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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MISERICÔRDIA / Julie Garwood
MISERICÔRDIA / Julie Garwood

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

A rapariga era espantosa no manejo da faca. Possuía um talento natural, um dom concedido por Deus Todo-Poderoso, ou pelo menos fora o que o pai, o papá Jake Renard, lhe dissera quando, com a tenra idade de cinco anos e meio, ela tirara as tripas à sua primeira truta salmonada com a precisão e a habilidade de uma profissional. O pai ficou tão orgulhoso que lhe pegou ao colo, a pôs às cavalitas - as perninhas ossudas uma de cada lado da cara dele - e a levou para o seu bar preferido, The Swan. Sentou-a em cima do balcão e chamou os amigos para que a vissem estripar mais um peixe que ele enfiara no bolso de trás do fato-macaco puído. Milo Mullen ficou tão impressionado que se ofereceu para comprar a criança por cinquenta dólares ali mesmo, a pronto, e gabou-se de que conseguiria arrecadar o triplo dessa importância numa semana se alugasse a menina aos donos dos barracões que serviam peixe à beira do rio.
O pai, sabendo que Milo estava apenas a tentar ser lisonjeiro, não se ofendeu. Além disso, Milo pagou-lhe um copo e fez um brinde muito simpático à sua talentosa filha.
Jake tinha três filhos. Remy, o mais velho, e John Paul, um ano mais novo, ainda nem tinham chegado à adolescência, mas ele já os imaginava a superá-lo. Os rapazes eram extraordinários, exímios na arte da traquinice e espertos como alhos. Jake orgulhava-se deles, mas a verdade é que a pequena Michelle era a menina dos seus olhos. Nem por uma vez a acusara de ir matando a mãe ao nascer. A sua doce Ellie sofrera aquilo a que os médicos chamavam um forte acidente vascular cerebral precisamente no meio da última contracção e, depois de darem banho ao bebé e de o embrulharem numa manta limpa, Ellie foi transferida do seu leito conjugal para o hospital local, do outro lado de St. Claire. Passada uma semana, quando chegaram à conclusão de que ela não voltaria a acordar, levaram-na de ambulância para uma instituição estatal. O médico assistente de Ellie chamava casa de repouso àquela espelunca, mas o papá, ao ver o edifício de pedra cinzento e austero, rodeado por uma vedação de ferro com um metro e oitenta de altura, percebeu que o médico lhe estava a mentir. Aquilo não era uma casa de repouso. Era o purgatório, pura e simplesmente, um espaço de reclusão onde todas as almas perdidas e desvalidas cumpriam a sua penitência na Terra, antes de Deus as chamar para o Céu.

 


 


Jake chorou da primeira vez que foi visitar a mulher, mas depois nunca mais verteu uma lágrima. As lágrimas não contribuiriam para melhorar o estado de Ellie nem tornariam menos desoladora a terrível instituição em que ela repousava. O corredor comprido ao meio do edifício era ladeado por quartos e quartos com as paredes pintadas de verde-mar, o soalho revestido do tradicional oleado cinzento e camas velhas e desconjuntadas que estremeciam sempre que alguém subia ou descia as grades laterais. Ellie encontrava-se num quarto grande e quadrado, com mais onze pacientes, poucos dos quais estavam lúcidos, e nem sequer havia espaço para pôr uma cadeira à sua cabeceira onde alguém se sentasse um bocadinho e falasse com ela.
Jake sentir-se-ia pior se a mulher soubesse onde estava, mas o cérebro dela mantinha-a sempre a dormir. O que ela ignorava não podia atormentá-la, e esta constatação garantia-lhe uma considerável paz de espírito.
Todos os domingos à tarde, assim que se levantava e abstraía dos seus padecimentos, Jake levava Michelle a ver a mãe. Os dois, de mãos dadas, ficavam aos pés da cama de Ellie a olhar para ela durante uns bons dez a quinze minutos e depois iam-se embora. Às vezes, Michelle apanhava um raminho de flores silvestres, atava-o com um cordel e dava um belo laço. Deixava-as em cima da almofada da mãe para que ela sentisse o seu aroma adocicado. Por duas vezes, fizera uma coroa de malmequeres e pusera-a na cabeça da mãe. O pai dissera-lhe que, com a tiara na cabeça, a mãe ficava mesmo bonita, como uma princesa.
Dois anos depois, a sorte mudou para Jake Renard quando ganhou sessenta mil dólares numa rifa. Como o jogo era clandestino e o Estado não tomou conhecimento do sucedido, Jake não teve de pagar impostos sobre a sua fortuna caída do céu. Admitiu usar o dinheiro para transferir a mulher para um sítio mais agradável, mas algures na sua cabeça ouviu a voz dela a repreendê-lo por não ser pragmático, por querer gastar o dinheiro numa coisa que não seria útil a ninguém. E resolveu aplicar uma parte e comprar The Swan. Queria dar um futuro aos filhos, queria que eles tomassem conta do bar quando crescessem, que deixassem de andar atrás das raparigas e assentassem, com mulher e filhos para sustentar. E guardou o resto do dinheiro para a sua reforma.
Quando Michelle não estava na escola - Jake considerava que ela não precisava de instrução, mas o Estado tinha outra opinião
- levava-a consigo para onde fosse. Nos dias de pesca, ela sentava-se ao seu lado e falava pelos cotovelos ou lia-lhe histórias dos livros que o obrigava a trazer-lhe da biblioteca. Enquanto ele dormia a sesta, ela punha a mesa e os irmãos faziam o jantar. Era uma dona de casa impecável. Mantinha a casa imaculada, o que não era tarefa fácil porque tanto o pai como os irmãos eram manifestamente desmazelados. Nos meses de Verão, tinha sempre flores frescas em frascos de conservas que aproveitava como jarras improvisadas para alindar as mesas.
À noite, Michelle ia com o pai para The Swan, para o último turno. Às vezes, a menina adormecia enroscada como um gato tigrado ao canto do balcão, e ele tinha de levá-la para a arrecadação nas traseiras, onde lhe arranjara uma cama. Saboreava todos os minutos que passava com a filha porque calculava que, como muitas raparigas da terra, ela acabaria por engravidar e casar antes dos dezoito anos.
Desejava o melhor para Michelle, mas era realista, e todas as raparigas bonitas casavam novas em Bowen, Louisiana. As coisas eram assim mesmo, e Jake não esperava que com a filha fossem diferentes. Nem os rapazes nem as raparigas tinham muito que fazer na cidade, além de perderem tempo uns com os outros, e era inevitável que as raparigas constituíssem família.
Jake possuía um terreno com mil metros quadrados. Construíra uma cabana só com um quarto quando casara com Ellie e fora acrescentando mais divisões à medida que a família aumentava. Quando os rapazes já tinham idade para ajudar, alteou o telhado e fez um sótão para garantir uma certa privacidade a Michelle. A família vivia numa zona pantanosa mesmo ao fundo de um caminho sinuoso de terra batida chamado Mercy Road. Só se viam árvores, algumas das quais centenárias. Nas traseiras, havia dois chorões quase cobertos de musgo, que pendia
dos ramos como se fosse um lenço de croché e chegava ao chão. Quando a névoa vinha do rio e o vento começava a gemer, o musgo adquiria um aspecto fantasmagórico
ao luar. Nessas noites, Michelle esgueirava-se do sótão e enfiava-se na cama com Remy ou John Paul.
A cidade vizinha de St. Claire ficava a vinte minutos a pé da casa deles. Tinha ruas pavimentadas e bordejadas de árvores, mas não era tão bonita nem tão pobre como Bowen. Os vizinhos de Jake estavam acostumados à pobreza. Faziam o que podiam para ganhar a vida longe dos pântanos e da água, e nas noites de quarta-feira gastavam o pouco que lhes sobrava nas rifas, na esperança de que a sorte lhes sorrisse como a Jake Renard.
A vida da família Renard sofreu mais uma viragem surpreendente quando Michelle entrou para a terceira classe na Escola Elementar Horatio Hebert. Foi-lhe destinada uma professora nova, Miss Jennifer Perine. Na quarta semana de aulas, Miss Perine fez os testes-padrão, recebeu os resultados e em seguida enviou um recado por Michelle em que pedia que se realizasse sem demora uma reunião entre o pai e a professora.
Jake nunca participara numa reunião daquelas. Imaginou que a filha se tivesse metido nalgum sarilho, que talvez tivesse andado à pancada. Quando a encostavam à parede, Michelle ficava furiosa. Os irmãos tinham-na ensinado a defender-se. Como ela era pequena para a sua idade, poderia tornar-se um alvo fácil para os rufiões da escola, e por isso eles ensinaram-na a lutar, e a lutar a sério.
Jake calculou que teria de acalmar a professora. Vestiu o seu fato de domingo, perfumou-se com Aqua Velva, que só usava em ocasiões especiais, e percorreu os dois mil e quatrocentos metros que o separavam da escola.
Miss Perine revelou-se uma chata, como Jake esperava, mas também era bonita, algo com que ele não contava. Ficou imediatamente desconfiado. O que levaria uma jovem solteira e atraente a dar aulas numa cidadezinha tão insignificante como Bowen? com o seu belo aspecto e o seu corpo escultural, conseguiria arranjar emprego noutro sítio qualquer. E porque ainda não se casara? Parecia ter vinte e tal anos, o que, segundo os padrões locais, fazia dela uma solteirona.
A professora garantiu-lhe que não tinha nenhuma má notícia a dar-lhe. Pelo contrário. Queria comunicar-lhe que Michelle era uma criança excepcional. Jake ficou hirto. Julgou que a professora estava a dizer-lhe que a filha não regulava bem. Toda a gente da terra dizia que Buddy Dupond era uma criança excepcional, mesmo depois de a polícia o ter levado à força e internado num manicómio por ter incendiado a casa dos pais. A intenção de Buddy não era fazer mal nem matar ninguém. Mas os incêndios fascinavam-no. Já ateara mais de doze, todos nos pântanos, onde os estragos eram insignificantes. Explicou à mãe que adorava fogos. Gostava do cheiro, dos tons alaranjados, amarelos e vermelhos a brilhar no escuro e sobretudo dos ruídos, o estalar, o crepitar, o rebentar. Exactamente como as pipocas. O médico que examinou Buddy devia ter concluído que ele era excepcional, sem dúvida. Deu-lhe um nome esquisito: pirómano.
Mas Miss Perine não queria ofender a filha de Jake e, quando ele percebeu isso, descontraiu-se. Ela disse-lhe que, depois de ter recebido o primeiro conjunto de testes e de analisar os resultados, submetera Michelle à apreciação de peritos. Jake não percebia nada de QI nem compreendia como é que esses peritos podiam avaliar a inteligência de uma criança de oito anos, mas não se admirou que a sua Michelle fosse, como disse orgulhosamente a Miss Perine, esperta como um alho.
Era imperioso que ele tratasse da criança como devia. A professora comunicou a Jake que Michelle já lia livros escritos para adultos e que iria saltar o equivalente a duas classes na segunda-feira seguinte. Ele sabia que a filha tinha uma aptidão especial para ciências e matemática? Jake depreendeu destas palavras caras que a sua menina era um génio nato.
Miss Perine disse-lhe que se considerava uma boa professora, mas que sabia que não estaria à altura de satisfazer as necessidades educativas de Michelle. Queria que a menina transitasse para uma escola particular, onde os seus dotes seriam desenvolvidos e ela poderia definir a sua própria curva de aprendizagem, ou lá o que era.
Jake levantou-se, e a sua figura corpulenta sobrepôs-se à da professora quando lhe apertou a mão e agradeceu as boas palavras acerca de Michelle. Mas acrescentou que não estava interessado em separar-se da filha. Afinal, ela não passava de uma criança, e era muito cedo para se separar da família.
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Miss Perine convenceu-o a escutá-la. Ofereceu-lhe um copo de limonada e pediu-lhe que voltasse a sentar-se. Como ela se dera ao trabalho de mandar vir refrescos e também havia um pratinho de bolachas em cima da mesa, Jake concluiu que devia ser delicado e dar-lhe ouvidos.
Então, a professora começou a falar com calma, explicando-lhe que a filha só teria vantagens em beneficiar do ensino adequado e dizendo-lhe que decerto ele não queria privá-la das excelentes oportunidades que se lhe ofereciam. Miss Perine tirou um dossiê cor-de-rosa da gaveta da secretária e entregou-lhe uma brochura com fotografias para ele ver como era a escola. Michelle iria adorar, garantiu-lhe ela. Iria estudar com afinco, mas também teria tempo para se divertir.
Jake queria o melhor para a filha e ouviu atentamente tudo o que Miss Perine tinha a dizer. Estavam a dar-se muito bem um com o outro, a beber limonada e a saborear bolachas de manteiga de amendoim enquanto conversavam amigavelmente sobre Michelle, mas com os diabos, ela insultou-o ao sugerir que ele pedisse ajuda ao Estado para pagar as propinas, ou mesmo um subsídio que não tivesse de devolver. Jake fez um esforço para não se esquecer que a mulher era nova em Bowen e tinha pouca experiência. Decerto não fizera por mal. Estava apenas a tentar ser prestável. Mas exactamente porque era nova na terra, devia saber como era importante o orgulho de um homem naquela zona. Se tirassem o orgulho a um homem, seria fácil espetar-lhe uma faca no peito.
Jake cerrou os dentes e explicou com delicadeza que não teria de recorrer à caridade e que não permitiria que mais ninguém pagasse os estudos da filha.
Algumas pessoas sabiam que ele estava bem na vida devido à sorte no jogo, mas a professora ignorava isso, evidentemente. As pessoas da terra não falavam dos seus jogos de apostas ilegais com estranhos. No entanto, não se importava muito que a professora fizesse juízos apressados sobre uma família com base no modo como os seus membros se vestiam ou no sítio onde viviam. Se Jake resolvesse mandar a filha para a tal escola chique, usaria o pecúlio que tinha guardado para a sua reforma para pagar as propinas, e quando esse dinheiro se acabasse, os filhos arranjariam mais um emprego e ajudariam nas despesas.
Mas, antes de tomar qualquer decisão, Jake pensou que tinha de discutir o assunto com a mulher. Estava sempre a conversar
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com ela, pelo menos em pensamento, e sabia-lhe bem pensar que ela gostava de ser incluída na vida deles e que, por artes mágicas, o ajudava a orientar-se nas decisões importantes para a família.
Concluiu que deveria também conversar com Michelle. Ela tinha uma palavra a dizer quanto ao seu próprio futuro.
No domingo seguinte, levou-a à pesca. Sentaram-se lado a lado no cais, com as canas de pesca a balouçar sobre a água escura. Jake levava a faca grande na bainha de cabedal, para se defender de eventuais predadores.
- O peixe não morde o isco, pois não? - observou ele, enquanto tentava arranjar uma maneira de abordar o assunto da mudança de escola.
- Pois claro que não, papá. Não sei porque resolveste vir à pesca a esta hora. Dizes-me sempre que de manhã cedo é que se apanha peixe. Porque quiseste vir à pesca tão tarde? Já vai para as quatro.
- Eu sei que horas são, espertalhona. Quis afastar-te dos teus irmãos e conversar contigo sobre uma coisa... importante.
- Então, porque não desembuchas? - perguntou ela.
- Não sejas impertinente comigo.
- Não estou a ser impertinente contigo. Juro. Michelle levou a mão ao peito.
"Era tão engraçada, a fitá-lo com aqueles grandes olhos azuis", pensou Jake. Precisava de cortar-lhe a franja outra vez. Já estava muito comprida e tocava-lhe nas longas sobrancelhas. Trataria disso depois do jantar.
- Aquela Miss Perine é muito simpática. E bonita, também. Michelle virou a cara para o lado e olhou para a água.
- Não sei... Ela cheira bem, mas não sorri muito.
- Ensinar é um trabalho sério - explicou ele. - Talvez seja por isso que ela não sorri muito. Dás-te bem com ela?
- Acho que sim.
- Tivemos uma conversa muito agradável a teu respeito uma noite destas.
- Era por isso que querias falar comigo, não é? Eu já sabia.
- Agora cala-te e ouve-me. Miss Perine acha que tu és uma criança excepcional.
Michelle esbugalhou os olhos e abanou a cabeça.
- Eu não ateio fogos, papá. Juro.
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- Eu sei - respondeu ele. - Ela não quer dizer que tu sejas como o Buddy Dupond. O que ela quer dizer é que tu és muito inteligente.
- Eu não gosto dela.
Michelle desviou de novo o olhar. Jake tocou-lhe ao de leve para obrigá-la a olhar para ele.
- Porque não gostas dela? É porque te obriga a trabalhar muito? É porque te exige muito?
- Não percebo o que queres dizer, papá.
- O trabalho é muito difícil para ti?
Michelle riu-se, como se ele tivesse acabado de contar uma anedota.
- Oh, não! É muito fácil, e às vezes aborreço-me porque o acabo muito depressa e tenho de ficar ali sentada, à espera que Miss Perine me arranje outra coisa para eu fazer. Os miúdos estão a aprender a ler, mas eu já sei ler desde pequenina. Lembras-te?
Jake sorriu.
- Lembro-me que começaste a ler-me o jornal quando eu estava a fazer a barba. Aprendeste muito bem sozinha.
- Não, não aprendi. Tu é que me ensinaste as letras.
- Mas tu é que as juntaste muito bem sozinha. Eu lia em voz alta. E tu aprendeste depressa. Aprendeste...
- Num abrir e fechar de olhos - concluiu ela.
- Exactamente, querida. Explica-me porque não gostas de Miss Perine. É porque tens de esperar por ela?
- Não.
- Então?
- Ela quer mandar-me embora - balbuciou Michelle, com os olhos marejados de lágrimas e a voz a tremer. - Não quer, papá? Ela disse-me que quer que tu me mandes para outra escola onde não conheço ninguém.
- Olha, ficas a saber que ninguém obriga o papá a fazer uma coisa que ele não quer, mas Miss Perine... Bem, ela deu-me que pensar.
- Ela é uma intrometida. Não lhe ligues.
Jake abanou a cabeça. A sua menina acabara de devolver-lhe uma das expressões que ele mais gostava de utilizar. Quando os irmãos a arreliavam, ele dizia-lhe sempre para não lhes ligar.
- A tua professora diz que tens um QI muito elevado.
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- A culpa não é minha.
- Não há nada de mal em ser inteligente, mas Miss Perine acha que devíamos dar-te a melhor educação que pudermos. Ela acha que podes vir a ser alguém. Eu nunca tinha pensado nisso, mas acho que não é obrigatório que te cases e tenhas bebés assim sem mais nem menos. Talvez esta família não tenha sido muito ambiciosa.
- Talvez, papá.
Pelo tom de voz dela, Jake percebeu que Michelle estava a tentar acalmá-lo.
- Mas eu não quero que haja mudanças - acrescentou ela.
- Eu sei que não queres - disse ele. - Bem sabes como a tua mãe gostaria que fizéssemos o que está certo.
- A mamã é inteligente?
- Oh, sim. Sem dúvida.
- Ela casou e teve bebés assim sem mais nem menos. Céus, a filha era mesmo inteligente. E como é que uma professora tão nova se apercebera disso?
- Isso foi porque eu apareci e me apaixonei por ela.
- Porque eras irresistível. Não é?
- Exactamente.
- Talvez devesses falar com a mamã antes de resolveres mandar-me embora. Ela devia saber o que tencionas fazer.
Jake ficou tão admirado com estas palavras que até estremeceu.
- Como é que sabes que eu gosto de falar com a tua mãe?
- Ora, ora.
- Como é que sabes?
Ela sorriu, com os olhos a brilhar.
- Porque às vezes falas em voz alta. Não há problema, papá. Eu também gosto de conversar com a mamã.
- Está bem. Amanhã, vamos visitar a mamã e conversamos com ela acerca disto.
Michelle começou a chapinhar com os pés na água.
- Acho que ela vai dizer que eu devo ficar em casa contigo e com o Remy e o John Paul.
- Olha, escuta...
- Papá, conta-me como é que tu e a mamã se conheceram. Já sei que me contaste a história centenas de vezes, mas nunca me canso de ouvi-la.
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Tinham-se desviado do assunto, e Jake percebeu que a filha fizera de propósito.
- Agora não estamos a falar da mamã e de mim. Estamos a falar de ti. Quero fazer-te uma pergunta importante. Pousa a cana e presta atenção.
Michelle obedeceu e ficou à espera, com as mãos cruzadas sobre o regaço. "Ela era tão senhoril", pensou Jake. "Como diabo é que isso acontecera se vivia com três brutamontes?"
- Se pudesses ser qualquer coisa no mundo, fosse o que fosse, o que achas que serias?
Michelle entrelaçou os dedos. Jake puxou-lhe o rabo-de-cavalo para lhe chamar a atenção.
- Não deves ter vergonha do papá. Podes dizer-me o que pensas.
- Eu não estou com vergonha.
- Estás a ficar com o cabelo ruivo e o mesmo acontece às tuas sardas.
Ela riu-se.
- O meu cabelo já é ruivo e as minhas sardas não mudam de cor.
- Vais dizer-me ou não?
- Tens de prometer que não te ris.
- Não me rio.
- O Remy e o John Paul talvez se rissem.
- Os teus irmãos são uns palermas. Riem-se por tudo e por nada, mas bem sabes que eles te adoram e que trabalharão muito para que consigas o que queres.
- Eu sei - disse ela.
- Vais dizer-me ou não? Parece que já tens algumas ideias quanto ao que gostarias de ser.
- Eu sei - admitiu ela.
Olhou-o de frente para se certificar de que ele não desataria a rir e acrescentou em surdina:
- Eu vou ser médica.
Jake disfarçou a sua surpresa e não disse nada durante um longo minuto, enquanto digeria o que acabara de ouvir.
- Porque achas que queres ser médica? - perguntou ele, já a acalentar a ideia.
- Porque então talvez eu conseguisse consertar... uma coisa. Há muito tempo que penso nisso, desde pequena.
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- Tu ainda és pequena - atalhou ele. - E os médicos consertam pessoas, e não coisas.
- Eu sei, papá - disse ela, com tal autoridade na voz que o fez sorrir.
- Estás a pensar em alguma coisa que queiras consertar?
O pai pôs o braço à volta dos ombros da filha e puxou-a para si. Já sabia qual era a resposta, mas queria ouvi-la.
Michelle afastou o cabelo dos olhos e assentiu lentamente com a cabeça.
- Eu estava a pensar que talvez conseguisse consertar a cabeça da mamã. Depois, ela poderia vir para casa.
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CAPÍTULO 1
NOVA ORLEÃES, NA ACTUALIDADE
A primeira morte foi um acto de misericórdia.
Ela estava a morrer muito, muito lentamente. Todos os dias surgia uma nova indignidade, mais uns centímetros do seu outrora magnífico corpo a serem destruídos pela
doença que a enfraquecia. Pobre, pobre Catherine. Há sete anos, era uma noiva bela e escultural, desejada pelos homens e invejada pelas mulheres, mas agora estava
gorda e inchada, e a sua pele de alabastro, antes tão perfeita, estava cheia de manchas e amarelada.
Às vezes, John, o marido, já nem a reconhecia. Recordava-se do que ela fora e depois via, com uma nitidez espantosa, a transformação que sofrera. Aqueles olhos verdes maravilhosos e brilhantes que tanto o tinham cativado quando ele a conhecera estavam agora baços e leitosos devido ao excesso de analgésicos.
O monstro estava a matá-la lentamente, e John não tinha um momento de descanso.
À noite, tinha medo de ir para casa. Parava sempre em Royal Street para comprar uma caixa de quilo de chocolates Godiva. Era um ritual que iniciara havia alguns meses para provar à mulher que ainda a amava, apesar do seu aspecto. Podia pedir que lhe entregassem os chocolates em casa todos os dias, evidentemente, mas esta tarefa adiava o momento em que teria de enfrentá-la outra vez. Na manhã seguinte, a caixa dourada, quase vazia, estaria no caixote do lixo de porcelana ao lado da enorme cama de dossel. Ele fingiria que não reparara que ela se empanturrara de doces e ela faria o mesmo.
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John já não a condenava pela sua gulodice. Os chocolates davam-lhe prazer, o que era uma preciosidade rara na existência trágica e desolada da mulher.
Às vezes, de noite, depois de comprar os chocolates, voltava para o escritório e trabalhava até o cansaço se apoderar dele e o obrigar a ir para casa. Ao subir St. Charles ao volante do seu BMW descapotável, em direcção ao Garden District de Nova Orleães, começava inevitavelmente a tremer como se sofresse de hipotermia, mas só se sentia doente a nível físico ao entrar no hall preto e branco da sua casa. Sem largar a caixa dos chocolates, pousava a pasta Gucci na consola do corredor e ficava ali, diante do espelho dourado, durante um ou dois minutos, a respirar fundo para se acalmar. Apesar de não se sentir aliviado, fazia o mesmo exercício todas as noites. O seu arfar misturava-se com o tique-taque do relógio de chão encostado à parede, em frente do espelho. O tique-taque fazia-lhe lembrar o temporizador de uma bomba. Uma bomba que ele trazia na cabeça e que estava prestes a explodir.
Sentindo-se um cobarde, forçava-se a subir ao primeiro andar. Os ombros retesavam-se e o estômago revolvia-se enquanto ele subia lentamente a escada circular; as pernas pesavam-lhe, como se usasse meias de cimento. Quando chegava ao fundo do longo corredor, tinha a testa perlada de suor e sentia-se frio e viscoso.
Limpava a testa com o lenço de assoar, fazia um sorriso postiço e abria a porta, tentando a todo o custo proteger-se mentalmente do mau cheiro que pairava no ar. O quarto cheirava a comprimidos de ferro e o ambientador, com um forte aroma de baunilha que as criadas insistiam em espalhar no ar rarefeito, só piorava a situação. Às vezes, o cheiro era tão insuportável que ele tinha de sair do quarto à pressa, com um falso pretexto, antes que ela ouvisse os seus vómitos. Faria o que fosse necessário para que ela não soubesse a repulsa que lhe causava.
Outras vezes, o estômago aguentava. John fechava os olhos, debruçava-se e beijava-a na testa e depois afastava-se, sempre a falar com ela. Aproximava-se do tapete de corrida que lhe comprara um ano depois de casarem. Não se lembrava se ela chegara a usá-lo alguma vez. Agora, os manipules serviam de apoio a um estetoscópio e a dois volumosos roupões de seda com motivos florais e o largo tapete de vinil preto estava coberto por uma camada de pó. Parecia que as criadas nem se lembravam de o limpar. Às vezes, quando ele
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não conseguia olhar para Catherine, virava-se e, através das janelas "palladianas" em arco, contemplava o jardim à inglesa suavemente iluminado que havia nas traseiras da casa, rodeado, como todos os outros pátios minúsculos, por uma vedação de ferro forjado preto.
Atrás dele, a televisão não se calava. Estava ligada vinte e quatro horas por dia, a debitar talk shows ou televendas. Catherine nem se lembrava de desligar o aparelho quando o marido estava a falar com ela, e ele já chegara ao ponto em que conseguia ignorá-lo. Apesar de ter aprendido a abstrair-se do tagarelar permanente da televisão, muitas vezes dava consigo a surpreender-se com o estado de deterioração a que o cérebro dela chegara. Como é que ela conseguia ver aquelas idiotices durante horas e horas? Noutros tempos, antes de a doença se apoderar da vida e da personalidade dela, Catherine era uma intelectual que conseguia vencer qualquer adversário com as suas respostas rápidas, acutilantes e extraordinariamente inteligentes. John recordava-se que ela adorava discutir política. Sentava um conservador de direita à sua mesa de jantar impecavelmente posta, e era garantido que havia espectáculo. Mas agora, o seu único motivo de conversa e de preocupação era o funcionamento dos intestinos. Isso e a comida, claro. Estava sempre ansiosa por falar na refeição seguinte.
John pensava muitas vezes no dia do seu casamento, havia sete anos, e recordava quão desesperadamente a tinha desejado. Agora, receava estar no mesmo quarto com ela - dormia no quarto de hóspedes - e o tormento tinha o efeito de um ácido no estômago, comia-o vivo.
Antes de ela ter ficado presa à cama por necessidade, ocupara a suíte espaçosa decorada em tons de verde-claro. O mobiliário, de grandes dimensões, era do estilo Renascença e havia estátuas de dois poetas favoritos: Ovídio e Virgílio. Os bustos de gesso estavam assentes em pedestais brancos, um de cada lado da janela de sacada. Por sinal, ele gostara do quarto quando a jovem decoradora de interiores o acabara, a tal ponto que a contratara para redecorar o seu escritório, mas agora desprezava-o porque representava aquilo que faltava na sua vida.
Por muito que tentasse, não conseguia fugir às recordações constantes. Há duas semanas, encontrara-se com um dos seus sócios num novo restaurante que estava na moda em Bienville, ao almoço, mas assim que entrara e vira as paredes verde-claras, sentira
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um aperto no estômago e tivera dificuldade em respirar. Durante uns minutos de terror, julgou que estava a sofrer um ataque cardíaco. Devia ter telefonado para o 112 a pedir ajuda, mas não o fez. Correu lá para fora, à procura da luz do dia, e respirou fundo. O sol na cara fê-lo sentir-se melhor, e ele percebeu então que fora acometido de um ataque de ansiedade.
Por vezes, convencia-se de que estava a perder o juízo.
Graças a Deus, contava com o apoio de três dos seus maiores amigos. Encontrava-se com eles todas as sextas-feiras à tarde para beber um copo e relaxar e ansiava por esse momento para desabafar. Eles ouviam-no, consolavam-no e compreendiam-no.
Por uma ironia do destino, ele é que saía para ir beber com os amigos, enquanto Catherine definhava, sozinha. Se as Parcas tencionavam castigar um deles por pecados antigos, porquê ela e não ele? Catherine sempre fora o elemento íntegro e moralmente superior do casal. Nunca violara uma lei na sua vida, nem sequer estacionara num local proibido, e teria ficado abismada se soubesse tudo o que John e os amigos tinham feito.
Autodenominavam-se o Clube da Sementeira. Cameron, de trinta e quatro anos, era o mais velho do grupo. Dalas e John tinham ambos trinta e três e Preston, a quem tinham posto a alcunha de "Lindo Menino" devido à sua bela pele morena, era o mais novo, com trinta e dois. Os quatro amigos tinham frequentado o mesmo colégio particular e, apesar de pertencerem a turmas diferentes, tinham-se sentido atraídos uns pelos outros devido a muitas afinidades. Partilhavam a mesma energia, os mesmos objectivos, a mesma ambição. Além disso, partilhavam os mesmos gostos caros e não se importavam de infringir a lei para conseguir o que queriam. Começaram a trilhar o caminho do crime no liceu, quando descobriram como era fácil cometer pequenos furtos. Também descobriram que não era muito lucrativo. Numa farra, cometeram o primeiro crime - assaltaram uma ourivesaria numa cidade dos arredores e escoaram as pedras preciosas como se fossem profissionais. Depois, John, o mais analítico do grupo, concluiu que os riscos eram demasiado grandes para o retorno que obtinham - até os planos mais bem concebidos podiam falhar devido a factores como o acaso e a surpresa - e começaram a cometer crimes mais sofisticados, de colarinho branco, servindo-se da sua educação para fomentar relações sociais.
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O primeiro negócio que verdadeiramente caiu do céu chegou através da Internet. Servindo-se dos seus elegantes computadores portáteis, compraram acções que não valiam
nada sob um nome falso, inundaram os chat rooms com dados falsificados e boatos e, depois de o preço das acções ter subido em flecha, venderam-nas antes de as autoridades competentes descobrirem o que se estava a passar. O lucro desta pequena aventura ultrapassou os cinco mil por cento.
Todos os dólares que extorquiram ou roubaram foram depositados na conta bancária do Clube da Sementeira nas ilhas Caimão. Quando os quatro concluíram a licenciatura e começaram a trabalhar em Nova Orleães, já tinham juntado mais de quatro milhões de dólares.
E isto só lhes abriu ainda mais o apetite.
Durante uma das suas reuniões, Cameron disse aos outros que, se alguma vez um psiquiatra os examinasse, descobriria que eram todos sociopatas. John não concordou. Um sociopata não tinha em conta as necessidades nem os desejos dos outros. Eles, pelo contrário, estavam comprometidos com o clube e com o pacto que tinham firmado para fazerem fosse o que fosse que lhes permitisse alcançar o que desejavam. O seu objectivo era terem oitenta milhões de dólares quando o mais velho completasse quarenta anos. Quando Cameron festejou o seu trigésimo aniversário, já eles possuíam metade.
Nada os demovia. Ao longo dos anos, o vínculo existente entre os amigos reforçara-se, e eles fariam tudo, mas mesmo tudo, para se protegerem uns aos outros.
Apesar de todos colocarem os seus dotes especiais ao serviço do clube, Cameron, Preston e Dalas sabiam que John era o mentor e que sem ele nunca teriam chegado tão longe. Não se podiam dar ao luxo de perdê-lo e estavam cada vez mais assustados com a deterioração do seu estado de espírito.
John estava em apuros, e eles não sabiam como ajudá-lo. E limitavam-se a escutá-lo enquanto ele desabafava. O tema da sua querida mulher vinha sempre à baila, e John punha-os a par dos últimos acontecimentos. Há anos que nenhum deles via Catherine devido à doença. A opção era dela e não deles, porque ela queria que a recordassem tal como fora e não como estava agora. Eles enviavam presentes e cartões, evidentemente. John era como um irmão
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para eles, e apesar de se sentirem verdadeiramente contristados com o estado da mulher, estavam muito mais preocupados com o dele. Todos reconheciam que ela
era, afinal, uma causa perdida. Ele não. E viam o que ele não via: que ele ia a caminho da catástrofe. Sabiam que ele estava a ter dificuldade em concentrar-se no
trabalho - uma tendência perigosa dada a sua ocupação - e que também bebia de mais.
John caminhava a passos largos para o alcoolismo. Preston convidara-o e aos outros para ir à sua nova penthouse e comemorar o êxito da aventura mais recente do grupo. Estavam sentados à mesa de jantar, em cadeiras luxuosamente estofadas, rodeados por uma vista panorâmica do Mississipi. Era tarde, quase meia-noite, e viam-se as luzes lá fora, a cintilar no meio da escuridão. De vez em quando, uma sereia de nevoeiro gemia tristemente ao longe.
O som deixou John melancólico.
- Há quanto tempo é que somos amigos? - perguntou ele com uma voz arrastada. - Alguém se lembra?
- Há cerca de um milhão de anos - respondeu Cameron, pegando numa garrafa de Chivas.
Dalas deu uma sonora gargalhada.
- Parece que já foi há muito tempo, não é verdade?
- Desde o liceu, quando criámos o Clube da Sementeira
- disse Preston, virando-se para John. - Nesse tempo intimidavas-me como o diabo. Eras sempre tão melífluo e autoconfiante. Eras mais educado do que os professores.
- O que achavam vocês de mim? - quis saber Cameron.
- Eras nervoso - respondeu Preston. - Estavas sempre... impaciente. Percebes o que quero dizer? Ainda hoje és assim.
Dalas concordou.
- Sempre foste o mais cauteloso do grupo.
- O mais inquieto - acrescentou Preston. - Enquanto eu e Dalas sempre fomos mais...
- Ousados - sugeriu Dalas. - Eu nunca teria feito amizade com nenhum de vocês se o John não nos tivesse juntado.
- Eu vi o que vocês não viram - disse John. - Talento e ambição.
- Toquem aqui - disse Cameron, levantando o copo e simulando um cumprimento aos outros.
- Acho que eu tinha dezasseis anos quando criámos o Clube da Sementeira - disse Dalas.
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- Ainda eras virgem, não eras? - perguntou Cameron.
- Não, com os diabos! Perdi a virgindade com nove anos. O exagero provocou uma gargalhada geral.
- Está bem, talvez tivesse mais uns anos - disse Dalas.
- Meu Deus, éramos uns autênticos fedelhos merdosos e petulantes, não éramos? E pensar que fomos tão inteligentes com o nosso clube secreto - disse Preston.
- Nós éramos inteligentes - sublinhou Cameron. - E tivemos sorte. Já pensaram nos riscos estúpidos que corremos?
- Sempre que queríamos embebedar-nos, convocávamos uma reunião do clube - disse Dalas. - Tivemos sorte por não nos termos tornado alcoólicos.
- Quem diz que não? - perguntou Cameron, e seguiu-se mais uma gargalhada geral.
John ergueu o seu copo.
- Um brinde ao clube e ao lucro limpo que acabamos de ter, graças à tão simpática informação privilegiada do Preston.
- Brindemos! - disse Cameron, batendo com o seu copo no dos outros. - Mas ainda hoje não percebo como é que conseguiste essa informação.
- Como é que achas que a consegui? - perguntou Preston.
- Embebedei-a, fodi-a até mais não poder e, depois de ela ficar inconsciente, fui espreitar os ficheiros do computador. Tudo isto numa noite de trabalho.
- Seduziste-a? - gritou Cameron.
- "Seduzir"? Quem é que ainda usa esse termo hoje em dia?
- perguntou Preston.
- Quero saber como é que conseguiste. Eu já vi a mulher. Ela é um coiro! - disse Dalas.
- Ouve, eu fiz o que tinha a fazer. Só pensava nos oitocentos mil que iríamos ganhar e...
- E o quê? - perguntou Cameron.
- Fechei os olhos, percebem? Mas acho que não conseguiria fazer o mesmo outra vez. Um de vocês vai ter de encarregar-se disso. Foi muito... nojento - admitiu ele com um sorriso forçado.
Cameron esvaziou o copo e pegou na garrafa.
- Bem, tanto pior. Esse trabalho compete-te enquanto as mulheres perderem a cabeça com esses teus músculos salientes e essa tua cara de estrela de cinema.
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- Mais cinco anos e teremos a vida feita. Podemos partir, desaparecer, se formos obrigados a isso, fazer o que nos apetecer. Não podemos perder o objectivo de vista - disse Dalas.
John abanou a cabeça.
- Não creio que consiga aguentar mais cinco anos. Sei que não consigo.
- Ouve, tens de te aguentar - disse Cameron. - Temos demasiado a perder se nos faltares neste momento. Estás a ouvir? Tu és o cérebro desta organização. Nós somos apenas...
Cameron não conseguiu aplicar o termo apropriado.
- Co-conspiradores?
- Isso mesmo - concordou Dalas. - Mas todos nós fizemos a nossa parte. O John não é o único que tem miolos. Eu é que arranjei o Monk, lembram-se?
- Oh, pelo amor de Deus, este não é o momento adequado para exibições furiosas do ego - disse Preston entre dentes. Não precisas de dizer-nos o que fizeste, Dalas. Todos sabemos que trabalhas muito. Por sinal, não fazes mais nada. Não tens mais nada além do teu emprego e do Clube da Sementeira. Qual foi a última vez que tiraste um dia de folga ou foste às compras? Aposto que nunca. Andas sempre com o mesmo fato preto ou azul-marinho. Continuas a levar o almoço num saco castanho e aposto que ainda levas o saco para casa e o aproveitas no dia seguinte. A propósito, alguma vez pagaste uma conta?
- Estás a chamar-me sovina? - contrapôs Dalas.
Antes que Preston pudesse responder, Cameron interrompeu-o.
- Acabem com isso, vocês os dois. Não interessa nada saber qual de nós é o mais inteligente ou o mais trabalhador. Todos temos as nossas culpas. Sabem quantos anos apanharíamos se alguém descobrisse o que temos feito? - perguntou Cameron.
- Ninguém vai descobrir coisa nenhuma. - John estava irritado. - Eles não saberiam onde procurar. Eu certifiquei-me disso. Não há registos excepto nos discos do computador que tenho em casa e ninguém terá acesso a eles. Não existem mais nenhuns registos, nem telefonemas, nem papéis. Mesmo que a polícia ou a Secundes and Exchange Commission sejam curiosos, não encontram uma única prova que nos incrimine. Estamos limpos.
- O Monk podia fazer chegar a polícia até nós. - Cameron nunca confiara no mensageiro, ou "ajudante contratado" como
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John lhe chamava, mas eles precisavam de alguém de confiança, de um executante, e Monk servia para isso. Era exactamente tão ganancioso e corrupto como eles e tinha tudo a perder se não fizesse o que eles queriam.
- O Monk trabalha para nós há tempo suficiente para que comeces a confiar nele, Cameron - disse Preston. - Além disso, se ele for à polícia, será muito mais prejudicado do que nós.
- Nisso tens razão - disse John entre dentes. - Olhem, eu sei que dissemos que manteríamos isto até o Cameron chegar aos quarenta, mas garanto-vos que não consigo aguentar até lá. Há dias em que parece que a minha cabeça... Oh, raios, não sei.
John levantou-se da cadeira e aproximou-se da janela, com as mãos atrás das costas, a observar as luzes.
- Já alguma vez vos contei como é que eu e a Catherine nos conhecemos? Foi no Centro de Arte Contemporânea. Ambos queríamos comprar o mesmo quadro e, por qualquer motivo, durante a nossa acesa discussão, apaixonei-me. Nem imaginam, as faíscas que saltavam entre nós... Era digno de se ver. Passados todos estes anos, a chama continua acesa. Agora ela está a morrer e eu não posso fazer absolutamente nada para o impedir.
Cameron olhou para Preston e Dalas, que abanaram a cabeça, e depois disse:
- Bem sabemos como amas a Catherine.
- Não a transformes numa santa, John. Ela não é perfeita
- disse Dalas.
- Livra, que essa foi má - disse Preston em surdina.
- Não faz mal. Eu sei que a Catherine não é perfeita. Tem as suas singularidades, como todos nós. Mas quem é que não tem uma compulsão? - disse John. - Ela preocupa-se com a privação e precisa de ter tudo em duplicado. Tem dois televisores, iguais, um ao lado do outro na mesa-de-cabeceira. Mantém um deles ligado de dia e de noite, mas como receia que ele se avarie, tem outro de reserva. E procede do mesmo modo quando encomenda alguma coisa a um estabelecimento ou por catálogo. Compra sempre duas unidades, mas que mal há nisso? Ela não faz mal a ninguém e actualmente tem tão poucos motivos de satisfação. E tolera-me porque me ama.
Baixando a cabeça, John acrescentou em voz baixa:
- Ela é toda a minha vida.
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- Sim, nós sabemos - reconheceu Cameron. - Mas estamos preocupados contigo. John virou-se de frente para eles. Tinha o rosto crispado pela
- com os diabos, vocês estão preocupados convosco próprios.
Acham que eu farei qualquer coisa que irá estragar tudo, não é?
- Isso já nos passou pela cabeça - admitiu Cameron.
- John, não podemos permitir que te vires contra nós - disse Preston.
- Não me vou virar contra ninguém.
- Pois, está bem - disse Dalas. - Vamos combinar o seguinte: o John avisa-nos se precisar de ajuda. Concordas?
John fez um sinal afirmativo.
- Pois, claro.
Os amigos deixaram cair o assunto e passaram o resto do serão a debater o projecto seguinte.
Continuaram a encontrar-se nas tardes de sexta-feira, mas sem falar na depressão galopante de John. Aliás, nenhum deles sabia o que havia de fazer.
Passaram-se três meses sem uma referência a Catherine. Depois, John foi-se abaixo. Já não suportava ver a mulher a sofrer e comunicou-lhes que o dinheiro se tornara uma preocupação, o que era ridículo dado que eles tinham milhões depositados na conta do Clube da Sementeira. Milhões em que não podiam tocar durante mais cinco anos. John explicou-lhes que o seguro cobria uma ínfima parte dos custos do tratamento de Catherine, mas não o suficiente e que, se a situação da mulher se prolongasse, os bens dela esgotar-se-iam e ele ficaria arruinado. A menos, evidentemente, que os outros o autorizassem a mexer na conta do Clube da Sementeira.
Cameron protestou.
- Bem sabes como eu estou a precisar de dinheiro, com o meu divórcio a decorrer e tudo isso, mas se fizermos um levantamento agora, sem cancelarmos a conta, deixaremos um rasto e as Finanças...
John interrompeu-o.
- Eu sei. É demasiado arriscado. Olhem, eu nem devia ter puxado o assunto. Hei-de arranjar outra solução.
Na tarde da sexta-feira seguinte, reuniram-se no bar preferido de todos, o Dooleys. Enquanto trovejava e chovia lá fora e Jimmy
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Buffett cantava uma canção acerca de Margaritaville, sobrepondo-se ao ruído da conversa, John debruçou-se na mesa e comunicou em voz baixa o seu desejo tenebroso.
Queria matar-se e pôr fim àquele tormento.
Os amigos ficaram aterrados e escandalizados. Repreenderam-no por pensar sequer em tal coisa, mas depressa perceberam que as suas censuras não estavam a ajudar. Pelo contrário, verificaram que estavam a agravar a infelicidade e a depressão do amigo. E passaram rapidamente da rispidez para a solicitude. O que haviam de fazer para o ajudar?
Devia haver alguma coisa.
Continuaram a falar, sentados a uma mesa ao canto do bar, reflectindo em conjunto para encontrar uma solução viável para a situação insustentável do amigo. Mais tarde, perto da meia-noite, após horas e horas de conversa, um deles atreveu-se a sugerir o que todos pensavam. A pobre Catherine já estava condenada. Se morresse alguém, que fosse a patética e sofredora mulher dele.
Se ao menos...
Mais tarde, ninguém se lembraria de qual deles é que verbalizou a sugestão de matá-la.
Nas três sextas-feiras seguintes, discutiram a hipótese, mas assim que a discussão acabou e passaram à votação, não era possível voltar atrás. Finalmente, a decisão foi tomada por unanimidade. Não havia segundas intenções, nem dúvidas que atormentassem qualquer dos membros do clube.
Era preto no branco.
Não se consideraram monstros nem admitiram que o que faziam era motivado pela
ganância. Não, eram apenas supervencedores de colarinho branco que trabalhavam muito
e jogavam a sério. Corriam riscos, e eram temidos pelos estranhos devido ao poder que exerciam. Eram conhecidos por serem autênticas "tropas de assalto", uma expressão
que consideravam lisonjeira. No entanto, apesar da sua arrogância e audácia, nenhum deles tinha a coragem de chamar ao plano o que ele verdadeiramente era - um assassínio
- e referiam-se antes ao "acontecimento".
Tinham uma coragem dos diabos, considerando que o Dooleys ficava a meio quarteirão da esquadra do Oitavo Bairro da Polícia de Nova Orleães. Enquanto planeavam o
crime, estavam rodeados de detectives e agentes. Também passaram por lá dois
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agentes do FBI, além de um corropio de advogados desejosos de fomentar contactos. A polícia e os advogados do tribunal consideravam que o Dooleys era a sua coutada pessoal, e o mesmo pensavam os subvalorizados internos e estagiários tanto do Charity Hospital como da Louisiana State University. Os grupos raramente se misturavam.
O Clube da Sementeira não tomava partido. Sentava-se ao canto. Mas toda a gente sabiam quem eles eram e, até começarem a beber a sério, eram constantemente interrompidos pelos cumprimentos de colegas e bajuladores.
Oh, sim, eles eram corajosos, porque no meio da fina-ílor de Nova Orleães conversavam tranquilamente sobre um acto de misericórdia.
A conversa nunca teria chegado tão longe se eles não possuíssem já o contacto de que necessitavam. Monk matara por dinheiro e decerto não teria pruridos em voltar a fazê-lo. Dalas foi o primeiro elemento a ver o potencial e a tirar partido da situação livrando Monk do sistema judicial. Monk compreendeu que estava em dívida e que teria de pagá-la. Prometeu a Dalas que faria tudo, mas mesmo tudo, desde que os riscos fossem razoáveis e o preço certo. Sentimentos à parte, o assassino era, sobretudo, um homem de negócios.
Reuniram-se todos para discutir as condições num dos poisos preferidos de Monk, o Frankies, um degradado barracão cinzento mesmo à beira da Interstate 10, do outro lado de Metairie. O bar tresandava a tabaco, a cascas de amendoins que os clientes espalhavam pelas tábuas farpadas do soalho e a peixe estragado. Monk jurou que se comiam ali os melhores camarões fritos do Sul.
Chegou atrasado e nem pediu desculpa pela demora. Sentou-se, cruzou as mãos sobre a mesa e definiu imediatamente as condições em que trabalhava, antes de aceitar o dinheiro. Monk era um homem culto, e este era um dos principais motivos pelos quais Dalas o salvara de uma injecção letal. Eles queriam um homem inteligente, e ele cumpria o requisito. Além disso, tinha um ar distinto, era muito requintado e espantosamente bem-educado, considerando que era um criminoso profissional. Até ser preso por homicídio, o cadastro de Monk estava limpo. Depois de ele e Dalas terem fechado o negócio, Monk gabou-se um pouco do seu extenso currículo, que incluía fogo posto, chantagem, extorsão e assassínio.
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A polícia não conhecia os seus antecedentes, como era óbvio, mas dispunha de provas suficientes para acusá-lo de homicídio, provas que foram deliberadamente
extraviadas.
A primeira vez que os outros viram Monk foi no apartamento de Dalas, e o homem causou-lhes uma impressão indelével. Esperavam encontrar um rufião, mas depararam
com um indivíduo que quase poderia ser um deles, um profissional de alto nível, até o examinarem mais de perto. Os olhos eram frios e sem vida como os de uma enguia. Se era verdade que os olhos eram o espelho da alma, então Monk já entregara a sua ao diabo.
Depois de pedir uma cerveja, Monk reclinou-se na cadeira e, sem perder a calma, exigiu o dobro do preço que Dalas tinha oferecido.
- Você deve estar a brincar - disse Preston. - Isso é extorsão.
- Não, é homicídio - retorquiu Monk. - Um risco maior implica mais dinheiro.
- Isto não é... homicídio - atalhou Cameron. - Este é um caso especial.
- O que tem de tão especial? - perguntou Monk. - Vocês querem que eu mate a mulher do John, não querem? Ou percebi mal?
- Não, mas...
- Mas o quê, Cameron? Sente-se incomodado com a minha frontalidade? Posso usar outra palavra, se quiser, mas isso não altera o motivo pelo qual estão a contratar-me. - Monk encolheu os ombros e acrescentou: - Quero mais dinheiro.
- Nós já fizemos de si um homem rico - assinalou John.
- Sim, é verdade.
- Ouça, seu patife, nós acordámos um preço - gritou Preston, que olhou por cima do ombro para ver se alguém ouvira.
- Pois acordámos - respondeu Monk, mostrando-se completamente indiferente ao acesso de fúria de Preston. - Mas não me explicaram o que queriam que eu fizesse. Agora que sei qual é o problema, duplico o preço. Creio que é bastante razoável. O risco é maior.
Fez-se silêncio. Depois, Cameron disse:
- Eu estou falido. Aonde havemos de ir buscar o resto do dinheiro?
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- Esse problema é meu, e não vosso - disse John, virando-se em seguida para Monk. - Eu pago-lhe mais dez mil se você concordar em esperar até à execução do testamento.
Monk inclinou a cabeça.
- Mais dez mil. Claro, eu espero. Sei onde posso encontrá-lo. Agora dê-me os pormenores. Sei quem é que você quer que eu mate, portanto porque não me diz quando, onde e até que ponto quer que ela sofra?
John ficou abalado. Pigarreou, emborcou meio copo de cerveja e disse em voz baixa:
- Oh, meu Deus, não. Eu não quero que ela sofra. Ela tem estado a sofrer.
- Ela tem uma doença terminal - explicou Cameron. John confirmou, com um gesto de cabeça.
- É um caso desesperado. Não suporto vê-la num sofrimento tão grande. É... constante, interminável. Eu...
John estava demasiado perturbado para continuar. Cameron apressou-se a controlar a situação.
- Quando o John começou a dizer disparates, a falar em matar-se, nós percebemos que tínhamos de fazer alguma coisa para o ajudar.
Monk fez-lhe sinal para que se calasse quando a empregada de mesa se aproximou. A mulher pôs mais uma rodada de cervejas em cima da mesa e disse-lhes que voltaria pouco depois para saber o que pretendiam comer.
Assim que ela se afastou, Monk disse:
- Olhe, John, não percebi que a sua mulher estava doente. Devo ter-lhe parecido um pouco frio. Lamento.
- Lamenta ao ponto de reduzir o seu preço? - perguntou Preston.
- Não, não a esse ponto.
- Então você faz o trabalho ou não faz? - perguntou John, impaciente.
- É curioso - disse Monk. - Eu estaria a fazer uma boa acção, não é verdade?
Quis saber os pormenores da triste situação em que a mulher de John se encontrava e também como era o interior da casa. Enquanto John respondia às suas perguntas, Monk inclinou-se para a frente e abriu as mãos sobre a mesa, diante dele. Tinha as unhas
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impecavelmente tratadas e as pontas dos dedos macias, sem calosidades. Olhava em frente, aparentemente perdido nos seus pensamentos, como se delineasse o plano na sua mente.
Depois de John ter acabado de descrever a planta do andar, o sistema de alarme e a rotina diária das criadas, ficou à espera de mais perguntas, tenso.
- Então a criada vai para casa todas as noites. E a governanta?
- A Rosa... Ela chama-se Rosa Vincetti - disse John. - Fica até às dez todas as noites, excepto à segunda-feira, quando em geral estou em casa para ela poder sair às seis.
- Há alguns amigos ou parentes com os quais deva preocupar-me?
John abanou a cabeça.
- A Catherine cortou com os amigos há anos. Não gosta de visitas. Está envergonhada com o seu... estado.
- E os parentes?
- Há um tio e dois primos, mas os contactos são muito reduzidos. Ela diz que eles não prestam. O tio telefona uma vez por mês. Ela tenta ser educada, mas não fica muito tempo ao telefone. Isso cansa-a.
- Esse tio aparece sem ser convidado?
- Não, há anos que ela não o vê. Não tem de preocupar-se com ele.
- Então, não me vou preocupar - disse Monk, tranquilamente.
- Não quero que ela sofra... Quero dizer, quando você... Isso é possível?
- Claro que é - respondeu Monk. - Sou piedoso por natureza. Não sou nenhum monstro. Acredite ou não, tenho valores fortes e uma ética inflexível - vangloriou-se ele, e nenhum dos quatro se atreveu a rir da contradição. Um assassino contratado com ética? Sim, era uma loucura, mas todos eles tiveram o bom senso de concordar. Se Monk lhes tivesse dito que podia caminhar sobre a água, eles teriam fingido que acreditavam.
Quando Monk acabou de discutir as suas virtudes e voltou ao assunto que tinha entre mãos, disse a John que não acreditava no sofrimento cruel ou desnecessário, e apesar de ter prometido que o sofrimento seria reduzido durante o "acontecimento", sugeriu, como medida de precaução, que John aumentasse a dose de analgésicos
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que a mulher tomava antes de ir para a cama. Nada mais deveria mudar. John ligaria o alarme como fazia todas as noites e depois iria para o seu quarto, onde
ficaria. Monk garantiu, com uma segurança que todos consideraram obscena mas reconfortante, que ela estaria morta de manhã.
E cumpriu a sua palavra. Matou-a durante a noite. Como entrara em casa e voltara a sair sem activar o alarme foi algo que escapou à compreensão de John. Havia detectores
áudio e de movimento no interior da casa e câmaras de vídeo no exterior, mas o etéreo Monk tinha entrado sem que ninguém o visse ou ouvisse e pusera termo ao longo sofrimento da mulher, depressa e com eficiência.
Para provar que lá tinha estado, deixara uma rosa sobre a almofada ao lado dela, tal como dissera a John que faria, para eliminar quaisquer dúvidas quanto a quem devia receber o crédito e o pagamento final pela morte. John retirou a rosa antes de telefonar a pedir auxílio.
John deixou que ela fosse autopsiada para que não surgissem quaisquer dúvidas mais tarde. O relatório do patologista indicou que ela morrera asfixiada com chocolates. Encontraram-lhe um bloco de chocolate caramelizado do tamanho de uma castanha alojado no esófago. Havia escoriações no pescoço, mas partiram do princípio que tinham sido auto-infligidas quando ela tentara desalojar o obstáculo para não sufocar. Concluíram que a morte fora acidental; o caso foi oficialmente encerrado e o corpo foi dispensado para que se realizasse o funeral.
Devido ao considerável volume da morta, seriam necessários pelo menos oito homens fortes para transportar a urna, que, segundo o director da agência explicou com delicadeza, teria de ser feita à medida. com uma expressão de grande embaraço e certamente de constrangimento, o homem explicou ao viúvo que não seria possível enfiar o corpo da falecida numa das suas urnas já feitas de mogno polido e forradas de cetim. Admitiu que seria mais prudente cremar o corpo, e o marido aceitou prontamente o alvitre.
O serviço fúnebre foi discreto e contou apenas com a presença de alguns parentes e amigos íntimos de John. Cameron compareceu, mas Preston e Dalas não. A governanta de Catherine esteve lá, e John ouviu o choro de Rosa ao sair da igreja. Viu-a no vestíbulo, agarrada ao terço e a fulminá-lo com um olhar acusador. John ignorou a mulher à beira da histeria e nem devolveu o olhar.
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Apareceram também duas pessoas da família de Catherine, mas mantiveram-se atrás dos outros quando o grupo confrangedoramente pequeno se dirigiu em cortejo para o jazigo. John olhava com frequência por cima do ombro para o homem e para a mulher. Tinha a sensação de que o observavam, mas, quando se apercebeu do nervosismo que a situação lhe causava, virou-lhes as costas e baixou a cabeça.
Os céus choraram por Catherine e cantaram em seu louvor. Enquanto o pastor rezava por ela, trovejou e relampejou. A chuva torrencial só parou quando a urna das cinzas foi depositada no interior do jazigo.
Finalmente, Catherine estava em paz e o tormento do marido chegava ao fim. Os amigos esperavam que ele sofresse mas, ao mesmo tempo, se sentisse aliviado pelo facto de a mulher já não padecer. John amara a mulher com todas as suas forças, não é verdade?
Apesar de algumas pessoas sugerirem que ele tirasse uns dias de descanso, o viúvo regressou ao emprego no dia a seguir ao funeral. Insistiu que precisava de se manter ocupado para afastar a angústia.
Estava um dia luminoso e sem nuvens quando John desceu St. Charles, ao volante do seu carro, em direcção ao escritório. O sol aquecia-lhe os ombros. O aroma da madressilva
pairava na atmosfera húmida. Dos altifalantes saía o som do seu CD preferido de Mellencamp, Hurts só Good.
John estacionou o carro na garagem, no espaço habitual, e meteu-se no elevador. Quando abriu a porta do gabinete com o seu nome, a secretária foi ao seu encontro para lhe apresentar sentidas condolências. Ele observou que a mulher teria apreciado aquele esplendoroso dia de Verão, e mais tarde ela comentou com os colegas que lhe vira lágrimas nos olhos ao pronunciar o nome de Catherine.
À medida que os dias iam passando, John dava mostras de lutar contra a depressão. Quando estava no emprego, quase sempre parecia ausente e distante, seguindo a sua rotina como que aturdido. Outras vezes, aparentava uma alegria desconcertante. O seu comportamento errático era um motivo de preocupação para os colegas, que o consideravam uma consequência compreensível do desgosto que ele sofrera. A melhor coisa que lhe podiam dar agora era espaço. John não era uma pessoa que falasse dos seus sentimentos e todos sabiam como era reservado.
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O que eles não sabiam era que John também era despachado.
Duas semanas depois do "acontecimento", já ele se tinha desfeito de tudo o que pudesse suscitar recordações penosas da mulher, nomeadamente a mobília de estilo Renascença de que ela tanto gostava. Despediu os que a tinham servido com lealdade e contratou uma governanta que não conhecera Catherine. Mandou pintar a casa de dois andares de cima a baixo com cores garridas e remodelar o jardim. Comprou a fonte de que tanto gostava, com um querubim de cuja boca jorrava água. Há meses que a desejava comprar, mas quando mostrara a Catherine a fotografia no catálogo ela recusara, afirmando que se tratava de um acessório de mau gosto.
Tudo ficou ao seu gosto. Escolhera mobiliário contemporâneo devido às linhas direitas e simples. Quando os móveis chegaram do armazém em que estavam guardados, o sítio de cada peça foi escolhido pessoalmente pela decoradora de interiores.
Depois, assim que o último camião saiu da rampa, ele e a bela, esperta e jovem decoradora estrearam a nova cama. Fornicaram durante toda a noite na cama de laca preta com dossel - exactamente como ele lhe prometera um ano antes.
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CAPÍTULO 2
Parecia que Theo Buchanan não conseguia livrar-se do vírus. Sabia que estava com febre porque lhe doíam os ossos todos do corpo e tinha arrepios de frio. No entanto,
recusava-se a admitir que estava doente; não se sentia bem, mais nada. Mas conseguiria vencer. Aliás, tinha a certeza de que o pior já passara. A terrível pontada
resumia-se agora a um latejar monótono sobre a costela, e Theo não tinha dúvidas de que isso significava que ele estava a melhorar. Se fosse o mesmo micróbio
que atacara a maior parte do pessoal do seu escritório de Boston, o mal-estar não duraria mais de vinte e quatro horas e na manhã seguinte ele estaria como novo. Mas a verdade é que havia já dois dias que sentia o mesmo.
Resolveu atribuir as culpas ao irmão, Dylan, por esta dor. Ele aleijara-o mesmo enquanto jogavam futebol numa reunião de família em Nathans Bay. Sim, Dylan fora o responsável pela luxação, mas Theo estava convencido de que, se continuasse a ignorar a dor, ela acabaria por desaparecer.
Raios, parecia um velho e nem sequer completara trinta e três anos.
Não lhe parecia que fosse nada contagioso, e tinha mais que fazer do que enfiar-se na cama e suar até que a febre passasse. Viera de Boston para Nova Orleães para usar da palavra num simpósio sobre o crime organizado e para receber o reconhecimento que, na sua opinião, não merecia, visto que se limitava a fazer o seu trabalho.
Pôs a arma no coldre. Era uma situação incómoda, mas tinha de usá-la por enquanto, ou pelo menos até que acabassem as ameaças de morte que recebera durante o julgamento do caso.
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Vestiu o casaco do smoking, entrou na casa de banho do seu quarto de hotel e aproximou-se do espelho emoldurado para compor a gravata. Viu-se de relance. Parecia abatido. Tinha a cara banhada em suor.
Nessa noite, realizava-se a primeira de três galas. O jantar seria confeccionado por cinco dos melhores cozinheiros da cidade, mas no seu caso o requinte gastronómico seria um desperdício. Só de pensar que tinha de engolir alguma coisa, mesmo que fosse água, sentia um aperto no estômago. Não comia nada desde a tarde da véspera.
Tinha a certeza absoluta de que não conseguiria manter conversas de circunstância nessa noite. Enfiou a chave do quarto na algibeira e ia a pegar no puxador da porta quando o telefone tocou.
Era o irmão, Nick, a saber como ele estava.
- Como estão a correr as coisas?
- Ia mesmo a sair - respondeu Theo. - Donde estás a telefonar? De Boston ou de Holy Oaks?
- De Boston - respondeu Nick. - Ajudei a Laurant a fechar a casa do lago e depois voltámos para casa juntos.
- Ela fica contigo até ao casamento?
- Estás a brincar? O Tommy mandava-me logo para o Inferno.
Theo deu uma gargalhada.
- Acho que o facto de ires ter um cunhado que é padre vai condicionar a tua vida sexual.
- Daqui a dois meses, serei um homem casado. Custa a acreditar, não é verdade?
- Custa a acreditar que alguma mulher te queira.
- A Laurant é míope. Eu disse-lhe que era bem-parecido e ela acreditou. Ela fica em casa dos pais até voltarmos todos a lowa para o casamento. O que fazes esta noite?
- Tenho um jantar para angariação de fundos a que não posso faltar - respondeu ele. - Então, o que queres?
- Pensei apenas em telefonar a dizer olá.
- Não, isso não é verdade. Tu queres alguma coisa. O que é? Desembucha, Nick. vou chegar atrasado.
- Theo, tens de aprender a abrandar o teu ritmo. Não podes passar o resto da vida a correr. Eu sei o que andas a fazer.
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Achas que, se te embrenhares no trabalho, não pensarás na Rebecca. Há quatro anos que ela morreu, mas tu... Theo interrompeu-o.
- Eu gosto da vida que levo e não me apetece falar na Rebecca.
- Tens o vício do trabalho.
- Telefonaste para me pregares um sermão?
- Não. Telefonei para saber como estavas.
- Ah, ah!
- Estás numa cidade maravilhosa com belas mulheres, uma comida incrível...
- Então o que queres? Nick cedeu.
- Eu e o Tommy queremos levar o teu veleiro amanhã.
- O padre tom está aí?
- Está. Veio comigo e com a Laurant - explicou Nick.
- Deixa-me ver se percebo. Tu e o Tommy querem levar o meu veleiro e nenhum de vocês sabe velejar?
- Onde queres chegar?
- E o meu barco de pesca? Porque não levam antes o Mary Beth? É maior.
- Não queremos pescar. Queremos velejar. Theo suspirou.
- Faz o possível por não o afundares, está bem? E não levem a Laurant. A família gosta dela. Não queremos que ela morra afogada. Agora tenho de desligar.
- Espera. Há mais uma coisa.
- O que é?
- A Laurant tem insistido comigo para te telefonar.
- Ela está aí? Deixa-me falar com ela - disse Theo. Sentou-se na beira da cama e sentiu-se melhor. A noiva de Nick surtia esse efeito em todos os irmãos Buchanan. Fazia com que todos se sentissem bem.
- Ela não está aqui. Saiu com a Jordan, e tu conheces a tua irmã. Só Deus sabe a que horas chegarão a casa. De qualquer modo, prometi à Laurant que te apanhava e pedia...
- O quê?
- Ela quis que eu te pedisse, mas acho que não é preciso disse ele. - É óbvio.
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Theo conteve-se.
- O que é óbvio?
- Vais ser o meu padrinho de casamento.
- E o Noah?
- Ele vai ao casamento, evidentemente, mas quero que sejas tu o padrinho. Acho que já sabias, mas a Laurant achou que eu devia perguntar-te.
- Sim?
- Sim, o quê? Theo sorriu.
- Sim, está bem.
O irmão era um homem de poucas palavras.
- Óptimo. Já fizeste o teu discurso?
- Não, isso é só amanhã à noite.
- Quando é que recebes o teu trofeu?
- É uma placa e recebo-a antes de fazer o discurso.
- Então se fizeres asneira e puseres todos esses agentes armados a dormir, eles não podem exigir a devolução do trofeu, pois não?
- vou desligar.
- Ouve, Theo. Por uma vez, deixa de pensar em trabalho. Vê as vistas. Descontrai-te. Diverte-te. Ouve, eu sei... Porque não telefonas ao Noah? Ele está numa missão em Biloxi há uns meses. Podia ir até Nova Orleães de carro e vocês divertiam-se os dois.
Se alguém sabia divertir-se era Noah Clayborne. O agente do FBI tornara-se amigo íntimo da família depois de participar em várias missões com Nick e de, mais tarde, ajudar Theo nas suas investigações como advogado federal ao serviço do Departamento de Justiça. Noah era um bom homem, mas tinha um sentido de humor perverso, e Theo não sabia se conseguiria sobreviver uma noite fora na companhia de Noah nesse momento.
- Está bem, talvez - respondeu Theo.
Theo desligou o telefone, levantou-se e dobrou o corpo com a dor que irradiou do lado direito. Tinha começado na barriga, mas deslocara-se para baixo e transformara-se num ardor dos diabos. Parecia que o músculo afectado estava a arder.
Não seria uma estúpida lesão provocada pelo futebol que iria deitá-lo abaixo. A falar sozinho, Theo tirou o telemóvel do carregador,
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meteu-o no bolso do peito juntamente com os óculos e saiu do quarto. Quando chegou ao átrio, a dor tinha abrandado e ele voltou a sentir-se quase humano.
O que só reforçou a sua regra de ouro, evidentemente. Se ignorarmos a dor, ela vai-se embora. Além disso, um Buchanan conseguia resistir a tudo.
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CAPÍTULO 3
Foi uma noite memorável.
Michelle nunca participara num acontecimento tão extravagante e, nas escadas, donde via todo o salão de baile do hotel, sentiu-se uma espécie de Alice que acabara de atravessar o espelho e entrara no País das Maravilhas.
Havia flores por todo o lado, belas flores primaveris em vasos esculpidos assentes no chão de mármore e em jarras de cristal sobre todas as toalhas de mesa de linho branco. Mesmo ao centro do salão, debaixo de um magnífico lustre de cristal, via-se um conjunto de gigantescas magnólias de estufa em plena floração. O seu perfume celestial enchia o ar.
Os criados de mesa deslizavam suavemente no meio da multidão, transportando taças de champanhe em tabuleiros cromados, enquanto outros andavam de mesa em mesa a acender grandes velas brancas afiladas.
Mary Ann Winters, uma amiga de infância, estava ao lado de Michelle e absorvia tudo.
- Sinto-me desambientada aqui - disse Michelle em voz baixa. - Pareço uma adolescente desajeitada.
- Não pareces - disse Mary Ann. - Eu bem podia ser invisível. Juro que todos os homens estão de olhos postos em ti.
- Não, eles estão a olhar para o meu vestido obsceno, colado ao corpo. Como é que uma coisa pode parecer tão simples e vulgar num cabide e tão...
- Tão terrivelmente sensual em ti? Ele molda os sítios certos. Reconhece que tens uma bela figura.
- Nunca devia ter gasto tanto dinheiro num vestido.
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- Pelo amor de Deus, Michelle, é um Armani Compraste-o por uma ninharia, diria eu.
Constrangida, Michelle passou a mão pelo tecido macio. Pensou no que pagara pelo vestido e concluiu que teria de usá-lo pelo menos vinte vezes para rentabilizá-lo. Perguntou a si própria se as outras mulheres fariam o mesmo - racionalizar uma despesa frívola para aliviar a culpa. Havia tantas outras coisas mais importantes em que podia ter gasto o dinheiro e, pensando bem, quando voltaria a ter outra oportunidade para usar aquele lindo vestido outra vez? "Não em Bowen", pensou. Nunca.
- Sabes o que eu estava a pensar? Que nunca devia ter deixado que me convencesses a comprar este vestido.
Mary Ann afastou uma madeixa de cabelo louro claro para trás das costas com um gesto impaciente.
- Nem te atrevas a queixar-te outra vez do preço. Nunca gastas dinheiro contigo. Aposto que é o primeiro vestido fabuloso que alguma vez tiveste, não é? Estás linda esta noite. Promete-me que não pensas mais no assunto e que vais divertir-te.
Michelle fez um sinal afirmativo.
- Tens razão. Não vou pensar mais no assunto.
- Óptimo. Agora vamos conviver. Há champanhe e aperitivos lá fora e temos de comer pelo menos o equivalente a mil dólares cada uma. Ouvi dizer que é esse o preço dos bilhetes. Já vou ter contigo.
A amiga tinha acabado de descer as escadas quando o Dr. Cooper reparou em Michelle e lhe fez sinal para que fosse ter com ele. O Dr. Cooper era o chefe da unidade de cirurgia do Brethren Hospital, onde ela trabalhara nas horas livres no mês anterior. Habitualmente, Cooper era reservado, mas o champanhe libertara-o das inibições e tornara-o bastante afectuoso. E efervescente. O homem não se cansava de dizer que estava muito satisfeito por ela ter aproveitado os bilhetes que ele lhe oferecera e de gabar a sua beleza e o seu vestido. Michelle pensou que, se o Dr. Cooper ficasse ainda mais satisfeito, acabaria por cair na sopa.
Enquanto o médico divagava sobre os atributos dos lagostins, lançando borrifos de saliva de cada vez que abria a boca, Michelle ia-se afastando da linha de fogo. Pouco depois, aproximou-se a mulher de Cooper, acompanhada por outro casal idoso. Michelle aproveitou a oportunidade para se esgueirar.
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Não queria ficar sentada ao lado dos Cooper ao jantar. Pior do que um bêbado satisfeito era um bêbado namoradeiro, e Cooper ia sem dúvida nessa direcção. Como ele e a mulher se encontravam junto da porta que dava para o jardim e a veriam se ela passasse, Michelle dirigiu-se para o átrio dos elevadores, na esperança de conseguir chegar ao jardim pelo lado oposto.
E foi então que reparou nele. Estava encostado a uma coluna, inclinado, curvado para um lado como se protegesse o próprio corpo. Era alto, largo de ombros, bem constituído, como um atleta, pensou ela. Mas a sua pele tinha um tom acinzentado e doentio, e enquanto Michelle se encaminhava na sua direcção viu-o fazer um esgar e levar a mão ao estômago.
Era óbvio que não se sentia bem. Michelle tocou-lhe no braço para lhe chamar a atenção, precisamente quando se abriram as portas do elevador. O homem endireitou-se a custo e olhou para ela. O sofrimento embaciava-lhe os olhos cinzentos.
- Precisa de ajuda?
Ele respondeu vomitando por cima dela.
Michelle não conseguiu afastar-se porque ele lhe tinha agarrado o braço. Os joelhos cederam e ela percebeu que ele ia cair. Agarrou-o pela cintura e tentou que não caísse redondamente no chão, mas ele inclinou-se para a frente ao mesmo tempo, arrastando-a.
Theo sentia a cabeça a andar à roda. Caiu em cima da mulher. Ouviu-a gemer e tentou desesperadamente arranjar forças para se levantar. Admitiu que estivesse a morrer e pensou que isso nem sequer seria uma coisa má se o libertasse daquela dor. Era insuportável, agora. O seu estômago revolveu-se outra vez e ele foi acometido de mais uma onda de intensa agonia. Perguntou a si próprio se era assim que se sentia alguém que estivesse a ser esfaqueado várias vezes. Depois, perdeu os sentidos e, quando voltou a abrir os olhos, estava deitado de costas e ela estava debruçada sobre ele.
Tentou ver a cara dela com nitidez. Tinha uns lindos olhos azuis, mais roxos do que azuis, e sardas na cana do nariz. Depois, tão repentinamente como acabara, o ardor recomeçou, muito pior do que antes.
Um espasmo no estômago fê-lo dar um solavanco.
- Filho-da-mãe!
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A mulher falava com ele, mas Theo não percebia as suas palavras. E o que diabo estava ela a fazer-lhe? Estava a roubá-lo? As mãos dela estavam em toda a parte, na carteira dele, na gravata, na camisa. Ela tentava esticar-lhe as pernas. Estava a magoá-lo, raios, e sempre que ele fazia o possível por afastar-lhe as mãos, estas continuavam a tocar-lhe, a palpá-lo ainda mais.
Theo continuava a perder e a recuperar sucessivamente a consciência. Sentiu-se embalado e ouviu uma sirene a apitar junto da sua cabeça. A Olhos Azuis ainda lá estava também, a importuná-lo. Recomeçou a fazer-lhe perguntas. Qualquer coisa acerca de alergias. Quereria ela que ele fosse alérgico a alguma coisa?
- Pois, claro.
Theo sentiu que ela lhe abria o casaco e percebeu que ela podia ver o coldre com a arma que trazia à cintura. Estava desesperado com dores e nem conseguia pensar como devia ser. Só sabia que não podia deixar que ela lhe levasse a arma.
Era uma assaltante tagarela. Sem dúvida. Parecia um daqueles modelos de J. Crew. Era meiga, pensou ele. Não, não era meiga. Continuava a magoá-lo.
- Ouça, minha senhora, pode levar-me a carteira mas não me tira a arma. Percebeu?
Theo mal conseguia pronunciar as palavras, de tal modo cerrava os dentes.
Ela tocou-lhe com a mão no lado. Ele reagiu instantaneamente, agredindo-a. Admitiu que a tivesse atingido porque ouviu-a gritar antes de perder os sentidos outra vez.
Theo não soube durante quanto tempo esteve inconsciente, mas, assim que abriu os olhos, as luzes intensas fizeram-no pestanejar. Onde diabo estava ele? Não tinha força para se mexer. Talvez estivesse em cima de uma mesa. Dura e fria.
- Onde estou?
Tinha a boca tão seca que falou com uma voz arrastada.
- Está no Brethren Hospital, Mr. Buchanan.
A voz de homem veio de trás dele, mas Theo não conseguia vê-lo.
- Apanharam-na?
- A quem?
- A J. Crew.
- Ele está maluco - disse uma mulher, cuja voz ele não reconheceu.
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De repente, Theo apercebeu-se de que já não tinha dores. Sentiu-se bem, aliás. Mesmo bem. Como se pudesse voar. Mas, era estranho, não tinha força para mexer os braços. Aplicaram-lhe uma máscara sobre a boca e o nariz. Theo virou a cabeça para se livrar daquilo.
- Está a ficar com sono, Mr. Buchanan?
Ele virou a cabeça outra vez e viu-a. A Olhos Azuis. Parecia um anjo, toda dourada. Calma. O que diabo estava ela a fazer ali? Calma...
- Mike, consegue ver o que está a fazer? Esse olho está com mau aspecto.
- Está bem.
- Como é que isso aconteceu? - perguntou a voz atrás da cabeça de Theo.
- Ele agrediu-me.
- O paciente deitou-a ao chão?
- Exactamente.
Ela fitava os olhos de Theo quando respondeu. Usava uma máscara verde, mas ele percebeu que ela estava a sorrir.
Theo sentia um torpor tão agradável e tinha tanto sono que mal conseguia manter os olhos abertos. Percebia que conversavam à sua volta, mas nada fazia sentido.
- Onde o encontrou, Dr.a Renard?
- Numa festa.
Outra mulher inclinou-se sobre ele.
- Bravo!
- Foi amor à primeira vista?
- Tu é que sabes. Ele vomitou por cima de mim e estragou o meu vestido novo.
Alguém se riu.
- Isso parece-me amor. Aposto que é casado. Todos os homens bonitos são casados. Este é de certeza. Verificaste a mercadoria, Annie?
- Espero que o nosso paciente esteja a dormir.
- Ainda não está - respondeu uma voz masculina. - Mas não se lembrará de nada.
- Onde está a assistente?
- A purificar o ar.
Parecia uma festa. Pelos cálculos de Theo, estavam pelo menos vinte ou trinta pessoas na sala com ele. Por que diabo estava
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tanto frio? E quem fazia aquele barulho todo? Tinha sede. Parecia que tinha a boca cheia de algodão. Talvez fosse melhor beber alguma coisa. Pois, era o que iria fazer.
- Onde está o Dr. Cooper?
- Talvez já tenha desmaiado em cima da sobremesa a esta hora.
Foi a Olhos Azuis que respondeu à pergunta. Theo adorava o som da voz dela. Era tremendamente sensual.
- Então viste o Cooper na festa?
- Vi - respondeu a Olhos Azuis. - Não estava de prevenção esta noite. Ele trabalha muito. Foi agradável vê-lo a divertir-se. Talvez a Mary também esteja a passar um bom bocado.
- Você.
Theo teve dificuldade em pronunciar a palavra. Mesmo assim, chamara-lhe a atenção porque, quando abriu os olhos, ela estava debruçada sobre ele, a tapar a luz intensa que o ofuscava.
- Chegou a hora de adormecer, Mr. Buchanan.
- Ele está a resistir.
- O que... - disse Theo.
- Sim?
- O que pretende de mim? : Foi o homem que estava atrás dele que respondeu:
- A Mike quer o seu apêndice, Mr. Buchanan.
A ideia agradou-lhe. Gostava sempre de satisfazer um desejo a uma bela mulher.
- Está bem - disse ele. - Está na minha carteira.
- Estamos prontos.
- Está quase - disse o homem.
- O que quer ouvir esta noite, Dr.a Renard?
- E preciso perguntar, Annie?
Ouviu-se um gemido na sala. E depois um estalido. Theo ouviu a cadeira chiar atrás dele e depois a voz do desconhecido a dizer-lhe que respirasse fundo. Por fim, reconheceu o homem que estava atrás dele. Raios o partissem se não era o Willie Nelson, e estava a cantar para ele ouvir, qualquer coisa sobre a Olhos Azuis a chorar à chuva.
Mas que raio de festa!
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CAPÍTULO 4
Theo continuou a dormir no recobro. Quando acordou na manhã seguinte, estava numa cama de hospital. A cama tinha grades e ele estava a soro. Fechou os olhos e tentou ordenar os pensamentos. O que diabo lhe acontecera? Não se lembrava.
Já passava das dez horas quando voltou a abrir os olhos. Ela estava ali, ao lado da cama, a aconchegar-lhe os lençóis à volta da cintura. Ainda vestia a bata cirúrgica, mas já tinha o cabelo à mostra. Dava-lhe pelos ombros e o tom era de um ruivo forte.
Era muito mais bonita do que ele se lembrava.
Ela reparou que ele estava acordado.
- bom dia. Como se sente? Ainda um pouco sonolento?
Theo tentou sentar-se. Ela aproximou-se do painel de comandos e carregou num botão. A cabeceira da cama ergueu-se lentamente. Theo sentiu um puxão no lado do corpo e um ligeiro ardor.
- Diga-me quando se sentir bem.
- Está bem. Obrigado - disse ele.
Michelle pegou na ficha clínica e começou a escrever, enquanto ele a observava ostensivamente. Sentia-se vulnerável e desajeitado, sentado na cama e com uma camisa de hospital. Não conseguiu lembrar-se de nada inteligente para lhe dizer. Pela primeira vez na sua vida, queria ser agradável, mas não imaginava como. Era um autêntico
viciado no trabalho e não arranjara espaço na sua vida para os requintes sociais. Nos últimos quatro anos, desde a morte da mulher, tornara-se brusco, agressivo
e directo porque isso poupava tempo e, pelo menos agora, andava sempre
depressa. Esta súbita reviravolta surpreendia-o. Queria mesmo ser agradável. Fazer figura,
como diria Zack, o irmão mais novo.
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Mesmo assim, Theo estava convencido de que conseguiria. Sim. Ser agradável estava ao seu alcance.
- Lembra-se do que aconteceu ontem à noite? - perguntou ela, interrompendo os seus apontamentos.
- Fui operado.
- Sim. Foi-lhe retirado o apêndice. Mais um quarto de hora e teria sofrido uma ruptura.
- Lembro-me de coisas esparsas. O que aconteceu ao seu olho?
Ela sorriu e recomeçou a escrever.
- Não me afastei a tempo.
- Quem é você?
- Sou a Dr.a Renard.
- A Mike?
- Como?
- Alguém lhe chamou Mike.
Michelle fechou o dossiê, pôs a tampa na caneta de tinta permanente e enfiou-a na algibeira. E concentrou-se totalmente nele. As enfermeiras do bloco operatório tinham razão. Theo Buchanan era lindo... e tremendamente sensual. Mas nada disto interessava. Ela era a sua médica, nem mais nem menos, embora não pudesse deixar de reagir a ele como qualquer mulher reagiria a um tão belo espécimen. Theo tinha o cabelo espetado e a barba por fazer, mas mesmo assim era sexy. Não havia mal nenhum em que ela reparasse nisso... A menos, evidentemente, que ele se apercebesse de que ela estava a observá-lo.
- Você fez-me uma pergunta, não é verdade? Michelle não obteve resposta.
Theo percebeu que a tinha atrapalhado, mas não sabia porquê.
- Ouvi alguém chamar-lhe Mike. Ela assentiu com a cabeça.
- É verdade. Os colegas tratam-me por Mike. É um diminutivo de Michelle.
- Michelle é um lindo nome.
- Obrigada.
Theo começava a recordar-se de tudo. Estava numa festa, onde se encontrava também esta linda mulher com um vestido de noite preto muito sexy. Era de cortar a respiração. Ele lembrava-se
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disso. Tinha uns olhos azuis irresistíveis e Willie Nelson estava ao lado dela. A cantar. Não, não era possível. Era óbvio que a cabeça dele ainda não funcionava bem.
Você estava a falar comigo... depois da operação - disse
ele.
- No recobro. Sim. Mas você é que falava mais - disse ela,
sorrindo outra vez.
- Sim? O que disse eu?
- Quase só coisas sem nexo.
- Você tirou-me a arma. Onde está ela?
- Fechada no cofre do hospital junto dos seus outros bens pessoais. O Dr. Cooper tratará de garantir que você os recebe antes de sair. Vai ficar entregue aos cuidados dele. E vai conhecê-lo daqui a pouco, quando ele acabar de fazer as rondas.
- Porquê?
- Porquê o quê, Mr. Buchanan?
- Theo - corrigiu ele. - Chamo-me Theo.
- Sim, eu sei. O seu irmão disse-me que tem esse diminutivo.
- Que irmão?
- Quantos tem?
- Cinco - respondeu ele. - E duas irmãs. Então, com quem falou?
- com Nick - respondeu ela. - Você deu-me o número do telefone dele e pediu-me que o avisasse. Ele ficou preocupado e obrigou-me a prometer que lhe telefonaria depois da operação. Assim que o levaram para o recobro, telefonei-lhe e garanti-lhe que você ia ficar bom. Ele queria vir cá, mas pareceu-me aliviado quando lhe disse que não era necessário.
- O Nick odeia andar de avião - explicou Theo. - Quando é que lhe dei o número do telefone dele? Não me lembro.
- Quando estava no pré-operatório. Ficou muito falador quando lhe demos qualquer coisa para o aliviar das dores e, a propósito, a resposta é "não". Não caso consigo.
Ele sorriu. Ela devia estar a brincar.
- Não me lembro de estar no pré-operatório. Mas lembro-me de ter dores. Eram fortes como o...
- Não duvido.
- Você é que me operou, não foi? E eu não percebi?
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- Sim, eu é que operei.
Michelle recuava na direcção da porta. Ele não queria que ela saísse por enquanto. Queria conhecê-la melhor. com os diabos, como ele gostava de ser mais dado a conversas de circunstâncias...
- Espere. ; Ela parou.
- Sim?
- Água... Dá-me um copo de água?
Ela aproximou-se da mesa-de-cabeceira, deitou um pouco de água num copo e estendeu-lho.
- Só um golinho - disse ela. - Se ficar nauseado e vomitar, estraga as minhas suturas.
- Está bem - disse ele. Bebeu um golo e devolveu-lhe o copo. - Você parece muito nova para ser cirurgiã.
"Estúpido", pensou ele, mas foi o melhor que lhe saiu naquele momento.
- Ouço isso muitas vezes.
- Você tem ar de quem devia andar na faculdade. "Esta afirmação foi pior do que estúpida", concluiu ele. Ela não conseguiu resistir.
- No liceu, aliás. Deixam-me operar por favor.
- Dr.a Renard, posso interromper?
À porta estava um auxiliar, com uma grande caixa de cartão debaixo do braço.
- Sim, Bobby?
- O Dr. Cooper encheu esta caixa com medicamentos que tinha no gabinete dele. São para a sua clínica - disse o jovem.
- Onde quer que eu a ponha? O Dr. Cooper deixou-a na sala das enfermeiras, mas elas não a queriam lá. Estava a estorvar.
- Não se importa de levá-la para o meu cacifo?
- É grande de mais, Dr.a Renard. Não cabe. Mas não é pesada. Posso levá-la até ao seu carro.
- O meu pai é que anda com o carro - disse ela. Olhou à volta e depois para Theo. - Não se importa que o Bobby deixe a minha caixa aqui? O meu pai leva-a para o carro assim que chegar.
- Não me importo - respondeu Theo.
- Não voltarei a vê-lo. vou para casa hoje, mas não se preocupe. Fica em boas mãos. O Dr. Cooper é o chefe da equipa de cirurgia do Brethren e tomará bem conta de si.
- Onde mora?
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- Nos pântanos.
- Está a brincar?
- Não - respondeu ela. Sorriu outra vez, e Theo reparou numa covinha na face esquerda. - Vivo numa cidadezinha rodeada de pântanos, e estou ansiosa por lá chegar.
- Tem saudades?
- Sim, tenho - admitiu ela. - Gosto de terras pequenas. Não é uma vida muito espaventosa, e é exactamente isso que eu aprecio.
- Gosta de viver nos pântanos.
Foi uma afirmação e não uma pergunta, mas ela respondeu.
- Parece que ficou escandalizado.
- Não, apenas surpreendido.
- Você é de uma cidade enorme e provavelmente detestaria.
- Porque diz uma coisa dessas? Ela encolheu os ombros.
- Você parece demasiado... sofisticado.
Theo não percebeu se isto fora um cumprimento ou uma crítica.
- Às vezes, não podemos ir para casa. Acho que li isto num livro, uma vez. Além disso, você parece-me uma típica mulher de Nova Orleães.
- Adoro Nova Orleães. É um sítio maravilhoso para jantar.
- Mas nunca será o mesmo que estar em casa.
- Não.
- Então é a médica da cidade?
- Uma de vários - respondeu ela. - vou abrir lá uma clínica. Não é muito luxuosa, mas é bastante necessária.
É que muitas pessoas não têm recursos para receber assistência médica com regularidade.
- Parece que elas têm muita sorte por poderem contar consigo. Ela abanou a cabeça.
- Oh, não, eu é que tenho sorte. - Depois, deu uma gargalhada. - Isto soou bem, não soou? Mas eu é que tenho sorte. As pessoas são maravilhosas, ou pelo menos é
o que eu acho, e dão-me muito mais do que eu posso dar-lhes. - Ao falar, o rosto de Michelle iluminou-se. - Sabe do que vou gostar mais?
- De quê?
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- Não há cinismo. Na sua maioria, são pessoas honestas e vulgares que tentam viver em comunidade. Não desperdiçam muito tempo com patetices.
- Então, todos gostam uns dos outros? - perguntou ele, zombando da ideia.
- Não, evidentemente que não - respondeu ela. - Mas vou conhecer os meus inimigos. Eles não me darão facadas nas costas nem me torpedearão. Isso não tem a ver comigo. - Michelle sorriu outra vez. - Lidarão comigo olhos nos olhos, o que me agrada. Como eu disse, não gosto de cinismos. Depois da casa de repouso que acabei de criar, esta vai ser uma mudança renovadora.
- Vai ter um grande gabinete muito bem apetrechado e todas essas mordomias?
- De maneira nenhuma. Há outras recompensas além do dinheiro. Oh, claro, será óptimo dispormos de todo o material e equipamento de que necessitamos, mas vamos conseguir. Há muitos anos que ando a preparar-me para isto... Além disso, fiz uma promessa.
Theo continuou a fazer-lhe perguntas para obrigá-la a falar. Estava interessado em ouvi-la falar da sua cidade, mas sobretudo fascinado com as suas expressões. Havia muita paixão e alegria na sua voz, e os olhos dela brilhavam quando falava da família e dos amigos e do bem que esperava fazer.
Ela fez-lhe lembrar os seus primeiros tempos de exercício da advocacia, antes de se tornar cínico. Também ele quisera mudar o mundo, aperfeiçoá-lo. Rebecca acabara com tudo isso. Olhando para trás, Theo reconheceu que falhara redondamente.
- Tenho estado a cansá-lo com esta conversa sobre a minha cidade natal. Agora, vou deixá-lo descansar - disse ela.
- Quando posso sair daqui?
- Essa é uma decisão do Dr. Cooper, mas, se fosse eu que decidisse, você ficava cá mais uma noite. Tinha uma grande infecção. Tem de abrandar o ritmo durante uns quinze dias, e não se esqueça de tomar o antibiótico. Boa sorte, Theo.
Depois, ela foi-se embora, e ele tinha perdido a única oportunidade de saber mais coisas a seu respeito. Nem sequer sabia donde ela era. Adormeceu a tentar arranjar uma maneira de voltar a vê-la.
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CAPÍTULO 5
O quarto estava cheio de flores quando Theo despertou do seu sono matinal. Ouviu falar em voz baixa no corredor, abriu os olhos e viu uma enfermeira a conversar com um homem de idade. A enfermeira apontava para a caixa que o auxiliar lá deixara.
O homem parecia um defesa lateral reformado, pensou Theo. Ou talvez um pugilista. Se ele era o pai da Dr.a Renard, ela herdara a boa aparência do lado da mãe.
- Não quero incomodá-lo - disse o homem, com uma voz grossa e sotaque cajun. - Só venho buscar esta caixa que o Dr. Cooper arranjou para a minha filha e vou-me logo embora.
- Entre - disse Theo. - É o pai da Dr.a Renard, não é?
- Exactamente. Chamo-me Jake. Jake Renard. - Jake atravessou o quarto e aproximou-se da cama para apertar a mão a Theo, que não precisou de apresentar-se. Jake sabia quem ele era.
- A minha filha falou-me em si.
- Falou?
Theo não conseguiu esconder a surpresa.
- O senhor deve ter sido muito rápido, porque a minha Mike sabe tomar conta de si própria.
Theo não sabia do que o homem estava a falar.
- Eu fui "rápido"?
- Quando a agrediu - explicou ele. - Onde julga que ela arranjou aquele olho negro?
- Fui eu que fiz aquilo? - Theo ficou incrédulo. Não se lembrava de nada, e ela nem falara no assunto. - Tem a certeza?
- Absoluta. Percebi que o senhor não quis aleijá-la. Ela disse-me que o senhor estava com dores. Teve sorte por ela ter reparado em si. - O homem encostou-se à grade da cama e cruzou
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os braços. - A minha filha não costuma falar-me dos doentes, mas eu sabia que ela tinha ido a uma grande festa e estreado um vestido que não queria comprar, e quando lhe perguntei se se tinha divertido, ela falou-me em si. Mal tinha chegado quando foi obrigada a dar meia-volta e a regressar ao hospital. Nem tocou na comida.
- Eu devia pedir-lhe desculpa.
- O senhor rasgou-lhe o vestido. Talvez devesse pedir-lhe desculpa também por isso.
- Eu rasguei-lhe o vestido?
- Depois de ter vomitado por cima dela. - Jake soltou uma risadinha e abanou a cabeça. - Estragou aquele vestido novo que lhe custou quatrocentos dólares.
Theo soltou um gemido. Lembrava-se disso.
- Parece que precisa de descansar. Se vir a minha filha, diz-lhe que eu estou à espera dela na entrada? Foi um prazer conhecê-lo.
- Porque não espera aqui? - sugeriu Theo. - Já dormi tudo. Quando a sua filha vier à sua procura, posso agradecer-lhe.
- Acho que posso sentar-me um bocadinho. Mas não quero incomodá-lo.
- Não incomoda nada.
Jake puxou uma cadeira para junto da cama e sentou-se.
- Donde é, filho? Pelo seu sotaque, eu apostaria que é da costa leste.
- De Boston.
- Nunca lá fui - admitiu Jake. - É casado?
- Fui.
- É divorciado.
- Não, a minha mulher morreu.
O seu tom de voz dava a entender que Jake não devia fazer mais perguntas a este respeito.
- E os seus pais? Ainda são vivos?
- Sim, são - respondeu Theo. - A minha família é grande. Somos oito, seis rapazes e duas raparigas. O meu pai é juiz. Continua a tentar reformar-se, mas ainda não descobriu o que há-de fazer.
- Acho que nunca conheci um juiz - disse Jake. - A minha mulher, a Ellie, queria uma família grande, e se tivéssemos
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sido abençoados, talvez eu tivesse arranjado uma maneira de sustentá-los a todos. Eu estava disposto a fazer a minha parte, mas tivemos de nos ficar por três. Dois rapazes e uma rapariga.
- Qual é exactamente a sua terra? A sua filha falou-me da clínica, mas nunca me disse qual era a cidade.
- Trate-me por Jake - insistiu ele. - Bowen, Louisiana, mas calculo que nunca tenha ouvido falar dela. A cidade é tão pequena que nem deve vir no mapa. Bowen é pequena, realmente, mas é a terra mais bonita de toda a Louisiana. Às vezes, à tarde, quando o Sol se põe e se levanta uma brisa, o musgo começa a ondular, a luz reflecte-se na água e as rãs gigantes e os aligátores começam a cantar uns para os outros... Bem, filho, penso que devo viver no paraíso.
É tão bonito! A cidade mais próxima
é St. Claire, onde as pessoas vão fazer compras ao sábado, portanto, não estamos completamente isolados. Tem um hospital, na zona norte. É velho, mas serve - acrescentou
ele.
- Os seus filhos vivem em Bowen?
- Remy, o meu mais velho, está no Colorado. É bombeiro e ainda não se casou - disse ele. - Vem a casa de vez em quando. John Paul, o do meio, saiu dos Marines e
voltou para Bowen há dois anos; também ainda não se casou. Tem muito que fazer, creio eu. Vive numa linda casinha que construiu no meio dos pântanos e, quando não está a trabalhar no bar para mim, é carpinteiro. No ano passado, abrimos um novo liceu e o John Paul ajudou a construí-lo. Chama-se Daniel Boone. Puseram-lhe o nome de uma celebridade da terra.
- Não me diga que é o Daniel Boone que ajudou a colonizar o Kentucky... O pioneiro... Refere-se a ele?
- Pois, é esse mesmo.
- Está a dizer que Boone viveu em Bowen? Jake abanou a cabeça.
- Não, filho, não podemos orgulhar-nos disso, mas segundo a lenda, esse tal Daniel andou por ali à pesca e à caça. E claro que isto foi em mil setecentos e tal, antes de Bowen ser uma cidade. Mesmo assim, gostamos de pensar que Daniel pescou nas nossas águas e passou por lá.
Theo fez o possível por não se rir. Pelos vistos, as pessoas de Bowen precisavam desesperadamente de heróis locais.
- Donde vem o nome de Bowen?
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- Vem do termo howie, como na faca1.
- Como o Jim Bowie? Ele também passou por lá?
- Gostamos de pensar que sim.
- O senhor está a brincar comigo.
- Não, não estou - insistiu Jave. - É claro que o Jim não apareceu ao mesmo tempo que o Daniel. Chegou mais tarde, em mil oitocentos e tal.
- Tem a certeza de que não está a confundir Daniel Boone com Davy Crockett?
- Espero bem que não. A escola já tem as letras gravadas na pedra.
- Há provas de que Boone esteve em Bowen?
- Nenhuma que se conheça - admitiu Jake, piscando o olho. - Mas acreditamos que seja verdade. Como eu ia a dizer, as crianças de Bowen iam de autocarro para o liceu todo catita de St. Claire, mas já havia gente a mais. com o tempo, conseguimos o nosso. Até arranjámos uma equipa de futebol. Ficámos todos muito entusiasmados com isso no ano passado... Até os vermos jogar. Meu Deus, são uma desgraça. Mas eu nunca faltei a um jogo e também não vou faltar este ano porque, agora que a minha filha lá está, ela vai comigo. A Mike aceitou ser a médica da equipa, o que quer dizer que vai sentar-se na linha lateral e tratar deles quando se lesionarem. Todos sabemos que eles vão ser trucidados outra vez, mas acho que devo apoiá-los aparecendo e aplaudindo-os. Não ganhámos um único jogo no ano passado. Temos alguns rapazes muito bons, mas não sabem o que hão-de fazer quando recebem a bola. Também não sabem pontapear. Gosta de ver futebol, Theo?
- Claro - respondeu ele.
- Já alguma vez jogou?
- Sim, joguei. No liceu e na faculdade, até dar cabo de um joelho.
- Em que posição? Você é alto e largo de ombros. Aposto que foi médio.
Theo confirmou.
- Exactamente. Parece que já foi há tanto tempo! Jake tinha um brilho especulativo no olhar.
1 Bowie knife é uma faca de mato originária da América do Norte. (.V. da T.)
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-Já alguma vez pensou em ser treinador? Theo riu-se.
Não, não pensei.
.- A Mike havia de conseguir tratar-lhe o joelho. .- Deve orgulhar-se muito da sua filha, que regressa à sua terra para abrir uma clínica.
- Claro que me orgulho dela - disse ele. - Mas não vou permitir que se mate a trabalhar. Há outros médicos em St. Claire e revezam-se uns aos outros para que cada um possa folgar de vez em quando.
- Porque é que ela é cirurgiã aqui no Brethren?
- Para ganhar mais dinheiro. Tem dois empregos, mas agora vai sair daqui e não volta. Gosta de pescar?
- Antigamente pescava, mas nestes últimos anos não tenho tido tempo para isso - admitiu ele. - Mas lembro-me bem. Não há nada como aquela sensação de calma que nos invade quando...
- Temos a cana de pesca numa mão e uma cerveja fresca na
outra:
- Nem mais. Não há nada como isso.
Começaram a falar dos truques e iscos preferidos e gabaram-se dos peixes que tinham apanhado. Jake estava impressionado. Nunca pensara que alguém percebesse de pesca ou gostasse tanto de pescar como ele, mas tinha de admitir, pelo modo como Theo falava, que encontrara um bom parceiro.
- Garanto-lhe, o senhor tem de ir a Bowen. Temos o melhor peixe da Louisiana e quero provar-lhe que isto é verdade. Passaremos uns bons momentos no meu pontão.
- É possível que eu aceite o seu convite - disse Theo.
- O que faz na vida? - perguntou Jake.
- Sou advogado.
- Por que razão o chefe da polícia lhe manda flores? - perguntou Jake. - Estavam em cima do balcão, na sala das enfermeiras, e quando as trouxeram para aqui eu li o cartão - acrescentou, envergonhado.
- Eu vim a Nova Orleães para fazer um discurso - disse ele, omitindo que estava a ser homenageado pelas autoridades locais. - Trabalho para o Departamento de Justiça.
- E o que faz exactamente?
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- Estive integrado numa equipa de trabalho especial - disse ele. Apercebendo-se de que estava a ser evasivo, acrescentou: Na área do crime organizado. E terminei a minha missão.
- Apanhou o seu homem? Theo sorriu.
- Sim, apanhei.
- E agora está desempregado?
- Não - respondeu ele. - O Departamento de Justiça quer que eu continue. Não sei ao certo o que vou fazer.
Jake continuou a fazer perguntas. Theo pensou que ele daria um grande promotor público. Era perspicaz e rápido de raciocínio.
- Já pensou em abrir o seu próprio escritório? - perguntou Jake.
- Às vezes penso nisso.
- Não há bons advogados em Bowen. Temos dois em St. Claire, mas são uns ladrões. As pessoas não gostam muito deles.
Enquanto Jake falava da sua cidade, Theo continuava a tentar desviar a conversa para Michelle.
- A sua filha é casada? Que subtileza!
- Eu estava admirado por não me fazer perguntas sobre a Mike. A resposta é não, ela não é casada. Não tem tido tempo. É claro que os homens de Bowen e St. Claire andam sempre a tentar chamar-lhe a atenção, mas ela tem andado muito atarefada com a clínica e nem lhes presta atenção. Ainda é nova. E inteligente. Meu Deus, é a minha filha inteligente. Formou-se antes dos vinte anos e depois começou a fazer o estágio. Teve de sair do estado para fazer o internato, mas vinha a casa sempre que tinha oportunidade. É a inteligência da família - acrescentou ele, com um gesto de cabeça. - E também é bonita, não é?
- Sim, é.
- Calculei que tivesse reparado.
Jake levantou-se e encostou outra vez a cadeira à parede.
- Gostei deste bocadinho, mas agora tenho de ir-me embora. O senhor vai dormir e eu vou levar aquela caixa para o carro. O Dr. Cooper ofereceu equipamento cirúrgico usado à minha filha, e quando ela me pediu que viesse buscá-lo sorria como se
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dia de Natal. Se alguma vez for a Bowen, passe pelo The Swan. É o meu bar - explicou ele. - As bebidas são por conta
aa kke já estava à porta quando Theo o obrigou a parar
- Se eu não vir a sua filha antes de sair, por favor agradeça,lhe por mim e diga-lhe que lamento o que aconteceu ao vestido.
Prometo que direi.
- Talvez os nossos caminhos se voltem a cruzar um dia.
Talvez - disse Jake.
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CAPÍTULO 6
Os amigos de John não deram por nada.
Duas semanas depois do funeral de Catherine, Cameron encontrou por acaso o viúvo inconsolável no Commanders Palace, um restaurante de quatro estrelas no Garden District. Cameron estava sentado numa das salas à espera do advogado para discutir o assunto interminável e completamente enjoativo do seu divórcio. A mulher estava apostada em destruir-lhe as finanças e em sujeitá-lo a uma humilhação pública no processo e, pelo modo como as coisas estavam a correr, tudo indicava que conseguiria.
John estava a jantar com uma jovem na sala do lado. A loura pareceu-lhe vagamente familiar. Tinha a cabeça baixa e apontava qualquer coisa na agenda.
Cameron não se lembrava de onde a vira, mas gostou de saber que o amigo saíra à noite, mesmo que fosse por motivos profissionais. A disposição de John era muito instável desde a morte da mulher. Ora estava radiante, quase eufórico, ora chafurdava na autocompaixão e na depressão.
A loura levantou a cabeça e Cameron viu bem a cara dela. Era muito bonita. Mesmo assim, não conseguiu situá-la. Resolveu interromper o casal para o cumprimentar. Mandou vir um uísque duplo para ganhar forças e enfrentar a provação que o esperava quando chegasse o advogado e depois começou a contornar as mesas em direcção à sala ao lado.
Se não tivesse deixado cair a caneta, nunca teria descoberto a verdade. Baixou-se para apanhá-la e foi então que viu John a apalpar a coxa da loura por baixo da toalha de linho branco. Ela afastou as pernas e mudou ligeiramente de posição, de modo a
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aproximar o corpo da mão dele, que avançava agora debaixo do vestido.
Cameron ficou tão chocado com aquela intimidade que ia perdendo o equilíbrio. Recompôs-se à pressa e endireitou-se. Nem John nem a loura repararam nele. Ela virara a cabeça e semicerrara os olhos, num êxtase ostensivo.
Cameron não conseguia acreditar no que via, mas a sua incredulidade depressa se transformou em confusão.
De repente, lembrou-se de quem era a loura, embora não se recordasse do nome. Era a mulher insípida que se autodenominava decoradora de interiores. Cameron conhecera-a no escritório de John. Oh, sim, agora começava a lembrar-se de tudo. Ela não tinha nem talento nem gosto. Transformara o gabinete do amigo num salão de bordel, ao pintar as paredes revestidas de belos painéis de nogueira de um amarelo-mostarda forte e piroso.
Mas era evidente que os seus talentos se concentravam noutra área. O modo como John quase se babava ao olhar para a boca dela indicava que a mulher era um ás na cama. Cameron deixou-se ficar à porta, a observar o amigo, enquanto se habituava à realidade.
O filho-da-mãe enganara-os a todos.
Incrédulo, e ao mesmo tempo dominado pela raiva, Cameron deu meia-volta e regressou à sua mesa. Tentou convencer-se de que estava a tirar conclusões erradas. Conhecia John há anos e depositava nele uma confiança total.
Até agora. com os diabos, o que lhes fizera John? Crime de colarinho branco era uma coisa; assassínio era outra. O clube nunca fora tão longe, e o mais assustador era que eles se tinham convencido de que estavam a praticar uma boa acção. Se dissessem tal coisa a um júri dos seus pares, estes rir-se-iam a bandeiras despregadas.
Meu Deus, sofreria Catherine de uma doença terminal? Estaria mesmo a morrer lentamente e em agonia? Ou John mentira-lhes para convencê-los a fazer o seu trabalho sujo?
Não, não era possível. John não podia ter mentido acerca da mulher. Ele amava-a, raios.
Cameron sentiu-se enjoado. Não sabia o que pensar, mas sabia que não estava certo condenar o amigo sem conhecer todos os factos. Depois, ocorreu-lhe que o caso,
a existir, podia ter
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começado depois da morte de Catherine. Agarrou-se a esta ideia. Sim, evidentemente. John conhecera a decoradora antes da morte da mulher. A loura fora contratada por Catherine para redecorar o quarto. John estava triste e só e a jovem estava disponível. com os diabos, talvez ela se tivesse aproveitado da vulnerabilidade dele logo a seguir ao funeral.
Mas subsistia uma dúvida perturbante. Se a situação era inocente, porque não falara John nela aos amigos? Porque a escondia?
Talvez porque as cinzas da mulher ainda nem tinham arrefecido. Pois, era isso. John sabia que não parecia bem envolver-se com outra mulher passado tão pouco tempo sobre a morte de Catherine. As pessoas iriam achar estranho e começariam a murmurar e a especular, e o clube não queria nada que tal acontecesse. John era suficientemente inteligente para saber que não devia dar nas vistas.
Cameron estava quase convencido de que aquilo que vira era inofensivo, mas sentia-se compelido a certificar-se. Não deixou que John o visse. Pagou a conta e saiu do restaurante discretamente. Pediu ao porteiro que lhe trouxesse o Ford usado que se via obrigado a usar agora: a futura ex-mulher já lhe confiscara o seu querido Jaguar, a filha-da-mãe. Parou no quarteirão seguinte, agachou-se no banco e virou-se para trás à espera que o casal saísse. Enquanto esperava, pegou no telemóvel e telefonou ao advogado a cancelar o jantar.
Os dois saíram vinte minutos depois. Pararam à beira do passeio, virados um para o outro, a metro e meio de distância, com um ar hirto e formal como se fossem pouco mais do que estranhos, John com as mãos enfiadas nos bolsos das calças e a loura agarrada à carteira e à agenda. Quando o carro dela chegou, ela pôs a carteira debaixo do braço e apertou a mão a John. O porteiro abriu-lhe a porta do Honda vermelho-cereja e ela entrou e arrancou sem olhar para trás.
Para um observador casual, a cena respirava profissionalismo.
Um minuto depois, chegou o BMW descapotável cinzento de John. com o seu vagar, John despiu o casaco, dobrou-o e pousou-no no banco do passageiro. Vestia um elegante fato Valentino, o único estilista que merecia a sua preferência. Cameron sentiu-se invadido por uma onda de amargura. Há seis meses,
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também ele tinha o roupeiro cheio de fatos Joseph Abboud, Calvin Klein e Valentino, mas depois a mulher, num acesso de fúria, agarrara numa faca de cozinha e rasgara-os. Este pequeno ataque destruíra mais de cinquenta mil dólares de roupa.
Céus, como ele desejava vingar-se! Havia noites em que, deitado na cama, fantasiava sobre todo o tipo de formas de a matar. O elemento mais importante nos seus devaneios era o sofrimento. Queria que a cabra sofresse ao morrer. O seu cenário preferido era empurrá-la pela janela fora, desfazer-lhe a cara no vidro e vê-la a esvair-se em sangue até morrer. Na sua fantasia, um estilhaço de vidro rasgava-lhe uma artéria.
Oh, sim, queria que ela sofresse tal como ele estava a sofrer por sua causa, ajustar contas com ela por lhe ter estragado a vida. Ela congelara todos os seus bens até chegarem a um acordo de divórcio, mas ele já sabia qual seria o desfecho. Ela é que ficaria com tudo.
Ela não sabia da existência do Clube da Sementeira nem dos bens ocultos que eles possuíam. Ninguém sabia. Nem o advogado dela conseguiria descobrir o dinheiro, mesmo que procurasse. Os milhões de dólares estavam depositados numa conta, algures num paraíso fiscal, e ninguém poderia relacioná-los com ele.
Mas por enquanto, não beneficiava nada com o facto de ter dinheiro escondido. Só lhe podia tocar quando fizesse quarenta anos. Era esse o acordo que os quatro amigos tinham feito, e Carneron sabia que os outros não o deixariam retirar nada da conta. Era demasiado arriscado, e durante quatro anos ele seria obrigado a aceitar os factos e a viver como um miserável.
John era um diabo com sorte. Agora que Catherine morrera, ele ficara com o que restava da herança dela e não tinha de partilhar nada com ninguém.
Cameron ficou roído de inveja ao ver o amigo a pôr o boné de golfe Saints na cabeça. Sabia que John só usava aquilo para esconder a calva. Quando chegasse aos cinquenta,
estaria completamente calvo, como todos os homens da sua família, por muitas precauções que tomasse. Mas que importância tinha isso? Seria bem-sucedido junto das
mulheres. Elas aceitariam qualquer defeito desde que houvesse dinheiro envolvido.
Cameron afastou este último acesso de autocompaixão abanando a cabeça. Ter pena de si próprio não mudaria coisa nenhuma.
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Além disso, podia aguentar mais uns anos. Concentrar-se no futuro. Dentro de pouco tempo, conseguiria reformar-se, rico como um multimilionário e mudar-se para
o Sul da França, e aí não haveria nada que a sua ex-mulher lhe pudesse fazer.
John instalou-se no banco de couro macio. Em seguida, aliviou o nó da gravata, ajustou o espelho retrovisor e arrancou.
Deveria segui-lo? Frustrado, Cameron passou os dedos pelo cabelo. Sabia que não estava a ser justo para com John e que era um erro deixar-se afectar com tanta facilidade por algo que era certamente um acto inocente. John amara a mulher e Cameron sabia que, se houvesse uma hipótese de cura, o amigo teria gasto tudo o que tinha para salvar Catherine.
Mas aquela dúvida importuna não se dissipava, e Cameron resolveu segui-lo. Pensou que, se pudesse sentar-se e ter uma conversa com ele, conseguiriam esclarecer este... mal-entendido. John dir-lhe-ia que esta desconfiança era apenas uma reacção ao terrível sentimento de culpa pelo que tinham feito em nome da misericórdia.
Cameron pensou em dar meia-volta e ir para casa, mas não o fez. Tinha de certificar-se. Tinha de saber. Em Garden District, seguiu por um atalho e chegou a casa de John antes dele. A bela casa vitoriana ficava numa esquina. Dois velhos carvalhos enormes e uma magnólia projectavam sombras escuras sobre a parte da frente do jardim. Cameron parou na rua lateral contígua à rampa de acesso equipada com vigilância electrónica. Desligou os faróis e o motor, e ficou ali sentado, bem escondido debaixo de um ramo frondoso que o protegia da luz do candeeiro. A casa estava às escuras. Quando John chegou, Cameron levou a mão ao puxador, mas depois imobilizou-se.
- Merda - disse em voz baixa.
Ela estava lá, à espera. Quando o portão de ferro se abriu, avistou-a no passeio ao lado da casa. Em seguida, a porta da garagem abriu-se e Cameron viu o Honda dela estacionado lá dentro.
Assim que John arrumou o carro e saiu da garagem, ela correu para ele, com os seios grandes e redondos a balouçar como bolas de silicone por baixo do vestido colado ao corpo. O viúvo consternado não podia esperar e levou-a para dentro de casa. Agarraram-se um ao outro como cães vadios com cio. O vestido preto abriu-se e escorregou para a cintura numa questão de segundos,
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e a mão dele colou-se a um dos seios dela, enquanto ambos tropeçavam junto da porta. Os gemidos de prazer dele misturaram-se com o riso estridente dela.
.- Aquele filho-da-mãe! - resmungou Cameron. - Estúpido!
Já vira o suficiente. Meteu-se no carro e foi para casa, para o seu apartamento alugado, só com um quarto, situado numa zona de armazéns. Durante horas, andou de um lado para o outro, desvairado. Uma garrafa de uísque ajudou a alimentar a sua raiva.
Por volta das duas da manhã, dois bêbados envolveram-se à pancada perto da sua janela. Cameron assistiu ao espectáculo com um misto de curiosidade e
repugnância.
Um deles tinha uma faca, e Cameron desejou que ele esfaqueasse o outro só para o calar. Alguém devia ter chamado a polícia, que chegou pouco depois, com as sirenes
a tocar.
No carro-patrulha vinham dois agentes. Tiraram rapidamente a faca ao bêbado e encostaram os dois homens a um muro de pedra. O sangue, iridescente à luz do candeeiro, jorrou de um golpe na cabeça de um dos bêbados quando ele caiu, inconsciente, no pavimento.
O polícia que usara de força desnecessária praguejou em voz alta, empurrou o homem inconsciente de modo que ficasse de barriga para baixo, ajoelhou-se e algemou-o. Depois, levou-o de rastos para o carro. O outro bêbado esperou humildemente pela sua vez e, passados dois minutos, estavam ambos na parte de trás do carro-patrulha, a caminho da prisão municipal.
Cameron bebeu um bom gole de uísque e limpou o suor da testa com as costas da mão. A cena do lado de fora da janela perturbara-o, sobretudo as algemas. Não suportava ser algemado. Não podia ir para a prisão, não iria. Matar-se-ia primeiro... Se tivesse coragem para isso. Sempre fora um pouco claustrofóbico, mas piorara ao longo
dos anos. Não conseguia estar numa divisão sem janelas sem sentir um aperto no peito. Deixara de usar elevadores e preferia subir sete lanços de escada em vez de
passar trinta ou quarenta segundos dentro da caixa metálica de um elevador, apertado como sardinha em lata no meio dos outros utentes.
Céus, porque não pensara na sua claustrofobia antes de concordar com aquela loucura?
Sabia qual era a resposta e estava suficientemente embriagado Para aceitá-la.
Ganância. A maldita ganância. John é que despoletara
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tudo, é que planeara, é que tivera visão... E conhecimentos ricos. com o fervor de um evangelista do Sul, prometera fazê-los ricos, a todos. E já fizera., com
os diabos. Mas também jogara com eles, sabendo como eram gananciosos. Quando começou a falar em matar-se, sabia que eles entrariam todos em pânico. Não podiam perdê-lo e fariam tudo para contentá-lo.
E fora precisamente com isso que o patife contara.
com a vista turva pela bebida, Cameron esvaziou a garrafa de uísque e foi para a cama. Como o dia seguinte era domingo, curou a ressaca até ao meio-dia. Depois, quando conseguiu alinhar as ideias, delineou um plano. Precisava de provas irrefutáveis para mostrar a Preston e Dalas, e, quando eles compreendessem como John os manipulara, Cameron exigiria que repartissem os lucros do Clube da Sementeira e que cada um seguisse o seu caminho. Não iria esperar mais cinco anos para receber a sua parte. Depois do que John fizera, Cameron só pensava em fugir antes que fossem apanhados.
Cameron tinha alguns conhecimentos pessoais e precisava de fazer dois telefonemas. Tinha cinco dias de trabalho à sua frente até sexta-feira, o dia que reservara para o confronto. Cinco dias para desmascarar o filho-da-mãe.
Não disse a ninguém o que andava a fazer. Na sexta-feira, chegou tarde ao Dooleys, por volta das seis e meia. Dirigiu-se para a mesa e sentou-se em frente de John. O criado já o tinha visto e levou-lhe a bebida habitual ainda antes de Cameron despir o casaco e soltar o nó da gravata.
- Estás com um aspecto horrível - disse Preston, com a sua rispidez habitual.
Dos quatro, era o maníaco da saúde e sempre que tinha oportunidade mostrava que não aprovava o estilo de vida de Cameron. com a constituição física de um atleta olímpico de levantamento de pesos, Preston frequentava obsessivamente um ginásio elegante cinco noites por semana. Na sua opinião, qualquer homem que não tivesse braços de ferro e um estômago que aguentasse um bom murro era um doente, e os que enchiam a barriga de cerveja eram dignos de comiseração.
- Trabalhei muito esta semana. Estou cansado, mais nada.
- Tens de começar a cuidar de ti antes que seja demasiado tarde - disse Preston. - Vem comigo para o ginásio e começa a
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levantar pesos e a correr no tapete. E larga o álcool, pelo amor de Deus. Está a dar-te cabo do fígado.
- Desde quando passaste a ser a minha mãe?
Dalas, mestre na arte da conciliação, não suportava a discórdia, Por mas insignificante que ela fosse.
.- O Preston só está preocupado contigo. Ambos sabemos que tens andado sob uma enorme pressão nos últimos tempos, com o divórcio e isso tudo. Só não queremos que adoeças. Eu e o Preston dependemos de ti e do John.
.- O Preston tem razão - disse John, agitando a vareta de cocktail no líquido cor de âmbar. - Estás mesmo com mau aspecto.
- Sinto-me bem - disse ele entre dentes. - Agora, chega de falar de mim.
- com certeza - disse Preston, ofendido com a censura implícita no tom de Cameron.
Cameron engoliu a sua bebida de um trago e fez sinal ao empregado para lhe trazer outra.
- Aconteceu alguma coisa de novo esta semana? - perguntou ele.
- Para mim foi uma monotonia - respondeu Preston, encolhendo os ombros. Mas aposto que o nosso negócio corre bem. Certo, Dalas?
- Certo. Para mim também foi uma monotonia.
- E para ti, John? Há alguma novidade? - perguntou Cameron, melífluo.
John encolheu os ombros.
- Ando por aí, a viver um dia de cada vez.
Foi patético. Para Cameron, a representação de John foi um pouco exagerada, mas Preston e Dalas acreditaram e mostraram-se compreensivos.
- Isso passa - prometeu Preston. Como nunca perdera ninguém de quem gostasse, não sabia se aquilo passaria ou não, mas Pensou que devia animar o amigo. - com o tempo - acrescentou ele, com pouca convicção.
- É isso mesmo. Só precisas de tempo - disse Dalas.
- Há quanto tempo morreu a Catherine? - perguntou Cameron.
John levantou uma sobrancelha.
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- Tu sabes há quanto tempo foi. - Levantou-se, despiu o casaco, dobrou-o cuidadosamente e pô-lo nas costas da cadeira.
- vou buscar uns aperitivos.
- Sim e traz também uns biscoitos salgados - disse Preston. Esperou que John se afastasse e virou-se para Cameron. - Tinhas mesmo de falar na Catherine neste momento?
John disse à empregada o que queria e, ao voltar para a mesa, ouviu Dalas afirmar:
- O John estava a começar a descontrair. Deixa o tipo em paz.
- Não é preciso tratarem-me como se eu fosse um inválido
- disse John, puxando a cadeira para a frente e sentando-se. Não tenho passado a vida a contar as horas e os minutos desde que a minha mulher morreu. Há noites em que me parece que foi ontem.
- Foi há quase um mês. - Cameron examinou o amigo ao fazer este comentário. Pegou no copo e saudou John. - Acho que devias começar a namorar. A sério.
- Estás doido? - segredou Dalas. - É muito cedo. Preston concordou veementemente.
- As pessoas começarão a falar se começares a namorar tão cedo, e as conversas darão origem a especulações. Nós não queremos tal coisa. Não concordas, Dalas?
- Bem, sim, concordo. Nem posso acreditar que tenhas feito essa sugestão, Cam.
John recostou-se na cadeira. Deixou descair os ombros e mostrou-se contristado.
- Nem eu conseguia, pelo menos por enquanto. Talvez nunca. Não consigo imaginar-me com outra mulher. Eu amava a Catherine e só de pensar que poderia substituí-la fico nauseado. Vocês bem sabem como eu gostava da minha mulher.
Cameron cruzou as mãos no regaço para não agarrar o mentiroso pelos colarinhos.
- Pois, acho que tens razão. Eu estava a ser insensível. Meteu a mão na pasta e tirou um dossiê grosso de papel manilha. Empurrou o copo para o lado e pôs o dossiê em cima da mesa.
- O que é isso? - quis saber Dalas.
- Outra oportunidade de investimento? - adiantou Preston.
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Cameron olhou para John ao deixar cair a sua bomba.
Muitos apontamentos e números - disse ele. - E...
E quê? - perguntou John.
- E a ficha clínica da Catherine.
John preparava-se para pegar no dossiê. Quando Cameron anunciou o que estava lá dentro, John reagiu como se
uma cascavel tivesse acabado de pousar-lhe na mão. Recuou
e fez menção de levantar-se da cadeira. O choque depressa deu lugar à raiva.
- O que diabo fazes com a ficha clínica da minha mulher? quis saber ele.
John ficou rubro, como se estivesse à beira de um ataque cardíaco. Cameron acalentou a esperança de que tal acontecesse e de que o ataque fosse violento e debilitante. O patife merecia sofrer bastante e durante muito tempo.
- Filho-da-mãe! - sibilou Cameron. - Eu vi-te no sábado à noite com a loura. Não percebi porque não nos tinhas falado nela e resolvi fazer uma pequena investigação por conta própria.
- Não confiaste em mim? - perguntou John, genuinamente ofendido.
- Não, não confiei.
Virando-se para Preston e Dalas, Cameron disse:
- Imaginem que a pobre Catherine não estava a morrer. O John só quis livrar-se dela. Não é verdade, John? Fizeste de nós parvos e, com os diabos, nós fomos mesmo parvos. Acreditámos em tudo o que nos disseste. Tu sabias que o Monk não a mataria se não estivéssemos todos de acordo. Foi esse o acordo quando o contratámos. Ele trabalha para o clube e tu não tiveste coragem de matá-la com as tuas próprias mãos. Quiseste envolver-nos, não foi?
Dalas disse em voz baixa:
- Não acredito.
Preston ficou demasiado atónito para falar. Olhando fixamente para o dossiê, perguntou:
- O Cameron tem razão ou não? A Catherine tinha uma doença terminal, não tinha? Disseste-nos que era do coração, um defeito congénito...
Calou-se e virou-se para Cameron, sem saber o que havia de fazer. Depois, acrescentou em surdina:
- Meu Deus!
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John não abriu a boca. Os seus olhos chispavam de fúria e estavam cravados em Cameron.
- O que te deu o direito de me espiares? Cameron soltou uma gargalhada estridente.
- És um arrogante do caraças! Tens o descaramento de ficar ofendido porque eu te espiei e à tua Barbie? - Olhando para Dalas, cuja tez começava a ganhar rapidamente um tom esverdeado, perguntou: - Querem ouvir mais uma coisa mesmo engraçada? Vão adorar. Tenho a certeza.
Dalas pegou no dossiê e perguntou:
- O que é?
John fez menção de agarrar no dossiê, mas Dalas foi mais rápido.
- A Catherine apresentou esta mulher, a Lindsey, ao John. E contratou a cabra para lhe redecorar o quarto. Foi assim, não foi, John? O caso começou pouco depois de a conheceres, não é verdade? Mas já tinhas resolvido matar a tua mulher.
- Não creio que seja boa ideia falar nisto aqui - atalhou Preston, olhando à sua volta, com um ar preocupado, para ver se alguém os observava.
- É claro que devemos falar nisto aqui - disse Cameron.
- Afinal, foi onde planeámos o acto de misericórdia.
- Cam, percebeste tudo mal - disse John, que agora parecia veemente, sincero. - Eu só tinha saído uma vez com a Lindsey e nem sequer foi nada pessoal. Foi um encontro de carácter profissional.
Desejoso de acreditar que John estava a falar verdade, Preston abanou vigorosamente a cabeça.
- Se ele diz que foi profissional, é porque foi.
- Tretas! Ele está a mentir. Eu segui-o até casa. Vi o carro da Lindsey arrumado na garagem dele, e ela estava lá à espera. Eles agarraram-se um ao outro. Ela está a viver contigo, não está, John? E tu estás a esconder o caso de toda a gente, em especial de nós os três. - Cameron começou a massajar as têmporas. Desde há uma semana que andava com uma dor de cabeça forte e constante, depois de ter descoberto o segredinho sórdido de John. - Não te incomodes a responder. Tenho aqui os factos todos - disse ele, apontando para o dossiê que Dalas acabara de abrir. - Sabias que a Lindsey está convencida de que vais casar com ela? Eu soube isso pela mãe. Já anda a organizar o casamento.
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Falaste com a mãe da Lindsey? Esse álcool todo deu-te
volta aos miolos, Cameron. Fez-te delirante... paranóico.
- Tens cá uma proa! - exclamou Cameron, trocista.
Falem mais baixo! - pediu Preston. Tinha a testa coberta
de suor, e enxugou-a com o guardanapo. O medo secava-lhe a garganta.
- Vamos falar do pequeno fundo de investimento da Catherine, aquele que trazia o John tão preocupado?
- ê que há? - perguntou Preston. - Sobrou alguma coisa?
- Oh, sim! - exclamou Cameron com uma voz arrastada.
- Cerca de quatro milhões de dólares.
- Três milhões, novecentos e setenta e oito mil, para sermos rigorosos - disse Dalas, consultando o dossiê.
- Céus... Isto não pode estar a acontecer! - exclamou Preston. - Ele disse-nos... Ele disse-nos que a tinha levado à Clínica Mayo e que não podiam fazer nada por ela. Lembras-te, Cameron? Ele disse-nos...
- Ele mentiu. Mentiu em tudo, e nós fomos crédulos e acreditámos nele. Pensa nisto, Preston. Quando é que algum de nós a viu pela última vez? Há dois anos? Foi pouco antes de ela ir à Mayo, não foi? Todos vimos como ela estava com mau aspecto. Depois, voltou e o John disse que ela não queria ver ninguém. E nós respeitámos a sua vontade. Durante dois anos, foi o John que nos disse que a saúde dela estava a deteriorar-se e que ela sofria muito. Pois bem, ele mentiu sempre.
Ficaram todos a olhar para John, à espera que ele se explicasse. John levantou os braços, em sinal de rendição, e sorriu.
- Acho que o jogo acabou - disse ele. Seguiu-se um silêncio total.
- Admites? - perguntou Preston.
- Pois, acho que sim - respondeu ele. - É um alívio, aliás, já não ter de esconder-me de vocês. O Cameron tem razão. Há muito tempo que eu andava a planear isto. Há mais de quatro anos - gabou-se ele. - Alguma vez terei amado a Catherine? Talvez, ao princípio, antes de ela se tornar uma gaja obsessiva e exigente. É curioso como o amor pode transformar-se em ódio tão depressa. Depois, é possível que eu não a amasse. Pode ter sido o fundo de investimento dela que me atraiu. O que eu amava era o dinheiro.
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Dalas deixou cair um copo, que se estatelou em cima da alcatifa.
- O que nos fizeste?
A pergunta saiu num sussurro sufocado.
- Fiz o que tinha a fazer - respondeu John, à defesa. E não me arrependo. Bem, isso não é exactamente verdade. Arrependo-me de ter convidado a Lindsey a aproximar-se. Ou seja, tenho passado uns bons momentos com ela. Faz tudo na cama, tudo o que eu peço, e só quer é agradar-me. Mas está a colar-se a mim, e tenho a certeza que não quero ficar amarrado outra vez.
- És um filho-da-mãe - rosnou Cameron.
- Sim, é verdade - admitiu John sem perder a calma. E querem saber o melhor, além do fundo de investimento? Foi tudo tão fácil!
- Tu assassinaste-a - disse Dalas, fechando o dossiê. John mexeu-se na cadeira.
- Não, isso não é exactamente verdade. Não fui eu que a assassinei. Fomos nós.
- Acho que vou vomitar.
Dalas levantou-se, a cambalear, e correu para a casa de banho.
John mostrou-se divertido com a reacção. Fez sinal ao empregado para que trouxesse mais uma rodada de bebidas.
Estavam hirtos, como se fossem estranhos, cada um entregue aos seus próprios pensamentos. Depois de o empregado trazer as bebidas e se afastar, John disse:
- Aposto que gostavas de matar-me com as tuas próprias mãos, não é verdade, Cameron?
- Eu gostava, de certeza - disse Preston. John abanou a cabeça.
- És um irascível, Preston. Sempre foste. E com esse teu regime culturista, partias-me os ossos todos. Mas, se não fosse eu, tu já estavas na prisão. Não pensas
nas coisas. Não sabes o que elas custam. Aposto que não tens uma mente calculista. Tivemos de ser nós a empurrar-te para todas as decisões de carácter financeiro. Tivemos de ser nós a pressionar-te para que aceitasses que pagássemos ao Monk para matar a Catherine. - John calou-se.
- Em contrapartida, o Cameron tem o que é preciso.
Cameron ficou estarrecido.
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- Eu sabia que não eras muito consciencioso, mas nunca imaginei que nos lixasses. Só nos tens a nós, John. Sem nós, tu náo és... nada.
- Nós éramos amigos e eu confiei em ti - disse Preston.
- Ainda somos amigos - contrapôs John. - Nada mudou.
- O diabo é que não mudou - ripostou Cameron. John ficou imperturbável.
- Você hão-de ultrapassar isso - prometeu ele. - Sobretudo quando se lembrarem do dinheiro que eu vos dei a ganhar.
Cameron apoiou os cotovelos na mesa e olhou fixamente para John:
- Eu quero a minha parte já.
- Isso está fora de questão.
- Proponho que dissolvamos o clube. Cada um recebe a sua parte e segue o seu caminho.
- Nem pensar nisso - disse John. - Vocês conhecem as regras. Ninguém toca num cêntimo durante mais cinco anos.
Dalas voltou e sentou-se.
- O que se passou entretanto?
Preston, que também parecia nauseado, respondeu:
- O Cameron quer acabar com o clube e dividir o dinheiro agora.
- De modo nenhum - disse Dalas, com medo. - Se fizermos algum levantamento, as Finanças podem dar por isso. Está fora de questão.
- Ele não pode tocar no dinheiro, excepto se formos todos com ele ao banco, lembram-se? Temos de assinar todos para termos acesso à conta. Foi o que decidimos - recordou-lhes John.
- Es mesmo um patife, John.
- Pois, é como dizes. Encara a situação, Cameron. Não estás furioso por eu vos ter mentido. Estás lixado porque tens uma vida miserável neste momento. Conheço-te
melhor do que te conheces a ti próprio. Sei o que estás a pensar.
- Sim? Esclarece-me!
- Achas que eu não me saí assim tão mal. Não é verdade?
- É - admitiu Cameron. - É exactamente isso que eu estou a pensar.
John disse, com uma voz calma:
- Mas só tiveste coragem para te lamentares. Eu não. É tão simples como isto. - John virou-se para Dalas. - Bem sabes
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que nunca terias pedido ao Monk para matar a Catherine se eu não tivesse mentido.
- Mas, John, se querias livrar-te dela, porque não te divorciaste? - perguntou Dalas.
- Pelo dinheiro - respondeu ele. - Eu queria todo o dinheiro dela. Bolas, eu merecia-o só por aturá-la. Ela controlava tudo - acrescentou ele, e pela primeira vez havia amargura e ódio na sua voz. - Ao contrário do Cameron, não mascarei a minha infelicidade com o álcool. Eu planeei. Vocês nem imaginam como ela era doentia. Perdera o controlo do peso. Era uma hipocondríaca. Só pensava e falava em doenças. É certo que tinha um sopro cardíaco, mas não era grave. Ficou aterrada quando soube. Dei-lhe motivos para ela se desleixar ainda mais. Meteu-se na cama e ficou lá, a ser acompanhada de perto pelas criadas e por mim. Mantive a esperança de
que o coração dela rebentasse e, sinceramente, tentei matá-la com toneladas de chocolates que levava para casa todas as noites, mas a coisa estava a demorar. Certo
como dois e dois serem quatro, eu podia fornicá-la todas as noites que ela nem teria dado por isso. Aliás, andei a fornicar e ela não descobriu. Como eu disse, a mulher era demasiado preguiçosa para se levantar da cama, quanto mais para sair do quarto. Eu não suportava chegar a casa e dar de caras com ela. Só de olhar para ela, apetecia-me vomitar.
- Esperas que tenhamos pena de ti agora? - perguntou Cameron.
- Não - respondeu ele. - Mas, quanto a pisar o risco, há muito tempo que o fizemos.
- Nunca assassinámos ninguém.
- E depois? Mesmo assim, apanharíamos vinte, talvez trinta anos por todos os crimes que cometemos.
- Mas foram crimes de colarinho branco - gaguejou Preston.
- E assim que te vais defender nas Finanças? - perguntou John. - Achas que eles te darão os parabéns?
- Nunca matámos ninguém.
- Bem, agora mataram - ripostou John, irritado com a atitude lamurienta de Preston. Concentrou-se em Cameron. - Digo-te uma coisa. Foi fácil... E é muito fácil fazer o mesmo outra vez. Sabes o que te digo? Podíamos esperar um pouco, talvez uns seis meses, e depois falávamos ao Monk na tua situação.
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Dalas ficou de boca aberta.
.- Perdeste o juízo?
Cameron baixou a cabeça. Já estava a pensar no assunto.
- Eu adorava que o Monk fosse visitar a minha mulher. Isso valeria todo o meu dinheiro.
- Isso é possível - disse John, sem fazer ondas.
- Se não acabarem com essa conversa, eu saio - ameaçou Preston.
- É demasiado tarde para saíres - contrapôs John.
- O assassínio perfeito não existe - disse Dalas.
- O da Catherine foi perfeito - disse John. - Aposto que estás a pensar nisso, não estás, Cam?
- Sim, estou - reconheceu ele.
De repente, Preston fartou-se do ar presunçoso de John.
- Tornaste-te um monstro - disse ele. - Se alguém descobre o que aconteceu à Catherine...
- Acalma-te - disse John. - Estamos a salvo. Não te preocupes. Ninguém vai descobrir.
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CAPÍTULO 7
Catherine foi a última a rir. A cabra manipuladora dera instruções ao advogado, Phillip Benchley, para esperar seis semanas após a sua morte e só depois ler a sua última vontade e o seu testamento. John ficou furioso com o atraso, mas sabia que não podia fazer nada. Mesmo depois de morta, a mulher continuava a manipulá-lo.
Catherine contratara Phillip antes de casar com John. Ele era sócio da prestigiada firma de advogados Benchley, Tarrance and Paulson. Benchley sabia fazê-las. O porco satisfizera todos os caprichos de Catherine. Que John soubesse, ela alterara o testamento pelo menos três vezes depois do casamento, mas a última vez que ele examinara os documentos dela para saber se continuava a ser o principal beneficiário fora há seis meses. Depois disso, fizera o possível por controlar os telefonemas e as visitas dela, para que a mulher não tivesse oportunidade de voltar a falar com o lambe-botas do advogado.
Desde a morte dela que as contas de John se amontoavam. Na maioria dos casos, o prazo de pagamento já fora ultrapassado, e Monk andava atrás dele porque queria o seu dinheiro. Para acalmá-lo, John fora obrigado a aumentar o bónus para vinte mil.
John estava furioso enquanto esperava no luxuoso escritório de Benchley. Era indecente que o advogado o fizesse esperar.
John consultou de novo o relógio. Três e quarenta e cinco. Combinara encontrar-se com os amigos no Dooleys para comemorar. Calculava que eles já estivessem a sair do emprego.
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A porta abriu-se atrás dele. John não se deu ao trabalho de se virar. Não seria o primeiro a falar, por muito infantil que parecesse esta atitude.
- Boa tarde.
A voz de Benchley era fria, quase glacial.
- Fez-me esperar quarenta minutos - disse John de chofre.
- Vamos a isto.
Benchley não pediu desculpa. Sentou-se à secretária e pôs um dossiê grosso à sua frente. Era baixo e tinha o cabelo grisalho e frisado. Abriu o dossiê devagar.
A porta voltou a abrir-se e entraram dois jovens que se postaram atrás de Benchley. John calculou que fossem estagiários. Antes que John perguntasse o que estavam eles ali a fazer, Benchley deu-lhe uma explicação sumária:
- Testemunhas.
Assim que Benchley quebrou o selo e começou a ler, John descontraiu-se. Um quarto de hora depois, tremia de raiva.
- Quando é que o testamento foi alterado? Teve de fazer um esforço para não gritar.
- Há quatro meses - explicou Benchley.
- Porque não fui notificado?
- Eu sou o advogado de Catherine, se bem se lembra. Não tinha nenhum motivo para o informar da alteração das disposições testamentárias da sua mulher. O senhor assinou o acordo pré-nupcial e não tem direito a reclamar o fundo de investimentos dela. Tirei uma fotocópia do testamento para lhe entregar. São instruções de Catherine - acrescentou ele num tom melífluo.
- vou contestá-lo. Não pense que não vou. Ela julga que pode deixar-me cem dólares e o resto a um maldito santuário de aves e que eu não contesto?
- Isso não é bem assim - disse Benchley. - Quatrocentos mil dólares irão para a família Renard e serão divididos em partes iguais pelo tio, Jake Renard, e pelos três primos, Remy, John Paul e Michelle.
- Não acredito! - vociferou John. - A Catherine detestava essa gente. Considerava-os uns trastes.
- Deve ter mudado de opinião - disse Benchley. Fazendo tamborilar os dedos sobre os documentos, o advogado acrescentou:
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- Está aqui tudo no testamento. Cada um dos parentes dela receberá cem mil dólares. E houve outro pedido especial. Catherine gostava muito da governanta, como certamente sabe.
- É claro que gostava. A mulher satisfazia-lhe os caprichos todos e odiava-me. A Catherine achava graça a isso.
- Sim, bem, ela também deixou a Rosa Vincetti cento e cinquenta mil dólares - disse Benchley.
John ficou furioso com esta notícia. Quem dera que Monk a tivesse matado também! Odiava aquela bruxa com ar de santa e aqueles olhos de falcão. Como gostara de despedi-la! E agora também ela ficava com uma parte do seu dinheiro!
- Todo esse dinheiro me pertence - gritou John. - vou lutar por ele e ganhar, seu enfatuado!
Benchley não se mostrou afectado pelo ataque de fúria.
- Faça o que quiser. No entanto... Catherine admitiu que o senhor quisesse contrariar a sua vontade e também me deu este envelope fechado para lhe entregar em mão. Não faço ideia do que lá está dentro. Mas Catherine garantiu-me que, depois de o ler, o senhor desistirá de uma batalha legal.
John assinou em como recebera o envelope e tirou-o da mão de Benchley. Cuspia veneno quando disse:
- Não compreendo o que levou a minha mulher a fazer-me uma coisa destas.
- Talvez a carta explique.
- Dê-me uma cópia do maldito testamento - disse John entredentes. - E garanto-lhe que nada do que a Catherine diz na carta me fará mudar de ideias. vou contestar.
Dizendo isto, saiu do gabinete e bateu com a porta. Estava louco de raiva. Depois, lembrou-se das contas todas e de Monk. O que diabo havia de fazer?
- Cabra maldita! - resmungou, dirigindo-se para o carro. A garagem estava às escuras. John acendeu a luz no interior
do carro e rasgou o envelope. Eram seis páginas ao todo, mas a primeira fora escrita à mão por Catherine. John levantou o papel para ver que outras surpresas ela lhe reservara.
Incrédulo com o que via, voltou à primeira página e começou a ler, frenético.
- Meu Deus, meu Deus! - exclamou várias vezes.
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CAPÍTULO 8
John ficou desvairado. Infringiu todas as leis imagináveis ao subir St. Charles a toda a velocidade, avançando aos ziguezagues no meio do trânsito, como se estivesse embriagado, a cento e vinte à hora.
Tinha a carta obscena de Catherine fechada na mão. Não se cansava de bater com os nós dos dedos no tabliê de couro, desejando esmurrar a cara dela. A cabra! A sonsa!
Não podia acreditar no que ela lhe fizera, nem acreditava. Aquilo era tudo uma farsa. Pois, era isso mesmo. Mesmo depois de morta, ela continuava a tentar manipulá-lo e controlá-lo. Não era possível que ela tivesse contornado todas as salvaguardas que ele criara no seu computador. Ela não era assim tão inteligente, com os diabos.
Quando John virou para a rampa de acesso à sua casa, estava quase convencido de que tudo aquilo não passava de uma mistificação. Calculou mal a distância e embateu na porta da garagem ao travar. A praguejar, saiu do carro, correu para a porta lateral e só depois é que se apercebeu que tinha deixado o motor ligado.
Praguejou outra vez. "Não percas a calma", pensou. "Não percas a calma." A cabra continuava a tentar colar-se a ele, a enervá-lo. Mais nada. Mas ele tinha de se certificar. Atravessou a casa vazia a correr e, com a pressa, deitou ao chão uma cadeira da sala de jantar. Quando entrou na biblioteca, fechou a porta com um pontapé, debruçou-se sobre a secretária para ligar o computador e depois sentou-se na cadeira estofada.
- Vá lá, vá lá, vá lá - disse ele entre dentes, fazendo tamborilar os dedos no tampo da secretária enquanto esperava que o programa arrancasse.
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Quando o segundo ícone apareceu no ecrã do monitor, ele introduziu o disco e escreveu a palavra-passe.
Passando em revista os documentos, contou as linhas tal como Catherine indicara na carta e, na linha dezasseis, mesmo no meio da transacção efectuada há mais de um ano, alguém inserira três palavras. Não cometerás adultério. John deu um berro, como um animal ferido.
- Cabra gorda! - gritou. Petrificado, recostou-se na cadeira.
O telemóvel começou a tocar, mas John ignorou-o. Era Cameron, Preston ou Dalas, que queriam saber o que estava a demorá-lo. Ou talvez fosse Monk a perguntar quando e onde poderia encontrar-se com ele para receber o dinheiro.
O que havia ele de dizer a Monk? John esfregou as têmporas enquanto pensava no problema. Dalas era a solução, concluiu. Deixaria que fosse Dalas a encarregar-se de Monk. Afinal, Monk não arrotava sem a autorização de Dalas e havia de esperar pelo pagamento se recebesse ordens nesse sentido.
Mas o que diria John ao grupo? Mentir não o livraria deste pesadelo e, quanto mais demorasse, pior seria. Tinha de contar-lhes e depressa, antes que fosse tarde de mais.
Precisava desesperadamente de uma bebida. Atravessou a sala na direcção do bar, encontrou o balde de gelo em prata, que estava vazio, e atirou-o ao chão. Quando Catherine era viva, providenciava para que o balde estivesse sempre cheio de gelo, fosse a que horas fosse, de dia ou de noite. Era um pormenor estúpido, mas que de repente era importante para ele. Catherine controlava a casa a partir da cama, tal como tentava controlá-lo a ele com os seus queixumes e as suas exigências.
John encheu um copo de uísque e levou-o para a secretária. Encostado ao móvel, bebeu tudo, na esperança de conseguir preparar-se para a situação penosa que tinha à sua frente.
O telefone tocou novamente, mas desta vez ele atendeu.
Era Preston.
- Onde estás? Temos estado à tua espera para festejar a tua sorte grande. Vem-te embora.
Do outro lado da linha, ouvia-se música e gargalhadas. John respirou fundo. Parecia que o seu coração ia explodir.
- Não há nenhuma sorte grande.
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- O quê?
- Temos um problema.
-John, quase não te ouço. Disseste que ainda não recebeste a sorte grande?
- Os outros estão ao pé de ti?
- Estão - respondeu Preston, mais cauteloso. - Até mandámos vir uma bebida para ti e...
- Escuta - disse ele. - Temos um problema grave.
- Que problema é que nós temos?
- Não é um assunto de que eu queira falar-te pelo telefone.
- Onde estás?
- Em casa.
- Queres que vamos para aí? Temos de falar já desse problema?
- Sim, temos.
- O que...
- É grave - gritou ele. - Venham até cá.
John desligou antes que lhe fizessem mais perguntas. Encheu de novo o copo no bar e voltou para a secretária. Sentou-se a olhar para o ecrã brilhante do monitor à medida que anoitecia.
Cameron e Preston vieram juntos e chegaram passado um quarto de hora. Dalas vinha mesmo atrás deles.
John levou-os para a biblioteca, acendeu a luz e apontou para a carta que abrira e deixara em cima da secretária.
- Leiam, que dá vontade de chorar - disse ele em voz baixa. Estava a embebedar-se.
Cameron pegou na carta e leu-a em silêncio. Quando acabou, atirou-a para cima da secretária e foi direito ao pescoço de John. Preston impediu-lhe a passagem.
- Estás doido? - gritou Cameron, rubro. - Deixaste que a tua mulher tivesse acesso aos teus ficheiros pessoais? Meu Deus...
- Acalma-te, Cameron - pediu Preston, empurrando-o para trás.
- Lê a carta e depois recomenda-me calma! - gritou Cameron. Dalas levantou-se da cadeira, pegou na carta e leu-a em voz
alta para Preston ouvir.
Querido John,
As despedidas são cansativas, e por isso a minha será breve e suave.
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Foi o meu coração, não foi? Desculpa que eu seja banal e diga o que já te tinha dito, mas foi como sempre desconfiei. Morri de uma insuficiência cardíaca, não é verdade? Acreditas finalmente? Afinal, eu não era assim tão hipocondríaca.
A esta hora deves estar a recompor-te do choque ao descobrires que alterei o testamento e não te deixei nada. Conheço-te bem, John, e neste momento estás disposto a contestá-lo, não é? Talvez afirmes que eu não estava no meu perfeito juízo ou que estava demasiado doente para saber o que fazia. No entanto, sugiro que, quando acabares de ler esta carta, resolvas retirar-te sem fazer ondas e esconder-te. De uma coisa tenho a certeza: não vais contestar.
Também estás a pensar nas despesas em que incorreste desde que morri. Pedi que o testamento só seja lido seis semanas depois da data da minha morte porque sei que continuarás com o teu frenesim despesista e quero que fiques sem um chavo. Quero que sejas obrigado a esconder-te também dos teus credores.
Porque te tratei com tanta crueldade? Por retribuição, John. Acreditavas realmente que te deixaria um dólar sequer para gastares com a tua prostituta? Oh, sim, eu sei da existência dela. E também sei tudo sobre as outras.
Estás furioso, meu querido? Prepara-te para o resto. Reservei a melhor surpresa para o fim. Eu não era a "vaca estúpida" que tu julgavas. Isso mesmo, ouvi-te a falar ao telefone com a tua pega, a chamares-me nomes como este. A princípio, fiquei esmagada e furiosa, e tão desiludida que chorei durante uma semana. Depois, resolvi ajustar contas. Comecei a vasculhar no teu escritório, à procura de provas dos teus negócios. Estava obcecada em descobrir que parte do meu dinheiro tinhas gasto com as tuas prostitutas. Quando saías para o emprego, levantava o meu "eu gordo" da cama, descia as escadas e ia à tua biblioteca. Levei muito tempo, mas finalmente consegui descobrir a tua palavra-passe e entrar nos teus ficheirozinhos secretos. Oh, John, nunca pensei que tu e os teus amigos do Clube da Sementeira fossem tão tortuosos e corruptos! O que dirão as autoridades de todos os vossos investimentos ilegais? Fiz cópias dos ficheiros todos e, só para teres a certeza de que estou a falar verdade, vai a casa e abre o ficheiro "Aquisições". Procura a linha dezasseis. Inseri uma pe-
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quena mensagem numa das tuas transacções mais recentes, só para que saibas que lá entrei.
Estás preocupado? Aterrado? Em contrapartida, eu estou exultante. Imagina a minha alegria ao saber que, depois de eu morrer, passarás o resto da vida a apodrecer na prisão! No dia em que receberes esta carta, as cópias impressas irão parar às mãos de alguém que sabe o que tem a fazer.
Não me devias ter traído, John.
CATHERINE
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CAPÍTULO 9
Michelle tinha acabado de assinar os documentos de alta de um dos doentes do Dr. Landusky e estava sentada no seu pequeno gabinete, no piso do bloco operatório do St. Claire Community Hospital, a tentar arranjar forças para acabar de ditar os boletins clínicos. Nove já estavam, e só faltavam mais dois. A maioria dos doentes pertencia a Landusky. Michelle telefonara-lhe várias vezes nos últimos quinze dias, enquanto ele prosseguia uma rápida digressão pela Europa, mas o médico regressava ao trabalho no dia seguinte, quando ela começava oficialmente as suas primeiras férias ao fim de tantos anos que já nem se lembrava quando as gozara pela última vez.
Mas só podia sair depois de acabar os boletins clínicos. E a correspondência. Céus, havia um monte de cartas por abrir que levara do seu gabinete para o de Landusky e não tencionava parar enquanto não fizesse a triagem. Exausta, olhou para o relógio e gemeu. Estava a pé desde as quatro e um quarto da manhã. A ruptura do baço de um motociclista na sequência de um acidente obrigara-a a levantar-se uma hora mais cedo do que era habitual, e agora eram cinco da tarde. Apoiou os cotovelos na pilha de boletins clínicos que já despachara, encostou a face às palmas das mãos e fechou os olhos.
Trinta segundos depois, adormeceu profundamente. Durante o internato, Michelle aprendera a conhecer as vantagens das pequenas sestas. Habituara-se a dormir em qualquer lado, a qualquer hora.
- Dr.a Mike?
Michelle acordou estremunhada.
- Sim?
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- Precisa de cafeína - observou uma enfermeira ao passar por ela. - Quer que eu vá buscar-lhe qualquer coisa para beber? Parece esgotada.
Michelle não escondeu a sua irritação.
- Megan, acordou-me só para me dizer que tenho um ar cansado?
A enfermeira era uma jovem bonita, acabada de sair da escola. Começara a trabalhar no hospital há menos de uma semana, mas já sabia o nome de toda a gente. Acabara de saber que passara nos exames do Estado. Nesse dia, não havia nada que pudesse aborrecê-la, nem mesmo o olhar furioso de uma cirurgiã.
- Não sei como consegue dormir dessa maneira. Ainda há um minuto estava a falar ao telefone e depois, zás, desatou a babar-se e a ressonar.
Michelle abanou a cabeça.
- Eu não me babo nem ressono.
- vou ao refeitório - disse Megan. - Quer que lhe traga alguma coisa?
- Não, obrigada. vou já sair. Só tenho de dar uma vista de olhos pela correspondência e acabo.
Uma auxiliar interrompeu a conversa.
- Dr.a Mike?
- Sim?
- Vieram entregar uma coisa para si nas Urgências - disse ela. - Acho que tem de assinar. Parece importante. Espero que não seja nenhum processo judicial.
- A Dr.a Mike não está cá há tempo suficiente para ser processada - interpôs Megan.
- O estafeta disse que o envelope é de uma sociedade de advogados de Nova Orleães e que só se vai embora quando lho entregar em mão e recolher a sua assinatura. O que quer que eu lhe diga?
- Já lá vou.
Michelle pegou nos boletins clínicos e pô-los no cesto de saída. Deixou os dois que ainda tinha de ditar em cima do monte da correspondência e desceu as escadas que iam dar às Urgências. Não viu o estafeta em parte nenhuma. A secretária viu-a e foi a correr entregar-lhe um grande envelope acastanhado.
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- Aqui está o seu envelope, doutora. Como eu sabia que estava ocupada, disse ao estafeta que tinha poderes para assinar em
seu nome.
- Obrigada, Elena.
Michelle deu meia-volta para regressar ao piso do bloco operatório, mas Elena deteve-a.
- Não me agradeça já, doutora. Houve um acidente grave em Sunset e os paramédicos vão trazer uma série de crianças. Chegam daqui a dois minutos. Vamos precisar da sua ajuda.
Michelle levou o envelope e foi buscar uma Diet Coke à sala dos médicos. Depois, voltou para a sala das enfermeiras, sentou-se e abriu a lata. Precisava de cafeína para ganhar fôlego, concluiu. Pousou a lata e ia a pegar no envelope quando a porta se abriu e um paramédico lhe pediu ajuda.
- Temos uma hemorragia.
Michelle desatou a correr e esqueceu-se do envelope.
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CAPÍTULO 10
Uma pessoa não é uma ilha, e Leon Bruno Jones não era excepção. O Conde, como os sócios lhe chamavam por ter os caninos visivelmente maiores que os outros dentes da frente, parecia um vampiro quando sorria. Era como se conseguisse sugar o sangue das suas vítimas, e se os números que constavam dos seus dois livros de contabilidade estivessem certos, ele não se limitara a sugar-lhes o sangue.
Leon tinha um grande círculo de amigos e todos eles detestavam Theo Buchanan. Se não fosse a investigação de Theo, Leon não se teria confessado culpado nem teria deposto perante um grande júri de Boston, destruindo um dos mais poderosos círculos do crime organizado do país.
Theo regressara a Boston poucos dias depois da operação. Apesar de o caso de Leon estar encerrado e de meia dúzia de cabecilhas se encontrarem na prisão, Theo ainda tinha muitos relatórios para fazer e um monte de documentos para analisar. Os seus superiores do Departamento de Justiça aconselharam-no a manter a discrição. Theo já recebera ameaças de morte e, embora não as ignorasse, também não estava disposto a permitir que interferissem no seu trabalho. Durante duas semanas, passou muitas horas no escritório.
Por fim, quando acabou de examinar o último documento e a sua equipa entregou os relatórios finais, Theo fechou a porta do seu gabinete e foi para casa. Estava esgotado, física e psiquicamente. A pressão do trabalho afectara-o, e Theo interrogou-se se, depois de tudo o que fizera e dissera, o seu esforço provocaria alguma mudança. Estava demasiado cansado para pensar no assunto. Precisava de uma noite bem dormida. Não, precisava de trinta
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noites bem dormidas. Depois, talvez conseguisse ver as coisas com mais clareza e decidir o que faria a seguir. Aceitaria a missão de orientar um novo estudo sobre o crime que o Departamento de Justiça lhe propusera, ou regressaria à prática da advocacia e passaria o tempo em reuniões e negociações? Fosse como fosse, voltaria imediatamente ao trabalho. A família teria razão quando afirmava que ele tentava fugir à vida trabalhando sem parar?
Os chefes do Departamento tinham-no aconselhado a desaparecer durante uns tempos, pelo menos até que a família de Leon se acalmasse. Um período de descanso sabia-lhe bem nesse momento. Vieram-lhe à mente imagens de uma linha de pesca a balouçar nas águas calmas de um braço de rio na Louisiana. Antes de partir de Nova Orleães, prometera voltar para fazer o discurso que falhara e, na sua opinião, o momento era tão bom como qualquer outro. Depois do discurso, podia fazer uma pequena viagem e ir ver a cana de pesca cujos méritos Jake Renard tanto gabara. Sim, estava mesmo a precisar de uns dias para descontrair. Mas, havia mais um motivo pelo qual estava ansioso por voltar à Louisiana... E não tinha nada a ver com a pesca.
Três semanas e meia depois da operação, Theo voltou a Nova Orleães e estava no pódio do salão de baile Royal Orleans à espera que os aplausos esmorecessem para que pudesse fazer o seu discurso tão adiado perante os agentes da autoridade que tinham vindo de toda a parte do Estado para ouvirem o que ele tinha a dizer. De repente, lá estava ela, na sua cabeça, a interferir nos seus pensamentos. Tinha um sorriso maravilhoso, uma espécie de luz do sol engarrafada. Além disso, tinha um corpo lindo de morrer, sem dúvida nenhuma. Theo lembrava-se de estar deitado na sua cama de hospital e não conseguir tirar os olhos dela. Qualquer homem normal reagiria como ele. Nessa altura estava doente, mas não inconsciente.
Tentava recordar-se da conversa que mantivera com ela quando de repente se apercebeu de que a ovação terminara. Todos os presentes o fitavam, à espera que ele começasse a falar e, pela primeira vez na sua vida, Theo enervou-se. Não conseguiu lembrar-se de uma única palavra do discurso que tinha preparado, nem sequer do tema. Deu uma olhadela à estante na qual colocara o programa, leu o título e um resumo da alocução que devia fazer e acabou por improvisar. Como não se alargou nos comentários, o
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público, suspenso das suas palavras, gostou muito. Cheios de trabalho e de stresse, os presentes dispunham de uma noite de folga para comer, beber e festejar. Quanto mais cedo ele acabasse de atormentá-los com banalidades sobre os riscos que corriam diariamente, mais felizes eles se sentiriam. A alocução de meia hora ficou reduzida a menos de dez minutos. A reacção do público foi tão entusiástica que Theo até se riu. Foi aplaudido de pé.
Mais tarde, quando regressava a pé ao hotel, pensou no seu comportamento bizarro e concluiu que estava a comportar-se como um rapazinho que tivesse acabado de descobrir o sexo. Era como se fosse o irmão mais novo, Zachary, que não conseguia construir duas frases sem incluir as palavras "miúda", "excitante"
e "sexo".
Theo não sabia o que lhe acontecera, mas calculou que tudo aquilo desaparecesse assim que ele fosse à pesca. Adorava pescar. Quando estava no seu barco, o Mary Beth, descontraía-se totalmente. Era quase tão bom como fazer sexo.
Na terça-feira de manhã, antes de partir para Bowen, Theo encontrou-se ao pequeno-almoço com dois capitães da polícia de Nova Orleães e em seguida passou pelo consultório do Dr. Cooper. O médico recebeu-o e deu-lhe uma descompostura por não ter ido à consulta depois da operação. Depois de lhe ter pregado um sermão sobre a importância do seu tempo, examinou a sutura de Theo.
- Está a cicatrizar muito bem - anunciou ele. - Mas podia ter arranjado um problema se tivessem surgido complicações. Não devia ter regressado a Boston logo a seguir à operação. Foi uma estupidez.
Cooper sentou-se no banco ao lado da marquesa.
- Para ser sincero, não esperava que surgissem complicações. A Mike fez um excelente trabalho. Como sempre. É tão boa como eu a manejar o bisturi, e isto é um grande elogio. É uma das melhores operadoras do país - acrescentou ele com um gesto de cabeça. - O senhor teve muita sorte por ela ter reparado que não se sentia bem. Ofereci-lhe um lugar na minha equipa, até lhe falei em sociedade. Ela é muito dotada - sublinhou ele. - Como ela recusou, encorajei-a a prosseguir e a conseguir uma subespecialização, mas ela não estava interessada. É demasiado teimosa para reconhecer que está a desperdiçar o seu talento.
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- Como assim? - perguntou Theo enquanto abotoava a camisa.
- Ser médica de família nas berças - disse Cooper. A Mike fará algumas operações, mas não muitas. E um desperdício, sem dúvida.
- Talvez a população de Bowen não encare a coisa dessa maneira.
- Oh, eles precisam de mais um médico generalista, disso não há dúvida, mas...
- Mas o quê?
Cooper estava a brincar com a tampa da caixa do algodão. Fechou-a abruptamente e levantou-se.
- Bowen não é a cidadezinha pacífica que ela pintava - disse ele. - Falei com ela esta manhã por causa de uma ressecção intestinal que ela me tinha enviado e ela disse-me que a clínica foi vandalizada. Ficou tudo de pernas para o ar.
- Quando é que isso aconteceu?
- Esta noite. A polícia está a investigar, mas até agora não tem pistas nenhumas, segundo me disse a Mike. Sabe o que acho?
- O quê?
- Aquilo foi obra de miúdos à procura de droga. Como não encontraram o que queriam, destruíram tudo.
- Talvez - disse Theo.
- A Mike não tem drogas duras na clínica. Nenhum de nós tem. Os doentes que precisam desse tipo de medicamentos devem estar hospitalizados. É uma vergonha - acrescentou ele. Ela trabalhou tanto para conseguir aquela clínica e andava tão feliz e entusiasmada por regressar à sua terra... - Cooper calou-se e abanou a cabeça. - Estou preocupado com ela. Quero dizer... Se não foi vandalismo, então talvez alguém não queira que ela regresse a Bowen.
- vou para Bowen para ir à pesca com o pai dela - disse Theo.
- Nesse caso, podia fazer-me um favor - disse Cooper. Tenho mais unia caixa de medicamentos que tencionava levar-lhe, mas pode ser você a fazê-lo e, enquanto lá estiver, veja se descobre o que motivou aquele acto de vandalismo. Talvez eu esteja a exagerar, mas...
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- Mas o quê?
- Ela está assustada. Não o disse, mas aposto que está. Quando falei com ela, tive a sensação de que havia mais qualquer coisa que ela omitiu. A Mike não se assusta com facilidade, mas pareceu-me inquieta.
Pouco depois, Theo saiu do consultório com uma grande caixa de cartão cheia de medicamentos. Já tinha saído do hotel, e a mala e o equipamento de pesca estavam no automóvel que alugara.
Estava um dia de céu azul, soalheiro e quente, o dia perfeito para um passeio ao campo.
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CAPÍTULO 11
Ao princípio da tarde, Cameron, Preston e John aguardavam com ansiedade que Dalas chegasse. Estavam à espera na biblioteca de John há mais de uma hora e o nervosismo aumentava.
Dalas atrasara-se, como de costume.
- Por onde tens andado, com os diabos? - perguntou Cameron assim que Dalas entrou na biblioteca, com um ar tão cansado e abatido como os outros. - Estamos à tua espera há horas.
- Tenho andado a correr - respondeu Dalas de chofre. E não estou com vontade de ouvir sermões, Cameron, portanto muda de disco.
- Fazemos as malas e saímos do país? - perguntou Preston.
- A polícia vem bater à nossa porta?
- Céus, não digas isso! Cameron encheu-se de suores frios.
- Não acho que tenhamos de fazer as malas por enquanto
- disse Dalas.
- Recuperaste as cópias dos nossos ficheiros? - perguntou Preston, ansioso.
- Não - respondeu Dalas. - Não as recuperei... Por enquanto. Descobri qual é o serviço de entregas que o escritório de advogados utiliza e fui lá. Felizmente, ainda não tinham enviado o recibo para a firma e consegui uma cópia. Telefonei logo ao Monk e ele saiu de imediato. A Catherine enviou a informação para uma parente, uma tal Dr.a Michelle Renard, de Bowen, Louisiana.
- Não percebo. Por que razão a enviou a Catherine para uma parente depois de morrer e não a entregou à polícia assim que a descobriu?
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Foi John que respondeu.
- Percebo exactamente o que ela andava a fazer. A Catherine era uma fanática do casamento eterno e nunca me abandonaria. Teria usado o que descobriu para me obrigar a portar-me bem. Nos últimos dois meses, deve ter pensado que eu estava a aproximar-me desse objectivo. Eu era doentiamente simpático para a mulher. Mas a Catherine era vingativa. Por muito meigo que eu fosse, ela mandar-me-ia para a prisão depois de morrer. Mesmo assim, nunca me passaria pela cabeça que ela tivesse enviado os ficheiros para a família que praticamente não reconhecia como sua.
- A médica assinou o documento de recepção do envelope?
- perguntou Preston.
- Assinou.
- Filha-da-mãe! Estamos lixados.
- Não interrompas e deixa-me acabar - disse Dalas. Falei com o homem que entregou o envelope. Ele disse-me que tinha ido primeiro a casa da Renard. Como ela não estava, ele foi ao hospital. E disse que ela tinha assinado quando estava nas Urgências.
- Que nos interessa onde ela estava quando assinou o documento? - perguntou John.
- Já lá vamos - respondeu Dalas. - O estafeta lembrou-se que, quando ia a sair do parque de estacionamento, quase chocou com uma ambulância que ia a chegar a grande velocidade. E disse que vinha outra ambulância logo atrás e que, enquanto estava à espera, os médicos examinaram quatro rapazes. Ele recordava-se de ver muito sangue nas suas roupas.
- E depois? - insistiu Preston.
- Depois, aposto que a Dr.a Renard esteve muito ocupada ontem à noite.
- Devemos ficar parados porque tu achas que a médica não teve tempo de ler os ficheiros nem de chamar a polícia? - perguntou Cameron.
- Calas a boca ou não? - disparou Dalas. - Assim que o Monk chegou a Bowen, foi ao hospital de St. Claire. E claro que a Dr.a Renard estivera a operar, O Monk disse a uma das auxiliares que queria falar com a médica sobre uma oportunidade financeira e perguntou-lhe se devia esperar. A auxiliar disse-lhe que a
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Renard tinha duas operações, uma a seguir à outra, e que só acabaria daí a várias horas.
- E que mais? - perguntou John.
Estava sentado à secretária, a tamborilar no tampo. Dalas resistiu ao impulso de obrigá-lo a parar.
- O talão mostra que ela assinou precisamente às cinco e um quarto - disse Dalas, consultando um bloco de apontamentos. - Confirmei com o serviço de ambulâncias, que elas chegaram ao hospital às cinco e vinte. Portanto...
- Ela não podia ter tido tempo de fazer nada com o envelope - concluiu Preston.
Dalas continuou a falar.
- Enquanto a Renard estava a operar, o Monk montou um sistema de escuta na linha telefónica da casa dela. Quando regressou ao hospital, houvera uma mudança de turno nas Urgências. E ele aproveitou a oportunidade para entrar na sala dos médicos e revistar o cacifo da Renard. Até conseguiu que uma auxiliar o ajudasse. Disse-lhe que tinha sido enviado um envelope por engano para a pessoa errada.
- E ela engoliu a desculpa?
- O Monk sabe ser encantador quando quer - disse Dalas.
- E ela era nova. Não encontraram nada, mas ela forneceu-lhe todo o tipo de informações acerca da Dr.a Renard.
- Talvez a Renard levasse o envelope para a sala de operações - alvitrou John.
- Duvido - disse Dalas. - A auxiliar disse que ela foi para cima com um doente.
- E depois, o que fez o Monk?
- Ficou à espera. Era tarde quando a Renard saiu do hospital e ele seguiu-a. Parou uma vez no caminho para casa. Passou por uma clínica e levava uns papéis na mão quando entrou. O Monk pensou em revistar-lhe o carro, mas ela tinha deixado o motor a trabalhar, o que indicava que não se demorava.
- E trazia os papéis quando saiu?
- Ele não viu nada - respondeu Dalas. - Mas ela trazia uma mochila. De qualquer modo, ele seguiu-a até casa, esperou até ter a certeza de que ela estava a dormir e depois entrou e revistou a casa. Encontrou a mochila na lavandaria e revistou-a em primeiro lugar.
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- Não estava lá nada - afirmou John. Dalas fez um sinal afirmativo.
Cameron começou a andar de um lado para o outro.
- Ela deve tê-lo levado para a clínica. Talvez tencionasse abri-lo hoje.
- O Monk voltou à clínica e revistou-a. Também não estava lá. Ele garantiu-me que tinha revistado tudo. O único problema é que arrombou uma fechadura da secretária dela e resolveu partir tudo para fingir que aquilo fora obra de miúdos.
- Onde diabo está o envelope? - John estava furioso e nem sequer tentava disfarçar. - Não posso acreditar que a cabra o enviou para a prima. Ela detestava os parentes.
- Não sei onde ele está - disse Dalas. - Mas passou-me pela cabeça...
- O quê? - insistiu Preston.
- Que talvez ela não saiba o que tem.
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CAPÍTULO 12
Foi fácil para Theo encontrar St. Claire, Louisiana. Bowen foi impossível. Não havia placas a indicar o caminho e, como afirmara Jake, a cidadezinha não vinha no
mapa. Sem querer admitir que se perdera e que precisava de ajuda - uma falha genética que afectava todos os homens da família, na opinião das irmãs, Jordan e Sydney
-, Theo andou às voltas até ficar quase sem gasolina e ser obrigado a parar. Quando entrou na estação de serviço para pagar, cedeu e perguntou ao empregado se por
acaso sabia onde ficava Bowen.
O adolescente sardento e ligeiramente estrábico fez um entusiástico sinal afirmativo.
- Claro que sei onde fica Bowen. É novo nestas bandas? Antes que Theo pudesse responder, o rapaz fez outra pergunta:
- Anda à procura do novo liceu? Fica para lá de Clement Street. Aposto que anda à procura dele.
O rapaz fez uma pausa para dar uma oportunidade a Theo, piscou-lhe o olho e abanou a cabeça.
- Eu sei o que o traz cá.
- Sabe?
- Claro que sei. Vem à entrevista para o lugar de treinador, não vem? Pois, é isso, não é? Respondeu ao anúncio, não foi? Ouvi dizer que alguém estava interessado, e é o senhor, não é? Afinal não era boato. Precisamos mesmo de ajuda porque Mr. Freeland, o professor de Música, como já deve saber, não percebe nada de futebol. Então, sempre aceita o lugar?
- Não.
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- Porquê? Ainda nem sequer viu onde é. Acho que não está certo tomar uma decisão antes de ver o local.
A paciência de Theo estava a esgotar-se.
- Eu não sou treinador de futebol. O adolescente não acreditou.
- Tem mesmo aspecto de treinador. Tem os ombros largos, talvez porque jogava futebol quando era novo.
Quando era novo? Que idade julgava o rapaz que ele tinha?
- Ouça, eu só quero saber o caminho... O adolescente interrompeu-o.
- Ah, estou a perceber - disse ele, entusiasmado.
- A perceber o quê? - perguntou Theo, sem entender nada.
- É segredo, não é? Até o lugar estar preenchido, quero eu dizer, é como se fosse um segredo. Até o reitor anunciar quem escolheu, numa grande assembleia daqui a duas semanas. A propósito, treinador, chamo-me Jerome Kelly, mas todos me tratam por Kevin, que é o meu apelido do meio. - O rapaz estendeu o braço por cima do balcão
para apertar a mão a Theo. - É um prazer conhecê-lo. Theo cerrou os dentes.
- Eu só quero saber como se vai para Bowen. Diz-me onde fica, ou não?
Kevin pôs as mãos num gesto conciliador.
- Está bem. Não é preciso zangar-se comigo. Mas é segredo, não é?
Theo resolveu concordar, só para o rapaz deixar de falar no assunto.
- Pois, é. É segredo. Agora, onde fica Bowen? Kevin sorriu de orelha a orelha.
- Está a ver aquilo? - perguntou ele, apontando para a rua em frente da estação de serviço.
- O quê?
- Aquela rua.
- Claro que estou a ver. Kevin abanou a cabeça outra vez.
- É Elm Street, mas não tem nenhum ulmeiro. Eu sou marcador.
- Você é o quê?
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- Marcador. Mr. Freeland diz que deve ser esse o meu lugar na equipa. Consigo chutar uma bola de futebol a quarenta metros de distância sem suar.
- Ai sim?
- Também sou bom a passar a bola. Sou muito rápido.
- Ouça, Kevin, eu não sou o novo treinador de futebol.
- Pois, eu sei, e não digo a ninguém até isso ser anunciado oficialmente. Pode contar comigo, treinador.
- Onde fica Bowen? - insistiu Theo, já com uma certa irritação na voz.
- Eu ia explicar agora mesmo - disse o rapaz. - Ora bem, se seguir por este lado de Elm Street, pelo lado leste, vai dar a St. Claire. Se não souber qual é o leste e o oeste - às vezes, eu tenho dificuldade em orientar-me -, sabe que está em St. Claire quando vir passeios. Em Bowen não há passeios.
Theo cerrou os dentes.
- E onde fica Bowen?
- vou explicar-lhe - prometeu o rapaz. - Ora, se atravessar Elm Street, como se fosse para...
Theo odiava o miúdo.
- Sim?
- Está lá.
- Onde?
- Em Bowen. Percebe? De um lado de Elm Street fica St. Claire e do outro lado fica Bowen. É tão simples como isto. Espero que me dê uma oportunidade de ser marcador. Seria uma boa aquisição para a equipa.
Theo contou as notas para pagar a gasolina e perguntou:
- Já ouviu falar de um bar chamado The Swan?
- Claro - respondeu ele. Toda a gente conhece The Swan. É um óptimo bar no meio dos pântanos, mesmo do outro lado de Bowen. Tem um grande cisne por cima. Não há
que falhar.
- Então, diga-me onde fica.
Kevin levou o seu tempo a explicar. Quando acabou de descrever a estrada sinuosa, disse:
- Sabe, a população de St. Claire gosta de pensar que Bowen é um subúrbio, o que lixa as pessoas de Bowen. Oh... Desculpe! Eu não devia ter dito "lixar" na presença de um professor.
Theo guardou o troco, agradeceu a Kevin a sua ajuda e voltou para o carro. Kevin foi atrás dele.
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- Senhor, como se chama?
- Theo Buchanan.
- Não se esqueça! - gritou ele.
- De quê?
- De que eu devia ser o seu marcador! Theo sorriu.
- Não me esquecerei.
Kevin esperou que o carro arrancasse em direcção a Elm Street e depois correu lá para dentro e foi telefonar aos amigos. Queria ser o primeiro a dar a novidade sobre o treinador Buchanan.
Dez minutos depois, Theo seguia por mais uma estrada de cascalho, aparentemente interminável e sem placas de sinalização. Era ladeada por uma vegetação luxuriante e por ciprestes de cujos ramos pendiam tufos de musgo verde-acinzentado. Estava um dia de calor e terrivelmente húmido, mas a paisagem era tão bonita e tranquila que Theo abriu o vidro para aspirar os aromas adocicados da natureza.
Avistou água estagnada para além das árvores. Seguia a passo de caracol. Apeteceu-lhe parar o carro e ficar ali sentado a absorver tudo aquilo. "Mas que sítio fabuloso para explorar a pé", pensou. Este pensamento deu lugar a outro. E os crocodilos não viviam nos pântanos? com os diabos, sim, viviam. Andar a pé era para esquecer.
O que estava ele a fazer ali? Porque tinha vindo de tão longe só para pescar? Porque ela estava ali, admitiu, e de repente sentiu-se um idiota. Admitiu voltar para trás e regressar a Nova Orleães. Sim, era o que devia fazer. Se se despachasse, ainda podia apanhar um avião nesse dia e chegar a Boston à meia-noite. Não era lá a sua terra? Se lhe apetecesse pescar, poderia levar o seu barco para o mar e fazer uma espécie de "pesca da baleia" a sério.
Estava doido, era o que era. Estava completamente doido. Sabia o que devia fazer, mas continuava a viagem.
A estrada fez outra curva, e de repente lá estava The Swan, mesmo em frente, ao fundo da travessa. Assim que viu o edifício, desatou a rir. Sinceramente, nunca vira
uma coisa assim. As paredes laterais eram cinzentas e rugosas e a cobertura era metálica e inclinada. Mais parecia um velho celeiro, e um pouco degradado, mas o
encanto residia no enorme cisne empoleirado no cimo do
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telhado. Só que não era um cisne. Era um flamingo cor-de-rosa escuro, e uma das asas pendia, num equilíbrio precário, de um arame fino.
No terreno circundante, coberto de cascalho, estava uma pickup velha e amolgada. Theo estacionou o carro ao lado dela, saiu e despiu o casaco do fato. Quando se dirigia para a entrada, a arregaçar as mangas da camisa azul, lembrou-se que o casaco lhe escondia a arma e o coldre que trazia à cintura. Estava um dia muito quente e húmido para andar de casaco vestido. Resolveu não se preocupar com a arma à vista. Michelle já sabia que ele a usava. Além disso, tinha de pensar no que diria quando Jake lhe perguntasse o que o levara ali. Não sabia se o velho gostaria de ouvir a verdade. Tenho andado obcecado com a sua filha. Oh, sim, a verdade seria libertadora, sem dúvida, mas poderia valer-lhe um murro nos queixos.
A porta estava entreaberta. Theo empurrou-a e entrou. Avistou Jake Renard atrás do balcão, com um pano de louça na mão, a limpar o tampo de madeira polida. Theo tirou os óculos escuros, enfiou-os no bolso da camisa ao lado dos óculos graduados e acenou ao homem. Esperava que Jake se lembrasse dele e tentava pensar no que lhe diria se tal não acontecesse. Qual o outro motivo que o levava a Bowen? A pesca. Pois, era isso. Queria ir à pesca.
Jake lembrava-se dele. Assim que viu Theo, soltou uma espécie de trinado, como um cantor country que se preparasse para actuar. Depois, fez um sorriso rasgado, largou o pano de cozinha, limpou as mãos ao fato de trabalho e contornou o balcão à pressa.
- Já lá vou, já lá vou - disse ele.
- Como está, Jake?
- Muito bem, Theo. Estou bem. Vem à pesca?
- Sim, venho.
Jake apertou a mão a Theo, sacudindo-a entusiasticamente.
- Fico mesmo satisfeito por vê-lo. Uma destas noites, disse à Ellie que havíamos de voltar a encontrar-nos, e aqui está você,
em carne e osso.
Theo sabia quem era Ellie. Jake falara-lhe na mulher quando o visitara no hospital.
- Como está a sua mulher? - perguntou ele delicadamente.
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Jake ficou espantado, mas recompôs-se depressa, e respondeu:
- A minha mulher morreu, que Deus guarde a sua alma, há uns tempos.
- Lamento saber - respondeu Theo, cada vez mais confuso. Não leve a mal a pergunta, mas quem é a Ellie?
- A minha mulher.
- Ah, então voltou a casar.
- Não, nunca me deu para voltar a casar depois da morte da minha Ellie. Acho que não conseguiria encontrar ninguém como ela. - Jake calou-se e sorriu. - Eu sabia que você havia de aparecer. Pensei em telefonar-lhe, mas sabia que a Mike me daria uma descompostura se eu o fizesse, e além disso, calculei que você arranjaria uma maneira de vir até Bowen.
Theo não sabia o que havia de responder. Depois, Jake disse:
- Eu sabia que lhe tinha metido a ideia da pesca na cabeça e que você havia de tirar uns dias de férias. Um verdadeiro pescador nunca diz que não, mesmo que não pegue numa cana de pesca há muito tempo. Não é assim?
- É verdade - respondeu Theo.
- Se você demonstrar que é um pescador nato, e desconfio que é, talvez o escolha como parceiro para o torneio do próximo fim-de-semana. Sempre concorri com o meu amigo Walter, mas a Mike extraiu-lhe a vesícula ontem e ele não estará em condições de se levantar. Já me disse que arranjasse outra pessoa. Ainda cá estará, não é verdade?
- Ainda não pensei quanto tempo ficarei em Bowen.
- Então, está combinado. Vai ficar. Theo riu-se.
- De que torneio se trata?
- Oh, é um grande acontecimento por estas bandas - respondeu ele. - Uma vez por ano, todos os pescadores dos arredores vêm concorrer. Todos contribuem com cinquenta dólares em dinheiro. O que dá um prémio de peso, e há cinco anos que quero vencer o velho Lester Burns e o irmão, o Charlie. Eles é que têm levado a faixa e o prémio em dinheiro todos os anos, desde que organizamos o torneio. Têm um equipamento de primeira, o que é uma vantagem. O regulamento não é complicado - acrescentou Jake.
- Você apanha a sua quota e o juiz pesa-a em frente de todos ao fim do dia. Depois, há uma festa com boa comida
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cajun, aqui mesmo no Swan. O que acha do meu estabelecimento? - perguntou ele, fazendo um gesto circular com o braço. É agradável, não é?
Theo olhou à sua volta, com interesse. Os raios de sol que entravam pelas janelas abertas projectavam-se nas tábuas do soalho de madeira. As mesas estavam encostadas
à parede, com as cadeiras empilhadas por cima. A um canto do balcão via-se um balde com uma esfregona e o que restava de uma jukebox. As ventoinhas de tecto faziam
uma espécie de estalido enquanto as pás rodopiavam devagar. A sala estava surpreendentemente fresca, dada a temperatura lá fora.
- É muito agradável - observou Theo.
- Fazemos bom negócio aos fins-de-semana - disse Jake.
- Sim, senhor, é bom voltar a vê-lo, filho. A Michelle também vai ficar contente. Falou em si mais do que uma vez.
Por qualquer razão, este pormenor foi extraordinariamente agradável de ouvir.
- Como está ela? Vi o Dr. Cooper e ele disse-me que a clínica tinha sido vandalizada.
- Tentaram destruir aquilo, é o que é - disse Jake. - Sem motivo nenhum. Não levaram nada, mas viraram tudo de pernas para o ar. A pobre Mike nem teve tempo para mais nada excepto para ver os estragos. Foi ver a clínica esta manhã. Assim que chegou a casa e mudou de roupa, chamaram-na logo para outra operação. Nem um minuto teve para pôr aquilo em ordem nem para nos dizer, a mim e ao irmão, o que quer que façamos para ajudar a limpar aquilo tudo. Ela está esgotada, garanto-lhe. Pode desmaiar de um momento para o outro.
- Eu estou bem, papá.
Theo virou-se para trás ao ouvir aquela voz, e lá estava ela, à porta, a sorrir para os dois. Vestia uns calções de caqui e uma blusa folgada roxa e branca com manchas de tinta.
Theo fez o possível por não lhe olhar para as pernas, mas, raios, foi difícil. Eram incríveis! Compridas, bem torneadas... Espantosas!
- O que está a fazer em Bowen, Mr. Buchanan? - perguntou Michelle, esperando ardentemente que a sua voz fosse calma.
O facto de o ter encontrado no bar do pai abalara-a, e quando ele se virou e sorriu, ela julgou que ia perder a força nos joelhos.
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O coração começou a bater mais depressa, e ela teve a certeza absoluta de que corara. E porque não? Como as enfermeiras do bloco operatório tinham dito, Theo
Buchanan era lindo de morrer.
- É assim que se trata um convidado, a fazer perguntas dessa maneira? - disse o pai.
Michelle não conseguia ultrapassar o choque de encontrar Theo ali.
- Telefonaste-lhe a pedir ajuda? - perguntou ela ao pai, com um ar carrancudo e acusador.
- Não, minha senhora, não telefonei. Agora, deixa de olhar para mim dessa maneira e lembra-te dos teus modos. Quando o Theo estava no hospital, convidei-o a ir à pesca comigo.
- Papá, convidas toda a gente para ir à pesca contigo - disse ela.
Michelle virou-se para Theo.
- Veio mesmo pescar?
- Bem, eu...
Jake interrompeu-o.
- Eu já te disse que sim, e sabes o que resolvi? O Theo vai ser o meu parceiro no torneio do próximo fim-de-semana.
- Como se sente? - perguntou ela a Theo, refugiando-se no papel seguro e confortável de médica. - Teve complicações?
- Estou como novo graças a si. Foi um dos motivos que me trouxe cá... Além da pesca. Queria pagar-lhe o vestido que estraguei, mas sobretudo queria agradecer-lhe. Você salvou-me a vida.
- Não é agradável ouvir isto, Mike? - Jake refulgia, como um anúncio de néon à beira da estrada. - Foi para isso que foste para medicina, não foi? Para salvar vidas?
- Sim, papá - disse ela.
- Está com fome, Theo? - perguntou Jake. - Já passa do meio-dia e aposto que ainda não almoçou. Estou a fazer uma sopa de quiabos com galinha. Vá sentar-se ao balcão, para fazer tempo, enquanto eu acabo de cozinhar. Mike, porque não arranjas uma cerveja bem fresca ao Theo?
- Prefiro água - disse ele.
Theo foi atrás de Michelle até ao balcão. Reparou que o rabo-de-cavalo assimétrico balouçava quando ela andava. Que idade teria? Céus, talvez ele estivesse a atravessar uma crise da meia-
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-idade. Sim, era isso. Michelle fazia-o sentir-se novo outra vez. Embora ele tivesse apenas trinta e dois anos. Não era um pouco cedo para uma crise de meia-idade?
Jake pôs uma grande tigela de sopa grossa em frente de Theo e deu-lhe um guardanapo e uma colher.
- Cuidado! Olhe que isso queima! - avisou ele.
Theo julgou que ele queria dizer que a sopa tinha de arrefecer um pouco. Mexeu-a e comeu uma colherada. Engoliu. Passados dois segundos, começou a lacrimejar, foi obrigado a assoar-se e tentou não perder o fôlego ao mesmo tempo. Era como se tivesse engolido lava derretida. Agarrou no copo de água e bebeu.
- Acho que puseste picante a mais desta vez - disse Michelle. - Quantas colheres do teu molho picante especial é que juntaste?
Jake deu outro copo de água a Theo, que tentava beber e tossia ao mesmo tempo.
- Deitei só um frasco - respondeu Jake. - A sopa pareceu-me um pouco desenxabida quando a provei. Tencionava deitar mais.
Michelle abanou a cabeça.
- Ele vem cá para agradecer e tu tentas matá-lo.
Theo ainda não conseguia falar. Jake contornara o balcão e batia-lhe com força nas costas. Theo queria pedir-lhe que parasse, mas tinha a certeza absoluta de que as suas cordas vocais estavam queimadas.
Michelle deu-lhe um bocado de pão de cacete.
- Coma isto, que alivia - ordenou ela.
- Aposto que já lhe apetece aquela cerveja fresca, não é? perguntou Jake, assim que Theo engoliu o pão.
Theo fez um sinal afirmativo e, depois de ter bebido um bom gole da Michelob que Jake lhe trouxera, virou-se para Michelle e disse:
- Esta manhã, vi o Dr. Cooper.
- Julguei que estava a passar bem - disse ela. Estava atrás do balcão, a empilhar copos.
- E é verdade - respondeu ele. - Mas faltei à primeira consulta. Fui passar uns dias a Boston depois da operação, mas marcaram uma nova data para o meu discurso e tive de voltar. É melhor tarde do que nunca.
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- Deve ter-se sentido quase morto quando chegou a casa disse ela. - Olhe que isso de armar-se em forte pode matá-lo.
Theo concordou.
- E ia-me matando - admitiu ele. - Mas o Cooper falou-me do acto de vandalismo na sua clínica.
- Estás a ver, Mike? Eu não lhe telefonei - afirmou Jake num tom vigoroso. - Sugeri telefonar-lhe porque você é o único homem do FBI que conheço - admitiu ele, virando-se para Theo.
- Eu sou advogado do Departamento de Justiça - corrigiu Theo.
- Mesmo assim, o FBI pertence ao Departamento de Justiça, não pertence?
- Sim, mas...
Jake não o deixou explicar.
- Era por isso que queria telefonar-lhe. Pensei que talvez você pudesse analisar o caso, mas a Mike nem quis ouvir falar disso. Sabe o que aqueles miúdos fizeram? Pulverizaram aquelas lindas paredes brancas com tinta preta. Palavras que nem vou repetir. Também lhe rasgaram os dossiês e contaminaram os medicamentos. A Michelle tem de recomeçar do zero. Não é, querida?
- Tudo se há-de resolver. A altura é boa, pelo menos. Tirei as próximas duas semanas de férias para limpar a clínica. É bastante tempo.
- Mas esse tempo devia ser para descansar e para pescar. Jake virou-se para Theo. - A minha filha sempre foi optimista. Herdou isso de mim. Theo, na sua opinião, o que devemos fazer em relação a esta situação?
- Chamou a polícia, não chamou? - perguntou ele a Michelle.
Ela mostrou-se exasperada.
- Sim, chamei. Ben Nelson, o chefe da polícia de St. Claire, é que é o responsável pelo caso. Vai investigar e, tal como o meu pai, acha que aquilo foi obra de miúdos à procura de droga. Espero que conste que eu não guardo nada disso lá e que isto seja um incidente isolado.
- Não sei se posso fazer algo construtivo... Jake discordou.
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- Você trabalha para o governo e anda armado. Calculo que essa gente da Justiça não lhe entregaria uma arma se não o tivesse ensinado a usá-la.
- Papá, até parece que queres matar alguém!
- Estou só a dizer que ele é um especialista. O Ben Nelson é um óptimo chefe da polícia. Temos a sorte de poder contar com ele - disse Jake. - Mas duas cabeças são melhores do que uma. Não é verdade, Theo?
- Duvido que o chefe quisesse que eu interferisse na sua investigação.
- Você não iria interferir, e acho que ele ficaria satisfeito com a sua ajuda.
- Pelo amor de Deus, papá! Isto foi apenas um acto de vandalismo. O Ben vai apanhar os miúdos. Dá-lhe tempo.
- Mike, querida, porque não me vais buscar um copo de leite ao frigorífico? - disse Jake.
Assim que ela se afastou, Jake virou-se para Theo, inclinou-se mais e baixou a voz.
- O orgulho vai ser a ruína da minha filha - disse ele. É teimosa e tão independente que acha que pode carregar o mundo às costas, mas já lhe chega ser médica. Talvez aquilo fosse um acto de vandalismo. Ou talvez não. Mas como você vai passar uns dias connosco, acho que devia analisar esta situação. Além disso, ela salvou-lhe a vida, foi você que o disse, e compete-lhe olhar por ela enquanto aqui estiver. - Jake espreitou por cima do ombro. - Estou a pensar que talvez fosse boa ideia você ficar em casa dela - segredou ele.
Jake viu a filha a sair da cozinha e acrescentou à pressa:
- Não lhe diga que lhe falei nisto.
Quando Michelle entregou o copo ao pai, Jake disse enfaticamente, para que ambos ouvissem:
- Sim, acho que o Ben devia ouvir uma segunda opinião. Já disse o que tinha a dizer e nunca mais me ouvirão falar no assunto.
Michelle sorriu.
- Até quando?
- Não sejas impertinente com o teu pai. Pensei que talvez o Theo pudesse dar uma ajuda.
- Eu gostaria de ir ver a clínica - sugeriu Theo.
- Óptimo. A Mike pode levá-lo lá agora e esta noite pode ficar em minha casa... ou com ela - disse Jake, deitando um olhar
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cúmplice a Theo. - Ambos temos quartos a mais. Você é o meu parceiro no torneio e por conseguinte também é meu convidado, e pode comer sem pagar nada aqui no The Swan.
- Não, não se incomode.
Theo respondeu tão depressa que fez rir Michelle.
- Parece que o Theo não gosta da tua sopa de quiabos com galinha.
E fez-lhe novamente aquele sorriso. Aquele sorriso incrível. O que lhe estava a acontecer? A pescaria estava a complicar-se.
- Já me esquecia... O Cooper mandou mais uma caixa com medicamentos para si. Está no porta-bagagens do carro.
- Foi simpático.
- Ele anda atrás dela.
- Ele é um homem casado, papá.
- Ele anda atrás de ti para te convencer a fazeres parte da equipa dele e a mudares-te para a grande cidade. Era o que eu queria dizer.
Alguém bateu à porta, interrompendo a conversa. Todos se viraram quando a porta se abriu e um adolescente enfiou a cabeça lá dentro. O miúdo era enorme. Tinha um corte de cabelo bizarro e parecia pesar mais de cento e vinte quilos.
- Mr. Renard? - Falhou-lhe a voz quando pronunciou o nome de Jake. - Como ainda não são horas de abrir, não se importa que eu entre?
Jake reconheceu o rapaz. Chamava-se Elliott e era o filho mais velho de Daryl Waterson. Daryl e Cherry tinham oito rapazes corpulentos, todos saudáveis e escorreitos, mas a família estava mal de finanças, depois de um lamentável acidente na fábrica com uma retalhadora. Os mais velhos trabalhavam a tempo parcial para ajudar a sustentar a família, até que Daryl pudesse regressar ao trabalho.
- Elliott, conheces as minhas regras. Nenhum menor pode entrar no The Swan seja a que horas for. Não queres que eu perca a licença para vender bebidas alcoólicas, pois não?
- Não, é claro que não.
- Andas à procura de emprego?
- Não. Arranjei um bom emprego em St. Claire, na empresa de embalagens, a descarregar caixotes aos fins-de-semana. Nós só queríamos saber quanto...
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- Nós quem? - perguntou Jake.
- Uns amigos.
- São todos menores?
- São, acho que sim, e as raparigas também, mas eles...
- Fecha a porta, filho. Estás a deixar entrar as moscas. Dá os meus cumprimentos aos teus pais, e diz ao Daiyl que irei vê-lo no domingo.
Elliott ficou atrapalhado.
- Sim, senhor, eu dou, mas...
- Agora vai andando.
- Papá, não acha que devia saber o que eles querem de si?
- perguntou Michelle.
Theo encaminhou-se para a porta.
- Talvez um deles saiba alguma coisa sobre o que aconteceu à sua clínica - disse ele. - Temos de falar com eles.
- Talvez eu me tenha precipitado - admitiu Jake. - Alguém está doente ou ferido, Elliott? Mike, é melhor ires ver.
Elliott abanava freneticamente a cabeça.
- Não é nada disso. Ninguém está ferido.
O rapaz deu meia-volta, espreitou lá para fora e gritou:
- Ó pessoal, ele tem uma arma. Isso é fixe ou não?
O adolescente virou-se outra vez, no momento em que Michelle começou a andar. Olhou para as pernas dela, mas desviou rapidamente o olhar.
- Não, minha senhora, quero dizer, não, Dr.a Mike, ninguém precisa de si. Todos nós gostamos de a ver... Não, não era isto que eu queria dizer. O que quero dizer é que não está ninguém doente nem nada disso. A sério.
Elliott corava cada vez mais. Era óbvio que não conseguia manter a compostura na presença de uma bela mulher. Theo compreendeu muito bem o miúdo.
- Sabes alguma coisa sobre o acto de vandalismo? - perguntou ela.
- Não, minha senhora, não sei, e fiz umas perguntas como o seu pai me mandou. Ninguém sabe nada, o que é estranho porque em geral os miúdos gostam destas coisas, gostam de se gabar. Percebe? Mas ninguém se gabou. Ninguém sabe de nada.
A sério.
- Então porque estás aqui, Elliott?
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O rapaz não conseguia deixar de olhar para Michelle, mas apontou para Theo.
- Bem... Nós esperávamos... Bem, ou seja, se ele não se importar... Bem, talvez o treinador Buchanan pudesse ir lá fora para conhecer uma parte da equipa.
Michelle julgou que não tinha ouvido bem.
- O quê?
- Talvez o treinador Buchanan pudesse ir lá fora para conhecer uma parte da equipa.
Michelle semicerrou os olhos.
- O treinador Buchanan?
Theo ficou sem palavras. Onde fora Elliott buscar a ideia... Depois, percebeu e desatou a rir.
- Este miúdo...
Elliott interrompeu a sua explicação e gritou lá para fora:
- O treinador vai sair. Preparem-se! Jake tocou nas costas de Theo.
- É melhor sair, filho, para saber o porquê deste rebuliço todo.
- Isto é tudo um mal-entendido - disse Theo, enquanto Michelle se dirigia para a porta.
Theo foi atrás dela e ia a explicar mas, assim que saiu, ouviram-se gritos de aplauso. Olhou à sua volta, espantado. O parque de estacionamento estava cheio de automóveis,
pickups e miúdos, uns quarenta pelo menos, e todos eles gritavam e assobiavam.
Quatro raparigas louras, empertigadas, avançaram ao mesmo tempo. Vestiam de igual, calções brancos e uma t-shirt encarnada. Uma delas trazia na mão dois pompons
encarnados e brancos. Era a chefe da claque.
- Dêem-me um B! - gritou ela, e foi devidamente recompensada com um estridente B! - Dêem-me um U, um K, um A, um N, um A e um N. O que dá?
- Batam-me - disse Theo secamente.
- Bukanan! - gritou a multidão.
Michelle soltou uma gargalhada. Theo levantou as mãos, tentando fazer calar os miúdos.
- Eu não sou o vosso treinador - gritou ele. - Ouçam-me! Isto é tudo um mal-entendido. Este rapaz...
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Não valia a pena. Ninguém escutou o seu protesto. Os adolescentes exuberantes correram para ele, todos a gritar ao mesmo tempo.
Como diabo é que a situação se descontrolara? Theo sentiu a mão de Jake no seu ombro e virou-se para trás.
O velho sorria abertamente.
- Bem-vindo a Bowen, filho.
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CAPÍTULO 13
Theo tentou esclarecer o mal-entendido, mas os rapazes, cujo nível de testosterona era obviamente elevado, não o deixaram pronunciar uma palavra e rodearam-no, cada um a gritar mais alto do que os o utros. Queriam que o treinador soubesse quais eram os seus do-tes especiais e os lugares que desejavam ocupar. Um deles, chanvado Moose, abriu caminho até chegar à frente e disse a Theo que estava convencido de que daria um bom defesa lateral. A avaliar pelo tamanho do miúdo, Theo admitiu que ele fosse capaz de assegurar a defesa do meio-campo.
Continuou a. tentar que eles se calassem para poder explicar-se, mas os rapazes estavam demasiado excitados para ouvir. Mais atrás, as chefes de claque exibiam os seus dotes, agitando os braços em movime ntos circulares.
Michelle não ajudou muito. Não conseguia parar de rir. Um dos rapazes teve vontade de examinar mais de perto a arma de Theo. A reacção de Theo foi rápida e instintiva. Agarrou no miúdo pelo pulso e empurrou-o. O miúdo caiu de joelhos.
- Uns reflexos fixes, treinador - disse Moose, abanando a cabeça em jeito de aprovação.
- Afastem-se! - gritou Jake. - Deixem passar o treinador e a Mike. Agora, vão-se embora! Saiam do caminho! Eles têm de ir à clínica da fMike para o treinador começar a investigar.
Chamar-lhe "treinador" só piorou as coisas e, pelo sorriso de Jake, Theo percebeu que ele estava a fazer de propósito.
Michelle deu a mão a Theo e abriu caminho através da multidão, enquanto ele continuava a tentar que os miúdos o ouvissem. Os dois contornaram carrinhas epickups até chegarem ao sítio em que ele estacionara o carro alugado. Theo abriu a porta do
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lado do passageiro para Michelle entrar e foi imediatamente cercado pelos alunos do liceu. Theo era alto, mas alguns rapazes eram ainda maiores do que ele. Não pôde
deixar de pensar que, com o devido treino e motivação, eles dariam uma equipa fora de série.
Desistiu de explicar-se e limitou-se a abanar a cabeça. Contornou o carro e entrou.
- Pois, exactamente, ao centro - disse ele, fechando a porta e carregando no botão para trancá-la.
- Ao centro de quê? - perguntou ela.
- Aquele miúdo do brinco quer jogar ao centro. Michelle mordeu o lábio inferior para não se rir, mas quando
iam a sair do parque de estacionamento, Theo foi alvo de mais uma ovação e Michelle descontrolou-se.
- Dêem-me um B!
- Sabe do que precisam aqueles miúdos? - perguntou ele.
- Deixe-me adivinhar. De um treinador de futebol.
- Não, precisam de um professor de Inglês, de alguém que os ensine a escrever.
- Eles estão tão contentes por você estar cá! - disse ela, enxugando as lágrimas e suspirando.
- Ouça, eu só parei para meter gasolina e aquele miúdo julgou que eu era o treinador.
- Vão ficar tão decepcionados por você os ter enganado. Oh, céus, há muito tempo que não me ria tanto!
- Ainda bem que pude ajudar - disse ele com secura. Diga-me uma coisa. Porque é que ninguém me dá ouvidos nesta terra?
- Porque querem impressioná-lo a todo o custo. Vai deixar que o Andy Ferraud seja o médio nesta época?
- Que gracinha!
- Ele tem uns bons braços.
Theo parou o carro no cruzamento e virou-se para ela.
- Eu vim pescar.
Pouco depois, Michelle percebeu que o carro estava parado. Era óbvio que ele parara à espera que ela lhe indicasse o caminho, e ali estava ela sentada, como uma idiota, a olhar para ele.
- Vire aqui à esquerda - disse Michelle. - A minha clínica fica nesta estrada, uns quarteirões mais abaixo. Se continuar
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em frente, vai dar à minha casa. Fica um quarteirão depois da curva. É uma casa pequena, com dois quartos. Nada de especial. Estou a divagar, não estou? É estranho - acrescentou ela. Acho que você me deixa nervosa.
- Porque acha estranho?
- Eu é que devia deixá-lo nervoso. Afinal...
- O quê?
- Eu vi-o despido.
- E ficou impressionada, evidentemente, como é natural.
- O seu apêndice impressionou-me.
- O que é preciso para que uma mulher bonita repare em mim! - disse ele, virando à esquerda.
- Aquela é a minha clínica.
Seria difícil não reparar. A clínica era o único prédio que havia na estrada de cascalho. Theo parou no espaço alcatroado ao lado do prédio, perto de um gigantesco sicómoro. Os ramos da árvore roçavam no telhado. Podia haver um desastre.
- Você devia arranjar alguém para cortar aqueles ramos. Se houver uma trovoada forte, pode ficar sem o telhado.
- Eu sei. Está na minha lista de coisas para fazer.
A clínica era um pequeno edifício de pedra, rectangular, pintado de branco há pouco tempo. A porta principal era preta e, por cima do puxador, ao meio, via-se uma placa com o nome de Michelle em letras douradas. Havia dois vasos de gerânios derrubados nas floreiras de cimento que ladeavam o caminho de pedra. As duas floreiras tinham sido destruídas.
Michelle conduziu-o à porta das traseiras. Viam-se sacos de lixo rasgados e alguém deitara ao chão o contentor metálico. O quintal parecia uma lixeira.
- Eu tinha acabado de pintar a porta, e veja o que eles lhe fizeram.
Na porta branca, alguém escrevera com tinta de spray a palavra "Cabra", sem erros, reparou Theo.
Michelle apontou para uma embalagem de spray caída no chão.
- Eles foram buscar a tinta à arrecadação.
Theo olhou para o quintal outra vez e saiu do caminho para que Michelle enfiasse a chave na fechadura e o deixasse entrar. Roçou nele ao entrar no hall das traseiras para acender a luz.
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Havia três gabinetes de consulta e todos pareciam intactos. A parte a tinta de spray nas paredes, nem as marquesas nem os armários tinham sido danificados. As portas
estavam abertas e os medicamentos tinham sido derrubados, mas aparentemente não havia muitos estragos.
Mas no consultório de Michelle, a situação era completamente diferente. Theo assobiou ao vê-lo. Parecia que a sala tinha sido varrida por um ciclone. A secretária estava tombada, as gavetas tinham sido arrancadas e destruídas e havia papéis por todo o lado.
- Eu estava a falar a sério quando disse que não tinha tido tempo de começar a limpar - disse ela. - Dei uma olhadela e teleronei ao Ben.
Theo olhava para um velho sofá do outro lado da sala Um dos vândalos destruíra-o com uma faca. O cabedal roxo fora retalhado e o estofo saía como se fosse pipocas. Parecia que alguém concentrara toda a sua fúria naquela sala.
- Olhe o que aqueles patifes fizeram à minha porta. Eu fecho sempre a porta do meu consultório, mas nunca à chave. Bastava-lhes rodarem o puxador. Mas deram-se ao trabalho de destruí-la a pontapé.
- Talvez porque verificaram que você não tinha drogas duras.
- E ficaram furiosos?
- Possivelmente.
Michelle dirigiu-se para o corredor.
- Vai ver como está a parte da frente. Está pior.
Theo continuava à porta do consultório dela, a olhar para a devastação.
- O que está a fazer?
- A decifrar o padrão.
- Que padrão?
Ele abanou a cabeça.
- Porque é que o seu irmão e o seu pai ainda não começaram a limpar isto? O Jake disse-me que se ofereceu, mas que você não o deixou tocar em nada. Porquê?
- Porque tenho de ordenar os processos primeiro ou pelo menos estar presente quando eles o fizerem, para poder orientá-los. As informações sobre os doentes são confidenciais e preciso de ter a certeza que todos os relatórios vão parar aos dossiês certos.
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- Julguei que tinha aberto a clínica há pouco tempo.
- E abri.
- Então, donde vieram os processos dos doentes?
- Eram do Dr. Robinson. Ele saiu de Bowen há dois meses e enviou-me os processos de todos os seus doentes. Só depois é que eu descobri - disse ela. - Eu sabia que ele detestava Bowen, mas a verdade é que abandonou os doentes. Disse ao meu pai que a vida era demasiado curta para ele trabalhar num, e estou a citar, "bairro-de-lata abandonado por Deus".
- com essa atitude, os doentes deviam adorá-lo - disse Theo.
- Não, não gostavam muito dele e só o consultavam quando estavam desesperados. Sabiam o que ele sentia em relação à cidade... E em relação a eles, ou antes, a nós. Está pronto para ver a parte da frente?
- Claro.
Theo desceu o corredor atrás dela e virou para a sala das enfermeiras, que ficava atrás da recepção. A divisória de vidro que separava o espaço estava partida e a maior parte dos vidros ainda estava no chão. Havia uma janela partida ao lado dos arquivadores. Theo atravessou a sala devagar para observar os estragos mais de perto. Depois, olhou para o chão e abanou a cabeça.
- Cuidado com o sítio onde põe os pés - avisou ela. Embora parecesse impossível, a sala das enfermeiras estava
muito pior. O balcão fora arrancado da parede e estava no chão, em cima de um monte de dossiês e de papéis rasgados. O estofo das cadeiras da recepção também fora retalhado. Não tinham conserto.
Theo observava a sala das enfermeiras da recepção quando Michelle interrompeu os seus pensamentos.
- Ainda bem que vou começar as férias.
- Vai ser necessário mais de duas semanas para pôr isto em ordem.
Ela não concordou.
- Vêm duas amigas minhas de Nova Orleães. Não devemos precisar de mais de um dia inteiro para pôr os processos em ordem. Elas são enfermeiras e sabem o que hão-de fazer. Assim que os documentos estiverem arrumados, o John Paul e o papá podem ajudar-me a pintar. Tenho muito tempo - acrescentou ela.
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- Mas não tenho dinheiro para substituir o mobiliário, pelo menos por enquanto. - Michelle pegou numa cadeira e encostou-a à parede e em seguida empurrou o algodão
branco do estofo lá para dentro. - Acho que por agora a fita gomada vai remediar.
- Eu gostava de emprestar-lhe algum dinheiro.
Definitivamente, estas palavras foram uni erro. Michelle endireitou-se logo e, pela sua expressão, Theo percebeu que a chocara e ofendera.
Ela nem lhe deu tempo para arranjar uma maneira de reparar os danos.
- Eu não quero o seu dinheiro. Em Bowen, cuidamos de nós próprios. Não ficamos à espera que as pessoas de fora venham salvar-nos.
- Isso é o orgulho a falar. Eu só estava a tentar...
- Ajudar uma senhora em apuros? Não quero ser incorrecta, mas você é uma pessoa de fora e não compreende como é importante que sejamos nós a tratar da clínica.
- Você salvou-me a vida e eu só queria... - Ela franziu o sobrolho e ele calou-se. - Tem razão. Não compreendo, mas não vou pressioná-la. Até peço desculpa. Não quis ofendê-la.
A expressão de Michelle desanuviou-se.
- Olhe, eu sei que a sua intenção era boa, mas este problema não é seu. É meu e vou resolvê-lo.
Theo levantou os braços.
- Está bem. Resolva-o. Então, o que disse o chefe da polícia? Tem alguma ideia de quem fez isto?
- Por enquanto, não - respondeu ela. - Mesmo que ele apanhe os miúdos que fizeram isto, não serei indemnizada. Aqui, ninguém tem dinheiro. Deve ter reparado que não há mansões no caminho. A maioria das famílias é obrigada a ter dois empregos para sobreviver.
Theo apontou para a recepção.
- Isto aqui está muito mal.
- É um revés, mas hei-de recompor-me.
- E o seguro?
- Vai ajudar, mas não cobre tudo. Tive de pagar uma fortuna pelo seguro de negligência médica e não sobrou grande coisa. Para poupar dinheiro, fui obrigada a reduzir muita coisa. - Sem parar para recuperar o fôlego, ela mudou de assunto. - Precisa que o ajude a trazer aquela caixa para dentro?
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- Não.
- Pode deixá-la no bali das traseiras e seguir o seu caminho. O peixe já não morde o isco tão tarde, mas pode ir instalar-se em casa do papá.
Ela estava a tentar livrar-se dele sem subtileza nenhuma. Era óbvio que não sabia o que a esperava. Theo era tão teimoso como ela e já resolvera que não iria para lado nenhum.
- Acho que fico consigo... Se não se importa.
- Porquê?
- Deve ser uma cozinheira melhor.
- Hoje em dia, não tenho muito tempo para cozinhar.
- Vê? Já está melhor. Vá lá. vou buscar aquela caixa e depois podemos ir para sua casa. Quero vê-la, desfazer a mala e despir este fato.
Ele tentou sair, mas ela impediu-o.
- Porquê?
- Porquê o quê?
Estavam cara a cara. Ele era mais alto, mas aparentemente ela não se deixava intimidar por isso.
- Porque quer ficar comigo? O papá tem mais espaço.
- Pois, mas você é mais bonita e ele deu-me a escolher. A casa dele ou a sua. Escolho a sua. A hospitalidade das terras pequenas, etc., etc... Seria indelicado fechar-me a porta.
- Refere-se à hospitalidade sulista, mas ainda não me disse... Ele interrompeu-a.
- Deixe-me instalar na sua casa, beber uma coisa fresca e depois lhe direi o que penso disto.
Theo foi ao carro, tirou a caixa do porta-bagagens e pô-la no hall das traseiras. Esperou que ela apagasse as luzes.
- Tenho de ficar para começar a fazer a limpeza - disse ela, sem entusiasmo.
- Quando chegam as suas amigas?
- Depois de amanhã.
- E se eu pedisse a um amigo meu que viesse ver isto primeiro?
- Porquê?
- Para me dizer se estou certo ou errado. Não faça nada esta noite, Michelle. Depois, iremos buscar o seu irmão e o seu pai para ajudarem. Não perderemos tempo.
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- Você veio para ir à pesca.
- Pois, e vou. Agora, podemos beber uma coisa fresca? Ela fez um sinal afirmativo, fechou a porta e dirigiu-se para o
carro.
- O Cooper disse-me que você parecia assustada ao telefone.
- E estava assustada... tão assustada que até as sombras me metem medo. - Michelle sorriu. - A imaginação anda a pregar-me partidas.
- Porque diz isso?
- Convenci-me de que esteve alguém em minha casa ontem à noite... Quando eu estava a dormir. Ouvi um barulho, levantei-me e percorri a casa toda, mas não encontrei ninguém escondido a um canto nem debaixo da cama. Podia ter sido o John Paul. Ele passa por lá a desoras.
- Mas, não foi o seu irmão?
- Não tenho a certeza. Ele pode ter saído antes de eu o chamar. Talvez fosse apenas um pesadelo, ou a casa a ranger. Até pensei que alguém tinha mexido na minha secretária. Ela está na biblioteca, mesmo à saída da sala de estar - explicou ela.
- Porque pensa tal coisa?
- O telefone está sempre no canto superior direito da minha secretária... E uma espécie de obsessão minha manter o meio da secretária livre para poder trabalhar, mas esta manhã, quando desci, a primeira coisa em que reparei foi no telefone. Tinha mudado de sítio.
- Mais alguma coisa?
- Tenho tido esta sensação aterradora de que alguém anda a seguir-me. - Michelle abanou a cabeça ao pensar nesta ideia absurda. - Será paranóia?
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CAPÍTULO 14
Theo não lhe disse que ela estava paranóica nem se riu. Infelizmente, a sua expressão no caminho para casa dela não revelou a Michelle o que lhe ia na cabeça.
- É ali? - perguntou ele, apontando para a casa na curva da estrada.
- É - respondeu ela, distraída. - Tenho o quarteirão inteiro só para mim.
Ele sorriu.
- Para sua informação, a sua casa fica numa estrada de terra batida e não num quarteirão.
- Para os padrões de Bowen, isto é um quarteirão.
O sítio era de uma beleza incrível. Havia pelo menos uma dúzia de árvores grandes à volta do terreno. A casa, de madeira, tinha um amplo alpendre com colunas e três lucernas salientes no telhado. A água ficava a cerca de cem metros. Quando Theo entrou no caminho, viu mais árvores retorcidas a sair do braço de rio.
- Há muitas cobras por aqui?
- Algumas.
- Dentro de casa?
- Não.
Theo suspirou de alívio.
- Detesto cobras.
- Não conheço muita gente que goste delas.
Ele concordou e subiu atrás dela o passeio que desembocava nos degraus de acesso à casa. Reparou que Michelle tinha uma predilecção por flores. Havia flores nas floreiras das janelas de cada
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lado da porta e mais no alpendre, em grandes vasos de barro com hera.
Michelle abriu a porta principal e entrou à frente. Theo pousou a sua mala à entrada, junto de um velho baú e olhou à volta. Aparentemente, a casa tinha sido restaurada
com esmero. O soalho e as ombreiras estavam magnificamente envernizados e as paredes pintadas num tom amarelo-manteiga-claro. Theo detectou o cheiro do verniz recente. Encostou a cana de pesca à parede e fechou a porta. Quando fechou o ferrolho, reparou como era frágil. Abriu a porta outra vez, agachou-se e examinou a fechadura, à procura de sinais de arrombamento. Não havia riscos visíveis, mas Michelle tinha de substituí-la sem demora.
Theo entrou no hall. À esquerda, havia uma pequena sala de jantar com uma mesa e cadeiras de mogno escuro e um belo aparador de fabrico artesanal, encostado à parede em frente da janela. A cor estava na carpete. Era de um tom vermelho vivo, com manchas de amarelo e preto.
À direita da entrada, ficava a sala de estar. Em frente de um sofá bege e junto da lareira de pedra estavam duas poltronas. Sobre outra carpete colorida, havia uma arca, e em cima da mesa improvisada viam-se pilhas de livros. Ao fundo, havia portas envidraçadas através das quais Theo avistou a secretária.
- A casa é realmente um quadrado grande - disse ela. Podemos passar da sala de jantar para a cozinha e para a zona do pequeno-almoço, atravessar o corredor das traseiras e entrar no meu escritório e depois passar à sala de estar por aquelas portas envidraçadas. Não há becos sem saída nesta casa e isso agrada-me.
- Onde ficam os quartos?
- As escadas ficam no corredor das traseiras junto da lavandaria e tenho dois quartos lá em cima. São grandes, mas o soalho e as paredes ainda não estão acabados. vou arranjar um quarto de cada vez. Teremos de partilhar a casa de banho, se não se importa
- acrescentou ela. - Ou pode usar a casa de banho cá de baixo, mas está lá uma máquina de lavar roupa e um secador. Quando eu acabar de remodelar a casa, haverá dois quartos separados.
A casa de Michelle estava mobilada com simplicidade, mas tudo era de bom gosto e a condizer, um reflexo da mulher que lá vivia, na opinião de Theo.
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- Isto é uma MainLand-Smithl - perguntou ele ao entrar na sala de jantar e ver mais de perto a mesa.
- Conhece fabricantes de móveis?
- Sim, conheço - respondeu ele. - Aprecio um bom trabalho. Então, é?
- Não, não é uma Mainland-Smith. É uma John Paul. Theo não reconheceu o nome à primeira; depois, percebeu
que ela estava a dizer-lhe que fora o irmão a fazer a mobília.
- Não é possível que tenha sido o seu irmão a fazer isto!
- Sim, foi ele.
- Michelle, isto é uma obra de arte.
Theo passou a mão ao de leve pelo tampo da mesa, como se fosse a testa de um bebé. Michelle observava-o, satisfeita por ele apreciar a obra do irmão.
O mogno estava liso como uma superfície de mármore.
- Incrível! - disse Theo em surdina. - Olhe para estas linhas fabulosas!
Agachou-se para ver a parte de baixo. As pernas eram trabalhadas e as volutas espantosas. Era uma obra perfeita. Todas as linhas eram perfeitas.
- Quem lhe ensinou a fazer isto?
- Ele próprio. ,
- Não pode ser. Ela riu-se.
- O meu irmão é um perfeccionista em certas coisas. Tem mesmo talento, não tem?
Theo ainda não acabara de examinar a mobília. Levantou-se e pegou numa cadeira. Em seguida, virou-a ao contrário e assobiou.
- Nem um prego, nem um parafuso à vista. Oh, o que eu não daria para ser capaz de fazer uma obra destas! Se for bem cuidada, esta cadeira durará séculos.
- Faz carpintaria?
Michelle não sabia porquê, mas não imaginava Theo a fazer nenhum trabalho manual. Parecia contraditório com o que ela sabia a seu respeito.
Theo olhou para ela e percebeu que estava admirada.
- O que é?
- Você não me parece o tipo de pessoa que trabalhe com as mãos.
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- Ai não? Que tipo de pessoa pareço? Ela encolheu os ombros.
- Wall Street... Fatos feitos à medida... Criados. Um menino da cidade, percebe?
Theo ergueu o sobrolho.
- Está enganada. Faço algum do meu melhor trabalho com as mãos. - Sorrindo, ele acrescentou: - Quer referências?
A insinuação sexual não passou despercebida a Michelle.
- Tenho de fechar a porta do meu quarto à chave esta noite? A expressão dele anuviou-se imediatamente.
- Não, eu nunca violaria a sua privacidade. Além disso...
- Sim?
Theo piscou-lhe o olho.
- Se for eu a dar cartas esta noite, você irá ter comigo.
- É assim tão descarado com todas as mulheres que conhece, Mr. Buchanan?
Ele riu-se.
- Não sei o que é, Michelle. Parece que você me dá a volta ao miolo.
Ela arregalou os olhos.
- A sério - disse ele. - Gosto de trabalhar com as mãos. Gosto de construir coisas... ou pelo menos gostava. Admito que ainda não me aperfeiçoei.
- O que fez?
- O meu último projecto foi uma gaiola com dois pisos. Construí-a há quatro anos, mas foi um falhanço. Os pássaros nem se aproximam dela. Estou esfomeado, Michelle. E se eu a levasse a jantar fora?
- Prefiro ficar em casa esta noite - disse ela. - Se você concordar. É meu convidado...
- Isso agrada-lhe ou não?
- Por sinal, é agradável ter um advogado do Departamento de Justiça debaixo do meu tecto. Talvez você mantenha os lobos à distância.
- Mesmo assim, vai fechar a porta do seu quarto à chave, não vai?
Era estranho brincar com um homem atraente. E divertido, pensou Michelle. Nunca tivera muito tempo para isso quando andava na faculdade de Medicina. Seguira-se o internato, e só lhe
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apetecia dormir. Definitivamente, brincar não fazia parte do currículo dela.
- A verdade é que nem tenho fechadura na porta - disse ela. - Venha comigo. vou mostrar-lhe onde vai dormir, e pode mudar de roupa enquanto eu vejo o que há no frigorífico.
Theo pegou na mala e foi atrás dela. Atravessaram a sala de jantar e entraram na cozinha. Era uma cozinha clara, alegre e rústica, com o dobro do tamanho da sala de jantar. No recanto do pequeno-almoço, havia uma velha mesa de carvalho e quatro cadeiras desmontáveis salpicadas de tinta. Por cima do velho lava-louças de esmalte, havia três janelas de guilhotina que davam para o alpendre fechado e para as traseiras do terreno. O quintal era comprido e estreito, e ao longe via-se um pontão que entrava pela água turva. Um barco de alumínio a motor estava amarrado a um dos postes.
- Você pesca naquele pontão?
- Às vezes - disse ela. - Mas gosto mais do pontão do meu pai. Lá apanho mais peixe.
Havia três portas no corredor das traseiras. Uma dava acesso ao alpendre fechado, outra abria-se para uma casa de banho pintada de fresco e a terceira ia dar à garagem.
- Há outro quarto ao cimo das escadas. O seu fica à esquerda. Theo não subiu logo. Pousou a mala nos degraus e verificou
a fechadura da porta das traseiras, abanando a cabeça. Era tão fraca que até uma criança de dez anos conseguiria abri-la. Em seguida, olhou para as janelas do primeiro andar. Quando voltou à cozinha, disse:
- Qualquer pessoa podia entrar pelas suas janelas. Nenhuma estava fechada.
- Eu sei - reconheceu ela. - De agora em diante vou deixá-las fechadas.
- Estou a fazer o possível por não a assustar, mas enquanto o vandalismo...
- Não se importa de reservar a conversa para depois do jantar? Tem sido um dia muito tenso.
Michelle deu meia-volta e encaminhou-se para o frigorífico. Ouviu as tábuas a estalar enquanto Theo subia. A velha cama de ferro do quarto de hóspedes tinha um colchão granuloso, e ela sabia que ele iria ficar com os pés de fora. Também sabia que ele
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nunca diria uma palavra sobre o desconforto, porque era um cavalheiro.
Adorava aquele sotaque de Boston. Pensou nisso quando estava a arranjar os legumes na bancada e afastou imediatamente o pensamento. Sim, Boston. Outro mundo. Depois, suspirou. Theo viera pescar e retribuir um favor, concluiu ela. Ajudá-la-ia a sair da confusão em que ela se envolvera e depois regressaria a Boston.
- Fim da história.
- O que disse? Ela sobressaltou-se.
- Estava a falar sozinha.
Theo vestia uns jeans velhos e desbotados e uma t-shirt cinzenta que já conhecera melhores dias e tinha um buraco nas peúgas. Michelle achou-o tremendamente sexy.
- Qual é a graça?
- Você. Eu esperava uns jeans engomados e vincados, confesso. Estou a brincar - acrescentou ela à pressa ao ver o ar carrancudo de Theo. - Você está mesmo ambientado... excepto no que diz respeito a essa arma.
- Ficarei muito contente quando devolver este emplastro. Não gosto de armas, mas as autoridades de Boston pediram-me que a usasse até que esmoreça o furor em relação ao meu último caso.
- Já alguma vez teve de disparar sobre alguém?
- Não, mas não perdi a esperança - respondeu ele com um sorriso irónico. - Posso comer esta maçã?
Theo deu uma dentada na maçã antes de Michelle responder.
- Raios, estou com fome. O que está a preparar?
- Peixe grelhado com legumes e arroz. Concorda?
- Não sei. Parece-me demasiado saudável. Gosto de comida de plástico.
- Paciência. Em minha casa vai ter uma alimentação saudável.
- Depois do jantar, podemos sentar-nos a conversar e a falar da sua vida.
- Como por exemplo?
- Como por exemplo quem é que nesta terra quer fornicar consigo - disse ele. - Desculpe, eu devia ter dito "quem é que tem um fraquinho" por si.
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- Já ouvi pior - disse ela. - Eu também era uma desbocada. Quando era pequena. Apanhei a linguagem colorida dos meus irmãos. O papá dizia que eu conseguia fazer corar um adulto, mas cortou o mal pela raiz.
- Como? Pôs-lhe sabão na boca?
- Oh, não, nada disso! - Michelle virou-se para a torneira e começou a lavar o cebolinho. - Dizia-me que, se eu dissesse um palavrão, a minha mãe chorava.
- Então, usava o sentimento de culpa.
- Exactamente.
- O seu pai fala dela como se...
- Ela estivesse em casa à espera dele.
- Pois.
- O papá gosta de conversar com ela.
- Como é que ela morreu?
- Sofreu uma trombose forte ao dar-me à luz. Nunca recuperou e acabou por morrer.
O telefone tocou, interrompendo a conversa. Michelle enxugou as mãos num pano e atendeu. Era o pai a telefonar de The Swan. Ouvia-se o tilintar dos pratos.
Theo encostou-se à bancada, acabou de comer a maçã e ficou à espera que Michelle lhe dissesse o que podia fazer para a ajudar. Tinha o estômago a dar horas e olhou à sua volta, à procura de qualquer coisa para petiscar. Michelle não tinha comida de plástico. Como é que ela conseguia beber uma cerveja fresca sem umas batatas fritas de pacote? Para ele, isso era quase um crime.
- Não se importa? - perguntou ele, apontando para os armários.
Ela fez um sinal de assentimento e ele começou imediatamente a vasculhar nas prateleiras, à procura de mais alguma coisa para comer. Jake nunca mais se calava ao telefone. De vez em quando, Michelle tentava dizer qualquer coisa.
- Mas, papá... Estávamos só a arranjar... Sim, papá. compreendo. Está bem. vou já... Porque é que o Theo tem de ir comigo? Sinceramente, papá, o homem veio cá para ir à pesca... Não, eu não estava a discutir. Sim. Telefono-te assim que voltarmos. - Depois, Michelle riu-se, e foi um som alegre. Theo sorriu. - Não, papá, não me parece que o Theo queira mais da tua sopa.
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Assim que desligou, Michelle guardou o peixe no frigorífico.
- Desculpe, mas o jantar vai ter de esperar mais um pouco. O Daryl Waterson está com problemas na mão e o papá prometeu-lhe que eu passava por lá para vê-lo. Talvez o Daryl tenha apertado de mais a ligadura. Eu dizia-lhe que ficasse a descansar, ou que fosse preparando o jantar, mas o meu carro está no The Swan e o papá acha que você deve ir comigo. Não se importa?
Como Theo não tencionava separar-se de Michelle até se inteirar da situação dela, não se importou nada.
- Não há problema - respondeu ele. - O Daryl é o pai do matulão? Do adolescente que foi ao bar à minha procura? Como se chama ele?
- Elliott - respondeu ela. - Sim, ele é filho do Daryl.
- Talvez pudéssemos passar por um McDonalds no caminho. E comprar batatas fritas e um Big Mac.
- Não se preocupa com o estado das suas artérias?
Foi o modo como ela fez a pergunta que o pôs a rir. Ficara tão assustada!
- Claro que sim. Porquê?
- Não há nenhum McDonalds em Bowen.
Theo subiu as escadas a correr para ir buscar as chaves enquanto Michelle foi procurar a sua mala de médica. Theo voltou primeiro e ficou à espera dela junto à porta principal.
- Tem a chave de casa? - perguntou. Ela palpou a algibeira.
- Tenho.
- Fechei a porta das traseiras à chave. Você tinha-a deixado aberta.
Theo falou como se estivesse a acusá-la de um crime.
- Às vezes esqueço-me. Não costumamos fechar as portas à chave em Bowen.
- A sua clínica estava bem fechada?
- Estava.
- Daqui em diante, deixe as portas todas bem fechadas. Está bem? - disse Theo fechando a porta principal e certificando-se de que estava bem segura.
- Está bem - respondeu Michelle, pousando a sua mala de médica no banco de trás.
Theo ia a sair da rampa quando olhou para ela e disse:
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- Acha que podíamos parar para...
- Não.
- Você não sabe o que eu quero.
- Sei, sim. Batatas fritas, um hambúrguer cheio de gordura...
- Batatas fritas - concluiu ele.
- Sódio a mais.
Enquanto ela o guiava através de sucessivas estradas sem sinalização, ele discutia sobre alimentação.
- Você nunca se descontrai?
- Sou médica, portanto acho que a resposta é "não".
- Os médicos não estão autorizados a comer alguma coisa que saiba bem?
- Eu não imaginava que o meu convidado fosse tão lamuriento. O papá gosta de comida de plástico. Você podia fazer-lhe companhia.
Michelle teve receio de estar a mostrar-se agressiva. Theo deu-lhe uma oportunidade de provar que não era emproada nem puritana ao perguntar:
- O que fazem as pessoas aqui para se divertirem? Michelle encolheu os ombros.
- Oh, coisas muito simples... Vão ao cinema, trocam histórias sobre pesca enquanto bebem uma caneca de cerveja no The Swan, confraternizam em jantares simples nas instalações dos Veteranos, visitam os vizinhos para comparar as colheitas de tomate... E depois, evidentemente, têm o eterno favorito... O sexo.
- O quê? - perguntou ele, com a certeza de que tinha ouvido bem.
- Sexo - repetiu ela com ingenuidade. - Fazem sexo. Muito, muito sexo.
Ele riu-se.
- Eu sabia que ia gostar desta terra.
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CAPÍTULO 15
- A casa do Daryl fica ali ao fundo da estrada - disse Michelle.
Theo teria estacionado à beira do passeio, mas este não existia. Como também não havia nenhuma rampa de entrada, parou no declive relvado, ao lado de uma carrinha Chevrolet velha e ameigada. A casa de dois pisos precisava urgentemente de reparação. Os degraus empenados pareciam prestes a ruir.
Cherry, a mulher de Daryl, observava-os através da porta de rede. Assim que eles saíram do carro, ela desceu do alpendre e acenou-lhes.
- Ainda bem que veio, Dr.a Mike. A mão do Daryl está a dar-lhe que fazer. Ele não gosta de se queixar, mas eu sei que está cheio de dores.
Theo pegou na mala de Michelle e foi atrás dela. Michelle apresentou-os. Cherry limpou as mãos ao avental e cumprimentou-o. Era uma mulher muito simples, com a pele tisnada. Devia ter cerca de quarenta anos, pelos cálculos de Theo, mas quando sorria era encantadora. O diminutivo, Cherry, devia-se obviamente ao cabelo ruivo.
- Ouvi falar no senhor ao nosso filho mais velho, o Elliott. Acho que nunca o vi tão entusiasmado - disse Cherry. - Causou uma forte impressão nele. Entre, Eu estava a pôr a mesa para o jantar. Oh, antes que me esqueça, Mr. Freeland talvez passe por cá para cumprimentá-lo. Telefonou há vinte minutos.
- Mr. Freeland?
O nome dizia-lhe qualquer coisa, mas Theo não se lembrava onde o ouvira.
- O professor de Música do liceu - esclareceu Michelle.
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Cherry foi à frente. Atravessaram a sala de estar e a zona de refeições. O mobiliário era escasso e gasto. A cozinha era pequena e estava atravancada com uma grande mesa de carvalho e dez cadeiras, todas diferentes.
Daryl esperava-os. Estava sentado à cabeceira da mesa, a dar uma banana ao bebé sentado na cadeirinha ao lado. A criança tinha mais banana na cara e nas mãos do que na boca. Assim que viu a mãe, fez um sorriso desdentado. Depois, reparou em Michelle e ficou muito sério. Começou a fazer beicinho.
Michelle não se aproximou dele.
- Hoje não há injeccções, Henry - prometeu ela.
A criança desatou a chorar. Cherry afagou-lhe a mão e acalmou-o com uma mão-cheia de Cheeríos que deitou num prato.
- Sempre que o Henry me vê, eu magoo-o - disse Michelle. - Quando eu puder, contrato uma enfermeira para lhe dar as injecções.
- Não se preocupe com o Henry. Daqui a pouco, ele percebe que a senhora não veio cá por causa dele.
Daryl levantou-se e estendeu a mão a Theo enquanto Michelle fazia as apresentações. A mão e o braço esquerdo do homem estavam ligados até ao cotovelo.
- Porque não se senta ao lado da Dr.a Mike junto desse monte de papéis, enquanto ela examina a mão do Daryl? - sugeriu Cherry.
Daryl não foi tão subtil ao empurrar os papéis para junto de Theo.
- O papá Jake pensou que talvez o senhor quisesse dar uma vista de olhos a estes documentos... Como é advogado...
Theo percebeu logo. Fez um sinal afirmativo e sentou-se. Michelle conhecia bem a situação, mas concentrou-se na mão de Daryl.
Depois de verificar a cor dos dedos, perguntou:
- Tem mudado a ligadura todos os dias?
- Tenho - respondeu ele, sem tirar os olhos de Theo. É a Cherry que a muda.
- Aquela gaze que nos trouxe ainda dá para mais uma semana - disse Cherry.
Também ela observava atentamente Theo e torcia o avental nas mãos com nervosismo.
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Theo não sabia ao certo o que esperavam dele. Michelle resolveu intervir.
- O Daryl trabalhou na açucareira dos irmãos Carson.
- Depois do acidente, mandaram-me para casa. Dispensaram-me para sempre, foi o que foi - explicou Daryl, afagando o queixo.
- Teve o acidente quando estava a trabalhar? - perguntou Theo.
- Sim, tive - respondeu Daryl.
- O Daryl trabalhou naquela fábrica durante vinte e dois anos - explicou Cherry.
- É verdade - disse Daryl. - Entrei para lá no dia em que fiz dezassete anos.
Theo fez as contas e ficou chocado quando percebeu que Daryl não tinha mais de trinta e nove ou quarenta anos. O homem parecia dez anos mais velho. Estava tão gasto
como a sua casa. Tinha muitos cabelos brancos, a mão direita cheia de calos e os ombros curvados.
- Fale-me do acidente.
- Antes ou depois de o senhor ler esses documentos? - perguntou Daryl.
- Antes.
- Está bem. vou simplificar. Eu estava a trabalhar com uma retalhadora, que é uma máquina muito grande sem a qual não se pode fazer nada numa açucareira, e disse ao Jim Carson que ela não estava a trabalhar bem e que ele tinha de desligá-la e mandar consertá-la, mas ele não me deu ouvidos. O Jim é agarrado ao dinheiro e eu compreendo isso, evidentemente. Mesmo assim, gostava que ele me tivesse escutado. Mas, estava a fazer o meu trabalho e de repente a correia soltou-se e aquilo veio tudo para cima de mim. Esmagou-me os ossos todos da mão, não foi, Mike?
- Quase - respondeu Michelle.
Estava de pé ao lado dele e, admitindo que pudesse estar a enervá-lo, puxou uma cadeira e sentou-se entre ele e Theo.
- Foi você que o operou? - perguntou Theo a Michelle.
- Não, não fui - respondeu ela.
- A Dr.a Mike pediu a um cirurgião especializado de Nova Orleães que tratasse de mim - disse Daryl.
- Ele fez um bom trabalho, não fez, Daryl? - atalhou Cherry.
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- Sem dúvida nenhuma. Graças a ele, pude conservar todos os meus dedos. Já consigo mexê-los.
- Foi um autêntico milagre - acrescentou Cherry.
- O Jim Carson foi ver-me ao hospital, mas não foi uma visita de cortesia - disse Daryl. - Disse-me que aquilo tinha sido um descuido da minha parte, porque eu sabia que aquela máquina não estava a funcionar bem e continuei a trabalhar com ela. Chamou-me irresponsável e dispensou-me.
- Há algum sindicato nessa fábrica?
- Oh, não, os irmãos Carson encerravam a fábrica antes de deixarem lá entrar um sindicato. Queixam-se que não ganham para as despesas nem para os ordenados e, se tivessem de suportar empregados que lhes dissessem o que deviam fazer, fechavam e pronto.
- Estão sempre a ameaçar que se reformam e fecham a fábrica se alguém lhes arranjar problemas - disse Cherry.
Largou o avental e aproximou-se do lava-louças para humedecer um pano e lavar a cara do bebé.
- Tem uma caneta? - perguntou Theo a Michelle. - Quero tirar uns apontamentos.
Michelle abriu a mala e procurou no meio dos seus instrumentos. Theo reparou que o bebé observava Michelle com um ar particularmente cauteloso.
- O Henry não confia em si - disse Theo, sorrindo.
O bebé virou-se para Theo e sorriu. Tinha o queixo babado.
Enquanto a mãe tentava limpar os restos de banana que ele tinha nos dedos, Michelle entregou a Theo um bloco de notas e uma caneta. Theo pôs os óculos e começou a escrever.
- E a indemnização? - perguntou Theo.
- O Jim disse-me que o preço do seguro aumentaria se eu o reclamasse e que, de qualquer modo, eu não tinha direito nenhum porque a culpa era minha.
- O Daryl está preocupado com os colegas da fábrica - disse Cherry. - Se o Jim Carson a fechar, toda a gente fica sem emprego.
Theo concordou, pegou nos documentos que Daryl lhe tinha entregado e começou a ler. A conversa parou imediatamente, e Daryl e Cherry ficaram à espera. O único ruído que se ouvia na cozinha era o bebé a chuchar no dedo.
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Theo não demorou muito a acabar a leitura.
- Assinou algum documento de demissão? - perguntou ele.
- Não - respondeu Daryl.
- Não te esqueças de falar ao Theo no advogado - lembrou Cherry ao marido.
- Eu ia falar nisso - disse Daryl. - O Jim mandou o Frank Tipp falar comigo.
- Todos lhe chamam Larva - disse Cherry. Aproximara-se do fogão para mexer o guisado que fizera para o jantar. - Chamamos-lhe Larva nas barbas dele. Não falamos dele pelas costas. Queremos que ele saiba o que pensamos da sua pessoa.
- Agora acalma-te, Cherry, e deixa-me falar - disse Daryl com brandura. - O Frank é um advogado de St. Claire, e se eu não estivesse em minha casa, cuspia ao pronunciar o nome dele. É um autêntico assassino, é o que ele é, assim como o sócio, o Bob Greene. Fizeram uma sociedade e trabalham com uma... Qual é o termo, Cherry, querida?
- Comissão?
- Avença - disse Theo.
- É isso mesmo. De qualquer modo, como eu ia dizendo, recebem uma avença mensal dos Carson e compete-lhes resolver os problemas que aparecem, problemas como o meu.
- Isso parece um bom acordo - disse Michelle em surdina.
- Estávamos a pensar... - disse Cherry, fazendo sinal a Daryl. - Fala tu, querido. Diz-lhe o que pensas, como o papá te aconselhou a fazer.
- Está bem. Eu e a Cherry pensámos se o senhor poderia fazer alguma coisa por isto, porque também é advogado. Nós pagamos o seu tempo. Não aceitamos obras de caridade.
- Mas não queremos arranjar-lhe problemas - acrescentou Cherry.
- Como poderiam arranjar-me problemas? - perguntou Theo, perplexo.
- Como ainda não se demitiu oficialmente do Departamento de Justiça e assinou o contrato de treinador no liceu, o papá Jake explicou-nos que não pode aceitar dinheiro.
- Porque é pago pelo Departamento de Justiça - explicou Cherry. - Isto é verdade? Ou o papá Jake estava a especular?
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- Se houver honorários a pagar, eu tenho de saber quanto é para começar a pensar como hei-de arranjar o dinheiro - disse Daryl.
- Não haverá honorários - disse Theo.
- Então o que o papá Jake disse era verdade?
- Era - respondeu Theo, mentindo.
- Pode fazer alguma coisa em relação aos Carson? - perguntou Cherry outra vez. Havia esperança na sua voz, mas o seu rosto demonstrava inquietação.
- Sem irritar os Carson ao ponto de fecharem a fábrica lembrou Daryl. - O papá Jake falou muito bem da sua competência...
- Ai sim?
Theo teve vontade de rir. Não fazia ideia do que Jake poderia ter dito a seu respeito. Jake não sabia nada acerca da sua competência. Theo e o velho tinham falado de pesca e de pouco mais.
- Sim, senhor, e ele pensou que o senhor podia ter uma conversazinha com o Jim Carson em meu nome. Chamá-lo à razão, percebe? Descontam-nos tanto dinheiro no ordenado todos os meses, para assistência médica e não nos deixam utilizá-la numa emergência. Não me parece que isso esteja certo.
- Não está - reconheceu Theo.
- Talvez pudesse falar com o irmão do Jim, o Gary. Ele é mais velho e o Jim faz tudo o que ele diz. O Gary é que é o responsável - disse Cherry.
- Não conheço as leis da Louisiana - disse Theo e reparou logo pela expressão de Daryl que ele passara da esperança à resignação. - O que significa que tenho de fazer alguma investigação, falar com uns amigos que me possam aconselhar. - Theo ficou satisfeito ao ver que Daryl abanava a cabeça e voltava a sorrir. - Portanto, proponho o seguinte. vou fazer a investigação, definir uma linha de acção e depois o senhor e eu conversamos e o senhor dirá o que resolve. Entretanto, não creio que seja boa ideia falar a ninguém nesta conversa. Não quero que os Carson nem os advogados saibam que eu estou envolvido nisto. De acordo?
- Sim - respondeu Daryl. - Não direi uma palavra a ninguém.
- E o papá Jake? - perguntou Cherry. - Ele já sabe que estamos a falar consigo.
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- Ele não diz a ninguém - garantiu Daryl à mulher. Uma criança gritou pela mãe, interrompendo a conversa.
- Mamã, Mr. Freeland está à espera no alpendre. Ele pode entrar?
Em seguida, entrou a correr na cozinha outro rapazinho com cinco ou seis anos. Era sardento e tinha o cabelo encaracolado da mãe.
- John Patrick, traz Mr. Freeland para a cozinha.
O miúdo nem prestou atenção à mãe. Aproximou-se de Michelle e agarrou-se ao braço dela.
- Vamos deixar-vos à vontade - disse Theo, empurrando a cadeira para trás. - Já vi estes documentos, Daryl. Pode guardá-los.
- Não se pode ir embora - disse Cherry. - Mr. Freeland veio cá de propósito para o conhecer... Quero dizer, não estaria certo se se fosse embora sem cumprimentá-lo.
- Como ele estava aqui perto - disse Daryl, olhando para o tampo da mesa, mas Theo não precisou de encará-lo para saber que estava a mentir.
- Por acaso, Mr. Freeland tem algum problema jurídico? perguntou ele a Michelle.
Ela sorriu e mudou imediatamente de assunto.
- John Patrick - disse ela à criança. - Este é o meu amigo Theo Buchanan. Veio de Boston para ir à pesca.
John Patrick abanou a cabeça.
- Eu já sei quem ele é. Toda a gente sabe. Dr.a Mike, pode dizer ao seu irmão que tem de vir cá outra vez? E diga ao John Paul que se despache, porque eu deixei a minha bola no quintal e preciso dela. Está bem?
- A Lois voltou? - perguntou ela.
- Parece que o rapaz pensa que sim - respondeu Daryl. Vai arranjar uma úlcera só de preocupar-se com ela.
- Não vemos a Lois há mais de um mês, mas o John Patrick continua com receio que ela apareça sem mais nem menos. Só tira a bola do quintal quando o seu irmão aparecer, nem deixa que nós a vamos buscar. Tenho de pendurar a roupa a secar ao lado da casa só para acalmá-lo - acrescentou Cherry olhando para John, como se se sentisse obrigada a explicar o estranho comportamento da criança.
134
- O John Patrick tem o nome do irmão da Dr.a Mike, o John Paul - interpôs Daryl.
- Então, vai dizer-lhe? - pediu o rapaz. Michelle abraçou-o.
- Assim que eu o vir, digo-lhe que gostarias que ele voltasse. Agora, não te preocupes mais, John Patrick.
- Está bem - disse a criança em voz baixa. - O homem que está ali sentado...
- O Theo?
John Patrick fez um gesto afirmativo.
- O que tem ele? - perguntou Michelle.
- Posso perguntar-lhe uma coisa?
- Podes perguntar-me o que quiseres.
John Patrick endireitou-se e virou-se para Theo. Embora Theo não tivesse muita experiência em lidar com crianças, pensou que seria capaz de enfrentar um miúdo de seis anos.
- O que queres saber?
O rapaz não era tímido. Encostou-se à perna de Theo, encarou-o e disse:
- O meu papá diz que o papá Jake diz que tu tens uma arma. Tens mesmo?
A pergunta surpreendeu Theo.
- Sim, tenho uma arma, mas não será por muito tempo. vou devolvê-la. Não gosto de armas.
- Mas trouxeste-a?
- Sim, trouxe.
O fascínio da criança era uma preocupação, e Theo admitiu fazer uma curta prelecção sobre os perigos das armas de fogo e o facto de não serem brinquedos. Estava a pensar como havia de transmitir isto a uma criança de seis anos, mas aparentemente John Patrick já se adiantara.
- Então podes ir lá fora?
- Queres que eu vá ao teu quintal?
John Patrick abanou a cabeça com um ar solene. Theo olhou para Michelle, que lhe piscou o olho.
- Vens?
- Sim, vou - respondeu Theo. - E o que queres que eu faça quando lá chegar?
- Podes dar um tiro à Lois por mim?
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Theo sabia que o miúdo lhe ia fazer este pedido, mas ficou bastante chocado. Ficou sem fala.
- Não, o Theo não dá nenhum tiro à Lois - disse o pai, exasperado. - Não queres que o namorado da Dr.a Mike tenha problemas com as autoridades, pois não?
- Não, papá, não quero.
- Muito bem - disse Michelle, dando uma palmadinha nas costas da criança, como se a consolasse. - Se o Theo desse um tiro à Lois, ela ficava furiosa.
- Ela é má quando está furiosa - disse a criança a Theo. Ouviu-se a porta de rede a bater, várias vezes.
- Vai lavar as mãos para irmos jantar - disse Cherry a John Patrick.
O rapaz deitou um olhar decepcionado a Theo e dirigiu-se para o lava-louças.
- Ele é um pouco cruel, não é? - segredou Theo a Michelle.
- É um amor - respondeu ela.
- Se eu fosse a Lois, fugia para a floresta.
A porta de rede bateu outra vez, e de repente o soalho começou a vibrar debaixo dos pés de Theo. Era como se uma manada de búfalos atravessasse a sala de jantar. Em seguida, começaram a entrar na cozinha rapazes de várias idades. Depois do quinto, Theo perdeu-lhes a conta.
Mr. Freeland foi o último a entrar na cozinha já cheia de gente. Elliott teve de encolher-se junto do frigorífico para ele passar.
Freeland podia confundir-se com um amigo dos rapazes, excepto por usar camisa e gravata. Tinha pouco mais de um metro e meio de altura e era magro como um espeto. Usava uns óculos grossos com armação de osso que lhe escorregavam pela cana do nariz e que ele empurrou para cima com o indicador.
- Mr. Freeland é o professor de Música do liceu - explicou Daryl.
- Muito prazer em conhecê-lo, Mr. Freeman.
Dois dos filhos de Daryl estavam atrás da cadeira de Theo que, como não se podia levantar, estendeu o braço para cumprimentar Freeman.
- Por favor, trate-me por Conrad - insistiu Freeland. Cherry, Daryl - acrescentou ele, cumprimentando-os fazendo
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um aceno com a cabeça. Em seguida, virou-se para Michelle e fez o mesmo cumprimento. - Mike.
- Conrad - disse Cherry, correspondendo com um gesto de cabeça. - Como está a Billie?
- A Billie é a minha mulher - explicou Conrad a Theo. Está boa. Agora o bebé só nos obriga a levantar uma vez por noite e portanto estamos a dormir melhor. A Billie manda cumprimentos.
- Meninos, saiam do caminho e deixem Mr. Freeland sentar-se ao lado do Theo para eles poderem conversar - disse Cherry.
Só se ouvia o arrastar dos pés na cozinha quando as crianças ocuparam os seus lugares à mesa. Theo aproximou-se mais de Michelle para arranjar espaço para Conrad.
- Não me posso demorar - disse Conrad, puxando uma cadeira e sentando-se. - A Billie está à minha espera para jantar.
Concentrando toda a sua atenção em Theo, disse:
- O Daryl e a Cherry compreendem como a educação é importante para os seus oito filhos. Gostariam que eles fossem todos para a universidade.
Theo baixou a cabeça em sinal de concordância. Não sabia ao certo o que havia de dizer.
- O Elliott tem muito boas notas. Vai tentar ganhar uma bolsa de estudo, mas isso é difícil - disse Conrad. - É um rapaz trabalhador e muito inteligente.
- Obrigado, Conrad - disse Daryl, como se o elogio lhe fosse dirigido e não ao filho.
- Estamos a pensar que talvez o Elliott conseguisse uma bolsa de estudo que pagasse tudo... com a sua ajuda.
- E que ajuda posso eu dar? - perguntou Theo, atrapalhado.
- Conseguir que ele ganhe uma bolsa através do futebol. Theo pestanejou.
- Como?
- O Elliott tem o que é necessário para ser bem-sucedido disse Conrad. - Podia ser bom, muito bom, se fosse devidamente... orientado.
Começaram todos a falar ao mesmo tempo.
- O ano passado, a equipa de St. Claire não sofreu nem uma derrota - disse Cherry a Theo.
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- Parece um objectivo impossível, mas você seria capaz. O papá Jake disse tão bem de si.
- E dos seus conhecimentos - acrescentou Conrad. Theo virou-se para Michelle.
- Como é que eu sabia que o seu pai estava por trás disto? Ela encolheu os ombros e sorriu.
- O papá gosta de si.
- O papá pensou que, se eles vissem o nosso filho a fazer boa figura nesse campo, talvez lhe fizessem uma proposta e lhe pagassem as propinas - explicou Daryl.
Theo levantou a mão.
- Esperem aí...
Eles ignoraram o seu protesto.
- Eles andam sempre à procura de bons defesas laterais disse Conrad.
- Exactamente, é verdade - concordou Daryl. - Mas o papá acha que, como o Elliott é muito rápido, talvez ele também pudesse correr com a bola.
Michelle deu uma cotovelada a Theo para lhe chamar a atenção.
- Os agentes vão assistir aos jogos do St. Claire para descobrir talentos.
Foi a vez de Conrad dar uma cotovelada a Theo.
- Porque não começamos?
- Começamos? - perguntou Theo, esfregando as têmporas. Estava a ficar com uma grande dor de cabeça. - A fazer o quê?
Conrad tirou uns papéis dobrados da algibeira de trás e pô-los em cima da mesa. Em seguida, meteu a mão no bolso da camisa e tirou um pedacinho de papel e um pequeno lápis amarelo e ficou a olhar para Theo, com um ar expectante.
- Em que escola secundária é que se formou?
- Desculpe?
Paciente, Conrad repetiu a pergunta.
- Michigan - respondeu Theo. - Porque quer saber...
- É uma escola grande não é? - perguntou Cherry.
- É - respondeu Conrad.
- Calculo que também seja uma boa escola - observou Da-
ryl-
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Theo olhou à volta da mesa e reparou que as outras pessoas, incluindo as crianças, também o fitavam. Aparentemente, todos sabiam o que se estava a passar. Todos excepto ele.
- O papá Jake sugeriu que me falassem em escolas? - perguntou Theo. Céus, também ele já tratava o velho por "papá".
Ninguém respondeu à sua pergunta. Em seguida, Conrad perguntou:
- E você jogou futebol, não jogou?
- Sim, joguei.
- E depois é que foi para a faculdade de Direito.
Foi uma afirmação, não uma pergunta, mas mesmo assim Theo respondeu:
- Exactamente.
- Ficou em Michigan para tirar o curso de Direito? O que diabo estava a acontecer?
- Não - respondeu Theo. - Tirei o meu MBA e o curso de Direito no Leste.
- O que é um MBA? - perguntou Cherry. Michelle é que respondeu:
- É um mestrado em Gestão.
- E Direito, também. Isso é o máximo - acrescentou Daryl, impressionado.
- Sim, pois, há muita gente que... Conrad interrompeu Theo.
- Onde é que tirou esses cursos?
- Em Yale.
- Oh, formidável, é uma óptima universidade - exclamou Cherry.
Conrad concordou.
- As suas habilitações são impressionantes. Tenho razão, não tenho? - perguntou ele, escrevendo furiosamente no seu papel.
Fez-se luz na mente de Theo, que não percebeu porque tinha sido tão lento. O homem estava a entrevistá-lo para um cargo no liceu.
Theo concluiu que teria de conversar com Jake o mais depressa possível. Metê-lo na ordem.
- Aposto que ainda conserva os seus manuais, não é verdade? - perguntou-lhe Conrad.
139
- Manuais?
- Manuais de futebol - explicou Michelle.
Michelle sorria com ternura e saboreava o desconforto e a atrapalhação dele. Theo concluiu que também precisava de conversar com ela em particular.
- Pois, isto já foi longe de mais - disse ele com um tom de voz firme e sério. - Houve um mal-entendido que tenho de esclarecer já. Quando eu vinha para Bowen, parei para meter gasolina. E este miúdo...
Não conseguiu continuar. Michelle não o deixou. Pousou a mão dela na dele e disse:
- Você ainda tem os manuais, não tem?
- Mas que ideia é essa?
- É uma coisa masculina.
- Pois, bem, por acaso guardei dois. Mas estão arrumados no sótão com outras coisas minhas - apressou-se a acrescentar Theo.
- Não podia pedir a um dos seus irmãos que lhos mandasse? Podia pedir-lhe que os enviasse de um dia para o outro.
- E depois?
- Ia ao treino seguinte comigo e inspeccionava a equipa. Elliott insistiu.
- Nós gostávamos muito.
Começaram todos a falar da equipa, excepto o pequeno John Patrick. O miúdo queria mexer na arma de Theo, que estava constantemente a empurrar-lhe a mão. Era como se tivesse chegado de repente a um país estrangeiro onde ninguém percebesse o que ele dizia.
- Eu não sou treinador de futebol! - gritou ele. Quando todos se calaram, Theo abanou vigorosamente a cabeça. - É verdade. Ouviram bem. Eu não sou treinador de futebol.
Finalmente, controlava a situação e sentiu uma estranha satisfação ao recostar-se na cadeira, à espera que a verdade assentasse. Mas a declaração deixou-os imperturbáveis.
- Estes rapazes estão desejosos de aprender - insistiu Conrad. - Mas não vou pressioná-lo, Theo. Não, senhor, não vou. Não gostamos de fazer essas coisas aqui em Bowen, pois não, Daryl? Somos descontraídos.
- Sim, somos descontraídos - reconheceu Daryl.
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Conrad rasgou um pedaço de papel, debruçou-se sobre a mesa e escreveu qualquer coisa. Em seguida, dobrou o papel e olhou de novo para Theo.
- O reitor do nosso liceu está em Memphis, mas eu telefonei-lhe antes de vir para aqui. - Conrad empurrou o papel na direcção de Theo. - Achamos que vai ficar satisfeito com isto.
Conrad levantou-se e cumprimentou Cherry com a cabeça.
- Não posso fazer esperar mais a Billie e agradeço-vos por me terem deixado interromper o vosso jantar. Theo, espero vê-lo amanhã no nosso treino. A Mike sabe onde é e a que horas.
Entregou a Theo os documentos oficiais que juntara ao papel dobrado, apertou-lhe a mão, reiterando que fora um prazer conhecê-lo e abriu caminho até à porta. Parou à entrada.
- Por acaso não tem um diploma de professor, pois não, Theo?
- Não.
- Eu já calculava, mas achei que devia perguntar. Não faz mal. Não se preocupe. O Ministério da Educação vai ajudar-nos nisto, porque você é um caso especial. Boa noite a todos.
Theo não foi atrás de Freeland. Resolveu esperar pelo treino do dia seguinte para esclarecer a situação. Sem o caos que reinava na pequena cozinha, o bom senso acabaria por prevalecer.
- Mamã, quando é que comemos? - perguntou John Patrick.
- vou já levar a comida para a mesa.
- Vamos andando - disse Theo a Michelle.
- Não ficam para jantar? Temos comida com fartura - disse Cherry.
Theo abanou a cabeça.
- Noutra altura, aceitaria o seu convite, mas a verdade é que o meu estômago ainda não está preparado para outra refeição. Comi a sopa de quiabos com galinha do Jake, mas estava demasiado picante para mim. Estou com cólicas.
Era mentira, mas Michelle achou que ele tinha feito bem. Cherry compreendeu. Daryl ficou um pouco desconfiado.
- Temos sempre comida que chegue para os nossos convidados.
- Ele é da cidade - lembrou-lhe Michelle, como se isso explicasse tudo.
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- Esqueci-me disso - disse Daryl. - Acredito que a sopa do Jake lhe tenha dado volta ao estômago, se não está habituado a comida picante.
- Eu podia fazer-lhe o meu chá especial - propôs Cherry.
- Melhorava num instante.
- Eu agradecia. Daryl concordou.
- Trata dele, Cherry. Mike, não se importa de me mudar a ligadura enquanto cá está?
E Theo bebeu chá quente e amargo na cozinha abafada, enquanto Michelle mudou a ligadura da mão de Daryl e Cherry deu de comer às crianças. John Patrick insistiu em passar para o lado de Theo e, quando a criança acabou de comer, Theo tinha a barriga a dar horas. Foi preciso uma disciplina férrea para não tirar um biscoito caseiro das mãos da criança.
Saíram depois de Theo ter bebido a terceira chávena de chá. John Patrick deu a mão a Theo e acompanhou-o solenemente até ao alpendre da frente. Puxou a camisa de Theo e disse:
- Amanhã faço anos. Vais dar-me um presente?
- Isso depende - respondeu Theo. - Estás a pensar em alguma coisa em especial?
- Talvez uma pistola maior. - A criança largou a mão de Theo e espreitou por cima do ombro. - Não digas à mamã que eu te pedi um presente.
Michelle já tinha descido a escada e esperava junto do carro de Theo.
- Aquele miúdo... Desconfio que vamos ouvir falar dele daqui a quinze anos - observou Theo, fazendo recuar o carro até à estrada.
- Ele é um anjo.
- E sedento de sangue - contrapôs Theo. - Não percebo. Ele tem pelo menos quatro irmãos mais velhos... Não é?
- E depois?
- Então, porque é que eles não dizem a essa tal Lois que o deixe em paz? Eu olhava pelos meus irmãos mais novos. Não deixava que ninguém se metesse com eles. É isso que os irmãos mais velhos devem fazer.
- Ainda olha por eles?
- Os seus irmãos ainda olham por si?
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- Tentam - respondeu ela. - Felizmente, o Remy está no Colorado e por conseguinte não pode interferir muito na minha vida hoje em dia e o John Paul sempre foi um pouco reservado. É claro que continua a aparecer nos momentos mais inesperados. Acho que o papá envia um SOS de vez em quando.
John Patrick acenava-lhes freneticamente. Michelle abriu o vidro e disse adeus ao rapazinho.
Já na estrada, Theo seguiu na direcção de Bowen. Olhou para trás, abanou a cabeça e disse:
- Garanto-lhe, aquele miúdo não é normal. Ela riu-se.
- É uma criança perfeitamente normal.
- A Lois não é uma vizinha, pois não?
- Então é porque você reparou que não há mais nenhuma casa neste troço de estrada. Não admira que trabalhe para o Departamento de Justiça. É muito observador.
- Ouça, estou de férias - contrapôs Theo. - Posso raciocinar um pouco mais lentamente. Então, diga-me, o que é exactamente a Loisí Uma sarigueia? Não, aposto que é um guaxinim. Céus, não é uma cobra, pois não? Elas fazem buracos e...
- A Lois é um crocodilo.
Theo carregou a fundo no pedal do travão e por pouco não espetou o carro contra um carvalho ao sair da estrada. Apesar de saber que os crocodilos viviam nos pântanos - com os diabos, ele lia a National Geographic como toda a gente e de vez em quando via o canal Discovery quando tinha insónias -, nunca pensara que eles se aproximassem tanto de uma casa.
E quem em seu perfeito juízo é que poria o nome de Lois a um crocodilo?
- Você está a dizer que há um crocodilo vivo e adulto no quintal daquele miúdo?
A expressão de Theo era impagável. Era como se ele tivesse acabado de descobrir que havia um papão.
- É exactamente isso que eu lhe estou a dizer. As fêmeas são muito ciosas do seu território. A Lois decidiu que aquele quintal lhe pertence. Persegue qualquer pessoa que lá vá... Ou pelo menos perseguia, até o meu irmão a tirar de lá. E, a propósito, agradeço que não fale nisto ao Ben Nelson. Os crocodilos são uma espécie protegida e o meu irmão podia meter-se em sarilhos.
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- E vocês põem nomes a todos os crocodilos.
- Só a alguns.
Theo passou a mão pela testa.
- Meu Deus! - disse ele em voz baixa.
- Está pronto para regressar a Boston?
- Só depois de ir à pesca. Agora explique-me como é que volto para sua casa.
Michelle explicou-lhe e, quase sem ele dar por isso, chegaram a St. Claire, onde realmente havia passeios. Quando ele virou junto de um abençoado semáforo, avistou as luzes douradas ao longe.
- Ah, a civilização - disse ele, suspirando.
- Tenciono preparar um jantar saudável quando chegarmos a casa - disse ela. - Mas pensei...
- Em quê?
- Que você merecia um miminho.
- Sim. Porquê?
- Porque estava esfomeado quando bebeu aquele chá quente... Porque não tirou o biscoito da mão do John Patrick apesar de olhar para ele como se fosse um lobo esfaimado... E porque...
- O quê?
- Deixou que o papá ficasse em vantagem.
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CAPÍTULO 16
O envelope tinha sido entregue há vinte e quatro horas. Mais uma vez, Cameron e os outros esperavam na biblioteca de John que Dalas chegasse para lhes contar o que dissera Monk.
A espera estava a deixar Cameron desvairado. Meu Deus, como é que ele chegara àquele estado? O que lhe acontecera? Acalentara tantos sonhos, alimentara tantas esperanças ao princípio! Quando é que tudo começara a correr mal?
Agora, sentia-se apanhado num jogo demoníaco que o trucidava. Cada hora que passava aproximava-o mais das grades da prisão. Quando fechava os olhos, ouvia o som da porta a fechar-se.
- Não podemos ficar aqui sentados sem fazer nada - disse Cameron. - Já passou um dia. O relógio não pára. Temos de fazer alguma coisa e depressa.
Preston concordou.
- Sugiro que vamos a Bowen esta noite.
- E o que propões que façamos quando lá chegarmos? perguntou John.
- Qualquer coisa é melhor do que ficarmos aqui à espera que a polícia nos venha buscar - respondeu Preston. - Quanto mais tempo esperarmos...
Cameron cortou-lhe a palavra.
- Estou farto de esperar. Se tiver que ser eu a resolver o assunto, pois que seja.
John deu um murro no tampo da secretária.
- O diabo é que resolves - gritou ele. - Estamos juntos nisto, e tu não vais fazer coisa nenhuma a menos que todos estejamos de acordo. Fiz-me entender?
145
- Desde quando és o nosso chefe? - retorquiu Cameron entre dentes. Abalado pelo ataque de fúria de John, tentou recuperar o controlo da situação. - Não me lembro de ter votado em ti - vociferou ele.
- Eu fiz de todos vocês homens ricos - disse John. - E isso faz de mim um chefe.
- Isto não nos leva a parte nenhuma - disse Preston. Acalmemo-nos e tentemos ser razoáveis. Talvez Dalas nos traga alguma boa notícia.
- Isso é outra coisa - disse Cameron. - Por que razão o Monk não reporta a qualquer um de nós? Porque tem de ser sempre por intermédio de Dalas? Ele recebe dinheiro dos quatro e nós devíamos ter acesso a ele sempre que nos apetecesse. com os diabos, eu nem sequer sei qual é o número do telemóvel do Monk.
- Acho que o Cameron tem razão. Porque não falamos directamente com o Monk?
- Vocês os dois estão obcecados com um problema menor
- disse John. - Foi Dalas que arranjou o Monk, não foi? Talvez o nosso assassino não goste de se encontrar connosco os quatro porque não confia em nós.
- Tretas! - ripostou Preston. - Dalas gosta de o dirigir. É um exercício de poder estúpido, se querem saber a minha opinião.
John irritou-se.
- Estou-me nas tintas para a pessoa a quem ele reporta desde que faça o que tem a fazer.
Dalas estava à porta a ouvir a conversa.
- Querem saber o número do telefone do Monk? Dois-dois-três-um-seis-nove-nove. Já estás satisfeito, Cameron? E tu Preston? Querem saber a morada dele? Mesmo que eu não saiba, vou atrás dele e descubro... Se também quiserem essa informação.
- Diz-me que trazes uma boa notícia - disse Preston, ignorando o sarcasmo.
- Se me estás a perguntar se o Monk tem o envelope, a resposta é "não".
- Ele ainda não descobriu os malditos documentos? - perguntou Cameron, incrédulo.
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- O envelope só pode estar no hospital - disse Preston. É o único sítio em que o Monk ainda não pôde procurar como deve ser.
- Então, manda-o lá - exigiu Cameron.
- Eu disse ao Monk que se concentrasse na Renard - esclareceu Dalas. - Ele não pode estar em dois sítios ao mesmo tempo e, além disso, já revistou o cacifo dela no hospital. Lembras-te do que eu te contei, Cameron? Ele até conseguiu que um auxiliar o ajudasse a procurá-lo nas Urgências. Ele não pode andar por ali à vontade, a abrir as gavetas. Usa os miolos.
- Não gosto de pressupostos - declarou John, balouçando-se para trás e para diante na cadeira giratória atrás da secretária.
- Não estou convencido de que a Michelle Renard não tenha levado esse envelope quando saiu do hospital. Achas que o Monk foi exaustivo quando lhe revistou a casa e a clínica? Talvez ele estivesse à pressa...
- Tretas! - disse Dalas. - Ele é um profissional e fez o seu trabalho. Porque não havia de ser exaustivo? Vai ganhar uma pipa de massa assim que deitar a mão ao envelope. Ele quer tanto encontrar os ficheiros como nós.
Virando-se para John, Preston disse:
- Raios partam a tua mulher! Foi ela que nos criou esta situação.
- Sê realista. Nós matámo-la, lembras-te? - disse Dalas. Cameron escondeu a face nas mãos e apoiou-se nos cotovelos.
- John, tu é que nos meteste neste pesadelo, filho-da-mãe. John não perdeu a calma.
- O que está feito, está feito. Temos de pensar no futuro. Cameron gritou:
- Que futuro? Se não recuperarmos esses documentos, acabou.
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CAPÍTULO 17
Theo tinha seis mensagens no telemóvel. Foi ouvi-las para a biblioteca de Michelle e tomar apontamentos enquanto ela fazia o jantar. Quando acabou, telefonou a Noah Clayborne e pediu-lhe que saísse de Biloxi e viesse ao seu encontro.
- O jantar está pronto? Estou com fome - disse ele ao entrar na cozinha.
- Não, o jantar não está pronto - respondeu ela. - Isto não é uma pensão. Você vai ajudar.
Michelle pegou na faca e começou a picar aipo e cenouras. Theo encostou-se ao lava-louças e ficou a observá-la.
- Raios, você é boa nisso.
- É o que todos dizem.
- Parece um robô a manejar essa faca. Rápida, precisa... impressionante.
- Você sabe dar a volta à cabeça de uma mulher. Theo agarrou numa cenoura e enfiou-a na boca.
- O que quer que eu faça? Estou a morrer de fome.
- Aquele cheeseburger duplo não cumpriu a sua função?
- Foi apenas um aperitivo.
- Podia ir acender o grelhador. Os fósforos estão na gaveta à sua direita.
- O grelhador está no quintal das traseiras? Desconfiado, Theo espreitou pela janela de trás, tentando ver,
através da rede do alpendre, alguma coisa no meio da escuridão.
- É claro que está no quintal das traseiras. Qual é o problema?
- Não tenho motivos para me preocupar com uma Lois qualquer?
148
- Não - garantiu Michelle. - E depois, como diria o pai, o diabo apoderou-se dela e ela não resistiu a acrescentar: - Bem, o Elvis pode andar por aí. Se quiser, leve a vassoura, não vá ele aparecer.
Theo parou.
- O Elvisl
Michelle rasgou um bocado de folha de alumínio e começou a enchê-la de legumes.
- A nossa estrela local. Da última vez que alguém o viu, jurou que o Elvis tinha quatro metros e oitenta de comprimento.
- Vocês deram o nome de Elvis a um crocodilo? O que se passa convosco?
- Não damos nomes a todos - disse ela, defendendo-se. Só aos mais impressionantes.
- Você está a brincar, não está? Michelle sorriu com ternura.
- Mais ou menos.
- É mais ou menos cruel atormentar um homem que tem uma fobia ostensiva de crocodilos, Mike.
- Eu preferia que me tratasse por Michelle.
- E eu preferia que não brincasse quando fala de crocodilos.
- Está bem. Combinado.
- Então, porque não posso tratá-la por Mike? Toda a gente a trata assim.
Michelle dobrava cuidadosamente as pontas da folha de alumínio quando respondeu:
- Não quero que você pense em mim como uma... Mike.
- Porquê?
- Não é muito feminino. Quantos homens conhece que quisessem envolver-se com uma mulher chamada Mike?
- O quê?
- Não interessa.
- Não gosto desse "não interessa". Está a dizer que não quer envolver-se...
Michelle interrompeu-o.
- Não, não era isso que eu estava a dizer. Mas não me trate por Mike. Agora, vá acender o grelhador e deixe de olhar para mim como se pensasse que enlouqueci. Se apanhar um susto, grite que eu vou lá fora com uma vassoura e salvo-o.
149
- Os homens não gritam e você, Michelle, tem um sentido de humor doentio.
Theo espreitou de novo pela janela e depois disse:
- Ah, com os diabos. Os crocodilos saem de noite, não saem? Eu é que enlouqueci. O que estou a fazer neste... - Ia dizer "lugar abandonado por Deus", mas calou-se a tempo.
-... Ermo?
Mas Michelle percebeu onde ele queria chegar. O lampejo no olhar dela não o enganou.
- Não sei. Diga-me! O que está aqui a fazer?
- Vim à pesca, lembra-se? Não me passou pela cabeça que os crocodilos se meteriam no meu caminho.
- Até agora, nenhum se meteu - lembrou ela. - E você não veio cá só para ir à pesca.
- Tem razão.
Ele encolheu os ombros.
- Talvez eu ande à procura de alguma coisa. Certo? Agora, Theo parecia hostil.
Michelle virou-se para o lava-louças.
- Fale comigo. Eu ajudo-o a encontrá-la.
Theo foi lá para fora sem lhe responder. Michelle não percebeu donde vinha aquela súbita tensão. Ainda há pouco estavam a brincar e no minuto seguinte Theo tornara-se muito sério. Aparentemente, era o tipo de homem descontraído, que aceitava tudo com calma. Águas paradas... pensou ela. Theo Buchanan era muito mais do que o seu bom aspecto.
Michelle resolveu animar-se. Se ele quisesse dizer-lhe quais eram os seus planos, que dissesse. Ela não tencionava importuná-lo como se fosse uma megera.
Estava um fim de tarde tão lindo e abafado que jantaram na mesa de ferro forjado do alpendre. A conversa foi superficial e tensa, mas não interferiu no apetite de Theo. Comeu como o pai dela, com um prazer sem limites. Quando acabou, não ficou nada na travessa.
- Se eu comesse como você, teria de alargar as portas - disse ela.
Theo recostou-se na cadeira e fechou os olhos.
- Isto aqui é tão calmo. Como é bom ouvir o som das rãs e dos grilos.
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Michelle não queria causar-lhe problemas de estômago nem enervá-lo outra vez e não lhe disse que aqueles sons ao longe vinham dos crocodilos. Como fora criada nos pântanos, já nem reparava. Mas sabia que o rapaz da cidade entraria em pânico.
Theo insistiu em lavar a louça. Como ela não tinha máquina, ele teve de lavá-la à mão. Ela guardou os temperos enquanto ele lavava os talheres. Depois, pegou num pano de cozinha e começou a limpá-los.
- Como é possível que não seja casada? - perguntou ele.
- Não tenho tido tempo.
- Namora com alguém?
- Não.
"Óptimo", pensou ele. Não tencionava ficar muito tempo em Bowen mas, enquanto lá estivesse, não queria encontrar mais nenhum homem no seu caminho. Sentiu-se um pulha sem coração.
- No que está a pensar? - perguntou ela. - Está com um ar feroz.
Sou um egoísta. E nisso que estou a pensar.
- Estou a pensar porque é que os homens não andam atrás de si. Bastaria olharem e perceberiam logo...
- Perceberiam o quê? Ele sorriu.
- Que você tem tomates. Michelle arregalou os olhos.
- Mas que maneira romântica de elogiar uma mulher!
- Ouça, eu sou de Boston, lembra-se? Os homens são criados para serem frontais. Está interessada em algum homem destes sítios?
- Porque pergunta?
- Só por curiosidade.
- Acho que o Ben Nelson gostaria que houvesse alguma coisa entre nós, mas não vou encorajá-lo. O Ben é simpático, mas não há química nenhuma entre nós. Percebe o que eu quero di-
zer í
- Claro que percebo. Como a química que há entre nós.
- Desculpe?
- Ouviu bem. - Theo deu-lhe um prato para limpar, reparou que ainda tinha bolhas de detergente e tirou-lho da mão para passá-lo por água. - Você quer atirar-se a mim desde o momento em que entrei no bar do seu pai.
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Ele tinha metido esta ideia na cabeça, mas Michelle não estava disposta a admiti-la.
- Atirar-me a si? Acho que não.
- Estou apenas a falar de uma forma clara.
- O que o levou a pensar tal coisa?
- Vi-o nos seus olhos.
- Isso não é possível.
- Não? Michelle sorriu.
- Você tem andado demasiado ocupado a olhar para as minhas pernas.
Ele não se mostrou nada envergonhado.
- São umas belas pernas.
- Admito que há uma certa atracção física, mas isso é perfeitamente saudável.
- Isso é uma dica para uma palestra sobre hormonas?
- Depende do tempo que eu tiver de ficar aqui à espera que você acabe de lavar essa tigela. Não costuma lavar a louça, pois não?
- Onde quer chegar?
- Você não tem pressa.
- Sou lento e calmo em tudo o que faço.
Não era isto que ele queria dizer, mas estas palavras fizeram acelerar o ritmo cardíaco de Michelle. Seria ele lento e calmo na cama? Oh, céus, não seria uma maravilha?
- Você foi casado, não foi? - perguntou Michelle, sem pensar.
- Sim, fui. Não tive muita sorte.
- A sua mulher morreu.
- Exactamente.
Michelle estendeu o braço e guardou mais um prato no armário.
- Foi o que o papá me disse. Como é que ela morreu? Theo deu-lhe uma saladeira.
- Porque quer saber?
- Sou curiosa - admitiu ela. - Se achar que estou a ser demasiado intrometida, não lhe faço mais perguntas.
- Não, não faz mal. Ela morreu num desastre de automóvel.
- Oh, Theo, lamento. Há quanto tempo se deu o acidente?
- Não foi um acidente.
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Não houve nenhuma inflexão na voz dele. Era como se estivesse a falar de uma torneira a pingar.
- Não?
Ele suspirou.
- Não, não foi um acidente. Sabe uma coisa? É a primeira vez que digo isto em voz alta desde há quatro anos, quando tudo aconteceu.
Michelle percebeu que ele queria mudar de assunto, mas não lhe faria a vontade. Não era curiosidade mórbida da sua parte. Se ele levara quatro anos a admitir a verdade, talvez tivesse chegado o momento de se abrir completamente.
- Foi suicídio?
- Sim e não.
Theo deu-lhe outra tigela.
- Não creio que ela tencionasse matar-se. Pelo menos não daquela maneira. A minha mulher escolheu o método lento.
- O que quer isso dizer?
- Álcool e drogas.
Michelle não disse nada e ficou à espera que ele continuasse.
- Ela misturava álcool com todos os comprimidos e só Deus sabe o que mais havia no seu organismo. Era uma combinação letal. Pelo menos foi o que indicou o relatório da autópsia. Ela perdeu o controlo do carro. Galgou uma ponte e caiu na baía. Que raio de fim, não acha? - Theo não esperou por uma resposta. - Duvido que se tenha apercebido do que lhe aconteceu, e graças a Deus não levava ninguém com ela.
Foi preciso uma disciplina férrea para não mostrar qualquer reacção exterior ao que ele acabara de contar-lhe. Theo era orgulhoso e Michelle sabia que, se demonstrasse compaixão ou solidariedade, ele fechar-se-ia, e ela não queria que tal acontecesse.
- Os seus amigos e a sua família... Algum deles sabe o que aconteceu na realidade?
- Não - respondeu ele. - Tenho a certeza de que o Nick percebeu que alguma coisa não batia certo, mas nunca disse nada.
- Talvez esperasse que fosse você a falar no assunto.
- Pois, talvez.
Michelle não sabia até onde podia ir. Encostada ao lava-louças, dobrou cuidadosamente o pano molhado e perguntou:
- Tem sentimentos de culpa?
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Ele encolheu os ombros, como se a pergunta não fosse importante.
- Rendi-me ao que aconteceu. Mas fiquei convencido de que não era talhado para
o casamento. Pus tudo à frente dele. Devia ter-lhe prestado mais atenção. Mas trabalhava
tanto, vinte horas por dia, que nem reparava no que se passava em casa. Bem, eu sabia que ela bebia, mas não percebi que isso fosse um problema. Acho que é a isto que se chama "enfiar a cabeça na areia".
- A decisão foi dela. Sei que isto pode parecer frio, mas não foi você que lhe enfiou os comprimidos nem o álcool pela boca abaixo. Foi ela.
- O casamento é uma sociedade - disse ele. - Eu não cumpri a minha parte do acordo. Ela era... frágil. Sim, frágil. Precisava de ajuda, e eu fui tão cego que não vi. Não quis ver.
- Considero saudável que você consiga falar no que aconteceu. Talvez agora possa ver-se livre disso.
- Livre de quê?
- Da raiva, do sofrimento e da culpa.
- Não se arme em psiquiatra comigo. - Theo deu-lhe uma espátula para guardar e tirou a válvula do ralo do lava-louças.
- Acabei. Tem mais perguntas a fazer ou podemos mudar de assunto?
Michelle queria perguntar-lhe se ele amara a mulher, mas não se atreveu. Levara a conversa até onde ele deixara.
- Está bem, vamos mudar de assunto. O jantar terminou.
- Sim?
- Pedi-lhe que tivesse paciência até ao fim do jantar. Agora, gostava que me dissesse o que pensa em relação à minha clínica.
- E vou dizer - prometeu ele. - Volto já. Theo saiu da cozinha e subiu as escadas.
- O que vai fazer? - perguntou ela lá para cima.
- vou buscar o meu computador portátil e pô-lo na sua biblioteca - respondeu ele. - Tenho de verificar o meu e-mail.
- Parou no cimo das escadas e olhou para baixo. - Espero ter algumas respostas. Depois falamos.
Michelle voltou para a cozinha e lavou o tampo da bancada. Quando terminou, fechou a luz e foi lá acima. Ficou à porta do quarto dele.
- vou tomar um duche. Foi um dia longo.
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Ele estava debruçado na cama, a abrir a pasta. Já tinha tirado as suas coisas do saco. A sua roupa estava dobrada sobre a cómoda.
O quarto estava todo desarrumado. Havia caixotes empilhados em frente das janelas que davam para as traseiras. Michelle não se dera ao trabalho de limpar o pó nem de aspirar a carpete e tinha a certeza de que havia teias de aranhas em todos os cantos.
- Tenho usado este quarto como arrecadação - disse ela.
- E aquela cama velha vai-lhe fazer doer as costas.
- Acha?
- Você é mais comprido do que a cama - disse ela. - E o colchão está cheio de covas.
- Não se preocupe. Eu consigo dormir em qualquer lado.
- Mas continuo a ter remorsos. Acho que você podia ficar com a minha cama. É enorme.
- Sim?
Theo levantou-se e deitou-lhe aquele olhar. Ela reconheceu-o imediatamente. Já vira filmes suficientes ao serão e lidara com muitos homens para reconhecê-lo. Theo deitou-lhe um olhar mais sensual do que Mel Gibson, e só Deus sabia como ela adorava Mel.
- Acabe com isso - Michelle riu-se depois de dar a ordem.
- Acabe já com isso.
Ele ergueu uma sobrancelha. Oh, céus, agora estava a fazer de Cary Grant.
- Acabo com o quê? - perguntou ele com um ar ingénuo. O que havia ela de dizer? Deixe de olhar para mim como se
eu lhe tivesse pedido para se despir e para ter relações sexuais desenfreadas comigo?
- Deixe lá - disse ela. - Então, quer?
- Dormir na sua cama? Mas que convite!
- Desculpe?
- Quer que eu partilhe a sua cama?
Oh, céus, ela queria mesmo. Há quanto tempo não tinha um caso com um homem? Nem se lembrava. Talvez porque o último caso fora desastroso e ela bloqueara deliberadamente a memória. Lento e calmo. Oh, céus!
Sentiu um nó na garganta.
- Não creio que seja uma boa ideia.
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Theo deu um passo na direcção dela.
- Porquê?
Se ela tivesse mais trinta anos, julgaria que estava a ter afrontamentos. Parecia que todo o seu corpo estava a arder, e tinha dificuldade em respirar. As suas endorfinas também estavam a enlouquecer. Sentia-se tonta. Se ele desse mais um passo na sua direcção, ela sabia que começaria a hiperventilar. O que não seria nada estimulante. Não eram só os homens que precisavam de um duche frio para refrear os seus apetites sexuais. Talvez ela precisasse de se enfiar na arca frigorífica, de cabeça para baixo.
Acusou-o pela sua própria dispersão. Afinal, era ele que estava a deitar-lhe aquele olhar.
Theo avançava lentamente e era óbvio que estava a dar-lhe tempo para tomar uma decisão. Ela tinha os pés colados ao chão e o estômago às voltas.
- Isso complicaria as coisas.
- Como?
- Faríamos sexo e depois...
- Óptimo sexo - corrigiu ele. - Faríamos óptimo sexo. Ele levara-a a pensar nisso e a expressão do seu olhar indicava
a Michelle que também ele pensava no mesmo. Ela abanou a cabeça, tentou engolir, mas tinha a garganta demasiado seca. A pulsação também acelerara. Talvez umas cento e sessenta batidas por minuto. E irregulares. Que maravilha, um homem fabuloso namoriscava-a e ela entrava em fibrilhação ventricular. Se ele desse mais um passo, ela cairia morta. Não seria o máximo? O relatório da autópsia revelaria que a causa da morte fora uma paragem cardíaca.
Theo parou a trinta centímetros dela. Acariciou-lhe a face e em seguida passou-lhe os dedos por baixo do queixo, obrigando-a a encará-lo. Michelle sentiu-se desajeitada e insegura, até ver o riso no olhar dele.
- Em que está a pensar? - perguntou ele. Como se ele não soubesse...
- Que está a dar connosco em doidos. Theo, você podia ser compreensivo, antes que isto vá mais...
- Sim? - perguntou ele com ternura. A mão dele passou-lhe para o pescoço, e o seu toque era escaldante.
- O quê?
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- Você disse que eu tinha de compreender alguma coisa. Theo esfregava-lhe a nuca. Michelle estava com pele de galinha.
- E tem - confirmou ela. - Não, quero dizer que... Oh. - Respira, disse ela a si própria. Respira fundo e tenta ordenar os teus pensamentos. - Está bem, aqui vai. Eu não sou talhada para um acto de prazer ocasional. Preciso de ter uma... ligação sólida com um homem antes de ir para a cama com ele. Não acredito no sexo recreativo. - Michelle fez um sorriso forçado esperando ser mais esclarecedora e acrescentou: - Eu sou um dinossauro.
- Eu já lhe disse que gostava de dinossauros? Oh, céus!, suspirou Michelle. Oh céus!
Os dedos dele brincavam ternamente com o cabelo dela na nuca.
- O seu cabelo é tão macio - segredou ele. - Tem a cor do fogo.
- Herdei o cabelo ruivo e as sardas da minha mãe - respondeu ela, agarrando-se a um pensamento racional.
- Eu disse que gostava de mulheres sardentas? Sinto este impulso incontrolável de as beijar todas.
- Tenho sardas no corpo todo.
- Lá chegaremos.
Michelle sentiu-se tonta outra vez.
- Isso não vai acontecer.
- Veremos.
Céus, ele era petulante. Precisava mesmo de corrigir esse defeito, e ela tencionava dizer-lho quando estivesse mais lúcida. Naquele momento, tinha de concentrar todos os seus esforços em manter-se de pé. O homem excitava-a só pelo facto de tocar-lhe. Todos os nervos do seu corpo reagiam a ele.
Quando se apercebeu de que lhe apetecia despir-se, recuou. Afastou lentamente o braço dele. As suas pernas pareciam gelatina, mas conseguiu dar meia-volta e ir para o seu quarto. Ao fechar a porta, cometeu o erro de olhar para ele. Theo estava encostado à soleira, a sorrir.
Michelle não deixaria que ele soubesse quão forte era o seu toque. O Senhor da Cidade precisava de uma lição. Não conseguiria levar a melhor.
- Meta-se comigo e sofrerá as consequências - disse ela.
- Pode tomar um duche frio depois de mim. - Quão reveladoras
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tinham sido as suas palavras? Apercebeu-se demasiado tarde daquilo que deixara transparecer. - vou tomar um duche frio porque estou com calor - explicou ela, constatando a seguir que só piorara a situação.
- Michelle? - disse ele com uma voz arrastada.
- Sim?
- Eu não me meti consigo.
Michelle fechou a porta e encostou-se a ela.
- Oh, céus - disse em voz baixa.
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CAPÍTULO 18
Michelle avaliava todos os motivos pelos quais devia e não devia envolver-se com Theo. Tinha chegado ao número vinte quando ele bateu à porta da casa de banho.
- Ainda não tomei duche.
- Pois, eu sei. Estava a pensar se você quer que eu lhe instale o computador.
- Descobriu-o?
Michelle entreabriu a porta e espreitou, aconchegando o roupão turco ao peito.
- Era difícil não o descobrir. Tropecei num dos caixotes quando fui pôr a minha roupa na máquina. Quer ou não?
- Que me instale o computador? Claro que sim - respondeu ela.
Fechou-lhe a porta na cara e começou a contar. Quando chegou ao número vinte e três - teria de mudar de folha - percebeu que estava a ficar desesperada e voltou ao motivo número um. Õ homem fá-la-ia sofrer.
Entrou na banheira e abriu o chuveiro com toda a força. A água fria obrigou-a a fazer um esgar. Regulou a temperatura e deixou que a água quente a acalmasse.
Quando passou o cabelo por água para retirar o champô, a indignação voltou. Meter-se com ela, francamente! Ela não se deixava manipular com tanta facilidade, pensou, desembaraçando o cabelo e ligando o secador.
Talvez ele fosse um amante exigente...
- com os diabos! - disse ela em surdina.
Lento e calmo. Alguma vez ela conseguiria esquecer estas palavras? Era uma espécie de canção que não lhe saía da cabeça.
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Lavou os dentes, aplicou o creme hidratante na cara e viu-se ao espelho.
- Admite que queres dormir com ele - disse em voz baixa.
Abanou a cabeça. Não, isso não era verdade. Queria fazer sexo com ele. E que mal havia nisso? Nenhum. Ela estava apenas a fantasiar, e a fantasia era uma função absolutamente saudável da mente humana.
Agir em função da fantasia era outra coisa totalmente diferente. Motivo número um... Aquela coisa de ele a fazer sofrer...
- Já passei por isto - disse ela em voz baixa.
Oh, não, não ia envolver-se com Theo Buchanan. E por isso não vestiu uma das camisas curtas que em geral usava. Resolveu tirar o pijama de seda azul da última gaveta da cómoda. Abotoou-o todo, mesmo o botão de cima. A gola chinesa arranhou-lhe a pele sensível por baixo do queixo. Ia a pegar nas pantufas azuis a condizer, mas mudou de ideias e encontrou um velho par de chinelas de pano turco branco e grosso debaixo da cama. Penteou-se, para afastar o cabelo dos olhos, aplicou um batom hidratante e incolor para dar brilho aos lábios, procurou no roupeiro e tirou um pesado robe de flanela branca. A bainha arrastava no chão. O robe tinha botões e ela abotoou-os todos. Também tinha um cinto, ao qual ela deu um nó duplo.
Em seguida, viu-se ao espelho. "Ainda bem", pensou ela. Parecia uma freira.
Theo estava na biblioteca. Desempacotara o equipamento informático e, quando Michelle desceu, já ele estava ligado. Theo lia qualquer coisa no monitor. Espreitou por cima das armações de osso quando ela entrou na sala e não desviou o olhar. No mesmo instante, reparou em todos os pormenores - no pijama azul a condizer com a cor dos olhos, no cabelo caído sobre os ombros, que brilhava como ouro à luz suave, na beleza dela, mesmo sem maquilhagem.
Estava vestida para ir para a cama... Se a cama estivesse na Antárctida. Michelle era médica, mas decerto não sabia como funcionava a mente masculina. Aquela roupa toda... Fazia-o imaginar o que haveria por baixo.
A imaginação de Theo começou a funcionar, e ele pensou nela a despir-se, peça por peça, antes de se enfiar debaixo dos cobertores. "Ah, com os diabos, não penses nisso", precaveu-se ele.
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pelo amor de Deus, não penses na pele quente e macia por baixo daquela roupa toda.
Michelle aproximou-se da secretária. Como se sentia extremamente inibida pelo modo como ele a observava, brincou com o nó do cinto e perguntou:
- Então? O que acha? Theo? - insistiu ela, por ele não ter respondido logo.
Theo sorria, com um ar divertido, e olhava-lhe para os pés.
- O que há?
- Espera que caia um nevão esta noite? Ela levou a mão ao pescoço.
- Fiquei gelada. Ele riu-se.
- Fiquei - insistiu ela. - Fico com frio quando o ar condicionado está ligado. Baixei a temperatura para que você se sentisse mais confortável.
- Ah-ah!
Michelle sentiu-se estúpida, porque ele não estava a engolir a sua mentira.
- Que lindas pantufas com coelhinhos!
- Obrigada - disse ela. - Quando acabar de fazer troça de mim, responda à minha pergunta. O que acha... do meu computador?
- É antigo.
- Deixa de olhar para as minhas pantufas? Exasperada, Michelle encostou-se à secretária e descalçou as
pantufas. Theo riu-se outra vez ao ver que ela estava de peúgas.
- Qual é a piada agorãí - perguntou ela.
- Estava a pensar se você também usaria roupa interior comprida.
- Já não uso roupa interior comprida - ripostou ela. Agora, responda à minha pergunta. O meu computador funciona ou não?
- Onde é que arranjou isto?
- Foi o meu irmão Remy que mo deu. Comprou-o em segunda mão da última vez que veio a casa. Não tenho tido tempo de ligá-lo. Só há duas semanas é que estou em casa. O John Paul Queria dar outra camada de verniz no chão, e se você conhecesse ? meu irmão, perceberia que ele faz as coisas quando quer. Tenho
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utilizado o computador do hospital. Sei que este está ultrapassado, mas, quando puder, arranjo um mais novo.
Theo pôs o monitor ao canto da secretária, ajustou o teclado como lhe pareceu que ela queria e em seguida recostou-se na cadeira de couro macio.
- Então, quem quer que anda atrás de si... Não é nenhum tipo destroçado a quem você deu com os pés?
- Já falámos disso.
- Vamos falar outra vez. Ela não contestou.
- Não, não me tenho envolvido com ninguém. Além disso, sou médica. Não destroço corações. Eu...
- Pois, eu sei. Trata deles. - Não, consulto-os.
O computador portátil de Theo estava do outro lado da secretária. Era um aparelho excelente e caro. Quando ela estava a examiná-lo, apareceu um grande E a flutuar no ecrã. Seguiu-se um sinal sonoro.
- Você recebeu um e-mail.
Theo aproximou-se, tocou numa tecla e viu quem lhe enviara a mensagem. Michelle viu o nome antes de ele carregar na tecla para limpar o ecrã.
Não sabia se ele tencionava ler a mensagem mais tarde por saber que não era importante ou porque não queria que ela a lesse.
- Quem é Noah?
- Um amigo.
- Eu vi o nome - explicou ela, apesar de ele não ter perguntado nada. - Você tinha falado com ele ao telefone.
- Pois, ele telefonou. Devia estar à espera junto do computador, porque eu enviei-lhe uma mensagem há dois minutos, quando você estava no duche, e ele já respondeu.
- Se quiser ler a mensagem agora, eu vou para a outra sala.
- Não, não faz mal. Pode lê-la comigo. Mas não vai perceber nada.
- É demasiado técnica?
Antes que ela insistisse, Theo respondeu:
- É demasiado Noah. Se o conhecesse, perceberia. O tipo tem um sentido de humor muito acutilante.
- Isso até parece um elogio.
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- E é - respondeu ele. - Na actividade dele, é útil ser um pouco acutilante.
Theo carregou numa tecla e ficou à espera. Michelle inclinou-se sobre o ombro dele para ler a mensagem. Era complicada e não fazia sentido para ela.
- Está codificada?
- Não - respondeu ele, agastado.
Raios, preferia que ela se afastasse. Sentia o aroma limpo do champô, o calor exalado pelo corpo dela.
Ficou tenso. Imaginou-se a puxá-la para o seu colo e a beijá-la com sofreguidão. Depois, levou mais longe a fantasia até pensar em todas as outras coisas que lhe apetecia fazer com ela. Começaria pelos dedos dos pés, iria subindo até lhe desabotoar a camisa toda e...
- Quem é a Mary Beth?
- Desculpe?
- O Noah disse que nunca lhe agradeceu por o deixar usar a Mary Beth da última vez que ele esteve em Boston. Vocês partilham a mesma mulher?
- Mary Beth é um barco de pesca. Convidei o Noah para vir até Bowen e ir à pesca. Falei-lhe no torneio e ele quer que eu o inscreva. Está a enlouquecer em Biloxi. Está a dar formação e detesta.
Theo virou-se para o monitor, tirou os óculos e pô-los em cima da secretária. Estava a ser difícil concentrar-se. Só podia refrear-se para não a agarrar. O que diabo se passava com ele? Michelle era uma complicação de que ele não precisava naquele momento. Nem ela era o tipo de mulher de pegar-e-largar, nem ele tencionava demorar-se.
Theo sabia que não estava a ser consequente. Fora a Bowen por causa dela, e no entanto...
Ela tocou-lhe no ombro para chamar-lhe a atenção.
- Quem é o padre?
- É o padre tom Madden - respondeu ele. - É como um irmão. Quando entrou para o liceu, mudou-se para a nossa casa. Tem a idade do Nick e são os melhores amigos um
do outro. Foram para Penn State juntos. O Nick vai casar com a irmã do Tommy.
- Porque é que o Noah lhe chama padre?
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- Porque, segundo diz o Noah, "isso irrita-o". É por isso. E o Tommy deixa-o fazer tudo.
- Porquê?
- Porque o Noah ia morrendo para salvar a vida ao Tommy. Mói o juízo ao Tommy, mas tornaram-se muito bons amigos. De vez em quando, vão os três à pesca.
Michelle abanou a cabeça e depois perguntou:
- Noah escreveu nessa última linha... O que quer ele dizer com "quanto ao outro, não há problema"?
- Quer dizer que sabe que eu estou fora do meu elemento aqui e que vai arranjar duas coisas para mim.
- A sua resposta é tão ambígua como a mensagem dele. Michelle afastou-se da secretária e abriu as portas de vidro
que ligavam a biblioteca à sala de estar. Havia revistas médicas espalhadas em cima do sofá. Michelle pegou nelas, pô-las em cima de uma mesa de apoio e sentou-se, suspirando.
Theo recostou-se na cadeira e espreitou pela porta entreaberta.
- Sente-se bem? Está um pouco afogueada. O homem não deixava escapar nada.
- Estou cansada.
- A que horas se levantou?
- Às quatro ou cinco horas.
Theo acabou de escrever no seu computador.
- vou deixar isto para depois.
Em seguida, levantou-se, espreguiçou-se e ginasticou os ombros.
Theo fazia lembrar a Michelle um gato grande e velho.
- Porque trouxe o seu computador portátil? Para verificar o e-mail enquanto estiver a pescar?
- É como o meu telemóvel. Nunca saio de casa sem ele. Quer beber alguma coisa?
- Não, obrigada, mas sirva-se.
Theo foi à cozinha, tirou uma Diet Coke do frigorífico e em seguida foi vasculhar a despensa. Encontrou uma caixa intacta de Triscuits magros e com baixo teor em sódio, pegou nela e levou-a para a sala.
Instalou-se na grande poltrona estofada, descalçou-se e apoiou os pés na otomana a condizer. Pousou a bebida numa caixa
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de cartão ao lado da poltrona, pegou nos Triscuits e perguntou:
- Quer?
- Acabei de lavar os dentes. Nunca se sente cheio?
- com isto, não.
Theo abriu a caixa e começou a comer bolachas.
- Pus uns amigos a fazer telefonemas e dois dos meus colegas a investigarem. Como o caso não é difícil, espero que eles me enviem um e-ma.il esta noite e aprontem tudo para partir amanhã.
- O Departamento de Justiça trabalha quando você está de férias?
- A açucareira trabalha. Michelle endireitou-se.
- Ah! Acha que vai conseguir ajudar o Daryl e a família?
- vou tentar. O que sabe acerca dos irmãos Carson?
- Pouco - admitiu ela. - Você devia falar com o papá. Ele conhece os irmãos há anos. Sabe responder às suas perguntas. Esta comunidade é pequena e portanto é muito fácil obter informação. Todos sabem o que os outros andam a fazer.
- E no entanto, ninguém sabe nada sobre o assalto à clínica
- observou ele. - Tenho pensado no assunto e não acredito que tenham sido os miúdos.
- Então o que acha?
- Aquilo foi obra de um só homem. Posso estar enganado, mas não me parece. Havia um padrão.
- Não compreendo. O que quer dizer com "padrão"?
- Havia ordem no meio do caos. Ele entrou pela porta das traseiras.
- Mas a janela da zona da recepção tinha os vidros partidos.
- Ele partiu-os quando lá estava dentro. Isso é fácil de verificar. Os fragmentos de vidro provam-no.
- E que mais?
- Eu não vivo disto - disse ele. - Eu promovo acções penais. Mas se fossem miúdos à procura de drogas, como julgam o seu pai e o seu amigo Ben Nelson, porque é que mal tocaram nas salas de consulta?
- Os armários dos medicamentos foram arrombados e têm os vidros partidos.
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- Sim, mas as seringas e os impressos das receitas ficaram lá. E os processos, Michelle. Porque é que alguém perderia tempo a remexer as caixas dos processos?
- Talvez lhes apetecesse desarrumar tudo.
- Isto não me parece um simples caso de vandalismo. Os miúdos que vandalizam trazem o seu próprio equipamento de diversão.
- Como por exemplo?
- Tinta em spray - respondeu ele. - O tipo que fez isto serviu-se da sua tinta para sujar as salas. O que me leva a pensar que não vinha preparado para danificar nada. E os sacos de lixo que estão no quintal mostram que alguém mexeu neles. Não havia um risco na fechadura da sua porta das traseiras, o que me leva a concluir que ele trouxe as ferramentas adequadas e sabia usá-las.
- Como um profissional? Theo não respondeu.
- O Noah vem cá amanhã. Se você não se importa, eu gostaria que deixasse a clínica tal como está até ele dar uma vista de olhos.
- Só amanhã?
- Sim.
- Está bem - concordou ela.
As amigas só chegavam no dia seguinte. Michelle podia esperar até lá.
- O que faz o Noah na vida?
Theo não foi muito específico na resposta, mas disse:
- É do FBI.
- Do FBI? - Michelle não conseguiu disfarçar o susto. Então, você acha...
Theo interrompeu-a.
- Não tire conclusões precipitadas. O Noah é um amigo de família, e achei que seria uma boa ideia pedir-lhe que visse a clínica. Ouvir a opinião dele. Além disso, ele está em Biloxi e adora pescar. Um dia ou dois em Bowen será umas férias para ele.
- Agradeço a ajuda dele... E a sua, também, mas não sei se não estaremos a transformar numa montanha o que pode não ter passado de um acto fortuito.
- Não acredita nisso, pois não?
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Michelle esfregou as têmporas.
- Não, acho que não. Também não me parece que o Ben acredite que aquilo foi obra de miúdos - admitiu ela. - Andou a ver a clínica comigo e ambos notámos que não havia pegadas do lado de fora da janela. A erva ainda estava ensopada. Tinha chovido muito na noite anterior. Devia haver pegadas.
- Então, porque discutiu comigo sobre o modo como ele entrou?
Ela encolheu os ombros.
- Acho que só queria que tudo fosse fácil e fizesse sentido. Sabe o que pensei assim que vi o meu gabinete?
- O quê?
- Que alguém me odeia a valer. E isso assustou-me - disse ela. - Tenho andado a tentar encontrar algum nome, mas, sinceramente, voltei há pouco e ainda não tive tempo para fazer inimigos. Dê-me uns dois meses, e estou certa de que terei uma lista tão comprida como o meu braço.
- Duvido - disse ele. - E óbvio que o homem se descontrolou quando esteve no seu gabinete. O Noah dir-nos-á o que pensa.
Theo meteu mais uma bolacha na boca. Sem queijo-creme ou manteiga de amendoim, as bolachas sabiam-lhe a serradura, mas mesmo assim continuou a comê-las.
- As pessoas como o Noah apanham os criminosos e você processa-os.
- É mais ou menos isso.
- Pelo menos não tem de preocupar-se com a possibilidade de levar um tiro.
- É verdade. - A resposta pronta de Theo foi uma mentira, evidentemente. com os diabos, já tinha sido alvejado, pontapeado, espancado, agredido e cuspido no exercício da sua profissão. Até alguém pagara para matá-lo, por duas vezes, se a memória não o atraiçoava, e quando andara atrás da família de Leon, recebera ameaças diárias.
- Eu tenho uma teoria - disse ela.
- Venha ela.
Theo meteu a mão na caixa, à procura do último pedaço de serradura para comer.
- Um dos doentes do Dr. Robinson andava a tentar roubar o seu próprio processo.
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- E qual seria o motivo?
- Não sei. Talvez ele sofresse de alguma doença contagiosa ou não quisesse que a companhia de seguros ou a família soubessem qual era o diagnóstico. Sei que estou a falar sem saber, mas é a única teoria que consigo inventar para justificar a destruição dos processos.
- O Dr. Robinson deu-lhe uma lista dos doentes?
- Sim, deu. Estava uma folha impressa dentro de um envelope colado com fita gomada a uma das caixas. Ele não fez uma grande carreira, se considerarmos o tempo em que trabalhou aqui. Pelo que ouvi dizer, o Dr. Robinson precisava de lições de sensibilidade. Ofendia os doentes.
- Por isso é que ele não fez uma grande carreira.
- Pois é.
- Depois de o Noah examinar a clínica e nos dizer o que pensa, você terá de comparar os processos com a lista de nomes para saber se falta o de alguém.
- Partindo do princípio que a lista não foi destruída. Theo concordou.
- Também acho que devia telefonar ao Robinson e perguntar-lhe se havia doentes difíceis. Você sabe o que há-de perguntar.
- Está bem. Talvez ele tenha uma cópia da lista dos doentes, se precisarmos dela.
Theo reparou que ela estava a esfregar a nuca.
- Dói-lhe a cabeça?
- Mais ou menos.
- Talvez eu possa "consertar" isso.
Theo levantou-se e foi sentar-se no sofá, junto dela. Em seguida, pôs uma almofada no chão, entre os pés descalços, e disse-lhe que se sentasse ali enquanto ele a massajava.
A proposta era irresistível. Michelle instalou-se entre os joelhos dele e estendeu as pernas. Ele pôs-lhe as mãos nos ombros e depois puxou-os para trás.
- Dispa o robe.
Michelle desabotoou-se, desatou o cinto e despiu o robe.
- Agora, dispa o casaco do pijama.
- Boa desculpa! Ele sorriu.
- Está bem, então desabotoe os botões de cima.
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Michelle teve de desabotoar três botões para que as mãos dele lhe tocassem na pele. Era tarde de mais quando se apercebeu do que estava a fazer. As mãos grandes e quentes de Theo tocavam-lhe na pele nua e, oh, céus, aquilo era uma maravilha.
- A sua pele é macia.
Michelle fechou os olhos. "Devia obrigá-lo a parar", pensou. Que loucura era aquela? Theo era a causa da sua tensão, e agora ele estava a agravá-la. Oh, sim, tinha de obrigá-lo a parar. Virou a cabeça para o lado, para ele lhe massajar as vértebras do pescoço.
- Sabe o que pensei quando a vi pela primeira vez?
- Que eu era irresistível - disse ela, arreliadora. - Tão irresistível que vomitou por cima de mim?
- Você nunca me fará esquecer isso, pois não?
- Talvez não. - Eu estava desvairado com dores nessa altura - lembrou-lhe ele. - E de qualquer modo, não era disso que eu estava a falar. Depois da operação, quando você foi ao
meu quarto e estava a falar-me de Bowen, da sua clínica e das pessoas que vivem aqui... Sabe no que eu estava a pensar?
- Que queria que eu me calasse e o deixasse dormir? Ele afagou-lhe o cabelo.
- Estou a falar a sério. vou revelar-lhe o verdadeiro motivo que me trouxe a Bowen.
O tom dele indicava que não estava a brincar.
- Desculpe. Em que estava a pensar?
- Que eu queria o que você tinha - disse ele.
- O quê?
- Vi algo dentro de si que eu tinha quando comecei, mas que perdi no caminho. E que nunca me incomodou até eu a conhecer. Você fez-me desejar encontrá-lo outra vez... Se é que tal é possível.
- O que viu?
- Paixão.
Michelle não entendeu.
- Paixão pelo meu trabalho?
- Paixão pela mudança. Ela não respondeu logo.
- Eu não pretendo mudar o mundo, Theo. A minha única esperança é conseguir mudar uma pequena parcela dele. - Michelle
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levantou-se e virou-se para ele. - Você não acha que muda alguma coisa? - perguntou ela, admirada.
- Claro que acho - respondeu ele com uma grande naturalidade. - Mas penso que perdi o entusiasmo pela minha profissão. Não sei ao certo o que se passa comigo. Os homens que eu mandei para a prisão... São como roedores. Por cada um que eu prendo, há mais três que vão ocupar o seu lugar. É frustrante.
- Acho que você está a passar por uma fase de exaustão. Tem trabalhado muito desde que a sua mulher morreu. Não reserva tempo nenhum para se distrair.
- Como sabe?
- Disse-me que adorava construir coisas com as suas próprias mãos, mas também que não tem tempo para passatempos de há quatro anos para cá, desde a morte da sua mulher. - Michelle percebeu que ele queria interrompê-la e apressou-se a acrescentar: - Nem para ir à pesca. Você disse-me que gostava muito de ir à pesca, mas falou nisso como se se tratasse de algo que pertencia ao passado. Há muito tempo que anda a castigar-se, Theo. Tem de descontrair-se.
A reacção imediata de Theo foi dizer-lhe que não fora a Bowen para ser analisado e que ela devia deixá-lo em paz. Ela aproximara-se muito do fulcro da questão... Mas só lhe dissera o que ele já sabia. Nos últimos quatro anos, andara a correr de um lado para o outro de modo a não ter tempo de pensar no seu fracasso: não ter conseguido salvar a sua mulher. Durante muito tempo, fora consumido pelo remorso, que lhe roubara a energia, o entusiasmo e a paixão.
- Você precisa de esquecer o passado e deixar que a vida passe por si durante duas semanas.
- Ordens do médico?
- Sim - respondeu ela. - Vai sentir-se rejuvenescido, garanto-lhe.
Michelle estava preocupada com ele. Theo via-o no olhar dela. Céus, ela era muito meiga. O que havia ele de fazer? Começava a gostar dela muito mais do que imaginara.
- E se você resolver voltar para Boston, terá uma nova atitude.
- Se eu voltar?
- Quando voltar, queria eu dizer - corrigiu ela.
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Ele não queria pensar em Boston, nem no trabalho, nem no futuro, nem em coisa nenhuma, o que não tinha nada a ver com a sua maneira de ser. Era um planificador, sempre fora, mas agora não queria fazer planos nenhuns. Queria fazer exactamente o que Michelle sugerira. Esquecer o passado e deixar que o mundo passasse por ele.
- É curioso - observou ele.
- O quê?
- Você... Eu. É como se o destino nos tivesse aproximado. Ela sorriu.
- Você é uma contradição, Theo. Um advogado com uma costela romântica. Quem diria que isso é possível?
Theo resolveu desanuviar o ambiente. Michelle era muito agradável, susceptível e dava o melhor que tinha. Ele gostava de atrapalhá-la. A médica corava com facilidade.
- Sabe em que mais pensei quando a conheci? - perguntou ele com um sorriso brincalhão.
- Não, em quê? - perguntou ela, desconfiada.
- Que você era sensual. Muito sensual.
- Oh!
Esta exclamação foi acompanhada de um suspiro.
- "Oh", o quê? Oh, céus.
- As batas cirúrgicas verdes e largas, não é? A indumentária é verdadeiramente excitante.
- Aquela mascarazinha atraente escondia a sua melhor parte.
- As minhas sardas?
- Não, a sua boca.
Oh, céus. Oh, céus. Theo sabia mesmo atirar-se a uma mulher. Atrapalhava-a e deixava-a sem fôlego ao mesmo tempo. Michelle sorriu ternamente.
- Você ainda não viu a minha melhor parte.
Theo levantou uma sobrancelha, aquele tique à Cary Grant que ela adorava.
- Sim? - disse ele com uma voz arrastada. - Agora é que você me espicaçou a curiosidade. Não vai dizer-me qual é a sua melhor parte, pois não?
- Não.
- Quer que eu passe metade da noite a pensar nisso?
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Michelle esperava que sim. Esperava que ele ficasse um pouco atrapalhado, tal como ela ficava sempre que ele a observava. Sabia que não iria descansar muito nessa noite. Porque havia de ser a única a privar-se do sono? Amor com amor se paga, pensou ela. De repente, sentiu-se muito contente consigo própria. Talvez Theo fosse exímio na arte do galanteio, mas ela sentia-se finalmente dona de si própria. Afinal, não era tão ingénua como pensava.
Você mete-se comigo e sofre as consequências.
- Quer brincar? - perguntou ele. Ela riu-se.
- Não.
- Se tem a certeza...
- Tenho a certeza.
- Então, talvez seja melhor abotoar o casaco.
Michelle olhou para o peito e soltou um gemido. O casaco do pijama de seda estava completamente desabotoado. Aqueles botões forrados de seda eram uma porcaria. Não eram seguros. Tinha os seios tapados, por pouco. Mortificada, abotoou o casaco com frenesim.
Estava corada quando olhou para ele.
- Porque não me disse?
- Está a brincar? Porque havia eu de fazer tal coisa? Eu gostei do que estava a ver. E não olhe para mim dessa maneira. Não fui que lhe desabotoei o casaco. Sou um espectador inocente.
Michelle sentou-se sobre os calcanhares enquanto vestia o robe.
- vou para a cama. Obrigada pela massagem. Foi útil. Theo inclinou-se para a frente, pegou-lhe na face com as
mãos e beijou-a. A boca dela era tão macia, quente e doce! Sabia a hortelã-pimenta. Ele ficou à espera de uma reacção, tentando não a forçar a nada.
Não houvera tempo para preparativos. Ela só percebeu que ele ia beijá-la quando os lábios de ambos se tocaram. Não ofereceu resistência. Devia ter resistido, mas não o fez. Os lábios dela abriram-se, ele insistiu no beijo e ela cedeu.
Estava à mercê dele e ambos o sabiam.
De repente, ele afastou-se.
- Bons sonhos.
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- O quê?
- Boa noite.
- Oh, sim, vou para a cama.
Havia um brilho firme no olhar dele. Ele sabia o que acabara de fazer. Ela capitulara. Céus, o que aconteceria se eles fizessem amor? Talvez ela arranjasse um esgotamento nervoso.
Como conseguia ele excitar-se e em seguida afastar-se tão rapidamente e com tanta eficiência? Experiência e disciplina, concluiu ela, levantando-se e saindo do quarto. Anos e anos de experiência e disciplina. Por outro lado, ela parecia ter a disciplina de um coelho. Um beijo, e estava pronta para fazer bebés.
Céus, era lamentável. E tinha ele de beijar assim tão bem? Michelle afastou o cabelo da face. O Senhor da Cidade acabaria por comê-la viva se ela não controlasse as suas próprias emoções. Não era nenhuma inocente. Já tivera uma relação com um homem e, nessa altura, acreditara que iria casar com ele. Mas ele não a beijara como Theo, nem a fizera sentir-se tão viva e desejável.
Que idiota! Michelle tropeçou na bainha do robe ao subir as escadas. Assim que entrou no quarto, despiu-o e atirou-o para cima de uma cadeira. Em seguida, meteu-se na cama. Ficou ali durante cinco segundos, levantou-se outra vez e foi lá abaixo.
Theo estava sentado à secretária, a escrever no seu computador portátil.
- Ouça - disse ela quase a gritar.
- Sim? - perguntou ele, sem afastar as mãos do teclado.
- Eu só queria que soubesse...
- O quê?
- Sou uma óptima cirurgiã. Enquanto você andava a adquirir essa experiência toda... A fornicar por aí, e uso este termo de propósito...
- Sim - perguntou ele, esboçando um sorriso. Michelle bateu no peito.
- Estava eu a aprender a usar o bisturi. Eu só queria que soubesse...
- Soubesse o quê? - perguntou ele quando ela se calou de repente.
Michelle esqueceu-se do que ia dizer. Seguiram-se uns momentos de silêncio. Ela deixou descair os ombros e disse:
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- Não sei.
Sem dizer mais uma palavra, saiu do quarto. Poderia ter feito uma figura mais triste?
- Duvido, disse ela em voz baixa ao meter-se na cama. Sentia-se como David a ir ao encontro de Golias, mas esquecendo-se de levar a funda. Soltou um grande gemido, deitou-se de barriga para baixo, tapou a cabeça com a almofada e fechou os olhos.
Ele estava a dar com ela em doida.
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CAPÍTULO 19
Monk detestava vigiar. Estava à sombra de um chorão a observar a casa da Dr.a Renard, à espera de ter a certeza que ela fora para a cama; depois, poderia regressar
ao motel e dormir umas horas. Primeiro, teria de ouvir a gravação de todos os telefonemas, evidentemente. Massajou a coxa, como que para consolar-se de ter rasgado
as suas melhores calças de caqui ao subir pelo poste dos telefones para instalar o microfone.
Enquanto esteve ali, horas e horas à espera e a observar, pensou nos seus contratos passados. Agradava-lhe analisar tudo em pormenor. Não estava a ser mórbido, nem
a extrair um prazer perverso ao pensar nas suas vítimas. Não, o objectivo era rever o seu desempenho e analisá-lo. Quais os erros que cometera? O que podia fazer
para se aperfeiçoar?
Aprendera alguma coisa com todos os contratos que aceitara. A mulher de Biloxi tinha uma pistola carregada debaixo da almofada. Se o marido sabia, não avisara Monk.
Ia levando um tiro na cabeça, mas felizmente conseguira tirar-lhe a arma a tempo. Depois, servira-se dela para matá-la, em vez de perder uns segundos preciosos a
tentar asfixiá-la. Contar com o inesperado. Esta era a primeira lição.
Depois, fora a adolescente de Metairie. Nessa noite, o seu desempenho estivera muito longe da perfeição e, olhando para trás, concluiu que tivera muita sorte por ninguém ter dado pela sua presença. Demorara-se muito. Devia ter saído assim que acabara o trabalho, mas ficou a ver um filme na televisão. O mais estranho era que Monk nunca via televisão. Considerava-se demasiado inteligente para ver o lixo que as estações transmitiam para entorpecer
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as mentes já entorpecidas das pessoas que passavam a vida sentadas no sofá a ver televisão
e a beber cerveja.
Aquele filme fora diferente. E muito divertido. O filme começara quando ele entrara à força no quarto da vítima. Ainda se recordava de todos os pormenores dessa
noite. O papel de parede às riscas cor-de-rosa e branco com botõezinhos de rosa, a profusão de animais de pelúcia em cima da cama da vítima, as cortinas com folhos cor-de-rosa. Ela fora a sua vítima mais jovem, mas este facto não o incomodara nada. Era um contrato, ponto final. Um contrato. Só lhe interessava cumpri-lo e cumpri-lo bem.
A música do vídeo era atroadora, recordou ele. A vítima estava acordada, meia pedrada por causa de um charro que acabara de fumar. No ar pairava um aroma adocicado, intenso. Ela vestia uma t-shirt azul, curta, estava encostada às almofadas e à cabeceira da cama de dossel cor-de-rosa, com uma embalagem enorme de Doritos no regaço. Olhava maquinalmente para o ecrã, sem se aperceber da presença dele. Monk assassinara a adolescente com a cara cheia de acne e o cabelo castanho oleoso por especial favor e
- por vinte e cinco mil dólares - para que o papá conseguisse receber uma indemnização de trezentos mil dólares pelo seguro que fizera à filha única, seis meses antes. A apólice previa o dobro da indemnização se se provasse que a morte fora acidental, ou seja, o papá receberia o dobro do valor facial. Monk esmerara-se para que o assassínio parecesse um acidente, o que lhe permitiria arrecadar o dobro. O pai apreciara muito o seu trabalho, evidentemente, e embora não fosse necessário explicar porque pretendia que a filha fosse assassinada - Monk só estava interessado no dinheiro - confessara que estava desesperado por se ver livre dos credores e que só fazia o que tinha a fazer.
Ah, o amor paterno! Não havia nada como ele!
Enquanto a matava, Monk ouvia o diálogo do filme e, daí a um ou dois minutos, ficou fascinado. Afastou os pés da morta, sentou-se à beira da cama e viu o filme até acabar o genérico, sempre a mascar Doritos.
Tinha acabado de levantar-se quando ouviu a porta da garagem a abrir-se. Saíra mesmo a tempo, mas agora, ao pensar no risco estúpido que correra, reconhecia a sorte que tivera. Qual a lição que retirara dessa experiência? Entrar e sair o mais depressa possível.
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Monk considerava que evoluíra muito desde esses primeiros assassínios. Matara Catherine sem o mínimo problema.
Olhou outra vez para a janela do quarto da médica. Ela deitava-se muito mais tarde do que ele esperava e estava abraçada a um homem. Quando Monk a seguira até ao Swan, avistara o homem no meio dos adolescentes barulhentos e obtusos. Só lhe vira de relance a cara e os ombros. Os adolescentes rodeavam-no e gritavam para atrair a sua atenção. Chamavam-lhe "treinador".
Contar com o inesperado. Monk telefonara a Dalas, lera-lhe a placa de matrícula do carro alugado e pedira-lhe que verificasse.
Por fim, a luz do quarto apagou-se. Monk esperou mais meia hora para se certificar de que ela fora para a cama. Depois, seguiu pela berma da estrada de cascalho até ao sítio em que escondera o seu carro. Regressou ao motel de St. Claire, ouviu a gravação dos telefonemas, decepcionado por não haver nada importante, preparou o despertador e por fim foi para a cama.
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CAPÍTULO 20
Havia, sem dúvida, vantagens em ser portador das credenciais do governo e conhecer pessoas em altos cargos. Por volta das dez da manhã, Theo recebera toda a informação de que precisava sobre os irmãos Carson. O que soube dos vigaristas deixou-o furioso. Também já tinha a documentação pronta, graças à eficiência dos seus assistentes e à pontualidade garantida do serviço de estafetas.
O que Theo tencionava fazer não era muito convencional e poderia até levá-lo à barra do tribunal, mas agora não estava preocupado com isso. Esperava resolver o problema de Daryl com a açucareira antes de os irmãos se precaverem e, pelo que soubera sobre os dois advogados a quem os irmãos pagavam uma avença mensal, eram indivíduos mesquinhos, que só compreenderiam ter sido manipulados perante o facto consumado.
Theo beneficiava de outra vantagem à qual nunca recorrera até então. Como membro do Departamento de Justiça, conseguia assustar os criminosos de meia-tigela tanto quanto as autoridades fiscais.
Assobiava enquanto preparava o pequeno-almoço. Michelle entrou na cozinha quando ele estava a pôr a mesa.
Vinha com bom aspecto. Vestia uns jeans apertados e desbotados que lhe realçavam o comprimento das pernas e uma t-sbirt confortável que lhe chegava ao umbigo. Theo achou-a mais sensual do que na noite anterior, o que julgava impossível. O Céu ajudava-o, a mulher estava cada vez melhor.
Estendeu-lhe um copo de sumo.
- Quer divertir-se?
Não eram estas as primeiras palavras que ela esperava ouvir.
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- Como? - perguntou ela à cautela.
- À custa da açucareira.
Michelle não queria acreditar que ficara um pouco decepcionada.
- Oh, sim... Sim, evidentemente. Posso ajudar?
- Claro que pode, mas tome o pequeno-almoço primeiro. Já lho preparei. Gosto de cozinhar - acrescentou ele com entusiasmo, como se tivesse acabado de descobrir tal coisa. - Descontrai-me.
Michelle olhou para a mesa e riu-se.
- Abrir uma caixa de cereais e tirar o leite do frigorífico não é cozinhar.
- Também fiz o café - gabou-se ele.
- O que, traduzido, significa que carregou no botão. Fi-lo ontem à noite.
Theo puxou uma cadeira para ela se sentar, sentiu o seu perfume e teve vontade de aproximar-se mais dela. Mas recuou e encostou-se ao lava-louças.
- Está bonita hoje.
Michelle pegou na bainha da t-shirt.
- Não acha que esta t-shirt está um pouco apertada?
- Porque acha que eu disse que estava bonita?
- Sempre que a visto, tiro-a e escolho outra coisa. É o último grito da moda - acrescentou ela, à defesa. - Foi a minha amiga Mary Ann que ma ofereceu e disse-me
que eu devia mostrar o umbigo.
Theo puxou a sua t-shirt azul-marinho desbotada para cima até mostrar o umbigo.
- Se assim é, eu ando à moda.
- vou mudar de roupa - disse ela, desviando o olhar da barriga firme e plana dele. O homem era extremamente elegante, o que era um milagre considerando a quantidade de comida de plástico que ingeria.
- Gosto do modo como está vestida - protestou ele.
- vou mudar de roupa - repetiu ela. Depois, abanou a cabeça. - É difícil... tentar sentir-me bem na minha pele hoje em dia.
- O que quer dizer com isso?
- Passei tantos anos a tentar não parecer uma rapariga!
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Theo julgou que ela estava a brincar e riu-se.
- É verdade - disse ela. - Quando andava na faculdade de Medicina, fazia tudo para disfarçar o facto óbvio de ser uma mulher.
Atónito, ele perguntou:
- Porquê?
- O chefe de um dos departamentos era extremamente preconceituoso em relação às médicas e fazia tudo o que podia para nos dificultar a vida. Era um crápula - acrescentou ela. - Ele e os amigos saíam para beber um copo com os alunos do sexo masculino, mas só depois de terem sobrecarregado as alunas com trabalhos de investigação e outros. Eu não me importava, mas não me agradava ter de transpor o dobro dos obstáculos dos rapazes. E se nos queixássemos, era ainda pior. A única alternativa para as alunas era desistir, que era exactamente o que o chefe de departamento pretendia. - De repente, Michelle sorriu. - Uma noite, quando eu e umas colegas já tínhamos umas margaritas no bucho, percebemos tudo.
- O que perceberam?
- O chefe de departamento tinha medo de nós. Repare que estávamos exaustas e tocadas.
- Perceberam por que motivo é que ele tinha medo de vocês?
- Da nossa mente. Ele sabia a verdade.
- Que verdade?
- As mulheres têm uma mente muito superior - disse ela, rindo-se. - Na origem do preconceito estava o medo e a insegurança. Recordo-me que, nessa altura, a revelação deixou-nos atordoadas. Não era verdade, mas nós estávamos demasiado embriagadas para nos preocuparmos fosse com o que fosse. Hoje reconheço que foi um absurdo, que não somos nem mais nem menos capazes do que os homens, mas o facto de conseguirmos rir e sentirmo-nos bem ajudou-nos a viver os maus momentos.
- O seu estágio também foi difícil?
- Não, foi completamente diferente. Éramos todos tratados de igual forma, trabalhávamos vinte horas por dia e sete dias por semana. O facto de eu ser mulher era irrelevante. Eu só precisava de saber andar à pressa. Foi terrível - admitiu ela. - Aprendi a dormir quinze minutos em pé. Tive a sorte de estagiar com um
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óptimo cirurgião. Ele era antipático, mas demo-nos bem. Eu andava quase sempre de bata e a moda não fazia parte do currículo.
- O meu médico é uma mulher.
- Não me diga!
- É verdade. Foi ela que me extraiu o apêndice.
- Eu não sou sua médica. Se fosse, receitava-lhe uma dieta pobre em gorduras e em sódio.
- Eu disse-lhe que não gostava da minha médica e que nunca segui os conselhos dela? Quanto à roupa, não interessa o que veste, Michelle. Os homens continuam a olhar para si. Só espero que os irmãos Carson não a vejam pela janela enquanto eu faço o possível por aterrá-los.
- Vai recorrer à táctica do terror? Óptimo.
- Pareceu-me que aprovaria.
- O que quer dizer com isso de me verem pela janela? Não posso entrar consigo?
- Lamento. Não vai ver os irmãos a transpirar.
- Porquê?
- Porque eu não quero que você ouça o que eu vou dizer. Você não sabe nada. Um dia, poderia ter de depor contra mim em tribunal.
- O que tenciona fazer exactamente?
Theo pegou no açucareiro que estava em cima da bancada e sentou-se diante dela.
- Espere e verá - disse ele. Em seguida, pegou na caixa dos cereais e serviu-se de uma boa quantidade de comflakes. - Gosto mais de Frosted Flakes - acrescentou, começando a deitar açúcar por cima.
Michelle ficou enjoada só de olhar para ele.
- Tenho uma embalagem de dois quilos e meio de açúcar na despensa. Porque não vai buscá-la, agarra numa colher e se serve à vontade?
- Minha querida, o sarcasmo logo de manhã não é bem-vindo. Quer café?
- Fi-lo para si - respondeu ela. - Em geral, bebo uma Diet Coke ao pequeno-almoço.
Ele riu-se.
- E está a criticar os meus hábitos alimentares? Michelle tirou uma lata do frigorífico, abriu-a e bebeu um
bom gole.
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- Foi impressão minha ou tocaram à porta esta manhã?
- Vieram entregar-me uns documentos vindos de Nova Orleães. É espantoso como o motorista deu com a sua casa. As minhas indicações foram muito vagas.
- Tem escritório em Nova Orleães?
- Tenho lá amigos - respondeu ele. - Depois de falar com o Daryl, telefonei a algumas pessoas de Boston. Como não estou a par da legislação nem dos direitos dos trabalhadores da Louisiana, tive de recorrer a alguns dos meus conhecimentos.
- Parece-me que, se um empregado sofrer um acidente nas horas de serviço, tem direito a receber uma indemnização.
- Há excepções.
- Como por exemplo?
- Se o empregado fez alguma coisa que provocasse o acidente, como ir trabalhar embriagado, poderia ser-lhe negada a indemnização.
- Ou se usasse uma máquina que ele sabia que estava avariada?
- Esse é o argumento que os Carson vão utilizar.
- Mas você está preparado para isso.
- Estou.
- Porque está a agir tão depressa?
- Porque não quero deixar o Daryl pendurado. Não vou ficar aqui muito tempo e quero tentar resolver este problema antes de regressar a casa. Prometi-lhe.
Michelle baixou a cabeça e olhou para os comflakes, que começavam a ficar empapados. Sempre soubera que Theo se iria embora. Evidentemente. E por isso é que tentava não se apegar a ele. Só havia um pequeno senão no seu plano. Por muito que lhe custasse admiti-lo, queria agarrar-se a ele e nunca mais o largar.
Estúpido! A culpa era toda dele. Se não a tivesse beijado, ela não se sentiria infeliz.
- Há algum problema? - perguntou ele.
- Não. Porque pergunta?
- Está com essa cara... Parece que quer bater em alguém.
- Estava só a pensar.
- Em quê?
Michelle afastou os cereais que não comera para o lado, recostou-se na cadeira e cruzou os braços.
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- Vírus não específicos.
Havia laivos de agressividade na sua voz.
- Essa é a última coisa no mundo de que eu me lembraria. Vírus. Mas que ideia!
- Vírus não específicos - corrigiu ela.
- O erro foi meu. Então, diga-me. Em que estava exactamente a pensar quanto aos vírus não específicos?
- São insidiosos... E destruidores, pelo modo como atacam o corpo. Agora estamos muito bem e, no momento seguinte, temos a garganta inflamada e dorida, e começa a doer-nos o corpo todo. Depois, as amígdalas incham tanto que nos custa a engolir. Quando pensamos que não é possível sentirmo-nos pior, começamos a tossir e, sem darmos por isso, arranjamos toda a espécie de complicações secundárias.
Theo fitou-a e em seguida perguntou:
- E você estava a pensar nisso porque...?
Porque te vais embora, estúpido. Michelle encolheu os ombros.
- Sou médica. Penso nestas coisas.
- Sente-se bem?
- Sinto, mas quem sabe como me sentirei daqui a cinco minutos? São cruéis... Esses vírus. Atacam sem mais nem menos.
Michelle fez estalar os dedos e abanou a cabeça.
- Mas, se não forem vírus fatais, acabam por seguir o seu curso e desaparecer, não é verdade?
- Oh, sim, eles desaparecem, isso é verdade - respondeu ela de chofre.
Theo disse o que estava a pensar:
- O que diabo se passa consigo?
- Sinto um vírus a chegar.
- Você acabou de dizer que se sentia bem - observou ele.
- Não quero falar mais nisto. As pessoas doentes deprimem-me.
- Michelle?
- Sim?
- Você é médica. Estou a correr um risco, mas não passa o dia inteiro a tratar de pessoas doentes?
De repente, ela percebeu que estava a comportar-se como uma criança e tentou arranjar uma desculpa para o seu momento de loucura.
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- Nunca estou bem-disposta de manhã.
- Não faz a maioria das operações de manhã cedo?
- Sim, faço, mas os doentes já estão anestesiados. Não querem saber da minha disposição. Dormiu bem? - perguntou ela, mudando deliberadamente de assunto.
- Dormi. E você?
- Também. Foi agradável não acordar com o telefone. Já teve notícias do seu amigo Noah?
- Não.
- Ele terá de passar por aqui para levar a chave da clínica. Temos de esperar por ele.
- O Noah não precisa de chave.
- Como é que ele entra?
- Força a porta e entra, mas não se preocupe. Ele não estraga nada. Orgulha-se de ser rápido e silencioso.
- E você tem de marcar uma hora e um sítio para se encontrar com ele?
- Não - respondeu Theo. - Mas não estou preocupado. O Noah há-de encontrar-me. Qual é o seu programa para hoje?
- Como você não quer que eu comece a limpar a clínica senão quando o Noah inspeccionar o local, tenho o dia livre. Tenho de entrar em contacto com o Dr. Robinson para saber quais são os doentes difíceis - disse ela. - E a outra coisa que tenho para fazer é levá-lo à força ao treino de futebol, às três horas. Você prometeu
a Mr. Freeland que passava por lá, e como eu sou a médica da equipa, teoricamente, tenho de lá estar.
- Eles precisam de um médico durante o treino? - perguntou ele, a sorrir.
- Oh, sim - respondeu ela. - Os rapazes causam muitos danos uns aos outros quando batem com a cabeça ou com outras partes do corpo. Aparentemente, é indiferente que usem capacetes e caneleiras. A semana passada, tratei um ombro deslocado e, há dois dias, uma luxação grave num joelho. Os rapazes são mesmo terríveis, mas não conte a ninguém que eu disse isto. A propósito de Mr. Freeland, ele escreveu um número naquele papel que lhe entregou. Viu-o e ficou devidamente impressionado?
- Sim, vi o número. Não posso dizer que tenha ficado impressionado.
- É divertido?
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Theo fez um sinal afirmativo.
- Ganho mais numa semana do que ele me ofereceu por ano.
- Esta zona não é rica.
- Eu compreendo.
- E tenho a certeza que ele partiu do princípio que você continuaria a trabalhar como advogado.
- Uh-huh.
- Vai mudar de roupa para ir à fábrica?
- Estou mal vestido?
- Vai de Levist É essa a roupa indicada quando queremos intimidar alguém?
- Não é o que vestimos que conta. É a atitude em geral. Quando podemos sair?
- Dê-me dez minutos.
Michelle empilhou os pratos dentro do lava-louças e subiu as escadas a correr para vestir uma blusa menos transparente, enquanto Theo reunia os documentos.
Quando ia a sair com o carro da rampa, Theo disse:
- A primeira paragem é no Second and Victor. Eu sei que fica em St. Claire, mas você terá de me indicar o caminho em pormenor.
- É fácil. Fica mesmo por trás do McDonalds.
- Óptimo. Assim posso comprar umas batatas fritas para me aguentar até ao almoço.
- Deve ter o sangue muito grosso.
- Não, não tenho. Tenho o colesterol baixo e muito do bom.
Michelle guiou-o através das ruas de St. Claire.
- Vire aqui à esquerda - disse ela. - Porque vamos ao Second and Victor?
- Por causa da vedação. Ah, lá está. - Theo entrou no terreno ao lado da St. Claire Fencing Company, estacionou o carro mas deixou o motor a trabalhar e saiu. - Eu já fiz a encomenda, portanto não me demoro. É só pagar.
Ao sair, Theo trancou as portas com o telecomando.
Michelle ficou à espera, com o ar condicionado no máximo. Lá fora, o ar estava quente e húmido e, segundo os meteorologistas, havia oitenta por cento de probabilidades de chover e trovejar
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à tarde. Michelle levantou o cabelo e arejou o pescoço. Ainda não se reacostumara à humidade de Bowen. Nem ao ritmo de vida. Estava habituada a andar à pressa
e agora teria de aprender a abrandar.
Theo levou dez minutos a fazer a compra. Michelle estava morta por saber porque queria ele comprar uma vedação, mas não tencionava fazer mais perguntas. Se ele quisesse que ela soubesse, a seu tempo lhe diria.
Esperou que Theo estacionasse o carro em frente do St. Claire Bank and Trust, que ficava precisamente a três quarteirões de distância da loja das vedações.
- Comprou uma vedação?
- Comprei.
- De que tipo?
Theo procurava qualquer coisa no meio dos papéis que enchiam os dossiês enfiados na consola.
- De ferro forjado - respondeu ele.
Retirou dois documentos que pareciam ser oficiais, saiu do carro e foi abrir-lhe a porta do outro lado.
- Isso é terrivelmente caro.
- Valeu a pena.
- E?
- E o quê?
- Porque a comprou?
- Chame-lhe um prémio de consolação, porque não vou arranjar uma arma maior.
Theo sabia que ela não perceberia. Michelle já tinha ido para o carro quando o pequeno John Patrick lhe falara no dia do aniversário.
- Em Boston, há lojas que vendem vedações.
- Pois há.
De repente, Michelle teve uma ideia.
- Isso tem alguma coisa a ver com a Lois?
- Qual Lois? Ela desistiu.
- Não tenciona dizer-me?
- É isso mesmo. Sou do tipo forte e silencioso.
- Detesto os tipos fortes e silenciosos. São todos personalidades do tipo A. Atreitos a ataques cardíacos.
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Theo abriu a porta.
- Querida, nunca pensa noutra coisa a não ser em medicina? Se ele soubesse... Desde que ela o conhecera, a única coisa em
que conseguia pensar era em ir para a cama com ele. Mas não tencionava admiti-lo.
- É claro que penso - disse ela. - Quer saber o que estou a pensar neste momento?
- Está a ficar irritável outra vez? Ela riu-se:
- Quando é que estive irritável?
Theo apontou para o guarda e depois recuou para deixar passar Michelle à sua frente. Sabia que a sua arma faria disparar o alarme. Mostrou o documento de identificação do governo ao homem de idade e esperou que ele accionasse o botão de desactivação. A arma estava escondida numa correia presa ao tornozelo que ele lhe entregou juntamente com os papéis.
O guarda mandou entrar Theo.
- Em que lhe posso ser útil, excelência? Theo não o corrigiu.
- Tenho uma reunião marcada com o presidente do banco. Pode indicar-me onde é o gabinete dele?
O guarda assentiu com entusiasmo.
- com certeza. Mr. Wallbash está ali atrás. Pode vê-lo sentado à secretária do outro lado da parede de vidro.
- Obrigado.
Theo virou-se para Michelle, apontou para uma cadeira no átrio que dava acesso ao gabinete do presidente e disse:
- É melhor esperar aqui. Talvez seja obrigado a dizer um palavrão lá dentro.
- E qual seria?
Theo segredou-lhe ao ouvido:
- Auditoria.
- Desculpe, minha senhora. Não é a filha do papá Jake? perguntou o guarda, precipitando-se para Michelle.
Ela desejou boa sorte a Theo, em voz baixa, e em seguida virou-se para o homem de idade.
- Sou, sim - respondeu.
O homem apresentou-se e apertou-lhe a mão.
- Soube o que aconteceu na sua clínica. A minha mulher, a Alice, e eu comentámos que bom seria termos a filha do Jake a
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tratar de nós. Precisamos os dois de um bom médico. A Alice tem problemas com os joanetes e os calos. Não pode calçar os sapatos de domingo porque tem muitas dores, e eu tenho de fazer qualquer coisa por causa da minha bursite. Há dias em que nem consigo levantar o braço direito. Quando calcula que começa a dar consultas?
- Daqui a duas semanas, espero.
- Podemos esperar até lá - disse ele. - Aguentámos as nossas dores até agora. Este meu trabalho a tempo parcial ajuda a distrair-me dos meus padecimentos. Substituo o guarda duas vezes por semana. Pode dizer-se que tenho horário de banqueiro.
- O homem riu-se do seu próprio gracejo. - Está a ver aquilo? Até parece que Mr. Wallbash vai ter um ataque cardíaco. Está vermelho como um pimentão e a suar como um porco. Não deve gostar do que sua excelência lhe está a dizer.
Michelle concordou. Wallbash parecia doente. Verificou atabalhoadamente os papéis que Theo pusera em cima da secretária e em seguida deitou-lhe um olhar furibundo.
Michelle não via a cara de Theo porque ele estava de costas, mas o que ele estava a dizer, debruçado sobre a secretária, tinha um forte impacte em Wallbash. O presidente do banco levantou as duas mãos como se estivesse a ser assaltado e abanou vigorosamente a cabeça.
Michelle julgava saber porquê. Theo devia ter usado a palavra mágica.
Theo não se demorou muito no gabinete do presidente, nem lhe apertou a mão à saída. Wallbash estava ocupado a limpar o suor da testa. Theo parou à porta e disse-lhe qualquer coisa que o deixou lívido.
A expressão de Theo era feroz quando atravessou o átrio na direcção de Michelle. Reparou que ela o observava, piscou-lhe o olho, pegou-lhe na mão, cumprimentou o guarda com um aceno da cabeça e continuou a andar, arrastando-a atrás de si.
Ela esperou que chegassem ao carro para saber o que se passara.
- Então?
- O Wallbash não está satisfeito, mas vai colaborar. Fartou-se de praguejar - acrescentou Theo, num tom de voz que a pôs de sobreaviso.
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- E agora?
- Mais uma paragem e depois podemos ir almoçar. Explique-me como se vai para a açucareira.
Michelle ensinou-lhe o caminho e em seguida perguntou-lhe o que tinha feito.
- O Wallbash ia sofrendo um ataque.
- Os irmãos Carson trabalham com o St. Claire Bank and Trust desde que a empresa iniciou a sua actividade. São uns dos maiores depositantes do banco, o que, como você pode calcular, permite que aqueles filhos-da-mãe beneficiem de condições muito favoráveis. O Wallbash e o Gary Carson são amigos. Na opinião do Wallbash, ele é um tipo decente.
- E o irmão?
- O Jim Carson é um exaltado. Parece-me que o Wallbash tem um certo medo dele. O Jim é que foi ao hospital para despedir o Daryl. Estão a fazer isto de propósito para conseguirem o que querem.
- Tipo polícia bom, polícia mau?
- É mais do tipo polícia mau, polícia ainda pior. Prefiro um exaltado a um manipuíador sonso e vigarista, sabe? Se eu hoje tiver sorte, os dois irmãos estarão na
fábrica e hei-de obrigá-los a cumprir a sua obrigação.
- Mas qual foi o objectivo de ir ao banco?
- Congelei-lhes as contas. Michelle soltou uma gargalhada.
- Isso pode não ser legal.
- Claro que é - contrapôs ele. - O Wallbash tem os documentos, todos assinados e legais. Ele tem de colaborar, senão eu encosto-o...
Theo calou-se a tempo. Ela concluiu a frase:
- À parede?
- Sim.
- Porque está sempre a olhar para o relógio?
- Porque o tempo é tudo. A minha reunião com o Carson está marcada para o meio-dia e meia hora.
- Você marcou uma reunião?
- Claro.
- Disse-lhe porque queria falar com ele?
- Para estragar a surpresa? É claro que não lhe disse a verdade. Disse à secretária que tinha um negócio a propor-lhe.
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- Vire na próxima à esquerda - indicou ela. - E siga sempre por esta estrada. A fábrica fica a dois quilómetros, já no campo. Então o Carson julga que vai arranjar
um novo cliente.
- Exactamente.
- Talvez o Wallbash lhe telefone e lhe fale da sua visita.
- Ele vai telefonar-lhe à uma hora em ponto e não antes, caso contrário eu mando fazer uma auditoria ao banco e virá-lo de pernas para o ar. Ele vai esperar.
- Seria mesmo capaz de fazer uma coisa dessas?
Ele não respondeu. Michelle observou-o durante alguns minutos e disse:
- Quando você quer alguma coisa não deixa que nada se lhe atravesse no caminho, pois não?
- Não, não deixo. Nunca se esqueça disso.
- E vence sempre? Theo fitou-a.
- O que acha?
Ele mudara de assunto com subtileza. Ambos sabiam que estavam a falar dela nesse momento. Depois, Michelle lembrou-se do que ele lhe dissera na noite anterior, ainda
antes de desfazer a mala. Não seria ele a ir ter com ela à cama. Seria ela a procurá-lo. "Quando as galinhas tiverem dentes", pensou ela. Virou-se para o lado e olhou lá para fora. Depois, lembrou-se de outra coisa.
- E os ordenados? Se você mandou congelar as contas, como é que eles pagam aos homens?
- O tribunal vai nomear alguém para passar os cheques.
- E se os irmãos encerrarem a fábrica por despeito?
- Eles ganham demasiado dinheiro para a encerrarem. Além disso, eu não os deixarei fazer tal coisa.
- Pode impedi-los?
- Claro que posso. Se não colaborarem, quando eu acabar com eles serão os empregados a tomar conta da fábrica.
Theo avistou a fábrica ao longe. Viam-se colunas de fumo a sair de silos cilíndricos instalados entre dois enormes edifícios de blocos de cimento, todos ligados uns aos outros.
Quanto mais Theo se aproximava, mais desolado lhe parecia o local. A fachada era cinzenta e as janelas estavam sujas, apesar de a construção não se encontrar em mau estado. Theo estacionou o carro no terreno de cascalho, saiu e olhou à sua volta.
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- Mr. Buchanan?
Theo virou-se para trás assim que ouviu a voz.
- Connelly?
Um homem alto e magro em fato de passeio aproximou-se do carro.
- Sim, senhor.
- Está tudo em ordem?
Connelly levantou a pasta que trazia na mão.
- Sim, está, eu recebi a mensagem. Ele está informado. Theo encostou-se à porta do carro e disse a Michelle:
- Não se importa de esperar aqui?
- Está bem - respondeu ela. - Mas, se eu ouvir tiros, desato a fugir.
Theo virou-se para Connelly, apresentou-o a Michelle e em seguida disse:
- Quando eu sair, você entra. Quero que espere do lado de fora da porta.
Theo deixou o motor a trabalhar. Michelle tirou o cinto, empurrou o banco mais para trás e ligou o rádio. Willie Nelson estava a cantar, o que ela considerou um bom augúrio. Theo não teria problemas.
Depois de ouvir três canções e nove anúncios, viu Theo a sair da fábrica. Vinha a sorrir quando Connelly passou por ele em sentido contrário. Theo dirigiu-se lentamente para o carro, sentou-se, arrancou e só depois é que fechou a porta. Ela mal teve tempo de apertar o cinto de segurança.
- Vamos bater em retirada à pressa?
- Estou com fome.
- Mas está a olhar pelo retrovisor - observou ela, virando-se no banco para olhar pelo vidro traseiro.
- É só por uma questão de precaução. Nunca se sabe se alguém tem uma espingarda de caça debaixo da secretária.
- Correu assim tão bem?
- Por sinal, correu bem. Realmente, o Gary Garson é um tipo simpático. Não podia ter sido mais compreensivo e agradável. Quer fazer as coisas como deve ser. Não
imagina as vezes que ele disse isto. É claro que acenou com a ameaça velada de ter de encerrar a fábrica porque, e cito, "Isto mal dá para as despesas."
- E como é que você reagiu?
191
Theo sorriu. -,
- Ri-me.
- Então foi diplomático. Ele riu-se.
- Claro.
- Você está a divertir-se imenso com isto, não está? Theo mostrou-se surpreendido com a pergunta e respondeu:
- Sim, estou. Sabe bem ajudar o Daryl. Sabe mesmo bem.
- Porque você sabe que pode fazer a diferença.
- Pois. É evidente que este caso é fácil. Tenciono resolvê-lo antes do fim-de-semana.
- Acha que consegue resolver o problema em dois dias?
- Sim, acho. A menos que os irmãos tenham dinheiro escondido de que eu não tenha conhecimento e se convençam de que podem fazer-me frente. Mas, mesmo assim, isso não irá resultar. Eles cometeram tantas ilegalidades que eu podia mandar prendê-los. O Departamento de Saúde e Segurança no Trabalho teria um dia e pêras naquela fábrica.
- O exaltado atirou-se a si?
- Não - respondeu ele. Ela sorriu.
- Parece desapontado.
- E estou - admitiu ele. - Eu queria ver como é que eles reagiam. O Jim Carson foi a Nova Orleães hoje, mas deve regressar a Bowen por volta das seis horas. O Gary disse que ia esperar para falar pessoalmente com o irmão em vez de o fazer pelo telemóvel, talvez para que o outro comece a espumar antes de atiçá-lo contra mim. Aposto que o Jim me contacta cinco minutos depois de o Gary lhe dar a notícia.
- Por acaso disse ao Gary onde estaria esta noite? Ele sorriu.
- Devo ter dito que estaria no Swan. Ela suspirou.
- Pode ser obrigado a dar um tiro em alguém.
192
CAPÍTULO 21
O novo estádio de futebol do liceu era impressionante. Em contrapartida, a equipa não valia nada. Na opinião de Theo, eles eram inacreditavelmente maus.
Os rapazes queriam exibir-se perante Theo. Tinham talento, de facto, mas não sabiam o que fazer com ele. Conrad Freeland teve de gritar a plenos pulmões para se sobrepor aos gritos dos rapazes. Costumava apitar tantas vezes que eles já ignoravam o som do apito. O treino foi caótico e ensurdecedor.
Por fim, Conrad conseguiu que eles colaborassem o suficiente para alinharem. Começaram a correr de um lado para o outro no campo impecavelmente tratado, como se fossem frangos sem cabeça.
Theo e Michelle estavam junto do professor de Música, na linha lateral, a assistir. Cheio de orgulho, Conrad virou-se para Theo e perguntou:
- O que acha dos seus rapazes?
Theo ignorou a referência aos "seus rapazes" - não tencionava reclamar a propriedade daquele grupo heterogéneo - e disse:
- Porque não treina umas jogadas, enquanto eu e a Michelle ficamos nas bancadas a assistir? Já passaram uns anos, mas talvez eu ainda possa fazer algumas sugestões.
Conrad ficou atrapalhado. Apontando com a cabeça para o campo, disse:
- Isto foi uma jogada.
- Desculpe?
- O que vocês viram foi uma jogada.
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- Uma jogada? Você só... - Theo fez o possível por não sorrir, porque não queria que Conrad pensasse que ele não levava o treino a sério.
O professor de Música puxou o colarinho com um gesto nervoso. Estava vestido para um recital, com uma camisa branca de cerimónia impecavelmente engomada, uma gravata às riscas finas e um casaco azul-marinho. As nuvens espessas anunciavam chuva e o ar estava tão pegajoso e quente que Theo receava que Conrad sufocasse.
Michelle deu-lhe uma cotovelada.
- Foi uma boa jogada, não foi? Theo não respondeu. Conrad disse:
- Nós só aperfeiçoámos a jogada que acabou de ver. Chamamos-lhe o "ferrão".
- Compreendo - observou Theo, à falta de melhor, para não mentir descaradamente.
- Boa, não acha?
Michelle deu outra cotovelada a Theo. Ele ignorou-a e virou-se para Conrad. Não queria ferir os sentimentos do homem. Era óbvio que ele trabalhara muito para conseguir que os rapazes indisciplinados colaborassem, mas Theo não tencionava começar a mentir e limitou-se a responder:
- Interessante.
- Você tem de entender a minha posição e o passado da equipa - disse Conrad, cuja voz era agora mais firme. - A nossa equipa de futebol só começou o ano passado, e o treinador... Bem, entrou e saiu no meio da época. Os rapazes não sabem o que hão-de fazer no campo. Eu próprio não sei o que estou a fazer. Dê-me uma flauta e eu ensino-o a tocá-la, mas isto ultrapassa-me - acrescentou ele, agitando a mão. - É por isso que precisamos desesperadamente de livros. Eu tenho tentado fazer um bom trabalho.
- Não duvido - reconheceu Theo, tentando pensar em qualquer coisa positiva para dizer.
- Até procurei no computador. Posso contar-lhe a história do futebol, mas não sei ensiná-lo a jogar. Não consegui fazer nada com os desenhos que encontrei na Internet. Muitos círculos e setas que não faziam sentido para mim.
Conrad tirou o apito do pescoço e entregou-o a Theo.
194
- Veja o que consegue fazer, treinador.
- Eu não sou... o treinador - concluiu Theo, mas Conrad já desatara a correr para o bebedouro.
Michelle pôs-se ao lado dele.
- Eles são péssimos, não são? - perguntou ela em surdina.
- Sem dúvida - concordou ele. Ela sorriu.
- vou sentar-me na bancada até você acabar.
"Está bem", pensou ele. Um treino, só um. Falaria com os rapazes, dir-lhes-ia que iria enviar a Freeland uns livros e também um ou dois filmes para eles verem, e mais nada. Depois, sairia dali. Sim, esse seria o seu plano de jogo.
Enfiando dois dedos na boca, assobiou para chamar a atenção dos rapazes e em seguida fez-lhes sinal para se aproximarem.
Eles desataram a correr como potros gordos e desajeitados. Um deles caiu, levantou-se e tropeçou outra vez no próprio pé. Theo esperava que ele não se candidatasse à posição de médio. Os rapazes juntaram-se à volta dele e crivaram-no de perguntas. Theo não disse nada. Limitou-se a levantar uma mão e ficou à espera. Por fim, o ruído desvaneceu-se.
Em voz baixa, Theo ordenou-lhes que tirassem os capacetes e se sentassem na relva, em frente dele. Os rapazes obedeceram. Quando se sentaram no chão, Theo poderia jurar que sentiu a terra tremer debaixo dos pés. Em seguida, Elliott Waterson gritou:
- Onde está a sua arma, treinador? E recomeçou a vozearia.
Theo não disse nada. Ficou ali, de braços cruzados, à espera que eles se acalmassem. Não foi preciso muito tempo. Passado um minuto, calaram-se outra vez.
Quase em surdina, ele disse:
- Elliott, a minha arma está num lugar seguro, mas juro que o próximo que me interromper quando estou a falar será severamente repreendido. Perceberam? - Theo obrigava os rapazes a estarem quietos e a escutar o que ele tinha a dizer. - Agora, vamos fazer o seguinte.
Michelle estava sentada na bancada a assistir à transformação. Ficou admirada com a facilidade com que Theo controlara os rapazes. A equipa sentou-se, de pernas cruzadas e com o capacete
195
no regaço. Não tiravam os olhos de Theo e pareciam suspensos das suas palavras. Conrad estava impressionado. Tinha voltado para junto de Theo e abanava a cabeça de vez em quando.
- Desculpe, minha senhora.
Michelle virou-se ao ouvir a voz e viu um homem alto e forte, de cabelo escuro, mesmo à saída do túnel que dava acesso aos balneários. A cara pareceu-lhe vagamente familiar.
- Sim?
Ele avançou. O desconhecido vestia uns calções de caqui e uma camisa de manga curta a condizer, com a palavra "Speedy" bordada sobre o bolso do peito, do qual pendia uma etiqueta com um nome presa por uma mola. O homem trazia na mão um envelope do Speedy Messenger - ela reconheceu o rótulo -, mas estava demasiado longe para ela ler o seu nome.
- Procuro a Dr.a Michelle Renard. Sabe por acaso onde posso encontrá-la?
- Eu sou a Dr.a Renard. O estafeta ficou radiante.
- Graças a Deus! Tenho percorrido a cidade toda à sua procura.
O homem enfiou o envelope debaixo do braço e subiu a escada metálica à pressa.
- Tem alguma coisa para mim?
- Não, doutora. O que eu arranjei foi um problema, mas espero que me ajude a resolvê-lo antes que o Eddie seja despedido.
- Como?
O estafeta sorriu.
- O Eddie é novo na nossa empresa e fez uma grande asneira. A propósito, chamo-me Frank.
O homem estendeu-lhe a mão húmida e frouxa.
- Ele entregou o envelope certo à pessoa errada - explicou ele. - Mas precisa do emprego, porque a mulher está grávida e, se o Eddie for despedido por ter feito uma asneira, perde o seguro. O Eddie tem dezanove anos. E eu sinto-me responsável, porque fui eu que o ensinei. Hoje estou de folga, mas decidi tentar resolver isto antes que o patrão descubra.
- Mas que simpático da sua parte - disse ela. - Em que posso ajudá-lo?
- Ô Eddie foi buscar um envelope a uma firma de advogados de Nova Orleães na segunda-feira e devia ter preenchido logo
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o rótulo, colocá-lo na janela do envelope e deixá-lo na recepção, mas não fez nada disto. Levou-o para a carrinha da empresa. Também já tinha ido buscar outro volume aos Laboratórios Belzer e não o rotulara. Sentou-se na carrinha com ar condicionado a preencher os rótulos, mas trocou-os. Eu só dei pela asneira quando uma secretária de outra firma de advogados me telefonou a dizer que tinha recebido o envelope errado. Quando o abriu, encontrou uma série de literatura sobre um novo medicamento que o laboratório ia lançar. Felizmente para o Eddie, eu é que atendi o telefone. Se aquela secretária tivesse falado com o patrão, nem quero pensar no que teria acontecido. O Speedy Messenger Service orgulha-se de ser rápido e fiável, e juro que esta foi a primeira troca que tivemos desde há três anos. De qualquer modo
- acrescentou o homem, transferindo o peso do corpo para o outro pé -, espero que possa devolver-me o outro envelope que recebeu por engano, para que eu o entregue hoje na firma de advogados.
Michelle abanou a cabeça.
- Eu gostava de ajudá-lo, mas não me lembro de ter recebido correio especial. Onde e quando é que o volume foi entregue? Sabe?
- O Eddie entregou-o no hospital.
Michelle reparou que as mãos do homem tremiam ao folhear o livro de registos. Estava nervoso e nem conseguia encará-la. Ela estranhou, mas concluiu que ele ficara atrapalhado com a troca.
- Eu já lá fui, na esperança de encontrá-la, e uma das enfermeiras teve a amabilidade de consultar o horário semanal. Disse-me que tinha havido um acidente ao fim
da tarde e que a senhora estava a operar quando o Eddie fez a entrega, mas isso não faz sentido, porque a senhora assinou.
- Oh, sim, recordo-me do acidente. Eu estava no piso do bloco operatório, atulhada em fichas clínicas que tinha de acabar antes de sair. Recebi um telefonema das Urgências a dizer que havia um envelope para mim. Mas não me lembro de o ter recebido.
- Talvez ajude se eu lhe disser que a senhora assinou.
- Assinei?
Michelle não se lembrava de o ter feito.
O homem era a imagem da frustração quando disse:
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- Assinou, sim, doutora. Guardamos sempre uma cópia do recibo nos nossos escritórios e enviamos o original para o remetente. Garanto-lhe que a sua assinatura é muito legível - acrescentou ele, com uma ansiedade que não conseguia disfarçar a irritação.
- Não serve de nada irritar-se - disse ela. - E se o senhor conseguiu decifrar a minha letra, então de certeza que não fui eu que assinei. Ninguém consegue ler a minha letra. Acho que sei o que deve ter acontecido - acrescentou ela. - A secretária das Urgências assinou por mim. É um procedimento muito vulgar.
Michelle fez um esforço de memória, tentando reconstituir a sequência. Cansada por ter passado a maior parte da noite a pé, tinha resolvido não ir de férias sem ditar todos os relatórios clíni-
cos.
- Eu fui lá abaixo buscar o envelope.
- Onde? - perguntou o homem, ansioso, deitando um olhar apressado por cima do ombro à equipa de futebol. - Foi às Admissões ou às Urgências?
- Às Urgências - respondeu ela. - E foi quando chegaram os paramédicos. - Michelle encolheu os ombros. - Voltei logo para o bloco operatório e tratei de dois casos.
- Então, nem chegou a abrir o envelope, pois não? O homem sorria e parecia aliviado.
- Não, não cheguei a abri-lo - respondeu ela. - Caso contrário, lembrar-me-ia, sobretudo tratando-se de documentos vindos de uma firma de advogados.
- Pode imaginar como os advogados estão ansiosos por receber esses documentos. Deveriam ter sido entregues noutra firma de advogados. É tudo confidencial. Eu podia
ir já buscar o embrulho ao hospital, não podia? Ia ter com essa secretária. Como se chama ela?
- Elena Miller, mas ela não lhe entrega nada sem a minha autorização.
- Pode telefonar-lhe agora? O Eddie já recolheu o envelope que é para si e vem a caminho. Eu gostava muito de resolver isto hoje. Eu trouxe o meu telemóvel.
O homem aproximou-se mais e entregou-lhe o telemóvel. Michelle sentiu o aroma do aftershave. Era intenso, mas não disfarçava o cheiro da transpiração.
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O homem estava uma pilha de nervos. Não era de admirar que estivesse a suar. Continuava a olhar para o campo por cima do ombro, como se esperasse que um dos rapazes o atingisse com a bola. Michelle ligou para o hospital, pediu para falar com Elena e ficou à espera.
- Ele hipnotizou-os, não foi? - observou ela, enquanto esperava que a secretária atendesse.
- O quê?
- O treinador. Os jogadores estão suspensos do que ele diz. Reparei que estava a observá-los.
- Oh... Sim, sim, é verdade.
Elena Miller atendeu o telefone nas Urgências, no seu habitual tom apressado.
- Fala Miller.
- Olá, Elena. Fala a Dr.a Renard. Estou a interromper alguma coisa importante?
- Estou sempre no meio de alguma coisa importante, doutora. Esqueceu-se de acabar os seus relatórios. Faltam dois - disse ela. - E não tocou na sua correspondência. O seu cesto de entrada está a abarrotar, Doutora. Vê como valeu a pena telefonar? Em que posso ajudá-la?
- Eu acabei os meus relatórios - contrapôs Michelle. Todos, portanto se o Murphy julga que vai denunciar-me, diga-lhe que darei cabo dele.
- Calma, doutora. O Murphy também está de férias. Em que posso ser-lhe útil? - repetiu Elena.
Michelle explicou-lhe a troca dos volumes.
- Lembra-se de ter recebido um envelope dirigido a mim que foi entregue na segunda-feira, por volta das cinco horas?
- Neste momento, nem sequer me lembro do que comi ontem ao jantar. Lembro-me que segunda-feira foi um dia de loucura nas Urgências. Tivemos uma série de acidentes e depois houve aquele muito grave na auto-estrada. Houve pelo menos vinte mães e pais a treparem pelas paredes enquanto os médicos tratavam dos filhos. Não me recordo de ter assinado nada, mas não importa se me lembro ou não. Se assinei o documento de recepção, deixei um autocolante amarelo na porta do seu cacifo a avisá-la. Eu podia tê-lo posto lá dentro, mas a senhora ainda não me deu a combinação.
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- Desculpe - disse Michelle. - Esqueço-me sempre. Sabe onde possa estar o envelope neste momento?
- vou procurar. Ou está na minha secretária ou em cima do seu cacifo. O que quer que eu faça quando o encontrar?
- Entregue-o ao homem do Speedy Messenger Service. Ele vai passar por aí.
- Sim, está bem. Hoje, estou cá até às seis, nem mais um minuto. Hoje é noite de bridge na igreja, e tenho de lá estar por volta das seis e meia para ajudar a preparar as coisas. É a minha vez.
- Tenho a certeza que ele chega antes. Obrigada, Elena. Quando Michelle desligou e devolveu o telemóvel a Frank,
reparou que Theo atravessava o campo em direcção a eles. Também Frank parecia observar Theo. Não o perdeu de vista quando perguntou a Michelle:
- O que lhe disse ela? Tem o envelope?
- Calma! O Eddie não vai perder o emprego. A Elena está no hospital até às seis e fará a troca.
O homem nem agradeceu. Por sinal, a sua saída foi bastante repentina. Puxou a aba do boné mais para a testa e desceu as escadas a correr, sem olhar para o campo. Quando ia a desaparecer no túnel, Michelle gritou:
- Não tem de quê!
Ele nem a ouviu. Ansioso por sair dali antes que alguém lhe visse bem a cara, atravessou os balneários a correr e o parque de estacionamento. Estava ofegante. Foi de encontro à porta do carro, dobrou-se e tentou recuperar o fôlego enquanto manejava o puxador. Ouviu um som atrás de si e deu meia-volta, sem se endireitar.
Arregalou os olhos.
- O que diabo está você aqui a fazer, a espreitar-me? Anda atrás de mim?
- O que julga você que anda a fazer?
- Ando a fazer o que é preciso - respondeu ele. - Mais ninguém conseguia nada. A médica nunca mais me põe a vista em cima. Além disso, valeu a pena correr o risco. Sei onde está o envelope. E vou buscá-lo agora mesmo.
- Disseram-lhe que não interagisse com a sujeita. Esse ponto ficou muito bem esclarecido. Agora a médica fica a conhecê-lo. Você cometeu um erro estúpido e os outros não vão gostar.
200
CAPÍTULO 22
No caminho, quando regressavam a casa de Michelle, Theo não abriu a boca. Estavam ambos cheios de calor, transpirados e ansiosos por tomar um duche, antes de ele a levar a jantar ao The Swan. Oferecera-se para levá-la a outro lado um pouco mais requintado, mas ela prometera ao pai que o ajudaria a servir ao balcão se fosse necessário. À quarta-feira à noite, a afluência era grande no bar, e como o torneio de pesca se realizava no sábado era de esperar que a casa estivesse cheia.
- O seu irmão não podia ajudar o seu pai? - perguntou ele.
- O John Paul não apareceu na semana passada.
- O seu irmão desaparece muito?
- Quando o meu pai precisa, ele está presente.
- Mas como é que ele sabe que o pai precisa de ajuda? Telefona-lhe?
Ela sorriu.
- O John Paul não tem telefone e não o atenderia se o tivesse. Em geral, aparece na manhã de sexta-feira para saber do que o papá precisa. O John Paul nunca trabalhou no bar nas noites dos dias de semana.
- E se o seu pai estivesse em apuros? Se adoecesse ou lhe acontecesse outra coisa qualquer?
- O John Paul saberia que alguma coisa não estava bem.
- Percepção extra-sensorial?
- Ele saberia.
- O seu irmão parece estranho.
- Ele não é estranho - respondeu ela, à defesa. - É diferente.
- E quanto ao seu outro irmão?
201
- Remy?
- Ele é diferente?
- Pelos seus padrões, não, ele não é diferente. Nenhum deles pronunciou mais uma palavra durante vários
minutos. Michelle quebrou o silêncio quando reparou que ele franzia o sobrolho.
- Em que está a pensar?
- No miúdo que tropeçou hoje no campo.
- Porquê?
- Ele levava os sapatos do irmão.
- E você está a pensar no que pode fazer por isso.
- A equipa precisa de equipamento novo - observou ele.
- O Conrad vai pedir ao treinador do St. Claire que deixe a nossa equipa usar a sala de pesos. Nenhum deles deve entrar em campo sem estar devidamente preparado. Sabe ao que me refiro?
- Eles precisam de desenvolver os músculos e a energia.
- Exactamente. Caso contrário, podem lesionar-se.
- Você chamou-lhes "a nossa equipa".
- Não, não chamei.
- Chamou, sim. Eu bem ouvi. Theo mudou de assunto.
- O que queria o estafeta? Vi-a a falar com ele quando fui beber água.
- Houve uma troca no hospital. Mandei-o ir ter com a secretária das Urgências. Ela resolve tudo.
Theo mudou de assunto mais uma vez.
- Na sua opinião, a quanto chegará o prémio pecuniário do torneio de pesca?
- Não sei quantas pessoas participam este ano, mas se tivesse de adivinhar, diria que, dois homens por barco, a cinquenta dólares cada um... E no ano passado houve mais de setenta inscritos...
- Então, se participarem oitenta pessoas este ano, serão quatro mil dólares.
- É muito dinheiro para esta terra.
- Quatro mil dólares dariam para comprar muitos pares de sapatos.
- Parece que você tem um plano.
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- Pois, sim, a solução para o plano é vencer. Ela riu-se.
- Não brinque comigo. E o meu pai?
- Porque fala nele? - perguntou Theo, entrando no caminho de acesso à casa e estacionando o carro.
- Dois mil dólares serão dele.
- Ele dá-os. O seu pai é bondoso. - Theo seguiu-a até à porta principal. - Mas, como eu disse, a solução para o grande plano é vencer o torneio.
- Custa-lhe não poder sair e comprar tudo o que é preciso para a equipa, não é?
Michelle acertou em cheio.
- É - admitiu ele. - Mas sei que não posso fazer isso. Os pais deles ficariam ofendidos. Isso iria contender com o seu orgulho. Não é verdade?
- Sim, é. Você vai à falência se continuar a comprar vedações caras aos meninos, chuteiras e caneleiras para a equipa e sabe-se lá mais o quê.
- Nenhuma criança devia preocupar-se por ter um crocodilo no quintal.
Michelle virou-se para a porta, pôs as mãos nos ombros dele e beijou-o.
- Para que foi isso? - perguntou ele quando ela se afastou. Michelle olhou para trás, esboçou um sorriso e respondeu:
- Porque o beijei? Essa é fácil. Beijei-o porque acho que você é um amor.
Theo reagiu como se ela o tivesse ofendido.
- Não sou nada.
- Oh, você ficou preocupado porque não queria envergonhar aquele rapaz que trazia os sapatos do irmão, não ficou?
- Eu nunca disse que fiquei preocupado. Ela sorriu.
- Pois não, mas ficou, não ficou?
- Sim, mas...
- Você é... um amor.
- Eu ganho muito dinheiro, Michelle, e não é com certeza por ser um amor.
203
Theo avançava lentamente, e à medida que ele avançava, ela recuava.
- Não quero saber quanto ganha. Você enganou toda a gente em Boston, não é verdade? Eles julgam que você acusa assassinos.
- Eu acuso assassinos e orgulho-me disso.
- Você ficou preocupado com o John Patrick e foi por isso que comprou a vedação. Sabe o que é isso?
- Não diga - avisou ele.
- É ser um amor. Ele abanou a cabeça.
- Não. Eu sei porque é que você me beijou, querida. Seja sincera.
Theo abraçou-a pela cintura enquanto ela recuava até à biblioteca. Quanto mais ele a agarrava, mais ela se ria. O peito dele parecia um muro de tijolo. Um muro quente.
Theo debruçou-se e a sua boca ficou a poucos centímetros da boca dela.
- Quer que eu lhe diga porque é que você me beijou?
- Estou ansiosa por saber.
- É simples. Você deseja-me.
Theo esperava um protesto, mas ficou decepcionado quando ela disse:
- Quando você tem razão, tem razão.
- Sabe que mais?
- O quê?
Michelle inclinou-se para trás para poder olhar para ele.
- Você está desejosa de me pôr as mãos em cima. Theo puxou-a mais para si.
Michelle passou-lhe os braços pela cintura e enfiou os polegares no cinto dele.
- Já lhe pus as mãos em cima. Você tem de cuidar desse ego. Reparei que lhe falta autoconfiança na presença das mulheres. É triste, realmente... Mas...
- Mas o quê? - perguntou ele, roçando o queixo na face dela e aguardando uma resposta rápida e acutilante.
- Mesmo assim, é um amor - segredou-lhe ela ao ouvido e mordiscando-lhe o lobo da orelha.
Ele gemeu.
204
Empurrando-lhe a cabeça para trás, Theo pousou a sua boca na dela e beijou-a com avidez e paixão. O beijo foi húmido, quente, desvairado e tremendamente excitante.
Depois, a situação ficou ainda melhor. A expressão "pequenina nos seus braços" veio à mente de Michelle quando se colou a ele e deixou que a despojasse de todos os pensamentos lógicos. O beijo prolongou-se e o seu sabor era tão inebriante que ela aproximou-se cada vez mais.
As suas carícias eram carnais e pecaminosas, e Michelle desejou que elas nunca acabassem. Theo acariciou-lhe os braços, as costas e a nuca e ela sentiu-se envolvida num encantamento erótico tão intenso que o seu único pensamento se resumia agora a uma espécie de ladainha. Não pares. Não pares.
- Não faça isso.
Michelle falou em voz alta, um segundo depois de ele ter recuado.
Tremiam ambos.
- Não faça o quê? - murmurou ele com rispidez.
Ele estava ofegante. Ela sentia um contentamento arrogante, porque sabia qual era o motivo do mau humor dele, mas depois percebeu que estava a fazer o mesmo.
- Não faça o quê? - repetiu ele, beijando-a mais uma vez. Uma carícia suave e terna que a fez desejá-lo mais.
- Não sei.
- Isto está a descontrolar-se.
A testa dela estava encostada ao peito dele. Ao abanar a cabeça, Michelle tocou-lhe no queixo.
- E por falar em mãos...
- Sim?
Ele beijou-lhe o cimo da cabeça.
- Talvez fosse melhor mexer as suas.
- O quê?
- As suas mãos.
O tom dele era resoluto. Um suspiro. Depois:
- Oh, céus!
Foram necessários cinco segundos para Michelle se desembaraçar dos jeans dele. Tinha a face a arder quando deu meia-volta e saiu da sala. Ouviu-o rir ao subir as escadas.
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Agarrou no robe, foi para a casa de banho e despiu-se. Depois de abrir a torneira até ao fim, entrou na banheira e puxou a cortina com tanta força que a rasgou.
- Motivo número um. Ele vai deixar-me destroçada - disse ela entre dentes.
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CAPÍTULO 23
Faltava um quarto para as sete quando Theo e Michelle chegaram ao The Swan, e o bar estava animado. O parque de estacionamento estava quase cheio de carrinhas velhas e pickups ferrugentas com suportes para espingardas e autocolantes nos pára-choques. O autocolante preferido parecia ser Eu preferia ir à pesca, mas o que chamou a atenção de Theo foi a palavra Gator-Aid pintada em letras fluorescentes. Ao aproximar-se, viu o desenho de um crocodilo com um penso rápido, mas não percebeu o que significava.
Também reparou que não havia carros novos no parque. Se tivesse dúvidas de que se encontrava numa zona pobre, a prova estava ali. Algumas das pickups pareciam saídas de um armazém de sucata. Mas se ele aprendera alguma coisa em Bowen, era que as pessoas viviam com o que tinham.
- No que está a pensar? - perguntou ela, contornando uma carrinha cinzenta amolgada.
- Que a vida aqui deve ser dura - respondeu ele. - Mas sabe uma coisa? Não ouvi ninguém queixar-se.
- Pois não, nem ouviria. As pessoas são muito orgulhosas.
- Já lhe disse que está linda esta noite?
- com esta roupa velha?
A "roupa velha" era um vestido aos quadrados azuis e brancos com um decote em bico. Michelle levara vinte minutos a decidir-se e outros vinte a pentear-se. Usava o cabelo caído sobre os ombros, a emoldurar-lhe a face. Dera-se ao trabalho de encaracolá-lo de modo a que a ondulação parecesse natural. Em seguida, pusera blush para realçar os malares e um pouco de batom e de gloss. Quando percebeu que estava a escravizar-se à aparência - despira
207
e vestira três vezes o vestido - e que todos aqueles atavios eram para ele, parou.
- Quando alguém nos faz um elogio, devemos agradecer. Você está linda esta noite, com essa "roupa velha".
- Você gosta de fazer troça de mim, não gosta?
- Ah, ah!
Theo mentiu ao dizer que ela estava linda, mas não conseguiu exprimir por palavras o que sentiu quando ela descera as escadas. Veio-lhe à mente o termo "dinamite". Também poderia ter dito que ela estava de cortar a respiração, mas teve vergonha de pronunciar a única palavra que não lhe saía da cabeça. Requintada.
"Ela exultaria com este elogio", pensou ele. E o que se passava com ele? Silenciosamente, estava a ficar poético. Qual era a origem deste comportamento?
- É pecado fazer troça de alguém.
Theo abriu-lhe a porta, mas depois bloqueou-lhe o caminho enquanto lia o anúncio manuscrito na parede.
- Não admira que isto esteja tão cheio esta noite. A cerveja é à discrição.
Ela sorriu.
- A cerveja é sempre à discrição, desde que todos a paguem e não conduzam a seguir. As pessoas da terra sabem que é assim.
- Cheira bem. Vamos comer. Meu Deus, espero que não seja picante.
- Como é quarta-feira, pode comer peixe frito com batatas fritas. Tenho a certeza de que as suas artérias vão adorar...
- Ou?
- Batatas fritas com peixe frito.
- vou nessa.
Entraram e foram abrindo caminho, aos ziguezagues. Theo parou mais vezes do que ela. Vários homens e mulheres quiseram apertar-lhe a mão ou dar-lhe uma palmada no ombro quando ele passou e aparentemente todos desejavam falar de futebol.
A única pessoa que abordou Michelle foi um homem que lhe queria falar sobre as suas hemorróidas.
O pai estava na outra ponta do balcão, junto da arrecadação, a conversar com Conrad Freeland e Artie Reeves. Jake franzia o sobrolho e abanava a cabeça ao ouvir o que Conrad dizia e nem reparou na filha.
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Armand, o cozinheiro, trabalhava na cozinha e o irmão, Myron, servia ao balcão.
- O papá está a convencer o Myron a ajudá-lo - disse ela. Acho que posso tirar uma pequena folga.
- O seu pai está a acenar-nos.
Quando se aproximaram de Jake, ele levantou a bancada e correu para Michelle. Ela reparou no ar carrancudo de Artie e Conrad.
- Theo, porque não vai beber uma cerveja e sentar-se ao balcão enquanto eu tenho uma conversa particular com a minha filha?
Pelo olhar que o pai lhe deitou, Michelle percebeu que fizera alguma coisa que lhe desagradara. Foi atrás dele para a arrecadação e perguntou:
- Há algum problema, papá?
- Ele vai-se embora, Mike, e o problema é esse. Estive a falar com os rapazes, e chegámos à conclusão que não podemos permitir que isso aconteça. Esta cidade precisa de Theo Buchanan. com certeza que compreendes. A maioria das pessoas que cá veio esta noite apareceu especificamente porque quer falar com ele.
- Pretendem apoio jurídico gratuito?
- Algumas sim - admitiu Jake. - E depois, há aquele assunto da açucareira. Além disso, a época do futebol está a chegar.
- Papá, o que quer que eu faça? O homem vive em Boston. Não pode ir e vir todos os dias.
- Bem, evidentemente que não pode.
Jake sorriu ao imaginar Theo a apanhar o avião de um lado para o outro.
- E então?
- Pensámos que talvez conseguisses fazê-lo mudar de ideias, se te empenhasses nisso.
- Como? - perguntou ela.
Exasperada, pôs as mãos nas ancas e ficou à espera. Sabendo como o pai era calculista, percebeu que a sugestão dele, qualquer que ela fosse, seria um êxito. Cruzou os braços e ficou à espera.
- Recebe-o de braços abertos.
- O que quer isso dizer?
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- Eu e o Conrad arquitectámos um bom plano e o Arde acha que vai resultar. Segundo me contou o Conrad, o Theo disse-lhe que tu querias que ele ficasse em minha casa.
- É verdade.
- Que hospitalidade foi essa, Mike?
Michelle não sabia como ele conseguira, mas a verdade é que a pusera na defensiva.
- Estou a ser amável para com ele. A sério.
- Já lhe fizeste a tua sopa de quiabos com galinha?
- Não, mas...
- Ainda bem - disse ele. - Amanhã de manhã, a mulher do Conrad vai levar uma panela cheia de sopa a tua casa, às escondidas, e podes dizer que foste tu que a fizeste.
- Isso é desonesto - observou ela. Depois, percebeu o que estava nas entrelinhas. - Espera aí. Julguei que gostavas da minha sopa de quiabos com galinha.
Jake não desarmou.
- E o teu bolo de limão? Ainda não o fizeste, pois não?
- Não. - Michelle avançou para ele. - Aviso-te, papá. Se disseres "ainda bem", nunca mais te convido para jantar.
- Querida, este não é o momento mais indicado para melindres. Temos uma crise entre mãos e só nos restam dois dias para fazê-lo mudar de ideias.
- Nada o fará mudar de ideias.
- com essa atitude, decerto que não. Segue o plano que traçámos e não sejas tão negativa.
O pai estava tão entusiasmado que Michelle sentia-se mal ao tentar estragar-lhe a festa.
- É que...
Jake começou a falar ao mesmo tempo. :
- A Marilyn saiu mesmo agora.
- A mulher do Artie?
- Precisamente. Ela faz um bolo de chocolate que é uma delícia e vai fazer um esta noite. Amanhã ao meio-dia, o bolo está na tua cozinha.
Michelle não sabia se devia ficar ofendida ou se devia achar graça.
- Para o Theo julgar que fui eu que o fiz? Como é que eu teria tempo de fazer um bolo? Tenho passado o dia inteiro com
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ele e amanhã de manhã vou para a clínica para começar a organizar os processos.
- Não, não percebes o que eu quero dizer. A Marilyn vai deixar uni cartão de boas-vindas, para ele ver como todos são simpáticos. A Karen Crawford está a preparar lombo fumado com salada e também vai escrever um cartão amável, evidentemente. A mulher do Daryl não quer ficar de fora. Vai levar um tacho de feijão verde da horta dela.
- com um cartão amável - observou ela, cruzando os braços e franzindo o sobrolho.
- Nem mais.
- Nesse caso, porque devo fingir que fui eu que fiz a sopa de quiabos com galinha?
- Porque não quero que o Theo julgue que não sabes cozinhar.
- Eu sei cozinhar.
- Levaste-o ao McDonaWs.
Não foi um comentário; foi uma acusação.
De repente, o apreço que Michelle tinha pela frontalidade característica dos meios pequenos vacilou. Era óbvio que alguém dera com a língua nos dentes. De súbito, a grande cidade desagradável e impessoal não lhe pareceu tão nefasta.
- Foi ele que quis lá ir - argumentou ela. - Ele gosta do McDonaWs... E eu também. Eles têm umas saladas fabulosas.
- Estamos todos a tentar ser simpáticos.
Ela riu-se. Quando o papá, o Conrad e o Artie pensavam ao mesmo tempo, inventavam as ideias mais abstrusas. Pelo menos, esta não os levaria para a cadeia.
- E querem que eu também seja simpática
- Exactamente. Tu sabes do que estou a falar. Fá-lo sentir-se
lem casa, como se esta fosse a terra dele. Vai sair com ele e mostra-lhe
as vistas.
- Quais vistas?
- Michelle, vais colaborar ou não?
Jake estava a ficar irritado. Só a tratava por Michelle quando se sentia frustrado por causa dela. Michelle riu-se, embora soubesse que o pai não gostava, mas não
conseguiu conter-se. A conversa era uma loucura.
- Está bem - disse ela. - Já que isto é tão importante para ti, para o Conrad e para o Artie, vou colaborar.
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- É muito importante para os homens e as mulheres que trabalham na açucareira e para os rapazes da equipa de futebol. Devias ter ouvido o que o Conrad nos contou sobre o treino de hoje. Ele disse que o Theo pôs aqueles rapazes todos na ordem. E que o Theo percebe muito mais de futebol do que ele.
- Qualquer pessoa percebe mais de futebol do que o Conrad.
- O Theo sabe organizar os rapazes. Conquistou o respeito deles sem mais nem menos. - Jake fez estalar os dedos e abanou a cabeça. - Há muitos motivos pelos quais eu desejo que ele fique, mas sabes qual é o principal?
- Não, papá. Qual é?
Michelle já decidira que, se o pai respondesse que esperava que Theo casasse com ela e a tirasse das suas mãos, ela sairia do bar.
- Ele foi comprar uma vedação para oferecer ao filho do Daryl no dia dos anos. Hoje em dia, já não se encontram muitos homens tão atenciosos como o Theo. E pensa no dinheiro que essa vedação deve ter custado.
- Eu faço a minha parte, mas não tenhas muitas esperanças. O Theo vai para casa e nenhum de nós o fará mudar de ideias.
- Lá estás tu a ser negativa outra vez. Temos de dar tudo por tudo, não é verdade? Esta cidade precisa de um advogado competente e honesto, e o Theo Buchanan encaixa nisto.
Michelle concordou.
- Está bem. E se amanhã eu lhe fizer o meu estufado? Jake ficou aterrado.
- Oh, não, querida, não faças isso. Serve-lhe a sopa da Billie. Lembra-te que, para chegar ao coração de um homem, é preciso passar pelo estômago.
- Mas tu gostas muito do meu estufado, não gostas? - perguntou Michelle, desanimada.
Jake deu-lhe uma palmadinha nas costas.
- Tu és minha filha e eu adoro-te. Eu não podia dizer que não gostava.
- Sabes quanto tempo levo a fazer esse prato? Um dia inteiro - adiantou Michelle, antes que ele pudesse dar um palpite.
- Já podias ter dito que não gostavas.
- Não queríamos ferir os teus sentimentos. És tão meiga e sensível!
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- Francamente, papá, podias ter... Espera aí! Nós?
- Eu e os teus irmãos. Eles também te adoram, querida. És uma boa cozinheira em pratos simples, e os teus biscoitos ficam leves e fofos, mas agora temos de ofuscar o homem. Como eu ia dizendo, para chegar ao coração de um homem...
- Sim, eu sei... É preciso passar pelo estômago. Isso é conversa fiada, a propósito.
- Sim? Como é que julgas que a tua mãe me apanhou? Quando é que ela aprenderia que nunca levaria a melhor ao
pai, dissesse o que dissesse? Por fim, admitindo a derrota, respondeu:
- O célebre bolo que ela fazia.
- Exactamente.
- Não quero apanhar o Theo como a mamã te apanhou.
- Eu sei. A cidade é que quer apanhá-lo.
- Está bem, eu farei o meu papel, prometo. Agora, deixa ver se percebi bem. Fazer o meu papel implica que eu não cozinho, minto a respeito da sopa de quiabos com galinha e digo ao Theo que fui eu que a fiz e, oh, sim, devo ser simpática. Queres que eu lhe ponha um bombom debaixo da almofada esta noite?
O pai abraçou-a com força.
- Isso seria um exagero. Agora, vai sentar-te, que eu já vos levo o jantar, a ti e ao Theo.
Durante três horas, Michelle não teve um minuto de sossego. Depois de Theo acabar de jantar, ela pôs um avental e foi limpar as mesas e ajudar a servir canecas de cerveja fresca. Theo ficou sentado ao balcão, entre dois homens com uns papéis na mão. Formara-se uma fila atrás dele. Do outro lado do balcão, o papá fazia as apresentações.
"Mais apoio jurídico gratuito", pensou ela. Myron tinha desaparecido há mais de uma hora e, como o pai estava empenhado em tentar manipular Theo, ela encarregou-se do balcão.
Por volta das dez e meia, a cozinha estava limpa e encerrada, e os clientes eram muito menos. Havia apenas uma dúzia de pessoas no bar quando Michelle tirou o avental e se aproximou da jukebox. Inseriu na ranhura uma moeda de vinte e cinco cêntimos que tirara da caixa registadora, carregou no botão B-12 e sentou-se numa mesa de canto que acabara de limpar. Apoiou o cotovelo na mesa e encostou o queixo à palma da mão.
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Não conseguia tirar os olhos de Theo. O patife parecia tão sério e adorável com a t-shirt cinzenta e os jeans Porque havia de ser tão sensual? E porque não lhe encontrava ela algum defeito que a obcecasse e afastasse dele? Só pensava em ir para a cama com ele. Oh, céus, significaria isto que estava a tornar-se uma prostituta? O sexo seria fabuloso. Deixa de pensar nisso! Pensa noutra coisa!
Veio-lhe à mente outro pensamento ainda mais deprimente. Óptimo! Quando ele se fosse embora, a cidade acusá-la-ia. Oh, não diriam nada, mas todos pensariam que a culpa era dela. Que não fora suficientemente simpática.
Michelle perguntou a si própria o que diriam as pessoas se soubessem até que ponto ela queria ser simpática. Admite, raios! Estás a culpabilizar-te porque ele vai regressar a Boston e à sua vida tão sofisticada e queres que ele fique em Bowen. Para sempre.
Bem, com os diabos, como é que aquilo acontecera? Como é que pudera ser tão estúpida? De nada servira ter enumerado todos os motivos pelos quais não devia apaixonar-se
por ele? Evidentemente que não. Fora demasiado ingénua ao prestar atenção aos seus próprios conselhos. Era uma mulher forte. Então, porque não conseguira proteger-se
dele? Porque o amava? Oh, céus, e se o amasse?
Não é possível, concluiu ela. O amor não podia acontecer tão depressa... Ou podia?
Michelle estava tão embrenhada nos seus pensamentos que nem reparou que ele se aproximava dela.
- Até parece que perdeu a sua melhor amiga. Venha daí! Dance comigo.
Desaparece e deixa-me chafurdar na autocomiseração.
- Está bem.
Theo tirou uma moeda de vinte e cinco cêntimos da algibeira, inseriu-a na jukebox, disse-lhe que escolhesse a canção e Michelle accionou imediatamente o botão
A-1.
A música começou a tocar, mas só depois de ele a tomar nos seus braços é que ela percebeu que tinha cometido um grande erro. A última coisa de que precisava nesse
momento, vulnerável como estava e cheia de pena de si própria, era que ele lhe tocasse.
- Você está crispada. Descontraia-se - segredou-lhe ele ao ouvido.
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- Eu estou descontraída.
Theo empurrou-lhe a cabeça para o lado devagarinho e puxou-a para si até os corpos de ambos ficarem colados um ao outro. Oh, céus! Que grande, grande erro! Agora era demasiado tarde, pensou ela, encostando-se a ele e envolvendo-lhe o pescoço com os dedos.
- Adoro esta canção.
- Parece que a conheço, mas isso não faz sentido. Não costumo ouvir música country.
- É o Willie Nelson a cantar "Blue Eyes Cryin in the Rain". Ele acariciava-lhe o pescoço, atordoando-a.
- É uma linda canção. Gosto - disse ele. Michelle tentou afastar-se, mas ele não deixou.
- É uma canção triste - disse ela, apercebendo-se do antagonismo implícito nas suas palavras.
Ambos balançavam lentamente ao ritmo da música.
- É uma velha história - explicou ela.
- O que é?
Theo beijou-lhe o sítio sensível mesmo por baixo da orelha, o que lhe provocou pele de galinha. Michelle estremeceu. Ele tinha de saber o que estava a fazer-lhe.
Oh, céus, ela era mesmo pequena nas mãos dele.
- É sobre uma mulher que se apaixona por um homem. Ele deixa-a e ela está...
- Deixe-me adivinhar... A chorar à chuva?
Michelle detectou o riso na voz dele. A mão dele acariciava-lhe as costas.
- Porque é que ele a deixa?
- Porque é um grande idiota.
Só demasiado tarde é que ela percebeu que verbalizara o pensamento em voz alta. Acrescentou à pressa:
- É só uma canção. Estou apenas a adivinhar. Talvez fosse ela a deixá-lo e se sinta tão contente por se ter visto livre dele que esteja a chorar à chuva.
- Ora, ora.
Michelle aproximou-se mais. Os seus dedos descreviam pequenos círculos na nuca dele.
- Talvez seja melhor não fazer isso.
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- Não gosta? - perguntou ela, passando-lhe as mãos pelo cabelo.
- Sim, gosto. É por isso que quero que você pare.
- Oh!
Ela também sabia enlouquecê-lo. Esta constatação fê-la sentir-se um pouco imprudente.
- Então, talvez você não queira que eu faça isto - segredou ela, beijando-o no pescoço.
- Michelle, estou a avisá-la. Este jogo é a dois.
- Que jogo? - perguntou ela com ingenuidade. Depois, beijou-lhe outra vez o pescoço, tocando-lhe com a
língua. Sentiu-se um pouco atrevida. O papá estava na cozinha e ninguém lhes prestava atenção. Além disso, a figura corpulenta de Theo escondia a sua, o que a fazia sentir-se ainda mais imprudente. Agarrou-se mais a ele.
- Se você não gostar do que estou a fazer... O desafio não ficou sem resposta.
- Você é má - disse ele. Ela suspirou.
- Obrigada.
- Sabe do que eu gosto?
- De quê? - perguntou ela, sem fôlego.
- Gosto do seu cheiro. Quando me aproximo de si, o seu cheiro inebria-me e faz-me pensar em todas as coisas que eu gostaria de fazer.
Michelle fechou os olhos. Não perguntes. Pelo amor de Deus, não perguntes.
- Que tipo de coisas?
Até àquele momento, ela cometera a loucura de pensar que controlara a situação perante um mestre. Fora ela que iniciara o discurso erótico e sabia, pelo modo como ele a agarrava, que o abalara consideravelmente.
Mas depois ele começou a segredar-lhe ao ouvido, e ela percebeu que ficara numa situação incontrolável. Em voz baixa e rouca, ele disse-lhe exactamente o que gostaria que ela fizesse. Nas fantasias dele, ela era, evidentemente, a estrela, e todas as partes do corpo dela, incluindo os dedos dos pés, eram intervenientes activos. O homem era dotado de uma imaginação activa e desprovido de timidez. Michelle só podia culpar-se a si própria. Ela
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perguntara. Mas isso não tinha importância. Quando ele acabou de descrever vários modos criativos de fazer amor com ela, Michelle sentia o sangue a pulsar nos ouvidos, os ossos como se fossem uma papa e colara-se a ele.
A canção terminou. Ele beijou-a na face, endireitou-se e largou-a.
- Obrigado pela dança. Quer uma cerveja, ou outra coisa qualquer? Está um pouco afogueada.
Um pouco afogueada? Era como se a temperatura no interior do bar tivesse atingido cinquenta graus. Quando ela fitou os olhos dele, concluiu que ele sabia exactamente o que acabara de fazer-lhe.
- Isto está um pouco abafado. Acho que vou até lá fora apanhar ar fresco - anunciou ele com naturalidade.
Ela viu-o sair. Ele tinha acabado de abrir a porta e saído quando ela desatou a correr atrás dele.
- É isso!
Michelle apanhou-o lá fora, ao luar. Deu-lhe uma palmada nas costas e repetiu, dessa vez muito mais alto:
- É isso. Você ganhou. Ele virou-se para trás.
- Desculpe?
Michelle estava tão zangada que lhe deu um murro no peito.
- Eu disse que você ganhou.
- Está bem - respondeu ele tranquilamente - Eu ganhei o quê?
- Você sabe do que eu estou a falar mas, como estamos sozinhos, porque não o diz em voz alta? Este jogo que temos andado a disputar. Você ganhou. Sinceramente, eu julgava que me autodominaria, mas é óbvio que estava enganada. Não sou boa nisto, percebe? Por isso, você ganhou.
- O que ganhei eu exactamente?
- O sexo.
Theo ergueu o sobrolho.
- O quê?
- Você ouviu o que eu disse. Nós vamos fazer sexo, Theo Buchanan. Bolas, o que quero dizer é que vamos fazer sexo do melhor. Percebeu?
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Um sorriso demoníaco atravessou o rosto de Theo, seguido de uma expressão ausente e sonhadora. Estaria ele já a pensar em fazer amor, ou já não conseguia concentrar-se no que ela dizia?
- Michelle, querida...
- Você não está a prestar atenção, pois não? Quero fazer sexo consigo. Do perverso - acrescentou ela. - Você sabe ao que me refiro. O sexo ardente, suado, aquele em que rasgamos as roupas, em que não pensamos em nada, em que gritamos. Como na velha canção "Ali Night Long", você e eu, querido. Durante toda a noite. Diga quando e onde, e eu lá estarei.
Aparentemente, ela deixara-o sem fala. Esse poderia ser um começo. Afinal, talvez ela não fosse assim tão má nesse domínio. Theo ficou a olhar para ela com um sorriso desconcertante. De repente, Michelle sentiu-se emproada como um galo prestes a cantar.
Cruzou os braços e perguntou:
- Então? O que tem a dizer? Theo deu um passo na direcção dela.
- Michelle, gostava de apresentar-lhe um velho amigo meu, Noah Clayborne. Noah, esta é Michelle Renard.
Ele estava a representar. Ele só podia estar a representar. Michelle abanou a cabeça sem convicção. Theo baixou a dele. Ela abanou a cabeça outra vez e disse em
voz baixa:
- Oh, céus.
E fechou os olhos. Aquilo não podia estar a acontecer.
Michelle não queria virar-se. Queria volatilizar-se. Há quanto tempo estava ele ali? Ela sentiu a face a escaldar. Engoliu em seco e fez um esforço para se virar.
O homem estava ali, de facto. Alto, louro, com uns espantosos olhos azuis e um sorriso irresistível.
- Muito prazer em conhecê-lo - gaguejou ela, como se tivesse laringite.
Até se virar, não imaginara que a situação pudesse piorar. Estava enganada. O pai estava à porta, a poucos metros de Noah, suficientemente perto para ter ouvido o que ela dissera a Theo. Talvez não tivesse ouvido. Talvez tivesse acabado de chegar. Michelle ganhou coragem e olhou para ele. O papá parecia ter sido atingido por um raio.
Michelle inventou um plano à pressa. Limitar-se-ia a fingir que nada tinha acontecido.
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- Chegou agora? - perguntou ela, num tom descontraído.
- Ah-ah. com que então, Theo, as mulheres bonitas de Bowen são todas tão simpáticas? - perguntou ele com uma voz arrastada.
A porta fechou-se atrás do pai, que avançou para ela. Parecia mortificado.
- Quando te pedi que o "recebesses de braços abertos", julguei que tinhas percebido o que eu queria dizer. Podemos ser simpáticos ou excessivamente simpáticos, e eu ensinei-te a estabelecer a diferença.
- Papá, o Theo estava a namoriscar e eu limitei-me a corresponder à brincadeira dele.
- Eu não estava a brincar - disse Theo encolhendo os ombros.
í Precisamente um segundo depois, Michelle pisou-o com força.
; - Estava, sim - disse ela. - A sério, papá. Eu estava só... a
?implicar.
- Falamos disto mais tarde, menina - disse Jake, virando-se
voltando a entrar.
Depois, Noah meteu-se na conversa.
- O Theo estava a brincar? Você não está a falar a sério, pois não?
- Ele estava a namoriscar.
- Refere-se ao homem que está atrás de si, Theo Buchanan?
- Sim.
- Custa a crer. Não me parece que ele saiba namoriscar.
- Oh, ele é mesmo bom nisso. A sério - insistiu ela.
- Sim? Deve ser por sua causa, então. Eu estava a dizer ao Jake que é a primeira vez em cinco anos que vejo o Theo sem fato e gravata. Ele sempre foi um viciado no trabalho, desde que o conheço. Talvez você tenha despertado o perverso que há nele - disse Noah.
Michelle deu um passo atrás e chocou com Theo. Não tencionava fugir, mas não lhe agradava que ele lhe vedasse a passagem.
- Não se importam de mudar de assunto? - perguntou ela. Noah teve pena dela.
- Claro que não. O Theo disse-me que você é médica.
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- Sim, é verdade.
Ainda bem, ela estava de novo em terreno firme. Talvez Noah tivesse algum problema de saúde e precisasse da sua opinião. Céus, ela esperava que sim.
- Qual é a sua especialidade? ,
- Cirurgia - respondeu Theo. Noah sorriu.
- Você não é daquele tipo de jovens que brincam com facas?
- Foi ela que me operou.
Noah encolheu os ombros. Depois, deu um passo em frente.
- Dance comigo. Vamos escolher uma bela canção do Willie Nelson e conhecer-nos um ao outro.
Noah pôs-lhe o braço à volta do ombro e levou-a para dentro. Theo observou-os, com um ar carrancudo, nada satisfeito com aquela familiaridade. Noah era um mulherengo descarado. Fizera mais conquistas do que Genghis Khan, e Theo não gostava nada de o ver a arrastar a asa a Michelle.
Michelle animou-se.
- Gosta do Willie Nelson?
- Claro que gosto. Toda a gente gosta do Willie. Ela olhou para Theo.
- O seu amigo tem bom gosto. Depois, Noah chamou-lhe a atenção.
- Posso fazer-lhe uma pergunta?
Michelle estava tão agradecida por se ter livrado do embaraço que respondeu:
- Pode perguntar o que quiser.
- Eu estava a pensar...
- Sim?
- Existe outro tipo de sexo além do perverso.
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CAPÍTULO 24
Cameron sabia que tinha estragado tudo, mas não tencionava admiti-lo. Encostou-se à parede apainelada da biblioteca de John, cabisbaixo, enquanto Dalas e Preston o atacavam à vez.
- Na tua opinião, quanto tempo é que a médica levará a lembrar-se que te viu no funeral da Catherine? - perguntou Preston, saltando da cadeira.
Batendo com o punho cerrado na palma da outra mão, começou a andar de um lado para o outro.
- Ela não se lembra - respondeu Cameron falando por entre os dentes. - Eu não me aproximei dela no funeral. Além disso, estava farto de esperar e acho que o risco compensou.
Dalas explodiu.
- Como é que podes dizer uma coisa dessas, estúpido? Não recuperaste o envelope, e agora as pessoas andam à tua procura. Não vales nada, Cameron. É do álcool. Frita-te
os miolos.
Preston parou à frente dele.
- Agora puseste-nos a todos em risco.
- Vai-te lixar - gritou Cameron.
- Acalmem-se! - ordenou John. - Dalas, telefona ao Monk. Tens de ler-lhe esse relatório.
Monk estava sentado no seu SUV à espera que a médica e o amante saíssem do Swan. A viatura estava bem escondida entre duas carrinhas na parte de trás do parque de estacionamento. Havia quatro automóveis na fila à frente dele. A noite estava quente e húmida, mas Monk não ligou o ar condicionado. Abrira as quatro janelas e estava a ser devorado pelos mosquitos. Em comparação com o esconderijo no meio da vegetação, com os insectos
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a treparem-lhe pelas pernas enquanto vigiava a casa da médica, este local era um luxo.
Estava a pensar em telefonar a Dalas para lhe dar conta dos últimos desenvolvimentos, mas quando resolvera esperar até regressar ao motel, o seu telemóvel começou a vibrar.
- Está?
- O Buchanan é advogado. Monk levantou a cabeça.
- Repete, por favor.
- O filho-da-mãe trabalha para o Departamento de Justiça. Esperar o inesperado... Monk ganhou fôlego e esperou que
Dalas lesse o relatório. Em que maldito sarilho se metera o Clube da Sementeira? Monk ouvia vozes em fundo.
- Onde estás? - perguntou Monk.
- Em casa do John. Estamos todos aqui.
- Quem é que está a gritar?
- O Preston.
Monk ouviu mais alguém aos gritos. Admitiu que fosse Cameron. Ficou aborrecido. Pareciam ratazanas a lutar por um pedaço de carne. Se não estivesse em causa tanto dinheiro, abandonaria o caso. Cameron já se tornara uma causa perdida e, pela discussão que ouvia nesse momento, percebeu que os outros começariam a destruir-se dentro de pouco tempo.
- Não posso acreditar que não tenhas dado logo conhecimento do relatório - disse Monk. - Perdeste um tempo precioso.
- Tu disseste-me que ele era treinador de futebol... Não, tens razão. Não vou arranjar desculpas nem acusar-te. Eu devia ter feito o relatório muito mais cedo.
Monk ficou um pouco mais calmo por Dalas assumir a responsabilidade.
- Quando podes matá-lo? - perguntou Dalas.
- Deixa-me pensar - respondeu Monk. - Não gosto de pressas. Estas coisas levam tempo a planear e eu recuso-me a agir prematuramente. A espontaneidade gera erros. Mas se o teu relatório está certo...
- Está - respondeu Dalas, de chofre.
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- Então, talvez ele esteja em Bowen só por causa dela. Os homens cometem loucuras por...
Dalas interrompeu-o outra vez.
- Por uma gaja? Achas que depois de ele ter feito aquele discurso em Nova Orleães, fez tantos quilómetros só para ir para a cama com ela?
- Tu não a viste - disse Monk. - Ela é muito... linda. Uma beleza, de facto.
- Está bem, o que dizes é que esse tipo da Justiça foi aí só para a ver. Certo? O que eu quero dizer é que isso faz sentido, não faz? Ela opera-o, salva-lhe a vida, ele apaixona-se e, como tem de regressar a Nova Orleães de qualquer maneira, resolve meter-se no carro e ir a Bowen para fornicar com ela.
Monk fez um trejeito com a boca, desagradado com o vocabulário grosseiro de Dalas.
- Então, já reavaliaste a situação?
- Espera aí! O John está a dizer qualquer coisa - disse Dalas.
Monk aguardou com paciência. Ouviu Preston a discutir, abanou a cabeça e lembrou-se mais uma vez da quantia que estava em jogo.
- A médica tem de ser morta antes de se lembrar onde já viu o Cameron - disse Dalas. - O Buchanan tem recebido ameaças de morte, e portanto o John acha que podíamos fazer com que parecesse que alguém lhe tinha limpado o sebo.
- E a médica está com ele por acaso e atravessou-se no caminho?
- Exactamente - respondeu Dalas. - Amanhã, vamos a Bowen. Mantém a médica debaixo de olho até eu telefonar. E cuidado com o tal envelope.
- Evidentemente - respondeu ele com brandura. E, Dalas, só para que saibas, vou ler esses ficheiros antes de entregá-los.
- Continuas preocupado com a hipótese de estar lá o teu nome? Não está. Li duas vezes aquela maldita coisa. Quando isto acabar, reformas-te. Sabes isso, não sabes, Monk?
- Sei - respondeu ele. - Mas, tenho curiosidade de saber quanto dinheiro há nessa conta. Se for uma grande quantia,
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como calculo, acho que tenho direito a uma percentagem. Chama-lhe participação nos lucros, se quiseres, mas como estou a correr todos os riscos...
Dalas respondeu à exigência do ganancioso desligando-lhe o telefone.
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CAPÍTULO 25
Theo não era ciumento. Os adolescentes é que eram ciumentos e ele já tinha ultrapassado essa fase. No entanto, estava a ficar irritado. Michelle dançava com Noah, ria-se e era óbvio que estava a divertir-se. Theo estava sentado ao balcão, a tomar notas enquanto um homem lhe explicava o seu problema. Tinha comprado um automóvel usado com uma garantia de um mês. Pagara em dinheiro, tirara o automóvel do parque de estacionamento e, dois quarteirões mais à frente, um dos amortecedores caíra e o radiador explodira. Como ele recebera o automóvel há menos de meia hora, rebocou-o até ao parque de estacionamento e exigiu que lhe devolvessem o dinheiro. O vendedor explicou-lhe que a garantia só cobria os pneus e o motor. Além disso, sugeriu que, quando ele voltasse a comprar um automóvel, lesse o documento de compra antes de assiná-lo.
Michelle riu-se outra vez, o que chamou a atenção de Theo. Ele adorava o som da voz dela e, pelo modo como Noah sorria, Theo calculou que também o amigo estivesse encantado.
Virando-se mais uma vez para o homem sentado ao seu lado, tentou concentrar-se. Ao olhar para o par pela centésima vez, Noah tinha despido a t-shirt e mostrava a Michelle uma cicatriz feia que tinha no peito.
Theo disse por entre os dentes:
- Basta.
Largou a caneta em cima do balcão e resolveu acabar com a dança.
- Estás a tentar impressionar a Michelle com os teus buracos de bala?
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- Já a impressionei com a minha inteligência e o meu charme - respondeu Noah.
Ela abanou a cabeça.
- Você teve muita sorte. Essa bala podia tê-lo matado.
- Tive mesmo sorte - reconheceu Noah. - Deus estava a velar por mim, suponho - disse ele. Depois, riu-se. - Eu estava na igreja quando fui alvejado.
Michelle julgou que ele estava a brincar.
- Adormeceu durante o sermão e enfureceu o padre?
- Mais ou menos.
- O papá vai gostar de ouvir essa história - disse ela. Onde está ele?
- Está na cozinha a fazer sanduíches - respondeu Theo.
- Não é possível que você esteja com fome depois de ter comido o peixe frito.
- Ele é que ofereceu, disse que também ia comer uma. Também está a fazer uma para o Noah.
Pensando em ajudar o pai, Michelle contornou o balcão e foi para a cozinha. Ouviu Noah a dizer:
- A propósito, Theo, vê lá se queres dar uma olhadela à folha de assinaturas para o torneio de sábado. Está ali pregada à parede.
- Para quê?
- Foste eliminado.
- Não pode ser.
Theo recusou-se a acreditar... Até olhar. O seu nome fora riscado e por cima estava o de Noah.
Michelle estava na cozinha. O pai entregou-lhe um prato de papel com uma sanduíche dupla de peru a nadar em maionese e um grande monte de batatas fritas cheias de gordura. Pegou num prato igual e pô-lo em cima da bancada.
- Se o Theo ficar cá mais duas semanas, terei de implantar-lhe um bypass - disse ela. - Estás a matar o homem com amabilidades.
- A carne de peru não nos faz mal. Tu própria o disseste.
- O que faz mal é um frasco de maionese - disse ela. E nessas batatas fritas há meio litro de óleo.
- Por isso é que sabem bem. Virando-lhe as costas, Jake gritou:
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- Rapazes, aqui têm o vosso petisco. Fiz as sanduíches sem o meu molho picante para churrasco, Theo, não se preocupe.
Noah e Theo observavam a lista. Michelle deu uma cotovelada ao pai e segredou-lhe:
- Trocaste o Theo pelo Noah como teu parceiro no torneio? Jake sentiu-se culpado.
- Querida, fui obrigado a isso. Incrédula, ela perguntou:
- Porquê? Mas que amizade é essa? Fazer uma promessa e depois não a cumprir?
- Eu estava a ser prático.
- O que quer isso dizer? Michelle seguiu-o até à cozinha.
- Embrulha a minha sanduíche, Mike, que quero levá-la pa-
ra casa.
Michelle foi buscar folha de alumínio e fez o que o pai lhe pediu.
- Ainda não me respondeste - lembrou ela. Jake encostou-se à bancada e cruzou os braços.
- Na minha opinião, temos mais hipóteses de ganhar se formos quatro em vez de dois a tentar arrecadar o prémio, e o Noah tencionava convencer-te a seres o parceiro dele. Não me pareceu que o Theo ficasse satisfeito e por isso disse ao Noah que eu seria o parceiro dele. Assim, tu e o Theo podem passar o dia juntos. Devias ficar contente por seres incluída.
Ele era exasperante.
- Por outras palavras, isso significa que achas que o Noah é melhor?
- Ele disse que tem pescado muito nos últimos quatro anos, mas não foi por isso que o escolhi - apressou-se ele a acrescentar, assim que viu um lampejo de obstinação no olhar da filha.
- Não há motivo nenhum para fazer disto um problema. Devias agradecer-me por eu defender os teus interesses.
- Não quero ir à pesca no sábado. Tenho centenas de outras coisas para fazer.
- Podias ganhar o prémio. Toda a gente sabe que pescas melhor do que eu.
Michelle não se deixava convencer.
- Isso não é verdade e tu bem sabes. Estás a armar-te em casamenteiro? É por isso que queres que seja a parceira do Theo?
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- Depois das palavras que te ouvi? Não é preciso eu ser casamenteiro. Tu estás a sair-te muito bem.
- Papá, eu estava a brincar... Jake fingiu que não tinha ouvido.
- Talvez o Noah esteja a representar esse papel. Ele disse-me que nunca viu o Theo a comportar-se como se comporta contigo.
Esta observação não caiu em saco roto. Jake abanou a cabeça e em seguida foi buscar leite ao frigorífico. Encheu um copo e bebeu um bom gole.
- Como é que o Theo se comporta? - perguntou ela.
- O Noah diz que ele sorri muito. Fiquei com a sensação de que isso é raro.
- O homem está de férias. Por isso é que sorri. Dói-te o estômago? Só bebes leite quando apanhas uma indigestão.
- O meu estômago está óptimo - respondeu ele com impaciência, e foi direito ao assunto. - E a respeito do Theo, arranjas uma justificação para tudo. Então, explica-me uma coisa. Porque não tira ele os olhos de ti? O Noah reparou e até me chamou a atenção.
Antes que Michelle pudesse argumentar, ele acrescentou:
- Sabias que o Noah trabalha para o FBI? E usa uma arma, como o Theo. Vi-lha agarrada ao cinto. Só te digo que o Theo tem amigos muito influentes.
Jake acabou de beber o leite e pôs o copo no lava-louças. Quando se virou e a luz intensa do tecto incidiu nele, Michelle reparou que o pai tinha um ar cansado.
- Porque não vais para casa? Eu e o Theo fechamos o bar.
- Eu consigo dar conta do recado.
- Eu sei que consegues, mas os dois próximos dias vão ser muito agitados. As pessoas passam por aqui para assinar, entram e comem, e bem sabes que à quinta e à sexta-feira há muito movimento. Vai para casa, papá. Deita-te e descansa.
- Tu também precisas de descansar. Tens de começar a tratar daqueles papéis na clínica.
- vou ter ajuda.
- Ainda bem - disse ele. - Estou cansado e vou para casa. Vocês os dois fecham isto.
Jake inclinou-se e beijou a filha na face.
- Até amanhã.
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Abriu a porta das traseiras e voltou a fechá-la.
- Oh, esqueci-me de te dizer que o Ben Nelson telefonou à tua procura. Ainda não tem novidades nem suspeitos, mas vai estar atento caso aconteça mais alguma coisa
grave. Ora, pergunto-te, achas que isto é coisa que se diga a um pai? Fiquei muito preocupado por tua causa, mas depois lembrei-me que o Theo está contigo. Corre
os ferrolhos esta noite. - Jake voltou a abrir a porta e saiu. - É reconfortante - disse ele.
- O que é reconfortante?
- Saber que o Theo está lá contigo.
Michelle baixou a cabeça em sinal de concordância. Era reconfortante. Trancou a porta, apagou a luz e voltou para o bar. Theo e Noah tinham levado os pratos para uma das mesas redondas e estavam a comer as sanduíches.
Um dos clientes habituais queria beber mais um copo. Michelle reparou no olhar turvo do homem e perguntou:
- Vai de carro para casa, Paulie?
- A Connie vem buscar-me depois de acabar o turno na fábrica. Esta noite, é a minha motorista particular.
- Então, está bem - disse ela, sorrindo.
Encheu mais uma caneca de cerveja, reparou que o ambiente estava abafado e ligou a ventoinha de tecto. Ainda havia cinco clientes no Swan. Michelle certificou-se de que estavam todos satisfeitos, encheu dois copos altos de água gelada e levou-os para a mesa de Noah e Theo.
Theo puxou uma cadeira.
- Sente-se ao pé de nós.
Michelle deu água a Noah, sentou-se no meio dos dois homens e pôs o copo de Theo em frente do prato.
- Espero que não se importe, mas disse ao papá que fosse para casa, o que quer dizer que tenho de fechar o bar esta noite
- disse ela.
- É tão engraçado que você trate o seu pai por "papá". É uma característica do Sul? - perguntou Noah.
- É uma característica dos Renard - respondeu ela. Noah tinha acabado de meter a última batata frita na boca e
de empurrá-la com um bom gole de água, quando ela lhe perguntou se queria ir à clínica para ver os estragos.
- Já lá estive. Acho que o Theo tem razão. Aquilo não foi obra de miúdos. Foi feito só por uma pessoa. E quem quer que
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foi andava desesperadamente à procura de alguma coisa. Reparou na secretária? A fechadura foi destruída. Alguém levou muito tempo a arrombá-la.
- A Michelle admite que tenha sido um doente do Robinson que tentou roubar o seu processo.
- Mas um doente não pode pedir o seu processo? - perguntou Noah.
- Pode pedir uma cópia do processo, mas eu fico com o original - respondeu Michelle.
- Duvido que fosse um doente. As fichas dos doentes são confidenciais. Toda a gente sabe. O que consta das fichas é confidencial. Porque chegaria um doente ao extremo
de destruir tudo? Se ele quisesse o seu processo, bastaria arrombar a porta e tirá-lo de uma daquelas caixas. Não, não creio que fosse um doente, mas o que diz o
Robinson? Ele tinha doentes chá... Difíceis?
- Ainda não respondeu ao meu telefonema - disse Michelle. - Amanhã de manhã, tento outra vez. Ele mudou-se há pouco tempo para Phoenix e talvez ainda esteja a instalar-se.
- Porque não dá o número do telefone ao Noah e não deixa que seja ele a falar? - sugeriu Theo. - As pessoas costumam prestar atenção quando é o FBI a telefonar.
E, mesmo nos meus piores dias, não consigo ser tão contundente como ele.
É melhor do que eu nos métodos de coacção.
- Isso é verdade - disse Noah, trocista. Virando-se para Michelle, disse: - Já vi o Theo a fazer chorar homens adultos. Foi estranho, aliás... Ver um assassino sem
coração, que por acaso é o chefe de uma organização criminosa, a chorar como um bebé.
- Ele está a exagerar - disse Theo.
- Não, não estou - disse Noah. - Mas é verdade que o cidadão comum não sabe o que fazem os advogados do Departamento de Justiça. Pensando nisso, não tenho a certeza se eu sei. Além de pores os criminosos a chorar, o que fazes exactamente, Theo?
- Não fazemos grande coisa - respondeu ele secamente. Bebemos muito...
- Já é alguma coisa.
- E tentamos inventar coisas para vocês fazerem.
- Não duvido.
Virando-se para Michelle, Noah acrescentou:
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- Estes advogados preguiçosos obrigam os dedicados agentes do FBI a trabalhar no duro.
Theo sorriu.
- Chama-se a isso delegar. Fazemo-lo para que os insignificantes não se sintam postos de parte.
Começaram ambos a trocar insultos, alguns dos quais hilariantes. Muito divertida, Michelle recostou-se na cadeira e descontraiu-se. Quando a conversa voltou a incidir na clínica, ela disse:
- Não vou preocupar-me mais com isto. Tenho andado a exagerar.
- Porquê? - perguntou Theo.
- Fiquei tão acagaçada ao ver aquela confusão que convenci-me de que andavam a seguir-me. Sabe qual é a sensação? É difícil explicar.
- Se eu estivesse no seu lugar, não ignorava essa sensação.
- Mas ninguém anda a seguir-me - insistiu ela. - Eu teria dado por isso... Não teria?
- Não, se a pessoa for boa nisso - respondeu Noah.
- Esta comunidade é muito pequena. Os desconhecidos dão nas vistas.
- Sim? E se for um homem a guiar uma carrinha com o logotipo de uma empresa de cablagens, por exemplo? Daria nas vistas? E todos aqueles homens e mulheres que vêm cá pescar? Se viessem vestidos de pescadores e trouxessem uma cana, você não acharia que eles eram de cá?
Michelle levantou-se.
- Compreendo o seu ponto de vista e agradeço que se tenha dado ao trabalho de ir à clínica, mas creio que isto foi um acidente isolado.
- E essa crença baseia-se em quê? - perguntou Theo. No seu próprio desejo de que seja assim?
Michelle ignorou o sarcasmo.
- Estamos em Bowen - disse ela. - Se alguém tivesse um problema comigo, dir-mo-ia na cara. Agora que tenho tempo para pensar nisso, só comecei a assustar-me depois de ver a clínica. Exagerei. Lembro-lhe - apressou-se ela a acrescentar quando lhe pareceu que ele ia interrompê-la - que não aconteceu mais nada.
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Virando-se para Noah, Michelle disse:
- Agradeço-lhe por ter vindo a Bowen.
- Não tem de me agradecer - disse Noah. - Para ser sincero, só fiz o favor para receber um favor. O Theo prometeu regressar a Biloxi comigo. Vai dar uma palestra em meu nome, caso contrário eu teria de atravessar o país. Ainda tenho de acabar o programa de formação, mas pelo menos não tenho de escrever um discurso.
- Quando tem de voltar?
- Segunda-feira.
- Oh!
Michelle virou a cara para o lado antes que eles se apercebessem do seu desapontamento. Noah viu-a afastar-se.
- Livra, Theo, ela é o máximo! Se ficássemos por cá mais algum tempo, eu recompensava-te. Sempre fui doido por ruivas.
- Tu és doido por qualquer coisa que use saias.
- Isso não é verdade. Lembras-te do caso Donovan? Patty Donovan sempre usou saias e nunca me impressionou.
Theo arregalou os olhos.
- Patty era um travesti. Nunca impressionou ninguém.
- Tinha umas boas pernas. Reconheço - gracejou Noah.
- Diz-me uma coisa. O que há entre ti e a Michelle?
- Nada.
- Isso é uma vergonha.
- Nunca me disseste qual é o tema da palestra que vou fazer
- disse Theo, esperando que Noah mudasse de assunto. Qual é?
Noah sorriu.
- A gestão da raiva. Theo riu-se.
- Isso foi uma brincadeira do teu chefe.
- Claro que foi - respondeu Noah. - Conheces o Morganstern. Tem um sentido de humor tortuoso. Obriga-me a dar o programa de formação para me castigar.
- O que farias?
- Nem queiras saber. - Noah calou-se e depois acrescentou: - O Morganstern precisava de uma pessoa como tu.
- Ah, finalmente revelas o que se esconde por detrás das tuas palavras. O Pete pediu-te para falares comigo?
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Noah encolheu os ombros.
- É possível que ele se tenha referido...
- Diz-lhe que não estou interessado.
- Ele gosta do modo como a tua mente funciona.
- Não estou interessado - confirmou Theo.
- Sentes-te feliz onde estás? Theo abanou a cabeça.
- Estou farto. Completamente farto - disse ele. - vou regressar, resolver os assuntos pendentes e apresentar a minha demissão.
Noah ficou estupefacto.
- Não estás a brincar, pois não?
- Não, não estou a brincar. É tempo... Acabou.
- Então, o que vais fazer?
- Tenho duas ideias.
- Alguma delas tem a ver com cabelos ruivos?
Theo não respondeu. Antes que Noah pudesse insistir na pergunta, um homem aproximou-se da mesa e perguntou a Theo se podia falar-lhe acerca de um problema jurídico.
- com certeza - respondeu Theo. - Vamos sentar-nos ao balcão.
Levantou-se, ginasticou os ombros e foi buscar uma cerveja atrás do balcão.
- Em que posso ajudá-lo? - perguntou ele ao homem. Cinco minutos depois, Theo estava com vontade de lhe dar
um murro. Noah reparou na expressão de Theo e foi ver o que se passava. Ouviu Theo dizer:
- Não foi o Jake que lhe disse para vir falar comigo, pois não?
- Não, mas ouvi dizer que o senhor ajuda pessoas que têm problemas jurídicos.
- Qual é o problema? - perguntou Noah. Abriu uma garrafa de cerveja de gargalo comprido, deitou a cápsula para o lixo e aproximou-se de Theo.
- Este é o Cory - disse Theo. - Tem dois miúdos. Um rapaz e uma rapariga.
Noah olhou de soslaio para o homem, que tinha um aspecto desagradável. Mais parecia um adolescente encardido que um pai de dois filhos. Cory era louro e o cabelo sujo caía-lhe sobre os olhos; os dentes eram amarelos e manchados.
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- Que idade tem você? - perguntou Noah.
- Faço vinte e dois anos para o mês que vem.
- E já tem dois miúdos?
- É verdade. Divorciei-me da Emily há seis meses porque conheci outra mulher que me agradou. Ela chama-se Nora, e nós queremos casar. Eu saí de casa, mas a Emily acha que eu devo continuar a pagar o sustento dos filhos e isso não me parece justo.
- Então, você quer que eu o ajude a arranjar uma maneira de não pagar a pensão de alimentos aos seus filhos?
- Pois, é isso mesmo. É o que eu quero. Agora, eles são os filhos dela. Vivem com ela e eu, como disse, estou pronto para me pôr a mexer.
ê músculo facial de Theo retesou-se. Michelle estava à porta da cozinha, com uma caneca vazia na mão. Ouvira a conversa e percebeu pelo rnodo como Theo endireitara as costas que ele estava furioso.
Theo conservou um tom de voz suave e agradável e disse a Noah:
- O Cory está pronto para se pôr a mexer.
- E tu estás pronto para que ele se ponha a mexer? - perguntou Noah, pousando a garrafa de cerveja em cima do balcão.
- Claro que estou - respondeu Theo. Noah sorriu.
- Deixa-me ser eu.
- Podes encarregar-te da porta.
Michelle avançou, mas depois parou. Theo foi tão rápido que ela ficou admirada. Estava a sorrir para Noah e, no momento seguinte, contornou o balcão, agarrou Cory pelo colarinho e pelo fundilho dos jeans e começou a arrastá-lo. Noah foi a correr à frente, abriu a porta
e afastou-se para que Theo atirasse o homem lá para fora.
- É a isto que eu chamo pôr-se a mexer - disse Noah com uma voz arrastada, fechando a porta do bar. - O patifezito!
- É mesmo.
- Sabes o que me surpreende? Que um homem tão feio consiga convencer duas mulheres a dormirem com ele.
Theo riu-se.
- Gostos não se discutem, acho eu.
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Quando os dois amigos se dirigiam para o balcão, a porta abriu-se outra vez e entraram três homens de rompante. O último a entrar parecia um gorila que já levara muitos murros na cara. O homem era enorme, tinha pelo menos um metro e oitenta de altura, e percebia-se que já partira o nariz várias vezes. Tinha um ar assustador e perverso e trazia um taco de beisebol na mão.
- Qual de vocês é o idiota do Theo Buchanan?
Noah já se tinha virado. Não tirou os olhos do taco de beisebol. Michelle viu-o pôr a mão atrás das costas e abrir o coldre.
O bar esvaziou-se. Até Paulie, que nunca fora conhecido pOr fazer nada à pressa, saiu pela porta da frente em menos de cinco segundos.
- Michelle, vá para a cozinha e feche a porta - disse Theo antes de se virar. - O Theo Buchanan sou eu. E qual de vocês é o Jim Carson?
- Eu - respondeu o mais baixo dos três. Theo abanou a cabeça.
- Estava à espera que você aparecesse.
- Quem é que você julga que é? - perguntou Jim, agastado.
- Já lhe disse quem sou. Estava distraído?
- Um chico esperto, hem? Julga que pode congelar a minha conta no banco e impedir-me de tirar de lá um cêntimo? Julga que pode fazer isso?
- Foi isso mesmo que eu fiz - respondeu Theo tranquilamente.
Jim Carson era parecido com o irmão. Era baixo, atarracado, com uns olhos demasiado perto um do outro numa cara de lua cheia. Mas não sorria como o irmão. Enquanto Gary transpirava hipocrisia, Jim era o mestre da grosseria. com um ar ameaçador, deu mais um passo na direcção de Theo e brindou-o com uma série de blasfémias e obscenidades.
Depois, disse:
- Você vai arrepender-se por se ter metido na minha vida. Eu e o Gary vamos fechar a fábrica e depois esta cidade lincha-o.
- Se eu estivesse no seu lugar, teria cuidado com a língua. Há quanto tempo andam vocês a dizer aos vossos empregados que estão à beira da falência? Imagine como as pessoas ficarão... desgostosas quando souberem qual é o vosso lucro anual e quanto é que vocês meteram ao bolso.
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- As informações sobre os nossos activos são confidenciais
- gritou Jim. - Você pode saber quanto dinheiro temos, mas é um forasteiro que está a tentar arranjar problemas, e se contar isso a alguém, ninguém acreditará em si. Ninguém!
- As pessoas tendem a acreditar no que vem no jornal, não é verdade?
- O que está você a dizer?
- Escrevi um pequeno editorial que vai sair no jornal de domingo. É claro que eu quero ser o mais rigoroso possível. Acho que vou enviar-lhe uma cópia amanhã, por faxe. Pessoalmente, acho que é do melhor que tenho escrito. Fiz uma lista de todo o dinheiro que vocês depositaram nas vossas contas nos últimos cinco anos.
- Você não pode fazer isso! É confidencial! - disse Jim, já aos berros.
Theo olhou para Noah.
- Sabes, eu devia ter acrescentado os juros dos últimos cinco anos. Acho que ainda vou a tempo.
- Você está tramado, Buchanan! Não vou permitir que arranje mais sarilhos.
Jim estava tão zangado que tinha a testa coberta de suor. O homem espumava, e era evidente que o facto de Theo não se deixar impressionar o enfurecia ainda mais.
- Eu ainda agora comecei, Jim. Quando acabar consigo e com o seu irmão, os empregados tomarão conta da fábrica. O processo vai ser rápido. E vocês dormirão ao relento. Prometo.
- Você quer baixar esse taco de beisebol? - perguntou Noah ao gorila, cujo nariz ocupava uma parte substancial da cara grosseira.
- Merda, não! Não o baixo enquanto não o usar. Não é verdade, Mr. Carson?
- É sim, Contente. Theo riu-se.
- Contente?
- Vivemos num mundo estranho - observou Noah.
- Mandaram-me partir as pernas do Buchanan com este taco e é isso que vou fazer. Também vou aleijar-te - disse ele a Noah. - Por isso, é melhor não te rires de mim porque vais arrepender-te.
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Noah tinha agora o terceiro homem debaixo de olho. Era alto como um gigante, mas muito magro e com umas grandes orelhas em forma de couve-flor. Os dois capangas tinham aspecto de arruaceiros, mas na opinião de Noah a verdadeira ameaça residia no Couve-Flor. Talvez ele trouxesse uma arma escondida. Oh, sim, ele é que poderia dar-lhe que fazer e aparentemente era o elemento surpresa que o Jimmy trouxera, no caso de Contente não conseguir dar conta do recado.
O brigão batia com a extremidade mais grossa do taco de beisebol na palma da mão. O ruído seco irritou Noah.
- Pousa o taco! - ordenou-lhe ele.
- Só depois de te partir uns ossos.
De repente, Noah sorriu. Parecia que tinha ganho a lotaria.
- Ó Theo, sabes uma coisa?
- O quê?
- Eu diria que as observações do Contente são ameaças. Não achas que são ameaças? Tu deves saber, porque és advogado do Departamento de Justiça e eu sou um modesto agente do FBI. Aquilo eram ameaças. Não achas?
Theo percebeu exactamente qual era o plano de Noah. Queria que os homens soubessem quem eles eram para não poderem dizer que não tinham sido informados quando fossem presos.
- Pois, acho que sim.
- Ouve lá, ó chico esperto - disse Jim, dirigindo-se a Noah. - Se te meteres no meu caminho, também vou gostar de te aleijar - disse ele, espetando o dedo à frente da cara de Noah.
Noah não lhe prestou atenção.
- Talvez seja preferível que um deles nos agrida - sugeriu ele a Theo. - Cairia melhor no tribunal.
- Posso tratar disso sem ser agredido. A menos que tu queiras ser agredido.
- Não, não quero. Só estava a dizer...
- Achas que isto é uma brincadeira, garoto?
Jim estava aos berros. Avançou mais um passo, tocou no ombro de Noah e disse:
- Eu tiro-te esse sorriso da cara, meu filho da...
Não pôde concluir a ameaça. Noah foi tão rápido que Jim nem teve tempo para pestanejar. Mas, mais uma vez, pestanejar estava fora de questão. O homem deu um grito, ficou imóvel e
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fitou Noah com um olho arregalado. O cano da Glock de Noah estava encostado à pálpebra do outro olho.
- O que ias dizer sobre a minha mãe? - perguntou Noah baixinho.
- Nada... Absolutamente nada - gaguejou Jim. Contente descreveu um semicírculo com o taco, e Couve-Flor
rodou nos calcanhares e meteu a mão no casaco.
O estalido bem audível de uma pistola a ser carregada ecoou no Swan. O som atraiu a atenção de todos os presentes.
Noah mantinha a arma encostada à cara de Carson e olhava para trás. Michelle, junto do balcão, tinha uma espingarda apontada a Couve-Flor. Theo avançou e tirou a arma do cinto do criminoso. Depois, olhou para Michelle.
- Pedi-lhe que fosse para a cozinha.
- Sim, eu ouvi.
Couve-Flor tentou agarrar na sua arma.
- Eu tenho licença. Devolva-me a arma.
- Mas que comentário tão estúpido - disse Theo por entre os dentes. Couve-Flor investiu. Theo virou-se, cerrou o punho e atingiu-o mesmo por baixo da maçã-de-adão. O homem desequilibrou-se e, ao virar, Theo agrediu-o na nuca. Couve-Flor caiu redondo no chão. - Não suporto gente estúpida.
- Eu ouvi - disse Noah. - Jim, ver-me-ei obrigado a dar-lhe um tiro se o Contente não pousar já aquele taco.
- Obedece, Contente!
- Mas, Mr. Carson, disse-me para...
- Esquece o que te disse. Larga o taco!
Jim tentou afastar-se da arma, mas Noah foi atrás dele.
- Vire isso para outro lado. Não quero que você me deixe os miolos à mostra.
- Partindo do princípio que você tem miolos - disse Noah.
- Não tenho a certeza disso. O que esperava ao vir aqui com os seus capangas? É tão empertigado que nem pensou nas testemunhas? Ou é estúpido?
- Eu fiquei furioso... Eu não estava a pensar... Eu só queria...
Jim deixou de gaguejar assim que Noah afastou a pistola. Então, tentando recuperar o tempo perdido, começou a pestanejar furiosamente.
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- O Harry está morto? - perguntou ele. - Se você matou o Harry...
.- Ele ainda respira - respondeu Noah. - Não me obrigue a repetir-me, Contente. Largue esse taco!
Contente mostrou um verdadeiro descontentamento ao atirar o taco para cima da mesa ao lado. Como não podia partir as pernas a ninguém, resolveu fazer estragos. Depois, talvez Jim Carson ainda lhe pagasse. O taco de beisebol bateu na ponta da mesa, fez ricochete e atingiu-lhe o pé. O homem soltou um gemido e começou a andar aos saltos como se brincasse ao pé-coxinho.
Theo entregou a arma de Harry a Noah e esfregou os nós dos dedos.
- Senta o Jim na cadeira - disse ele, antes de encaminhar-se para o balcão. Olhou para Michelle.
- Michelle, o que diabo faz você com uma espingarda de canos serrados na mão? Pouse isso antes que aleije alguém. - Em seguida, aproximou-se mais dela e reparou nas modificações que a arma tinha sofrido. - Onde arranjou isto?
- É do papá.
- Muito bem - disse ele, tentando não perder a paciência.
- Onde é que o papá a arranjou?
De repente, agia como um advogado do Departamento de Justiça e fazia-a sentir-se como se a criminosa fosse ela.
- O papá nunca deu um tiro com ela. De vez em quando, mostra-a, quando acha que pode haver uma rixa no bar.
- Responda à minha pergunta.
- Foi o John Paul que a ofereceu ao papá para ele se defender. Ensinou-nos a ambos a usá-la.
- Vocês não podem ter uma arma dessas. É ilegal.
- Eu vou pô-la de parte.
- Não, você vai entregá-la ao Noah, que ele trata disso. Theo tirou-lhe a espingarda da mão. - Esta coisa pode abater um rinoceronte a cem metros de distância.
- Ou um crocodilo - observou ela.
- Pois. Tem havido muitos crocodilos à luta no bar nos últimos tempos?
- Não, evidentemente que não, mas...
- Sabe quantos anos é que o seu pai podia apanhar por causa disto?
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Michelle cruzou os braços.
- Nós em Bowen fazemos coisas diferentes. ..;.
- Que eu saiba, Bowen faz parte dos Estados Unidos, o que significa que vocês obedecem às mesmas leis. Onde é que o seu irmão arranjou uma coisa destas?
- Não se atreva a pensar em arranjar problemas ao meu irmão, Theo. Ele é um homem simpático, amável e sensível, e não permitirei que você...
Theo não estava com disposição para ouvir um testamento excitado.
- Responda à minha pergunta!
- Não sei onde ele a arranjou. Pelo que sei, foi ele que a fez e, se você levar esta, o John Paul dará outra igual ao papá.
A pálpebra de Theo estremeceu. Michelle sabia que estava a aborrecê-lo, mas não se ralou muito com isso nesse momento. O que havia o papá de fazer quando as coisas se descontrolavam no Swan? Esfregar as mãos enquanto lhe destruíam o bar? Além disso, o pai não seria capaz de alvejar ninguém, mas o som da espingarda a ser engatilhada era sempre suficiente para desencorajar os mais exaltados.
- É assim que as coisas funcionam por aqui.
- O seu pai e o seu irmão estão a infringir a lei.
- A espingarda é minha - anunciou ela então. - Fui eu que a fiz e que a pus debaixo do balcão. O papá nem sabe que ela lá está. Não hesite. Prenda-me.
- Não é decente mentir a um funcionário do Departamento de Justiça, minha linda.
- Não me esquecerei.
- E onde é que o seu irmão aprendeu a manejar armas como esta?
- Ele não gosta de falar nisso, mas uma vez disse ao papá que fazia parte de uma equipa especial dos fuzileiros.
- Especial? Não brinque comigo!
- Não é o momento adequado para falar sobre a minha família, e por outro lado isso não é da sua conta.
- Ai isso é que é.
- Porquê?
Theo aproximou-se mais e encurralou-a junto do balcão. Inclinou-se até ficar a menos de três centímetros dela e disse em voz baixa:
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- Não me desafie!
Não foram precisos mais de cinco segundos para ele perceber que não sairia vencedor. Ela não se deixava intimidar, pelo menos por ele. Manteve-se firme e enfrentou-o. Por muito difícil que fosse admiti-lo, Theo percebeu que teria de ser ele a recuar. Era a primeira vez que tal lhe acontecia, o que não era agradável.
- Quer que eu chame a polícia? - perguntou ela.
- Eu não vou mandar prendê-la. Exasperada, ela disse:
- Eu não estava a falar de mim. Julguei que você queria chamar a polícia para prender aqueles Três Estarolas.
- O quê? Oh... Pois, chame, mas espere dois minutos. Quero negociar primeiro.
Noah tinha desviado a arma e olhava de cima para Jim. Theo pegou numa cadeira, virou-a para ele e sentou-se.
- Trouxe o seu telemóvel?
- E se tiver trazido? - perguntou Jim, de novo num tom belicoso.
- Telefone ao seu irmão e diga-lhe que venha cá.
- Você não pode dar-me ordens!
- Sim, posso - respondeu Theo. - Você está metido num grande sarilho. Ameaçou um agente do FBI e isso dá direito a cadeia.
- Diga isso aos meus advogados - ripostou Jim, apesar de ter empalidecido. - Eles tratarão do assunto para que eu não passe nem um dia atrás das grades.
- Não conheço muitos advogados que trabalhem de graça. Duvido que eles o ajudem quando souberem que não tem dinheiro para lhes pagar.
Jim puxou do telemóvel e ligou ao irmão.
- Ele não vem - disse ele a Theo. - O Gary não gosta de situações desagradáveis.
- Que pena! Diga ao Gary que tem dez minutos para chegar aqui, caso contrário digo à polícia que vá buscá-lo a casa e que o leve consigo para a prisão. Ou vocês negoceiam ou ficam dentro de uma cela a pensar no assunto durante dois meses. E, acredite, Jim. Eu tenho poder para conservá-lo lá dentro.
Aparentemente, Gary atendeu o telefone. Jim disse, com uma voz trémula:
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- Tens de vir imediatamente ao Swan. Não discutas! Vem! Explico-te quando cá chegares.
Jim ouviu durante uns segundos e depois disse:
- Raios, não, isto não correu como estava planeado. O Buchanan e um outro tipo são do FBI e ameaçam que nos mandam prender.
Ouviu mais um minuto e em seguida gritou:
- Um certo azar? Chamas ao FBI um certo azar? Acaba com a conversa e vem cá.
Jim desligou o telemóvel com uni gesto brusco e deitou um olhar fulminante a Theo.
- Ele vem a caminho.
Noah avistou o carro da polícia a parar no parque de estacionamento.
- A polícia está aí - disse ele a Theo.
Michelle pegou na espingarda e guardou-a debaixo do balcão, na prateleira.
- Eu ainda não chamei o Ben - disse ela.
Harry continuava inconsciente, mas respirava. Contente estava debruçado sobre uma das mesas de canto, com a cabeça entre as mãos.
Noah foi lá fora. Passados dois minutos, entrou com Ben Nelson. Era óbvio que tinha posto o polícia ao corrente do que se passara, porque Ben mal olhou para Harry. Concentrou-se em Michelle e sorriu.
- Você está bem? - perguntou ele, visivelmente inquieto.
- Estou bem, Ben. Quem é que telefonou? Foi o Paulie?
- Ninguém telefonou. Eu é que passei por aqui para a ver. Theo não gostou de ouvir isto. Ben dirigiu-se para o balcão,
mas Theo levantou-se e bloqueou-lhe o caminho. Michelle fez as apresentações, embora não fosse necessário. Theo já sabia quem era Ben. Era o homem que queria Michelle.
Theo nunca prestara muita atenção ao aspecto dos outros homens e não sabia se as mulheres consideravam ou não Ben atraente. O polícia tinha um sorriso fácil e mostrava os dentes, mas a apreciação de Theo ficou-se por aqui. Ben parecia ser boa pessoa. Mas isso não interessava. Reparou como ele sorria a Michelle e embirrou logo com o homem. Teve de fazer um esforço para não se mostrar hostil quando lhe apertou a mão e lhe deu a entender quem é que mandava.
242
Noah divertiu-se a observar os dois homens. Pareciam dois galos de briga a prepararem-se para lutar. E percebeu logo qual era o motivo.
- Sei que está hospedado em casa da Michelle - disse Ben, muito sério.
- É verdade.
- Quanto tempo tenciona cá ficar, Mr. Buchanan?
- Ainda não sei. Porque quer saber, chefe Nelson?
- Temos muitos motéis agradáveis em St. Claire.
- Sim?
- O Theo vai-se embora na segunda-feira - anunciou Michelle. - Não vai? - acrescentou ela com uma nota de desafio
na voz.
- Talvez.
A resposta vaga irritou-a.
- Ele vai fazer uma palestra em Biloxi. - Michelle não percebeu porque se sentira obrigada a dar esta explicação. - É por isso que se vai embora na segunda-feira de manhã.
- Talvez - repetiu Theo.
A palavra surtiu o mesmo efeito que o som de uma broca de dentista. Michelle teve vontade de encolher-se. Para não dizer nada de que viesse a arrepender-se se Theo pronunciasse aquela palavra mais uma vez, retirou-se à pressa. Pegou no jarro vazio de chá gelado, pediu desculpa e foi para a cozinha.
Enquanto Theo explicava a Ben quem eram Harry e Contente, Noah leu os direitos aos criminosos e serviu-se das algemas de Ben para prendê-los.
- E o Jim Carson? - perguntou Ben. - Vai apresentar queixa contra ele?
Theo sabia que Jim estava a ouvir a conversa.
- Claro que vou - respondeu ele. - Mas quero que ele fique aqui até o irmão chegar. Quero falar com os dois. Se eles não colaborarem...
Theo não terminou a frase de propósito.
- Eu vou colaborar - gritou Jim.
Ben era melhor do que Theo. Apertou-lhe a mão antes de se ir embora. Theo concluiu que se comportara como um amante ciumento e que precisava de salientar-se.
- Obrigado pela sua ajuda - gritou ele quando Ben saiu atrás de Contente.
243
Noah já tinha acordado Harry e levara-o quase de rastos para o carro da polícia.
Theo olhou para a cozinha, viu Michelle a trabalhar junto do lava-louças. Puxou uma cadeira, escarranchou-se nela e ficou à espera que o outro irmão Carson chegasse.
Michelle resolvera manter-se ocupada para não pensar em Theo. Encheu o lava-louças de aço inoxidável com água quente e sabão, calçou umas luvas de borracha e começou a esfregar. O pai já tinha arrumado a cozinha, mas ela limpou os tampos todos.
Quando ia a descalçar as luvas, reparou numa nódoa de gordura no exaustor de cobre. Passou meia hora a desmontar o aparelho e a limpar todos os cantos e frestas. Levou o dobro do tempo a montá-lo, porque de vez em quando tinha de interromper o seu trabalho e ir ver se os clientes precisavam de alguma coisa.
Uma das vezes, viu Gary Carson a entrar, acompanhado pelos seus advogados.
Voltou para a cozinha e continuou a limpar. Em seguida, lavou as luvas de borracha. Perguntou a si própria que compulsão era aquela e concluiu que estava mais nervosa
do que cansada. Do que ela precisava era de uma boa e longa operação. Quando manejava o bisturi, não pensava em mais nada. Conseguia abstrair-se da conversa à sua volta, das piadas estúpidas, das gargalhadas - de tudo, excepto de Willie Nelson, porque ele apaziguava-a - e ficava com Willie naquele casulo isolado até terminar a sutura. Só depois é que deixava que o mundo se intrometesse.
- Aguenta-te - disse ela em voz baixa.
- Disse alguma coisa?
Noah estava na soleira da porta. Aproximou-se do lava-louças e pôs três copos em cima da bancada.
- Não, nada - respondeu ela. - Que horas são?
- Passa pouco da uma. Você está com um ar cansado. Michelle afastou uma madeixa de cabelo do olho e enxugou
as mãos numa toalha.
- Não estou cansada. Acha que o Theo ainda se demora muito?
- Não muito - respondeu ele. - Quer que eu a leve a casa? O Theo pode fechar o bar.
Ela abanou a cabeça.
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- Eu espero.
A saída da cozinha, Noah virou-se para trás.
- Michelle?
- Sim?
- Ainda falta muito para segunda-feira.
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CAPÍTULO 26
Assim que Monk regressou ao quarto do motel, telefonou para Nova Orleães.
Dalas, que dormia profundamente, atendeu.
- Está?
- As surpresas continuam - disse Monk.
- De que estás a falar?
- Está cá um agente do FBI com o Buchanan.
- Oh, meu Deus. Dá-me o nome dele.
- Ainda não o tenho. Ouvi uns tipos a falar dele à saída do bar.
- E sabes o que ele está aí a fazer?
- Ainda não, mas parece que estavam a falar de ir à pesca. Num tom apreensivo, Dalas disse:
- Não saias daí, que eu volto a telefonar-te.
- Oh, a propósito, tenho outras informações que podem dar jeito.
- E melhor que sejam boas - respondeu Dalas.
Monk contou-lhe que os irmãos Carson e os outros dois arruaceiros tinham ido ao bar.
- Ouvi um dos homens a dizer ao polícia que não ia matar o Buchanan. Só queria magoá-lo. com uma certa dose de planeamento, talvez consigamos servir-nos dos Carson como bodes expiatórios, se for preciso.
- Sim. Obrigado.
- O prazer é meu - respondeu Monk com sarcasmo. Monk desligou o telefone, preparou o despertador e fechou
os olhos. Adormeceu a pensar no dinheiro.
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CAPÍTULO 27
Pela primeira vez na sua vida, Michelle não conseguia dormir e a culpa era de Theo. Tudo, incluindo a dívida nacional, era culpa dele, visto que era de madrugada e ela não tinha sono porque não conseguia deixar de pensar nele.
Virou-se e revirou-se, bateu nas almofadas e virou-se outra vez. Parecia que a cama tinha sido varrida por um ciclone. Para afastar os seus pensamentos lúbricos, mudou os lençóis e em seguida tomou um longo duche quente. Nada disto a deixou mais sonolenta. Desceu as escadas e foi beber leite quente. Mal conseguiu engoli-lo e perguntou a si própria como é que alguém conseguia beber leite quente se frio era muito mais saboroso.
Theo não se ouvia desde que fechara a porta do quarto. Talvez tivesse adormecido e estivesse a dormir o sono dos justos. O grande idiota!
Michelle subiu as escadas pé ante pé para não o incomodar, lavou os dentes outra vez e abriu uma das janelas do quarto para ouvir os sons da trovoada que se aproximava.
Vestiu uma camisa de noite de seda cor-de-rosa - a de algodão verde arranhava-lhe os ombros -, enfiou-se no meio dos lençóis e fez votos para não se levantar outra vez. A camisa de noite enrolou-se-lhe à volta das ancas. Michelle alisou-a e ajustou as alças finíssimas para não escorregarem pelos braços. Estava tudo em ordem. Cruzou os braços sobre o peito, fechou os olhos e começou a respirar fundo, fazendo o possível por se acalmar. Só parou quando ficou tonta.
Sentiu uma ruga no lençol de baixo, no sítio do tornozelo. Não penses nisso, disse a si própria. São horas de dormir. Descontrai-te, com os diabos.
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Passada uma hora, ainda ela estava de olhos bem abertos. Tinha a pele a escaldar, os lençóis estavam húmidos e sentia-se tão cansada que só lhe apetecia chorar.
Desesperada, começou a contar carneiros, mas parou assim que percebeu que estava a contá-los demasiado depressa. Contar carneiros era o mesmo que mascar pastilha elástica. Nunca mascava pastilha elástica porque, na tentativa subconsciente de acabar, mascava cada vez mais depressa, o que anulava o efeito essencial.
Céus, as coisas em que uma pessoa pensava quando começava a perder a sempre preciosa consciência. Devia ter-se especializado em psiquiatria. Assim, talvez conseguisse perceber porque estava a perder o juízo.
Televisão. Era isso. Iria ver televisão. Nunca havia um programa decente de madrugada. Decerto havia alguém a vender qualquer coisa. Estava mesmo a precisar de um "infocomercial". Era melhor do que um comprimido para dormir.
Afastou os lençóis, tirou a colcha oriental dos pés da cama e arrastou-a pelo chão. A porta chiou quando a abriu. Porque não reparara ainda naquele ruído? Atirou a colcha para cima da cadeira, saiu para o corredor, ajoelhou-se e fechou a porta devagar. Estava convencida de que era a dobradiça inferior que fazia aquele ruído e inclinou-se mais para escutar, ao mesmo tempo que empurrava a porta para um lado e para o outro.
Era aquela, sem dúvida. Em seguida, resolveu verificar a dobradiça superior. Levantou-se, agarrou no puxador, empurrou a porta de um lado para o outro, pôs-se em bicos de pés e ficou à escuta. Também chiava um pouco. Onde é que guardara aquela lata de óleo? Poderia resolver imediatamente aquele problema se se lembrasse onde vira a lata. Espera aí... Na garagem. Era isso mesmo. Guardara-a na prateleira da garagem.
- Não consegue dormir?
Ele pregou-lhe um susto de morte. Ela sobressaltou-se, puxou a porta inadvertidamente e bateu com a cabeça nela.
- Chiça! - disse ela em voz baixa, largando o puxador e levando a mão ao couro cabeludo para ver se estava a sangrar.
Depois, virou-se para trás. Não conseguiu pronunciar nem mais uma palavra, mesmo que a sua vida dependesse disso. Theo estava à porta do quarto, encostado à ombreira, com os braços
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cruzados sobre o peito nu e um pé descalço por cima do outro. Tinha o cabelo desgrenhado, a barba por fazer e parecia que tinha despertado de um sono profundo. Vestira umas Levis, mas náo se dera ao trabalho de correr o fecho.
Estava simplesmente irresistível.
Michelle olhou para a abertura estreita da braguilha, depois apercebeu-se do que estava a fazer e desviou o olhar. Concentrou-se no peito dele, concluiu que era um erro e fixou os pés. Ele tinha uns pés lindos.
Oh, céus, ela precisava de ajuda. Agora eram os pés dele que lhe davam a volta ao miolo. Precisava de terapia, de uma terapia forte que a ajudasse a perceber como é que um homem conseguia enlouquecê-la.
Mas ele não era um homem qualquer. Michelle sempre soubera como a atracção era perigosa. Fora a maldita vedação, concluiu ela. Se ele não tivesse comprado a maldita vedação para o pequeno John Patrick, talvez ela tivesse conseguido resistir-lhe. Agora, era demasiado tarde. Deixou escapar um pequeno gemido. Theo continuava a ser um grande idiota, mas ela apaixonara-se por ele.
Engoliu a custo. Ele parecia demasiado voluptuoso para... para ela não se aproximar. Depois, olhou-o nos olhos. Desejou que ele a envolvesse nos seus braços musculosos, que a beijasse desenfreadamente e que a levasse para a cama. Que ele lhe despisse a camisa de noite e acariciasse todo o seu corpo. Talvez ela o atirasse para cima da cama, lhe despisse as Levis e acariciasse todo o corpo dele. Desejou...
- Michelle, o que anda a fazer? São duas e meia da manhã. A fantasia dela foi bruscamente interrompida.
- A sua porta não chia.
- O quê? - perguntou ele.
Ela encolheu os ombros e afastou uma madeixa de cabelo da face.
- Não o ouvi porque a sua porta não fez barulho quando você a abriu. Há quanto tempo está aí?
- Há tempo suficiente para a ver a brincar com a sua porta.
- Ela chia.
- Sim, eu sei que a porta chia.
- Desculpe, Theo. Eu não queria incomodá-lo, mas já que está acordado...
249
- Sim?
- Quer jogar às cartas?
Ele pestanejou. Depois, fez aquele sorriso lento e agradável e ela começou a sentir-se tonta.
- Não, não quero jogar às cartas. E você?
- Nem por isso.
- Então porque perguntou?
O modo como ele a observava, com aquele olhar penetrante, deixou-a extremamente nervosa, mas era aquele nervosismo benigno que ela sentira antes de ele a beijar
na noite anterior, o que significava que era mau porque ela desejara que aquele beijo nunca mais acabasse. Que sensação contraditória era aquela? Ela estava a perder
a razão, mais nada. Pensou se poderia atender os seus doentes na enfermaria de psiquiatria.
- Por favor, não olhe para mim dessa maneira. Encolheu os dedos dos pés na alcatifa e sentiu o estômago às
voltas.
- De que maneira?
- Não sei - respondeu ela por entre os dentes. - Não consigo dormir. Quer fazer alguma coisa até eu ter sono?
- No que estava a pensar?
- Além das cartas? - perguntou ela, nervosa.
- Sim.
- Eu podia ir fazer-lhe uma sanduíche.
- Não, obrigado.
- Panquecas. Eu podia ir fazer panquecas.
Numa escala de um a dez, a ansiedade dela começava a ultrapassar nove. Imaginaria ele como ela o desejava? Não penses nisso. Mantém-te ocupada.
- Eu faço umas panquecas óptimas.
- Não tenho fome.
- O que quer dizer com isso? Você tem sempre fome.
- Esta noite não tenho.
Estou a afogar-me, querido. Ajuda-me. Michelle mordeu o lábio inferior e tentou freneticamente inventar outra coisa.
- Televisão - balbuciou ela de repente, como se tivesse respondido correctamente à pergunta que valia um milhão de dólares e Regis lhe entregasse o cheque.
-O quê?
250 Quer ver televisão?
- Não.
Michelle sentiu que a vida lhe fugia. Suspirou.
- Então, pense em alguma coisa.
- Em alguma coisa que pudéssemos fazer juntos? Até você ter sono?
- Sim.
- Quero ir para a cama.
Michelle tentou disfarçar o seu desapontamento. Pensou que iria recomeçar a contar aqueles malfadados e fedorentos carneiros.
- Está bem. Então, boa noite.
Mas ele não voltou para o quarto. Afastou-se da soleira da porta com a agilidade de um gatarrão indolente e bem alimentado e reduziu a distância entre ambos com duas boas passadas. Os dedos dos pés de ambos tocaram-se quando ele se aproximou por trás e abriu a porta do quarto dela. Cheirava ligeiramente a loção para a barba, a sabonete Dial e a homem, uma combinação que ela considerou extremamente excitante. Quem estava ela a enganar? Naquela fase, bastaria um espirro para excitá-la.
Ele pegou-lhe na mão, mas sem firmeza. Ela poderia tê-la afastado se quisesse, mas não quis. Por sinal, agarrou-a com força.
Depois, ele levou-a para o quarto. Fechou a porta, encostou-a a ela e encurralou-a, com os braços ao lado da cara dela e a pélvis encostada às coxas dela.
Michelle sentiu o frio da madeira nas costas e o calor da pele dele na barriga.
Enterrando a cara no cabelo dela, ele disse em voz baixa:
- Meu Deus, como você cheira bem!
- Julguei que você queria ir dormir. Ele beijou-lhe a nuca.
- Eu nunca disse isso.
- Sim... sim, disse.
- Não - corrigiu ele.
Theo beijava-lhe agora o ponto extremamente sensível por baixo da orelha, deixando-a em êxtase. Michelle ficou sem fôlego quando sentiu os dentes dele a roçarem-lhe no lobo da orelha.
- Não? - sussurrou ela.
- Eu disse que queria ir para a cama. E você disse... - As mãos dele emolduraram-lhe a face. Fitou-a durante alguns segundos. -... Está bem.
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Ela estava condenada e sabia-o. A boca dele colou-se à dela num beijo prolongado, ardente e apaixonado que lhe deu a entender quanto ele a desejava. Michelle entreabriu a boca e sentiu uma onda de prazer até aos dedos dos pés quando a língua dele procurou a dela. Abraçou-o pela cintura e em seguida as suas mãos começaram a acariciá-lo. Sentia os músculos retesados nas pontas dos dedos e, quando começou a mexer as ancas encostada a ele, sentiu-o estremecer.
O beijo prolongou-se até ela lhe agarrar os ombros e tremer de desejo. Era lamentável o modo como ele a fazia sentir-se, e também assustador, porque ela nunca vivera uma paixão igual, nunca sentira o desespero de agarrar um homem e não querer largá-lo. Oh, amava-o tanto!
Estavam ambos ofegantes quando ele levantou a cabeça. Viu-lhe os olhos marejados de lágrimas e imobilizou-se.
- Michelle, quer que eu pare?
Ela abanou a cabeça freneticamente.
- Morro, se você parar.
- Não podemos permitir tal coisa - disse ele, num tom desabrido.
Ela agarrou-se aos jeans dele, tentando empurrá-los para baixo, mas não conseguiu.
- Devagar, querida. Temos a noite inteira.
Esse era o problema. Ela queria mais do que uma noite. Queria que aquilo durasse para sempre, mas sabia que era impossível e resolveu aceitar o que ele oferecia e viver aquele momento. Amá-lo-ia como nenhuma outra mulher, com o coração, com o corpo e com a alma. E, quando ele a deixasse, nunca conseguiria esquecê-la.
Trocaram mais um beijo longo, ardente, com a boca aberta, permitindo que as línguas de ambos se tocassem, o que aumentou ainda mais o desejo. Ele afastou-a, recuou e despiu as calças. Michelle arquejava. Ele era lindo. E estava completamente excitado. Olhar para o seu corpo escultural era um deslumbramento.
Ao luar, a pele dele parecia irradiar um brilho dourado. Ela pegou nas alças da camisa de dormir, mas ele impediu-a.
- Deixe que seja eu a fazer isso.
Despiu-lhe lentamente a camisa de dormir pela cabeça e atirou-a para o chão.
252
- Tenho alimentado tantas fantasias em relação a si - segredou ele. - O seu corpo é muito melhor do que eu imaginava. A maneira como você se agarrou a mim... Também foi muito melhor.
- Conte-me o que fazíamos na sua fantasia. Depois, falo-lhe das minhas.
- Não - respondeu ele em surdina. - Prefiro mostrar em vez de contar.
Os pêlos do peito dele roçaram-lhe nos seios. Michelle ficou tão inebriada que se aproximou mais dele. Sentiu-o erecto junto do seu corpo e mexeu-se para que as suas ancas o acolhessem. Era tão bom ser abraçada daquela maneira!
- Numa das minhas fantasias, faço isto.
Theo pegou-lhe ao colo e levou-a para a cama. Deitou-a, sem deixar que os corpos de ambos se afastassem, abriu-lhe as coxas e instalou-se no meio delas. Depois, beijou-a de novo, sem pressa, até ela começar a mexer-se, sem conseguir parar.
Em seguida, deitou-se de lado e tocou-lhe na barriga.
- E isto.
Os dedos dele descreveram um círculo à volta do umbigo dela e depois deslocaram-se mais para baixo. Ela ficou sem fôlego.
- Não faça isso - disse ela em surdina.
- Não gosta?
Os dedos dele eram mágicos.
- Sim... sim, mas se não parar, eu...
Michelle não pôde continuar. Ele estava a enlouquecê-la, a provocá-la, a sondá-la, a prepará-la. A cabeça dele desapareceu e Theo começou a beijar o vale fragrante entre os seios dela.
- Na minha fantasia preferida, você adora isto.
Ele beijou-lhe os seios, um de cada vez, passando a língua pelos mamilos até ela arquear as costas. As unhas dela cravaram-se nos ombros dele e ela continuou a tentar que ele se mexesse para excitá-lo com a boca e a língua, mas Theo não o fez.
Naquela fantasia, conforme ele explicou, ela vinha-se antes dele. com os seus beijos, ele eliminou toda a resistência que ela pudesse oferecer e foi descendo lentamente pelo corpo dela. Beijou-lhe a barriga, brincando com o umbigo e tocando-lhe com a ponta da língua, e chegou às suas coxas macias.
As sensações eram inebriantes. O clímax foi intenso. Ela deu um grito, colou-se a ele e deixou que a paixão dele a devorasse.
253
Theo era um amante espantoso, muito generoso e terno. Depois, começou a atormentá-la. Conduziu-a a um segundo êxtase mas, antes de ela explodir, ele parou.
- Espera aí, querida. Eu já venho.
- Não pares. Não... Ele beijou-a.
- Tenho de proteger-te.
E saiu do quarto. Ela fechou os olhos. Parecia que tinha o corpo em fogo, mas estava gelada. Começou a tremer e, quando ia a puxar a colcha para cima, Theo voltou para a cama e tapou o seu corpo com o dele. A ausência dele parecera-lhe uma eternidade.
- Onde ia eu?
A contenção e o autodomínio dele maravilharam-na. Depois, reparou nas gotas de suor que ele tinha na testa. Os olhos dele estavam turvos de paixão, o maxilar crispado, e ela percebeu até onde ele chegara por sua causa.
As carícias dele despertaram de novo a paixão que ela sentia. Dessa vez, ofereceu resistência, tentando que ele se descontrolasse, mas Theo foi mais forte. Não foi meigo. Nem ela queria que fosse. Consumida pelas ondas de prazer que continuavam a atravessar o seu corpo, ela agarrou-o com força quando ele lhe abriu as coxas, lhe levantou as ancas e a penetrou.
A cabeça dele pousou no ombro dela. Ele fechou os olhos numa terna rendição e soltou um gemido forte e arrogante.
Agarrou-a e obrigou-a a manter-se quieta.
- Posso prolongar isto... se tu... colaborares.
Ela sorriu. Céus, ele era adorável. Depois, mexeu-se.
- Não... Oh, céus, querido, um pouco mais devagar... Ela mexeu-se outra vez, com mais força, arqueando o corpo
para que ele a penetrasse mais. Ele não conseguiu conter-se mais. A pressão era demasiado forte. Ele recuou, depois penetrou-a ainda mais, outra e outra vez.
Theo queria dizer-lhe como ela era perfeita e bela, mas não conseguiu articular uma única palavra. A intensidade do que sentia era avassaladora. Ela não permitia que ele abrandasse. Ele adorou-a por isso. Enterrou-se a fundo nela e, num derradeiro impulso, soltou um grito e atingiu o clímax, agarrado a ela.
Era como se Theo tivesse morrido e renascido. Nunca atingira um orgasmo como aquele. Nunca se entregara daquela maneira.
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Sempre conservara uma parte de si próprio à margem da situação mas, com Michelle, isso não fora possível. Só alguns minutos depois é que ambos recuperaram. Ele
sabia que estava a esmagá-la, mas não conseguia arranjar forças para se afastar.
Michelle não conseguia deixar de acariciá-lo. Adorava tocar na pele macia de Theo com a ponta dos dedos. Apesar de ser muito musculoso e forte, ele cumulara-a de uma grande ternura. Os dedos dela percorreram-lhe lentamente a espinha, primeiro de cima para baixo e depois em sentido contrário.
O coração dela palpitava tanto que parecia querer saltar-lhe do peito. Michelle riu-se desta ideia absurda.
O som da sua gargalhada voluptuosa fê-lo sorrir. Apoiando-se nos braços, Theo levantou a cabeça, afastando-se da curvatura do pescoço dela para fitá-la.
- Qual é a graça?
- Amar-te vai ser a minha morte. Já estou a ver os títulos: "Sexo Mata Cirurgiã."
Ele franziu o sobrolho.
- Isso não tem graça nenhuma.
Ela passou-lhe os braços à volta do pescoço, levantou a cabeça e beijou-o.
- Tem, sim.
- Tens de manter-te forte porque ainda temos mais novecentas e noventa e nove à nossa frente e não posso permitir que soçobres antes de acabarmos.
- De acabarmos de fazer o quê?
Michelle detectou de novo aquele lampejo no olhar dele e sorriu, antevendo a situação.
- De pôr em prática as minhas fantasias. Ela soltou uma gargalhada.
- Mil?
- Ah, sim. Pelo menos mil.
- Tem uma imaginação muito activa, Mr. Buchanan. Há sítios aos quais se pode dirigir para obter ajuda. Chamam-se clínicas de terapia sexual.
Ele sorriu.
- Tu és a terapia de que eu precisava.
- Ainda bem que fui útil.
- E tu, Michelle, nunca tiveste fantasias?
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- Tive - admitiu ela. - Mas as minhas não eram tão criativas. Eu tinha sempre a mesma.
Ele acariciou-lhe a curvatura do pescoço.
- Fala-me dela.
- É uma espécie de variação do que aconteceu - disse ela baixinho. - Mas na minha fantasia...
Theo levantou a cabeça outra vez.
- O quê?
- Era eu que te excitava e atirava para cima da cama. Ele riu-se.
- Eu peso quase mais cem quilos do que tu - disse ele, exagerando.
- Nós, os cirurgiões, desenvolvemos uma força incrível ao partir costelas e serrar ossos - disse ela, arreliadora.
- Pois bem, estou pronto. Se quiseres estimular-me... Theo calou-se quando ela abanou a cabeça.
- Eu estragaria tudo - explicou ela. - Só te falei na fantasia para que soubesses...
- O quê?
- Que não serás sempre tu a comandar as operações.
- O que queres dizer com isso?
- Que é a minha vez de te fazer perder a cabeça.
- Veremos. - Ele beijou-a outra vez, com força e depressa. Em seguida, levantou-se da cama e pegou-lhe ao colo. - Estou a ferver.
-Já?
Michelle acariciou-lhe o cabelo desalinhado, tentando repor a ordem nas madeixas sedosas.
- Não é nesse sentido, mas se continuas a...
- Onde vamos?
- Estou a suar em bica. Vamos tomar um duche.
Ela estava tão satisfeita e sonolenta nesse momento que concordaria com tudo o que ele sugerisse.
- vou esfregar-te as costas e depois esfregas tu as minhas.
- Não, eu quero esfregar-te à frente e tu podes... Michelle pôs-lhe a mão à frente da boca.
- Estou a perceber.
Dez minutos depois, estavam ambos impecavelmente limpos. A água arrefecera, mas não aplacara a paixão. Perversa, Michelle
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pôs-se em bicos de pés e segredou-lhe a sua fantasia ao ouvido. Entrou em pormenores e, quando acabou, Theo ficou admirado com a sua própria capacidade de resistência.
Ela empurrou-o contra os mosaicos e começou a enlouquecê-lo com beijos quentes e húmidos e a lamber-lhe lentamente o corpo macio.
Ele nem teve forças para levá-la para a cama. Secaram-se mutuamente no meio de beijos ardentes. Exaustos de fazerem amor, deixaram-se cair na cama. Theo deitou-se de costas. Ela apoiou-se num cotovelo e acariciou a pequena cicatriz da apendicectomia dele.
Em seguida, inclinou-se e beijou-a ao de leve. Theo estava de olhos fechados, mas sorria.
- Fazes isso a todos os teus doentes?
- Beijar-lhes as cicatrizes?
- Sim.
- Sem dúvida. Tem de ser. Theo bocejou.
- Porquê?
- É uma consequência do juramento que eu fiz. Beijar e curar.
Michelle puxou o lençol para cima, deitou-se de costas e fechou os olhos. Estava a adormecer profundamente quando Theo lhe deu uma cotovelada.
- Michelle?
- Hum?
- Descobri a tua melhor característica.
- Qual é? - perguntou ela, sonolenta.
Ele puxou o lençol para baixo e pousou-lhe a mão no seio. Se ela não estivesse tão cansada, ter-lhe-ia pedido que explicasse por que motivo é que os homens se deixavam obcecar pelos seios, mas de repente percebeu onde é que ele tinha a mão e vieram-lhe as lágrimas aos olhos. Como é que ela podia não amar aquele homem?
Ele pousara a mão sobre o seu coração.
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CAPÍTULO 28
Na manhã seguinte, Michelle só acordou às dez e um quarto. Espreguiçou-se, virou-se ao contrário e agarrou-se à almofada de Theo. Fechou os olhos outra vez e pensou na noite que ambos tinham partilhado. No meio das suas recordações, o sono dissipou-se e o dia impôs-se. Eram dez e um quarto e ela devia ter-se encontrado com as amigas na clínica às oito horas. Mary Ann ia dar cabo dela. Estaria sentada no carro, à espera? Não, evidentemente que não. Devia ter ido para casa.
Passados vinte minutos, Michelle estava pronta. Vestiu uns calções de caqui e uma blusa azul sem mangas e calçou uns soquetes e um sapato de ténis. Desceu as escadas a correr, entrou na lavandaria, encostou-se à máquina de lavar roupa e calçou o outro sapato.
Foi à procura de Theo. Encontrou-o na biblioteca, sentado na poltrona de couro, a falar ao telefone. Noah estava junto dele, empoleirado na beira da secretária. Sorriu ao vê-la.
- bom dia.
- bom dia - respondeu ela.
Michelle sentou-se no sofá e inclinou-se para atar os atacadores. Pelo canto do olho, viu Theo a desligar o telefone, mas não se sentiu muito à vontade para encará-lo. A recordação do que se passara na noite anterior ainda estava muito viva na sua mente.
"A presença de Noah é que dificultava tudo", pensou ela.
- Dormiste bem? - perguntou Theo.
- Dormi, mas há horas que devia estar na clínica. Michelle não conseguiu desfazer o nó do atacador e percebeu
que era por estar nervosa. Respira fundo, pensou. És uma mulher adulta. Comporta-te como tal.
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- A Mary Ann...
- Está na clínica. O Noah abriu-lhe a porta e à amiga. Vieram cá à tua procura por volta das oito e meia.
Por fim, Michelle conseguiu desfazer o nó e atou os atacadores à pressa. Não sentiu Theo a aproximar-se e de repente ele apareceu à sua frente. O atacador do sapato esquerdo dele desatara-se. Sem pensar, Michelle baixou-se, atou-lho e levantou-se.
Theo não permitiria que ela o ignorasse por mais tempo. Pegou-lhe no queixo, obrigou-a a olhar para ele e beijou-a. Aparentemente, não se importou com a presença de Noah. Não se apressou, e quase não foi necessário convencê-la a colaborar e retribuir o beijo.
Sem fazer barulho, Noah levantou-se e saiu da sala. Theo abraçou Michelle e perguntou-lhe em surdina:
- Queres ir brincar?
- Pensei no que fizemos esta noite.
- Está bem. Podemos fazer o mesmo outra vez. Além disso, foi apenas um exercício de aquecimento. - Ela tentou desembaraçar-se dos braços dele, mas Theo apertou-a com mais força. Michelle, não estás envergonhada com o que aconteceu ontem à noite, pois não?
Ela fitou-o e percebeu que ele estava preocupado.
- Eu sou médica, Theo. Nada me envergonha.
Depois, beijou-o e entregou-se a ele. A língua dela tocou na dele, uma e outra vez, e quando ela recuou, ficou satisfeita ao ver como ele a desejava de novo.
- Tenho que fazer - disse ela, quando conseguiu afastar-se dele.
- Por acaso, não tens. A Mary Ann disse-me que ela e a Cindy, creio que é assim que se chama a outra mulher, poriam os processos em ordem muito mais depressa se tu lá não estivesses. Compete-me manter-te ocupada.
- Ela não disse...
- Sim, disse. Disse que és crítica e picuinhas. As palavras são dela, não minhas. O teu pai telefonou a dizer que o John Paul pôs a mobília cá fora. Vai consertar o que puder.
- Ele não podia ter levado sozinho a secretária nem o sofá.
- Foi um tipo chamado Artie que o ajudou. com que então, nada te envergonha?
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- Nada - respondeu ela, mentindo.
- Então, porque te envergonhaste quando te dei um beijo de bons-dias?
Michelle dirigiu-se para a cozinha e Theo foi atrás dela.
- Estava a pensar no Noah. Não queria que ele ficasse atrapalhado.
Theo considerou esta resposta hilariante. Noah ouviu-os a rir e enfiou a cabeça na porta.
- Qual é a graça?
- Não é nada - respondeu Michelle, passando por ele para entrar na cozinha.
Abriu o frigorífico à procura de uma Diet Coke e teve uma surpresa. O frigorífico, que estava quase vazio na véspera, encontrava-se agora repleto de comida e bebidas.
Michelle descobriu uma Diet Coke na parte de trás, pegou nela e fechou a porta. Em seguida, abriu a porta outra vez para se certificar de que não sonhara, reparou nas etiquetas da manteiga e adivinhou quem era o responsável.
- O Noah não se envergonha, pois não? - perguntou Theo ao amigo.
- Não me envergonho com quê?
- com sexo. Sabes o que é o sexo, não sabes?
- Claro que sei. Uma vez, li tudo acerca disso num livro. Estava a pensar em experimentar, um destes dias.
Divertiram-se ambos a arreliá-la. Michelle sentou-se à mesa e só depois reparou no bolo de chocolate com três camadas que estava em cima da bancada. Noah agarrou num pano de cozinha e aproximou-se do fogão. Levantou a tampa de uma grande panela de ferro. O aroma especioso da sopa de quiabos com galinha espalhou-se imediatamente pela cozinha.
- Como é que teve tempo para fazer isto? - perguntou Noah. - Cheira mesmo bem.
Michelle não se lembrava do que o pai lhe tinha dito. Devia dizer que fizera o bolo ou a sopa? Noah perguntou-lhe se queria uma fatia de pão caseiro. Junto do lava-louças, estava um cacete embrulhado em papel encerado.
- Há algum cartão ao pé da sopa?
- Não vi nenhum - respondeu Noah.
- Então, fui eu que a fiz - respondeu ela, rindo-se da men tira. ;
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Theo tirou o leite do frigorífico e pô-lo em cima da mesa.
- Mas que actividade a tua durante a noite! Também fizeste o bolo?
Sentindo-se uma idiota, ela perguntou:
- Está algum cartão ao pé do bolo?
- Não.
- Então, acho que também fui eu que o fiz.
- E o pão?
- Não há nenhum cartão? - perguntou ela, fazendo o possível por manter-se séria.
- Não vi nenhum.
- Adoro fazer pão de madrugada.
Theo pôs em cima da mesa uma caixa de flocos, uma embalagem de aveia com passas e outra de barras Quaker para Michelle escolher. Em seguida, deu-lhe uma colher.
- Então a senhora que apareceu à porta das traseiras com o pão não estava a mentir quando disse que tu o fizeste em casa dela ontem à noite e te esqueceste de trazê-lo?
Michelle estava cansada de fazer figura de idiota. Onde estavam os estúpidos cartões? Teria o pai resolvido alterar o plano e esquecera-se de avisá-la? O que havia ela de dizer? Se contasse a verdade a Theo, o pai julgaria que ela não estava a colaborar na sua causa sagrada para manter Theo em Bowen.
O papá não iria acusá-la de não entrar no jogo.
- Pois não. Depois de adormeceres, desci as escadas, fiz a sopa e o bolo. Depois, meti-me no carro e fui a...
Michelle calou-se de repente. Theo não lhe dissera como se chamava a mulher que fora entregar o pão, e Michelle não se lembrava da pessoa à qual o papá destinara a tarefa. Improvisando à pressa, acrescentou:
- ... a casa de uma amiga e fiz dois cacetes.
- Não se esqueça da mercearia.
- O quê? Oh, sim, passei pela mercearia.
Theo virou a cadeira ao contrário e sentou-se nela, em frente a Michelle. Pôs as mãos atrás das costas e disse:
- Então, é essa a tua história, hem? Michelle sorriu.
- A menos que encontres dois cartões a dizer "Bem-vindo a Bowen". Se tal acontecer, a minha história muda.
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- Diz ao Jake que eu agradeço.
- Agradeces o quê? - perguntou ela, com ingenuidade.
- Ó Mike, quer um prato de sopa? - perguntou Noah, procurando uma concha nas gavetas.
- Ao pequeno-almoço? Chega-me uma barra de vitaminas.
- E tu, Theo?
- com certeza - respondeu ele. - Sabes o que combina muito bem com a sopa? Batatas fritas de pacote.
- Desculpem, não tenho batatas fritas. De qualquer modo, elas não vos fazem bem. Têm sódio a mais - disse ela.
- Compensam o sódio da sopa - disse Noah.
- Tu também tens batatas fritas. Dois pacotes grandes, e das boas. Não é nada dessa comida quase sem gordura, a saber a cartão. Esqueceste-te de que as compraste na mercearia ontem à noite?
- Devo ter comprado.
- Sabes o que diz muito bem com a sopa e as batatas fritas?
- perguntou Noah.
- O que é? - perguntou Theo.
- Cerveja fresca.
- vou nessa.
Theo levantou-se e foi ao frigorífico. Michelle abanou a cabeça.
- Sopa de quiabos com galinha, batatas fritas e cerveja às dez e meia da manhã?
- São onze horas, e já nos levantámos há muito tempo. Não faças essa cara, querida. Vamos corromper-te. Junta-te a nós.
- Ela é uma maníaca da saúde? - perguntou Noah.
- Acho que sim - respondeu Theo. - Vive segundo o lema "Se souber bem, cospe".
- Quando vocês tiverem vários bypasses, lembrem-se desta conversa.
- Falei com o Dr. Robinson - disse Noah. Tinha encontrado a concha e enchia duas tigelas de sopa. Theo já tinha o saco de batatas fritas na mão e estava a abri-lo.
- E? - insistiu ela.
Noah pôs as tigelas em cima da mesa, pegou em duas colheres de sopa e sentou-se.
- Só se lembrou de dois homens que lhe deram problemas a sério, e tenciono verificar o que se passa com eles. Um dos doentes difíceis foi um velho chamado George Everett. Conhece-o, Mike?
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- Não, não conheço.
- O Everett recusou-se a pagar a conta porque o Robinson não o curou da indigestão. Ele tinha um problema de alcoolismo pelo qual também culpava o médico. Disse ao Robinson que não se embriagaria todas as noites se não tivesse dores horríveis. De qualquer modo, o Robinson enviou a conta para uma empresa de cobranças, o que não caiu bem ao Everett. Ficou todo encrespado e telefonou ao médico a ameaçá-lo.
- E o outro homem? - perguntou Theo.
- Disse ao Robinson que se chamava "John Thompson", mas duvido que este fosse o seu verdadeiro nome. Só viu o médico uma vez, um ou dois dias antes de o Robinson fechar a loja e e enviar os processos à Mike. O Thompson é um drogado de Nova Orleães. Veio para Bowen na esperança de que os médicos aqui fossem mais permissivos, segundo creio. De qualquer modo, queixou-se ao Robinson de uma terrível dor nas costas e pediu-lhe receitas de analgésicos. Queria uma coisa forte e sabia como havia de pedi-la. O Robinson recusou e disse-me que o drogado se enfureceu e o ameaçou.
- Ele apresentou queixa do Thompson à polícia? Noah bebeu um golo de cerveja antes de responder.
- Devia ter apresentado, mas não o fez porque ia sair de Bowen e não queria chatices. Foi o que ele me disse.
- Aposto que o Thompson tentou assediar outros médicos em St. Claire - disse Michelle.
- Também admiti essa hipótese. E fui verificar. Adoro obrigar os médicos a levantarem-se cedo - disse Noah, sorrindo. De qualquer modo, se o Thompson foi ter com outros médicos, usou um nome diferente. Ninguém se recorda de o ter tratado.
- Por outras palavras, um beco sem saída.
- Acho que chegou o momento de vocês os dois encerrarem este caso - disse Michelle. - E não se preocupem. vou limpar a minha clínica, instalar fechaduras mais fortes nas portas e continuar. Proponho que façam o mesmo.
Como nem Theo nem Noah a contradisseram, Michelle partiu do princípio que eles eram demasiado teimosos para admitir que ela tinha razão.
- Vai chover.
Depois de fazer esta previsão, Theo engoliu uma colherada de sopa.
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- O Sol está encoberto - observou Noah.
- Sim, mas dói-me o joelho, portanto vai chover. TainSbém tenho o ombro a latejar.
Noah riu-se.
- Vocês dois estão bem um para o outro. Um é hipocondríaco e o outro é médico. Uma união perfeita.
- Eu não sou médico - disse Theo secamente. Noah ignorou o comentário mordaz.
- Mike, alguma vez foi a Boston?
- Não, nunca.
- Havia de gostar.
Michelle ficou a pensar no que havia de dizer e depois respondeu:
- Tenho a certeza que vou adorar, se alguma vez lá for a um congresso ou de férias.
Noah olhou alternadamente para Theo e Michelle. Pareceu-lhe que ela estava na defensiva, mas havia tristeza no seu olhar. Ela está a desistir antes de começar, concluiu ele. A reacção de Theo também foi interessante. Todo o seu corpo se retesou.
- Então, a vossa relação vai ser breve?
- Mais ou menos isso - disse ela.
- Esquece, Noah. Noah mudou de assunto.
- Digam-me, vamos pescar no sábado mesmo que chova?
- A pesca é melhor quando chove - disse Michelle.
- Quem é que disse? - perguntou Noah.
- O John Paul.
- E eu chegarei a conhecer o teu irmão? - perguntou Theo.
- Duvido. Vais-te embora na segunda-feira, lembras-te? Michelle continuava a remexer na ferida. Ele não lhe retirara
o tapete de baixo dos pés. Ela sabia que ele se ia embora. Então, porque se sentia tão desolada?
- Vais conhecer o irmão dela no Swan, na sexta-feira - disse Noah. - O Jake disse-me que o John Paul trabalha como empregado de bar e animador aos fins-de-semana.
Michelle abanou a cabeça.
- O papá sabe que o John Paul não vai aparecer este fim-de-semana. O meu irmão sabe para que entidade é que vocês os dois trabalham e portanto não vem.
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- Por acaso o seu irmão não é procurado pela polícia, pois não? - perguntou Noah.
- Não, evidentemente que não.
- O que tem ele contra o FBI? - perguntou Theo.
- Terás de ser tu a fazer-lhe essa pergunta - respondeu Michelle.
- Por isso mesmo é que tenho de o conhecer, para lhe fazer a pergunta - disse Theo.
- O meu irmão é uma pessoa muito reservada - disse ela, à defesa. - Quando e se decidir que gostaria de te conhecer, há-de encontrar-te. - Michelle sorriu e acrescentou: - Mas não darás pela chegada dele. Agora, desculpem, mas tenho que fazer.
Michelle levantou-se da mesa, atirou a lata vazia para o lixo e começou a recolher os pratos sujos. Theo foi ajudá-la. Estava a encher o lava-louças de água quando alguém tocou à campainha. Noah foi ver quem era.
Michelle pôs as tigelas dentro do lava-louças e depois voltou para a mesa. Theo agarrou-a pela cintura e acariciou-lhe o pescoço.
- O que se passa contigo?
Ela não era suficientemente complicada para representar nem para arranjar uma mentira inteligente e portanto limitou-se a dizer a verdade.
- Estás a complicar a minha vida.
Ele obrigou-a a virar-se e a encará-lo. Michelle recuou, mas ele foi atrás dela e encostou-a ao lava-louças.
- Não te arrependes...
- Não - respondeu ela em voz baixa. - Foi maravilhoso. Michelle não conseguiu fitá-lo e desviou o olhar para o queixo dele, para conseguir concentrar-se no que tinha a dizer.
- Somos ambos adultos normais com impulsos saudáveis e por conseguinte é...
- Saudáveis e normais?
- Não me arrelies. Esses impulsos...
- Pois, eu lembro-me dos impulsos - disse ele.
- Não podemos continuar a entregar-nos a estes...
- Impulsos? - alvitrou ele.
Michelle calou-se de repente. Deu consigo a sorrir, apesar da sua frustração.
265
- Estás a fazer troça de mim.
- Sim, estou. Michelle empurrou-o.
- Não vou deixar que me destroces, Theo. Brinca com as raparigas da cidade, lá na tua terra.
Theo riu-se na cara dela.
- As raparigas da cidade?
- Não troces. Estou a tentar dizer-te que não temos um futuro em comum, e portanto deixa-me em paz.
Ele emoldurou-lhe o rosto com as mãos e beijou-a apaixonadamente. Quando levantou a cabeça, viu que ela tinha lágrimas nos olhos.
- Estás a chorar por minha causa?
- Não.
A resposta foi forçada.
- Ainda bem, porque eu ia jurar que te vi com as lágrimas nos olhos agora mesmo.
- Eu não imaginava que fosses tão mau. Estou a tentar dizer-te que fiquemos por aqui...
Ele abanou lentamente a cabeça. Ela arregalou os olhos.
- Não? Porquê?
A boca dele aflorou de novo a dela, num beijo rápido e eficiente.
- Tu és uma mulher inteligente, compreendes as coisas.
Noah interrompeu-os ao entrar na cozinha. Trazia uma grande caixa do Federal Express debaixo do braço e um tacho enorme tapado com folha de alumínio nas mãos.
- Theo, agarra nesta caixa, por favor. Encontrei-a encostada à porta quando a abri. Quem tocou foi uma senhora que veio trazer este frango frito à cajun. Entregou-me o tacho e foi-se embora antes de eu lhe agradecer. Pareceu-me um pouco nervosa.
- Ela disse quem era?
- Molly Beaumont - respondeu ele. Pousou o tacho em cima da mesa e começou a retirar a folha de alumínio. - Cheira bem.
- Veio algum cartão para o Theo com o frango?
- Não, ela disse que você é que fez o frango, mas que o tacho é dela e portanto quere-o de volta.
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Theo estava sentado à mesa a abrir a caixa. Noah pegou numa perna de frango e deu-lhe uma grande dentada. Em seguida, deu uma cotovelada a Theo.
- Sabes que mais disse a Molly?
- O quê?
- Pediu-me que dissesse "olá" ao treinador Buchanan. Ouviste esta, Theo? Ela chamou-te treinador.
- Pois, eu sei. Toda a gente em Bowen me chama treinador.
- Está bem, e eu tenho de adivinhar porquê - disse Noah. Theo não estava a prestar-lhe atenção. Por fim, conseguiu
abrir a caixa e assobiou baixinho.
- O Nick conseguiu. Manuais de desporto. Pegou num e começou a folheá-lo.
- Manuais de futebol? - perguntou Noah com a boca cheia.
- Sim, eu explico-te mais tarde. Michelle, podes ir para a clínica com o Noah. Ele vai passar o dia contigo.
- Ele não precisa de perder tempo... Theo interrompeu-a.
- Ele vai contigo. Noah concordou.
- Enquanto você e as suas amigas organizam os processos, eu começo a limpar o seu gabinete. Se houver tempo, pinto as paredes.
- Agradeço a sua ajuda, mas...
- Não discutas - disse Theo.
- Está bem. Obrigada, Noah - disse Michelle. Depois, virou-se para Theo e perguntou-lhe o que ia fazer.
- Tenho uma reunião com os Carson e com o advogado deles à uma - disse Theo. - Terei de estar pronto às duas e meia porque prometi ao Conrad que aparecia no treino às três. Se tu e o Noah precisarem de fazer um intervalo, apareçam.
- O reitor do liceu propôs um contrato ao Theo - explicou Michelle, sorrindo. - Ele ainda não assinou.
- Você está a inventar - disse Noah.
- Acho que o Theo quer mais dinheiro.
Noah convenceu-se de que os dois estavam a brincar com ele e ficou à espera da conclusão.
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- Está bem - disse ele. - Nós passamos por lá. A que horas acaba o treino? Prometi que ajudava no bar esta noite. Tenho de lá estar às cinco.
- Julguei que ias atirar-te à Mary Ann esta noite - lembrou Theo.
- O que queres dizer com isso? - perguntou Michelle. Noah encolheu os ombros.
- Ela perguntou-me se eu queria ir ter com ela depois de o marido da amiga ir buscá-la, e eu sugeri-lhe que passasse pelo Swan. Se eu não estiver ocupado.
- Ela pediu-lhe para sair? - perguntou Michelle, visivelmente surpreendida.
- Sim, pediu. Isso é assim tão difícil de compreender? Sou um tipo simpático.
- Não é difícil de compreender. E que ela... e você... é que você é muito...
Noah estava a divertir-se com a atrapalhação de Michelle.
- Eu sou muito quê?
O termo "experiente" veio-lhe à cabeça, a par de uma dúzia de outros. Noah era o tipo de homem a quem não faltavam mulheres como Mary Ann. Michelle percebeu que estava a ser opiniosa e que poderia estar enganada.
- Você é...
- Sim? - insistiu Noah.
- A tua amiga está apanhada pelo Noah - explicou Theo. Noah concordou.
- É verdade.
- Oh, pelo amor de Deus! - exclamou Michelle, visivelmente exasperada. - Só porque a Mary Ann está a ser simpática, tu concluíste logo que ela estava apanhada pelo Noah?
Theo sorriu.
- Eu não tirei conclusões precipitadas. A sério! A Mary Ann é que disse, e estou a citar, "Theo, estou apanhada pelo Noah. Ele é casado ou quê?"
Noah confirmou outra vez.
- Foi o que aconteceu.
Infelizmente, Michelle admitiu que Theo estivesse a falar verdade. Mary Ann tinha o mau hábito de exteriorizar tudo o que pensava. Michelle riu-se e abanou a cabeça.
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-Temos de ir para a clínica - disse ela. - Só um momento, Michelle - disse Noah, folheando o manual. - Theo, olha para a página cinquenta e três. Lembras-te...
- Theodore, tira esse livro ao teu amigo e manda-o embora. O truque de lhe chamar Theodore deu resultado. Theo agarrou no livro e levantou-se. Noah ficou impressionado.
- Ela parece um sargento instrutor - disse Noah, vendo Michelle à porta, a bater com o pé no chão, impaciente.
- Sabe ser dura quando quer - disse Theo, transformando o comentário num elogio.
- Isso é um verdadeiro talento - observou Noah.
- Ela dá na medida em que recebe. Não recua. Isso agrada-me. Sabes que mais ela faz? Legumes - disse Theo, atravessando a casa de jantar e dirigindo-se para a porta principal.
- Disseste "legumes"? - perguntou Noah, convencido de que não ouvira bem.
- Sim. Devias tê-la visto a cortar legumes com uma faca de cozinha. É incrível. Dava uma música.
Noah foi atrás dele.
- O que diabo quer isso dizer?
- Ela é tão... meticulosa. Noah riu-se.
- Oh, homem!
- O que é?
- Isso está mau.
269
CAPÍTULO 29
Noah e Michelle não conseguiram ir assistir ao treino. Houve muito que fazer na clínica. As amigas surpreenderam-na. Reorganizaram os processos e arrumaram-nos por ordem alfabética em caixas para que, quando chegassem os novos arquivadores, ela só precisasse de transferi-los para as gavetas. Theo foi buscar Michelle à clínica e Noah voltou ao motel para tomar um duche e mudar de roupa antes de ir ajudar Jake no Swan.
Michelle sentiu-se culpada por nem Theo nem Noah terem ido à pesca. Quando comentou o assunto com Theo, ele disse-lhe que não se preocupasse. No sábado, passaria o dia inteiro no barco e, de qualquer modo, a expectativa era quase tão divertida como o próprio acontecimento. Foi buscar tudo aquilo que, na sua opinião, devia levar na geleira. Tal como os escuteiros, queria estar preparado e Deus o livrasse de ficar sem sanduíches e sem cerveja.
Tinha acabado de estacionar o carro no caminho de acesso à casa e iam precisamente a sair quando Elena Miller chegou no seu pequeno utilitário, a buzinar para chamar a atenção.
- Dr.a Mike! - gritou ela, contornando o carro a correr e aproximando-se do lado do passageiro. - Pode pedir a esse senhor que leve esta caixa para dentro?
- O que está na caixa? - perguntou Michelle.
- Não recebeu a minha mensagem? Telefonei-lhe do hospital e deixei-lhe uma mensagem no seu atendedor automático.
- Como vê, acabei de chegar a casa, Elena - respondeu Michelle.
- Estou farta que vocês, os médicos, atravanquem as Urgências. Esta caixa está cheia de correspondência que estava
espalhada
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pelas bancadas - disse ela, apontando com as duas mãos para o banco traseiro do carro. - Comecei por si e na segunda-feira vou tratar da tralha do Dr. Landusky.
Michelle apresentou Theo à mulher exasperada e explicou-lhe que a secretária dos médicos estava a tentar organizar as Urgências.
- Porque não pede que enviem as revistas para a sua clínica, doutora? Era uma grande ajuda se levasse a sua correspondência para casa todas as noites. É pedir muito?
- Não, não é - respondeu Michelle, sentindo-se como se tivesse regressado à escola. - Porque não deixa isso tudo na sala dos médicos? - perguntou, quando Theo pegou
na caixa e ela viu as revistas todas.
Elena fechou a porta atrás de Theo e sentou-se ao volante.
- Porque acabei de arrumar aquilo tudo - disse ela. - Vocês, médicos...
Saiu da rampa em marcha atrás e nem acabou a frase.
- vou tentar emendar-me - gritou Michelle.
Mais calma, a mulher disse-lhe adeus e desapareceu na estrada. Theo entrou em casa atrás de Michelle.
- A Elena faz-me lembrar alguém - disse ele, levando a caixa para a biblioteca e pousando-a em cima da secretária.
Michelle afastou-o do caminho para poder dar uma vista de olhos à correspondência. Havia várias revistas, embrulhos de duas empresas farmacêuticas e um monte de
correio para deitar fora.
- Quem? - perguntou ela, assim que largou os envelopes. Não havia nada que exigisse a sua atenção imediata.
- Gene Wilder.
- Ela fez mal a permanente - disse Michelle, rindo-se.
- Onde está a tua geleira? - perguntou ele.
- Na garagem. Mas tem de ser lavada - acrescentou ela, dirigindo-se para as escadas.
- Vai à frente e toma duche primeiro enquanto eu a lavo com a mangueira. Depois, limpo-a. E não gastes a água quente toda - gritou ele.
Ele estava há dois dias em casa dela e já tentava dizer-lhe o que havia de fazer. Michelle abanou a cabeça e riu-se. "Que agradável", pensou ela. Tê-lo ali era muito, muito agradável.
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CAPÍTULO 30
O profundo ribombar do trovão acordou Theo. Parecia que tinha rebentado um foguete dentro do quarto. A cama até estremeceu. Lá fora, estava escuro como breu mas, quando ele virou a cabeça, viu o relâmpago a raiar o céu.
Desencadeara-se um vendaval terrível. Theo tentou voltar a adormecer, mas estava com muito calor. O aparelho de ar condicionado estava a funcionar mas, com a janela entreaberta, o ar frio era sugado lá para fora.
Michelle dormia profundamente, enroscada ao lado dele, com uma mão sobre a sua barriga. Theo endireitou-a com todo o cuidado para que ficasse deitada de costas, deu-lhe um beijo na testa e sorriu quando ela tentou rebolar para cima dele. De repente, pensou em acordá-la para fazerem amor outra vez, mas depois olhou para os algarismos verdes luminosos do rádio-relógio e mudou de ideias. Eram três da manhã. Acordá-la estava fora de questão. Ela precisava de dormir, e ele também. Tinham-se deitado às dez, mas não tinham adormecido antes da meia-noite.
Se ele quisesse passar o sábado a pescar, teria de acabar de fazer tudo o resto no dia seguinte. Marcara outra reunião com os Carson e os advogados deles para acertarem os pormenores e, quando acabasse, iria ajudar na clínica.
Michelle não queria perder o dia inteiro de sábado a pescar, mas mudou de ideias quando Theo lhe falou de uma aposta pessoal que fizera com Noah. Quem apanhasse mais peixe teria de pagar mil dólares ao vencido.
Ela ficara assustada com a quantia - como é que alguém podia apostar aquele dinheiro, o qual poderia ser muito mais útil se fosse usado de outra maneira? -, mas assim que Theo lhe comunicou
272
que não podia nem iria anular a aposta, aderiu ao plano e empenhou-se na vitória dele. Gabou-se de que possuía uma estratégia secreta e explicou que o pai
levaria Noah para o seu pesqueiro preferido no meio do pântano, numa curva do rio, um pouco mais adiante da cabana de John Paul. Mas do outro lado do braço do rio havia um pesqueiro ainda melhor, onde os peixes eram tão abundantes e simpáticos que só faltava saltarem para dentro do barco.
Quando Theo lhe perguntou por que motivo nunca falara ao pai do seu pesqueiro preferido, ela explicou que não queria que ele fosse para lá sozinho, porque o sítio era isolado e havia predadores por ali. Theo depreendeu que ela se referia aos crocodilos existentes naquela zona. Ela não negou nem confirmou a suspeita, mas deu-lhe um beijo para o descontrair, enquanto ele se despia devagar. Theo pegou-lhe na mão e levou-a para a cama. A manobra de diversão tivera um efeito mágico.
Até àquele momento.
Talvez ele devesse ter trazido a espingarda modificada que se encontrava no Swan. Depois, lembrou-se que estava calor e quis fechar a janela. Sentou-se na cama, bocejou e pôs as pernas de fora. Ao levantar-se, enrodilhou os pés no lençol. Tropeçou e bateu com o joelho doente na mesa-de-cabeceira. O puxador redondo de latão atingiu-lhe precisamente a zona mole por baixo da rótula, para onde ele tinha a certeza que convergiam todos os nervos do corpo, provocando-lhe uma dor lancinante na perna. Ardia como ácido. Soltando uma imprecação por entre os dentes, sentou-se na cama com um movimento brusco e esfregou o joelho.
- Theo, sentes-te bem? - perguntou Michelle com uma voz sonolenta.
- Sim, sinto. Bati com o joelho na mesa-de-cabeceira. Deixaste a janela aberta.
Ela empurrou o lençol para trás.
- vou fechá-la.
Ele empurrou-a para trás com ternura.
- Dorme. Eu trato disso.
Ela nem discutiu. Ali sentado a esfregar o joelho, Theo ouviu a respiração profunda e regular de Michelle. Como é que alguém conseguia adormecer tão depressa? Depois, admitiu que ela estivesse exausta por terem feito amor e sentiu-se um pouco melhor.
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com um sorriso irónico, reconheceu a arrogância implícita nesse pensamento.
Levantou-se e encaminhou-se para a janela, a coxear. Ia a puxá-la para baixo quando um relâmpago iluminou a noite e ele viu um homem a correr, a atravessar a estrada em direcção ao quintal de Michelle.
Que diabo era aquilo? Ele vira o que pensava que vira, ou fora apenas a sua imaginação a trabalhar? Ouviu-se um trovão, seguido de outro relâmpago e Theo viu o homem outra vez, agachado junto do sicómoro.
E viu também a arma. Theo já começara a recuar quando soou o tiro. A bala atravessou o vidro e partiu-o precisamente no momento em que Theo se virou e agachou para se proteger. Sentiu uma dor na parte de cima do braço e admitiu que tivesse sido atingido. Conseguiu chegar à cama, agarrou Michelle quando ela se levantou de repente e resvalou para o chão com ela nos braços, tentando a todo o custo evitar que a cabeça dela embatesse na madeira. Sentiu de novo a dor no braço quando se afastou dela e se levantou. com a precipitação, deitou ao chão o candeeiro da mesa-de-cabeceira.
- Theo, o que...
- Não te levantes - ordenou ele. - E não acendas a luz. Michelle tentava compreender o que se estava a passar.
- A casa foi atingida por um raio?
- Foi um tiro. Alguém me deu um tiro através da janela. Theo levantou-se e correu. Se tivesse deixado que Michelle se
aproximasse da janela, ela poderia ter morrido. Só por sorte é que ele olhara lá para baixo quando o céu se iluminara. Correu para o quarto de hóspedes e gritou:
- Chama a polícia e veste-te! Temos de sair daqui. Michelle já tinha agarrado no telefone e puxou-o para junto
de si. Marcou 911, encostou o auscultador ao ouvido e percebeu que o telefone não funcionava. Não entrou em pânico. Largou o aparelho, pegou nas suas roupas que estavam em cima da cómoda e correu para o corredor.
- O telefone está morto - gritou ela. - Theo, o que está a acontecer?
- Veste-te! - repetiu ele. - Despacha-te!
Theo tinha a arma na mão e estava colado à parede ao lado da janela. Dessa vez, tinha a certeza que não ia facilitar a vida ao
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patife- Afastou os cortinados com o cano da pistola e espreitou lá para fora. Ouviu-se outro tiro e, ao mesmo tempo, o céu abriu-se e começou a chover. Theo viu um clarão vermelho quando a bala saiu. Recuou. Ficou ali, a tentar escutar todos os sons e rezando para que houvesse outro relâmpago e ele visse se havia mais homens escondidos lá fora.
Seria só um homem? Esperava que sim. Se ele conseguisse dar um tiro, talvez atingisse o patife. Nunca matara ninguém, nem sequer utilizara a arma excepto nos treinos, mas não tinha pruridos nenhuns em eliminar aquele indivíduo.
Passaram cinco segundos e depois mais cinco. O relâmpago iluminou o céu e, por instantes, ficou tão claro como de dia.
- Raios! - disse Theo por entre os dentes ao ver outro vulto a atravessar a estrada.
Michelle estava na casa de banho a vestir-se à luz ténue da lâmpada de presença do corredor. Estava a calçar os ténis quando a lâmpada se apagou. Era demasiado recente para se ter fundido. Correndo para o quarto, verificou que o mostrador do rádio-relógio também estava às escuras. Ou um raio atingira um fio eléctrico, ou alguém cortara a energia que alimentava a sua casa. Michelle inclinou-se mais para a segunda hipótese.
Sem a lâmpada de presença, não se via nada. O roupeiro ficava mesmo à saída do quarto de hóspedes. Michelle procurou o puxador, conseguiu abrir a porta e estendeu o braço para chegar à última prateleira, onde estava a lanterna. Derrubou um frasco de álcool e uma caixa de pensos. O frasco caiu-lhe mesmo em cima do peito do pé. Ela deu-lhe um pontapé e atirou-o para dentro do roupeiro, encontrou a lanterna e em seguida fechou a porta para não embater nela.
Havia pensos espalhados por todo o lado. Michelle escorregou num ao entrar no quarto de hóspedes.
- Não há telefone nem electricidade. Theo, o que está a acontecer?
- Estão dois homens no quintal da frente. Um está agachado ao pé da árvore e não se mexe. Pega no meu telemóvel e dá-mo. Temos de pedir ajuda.
Michelle teve medo de ligar a lanterna porque os cortinados estavam abertos e quem estivesse lá fora veria a luz; contornou a cómoda, sentindo-se cada vez mais frustrada.
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- Onde está o telemóvel? - perguntou ela. Depois, ouviu o ruído de um motor ao longe.
Correu para a janela virada para a água e viu a luz do barco a aproximar-se cada vez mais do pontão. Não sabia quantas pessoas estavam no barco, só via aquele farol trémulo que parecia pulsar com uma vida própria e cuja luz era cada vez mais intensa.
Theo já tinha vestido os jeans e calçado os sapatos e tentava ao mesmo tempo enfiar uma t-shirt de cor escura pela cabeça e espreitar pela janela. Sentiu uma dor no braço ao puxar a manga e a pele húmida e pegajosa de sangue. Tocou na ferida, sentiu o estilhaço de vidro e ficou aliviado por não ser uma bala. Limpou a mão aos jeans, puxou a t-shirt para baixo e retirou o estilhaço. Sentiu um ardor, como se lhe tivessem encostado um ferro em brasa à pele.
- Vem um barco a dirigir-se para o pontão - disse ela. Pertence aos dois que estão no quintal, não pertence?
Sentiu-se estúpida ao fazer esta pergunta. É claro que havia mais homens. Qual dos seus amigos iria visitá-la de madrugada, debaixo de uma chuva torrencial?
- O que é que eles querem? - perguntou ela em voz baixa.
- Depois perguntamos-lhes - respondeu ele. - Onde está o meu telefone? - perguntou ele, atando o coldre aos jeans, guardando a arma e fechando a mola.
Já delineara o plano de fuga. Tinham de sair pela janela de trás, saltar para o tecto do alpendre e depois para o chão e correr. com um pouco de sorte, conseguiriam chegar ao carro dele.
- Não está em cima da cómoda - disse ela.
- Ah, raios! - disse ele em voz baixa. De repente, lembrara-se onde o deixara. Estava a carregar ao lado do de Michelle em cima da secretária do rés-do-chão. - Deixei-o a carregar junto do teu telefone.
- vou lá buscá-lo.
- Não - disse ele bruscamente. - Os degraus dão para a porta das traseiras, e se um deles lá estiver à espera, vê-te. Deixa-te ficar ao pé da janela e tenta ver quantos é que saem do barco. Ele já atracou?
Theo fechou a porta com o pé e em seguida empurrou a pesada cómoda para junto dela, esperando atrasar os seus perseguidores.
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- Saiu agora mesmo um homem do barco e traz uma lanterna. Vai para o quintal das traseiras... Não, vai para a frente. Não percebo se há mais um.
- Abre a janela - disse ele, pegando nas chaves do carro e enfiando-as no bolso de trás. - Vamos sair por aí. Deixa-me ser o primeiro para poder apanhar-te.
Theo saiu pela janela, saltou e tentou fazer o menos barulho possível ao cair no telhado do alpendre. As telhas estavam escorregadias da chuva, e ele ia perdendo o equilíbrio ao aterrar na superfície inclinada. Abriu as pernas, levantou os braços e esperou que Michelle saltasse, sempre a rezar para que os relâmpagos não os denunciassem. Se houvesse outros indivíduos no quintal ou no barco, avistá-los-iam e dariam o alerta.
Theo agarrou em Michelle precisamente quando ouviu o som de vidros partidos lá em baixo. Parecia que vinha da porta das traseiras. Seguiu-se imediatamente um tiroteio ensurdecedor vindo da frente da casa. Os patifes estavam organizados. Entravam ao mesmo tempo pelas duas portas. Queriam apanhar Theo e Michelle lá dentro.
Michelle ouviu-os a derrubar coisas lá em baixo. Quantos seriam? Enfiou a lanterna na cintura dos jeans e subiu para o parapeito.
- Vamos - disse Theo em surdina. Havia ansiedade na sua voz.
Ela hesitou um ou dois segundos, tentando concentrar-se, mas depois ouviu o ruído de passos nas escadas. E atirou-se.
Theo agarrou-a pela cintura. Ela escorregou, mas ele segurou-a bem até ela recuperar o equilíbrio. Sem se afastar dele, avançou pelo telhado de gatas. Chovia torrencialmente. Michelle mal via as próprias mãos. Chegou à beira, experimentou o algeroz, esperando poder pendurar-se nele, mas o algeroz estava solto e ela sabia que ele faria muito barulho ao cair. Ao lado da casa havia uns arbustos lilases muito grandes. Ela protegeu os olhos com uma mão e saltou para o meio dos arbustos.
Apressando-se a sair do caminho de Theo, embateu num ramo grosso. Fez um corte na face e mordeu o lábio para não gritar.
- Para onde? - perguntou ela em voz baixa.
- Para a frente. Espera aí.
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Theo puxou da pistola. Dirigiu-se para a esquina da casa, agachou-se e depois espreitou. A capota do seu carro estava levantada, o que queria dizer que eles o tinham neutralizado. Olhou para o outro lado da estrada, calculando a distância a que estava do pântano. Não lhe agradava ficar encurralado e ser perseguido no labirinto da densa vegetação, mas se os outros conseguiam correr de um lado para o outro sem ser vistos, também ele e Michelle conseguiriam chegar ao cruzamento.
Avistou um automóvel estacionado mais acima. Nem teria dado por ele se os faróis dos travões não se tivessem acendido de repente. Quem estava lá dentro pusera o pé no travão. Um segundo depois, os faróis apagaram-se.
Theo voltou para junto de Michelle.
- Temos de tentar chegar ao teu barco. É a única maneira de sairmos daqui.
- Vamos!
Conseguiram chegar à beira do pontão sem serem vistos. Apanhado no clarão de uma luz vinda da janela do quarto, Theo empurrou Michelle para baixo, virou-se e disparou. Não percebeu se tinha atingido alguma coisa ou não. A luz apagou-se e ele ouviu gritar.
- Dá-me a tua lanterna - disse ele, ofegante. Michelle tirou-a da cintura. Theo agarrou nela e estendeu o
braço para que ficasse à frente deles. Obrigou Michelle a baixar-se outra vez, tentou protegê-la e segredou:
- Não te mexas!
Em seguida, ligou a lanterna. O feixe de luz incidiu num dos patifes que saíra de casa e corria na direcção deles. Michelle viu-o claramente e perdeu o fôlego, surpreendida. O reconhecimento foi rápido e chocante.
Theo disparou duas vezes e foi obrigado a desligar a lanterna. Choviam balas à volta deles, forçando-os a baixarem-se. Theo apontou a lanterna para o outro barco, ligou-a e lá estava outro homem à espera deles. De cócoras, espreitava pela mira de uma espingarda de alta potência quando Theo disparou. A bala atingiu o motor. Theo abriu fogo outra vez quando o homem transpôs a borda do barco e caiu à água.
Desligando a lanterna, Theo obrigou Michelle a levantar-se e gritou "Vai!", enquanto as balas assobiavam e estalavam à sua volta,
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fazendo ricochete na árvore e no pontão. Michelle arrastou-se através do pontão, agarrada ao poste para não cair à água, e começou a desamarrar freneticamente
o barco dos atacantes. Theo já tinha desamarrado o dela e saltado lá para dentro e puxava o cordão do motor.
Por fim, Michelle conseguiu desatar a corda e empurrou o barco o mais para longe possível do pontão. Theo gritava-lhe que se despachasse. Ela saltou para dentro do barco e chocou com Theo quando ele conseguiu ligar o motor. Uma chuva de balas fustigou a água à volta deles.
Theo debruçou-se sobre Michelle, tentando protegê-la e manter a cabeça baixa ao mesmo tempo. Virou o barco para norte e empurrou a alavanca para baixo. A ponta dianteira do barco saiu da água, deu um solavanco para trás e em seguida uma guinada para a frente. Uma bala assobiou tão perto da orelha de Theo que ele julgou sentir-lhe o calor.
Theo olhou para trás e viu dois homens com lanternas na mão a correr pelo quintal. Um deles atirou-se à água. Theo percebeu que ele e Michelle não tinham mais de trinta segundos para sair dali. Voltou a sentar-se no banco e ajudou-a a levantar-se.
Assim que ela levantou a cabeça, compreendeu que iriam afastar-se da civilização.
- Tens de dar meia volta - disse ela.
- Não - respondeu ele. - É demasiado tarde para voltarmos para trás. Eles vêm atrás de nós. Vira a luz para a frente.
Michelle sentou-se no meio dos joelhos dele e apontou o feixe de luz para diante. A luz evitou um desastre. Mais cinco segundos e teriam embatido no tronco de uma árvore morta a sair da água. Theo virou bruscamente para a esquerda e depois endireitou o barco.
- Ainda bem que trouxeste a tua lanterna - disse ele.
- Há uma curva fechada mesmo à frente - disse ela Abranda e vira à direita. Pela esquerda não há saída.
Agarrando-se ao joelho dele para se equilibrar, Michelle virou-se e levantou-se para olhar para trás.
- Ainda não vejo luzes - disse ela, com um alívio tão grande que era quase doloroso. - Talvez eles não venham atrás de nós. Talvez nos deixem em paz, agora que fugimos.
Quando ela se virou, ele puxou-a para si.
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- Não creio que desistam. Ainda agora começaram. Viste a mira daquela espingarda? Estão armados até aos dentes. Vieram à caça e não desistirão sem dar luta. Temos de arranjar um telefone e pedir socorro. Indica-me o caminho mais rápido para voltar à cidade.
- O braço do rio tem a forma de um grande oito - explicou ela. - Se tivesses saído do meu pontão e seguido para sul, terias dado uma grande volta e avistado o Swan. Temos de voltar para trás.
- Iremos ao encontro deles se o fizermos.
- Eu sei - segredou ela com uma voz rouca. Não tinha gritado, mas doía-lhe a garganta. - Há pelo menos umas vinte enseadas aqui à volta. Umas não têm saída. E outras são circulares. Se eles souberem que elas existem, podem adiantar-se a nós e encurralar-nos.
- Nesse caso abrandamos e, se virmos as luzes deles, metemo-nos num dos canais e escondemo-nos até ser dia.
Estavam a aproximar-se de outra curva.
- Por onde sigo? - perguntou ele.
- Não tenho a certeza. Tudo parece tão diferente à noite. Acho que esta forma um círculo fechado.
- Está bem, seguimos pela esquerda - disse ele, virando o barco nessa direcção.
- Theo, eu posso estar enganada.
Michelle ouviu o som de um barco a motor ao longe. O som aproximava-se cada vez mais. Contornaram mais um tronco de árvore.
Theo também ouviu o ruído. Avistou um canal estreito, abrandou a potência do motor e virou mais uma vez. Viam-se ramos cobertos de musgo que quase tocavam na água. Theo afastou-os para passar. Depois de ter virado outra vez e visto como o canal estreitava, desligou o motor.
Michelle apagou a lanterna. Encostaram-se um ao outro e viraram-se para o lado de onde vinha o som. A escuridão era tão grande que parecia o interior de um caixão. A chuva abrandara e resumia-se agora a um chuvisco.
O pântano pulsava de vida. Theo ouviu qualquer coisa a entrar na água atrás deles. De repente, as rãs deixaram de coaxar e os grilos calaram-se. Mas havia qualquer coisa a mexer-se. Que
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diabo seria? Em seguida, o barco chocou com alguma coisa. Theo pensou que fosse outro tronco de árvore, mas não tinha a certeza. O barco balouçou para trás e depois parou.
Michelle aproximou-se dele por trás, empurrou uma alavanca e pediu-lhe em surdina que a ajudasse a tirar o motor da água.
- Se continuarmos a navegar neste canal, a hélice pode ficar presa no lodo. Aqui há baixios.
O barco embateu num obstáculo.
- Lá estão eles - segredou Michelle.
Viram a luz do barco a motor a explorar a vegetação densa como se fosse um farol, a mover-se de um lado para o outro, num arco amplo, à procura deles.
A luz não os encontrou. Michelle respirou fundo e expeliu lentamente o ar. Tinham acabado de transpor mais um obstáculo, e ela aproveitou o momento para agradecer essa bênção a Deus. Ainda não estavam livres de perigo, mas Theo tinha razão ao dizer-lhe que poderiam esconder-se até ser dia e pedir socorro. Dentro de pouco tempo, aquele pesadelo chegaria ao fim.
Os perseguidores tinham continuado a avançar. O ruído do barco deles dissipara-se. Michelle apostava que eles continuariam a avançar durante mais uns minutos e depois voltariam atrás, para fazer uma busca mais completa.
Na mente de Theo, os pensamentos voavam. Seriam criminosos profissionais? Se eram, quem os enviara? A quadrilha tê-lo-ia seguido até à Louisiana? Estariam ali para se vingarem por ele ter contribuído para condenar muitos dos seus chefes? Teria o facto de ele estar ali posto em perigo a vida de Michelle?
Michelle ouviu um ramo a estalar por cima dela. Levantou a cabeça e olhou para os ramos um segundo antes de sentir qualquer coisa a cair-lhe sobre o pé esquerdo. Recorreu a toda a força de vontade do mundo para não gritar. O que quer que caíra subia-lhe agora pela perna. Ficou imóvel, agarrada à lanterna no regaço e com o dedo no interruptor.
- Theo, pega no remo - segredou ela, tentando não mexer nenhum músculo. - Quando eu acender a luz, atira-a pela borda fora, está bem?
Theo não percebeu. A que se referia Michelle? De que estaria a falar? Mas não perguntou nada. Limitou-se a pegar no remo como se fosse um taco de beisebol e ficou
à espera.
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- Estou pronto.
Michelle accionou o interruptor. Theo ficou estarrecido. Ia deixando cair o remo ao ver a hedionda cobra preta. A língua bífida entrava e saía da boca do monstro,
como se antecipasse o que ia morder. A cabeça triangular e achatada estava pousada na rótula de Michelle e os olhos pareciam fitar os dela.
O tempo parou quando Theo içou o remo na direcção da cobra e a atirou para a água. Theo levantou-se de um salto e agarrou-se a Michelle.
- Filha-da-mãe! - vociferou ele. - Filha-da-mãe! Michelle ajoelhou-se, com o coração aos pulos. Não afastou o
feixe de luz da cobra, que deslizou na água e foi-se esconder-se nos arbustos que cresciam no outro lado da margem lodosa. Em seguida, examinou a água, estendeu
o braço e apanhou o remo que Theo deitara pela borda fora. Pousou-o no fundo do barco e recostou-se.
- Foi por um triz.
Theo dava-lhe palmadinhas nas pernas.
- Ela mordeu-te? - perguntou ele, frenético.
- Não, não mordeu. É provável que estivesse mais assustada do que nós.
- Que diabo era aquilo?
- Uma serpente piscívora - respondeu ela.
- Filha-da... Elas são venenosas.
- Pois são - admitiu ela, pegando-lhe na mão. - Não me batas mais.
- Eu só queria ter a certeza que não havia outras... Theo calou-se, percebendo que estava a ser irrazoável.
- Outras cobras a trepar pela minha perna? Não há mais nenhuma. Eu daria por isso, acredita. Acalma-te.
- Como é que consegues manter a calma? Aquela coisa estava em cima da tua perna.
Michelle pôs-lhe a mão na face.
- Mas tu enxotaste-a.
- Pois, mas...
- Respira fundo.
Michelle não estava tão calma como parecia. Quando ele a abraçou, sentiu que ela estava a tremer.
- Sabes uma coisa?
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- Deixa-me adivinhar. Detestas cobras.
- Como é que sabias que eu ia dizer isso? Michelle sorriu e afastou-se dele.
- Tive um pressentimento.
- Vamos embora daqui.
Theo enfiou a mão na água para ver se conseguia afastar o barco da margem e sentiu os dedos a serem sugados pelo lodo. Michelle agarrou-lhe o braço e puxou-o para trás.
- Nem penses em meter a mão na água, pelo menos neste sítio.
Theo nem perguntou porquê. Imaginou um crocodilo a atirar-se a ele e estremeceu. Agarrou no remo e serviu-se dele para afastar o barco da margem.
- Achas que isto tem saída?
- Sempre vivi aqui e conheço estas águas, mas às escuras não me atrevo a fazer palpites. Creio que este canal acaba a uns quatrocentros metros daqui. Se avançarmos, podemos ficar encurralados e eu não quero atravessar o pântano a pé. Acho que devemos voltar para trás.
- É também a minha opinião.
- Quando voltarmos para trás, continuaremos a remo. Se eles andarem por aqui, não nos ouvirão.
Michelle pegou no outro remo e ajudou-o a virar o barco.
- Se cair mais alguma maldita cobra neste barco, garanto-te que me ouvirão.
Theo trocou de lugar com Michelle e remou até à entrada do canal. Depois, parou e virou-se para trás.
- O que achas? Podemos voltar para tua casa? Se conseguisse ter acesso ao meu telemóvel...
Ela interrompeu-o.
- Afastámo-nos muito para jusante. Teríamos de andar para trás e isso seria abusar da sorte.
- Está bem. Vamos sempre a direito. Esperemos que haja um pontão aqui perto.
Theo não via nada a mais de três metros, mas sabia que era demasiado arriscado acender a lanterna nesse momento. Michelle debruçou-se sobre o banco para conseguir chegar ao motor. Pôs a mão no cordel, pronta para puxá-lo se eles fossem descobertos. Tudo a preocupava. Quando enchera o depósito pela última vez?
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Não se lembrava. E se eles chegassem ao meio do canal e o holofote os localizasse?
O barco deslizava. com os seus braços fortes, Theo remava como um profissional.
Michelle avistou a luz a varrer a água.
- Eles andam à nossa procura nos canais - disse ela em voz baixa.
Theo continuava a remar, mas a olhar para trás. O feixe de luz ziguezagueava na água, mas o barco não se mexia. Encontrava-se a cerca de duzentos metros.
- Eles ainda não nos viram. ,
- Achas que ligue o motor...
- Não - respondeu ele, categórico. - Esperamos aqui. Talvez consigamos.
Passado um minuto, o feixe virou-se na direcção deles. Michelle não esperou que Theo lhe dissesse para ligar o motor. Puxou o cordão com força. O motor não pegou à primeira. Theo recolheu os remos e obrigou Michelle a baixar-se no momento em que uma bala lhe passou ao lado da cabeça. Michelle puxou com mais força e soltou uma exclamação de regozijo quando o motor começou a trabalhar.
Theo tirou a arma do coldre, e gritou a Michelle que não levantasse a cabeça, precisamente quando outra bala caiu na água junto deles. Theo apoiou o cotovelo no banco e disparou.
Os patifes aproximavam-se depressa. Theo tentava atingir o holofote. Falhou à primeira, mas ouviu alguém gritar e esperou que isso significasse que acertara num deles. Puxou o gatilho outra vez e acertou no alvo. A bala estilhaçou o holofote, dando-lhes talvez mais cinco ou dez segundos até que um dos perseguidores apontasse a lanterna para eles.
Michelle não conseguia perceber a que distância se encontravam da margem. Tentou chegar à manete para reduzir a velocidade, mas era tarde demais. De repente, o barco empinou-se e foi embater nos espinheiros. Não parou, mas balançou duas vezes antes de chocar com uma árvore. com o impacte, Theo foi cuspido para a parte da frente. Caiu sobre o lado esquerdo e bateu com o joelho no alumínio. O braço, ainda a latejar devido ao golpe feito pelo vidro, bateu na orla metálica. Theo sentiu a pele a rasgar-se e uma dor até ao cotovelo.
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Michelle bateu com a testa no banco, deu um grito e levantou os braços para se proteger.
Theo saltou do barco, enfiou a arma no coldre e puxou Michelle. Atordoada com o impacte, ela abanou a cabeça e tentou recompor-se enquanto procurava a lanterna.
- Anda! - gritou ele, tentando sobrepor-se ao ruído do motor que se aproximava.
Ia a pegar nela quando Michelle encontrou a lanterna e a apanhou. Sentia o bater do coração no esterno. Parecia que lhe tinham aberto a cabeça ao meio e que a dor a cegava. Tropeçou.
Theo agarrou-a, puxou-a para junto de si e, levando-a quase ao colo, correu para o meio da vegetação. Não fazia a mínima ideia para onde se dirigiam. Completamente desorientado, correu em direcção aos ramos espinhosos, abrindo caminho com o braço direito. Ainda ouvia o ruído do motor à distância e estava ansioso por levar Michelle para bem longe, antes que os homens atracassem o barco.
Abriram caminho através da vegetação densa e do solo alagadiço e pararam duas vezes à escuta, tentando perceber se eram seguidos. Por fim, saíram das moitas e desembocaram numa clareira.
Michelle parou para se orientar. Não sabia ao certo onde estavam.
- Achas que arrisque? - perguntou ela, erguendo a lanterna e aproximando o polegar do interruptor. - Não creio que eles vejam a luz se eu a acender por um segundo.
- Acende!
Michelle accionou o interruptor e suspirou de alívio.
- Acho que sei onde estamos.
Desligou a lanterna e acrescentou em voz baixa:
- Estamos a cerca de mil e seiscentos metros do Swan. Estavam à beira de uma estrada de terra batida que, aos olhos
de Theo, era igual a muitas outras por onde passara.
- Tens a certeza?
- Tenho.
Theo agarrou-a pela mão e desatou a correr. Se conseguissem dar a curva antes de os seus perseguidores chegarem à estrada, ficariam a salvo. De vez em quando, espreitava por cima do ombro à procura de luzes. Os únicos sons que se ouviam eram a respiração ofegante de ambos e o bater dos pés no solo.
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Michelle acendeu a lanterna outra vez, por um instante, porque teriam de sair da estrada antes de chegar à curva. Tropeçou, mas Theo conseguiu ampará-la sem abrandar. Olhou para trás outra vez, viu o pequeno feixe de luz a varrer a estrada e correu ainda mais depressa.
Estava certo de que não os tinham visto.
- Agora estou bem. Consigo correr - disse Michelle, a arfar.
Theo largou-a, mas deu-lhe a mão e continuou a correr. Avistou uma luz a cintilar ao longe, como se fosse uma estrela, e seguiu nessa direcção.
Michelle sentia um ardor permanente no arranhão, e era como se a cabeça estivesse prestes a rebentar-lhe. Quando chegaram a um cruzamento, dobrou-se e agarrou-se aos joelhos.
- O Swan fica lá em baixo à esquerda - disse ela, ofegante.
- Podemos chamar a polícia de lá.
A estrada era uma amálgama de cascalho e lama. Theo lembrava-se de ter passado por ali de carro. Continuou a correr, sempre atento à vegetação lateral e pensando onde haviam de esconder-se se ele ouvisse alguém atrás.
- Estás bem? - perguntou ele em surdina.
- Estou bem - respondeu ela.
Apeteceu-lhe gritar de alívio quando avistou um prédio às escuras mesmo à frente. A sensação de euforia durou pouco porque, um segundo depois, ouviu um carro a chiar ao descrever a curva atrás deles.
Nem teve tempo de reagir. Espreitou por cima do ombro para ver os faróis e logo a seguir saiu da estrada e correu para uma vala, pela mão de Theo. Caiu de lado. Theo agachou-se ao lado dela e pegou na arma, sem tirar os olhos da estrada. Estavam escondidos atrás de uns arbustos e de umas moitas.
Michelle palpou o galo na testa, com cuidado, e fez um esgar. Os pensamentos sucediam-se na sua mente. Depois, lembrou-se do que queria dizer a Theo.
Ela sussurrou o nome dele. Ele tapou-lhe a boca com a mão.
- Chiuu! - murmurou ele ao ouvido dela.
O carro parou junto deles. Michelle fez um esforço para não se encolher, ao ouvir alguém a afastar os arbustos ao lado deles. Percebeu que sustivera o fôlego quando o peito começou a doer-
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-lhe. Exalou lentamente e sem fazer barulho. Agarrou-se ao joelho de Theo. Mais uma restolhada e depois um homem a resmungar por entre dentes ao voltar para o carro. Ouviram-no a pisar o cascalho.
Michelle sentiu a atmosfera húmida. De repente, começou a lacrimejar e teve necessidade de espirrar. Por favor, meu Deus, agora não. Não posso fazer barulho... por enquanto. Apertou o nariz com os dedos e respirou pela boca. As lágrimas correram-lhe pela face. Tapou a boca com a t-shirt de Theo.
Theo ouviu a porta a bater e depois o carro a andar. Mas não tencionava arriscar. Apurou o ouvido. Quantos estavam ali? Pelo menos quatro homens tinham tentado armar-lhes uma emboscada. Ele vira dois em frente da casa de Michelle e mais dois que tinham levado o barco para o pontão. O objectivo óbvio era encurralarem-nos dentro de casa. Theo jurou a si próprio que, assim que ambos estivessem a salvo e saíssem daquela selva, os apanharia a todos.
Mudou de posição para não sobrecarregar os joelhos. Abraçou Michelle, inclinou-se e disse em voz baixa:
- Eles vão ao Swan à nossa procura e nós vamos esperar que eles se vão embora. Continuas a sentir-te bem?
Michelle fez um gesto afirmativo, encostada a ele. Assim que Theo se virou para espreitar a estrada, ela apoiou o queixo nas costas dele e fechou os olhos. O ritmo cardíaco diminuíra. Michelle queria tirar partido da trégua temporária, na eventualidade de terem de começar a correr outra vez. Quem eram aqueles homens e porque andavam atrás deles?
Passou o peso do corpo de um joelho para o outro. Pareceu-lhe que estava em cima de um monte de estrume. As folhas molhadas, podres e em decomposição exalavam um forte cheiro a mofo. Devia haver algum animal morto ali perto, porque cheirava a carne putrefacta. Apeteceu-lhe vomitar.
Parara de chover. Era um aspecto positivo. Céus, há quanto tempo esperavam ali? Pareceu-lhe que já estavam ali no meio do mato há uma hora, mas perdera a noção do tempo desde que ouvira o primeiro tiro.
Michelle ouviu o carro antes de ver as luzes dos faróis através dos ramos. Vinha a descer a estrada, passou por eles sem abrandar e seguiu caminho.
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Theo aproveitou a oportunidade e espreitou para ver em que direcção seguia o carro. Este abrandou no cruzamento e seguiu em frente, o que significava que os homens
ainda não tinham desistido e os procuravam noutra estrada secundária. Theo tentou ver a matrícula, mas não conseguiu.
- Daqui a pouco, eles serão obrigados a desistir de procurar-nos - disse ela em voz baixa. - Quando nascer o dia, não vão querer arriscar-se a serem vistos pelos
pescadores mais madrugadores. Achas que vão desistir?
- Talvez - disse ele quando se levantou, contorcendo-se com a dor no joelho. Ajudou-a a pôr-se em pé. - Mantém-te na berma da estrada e não acendas a lanterna.
- Está bem, mas se os ouvires aproximar-se, não me atires outra vez para uma vala. Avisa-me. vou ficar com uma nódoa negra de lado.
Theo não se mostrou arrependido quando disse:
- É preferível uma nódoa negra do que uma bala. Michelle espirrou. Sentiu-se aliviada.
- Eu sei - disse ela. - Consegues correr? - perguntou ela, reparando que ele coxeava de uma perna.
- Claro. Estou um pouco emperrado, mais nada. Vamos!
- Havia uma única luz acesa num poste perto da entrada para o
parque de estacionamento. Theo não corria riscos. Empurrou Michelle para o meio da vegetação e contornou o Swan até à porta das traseiras. Não viu nenhum movimento
lá dentro. A porta de trás era de metal, e Theo começou a recuar até uma das janelas da frente, procurando no chão uma pedra grande.
- Tenho de entrar pela janela - disse ele, pegando numa pedra pontiaguda.
- O que vais fazer?
- vou partir o vidro.
- Não - disse ela em voz baixa. - Eu sei onde é que o papá guarda um duplicado da chave.
Theo largou a pedra e dirigiu-se para a porta. Ela ligou a lanterna, aproximou-se da porta e tirou a chave da saliência da ombreira.
- É um esconderijo muito inteligente - disse ele.
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- Não sejas sarcástico. Ninguém se lembraria de arrombar o bar do papá.
- Porquê?
- Porque o John Paul iria atrás deles, e todos eles sabem. O papá podia deixar a porta no trinco se quisesse.
Michelle fez duas tentativas para enfiar a chave na fechadura porque tinha as mãos a tremer. "É a ressaca", pensou. Finalmente, o seu corpo reagia à experiência aterradora que ela e Theo tinham vivido.
Theo foi o primeiro a entrar, piscando os olhos na escuridão, e depois, conservando Michelle atrás dele, disse-lhe em surdina que fechasse a porta à chave. Ouviu o som da cavilha a deslocar-se para o seu lugar. O frigorífico começou a zumbir e a vibrar. O telefone estava na sala principal ao fundo do bar, mesmo à saída da arrecadação. Theo julgou ouvir um som, talvez uma tábua do soalho a ranger.
- Fica aqui - segredou ele, puxando da arma e entrando cautelosamente no bar.
A luz do parque de estacionamento projectava uma sombra acinzentada nas mesas e no chão. Mas os cantos estavam às escuras. Theo foi para trás do balcão. Os seus olhos tinham-se adaptado à semiobscuridade e o seu olhar estava agora totalmente concentrado na porta entreaberta que dava acesso ao armazém. Era um sítio perfeito para alguém se esconder. Teria lá ficado algum homem? Não, isso não fazia sentido para Theo, mas mesmo assim não tirava os olhos da porta à medida que ia avançando.
Parou no meio do bar e meteu a mão debaixo do balcão para tirar a espingarda de Jake. "Não falharia o alvo com aquela especialidade", pensou, tocando com a mão na soleira da espingarda. Retirou-a do suporte e puxou-a para fora com todo o cuidado.
Ia a afastar-se do balcão quando sentiu uma pequena corrente de ar na nuca. Sem se virar nem ouvir um único som, percebeu que alguém vinha atrás dele e depressa.
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CAPÍTULO 31
- Michelle, foge! - gritou Theo.
Largou a espingarda em cima do balcão e deu meia-volta, com a sua Glock em riste.
Não conseguiu ver a cara do homem, estava muito escuro. A sombra enorme aplicou um golpe de karaté ao pulso de Theo, mas ele agarrou a arma com força. Depois, a sombra agarrou no braço de Theo e torceu-lho atrás das costas com uma mão, enquanto a outra se preparava para lhe dar um murro no queixo.
Theo esquivou-se, mas não com a rapidez necessária. Os nós dos dedos da sombra atingiram-no no queixo, empurrando-lhe a cabeça para trás. Theo sentiu uma dor lancinante no maxilar. Concentrou todas as suas energias no pulso esquerdo e atingiu o agressor na barriga. Sabia que estava em apuros. Era como se o seu pulso esquerdo tivesse batido num bloco de cimento, e admitiu que tivesse fracturado a mão.
Donde viera o filho-da-mãe? Já se aproximara de Michelle? Enfurecido, Theo voltou ao ataque. com a rapidez de um martelo, o homem levantou a perna para dar um pontapé no joelho de Theo.
Michelle acendeu as luzes fluorescentes e gritou:
- John Paul! Não! Larga-o!
Os dois adversários estavam agora envolvidos numa luta corpo-a-corpo e cada um tentava usar a sua força para atingir as costas do outro. Quando John Paul ouviu o grito da irmã, largou-o. Mas Theo não fez o mesmo. Tentou agredi-lo outra vez, esperando desfazer-lhe a cara, mas John Paul evitou o murro com a mesma facilidade com que afastaria um mosquito importuno. Sem
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querer, bateu com a mão numa garrafa de uísque que fez tombar as outras garrafas alinhadas na prateleira atrás do balcão.
Os dois homens recuaram ao mesmo tempo, medindo forças. Michelle pôs-se no meio deles, olhando ora para um ora para o outro, e concluiu que Theo era o mais descontrolado. Pôs-lhe a mão no peito, disse-lhe que respirasse fundo e agarrou-o até ele se dominar e fazer o que ela pedia.
Theo deitou um longo e duro olhar ao homem. John Paul parecia um selvagem. Envergava uns calções verdes do Exército, botas e uma t-shirt e era tão musculoso como o Jolly GreenGiant1. Mas não tinha nada de prazenteiro. A faca-de-mato enfiada no forro da bota e o olhar frio e desvairado indicavam que ainda lhe apetecia desfazer Theo. Não, definitivamente, ele não era o Jolly Green Giant. Uma má comparação, pensou Theo, ainda a ofegar devido ao esforço e ao receio de que Michelle estivesse ferida. O irmão podia fazer carreira em filmes de feiticeiros. Usava o cabelo bastante comprido, e as cicatrizes - uma na face e outra na coxa - levaram Theo a pensar que ele pertencia a uma época recuada.
- Theo, quero apresentar-te o meu irmão, John Paul. Sentindo que já podia largá-lo, Michelle virou-se para o irmão.
- John Paul, este é...
O irmão cortou-lhe a palavra.
- Eu sei quem ele é. Theo pestanejou.
- Você sabe quem eu sou?
- Exactamente - respondeu John Paul.
John Paul nunca fugira a uma luta na sua vida e, quando Theo avançou para ele, deu imediatamente um passo em frente. Michelle ficou comprimida entre eles.
- Se você sabia quem eu era, porque se atirou a mim? - voIciferou Theo.
- Sim, porquê? - quis saber Michelle, inclinando o pescoço Ppara trás, para conseguir fitar o irmão. - Isso foi indelicado, John Paul.
1 Boneco que representa um gigante verde e que foi criado como símbolo de uma companhia americana de alimentação: Green Giant. (N. da R.)
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A irmã sabia sempre o que havia de dizer para o fazer rir. Foi preciso fazer um esforço para manter o seu ar furioso. Indelicado. com os diabos, sim, calculava que tivesse sido indelicado.
John Paul cruzou os braços.
- Eu não podia permitir que ele levasse a espingarda - explicou ele a Michelle. - Ele podia ser do género de se assustar com facilidade e dar um tiro em alguém, ou mesmo no pé.
Theo não estava descansado. Deu mais um passo em frente.
- Você estava a tentar dar-me um pontapé no joelho doente, não estava?
John Paul sorriu.
- A regra é procurar sempre o ponto mais fraco - disse ele.
- Você coxeava de uma perna e eu percebi...
- Você sabia que eu era amigo da sua irmã e mesmo assim queria partir-me a rótula?
- Eu não ia parti-la - contrapôs ele. - Eu só ia deitá-lo ao chão.
- Podias tê-lo magoado - disse Michelle.
- Michelle, não preciso que me defendas - resmungou Theo. A sua masculinidade estava a sofrer um revés e ele já tinha a sua conta de Mad Max.
- Se eu quisesse, tinha-o magoado. Podia tê-lo matado, mas não matei.
- O tanas é que podia! - vociferou Theo, enfiando a arma no coldre.
- Eu podia ter-lhe partido o pescoço, mas resisti ao impulso.
Foi então, quando se virou para dizer a Theo que não apoquentasse mais o irmão, que Michelle reparou no braço ensanguentado dele. Acendeu a luz, aproximou-se mais de Theo e viu uma lasca de vidro enterrada no golpe profundo.
- Quando é que isto aconteceu? Vais ter de ser suturado. Nem lhe deu tempo para ele se explicar. Deu meia-volta e foi
atrás do irmão. Deu-lhe uma pancadinha no peito e perguntou:
- Foste tu que fizeste aquilo? Em que estavas a pensar? Theo sorriu. Podia ter posto termo à tirada dela se abrisse a
boca e lhe dissesse que não fora o irmão o causador daquele ferimento, mas estava a divertir-se à grande ao presenciar a atrapalhação de John Paul. O irmão dela recuava enquanto ela lhe pregava um sermão. com uma boa dose de satisfação presunçosa,
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Theo considerou que a expressão dele era ridícula. Parecia que o tipo não sabia o que havia de fazer. Quando ela terminou o rol de acusações, o irmão mostrou-se um pouco arrependido. Não muito, mas um bocadinho.
À luz intensa, Theo detectou uma certa semelhança entre ela e o irmão. Ambos tinham os malares salientes e olhos azuis da mesma tonalidade, mas as semelhanças ficavam por aqui. Michelle era linda. Tinha um humor suave e adorável. John Paul, não.
Numa atitude acriançada, Theo queria continuar a odiar o homem, mas sabia que não podia porque via nos olhos de John Paul aquilo que amava em Michelle e pensou que ele era mais um irmão grande que faria o que fosse preciso para a proteger.
Mas o seu gesto de magnanimidade não durou muito. John Paul deitou-lhe um olhar furibundo e perguntou:
- A minha irmã parece que foi arrastada pela lama. O que diabo andaram vocês a fazer?
Foi a vez de Michelle lhe chamar a atenção.
- Vais ter de explicar ao papá porque é que lhe partiste a melhor garrafa de uísque - disse ela ao irmão. - Agora, limpa isso enquanto eu telefono ao Ben.
Michelle afastou Theo do caminho para chegar ao telefone. Telefonou para a esquadra e pediu ao telefonista que ligasse para casa de Ben Nelson.
Theo disse a John Paul que apagasse a luz. Para sua surpresa, ele obedeceu e ouviu a sua explicação sobre o que acontecera. John Paul não reagiu.
Quando Theo acabou de falar, John Paul perguntou:
- Acha que eles voltam? É por isso que não quer a luz acesa?
- Talvez não voltem, mas não vou correr riscos. Podíamos ficar aqui encurralados.
- Não, não podíamos - contrapôs John Paul. - Além disso, eu ouvia-os chegar.
- Ai sim? Ouvia-os mesmo que eles estivessem em cima de nós?
John Paul assentiu com a cabeça.
- Sim, ouvia.
- Julga que é o Superhomem? O irmão de Michelle sorriu.
- Mais ou menos. Eu adorava que eles tentassem entrar. Assim, teria a oportunidade de matar dois.
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- Não há nada mais divertido do que um tiroteio, mas não com a sua irmã aqui - disse Theo, com sarcasmo.
- Pois, eu sei.
Theo começava a sentir os efeitos da luta. Doía-lhe o maxilar e tinha o braço a latejar. Abriu o cooler, tirou duas garrafas grandes de cerveja e, embora lhe apetecesse atirar uma à cabeça de John Paul, concluiu que isso seria um desperdício e deu-lha.
John Paul não agradeceu. Nem Theo esperava que ele o fizesse. Abriu a sua garrafa e bebeu um bom gole.
Theo ouviu Michelle a falar com Ben e interrompeu a conversa.
- Diz-lhe que vá ter connosco lá a casa.
Michelle pediu a Ben que esperasse um pouco e disse a Theo que tinham de ir ao hospital.
Theo considerou que o seu braço estava no fim da lista de prioridades.
- Não - disse ele com firmeza. - Primeiro, vamos a tua casa.
- Meu Deus, és mesmo teimoso - disse ela em voz baixa, mas cedeu.
Theo queria estender a perna para que a dor no joelho passasse. Sentou-se a uma das mesas, puxou outra cadeira e apoiou o pé nela.
John Paul foi atrás dele e ficou em pé, exibindo a sua corpulência.
- Sente-se - disse Theo.
John Paul deu a volta à mesa, puxou uma cadeira e sentou-se. Começou a fazer perguntas, a exigir mais pormenores. Theo bebeu mais um gole da sua cerveja e depois explicou-lhe do princípio ao fim o que tinha acontecido, omitindo apenas o facto de se encontrar na cama de Michelle. Não lhe pareceu que o irmão dela gostasse de saber.
John Paul apercebeu-se do que Theo omitira.
- Porque foi você fechar a janela do quarto da Mike?
- Porque estava aberta.
- Theo, sabes de que marca era o carro? - gritou Michelle.
- Era um Toyota cinzento... novo - respondeu ele.
- Já se devem ter ido embora - observou John Paul. Theo concordou. Observava Michelle, e John Paul aguardava
pacientemente que ele virasse a cabeça para desancá-lo, porque
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sabia muito bem que Theo estava na cama de Michelle. Não se ralava com o facto de a irmã conseguir tomar as suas próprias decisões, nem que isso não fosse da conta dele. Michelle era a sua irrnãzinha e Theo, na sua opinião, aproveitara-se dela.
- A minha irmã é uma cirurgiã de talento - disse John Paul, com cara de poucos amigos.
- Eu sei.
- Ela passou a maior parte da vida a fazer o estágio.
- Aonde quer você chegar?
- Ela não tem muita experiência com os homens... Não sabe como eles podem ser canalhas.
- Ela é uma pessoa adulta.
- E ingénua.
- Quem é que é ingénua?
- Não interessa - disse o irmão, continuando a fulminar Theo com o olhar.
Também estava zangado com Michelle, não só porque ela se vulnerabilizara ao envolver-se com um estranho, como porque lhe dera para escolher um tipo ligado ao Estado. O que era quase imperdoável.
- Mike, precisamos de ter uma conversa, tu e eu. Michelle ignorou a fúria que a voz do irmão revelava.
- O Ben foi vestir-se e vai ter connosco lá a casa daqui a dez minutos. Também vai mandar dois carros da polícia à procura do Toyota. Eu disse-lhe que deviam ser três ou quatro homens, talvez mais.
- Pelo menos quatro - disse Theo.
- Sabes onde é que o papá guarda o Tylenofi. - perguntou ela ao irmão.
- Na cozinha, por cima do lava-louças. Queres que eu vá buscá-lo?
- Eu vou. Theo temos de ir directamente para o hospital disse ela, afastando-se.
- A sutura pode esperar.
Michelle voltou com um frasco de Tylenol e dois copos de água. Trazia dois sacos com legumes congelados debaixo do braço. Pôs o Tylenol em cima da mesa juntamente com os copos e pegou nos sacos.
- Ervilhas ou cenouras?
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Theo estava a desenrolhar o frasco de Tylenol.
- Cenouras.
Michelle amachucou o saco com as mãos para separar os pedaços congelados e em seguida pô-lo em cima do joelho de Theo.
- Sentes-te melhor?
- Sim, obrigado.
Pegou no saco das ervilhas e pô-lo em cima da cabeça. Theo largou imediatamente a garrafa e puxou Michelle para o seu colo.
- Magoaste-te? Deixa-me ver.
A preocupação patente na voz dele deixou-a à beira das lágrimas. Respirou fundo e respondeu:
- Não é nada. É só um galo. A sério, não é grave...
- Chiu! - segredou ele, afastando-lhe a mão com cuidado e obrigando-a a inclinar a cabeça para ver a ferida na penumbra.
Quanto mais John Paul observava, mais deprimido ficava. Pela ternura com que Theo tocava em Mike, era óbvio que gostava dela, e era demasiado tarde para fazer alguma coisa. Um funcionário federal! Como é que ela se apaixonara por um funcionário federal?
- Raios! - resmungou ele. Michelle e Theo ignoraram-no.
- Não fizeste nenhum golpe no couro cabeludo.
- Eu disse-te que não era nada.
- Mas tens um galo enorme.
- Não faz mal.
Theo afastou-lhe o cabelo da face com ternura. O desagrado de John Paul estava a tornar-se insuportável.
- Mike, sai do colo dele e senta-te numa cadeira.
- Acho que o teu irmão não gosta de mim - disse Theo, sorrindo. Como sabia que John Paul estava a olhar para ele, beijou-a na testa. - Quando é que bateste com a
cabeça? Foi quando a cobra caiu em cima de ti?
Michelle saiu do colo dele e sentou-se na cadeira ao lado.
- Qual cobra? - perguntou John Paul.
- Foi uma serpente piscívora que caiu de uma árvore - explicou ela ao irmão.
Theo abriu o frasco de Tylenol. Michelle estendeu o braço e ele deitou-lhe duas cápsulas na palma da mão.
- Theo, temos de ir buscar aquele envelope ao hospital.
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- De que estás a falar? Qual envelope?
Michelle concluiu que tinha de começar pelo princípio. Apoiou o cotovelo em cima da mesa, encostou o saco de ervilhas à testa e disse:
- Eu reconheci um deles.
- E só agora é que me dizes?
Theo levantou-se de repente, deixando cair o saco das cenouras. John Paul apanhou o saco no ar e pô-lo em cima do joelho de Theo, com força.
Michelle cerrou os dentes, porque o grito agravara a sua dor de cabeça.
- O homem que vinha a correr na nossa direcção quando nós tentávamos chegar ao meu barco... Foi esse que eu reconheci. Apontaste a lanterna acesa para a cara dele, lembras-te? Era o estafeta do Speedy Messenger Service. Foi ter comigo quando eu estava no estádio a ver-te trabalhar com a equipa de futebol...
- Eu reparei nesse tipo no estádio, mas não lhe vi a cara. Estava de boné. Referes-te ao tipo que eu alvejei?
- Sim.
- Matou-o? - quis saber John Paul. Theo não tinha tempo a perder.
- Não - respondeu ele com impaciência. - Falhei. Michelle, continuo a não perceber porque levaste tanto tempo a dizer-me que conhecias um deles.
- E quando é que tive tempo para isso? Quando eles disparavam sobre nós ou vinham atrás de nós? Ou quando estávamos escondidos no pântano e tu não me deixavas falar?
- Tens a certeza absoluta que era o mesmo homem?
- Tenho - respondeu ela, categórica. - Sabes o que é estranho? Quando eu estava a falar com ele no estádio, tive a sensação de que já o tinha visto, mas pensei que me tivesse cruzado com ele no hospital. Lá as entregas são constantes.
- Reconheceste algum dos outros? E o tipo do barco?
- Não lhe vi a cara - respondeu ela. - Ele saltou para a água quando tu disparaste.
- Você matou-o? - perguntou John Paul.
- Não. Falhei.
John Paul mostrou-se incrédulo.
- Porque anda com uma arma se não sabe usá-la?
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- Eu sei usá-la - ripostou Theo, à defesa. - Terei muito gosto em fazer uma demonstração.
- Talvez o tenha ferido - atalhou Michelle, esperançada, reconhecendo imediatamente a ironia. Como médica, devia salvar vidas e não destruí-las. Disparar sobre alguém violava certamente o seu código moral.
- Pois, está certo - resmungou John Paul, insatisfeito.
- A que distância estava esse tipo?
- Estávamos a ser alvejados de dois lados - disse ela.
- E o Theo tentava proteger-me e disparava ao mesmo tempo. John Paul ignorou a explicação dela.
- Porque usa uma arma? - perguntou ele.
- Porque recebi ordens nesse sentido. Recebo muitas ameaças de morte.
- Estou a ver que sim - disse John Paul.
- Vocês deixam de embirrar um com o outro? Isto é uma grande confusão. Theo, acho que sei o que está a acontecer. O homem, ou os homens, que destruíram a minha clínica andavam à procura de um envelope. O tipo que foi ter comigo ao estádio disse que outro empregado do Speedy Messenger me tinha entregado o envelope errado e que estava a tentar recuperá-lo. Telefonei à secretária das Urgências e pedi-lhe que fosse procurá-lo e lho entregasse. Mandei-o ao hospital, mas não sei se ele chegou a recuperar
o envelope - disse Michelle. - Lembras-te da Elena, que me veio trazer aquela caixa de correspondência? Acho que os homens que foram a minha casa ontem à noite julgaram
que ele lá estava. Mas eu vi o que estava na caixa e não havia lá nenhuma remessa especial. O meu palpite é que eles não o encontraram no hospital e julgaram que
ela mo tinha trazido ontem.
- Só há uma maneira de eles terem sabido que a Elena vinha trazer alguma coisa - disse John Paul.
- Puseram a linha telefónica dela sob escuta - concluiu Theo. - Raios, porque é que eu não a verifiquei?
- Eu vou encontrar essa remessa especial - disse John Paul.
- Sabe o que procura?
O irmão de Michelle mostrou-se ofendido.
- Evidentemente.
Theo ficou a pensar e depois disse:
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- Quando a encontrar, não faça nada.
- Porquê? - perguntou Michelle.
- Porque eu não quero que eles saibam que estamos cientes disso. Talvez queiramos passar-lhes algumas informações falsas.
- Conta-me exactamente o que o tipo te disse - pediu John Paul.
Theo reparou que ele não estava tão embirrante.
- Ele disse que tinha havido uma confusão no serviço de entregas - respondeu Michelle. - O Frank, foi este o nome que ele me deu, disse-me que outro estafeta chamado Eddie tinha trocado inadvertidamente as etiquetas de dois volumes que ele entregara. É óbvio que eles andam atrás do que eu recebi por engano.
Theo abanou a cabeça.
- E tu sabes que foi uma troca porque...? - Ele não esperou pelo esclarecimento. - Nada é verdadeiro até ser provado, e só acreditaremos que o envelope foi trocado quando o abrirmos e virmos o que está lá dentro.
Michelle concordou.
- Porque o homem que disparou contra nós podia estar a mentir.
- Céus, Mike! Usa a cabeça!- disse John Paul.
- Dói-me a cabeça, John Paul. - Aborrecida consigo própria por ter sido tão lenta de raciocínio, Michelle suspirou.
- É claro que ele estava a mentir.
- Não necessariamente - atalhou Theo.
- Tu acabaste de dizer... - ripostou ela. Theo sorriu.
- Ele podia estar a dizer a verdade. Podia ser um envelope extraviado. Quando o encontrarmos, veremos do que se trata. Até lá...
- Compreendo - disse ela, cansada.
- Lembras-te de me dizer que tinhas a sensação de que andava alguém a seguir-te? Acho que tinhas razão. Seja quem for... é bom. Nunca o identifiquei e andava atento.
- Talvez eles estivessem a espreitar a casa - sugeriu Michelle.
- O que pensa você de tudo isto? - perguntou John Paul a iTheo.
- Não sei - admitiu ele. - Quando encontrarmos esse tal envelope, saberemos o que temos pela frente.
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- Tu vais para casa comigo, Mike. Eu posso proteger-te.
- Você está a dizer que eu não posso? - perguntou Theo, irritado.
- Quando eu disparo, atiro a matar. Não falho.
Theo teve vontade de esmurrá-lo, mas Michelle pôs termo à hostilidade.
- Desculpem, meus senhores - ripostou ela. - Eu sei proteger-me e fá-lo-ei. John Paul, vou ao hospital com o Theo.
- Mike...
- É assim que vai ser.
- Ela fica em boas mãos - disse Theo, surpreendido por John Paul não discutir. Esfregando a testa, acrescentou:
- O Noah está em Nova Orleães. Quero que ele fique lá e que faça duas coisas antes de regressar a Bowen.
- O Noah é... - disse Michelle, pronta a explicar.
- Eu sei quem ele é. É do FBI - disse John Paul com um desprezo bem patente.
- Então, entretanto não se afaste do seu pai - continuou Theo, como se ninguém tivesse interrompido a sua linha de pensamento.
Michelle deixou cair o saco das ervilhas em cima da mesa.
- Achas que eles vão atrás do papá?
- Estou apenas a admitir todas as hipóteses até ter tempo de perceber qual será a próxima jogada.
Theo acabou de beber a cerveja e pôs a garrafa em cima da mesa.
- Temos de ir andando. Michelle perguntou:
- John Paul, pões a pickup a trabalhar? Já há uma semana que o papá não conduz. Ele disse-me que há um problema qualquer na ignição e que ainda não teve tempo de a consertar.
- Eu trato disso.
O cansaço estava finalmente a apoderar-se de Michelle. Ela levantou-se devagar.
- Então, vamos andando.
Theo entregou-lhe o saco de cenouras para ela guardar no congelador e pôs-se lentamente de pé para ver como é que o joelho reagia ao peso do corpo. O saco gelado tivera um efeito benéfico. O joelho não cedeu e já não latejava.
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Michelle foi para a cozinha, com o saco de ervilhas encostado à testa.
- Temos de passar por casa primeiro - lembrou Theo.
- Porque o Ben está à nossa espera? Eu podia telefonar-lhe...
- Não - disse Theo. - Quero ir buscar o meu telemóvel e preciso de mais balas.
Ele sabia o que o esperava antes de John Paul abrir a boca.
- Precisa de mais balas para quê?
- Já tenho poucas.
- Isso parece-me um desperdício. Michelle estava farta de aturar o irmão.
- Não lhe dês um tiro, Theo. Sei que te apetece fazer isso, porque o meu irmão pode ser muito chato. Mas eu adoro-o, portanto não faças isso.
Theo piscou-lhe o olho.
- Não estou nada preocupado - disse John Paul com um ar trocista.
- Mas devias estar - disse Michelle.
- Porquê? - perguntou John Paul. - Se ele disparar, não acerta.
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CAPÍTULO 32
Enquanto Michelle ficou no carro a conversar com Ben, Theo foi a casa. Deixou os sapatos à porta para não sujar o chão de lama, subiu as escadas, mudou de roupa e tomou rapidamente um duche quente. Ficou aliviado por não ter encontrado sanguessugas nem carraças. Passados dez minutos, saiu com o seu telemóvel e o de Michelle e um carregador. Já tinha recarregado a arma e enfiado mais uma dose suplementar na algibeira.
- Estás pronta? - perguntou ele a Michelle.
- O John Paul pôs o teu carro a trabalhar - disse ela ao entrar no carro. - As chaves estão na ignição.
- Onde está o teu irmão?
Michelle apontou para o lado da casa. John Paul corria para a pickup que deixara à beira da estrada.
Theo interceptou-o e entregou-lhe o telemóvel de Michelle e o carregador.
- Eu não quero isso.
Havia uma expressão de repulsa na cara de John Paul quando olhou para o telemóvel.
- Eu tenho de poder entrar em contacto consigo. Tome.
- Eu não...
Theo não estava com vontade de discutir.
- O que faremos, eu e a Michelle, se precisarmos de si? Rezamos?
John Paul amansou. Pegou no telemóvel e no carregador e dirigiu-se para a pickup. Ouviu a irmã gritar:
- Toma conta do papá, John Paul. Não deixes que lhe aconteça nada. E tu, tem cuidado também. Não és invencível.
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Theo entrou no carro e ia a fechar a porta quando Ben gritou qualquer coisa e se aproximou a correr.
- Acho que estamos com sorte - disse Ben.
- O que há?
- Telefonaram da esquadra. Uma detective de Nova Orleães está à espera para falar comigo. Diz que é urgente.
- Sabe o que a detective quer? Não é possível que em Nova Orleães já se saiba o que aconteceu esta noite. Não houve tempo para isso.
- Quando chegar à esquadra, ficarei a saber, mas tenho um pressentimento que isto - disse ele apontando para a casa de Michelle - e a detective de Nova Orleães estão ligados. Talvez eles saibam alguma coisa que nos possa ajudar.
- Telefone-me para o hospital assim que souber qualquer coisa - disse ele.
Não demoraram muito a chegar ao hospital. Michelle foi à frente. Seguiram pelo corredor das traseiras que ia dar às Urgências. Michelle não se vira ao espelho e só quando reparou que o pessoal ficara a olhar para ela é que percebeu que devia ter cuidado do seu aspecto. Além disso, devia cheirar muito mal. Megan, a jovem enfermeira recém-diplomada que trabalhava nas Urgências, arregalou os olhos.
- Parece que saiu do carro do lixo - disse ela. - O que lhe aconteceu?
- Saí de um carro do lixo.
Outra enfermeira chamada Francês que se encontrava na sala das enfermeiras levantou a cabeça. Também era nova, mas tinham-lhe posto a alcunha de "Rezingona", porque comportava-se sempre como se tivesse noventa anos. Michelle disse-lhe que preparasse um tabuleiro de sutura.
Francês levantou-se e contornou o balcão, apressada. Os sapatos de borracha que usava rangiam quando ela andava.
- Fica aqui, Theo - disse Michelle. - vou à sala dos médicos e depois vou tomar um duche.
- Eu vou contigo. Isto aqui é sossegado, não é? £
- Ainda bem. Preciso de telefonar ao Noah.
Megan ficou boquiaberta e de olhos arregalados quando eles passaram por ela. Michelle reparou que a atenção dela se concentrava inteiramente em Theo.
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Michelle entrou na sala espaçosa. Havia cacifos encostados a uma das paredes, um sofá e uma mesa baixa do outro lado, duas espreguiçadeiras e uma secretária. Mesmo à entrada, havia uma mesa estreita com uma cafeteira e copos de plástico. Ao canto, estava um frigorífico.
Um corredor estreito dava acesso a duas portas. Enquanto Michelle tirava roupa lavada do cacifo, Theo abriu as duas portas para ver o que havia lá dentro. Eram duas casas de banho completas com cabina de duche.
- Isto está bem arranjado - observou ele ao passar por ela.
Tirou um recipiente com água do frigorífico, sentou-se à secretária e ligou para o telemóvel de Noah. Um segundo depois, ouviu uma gravação na qual Noah lhe pedia que deixasse uma mensagem. Theo calculou onde ele estava, mas teria de esperar que Michelle acabasse de tomar duche para lhe pedir o número do telefone.
Em seguida, ligou para a telefonista do hospital e pediu-lhe que localizasse Elena Miller. Theo ouviu-a mexer em papéis. A mulher comunicou-lhe que Elena ainda não estava de serviço. Recusou-se a dar-lhe o número do telefone de casa, mas por fim acedeu em ser ela a telefonar. Elena atendeu ao segundo toque e, depois de se identificar, Theo pediu-lhe que descrevesse o estafeta que fora ao hospital buscar o envelope na quarta-feira e que lhe contasse o que o homem dissera.
Elena estava desejosa de falar da indelicadeza do homem.
- Ele teve o descaramento de gritar comigo! - exclamou ela.
Theo tomou notas num bloco que encontrou em cima da secretária e fez-lhe várias perguntas. Depois de desligar, procurou o número do Speedy Messenger Service em Nova Orleães nas Páginas Amarelas que encontrou na gaveta de baixo da secretária e telefonou para lá. Depois de falar com três pessoas, chegou ao supervisor. O homem pareceu-lhe esfrangalhado e não quis colaborar até Theo ameaçar que mandaria dois polícias para obter a informação que pretendia. O supervisor manifestou-se logo disponível. Explicou que todas as entregas eram registadas no computador. Processou o nome de Michelle e disse a Theo quando e onde é que o volume fora entregue.
- Quero saber quem o enviou - disse Theo.
- Benchley, Tarrance and Paulson - respondeu o supervisor. - O envelope foi entregue no hospital de St. Claire às dezassete
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e quinze, segundo os meus dados. Quer que eu lhe envie uma cópia do talão assinado?
- Não é necessário - respondeu Theo.
Quando Michelle acabou de tomar duche e de lavar o cabelo, sentiu-se muito bem. Na sua opinião, estava com um aspecto horrível, mas sentia-se bem, e naquele momento essa era a única coisa que lhe interessava. Vestiu-se e penteou-se; encolheu-se ao tocar acidentalmente na parte mais sensível do couro cabeludo. Empurrou o cabelo para trás das orelhas e resolveu deixá-lo secar naturalmente. A apertar o cordão das calças, aproximou-se de Theo, que se virou para ela.
- Falaste com o Noah? - perguntou ela.
- Ainda não. Falei com o supervisor do Speedy. Adivinha!
- O Frank e o Eddie não existem, não é? Céus, sinto-me uma idiota.
- Não, o Frank e o Eddie não existem, mas porque te sentes uma idiota? Não tinhas motivo nenhum para desconfiar.
- Theo, garanto-te que já vi aquele homem. Julguei que me tinha cruzado com ele no hospital, mas é óbvio que não foi esse o caso. Então, onde é que o vi?
- Hás-de lembrar-te - disse ele. - Não forces a memória e quando pensares noutra coisa qualquer hás-de lembrar-te. Sabes que mais me disse o supervisor?
Michelle atravessou a sala, sentou-se no sofá e inclinou-se para atar os atacadores dos sapatos.
- Diz-me - disse ela.
- O envelope foi enviado pela Benchley, Tarrance and Paulson.
- Dirigido a mim?
- Sim - respondeu ele. - Telefonei para a empresa, mas ninguém me diz nada pelo telefone, portanto vou lá mandar o Noah. Ah, e também falei com a Elena Miller. Estava indignada.
Michelle abanou a cabeça.
- A Elena está sempre indignada com qualquer coisa. O que disse ela?
- Que o estafeta foi hostil.
- Já sabemos isso.
- Como ela não conseguiu encontrar o envelope para lhe entregar, ele começou a gritar. E ameaçou-a também. Ela ficou
305
tão furiosa que resolveu telefonar para a Speedy o fazer queixa dele, mas, como estava muito atarefada, esqueceu-se.
Michelle levantou-se e aproximou-se da secretária. Reparou que ele a observava e perguntou:
- O que se passa?
- Reparei que estás com um ar cansado.
- Estou bem.
- Estou preocupado contigo. Parece que vais desmaiar.
- Estou bem - insistiu ela.
Michelle não estava com bom aspecto. Estava pálida e tensa. "Precisava de dois minutos para descomprimir", pensou ele. O seu sistema nervoso estava a fraquejar e acabaria por entrar em colapso.
- Anda cá.
- Theo, temos de ir andando. Tenho de suturar o teu braço e descobrir esse envelope.
- A sutura e o volume podem esperar mais uns minutos. Respira fundo e tenta descontrair-te. Queres beber alguma coisa? Uma cola, por exemplo?
- Não, obrigada.
- Anda cá.
- Estou aqui.
- Aproxima-te mais.
O homem era irresistível. Ela sabia que não podia permitir que ele a desviasse dos seus objectivos. Ambos tinham muito que fazer. Michelle cruzou os braços e fitou-o de sobrolho franzido.
- Este não é o momento indicado para brincar. Theo puxou-a para o seu colo.
- O que te leva a pensar que eu quero brincar?
Theo pusera-lhe a mão na nuca e puxava-a lentamente para ele.
- Não sei... Tenho a sensação de que queres beijar-me respondeu ela, pousando as mãos nos ombros dele.
Theo mordiscou-lhe o pescoço. Ela fechou os olhos e inclinou a cabeça para o lado para ele lhe beijar o lobo da orelha.
- Devo ter interpretado mal os sinais - disse ela em voz baixa.
- Deve ter sido isso.
Logo a seguir, Theo beijou-a na boca. Foi um beijo prolongado e ardente. A língua dele penetrou na boca quente dela e, oh,
306
céus, essa penetração lenta e indolente deixou-a desvairada. Ele insistiu e fê-la sofrer, até ela ficar a tremer e o agarrar pelos ombros, pedindo-lhe em silêncio que continuasse.
Theo tencionava dar-lhe apenas um beijo rápido, mas quando a boca dele tocou na dela, não conseguiu resistir. Sabia que tinha de parar antes de a situação se descontrolar completamente, mas continuou a beijá-la até ela o afastar.
- Não podemos fazer isto. - Michelle estava a arfar e parecia atordoada. Encostou a testa à dele. - Isto tem de acabar, Theo.
- Pois, está bem - disse ele, irritado, tentando acalmar-se. Ela beijou-lhe a testa e depois passou para a cana do nariz.
- Isto é um hospital, pelo amor de Deus.
Michelle beijou-o na boca. E precisamente quando ele começava a levar a melhor, ela afastou-se e disse em surdina:
- Eu trabalho aqui. Não posso andar sempre aos beijos.
E, com os diabos, beijou-o outra vez. Theo sentiu que começava a perder o autodomínio. Recuou abruptamente e tirou-a do seu colo.
Michelle encostou-se à secretária, com receio de não conseguir aguentar-se nas pernas. Céus, ele beijava tão bem e, oh, como ela adorava o sabor da boca dele. Desanimada, concluiu que amava tudo nele. A calma, o sentido de responsabilidade... A autoconfiança. Ele sentia-se tão bem na sua própria pele, tão seguro de si. Quando tinha medo, não escondia, como o irmão dela. Era tão seguro que nem se importava com o que os outros pensavam.
Michelle admirava este traço de carácter acima de todos os outros.
Respirou fundo e encaminhou-se para as Urgências. Empurrou a porta de batente com a palma da mão e entrou no corredor. Theo ia atrás dela.
- Tens uma maneira de andar muito sensual - disse ele.
- Não leste a tabuleta?
- Qual tabuleta?
- É proibido namorar no hospital. Ele afrouxou.
- Está bem. Vamos começar a procurar o volume nas Urgências - disse ele, de repente muito profissional. - Reparei no caminho que não há muita gente, portanto é o momento ideal. vou pedir ajuda a alguns elementos do pessoal.
307
- Primeiro, vou apresentar-te.
- Não, Michelle, eu quero...
Michelle deu meia-volta, voltou para trás e disse:
- Theo, aqui quem manda sou eu. Lida com isso.
O duche revitalizara-a, mas ela sabia que a sua energia não ia durar muito e que a falta de sono acabaria por afectá-la. Era por isso que queria concluir a tarefa
mais importante. Theo vinha em primeiro, quer ele quisesse quer não.
Também se sentia descontraída e confiante em si própria outra vez. Encontrava-se em território seguro no hospital e sabia que Theo e ela não precisavam de estar alerta. Ninguém poderia atingi-los. Michelle pensou que seria uma boa ideia dormirem no hospital e ia a fazer a sugestão quando Theo a distraiu.
- Calma. com quem devo falar para arranjar pessoal que comece a procurar?
- Esta gente tem o seu trabalho para fazer.
- Isto é uma prioridade.
- Podes telefonar ao director. Ele costuma chegar por volta das oito, e já falta pouco, mas não vai colaborar contigo. Ele não gosta de nada que quebre a rotina.
- Excelente! Ele vai colaborar. E tu estás praticamente a fugir. Acalma-te - disse ele, mais uma vez.
- E tu estás a empatar. Tens medo de levar uns pontos?
- A hipótese fez sorrir Michelle. - Tens medo que eu te magoe?
- Não, mas não gosto de agulhas.
- Nem eu. Desmaio sempre que vejo uma - disse ela.
- Isto não tem graça nenhuma, Michelle.
Mas ela pensava o contrário e riu-se. Francês, a enfermeira que andava sempre carrancuda, estava à porta de uma das salas de consulta. Afastou a cortina.
- Está tudo pronto, doutora.
Michelle deu uma pancadinha na marquesa, enquanto a enfermeira levantava a cabeceira para Theo se deitar. Ele sentou-se, sem tirar os olhos de Michelle, que calçou umas luvas esterilizadas. A enfermeira distraiu-o, quando se aproximou dele com uma tesoura na mão e lhe agarrou na t-shirt. Ele estendeu o braço e arregaçou a manga até ao ombro. Enquanto ela lhe esfregava a pele à volta do golpe com um desinfectante de cheiro muito intenso, ele pegou no telemóvel e começou a ligar.
308
- Não pode usar esse telemóvel no hospital - disse Francês, que tentou tirar-lhe o telemóvel da mão.
Theo teve vontade de dizer "Afaste-se, minha senhora", mas não o fez. Desligou o telemóvel e pô-lo em cima da mesa, ao laJo da marquesa.
- Arranje-me um telefone que eu possa usar.
O seu tom devia ter sido hostil. Apesar de parecer impossível, Francês fez um ar ainda mais carrancudo.
- Este é dos que se irritam com facilidade, não é, doutora? Michelle estava a trabalhar de costas para Theo, mas ele percebeu que ela sorria. Percebeu pela sua voz quando ela disse:
- Ele precisa de dormir.
- Eu preciso de um telefone.
Francês acabou de limpar a zona e saiu da sala. Theo partiu do princípio que ela tinha ido buscar um telefone. Depois, Michelle aproximou-se dele com as mãos atrás das costas. Ele não aprovava que ela o tratasse como se fosse uma criança de dez anos, escondendo a seringa para ele não ver a agulha.
Exasperado, ele disse:
- Despacha-te. Temos que fazer.
Theo nem se mexeu quando ela injectou a lidocaína.
- Esta zona vai ficar dormente. Queres deitar-te?
- Isso facilita-te a tarefa ou apressa-a?
- Não.
- Então, estou bem. Começa.
Francês tinha voltado com uma prancheta e vários papéis. Era óbvio que o ouvira dizer a Michelle que começasse.
- Jovem, não deve apressar a doutora. É assim que se cometem erros.
Jovem? com os diabos, ele devia ser mais velho do que ela.
- Onde há um telefone?
- Acalma-te, Theo - disse Michelle, fazendo sinal a Francês para lhe passar o tabuleiro. - Eu não vou apressar nada.
Depois, sorriu e acrescentou em voz baixa:
- Alguém me disse que, se quisermos fazer bem uma coisa...
- O quê?
- Teremos de ser lentos e calmos. É a única maneira.
Apesar da sua irritabilidade, Theo foi obrigado a sorrir. Apeteceu-lhe beijá-la, mas sabia que a enfermeira dos Ficheiros Secretos tentaria agredi-lo se ele fizesse
tal coisa.
309
- Francês, é casada?
- Sim, sou. Porque pergunta?
- Estava a pensar que a Michelle podia apresentá-la ao irmão, o John Paul. Devem ter muitas afinidades.
- Doutora, não temos documentos deste doente - disse ela num tom ríspido.
- Onde está o meu telefone? - perguntou Theo.
- Ele preenche os formulários depois de eu terminar - disse Michelle.
- Mas não é assim que deve ser.
- vou contar até cinco. Se não tiver um telefone na mão quando acabar, levanto-me da marquesa... - disse Theo em jeito de aviso.
- Francês, por favor, traga um telefone ao Theo.
- Há um na parede - observou Francês.
- Mas ele não pode lá chegar, pois não? - disse Michelle, já impaciente.
- Muito bem, doutora.
Francês delegou a tarefa em Megan, que estava na sala das enfermeiras a namoriscar com um paramédico.
O telefone era um modelo antigo de secretária. Megan retirou-o do suporte de parede, ligou a ficha e entregou-o a Theo.
- Tem de ligar 9 para ter acesso ao exterior.
Michelle tinha acabado de limpar a ferida e ia começar a suturar.
- Não te mexas - disse ela. - Estás a tentar ligar ao Noah outra vez?
- Primeiro, queria falar com o director e conseguir arranjar alguém que nos ajudasse. Se tivermos de desarrumar isto tudo, fá-lo-emos. Eu quero encontrar esse tal envelope.
- Eu é que tenho de procurar... E talvez tu e outra pessoa possam ajudar. Se todos andarem à procura da mesma coisa, não saberei onde é que já foram ou não foram. Deixa-me dar uma vista de olhos nas Urgências e no piso do bloco operatório antes de pedires reforços.
- Porquê nessas duas zonas?
- Porque a correspondência que eu não recebo aqui é enviada para o bloco operatório. Todos os cirurgiões têm gabinetes lá em cima, onde a correspondência é deixada.
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- Ela tem razão - disse Megan. - Levamos montes de correspondência lá para cima. vou lá pelo menos duas vezes por dia. Faço o possível por ajudar. - Depois, acrescentou:
- Lá em cima há um técnico muito giro. Tenho tentado chamar-lhe a atenção. vou ajudá-la, Dr.a Mike. As Urgências estão calmas
e a Francês chama-me pelo pager se
precisar de mim.
- Obrigada, Megan.
- Não há problema. Em que posso ajudá-la?
- Descubra um envelope que foi entregue pelo Speedy Messenger Service.
- Oh, recebemos muitos envelopes!
- Michelle, querida, falta muito? - perguntou Theo.
- Uau! Ele tratou-a por "querida" - arrulhou Megan.
- Megan, está a tapar a luz.
- Desculpe, doutora.
Ao recuar, Megan olhou alternadamente para os dois.
- Então como é? - perguntou ela em voz baixa.
- Porque não começa a procurar nas secretárias e nos armários cá de baixo enquanto a Michelle acaba isto? - ordenou Theo.
- É para já.
- Abra bem os olhos! - disse Michelle, sem levantar a cabeça.
Assim que Megan fechou a cortina, Michelle disse em voz baixa:
- Não me devias ter chamado "querida". - Destruí a tua autoridade?
-Não. Mas é que...
- O quê?
- A Megan é um amor, mas vai contar tudo e imagino o que se dirá por aqui amanhã. Vão pôr-me descalça e grávida.
Ele inclinou a cabeça.
- Essa da gravidez... É uma bela imagem. Michelle arregalou os olhos.
- Pelo amor de Deus! Ele sorriu.
- Uma mulher que consegue respirar com uma cobra a trepar-lhe pela perna consegue aguentar uns mexericos. És mais corajosa do que pareces.
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Michelle concentrou-se no que estava a fazer.
- Só falta um ponto. Quando é que foste vacinado contra o tétano pela última vez?
Ele não se desmanchou.
- Ontem.
- com que então também detestas injecções, hem? Pois vais levar uma.
Theo estendeu o braço e tocou-lhe na face.
- Tu coras quando te arrelio e ficas atrapalhada com elogios. Não sabes o que fazer com eles, pois não?
- Acabei! Estás novamente inteiro, Humpty-Dumpty. Não te levantes por enquanto - acrescentou ela à pressa quando ele se mexeu. - Eu acabei, mas tu não.
- O que quer isso dizer?
- Falta a ligadura e a vacina.
- Quantos pontos levei?
- Seis.
A cortina abriu-se quando Michelle estava a tirar as luvas. Era Megan.
- Dr.a Mike, está lá fora uma detective de Nova Orleães que quer falar consigo e com o seu namorado.
- Ele é um doente - ripostou Michelle, apercebendo-se demasiado tarde de que não devia ter dito nada. Tinha reagido à defesa o que, evidentemente, só espevitou a imaginação hiperactiva de Megan.
Megan afastou de novo a cortina.
- E a detective Harris - disse ela.
A mulher era alta, muito atraente, com um rosto ovalado e um olhar penetrante. Quando ela entrou, Michelle reparou nas rugas ao canto dos olhos e à roda da boca. Vestia umas calças pretas e uma blusa azul clara e calçava uns sapatos pretos discretos. Dirigiu-se a Theo e, ao estender-lhe a mão, Michelle viu o distintivo e a pistola no cinto.
Harris não perdeu tempo com preliminares.
- Quero saber exactamente o que aconteceu ontem à noite. O chefe Nelson relatou-me o que se passou, mas eu quero ouvir a sua versão.
- Onde está o Ben? - perguntou Michelle.
- Voltou a sua casa para acabar de examinar o local do crime.
312
Harris deitou um olhar superficial a Michelle e acrescentou:
- Eu levarei o que ele trouxer para o laboratório de Nova Orleães.
Theo examinou Harris enquanto ela falava com Michelle. detective era igual a milhares de outros oficiais de polícia que ele conhecera. Havia nela um cansaço generalizado, como se tivesse passado a maior parte da vida à beira da exaustão. Era frágil e dura ao mesmo tempo.
- Há quantos anos está na polícia? - perguntou ele.
- Há quatro anos, nos Homicídios - respondeu ela, impaciente. - Três anos nos Costumes, antes da transferência.
Ah, nos Costumes. Isso explicava tudo.
- Então, o que a trouxe a Bowen?
- Se não se importa, eu é que faço as perguntas.
- com certeza - disse ele, amável. - Assim que você responder à minha.
Harris mordeu o lábio, o que Theo interpretou como um arremedo de sorriso.
- Se o Nelson não me tivesse já informado, eu diria que você era advogado.
Theo não reagiu ao comentário. Ficou à espera que ela respondesse à sua pergunta. Ela tentou não desviar o olhar e intimidá-lo, mas perdeu nas duas tentativas.
Suspirando, respondeu:
- Tenho um palpite... Um palpite bom e fiável de que um assassino que eu persigo há três longos anos está metido nisto. Disseram-me que ele está em Bowen a fazer
um trabalho, e juro por Deus que desta vez vou apanhá-lo.
- Quem é ele?
- Um fantasma. Pelo menos é o que alguns tipos dos Homicídios lhe chamam, porque ele desaparece sempre que eu me aproximo. Segundo o meu informador, dá pelo nome
de Monk actualmente. Acusei-o de dois assassínios em Nova Orleães no ano passado. Temos a certeza absoluta que ele matou uma adolescente em Metairie e estamos convencidos que foi o pai dela que lhe pagou para receber o seguro, mas não conseguimos prová-lo.
- Como sabem que foi o Monk? - perguntou Theo.
- Ele deixou o seu cartão de visita. Deixa sempre - explicou Harris. - O meu informador é íntimo do Monk, conhece
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os hábitos dele. E disse-me que o Monk deixa uma rosa vermelha com o caule comprido como prova de que fez o trabalho. Faz sempre com que os assassínios pareçam acidentes ou suicídios e, em todos os casos em que estive envolvida, alguém beneficia com a morte.
- Um pai mandou matar a filha para poder receber o dinheiro? - Michelle esfregou os braços como se estivesse arrepiada. Era aterrador que um pai cometesse tal monstruosidade. Sentiu-se enjoada. Pobre criança!
- Não havia nenhuma rosa no quarto da rapariga - disse Harris. - Mas havia uma pétala, ainda fresca, quase debaixo da cómoda. Noutro caso, a brigada de homicídios encontrou um espinho espetado na colcha. O Monk trabalha quase sempre à noite, quando as vítimas estão a dormir.
- Quem foi a vítima no segundo caso que você mencionou?
- perguntou Theo.
- Um velho, um avô rico cujo único parente tinha um sério problema de toxicodependência.
- Por aquilo que você me contou acerca desse homem, parece que ele não trabalha com outros. Parece que é um solitário.
- Até agora, tem agido sozinho, mas algo me diz que ele esteve em casa da doutora ontem à noite.
- Se ele esteve envolvido é porque deve andar à procura do envelope. Talvez haja alguma coisa lá dentro que o incrimina, a ele ou à pessoa que o contratou.
- Que envelope? - perguntou Harris com rispidez. Parecia que ia atirar-se a Michelle por ter retido a informação.
Michelle explicou-se e, quando terminou, a detective não conseguiu disfarçar a sua excitação.
- Você está a dizer-me que consegue identificar um deles? Viu-lhe a cara e tem a certeza que se trata do homem que foi ter consigo ao estádio?
- Estou.
- Meu Deus, seria um golpe de sorte se o homem que você viu fosse o Monk. Nunca ninguém o viu, mas agora com uma descrição...
- Eu gostava de falar com o seu informador - disse Theo. Ela abanou a cabeça.
- Julga que eu tenho o número do telefone dele? Isto não funciona assim. Ele telefona-me quando lhe apetece e utiliza sempre
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um telefone público. Já temos localizado as chamadas, mas o carro nunca lá chega a tempo. Ele é esquivo como um fantasma.
- Pois - disse Theo. - E o seu dossiê sobre o Monk?
- O quê?
- Quero vê-lo.
Harris ignorou o pedido.
- Temos de encontrar esse envelope - disse ela a Michelle.
- Não imagina o que possa estar lá dentro?
- Por enquanto, não.
- Desta vez, vou apanhar o Monk. Juro pela alma da minha mãe! Ele anda tão perto que eu quase lhe sinto o cheiro.
- Quero ver o seu processo - repetiu Theo, mas de maneira que ela percebesse que ele não estava a pedir. Estava a exigir.
Harris deitou-lhe um olhar frio e não reagiu. Michelle apressou-se a desfazer o antagonismo.
- Vamos ajudá-la no que pudermos, detective.
Harris continuava a olhar para Theo quando respondeu:
- A melhor maneira de me ajudarem é saírem do meu caminho. Eu é que dirijo esta operação. Entendido?
Como Theo não respondeu, ela pigarreou, nervosa.
- vou delimitar a zona e começar a estreitá-la. Leve a doutora para casa e deixe-se lá ficar. Se vir ou ouvir alguma coisa suspeita, telefone-me.
Harris tirou dois cartões e entregou um a Theo e outro a Michelle.
- Podem sempre falar comigo pelo telemóvel.
Não era preciso ser licenciado em Direito para perceber que Harris não iria colaborar. A mulher não se descosia e, para se vingar, Theo não se sentiu na obrigação de partilhar com ela as informações que obtivera.
- vou querer ver o seu processo, detective, e vou querer saber o que está dentro daquele envelope - ripostou ele, decidido a não se contentar com uma resposta negativa.
- Pode ver o que está dentro do envelope - disse ela. E, se for alguma coisa que não tem nada a ver com o Monk, pode investigar à vontade.
- E se houver dados relacionados com o Monk? - perguntou Michelle.
- Nesse caso, eu é que mando. Esta investigação é minha e não estou disposta a permitir que os tipos do FBI se intrometam.
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Há três longos anos que ando atrás do Monk e investi demasiado para deixar que o FBI interfira. Isso não vai acontecer.
O seu desprezo era notório. A rivalidade e a antipatia entre o FBI e os agentes locais da autoridade tinham raízes profundas e eram um estorvo para Theo, que não estava disposto a ser diplomático nem a entrar em jogadas.
- Aborrece-a que o FBI chame a si o seu caso? - perguntou Michelle.
- Pois claro que me aborrece, com os diabos! São três anos. vou deitar a mão ao Monk e, quando o fizer, não lho entrego
- disse ela a Theo.
- Ouça, eu sou advogado e trabalho com o Departamento de Justiça. Não quero saber do que você lhe faz, excepto se ele for um dos homens que tentaram matar-nos, à Michelle e a mim, ontem à noite. Se for esse o caso, então você e eu teremos de chegar a um entendimento.
Harris abanou a cabeça e disse:
- O chefe da polícia disse-me que você está de férias... Que veio para ir à pesca. Portanto, vá pescar e deixe-me fazer o meu trabalho.
- Olhe, eu compreendo porque é que você quer deitar-lhe a mão, mas...
- O quê? - perguntou ela, sem o deixar acabar a frase.
- Eu estou metido nisto, goste você ou não goste. Acha que vou ficar aqui sentado à espera? Talvez não me tenha explicado bem. Ele tentou matar-nos.
Harris ficou irritada.
- Não vou permitir que você lixe esta investigação. Theo não estava disposto a envolver-se numa gritaria. Fazendo um esforço para baixar o tom de voz, perguntou:
- Quantas vezes tenho de dizer-lhe a mesma coisa até você perceber? Você não vai impedir-me.
- O diabo é que... Ele interrompeu-a.
- Mas eu posso impedi-la, como ambos sabemos. Basta um telefonema. Não é preciso mais nada.
Theo não estava a brincar. Quando era preciso usar da força, não lhe faltava coragem. Ela, não. Tão simples como isso. Harris resolveu adoptar um método mais prudente. .
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- Está bem, vamos partilhar informação. Eu envio-lhe cópias do que consegui apurar sobre o Monk assim que voltar à esquadra. E deixo-o ver o que está dentro do envelope.
- Partindo do princípio que conseguimos encontrá-lo - interpôs Michelle.
- Temos de encontrá-lo.
- Agora, quero uma coisa - disse Harris.
- O quê?
- Quero quarenta e oito horas antes de você começar a interferir ou a juntar as tropas. Garanto-lhe que conseguirei prender o Monk até lá. Se ele trabalhar com os homens que foram atrás de si e da doutora, prendo-os também.
- Você é muito segura de si. O que me está a esconder, detective Harris? Sabe onde está o Monk neste momento?
- Quarenta e oito horas - insistiu ela. Theo não perdeu tempo a pensar no assunto.
- Não.
- Vinte e quatro horas, então - exigiu ela. - É razoável. Harris estava a ficar rubra de fúria, mas Theo não se importava de estar a dificultar-lhe a vida.
- Não.
- O que raio quer você? Dê-me qualquer coisa. Os meus homens estão a fechar o círculo neste momento, e todos nós andamos a trabalhar há demasiado tempo para deixarmos que você controle a situação. Vamos apanhá-lo. Três longos anos...
- Pois, eu sei. Três anos - disse ele. - Está bem. Dou-lhe doze horas, mas nem mais um minuto. Se você ainda não tiver detido ninguém, eu entro em acção.
Harris olhou para o relógio.
- São quase nove horas. Doze horas... Pois, consigo viver com isso. Leve a doutora para casa e fique lá com ela até às nove da noite.
Virando-se para Michelle, a detective acrescentou:
- Vamos embora. Por onde começamos a procurar o tal envelope?
Michelle reparou que Francês lhe fazia sinal. Estava ao telefone.
- Ou está aqui em baixo, ou está lá em cima, no bloco operatório. Dão-me licença? Tenho uma chamada.
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Nem esperou pela resposta. Correu para a recepção e gritou:
- Megan, porque é que tu e a detective Harris não vão ao bloco operatório e começam a procurar? Já lá vou ter convosco para ajudar. Francês, podes ir à frente. Liga o braço a Mr. Buchanan e dá-lhe uma injecção contra o tétano.
Michelle pegou no telefone e recuou para deixar passar Megan.
- Por aqui, detective - disse Megan, encaminhando-a para o elevador.
Michelle não se demorou ao telefone. Voltou para junto de Theo e disse:
- O Dr. Landusky soube que eu estava no hospital e pediu-me que examinasse um doente. O efeito da anestesia já passou? Posso dar-te qualquer coisa para as dores?
- Não é preciso. Sinto-me bem.
- Trate dessa papelada, doutora - pediu Francês, antes de os deixar sozinhos.
Theo observava o elevador. Assim que as portas se fecharam, pegou no telefone e pediu a Michelle que lhe desse o número de Mary Ann.
Ela deu-lhe o número sem demora.
- Porque queres falar com a Mary Ann?
- Não quero.
A amiga de Michelle atendeu ao terceiro toque. Parecia ensonada. Theo não perdeu tempo a conversar.
- Deixe-me falar com o Noah. Michelle ficou boquiaberta.
- Ele voltou para Nova Orleães com a Mary Ann?
E teve a sua segunda resposta pouco depois, quando Theo disse:
- Sai da cama dela e vai para outro lado para podermos conversar.
Noah bocejou audivelmente.
- Talvez seja melhor.
- É - garantiu Theo.
- Pois, está bem. Espera um minuto.
Alguém chamou Michelle através do pager e ela voltou à recepção para atender o telefone. Era uma enfermeira a pedir-lhe que verificasse uma ficha clínica antes de ela dar a medicação ao
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doente. Michelle desligou precisamente quando Theo acabou a conversa.
Ouviu-o dizer:
- Depois de verificares isso, volta para cá. Obrigado, Noah. Assim que ele desligou o telefone, Michelle perguntou:
- O que estás a fazer? Ouvi-te prometer à detective que lhe darias doze horas e não farias nada até lá.
- Ah, ah!
- Não falaste em doze horas?
- Sim, falei - admitiu ele. - Portanto, sabes o que isto quer dizer.
- O quê?
- Que eu menti.
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CAPÍTULO 33
Andavam à procura no gabinete errado. Michelle passou pela sua secretária e encontrou a detective Harris e Megan a vasculhar nas coisas do Dr. Landusky.
- Já procuraram no meu gabinete? - perguntou ela a Megan.
- Julguei que trabalhava aqui - respondeu Megan. Estava sentada no chão, ao lado da secretária, a folhear os dossiês.
- O meu é o do lado.
- Oh, desculpe, Dr.a Mike. Há tanto tempo que trabalho aqui e tinha-a na conta de uma pessoa desorganizada, porque julgava que este era o seu gabinete de trabalho. Sempre que venho cá, está sentada a esta secretária a ditar ou a escrever alguma coisa nas fichas clínicas.
- Eu utilizava o gabinete do Dr. Landusky porque era aqui que as enfermeiras e as secretárias punham as fichas dos doentes e eu substituía-o quando ele estava de férias.
- Mas, eu tenho deixado as suas coisas sempre aqui.
- Então, é melhor continuarmos a procurar - disse Harris.
- Talvez o envelope tenha ficado aqui por engano.
Como a detective Harris estava a revistar a secretária, Michelle ajoelhou-se e começou a procurar num monte de papéis encostados à parede.
- Não sei como é que o Landusky consegue trabalhar assim.
- Ele está sempre atrasado no preenchimento das fichas
- adiantou Megan.
- Você concentra-se no que está a fazer, ou não? - perguntou Harris. Parecia uma mestre-escola a repreender dois alunos malcomportados.
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- Eu consigo falar e ver ao mesmo tempo - garantiu-lhe
Megan.
- Continue a ver - ordenou Harris.
- Será isto? - perguntou Megan pouco depois, entregando um pequeno envelope amarelo a Michelle.
- Não - respondeu Michelle. - Deve ter um rótulo do Speedy Messenger Service.
- E este? - perguntou Megan.
Entregou mais um envelope a Michelle. Harris olhou por cima do ombro e ficou à espera da resposta.
Era um envelope almofadado, de papel manilha, tamanho A4. Michelle leu o nome de uma sociedade de advogados no canto superior, mesmo por cima do rótulo, e perdeu
o fôlego.
- Acho que pode ser este - disse ela, entregando o envelope à detective.
Harris reagiu como se lhe tivessem entregado um explosivo. Tomou o peso ao envelope com todo o cuidado e virou-o devagar. Destacou lentamente a ponta e abriu-o. Lá dentro, estava outro envelope de papel manilha. Harris abriu-o com uma faca de papel.
Pegando no envelope por uma ponta, olhou para a secretária.
- Pode ser isto - disse ela, tirando uma pinça grande de uma das prateleiras. - Não quero tocar nos papéis que estão lá dentro para não destruir as impressões digitais.
- Posso arranjar-lhe umas luvas - disse Michelle. Harris sorriu.
- Obrigada, mas isto serve.
Michelle encostou-se à parede, com uma pilha de dossiês na mão. Ficou a olhar para a detective, que pegou no canto de uma das folhas com a pinça e a puxou para fora, mas não totalmente.
Megan tropeçou numa pilha de jornais e de fichas ao levantar-se. Michelle ajudou-a a reempilhar tudo ao canto.
- O que diz? - perguntou ela à detective. Harris estava decepcionada.
- É uma espécie de relatório de auditoria ou de análise financeira. Nesta folha não há nomes, apenas iniciais ao lado do que julgo serem transacções. Muitos, muitos números.
- E os outros documentos?
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- Devem ser umas doze páginas, talvez mais, mas algumas estão agrafadas - respondeu Harris. - É demasiado arriscado tirá-las para fora - acrescentou ela, abanando a cabeça.
Harris empurrou lentamente a folha para dentro do envelope.
- Tenho de ir a correr levar isto ao laboratório. Assim que eles examinarem estas folhas, arranjo alguém que me ajude a compreender o que significam todos estes números.
Foi uma grande decepção não saber o que significava aquilo. Michelle pousou os dossiês e levantou-se. Harris encaminhou-se para o elevador e carregou no botão.
- Obrigada pela sua ajuda - disse ela. - Mantenho-a ao corrente do que apurarmos.
- Você prometeu ao Theo que o deixava ver o conteúdo desse envelope - lembrou-lhe Michelle.
A porta do elevador abriu-se. Harris entrou e carregou no botão. Quando a porta ia a fechar-se, fez um sorriso a Michelle e disse:
- Eu deixo-o ver os papéis daqui a doze horas e nem um minuto antes.
Michelle ficou ali, de mãos nas ancas, a abanar a cabeça, enquanto a porta se fechava. Megan aproximou-se dela por trás.
- O que esperava encontrar naquele envelope? - perguntou ela.
- Respostas.
- Quando as coisas acalmarem, conta-me o que se passa?
- com certeza - respondeu Michelle. - Se alguma vez eu descobrir o que se passa, terei o maior prazer em lhe contar.
- O seu namorado é advogado. Talvez ele saiba o que significam aqueles números e a doutora sabe que ele não vai deixar que aquela detective o impeça de verificá-los.
vou para as Urgências pelas escadas. Não quero perder o espectáculo.
Michelle tinha mais um doente para examinar; depois, ficaria despachada.
- Diga ao Theo que eu não demoro - gritou ela, dando meia-volta e dirigindo-se para o serviço de cardiologia.
A detective Harris não estava disposta a correr o risco de cruzar-se com Buchanan. Saiu do elevador no segundo piso e desceu as escadas até ao primeiro. Seguiu os sinais de saída, descobriu
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uma porta lateral e saiu sem ninguém ver. Contornou o edifício do hospital e ia a correr para o parque de estacionamento com o envelope encostado ao peito quando ouviu um chiar de pneus atrás de si. Harris virou-se para trás precisamente no momento em que o Toyota cinzento se aproximou dela.
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CAPÍTULO 34
A detective não atendia o telefone e Theo estava furioso. Fez duas tentativas e foi sempre remetido para o voice mail. As suas mensagens foram muito explícitas. Queria o envelope e sem demora. Também lhe deixou uma mensagem na esquadra e estava a desligar o telefone quando Michelle saiu do elevador. Apesar de ter ouvido a versão de Megan, Theo obrigou Michelle a contar tudo outra vez quando ela foi buscar a roupa à sala dos médicos.
- Mas tu não viste os papéis?
- Não - respondeu ela. - Ela não me deixou tocar neles. Estava preocupada com a destruição das impressões digitais.
- O diabo é que estava! - ripostou ele. - Ela estava a brincar contigo. Está empenhada em afastar-me da investigação.
- Durante doze horas - disse ela.
Michelle enfiara as roupas e os sapatos num saco de plástico e estava à porta. Theo pegou no telefone.
- Acho que chegou o momento de eu ser duro - resmungou ele.
- Theo?
Por fim, ele olhou para ela.
- Sim?
- Estou esgotada. Preciso de dormir e tu também. Podemos ir para casa, por favor?
- Sim, está bem.
- Dá doze horas à mulher - disse ela. - Tu prometeste.
- Michelle bocejou. - Eu sei que ela não quer colaborar contigo e que isso te enfurece, mas acho que deves dar-lhe um certo desconto. Ela anda nisto há três anos.
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- Isso não me interessa. Até podia andar há quinze - contrapôs ele. - Não vou desistir.
Theo estava a ficar exasperado. Quando chegaram ao carro, já ameaçava tirar o distintivo a Harris. Michelle deixou-o dar largas à sua frustração e não o interrompeu. Quando ele se calou, perguntou-lhe:
- Sentes-te melhor agora?
- Sinto.
Theo estendeu-lhe o telemóvel.
- Telefona ao teu pai e diz-lhe que vamos a caminho.
- Podemos passar por minha casa primeiro para eu levar uma muda de roupa?
- Claro.
Enquanto ela ligava, ele virou a esquina e entrou em Bowen. Agora que sabia o caminho, a situação não lhe parecia tão complicada, mas continuava a pensar que devia haver mais placas de sinalização na cidade.
Ninguém respondeu de casa do pai de Michelle. Como ele não tinha atendedor automático, ela não pôde deixar nenhuma mensagem. Lembrando-se que John Paul ficara com o seu telemóvel, ligou o número e ficou à espera.
- Sim?
- Isso são maneiras de atender um telefone? - perguntou Michelle.
- Ah, és tu - disse o irmão. - Estás bem?
- Estou, mas eu e o Theo vamos a chegar. Onde está o papá?
- Mesmo ao meu lado. Vamos a caminho da tua casa. O papá soube o que se passou esta noite e quer ter a certeza, de que estás bem.
- Diz-lhe que estou bem.
- Já disse, mas ele quer ver com os seus próprios olhos. John Paul desligou o telefone sem mais nem menos, sem que
Michelle tivesse oportunidade de falar com o pai. Carregou no botão de desligar e devolveu o telemóvel a Theo.
John Paul e Jake entraram na rampa de acesso à casa atrás deles. Depois de Michelle ter tranquilizado o pai, meteu umas roupas e uns artigos de higiene num saco e saíram. John Paul sugeriu que deixassem o carro alugado à porta e que fossem com ele e
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com o pai, para dar a impressão de que estava alguém em casa. Theo não estava com vontade de discutir com ele.
A pickup precisava de amortecedores novos. Michelle ia ao colo de Theo, à janela, e tinha de baixar a cabeça sempre que o irmão passava por cima de uma saliência do terreno. Quando atravessaram o cruzamento, o papá observou:
- Vocês devem estar cansados, com aqueles homens terríveis aos tiros e a perseguirem-nos durante quase toda a noite.
O papá Jake tinha uma casa espaçosa. Vista de frente, parecia uma estrutura pré-fabricada assente numa base de cimento. John Paul parou a pickup ao lado da casa, e Theo reparou nas janelas do primeiro andar, que davam para a água. Havia mais uma divisão, obviamente construída mais tarde, encostada às traseiras. Tal como Michelle, também o pai tinha um grande alpendre com rede virado para a água.
Havia três barcos, todos pequenos, amarrados ao pontão.
O papá não gostava de ar condicionado. Tinha dois aparelhos de janela, mas estavam desligados. O soalho era de madeira velha e gasta, e na sala de estar algumas tábuas já estavam empenadas. Viam-se tapetes ovais entrançados espalhados pelo chão, mas não estava abafado lá dentro. A ventoinha do tecto chiava e ajudava a levar para dentro uma brisa que vinha da água.
A luz do sol entrava pelas janelas, realçando os móveis antigos. Theo levou o saco de Michelle e seguiu-a através de um longo corredor. Ao fundo, ficava o quarto de Jake com a sua cama de casal. Michelle abriu a porta da esquerda e entrou.
Havia duas camas individuais com uma mesa-de-cabeceira ao meio. A janela dava para a frente. O quarto estava quente e a precisar de ventilação, mas felizmente havia outro aparelho de ar condicionado na janela. Michelle ligou-o no máximo, descalçou os sapatos e sentou-se em cima da colcha azul e branca da cama. O papá não se preocupava com a combinação das cores. A outra cama tinha uma colcha às riscas vermelhas e amarelas. Michelle descalçou as meias e deixou-se cair na almofada. Adormeceu profundamente em menos de um minuto.
Theo fechou a porta sem fazer barulho e voltou para a sala de estar.
Uma hora depois, as gargalhadas estrondosas do papá acordaram Michelle, que se levantou. Quando ia para a casa de banho, apareceu Theo.
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- Acordámos-te? - perguntou ele.
Ela abanou a cabeça e encolheu-se para ele passar, mas Theo foi atrás dela e encostou-a à parede. Depois, beijou-a.
- Esta é a maneira certa de começar um novo dia. Beijar uma bela mulher - disse ele, e voltou para a sala.
Michelle viu-se ao espelho e ficou assustada. Era tempo de maquilhar-se e de começar a comportar-se como uma mulher, concluiu. Ele chamara-lhe bela? Talvez Theo precisasse de usar óculos permanentemente.
Meia hora depois, estava o melhor que era possível. Lamentou não ter levado uma saia, mas não o fizera e as únicas opções eram uns calções azul-marinho ou uns jeans. Como estava calor, escolheu os calções. Não tinha nenhum top. Enfiara no saco uma blusa azul clara demasiado colada ao corpo.
Descalça, desceu o corredor com a bolsa de maquilhagem na mão e pô-la em cima do armário da casa de banho. Theo entrou para ir buscar os óculos. Ia a falar ao telefone. Deitou-lhe um rápido olhar prescrutador, demorando-se nas pernas, e Michelle ouviu-o pedir ao interlocutor que repetisse o que acabara de dizer.
- Recebi. Pois, o pai dela recebeu a carta registada há cerca de uma hora. Não, a Michelle não sabe. vou pedir ao Jake que lhe comunique.
- Quem era? - perguntou Michelle.
- O Ben. Ainda está à espera do relatório sobre o local do crime.
- O que queres que o papá me comunique?
- É uma boa notícia - respondeu ele.
- Veio cá alguém? Pareceu-me ouvir a porta a abrir-se e a fechar-se e muitas vozes desconhecidas.
- Dois amigos do teu pai trouxeram a comida que estava em tua casa. Há quatro empadões em cima da mesa da cozinha acrescentou ele com um sorriso.
- Mas não há nenhum cartão, não é verdade?
- Mike, quero falar contigo - gritou Jake.
- Já vou, papá.
Michelle e Theo entraram juntos na sala. Michelle viu o álbum de fotografias em cima da mesa e disse em voz baixa:
- Hum, o papá está melancólico.
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- A mim parece-me satisfeito.
- Mas está melancólico. Ele só vai buscar o álbum de família quando se sente triste.
John Paul estava estiraçado no sofá, com as mãos sobre o peito e os olhos fechados.
Jake estava sentado a uma grande mesa de carvalho na cozinha, que comunicava com a sala de estar.
- E agora não tens pena de não teres ido ao funeral? - perguntou ele ao filho.
Sem abrir os olhos, John Paul respondeu:
- Não.
- Mas devias ter - disse Jake. - A tua prima não era a megera que tu imaginavas.
- Eu nunca disse que ela era uma megera. Eu disse... O pai cortou-lhe rapidamente a palavra.
- Eu lembro-me do que disseste, mas não quero que o repitas na presença de terceiros. Além disso, sei que agora deves estar arrependido.
John Paul não tinha nada a dizer e limitou-se a resmungar qualquer coisa incompreensível.
- Afinal, a tua prima interessava-se pela família. Mike, senta-te aqui à mesa. Tenho uma coisa importante a dizer-te. Theo, sente-se também. Quero que veja umas fotografias.
Theo puxou uma cadeira para Michelle e sentou-se ao lado dela. Jake pegou na mão da filha e fitou-a.
- Tem calma, querida. Isto vai ser um choque.
- Quem morreu?
O pai piscou-lhe o olho.
- Ninguém morreu. Foi a tua prima Catherine Bodine.
- A morta - exclamou John Paul.
- É claro que é a morta. Só temos uma prima da família do lado da tua mãe - disse Jake, abanando a cabeça.
- O que há em relação a ela? - perguntou Michelle.
- Ela deixou-nos dinheiro. Muito dinheiro - sublinhou ele, erguendo o sobrolho.
Michelle não acreditou,
- Oh, papá, isso só pode ser um engano. Está a dizer-me que a Catherine nos deixou dinheiro? Não, ela não faria tal coisa.
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- Já te disse! - contrapôs o pai. - Eu sei que custa a acreditar e que é um choque, como eu te avisei que seria, mas é verdade. Ela deixou-nos dinheiro.
- Porque havia ela de nos deixar alguma coisa? Ela detestava-nos.
- Não fales assim - disse Jake, admoestando-a. Tirou o lenço de assoar da algibeira e enxugou os olhos. - A tua prima era uma mulher maravilhosa.
- Chama-se a isso reescrever a História - resmungou John Paul.
Ainda a duvidar, Michelle abanou a cabeça.
- Isso só pode ser um erro.
- Não, querida, não é erro nenhum. Não tens curiosidade de saber quanto é que ela nos deixou?
- com certeza - respondeu Michelle, perguntando a si própria que tipo de partida é que Catherine lhes pregara. Pelo que ouvira dizer aos irmãos acerca da prima, a mulher tinha uma veia cruel.
- A tua prima deixou cem mil dólares a cada um de nós. Michelle ficou de boca aberta.
- Cem...
- Mil dólares - acrescentou o pai. - Acabei agora de falar com o Remy. Telefonei ao teu irmão para lhe falar da generosidade da prima, e a reacção dele foi igual à tua e à do John Paul. Criei três filhos cépticos.
Michelle estava a ter dificuldade em digerir a notícia.
- A Catherine Bodine... deu... cem... John Paul riu-se.
- Estás a gaguejar, irmãzinha.
- Agora, cala-te, John Paul! - ordenou o pai. Num tom mais brando, disse a Michelle:
- Estás a ver, querida? A Catherine não nos detestava. Não nos descobria grande utilidade, mais nada. Era... diferente, e nós lembrávamos-lhe tempos difíceis.
De repente, Michelle percebeu que Theo não sabia do que eles estavam a falar.
- A minha prima tinha sete ou oito anos quando a mãe dela casou com um homem muito rico chamado Bodine. Foram viver para Nova Orleães e reduziram drasticamente as relações connosco.
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Eu nunca conheci a Catherine nem falei com ela ao telefone. Não posso acreditar que ela nos tenha deixado alguma coisa.
- A mãe da Catherine era irmã da minha mulher - explicou Jake. - Chamava-se June, mas nós tratávamo-la por Junie. Não era casada quanto se viu com família. Nessa época, ter um filho fora do casamento era muito problemático, mas as pessoas foram esquecendo com o tempo. No entanto, o pai dela nunca esqueceu nem lhe perdoou. Deixou-a entregue à sua própria sorte, foi o que ele fez. Eu e a Ellie tínhamos casado pouco tempo antes e a Junie veio viver connosco. Quando o bebé nasceu, ficaram as duas lá em casa. Éramos muitos, mas coubemos todos. Depois, a Junie conheceu aquele tipo rico, casou e foi-se embora. A Junie morreu quando a Catherine tinha onze anos. Eu não ia deixar que aquela criança esquecesse que tinha família em Bowen, uma família que a adorava, e fazia questão de lhe telefonar pelo menos uma vez por mês e de a visitar. Mas ela nunca tinha muita coisa a dizer, e fartei-me de elogiar os meus três filhos para que ela conhecesse os primos. A Catherine ficou muito impressionada quando soube que a Mike ia ser médica. Sentiu-se orgulhosa de ti, querida, mas nunca o disse.
- A Catherine nem sequer te convidou para o casamento recordou Michelle ao pai. - E eu sei que deves ter ficado magoado com essa atitude.
- Não, não fiquei. Além do mais, isso foi uma cerimónia rápida na conservatória. Foi ela própria que mo disse.
Michelle tinha o cotovelo apoiado em cima da mesa e enrolava uma madeixa de cabelo à volta do dedo, distraída, a pensar na sorte inesperada. O dinheiro era uma dádiva de Deus. Era mais do que suficiente para reconstruir a clínica e contratar uma enfermeira.
O pai observava-a, sorrindo.
- Lá estás tu outra vez a torcer o cabelo. Virando-se para Theo, disse:
- Quando ela era pequenina, enrolava o cabelo nos dedos e chuchava no dedo até adormecer. Não têm conta as vezes que eu e o Remy tivemos de desfazer os nós que ela fazia.
Michelle largou o cabelo e cruzou as mãos.
- Sinto-me culpada, porque não me lembro de uma única coisa simpática para dizer acerca da Catherine e já sei como vou gastar uma parte do dinheiro dela.
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O pai empurrou o grosso álbum de família com uma capa aos quadrados vermelhos e pretos na direcção de Theo. Theo abriu-o e começou a ver as fotografias, enquanto Jake lhe explicava quem era quem. Michelle pediu desculpa, foi buscar uma Diet Coke e trouxe outra para Theo, que tinha posto os óculos e estava com um ar bastante doutoral.
Michelle pôs-lhe a mão no ombro e perguntou:
- Tens fome?
- Sim, claro - respondeu ele, virando mais uma página.
- Papá, o Theo não quer ver as nossas fotografias de família.
- Quero, sim.
Michelle pôs a mão no ombro de Theo, pousou a sua lata numa base para copos, endireitou-se e virou-se para o irmão.
- John Paul, arranja qualquer coisa para eu e o Theo comermos.
- Nem penses nisso - respondeu ele, rindo-se.
Ela aproximou-se do sofá e sentou-se em cima da barriga do irmão. Ele percebeu o que ela ia fazer e cruzou os braços.
- Estou a dormir. Deixa-me em paz, com os diabos - ripostou ele.
Michelle ignorou a resmunguice, puxou-lhe os cabelos e recostou-se no sofá.
- Acreditas que a Catherine nos tenha deixado tanto dinheiro?
- Não.
- É desconcertante.
- Hum.
- Abre os olhos - pediu ela. Ele suspirou e obedeceu.
- O que é?
- Não tens nenhum comentário simpático a fazer sobre ela?
- Claro que tenho. Ela era egoísta, obsessiva, compulsiva, gananciosa...
Michelle deu-lhe um beliscão.
- Diz uma coisa simpática a respeito dela.
- Ela morreu. Isso é simpático.
- Não tens vergonha? Estás com fome?
- Não.
- Estás sim. Tu estás sempre com fome. Vem ajudar-me.
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Ele agarrou-a por um braço quando ela tentou levantar-se.
- Quando é que o Theo se vai embora?
A pergunta surgiu a despropósito e apanhou-a desprevenida.
- Na segunda-feira - respondeu ela em voz baixa. - Vai com o amigo, o Noah, na segunda de manhã.
Até Michelle se apercebeu da tristeza na sua própria voz. Não se mostrou arrogante nem fingiu que não se importava, porque não conseguia enganar o irmão. John Paul conhecia-a melhor do que qualquer outra pessoa e sempre conseguira ver para além das suas justificações. Michelle nunca mentia nem jogava com ele.
- Foste estúpida - disse ele em surdina.
- Pois fui - reconheceu ela.
- Não devias ter ficado tão vulnerável.
- Eu sei.
- Então, porque não te protegeste? Ele é um estranho.
- Não me apercebi do que estava a acontecer. O que posso eu dizer? Aconteceu... Ponto final.
- E então?
- Então o quê?
- Vais ficar inconsolável quando ele se for embora?
- Não - respondeu ela em surdina. - Não.
- Veremos.
Theo não estava a prestar atenção nem a Michelle nem a John Paul. Virara mais uma página do álbum e olhava para uma fotografia esbatida de uma linda jovem. Estava encostada a uma árvore, em pose, com um ramo de malmequeres na mão. Envergava um vestido de organza de cor clara, que lhe dava pelos tornozelos, com uma faixa que lhe caía da cintura. O cabelo curto e encaracolado emoldurava um rosto angelical. A fotografia era a preto e branco, mas Theo apostava que ela era ruiva e tinha olhos azuis. Se não fosse o fato e o corte de cabelo, Theo julgaria que se tratava de Michelle.
- É a minha Ellie - disse Jake. - É bonita, não é?
- Ai isso é.
- Olho para os meus três filhos e vejo a minha Ellie em todos eles. O Remy herdou o sorriso dela, o John Paul, o gosto pelo ar livre, e a Michelle, o bom coração.
Theo assentiu com a cabeça. John Paul foi atrás de Michelle para a cozinha mas, assim que ouviu o pai a falar da mãe, parou e
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espreitou por cima do ombro de Theo. Quando Theo virou a página, ele afastou-se. Havia uma fotografia de Remy e John Paul quando eram pequenos e de uma menina no
meio deles. Parecia que os rapazes tinham andado a rebolar-se na lama, mas estavam felizes. Ostentavam um sorriso malicioso. A rapariga usava um vestido pequeno de mais para o seu tamanho e não sorria.
- Essa é a Catherine - explicou Jake. - Ela andava sempre de vestido, fosse qual fosse a ocasião. Esse era um dos preferidos dela, porque tinha um laço. Lembro-me que ela insistia com a mãe para que lhe cosesse esta ou aquela costura. A Catherine tinha um apetite saudável.
Theo continuou a folhear o álbum. A mãe de Catherine devia ter enviado várias fotografias depois de se mudar, porque havia pelo menos umas vinte da filha. Em todas a menina usava um vestido, mas de qualidade superior. Numa delas, a criança estava junto de uma árvore de Natal com duas bonecas iguais ao colo. Theo virou mais uma página e viu Catherine com um vestido diferente e dois ursos de pelúcia nos braços.
Jake riu-se ao ver a fotografia.
- A Catherine exigia sempre ter tudo aos pares - explicou ele. - Certas pessoas que já foram pobres, quando têm dinheiro, seja qual for a idade, nunca têm o suficiente. Compreende o que quero dizer?
- Compreendo - respondeu Theo. - As pessoas que viveram no tempo da Grande Depressão amealhavam sempre a pensar na seguinte.
- Exactamente. A Catherine era assim. Para ela, a Depressão pertencia à História, mas era como se ela a tivesse vivido. Preocupava-a o facto de ficar sem nada, suponho, e portanto, se gostava de uma boneca ou de um urso obrigava a mãe a comprar-lhe outro igual, não fosse acontecer qualquer coisa ao primeiro. E fazia o mesmo com os vestidos. Assim que a Junie passou a ter dinheiro, cumulava a filha de tudo o que era bom e satisfazia todos os seus caprichos. A Ellie considerava que a Junie a estragava com mimos por ter remorsos de não ser casada quando a deu à luz.
"Julguei que ela tinha perdido a necessidade de acumular coisas, mas não perdeu. Pelos vistos, piorou. Começou a fazer coisas muito estranhas. Até mandou instalar uma segunda linha telefónica. Quando lhe perguntei porquê, ela respondeu que a primeira
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estava avariada. Disse que não estava disposta a esperar que fossem repará-la.
Michelle interrompeu a conversa.
- O John Paul está a aquecer a sopa de quiabos.
Theo virava as páginas ora para trás ora para a frente. Olhou para a fotografia em que Catherine usava um vestido em segunda mão, demasiado pequeno para o corpo dela, e depois voltou atrás, àquela em que a menina estava vestida como uma princesa, agarrada às duas bonecas iguais.
- A pobrezinha começou a engordar depois do casamento
- observou Jake.
- Como é que sabes? Nunca mais a viste - disse Michelle.
- Foi a governanta que me disse - respondeu Jake. - A Rosa Vincetti e eu conversávamos de vez em quando, se era ela a atender o telefone. Era uma mulher muito simpática. Muito tímida, mas meiga como não há outra. Deu-me uma receita de massa caseira, mas ainda não a experimentei. Também me disse que estava a ficar assustada com o peso da Catherine. Tinha receio que o coração dela não aguentasse.
- A Catherine era... - disse Michelle.
- Esquisita - gritou John Paul da cozinha.
- E tu não és? - ripostou Michelle.
- Raios, em comparação com ela sou normal.
- Papá, como é que soube que íamos receber o dinheiro?
- perguntou Michelle.
- Continuas a não acreditar em mim? - perguntou Jake.
- Eu não disse isso.
- Mas ainda não estás convencida, pois não? - Jake empurrou a cadeira para trás e levantou-se. - Recebi uma carta registada a confirmar. Chegou há cerca de uma hora.
Jake dirigiu-se para a bancada, destapou uma boieira em forma de elefante onde guardava todos os seus documentos importantes e tirou o envelope.
Michelle sentara-se ao lado de Theo a ver o álbum. Havia uma fotografia da mãe com um bebé ao colo. com a ponta do dedo, tocou na face da mãe.
- Esse é o Remy quando era bebé.
Duas páginas mais à frente, Theo encontrou fotografias de Michelle e riu-se. Em todas, havia sempre qualquer coisa fora de sítio. O cabelo, a blusa, a língua.
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- Eu era um amor, não era? Ele riu-se.
- Sem dúvida nenhuma.
Jake pôs o envelope diante de Michelle.
- Aqui está a prova, espertalhona. Michelle abanou a cabeça e sorriu.
- O papá arranja-me uma série de alcunhas giras.
Theo riu-se ao ver o nome da sociedade de advogados no canto superior esquerdo do envelope.
- É isto - disse ele em voz baixa. - É isto - repetiu, dando uma palmada na mesa.
- O que é?
- A ligação. É a mesma sociedade de advogados. Filha-da... Virou-se e tirou a carta da mão de Jake.
- Dá-me licença?
- Faça favor - respondeu Jake.
- Mas tu não explicaste... - disse Michelle. Theo pousou a mão sobre a dela.
- Daqui a pouco. Está bem? Onde estão os meus óculos?
- Sou eu que os tenho.
- Oh, está certo. Isto está a compor-se.
Jake e Michelle ficaram a olhar para Theo enquanto ele lia a carta. Assim que acabou, empurrou a cadeira para trás e levantou-se.
- Tenho de ir a Nova Orleães.
Michelle pegou na carta e leu-a à pressa. Seguindo as instruções de Catherine, o advogado dela, Phillip Benchley, informava cada um dos beneficiários do total dos bens e da parte que competia a cada um. A família Renard deveria receber quatrocentos mil dólares que seriam divididos igualmente por Jake e os seus três filhos. Rosa Maria Vincetti receberia cento e cinquenta mil dólares por anos de bons e leais serviços prestados a Catherine. John Russell, o marido de Catherine, receberia cem dólares e o restante seria doado ao santuário ornitológico de Epston.
- O marido dela só recebe cem dólares? - perguntou ela, atónita.
- Talvez eles não tivessem um casamento feliz - observou Jake.
- Não brinquem comigo! - disse John Paul, da porta da cozinha.
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- É verdade que a Rosa não gostava dele - acrescentou Jake. - Acho simpático que a Catherine não se esquecesse de deixar alguma coisa à governanta. A Rosa tratou bem dela.
- O John deve ter assinado um acordo pré-nupcial para que fosse a Catherine a controlar o seu próprio dinheiro - disse Michelle.
- Mesmo assim, ele tentará contestá-lo - disse Theo. - O que faz ele na vida?
- É advogado - respondeu Jake. - Trabalha num dos grandes bancos de Nova Orleães. Por sinal, nunca falei com o homem, o que é uma vergonha. Eu e a Mike nem sequer tivemos oportunidade de dirigir-lhe a palavra no funeral, pois não, querida?
- Não, papá, não. Mas a culpa foi minha. Eu tinha de voltar ao hospital e tu foste levar-me.
O telemóvel de Theo começou a tocar e interrompeu a conversa. Era Noah.
- Onde estás? - perguntou Theo.
- Acabei de chegar a St. Claire - respondeu Noah.
- Vem para casa do Jake. Sabes o caminho?
- Sei. Daqui a dez minutos estou aí.
- O que descobriste?
Theo atravessou a cozinha em direcção ao alpendre e fechou a porta.
Michelle percebeu que ele queria privacidade e resolveu ir pôr a mesa. John Paul estava encostado à bancada, a olhar para ela com um ar furioso.
- O que se passa? - perguntou ela, abrindo a gaveta e tirando os individuais.
- Vais deixar entrar mais um agente do FBI nesta casa?
- Sim, vou - respondeu ela. - Não te mostres hostil, John Paul. Não estou com paciência. Vais ser delicado para o Noah.
- Achas que sim?
- Sei que vais ser. Papá? O John Paul...
Michelle não precisou de dizer mais nada. O irmão abanou a cabeça, exasperado, e depois sorriu.
- Continuas a fazer queixinhas, não é verdade, miúda? Ela sorriu também.
- E continua a dar resultado, não achas? Obrigada, John Paul.
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- Eu não disse...
- Nem tens de dizer. Tu vais fazer o possível por ser simpático.
Michelle recomeçou a pôr a mesa. Cansada, sentou-se e apoiou a cabeça entre as mãos. Continuava a pensar nos quatrocentos mil dólares e sentia cada vez mais remorsos. O que levara uma mulher mesquinha a fazer uma coisa tão amável? E que mais lhe enviara Catherine que tanto interessava à polícia e aos homens que estavam dispostos a matar por isso?
O papá estava sentado ao lado dela, a rever o álbum.
- Pobre Catherine! - disse Michelle. - Ela não tinha muitos amigos. No funeral... Não estava muita gente. A única pessoa que verteu uma lágrima foi a governanta. Lembras-te, papá? Ela era a única que chorava pela Catherine, mais ninguém. Senti-me mal por causa disso.
Michelle recordou o pequeno cortejo a atravessar o cemitério. Metia dó. Rosa levava um rosário na mão e chorava. John seguia atrás do padre, sempre a olhar para ela e para o papá. Como nenhum deles conhecia o homem, Michelle partiu do princípio que ele não sabia quem eram. Havia outro homem que olhou para trás. Ia ao lado de John e...
- Oh, meu Deus, é o homem... Era ele! - gritou Michelle, levantando-se de um salto.
Ansiosa por contar a Theo aquilo de que se lembrara, derrubou uma cadeira. Impaciente, apanhou-a e atravessou a cozinha a correr. Theo ia a entrar. Desligou a chamada ao vê-la e levou-a para o alpendre.
- O que se passa?
- Lembrei-me de onde vi aquele homem... Recordas-te de eu te dizer que a cara dele não me era estranha?
É o mesmo tipo.
As palavras saíam-lhe da boca num turbilhão.
- Acalma-te e começa do princípio - disse ele.
- O estafeta que falou comigo no estádio. Eu disse-te que me parecia que o conhecia e julguei que me tinha cruzado com ele no hospital, mas não. Ele estava no funeral da Catherine. Estava a conversar com o John e ia ao lado dele no cemitério.
O papá não tinha ouvido a conversa. Também ele pensava na generosidade de Catherine e na satisfação de Ellie pelo facto de a sobrinha ter feito uma coisa tão simpática pela família. A mulher
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sempre se preocupara com a faceta egoísta de Catherine, mas agora esta redimira-se.
Ouviu Michelle a falar em John e gritou:
- Estou a pensar que devia pegar no telefone e falar ao marido da Catherine.
- Oh, papá, não faças isso! - disse Michelle.
- Não faça!- ordenou Theo ao mesmo tempo.
- Porquê? - perguntou Jake, virando-se na cadeira e olhando para Theo. - Eu devia agradecer-lhe o dinheiro. É a minha obrigação. Ele era o marido da Catherine e teve de aprovar essa disposição.
Michelle abanava a cabeça e Theo aproximou-se de Jake.
- Jake, não quero que faça isso. Prometa-me que não o fará.
- Dê-me um motivo, então - disse Jake. - E depois eu prometo. Arranje um bom motivo.
- Está bem. Ele tentou matar a sua filha - explicou ele com uma voz calma.
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CAPÍTULO 35
Jake aceitou a notícia muito melhor do que John Paul. O irmão de Michelle queria meter-se na pickup, ir atrás do patife e estoirar-lhe os miolos. Não se dispunha a ouvir a voz da razão e estava-se nas tintas para a lei.
- Se você sabe que é ele que está por detrás disto, então limpe-lhe o sebo antes que ele tenha outra oportunidade de matá-la
- exigiu ele.
Theo não se deixou impressionar com a fúria de John Paul.
- Por enquanto, não tenho provas. É tudo circunstancial. É por isso que tenho de ir a Nova Orleães - explicou ele.
Parecia que John Paul queria bater em Theo. Michelle pôs-se no meio dos dois homens e tentou acalmar o irmão.
Alguém tocou à campainha, interrompendo a discussão. Enquanto Jake foi abrir a porta a Noah, Theo disse: - Temos de aguentar.
- O que diabo quer isso dizer?
- Quer dizer que você não pode alvejar ninguém. Theo virou-se para Michelle.
- Promete-me que não sais do Swan até eu voltar. Não há desculpas. Não quero estar preocupado contigo...
- Está bem - disse ela, batendo com a mão no peito e aproximando-se mais dele. - Tem cuidado também.
- Se houver algum problema, faz o que o Noah te disser. John Paul, cuide do seu pai. Ouviu?
O irmão de Michelle calou-se e abanou a cabeça vigorosamente. Noah estava junto da porta principal a falar com Jake. O agente do FBI não se dera ao trabalho de fazer a barba e tinha um ar desmazelado, com uns jeans rotos e uma camisa azul desbotada.
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Michelle foi cumprimentá-lo. Compreendia muito bem o interesse de Mary Ann. Havia um elemento de perigo no homem que fazia com que as mulheres fugissem dele
e ao mesmo tempo tentassem reabilitá-lo.
Aqueles olhos azuis penetrantes impressionavam quando ele disse:
- Ouvi dizer que você passou uma noite agitada a fugir das balas.
Michelle não conseguiu resistir.
- Ouvi dizer que você também passou uma noite agitada.
- Sim, passei. A sua amiga pediu-me que lhe dissesse "eia". Creio que isso quer dizer "olá" - disse ele, sorrindo. - Mas também não me diverti muito esta manhã. Quando alguém está de férias, seria de esperar que pudesse dormir. Onde está o Theo?
- Está no alpendre com o John Paul. Do lado da cozinha disse ela.
Noah ia ao encontro deles, mas Michelle deteve-o e disse:
- Faz-me um favor?
- com certeza - respondeu ele. - O que é?
- Ature o meu irmão. Noah riu-se.
- Eu dou-me bem com toda a gente.
- Quer apostar?
Michelle arrependeu-se de não ter apostado a dinheiro porque teria ganho. Menos de três minutos depois, começou a gritaria. John Paul era quem gritava mais, mas Noah não lhe ficava atrás.
Theo entrou na cozinha com as chaves do carro de Noah na mão. Michelle estremeceu ao ouvir o irmão chamar um nome obsceno a Noah.
Theo também ouviu. Sorrindo, disse:
- Eu sabia que eles iam dar-se bem. Michelle arregalou os olhos.
- Chamas a isto dar-se bem?
- Não ouviste tiros, pois não? O Noah gosta do teu irmão.
Em seguida, Michelle ouviu o irmão a ameaçar Noah. O vocabulário dele não somente era colorido como também era criativo. Depois, foi a vez de Noah ameaçar John Paul à sua maneira bastante colorida e criativa, garantindo-lhe que nunca seria pai de filhos.
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- Oh, aposto que ele o adora.
- Os dois têm muito em comum. O que fiz aos meus óculos?
- Estão em cima da mesa. Exactamente o que poderiam eles ter em comum?
- São maus como cobras - rematou ele, pegando nos óculos e fechando-os.
- O Noah não é mau. Está sempre a sorrir.
- Sim, é verdade - reconheceu Theo. - E é isso que o torna mais perigoso. Só demasiado tarde é que nos apercebemos. Algumas histórias que o meu irmão me contou acerca dele são aterradoras. É por isso que o Noah vai tomar conta de ti.
Theo pôs-lhe o braço à volta dos ombros e levou-a até à porta principal.
- Não me disseste porque tens de ir a Nova Orleães.
- vou verificar umas coisas - disse ele, sem responder concretamente à pergunta dela.
Inclinou-se e beijou-a. A sua boca mal tocou na dela, o que foi totalmente insatisfatório para Michelle. Ele apercebeu-se disso porque, depois de largá-la e de abrir a porta, puxou-a bruscamente para si e beijou-a outra vez. Este beijo foi muito diferente.
A sorrir, ele fechou a porta. Michelle ficou à janela até ele partir. Theo pedira a John Paul que olhasse pelo pai e a Noah que tomasse conta dela. Quem iria olhar por Theo? Michelle abanou a cabeça. "Não havia motivo para preocupação", pensou. A detective Harris devia estar prestes a efectuar as prisões.
Que mais poderia acontecer?
341
CAPÍTULO 36
O Clube da Sementeira reunira-se no quarto de motel de John em St. Claire. John examinava os documentos para se certificar de que não faltava nenhum, enquanto Dalas, Cameron e Preston aguardavam em silêncio. Por fim, terminou, levantou a cabeça e riu-se.
- A cabra até incluiu uma cópia da carta que me escreveu
- disse ele.
- Mesmo assim, protesto - disse Preston. - Foi muito arriscada a maneira como conseguimos obter estes documentos.
- E que interessa isso agora? Estamos safos. Dalas não concordou.
- Só quando nos livrarmos do Buchanan e da médica. E tem de ser esta noite, graças a mais uma asneira do Cameron.
- Ouve, entrei em pânico, percebes? Vi o Buchanan a espreitar pela janela e julguei que conseguia acertar-lhe. Por isso é que disparei.
- Nós tínhamos combinado avançar com calma - lembrou Preston.
- Eu estava desejoso de apanhá-lo... Para bem do clube - gaguejou Cameron. - Além disso, o Buchanan não sabe que fui eu que disparei e é lógico que tenha deduzido que anda alguém atrás dele. Dalas, tu é que averiguaste o historial dele. Tu é que nos disseste que ele tem recebido ameaças de morte.
Preston fez um sinal afirmativo.
- Não há tempo a perder. Temos de matá-los esta noite.
- Não sei se a médica se recorda onde viu o Cameron - disse Dalas.
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Nenhum deles olhou para Cameron enquanto pensaram nisto.
- Eu já disse que estava farto de esperar - disse Cameron.
- Tu não tinhas o direito... - disse Preston. John levantou a mão.
- Acabem com isso - disse ele. - Está feito, e o Cameron lamenta os seus erros. Não é verdade? - perguntou ele.
Não foi o que ele disse, mas o modo como disse, com uma falsa amabilidade, que fez Cameron perceber o que estava a acontecer.
- O John tem razão - disse Dalas. - O Cameron é nosso amigo há muitos anos e não vamos deixar que alguns erros destruam tudo. Perdoemos e esqueçamos. Não é assim, Preston?
Preston sorriu.
- Pois, está bem. Queres beber alguma coisa, Cam? Cameron abanou a cabeça. Sentia a bílis a subir na garganta.
- Eu devia fazer a mala e regressar a Nova Orleães... A menos que tenhas mudado de ideias, John, e queiras que eu fique e ajude.
- Que ajudes em quê?
- A tratar da saúde ao Buchanan e à médica. Vocês vão atrás deles esta noite, não vão?
- Vamos - respondeu John. - Mas eles os dois já te viram a cara, portanto não podes ir. Nós tratamos disto, Cameron. Vai para casa e aguarda. Eu telefono-te quando isto acabar e pudermos festejar.
- A médica também te viu no funeral. Porque é que ficas cá?
- Para coordenar - respondeu John. Cameron levantou-se.
- Onde está o Monk? - perguntou ele, reprimindo o medo crescente.
- Foi comprar equipamento. Porque perguntas? Cameron encolheu os ombros.
- Ele vai ajudar-vos a apanhar o Buchanan?
- Vai - respondeu Dalas.
- E o agente do FBI, o tal Clayborne?
- Deixa isso connosco - respondeu John, melífluo. Agora, é melhor ires andando.
- Não te preocupes. Vai correr tudo bem - disse Dalas.
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Cameron saiu e fechou a porta. Convencido de que um deles o espreitava através dos cortinados, foi até à esquina como se não tivesse pressa. Assim que virou para o seu quarto, desatou a correr. Quando chegou à porta, tirou a pistola, engatilhou-a e entrou à pressa.
Admitiu ir encontrar Monk lá dentro à sua espera, mas o quarto estava vazio. Sentiu um alívio tão grande que até se engasgou. Atirou a sua roupa para dentro do saco, agarrou nas chaves do carro e saiu a correr. Ansioso por desaparecer dali, carregou a fundo no acelerador. O carro saiu do parque de estacionamento aos ziguezagues.
John dissera-lhe que fosse para casa e aguardasse. Era lá que tudo iria acontecer, concluiu. Seriam os seus queridos amigos a ir atrás dele, ou encarregariam Monk de o matar? Fosse como fosse, Cameron sabia que era um homem morto. Entrou na auto-estrada, constantemente a olhar pelo retrovisor para ter a certeza de que Monk não o seguia. Não vinha nenhum carro atrás dele. Por fim, permitiu-se expirar, dando um longo e audível suspiro. Tinha as mãos pegajosas e trémulas. Tentou mante-las firmes no volante e depois começou a chorar.
Precisava de ir ao seu apartamento porque tinha dinheiro escondido debaixo de uma das tábuas do soalho e necessitaria dele quando saísse da cidade. Tinha tempo, pensou. Eles precisariam de Monk para ajudá-los a eliminar o Buchanan. Sim, tinha tempo.
Cameron tremia tanto que sabia que só um copo poderia acalmá-lo e ajudá-lo a pensar. Saiu da auto-estrada no desvio seguinte e foi à procura de um bar.
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CAPÍTULO 37
Phillip Benchley não estava nos seus dias de sorte. O advogado tinha acabado de chegar ao primeiro dos nove tees no prestigiado Country Club de Nova Orleães quando o chamaram ao interior das instalações para falar com um advogado do Departamento de Justiça.
Impaciente mas cortês, anunciou:
- Os meus amigos estão à espera.
Entrou no vestiário e sentou-se no banco para atar melhor os sapatos de golfe pretos e brancos.
- Gostaria que não me demorasse.
Theo apresentou-se. Assim que Benchley soube que o caso que ele queria discutir envolvia John Russell, os seus modos melhoraram e ele até sorriu.
- Anda a investigar o John Russell? Oh, adorava que você apanhasse esse malandro. O homem é de uma arrogância incrível. Quando Catherine Russell me telefonou a dizer que queria alterar o testamento, tive dificuldade em não manifestar o meu regozijo. Ela nunca devia ter casado com aquele homem, nunca repetiu ele. - Ora diga-me, o que posso fazer para ajudá-lo a deitar-lhe a mão?
- Você disse ao agente do FBI Noah Clayborne que tinha enviado um envelope da Catherine à Dr.a Michelle Renard, não é verdade?
Benchley fez um sinal afirmativo.
- Sim, disse, mas como lhe expliquei, se você quiser saber o que lá está dentro terá de perguntar à doutora. A Catherine entregou-me um envelope fechado e deu-me instruções para não o abrir.
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- Alguém levou o envelope antes de Michelle ver o que estava lá dentro - disse ele. -
A Catherine não lhe deu a entender o que continha? Não era qualquer coisa sobre
a situação financeira ou uma auditoria? Qualquer coisa deste tipo? - perguntou Theo.
- Não, mas digo-lhe uma coisa. O que quer que fosse devia ser explosivo, porque Catherine garantiu-me que, assim que John tivesse conhecimento disso, não se atreveria a contestar o testamento. Ela tinha a certeza absoluta de que ele não o faria.
- Ele assinou um acordo pré-nupcial?
- Sim, assinou, mas o John é advogado e é esperto. Não teria deixado fugir tanto dinheiro. Teria levado o caso a tribunal.
- Porque é que você deixou passar seis semanas sobre a morte dela para ler o testamento?
- Você tem andado a investigar. Mais uma vez, segui as instruções de Catherine. - Benchley sorriu e acrescentou: - Ela era um pouco vingativa e disse-me que esperasse que as contas do John se acumulassem. Ele vivia à grande e servia-se do dinheiro dela para presentear as amantes. Quando a Catherine descobriu que ele cometia adultério, telefonou-me e disse-me que alterasse o testamento.
- Você foi ao funeral?
- Fui à missa, mas não ao cemitério - respondeu ele.
- A Michelle disse que havia pouca gente no funeral. Conhecia alguém?
- Conhecia a Rosa Vincetti. Conheci-a quando fui lá a casa para discutir as alterações ao testamento.
- E os colegas ou amigos do John?
- Estavam lá dois homens e duas mulheres do departamento em que ele trabalha. Falei com um homem que me apresentou aos outros, mas não me lembro dos nomes deles.
- E os amigos do John?
- Deixe-me pensar - disse ele. - Lembro-me que havia uma mulher na parte de trás da igreja. Disse-me que era a decoradora de interiores da Catherine, mas que também tinha remodelado o gabinete do John. Quando eu ia a sair da igreja, ela veio atrás de mim para me entregar o seu cartão. Considerei o gesto muito inoportuno e assim que cheguei ao escritório deitei o cartão fora. A única pessoa que me recordo de ter visto foi Cameron Lynch. É um amigo íntimo do John.
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- Fale-me dele.
- É corretor - disse Benchley. - Um corretor muito bem-sucedido. Tinha ouvido falar dele, mas só o conheci no dia do funeral. Lembro-me de pensar que ele era um
alcoólico. Reconheço que o pensamento não foi piedoso, mas ele tresandava a álcool e tinha os olhos injectados de sangue. Tenho a certeza que estava na ressaca. Além disso, tinha aquele aspecto, sabe o que eu quero dizer? A pele acinzentada, o nariz vermelho, os olhos papudos, que indicavam que ele bebia a sério há muito tempo. O Cameron não largou o John e sentou-se no banco ao lado dele como se fosse da família.
- O John falou consigo?
- Está a brincar comigo? Ele olhou para mim como se eu fosse transparente, e devo dizer-lhe que isso me deu vontade de rir. O homem despreza-me, o que não me podia fazer mais feliz.
Theo estava quase a acabar. Fez mais duas perguntas e depois agradeceu a Benchley a sua ajuda e foi-se embora. O advogado tivera o discernimento de telefonar à sua secretária e de dar a Theo os endereços de que ele precisava.
Theo tinha de se deslocar pelo menos a mais dois sítios antes de regressar a Bowen.
Tinha de se certificar de que Cameron Lynch era o homem que Michelle e ele tinham visto na noite anterior. Dirigiu-se para a empresa de corretagem e entrou no átrio. Já tinha inventado uma boa mentira para convencer a recepcionista a arranjar-lhe uma fotografia dele, mas não foi necessário. Assim que entrou, viu uma fotografia de vinte por doze centímetros e meio, a cores, de Cameron Lynch na parede. Theo parou. Havia um grupo em que figuravam todos os corretores da empresa. Cameron estava ao meio. Theo olhou para a recepcionista. A mulher estava a falar para o seu auscultador, mas sorriu-lhe. Theo retribuiu o sorriso. Em seguida, tirou a fotografia da parede, deu meia-volta e saiu.
Precisava de ajuda para a diligência seguinte. Telefonou ao capitão Welles, o homem que o tinha apresentado na cerimónia de entrega dos prémios, e pediu-lhe auxílio. Em seguida foi ao apartamento de Cameron, situado num bairro degradado próximo da zona de armazéns que fora requalificada há pouco tempo. Estacionou o carro na rua e esperou que chegassem os dois detectives da esquadra do capitão.
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Os dois homens chegaram um quarto de hora depois. O detective Underwood, o mais velho, apertou-lhe a mão.
- O capitão disse-nos que o senhor é que apanhou o Conde. É uma honra conhecê-lo.
Foi a vez de o detective Basham avançar.
- Ouvi o seu discurso no banquete.
Theo tinha tirado a fotografia da moldura. Estendeu-a a Underwood e disse:
- É este o homem que eu quero.
- O capitão disse que vamos prender Cameron Lynch por tentativa de homicídio e que o senhor tem uma testemunha disse Basham.
- Eu sou uma das testemunhas. O Lynch tentou matar-me e a uma amiga minha.
- Passámos a zona a pente fino e o carro dele não está lá disse Underwood.
- Como quer que façamos isto? - perguntou Basham. O capitão disse que o senhor tinha instruções especiais.
- Partam do princípio que ele está armado e é perigoso disse Theo. - Quando o algemarem, leiam-lhe os direitos e prendam-no, mas não o acusem por enquanto. Quero-o fechado numa sala de interrogatórios para ter uma conversa com ele. Não quero o nome dele no computador, por enquanto.
- Vamos vigiar o local. Quer esperar connosco?
- Não, tenho mais um sítio aonde ir, mas assim que o apanharem, telefonem-me pelo telemóvel ou para um bar em Bowen chamado The Swan. Felizmente, não terão de esperar muito. Acho que ele vem a caminho de casa.
Parecia lógico. Lynch não quereria ficar em Bowen depois de ter sido identificado, nem sabia que Theo estabelecera a ligação. Theo escreveu o seu número e entregou-o ao detective; em seguida confirmou que queria que lhe telefonassem, fosse a que horas fosse, assim que apanhassem o Lynch.
- Sim, senhor, telefonamos - prometeu Basham.
- Esperem aí - disse Theo quando os dois homens se afastaram. Pegou no bloco de apontamentos, folheou-o até encontrar o que procurava e perguntou se algum deles sabia indicar-lhe o caminho para a morada que Benchley lhe dera.
Underwood indicou-lhe o caminho mais rápido e depois comentou:
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- É uma zona terrível. Tenha cuidado.
Theo atravessou o centro de Nova Orleães, avançando lentamente pelas ruas estreitas. Tinha a certeza de que estava perdido, mas assim que deu a volta, avistou a rua que procurava. Dois quarteirões mais à frente, encontrou o endereço. Estacionou o carro, pegou no telemóvel e ligou a Noah.
- Descobriste alguma coisa? - perguntou Noah. Theo contou-lhe o que sabia sobre Cameron Lynch.
- Pede ao Ben Nelson que procure um Ford Taurus azul de noventa e dois.
Indicou-lhe o número da matrícula e pediu-lhe que aconselhasse Ben a agir com extrema precaução se descobrisse o carro.
- Achas que ele dá conta do recado? - perguntou Noah.
- Acho - respondeu Theo. - Ele sabe o que está a fazer. Confirma se ele sabe que o Lynch é um dos assaltantes. Quero que esse patife seja engavetado e isolado até eu poder interrogá-lo.
- Duvido que o Lynch ainda ande por Bowen. Ele deve saber que serás capaz de identificá-lo.
- Também não acredito que ele esteja aí - disse Theo. A minha esperança é que ele vá a caminho de casa. O que está a Michelle a fazer?
- É uma mulher estranha - respondeu Noah. - Adormeceu sentada à mesa.
- Ela teve uma longa noite.
- E tu também - observou Noah. - De qualquer modo, está a preparar-se para ir para o Swan comigo e com o Jake... E com aquele indivíduo ridículo que é o filho dele. Já tiveste notícias da detective Harris?
- Não, não tive e deixei-lhe três mensagens. As duas primeiras foram delicadas, mas a terceira não foi.
- Esta manha, quando estava em Nova Orleães, fui à esquadra como me pediste - disse Noah. - Falei com o superior dela.
- Conseguiste uma cópia do processo do Monk?
- Não - respondeu ele. - O capitão disse-me que a Harris tinha saído para uma investigação. Não me deu nenhuma indicação quanto ao sítio onde ela poderia estar. Esclareceu que não queria que eu interferisse. As doze horas estão quase a acabar. Quando voltas para Bowen?
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- Ainda tenho mais uma coisa a fazer e depois vou para aí.
- Tenho de desligar - disse Noah. - A Michelle está a. chamar-me.
Theo pegou no bloco de apontamentos e nos óculos e observou a pequena casa de campo à sua frente. O minúsculo quintal estava meticulosamente tratado, com flores dos dois lados do passeio que conduziam à porta. A casa precisava de ser pintada e os caixilhos das janelas estavam podres. "Caruncho", pensou ele, encaminhando-se para a porta. O facto de o quintal estar bem arranjado e a casa degradada dava a entender que a ocupante cuidava daquilo que as suas posses lhe permitiam.
Theo tocou à campainha e ficou à espera. Pelo canto do olho, viu a cortina da janela da frente a mexer-se. Tocou outra vez.
Foi uma mulher que veio abrir a porta.
- O que deseja?
- Procuro Rosa Vincetti.
- É da polícia?
- Não. Sou amigo de Jake Renard - respondeu ele.
A mulher abriu mais a porta, equipada com uma corrente de segurança.
- Sou eu. O que deseja? - perguntou ela.
Era óbvio que estava assustada. Theo devia ter feito a barba.
- Jake Renard disse-me que falava muitas vezes consigo quando telefonava à Catherine.
- Sim. Mr. Renard gostava muito da Catherine - disse ela.
Theo não conseguia ver a cara da mulher, que estava escondida atrás da porta. Havia algo a tremeluzir lá dentro. Theo admitiu que fosse uma vela acesa.
- Não é da polícia? - perguntou ela outra vez.
- Não, sou advogado - explicou ele.
Rosa fechou a porta, desenganchou a corrente e abriu-a outra vez. Recuou para Theo poder entrar. Theo ficou no alpendre. Para evitar que ela entrasse em pânico ao ver a arma, explicou à pressa porque tinha de usá-la. E, quando acabou, garantiu-lhe mais uma vez que não era polícia e que não estava ali para lhe causar problemas.
Rosa revelou-se uma surpresa. Era muito mais nova do que ele esperava, com cerca de cinquenta anos, pelos seus cálculos, e
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quase tão alta como ele. As madeixas grisalhas realçavam-lhe o cabelo escuro. Os olhos negros eram emoldurados por sobrancelhas grossas. Tinha os olhos marejados de lágrimas quando o mandou entrar mais uma vez.
- Chamo-me Theo Buchanan - disse ele, entrando na sala de estar.
- Eu sei quem o senhor é. Rezei a Deus e Ele enviou-mo. Theo não sabia o que dizer e limitou-se a abanar a cabeça.
- Sente-se, por favor - disse ela, apontando para um sofá de brocado cinzento. - E diga-me porque cá veio.
Theo esperou que ela se sentasse em frente dele, do outro lado de uma mesa de vidro oval. Apoiou os cotovelos nos joelhos e contou a Rosa como conhecera Michelle Renard. Tentava pô-la à vontade e ajudá-la a compreender a sua relação com a família Renard. Rosa ouviu-o com muita atenção.
Era obviamente uma mulher muito religiosa. Por toda a casa se viam sinais da sua fé. Um sofá comprido encostado à parede atrás dela fora transformado num altar coberto por um naperão de renda. De um lado ardiam duas velas votivas e no outro havia uma imagem emoldurada da Virgem Maria com um rosário de contas pretas por cima.
Theo explicou o que acontecera na noite anterior, nomeadamente a emboscada que ele e Michelle tinham sofrido.
- A Catherine enviou um envelope à Michelle - disse ele.
- Sim, eu sei - disse ela. Theo não se manifestou. Acertara.
- Creio que os homens que nos perseguiram, a mim e à Michelle, tentavam deitar a mão a esse envelope - disse ele - Mas não conseguiram. Agora está nas mãos da polícia.
Rosa ficou hirta.
- Teve oportunidade de ler os documentos? - perguntou ela.
- Ainda não, mas tenho a certeza que o John Russell está por trás disto e quero apanhá-lo. Para isso, vou precisar da sua ajuda.
- Ele é um homem mau - disse ela em surdina. - Irá para o Inferno quando morrer. Foi ele que a matou, sabe?
Rose fez esta afirmação quase com naturalidade, como se a notícia surpreendente viesse nos jornais há várias semanas.
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- Ele matou a. Catherine?
- Sim, matou. Não tenho provas - apressou-se ela a acrescentar. - Mas no meu íntimo sei que foi ele. O pessoal da ambulância que foi lá a casa... Um deles disse-me que ela morreu sufocada com caramelos. - Rose abanou a cabeça. - Foi então que eu soube a verdade.
- Como?
- Ela não comia caramelos. Tinha uma prótese dentária amovível e estava sempre com receio de que ela se partisse. Como nunca saía de casa para ir ao dentista, era extremamente cuidadosa. Mr. Russell levava-lhe uma caixa de chocolates todas as noites e depois saía para ir ter com as suas prostitutas, mas a Catherine só comia os bombons moles. Nunca tocaria num caramelo.
Rose fez o sinal da cruz e pôs as mãos como se estivesse a rezar.
- O senhor tem de encontrar provas e prender o John Russell. Seria um pecado deixar que um homem tão mau ficasse impune depois de ter cometido um assassínio. Tem de fazer isso pela Catherine e por mim.
Theo concordou.
- vou tentar. A Catherine descobriu os negócios do John, não foi? Por isso é que lhe deixou apenas cem dólares no testamento.
- Sim, ela ouviu-o a falar ao telefone. Ele chamava-lhe nomes terríveis quando falava com a amante. Ela chorou durante vários dias. E depois, uma noite, ouviu-o falar com um homem sobre um depósito que tinha feito numa conta fora dos Estados Unidos. Ouviu-o dizer-lhe que não se preocupasse, que ninguém saberia de nada porque todos os dados estavam no computador que ele tinha em casa.
Theo começou a tomar notas, enquanto Rosa lhe transmitia as informações que recebera de Catherine.
- Como é que ela teve acesso aos ficheiros dele? Como soube qual era a palavra-passe?
- Foi o John que lha deu - respondeu Rosa. - É claro que ela não sabia nada nessa altura. Escutava as conversas telefónicas dele e por duas vezes ouviu-o referir-se ao Clube da Sementeira. No dia seguinte, depois de ele ter ido para o emprego e de eu ter mandado a criada à mercearia, ajudei-a a descer e a ir à biblioteca
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. Ela dactilografou as palavras mas não conseguiu ter acesso. A grafia não estava correcta, percebe? A Catherine era muito esperta. Da segunda vez, escreveu
bem e teve logo acesso aos ficheiros.
- Ela disse-lhe o que havia nesses ficheiros?
- Disse que o marido estava envolvido em actividades ilegais com dinheiro.
Theo coçou o queixo.
- Porque deu ela instruções ao advogado para esperar pela sua morte para enviar cópias dos ficheiros? Porque não mandou prender John?
- O senhor não compreende.
- Ajude-me a compreender - pediu ele.
- A Catherine tinha muitas qualidades, mas era uma mulher dominadora. Queria que as coisas se fizessem como devia ser e que o marido respeitasse os votos matrimoniais. - Rosa abanou a cabeça e acrescentou: - Ela não o deixava ir embora, mas, depois de morrer, não permitia que outra mulher ficasse com ele. Tencionava servir-se dos documentos que entregara a Mr. Benchley para obrigá-lo a...
- Manter-se na linha? - perguntou Theo.
- Sim.
- Conheceu algum dos amigos de John? Ela abanou a cabeça.
- Ele nunca convidava ninguém lá para casa. Acho que estava a isolar a Catherine. Tinha vergonha dela, mas mesmo depois de ela se confinar à cama e não sair do quarto, ele não levava os amigos lá a casa.
Theo fechou o bloco.
- Posso fazer-lhe uma pergunta pessoal?
- O que é?
- Porque tem tanto medo da polícia? Rosa olhou para as mãos.
- O meu filho meteu-se em sarilhos no ano passado. A polícia... Entrou em casa de madrugada e tirou-o da cama. Levou-o para a prisão, e eu fiquei com muito medo por ele. A Catherine telefonou ao advogado dela e ele deu-lhe o nome de alguém que podia ajudar o meu rapaz.
- Um especialista em Direito Criminal?
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- Acho que sim - respondeu ela. - Agora o meu filho está em liberdade condicional, mas todas as noites, quando ele não vem para. casa, eu penso que o levaram outra vez. Anda com más companhias e todas as noites eu peço a Deus que olhe por ele. O meu filho é bom rapaz, mas é um pau-mandado e faz tudo o que os maus lhe dizem para fazer - disse ela em voz baixa.
- Em que tipo de sarilhos é que ele se meteu?
- Drogas - respondeu ela, benzendo-se outra vez. - Tirava dinheiro às pessoas e dava-lhes drogas. Mas acabou com isso. Prometeu-me que o faria e fez.
Theo abanou a cabeça.
- Compreendo - disse ele. - Não quero dificultar-lhe mais a vida, mas preciso de uma coisa, Rosa... E você tem-na, não tem?
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CAPÍTULO 38
Deus abençoasse Catherine Russell e as suas obsessões por ter tudo em duplicado. Theo confiara na compulsão dela quando resolvera ir visitar Rosa. Catherine não o desiludira. De facto, fizera outra cópia dos ficheiros e entregara-a a Rosa para que a guardasse em local seguro.
Theo não esperava que Rosa exprimisse a convicção de que fora John que matara a mulher, mas depois reconheceu que não devia ter ficado surpreendido. O homem era capaz de tudo.
As cópias de todos os documentos que Catherine enviara a Michelle estavam no banco ao lado dele. Theo sabia que precisaria de duas horas para decifrar os códigos. Limitara-se a olhar para eles na presença de Rosa, mas sabia que podia apanhar o filho-da-mãe por evasão fiscal, extorsão, fraude, negócios ilícitos, etc. A detective Harris dissera a Michelle que a folha que ela tirara do envelope parecia um relatório financeiro, e tinha razão. Nas outras folhas figurava a discriminação de cada transacção. Theo tinha a certeza de que todas eram ilegais e, no caminho para Bowen, foi pensando em tudo aquilo de que poderia acusá-lo. Havia matéria suficiente para Russell passar o resto da vida na prisão. Theo tencionava acusá-lo também de tentativa de homicídio - tinha a certeza que John era um dos atiradores da noite anterior - mas não dispunha de provas... por enquanto. Além disso, queria que fosse feita justiça a Catherine e precisava de tempo para arranjar as provas necessárias para incriminá-lo pelo assassínio da mulher.
Fora John a matá-la ou contratara alguém? Seria por isso que a detective Harris se encontrava em Bowen? Ela dissera a Theo que tinha um palpite de que havia um assassino na cidade. Teria
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Monk matado Catherine e. estaria agora a ajudar John a recuperar provas incriminatórias?
Onde diabo se encontrava Cameron Lynch? Underwood prometera telefonar-lhe assim que deitassem a mão a Lynch. Era ele a chave do enigma, concluíra Theo; se conseguisse apanhá-lo, conseguiria apanhar todos.
Pensou outra vez nas transacções que constavam dos documentos. Havia uma letra entre parênteses ao lado de cada entrada, que indicava a pessoa responsável por cada contribuição. Havia um C, que muito provavelmente correspondia a Cameron Lynch. J era de John Russell, mas quem eram P e D? O Clube da Sementeira. Mas que nome bizarro para um grupo de criminosos. Quatro homens que tinham acumulado milhões de dólares ilegalmente.
- Dois já estão, faltam os outros dois - disse ele.
Depois, riu-se. Catherine também tinha feito uma cópia da carta que escrevera a John, e Theo imaginou a reacção do marido ao lê-la e descobrir o que ela tinha feito.
Oh, Catherine. Mas que mulher tortuosa!
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CAPÍTULO 39
O Swan estava apinhado. A clientela, na sua maioria constituída por pescadores, era tanta e falava tão alto que Michelle sentia o soalho a tremer debaixo dos pés. Ela e Noah serviam bebidas ao balcão. Noah facilitava o trabalho. Fosse qual fosse a bebida alcoólica que alguém pedisse, ele servia uma cerveja. A única alternativa que autorizava era um refrigerante.
John Paul conseguia controlar a multidão e levantava as mesas. O papá estava na ponta do balcão, à porta da cozinha, com o seu bloco Big Chief e uma esferográfica na mão. Aproveitara uma velha caixa metálica, limpara-a e utilizava-a como cofre para guardar o dinheiro do torneio, para não o misturar com a receita do bar. Todos os retardatários que queriam inscrever-se no torneio formavam uma fila que chegava ao parque de estacionamento. Cada um pagava a sua inscrição em dinheiro - o papá não aceitava cheques nem cartões de crédito -, assinava no bloco e recebia um bilhete com um número. No dia seguinte, às cinco horas, os pescadores entregariam o bilhete e receberiam uma etiqueta. Quem tentasse esgueirar-se mais cedo para começar primeiro seria automaticamente desqualificado e não receberia a etiqueta.
Havia alguns forasteiros de localidades vizinhas. Preston e Monk misturaram-se com facilidade. Tal como pelo menos metade dos presentes, usavam bonés de copa redonda e jeans, e bebiam cerveja perto dajukebox, fingindo que esperavam que vagasse uma mesa.
Comportavam-se como se estivessem a passar um bom bocado. Preston meteu conversa com três homens que bebiam cervejas numa mesa próxima. Contou-lhes uma história sobre um peixe
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enorme que tinha fugido. Monk juntou-se ao grupo e exibiu duas embalagens de isco que comprara no estabelecimento de apetrechos de pesca ao fundo da rua. Usava
um colete de pescador enorme para esconder a arma. Ao contrário de Preston, não se dispusera a entrar desarmado no bar com um agente do FBI a menos de cinco metros.
Preston era melhor do que Monk na tagarelice. Ambos riam e bebiam, e até namoriscavam com duas mulheres sós que se meteram com eles, mas nunca perdiam de vista Michelle e esperavam a todo o momento que Theo Buchanan chegasse.
John, Dalas e Preston tinham concluído que seria mais seguro e mais fácil atacarem Michelle e Theo ao mesmo tempo.
ro
O plano consistia em atraí-los lá para fora, levá-los para o pântano e matá-los. Cameron estava fora da jogada. Monk já recebera instruções para segui-lo até Nova Orleães depois de acabar o trabalho em Bowen. Embora em geral fosse Monk a decidir o método, neste caso Dalas explicou que precisariam rapidamente de uma certidão de óbito para levantarem o dinheiro da conta do Clube da Sementeira. Como todas as pessoas da empresa em que Cameron trabalhava sabiam como ele andava triste e deprimido por causa do divórcio em curso, Dalas pensou que Monk deveria servir-se da arma dele e deixar um bilhete de suicídio.
Monk já não estava disposto a trabalhar a crédito. Afinal, as apostas eram agora mais altas. Quando John protestou por não poderem levantar o dinheiro à pressa, Monk resolveu negociar. Sabia tudo acerca dos negócios sujos deles e do dinheiro que os esperava e por isso, em vez de fixar uma verba, ofereceu-se para ajudá-los em troca da parte que cabia a Cameron. O tempo era crucial para John, Preston e Dalas, que foram obrigados a aceitar as suas condições.
Mas onde estava Theo Buchanan? Se Michelle não estivesse bem atrás do balcão, Preston teria tentado meter conversa com ela acerca do pai. Ter-lhe-ia perguntado quem era o seu parceiro de pesca - vira o nome de Buchanan ao lado do dela na folha de assinaturas - e acabaria por saber onde estava Buchanan.
Mas havia muita gente e a vozearia era grande. Preston teria de esperar que saíssem alguns clientes. Percebeu que a maioria dos pescadores iria para casa por volta das dez horas, porque teriam de regressar ao Swan com os barcos e os utensílios de pesca
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às cinco horas da manhã. O torneio começava oficialmente às cinco e um quarto.
John e Dalas encontravam-se num cruzamento a oitocentos metros, num carro alugado. Aguardavam que Preston lhes telefonasse. Quanto mais esperavam, mais ansiosos e nervosos ficavam. O que diabo estariam Preston e Monk a fazer?
John abriu uma garrafa de água e bebeu um gole.
- Aconteça o que acontecer, resolveremos o assunto esta noite. Seja quem for que se meter no caminho. Se tivermos de matar alguém nesse bar, então, por Deus, é o que faremos. Temos armas, e eu quero acabar com isto. Porque é que o Preston não telefonou?
- Bem viste os carros no parque. Ele está à espera de uma oportunidade - disse Dalas.
Eram quase nove horas e o bar ainda estava cheio. A jukebox continuava a tocar - Elvis cantava, com os seus sapatos de camurça azul - e os clientes eram obrigados a levantar a voz para se fazerem ouvir. Se Michelle não estivesse no extremo do balcão junto do telefone que servia os clientes, nem o teria ouvido tocar.
Encostou o auscultador ao ouvido e tapou o outro para poder escutar o que diziam do outro lado. Mesmo assim, foi obrigada a ir para a arrecadação. Era Cherry Waterson, a telefonar do hospital. A mulher estava histérica. Michelle não percebia o que ela dizia e por fim pediu-lhe que passasse o telefone a uma enfermeira.
Passados trinta segundos, depois de transmitir as suas instruções à enfermeira, Michelle desligou o telefone e foi ter com Noah.
- Temos de ir ao hospital, já.
Noah nem precisou de ouvir os pormenores. Pela expressão de Michelle, percebeu que o caso era grave. Largou o pano de cozinha, assobiou e fez sinal a John Paul. Foram para a cozinha atrás de Michelle.
- Qual é o problema? - perguntou o irmão.
- Preciso das chaves do seu carro.
- O John Patrick foi atingido por uma seta. Alojou-se-lhe no peito - balbuciou ela, destrancando a porta das traseiras e abrindo-a. - Temos de ir.
John Paul atirou as chaves a Noah.
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Michelle pegou no telemóvel de Noah e telefonou para a Radiologia, ao mesmo tempo que andava. Depois de fechar a porta, Noah gritou a John Paul:
- Telefone ao Theo. Ele vem a caminho. Diga-lhe para onde vamos.
Preston abriu caminho através da multidão e aproximou-se de Jake Renard, fingindo que consultava a lista de assinaturas pregada na parede. Fez o possível por ouvir tudo o que John Paul dizia ao pai. Assim que soube que Michelle se dirigia para o hospital e que John Paul ia telefonar a Theo e dizer-lhe para ir ter com ela, Preston pousou o copo no balcão e encaminhou-se para a porta.
Do outro lado da sala, um dos velhos contava a Monk a história de uma pescaria. Convidara Monk para se sentar à mesa com ele e os amigos, mas Monk ficara onde estava para poder vigiar o parque de estacionamento através da janela da frente.
- Passo o dia sentado ao computador - disse ele. - O que estava a dizer sobre a truta salmonada?
O velho abanou a cabeça, porque era óbvio que Monk não estava a prestar atenção, e recomeçou a contar a história desde o princípio. Monk abanou a cabeça duas vezes para se mostrar interessado. Quando viu Noah e Michelle a entrarem para uma velha pickup, dirigiu-se logo para a porta. O velho gritou-lhe qualquer coisa, mas Monk ignorou-o e continuou a andar, com a mão no bolso do colete.
No parque de estacionamento, Preston dirigiu-se para o seu carro de cabeça baixa, não fosse Michelle ou o agente do FBI olharem para trás. Monk alcançou-o.
- Para onde vão eles com tanta pressa?
- Para o hospital - respondeu Preston. - E o Buchanan vai lá ter. Se o Clayborne deixar lá a médica, podemos apanhar os dois, ela e o Buchanan. A maioria dos cirurgiões opera de manhã cedo.
John alterou o plano. Quando Preston lhe telefonou a dar-lhe a novidade, ele disse:
- Eu e Dalas esperamos no carro, no parque do hotel, e agarramos o Buchanan quando ele chegar. Se ele já lá estiver, Dalas entra e atrai-o lá para fora. Tu e o Monk entram e vigiam a médica. Quando ela estiver sozinha, agarram-na e vão ter connosco, como planeámos.
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- Vai-te lixar! - gritou Preston. - Ouvi o irmão a dizer que ela vai operar. Acho que devíamos tratar dela lá. E apanhamos também o agente do FBI, se ele aparecer.
John cerrou os dentes.
- Vocês enlouqueceram? Sabem quantas pessoas estarão ao pé dela? Pelo amor de Deus, usem os miolos. Queremos que isto pareça um ataque ao Buchanan por motivos profissionais, lembram-se? E queremos que a polícia e o FBI pensem que a médica apanhou por tabela porque estava com ele.
- E o Clayborne?
John pensou no assunto durante uns segundos e depois respondeu:
- Se o agente se meter no caminho, terão de matá-lo também.
- Meu Deus, se alguém nos ouvisse... - vociferou Dalas.
- Cala-te! - rosnou John.
Depois, continuou a conversa com Preston.
- Em que carro é que a médica vem?
- Numa velha pickup vermelha.
John desligou o telemóvel e deixou-o cair no regaço. Dalas disse entre dentes:
- Abranda. O hospital fica mesmo ao virar da esquina. John apercebeu-se de que ia muito depressa e abrandou.
- Porque estava o Preston a discutir contigo? - perguntou Dalas.
- Queria avançar com o tiroteio.
- Como é que isto se complicou tanto? Falas em matar duas, talvez três pessoas, e eu concordo.
- Não temos alternativa.
- O diabo é que não temos! Podíamos fazer as malas e partir para as ilhas Caimão. Podíamos receber o dinheiro já, dividi-lo em três partes e desaparecer do mapa.
- Temos de exibir a certidão de óbito do Cameron para levantar o dinheiro.
- O Monk podia encarregar-se disso.
- Como é possível que tenhas escrúpulos em matar desconhecidos e não tenhas problemas em matar o Cameron?
- Ele tornou-se um fardo perigoso.
- Exactamente - disse John. - Assim como o Buchanan e os amigos. Vamos pôr termo a isto esta noite.
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- Acho que devíamos anular tudo.
- Não! - gritou John.
- Está tudo descontrolado - respondeu Dalas, também aos gritos. - E a culpa é tua, patife!
John agarrou na arma. Tinha um desejo quase imperioso de encostar o cano da pistola à têmpora de Dalas e de puxar o gatilho. Mas respirou fundo.
- Não te atrevas a ires-te abaixo - disse ele. - Olha, lá está o carro do Preston. Ele e o Monk devem estar lá dentro.
- O parque está quase vazio. Ainda bem.
John inclinou o pescoço para ver o espaço de estacionamento da médica. Depois sorriu.
- Lá vem a pickup.
- É evidente que o Clayborne não a largou nem voltou para o Swan. Está lá dentro com ela.
- Então, está metido na jogada.
- Pára ao lado daquela carrinha roxa atrás do renque de árvores.
John estacionou, carregou no botão para abrir a janela e desligou o motor.
Dalas tirou do banco traseiro um blusão preto e vestiu-o. Tinha uma pequena pistola semiautomática no bolso.
- Estou a tentar prever todas as hipóteses - disse Dalas. O Buchanan e a médica não devem oferecer dificuldades. O Clayborne é que vai ser tramado. Foi treinado e anda à procura de sarilhos. Se a coisa correr mal e eu, o Preston e o Monk tivermos de atacar lá dentro, ele começará a disparar e tentará levar-nos.
- Então, abatam-no primeiro. Lembrem-se que o factor surpresa está do vosso lado. Ele não vos verá chegar.
- Mas, está... à espera.
- Vocês têm de conseguir atrair o Buchanan cá para fora.
- Eu só digo que se alguma coisa correr mal...
- Olha - disse John, impaciente. - O Monk deve estar a pensar no mesmo que tu. Talvez tu e ele consigam encurralar o Clayborne. O Preston pode encarregar-se do Buchanan.
- Malandro! Devias vir connosco.
- A médica sabe quem eu sou. É demasiado arriscado. Ela pode estar no corredor e reconhecer-me logo. Não, espero aqui.
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Dalas tirou a chave da ignição. John ficou muito ofendido.
- Achas que vou fugir?
- Se ouvires tiros, talvez. John levantou as mãos.
- Está bem. Leva as chaves, mas conserva-as à mão!
John viu um carro a entrar no parque e, apesar de estarem escondidos atrás das árvores, baixou-se. O carro continuou a avançar. Encontravam-se num ponto de vantagem ideal. A entrada das Urgências ficava mesmo em frente deles. Ou Buchanan estacionava o carro no espaço reservado aos visitantes ou parava ao lado da pickup da médica. Fosse como fosse, nunca veria Dalas nem John.
- Se eu tiver de ir atrás dele... Isto pode rebentar-me na cara
- disse Dalas, sem esconder a inquietação.
- Pensa no dinheiro! - segredou John, com uma voz de veludo. - Pensa apenas no dinheiro!
Afundaram-se os dois nos bancos e aguardaram em silêncio.
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CAPÍTULO 40
Theo tinha feito mais um desvio antes de ir para o hospital. Parou num estabelecimento Pak Mail, fez cópias dos documentos que Rosa lhe entregara e depois, servindo-se do telefone da loja, telefonou ao seu superior em Boston e contou-lhe o que sucedera. Enquanto ele falava, um empregado da loja enviou-lhe os documentos por faxe.
Em seguida, telefonou à filial local do FBI para saber o número de faxe e também enviou cópias. E como estava cansado e se sentia um pouco paranóico, enviou um jogo de documentos para sua casa, igualmente por faxe.
Quando chegou aos arredores de St. Claire, o seu telemóvel começou a perder o sinal. A bateria estava quase descarregada. Queria telefonar a Ben e pedir-lhe que fosse ter com ele ao hospital para lhe entregar outro jogo de cópias, com o objectivo de incluir o chefe na investigação. Theo concluiu que teria de esperar e telefonar-lhe do hospital. Enquanto aguardava junto de um semáforo, empilhou os documentos e guardou-os no porta-luvas.
Agora que sentia que cobrira todas as bases - o seu chefe ia enviar por faxe uma cópia a um amigo das Finanças -, Theo rememorou a conversa que tivera com Rosa Vincetti. A pobre mulher tinha um medo terrível da polícia e, dada a sua experiência passada, Theo não a criticava. Tinham-lhe arrombado a porta de madrugada e, de armas em riste, revolvido a casa e tirado o filho da cama, que algemaram e levaram preso. Desde essa noite que Rosa vivia apavorada com a possibilidade de que a cena se repetisse.
- A Catherine sabia que a senhora tinha medo da polícia?
- perguntara-lhe ele.
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- Sim, sabia - respondera ela. - Eu contava-lhe tudo.
Éramos muito amigas, como irmãs. Ela dependia de mim.
Depois, à saída, Rosa dissera-lhe que continuava à espera de ler nos jornais que John fora preso, porque Catherine contara-lhe que as cópias que fizera dos ficheiros secretos do marido lhe valeriam a prisão perpétua.
- Õ que tencionava fazer com as suas cópias? - perguntou ele.
- Não sei. Ela pediu-me que as guardasse num lugar seguro. Tenho rezado... e esperado.
- Esperado por quê?
- Que Deus me diga o que hei-de fazer - respondeu ela. Depois de lhe garantir que os documentos ficariam a salvo na sua posse, Theo agradeceu-lhe e saiu.
Encontrava-se apenas a dois quarteirões do hospital quando olhou para o relógio digital do tabliê. Eram nove e um quarto. "O tempo voa quando estamos distraídos", pensou ele. Não era de admirar que o estômago estivesse a dar horas e que ele bocejasse constantemente. Não comera nem bebera nada durante todo o dia. Precisava de comida e de cafeína. Depois de ir ter com Michelle e de falar com Noah, talvez fosse comer alguma coisa à cafetaria do hospital.
Entrou no caminho de acesso ao hospital, reparou que não havia carros debaixo do telheiro à entrada das Urgências e estacionou o automóvel nos espaços em diagonal reservados à polícia.
Vinha a sair um enfermeiro.
- Ó amigo, não pode deixar aí o carro. Tem de pagar bilhete.
- É um carro do FBI - respondeu Theo.
- Raios! - resmungou John ao ver Buchanan a arrumar o carro junto do edifício e a entrar.
Dalas abriu a porta do carro.
- Telefona ao Preston e ao Monk. Eles que vão ter comigo às escadas, do lado norte. Quero sincronizar isto, não vá o Buchanan dar-me que fazer.
Assim que Dalas fechou a porta e desatou a correr, John fez o telefonema. Depois de desligar, tirou o computador portátil que trazia no banco de trás e passou-o para a frente. Em seguida, abriu o porta-luvas, tirou o outro jogo de chaves que pedira ao alugar o carro e enfiou a chave na ignição.
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Dalas só agora começava a desconfiar dele. John sorriu ao pensar nisso. Todos eles, mesmo o cínico e enfadonho Cameron, apesar das suas negociatas ilegais, eram ingénuos no modo como avaliavam as capacidades de John. Acreditavam mesmo que ele não poderia receber o dinheiro sem eles. O mais engraçado é que as suas abelhinhas estavam convencidas de que ele partilharia a fortuna. Ah, a confiança! Que arma maravilhosa!
John recostou-se e ficou à espera. Estava uma noite linda e abafada. Talvez tudo aquilo resultasse e ele não tivesse de recorrer ao seu plano de contingência. Mas Preston estava a perder as estribeiras. John tinha a certeza que Preston não conseguiria deixar de disparar sobre alguém. E a coisa azedaria. Talvez todos eles morressem.
O que seria um golpe de sorte.
Theo preparava-se para subir ao segundo piso, mas quando atravessou o átrio em direcção às escadas, Elliott Waterson chamou-o.
- Treinador? Os meus pais estão lá em cima.
O adolescente estava dentro do elevador, agarrado à porta. Era óbvio que julgava que Theo viera fazer companhia a Cherry e Daryl enquanto John Patrick era operado.
Theo foi ao encontro dele.
- Como vai isso, Elliott?
O adolescente começou a chorar. Parecia que tinha passado por uma guerra. Tinha os olhos inchados, o nariz vermelho e estava com um ar triste e assustado.
Cabisbaixo, disse em surdina:
- Já sabe o que fiz ao meu irmãozinho? - O rapaz soluçava.
- Magoei-o, treinador. Magoei-o muito.
- Tenho a certeza de que foi um acidente, Elliott.
Theo sabia que Michelle tinha ido a correr para o hospital e que o doente era John Patrick, o rapazinho que queria que ele desse um tiro a Lois, mas quando o irmão de Michelle telefonara não lhe fornecera pormenores sobre a extensão do ferimento nem sobre o que acontecera. Mesmo assim, Theo sabia que Elliott nunca magoaria intencionalmente o irmão. Era um miúdo decente e vinha de uma família carinhosa e unida.
- Eu sei que não quiseste magoar o John Patrick.
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- Mas a culpa foi minha e ele vai morrer.
Elliott ia derrubando Theo quando se encostou a ele. Soluçava de uma forma descontrolada, com o rosto enterrado no ombro de Theo. Elliott era um rapaz corpulento e robusto que pesava pelo menos mais quinze quilos do que Theo, mas ainda era um miúdo que precisava de ser confortado.
- Vamos à procura da tua mãe - sugeriu Theo.
com um discurso um pouco desconexo, Elliott gaguejou:
- Eu nunca devia ter... Não era minha intenção...
Theo partilhava da sua dor. Abraçou-o e deu-lhe uma palmadinha nas costas.
- Vai correr tudo bem. - Estas palavras não eram uma promessa, eram uma oração. - Tens de ter esperança, Elliott.
Theo apercebeu-se de que o elevador não andava. Esticou o outro braço à volta do adolescente para conseguir chegar ao botão.
- Conta-me o que aconteceu.
- A mamã disse-me que não lhe oferecesse o alvo. Disse que ele era muito pequeno e podia cortar-se naqueles dardos pontiagudos, mas o John Patrick queria mesmo aquilo como prenda de anos e eu dei-lho. A mamã ficou furiosa comigo - gaguejou ele.
- Eu devia ter tirado aquilo... Mas não tirei. Pendurei o alvo com uma corda na árvore grande do quintal. Pu-lo baixo para que o John Patrick lá chegasse e, quando começou a escurecer e ele se cansou de brincar e subiu à árvore como gosta de fazer, eu peguei nos dardos e comecei a atirá-los. Estava bastante longe e atirava-os com força.
Theo estremeceu. Sabia o que vinha a seguir. Elliott estava demasiado perturbado para continuar. A porta do elevador abriu-se e Theo saiu atrás dele.
Noah estava encostado à parede, virado para os elevadores. Quando viu Elliott com Theo, desceu imediatamente o corredor para ir buscar os pais do rapaz.
- O John Patrick saltou da árvore precisamente quando eu lancei um dardo - disse Elliott, soluçando. - Atingi-o no peito, talvez no coração... Não sei, mas ele não chorou. Ficou apenas muito admirado. Eu gritei "Não!" e corri para ele porque sabia o que ele ia fazer. Tentou puxar o dardo para fora... Mas o dardo não saiu... Só a ponta penugenta... E ele fechou os olhos
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e caiu ao chão. Ele... deixou-se cair. Julguei que estava morto. O papá assistiu. Tinha acabado de sair da carrinha e ia a entrar em casa. O John Patrick vai morrer, não vai, treinador? Eu sei que vai.
Theo não sabia o que havia de dizer para consolar o rapaz. Pigarreou e disse com um ar decidido:
- Vá lá. Vamos ter com a tua mãe.
Na parede em frente do elevador, havia vários sinais. O bloco operatório ficava à esquerda, ao fundo de um longo corredor. Noah seguia na direcção certa e Theo empurrou Elliott. Noah saiu de uma porta aberta e afastou-se quando Cherry e Daryl correram para Theo.
Quando Elliott viu a mãe, largou Theo e correu para ela. Cherry abraçou-o.
- Lamento o que aconteceu ao John Patrick - disse Theo a Daryl.
O pai parecia ter envelhecido dez anos.
- Eu sei, eu sei.
- Ele é tão pequenino! - exclamou Cherry, lavada em lágrimas.
- Mas é forte - disse Daryl. - Ele vai conseguir.
- Há quanto tempo é que ele está na sala de operações? perguntou Theo.
- Há meia hora - respondeu ele.
- Já se sabe alguma coisa?
Elliott tinha largado a mãe e estava ao lado dela, de mão dada. Cherry parecia atordoada. Foi Daryl que respondeu:
- A Dr.a Mike mandou cá fora uma enfermeira há alguns minutos para dizer que está a correr bem. Ouviste, Elliott? Tinhas ido lá abaixo à procura do padre quando a enfermeira entrou. A Dr.a Mike disse que o anjo da guarda do John Patrick estava a velar por ele, porque o dardo ia atingindo uma artéria. A enfermeira calcula que a operação dure mais uma hora, pelo menos.
- Talvez precisem de fazer uma transfusão ao meu menino
- disse Cherry.
- Estávamos a pensar que temos de ir ao laboratório para dar sangue, caso o John Patrick precise dele - disse Daryl.
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- Não vão aceitar o teu sangue, Daryl - disse Cherry. Foste operado há pouco tempo.
- Mesmo assim, vou perguntar.
- Eu também vou dar sangue - disse Elliott. Afastou-se da mãe, endireitou-se e enxugou os olhos com as costas das mãos.
- Onde estão os vossos outros filhos? - perguntou Theo.
- Lá em baixo na cafetaria - respondeu Cherry. - Eu devia ir espreitá-los. O Henry deve estar a ficar rabugento. Já passa da hora de deitar e eu não trouxe o cobertorzinho a que ele gosta de se agarrar quando chucha no dedo.
Cherry começou a chorar. Daryl abraçou-a.
- Ó Henry está bem. A mulher do padre vai levar os pequenos para casa e deitá-los - explicou ele a Theo. - Eles devem estar a chegar, portanto vamos ao laboratório, Cherry. Quero estar aqui quando a doutora sair.
Daryl estava agitado. Theo compreendia a necessidade que o pai sentia de fazer alguma coisa, qualquer coisa, para ajudar o filho. A espera seria insuportável para Theo, que nem sequer conseguia imaginar a angústia dos pais de John Patrick.
- Talvez um de nós devesse ficar aqui - disse Cherry quando se abriram as portas do elevador.
- Eu fico aqui - disse Theo. - E chamo-vos pelo pager se acontecer alguma coisa.
Noah deixara-se estar no mesmo sítio, mas assim que as portas do elevador se fecharam, aproximou-se de Theo.
- A mãe parece em estado de choque.
- Qual é a gravidade disto? Sabes?
- O aspecto não era bom, mas sinceramente não sei. Foi uma loucura aqui. Eu observava a Mike através da janela. Ela estava a lavar as mãos e os braços e a olhar para as radiografias que outro médico lhe mostrava. Havia enfermeiras, médicos e técnicos a correr de um lado para o outro. Todos davam ordens, aos gritos, excepto a Mike. Ela estava calma e fresca como uma brisa de Verão. - Noah não escondia a sua admiração. - Sabe controlar-se no meio de uma crise. Aposto que é por isso que ela é cirurgiã.
Theo concordou.
- Ela estava assim ontem à noite, quando as balas assobiavam à nossa volta.
369
- Por falar em balas, fizeste tudo em Nova Orleães?
- Oh, sim - respondeu Theo. - Nem vais acreditar no que eu descobri.
Theo falou do Clube da Sementeira e dos milhões de dólares escondidos numa conta nas ilhas Caimão. Depois de explicar como conseguira chegar a Cameron e Rosa, acrescentou:
- Quero deitar a mão ao John Russell, mas tenho a sensação que ele cometeu mais crimes do que aqueles que constam dos ficheiros. Assim que os detectives apanharem o Cameron Lynch, falo com ele. Ele vai dizer-me o que eu quero saber.
- Por aquilo que o Nick me disse acerca dos teus poderes de persuasão, não duvido que o obrigarás a falar. Quero ver esses documentos.
- Deixei cópias no porta-luvas do teu carro.
- Isso foi assisado? Theo sorriu.
- Não te disse que enviei cópias para o meu chefe, para as Finanças, para o FBI e para minha casa?
- Não, não disseste. Disseste que as iniciais ao lado dessas transacções eram J, C, P e D - disse Noah. - É pena que o John não tenha escrito os nomes completos.
- Talvez a Catherine o tenha feito. Talvez houvesse uma explicação nos documentos que ela enviou à Michelle.
- É óbvio que John Russell é o J e Cameron Lynch é o C. Mas quem são o P e o D?
- Esse é o enigma, e aposto que em breve saberei a resposta. Os detectives Underwood e Basham puseram mais dois em campo em Nova Orleães, a falar com alguns sócios do John. Teremos os nomes dentro de pouco tempo.
- Talvez a detective Harris saiba quem são. Ela já telefonou?
- Não.
Noah abanou a cabeça.
- Aposto que ela não é uma mulher de palavra. Já passaram mais de doze horas. Ela não prometeu que te dava uma cópia do processo?
- Vai ficar furiosa quando souber que eu consegui uma cópia por intermédio da Rosa.
- Mas tu não lhe vais dizer.
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- Raios, não! Não vou partilhar informação com ela. vou deixar que o Underwood e o Basham os prendam e fiquem com os louros.
Theo ouviu o seu nome a ser chamado pelo altifalante, viu o telefone na parede mesmo em frente do elevador e foi atendê-lo. Assim que se identificou, a telefonista pô-lo em espera. Passados dois segundos, o detective Underwood apareceu na linha.
A conversa foi muito esclarecedora. Depois, Theo disse:
- Claro, fico à espera. Diga-me alguma coisa. Desligou e virou-se para Noah.
- Preston e Dalas.
- Sim? Foi rápido.
- Um dos detectives conseguiu saber os nomes por intermédio de uma antiga namorada do John. Uma mulher chamada Lindsey. Estava a tentar entrar em casa do John, com o pretexto de que tinha lá deixado umas roupas. Ela disse que tinha conhecido o Cameron, mas não os outros. Mas ouviu o John a falar ao telefone e lembrou-se dos nomes Preston e Dalas porque eles telefonavam muitas vezes.
- Não há apelidos?
- Por enquanto, não. E, adivinha! Uma vez, telefonou outro homem à procura de Dalas. Chamava-se Monk. Ela recorda-se do telefonema porque o John se mostrou muito deferente para com ele, como se tivesse medo dele.
- Interessante - disse Noah. - A Lindsey alguma vez falou com ele ou com algum dos outros?
- Não - respondeu Theo. - Ela não estava autorizada a atender o telefone, disse que o John não queria que se soubesse que ele tinha uma amante tão pouco tempo depois da morte da mulher. Ela também disse ao detective que eles tencionavam casar, mas que o John chegou há dois dias e lhe disse que fizesse as malas e se fosse embora. Não foi nada simpático.
- É por isso que ela está tão faladora agora?
- Exactamente. Calculo que eles deitem a mão a Preston e a Dalas antes da meia-noite.
- Podia ser mais cedo - disse Noah. - Como é que o detective Underwood te encontrou?
- Eu disse-lhe que poderia telefonar-me para o telemóvel ou para o Swan. O John Paul ou o Jake é que lhe devem ter dito que eu estava no hospital.
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- Então, só nos resta esperar mais um pouco. Em breve, estará acabado.
Theo bocejou ruidosamente e esfregou a nuca.
- Preciso de cafeína.
- Há café na sala de espera.
- Ainda bem - disse ele. - Primeiro, vou ver como está a Michelle. Posso entrar lá dentro? - perguntou ele, inclinando a cabeça para a ampla porta dupla sobre a qual se lia em letras vermelhas: "Proibida a Entrada".
- Claro que podes. Podes espreitar pela janela e ver a Mike. Ela está no canto esquerdo da sala de operações. Mas não deixes que ninguém te veja. As enfermeiras têm a mania de gritar. vou fazer dois telefonemas - acrescentou ele, dando meia-volta e descendo o corredor em direcção à sala de espera. - Queres que eu te traga um café?
- Não. Eu vou buscar. - Theo encostou a mão à porta, pronto a empurrá-la, mas parou de repente e virou-se para trás.
- Sabes o que é muito estranho, Noah?
- O quê?
- Os canais que a Catherine utilizou... Enviar os ficheiros para uma parente insuspeita que ela nunca vira.
- O John Paul disse-me que ela era uma ave rara.
- E era.
- Então, talvez esteja aí a resposta.
- Pois, talvez - disse Theo, mas sem convicção.
Theo empurrou a porta e entrou na zona proibida, sentindo-se um pouco como um miúdo a espreitar um filme para adultos. Esperava que alguém começasse a gritar com ele ou o agarrasse pelo colarinho e o pusesse fora.
Encontrava-se num corredor largo com várias portas de batente e um elevador. Virou à esquerda e entrou noutro corredor sem saída. Havia uma maca encostada à parede e à direita ficava a sala que Michelle estava a utilizar.
Estavam uns vinte graus a menos ali. Theo ouviu música ao aproximar-se e reconheceu a voz. O velho Willie Nelson, o preferido de Michelle. Sentiu o impacte de uma recordação demasiado vaga para se agarrar a ela. Havia algo familiar no cheiro, na canção e no frio. Talvez fosse por causa da operação a que fora submetido.
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Espreitou pela janela quadrada e ficou surpreendido ao ver como a sala era pequena. Estava cheia de gente. Theo contou seis pessoas, incluindo o tipo que estava à cabeceira do paciente a verificar os mostradores dos aparelhos ao lado dele. Não conseguiu ver John Patrick devido a uma enfermeira que estava à frente, mas viu de relance a testa de Michelle quando a enfermeira lhe entregou um instrumento e ela se virou ligeiramente. Ao observá-la, sentiu a tensão a desvanecer-se. Começou a descontrair-se, respirou fundo e de súbito percebeu que se sentia bem porque estava perto dela.
- Livra, estou mesmo mal! - disse ele em surdina, dando meia-volta e atravessando as portas de batente. Estaria a ficar obcecado por Michelle? Não, era evidente que não, mas o mundo parecia-lhe um pouco mais desanuviado e definitivamente melhor quando estava junto dela.
Ora, Catherine era o exemplo de uma personalidade obsessiva. Este pensamento remeteu-o para o enigma que tentava resolver. Rosa dissera-lhe que Catherine quisera servir-se dos ficheiros para ameaçar controlar o comportamento de John enquanto fosse viva. Porque não se limitara Catherine a dar instruções ao seu advogado para entregar os documentos à polícia após a sua morte? Estaria preocupada com a possibilidade de Benchley não obedecer às suas ordens, ou fora a desconfiança de Rosa em relação às autoridades que a motivara?
Theo percebia por que motivo é que Catherine escolhera Michelle. Catherine sabia como a prima era esperta. Sempre que Jake lhe telefonava, gabava muito a filha, e Catherine, sabendo o que Michelle já alcançara na vida, tinha a certeza de que a prima compreenderia o que significavam todos aqueles números e transacções. Talvez Catherine não tivesse pensado que Jake descobriria tudo - a sua aparência de velho bonacheirão enganava muita gente, que pensava que ele não era tão inteligente como Theo sabia que era. Catherine não devia saber isto, mas sabia com certeza como ele era persistente, porque nunca desistira dela. Telefonava-lhe uma vez por mês para saber como estava, recusando-se a ser afastado pelos seus modos frios e indiferentes. Talvez Catherine partisse do princípio que Jake se certificaria de que Michelle prestava toda a atenção aos documentos e os entregava às pessoas certas.
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Mas contornara a polícia e entregara uma segunda cópia a Rosa. Ora, porque fizera ela tal coisa?
De repente, a resposta foi manifestamente óbvia. Porque ela sabia que Rosa nunca iria à polícia. E isso queria dizer que...
- Filha-da-mãe! - disse ele em surdina.
Theo censurou-se por levar tanto tempo a perceber. Desculpe, Catheríne. Sou estúpido, percebe?
Estava ansioso por contar a Noah. Abriu a porta de batente, entrou no corredor e, com a pressa, chocou com um carrinho que foi a rebolar até à parede em frente. Caiu-lhe uma pilha de toalhas em cima dos pés e Theo agarrou no carrinho para evitar que se virasse. Agachou-se e estava a apanhar as toalhas quando ouviu o tilintar do elevador e o ruído das portas a abrirem-se.
A detective Harris saiu, afastou-se dele e dirigiu-se para a sala de espera.
Nesse dia, não calçava sapatos sensíveis. Andava depressa, como todos os polícias instintivamente faziam porque andavam sempre atrás de alguém, e os saltos estalavam no pavimento de oleado como se fossem castanholas.
Theo foi atrás dela.
- Detective, anda à minha procura?
Harris ia quase a chegar à sala de espera. Sobressaltada, deu meia-volta, levou a mão ao bolso e depois sorriu.
- Donde veio você?
Noah entrou na sala atrás de Harris, que correu para Theo.
- Do bloco operatório - respondeu ele. - Já falo consigo. Tenho de fazer um telefonema rápido.
Theo virou-se para o telefone de parede perto dele, ligou à telefonista e falou em voz baixa. Depois, desligou e sorriu outra vez.
- Como sabia que eu estava aqui?
- Sou detective. Sei como hei-de encontrar as pessoas.
- Harris riu-se. - No Swan disseram-me que você estava aqui e pelas Admissões soube que se encontrava neste piso. Não foi preciso investigar muito. Estou um pouco atrasada. Passaram mais de doze horas, mas fiquei retida. No entanto, cumpri a minha palavra.
- Nunca pensei que você aparecesse. Estou impressionado.
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- Tenho cópias dos documentos daquele envelope. Como tenho bom coração, vou deixá-lo lê-las. Mas lembre-se que a investigação é minha - apressou-se a acrescentar Harris.
- Eu não interfiro - prometeu Theo. - Onde estão os ficheiros sobre o Monk?
- Acho que você não acreditava se eu lhe dissesse que passei três anos atrás desse fantasma. Tenho duas caixas de arquivo enormes no porta-bagagens. Vai levar uns quinze dias a ler aquilo tudo.
- Está a tentar que eu me arrependa de as ter pedido?
- Claro. - Harris tremia visivelmente. - Bolas, como está frio aqui. Isto parece um túmulo. Então, o que quer você fazer? Transferir agora as caixas para o seu carro ou quer que eu as deixe num sítio qualquer?
- Podemos transferi-las agora. Posso começar a analisar o processo esta noite.
- Como queira.
- Já fez detenções?
Harris semicerrou os olhos. Era evidente que a pergunta a irritara.
- Ainda não - disse ela com rispidez. - Ele fugiu. Faz-me sempre isto. Desaparece como que por encanto. Localizámo-lo num motel em St. Claire. Cercámo-lo e depois apertámos o cerco. O carro dele estava lá, mesmo em frente da porta, mas ele não. Deve ter saído à pressa. Não teve tempo de arrumar o equiI pamento nem as roupas antes de
partir. Espero que a minha
equipa tenha sorte desta vez e encontre uma impressão digital.
Estão a trabalhar nisso neste momento.
- Acha que eu podia ir lá espreitar?
- com certeza, desde que não interfira.
- Já prometi que não o faria.
- Está bem - disse ela. - Pode lá ir. É no motel de St. Claire, na Fourth and Summit.
Harris carregou no botão do elevador e ficou à espera. Levantou a cabeça e verificou que ele se encontrava no quarto piso. Esperaram lado a lado durante alguns segundos. Ela carregou no botão outra vez.
Impaciente, disse:
- Vamos pelas escadas. É mais rápido e tenho de regressar a Nova Orleães.
375
- Algum encontro escaldante?
- Como é que você sabia?
- Foi só um palpite. Quando voltar, será tarde.
Harris olhou outra vez para os números. A luz continuava no quatro.
- Nova Orleães não dorme. A minha equipa deve estar ao rubro quando eu lá chegar.
Theo afastou-se quando ela disse:
- Vamos!
Virando-se para tomar a dianteira, Harris parou de repente. Noah estava à sua frente, com as mãos atrás das costas.
- Olá! - disse ele, num tom jovial.
- Cá estás tu - disse Theo. - Apresento-te a detective Harris. Detective, este é Noah Clayborne - disse ele, pondo-lhe a mão no ombro. - Noah trabalha para o FBI, mas é também um bom amigo.
Theo pôs-se atrás dela quando Noah disse:
- É um prazer conhecê-la, detective. Eu ia precisamente... Theo recuou mais um passo.
- Olá, Dalas! - disse ele.
Ela virou-se instintivamente. Ao fazê-lo, percebeu o que tinha acontecido. Arregalou os olhos e desviou-se para trás, mas era demasiado tarde. Theo empurrou-a contra as portas do elevador, de frente, impedindo que ela disparasse a pistola que trazia escondida na algibeira.
Noah avançou, obrigou-a a virar o braço para cima atrás das costas e bateu-lhe com força no pulso para forçá-la a largar a arma. Esta caiu ao chão e Theo afastou-a com um pontapé.
- Onde estão os teus amigos? - perguntou Theo, segurando-a com menos força para obrigá-la a virar-se.
Ela aproveitou-se da situação, praguejou, deu meia-volta e tentou dar uma joelhada na virilha de Noah.
- Gostas? - perguntou ele, esquivando-se ao joelho dela.
- Onde estão os teus amigos?
Noah repetiu a pergunta de Theo, mas num tom muito mais agressivo.
Ela não disse nada. Fechou ostensivamente a boca, com o maxilar retesado, e deitou a Noah um olhar de ódio.
Theo olhou outra vez para o painel luminoso do elevador. Ainda estava no quarto piso.
376
- Eles estão nas escadas - disse ele. - Devem ter bloqueado o elevador, portanto terei de ir pelas escadas. Talvez não saibam que estás aqui.
- Ou sabem? - perguntou Noah a Dalas. Agarrou-a pelo pescoço, pressionando-lhe a carne com o polegar, quando a levantou do chão e encostou ao elevador.
Ela virou-se para a esquerda e gritou a plenos pulmões:
- Preston!
Depois, virou-se para a direita:
- Monk! Agora!
O punho de Theo silenciou-a. Os olhos dela fecharam-se instantaneamente e, quando Noah a largou, ela caiu no chão, inconsciente. Noah inclinou a cabeça para o corredor e disse em voz baixa:
- Prepara-te!
Palpou o corpo de Dalas à procura de armas. Encontrou a Glock no coldre e tirou-lha. Obrigou a mulher a deitar-se de costas e ia a procurar outra arma no tornozelo, por baixo das calças, quando ouviu o ruído de uma porta a abrir-se. Apontou para a sala de espera, indicando a Theo que o som vinha dali.
Theo tinha ouvido. Fez um sinal afirmativo e deu um passo em frente. Noah encontrou a cinta no tornozelo, retirou a arma e enfiou-a no cinto dos jeans. Revistou-lhe as algibeiras do casaco, tirou quatro carregadores e levantou-se. Aproximou-se rapidamente e em silêncio de Theo, pelas costas. Enfiou-lhe dois carregadores nos bolsos de trás e deu-lhe a pistola de Harris para que ele ficasse com uma arma em cada mão. De canos apontados para o tecto, ficaram à espera, escondidos no recanto em frente dos elevadores.
Theo ouviu o estalido suave de uma porta a fechar-se. O ruído vinha da saída, do outro lado da sala de espera. Monk. Ouviu-se outro estalido no extremo oposto do corredor, junto da porta do bloco operatório. Só podia ser Preston. Onde estava John? Estaria no elevador? Ou nas escadas?
Theo apurou o ouvido, esperando ouvir passos. Nada. Nem um som. Estariam à espera dele e de Noah para entrarem no corredor?
Sentia o pulsar do coração nos ouvidos; respirava com dificuldade.
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- É uma emboscada - disse Noah em voz baixa. - Deixa que eles venham até nós.
Theo abanou a cabeça. Não se importava de ficar encurralado. Mas não podia esperar. Não iria esperar. O elevador continuava bloqueado no quarto piso. Havia dois homens que esperavam alvejá-los, mas esses homens não esperariam muito, e se Michelle ou uma das enfermeiras saísse para falar com os Waterson, eles matavam-na.
- Michelle - disse ele em voz baixa.
Noah fez-lhe sinal, dando a entender que compreendia.
Theo enfiou uma das armas debaixo do braço, agachou-se e agarrou num dos sapatos de Dalas. Em seguida, atirou-o para o corredor. Preston abriu fogo imediatamente. Três disparos. Depois, o silêncio.
Ambos ouviram o som de sirenes a aproximar-se cada vez mais.
- É a polícia? - perguntou Noah.
Theo fez um sinal afirmativo, dando a entender que pedira à telefonista para chamá-la, e depois segredou:
- Não podemos esperar.
Ele sabia que Preston, Monk e John também tinham ouvido as sirenes. Talvez julgassem que se tratava de uma ambulância, mas mesmo assim quereriam agir depressa para concluir o trabalho. Não, não esperariam muito mais tempo. Theo avançou para o corredor. Noah deu-lhe uma cotovelada.
- Costas com costas - disse ele em surdina. - É a única maneira. Avançarmos ao mesmo tempo. São três?
com as armas em riste, respiraram fundo. Noah virou-se de costas para Theo e segredou:
- Um.
Pelo canto do olho, Theo viu Dalas a mexer-se. Tentava ajoelhar-se. Apanhara a pistola que Theo afastara ao pontapé e apontava para Noah.
Theo disparou. O disparo fez estremecer as portas dos elevadores. A bala atingiu Harris na concavidade mesmo por baixo da garganta. com um ar incrédulo, a mulher caiu de costas. Pouco depois, fechou os olhos e morreu. A cabeça descaiu-lhe sobre o peito quando embateu nas portas do elevador.
Noah mal olhou para ela antes de prosseguir a sua contagem decrescente.
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Virou-se outra vez e o seu ombro tocou no de Theo.
- Vamos a isto! - disse Theo em voz baixa. A - Vamos!
Theo e Noah entraram de rompante no corredor. Cada um encontrou o seu alvo, apontou e disparou.
Noah atingiu Monk num braço, mas o assassino não abrandou. Abriu a porta e enfiou-se nas escadas. Noah continuou a avançar, a correr, sabendo que Theo lhe protegia a retaguarda e ele lhe fazia o mesmo. Quando chegou à porta, colou-se à parede e disparou outra vez. Monk estava à espera dele. Disparou ao mesmo tempo. A bala fez uma mossa no chão e Noah deu um salto para trás. Seguiu-se uma chuva de balas. A parede em frente da porta ficou cheia de buracos e lascas de estuque voaram em todas as direcções. O ar adquiriu um tom pardacento devido à poeira do estuque.
O barulho era ensurdecedor. Os disparos ecoaram nos ouvidos de Noah, que julgou ouvir uma mulher a gritar. Não tinha a certeza. Olhou por cima do ombro, viu Theo a correr. As suas pistolas disparavam sem descanso. O homem que ele perseguia acocorou-se atrás das portas do bloco operatório.
Vai para a direita. Vai para a direita. Afasta-te da Michelle.
Theo avançou, através das portas. Atirou-se para o chão e rolou, pedindo a Deus que Preston tentasse chegar à saída.
A Glock que tinha na mão esquerda estava vazia. Theo não podia perder tempo a recarregá-la. As portas da Unidade de Cuidados Intensivos abriram-se. Preston estava ali, à espera, Theo tinha a certeza disso. Levantou-se a custo, viu um vulto a passar na janela e percebeu que tinha de virar a esquina e sair da linha de fogo.
Conseguiu, mas por um triz. Uma bala passou-lhe a três centímetros da face. Uma enfermeira saiu da sala de operações aos gritos.
- Para trás! - gritou Theo. Retirou o carregador vazio da
pistola, tirou outro do bolso e pô-lo no seu lugar.
A enfermeira desapareceu no interior da sala de operações. Theo encostou-se à parede e ficou à espera. Ouvia Willie a cantar.
O ombro roçou na parede quando ele se aproximou mais da
esquina. Sem querer, tocou no interruptor e, precisamente 379
quando a canção acabou, o corredor ficou às escuras. A luz que saía da sala de operações através do vidro era suficiente para ele ver. Para onde fora Preston? Já fizera algum refém? Ou descobrira outra saída? Ele teria de passar por ali, não teria?
Onde diabo estava a polícia? "Nunca estão presentes quando precisamos deles", pensou ele.
Vá lá, Ben. Despacha-te. Aproveita o dia.
Não vens atrás de mim, Preston. De maneira nenhuma. Deixa-te ficar lá dentro, Michelle. Não saias até isto acabar. Theo lembrou-se da maca e recuou até tocar nela
com o pé. Prendeu a barra metálica com a perna e puxou a maca mais para a esquina.
Anda. Anda. Ataca.
Michelle tinha acabado de dar o último ponto e aguardava aquela magnífica primeira tosse depois de o anestesista retirar o tubo. A criança reagira à operação como um campeão. Se não surgissem complicações, dentro de um mês John Patrick voltaria a subir à sua árvore preferida. Mas só se a mãe o perdesse de vista, evidentemente.
- Vá lá, querido. Tosse para eu ouvir - disse ela em surdina. Michelle ouviu um pequeno gemido a que se seguiu imediatamente uma tosse seca.
- Pode seguir - disse o anestesista. Tirou a máscara e sorriu. - Este é um menino de sorte.
- bom trabalho - disse Michelle à equipa.
De repente, ouviram-se tiros no corredor. Seguiu-se o caos. Uma das enfermeiras começou a gritar e correu para a porta, para saber o que estava a acontecer, ignorando os gritos de Michelle e de Landusky para que voltasse atrás. Depois, Michelle ouviu Theo a gritar à mulher que recuasse.
- É o Theo. Ele está ferido? - quis saber Michelle.
- Não sei. O que está a acontecer?
Ninguém tinha uma resposta. As suas atenções convergiam agora para o paciente. John Patrick respirava pelos seus próprios meios, com um som bem audível. Landusky apressou-se a ajudar Michelle a encostar a mesa à parede junto das portas. Uma enfermeira afastou o suporte do soro e, acompanhada por outra, debruçou-se sobre o menino para protegê-lo se alguém entrasse aos
380
tiros na sala de operações. Landusky teve a mesma ideia. Colocou-se atrás da cabeça de John Patrick, envolveu-lhe o rosto com as mãos e debruçou-se sobre ele. Os outros agacharam-se atrás da mesa e ficaram à espera. Uma técnica tapou os ouvidos e começou a chorar sem fazer barulho.
Michelle já tinha agarrado no pesado extintor e brandia-o como se fosse um taco de beisebol. Deixou-se ficar ao lado da porta, mas suficientemente afastada para não ser atingida se o atirador a abrisse de repente. Em seguida, apagou as luzes e ficou à espera. Nem queria pensar em Theo. O seu único pensamento era agora evitar que o atirador entrasse na sala de operações.
- Se alguém disparar um tiro aqui, o piso inteiro pode ir pelos ares - disse Landusky em voz baixa. - As garrafas de oxigénio e o...
- Chiu! - segredou ela. Todos os que se encontravam na sala de operações estavam cientes do perigo.
Apurou o ouvido. O que era aquele zunido suave? Parecia uma máquina centrifugadora. Oh, céus, era a cassete do Willie Nelson a rebobinar automaticamente. Quando chegasse ao princípio, recomeçaria a tocar. O gravador estava em cima de uma mesa encostada à parede do outro lado das portas, coberto por um lençol esterilizado.
Michelle teve vontade de gritar a Theo. Mas não podia, evidentemente. Faz com que ele esteja bem... Se ele estiver ferido... Se ele estiver a esvair-se em sangue enquanto eu estou escondida atrás desta porta... Não. Não penses nisso. Onde estava Noah? Porque não ajudava Theo? Estaria também lá fora? Theo, onde estás?
Theo agachou-se atrás da maca. Estava a postos. Sentia, mais do que ouvia, o homem a aproximar-se, e deu um pontapé com toda a força na maca quando Preston apareceu à esquina, a correr. A maca embateu nele, mas não o demoveu. Preston travou o movimento da maca com o braço e atirou-a na direcção de Theo, atingindo-o violentamente contra a parede.
Theo caiu em peso. Quando Preston tentava afastar a maca do caminho para disparar mais à vontade, Theo enfiou-se debaixo dela e disparou. A bala atingiu Preston na coxa esquerda. Mas nem isso o demoveu também. O carregador vazio caiu no chão e, enquanto ele inseria outro na pistola, Theo, rugindo como um
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urso ao ataque, levantou a maca com o ombro, agarrou nela com uma das mãos e, utilizando-a como se fosse um aríete, obrigou Preston a recuar. Theo disparou através da almofada que caiu da maca. Preston virou-se e a bala tocou-lhe ao de leve no ombro.
O patife nem pestanejou. O que diabo havia de fazer Theo para o abater? Quando Preston se precipitava para a esquina, Theo apontou e disparou outra vez. Clic. Não aconteceu nada. O carregador estava vazio. Theo levou a mão ao bolso de trás para tirar o outro que Noah lhe dera, inseriu-o na pistola e atirou-se para o chão quando Preston abriu fogo sobre ele. Uma bala roçou-lhe na testa. Quantas balas teria ainda o patife? Se ele tivesse sorte, talvez duas. Três seria um exagero. Theo sentiu
uma dor cortante no braço quando se atirou ao chão outra vez para sair da linha de fogo.
A maca estava caída de lado. "Graças a Deus", pensou ele, tentando esconder-se atrás dela.
Preston investiu para conseguir ver Theo, mas Theo atacou com o pé e atingiu-o no joelho. Mesmo assim, não o derrubou. Preston recuou, a vacilar, e disparou para o tecto.
As portas do outro lado da esquina abriram-se de repente. Preston nem olhou para trás para ver quem vinha a sair. Estava a pouco mais de um metro de uma sala às escuras e sabia que chegara o momento de sair dali. Entrou a correr na sala de operações, esperando que houvesse alguma saída do outro lado.
Preston parou e piscou os olhos no meio da escuridão, sempre à escuta, enquanto se afastava das portas. Virou-se para Michelle, com o cano da pistola apontado na sua direcção.
Michelle ouvia-o a arfar. Estava muito perto. Mais um passo e chocava com ela. Ela sabia que teria de recuar para atirar qualquer coisa. Mas ele ouviria.
Porque não se mexia? Não sabia que ela estava ali? Bastava mais um passo em frente.
Michelle precisava de uma manobra de diversão. De alguma coisa... De alguma coisa que o obrigasse a afastar-se para ela poder atacar. Willie Nelson veio em seu auxílio. "A todas as raparigas que amei..." Assim que a canção começou, Preston deu meia-volta e disparou várias vezes na direcção do gravador. Michelle atirou-lhe com o extintor, que o atingiu no queixo.
- Acendam as luzes! - gritou ela, quando ele recuou, a cambalear, para o corredor. Foi atrás dele e atingiu-o de novo na
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parte lateral da cabeça. A segunda pancada afigurou-se decisiva. O homem caiu para trás e estatelou-se contra a parede com um ruído seco.
Michelle ficou imóvel. Theo pôs-se à frente dela no momento em que Preston pegava na pistola. Theo disparou e atingiu-o no abdómen.
com as costas, Theo empurrou Michelle para o interior da sala de operações, deixando-a fora de perigo.
Preston caiu de joelhos, no momento em que Noah correu para ele e gritou:
- Larga a arma!
Preston virou-se para Noah e apontou-lhe a pistola. Mas não chegou a puxar o gatilho. Noah disparou. A bala atravessou-lhe a têmpora. Preston caiu de frente. À sua volta formou-se rapidamente uma poça de sangue escuro.
Michelle empurrou Theo para a frente, para o afastar das portas e gritou:
- O caminho está livre. Levem o paciente para o recobro.
Theo encostou-se à parede e depois deixou-se escorregar lentamente até ficar sentado no chão. Noah agachou-se junto de Preston e tirou-lhe a arma da mão.
Então, toda a gente começou a gritar e a falar ao mesmo tempo. Theo fechou os olhos e respirou fundo. Ouviu os rodízios a chiar quando as enfermeiras empurraram a maca de John Patrick para fora da sala, contornando o corpo de Preston.
Michelle ajoelhou-se junto de Theo. Descalçou as luvas e palpou o corte que ele tinha por baixo do olho.
- Estou demasiado velho para isto - disse ele por entre os dentes.
- Estás bem? - perguntou Noah, guardando a arma no coldre.
- Estou. Apanhaste aquele a quem ela chamava Monk?
- Não.
- Não? - gritou ele, tentando afastar a mão de Michelle para ver Noah.
- Não sei como, mas ele conseguiu fugir. Eu sei que o atingi
- disse Noah. - Todas as saídas estão bloqueadas e a polícia está a passar todos os pisos a pente fino, mas ele saiu há muito tempo.
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- Não sabes...
- Um doente do quarto piso estava à janela e viu um homem a correr num canteiro de flores pelo declive acima. Disse que ele ia dobrado.
- E o John Russell? Há vestígios dele? - perguntou Theo.
- Não - respondeu Noah.
- Rebentaste os pontos - disse Michelle.
- O quê?
Ela falara em voz baixa, como se estivesse a repreendê-lo. Theo olhava para Noah, sem perceber que listas brancas eram aquelas que ele tinha na cara. Por fim, olhou para ela. E quando viu as lágrimas a correrem-lhe pela face, ficou atónito. Afinal, ela não era assim tão insensível. Pelo menos em relação a ele.
- Eu não fiz de propósito, querida.
Theo tentou enxugar-lhe uma lágrima. Michelle empurrou-lhe a mão.
- Terei de coser-te outra vez. - Michelle tremia como um alcoólico que não bebia há muito tempo. - Olha para as minhas mãos. Estão a tremer.
- Então, teremos de esperar que pegues numa agulha e comeces a tratar de mim.
- Atiraste-te para a minha frente para que ele te atingisse. Foi um acto heróico da tua parte, meu grande palerma. Podias ter morrido.
Dessa vez, Theo não deixou que ela o afastasse. Pegou-lhe no rosto com as mãos e disse em surdina:
- Eu também te amo.
384
CAPÍTULO 41
É sempre aconselhável ter um plano de contingência.
Quando os dois carros da polícia chegaram ao hospital com os pirilampos a faiscar e as sirenes a tocar, John percebeu que chegara o momento de partir. Encolheu-se no banco - uma precaução desnecessária mas instintiva - e ligou a ignição. Esperou uns segundos, até ver os polícias a correr para o hospital. Depois, retirou lentamente o carro do parque, em marcha atrás, virou e saiu do perímetro do hospital.
Tanto se lhe dava que os amigos estivessem mortos como vivos. Porque havia de preocupar-se com isso? Os seus planos não seriam afectados, fosse qual fosse o desfecho.
Mesmo que a polícia os apanhasse vivos e eles lhe contassem tudo o que sabiam, seria tarde de mais. E se, por milagre, escapasse um ou dois, bem, isso também não teria importância. John tinha tempo de sobra para levantar o dinheiro da conta do Clube da Sementeira e transferi-lo para a conta na Suíça que abrira há uns anos. Tinha consigo o seu computador portátil - achava estranho que Dalas não lhe tivesse perguntado porque o levara e bastava-lhe ter acesso a uma linha telefónica e dedilhar uns comandos e ficaria livre para sempre.
Nesse momento, só lhe interessava sair dali rapidamente. Nos minutos seguintes, um daqueles polícias poderia sair a correr e tentar bloquear a entrada principal que dava acesso ao hospital.
- Hummm - disse ele em surdina.
Talvez já lá estivesse um carro da polícia. Era muito perigoso arriscar-se a que o mandassem parar. Entrou de novo em marcha atrás no parque, deu meia-volta e dirigiu-se a ritmo de caracol para a estrada alcatroada de serviço nas traseiras do hospital.
385
Foi então que avistou Monk a coxear e a subir o declive em direcção à rua. Ia agarrado à parte lateral do corpo. Teria sido alvejado? Parecia que sim.
John soltou uma risadinha trocista. Era uma oportunidade demasiado boa para ser desperdiçada. Não estava ali mais ninguém. Ninguém veria. John devia a Monk uma quantia considerável.
- Hummm.
Não hesites, disse uma voz interior. Já!
John não perdeu tempo. Virou bruscamente o carro, galgou o passeio e carregou a fundo no pedal do acelerador. Monk ouviu-o e virou-se. Quando viu John, parou e ficou à espera.
Ele julga que vou buscá-lo. John aumentou a velocidade à medida que se aproximava dele. A expressão de Monk quando se apercebeu do que ia acontecer foi hilariante. O homem ficou positivamente chocado.
Mas John calculou mal. Julgou que Monk se desviaria para a esquerda e virou ligeiramente o volante para atingi-lo em cheio, mas Monk saltou para o lado oposto e o carro apenas roçou nele.
John não se atreveu a recuar e a tentar outra vez.
- Ora, faz o que te apetecer - disse ele, assim que chegou ao passeio e entrou na rua. Atravessou um bairro degradado e desembocou na rua principal, a seis quarteirões do hospital. Sabia que estava a salvo.
Pegou no telemóvel, ligou para o piloto que contratara há uns meses e disse-lhe que chegaria ao aeroporto municipal dentro de quarenta e cinco minutos. Virou à esquerda no semáforo e seguiu na direcção oposta à de Nova Orleães. Nunca mais poderia voltar, evidentemente. Mesmo com uma nova identidade - o passaporte estava no estojo do computador - sabia que nunca mais regressaria aos Estados Unidos.
"Não perdia muito", pensou. Afinal, tinha milhões de dólares para o fazerem feliz. John não era pessoa de triunfalismos, mas nesse momento não resistiu. Afinal, conseguira escapar impune a um assassínio.
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CAPÍTULO 42
Michelle acabou de passar instruções a escrito e depois foi ao recobro para ver como estava John Patrick. A enfermeira deixara entrar os pais, e Daryl e Cherry estavam à cabeceira do filho, de mãos dadas. Elliott ficara à porta, demasiado atormentado para fazer algo mais do que espreitar o irmão.
- O pior já passou - disse Daryl. Depois, olhou para Michelle. - A Mike também passou por um mau bocado esta noite, não é verdade? A polícia bloqueou as escadas e os elevadores e nós percebemos que estava a acontecer algo terrível, mas não sabíamos o quê.
- Ainda bem que não soubemos - disse Cherry, limpando os cantos dos olhos com um lenço de papel.
- Nós ouvimos os tiros. Toda a gente que estava no hospital os ouviu, mas sabíamos que a Mike não deixaria que acontecesse nada ao John Patrick.
- O Dr. Landusky passa cá a noite - disse ela. - Mas se preferirem que eu fique...
Daryl não a deixou terminar a frase.
- Já fez a sua parte, e nós não sabemos como havemos de pagar-lhe o que fez. Vá para casa.
Michelle desceu às Urgências, ao encontro de Theo. A ideia de passar uma semana a dormir pareceu-lhe gloriosa. Perguntou a si própria se ele estaria tão cansado como ela. Já lhe tinha suturado o braço outra vez, mas ele aguardava-a nas Urgências, sentado numa marquesa, com um saco de gelo em cima do joelho e a falar ao telefone.
Desligou assim que ela entrou.
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- Os detectives Underwood e Basham deitaram a mão ao Cameron Lynch. O homem estava com vontade de conversar. A primeira coisa que disse quando lhe leram os direitos foi que não ia ser preso pelo assassínio da mulher do John. Chamou-lhe acto de misericórdia.
- E isso transforma-o numa boa acção? - perguntou Michelle, abanando a cabeça.
- Não sei qual é a versão dele - disse Theo. - O fulcro da questão é que ele foi motivado pelo dinheiro.
Theo puxou-a para o seu lado e agarrou-a pela cintura. Precisava de sentir-se perto dela, de tocar-lhe. Lá em cima, houve um momento em que julgou que iria perdê-la e percebeu que nunca mais esqueceria esse terror.
Beijou-a no pescoço. Uma enfermeira observava-os do seu posto. Theo não se importou e, pelo modo como Michelle se inclinou para ele, concluiu que também ela não se importava.
Nesse momento, Noah entrou nas Urgências.
- O que tem você na cara? - perguntou Michelle. Noah aproximou-se do lavatório e viu-se ao espelho.
- Lascas de estuque e pó, acho eu - respondeu ele, abrindo a torneira e pegando numa toalha.
Theo contou-lhe o que sabia acerca de Cameron, enquanto Noah lavava a cara.
- O John já levantou o dinheiro da conta nas ilhas Caimão. Serviu-se do computador.
- E para onde o transferiu? - perguntou Noah.
- Ainda não sabemos, mas o Underwood já tem pessoal a trabalhar nisso.
É um grupo interessante - comentou ele.
- O Clube da Sementeira? O que há de interessante em quatro vigaristas? - perguntou Noah.
Enxugou a cara com a toalha e deixou-a cair no lavatório. Depois, virou-se, cruzou os braços e ficou à espera que Theo se explicasse.
- Quando o John abriu a conta, disse aos amigos que teriam de ir os quatro ao banco para levantar dinheiro, fosse qual fosse a quantia. Era uma salvaguarda, explicou ele, mas não era verdade, evidentemente. Ele enganou-os desde o princípio, e a Dalas, o Cameron e o Preston foram idiotas por continuarem a confiar nele, depois de John os ter manipulado e implicado no contrato de assassínio da mulher.
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- Porque precisava ele da colaboração dos outros?
- A Dalas era o elo de ligação com Monk - disse Theo. Não sei exactamente por que motivo é que ele quis envolver os outros dois. Todos tinham a sua cobertura. O John trabalhava num banco. Era advogado e vice-presidente do departamento de crédito. O Cameron servia-se da sua empresa de corretagem para extorquir aos clientes o dinheiro da reforma, a Dalas era polícia e o Preston trabalhava no Departamento de Justiça e encarregava-se dos problemas com a lei.
"A Dalas estava mesmo a dizer a verdade sobre o fantasma. Tinha um processo sobre ele e todos os seus actos passados, só para se proteger. Agora é o Underwood que
tem o processo. Ele disse que o Monk matou uma jovem há pouco tempo e que foi o pai dela que o contratou para fazer o trabalho. Há provas suficientes para prender o pai e já andam detectives atrás dele.
- Espero que ele apodreça na prisão - disse Michelle. Theo concordou.
- O Underwood acha que o Monk tinha faro.
Theo retirou o saco de gelo e pô-lo em cima da mesa atrás dele.
- O que queria ele dizer com "faro"? - perguntou Michelle. Reparou que Theo fizera um esgar ao levantar a perna. Agarrou no saco de gelo e pôs-lho de novo em cima do joelho.
- Ele deixa sempre uma rosa junto da vítima, em geral em cima da cama, porque prefere matá-las à noite.
- Então, a detective Harris não estava a mentir quando falou nisso - concluiu Michelle.
- Ela era esperta - disse Theo. - Colou-se o mais possível à realidade para não ser apanhada em mentiras.
- Como é que soubeste que a Harris era um deles? - perguntou Michelle.
- Quando o Noah estava em Nova Orleães, eu disse-lhe que a vigiasse. Achei estranho que o chefe dela não dissesse nada ao Noah sobre o caso em que ela estava a trabalhar. O Noah está habituado a lidar com detectives hostis que não querem que o FBI trabalhe com eles e partiu do princípio que o chefe estava a ser evasivo de propósito. Eu admiti que ele não soubesse o que a Harris andava a fazer, mas não pensei mais no assunto. Pu-lo de parte e continuei.
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- Eu devia ter arranjado tempo para falar com outros detectives - disse Noah. - Para saber como é que eles se sentiam a trabalhar com ela.
- Talvez tivessem cerrado fileiras em relação a ti - disse Theo.
- Continuo a não perceber como é que interligaste tudo, Theo - disse Michelle.
- Foi a Catherine que me ajudou - disse Theo. - Ela era uma mulher inteligente e, finalmente, eu descobri o que a levara a complicar tudo. Ela não deu instruções ao advogado para entregar os papéis à polícia porque sabia que um dos membros do Clube da Sementeira era detective. Entregou a segunda cópia dos ficheiros à Rosa porque sabia que a governanta nunca iria à polícia. Mas sinceramente, não sei o que ela julgava que a Rosa faria. Talvez enviá-los pelo correio... Não sei.
Theo bocejou.
- De qualquer modo, restringi-me ao Preston e à Dalas, sabia que um deles era polícia, e depois a Harris apareceu-me de casaco quando estava um tempo escaldante e húmido. Quando ela entrou no átrio e se virou, ficou de costas para mim e eu reparei que ela soltou a alça da arma mas conservou a outra mão na algibeira. Calculei que trouxesse carregadores suplementares.
- Gostava de saber onde é que o John Russell está escondido
- disse Noah.
- Acabaremos por apanhá-lo - disse Theo, bocejando.
- Vamos para casa.
- Estou pronta - disse Michelle.
- O Noah vai dormir no teu quarto de hóspedes. Só por precaução - disse ele.
- Não estás a pensar que o John ou o Monk... Theo não a deixou acabar.
- Não, mas assim durmo mais sossegado, e tu também. Encaminharam-se para a saída. Theo pôs o braço à volta do
ombro de Michelle.
- Tenho de passar pelo motel para levar umas coisas - disse Noah. - Como está aquele miúdo, Mike? Dê-me uma boa notícia.
- Vai ficar bom - respondeu ela. - O caso não era tão grave como parecia.
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- Ainda estás irritado por teres deixado fugir o Monk? perguntou Theo.
- Eu não podia estar em dois sítios ao mesmo tempo - respondeu Noah. - Eu sabia que tinha de voltar para te salvar o coiro e a polícia vedou o acesso às escadas. Julguei que o tinham apanhado.
- Eu é que te salvei o coiro - corrigiu Theo.
- O tanas é que salvaste! Onde estão as chaves do meu carro?
- Deixei-as dentro do carro.
- Noah, como é que sabe que atingiu o Monk? - perguntou Michelle. - Viu-o cair?
- Não, ele não caiu - explicou ele. - Mas havia sangue na porta e nas escadas. Ou o atingi na anca ou de lado. Ele subiu ao telhado, atravessou para o outro lado e desceu pela escada de emergência. Até logo.
- Pode esperar um bocadinho para ver se a pickup pega?
- perguntou Michelle.
Michelle não se arrependeu de ter feito o pedido, porque Noah teve de fazer uma ligação directa. Theo insistiu em conduzir e aparentemente não teve dificuldade em servir-se da perna para accionar a embraiagem.
- vou dormir até ao meio-dia - disse Michelle.
- Não podes. Tens de levantar-te para ir à pesca. Michelle gemeu.
- Eu fico em casa.
- Tens de ir comigo. És a minha parceira.
- Nós não temos barco, lembras-te? O meu ficou enfiado algures nos arbustos e sem ele não teríamos nenhuma hipótese de ganhar. Os melhores pesqueiros ficam no meio do pântano.
- O teu pai obrigou o John Paul a emprestar um dos dele. Já está atracado atrás do Swan.
Michelle não gostou de ouvir isto.
- Quero ficar na cama, mas deixo a decisão a teu cargo. Afinal, és um convidado.
Aproximou-se mais, pôs-lhe a mão na coxa e tentou mostrar-se apaixonada ao dizer em voz baixa:
- Farei o que tu quiseres.
- Essa é forte - disse ele, com uma voz arrastada. - Veremos. Eu podia levantar-me ao amanhecer, e gosto muito de o fazer,
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e passar um dia inteiro sentado num barco, preocupado com a hipótese de me cair uma cobra em cima da cabeça, com a roupa empapada em suor e a matar mosquitos,
ou...
- Sim? - disse Michelle, sorrindo.
- Ou passar o dia a divertir-me com uma bela mulher nua, que é das fortes, isso é verdade.
- Quem é que disse que eu estarei nua?
Theo deitou-lhe um olhar que deixou o coração dela aos pulos.
- Querida, isso não oferece dúvidas.
- Oh, céus!
- Estás a corar. Depois de tudo o que... Ela tapou-lhe a boca com a mão.
- Eu lembro-me do que fizemos.
De súbito, Michelle apercebeu-se de que ele virara no sítio errado.
- Aonde vais?
- Ao McDonalds. Estou esfomeado.
- Temos tanta comida em casa.
- Um cheeseburger aguenta-me até chegarmos a casa.
- Está bem.
Pouco depois, Theo percebeu por que razão ela se mostrara tão colaborante. Sabia que o McDonakPs estava fechado. Quando chegaram a casa, ele mostrou-se muito empenhado em que ela se despisse e nem pensou na comida. Ela quis ir tomar duche e ele concordou, na condição de irem juntos.
Deitaram-se na cama e fizeram amor outra vez. Ele deitou-a de costas, prendeu-lhe as mãos por cima da cabeça e pronunciou todas as palavras apaixonadas que precisava de dizer e ela de ouvir.
Depois, foi a vez dela.
- Fala! - pediu ele em surdina. Michelle quis ser pragmática.
- Quando chegares a casa e voltares à tua rotina...
- Fala! - pediu ele.
- Vais encarar isto como uma... aventura.
- Vamos ter a nossa primeira discussão?
- Não, eu só...
- Fala!
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Os olhos dela encheram-se de lágrimas.
- Só nos conhecemos...
- Fala!
- Amo-te - disse ela em surdina.
Theo ficou radiante e beijou-a; depois, obrigou-a a deitar-se de lado e puxou-a para si. Michelle chorou sobre o peito dele. Ele sabia porquê. Pensava que ele regressaria a Boston e continuaria a fazer a sua vida... sem ela.
Theo teria ficado irritado, se não se lembrasse que a mulher que amava não sabia nada acerca dos homens. Esperou que ela acabasse de chorar e falar ao mesmo tempo. Acariciando-lhe as costas, disse:
- Namorei com a Rebecca durante um ano, antes de ela se mudar para minha casa. Vivemos juntos mais um ano e só depois é que casámos, e sabes uma coisa?
Ela levantou a cabeça para ele lhe poder ver a cara.
- O quê?
- Eu não a conhecia tão bem como já te conheço. A vida é curta, Michelle. Quero viver contigo. Quero envelhecer contigo.
Michelle desejava ardentemente acreditar nele. Sabia que ele estava a dizer a verdade, mas estava convencida de que, assim que ele retomasse o seu trabalho em Boston e regressasse ao seio dos amigos e da família, reconheceria que o seu lugar era lá.
- Casa comigo, Michelle.
- Tu tens de voltar para Boston. Se continuares a sentir o que sentes daqui a seis meses, fazes-me o mesmo pedido outra vez.
- Não consigo estar tanto tempo longe de ti.
- Quero que sejas sensato. Seis meses - repetiu ela. Theo deitou-a de costas e enroscou-se nela. Céus, como a
amava! Mesmo quando ela era teimosa.
Interrompeu a discussão. Tinha mais em que pensar naquele momento. Começou a acariciá-la, ao mesmo tempo que lhe abria
as coxas.
- Ganhaste, querida. Seis meses.
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CAPÍTULO 43
Theo aguentou três semanas deploráveis.
Depois telefonou a uma empresa de mudanças, pôs os barcos à venda, encheu o porta-bagagens do carro e partiu para Bowen. Primeiro, passou pelo Swan, cumprimentou Jake e pediu-lhe formalmente autorização para casar com a filha.
Em seguida, foi para casa. Para Michelle. Bateu à porta e, quando ela respondeu, ele abraçou-a e disse-lhe, em termos inequívocos, que não tencionava manter-se afastado da mulher que amava durante seis meses. Estava ali para ficar e ela teria de lidar com isso.
Michelle não discutiu com ele - estava demasiado ocupada a tentar beijá-lo - mas, de tão arrebatado, Theo não conseguia deixar de falar. Disse-lhe que abriria um escritório e que faria uma certa concorrência aos advogados pusilânimes de St. Claire, que continuaria a trabalhar para o governo em Nova Orleães, duas vezes por semana - o Departamento de Justiça não queria largá-lo - e que já investira dinheiro suficiente para viverem com desafogo.
Podia reformar-se, graças à irmã, Jordan. Ele e os outros membros da família tinham investido na empresa dela, o que lhes rendera uma pequena fortuna. E por último, acrescentou ele, esquivando-se às mãos dela, já telefonara a Conrad a comunicar-lhe que tencionava assinar o contrato de treinador.
Depois, beijou-a e reiterou-lhe o seu grande amor.
- Vim para Bowen à procura do que tinha perdido. Quis voltar a sentir essa paixão e essa energia. Agora, sinto-me vivo. A minha vida é aqui contigo, Michelle. Estou em casa.
As lágrimas corriam pela face de Michelle.
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- Amo-te, Theo.
Ele abraçou-a com força.
- Se alguma vez me mandares embora outra vez, juro que farei qualquer coisa vergonhosa que nunca mais esquecerás. As pessoas de Bowen hão-de contar isso aos nossos netos.
- Eu sou médica - recordou-lhe ela. - Nada me envergonha.
- Ai não? E se eu telefonar para o hospital quando andas a fazer rondas, não ficas envergonhada se eu pedir à telefonista para localizar a Dr.a Espertalhona?
Michelle recuou para conseguir encará-lo.
- Tu não serias capaz...
- Experimenta.
- Nunca mais te mandarei embora. Prometo.
A tensão nos ombros dele dissipou-se e Theo sentiu-se descontraído.
- Quero que vás comigo ao casamento do meu irmão no próximo fim-de-semana. É no lowa. Quero que conheças a minha família, e eles estarão todos lá. Está bem, querida?
- Theo, tens a certeza...
- Tenho a certeza - respondeu ele sem hesitações. - Podes pedir ao Landusky que te substitua, não podes? O teu pai disse-me que ainda não tiraste férias.
- Quando é que falaste com o papá?
- Quando cheguei, passei pelo Swan. Casas comigo, Michelle?
- Sim.
Tão simples como isto. Michelle sentiu uma alegria tão avassaladora que começou a chorar.
- Eu pedi autorização ao teu pai para casar contigo.
- Foste um amor.
- Ele chorou.
Os olhos de Michelle encheram-se de lágrimas mais uma vez. Depois, ele fê-la rir.
- O John Paul também chorou.
- Ele vai habituar-se a ti.
- Todos os teus conterrâneos vão festejar. Toda a gente andava a tentar arranjar-te um homem.
- O quê?
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Ele sorriu.
- Foi por isso que não vieram cartões de boas-vindas a acompanhar aquela comida toda. Não percebeste? Todos sabiam que éramos talhados um para o outro. Todos menos tu.
Antes que ela pudesse aborrecer-se com a manobra conspiratória, ele beijou-a outra vez. Depois, viu as horas.
- Tenho de ir, querida. Não quero chegar atrasado ao treino. Michelle ficou no alpendre a ver o carro afastar-se. Depois
suspirou. Tinha um casamento para organizar. Pensou em todas as coisas que precisava de fazer e concluiu que, se se apressasse, conseguiria tratar de tudo em seis
meses. Era exequível. Sim, seis meses.
Casaram-se dali a três.
O casamento foi elegante. O copo-dágua foi de arromba. Os irmãos de Michelle, Remy e John Paul, foram os padrinhos e as irmãs de Theo, Jordan e Sydney, foram as
madrinhas. O irmão de Theo, Nick, foi o padrinho dele e Mary Ann foi a dama de honor de Michelle.
A noiva estava radiante, mas muito nervosa, quando percorreu a nave central da igreja de braço dado com o pai. Quando o noivo avançou, terrivelmente elegante no
seu smoking, e lhe piscou o olho, ela começou a descontrair-se.
Jake queria alugar um belo salão de baile num dos hotéis caros de Nova Orleães, mas Theo e Michelle nem quiseram ouvir falar nisso. Quiseram que o copo-dágua se realizasse no Swan.
Como não era provável que chegassem a acordo, Jake cedeu e resolveu usar uma pequena parte do dinheiro que herdara de Catherine para alindar o estabelecimento. Não
tocou no cisne em cima do prédio, porque na sua opinião a asa descaída dava um certo encanto ao local, mas mandou alcatroar o parque de estacionamento, alugou uma
grande tenda branca e encheu-a de flores e mesas com toalhas de linho branco.
Também contratou uma banda, mas à última hora Zachary, um dos irmãos de Theo, teve de substituir o baterista, Elton Spinner, que tinha fugido assim que soubera quantos agentes da autoridade estariam presentes na festa. Aparentemente, Elton ainda se sentia ameaçado por aquele mandado.
Theo estava ao lado do irmão, Nick, a ver Michelle a dançar com o pai deles. Laurant, a noiva de Nick, dançava com John
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Patrick; Noah e Mary Ann dançavam colados um ao outro, enquanto Jake fazia rodopiar a mãe de Theo.
- Sabe-se alguma coisa do John Russell? Ou do Monk? perguntou Nick. - O Noah disse-me que andam a seguir todas as pistas...
- Falta pouco. Estão quase a apanhar os dois.
- É uma perspectiva optimista.
- Ouve, hoje é o dia do meu casamento. Posso ser optimista? Nick mudou de assunto.
- O Noah e o Jake venceram o torneio?
- Sim, venceram. Doaram o dinheiro à equipa de futebol. Todos os jogadores vão receber braçadeiras novas e o Jake anda a tentar arranjar uma maneira de publicitar o Swan nas chuteiras.
Nick sorriu.
- Então, agora, és treinador de futebol acima de tudo, hem? Theo não conseguia desviar os olhos da sua linda noiva.
- Pois, sou. Imagina! Nick soltou uma gargalhada.
- Vai ser agradável ter uma médica na família. Diz-me... disse ele, dando uma cotovelada ao irmão para lhe chamar a atenção.
- O quê?
- Como é que isso aconteceu?
- Como é que aconteceu o quê?
- Como é que acabaste por ser treinador? Theo sorriu.
- Foi este miúdo...
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CAPÍTULO 44
Foi mais uma noite gloriosa no paraíso. A atmosfera estava fresca e límpida; o céu estrelado brilhava sobre o manto dourado da cidade.
com um robe de seda e uns chinelos de camurça, John estava no terraço do seu luxuoso apartamento, no último andar do edifício, a contemplar a noite. A vida não podia ser mais generosa para ele. Bebeu um golo do conhaque aquecido no balão de cristal e suspirou de satisfação. As doces fragrâncias nocturnas inebriavam-no.
Era a utopia. John tinha uma nova vida, uma nova identidade e tanto dinheiro que nunca seria obrigado a tocar no principal. Podia viver como um lorde só dos juros. Olhou para trás quando ela lhe atirou um beijo e saiu do quarto. Fora melhor do que qualquer das outras, pensou ele, sabendo que a possuiria outra vez. Ela era tão criativa na cama, tão descarada e desinibida! Talvez lhe telefonasse no dia seguinte, mas depois lembrou-se que contratara a loura para entretê-lo. Como se chamava ela? John não se lembrava. Mas lembrava-se de que ela o intrigara. Fazia-lhe lembrar um pouco Dalas, e talvez fosse por isso que ele a desejava. Uma recordação do
passado. Do Clube da Sementeira. Parecia que tinha sido há uma eternidade, mas tinham decorrido apenas seis meses desde que ele se metera naquele avião. Dalas e Preston tinham morrido. John soubera pelo jornal, e muitas vezes dava consigo a interrogar-se sobre como teriam eles morrido exactamente. Teria sido Buchanan a matá-los,
ou o outro? Como se chamava ele? Clayborne. Sim, era isso.
"Era uma ironia que tivesse sobrevivido o membro mais fraco do clube", pensou ele. Pobre, pobre Cameron! John sabia como
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ele era claustrofóbico. "Como estaria a aguentar-se na prisão?", interrogou-se John, sorrindo. Já teria enlouquecido?
Era provável que Monk tivesse morrido. John vira o sangue na camisa. Ele não se teria arriscado a procurar cuidados médicos. Talvez se tivesse metido num buraco
algures, como um animal ferido, escondido até morrer.
Acabou de beber o conhaque e pôs o cálice em cima da mesa. A bocejar, atravessou a sala e entrou no corredor. A mulher esfalfara-o, e o dia seguinte seria agitado.
Queria levantar-se cedo e estar no seu iate às nove horas. De manhã, trataria da bagagem de última hora e partiria para o seu cruzeiro.
Abriu a porta do quarto, entrou e acendeu a luz. Sentiu o perfume da mulher. Sorriu outra vez. Não, a vida não lhe podia dar nada melhor do que isto.
Virou-se para a cama, espreguiçou-se e desapertou o cinto do robe. Deu um passo em frente e depois recuou.
- Não! - gritou ele. - Não!
Ali, no meio dos lençóis de cetim, estava uma rosa vermelha.

 

 

                                                                  Julie Garwood

 

 

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