraquezas. A disciplina era a chave.
Ergueu o bastão, acabando com aquilo de uma vez por todas. Um, dois, três. Depois de um pouco de prática, um homem começava a ser eficaz naquele tipo de coisas.
Pôs-se a correr despindo o uniforme de segurança pelo caminho enquanto atravessava o arvoredo. O primeiro acto tinha acabado. Preparava-se para o próximo.
Enquanto corria pela rua principal, J. T. começou a ouvir os tiros. Virou para Hoxsey Street, passando a grande velocidade pelos grupos de estudantes que, de súbito, paravam com os olhos arregalados.
- Porra, mexam-se! - gritava. - Saiam do meu caminho! - Sabia que era ela porque as pessoas já tinham começado a juntar-se à entrada do caminho ladeado pelas árvores, sem terem bem a certeza do tipo de desgraça que teria ocorrido, mas sem muita vontade de avançar para descobrir. Esticavam o pescoço sem abandonar a segurança relativa dos passeios bem iluminados.
- Polícia! - anunciou, mentindo descaradamente. - Alguém ligou para o cento e doze!
- Um tipo desatou a correr por entre as árvores - adiantou um rapaz.
- Parecia um dos seguranças da universidade - murmurou outro estudante. - Devia andar a caçar ratos.
- Ou a disparar contra o dedo grande do pé.
- Não! Não, não, não, não! - gritou, deixando-se cair de joelhos. Agarrou a mão da irmã. Em seguida, ergueu-a pelos ombros, puxando-a para junto do peito. A cabeça dela pendeu inerte para a frente, as pestanas imobilizadas junto das suas faces; as agulhas dos pinheiros tinham-se agarrado ao cabelo.
Tanto sangue. O crânio dela como que se desfez nas mãos de J. T. Tentou uni-lo. Tentou juntar todas as partes dela. E incitou-a a sobreviver, tal como a havia incitado todos os dias quando ambos eram crianças.
Fortes de almofadas e livros de banda desenhada do GI.
Vive, vive, vive.
Montar a cavalo e natação ”suicida”.
Não me deixes, não me deixes, não me deixes.
Marion aos pés da sua cama, suplicando-lhe que a salvasse.
Não me deixes falhar uma segunda vez.
- Raios te partam!
Beckett deslocava-se com celeridade por entre as sombras. Por fim, chegou a uma sebe cerrada, detendo-se para organizar as ideias. A sua respiração fazia-se de maneira arquejante, formando lufadas de vapor de água no ar frio da noite. Apercebia-se de que tinha sangue nas faces, e sentia a nuca inchada e muito sensível ao toque.
Aquele tipo de coisas não devia acontecer-lhe.
A sensação de euforia estava a esfumar-se. Por baixo desta, a exaustão ameaçava abalar devastadoramente o seu sistema. Sacudiu a cabeça, tentando lutar contra aquela sensação.
Já tinha a letra ”//”. Estava a concretizar o seu plano.
Teria de proceder a alguns ajustamentos. Edith conhecia a sua verdadeira identidade e Samantha estava com ela. Ainda pensara em ir atrás dela, mas era-lhe impossível matar uma mulher idosa diante da filha, o que o levou a decidir que, para já, não tomaria decisão nenhuma. Mais tarde, teria oportunidade de mostrar a Edith o que costumava fazer às mulheres que o irritavam. Depois disso, limitar-se-ia a reclamar a filha junto da polícia. Tinha-o feito antes e poderia voltar a fazê-lo.
Theresa continuava naquela área e isso era o que lhe interessava. Tinham falado bastante a respeito dele nos rádios da polícia, e ele percebeu que era convidado a juntar-se-lhes.
Era com grande ansiedade que esperava o momento de voltar a vê-la.
Passou a mão pelo fato azul-marinho que vestira por baixo do uniforme de segurança para o alisar. De uma das algibeiras tirou quatro toalhetes de que se serviu para remover a camada espessa de maquilhagem que aplicara no rosto, retraindo-se um pouco quando sentiu ardor nos arranhões que tinha no maxilar. Em seguida, disfarçou-se com um par de óculos e uma peruca de cabelo escuro.
Feito isto, desapertou a correia que prendia a espingarda de caça à parte interior do braço. O armário onde Difford guardara as suas armas provara ser uma autêntica mina.
Jim Beckett estava pronto.
- Dez horas - disse Tess num sussurro virando-se para Quincy. Onde é que ele estará?
- Há alguma pista? - perguntou Quincy falando através do radiotransmissor portátil.
- Negativo - respondeu Houlihan. - Recebemos informação de outro distúrbio em Hoxsey Street, o som de disparos. O Grupo Omega está prestes a chegar ao local... - A comunicação foi cortada pelos estalidos da electricidade estática. Ouviu-se outra voz.
- Aqui o atirador A. Para confirmar o controlo das vinte e duas horas. Tenho contacto visual com o B, mas não sei nada do C. É favor confirmar.
- Atirador C, comunique - chamou Houlihan, mas a sua voz voltou a ser cortada pelos estalidos secos. - Atirador C, comunique.
O rádio respondeu com o silêncio
- Atirador C?
Mais silêncio. Tess e Quincy trocaram olhares de inquietação.
- Temos contacto visual com o atirador C? - perguntou Houlihan numa voz que se ouvia perfeitamente.
- Aqui o atirador B. Neste momento estou a olhar para o outro lado da rua. Vejo o atirador A que se encontra posicionado à esquina, a ocidente. Não estou a ver o atirador C que devia estar posicionado a oriente. Repito, não estou a ver o atirador C a oriente. É favor confirmar, atirador A.
- Aqui atirador A. Não tenho contacto visual, meu tenente. Peço autorização para ir ver o que se passa.
- Autorização negada - respondeu Houlihan, lacónico. - Mantenha a sua posição. Vou chamar a polícia de intervenção. Repito, mantenham as vossas posições, vou chamar a polícia de intervenção. Neste momento passamos a estar no alerta vermelho. Repito, alerta vermelho.
Com Tess a observá-lo, Quincy, com muita calma, tirou dois carregadores suplementares de balas, colocando-os na mesa ao seu lado. Ergueu a pistola de nove milímetros fazendo pontaria para a porta.
- Tem alguma arma, Miss Williams?
- Tenho - confirmou Tess.
- Então, está na altura de a ir buscar. Por favor, tenha em mente que ele está aqui com a finalidade de matar. Não tentará negociar nem terá a mínima complacência. Está a perceber?
- Estou - replicou ela. - Descanse que não hesitarei.
- Esplêndido.
- Vamos ter de a levar. O senhor vai ter de a largar.
- Estou a segurá-la para que não se fragmente - disse J. T. numa voz roufenha, sem largar a irmã.
- Sei que sim - retorquiu o jovem com suavidade. Não lhe era difícil ver que a mulher estava morta. - Mas agora essa tarefa cabe-nos a nós. Alguém disse que o senhor é da polícia.
Muito lentamente, as palavras começaram a penetrar na mente de J. T., que baixou o olhar para Marion. A cabeça dela oscilava contra o seu braço. A sensação de perda dentro de si era incomensurável. Não era capaz de a expressar por palavras. Mas não podia entregar-se ao desgosto porque, se o fizesse, ir-se-ia completamente abaixo.
Entregou o corpo da irmã mais nova nos braços do paramédico.
- Tenho de ir. Por favor, tome conta dela por mim. Por favor... - Interrompeu-se começando a correr. Atrás de si, o paramédico gritou-lhe que parasse. Mas J. T. não lhe deu ouvidos.
A escuridão que se adensara dentro de si deu origem a uma voz que agora gritava a plenos pulmões: Mata o Jim Beckett, mata o Jim Beckett, mata o Jim Becket.
- Atenção, atenção! - ouviu-se através do radiotransmissor. - Aqui o Grupo ómega. Temos uma ocorrência fatal em Hoxsey Street. Repito, uma mulher abatida em Hoxsey, o mesmo modo de operar. O Beckett anda na zona!
Tess baixou a cabeça colocando-a entre os joelhos e respirando fundo. O radiotransmissor de Quincy parecia dançar com uma cacofonia odiosa de relatórios.
- Aqui o Grupo Alfa. Repito, o Grupo Alfa. Estamos posicionados no telhado, na esquina a oriente. Não vejo sinais do atirador C...
- Aqui o Grupo Ómega. Agente abatido, agente abatido. A agente MacAllister foi abatida...
- Merda! - praguejou Quincy batendo com o punho fechado na mesa. Tess ficou tão sobressaltada que deu um salto.
- Fomos informados de que o suspeito veste um uniforme dos seguranças. A última vez que foi visto dirigia-se para norte. Vamos em sua perseguição. Pede-se a mobilização total...
- A Polícia de Intervenção já foi mobilizada. Já estão a caminho...
- Agente abatido, agente abatido! Aqui o Grupo Alfa destacado para a esquina a oriente. Encontrámos o atirador especial C. Deus nos valha, senhor, encontrámos o atirador C... - Ao fundo ouvia-se o som dos arrancos do vómito. - Pedimos reforços, pedem-se reforços imediatamente. Ele está no telhado. Merda, parece-me que estou a vê-lo! Ele está no telhado, porra! O telhado, o telhado!
Através das ondas hertzianas, Quincy e Tess ouviram o barulho de homens a correr.
- Mantenham as vossas posições, mantenham as vossas posições! - gritava Houlihan. - Repito, mantenham as vossas posições, porra!
O estampido dos disparos explodia através das ondas hertzianas. Ouviu-se o grito enrouquecido de um homem.
- Difford. Oh, meu Deus, oh, meu Deus! Que grande porra!
Naquele momento, Houlihan gritava com todas as suas forças.
- O que é que se está a passar? - gritou Tess.
- Não sei - respondeu-lhe Quincy, que tinha empalidecido. O seu olhar fixou-se no tecto.
Ouviu-se o som da campainha da porta logo seguido do bater de punhos cerrados.
- Miss Williams, abra. Sou o detective Teitel da Polícia Estadual do Massachusetts. Fui destacado para a proteger.
- Deixe-se ficar aí - disse Quincy a Tess.
Não foi preciso convencê-la. Ela como que se agarrava à parede, empunhando a pistola de calibre ponto vinte e dois com uma mão trémula.
Com cautela, Quincy aproximou-se da porta, mantendo-se a um dos lados da ombreira.
- Quero ver o seu crachá! - gritou através da porta fechada.
- De acordo.
Quincy aproximou-se do ralo da porta. A caçadeira desfez a porta, arremessando-o pelos ares. Gritos encheram a sala. Tess precisou de alguns momentos para se aperceber de que os gritos eram seus.
Nas proximidades ouviu-se o som de mais disparos. Um tiro de carabina.
Conseguiu levantar-se do chão e, a cambalear, recomeçou a correr.
Mata o Jim Beckett. Mata o Jim Beckett!
- Fardos de palha, fardos de palha! - gritava Tess. Apontou a arma, tentando assumir a posição mais correcta.
Jim apontou a caçadeira a Quincy, que estava caído no chão.
- Vou matar-te, Theresa - disse-lhe com toda a calma. - A questão que se põe é esta: quantos agentes de polícia é que tencionas levar contigo?
As lágrimas corriam livremente pelas faces de Tess. Não hesites. Não hesites.
Quincy gemia. Tinha o rosto ensanguentado e algumas lascas de madeira entranhadas na pele. Mas ela sabia que ele tinha posto um colete à prova de bala, o que teria decerto evitado o pior.
Jim meteu uma munição na câmara.
Naquele momento, os contornos da figura de J. T. encheram a entrada. Tess não foi capaz de impedir que o seu olhar se dirigisse naquela direcção. Jim virou-se e, com uma grande calma, começou a disparar.
- NM
O estampido dos disparos da caçadeira pareceu ter deflagrado nos seus tímpanos. J. T. caiu de costas em cima do passeio. Tombou desamparado com os braços abertos, qual figura de desenho animado. Porque a violência não tinha fim. Para ela, era uma coisa que continuava ininterruptamente.
Tess apontou a pistola e apertou o gatilho. Jim tirou-lhe a ponto vinte e dois da mão, dando-lhe uma coronhada com toda a força. Ela caiu de joelhos, agarrada ao rosto.
- Vamos fazer isto à minha maneira - declarou Jim, agarrando-a por um braço e arrastando-a para o primeiro andar.
O sangue escorria-lhe do ferimento do ombro que entretanto se abrira. Teria ela conseguido atingi-lo? Tess estava incapaz de raciocinar com coerência. Sentia um ardor enorme na face em que ele lhe batera e ouvia um zunido ensurdecedor. O tresloucado estava a ganhar. Jim tinha assumido o controlo da situação.
Não! Bolas, não!
Tess começou a dar pontapés na parte de trás das pernas de Jim, querendo acertar na região do joelho. Ele contorceu-se afastando-se dela. Enclavinhando os dedos da mão que tinha livre, tentou enterrá-los nos rins dele. Jim deu-lhe uma forte bofetada. Ela ferrou-lhe os dentes no ombro e mordeu-lhe uma orelha.
- Foda-se! - praguejou Jim afastando-a com tanta força que ela foi embater na parede, caindo redonda no chão. Apesar de muito combalida, conseguiu pôr-se de pé, tentando dar-lhe um pontapé nas virilhas.
Luta, luta, luta, incentivou-se Tess, e lutou.
Jim Beckett elevou-se diante dela, qual besta enraivecida. Arremessou a caçadeira para o lado. Agarrou-a por um ombro e puxou-a para junto de si. Com a parte da mão junto do pulso, Tess deu-lhe um golpe de cutelo na clavícula. Ele grunhiu de dor.
Mas, depois, Jim envolveu-lhe o pescoço com as mãos e começou a apertar.
Tess desfaleceu caindo de joelhos. Continuava a tentar bater-lhe, mas de uma maneira inútil. Pareceu-lhe ter ouvido gemidos no andar de baixo e tentou empatar Beckett. Não queria morrer. Defronte dos olhos começou a ver uns pontos luminosos brancos, mas recusou-se a desistir.
Tinha lutado com toda a sua coragem e chegara longe de mais para agora se render à violência de Jim. Raios a partissem se ela não acabasse por vencer!
Jim esboçou um sorriso cheio de crueldade. Os dedos apertaram-se mais à volta da garganta de Tess.
Não lhe saía do pensamento que devia perguntar por Merry Beny, mas, então, a recordação do que acontecera atingiu-o com todo o impacto.
Com bastante dificuldade, conseguiu pôr-se de pé. Ouviu o barulho de carne a bater em carne. Odiava aquele som. Tess... Enraivecido e a cambalear aproximou-se da porta despedaçada enquanto com a mão esquerda tentava amparar as costelas doridas. Agarrou-se à ombreira da porta para se apoiar, sentindo as lascas de madeira espetarem-se na palma da mão. Serviu-se da dor para resistir.
O coronel tinha criado um filho capaz de andar mais de três quilómetros com um tornozelo fracturado. Isso era de homem. Sê um homem. Luta como um homem! J. T. sacou da faca de mato que metera por dentro do gesso, avançando para as escadas.
As sirenes ecoavam atrás de si. Os homens continuavam a gritar. Alguém berrava qualquer coisa a respeito da porta da frente.
Eles que viessem todos. Os cabrões que viessem todos!
Pelo canto do olho, Beckett deu pela presença de alguém. Largou Tess, que caiu desamparada e estendeu a mão para a caçadeira. Não viu a faca de mato ser arremessada pelo ar até que a sentiu no ombro.
Ficou a olhar para a faca como se não compreendesse o que estava a acontecer. J. T. tinha chegado ao patamar. Com um rugido, investiu, furioso.
Beckett cerrou os punhos e socou brutalmente a região lombar de J. T., que sentiu a boca cheia de bílis fresca misturada com sangue. Retrocedeu e, com um golpe de cabeça, atingiu a parte de baixo do maxilar de Beckett. Em seguida, estendeu a mão para o cabo da faca e começou a torcê-la.
Com um grito agudo de dor, Beckett recuou alguns passos. Vagamente, J. T. apercebeu-se das meias-luas muito escuras por baixo dos olhos do homem, do seu rosto emaciado. Beckett tinha perdido dez quilos desde que se evadira da prisão, e isso notava-se.
No entanto, essa perda de peso não o afectava. A única coisa que o homem sentia era o ressoar do fluxo de adrenalina nos ouvidos. As sirenes, os gritos, o barulho. Tudo aquilo parecia alimentá-lo. Pegou no bastão que tinha preso na parte interior do braço e começou a desferir golpes com toda a força.
À primeira pancada, J. T. conseguiu esquivar-se, afastando-se para o lado. À segunda, rebolou sobre si mesmo. A terceira apanhou-o em cheio nas costelas que já estavam fracturadas. A dor excruciante que o atravessou dos pés à cabeça era impossível de descrever, quer em intensidade quer em cor. Foi-se abaixo das pernas.
Acima dele, o bastão voltou a entrar em actividade. Ouvia o barulho que fazia a cortar o ar, sentindo mesmo a deslocação.
Ordenou ao seu corpo que rebolasse. Uma vez mais, para perto das escadas. Os seus músculos levaram muito tempo a obedecer à ordem do cérebro.
O bastão voltou a descer.
Um disparo de caçadeira impeliu Beckett pelo ar e fê-lo cair a meio do patamar do primeiro andar. Tess imobilizara-se com a arma nas mãos; tinha as faces sujas de pólvora. Inseriu outro cartucho na arma.
Dos lábios de Jim saiu um gemido surdo misturado com sangue. J. T, que continuava caído, mal conseguia focar o olhar ao vê-la a aproximar-se dele. No rosto dela não havia lágrimas. Nos seus olhos não havia emoção. Tinha o rosto pálido e uma expressão extraordinariamente calma. J. T. pensou em Marion quando Tess apontou a caçadeira ao corpo de Jim caído por terra, puxando o gatilho.
Através da névoa do fumo que já se dissipava, os olhos castanhos dela foram ao encontro dos dele.
- Acabou - murmurou num tom de voz enrouquecido, com a caçadeira encostada ao ombro. - O estado do Massachusetts pode não acreditar na pena de morte, mas eu acredito.
Jim Beckett não voltou a mexer-se. Tess deixou que a arma deslizasse para o chão. Soergueu a cabeça ensanguentada de J. T. e colocou-a no seu regaço, aconchegando-a com as mãos e esperando que os polícias subissem as escadas.
Mesmo a sul de Lenox, o agente de polícia virou o carro-patrulha com a sirene a funcionar, entrando na estação de serviço. Vinha seguido de outro carro-patrulha de apoio que se deteve atrás do seu com um chiar de pneus.
A mulher que se preparava para pagar a gasolina com que abastecera o seu automóvel ficou a olhar fixamente para eles. O homem que desatarraxava a tampa do depósito do seu Mercedes deteve-se. Os dois rapazes que andavam à procura de qualquer coisa com que se divertirem baixaram-se ainda mais nos respectivos assentos, perguntando-se se teriam escondido bem a marijuana debaixo do banco.
Os polícias procuraram o telefone público.
Entretanto, da esquina do edifício surgiu uma mulher idosa com uma expressão sombria; nas costas das mãos viam-se algumas manchas escuras devido à idade avançada. Trazia uma garotinha loura ao colo que se agarrava ao seu pescoço. Com uma expressão austera, olhou para os agentes de polícia.
- Edith...? - perguntou um dos agentes.
Ela acenou que sim e ele aproximou-se das duas num passo lento porque era evidente que a garota estava amedrontada. O rosto da pequenita correspondia perfeitamente ao das fotografias espalhadas pelas paredes da sala de operações da central. Ele sabia. Durante as últimas noites, aquele agente tinha-se deitado sempre muito tenso, sonhando com aquela fisionomia.
- Eu quero a minha mamã - choramingou a garota numa vozinha que mal se ouvia.
- Eu sei que sim, minha querida. És a Samantha Beckett, não é verdade?
Ela assentiu lentamente com a cabeça, continuando a agarrar-se firmemente ao pescoço de Edith.
- Está tudo bem - disse-lhe ele com um sorriso com que pretendia inspirar-lhe confiança. - Vamos levar-te para junto da tua mamã, Sam. Vamos levar-te para casa.
A recém-chegada provocou alguma agitação.
Parou na soleira da porta do bar de Nogales, exibindo um corpo de linhas esbeltas e longas; era uma mulher muito bela. As cabeças dos homens viraram-se imediatamente, despertados por um qualquer instinto ancestral. Os tacos de bilhar pararam. As canecas de cerveja imobilizaram-se quando eram levadas a lábios já entreabertos. Os olhares predadores trespassaram a espessa cortina de fumo, prendendo-se num vestido muito simples de algodão branco que se cingia ao corpo, e que, atrevidamente, se ficava por cima dos joelhos.
Ela entrou no bar.
A sua maneira de andar não convidava a interrupções. Tinha um objectivo e encaminhava-se directamente para ele. Os olhares observadores tentavam adivinhar a sua trajectória para ver quem era o homem cheio de sorte com quem ela iria encontrar-se. No momento em que descobriram, apressadamente, os olhares desviaram-se.
Se ela fosse capaz de o amansar, pois que lhe servisse de bom proveito. Já todos tinham aprendido a manter-se afastados do caminho dele - e cada um aprendera essa lição da maneira mais dura.
Ele estava debruçado sobre um copo pequeno que continha uma bebida de uma cor ambarina. A camisa de algodão azul que vestia estava amarrotada e usava-a com a fralda por fora das calças de ganga. Há muito tempo que não cortava o cabelo preto. As faces magras tinham uma barba curta e cerrada.
Algumas das mulheres presentes achavam-no fisicamente atraente. Mas ele parecia não achar que elas fossem alguma coisa de especial.
Todos os dias, sem falhar, ia àquele bar. Bebia. Jogava bilhar. E depois bebia ainda mais.
Agora, a mulher misteriosa chegava junto dele. Graciosamente, sentou-se no banco com o assento de vinil rasgado. Fitou-o com uma expressão plácida. Ele não ergueu o olhar.
- Amo-te - disse ela num tom casual.
Ele soergueu uns olhos congestionados. Estavam suficientemente avermelhados e velados para se poder deduzir que não dormia há várias semanas. Passara um mês desde a última vez em que ela o vira. A polícia levara-lhe Sam. Jim Beckett fora transportado para o hospital onde entrou já cadáver. J. T. e Quincy foram hospitalizados com costelas fracturadas; no caso do primeiro, também com uma perfuração pulmonar. Durante uma semana, ela tinha ido visitá-lo ao hospital dia após dia. Durante todo esse tempo, deixara-se ficar deitado sem dizer nada, sem reagir à voz ou à presença dela. Dava a impressão de estar meio morto, havendo ocasiões em que ela perguntava a si mesma se ele não desejaria que fosse esse o caso.
Então, houve um dia em que foi ao hospital como fazia habitualmente e foi informada de que ele desaparecera. Vestira a roupa ensanguentada com que fora admitido e saíra porta fora. O pessoal do hospital não pudera fazer nada para o impedir e, desde então, ninguém o vira.
O corpo de Difford foi retirado do telhado onde Beckett o colocara como uma espécie de engodo depois de ter aniquilado o atirador especial. Tinha prendido a cabeça de um manequim ao pescoço do tenente da polícia. Tess assistira à cerimónia religiosa do tenente e do atirador furtivo. De acordo com a última vontade de Difford, o seu corpo foi cremado e as cinzas espalhadas por cima do centro de estágio de Primavera dos Atlanta Braves, na Florida.
Dois dias mais tarde, Tess fora ao funeral de Marion, sepultada ao lado da campa do pai em Arlington. J. T. continuava sem se deixar ver. Era como se tivesse desaparecido da face da Terra. Foi então que Tess ficou a saber que ele tinha regressado a Nogales.
- O que é que estás a fazer aqui? - perguntou ele com a voz enrouquecida, quer devido ao tabaco, ao uísque ou à falta de uso. Talvez uma combinação dos três. Pegou numa cigarreira, mas não a abriu, limitando-se a fazê-la girar entre os dedos. Era a cigarreira que pertencera a Marion.
- Não devias estar aqui - disse Tess.
O olhar dele percorreu-a de alto a baixo, e a seguir mostrou-se desinteressado.
- Excessivamente virginal. Não estou interessado.
- Eu não estou no negócio do pecado.
- Pois bem, estou eu.
- Vamos para casa, J. T. - acrescentou ela acariciando-lhe a face ao de leve. A barba dele estava tão comprida que se tornara sedosa. Ela voltou a familiarizar-se com as linhas das maçãs do rosto, com os contornos dos lábios carnudos. Tess desejava-o. Olhava para ele com uma ânsia que chegava a doer. - Diz-me como é que posso ajudar-te.
- Vai-te embora - ripostou J. T.
- Não posso.
- As mulheres nunca se cansam de tentar mudar um homem. Pensam que existe sempre mais qualquer coisa dentro de nós e, muito francamente, isso não é verdade. Eu sou o que sou, mais nada - acrescentou ele abrangendo o bar num gesto largo da mão. - Minha doçura, isto sou eu.
- Tu és o que és, mas não é isto. Isto és tu embriagado. Já te vi quando estavas sóbrio. E esse homem é-me muito querido, mesmo muito. Acredito que esse homem é um dos melhores que conheço.
Ele baixou o olhar, prendendo-o na mesa onde estava o copo pequeno cheio de uma bebida de um tom ambarino. A vergonha espelhava-se no seu semblante.
- Estou assombrado - acrescentou J. T. abruptamente. - Como um casarão antigo. Fecho os olhos e só vejo a Rachel e a Marion, a toda a hora. Umas vezes elas estão felizes, outras estão tristes. Nada posso fazer quanto a isso. Estendo a mão para elas e /”/!, desaparecem no ar. - Abriu a palma da mão por cima do tampo da mesa atirando uma mão-cheia de nada ao ar.
Tess ficou sem saber o que dizer. Não era nenhuma perita a sarar feridas emocionais. Tinha de se limitar a fazer o melhor que sabia. Beijou-o. A boca dele não sabia a uísque nem a cigarros. Estranhamente, sabia a maçãs.
O olhar dela foi de J. T. para o copo que ele tinha diante de si. Permanecia sentado com uma postura rígida enquanto ela cheirava a bebida.
- Sumo de maçã?
- Sim. - A vergonha voltou a corar-lhe as faces. - Experimentei beber uísque. Tentei mesmo. Mas sempre que erguia o copo, só via a Marion a abanar a cabeça numa atitude de censura. Meu Deus... - Baixou a cabeça. - Tornei-me um verdadeiro abstémio!
- Não faz mal - disse ela afagando-lhe o cabelo. - As coisas serão cada vez mais fáceis. Podes acreditar que sim.
Mas J. T. não se mostrava muito convencido. Passou os dedos pelos contornos da barba, pelo inchaço arroxeado abaixo dos olhos, pelas linhas dos lábios carnudos.
- J. T., amo-te - repetiu Tess.
Ele gemeu como uma besta encurralada. Fechou os olhos.
- Porque é que não podes ir-te embora? Por que razão não podes deixar-me em paz? Conseguiste matá-lo, conseguiste sobreviver-lhe, não te chega?
- Não quero viver no passado.
- Pois eu não sou capaz de lhe escapar.
- És, sim, só tens de dar tempo ao tempo. - Tess deixou o assento ao lado dele, optando por sentar-se no colo de J. T. Naquele bar, eram muito poucas as pessoas que reparavam naquele tipo de atitude. Sentia as coxas firmes e viris debaixo de si, a ganga das calças macia devido ao muito uso. Tess beijou-o nos lábios e depois na face, passando à cicatriz que ele tinha no peito.
Encostou a cabeça ao ombro dele e, alguns momentos depois, sentiu o braço dele a envolver-lhe a cintura. J. T. ocultou o rosto entre o cabelo dela.
Decorridos uns momentos de grande tensão, os ombros largos de J. T. começaram a tremer.
- Fala - encorajou ela numa voz muito suave.
- Amo-te, meu Deus, como te amo.
E ele estava a morrer e para si não existia mais nada. Não havia lugar nenhum para onde pudesse ir em que não visse Marion caída por terra, tal como não havia sala nenhuma em que não visse Rachel a soprar-lhe um beijo antes de entrar no automóvel e o braço pequeno de Teddy a acenar-lhe do banco de trás. Desejava poder voltar a vê-los todos. Desejava poder ter os três nos seus braços, murmurando: ”Por favor, por favor, sejam felizes. Amo-vos e só quero que consigam ser felizes. Amo-vos.”
Para bem de nós dois, recorda-me como eu era. na minha juventude.
- Faz com que eu volte a ser um todo. Quero voltar a ser um homem de corpo e alma.
Ela encostou o rosto dele ao seu pescoço, acariciando-lhe o cabelo. Tess cheirava a rosas. Ele inalou profundamente aquela fragrância sentindo que, finalmente, conseguia acalmar os sentidos.
- Vamos. Está na hora de irmos para casa para conheceres a minha filha.
Mais tarde, quase doze meses depois daquela noite tão sangrenta, ele teve aquele sonho pela primeira vez. Marion e Rachel estavam num campo cheio de flores silvestres; usavam vestidos brancos e uns chapéus excêntricos de Verão. Aos pés das duas, Teddy apanhava malmequeres, a mãozinha gorducha cheia de flores. Conversavam e riam, desfrutando de um belo dia de Verão.
Quando acordou, J. T. considerou que aquele era um sonho ridículo. Mas, apesar disso, manteve-o nos seus pensamentos.
Gostava de se recordar dos três a rirem-se, gostava de se lembrar deles quando estavam felizes. No fim, talvez isso fosse o máximo que qualquer de nós poderia fazer - recordar aqueles que amámos da maneira como os amámos.
- Maus sonhos? - perguntou ela ainda sonolenta.
- Não - respondeu ele.
- Ainda bem, e agora pára de puxar a coberta toda para ti.
Tess voltou a cair no sono. Ele cobriu-lhe os ombros e aninhou-se junto ao corpo dela. Tess murmurou o seu nome e abraçou-o.
Lisa Gardner
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