Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
MINHA MULHER, UMA DESCONHECIDA
"Você fará o mais extraordinário casamento, fora de todas as normas", previu uma cigana à Geneva de Rouvaux, dama de companhia de Suzannah Murphy, uma rica americana.
Em Nova York, Suzannah decide, um dia, se casar ao mesmo tempo que sua amiga Virgínia. A cerimônia teria lugar, à noite, no castelo de Geoffrey Seymour, um lorde inglês muito rico.
Mas os convidados abusaram dos vinhos generosos. Todos estavam mais ou menos embriagados. Quase involuntariamente, tonta, meio consciente, Geneva se casa, de madrugada, com lorde Seymour, um homem desconhecido.
A euforia foi breve, o amanhecer, brutal. "Eu casei com o mais belo dos Príncipes Encantados", disse Geneva.
"Anularemos a estúpida e ridícula aventura desta noite, quando nossos amigos nos arrastaram a esse enlace", escreveu Geoffrey, na manhã seguinte.
Mas Genova, vítima de uma súbita paixão, não podia concordar com isso...
A atmosfera estava abafada, tempestuosa. O céu pesado, de um tom pardacento e opaco, dava a impres¬são de estar coberto por enormes nuvens de cinza.
“Purê de ervilhas” — chamar-lhe-ia qualquer aviador.
Naquele recanto da campina normanda, que a linha de caminho de ferro limitava à direita, reinava absoluto silêncio. Nem a mais pequena aragém curvava a erva tenra do prado ou fazia rumorejar o arvoredo. A Natu¬reza parecia dormir, entorpecida pelo calor e pela apro¬ximação da trovoada.
No entanto, apesar do tempo ameaçador, um vulto feminino caminhava com passo firme pela estrada branca e poeirenta.
Era uma parisiense que regressava do cemitério de Fourtainville, onde fora rezar junto da campa da mãe, e se dirigia à estação a fim de tomar o comboio para Paris.
— Uma esmola, por piedade! — suplicou uma voz trêmula, que parecia sair da beira da estrada.
A viajante parou, tentando descobrir o ser humano, homem ou mulher, que acabava de falar.
Não vendo ninguém e supondo tera sido vítima de uma ilusão, dispunha-se a prosseguir o seu caminho quando a mesma voz insistiu em tom imperioso:
— Morro de fome e de sede! Tenha dó de mim!
Desta vez, a caminhante olhou com mais atenção para lá do talude. Estendida no chão, à sombra dos abrunheiros bravos, via-se uma mulher. A saia rodada de tons berrantes, os colares e pulseiras de contas de vidro multicolores, o tom moreno da face, emoldurada pela cabeleira grisalha, indicavam à primeira vista uma cigana.
Sem temores pueris, pois muitas vezes acompanhara uma velha parenta nas suas visitas de caridade, apro¬ximou-se da pobre, que parecia prostrada pela fadiga, ou doente.
— Tenho sede! — repetiu a cigana, cujos olhos muito negros tinham um brilho febril.
— Valha-me Deus! — exclamou, compadecida. — Não trago comigo qualquer alimento ou água! Se tivesse podido adivinhar que uma pessoa sofria assim ao aban¬dono em pleno campo, decerto me teria prevenido com a comida e bebida necessárias para lhe acudir...
O olhar penetrante da velha mendiga pousou com insistência no rosto da desconhecida, no qual se viam ainda vestígios de lágrimas.
— Nesse caso, como poderá socorrer-me? — pergun¬tou numa voz onde vibrava intensa amargura.
Sem lhe responder, a rapariguita abriu a malinha de mão e procurou o porta-moedas.
— Não sou rica — declarou com modéstia — e sin¬to-me desolada por não poder fazer em seu favor quanto desejava... Vou repartir consigo o que trago... o dimi¬nuto tesouro de uma rapariga que vive junto de seus pais e não tem fortuna pessoal.
Calou-se para contar o dinheiro e, quando revistou todos os escaninhos da mala, um sorriso triste lhe ilumi¬nou a fisionomia meiga.
— Só tenho doze francos... É pouco, mas ainda assim não contava possuir tanto... Aqui estão seis, para si — acrescentou, entregando-lhe a soma anunciada. — Sou obrigada a guardar o resto a fim de poder tomar o autocarro ao sair da estação... Depois, quando chegar a casa de meu pai, já não preciso de dinheiro.
A cigana agarrou nas três moedas e guardou-as sem uma palavra de agradecimento, mas o olhar investigador nem um só instante abandonou o rosto fresco daquela que cumpria os seus deveres de caridade com tanta simplicidade e modéstia.
— Chorou? — acabou por perguntar com certa iro¬nia. — Os burgueses também sofrem, já vejo. Contudo, sendo tão novinha, admira-me como conheça já a adver¬sidade.
— Todos nesta vida têm a sua cruz — replicou a rapariga com profundo suspiro. — A verdadeira coragem consiste em suportá-la de cara alegre, sem lágrimas nem recriminações.
Mas, em contradição com tão sensatas palavras, duas lágrimas lhe saltaram dos lindos olhos negros.
— Abençoado seja o orvalho que o Céu fez brotar do coração — proferiu a pobre, em tom grave.
Mas logo acrescentou, insidiosa e sem desviar a vista do semblante pensativo da desconhecida:
— Mesmo na alvorada da vida será possível existir pesar isento de remorsos?
Inconscientemente, a rapariga aproximou-se.
— Remorso! Não compreendo! — protestou, corando. — Venho do cemitério, onde fui rezar junto da campa de minha mãe. É esse o meu desgosto. Remorsos, se os sentir, será por não conseguir evitar o mal que os outros causam, muitas vezes sem querer.
Em seguida, talvez arrependida por ter desvendado assim os seus pensamentos a uma desconhecida encon¬trada à beira do caminho, despediu-se:
— Adeus! Seja feliz e que Deus a acompanhe.
Num movimento rápido, a cigana estendeu o braço e prendeu-a pela saia, impedindo-a de se afastar.
— Espere!... Talvez eu possa também fazer alguma coisa em seu favor. A criança que, ao regressar ao lar, não encontra os braços da mãe, é uma órfã pela qual toda a mulher que é mãe, mesmo sendo uma estranha, deve velar.
— Posso perder o comboio — balbuciou, um tanto desorientada por a cigana se ter atrevido a agarrá-la.
Esta, porém, apesar da observação, não a largou.
— Nunca é tarde para caminharmos ao encontro do nosso destino — disse sentenciosamente. — E um bom conselho não deve rejeítar-se.
Sem largar a saia que prendia entre os dedos, levan¬tou-se. Então, endireitando o corpo magro e descarnado, dominou a rapariga com toda a sua altura e examinou-a mais de perto.
— A florinha mal começa a desabrochar — murmu¬rou a meia voz. — A alma reflecte-se no olhar luminoso, deixando adivinhar toda a candura e pureza.
Reinaram alguns segundos de silêncio, durante os quais a cigana cerrou as pálpebras como se quisesse concentrar-se.
Depois, em voz baixa, mas firme, quase ordenou:
— Dê-me a sua mão, minha filha. É aí que o des¬tino de cada um está escrito, linha a linha.
A jovem, porém, intimidada, abanou a cabeça.
Não acreditava nesses charlatães que percorrem a província, vivendo à custa da credulidade dos pobres camponeses.
— Não quero saber a minha sina — afirmou timida¬mente.
A sua hesitação não passou despercebida à cigana.
— Nada tem a recear — afirmou com um sorriso orgulhoso. — A sua pessoa e os seus bens são sagrados para mim. Todo aquele que sabe repartir com os pobres não deve temer-se da sorte. Foi boa e caridosa. Em troca eu serei justa e sincera, desvendando a verdade diante dos seus olhos ignorantes.
— Não me atrevo — balbuciou a jovem, assustada.
— Porquê?
As faces da rapariga afoguearam-se, mas respondeu com franqueza:
— Entendo que não devemos tentar profundar o mis¬tério e erguer o véu que Deus estendeu sobre o nosso futuro.
— Quando o presente é triste devemos fazê-lo. Há conselhos e prevenções mais preciosos do que o ouro puro!... Vamos — repetiu com firmeza — dê-me a sua mão, minha filha.
Impressionada pelo ar inspirado da cigana, obedeceu em silêncio.
Esta examinou com atenção a palma da mão que se abandonava entre as suas. Por fim, como se tivesse acabado de decifrar velho pergaminho, recitou o horoscópio:
— Raça... mais imaginativa do que materialista... sensibilidade intensa, ardente, generosa... muito senti¬mental... demasiado talvez.
Calou-se e ergueu os olhos para a fisionomia grave que a escutava, atenta.
— É preciso desconfiar da sentimentalidade. Na época actual devemos ser práticos, acima de tudo.
— Bem sei — concordou a rapariga com um sinal de cabeça.
A velha prosseguiu o exame.
— Como em toda a existência humana, vejo lágri¬mas, preocupações, sorrisos... É o destino comum a todos nós!... A si, no entanto, a sorte reserva-lhe melhor...
— Melhor! — repetiu documente a rapariguita, que, num movimento involuntário, se curvou também, seguindo com a vista o dedo esguio da cigana.
Esta designava as sinuosidades na palma da mão delicada, como garotito que aponta no alfabeto as pri¬meiras letras.
— Isto — explicou a cigana, indicando pequena saliência — é o que em quiromancia se chama um monte... Revela uma probabilidade feliz... Vai fazer uma viagem que lhe será vantajosa.
— Uma viagem? — exclamou a jovem, em voz aba¬fada, impressionada com a veracidade da predição. — Com efeito, devo fazer em breve uma viagem!
— Muito longe... ao estrangeiro... O seu futuro será belo. Um homem há-de amá-la e torná-la muito feliz... No entanto, o seu casamento será o mais extraordiná¬rio que uma menina nas suas condições pode fazer... Um casamento fora de todas as regras e usos estabe¬lecidos. Não hesite, porém, não o rejeite porque esse casamento está escrito em todas as linhas da sua mão.
A mulher calou-se, pegou-lhe na outra mão e estu¬dou-as uma após outra, por algum tempo.
— Sim, não há dúvida, tudo está confirmado aqui — assegurou.
Em seguida, ergueu o dedo como se pretendesse fazer penetrar bem no espírito da rapariga o que ia dizer:
— Fixe bem o oráculo, minha filha. Ele falou, deve obedecer-lhe.
Bruscamente, a voz sibilina tomou inflexões profé¬ticas e solenes:
— Casará, não duvide! Mas deve aceitar aquele que a Providência colocar inesperadamente no seu caminho... fazer tudo quanto estiver ao seu alcance para conservar esse marido caído do Céu. É o Destino que assim o exige.
Num gesto suave, ergueu o braço, e a mão pousou-lhe familiarmente no ombro.
— Compreendeu bem? Não contrarie a sorte.
— Compreendi — murmurou a jovem num fio de voz.
— Aceite o marido que o Acaso lhe enviar... por muito estranha que a situação se lhe afigure.
— Meu Deus!... É assustador!
— Está escrito na palma da sua mão, e o Destino é todo a seu favor.
— Então, obedecerei!
O que acabava de ouvir desorientava-a e pergun¬tava de si para si como poderia reconhecer o marido que a vida lhe destinava por forma tão singular.
Como se lhe adivinhasse o pensamento, a cigana sorriu.
— Não tenha receio de se enganar: o próprio ins¬tinto, todo o nosso ser se sobressalta em presença daquele que a Providência nos envia! De resto, é bom não esquecer que o seu futuro marido surgirá na sua vida por forma invulgar, diferente da habitual... isso bastará para o reconhecer.
Só então largou as mãos que acabara de examinar e, com movimento vagaroso, retomou o seu lugar à som¬bra dos abrunheiros.
— A sorte protege-a, minha filha — repetiu numa espécie de tremura. — Parta confiante e suceda o que suceder não entrave a marcha do Destino.
— Se, de facto, é esse o meu caminho, coisa alguma o poderá modificar — raciocinou com lógica.
Não ousando acreditar na radiante perspectiva que a cigana acabava de lhe fazer brilhar diante dos olhos, deixou-se ficar, silenciosa e pensativa.
— Está certa de que serei feliz? — insistiu.
— Nunca me engano e não costumo inventar — res¬pondeu a cigana, com convicção. — Conhecerá amor e fortuna. Está escrito!
— O amor e a fortuna! — repetiu com ar sonhador.
A velha teve um sorriso, que mais se assemelhava a uma careta.
— Mesmo assim, gostaria de saber em que consisti¬ria o seu casamento extraordinário.
— Também eu! — confessou a rapariga, contem¬plando a própria mão, como se, por sua vez, tentasse decifrar o mistério oculto no entrelaçamento das linhas.
A cigana abanou a cabeça.
— Ninguém lhe poderá dizer mais do que eu — afir¬mou com certo pesar. — Fixe bem, no entanto, que força alguma impedirá a realização do que lhe pre¬disse. Tenha fé na sua boa estrela e não a contrarie, é o conselho que lhe dou... e a minha gratidão me ins¬pira... Vá, minha filha. Todos os meus votos a acom¬panham.
E, erguendo a mão, traçou alguns sinais cabalísticos, que, feitos por outra pessoa que não fosse uma cigana, poderiam ser tomados por uma bênção.
Instintivamente, a desconhecida persignou-se. Os sinais misteriosos inspiravam-lhe mais susto do que respeito.
A velha notou-o. Um relâmpago mais vivo perpas¬sou-lhe pelas pupilas claras e a fisionomia tomou uma expressão tão cruel que a rapariga recuou. Os lábios, contudo, não proferiram qualquer palavra que pudesse ser tomada como blasfêmia ou maldição.
E, como se apenas sentisse desprezo por quem a socorrera, ou receasse deixar adivinhar súbita inimizade, voltou-se para a campina imensa e fechou os olhos, deci¬dida a conservar-se muda até a desconhecida partir.
Esta, que fora educada em princípios religiosos e observara toda a mímica da cigana, experimentou de súbito a impressão de que estivera conversando com o diabo em pessoa. O seu terror aumentou com o pensa¬mento de que lhe dera ouvidos e acreditara em tudo quanto ela lhe predissera.
— Adeus — murmurou com a garganta contraída.
E recuou devagarinho até alcançar a estrada.
Foi-lhe necessário empregar muita força de vontade para não partir numa correria louca, como quem foge de um grande perigo, tão profunda era a sua convicção de que a cigana tinha entendimentos com o diabo e fora o demo que lhe inspirara as estranhas profecias.
Mas bastaria correr para fugir às fatídicas ciladas da vida? Por muito inverossímil que nos pareça, se o nosso destino está escrito na palma da mão e se uma velha cigana tem o dom de o desvendar — o que deve ser raro, embora as pitonisas abundem por esse mundo fora — coisa alguma o poderá modificar.
Não demos ouvidos a adivinhas. O seu poder é filho da nossa credulidade. Não devemos, contudo, duvidar da bondade divina que, desde o princípio da Humani¬dade, nos traçou o caminho à medida das nossas possi¬bilidades e não nos sobrecarregou os ombros com o peso de uma cruz superior às nossas forças.
Deviam ter sido estes os pensamentos consoladores que tranqüilizaram a desconhecida, porque, forte pela sua fé em Deus, conseguiu dominar o medo e atingir a estação com passo firme, de cabeça erguida e expressão serena. Um sorriso lhe descerrou os lábios ao recordar as lindas coisas que a cigana lhe vaticinara.
Para ela, a vida começava naquele instante.
A mais intensa comoção agitava Suzannah Murphy quando entrou, como um pé-de-vento, no magnífico palacete de seu pai, Honorato Murphy, um dos mais impor¬tantes financeiros de Nova Iorque.
Transpôs a porta, de corrida, e atirou com o casaco de vison a Bryce, o velho porteiro, que havia mais de dez anos se perfilava à entrada do hall.
— Mademoiselle de Rouvaux já voltou?
— Acaba de entrar, miss Murphy.
— Está lá em cima?
— Creio que sim. No quarto.
Suzannah começou a subir a bela escadaria de már¬more que conduzia aos andares superiores.
A meio, parou um instante e, voltando-se para Bryce, que seguia com olhar indulgente a precipitada subida, interrogou:
— O meu pai também já regressou?
— Ainda não, miss.
— O correio trouxe alguma coisa para mim?
— Muitas cartas! Mandei-as pôr no quarto de made¬moiselle de Rouvaux, miss.
— Obrigada, Bryce. Olha — acrescentou, tirando o gorro de pele, condizendo com o casaco, e fazendo-o voar pelos ares. — Dize à Morna para guardar as duas coisas juntas.
— Está bem, miss Murphy.
E o minúsculo chapelinho foi cair aos pés do por¬teiro, enquanto Suzannah subia a escada a correr.
Um minuto depois deixava-se cair, esbaforida e afogueada, num cômodo mapíe de couro vermelho, junto da pequena secretária onde a amiga, uma francesa da mesma idade, que era ao mesmo tempo sua dama de companhia, tentava pôr em ordem a correspondência que a estouvada companheira deixava ao seu cuidado.
— Se soubesses, Gene querida, o que eu e o Johnny combinamos e decidimos fazer imediatamente — disse, mal se sentou.
— Espero que não seja alguma tolice.
— Tanto eu como o Johnny não queremos saber disso. Bem basta o trabalho de tomarmos resoluções definitivas, para nos preocuparmos ainda a pensar se são razoáveis ou não.
A francesa abanou a cabeça e comentou, sorrindo:
— Sendo assim, já vejo que mais uma vez, e muito a meu pesar, serei obrigada a intervir.
— Não penses nisso, Genel São assuntos pessoais cuja decisão só a nós compete. Terás de te conservar alheia a eles.
— Nesse caso, nem desejo saber do que se trata.
— Não sei porquê. Saltei do carro e vim direitinha ao teu quarto para te contar tudo.
— És muito amável, Suzannah!... Finalmente, o que se passa?
— Vamos casar.
E como Gene não demonstrasse qualquer surpresa, a americana insistiu:
— Não compreendes, Gene? Não ouviste bem? Vou casar com o Johnny!
— Compreendi. Mas não é novidade para mim. Estão noivos há tanto tempo...
— Acabou o tempo do noivado. Passamos à vida de casados.
— Queres dizer com isso que... — começou Gene, interdita.
— Pois é claro, Gene! Há mais de uma hora que tento explicar-to.
— Vais então casar!... E Mr. Murphy está de acordo?
— O paizinho... Creio que a sua opinião não mudou a esse respeito... Passaremos por cima dela...
Geneva levantou-se. Deixara de sorrir.
— Bem dizia eu que seria obrigada a intervir. Mais uma vez terás de ouvir os meus conselhos, Suzy. Tu e Johnny são dois noivos encantadores, mas é impossível casarem contra vontade de Mr. Murphy. Enquanto ele não lhes der o seu consentimento devem renunciar a esses projectos matrimoniais.
— És adorável, mas estás a dizer patetices, Gene. Nós não estamos em França, mas sim na América, recor¬da-te bem disto. E nesta questão de casamento, só nós dois, Johnny e eu, devemos decidir.
— No entanto, teu pai sempre disse...
— Já sei... conheço muito bem todos os argumentos do paizinho... Acha que temos muita pressa... que ainda não nos conhecemos bem... E, acima de tudo, está furioso porque escolhi justamente para meu futuro marido o filho de Jack Hoover, seu concorrente e seu rival. Poderia mesmo dizer seu adversário, porque há vinte anos não cessam de levantar obstáculos e criar dificuldades um ao outro.
— Se os factos são tal como os expões, maior razão tem o teu pai para te aconselhar a esperar. Receia que mais tarde a vossa felicidade seja perturbada pela ini¬mizade das duas famílias... Por mim, julgo também que o casamento é coisa muito grave e que devem pesar-se bem todas as probabilidades futuras antes de o realizar. No fim de contas, porque teimas em casar justamente com um Hoover, visto teu pai não gostar deles?
— Sou responsável pelos meus sentimentos ou pelo desacordo existente entre os nossos pais? O coração não escolhe, o Destino é que manda! Eu e Johnny não fomos culpados por termos gostado um do outro... Um acaso imprevisto, como já te contei... Foi numa Surprise-Party em casa da Virgínia Hausser... Éramos ao todo uns vinte, bons e alegres camaradas... Quando entrei, o Johnny já lá estava... Era um dos apaixo¬nados da Virgínia e, segundo parece, dos mais entusias-tas... Isso não impediu, contudo, que Fred Carrol fosse nessa tarde o preferido por ela, enquanto eu e o Johnny, que nos encontrávamos pela primeira vez, nos sentimos logo atraídos um para o outro... Foi uma dupla paixão fulminante! E aqui tens dois casamentos em perspectiva, porque a Virgínia combinou comigo casarmos no mesmo dia para comemorar a singular coincidência.
— E, com franqueza, não sabias ainda quem era o Johnny?
— Nunca o tinha visto. Conhecia-o de nome e não ignorava que era filho único do maior adversário do paizinho; mas, por acaso, embora tivéssemos amigos comuns, não nos tínhamos encontrado ainda.
— E quando soubeste isso, não ficaste desanimada?
— Desanimada?!
— Quero eu dizer... Essa circunstância não te impe¬diu de gostar do Johnny?
Uma expressão, misto de espanto e de zombaria, iluminou as pupilas de Suzy.
— Que pensamentos tão disparatados te passam pela cabeça, minha querida Gene! Haverá forças capazes de impedir o raio de rasgar as nuvens e de atingir o seu alvo? Já te disse que a nossa paixão foi verdadeiramente fulminante.
— Já ouvi... Mesmo assim... eu nunca teria amado... o filho do adversário de meu pai.
— John não é responsável pelos atos de Jack Hoover... De resto, o velho Hoover não é bem um inimigo de meu pai.
— Mas acabaste de dizer...
— Não. Existe pequenina diferença!... Tenta com¬preender-me... Meu pai e ele foram dois companheiros, dois velhos amigos e, no fundo, continuam a sê-lo. Em novos, ambos gostavam de minha mãe e, nessa espécie de competição, foi meu pai o vencedor. Hoover ficou furioso, e depois disso os dois businessmen andam ao desafio a ver qual deles pode prejudicar mais o outro. É uma contenda divertidíssima, posso assegurar-te! Umas vezes é Honorato Murphy quem deixa o seu antigo camarada quase arruinado. Seis meses depois é este quem faz perder milhões a meu pai ou lhe rouba um negócio que lhe daria lucros fabulosos. Contudo, os meios empregados são sempre leais! No fim, tenho a certeza de que Hoover e o paizinho se estimam e não poderiam passar um sem o outro!... Compreendes, não é verdade? A luta aumenta o interesse... A rivalidade estimula-os...
— Compreendo que, acima de tudo, Mr, Murphy deve execrar o seu concorrente.
— Isso sim, que ideia!... É evidente que meu pai fica furioso quando o outro se lhe atravessa no caminho... Grita, barafusta, ameaça! Mais de cem vezes o tenho ouvido desejar a morte de Jack Hoover, mas se este, de facto, morresse, quase iria jurar que ficava desolado. Perderia o entusiasmo e a sua tenacidade para levar até feliz conclusão um negócio importante diminuiria muito.
— É curioso!
— Enganas-te, é natural! Tu não calculas a alegria do pai quando consegue pregar uma partida ao Hoover! Nessas ocasiões obtenho dele tudo quanto me apetece.
— E o outro, naturalmente, sente o mesmo conten¬tamento quando a situação se volta a seu favor?
— Pois claro! É a justa compensação... É divertidíssimo, podes crer... chega a entusiasmar!
— Nessas condições, não atinjo bem as razões por que Mr. Murphy se opõe ao teu casamento com Johnny Hoover.
— Isso é diferente! O paizinho é muito obstinado... e por forma alguma quer deixar supor que favorece o adversário... Talvez cedesse se Hoover desse os primei¬ros passos... E assim devia ser. É o pai do noivo...
— E Hoover, por seu lado, não está disposto a fazê-lo?
— Receio bem que não.
— Nesse caso só te resta renunciar a Johnny.
Suzy começou a rir com gosto. Em seguida, recostou-se na poltrona, cruzou as mãos na nuca e fitou Geneva de Rouvaux.
— És impagável, minha Gènezinha — acabou por dizer. — O amor para ti resume-se apenas numa coisa: obediência cega aos pais...
Riu outra vez e perguntou, indulgente e curiosa:
— Minha francesinha antiquada e retrógrada! No teu país todos os noivos têm as mesmas idéias?
— Todos os noivos bem-educados pensam como eu — afirmou Geneva, tentando conservar-se séria, o que era difícil perante a incorrigível travessura da amiga.
— Então, em França, quase todos os noivos devem ser mal-educados.
Apesar de todos os esforços para conservar a sere¬nidade e sangue-frio, Gene levantou-se um tanto enervada.
— Deixa o meu país fora da questão, minha querida Suzy. Os rapazes e as raparigas franceses procuram sempre conciliar as suas aspirações com o respeito devido aos pais... Tu recusas-te a admitir este ponto de vista.
— Não te zangues, Geneva!... Respeito meu pai nos limites do possível! Mas tanto eu como o Johnny compreendemos o dever em sentido lateral e não como tu o concebes.
— Um sentido lateral para o dever? — admirou-se Geneva, parando diante de Suzy. — Como é isso pos¬sível?
— Yes! Um pequeno sofisma!... Johnny e eu resol¬vemos seguir esse caminho, que julgamos o mais con¬veniente para os nossos incorrigíveis papás.
Geneva voltou a sentar-se junto da sua extraordi¬nária pupila.
— Confesso-te, Suzy, que não compreendo coisa alguma.
— Porque tens ouvidos e não ouves e tens um cérebro que não quer admitir o meu modo de ver.
— Então, explica-te melhor.
— Não sei se o conseguirei.
— Começa. Vou ouvir-te com a maior atenção.
— Seja... Dizia eu que Honorato Murphy, meu pai, e Jack Hoover, pai de Johnny, com a sua guerra con¬tinua se prejudicam, ocasionando mútuas e importantes perdas de dinheiro.
— Até aí não é difícil de perceber.
— Não ignoras também que Johnny é filho único?
— Disseste-mo há pouco.
— Exacto. E como sou também filha única, resol¬vemos casar daqui a dias.
— Dizes tu que...
— Digo e faço.
— Seja. Adiante.
— Assim, os nossos pais podem continuar a ferir-se mutuamente... Quero eu dizer que, como o dinheiro per¬dido por um deles recolhe à algibeira do outro e como eu e Johnny somos os seus únicos herdeiros, o mal não é nenhum. O nosso amor anulou a rivalidade. Assim, os nossos dois papás, que não passam de bebês cres¬cidos e terrivelmente caprichosos, podem satisfazer, sem receio, as suas dispendiosas fantasias sem que os inte¬resses de qualquer das duas famílias sofram com isso. Compreendeste agora?
— E isso que chamas dever em sentido lateral?
— Não achas o termo bem aplicado?
— É, acima de tudo, uma maneira cômoda de con¬ciliar a recusa de teu pai com os teus desejos. No seu próprio interesse desobedeces-lhe.
— Prestamos-lhe um serviço, diz antes.
— E não receias que ele se zangue e fique mal dis¬posto com o teu marido quando souber que não espe¬raram pelo seu consentimento para casar?
— Não. Desvanecido o primeiro ímpeto de cólera, acabará por achar graça à partida que pregámos a Jack Hoover.
— Uma partida? Não vejo como!
— Com franqueza, Gene, ainda não descobriste o lado cômico do assunto? O paizinho roubou a noiva a Hoover. Agora sou eu quem lhe rouba o filho... Pobre homem! Trabalhou toda a vida para acumular uma for¬tuna para os netos e esses netos serão também os de Honorato Murphy... As duas bolsas inimigas daqui em diante farão apenas uma! Tanta luta, tanta questão, para acabar tudo numa só descendência, nos mesmos babys!... É de uma pessoa morrer de riso!
Geneva meneou a cabeça. Profunda ruga lhe sulcava a testa. Via-se que não achava a conclusão tão engra¬çada como a amiga.
— Talvez seja cômico, de facto, mas, perdoa-me se não lhe acho graça alguma — observou, pensativa. — Pobre Honorato Murphy, cuja filha casa sem o seu consentimento... Pobre Jack Hoover, cujo filho abusa da sua confiança e atraiçoa a sua raça!
Suzannah levantou-se bruscamente.
— Gene, não deves, não quero que penses dessa forma. Não é justo defenderes assim Jack Hoover, que todos sabem ser adversário de meu pai. Não tens o direito de lamentar um homem que só pensa em preju¬dicar a casa onde ganhas o teu pão.
Geneva sentiu-se com o rigor da censura.
— A minha compaixão é impessoal — protestou.— Visa apenas o procedimento de um filho para com o pai.
— Deves lembrar-te de que o meu é teu patrão. É ele quem te paga e por isso todo o mal que recaia sobre o seu adversário deve ser para ti motivo de regozijo... É da mais elementar lealdade.
— A lealdade, minha querida amiguinha, não me inibe de pôr de lado toda essa questão de negócios, lucros e dinheiro, para só me lembrar dos dois pobres pais, que os filhos esquecem e desrespeitam.
Suzannah irritava-se e, quanto mais injusta se reco¬nhecia, mais exagerava as culpas da amiga,
— Desagrada-me sobremaneira a forma por que lamentas meu pai e nos censuras, a mim e a Johnny. Não tens o direito de manifestar a tua opinião. Tive a condescendência de te comunicar os nossos projectos, não os deves criticar.
— Nem os critico, minha Suzy — concordou Geneva, paciente. — Desejo de todo o coração a tua felicidade e pergunto a mim própria se devo assustar-me por teres tomado tão brusca resolução ou dar-te os para¬béns pela próxima realização dos teus desejos.
— Felicita-me, regozija-te connosco e perdoa-me, Gene! Somos tão felizes, Johnny e eu, ao pensarmos que em breve estaremos unidos para sempre!
Beijaram-se alegremente, mas quem observasse Geneva poderia descobrir nesse sorriso o travo da amargura.
— Em que situação me colocas, minha louquinha — observou após breve silêncio. — Como aceitará teu pai a inesperada notícia?
Suzannah, porém, não se preocupava com tão insi¬gnificante pormenor.
— Muito bem, vais ver. Depois do casamento rea¬lizado e quando eu tiver partido com Johnny, conto contigo para falares a meu pai. Não lhe escondas coisa alguma. Diz-lhe toda a verdade. De princípio, talvez se zangue, porque é hábito seu tomar ares de papão. Mas não te assustes. É tudo bluff.
— Desejas então que eu lhe conte a verdade?
— Sim. Explicar-lhe-ás que a nossa decisão era irrevogável, que tentaste por todos os modos dissua¬dir-me, mas não o conseguiste e, por fim, foste obrigada a renunciar... Ele compreenderá... Os pais americanos sabem que o casamento dos filhos é uma questão secun-dária para eles... e em geral conservam-se à parte do assunto.
— Sendo assim, escuso de preparar grandes discur¬sos, já vejo — observou Geneva. — Se é hábito na Amé¬rica as filhas casarem com quem lhes apetece, Honorato Murphy conformar-se-á como os outros!...
Suzy ergueu os braços ao céu, como se tomasse todos os santos do Paraíso por testemunhas da paciên¬cia de que dera provas para convencer a amiga.
— Há uma hora que tento fazer-to compreender e só agora chegas a essa conclusão, minha cabecinha tei¬mosa e cheia de preconceitos fora de moda!
Acabando de proferir estas palavras, fez uma pirueta e saiu do quarto com uma gargalhada trocista.
Geneva encostou-se à secretária, triste e pensativa.
Com gestos maquinais e vagarosos, começou a pôr em ordem a papelada. Não lhe apetecia trabalhar.
A novidade que Suzannah acabava de lhe dar lan¬çara sobre a sua alma um véu de tristeza. Em primeiro lugar, tinha horror à dissimulação e custava-lhe ver-se obrigada a ocultar qualquer coisa ao pai da sua pupila, que sempre a tratara com bondade.
Depois... a união de dois noivos, cujos pais eram inimigos de longa data, assustava-a... dava-lhe a impres¬são de um sacrilégio. Por fim, a todas estas considera¬ções sobrepunha-se outra de ordem pessoal, Geneva era de boa família.
Até à sua maioridade vivera em França, junto dos seus, isto é, num meio abastado e distinto. Por circuns¬tâncias independentes da sua vontade, viu-se forçada a abandonar a pátria e encontrou-se de um momento para o outro sem o apoio moral a que tinha direito por parte do pai e afastada da classe social em que fora colocada pelo seu nascimento.
Para lutar contra as dificuldades da vida, que subi¬tamente a ameaçavam, teve de se valer da instrução que possuía.
Feliz acaso deparou-lhe a situação de dama de com¬panhia de Suzannah, sua antiga companheira de con¬vento e mais nova do que ela um ano.
Acolhida com amizade no lar de Honorato Murphy, naqueles dezoito meses quase esquecera as horas amar¬guradas que se haviam seguido à sua maioridade.
O súbito casamento da sua pupila erguia de novo perante os seus olhos o espectro das dificuldades mate¬riais que dois anos antes conseguira vencer. Mais uma vez se impunha procurar nova colocação, visto ser obri¬gada a ganhar a vida, fosse como fosse.
Era talvez essa desagradável perspectiva que a levara a acolher a notícia do casamento de Suzy com pouco entusiasmo. Era decerto também esse pensamento que a fazia soltar angustiosos suspiros.
— Meu Deus! Que vai ser de mim quando tiver de abandonar o tecto hospitaleiro de Honorato Murphy e me encontrar desamparada num país estrangeiro, cujos hábitos mal conheço!
Por muito tempo, encostada à secretária de preciosos embutidos, reflectiu na sua triste situação. Por fim, como uma dorzinha de cabeça pertinaz a atormentasse, levan¬tou-se e abriu a janela de par em par.
Com as duas mãos apoiadas no parapeito de ferro forjado, conservou-se imóvel e abstracta, contemplando com olhar vago o lindo céu crepuscular.
Sentia-se como pobre planta desenraizada do solo familiar, sem encontrar esteio onde se amparasse. Então, instintivamente, o seu pensamento voltou-se para o passado, para as recordações felizes da infância... qua¬dros risonhos e encantadores que jamais ressurgiriam.
Órfã aos nove anos, fora internada num colégio, a fim de que as companheiras da sua idade a ajudassem a vencer o desgosto, pois a pequenita sentira profunda¬mente a morte da mãe que adorava, e a família receou a forte depressão nervosa produzida pelo violento abalo. O pai, chefe de repartição num ministério, era funcionãrio zeloso e pontual, mas faltava-lhe a iniciativa e não possuía a actividade precisa para levar os seus superiores a promovê-lo a postos mais elevados.
Por causa de Geneva não voltou a casar, o que não significava viuvez absoluta, pois contraiu numerosas amizades femininas. Na casa de campo, espécie de solar de família, onde habitualmente passava os dois meses de férias, sucediam-se, num desfile constante, os rostos escandalosamente pintados, com grande pasmo dos ingê-nuos camponeses, que não compreendiam como o cas¬telão preferia a companhia daquelas extraordinárias visi¬tantes à presença da sua única filha.
Aos dezoito anos, Geneva abandonou o convento de Versalhes onde fora educada.
Uma tia de sua mãe, viúva de um oficial do exér¬cito, Armandina Barret, em casa de quem passara sem¬pre as férias durante os nove anos de internato, mais uma vez a acolheu quando concluiu os estudos.
Essa parenta não possuía grande fortuna, mas a pensão deixada pelo marido e o rendimento de algumas propriedades de que era usufrutuária davam-lhe para viver com certo desafogo. Esta decisão trouxe grandes vantagens a Artur de Rouvaux. O pai de Geneva não modificou a sua vida em coisa alguma, nem se preo¬cupou mais com a filha. Infelizmente, Armandina Barret faleceu vitimada pela rotura de um aneurisma, quando a sobrinha atingiu os vinte anos.
Para a pobre pequena, essa morte foi uma perda irreparável, pois a forçou a recolher a casa do pai. Artur de Rouvaux, porém, não vivia sozinho. Havia certo tempo que uma antiga amazona de circo, Ginette Dargent, se instalara no lar do chefe de repartição, como dona e senhora absoluta.
A chegada da filha obrigou esta a separar-se de Artur e a sair de casa, o que por forma alguma convinha à pouco escrupulosa criatura. Metera-se-lhe em cabeça casar com o pai de Geneva e não descansaria enquanto não alcançasse os seus fins.
A antiga amazona era hábil e o viúvo presa fácil de colher nas redes.
Tão bem soubera manobrar que Rouvaux não podia passar sem ela...
“Para que hei-de continuar a viver longe da mulher a quem amo? A presença de minha filha compensará o sacrifício que faço da minha felicidade?” — pensava o pobre apaixonado, com desespero.
No intuito de assegurar para sempre essa felicidade, pensou em casar com Ginette. Infelizmente, Geneva era um obstáculo, que se impunha suprimir... ou afastar.
Valendo-se de todos os argumentos persuasivos, Ginette Dargent conseguiu levar o seu admirador, carac¬ter demasiadamente fraco para poder resistir-lhe, a tomar a resolução de se separar de quem era a causa da sua desunião.
Tornava-se evidente que nunca Geneva admitiria a possibilidade de uma estranha se instalar em casa de seu pai e ocupar o lugar da querida desaparecida.
O chefe de repartição não custou muito a conven¬cer. Conservou-se ainda alguns meses sem alterar a situação, examinando o seu problema íntimo debaixo de todos os aspectos. Por fim, quando a filha atingiu a maioridade, não hesitou em lhe revelar o que decidira.
Certa manhã, entrou-lhe no quarto, disposto a falar-lhe no assunto com firmeza e em linguagem clara.
— Até aqui, minha querida Geneva — começou — cumpri sem desfalecimento os meus deveres de pai e consagrei todos os meus esforços e ganhos à tarefa de fazer de ti uma rapariga instruída e educada. Hoje, pos¬suis os teus diplomas, sabes música, e tua tia ensinou-te tudo quanto uma mulher deve saber. Estás de acordo com o que acabo de expor, não é assim?
— Com certeza, meu pai — respondeu Gene, per¬guntando ao mesmo tempo, de si para si, qual o fim de tão complicado discurso.
— O ano passado, quando tua tia faleceu — pros¬seguiu o pai, muito calmo — o meu amor paternal obri¬gou-me mais uma vez a sacrificar-me por ti, trazendo-te para esta casa.
— Para onde iria eu se meu pai não me desse o lugar que me competia? — balbuciou Geneva, a quem a palavra sacrificar-me ferira profundamente.
— Fosse como fosse, o facto é que te instalei junto de mim, eis o que mais importa — insistiu. — E, pro¬cedendo assim, sempre esperei que um casamento em breve me libertasse do meu encargo paternal! A minha esperança foi ilusória, porque até hoje não se apresentou qualquer pretendente à tua mão, nem recebi proposta alguma dizendo respeito ao teu futuro.
— Sou muito nova e ainda não fez um ano que me encontro aqui — tentou Gene protestar.
— Tens vinte e um anos... É boa idade para casar... quando desposei tua mãe, acabava ela de fazer dezoito... É forçoso que me compreendas... Há três anos que saíste do convento e a convivência que tens tido, as rela¬ções adquiridas eram mais do que suficientes para que se esboçasse qualquer projecto de casamento. Esta ausência absoluta de pretendentes abriu-me os olhos e apontou-me o caminho do dever. Na época actual, nin¬guém casa com uma rapariga sem dote ou sem situação equivalente... Uma dactilógrafa das mais modestas, com o seu diminuto ordenado, está melhor armada em face das dificuldades da vida do que tu... Compreendi que, no teu próprio interesse, não devia prosseguir na linha de conduta adoptada até hoje a teu respeito.
— Valha-me Deus! — exclamou Gene, emocionada. — Meu pai deseja que trabalhe para viver?
— Exactamente, minha filha. Tens os teus diplomas, utiliza-os.
— Não estou habilitada a fazê-lo — protestou Ge¬neva, quase a chorar. — Como acabou de dizer há pouco, a tia educou-me segundo as tradições do nosso meio, isto é, como uma perfeita dona de casa, uma futura mãe dedicada e carinhosa... Tentei adquirir essas qualidades e julgo tê-lo conseguido... Até hoje nunca lhe ouvi qualquer censura sobre a forma como governo a sua casa e...
O pai não a deixou prosseguir:
— Tudo quanto acabas de dizer é absolutamente exacto e não duvido de que estejas apta a cumprir todos os deveres que incumbem a uma esposa impecável. Infe¬lizmente, a minha opinião não pesa na balança do matri¬mônio. Os teus méritos não despertam o entusiasmo dos teus possíveis pretendentes, visto não aparecer nenhum. Afirmo-te, minha querida Gene, que preferia o casa¬mento ou qualquer outra solução, àquela que me vejo forçado a tomar.
— Sendo assim, o casamento é o único recurso para uma rapariga da minha classe? — observou Geneva, cuja fronte se ensombrou. — No entanto, a tia Luísa, sua irmã, conservou-se solteira e vive independente e tran¬qüila... Com a senhora de Keravin, uma das amigas de minha mãe, acontece o mesmo.
— Evidentemente. Qualquer mulher honesta não deixa de ser respeitada por ter ficado celibatária. Mas as duas senhoras que acabas de citar dispunham de fortuna pessoal, que tu não possuis.
O semblante delicado da pobre rapariga sofreu pro¬funda alteração. O pai não media as palavras e feria-a cruelmente. A experiência da vida não ensinara ainda à pobrezita que, quanto mais fraco é o homem, mais fácil se torna levá-lo a cometer uma cobardia. São justa¬mente os caracteres brandos, aqueles que o vulgo chama pobres diabos e bons rapazes, que se tornam injustos e implacáveis quando alguém os sugestiona. Influenciados por estranhos, julgam proceder por moto próprio e ultra¬passam todos os limites.
Repetindo à filha os argumentos inspirados por Ginette, de Rouvaux não compreendia que se estava tornando brutal e que as suas reflexões eram simples¬mente odiosas.
Por seu lado, Geneva, completamente desorientada pela inesperada atitude do pai, tentava a todo o custo defender a sua causa.
— Não aspiro a possuir fortuna pessoal, e de boa vontade renuncio ao casamento para viver junto de si, olhar pela sua casa e rodeá-lo de toda a minha ternura e carinho.
O pai teve um sorriso irônico e trocista.
— Fico-te reconhecidíssimo pelas tuas boas intenções... Mas talvez estejas iludida... Não sou um doente e os meus herdeiros, se estão à espera dos sapatos de defunto...
— Nunca me ocorreu semelhante pensamento, pai! — protestou com dolorosa convicção. — Graças a Deus, a sua saúde é excelente e no meu desejo de o acarinhar não havia qualquer cálculo interesseiro.
— Não duvido da sinceridade dos teus protestos, minha filha... Julgo-me, porém, no dever de te declarar que desejo viver segundo a minha vontade... sem neces¬sitar de solicitude... nem de vigilância.
— Será possível?! Quer isso dizer que sou de mais na sua vida?
— Não exageremos, filha. As coisas são como são. Cumpri os meus deveres de pai, mas, hoje, estás na idade de poder dispensar a minha tutela... Enquanto calculei ser necessário à tua vida encontraste-me sem¬pre a teu lado. Agora, atingiste a maioridade, podes e deves orientar-te sozinha... Por meu lado, liberto-me de um encargo... um tanto incômodo... retomo a liber¬dade... e vou tentar reconstruir o meu lar. Em poucas palavras, desejo casar e a tua presença nesta casa repre¬senta um obstáculo aos meus projectos.
— Bem pressentia! — murmurou a pobre pequena, que empalideceu horrivelmente. — Incomodo-o... sou um peso para si.
— Por favor, Geneva — atalhou friamente — Não pronuncies palavras injustas que só servem para tor¬nar mais dolorosa esta discussão... Desempenhei-me do meu encargo de pai com a dedicação e dignidade requeridas. Podia ter casado dez anos mais cedo, sem te pedir opinião e conselho... Não quis dar-te madrasta e preferi sacrificar-te a minha felicidade... Na minha idade, porém, os anos que fogem têm dobrado valor. Durante o ano que acaba de decorrer abstraí todas as minhas aspirações de homem, a minha ânsia de ter-nura... Hoje, és maior, instruída, saudável e, portanto, podes perfeitamente dispensar o meu apoio. Seria injus¬tiça e ingratidão exigir mais de mim.
Geneva não fez qualquer observação a este discurso.
Estava pálida, como se todo o sangue lhe tivesse afluído ao coração e se esvaísse pelas feridas provocadas pelo desamor do pai. Era como se, de repente, um abismo de sombra, uma voragem negra se lhe abrisse aos pés e nela se engolfassem todas as suas ilusões. Pela primeira vez, o egoísmo masculino se patenteava a seus olhos, e essa revelação mais dolorosa se tornava porque a feria no seu culto filial e o golpe fora vibrado precisamente por quem era objecto desse culto.
O silêncio da filha tornava-se molesto a de Rouvaux, que, tendo talvez consciência da sua crueldade, esperava que ela o quebrasse para prosseguir.
Foi, de facto, Geneva quem primeiro falou.
— Se for possível, abreviemos esta discussão, em extremo dolorosa para mim. Finalmente, onde quer che¬gar, meu pai?
— Não vejo motivo para te ofenderes — observou de mau humor. — Actualmente, todas as raparigas tra¬balham e não se sentem humilhadas nem dão ao caso proporções de catástrofe, como se me afigura que estás fazendo... Peço-te simplesmente para procurares uma situação... de preferência onde te alojem, pois não dese¬jaria ver-te instalada num quarto alugado ou pensão... Não deve ser difícil encontrar um lugar de professora de crianças numa casa séria ou escola particular... de vigilante... de leitora ou dama de companhia. Enfim, para uma rapariga da tua idade, bem comportada e com os teus diplomas, não devem faltar colocações. Das tuas amigas ou antigas condiscípulas algumas são obri¬gadas a trabalhar para viver. Procura-as, informa-te. Elas te indicarão como deves proceder.
— Sim, irei procurá-las. Hei-de arranjar seja o que for e quanto antes.
— Tens razão — aprovou o viúvo, sem querer notar a ironia expressa no tom. — Quando se toma uma reso¬lução deve pôr-se em prática o mais depressa possível. As tergiversações de nada servem.
— Hoje mesmo começarei a procurar — decidiu Geneva, com sombria firmeza.
O pai suspirou, aliviado. Receara cenas desagradaveis, com lágrimas, súplicas, recriminações. Mas, em lugar da comédia esperada, Geneva opunha-lhe a fisio¬nomia concentrada, pupilas brilhantes sem uma lágrima, uma expressão trágica e retraída. Antes assim. Agra¬dava-lhe muito mais essa atitude.
De Rouvaux felicitava-se por ter terminado por forma tão simples um debate desagradável e melin¬droso.
Levantou-se, deu afectuosa palmadinha na face da filha e, fazendo-lhe ainda algumas observações sugeri¬das pela sua solicitude paternal, saiu do quarto, bem disposto e radiante.
— Põe-me ao facto do que se passar — pediu. — Pelo meu lado, vou procurar também, pois desejo que encontres colocação compatível com a tua educação.
Quando teve a certeza de que o pai não podia ouvi-la, Geneva, lançando fora a máscara da impassibilidade e frieza, abandonou-se ao seu pesar e chorou amargamente. Não lhe faltava a coragem para ganhar o seu pão, mas não estava preparada para a luta e — era isso que acima de tudo a pungia — via-se expulsa do lar, da sua casa e obrigada a ceder o lugar a uma estranha... a uma mulher que, por certo, não possuía uma alma nobre nem bons sentimentos, visto ter con¬sentido que, em seu nome, o pai cometesse semelhante injustiça.
Dolorosamente impressionada com a falta de escrú¬pulos do pai e pela leviandade com que encarava os seus deveres, pôs todo o empenho em encontrar emprego no mais curto espaço de tempo.
Nos dias seguintes visitou todos os seus conheci¬mentos, falou com todas as pessoas que podiam auxi¬liá-la com os seus conselhos.
Numa dessas visitas a casa de uma antiga compa¬nheira de convento, encontrou Suzannah Murphy, sua condiscípula também.
Suzannah desejava justamente encontrar alguém que a acompanhasse à América, para onde regressava a pedido do pai, um arquimilionário.
Geneva perguntou-lhe se teria dúvidas em lhe con¬ceder esse lugar e Suzannah, encantada, satisfez ime¬diatamente o desejo da antiga companheira.
— Serás não uma governanta, mas a minha amiga muito querida e uma espécie de mentor. Na verdade, não poderia encontrar melhor. Meu pai deixou-me com¬pleta liberdade, mas decerto gostará muito mais que a pessoa escolhida sejas tu, de quem lhe falei tantas vezes, de preferência a qualquer desconhecida.
E foi assim que Geneva, tímida, bem-educada, uma filha-família reservada e distinta, verdadeira rapariga de sociedade, se viu de um momento para o outro trans¬formada em dama de companhia de Suzy, belo coração, mas demasiadamente amimada pelo pai, que possuía milhões.
Decorridos poucos dias, abandonava a França, após breves e glaciais palavras de despedida ao pai, que, embora radiante pela forma rápida como os seus dese¬jos se haviam realizado, não podia eximir-se a certa comoção por ver a filha exilar-se, não só do lar como da própria pátria.
A bagagem de Geneva não se compunha de uma dúzia de malas como a da pupila; no entanto, continha, graças à generosidade da falecida tia Armandina, que sempre se empenhara em que não lhe faltasse coisa alguma, em matéria de vestidos e roupas, o bastante para Geneva fazer face às obrigações de sociedade que a esperavam no Novo Mundo.
Após rápida e encantadora viagem no Normandie, o esplêndido paquete francês, Suzannah e a sua dama de companhia desembarcaram em Nova Iorque.
Murphy esperava-as no cais. Ficou radiante ao ver a filha e mostrou-se encantado por a escolha ter recaído na sua antiga condiscípula.
A partir desse dia, a vida de Geneva decorreu feliz e sem preocupações. O seu trabalho consistia em acom¬panhar Suzannah por toda a parte, compartilhando a sua existência agitada e de contínua festa. E se, por um lado, se via forçada a reprimir as excentricidades de Suzy e de duas das suas amigas, Maè Smith e Vir¬gínia Hausser, que levavam vida trepidante, por outro, mantendo-a nos limites convencionais, num meio mun¬dano demasiado livre, satisfazia plenamente os desejos de Honorato Murphy.
De um momento para o outro, porém, Suzannah, contrariando a vontade do pai, resolvera desposar Johnny Hoover, e afirmava ainda que o casamento se realizaria num prazo muito breve.
A pobre Geneva perguntava de si para si, angustiada e aflita, qual a atitude a tomar em tão melindrosa cir¬cunstância.
Não podia avisar Murphy sem atraiçoar a confiança que Suzy depositara nela e, assim, não podendo tam¬bém impedir o casamento, teria de assistir impassível a realização de um acto que desaprovava.
Entretanto, que diria Murphy quando tivesse conhe¬cimento do enlace? Decerto lhe dirigiria, a ela, Geneva, as mais ásperas censuras.
No entanto, se o próprio pai não conseguia opor-se aos desejos da filha, teria de concordar que Geneva não estava à altura de o poder fazer. De resto, a amiga não lhe afirmara que, uma vez o casamento realizado, Murphy se conformaria?
Todas estas considerações levaram Geneva, depois de ter estudado o problema durante alguns dias, a dei¬xar a pupila seguir o seu destino, sem tentar dissuadi-la nem contrariá-la.
O casamento de Suzannah com Johnny Hoover rea-lizar-se-ia mais cedo do que Geneva calculava.
Os dois noivos, de acordo com Fred Carrol e Vir¬gínia Hausser, que deviam casar no mesmo dia, com¬binaram que a dupla cerimônia teria lugar depois da festa nocturna dada por Fred em honra de um amigo, lorde Geoffroy Seymour, que em breve desembarcaria em Nova Iorque.
Johnny Hoover e Fred Carrol haviam feito juntos os seus estudos em Harrow School, um dos melhores colé¬gios de Inglaterra. E foi aí que encontraram o jovem lorde e se tornaram amigos.
Geoffroy Seymour, o herói da festa projectada, teria talvez trinta anos. Pouco tempo antes, por morte do pai, herdara o título e considerável fortuna. Pertencia-lhe o riquíssimo domínio de Cliff-House, o morgadio da famí¬lia Seymour, em Inglaterra. Além disso, era sobrinho e herdeiro provável de lorde Bucgham, de Kirley Clarke, um dos mais ricos proprietários da Grã-Bretanha.
Lorde Bucgham possuía grande número de minas de carvão em Inglaterra e uma dezena de poços de petró¬leo nos Estados Unidos.
Era esse precisamente o motivo da viagem de Geof¬froy Seymour à América.
Um dos poços de petróleo, perfurado recentemente em Oklahoma, a quinhentos metros de profundidade, parecia riquíssimo em essência. O material indispensável à exploração já havia sido transportado para o local, mas impunha-se montar uma refinaria nas proximidades do poço. A pedido do tio, Geoffroy Seymour partiu para Nova Iorque, a fim de assistir a essa montagem e auxi¬liar o seu amigo William Tedder, engenheiro de talento, que dirigia a exploração havia três meses.
Tendo resolvido acolher Geoffroy com uma festa, Johnny Hoover e Fred Carrol, desejando fazer-lhe uma surpresa, escreveram a Tedder, pedindo a sua comparência.
Embora se encontrasse bastante afastado de Nova Iorque, o engenheiro aceitou. Os três meses passados em Oklahoma, completamente só, haviam sido de uma monotonia desoladora e, portanto, encantado por poder abandonar durante alguns dias o agreste território índio, acolheu com prazer o convite e dispôs-se a esperar em Nova Iorque o sobrinho do seu patrão.
De resto, tanto o engenheiro como Seymour pouco se demorariam na cidade. Um conselho de accionistas devia reunir-se no local da exploração a fim de serem tomadas importantes decisões, e os dois amigos estavam já prevenidos de que em breve se veriam obrigados a regressar a Oklahoma.
Não haviam decorrido oito dias sobre a tarde em que Geneva fora posta ao facto da próxima realização dos dois casamentos, quando um telegrama, vindo de Oklahoma, anunciou aos futuros esposos a partida de William Tedder. O avião que conduzia o engenheiro devia aterrar em Ohio e, se não sobreviesse qualquer contratempo, este utilizaria igualmente o transporte aéreo para Nova Iorque, onde chegaria vinte e quatro horas depois.
Suzannah ficou louca de contentamento ao receber a notícia e, enquanto Johnny se dirigia ao aeroporto para saber a hora provável da chegada do avião, a noiva, radiante, foi anunciar a Geneva a chegada do telegrama.
— Um dos nossos convidados estará em Nova Iorque sexta-feira de manhã, o mais tardar... e é muito natural que daqui até lá a rádio Atlantic nos anuncie a chegada do paquete, vindo da Europa. Logo que lorde Seymour se encontre em águas americanas, começaremos os pre¬parativos para a festa. O clube tem tudo a postos, Johnny e Fred Carrol já escolheram o menu e avisaram a orquestra. Provavelmente, daqui a quarenta e oito horas serei mulher de John.
Geneva tentou sorrir, mas não conseguiu ocultar a sua tristeza.
— As horas voam — murmurou, pesarosa. — Nunca imaginei que os acontecimentos se precipitassem com tanta rapidez.
— Por mim, acho que tudo caminha com desoladora lentidão — protestou Suzy. — É enervante ter de aguar¬dar assim a realização dos meus desejos. Se os tais ingleses, cuja presença meu noivo exige, se fizessem esperar muito, creio bem que dispensaria a sua compa¬nhia para Johnny me passar no dedo a aliança simbólica.
— Evidentemente. Cada uma de nós encara o acon¬tecimento pelo seu prisma diferente.
— Será possível que tu, Gene querida, não te ale¬gres com a minha próxima felicidade?
— Enganas-te, Suzy. Regozijo-me e muito, com a tua ventura... pelo menos em parte.
— Em parte?
— Quero eu dizer... Perdoa-me, Suzy! Mas é impossível compartilhar em absoluto a tua alegria.
— Porquê?
Geneva curvou a cabeça.
— Esqueces, minha Suzy, que fico sozinha e a tua amizade me vai fazer muita falta.
— A separação não será longa. Apenas os dois ou três meses da viagem de núpcias.
— É muito! E durante esse tempo depressa te esquecerás de mim!
— Nunca! Sou tua amiga ou não? Se a amizade não pode resistir a três meses de ausência, é caso para deses¬perarmos da excelência de tal sentimento.
— Habituar-te-ás a passar sem mim.
— Estás a dizer tolices, Gene do meu coração. O meu casamento não prejudicará em coisa alguma as nossas relações, posso assegurar-te... Johnny mais de uma vez me tem dito que simpatiza imenso contigo. Por teu lado, conheces bem o meu noivo para saberes que não é homem para me afastar das pessoas a quem estimo... Portanto, quando eu voltar, a nossa amizade prosseguirá sem a menor modificação.
— Se eu ainda me encontrar em Nova Iorque.
Suzy, que fumava tranqüilamente, enterrada numa poltrona, com as pernas estendidas e os pés descansando numa almofada, levantou-se de um salto.
— Pensas em partir, Geneva?... Porquê?...
Gene encolheu os ombros, num gesto de desânimo.
— Esqueces, minha queridinha, que não sou rica e, portanto, me vejo obrigada a procurar outra colocação. A minha presença deixa de ser necessária a teu lado e não creio que Mr. Murphy esteja disposto a continuar a pagar-me o ordenado quando os meus serviços podem ser dispensados.
— A dedução é exacta e salta aos olhos de todos! — exclamou Suzannah, aterrada. — E eu, estouvada que sou, nunca me lembrei das desagradáveis conseqüências que resultariam para ti do meu casamento! E ainda por cima pretendia que te regozijasses com ele! Como sou egoísta! Perdoa, minha Gene!
Ao mesmo tempo estendia a mão a Geneva.
— Não tenho que perdoar-te. Nada mais natural do que casares e eu ter de procurar nova situação.
— Mas eu não consinto que o meu enlace com Johnny transtorne por qualquer modo a tua vida; vamos imediatamente pensar na forma de eliminar esse pormenor desagradável.
— A culpa não é tua...
— Enganas-te. Pelo contrário, sou responsável por ti. Fui buscar-te a Paris, exilei-te do teu país, do meio onde sempre viveste. Não posso abandonar-te em Nova Iorque sem compensação equivalente.
— Pelo amor de Deus, Suzy! Entre nós não se fala em prejuízos nem em compensações. A tua amizade foi preciosa para mim e, por meu lado, é consolador pen¬sar que apreciavas a minha afeição por ti.
— Muito. Foste uma companheira admirável e a tua dedicação vigilante permitiu-me gozar a minha mocidade sem constrangimentos. Estavas sempre a meu lado, pronta a reprimir ou a remediar as minhas excentri¬cidades. Portanto, vamos pensar, as duas, no caso. Antes de partir quero saber quais as tuas intenções futuras.
— Conto pedir a teu pai que me dê um lugar nos seus escritórios.
— Yes! Não é mau, mas não era bem isso que dese¬java. Vamos, Gene, fala-me com franqueza. Não há na tua vida... um pequeno romance... um idílio... ou noivo em perspectiva?
Geneva abanou a cabeça.
— Não, Suzy... não tenho noivo.
— Aqui, é possível... mas em França?
— Nem em França nem na América.
— É pena!
— Concordo, mas infelizmente assim é...
— Naturalmente, fazes muito empenho em ser amada?
— É possível — confirmou Geneva, alegremente.
— Dessa forma, será mais difícil descobrir-te um marido em tão poucos dias...
— Com efeito! É melhor procurar outra coisa.
— Procuremos então.
Suzannah sentou-se na poltrona e, de testa franzida, absorveu-se em profundas reflexões.
De súbito, radioso sorriso lhe iluminou as feições. Um projecto lhe germinara no cérebro.
— Que pensas de meu pai, Geneva? — perguntou, sem qualquer explicação.
A amiga fitou-a, admirada, não atingindo o alcance da pergunta.
— Responde — insistiu Suzy. — Qual é a tua opi¬nião sobre o meu querido paizinho?
— É um excelente homem, muito teu amigo e pos¬suidor de admiráveis qualidades de businessman.
— Não é às suas qualidades que me refiro... Conhe¬ço-as de sobejo. Pergunto-te o que pensas dele... como homem. Seria possível teres-lhe amor?
Geneva sobressaltou-se.
— Amar Honorato Murphy?!
— Sim... amá-lo o bastante para seres sua mulher.
A amiga corou intensamente.
— Nunca me passou pela cabeça semelhante pers¬pectiva — protestou, quase escandalizada.
— Pois então pensa no assunto, encara-o sob todos os aspectos, estuda-o... e responde-me.
— Não, não — repetiu Gene, insurgindo-se instinti¬vamente contra a extraordinária proposta. — Tenho ape¬nas vinte e três anos e teu pai mais de cinqüenta. Teria toda a aparência de um casamento de interesse.
— Respondes sem reflectir, minha impulsiva. Estás sozinha no mundo, és pobre, mas educada e muito bonita. Meu pai, por seu lado, depois do meu casa¬mento, vai sentir-se muito só também e muito infeliz... Por que não hão-de vocês tentar encontrar um pouco de felicidade unindo as vossas duas solidões?
— Com certeza, não pensas a sério no que me propões, minha querida?
— Porquê? Sentir-me-ia tranqüila ao lembrar-me de que estavas junto do meu velho daddy... Por outro lado, seria difícil encontrar madrasta que me agradasse tanto... Com franqueza, esse casamento realizaria todas as minhas aspirações... e evitaria que alguma criatura pouco escrupulosa aproveitasse o isolamento de meu pai para o colher nas redes do matrimônio.
— Não, não pode ser! — protestou de novo Geneva.
De súbito, porém, suspendeu o protesto e intenso rubor lhe tingiu as faces como resultado de um pensa¬mento inesperado.
— Que temos? — inquiriu Suzannah, admirada com a transformação sofrida pela fisionomia da amiga. — Admites a possibilidade de uma resposta favorável?
Geneva não demonstrou ter ouvido a pergunta da amiga. Mergulhada num abismo de estranhos pensa¬mentos, conservava-se imóvel, com as pupilas fixas e inexpressivas.
Depois, cravou os olhos em Suzannah e perguntou com voz grave:
— Suzy, com franqueza, dize-me o que pensas do casamento que acabas de me propor.
— Seria perfeito a todos os respeitos.
— Não é isso... gostaria de saber... se não o achas invulgar... fora de todas as normas?
— Por forma alguma — assegurou a noiva de Johnny, sem compreender aonde a amiga pretendia chegar. — Enlaces como esses vêem-se todos os dias, principal¬mente quando a noiva é bonita e o futuro marido pos¬suidor de importante fortuna... é esse precisamente o teu caso.
Geneva fitava-a numa expressão quase desiludida como se tivesse esperado resposta muito diferente.
— Falas sério? — insistiu. — Uma união dessa natu¬reza não é considerada anormal? Contrária a todos os usos... inverossímil?
— Que idéias te passam pela cabeça para ver as coi¬sas por prisma tão singular? Afirmo-te que a minha proposta é tudo quanto há de mais razoável.
— Nesse caso — murmurou Geneva como se falasse consigo própria. — Se a proposta é normal e admissível, se não entra no domínio do imprevisto... do extraordi¬nário, não posso aceitá-la.
Suzy franziu as sobrancelhas, num gesto de espanto.
— De resto — prosseguiu Geneva pouco depois — sinto-me calma, o meu íntimo não se comove ao ouvi-la... Tenho a certeza de que Mr. Murphy não é aquele que a sorte me destina.
Suzannah esboçou um sorriso zombeteiro.
— É evidente — concordou, trocista. — Compreendo que meu pai não está nas condições de inspirar paixões súbitas e fulminantes. Mas, visto teres o coração livre e não existir qualquer imagem masculina que surja como obstáculo entre os dois, não sei por que rejeitas a possibilidade de te dedicares ao meu excelente papá e de conquistares a sua afeição.
Pálido sorriso iluminou a fisionomia de Geneva. A amiga, obstinada nos seus projectos extravagantes, nem sequer pensava que esse casamento, embora admi¬tido por Gene, poderia não seduzir o pai.
Na idade do milionário, dispondo de fortuna como a sua e prático como todo o homem de negócios, se tivesse pensado em casar decerto não esperaria que a filha lhe arranjasse noiva. Viúvo havia quinze anos, quantas imagens de mulheres belas e elegantes povoa¬riam as suas recordações! Fosse como fosse, era muito provável que, se Suzannah se lembrasse de lhe propor a amiga como madrasta, o pai lhe respondesse com uma gargalhada, aconselhando-a a não se preocupar, de futuro, com a sua vida íntima.
Estes pensamentos, que se sucediam rapidamente no cérebro de Geneva, desvaneceram a perturbação pro¬vocada pela proposta da amiga.
Portanto, já mais calma, acabou por lhe pedir que pusesse de parte todas as ilusões a esse respeito.
— Ouve, Suzy. Nunca devemos elaborar projectos matrimoniais para os outros. O bom-senso demonstra-nos que os casamentos arranjados por intermediários raramente são felizes... Mais desastrosos são ainda aqueles que se baseiam em simples questão de inte¬resse. Asseguro-te que nunca pensei em teu pai como marido possível. Tenho a mais profunda estima por ele e demasiado respeito por mim própria para cons¬truir o meu futuro com um casamento de dinheiro.
— No meu projecto havia apenas o intenso desejo de te auxiliar e encontrava para ele argumentos tão razoáveis que o supus realizável... Mas, visto não quereres, não insisto mais. Aconselhar-me-ei com Johnny e procuraremos os dois a melhor maneira de resolver o problema.
Embora falasse assim, Suzannah não abandonava a sua idéia. Cedendo ao desejo de Geneva, calava-se, mas decidira dizer duas palavras ao pai sobre o assunto. Aquele casamento afigurava-se-lhe o mais tranquiliza¬dor e o menos perigoso para os seus privilégios de filha única. Lançara a semente no espírito da amiga e espe¬rava que ela germinasse. Estava convencida de que, se Honorato Murphy aplaudisse a sua descoberta e a pusesse em prática, não teria grande dificuldade em convencer Geneva.
Se, apesar de tudo, se enganasse e os seus desejos não se realizassem — pensava Suzannah — estava sem¬pre a tempo de encontrar outro meio de assegurar o futuro da amiga.
William Tedder era hóspede de Johnny Hoover havia dois dias, quando o Queen Mary saudou com a sereia estridente a estátua da Liberdade que se ergue à entrada do porto de Nova Iorque.
Os dois casais de noivos quiseram acompanhar o engenheiro ao cais a fim de abraçarem Geoffroy Seymour logo que pisasse terra americana.
No seu quarto, Geneva ouviu os gritos impressio¬nantes da sereia e como se essa voz nostálgica personificasse uma hora fatídica da sua vida, não pôde deixar de estremecer.
Soara o momento em que iria encontrar-se só e sem colocação, numa cidade estranha. Semelhante perspectiva nada tinha de risonho e, embora desde a sua chegada aos Estados Unidos tivesse feito algumas econo¬mias, o que lhe permitiria enfrentar a situação durante alguns meses, não era sem apreensão que via as horas correrem.
Murphy partira em viagem de negócios para Was¬hington, onde se demoraria alguns dias e, assim, Gene não tivera ainda ocasião de lhe pedir o emprego nos escritórios, como projectara.
Por outro lado, Suzannah, ocupada com os prepa¬rativos da festa e do seu próximo casamento, não vol¬tara a falar no auxílio que lhe prometera e, para não perturbar a felicidade da amiga, Gene também não tor¬nara a aludir ao assunto. Começaria a dar os passos indispensáveis logo que a recém-casada partisse para a viagem de núpcias.
Na véspera do casamento, Geneva ajudou Suzannah a fazer as malas e recebeu nessa ocasião comovente prova de amizade da amiga.
— Desejo levar apenas o indispensável para fazer face aos meus primeiros deveres mundanos... Partimos de avião e a bagagem só serviria para me causar emba¬raços. Comprarei em Chicago tudo que precisar.
Apesar desta declaração, a sua roupa, vestidos e peles foram guardados nas malas, que atingiram o respeitável número de doze. Quando tudo ficou pronto, desprendeu por sua mão as etiquetas com o seu nome e, voltando-se para a amiga, declarou:
— Todas estas coisas deixam de me pertencer, Geneva. Põe o teu nome nessas etiquetas. Somos da mesma estatura, tudo isto deve servir-te. Aceita esta lembrança. Não posso pensar que, depois da minha partida, continuarás a usar esses horríveis vestidos pretos que compraste em França. Os meus trajos claros dar-te-ão um pouco de alegria. É como se uma parcela da minha alma viesse animar as tuas horas de solidão.
Geneva ficou quase assustada com a sumptuosidade do presente.
— É impossível, Suzy! Dentro dessas malas hâ muita coisa que nem sequer estreaste.
— Bem sei. Eu tinha a mania de comprar à toa e nem sempre adquiria o que devia. Agora vou modifi¬car-me. Johnny é riquíssimo... tanto ou mais do que o paizinho! Terá de me comprar tudo quanto houver de mais belo e de melhor. Hoover vai saber quanto lhe custa ter como nora a filha do seu adversário!
Começaram ambas a rir.
— És uma criança terrível, Suzy — observou Gene.
— Johnny aprova tudo quanto penso — replicou a amiga, a quem a certeza do amor do noivo tornava radiante. — Não sejas mais exigente do que ele, minha amiguinha. Aceita esta insignificante lembrança. Se a recusares, causar-me-as profundo desgosto.
E, assim, Gene viu-se possuidora de um enxoval tão sumptuoso quanto inesperado.
O cartão com o seu nome foi metido nas etiquetas de cabedal, as malas fechadas e as chaves depositadas na sua mão. Finalmente, por exigência de Suzannah, foi tudo transportado para o quarto dela.
Embora maravilhada com tal magnificência, Geneva não demonstrou à generosa amiga exuberante gratidão. Estava demasiado comovida para ser expansiva e, para falar com maior clareza, devemos até dizer que ao agradecer-lhe quase chorou, tanto a sensibilizara o gesto de Suzy.
— Não me agradeças — protestou Suzannah — é para mim uma alegria saber que aceitaste a minha sim¬ples oferta, como o faria uma irmã muito querida. Em troca, peço-te apenas — concluiu, abraçando-a carinho¬samente — que não abandones o paizinho e te con¬serves ainda alguns dias junto dele depois de eu ter partido. Não esqueças que conto contigo para lhe explicares os acontecimentos e lhe afirmares que, por muito ingrato que se lhe afigure o meu procedimento actual, continuo a professar por ele a mais terna e carinhosa afeição.
— Vai descansada, Suzy. Falarei a teu pai, como desejas... E se o senhor Murphy tiver a bondade de consentir que permaneça ainda algum tempo nesta casa, tentarei animá-lo durante a tua ausência, fazendo-lhe compreender que é apenas temporária.
— Está muito bem assim — aprovou Suzy sem mais comentários.
Mas um observador atento teria notado o sorriso indefinido que lhe pairava nos lábios. Isso provava decerto que a rapariga não havia abandonado os projectos matrimoniais que idealizara para Geneva.
Esses projectos deviam ainda estar bem presentes no espirito de Suzy porque, antes de se deitar, a feliz noiva escreveu ao pai longa carta, na qual, por assim dizer, só falava de Geneva.
A festa começara.
Quando chegou o momento de se sentarem à mesa, o whisky havia já corrido em abundância e os convivas tinham já absorvido grande variedade de cocktails.
Na sala, esplendidamente decorada, de um Palace em voga, onde se realizava o festim nupcial, a mesa resplandecia carregada com a baixela de prata, cristais finíssimos e irisados de mil cambiantes, e flores raras. Os manjares sucediam-se, regados com vinhos capitosos e licores ambarinos, em tal profusão que difícil se tor¬nava escolher.
Um pouco desamparada no meio de rapazes e rapa¬rigas que se conheciam de longa data, Geneva não podia deixar de pensar na quantia fabulosa que repre¬sentava uma festa daquelas.
Os quinze convidados para aquela reunião íntima eram todos filhos ou filhas de príncipes da finança, de fama internacional.
Se os homens envergavam a casaca impecável e da praxe, as mulheres, em compensação, estavam, segundo os usos americanos, cobertas de jóias, seminuas, mol¬dadas nos vestidos de tecidos sumptuosos. Na sua simplicidade, cabelos negros levemente ondulados, aparên¬cia quase infantil no seu vestido de cetim preto, muito sóbrio, ostentando como única jóia um colar de pequeninas pérolas, era o verdadeiro tipo da rapariga francesa, talvez até da rapariga francesa doutra época, mais reser¬vada e menos luxuosa do que a da actualidade.
Feições delicadas, faces sem pintura, sorriso ingê¬nuo, olhos profundos e sonhadores, Geneva era muito diferente das outras, artificiosamente alindadas e um tanto provocantes.
Dessa diferença resultou ser notada por Geoffroy Seymour, o herói da festa, que por mais de uma vez a fitou, admirado.
Como Geneva representava a aristocracia francesa em todo o rigor do bom-tom, Suzannah Murphy colo¬cara-a à mesa à esquerda do inglês, enquanto ela se sentava a sua direita, tendo ao lado Johnny Hoover.
Logo no começo do jantar, Seymour dirigiu a pala¬vra à sua vizinha.
— Francesa?
— Sim, de Paris.
— Há muito tempo em Nova Iorque?
— Ano e meio.
— Já visitou a Inglaterra?
— Uma vez, mas era muito pequena e quase não me recordo.
— Aoh! Eu, pelo contrário, conheço muito bem a França... Passo os Invernos em Cannes e o Grand Prix em Paris!
— Deve ser deliciosa, essa facilidade de uma pessoa se deslocar a propósito de mil nadas ou por simples capricho.
Pouco depois, o Inglês prosseguiu:
— As parisienses reconhecem-se em toda a parte... Têm sempre um chique especial, ninguém consegue igualá-las.
— Questão de ambiente!... Influência de Paris.
— Começo a convencer-me disso.
Decorridos minutos, animou-se a dizer-lhe:
— Solteira, não é verdade?
— Foi Suzannah quem lho disse?
— Não. Adivinha-se por pequenas coisas. Não quis fumar, recusou os cocktails... isso é natural nas misses do seu país.
Desta vez Gene riu francamente.
— Receio deixar o juízo no fundo do copo.
— As americanas não perdem a cabeça por tão pouco. Suportam muito bem os cocktails e o tabaco.
— Estão habituadas. Eu sinto que nunca me habi¬tuarei.
— É por isso, justamente, que adivinhei logo em si uma francesa.
E o olhar penetrante do rapaz desviou-se da vizinha para percorrer num relance o grupo de americanas sen¬tadas em torno da mesa: luxo, jóias, penteados compli¬cados, decotes audaciosos. Tinham a aparência de prin¬cesas dos contos de fadas, mas naqueles cèrebrozitos ocos de mulheres modernas não residia um pensamento sério. Na rua, nos casinos, em viagem ou em casa, con¬tanto que tivessem um homem a seus pés, pronto a satisfazer-lhes as exigências, nada mais desejavam. Não passavam de crianças grandes, amimadas e caprichosas.
— Mulheres encantadoras, bonecas deliciosas... eis tudo — acabou por murmurar.
A frase ainda assim não exprimia por completo quanto pensava daquelas rapariguitas fúteis e provocan¬tes, confortàvelmente instaladas na vida.
Os cumprimentos do seu vizinho de mesa deixaram Geneva pensativa.
Seymour era alto, delgado, elegante e de uma correcção irrepreensível em todos os seus gestos e palavras. Gene adivinhava-o irônico e exigente, e a despeito da maneira de se expressar, simples e despretensiosa, a forma como erguia a cabeça, olhando as pessoas do alto, dava-lhe um ar orgulhoso e altivo. Sabia que Seymour, além de possuir considerável fortuna, era sobrinho de um inglês muito rico e de elevada categoria social, e pertencia à alta sociedade inglesa. Tudo isto fora para Gene verdadeira revelação. Pela primeira vez conver-sava com um homem que, por nascimento, situação e fortuna, estava colocado muito acima dos simples mor¬tais, uma espécie de semideus.
E enquanto a animação crescia e as vozes subiam de tom, à medida que os vinhos capitosos soltavam as línguas, a gentil Francesa pensava que em qualquer canto da terra existia uma mulher que, possuindo igual¬mente fortuna, beleza e situação, podia aspirar a ser esposa de um homem como Seymour.
Embora, aparentemente, a sua alegria não destoasse do conjunto, um pensamento melancólico entenebreceu-lhe pouco a pouco a alma. Naquela animada reunião não seria a única rapariga sem fortuna, filha de um pai igualmente pobre? Poderia, portanto, evitar que uma pontinha de inveja lhe despertasse no coração, quando o seu nobre vizinho, desconhecendo a sua posição social, a rodeava de atenções como se Gene fosse sua igual ou uma princesa real? Estranha perturbação, anseio instin¬tivo e involuntário, misto de ambições indefinidas, de sonhos inconscientes, de possibilidades inverosímeis... pesar pelo que o Destino lhe negara... e prodigalizara às outras... Crise sentimental, grito de alma, cuja inten¬sidade nem suspeitava, mas que lhe provocava inexpli¬cável angústia.
A quantidade de bebidas absorvidas, os licores, sucedendo-se aos vinhos generosos e muitos cocktails, começavam a toldar os cérebros, e os convivas estavam já mais ou menos embriagados.
Embora o inglês insistisse várias vezes com ela para beber, Gene limitava-se a levar o copo à boca e a molhar apenas os lábios. Mesmo assim, a mistura de tantos licores acabou por a entontecer, conquanto pouco tivesse bebido. Ou, quem sabe, talvez o ambiente, o jantar requintado, a alegria geral contribuíssem mais do que o álcool para lhe transtornar a cabeça.
Fosse como fosse, o olhar cintilava-lhe, falava e ria por qualquer ninharia. Por duas vezes atirou com boli¬nhas de pão a Suzy, o que estava fora da sua correcção natural, e quando alegre grupo se levantou titubeante para iniciar uma farândola em torno da mesa, não foi das últimas a agarrar as mãos dos seus dois vizinhos e a arrastá-los para a endiabrada dança.
Seria preciso recuar muitos anos — quando, em casa da tia, assistira ao seu primeiro baile — para encontrar uma Gene tão animada e radiante.
A alegria brilhava-lhe nas pupilas escuras e rosava-lhe as faces. Nunca estivera tão bonita nem tão atraente como naquela noite. Resultou daí Geoffroy não a aban¬donar um instante e, sob o império da exaltação, dizer-lhe uma série de tolices que a faziam rir com gosto.
É bom notar-se que o jovem Inglês não tinha a consciência do que dizia. Bebera tanto champanhe e whisky que estava embriagado. Perdera o domínio de si próprio e a sua rigidez de convenção.
Bamboleava a cabeça, os olhos rolavam-lhe nas órbi¬tas brilhantes e febris e falava com voz pastosa como se tivesse a boca cheia e as palavras não pudessem sair livremente. Por fim, quando se levantou, a custo man¬teve o equilíbrio e por mais de uma vez se viu obrigado a agarrar-se, sem cerimônia, ao braço tutelar de Geneva.
Os outros casais, de resto, não se encontravam em melhor estado. Suzannah quase gritava e propunha orga¬nizar uma surprise-party em casa do velho Hoover; Johnny, abraçado a William Tedder, queria arrastá-lo para um bailado desenfreado em honra de Oklahoma; Fred Carrol tentava obrigar Virgínia Hausser, sua futura esposa, a fumar um cigarro; Maè Smith dan¬çava sozinha um lambeth walk, batendo de espaço a espaço uma palmada no braço do vizinho, ou no vácuo, se este se afastava. Alguns dos convidados haviam adormecido encostados à mesa, outro propunha termi¬nar a festa em casa do avô, que ficava a cem quilómetros de distância.
Em resumo, a cena era edificante e os futuros espo¬sos tinham uma festa de núpcias sensacional que lhes ficaria por largos anos na memória.
Sentado num sofá, junto de Geneva, Seymour ten¬tava, apesar de tudo, conservar uns restos de aprumo. Muito direito, com o monóculo encaixado na órbita, queria convencer a sua vizinha de que estava perfeitamente lúcido, embora lhe dissesse uma série de dis¬parates.
— Miss França — perguntava — por que está tão preta?
— Preta? — repetiu Gene, pouco agradada com a pergunta, a que atribuía intenção um tanto desairosa.
— Yes! — insistiu o rapaz. — Cabelos, olhos, ves¬tido... pernas, pés e até as mãos... É feita de carvão?
— O vestido é de cetim preto — explicou Gene — e, portanto, meias, sapatos e luvas deviam condizer.
— Não — teimou o fleumático Seymour. — Não está dizendo a verdade, Miss França é feita de antracite.
— De quê?
— De antracite!
— Já ouvi, mas não compreendo.
Conquanto estivesse disposta a rir e a achar graça a tudo quanto ouvia naquela noite, tentou encontrar o traço espirituoso da estranha classificação. Como não o conseguisse, encolheu os ombros.
— Encontrei uma mina de carvão! — repetiu o inglês, rindo da sua descoberta. — É formidável! Vou mandar dizer ao tio Fill.
— Quem é o tio Fill? — inquiriu Gene, tentando fazê-lo mudar de idéias.
— É o meu querido e velho Bucgham... irmão de minha mãe... o magnate, o rei do carvão inglês.
— O proprietário das minas?
— Exactamente, mas eu também encontrei esta noite um bloco de antracite.
Era o seu pensamento fixo. Geneva, porém, ou por¬que a brincadeira se prolongasse de mais ou porque os vapores do álcool, que lhe estonteavam um pouco o cérebro, a tornassem mais susceptível naquela noite, retorquiu, aborrecida:
— Está a dizer tolices e julgo-o até um tanto indelicado. Não sou tão gorda que pareça um bloco.
— De carvão...
— Nesse caso, de que substância são feitas a minha cara e as mãos? Como vê, são brancas.
O inglês inclinou-se para ela e observou-a com atenção. O olhar vacilante tentava penetrar o véu de bruma que a embriaguez lhe desdobrara diante das pupilas claras. Para um homem no seu estado o pro¬blema de cor era dos mais importantes.
— Se são brancas... é gesso.
Geneva soltou uma gargalhada.
— Gesso! Se nem sequer uso pó de arroz!...
— Então é marga! Conheço bem o assunto e meu tio encontra-a por toda a parte.
Desta vez, Geneva, concluindo de si para si que seria tolice discutir com um homem embriagado, limi¬tou-se a sorrir.
“Quando chegam a este estado — pensava — todos os homens são iguais. O inglês rico, elegante e nobre, ou o miserável borrachão que numa taberna ingere, um após outro, copos de aguardente”.
Esta conclusão, espécie de desforra filosófica aos tristes pensamentos que a haviam assaltado no começo do festim, alegrou-a. Pertencia a classe inferior à do seu vizinho, mas, na escala social, os homens, do mais baixo ao mais alto, são todos feitos da mesma massa, enfermam de idênticos defeitos.
De súbito, o relógio bateu as duas horas da noite. Ouvindo-o, Virgínia Hausser começou a gritar:
— Os noivos deviam estar à meia-noite em casa do Pastor! Querem ver que já não nos casam esta noite?
Johnny Hoover apressou-se a tranquilizá-la. O padre era seu companheiro de infância.
— Anderson é um amigo e espera o tempo que for preciso.
— Mesmo assim, a hora é pouco própria para ir incomodar o digno Pastor — observou alguém.
— Não sei porquê — atalhou Seymour. — Se o avi¬saram, com certeza está à espera.
— E, se estiver deitado, levanta-se — acrescentou Maè.
As senhoras apressaram-se em vestir os seus abafos. Antes de sair, Virgínia voltou-se para o noivo:
— Tens as dispensas e as alianças, Fred? Vê lá se as perdeste.
Carrol procurou nas algibeiras e tirou os papéis.
— Aqui estão as dispensas! — exclamou, radiante como se acabasse de descobrir uma fortuna.
É verdade que, embriagado como estava, era uma grande felicidade não as ter perdido... Brandindo os papéis, Fred continuou:
— Tens a tua, Hoover?... Por mim, à falta de uma arranjei três.
— Talvez quisesses casar com três mulheres ao mesmo tempo — gracejou Hoover.
— È possível! — replicou Carrol.
Cada um acrescentou o seu comentário e durante alguns instantes a algazarra foi indescritível.
Um dos rapazes, que titubeava horrivelmente, con¬seguiu trepar para cima da mesa.
— Quem quer casar? — apregoou, agitando as dis¬pensas que tirara das mãos de Fred.
— Senhores e senhoras, ladies e gentlemen, tomem os seus lugares... Todos serão servidos a seu tempo!
Dez vozes enrouquecidas repetiam:
— Quem quer casar?... Aproveitem a ocasião!
E como nenhum deles estava em seu juízo, todos aprovaram a disparatada idéia, justamente porque era disparatada.
— Na verdade, seria esplêndido — comentou Johnny Hoover — se em vez de dois casais, fossem quatro! Realmente, Seymour, amigos como somos, não devias deixar de me acompanhar num acto tão solene.
— Seymour! Estão a chamar por você! Seymour!
— Presente! — respondeu o inglês, imperturbável. — Que desejam?
— Hoover acha que deviam casar ao mesmo tempo.
— Aoh!
— É isso mesmo, meu velho! Em Harrow éramos inseparáveis e agora abandonas os teus amigos e deixas-nos casar sem ti!
Geoffroy Seymour levantou imediatamente a luva.
— Eu não costumo abandonar os amigos. Mas, se der o mergulho, Tedder terá de me acompanhar, por¬que também fazia parte do grupo, em Harrow.
A proposta obteve a aprovação geral.
A balbúrdia recomeçou.
Por fim, uma voz de mulher dominou o tumulto. Era a de Maè Smith, que durante toda a noite não abandonara o engenheiro.
— Casa comigo, não é verdade, senhor Tedder? Vamos casar os dois? — insistia.
Tedder, com ar apatetado, fitou sucessivamente Seymour, Hoover, Carrol e por fim Maè Smith. A em¬briaguez não lhe permitia raciocinar. De repente deu um murro na mesa.
— Está dito! — clamou com firmeza. — Não te aban¬dono, Seymour. Na sua última carta o teu tio recomen¬dava-me que velasse por ti... Portanto, para onde fores irei eu! O que fizeres faço eu também!
Um concerto de aplausos rematou a declaração do fiel amigo. Aqueles ingleses eram formidáveis!
— É firme nas suas idéias, o excelente Tedder! Seymour, o seu amigo não o abandona.
Quem não abandonava Tedder era Maè. Pendurou-se-lhe no braço e seduzia-o com sorriso encantador.
— Então, amigo, arrependeu-se? — perguntou alguém a Seymour, que tentava segurar o monóculo na órbita.
Conseguindo-o com um esgar que lhe deformou o semblante, fixou as suas atenções no amigo e na mulher que se lhe agarrava ao braço.
— Vais desposar um feixe de espigas? — observou, impassível. — Meus senhores, saudemos o amor que des¬ponta!
O seu tom de suprema ironia subjugou os com¬panheiros e desde aquele momento o inglês só teve admiradores naquele grupo de gente moça, que, sem maldade, sem cálculos interesseiros, só pensava em divertir-se.
— E você, Seymour? — informou-se o primeiro que falara. — Quem escolhe você?
— Eu! — declarou desdenhosamente. — Caso com o bloco de antracite. Acima de tudo... sou prático!
E, para que não restassem dúvidas, precisou:
— Ela afirmou que era o vestido. Mas eu bem vi que era carvão... portanto, caso e mando-a como amos¬tra ao meu tio... O querido tio Fill ficará de boca aberta!
Ninguém percebeu o que ele queria dizer, mas nem por isso deixaram de aplaudir. O importante era que o inglês casasse e fosse o quarto parceiro naquele inte¬ressante bridge matrimonial.
Naquela altura regressava à sala o elemento femi¬nino. Vinham muito bem embrulhadas nos seus abafos e Suzannah foi desde logo informada da extraordinária combinação.
— Seymour e Tedder casam hoje também. William escolheu Maè, mas o lorde parece decidir-se pela tua amiga.
Suzy ficou encantada com a informação. Num im¬pulso de entusiasmo precipitou-se para Geoffroy.
— Você é estupendo, Seymour! É a minha amiga a melhor e a mais encantadora das raparigas! Quero feli¬citá-lo pela excelente escolha que fez.
E, pondo-se nos bicos dos pés, tentou, sem mais cerimônias, dar-lhe um beijo em cada face, mas o inglês, com exagerada dignidade, que provocou uma gar¬galhada geral, aprumou a alta estatura e libertou-se das mãos femininas que lhe prendiam os ombros.
— No — declarou com implacável rigidez. — Está enganada, miss Murphy. O seu noivo é Johnny. Eu caso com miss França.
Ao mesmo tempo procurava Geneva com os olhos. Como não a visse, assustou-se. No estado de embria¬guez em que se encontrava, a ausência da sua vizinha de mesa afigurava-se-lhe desastre irreparável.
— Onde está ela? — gritava, alarmado, como se lhe tivessem roubado a carteira. — Fugiu... porquê?
— Uh! Uh! — entoava em coro o grupo de estouvados. — Onde está a noiva? Onde está a noiva?
— Está no vestiário — informou Suzy. — Vá ter com ela e ao mesmo tempo vista o sobretudo, porque não nos podemos demorar... Depressa, meus senhores, prepa¬rem-se para sair.
E enquanto Seymour corria em busca da mulher que para ele representava quimérico tesouro, os restantes convidados, animados ou embrutecidos, gaguejando, cambaleando, tentavam vestir as peliças e equilibrar na cabeça o chapéu alto, obrigatório nestas festas nocturnas.
Desejando estar bem disposta para a cerimônia do casamento a que ia assistir, Geneva deixou as compa¬nheiras saírem do vestiário e dispôs-se a passar um pouco de água fresca pela testa e pelas faces.
Junto de Suzannah, desempenhava, naquele momento tão grave da sua vida, o papel de irmã mais velha, da mãe que falecera e do pai ausente.
“Esta noite represento toda a sua família!” — pensou.
E, tendo refrescado a testa e o rosto, a fim de que o cérebro retomasse o equilíbrio, e composto o penteado, dispunha-se a lavar as mãos quando o inglês apareceu.
Encontrando-a, Seymour não conseguiu ocultar a sua irritação e interpelou-a com modos tão desabridos que Geneva assustou-se.
— Aoh! Por que me abandonou, miss França? Não é correcto deixar assim o seu companheiro de mesa sem o avisar e, para mais, no momento em que se tomam decisões importantes.
Surpreendida pelo tom agressivo, Gene voltou-se.
— Há quanto tempo estou a chamá-la! Mas, diga-me, aceita o que acabo de combinar com os outros?
Gene nem tentou saber do que se tratava.
— Com certeza! — respondeu, incapaz de contrariar o belo gigante, cuja fascinação a subjugara durante toda a noite. — O que quiser, quero eu!
Depois, nem lhe passava pela cabeça que um homem embriagado pudesse tomar resoluções importantes.
— Muito bem. Nesse caso, estamos de acordo.
Seymour sorria contente e Gene sorriu também.
— Completamente de acordo — afirmou.
Não conseguiria resistir-lhe, mesmo que o desejasse. Não ficara insensível, o que sucederia a qualquer outra mulher no seu lugar, à sedução que emanava daquele belo espécime da raça britânica, daquele fidalgo tão atraente e distinto.
Alto, elegante, com a casaca de corte impecável sobre o peitilho imaculado, a peliça preta e um lenço de seda branca enrolado ao pescoço, o monóculo entalado na órbita, a face pálida sob o chapéu alto rutilante, Seymour era o protótipo do gentleman, correcto, em resumo, o Príncipe Encantador em toda a acepção do termo.
Geneva estava deslumbrada e, sem mesmo se aper¬ceber da perturbação que lhe provocava a presença do rapaz, quase se sentia desfalecer... Era qualquer coisa de inesperado e inexplicável... uma sensação ao mesmo tempo terrível e deliciosa... que a fazia estremecer de angústia e palpitar de felicidade.
E, como se compreendesse a emoção que provocava naquela alma ingênua, Seymour conservou-se diante de Gene silencioso e grave. Os seus olhares confundiam-se.
Seria a influência dos sentimentos que despertava ou a correcção de homem de sociedade que sobrelevava os efeitos do álcool? Uma coisa ou outra, durante um ins¬tante pareceu recuperar a razão. Involuntariamente, teve a presciência de certas palavras e gestos que deviam ser ditos e executados naquele momento. Sem que as suas pupilas azuis a abandonassem um momento, avan¬çou para Gene e as suas mãos delicadas e brancas pou¬saram-lhe nos ombros. Então, em francês, não desejando decerto que os empregados do vestiário compreendes¬sem o que ia dizer, tentou explicar-lhe o que se passara na sala durante a sua ausência.
As suas palavras eram um tanto incoerentes e, embora habitualmente se exprimisse com facilidade naquele idioma, dir-se-ia ter dificuldade em encontrar os termos apropriados.
— Declarei a miss Murphy que desejava casar hoje... Ela ficou encantada e quis beijar-me, mas era Johnny Hoover quem devia receber o beijo e não eu... É engra¬çado, não acha?
— Muito engraçado — concordou Gene, completa¬mente hipnotizada.
— Não era bonito... quem devia fazê-lo era miss França.
— Quer dizer que Suzannah tentou beijá-lo e o senhor recusou?
— Isso mesmo!... Não podia ser!... Visto ter deci¬dido que seria consigo...
As faces de Gene tingiram-se de rubor e pensou:
“Será possível, meu Deus! Quer ele dizer que pre¬tende beijar-me só a mim!”
Um frêmito fê-la vibrar da cabeça aos pés e, por segundos, cerrou os olhos.
Seria admissível que tal emoção lhe estivesse reser¬vada? Havia pouco, vendo-o tão belo, tão distinto, mur¬murara:
“Em qualquer canto da Terra existe uma mulher que se apaixonará por este homem e será amada por ele”.
E não conseguira evitar uma pontinha de inveja.
E eis que, de repente, o céu lhe reservava a felici¬dade de ser, embora por momentos, a mulher a quem esse homem desejava beijar.
Inconsciente e incapaz de reagir contra a perturba¬ção imensa que esse pensamento fazia nascer no mais profundo do seu ser, ergueu a cabeça, irresistivelmente atraída pelo olhar que pesava sobre ela. Por segundos, as suas pupilas confundiram-se e penetraram-se e foi como se um fluido magnético emanasse das duas almas, envolvendo-os reciprocamente.
Seymour, conquanto naquela noite estivesse com o cérebro por demais toldado para experimentar profun¬das sensações, não deixou de notar a estranha impres¬são que provocava em Gene.
Com gestos pouco seguros a mão aristocrática abandonou o ombro delicado e acariciou ao de leve a cabeleira escura.
— Minha muito querida! — murmurou.
Gestos e palavras foram mais instintivos do que voluntários; as idéias de Seymour estavam longe de ser claras.
Mesmo assim, teve a impressão de que havia pon¬tos essenciais a tratar e que não tinha mencionado ainda.
Tentou exprimir claramente todo o seu pensamento, mas, em consciência, verificou que o fazia muito mal.
— Um gentleman deve dizer...
Não. Impunha-se encontrar qualquer coisa mais apropriada... menos fria.
Pensativo, contemplava a companheira. Depois aba¬nou a cabeça e confessou:
— É difícil! Nunca fui tão longe! Compreende?
Geneva, naquele momento, estava incapaz de medir o sentido das palavras e não alcançou a importância da afirmação feita pelo inglês. Só muito mais tarde com¬preendeu que a frase significava a confissão de que nunca levara tão longe um flirt... isto é, ao casamento! Portanto, era muito natural que Seymour hesitasse na escolha dos termos a empregar em tão difíceis circunstâncias, tanto mais que o desenrolar rápido dos acon¬tecimentos e o imprevisto da situação lhe roubavam toda a iniciativa.
O silêncio, devido à incompreensão, foi tomado pelo rapaz como aquiescência.
— All right! — exclamou, rindo. — Entendemo-nos muito bem, os dois.
Com o braço rodeou os ombros de Geneva, que se mantinha na sua atitude sorridente e, portanto, segundo a opinião de Geoffroy, de assentimento.
Curvando-se um pouco para ela, explicou, com uma carícia na voz encaramelada:
— Meu amor! Eu disse: caso com ela! Consente, não é verdade? Aceita?
De toda a frase, Geneva ouviu apenas as primeiras palavras e essas produziram-lhe tal comoção que teve a impressão de ser arrebatada para um mundo irreal e maravilhoso.
Apesar da água fresca e de ter evitado beber tanto como os outros, concluía que a sua cabeça não estava muito sólida, caso contrário não experimentaria tão vio¬lenta vertigem ao ouvir falar o companheiro.
“Meu amor!” — dissera ele.
Como deslumbrada por um clarão radioso, cerrou docemente as pálpebras e encostou a cabeça ao ombro de Seymour. Sonhava decerto e não tardava o despertar.
Mas sentia-se tão feliz assim, era tão delicioso o sono, que se deixou ficar muito quietinha com receio de que a maravilhosa miragem se desvanecesse.
Decorreram alguns segundos. Geoffroy contemplava a cabecita abandonada contra o seu peito e involuntário trejeito de desagrado lhe vincou os lábios, embora os olhos continuassem a sorrir. Era aquele o resultado que pretendera obter com o seu discurso, mas a rapidez da vitória desorientava a sua concepção.
Contudo, embora não estivesse em seu juízo, não pensou em exigir-lhe mais.
— All right! — repetiu. — É esplêndido!
Geneva estava a par do assunto! Tudo corria às mil maravilhas.
Sem cerimônia, visto a noiva dar provas de tanta condescendência, curvou-se para ela e beijou-a.
O beijo era o ponto final da cena que acabava de se desenrolar. Não é assim, em geral, que terminam todos os pedidos de casamento?
Seymour queria desempenhar até ao fim o seu papel de noivo apaixonado e, portanto, beijou Geneva. Um beijo sem importância, pois mal aflorou os lábios femi¬ninos.
Foi, contudo, o bastante para despertar Gene, que, devemos acreditá-lo, nem mesmo em sonhos estava habi¬tuada a ser beijada.
— Oh! — exclamou, libertando-se quase bruscamente dos braços de Seymour.
A exclamação encerrava um mundo de censuras.
Ele teve a consciência de que ultrapassara os limi¬tes permitidos com uma mulher séria e bem-educada.
Os lindos olhos negros, que tão poeticamente com¬parara a um bloco de antracite, fulminavam-no, indi¬gnados.
Se Geneva obedecesse ao seu primeiro impulso teria esbofeteado o insolente. Há momentos em que um gesto violento distende os nervos e restitui a calma. No entanto, influenciada ainda por uns restos da singular fascinação que Geoffroy exercia sobre ela, havia algumas horas, a mão já erguida recaiu inerte.
— Foi mal feito — balbuciou, recuando. — Não devia fazê-lo.
Estava muito corada e constrangida, porque com¬preendeu subitamente que o incidente fora provocado por culpa sua.
Não havia sonhado e o seu abandono fora real e assombroso. Como, estando em seu juízo, pudera pra¬ticar um acto tão inconveniente?!
Perdendo completamente a cabeça, voltou as costas ao seu interlocutor e, deixando-o assombrado, fugiu para a outra sala.
Suzannah, que a procurava, entrou neste instante e Gene correu a refugiar-se junto dela.
— Depressa, Geneva! É muito tarde! — exclamou a filha do milionário, pegando-lhe no braço.
De repente, passando a outro assunto com volubilidade, acrescentou, arrastando-a para a porta:
— Deixa-me felicitar-te, Geneva querida. Fazes um casamento esplêndido! Fred afirma que Seymour é exce¬lente rapaz e que serás muito feliz com ele.
— Feliz com Seymour! — repetiu Gene, interdita e ainda mal refeita das comoções anteriores.
— É claro, minha Genezinha! — continuou, sem reparar na perturbação da amiga. — Não podia ambi¬cionar melhor para ti. Agora fico completamente tranqüila a teu respeito. Com semelhante marido, podes desafiar todas as contingências da vida.
Geneva voltava a perguntar a si própria se estaria bem acordada ou não. Certamente, sonhava ainda, quando supunha ter despertado.
— Mas de quem falas tu, Suzy? — inquiriu, angus¬tiada, passando a mão trêmula pela testa aljofrada. — Que estás tu a dizer? Não te compreendo...
— Casamos as duas daqui a pouco, está combinado. Tu com Seymour e eu com Johnny.
— Mas quem disse semelhante coisa?
A voz de Gene vibrava de aflição, pois estava per¬suadida de que a loucura a espreitava.
Imperturbável, Suzannah explicou:
— Foi Geoffroy quem te escolheu! E Maè casa com Tedder. Mas... Seymour não te disse nada?
— Disse, mas não o percebi bem. Era por tal forma inverosímil!
E, baixinho, murmurava:
— Não estou em meu juízo! Parece impossível ter bebido até ficar neste estado!
Suzannah já não a ouviu. Deixara-a para ir ter com Johnny.
O grupo saíra para a rua e à luz brilhante das lâmpadas eléctricas gritavam uns pelos outros e pro¬curavam os vizinhos de mesa, antes de se instalarem nos carros.
Tedder e Maè foram procurar Gene.
— Vamos no mesmo carro, Geneva — declarou a americana. — Julgo preferível não nos separarmos.
— Como quiser — aceitou Gene, procurando Sey¬mour com a vista.
— Onde está o nosso amigo? — indagou Tedder.
— Não sei — respondeu, quase ofendida por se terem dirigido a ela para encontrar o ausente. — Está no ves¬tiário — acabou, contudo, por confessar. — E talvez fosse conveniente ir buscá-lo.
— Vou já.
Enquanto ele se afastava, Geneva voltou-se para Maè Smith e perguntou:
— É verdade que vai casar com Tedder?
— Tudo quanto há de mais verdadeiro.
— E esse casamento afigura-se-lhe natural?
— Naturalíssimo.
Mas a pergunta inquietou-a e implorou:
— Geneva! Não vai agora estragar a nossa combi¬nação! William Tedder casa para não deixar Seymour sozinho. Se o seu enlace não se realizar, acontecerá o mesmo ao meu! Não fará semelhante coisa, não?
— Valha-me Deus! A situação é delicada. Ninguém se casa para interesse dos outros. Está certa de que Seymour pensa em desposar-me?
— Com certeza, se não o desanimar.
— Não influirei em coisa alguma na sua vontade. Seria um procedimento pouco digno.
— Seja generosa, Geneva! Pelo menos, não diga nada antes do meu casamento com Tedder se ter efectuado... Depois, se não gosta de Seymour ou se lhe falta a coragem para prosseguir a aventura, não case. No entanto, antes de o recusar, lembre-se de que Sey¬mour é riquíssimo e que, desposando-o, será a mais feliz das mulheres.
— Sua mulher! — balbuciou Gene com emoção.
Por segundos inebriou-se com a perspectiva mara¬vilhosa... ser esposa de Geoffroy... a vida inteira junto do nobre inglês, tão belo, tão distinto!
— É um projecto absurdo, Maè! — suspirou por fim, com o cérebro cansado por tão extraordinários acon¬tecimentos. — Fantasia de homens embriagados!
— Engana-se. Entre nós, as uniões assim são fre¬qüentes.
— Tem a certeza de estar bem acordada, Maè?
— Tão acordada quanto o pode estar uma mulher quando se trata do seu futuro.
Geneva calou-se. Maè era sincera. Nesse caso, por que não aceitaria ela os factos, embora lhe parecessem incompatíveis com o bom-senso e com as normas comuns?
Em silêncio, instalaram-se as duas no automóvel.
— Aí vêm eles — avisou Maè em voz baixa. — Não faça falhar o meu casamento, suplico-lhe, Geneva! Nunca mais se apresentará probabilidade semelhante para mim e nesta ocasião representa uma tábua de sal¬vação.
Gene esteve quase a confessar que para ela o casa¬mento com Seymour seria também inapreciável tábua de salvação. Mas como, apesar de tudo, não acreditava que tal enlace chegasse a realizar-se, contentou-se em tranqüilizar Maè, fazendo votos para que não viesse a arrepender-se por ter decidido o seu futuro num movi¬mento irreflectido.
Nesse instante, Seymour e Tedder chegavam junto do automóvel.
— Depressa, meus senhores! Vamos chegar atrasa¬dos! Os outros carros já partiram há muito tempo.
— Custou-me a trazer Seymour. Estava zangado porque a noiva o deixou e exigia que fosse ela em pes¬soa buscá-lo.
Gene olhou para o inglês. Não iria protestar indi¬gnado com a palavra noiva proferida pelo outro?
Mas como ele se conservasse impassível, começou a acreditar na possibilidade do que Maè e Suzannah lhe haviam afirmado em todos os tons, e julgou-se no dever de explicar:
— Deixei lorde Seymour sozinho para ir ter com Suzannah. Tinha prometido acompanhá-la na ocasião da cerimônia... e, no fim de contas, para esperar pelos senhores tive de a deixar partir sem mim.
— Chegaremos a tempo — afirmou Maè, que de espaço a espaço se debruçava pela portinhola. — Já avisto os faróis dos outros carros.
— Ainda bem — respondeu Geneva, deveras con¬fusa pela forma como Geoffroy a fitava.
Num gesto repentino, este curvou-se para ela e, birrento, voltou a queixar-se do brusco abandono.
— É a segunda vez que foge de mim. Não posso admitir que o faça num momento como este.
Paciente, porque Maè acabava de lhe dar uma coto¬velada, Gene respondeu:
— Não supus contrariá-lo. Por que não me seguiu?
— Fugiu sem me avisar!
— Para a outra vez avisá-lo-ei, fique sossegado.
— Não tornará a fugir? — insistiu o inglês, cuja auto¬ridade redobrava com a condescendência de Geneva. — Não mais me deixará?
— Nunca!
Seymour pareceu pesar a importância de tal pro¬messa e o que ela representava de tranqüilidade para o futuro. Contudo, após alguns instantes, observou:
— É muito grave o que vamos fazer... muito grave...
— Espero que não vá agora arrepender-se, lorde Seymour — protestou Maè. — Seria ridículo!
— Ridículo porquê? — repetiu, admirado.
— Porque prometeu acompanhar os seus amigos até ao fim e abandona-os a meio do caminho.
— Aoh! Ainda não abandonei ninguém. Pensa tam¬bém que seria ridículo, miss Paris? — acrescentou, voltando-se para Geneva, sentada diante dele.
— É claro! Gene pensa como eu, mas para não lhe dizer coisas desagradáveis, prefere calar-se — afirmou Maè, imperturbável. — Ainda há pouco, antes dos senho¬res entrarem no automóvel, ela me dizia que lhe custaria muito ser alvo da troça dos outros.
— Que me importa o que os outros dizem! — comen¬tou Tedder com voz pastosa. — Por mim, faço o que fizer Seymour. Os outros não me interessam.
Geoffroy deu tão forte palmada no ombro do amigo que quase o fez cair do banco.
— Hello! És um rapaz às direitas, meu velho!
Logo em seguida, porém, retomou a sua posição atenta, inclinado para Geneva. Estendeu o braço, agar¬rou-lhe na mão e conservou-a entre as suas.
— Ficará satisfeita se casar comigo, querida?
Gene estremeceu, um tanto desorientada com esta pergunta directa.
Maè quis intervir, mas William Tedder pousou um dedo nos lábios da tagarela, impedindo-a de falar.
— “Chut”! Quando se trata de amor, nunca deve¬mos interferir no que não nos diz respeito.
— Então, miss Paris, que responde? — insistiu Sey¬mour.
Geneva ergueu para ele os lindos olhos negros.
Evocava, naquele momento, a predição que uma velha cigana lhe fizera numa estrada da Normandia:
“Aceite aquele que a Providência colocar inespe¬radamente no seu caminho!...”.
“Meu Deus! — pensou. — Será possível que seja este rapaz tão superior, tão distinto, o marido que o Céu me envia? Na verdade, sinto que poderei amá-lo e que todo o meu ser me impele para ele!”.
Entretanto, Geoffroy, cujo olhar não a abandonava um instante, achava estranho aquele silêncio.
— Por que não responde?
Geneva sorriu.
— Porque me sinto muito feliz... O sonho é lindo e tenho medo de acordar.
— Sente-se então satisfeita? Estamos de acordo para este casamento?
— Estamos. Aceito-o de todo o coração.
— É maravilhoso! — comentou ele com seriedade, apertando-lhe a mão. — Amei-a logo que a vi.
Maè suspirou, tranqüilizada.
— Sentimo-nos todos muito felizes e ninguém se arrependerá.
— É evidente — aprovou Tedder.
A viagem foi rápida. A maior parte dos convidados dormitava e só no carro dos ingleses se ouvia a voz de Tedder, entoando uma canção popular, muito em voga em Londres.
Quando desceram à porta do clergyman, Seymour meteu o braço no de Geneva, enlaçou os dedos nos dela, e murmurou muito baixinho:
— Minha querida noivazinha.
Embora tivesse a consciência de que o companheiro não estava completamente em seu juízo, Gene ficou encantada com esta expressão de ternura. Ergueu para ele os seus grandes olhos, numa expressão tímida e interrogadora e, como Seymour a fitasse, sorrindo, corou e sorriu por sua vez.
— Belo! — observou o rapaz, radiante. — É agradá¬vel caminhar assim, de braço dado, não acha, miss Car¬vão?
— Acho — concordou, rindo. — Temos a aparência de duas pessoas muito sérias e correctas.
— Yes! Um inglês é sempre correcto.
No momento de entrarem na sala, Johnny passou junto de Seymour e bateu-lhe no ombro:
— Hello! Velho amigo! A nossa associação conti¬nua? Damos o salto ao mesmo tempo?
— Claro... Até ao conjugo vobis... Eu e miss Antracite. É estupendo! Estou encantado!
E o mais engraçado da história é que o jovem inglês era sincero: nunca se sentira tão feliz!
Quanto a Geneva, conservava-se silenciosa e pensativa e nem sequer parecia ter ouvido as palavras tro¬cadas entre os dois amigos... O homem que havia algu¬mas horas simbolizava para ela um ideal maravilhoso, encontrava-se a seu lado, sorria-lhe, apertava-lhe ter-namente a mão... Nada mais desejava. Estava fascinada e incapaz de reflectir.
A sala de jantar do reverendo, embora vasta, ficou completamente cheia com o turbulento grupo.
— Tens quatro casais de noivos a unir, meu bom Anderson — declarou Johnny Hoover, apertando ener¬gicamente a mão do Pastor, seu amigo.
— Ainda bem! — aprovou este, relanceando pela assistência um olhar indulgente. — Nada mais agradá¬vel para mim do que ver os rapazes estouvados torna¬rem-se homens sérios.
Entretanto, toda aquela mocidade exuberante não conseguia manter a atitude de gravidade adequada às circunstâncias e era em vão que o ministro da igreja arriscava de vez em quando um “chute” discreto, ten¬tando chamá-los à ordem. Ninguém fazia caso e os risos esfuziavam irresistíveis.
Felizmente, Anderson conhecia na perfeição todos aqueles estouvados, que tão bem haviam festejado a quádrupla cerimônia, antes de realizada. Eram exce¬lentes rapazes e o seu único defeito seria talvez amarem os divertimentos acima de tudo. Mas, visto oito dentre eles quererem casar, provava que no fundo a alma era boa.
— Onde estão os futuros esposos? — perguntou, na esperança de restabelecer o silêncio.
Mas, com a pergunta conseguiu simplesmente redo¬brar a confusão. Seguiu-se grande algazarra, uma troca de palavras inúteis antes que o bondoso clergyman con¬seguisse descobrir quem eram os oito candidatos ao matrimônio.
Por fim, os quatro casais alinharam-se diante dele Bastou-lhe rápida olhadela para se convencer de que os noivos não eram os menos toldados da assistência. Esta verificação arrancou-lhe involuntário suspiro. Da a pouco, tentaria fazer-lhes compreender que o casa¬mento é um acto muito sério, do qual depende a felici¬dade de toda a vida.
Naquele momento, indulgente e bondoso, pensava:
“No fim de contas, talvez estes quatro enlaces repre¬sentem o futuro de quatro raparigas. No estado de espí¬rito em que se encontram, se adiasse a cerimônia e não aproveitasse a boa disposição de momento, estariam os noivos dispostos a voltar amanhã?”.
Seymour e Geneva, por acaso, encontravam-se à frente dos outros pares. A fisionomia meiga da fran¬cesa chamou a atenção do reverendo. Qualquer coisa de indefinido a diferençava das outras. Notou a sua palidez e gravidade e teve a impressão de que uma espé-cie de inquietação a atormentava. Das quatro noivas ali reunidas parecia-lhe a menos confiante.
O noivo, pelo contrário, estava muito senhor de si. Com o seu aprumo britânico, o monóculo insolente e porte altivo, dir-se-ia que caminhava para o casamento como quem marcha para uma batalha, corajosamente, numa espécie de desafio.
Além disso, com grande loquacidade, empenhava-se em dar explicações que ninguém lhe exigia.
— A honra de um gentleman não consente que falte à sua palavra... Casarei com o bloco de antracite porque meu tio não tem bastante e ficará encantado quando o receber. Mas exijo que conste desse papel — dizia, referindo-se à dispensa — a declaração de que miss França continuará a ser preta... Não quero ser roubado. Caso com o bloco de carvão e não com um bocado de gesso...
E como este discurso provocasse o riso da assistência, fez pesar sobre eles o olhar acerado como aço e teimou:
— Quero assim!
Nesse momento, Tedder, com a fala ainda mais entaramelada do que a do amigo, julgou ter encontrado argumento convincente para o fazer calar.
— Geoffroy, estás bêbado — disse-lhe em francês. — Cala-te, não sejas tagarela!
— Enganas-te — replicou o outro fleumàticamente. — Um lorde Seymour nunca pode estar bêbado... Nunca! Estou simplesmente embriagado.
Novas gargalhadas ressoaram na sala.
— Portanto — continuou Geoffroy — caso porque pretendo a miss só para mim... Estou embriagado... mas sei o que faço... Está dito!
O padre abriu a boca, prestes a opor-se ao casa¬mento. Seria lícito realizá-lo e aceitar o compromisso de um homem naquele estado? Mas o seu olhar encon¬trou o rosto pálido de Geneva. Daquele grupo de estouvados que encaravam tudo a rir, era a única que conservava o seu ar de seriedade, quase triste. E Anderson, coração simples e generoso, atribuiu essa tristeza a motivos muito longe da verdade.
Na sua ingenuidade evangélica, poderia passar-lhe pela cabeça a idéia de que os noivos mal se conheciam e que poucas horas antes eram ainda dois estranhos um para o outro? O facto de terem ambos nascido na Europa — o que não deixaria de notar quando lesse os seus documentos de identidade — não iria confirmar a suposição de que Seymour e Geneva vinham regula¬rizar na América uma união difícil de realizar no Velho Continente?
E, para tranqüilizar a gentil noivazinha de olhos tris¬tes, para fazer desabrochar um sorriso na boca melan¬cólica, declarou, indicando-os:
— Venham. Vou começar pelos senhores.
As dispensas foram preenchidas rapidamente. Não foi exigido aos cônjuges qualquer juramento. A sua palavra de honra e declarações foram suficientes. Na América, as leis, sobre esse ponto, são tão severas que as fraudes ou falsas declarações sobre o estado civil são punidas com trabalhos forçados e, como conseqüência, é raro dar-se um caso desses.
Um incidente surgiu que poderia ter obstado ao casamento de Seymour: a falta de aliança. Felizmente o inglês trazia no dedo um anel brasonado. De principio, opôs certa relutância em separar-se dele, mas quando Hoover lhe explicou que era indispensável, apressou-se a metê-lo no dedo de Geneva, muito comovida naquele momento.
Até ali, Gene não conseguira ainda convencer-se de ¬que aquele casamento realizado às três horas da noite, com um noivo e convidados mais ou menos embriagados, pudesse ser tomado a sério. Mas o anel que Seymour lhe meteu no dedo impressionou-a profundamente.
— Não o perca — recomendou este em voz alta. — É uma jóia de família.
— Não o perderei — garantiu.
Mas a reflexão do rapaz teve o condão de a arran¬car à espécie de encantamento em que mergulhara.
“Quando acabar a cerimônia pedir-me-á para lhe restituir o anel” — pensava.
E, daí em diante, encarou o que se desenrolava como simples comédia.
Tudo isto não impedia, porém, que Geneva de Rouvaux estivesse legalmente unida a Geoffroy Seymour, Par de Inglaterra, a quem não conhecia algumas horas antes e que pisara pela primeira vez o solo de Nova Iorque nessa mesma tarde.
Os outros três casamentos realizaram-se sem inci¬dentes, e, decorrido um quarto de hora, o clergyman acompanhava à porta os quatro casais e os seus convi¬dados.
O grupo foi levar Suzannah ao palacete Hoover, pois a filha de Honorato Murphy achara muito exciting pas¬sar as primeiras horas da sua vida de casada debaixo do tecto do adversário do pai.
Nos aposentos de Johnny saltaram ainda as rolhas de algumas garrafas de champanhe, o que levou a ani¬mação ao auge, e a algazarra nessa ocasião tornou-se verdadeiramente diabólica.
A certa altura alguém lembrou que a cerimônia do casamento de Seymour não se completara, pois o inglês não havia ainda beijado a sua jovem esposa diante de todos, conforme as regras estabelecidas.
— O beijo! Beije sua mulher! — gritavam em coro.
Geoffroy abriu muito os olhos, mas ficou impassível, como se os gritos não fossem com ele.
Hoover viu-se obrigado a explicar-lhe o que dese¬javam e Geneva fez-se muito corada.
“Seria forçoso prestar-se a mais essa fantasia? Real¬mente, desagradava-lhe em extremo”.
Geoffroy, porém, evitou-lhe o aborrecimento de ter de se recusar.
— No! Beijos, não... pelo menos agora! — declarou com a sua imperturbável firmeza. — Não se beija uma lady Seymour em público.
E, como, apesar dos seus ares altivos, no fundo era tão garoto e malicioso como os outros, acrescentou com um olhar travesso, designando Geneva:
— De resto, tentei fazê-lo há pouco, mas a miss não gosta de beijos!... Oh!
E exprimiu em mímica tão clara o movimento de revolta manifestado, no lavabo, por Gene, que todo o grupo riu com gosto. A própria alvejada, conquanto o seu rubor se acentuasse ao recordar a audácia de Geof¬froy, tomou parte na hilaridade geral.
Quanto a Seymour, encantado pelo êxito obtido, levou mais de cinco minutos a fazer momices, pro¬curando dar a idéia de uma rapariga que recusa dei¬xar-se beijar.
— Muito engraçado é o seu marido, minha querida Geneva — comentou Virgínia Hausser, que chorava de tanto rir. — Não se aborrecerá com ele, decerto.
— É provável — replicou a recém-casada, com for¬çado sorriso. — E muito mais se continuar a ser eu o alvo dos seus gracejos.
Não elevou a voz ao fazer esta reflexão, mas é de crer que Geoffroy tivesse o ouvido muito fino, porque suspendeu imediatamente a brincadeira, demonstrando ter compreendido a censura. Retomando o seu ar calmo e fleumático, não deixou contudo de observar:
— Prevejo que esta lady Seymour virá a ser tão impertinente como as suas antecessoras. Não há dúvida de que fiz uma escolha acertadíssima.
Como é natural, novas gargalhadas se ouviram e as de Geneva não foram as menos sinceras, pois compreendia que, numa ocasião daquelas, não devia ofender-se com o inofensivo humour do marido.
Entretanto, como o dia começava a romper, esva¬ziadas as últimas taças de champanhe, despediram-se dos noivos e cada um entrou no seu carro. Em menos de um quarto de hora o grupo havia dispersado.
Fred Carrol saiu discretamente com Virgínia, e Suzannah despediu-se da amiga, abraçando-a com afectuosa ternura.
— Finalmente, querida Gene, a nossa separação é um facto, visto teres casado também, e é essa a única nuvem que ensombra um dia tão feliz: pensar que nunca mais voltarão as horas agradáveis do passado.
— Não penses no passado, minha amiguinha. Serás ditosa no futuro, tenho a certeza, junto do marido que escolheste. Johnny é um excelente rapaz.
— Ama-me e eu confio em absoluto no seu amor.
Mas Geoffroy, que bocejava escandalosamente, interrompeu as despedidas.
— Estou cansadíssimo. É bom que lady Carvão não se demore muito.
Momentos depois, os dois casais saíam por sua vez.
Tedder e Seymour estavam sozinhos com as esposas.
— Para onde vamos? — perguntou o primeiro.
— Será melhor não nos separarmos — propôs Ge¬neva. — Há só um carro e nenhum de nós gostaria de ir a pé.
— É justo. Para onde querem ir?
— Estão no Hotel Matherland, não é verdade? Pois vamos para lá — decidiu Maé, que lançava expressivas olhadelas a Geneva.
Mais experiente do que esta, julgava mais conve¬niente para os interesses de ambas separar os dois homens.
Geneva, porém, sabia apenas que Suzannah, a sua habitual companheira, a deixara sozinha com o inglês, que lhe dava a impressão de ser terrivelmente obstinado quando uma idéia se lhe metia em cabeça.
Por outro lado, estava fatigadíssima e o seu desejo seria deitar-se quanto antes. O ar da madrugada pro¬duzia-lhe uma espécie de abatimento e o mesmo acon¬tecia com os seus três companheiros.
— Vamos — insistiu.
E, baixinho, para Maè:
— Maè, por favor, não me deixe só com ele. Não conheço Nova Iorque e a esta hora ver-me-ia em sérios embaraços.
— Seja — aceitou a outra — embora ache rematada tolice.
Instalaram-se os quatro no carro. Toda a sua anima¬ção se havia desvanecido. Estavam prostrados e só lhes apetecia descansar.
Geoffroy adormecera encostado ao ombro de Geneva e Tedder, dobrado em dois, ressonava com a cabeça repousando nos joelhos de Maè.
— Desejava dizer-me alguma coisa? — informou-se Geneva, quando percebeu que os dois homens não podiam ouvi-las.
— Em minha opinião seria muito melhor levar o seu marido consigo. Se amanhã acordar no seu quarto não terá outro remédio senão conformar-se com os factos consumados.
A sugestão de Maè ultrapassava os limites admitidos pela condescendência de Geneva e esta protestou:
— É impossível! Bem vê que não posso levar um homem para os aposentos que ocupo no palacete de Honorato Murphy. De resto, não creio que seja conve¬niente separar os dois amigos.
— Porquê?
— Se quando acordarem não estiverem juntos, decerto farão um barulho infernal e só terão um desejo: reunir-se de novo. E, nessa ordem de idéias, pouco se importarão connosco.
— Talvez tenha razão... O argumento não deixa de ser sensato... Teremos de encontrar outra solução.
— Mais tarde! Por agora, só ambiciono uma boa cama. Estou fatigadíssima.
— E, amanhã, Seymour nem se lembrará de que a minha amiga existe.
— É provável e até natural. Sou a primeira a con¬cordar que a pequena cerimônia em casa do padre não basta para criar laços de intimidade entre mim e este desengonçado inglês que tomou o meu ombro por país conquistado.
— Sem-cerimónia de homem embriagado... O outro não procedeu melhor comigo — acrescentou, rindo e apontando Tedder, que dormia a sono solto. — Decerto, julga estar na sua cama... Era de esperar... depois do que beberam...
— Todos nós bebemos de mais. Por mim, tenho a cabeça a andar à roda. Suponho até que esta confusão das festas e casamentos não é mais do que uma ilusão resultante dos vapores do álcool. Amanhã, quando acor¬dar e tudo isto tiver passado, chegarei à conclusão de que felizmente nada ocorreu de extraordinário entre mim e este inglês tão pouco sóbrio.
— Felizmente!... Se pensa assim, admito que rejei¬tasse a minha proposta. Em todo o caso, deve concordar que não podemos abandonar os nossos companheiros, neste estado.
— Evidentemente. Vamos acompanhá-los ao hotel e recomendamos ao porteiro que olhe por eles.
— Não basta. O porteiro limitar-se-á a metê-los no quarto para que não façam barulho e não incomodem os outros hóspedes, e depois deixá-los-á arranjarem-se como puderem. Acha esse modo de proceder correcto, Geneva? Lembre-se de que são nossos maridos!
— Isso ainda está para se ver — retorquiu Gene, aborrecida. — A situação é melindrosa, principalmente para duas raparigas novas. Em resumo, que devemos fazer?
— Acompanhá-los e cuidar deles como compete a duas esposas dedicadas.
— Não fala sério, Maè! Por mim, já estou achando muito maçador este marido que me caiu do céu às quatro horas da manhã. Morro de sono!
E Gene não conseguiu reprimir um bocejo.
— Pelo amor de Deus, não adormeça, Geneva! Esta¬mos quase no Metherland. Atravessamos neste momento o Central-Park. Não vê o arvoredo? Chegou a vez de lhe pedir: não me deixe só!
Gene tentou reagir, mas as pálpebras cerravam-se-lhe a despeito da sua vontade.
— O principal é chegar ao hotel. Felizmente, traze¬mos a certidão do casamento e não oporão dificuldades ã nossa entrada. Acomodá-los-emos num quarto e nós duas instalamo-nos noutro... Depois poderá dormir à sua vontade.
Chegando ao hotel, Maè e Geneva, auxiliadas pelo motorista e pelo porteiro, conseguiram a muito custo tirar os dorminhocos do automóvel, metê-los no elevador e levá-los para o quarto.
Transportados quase em braços, os dois ingleses ofe¬reciam às esposas um espectáculo pouco edificante. Gene notou-o.
— Devemos desculpá-los — respondeu Maè, despreo¬cupada. — Nem todos os dias se celebram quatro casa¬mentos ao mesmo tempo. Cumpria festejá-los condignamente.
Geneva não lhe respondeu. Recordava os casamentos a que assistira em Paris, Não havia banquetes... mas simplesmente um copo-d'água. Os noivos partiam pouco depois da cerimônia sem que os convidados o notassem. Por outro lado, se ao casamento assistissem apenas rapazes e raparigas, se a família e as pessoas de respeito não estivessem presentes para temperar o ardor e as loucuras da mocidade, Geneva não ia garan¬tir que não sucedesse em Paris, ou em qualquer outra capital da Europa, o mesmo que acontecera naquela noite em Nova Iorque.
Tendo decidido deixar dormir os dois homens num quarto enquanto elas se instalariam num outro, as duas recém-casadas desembaraçaram das malas o aposento que iam ocupar, conduzindo-as para aquele onde os maridos se encontravam. Ambos continuavam a ressonar, Tedder estendido no tapete e Seymour numa pol¬trona.
— Já agora — propôs Geneva — levemos até ao fim o nosso papel de esposas dedicadas. Vamos tirar-lhes as peliças e casacas e tentar deitá-los na cama.
Não foi tarefa fácil, conquanto o criado as auxiliasse. Conseguiram sem grandes dificuldades deitar Seymour, mas tiveram de renunciar a fazer o mesmo a Tedder, que teimava em ficar estendido no tapete.
— Se se sente bem, deixemo-lo — decidiu Maè, enervada. — Pelo menos, tem a vantagem de não cair da cama abaixo.
E, um tanto brusca, meteu-lhe uma almofada debaixo da cabeça e lançou-lhe uma manta por cima.
— Pronto! Está acomodado! Como os homens são aborrecidos, quando bebem de mais! — concluiu, enco¬lhendo os ombros.
Sentia-se deveras humilhada com o procedimento de Tedder. Seymour, pelo menos, dormia decentemente no seu leito e a mulher não tinha que se envergonhar. Feria-lhe o amor-próprio ver William estendido no chão como qualquer beberrão ordinário.
Distraindo a atenção do irritante espectáculo, repa¬rou que Geneva se conservava de pé, junto da cama, vendo o marido dormir.
— Está em adoração? — gracejou.
— Não! — respondeu Gene. — Lembrava-me de meu pai. Quando se sentia fatigado de dia e se estendia no divã, para passar pelo sono, nunca deixava de tirar o colarinho e a gravata, talvez porque esses objectos o incomodavam... Vou fazer o mesmo a este pobre dorminhoco.
Libertou Seymour do colarinho e da gravata, tirou-lhe também o relógio de pulso e por fim desabotoou-lhe o colete.
Hesitava.
— O paizinho costumava desapertar os suspensórios... vou desapertar-lhos também.
Com gestos um tanto desastrados, concluiu a ope¬ração e por fim cobriu Seymour com uma manta.
“É a primeira vez que trato assim de um homem! — pensou. — Felizmente, este nunca saberá quem velou por ele”.
E, como o sono já lhe tivesse passado, continuou à cabeceira daquele cuja vida estava unida à sua havia algumas horas.
Entretanto, Maè Smith remexia a mala de Tedder.
— Estou a ver se acho dois pijamas para nós! Não podemos dormir vestidas!... Cá estão!
Mas, ao voltar-se, começou a rir.
— Dir-se-ia que está extasiada com a beleza de Sey¬mour, palavra de honra!
— E, com efeito, não é feio — replicou Gene. — Como não consegui examinar bem o meu marido quando estava acordado, aproveito para fazê-lo agora.
— Se receia não o reconhecer amanhã quando acor¬dar, pode vir deitar-se sossegada. Não fatigue os olhos a fixar as feições de Seymour. Eu saberei muito bem distinguir o meu amado esposo do seu.
Geneva, porém, continuava o seu exame.
“Não é loura -— pensava, anediando a sedosa cabe¬leira de Seymour. — É castanho-dourada... Gosto mais assim... Feições bem vincadas, enérgicas... lábios del¬gados... talvez delgados de mais... queixo voluntarioso... Não deve ser fácil fazê-lo mudar de idéias. E as sobran¬celhas quase unidas... dizem que é indício de egoísmo e de ciúme!”
Vagamente inquieta, prosseguiu o solilóquio:
“Ignoro tudo a seu respeito. Sei apenas que é inglês e com todas as características da raça britânica, da espécie, como dizia o doutor Martel, o médico da tia Armandina: ombros largos, pescoço delgado, pé com¬prido e esguio”.
Nesse momento, o dorminhoco voltou-se e uma das mãos ficou pendida fora do leito.
“Que linda mão! — notou Gene, tomando-a entre as suas. — Fina, bem tratada, dedos afilados... branca e macia como a mão de uma mulher... que nunca conhe¬ceu trabalhos rudes”.
Durante algum tempo ainda, contemplou a mão de Seymour.
“Lamento não saber ler a sina, como a cigana. Veria decerto que também ele estava destinado a fazer um casamento extraordinário... Ele e eu! Será possível que tivéssemos vindo os dois de tão longe para nos encon¬trarmos assim?! E tudo isto será de facto realidade? Eu não entravei a marcha do Destino... Mas como acei¬tará ele, amanhã, este casamento?... E, no entanto, foi a sua vontade que mo impôs”.
Seguindo o curso dos seus pensamentos, ao mesmo tempo afagava, maquinalmente, a mão de Seymour. De súbito, os seus dedos encontraram a ligeira depressão causada no anular pelo uso do anel brasonado, e ao senti-la estremeceu intensamente.
Até ali pudera pensar: “Tudo isto não é mais do que um sonho, uma aventura sem importância a que me deixei arrastar, influenciada não sei bem por que vaga profecia, que exigia de mim completa submissão ao Destino”.
Mas o facto material, impossível de negar, do anel que passara do dedo masculino para o seu, obrigava-a a encarar a verdade sem subterfúgios: presentemente estava casada, unida a Seymour para sempre.
E, ao recordar a espécie de deslumbramento que a fizera vibrar desde o primeiro momento em que o seu olhar pousara em Geoffroy, uma convicção inabalável nasceu no seu espírito e impôs-se-lhe como um dogma:
“Era ele que a Sorte me reservava. “O nosso instinto sobressalta-se, todo o nosso ser palpita quando nos encontramos em presença daquele que a Providência nos destina” — dissera a cigana. Mesmo que não tivesse bebido uma gota de vinho, tenho a certeza de que, desde o primeiro momento, Seymour exerceu sobre mim vio¬lenta fascinação, roubando-me toda a faculdade de agir. Aceitei o casamento convencida de que o fazia para não ser desmancha-prazeres, mas, se tivesse tentado resistir, creio que nunca o conseguiria. Todo o meu ser me impelia, de facto, para este desconhecido e seria impos¬sível lutar contra a atracção irresistível que me arras¬tava para ele”.
Num impulso espontâneo, levou a mão de Seymour aos lábios e beijou por três vezes o vinco deixado pelo anel.
— Sinto-me feliz, muito feliz — balbuciou, fremente de comoção. — Sou sua mulher e... amo-o. Deus seja bendito por ter unido a sua vida à minha!
Quando decidiu deitar-se e entrou no quarto vizi¬nho, Mae dormia a sono solto. Gene, porém, com a cabeça em fogo, um tropel de pensamentos desencadeando-se-lhe no cérebro, só de manhã conseguiu imi¬tá-la, mas com um sono inquieto, povoado de sonhos estranhos onde se confundiam alegrias e vagas inquie¬tações.
— Terá a bondade de me explicar o que se passou esta noite, minha senhora? — perguntou Seymour em tom hostil. — Que singular casamento é este, cuja certi¬dão encontrei na algibeira hoje de manhã? E como se dá o caso de, tendo eu vindo assistir ao casamento de Johnny, me encontrar de um momento para o outro unido a uma mulher que não conheço? É espantoso e incompreensível! Que diabo de cilada me armaram neste maldito país onde tudo é diferente dos outros?
Estupefacta com os termos empregados e ferida no seu amor-próprio de americana, Suzannah encarou Sey¬mour sem amenidade. Este viera surpreender os esposos Hoover quando faziam os seus preparativos para a viagem de núpcias.
O inglês estava nervoso e o rosto contraía-se sob o império de íntima cólera, que em vão tentava repri¬mir. Falava com ares agressivos, que a recém-casada não podia tolerar.
— Realmente, Seymour, não se lembra de coisa alguma? — indagou em tom irônico.
— Nada. Tentei interrogar Tedder, mas, ao despertar, este ficou tão assombrado como eu ao verificar que estava também casado com uma americana.
— No entanto, a explicação é simples — replicou Suzannah secamente. — Quando Johnny e eu nos dispúnhamos a seguir para casa do reverendo Anderson, você declarou que não abandonaria o seu amigo em tão solene momento e desejava casar também. Ao vê-lo em tais disposições, Tedder quis imitá-lo e ambos indicaram a mulher que pretendiam desposar.
— Estava completamente embriagado e alguém me arrastou a esse enlace! — protestou Seymour.
— Johnny ficou encantado com a idéia, que, de resto, todos aprovaram. Mas posso afirmar que ninguém exer¬ceu qualquer pressão sobre a sua vontade.
— Eu bem sei que Johnny seria incapaz de o fazer — protestou o inglês com vivacidade. — Foi essa rapa¬riga cujo nome está ligado ao meu. Aproveitou a minha inconsciência para casar.
— Enganas-te! — atalhou Hoover. — Geneva nem sequer estava presente quando declaraste que pretendias desposá-la.
— É inadmissível! Não é a primeira vez que perco um pouco a cabeça e bebo de mais. Confesso que, nesse estado, costumo praticar algumas excentricidades, mas nunca me poderia atravessar o cérebro idéia tão disparatada, se não ma sugerissem. Foi essa mulher que se insinuou e me roubou a energia para lhe resistir.
— Labora num erro, juro-lhe — protestou Suzannah com veemência e deveras indignada por Seymour atri¬buir tão baixas intenções a Geneva.
E explicou:
— Depois de ter declarado que escolhia Geneva, você foi procurá-la ao vestiário no intuito de lhe comu¬nicar a sua decisão... Segundo ela própria me contou depois, no primeiro momento nem sequer compreendeu bem as suas pretensões e fui eu quem lhe disse que se tratava de um casamento.
— Casamento que ela se apressou a aceitar, é claro! — ironizou Geoffroy com certa aspereza na voz.
— E por que motivo o recusaria? — explicou Suzannah no mesmo tom. — Você é rico, nobre e bonito rapaz. Qualquer rapariga procederia do mesmo modo, no seu lugar.
— Evidentemente! A presa era de apetecer! O que eu não compreendo é como me deixei dominar a tal ponto! — prosseguiu. — É fantástico, estupendo, inacre¬ditável! Absolutamente em contradição com a concepção inglesa do casamento. No meu País, decerto não o ignora, o tempo de noivado prolongase por muitos anos e reflectimos sempre antes de declararmos à mulher que pretendemos casar com ela... muito principalmente no meio aristocrático.
Johnny bateu amigavelmente no ombro de Geoffroy.
— Sendo assim, meu amigo — comentou, cordial — teremos de nos convencer de que sentiste nessa noite uma paixão dominadora e irresistível.
O jovem lorde sobressaltou-se como se o americano o tivesse acusado de um acto desonroso.
— Nunca! — protestou com violência. — Nunca! Eu apaixonar-me! Ainda se se tratasse de um inexperiente que pela primeira vez sai debaixo das vistas dos papás. Mas eu, que...
Calou-se, constrangido pela presença de Suzannah.
— Não — prosseguiu, mais calmo. — Ponhamos de parte essa hipótese. Admitamos a embriaguez, a fanta¬sia de querer imitar Johnny... instigado, é claro, por sugestões estranhas, e julgo que é suficiente. Por motivos que desconheço, fui levado a fazer uma coisa que repudio e vou anular quanto antes.
— Vai anular? O quê?
— Este estúpido casamento. Hoje mesmo consulta¬rei um advogado a fim de que fique desde já estabe¬lecido que coisa alguma existe de comum entre mim e essa mulher.
— Você não fará isso, Geoffroy!
— Quem mo impedirá? — chasqueou o inglês.
— O escândalo... E depois... você é um gentleman, Seymour. Não seria honroso da sua parte proceder assim com uma rapariga honesta e leal.
— Acho-lhe imensa graça, creia! Essa rapariga, honesta e leal, como lhe chama, não hesitou em apro¬veitar o meu estado anormal para se apropriar do meu nome. E exige que tenha consideração por ela?
— Já lhe afirmei que a responsabilidade deste casa¬mento é toda sua — insistiu Suzannah, que começava a enervar-se. — Geneva não pediu... nem propôs nada... limitou-se a aceitar.
— Foi o bastante, ou antes, foi demasiado.
— Não, não é o bastante para você fazer recair sobre ela todas as culpas. A iniciativa foi sua, obrigou-a a submeter-se à sua vontade e, portanto, não é admissível nem justo que a torne responsável pelas tolices que você praticou.
Johnny, um tanto aborrecido pelo caminho que a discussão tomava, aproximou-se da mulher.
— Não te exaltes assim, querida Suzy. Seymour é incapaz de prejudicar alguém. Podes estar certa de que procederá neste assunto com o máximo da lealdade.
— Não me parece muito disposto a isso. Um homem deve tomar sempre a responsabilidade dos seus actos. Se Seymour, estando embriagado, tivesse jogado e per¬dido, não hesitaria em saldar a dívida embora ficasse arruinado, sem evocar a sua embriaguez como pretexto para se eximir ao pagamento. Mas como se trata de uma fraca rapariga, não se importa de a prejudicar, e só pensa sair airosamente da aventura.
— Enganas-te, Suzy! Seymour sabe muito bem que terá de dar à tua amiga uma indemnização que a com¬pense da separação que exige dela. Os interesses de Geneva serão salvaguardados, fica certa.
Suzannah não teve tempo para protestar contra o novo prisma por que encaravam o prejuízo feito a Geneva. Ao ouvir falar na indemnização pecuniária que devia dar à sua esposa de poucas horas, Geoffroy pôs-se de pé, exaltado:
— Não, isso não! Não pensem nisso!... Não sou tão tolo que caia no laço... A armadilha foi bem armada, mas não me deixo apanhar! Eu estava embriagado e o casamento em semelhantes condições não é válido. Embora tenha de recorrer aos tribunais, pôr em movimento toda a justiça americana, hei-de sair desta aventura sem ter aberto os cordões à bolsa. Proceder doutra forma seria encorajar todas as espertalhonas que tentam colher nas suas redes os homens ricos. Por questão de princípios não me deixarei roubar.
Desta vez, Johnny não defendeu o amigo, relanceando-lhe até um olhar carregado de censuras. A forma de pensar de Seymour feria o seu bom-senso de americano e nesse ponto partilhava em absoluto a opinião da esposa. Um homem de bem não prejudica uma mulher sem se compensar por qualquer forma... Suzy tinha razão: o inglês devia considerar o casamento, mesmo estando embriagado, como resultante da sua vontade... Na vés¬pera realizara uma operação que no dia seguinte lhe desagradara. Era como se tivesse jogado e perdido: só lhe restava pagar.
— Hás-de acabar por reflectir, Seymour — observou com ponderação. — Não se trata de princípios, mas de probidade. Quando estiveres mais calmo concluirás que temos razão.
— Já reflecti! Não me deixo roubar!
— Geoffroy, deixe-me explicar-lhe. Você não está a ver bem o assunto — insistiu Suzannah. — A sua maneira de proceder é contrária a todos os usos americanos. Entre nós casa-se com facilidade, mas o divórcio tam¬bém não é difícil... Portanto, torna-se inútil abandonar assim sua esposa sem tentar viver com ela, tanto mais que ontem demonstrou, por todas as formas, que a amava. É indecoroso e indigno!
— Indigno?!
— Exactamente. Geneva agradou-lhe, casou com ela. Está muito bem, ninguém tem nada com isso. Hoje mudou de opinião e declara: “Não estava em meu juízo! Não quero reconhecer esse casamento!” Não é razão bastante.
— Que hei-de fazer, não me dirá?
— Qualquer coisa de menos injurioso para a minha amiga. Se tem facilidade em se divorciar, não precisa de abandonar sua mulher, só porque pretende eximir-se a dar-lhe uma indemnização.
Mais uma vez Johnny interveio para defender Seymour, que nunca esperara ser censurado com tanta severidade.
— Lembra-te de que Geoffroy é inglês e encara o assunto debaixo de um ponto de vista diferente do nosso. Julga mais honroso para Geneva anular um casamento que não chegou a realizar-se do que recorrer ao divórcio... É admissível.
— Bem sei — replicou a filha do milionário. — Vivi dois anos na Europa e conheço bem todos os seus estú¬pidos preconceitos. Todavia, como Seymour casou na América, terá de pensar e proceder como nós.
— Quer dizer, devo viver com minha mulher en¬quanto permanecer aqui, e abandoná-la quando regres¬sar ao meu país, não é isso?
— Ou levá-la consigo — concluiu Suzannah, melindrada pela forma pouco cavalheiresca como Seymour tratava as mulheres em geral.
— Não, não e não! Mantenho a minha maneira de pensar sobre esse casamento. E, para mais, neste momento não posso nem quero prender-me! Vou ime¬diatamente consultar um advogado para o anular! Se tiver de pagar indemnização, pagá-la-ei, mas espero que, ao reconhecerem a minha boa fé, não me obriga¬rão a fazê-lo.
— A sua boa fé? — repetiu Suzannah, sarcástica. — Será difícil prová-la. À noite gostou de uma mulher, casou com ela; no dia seguinte, satisfeito o capricho, só pensa em pô-la de lado!... É isso que chama boa fé?
— Perdão! — protestou o inglês. — Não satisfiz capricho algum.
— Você não estava em seu juízo, para poder afir¬mar uma coisa dessas! Ninguém acreditará, nem os pró¬prios juizes, que você respeitou sua mulher! Além disso, julgo o argumento escabroso para ser invocado no tri¬bunal.
Johnny havia momentos já que fixava o amigo com malicioso sorriso.
— Aí está um assunto que vai ser um maná para os jornais! — comentou, enchendo o cachimbo.
Seymour sobressaltou-se.
— Que pretendes dizer com isso? Maná, porquê?
— Têm com que entreter a curiosidade do público durante muitas semanas. Começarão por entrevistar todos os que de perto ou de longe se encontraram envolvidos na nossa festazinha de ontem à noite. Esmiuçando pormenores, com comentários e retratos, o assunto dará que fazer a todos os jornais americanos e, como per¬tences à alta sociedade inglesa, melhor ainda. Procura¬rão conhecer o teu passado, comentarão todos os teus gestos e palavras. Conforme a opinião política dos jor¬nais e a forma como tratares os respectivos repórteres, uns classificar-te-ão de belo rapaz, outros chamar-te-ão um monstro... E é preferível submeteres-te de boa vontade aos interrogatórios, evitando desmenti-los, a provocares a cólera dos malditos repórteres, que te arra¬sarão nos seus endiabrados artigos.
— Estás certo do que afirmas ou pretendes assus¬tar-me?
— Nem por sombras! Não é a primeira vez que estes casos se dão! Mas não vejo motivos para te preocupares. Aceita corajosamente a indiscrição dos jornais. Talvez não te maltratem muito... se conseguires impres¬sioná-los a teu favor... Um jovem inglês, rico e nobre, vítima de uma aventureira, que abusou da sua ingenui¬dade... É para comover a imprensa do mundo inteiro, de norte a sul.
Johnny disse tudo isto com um ar tão natural que Seymour, preocupado com a desanimadora perspectiva que o amigo lhe fazia entrever, não atribuiu grande importância a ironia expressa nas palavras.
— É possível que os jornais se intrometam em assun¬tos tão delicados? — perguntou, duvidoso.
— O casamento é, de facto, assunto particular e íntimo, mas, quando passa a ser discutido pelos tribu¬nais, torna-se do domínio público... Uma das censuras que apresentas é a forma como na América facilitam o casamento. É uma tese a discutir e que despertará o interesse geral. A tua aventura vai conquistar tanta cele¬bridade como a frase atribuída ao presidente Roosevelt, colocando as fronteiras da América nas margens do Reno. Serás o herói do dia e o teu retrato aparecerá em todos os jornais sonoros exibidos no écran. E, a meu ver, há com efeito, no processo que desejas levar ao tribunal, assunto interessantíssimo e esplêndida ocasião para se debaterem as mais discutidas opiniões. Quando o Mundo inteiro tiver discutido os teus argumentos, serás um homem célebre, o teu nome universalmente conhe¬cido.
— Vai para o diabo com a tal celebridade! — voci¬ferou Seymour. — Vocês, na América, desconhecem em absoluto o self-consciousness.
(Espécie de pudor ou timidez que faz morrer de vergonha a pessoa que chama sobre si as atenções do público).
E, completamente desorientado, rubro de cólera, dei¬xou-se cair numa poltrona.
— O meu nome e a minha pessoa tornados alvo de troça e comentados por todos os imbecis deste mundo! — proferiu, com desespero. — Isto é um beco sem saída! Se exijo que me façam justiça serei coberto de ridículo!
— Sinto-me deveras penalizado, Geoffroy — descul¬pou-se Johnny. — Não devia ter falado... O mal, no fim de contas, talvez não seja tão grande como receias. As campanhas da Imprensa têm o seu lado bom e...
— Cala-te, por quem és! Não acrescentes mais nada... Já chega. Não ignoro o que são os jornais... Em seguida a um caso desses, poderia considerar-me um homem inutilizado, sob o ponto de vista mundano.
— E depois não vá também atribuir a Geneva as culpas do escândalo... — acrescentou Suzannah. — A responsabilidade será toda sua.
— Seja! Estou convencido! Um processo é impossí¬vel... Sou forçado a escolher outra solução... Quem é a sua amiga? No fim de contas, de todas as mulheres que ontem nos rodeavam, qual delas desposei?
— A que estava à sua direita.
— Recordo-me! A moreninha! Uma parisiense, se não me engano... E quem é essa mulher importada de França? — perguntou com supremo desdém.
— Uma pequena encantadora, minha companheira no convento de Versalhes. Órfã de mãe e, tendo per¬dido a tia que olhava por ela, viu-se obrigada a sair de casa, pois era um obstáculo ao segundo casamento do pai. Quando abandonei a Europa trouxe-a comigo e posso assegurar-lhe que possui o coração mais dedi¬cado que conheço. A minha amizade por ela é profunda e sincera e quando esta noite você a escolheu fiquei radiante, não só porque esse casamento a reintegrava no meio requintado onde nascera, como, em minha opinião, era ela a única mulher, das que se achavam presentes, cuja educação e caracter estavam em harmonia com a situação de você.
— É pobre, segundo depreendo?
— Como acabei de lhe dizer, o pai tornou a casar, e Geneva, profundamente magoada com a intrusão dessa estranha que a expulsou do seu lar, podendo exigir a parte que lhe cabia da herança materna, levada pelo seu orgulho, nada quis.
— Em resumo, trabalhava para viver — concluiu Seymour, um tudo-nada desprezador.
— Meu pai confiou-lhe a missão de velar por mim — emendou Suzy, irritada com o tom desdenhoso do seu interlocutor. — Graças a ela nunca pratiquei certas excentricidades muito vulgares nas filhas de milionários, como eu... e Johnny muitas vezes me felicitou pela minha conduta reservada.
— Não posso deixar de confirmar tudo quanto aca¬bas de dizer de Geneva. É uma rapariga encantadora e distinta, séria e leal, garanto-te, Geoffroy.
Seymour, sempre calado, parecia absorvido em sérias reflexões. Por fim, as perguntas recomeçaram.
— E Mae Smith, a mulher de Tedder, quem é ela?
— Mae? — respondeu Suzannah, atrapalhada. — Boa rapariga, talvez um pouco estouvada. O pai era riquís¬simo, mas quando morreu havia perdido mais de metade da sua fortuna. Habituada a uma vida larga e sem restrições, Mae em breve dissipou o que restava... Decidida e resoluta, fez-se artista de cinema... Mas, pre-sentemente, vive com uma tia, rica também, que a sustenta. O pequeno rendimento salvo do naufrágio che¬ga-lhe para se vestir. Todos nós gostamos muito dela porque é muito amiga de fazer vontades e tem exce¬lente caracter. William Tedder podia ter escolhido muito pior.
— E todos os inconvenientes que me apontou no caso da sua amiga se repetem com ela, não é assim?
— Sim... talvez com uma diferença... Mae é mais prática do que Geneva... Se Tedder se dispuser a anu¬lar o casamento, saberá obrigá-lo a dar-lhe considerá¬vel indemnização.
— Naturalmente, como a outra... a francesa.
— Não sei se deva elucidá-lo nesse ponto — decla¬rou Suzy com certa reserva. — Será talvez dar-lhe armas contra ela e prejudicá-la, se a repudiar...
— Se me falar com franqueza, nada terá a recear de mim. Pelo contrário, julgo preferível que neste assunto me esclareça por completo, salvo se na vida da sua amiga existem... coisas inconfessáveis.
— Na vida de Geneva e no seu caracter tudo é claro e puro. É por si que receio, Seymour... Pela sua maneira de falar depreendo que é prático, tão prático como os nossos businessmen, que, em questões de dinheiro, não conhecem escrúpulos.
— Obrigado pela sua apreciação — retorquiu o inglês, ofendido e com voz áspera. — Supunha nunca lhe ter dado motivos para me julgar assim.
— Seymour é um gentleman em toda a acepção do termo — protestou Johnny.
— Bem sei... mas as suas palavras de há pouco deixaram-me assombrada.
— Dizia então a respeito de Geneva?... Que nome tão esquisito... Nunca me habituarei a ele.
— Nada tem de extraordinário... é o da madrinha, uma condessa italiana... Significa Genoveva.
— Pode ser. Em todo o caso, não o conhecia. Mas, em sua opinião, que fará ela se eu me recusar a reconhe¬cer a validade deste casamento?
— Pois bem! — decidiu-se a responder Suzy. — Gene é muito altiva... Se a repudiar estou certa de que não dará um passo para o fazer modificar a sua decisão... Conservar-se-a a distância e... deixando-lhe a liberdade de proceder conforme lhe apetecer.
— É uma atitude muito cômoda para mim.
— Decerto — retorquiu Suzannah, enervada com a impassibilidade do inglês. — Se lhe é indiferente que uma mulher o cubra de desprezo.
Um sorriso de desdém contraiu os lábios de Seymour.
— Se é esse o único obstáculo que me opõe a sua amiga, não me impedirá de anular o casamento.
— Sim!? — disparatou a filha de Honorato Murphy, que perdia a paciência. — Pois anule o casamento se é esse o seu desejo e se a palavra gentleman não passa de uma máscara que arranca quando os seus interesses estão em jogo... Abandone Geneva, destrua a sua reputação até, pode fazê-lo, visto ela não se defender. Mas fique sabendo que eu, sua amiga, não tenho o seu caracter nobre e cavalheiresco. Desencadearei contra si a curiosidade da Imprensa e a indignação das minhas amigas, que ontem assistiram à nossa festa. Todas nós lhe tornaremos a vida tão difícil nos Estados Unidos que nunca mais se atreverá a pôr aqui os pés.
Seymour suportou sem pestanejar a tempestade que lhe desabava sobre a cabeça e dir-se-ia até que lhe achava graça, pois leve sorriso lhe descerrou os lábios.
— Apre! — comentou, zombeteiro, quando Suzy se calou. — Não se pode dizer que a sua amiga francesa não tenha em si uma defensora corajosa.
— Porque o merece, simplesmente.
Johnny, por seu lado, não sabia como intervir. Sey¬mour, que ele sempre considerara como o homem mais leal e mais correcto que conhecera em Inglaterra, des¬concertava-o com os seus modos sarcásticos e desdenhosos. Por outro lado, a exaltação de Suzannah contri¬buía para o aborrecer, conquanto a mulher, como boa americana, não se importasse de dizer em voz alta o que pensava de si para si, a despeito da sincera ami¬zade que o unia ao amigo.
Como um silêncio pesado se seguisse à última réplica de Suzannah, o marido, que passeava de cá para lá no quarto, parou junto dela.
— Minha Suzy — pediu com ternura — não estejas a afligir-te por causa da tua amiga. Juro-te que, haja o que houver, Geneva poderá contar comigo tanto como contigo... Mas eu conheço Seymour o bastante para saber que deseja a todo o custo evitar o escândalo. Tudo se há-de arranjar, verás.
— É evidente, visto eu, se não quiser cair no ridículo, ter de adoptar o caminho do fair play.
— Suzannah apenas exige que dispenses à amiga as atenções a que tem direito. Ouviste, querida? — insistiu, dirigindo-se à mulher, que chorava com a cabeça apoiada no seu ombro. — Seymour será correcto e poupará Geneva. Vamos, reconcilia-te com ele. A sua irritação é bem legítima, afinal. Em tudo isto não quis por forma alguma censurar os costumes americanos... Trata-se de todo o seu futuro e era natural que se insurgisse contra este casamento realizado sob o império da embriaguez e com uma desconhecida.
— Concordo — soluçou Suzy — mas tudo isto é tão desagradável para a minha pobre Gene! Na Europa jul¬gam sempre com severidade as mulheres abandonadas... Que fatalidade! Ainda esta semana um homem rico, tão rico como o teu pai ou o meu, deveria pedir a Geneva para ser sua esposa... e agora está tudo perdido, Johnny!
— Que está dizendo? — interveio Seymour, que havia escutado, impassível e arrogante, as lamenta¬ções de Suzannah. — Um homem muito rico pretendia desposar a sua amiga?
— Exactamente — afirmou Suzannah, que seguindo a idéia exposta a Geneva, escrevera ao pai nesse sentido. — E vai, sem dúvida, ficar muito desapontado quando souber que o seu lugar foi tomado.
— E a sua amiga estava ao facto desse projecto de casamento? — perguntou Geoffroy com ar duvidoso.
— Ignorava-o! — elucidou a filha de Honorato Murphy, sempre persuadida de que a sua combinação matri¬monial teria obtido o maior êxito. — De resto, mesmo que o conhecesse nada evitaria. Geneva é muito sentimental e você bastante simpático para que ela resistisse às suas declarações entusiásticas.
O inglês fez um trejeito de contrariedade. O papel de D. Juan que Suzannah lhe atribuía horripilava-o. Admitia que na inconsciência de um cérebro toldado pudesse ter praticado os maiores disparates, mas não conseguia habituar-se à idéia de que representara a comédia de homem apaixonado.
— O mais para lamentar nesta história — confessou com amargura — é que em Inglaterra ficou uma menina a quem esperava desposar. Lamenta a sua amiga, mas pense bem na minha situação: com o meu nome e cate¬goria, é natural que arquitectasse projectos de futuro adaptados ao meu caracter... Em resumo, abria-se diante de mim a perspectiva de um futuro feliz, em harmonia com as minhas aspirações. E bastou vir a Nova Iorque, beber mais alguns cocktails além do que era permitido, em honra de um amigo que se casava, e todas as minhas esperanças ruriam. Destruí a minha vida só porque, inconscientemente, dei o meu nome a uma desconhecida, talvez uma aventureira.
— Essa hipótese não pode aplicar-se a Geneva.
— Seja. A sua amiga é respeitável e honesta, mas... não a amo e, o que é ainda pior, amo outra. Outra que nunca me perdoará este estúpido casamento, mesmo que eu conseguisse anulá-lo e lhe assegurasse que havia sido vítima de terrível fatalidade.
Tão profunda era a melancolia que vibrava na voz do jovem lorde que Suzannah, apesar de não ser uma sentimental, se aproximou dele e lhe estendeu a mão num gesto espontâneo.
— Não desanime. Tudo se há-de conciliar, verá... Não fale em fatalidade. Pense antes que quanto acon¬teceu estava escrito no livro do Destino e não havia forças humanas capazes de o modificar.
— Um homem tem sempre o direito de escolher a mulher com quem casa e eu não escolhi esta.
— Tem a certeza disso? Posso afirmar-lhe o contrá¬rio. Não a abandonou um minuto em toda a noite, na presença do padre apertava-lhe ternamente o braço e se ela manifestasse o desejo de lhe resistir, creio bem que você não lho teria consentido.
— É inacreditável! — resmungou Seymour. — Tinha perdido de todo a cabeça, com certeza! O Destino pre¬gou-me tremenda partida.
— Os desígnios de Deus são impenetráveis, Sey¬mour!
— De Deus! — protestou com amargo sorriso. — Chame-lhe antes de Satanás!... Enfim, meus amigos, vou deixá-los! Aproxima-se a hora da partida.
— Para onde vai?
— Para Oklahoma, com Tedder, que deve estar à minha espera no aeródromo.
— Como encarou o seu amigo o casamento?
— Também não compreende uma palavra a esse res¬peito. Ouvi-o praguejar e barafustar com Mae Smith e quase tenho a certeza de que a esta hora, para esque¬cer o desagradável incidente, já absorveu, pelo menos, uma garrafa de whisky e vou encontrá-lo quase tão bêbado como ontem à noite.
— É aborrecido, isso! — comentou Suzy, desolada. Por muito que tentasse não conseguia compreender a revolta dos dois ingleses. Na América um homem nunca perde o self-controle e arrosta sempre com as conseqüências dos seus actos.
— Finalmente, o que decidiu? — informou-se, desa¬nimada por ter pedido e insistido tanto sem nada obter. — Leva Geneva consigo?
— Que idéia! Não me sinto com coragem para a ter a meu lado neste momento! Além disso, o lugar de uma mulher não é naquele meio selvagem e sem conforto. Partirei sozinho.
— Avisou-a da sua partida, sem dúvida?
— Não. Abandonei o Metherland sem a ver... Nada tinha a dizer-lhe.
Nesse momento, porém, sentiu pesar sobre si o olhar dos dois americanos, um olhar carregado de censuras, e compreendeu que não podia partir sem tomar uma resolução. Naquele país de homens viris e rudes não se admitiam hesitações para com essa mulher que tinha todo o direito a esperar dele protecção e respeito.
— Tem aí papel de carta? — perguntou: — Quero escrever à sua amiga.
Suzannah apressou-se a dar-lhe o que pedia. Rapi¬damente, em caracteres firmes e orgulhosos, rabiscou algumas palavras para Geneva. Quando acabou, releu e passou a carta à esposa do amigo.
— Isto que faço é em sua intenção. Não quero ouvi-la dizer que apelou em vão para a minha generosidade. Por outro lado, declarando-me que a sua amiga não se defenderia, tirou-me o direito de a atacar. Preferia ter de defrontar-me com uma adversária como Mae Smith, com unhas e dentes bem afiados, pronta a retribuir golpe por golpe. Seria mais interessante do que essa francesa glacial e altiva, usando o desdém como única arma de defesa... É precisamente o tipo de mulher que sempre detestei.
— Porque sabe opor à sua fleuma imperturbável uma atitude calma e firme, talvez.
— Não é isso. Mulheres assim dão-me a impressão de que desprezam os homens que as rodeiam...
Suzannah começou a rir.
— Minha pobre Geneva! Que opinião forma a seu respeito! Ela que é toda indulgência e bondade!
— Nesse caso conformar-se-á com a minha carta... Leia, peço-lhe.
A recém-casada, pensativa, fitou o rosto pálido de Seymour, petrificado numa expressão rígida e de dureza inexprimível. Em seguida leu o seguinte:
Minha senhora
A estúpida aventura a que fui arrastado esta noite deixou-me completamente assombrado e desejo que esta história seja sufocada sem escândalo e sem que o meu nome sirva de alvo a comentários e molestos do elemento britânico de Nova Iorque.
Conto com a sua boa vontade para me ajudar... Regresse à Europa... para França ou, de preferencia, para Inglaterra. Meu tio, a quem vou escrever contando-lhe o que se passa, recebê-la-á e dirigi-la-á. Consi¬dere o meu desejo como uma ordem e abandone quanto antes a América.
Parto com Tedder e a minha ausência prolongar-se-á por muitos meses. Quando regressar pautarei o meu procedimento pelo seu. Calculo que a minha decisão não seja muito agradável para si, mas é esta a minha vontade e exijo que se cumpra.
Sou com muita consideração
Geoffroy Seymour
— Não deseja que Geneva fique na América? — per¬guntou Suzy, terminada a leitura.
— Não — declarou Seymour, com firmeza. — As mu¬lheres aqui desfrutam grande liberdade e não quero escândalos ou falatórios... nem que o meu nome sirva de capa a excentricidades.
— Renuncio a desvanecer as prevenções que ali¬menta contra Geneva. Quando a conhecer melhor, com¬preenderá quanto foi injusto.
— É possível, mas, por agora, decidi assim.
— E não receia que Geneva lhe cause mais aborre¬cimento em Londres do que ficando aqui, se ela for a mulher que supõe?
— Não há perigo — afirmou Seymour com convicção. — Quando se trata da honra de uma família, os nossos jornais evitam comentários e divulgações escandalosas. E depois, meu tio, a quem vou escrever, avisando-o da sua chegada, saberá evitar que ultrapasse os limites tra¬dicionalistas da nossa casa.
A mulher de Hoover julgou adivinhar os intuitos de Geoffroy. Em Inglaterra poderia separar-se de Geneva com mais facilidade, sem ter de a indemnizar. A pró¬pria família saberia preparar-lhe o caminho para essa solução.
— Não compreendo muito bem as vantagens que advirão para Geneva, se partir para Inglaterra — obser¬vou, de testa franzida.
— Será oficialmente lady Seymour e, pelo menos durante um ano, usará o meu nome! Não julga essa van¬tagem suficiente?
— Um ano?! — repetiu, pensativa. — E depois?
— Depois, veremos. Conforme o procedimento da sua amiga, assim procederei eu. Não podendo levá-la comigo, instalo-a no meu lar com todas as prerrogati¬vas que essa situação oficialmente comporta... No meu regresso combinaremos a solução final desta singular união. O divórcio após um ano de casamento propor¬cionará à sua amiga benefícios morais e materiais que não são para desprezar... Procedo neste assunto como um gentleman. Creio que não discordará da minha opi¬nião.
— Se essa solução não encobre qualquer pensamento reservado, é de facto correcta, e Geneva não deixará de se conformar com ela.
— Quando lhe entregar a minha carta, transmita-lhe de viva voz o que acabo de dizer. Se for leal, sê-lo-ei também. Casei com ela a despeito da minha vontade, mas juro ser um adversário correcto para a mulher que o Destino pôs no meu caminho. Compete-lhe a ela não frustrar os meus intentos.
Logo a seguir, mudando de tom e de atitude, esten¬deu francamente a mão a Suzannah.
— É por sua causa, devido à maneira como você e Johnny falaram, por todo o bem que me disseram dessa desconhecida, que procedo assim. E agora mais uma vez lhes digo adeus. Dêem-me notícias vossas e estejam cer¬tos de que não deixarei de lhes escrever.
Os dois homens trocaram afectuosos apertos de mão.
— Não vás preocupado, Seymour — tranqüilizou o americano, comovido a despeito da sua aparência fria e impassível. — Mademoiselle de Rouvaux saberá hon¬rar o teu nome e é digna de o usar.
O sorriso de Geoffroy foi mais de desesperança do que de ironia.
— Não a amo... e isso é o pior! — confessou. — Mas não se fala mais no assunto. Por agora, o caso está solucionado.
Quando se despediu de Suzannah, esta entregou-lhe duas fotografias.
— Guarde estes dois retratos de Geneva.
— Para quê? — protestou Seymour com um movi¬mento de recuo.
— Não recuse... é simples precaução. Seria ridículo saberem que é casado e não poder sequer mostrar o retrato de sua esposa. E depois — acrescentou com mali¬cioso sorriso — servir-lhe-ão para a reconhecer quando regressar.
— Como queira — condescendeu, encolhendo os om¬bros, como se pretendesse com um gesto afastar para bem longe a desagradável perspectiva.
Abriu a carteira e dispunha-se a guardar as duas fotografias sem as ver, mas arrependeu-se. Com olhar hostil examinou-as, e, por um instante, afigurou-se a Suzy que expressão mais suave lhe adoçava o sem¬blante e um clarão de ternura lhe perpassava pelas pupilas claras. Mas foi uma impressão tão fugitiva que a rapariga não poderia garantir não se ter iludido. Toda¬via, ficou bastante satisfeita por ter oferecido os dois retratos de Gene a Seymour. A fisionomia sorridente e meiga acabaria talvez por destruir as prevenções hostis do seu arrogante marido.
Foi essa a explicação que deu a Johnny quando este a censurou pelo gesto pueril e sentimental.
— Bem sei — respondeu ela. — Os ingleses são frios e têm horror a exteriorizar os seus sentimentos íntimos. Não deixam por isso de professar no mais alto grau o amor da família e do lar. Por que não conseguirá Geneva preencher as necessidades desse coração afectuoso, ape¬sar de tudo?
Para não entristecer a mulher, Johnny absteve-se de lhe repetir as últimas palavras proferidas pelo amigo e essa discrição permitiu a Suzannah encarar o futuro da amiga por prisma mais tranquilizador.
Foi nesse estado de espírito que escreveu duas linhas a Gene, mandando entregar as duas cartas no Serry-Metherland.
Passava das três horas da tarde quando Geneva des¬pertou nesse quarto desconhecido que nem sequer exa¬minara ao deitar-se. A presença de Mae, que ainda na véspera era para ela uma desconhecida, reavivou-lhe a memória.
Como filme projectado na tela, num desenrolar ver¬tiginoso, em poucos minutos reviveu todos os aconteci¬mentos daquelas últimas vinte e quatro horas.
Estranha perturbação, idêntica à que sentira no dia anterior, a avassalou quando evocou o vulto elegante do jovem inglês. Com uma palpitação intensa de todo o seu ser via-o entrar na sala do banquete, alto, apru¬mado, entre Johnny e Suzy.
“Existe neste mundo uma mulher que pode aspirar a ser esposa de semelhante homem” — pensara num grito involuntário de inveja, por essa felicidade imensa que nunca estaria ao alcance de uma rapariga pobre e honesta como ela.
Por circunstâncias imprevistas, que mais se asseme¬lhavam a verdadeiro milagre, o Céu transformara em realidade a sua aspiração impossível, e Geneva ocupava agora o lugar dessa mulher cuja problemática existên¬cia invejara.
Tornara-se lady Seymour, era esposa legítima desse homem elegante, rico e belo, o mais belo dos príncipes encantados que a sua fantasia pudera idealizar.
Miragem maravilhosa... mas verdadeira! Era mulher de Seymour! E essa certeza fez-lhe erguer o peito num suspiro profundo, quase um soluço, de inexprimível ven¬tura.
Ao mesmo tempo, porém, temor indefinido obscureceu tão radiosa perspectiva.
Qual seria a atitude de Seymour quando acordasse?
Dissipados os vapores do álcool e recuperada a razão, lembrar-se-ia dos acontecimentos da véspera e aceitaria a esposa que uma noite de embriaguez lhe lançara nos braços?
Angustiosa ansiedade oprimiu a gentil rapariguinha. Receou então as coisas mais ofensivas e dolorosas para o seu amor-próprio. O inglês iria decerto acusá-la de ter aproveitado o seu estado de embriaguez a fim de melhor o poder arrastar ao casamento. Vendo bem, Mae não estaria muito longe da realidade, quando receara as reacções dos dois homens.
Por muito tempo estes e outros pensamentos aflitivos lhe cruzaram o cérebro até que subtil ruído veio arran¬cá-la às suas reflexões. Era como se alguém arranhasse levemente o chão.
Assustada, sentou-se na cama com os olhos fitos na porta, quando viu aparecer por debaixo desta dois sobrescritos brancos. Alguém lhe escrevia e só os dois ingleses sabiam que se encontravam ali.
E essas missivas inesperadas representaram desde logo, para ela, ameaça, perigo ou decepção.
Apressada, saltou do leito e correu a apanhá-las.
Num dos sobrescritos leu:
“Miss Mae Smith”. O outro dizia o seu nome; “Geneva de Rouvaux”. A letra era de Suzy. Quero lhe diria que tinha passado a noite no Metherland?
Docemente, despertou a companheira.
— Mae, tem aqui uma carta para si.
A americana acordou, bocejou e espreguiçou-se.
— Para mim?
Por sua vez sentou-se na cama. Cada uma delas se apressou a abrir a carta e a lê-la. Mae foi a primeira a manifestar-se.
— Patife! Intrujão! Sempre é preciso ter topete!
Surpreendida, Geneva ergueu os olhos para ela.
— De quem fala assim, Mae?
— De Tedder! — explicou, furibunda e brandindo o papel. — Mas se imagina que fica assim, está enganado. Há-de saber com quem se meteu!
— Deus do Céu! Que lhe fez ele? E começou a ler em voz alta:
“Miss Smith
“Lamento sinceramente a estúpida aventura de ontem. Creio que bebemos os dois de mais. O nosso casamento não é válido e não passa de uma comédia. Sou casado em Inglaterra e tenho dois filhos.
— Minha pobre Mae — murmurou Geneva. — Que história tão desagradável para si!
— Tranquilize-se! Tenho boas garras para me defen¬der! Não consentirei que me abandone assim. Segundo depreendo, o tal senhor Tedder conhece muito mal as americanas!
Mas a decepção foi mais forte que a cólera. Com um trejeito de pesar, acrescentou:
— Um casamento tão exciting! Realmente... a pri¬meira vez que simpatizava a valer com um boy! Sem contar a situação vantajosa! Era demasiado belo para durar... E a si, que lhe escreve seu marido?
Sem lhe responder, Geneva estendeu-lhe a carta de Seymour e o bilhete de Suzy.
Coube então a vez a Maè de ficar surpreendida.
— O seu marido não parece mais entusiasmado com o casamento do que o meu.
— É verdade.
— Ora! O remédio é amargo mas talvez nos sirva de proveito. Pelo menos, obriga-nos a reacções imediatas!
— Preferia não ter de reagir! — murmurou Geneva, com tristeza.
A partida do marido desapontava-a, mas, ao mesmo tempo, o facto dele lhe falar como senhor e amo e de lhe dar ordens, tranquilizava-a. Não quebrava o laço que os unia e instalava-a no seu lar. Tudo isso repre¬sentava ainda a felicidade: continuava a ser lady Sey¬mour, a mulher do Príncipe Encantador.
— Pelo menos, não lhe anuncia uma catástrofe, como o meu — observou Maè.
— Não, mas ordena-me que faça as malas sem me fornecer os meios para a viagem e sem me dar qualquer indicação de onde reside.
— Com um nome como o dele não será difícil des¬cobri-lo. Para mais, o tio é conhecido...
— Se me apresentar em casa dele será muito capaz de me mandar pôr na rua pelos criados.
Baixou a cabeça, pensativa e acabrunhada. Geoffroy, afinal, não quisera deixar-lhe nas mãos qualquer documento que o prejudicasse. A carta era correcta, mas sem uma frase que pudesse comprometê-lo.
A sugestão, ou antes, a ordem para regressar imedia¬tamente à Europa encobriria qualquer cilada contra ela?
“Calcula talvez que a falta de dinheiro me inibirá de partir — pensou com tristeza. — Quando se quer matar um cão, diz-se que está danado”.
Meia hora depois, interrogando o porteiro do hotel, este confirmou a partida dos dois ingleses.
— Mandaram levar as malas para o aeroporto. Devem seguir no avião das cinco.
— Para onde? Sabe?
— Falaram em Indiana e depois em Oklahoma. Saíram do hotel.
— Se fôssemos ter com eles? — propôs Maè.
Geneva abanou a cabeça.
— Em Oklahoma há milhares de poços de petróleo. Seria difícil encontrar, discretamente, o que nos inte¬ressa.
— Eu encarrego-me disso. Não me preocupa a discri¬ção. Se tanto for preciso, pô-la-emos de lado.
— Pode ser. Não quero, porém, correr atrás desses cavalheiros.
— Não seja sentimental. Isto agora não passa de business. Não poderão anular o casamento sem nos indemnizar.
— Recuso-me a encarar o meu sob esse aspecto e Deus me livre de especular com semelhante assunto. Prefiro obedecer a meu marido, por muito extraordinária que seja esta aventura.
Na altura de se separarem, Maè pediu a Geneva:
— Somos ambas vitimas de maridos pouco correctos. Será portanto melhor que estejamos ao facto de todos os passos dados por qualquer de nós, pois é evidente que as informações colhidas sobre um deles nos elucidarão sobre o outro. Vou, antes de mais nada, ao consulado inglês. Quanto a si, seria conveniente procurar Suzy. Talvez o marido lhe diga qualquer coisa de Seymour.
Geneva sorriu. Era quase cômico, tanto ela como Maè desconhecerem tudo quanto dizia respeito aos res¬pectivos maridos.
— Onde mora? — inquiriu Maè.
— No palacete de Honorato Murphy.
— Verifico que a sua situação não é mais brilhante do que a minha. Eu sou só no mundo, quero dizer, não tenho pais. Vivo com uma irmã de meu pai, razoavel¬mente rica, e ainda me considero feliz por ter encon¬trado esse refúgio, tanto mais que minha tia nunca se mete na minha vida e dá-me toda a liberdade. No en¬tanto, como em troca da sua hospitalidade estou sujeita a certas obrigações, por vezes bastante fastidiosas, pode calcular se eu não desejaria casar para me ver livre da tutela. Tedder era precisamente o marido que me convinha. A sua situação é boa e sei que melhorará muito no futuro. Ouvi Seymour e Johnny falarem a esse res¬peito. E acima de tudo simpatizo com ele. Em resumo, o casamento desta noite, por muito estranho que fosse, trazia-me um marido atraente e a segurança na vida.
Geneva não contessou que a sua situação era idên¬tica e que o casamento com Seymour seria uma bênção do céu. Não podia confessar também que o inglês a atraíra desde o primeiro olhar trocado. Na noite pre¬cedente conservara as idéias bem claras e se não gostasse desde logo de Seymour nunca teria consentido em seme-lhante casamento. Por uma questão de reserva e de pudor calou tudo isto, mas no seu íntimo sabia bem a que estranho impulso obedecera e a singular influência que Geoffroy exercera sobre ela desde que entrara na sala.
Suzannah esperava com impaciência a chegada da amiga. Mal a viu entrar, correu para ela de mãos esten¬didas e abraçaram-se, tão comovida uma como a outra, como se ambas tivessem corrido grande perigo.
— Recebeste a carta de Seymour? — perguntou.
— Recebi, ao mesmo tempo que o teu bilhete.
— Queria falar-te antes de partir! Estou desolada com toda esta história, podes crer. Seymour nunca deve¬ria ter-se afastado sem se explicar contigo.
— Não deviam ter abandonado os vossos maridos um momento que fosse, durante a noite — interrompeu Johnny, como homem prático.
— Maè era dessa opinião, mas, tanto William Tedder como Seymour estavam completamente embriaga¬dos, e uma mulher educada e digna não aproveita uma ocasião dessas para se impor a um homem.
— Não é bem assim. Nestas circunstâncias especiais cumpria fazê-lo para defenderem o seu futuro.
Suzannah, porém, voltou ao assunto.
— Não creio que Tedder seja casado — declarou após breve reflexão. — Inventou essa história para assus¬tar Maè. Ela que vá falar com Jill Percy. Pode talvez informá-la, pois é amigo de William. Quanto a Seymour, pergunta a meu pai. Conhece muito bem o tio e talvez te revele coisas interessantes a respeito de Geoffroy. Em todo o caso, este disse-me à despedida que basearia a sua conduta pela tua e conforme procedesses ele pro¬cederia contigo.
— A sua carta é correcta. Sempre receei que fosse mais agressiva.
— Mas obriga-te a partir para Inglaterra e isso não me agrada nada.
— Não compreendo bem a idéia dele. Talvez, não podendo levar-me consigo, deseje saber-me instalada em sua casa. Disse quanto tempo estaria ausente?
— Um ano — elucidou Johnny com leve ironia.
— Um ano! — repetiu Geneva, aterrada.
— É muito, sim! — aprovou Suzy, pensativa. — Prin¬cipalmente, não se conhecendo um ao outro.
— Mas por que me obriga Geoffroy a partir para tão longe? Poderia ficar em Nova Iorque e de longe em longe, ou indo eu ter com ele ou vindo ele cá, pas¬sarmos alguns dias juntos.
Calou-se, e, vendo a atitude grave dos seus amigos, não se atreveu a continuar a enumeração de possibilida¬des tão fagueiras.
— Provavelmente, foi isso mesmo que pretendeu evitar — concluiu com tristeza.
Suzannah aprovou com a cabeça.
— Ouve, minha querida Geneva. Devo falar-te com franqueza. Seymour não pensava em escrever-te. Estava furioso com o casamento e só falava em o anular quanto antes. Calculas decerto como Johnny e eu defendemos a tua causa e o bem que dissemos a teu respeito. Por fim, Seymour reconheceu que a responsabilidade era mais dele do que tua e, portanto, te devia certas atenções e deferências...
— Nesse caso, para que me obriga a partir?
— Em Inglaterra serás lady Seymour. Quando ele regressar resolverão os dois, ou antes, ele, a melhor forma de se separarem amigavelmente. Por mim, tenho medo...
— Medo de quê? — atalhou Geneva.
— Que desconheças por completo os hábitos ingle¬ses. Seymour é um gentleman! No entanto... de com¬binação com a família... pode lembrar-se de te armar uma cilada e obter assim um divórcio contra ti, sem ser obrigado a qualquer compromisso futuro, compreendes? Falo sob o ponto de vista de business...
— Não quero encarar o assunto por esse prisma.
— Seja como for, vais obedecer-lhe, não é assim?
— Pois claro — concordou Geneva com simplicidade. — Logo que possa, parto.
— Muito bem. Toma conta, não sejas vítima da tua boa fé e lembra-te de que um divórcio contra ti seria desastroso para o teu futuro.
— Seymour é incapaz de cometer semelhante vilania. Os ingleses são leais e respeitam a palavra dada — pro¬testou com energia.
— Prometeu-te alguma coisa? — indagou a filha de Honorato Murphy, com brandura,
— Pessoalmente, não. Mas perante o Pastor aceitou o jugo do casamento sem a menor hesitação.
— Esse compromisso não tem valor para ele porque não estava em seu juízo. No entanto, alegra-me que faças essa boa opinião de Geoffroy. Quanto mais con¬fiança tiveres em teu marido, mais perfeita serás como lady Seymour.
— Não me julgues melhor do que sou. A sua ati¬tude e a partida precipitada causaram-me profunda decepção. Quanto ao futuro, não quero pensar nele. Sucederá o que tiver de suceder! Recordas-te da pro¬fecia que uma cigana me fez? Para que atormentar-me com o futuro se está escrito na palma da minha mão que serei amada e feliz?
Suzannah havia esquecido por completo a confiden¬cia que a amiga em tempos lhe fizera.
— Genezinha! — exclamou, radiante. — Lamento não me ter lembrado há pouco desse pormenor. Con¬tá-lo-ia a Seymour e este acabaria por se convencer de que a responsabilidade deste casamento não é tua. Foi o Destino que assim o quis.
— Foi melhor assim. Ele poderia supor que da minha parte era mais um embuste para influir na sua decisão, quando, afinal, me limitei a deixar desenrolar os acontecimentos, como se não me dissessem respeito. Seymour será o único árbitro do nosso futuro.
— Muito bem. Visto aceitares os factos com tanta coragem e serenidade, estou mais tranqüila. Na verdade, toda esta história parece um conto de fadas!
Gene sorriu tristemente, e a conversa foi interrom¬pida por Johnny, que vinha avisar a mulher de que as bagagens estavam em ordem e chegara a hora da partida.
As duas amigas abraçaram-se e beijaram-se.
— Não te esqueças de beijar meu pai, por mim e, quando chegarem a Inglaterra, escreve-me.
— Não deixarei de o fazer.
Com olhar pesaroso, Geneva viu desaparecer o automóvel que levava o feliz casal a caminho de Wash¬ington e depois para a Florida.
— Eis-me só — murmurou, soltando doloroso suspiro. — Suzy parte com o esposo escolhido; meu marido aban¬dona-me e, naturalmente, Murphy, embora com todas as atenções e delicadezas, vai dizer-me que trate de procurar casa. A vida é dura para uma pobre rapariga que se vê forçada a ganhar o seu pão.
Ora neste ponto enganava-se. Até à sua partida da América, Murphy, que tinha por ela profunda estima, não consentiu que abandonasse a sua casa e a ausência de Suzy foi em parte compensada com a presença quase contínua de Maè. Mas não antecipemos...
Quando Geneva regressou ao palacete de Murphy, soube que a ausência deste devia prolongar-se por mais vinte e quatro horas.
Maè apareceu nessa mesma noite.
— Não consegui nada esta tarde — declarou, desa¬nimada. — Dir-se-ia que todos conspiram contra mim para me negarem os esclarecimentos de que preciso. Tanto o consulado como a embaixada já estavam fecha¬dos quando lá cheguei. Agora só na segunda-feira pode¬rei interrogá-los.
— Não conhece mais ninguém que pudesse infor¬má-la?
— Quem? Bob Drury, cujo nome Tedder mencionou várias vezes, foi passar quinze dias a Ohio. Carrol foi para o norte com Virgínia, até às cataratas do Niágara... e assim não sei quem possa informar-me sobre o homem a quem desposei.
— Não se aflija, Maè... Perguntei há pouco a Johnny se Tedder era, de facto, casado, e ele garan¬tiu-me que não. Quando lhe transmiti a carta de William riu com gosto e afirmou que era pura mentira.
— Já calculava — comentou Maè, com amargura. — E você, Geneva?
— Falarei amanhã com Murphy.
Separaram-se, mas, na manhã seguinte, Maè apare¬ceu muito cedo.
— Não consegui dormir e pergunto a mim própria se não seria melhor começar a atacar Tedder desde já. Abandonou-me, escrevendo-me uma carta com falsas declarações. Vou apresentar queixa e obrigá-lo a pagar-me considerável indemnização.
— E tem a certeza de que os nossos casamentos são válidos? As formalidades foram tão rápidas...
— Na América os casamentos são sempre assim.
— Em França exigem tanta papelada que ainda me custa a admitir que esteja casada.
— Já vejo que no seu país o casamento é uma coisa complicadíssima.
Para mudar de conversa, Geneva falou-lhe nos con¬selhos que Johnny lhe dera na véspera.
— Aconselhou-me a partir para Inglaterra a fim de que o meu marido, ao regressar, me encontre instalada na sua casa.
— Talvez isso seja preferível a perseguir Tedder e à indemnização que poderia obter — concluiu Maè após um instante de reflexão. — Com efeito, aqui só há dois caminhos a seguir: renunciar ou impor a nossa presença. Unamo-nos, visto a nossa sorte ser idêntica! Deixe-me acompanhá-la, Geneva! Antes de capitular, vejamos se será possível continuarmos a ser mulheres dos nossos maridos.
Geneva não lhe respondeu. Desvanecida a super-excitação da viagem e raciocinando a sangue-frio, não se encontrava muito disposta a impor-se a esse marido que lhe fugia, provando assim que não a amava.
— Já pensei que seria melhor anular discretamente este extraordinário casamento.
— Não faça semelhante disparate! — protestou Maè, indignada. — Siga os conselhos de Suzannah.
— A minha maneira de encarar o assunto difere muito da vossa. De princípio, admiti que não devia contrariar os desígnios da Providência e aceitei Seymour porque era o Céu que mo enviava. Hoje, penso que não devo considerar-me esposa desse homem contra sua vontade.
Uma notícia publicada nos jornais do dia seguinte a esta conversa decidiu-a a obedecer a Seymour e a abandonar a América.
Estupefacta, ao verificar que o seu casamento já era do domínio público, leu o seguinte em quase todos os diários de Nova Iorque:
“Dois ingleses, pertencentes à alta sociedade lon¬drina, vieram casar à América. Os dois casamentos foram celebrados pelo reverendo Anderson em pre¬sença da mais selecta assistência. Um dos noivos, lorde Geoffroy Seymour, é sobrinho de lorde Bucgham, muito conhecido entre nós, pois possui na América numerosos poços de petróleo e também várias minas de carvão em Inglaterra. Lorde Seymour desposou a pupila de Honorato Murphy, mademoiselle Geneva de Rouvaux, sua companheira de infância e a quem amava havia anos.
“O segundo casamento realizado foi o do seu amigo e colaborador William Tedder, engenheiro inglês de grande talento, representante de lorde Bucgham nos poços de petróleo de Oklahoma. William Tedder casou com a deliciosa artista de cinema Maè Smith, que por ele renunciou ao brilhante futuro que os êxitos obtidos nos primeiros filmes faziam prever.
“Ao mesmo tempo do que estes, realizaram-se os casamentos de Suzannah Murphy, a filha do arqui-milionário bem conhecido, com Johnny Hoover, cam¬peão de tênis, filho de Jack Hoover, importante finan¬ceiro de Nova Iorque, e o de Virgínia Hausser com Fred Carrol.
“Mercê de uma indiscrição soubemos que estes qua¬tro casamentos de amor resultaram de um voto feito pelos noivos, no colégio de Harrow, em Inglaterra, onde foram condiscípulos. Os quatro rapazes juraram casar no mesmo dia e o juramento cumpriu-se ontem perante o reverendo Anderson.
“É com o maior prazer que damos esta notícia aos nossos leitores e felicitamos os recém-casados e famí¬lias”.
O assombro e a angústia transpareceram nas pupilas de Geneva ao ler esta notícia. A indiscrição dos jor¬nais americanos, a que não estava habituada, deixava-a transida de receio.
— Leu, Maè?... Quem teria divulgado isto?
— Na América tudo se sabe — replicou sentenciosamente a esposa de Tedder. — Li esta manhã a notícia e, com franqueza, os termos não podiam ser mais favo¬ráveis para nós. Não acha, querida Geneva?
Gene, porém, estava aterrada. Se qualquer daqueles jornais chegasse às mãos de Geoffroy, que tanto aborre¬cia a publicidade, que diria ele?
— O que dirá! Ainda quer melhor? Distribuem-lhe um papel encantador! — respondeu Maè tranqüilamente. — Um noivo apaixonado que desposa a sua amiga de infância! Quatro companheiros de escola que cumprem uma promessa feita na mocidade?
— Acabará por perceber que é tudo ironia e...
— Descanse, que não virá desmentir a notícia.
— É capaz de imaginar que fui eu quem pediu para a publicarem.
— E depois? Provar-lhe-á assim que não é tola nenhuma. Por mim, ficaria encantada se Tedder lesse os jornais e se em conseqüência estivesse três noites sem conseguir dormir. Ficaria bem compensada pelo susto que me pregou com a carta, e a tal história da esposa e dos filhos! Há-de saber quanto lhe custa enganar uma rapariga como eu!
— Assusta-me, Maè! — exclamou Geneva.
— Não sei porquê! O meu marido supõe talvez que uma artista de cinema não sabe senão fazer tolices! Demonstrar-lhe-ei o contrário. Nem ele nem o amigo encontrarão a mais pequena coisa a censurar-nos.
Preocupada, Geneva mal ouvia a americana expor o seu programa. Abandonariam quanto antes a América e instalar-se-iam em Inglaterra, no palacete do marido de Geneva. Disse tanto disparate, idealizou situações tão cômicas, que Geneva acabou por lhe achar graça e riu com gosto.
— Não sei se conseguiremos conquistar a Inglaterra em peso com a nossa atitude senhoril e correcta. No entanto, garanto-lhe que, depois de ter lido os indiscretos artigos dos jornais, só tenho um desejo: par-tir para a Europa pelo primeiro paquete.
— Não vê inconveniente na minha companhia?
— Por forma alguma. Pelo contrário, sentir-me-ei até felicíssima por ter alguém conhecido a meu lado quando chegar a Londres, onde presumo que seremos muito mal recebidas.
— Confie em mim e verá. Encarrego-me de preparar a recepção a lady Seymour. Tenho cá o meu plano.
Em vão Geneva interrogou a sua trepidante com¬panheira; não conseguiu arrancar-lhe uma palavra sobre tão prometedores projectos.
Na manhã seguinte, Geneva teve uma conversa deli¬cada com o pai de Suzy.
Não foi necessário comunicar-lhe o casamento da filha, porque os jornais já se haviam encarregado de o fazer. Limitou-se, portanto, a revelar-lhe que os dois noivos tinham partido para a Florida.
O milionário, nas primeiras impressões, mostrou-se descontente e censurou a amiga da filha por esta não o ter avisado a tempo dos projectos de Suzy.
Gene explicou-lhe então que Suzannah não lhe admi¬tira conselhos, declarando que ninguém, nem mesmo a família, tinha o direito de impedi-la de casar.
O pai acabou por concordar que não faltavam a Suzy caracter nem originalidade e essa verificação restituiu-lhe o bom humor, tanto mais que os artigos da Imprensa lhe lisonjeavam a vaidade.
Por fim, o velho Murphy não só perdoou à filha como admirou o seu espírito de iniciativa.
Quando Geneva lhe descreveu os outros três casamentos que se haviam seguido ao banquete, a sua satisfacão subiu ao auge.
— Então aquele maroto do Filipe Bucgham é tio agora! Que aventura tão engraçada!
Ao ler a notícia dos jornais perguntou em leve tom de censura:
— Por que não me disse que conhecia lorde Seymour desde pequeno? O seu romance é encantador, minha filha... embora, há quarenta e oito horas, tivesse começado a formular projectos muito diferen¬tes a seu respeito... Mas talvez fosse melhor assim... mais adaptado à sua idade, pelo menos.
Após breves minutos de silêncio, continuou:
— Fez muito bem em se dizer minha pupila... bem sabe que a estimo muito... considero-a como filha... E como tutor vai consentir que lhe dê um presente de núpcias... digno do meu título...
— Creia que nunca me atreveria a fazer-me passar por sua pupila! Não fui eu!
— Sendo assim, espero que não vã desmentir a notí¬cia. Afirmo-lhe que estou encantado por ser considerado como tutor de lady Seymour, e uma espécie de parente de lorde Bucgham. Decerto ele ainda não se esqueceu de mim.
— Estou-lhe imensamente grata pela amizade que me demonstra.
Murphy deu uma palmadinha na face de Geneva e acrescentou com uma pontinha de tristeza:
— Felicito-a por ter casado ao mesmo tempo que minha filha, embora tivesse razões para querer mal a seu marido. Suzannah formou a seu respeito certos pro¬jectos... mas não falemos mais nisso... Quatro casa¬mentos numa noite, é esplêndido! Aquela Suzy é levada do demônio. Estou certo de que foi ela quem enviou a notícia para os jornais.
Ora nesse ponto Murphy enganava-se. A autora da graça fora Maè.
Os jornais de Londres foram também informados e, não se contentando com esta publicidade, enviou a todos os conhecimentos de qualquer dos oito esposos a participação dos quatro casamentos, em bloco. Como resul¬tado, certa manhã, Geneva viu chegar felicitações de todos os cantos dos Estados Unidos, dirigidas a Honorato Murphy, com o pedido de as fazer chegar às mãos de lorde e lady Seymour.
Esta correspondência inesperada aterrou Gene, preo¬cupada com o que poderia pensar Geoffroy quando o soubesse; ao passo que Maè e Murphy esfregavam as mãos, radiantes.
— Seymour ficará encantado! — afirmava ingenua¬mente o milionário.
Entretanto, as duas raparigas iam preparando as coi¬sas para a viagem.
As malas de Geneva estavam prontas. Eram as que Suzannah lhe dera e fechara por suas mãos. Quanto às de Maè, a tia encarregou-se de as arranjar enquanto a sobrinha fazia as suas despedidas.
Nunca uma recém-casada apregoou tanto o seu casa¬mento nem exteriorizou por tantas formas a sua ven¬tura. Todos os seus conhecimentos ficaram sabendo que desposara, por amor, um homem que a adorava.
— Se depois disto pensar em me abandonar — mur¬murava — todo o odioso recairá sobre ele.
Por fim, tudo estava em ordem e faltava apenas com¬prar as passagens.
— Não se preocupe com o dinheiro — tranqüilizou Maè. — Consegui juntar uns mil dólares, que servirão para levarmos a efeito os nossos mútuos projectos. Mais tarde me pagará.
Era muito doloroso para Geneva ver-se forçada a aceitar dinheiro de uma estranha. Felizmente, Murphy não esqueceu a promessa, e, como não soubesse qual a prenda mais útil para oferecer à amiga da filha, pôs à disposição da nova lady um cheque sobre Londres, e, assim, Geneva encontrou-se na possibilidade de fazer face às exigências da sua posição quando chegasse a Inglaterra.
O pai de Suzy deu-lhe igualmente a direcção de lorde Bucgham, em Londres, se bem que achasse estranho Geneva não saber onde residia o marido e partir para Inglaterra em vez de se reunir com ele em Oklahomu, mas não levou a indiscrição a ponto de lhe demonstrar a sua estranheza, nem Geneva o elucidou sobre pontos de caracter tão íntimo.
Chegou por fim o dia do embarque.
Maè partia alegre e cheia de esperança, enquanto Geneva via com melancolia a costa americana sumir-se no horizonte. Com o coração opresso, perguntava de si para si quais as provações por que teria ainda de passar na Europa, onde nunca conhecera dias felizes. Considerava os dezoito meses passados em Nova Iorque o mais belo tempo da sua vida e, portanto, era com ver¬dadeira tristeza que abandonava essa terra acolhedora.
Subindo a alameda sombreada por árvores centená¬rias, o automóvel parou diante de Cliff-House, majes¬toso edifício com as paredes revestidas de hera. Cinco degraus de mármore, largos e compridos, conduziam à varanda exterior, para a qual abriam a porta de dois batentes e numerosas portas envidraçadas, que deviam ser as dos aposentos do rés-do-chão. Naquele momento, porém, estavam tão hermèticamente fechadas e tão pro¬fundo silêncio envolvia o palacete que poder-se-ia supor abandonado se as alamedas e o relvado não estivessem cuidadosamente tratados.
O motorista fez ouvir repetidas vezes o som estri¬dente do klaxon e pouco depois viram aparecer um criado, quase correndo e abotoando ainda o colete de riscas vermelhas e amarelas.
Só então Maè se decidiu a descer do carro.
— Não esqueça as minhas instruções, Gene — reco¬mendou. — Deve impor-se ao pessoal desde o primeiro minuto da sua chegada.
Com ares importantes, de cabeça erguida e emper¬tigada, Maè interpelou imediatamente o criado.
— Pelo que vejo, não está nada preparado para rece¬ber lady Seymour?
— Lady Seymour? — repetiu o servo como se esse nome lhe roubasse todas as faculdades de raciocínio. — Lady Seymour?
— Sim. Não receberam o telegrama que ontem man¬dei, avisando-os da sua chegada?
— Recebemos, sim, milady. Os aposentos de Sua Graça estão preparados... e os fogões acesos desde o romper do dia.
Ao mesmo tempo que dava estas informações, o criado puxava com força a corrente de grande sineta de bronze, cujas badaladas se repercutiam longamente, e relanceava furtivas olhadelas à recém-chegada, cujo porte orgulhoso e altaneiro lhe causava sérias preocupa-ções.
Pouco depois, a porta de entrada de Cliff-House abria-se de par em par.
Acorrendo ao toque da sineta, cinco ou seis criados vieram alinhar-se na escadaria. Os homens envergavam colete de riscas vermelhas e amarelas, as cores dos Sey¬mour; as mulheres traziam vestido preto e avental branco.
Sempre com os seus modos arrogantes, Maè per¬correu com a vista o grupo do pessoal, que se perfilava, hirto e silencioso. Por fim, o seu olhar pousou num homem que, todo de preto, se conservava um pouco afastado dos outros.
— O mordomo, creio eu?
— Sim, milady.
Era evidente que todos a supunham lady Seymour. Havia três semanas que Maè estudara todos os pormenores daquela chegada aparatosa a Cliff-House, a residência ancestral dos Seymour, e agora sentia-se radiante porque ela se realizara ponto por ponto, tal como a preparara. Em sua opinião, a entrada de Geneva em casa do marido devia ser rodeada de grande cerimonial, e certa dose de arrogância e desdém contri¬buiriam para surtir o efeito desejado.
Quando julgou a criadagem suficientemente aterro¬rizada pelo seu olhar glacial, afastou-se um pouco para o lado, deixando a descoberto a porta do automóvel que se conservava aberta.
— Ajude lady Seymour a descer — ordenou ao mor¬domo, indicando com um movimento de cabeça o vulto feminino que se conservava no fundo do carro.
Completamente subjugado pelos seus modos autori¬tários, este precipitou-se para a portinhola, enquanto os outros criados, ardendo de curiosidade, esperavam ansiosos que a nova ama aparecesse.
Se a dama de companhia de lady Seymour os tra¬tava com tanta soberba e altivez, decerto só poderiam contar com o desprezo e desdém por parte da patroa. Quase nem respiravam, mas quando Geneva apareceu ficaram pasmados.
Com um vestido gênero alfaiate, cinzento-claro, duas raposas brancas em torno dos ombros, a nova lady Sey¬mour aparecia-lhes linda e graciosa, quase uma criança! Os rostos ensombrados tornaram-se mais alegres e sau¬daram-na com um “bom dia, lady Seymour” tímido, mas acolhedor.
— Bom dia, meus amigos — respondeu esta.
A voz era fresca, cristalina e agradável e todos eles sorriam, encantados com essa mocidade radiosa que pareceu iluminar Cliff-House desde o primeiro mo¬mento da chegada.
Um pouco confusa por se ver alvo de tantos olha¬res, Geneva parou nos primeiros degraus e examinou a fachada branca do solar. Em seguida deu meia volta e abraçou o parque com o olhar maravilhado.
— Tudo isto é lindo! Sentir-me-ei muito feliz aqui.
Com movimentos ágeis e graciosos, subiu a escadaria e no topo dos degraus parou mais uma vez, voltando-se para o mordomo.
Um após outro, o mordomo designou os criados pre¬sentes. Por fim, indicando uma mulher de bastante idade, que se deixara ficar no vestíbulo, muito agasalhada na sua manta, explicou:
— Esta é Ann Pelham, a mais velha de todos nós. Lorde Seymour conserva-a no castelo, embora, pela sua idade, já não possa prestar qualquer serviço.
— Há muito tempo que se encontra em Cliff-House, Ann? — inquiriu Geneva com benévola simpatia.
— Sim, milady. Já aqui estava há muitos anos quando lorde Seymour nasceu.
— Viu nascer e crescer meu marido! Mas isso é esplêndido!
— Conheci-o de pequenino. Era um baby adorável.
— E hoje continua a ser um adorável boy — replicou Geneva, rindo. — Contar-me-á muita coisa dele, sim? Assim suportarei melhor estes compridos meses de ausência.
E curvando-se para a velha criada, beijou-a cari¬nhosamente.
Com os olhos brilhantes e o coração dilatado pela alegria, Ann contemplava Geneva numa espécie de nas¬cente adoração, enquanto os restantes criados sorriam satisfeitos e já tranqüilizados. A nova lady, com a sua simplicidade, acabava de conquistar todos os corações.
Quanto a Maè, classificando a cena pouco adequada às circunstâncias, fulminava Geneva com o olhar. Seria possível que tivesse esquecido as suas recomendações?
Nunca uma inglesa ou americana usariam de tal familiaridade com os criados. Só uma francesa perde assim o self-controle a ponto de esquecer a sua categoria de lady e o grande nome que usa.
Se a nova lady usasse da mesma confiança para todo o pessoal, decerto este teria feito mau conceito dela. Mas, pelo contrário, limitara-se, à medida que o mor¬domo os ia apresentando, a apertar-lhes a mão com benevolência, mas marcando bem as distâncias com a sua atitude, e só Ann Pelham lhe merecera um gesto carinhoso, Ann, que o próprio lorde Seymour tratava com afecto.
— Conduzam-me aos meus aposentos — pediu Ge¬neva. — Quero descansar e se o lanche está pronto sir¬vam-no imediatamente. Venho com uma fome de lobo.
— Duvido muito — observou Maè em francês, en¬quanto subiam a escada — que nos tenham preparado aposentos capazes. Isto é um casebre arruinado e sem conforto!
— Passei a minha infância num velho solar, datando da época da Renascença, e, portanto, já estou habituada à falta de conforto das moradias antigas. Se lorde Seymour gosta disto, sentir-me-ei aqui feliz.
— Em todo o caso, é bom que esta gente não nos tome por umas maltrapilhas que se dão por muito satis¬feitas por ter encontrado abrigo em Cliff-House. Hei-de fazer-lhes sentir que vivemos sempre com luxo e riqueza.
Gene sorriu.
— Julgo inútil essa comédia.
— Não é comédia. Em casa de minha tia não me faltava nada e creio que em casa de Honorato Murphy lhe sucedia o mesmo. Por outro lado, impõe-se que lorde Seymour, no seu regresso, a veja rodeada de conside¬ração, a fim de lhe dispensar também as atenções devi¬das. E não me suponha melhor do que sou, Geneva. Se não me colocasse em pé de igualdade consigo e não me tratasse como amiga, não tomaria tanto a peito os seus interesses.
Entretanto, chegavam ao primeiro andar. Percorrido comprido corredor, a criada que as acompanhava abriu uma porta.
Maè teve a impressão de que as relegavam para aposentos inferiores.
— São estes os aposentos das anteriores ladys Sey¬mour? — perguntou, antes de entrar.
— Não, minha senhora. Sua Graça, a falecida lady, ocupava os quartos na outra ala do castelo, por cima dos salões. Mas como não são habitados há longo tempo, devem estar gelados e não há possibilidades de os aque¬cer. Este lado tem aquecimento central.
— Está muito bem assim — atalhou Geneva, a quem as reflexões de Maè começavam a enfastiar. — Mos¬tre-me o meu quarto.
— Se milady quer ter a bondade de entrar...
Maè seguiu Geneva, que, sem mais comentários, tomava posse dos seus aposentos.
— Como isto tudo é feio! — observou Maè, que não achava nada a seu gosto. — Este papel de ramagens é medonho!
Em seguida voltou-se para a criada.
— Quantos aposentos tem lady Seymour à sua dis¬posição? — perguntou de testa franzida.
— Além do quarto de cama, este gabinete de toiIette e uma saleta.
— Descanse um instante na salinha, minha amiga, enquanto eu vou dar uma vista de olhos aos outros quartos. A instalação é muito deficiente!
Geneva julgava inútil todas estas fantochadas, mas, no entanto, obedeceu documente.
Maè afastou-se e pouco depois começava a revolu¬ção. Quer no quarto, gabinete de toilette, ou nos seus próprios aposentos, tudo sofreu modificação. Exigiu um espelho de três faces, poltronas, mantas, mandou tro¬car tapetes, os móveis mudaram de lugar e só ficou satisfeita quando, decorrida uma hora, tudo ficou trans¬formado.
De facto, o seu plano surtia efeito. Os criados com¬preenderam que a presença da nova ama era um acon¬tecimento importante e que, para compensar a falta de conforto que reinava em Cliff-House e para não humi¬lhar lorde Seymour, que só tinha uma casa velha e triste para alojar a sua encantadora e gentil esposa, deviam redobrar de zelo e atenções.
Entretanto, na parte do castelo reservada ao pes¬soal ferviam os comentários.
— A nova lady é um amor!
— De princípio, receei que a esposa de lorde Sey¬mour fosse a outra.
— O nosso amo não podia gostar de uma mulher tão arrogante.
— Sabe-se lá! O amor é cego e o casamento de lorde Seymour foi, com certeza, um casamento de amor.
— Sem dúvida! Lady Seymour é tão bonita! Só assim se explica que Sua Honra fosse casar à América.
— Ouviram-na afirmar com convicção que o marido era um boy adorável?
Nesse momento, a criada de quarto atravessou n cozinha, quase a correr.
— Que revolução vai lá em cima! Tivemos de tirar quase todos os móveis. A dama de companhia de lady Seymour achou tudo horrível.
— E tem razão. Aqueles aposentos são os piores.
— Segundo afirma mistress Blum, foi o próprio lorde Bucgham quem os indicou ao mordomo para neles insta¬lar a nossa lady.
— Se a conhecesse, nunca teria dado semelhante ordem.
— É provável. É tão linda que merecia um ninho de cetim cor-de-rosa e rendas.
— Lorde Seymour, quando chegar, não deixará de o fazer.
— Aviem-se com o lanche — ordenou o mordomo. — Sirvam-no na sala e não se esqueçam de espalhar flores por toda a casa. Vejam como põem a mesa.
Dadas as suas ordens, afastou-se com ar preocupado.
— Bathurst está aborrecido por não ter preparado uma recepção conveniente a lady Seymour.
— Limitou-se a cumprir as ordens de lorde Bucgham.
— Hum! Não acredito que Sua Graça quisesse ser desagradável à nossa lady. Bathurst não teve a inicia¬tiva precisa, foi o que foi.
A mesma idéia atormentava decerto o mordomo, por¬que, passeando de cá para lá, diante do telefone, mur¬murava, apreensivo:
— Houve mal-entendido, sem dúvida! Fui eu que não compreendi as recomendações de lorde Bucgham.
Por fim decidiu-se a pegar no auscultador e pediu ligação para Green-Park.
Dois minutos depois, o tio de Geoffroy respondia-lhe.
— Perdoe-me se o incomodo, lorde Bucgham. Tomo a liberdade de lhe comunicar que lady Seymour acaba de chegar a Cliff-House.
— Já chegou! E então, Bathurst, correu tudo bem?
— Muito bem, milorde.
— As senhoras já estão instaladas?
— Estão, mas receio que lady Seymour não gostasse dos aposentos que lhe estavam reservados.
— O quê? Lady Seymour queixou-se de alguma coisa?
— Nem por sombras, milorde! Sua Graça não disse coisa alguma. A dama de companhia é que mandou buscar alguns móveis e mudar os quadros.
— Que vá para o demônio! Devias dizer-lhe que na ausência de lorde Seymour não estavas autorizado a fazer qualquer modificação nem a voltar a casa de per¬nas para o ar.
— Lorde Seymour não ficaria contente se não dis¬pensássemos à nova lady todas as atenções que lhe são devidas!
— No fim de contas, que achas tu de extraordinário na nova lady?... Allô!... Allô!... Bathurst! Respondes ou não? Não compreendeste o que te perguntei?
— Ouvi, milorde! Compreendi muito bem... mas não sei como responder a Vossa Graça... Não passo de um mordomo e não me atrevo a dar opiniões sobre os meus amos!
— Deixa-te de tolices e cumpre a ordem que te dou. Que tem lady Seymour de extraordinário?
— Eu... preferia que Vossa Graça viesse ver com os seus olhos. Lady Seymour é...
O mordomo calou-se.
Lorde Bucgham com certeza esquecia que um servo bem estilizado não pode notar certas coisas sem faltar ao respeito à esposa do seu amo.
— Então, Bathurst! Falas ou não, com seiscentos demônios!
— Visto que Vossa Graça exige — decidiu-se o mordomo, cuja testa se cobria de suor. — Lady Sey¬mour é muito novinha... e linda! Um verdadeiro botão de rosa... um belo lírio imaculado. Foi como se um raio de sol ou a própria Primavera entrassem de repente em Cliff-House.
— Que estás tu para aí a dizer, Bathurst! — sobressaltou-se lorde Bucgham. — Estás doido, meu rapaz!
— Pode ser, milorde.
— Disseste que lady Seymour era uma rosa!
— Sim... parece-me que foi isso. Perdoe-me Vossa Graça, se não soube exprimir-me bem.
— Goddam! Pois explica-te melhor! Que pretendes dizer com o tal lírio imaculado... o raio de sol... não sei que mais?
— Limitei-me a repetir as palavras que ouvi ao pes¬soal de Cliff-House... Isto é, quero eu dizer...
— Tu e o restante pessoal não passam de uns bur¬ros! Perdem a cabeça mal vêem uma cara bonita! Com que então, suas excelências dão-se ao luxo de ter opi¬nião! É espantoso!... Conta-me tudo o que ouviste, Bathurst!
O mordomo coçou a cabeça, aflito. O tom irônico de lorde Bucgham não lhe escapava e não sabia em que sentido devia responder para lhe agradar. Como se con¬servasse calado, chegou-lhe aos ouvidos verdadeiro rugido.
— Ó meu maroto, eu mando-te falar e tu calas-te! Responde já, Bathurst, e não tentes enganar-me.
O pobre Bathurst fazia-se de mil cores.
— Vossa Graça perdoe... mas eu não sei como hei-de falar. Os criados, coitados, dizem, às vezes, tanta tolice...
— A verdade fala pela boca dos simples. Dizias então que o pessoal de Cliff-House está encantado com a nova ama?
— Estão entusiasmados, milorde. Os mais antigos afirmam que nestes últimos cinqüenta anos não entrou em Cliff-House outra lady Seymour tão linda... se é que, mesmo antes, houve outra mais formosa.
Ao ouvir tão formidável asserção, lorde Bucgham dissimulou o seu espanto com estrondosa gargalhada.
— Muito bem, muito bem! Continuem a adorar a linda lady Seymour. É isso mesmo o que é preciso.
Ouviu-se pequeno estalido. Lorde Bucgham havia desligado o aparelho.
O mordomo ficou pensativo.
— Os patrões são sempre assim. Exigem que se lhes responda e quando obedecemos ficam descontentes com a nossa opinião. Dir-se-ia que o velho mocho de Green-Park gostaria mais que eu lhe fizesse um retrato deplo¬rável de lady Seymour. Chegou a mandá-la para o diabo!
Enquanto o infeliz mordomo dava tratos à imagina¬ção para descobrir como interpretar as ordens de lorde Bucgham, em Green-Park este expandia o seu mau humor.
— Que diabo de história é esta! Uma desconhecida, uma mulher qualquer que nem sequer reconheceria se a encontrasse na rua, foi isto o que o meu sobrinho me mandou dizer! Estaria a zombar de mim? Se a mulher é tão bonita como Bathurst e o pessoal de Cliff-House afirmam, quer-me parecer que o maroto do Geoffroy não estava tão inconsciente como me mandou dizer.
— Faz obséquio de dizer o que deseja?
Parando no fim da escada, que acabava de descer, Maè, sem abandonar a sua atitude arrogante, interro¬gava um sujeito que, sem cerimônia, penetrara no vestíbulo de Cliff-House.
Pelo trajo de montar, bota alta e o stick, depreen¬dia-se que viera a cavalo.
Por seu lado, o desconhecido examinava a ameri¬cana com olhar curioso.
— Desejo falar a lady Seymour — disse por fim.
— Não sei se poderá recebê-lo. E para outra vez é conveniente fazer-se anunciar. Não se entra em Cliff-House como numa estalagem. Queira dizer-me o seu nome.
— Perdão. Desejo falar a lady Seymour e não a outra pessoa. Esperarei o tempo que for preciso.
— Nesse caso, faça favor de entrar para aqui — dis¬se-lhe, abrindo a porta da sala. — Vou prevenir a dona da casa.
Sem mais palavra, o visitante entrou. Um sorriso levemente trocista pairava-lhe nos lábios.
Maè tinha acabado de fechar a porta quando Geneva apareceu no alto da escada.
— Com quem estava a falar, Maè? — interpelou.
— Com um cavalheiro que desejava vê-la. É um tipo esquisito. Entrou aqui sem mais nem menos, de bota de montar e chicote em punho. Cheira a cavalariça que não se pode estar ao pé dele e tem uma maneira de olhar para as pessoas que não me agrada.
— Vou saber o que pretende — decidiu Geneva, des¬cendo a escada.
— Quer que a acompanhe? Com tipos assim nunca se sabe...
Falava em francês e bastante alto para ser ouvida na sala.
— Não é preciso, Maè — afirmou Gene, admirada. — Vá andando. Daqui a pouco irei ter consigo ao par¬que.
— Então, até já. E se o visitante lhe faltar ao res¬peito, grite!
Com o sorriso travesso de alguém que acabasse de pregar uma boa partida, afastou-se, enquanto Geneva, cada vez mais intrigada com a atitude da amiga, abria a porta da sala.
Bastou-lhe simplesmente olhar para verificar que o visitante não correspondia por forma alguma à pouco lisonjeira opinião que Maè formara dele.
— Deseja falar-me?
— Quero, se é lady Seymour.
— Sou eu. Com quem tenho a honra de falar?
— Sou Filipe Bucgham, de Green-Park — respondeu o desconhecido, inclinando-se com certa rigidez.
O nome não trouxe qualquer reminiscência a Ge¬neva. Correspondeu ao cumprimento, desagradàvelmente impressionada com o ar frio, quase agressivo, do visitante. Ia convidá-lo a passar à sala vizinha, onde estava o fogão aceso, quando um raio de luz lhe atra¬vessou a memória.
— Lorde Bucgham! — exclamou, subitamente rubori¬zada. — O tio Fil! — acrescentou docemente.
Ao mesmo tempo, o sorriso tornava-se acolhedor.
— O próprio, minha senhora — confirmou o inglês, sem abandonar a sua reserva.
Geneva registou o “minha senhora”, tão pouco em harmonia com o seu impulso cordial. Via-se bem que o tio de Geoffroy lhe era hostil e essa visita, logo no dia seguinte à sua chegada, indicava que o sobrinho lhe traçara uma linha de conduta a seguir para com a esposa indesejável.
Tendo instalado o visitante junto do fogão, Geneva sentou-se diante dele e esperou que lorde Bucgham rom¬pesse o ataque.
Por seu lado, este examinava a sobrinha que lhe caíra do céu. Não lhe parecia antipática, mas estava demasiadamente prevenido contra ela para julgar pelas aparências.
— Quem lhe falou de mim, para me reconhecer tão prontamente? — perguntou, por fim.
— Geoffroy citou muitas vezes o seu nome diante de mim. Tive a impressão de que ocupava grande lugar na sua vida... tanto que foi em si que pensou quando decidiu enviar-me para Inglaterra... como sendo a única pessoa capaz de apreciar a sua escolha.
Um sorriso divertido perpassou-lhe pelos lábios. Evo¬cava o bloco de antracite, como Seymour teimara em lhe chamar.
Mas Bucgham atribuiu significação diversa a essa súbita alegria.
— A forma de pensar de Geoffroy a meu respeito parece-lhe cômica? — perguntou lorde Bucgham, com indiferença.
— Não, não pense semelhante coisa, lorde Bucgham! — protestou. — Foi uma recordação que me ocorreu de repente. Mais tarde é possível que lha conte... quando nos conhecermos melhor e a sua presença deixar de me intimidar tanto.
— Infelizmente, represento meu sobrinho, e os seus interesses, pelo menos neste momento, são completa¬mente opostos aos da senhora. A situação, como vê, não é de molde a aproximar-nos.
— Lamento-o — replicou Geneva, gravemente. — Será difícil habituar-me a ver em si um adversário, tio Fil.
Lorde Bucgham manteve a sua impassibilidade. To¬davia, o seu nome proferido pelos lábios femininos reves¬tia-se de infinita doçura. Ao mesmo tempo, verificou que o semblante de Geneva deslumbrava quando um sorriso o iluminava. Recordou imediatamente a comparação de Bathurst, na véspera: “Foi como se um raio de sol pene¬trasse em Cliff-House”.
Lorde Bucgham pensava agora por forma idêntica à do mordomo.
— Pois bem, tentaremos compreender-nos. Quando nos conhecermos melhor, falaremos com o coração nas mãos... assim o espero. Por agora, deixe-me dizer-lhe, lady Seymour, que o casamento de Geoffroy me deixou estupefacto. Quando partiu para a América não pensava em semelhante coisa e na nossa família esses assuntos não costumam resolver-se com tanta precipitação.
A fisionomia de Geneva ensombrou-se. O final da frase soava-lhe aos ouvidos como desagradável insi¬nuação.
Por muito que tentasse, não conseguiu dominar-se.
— Pertenço à aristocracia francesa — ripostou pron¬tamente — e não a julgo menos exigente, nesse ponto, do que a da Grã-Bretanha! O meu casamento com Geoffroy poderá ter sido inesperado... nunca inverosímill...
A réplica, embora áspera, agradou a lorde Bucgham. Apreciava as pessoas de epiderme sensível em questões de honra e Geneva, mantendo-se dentro dos limites da cortesia, acabava de lhe dar bem merecida lição.
“All rigth! — pensou. — A poldra é macia de boca! Não se lhe pode apertar muito o freio!”
E, como tinha inato o espírito desportivo, ficou radiante com o duelo oratório travado com a esposa de Geoffroy.
Recostando-se na poltrona, tirou o cachimbo da algibeira e começou a enchê-lo tranqüilamente.
Serviu-se de uma brasa tirada do fogão para o acender e, depois de aspirar duas ou três fumaças, dirigiu-se de novo a Geneva.
— Quer contar-me, com toda a franqueza, as cir¬cunstâncias em que se realizou este singular casamento? — pediu em tom cordial.
— Limito-me a confirmar o que Geoffroy lhe contou.
— Mesmo se o meu sobrinho tivesse falado em seu desfavor?
— Não podia fazê-lo. Foi ele o único responsável, quem decidiu tudo. Eu não fiz mais do que obede¬cer-lhe.
Impaciente, lorde Bucgham tamborilava com os dedos no braço da poltrona.
— Não é bem assim que Geoffroy descreve os factos. Afirma ter bebido tanto que no dia seguinte não se lembrava de coisa alguma e se encontrou casado sem saber como.
Um sorriso desiludido vincou os lábios de Geneva. Sucedia o que tanto receara. Seymour acusava-a de se ter aproveitado da inconsciência da embriaguez para o levar a casar.
— Nunca supus que a memória de lorde Seymour se obliterasse por tal forma. Sendo sua mulher, não devo desmenti-lo, mas procure informar-se junto das pessoas que assistiram à cerimônia. Eram mais de vinte. Não posso admitir que lorde Seymour alegue inconsciência simplesmente com o intuito de me carregar com todas as responsabilidades.
Falava pausadamente, medindo as palavras a fim de que não pudessem atribuir-lhes sentido diferente.
— Não sei o que pensar — contentou-se em dizer lorde Bucgham. — Geoffroy assegura ter esquecido tudo. Pode ser que meu sobrinho estivesse menos consciente do que aparentava.
— A ponto de dizer coisas sensatas e de ter uma seqüência de pensamentos e de palavras?
— Por que não? É uma questão de hábito e de edu¬cação. O self-controle persiste involuntariamente. Se Geoffroy afirma não se lembrar de coisa alguma, não devemos duvidar.
Geneva achou injusta aquela maneira de impor a versão de Seymour e os olhos encheram-se-lhe de lacrimas. No entanto, de cabeça bem levantada, não vergou perante as forças coligadas contra ela.
— Sendo assim, julgo inútil falar, repito, visto não me caber o direito de desmentir Geoffroy. Pergunte ao padre que nos casou, a Fred Carrol e a Johnny Hoover. Só eles poderão elucidá-lo.
— Esclarecendo desde já o assunto, evitará que atri¬buam ao seu casamento razões... menos exactas.
— E quem espalhará essas inexactidões? — sobressaltou-se Geneva, que empalidecera, fitando ansiosa¬mente lorde Bucgham. — Quem teria interesse em fazer comentários malévolos sobre o nosso casamento? Não creio lorde Seymour capaz de manchar, por qualquer forma, a mulher que usa o seu nome!... Mandou-me sair da América para evitar as indiscrições da Imprensa e o escândalo. Enviando-me para Inglaterra deixaria de temer todos esses inconvenientes ou espera que lhe sejam favoráveis?
O visitante ergueu a mão em sinal de protesto.
— Não, Geoffroy é um gentleman e nunca admitiria que, por qualquer forma, ofendessem sua esposa. Mas infelizmente está longe e...
Calou-se. Um lampejo de contrariedade perpassou pelas pupilas claras que fixavam Geneva. Achava-lhe um ar tão puro, quase infantil, que tinha escrúpulos de perturbar a sua serenidade.
— Talvez seja preferível saber desde já a verdade — prosseguiu. — Mais tarde ou mais cedo chegar-lhe-á aos ouvidos. Vou explicar-lhe o motivo por que o seu enlace com meu sobrinho terá inevitavelmente de pro¬vocar comentários. Geoffroy, quando abandonou a Grã-Bretanha, tinha a sua palavra comprometida com uma menina, neta de um conselheiro da Coroa. O pedido oficial não tivera ainda lugar, justamente por causa da viagem que meu sobrinho devia fazer à América. No entanto, toda a alta sociedade londrina os considerava oficialmente noivos.
Sem uma palavra, com os olhos fixos, hirta e imóvel, Geneva ouvia a revelação que destruía o seu sonho. O príncipe encantado amava outra mulher... Ela não passava de uma intrusa que se impunha afastar a todo o preço.
— Decerto compreende — continuou o inglês, impla¬cável — que a noiva desprezada não se conformará com a sua intrusão intempestiva na vida daquele que ama. Vai exigir explicações, pormenores que Geoffroy será incapaz de lhe dar sem invocar a sua embriaguez... e, por conseqüência, sem a atacar indirectamente... Aqui tem a situação tal como se apresenta. Julguei de meu dever não lha ocultar, a fim de não alimentar vãs ilusões.
Geneva aprovou com a cabeça, mas toda a sua vivacidade se extinguira. Não era combativa. Mais facil¬mente se submetia aos acontecimentos do que se revol¬tava contra eles.
— O meu nome vai ser arrastado pela lama — mur¬murou, acabrunhada. — É horrível! Para que encontrei eu Geoffroy? E para que me propôs ele ser eu sua mulher?
— E porquê, também, sendo de boa família e edu¬cada como parece, acedeu a casar com um homem que mal conhecia?
Geneva meneou a cabeça.
— Tem razão. É inadmissível. Mas não podia pro¬ceder de outra forma. Estava incapaz de lhe resistir.
Lorde Bucgham teve um gesto de surpresa.
— Teria bebido de mais, também?
— Como os outros, ou antes, muito menos. Não estava embriagada nem perdi o meu livre-arbítrio — afir¬mou com energia. — Mas acedi aos desejos de Geoffroy. Impôs-me a sua vontade e não soube contrariá-lo. É essa a única coisa que tenho a censurar-me.
— Continua a afirmar que foi Geoffroy quem exigiu o casamento?
— Continuo. A iniciativa foi dele e eu nem sequer estava presente quando decidiu casar. Se ele não me tivesse pedido para ser sua mulher, nunca me teria pas¬sado pela cabeça semelhante idéia.
— É extraordinário! — murmurou Bucgham, sem poder ocultar a sua surpresa.
— Sim, é inexplicável. A menos que eu e Geoffroy tivéssemos sido ambos vítimas da fatalidade.
— Da fatalidade! Como compreende isso?
Gene encolheu os ombros, pensativa.
— Que sei eu! Suponho que o nosso destino está traçado muito antes de nascermos e o tal livre-arbítrio não passa de uma ilusão no que se refere ao futuro... Realmente, há momentos na vida em que os nossos actos estão em perfeita contradição com as nossas aspi¬rações e caracter... Neste caso, por exemplo, possa afirmar que procedi contrariamente à minha forma de pensar.
— E foi esse espírito de fatalismo que a impeliu a vir para Inglaterra? — perguntou lorde Bucgham com ligeira ironia.
— Não. Limitei-me a obedecer a Geoffroy, que assim o exigia. De resto, julgo que de momento era a melhor solução. Na América, a minha presença poderia desper¬tar a curiosidade da Imprensa; em França, meu pai teria exigido explicações a lorde Seymour. Só em Inglaterra poderei estar ao abrigo do escândalo. Dedico um ano da minha vida ao homem que hoje é meu marido; quando ele regressar, estudaremos ambos a melhor solução a dar a este dilema.
Lorde Bucgham aprovou. Notara que nem uma só vez Geneva falara em divórcio ou anulação. Alimentaria ainda qualquer esperança? Não tentou profundar o assunto. Para a primeira entrevista julgava bastante. Nos dias seguintes esclareceria o resto.
Pesado silêncio caiu entre eles. O inglês despejou a cinza do cachimbo no fogão e voltou a enchê-lo.
Por fim, ergueu os olhos para Geneva, que, entregue às suas reflexões, contemplava, absorta, a acha que se consumia em labaredas crepitantes.
— Geoffroy pediu-me para velar por si, lady Sey¬mour. Terá algum inconveniente em me pôr ao facto das suas intenções?
— Pelo contrário, ficar-lhe-ei reconhecidíssima se quiser ocupar-se de mim. É a primeira vez que venho a Inglaterra. Não conheço ninguém e ignoro os usos ingle¬ses. Os seus conselhos ser-me-ão preciosos e agradeço-lhos de antemão.
— Muito bem! Está combinado. Vá visitar-me ou mande-me chamar quando lhe pareça necessário. Estarei sempre à sua disposição.
Levantou-se para se despedir.
De pé, diante dele, Geneva, embora desiludida pelo que acabava de ouvir, tentava ainda sorrir, renovando-lhe os seus agradecimentos. O inglês pôde então admi¬rar mais de perto o tom luminoso da pele fina e cetinosa, o brilho profundo das grandes pupilas escuras sombreadas pelos compridos cílios e pensou que, real¬mente, era muito bonita e que seria difícil, para mais sendo rapaz, resistir a tanta sedução.
— Vendo bem — observou com ar jovial — prefiro acreditar numa paixão súbita do que na fatalidade. Sem dar por isso, o brilho dos seus lindos olhos, lady Seymour, mais do que o álcool, fez soçobrar a razão de Geoffroy. No dia seguinte o meu pobre boy esqueceu o impulso que o levara ao casamento, mas nem por isso deixou de ter um ataque de insolação!
Geneva tornou-se escarlate e esse rubor deu novo encanto ao rosto gracioso emoldurado nos anéis escuros e vaporosos.
O inglês ficou positivamente deslumbrado.
“Well! — admitiu de si para si. — Tenho de reco¬nhecer que há tentações muito perigosas para um rapaz de trinta anos. No fim de contas, esta deliciosa rapariga pode muito bem dizer a verdade ao afirmar que Geof¬froy decidiu o casamento sem a consultar”.
Nesse momento, sentia-se muito disposto a favor da juvenil rapariga.
— Good bye! — despediu-se, estendendo-lhe a mão, na qual ela colocou a sua, com confiante abandono.
— Até breve, lorde Bucgham.
E quando o tio Fil se afastou, acenou-lhe ainda com a mão, num gesto afectuoso.
— Então, a entrevista correu bem? — perguntou Maè, que apareceu assim que o inglês se retirou.
— Muito bem. Era lorde Bucgham, o tio de Geoffroy.
— Já calculava.
— Nesse caso para que o recebeu tão mal?
— Para lhe demonstrar que não tinha medo dos seus ares de Christian gentleman*. Além disso, que¬ria de algum modo precavê-la contra explicações tem¬pestuosas. Tanto melhor, se os meus temores não se confirmaram.
(*ares imponentes e fleumáticos).
— Não. Tratou-me com benevolência e preferiu acreditar que Geoffroy me desposara movido por súbita paixão, embora momentânea, talvez. Tendo como base o amor, este casamento torna-se mais admissível, não acha?
— Na América dava-se precisamente o contrário. A questão do sentimento entre nós é secundária. O nosso espírito prático dar-lhe-ia uma explicação mais razoá¬vel. Um homem rico desposou uma linda rapariga, isto é, ofereceu-lhe a fortuna em troca da beleza.
— Seja assim. Mas eu sou francesa e lorde Bucgham teve a delicadeza de não me falar em dinheiro.
— Nesse caso está contente?
— Muito! Receava por tal forma esta entrevista, esperando o pior, que, por não ter perdido a partida logo à primeira cartada, se me afigura quase ganha.
— Faço ardentes votos para que tal aconteça.
— Talvez seja abuso aproveitar tão cedo os seus oferecimentos, lorde Bucgham. Mas tenho umas infor¬mações a pedir-lhe e por isso resolvi visitá-lo.
Sorriu, um tanto confusa ante o olhar penetrante que a observava, mas era tão linda, de uma graça tão subtil, com o rosto fino sombreado pelo chapéu-de-palha de grandes abas, que as pupilas do inglês, ao fitá-la, se impregnaram de estranha doçura.
— A sua visita causa-me grande prazer, lady Seymour. Tenho pensado muito em si desde ontem e per¬guntava a mim próprio qual a melhor maneira de lhe ser útil.
Maé, que se demorara a sair do automóvel, alcan¬çou-os no momento em que lorde Bucgham abria o por¬tão de Green-Park e se afastava para o lado, a fim de Geneva entrar.
Esta apresentou a amiga.
— Já ontem tive o prazer de encontrar esta senhora — observou ele em tom malicioso. — Pode dizer-se que somos conhecimentos antigos.
— Com efeito — replicou Maè tranqüilamente, por forma alguma atrapalhada com o sorriso trocista do inglês. — Fui eu a primeira pessoa que lhe apareceu em Cliff-House e achei-lhe um ar tão carrancudo que o supus capaz de nos engolir a todos, como o gigante da fábula. Ignorando quem o senhor era, não fiquei muito tranqüila quando o deixei só com Geneva e por muito feliz me considerei quando a encontrei sã e salva, depois da sua partida.
— Não faça caso, lorde Bucgham! — protestou Ge¬neva, tanto mais amável e sorridente quanto a compa¬nheira se mostrava desagradável. — Eu, desde as pri¬meiras palavras que trocámos, senti a maior confiança em si.
O olhar de lorde Bucgham ia de Maé para Geneva. Cresceu-lhe talvez o desejo de responder à primeira no mesmo tom irônico, mas as negras pupilas da segunda tinham um brilho tão suave que não soube resistir ao seu apelo. Sem cerimônia, passou o braço pelo da gra¬ciosa visitante, a quem estava muito disposto a consi¬derar como sobrinha, e conduziu-a para uma sala mobilada com luxo severo, com móveis de carvalho primoro¬samente esculpido.
— Sente-se, lady Seymour — disse-lhe em francês — e conte-me o que deseja de mim.
Instalou-a numa poltrona, colocou ao seu alcance uma caixa com cigarros e outra com chocolates.
“Que amabilidade! — pensou Maè, divertida. — Não sabe o que há-de fazer para a obsequiar. Geneva tê-lo-ia seduzido já?”
Era de supor, porque, justamente naquele momento, o velho fidalgo dizia:
— Se tivesse adivinhado, mandaria encher a casa de flores, para festejar a sua primeira visita, lady Seymour.
Ela sorriu.
— A forma por que me recebeu basta, lorde Bucgham. Foi carinhosa e acolhedora.
O inglês olhou-a longamente. Por fim, decorridos breves segundos, perguntou:
— Em que posso ser-lhe útil?
— Aconselhando-me. Ontem, depois de sair, arre¬pendi-me de não lhe ter falado no assunto.
— De que se trata?
— Dos meus deveres para com a família e conhe¬cimentos de Geoffroy... Terei talvez de fazer algumas visitas a pessoas de respeito? Parentes próximos?...
— Pessoalmente, que pensa a esse respeito? Tem muito empenho em as fazer?
— Nenhum! Por mim, considero-as até muito desa¬gradáveis, principalmente não tendo Geoffroy a meu lado para me dar coragem e apresentar-me. No entanto, como em França isto seria uma falta que a família de meu marido nunca me perdoaria... Verdade seja que não deixaria de ser criticada da mesma forma.
— Exactamente como aqui! Se fizer essas visitas, dirão: “Que audácia! Impor-se assim logo de entrada!”. Se não as fizer, não deixarão de reparar e de se sentir melindrados, afirmando que não tem a mais pequena atenção com a sua nova família.
— Então que devo fazer? — balbuciou, aflita, a juvenil lady.
— Por enquanto, nada. Conserve-se numa prudente reserva. Pouco a pouco, apresentá-la-ei aos mais íntimos.
— Prefiro assim.
— Era tudo quanto a preocupava?
— Não. Ainda há a questão do cavalo.
— Do cavalo?
— Adoro a equitação. Poderia montar Peck, o lindo alazão castanho que vi ontem na estrebaria?
— O cavalo de Geoffroy, creio eu.
— É esse. Poderei montá-lo?
— Peck é um pouco bravo. Monta bem?
— Monto... isto é, estou muito habituada a andar a cavalo — acrescentou, com modéstia.
— Mesmo assim — declarou o inglês, correcto, mas com firmeza — não quero que faça a experiência sem eu estar presente. Desejo certificar-me como se porta Peck dirigido por mão feminina. Monta à americana, não é assim?
— Não. À inglesa. Minha tia nunca admitiu ver-me escarranchada num cavalo.
— Nesse caso, não pode montar Peck! Não está habituado a selim de mulher e, se não se sentir sólidamente mantido entre joelhos firmes, revoltar-se-á.
— Por muito selvagem que pretenda mostrar-se, pro¬meto-lhe conservar-me bem segura e não cair. Não conseguindo atirar-me ao chão, Peck submeter-se-á.
— Tem assim a certeza de que não saltará pela cabeça do cavalo?
Fazendo a pergunta, o inglês encarou Geneva com curiosidade. Apreciava a mocidade moderna, ousada, que não recua perante qualquer desporto, por violento que seja. Aquela migalhita de gente, de olhar cândido e sorriso infantil, seria tão boa amazona como afirmava? Não presumiria demasiado quando pedia para montar o espantadiço Peck?
Por outro lado, o facto de saber andar a cavalo correctamente indicava por si só excelente educação... a menos que não tivesse aprendido a alta escola em qual¬quer circo ambulante. Fosse como fosse, bastava Geneva gostar de equitação para adquirir a indulgência de lorde Bucgham.
— Em conclusão, gostaria muito de montar Peck?
— Não pensa noutra coisa — afirmou, do lado, Maè. — Desde que o descobriu na estrebaria só fala nos grandes passeios a cavalo que poderá dar. A equitação parece ser agora o seu desporto favorito.
— Seria preferível escolher Jif. O outro não é proprio para uma senhora.
Geneva abanou a cabeça.
— Como pode aconselhar-me Jif — censurou com delicioso trejeito de amuo — quando ontem, na sim visita a Cliff-House, montava um verdadeiro pur-sang?
— Porque Jif é o mais indicado para uma amazona.
— Lorde Bucgham não o escolheria para si.
— Eu sou homem! Segundo vejo, lady Seymour é pouco razoável.
Arvorava ar severo e quando falava esforçava-se por aparentar grande frieza. Mas no olhar em que envolvia a graciosa sobrinha havia um clarão de indulgência. Geneva era decidida e intrépida, duas qualidades que sempre apreciara nos seus.
“Vamos — pensava. — Geoffroy podia ter encon¬trado muito pior. Não destoa na família”.
Entretanto, Geneva, contrariada nos seus projectos eqüestres, baixou a cabeça e no rosto infantil dese¬nhou-se o maior desapontamento.
— Renuncio à equitação — murmurou. — O assunto está arrumado. Não desejo importunar ninguém.
Um pouco inclinada para a frente, com as mãos cru¬zadas nos joelhos, fixava com olhar sonhador o bailado das chamas, no fogão.
Lorde Bucgham observou-a por instantes. Depois, em silêncio, acendeu o cachimbo e aspirou duas ou três fumaças.
Sem o sorriso de Geneva tinha a impressão de que o aposento ficara de súbito mergulhado em trevas. Sen¬tia-se como criança metida, por castigo, num quarto escuro.
A culpa era dele. Por que lhe recusara assim o pri¬meiro pedido que lhe fazia? Seria pelo simples prazer de a contrariar, irritando-a um pouco, ou para ver como ela reagia perante as dificuldades?
Se havia sido esse o motivo, estava elucidado! Geneva era daquelas que não gostam de impor a sua vontade e se submetem com docilidade às imposições alheias.
Silenciosa e discreta, não insistiu nem demonstrou mau humor.
“Não se me afigura adversária para temer. Aceitará as decisões de Geoffroy sem discutir... Estou quase a convencer-me de que falava verdade ao afirmar ter sido meu sobrinho quem exigiu este casamento”.
Em face da atitude reservada de Gene, lorde Bucgham teve de concordar que a correcção francesa iguala a calma britânica; mas nem por isso a conclusão deixava de ser desastrosa, visto que o único resultado obtido com a recusa havia sido extinguir o sorriso confiante e radioso que brilhava nos lábios de Geneva ao chegar a sua casa.
E então só teve um desejo: reavivar essa chama lumi¬nosa e alegre que tão desastradamente apagara.
— Não quer fumar, lady Seymour? — perguntou, indicando-lhe a caixa. — Estes cigarros são muito fracos.
— Agradeço-lhe, mas não aprecio o tabaco.
Sem proferir palavra, ofereceu a caixa a Maè, que aceitou. Em seguida voltou-se para Geneva.
— Então prove estes chocolates. São excelentes.
— Obrigada.
Tirou um e começou a trincá-lo devagar e com tanta gravidade que o inglês mordeu os lábios.
— O seu silêncio é mais eloqüente do que as pala¬vras, lady Seymour. É terrível quando não lhe fazem as vontades — observou com amargura.
Geneva levantou a cabeça e corou.
— Desculpe, lorde Bucgham. Mas creio não ter dito qualquer palavra que lhe desagradasse.
— Eu é que lamento profundamente não ter encon¬trado imediatamente a solução indicada — replicou com simulado mau modo. — Amanhã de manhã irei a Cliff-House e acompanhá-la-ei no seu passeio a cavalo. Mon¬tará o Peck e eu verei se esse animal lhe convém. Caso contrário, mandar-lhe-ei um dos meus. Tenho um hunter excelente... muito mais próprio para uma senhora do que o de Geoffroy.
O sorriso de Geneva reapareceu imediatamente.
— Fala sério? Se Peck for muito nervoso, está dis¬posto a emprestar-me um dos seus cavalos?
— Com certeza, se me prometer que não será dema¬siado intrépida.
— É adorável, tio Fil!
Calou-se logo, envergonhada.
— Perdão... Agradeço-lhe muito, lorde Bucgham — emendou, mais cerimoniosa. — É muito bom para mim e não mereço que me trate com tanto carinho.
O inglês não abandonara a sua impassibilidade, mas de si para si pensava que, proferido por Geneva, o seu nome próprio era muito mais agradável ao ouvido do que o título.
Por fim, acabou por sorrir.
— Não sou bom, mas já vejo que acabarei sempre por lhe fazer todas as vontades, minha gentil sobrinha. Agora, não abuse.
— Se me estraga com mimos, sinto que vou gostar muito de si — replicou, relanceando-lhe tão meigo olhar que conquistaria o coração mais duro.
— Combinado. E já que o meu nome lhe açode invo¬luntariamente aos lábios, vai passar a chamar-me tio Fil.
— Não se importa, na verdade? Desta vez declaro que o adoro, tio Fil.
O inglês nem pestanejou, mas no íntimo ficou encantado.
— Em troca tratá-la-ei por Geneva, não é assim? Simplesmente, como o faria um tio velhote e indulgente.
— Tio velhote, não — protestou Geneva. — Como um amigo ou um irmão mais velho.
E como o tio de Geoffroy continuasse a fitá-la muito calado, explicou:
— É muito novo ainda para desempenhar o papel que se propôs, tio Fil. Faltam-lhe o semblante severo, os ombros alquebrados e o gênio rabugento e sentencioso. De resto, estou convencida de que nunca conse¬guiria adquiri-los, por muito que o tentasse.
Começaram todos três a rir da espirituosa réplica. Com afectuoso aperto de mão, terminou a visita.
Enquanto o automóvel, conduzindo as duas senhoras, se afastava, lorde Bucgham pegou na carta de Geoffroy, que estava aberta em cima da secretária e este lhe escre¬vera logo após o casamento. Voltou a ler a frase final que resumia os desejos do jovem lorde:
Tio Fil, livre-me dessa mulher odiosa, que aprovei¬tou a minha embriaguez para me levar a casar com ela. Dê-lhe todo o dinheiro que exigir, mas o principal é não a encontrar em minha casa quando regressar. Conto consigo para o conseguir.
Com os cotovelos encostados à secretária, a cabeça descansando nas mãos, lorde Bucgham reflectiu por muito tempo. Recordou tudo quanto Geneva lhe dissera na véspera e os mais pequenos incidentes da visita que acabava de receber.
Por fim pegou na caneta e com a sinceridade que o caracterizava respondeu a Geoffroy:
Meu rapaz
Declaro-te que me julgo incapaz de te livrar de Geneva. Vi-a ontem pela primeira vez e acabo de pas¬sar duas horas com ela. Começou por comer os meus chocolates e acabou por me chamar “tio Fil”. Quando me afirmou que eu não possuía as condições requeridas para desempenhar o papel de tio velhote, compreendi por que tinhas casado com ela.
Aviso-te de que amanhã vai transformar o teu assustadiço e bravio Peck num cordeirinho manso e dócil e eu não me sinto com forças para me opor. Quero ainda dizer-te que o pessoal de Cliff-House está positivamente enfeitiçado.
Julgo que o melhor seria abandonares Oklahoma e regressares quanto antes a Inglaterra. Talvez consigas pôr ponto em tantos estragos.
Muito afectuosamente
Filipe Bucgham.
Enquanto o velho lorde, muito convencido e o mais serenamente possível, escrevia ao sobrinho, Maè, junta ao volante do carro, dizia para Geneva:
— Presumo, minha amiguinha, que lorde Bucghain nunca viu criaturas como nós. Devorava-a com os olhos como se fosse um fenômeno. O seu marido com certeza o encarregou de qualquer missão especial e, de acordo com ela, o tio toma nota de todos os seus gestos e pala¬vras. No lugar de Geneva eu desconfiaria de um homem que fala tão pouco e observa tanto.
Geneva abanou a cabeça.
— Não toque no tio Fil, Maè. Disse-lhe que era adorável e não tenho razões para modificar a opinião que sinceramente formulei diante dele.
— Sério?l Sempre calculei que tivesse falado assim apenas para lhe agradar. Mas, com franqueza, acha qualquer atractivo naquele homenzinho frio, impenetrá¬vel, orgulhoso e enfatuado?
— Penso que é adoràvelmente frio, orgulhoso e impe¬netrável — confirmou Geneva sem se comover. — Mas enquanto proceder para comigo como hoje, não encontro outro advérbio para o classificar.
— Sendo assim, felicito-a, minha querida Geneva, e declaro que a acho adoràvelmente subtil e deliciosa.
E Maè, encantada com a sua própria réplica, desa¬tou a rir.
Com os cuidados mais minuciosos, lorde Bucgham examinou Peck, experimentando as fivelas e verificando se os loros estavam bem esticados. Geneva já se encon¬trava muito direita no selim.
— Como este animal é alto! — suspirou o inglês. — Não me parecia tão alto quando Geoffroy o montava. Meu sobrinho tem as pernas muito compridas, já vejo... muito mais compridas do que as suas. Mas sente-se bem, Geneva?
— Muito bem.
— Um tanto encarrapitada, não é assim?...
— Sim... um pouco, mas não importa.
— Sabe o que me parece assim, lá tão alta?
Calou-se, tentando encontrar a comparação mais apropiada. Geneva começou a rir.
— Já sei. Pareço um sapo equilibrando-se numa caixa de fósforos, como se costuma dizer em França.
— Não. Assemelha-se...
De novo se calou para examinar Geneva.
— Não — emendou, por fim, fleumàticamente — não, a comparação não é essa! Diga antes uma rosa, de pé muito alto, balouçando-se por cima de um molho de folhagem. Assim está mais certo, parece-me.
— Pelo menos é mais poético, tio Fil, e agradeço-lhe ter empregado tão linda imagem, referindo-se à minha pessoa. No entanto, em minha opinião, a sua rosa, alteando-se sozinha no meio de folhagem rasteira, é tão pouco estética como o meu sapo empoleirado na caixa de fós¬foros. Peck, animal de raça e habituado a tão perfeito cavaleiro como Geoffroy, deve julgar-se humilhado ao sentir-me sobre o seu dorso.
— Humilhado ou não, pede-se-lhe apenas que tenha juízo... Em ordem, Mrs. Tedder? — acrescentou, voltando-se para Maè, que montava Jif.
— Quando quiser, lorde Bucgham, pode dar o sinal de partida. Estou pronta a segui-los... caso a minha montada não seja caprichosa.
— Pobre animal! É inofensivo! Nesse caso... a cami¬nho!
Partiram, contornando primeiro o tabuleiro de relva. Por causa de Maè, o andamento era vagaroso e em breve Peck deu sinais de impaciência.
Geneva curvou-se e afagou-lhe o pescoço.
— Peck enerva-se — observou o inglês. — Já com¬preendeu que não é a mão de Geoffroy que lhe mantém a rédea.
— E como esteve muito tempo a descansar, deve sen¬tir a necessidade de fatigar um pouco os nervos. Se me permite, dou uma galopada e verá como depois fica mais calmo.
Bucgham sorriu. Pensava que o desejo de movimento não era do cavalo, mas sim da amazona.
— Vá, mas seja prudente — recomendou.
Geneva largou a rédea e Peck partiu num galope rápido e harmonioso.
— Que maravilhoso animal! — exclamou Geneva, entusiasmada. — É uma delícia galopar assim!
O prazer da corrida tingia-lhe as faces.
Lorde Bucgham não lhe respondeu. Pensava que a sua pupila montava admiràvelmente, mas que semelhan¬tes correrias, com o fogoso Peck, poderiam ser perigosas.
Não quis, porém, exprimir desde logo a sua opinião, a fim de não lhe ensombrar a alegria. Reservar-se-ia para falar quando regressassem a casa.
O passeio prosseguiu.
Toda entregue ao seu desporto favorito, Geneva nem falava, o que levou Maè a dizer-lhe:
— Diga alguma coisa, Gene. Vai tão calada! Não quer compartilhar connosco o seu contentamento? Os seus olhos revelam-nos que está encantada.
E, dirigindo-se ao seu companheiro, a americana acrescentou:
— Não calcula, lorde Bucgham, como a sua sobri¬nha é entusiasta e impulsiva quando exterioriza as suas impressões. É uma garota exuberante, cuja alegria parece irradiar em volta dela e nos aquece a alma.
— Calculo. Já reparei quanto o seu sorriso é encan¬tador.
— Ouve, Geneva? Pode rir à sua vontade. Não se constranja.
Gene olhou para Maè e em seguida para o tio Fil. Um sorriso malicioso errava-lhe nos lábios.
— Que dizes a isto, meu lindo amiguinho? — mur¬murou, afagando de novo o pescoço do cavalo. — Se tivéssemos uma orquestra à nossa disposição, talvez con¬seguíssemos fazer rir estes dois entes carrancudos. Deves ter o sentido musical e poderíamos dançar a mais extra¬vagante das quadrilhas! Seria maravilhoso... mas, como falta a música, tentemos outra coisa. Estás de acordo, meu valente Peck?
Ergueu-se a meio no selim, abraçando a estrada com o olhar.
Sabia que mais adiante, na curva, havia uma árvore atravessada. Em seguida, como a ponte estivesse caída, o atalho era cortado por um ribeirinho... e que mais longe alta sebe separava a floresta de um campo de pastagens.
O sorriso de Geneva acentuou-se.
Mudando de voz, aprumou-se e começou um dis¬curso enfático, extremamente cômico:
— Ides ver, senhoras e senhores... Ides ver qual¬quer coisa de extraordinário! Não é seda, nem aço, nem carvão o que vou apresentar-vos. É mais belo e mara¬vilhoso ainda... Aproximai-vos e vede! Se a vossa vista é má, arranjai óculos, mas aproveitai porque o espectáculo é grátis e único! Podeis apalpar se desconfiais que a mercadoria é ordinária! Vinde ver! Aproximai-vos! Eu não vendo o artigo, dou-o! Não vos exijo cinqüenta francos, nem quarenta, nem trinta... Nem sequer cem sous... Que digo eu? Nem vinte! É de graça, estais ouvindo?
E, antes que Maè e o tio Fil, que sorria da lenga-lenga, caíssem em si, Gene, inclinando-se para a frente, fustigou a montada, que partiu com a velocidade do raio, voando pelo atalho tapetado de musgo.
O inglês, surpreendido, soltou uma praga. De pé nos estribos, sem se lembrar de seguir a intrépida amazona, viu esta afastar-se a todo o galope.
Pouco adiante estava uma árvore caída.
— How! Terrível! Vai dar cabo de si! — resmungou Bucgham, aflito.
Mas Geneva obrigou o cavalo a saltar e transpôs o tronco como se este não passasse de simples montículo. Novo salto e Peck estava do lado de lá do ribeiro.
— All right! Demônio de rapariga! — exclamou o inglês, em cujos olhos apontava um brilho indiscreto.
Ao longe, Geneva e o seu cavalo, num terceiro salto impecável, transpunham o último obstáculo, a sebe verdejante que os separava do prado.
— All right! — não pôde deixar de bradar o tio Fil, cheio de entusiasmo. — Saltou a ribeira e a sebe! É assombrosa, a marota! Hurra! Hurra!
— Na verdade, foi maravilhoso, mas eu ia morrendo de susto! — declarou Maè em voz desfalecida. — Se o cavalo caísse podia esmagá-la! Se tem algum apreço por sua sobrinha, lorde Bucgham, não deve aplaudir assim as suas proezas.
A fisionomia do inglês tornou-se severa.
— Tem razão! — concordou. — Lady Seymour monta adoràvelmente bem, mas porta-se como uma girl de circo! É intolerável, escandaloso! Shame! Shame!
Maè sorriu.
— Não exageremos! Gene monta a cavalo por forma a causar inveja aos mais distintos cavaleiros. Todavia, se lho disser, continuará a praticar destas loucuras e um dia acontece-lhe alguma desgraça.
— Com certeza, não vou felicitá-la! Expor assim o pobre Peck! Um cavalo de tanto valor!
— Se encara as coisas por esse prisma, não falemos mais nisso — protestou Maè, com azedume. — Julgo até inútil fazer qualquer recomendação a Geneva. Basta saber que o cavalo é o favorito de Geoffroy para se lhe tornar sagrado.
— Sendo assim, tudo vai bem. Desde que ela poupe Peck...
A americana volveu-lhe um olhar carregado de cen¬suras e mordeu os lábios.
Lorde Bucgham parecia tão convicto de que só o valor e a vida do cavalo contavam, naquela emergência, que no seu íntimo não pôde deixar de lhe chamar estúpido.
“Estúpido e odioso — pensou. — Se um desastre viti¬masse Geneva, quase iria jurar que ficava encantado com a solução. O Destino poupava-lhe o trabalho de livrar o sobrinho da esposa indesejável”.
Entretanto, haviam alcançado Geneva, que estacara no prado. Não saltou do cavalo, pois, devido à altura deste não o podia fazer sem auxílio, e abandonou as rédeas no pescoço do animal, que pastava tranqüila¬mente a erva.
Com olhar malicioso, espreitava a chegada dos com¬panheiros, persuadida de que estes iriam felicitá-la pelas suas habilidades eqüestres.
Mas as felicitações esperadas não vieram. Maè, amuada com o inglês pela sua indiferença, não deu palavra. Bucgham, por seu lado, parecia muito descon¬tente e apostrofou a intrépida amazona, mal chegou junto dela.
— Foi excessivamente imprudente, lady Seymour. Já a tinha avisado de que Geoffroy gosta muito desse cavalo.
— Descanse! Peck está ileso... De resto, salta na perfeição. Com certeza, Geoffroy o habituou a isso. Estou convencida de que para o futuro farei dele tudo quanto quiser.
— Não terá muita ocasião para isso.
— Porquê?
— Porque vou mandá-lo quanto antes para Green-Park.
As negras pupilas de Geneva reflectiram o maior assombro.
— Não quer que eu torne a montá-lo? — balbuciou. — Por causa de três insignificantes saltos!
— Sim, por causa disso e ainda por outras razões.
Vivo rubor se espalhou pelas faces de Geneva.
— Não devia tê-lo obrigado a saltar, mas não sabia que o contrariava — confessou com tristeza. — Peço-lhe que me perdoe, lorde Bucgham.
Retomara o tratamento cerimonioso e ao mesmo tempo o inglês viu reflectir-se-lhe no semblante tão intenso desapontamento que não conseguiu manter por mais tempo o seu ar severo.
— Não fique triste, Geneva — pediu com afabilidade. — Monta muito bem e estou certo de que não aconteceria qualquer desastre a Peck, se continuasse a utilizá-lo. Mas reconheci que o cavalo é muito alto para si, e, seja sapo ou rosa, não gosto de a ver deslocada. Vou mandar-lhe Eagle, o hunter hungle de que ontem lhe falei. Está educado para a caça e saltos de obstá¬culos. Vai ver como é muito mais próprio para si.
— Então não está zangado comigo, tio Fil? — insistiu ela, olhando-o às furtadelas.
— Creio que seria mais prudente fazer voz grossa e ralhar consigo — replicou de bom humor. — Foram esses os conselhos de Mrs. Tedder, mas mentiria. Admiro a sua intrepidez e alegra-me verificar que monta na per¬feição. Geoffroy também adora a equitação. Peço-lhe simplesmente que seja prudente. Ficaria desolado e nunca perdoaria a mim próprio se lhe acontecesse algum desastre.
— Nesse caso, as suas preocupações não são por causa de Peck? — inquiriu Geneva, sorridente.
— Confesso que não! — declarou o tio, com fran¬queza e contrito. — Geoffroy não me recomendou que olhasse pelo cavalo, ao passo que, se a enviou para junto de mim, seria naturalmente para ter a certeza de que a encontraria sã e salva quando regressasse.
— Que Deus o ouça, tio Fil! — murmurou Gene, muito corada. — Não calcula como desejaria partilhar o seu optimismo.
— Tem por acaso idéias pessimistas?
Sem lhe responder, confirmou com a cabeça.
— Não sei porquê? — interveio Maè, com autoridade. — Não creio que os nossos maridos nos tivessem desposado para logo em seguida nos porem de lado sem cerimônia! Lorde Seymour e William Tedder são dois gentlemen! Usamos o seu nome, não devemos duvidar dos seus sentimentos. Por mim, estou pronta a procla¬mar bem alto que deposito inabalável confiança em meu marido.
Pelos lábios de Geneva deslizou imperceptível sor¬riso. Quanto a lorde Bucgham, envolveu as duas rapa¬rigas num olhar bizarro e prolongado.
Talvez perguntasse de si para si quais os misterio¬sos pensamentos encobertos com o ar desenvolto da mais velha e com a aparência submissa e meiga da compa¬nheira. Os mesmos, sem dúvida, isto é, o desejo de se imporem ou de obrigarem os seus levianos esposos a pagar bem caro o erro de uma noite.
— Será melhor regressarmos — decidiu, após breves minutos de silêncio.
— Como queira — acedeu Geneva.
E, documente, pegou nas rédeas e obrigou Peck a retomar o caminho de casa.
Nessa mesma noite, em Green-Park, lorde Bucgham, no silêncio calmo da sua sumptuosa moradia, evocava as peripécias do passeio matinal.
— É para lamentar que Geof tenha conhecido esta girl em circunstâncias tão pouco correctas... Tem linha, a rapariguita, e monta maravilhosamente.
A carta que na véspera escrevera ao sobrinho encon¬trava-se ainda em cima da secretária.
O inglês pegou-lhe, pensativo, e por fim rasgou o sobrescrito.
Após alguns segundos de reflexão acrescentou-lhe algumas linhas, em pós-escrito.
A experiência foi decisiva, meu pobre Geof. Peck está subjugado e com tanta facilidade como o pessoal de Cliff-House. Pessoas e animais, todos se submetem à sua vontade... Eu próprio, o que é lamentável, sinto-me quase incapaz de levar a cabo a missão de que me incumbiste. Acredita, meu rapaz, o teu lugar é aqui. Dá plenos poderes a Tedder e regressa quanto antes a Inglaterra. Ninguém, como o interessado, para tratar dos assuntos que lhe dizem respeito.
Teu dedicado
Filipe Bucgham
Decorreram algumas semanas sem trazerem qualquer desilusão para os que apreciavam o encanto de Geneva.
Sempre amável, sorridente, carinhosa e benévola, não tinha exigências nem irritações e por isso todos procura¬vam agradar-lhe e satisfazer-lhe os mais pequenos dese¬jos. E quando ela os recompensava com um dos seus radiosos sorrisos, tinham a impressão de que ficavam com a alma iluminada para todo o dia.
Lorde Bucgham, a todo o passo, tomava de si para si as mais enérgicas resoluções.
— Devo tratá-la com mais frieza. Quando chegar Geoffroy não deixará por certo de me censurar por ter criado entre nós esta atmosfera afectuosa... e, vendo bem, tem razão, o pobre rapaz! Afastei-me por com¬pleto do caminho que me traçou.
Chegando a este ponto das suas reflexões, o tio Fil soltava profundos suspiros. É que a presença de Geneva dia a dia se lhe tornava mais preciosa. Todos os pre¬textos lhe serviam para se encontrarem. Que esplêndidas cavalgadas ou maravilhosos passeios em automóvel, tio e sobrinha haviam dado juntos! E os agradáveis serões, que decorriam em amenas conversas ou animadas par¬tidas de cartas, amiúde interrompidas com alegres gar¬galhadas. O velho lorde sentia-se rejuvenescer.
“Nunca Green-Park me pareceu tão acolhedor. Sin¬to-me bem em minha casa. Acontece o mesmo com Cliff-House. Antigamente, era um ninho de corujas e quando me encontrava entre aquelas paredes arruinadas dava-me a impressão de sufocar e só pensava em sair o mais depressa possível. Agora, a presença de Geneva expul¬sou todos os miasmas nocivos e hoje vou lá com prazer. E não só eu, todos aqueles que ali apresento não dei¬xam de voltar”.
Com efeito, lorde Bucgham visitava Cliff-House com regularidade e criara ali um círculo de amigos fiéis, uma espécie de cenáculo, que se reunia em casa de Geneva com muita freqüência.
Todavia, o inglês não deixava de pensar que a inex¬plicável sedução que emanava de Geneva chegava a ser enervante. Era como mancha de azeite, alastrando rapi¬damente pelas casas amigas e de tal forma que, em vez de libertar Geoffroy, de o livrar da mulher indesejável e odiosa que aproveitara o seu estado de embriaguez para se fazer desposar, como o sobrinho lhe pedia em todas as cartas, lorde Bucgham tornara mais fortes os laços que uniam Geneva à família do marido. O velho tio reconhecia a anomalia da situação e sentia terríveis remorsos.
Mas seria possível proceder por outro modo? Che¬gava a Cliff-House cheio de coragem e decidido a afas¬tar dali a francesa, fosse por que meio fosse. Em pre¬sença dela, porém, todas estas resoluções, tão hostis, se desvaneciam, como a neve se funde ao chegar a Prima¬vera. Quando a sobrinha lhe aparecia risonha, acolhendo-o com carinhosas manifestações de alegria, esquecia todas as veleidades de resistência.
“Aquele meu sobrinho — pensava, enervado — já me está aborrecendo deveras. Criou embaraços na sua vida e agora pede à família para o livrar deles. No fim de contas, que tem a censurar a sua mulher? É deli¬ciosa, um amor! O maroto não pôde resistir aos seus encantos, tenho agora a certeza disso, embora pretenda convencer-me do contrário, e exige que eu seja mais forte. É sempre assim! É extraordinário como a maior parte dos malucos conta com a sensatez dos outros para remediar as suas tolices!
E nos dias em que pensara afastar Geneva de Cliff-House cumulava-a de flores e de bombons, como se qui¬sesse compensá-la e fazer-se perdoar pelos maus pen¬samentos que as cartas de lorde Seymour despertavam no seu cérebro.
— Sabe, tio Fil — disse-lhe naquele dia Geneva — encontrei hoje, por acaso, um amigo de Geoffroy. Pelo menos, apresentou-se com esse título.
Lorde Bucgham, que fumava tranqüilamente, perto do fogão, levantou a cabeça e encarou a sobrinha.
— Alguém visitou Cliff-House sem que tivesse sido apresentado por mim?
— Não. Trata-se de um cavaleiro que me dirigiu a palavra na estrada.
— Sim?
— Não fique admirado, tio Fil. Não é hábito meu falar a desconhecidos. Foram as circunstâncias que assim o exigiram.
Bucgham tirou algumas fumaças, não deixando de observar atentamente a sua interlocutora. Estava ao fado do incidente, mas queria verificar até que ponto ia a franqueza de Geneva.
— Conte-me como se passaram as coisas, Geneva.
Geneva encontrava-se só em Cliff-House havia alguns dias. Maè partira para casa da família de Tedder, que vivia no Norte de Inglaterra. A americana tinha resolvido subitamente essa visita a fim de ver o acolhi¬mento que receberia dos pais do marido e por ele depreender os sentimentos do filho.
Durante a ausência da amiga, Geneva ia todos os dias almoçar a Green-Park, com lorde Bucgham.
Naquela manhã chegara um pouco mais cedo, no desejo de conversar com ele e aproveitar o tempo, pois o tio avisara-a na véspera de que seria forçado a ausen¬tar-se nessa tarde, depois da merenda.
Naquele momento, sentada em plena luz, com um delicioso vestido branco, frágil como imaculado lírio, sob a grande capelina de palha de Itália, guarnecida com flores lilases, estava mais encantadora do que nunca e o velho lorde contemplava-a com evidente prazer.
Sem deturpar o mais pequeno pormenor, como o inglês receara, Geneva descreveu o encontro:
— Encontrei esse desconhecido ontem de manhã, quando saí de Green-Park. Como deve lembrar-se, ia sozinha, porque Maè já tinha partido, de visita à sua nova família. A pouco mais de dez minutos de caminho, rebentou um pneu. Bill, o meu motorista, arrumou o carro junto ao vaiado e deu-se ao trabalho de mudar a roda. A operação, em geral, não é demorada, mas eu saltei do automóvel para desentorpecer as pernas e fiquei parada a vê-lo trabalhar. De repente, outro carro que surgia em sentido contrário, travou a poucos passos de nós. O condutor desceu e aproximou-se. Era novo, de aparência distinta e bem posto. Em resumo, tinha toda a aparência de um gentleman. Com toda a cortesia, de chapéu na mão, avançou para mim. Eu estava vestida de branco, como hoje, e foi por isso, naturalmente, que me tomou por uma rapariguita.
“— Um desastre, miss? — informou-se. — Posso ser-lhe útil?
“— Obrigada, milorde. Trata-se apenas de mudar a roda e o meu motorista procederá sozinho à mudança.
“Bill endireitou-se e compreendi que conhecia o via¬jante, porque o cumprimentou respeitosamente, tirando o boné.
“— Este não é o carro de Cliff-House? — indagou.
“— Não se enganou, milorde. E eu sou Bill, o moto¬rista de lorde Seymour.
“Um tanto atrapalhada com os olhares do desconhe¬cido, aproximei-me da portinhola e fingi procurar qual¬quer coisa na bolsa do carro. Calculava eu que, depois de ter obtido estas informações, o viajante se conten¬taria. Pelo contrário, continuou:
“— Supus que o castelo estivesse fechado durante a ausência de lorde Seymour. Vejo que me enganei.
“O motorista hesitou.
“— Com efeito, assim aconteceu durante algum tempo, mas presentemente está habitado.
“O pobre rapaz, em face da minha reserva, não sabia muito bem o que havia de dizer. É de supor que as suas reticências intrigassem o desconhecido, porque se voltou para mim.
“— Perdoe-me se me atrevi a dirigir-lhe a palavra sem prévia apresentação, miss. Mas sou amigo de lorde Seymour e teria o maior prazer em ser agradável a qualquer dos seus. Vejo, porém, que o seu motorista tem a tarefa quase concluída e de nada lhe posso servir.
“— Não deixo por isso de lhe agradecer — respondi com delicadeza, acompanhando estas palavras com ligeiro cumprimento.
“Pretendia, assim, fazer-lhe compreender que não devia insistir. Mas simulou não ver o meu gesto.
“— Permita-me, visto que este encontro me propor¬cionou ocasião para isso, que lhe peça notícias de lorde Seymour... Está bem?... A viagem tem decorrido sem novidade?
“Como me conservasse calada, um tanto enervada com a sua insistência, Bill, que havia concluído a repa¬ração, aproximou-se dele e avisou:
“— Sua Graça é lady Seymour.
“— Lady Seymour?!
“— Sim, milorde. A esposa de lorde Geoffroy.
“O desconhecido sobressaltou-se.
“— Mil perdões, lady Seymour! — suplicou, atrapa¬lhado, decerto por me ter tratado por miss. — Eu não podia adivinhar!
Curvou-se respeitosamente, continuando a descul¬par-se:
“— Quando me despedi de Geoffroy, há poucas semanas ainda, não me falou dos seus projectos matri¬moniais e nunca calculei que casasse tão depressa.
“Por mim, conservava-me calada e numa atitude involuntariamente retraída, pois achava esse desconhe¬cido, que parecia conhecer tão bem meu marido, um tanto indiscreto. Ele, porém, tentava por todas as for¬mas quebrar o gelo da recepção.
“— Consinta que me apresente, lady Seymour: sou Clarence Bryce, filho mais velho do conde de Bryce, um dos leaders mais célebres do Parlamento, que fale¬ceu o ano passado.
“Novo cumprimento da minha parte, sem qualquer manifestação de afabilidade. O nome citado era-me completamente desconhecido. Encontro-me há muito pouco tempo em Inglaterra para estar a par da identi¬dade de todas as notabilidades políticas britânicas. O conde de Bryce, como o viajante dissera chamar-se, não parecia muito preocupado com o meu silêncio. Dir-se-ia até estar mais seguro de si, visto ter-se apresen¬tado e eu saber já quem ele era.
“— Quero dizer-lhe ainda, lady Seymour, que, além de ser amigo de Geoffroy, sou também um dos seus vizinhos.
“Indicando-me com a mão um ponto afastado, pre¬cisou:
“— Habito Westra-Burg, aquela moradia branca com torreões de ardósia... Fica a meio caminho de Green-Park e Cliff-House. Como vê, não minto quando afirmo ser um dos seus mais próximos vizinhos e também um dos mais respeitosos!... Minha mãe ficará encantada ao saber Geoffroy casado e que Cliff-House tem agora a mais gentil e encantadora das castelãs.
“Durante a conversa, Bill arrumara a ferramenta e encontrava-se já sentado ao volante. Entrei para o carro e o conde de Bryce compreendeu que insistir seria faltar às mais elementares regras da delicadeza. Cumprimen¬tou-me com todo o respeito, desculpando-se mais uma vez pela sua audácia, e despediu-se. Em minha opinião — acrescentou Geneva ao concluir a narrativa — o conde Bryce é um homem interessante, muito amável, mas sufi¬cientemente indiscreto quando se encontra só com uma senhora.
Lorde Bucgham escutava Geneva sem fazer qual¬quer reflexão. Verificava que lhe descrevera fielmente o encontro, sem acrescentar nem omitir qualquer pormenor.
Envolvendo num olhar benévolo o lindo rosto que se erguia para ele, declarou, sorridente:
— Recebi ontem à tarde a visita do conde Bryce. É de supor que a sua curiosidade, não se satisfazendo com os esclarecimentos arrancados à sua reserva, dese¬jasse obté-los de mim. Não calcula a quantidade de perguntas que me fez a seu respeito.
— Não compreendo tanto interesse pela minha pes¬soa! — protestou Geneva, aborrecida. — Julgo esse cava¬lheiro um pouco atrevido!
O sorriso de lorde Bucgham acentuou-se.
— Parece-me que lhe produziu profunda impressão. Elogiou em todos os tons a sua beleza e elegância... Não vejo motivos para se admirar: o conde Bryce é celibatário, entusiasta e... muito rico. São três circunstâncias atenuantes que lhe permitem interessar-se apaixonada¬mente por uma mulher bonita e nova.
— Mas eu sou casada com o seu melhor amigo. Bastava esse facto para não se ocupar de mim.
— Geoffroy está longe de mais para se impor como marido — explicou lorde Bucgham, com a sua experiên¬cia. — Felizmente, Clarence é o homem mais leal que conheço. Nunca pensou em a cortejar. Achou-a atraente, bonita, eis tudo. Estou certo de que passou grande parte da noite a pensar na melhor forma de lhe ser agradável, cumprindo assim os seus deveres de amizade para com Geoffroy, que não pode velar pela mulher. Julga-se tal¬vez na obrigação de substituir seu marido, tomando sobre si os encargos que, normalmente, lhe incumbiriam a ele. Para o futuro pode contar com Bryce em tudo e por tudo. Não alimenta qualquer pensamento reser¬vado, pode crer, e nem sequer lhe ocorre que, se a Geneva fosse mais velha e menos bonita, os seus deve¬res e dedicação para com o amigo não se lhe afigura¬riam tão imperiosos.
Geneva começou a rir.
— O caso é exposto por si com tanto humour, tio Fil, que quase me julgo na obrigação de aceitar as homenagens do nosso vizinho sem me zangar.
— Com certeza! O conde Bryce será o mais dedi¬cado e respeitoso dos seus amigos. E pode acreditar-me, na situação um pouco falsa em que a coloca a ausência de Geoffroy, essa dedicação não é para desprezar. Clarence é alguém que marca na sociedade. As suas opi-niões são acolhidas com respeito e, se a mãe se interes¬sar por si, terá tudo a ganhar com isso... principalmente quando eu a iniciar na vida mundana.
Uma nuvem velou a meiga fisionomia de Geneva.
— Supus que a sua influência bastaria para me abrir todas as portas, lorde Bucgham.
— Evidentemente! Estando eu presente só encon¬trará sorrisos e amabilidades, mas não vou jurar, minha filha, que, estando eu ausente, certos dentinhos afiados não lhe mordam com prazer. Nessa altura, a amizade de Clarence e da mãe ser-lhe-á preciosa, verá.
— Em toda a parte a sociedade é a mesma — mur¬murou Geneva com súbita gravidade. — As que surgem de novo são sempre maltratadas.
— É humano, infelizmente! Seja como for, alegra-me que tenha conhecido e conquistado o conde Bryce sem a minha intervenção... É inútil repetir-lhe que ficou encantado com a sua reserva e correcção: “É well-born”, disse-me com admiração; da high-clas, sem a menor dúvida!” e afirmo-lhe que semelhante cumprimento, na boca de um homem como ele, não é banal.
Geneva, de si para si, admirou-se com a importân¬cia que lorde Bucgham atribuía à opinião de um vizinho, quando, convivendo com ela dia a dia, deveria já ter-se certificado da correcção da sua conduta.
Só mais tarde, num chá em casa de lady Patrícia, uma irmã de Geoffroy casada com sic Artur Gordon, lhe apareceu em toda a evidência quanto se podia dar por feliz com a amizade e dedicação que o conde Bryce professava por ela.
— Então, vem satisfeita com a sua viagem, Maè?
— Radiante!
— A sua nova família, que tal?
— Muito amável. Tedder não lhes mandou dizer coisa alguma e fui eu quem teve de participar o nosso casamento aos pais. Como é de calcular, ficaram admiradíssimos.
— Suponho! Mas o principal foi receber deles bom acolhimento.
— Melhor do que isso: ficaram encantados!
— Sim?
— Yes! É como lhe digo. Como sou americana, cal¬cularam que eu fosse muito rica e que o filho havia feito belo casamento.
Geneva desatou a rir.
— São práticos, antes de mais nada! Decerto achou imensa graça à confusão!
— No, não achei graça nenhuma! Em minha opinião, em primeiro lugar os pais deviam querer saber se o filho era feliz.
— Com efeito, era mais natural, principalmente da parte da mãe. E, depois, disse-lhes a verdade, não é assim?
— Não! Que tolice! Pelo contrário, afirmei-lhe que a minha família era rica e que esperava famosa herança de uma tia.
— Vendo bem, não mentiu. Fez uma espécie de jogo de azar, com o futuro.
— Julgo que o bluff foi ainda mais no presente. Tedder ignora a minha situação real. Minha tia é rica e eu freqüentava os meios requintados e opulentos. Pode ser que, de facto, venha a herdar. Pode acontecer tam¬bém o contrário. Ninguém, nem eu própria adivinho, se minha tia me deixa alguma coisa ou não. Portanto, nada lhes disse. Do mais novo ao mais velho, todos ficaram encantados supondo-me rica, pelo menos no futuro... Calculo que Tedder também gostará de o saber! Como minha tia ainda não morreu, só mais tarde... muito mais tarde poderão conhecer a verdade. E nessa altura já eu serei madame Tedder há muito tempo e pode ser que meu marido se afeiçoe a mim. Compreende por que não os desiludi?
— Compreendo muito bem — afirmou Geneva, que pensava em todas as humilhações que tal embuste pode¬ria acarretar para Maè. Ela nunca teria aceitado entrar numa família usando de semelhante trapaça. Maè, porém, pensava de forma diferente e até chegou a acon-selhá-la a adoptar o mesmo processo.
— Creia, minha amiguinha, que teria tudo a ganhar se me imitasse. Estou certa de que a família de seu marido, começando por lorde Bucgham, a censuram ape¬nas pela sua pobreza. Se inventasse um parente qual¬quer muito rico, não tendo outro herdeiro senão a Geneva, toda a gente aprovaria o casamento de Geoffroy.
Geneva abanou a cabeça.
— Lorde Seymour é rico e não pensa em aumentar a sua fortuna com um casamento de interesse. Pode escolher esposa, atendendo unicamente ao amor ou pro¬curando uma aliança aristocrática. Ora eu não sou a mulher a quem ama, nem casando comigo se eleva acima do lugar que hoje ocupa na alta sociedade inglesa.
— Seymour tem por esposa uma das mais lindas ladies de Inglaterra. É essa a opinião de todos que a conhecem, começando pelos criados. Conquistou-os desde o primeiro dia e, o que é melhor, a primitiva impressão não fez senão confirmar-se, não os desiludiu na sua expectativa.
— Talvez porque, pelo meu nascimento, embora aris¬tocrático, estou um pouco mais próxima deles do que as anteriores ladies Seymour. Mas aos olhos de Geoffroy isso não é um título de recomendação,
— As rainhas que sabem fazer-se amar do povo facilitam a tarefa dos maridos. Será Seymour mais exigente do que um rei?
— Talvez! Justamente por não ser rei e não ter vassalos, não precisa de que lhe facilitem a tarefa. Da mulher que usa o seu nome exige somente que lhe lisonjeie o orgulho e esteja colocada na alta sociedade britânica, pelo menos em pé igual ao dele.
— Se Seymour se contentar com tal programa, não dá uma idéia muito feliz do seu caracter. Sempre supus que os ingleses se preocupassem menos com a opinião alheia do que com a sua própria.
— Não falemos mais no assunto! — pediu Geneva, que desejava mudar de conversa. — Que resolveu fazer, depois desta visita à família de seu marido?
— Ficar consigo. Os pais de Tedder são excelentes criaturas, mas muito aborrecidos. Todas as noites ao serão me interrogavam sobre a minha tia, queriam saber com quem me dava na América e gostavam que lhes contasse toda a minha vida. Nos primeiros dias disse-lhes tudo quanto me passou pela cabeça, mas, por fim, julgo que, se me demorasse mais tempo, acabaria por adoecer! Irritavam-me. Felizmente, as ocupações de Ted¬der obrigam-no a viver longe da família, senão creio que não resistiria e o pobre rapaz teria de sofrer as conse¬qüências do meu enervamento constante.
Começaram as duas a rir.
— Nesse caso, fica comigo?
— Fico, se estiver disposta a aturar-me.
— Sinto grande prazer em tê-la a meu lado.
— Ainda bem. Além disso, tenho a impressão de que lhe serei útil quando Seymour voltar. Demonstra um tal desprezo por si...
— Não sejamos injustas, Geoffroy não me desprezou.
— Pior ainda! Finge ignorá-la. Respondeu alguma vez às suas cartas?
— Procede para comigo por forma idêntica à de Tedder para consigo: silêncio absoluto.
— Aqueles dois boys entendem-se na perfeição. Tão bem como nós — concluiu Maè alegremente.
— É provável.
— Quando regressarem teremos de os separar se qui¬sermos vencê-los.
— É muito combativa, Maè.
— E a minha amiguinha muito branda. Seymour fará de si o que quiser. Felizmente, cá estou eu para lhe dizer as verdades que merece.
Súbita gravidade passou nas pupilas de Geneva.
— Não deve dizer-lhe coisa alguma. Não se prende uma mulher contra sua vontade e nem todo o ouro do mundo me obrigaria a continuar a ser esposa de Geof¬froy, quando o seu coração pertence a outra.
-— Ora! Acabará por se apaixonar por si e esquecerá essa outra.
— Não darei um passo para conquistar Seymour se ele não me quiser a seu lado. Tenho reflectido muito, minha amiguinha, e resolvi restituir-lhe a liberdade logo que ele regresse. Assim, não chegará a detestar-me nem terá de recorrer a outros meios menos leais para me afas¬tar. O nosso casamento foi um erro e quanto mais cedo se remediar esse erro, melhor.
— Tedder não deve esperar que eu a imite. Foi uma grande honra para ele ter-lhe concedido a minha mão. E o meu maridinho vai saber quanto custa não ter apre¬ciado essa honra em todo o seu valor.
— Que lindas flores! Não sabia que existiam nas estufas de Cliff-House lírios tão belos!
Geneva voltou-se para lorde Bucgham, que acabava de chegar e reparara imediatamente no lindo cesto com artístico laço de seda azul na asa.
— Essas flores não são de Cliff-House, tio Fil — elucidou, corando ao de leve. — Trouxe-mas o carro de Westra-Burg, da parte do conde Bryce. Esses lírios são belos, de um colorido maravilhoso, e de facto só em estufas se poderiam obter flores tão grandes e per¬feitas. Não foram decerto criadas nos jardins de Wes¬tra-Burg.
— Os nossos vizinhos possuem estufas magníficas. A condessa adora as flores e o marido velava para que nunca deixasse de estar rodeada delas. É natural que Clarence ponha o mesmo cuidado em satisfazer essa paixão da mãe. Mas a que propósito lhe enviou o conde de Bryce tão delicado presente?
Sem uma palavra, Geneva estendeu-lhe o cartão que o conde pregara numa das pontas do laço.
O conde Clarence de Bryce suplica a lady Seymour que ponha termo à sua inquietação, dando-lhe notícias suas. Ficar-lhe-ia muito grato se o autorizasse a ir pes¬soalmente certificar-se se o desagradável incidente de ontem não teve qualquer repercussão na sua saúde e se já está restabelecida do justificado susto.
Com as mais respeitosas homenagens.
— Que significa isto, Geneva? Apanhou algum susto? Que parte tomou o conde nesse incidente?
Geneva abriu os braços num gesto de fatalismo.
— Está escrito que o conde se encontre sempre no meu caminho. E desta vez posso considerar-me muito feliz por isso.
— Explique-me o que se passou e qual a razão por que não me telefonou ontem. Se não viesse visitá-la hoje, ficaria ignorando o perigo que correu. O que foi? Que serviço lhe prestou o nosso vizinho?
Marcava por tal forma o seu desagrado que a sobri¬nha deu-lhe o braço e pediu-lhe com meiguice:
— Não se zangue, tio Fil. Nunca foi minha inten¬ção ocultar-lhe o incidente. Não desejava, porém, dar-lhe proporções de catástrofe, nem assustá-lo, o que decerto sucederia se lhe tivesse telefonado. Além disso, como estou sozinha em Cliff-House, o tio poderia supor que aproveito a ausência de Maè para fazer tolices, quando, afinal, é justamente nessas ocasiões que tenho mais juízo. Asseguro-lhe que o caso não teve importân¬cia alguma.
— Clarence não deixa por isso de estar preocupado, desejando certificar-se se o abalo não teve conseqüências desagradáveis para a sua saúde.
— O conde exagera um tanto as suas inquietações, a fim de arranjar um pretexto para vir a Cliff-House. Provavelmente, visitava todos os dias o castelo, quando Geoffroy cá estava, e agora faz-lhe falta o passeio.
— Em conclusão, quer dizer-me o que se passou?
— Vou contar-lhe tudo, tio Fil. Mas, primeiro, sen¬te-se nessa poltrona e acenda o seu cachimbo. E, para poder certificar-se à vontade de que o tal susto não me alterou a saúde nem sequer a boa disposição, vou sen¬tar-me nesta almofada.
E, com movimentos de uma graciosidade infinita, reunindo o gesto à palavra, sentou-se quase aos pés de lorde Bucgham e encostou-se-lhe aos joelhos, num abandono quase filial.
Essa atitude perturbou o velho lorde até ao mais íntimo da alma. Pensou que, se tivesse casado na idade em que em geral todo o homem funda o seu lar, pode¬ria ter uma filha como Geneva. A posição confiante e afectuosa da sobrinha despertou-lhe a fibra paternal e provocou-lhe sensações de intensa doçura, até ali des-conhecidas.
Maquinalmente, passou-lhe a mão pela cabeleira sedosa, numa carícia leve.
Com o rosto erguido para ele, Geneva começou:
— É engraçado ter mais uma vez de lhe contar uma história em que entra o conde Bryce. Se esse desconhe¬cido continua assim a fazer parte do cenário da minha vida, será melhor arranjar uma espécie de diário, rela¬tando fielmente todos os nossos encontros. No fim, teria um romance completo e pronto a ser editado.
— A idéia não é má, mas depende do interesse dos capítulos — admitiu fleumàticamente lorde Bucgham. — O princípio não foi dos piores. Resta saber se o encon¬tro de ontem foi tão interessante como o primeiro.
— Muito mais; vai ouvir, tio Fil. O conde sem dúvida está convencido de que me salvou a vida. Não foi bem assim, mas, de facto, valeu-me numa situação bastante crítica.
— Estou sobre brasas, minha querida sobrinha — afirmou lorde Bucgham, que, num gesto carinhoso, pren¬deu o queixo de Geneva entre os dedos, obrigando-a a olhar para ele.
— Recomendou-me em tempo que visitasse as casas dos mineiros e operários de meu marido, a fim de me pôr ao facto dos assuntos que dizem respeito a Geoffroy e de qualquer forma lhe poder ser útil, já que, até aqui, só tenho servido para lhe complicar a vida... O tio Fil levou o seu cuidado a dar-me uma relação das famílias que devia visitar. E, na sua opinião, se essas visitas não estavam em uso em Inglaterra, deviam, no entanto, obter o mesmo êxito que em França, dado o seu fim caritativo.
— Recordo-me muito bem de tudo isso. Era uma ten¬tativa como outra qualquer. E então?
— Então, conduzida por Bill, que conhecia quase todas as casas indicadas na lista, fiz algumas dessas visitas. Tudo correu muito bem até ontem. De princípio, acolhiam-me com certa estranheza, mas quando distri¬buía gulodices às crianças e algum dinheiro às mães, passavam a receber-me bem e a acompanharem-me à porta com palavras de reconhecimento. Em casa dos Sparling foi diferente.
— Dos Sparling?
— Os lenhadores de Nudton. Quatro criancinhas magras, cheias de fome... o quinto para nascer e a pobre mãe doente, ainda por cima. Ouça, tio Fil, devemos fazer qualquer coisa a favor daquela pobre gente. É um dever de humanidade.
— Como, se a receberam mal?
— A mãe e os pequenitos não tiveram culpa. Pelo contrário, a pobrezita não cabia em si de contente quando lhe entreguei o que levava e prometi ajudá-la e dar-lhe o enxoval do que está para vir ao mundo. Até já comecei a talhar alguns roupõezinhos e cueiros... Não abane a cabeça, tio Fil. Parece-me que, ao sen¬tar-me à mesa, não teria coragem para comer ao lem¬brar-me de que aquela pobre mãe e as quatro crianças morrem de fome.
Agitada e arrebatada por tão intensos sentimentos de piedade, não notou a súbita gravidade com que lorde Bucgham a fitava.
— Não é verdade, tio Fil — continuou, apertando-lhe as mãos — não é verdade que vai ajudar-me a sal¬var aquela ninhada de garotos? Sozinha nunca o con¬seguiria. A minha bolsa não dá para tanto.
— Veremos, minha filha... Mas continue — pediu, acariciando-lhe a face com os dedos febris. — Continuo a ignorar o que lhe aconteceu.
— É verdade, a minha aventura! Não tem importân¬cia se a compararmos com a misiéria e aflição daquela pobre família. Aqui tem o que se passou: terminada a visita, dispunha-me a sair quando o marido entrou. É uma personagem pouco recomendável e vinha bêbedo a cair. Parece impossível como aquele homem consegue arranjar dinheiro para beber quando os filhos morrem de fome! Mas é assim. O homenzinho quando bebe tem mau gênio e ontem estava particularmente agressivo. Quando me viu exaltou-se e dirigiu-me toda a espécie de insultos. Não preciso de repeti-los, não é verdade? Não lhe disse coisa alguma, é claro, e só pensei em sair dali o mais depressa possível. O pior é que, ao perceber que tentava alcançar a porta, me tolheu o passo, vocife¬rando as piores ameaças e creio mesmo que chegou a levantar a mão para mim, dispondo-se a reduzir-me a pó. Um pouco assustada, confesso, recuei até ao fundo da casa, refugiando-me junto da doente, que tentou defender-me com os filhos. A cena durava havia um quarto de hora e não sei como acabaria, porque Bill não notava que a minha ausência se ia tornando insólita, quando o conde Bryce passou na estrada. Viu o carro e interrogou o motorista. Quando soube que eu estava na choça do lenhador e lhe chegaram aos ouvidos os gritos do ébrio, correu a defender-me. Asseguro-lhe, tio Fil, que a cena sofreu logo completa mutação. Bryce não perdeu tempo a pedir explicações e, ao verificar que o miserável se tornara perigoso, aplicou-lhe um uppercut tão perfeito que este rolou pelo chão.
Emudeceu por instantes, baixando a cabeça, pensativa; e por fim observou:
— Nunca supus que o conde Bryce fosse tão forte! É tão magro e franzino que não o julguei capaz de apli¬car um soco tão bem dado.
— Freqüentou Oxford, onde praticou muito des¬porto.
— Provavelmente, é por isso que tem reacções tão rápidas. Quando se exalta não é para brincadeiras, pelo que depreendi. Não pode fazer idéia da sova que admi¬nistrou ao selvagem! E por fim disse-lhe que voltaria para se assegurar de que não iria vingar-se na mulher e nos filhos... Foi um procedimento chique, não acha, tio Fil?
— Muito bonito, sim. Mas em tudo isto só penso em si, Geneva... Em que vespeiro se foi meter e por minha indicação!
— Não pense nisso, tio Fil! Simples coincidência. Se o homenzinho não estivesse embriagado, não me tra¬taria mal.
— Não sei o que aconteceria, se Clarence não tivesse visto o carro.
Geneva encolheu os ombros, despreocupada como sempre quando se tratava da sua pessoa.
— Saberia tirar-me do embaraço, veria! Repugnava qualquer contacto com o homenzinho, mas já tinha pen¬sado que, atirando-lhe com uma cadeira às pernas, ele cairia, dando-me tempo a correr para a estrada, onde Bill, quero acreditar, não deixaria de me defender. Estra¬nhei até que, ouvindo o barulho, não se apressasse a acudir-me, e foi justamente o que Bryce lhe censurou.
— Com efeito, portou-se muito mal.
— Talvez tivesse adormecido, porque não sabia como desculpar-se.
— Eu verei o que foi. Em último caso, porei Pettigrew, o meu motorista, à sua disposição. Está ao meu serviço há mais de vinte e cinco anos e tenho a maior confiança na sua dedicação.
Calado e de testa franzida, lorde Bucgham reflectia. Foi Geneva quem rompeu o silêncio.
— Tio Fil! — implorou docemente. — Quer fazer-me o favor de agradecer por mim ao conde Bryce? Já lhe manifestei todo o meu reconhecimento e creia que o fiz de todo o coração. Contudo, acho esta situação bastante melindrosa. De Bryce é muito novo... e eu não sou mais velha e depois o conde tem uma tal maneira de olhar para mim...
E corou intensamente.
— É enervante — acrescentou.
Malicioso sorriso descerrou os lábios do velho lorde.
— Deve ser muito agradável para um homem de trinta anos contemplar de perto uma carinha como a sua — murmurou a meia voz.
O rubor de Geneva acentuou-se.
— Mas pense, tio Fil — replicou com vivacídade — que Geoffroy talvez não gostasse muito dessa forma de proceder do amigo.
O semblante do inglês ensombrou-se.
— Penso principalmente que Geoffroy, em vez de se demorar na América, devia regressar quanto antes a Inglaterra. Por mim, por si, por todos nós, era pre¬ferível ele estar aqui.
— Não tenha assim tanta pressa de se ver livre de mim, tio Fil — disse Geneva, esboçando pálido sorriso.
Bucgham teve um sobressalto de surpresa:
— Que idéia! Nunca tive desejo de me ver livre de si, minha filha! Pelo contrário!
— Nesse caso — retorquiu Geneva, com tristeza — é bom não esquecer que o regresso de Geoffroy coin¬cidirá com a minha partida.
Tio e sobrinha entreolharam-se em silêncio. Devemos supor que os olhos falavam enquanto os lábios se conservavam mudos, porque mais uma vez a mão de lorde Bucgham acariciou os negros caracóis da cabecita erguida para ele.
— Minha querida Geneva — afirmou com suavidade. — Seja em que circunstância for, pode contar comigo. Não duvida, não é verdade?
Não levou mais longe a expressão dos seus sentimen¬tos, mas a juvenil lady devia ter adivinhado o que o bondoso inglês calava, porque aprovou com leve sinal afirmativo de cabeça.
Debruçada sobre o álbum, Geneva contemplava as fotografias de Geoffroy.
A página estava cheia de retratos dele e, embora Geneva o tivesse visto uma única vez, não tinha difi¬culdade em o reconhecer nas diversas fases da sua vida. O adolescente com o uniforme do colégio de Harrow, o rapaz alegre em fato de banho com dois remos ao ombro. Reconhecia Geoffroy, no correcto cavaleiro bem aprumado na sela ou afagando o pescoço do cavalo, no rapaz elegante, envergando a casaca impecável, talvez para o seu primeiro baile. Era ainda e sempre o marido, snob, distinto, de monóculo petulante, que parecia ter nascido para semear a perturbação na alma das mulhe¬res.
Era essa a fotografia que mais impressionava Geneva porque se assemelhava mais ao Geoffroy que ela conhecia. Encontrava de novo o porte altivo e arrogante do belo lorde que certa noite vira entrar na sala do banquete em Nova Iorque, poucas horas antes do seu casamento. E, trêmula de comoção, mais uma vez sentia a estranha perturbação que nesse momento a fizera vibrar até ao mais íntimo do seu ser.
Toda entregue à sua contemplação, não sentiu lorde Bucgham entrar na sala de Green-Park.
Como a espessa alcatifa amortecesse o ruído dos passos, o inglês pôde aproximar-se de Geneva e ver quais as fotografias que tanto lhe prendiam a atenção.
Um clarão de malícia lhe iluminou o olhar e, sorrindo, comentou em tom indulgente:
— Com que então apanhada a contemplar a imagem de seu marido, Geneva?
A juvenil rapariga sobressaltou-se e não conseguiu conter um grito de surpresa.
— Com efeito — confessou — examinava este retrato de Geoffroy.
E, designando a fotografia que o representava de monóculo encaixado na órbita, com o seu ar desdenhoso e irônico, acrescentou:
— Está tão parecido que só lhe falta falar.
— De facto, esse retrato é recente. Nunca o tinha visto?
— Em Cliff-House não existe qualquer retrato de Geoffroy.
— É extraordinário! Deviam ter restado alguns. Com certeza, ele não ofereceu todos. Talvez não procurasse bem.
— Percorri tudo e Maè ajudou-me, sem conseguir melhor resultado.
— Não viu nas gavetas, decerto.
— Evidentemente! Não me atreveria a levar tão longe a minha indiscrição.
Bucgham olhou para ela sem proferir palavra. Pen¬sava que essa delicadeza honrava muito Geneva, mas pro¬vava também que, a despeito do título que usava, esta não se considerava em Cliff-House como verdadeira dona da casa. Guardou para si esta conclusão pouco agradável e contentou-se em observar:
— Se procurou assim o retrato de Geoffroy é por¬que tem empenho em o possuir. Agradar-lhe-ia se lhe oferecesse este?
— Quanto lhe agradeço! Mas não lhe custa sepa¬rar-se dele?
— Por forma alguma. Estou farto de ver o rosto de meu sobrinho e, além disso, possuo outro igual.
Contudo, recordando-se de que ainda na véspera recebera nova carta de Oklahoma, no momento de tirar a fotografia do álbum, marcou ligeira hesitação.
— Este retrato foi tirado pouco antes da partida de Geoffroy para a América — começou.
Suspendeu-se um instante, conservando a fotografia na mão. Por fim, retomando coragem, ergueu os olhos para Geneva e prosseguiu em voz branda:
— Creio que na intenção de ser oferecido a Emily Ayton. Quando olhar para ele pense na sua destinatá¬ria oficial e não se deixe seduzir pelo sorriso de Geof¬froy. É seu marido, não há dúvida. Mas pode acreditar, minha filha, que ficaria desolado se alimentasse qual¬quer ilusão sobre o título de esposa que momentanea¬mente usa.
Só então entregou o retrato a Geneva, cuja fisio¬nomia sofrerá profunda alteração.
— Pode estar descansado, tio Fil — assegurou numa voz sem timbre. — Eu bem sei que sou uma lady de contrabando. Maè foi mais feliz do que eu. Tedder é livre e ela pode tentar alcançar o amor do marido. Enquanto que eu... nada devo esperar do futuro!
— Pode crer que tudo isso me penaliza, minha pobre Geneva. Muito, mesmo muito, asseguro-lhe.
— Foi sempre muito bom e indulgente para mim, tio Fil. Mas o que está escrito não pode modificar-se e acontecerá o que tiver de acontecer.
Guardou o retrato que lhe ofereciam, pensando que melhor seria recusá-lo. Mas o sorriso de Geoffroy era tão sedutor que não teve coragem para tomar tão sen¬sata resolução.
Como o tio Fil se conservasse sério e tristonho, Geneva tentou aparentar alegria e despreocupação.
— Procurarei ser razoável e quando contemplar a fotografia do meu encantador esposo lembrar-me-ei logo de miss Ayton — afirmou, jovial.
— No interesse da sua tranqüilidade será o melhor que tem a fazer — replicou Bucgham no mesmo tom.
Entretanto, a carta de Geoffroy irritava lorde Buc¬gham. Conquanto não tivesse coisa alguma a ver com os sentimentos íntimos do sobrinho, não podia deixar de comparar o olhar radioso e a meiga fisionomia de Geneva à de Emily, formosa, sim, mas arrogante e orgulhosa.
Emily era elegante, bonita, de um perfeito à-vontade mundano, muito cortejada, e onde quer que se encontrasse rodeava-a sempre pequeno círculo de admiradores. No entanto, estava longe de possuir a sedução e o chique de Geneva, em cujo corpo o vestido mais simples adquiria uma graça incomparável. O sorriso da francesa, ingênuo e sem afectação, tinha um não sei quê que prendia e enfeitiçava.
Portanto, não podia compreender como o sobrinho se conservava fiel à primeira noiva, desprezando a encan¬tadora esposa que o Céu lhe destinara.
E visto que o seu sonho se não realizara e Geneva entrara, por forma inopinada, na sua vida, por que não queria Geoffroy admitir a idéia de se afeiçoar a ela?
Sempre que recebia uma carta do sobrinho, o que acontecia todos os meses, lorde Bucgham ficava de mau humor. Geoffroy insistia pela separação e conti¬nuava a chamar-lhe a indesejável.
— Indesejável! Indesejável! — resmungou. — Pois de indesejável não tem nada, aquele gentil diabrete! Por que recusa ele conhecê-la melhor?
Existia em tudo aquilo qualquer coisa de obscuro que desnorteava o velho tio e era contrário ao seu bom-senso.
— Se casou com ela foi porque, pelo menos nesse momento, lhe agradou, que diabo!
Conhecendo melhor Geneva, estava agora conven¬cido de que era incapaz de se insinuar e obrigar um homem a desposá-la contra sua vontade.
— Por que não confessa ele o seu erro? Lança todas as responsabilidades sobre a pobre rapariga, não sei porquê! No entanto, sempre gostaria de saber quais os motivos que o levaram a contrair tão desastroso enlace.
E, não podendo conter-se por mais tempo, resolveu abordar de novo o assunto com a sobrinha.
— Lembra-se do primeiro dia em que nos encontrá¬mos, Geneva? Prometeu-me, nessa ocasião, que mais tarde, “quando nos conhecêssemos melhor”, me daria certas explicações.
E como ela o fitasse, surpreendida, tentando com¬preender a alusão, Bucgham precisou:
— Foi no primeiro dia que a visitei em Cliff-House... a propósito do seu casamento... que me causara grande estranheza.
Uma sombra passou, extinguindo por segundos o brilho luminoso das lindas pupilas escuras.
— Recordo-me agora, sim. Julgo até que falei do Destino que rege todos os nossos actos e domina a nossa vontade.
— Exactamente. A minha querida sobrinha não julga suficientes os laços de afecto que nos unem para me poder fazer as confidencias prometidas?
— Tenho em si a maior confiança, tio Fil, e estou pronta a contar-lhe certos incidentes que, por assim dizer, me predispuseram para este extraordinário casa¬mento. Mas suplico-lhe que não duvide da minha since¬ridade nem ria da minha credulidade.
— Por que faria eu uma ou outra coisa?
— Se antes do meu casamento com seu sobrinho conhecesse certa predição que uma cigana me fez há dois anos, compreenderia em que estado de espírito eu desposei Geoffroy. Contanto que, neste momento, pode supor que eu invento e arranjo o passado, moldando-o pelos acontecimentos que se lhe seguiram.
— Tentarei acreditar em tudo quanto me contar. Conheço-a bem, agora, Geneva, e sei que não costuma mentir nem exagerar os factos. Portanto, ser-me-á mais fácil dar-lhe crédito, como deseja.
— A predição é singular e em geral estamos sempre prontos a duvidar de profecias.
— Quando são inverosímeis, de acordo.
— Precisamente, esta entra no domínio do inacreditável... mas por outro lado explica muito bem o que se passou entre mim e Geoffroy.
— Será melhor contar-me tudo — pediu lacònicamente.
Geneva não hesitou. Depositava a maior confiança na amizade paternal do tio, que se mostrava cheio de atenções para com ela. Além disso, afigurava-se-lhe que o melhor caminho a seguir seria não ocultar coisa alguma àquele a quem estava entregue até ao regresso de Geof¬froy. Quem, melhor do que lorde Bucgham, poderia advogar a sua causa junto do ausente? Por outro lado, a opinião da alta sociedade inglesa, a seu respeito, não dependia dele, também?
Se lorde Bucgham desaprovasse o seu insólito casa¬mento com o sobrinho, Geneva só teria o recurso de desaparecer; ninguém admitiria a sua boa fé. Se, pelo contrário, o tio a acreditasse e a considerasse como sobrinha, confirmando o parentesco diante de conhecidos e amigos, ninguém se atreveria a erguer a voz para atacar aquela que um Par de Inglaterra reconhecia como esposa de um dos seus.
Assim, sem omitir qualquer pormenor, contou a lorde Bucgham a estranha profecia da cigana e a espécie de encantamento que a arrebatara, ao conhecer Seymour.
— Sentia-me incapaz de resistir à sua vontade — concluiu. — Quando ele me pediu para dizer sim, cedi sem hesitação. Quando me pegou na mão e me arrastou para diante do Pastor, tê-lo-ia seguido até ao fim do mundo com a mesma confiança e no mesmo impulso irreflectido, embora compreendesse que Geoffroy não estava em seu juízo. Mesmo antes dele começar a conversar comigo, sentia-me fascinada pela sua presença, e quando me dirigiu os primeiros galanteios fiquei completamente embriagada com o seu sorriso. E como a cigana me dis¬sera que todo o nosso instinto se sobressalta e nos impele para aquele que a sorte nos destina, não tentei encon¬trar outra explicação para a estranha impressão que me causava aquele homem que eu via pela primeira vez.
— Não seria mais provável — obtemperou lorde Bucgham, achando certa graça às ingênuas confidências de Geneva — que tivesse sofrido o que em França se chama coup de foudre?*
(*Paixão súbita).
— Julga isso possível? — exclamou a sobrinha, cujas faces se cobriram de intensa vermelhidão. — É de admi¬tir que uma paixão possa nascer tão subitamente e com tanta intensidade?
Como o tio Fil se conservasse calado, insistiu:
— Supõe que seja amor o que sinto por meu marido?
— Pode ser... Antes de casar não amou ninguém?
— Ninguém.
— E... não tem a impressão de professar por Geoffroy um... diremos... sentimento mais terno?
O rubor de Geneva acentuou-se.
— Não sei — confessou. — Muitas vezes pergunto a mim própria se, quando seu sobrinho regressar, voltarei a ser dominada pela mesma perturbação. A perspectiva desse regresso assusta-me.
— Porquê?
— Receio as suas censuras e recriminações... a sua ironia, tenho medo de lhe desagradar.
Lorde Bucgham abanou a cabeça sem lhe responder. Talvez adivinhasse que esse temor de Geneva pela pre¬sença de Geoffroy era antes baseado no pudor dos seus sentimentos íntimos. Uma rapariga pura e honesta nunca pode admitir o seu amor por um homem que a repudia, e o receio pela sua presença é muito natural.
— Em conclusão: está contente por ser mulher de Geoffroy?
— Isso estou! De todo o coração.
Em face de afirmativa tão pronta e sincera, o inglês começou a rir.
— Acabo de me convencer de que ama Geoffroy — declarou alegremente. — Casando com ele, julgou obe¬decer à inspiração do Destino. A minha experiência, porém, dá ao caso explicação muito mais sensata. Apai¬xonou-se por seu marido muito mais depressa do que poderia supor... No entanto, se as impressões que acabámos de trocar me deram a conhecer os sentimentos que a levaram a casar com Geoffroy, continuo a ignorar qual o impulso a que ele obedeceu, desposando-a! Ele não conhecia a profecia, nem acreditaria, se a conhe¬cesse, e o seu caracter não é de molde a apaixonar-se com tanta celeridade.
Geneva, devemos dizer, não estava muito satisfeita com as conclusões que o seu interlocutor tirara das suas confidencias. Por isso, observou com tristeza:
— Já esperava que não desse crédito à predição.
— Confesso que sou muito incrédulo. Não admito profecias e muito menos que se possa ler o futuro nas cartas ou no pé de café.
— E na palma da mão?
— Nem isso.
— No entanto, muitos médicos afirmam que as nos¬sas doenças estão indicadas nas linhas da mão. Estas mudam de disposição conforme a saúde é boa ou precá¬ria. Assim, por que não revelariam também o futuro?
— Verifico que é muito entendedora na matéria.
— Não, nunca estudei a fundo o assunto, mas os nossos sacerdotes admitem a radiestesia, embora a reli¬gião seja contrária a qualquer manifestação inexplicável. Entretanto, acreditam no poder do pêndulo ou da vari¬nha de aveleira, a ponto de os suporem capazes de encontrar, a distância, objectos ocultos debaixo de um pedaço de cartão.
— Partem do princípio de que todo o corpo irradia determinadas ondas que são de diferentes comprimentos, conforme esse corpo está mais ou menos afastado.
— Tudo é possível. Mas, seja qual for a causa, tenho visto certas predições traduzirem-se em factos e cum¬prirem-se ponto por ponto. Pessoalmente, confesso que, neste caso do meu casamento, a profecia se realizou com extraordinária precisão.
— Simples coincidência.
— Coincidência pouco provável e que não pode ser invocada numa aventura de antemão traçada com todos os seus pormenores.
— Não é tanto assim. Não me disse que a cigana lhe anunciara riqueza, felicidade e amor... que seria amada apaixonadamente por um homem que consagra¬ria toda a sua vida a torná-la feliz?
— Foi isso, com efeito, que me profetizou.
— Está casada com um homem rico e não há dúvida de que o programa se realizou em parte. Veremos se o resto da predição se confirma. Por agora, lamento ter de lhe recordar, lady Seymour, que os acontecimentos não são de molde a alimentar-lhe essa esperança; Geoffroy está longe de a amar e muito menos... apaixona¬damente.
Ria, mas Geneva não abandonou o seu ar sério.
— A cigana não esclareceu que seria amada por meu marido — disse, pensativa. — A felicidade profeti¬zada talvez não seja obra de Geoffroy.
O inglês franziu a testa.
— Se espera essa felicidade de outro homem, então já não digo nada! — retorquiu, de súbito descontente. — Supunha que esta singular aventura bastaria para contentar a sua irrequieta imaginação. Por outro lado, calculava também que uma mulher educada e digna como parece ser, uma vez unida a um homem pelos laços do casamento, não poderia admitir felicidade e amor pro-porcionado por outro que não fosse seu marido... Veri¬fico, sem tirar qualquer conclusão desagradável para si, que nesse ponto as nossas opiniões diferem por com¬pleto.
A reflexão de Geneva irritava-o não sabia bem por¬quê. Pela primeira vez, desde que se conheciam, tio e sobrinha discordavam, tanto mais que Geneva, habitual¬mente conciliante, naquele dia não aceitou de bom grado a mordaz observação de lorde Bucgham e, algo irritada, contrariou:
— Engana-se. Nem me passam pela cabeça os pen¬samentos que acaba de supor. Sei apenas que eu, Geneva de Rouvaux, acedi a casar em poucas horas com um desconhecido, o que está em completa contradição com a minha dignidade e educação. E, em face de tão insó¬lito procedimento, que nunca poderia admitir, e é incompatível com o meu caracter, não me atrevo já a negar que o meu livre-arbítrio seja mais uma vez dominado pelos desígnios do Alto. È possível que, repudiada por Geoffroy, eu case outra vez. De nada me serve protes-tar que tal ou tal facto não sucederá, ou jurar que nunca praticarei determinada acção. Perante a evidência do passado, prefiro não formular hipóteses de futuro, e seguir as directrizes que a Providência me indicar.
— All right! — aprovou lorde Bucgham, sempre rabugento. — É uma maneira cômoda de solucionar a situa¬ção: a Providência resolverá tudo!
— Creio que é o melhor!
— Preferiria que contasse mais com a vontade de Geoffroy. Meu sobrinho, com certeza, não deixará ao Destino o cuidado de decidir por ele.
— De mais o sei eu. O seu regresso marcará a minha saída de Cliff-House — concordou Geneva.
— Infelizmente, temos de admitir essa possibilidade.
— Antes de conhecer seu sobrinho vivi e decerto não vou agora morrer de pesar por me ver afastada de Cliff-House — retorquiu Gene com orgulhosa energia.
— Estou de acordo, mas confesso não me agradar nada essa solução que nos separará. Afeiçoei-me a si, Geneva, e não calcula como gostaria que não deixasse de ser minha sobrinha.
Não foi preciso mais para desvanecer o mau humor da graciosa lady.
— Também eu gosto imenso de si, tio Fil — afir¬mou com a voz embargada pela comoção. — Tem sido tão bom para mim que não podia deixar de lhe dedicar todo o meu afecto. Infelizmente, não está na nossa mão modificar o curso dos acontecimentos. Só a Geoffroy cabe decidi-los.
— Tem razão.
— E é justamente devido à minha fraqueza que dou tanta importância às predições da velha cigana. E depois — acentuou com a maior energia — à parte qualquer profecia, como crentes, devemos pensar que só Deus é senhor do nosso futuro. O velho prior que me preparou para a primeira comunhão dizia-me muitas vezes: “Suceda o que suceder, nunca perca a coragem, nem a fé em Deus, minha filha. Nosso Senhor talha sem¬pre a cruz à medida das nossas forças”. Sempre que uma provação me atinge, recordo estas palavras.
Lorde Bucgham ficou pensativo e envolveu num olhar demorado a fisionomia pálida e triste de Geneva. Por fim, levantou-se e apertou-lhe as mãos numa pressão carinhosa.
— Conte também comigo, minha Geneva. Nunca consentirei que a façam sofrer!
Geneva ergueu para ele as pupilas, de súbito ilumi¬nadas.
— São poucos os agradecimentos em face do que faz por mim, tio Fil — balbuciou com os olhos arrasados de lágrimas. — Toda a minha vida recordarei a sua bon¬dade num assunto em que tudo me era contrário. Mas deixe-me dizer-lhe que me custaria muito, se, por minha causa, se indispusesse com lorde Seymour. É o seu único herdeiro, e a confiança dele em si iguala a sua afeição. Não ignoro quanto o ama também... Portanto, seja em que circunstâncias for, não se zangue com ele e deixe-me seguir o meu destino. Promete-me, lorde Bucgham? Sen¬tiria remorsos se pensasse que fora eu a causadora da vossa desunião.
— Prometo tudo quanto exigir.
Ao mesmo tempo, atraiu Geneva para si e beijou-a na testa. Em seguida, não desejando prolongar por mais tempo a cena enternecedora, deixou-a e começou a pas¬sear de cá para lá no aposento.
De súbito, a lembrança de Bryce acudiu-lhe ao pen¬samento, e esfregou as mãos, satisfeito.
— No fim de contas, talvez tenha razão, Geneva. Se meu sobrinho a repelir pode vir a casar com outro e sem que a nossa boa camaradagem seja interrompida. Afastada para longe de Cliff-House, encontrará outros tectos prontos a acolhê-la e onde eu serei igualmente bem recebido.
Geneva, porém, não pensava em Clarence nem em Westra-Burg. As suas previsões de futuro limitavam-se a pobre mansarda em qualquer recanto de Paris. O lugar de lorde Bucgham estaria ali marcado, mas o milionário inglês nunca o ocuparia, por certo.
Os Pares de Inglaterra não costumam freqüentar a habitação das raparigas humildes.
Naquele dia, lorde Bucgham resolveu acompanhar a mulher do sobrinho e a amiga desta a casa de lady Patrí¬cia, que habitava lindo cottage em Burnham.
A reunião era numerosa e a irmã de Geoffroy apre¬sentou a cunhada aos seus convidados, a maior parte dos quais a via pela primeira vez.
Entre eles contava-se Emily Ayton, mas, ou fosse por esquecimento ou voluntariamente. Patrícia não a apresentou a Geneva, o que levou imediatamente esta a concluir que se tratava da ex-noiva de Geoffroy. Mais perturbada ficou com a atitude de evidente malevolência adoptada por Emily.
Esta relanceava-lhe olhares irônicos, segredava com outras raparigas como se troçasse dela ou pretendesse ridicularizá-la, e vincou por tal forma os seus manejos que impossível se tornou a Geneva ignorar que essa inglesa desconhecida, e da qual nem sequer sabia o nome, lhe era nitidamente hostil.
— Conhece aquela rapariga loura que se mostra tão agressiva comigo? — perguntou em voz baixa a Maè.
— Não. É a primeira vez que a encontramos. Se quer, vou perguntar a Patrícia quem é, e a causa da má von¬tade que demonstra contra si.
— Não pergunte nada, por favor... Talvez conheça Geoffroy ou... ou seja Emily Ayton, e não desejo que meu marido possa atribuir-me qualquer gesto menos correcto para com a sua antiga noiva.
— Era o que faltava, lorde Seymour apoiar o mau procedimento daquela mulher. Não julgo isso possível, se bem que o ar carrancudo de lorde Bucgham não me inspire nada de bom.
Geneva voltou-se para o tio Fil. Viu-o de aspecto carregado, profunda ruga cavada entre as sobrancelhas e desviando propositadamente o olhar quando Geneva o procurava. Sentia-se desamparada. Seria possível que lorde Bucgham, sempre atencioso, se mostrasse tão indi¬ferente naquele dia?
E a convicção de que tinha diante de si Emily Ayton mais se radicou.
— Foi por isso que Patrícia não ma apresentou.
Examinou então a adversária com maior cuidado.
— Não se pode negar que seja bonita e Geoffroy não teve mau gosto. Mas se, de facto, é a sua antiga noiva, como pôde ele apaixonar-se por uma criatura tão orgulhosa e má?
Acabava de encontrar o olhar da outra e essas pupi¬las de mulher traduziam tanto rancor que, se tivessem o poder de matar, Geneva teria caído no mesmo instante, fulminada pela sua cólera concentrada.
— Não me restam dúvidas sobre a identidade desta desconhecida. Só uma mulher ciumenta e desiludida nas suas esperanças pode destilar tanto ódio num simples olhar.
Essa certeza levou-a a reagir. Não desejava que os circunstantes pudessem supor que curvava a cabeça perante a rival oficiosamente desprezada.
Nesse instante, o riso, verrinoso, mordaz e insultante da outra, fez-se ouvir.
— O pobre amigo! Mandou-me dizer como o rece¬beram na América. Foi muito engraçado.
Conquanto Emily não tivesse pronunciado qualquer nome, Geneva não duvidou de que se tratasse de Geof¬froy, e leve rubor lhe tingiu as faces.
Nessa altura, o conde Bryce, que se mostrava sem¬pre muito assíduo junto da gentil lady, tomou aberta¬mente o seu partido contra a antipática convidada. Notando como Geneva parecia desnorteada com o mal encoberto ataque de Emily Ayton, sentiu-se irritado. Atravessou a sala e aproximou-se da jovem, que, encos¬tada ao piano, folheava um álbum de fotografias para ocultar a sua perturbação.
— Decerto gostará de saber, lady Seymour, que recebi esta manhã uma carta de Geoffroy — disse-lhe a meia voz, mas de forma que todos pudessem ouvi-lo. — Não a trouxe comigo porque não supunha ter hoje a honra de a encontrar. Não deixarei, porém, de ir a Cliff-House levar-lhe. Fala muito de si e tem a seu respeito frases tão amáveis e carinhosas que seria mau amigo se não lha deixasse ler.
Geneva, muito afogueada, voltou-se para ele.
— Geoffroy é um marido encantador — conseguiu articular, constrangida pelos olhares curiosos que a fita¬vam. — Exagera as minhas humildes qualidades.
Lorde Bucgham fez-lhe de longe imperceptível sinal de aprovação. Mas Emily Ayton encontrou meio de desviar dela todas as atenções.
— Também recebi duas cartas de Geoffroy esta semana — declarou, provocante. — É de uma fidelidade digna de nota! Longe de mim, não perde o ensejo de se fazer recordar à minha afeição.
— É evidente — replicou Clarence, fleumático e generalizando a conversa. — Tanto eu como Emily somos amigos velhos de Geoffroy e nunca ele nos deixaria sem notícias. Mas o que me impressiona na carta do nosso amigo são os termos que emprega para falar de lady Seymour. Manifestei-lhe o meu assombro ao ter conhecimento do seu casamento e sabem o que me respondeu?
— Que se viu forçado a representar a comédia até ao fim! — atalhou Emily com um riso trocista. — Foi o que me mandou dizer também.
— Com efeito — concordou o conde de Bryce, sempre imperturbável — o casamento apresentou-se-lhe como solução imediata: “Foi a única mulher a quem amei de verdade e quando se ama assim não se deve hesitar”. Não cometo indiscrição em repetir os termos em que me escreveu — acrescentou com ar natural — pois foi o próprio Geoffroy quem me autorizou a fazê-lo a todos aqueles que manifestassem o seu espanto por tão rápido casamento.
— Não é bem assim! — protestou Emily, enervada. — Geoffroy disse-me...
— Perdão, Emily — interrompeu Clarence, sem lhe dar tempo a concluir a frase. — Eis, palavra por pala¬vra, o que o nosso amigo me escreveu: “Lady Seymour é a mulher mais atraente e mais bela que encontrei até hoje. Desde o primeiro instante em que a vi, amei-a apaixonadamente e pensei em fazer dela minha mulher, quando em Inglaterra não houve uma só que me levasse a encarar seriamente a possibilidade do casamento.
— Muito gentil — aprovaram algumas damas mais idosas.
As declarações de Clarence deixaram Emily por tal forma assombrada que não se atreveu a contradizê-lo.
A cólera afogueou-lhe o rosto e foi obrigada a ocultar com sorriso forçado a raiva que a dominava.
Sentia-se profundamente ferida no seu amor-próprio, mas, se protestasse, tornar-se-ia ridícula porque a pre¬sença de Geneva, usando o nome de Seymour, corrobo¬rava as asserções do conde Bryce. Se Geoffroy não a desposara, era evidente que lhe preferira outra mulher. Quanto ao teor das cartas recebidas de Oklahoma, não podia divulgá-lo sem confessar que mantinha correspon¬dência com um homem casado, facto que, moralmente, a colocaria muito mal aos olhos da sociedade.
— Geoffroy é excelente rapaz. Estou certa de que será feliz com ele, lady Seymour — afirmou a condessa de Bryce, que acompanhara o filho ao chá de lady Patrí¬cia. — Agradam-me os termos da sua carta a Clarence. Em minha opinião, uma ternura conjugal confessada com tanto desassombro é a mais perfeita homenagem que um marido apaixonado pode fazer à esposa de quem está separado.
E, satisfeita por poder dar uma lição a Emily Ayton, cuja arrogância lhe desagradava, voltou-se para Geneva e acrescentou com simpatia:
— Em nome de seu marido e do afecto que lhe tri¬buta, peço-lhe que me considere sua amiga sincera e dedicada.
— Agradeço-lhe de todo o coração — respondeu Geneva, com ardor. — A sua indulgência confunde-me e não sei como manifestar-lhe o meu reconhecimento.
— Concedendo-me a sua afeição e confiança, minha querida filha.
— De todo o meu coração.
A velha fidalga estendeu-lhe a mão; Geneva corres¬pondeu com entusiasmo, e, num gesto espontâneo, cur¬vou-se, beijando-a ao de leve.
Esse gesto foi favoravelmente comentado pelas senho¬ras presentes.
— Tem um sorriso delicioso e modos atraentes — afirmou uma delas a meia voz.
— Não há dúvida. É muito mais bonita do que Emily Ayton. Compreende-se facilmente a paixão súbita de Geoffroy.
— Mas será tão rica como Emily? As toilettes são elegantes, mas não usa uma jóia — notou outra.
— Seymour tem fortuna suticiente para lhas oferecer. Além disso, afirma-se que lorde Bucgham é doido pela sobrinha. Chegaram a dizer que se Geoffroy não tem casado com ela seria ele quem a desposaria.
— Não havia nada de extraordinário! Bucgham, apesar de mais velho, não faria má figura junto da nova lady. De resto, nunca compreendi por que motivo não casou. Dir-se-ia que naquela família todos têm a fobia do matrimônio. Mesmo Geoffroy, levou tempo a resolver-se.
— Falou-se de um possível enlace com Emily.
— Há muitos anos que diziam isso e tal casamento lisonjeava-lhe o orgulho. Mas o facto é que nunca se decidiu, e assim que chegou à América não se fez rogado para casar com esta interessante rapariga.
— Apaixonou-se logo que a viu. Foi, pelo menos, o que mandou dizer a Clarence.
— Olha para Emily. Está louca de raiva. Bucgham deve velar com cuidado pela mulher do sobrinho. A outra nunca lhe perdoará ter saído vitoriosa no campo onde ela sofreu uma derrota.
Enquanto as duas senhoras trocavam as suas impres¬sões, o conde Bryce voltara a aproximar-se de Geneva, que, no vão de uma janela, via o sol morrer docemente, iluminando os campos.
— Sorria, lady Seymour, não deixe de sorrir — recomendou em voz baixa, quando chegou perto dela. — foi a vencedora do torneio. Deve exultar com a vitó¬ria, visto tratar-se de seu marido.
— Mesmo assim, gostaria de saber — informou-se, voltando-se sorridente para Bryce, mas com um lam¬pejo de inquietação fulgindo no fundo das negras pupi¬las — se é possível que lorde Seymour lhe escrevesse tão lindas coisas a meu respeito.
Ele fitou-a longamente.
— Por que duvida?
— Geoffroy foi sempre tão reservado em público...
— Eu não sou o público. Sou um dos seus amigos mais íntimos.
— Mas revelou o conteúdo da carta diante de todos.
— Não compreendeu o móbil a que obedeci?
— Compreendi — balbuciou Geneva, com dolorosa entoação. — Aquela mulher é detestável! Assustavam-me as palavras que estava prestes a dizer...
— Agora nada tem a recear. Qualquer comentário malévolo recairia sobre ela.
— Não deixo, por isso, de ter medo. Deve ser muito má, ciumenta e invejosa, pelo menos.
Uma sombra velou a meiga fisionomia de Geneva.
— Diga-me o seu nome! — insistiu. — Calculo quem seja, mas minha cunhada esqueceu-se de nos apresentar.
— É Emily Ayton.
— Já o suspeitava.
— Conhecia-a?
— Sabia que estava quase noiva de Geoffroy.
— Falaram-lhe desse projecto? — admirou-se Bryce, que se revestiu de súbita gravidade.
— Falaram e por isso quase não estranhei a omis¬são de Patrícia.
— Sua cunhada fez muito bem em não as apresen¬tar. Não estão destinadas a conviver uma com a outra.
— No entanto, fiz figura de tola, não compreendendo imediatamente a razão dos seus ataques.
— Pelo contrário! Mostrou desprezá-los. Foi a melhor forma de responder às suas insinuações venenosas.
— Você é animador, Clarence. Faz bem ouvi-lo — afirmou Gene, sorrindo.
— Antes assim. E agora ria, mostre-se alegre, lady Seymour. Quando a inquietação a atormenta, a expres¬são do seu lindo rosto chega a ser trágica.
— Acredito! É aborrecido! — respondeu, tentando aparentar alegria. — Sou uma espécie de sensitiva e infelizmente o rosto reflecte imediatamente todas as minhas impressões.
— De facto, lê-se na sua alma como num livro aberto. E de tal maneira que me sinto infeliz quando um pesar a atinge. Vamos, lady Seymour, zombe de mim, esma¬gue-me com a sua ironia, mas ria em voz alta, mostre-se despreocupada e feliz.
O riso de Geneva esfuziou e todos puderam ouvi-lo. Quanto a Bryce, embora soubesse esse riso encomen¬dado, teve a impressão de que tudo em volta deles se iluminava de súbito.
— Então? — perguntou Geneva, com o seu mais radioso sorriso. — Está contente comigo? Julga-me à altura da situação?
Clarence mergulhou os olhos nos dela e viu que, a despeito do tom alegre e da expressão sorridente, a pequenina chama inquieta e dolorosa continuava a arder no fundo das negras pupilas.
Por instantes, deixou-se arrebatar pela embriaguez que lhe produzia esse olhar de mulher.
— É perfeita — aprovou em voz singularmente rouca. — Dá a completa ilusão da felicidade. Mas sacrificaria a minha vida para que essa Emily lhe fosse indiferente e a sua existência não a preocupasse dessa maneira.
Geneva não demonstrou ter compreendido a elo¬qüente insinuação.
— Engana-se, não estou preocupada. Que motivos teria para isso? Sou sua mulher e ele escreveu-lhe a meu respeito em termos tão cativantes! Que mais posso eu desejar?
— Evidentemente! No entanto, gostaria de saber se essa serenidade persistiria, se Geoffroy não tivesse de facto escrito as frases que repeti há pouco.
— Eis o que eu supunha! — murmurou, pesarosa. — Meu marido não lhe falou de mim.
E, desanimada, apoiou-se ao parapeito de forma a ficar com as costas voltadas para a sala.
— É muito bom e muito generoso, conde Bryce. Não sei como agradecer-lhe.
Acabava de compreender que o conde inventara a carta e as suas frases afectuosas para reduzir ao silên¬cio a vingativa Emily.
Nunca devia ter alimentado ilusões, mas a segurança imperturbável do conde, precisando os termos da carta que pretendia ter recebido, fizera-lhe bater mais apres¬sado o coração e perguntar, de si para si, se não have¬ria qualquer coisa de verdade em tudo quanto dizia.
— E não receia que Geoffroy fique mal disposto consigo por ter inventado essa carta? — inquiriu após prolongado silêncio.
— Não pode desmenti-la. As palavras que pus na sua boca são justamente aquelas que todo o marido deve dizer da mulher a quem ama... principalmente quando o casamento, decidido com tanta rapidez, con¬firma essa paixão. Creio que, em vez de censuras, me deve agradecimentos, visto que a subtraí aos ataques de uma mulher ciumenta e má.
— Estou certa de que não deixará de lhe agradecer — afirmou, retomando a atitude cerimoniosa em face dessa comédia que se tornava forçoso representar. — Lançou-se na refrega como verdadeiro gentleman... em nome do seu amigo... para me defender.
Intensa comoção vibrou na voz do rapaz quando lhe respondeu:
— Acima de tudo, por si, lady Seymour. Pressenti-a tão desamparada no meio desta reunião de gente estra¬nha e indiferente...
— Tem razão. Desamparada, é esse o termo. E agra¬deço-lhe de todo o coração ter corrido em meu socorro... Mas, repito, já pensou, não obstante a pouca verosimiIhança de tal hipótese, que Geoffroy poderia reprovar o seu gesto?
— Para isso seria preciso que ele não a amasse, lady Seymour. Mas quem poderia admitir que Geoffroy casasse por forma tão inesperada, se não estivesse lou¬camente apaixonado pela esposa?
— Tem razão — concordou Geneva, com a impres¬são de que um abismo se lhe abria aos pés. — Fez bem e mais uma vez lhe agradeço.
Não era provável, porém, que o coração concordasse com a aprovação dada pelos lábios.
A partir desse momento, Bryce e Geneva viram-se quase todos os dias. Umas vezes era o conde que apa¬recia em Green-Park na ocasião em que Geneva ali se encontrava; outras arranjava forma de cruzar com ela na estrada.
Lorde Bucgham acolhia-o sempre com amabilidade, mas apercebia-se muito bem do prazer que o conde expe¬rimentava com a convivência com a sobrinha.
No entanto, conforme dissera um dia, sabia que Bryce era incapaz de uma deslealdade, tanto por causa da amizade que tributava a Geoffroy, como pela pureza e confiante simpatia de Geneva. Contentava-se, por¬tanto, em registar:
“É com ele que eu conto para salvar Geneva do desespero, se o estúpido do meu sobrinho persistir em se separar da mulher” — pensou.
Mas o velho inglês respeitava muito os preconceitos para favorecer os encontros dos dois jovens. Desde o minuto em que compreendeu que o seu vizinho não perdia ocasião de se avistar com Geneva, procurou evitar os comentários que poderiam suscitar as visitas de Bryce a Green-Park ou a Cliff-House.
Sob o pretexto de apresentar a mulher do sobrinho a todos os conhecimentos e amigos, organizava festas quase diárias: recepções, caçadas, ou um garden-party.
Desta forma, conseguiu que a assiduidade do conde junto de Geneva não fosse notada, nem interpretada desfavoràvelmente.
O que mais divertia lorde Bucgham era verificar a perfeita indiferença com que a sobrinha aceitava as homenagens do seu admirador. Não se apercebia da profunda impressão que produzira, e tratava Bryce com desafectada camaradagem. Sem o menor pensamento de garridice e com simplicidade, encarregava-o das mais variadas comissões, solicitava dele pequenos favores, sem pensar no flirt, como não deixaria de acontecer com qualquer filha de Albion.
Entretanto, o tio de Geoffroy via a paixão de Clarence intensificar-se dia a dia e julgou mais prudente interromper, durante algum tempo, a convivência quase quotidiana dos dois.
Não duvidava da honestidade de Geneva, mas via a sensatez e a razão do conde prestes a soçobrarem, dominadas pela intensidade do seu amor.
Instalou-se, portanto, com Geneva e Maè, no seu palacete de Londres, fechando Cliff-House e Green-Park durante os quatro meses de Inverno.
E, durante esses quatro meses, saía todos os dias com as duas raparigas, mostrando-lhes a grande cidade britânica e à noite acompanhava-as aos divertimentos: teatros, cinemas e dancings.
O inglês sentia-se rejuvenescer em contacto com essas duas personalidades femininas tão diferentes uma da outra, mas ambas interessantes. A vivacidade e o desembaraço de Maè contrastavam com a simplicidade e a reserva de Geneva, cujo caracter delicado e afectuoso soubera encontrar o caminho do seu coração. A sua presença dava-lhe infinito prazer e sentia que os seus pensamentos e gostos se harmonizavam. A todo o momento experimentava o desejo de a proteger, e, quando, de braço dado, atravessavam as ruas de Lon¬dres, considerava-se plenamente feliz.
Abandonava-se a essa felicidade sem tentar profun¬dar-lhe as causas, e, assim, não percebera que pouco a pouco se prendia mais a Geneva, dedicando-lhe afeição verdadeiramente paternal.
Por fim, uma notícia brusca veio transtornar esta doce intimidade. Havia muito tempo que lorde Bucgham não recebia carta do sobrinho, quando soube de repente que este acabava de chegar a Londres.
O inglês ficou melindrado. Quando ainda supunha Geoffroy na América, alguém lhe afirmou que o havia encontrado em casa de um amigo comum. O rapaz nem se dignara comunicar ao tio o seu regresso, e este ficou mal disposto com isso.
Receando que o acaso colocasse os dois esposos frente a frente, sem prévia preparação, lorde Bucgham, pretextando sentir-se fatigado pela vida de Londres, demasiado activa para ele, decidiu as duas amigas a regressar a Cliff-House. Dessa forma, conseguia ainda evitar os comentários que decerto não deixaria de sus¬citar a presença de lorde Seymour em Londres, sem resi¬dir no lar conjugal.
Geneva não desconfiou de coisa alguma. Nunca lhe passaria pela cabeça o pensamento de que o marido estivesse em Inglaterra, sem ter, antes de mais nada, procurado a família. Foi Bryce que, involuntariamente, a pôs ao facto do que se passava.
Logo que soube do regresso de lorde Bucgham e das duas raparigas, o conde dirigiu-se a Cliff-House. Que¬ria mostrar a Geneva lindo cão que recebera de presente.
— Se quiser, lady Seymour, poderá escolher um cachorrinho da ninhada que acaba de nascer. Os pais são de raça pura e obtiveram primeiros prêmios em quase todas as exposições. São animais mansos e muito dedicados ao dono. Gostaria que tivesse um junto de si.
— Aceitaria com prazer o seu oferecimento se não receasse desagradar a Geoffroy. Possui setters esplên¬didos e talvez não goste que introduza no canil raça diferente.
— Poderá em breve perguntar-lho de viva voz.
— Recebeu carta dele?
— Melhor do que isso! Falei-lhe há dias. Está em Londres e deve chegar em breve a Cliff-House.
Geneva pôs-se de pé, muito pálida. A surpresa foi tão forte que não pôde conter esta exclamação:
— Viu Geoffroy? Já voltou da América?
Admirado, o conde Bryce fitou-a com atenção. Em seguida, compreendendo, pela sua palidez quase lívida, que a mulher ignorava a presença do marido em Ingla¬terra, corou intensamente, maldizendo no seu íntimo a tolice que acabava de cometer.
Conseguiu, apesar de tudo, conservar a fleuma habi¬tual e, em voz indiferente, sem aparentar ter percebido a comoção de Geneva, respondeu:
— Encontrei-o a semana passada em casa da duquesa de Know. Estava radiante e bem disposto. Conversámos muito. Ele declarou-se fatigado de ante¬mão com as fastidiosas visitas que se via obrigado a fazer antes de se instalar em Cliff-House.
Completamente desnorteada, sentindo as pernas ver¬garem, Geneva deixou-se cair de novo na cadeira, com a impressão de que tudo bailava em torno dela.
As últimas palavras do conde restituíram-lhe um pouco de serenidade.
— Sou tola — declarou, tentando dominar-se e ocul¬tar o abalo sofrido. — Geoffroy escreveu-me, avisando-me de que todas essas obrigações mundanas iriam retardar um tanto o seu regresso a casa. Não sabia, porém, que se encontrava já em Inglaterra. Ocultando-me a data da chegada, pretendeu, por certo, pou¬par-me a expectativa ansiosa, que poria a minha paciên¬cia à prova. Só teria conhecimento da sua presença quando ele chegasse a Cliff-House. Tem todas as deli-cadezas, o meu atencioso marido.
— Foi, de facto, a explicação que me deu — asse¬gurou Clarence com tranqüilidade.
Mas a reacção de Geneva fora passageira... de novo as faces descoraram e a sua expressão foi tão triste que Bryce não pôde duvidar da intensidade do golpe involuntariamente vibrado. O remorso foi tão pun¬gente como profundo era o seu amor. Gostaria de poder tomá-la nos braços e embalá-la com palavras animado¬ras. E teve de chamar a si todas as suas forças para conservar a calma e correcção exigidas, como se de nada se tivesse apercebido.
Entre eles, o silêncio reinou por instantes. Clarence, porque, embora o tentasse, nunca teria conseguido pro¬ferir frases banais, ante a dor que atormentava Geneva. Ela, porque não poderia articular um som.
“Geoffroy regressou a Inglaterra! Visita os seus ami¬gos sem ter vindo saudar aquela que usa o seu nome! É inaudito, inverosímil, mas é assim!”.
E a pobre rapariga, magoada, não via nesse pro¬cedimento de Geoffroy mais do que a pedra lançada diante de todos, o insulto calculado que a atingia publi¬camente, para a esmagar e fazê-la sucumbir pelo ridí¬culo ou pela mordedura cruel e envenenada da maledicência e da calúnia. Tinha a impressão de abismos tenebrosos que se lhe abriam aos pés, uma voragem onde a sua razão soçobraria com as suas ilusões, o orgulho e todo esse mundo maravilhoso que se esfor¬çara por construir no mais íntimo da alma, e aos olhos dos outros, havia alguns meses.
Um abismo... um túmulo! O túmulo que encerraria tudo quanto constituía a sua razão de viver desde o seu casamento com Geoffroy... e dramaticamente se des¬moronava quando menos o esperava.
Decorrido algum tempo, como que despertou para a realidade. Levantou a cabeça e fixou Bryce. Em voz sufocada, começou:
— Encontrou Geoffroy em casa da duquesa de Know? Os convidados eram numerosos, decerto. Sei que os chás da duquesa são sempre muito concorridos. Emily Ayton também lá estava, com certeza. Disse¬ram-me que não falta a nenhuma dessas reuniões.
Lorde Clarence pareceu hesitar. Por fim, respondeu:
— Emily Ayton está na Escócia. Talvez Geoffroy a encontre quando for caçar os cisnes bravos.
— Vai caçar?...
Curvou a cabeça e mais uma vez se abandonou a tristes reflexões. O silêncio voltou a reinar na sala.
O conde de Bryce contemplava Geneva. Perante o evidente sofrimento que a torturava, o coração parecia querer saltar-lhe do peito. Que singular casamento aquele!
E por que extraordinário capricho Geoffroy não comunicara à mulher o seu regresso? Um inglês bem¬-educado nunca se intromete nos negócios alheios; mas, a um gentleman, o manter atitude impassível perante a mágoa dilacerante da mulher amada, exigia esforço ter¬rível e quase sobre-humano.
Instintivamente, pousou a mão ardente na de Geneva, que estava gelada.
— Lady Seymour, não perca a confiança na vida e disponha de mim em tudo e por tudo.
Geneva abanou a cabeça.
— Não preciso de nada, creia — afirmou.
— Mesmo assim, desejo assegurar-lhe que pode con¬tar com a minha dedicação absoluta... sejam quais forem os acontecimentos que perturbem a sua existência.
— Agradeço-lhe, mas rogo ao Céu que nunca tenha de recorrer à sua amizade. Isso provaria que a sorte me havia sido adversa.
— Sabe-se lá! Quantas vezes a felicidade resulta de uma provação... Seja em que circunstância for, é sem¬pre consolador podermos contar com uma afeição sin¬cera... e, mais uma vez lhe afirmo: a minha própria vida está à sua disposição.
— Obrigada!... As suas palavras reflectem a sua delicadeza e generosidade e estou-lhe infinitamente reconhecida! Mas...
Calou-se, com a voz embargada pelos soluços.
— O que espero da vida só meu marido mo pode dar... Ele regressa breve e vou ser feliz, com certeza... Arde em mim tão grande anseio de ser amada... Sin¬to-me tão só! Geoffroy prolongou de mais a sua ausência.
Sem querer, gritava bem alto a sua dor, patenteava a ferida oculta, embora tentasse mascará-la. Clarence curvou a cabeça.
— Eu sei bem — proferiu lentamente — que em Geoffroy residem hoje todas as suas possibilidades de ventura. Sou amigo de seu marido, mas a minha dedicação por si não tem limites, lady Seymour. A vida é sempre um enigma para nós. Quando, daqui a pouco, eu me despedir de si, e ficar mais uma vez só, entregue aos seus tristes pensamentos, aguardando, ansiosa, o regresso de seu marido, eu desejaria que a recordação do afecto que lhe tributo a amparasse e reanimasse a sua coragem, se ela fraquejasse. Não está só nem aban-donada, lady Seymour. Por muito cruel que o Destino se mostre consigo, lembre-se de que deponho a seus pés o meu nome, a minha fortuna, a minha vida inteira e que poderá dispor deles, agora ou mais tarde, quando e como quiser, não importa em que momento da sua existência. É isto que desejava dizer-lhe e lhe suplico que não esqueça, se a adversidade lhe bater à porta.
Ao ouvir estas palavras de tão absoluta dedicação, Geneva ergueu os olhos para o seu interlocutor.
Deslumbrante como o relâmpago, revelou-se-lhe a verdadeira natureza dos sentimentos que Bryce profes¬sava por ela. Involuntariamente, pensou que talvez um dia, num amor tão sincero, encontrasse amparo e bálsamo para a sua desventura.
E estendeu-lhe a mão num gesto espontâneo.
— Mil vezes obrigada, Bryce. Aceito de todo o cora¬ção a amizade que me oferece e se alguma vez me sentir desamparada e precisar de uma dedicação pro¬funda e verdadeira, prometo lembrar-me das consoladoras palavras que acaba de me dizer...
Bryce curvou-se sobre a mão pequenina e delicada e docemente cobriu-a de beijos. Depois, muito comovido, largou-a subitamente e saiu da sala.
Após a partida de Bryce, Geneva correu para casa do tio Fil. Desejava pedir-lhe esclarecimentos sobre o procedimento de Geoffroy, conquanto não censurasse lorde Bucgham pelo seu silêncio, pois compreendia muito bem o móbil a que obedecera.
Bucgham, muito atrapalhado, não lhe ocultou que seu sobrinho se encontrava em Inglaterra havia mais de um mês.
— Um mês! — exclamou ela, assombrada. -— E nem ao menos se dignou informar-me do seu regresso! Duas palavras num bilhete, pois seria exigir muito pedir-lhe uma carta. Que fez ele durante esse tempo?
— Passou alguns dias em casa de Mr. Burghs.
— E, naturalmente, Emily Ayton também lá estava?
— Não creio — respondeu Bucgham com sinceridade. — Disseram-me que se ausentou de Londres, há já algu¬mas semanas.
— E que mais fez Geoffroy?
— Foi visitar um dos seus amigos e condiscípulos em Harrow, que vive na Escócia. Em seguida, satisfez o seu antigo desejo de percorrer os célebres Middlands. Quer ver como se extrai o carvão, estudar os novos métodos a empregar, e os meios de aperfeiçoar a técnica industrial... Em resumo, Geoffroy é novo, sente desper¬tar em si um potencial de energia e de actividade que os seus antepassados desprezaram, mas que ele apro¬veitará e fará dele uma força que dominará milhares e milhares de mineiros.
E neste teor continuou a expor as suas idéias, elo¬giando o sobrinho, exagerando as suas possibilidades, procurando assim desviar o pensamento de Geneva da sua idéia fixa, isto é, da afronta que se lhe afigurava ter recebido de Geoffroy.
Se a jovem lady conhecesse melhor a questão dos Middlands talvez o velho lorde tivesse alcançado o seu intento; mas ignorava-a em absoluto, sabendo unica¬mente que se tratava de minas de carvão.
Portanto, enquanto o tio se espraiava, falando dos projectos do sobrinho, de todo o discurso Geneva fixara apenas um facto: a passagem do marido pela Escócia, com todas as probabilidades de encontrar Emily Ayton.
Desejaria interromper lorde Bucgham e interrogá-lo a esse respeito. Não o fez, receando evidenciar a dema¬siada importância que atribuía à rival. Não deixou, con¬tudo, de perguntar ao tio Fil se aprovava a atitude de Geoffroy afastando-se de Cliff-House, encontrando-se em Inglaterra.
— Valha-me Deus — respondeu Bucgham, hesitante — é difícil responder à sua pergunta, minha querida filha. Se Geoffroy tivesse feito uma curta aparição no castelo, a Geneva poderia pensar, e com certa razão, que depois de tão prolongada ausência seu marido demonstrava pouco interesse por si. Em vez disso, pre¬feriu resolver primeiro todos os assuntos que solicitavam a sua atenção e só depois se instalará em Cliff-House, livre de qualquer compromisso.
— Diga antes que Geoffroy teria já regressado à sua casa se não soubesse que eu me encontrava aqui. Ordenou-me que viesse para Cliff-House e aguardasse a sua chegada, mas se em vez de lhe obedecer eu tivesse ido para França e nunca mais ouvisse falar de mim, agradar-lhe-ia muito mais.
— Não diga tolices. O lugar da esposa de Geoffroy Seymour é no lar de seu marido. E desde o momento em que, aos olhos de todos, é dona da casa, a rainha e senhora do castelo, que mais pode desejar?
— Estou a ver que ainda por cima lhe devo agrade¬cimentos! — insinuou Geneva, que raciocinava com a sua mentalidade de francesa.
— Vamos, Geneva, não veja tudo negro. Tente, pelo menos, abafar a sua susceptibilidade sentimental e tor¬nar-se mais prática. Possui o título e os privilégios das ladies Seymour, que mais quer? Não acha suficiente que Green-Park esteja perto de Cliff-House, o que nos per-mite continuarmos a nossa agradabilíssima convivência? Que vantagens nos traria a presença de Geoffroy? Julgo que até hoje temos passado muito bem sem ele.
Falava num tom jovial, afectuoso, e Geneva não teve outro remédio senão acompanhá-lo.
— Se o tio Fil encara as coisas por esse prisma — respondeu no mesmo tom — não posso deixar de con¬cordar que a nossa convivência tem sido deliciosa e que a presença de lorde Seymour não é por forma alguma indispensável.
— Ora até que a ouço falar como pessoa razoável! E, depois, impõe-se que seja em todos os pontos uma verdadeira lady Seymour. Na família de meu sobrinho — explicou, risonho — existe este axioma: “um lorde Seymour é sempre impecável”. Todas as suas anteces¬soras, e isto há muitos séculos já, baseavam a sua conduta na convicção, que para elas era um dogma, de que o esposo, tendo sido educado no culto da honra, da justiça e da bondade, nunca poderia errar.
— É curiosíssima essa convicção — comentou Geneva, zombeteira.
— E quase sempre justa, pode crer — insistiu o tio. — Os antepassados de Seymour, educados nesses prin¬cípios, foram todos mais ou menos autoritários, zelosos pelos seus direitos, mas compenetrados das responsabi¬lidades que pesavam sobre eles, não prevaricavam, e as esposas ou filhas nunca encontraram motivos para lamen¬tar essa espécie de supremacia, dada aos varões da família.
— E Geoffroy, como os outros, está convencido da sua superioridade? — perguntou Geneva, sorrindo.
— É natural. Desde criança, incutiram-lhe esses prin¬cípios, ao mesmo tempo que o obrigavam à rigorosa análise dos seus actos e resoluções.
Geneva começou a rir ironicamente.
— Um super-homem, com todas as prerrogativas inerentes!
— Não zombe, minha filha. Será preferível conven¬cer-se de que Geoffroy é um nobre caracter.
Geneva não protestou.
— Pela forma como se referiam a ele, compreendi a admiração que o rodeia.
— Porque a merece.
— Concordo! Mas essa é mais uma razão que me obriga a partir quanto antes — acrescentou. — Calcule o tio Fil que na minha família também existe uma crença. Afirma-se que todas as senhoras de Rouvaux são espo¬sas prudentes e sensatas. Sempre que nasce uma menina, os pais mandam rezar uma missa em acção de graças por Deus ter concedido às mulheres da nossa casa os dons da honestidade e da prudência. Em Cliff-House cultivam o orgulho e superioridade masculina. Nos Rou¬vaux, a perfeição moral das mulheres é inata, verdadeira graça de Deus.
Com um ar malicioso, concluiu:
— Já vê, meu querido tio, que seria inadmissível o entendimento entre um boy superior e uma girl perfeita! Uma aliança nesses casos é irrealizável. A harmonia conjungal só se torna possível quando os esposos se completam: os pequeninos defeitos de um compensam as desagradáveis qualidades do outro. Se — é este o meu caso e o de Geoffroy — são ambos de essência superior, é inevitável o choque.
— O choque brutal de dois orgulhos levados ao paroxismo?
— Exactamente! — aprovou com irresistível sinceri¬dade.
Arrependendo-se, porém, ergueu para o seu inter¬locutor um olhar inquieto.
— Na verdade, acha-me tão orgulhosa como isso? — indagou com gracioso trejeito de humilhação.
— Sou obrigado a confessar que o é até ao extremo — confirmou lorde Bucgham com exagerada gravidade. — Nunca, como hoje, o havia notado. Desde este momento, porém, estou convencido de que o seu orgu¬lho ultrapassa tudo quanto é possível imaginar-se. E o facto é tanto mais para lamentar quanto o dom da pru¬dência, concedido a todas as filhas da sua casa, a devia preservar de semelhante defeito.
Geneva tomou a expressão contrita de uma criança severamente repreendida.
— Para salvar a minha reputação, terei ainda de sacrificar mais essa jóia do meu tesouro? — perguntou com expressão travessa. — Sempre pensei, e creio que Geoffroy deve perfilhar a mesma opinião, que o orgulho é a mais nobre qualidade de um indivíduo, conservando-o superior a tanta coisa mesquinha e às misérias que afligem a Humanidade.
Lorde Bucgham aprovou com a cabeça.
— Tem razão, Geneva. O orgulho é, com efeito, poderoso estímulo para ajudar o indivíduo de nascimento superior a atingir as altas regiões da perfeição moral. Em compensação, afigura-se-me que numa mulher — que deve ser toda indulgência e bondade — o orgu-lho não é compatível com a sua missão de paz e dedi¬cação.
Com leve sorriso, fitou-a longamente.
— Não calcula, minha amiga — acrescentou — o pra¬zer que me deu, revelando-me o dom que obrigatoria¬mente possui de nascença. Deu-me margem a exigir de si muito e melhor. Terá de se colocar à altura das circunstâncias, de boa vontade e sem protestos.
— Isso quer dizer?... — inquiriu, já desconfiada.
— Que deve ser uma verdadeira lady Seymour. Todas as antecessoras de Geneva compreenderam o papel que lhes cabia desempenhar na vida do esposo. Foram pacientes, afáveis e indulgentes.
— E convida-me a imitá-las?
— Isso mesmo! E para lhe dar coragem vou contar¬-lhe pequena história, que se refere justamente a uma lady Seymour que foi esposa, tão perfeita como formosa, do bisavô de Geoffroy.
Geneva interrompeu com vivacidade:
— Já sei. O marido nunca prevaricou, era impecável, embora a mortificasse a todo o momento. E — continuou, imperturbável — quando recebia uma bofetada do seu infalível esposo, oferecia-lhe imediatamente a outra face, a fim de que o par de estalos ficasse completo.
Ria, algo provocante na sua alegria, o que lorde Bucgham registou com prazer, pois sabia que o riso desarma os mais fundos rancores.
— Não — contrariou no mesmo tom jovial. — Não lhe oferecia a outra face. Contentava-se simplesmente em vincar bem aos olhos de todos a sua fé no marido. O antepassado de Geoffroy enfermava de pequenino defeito.
— Tem a certeza, tio Fil, de que o defeito desse lorde Seymour era pequeno e só um?
— Um só, mas inegável e evidente! Gostava de beber e não sabia resistir à atracção que sobre ele exercia o álcool.
— Adivinho o resto! — interrompeu, satírica. — A mulher levava a sua complacência a conservar-lhe, dia e noite, o copo cheio e ao alcance da mão.
— Mal adivinhado! — registou fleumàticamente o inglês. — A avó de Geoffroy contentava-se em não admitir a embriaguez do marido. Fossem quais fossem os distúrbios que praticasse, nunca lhe dizia: “Jack, tu não estás em teu juízo!” ou “Tu bebeste de mais!”. Não sei se mede bem a dose de serenidade de que teria de se revestir esta mulher que nunca proferia um queixume ou se revoltava com a intemperança do marido, cuja embriaguez era permanente.
— Que horror! — exclamou Geneva com desdenhoso trejeito. — Sempre me repugnaram os ébrios e na situa¬ção da sua antepassada, creio que, pelo menos, teria apodado o meu marido com epítetos capazes de o humi¬lhar ou de o corrigir.
— Porque desconhece por completo a psicologia inglesa, miss França! Jack Seymour foi vencido pela inesgotável indulgência da mulher.
— Como?
— Nos últimos anos da sua vida, nunca mais levou à boca um copo com álcool. O seu orgulho de homem não podia admitir a superioridade da esposa, que, elogiando-o, sublimava o seu erro.
Geneva começou a rir.
— Não esperava semelhante desfecho, confesso. Supus, pelo contrário, que a incomparável avó de Geoffroy, para não ser superior ao marido, tivesse começado a beber também e que os dois esposos se defrontavam num match de nova espécie: ver qual deles absorveria maior quantidade de gin no fim do dia.
Lorde Bucgham olhou-a muito sério.
— Seria esse o procedimento que adoptaria com seu marido, se ele fosse ébrio?
— Eu? Deus do Céu, que idéia! — protestou. — Se tivesse a infelicidade do meu marido se embriagar todos os dias, creio que não hesitaria em lhe quebrar na cabeça toda a louça que existisse em casa...
Bruscamente, porém, toda a sua alegria se evaporou e as pupilas dilataram-se pela acção de um pensamento inquietante.
— Por que me contou essa história, tio Fil? Geoffroy também bebe de mais? Suplico-lhe que me elucide! Conheço tão pouco meu marido!... Muito menos do que supunha... Diga-me com franqueza... Geoffroy embriaga-se a ponto de perder a cabeça?
Ao mesmo tempo dizia de si para si:
“Agora tenho a certeza de que não amo Geoffroy... E se, na verdade, é um ébrio, sinto que nunca poderei amá-lo”.
Não exprimia estes pensamentos em voz alta. Con¬tentava-se em insistir, ansiosa:
— Diga-me... ele bebe?
O inglês, no entanto, devia ter adivinhado os pen¬samentos da sobrinha e achou-lhe graça.
— A Geneva está, mais do que eu, nas condições de o saber. Encontraram-se em Nova Iorque, entre amigos e numa festa onde não devia haver constrangimentos. Ele bebeu de mais? Estava embriagado?
A encantadora lady ia abrir a boca para soltar um convicto:
“Se estava!”
Mas, num relance, ocorreu-lhe a pequena história que lorde Bucgham acabara de lhe contar e mordeu os lábios.
Disfarçadamente, observou o tio, disposta a regis¬tar todas as suas reacções. Este, porém, conservava-se impassível.
— Esteja descansada, minha filha — tranqüilizou, imperturbável. — Nunca verá Geoffroy em pior estado do que o viu em Nova Iorque.
Radiante com a reserva de Geneva, que compreen¬dera a intenção oculta na sua parábola, afagou-lhe a face, enquanto a sobrinha, pouco satisfeita com a res¬posta, soltava um suspiro desiludido.
— É encantadora, minha pequena Geneva — afirmou com ternura. — Compreende as coisas por meias pala¬vras. Tenha esperança de que o maroto do Geoffroy acabará por fazer justiça às suas admiráveis qualidades.
— Esperemos que assim seja! — concordou por deli¬cadeza, mas sem convicção.
Tio e sobrinha separaram-se com carinhoso aperto de mão.
Regressando ao castelo, Geneva pensava, aterrada:
— Não há duvida! Geoffroy bebe. Por generosidade, o tio Fil não quis confessá-lo, mas pressinto que isto vai dar mau resultado! Quando meu marido se instalar em Cliff-House, juro que a primeira vez que o veja embria¬gado ponho de parte todas as considerações e fujo para França. Não vou estragar a minha vida inteira para me conservar junto de um ébrio, que ainda por cima não gosta de mim.
O carro dava verdadeiros saltos, por tal forma a condutora carregava no acelerador.
— Lorde Seymour é impecável! — repetia numa re¬volta de todo o ser. — Lorde Seymour não bebe, embora esteja a cair! Meu Deus! Dai-me a coragem necessária para aceitar semelhantes teorias.
Nessa mesma noite, Geneva, ao encontrar-se com Maè, que havia partido de manhã cedo para Londres a fim de fazer umas compras, contou-lhe o acontecido, e esta não ocultou a sua indignação perante o inconce¬bível procedimento de lorde Seymour.
— Se estivesse no seu lugar, vingar-me-ia e não dei¬xaria de lhe fazer sentir bem o meu ressentimento.
Geneva meneou a cabeça.
Tudo quanto o velho tio acabara de lhe dizer não fora semente perdida.
— E o fair-play, não conta? — replicou num misto de cólera e zombaria.
— O fair-play?
— Exactamente. Lorde Bucgham não tem outra pala¬vra na boca há uns meses para cá. Parece que neste país homens e mulheres professam tal respeito pela indi¬vidualidade que não se atrevem a entravar a liberdade de cada um. Eu bem sei que esta forma de pensar não é de uma francesa, mas devemos respeitar os usos do país onde nos encontramos.
— Na América também se professa, no mais alto grau, o respeito pela liberdade! Mas as mulheres nunca deixam de se vingar quando têm razão.
— Pois bem! Todas essas teorias são ridículas aqui. Casámos com ingleses e é forçoso que nos coloquemos à altura das circunstâncias.
Maè abriu uns grandes olhos surpreendidos.
— Transformaram a minha amiga! — bradou com cômica desolação. — Deixou de ser sentimental! Agora só lhe falta admitir a fase do business.
Geneva tapou os ouvidos.
— Mais devagar, Maè. Não posso segui-la em seme¬lhante terreno, que as minhas antecessoras nunca pisa¬ram, tenha a certeza.
Geneva não era a mesma. Sem dar por isso, abdicara em parte da sua personalidade a favor do belo lorde cuja lembrança a fascinava.
Pobre lady Seymour! Até onde a conduziria essa atracção?
Quando, naquela manhã, Geneva e Maè regressavam do seu passeio a cavalo, viram, de longe, grande auto¬móvel parado junto da escadaria de Cliff-House.
Era ainda muito cedo, porque as duas raparigas esta¬vam habituadas a dar o passeio de manhãzinha.
— Visitas? — estranhou Maè.
Geneva não lhe respondeu. Agitava-a a mais intensa emoção. Ao primeiro relance reconhecera a silhueta de Seymour, parado ao fundo da escada.
“Finalmente!” — pensou, abrandando o passo do cavalo para dar tempo a acalmar as palpitações desor¬denadas do coração.
De longe, o recém-chegado seguia com o olhar as duas amazonas, que se aproximavam ao passo vagaroso das suas montadas e contornavam agora o tabuleiro de relva.
— Quem virá visitar-nos a esta hora? — insistiu Maè, intrigada.
— Geoffroy em pessoa! — elucidou Geneva.
— Até que chegou o marido pródigo! Fez-se rogar, sua excelência! — ironizou a americana, — Alegra-te, Geneva, aí tens o teu bem-amado.
E, rindo, esporeou o cavalo, enquanto a companheira procurava conservar-se calma e, não querendo demons¬trar pressas, continuava a avançar devagar.
Um criado precipitou-se para ajudar Maè a des¬montar. Seymour adiantou-se também e, após os cum¬primentos usuais, esta informou-se com desembaraço:
— Fez boa viagem, meu caro amigo?
— Excelente — respondeu o inglês, examinando a sua interlocutora.
Em seguida, o seu olhar foi fixar a outra amazona. Mas como esta estivesse já muito próxima, voltou a cabeça e fleumàticamente começou a subir a escada ao lado de Maè, que lhe pedia notícias de William Tedder, manifestando, com evidente ironia, o seu espanto por não o ver regressar.
— Mais dois ou três meses de paciência — tranqüi¬lizou Geoffroy no mesmo tom. — A seu tempo verá chegar o seu adorado esposo!
Maè desatou a rir como se achasse imensa graça ao dito. Estava decidida a mostrar-se alegre e despreo¬cupada como o deve ser toda a mulher legítima, insta¬lada nos seus direitos conjugais.
Como atingissem a entrada de Cliff-House, Maè tomou amigavelmente o braço de Geoffroy.
— Estou encantada com o seu regresso, Seymour. O seu castelo é magnífico, mas faltava-nos uma com¬panhia masculina.
— Não tinham a de meu tio?
— Com efeito, vinha visitar-nos quase todos os dias. A primeira vez que o vi tomei-o por um importuno qualquer e não o tratei com muita amabilidade. Creio que nunca me perdoou. Em compensação, entende-se às mil maravilhas com Geneva... De resto, quem não se entenderia com ela! Sua mulher é admirável, meu amigo, e a seu lado nós outras não passamos de uns diabinhos.
Seymour fingiu não ter ouvido a referência aos méri¬tos da esposa.
— Se todos os diabinhos forem como a minha amiga, declaro que os prefiro aos anjos — replicou com galantaria. — Muito mais se tiverem cabelos de ouro como os seus. Decididamente, adoro as louras — acrescentou em voz alta.
Maé soltou uma gargalhada argentina, como se de facto tivesse provocado o cumprimento.
Nem um nem outro pareciam lembrar-se de Geneva, que ficara para trás.
Desde o primeiro minuto, Maé dera à sua conversa com Geoffroy essa nota de flirt tão natural do outro lado da Mancha, e ele, sem hesitação e até com prazer, acompanhara-a nesse caminho.
Trocando estas palavras, iam subindo a escada segui¬dos pelo criado, que levava duas pesadas malas.
Chegando ao primeiro andar, separaram-se. À des¬pedida, Maè combinou:
— Vou despir o fato de montar enquanto você se limpa da poeira da viagem e depois encontramo-nos no parque. Quer, Seymour? Tenho tantas perguntas a fazer-lhe a respeito do meu esquivo marido...
— Combinado. Até já.
Entretanto, Geneva saltara do cavalo. Estava impa¬ciente por se encontrar com Seymour e ver as reacções que resultariam desse choque. Persistiria a atracção do primeiro encontro em Nova Iorque ou tratá-la-ia como indiferente? Ela própria sentir-se-ia subjugada como no dia do seu casamento?
De momento, o seu coração dir-se-ia querer despe¬daçar a frágil prisão de carne e mal conseguiu dominar a sua emoção.
“Impõe-se que atinja esse grau de impassibilidade e de fleuma que tanto me aconselhou o tio Fil” — pen¬sava.
Naquele instante, porém, estava bem longe de o obter.
Quando por sua vez penetrou no hall de entrada, Seymour e Maè já o haviam abandonado e as duas vozes ressoavam no andar superior.
Maquinalmente, Geneva colocou o chicote na panóplia e ficou parada por instantes.
Sem querer, ouviu o madrigal dirigido a Maè a pro¬pósito dos seus cabelos louros e a entrevista combinada entre o marido e a amiga.
Até àquele momento afigurava-se-lhe natural que não tivessem esperado por ela. Era uma espécie de interregno que, tàcitamente, ambos lhe concediam, dan¬do-lhe tempo a dominar-se.
Conquanto o coração lhe pulsasse impaciente e na ânsia de ver Seymour experimentasse o desejo de subir a escada a dois e dois, fê-lo lentamente, com a majes¬tade de uma rainha e erguendo a saia com as pontas dos dedos, num gesto gracioso. No patamar superior teve ligeira hesitação. O seu quarto ficava na ala esquerda do palácio, enquanto os aposentos do marido se encontravam do lado oposto.
Cumpria-lhe ir saudar o recém-chegado?
Tentou imaginar o que faria sua mãe em tais cir¬cunstâncias e não teve a mais pequena dúvida. A senhora de Rouvaux, sem hesitação, pondo de parte todas as exigências da etiqueta, teria corrido ao quarto do marido. De resto, esse gesto de boas-vindas não era naturalíssimo por parte de uma esposa atenciosa?
Geneva decidiu seguir esse bom impulso, embora a forma por que Seymour a pusera de lado momentos antes, simulando ignorá-la, a ferisse profundamente e a fizesse recear frio acolhimento. Mesmo assim, voltou resolutamente à direita e, chegando diante dos aposen-tos do marido, abriu a porta e entrou.
O criado de quarto estava ajoelhado junto da mala, despejando-lhe o conteúdo. Ao ver aparecer a dona da casa, levantou a cabeça e saudou-a com respeito. Geoffroy, de mãos nas algibeiras, diante da janela aberta, voltou-se e teve um gesto de contrariedade ao ver sua mulher.
— Que deseja? — inquiriu com rispidez.
Geneva corou, mas não recuou.
— Venho cumprimentá-lo, lorde Seymour.
— Mais tarde. Quando tiver tomado o meu banho e mudado de fato irei procurá-la aos seus aposentos.
Acto contínuo aspirou o ar e torceu o nariz.
— Que cheiro a cavalo! Faça-me o favor de ir despir esse trajo quanto antes.
A pobre Geneva achou-se no corredor quase sem compreender o que se acabava de passar. Não obstante o seu desejo de se manter à altura das circunstâncias e de aceitar impassível todas as agruras da sua situação, entrou no quarto, transtornada e com os olhos cheios de lágrimas.
Não conseguia coordenar as idéias.
Cumprira o que supunha ser o seu dever, e Geoffroy fizera-lhe sentir que o seu gesto fora intempestivo. Em conclusão, via o seu desejo de conciliação repelido e compreendia que a sua presença não era apreciada.
Como que atordoada, sentou-se e, quase inconsciente, deixou que a criada de quarto a descalçasse. Foi ainda numa espécie de hipnose que mudou de vestido. Depois, com a fronte encostada às vidraças, deixou errar o olhar pela paisagem, um olhar vago que fixava as coisas sem as ver, porque, na verdade, “olhava para dentro” e seguia a trama dolorosa tecida pelos seus tristes pensamentos.
Conquanto se estivesse na Primavera, o frio ainda se fazia sentir intenso. Fortes rajadas sacudiam as gran¬des árvores do parque, que vergavam, curvando até ao solo as hastes mais fracas que não podiam resistir ao ímpeto brutal.
Quadro pungente que o subconsciente de Geneva registou numa impressão desoladora. Na vida, tanto como na Natureza, os fortes dominam e esmagam sem¬pre os mais fracos. E ela, sem fortuna, sem posição social, mais tarde ou mais cedo teria também de sofrer o jugo do mais forte que a aniquilaria.
Debaixo dessa impressão de esmagamento, seguiu com a vista uma folha que escapara à destruição hiber¬nal e, impelida pelo vento, rodopiava rente ao solo, levantava-se agora para cair mais além.
Tragicamente, Geneva comparou-se à pequenina folha, perdida na imensidade do Universo. Quanto tempo ela também rodopiaria assim, arrastada pelos acontecimentos antes de cair em qualquer canto, tor¬turada e esmagada pela vida?
Nesse momento, o ruído de vozes arrancou-a às suas tristes reflexões. Baixou os olhos e avistou lorde Seymour e Maè que, lado a lado, se dirigiam para as estufas.
O espectáculo trouxe um soluço à garganta con¬traída da infeliz. Havia meia hora que aguardava o homem de quem usava o nome. Este, porém, preferira comparecer à entrevista fixada pela outra a cumprir para com ela o mais elementar dos deveres de cortesia, tanto mais que a visita fora anunciada.
Então, em movimentos bruscos, pôs o chapéu, vestiu um casaco de peles e desceu precipitadamente a escada. Quase a correr, dirigiu-se à garagem, passando ao lado do marido e da amiga sem os ver. Cinco minutos depois, ao volante do automóvel, corria a toda a velocidade para casa de lorde Bucgham, procurando um refúgio junto desse homem que durante dez meses se mostrara sempre tão bom e carinhoso com ela.
Quando o inglês viu aparecer Geneva na biblioteca, onde, confortàvelmente instalado numa poltrona, lia o relatório mineiro que acabava de receber, apressou-se a levantar-se, assustado ao reparar-lhe nas feições descompostas e olhar alucinado, estranhando a forma brusca como entrava pela porta dentro.
— Tio Fil! — suplicou, mal o viu. — Ajude-me a fugir de Cliff-House! Não posso ficar ali nem mais um dia! Quero ir-me embora!
— Que aconteceu? — perguntou o velho lorde, mal refeito da surpresa. — Acalme-se, minha filha!
— Quero partir — teimou Geneva com as faces inun¬dadas de lágrimas.
Ele olhou-a, estupefacto.
— Quer voltar para França?
— Para França ou para a América, seja para onde for, mas aqui não posso ficar! Não posso!
O tio pegou-lhe nas mãos. Não conhecia ainda a causa de semelhante atitude, mas estava certo de que Geoffroy era a base dessa revolta.
— Vamos, conte-me primeiro o que se passou.
Em frases entrecortadas Geneva descreveu-lhe as cenas da manhã. A afronta que o marido lhe fizera à chegada e a humilhação que depois lhe infligira diante do criado de quarto. Por fim, contou-lhe como depois de lhe ter prometido ir visitá-la aos seus aposentos a fizera esperar inutilmente.
Quando acabou de falar, lorde Bucgham respirou quase tranqüilizado ao ver que no fundo se tratava, por assim dizer, de bagatelas... quando muito, de amor-pró¬prio ferido!
— Em primeiro lugar, sossegue, minha querida filha. Creia que me sinto desolado ao vê-la nesse estado, pois me persuado de que Geoffroy não quis por forma alguma ofendê-la. Conheço-o bem e julgo-o incapaz de uma incorrecção premeditada. Embora as aparências sejam contra ele, não deve, desde o primeiro encontro, ver em tudo agravos e ofensas.
Afectuosamente, puxou-a para si e beijou-a. Depois, instalou-a numa poltrona, junto do fogão.
— Descanse um bocadinho, Gene. Em seguida exa¬minaremos o ocorrido, com calma e imparcialidade.
Toda a excitação de Geneva se esvaiu de repente. Fechando os olhos, apoiou a cabeça às costas da pol¬trona e os braços penderam inertes como se as forças a abandonassem. No decorrer de alguns segundos não foi mais do que um pobre ser torturado e ferido que segundo golpe acabaria de despedaçar.
De uma palidez quase lívida, os lábios descorados e o nariz afilado, despertou infinita ternura na alma de lorde Bucgham, que a pressentia agora mais gravemente atingida do que a princípio supusera. Geneva era toda fragilidade e fraqueza. E quase odiou Geoffroy, homem consciente da sua força, por não ter sabido compreen¬der que devia poupar a mulher. Receava vê-la desmaiar de um instante para o outro.
Precipitadamente, encheu um cálice de Porto.
— Beba isto, Geneva, e pelo amor de Deus não perca a coragem. Tenho a convicção... ouve bem, minha querida filha?... tenho a certeza de que toda esta his¬tória não passa de um mal-entendido.
O excelente homem estava tão comovido ao vê-la naquele abatimento que a mão tremia-lhe quando che¬gou o copo aos lábios de Geneva.
— Beba. Isto reanima e faz bem... Vê, as suas faces começam a tomar cor! Com mil demônios! Por que se aflige assim por causa de um marido tão estúpido?... Tudo nesta vida acaba por se arranjar!
Geneva tentou reagir.
— Não — balbuciou com pálido sorriso. — Há coisas que não têm composição possível. Mas o tio Fil vai ajudar-me a sair desta situação, não é verdade?
— Farei tudo quanto estiver ao meu alcance para minorar a sua aflição. Não a quero ver triste. Todavia, antes de mais nada, desejo lembrar-lhe que é lady Seymour e esse nome lhe dá na vida de meu sobrinho uma importância considerável.
Ela abanou a cabeça num protesto mudo.
— Uma importância que ele não reconhece! Ser mulher de um homem não passa de palavra oca, se esse homem não lhe dá o devido valor... Fui esta manhã o mais longe que podia ir... fiz tudo quanto se me afi¬gurou que uma esposa deve fazer quando o marido regressa a casa após longa viagem. E Geoffroy não quis compreender-me!
— Fez mais do que ele merecia — replicou o inglês em tom pesaroso e apertando entre as suas as mãos enregeladas da sobrinha, para as reanimar. — A minha filhinha é uma pobre sensitiva que atribui demasiada importância a bagatelas, quando Geoffroy nunca se preocupou com pequenas coisas. Sem querer, feriu-a profundamente.
— Não creio que o seu procedimento desta manhã fosse sem querer — protestou. — Mas, involuntários, os seus actos têm mais grave significação porque revelam tão evidente indiferença e injurioso desprezo que o meu desejo de partir redobraria.
— Vamos, Geneva. Não fale assim em abandonar o seu lar. Felizmente, ainda não chegámos a esse ponto.
— E no entanto é isso precisamente o que venho pedir-lhe, lorde Bucgham. Não disponho neste momento de meios suficientes para empreender qualquer viagem. Quando cheguei a Inglaterra supunha-me riquíssima, mas despendi muito em Cliff-House: obras de caridade, festas, enfim, coisas a que uma lady Seymour não podia eximir-se. A minha bolsa esvaziou-se pouco a pouco. Venho, portanto, pedir-lhe que ponha à minha disposi¬ção a importância necessária para regressar à América.
— Por que prefere a América?
— Porque tenho nesse país amizades preciosas que me auxiliarão a reconstruir a minha vida... Além disso, se voltasse para França, iria ao encontro de novos dis¬sabores e amarguras por parte da minha família, que me censuraria este disparatado casamento. Sinto-me can-sada, tio Fil, tão cansada que não tenho ânimo para sofrer, nem coragem para lutar.
— Até agora tem sido tão ajuizada, Geneva! Não compreendo por que deserta do seu posto de um momento para o outro.
Com infinita lassidão, Geneva confessou:
— Creio que a presença de lorde Seymour em Ingla¬terra, há mais de um mês, me impressionou mais do que poderia supor. Não quis dar-lho a perceber, mas a sua ausência magoou-me e sofri muito.
— Porque lhe atribuiu intuito injurioso.
— Se não pensasse como penso, talvez não tivesse sofrido tanto. Mas o seu desprezo desta manhã foi a gota de água que fez transbordar a taça. Nem quero lembrar-me de que me verei forçada a voltar a Cliff-House para arranjar as malas.
— Não diga tolices, sua màzinha. Não deve esque¬cer assim todas as vantagens que lhe advêm do casamento com Geoffroy. É lady Seymour, lembre-se disto, minha Geneva, lembre-se disto.
Geneva abanou a cabeça.
— Não pretendo aproveitar-me dessas vantagens. Só desejo esquecer. O nome e o título de lorde Seymour não me interessam.
Essa indiferença súbita e bem vincada por tudo quanto dizia respeito a Geoffroy era odiosa para lorde Bucgham.
— Vejamos, Geneva. Confessou-me que amava seu marido e durante estes meses todos viveu na expecta¬tiva do seu regresso, tentando amoldar-se aos hábitos e à vida inglesa.
— Tem razão — concordou com desalento. — Ali¬mentei risonhas ilusões, mas vejo que a realidade difere muito do meu sonho. Quando supus amar Geoffroy, amava simplesmente o ideal que formara do Amor. E quando, cheia de boa vontade, estava pronta a todos os sacrifícios para tornar num casamento de verdade este simulacro de casamento, era ainda esse ideal que tentava realizar.
A fisionomia do inglês reflectiu súbita gravidade. Compreendia que com uma palavra desastrada podia cavar mais fundo o abismo que ameaçava separar Geneva do marido. E depois, qual seria o melhor caminho? Reu¬ni-los ou tornar definitiva a separação?
Pensativo, contemplou Geneva. Em seguida, pegou numa cadeira, sentou-se perto dela de forma a poder conservar a mão da sobrinha apertada entre as suas, sem contudo a ter debaixo da acção directa do olhar. Não queria arvorar-se em juiz nem assumir as respon-sabilidades de conselheiro. Desejava apenas ser para aquela pobre rapariga, que o Destino colocara em situa¬ção tão delicada, um amigo, na verdadeira acepção do termo.
— Antes de mais nada, quero assegurar-lhe que ponho à sua disposição a importância que me pedir, Geneva — declarou em voz calma. — Mas não devia ter tocado no seu dinheiro. Geoffroy deu as necessárias ordens ao seu procurador para lhe entregar todos os meses determinada quantia e lamento que essas ordens não tenham sido cumpridas.
— Não preciso do dinheiro de lorde Seymour — replicou, obstinada. — Se não quer reconhecer os deveres morais que contraiu para comigo, desligo-o de qual¬quer obrigação material. Nada lhe pedi nem exijo qual¬quer coisa dele.
Lorde Bucgham apertou mais a mãozita que se retraía entre as suas.
— Sempre é muito orgulhosa, esta querida Geneva! E não receia cometer assim uma grande injustiça?
— Isto não é orgulho. É a minha dignidade de mulher que reage contra a ofensa.
— Talvez tudo isso não passasse de questão de coincidência.
— Não diga isso! — protestou, indignada.
— Ouça, minha filha — insistiu o tio Fil, persuasivo. — Creio sinceramente que seu marido não merece todas as censuras que lhe dirige. Por exemplo, no caso de Emily Ayton...
— E então?
— Não procurou vê-la, como parece acreditar. Emily casou antes do regresso de Geoffroy.
— Casou?
— Há dois meses. Desposou sir Malcolm Bomley e quando se encontraram em casa da duquesa de Know e na Escócia, estava com o marido. Já vê que em tais cir¬cunstâncias o encontro não devia ter sido muito agradá¬vel para qualquer deles.
Uma expressão de assombro passou nas pupilas de Geneva, que se conservou calada por momentos. Por fim, indagou em voz baixa:
— Como pôde Emily Ayton casar se se correspon¬dia regularmente com Geoffroy? Esqueceu os seus ares triunfantes e agressivos quando nos encontrámos em casa de lady Patrícia?
— Não se recorda também da intervenção de Clarence e das palavras que ele atribuiu a Geoffroy, as mais cruéis para o amor-próprio de uma mulher?
— Supõe então que Emily as tomou a sério?
Tanto como as palavras, o olhar ansioso interrogava Bucgham.
— Creio, de facto, que o orgulho de Emily Ayton não admitiu que alguém a pudesse vê-la preferida por outra mulher, mais formosa do que ela. Casando, dava um desmentido às insinuações de Bryce... Sir Malcolm Bomley beneficiou das circunstâncias.
— Pobre homem! — exclamou Geneva, com cômica desolação. — Mais outra vítima do meu casamento.
O inglês acolheu com um sorriso alegre a reflexão de Geneva.
— Pelo contrário, deve estar encantado com a sua sorte... Emily não o obrigou a casar com ela... Fazen¬do-o, Malcolm conseguiu a mulher que provavelmente amava há muito tempo sem esperança.
— Tem razão! Vendo bem, o único prejudicado em tudo isto foi Geoffroy, a quem o Destino roubou a mulher amada, deixando-lhe em troca a que detesta.
Este pensamento avivou de novo o desejo de partir.
— Agora tudo se remedeia, visto que estou decidida a restituir-lhe a liberdade. Quando eu me tiver ido embora, lorde Seymour poderá abandonar os ares trá¬gicos.
— Não dei por que tivesse esses ares...
— Já lhe falou? — perguntou, admirada.
— Passou a noite em Green-Park. Conversámos os dois até muito tarde.
— Nesse caso, devia ter-se lamentado pela minha odiosa presença em Cliff-House.
— Engana-se.
— Não quer desanimar-me...
— Afirmo-lhe que não me falou nesses termos.
— Sendo assim, não se referiu ao nosso casamento?
— Pelo contrário. Falámos muito de si. Ele concorda que contraiu para consigo imperiosos deveres.
Geneva aprovou:
— Sim, reconheceu os imperiosos deveres para comigo. Deve mesmo estar farto deles até à ponta dos cabelos, como se diz em França.
— Então! Não seja màzinha, minha filha. Não diga palavras tão feias. Seu marido não alimenta qualquer má vontade contra si. Por conseqüência, e em minha intenção, vai fazer-me o favor de continuar a ser a lady Seymour que sempre conheci, sensata, prudente, cum-prindo todos os seus deveres sem fraquejar e conten¬tando-se com o pequeno quinhão que lhe oferecem por enquanto.
Geneva baixou a cabeça, porque as lágrimas mais uma vez lhe saltavam dos olhos.
O que o tio Fil exigia dela afigurava-se-lhe dificí¬limo de conseguir.
— Vamos — prosseguiu lorde Bucgham, insinuante e apertando-lhe afectuosamente as mãos. — Sabe o que vai fazer hoje?
— Não sei, nem tento saber.
— Tenta, sim, não seja teimosa!... Aqui tem o tele¬fone. Comece por falar para Cliff-House e dar as suas ordens para que o almoço seja requintado, compreende? A minha filha veio a Green-Park para me convidar, não é assim? Convide também o conde Bryce e lady Patrícia, com a família. Se sua cunhada não tiver a tarde livre, transfira os convites para o jantar. Cumpre festejar o regresso de seu marido.
— Não sei bem por que hei-de convidar essa gente toda.
— Porque a melhor forma de festejar a chegada de Geoffroy, como lhe aconselhei, é reunir todos os seus amigos. Quando, após tão grande ausência, o senhor de Cliff-House regressa ao seu castelo, uma recepção é quase obrigatória.
— Ver-me-ei forçada a representar verdadeira comé¬dia — protestou Geneva, por forma alguma entusiasmada com a idéia. — Afirmo-lhe, tio Fil, que não estou dis¬posta a sorrir nem a desempenhar o meu papel!
— Admito, mas eu ficarei à sua direita. Coloque Bryce à esquerda, e entre nós dois, em cuja amizade pode confiar plenamente, verá como se sente mais apa¬ziguada e conseguirá ser a mais perfeita das donas de casa.
O programa não tentava a juvenil lady. Fez um trejeito de desagrado, enquanto as negras pupilas inter¬rogavam o seu interlocutor.
— Vinha implorar-lhe a liberdade e impõe-me deveres. Será isto justo?
— É, sim. Faça o que lhe peço.
Geneva fechou os olhos e concentrou-se numa luta íntima.
— Pois bem! Seja! — decidiu, com um suspiro. — Procurarei, mais uma vez, colocar-me à altura da minha situação. Mas nunca fui tão pouco sincera como hoje, pode crer, tio Fil.
— Acredito — respondeu o inglês. — Estamos muito zangados e se pudéssemos satisfazer o nosso desejo, a esta hora, certo garoto malcriado, que se chama Geoffroy Seymour, estaria reduzido a pó.
Geneva, porém, não se sentia com disposição para gracejar. Com olhar vago contemplava as achas que se consumiam no fogão, enquanto reflectia na tarefa que mais uma vez lhe pesava sobre os ombros. De súbito, perguntou:
— Admite que haja pontos de contacto entre mim e Geoffroy? Tenho a impressão de que tudo nos separa.
— Tudo... o quê?
— Raça, idioma, concepção da vida. Adivinho que entre nós se vão suscitar constantes conflitos morais. Ele é orgulhoso e eu também... Não me tem amor e por mim não estou já muito certa de ambicionar que o venha a ter... Julgo-o terrivelmente insular.
Lorde Bucgham sobressaltou-se.
— Que significação dá a essa palavra? — infor¬mou-se, descontente.
— Quero eu dizer que é inglês em toda a acepção do termo... Isto é, despreza um pouco os que nasceram no continente europeu ou em qualquer outro. E como estou precisamente incluída nesse número...
O tio Fil não a deixou concluir:
— São numerosos os ingleses que casaram com fran¬cesas.
— Numerosos, é talvez exagero. Admitamos, no entanto, que há casamentos felizes entre as duas Raças. Como as excepções confirmam a regra, isso vem corroborar os meus receios. Sempre pensei que o amor podia abolir distâncias e derrubar fronteiras. Mas, não obstante o que se passou entre mim e Geoffroy na altura do nosso casamento, começo a desconfiar que não foi precisamente uma paixão súbita que o levou a con¬duzir-me a casa do reverendo Anderson.
— A que atribuir essa mudança de idéias?
Geneva conservou-se pensativa durante instantes.
— Ouça, tio Fil. A última palavra que Geoffroy me dirigiu em Nova Iorque, foi de carinho: “Minha ado¬rada!”, disse-me, antes de ser vencido pelo sono. Ora a primeira reflexão desta manhã foi diferente: “Que cheiro a cavalo!”, exclamou com aspereza, porque conservava ainda o meu trajo de amazona. Deve concordar que não há a mais pequena afinidade entre as duas frases.
— Com efeito — concordou lorde Bucgham, rindo. — Geoffroy não foi muito correcto na sua exclamação de hoje. Todavia... — acrescentou, com um gesto que tinha larga significação.
— Todavia... — repetiu ela, como ele se calasse.
— Não precipite as coisas, minha querida sobrinha. Julgo ter dito o suficiente sobre a situação quando lhe falei do casamento de Emily Ayton. Talvez não me com¬preendesse bem.
— Pelo contrário. É justamente nesse casamento que penso quando evoco a maneira como Geoffroy me tra¬tou diante do criado de quarto.
— A sua aparição seria prematura... Desejaria tal¬vez que o visse debaixo de um aspecto mais favorável... Com outro fato, por exemplo... Geoffroy, como todos os rapazes, atribui grande importância à toilette.
Geneva soltou uma gargalhada.
— Tem pouco jeito para advogado, tio Fil. Acaba de me confessar que Geoffroy passou a noite em Green-Park. E pretende convencer-me da necessidade impe¬riosa de tomar um banho e mudar de fato por ter per¬corrido os seis quilômetros que separam as nossas duas casas?
Lorde Bucgham sorriu, mortificado.
— Que lógica terrível a sua, Geneva! No entanto, posso afirmar-lhe que Geoffroy saiu daqui muito bem disposto e alegre.
— Como vê, tenho razão. Foi a minha presença que lhe roubou a boa disposição.
O inglês calou-se. Estava preocupado. Via bem que tudo quanto acabara de dizer não diminuíra o ressen¬timento da gentil lady. Por outro lado, não compreen¬dia o motivo que levara Geoffroy a ser tão pouco correcto, quase agressivo, com sua mulher.
— E, no entanto, esta manhã tive a impressão de que sentia por si maior interesse do que desejava aparentar.
Geneva não lhe respondeu. O estado de espírito em que se encontrava não era propício a alimentar ilusões sobre os sentimentos que inspirava ao marido nem sobre aquele que supusera alimentar por ele.
Mesmo assim, obedeceu às sugestões de lorde Buc¬gham. Pegando no telefone, fez os convites indicados por este.
— Lady Patrícia não tem a noite livre. Prefere vir almoçar — disse, voltando-se para o tio Fil.
— Nesse caso, convide mais dois ou três vizinhos e quanto mais alegres e divertidos, melhor. E não se esqueça de velar para que a ementa seja bem esco¬lhida. É forçoso que Geoffroy reconheça que em Cliff-House se come bem e que a si deve esse requinte. Os rapazes dão muito apreço a essas insignificâncias.
— Nada receie; já compreendi o que deseja.
Quando Geneva se despediu do tio Fil, este felici¬tou-a pela sua coragem e resignação. Todavia, se pudesse adivinhar os sentimentos que lhe tumultuavam no cérebro e que se podiam ler no seu encantador sem¬blante quando se sentou ao volante do automóvel, veria como era ainda intensa a revolta que dominava a mulher do sobrinho.
Quando Geneva entrou em Cliff-House avistou o marido e Maè, diante da casa, estendidos ao sol, nos transatlânticos.
Passou rente a eles sem afrouxar a velocidade do automóvel. Não valia a pena arriscar uma saudação ami¬gável, que decerto seria mal acolhida. Na mesma ordem de idéias, entrou no castelo pela porta reservada aos criados.
Depois de ter renovado ordens e feito mil recomen¬dações ao cozinheiro, subiu aos seus aposentos a fim de mudar de vestido e preparar-se para receber os con¬vidados.
Eram onze horas da manhã. Estes deviam chegar perto da uma, o que deixava a Geneva uns momentos de liberdade antes de ter de desempenhar o papel de dona de casa, afável e risonha.
Começou por ir lançar uma vista de olhos pela mesa, posta na sala de jantar de honra, e em seguida per¬correu a enfiada dos salões, compondo aqui uma almofada, mudando mais além o lugar de uma bugiganga. Estas ocupações pouco tempo lhe tomaram e, por fim, resolveu ir apanhar algumas flores. A época era má e as estufas estavam mal guarnecidas, mas misturando azevinho com folhagem conseguiria arranjar uma decoração que alegrasse as salas.
Voltou para trás na idéia de alcançar os jardins pelas portas da biblioteca... A voz de Maè, soando no apo¬sento que desejava atravessar, deu-lhe a conhecer que esta e Geoffroy se haviam instalado ali. Mais uma vez, para evitar o encontro, saiu pela porta traseira do cas¬telo e, enervada com o pensamento desse almoço a que devia presidir sorridente e despreocupada, quando mil pensamentos dolorosos se lhe entrechocavam no cére¬bro, dirigiu-se às estufas.
Entretanto, na biblioteca, Geoffroy ordenava que lhe servissem Porto e enquanto conversava com Maè, seguia em pensamento todos os passos de sua mulher.
Por que não iria ela ter com eles? Pouco antes, pas¬sara no automóvel sem parecer vê-los e agora era evi¬dente que evitava entrar no aposento onde se encontra¬vam.
No entanto, não deixou transparecer as suas preo¬cupações. Depois de ter enchido os dois cálices, o criado retirou-se para reaparecer, decorridos dois minutos, tra¬zendo uma salva com terceiro cálice, que colocou em cima da pedra do fogão, depois de lhe ter deitado vinho do Porto.
— Para quem é esse copo?... — perguntou lorde Seymour, intrigado com as manobras do criado.
— Para milady — respondeu este último.
Geoffroy não insistiu. A presença do copo indicava a próxima aparição de Geneva e isso tranqüilizou o marido, que começava a sentir-se mal disposto por não lhe ter ainda apresentado os seus cumprimentos. No entanto, o tempo ia correndo sem ela aparecer.
Na altura de começarem a chegar os primeiros con¬vidados, Geoffroy teve a explicação daquele copo pre¬parado havia tanto tempo. Quando a porta da biblioteca se abriu para dar passagem a lady Patrícia e às duas filhas, pela da sala de jantar entrava Geneva.
As duas senhoras beijaram-se. Em seguida, com a maior naturalidade, como se já estivesse na biblioteca antes da chegada da cunhada, serviu-lhes o Porto e, por fim, pegou no copo que lhe era destinado e esva¬ziou-o.
Lorde Seymour compreendeu então a atitude de Geneva, que se abstivera de aparecer mais cedo, talvez para não se intrometer entre ele e Maè, a menos que não fosse para marcar uma indiferença desdenhosa. A verdade obriga-nos a dizer que o jovem inglês ficou um pouco mortificado por se ver tratado com tanta desenvoltura por aquela que usava o seu nome. Eviden¬temente, não acolhera a atenciosa visita aos seus apo¬sentos com a cortesia devida, mas daí à mulher afectar essa frieza depreciativa havia grande distância.
Assim, enquanto os convidados chegavam pouco a pouco e iam passando para a sala vizinha, Geoffroy interpelou-a em voz baixa:
— Bati repetidas vezes à porta dos seus aposentos — disse-lhe friamente — e não obtive resposta.
— Não sei como isso pudesse acontecer. Só saí do meu quarto quando o vi no parque com Mrs. Tedder.
— Nesse caso, não compreendo por que não me respondeu — insistiu, impaciente.
— Não o ouvi.
— É singular!
— Também me parece, porque não sou surda.
— Tanto mais que bati muitas vezes. Mas os seus aposentos são, de facto, os que ficam contíguos aos meus e que todas as ladies Seymour ocuparam?
— Não — replicou, feliz por poder demonstrar-lhe que não recebera em Cliff-House o acolhimento de uma verdadeira lady Seymour. — Destinaram-me aposentos na extremidade do corredor, ao lado dos da minha amiga.
— Por que motivo a instalaram aí?
— Não sei! Provavelmente, receberam ordens para o fazer.
— Não minhas, asseguro-lhe.
— Não falemos mais nisso — observou, com negli¬gência. — Não tem importância.
Lorde Seymour relanceou-lhe penetrante olhar. Decididamente, desagradava-lhe aquela atitude des¬preocupada.
— Não tem importância o quê?
— A questão de aposentos — retorquiu, sem aban¬donar a sua calma. — O actual tem, para mim, uma grande vantagem. Não há onde arrumar a roupa e em conseqüência as minhas malas estão sempre feitas. Na hipótese de ser obrigada a fazer uma viagem de um instante para o outro, é só fechá-las.
Seymour encarou Geneva com atenção.
— Com efeito — replicou secamente — a vantagem é grande quando se prevê uma viagem, mas neste caso não é admissível. Eu darei as minhas ordens para que a sua instalação seja menos deficiente.
— Não vale a pena, asseguro-lhe! Já estou habituada ao meu quarto e Maè sente-se muito feliz por me saber perto dela.
— É provável. Por acaso, eu também faço empenho na sua vizinhança — retorquiu, em voz dura. — Se esti¬vesse nos aposentos que lhe eram devidos, tê-la-ia cum¬primentado a tempo e não me veria obrigado agora a apresentar-lhe as minhas desculpas.
De novo Geneva quis afirmar-lhe que estas se tor¬navam desnecessárias, mas o marido não lhe deu tempo a falar.
— O almoço está na mesa e os nossos convidados esperam-nos. Venha — acrescentou, pousando-lhe a mão nervosa no ombro e impelindo-a para a sala de jantar.
Foi nesta atitude familiar que apareceram aos con¬vivas e lady Patrícia teve um sorriso cúmplice ao vê-los tão unidos.
— Como se deve sentir feliz, esta manhã, Gene — observou.
— Muito feliz, na verdade — confirmou Geneva, sim¬plesmente, sentando-se à mesa.
— Afigura-se-me ver a cena da chegada. Não se cansavam de se beijar e abraçar.
A despeito de toda a sua força de vontade, as fei¬ções de Geneva alteraram-se.
— Tem razão. É um momento divino quando duas pessoas, que se amam verdadeiramente, se reúnem após prolongada separação.
— Divino, é o termo, com efeito — aprovou Patrícia, volvendo a Artur Gordon, seu marido, um olhar impre¬gnado de ternura. — Tanto mais que não devia esperar Geoffroy esta manhã. Vamos, confesse, Geneva. Ficou transtornada pela surpresa, não é assim?
— A minha surpresa foi grande, não há dúvida. No entanto, sabia que meu marido devia chegar a Cliff-House de um momento para o outro e a toda a hora contava vê-lo aparecer.
A cunhada fitou-a, sorrindo.
— Todavia, não suspeitava que estivesse já em Ingla¬terra, tão perto de si?
Geneva hesitou ligeiramente. Diante do conde de Bryce não podia fingir que ignorara a presença do marido em Inglaterra.
— Estive sempre ao facto de todas as particulari¬dades da sua viagem de regresso e calculava pouco mais ou menos a época da chegada. Quando se têm tan¬tos amigos como lorde Seymour é difícil fazer mistério dos seus actos.
— Sendo assim, a surpresa falhou.
— Se chama surpresa ao regresso de seu irmão, com efeito, falhou.
Durante toda a conversa, Geneva evitara olhar para o marido, sentado defronte dela. Pelo contrário, este fitava-a com certa irritação. Via-a sorridente, serena, respondendo à cunhada num perfeito à-vontade mun¬dano; no entanto, notou que por duas ou três vezes a fisionomia se lhe contraiu. Por conseguinte, resolveu intervir e acabar com as perguntas algo indiscretas da irmã.
— Como há pouco te disse, Patrícia, decidi visitar os meus amigos e conhecidos antes de regressar a Cliff-House. Agora, livre de todas as preocupações, insta¬lo-me em minha casa, tranqüilo e descansado.
— Foi justamente o que eu disse a Clarence há três semanas — observou Geneva com a maior naturalidade.
— Logo calculei que lady Seymour aprovaria a reso¬lução de me libertar primeiro das obrigações mundanas — continuou Geoffroy, imperturbável. — Agradeço-lhe não ter dado importância aos comentários que o meu procedimento poderia ter suscitado.
Geneva sorriu e aprovou com um movimento de cabeça e depois foi a primeira a dar novo rumo à conversa, pedindo a Geoffroy pormenores da sua via¬gem pela América.
A refeição não havia tocado o seu termo quando um incidente veio perturbar a boa ordem.
O mordomo aproximou-se de Geneva e, visivelmente atrapalhado, murmurou algumas palavras em voz baixa.
Esta acolheu a comunicação com profundo espanto, tanto que obrigou o homem a repetir, o que este se apres¬sou a fazer, usando o mesmo tom confidencial. No fim, inclinou-se diante da dona da casa e afastou-se com impecável correcção.
Posto que a conversa estivesse generalizada e o incidente não parecesse interrompê-la, todos observavam Geneva, compreendendo que nunca o mordomo se atre¬veria a abordar assim a dona da casa se o assunto não fosse de suma importância e não admitisse delongas. O próprio Geoffroy não desviava os olhos como se pre¬tendesse chamá-la à ordem.
Além disso, a atitude de Geneva não era de molde a desviar atenções. Visivelmente comovida pela comuni¬cação que acabava de receber, parou de comer. Com os olhos baixos, não dando pela curiosidade que pesava sobre ela, dir-se-ia hesitar.
Lorde Bucgham, sentado à sua direita, adivinhou que a assaltava o desejo de se levantar da mesa. Branda¬mente, pousou a mão na dela como a recomendar-lhe que se deixasse ficar sentada. Esse gesto levou Geneva, pelo contrário, a tomar uma resolução. Levantou-se.
— Apresento-lhes as minhas desculpas — disse, muito corada. — Sei bem que não é costume uma dona de casa abandonar os seus convidados, mas torna-se forçoso que os deixe por alguns momentos.
Geoffroy interveio.
— A urgência é assim tão absoluta? — inquiriu, des¬contente. — Surpreende-me que se atrevessem a vir incomodá-la. Não podiam esperar?
Geneva voltou-se para o marido, erguendo a mão num protesto como se ele acabasse de dizer uma enor¬midade.
— Herbay não podia proceder doutra forma. E eu não devo recusar-me... Patrícia, terás a bondade de me substituir se eu me demorar, sim?
E embora o seu passo fosse firme, ao transpor a porta, Geoffroy, que a seguia com os olhos, teve a impressão de que a esmagava intenso abatimento.
O almoço terminou. As senhoras passaram ao salão, enquanto os homens se demoravam ainda à mesa, sabo¬reando o último cálice de vinho.
Quando Geoffroy entrou por sua vez no salão, viu Geneva sentada num canto afastado, como se desejasse passar despercebida ou não quisesse compartilhar da ale¬gria dos outros. Tinha as feições profundamente alte¬radas.
Dirigiu-se logo para ela. Ao vê-lo, quis levantar-se e tomou uma expressão animada, mas o marido já havia notado a sua tristeza.
— Não acabou de almoçar, lady Seymour — disse-lhe numa censura.
Ela encarou-o um pouco hesitante.
— Uma amiga exigia imperiosamente a minha pre¬sença — elucidou.
— Não podia esperar que se levantasse da mesa?
— Partia para a grande viagem. Se não tivesse ace¬dido ao seu desejo seria tarde para a ver.
Enquanto falava, ergueu-se a meio da cadeira, como um soldado diante do seu superior.
— Pelo amor de Deus, deixe-se estar sentada. Parece muito abatida.
Geneva cedeu. De facto, sentia-se exausta. As como¬ções desde essa manhã haviam sido tão fortes e suces¬sivas que os seus nervos estavam esgotados.
Conservaram-se um instante calados, diante um do outro e, por fim, Geoffroy observou:
— Minha mãe proibira o pessoal de a vir incomodar durante as refeições, de forma que estas representavam para ela verdadeiro repouso.
— Sua mãe, neste caso, teria procedido como eu, tenho a certeza — replicou Gene, após ligeira hesitação. — Foi em seu nome e de todos os seus que me despedi dessa pobre mulher que partia para sempre.
Seymour encarou-a.
— A quem se refere? — indagou, ansioso.
Geneva não pôde ocultar-lhe a verdade.
— A Ann Pelham — respondeu, com as lágrimas nos olhos.
— Ann... Quer dizer que...
Calou-se, mas íntima aflição se lhe reflectiu no olhar.
— Sim — confessou tristemente. — A infeliz deixou-nos, vitimada por uma crise cardíaca súbita. Pediu para me ver. Cheguei a tempo e morreu-me nos braços.
Como ele continuasse mudo e imóvel diante dela, acrescentou:
— Como vê, não podia hesitar.
— Tem razão — concordou, pesaroso.
Conservou-se calado ainda um instante.
— Ainda esta manhã lhe falei — murmurou. — Ficou tão contente com o meu regresso! Nunca supus que a visse pela última vez... Pobre velhinha!...
Feria-o imensa mágoa. A mão de Geneva foi pro¬curar a do marido e apertou-a carinhosamente.
— Penaliza-me ter sido obrigada a revelar-lhe hoje esta morte. Esperava poder ocultar-lha até amanhã, a fim de não ensombrar o dia da sua chegada.
— Prefiro conhecer a verdade. Vi-a empalidecer e adivinhei que Herbay lhe comunicava desagradável notí¬cia. Cheguei até a sentir a tentação de o interrogar para saber do que se tratava.
— Foi melhor assim. Conquanto a estimasse, o meu abalo foi menos profundo. Conhecia-a apenas há dez meses...
Um gesto vago concluiu o seu pensamento.
— Nunca abandonou Cliff-House — observou Geoffroy. — Por muito longe que a minha memória alcance, vejo-a sempre junto de mim. Perdi uma verdadeira amiga.
Geneva aprovou com a cabeça e os dois ficaram calados, comungando, por assim dizer, na mesma dor.
Extremamente sensível, Geneva não pôde deixar de notar quanto aquela morte parecia aproximá-los.
De manhã eram ainda dois estranhos que se igno¬ravam, enquanto não se lançavam um contra o outro. Horas depois, laços obscuros surgiam latentes entre eles. Geoffroy pressentiu-os logo na altura em que o mor¬domo se aproximara de Geneva. O facto despertara-lhe o interesse de dono da casa.
Não era extraordinário esse sentimento instintivo de proprietário que o incitava a inteirar-se das razões que obrigavam sua mulher a levantar-se da mesa? Em casa de qualquer amigo, pouca ou nenhuma importância daria ao facto. Na sua própria casa tudo lhe despertava o interesse, sentia-se responsável pelo mais simples inci¬dente.
Mais ainda. Ficara satisfeito com a iniciativa de Geneva, organizando aquele almoço para festejar o seu regresso. No seu íntimo aprovava a escolha dos convi¬dados, da ementa, dos vinhos, a decoração da mesa. Se qualquer coisa lhe tivesse desagradado não deixaria de o dizer. Em conclusão, pelo simples facto de ter dado o seu nome a uma mulher, numa noite de embriaguez, durante a qual perdera a consciência dos seus actos, adquirira o direito de aprovar ou censurar todos os ges¬tos dessa parceira tão estranhamente ligada à sua vida.
Quer o desejassem ou não, mesmo antes de anali¬sarem os seus sentimentos, o lar unia-os. Entre eles, os fios do interesse comum iam tecendo uma teia invisível, mas inevitável. Até a morte da velha criada os irmanava na tristeza igualmente sentida.
Geoffroy teve a percepção tão nítida da mútua comu¬nhão de sentimentos que pegou na mão de Geneva e beijou-a.
— Agradeço-lhe o que fez por Ann, lady Seymour. Desejaria poupá-la a essa dolorosa emoção, mas, ao mesmo tempo, é consolador para mim saber que assistiu aos últimos momentos da pobre velhinha.
— Fi-lo por si e pelo afecto que lhe dedicava. Era o meu dever.
— O seu dever de esposa?
— Exactamente.
— É então o marido quem lhe agradece. Pela pri¬meira vez, sinto que somos solidários.
Geneva corou intensamente.
— Diz bem. Não obstante o nosso desejo de afasta¬mento, não podemos conservar-nos alheios um ao outro.
— Por que diz o nosso desejo? Nunca me manifestei a esse respeito.
— Não se manifestou, mas a sua excursão pela Inglaterra, antes de regressar a Cliff-House, indicou-o cla¬ramente.
— E quanto a si?
— Quanto a mim?
— Sim. Em que altura ou qual foi o procedimento que justificasse esse nosso desejo?
Gene encolheu os ombros.
— Ainda esta manhã — declarou, com modos des¬preocupados — fui pedir a lorde Bucgham que pusesse à minha disposição a soma necessária para sair de Ingla¬terra.
Seymour fitou-a, admirado.
— Na realidade, teve semelhante pensamento?
— Deve concordar — respondeu Geneva com fran¬queza — que depois da forma como fui recebida por si, não era muito agradável a perspectiva de vivermos debaixo do mesmo tecto.
— Não pretende então impor-me a sua presença?
— Por forma alguma.
— Estou encantado!
— Deveras?
— Sendo assim — prosseguiu, imperturbável — vejo que nos poderemos entender. Entretanto, é necessária uma explicação entre nós.
— Quando quiser — aceitou Geneva, com serenidade, embora o coração parecesse querer saltar-lhe do peito só com a idéia dessa explicação.
— Poderá ser amanhã de manhã, se estiver livre — propôs ele, com a habitual fleuma. — Pelas dez horas venha ter comigo ao meu gabinete. Hoje pertencemos aos nossos convidados.
— Combinado. Amanhã de manhã procuraremos encontrar um termo para a caminhada que tão leviana¬mente nos comprometemos levar a cabo em comum.
— All right! — aprovou. — Com efeito, deve ser pos¬sível encontrar uma solução para terminar com elegância e correcção esta estúpida aventura.
O tom era quase impertinente, apesar da afectada concordância com o modo de pensar de Geneva. Por outro lado, desde que ela pronunciara impensadamente as palavras nosso desejo, o marido não deixara de a fitar com curiosidade irônica, quase provocante. Chegou até, talvez para a ver melhor, a encaixar o monóculo na órbita, ao mesmo tempo que o olhar e a voz passavam por todos os cambiantes do sarcasmo.
O pior é que essa atitude masculina desnorteava Geneva, fazendo reviver o primeiro encontro em Nova Iorque, a sua entrada na sala do banquete, o olhar altivo e arrogante que a atingira em pleno coração. Comovida por forma indescritível, recordou a ambição inverosímil expressa neste comentário: “E pensar que em qualquer parte do mundo existe uma mulher que um dia será esposa deste homem. Como eu gostaria de ser essa mulher!...”
O Destino, irônico e cruel, realizara o voto impru¬dente. Mas ganhara muito com isso!...
Como erguesse os olhos para o marido, encontrou fixas em si as pupilas orgulhosas e altivas.
E foi como se um relâmpago de magnésio a deslum¬brasse. Após a ofuscante claridade, teve a impressão da sua própria lividez, num ambiente de estranha coloração. Como fio de água gelada, um arrepio lhe percorreu a espinha. Não se levantou, nem sequer fez um movimento, mas Seymour, que não desviava dela os olhos, viu-a empalidecer e quase se sentiu tomado pela mesma emo¬ção que perturbava a mulher. Entretanto, esse triunfo, que não procurara, lisonjeou-lhe a fatuidade masculina.
Estava habituado a freqüentes êxitos desta natureza, mas não ambicionava alcançá-los junto de Geneva. Pelo contrário, desejaria que entre ele e a esposa indesejável não surgisse qualquer sentimento mais terno, e desde que estava casado todo o seu procedimento obedecera a essa idéia.
E ao primeiro olhar trocado, sua mulher perturba¬va-se, empalidecia! Não sabia se devia achar graça ou aborrecer-se com o caso!
Por diletantismo, esforçou-se por acender mais uma vez nas pupilas de Geneva a chama já entrevista, mas dessa vez não conseguiu encontrar-lhe de novo os olhos. Com a cabeça voltada e um sorriso nos lábios, Gene dir-se-ia ter-se esquecido dele e com a vista seguia, interessada, as duas filhas de Patrícia, que brincavam no terraço, correndo por entre as cadeiras.
— Dê-me licença. Aquelas crianças são capazes de se magoar se não lhes acudo.
Geoffroy afastou-se e foi reunir-se ao cunhado, que conversava com o conde de Bryce. Durante o resto da tarde mostrou-se amável e brilhante conversador. Sen¬tia-se feliz e tudo parecia sorrir-lhe na vida.
Seria essa disposição de espírito que o impelia a voltar-se freqüentes vezes para Geneva e a segui-la disfarçadamente com o olhar? Não podia deixar de recor¬dar o rosto fino e delicado, empalidecendo e palpitando de emoção sob o seu olhar. Talvez essa recordação lhe lisonjeasse a vaidade e nada mais.
No dia seguinte, Geneva esperou em vão por Seymour. Este não apareceu no gabinete de trabalho, onde lhe marcara encontro. Partira de automóvel, com Maè, muito cedo, e só regressaram à hora do lanche.
Em compensação, teve a surpresa de ver, logo de manhã, as suas malas e tudo quanto lhe pertencia, mudado para os aposentos contíguos aos do marido.
Aborrecida, tentou opor-se à mudança, mas os cria¬dos, embora desolados, não cederam.
— Lorde Seymour deu-nos esta ordem e não pode¬mos desobedecer-lhe. Ficou até muito descontente por não termos instalado logo Vossa Graça nos aposentos que lhe pertenciam.
— Já estava habituada a este quarto. É muito alegre e fica ao lado do da minha amiga.
Por fim, reconheceu, pelos modos atrapalhados dos criados, que os colocava em posição embaraçosa, pois se, por um lado, não desejavam desagradar-lhe, por outro não podiam deixar de cumprir as ordens expres¬sas do amo.
— Está bem — acabou por dizer, conciliadora. — Visto lorde Seymour desejar ter-me perto dele, não o contrariemos. No entanto, não despejem as malas. Não preciso do seu conteúdo e conto em breve mandá-las para França.
Neste ponto não tiveram dúvida em lhe obedecer, e as bagagens de Geneva continuaram como se ela tivesse de sair de Inglaterra de um momento para o outro.
Os novos aposentos eram mais espaçosos e mobila¬dos com luxo: móveis riquíssimos de estilo antigo e todos os requintes de conforto moderno.
Apreciou-os sem reserva, perguntado de si para si por que motivo não a teriam instalado ali quando da sua chegada.
“Alguém lhes deu ordens em contrário. Não sabendo se eu merecia ocupar o verdadeiro lugar de lady Sey¬mour, tomaram precauções contra mim”.
Essa conclusão pô-la de bom humor. Presentemente, consideravam-na digna de todas as atenções!
“Esse alguém não foi por certo Geoffroy, visto ontem não saber que eu ocupava outros aposentos. Devia ter sido o tio Fil. Ele, nesse tempo, velava cuidadosamente pela prosápia do sobrinho”.
Ao recordar os carinhos de que era alvo agora, por parte do tio Fil, não pôde deixar de rir.
Quanto a Geoffroy, preocupavam-na um pouco as intenções que o levavam a proceder assim.
“Ainda ontem falou em nos separarmos. Julgará útil simular intimidade conjugal antes dessa separação ou...”
Não quis levar mais longe as suposições, mas esse pensamento perseguia-a como besouro teimoso em dia de tempestade.
Quando lorde Seymour e Maè regressaram do pas¬seio, enquanto a amiga se retirou para mudar de ves¬tuário, não pôde deixar de fazer notar ao marido que o esperara em vão, à hora combinada.
— Tem razão e apresento-lhe as minhas desculpas, lady Seymour. Não calculei que nos demorássemos tanto. Quando saí, supunha poder estar em casa a horas de nos encontrarmos.
— Não teve importância — concluiu Geneva, perante as suas desculpas.
— Felizmente, o assunto de que pretendíamos tratar pode esperar, não é assim? Pensaremos no caso daqui a algumas semanas.
Geneva ergueu para o marido interrogador olhar.
— Considero preferível que continuemos a vida em comum por mais algum tempo — acrescentou ele, res¬pondendo à muda interrogação. — Seja qual for a deci¬são tomada, não pode partir por enquanto.
— Ontem, quando me falou, não havia resolvido ainda essa prorrogação do prazo — balbuciou Geneva.
— Subentendia-se. Que pensaria a sociedade se nos separássemos logo a seguir à minha chegada? Classificar-me-iam como um monstro, a menos que não fizes¬sem, a seu respeito, suposições que a minha honra não deve admitir.
Geneva esboçou melancólico sorriso.
— Por mim não me preocupava com o que pudes¬sem dizer. Nessa altura estaria longe daqui...
Calou-se de chofre. Lembrou-se de Clarence, que lhe depusera aos pés o seu nome e a vida. Muitas vezes, depois da declaração do conde, evocara a dedicação do nobre rapaz. Talvez um dia esse afecto lhe servisse de bálsamo. Seria ele quem deveria torná-la feliz como lhe profetizara a cigana? Naquela altura não amava Cla¬rence nem admitia a possibilidade de poder vir a desposá-lo. Ferida profundamente, a sua alma sangrava ainda. Mas não é freqüente o coração reagir e reviver quando se supõe morto?
Não lhe sendo possível adivinhar o que a sorte lhe reservava, evitava ver o futuro muito negro.
— Tem razão, lorde Seymour — concordou. — Não devemos dar azo à maledicência. Esperemos algum tempo para nos separarmos, visto em seu critério ser esse o melhor caminho.
— Não há motivo para precipitações, não é assim? Ou tem qualquer projecto sentimental que limite o seu tempo e a constranja a uma rápida separação?
Geneva tornou-se escarlate. Dir-se-ia que Geoffroy lhe lera o pensamento quando evocara Clarence.
— Sou completamente livre — afirmou, sem se atre¬ver, contudo, a erguer os olhos para ele.
— Nem mesmo existe alguém que, no seu íntimo, deseje ver quebrados os laços que a unem a mim?
Desta vez fitou-o francamente.
— Nunca dei a ninguém o direito de contar com a minha liberdade para os seus projectos. Sou casada e essa palavra para mim tem particular significação. O homem que desposei pode ter confiança na minha lealdade.
— Agradeço-lhe — respondeu Geoffroy gravemente. — O tio Fil muitas vezes me afirmou o mesmo e creia que nunca duvidei de si.
Calou-se. A fisionomia reflectiu ligeira hesitação.
— Deseja fazer-me mais alguma pergunta? — inda¬gou Geneva com a maior complacência.
— Queria saber se não existe outra pessoa que lhe tenha proposto casamento?
Geneva corou mais uma vez.
— A pergunta não tem absolutamente nada de injurioso para si — afirmou ele para lhe facilitar a resposta. — É natural ter pretendentes à sua mão.
— Com efeito, nem sempre pode evitar-se uma decla¬ração — respondeu, constrangida. — Nunca revelei a ninguém as anomalias do nosso casamento e, no entanto, devido talvez à sua presença em Inglaterra sem regres¬sar directamente a casa, alguém me ofereceu o seu nome.
— Recentemente?
— Sim, há pouco, porque a sua demora lhe propor¬cionou a ocasião de se declarar.
— Eu conheço esse homem?
Geneva fez um gesto vago.
— Julgo do meu dever não lhe dar mais referências.
— Já vejo que o conheço — deduziu com vivacidade. — Caso contrário, teria respondido negativa¬mente. E aproveitou a ocasião para lhe dizer muito mal de mim, calculo?
— Nunca o teria permitido. Não me esqueço de que sou lady Seymour.
— Em todo o caso, não o desanimou e prestou ouvi¬dos às suas declarações.
— Como se ouvem as frases de uma conversa banal, sem lhe ligar importância.
— Deverei acreditá-la? — insistiu, desconfiado.
Uma nota de gravidade vibrou na voz de Geneva.
— Não me faça a injúria de duvidar de mim. Afir¬mei-lhe que podia contar com a minha lealdade.
— É claro! Essa lealdade não lhe exige qualquer esforço... tanto mais que, provavelmente, não ama esse homem.
— Com efeito, não o amo.
— Portanto, a sua lealdade é relativa! — observou ele com rudeza.
— Sim... mas no estado actual das nossas relações conjugais, julgo que deve ser tomada em consideração.
Falara brandamente e sorrindo para conservar o tom cordial da conversa.
Apesar de tudo, o marido rebelou-se e quase se tor¬nou agressivo.
— O estado das nossas relações! — repetiu. — Essas palavras pretendem encobrir uma censura?
— Longe de mim, tal idéia. Fomos ambos vítimas da fatalidade... Penso até que não foi culpa sua se me deu o seu nome, esquecendo que amava outra mulher, e creia que lhe estou muito reconhecida por me haver concedido, não obstante a existência dessa mulher, um lugar honroso no seu lar.
Seymour encarou-a como se pretendesse adivinhar onde Geneva queria chegar.
— A quem se refere? — perguntou em voz breve.
— A Emily Ayton.
Ele já esperava esse nome. Mesmo assim, não con¬seguiu evitar um trejeito de desagrado ao ouvi-lo pro¬nunciar por ela.
— Era de calcular que a pusessem ao corrente dessa história. O amável informador foi naturalmente o mesmo que se propunha tomar o meu lugar... Tinha tudo a ganhar, fazendo-o...
— Engana-se, lorde Seymour. Não acuse ninguém. Foi o senhor mesmo quem falou da sua noiva a Suzannah Murphy, e ela, quando me entregou a sua carta, repetiu-me o que lhe ouvira dizer.
Uma sombra de tristeza velou o meigo semblante feminino.
— Depois disso não podia alimentar ilusões! — proferiu com amargura. — Primeiro, a sua carta, em seguida... a existência dessa noiva. Creia que, se naquele momento estivesse na minha mão restituir-lhe a liberdade, tê-lo-ia feito. Infelizmente, não se quebram laços de tal natureza sem tempo e sem algum escân¬dalo. Foi no desejo de conservar intacta a minha honra que aceitei vir desempenhar no seu lar o papel de mulher legítima.
— Era a melhor solução para ambos, creio eu!
— Assim o pensei... Foi pena que a sua noiva, em pleno salão, me lançasse em rosto eu não ser amada por si. Sem a intervenção de alguém, lady Seymour teria sido alvo de troças e zombarias.
— O procedimento de Emily Ayton, nesse dia, não teve classificação — reconheceu com azedume.
— É desculpável o ciúme de uma mulher desiludida.
E com um sorriso triste:
— Lorde Seymour devia ter pensado um pouco, antes de lhe dar armas contra mim.
— Armas? Quais? — interrogou, franzindo o sobrolho, porque não gostava de ouvir censuras às suas acções.
— As cartas que lhe escreveu — precisou Geneva com simplicidade.
Seymour mordeu os lábios.
— Sempre os homens são muito parvos, quando amam! Julguei de meu dever explicar-lhe por que casara tão precipitadamente e apresentar-lhe as minhas desculpas. Posso, contudo, afirmar-lhe que nunca tive intenção de a ferir, lady Seymour.
Até aí, Geneva conseguira evitar, na conversa com Geoffroy, certos pontos perigosos desse regresso ao pas¬sado. Por que se lembrou de o levar a precisar os seus pensamentos e projectos?
— Evidentemente, um homem apaixonado deposita a maior confiança na mulher amada. Quando escreveu a Emily não se recordou de que eu era a esposa oficial. Contava talvez reatar o seu idílio depois de se ter visto livre de mim...
Mais senhora de si, acrescentou:
— Fiquei deveras penalizada ao saber que, por minha causa, a sua ex-noiva casou sem aguardar o seu regresso.
— Não esperava que tomasse semelhante resolução... Julgo, no entanto, que fez bem... As más-linguas não terão, assim, razão para falar!
Exprimia-se com tanta sinceridade que Geneva, eludindo-se com os sentimentos do marido, ficou encantada com o que acabava de ouvir e não conseguiu reprimir uma gargalhada.
— Perdoe esta alegria intempestiva — desculpou-se. — Mas o Destino cria por vezes situações tão extra¬vagantes! Priva-o da mulher que ama e deixa-lhe a que lhe é indiferente. É o cúmulo da ironia!
— Não vejo que o caso se preste para risos.
Gene mordeu os lábios, tentando reprimir a hilaridade que de novo a assaltava. Não conseguindo, pro¬curou fazê-lo compartilhar da sua alegria.
— Convença-se, lorde Seymour, de que também não há motivo para chorar — protestou, continuando a rir. — Devemos até concordar que a nossa aventura tem os seus pontos cômicos. Por exemplo, o pedido de casa¬mento feito no vestiário, as exigências e disparates com os quais me obrigou a concordar durante o trajecto para casa do Pastor. E quando este nos ia casar! Os seus discursos foram assombrosos e engraçados ao máximo!
— Creio que nunca fui tão estúpido como nessa noite — admitiu, de mau modo.
— Não se calunie! — protestou, mantendo a sua ati¬tude prazenteira. — Não ignoro que entre nós nunca existiu sombra de amor, mas nessa noite soube encontrar frases de uma paixão irresistível. Nunca esquecerei a mestria com que representou o papel de D. Juan. Todos supuseram que era a sério e ninguém tentou desviá-lo-do seu intento.
Seymour teve um risinho cortante de que Geneva deveria ter desconfiado se o conhecesse melhor.
— Diz bem. Todos abusaram do meu estado de embriaguez — aprovou, desdenhoso. — Até a senhora se aproveitou, como os outros... ou antes, mais do que os outros!
— Por mim — confessou com franqueza — estava positivamente enfeitiçada. A minha felicidade era tão grande que o Universo seria pouco para a conter. Quando se é assim tão feliz não se reflecte.
Lorde Seymour não foi senhor de si. O riso de Geneva encerrava, em seu parecer, um mundo de iro¬nias... e respondeu-lhe com palavras injuriosas que o subconsciente lhe inspirava.
— Na verdade, este casamento foi tão inesperado! Um lorde autêntico, um homem novo, belo e rico, que bebe a ponto de perder a cabeça! É, de facto, uma feli¬cidade quando se proporciona uma ocasião assim.
Todo o seu ressentimento vibrava nestas palavras, numa raiva surda e rancorosa.
Geneva teve a impressão de uma chicotada. O riso expirou-lhe instantaneamente nos lábios frescos.
Geoffroy conheceu então o que Bryce e Bucgham chamavam “reviravolta do seu sorriso”.
— Belo, novo e rico — ripostou, muito pálida. — Tem razão, lorde Seymour. Para mim foi tudo isso, nessa noite. Mas para que o retrato seja exacto, deverá acrescentar: cobarde, egoísta e pretensioso!
De olhar glacial, mediu-o da cabeça aos pés e, com os lábios vincados num ricto desdenhoso, voltou-lhe as costas e saiu da sala.
Geneva desapareceu sem que Seymour fizesse um gesto para a deter, imobilizado pelo assombro provocado por tão áspera quanto merecida réplica.
O lanche que se seguiu à tempestuosa discussão decorreu, como é de calcular, sem animação nem alegria. Lorde Seymour, mais arrogante do que nunca, o monoculo cravado na órbita e muito orgulhoso para deixar adivinhar que lhe faltava o apetite, comia com gestos ner¬vosos e febris.
Sentada defronte dele, pálida, com os olhos perdidos no espaço, Geneva, pelo contrário, mal tocava nos pra¬tos que lhe punham diante.
Sentia-se desanimada e aniquilada de um momento para o outro. Triste idéia a sua de, logo na primeira conversa que tivera com o marido, evocar as peripécias do seu casamento e de zombar um pouco de lorde Seymour a propósito da sua atitude na célebre noite! Tal¬vez fosse a instintiva necessidade de vincar bem, desde o início da sua vida em comum, que a iniciativa de semelhante enlace partira unicamente dele, recordar-lhe que ela, Geneva, se limitara a aceitar-lhe as propostas e a seguir as suas sugestões.
A resposta de Geoffroy tivera tanto de brutal como de ultrajante. O partido era excelente, havia ele dado a entender, para que uma mulher não deixasse de se apro¬veitar da sua embriaguez.
Fustigada por tão injuriosa censura, Geneva res¬pondera à ofensa com ofensa e retribuíra a ferida ferindo também.
O gesto não era correcto, porque, pára castigar a indelicadeza do marido, tornara-se tão culpada como ele. Respondendo com insultos à suposição caluniosa, não diminuíra por forma alguma a importância desta, e, no entanto, fora esse o procedimento adoptado por Geneva, levada pela sua justa cólera.
Chegando a esta conclusão, lady Seymour sentiu-se moralmente cansada, tomada por infinita lassidão. Geof¬froy e ela eram agora dois inimigos prontos a defronta¬rem-se, quando mal se conheciam. Para quê essa comé¬dia conjugal que se tornava forçoso desempenhar durante alguns dias? Não seria preferível separarem-se desde já?
“Odiamo-nos mutuamente! E o mais sensato seria proceder de forma que não voltasse a dar-se qualquer conflito entre nós”.
Destas reflexões resultou violenta dor de cabeça, que lhe fazia latejar as fontes e lhe dava a impressão de que um círculo de ferro lhe esmagava os ossos.
Maquinalmente, passou a mão pela testa. Dolorosos pensamentos se lhe agitavam no cérebro.
Afastando o prato, disse a meia voz:
— Não devia ter vindo lanchar. Tenho uma enxa¬queca terrível.
E, voltando-se para Maè, acrescentou:
— Faça as honras da mesa, por favor. Desculpem-me se os deixo, mas vou tentar passar pelo sono.
A voz glacial de Seymour fê-la imobilizar na cadeira.
— O lanche está quase no fim. Queira assistir a ele até terminar, lady Seymour. Dormirá depois.
A mulher fitou-o, assustada pelo tom imperioso.
— Dói-me muito a cabeça — balbuciou.
— Também me acontece o mesmo — declarou seca¬mente — e, contudo, não abandono o meu lugar. Faça como eu. Desempenhe o seu papel até ao fim. Depois poderá dormir à vontade.
O tom era peremptório e Geneva não ousou rebe¬lar-se, conquanto a intervenção de Geoffroy tivesse aumentado o seu nervosismo.
Desde o começo da refeição, Maè adivinhara que qualquer coisa de desagradável se passara entre os dois esposos. Por certo, haviam questionado antes de se sen¬tarem à mesa. Numa tentativa para os arrancar ao seu mutismo, a americana falou pelos cotovelos.
Mas desde que Seymour, com modos desabridos, intimou Geneva a permanecer à mesa, a mulher de William Tedder não se sentiu com coragem para recomeçar a sua tagarelice.
Na sua frente via Geneva aprumada na cadeira e muito pálida. Os dedos da pobre trituravam maquinal¬mente um bocadito de pão, e o que mais impressionou Maè foi o tremor nervoso que lhe agitava a mão, fazendo a bolita de pão bailar como se estivesse atacada pela dança de S. Vito, enquanto o corpo se conservava rígido, imobilizado numa atitude forçada.
Portanto, para abreviar o suplício de Geneva, recusou a fruta que o criado lhe oferecia, fazendo o mesmo à taça do doce. A refeição pareceu-lhe interminável, tanto mais que Geoffroy, implacável, se serviu sucessivamente de queijo, fruta e doce.
Quando se levantaram da mesa, Maè respirou e pediu à amiga que recolhesse ao quarto.
— Eu servirei o café. Vá descansar.
— Perdão — interrompeu mais uma vez Geoffroy na sua voz inflexível. — Compete à dona da casa fazê-lo. Peço a lady Seymour que cumpra as suas obrigações até ao fim. Depois, está no seu direito de se retirar, se lhe apetecer.
Assombrada, Maè tentou levar o caso para o lado da brincadeira.
— Mas você é um verdadeiro tirano, Seymour! Não o conhecia debaixo desse aspecto.
A sua intervenção não desanuviou o ambiente como desejava. O inglês voltou-se para ela e fulminou-a com o olhar.
— Apetece-me o café servido pelas mãos de minha mulher! Tenho imenso prazer em ser cobarde, tirano e egoísta — declarou. — Vê algum inconveniente em que eu faça o que quero em minha casa, Mrs. Tedder?
Estupefacta e interdita com semelhante discurso, Maè, quase tão perturbada como Geneva, olhava para lorde Seymour sem saber o que havia de lhe dizer para pôr ponto em tão desagradável cena.
Coube a vez a Geneva de intervir.
A cólera de Geoffroy contra Maè, pelo seu exagero, teve o condão de, por assim dizer, a reanimar.
— Então, lorde Seymour, não é justo desforrar o seu mau humor na minha amiga — observou em tom conciliador. — Não foi ela quem o desposou, abusando da sua embriaguez!
A cólera do marido afigurava-se-lhe, de súbito, cômica. Nunca calculara que fosse tão fácil irritá-lo.
— Vamos — prosseguiu, mordendo os lábios para se conservar séria, porque intempestiva e irresistível von¬tade de rir a assaltava. — Visto apetecer-lhe o café servido por mim, vou satisfazer-lhe o desejo.
Falava-lhe em tom afectuoso, como se tivesse diante de si um doente caprichoso, e simulava não ver os olha¬res furibundos que ele lhe relanceava.
— Aqui tem — continuou em voz branda e carinhosa. — Licor? Chartreuse verde, que, segundo me recordo, é o seu preferido.
Imperturbável, encheu o pequenino copo de licor.
Seymour seguia-lhe todos os movimentos, perscrutando-lhe o rosto. Ao mais pequeno indício de troça, sentia-se na disposição de lhe atirar com o conteúdo do copo à cara.
Geneva decerto adivinhou o estado de espírito do marido, porque nem pestanejou. Levou a sua impassibilidade a ponto de lhe sustentar o olhar colérico.
Por fim, perguntou com encantador sorriso:
— E agora, que cumpri todos os deveres que me incumbem, posso retirar-me?
— Vá para o demônio! — resmungou Seymour. — Eu posso ser pretensioso e egoísta, mas esta maldita girl tem todas as audácias!
Geneva não ouviu o resto da frase porque aban¬donara a sala num passo calmo.
— Está a dormir, Geneva? — indagou Maè, batendo devagarinho à porta do quarto da amiga.
Desde o lanche que a americana vagueava aborre¬cida. Lorde Seymour deixara-a sozinha para se fechar no seu gabinete de trabalho.
Como Geneva lhe dissesse para entrar, Maè abriu porta.
— Então não está deitada?
— Não. Precisava de escrever algumas cartas.
— E a sua enxaqueca?
— Já lá vai. Passou como por encanto. Lorde Sey¬mour dispõe de remédios infalíveis para os nervos femi¬ninos — acrescentou, prazenteira.
— Nunca o vi tão zangado como hoje!
— Ridículo, diga também! E tudo isto porque feri o amor-próprio de sua excelência!
E soltou alegre gargalhada.
— E por meu mal não consegui tomar o seu mau humor a sério. Quando o vi voltar-se contra si, não sei como não desatei a rir. Valha-nos isso. O seu repente de cólera teve uma vantagem: despertou-me a sensi¬bilidade e sacudiu-me os nervos.
Calou-se por um instante, recordando, divertida, a fúria de Geoffroy.
— Minha pobre Maè! Estava capaz de a engolir! Fiquei desolada, pode crer, tanto mais que não lhe cabia a mais pequena responsabilidade no incidente.
— Deveras? — volveu Maè, duvidosa. — Estava quase certa de que a vossa desavença resultará do passeio desta manhã. Já devia calcular que lhe desa¬gradaria.
— Creia que não, minha querida Maè — afirmou Geneva, com indiferença. — A meu marido apeteceu-lhe passear consigo... só. Geoffroy não é daqueles que se deixam influenciar por sugestões alheias e, portanto, não podia responsabilizá-la pelos seus actos.
— Mesmo assim, quero explicar-lhe o que se pas¬sou. Tinha pedido a Seymour que me levasse a ver a casa de Tedder, que fica a cem quilômetros do castelo, mas sempre imaginei que a Gene fosse connosco. Hoje, às sete da manhã, mandou-me dizer pelo criado de quarto que eram horas de partir. Supus que a avisasse também e fiquei muito surpreendida quando verifiquei que íamos só os dois. Perguntei-lhe por que motivo a Geneva não nos acompanhava, mas quando compreendi que nem lhe dera parte do passeio, já estávamos longe. Afirmo-lhe que fiquei aborrecidíssima.
— Não se desculpe, Maè. Torno a afirmar-lhe que não foi essa a causa da nossa desavença.
— Tanto melhor. Não desejava que tivesse qualquer dissabor por minha culpa.
— Tranquilize-se. O caso em si não tem importân¬cia: estava bem disposta e ri! A minha alegria desagradou a Geoffroy, que lançou um balde de água fria na minha intempestiva hilaridade. Enervei-me e retribuí os seus amáveis cumprimentos... Não gosto de discussões, mas... quando me provocam, mordo... e desta vez creio que mordi a valer.
— Tanto como isso?
— Não viu o resultado? Tem a epiderme muito deli¬cada, o meu caro esposo. Quando lhe ferem a vaidade, perde a linha.
— Minha pobre Geneva! Como acabará tudo isto?
— O melhor possível, verá. Esta noite, ao jantar, tenha a generosidade de esquecer a forma como foi tra¬tada e sorria, converse, seja, como sempre, amável e encantadora, como se nada se tivesse passado.
— E a Geneva?
— Eu?!... O melhor caminho a seguir será pairar nas nuvens.
— Vai amuar?
— Não, não vou amuar. Mas — continuou, com súbita gravidade — entre mim e Geoffroy, desde hoje, existe uma sombra. Compreendi que muita coisa nos separa... a maneira como se realizou o nosso casamento, raça, hábitos, caracteres... Vejo também que lorde Seymour amava profundamente Emily Ayton... e foi por minha causa que não a desposou... Enfim... tanta coisa!
Suspendeu a enumeração, mas em sua opinião pode¬ria falar horas seguidas que encontraria sempre motivos para explicar o seu dissentimento com Geoffroy.
Finalmente, teve um gesto de impotência.
— Seja o que Deus quiser! Há factos que não podem remediar-se e muito menos abolir-se. Levemos a nossa cruz com paciência até que nos possamos separar sem escândalo. Em todo o caso, a separação não lhe restituirá Emily Ayton... salvo se esta conseguir também recuperar a independência, libertando-se do seu incô¬modo esposo.
— Não devia admitir que ele a expulsasse da sua vida com tanto desembaraço. Que vai ser de si?
— Só Deus o sabe! Tenho confiança no meu destino.
— Supus que amava Geoffroy...
— Confunde-se muita vez o amor com a ânsia de amar. Não basta um só fósforo para acender uma fogueira. A chama crepita, cresce, mas apaga-se por falta de combustível. Já vê...
Adivinha-se que, em semelhantes disposições, Geneva daí em diante não fez qualquer tentativa para conquistar o marido. Na sua presença mostrava-se calma, serena, correcta, cumprindo os seus deveres de dona de casa, de forma a evitar qualquer observação. Ao mesmo tempo, confinava-se numa atitude abstraída, reservada, dirigindo-lhe o menos possível a palavra. À mesa, diante dos criados, afectava tomar parte na conversa. Mas, se estes se afastavam, voltava a isolar-se nas suas medi¬tações.
Fora das refeições, era pior ainda. Desaparecia horas inteiras, ocupada em qualquer canto do castelo onde ninguém pensaria em ir procurá-la.
Geoffroy, de princípio, sentiu-se muito feliz com a reserva de Geneva. O seu amor-próprio rejubilava ao ver que a atingira profundamente também. Passeava quase sempre com Maè, sem se preocupar com Geneva, a quem nunca convidava para os acompanhar.
A pé, a cavalo ou de automóvel, as excursões com a americana multiplicavam-se e, tanto à chegada como à partida, a sua animação e alegres gargalhadas ressoa¬vam pelo velho castelo, onde, no entanto, a princesinha encantada continuava adormecida.
Aborrecido com tanto desprendimento, lorde Bucgham tentava chamar a atenção do sobrinho para os méritos de Geneva.
— Vais passear a cavalo com Maè Tedder que é deplorável amazona. Acompanha Geneva e verás como monta bem.
Estes conselhos tinham o condão de enervar o jovem lorde.
— Não me mace mais os ouvidos com a sua pre¬ferida, tio Fil. Quanto mais a elogiar, mais a aborrecerei.
O velho inglês teve um gesto de mau humor.
— Tanto pior para ti, meu rapaz!... Descansa, que não torno a falar-te de tua mulher.
— Será preferível! Não sou uma criança a quem se trace a linha de conduta.
O tio não insistiu e, a partir desse dia, pareceu achar naturalíssimas todas as excentricidades do sobrinho e da americana, sempre pronta a divertir-se.
Mas essa espécie de efervescência, mais fictícia do que real, não durou muito tempo. A atitude de Geneva passou a ser um pesadelo para Seymour. A nuvem, que, por sua culpa, obscurecia o meigo semblante feminino, pungia-o como um remorso.
Um belo dia compreendeu que o sorriso, extinto por sua causa, lhe fazia falta como se fosse indispensável ao ambiente de Cliff-House.
Recordou a frase de Bathurst, que o tio lhe repetira numa das suas primeiras cartas: “Foi como se um raio de sol ou a própria Primavera entrassem com ela no castelo silencioso...”.
O mordomo tinha razão. Sem o sorriso de Geneva a velha moradia parecia mergulhada em trevas.
Geoffroy lamentou a sua cólera, de cuja intensidade ele próprio se admirava. Por que não fizera coro com sua mulher, rindo dos preliminares do seu casamento? Geneva tinha razão, no fim de contas! Visto esse casa¬mento ser um facto consumado, devia, como único par-tido a tomar, fazer boa cara ao Destino e procurar-lhe o lado cômico.
Pelo contrário, zangara-se e acusara Geneva de ter agarrado a ocasião pelos cabelos.
Que deplorável incidente!
Qual seria, de facto, mais honroso para um homem na sua situação? Deixar-se iludir como um pateta ou levar as suas excentricidades longe de mais?
Além disso, tanto Suzannah Murphy como Johnny Hoover lhe haviam afirmado que fora ele quem escolhera Geneva. Esta nem sequer estava presente quando asso¬ciara o seu nome ao projecto de casamento. Fora procurá-la e tinha-lhe imposto a sua vontade. A própria Maè, recentemente, quando evocavam a noite da festa em Nova Iorque, lhe confessara que fora várias vezes obrigada a insistir com Geneva para ela dar o sim diante do Pastor que os casara.
Ficava assim bem estabelecido que a responsabili¬dade da francesa naquele singular casamento fora muito limitada. Nesse caso, por que motivo ele, cuja lealdade todos apregoavam, pretendia descarregar sobre os ombros de sua mulher as culpas do acontecido.
Tentou, então, sem que o seu amor-próprio sofresse, reparar a falta de correcção para com Geneva.
Poderia ir ter com ela e apresentar-lhe desculpas pelo seu estúpido movimento de cólera.
Seria, porém, pedir demasiado ao seu orgulho. Procurou então rodeá-la de atenções.
Uma vez, Geneva encontrou nos seus aposentos magnífico ramo de lilases. Outra, bonita caixa de bombons. E todos os dias recebia novos mimos.
De princípio, julgou que as flores provinham das estufas. Estava-se na Primavera e as estufas de Cliff-House eram verdadeira maravilha. Não podia, porém, atribuir a mesma proveniência aos bombons.
— Quem me envia todos os dias estas flores e bom¬bons, Mabel? — perguntou à criada de quarto.
A rapariga sorriu.
— É Sua Honra, milady.
— Sua... Lorde Seymour, quer dizer? — exclamou, no auge da surpresa.
— Sim, milady. No quarto de Vossa Graça está um lindo ramo de rosas-chá que Sua Honra trouxe esta manhã de Londres, em sua intenção.
— Foi lorde Seymour! — murmurou Geneva, pensativa, tentando adivinhar a que móbil obedeceria a súbita amabilidade do marido.
— São atenções de um esposo apaixonado — acres¬centou a criadita, corando.
Geneva estremeceu. Geoffroy pretendia, decerto, lanar poeira nos olhos da criadagem.
— Lorde Seymour é, de facto, um marido carinhoso e delicado — afirmou com esforço, prestando-se à comé¬dia. — Estas flores são verdadeiro encanto. Não quero ser egoísta. Leve-as para baixo e distribua-as pelas jar¬ras do salão e da sala de jantar.
— Sua Honra talvez gostasse mais de que milady as conservasse nos seus aposentos...
— Prefiro que todos gozem o seu perfume e beleza. Vá, Mabel, faça o que lhe disse.
Quando a criada saiu, Geneva apanhou uma rosa que se desprendera do ramo.
“Felizmente, interroguei Mabel. Mais um dia e Geoffroy era capaz de me perguntar se eu julgava que as flores representavam uma atenção para mim”.
Como se vê, nem sequer lhe passou pela cabeça que o marido tivesse um pensamento carinhoso e desejasse desvanecer-lhe o ressentimento.
Lorde Bucgham resolveu dar um baile em Green-Park, festejando o regresso do sobrinho, festa íntima depressa organizada. Alguns telefonemas avisando os convidados, e estes, todos vizinhos ou amigos, prome¬teram não faltar.
Quando a notícia desta festa chegou a Cliff-House, Geoffroy ficou preocupado.
Qual seria a atitude de Geneva? De dia para dia se isolava mais, recusando todos os convites e nem sequer acedendo a acompanhá-los nas excursões que Maè orga¬nizava.
— Visto a minha passagem por Cliff-House ser efê¬mera, quanto menos aparecer, melhor — respondia a todas as tentativas da amiga. — Assim, notar-se-á menos a minha ausência quando partir.
— Tem muita pressa de me deixar, já vejo — obser¬vou um dia Geoffroy, que ouvira por acaso a reflexão.
— Para que diferir uma resolução já assente?
— Ficou combinado entre nós que se conservaria em Cliff-House durante algum tempo e ocupando o lugar que lhe compete.
— Já me eximi às minhas obrigações? — replicou, erguendo para ele um olhar de surpresa. — Presido à mesa, sirvo café, determino as ementas... Suponho não ter faltado ainda aos meus deveres.
Geoffroy mordeu os lábios e, procurando atenuar com um sorriso o que pudesse haver de desagradável no seu reparo, observou:
— Em compensação, talvez esqueça um pouco os seus deveres de esposa, lady Seymour. Tenho a impres¬são de que pouco peso na balança, para si.
As faces de Geneva tingiram-se de carmim.
— Valha-me Deus! — balbuciou. — Creio que o pro¬cedimento é recíproco e... natural, vendo bem! A pri¬meira vez que trocámos impressões, digladiámo-nos por tal forma que julgo preferível esta indiferença mútua.
— Nesse dia feri-a injustamente e peço-lhe que me perdoe, lady Seymour. Reconheço que não merecia a injúria que lhe fiz.
— Regozijo-me por ter chegado a essa conclusão, mas, presentemente, o caso não tem importância. Habi¬tuei-me à hostilidade que nos separa... e coisa alguma me pode ferir agora.
Seymour não replicou. Levemente pálido, a fisiono¬mia revestiu-se de súbita gravidade e fitou Geneva com olhar contristado.
— Nunca supus magoá-la até esse ponto — afirmou em voz abafada. — Mais uma vez lhe suplico que me perdoe. Não desejava ser-lhe desagradável. As minhas palavras foram irreflectidas e não exprimiram o meu sentir.
Os olhos de Geneva cintilaram de malícia.
— Respondi-lhe no mesmo tom e isso atenua muito a sua culpa.
— Não é essa a minha opinião. Todas as censuras que me dirigiu foram merecidas. Reconheci que, de facto, era egoísta, orgulhoso e intratável!
Geneva soltou uma gargalhada.
— Não continue, peço-lhe. Se enumera os seus defei¬tos, ver-me-ei obrigada, para ser justa, a mencionar as suas qualidades.
— E serão essas qualidades suficientes para que, evocando-as, eu me atreva a pedir-lhe um favor para me ser agradável?
— Vejamos primeiro o que devo fazer para lhe ser agradável.
Acentuou as últimas palavras, para lhe fazer notar bem que, fosse qual fosse o favor concedido, não modi¬ficava a sua maneira de ver nem a sua indiferença.
— Gostaria que assistisse ao baile de Green-Park.
— Com certeza! O querido tio Fil não merece que eu lhe faça a injúria de uma defecção.
— Muito bem. Mas há muitas formas de assistir a festa. Gostaria ainda que a sua presença fosse, não de corpo simplesmente, mas efectiva.
— Quer isso dizer...?
— Que desejaria que partilhasse da nossa boa dis¬posição... É o meu regresso que todos festejam... e a senhora é minha mulher! Nessa noite, pelo menos, per¬tencem-me os seus sorrisos, a sua exuberante alegria. Afirma-se que é entusiasta, expansiva, quando está satis¬feita. Não contrarie a sua índole, peço-lhe.
— Então nessa noite a alegria é obrigatória? E não lhe desagradará?
— Pelo contrário, causar-me-á muito prazer.
— Nesse caso, quando estiver em Green-Park, ten¬tarei recordar-me de que não atingi ainda a idade de senhora grave!
— Não creio ser preciso esperar pela festa de Green-Park para me fazer beneficiar dessa alteração do pro¬grama. O seu sorriso também é bem-vindo em Cliff-House, Geneva.
Pela primeira vez a tratava assim e acompanhara a frase com significativo olhar.
Ela sentiu-se perturbada até ao íntimo da alma.
— Verifico que se está tornando muito exigente, lorde Seymour — conseguiu responder. — A alegria não é coisa que se imponha. Nasce espontânea. Entretanto, haja o que houver, prometo-lhe estar, amanhã à noite, de uma alegria louca.
— Contava que a sua clemência me concedesse mais — replicou Geoffroy, mascarando a sua decepção com afável sorriso. — Mas, à falta de melhor, registo a sua promessa.
— Combinado! Pode contar comigo.
Que estranha lembrança seria a de Geneva naquela noite? Nas circunstâncias especiais em que se encontrava foi talvez o maior erro que poderia cometer.
Para o baile, lembrou-se de escolher o vestido de cetim preto que envergava na noite do casamento e con¬siderava quase como um talismã.
Tê-lo-ia escolhido para despertar a memória de Geof¬froy, por desafio, ou simplesmente porque, a despeito da louca alegria que prometera mostrar, era dessa cor o véu que lhe encobria a alma: negro e sombrio! Fosse qual fosse o motivo, o vestido ficava-lhe lindamente, moldando-lhe as formas perfeitas, pondo em relevo a linha escultural do colo e dos ombros e, por assim dizer, desnudando-a mais do que a vestia.
Como essa toilette só fora usada uma vez, no dia do casamento, estava nova como se acabasse de chegar do costureiro. Para Geoffroy, pelo contrário, já estava vista e sugeria-lhe recordações importunas.
Quando Geneva desceu dos seus aposentos com ele, Geoffroy reconheceu imediatamente o malfadado ves¬tido. A fisionomia traduziu-lhe intensa decepção e Geneva compreendeu que a iniciativa fora desastrosa, uma grande tolice! Em vez de lhe trazer reminiscências agradáveis, o pobre vestido só lhe despertara rancor.
Geneva poderia ainda ter voltado ao quarto e tro¬cá-lo por outro. Geoffroy não lhe manifestou esse desejo e ela era muito orgulhosa para obedecer a simples olhar de reprovação. De resto, não pretendia agradar ao marido. Este pedira-lhe simplesmente que fosse alegre, e Geneva propunha-se sê-lo ao máximo.
Nesse momento, Maè apareceu deslumbrante de graça e beleza, com vaporoso vestido verde-mar.
O contraste era flagrante e desfavorável à francesa. Maè, com os seus cabelos dourados levemente encaracolados na nuca, recordava a saudosa Joan Harlow, de uma beleza tão cativante e delicada.
A sua toilette fresca estava em completa oposição com o sombrio vestido de Geneva e a expressão de olhar em que Geoffroy envolveu a americana bastou para lho fazer compreender.
Quando se instalaram no carro, Seymour, em termos entusiásticos, felicitou Maè pela sua toilette primorosa, que lhe ficava lindamente e era um verdadeiro encanto para os olhos de quem a contemplava.
— Não seja lisonjeiro! — protestou Maè, um pouco incomodada pelos intempestivos cumprimentos de Sey¬mour. — Como sou magra, vejo-me obrigada a usar vestidos vaporosos que não me acentuem as formas.
E para atenuar a falta de galantaria de Geoffroy para com Geneva, acrescentou:
— Só um corpo escultural como o de Geneva pode admitir um vestido que é verdadeira bainha. Entre cem encontraria uma que se atrevesse a envergá-lo.
Seymour não deu a mais pequena atenção ao mere¬cido elogio feito a Geneva.
— Não amesquinhe os seus méritos, Maè — insistiu. — Está verdadeiramente deslumbrante e para despertar a inveja do elemento masculino convido-a a abrir o baile comigo.
Geneva ouviu as reflexões do marido e a resposta de Maè, aparentemente impassível.
Através do cristal da portinhola contemplava a pai¬sagem nocturna banhada por argêntea claridade, que desfilava veloz sob o seu olhar.
— Os campos ingleses são um encanto com as suas colinas arborizadas e os prados verdejantes — comentou com despreocupação. — Como tem chovido nestes últi¬mos dias, o solo está semeado de pequeninas poças que são como minúsculos lagos prateados onde a lua se reflecte. É feérico! Dir-se-ia um conto de Perrault! A todo o instante esperamos ver aparecer as fadas e os duendes.
Voltando-se para a amiga, acrescentou:
— Com o seu deslumbrante vestido, a Maè ficaria ali perfeitamente colocada. Seria mais uma fada, bai¬lando ao luar.
As duas toilettes femininas provocaram em lorde Bucgham impressão idêntica à experimentada por Geoffroy pouco antes. Maè ressuscitava certos retratos de Gainsborough, enquanto Geneva personificava a trá¬gica figura da Tosca.
O seu gosto requintado não deixava por isso de apre¬ciar a esbelta silhueta de linhas correctas e elegantes que o vestido de cetim preto cingia, pondo em relevo a sua incomparável perfeição.
— Como está bonita, Geneva! — cumprimentou. — Mas vou roubá-la um instante aos seus convidados. Venha comigo, quero mostrar-lhe uma coisa.
E sem se preocupar com os dois companheiros da sobrinha, levou-a consigo aos seus aposentos.
Admirada, Geneva viu-o deslocar um quadro, pondo a descoberto pequena porta de bronze incrustada na parede.
Calculou que fosse um cofre-forte. Lorde Bucgham abriu-o e tirou grande estojo.
— Aqui tem, minha querida filha. Ponha este colar para animar o seu vestido um pouco escuro.
— Com efeito, já notei que o meu vestido não agra¬dava. Devia ter escolhido outro! Obedeci a sentimento pueril de que estou arrependida: o de evocar o aniver¬sário do meu casamento.
— O quê! Há um ano que é minha sobrinha, Geneva! E Geoffroy sabe?
— Creio que não deve ignorar a data em que me desposou — respondeu, rindo. — Mas não lha recorde, tio Fil. Lorde Seymour já me fez sentir que essa recor¬dação lhe era importuna.
— Pelo contrário, não devia esquecer que é seu marido — retorquiu o velho inglês, com gravidade. — Encontram-no por toda a parte com á americana e já se começa a falar! Ainda se demora muito em sua casa essa estouvada que se preocupa tão pouco com a opinião que possam formular a seu respeito?
— Maè é minha amiga e julgo-a leal. Não fale a Geoffroy nem a Maè nesses ditos malévolos — acres¬centou com insinuante meiguice. — Seriam capazes de me obrigar a sair com eles e isso representaria uma grande maçada para mim. Sinto-me tão bem em Cliff-House quando estou sozinha!
O tio encarou-a em silêncio; em seguida abanou a cabeça, com aspecto sombrio.
— Compreendo agora o vestido preto — resmungou. — Mas, como talismã, há melhor.
— Vejo que o meu vestido lhe desagrada e isso pena¬liza-me. Mas, visto não ter remédio, não falemos mais no assunto, senão fico com a noite estragada.
— Engana-se, Geneva. Está mais do que nunca encantadora. Mas desejo mais. Será a rainha do baile e eclipsará todas as outras mulheres.
— Porquê esse desejo?
— Porque é minha sobrinha e cumpre que ninguém o ignore. Vamos, ponha essa jóia... É, nem mais nem menos, o célebre colar dos Bucgham. Em breve ficará valendo milhões, minha filha.
Uma sombra de terror perpassou nas pupilas de Geneva.
— Tenho medo de trazer uma fortuna destas em cima de mim, tio Fil. Pode acontecer-lhe qualquer desas¬tre. Perdê-lo ou roubarem-mo...
— Nada receio. O colar tem um fecho de segurança a toda a prova.
Ao mesmo tempo prendia o colar no pescoço de Geneva.
— Pronto — disse, recuando uns passos, a fim de melhor a admirar. — Está deslumbrante assim. O tom do vestido faz sobressair o brilho das pedras.
Lorde Bucgham não exagerava o efeito que a jóia iria produzir.
Quando Geneva, pelo braço do tio, penetrou nas salas profusamente iluminadas, ouviu-se prolongado murmúrio. Ninguém ignorava o valor da cintilante jóia que desprendia mil fulgores sob a claridade intensa que caía dos lustres.
A atenção de Seymour fixou-se na mulher, sobre quem convergiam todos os olhares.
Ficou como que deslumbrado e teve de reconhecer que a sua beleza era real, não obstante a cor sombria do vestido. A jóia sumptuosa, mas pesada, não preju¬dicava em coisa alguma a distinção patrícia do vulto esbelto, de uma graça subtil e delicada.
Geoffroy ficou tanto mais impressionado com a exi¬bição do precioso colar por ele representar especialíssima atenção do tio fazendo-o usar por Geneva. Havia mui¬tos anos que o tesouro dos Bucgham repousava dentro do seu estojo, no cofre-forte dissimulado na parede. A última a usá-lo fora a mãe do tio Fil, na ocasião da coroação da rainha Mary, esposa de Jorge V. Nem a Patrícia, a irmã de Geoffroy, lorde Bucgham emprestara nunca a maravilhosa jóia. E nessa noite, quando por forma alguma se justificava tal aparato, o chefe da famí¬lia confiava a Geneva o célebre colar! Nem por um ins-tante lhe passou pela cabeça que o tio com esse gesto pretendesse apenas realçar a beleza da mulher, animando o tom escuro do vestido. Pelo contrário: supôs que tudo isso resultará de prévia combinação e que Geneva esco¬lhera precisamente o vestido preto sabendo que lorde Bucgham lhe confiaria os diamantes da família. Tomou, portanto, esse procedimento como um acinte contra ele, visto até então não ter admitido de boa vontade a pre¬sença de Geneva no seu lar. “Adoro minha sobrinha e dou-lhe o primeiro lugar entre as mulheres da nossa casa”, eis o que o gesto do tio Fil parecia querer pro¬clamar bem alto aos seus convidados.
Quando o tio Fil abriu o baile com Geneva, Sey¬mour mais se convenceu de que acertara com as suas suposições. Ficou tão irritado com a atitude do tio que se conservou algum tempo sentado sem dançar.
Furioso e desesperado, tentava encontrar a melhor maneira de responder ao desafio que, em sua opinião, Bucgham acabava de lhe lançar.
Querendo vingar-se, procurava com a vista, entre as convidadas, aquela que se prestaria aos seus projectos, exibindo-se com ele durante toda a noite. Chegou a lamentar que Emily Ayton não estivesse presente, pois sentia-se disposto, nessa noite, às maiores incorrecções, só para dar um desmentido formal aos actos do tio.
Por fim, a sua escolha recaiu em Maè, que, rodeada por um grupo de rapazes, flirtava alegremente.
O olhar de Geoffroy iluminou-se. Maè acompanha¬va-o com freqüência, viam-nos muitas vezes juntos e o inglês não teria muita dificuldade em fazer acreditar aos outros o que, de facto, não existia.
Nesta ordem de idéias, não abandonou Maè um ins¬tante. Poucas vezes a deixou dançar com outros e disse-lhe tanta tolice que a americana chamou sobre si a atenção geral, com as suas gargalhadas loucas. Era esse precisamente o desejo de Seymour.
Essa atitude prestou-se aos mais diversos comentá¬rios... Lorde Bucgham, embora conservasse a sua habi¬tual impassibilidade, não deixava de relancear olhares furibundos ao sobrinho, que levou a sua indelicadeza a ponto de nem uma só vez convidar Geneva para dançar.
Felizmente, esta demonstrava uma animação e um entusiasmo que pareciam sinceros. Prometera estar ale¬gre e cumpria a promessa com real magnificência. Só um olhar atento como o de Bryce poderia descobrir o constrangimento oculto com o riso cristalino e em aparência despreocupado. Mais de uma vez a surpreendeu a seguir, com o olhar inquieto, o par formado pelo marido e pela sua melhor amiga.
Nesses momentos, a fim de a obrigar a pensar noutra coisa, tentava desviar-lhe a atenção para outro ponto da sala.
As manobras de lorde Seymour poderiam ter durado toda a noite, mas o acaso muitas vezes altera os mais belos programas.
Perto da uma hora da noite, os convidados dirigi¬ram-se ao bufete. Lorde Bucgham e Bryce acompanha¬vam Geneva, que tranqüilamente comia uma sanduíche de foie-gras, quando, sob a leve camada de carmim, a viram empalidecer.
Não tiveram grande trabalho para descobrir a causa da sua emoção. A poucos passos Emily Ayton observava o grupo.
Lorde Bucgham teve um sobressalto de surpresa. Como se atrevera a ex-noiva do sobrinho a apresentar-se na festa sem ser convidada? O que a trouxera ali? Não o ignorou por muito tempo. A que era agora esposa de sir Malcolm Bomley dirigiu-se-lhe de mão estendida e sorriso nos lábios.
— Como está, lorde Bucgham? — perguntou amàvelmente. — Decerto ficou admirado quando me viu! Meu marido tentou várias vezes telefonar-lhe para o avisar. Soubemos acidentalmente que dava uma festa em honra de Geoffroy e tanto eu como meu marido desejamos com a nossa presença testemunhar-lhe a nossa velha amizade.
O dono da casa curvou-se ligeiramente.
— A idéia foi excelente, minha querida Emily — res¬pondeu com um sorriso amarelo. — Lady Seymour saberá agradecer-lhe essa prova de apreço dada a seu marido. Quanto a sir Malcolm Bomley, irei daqui a pouco expri¬mir-lhe o meu reconhecimento por a ter acompanhado a minha casa.
A frase foi dita com a maior correcção, mas era fria¬mente cortês e a referência ao marido de Emily não dei¬xava de ter a sua pontinha de humorismo.
Como lorde Bucgham continuasse a ocupar-se de Geneva, sem fazer mais caso de Emily, esta afastou-se, despeitada.
“Aquela sirigaita com os diamantes dos Bucgham! — pensava, mordida de inveja. — Geoffroy teria desis¬tido de a repudiar?”
A suposição feria-lhe o amor-próprio.
Sem pensar em se dirigir ao bufete, a inglesa ia de grupo em grupo, tentando descobrir o sobrinho de Bucgham. Não vira Seymour junto da mulher e isso indi¬cava que se desinteressava dela, ou, pelo menos, que não sentia grande prazer em estar a seu lado.
Entretanto, Geneva, preocupada, perguntava ao tio se não seria melhor retirar-se.
— Sou um tanto medrosa, tio Fil, e essa Emily assus¬ta-me. Dispõe de um aprumo que me falta e se puder não deixará de me ferir.
— Não sei porquê!
— Porque nunca me perdoou o casamento que me tornou sua sobrinha e sabe que Geoffroy ainda a ama.
— Mas que idéias são essas, minha louquinha! Meu sobrinho preza muito a sua dignidade para consentir a Emily que conceba semelhantes pensamentos. Além disso, sir Malcolm Bomley não deve ignorar o passado da mulher... Acho até muito estranho que viesse à festa! Que patranha teria ela inventado para conseguir trazê-lo aqui?
— De boa vontade lhe cedia o lugar — insistiu Geneva. — Não gosto de ser importuna.
— Enquanto estiver em minha casa não importuna ninguém — replicou lorde Bucgham com autoridade. — Se alguém se esquecer ou fingir ignorá-lo, eu saberei recordar-lho. Agora vou dar uma vista de olhos pela sala. Não abandone lady Seymour, Clarence.
Geneva seguiu-o com olhar afectuoso.
— É muito bom e enche-me de mimos — murmurou — mas preferia que não manifestasse tão abertamente o seu carinho por mim. Tenho a impressão de que Geof¬froy não está contente com o lugar de honra que esta noite me deram.
Era a primeira vez que Geneva deixava entrever ao conde de Bryce que entre ela e o marido existiam pesa¬das nuvens.
— Seymour, pelo contrário, deve sentir-se satisfeito com as atenções que lorde Bucgham lhe dispensa, lady Seymour. É raro uma recém-casada ser acolhida assim pela sua nova família.
— Não influí em coisa alguma para isso, pode crer — protestou — e os meus méritos são fracos.
— Porque ignora a sedução que emana de toda a sua pessoa. Seria capaz de comover um tigre.
Geneva teve um sorriso levemente irônico.
— Sem ser um tigre, Emily Ayton não perfilha a sua opinião. Há pouco, tive quase a impressão de que se ia lançar a mim.
Calou-se de chofre. Aquela a quem acabava de se referir estava a poucos passos.
Instintivamente, Geneva largou o braço do conde.
Ao mesmo tempo, Geoffroy, dançando com Maè, passava tão perto de Emily que esta pôde interpelá-lo a meia voz.
— Então, Geoffroy, ainda com a corrente ao pé? Não achou então o peso demasiado, para se libertar?
— Parece que não — replicou alegremente — e, como vê, aproveito bem o tempo — acrescentou, indi¬cando Maè.
Maè ficou interdita e Emily continuou, implacável:
— Já vejo que precisa de cocktails variados a fim de poder engolir a pílula — comentou, rindo. — Felizmente, seu tio carregou-a de brilhantes na esperança de a tor¬nar mais apetitosa.
— Creio bem — atalhou Maè, indignada — que mui¬tos homens se dariam por felizes se pudessem engolir essa pílula. Em compensação, é natural que as mulhe¬res a achem amarga.
Só então Emily notou que Geneva e o conde de Bryce estavam perto. Não obstante toda a audácia, a ex-noiva de Geoffroy ficou atrapalhada. Por instantes hesitou na atitude a tomar. Se a francesa se encontrasse sozinha pouco se preocuparia com o caso. Mas Clarence decerto ouvira as suas reflexões e embora o marido de Geneva tivesse acolhido sem protesto os malévolos comentários, visando aquela que usava o seu nome, quis roubar ao conde a possibilidade de os repetir.
Enquanto Geoffroy e Maè se afastavam, e percebendo que nem um nem outro haviam dado pela presença de Geneva, Emily aproximou-se desta com o maior desembaraço.
— Desejo afirmar-lhe que as palavras há pouco empregadas por mim são simplesmente aquelas de que Geoffroy se serve quando se refere à esposa. Se quiser dar-me a honra de vir um dia destes tomar uma chávena de chá a minha casa mostrar-lhe-ei algumas cartas que acabarão de a convencer.
— As cartas que Geoffroy escreveu não interessam por forma alguma a lady Seymour. Decerto não ignora que todos os homens têm aventuras antes de escolhe¬rem a mulher que usará o seu nome.
A intervenção do conde levou a raiva de Emily ao paroxismo.
— Olhe para ele, então — exclamou, designando Geoffroy, que continuava a dançar com Maè. — Parece ter empenho em nos provar que ainda não fez a sua escolha. Que diz a isto, lady Seymour?
A voz vibrava-lhe em ressonâncias tão ásperas que Geneva experimentou sensação idêntica à que lhe cau¬saria se lhe passassem pelos lábios um pouco de vinagre ou de ácido corrosivo.
— É bom não continuar, lady Bomley — aconselhou em voz calma, embora o coração lhe pulsasse com força. — Quem a ouvisse poderia supor que meu marido não lhe é indiferente e sir Malcolm decerto não gostará que o confesse tão abertamente.
Ditas estas palavras, Geneva fez-lhe gracioso cum¬primento e, tomando o braço de Clarence, arrastou-o para a sala vizinha.
— Esta mulher é verdadeira víbora! — exclamou o conde, decorridos momentos. — Tive ímpetos de lhe tor¬cer o pescoço! Não se preocupe com as suas insinuações venenosas, lady Seymour! Não passam de um acervo de mentiras.
— Também estou persuadida disso e tenho con¬fiança em Geoffroy — respondeu corajosamente a pobre senhora.
No íntimo da alma, porém, não duvidava de que Emily tivesse dito a verdade: lorde Seymour não a amava e não tinha rebuço de o confessar.
Quando os últimos convidados saíram, Geneva restituiu a preciosa jóia a lorde Bucgham.
— Esteve encantadora esta noite, minha querida filha — afirmou o velho lorde, carinhosamente. — Fez honra à família, não sei se sabe. Esta festa, apesar de muito íntima, marcará como uma das mais belas nos anais da nossa casa.
— Não sei como exprimir-lhe o meu reconhecimento, tio Fil. Todos me felicitaram pelo colar, parecendo atri¬buir-lhe grande importância. Esses cumprimentos melhor me fizeram sentir quanto foi bom e carinhoso para mim. Infelizmente, receio que seu sobrinho achasse demasiadas tantas atenções.
A fronte de lorde Bucgham anuviou-se. Também reparara no procedimento de Geoffroy.
— Seu marido é uma criança caprichosa e mal-edu¬cada! — redarguiu. — Impõe-se que tenha juízo pelos dois e desculpe as suas tolices.
— É esse o meu papel de esposa — respondeu ela com serenidade, conquanto pensasse que Geoffroy a cobria de ridículo. — Não se preocupe mais com isso, tio Fil. Tudo acabará por se harmonizar.
O inglês não fez mais comentários. O conde de Bryce descrevera-lhe o odioso procedimento de Emily Ayton e muito embora, com a habitual generosidade, tentasse diminuir as culpas do amigo, o tio compreendeu que Seymour faltara nessa noite a todos os seus deveres para com sua mulher.
No automóvel que reconduzia a Cliff-House os dois esposos e Maè, reinava o maior silêncio. Seymour pare¬cia de mau humor e mais de uma vez socou as almofadas do carro como se tivesse necessidade de distender os nervos.
— Vai mal nesse lugar, lorde Seymour? — acabou por perguntar Geneva, a quem a atitude do marido intrigava. — Quer trocar comigo? É-me indiferente ir de costas.
— Dispenso a sua amabilidade! — sibilou, de den¬tes cerrados. — Estamos na intimidade e portanto são escusadas tantas atenções.
Tendo a consciência de que não provocara o mau humor do marido, Geneva não sabia a que o atribuir.
Quanto a Maè, volveu-lhe olhar meio irônico, meio admirado e encolheu os ombros, como se pretendesse significar que renunciava a compreender o marido da amiga, momentos antes tão alegre e loquaz.
Quando os dois esposos se encontraram sozinhos no corredor, diante da porta dos respectivos aposentos, Geoffroy voltou-se para a mulher e manifestou-lhe o seu desagrado.
— Para a outra vez, lady Seymour, evite discutir com Emily. Ela não tem obrigação de suportar o seu mau gênio e estúpido ciúme. Foi extremamente ridí¬cula esta noite e eu tenho horror ao ridículo.
Geneva corou como se, de facto, fosse culpada.
— Não discuti com Emily — balbuciou, desnorteada. — Disse-lhe simplesmente...
Seymour interrompeu-a com modos desabridos.
— É justamente por ter dito qualquer coisa que eu a censuro. Não torne a repetir a qraça porque declaro que não lhe tolero observações. Que isto fique enten¬dido de uma vez para sempre!... Boa noite!
Bruscamente, entrou no quarto e bateu com a porta, acordando o eco dos silenciosos corredores e sobressaltando Geneva, que penetrara nos seus aposentos em bicos de pés.
Cambaleando, Geneva deu alguns passos, apertando a cabeça com as mãos e sem pensar em acender a luz.
— Eu discuti com Emily! O meu estúpido ciúme ofendeu a sua bem-amada... Ou ele endoideceu ou eu!
Já habituada à escuridão, acabou por distinguir a cama e deixou-se cair em cima dela.
“Mas quem lhe disse que essa mulher me tinha falado? Que insinuações lhe fizeram contra mim? Geof¬froy também podia ter-me interrogado antes de me acusar. Mas preferiu condenar-me sem dar tempo a defender-me”.
E, sacudida por uma crise de choro, balbuciava:
“Não posso mais! Não posso! Ele odeia-me e eu não quero tornar a vê-lo! Ó meu Deus, dai-me forças e coragem para me libertar deste suplício”.
Ferida na sua dignidade, só desejava fugir.
Nesse momento ouviu bater à porta.
Levantou-se.
— Entre — disse, sem pensar que iriam ver-lhe as faces lavadas em lágrimas.
Mabel entrou e deu volta ao comutador.
— Sempre foi bom pedir ao motorista que me avi¬sasse quando milady regressasse. Eu bem sabia que Vossa Graça não podia despir o vestido sem o meu auxílio.
Aproximou-se e notou que a ama estava a chorar. Atrapalhada, ajoelhou-se aos pés e começou a desapertar-lhe os sapatos de baile.
— Bem dizia eu que milady seria obrigada a deitar-se vestida — ia dizendo, simulando não ter reparado nas lágrimas. — Estes homens, que nem ao menos sabem desapertar um colchete! Estou a ver que lorde Seymour era capaz de arrancar o colarinho se Peters não tivesse esperado para o ajudar. Realmente, deviam habituar os rapazes a fazer certas coisas.
Todo este discurso tendia a dar tempo a Geneva para recuperar a calma e esta, sensível a todas as atenções que lhe dispensavam, adivinhou o intuito de Mabel.
— Agradeço-lhe o cuidado que teve em se lembrar de vir ajudar-me a deitar. Realmente, depois de uma noite tão bem passada, custava-me ter de rasgar o ves¬tido para o poder despir.
— Divertiu-se muito, milady? — atreveu-se a pergun¬tar a criadita, erguendo os olhos para a ama.
— Muito! Para mais, lorde Bucgham lembrou-se de querer que eu usasse toda a noite o colar da família... jóia que vale milhões... Foi uma honra para mim e que ele não dispensa a ninguém.
A criada de quarto sorriu.
— Lorde Bucgham é muito atencioso e adora milady. É natural! Não há ninguém que não goste de Vossa Graça.
Geneva passou a mão pela face da criadita.
— É uma excelente rapariguinha, Mabel, e mais uma vez lhe agradeço os cuidados que tem por mim. Mas já é tarde e amanhã o seu serviço reclama-a. Vá descansar.
— Posso deixar dormir Vossa Graça até ao meio-dia? Deve estar fatigada. São quatro horas da manhã.
— Eu...
Geneva relanceou em volta o olhar pensativo como se pedisse uma inspiração aos objectos que a rodeavam.
— Pois sim! Não me acorde cedo. Se precisar de si, chamo...
Devemos acreditar que Geneva não dormiu tanto como supunha porque não eram ainda oito horas da manhã quando Mabel a ajudou a vestir.
Eram quase duas horas da tarde quando Seymour apareceu no salão, onde já se encontrava Maè.
— Levantámo-nos a bonita hora, não haja dúvida — comentou a americana, estendendo-lhe a mão. — E dói-me a cabeça, conquanto tivesse adormecido mal me deitei.
— Por mim, custou-me a adormecer — respondeu Geoffroy. — Talvez o champanhe que bebi ontem à noite concorresse para isso. E tive horríveis pesadelos! Sonhei que me encontrava sozinho num barco, no meio de medonho temporal.
De súbito calou-se.
— Por que esperam para servir o lanche? Lady Sey¬mour ainda não se levantou?
— Não me parece que a demora seja devida a Geneva — objectou Maè, a medo.
— Estou com uma fome de lobo. Se tiver demora, vamos nós lanchando. Vou mandar servir.
Ao mesmo tempo tocava a campainha.
— Por que esperam? — repetiu quando o mordomo apareceu. — Ainda não acham horas?
— Peço perdão a Vossa Honra. Calculei que lady Seymour viesse lanchar. Só agora me avisaram de que não devia esperar por Sua Graça.
— Sirva-nos depressa, Jackson — atalhou Maè, sem cerimônia.
Sentaram-se à mesa. O talher de Geneva não estava posto. Geoffroy, maquinalmente, olhou o lugar deso¬cupado.
— Não percebi bem o que Jackson disse há pouco! — observou a Maè. — Lady Seymour teria saído?
— É provável.
— Devia fazer o possível para chegar à hora do lan¬che. Verifico que dia a dia se importa menos connosco.
Maè parecia hesitar, como se tivesse qualquer comu¬nicação desagradável a fazer-lhe. Finalmente, arriscou esta suposição, em tom despreocupado:
— Já perguntou alguma vez a si próprio o que faria se um dia esperasse Geneva em vão, lorde Seymour?
— Não compreendo o que pretende dizer.
— Sim... por exemplo... Suponha por um instante que sua mulher perdia a cabeça e partia para não mais voltar?
— A sua hipótese é disparatada — retorquiu sem reflectir. — Por que partiria ela?
— Porque se sentia inútil e incompreendida.
Como ele a encarasse, admirado, Maè corou e expli¬cou:
— Isto não passa de simples suposição, é claro.
— Bonita suposição, mesmo assim — comentou com modos bruscos.
— No entanto, admita por instantes que é verdade. Que faria se Geneva partisse?
— Quer dizer, se abandonasse Cliff-House?
— Exactamente.
— Diria: “Boa viagem!”.
— Bem — disse Maè, respirando fundo. — Está bem certo de que essa partida o deixaria indiferente?
— Certíssimo!... Seria até a melhor solução!
Maè pareceu libertar-se de intensa preocupação.
— Ainda bem! — exclamou com um suspiro de alívio. — Nesse caso, pode regozijar-se. Não sabia como comu¬nicar-lhe o facto, mas, visto a partida de sua mulher lhe dar prazer, fique sabendo que deixou Cliff-House esta manhã e regressou a França.
— A França!
Sem dar por isso, quase gritou estas palavras.
— A França, sim! Não compreende?
— Partiu? Falou com ela?
— Não. Escreveu-me pequeno bilhete.
— Esta agora!
Parecia completamente desorientado.
A americana teve a impressão de que o abandono da mulher não o afligia muito. No entanto, viu que as feições se lhe transtornavam pouco a pouco.
— Partiu! Nunca podia esperar uma coisa destas!
— Nunca se espera a partida da mulher que se martirizou impunemente durante tanto tempo — objectou Maè, sentenciosamente. — Geneva nunca foi feliz a seu lado.
— Não a martirizei! — replicou Seymour.
— No sentido absoluto da palavra, com certeza que não. Mas Geneva amava-o e você nunca a poupou. Detestava-a e não perdia ocasião de lho fazer sentir... Teve alguma vez com ela essas pequenas atenções que nos cativam?
— Tive, sim!... Mandava-lhe flores... as mais belas que encontrava.
— Flores que você pagava, mas não eram oferecidas por si. Delicadezas para os outros verem e não estra¬nharem a sua frieza. Geneva nunca teve ilusões a esse respeito.
— Enganava-se. Essas flores eram uma forma de lhe demonstrar o meu interesse.
— Uma palavra de carinho teria muito mais valor.
Geoffroy não lhe respondeu. Afastou o prato e encostou-se à mesa, com o olhar vago, o rosto pálido. Os minutos decorriam num silêncio impressionante.
Maè começava a inquietar-se com a expressão alueinada de Geoffroy.
— Vamos, lorde Seymour, anime-se. Acabou de me dizer que se Geneva abandonasse Cliff-House seria a melhor solução... que a sua partida o deixaria indife¬rente... Nunca lha teria comunicado sem rodeios se não tivesse falado assim.
Seymour continuava calado, mas como Maè lhe pou¬sasse a mão no ombro, ergueu para ela as pupilas vagas, fixando-a sem a ver.
— Visto que a sua ausência não o afecta — insistiu — não compreendo por que se apoquenta. Depressa a esquecerá.
— Esquecer! — protestou, colérico. — Perdeu a cabeça! Não me apoquentar! Trata-se da minha mulher, da mulher que usa o meu nome! E acha muito natural a sua partida?
— Valha-me Deus! Pois se você não a ama!
— Entre marido e mulher nem só o amor conta... Há a confiança mútua... Partiu sem me prevenir, sem que eu saiba para onde foi. Bonito procedimento! E o meu amor-próprio?
— Aí está! — exclamou Maè, trocista. — Já esperava essas palavras. O amor-próprio! Ficaria satisfeito se pudesse livrar-se da minha amiga, mandá-la embora como quem expulsa um cão que nos incomoda! Mas como foi Geneva quem tomou a iniciativa, sente-se ferido no seu orgulho e protesta!
— É compreensível! Usava o meu nome!
— Servia de muito o seu nome, se não a tornava feliz. O nome não é mais do que uma espécie de manto que lançamos sobre os ombros quando casamos. É pouco para preencher as aspirações de uma mulher.
— Todas elas, porém, desejam casar. Portanto, sem¬pre lhe dão alguma importância.
— Vê-se a importância que teve para Geneva o facto de ser uma esposa legítima — notou Maè, muito sere¬namente. — Perdoe-me, lorde Seymour, se o magoo, mas não consigo dar-lhe razão a si e censurar a minha amiga. No lugar dela faria o mesmo. Em matéria de felicidade, usar o seu nome, acho pouco.
Geoffroy já nem a ouvia. Esmagado pela brusca par¬tida de Geneva, não chegava a compreender o que o fazia sofrer assim.
De novo irritado, deu um murro na mesa.
— Devia ter-me avisado, escrever-me, ao menos. Foi por si que tive conhecimento da sua partida. É inacre¬ditável! Acidentalmente, poderia tê-lo sabido até pela boca de um criado.
— Ordene que lhe tragam o correio. Deve encontrar uma carta dela, tenho a certeza.
— Supõe que me escrevesse?
— O contrário admirar-me-ia muito. A minha pobre amiga é a correcção em pessoa.
Sem esperar que o mordomo lhe trouxesse a cor¬respondência, foi ele próprio buscá-la ao gabinete de trabalho onde costumavam pô-la.
Entre uma dúzia de cartas, reconheceu imediata¬mente a que Geneva lhe escrevera.
A mão tremia-lhe ao rasgar o sobrescrito e com avi¬dez tomou conhecimento do seu conteúdo.
Lorde Seymour
Perdoe-me se parto sem o avisar. Calculei que seria esse o melhor caminho a seguir, porque assim não tem de preocupar-se com a minha viagem nem julgar-se obri¬gado a opor-se à partida, por uma questão de delicadeza.
Desapareço da sua vida. Para o futuro não voltarei a desagradar-lhe nem poderá recear que eu ofenda Emily Ayton. Pelo seu amigo Bryce, que assistiu a tudo, poderá saber exactamente como as coisas se passaram. Tenho a consciência de que nem uma só das minhas palavras merecia as censuras que me dirigiu. Quanto ao vestido preto, que tanto lhe desagradou, escolhi-o porque passava ontem o aniversário do nosso casamento. Presenciou o começo, devia assistir ao fim. Terminou o seu papel.
Vou para junto de meu pai, que está doente. Foi isto que hoje disse ao pessoal, como explicação à minha partida precipitada. Decorridos alguns dias, voltarei a escrever-lhe, comunicando-lhe que meu pai piorou e não posso abandoná-lo. Com essa carta, declatando-lhe peremptòriamente que não desejo voltar a Inglaterra, obterá com facilidade o divórcio contra mim sem ser obrigado a dar-me qualquer indemnização. A certeza de nada ter que desembolsar compensará talvez todos os aborrecimentos que lhe causei. Creia que é este o meu sincero desejo.
Geneva de Rouvaux.
Ao terminar a leitura da carta, Geoffroy estava tão pálido que Maè — que o seguira ao gabinete de traba¬lho — receou indisposição mais grave e aproximou-se dele, cheia de comiseração.
— Estou desolada, lorde Seymour, pode crer. Seria preferível que tivesse esperado algum tempo para ler essa carta... o tempo preciso para habituar o espírito à idéia da partida de Geneva.
— Como vê, o golpe não me derrubou — proferiu, dobrando maquinalmente a carta e metendo-a na car¬teira. — A sua amiga partiu, quebrou os laços que nos uniam... cumpra-se como ela deseja! Sinto que, pessoal¬mente, nunca a teria afastado de Cliff-House.
— Não era vida para uma rapariga da sua idade — protestou Maè. — Você não gostava dela e apregoava-o aos quatro ventos.
— Eu?!
— Sim, você. Ainda ontem. Não se lembra da cor¬rente ao pé, a pílula e outras semelhantes, de que falou a sua antiga noiva? Julga que são coisas muito agradá¬veis aos ouvidos de uma rapariga de vinte e três anos?
— Eu não disse nada. Emily atribuiu-me expressões que nunca empreguei.
— Pode ser! — retorquiu Maè, com ar de dúvida. — No entanto, não pode negar que admitiu e achou graça aos comentários que lady Malcolm fez, diante de Geneva.
— Lady Seymour estava perto? — perguntou Geof¬froy, aterrado.
— A dois passos. Interrogue o seu amigo Clarence, que se viu obrigado a meter Emily na ordem quando esta se lembrou de oferecer a Geneva as cartas que você lhe escreveu da América.
— É o cúmulo!
— Na verdade, a audácia da sua ex-noiva ultrapassa todos os limites.
Geoffroy ficou completamente aniquilado. Num re¬lance, recordou a cena: o riso insultante de Emily, os seus comentários venenosos... Consentira que ela os fizesse! E como se tudo isso não fosse o bastante, Emily levara a audácia ao ponto de se lhe queixar, afirmando que sua mulher a tinha insultado. E ele não hesitara, ao encontrar-se só com Geneva, em dirigir-lhe as mais ásperas censuras!
Como havia sido possível proceder assim com a mulher que usava o seu nome! Não era só indiferença ou leviandade: era muito pior!
Cobarde e odiosa, eis como podia ser classificada a sua atitude, e Geneva tinha milhares de razões para o abandonar.
Com as mãos nas algibeiras e olhar abstracto, olhar de quem não vê o mundo exterior, alheado nos seus pensamentos, que evocavam tudo quanto se passara entre ele e Geneva durante o ano que acabava de decor¬rer, aproximou-se da janela e encostou a fronte ardente às vidraças.
A sensação glacial fez-lhe bem. De si para si não deixava de se censurar sem piedade, asperamente.
— Uma criatura má e vingativa não teria feito pior. Fui simplesmente odioso! — reconheceu.
Por muito tempo, pensamentos febris e imagens acusadoras se lhe atropelaram no cérebro em fogo.
— Geneva partiu! Abandonou-me! — repetia, com uma espécie de horror.
Como animal feroz enjaulado, começou a passear de um extremo ao outro do aposento. A consciência gri¬tava tão alto, acusando-o, que chegava a gemer como se o ferisse um sofrimento físico. Ele, que todos diziam leal, procedera como o mais cobarde dos homens; pos¬suía todos os bens da terra e obstinara-se em perseguir a pobre rapariga, desprovida de tudo, recusando-lhe até o direito de ser respeitada!
Espantada, Maè viu-o passear sem descanso durante duas horas. Se lhe dirigia a palavra, ele não respondia. Se lhe parava diante, tentando detê-lo no seu passeio maquinal, ele afastava-a com o braço.
Receou então que tivesse endoidecido e assustou-se.
“Mas se ele não a amava! — pensava, apoquentada. — Comigo é que saía e flirtava... Ainda esta noite me fez uma corte ostensiva... Que tem ele agora?”
Não podia adivinhar a crise de consciência que aba¬lava Seymour e supôs simplesmente que tivesse per¬dido a razão.
Então, aterrada com as responsabilidades que sentia pesar-lhe sobre os ombros, correu ao telefone e chamou pelo senhor de Green-Park.
— Lorde Bucgham, venha quanto antes a Cliff-House. Receio que Geoffroy tenha enlouquecido.
— O quê?
— É isto. Geneva partiu e...
— Bem sei, ela escreveu-me.
— E seu sobrinho está como doido.
— Que fez ele?
— Há duas horas não pronuncia palavra e passeia de cá para lá, sem parar. Tenho medo! Não se demore.
— Vou já.
Ao ouvir a voz firme e calma de lorde Bucgham, Maè sentiu-se mais tranqüilizada.
“Não há como os homens para conservarem o san¬gue-frio em transes aflitivos. Lorde Bucgham recebeu a notícia da partida da sua preferida, que ainda ontem nada fazia prever, e, contudo, não perdeu a calma. É espantosa a fleuma dos ingleses, mormente os de certa categoria e idade!”
A americana sentiu que não podia mais. Se o tio de Geoffroy tardasse muito, não conseguiria dominar o ataque de nervos prestes a eclodir. Procedera como é normal proceder-se em tais circunstâncias; mas quem poderia supor que lorde Seymour, tão calmo habitual-mente, tão senhor de si, seria capaz daquele destempero!
Passear de cá para lá numa sala, duas horas seguidas! Ainda se tivesse gritado, praguejado, se desse murros nas mesas ou partisse toda a mobília do castelo, era disparatado, mas admissível. Agora, não parar um ins¬tante, andar sem descanso, mudo e hirto como um espec¬tro, nunca se tinha visto, era caso para assustar a girl mais corajosa de todas as Américas.
Não havia passado meia hora sobre a chamada tele¬fônica de Maè quando o tio Fil chegou a Cliff-House. Esta, que o esperava ansiosa, precipitou-se para ele.
— Obrigada por ter vindo, lorde Bucgham. Geoffroy procede de tal maneira que chego a ter medo.
— Onde está ele?
— No gabinete de trabalho.
O inglês começou a subir a escada.
— Decididamente, não o compreendo — prosseguiu Maè, que subia atrás. — Declarou-me que a ausência de Geneva o deixaria indiferente e, no fim de contas, parece louco!
Lorde Bucgham, antes de dar volta ao puxador, per¬guntou a Maè:
— Afinal, como recebeu ele a notícia da partida de Geneva? Chorou?
— Isso sim! Disse-me que não percebia por que se tinha ido embora... e que nunca a afastaria de Cliff-House.
O velho lorde permaneceu um instante pensativo, diante do batente fechado.
Maè impacientou-se com tantos vagares.
“Estes ingleses são extraordinários com a sua fleuma! — pensou. — Geoffroy teria tempo de fazer alguma tolice, a última”.
Por fim, lorde Bucgham resolveu-se a abrir mansa¬mente a porta do gabinete de trabalho, onde o sobrinho, de cabeça pendida para o peito, prosseguia no seu inin¬terrupto passeio.
Envolvendo o rapaz num olhar compadecido, o tio avançou para ele.
— Então que é isso, boy?
A voz de lorde Bucgham sobressaltou Geoffroy. Maquinalmente, voltou-se para ele, passando a mão pela fronte, como se quisesse coordenar idéias.
Decorreram alguns minutos, longos como horas, e Geoffroy falou por fim.
— Geneva partiu, tio Fil — disse-lhe, numa voz sem timbre. — Abandonou Cliff-House esta manhã.
— Era de prever. Esperava há muito essa notícia.
— O tio esperava...
— É claro, e creio ser essa a melhor solução.
— A melhor?!...
Seymour parecia desorientado com esta afirmação. Seguiu-se curto silêncio, que Geoffroy quebrou.
— Não tem pena, tio Fil? Gostava tanto dela!...
— Que queres, meu rapaz! Geneva não podia ficar em Cliff-House contra tua vontade. É preferível que par¬tisse e tente refazer a sua vida.
— Refazer a sua vida, porquê? Tem muito empenho em que ela mude de existência?
— È normal... É evidente que me custará muito a sua ausência. Não deixo por isso de concordar ser esta a melhor maneira de finalizar este estúpido casamento. Não és da minha opinião, Geoffroy?
— Com certeza — concordou, maquinalmente.
— Foi o que pensei quando li a carta de Geneva, esta manhã, ao despertar.
— Ela escreveu-lhe esta manhã?
— Não querias, decerto, que tua mulher saísse de Inglaterra sem se despedir de mim. Um dos teus criados foi levar a carta a Green-Park.
— Gostava de saber como justificou Geneva a sua partida — resmungou Seymour, cuja irascibilidade des¬pertara de novo.
— Não me dá grandes explicações. Começa por se desculpar por não recorrer a mim para a auxiliar na viagem que ia empreender. Sabia, porém, que, se me falasse antes de partir, eu lhe roubaria a coragem. Acrescenta que foste profundamente injusto com ela a noite passada, a propósito de Emily Ayton, e que não deseja arriscar-se a ouvir mais uma vez as tuas dispa¬ratadas censuras.
— Já calculava. Todo o mal resultou daí! Fiquei exasperado com o vestido preto, com o colar de brilhan¬tes, por todas as atenções de que o tio a rodeou e pelas de Clarence... e talvez pelo sorriso irônico de Emily. Enfim, concordo que fui odioso e ela não soube per¬doar-me... Agora partiu! O mal não tem remédio!
— O mal? Mas se era isso justamente o que desejavas! Durante um ano não fizeste senão pedir-me que a afastasse de Cliff-House... Querias ver-te livre dela, estás satisfeito. Quando lhe restituíres a liberdade, a pobre rapariga poderá casar com outro e ser finalmente feliz.
Geoffroy levantou a cabeça, admirado.
— Casar com outro! Com quem?
— Com Clarence de Bryce, por exemplo.
— Com Bryce! E porquê com ele?
— Porque a adora. É rico e o seu amor saberá pro¬porcionar a Geneva uma vida larga e venturosa. Ela esquecerá Cliff-House e este estúpido casamento.
Seymour não lhe respondeu. Fixava com persistência os arabescos do tapete que cobria o chão.
— Geneva ama Bryce? — perguntou, decorrido algum tempo.
— Ainda não.
— Mas supõe que virá a amá-lo?
— Tenho esperança de que Bryce saberá conquis¬tá-la. Adorou-a desde o primeiro instante em que a viu. Foi uma verdadeira paixão em toda a sua intensidade e ardor.
Seymour aprumou-se, com o olhar cintilante.
— Bryce amava minha mulher e só hoje o sei. Todos estavam ao facto dessa paixão e ninguém mo dizia.
— Para quê? Geneva não lhe correspondia e tê-lo-ia afastado inexoravelmente se ele se atrevesse a falar... Não havia, portanto, necessidade de te pôr ao cor¬rente de uma coisa sem importância.
— No entanto, acaba de me dizer que Geneva pode refazer a sua vida casando com ele.
— É esse o meu maior desejo... Tua mulher tem direito à felicidade e Bryce pode proporcionar-lha... uma vez que ela esteja livre.
Como Geoffroy o fixasse com olhar alucinado, o tio Fil aproximou-se dele e pôs-lhe a mão no ombro.
— É preciso que me compreendas, meu rapaz. Nin¬guém pretendeu enganar-te nem ocultar-te qualquer coisa. Geneva amava-te. Não havia, portanto, razões para me preocupar com os sentimentos de Clarence... Sendo tua mulher, não admitia outras homenagens mas-culinas. O brilho da tua honra não foi ofuscado... Mas, visto separarem-se agora, para bem daquela que foi tua mulher desejo de todo o coração que Clarence saiba aproveitar-se das circunstâncias e apareça uma ocasião propícia ao seu amor.
Revoltado, Seymour pôs-se de pé.
— Faz todos esses cálculos de antemão... a sangue-frio, como se tudo isso estivesse já consumado. È a minha vontade? Não contam com ela? E afirma amar Geneva!...
— Amo-a por ela, não por mim... Não sou egoísta. Além disso, se casar com Bryce não a perco de todo. Westra-Burg fica a pouca distância de Green-Park. O meu raiozinho de sol virá visitar-me de vez em quando.
Nas pupilas de Geoffroy acendeu-se um relâmpago.
— Foi para chegar a essa conclusão que a fez usar esta noite os brilhantes da família! Para depois a entre¬gar a Bryce!
— Perdes a cabeça, meu rapaz. Ontem passava o aniversário do teu casamento... Não pensaste que devía¬mos festejar a data? Pois eu tive essa idéia. Além disso, desejei que todos considerassem tua mulher irrepreen¬sível... embora fosse ela a abandonar-te... mesmo que torne a casar mais tarde.
— Tudo cálculos... pouco leais, que me ocultaram. E Clarence não a abandonou um instante, em toda a noite! Sempre fui muito pateta!
Crispou os punhos, enquanto o olhar cintilante dir-se-ia querer fulminar o tio.
— Se fosse da minha idade, lorde Bucgham, soca¬va-o até lhe deixar os ossos num feixe.
Bucgham, que se instalara numa poltrona, junto do fogão, tirou o cachimbo da algibeira e começou a enchê-lo com todo o sossego.
— Se isso te dá muito prazer e te alivia os nervos, bate à vontade. Mas convence-te de que não tens razão. Estás casado há um ano... Durante esse período admitiste a possibilidade de transformar essa união dispa¬ratada num casamento de amor?... Nunca!... Esse pensamento nem sequer te aflorou o espírito... Ontem, precisamente no dia do aniversário, exibiste-te com Maè durante toda a noite, adoptando procedimento deveras injurioso para tua mulher. E não posso jurar que não tivesses feito qualquer outro disparate com Emily Ayton! Clarence contou-me...
— Falemos desse cavalheiro! Metia-me no coração e ao mesmo tempo ia deitando lenha na fogueira... Quero dizer duas palavrinhas a esse mariola... Ficará sabendo o que penso a seu respeito.
Já estendia a mão para o telefone, quando lorde Bucgham o deteve.
— Deixa isso! Não deves tornar-te ridículo. Basta que Bryce tenha adivinhado parte do ocorrido. Foi ele quem acompanhou Geneva à estação.
— O quê?! Minha mulher partiu com Bryce?
— Não partiu... Limitou-se a pedir-lhe emprestada a soma precisa para regressar a França. Muitas vezes me pediu que pusesse à sua disposição esse dinheiro, mas temendo justamente o que acaba de suceder, fazia ouvidos de mercador e não lho dei!
— A bolsa de Geneva estava assim tão fraca?
— Não deves admirar-te. Tua mulher sustentava a sua posição como devia e a sua generosidade não tinha limites. Mineiros, rendeiros e operários, nunca apelavam para ela em vão e abusavam um pouco. Desta forma nada restava já do importante crédito que Murphy abriu em nome dela, quando Geneva partiu da América.
— E a mesada que lhe estabeleci?
— Nunca lhe tocou. Encontrá-la-ás intacta no teu banqueiro. Decidida a regressar a França, recorreu a Bryce... Era isto o que me dizia na sua carta, desculpando-se por ter solicitado de estranhos aquilo que não ousara pedir-me.
— Muito bonito! Lembrar-se de Bryce quando podia ter recorrido a mim!
— Nunca o faria... Para ela não eras já o marido, o confidente a quem se desvendam todos os pensamentos e projectos... Enfim, tudo isto são pormenores mínimos e sem importância.
— Tem a certeza de que Geneva partiu? Não iria refugiar-se em Westra-Burg?
— Tu estás doido! Clarence telefonou-me. Ficou persuadido de que tua mulher foi tratar do pai e como o teu motorista se encarregou de despachar as baga¬gens, Bryce ignora se as malas eram muitas ou poucas. Clarence limitou-se a acompanhar Geneva à estação e velar para que fosse bem instalada. A esta hora ela deve estar em Diepa e daí partirá de automóvel para casa do pai.
Seymour não opôs mais objecções. Deixou-se cair na cadeira e, com os cotovelos encostados à secretária, a cabeça apertada nas mãos, encarou de face a situação, tal como se lhe apresentava.
Sentado perto do fogão, lorde Bucgham continuava a fumar.
O silêncio, pesado, esmagador, caiu entre os dois homens sem que eles pensassem em quebrá-lo.
Maè ordenara que trouxessem chá e começou a ser¬vi-lo, respeitando-lhes o mutismo.
A atitude serena, apesar de grave, do tio, descon¬certava-a.
A despeito das palavras de conforto que o ouvira dirigir a Geoffroy, estava certa de que lorde Bucgham sofrerá profundo desgosto e essas palavras não eram a expressão exacta do seu pensamento.
Assim, quando lhe ofereceu a chávena de chá, cur¬vou-se para ele e disse-lhe suavemente:
— Tio Fil, posso fazer alguma coisa por si?
— Não creio. Que faria?
— Escreveria a Geneva, dizendo-lhe que o tio Fil está doente e se impõe o regresso dela... Geneva era muito sua amiga e não deixará de vir logo.
— Não serviria de nada.
Com um movimento de cabeça, designou o sobrinho.
— Aquele idiota gostava dela e não soube conser¬vá-la — observou com amargura. — Quem poderia ima¬ginar que a partida da mulher lhe produziria semelhante abalo!
— Tranquilize-se! Sofreu apenas pequenina ferida no amor-próprio. Cicatrizará depressa.
— Talvez. Naquela idade esquece-se com rapidez. O coração é rico e esbanja generosamente os seus tesouros.
— Não creio o coração de Geoffroy atingido — insis¬tiu Maè. — Desde que recebeu a notícia, não teve uma palavra de ternura para a ausente, enquanto lorde Bucgham a defendeu sempre.
Em seguida foi levar o chá a Geoffroy.
— Beba, lorde Seymour. Deve fazer-lhe bem.
Teria ele ouvido as reflexões feitas pouco antes?
Caso é que, com a mão, repeliu a chávena oferecida.
— Faça favor de me deixar em paz!
— Como queira! Mas, pelo menos, podia ser mais delicado! — protestou Maè, ofendida.
— Tem razão... Eu... desculpe, Mrs. Tedder! Estou hoje intratável e creio bem que por estes tempos mais próximos ninguém poderá aturar-me. Seria preferível abandonar Cliff-House. O meu estado de espírito não me permite ter gente estranha em casa.
— Bonito! Agora põe-me na rua! — comentou Maè com ar prazenteiro. — Daqui a pouco vai atribuir-me responsabilidades pela doença do pai de Geneva, estou a ver.
— Não. Julgo, porém, que tudo teria corrido melhor se eu estivesse sozinho com minha mulher, em Cliff-House.
— Bem digo eu. Lança-me as culpas de todas as tolices que cometeu. Aí está uma sem-cerimónia bem masculina.
Lorde Bucgham achou tempo de intervir.
— Em minha opinião e para evitar certos comentá¬rios das más-línguas, que não deixariam de falar, acho também mais conveniente que se instale em casa da família de seu marido.
— Era essa a minha intenção. Como hoje é já um pouco tarde, partirei amanhã de manhã.
— É claro. Ninguém lhe impõe a saída imediata.
— Eu acompanho-o, tio Fil — acudiu Geoffroy. — Dormirei esta noite em Green-Park.
A voz sumiu-se-lhe ao acrescentar:
— Basta de ruínas. Destruí o meu lar, não quero fazer o mesmo ao de Tedder!
— Eis um pensamento que lhe será levado em des¬conto dos seus pecados — ironizou Maè. — Está muito bem assim. Eu passo a noite em Cliff-House e você vai dormir a Green-Park. Dessa forma fica salvaguardado o respeito pelas conveniências.
— Não preciso dos seus conselhos nem aprovação — retorquiu Seymour com mau modo. — Estas salas ermas, os aposentos de Geneva desabitados, tudo isso me pro¬voca desagradável impressão e é essa a razão por que fujo. Caso contrário, fique certa de que ainda teria muito tempo para a mandar conduzir a casa.
— A sua amabilidade confunde-me! — zombou Maè, soltando uma gargalhada. — A ausência de Geneva impressiona-o, não sei porquê. As salas não estavam menos ermas antes da minha amiga partir. Desde o seu regresso, Geneva ocupava tão pouco espaço em Clíff-House! Só aparecia à hora das refeições.
— Como esta criatura é irritante! Não abre a boca senão para dizer coisas desagradáveis!
E recomeçou o passeio pelo aposento. Lorde Bucgham seguia o seu vaivém com ar sombrio e pensativo.
— Vamos — decidiu de súbito. — Vem para minha casa. Tentaremos passar a noite sem falar de Geneva. Mudarás de idéias e amanhã nem já pensas nela.
Seymour parou diante do tio e olhou-o fixamente. Por fim, murmurou, abanando a cabeça:
— Não falar de Geneva é fácil, tio Fil! Mas não pensar... Julga isso possível?
O inglês sentiu-se impressionado com o desânimo e o pesar que transpareciam neste comentário.
— Para mim, será impossível, com efeito — confessou tristemente. — Estimava-a como se fosse minha filha. Encantava-me o seu sorriso e orgulhava-me com os seus triunfos. Habituei-me às suas afectuosas atenções... Tinha uma maneira tão carinhosa de me chamar: “Tio Fil”!... É espantoso o vácuo que deixou na minha vida!
A comoção embargava-lhe a voz.
— Exactamente! — aprovou Seymour. — O vácuo! É isso mesmo! Eu não amava Geneva, a sua par¬tida não me causou o mais pequeno desgosto, mas sin¬to-lhe a falta. Não compreendo isto! É como que a necessidade física da sua presença!
— Pelo muito que se preocupava com sua mulher — protestou Maè, com azedume. — Não há dúvida que deve sentir-lhe imenso a falta!...
Fora de si, Geoffroy tapou as orelhas com as mãos para não ouvir a americana.
— Vamos embora, tio Fil! Perco a cabeça se fico aqui mais tempo!
Sem dizer palavra, lorde Bucgham pegou nas luvas e no chapéu. No seu íntimo achava que o sobrinho se tornara muito susceptível de um momento para o outro. Todavia, perante a máscara dura de Geoffroy, julgou melhor guardar esta reflexão para si.
Maè partiu no dia seguinte, de manhã, conforme ficara combinado. Ia instalar-se na casa de Tedder, que lhe deixara excelente impressão, quando da visita feita havia um mês.
— Espero que o seu amigo não prolongue muito a sua ausência, agora que você se encontra em Inglaterra — disse Maè a Seymour, à despedida. — Faço votos também para que não me torne a vida muito difícil. É tão simples, entre marido e mulher, compreenderem-se em vez de se defrontarem como dois inimigos! Aguar¬do-o nas melhores disposições, pronta a condescender e a harmonizar. Permita Deus que saiba reconhecê-lo e não manifeste a meu respeito marcada hostilidade, como você fez a Geneva.
— Se eu lhe falar, aconselhá-lo-ei a amá-la e a res¬peitá-la como esposa, Mrs. Tedder. Não deve separar-se quem Deus uniu.
— Toda a vida o abençoarei. Confesso-lhe, porém, que receio muito as resoluções de Tedder quando sou¬ber que você não quis reconhecer a validade do seu casamento... Parece querer imitá-lo em tudo! É muito capaz de me expulsar de casa...
— Se ele seguir os meus conselhos nunca o fará! Falarei em seu favor, dou-lhe a minha palavra, Maè.
— Rezarei a Deus para que lhe conceda a felicidade e o esquecimento.
— Por mim?!...
E deixou-a, sem levar mais longe o seu pensamento.
Maè viu-o afastar-se de cabeça levantada, as mãos atrás das costas, o rosto vincado por uma máscara glacial e impenetrável.
— Nem a partida da mulher lhe abrandou a alma. Está mais soberbo do que nunca. Um homem assim desconhece por completo a bondade e a ternura. Pobre Geneva! Que triste exemplar o Céu lhe destinou!
Antes de abandonar Cliff-House, Maè ouviu ainda o dono da casa dar as seguintes ordens ao mordomo:
— Trate disso e depressa, Bathurst. Quero que estes aposentos sejam forrados de novo e quanto antes. De seda rosa-velho, sim... Traga-me as amostras... Não perca tempo! Tenho empenho em que lady Seymour, quando voltar, encontre tudo completamente transfor-mado.
Maè não quis ouvir o resto. Irônico sorriso lhe adejava nos lábios quando murmurou:
— É de força, o cavalheiro! Para passar por bom aos olhos dos criados vai mandar renovar os aposentos de Geneva. Assim, quando o pessoal souber que esta não volta, ainda por cima o lamentará. Aquele pobre marido, tão carinhoso, a preparar uma surpresa à mulher, sem suspeitar de que ela o abandonara para sempre!... A cena é bem representada! Todos terão pena do marido e ninguém pensará que ele tornava a mulher infeliz.
Satisfeita por não ser obrigada a assistir a tão revol¬tante comédia, a americana abandonou Cliff-House sem pena.
“O castelo dos Seymour é esplêndido — pensava pelo caminho. — Mas, a despeito do seu aspecto impo¬nente, das recepções sumptuosas, quantas lágrimas, quanta mágoa nos corações! Prefiro a casinha de Tedder! É simples, não tem pretensões, mas talvez eu possa ser feliz ali...”
Os dias iam passando sem trazer qualquer modifi¬cação em Cliff-House.
Seymour vivia sozinho, retirado, sem receber nin¬guém, num desejo absoluto de isolamento. Foi duas ou três vezes a Green-Park, mas pouco se demorou.
Viam-no errar pelo castelo, horas seguidas, de sala em sala, de testa franzida e aspecto carrancudo.
Uma vez, Mabel foi encontrá-lo nos aposentos de Geneva. Encarou-a com ar tão severo que a pobre rapa¬riga supôs ter cometido qualquer falta e, resignada, esperou a reprimenda. Por fim, ele perguntou-lhe brus¬camente:
— Lady Seymour levou toda a sua roupa?
— Levou, sim, milorde.
— Tudo?
— Tudo e não custou muito a arranjar as malas. Já estavam feitas.
— Bem sei. E... não disse nada?
— A propósito de quê, milorde? Da doença do pai de Sua Graça?
— Exactamente.
— Sua Graça estava muito apoquentada e fartou-se de chorar enquanto reunia as suas coisas. Já à noite eu a encontrei lavada em lágrimas.
— À noite, quando?
— Na noite do baile.
Aproximando-se da cama, Mabel continuou:
— Estava estendida ali, vestida, a soluçar. Partia o coração vê-la chorar assim. Lembrando-me de que Sua Graça não poderia despir o vestido sozinha, quando a senti chegar, entrei no quarto para a ajudar. Quando a vi tão aflita, sem se lembrar sequer de acender a luz, pensei que tinha acertado... Só na manhã seguinte com¬preendi que lady Seymour chorava por ter de deixar Cliff-House.
— Deixar Cliff-House?
— Sim... partir para França devido à doença do pai. É horrível pensar que é tão novinha e está só junto de um doente.
Neste momento, porém, Seymour fixou-a com tanta acuidade que a criada atrapalhou-se.
— Quero eu dizer... que o pai de Sua Graça pode morrer ou lady Seymour ser obrigada a ficar muito tempo em França.
Geoffroy fulminou-a com o olhar e, deixando-se arrebatar pela cólera, como se a rapariga fosse respon¬sável pela ausência da patroa, gritou:
— Será um desastre para vocês todos, se por qual¬quer motivo lady Seymour não voltar. Despedi-los-ei.
— Fechará Cliff-House, milorde?!...
— Isso mesmo! Cliff-House nunca mais será habi¬tado... Fazem comentários e falam a torto e a direito, como uns idiotas que são, mas fiquem sabendo isto: lady Seymour é a mulher mais nobre, mais perfeita e digna que conheço. Se, como acaba de supor, devido à doença do pai ou a qualquer outro desastre, a sua ama não voltar, será a última das ladies Seymour, por¬que nunca mais casarei. Compreendeu, sua pateta?... Enquanto eu for vivo nenhuma mulher tornará a pôr aqui os pés!
Martelava as palavras, numa espécie de fúria concen¬trada, como se pretendesse fazê-las entrar à força na cabeça de Mabel.
Ao ver o amo em semelhante estado, a criadita fugiu, espavorida.
Quando ela desapareceu, Seymour encolheu os ombros e teve um riso estranho e cortante,
— Chorava... sozinha... às escuras... porque não podia despir o vestido... ou por a doença do pai a obrigar a deixar Cliff-House! Que mais ainda? Mas a verdade... meu Deus! A verdade não era essa!
Olhou para a cama. Havia sido feita de novo e nem a seda macia da colcha nem as finas rendas das roupas conservavam qualquer vestígio de Geneva. No entanto, por uma aberração de espírito, Seymour visionou os contornos do lindo corpo, abandonado, vencido pela dor. A cabeça delicada... os ombros sacudidos pelos soluços... as pernas finas e elegantes!
— Chorava porque a fiz sofrer! — confessou, com feroz desespero. — Toda a noite as suas lágrimas corre¬ram e por minha culpa!
Como louco, bateu na cabeça com os punhos.
— Também não consegui dormir nessa noite! E pen¬sar que se tivesse transposto aquela porta e viesse ter com ela, tudo agora seria diferente!
Por muito tempo se conservou assim, de pé, fixando o leito, onde, obsessionado, supunha ver ainda estendido o vulto delicado da mulher. Por fim, pareceu tomar uma resolução... a realização de um pensamento que o perseguia desde a partida de Geneva, mas que o seu amor-próprio recusava admitir.
Dirigiu-se ao gabinete de trabalho e, sentando-se à secretária, começou a escrever.
Rasgou mais de dez vezes a carta começada. Dir-se-ia que não encontrava termos apropriados, frases que o satisfizessem. Nessas ocasiões, levantava-se e começava a passear na sala, enquanto o cérebro prosse¬guia nas suas difíceis lucubrações. Instantes depois vol-tava a sentar-se e recomeçava a escrever, mas... nova carta rasgada. As palavras não conseguiam traduzir-lhe o pensamento, que talvez não desejasse desvendar por completo.
A cena repetiu-se muitas vezes até que, finalmente, acabou por escrever curto bilhete, que decerto lhe agra¬dou porque o releu com ar satisfeito.
“Lady Seymour
Faço votos para que seu pai tenha melhorado, pois, embora supusesse o contrário, nunca a teria afastado de Cliff-House. Não se devem quebrar laços que Deus criou. Pelo contrário, devemos ir pedir a um sacerdote da nossa religião que os abençoe. Não é esta a sua opiniáo? Conforme acabo de dizer a Mabel, se qualquer desastre a impedisse de regressar a Cliff-House, despediria o pessoal e fecharia o castelo, onde eternamente viveria a sua recordação.
A minha resolução é inabalável. Pode extinguir-se a minha raça, mas a Geneva será a última lady Seymour e nenhuma virá ocupar o seu lugar.
Voltará?
Todo seu
Geoffroy”
Fechou o sobrescrito e lacrou-o com o sinete braso¬nado.
“Recusar-se-á a compreender, tenho a certeza. Não deixei, porém, de lhe ter dito o que se impunha ela soubesse”.
No seu arreigado orgulho não via que não tivera para Geneva uma palavra de ternura ou de pesar pela sua ausência. Sacrificava-lhe o nome, a sua raça, sepul¬tava o castelo na tristeza, imolaria o Universo em peso aos seus pés! Só não conseguia abdicar do seu orgulho. Geneva não deixava de ser para ele a mulher encon¬trada numa noite de embriaguez e não esquecia que lhe havia sido imposta pela fatalidade e que a sua escolha era obra do Destino... do Destino e não da sua vontade.
Três, seis, oito dias decorreram sem que uma carta vinda de França lhe trouxesse a resposta ambicionada e a decepção de Geoffroy ia aumentando à medida que esta se demorava. Calculara de antemão o tempo preciso para Geneva receber a carta e o prazo provável para a resposta. E, lentos como as contas de um rosário, minuto a minuto, hora a hora, os dias iam passando. Essa expectativa foi talvez o pior dos sacrifícios exigidos ao seu orgulho. Espreitava a chegada do correio e estre¬mecia sempre que ouvia tocar a sineta do portão, por¬que isso tanto podia anunciar a vinda de Geneva como a de um telegrama dando-lhe notícias.
Por outro lado, informava-se quotidianamente junto do tio Fil se Clarence permanecia em Westra-Burg. Se lhe dissessem que Bryce se ausentara, teria sido capaz dos gestos mais violentos e homicidas.
Esta ansiedade durou nove dias. Por fim, certa manhã, em que, precisamente, se conservara na cama até mais tarde, Mabel bateu-lhe à porta do quarto.
— Está aqui uma carta de lady Seymour, milorde. Calculei que Vossa Honra gostasse de a ler já e vim trazê-la.
Geoffroy agradeceu-lhe o cuidado e, pegando na carta com mão trêmula, esperou que Mabel se retirasse, para a abrir. Eis o que leu:
“Lorde Seymour
Recebi a sua carta e perfilho a sua opinião: não se devem quebrar laços que Deus criou. No entanto, somos muitas vezes impotentes perante o desenrolar dos acon¬tecimentos e contra os golpes que o Destino nos vibra. Meu pai está doente, muito doente, mesmo! Não tem salvação possível e em breve ficarei órfã. Esta certeza é atroz! Não há sofrimento maior do que reconhecermos a impossibilidade de arrancar à morte um ente querido.
Perdoe-me este preâmbulo; não era nestes termos que devia escrever-lhe.
A morte de meu pai e a minha situação de órfã sem fortuna não me permitem regressar a Inglaterra, lorde Seymour. Abandonei para sempre o seu lar e não voltarei a Cliff-House.
Perdoe-me esta resolução, que, contudo, nas nossas circunstâncias, se impunha. Fica livre para poder oferecer o seu nome a outra mulher a quem ame. Por mim, viverei só e não voltarei a casar. Sou profundamente infeliz, creia.
Geneva de Rouvaux”
De sobrolho carregado, Geoffroy releu várias vezes esta carta, a fim de melhor a compreender. Não encer¬rava uma palavra de perdão, de ternura ou de espe¬rança! Sentiu-se profundamente ferido, desanimado; o futuro aterrava-o!
E, no entanto, Geneva perfilhava todas as suas convicções:
“Não se devem quebrar laços que Deus criou” e mais adiante: “viverei só e não voltarei a casar”.
Eram, ponto por ponto, as suas próprias expressões. Nesse caso, por que não lhe prometia voltar? Por que pretendia restituir-lhe a liberdade, supondo-o capaz de casar com outra? Não o amava, então... ou não tinha confiança nas suas promessas e afirmações? O amor de Geoffroy não bastaria já às suas aspirações de felici¬dade?
Estava desapontado. Algemavam-no o desespero e a amargura! Era doloroso pensar que Geneva não soubera compreender o seu apelo!
Ver-se-ia forçado a transigir mais ainda? Teria de sacrificar-lhe as últimas parcelas do seu orgulho?
Com a frase final da carta, Geneva parecia apelar para a sua compaixão: “Sou profundamente infeliz, creia”.
Lamento infinitamente doloroso, quatro palavras ape¬nas, mas nas quais latejava tão pungente tristeza que sentiu o coração esfacelado como se o lacerassem garras de ferro. Ao mesmo tempo, surda revolta o agitava.
— Eu também sou infeliz!
Sim, eram ambos desgraçados! Afinal, porquê?
Só então compreendeu que havia melhor caminho a seguir do que escrever cartas, medindo e pesando cada palavra, tentando ainda evitar a capitulação completa. Do mais profundo do seu ser uma voz lhe dizia que dele dependia o regresso de Geneva. Impunha-se, porém, que tivesse plena consciência das suas responsabilidades, que soubesse exactamente o que queria.
Começou por se interrogar. Queria ele realmente? A resposta, porém, de sobejo a conhecia. Geneva não voltaria a Cliff-House se ele não fosse ter com ela... se não fosse... buscá-la.
Sorriu e no rosto, que a dor afinara, os olhos bri¬lharam com desusado fulgor. A esperança insuflava-lhe uma alma nova e o coração palpitava-lhe numa aleluia festiva.
Maquinalmente, aprumou-se e num gesto habitual encaixou na órbita o monóculo rutilante.
— Querer e agir!
Teria de lutar... de reconquistar! Mas venceria, por¬que era essa a sua vontade.
E foi como se uma corrente de energia o galvani¬zasse.
Em passo vagaroso, Geoffroy Seymour subia a larga escadaria arruinada pelo decorrer dos anos e pelas intem¬péries. Uma hora antes saltara do avião que o trans¬portara da Grã-Bretanha para França, deixando-o na costa normanda. Um carro de aluguer conduzira-o até à casa onde habitava sua mulher.
Era pequeno solar de paredes caiadas de branco, flanqueado por dois torreões meio desmantelados. Sober¬bos plâtanos centenários ostentavam as copas exuberan¬tes desdobrando um tapete de sombra diante da moradia.
O conjunto respirava tristeza e abandono. Geoffroy porém, num relance apreciou-o em todo o seu valor.
“Estilo Luís XIII e do mais puro, verdadeiramente em ruínas, mas autêntica maravilha, se lhe fizerem as reparações indispensáveis”.
Do alto da escadaria abraçou o parque com o olhar encantado. Grande tabuleiro de relva alongava-se diante da casa, descendo em suave declive até aos terrenos de cultura. Estreito atalho cortava os campos de trigo, que se estendiam tão longe quanto o olhar podia alcançar.
— A vista é soberba e o sítio magnífico, não há dúvida!
Os primitivos senhores do solar tinham sabido esco¬lher o melhor local para elevarem a sua nobre moradia e evitar que posteriores construções roubassem ao pano¬rama a sua beleza e extensão.
À direita, dupla fila de faias, de troncos nodosos, limitavam o prado; à esquerda ficava a mata, espessa e sombria, onde os faisões e lebres deviam abundar.
“Se Geneva estiver de acordo poderemos passar aqui horas deliciosas de repouso e de paz... Fica, ao mesmo tempo, perto de Paris e de Londres... Transformaremos isto numa linda vivenda de Verão... muito menos húmida e fria do que os nossos castelos da Escócia!”.
Estes projectos levaram-no inevitavelmente a pen¬sar em Geneva e na resolução que o trouxera ali.
De novo preocupado, voltou-se para o solar.
O silêncio era tão profundo que chegou a recear não estivesse habitado.
Não havia campainha ou sineta e não se atreveu a utilizar a aldraba de bronze. Maquinalmente, deu a volta ao trinco e quase ficou surpreendido ao sentir a porta ceder com facilidade. Empurrou-a e encontrou-se em amplo vestíbulo, do qual partia uma escada com grade de ferro forjado.
Parou um momento a fim de habituar os olhos à penumbra que o rodeava e quase no mesmo instante avis¬tou um vulto branco que descia do primeiro andar. Não teve dificuldade em reconhecer Geneva.
Trazia na mão pequena salva de prata com uma chávena de porcelana.
Ao deparar-se-lhe o visitante, estacou.
— Lorde Seymour!
Geoffroy receou ver a chávena estilhaçar-se no chão, por tal forma as leis do equilíbrio foram desrespeitadas.
— O senhor aqui!
— Em pessoa.
As suas pupilas cruzaram-se e confundiram-se. Depois, quase sem ter a consciência do que fazia, Geneva continuou a descer e parou no penúltimo degrau.
O marido viera! Não acreditava no testemunho dos seus olhos! E, como enigma alucinante, esta pergunta martelava-lhe o cérebro: “Meu Deus, que vem ele cá fazer?”.
Geoffroy sorria, radiante com a surpresa que provo¬cara. Atencioso, tirou-lhe das mãos a salva, que mais uma vez se inclinava em posição perigosa, e foi colo¬cá-la em cima de uma mesa.
Posta a salva em segurança e já com os movimentos livres, voltou a aproximar-se de sua mulher, que conti¬nuava silenciosa e imobilizada pela surpresa.
Brandamente, pegou-lhe nos braços e obrigou-a a descer os últimos degraus.
— Minha Geneva querida — balbuciou, com pro¬funda emoção. — Vim buscá-la porque não posso viver sem a ter a meu lado.
— Não devo abandonar meu pai — declarou, num queixume. — Está muito doente.
— É grave?
— Muito. Teve uma congestão.
— Trataremos dele e verá como há-de curar-se.
Geneva abanou a cabeça num gesto de desânimo e explicou, com os olhos rasos de água:
— Está perdido. Minha madrasta abandonou-o... fugiu com outro... levando todos os haveres de meu pai... Ele adorava a mulher e, na sua idade, um golpe desta natureza é terrível. O médico desenganou-me...
— E, tendo este exemplo, não hesitou abandonar-me também — censurou, com amargura. — Não receou as conseqüências que poderiam advir para mim de seme¬lhante abalo?
Geneva não conseguiu reprimir desiludido sorriso:
— Confesso que nunca formulei semelhante hipótese. Era inadmissível que a minha resolução pudesse pena¬lizá-lo.
— Mais do que isso, afirmo-lhe. Juro que me senti muito desgraçado quando tive conhecimento da sua par¬tida. A notícia transtornou-me de tal maneira que Maè teve medo e telefonou ao tio Fil. Este veio e levou-me para Green-Park.
— Sempre imaginei que tivesse mais self-controle. Que fez da sua fleuma, lorde Seymour?
— Fleuma? Não passa de máscara que não conse¬guimos manter quando o coração sangra! Nunca pude supor que partisse assim... sem falarmos primeiro! Sem me avisar! Foi muito desagradável... quase injurioso para mim.
Pesada sombra de tristeza velou o olhar de Geneva.
— Tem razão... Não pensei bem o que fazia... Com efeito, foi humilhante para o seu amor-próprio. Peço-lhe que me perdoe...
— Pelo amor de Deus, não fale como a Maè... Isso é que é verdadeiramente injurioso para mim! Não foi o amor-próprio que me impeliu a vir aqui. O meu gesto é muito fair-play, não acha?
— Sim, é! — concordou. — E estou-lhe infinitamente reconhecida por ter vindo. Foi uma prova de considera¬ção e de estima que nunca me atreveria a esperar da sua parte.
Ao mesmo tempo, porém, as lindas pupilas negras nublaram-se de lágrimas.
— Estima? Que palavra tão feia! — protestou Sey¬mour, franzindo a testa.
Fixava-a, um pouco curvado para ela, perguntando de si para si se Geneva não compreendera ainda tudo, ou se zombava dele.
Por fim, com braço trêmulo, cingiu os ombros de Geneva, atraindo para si o busto delicado.
— Não quer compreender-me, lady Seymour? Eu estava louco! Amei-a desde o primeiro dia, mas não queria admitir que o Destino decidisse por mim e a impusesse como esposa, sem que o meu livre-arbítrio influísse na escolha... A minha vontade... não o Des¬tino, compreende a diferença?
Geneva sufocou um soluço. Como nota suave e débil, a esperança começava a cantar-lhe na alma. Contudo, naqueles últimos dias sofrerá tanto, desesperara por tal forma da vida, que quase não se atrevia a dar sentido favorável às explicações de Seymour. E, sem que o pudesse evitar, duas lágrimas enormes rolaram-lhe len¬tamente pelas faces.
— Não chores, Geneva! Não chore e perdoe a minha cegueira... Fui cruel, odioso... e, todavia, amava-a, juro-lhe.
Ao mesmo tempo, enlaçava-a mais estreitamente e apertava-a contra o peito. Como sua mulher continuasse a chorar, sem lhe responder, inclinou-se para ela e encos¬tou-lhe a cabeça ao ombro.
— Seja generosa, minha querida!... Esqueça o mal que fiz. Estava louco, mas amava-a... juro que a amava, minha Geneva muito querida! Não quer perdoar-me o estúpido orgulho que nos tornou tão desgraçados?
Geneva, numa expressão de encantamento, contem¬plava a cabeça do marido apoiada no seu ombro, a linda cabeleira de um louro cendrado que um ano antes, no Metherland, se atrevera a acariciar.
“Meu adorado Geoffroy!” — pensou.
Recomeçou naquele instante a vibrar no mesmo sen¬timento de intensa emoção que a dominara no primeiro dia do seu encontro. Agora, porém, era sua mulher... a esposa que, nessa noite inesquecível, inconscientemente ambicionara ser.
Então, num gesto de infinito carinho, apoiou a face contra a de Seymour e repetiu com fervorosa paixão:
— Meu adorado Geoffroy!
Por instantes conservaram-se estreitamente enlaça¬dos e, por fim, os lábios do marido procuraram os dela, que não lhos recusou.
Nessa tarde, os dois esposos, carinhosamente enlaça¬dos, percorriam o parque.
— Este castelo é mais alegre do que Cliff-House — notou Seymour, que abrangia com olhar encantado o tapete de relva verde jante, a seara loura que semelhava um oceano de ouro em fusão e se desdobrava até à linha longínqua do horizonte, onde o céu se estriava de tons suaves de jade e opala.
— Não gostaria de passar aqui alguns meses por ano?
— Seria maravilhoso — aprovou Geneva.
Mas, apontando o castelo arruinado, acrescentou:
— A casa encontra-se em estado deplorável. Im¬punha-se gastar muito dinheiro para a reparar.
— Reparar-se-á. Transformá-la-emos numa moradia branquinha e risonha, onde a nossa felicidade se abri¬gará. E depois... agrada-me este tapete de relva, alegre, cheio de sol. Parece-me estar vendo já gracioso carrito puxado por um burrico, com três ou quatro babies lá dentro, enquanto os mais velhinhos, já atrevidos e ousa¬dos, ensaiam as primeiras proezas nos seus ponies.
Como Geneva, confusa, se fizesse vermelha como uma papoila, Geoffroy apertou contra si o braço dela e acrescentou:
— Sou muito exigente, Geneva adorada! Terá de ser a mama de encantadores babies, de uma numerosa descendência!
E Geneva, deslumbrada, num arrebatamento de feli¬cidade indescritível, compreendeu que a predição da cigana tivera, enfim, a sua realização.
Max Du Veuzit
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