O capitão Jack Aubrey recebe a ordem de assumir o comando do velho e defeituoso Worcester e participar no bloqueio de Toulon, onde lhe espera uma nova e delicadíssima missão: buscar um alidado que o ajude a expulsar os franceses daquelas águas. Stephen Maturin, cirurgião, espião e sobre tudo amigo, será de inestimável ajuda para levar a bom porto tal empresa; mas o Mediterrâneo é um vespeiro cheio de surpresas desagradáveis.
Nota da edição espanhola
Este é o oitavo romance da mais apaixonante série de novelas históricas marítimas jamais publicada; por considerá-lo de indubitável interesse, ainda que os leitores que desejem prescindir disso podem perfeitamente fazê-lo, inclue-se um arquivo adicional com um amplo e detalhado Glossário de termos marítmos
Em tempos de Nelson, eram numerosos os membros da Armada Real que cultivavam a música e a poesia. Em todos os barcos havia pelo menos seis oficiais que tocavam a flauta travessa, e na Naval Chronicle apareciam todos os meses várias páginas com poemas de oficiais de serviço ou temporariamente desocupados. Estes poemas eram, sem dúvida, os melhores frutos de sua inspiração poética e proporcionam excelente material ao escritor que deseja apresentar este insólito aspecto da vida de um marinheiro e acredita que um pasticho não daria realmente a impressão de ser um poema autêntico, se bem têm ainda mais valor outras composições menos logradas que nunca foram publicadas, muitas das quais encontrei na biblioteca do Museu Marítimo Nacional de Greenwich. Contudo, não encontrei outra fonte que possa comparar-se ao Memoirs of Lieutenant Samuel Walters, R.N., obra que foi publicada pela primeira vez tardiamente, em 1949, pela Liverpool University Press.
XXXXXX
CAPÍTULO 1
Em outro tempo se pensava que o matrimônio era um campo de batalha em vez de um leito de rosas, algo que talvez alguns ainda pensem, e o doutor Maturin, que havia escolhido um par mais inapropiado que a maioria dos homens, tentou fazer frente à situação de forma mais direta, pacífica e eficaz que a imensa maioria dos maridos.
Havia perseguido durante anos e anos a sua esposa, uma mulher extraordinariamente bonita, vivaz e impetuosa, até que por fim se casara com ela a bordo de um barco de guerra, em meio do canal da Mancha; contudo, a perseguição durara tantos anos que já era quase um solteirão. Estava muito velho para abandonar o costume de fumar na cama, de tocar o violoncelo em momentos inoportunos e de fazer a dissecação de toda coisa que lhe interessasse, inclusive na sala, e também estava muito velho para aprender a barbear-se, trocar de roupa íntima ou lavar-se regularmente ainda que não sentisse necessidade de fazê-lo: era um marido impossível. Não estava acostumado à vida caseira e, apesar de ter feito grandes esforços para habituar-se a ela no princípio de seu matrimônio, logo se deu conta de que o enfrentamento terminaria por acabar com suas relações, sobretudo porque Diana era tão intransigente como ele e perdia as estribeiras muito mais facilmente por qualquer coisa, como, por exemplo, por encontrar um pâncreas dentro de um caixote no criado mudo e geléia de laranja no tapete de Aubusson. Ademais, seu arraigado costume de manter em segredo suas atividades (pois além de ser médico era espião) lhe fazia ainda menos apto para a vida doméstica, na qual a reserva causa estragos. Então, foi passando cada vez mais tempo nas habitações que tinha reservadas permanentemente no Grapes, uma hospedaria velha e modesta, mas confortável, situada no distrito de Savoy, até que finalmente se retirou para elas, deixando Diana na bonita casa da rua Half Moon, uma casa moderna, recém pintada de branco e mobiliada com elegantes, mas frágeis, móveis de satín{1}. Isso não foi uma ruptura, pois Stephen Maturin abandonou a casa da rua Half Moon e suas freqüentes reuniões sociais para ir à hospedaria da brumosa ruela próxima ao Támesis sem violência, nem ira, nem rancor. Daquele lugar seria mais fácil ir às reuniões da Royal Society{2}, ao Colégio de Cirurgiões e às sociedades entomológica e ornitológica, que lhe interessavam muito mais que as festas e as partidas de cartas que Diana organizava, e, por outro lado, ali poderia ocupar-se melhor dos delicados casos que tinha que atender como membro do Serviço Secreto da Armada e que sua esposa não devia conhecer. Isso não foi uma brusca ruptura senão uma simples separação geográfica, uma separação tão pequena que Stephen costumava percorrer a distância que havia entre ambos cada manhã, atravessando Green Park, para desjejuar com sua esposa em seu quarto, já que ela gostava de se levantar tarde, e também ia quase sempre aos jantares e festas que ela dava e desempenhava seu papel de anfitrião às mil maravilhas, pois podia ser tão amável como a maioria dos convidados desde que não tivesse que ficar muito tempo. Ademais, Diana estava acostumada à separação porque seu pai e seu primeiro esposo eram oficiais do Exército. Sempre se alegrava de ver seu marido e ele de vê-la, e posto que todos os motivos da desavença haviam desaparecido, já não brigavam. Provavelmente aquela situação era a mais adequada para duas pessoas que estavam unidas pelo amor, pela amizade e pelo fato de terem vivido juntos uma série de surpreendentes aventuras, mas que não tinham nada em comum.
Já não brigavam, a não ser que Stephen voltasse a falar sobre casar conforme o ritual da Igreja romana. Seu matrimônio fora uma breve cerimônia naval celebrada pelo capitão do bergantim Oedipus, um amável jovem que era um excelente navegante, mas não um sacerdote, e Stephen, que era papista, pois tinha ascendência irlandesa e catalã, ainda estava solteiro conforme as leis da Igreja. contudo, nem a persuasão nem as palavras amáveis (e ele não se atrevia a usar palavras duras) conseguiam fazer Diana mudar de opinião, que não razoava e obstinadamente se negava a aceitar. Às vezes Stephen se afligia com sua teimosia, porque, além de dar grande importância àquele assunto, achava que nela havia uma mistura de superstição, medo de um estranho sacramento e a característica hostilidade inglesa por Roma; não obstante, por vezes essa teimosia acrescentava intriga a suas relações, coisa que não lhe desagradava totalmente. Mas nada disto passava pela mente da respeitável senhora Broad, a dona do Grapes, que desejava que sua hospedaria fosse sempre um lugar respeitável e não aprovaria nenhuma imoralidade e expulsaria a qualquer de seus hóspedes se suspeitasse que tinha relações com uma fulana. A senhora Broad conhecia ao doutor Maturin há muitos anos e sabia perfeitamente como era, por essa razão se limitou a olhá-lo por alguns momentos quando ele disse que pensava em ficar na hospedaria, e ainda que achasse assombroso haver um homem que quisesse dormir separado daquela formosíssima dama, considerou "uma das extravagâncias do doutor". No passado algumas daquelas extravagâncias a surpreenderam, como, por exemplo, dissecar no carvoeiro os texugos que resgatava das armadilhas, e braços e pernas ou inclusive cadáveres de órfãos na época em que eram abundantes, no final do inverno; contudo, pouco a pouco se habituara a tudo isso. A senhora Broad estava acostumada a ouvir o doutor tocar o violoncelo durante a noite e a encontrar esqueletos nos armários, e nada mais podia lhe causar muito assombro. Por outro lado, simpatizava com Diana, a quem havia conhecido muito bem durante a permanência dela e de Stephen na hospedaria depois de seu regresso à Inglaterra, porque era amistosa ("não se acha e não se importa de tomar um copo de posset{3} com quem está atrás do balcão") e porque era obvio que sentia afeto pelo doutor, e a admirava sinceramente por sua beleza. A senhora Maturin ia com freqüência ao Grapes para levar camisas, meias de estambre azuis e fivelas de sapatos ou deixar mensagens ou inclusive pedir pequenas somas de dinheiro, pois, apesar de que ser muito mais rica que Stephen, era também muito mais esbanjadora. Aquele matrimônio parecia muito estranho, mas a senhora Broad vira Diana uma vez com lady Jersey numa carruagem real (com lacaios de pé na parte traseira) e estava convencida de que era "alguém importante na corte" coisa que lhe impedia viver como os mortais comuns e normais.
Durante os últimos dias Diana fora à hospedaria com muita mais freqüência, já que o doutor ia fazer-se ao mar com seu amigo íntimo, Jack Aubrey, um capitão de navio da Armada Real que era conhecido entre seus membros como Jack Aubrey o Afortunado porque tivera sorte e conseguira muitos butins. Mas agora o capitão tinha tantos problemas econômicos que aceitara com gosto um cargo nada invejável que o situaria temporariamente ao comando do Worcester, um dos barcos de 74 canhões que ainda restava do grupo de navios de linha chamados os Quarenta Ladrões, nome que lhes deram porque os armadores encarregados de sua construção haviam cometido tantas irregularidades ao construí-los, especialmente no uso de gabaritos, curvas{4} e peças de união, que, apesar de que naquela época a corrupção era geral, haviam sido muito criticados, sobretudo por quem tinha que navegar neles. Devia levar o navio até o Mediterrâneo para unir-se ali à esquadra do almirante Thornton, que mantinha o interminável bloqueio de Toulon para evitar a saída da frota francesa. E como Stephen ia embarcar, necessitava preparar seu baú. Ele mesmo o preparara muitas vezes, e o pouco que costumava pôr dentro sempre fora suficiente para satisfazer suas necessidades, inclusive quando se encontrava muito longe de sua terra, e seria mais ainda quando estivesse no Mediterrâneo, já que teria Malta ou Barcelona só a algumas milhares de milhas por sotavento, conforme soprasse o vento; contudo, nem Diana nem a senhora Broad suportavam sua forma de prepará-lo, pois jogava as coisas dentro sem seguir uma ordem e envolvia os objetos mais frágeis nas meias, assim que intervinham constantemente para envolver objetos em papel de seda e inclusive pôr-lhes uma etiqueta ou para colocá-los ordenadamente em diferentes capas. Agora o baú com reforços de latão estava aberto e o doutor Maturin mexia no seu interior tentando encontrar seu melhor peitilho, um peitilho branco com corredeira, do tamanho de uma ala{5} de moderadas proporções, para colocá-lo para o jantar de despedida que Diana oferecia. Mexia com um retrator, um instrumento usado em cirurgia e um dos mais úteis para a ciência, mas não conseguia encontrar, e quando aquelas pinças de aço tocaram o fundo, gritou:
- Senhora Broad, senhora Broad! Quem escondeu meu peitilho?
A senhora Broad entrou no quarto sem cerimônia, ainda que Stephen estivesse em mangas de camisa.
- Por que o levou? - perguntou Stephen. - A senhora não tem coração, senhora Broad.
- A senhora Maturin disse que era para engomá-lo outra vez - respondeu a senhora Broad. - O senhor não gostaria que o peitilho caísse murcho, estou segura disso.
- Nada me agradaria mais - murmurou Stephen enquanto o punha.
- E a senhora Maturin falou para pôr os novos sapatos de verniz - disse a senhora Broad. - Já arranhei as solas.
- Não posso ir andando até a rua Half Moon com os sapatos novos - protestou Stephen.
- Não, senhor - disse a senhora Broad tranqüilamente. - Tem que ir de carruagem, como a senhora Maturin disse esta manhã. Esses homens estão lhe esperando no bar já faz dez minutos.
Então olhou para o baú aberto, que há apenas meia hora tinha tão bom aspecto como o de um pastel de maçã, e exclamou:
- Oh, doutor Maturin! Oh, doutor Maturin! Que vergonha!
- Que vergonha! - exclamou Diana enquanto lhe arrumava a gravata borboleta. - Por que chegadou tão tarde? Faz um século que Jagiello está na sala abstraído em seus pensamentos e os outros chegarão de um momento para outro.
- Nos encontramos com um touro enfurecido em Smithfield - disse Stephen.
- É realmente necessário passar por Smithfield para chegar a Mayfair? - perguntou Diana.
- Não é, como sabe muito bem. De repente me recordei que tinha que passar pela casa de Bart. Porém, querida, que eu saiba, nunca em sua vida você foi pontual, assim que peço que guarde sua ironia para uma ocasião melhor.
- Vá, Stephen, está tão enfurecido como esse touro! - exclamou Diana e lhe deu um beijo. - E pensar que lhe comprei um bonito presente! Suba para vê-lo. Jagiello poderá receber aos convidados que cheguem mais cedo.
Ao passar pela sala, entrou um momento e disse para Jagiello:
- Por favor, se chegar algum convidado, receba-o em nosso nome. Não demoraremos nem um minuto.
Jagiello, um jovem lituano muito charmoso e rico que trabalhava para a embaixada sueca, sentia-se na casa da rua Half Moon como na sua própia. Fora prisioneiro na França com Stephen e Jack Aubrey e escapara com eles, o que explicava que estivesse unido a ambos por uma profunda amizade, que em outras circunstâncias provavelmente não existiria.
- Aí está - disse Diana, apontando para sua cama.
Ali se encontrava uma arqueta com rebordos de ouro e pequenas gavetas que era ao mesmo tempo uma frasqueira, uma cantina e um tabuleiro de chaquete{6}. Podia transformar-se em um porta bacia, uma escrivaninha ou um atril mediante um engenhoso sistema de tábuas que deslizavam em trilhos e pernas dobráveis e, ademais, tinha espelhos e castiçais ocultos nos lados.
- Acushla{7}, este presente é esplêndido, magnífico, digno de um imperador! - exclamou, aproximando-se dele. - Nem o médico chefe da Armada tem algo melhor! Muito obrigado, querida.
Ele estava realmente agradecido e também estava profundamente emocionado. Diana demostrou como o brilhante objeto se transformava e contou que supervisionara sua construção e que havia instado os trabalhadores para que o terminassem a tempo ("Stephen, chéri, fiz promessas e juramentos e disse frases doces e persuasivas até que fiquei rouca como um corvo"), e entretanto ele refletida sobre sua generosidade, sua falta de previsão (apesar de que ser muito rica, nunca tinha bastante dinheiro para gastar, e aquilo custava mais do que realmente podia gastar) e seu desconhecimento da vida naval, pois em um barco o cirurgião ocupava uma cabine úmida e pequena como um armário, ainda que fosse o cirurgião de um navio de linha de 74 canhões. Aquele valioso objeto feito por artesãos poderia ser-lhe muito útil para um militar de alta patente com uma carroça para levar sua bagagem e meia dúzia de ordenanças, mas não para um marinheiro, que teria que envolvê-lo em lona alcatroada e colocá-lo na parte menos úmida da bodega ou, se conseguisse autorização, no paiol do pão…
- Mas as camisas, querido Stephen… - disse ela. - Estou muito desgostosa porque faltam as camisas. Não pude conseguir que essa condenada mulher as terminasse. Aqui tem somente uma dúzia; mandarei as outras numa carruagem e espero que cheguem a tempo.
- Bendito seja Deus! - exclamou Stephen. - Não há necessidade, nenhuma necessidade…! Uma dúzia de camisas! Não tenho tantas camisas assim desde que comecei a usar calças. Só preciso de duas para esta viagem porque logo estarei de volta.
- Gostaria que já estivesse de regresso - sussurrou Diana. - Sentirei muita saudade - acrescentou e voltou a cabeça para a janela. - Esse é a carruagem de Anne Trevor. Não se importará que haja vindo, né, Stephen? Quando soube que Jagiello vinha jantar, rogou-me que a convidasse, e não tive coragem de dizer não.
- Não me importa em absoluto, querida. Sou a favor de que todos satisfaçam seus desejos naturais, inclusive a senhorita Trevor, um oficial de justiça e um terratenente do condado de Kerry que viva longe de suas terras, receba rendas exorbitantes e tenha um agente de negócios escocês, ruivo e anabatista que, ademais, seja um abutre. Verdadeiramente, poderíamos chegar ao extremo de deixá-los sozinhos por dois minutos.
- Esse viagem acho muito estranha - disse Diana enquanto olhava a pilha de camisas com o cenho franzido. - Nunca me disse como a propuseram. E é tão precipitada!
- No momento crítico de uma guerra, na Armada costuma-se dar ordens com muito pouca antecedência. Mas me alegro de ir, porque tenho que resolver alguns assuntos em Barcelona, como sabe. Teria que ir ao Mediterrâneo de toda maneira, com Jack ou sem ele.
Tudo o que Stephen havia dito era verdade, mas não explicara que tipo de assunto devia resolver em Barcelona e tampouco dissera que a pouca distância de Toulon ia ter um encontro com realistas franceses, com cavalheiros que estavam verdadeiramente fartos de Bonaparte, e que esse encontro poderia servir para lograr grandes coisas.
- Mas se sabia que Jack assumiria o comando do Blackwater quando estivesse pronto e iria para a base naval da América do Norte - disse Diana. - Nunca deveriam haver-lhe forçar a aceitar o comando temporal de um navio velho e desconjuntado como o Worcester. A um marinheiro com sua antiguidade e sua folha de serviços deveriam conceder o título de cavalheiro e designar-lhe um barco decente ou toda uma esquadra. Sophie está furiosa, e também o estão o almirante Berkeley, Heneage Dundas e todos os amigos de Jack da Armada.
Diana conhecia bem os assuntos do capitão Aubrey, já que ele está casado com sua prima e velha amiga Sophie, mas não os conhecia tão bem como Stephen, que, nesse momento, disse:
- Provavelmente saberá que Jack está em uma situação difícil.
- Oh, Stephen, não seja tonto! Sem dúvida que sei.
É claro que sabia. Todas as amizades do capitão Aubrey sabiam que, no momento em que havia chegado a terra com os bolsos cheios do ouro dos franceses e dos espanhóis, convertera-se em uma presa mais fácil de pegar pelos tubarões de terra que a maioria dos marinheiros, pois era confiado e ingênuo, e fora aprisionado por um de extraordinária voracidade, pelo que agora sustentava vários pleitos que poderiam levar-lhe à ruína.
- Eu me referia ao ocorrido recentemente. Parece que esqueceu de agir com discrição, como lhe recomendaram seus conselheiros legais, e, na opinião destes, é de vital importância que se ausente do país durante um tempo. Esqueci dos detalhes, mas causou danos físicos ao jogar mais de um advogado pela janela de uma planta baixa, quebrou cristais que valem uma considerável quantidade de libras, ameaçou de morte alguns estagiários, blasfemou e alterou a ordem pública. Por essa razão tudo é tão precipitado e por essa razão aceitou o comando desse barco. Isto será simplesmente um parêntese em sua carreira.
- Então, regressará para tomar o comando do Blackwater quando estiver pronto? Sophie ficará tão contente!
- Bem, com relação a isso, querida, com relação a isso… - Stephen vacilou, porém, sobrepondo-se a sua tendência à reserva, que, entre outras coisas, tornava-o pouco apto a ser um bom esposo, continuou: - A verdade é que teve grandes dificuldades para conseguir inclusive o comando deste barco. Seus amigos tiveram que pressionar aos que têm o poder e recordar-lhes os serviços que prestou e as promessas feitas pelo defunto primeiro lorde, e mesmo assim, provavelmente não lhe designariam a outro se o capitão… se um amigo não houvesse tido a generosidade de sair do meio para favorecer-lhe. No Almirantado há pessoas que sentem ódio por ele e tratam de pôr obstáculos em seu caminho, assim que poderiam tomar-lhe o comando do Blackwater apesar de seu histórico e de haver-se ocupado de seu aprovisionamento durante tanto tempo. Quando se feche esse parêntese, é possível que se fique em terra, e então ansiará em conseguir ainda que seja um bote de remos que leve a insígnia real.
- Suponho que é por causa de seu pai, que é um velho insuportável - disse Diana.
O general Aubrey era um homem loquaz e veemente e um apaixonado radical que pertencia ao grupo da oposição no Parlamento, e isso prejudicava muito ao seu filho porque era um servidor da Coroa, que deixava nas mãos dos ministros as nomeações e promoções.
- É claro que isso tem relação com o caso, mas acho que outras coisas também - disse Stephen. - Conhece um homem chamado Andrew Wray?
- Wray, o do Ministério da Fazenda? Oh, sim! Ele se encontra em toda parte. Tive que dançar com ele na festa de Lucy Carrington no dia que você foi ver os répteis. Também estava no jantar oferecido por Thurlow. Escute, chegou outra carruagem! Acho que é o almirante Faithorne, porque sempre é pontual como um relógio. Stephen, estamos nos comportando horrivelmente. Temos que descer. Por que me perguntou por esse tipo desprezível?
- Achas que é um tipo desprezível?
- É claro que sim! É exageradamente inteligente, como a maioria dos que trabalham na Fazenda, e também um miserável. Não pode imaginar o mal que tratou a Harriet Fanshaw. É um tipo desprezível apesar de suas boas maneiras, e também um presunçoso.
- Agora substitui ao vice-secretário do Almirantado, sir John Barrow, que se encontra enfermo. Mas faz algum tempo, quando ainda trabalhava na Fazenda, Jack lhe disse que fazia armadilha jogando cartas, disse abertamente, com a franqueza própia dos marinheiros, no bar de Willis.
- Deus santo! Não me havia dito, Stephen. Como você é reservado!
- Nunca me perguntou.
- Desafiou Jack para um duelo?
- Não, acho que tomou um caminho mais seguro - disse, e nesse momento alguns golpes fortes na porta da casa interromperam suas palavras. - Eu lhe contarei depois. Obrigado por este bonito presente, querida.
Quando desciam a escada para ir ao hall, Diana disse:
- Stephen, você sabe tudo com respeito aos barcos e ao mar.
Stephen assentiu com a cabeça. Era natural que soubesse muito de ambas coisas, pois havia navegado com o capitão Aubrey desde o início do século, e, de fato, já podia distinguir quase sempre entre bombordo e estibordo. Ademais, sentia um grande orgulho por ter aprendido termos náuticos como proa e popa e inclusive outros muito mais difíceis de entender.
- Diga-me - continuou, - o que é a vara de uma falua? Hei ouvido falar muito dela.
- Bem, minha esposa - respondeu, - a falua ou pinaça, como nós dizemos, é uma pequena embarcação para o uso particular do capitão, e a vara é uma espécie de mastro inarticulado.
Abriu a porta do salão para que ela entrasse e viu ali a duas jovens em vez de uma. Cada uma delas mostrava alternativamente seu desprezo pela outra e sua veneração por Jagiello; que, vestido com seu uniforme de hussardo, estava sentado entre as duas e tinha uma expressão sorridente, mas parecia ausente. Ao ver Stephen, Jagiello se levantou de um salto e suas esporas chocaram.
- Querido doutor, quanto me alegro de ver-lhe! - exclamou, apertando-lhe ambos os braços e sorrindo docemente.
- O almirante Faithorne! - anunciou o mordomo com uma expressão hierática, e nesse momento o relógio deu a hora.
Logo chegaram mais convidados, e o gato, aproveitando que a porta da cozinha se abria com freqüência, saiu dela e, quase se arrastando, foi até onde estava Stephen, subiu por suas costas, sentou-se em seu ombro esquerdo e começou a ronronar e a roçar com a orelha em sua peruca. Chegaram mais convidados, entre os quais estava o banqueiro Nathan, o assessor financeiro de Diana, com que Stephen simpatizava porque era um homem que também lutava com todas suas forças para derrotar Bonaparte e usava suas armas, armas sumamente especializadas, com extraordinária eficiência. A cerimônia se estragou pela desagradável cena que teve lugar quando o mordomo levou o gato, e por fim todos passaram ao refeitório. Ali estava a melhor comida que podia ser encontrada em Londres, pois, apesar de que Diana ser uma sílfide, era glutona, era entendida em vinhos e tinha um excelente cozinheiro, que, nesta ocasião, havia empregado todo seu talento para preparar os pratos favoritos de Stephen.
- Quer que lhe sirva mais trufas, senhora? - ele perguntou à dama que estava sentada na sua direita.
A dama era uma viúva de certa idade, uma mulher tolerante e influente que ajudara a reputação de Diana voltar a ser boa, já que as relações pouco convenientes que tivera na Índia e nos Estados Unidos a haviam prejudicado e seu matrimônio só a melhorara um pouco.
- Não me atrevo a comer mais, pobre de mim - respondeu a dama, - mas me produziria um grande prazer ver o senhor comê-las. Siga o conselho desta velha: coma todas as trufas que possa enquanto suas tripas permitem.
- Acho que seguirei - disse Stephen, metendo a colher na pirâmide, - pois passará muito tempo antes de que volte a vê-las. Amanhã, se Deus quiser, estarei a bordo de um barco, e minha comida consistirá em bolachas, carne de cavalo salgada, ervilhas secas e cerveja ruim, pelo menos até que Bonaparte seja derrotado.
- Brindemos a sua derrota! - exclamou a viúva, levantando sua taça.
Todos os comensais brindaram por sua derrota e, sucessivamente, pelo outor Maturin, por seu feliz regresso, pela Armada Real, por cada um deles e, depois, pondo-se de pé (o que foi tão difícil para a senhorita Trevor que teve que apoiar-se no braço de Jagiello), pelo Rei. Em meio daquela alegria e dos brinde com o excelente clarete, o borgonha e o vinho do porto, Stephen olhou ansiosamente para o bonito relógio de parede francês que estava detrás do senhor Nathan, pois devia pegar a carruagem correio de Portsmouth e lhe aterrorizava perder uma carruagem. Horrorizou-se ao comprovar que os ponteiros não haviam se movido desde que comeram o creme de lagosta. O relógio estava parado, como todos os outros que Diana tinha em sua casa, e ele sabia que as normas de cortesia não lhe permitiam nem sequer olhar de soslaio seu relógio. Porém, apesar de que Diana e ele tinham vidas quase independentes, ao contrário da maioria dos matrimônios, estavam muito unidos em algumas coisas, por isso ela, ao ver-lhe olhar por ali, disse:
- Coma a sobremesa tranqüilo, querido, pois Jagiello pediu emprestado a carruagem ao embaixador e terá a amabilidade de levar-nos até o porto.
Pouco depois ela e as outras mulheres abandonaram o refeitório. Então Jagiello ocupou o lugar da viúva e Stephen disse:
- O senhor é um homem de bom coração, meu amigo. Agora poderei ficar com Diana quase por mais doze horas e não terei que preocupar-me com essa infernal carruagem correio.
- A senhora Maturin me fez prometer que ela conduziria a carruagem - disse Jagiello. - Dei minha palavra de que a conduziria quando o sol saísse, sob a condição de que o senhor desse sua aprovação - acrescentou um pouco nervoso.
- E ela aceitou essa condição? - perguntou Stephen, sorrindo. - Que bom! Mas não precisa se preocupar, pois ela conduz extraordinariamente bem e faria passar uma fileira de camelos a trote pelo olho de uma agulha.
- Oh, como admiro às mulheres que sabem cavalgar e conduzir uma carruagem! - exclamou Jagiello e falou durante um tempo das excelentes qualidades da senhora Maturin, à qual, conforme ele, somente faltava um profundo conhecimento dos cavalos para ser perfeita.
Stephen havia notado que Nathan, sentado no outro extremo da mesa, tinha uma expressão despreocupada e alegre e observava sorridente como Jagiello falava com entusiasmo. Pensou que Jagiello tinha algo que fazia as pessoas sorrirem: sua juventude, sua alegria, sua ostensível saúde, sua beleza e talvez inclusive sua simplicidade. "Não tenho nem nunca tive essas qualidades - pensou. - São os Jagiello conscientes de sua felicidade? Provavelmente, não. Fortunatos nimium…" Sua ânsia de tomar café estimulava seus órgãos vitais, e como seus convidados, que já estavam rosados e respiravam pesadamente, não haviam se servido do vinho das garrafas na última rodada, disse em alta voz:
- Cavalheiros, talvez possamos nos reunir com as damas.
Como o oferecimento de Jagiello de trazer uma carruagem havia sido uma surpresa, os outros já haviam ordenado que as suas voltassem cedo para que o doutor tivesse tempo de despedir-se e pegar a carruagem correio de Portsmouth e inclusive subir nele com meia hora de antecedência. As carruagens chegaram às dez e meia e se afastaram imediatamente, e Stephen, Diana e Jagiello ficaram muito contentes de ter um tempo livre inesperadamente. Nathan havia ficado com eles, em primeiro lugar porque fora a pé até ali, pois vivia ao dobrar a esquina, e em segundo lugar porque queria falar de negócios com Diana. Ela havia trazido magníficas jóias da Índia e dos Estados Unidos, muitas das quais não punha nunca, e, pelo fato de que na atual etapa da guerra Napoleão alcançara assombrosas e horripilantes vitórias frente a Áustria e Prússia, seu valor aumentara enormemente. Nathan queria que ela aproveitasse a ocasião e empregasse alguns rubis (ela dizia que eram vulgares e muito grandes e que pareciam tortas de framboesa) para comprar determinados valores da Bolsa britânica que agora estavam muito baixos, o que por sua vez seria uma injeção no mercado e uma investimento que produziria grandes benefícios quando os aliados triunfassem. Contudo, se limitou a sorrir e a consentir com a cabeça quando Diana sugeriu que levassem os restos da bombe glacée para a sala de bilhar e terminassem de comê-la enquanto jogavam.
- Porque, de qualquer maneira, Stephen tem que despedir-se de sua oliveira - disse Diana.
A sala de bilhar de sua casa era talvez a única na rua Half Moon que tinha uma oliveira. Havia sido construída sobre uma parte do jardim, e Stephen, utilizando uma alavanca, havia tirado uma lajota próxima de uma das janelas e em seu lugar havia plantado um estaca de uma das oliveiras que cresciam em terras de sua propriedade em Catalunha e que procedia do jardim da Academia. Agora Stephen estava sentado junto à oliveira e mostrava a Nathan as cinco folhas novas que haviam saído e uma gema que possivelmente se converteria na sexta. Com qualquer outro esposo, Nathan falaria desses valores, mas Stephen deixava que sua mulher administrasse sua fortuna, não tinha nada a ver com ela.
- Vamos, Stephen - disse ela, afastando o taco. - deixei uma posição muito boa para vovê.
Quando o doutor Maturin tinha que operar a perna destroçada de um paciente, manejava a serra com determinação e habilidade e seus movimentos eram rápidos e precisos; contudo, não se dava bem com o jogo de bilhar e, apesar de conhecer muito bem a teoria, era desajeitado na prática. Agora, depois de ter analisado as possibilidades durante longo tempo, deu um golpe em sua bola sem muita segurança, observou como rodava sem tocar em nenhuma das outras e como caía no buraco do canto direito, e voltou a sentar-se junto à oliveira. Os outros jogadores pareciam pertencer a um mundo completamente diferente. Nathan juntou as bolas em um canto e, tocando-as quase imperceptivelmente, fez uma série de carambolas e ao final deixou seu oponente em uma má situação. Jagiello, do extremo da mesa, fez uma proeza com uma tacada no centro. Depois Diana, que gostava de um jogo muito mais dinâmico e da jogada chamada billa limpa, deu voltas ao redor da mesa com os olhos brilhantes como os de um predador, fazendo com que as bolas entrassem de um lado a outro da mesa tão rápidas como o raio e com fortes estalidos.
Quando já havia feito trinta e sete pontos e necessitava só de três para ganhar, as bolas se achavam numa estranha posição, justo no centro, assim que se sentou na borda da mesa, se inclinou para frente até roçar o tabuleiro e se estirou para alcançá-las, e, nesse momento, Stephen disse:
- Pegue um descanso, querida. Pegue um comprido descanso, por favor.
Havia muitas possibilidades de que estivesse grávida e Stephen não gostava que adotasse aquela postura.
- Bah! - exclamou Diana.
Então colocou o taco sobre a mão estendida e, com os olhos à altura deste, olhou para a ponta, semicerrou os olhos, prendeu a ponta da língua na comissura da boca, ficou imóvel alguns momentos e depois, com uma forte tacada, enviou a bola vermelha diretamente para fundo da caçapa do canto direito e sua bola para a caçapa da esquerda. Imediatamente desceu da mesa de um salto, com tanta graça e agilidade e com uma expressão tão satisfeita por ter triunfado, que o coração de Stephen parou durante uma batida e os outros homens a olharam com grande admiração.
- A carruagem do capitão Jagiello - anunciou o mordomo.
No que se referia a campos de batalha e leitos de rosas reais, o capitão Aubrey conhecia muito melhor os primeiros que os últimos. Isso se devia em parte às características de sua profissão, na qual, depois de longos períodos cheios de dificuldades, geralmente frios e sempre úmidos, tinha que lutar ferozmente contra os inimigos do Rei, e também com os altos cargos do Almirantado e seus mal-intencionados superiores e subordinados; em parte se devia a ser um péssimo jardineiro. Apesar de seus tenros cuidados, os rosais de Ashgrove Cottage tinham mais pulgões, lagartas, fungos e mofo cinzento do que rosas, e em nenhuma época davam suficientes para fazer o leito de um anão, muito menos para fazer o de um oficial da marinha de seis pés de altura e quase 225 libras. Falando em sentido figurado, seu matrimônio se parecia mais com um leito de rosas do que com um campo de batalha. Ele era muito mais feliz do que merecia (porque não mantinha a sua família em todo momento nem era estritamente monógamo), e ainda que sua felicidade não fosse ideal e em o mais profundo de seu ser desejava ter uma companheira que concedesse mais importância ao aspecto carnal da natureza humana e fosse menos possessiva, tinha um profundo carinho por Sophie, e, de todas formas, amiúde passava longos anos longe do lar.
Agora estava de pé na popa do Worcester, um navio de Sua Majestade, pronto para zarpar outra vez, e sua esposa estava sentada em uma incongruente poltrona que fora colocada na coberta expressamente para a ocasião.
O navio se encontrava em Spithead e estava ancorado somente com uma âncora há longas horas. Na ponta do mastaréu de velacho estava a bandeira de saída, unida a este tão firmemente que parecia cravada; o velacho já estava desdobrado; as barras do cabrestante haviam sido colocadas desde a guarda anterior e estavam preparadas para pôr o navio em movimento; os tripulantes estavam tensos e descontentes; os oficiais estavam enfurecidos; a comida havia atrasado; todos olhavam indignados para terra. E enquanto a maré baixava, o navio balançava fortemente. O capitão avançou até o corrimão de estibordo sem deixar de observar Portsmouth através da luneta, e a expressão de seu rosto, que costumava ser alegre e bondosa, agora era austera e mal-humorada. O vento ainda era favorável, ainda que não muito, e quando a maré começasse a subir, seria melhor voltar a amarrar o navio, já que não poderia sair dali navegando contra a corrente. Detestava a falta de pontualidade, e era a falta de pontualidade, uma grande falta de pontualidade, o que lhe obrigava a permanecer ali. Havia rogado ao comandante do porto, que estimava muito à senhora Aubrey, que lhe permitisse fazer uma longa, longa pausa, mas a pausa não poderia durar sempre, e em qualquer momento apareceriam lá longe as bandeiras de sinais ordenando ao Worcester zarpar, e o navio deveria fazer-se ao mar com seu cirurgião ou sem ele, largando atrás de de si os tripulantes de seu esquife, que deveriam alcançá-lo da melhor forma que pudessem.
O baú do doutor Maturin já se encontrava a bordo, assim como o conhecido estojo de seu violoncelo, pois haviam chegado na carruagem correio de Portsmouth no seu devido tempo, mas o doutor não havia vindo com eles. Bonden, o timoneiro do capitão, acossou de perguntas ao cocheiro e ao guarda inutilmente. Ambos responderam que não haviam visto a nenhum tipo baixinho, feio e de pele azeitonada com uma grande peruca e acrescentaram que não o haviam deixado por engano em Guilford nem em Godalming nem em Petersfield simplesmente por uma razão: porque não havia subido ao maldito carro. Depois disseram que podia tomar suas palavras como quisesse, que podia metê-las em seu cachimbo e fumá-las ou metê-las pelo traseiro, e que tinha que pagar dezoito peniques pelo violoncelo, pois ninguém havia s responsabilizado po ele e, ademais, era um pacote pouco comum.
- Quanto detesto a falta de pontualidade! - exclamou Jack. - Detesto inclusive em terra. Atenção na popa! Amarrem essa adriça!
Isto último o havia dito tão forte que seu eco chegou desde o forte Norman's Land e a palavra "adriça" se misturou com as palavras que pronunciou em continuação e que eram dirigidas à sua esposa.
- Na verdade, Sophie, qualquer um pensaria que um tipo como Stephen, um homem de grande talento, um eminente naturalista, poderia entender como a maré muda. Agora a lua está no perigeu, em sicigia e perto do Equador, como lhe expliquei ontem à noite. E você entendeu imediatamente, né?
- Perfeitamente, meu amor - respondeu Sophie visivelmente nervosa, pensando que pelo menos podia se recordar da pálida lua em quarto crescente sobre o castelo de Porchester.
- Ou pelo menos poderia entender a importância que tem para os marinheiros - disse Jack. - E sobretudo a importância da brusca mudança da maré na primavera. Às vezes me desespero… Querida - prosseguiu, olhando seu relógio outra vez, - acho que devemos nos despedir. Se ele aparecer em Ashgrove Cottage, diga que vá em uma carruagem de posta até Plymouth. Senhor Pullings, por favor, prepare a guindola e um aparelho para o baú e chame as crianças.
Por todo o navio se ouviram os gritos: "Crianças, a popa! Crianças, o capitão está chamando! Todas as crianças a popa!".
As duas filhas de Jack saíram correndo da cozinha, cada uma com um pedaço de pudim de passas pela metade na mão, e as seguiu um suboficial peludo que levava nos braços George, seu irmão menor, que vestia calças pela primeira vez. George virou sua cara de lua cheia para o suboficial, olhou angustiado e preocupado e depois lhe sussurrou algo ao ouvido.
- Não pode esperar? - perguntou o marinheiro.
George negou com a cabeça e o marinheiro se aproximou do costado de sotavento, desceu suas calças, sustentou no ar fora da beira e pediu um pouco de estopa.
Da popa Jack seguia olhando para a costa por entre os inumeráveis mastros, pois se encontravam ali a metade da frota do canal e grande quantidade de transportes e pequenas embarcações de todas as formas e tamanhos. (Com a luneta podia ver claramente o cais Sally Port{8} e as numerosas lanchas dos barcos de guerra aproximando-se - ou afastando-se dali e inclusive seu própio esquife e seu timoneiro, que estava sentado na popa e alternativamente mordia um pão com queijo que sustentava em uma mão e arengava para a tripulação fazendo gestos com a outra. Atrás de Sally Port se achava uma praça triangular sem pavimentar, em cujo extremo mais distante estava a pousada Keppel's Mead, com sua ampla varanda branca. Quando Jack olhava para ali, viu um carro de quatro cavalos dobrar a esquina a grande velocidade, obrigando a afastar-se de seu caminho a muitos oficiais da marinha, marinheiros e infantes da marinha e às rameiras que os acompanhavam, e parar de repente no meio da praça e balançar perigosamente durante alguns momentos.
- Nosso nome, senhor - disse o guarda-marinha encarregado dos sinais enquanto observava a haste da bandeira com a luneta. - Agora a mensagem "Worcester deve zarpar". E agora… - O guarda-marinha, ao ver aparecer outras bandeiras de sinais, as buscou desesperadamente em seu livro e continuou: - "Sem… sem…".
- Demora - disse Jack sem afastar a vista de sua luneta. - Entendido. Senhor Pullings, ordene arriar a bandeira de saída e recolher âncoras.
Então viu como uma mulher passava as rédeas para um homem, descia de um salto do assento e corria para as lanchas seguida de uma pequena figura vestida de preto que havia saído do interior da carruagem e carregava um enorme pacote.
- Sophie, aquela não é Diana? - perguntou em voz muito alta para ser ouvido apesar das apitadas do contramestre e do ruído das pisadas.
- Estou segura de que sim - respondeu ela, olhando pela luneta. - Reconheço seu vestido de musselina com raminhos de flores. E o que leva o pacote é o pobre Stephen.
- Finalmente! - exclamou Jack. - Finalmente! Sempre o mesmo drama! Graças a Deus que agora tem que se ocupe dele, ainda que seja Diana. Senhor Pullings, creio que nossa reduzida tripulação poderia demorar para recolher âncoras simulando que o faz com a máxima rapidez. Querida, lamentavelmente, agora deve descer.
Ele a levou até o castelo de popa, onde já tinham preparada a guindola para descê-la até a falua emprestada por seu amigo Billy Harvey, capitão do Arethusa.
- Adeus, meu amor - disse ela com um sorriso que a duras penas logrou esboçar e com os olhos cheios de lágrimas. - Deus te abençoe e te proteja.
- Deus abençoe a você também - disse Jack e depois, em voz mais alta e em tom grave, ordenou: - Um aparelho para as crianças!
Desceram as crianças uma a uma, como pequenos fardos, até onde estava sua mãe, e todos mantiveram os olhos fechados e as mãos agarradas enquanto desciam.
- Senhor Watson - disse Jack ao guarda-marinha encarregado da falua, - quando chegue à costa, tenha a amabilidade de dizer aos tripulantes de meu esquife que desdobraem muito velame, que desdobrem até o último pedaço de lona que tenham. Cumprimente e agradeça em meu nome ao capitão Harvey.
Voltou-se para dar as ordens que levariam o Worcester para o alto mar quase no final da maré baixa. Ainda faltavam dez minutos e, com aquele vento, possivelmente seriam suficientes para que Bonden o alcançasse, já que sabia navegar perfeitamente em pequenas embarcações; mas durante esses dez minutos devia persuadir os membros da Armada, que tinham a vista mais aguda, de que os tripulantes do Worcester estavam realmente cumprindo as ordens com muito zelo em vez de estarem sentados com as mãos nos bolsos. Em circunstâncias normais haveria deixado tudo nas mãos de Tom Pullings, o primeiro oficial, um velho companheiro de tripulação de toda confiança; contudo, sabia que não havia a bordo nem um só homem que não conhecesse suas intenções e também que os escassos tripulantes eram velhos e experimentados marinheiros, todos procedentes de barcos de guerra, e, como os marinheiros gostavam muito de enganar, particularmente enganar o comandante do porto com movimentos falsos, tinha medo de que exagerassem. Aquele era um assunto delicado, pois devia aproveitar a tácita conivência para desobedecer uma ordem e ao mesmo tempo manter sua reputação de oficial eficiente, e se houvesse demasiadas corridas de um lado para outro, não seria muito convincente. Após um momento ouviu-se um canhonaço desde a costa e seu coração deu um pulo, como quando era um cadete e aquele mesmo almirante, na época um capitão, surpreendera-o tonteando em um momento em que devia estar ajustando a vela de estai; contudo, desta vez o almirante queria recordar ao capitão do Andromache seu desejo de que mandasse um tenente ao seu escritório, pois os tripulantes do Andromache já levavam mais de quarenta segundos tratando de descer uma lancha para a água. Mas Jack não queria correr o risco de que também o repreendessem na frente da frota, por isso o Worcester já navegava a bastante velocidade, tinha a âncora de leva colocada na serviola e amarrada, as gáveas caçadas (mas com as escotas pouco tensas) e os brioles das sobrejoanetes soltos, quando o esquife, com grande quantidade de velame desdobrado, cruzou sua esteira e se aproximou pelo costado de estibordo. No lugar onde se encontravam, a maré provocava grandes ondas em direção contrária à do vento, pelo que era preciso um julgamento muito acertado para enganchar o croque. Bonden julgava bem essas coisas, e era possível que decidisse esperar até que o navio passasse a ilha de Wight, porém, em qualquer caso, não havia perigo de que o esquife se rompesse em pedaços se se abordasse com ele.
Jack ainda estava chateado, e também triste, e tinha uma atitude hostil. Olhou para o esquife, que tinha um forte balanço, e viu o remador de proa com o croque para o alto, a Bonden segurando a cana do leme, atendendo ao movimento das ondas e dirigindo a proa alternativamente para sotavento e barlavento, e também viu Stephen sentado na popa muito tranqüilo, cuidando de seu pacote. Aspirou profundamente e foi para sua cabine sem dizer palavra, e o infante da marinha que estava de sentinela na porta mudou sua expressão sorridente para outra séria e respeitosa quando ele passou por seu lado.
No castelo de popa, o senhor Pullings ordenou a um guarda-marinha:
- Senhor Appleby, vá pedir ao contador meia pinta de azeite de oliva.
- Azeite de oliva, senhor? - perguntou o guarda-marinha e depois, ao notar que os olhos do primeiro oficial brilhavam como o fogo do inferno, acrescentou: - Sim, senhor, imediatamente.
- Enganche-o, Joe - ordenou Bonden.
O remador enganchou o croque no pescante e imediatamente a grande vela ao terço caiu com estrépito. Então Bonden, com tom grave, disse:
- Vamos, senhor, por favor. Não podemos permanecer todo o dia abordados com o barco. Eu cuidarei de seu pacote.
O Worcester tinha os costados retos como muros, e para entrar nele tinha que subir uma série de degraus pouco profundos, gastos e escorregadios pela umidade que ascendiam verticalmente desde a linha d’água, ou seja, que não tinha recolhimento de costado, essa inclinação para dentro que facilita a subida para os barcos. Contudo, os degraus tinham linhas de vida dos lados e isso permitia aos marinheiros ágeis e experientes subirem a bordo, mas o doutor Maturin não era um marinheiro ágil nem experiente.
- Vamos, senhor - disse o timoneiro, impaciente ao ver Stephen vacilante, com um pé sobre a borda.
O espaço que havia entre as duas embarcações começou a aumentar de novo, e antes que alcançasse as proporções de um abismo, Stephen deu um grande salto e caiu no último degrau e se agarrou com força nas linhas de vida. Ali permaneceu alguns momentos, ofegando e olhando para o alto da borda enquanto pensava que se comportara mal e que caíra em desgraça. Bonden, que era um velho amigo seu, recebera-o sem um sorriso, dizendo-lhe: "Chegou muito tarde, senhor. Sabe que quase nos fez perder a maré? E ainda podemos perdê-la". E enquanto se afastavam da costa para alcançar o barco, ouvira falar muitas vezes de "perder a maré, perder a maré na primavera, quando muda tão rápido", e também da raiva do capitão, "que estivera furioso como um leão durante a maré-cheia por ter feito papel de tonto diante de toda a frota", e ouvira a advertência: "Se ele perder a maré, nos mandará para o inferno, e seremos castigados com piche fervendo". Bonden lhe dissera palavras muito duras, e agora não havia nenhuma escada nem nenhuma guindola para que subisse a bordo… nesse momento o Worcester deu um solavanco para sotavento e o costado de bombordo saiu tanto do mar que puderam ver as lâminas de cobre, enquanto que um vão igual do de estibordo, onde estava Stephen, submergiu, e as frias águas cobriram suas pernas e parte de seu tronco. Stephen voltou a ofegar e se agarrou com mais força.
Quando o navio voltava para sua posição anterior, Stephen sentiu que umas mãos impacientes agarravam seus tornozelos e o impulsionavam para cima, e quando estava chegando, pensou: "Tenho que me lembrar de cumprimentar como é devido aos oficiais no castelo de popa. Isso atenuará minha falta". Mas estava tão agitado que não se recordou que havia prendido o chapéu à peruca para que não fosse levado pelo vento, e quando chegou àquele espaço sagrado e o tirou, as duas coisas subiram juntas, pelo que seu gesto pareceu uma brincadeira inoportuna em vez de uma saldação respeitosa e provocou os risos de dois grumetes e de um infante da marinha, que não o conheciam, mas não aplacou aos que o conheciam.
- Na verdade, doutor, chegou muito tarde - disse Mowett, o oficial de guarda. - Quase nos faz perder a maré. Em que estava pensando? E está molhado… está como uma sopa. Por que está tão molhado?
O senhor Pullings, que estava de pé no corrimão de barlavento e tinha uma expressão grave, sem dizer uma palavra de saldação, disse:
- O encontro era há duas marés, senhor.
Stephen conhecera Mowett e Pullings quando estavam em sua adolescência e eram simples guardas-marinhas, e em qualquer outra ocasião haveria cortado em seco suas palavras, mas agora a autoridade moral de ambos, a silenciosa desaprovação da tripulação do Worcester e o fato de estar empapado o impediam de encontrar as palavras adequadas, assim que não pôde responder, apesar de que no mais recondito de sua mente tinha a idéia de que aquela atitude hostil era, ao menos em parte, infundada, e estava associada ao conceito da alegria que imperava na Armada e que ele tivera que suportar tantas vezes.
- Pelo que vejo, submergiu na água - disse Pullings, cujo gesto austero havia se dulcificado um pouco. - Não deve ficar aí com a roupa molhada porque pegará um terrível resfriado. Molhou o relógio?
Desde que o doutor Maturin exercia sua profissão, o mar, esse elemento que lhe era completamente alheio, molhara seu relógio muito frequentemente enquanto subia a bordo de um barco (e em ocasiões inclusive chegara a cubrir-lhe a cabeça), mas isto sempre lhe causara surpresa e tristeza.
- Oh! - exclamou, metendo os dedos no bolso para o relógio. - Acho que sim.
Pegou o relógio do bolso e o sacudiu, jogando ainda mais água sobre o convés.
- Dê-me, senhor - disse Pullings. - Senhor Appleby, submerja este relógio no azeite de oliva.
Então a porta da cabine se abriu.
- Ah, doutor! - exclamou Jack, que agora parecia mais alto e inspirava muito mais medo. - Bon dia, isto é, boa tarde. É inusual apresentar-se no barco a esta hora… Chegou muito tarde… acho que isto é bastante grave… Sabe que quase nos fez perder a maré, e justamente ante a janela do escritório do almirante? Não viu a bandeira de saída ondeando durante a guarda da manhã? Advirto-lhe que o vi meter em barris e jogar pela borda a alguns homens por menos que isso… por muito menos. Senhor Mowett, já pode mudar de bordo e desdobrar a vela de estai de proa e a bujarrona, por fim. Finalmente! - repetiu com ênfase, olhando para Stephen. - Vá, está empapado! Não caíu ao mar como se fosse um marinheiro de água doce, né?
- Não - respondeu Stephen, que se viu obrigado a abandonar sua atitude humilde. - Foi o mar que fez um movimento ascendente.
- Bem, não deve ficar aí de pé, jorrando água por toda a coberta, pois não é agradável vê-lo assim e poderia pegar um resfriado. Venha se trocar na minha cabine, porque ali está seu baú. Pelo menos seu baú sabe o que é a pontualidade.
- Jack, pesso que me perdoe - disse Stephen, tirando os calções na cabine. - Sinto muito ter chegado tarde, o sinto muitíssimo.
- A pontualidade… - disse o capitão Aubrey para começar um sermão sobre essa virtude tão apreciada na Armada, porém, pensando que seu comportamento era pouco generoso, se interrompeu e apertou a mão de Stephen e continuou: - Demônios! Hei estado em brasas toda a manhã e toda a tarde, por isso falei irrefletidamente. Venha reunir-se comigo na coberta quando tiver se trocado e traga a outra luneta para observar a costa pela última vez antes de bordejar a ilha de Wight.
O dia era luminoso, e as potentes lunetas lhes permitiram ver com nitidez Sally Port e a pousada e sua branca varanda, na que se encontravam Sophie, Diana e Jagiello, que tinha um braço apoiado no de Diana e o outro na tipóia. Podiam ver junto de Sophie uma fila de cabeças em ordem descendente, que provavelmente eram as das crianças, e de vez em quando viam alguns lenços serem agitados.
- Aí está Jagiello - disse Stephen. - Vim em sua carruagem e isso causou o problema.
- Mas Jagiello é um extraordinário auriga.
- Sim, é outro Jehú. Saímos de Londres a considerável velocidade, e Jagiello conduzia ao estilo lituano, inclinado para frente e animando os cavalos com gritos. Durante um tempo as coisas foram bem, e Diana e eu inclusive pudemos conversar com tranqüilidade, já que ele falava em sua língua com os cavalos e estes o entendiam, mas quando os trocamos, a situação também mudou. Ademais, Jagiello não está acostumado a conduzir uma carruagem pela Inglaterra senão pela Lituânia, que é uma aristocracia, e ali a plebe se afastava do caminho; por essa razão, quando o cocheiro do lento carro de Petersfield se negou a dar passagem, desgostou-se tanto que decidiu passar roçando junto dele com o fim de que isso servisse de repreenssão. Mas o cocheiro deu uma forte chicotada no cavalo que de improviso tomou a dianteira e nosso carro desviou de seu caminho, chocou-se contra um poste e perdeu uma roda, ainda que não sofremos danos importantes porque não viramos. Conseguimos que um ferreiro saísse da cama e acendesse sua forja, e após algumas horas tudo estava bem, exceto o braço que Jagiello havia torcido. Raras vezes vi alguém tão aflito. Ele me disse que nunca teria corrido a mais de meio galope soubesse que ia conduzir por uma deplorável democracia. Não achei isso bom, mas ele estava muito envergonhado porque Diana presenciara tudo.
- Os estrangeiros são muito sensíveis - disse Jack. - E Jagiello, no fndo, não é mais que um estrangeiro, o pobre, ainda que seja tão simpático que às vezes um se esquece disso. Suponho que então você tomou as rédeas da carruagem.
- Não. Foi Diana que tomou as rédeas, pois o sol já havia saído. Ademais, a encantadora criatura sabe conduzir uma carruagem de quatro cavalos melhor do que eu.
Agora via claramente pela luneta a encantadora criatura, iluminada pelo sol. Desde que a conhecia, a vira enfrentar circunstâncias adversas, a havia visto esforçar-se para viver com luxo durante sua juventude, sem dinheiro para permitir-se, tentar sair da pobreza e deixar de ser dependente e também suportar amantes teimosos, incômodos, irascíveis e inclusive agressivos, e tudo isso havia mudado seu alegre caráter e a havia convertido em uma pessoa violenta e mordaz; por essa razão, há muito tempo pensava que ela não podia sentir alegria, que era bela, decidida, elegante e inclusive engenhosa, mas não alegre. Agora a situação era diferente. Nunca a havia visto tão contente como nos últimos meses, nem tão bonita, mas não era tão fátuo como para acreditar que o matrimônio havia influído muito na mudança, senão que o atribuía a ela ter formado um lar, estar rodeada de muitas amizades e ter riqueza e comodidades (adorava ser rica); contudo, o fato de ter um esposo visível e tangível havia tido certa influência, ainda que ele não fosse da raça, da família e da religião adequadas nem tivesse o aspecto e os gostos adequados, ainda que não fosse o homem que suas amizades desejavam para ela em outro tempo. Jack contemplava silencioso a Sophie, que o mar afastava dele, e observou como ela se inclinava para seu filho, que estava do seu lado, e o levantava nos braços para que olhasse por cima da grade. Então, por entre as vergas do Ajax e do Bellerophon, viu o menino e suas irmãs dizerem adeus de novo agitando seus lenços e sorriu com ternura, algo que seus companheiros de tripulação raras vezes haviam visto. Stephen continuou seu monólogo interior e, como se alguém lhe acusaesse de um crime, pensou: "Ninguém deve supor que sou a favor de ter filhos. Acho que já há muitas crianças no mundo, que são realmente supérfluas, e, ademais, não desejo nem um pouco perpetuar-me. Não obstante, talvez isso contribua para que Diana alcance a felicidade". Diana também disse adeus agitando seu lenço, como se soubesse que ele a estava olhando, e se virou para Jagiello e lhe indicou o barco com o dedo.
O Agamenon, como uma grande nuvem de lona branca, se aproximava da costa inglesa procedente de Gibraltar e por alguns momentos ocupou o campo visual de Jack e Stephen, e depois de sair dele, Portsmouth já não podia ser visto porque estava oculto atrás de um cabo.
Jack se ergueu, guardou a luneta e olhou para as velas. Elas haviam sido orientadas quase do mesmo modo em que ele o teria feito, o que não era estranho, pois fora ele que havia ensinado o jovem Mowett a governar um barco. Agora o Worcester, com 1.842 toneladas de peso, deslizava pela água apenas a cinco nós de velocidade, quase a máxima que podia alcançar com aquele vento e aquela maré.
- Isto é o último que veremos dos prazeres de terra em longo tempo - disse Stephen.
- Não, não - disse Jack sem prestar muita atenção nem deixar de olhar para o alto da exárcia, pensando que o Worcester era um barco de muita guinda{9} e seus mastaréus eram inadequados para seu estreito casco porque eram muito longos, e que, se passasse tempo suficiente em Plymouth, ele os substituiria por mastaréus de joanete mais curtos e mastaréus de sobrejoanete separados.
Deliberadamente se pôs a pensar na colocação dos hipotéticos mastaréus curtos e os tamboretes que os seguraríam. Isso diminuiria a pressão sobre o instável navio e permitiria que este, que havia sido desenhado para resistir ao impacto das longas ondas do Atlântico, suportasse as tempestades do Mediterrâneo e, sobretudo, o embate do mistral no golfo de Leão, pois como ele sabia muito bem, soprava com fúria e era capaz de formar em menos de uma hora uma perigosa marejada com ondas muito curtas. Passou a pensar nisso para mitigar a dor da partida, que era muito mais forte do que esperava, mas ao notar que a tristeza ainda persistia, subiu de um salto para o parapeito, chamou o contramestre e subiu no alto da exárcia para ver que mudanças deria fazer quando chegassem os mastaréus.
Ainda estava ali, entre o céu e o mar, e se pendurava da exárcia e se deslocava de um lado para outro com a habilidade e os movimentos inconscientes de um orangotago, e ainda discutia questões técnicas com o contramestre, um homem obstinado de barba cinza, tenaz e conservador, quando o tambor começou a tocar Roast Beef of Old England para anunciar a refeição dos oficiais.
Stephen se dirigiu à câmara dos oficiais, uma comprida sala que tinha no centro uma longa mesa e em um dos extremos, estendendo-se de um lado a outro, um dos janelões de popa. Apesar de ter uma fileira de cabines de oficiais de cada lado, ainda restava espaço suficiente para uma dúzia deles com seus respectivos serventes atrás da cadeira e para tantos convidados como desejassem. Mas nesse momento havia muito poucas pessoas ali. Três infantes da marinha, com suas casacas vermelhas, se encontravam junto ao janelão; o oficial de derrota estava de pé no centro da sala, com as mãos apoiadas no respaldo de uma cadeira e abstraído em suas meditações; o contador olhava seu relógio; Pullings e Mowett estavam junto à porta bebendo grogue e, obviamente, esperando por Stephen.
- Ah, o senhor já está aqui, doutor! - exclamou Pullings apertando-lhe a mão. - Chegou na hora exata - acrescentou, tratando de sorrir apesar de que em seu rosto bronzeado se refletia a angústia, e depois continuou: - O pobre Mowett acha que lhe incomodou, senhor, porque falou em tom irritado quando subiu a bordo. Falávamos de brincadeira, senhor, mas pensamos que o senhor, como estava completamente empapado, talvez não tenha notado.
- Oh, não, não deve pensar isso, meu amigo! - exclamou Stephen. - Que estão bebendo?
- Grogue com duas partes de água.
- Dê-me um copo, por favor. A sua saúde, William Mowett! Digam-me, quando virão os outros cavalheiros? Perderam a noção do tempo? Não pude desjejuar e tenho uma fome canina.
- Não virão mais cavalheiros - respondeu Pullings. - A tripulação é mínima, por isso a câmara dos oficiais ficou reduzida à mínima expressão, ah, ah! - acrescentou, rindo com vontade de sua própia idéia. - Venha comigo e lhe apresentarei aos outros imediatamente. Tenho uma surpresa para o senhor e estou ansioso para mostrá-la. Sim, morro de vontade de mostrar-lhe a surpresa.
O senhor Adams, o contador, encontrara-se com Stephen no baile que o comissionado oferecera e disse que estava muito contente de voltar a vê-lo; o senhor Gill, o oficial de derrota, cuja expressão triste contrastava com a expressão alegre que a cara redonda do contador sempre tinha, disse que conhecia o doutor desde que era ajudante do oficial de derrota do Hannibal, e que o doutor lhe havia curado depois da batalha de Algeciras. E depois acrescentou: "Mas éramos tantos que provavelmente não se acordará de mim". O senhor Harris, o capitão de infantaria da marinha, disse que estava encantado de navegar com o doutor Maturin, que seu primo Macdonald lhe havia falado amiúde da habilidade com que lhe havia cortado o antebraço e que nada era tão tranqüilizador como saber que, em caso de que um fosse destroçado, havia a bordo alguém realmente hábil para recompor-lhe. Seus subalternos, tenentes muito jovens e rosados, limitaram-se a cumprimentar Stephen com uma inclinação de cabeça, ainda que sentiam admiração por ele porque tinha fama de que podia levantar os mortos e era o inseparável companheiro de um dos mais afortunados capitães de fragata da Armada Real.
Pullings os instou para que se sentassem à mesa e se sentou na cabeceira e tomou com avidez a sopa, a típica sopa dos oficiais, que, conforme Stephen, era muito adequada para cataplasmas. Então Stephen sentiu um excelente odor que lhe era familiar, ainda que não podia reconhecê-lo, e Pullings perguntou em voz muito alta:
- Já está pronto, Jakes?
- Já está, senhor! - respondeu o doceiro desde a cozinha e um momento depois entrou apressadamente na sala com um pastel dourado.
Pullings cortou imediatamente um pedaço, serviu em um prato e, já sem angústia, sorrindo triunfalmente, deu para Stephen e disse:
- Aqui tem, doutor, esta é minha surpresa. É assim como se deve dar as boas-vindas a bordo.
- Meu Deus! - exclamou Stephen olhando seu pedaço de pastel de ganso e trufas, com mais trufas que ganso. - Obrigado, senhor Pullings. Estou surpreendido, surpreendido e encantado.
- Era isso que eu esperava - disse Pullings.
Contou para os demais que há muito tempo, desde que fora nomeado tenente, sabia que o doutor gostava de trufas, e que por essa razão fora a um bosque próximo a New Forest, o lugar onde residia quando estava em terra, e havia recolhido uma cesta para dar-lhe as boas-vindas a bordo. E acrescentou que Mowett havia composto uma canção.
Então Mowett cantou:
Bem-vindo a bordo, bem-vindo a bordo,
sóbrio como Adán ou bêbado como um lorde.
Coma como Lúculo e beba como um rei,
e enquanto as sereias cantam, sonhe acordado em sua maca.
Bem-vindo, querido doutor, bem-vindo a bordo.
Bem-vindo a bordo, bem-vindo a bordo.
Os demais golpearam a mesa com seus copos repetindo a coro: "Bem-vindo a bordo, bem-vindo a bordo", e depois brindaram por ele e beberam o vinho aguado e de uma intensa cor púrpura que passava por clarete na câmara dos oficiais do Worcester.
Mas o clarete, apesar de estar aguado, não era tão mau como o líquido que chamavam de vinho do porto e que pôs fim à refeição. Provavelmente este também tinha como base o vinagre e a cochinilha, mas Ananias, o vinhateiro de Gosport, acrescentara-lhe melaço, álcool absoluto e acetato de chumbo e lhe pusera uma etiqueta com data falsa e outras flagrantes mentiras.
Stephen e Pullings ainda estavam bebendo quando os outros se foram, e Stephen disse:
- Não queria parecer um desconforme, Tom, mas este barco é exageradamente estreito, incômodo e úmido, e, ademais, lento. O vau que atravessa minha cabine está coberto por uma capa de mofo de duas polegadas de espessura, e choco a cabeça com ele, ainda que não sou um Goliat. Tive cabines melhores nas fragatas que neste barco, apesar de que, se não me equivoco, é nada menos que um navio de linha.
- Nem eu tampouco queria parecer um desconforme - disse Pullings, - e muito menos criticar um barco de cuja tripulação formo parte, mas entre o senhor e eu, doutor, este navio não parece um verdadeiro barco mas um ataúde flutuante, como nós dizemos. E com relação à umidade, não podia esperar-se outra coisa, pois é um dos Quarenta Ladrões. O construiram no estaleiro de Sankey com uma mistura de madeira seca cortada há vinte anos e madeira verde com a seiva aderida ao redor, e o reforçaram com placas de cobre, com placas tão finas que quando uma tormenta o açoita, as balizas se movem para fora, e lhe puseram mastros muito altos para dar-lhe gosto aos que vivem em terra. Ademais, senhor, é de fabricação britânica, e a maioria dos barcos em que eu e o senhor navegamos foram construídos pelos espanhóis e pelos franceses, que, apesar de não serem muito hábeis para governá-los nem para combater com eles, sabem muito bem como fazê-los - afirmou Pullings e, pondo o copo sobre a mesa, acrescentou: - Queria que tivéssemos uma cerveja de Margate aqui, mas a cerveja não é uma bebida nobre.
- Talvez seria mais saudável - disse Stephen. - Vamos fazer escala em Plymouth, não é certo?
- Sim, senhor, para completar a tripulação. O senhor conseguirá os dois ajudantes de que necessita, ainda que não acho que eles gostem de estar aqui quando virem as covachos onde vamos alojá-los, e nós conseguiremos a maior parte de nossa dotação, ao redor de trezentos marinheiros. Oh, doutor, quanto eu gostaria de encontrar alguns marinheiros de primeira! O capitão poderia encher meia fragata com marinheiros de primeira voluntários, mas não virão muitos, pois não se obtêm butins quando se navega em um navio de linha que vai fazer um bloqueio. Ademais, teremos que recrutar outros três tenentes e possivelmente a um capelão também, apesar da oposição do capitão. O almirante Thornton gosta que haja um capelão em cada barco, e talvez tenhamos que levar meia dúzia deles que vão incorporar-se à frota. Parece muito brando para ser almirante da esquadra azul, mas é um almirante combativo e pensa que os marinheiros se animam com a idéia de que terão um funeral como é devido, no qual um verdadeiro pastor pronuncia as palavras rituais. Também necessitamos de guardas-marinhas, mas o capitão jura que desta vez não admitirá a nenhum que não haja navegado desde menino, nem a nenhum que não saiba acostar, rizar, usar o leme, calcular a mudança das marés e medir a distância angular, nem a nenhum que não entenda as matemáticas, porque diz que isto não é um colégio de párvulos flutuante. Ainda que lhe custe acreditar, doutor, é muito conveniente levar a bordo uma dúzia de guardas-marinhas que sejam bons navegantes e sejam capazes de ensinar o trabalho para os marinheiros novos. Acredito que recrutaremos muitos, muitos marinheiros novos, quero dizer, e terão que aprender muito rápido seu ofício, porque os franceses são cada vez mais atrevidos e os norte-americanos já chegam até o canal.
- Não mantemos a Armada francesa bloqueada em Rochefort e Brest?
- Aos seus navios de linha, sim, porém, quando chegam fortes tempestades do leste e nossa esquadra tem que refugiar-se em Torbay, suas fragatas escapolem e devoram nossos mercantes; em minha opinião, uma esquadra deveria vigiar a rota que leva ao estreito de Gibraltar. Também há que ter em conta os corsários, esses malditos répteis que espreitam no golfo de Vizcaya. Mas possivelmente o barco recrutador nos entregue alguns tipos decentes, pois o capitão tem bons amigos em Plymouth. Assim espero. Além disso, nenhum membro da Armada tem tanta habilidade como o capitão para converter um grupo de homens em uma boa tripulação, e uma boa tripulação pode compensar as desvantagens de um barco velho, de costados compridos e retos, que navega mal de bolina; e o barco já tem os canhões. Já posso ver como o capitão o aproxima dos navios franceses colocados em linha que tentam sair de Toulon e como atravessa pelo centro da linha enquanto rugem as baterias dos dois lados! - disse Pullings, um pouco excitado por causa do vinho do porto, que, além da cochinilha e do álcool, tinha muitas impurezas, e depois, alçando a voz, continuou: - Sim, passa entre eles disparando com as baterias dos dois costados… rompe a linha… captura um navio de primeira classe… captura outro…! Então o nomeiam lorde e a Tom Pullings, capitão finalmente!
Nesse momento a porta se abriu, e Pullings voltou para ela seu rosto radiante.
- Sim, senhor, estou certo de que não tardará em chegar a sê-lo - disse Preserved Killick, o dispenseiro do capitão.
Killick era um marinheiro feio, simples e austero, que seguia tendo maneiras toscas apesar dos anos que estava desempenhando seu cargo, mas que, pelo fato de ser um velho companheiro de tripulação seu, podia tratava-o com familiaridade quando não haviam outros oficiais presentes.
- Preserved Killick! - exclamou Stephen, apertando-lhe a mão. - Quanto me alegro em vê-lo! Beba isto, que te fará bem - disse, dando-lhe seu copo.
- Obrigado, senhor - disse Killick e bebeu o vinho de um gole e sem pestanejar, e depois, em tom grave, ainda que sem mudar seus gestos grosseiros, continuou: - O capitão envia suas saldações ao doutor Maturin e diz que ficará encantado de receber-lhe em sua cabine quando tenha desejo de tocar música. E já está afinando seu querido violino, senhor.
CAPÍTULO 2
Numa ampla mesa no castelo de popa do Worcester, estava sentado o primeiro oficial, junto com o escrevente do capitão, o cirurgião, o contador, o contramestre e os outros oficiais de categoria superior, e no lado de estibordo se encontrava um pequeno grupo de homens, quase todos com expressão angustiada e vestidos com andrajos, ainda que cheirassem bem porque foram esfregados com sabão até brilharem no barco recrutador. Alguns daqueles homens, contudo, pareciam sentir-se muito avontade, e quando Pullings gritou: "O seguinte!", um deles, um marinheiro de meia idade, avançou até a mesa e cumprimentou tocando sua testa com os nós dos dedos e permaneceu ali movendo ligeiramente os pés. Estava vestido de forma extravagante, com calças largas, uma casaca azul com botões dourados rota e um lenço vermelho ao redor do pescoço, e parecia ter tido uma briga na noite anterior. Pullings o olhou com grande satisfação e disse:
- Bem, Phelps, veio se juntar à nossa carga?
- Isso mesmo, senhor - respondeu e, voltando-se imediatamente para o escrevente, disse: - Ebenezer Phelps. Nasci em Dock em 1769 e vivo em Gorham's Rents, Dock. Tenho trinta e quatro anos no mar, e no último barco onde servi, era encarregado da âncora, foi no Wheel'em Along.
- E anteriormente esteve no Circe e no Venerável - disse Pullings, - onde era muito conhecido por seu condenado mau caráter. Classifique-o como marinheiro de primeira. Phelps, é melhor que troque de roupa antes que o capitão o veja. O seguinte!
Um homem pálido e zambeta foi conduzido até ali por um corpulento ajudante do contramestre. Chamava-se William Old e usava calções e um velho abrigo de cocheiro.
- Qual era seu ofício, Old? - perguntou Pullings amavelmente.
- Não gosta de alardear, senhor - respondeu Old, recobrando a confiança, - mas era um excelente, um magnífico artesão de peltre.
Houve um momentâneo silêncio. O escrevente levantou a vista de seu livro e franziu o cenho, e o ajudante do contramestre, com voz potente e rouca, advertiu:
- Cuide de seu tom, amigo.
- Não me dedicava a fazer objetos grandes, como tinas e banheiras, senão pequenos. Mas o negócio do peltre, como todos, decaiu, e…
- Já navegou alguma vez? - inquiriu Pullings.
- Uma vez estive em Margate, senhor.
- Classifique-o como marinheiro inexperto, se o doutor permitir - disse Pullings. - Poderia ser útil como ajudante do armeiro. O seguinte!
- Oh, senhor! - exclamou o falsificador a ponto de ser afastado dali pelo ajudante do contramestre. - Senhor, por favor, poderia Sua Senhoria dar-me a gratificação agora? Minha mulher está esperando no cais com as crianças.
- Explique-lhe como a gratificação é paga, Jobling - disse Pullings ao ajudante do contramestre. - O seguinte!
Agora era a vez dos homens recrutados, entre os quais havia certo número de bons marinheiros. Alguns haviam sido recrutados por Mowett em alto mar, nos barcos mercantes que regressavam à Inglaterra, e outros, pelas patrulhas de recrutamento na costa. O primeiro deles, um homem chamado Yeats, não parecia um marinheiro mas um próspero jardineiro, e era de fato, pois, como disse ao tenente, tinha a seu cargo um viveiro de meio acre coberto de cristais.
Também disse que seu negócio ia bem e que o perderia se fosse alistado à força, já que sua mulher não sabia tocá-lo e estava grávida. Era evidente que sentia uma grande tristeza, e também que falava com sinceridade.
- Por que tem essa âncora desenhada na mão? - perguntou Pullings, assinalando uma tatuagem azul e vermelho. - Já navegou alguma vez, não negue.
Yeats respondeu que sim, que havia navegado no Hermione cinco meses, enjoado quase todo o tempo, e que quando o barco regressara a Hamoaze e a tripulação fora despedida, adentrara no país o máximo possível. Acrescentou que não voltara a aproximar-se da margem até na quinta-feira anterior, quando as patrulhas de recrutamento o capturaram no momento em que cruzava a ponte para visitar um cliente importante em Saltash, e repetiu que perderia seu negócio se não regressasse para sua casa.
- Bem, o sinto por você, Yeats - disse Pullings, - mas a lei é a lei: todo homem que já navegou deve ser alistado.
Em casos como esse, com o fim de dar exemplo à tripulação, alguns oficiais teriam falado da necessidade de tripulantes que tinha a Armada e dito que servir ao país e protegê-lo era um dever e um ato patriótico; outros ficariam de mau humor e até mesmo furiosos, mas Pullings, sacodindo a cabeça, limitou-se a dizer:
- Vá ver o doutor.
Yeats olhou desesperadamente para os que estavam ali sentados, juntou as mãos e avançou sem dizer uma palavra mais, muito abatido para falar.
Quando já estava atrás da antepara de tela, Stephen lhe ordenou que tirasse a roupa, apalpou seu abdomem e as virilhas e disse:
- O senhor carrega muito peso em seu trabalho.
- Oh, não, senhor! - murmurou Yeats com desalento. - Nada mais pesado…
- Não tente contradizer-me - replicou Stephen secamente. - Fale só quando tiver que responder minhas perguntas, entendeu?
- Peço que me desculpe, senhor - suplicou Yeats, fechando os olhos.
- O senhor carrega muito peso e aqui vejo os sinais de uma hérnia incipiente. Teremos que recusá-lo. Ainda não é nada sério, mas não deve tomar muito vinho nem cerveja e deve deixar de beber aguardente. Também deve deixar o horrível vício de fumar e fazer uma sangria três vezes por ano.
No compartimento da grande cabine de popa que servia de ante-sala e sala de música e era o confortável refúgio do capitão, este caminhava de um lado para outro enquanto ditava uma carta para um velho escrevente, um homem de confiança que seu amigo o comissionado lhe enviara.
- "O capitão Aubrey apresenta seus respeitos ao lorde Alton e lamenta muito que o Worcester não seja apropriado para um jovem cadete da idade de seu filho, Sua Senhoria, pois não há mestre a bordo e sua missão atual o impede…", impede-me de fazer o papel de babá, maldito seja. Por favor, senhor Simpson, ponha essa excelente frase que lhe ocorreu antes e que usou com os outros. "Contudo, se quando o menino completar doze anos, for mandado um ano para uma escola onde ensinem bem as matemáticas e possa aprender os rudimentos da trigonometria e da navegação e, ademais, a gramática inglesa e a francesa, o capitão Aubrey ficará encantado de atender à Sua Senhoria se lhe derem o comando de um barco mais adequado. "
- Lorde Alton tem muita influência no Governo, sabe, senhor? - disse o escrevente, que o conhecia há muitos anos.
- Não duvido que tenha - disse Jack - mas tampouco duvido que logo encontrará um capitão mais dócil do que eu. Responda ao senhor Jameson mais ou menos o mesmo, ainda que neste caso o garoto tem demasiada idade. Pode ser que saiba muito grego e latim, mas não sabe o que são um logarítmo e uma sonda, e, além disso, poucos garotos que embarcam pela primeira vez aos quinze anos chegam a acostumar-se com mar. Qual é o próximo assunto? Diga-me, sabe algo do sobrinho do almirante Brown?
- Bem, senhor, eu o acho um guarda-marinha desajeitado. O último capitão a cujas ordens serviu o mandou regressar para terra, e me contaram que suspendeu o exame de tenente em Somerset.
- Sim, eu também acho. Eu o vi cometer uma grande torpeza quando virava a iole do Colossus porque estava bêbado. Contudo, acho que devo aceitá-lo pelo fato de seu tio ter sido muito bom comigo quando eu era um garoto. Trataremos de despertá-lo, e é possível que consiga ser aprovado no exame em Gibraltar. Talvez o almirante lhe designe um barco por consideração a seu tio, já que ambos foram companheiros de tripulação nos tempos em que a Espanha era uma grande potência naval - disse Jack, olhando para fora pelo janelão de popa e vendo em sua mente o Hamoaze a mais de vinte anos atrás, tão cheio de barcos de guerra como agora, e a ele mesmo, radiante como o sol ao amanhecer por sua recente ascensão a tenente, transportando dois oficiais para a margem em uma falua. - Eu mesmo escreverei a carta. Com relação aos jovens Savage e Maitland, podem alistar-se. E agora essa carta semi-oficial para o almirante Bowyer fazendo referência ao caso confidencial e delicado dos tenentes restantes. A única coisa que sei do senhor Collins e do senhor Whiting é que são muito jovens e estão no final da lista, e quanto ao senhor Somers, evitarei alistá-lo se puder.
- O honorável senhor Somers - disse o senhor Simpson em tom solene.
- Sem dúvida o é, mas também é um mau navegante e um folgado. Acho que é muito rico para sentir-se à vontade aqui e para que seus companheiros se sintam bem em sua companhia e, ademais, se embebeda facilmente e não tem a sensatez suficiente para deixar de beber. Imagine-o responsável pela guarda quando há mau tempo ou ao comando das lanchas em um ataque surpresa… Isso significaria pôr em perigo a vida dos marinheiros. Não estou de acordo que se utilize a Armada para sua própia conveniência, como se fosse um estabelecimento público ou um lugar para vadios. Devemos escrever essa carta com muito cuidado e em tom respeitoso, insistindo em que não seria correto alistá-lo no lugar de um dos dois cavalheiros que escolhemos e que, conforme entendi, já se encontram no porto.
- O senhor Widgery, do estaleiro, quer falar com o senhor, senhor - anunciou Killick.
- Ah, é! - exclamou Jack. - Creio que queira falar-me dos mastaréus. Senhor Simpson, seria conveniente que pedisse conselho ao comissionado antes de escrever a carta, e gostaria que me trouxesse o rascunho esta tarde. Não devemos perder nem um minuto, pois essa raposa pode apresentar-se aqui de um momento para outro e então será muito mais difícil desfazer-se dele. E, por favor, diga à senhora Fanshaw, com as frases apropiadas, que terei muito gosto em jantar com ela e o comissionado no domingo. Antes de ir, beba um copo de vinho com o senhor Widgery e comigo.
- O senhor é muito amável, senhor. Antes que me esqueça, o capitão Fanshaw lhe roga que inscreva no rol o neto de sua irmã antes de que termine o recrutamento. Ele se chama Henry Meadows, tem oito anos e é um jovem promissor.
- Certamente - disse Jack. - Que classificação lhe darei? Acho que servente do capitão é tão boa como qualquer outra. Killick, diga ao senhor Widgery que entre e traga o vinho de Madeira.
O estrondo do canhonaço da tarde se propagou por Hamoaze, Catwater e o Sound; as luzes começaram a brilhar em Plymouth, Dock e na cidade flutuante formada pelo conjunto de barcos de guerra, na qual cada um parecia um bairro diferente. A luz da cabine grande do Worcester brilhava mais que a maioria, pois o capitão havia aceso uma lâmpada de Argand para examinar uma grande quantidade de documentos que tinha em cima da mesa: informes dos barcos recrutadores, pedidos do carpinteiro, do condestável e do contramestre, listas de provisões do Serviço de Aprovisionamento, e a lista provisória dos que formariam os turnos de guarda, confeccionada com a ajuda do primeiro oficial depois de várias horas de trabalho conjunto. Mas na parte superior daquela pilha de papéis bem ordenados, encontravam-se algumas partituras manuscritas, e ao lado, seu violino. E estava lendo precisamente as partituras quando Stephen entrou na cabine.
- Ah, já está aqui, Stephen! - exclamou Jack. - Killick! Killick! Traga as torradas com queijo, ouviu? Stephen, alegro-me muito de vê-lo.
- Indubtavelmente, parece muito alegre. Passou um bom dia?
- Muito bom, obrigado, muito bom. Tenho que dizer que, pela primeira vez na vida, o comissionado me tratou como um príncipe, e a dotação que nos corresponde já está quase completa. Ademais, ele me prometeu que me enviará a metade dos tripulantes do Skate amanhã, quando forem licenciados.
- Os tripulantes desse pequeno barco que chegou atrás de nós ontem, esse que tinha uma alheta de tubarão atada à proa? Sei que está ansioso para ter mais tripulantes, mas não acho que consiga muitos nessa chapeleira flutuante.
- Para ser exato, meu amigo, é um bergantim, e ainda que seus tripulantes não sejam numerosos, permaneceram juntos por quatro anos para levar a cabo uma missão nas Antilhas sob o comando do jovem Hall, um excelente marinheiro. Partiparam de muitas ações com armas, e acredito que todos podem ser classificados como marinheiros de primeira. Somos muito afortunados por ter podido pegá-los, eu lhe asseguro.
- Talvez os tripulantes do Skate se considerem menos afortunados, já que depois de passar quatro anos longe de seus amigos, têm que voltar a embarcar sem vê-los.
- É duro, muito duro, mas a guerra é dura e cruel - disse Jack, sacodindo a cabeça, e pouco depois, com o rosto radiante outra vez, acrescentou: - E o encarregado do estaleiro foi muito amável e concordou em proporcionar-me mastaréus curtos e separados dos mastaréus de sobrejoanete, pois concorda comigo em que fazem diminuir a pressão. Ele me autorizou a pegá-los amanhã do Invincible.
- As torradas - disse Killick e, olhando com raiva para os papéis, acrescentou: - Ainda que eu as poria no refeitório porque nesta mesa não há nem uma polegada de espaço.
- Na verdade - disse Jack quando jantavam, - que eu lembre, nunca recrutara uma tripulação tão rápido e tão satisfatoriamente. Já temos um terço dos marinheiros que necessitamos, incluídos os de primeira e os de segunda, sem contar os do Skate, e a maioria dos homens restantes parecem fortes e prometem ser bons tripulantes.
- Entre os homens que eu examinei, havia muitos tipos selvagens e valentões - disse Stephen, que estava aborrecido porque não concordava com o recrutamento forçoso e tinha vontade de contradizer-lhe.
- Certamente que sempre se encontram tipos raros entre os homens recrutados por ordem dos magistrados, mas desta vez só há alguns poucos ladrões incorrigíveis e um parricida, que foi obrigado a vir para a Armada por não ter nada o que alegar em sua defesa, mas não poderá reincidir porque não encontrará a outro pai a bordo. E o mesmo ocorre com os caçadores furtivos. Considerando-os em conjunto, estou muito satisfeito, e não tenho dúvida de que os velhos e os novos, como diz a Bíblia, formarão uma tripulação bastante boa quando nos reunamos com o navio insígnia. Para animá-los, trouxe a bordo uma considerável quantidade de pólvora que comprei, todo o de um fabricante de fogos de artifício que morreu faz pouco, uma verdadeira pechinca. Me informei de que estava a venda pelo oficial que inspeciona o rol, que quer casar-se com sua viúva, e ainda que está mesclada com um pouco de auripigmento e outras coisas, o encarregado do Serviço de Material de Guerra assegura que é boa. O que impede que minha felicidade seja completa é a ameaça da vinda desses pastores e a falta de tenentes - confessou Jack, pondo a nuvem de assuntos oficiais em um canto de sua mente mais afastado ainda. - Dirigir a tripulação requer muito trabalho, e agora grande parte dele descansa sobre os ombros de Pullings. Necessitamos que cheguem mais tenentes imediatamente. Pullings está esgotado, e os próximos dias serão realmente duros.
- Efetivamente, está esgotado, e, devido à falta de descanso, cada vez mais irritável. Ficou furioso e se voltou contra mim porque recuzei um punhado de homens. Seu afã por conseguir tripulantes é desmedido, insaciável, inumano. Esta noite devo dar-lhe láudano, ou seja, tintura de ópio, para que possa descansar. Acho que com uma dose de setenta e cinco gotas amanhã voltará a ser o Thomas Pullings amável e complacente que todos conhecemos; se não, terei que dar-lhe a pílula azul{10} ou a poção negra.
- Se temos sorte, os outros virão amanhã e aliviarão sua carga, e, ademais, o comissionado embarcará os párocos num mercante. Conforme entendi, seus ajudantes chegaram esta tarde. São de seu agrado?
- Não duvido que sejam cirurgiões competentes, como o indicam seus certificados, tão competentes como cabe esperar que sejam os homens dessa profissão - disse Stephen, que não era cirurgião mas médico e achava que aqueles (que em geral eram homens de valor se fossem considerados individualmente) não haviam esquecido ainda sua relação com os barbeiros. - Porém, ainda que fossem Podalirio e Macaón, preferiria estar sozinho.
- Não os acha adequados? - perguntou Jack. - Tratarei que sejam transferidos se não os aprova.
- É muito amável, mas a verdade é que não me desgostam nem o velho nem o jovem, o que me desgosta é a subordinação. Quase todos levamos dentro um capataz e temos tendência a exercer a autoridade quando nos a outorgam, destruindo assim a relação natural que há entre cada um de nós e nossos semelhantes, e isto tem graves consequências para ambas as partes. Se acabarmos com a subordinação, a tirania acabará. Sem subordinação não teríamos Neros, Tamerlões nem Bonapartes.
- Bobeiras! - exclamou Jack. - A subordinação faz parte da ordem natural. No céu há subordinação: os tronos e as dominações estão na frente dos potestades e dos principados, dos arcanjos e dos anjos ordinários. E na Armada também há. Você veio buscar a anarquia no lugar errado, meu amigo.
- Seja como for, prefiro fazer a travessia sozinho - disse Stephen. - contudo, com seiscentos homens apinhados neste barco inseguro e cheio de mofo, alguns com parasitas, outros com sífilis e outros nos quais possivelmente o tifo esteja incubando, necessitarei de ajuda diariamente, para não falar dos dias em que houver um combate, que Deus não o queira. E, na verdade, como é provável que me ausente durante algum tempo, não economizei esforços para conseguir um ajudante com amplos conhecimentos de medicina, muitos anos de experiência e boas referências. Porém, diga-me uma coisa, por que se opõe a transportar esses clérigos? Acredito que já não é tão débil para acreditar em superstições.
- Certamente que não - Jack apressou-se a dizer e deu seu argumento de sempre: - É pelos marinheiros. Ademais - continuou depois de uma pausa - com os pastores a bordo não se pode dizer obscenidades porque não é correto.
- Mas você nunca diz obscenidades - assinalou Stephen.
Isso era certo, isto é, quase totalmente certo. Jack não era um falso moralista, mas sim um homem que preferia a ação às palavras, os fatos às idéias, e ainda que tinha um pequeno repertório de histórias obscenas para contar no final das refeições, quando a imaginação era mais viva e abundavam os pensamentos lascivos, em geral não as recordava ou deixava esse tema.
- Bem…! - exclamou Jack e perguntou: - Conhece a Bach?
- Que Bach?
- Bach, o que viveu em Londres.
- Não.
- Eu sim. Escreveu algumas partituras para meu tio Fisher, e seu discípulo fez cópias perfetas delas, mas se perderam há muitos anos. Na última vez que estive na cidade, decidi tratar de encontrar as obras originais e fui ver o seu discípulo, que herdou todas as partituras que o maestro tinha em sua biblioteca e pôs uma loja por sua conta. Buscamos entre os papéis… Quanta desordem havia! Ninguém seria capaz de imaginar! E eu que sempre pensei que os editores eram organizados como abelhas…! Buscamos durante horas, mas não encontramos as partituras de meu tio. Contudo, o importante é que Bach tinha um pai…
- Oh, Jack, que coisa mais interessante! Porém, agora que penso, acho que conheço outros homens que se assemelham a ele.
- Seu pai, o velho Bach, já sabe, tinha montes de partituras escritas na despensa.
- Um lugar um pouco comum para compor música. Mas os pássaros cantam nas árvores, não é certo?; então, por que os alemães antediluvianos não iriam compor música nas despensas?
- Quero dizer que as partituras estavam guardadas na despensa. Os ratos, as baratas e as cozinheiras estragaram algumas cantatas e uma extensa obra inspirada na Paixão conforme são Marcos, escritas todas em alto-alemão; contudo, as partituras que estavam na parte de abaixo se achavam em boas condições, assim que trrouxe várias, umas escritas para violoncelo para você, outras escritas para violino para mim e outras para tocar em dueto. São peças estranhas, suítes e fugas características do século passado, às vezes tão arrevesadas que diferem muito do gosto moderno, mas lhe asseguro que têm essência, Stephen. Hei tocado esta suíte em dó muitas vezes, e o tema é tão elaborado que ainda não pude executá-lo com soltura. Gostaria de ouvi-lo interpretado por alguém que o tocasse realmente bem; por exemplo, Viotti.
Stephen leu a suíte para violoncelo que tinha na mão, cantarolando e cantando em voz baixa.
- Tantantán - tantantán, tintintín - tintintín, pom, pom, pom. Isto requer uma mão muito delicada, senão soará como uma dança para pastranos. Oh, que intervalo de quarta…! Como se deve mover o arco para executá-lo?
- Quer que tentemos tocar a sonata em ré ainda que nos custe suores consegui-lo? - perguntou Jack. - Será como desenredar uma meada.
- Não me ocorre uma forma melhor de desenredar uma meada.
Ambos não eram mais que interessados pela música que tocavam bastante bem, e agora moviam os dedos com torpeza porque não haviam tido muito tempo para praticar durante os últimos anos e haviam sido feridos (Jack fora ferido pelos norte-americanos com uma bala de mosquete, e Stephen, pelos franceses em um interrogatório), assim que em ocasiões tinham que indicar as notas assobiando. Como repetiram várias vezes a difícil sonata, a noite chegou a ser insuportável, e Killick ficou tão furioso que terminou estourando.
- Agora começam outra vez com o tantantán, tintintín, tantantán, tintintín - disse ao cozinheiro do capitão. - Parece que se hão passado a maldita noite com dor nas tripas. As torradas com queijo devem estar coladas ao prato como cola, mas não me atrevo a entrar para pegá-las. Em toda a noite não tocaram nada do início até o fim!
Talvez não, mas depois de executar uma passagem exageradamente arrevesada e difícil, lograram tocar o último movimento com desenvoltura e encerrá-lo triunfalmente, assim que o repetiram uma e outra vez. E o capitão sentia ainda a alegria produzida pela música quando chegou ao castelo de popa no começo da luminosa manhã para ver como subiam a bordo os mastaréus curtos e os mastaréus de sobrejoanete. Pouco depois se abordou com o navio a falua do Tamar, onde vinha uma vintena de tripulantes do Skate, provavelmente muito competentes, com expressão triste e resignada. Depois chegou a barcaça de Plymouth, que trazia a bordo dois jovens rosados com semblante grave, muito bem barbeados e vestidos com uniformes idênticos, os melhores que tinham. A barcaça engatou o croque no pescante central, os jovens subiram pelo costado por ordem de antiguidade (a diferença era de duas semanas completas), cumprimentaram os oficiais ao chegarem ao castelo de popa e depois olharam ao seu redor procurando o oficial de guarda. Mas não viram um homem de porte majestoso, com uma dragona no ombro, caminhando de um lado para outro com a luneta debaixo do braço, senão a um magro e alto, com as calças manchadas de breu e uma casaca curta e muito suja, que se afastou de um grupo de marinheiros que estavam trabalhando ao pé do traquete e avançou para eles. Pullings tinha uma expressão austera e os olhos avermelhados, pois, além de fazer as tarefas que lhe correspondiam, estava encarregado da guarda desde que o Worcester zarpara de Portsmouth. O jovem que estava na frente tirou o chapéu e, em tom humilde, disse:
- Collins se apresentando, senhor, com sua permissão.
- Whiting se apresentando, senhor, com sua permissão - acrescentou o outro jovem.
- Bem-vindos, cavalheiros - disse Pullings. - Não lhes dou a mão porque está manchada de graxa. Chegam no momento oportuno, pois há que fazer um monte de coisas antes de zarparmos. Não há nem um minuto a perder.
Nesse momento Jack explicava ao condestável que a pólvora comprada que estava mesclada com auripigmento estava nos barris marcados com X e a que estava mesclada com pó de licopódio, cânfora ou estrôncio, nos marcados com XX; contudo, observou com satisfação que, efetivamente, os jovens não haviam perdido nem um minuto. Tiraram seus elegantes uniformes quando seus baús chegaram a bordo e já estavam ajudando a passar a ponta do mastaréu do joanete de proa através da cruzeta para inseri-lo no tamborete.
- Pode ser que não seja pólvora apropiada para um combate, mas servirá para fazer práticas. Encha cartuchos suficientes para que as baterias façam uma dúzia de séries. Gostaria de comprovar a habilidade da tripulação quando zarparmos, talvez amanhã mesmo, durante a maré da tarde.
- Uma dúzia de séries, sim, senhor - disse o condestável com tom de aprovação, já que o capitão Aubrey pertencia à escola de Douglas e Collingwood, que acreditavam que o principal objetivo de um barco era aproximar-se do inimigo até que seus disparos pudessem alcançá-lo e então disparar os canhões com grande rapidez e precisão, e Borrell estava totalmente de acordo com esta idéia.
Borrell se foi para a santa-bárbara com seus ajudantes para encher os cartuchos, e Jack, com um alegre sorriso, observou como erguiam o mastaréu do joanete de proa. Havia ordem naquele grupo de homens aparentemente caótico e naquela maranha de paus e cabos, e Tom Pullings controlava perfeitamente a operação. Então Jack baixou a vista e seu sorriso desapareceu: vira que um bote cheio de pastores se aproximava do navio e vinha seguido por outro onde estavam uma senhora vestida de luto e um menino.
- Pensava que poderia persuadi-la a mandar o menino a um colégio - disse Jack para Stephen depois do jantar, enquanto tocavam uma composição de Scarlatti relativamente simples que ambos conheciam muito bem. - Tratei de convencê-la de que um viagem deste tipo, um simples parêntese, como você disse outro dia, sem outro fim além de substituir outro barco e passar alguns quantos meses fazendo o bloqueio a Toulon, não oferecia boas perspectivas nem seria proveitoso para seu filho. Ademais, disse que havia muitos outros capitães que iam realizar longas missões e levavam mestres em seus barcos, e lhe dei o nome de meia dúzia deles. Confiava em que esta vez não levaria a bordo a ninguém que navegasse pela primeira vez nem a nenhum filhote de pombo, pois eles não me serão úteis nem eu lhes serei útil. Mas disse que não devia recusar seu pedido e chorou copiosamente, eu te asseguro. Nunca em minha vida me sentira tão mau.
- A senhora Calamy é a viúva de um oficial, se não me engano.
- Sim. Edward Calamy e eu fomos companheiros de tripulação no Theseus, pouco antes de que o ascendessem a capitão de navio e lhe designaram o Atalante. Depois lhe deram o comando do Rochester, um navio de 74 canhões exatamente como este, que afundou com toda a tripulação em meio do terrível temporal do outono de 1808. Se tivesse dito a ela que nosso barco saiu do mesmo estaleiro, teria levado seu filhote.
- Pobre filhote! Pullings o viu chorando no gradil e o consolou, e o menino o levou abaixo e lhe deu um bom pedaço de pudim de passas. Isto é uma prova de que o senhor Calamy tem bom coração. Espero que sobreviva, apesar de ser tão pequeno e débil.
- Acredito que sobreviverá, a menos que se afogue ou o matem em um combate. Na verdade, na Armada estamos preparados para criar pombinhos, e, ademais, a senhora Borrell cuidará dele. Mas quero que saiba uma coisa, Stephen: na Armada não estamos preparados para atender a um maldito grupo de clérigos, isto é, a todo um sínodo. Não vêm seis pastores senão sete, sete! Louvado seja Deus! Espero que o vento siga sendo favorável durante três marés mais, porque assim poderíamos zarpar antes de que nos mandem a metade dos bispos do condado.
Mas o vento não seguiu sendo favorável. Pouco depois de que os tripulantes do Worcester colocaram os novos mastaréus curtos, amarraram com rapidez os amantilhos, completaram a aguada e receberam a visita do comandante do porto, formou-se uma marejada tão forte que fez o navio cabecear e balançar violentamente, apesar de estar em um lugar resguardado como Hamoaze; uma marejada que pressagiava as cinzentas rajadas de chuva que logo traria consigo o furioso vento do oeste. Por causa da intensidade do vento, que aumentava dia a dia, o Sound ficou vazio, os barcos de guerra permaneceram amarrados em Hamoaze e os mercantes, em Catwater, a esquadra que fazia o bloqueio a Brest se refugiou em Torbay e inumeráveis restos de barcos naufragados chegaram à costa. Quase todos pertenciam a barcos que naufragaram há muito tempo, muitos deles ingleses, franceses, espanhóis e holandeses; contudo, alguns procediam de barcos afundados recentemente, a maioria deles ingleses. Isto se devia a que naquela época havia mais mercantes ingleses que estrangeiros expostos para serem afundados e ao fato da Armada Real obrigar seus navios a navegar em todas as estações, durante todo o ano, provocando assim seu rápido desgaste, e tinha que manter muitos deles em serviço quando já não eram aptos para navegar, ainda que se construíam novos barcos na medida em que o permitiam os escassos recursos disponíveis. Durante aquele ano os ingleses perderam treze barcos, sem contar os que os norte-americanos e os franceses haviam apresado.
Mas este atraso pelo menos permitiu aos homens do Worcester conseguir provisões que inclusive nos barcos mais ordenados costumavam encomendar-se de última hora ou não se recordavam até que se deixava de avistar terra, como, por exemplo, o sabão e o papel mata-borrão. Também permitiu que mais pessoas visitassem o capitão Aubrey e lhe fizessem petições, e que chegassem a bordo mais cartas para a esquadra do almirante Thornton e para o Worcester. Neste último grupo havia algumas dirigidas ao capitão, cartas compridas, confusas e pouco alentadoras de seus advogados, e depois de lê-las Jack tinha uma expressão preocupada e parecia mais velho.
- Não gosto de permanecer aqui sem fazer nada - disse. - Isto é como uma falta de pontualidade forçosa. E o que mais me incomoda é que Sophie poderia ter vindo comigo e passar aqui uma semana ou mais, e Diana também. Bem, pelo menos o atraso serviu para chegar a conhecer seus companheiros. Devem estar muito apertados abaixo, mas espero que todos sejam agradáveis e instruídos e que se encontre à vontade em sua companhia.
Jack não havia jantado ainda na câmara dos oficiais e não conhecia os oficiais novos. Estivera muito atarefado, pois tivera que redistribuir o carregamento do Worcester para aumentar sua estabilidade, e, ademais, em parte porque esse era o costume e em parte porque desejava esquecer os assuntos legais que lhe preocupavam, jantara com outros capitães quase todos os dias, e, na maioria dos casos, as jantas haviam sido uma oportunidade de beber muito e um meio bastante efetivo de eliminar as preocupações durante um temp. Também viajara ao interior do país para apresentar seus respeitos a lady Thornton e perguntar-lhe se queria mandar algo para o almirante por sua mediação.
- Agora que o penso - continuou - um deles, o escocês, não é um pastor mas um professor de ética. Seu destino é Mahón, pois, ao que parece, necessitam de seus serviços ali. Stephen, que diferença há entre as ciências morais e a sua?
- Bem, as ciências naturais não se ocupam da moral, nem das virtudes, nem dos vícios, nem têm relação com a metafísica. O fato de que o esterno do dodo tenha quilha e o do avestruz e de outras aves de sua ordem esteja desprovido dela não está associado com a moral, nem tampouco a dissolução do ouro em água régia. Naturalmente, nós fazemos hipóteses, que, em alguns casos, evidenciam um grande nível intelectual, mas sempre temos a esperança de que encontraremos as provas que as demostrem, e isto não pertence ao campo dos moralistas. Talvez poderia dizer-se que o moralista não persegue os conhecimentos senão a sabedoria, e, de fato, não se ocupa do que é objeto de consciência mas do que é objeto de percepção intuitiva, algo que não podemos conhecer. Mas é duvidoso se perseguir a sabedoria mas é mais frutífero do que perseguir a felicidade. Os poucos moralistas que conheci não parecem ter tido muito êxito em nenhuma das duas coisas, enquanto que alguns naturalistas, como sir Humphrey Davy…
Stephen continuou falando e terminou sua longa, longa oração, mas um bom momento antes de acabar lhe pareceu que Jack Aubrey estava ideando uma piada.
- Então, suponho que você e sir Humphrey poderiam ser chamados de imorais - disse com um sorriso tão amplo que sua cara ruborizou e entre suas pálpebras só ficou uma pequena abertura por onde se viam cintilar seus olhos.
- É possível que haja alguns tipos curtos de alcance que tratem de fazer um grosseiro jogo de palavras como esse - disse Stephen. - E também é possível que haja alguns de poucas luzes que, quando o álcool lhes aviva muito o engenho, chamem ao professor Graham de antinatural.
O capitão Aubrey permaneceu em silêncio alguns momentos, esforçando-se para conter o riso (poucos homens desfrutavam mais de suas própias idéias), e depois, sorrindo ainda, disse:
- Bem, de toda forma, espero que seja um agradável companheiro. Imagino que um cientista antinatural e um imoral poderão passar horas discutindo. Isso será o assombro dos marinheiros, ah, ah, ah!
- Apenas trocamos uma dúzia de palavras. Acho que é reservado, e um pouco surdo. E ainda que ainda não pude formar uma opinião sobre ele, suponho que será um homem douto, já que vai ocupar uma cátedra em uma respeitável universidade. Acho que vi seu nome em uma recente edição da Ética de Nicómaco.
- E o que acha dos outros, dos verdadeiros pastores?
Geralmente, eles não compartilhavam suas opiniões sobre os companheiros de Stephen, os homens que compartiam com ele a câmara dos oficiais. Jack não dissera, por exemplo, que estava muito desgostoso porque lhe enviaram o tenente Somers em vez de um dos dois que solicitara, e tampouco que estava convencido de que o jovem se encontrava em Plymouth há dias e, contudo, só se apresentara a bordo quando havia terminado a dura tarefa de preparar o Worcester para zarpar. Mas os pastores não pertenciam à tripulação aliás eram passageiros, e se podia falar deles, assim que Stephen fez uma breve descrição de todos. Um era um pároco de um condado do oeste da Inglaterra, um homem enfermo que tinha a esperança de recobrar a saúde no Mediterrâneo, onde se encontrava seu primo ao comando do Andromache. E com respeito a isso, Stephen comentou: "Espero que possa chegar ali. Poucas vezes vi casos de caquexia como o seu". Os outros eram clérigos sem benefício. Dois deles haviam trabalhado de professor ajudante em escolas para jovens nobres, mas haviam pensado que qualquer outra vida, inclusive a vida a bordo de um barco, era melhor que essa; outros dois haviam tentado viver de sua caneta durante longo tempo, ainda que sem êxito, e estavam exageradamente magros e andrajosos; outro vinha das Antilhas e estava arruinado porque havia inventado um aparelho defecador de duplo fundo.
- O aparelho serve para purificar açúcar, e, ao que parece, só é necessário investir um pouco mais de dinheiro em sua construção para fazer-se de ouro, de modo que qualquer cavalheiro que possa empregar alguns centenas de guinéus nisso obterá grandes benefícios em muito pouco tempo. Porém, meu amigo, vamos atacar a peça do pobre Scarlatti ou nos vamos ficar sentados aqui até o dia do Juízo, como se a falta de vento nos detivesse, igual que a nossa pobre matraca?
- Não percamos nem um minuto mais - disse Jack, pegando o arco. - Comecemos o ataque.
Durante os dias cinzentos que se seguiram, a chuva não cessou nem um momento e o vento soprou com grande intensidade, provocando uma marejada tão forte que o Worcester, no resguardado ancoradouro, cabeceiou e se balançou com inusitada violência, provocando que a maioria dos casacas negras deixassem de se sentar na mesa da câmara dos oficiais e que já não chegassem visitas ao barco. Mas na terça-feira pela tarde o vento rolou para leste o suficiente para que o Worcester fosse a reboque até o Sound. Ali o capitão ordenou aos que não eram marinheiros verdadeiros a descer para a coberta inferior e aos marinheiros para permanecer no convés e largar todas as velas de estai e puxar as braças para orientar as gáveas de maneira que ficassem esticadas. Então o navio fez rumou para a ponta Penlee, dobrou-a navegando tão próximo da costa que todos os que estavam no castelo de popa contiveram a respiração e Stephen se maldice a si mesmo, e depois virou até que ter o vento pela alheta de bombordo, largou as maiores e, já com todo o velame desdobrado, entrou no canal. Era o primeiro navio que saía de Plymouth desde que a tempestade havia começado, sem contar o guarda-costas.
- O capitão tem muita pressa - disse Somers para Mowett.
Nesse momento Jack estava observando a borrada silhueta do cabo de Rame através da chuva e pouco depois se foi abaixo apressadamente.
- Espere até que termine de passar revista - disse Mowett. - Faremos práticas esta noite, e terá que disparar seus canhões muito rápido para poder agradá-lo.
- Bem, isso não me assusta, porque acho que sei como fazer apressar meus homens - replicou Somers.
Efetivamente, Jack tinha muita pressa, não só porque em todo momento desejava estar navegando (sobretudo agora, porque ficaria fora do alcance dos advogados e, ademais, evitaria que lhe carregassem com um comboio), mas também porque sabia que havia muitas probabilidades de que apresasse um barco francês, já que a esquadra de Brest se retirara de seu posto e algum corsário poderia ter aproveitado sua ausência e o vento do leste para sair ao oceano com o propósito de capturar mercantes britânicos. E se tivesse sorte, poderia inclusive aprisionar uma potente fragata francesa, pois, ainda que todas as que conhecia eram mais velozes que o Worcester (que, além de sofrer de falta de beleza e de resposta às manobras, era lento), em uma descarga do navio, as balas disparadas pelos canhões longos somente tinham um peso conjunto de 721 libras, o que permitia inutilizar uma fragata que se encontrasse a considerável distância, desde que apontassem bem os canhões e os disparassem com rapidez.
Tinha muita pressa, mas também alegria. Demorara para zarpar muito menos que em outras ocasiões, apesar do tempo que perdera trocando os mastaréus do navio por outros que lhe agradavam mais; graças à amabilidade de Fanshaw e ao esforço de Mowett, tinha uma tripulação de 613 homens, só 27 a menos que o número de tripulantes que oficialmente correspondiam ao Worcester, e nela havia maior quantidade de marinheiros verdadeiros do que esperava; e ainda que por causa de sua fraqueza iam a bordo do navio, como era habitual, um grupo de cadetes muito jovens, vários guardas-marinhas inúteis e um tenente que não lhe era simpático, parecia que, em conjunto, as coisas sairam bem.
Desceu para a coberta inferior, acompanhado do primeiro oficial e do condestável, e sentiu de novo aquele conhecido fedor, uma mistura do odor do limo que cobria as amarras da âncora, o da água da sentina, o da madeira mofada e o do suor dos marinheiros que não se haviam lavado ao terminar seu duro trabalho. Ali dormiam apertados mais de quinhentos marinheiros, e como havia sido impossível abrir as portalós e levar as macas para a coberta superior durante mais de uma semana, o fedor era mais forte que o habitual ainda que só restavam no recinto um punhado de homens de terra adentro, que estavam completamente enjoados e pareciam mortos, e alguns poucos faxineiros. Mas Jack não se fixou neles, nem tampouco no fedor, que fazia parte de sua vida desde a infância. Tinha a atenção posta nas principais peças de artilharia do navio, os imponentes canhões de 32 libras que formavam uma fila de proa a popa junto ao costado. Pesavam em conjunto três toneladas e, ainda que estavam atados fortemente, moviam-se uma polegada mais ou menos com o balanço, produzindo rangidos e chiados. Como o Worcester tinha um escasso número de tripulantes até chegar ali, Jack não pudera disparar os canhões da coberta inferior, mas confiava em que poderia fazê-lo ao final do dia porque o tempo estava melhorando. A artilharia era sua paixão, e não descansaria tranqüilo até que pelo menos começasse o lento e difícil processo de adequar a rapidez e a precisão com que disparavam os artilheiros às de seu própio padrão. Caminhou ao longo da fila com uma lanterna na mão, escutando atentamente o que Borrell dizia de cada um dos canhões, que já tinham ao lado a isca, um atacante, um frasco de pólvora, um esfregão, uma cunha e várias alavancas, e o plano de Pullings para formar as brigadas de artilheiros provisórios. Uma vez mais agradeceu à Providência por haver-lhe dado oficiais de toda confiança e um bom número de excelentes marinheiros de barcos de guerra, entre os quais poderia encontrar pelo menos um bom artilheiro mais velho e um bom carregador para cada brigada.
- Bem, talvez tenhamos a oportunidade de praticar esta noite - disse Jack no final da inspeção. - Espero que assim seja. Podemos permitir-nos fazer muitas séries, pois, como a pólvora de Dock era uma pechinca, comprei quase toda a que a viúva tinha no armazém. Já encheu muitos cartuchos, senhor Borrell?
- Oh, sim, senhor! Mas não pude evitar misturá-la, porque há barris que não levam marca e outros que levam duas ou três. Não tem grãos muito finos nem está totalmente seca, e, ademais, a de alguns barris cheirava como se estivesse preparada há muito tempo e tinha gosto ruim. Mas não é minha intenção criticar, senhor.
- Acredito de que não, condestável, mas espero que não prove muita que contenha antimônio. Dizem que o antimônio é irritante. Quanta umidade há aqui! - acrescentou ao olhar para o vau situado justo em cima de sua cabeça, que mantinha inclinada, e meteu o dedo na grossa capa de mofo que o cobria. - Necessitamos, por assim dizer, esquentar o ambiente.
- Mas boa parte da umidade penetra pelos escovéns - disse Pullings, desejoso de encontrar alguma virtude em seu barco. - O contramestre e seus ajudantes já estão pondo mais bolsas de lona alcatroada. Em geral, entra pouca água pelas junturas, senhor, menos da que eu esperava com estas ondas. Ademais, com os novos mastaréus tem muito menos dificuldade para navegar, e quando balança os pescantes não submergem.
- Bem, estas ondas não o virarão - disse Jack - porque se foi feito com algum propósito, esse propósito é navegar pelo Atlântico. Mas não sei como navegará entre as ondas do Mediterrâneo, que são altas e curtas e se sucedem com grande rapidez. Será interessante averiguar isso, e também o efeito que o antimônio produz, quer dizer, o efeito que produz nos canhões, senhor Borrell. Acredito de que um homem de sua constituição terá que comer dois galões para que lhe faça estrago.
- Por favor, doutor, que efeito produz o antimônio? - perguntou quando chegou ao castelo de popa.
- É um diaforético, um expectorante e um colagogo suave. Ouviu falar da pílula de antimônio eterna, né?
- Não.
- É um dos remédios mais econômicos que se conhecem. Uma só pílula serve para muitos membros de uma família, porque, depois de tomada, é expulsa e pode ser reutilizada. Conheço o caso de uma que passou de geração em geração, provavelmente desde a época do própio Paracelso. Contudo, deve ser usada com cautela. Zwingerius diz que é como a espada de Iskander Bey, ou seja, que é boa ou má e dura ou branda conforme quem a prescreva e quem a tome. É um bom remédio se for administrado corretamente a um homem forte, se não pode provocar vômitos contínuos que não é possível controlar. Precisamente, dizem que seu nome significa "veneno de monge".
- Isso eu havia ouvido - disse Jack. - Porém, em realidade, me referia ao efeito que teria nos canhões se a pólvora tiver um pouco.
- Desgraçadamente, não sei nada disso, mas, fazendo uma analogia, poderíamos dizer que os canhões expulsarão as balas com extraordinária força.
- Logo saberemos - disse Jack. - Senhor Pullings, acredito que devemos chamar a todos para seus postos.
Os tripulantes do Worcester sabiam que algo ia acontecer, e não lhes surpreendeu muito ver o capitão avançar para a proa pelo corrimão depois que terminaram de fazer os preparativos de combate e sacaram e guardaram os canhões várias vezes, enquanto todos permaneciam silenciosos, tensos e expectantes em seus postos de combate, os oficiais e os guardas-marinhas junto de suas brigadas e os grumetes servidores de pólvora atrás de cada canhão, vigiando os cartuchos, enquanto a fumaça da mecha de combustão lenta, com seu aroma embriagador, propagava-se pela coberta, e o navio, pairava no canal cinzento e deserto, balançando suavemente entre as ondas. Tampouco lhes surpreendeu muito, ao chegar até o canhão de proa de estibordo, em cuja brigada o artilheiro mais velho era seu própio timoneiro, Barret Bonden, ver que o capitão pegava seu relógio e dizia:
- Três séries. Disparar quando subir no balanço.
Então se ouviu o conhecido estrépito e se viram as línguas de fogo que o acompanhavam, e os artilheiros, em meio da nuvem de fumaça que costumava se formar depois, realizaram com afã, mas ordenadamente, as habituais tarefas de apenas alguns segundos entre as descargas: limpar os canhões, voltar a carregá-los com a pólvora de treino, atacar a carga, colocar a bala, elevar o canhão e pôr-lhe a isca. Esta brigada era a que tinha que estabelecer o padrão com o qual se comparariam as demais, e, em geral, sua rapidez não causou surpresa senão profunda admiração; contudo, todos os tripulantes, de proa a popa, ficaram assombrados quando Bonden, ao cabo de cinqüenta e cinco segundos, aproximou a mecha da isca da segunda carga e o canhão fez um enorme estrondo, seguido de um penetrante chiado que parecia antinatural, e pela boca saiu um potente feixe de luz branca e brilhante, no qual se destacavam os negros fragmentos da carga.
Foi um milagre que a assombrada brigada não fosse destroçada pelo canhão em seu retrocesso, e Jack teve que puxar o cabo do aparelho para evitar que este voltasse a mover-se para fora sem controle quando o costado descesse no balanço. Estava com a mesma expressão de assombro que os homens que o rodeavam, mas imediatamente a trocou por outra serena como a de um Deus do Olimpo, mais apropiada para um capitão, e quando Bonden pegou o cabo e murmurou: "Sinto muito, senhor, não esperava…", começou a contar os segundos outra vez e lhe advertiu:
- Apresse-se, Bonden, que está perdendo tempo.
Os artilheiros fizeram o que puderam, seguiram adiante com valentia, mas já não estavam bem coordenados, e, ademais, seus movimentos tinham um ritmo diferente, assim que passaram dois minutos completos antes de que lograssem subir o canhão, pôr-lhe a isca e apontá-lo. Então, em uma atmosfera tensa, Bonden se inclinou sobre o canhão com uma expressão assustada que resultava cômica em seu rosto curtido e marcado pelas batalhas, e seus companheiros se afastaram tanto do canhão como lhes permitia o decoro, ou ainda mais. Por fim desceu a mão, e esta vez o canhão expulsou uma labareda de cor vermelha intensa que produziu fumaça também vermelha, que causou uma detonação potente, grave e musical, e a disciplina se relaxou em toda a coberta e os artilheiros riram alegremente.
- Silêncio de proa a popa! - exclamou Jack, dando-lhe uma bofetada em um grumete servidor de pólvora que se retorcia de riso, ainda que depois, com voz trêmula, acrescentou: - Parem de rir! Guardem este canhão! Que dispare o número três quando o costado subir no balanço!
Depois do primeiro disparo do canhão número três, que produziu um som apagado porque havia sido carregado anteriormente com a pólvora regulamentar, brotaram labaredas de cor verde e azul intensos. Como ao longo do navio, em ambas as cobertas, repetiram-se as labaredas de cores excelentes, as detonações curiosas, jamais ouvidas antes, e os risos dos artilheiros (ainda que contidos com grande esforço), o comportamento de todas as brigadas foi um total desastre do ponto de vista do tempo.
- Estas hão sido as práticas de artilharia mais divertidas que hei visto em minha vida - disse Jack para Stephen na cabine de popa. - Quanto daria para que houvesse visto a cara de Bonden! Parecia uma tia solteirona com um rojão aceso na mão! E contribuiram para unir a tripulação tanto como uma batalha real. Como os marinheiros riam quando penduravam de novo as macas na coberta inferior! Conseguiremos que nosso barco, apesar de seus defeitos, seja um barco feliz. Se este vento se mantiver, eu o aproximarei da costa amanhã pela noite para que os homens rompam alguns cristais.
Durante seu longa carreira, o capitão Aubrey comprovara que nenhuma prática com os canhões era tão efetiva como a que consistia em disparar em um alvo fixo em terra, sobretudo se este tinha janelas. Até que os artilheiros estarem adestrados, desperdiçavam muitas balas nos combates, e ainda que disparar em barris colocados a certa distância pelos botes era uma forma de praticar muito boa (infinitamente melhor que sacar e guardar os canhões sem dispará-los, como faziam em muitos barcos), não proporcionava a emoção de enfrentar-se a um perigo real nem à enorme satisfação de destroçar uma propriedade valiosa e bem defendida; por isso, desde que as circunstâncias permitissem, aproximava seu barco da costa inimiga para atacar com seus canhões alguns dos numerosos postos pequenos e baterias que haviam sido estabelecidos ao longo do litoral para proteger os portos, os estuários e qualquer outro lugar onde pudessem desembarcar os aliados. Agora que o vento havia rolado para o norte e tudo parecia indicar que continuaria nessa direção, depois de determinar a posição do navio mediante duas medições lunares precisas, Jack mudou o rumo de tal maneira que avistariam a ilha de Groix pouco antes da alvorada. Durante a guarda de meia se formou uma espessa névoa que não permitia ver a lua nem muito menos as estrelas, mas ele estava seguro de que seus cálculos eram exatos, pois os havia comprovado por meio de seus três cronômetros, e pensava que no trajeto provavelmente encontrariam um barco corsário que houvesse escapado de Brest ou mesmo uma fragata com patente de corso, e que, em caso de não encontrar nenhum, ao menos poderia proporcionar a sua tripulação uma ampla seleção de postos para atacar.
Pouco antes de que soassem as duas badaladas na guarda da alvorada, Jack subiu ao convés. Ainda não haviam chamado os faxineiros, e a rotina noturna continuaria ainda durante certo tempo antes de que começasse a limpeza das cobertas e se ouvisse o ruído dos fragmentos pequenos e grandes de pedra arenito. As ondas haviam diminuído de tamanho, e como a ilha de Ouessant, que já estava longe pela popa, ainda servia de proteção para o navio, o vento, que chegava pela alheta de estibordo, não fazia mais que um monótono burburinho entre a exárcia. O navio agora só navegava com as maiores e as gáveas desdobradas. Ainda que Pullings já não fazia guarda desde a chegada dos outros tenentes, agora estava no corrimão de bombordo falando com Mowett, e ambos olhavam para o sudeste por suas lunetas de noite.
- Bom dia, cavalheiros - disse Jack.
- Bom dia, senhor - disse Pullings. - Precisamente agora estávamos falando do senhor. Plaice, o serviola do castelo, achou que viu uma luz, e então Mowett mandou um marinheiro de vista aguda ao tope do mastro, mas ele não pôde distinguir nada. Às vezes achamos ver algo quando o costado do barco se eleva no balanço, e nos perguntávamos se deveríamos avisar ao senhor. Não pode ser o farol da ilha de Groix.
Jack pegou uma luneta e tratou de ver através dela durante um tempo.
- Maldita névoa! - murmurou, esfregando os olhos, e voltou a olhar pela luneta.
Viraram o relógio de areia de meia hora; soaram duas badaladas; os sentinelas gritaram: "Tudo bem!"; o guarda-marinha de guarda recolheu a barquilha e informou: "Cinco nós e uma braça, senhor, com sua permissão", e escreveu com giz em uma tabela; um ajudante do carpinteiro informou que havia quatro pés e quatro polegadas de água na sentina (entrava muita água no Worcester); Mowett ordenou: "Troca de timoneiro. Que os marinheiros do castelo substituam aos de popa nas bombas. Chamem os faxineiros".
- Ali, senhor! - exclamou Pullings. - Não, mais perto.
Nesse momento o serviola do castelo e o do tope do mastro gritaram:
- Barco pelo través de bombordo!
A noite estava a ponto de extinguir-se e já havia começado a formar claros na névoa, por onde se via um farol de popa, uma luz no tope de um mastro e, ademais, a fantasmal silhueta de um barco que estava a menos de duas milhas de distância e navegava pela alheta em direção sul. Jack teve apenas tempo suficiente para ver que seus tripulantes arriavam a joanete de proa antes que o barco desaparecesse.
- Atenção todos os marinheiros! - exclamou. - apaguem os faróis. Arriem a carangueja, a joanete maior, a joanete de proa, a estai do trinquete e a vela de estai. Despertem o oficial de derrota.
Então olhou a tabuinha com os dados da barquilha e desceu apressadamente para a cabine de trabalho do oficial de derrota, onde havia várias cartas marítimas abertas e estava marcado o rumo do Worcester até a última vez que se determinara sua posição. Logo, fedorento e com o cabelo em desordem, chegou correndo Gill, que era um homem taciturno, mas um excelente navegante e um especialista na navegação pelo canal, e juntos determinaram a posição do navio. Lorient ficava a estibordo, e a ilha de Groix poderia ser vista pela amura de estibordo quando amanhecesse. E se o tempo melhorasse, poderiam ver inclusive a luz de seu farol antes do amanhecer.
- É um barco importante, senhor?
- Acho que Sim, senhor Gill - respondeu Jack e saiu da cabine.
Na realidade, acreditava que era. Contudo, não queria desafiar o destino dizendo que a embarcação que vira tinha que ser uma potente fragata ou mesmo algo muito melhor, um barco de linha que tratava de entrar furtivamente em Rochefort, porém, em qualquer caso, um barco de guerra, e, certamente, francês; não queria perder a grande vantagem que o Worcester tinha sobre a esquadra que fazia o bloqueio.
As cobertas se encheram rapidamente de marinheiros lerdos, aturdidos e a meio vestir que foram tirados bruscamente de seu descanso de poucas horas e que, contudo, reanimaram-se quando ouviram que havia um barco à vista.
- É um barco de duas cobertas, senhor - disse Pullings com um alegre sorriso. - Seus homens arriaram a joanete maior pouco antes de que voltasse a desaparecer.
- Muito bem, senhor Pullings - disse Jack. - Faça os preparativos de combate. Mande todos ocuparem seus postos silenciosamente, mas sem toque de tambor nem gritos.
Estava claro que o barco desconhecido, que de vez em quando já se via borradamente através da névoa, diminuíra vela porque ia guiar-se pela luz do farol de Groix, e isso era uma prova de que provavelmente se dirigia para Rochefort ou para Burdeos, pois se seu destino fosse Lorient já teria virado a proa para a costa há uma hora.
A luz apareceu no céu pelo leste, e Jack se ficou no convés olhando pela luneta e pensando no que devia fazer em meio de um estranho silêncio, pois os artilheiros, que já rodeavam os canhões, sussurravam, estes não faziam ruído ao sair pelas portalós e as ordens eram dadas em voz baixa. Então ouviu um ruído que vinha debaixo, o ruído que faziam o carpinteiro e seus ajudantes ao derrubar as cabines para deixar livre o espaço entre a proa e a popa, e depois o grito de um pastor que despertaram inoportunamente saiu pela escotilha, que alguns marinheiros estavam cobrindo com pedaços de feltro umedecido.
Também havia a possibilidade de que o barco desconhecido fosse um navio carregado de apetrechos ou um transporte, e em qualquer dos dois casos se dirigiria para Lorient quando visse o Worcester. Jack notou com grande preocupação que o barco navegava a uma considerável velocidade só com as maiores e as gáveas desdobradas, o que indicava que tinha os fundos limpos, e provavelmente avantajaria ao Worcester quando estivesse com todas as velas abertas. Mas se era o tipo de barco que esperava e se tinha intenção de lutar, devia arrastá-lo até um lugar ao sul de Lorient no qual tivesse o porto a sotavento, porque ali, com esse vento, seria impossível chegar até ele e pôr-se sob a proteção de suas potentes baterias. Sem dúvida, isso significaria jogar bocha com os franceses durante um tempo, e ainda que não fossem os melhores navegantes do mundo, a maioria deles eram excelentes artilheiros, e sua tripulação, em troca, era inexperta. Então seu coração deu um pulo, pois recordou que da última vez que se haviam carregado os canhões não havia ordenado pôr cartuchos para um combate real no lugar dos cartuchos para as práticas, porém, apesar de que isso ia em contra de suas normas, não tinha importância porque havia observado que a pólvora de cores lançava as balas com tanta força como a melhor pólvora do Rei. Apesar disso, tão logo o barco desconhecido se afastasse uma milha a mais para sotavento e estivesse muito longe para chegar a Lorient, ele se aproximaria dele. Tinha uma enorme vantagem, porque seu navio estava preparado para a luta. Os marinheiros já haviam feito os preparativos de combate e sacado os canhões e agora todos se encontravam em coberta, e Pullings já havia colocado os botalós das alas e as vergas sobrejoanetes. Seria estranho que as corridas e a desordem posteriores à surpresa que haveria no barco francês durassem menos de sete ou oito minutos, o tempo que necessitava para adiantar aquela milha; seria estranho que não lograsse abordar-se com o barco francês, sobretudo porque a ilha e os perigosos bancos de areia que havia em suas imediações se interpunham em sua rota.
- Senhor Whiting, prepare a bandeira francesa e uma mensagem com o número setenta e sete. Também prepare outras bandeiras de sinais para dar uma resposta qualquer ao seu sinal secreto e deixe que se atrapalhem nas adriças.
A névoa se dissipou, e ali estava o barco desconhecido, um navio de 74 canhões, alto, robusto e bonito. Provavelmente fosse o Jemmapes, porém, fosse o que fosse, não era um navio que evitava a batalha. Não se notava movimento a bordo do navio francês, e isso era estranho, já que o Worcester percorria agora a preciosa distância que separava aquele de Lorient e se aproximava com rapidez pela alheta de estibordo. De repente, Jack se deu conta de que todos os tripulantes franceses olhavam atentamente para a ilha de Groix, esperando ver a luz de seu farol. Então pôde ver-se claramente a luz, que pestanejava, e os tripulantes largaram as joanetes, e enquanto caçavam as escotas, alguém avistou o Worcester. Imediatamente Jack ouviu o toque de vários trompetes a bordo do navio francês e o estrondoso redobre de um tambor e, como seus olhos estavam acostumados à penumbra, inclusive sem luneta pôde ver como os tripulantes corriam de um lado para outro do convés. Depois de alguns momentos, foi içada a bandeira no navio francês e este virou para interceptar a rota do Worcester.
- Vire trinta graus - ordenou Jack ao oficial de derrota, que governava o navio, porque isso lhes faria deslocar-se mais para o sul. - Senhor Whiting, ice a bandeira francesa, por favor. Senhor Pullings, coloque os faróis para a batalha.
No navio francês também se colocaram faróis para a batalha e pelas portalós iluminadas assomaram os canhões. Depois o navio se identificou e fez o sinal secreto. A resposta do Worcester foi lenta e evasiva e não logrou enganar ao inimigo mais que escassos momentos; contudo, durante esses escassos momentos, ambos navios se deslocaram um estádio{11} mais para o sul, pelo que, dentro de muito pouco tempo, o Jemmapes (pois o navio francês era o Jemmapes) já não poderia chegar a Lorient navegando de bolina. Mas seu capitão não havia dado mostras de que esse era seu desejo, pelo contrário, pois se afastava da costa com valentia e era obvio que estava decidido a entrar em combate o quanto antes. Parecia que havia ouvido a máxima de Nelson: "Não importam as táticas, o que importa é atacar com decisão".
Em outro tempo Jack teria se aproximado do Jemmapes de uma forma muito parecida, mas agora queria estar completamente seguro de qual seria seu comportamento. Com o propósito de que o navio francês se situasse a barlavento, fez mudar de bordo o Worcester outros vinte graus, e passou a observar como os dois navios avançavam, que sulcavam o mar formando grandes ondas de proa. Viu que os tripulantes do Jemmapes subiam as macas para o convés e que no convés e no castelo havia grande agitação, e pensou que se ele estivesse no lugar de seu capitão, se estivesse ao comando de um barco com excelentes características para a navegação e com os fundos limpos, teria esperado até que seus homens já estivessem posicionados; contudo, o navio francês avançava o mais rápido que podia e Jack percebeu de que era mais veloz do que pensara, extraordinariamente veloz. Depois de percorrer a milha crucial, aproveitando a vantagem que tinha sobre o navio francês, por ter o vento a seu favor e estar preparado, devia aproximar-se dele com a maior rapidez possível, devia aproximar-se e passar para a abordagem. Nunca havia visto falhar isto. Na coberta do Worcester já estavam colocados e abertos os baús que continham as pistolas, os alfanjes e os terríveis machados de abordagem.
Jack viu uma labareda no canhão de proa do navio francês, depois uma nuvem de fumaça que se moveu para a proa e depois uma branca fonte que brotou das águas cinzas a bastante distância da amura de estibordo do Worcester.
- Ice nossa bandeira, senhor Whiting - ordenou, enfocando o castelo de popa do inimigo com sua luneta, e depois gritou: - Atenção cesto da gávea do maior! Icem o galhardete!
Viu que o Jemmapes começava a mudar de bordo para que a bateria de seu costado ficasse de frente para seu navio. O viu mudar de bordo pouco a pouco até que lançou uma devastadora descarga que só um barco novo e robusto podia disparar e ficou oculto até a altura das gáveas por uma nuvem de fumaça. Os canhões haviam sido apontados corretamente; contudo, os artilheiros haviam disparado um pouco antes de que o costado alcançasse a altura máxima no balanço, e as balas caíram muito juntas, mas no mar, a cem jardas do Worcester. Uma dúzia delas chegaram a bordo e destroçaram o cúter azul, abriram um buraco na vela maior e desprenderam algumas polias, que caíram na coberta justo atrás de Jack (seus homens haviam tido tempo de pôr a rede protetora). Ouviram-se gritos no castelo e no convés, e muitos olharam para popa esperando a ordem de abrir fogo. Na borda de seu campo visual viu Stephen de pé na escada do castelo de popa, com camisa de dormir e calções. Raras vezes o doutor Maturin ia para a enfermaria para ocupar seu posto antes que houvessem feridos para atender. Mas Jack Aubrey não se encontrava com disposição de conversar porque estava abstraído em suas reflexões, concentrado na análise de todos os aspectos da iminente batalha e tratava de determinar as possíveis variáveis, o ponto em que os dois rumos iam convergir, a solução dos inumeráveis problemas que precederíam ao momento culminante do combate, quando todos estariam expectantes. Nessas circunstâncias, nas quais Stephen vira seu amigo muitas vezes, Jack parecia um estranho, alguém alheio ao que lhe rodeava e muito distinto do companheiro alegre e não muito sensato que conhecia tão bem, pois tinha uma expressão austera, ainda que atrás dela se observava uma imensa alegria e estava sereno, ainda que seu olhar refletia vitalidade e determinação.
Havia passado um minuto. Provavelmente os franceses já estavam atacando a carga nos canhões para disparar a segunda descarga. Teria que suportar duas ou três descargas mais, e disparadas a curta distância, antes de poder levar a cabo seu plano, mas uma tripulação cheia de energia detestava não poder responder quando lhe disparavam.
- Uma mais! - gritou Jack. - Uma mais e depois lhes darão o troco! Esperem a ordem de fazer fogo e então disparem nos cestos das gáveas sem parar! Não errem nem um disparo!
Por todo o barco se começaram a ouvir gemidos, e depois, o rugido dos canhões do barco francês e, quase no mesmo momento, o estrépito produzido pelas balas ao alcançar o casco do Worcester, os pedaços de madeira desprendidos que voavam pelo convés e os pedaços de aparelho que caíam do alto da exárcia.
- Não faça isso, jovem, porque sua cabeça poderia ficar na trajetória de uma bala - disse Jack ao pequeno Calamy, que se dobrara quando uma bala atravessava a coberta.
Olhou ao seu ao redor e comprovou que não havia danos importantes. Ia dar a ordem de disparar, porém, nesse momento, um dos punhos da vela maior, que estava esburacado, partiu.
- Aplacar a vela! Aplacar a vela! - gritou, e imediatamente a vela deixou de dar golpes. - Mudar de bordo quarenta e cinco graus a estibordo!
- Quarenta e cinco graus a estibordo, sim senhor - disse o timoneiro.
Então o Worcester, descrevendo uma ampla curva, colocou-se com os canhões de frente para o navio francês. Como as ondas chegavam pela proa, tinha um forte cabeceio, mas não se balançava.
- Esperem a ordem! Apontem para os cestos das gáveas! Não errem nenhum disparo! Ao ouvir a ordem, disparem de proa a popa!
O vento sussurrava na exárcia. Provavelmente os franceses estavam sacando outra vez os canhões, e Jack pensava que esse era o momento de surpreendê-los. Devia disparar uma bateria para pô-los nervosos e ocultar seu navio atrás de uma nuvem de fumaça.
- Apontem! Fogo! - gritou.
Os canhões fizeram fogo um atrás do outro de proa a popa, com um ruído estrondoso, e uma rajada de vento formou redemoinhos na densa fumaça vermelha, verde, azul e laranja com manchas cinzas sobre as que se destacavam chamas fantasmais de vivas cores. Jack saltou para o parapeito e tentou ver através da nuvem irreal, mas era impenetrável. E a resposta do Jemmapes não chegava.
- Que diabos passa? - perguntou em voz alta enquanto às suas costas os artilheiros se apressavam em sacar os canhões depois de limpá-los, carregá-los e atacar a carga, e os grumetes traziam pólvora da santa-bárbara.
A fumaça finalmente se dissipou, e pôde ver-se que o Jemmapes estava situado com a proa para eles e tencionava afastar-se com rapidez, aparentemente sem ter sofrido mais estrago que o ocasionado por um pequeno fogo de chamas verdes que ardia na popa. Seu capitão, assombrado e horrorizado por ter visto aquelas armas secretas novas, virou para Lorient, e seus homens já estavam desdobrando mais velame.
Os canhões já estavam de novo fora e inclinados pora cima quinze graus. Então os artilheiros, com fúria e dando gritos, dispararam uma devastadora descarga na popa desprotegida. Mas nem o impacto de algumas balas no casco do navio francês fizeram que este diminuisse sua velocidade nem o fato de que os canhões do Worcester lançassem agora labaredas normais induziu seu capitão a detê-lo. E quando Jack gritou: "Leme a estibordo!", para começar a persegui-lo, já havia adiantado um quarto de milha, e no castelo do Worcester alguns tontos começaram a dar vivas e a gritar: "Está fugindo! Está fugindo! Nós vencemos!".
O Worcester orçou, e imediatamente alguns marinheiros puxaram as braças para orientar as velas e outros subiram ao alto da exárcia para largar as velas de estai superiores; contudo, a velocidade que alcançava navegando de bolina era de dois nós a menos que a de sua presa porque não podia desdobrar a vela maior e, ademais, porque sua quilha não formava com a direção do vento um ângulo tão pequeno como o de sua presa senão quinze graus maior. Quando o Jemmapes se havia afastado tanto que o canhão de proa apenas podia alcançá-lo, Jack mandou dar uma guinada e disparar a última descarga, uma furiosa e terrível descarga no limite do alcance da bateria.
- Guardem os canhões! Senhor Gill, rumo sul-sudoeste. Abram todo o velame - ordenou, e depois, ao dar-se conta de que era dia e o sol assomava por cima de Lorient, acrescentou: - apaguem os faróis.
Enquanto falava havia notado que no rosto de Pullings se refletia a decepção. Na realidade, se houvessem seguido disparando no início por cinco minutos, o Jemmapes não teria a possibilidade de chegar a Lorient, e, ademais, pela proximidade da ilha de Groix, com seus perigosos arrecifes, e da costa a sotavento, e com o vento que soprava, podiam ter obrigado o Jemmapes a lutar pico a pico, tanto se seguisse esse rumo como se não. Cinco minutos mais e Pullings teria se convertido em um cadáver ou em um capitão, pois em um combate em que se conseguia a vitória frente a um rival equiparável em força, um primeiro oficial que sobrevivia era ascendido. Essa era a única possibilidade de Pullings de conseguir uma ascensão, de sair da comprida lista de tenentes, já que não desfrutava do favor de ninguém nem tinha influências; só dependia da sorte e da habilidade de seu superior. Jack Aubrey se equivocara ao julgar a situação, e talvez Pullings não voltasse a ter uma oportunidade como essa em toda a sua vida profissional. Jack sentiu uma tristeza enorme, muito maior que a que costumava sentir ao final de uma batalha real, e, alçando a vista para o punho da vela maior movido pelo vento, perguntou em tom grave:
- Quantas baixas tivemos, senhor Pullings?
- Não houve mortos, senhor. Só há três homens com feridas produzidas por pedaços de madeira desprendidos e um com o pé destroçado. E o canhão número sete da coberta inferior foi desmontado. Mas sinto muito dizer-lhe, sinto muitíssimo dizer-lhe, senhor, que o doutor está ferido.
CAPÍTULO 3
O doutor Maturin lutara muitas vezes contra o inimigo no mar, e ainda que tenha sido capturado por duas vezes e seu barco tenha naufragado em uma ocasião, nunca se ferira, pois, como era cirurgião, passava a maior parte do tempo debaixo da linha de flutuação, protegido dos pedaços de madeira desprendidos, das balas e da metralha. Mas desta vez sofrera três feridas. Primeiro uma polia o derrubara, depois um pedaço de olmo pontiagudo que se desprendera do mastaréu de mezena havia rasgado boa parte do seu couro cabeludo, e por último uma lasca de 18 polegadas com a ponta dentada, uma das que haviam sido arrancadas por uma bala de 32 libras e haviam caído em forma de chuva sobre o castelo de popa, havia traspassado seus dois pés, perfurando até as solas de suas sapatilhas de riscas. As feridas não eram sérias, mas sim espetaculares, e Stephen deixara atrás de si um rastro de sangue contínuo quando o levaram abaixo. Ali seus ajudantes (Lewis, o mais velho, era muito hábil no manejo da agulha) o costuraram imediatamente, e, apesar da dor ser persistente e muito aguda, o láudano, a tintura de ópio, que era seu remédio favorito, conseguia acalmá-lo. Agora Stephen podia tomar o láudano sem remorsos, e como tinha uma grande capacidade para tolerá-lo porque abusara dele durante muito tempo, chegava a beber até uma pinta. Contudo, não foram as feridas nem a perda de sangue nem a dor o que o molestou, senão o incessante fluxo de visitantes.
Seus ajudantes passavam com ele apenas alguns momentos para trocar-lhe as vendas e o deixavam sozinho o resto do tempo por várias razões. Em primeiro lugar, porque era um paciente teimoso e inclusive violento quando o tratavam de administrar remédios conforme um critério diferente do seu, e resultava perigoso; em segundo lugar, porque era superior deles na hierarquia naval e no campo da medicina, devido a ser médico, ter publicado prestigiosos trabalhos sobre as doenças dos marinheiros e era muito apreciado pela Associação para a Ajuda aos Enfermos e Feridos; e por último, porque não era mais coerente que o resto dos homens e, apesar de suas idéias liberais, comportava-se como um petulante e um déspota quando tentavam dar uma poção de pescado pela manhã cedo. Contudo, ele não tinha autoridade sobre os passageiros do Worcester e se comportava com eles como exigiam as normas sociais. O dever desses homens era visitar os enfermos a menos que eles também estivessem doentes (o pobre Davis era incapaz de pôr-se em pé quando começava o mais leve balanço ou cabeceio), e como não tinham outra coisa que fazer, se revezavam para fazer-lhe companhia a Stephen na cabine que servia de refeitório para o capitão, onde estava pendurada sua maca, enquanto passavam pelo golfo de Vizcaya e bordejavam a costa de Portugal quase sem vento e com o mar tão tranqüilo como poucas vezes ficava. Mas não eram os únicos, já que seus velhos companheiros de tripulação Pullings e Mowett o visitavam todos os dias, e eram muito bem acolhidos. Os outros oficiais também iam ver-lhe de vez em quando e, aproximando-se dele na ponta dos pés, sugeriam remédios em voz baixa e em tom grave, e alguns deles, que lhe haviam tratado com respeito e lhe haviam escutado com atenção quando estava bem, agora tinham a audácia de dar-lhe conselhos. E Killick se aproximava repetidamente com algum reconstituinte feito pela esposa do condestável, como caldo ou posset, ou com algum refogado para fortificar o sangue. Se não fosse pelo bendito ópio, que lhe permitia controlar sua ira boa parte do tempo, aqueles homens que lhe desejavam o bem teriam conseguido metê-lo em um caixão (formado pela sua maca e duas balas colocadas aos seus pés) antes de que avistassem o cabo de Rocha, porque tinha uma grande resistência à dor, mas não à chateação, e o contador e o capitão de infantaria da marinha (que eram desconhecidos), e dois dos pastores falavam sem parar com voz monótona. Além do inventor do defecador de duplo fundo, cuja história havia ouvido sete vezes, nenhum tinha nada do que falar; contudo, todos falavam durante longos tempos que pareciam durar horas, e ele os escutava com um sorriso estereotipado que chegou a se parecer com o riso sardónico.
Mas ao chegar a os dezoito graus de latitude Norte, Stephen começou a restabelecer-se. Sua irritabilidade e sua petulância desapareceram, e recuperou a serenidade e a afabilidade, pelo que sua atitude complacente deixou de depender do autocontrole, e tinha descoberto algumas qualidades dos clérigos e do professor Graham que lhe agradavam. Quando avistaram o cabo de São Vicente, meio oculto pela névoa, pela amura de bombordo, já havia melhorado o suficiente para que o subissem ao convés em uma cadeira com braços improvisada, com duas barras do cabrestante atadas aos lados, e dali podia ver o deserto oceano cinzento onde o tenente Aubrey, sir John Jervis e o comodoro Nelson haviam derrotado a frota espanhola, muito mais potente que a sua, no dia de São Valentín em 1797. E enquanto o Worcester estava amarrado no porto de Gibraltar e subiam a bordo provisões e esperavam que o levante amainasse, o forte vento do leste que impedia atravessar o estreito e passar para o Mediterrâneo, Stephen estava sentado comodamente no mirante de popa com o professor Graham, tomando sol, com os pés vendados colocados sobre um tamborete e um copo de suco de laranja na mão. Ainda que o escocês fosse taciturno, um pouco presunsoso e não tivesse senso de humor, era inteligente e havia lido muito, e agora que sua atitude era menos reservada que ao princípio, Stephen não o achava chato e se sentia à vontade em sua companhia. Stephen havia recebido a visita de vários amigos que viviam em Gibraltar, e o último deles lhe dera exemplares de quatro tipos de criptógamas muito raras que sempre desejara ter. Agora os olhava com tanta atenção e tanta satisfação que tardou alguns momentos em responder à pergunta do professor: "Em que língua o senhor falava com esse cavalheiro?".
- Em que língua, senhor? - repetiu com um amplo sorriso, pois estava muito contente nesse momento. - Em catalão.
Teve a tentação de responder: "Aramáico", por brincadeira, mas Graham era um homem muito instruído e sabia muito de línguas para engolir isso.
- Então o senhor fala catalão, doutor, além do francês e do espanhol!
- Passei boa parte de minha vida nas margens do Mediterrâneo - disse Stephen - e quando era jovem e minha mente era moldável, aprendi as línguas da costa ocidental; contudo, não conheço o árabe tão bem como o senhor, e muito menos o turco.
- Voltando para nossa batalha - disse Graham depois de refletir com respeito à isso - o que não entendo é por que o capitão Aubrey tinha que disparar primeiro com pólvora que produz luz de tantas cores.
Stephen sorriu ao dar-se conta da idéia que Graham tinha de uma batalha. do esplêndido mirante podia ver a baía de Algeciras com a cidade ao fundo, a baía onde ele, entre um ruído estrondoso e charcos de sangue, participara de uma batalha real que causara 142 baixas só no navio da Armada Real Hannibal.
- Com respeito a isso, o senhor deve saber que os lordes que estão ao comando do Almirantado, guiados por seu bom julgamento, decidiram que durante os seis primeiros meses de uma missão os capitães não devem gastar por mês uma quantidade de balas superior a um terço do número de canhões de seu barco, e, a partir de então, só uma quantidade equivalente à metade, e se o fazem, serão sancionados ou terão que pagar fortes multas. Em Whitehall pensam que os marinheiros sabem por instinto como apontar corretamente os canhões e disparar com rapidez e precisão enquanto o barco balança entre as ondas, e os capitães que não têm essa fantasia compram sua própia pólvora, se podem permitir-se. Mas a pólvora é cara. Um navio como este, conforme entendo, gasta ao redor de dois quintais em um bombardeio.
- Que horror! - exclamou Graham surpreendido.
- Um horror, sim, senhor - afirmou Stephen. - E aproximadamente a vinte e dois peniques e meio a libra de pólvora, essa quantidade pode custar uma soma considerável.
- Vinte libras inglesas, dezenove xelins e cinco peniques - disse Graham.
- Como o senhor compreenderá, os capitães tratam de encontrar a pólvora mais barata. A que usamos procede de uma fábrica de fogos de artifícios, por isso produz luz de distintas cores.
- Então, não era sua intenção enganar ao inimigo?
- Não é um crime monstruoso enganar. O engano é uma irreverência, estimado senhor.
Graham o olhou fixamente e, com um sorriso forçado, disse:
- Sem dúvida, o senhor está brincando. Acredito que a bandeira falsa, a bandeira francesa, foi içada com o propósito de que o inimigo se aproximasse mais e, portanto, pudesse ser destruído mais facilmente; e quase se logrou. Eu me pergunto por que o capitão não içou o sinal de socorro ou fingiu que se rendia, já que assim teria se aproximado muito mais.
- Para um marinheiro, alguns sinais falsos são mais falsos que outros. No mar há vários graus de infâmia subentendidos. Um honorável oficial da marinha pode empregar uma bandeira para se fazer passar por francês, mas não pode içar um sinal indicando que seu barco se chocou contra um arrecife nem pode arriar sua bandeira para indicar sua rendição e depois retomar à luta sem que seja objeto de uma condenação universal, sem que receba a vaia do mundo dos marinheiros.
- Em todos os casos se persegue o mesmo fim e há engano. Eu não hesitaria em içar bandeiras de todas as cores do espectro contanto que adiantasse ainda que fosse cinco minutos a queda desse malvado, quero dizer, do auto-denominado imperador dos franceses. Em uma guerra é preciso realizar ações eficazes, não demostrar bons sentimentos nem discutir o mérito relativo dos enganos e das simulações.
- Admito que estes princípios morais não têm lógica, mas os marinheiros se regem por eles.
- Os marinheiros… - disse Graham. - Que horror!
- Os marinheiros têm sua própia lógica - disse Stephen - e, de acordo com ela, desobedecem muitos artigos do Código Naval sem remorsos. Por exemplo, está proibido blasfemar, e, contudo, os marinheiros falam sem moderação e inclusive dizem obscenidades todos os dias, e também está proibido que um marinheiro seja açoitado só porque alguém acha que se move muito devagar, e, contudo, açoita-se inclusive neste barco, onde o trato é mais humano que na maioria. Mas estas transgressões e muitas outras, como roubar provisões ou não assistir às cerimônias religiosas, chegam só a certos limites que de maneira implícita são aceitos tradicionalmente e que é muito perigoso atravessar. Os princípios morais dos marinheiros podem parecer estranhos e inclusive absurdos para os homens que vivem em terra, porém, como sabemos, a razão pura não o é tudo, e ainda que seu raciocínio não pareça lógico, permite que levem uma máquina tão complexa como esta de um lugar para outro apesar da constante umidade, da fúria e das caprichosas mudanças dos elementos e das circunstâncias adversas.
- Acho assombroso que cheguem ao porto tantas vezes - disse Graham. - Recordo o que um meu amigo escreveu com relação a isso… Depois de assinalar o complexo que é uma máquina como esta, tal como o senhor falou acertadamente, pelas velas e o infinito número de cabos que tem, e depois de falar das forças variáveis que atuam sobre ela e a habilidade necessária para governá-la, escreveu que era uma lástima que esta arte tão importante, tão difícil e tão intimamente relacionado com as leis invariáveis da mecânica se mantivesse em mãos de seus possuidores de maneira que não pudesse desenvolver-se e que se perderia à medida que eles desaparecessem. Acrescentou que pelo fato de não terem a vantagem de possuir uma educação prévia, não só são incapazes de estruturar suas idéias, aliás que têm apenas a capacidade para pensar, e muito menos para expressar-se ou comunicar aos outros os conhecimentos adquiridos por intuição. Conforme ele, como essa arte se aprende somente pelo costume, diferencia-se pouco de um instinto, e não há razão para achar que se desenvolverá mais que a arte de construir da abelha ou do castor, porque as espécies não podem desenvolver-se.
- Talvez seu amigo não tenha tido a sorte de conhecer um bom marinheiro - disse Stephen, sorrindo. - E tampouco foi afortunada a sua referência à abelha e à colméia, que, conforme todos os matemáticos, é geometricamente perfeita e, portanto, impossível de melhorar. Mas deixando de lado a abelha, eu lhe direi que viajei com marinheiros que não só tratavam de aperfeiçoar suas máquinas e a arte de governá-las como também de transmitir os conhecimentos que possuíam. E ouvi falar de outros que também o fizeram, como o capitão Bentinck, com novos amantilhos e velas maiores triangulares, ou o capitão Pakenham, com um novo tipo de leme, ou o capitão Bolton, com a bandola, e muitos mais, com guindastes, cavilhas, mordedores e grampos de ferro e novas defesas…
- Defesas, estimado senhor? - perguntou Graham.
- Sim, defesas. As amarramos aos gumbriles de estibordo, perpendicularmente à borda, quando navegamos de bolina e ao largo.
- Os gumbriles de estibordo… De bolina e ao largo… - repetiu Graham, e Stephen sentiu uma momentânea apreensão, pois recordou que o professor tinha uma prodigiosa memória e podia repetir longas passagens e dizer de que livro era e em que capítulo e em que página estava. - Lamento ser um ignorante nesta matéria. Naturalmente, o senhor sabe muito destas coisas porque tem uma grande experiência como navegante.
Stephen assentiu com a cabeça e, metendo-se em um terreno um pouco mais seguro, continuou:
- Sem contar os inumeráveis dispositivos para calcular a velocidade do barco, bem empregando pás giratórias ou bem medindo a pressão das águas circundantes, todos tão engenhosos como o defecador de duplo fundo. A propósito, poderia dizer-me, por favor, quais são os títulos, o tempo de permanência em um seminário e os estudos teológicos necessários para ser um pastor anglicano?
- Acho que tem que ter um título universitário e, certamente, encontrar um bispo disposto a ordenar-lhe. Acho que não necessita nada mais, nem passar tempo em um seminário nem fazer estudos teológicos, mas acredito de que o senhor conhece melhor que eu a organização da Igreja anglicana, porque, como a maioria de meus compatriotas, sou presbiteriano.
- Não, porque, como a maioria dos meus, sou católico.
- Ah, é? Supunha que todos os oficiais da Armada Real tinham que abjurar de uma religião que exige a obediência ao Papa.
- Os que têm uma nomeação oficial sim estão obrigados a fazê-lo, mas os cirurgiões são nomeados pela Junta Naval e considerados oficiais assimilados. Não tive que abjurar nada, e isso é um alívio; contudo, pelo fato de seguir acatando a autoridade do bispo de Roma não posso chegar a ser um almirante e ter o comando de um navio insígnia. Eu não posso ter acesso ao posto mais alto e mais cobiçado da Armada.
- Não lhe compreendo, porque, indubtavelmente, um médico não pode pretender chegar a almirante. É evidente que o senhor gosta de brincar.
O professor Graham não gostava de brincadeiras e pôs um gesto de enfado, como se pensasse que Stephen se havia burlado ele, e pouco depois se retirou.
Contudo, regressou na tarde seguinte. Então ambos puderam ver de perto o rochedo, pois o Worcester havia tido que deslocar-se para dar lugar ao Brunswick e ao Goliath, e Pullings o havia colocado com a proa para a costa para que os tripulantes pudessem raspar o costado de estibordo para tirar a pintura e pintá-lo de novo. Aquele era um desses dias em que a luz é intensa e não só a luz solar faz brilhar as cores, e na Alameda se via claramente a uma banda militar tocando à sombra das árvores, com os cobres brilhando como o ouro. Nos jardins e na avenida Grande Parade se via a multidão de pessoas que iam de um lado para outro, entre as quais se encontravam oficiais com casacas vermelhas e azuis e civis com trajes de muito diversos lugares da Europa, Ásia e África, como Grécia, Marrocos e outras nações africanas dominadas pelos turcos, Levante e algumas regiões muito mais ao leste, e entre as aroeiras-pimenteiras se distinguiam os amplos chapéus de palha pintados de vermelho escuro dos bereberes, os turbantes e as túnicas azul claro dos coptas de Tánger, os negros chapéus dos judeus e as vermelhas barretinas dos catalãos. Na multidão também havia mouros, que se destacavam por sua altura, negros, marinheiros das ilhas gregas vestidos com fraldas como na antiguidade e malaios vestidos de verde. Em Jumper's Bastión parou um grupo de guardas-marinhas do Worcester, alguns altos e magros, outros muito pequenos, e Stephen achou que se haviam colocado ao redor de um enorme cachorro, mas quando se moveram, viu que o animal era um bezerro preto. Entre os gerânios e as figueirinhas pôde ver outros tripulantes do Worcester, os marinheiros que haviam obtido licença para descer a terra. Todos haviam disposto de suficiente tempo para pôr calças de dril branco impecáveis, casaca azul com botões dourados e chapéu de copa baixa, branco ou preto, adornado com fitas com o nome do barco bordado e haviam tido que passar pela inspeção do mestre de armas, pois, apesar de que o Worcester não era importante e estava muito longe de sê-lo, Pullings cuidava muito da reputação do navio e atuava conforme o princípio de que a boa aparência induzia ao bom comportamento. Poucos deles já estavam bêbados, e seus risos, que podiam ser ouvidos a meia milha de distância, eram provocados em boa parte por seu bom estado de ânimo. Atrás deles e da misturada multidão se alçava a massa rochosa cinza e avermelhada que formava o rochedo, cuja base estava rodeada por uma faixa verde, e sobre seu alto cume havia uma espessa névoa que havia sido formada pelo levante e que foi movendo-se para o oeste até dissipar-se entre brilhantes raios de luz. Stephen via claramente o monte Misery pela luneta e avistou primeiro a silhueta de um macaco recortando-se sobre o céu esbranquiçado e depois, muito acima deste, a de um abutre pairando. E o macaco olhou para a ave ao mesmo tempo que ele.
O professor Graham pigarreou e disse:
- Doutor Maturin, um primo meu tem um cargo governamental e realiza o delicado trabalho de conseguir informação sobre outros países de fontes mais confiáveis que os jornais, os relatos de mercadores e os informes consulares, e me há pedido que procurasse alguns cavalheiros que pudessem ajudá-lo. Entendo pouco destas coisas, já que não estão dentro de meu terreno, mas acho que um médico que fala com soltura as línguas dos países mediterrâneos e conhece tantas pessoas em suas costas estaria em ótimas condições para conseguir esse objetivo, especialmente se é um adepto do catolicismo, pois a maioria dos colegas de meu primo são protestantes e, obviamente, um protestante não pode ter tanta intimidade com um católico como um correligionário seu. E permita-me acrescentar que meu primo dispõe de quantiosos fundos.
O distante macaco ameaçou o abutre agitando o punho fechado e a enorme ave se inclinou para um lado, descreveu uma curva, começou a avançar em direção da África e cruzou o estreito com as asas estendidas e imóveis. Stephen pôde ver bem seu colorido e sentiu uma grande satisfação ao comprovar que era um abutre leonado.
- Bem, - disse baixando a luneta - acho que eu não seria capaz de conseguir informação. Inclusive quando um médico vive em uma pequena cidade, e, como o senhor haverá notado, um barco se parece muito com uma pequena e populosa cidade, porque tem uma organização hierárquica, passeios e lugares de divertimento para diferentes classes, e porque todos os que vão a bordo se conhecem e os rumores não cessam… Inclusive quando um médico vive em uma pequena cidade, como lhe dizia, raras vezes sai de suas muralhas, e um barco é uma cidade que leva suas muralhas onde quer que vá. Um cirurgião naval está obrigado a permanecer em seu posto e, mesmo quando seu barco se encontra em um porto, tem que ocupar-se de seus pacientes e da papelada, assim que apenas pode conhecer outros países e seus habitantes. É uma lástima viajar tanto e chegar a lugares tão distantes e, contudo, ver tão poucas coisas!
- Mas provavelmente o senhor desce a terra firme de vez em quando, nã é, senhor?
- Não com tanta freqüência como gostaria, senhor. Acredito que seria de muito pouca utilidade para seu primo, e, ademais, acho de muito mau gosto a dissimulação, o fingimento, o engano e a hipocrisia necessários para levar a cabo um trabalho desse tipo. Porém, agora que o penso, um pastor da Armada Real poderia ser a pessoa adequada para o que o senhor propõe, não lhe parece? Um pastor dispõe de muito mais tempo para descer a terra que um cirurgião. Olhe, ali estão os clérigos que viajam conosco, passeando livremente em companhia de outros homens de sua profissão. Ali estão, justo ao lado do drago. Não, estimado senhor, aquela é uma bananeira. Por Deus! O drago é a árvore que está à direita da palmeira tamareira.
Por debaixo da verde folhagem do drago passavam doze clérigos, seis do Worcester e seis do posto militar. Todos estavam muito bem barbeados e olhavam com admiração as barbas dos árabes, dos judeus e dos bereberes que passavam junto deles.
- Diremos adeus a todos menos a um - respondeu o professor Graham. - A câmara dos oficiais terá um aspecto estranho porque ficará quase vazia.
- Ah, é? - perguntou Stephen. - Cinco de um só golpe! Havia ouvido que o senhor Simpson e o senhor Wells iriam porque haviam chegado o Goliath e o Brunswick, porém, aonde vão os outros? E qual deles ficará conosco?
- O senhor Martin ficará.
- O senhor Martin?
- O cavalheiro que tem um só olho. O senhor Powell e o senhor Comfrey irão para Malta nesse barco que transporta provisões.
- O feluca ou a polacra?
- O barco da direita - respondeu Graham um pouco incômodo. - O barco onde há tanta atividade e os marinheiros estão subindo pelos cabos. E o doutor Davis decidiu regressar para a Inglaterra viajando por terra até onde quer que seja possível. Percebeu que viajar por mar não lhe cai bem e tratará de encontrar um meio de transporte adequado.
- Sem dúvida, faz bem, porque um homem de sua idade e em seu estado de saúde morreria se permanecesse encerrado em um lugar apertado e incômodo como este, onde às vezes não há ar e outras há tanto que nos açoita por todo o corpo e sempre há umidade, que é tão prejudicial para as pessoas que já passaram do climatério. Para passar a vida no mar, um homem necessita de juventude, de uma saúde de ferro e da digestão de uma hiena. Mas espero que o pobre cavalheiro possa ir ao a jantar de despedida. Disseram-me que estão preparando um grande banquete e que o capitão também irá. Tenho muitos desejos de que chegue, porque estou farto de comer ovos e qualhada. Esse miserável não me traz outra coisa - acrescentou assinalando para a grande cabine, pois Killick estava ali pondo as cadeiras de um lado antes de fazer entrar os faxineiros para que a limpassem e a deixassem impecável.
O doutor Davis não pôde assistir porque se achava em uma diligência espanhola puxada por oito mulas que corriam o quanto podiam e o afastavam com rapidez do mar e de tudo o relacionado com ele; contudo, mandou uma nota onde apresentava suas desculpas, enviava saldações, expressava seu agradecimento e desejava a todos o melhor. Os oficiais sentaram em seu lugar um excelente ajudante do oficial de derrota, um jovem alto e magro que se chamava Joseph Honey. Quando os relógios das Igrejas de Gibraltar deram a hora, o capitão Aubrey entrou na abarrotada câmara dos oficiais, onde as casacas de uniforme vermelhas e azuis se misturavam com os paletós negros dos clérigos. O primeiro oficial lhe deu as boas-vindas e lhe ofereceu uma taça de licor de ervas.
- Acho que o grupo ainda não está completo, senhor - disse e se voltou para o despenseiro da câmara dos oficiais e o olhou inquisitivamente.
- É possível que o doutor tenha se atrasado? - perguntou Jack.
E quando terminava de fazer a pergunta, ouviu-se um golpe seco seguido de duas ou três blasfêmias e depois entrou Stephen, ainda com o pé vendado, sustentado pelos cotovelos por seu servente, um infante da marinha pouco inteligente, mas dócil e amável, e por Killick. Todos lhe deram a boas-vindas, não com vivas porque a presença do capitão os coibia, mas sim com muita alegria, e quando se sentaram à mesa, Mowett sorriu e disse:
- Alegro-me de ver-lhe, doutor. Tem muito bom aspecto, mas isso não me admira, porque… "Inclusive uma calamidade, quando é atenuada pelo pensamento, reforça e aviva o intelecto".
- Não acredito que pense realmente que o meu necessita ser avivado, senhor Mowett - disse Stephen. - Vejo que esteve cultivando outra vez seus extraordinárias dotes.
- Então, recorda-se de qual é minha fraqueza?
- Naturalmente que me recordo, e para provar repetirei alguns versos que compôs na primeiro viagem ou, isto é, na primeira missão que realizamos juntos:
Ah, se eu tivesse a arte de Marot
para despertar nos corações sensíveis os sentimentos,
expressaria com palavras insuperáveis
o espantoso horror da costa a sotavento!
- Muito bem! Excelente! Escutem, escutem! - exclamaram alguns oficiais, que haviam experimentado aquele horror não uma mas muitas vezes.
- Isso é o que eu chamo poesia - disse o capitão Aubrey - e não essas malditas composições que falam de galãs e virgens e pastos floridos. E como falamos de calamidades e da costa a sotavento, queria que Mowett recitasse o poema que fala da pena.
- A verdade é que não recordo qual é, senhor - disse Mowett, ruborizando-se porque agora todos os que estavam sentados à mesa o olhavam.
- É claro que sim! É aquele que diz que não há que lamentar-se, que fala das queixas e da paciência. Eu costumo fazer recitar para minhas filhas.
- Bem, senhor, se insiste… - disse Mowett soltando a colher sopeira, e sua expressão habitual, doce e alegre, transformou-se em uma tão grave que parecia que havia tido um mau pressentimento.
Então fixou o olhar na garrafa e, em um tom exageradamente baixo, recitou:
A pena nos faz audazes,
a pena nos dota de resignação e paciência.
Da paciência emanam a prudência, e a experiência
com que extraimos conhecimentos dos feitos.
Dela emanam a esperança, a fortaleza, o êxito,
a fama… tudo o que o homem valoriza e ambiciona.
Enquanto se ouvia o aplauso geral e uma enorme vasilha de lagostas sucedia a sopa, o senhor Simpson, que estava sentado junto a Stephen, disse:
- Não sabia que os oficiais da Armada Real solicitavam o favor das musas.
- Ah, não? Contudo, o senhor Mowett não é um caso excepcional, se bem seu talento o é. Quando o senhor subir a bordo do Goliath conhecerá dois oficiais que amiúde enviam poemas para a Naval Chronicle e inclusive para a Gentleman's Magazine. O senhor Cole, o contador, e o senhor Miller, um dos tenentes. Na Armada, estimado senhor, bebemos água da fonte de Castalia sempre que podemos.
Mas também bebiam álcool, e na câmara dos oficiais do Worcester havia muito vinho, ainda que eles fossem pobres e só haviam podido comprar um comum. E lhes favoreceu ter tanto, porque a animação que havia no início do banquete foi substítuída quase totalmente pela tranqüilidade. Por um lado, a presença do capitão Aubrey devido à sua reputação e sua classe, coibia aos que não haviam navegado antes com ele; por outra, a presença de tantos pastores obrigava a todos a atuar com decoro. Ademais, inclusive os comentários sobre a vela de estai de mezena do Brunswick, que seu capitão colocava de uma maneira antiquada, por debaixo do cesto da gávea maior, estavam fora de lugar, já que muitos dos presentes não podiam distinguir entre uma vela de estai e uma carangueja. Os oficiais mais jovens permaneciam em silêncio, comendo sem parar; Somers só se preocupava em beber, e bebia muito, ainda que cheirava o vinho de vez em quando e fazia uma careta de asco, como a que houvesse feito qualquer acostumado a beber um clarete decente; o capitão de infantaria da marinha começou a contar um curioso fato que lhe havia ocorrido em Port of Spain, porém, ao dar-se conta de que o final era escabroso e, portanto, inadequado, teve que pôr-lhe outro decente, ainda que incongruente e sem graça; Gill, o oficial de derrota, se esforçava para vencer sua melancolia, mas só conseguiu tornar seu olhar mais vivo e esboçar um sorriso estereotipado; Stephen e o professor Graham estavam absortos em suas meditações. E enquanto comiam o cordeiro, só se ouviu o som de suas poderosas mandíbulas, alguns comentários interessantes sobre os dízimos feitos pelo capitão Aubrey e, num extremo da mesa, uma detalhada explicação do funcionamento do defecador de duplo fundo.
Mas Pullings tentou que as rodadas se sucedessem com mais rapidez que antes, animando-os a beber com gritos como: "Professor Graham, beba um copo de vinho comigo! Senhor Addison, brindemos pela sua nova paróquia flutuante! Senhor Wells, brindemos com a taça cheia até a borda para que tenha sorte no Brunswick!". Jack e Mowett o imitaram, e quando chegou a sobremesa, a atmosfera havia esquentado quase tanto como Pullings desejava.
A sobremesa era a favorita de Jack, um pudim de sebo com passas que os marinheiros chamavam de cachorro com manchas, e o trouxeram juntos dois homens fortes porque era tão grande que dava para toda a tripulação de um navio de linha.
- Meu Deus! - exclamou olhando sua superfície, em parte brilhante e em parte translúzida. - Um cachorro com manchas!
- Sabíamos que tinha muita vontade de comê-lo, senhor - disse Pullings. - Permita-me que lhe corte um pedaço.
- Sabe de uma coisa, senhor? Este é o primeiro pudim decente que como desde que saí de casa - disse Jack ao senhor Graham. - Por um descuido, o sebo não foi carregado com as provisões, e o senhor admitirá que um cachorro com manchas ou um menino afogado{12} seriam uma grosseira imitação, seriam falsos, se não se fizessem com sebo. Indubtavelmente, fazer um pudim é uma arte, mas essa arte não seria nada sem o sebo.
- É verdade - disse Graham. - E governar um barco também é uma arte… Por certo que ontem mesmo me informei de que os senhores amarram defesas nos gumbriles de estibordo, perpendicularmente à borda, quando navegam de bolina e ao largo, e isso me causou surpresa.
Mas a surpresa de Graham não era nada comparada com a dos oficiais.
- De bolina e ao largo? Gumbriles? Gumbriles de estibordo? - perguntaram os oficiais em coro.
Jack se engasgou com um pedaço de cachorro com manchas, mas imediatamente percebeu de que alguém havia abusado da ingenuidade do professor. Essa era uma antiga forma de brincar dos marinheiros, que eles haviam usado uma infinidade de vezes com os cadetes novatos, inclusive com ele mesmo, há muito, muito tempo. Também a haviam usado Pullings e Mowett com o doutor Maturin alguns anos atrás, mas nunca vira a ninguém usá-la com uma pessoa tão ilustre como Graham.
- Temos defesas, senhor - disse quando engoliu o pedaço de pudim - e muito variadas. Por exemplo, as grinaldas feitas com fio que colocamos ao redor dos paus maior e traquete, por debaixo das trozas{13}, antes da batalha, para evitar a queda das vergas; as defesas que pomos na roda de proa das lanchas para que atuem como pára-choques; o andullo{14} que colocamos ao redor da argola da âncora para evitar as roçaduras… contudo, no que se refere aos gumbriles, temo que alguém lhe fez uma brincadeira, porque não existem.
Apenas terminou de pronunciar estas palavras, arrependeu-se de tê-las dito, pois notara que Stephen tinha o olhar perdido e parecia abstraído e, como o conhecia muito bem, sabia que isso significava que lhe afligia a consciência.
- A menos que seja um termo arcaico - acrescentou imediatamente. - Sim, acho que…
Mas já era muito tarde. O capitão Harris, da infantaria da marinha, já estava explicando em que consistia navegar de bolina e ao largo. Havia utilizado um pedaço de pão fresco de Gibraltar e flechas desenhadas com vinho para representar um barco navegando contra o vento e dizia:
- …e isto é navegar contra o vento ou, como se diz na gíria marinheira, de bolina. E navegar ao largo é quando o vento vem não exatamente de popa mas pela alheta, assim…
- Suficientemente longe do través para que se possam largar as alas - disse Whiting.
- Assim que, como pode ver - continuou Harris - é impossível navegar de bolina e ao largo ao mesmo tempo. São termos contraditórios - acrescentou e depois, como gostou da expressão, repetiu: - São termos contraditórios.
- Na realidade, dizemos navegar de bolina e ao largo - propôs Jack - quando um barco navega bem tanto de bolina como ao largo, porque, ainda que o vento seja escasso, sua quilha pode formar um ângulo muito pequeno com a direção deste e porque alcança grande velocidade com vento frouxo. Acredito que foi isso que a pessoa que lhe informou quis dizer.
- Acredito que não, senhor - disse Graham. - Acho que sua primeira suposição era correta: foi uma brincadeira. Eu achei engraçado, mas não vou dizer mais nada.
Contudo, não parecia que ter achado graça, pois o mal-humor se refletia em seu semblante apesar de aparentar estar satisfeito. E não disse quase nada mais, pelo menos ao doutor Maturin, a quem só falou uma vez. O jantar seguiu seu curso, o vinho continuou alegrando-os, e quando o vinho do porto chegou, a câmara dos oficiais estava cheia de risos, conversações e outros prazerosos ruídos de uma festa animada. Os oficiais mais jovens haviam recobrado a palavra e eram realmente loquazes; alguém propôs fazer adivinhações; e Mowett os presenteou com um poema que falava de como navegar com vento fraco e frouxo que começava assim:
Em curiosas posturas as voluptuosas velas
mostram seus encantos para pegar os caprichosos ventos.
As alas se abrem
e as velas de estai, em posição oblíqua ao vento, se estendem.
Stephen, pensando em que não só se comportara mal mas que seu comportamento fora descoberto, aproveitou uma pausa entre duas canções para dizer que se o vento não fosse favorável no dia seguinte, desceria à terra para comprar um corvo na loja de um judeu de Mogador, um lugar famoso por ter todo tipo de aves, incluídos os corvos, porque queria saber se era verdade que viviam cento e vinte anos. Aquela era uma piada de pouca graça, mas havia feito rir a muitos ao longo de dois mil quinhentos anos e, depois daqueles homens refletirem alguns momentos, também riram; contudo, o doutor Graham disse:
- É muito pouco provável que também o senhor chegue a viver tanto tempo, doutor Maturin. Um homem de idade tão avançada como o senhor e com semelhantes hábitos não pode esperar viver tantos anos, muito menos que cento e vinte anos.
Isto foi a última coisa que ele disse a Stephen até que o Worcester chegou às imediações de Mahón, em Menorca, depois de zarpar de Gibraltar quando o vento nordeste começara a soprar. Agora o vento o soprava em direção a Mahón, mas nada, nem sequer seu respeito pelo saber, nem a consideração que tinha pelo professor Graham, induziria Jack a entrar com o Worcester naquele longo porto onde era fácil entrar mas muito difícil sair, se não soprasse o vento do norte. Muitas vezes havia visto ali numerosos navios de linha esperando para que o vento fosse favorável para poder sair, enquanto ele, em um pequeno bergantim que navegava bem de bolina, podia sair, ainda que muito devagar. Ademais, se aquele vento se mantivesse, alcançaria a esquadra do almirante Thornton em menos de doi dias de navegação, e não estava disposto a perder nem um minuto ainda que um coro de virgens de joelhos lhe rogasse. Por isso, o Worcester permaneceu pairando em frente ao cabo da Mola e o senhor Graham teve que passar para uma lancha, ainda que, por deferência, ofereceram-lhe a confortável pinaça. Graham olhou para Stephen e, com secura, disse: "Que passe um bom dia", e desapareceu.
Stephen observou como a pinaça içava as velas e deslizava com rapidez entre as ondas, e cada vez que cabeceava, a água salpicava seus ocupantes. Sentia muito ter ofendido a Graham, que era dotado de uma grande inteligência, não era um erudito enclaustrado e nunca era chato; contudo, pensava que o ressentimento do professor era excessivo e não lamentava que tivesse ido. "Ademais, graças a Deus nunca voltará a pensar que eu poderia ser um espião, e muito menos que realmente eu sou", pensou.
- Pardelas! - exclamou alguém atrás de Stephen. - Não é possível que haja pardelas aqui!
Stephen se voltou e viu o senhor Martin, o mais magro e pior vestido dos dois clérigos escritores.
- Não há dúvida que são pardelas - disse Stephen. - Aninham ali, no cabo da Mola. Elas se diferenciam das que habitam no Atlântico pela coloração menos brilhantes de suas penas, mas é indubitável que são pardelas, pois emitem o mesmo grasnido pelas noites em seus refúgios, são exageradamente grandes e pesadas e põem um só ovo de cor branca. Olhe como dão a volta com a onda! Não há dúvida de que são pardelas. Há estudado as aves, senhor?
- Sempre que posso, senhor. Sempre gostei muito; contudo, desde que saí da universidade tive pouco tempo livre e não pude ler muito. Além disso, nunca tinha viajado para o estrangeiro.
Por causa de sua ferida e por haver numerosos clérigos a bordo, Stephen quase não tivera contato com o senhor Martin, mas sentiu simpatia por ele quando se informou de que compartia seu hobby. O jovem havia aprendido muito e pago um alto preço para consegui-lo, pois havia tido que fazer longas viagens a pé e passar muitas noites em estábulos, palheiros e redis, e inclusive algumas em prisões, porque o tomaram por um caçador furtivo, e perdera um olho porque uma coruja o atacara.
- A pobre ave não sabia que eu não tinha intenção de machucá-la, só queria proteger sua cria. Eu tive a culpa porque fiz movimentos bruscos. Por outro lado, é cômodo não ter que fechar um olho quando se olha pela luneta.
Depois falaram da abetarda, do quebra-ossos, do maçaricão e da ave corredora de plumagem cor creme, e quando Stephen descrevia o albatroz com entusiasmo, ouviu a voz do capitão Aubrey, que, em tom aborrecido, ordenava:
- Afrouxem o velacho! Disparem um canhonaço para avisar-lhe!
O motivo destas palavras não era outro que a maneira em que era governada a pinaça, que voltava do porto navegando de bolina a grande velocidade e dando bordejadas de vez em quando. Para Stephen parecia que navegava bastante bem, mas a julgar pelo olhar dos outros oficiais que estavam no castelo de popa, o senhor Somers não a governava de maneira satisfatória. Houve um momento em que todos moveram simultaneamente a cabeça de um lado para outro e franziram o cenho em sinal de desaprovação, e alguns instantes depois se desprendeu uma das vergas da pinaça (e o lugar mais próximo onde poderiam repô-la era Malta). Quando a pinaça se abordou com o navio com um forte estalido, o capitão Aubrey se voltou para o senhor Pullings.
- Senhor Pullings, diga ao senhor Somers que quero vê-lo em minha cabine - ordenou, e imediatamente partiu do castelo de popa.
Somers saiu da cabine dez minutos depois, com a cara avermelhada e uma expressão mal-humorada. O castelo de popa estava cheio de oficiais e guardas-marinhas, e todos olhavam para Menorca, que estava situada pela amura de estibordo e se fazia mais pequena a medida que o navio avançava para nordeste para reunir-se com a frota do almirante; não obstante isso, olharam de soslaio para Somers e, ao compreender qual era seu estado de ânimo, esquivaram seu olhar durante todo o tempo que Somers ficou passeando pelo castelo de popa antes de ir para baixo.
Somers ainda estava chateado e ressentido quando os oficiais se reuniram para jantar, e todos trataram de alegrar-lhe. Já fazia tempo que haviam percebido que ele não era um bom marinheiro, mas sabiam o quanto era importante manter boas relações com os outros numa comunidade pequena e encerrada em um espaço reduzido, no qual seus membros quase ficavam uns em cima dos outros e do qual não podiam sair enquanto durasse sua missão, se bem que Somers não se deixou influir por eles e seu estado de ânimo não melhorou. Não sabiam onde havia tido lugar sua formação, mas devia ter sido em um barco onde não se respeitavam as normas conhecidas desde sempre por todos os marinheiros, uma das quais era que no momento de sentar-se à mesa deviam esquecer ou, ao menos, fingir que esqueciam os desgostos que tiveram no convés. Mas quase no final do jantar, já conversava animadamente com o senhor Martin e com Jackson, o tenente da infantaria da marinha mais jovem, que lhe admirava por seu bonito aspecto, sua riqueza e suas conexões. Sem mencionar nenhum nome, lhes explicou a diferença que havia entre os capitães contramestres e os capitães cavalheiros, que, em sua opinião, era que os primeiros prestavam muita atenção para as questões mecânicas das quais os marinheiros deviam se ocupar, e os segundos eram homens decididos que constituiam verdadeiramente a alma da Armada, reservavam suas energias para dar indicações sobre assuntos mais importantes e gerais e para os combates. Acrescentou que a estes últimos seus homens lhes tinham um profundo respeito, quase veneração, e os seguiam incondicionalmente quando entravam em combate. Depois falou dos cavalheiros com o mesmo entusiasmo com que Stephen havia falado antes do albatroz. Conforme ele, a gente comum reconhecia por instinto aos aristocratas, admitia sua superioridade, sabia que uma pessoa de estirpe antiga era, por assim dizer, de outra natureza e a distinguia de imediato, como se visse um halo ao redor de sua cabeça. O jovem Jackson abundava na mesma opinião e dava asas a Somers, mas quando olhou por casualidade para o outro lado da mesa e viu que seus companheiros tinham uma expressão grave, teve dúvidas de que fazia bem e guardou silêncio. Mas Somers já havia bebido tanto que não podia dar-se conta disso nem atender à conversa cujo rumor afogava sua voz; bebera tanto, inclusive em comparação com o que era normal na Armada, que o obrigaram, como muitas outras vezes, a meter-se em sua maca. Mas não o criticaram, apesar de que no Worcester ninguém bebia demais, porque essa noite não tinha que fazer a guarda e, ademais, porque o contador ficava calado quando anoitecia. Mas o estado em que se encontrava pela manhã seguinte não era como o de outras vezes, e se sentia tão mal que Stephen, depois de receitar-lhe três dracmas do bálsamo de Locatelo, disse que ele podia recusar o convite do capitão para jantar alegando que tinha problemas de saúde. Somers agradeceu efusivamente ao doutor Maturin por suas atenções, e quando partiu, Stephen pensou que havia conhecido muitos homens que eram presunçosos e arrogantes e tinham pouco tato quando estavam em público, mas que eram muito amáveis quando se encontravam em companhia de uma só pessoa. Mais tarde, depois de comer com o capitão, quando o senhor Martin e ele estavam no castelinho debaixo um céu completamente limpo, olhando o mar azul jaspeado de branco e as gaivotas que volteavam sobre a esteira, Stephen expôs o que pensara, mas Martin estava tão cheio de abetarda (da grande abetarda de Andaluzia que haviam comprado em Gibraltar e que havia sido o prato principal da refeição) que se limitou a assentir para suas palavras cortesmente e imediatamente fez referência à ave outra vez.
- Nunca houvesse imaginado que depois de passar três noites na cabana de um pastor, em uma cabana sobre rodas, na planície que rodeia Salisbury, com a esperança de ver uma ao amanhecer, e muitas noites de vigília em Lincolnshire, ia encontrar-me com uma abetarda macho em meu prato no meio do oceano. Acho um sonho!
Martin também falou com entusiasmo da Armada. Disse que o capitão não era distante nem arrogante, como lhe haviam feito acreditar, senão muito amável e hospitaleiro; que todos os oficiais eram amistosos e considerados e haviam se dado muito bem com ele, e que o senhor Pullings e o senhor Mowett eram exageradamente bondosos. Estava assombrado porque sua cabine era muito cômoda, apesar de haver nela um enorme canhão, e porque a comida, com vinho todos os dias, quase podia qualificar-se de "esplêndida".
Stephen o olhou para averiguar se falava com ironia, mas o único que notou em sua cara avermelhada pelo vinho do porto do capitão Aubrey foi satisfação verdadeira.
- Não há dúvida de que somos afortunados, pois temos bons companheiros de tripulação, e observei que muitos, isto é, a maioria dos oficiais são alegres, amáveis e tolerantes - disse. - Ademais, há alguns homens cultos e poucos tontos e pretenciosos. Contudo, do ponto de vista físico, a vida dos homens do mar é dura e leva consigo incômodos e privações.
- Tudo é relativo - disse o senhor Martin - e talvez viver em um sótão e em um porão durante vários anos e trabalhar para os livreiros não seja uma má forma de preparar-se para a vida na Armada. De toda forma, esta é a vida adequada para mim. Como naturalista e como ser social, eu…
- Com sua permissão, senhor - disse o chefe da guarda de popa, que subia pela escada do castelinho seguido de uma quadrilha de faxineiros.
- O que houve, Miller? - perguntou Stephen.
- É que esperamos encontrar o navio insígnia dentro de pouco, senhor - respondeu Miller - e não queremos que o almirante veja a coberta com uma capa de sujeira que chega até os joelhos nem tampouco que murmurassem sobre nós em toda a frota.
Nenhum homem de terra adentro podia notar essa capa de sujeira, a menos que se considerasse como tal a fina capa de pequenos pedaços de fio desprendidos da exárcia que cobria o corrimão, mas fizeram Stephen e o pastor se deslocarem do castelinho para o castelo de popa. Cinco minutos mais tarde, a massa de faxineiros lhes fez mudar de lugar outra vez, e se foram para o portaló.
- Não gostaria de ir par baixo, senhor? - perguntou o oficial de guarda. - A câmara dos oficiais já deve estar quase seca.
- Obrigado - respondeu Stephen - mas quero mostrar ao senhor Martin uma gaivota do Mediterrâneo. Acho que iremos para o castelo.
- Mandarei que levem sua cadeira para lá - disse Pullings. - Mas o senhor não vai tocar em nada, não é, doutor? Tudo está muito limpo, preparado para a inspeção do almirante.
- O senhor é muito amável, senhor Pullings - disse Stephen - mas já posso caminhar bem e ficar de pé. Não necessito da cadeira, agradeço sua atenção.
- Não vai tocar em nada, não é, doutor? - repetiu Pullings quando ambos já estavam de costas para ele.
No castelo não foram bem acolhidos e os consideraram um estorvo, e um guarda-marinha e dois marinheiros velhos encarregados da âncora lhes disseram que tivessem muito cuidado com tudo e que não tocassem em nada. Mas depois de um tempo, um marinheiro do castelo chamado Joseph Plaice, antigo companheiro de tripulação de Stephen, trouxe para cada um uma bolsa em forma de queijo cheia de buchas para os canhões, e os dois se sentaram nelas, que eram bastante cômodas, sem tocar as betas aduchadas da flamenga nem as reluzentes miras dos canhões.
- A vida na Armada é a adequada para mim - repetiu Martin - independentemente de que seus membros sejam uma excelente companhia. E devo dizer que, pelo que vi até agora, os marinheiros são tão amáveis como os oficiais.
- Também eu notei isso em muitos casos - afirmou Stephen. - Como disse lorde Nelson: "A popa é honorável, a proa é boa". Na frase, "popa" se refere aos oficiais e "proa", aos marinheiros, ou seja, usou o continente para o conteúdo, compreende? Porém, em minha opinião, com "proa" ele se referia aos verdadeiros marinheiros, não aos numerosos meliantes, vagabundos, brigões, inúteis e ladrões que inevitavelmente chegam a formar parte da tripulação e às vezes permanecem nela para sempre.
Martin assentiu com a cabeça e continuou:
- Ademais, há que ter em conta o aspecto material, ainda que muito depois que outros. Peço que me desculpe por falar deste tema, mas a menos que um homem tenha ganhado a vida exercendo uma profissão na qual um só dependa de si mesmo, na qual uma falta de criatividade temporal e qualquer doença, seja qual seja sua duração, têm consequências fatais, esse homem não poderia apreciar a tranqüilidade que representa receber cento e cinqüenta libras por ano. Cento e cinqüenta libras por ano! Meu Deus! Ademais, disseram que se eu aceitar dar aulas para os cadetes, receberei mais cinco libras por ano por cada aluno.
- Peço que não faça isso, senhor. Aí está a gaivota do Mediterrâneo, pousada nesse mastro que sobressai do barco pela parte dianteira! Observe que tem o bico de um intenso colorido vermelho e a cabeça negra. É muito diferente da Larus ridibundus.
- Muito diferente. De perto não é possível confundi-las. Mas diga-me, senhor, por que não devo ensinar aos cadetes?
- Ensinar aos cadetes causará um prejuízo para sua alma, porque é um exemplo da nefasta autoridade estabelecida, artificial. O pedagogo exerce um domínio quase total sobre seus alunos e lhes bate amiúde, o que provoca que, sem perseber, deixe de guardar-lhes o devido respeito, o respeito que merecem todos os seres humanos. Faz estrago aos seus alunos, ainda que eles fazem muito mais estrago a ele. É provável que se converta em um tirano que se acha onisciente e virtuoso e pensa que sempre tem razão, e, sem dúvida, passará todo o tempo em companhia de seus inferiores, para sentir-se como um rei entre eles, e isto, ao cabo de um período assombrosamente breve, deixa-lhe com o estigma de Caín. O senhor já viu a algum mestre capacitado para estar em companhia de adultos? Deus sabe que eu nunca vi a nenhum. Realmente estão todos trastornados. E, contudo, não ocorre o mesmo aos mestres particulares, talvez porque seja quase impossível ser a prima donna quando só uma pessoa forma a audiência.
- O senhor Pullings lhe apresenta seus respeitos, doutor Maturin - disse um guarda-marinha - e lhe roga que tire os pés da pintura fresca.
Stephen o olhou e depois olhou seus pés. Efetivamente, a superfície da caronada que lhe servia de banqueta não brilhava, como havia suposto, porque a haviam polvilhado com água ou polimentado, mas porque lhe haviam dado uma capa de tinta negra.
- Apresente meus respeitos ao senhor Pullings - disse por fim - e, por favor, peça-lhe que quando tenha tempo me diga como posso tirar os pés da pintura e não deixar uma marca indelével na coberta e nos degraus da escada, já que estas vendas não são fáceis de tirar. Ademais, senhor - disse voltando-se para Martin - não é difícil decidir nesta questão, porque, como o senhor mesmo manifestou, lhe é impossível entender o teorema de Pitágoras, e quase tudo o que se ensina aos cadetes no barco pertence à trigonometria. E também se ensina álgebra… Deus nos proteja!
- Então, pelo que vejo, devo deixar os cadetes - disse Martin, sorrindo. - Mas apesar disso, penso que a vida na Armada é adequada para mim. É uma vida ideal para um naturalista.
- Não há dúvida de que é uma vida adequada para um homem jovem que não tenha nada que lhe ate a terra, um jovem de constituição forte que não seja muito exigente com a comida nem venere seu estômago como a um Deus. E estou completamente de acordo com o senhor em que os bons oficiais são uma agradável companhia; contudo, os há de outro tipo, e, por outro lado, pode ocorrer o caso da autoridade envenenar a um capitão, o que produziria um efeito prejudicial em toda a tripulação. Ademais, se por desgraça se encontra a bordo a um tipo chato ou um estúpido petulante, um tem que permanecer encerrado com ele no barco durante intermináveis meses ou inclusive anos, assim que seus defeitos lhe serão mais difíceis de suportar cada vez e as primeiras palavras das anedotas que provavelmente repetirá amiúde serão para ele como um tormento infernal. Quanto a ser a vida ideal para um naturalista, bem, é certo que tem algumas vantagens, mas deve levar em conta que o objetivo principal de um membro da Armada é apresar, queimar ou destruir ao inimigo, não contemplar as maravilhas da natureza. Não há palavras com que descrever a frustração que um naturalista sente nesta esgotadora carreira para alcançar somente objetivos políticos e materiais. Por exemplo, se tivessem permitido que permanecessemos alguns dias em Menorca, eu lhe mostraria não só o culiblanco de cor preta mas também a curiosa rouxinól menorquina e nada menos que o abutre leonado.
- Acredito que o senhor tem muita razão e aprecio em muito sua experiência - disse Martin. - Não me iludo. Contudo, senhor, o senhor viu o grande albatroz, os petréis do sul, diversas classes de pingüins, a morsa, o casuar das ilhas Molucas, o emu correndo por paragens desérticas, o corvo-marinho-de-crista… E o senhor viu o leviatã!
- Também vi o bicho-preguiça - disse o doutor Maturin.
- Barco à vista! - gritou o serviola do tope do traquete. - Atenção na coberta! Quatro barcos…, seis barcos…, uma esquadra pela amura de bombordo!
- Acredito que é a esquadra de sir John Thornton - disse Stephen. - Teremos que nos arrumar imediatamente. Talvez poderíamos chamar o barbeiro do barco.
O capitão Aubrey, cuidadosamente arrumado, com seu melhor uniforme, recém escovado, a medalha do Nilo presa e o sabre regulamentar na cintura (o almirante Thornton observava rigorosamente a etiqueta), desceu pelo costado do Worcester depois da apropiada cerimônia naval, precedido por um guarda-marinha com vários envelopes avultados debaixa do braço. Permaneceu em silêncio e com uma expressão grave enquanto a falua navegava pelas águas que rodeavam as duas filas de enormes navios que se estendiam pela proa e pela popa do Ocean, nas quais cada um mantinha uma posição exata, de dois cabos{15} de distância do anterior e do seguinte. Ainda que esta viagem não fosse mais que um parêntese em sua carreira, uma volta para a rotineira tarefa de continuar o eterno bloqueio a Toulon, e havia poucas probabilidades de entrar num combate, teria que lutar com o mar, como sempre, e com os ventos ferozes e repentinos do golfo de León, e, além disso, em qualquer momento podia ocorrer algo imprevisto. O almirante Thornton era um excelente marinheiro e exigia que seus capitães desempenhassem com perfeição seu cargo e não hesitava nunca em sacrificar a um indivíduo pelo bem da Armada (por sua causa muitos oficiais haviam ficado em terra para sempre), e apesar de que Jack não tinha esperanças de destacar-se durante este parêntese, poderia sofrer uma queda, sobretudo porque o segundo ao comando da esquadra, o almirante Harte, não simpatizava com ele. Jack tinha um gesto menos alegre que o habitual, e pensamentos mais tristes. Depois das primeiras semanas de atividade, nas quais havia organizado o Worcester, havia logrado que seus homens adquirissem bastante destreza no manejo dos canhões e que suas relações fossem harmoniosas, a rotineira vida naval havia começado. E como seu primeiro oficial, Tom Pullings, era extraordinário, ele havia tido muito tempo para pensar nos assuntos pendentes em seu país, assuntos legais complicados e perigosos. Ainda que apenas recordava o que aprendera de latim durante o período curto, mas de grande desenvolvimento intelectual, em que fora à escola, recordava uma frase feita cujo significado era que nenhum barco podia largar para trás a preocupação. Havia feito o Worcester navegar tão rápido como era possível ao longo de quase duas mil milhas, mas a preocupação estava ali ainda, e só a havia esquecido nas práticas com os canhões e nas noites que havia passado em companhia de Stephen, Scarlatti, Bach e Mozart.
Bonden abordou a falua com o navio insígnia, e Jack foi subido a bordo e recebido com uma cerimônia naval mais luzida ainda, na qual o contramestre deu as ordens em voz alta e os infantes da marinha apresentaram armas produzindo um forte estalido todos de uma vez. Jack cumprimentou os oficiais que estavam no castelo de popa, observando que o almirante não estava ali, e também ao capitão da esquadra; depois apertou a mão do capitão do Ocean, pegou os envelopes que o guarda-marinha levava, voltou-se para um homem vestido de preto, que era o secretário do almirante, e desceu a escada precedido por ele.
O almirante levantou a vista do enorme monte de papéis que havia em cima de sua escrivaninha e disse:
- Sente-se, Aubrey, desculpe-me um momento.
Seguiu escrevendo e a pena começou a fazer chiados. Jack se sentou e ficou muito sério, pensando que o homem pálido e calvo que tinha diante de si, iluminado pelo radiante sol do Mediterrâneo que entrava pelas janelas de popa, era o fantasma do almirante Thornton que havia conhecido, um marinheiro cujo nome não estava relacionado com nenhuma batalha gloriosa, mas que tinha fama de ser muito combativo, de ter grande capacidade de organizar e de saber impor a disciplina, um homem com uma personalidade tão forte como a de Saint Vincent e similar a ele em tudo, exceto que estava felizmente casado e não gostava de açoitar a tripulação nem dava muita importância ao cumprimento dos preceitos religiosos. Jack estivera sob suas ordens, e, ainda que conhecera muitos outros almirantes desde então, ainda o achava um homem extraordinário, apesar de que estivesse velho e enfermo. Enquanto olhava fixamente, ainda que sem prestar muita atenção, a cabeça do almirante, que tinha uma grande calva e algumas poucas mechas longas e cinzentas dos lados, refletiu sobre a passagem do tempo e a deterioração que causava, e assim permaneceu até que uma cachorra muito velha que havia ali despertou e começou a ladrar. Imediatamente a cachorra se aproximou dele correndo e lhe deu uma mordida na perna, se é que a um beliscão dado com as gengivas quase sem dentes se podia chamar de mordida.
- Quieta, Tabby, quieta! - ordenou o almirante enquanto seguia arranhando o papel.
A cachorra retrocedeu, ofegando, grunhindo e movendo os olhos rapidamente de um lado para outro, e se jogou em sua almofada e dali seguiu desafiando a Jack. O almirante assinou sua carta, deixou de um lado a caneta, tirou os óculos e tentou levantar-se, mas voltou a afundar-se no assento. Então Jack se levantou de um salto, e o almirante, olhando-lhe sem muito interesse, estendeu a mão para cima dos papéis.
- Bem, Aubrey, bem-vindo ao Mediterrâneo - disse. - Fez uma viagem bastante rápida, tendo em conta o levante. Alegro-me de que desta vez me tenham mandado um verdadeiro marinheiro, porque alguns dos homens que nos enviam são marinheiros de água doce. E também me alegro de que os tenha convencido a mudar os mastros por outros mais razoáveis. Os navios altos e com paus muito pesados, particularmente os que têm os costados retos, não são adequados para permanecer aqui durante o inverno. Mas diga-me, que acha do Worcester?
- Aqui tenho um relatório com respeito ao seu estado, senhor - respondeu Jack, pegando um dos envelopes. - Mas permita-me que antes lhe entregue isto. Quando fui visitar lady Thornton e tive a honra de falar com ela, pouco antes de zarpar, eu lhe prometi que isto seria o primeiro que lhe entregaria.
- Meu Deus, cartas de casa! - exclamou o almirante, e seus olhos glaucos e sem brilho voltaram a expelir lampejos como outrora. - E também há duas de minhas filhas. Este é um momento muito importante. Não sabia nada de minha família desde que o Excellent chegou. Meu Deus! O senhor foi muito amável, Aubrey.
Desta vez pôde levantar-se do lugar e lograr que seu gordo torso fosse sustentado por suas pernas delgadas como palitos. Então voltou a apertar a mão de Jack, e quando o fazia notou que uma de suas meias de seda tinha um buraco e uma pequena mancha de sangue.
- Ela lhe mordeu? - perguntou. - Sinto muito! Tabby, você é muito má. Deveria ter vergonha - disse, inclinando-se para a cachorra para dar-lhe um golpe no focinho com a mão aberta, mas ela, sem vacilar e sem levantar-se da almofada, tentou morder-lhe. - Se tornou resmungona com a velhice, igual ao seu dono. Ademais, morre de vontade de dar um passeio por terra. O senhor sabia, Aubrey, que já se passaram treze meses desde que recolhi âncoras?
Quando o almirante terminou de dar uma espiada em todos os envelopes e de ler sua correspondência privada para saber se havia algum assunto urgente do qual devia ocupar-se, voltaram a falar do Worcester e da ferida de Jack. Mas não falaram muito tempo, porque ambos conheciam o Worcester, assim como a maioria dos outros navios que formavam o grupo dos Quarenta Ladrões, e, ademais, porque Jack sabia que o almirante ansiava ficar sozinho para ler suas cartas. Mas Thornton expressou repetidamente seu pesar pela ferida e ruptura da meia.
- Pelo menos posso assegurar-lhe que Tabby não tem raiva - disse. - Só lhe faltam compreensão e discernimento. Se tivesse raiva, na esquadra não restaria quase nenhum oficial de alta patente, porque mordeu o almirante Harte, o almirante Mitchell e o capitão da esquadra muitas vezes, sobretudo o almirante Harte, e nenhum, que eu saiba, teve convulsões. Mas se tornou uma resmungona, como lhe disse, igual ao seu dono. Uma boa briga com os franceses nos reanimaria aos dois, nos rejuveneceria, e nos permitiria voltar para casa por fim.
- Há alguma possibilidade de que saiam, senhor?
- Sim. A frota que se encontra perto da costa nos informou que tem havido muita atividade no porto durante as últimas semanas. Mas talvez não saiam imediatamente, porque nestes dias está soprando o vento do sul e a pressão barométrica é constante. Meu Deus - exclamou, juntando as mãos - quanto desejo que se decidam a sair!
- Deus o queira, senhor - disse Jack, pondo-se de pé. - Deus o queira.
- Amém! - exclamou o almirante e, ajudado pelo balanço do navio, caminhou até a porta com Jack e quando estavam a ponto de despedir-se, disse: - amanhã um conselho de guerra julgará alguns casos. Terá que assistir, evidente. Há um caso verdadeiramente escabroso e não quero esperar que o julguem em Malta, e aproveitaremos a ocasião para julgar todos os outros. Gostaria de já ter acabado. Ah, ia me esquecendo! Amanhã ao meio-dia queria ver o doutor Maturin, que, conforme entendi, encontra-se a bordo de seu navio. E o médico chefe da esquadra quer vê-lo também.
CAPÍTULO 4
Jack Aubrey jantou com seu amigo íntimo Heneage Dundas, capitão do Excellent. Haviam sido companheiros de tripulação quando eram guardas-marinhas e tenentes, e se falavam com absoluta franqueza, por isso, ao final da refeição frugal (que havia consistido na galinha mais gorda do Excellent cozida, ainda que ainda dura e hebrosa), quando ficaram sozinhos, Jack comentou:
- Ver ao almirante me impressionou.
- Não tenho dúvida - disse Heneage. - Também me impressionou quando fui ao navio insígnia pela primeira vez depois de chegar aqui. Desde então apenas o vi, mas dizem que está muito pior. Sobe ao convés muito poucas vezes, só meia hora ao anoitecer, quando esfria, e raramente alguém se senta à sua mesa. Como o encontrou?
- Parece cansado, exageradamente cansado, e apenas pode levantar-se do assento. Tem as pernas como paus de vassoura. O que lhe passa?
- Seguir aqui, no mar, é o motivo. Seguir fazendo este infernal bloqueio e, ademais, procurar que seja mais estrito que nunca com uma esquadra miserável formada por navios velhos e desconjuntados, a maioria deles com tripulantes escassos e todos com escassas provisões. Além do mais, o segundo ao comando da esquadra é um incompetente e os capitães, lerdos e incômodos. Asseguro-lhe que isto será sua morte, Jack. Eu tenho menos da metade de sua idade e só faz três meses que estou aqui, e já acho o barco uma prisão. Fazer um bloqueio é como estar em outro mundo, isolado, com escassos víveres e as camisas escurecidas, suportando o mau tempo, cansado e chateado de permanecer em um posto que lhe corresponde e estar sob a vigilância do almirante. Ele passou muitos anos assim, muitos mais que qualquer outro almirante.
- Por que não regressa para sua casa? Por que não o substituem?
- Quem poderia pegar o comando? Harte?
Então ambos soltaram uma gargalhada brincalhona.
- Franklin - sugeriu Jack - ou Lombard, ou inclusive Mitchell. Todos são eperimentados marinheiros e poderiam encarregar-se do bloqueio. Franklin e Lombard atuaram muito bem em Brest e Rochefort.
- Mas aqui não tem só que encarregar-se do bloqueio, tonto - disse Dundas. - O almirante poderia dirigir o bloqueio com uma mão atada às costas e, se só tivesse que ocupar-se disso, estaria forte e rosado como você ou como eu. A propósito, Jack, parece que perdeu muita gordura desde que nos vimos pela última vez. Deve de pesar menos de duzentas libras… Pois se só tivesse que ocupar-se do bloqueio, um monte de homens poderiam substituí-lo, porém, além de vigiar os franceses, tem em suas mãos todo o Mediterrâneo e os lugares cujas costas banha: Catalunha, Itália, Sicília, as ilhas Jônicas, Turquia e os territórios vizinhos que estão sob seu domínio, Egito e Berbéria. E é particularmente difícil tratar com esta última região, Jack, garanto. Enviaram-me para negociar com o dey e tive bastante êxito, ainda que nosso cônsul tratou de pôr-me travas, e estava satisfeito de mim mesmo; contudo, quando voltei ali umas semanas depois para tratar do caso de alguns escravos cristãos, o dey havia sido assassinado por seus soldados e havia outro no palácio, que esperava receber presentes e queria estabelecer um novo acordo. Não sei se o cônsul e seus homens maquinaram a conjura, mas o Ministério de Assuntos Exteriores tem alguns homens infiltrados ali. Ned Burney reconheceu um primo seu que ia vestido com um lençol.
- Os civis não devem se meter no nosso terreno… e do almirante da frota.
- Não devem meter-se, mas se metem. E também o Exército tem se metido, pelo menos na Sicília. Isso faz mais complicadas as coisas, que já são bastante pelo fato de ter negociar com dúzias de governantes, poderosos e débeis. Um nunca sabe como são suas relações com a Berbería, mas a região é nossa principal fonte de provisões. Além disso, os beis e paxás da Grécia e dos territórios que bordejam o mar Adriático raras vezes obedecem ao sultão turco, são quase independentes, e alguns estão dispostos a pôr-se do lado dos franceses para conseguir seus objetivos. Nos sicilianos não se pode confiar, e com relação aos turcos, não sei exatamente qual é nossa posição, ainda que sei que evitamos a todo custo provocá-los por medo que se juntem aos franceses. Mas o almirante sim o sabe. O almirante maneja todos os fios desta complexa trama, não há dúvida, e são muitos os faluchos, as falucas e as galeotas que se aproximam do navio insígnia; nenhum recém chegado terá facilidade de movê-los, sobretudo porque as instruções demoram muito para serem recebidas. Amiúde passamos meses e meses sem receber as ordens do Almirantado, nem o correio, e o almirante tem que fazer a função de diplomático e inclusive de embaixador para que esses governantes sigam sendo leais, e, ainda tem que ocupar-se da esquadra.
- Seria difícil substitui-lo de imediato mas não é possível que eles pensem em deixá-lo aqui até que morra de tanto trabalhar. Se morrer, terão que mandar um almirante novo, e não saberá o que fazer porque não haverá ninguém que o ponha a par de tudo quando pegue o comando. Contudo, dizem que já pediu sua substituição várias vezes. E até a própia lady Thornton me disse.
- Sim, pediu - consentiu Dundas e vacilou antes de continuar, pois obtivera informação confidencial sobre ele através de seu irmão maior, que tinha um alto cargo no Almirantado, e se perguntava que parte dela era lícito revelar. - Sim, pediu para ser substituído, porém, aqui entre nós, Jack, só entre nós, sempre de maneira que tivesse uma escapatória, sempre de maneira que pudessem pressioná-lo a continuar e ele pudesse ceder. Nunca enviou um ultimato, e, além disso, não acredito que no Almirantado saibam o quanto ele está enfermo. Mandaram reforços, nomearam-no general da infantaria da marinha e promoveram seus oficiais e acreditam que assim solucionaram o caso.
- Apesar disso, ansia regressar para casa - disse Jack. - este caso é muito complicado.
- Acredito que a explicação é esta: ansia voltar para casa e deveria voltar para casa, mas o que mais ansia é que a esquadra entre em combate com os franceses. E, em minha opinião, ficará enquanto houver uma possibilidade de enfrentá-los, e há, porque eles são superiores em número. Ou entabula esse combate ou morre a bordo de seu barco.
- Na verdade, eu o admiro por isso - disse Jack e depois repetiu: - Deus queira que os franceses saiam.
Fez uma pausa e levantando-se, acrescentou:
- Obrigado pelo jantar, Hen. Poucas vezes tomei um vinho do porto tão bom.
- Agradeço pela sua amabilidade em vir - disse Dundas. - Tinha muitas vontade de falar com alguém porque estava muito chateado e cansado de estar sozinho. Em um bloqueio não são freqüentes as visitas aos colegas dos outros barcos. Às vezes jogo xadrez de maneira que minha mão direita seja adversária de minha mão esquerda, mas isso não é muito divertido.
- Como são seus oficiais?
- Em geral, são bastante bons. Todos são jovens, certamente, com excessão do primeiro oficial, que poderia ser meu pai. Os convido para comer alternativamente e eles me convidam nos domingos, mas com eles não posso ter realmente uma conversa nem relaxar, e acho as noites lentas, intermináveis, melancólicas, desagradáveis… - disse Dundas e soltou uma risada. - São homens com os que tenho que comportar-me como um semideus desde uma medição de meio-dia até a do dia seguinte, e já estou cansado de fazê-lo e duvido que minha representação desse papel seja convincente. Você é muito afortunado, porque Maturin lhe faz companhia. Cumprimente-o de minha parte, por favor. Espero que tenha tempo de vir visitar-me.
Maturin apreciava o capitão Dundas e tinha intenção de visitar-lhe, mas primeiro devia ir ver o almirante e o médico chefe da esquadra. Havia se arrumado pela manhã cedo, depois que Killick revisou e escovou bem seu uniforme, depois passara pela inspeção de Jack no café da manhã, e agora se encontrava no castelo de popa falando com o senhor Martin.
- A bandeira que está na ponta do mastro do meio indica que sir John Thornton é um almirante da esquadra branca - disse - e, como pode ver, é uma bandeira branca; em troca, aquela outra que está no mastro da popa do barco grande situado à esquerda, ou seja, no mastro mezena, como nós dizemos, é vermelha, o que denota que o almirante Harte é um contra-almirante da esquadra vermelha. Se avistássemos daqui o navio do senhor Mitchell, que está no comando da frota situada perto da costa, veríamos que tem içada uma bandeira azul, também no mastro da popa, e isso significa que é um contra-almirante da esquadra azul e, portanto, um subordinado de sir John Thornton e também do senhor Harte. As esquadras seguem esta ordem: primeiro a vermelha, depois a branca e depois a azul.
- Três vivas para a esquadra vermelha, a branca e a azul! - exclamou o senhor Martin entusiasmado, pois tinha ante ele um magnífico espetáculo, um bom número de gloriosos barcos de guerra reunidos debaixo do luminoso céu da manhã, nada menos que oito enormes navios de três cobertas, quatro navios de linha e muitos outros barcos menores.
Contudo, a perfeita colocação das vergas, perpendiculares aos mastros, a tinta fresca e o brilho dos canhões de bronze ocultavam que muitos se deterioravam com rapidez por estarem expostos constantemente ao rigor do tempo, que alguns já haviam superado o período de serviço, e ainda que a um marinheiro não passariam desapercebidos os mastros reparados e os fios de cabos usados na exárcia, os únicos indícios de seu estado real que podia notar um homem de terra adentro eram os remendos das velas e os franjas que o vento havia formado nas bandeiras.
- E provavelmente a bandeira britânica ondeando no navio do almirante significará que ele ostenta o comando supremo - acrescentou.
- Acho que não, senhor - disse Stephen. - Disseram-me que indica que um conselho de guerra vai se formar esta manhã. Talvez goste de assistir os julgamentos. Qualquer um pode presenciá-los, e talvez através deles possa conhecer melhor a Armada.
- Não tenho dúvida de que serão muito interessantes - disse Martin mais sereno.
- O capitão Aubrey terá a amabilidade de levar-me em sua falua, que já estão preparando, como vê. É uma embarcação espaçosa, e acredito que o capitão lhe dará um lugar nela. Por outro lado, não será difícil subir a bordo do navio insígnia, porque é o que chamamos um navio de três cobertas e tem uma porta no meio que chamam de porto de entrada. Se quiser, perguntarei ao capitão quando ele venha.
- Sim, por favor, se está seguro de que não o molestarei…
Então se interrompeu e, assinalando com a cabeça para um lugar próximo dos galinheiros, onde alguns cordeiros e um melancólico cachorro pastor se arejavam, disse:
- Sempre vejo esse menino com o bezerro quando venho pela manhã cedo. Diga-me, esse é outro costume da Armada?
- Sim, de certa forma. Esse cadete fraco é o senhor Calamy. Quer ser grande e forte, extraordinariamente forte, e alguns cadetes de mais idade, com muita malícia, disseram-lhe que se percorre certa distância com o bezerro sobre os ombros todos os dias, seu corpo se acostumará a suportar o peso do animal, cada vez maior, e que quando o animal alcançar seu máximo desenvolvimento ele será outro Milo de Crotona. Lamento dizer que foi o filho de um bispo o primeiro que o convenceu a fazê-lo. Olhe, caíu outra vez… Apressa-se a arrumar sua carga… Esses filhos de Judas o convencem… É uma vergonha abusar tanto desse pobre menino… O bezerro lhe deu uma patada… Logra dominar o bezerro… Cambaleia… Também lamento dizer que os oficiais e inclusive o capitão o animam. Ah, aí vem o capitão! Parece que está quase pronto.
O capitão Aubrey ainda não estava preparado porque Killick não havia terminado de recompor o laço dourado de seu melhor chapéu de três bicos, que os ratos haviam comido durante a noite. (Havia muitos ratos no Worcester e causavam muitos prejuízos, mas bastariam vários meses de bloqueio para acabar com eles, já que os marinheiros e os guardas-marinhas lhes comeriam nesse tempo.) Jack levantou a vista mecanicamente para escrutinar o céu e ver como estavam orientadas as velas e depois olhou ao seu redor e viu ao pequeno grupo que se encontrava no corrimão de bombordo, sorriu e, em tom alegre, gritou:
- Continue, senhor Calamy! A perseverança tudo alcança!
Nesse momento chegou seu chapéu, e, depois de colocá-lo, respondeu ao pedido de Stephen.
- Certamente, sem dúvida. Smith, ajude ao senhor Martin a descer pelo costado. Vamos, doutor.
A falua começou a avançar para o navio insígnia, e de outros pontos partiram muitas outras com rumo convergente, pois ali o conselho de guerra ia administrar justiça. Quando os capitães se reuniram, Jack cumprimentou a alguns antigos conhecidos, entre os quais havia vários que ele simpatizava, porém, de qualquer maneira, não gostava desse tipo de acontecimento, e quando viu o conselho reunir-se, quando viu o capitão da esquadra ocupar a presidência e o assessor jurídico e os outro membros sentarem-se dos lados dele e ao esbirro entregar uma lista dos casos para cada um, em seu rosto se refletiu o desgosto. A maioria dos casos eram de delitos talvez inevitáveis quando cerca de dez mil homens estavam juntos naquelas circunstâncias, muitos contra sua vontade, delitos muito graves para serem julgados apenas por um capitão, já que se castigavam com a pena de morte (entre eles estavam a deserção, consumada ou não, a agressão a um superior, o assassinato, a sodomia e o roubo, quando era de grande magnitude). Contudo, também havia casos em que os oficiais haviam se acusado entre si: alguns oficiais haviam denunciado a outros de sua mesma patente, alguns capitães haviam acusado a um tenente ou a um oficial de derrota de negligência, desobediência ou falta de respeito, e alguns tenentes haviam denunciado seu capitão por agir como um tirano ou por usar uma linguagem obscena e imprópria de sua categoria ou por embebedar-se ou pelas três coisas. Jack detestava estes casos, porque demonstravam a má vontade e o rancor que havia na Armada, onde era essencial que os homens estivessem contentes e tivessem boas relações para que seu trabalho fosse eficaz. Sabia muito bem que havia muita probabilidade de que os homens que faziam um bloqueio, devido a permanecerem no mar fosse qual fosse o tempo, aparentemente esquecidos, quase sem contato com sua família e com o mundo exterior, mal equipados e mal alimentados, tornassem muito irritáveis, e que, por consequência disso, as pequenas faltas e as ofensas leves podiam alcançar enormes proporções; contudo, ficava penalizado que houvesse um número tão alto destes casos na lista. Todos os problemas haviam tido origem em três navios, o Thunderer, ao comando do almirante Harte, o Superb e o Defender, nos quais os oficiais estavam brigando há meses. "Por sorte só haverá tempo para julgar alguns casos, e a maioria dos casos por faltas leves serão retirados depois que as duas partes falem com mais calma", pensou.
Tinha muita razão. Um conselho de guerra se formava excepcionalmente em um barco, onde não era possível que se mantivesse reunido tanto tempo como no porto; contudo, aquele conselho julgou mais casos dos que esperava, pois o assessor jurídico (neste caso o secretário do almirante, o senhor Alien) era um homem de inteligência aguda, metódico, enérgico e muito eficiente.
Julgaram os primeiros casos, os mais freqüentes, com grande rapidez, e as diversas sentenças de morte ou para receber ante a frota inteira duzentas, trezentas ou quatrocentas chicotadas (que às vezes significava o mesmo) entristeceram a Jack. Depois, devido ao suicídio do escrevente que era acusado de colaborar com os inimigos do Rei, cujo caso era extraordinário e, sem dúvida, o motivo daquela sessão, o conselho arbitrou em algumas das repugnantes disputas entre os oficiais. Jack sentiu um grande alívio porque esse julgamento não havia ocorrido, pois, apesar de não saber nada do escrevente, pensava que podia ter sido tão horrível como um que assistira em Bombaim, no qual um cirurgião competente e respeitável, mas muito liberal, fora sentenciado à morte na forca por dizer que alguns aspectos da Revolução francesa lhe pareciam bons. Não queria assistir mais vezes ao assessor jurídico dizer para um réu convicto em tom solene que iam dar-lhe a morte, sobretudo porque sabia que havia grandes probabilidades de que o chefe da esquadra, um homem tão severo com os outros como consigo mesmo, confirmasse todas as sentenças.
Os oficiais inimizados, um depois do outro, pegaram todos os trapos a reluzir. Fellowes, o capitão do Thunderer, um homem corpulento com a cara vermelha, uma negra barba e gesto de enfado, estava implicado nada menos que em três casos, como acusado ou acusador; Charlton, o capitão do Superb, e Marriot, o capitão do Defender, estavam relacionados com dois. O conselho julgou com benevolência estes casos, e frequentemente, quando se reiniciava a sessão após a deliberação de seus membros, o assessor jurídico dizia: "O conselho analisou cuidadosamente todas as provas e considera que demostram em parte que as acusações são verdadeiras, e tomou a resolução de admoestar-lhe por sua petulância e cominar-lhe para que no futuro seja mais circunspecto e não ofenda aos demais dessa maneira, e por este meio lhe admoesta e se lhe comina a se corrigir". Contudo, um jovem oficial foi trasladado de barco, e outro, que havia respondido irrefletidamente a uma provocação de Fellowes, foi expulso da Armada. Ambos oficiais eram tripulantes do Thunderer, e, no segundo caso, a prova concluente, a interpretação da reação do oficial como um ato imprudente, a fora feita por Harte, que falara com evidente ressentimento. Depois o conselho julgou o caso de um tripulante assassinado por outro que estava bêbado, e quando Jack escutava envergonhado os conhecidos testemunhos, observou que Martin também escutava com atenção, com a cara pálida e uma expressão de assombro. "Se queria conhecer o lado feio da Armada, não podia ter escolhido um lugar melhor", pensou, no momento em que um dos marinheiros que atuava como testemunha dizia:
- Ouvi o defunto ofender gravemente ao réu. Primeiro o chamou de maldito canalha e depois lhe maldice. Então lhe perguntou como chegara ao barco e se alguém o trouxera, e depois maldice a essa pessoa. Depois não pude entender o que o defunto disse, por que gritava furioso, mas o suboficial Joseph Bates lhe disse que fosse à merda. Não era um bom marinheiro…
Enquanto eram julgados os primeiros casos, Stephen estava em companhia do doutor Harrington, o médico chefe da frota, um antigo conhecido a quem estimava muito, um homem doutor com estupendas idéias sobre a higiene e a medicina preventiva, mas muito tímido e débil para pôr-las em prática na Armada. Falaram principalmente da excelente saúde dos homens da esquadra. Não havia casos de escorbuto porque tinham muito perto os laranjais da Sicília; havia poucos casos de doenças venéreas porque raras vezes os navios iam aos portos e o almirante havia proibido a presença de mulheres a bordo, salvo em casos excepcionais, que eram muito poucos; não havia feridos por consequência de combates, evidente; e em todos os barcos, exceto no Thunderer, no Superb e no Defender, havia muito poucos tripulantes afetados das doenças freqüentes entre os marinheiros.
- Acho que isto se deve ao uso de mangueiras de ventilação, que permitem que chegue abaixo um pouco de ar fresco - disse Harrington - à constante distribuição de antiescorbúticos e ao fato de que se reparte vinho, uma bebida sã, em vez de rum, uma bebida perniciosa; se bem devo admitir que a alegria, ainda que seja moderada, é um dos fatores principais. Nos navios onde os tripulantes bailam, representam obras dramáticas ou tocam música no castelo frequentemente, quase não há enfermos; ao contrário, nos três que mencionei, onde a dieta é igual que a dos demais e também há mangueiras de ventilação e se distribuem antiescorbúticos, os cirurgiões sempre estão ocupados.
- Sem dúvida, a influência da mente no corpo é sumamente grande - disse Stephen. - Constatado isso muitas vezes, e o hão dito inumeráveis autoridades em medicina, desde Hipócrates ao doutor Cheyne. Queria que pudéssemos receitar felicidade.
- Queria que pudéssemos receitar bom senso - disse Harrington - porque esse seria o primeiro passo para consegui-la. Mas os membros do Almirantado opõe tanta resistência às e os marinheiros têm tanto apego a suas tradições, ainda que sejam prejudiciais, que às vezes me desanimo. Contudo, devo admitir que o almirante, ainda que seja um paciente difícil, apoia todas as reformas que trato de introduzir.
- É um paciente difícil?
- Acredito que inclusive poderia dizer, sem temor a exagerar, que é um paciente impossível. É desobediente e teimoso e medica a si mesmo. Ordenei para que fosse para sua casa não sei quantas vezes, mas teria tido o mesmo resultado se tivesse falado com o mascarão de proa. Sinto muito que seja assim. Mas o senhor já deve saber que tipo de paciente é, pois ele me disse que lhe havia consultado anteriormente.
- Qual é seu estado de saúde agora?
Harrington encolheu os ombros e respondeu:
- Na verdade, só o que posso dizer-lhe é que seus membros inferiores estão debilitados e que todo seu organismo se deteriora progressivamente - respondeu, mas continuou dando-lhe detalhes de sua deterioro. - Perdeu muita força, apesar da função digestiva e da evacuação serem normais, e suas pernas se debilitaram por falta de exercício. Às vezes tem enjôos, o que é estranho depois de tantos anos no mar e muito perigoso nas condições em que se encontra. Além disso, não dorme bem e se tornou muito irrascível.
- Ele perdeu a agudeza?
- Oh, não! Sua inteligência segue sendo tão aguda como sempre; contudo, sua tarefa além de mais dura que a que pode realizar um homem de sua idade, e inclusive de qualquer idade, que não goze de boa saúde. Imagine o que significa ocupar-se não só de uma grande esquadra na que abundam os conflitos, mas também de todos os assuntos do Mediterrâneo, particularmente dos do Mediterrâneo oriental, onde há problemas políticos tão complicados? Trabalha catorze ou quinze horas diárias e apenas tem tempo para comer, e muito menos para digerir. Ademais, há que ter em conta que simplesmente há recebido a educação que se dá a um marinheiro e, contudo, exige-se dele, e já há muitos anos, tudo isso. Me admira que ainda não tenha morrido de esgotamento. Os medicamentos que lhe receitei, a quina e o ferro, podem fazer-lhe bem, mas se não for para sua casa, só uma coisa lhe devolverá as forças.
- Qual?
- Travar uma batalha, uma batalha vitoriosa, com os franceses. Há alguns momentos o senhor falava da influência da mente sobre o corpo… Estou convencido de que se os franceses sairem de Toulon e travarem um combate com a esquadra, sir John recuperará as forças. Voltará a ficar alegre, a comer e a fazer exercícios, e terá o vigor de um jovem. Recordo que depois da batalha do 1 de junho, lorde Howe, que tinha então quase setenta anos e estava velho para sua idade, mudou muitíssimo. No início da batalha estava sentado em uma cadeira de braços no castelo de popa do Charlotte, morto de cansaço por falta de sono, e quando esta chegava ao seu fim, transbordava de energia, seguia todos os movimentos e deu as ordens decisivas para alcançar a vitória. E seguiu assim durante anos e anos. Nós o chamávamos de Dick o Duro… - disse, olhando seu relógio. - Dentro de pouco terá que visitar o nosso paciente e talvez possa apreciar algum sintoma do mau funcionamento de um órgão que me haja passado desapercebido, mas antes quero mostrar-lhe um caso muito raro, isto é, um cadáver que me desconcertou.
Então levou Stephen para baixo, e ali, num compartimento triangular iluminado por um escotilhão, jazia o cadáver em questão. Era o cadáver de um homem jovem, arqueado para trás de maneira que só tinha a cabeça e os calcanhares apoiados no piso e com um olhar horrorizado e um sorriso tão amplo que a boca estava estendida quase de orelha a orelha. Ainda tinha as mãos atadas com correntes e os pés presos por grilhões, e como o navio não cabeceava nem se balançava, estes o faziam manter sua posição.
- Era o escrevente maltês - disse Harrington - um lingüista contratado pelo secretário do almirante para escrever os documentos em árabe. Ao que parece, havia alguns indícios de que fazia um uso incorreto desses documentos. Não conheço os detalhes do caso, porém, obviamente, teriam sido revelados se houvesse vivido o suficiente para estar no julgamento. O que o senhor acha?
- Estou quase seguro de que morreu de tétano - disse Stephen, apalpando o cadáver - porque se notam claramente algumas características da doença, como o opistótonos, o trismo, o riso sardónico e a rigidez dos membros; contudo, também poderia ter se envenenado com tintura de noz vomitória ou com qualquer outro extrato obtido dessa noz.
- Exatamente - disse Harrington. - Porém, como poderia ter agarrado a poção com as mãos atadas? Estou desconcertado.
"Chamem ao doutor Maturin!", gritou uma voz desde a cabine do almirante, e o grito foi repetido ao longo das cobertas e chegou até onde eles se encontravam quando ainda examinavam o cadáver.
Stephen vira o almirante muitas vezes em anos anteriores, quando sir John era membro da Junta do Almirantado, quando era um jovem lorde e se ocupava dos Serviços Secretos. O almirante, que sabia o motivo de sua presença no Mediterrâneo, disse:
- Fiquei sabendo que a reunião que o senhor espera ter com algumas pessoas na costa francesa não se celebrará imediatamente e que deseja ir antes a Barcelona. Chegar a Barcelona não apresenta dificuldades, e qualquer dos vendedores poderia levá-lo até ali e depois trazer-lhe de volta para Mahón quando deseje, mas é evidente que deve ir em um navio de guerra para a costa francesa. Como disponho de muito poucas corvetas e avisos, penso fazer coincidir a sua visita com o regresso de um navio de linha a Mahón. Talvez o Thunderer seja o que mais necessite reabastecer.
- Se não o necessita com urgência, senhor - disse Stephen - preferiria que enviasse o Worcester. Na verdade, penso que essa seria a solução ideal. Pegar-nos desse litoral a mim e às pessoas que provavelmente me acompanhem é uma questão delicada, e o capitão Aubrey, que quase sempre navegou comigo, está acostumado a missões deste tipo. Além do mais, é um homem discreto, algo muito importante e que deveria se ter em conta ao levar a cabo operações similares no futuro.
Desde que Stephen entrara, a cachorra esteve olhando-lhe fixamente e farejando o ar, e nesse momento se levantou, atravessou a cabine cabeceando e movendo o que lhe restava de calda, e dando um grande salto subiu e se sentou em suas pernas ofegando. Depois voltou a olhar-lhe fixamente e a cheirar.
- Sei que é um excelente marinheiro, e ninguém pode pôr em dúvida sua valentia - disse o almirante, e uma tímido sorriso iluminou seu pálido rosto - mas até agora não havia ouvido a ninguém chamá-lo de discreto.
- Talvez devesse ter acrescentado no mar. O capitão Aubrey é muito discreto no mar.
- Muito bem - disse o almirante. - Vou ver o que pode ser feito.
Então pôs os óculos, escreveu uma nota e, estendendo o braço, a colocou em cima de um dos montes de papéis cuidadosamente ordenados que havia em cima da mesa. Depois, limpando as óculos, continuou:
- Pelo que vejo, Tabby sente simpatia pelo senhor. É uma cachorra que sabe julgar as pessoas. Alegro-me que tenha vindo, Maturin. Não consigo muita informação sobre o que ocorre na zona, ainda que o senhor Alien, meu secretário, tenha recrutado vários agentes secretos bons, e, além disso, tivemos a ajuda do senhor Waterhouse, o colega de sir Joseph, até que os franceses o capturaram na costa e o mataram. Essa é uma perda irreparável.
- Ele sabia que eu viria?
- Só sabia que viria um cavalheiro. Porém, mesmo que soubesse que esse cavalheiro era o doutor Maturin, não há motivos para temer que o haja delatado, porque era o homem mais reservado que conheci, ainda que aparentava ser aberto… Volto sciolto, pensieri stretti… Alien e eu nos informamos de muitíssimas coisas através dele; contudo, geralmente estamos muito longe de terra para obter informação, enquanto que os franceses têm vários homens muito astutos em Constantinopla, Egito, e, conforme acredito, inclusive em Malta. Alien havia contratado a um escrevente maltês, e descobrimos que lhes vendia cópias de nossos documentos, provavelmente há meses. Ele será julgado hoje - disse, levantando o olhar para a grande cabine do capitão, onde estava reunido o conselho de guerra - e devo confessar que me preocupa qual será o resultado do julgamento. Não podemos pedir a um grupo de oficiais da Armada inglesa que levem em consideração uma raison d'État, e, contudo, sem uma sentença ditada por eles não podemos enforcá-lo. Por outro lado, não nos é possível mostrar os documentos, dos quais, lamentavelmente, já se conhecem muitos detalhes, e tampouco amordaçar ao escrevente para evitar que declare e, desse modo, descubra demasiadas coisas. Espero que Alien maneje o caso habilmente. Tirou muito proveito das ensinamentos do senhor Waterhouse.
- Não tenho dúvida - disse Stephen. - Tenho entendido que o senhor Alien é um homem muito inteligente e determinado.
- Ele é, graças a Deus, e faz todo o possível para opor-se aos entrometidos que contribuem para piorar uma difícil situação.
- Acredito o senhor se refere aos cavalheiros do Ministério de Assuntos Exteriores.
- Sim. Os homens de lorde Weymouth. O Exército também me causa bastantes problemas, porque faz promessas e alianças não autorizadas; contudo, só intervém em Sicília e Itália, enquanto que os cônsules e os homens a serviço dos consulados se encontram em todas partes, e cada um tem seu própio plano secreto e seus própios aliados locais e trata de que alcancem o poder os governantes que lhes convêm, especialmente nos pequenos estados de Berbería… Por Deus! Parece que seguimos ao mesmo tempo meia dúzia de políticas diferentes que não dependem de um poder central nem de nenhuma autoridade. Na França organizam melhor estas coisas.
Stephen reprimiu seu profundo desejo de contradizer-lhe e disse:
- Quero que saiba, senhor, que um dos motivos pelos quais subi a bordo deste navio, e não o menos importante, era falar de seu estado de saúde com o doutor Harrington. Ele Já me disse o que acha, e agora eu tenho que examinar-lhe.
- Em outro momento - disse o almirante. - Encontro-m muito bem. Meus únicos problemas são a papelada e a falta de tempo. Não tenho nem meia hora livre por dia! Mas o tônico de ervas me ajuda a manter-me em boas condições físicas. Eu entendo meu própio organismo.
- Por favor, tire a casaca e os calções - disse Stephen com impaciência. - A saúde do chefe da esquadra não é um assunto privado aliás que concerne a todos os membros dela e inclusive a toda a nação. E esqueça-se do tônico de ervas.
Durante o comprido exame, Stephen não notou sintomas do mau funcionamento de um órgão somente mas de todo o organismo, que, sem dúvida, era obrigado a fazer um trabalho superior ao que estava em condições de realizar.
- Após falar com o doutor Harrington - disse por fim - trarei alguns remédios e me assegurarei de que o senhor tome. Mas devo lhe dizer, senhor, que os franceses são a cura para seu mal.
- Tem razão, doutor - disse o almirante. - Estou convencido de que tem razão.
- Há alguma possibilidade de que saiam nos próximos dois ou três meses? E quando digo dois ou três meses falo com conhecimento de causa, senhor.
- Acredito que sim. Mas o que me preocupa é que possam sair sem que percebamos. O que os cavalheiros de Londres não entendem é que o bloqueio de um porto como Toulon não é algo seguro, pois para esquivar-nos os franceses só têm que ir com suas lunetas até o alto das montanhas situadas atrás da cidade quando o vento do norte sopre com força, quando nós abandonamos nossos postos, e observar que rumo fazemos. A atmosfera é muito clara quando sopra o vento do norte, e dali a vista alcança cinqüenta milhas ou mais. Sei que dois de seus barcos saíram no mês passado. Se sua esquadra se me escapa, meu coração se partirá, sobretudo porque isso poderia inclinar a balança da guerra. O tempo está contra mim, pois por sua causa a esquadra se deteriora com rapidez. Cada vez que sopra o mistral, perdemos alguns paus, os mastros racham e piora o estado geral dos navios. E enquanto isso, os franceses constroem barcos tão rápido como podem. Se não nos vencem os franceses nos vencerá o tempo - disse enquanto terminava de pôr a roupa e depois, assinalando para cima com a cabeça, acrescentou: - Demoram muito em acabar.
Sentou-se em sua mesa e ficou refletindo alguns momentos.
- Ocuparei-me destas cartas enquanto esperamos Alien - disse, rompendo o lacre de uma, e depois de dar-lhe uma espiada, acrescentou: - Necessito de óculos com maior grau. Importaria-se de ler-me esta carta, Maturin? Se for a que espero, devo começar a preparar a resposta imediatamente.
- É de Mohamed Alí, paxá do Egito - disse Stephen ao pegar a carta e depois ajudou a cachorra a subir outra vez em suas pernas. - Foi escrita no Cairo no dia 2 deste mês e diz assim: "Ao mais destacado chefe das potências cristãs, o moderador do sínodo dos prelados da Igreja de Jesus, o possuidor da sabedoria, da prudência e do mais extraordinário talento, do divulgador da verdade, do perfeito modelo de cortesia e cavalheirismo, nosso verdadeiro amigo, Thornton, almirante da Armada inglesa. Que sua morte seja agradável e sua vida esteja marcada por acontecimentos felizes e importantes. Depois de apresentar-lhe nossos respeitos a Sua Excelência, informamos, distinto amigo, que havemos recebido suas amáveis cartas traduzidas para árabe e as havemos lido e compreendido seus conselhos (tão bem expressados como sensatos) com respeito ao controle e a defesa de nossos portos. Seus sábios conselhos e a afirmação de que ainda tem em grande estima a este velho e fiel amigo nos hão enchido de gozo. Prometemos que sempre receberá mostras de nossa sincera amizade e de nosso respeito, e imploramos a Deus que assim seja e que conserve o respeito e a estima entre nós".
- Muito amável, porém, obviamente, evade o assunto - disse o almirante. - Não diz nem uma palavra do ponto principal de minha mensagem.
- As cartas em árabe que mencionou chamaram a minha atenção.
- Bem, as cartas da Armada para os estrangeiros são escritas em inglês, mas quando quero que as coisas se façam rápido, se me é possível, mando fazer cópias não oficiais numa língua que eles possam entender. Além desse maldito maltês, temos outros escreventes que fazem cópias em árabe e em grego, e nós mesmos as fazemos em francês, e com elas alcançamos numerosos objetivos; contudo, nos faz falta alguém que as faça em turco. Daria qualquer coisa por um tradutor de turco confiável. Agora esta carta, por favor.
- Está firmada pelo paxá de Barka, mas não tem data. Diz assim: "Graças sejam dadas a Deus! Ao almirante da Armada inglesa, que a paz esteja com ele. Nos hão dito que trata bem a nossa gente, o que sabemos que é verdade, e que é amigo dos mouros. Nós lhe ajudaremos com muito gosto em tudo o que possamos. Antes era outro paxá o que governava, mas agora está morto e eu assumi o poder, e vamos proporcionar-lhe ao senhor tudo o que necessite, com a ajuda de Deus. O cônsul de seu país que reside aqui nos trata muito mal, e queremos que se comporte e fale de melhor forma conosco, e nós corresponderemos na mesma forma, como sempre havemos feito. Conforme o costume, quando um novo paxá é escolhido, manda-se alguém para felicitar-lhe. Mohamed, paxá de Barka".
- Sim, estava esperando isto - disse o almirante. - Faz pouco Mohamed nos sondou para saber se o ajudaríamos a depor ao seu irmão Jaffar, mas isso não nos convinha porque Jaffar era um bom amigo nosso e, ademais, porque sabíamos muito bem, tanto por seus atos como pelas cartas interceptadas, que Mohamed era amigo dos franceses e que eles prometeram colocá-lo no lugar que ocupava seu irmão. Provavelmente os barcos que saíram de Toulon foram ali com esse propósito - disse e, depois de pensar um momento, acrescentou: - Tenho que averiguar se os franceses ainda estão ali, o que é muito provável, e depois tentarei pôr fim às ações desonestas de Mohamed provocando-lhe para que deixe de ser neutro. No momento em que faça o primeiro disparo, se comprometerá, e então poderei enviar um potente destacamento para restabelecer Jaffar, que se encontra na Argélia, em seu posto e talvez consiga capturar os franceses ao mesmo tempo. Sim… sim. Agora esta outra, por favor.
- Esta é do imperador de Marrocos, senhor, e está dirigida ao rei da Inglaterra por meio do almirante de sua gloriosa armada. Diz assim: "Em nome de Deus, que é nosso pai e nosso princípio, e aquele em quem depositamos nossa fé. De parte deste servo de Deus que só nele confia, do imperador desta nação, eu, Solimán, descendente dos imperadores Mohamed, Abdullah e Ismael, guardiães dos crentes, eu, o imperador da grande África, em nome de Deus e por sua ordem, o senhor deste reino, o imperador de Marrocos, Fez, Tánger, Dra e Settat, para Sua Majestade o rei da Grã-Bretanha, Jorge III, duque de Brunswick, defensor da fé, o melhor e mais digno dos reis, a glória de seu país, que reina em Grã-Bretanha, Irlanda", etcétera. "Que o Senhor lhe dê muita alegria e longa vida. Tivemos a honra de receber a carta de Sua Majestade, que nos foi lida, e estamos muito contentes de que nos assegurasse que está unido a nós por amizade, o que já sabíamos porque atendeu nossos desejos e há feito favores a nossos representantes e a nossos súditos, e por tudo isso lhe estamos profundamente agradecidos. Sua Majestade pode estar seguro de que faremos o que estiver ao nosso alcance para ajudar aos seus súditos em nossos domínios, e seus barcos e suas tropas podem deter-se em nossos portos. Rogamos ao Todo-poderoso que não se acabe nunca esta amizade que começou muitos anos atrás, em tempos de nossos antepassados, e que os laços que nos unem sigam fazendo-se mais fortes até o fim de nossas gerações. Sempre estaremos preparados para fazer, quando Sua Majestade nos peça, tudo o que contribua para sua felicidade e a de seus súditos. Antes de escrever esta carta, nós demos ordens expressas de que todos os barcos britânicos que chegassem aos nossos portos fossem abastecidos com o dobro da quantidade de víveres estipulada e todas as demais provisões que necessitassem, e, como dissemos antes, estamos preparados para cumprir suas ordens. Concluímos com nossos rogos a Deus pela saúde, a paz e a felicidade de Sua Majestade. "
- Quanto me alegro com isso! - exclamou o almirante. - Estas fontes de abastecimento são muito importantes para nós, e o imperador é um homem de confiança. Gostaria de poder dizer o mesmo dos governantes turcos e paxás do Adriático e de alguns governantes europeus. Ah, Alien, finalmente há vindo! Doutor Maturin, permita-me apresentar-lhe o meu secretário, o senhor Alien. O doutor Maturin… - disse, e ambos fizeram uma inclinação de cabeça e se escrutinaram com o olhar. - Como foi a sessão?
- Muito boa, senhor - respondeu Alien. - Pudemos julgar muitos casos, e tenho aqui algumas sentenças que necessitam de sua confirmação. Não foi necessário julgar ao maltês porque morreu antes de que seu caso fosse tramitado. Ao que parece, ele se envenenou.
- Ele se envenenou? - perguntou o almirante com uma expressão de desgosto, olhando-lhe fixamente, mas imediatamente seu olhar perdeu a viveza, e murmurou: - Que importância tem um homem, afinal?
Depois virou seu pálido rosto para os papéis com as sentenças e as confirmou uma a uma com sua primorosa rúbrica.
Houve calmaria durante toda a noite, e pela manhã, apesar do céu ameaçador, da queda da pressão e das premonitórias ondas que vinham do sudeste, as sentenças foram executadas. O senhor Martin, que havia passado a noite no Defender com os dois homens condenados a morte, pois não havia nenhum pastor a bordo e o barco que tinha designado ainda não havia chegado, acompanhou a cada um deles, em meio dos tripulantes do navio congregados e de lanchas de toda a esquadra que se haviam aproximado deste, justamente até o pé do peñol da verga traquete, onde beberam o último trago de rum antes que lhes atassem as mãos, vendassem seus olhos e lhes pusessem a forca no pescoço. Estava muito perturbado quando voltou para o Worcester, contudo, quando mandaram os tripulantes se reunirem no convés para presenciar os castigos, colocou-se entre eles no lugar que considerava que lhe correspondia, junto de Stephen, para ver a horrível procissão de botes onde iam os homens que deviam ser açoitados diante de todos os navios da esquadra, escoltados por lanchas armadas.
- Acho que não posso suportar isto - disse em voz baixa quando o terceiro bote se abordou com o navio e o oficial encarregado de que se cumprissem as condenações leu em voz alta a sentença pela sétima vez, o que era o requisito legal preliminar para que o réu recebesse outros vinte açoites, esta vez das mãos do contramestre do Worcester e seus ajudantes.
- Isto não durará muito mais tempo - disse Stephen. - No bote há um cirurgião e pode pôr fim à série de açoites quando lhe pareça oportuno. E se tem entranhas, porá fim depois desta porção.
- Ninguém tem entranhas nesta impiedosa instituição - disse Martin. - Como podem estes homens esperar o perdão? Este castigo é bárbaro, bárbaro, bárbaro… O bote está cheio de sangue - disse em voz baixa, como se falasse consigo mesmo.
- De toda maneira, acho que esta surra será a última, porque o vento está aumentando de intensidade. Olhe, o capitão e o senhor Pullings estão observando as velas.
- Deus queira que haja um furacão.
O vento soprou mais e mais forte, mas não alcançou a força de um furacão. Era um vento úmido que vinha da África, e a princípio chegou em violentas rajadas que levavam consigo a espuma das cristas das ondas e parte da sujeira dos btes que haviam sido usados para executar os castigos. No navio insígnia apareceram sinais que ordenavam aos capitães subir a bordo os botes e começar a navegar em fila em direção oeste-noroeste. A esquadra fez rumo para a França, e seus homens avistaram as gáveas da frota que permanecia perto de sua costa após duas horas, quando ainda podiam ver, através da chuva, as montanhas situadas atrás de Toulon, que se perfilavam sobre o horizonte com mais nitidez que as nuvens. Então um caique do Adriático se aproximou do navio insígnia e entregou numerosas cartas que aumentaram os montes de papéis que havia em cima da escrivaninha do almirante.
Chegaram boas notícias da frota que permanecia perto da costa, aquele grupo de fragatas que iam e vinham continuamente do cabo de Sicié a Porquerolles, desde que o vento fosse favorável, e chegavam justo ao limite do alcance dos canhões situados nas montanhas. O chefe da frota informou que os franceses haviam passado outros três navios de linha para a enseada exterior e que, assim como os outros que estavam amarrados ali, tinham as vergas colocadas e tudo preparado para zarpar. Além disso, confirmou que um navio de 74 canhões, o Archimède, e uma potente fragata, provavelmente a Junon, haviam logrado evadir-se durante uma tempestade, ainda que não soubesse para onde se dirigiram. Mas a Emeriau, o almirante francês, restavam ainda 26 navios de linha, seis deles de três cobertas, e seis fragatas de 40 canhões, enquanto que Thornton dispunha de 13 navios de linha e um número de fragatas que variava de acordo com a necessidade que tivesse de mantê-las em pontos remotos do Mediterrâneo, mas que em nenhum momento era superior a sete. Se bem que era verdade que vários navios franceses tinham escassos tripulantes e outros acabavam de ser recrutados e sua marinharia apenas tinha mais experiência que manobrar com cautela entre os cabos de Brun e de Carquaranne, o inimigo poderia sair com uma esquadra mais potente que a sua, com 17 eficientes navios de linha pelo menos, e como fazia pouco que Cosmao-Kerjulien, um homem enérgico e hábil, sucedera Emeriau no comando da esquadra, era muito provável que saísse.
Mas os franceses não saíram enquanto a frota que se mantinha perto da costa esteve ao alcance de sua vista, e tampouco quando o navio insígnia e o navio ao comando do almirante Mitchell desapareceram atrás da linha do horizonte para patrulhar as águas que o chefe da esquadra chamava de mar da esperança.
A esquadra formava uma fila perfeita, sob o atento olhar do exigente capitão e a estrita vigilância do almirante, ainda que ninguém podia ver-lhe. Os navios deviam permanecer na ordem correta, como se estivessem desfilando em um ato solene, e ao menor erro que cometiam seus capitães, eram repreendidos publicamente mediante um sinal no navio insígnia ordenando ao que havia se equivocado que mantivesse seu navio em seu posto, um sinal que, naturalmente, os outros podiam entender. Mas isso requeria dedicar grande atenção ao leme, as braças e as bujarronas, pois cada navio tinha um abatimento diferente, as velas orientadas de maneira diferente e uma velocidade diferente, e era tão esgotador como estar alerta dia e noite para ver se achavam algum barco da esquadra de Emeriau. Isto não era tão duro para os tripulantes do Worcester como para os que estavam a meses e mesmo anos fazendo-o, porque, por um lado, era uma novidade e, por outro, entre eles havia suficientes marinheiros de barcos de guerra para manobrar adequadamente. Era necessário realizar muitas tarefas, porém, devido a que os tripulantes do Worcester, ao contrário do restante dos navios, não estavam muito tempo navegando, ainda não as haviam repetido tantas vezes como para considerá-las rotineiras. Também por essa razão, a falta de companhia feminina ainda não se convertera em uma idéia obsessiva, e ainda que a esposa do condestável, uma mulher pouco atraente, de meia idade e muito séria, havia recebido numerosas propostas (propostas que rechaçara com firmeza, mas que não lhe haviam provocado assombro nem ressentimento porque estava acostumada à vida em um barco de guerra), a idéia de buscar um substitutivo apenas havia se estendido. Por sorte houve bom tempo durante um longo período e os tripulantes puderam fazer mais facilmente seu trabalho, e muito pouco depois já lhes parecia que essa vida exageradamente ordenada e esgotadora, onde não havia nem um momento de inércia, ia durar para sempre e que era uma vida absolutamente normal, preordenada.
Jack já conhecia à maioria dos seiscentos marinheiros e grumetes que integravam a tripulação, conhecia suas caras e suas aptidões e, em muitos casos, seus nomes, e tanto ele como Pullings opinavam que eram bastante bons em geral, ainda que havia entre eles alguns inúteis e muitos homens a quem o grogue subia imediatamente à cabeça, e que inclusive os camponeses se haviam adaptado à vida marinha.
Os que Jack menos gostava eram os guardas-marinhas, e inclusive os considerava os piores tripulantes. O capitão do Worcester estava autorizado a levar doze guardas-marinhas na tripulação, mas havia nove a bordo porque Jack havia deixado três vagas vacantes, e deles só quatro ou cinco tinham aptidões para ser oficiais da marinha. Os outros eram muito agradáveis e educados e não faziam estrago a ninguém, mas não tinham vocação de marinheiros e não se esforçavam para aprender a profissão. Elphinstone, o protégé do almirante Brown, e Grimmond, seu amigo íntimo, eram lerdos e já tinham mais de vinte anos. Os dois haviam suspendido o exame de tenente e eram admiradores de Somers, o terceiro oficial. Jack deixaria Elphinstone a bordo por consideração ao seu tio, mas se desfaria de seu amigo tão logo pudesse. Enquanto os cadetes, cujas idades oscilavam entre os onze e os catorze anos, eram tão variáveis que achava difícil formar uma opinião sobre eles, isto é, uma opinião sobre suas aptidões, porque bastara um momento para apreciar sua inteligência e, em verdade, não havia visto nunca a um grupo de garotos mais ignorantes. Alguns eram capazes de analisar gramaticalmente as frases ou de declinar palavras latinas, mas a análise gramatical não servia para afastar a um barco da costa a sotavento. Poucos sabiam a regra de três, multiplicar bem e dividir, e todos ignoravam o que era um logarítmo, uma secante e o seno de um ângulo. Apesar de Jack não querer desempenhar o papel de mestre de párvulos, ocupou-se de ensinar-lhes os rudimentos da navegação, e o senhor Hollar, o contramestre, que tinha muito mais êxito que ele como professor, ensinou-lhes a conhecer a exárcia, e Bonden, como manobrar um bote.
Jack acahva tedioso dar aulas, pois aquelas criaturas não tinham dotes naturais para as matemáticas e, ademais, sentiam tanto medo ao ver-lhe que se tornavam mais estúpidos, mas pelo menos evitava que se preocupasse com o que seus advogados faziam na Inglaterra. Há várias semanas tinha dificuldade para controlar sua mente, e pensava uma e outra vez nos complicados problemas que tinha, o que, quando ocorria nos momentos adequados, era esgotador e inútil, e nos piores, enquanto dormia, convertia-se em um pesadelo que durava horas e horas.
Um dia, quando subiu para o convés depois de uma das aulas em que ensinava os cadetes a multiplicar, deu um passeio com o doutor Maturin enquanto os marinheiros desciam sua falua para a água, e o doutor lhe perguntou:
- Você se pesou ultimamente?
- Não, não me pesei - respondeu Jack.
Havia respondido secamente porque não gostava que fizessem referência ao seu peso, que às vezes era o motivo das piadas de seus amigos íntimos, e, além disso, porque lhe parecia que Stephen estava a ponto de dizer um bon mot; contudo, desta vez essa pergunta não era o prelúdio de uma sátira.
- Devo lhe examinar - disse Stephen. - Talvez todos nós tenhamos em nosso interior um inquilino que não conhecemos. Provavelmente hajas perdido vinte e cinco libras.
- Tanto melhor - disse Jack. - Olhe, pus um par de meias velhas. Hoje vou comer com o almirante Mitchell, sabe? Pelo pescante de estibordo! - gritou para seu timoneiro e imediatamente desceu pelo costado até a falua, deixando Stephen desconcertado.
- Que relação há entre a perda de peso e as meias velhas? - perguntou, olhando fixamente o parapeito.
Se houvesse subido a bordo do São Josef com Jack, ficaria ciente de qual era a relação. No castelo de popa desse navio havia numerosos oficiais, o que era normal porque estava sob o comando de um almirante, e alguns eram altos, outros baixos e outros de estatura mediana, mas todos estavam magros e tinham uma figura atlética. Na verdade, no São Josef não havia ninguém com o ventre flácido nem com papada. Daquele grupo saiu o almirante, um homem baixo de gesto alegre que movia os braços com a agilidade de um marinheiro. Não usava peruca e tinha o cabelo curto e penteado para frente, conforme a moda, e de cor cinza, e falava com um agradável sotaque do oeste da Inglaterra.
Falaram das mudanças que haviam feito nos cestos das gáveas e dos canhões giratórios que haviam instalado, um novo tipo de canhões que apenas retrocediam ao disparar, e, como Jack esperava, o almirante disse:
- Tive uma idéia, Aubrey: vamos dar-lhes uma espiada. E depois podemos dar uma corrida até a cruzeta. Não há nada como isso para abrir o apetite. O último que chegue abaixo perde e tem que pagar doze garrafas de champanhe.
- Trato feito - disse Jack, tirando o sabre da cintura. - Estou pronto.
- O senhor subirá pelos enfrechates de estibordo porque é o convidado - disse o almirante. - Acima!
Os marinheiros encarregados do cesto da gávea do maior não se alteraram quando os viram chegar e explicaram como funcionavam os canhões giratórios. Estavam acostumados com a inesperada aparição do almirante, que, como todos sabiam, gostava de subir até as vergas superiores e pensava que o exercício era benéfico para todos os homens do mar. Olharam de soslaio para o capitão Aubrey para ver se em sua cara havia algum indício de que ia ter uma embolia, como ocorreu ao último capitão que o havia visitado, e notaram que, pelo esforço que Jack havia feito para subir na mesma velocidade que o almirante, a cor de seu rosto estava mudando do vermelho para o púrpura. Mas Jack era bastante astuto e desabotoou o colarinho e fez perguntas sobre os canhões, que lhe interessavam muito, até que recuperou o fôlego e sentiu que seu coração batia em um ritmo normal. E quando o almirante gritou: "Vamos!", saltou até os amantilhos do mastaréu com a agilidade de um macaco grande. Como suas pernas e seus braços eram mais compridos, levava a dianteira ao almirante até que estivam na metade do caminho da cruzeta, mas então este o alcançou, saltou para o estai do haste da bandeira de mezena e depois começou a subir pela frágil rede que segurava a cruzeta e o alto mastaréu do joanete do maior do São Josef, colocando na rede uma mão em cima da outra e sem apoiar os pés, pois ali não havia enfrechates. O almirante era pelo menos vinte anos mais velho que Jack, mas lhe levava uma vantagem de uma jarda quando chegou na cruzeta, e uma vez ali, rodeou a borda desta com os braços e se colocou em uma posição estratégica, cortando-lhe a passagem de Jack.
- Tem que apoiar os dois pés na cruzeta, Aubrey, isso é o justo - disse tranqüilamente e, ajudado pelo balanço, deu um salto para o costado do barco. Permaneceu uma fração de segundo no ar, a duzentos pés da superfície do mar, livre como um pássaro, e, por fim, suas fortes mãos agarraram o brandal, aquele cabo exageradamente longo que formava um ângulo de oitenta graus com o mastro e se estendia desde seu tope até um ponto da popa situado junto ao castelo de popa e muito próximo a um dos costados, e imediatamente suas pernas o rodearam, e nesse momento Jack apoiou os pés na cruzeta. Como este era muito mais alto que o almirante, pôde alcançar o brandal do outro lado sem necessidade de dar aquele perigoso salto, e então seu peso lhe serviu de ajuda. Uma pessoa que pesava 200 libras podia descer por um cabo mais rápido que uma que pesava 125, e quando ambos passaram o cesto da gávea, Jack teve a certeza de que, a menos que freasse, ia ganhar. Se agarrou mais fortemente com as mãos e as pernas e imediatamente sentiu um terrível ardor nas mãos e ouviu o som das meias ao romper-se. Calculou a queda com precisão e se soltou do brandal quando a coberta já estava perto e então caiu nela de pé ao mesmo tempo que seu adversário.
- Perdeu, Aubrey - disse o almirante. - Ganhei por meio segundo. Mas isso não tem importância, porque foi muito bem, levando em conta seu extraordinário tamanho. Agora tem a costas menos tensa e muito apetite, né? Vamos beber seu champanhe. Vou emprestar-lhe uma caixa e me devolverá quando possa.
Beberam as doze garrafas de champanhe entre oito comensais. Depois tomaram vinho do porto e uma bebida que o almirante descreveu como um conhaque egípcio envelhecido. Contaram muitas histórias, e, depois de uma pausa, Jack explicou a única piada graciosa que podia recordar.
- Eu não sou agudo… - começou a dizer.
- Isso eu acredito… - murmurou o capitão do São Josef, rindo com vontade.
- Não posso ouvir-lhe, senhor - disse Jack, recordando-se vagamente dos assuntos legais. - Mas tenho um cirurgião muito agudo, e também instruído, e uma vez disse o melhor que hei ouvido em minha vida. Como nos rimos! Eu estava então ao comando da Lively, em espera de que William Hamond se fizesse cargo dela. Um dia estava jantando conosco um pastor que não sabia nada do mar, e alguém lhe havia dito que chamávamos a joanete de mezena de perequito.
Parou e, em meio da expectativa geral, desceu a vista até a base de uma garrafa pensando: "Desta vez tenho que dizê-lo bem". Depois se voltou para o almirante e continuou:
- Quer dizer, que lhe haviamos dado outro nome, compreende, senhor?
- Acredito que Sim, Aubrey - respondeu o almirante.
- Então o pastor disse: "Assim que à joanete de mezena a chamam "perequito"… Porém, por que lhe deram esse nome?" Como o senhor pode imaginar, todos nós ficamos perplexos, e nesse momento, o doutor disse: "Então… porque ao desdobrá-la, saem "asas" do barco, senhor".
Todos riram muito, muito mais que a primeira vez que Jack o havia ouvido, anos atrás, quando haviam tido que explicar-se. Desta vez seus acompanhantes sabiam que ia dizer algo gracioso, estavam preparados para rir, e riram a gargalhadas. E as lágrimas escorregaram pela cara ruborizada do almirante. Jack repetiu a piada duas vezes, e quando o almirante recobrou o fôlego, brindou por ele e pelo doutor Maturin dando três vivas, três vezes e, aturdido pelo álcool, disse umas frases de despedida. E nesse momento, Bonden, que havia regressado para a falua há meia hora, depois de ser atendido amavelmente pelo timoneiro do almirante, voltou-se para seus companheiros e disse:
- Desta vez virá pela escada do mirante de popa. Lembrem-se do que lhes digo.
Efetivamente, o capitão Aubrey desceu pela escada do mirante de popa, uma escada colocada em um lugar discreto, uma caridosa invenção por onde podiam subir os capitães sem ser vistos quando não desejavam ser recebidos com a cerimônia de rigor ou dar mau exemplo a quem talvez teriam que açoitar no dia seguinte por embebedar-se. E também subiu para sua cabine por essa escada, umas vezes sorrindo e outras com gesto de enfado ou de orgulho. Mas o vinho não lhe subia à cabeça com facilidade e, ademais, ia dispersar-se por uma grande massa, pois seu corpo ainda tinha um peso considerável apesar das libras que havia perdido. Tirou um cochilo e despertou com a mente lúcida a tempo para passar revista. Tinha a mente limpa, mas estava melancólico e lhe doía a cabeça e lhe parecia que o ouvido havia se aguçado muitíssimo.
As práticas com os canhões já não eram o que costumavam ser, pois um navio que fazia parte de um bloqueio e tinha que navegar em fila não podia disparar como o Worcester fazia no oceano deserto. Contudo, Jack e o condestável haviam feito um dispositivo (que consistia em uma estrutura de madeira com um alvo colocado no centro e seguro a ela por uma série de cabos que formavam uma malha com buracos um pouco menores que as balas de 12 libras) que lhes permitia determinar a trajetória de cada bala e, de acordo com esta, mudar o ângulo de inclinação dos canhões. O dispositivo era pendurado a cada tarde fora do barco, de uma prolongação colocada no pico da verga traquete, e diferentes brigadas de artilheiros lhe disparavam com o canhão de 12 libras do castelo de popa. Ainda usavam a estranha pólvora que Jack havia comprado, e isso havia dado lugar aos grosseiros comentários dos outros capitães da esquadra, que, incessantemente, por meio das bandeiras de sinais, perguntavam coisas como se o Worcester necessitava socorro ou se essa era a noite de Guy Fawkes{16}; contudo, Jack havia persistido, e as balas disparadas pela maioria das brigadas rompiam os cabos de ao redor do alvo e, em muitas ocasiões, davam nele de cheio, o que provocava entusiastas vivas.
- Suponho que preferirá suspender as práticas hoje, senhor - murmurou Pullings.
- Não sei por que lhe ocorreu isso, senhor Pullings - replicou Jack. - Esta tarde faremos seis rodadas adicionais.
Porém, desgraçadamente, o tipo de pólvora com que os canhões estavam carregados naquela tarde produzia um clarão branco que deslumbrava e uma detonação extraordinariamente forte, e ao ouvir o primeiro disparo, Jack levou as mãos para as costas e as apertou com força para evitar colocá-las na cabeça, e muito antes de que disparassem a última rodada adicional, lamentou profundamente ter sido petulante. Também lamentou ter apertado as mãos com tanta força, pois ardiam muito por ter descido pelo estai do navio do almirante como um menino, e na palma da mão direita havia se formado uma marca inchada e avemelhada enquanto dormia. Ao final todos estavam satisfeitos, porque os disparos haviam sido muito precisos, e Jack, pálido e com um sorriso forçado, disse:
- Foi uma magnífica prática, senhor Pullings. Agora pode tocar recolher.
Esperou durante um bom momento para que voltassem a pôr sua cabine em ordem, pois o Worcester era um dos poucos navios em que se tiravam cada tarde todas as anteparas e os estorvos entre a proa e a popa, e finalmente se retirou.
O primeiro que detectou seu fino faro foi o odor do café, sua bebida preferida.
- Que faz aqui esta cafeteira? - perguntou aborrecido e apreensivo. - Não pensará que necessito café a esta hora, né?
- É que o doutor virá examinar-lhe a mão e temos que dar-lhe algo para que molhe a garganta não acha…? - disse com o olhar desafiante que sempre acompanhava suas mentiras e, depois de pensar um instante, acrescentou: - … senhor?
- Como conseguiu? Os fornos da cozinha estão apagados há mais de meia hora.
- Com um fornilho de álcool. É suficiente, senhor.
O ungüento que Stephen lhe pôs dissipou sua dor, e o café, seu mau humor. Pouco depois recuperou em parte a doçura que o caracterizava, ainda que sua expressão seguiu sendo grave.
- O senhor Martin não para de dizer que a Armada é muito rigorosa - disse Jack depois de beber a quarta xícara de café. - Reconheço que uma surra diante de toda a esquadra não é um espetáculo bonito, mas acho que há tomado o assunto muito a sério e que exagera. É desagradável, certamente, mas não é comparável à condenação eterna nem à morte.
- Eu acho melhor a forca - disse Stephen.
- Você e Martin podem dizer o que queiram - replicou Jack - mas tudo o que começa termina.
- Eu seria o último em negar isso - disse Stephen. - É óbvio que se algo começa tem que terminar. A mente humana não é capaz de apreender um valor infinito, não é capaz de imaginar algo que não tem fim.
- Eu lhe darei um exemplo. Hoje comi com um homem que foi açoitado diante de toda a esquadra e que, contudo, tem a classe de almirante.
- O almirante Mitchell? Assombra-me que me diga isso. É raro, exageradamente raro, que um almirante seja açoitado diante de toda a esquadra. Não recordo de ter visto nenhum caso assim em todo o tempo que estou na Armada, ainda que Deus sabe que presenciei muitos castigos terríveis.
- Não era um almirante então, é claro. Que coisas lhe ocorrem, Stephen! Isso passou faz muito, em tempos de Rodney, se não me equivoco, e era um simples marinheiro. Conforme me contaram, foi recrutado à força e, como tinha noiva, escapou um monte de vezes. A última se negou a aceitar o castigo de seu capitão e solicitou ser julgado por um conselho de guerra; contudo, aquele era um mau momento, porque recentemente muitos haviam desertado, e o conselho decidiu que o pobre Mitchell serviria de exemplo e lhe condenou como castigo quinhentos açoites. Mas sobreviveu, e também sobreviveu a uma epidemia de febre amarela que em menos de um mês acabou com a vida de seu capitão e da metade da tripulação de seu barco quando foi enviado ao mar do Caribe. O capitão que pegou então o comando do barco simpatizou com ele e, como tinha poucos suboficiais, incluiu-lhe no grupo de guardas-marinhas. Bem, para não lhe cansar, o caso é que Mitchell estudou muito, passou no exame de tenente e imediatamente depois lhe deram um posto no Blanche, e quando o navio travou um combate com o Pique, ele ocupava temporariamente o posto de segundo a bordo e foi quem logrou capturá-lo, já que seu capitão havia morrido. Por isso foi nomeado capitão, e quando ainda não fazia seis meses que estava ao comando de sua corveta, encontrou-se com uma corveta francesa um dia ao amanhecer, abordou-a e a levou para Plymouth, e por isso foi ascendido a capitão de navio. Foi ascendido quase doze anos antes que eu. E como a sorte nunca o abandonou, faz pouco que foi nomeado almirante. Sempre teve sorte. É um excelente marinheiro, sem dúvida, e não teve virar cavalheiro, porque isso não era necessário naquela época, como ocorre agora, mas também teve sorte. Eu me dei conta de que, em geral, a sorte joga limpo - disse, vertendo as últimas gotas de café na xícara de Stephen. - Mitchell recebeu duros golpes a princípio, mas depois a sorte lhe sorriu, e eu, pelo contrário, tive muita sorte quando era jovem e capturei o Cacafuego e a Fanciulla, consegui muitos butins e me casei com Sophie, e às vezes penso… Mitchell começou com uma surra diante de toda a esquadra, e talvez seja assim como eu termine.
CAPÍTULO 5
O São Josef se afastou dali para levar ao hospitaleiro almirante Mitchell para reunir-se de novo com a frota que permanecia perto da costa, e o longo período de bom tempo que o Worcester havia desfrutado terminou com o uivo do mistral, que esteve soprando durante nove dias consecutivos e arrastou a esquadra para as águas turbulentas e jaspeadas de branco até as imediações de Menorca. Ainda que isto e o constante esforço para chegar de novo aos quarenta e três graus de latitude Norte não houvessem posto fim ao trato social entre os capitães, Jack haveria vivido solitário. Em geral, os membros da esquadra não eram sociáveis. Thornton não sentava com ninguém a sua mesa; o capitão da esquadra preferia que todos os capitães ficassem em seus navios enquanto estes avançavam, e lhe parecia que a visita de alguns oficiais a outros era uma indisciplina e a de alguns marinheiros a outros, uma verdadeira incitação ao amotinamento ou, quando menos, um passo prévio; e ainda que o contra-almirante Harte dava um ou outro banquete quando o tempo o permitia, não convidava ao capitão Aubrey. Jack havia feito a visita de rigor ao contra-almirante quando se havia reunido com a esquadra, e ele lhe havia recebido cortesmente e inclusive lhe havia expressado sua satisfação porque era um membro da esquadra, porém, apesar de que Harte tinha grande habilidade para fingir, suas palavras não podiam enganar nem a Jack nem a ninguém. A maioria dos capitães sabiam que ambos haviam se inimizado quando Jack tivera relações com a senhora Harte, muito antes de se casar, e os que não sabiam se informavam imediatamente.
Portanto, Jack haveria passado só muito mais tempo que o restante dos capitães se Stephen não estivesse a bordo e se na esquadra não houvessem alguns amigos seus, como, por exemplo, Heneage Dundas, do Excellent, e lorde Garrón, do Boyne, que podiam permitir-se não fazer caso do ódio de Harte por ele. Mas quase sempre estava muito ocupado, pois, apesar de que deixava as manobras rotineiras nas mãos de Pullings com toda confiança, esperava conseguir que no Worcester se fizessem as manobras e se manejasse a artilharia com mais destreza. Observou com pena que os tripulantes do Pompee tiravam os mastaréus em um minuto e cinqüenta e cinco segundos e que subiam a bordo todos os botes em dez minutos e quarenta segundos, ainda que o navio não era de primeira categoria, e também percebeu de que no Boyne, onde desde que fizesse bom tempo eram rizadas as gáveas depois que o capitão passasse revista, os tripulantes tardavam um minuto e cinco segundos em terminar a manobra, e comunicou o que observara a seus oficiais e aos marinheiros de primeira que estavam encarregados do castelo, dos cestos das gáveas e sa guarda de popa. A partir desse momento a vida dos marinheiros menos hábeis converteu-se em um calvário.
Com efeito, a vida desses marinheiros se converteu em um calvário, ainda que só durante as espantosas horas de trabalho do dia, e muitos deles, esgotados e com feridas provocadas pelos cabos nas mãos, chegaram a odiar o capitão Aubrey e a maldizer o relógio que levava na mão, e em ocasiões, enquanto moviam para fora e para dentro o botaló ou tiravam os mastaréus pela sexta vez, alguns murmuravam: "Maldito canalha… Gordo de merda… Oxalá caísse morto agora mesmo…!". Contudo, depois que o capitão passasse revista e chegava o esperado momento em que o tambor tocava recolher, a tensão diminuía e o ódio desaparecia, e quando o canhão do navio insígnia disparava a descarga da noite, todos voltavam a ter bons sentimentos, e, nas cálidas noites de lua, quando bailavam ou tocavam música no castelo, se o capitão ia vê-los, recebiam-no com amabilidade.
Havia muitos homens com talento para a música a bordo. Além do violinista e do infante da marinha que tocava o pífano durante o dia para animar os marinheiros quando moviam o cabrestante e durante a noite para que bailassem, pelo menos quarenta homens sabiam tocar algum instrumento e muitos mais sabiam cantar, e alguns deles muito bem. Um velho fabricante de gaitas de Cumberland, que agora era um faxineiro e fazia parte da guarda de estibordo, e alguns conterrâneos seus, ajudavam a suprir a falta de instrumentos, porém, apesar de que os tocavam com entusiasmo, não pôde se formar uma banda digna até que um vendedor trouxe uma encomenda de Jack da loja de música da Valletta. Apartir de então, o coro do Worcester foi a principal fonte de alegria de sua tripulação.
O barco em que o senhor Martin ia embarcar, o Berwick, ainda não havia saído de Palermo porque, conforme os rumores, seu capitão estava enamorado de uma jovem siciliana de cabelos avermelhados, e por essa razão o pastor permanecia no Worcester, e como, sempre que era possível, celebrava os ofícios religiosos nos domingos, quando se cantavam os hinos notara que muitos marinheiros tinham boa voz. Então sugeriu aos que tinham melhor voz que interpretassem um oratório, e lhes disse que, apesar de que no Worcester não tinham a partitura de nenhum, pensava que com um pouco de engenho e memória e alguns versos de Mowett poderiam compor algo. Mas apenas a idéia se propagou entre os marinheiros, o primeiro oficial foi informado de que havia a bordo cinco homens de Lancashire que cantavam à perfeição O Messias de Haendel porque o haviam interpretado uma infinidade de vezes em sua região natal. Eram homens exageradamente magros e desnutridos que, apesar de ser jovens, só tinham na boca alguns poucos dentes enegrecidos, e haviam sido aprisionados por pedir conjuntamente com outros a subida dos salários e sentenciados ao desterro, mas como tinham menos culpa que os que realmente haviam feito a petição, lhes haviam permitido alistar-se na Armada. Naturalmente, haviam saído ganhando com a mudança, sobretudo porque no Worcester se dava à tripulação um tratamento humano, mas a princípio não compreendiam o afortunados que eram. Nunca haviam tido tanta comida como ali. Recebiam por semana seis libras de carne (ainda que com osso e muitas cartilagens e conservada em sal durante muito tempo), sete libras de bolachas (ainda que infestadas), que podiam tê-los saciado em sua juventude, e, ademais, sete galões de cerveja se se encontravam no canal e sete pintas de vinho se se encontravam no Mediterrâneo; contudo haviam vivido tanto tempo comendo somente pão e batatas e bebendo chá que não podiam apreciar tudo isso, principalmente porque quase não tinham dentes e apenas podiam mastigar a carne de cavalo salgada e as bolachas. Ademais, eram os tripulantes da mais baixa categoria, marinheiros de água doce, homens que ignoravam tudo sobre o mar (nunca haviam visto nem sequer um pequeno reservatório), que os marinheiros de barcos de guerra que havia a bordo não pareciam considerar humanos senão objetos que se uniam ao extremo dos esfregões ou das vassouras, e que, ocasionalmente, eram autorizados a somar sua escassa força à de outros para puxar um cabo, mas sob estrita vigilância. Contudo, depois do primeiro período da viagem, no qual tiveram freqüentes enjôos, aprenderam a cortar a carne em pedaços muito pequenos com uma navalha e a triturá-la com um passador, e logo adquiriram alguns costumes marinheiros, e quando começaram a cantar ficaram muito contentes. Nos lugares mais inesperados apareceram tripulantes que tinham talento para a música e que podiam cantar lendo uma partitura, como, por exemplo, um ajudante do contramestre, dois artilheiros mais velhos, o suboficial encarregado das escotas, um ajudante do cirurgião, o senhor Parfit, o velho toneleiro, e muitos outros. A maioria dos tripulantes restantes não sabiam ler música, mas tinham bom ouvido, muita memória e disposição para o canto, e por isso quase nunca lhes era difícil repetir uma peça depois de ouvi-la uma vez. O único problema que tinham (e não pôde resolver-se) era que confundiam o volume com a excelência, e algumas passagens que deviam cantar-se pianíssimo, ainda que não tanto que não fossem audíveis, eram cantados com voz muito potente. Quando cantavam, desaparecia a imensa diferença entre o senhor Parfit, que ganhava por mês cinco libras e seis peniques mais a gratificação, e um inexperto marinheiro, que ganhava uma libra e dois peniques menos o que se descontava pela roupa, e pelo menos a parte vocal do Messias era interpretada magnificamente. Em particular gostavam de interpretar o Aleluia, e costumavam cantá-lo duas vezes quando Jack ia até o castelo e, cheio de emoção, unia ao coro sua voz potente de baixo, que se destacava entre o forte som das outras e fazia vibrar a coberta.
Mas as peças musicais que lhe proporcionavam mais prazer eram as que interpretava na popa, em sua cabine, junto com Stephen, e não eram de caráter heróico senão um diálogo entre o violoncelo e o violino, umas vezes direto e simples e outras muito intrincado. Algumas eram de Scarlatti, Hummel e Cherubini, que ambos conheciam muito bem, e outras eram obras que apenas conheciam, que ainda estavam explorando, e pertenciam ao grupo que Jack havia comprado do discípulo de Bach em Londres.
- Desculpe-me - disse Stephen quando, por causa de um solavanco do navio, tocou um dó sustenido com um lúgubre som um quarto de tom menor que o se.
Continuaram tocando até o final do desfecho, e depois da pausa que seguiu ao momento triunfal, quando começou a diminuir a tensão, Stephen pôs o arco sobre a mesa e o violoncelo sobre um escaninho e comentou:
- Acho que toquei pior que de costume porque o solo se movia muito. Tenho a impressão de que viramos em redondo e que navegamos contra as ondas.
- Possivelmente viramos - disse Jack. - A esquadra tem que mudar de bordo em sucessão ao final de cada guarda, sabe?, e acabam de dar as doze da noite. Quer que acabemos o vinho do porto?
- A gula ou glutanaria é um horrível pecado - disse Stephen - mas sem pecado não pode haver perdão. Ainda restaram nozes de Gibraltar?
- Se Killick não encheu a barriga com elas até arrebentar, deve de ter muitas neste armário. Sim, resta meio saco. O perdão… - disse pensativo, enquanto esmagava seis juntas em sua mão. - Queria que Bennet o encontrasse quando voltasse. Se for um homem de sorte, chegará na manhã de domingo, quando haverá menos probabilidades de que o almirante o repreenda e o vento ainda será favorável para vir desde Palermo.
- É o cavalheiro que está ao comando do navio onde embarcará o senhor Martin, né?
- Sim. Harry Bennet. Estava ao comando do Theseus antes de Dalton. Você o conhece, Stephen, porque esteve em Ashgrove Cottage quando se encontrava ali. É aquele tipo que gostava de literatura, aquele que leu para Sophie uma história sobre o colégio de Eton e como ensinavam os jovens a disparar enquanto ela tecia suas meias.
- Recordo-me. Disse uma citação de Lucrecio muito bonita: "suave mate magnum…". Por que razão deveria ser repreendido?
- Todo mundo sabe que ficou em Palermo muito mais tempo do que deveria por causa de uma jovem ruiva. Na segunda-feira os homens do Spry e doi vendedores viram o Berwick ancorado com uma só âncora e com as vergas colocadas, ou seja, pronto para zarpar, e ainda Bennet, mais contente que Poncio Pilatos, passeava pelo passeio marítimo em uma carruagem descoberta com sua ninfa, que, por decência, ia acompanhada de uma senhora mais velha. Ninguém poderia confundir seus cabelos avermelhados. Francamente, Stephen, detesto ver que um bom oficial como Bennet põe em perigo sua carreira profissional para ficar no porto com uma mulher. Quando voltar, eu o convidarei para jantar, e então poderia fazer-lhe algumas recomendações indiretamente e com muito tato. Poderia contar uma história clássica, como a daquele tipo a se amarrou a um mastro para poder ouvir as sereias, enquanto que os outros tripulantes tinham tampões de cera postos nos ouvidos. Acredito que isso se passou nestas águas. Talvez inclusive possa mencionar o estreito de Messina…
- Não o farei - disse Stephen.
- Não, temo que não - disse Jack. - É muito delicado advertir algo assim a alguém, ainda que o conheça muito bem.
Pensou naquela época em que Stephen e ele competiam para ganhar os favores de Diana, cuja eleição era imprevisível. Havia se comportado quase igual que Harry Bennet agora, e se incomodava que seus amigos lhe fizessem recomendações sobre o assunto, ainda que as fizessem com tato. Observou a reluzente arqueta que Diana havia presenteado a Stephen e que havia sido confiada a Killick há muito para que a ventilasse e a arrumasse, e por isso permanecia na cabine, onde servia de atril para as partituras. As luzes das velas que havia em seus castiçais se refletiam na madeira polida e em seus rebordos de ouro e lançavam lampejos que pareciam irreais.
- Ainda tenho a esperança de que chegará amanhã - acrescentou. - E confio em que os salmos ablandarão ao almirante.
Stephen entrou no jardim{17}, o sanitário da cabine, e, ao regressar, disse:
- À luz da lua vi passar várias revoadas de codornas para o norte. Oxalá Deus mande um vento favorável para que cheguem ao seu destino.
A manhã do domingo foi luminosa, e a grande distância puderam avistar o Berwick, que se aproximava velozmente da esquadra com todas as velas desdobradas e amuradas para bombordo. Mas muito antes de que preparassem a coberta para o serviço religioso, muito antes de que o senhor Martin pegasse sua sobrepeliz, o vento começou a rolar para o norte, e todos temeram que investisse a proa do navio e o fizesse afastar-se para sotavento. E quanto às codornas, era indubitável que se seguiam sua invariável rota migratória teriam o vento em contra. Em pouco tempo as pobres aves, já sem forças por ter voado por toda a noite, pousaram sobre a coberta a centenas, e como estavam tão cansadas, era muito fácil pegá-las. Mas pouco antes de que isto ocorresse, os ajudantes do contramestre haviam gritado: "Preparem-se para passar revista quando soem as cinco badaladas! Barbeiem-se e ponham camisa limpa para passar revista quando soem as cinco badaladas! Ponham malhas e calças brancas! Vistam-se corretamente para passar revista!", e somente puderam ocupar-se de recolher codornas alguns poucos homens que haviam sido previsores: os poucos que haviam solicitado os serviços do barbeiro do navio quando os faxineiros começavam a trabalhar, justo quando o céu começava a ficar cinza; os que haviam se assegurado de que sua pessoa, a roupa que guardavam em sua bolsa e o lugar onde se alojavam estavam suficientemente limpos para passar na inspeção; os que haviam se barbeado com pedra vulcânica do Etna e haviam feito as tranças em algum canto abrigado durante as escuras horas da guarda de meia ou da alvorada. Apesar de que eram poucos os marinheiros previsores, para o senhor Martin pareciam muitos, e percorria a coberta olhando atentamente ao seu redor com seu único olho, proibindo-lhes recolher codornas e pondo estas em lugares seguros. Os marinheiros, respeitosamente, diziam: "Sim, senhor", ou: "Não, senhor", mas enquanto Martin ia correndo para outro lugar, guardavam mais codornas no peito. Martin desceu para a enfermaria e pediu a Stephen que falasse com o capitão, o oficial de derrota, o primeiro oficial…
- Hão vindo aqui para buscar refúgio, e matá-las é um ato ímpio e inumano - dizia enquanto empurrava ao doutor Maturin para que subisse muito rápido a escada.
Contudo, quando chegaram à coberta e começaram a abrir passagem entre a compacta massa vermelha que formavam os infantes da marinha, que se dirigiam para a popa para colocar-se em filas, o oficial de guarda, o senhor Collins, olhou para seu ajudante e ordenou:
- Chame todos para seus postos!
Então seu ajudante se voltou para o marinheiro que tocava o tambor, que se encontrava a três pés de distância dele, com as baquetas preparadas, e lhe ordenou:
- Chame todos para seus postos!
O ruído estrondoso que todos conheciam tão bem afogou suas palavras e interrompeu a colheita de codornas. Aos tripulantes do Worcester os instaram a formar repetindo-lhes a ordem: "Façam fila!", e os mais estúpidos receberam alguns empurrões e inclusive chutes. E por fim, barbeados, vestidos com malha e calça branca e sustentando na mão a bolsa com sua roupa (tão limpa como um lavado com água do mar podia deixá-la), agruparam-se em brigadas e se colocaram por ordem de categoria. Os guardas-marinhas inspecionaram aos marinheiros da brigada que tinham ao seu cargo, e os oficiais inspecionaram aos guardas-marinhas e aos marinheiros das diversas brigadas que tinham ao seu cargo. Então os oficiais avançaram cuidadosamente entre os montes cada vez maiores de codornas e, ao chegar onde estava o senhor Pullings, informaram que todos estavam presentes, corretamente vestidos e limpos. O senhor Pullings se virou para o capitão, tirou o chapéu e disse:
- Todos os oficiais fizeram seu informe, senhor, com sua licença.
Jack pegou uma codorna que pousara na dragona e, sem prestar-lhe muita atenção, a colocou sobre a bitácula e disse:
- Então passaremos revista.
Ambos lançaram um olhar de desaprovação para Stephen e para Martin, pois nenhum usava a roupa adequada nem estava no lugar adequado, e começaram a percorrer a longa rota que permitiria ao capitão passar junto de todos os marinheiros, dos grumetes e inclusive das mulheres que estavam a bordo do navio, enquanto as exaustas aves seguiam caindo.
- Vamos - disse Stephen para Martin em voz baixa, tirando da manga de sua jaqueta, quando Jack, depois de ter inspecionado os infantes da marinha, aproximou-se da primeira brigada, encarregada da guarda de popa, e os marinheiros que a formavam lançaram os chapéus para o ar. - Vamos. Temos que ir para a enfermaria. As aves não correm nenhum perigo agora.
Jack continuou sua marcha. Passou junto dos marinheiros do convés, dos marinheiros dos cestos das gáveas, dos artilheiros, dos grumetes e dos marinheiros do castelo, mas avançava mais devagar que em outras ocasiões porque constantemente tinha que esquivar as pequenas aves. Pensava que os tripulantes ainda podiam melhorar, que ainda havia entre eles muitos tipos descuidados. Achava que o galês monolíngüe, a quem secretamente chamava Cinza melancolia porque era incapaz de recordar de seu nome, não podia suportar aquela vida, e que os três idiotas não haviam despertado, ainda que agora, pelo menos, os haviam lavado bem. Teve a impressão de que o senhor Calamy, em vez de ter crescido, havia encolhido, apesar de que era perseverante e seguia carregando o bezerro, ainda que talvez se devesse a que o chapéu que usava, um magnífico chapéu com um laço dourado, cobria-lhe as orelhas. Mas quase todos os tripulantes pareciam estar muito alegres e bem alimentados, e quando ouviram gritar: "Mostrar a roupa!", pegaram das bolsas peças de vestir em aceitáveis condições.
- Indubtavelmente, as codornas se podem comer, senhor Lewis - disse Stephen para seu primeiro ajudante - mas não posso recomendar-lhe a ninguém que as coma quando fazem a viagem migratória para o norte. Aparte da avaliação ética desse ato, aparte de que o senhor Martin, muito acertadamente, o qualifique de ímpio, deve senhor ter em conta que é provável que as codornas hajam comido plantas daninhas na África e que, portanto, sua carne seja daninha. Recorde as palavras de Dioscórides, recorde o horrível destino dos hebreus…
- As codornas estão entrando pela a mangueira de ventilar - disse o segundo ajudante.
- Cubra-as com um pedaço de tela - disse o senhor Martin.
Jack chegou à cozinha, inspecionou as panelas de cobre, os barris com tampa com borda de metal onde se mantinha a carne salgada, os potes com sebo e o pudim de passas de três quintais para a refeição do domingo, que estava ainda a meio cozinhar. Observou com satisfação que em uma panela estava cozinhando um pudim especialmente preparado para ele, um menino refogado; contudo sua satisfação não se refletia em seu rosto. Tinha um gesto grave, que se havia acostumado a pôr depois de ter exercido a autoridade durante tanto tempo e de manter a atitude reservada que isto exigia, e por esse gesto, por sua corpulência e por seu uniforme era uma figura que impunha respeito e inclusive medo em algumas ocasiões, quando a luz lhe dava de tal maneira que a cicatriz que tinha em um lado da cara transformava sua habitual expressão doce em uma expressão furiosa. A luz lhe dava agora dessa maneira, e ainda que o cozinheiro sabia muito bem que nem sequer Belzebu poderia demostrar que algo não estava bem na cozinha nesse dia, achava-se muito nervoso para responder com claridade às perguntas do capitão, e o primeiro tenente tinha que explicar-lhe a este suas respostas. E quando ambos se foram, o cozinheiro se voltou para seus ajudantes, secou umas imaginárias gotas de suor da testa com o lenço e depois o espremeu.
Atravessaram a coberta inferior, onde havia velas postas entre os canhões de 32 libras para que pudesse apreciar-se que estavam muito limpos e que os esfregões, as iscas, os atacantes, os suportes com as balas e os baldes para apagar fogos estavam colocados em perfeita ordem. Foram para a enfermaria, e depois de que o doutor Maturin os cumprimentou respeitosamente, informou como evoluiam os casos que tinha sob seu cuidado (dois casos de blenorragia, duas hérnias e uma fratura de clavícula) e depois disse:
- Senhor, estou preocupado com as codornas.
- Que codornas? - inquiriu Jack.
- As codornas, senhor, essas pequenas aves de cor parda - disse o senhor Martin. - Estão chegando às centenas… aos milhares…
- O capitão está brincando - disse Stephen. - Estou preocupado, senhor, porque poderiam ser um perigo para a saúde dos tripulantes, poderiam ser daninhas, e lhe rogo que tenha a amabilidade de tomar as medidas oportunas para evitar que lhes causem estrago.
- Muito bem, doutor - disse Jack. - Senhor Pullings, faça o que for preciso para evitá-lo, por favor. Agora poderemos içar a bandeira que indica que vai celebrar-se o serviço religioso, se já a tiverem içado no navio insígnia.
Já haviam içado essa bandeira no navio insígnia, e quando o capitão regressou ao castelo de popa, o local havia se transformado em um lugar para celebrar culto religioso. Três baús se encontravam colocados de maneira que formavam uma espécie de pulpito com um atril e estavam cobertos por uma bandeira britânica, havia cadeiras para os oficiais e bancos (formados com barras do cabrestante apoiadas em banquetas e em recipientes de metal) para os marinheiros.
Jack não era um capitão puritano (nunca em sua vida fizera um espaço a bordo para celebração) nem tampouco um homem religioso, conforme a definição geralmente aceita deste conceito. Sua única aproximação com o misticismo e o absoluto se produzia através da música. Contudo, era muito piedoso e prestou grande atenção à cerimônia religiosa anglicana que conhecia tão bem e que foi celebrada dignamente apesar da presença de uma multidão de codornas, ainda que ao mesmo tempo seu instinto de marinheiro o manteve alerta, e por isso pôde dar-se conta de que o vento diminuía de intensidade e rolava por o lugar de onde soprava antes. Pouco depois, as aves deixaram de pousar no navio, ainda que ainda havia muitas na coberta, e o Berwick tinha o vento pela alheta e navegava velozmente com grande quantidade de velas desdobradas, inclusive as sossobres e as monterillas{18}. "Não há deixado nem um pedaço de tela sem aplicar", pensou Jack e depois olhou para o senhor Appleby, franziu o cenho e negou com a cabeça, pois o jovem havia induzido a uma codorna a colocar-se em sua reluzente bota hessiana. Então, por trás dele, viu aparecer no navio insígnia um sinal que ia dirigido ao Berwick. Cantaram um hino, que, curiosamente, harmonizou com os que se ouviam nos barcos próximos, e depois se sentaram para escutar o sermão. O senhor Martin não valorizava muito sua oratória, por isso repetia os sermões de South e Tillotson, mas desta vez ia ler um texto que ele mesmo havia escolhido. Enquanto o procurava, porque o marcador havia voado enquanto cantavam o penúltimo hino, Jack voltou a olhar para o castelo e observou que Stephen indicava a outros católicos do Worcester, a dois judeus e a vários marinheiros das índias Orientais que procediam do Skate que recolhessem as codornas em cestas e as lançassem ao ar pelo costado de sotavento. Depois viu como algumas se afastavam batendo fortemente as asas e outras regressavam.
- O texto que vou ler é do capítulo doze do livro Números e abarca desde o versículo trinta e um até o trinta e quatro - disse o senhor Martin por fim. - "Veio um vento de Yahvé, trazendo do mar codornas, que deixou sobre o acampamento, até a altura de dois cotovelos sobre a terra. O povo esteve todo o dia, toda a noite e todo o dia seguinte recolhendo codornas; o que menos recolheu dez jómer{19}, e as puseram para secar nos arredores do acampamento. Ainda tinham a carne entre seus dentes, antes de que houvessem podido acabar de comê-la, e acendeu-se contra o povo o furor de Yahvé, e Yahvé feriu ao povo com uma praga; sendo chamado aquele lugar de Quibrot-hat-tava, porque ali ficou sepultado o povo glutão. "O nome hebráico Quibrot-hat-tava significa "as tumbas dos glutões", e a interpretação que devemos fazer disto é que a gula é a ante-sala da morte…
O serviço religioso terminou, e os tripulantes, que a partir desse momento olharam as codornas que ficavam com desconfiança, como se cada uma delas fosse um Jonás, e trataram por todos os meios de que se fossem do Worcester, começaram a pensar na carne de porco e no pudim de passas do almoço de domingo. O capitão do Berwick, com um gesto grave, subiu na sua falua, que imediatamente se afastou do navio insígnia. Quando a falua passava perto do Worcester, Jack, gritando, convidou Bennet para comer, e este subiu ao navio pelo costado de bombordo e foi recebido sem cerimônia.
- Eu lhe apresentarei ao seu novo pastor, que se encontra aqui conosco. Digam ao senhor Martin que venha. - E logo: - Senhor Martin, o capitão Bennet. Capitão Bennet, o senhor Martin. O senhor Martin acaba de pronunciar um magnífico sermão.
- Nada disso! - exclamou Martin com expressão satisfeita.
- Sim, e me impressionou muito ouvir-lhe falar das consequências da glutanaria e das tumbas dos glutões - disse Jack, e pensou que aquele não podia ser um prelúdio melhor para a advertência que, como amigo, tinha o dever de fazer a Harry Bennet, quer fosse explícita ou velada.
O prelúdio foi perfeito, mas a advertência não o seguiu. Bennet acabava de passar um quarto de hora sumamente desagradável, ainda que só havia falado com o capitão da esquadra porque o almirante estava reunido com vários dignatários orientais, mas voltou a animar-se quando bebeu uma taça de genebra. Durante a refeição se animou ainda mais, e desde que se sentou à mesa até que se foi, com a cara ruborizada e cheio de alegria, não deixou de falar a Jack da senhorita Serracapriola e de seu atraente físico, espiritual e intelectual. Contou-lhe que havia avançado no aprendizado do italiano, que ela tinha uma bonita voz e uma grande habilidade para tocar o bandolim, o piano e a arpa, e lhe mostrou uma mecha de seu bonito cabelo.
- Nelson lhe deu um beijo quando era pequena, e tu também poderá beijá-la quando nos casarmos - concluiu antes de despedir-se.
Jack dormia sempre muito bem, a menos que os problemas legais ocupassem sua mente; contudo, quando se deitou em sua maca, que começou se balançar por causa do embate das ondas que vinham do sudeste, e olhou para a bússola delatora que pendurava do teto, iluminada pela luz da chama de um pequeno farol que ardia constantemente, disse:
- Faz muito tempo que não beijo uma mulher.
A vivida descrição da jovem siciliana que Bennet havia feito lhe causara uma profunda emoção. Podia ver seu corpo grácil, que anunciava a singular paixão das mulheres do sul, e recordou o odor dos cabelos de mulher e também das mulheres espanholas que conhecera.
- Faz muitíssimo tempo que não beijo a uma mulher - disse quando ouviu as três badaladas da guarda de meia e os gritos dos serviolas mais próximos - e passará muito mais antes de que voltasse a fazer… Não há nada no mundo mais chato que fazer um bloqueio.
A esquadra, acompanhada por algumas fragatas e bergantins que o almirante havia podido retirar de outros lugares, percorria em fila as rotas que provavelmente seguiria a esquadra francesa que tinha Toulon como base, e virava em redondo ao trocar cada guarda ou a cada duas guardas, conforme soprasse o vento. Umas vezes, quando o vento era favorável para que Emeriau levasse seus barcos para o leste, a esquadra chegava até um lugar de onde se avistava a Sardenha, enquanto que em outras, quando soprava o mistral, chegava quase até Mahón, mas dia após dia se faziam praticamente as mesmas manobras. A vigilância era constante, porém, além de alguns barcos de estranhas exárcias que traziam do norte do Mediterrâneo os homens que iam entrevistar-se com o almirante, não se viam outros de nenhum tipo, nem sequer os que traziam provisões ou notícias do mundo exterior, aliás somente o céu e o mar, sempre o mesmo céu e o mesmo mar apesar de suas contínuas mudanças.
Chegou do sul um chuvisco pertinaz, impróprio daquela estação, que lhes proporcionou água doce para lavar roupa, mas pôs fim aos bailes no castelo. Os tripulantes seguiam cantando o oratório na entrecoberta, onde o eco de suas vozes nas passagens mais graves se assemelhava ao som de um órgão, e para Jack pareceu que, em geral, os sons que se produziam no navio haviam descido meio tom.
Alguns suportavam a monotonia melhor do que outros. Os guardas-marinhas e os oficiais mais jovens, que aparentemente nem sequer notavam ela, decidiram preparar uma peça de teatro, e Jack, recordando sua juventude, recomendou que representassem Hamlet, acrescentando que Shakespeare era o dramaturgo e o poeta que mais gostava de todos. Contudo, o senhor Gill, o oficial de derrota, estava muito mais triste e nas refeições era uma pesada carga para os outros oficiais, e o capitão Harris, da infantaria da marinha, que tinha ainda menos que fazer que o senhor Gill, bebia muito mais, e ainda que nunca chegava a ficar completamente bêbado, somente alegre, nunca estava sóbrio. Ao contrário, Somers caminhava cambaleando e dizia incoerências e coisas desagradáveis com freqüência, e Pullings fazia o possível para que deixasse de comportar-se assim, mas ninguém podia tirar-lhe as garrafas de sua propriedade que guardava na cabine.
Um dia que correspondia a Somers encarregar-se da guarda da tarde, Jack, Pullings e o contador se reuniram para revisar os livros e as contas do navio na cabine de proa. A esquadra, sempre formando uma linha, navegava com as maiores desdobradas e um moderado vento do noroeste pela alheta quando no navio insígnia apareceu o sinal de mudar de bordo por davante conjuntamente, uma ordem inusual, já que o almirante quase sempre mandava mudar de bordo em redondo porque essa manobra era mais apropiada para os velhos e deteriorados navios da esquadra e mais econômica, pois mudar de bordo por davante podia acarretar danos que mudar de bordo em redondo nunca produziria. Jack ouviu o grito: "Todos a mudar de bordo!", mas nesse momento tinha sua atenção posta na questão de trocar a ração de vinho dos marinheiros por uma de grogue e não pensou mais na manobra até que se ouviram na coberta alguns gritos furiosos e alguns passos apressados que o fizeram se levantar de um salto do lugar. Chegou ao castelo de popa em três passadas, e uma rápida olhada ao seu redor bastou para que se desse conta de que o Worcester havia perdido os estais. O navio ainda se movia com bastante rapidez, apesar de que a verga velacho estava espetada, e seu gurupés estava a ponto de passar por cima do convés do Pompee. Entre o estrondo das velas dando golpes, os marinheiros se voltaram para a popa esperando por ordens, mas Somers ainda estava perplexo.
- Pôr em pairo o velacho! - gritou Jack. - Leme a bombordo! Esticar as velas de proa!
O gurupés do Worcester passou a seis polegadas de distância do coroamento do Pompee. Então o Worcester começou a retroceder e o capitão do Pompee gritou:
- Isto parece uma feira!
Jack fez o Worcester mudar de bordo em redondo, depois ordenou desdobrar as joanetes e, finalmente, conduziu o navio ao lugar que lhe correspondia ocupar. Depois voltou-se para Somers, que cambaleava e tinha a cara avermelhada e um gesto aborrecido, e perguntou:
- Como foi possível que fizesse esta manobra como um marinheiro de água doce?
- Qualquer um pode perder os estais - respondeu Somers com voz rouca.
- Que forma de responder é essa? - inquiriu Jack. - O senhor faltou com o seu dever, senhor!
Estava furioso porque a tripulação do Worcester havia ficado em ridículo diante de 10.000 homens do mar.
- Virou bruscamente o leme para sotavento e forçou a verga do velacho - continuou. - Certamente que o fez, não negue. Isto não é um cúter, senhor, mas um navio de linha, e bastante lento. É preciso orçar devagar para que seu movimento não se interrompa, como já disse centenas de vezes. Isto foi um espetáculo lamentável.
- Sempre encontra falhas…! Sempre encontra falhas no que faço…! Tudo o que faço lhe parece mau! - gritou Somers, empalidecendo, e alçando ainda mais a voz, continuou: - Isto é despotismo, isso é o que é! Maldito seja! Eu lhe demonstrarei quem sou!
Então estirou o braço para trás para pegar uma cavilha do cabillero, mas Mowett o agarrou.
Em meio do assombro e do silêncio geral, Jack disse:
- Senhor Pullings, ordene ao senhor Somers que abandone a coberta.
Pouco depois Pullings entrou na cabine de Jack e lhe perguntou timidamente se Somers estava sob prisão.
- Não - respondeu Jack. - Não tenho a intenção de levá-lo ante um conselho de guerra. Se ele pedir para ser julgado por algo, é problema dele; mas quando estiver sóbrio, compreenderá que qualquer conselho o degradará, ainda que seu pai seja quem é. Ele será degradado ou o condenado a algo pior. Mas tomei a decisão de que nunca mais servirá em meu barco. Pode pedir a baixa ou a permuta com outro oficial, como prefira, mas nunca voltará a prestar serviços sob meu comando.
A conduta do senhor Somers causou assombro no Worcester, e continuaram falando da horrível cena e censurando-o mesmo depois que os tripulantes se informassem que ele não seria enforcado nem açoitado até morrer, como haviam profetizado; inclusive depois de que recebessem todo o necessário para interpretar o oratório completo, já que um falucho procedente de Malta trouxe trompetes, trombones, flautas, oboés e um fagote; mesmo depois que acabasse o vinho no Worcester e os marinheiros começaram a receber uma ração de grogue, uma bebida muito mais popular e muito mais forte, que provocaria, como geralmente fazia, um aumento da discórdia, da desobediência, da torpeza, dos acidentes, dos delitos e dos castigos.
Durante este tempo, o ambiente chegou a ser muito desagradável na câmara dos oficiais. Quando Somers recobrou o juízo, no dia seguinte do ataque de ira, sentiu um medo atroz e se rebaixou a pedir desculpas a Jack numa carta, rogou a Stephen que intercedesse em seu favor e prometeu abandonar a Armada se o incidente fosse ignorado. Mas depois, ao informar-se de que Jack não tinha intenção de levar-lhe ante um conselho de guerra, mostrou-se ofendido e disse a seus companheiros, que o escutavam contra a vontade, que não ia tolerar esse tratamento, que seu pai não ia tolerá-lo tampouco, que sua família controlava sete votos na Câmara dos Comuns e dois na dos Lordes e que ninguém podia humilhá-lo e ficar impune. Proferia ameaças veladas, e às vezes de suas palavras se deduzia que tinha a intenção de exigir uma satisfação ao capitão Aubrey, de desafiá-lo para um duelo. Contudo, poucos lhe prestavam atenção, e inclusive seus antigos admiradores sentiram um grande alívio quando se foi, depois que o capitão negociou sua troca por um tenente da mesma antiguidade, o senhor Rowan, pertencente à tripulação do Colossus.
Sua partida causou decepção nos marinheiros que já haviam preparado seu testemunho para o julgamento. Alguns deles, que eram antigos companheiros de tripulação de Jack, estavam dispostos a jurar o que fosse contanto que que o conselho se inclinasse do lado apropriado, e teriam feito ante ele uma vivida descrição do furioso ataque que Somers, a quem chamavam honorável canalha, havia perpetrado contra o capitão com um par de pistolas, um machado de abordagem, um sabre e uma cunha de mastaréu, e teriam repetido todas as frases, tanto as ameaçadoras como as angustiadas, como, por exemplo, a de Somers: "Eu te arrancarei as entranhas, maldito canalha!", ou a de Jack: "Por favor, senhor Somers, pense no que faz". Agora, como o oratório ainda não estava preparado, só o que lhes animava e lograva romper a monotonia de sua vida era pensar na representação de Hamlet, que, conforme lhes haviam dito, era tão divertida como incitar ursos em Hockley-in-the-Hole e tinha um bom final. Várias brigadas de voluntários, sob as ordens do encarregado da bodega, estavam pegando do fundo do Worcester parte do cascalho que usava como lastro (uma tarefa árdua e incômoda por causa do odor nauseabundo) para o cenário dos coveiros, e o açougueiro do barco guardava panelas com sangue porque, conforme tinha entendido, quando se representava uma tragédia em um barco de Sua Majestade, era necessário dispor de uma considerável quantidade de sangue.
O papel de Hamlet seria representado pelo ajudante do oficial de derrota que tinha mais antiguidade, pois lhe correspondia por direito, e o de Ofélia deram ao senhor Williamson, certamente, porque era o único cadete que tinha uma cara aceitável para representá-lo, que ainda não havia mudado a voz e que sabia cantar; contudo, os outros foram repartidos por sorteio, e ao senhor Calamy coube o papel de Polonio.
O pequeno senhor Calamy ia para a cabine de Stephen para que lhe ouvisse dizer sua parte, e um dia em que, em tom agudo e sem fazer pausa, cantava um fragmento em que aconselhava não pedir emprestado nem emprestar, vestir trajes ricos mas discretos, e evitar a amizade com pessoas imaturas, foi interrompido pelo guarda-marinha encarregado dos sinais, que disse ao doutor Maturin que o capitão lhe mandava saldações e pedia que, se estivesse desocupado, subisse ao convés porque tinha uma surpresa para ele.
A esquadra, tratando de manter-se em alto mar, navegava de bolina e usava as gáveas com três rizos. Era um dia triste, pois o céu estava cinzento e pelo sul-sudeste vinham rajadas de chuva; contudo, no castelo de popa todos estavam muito contentes. No lado de sotavento se encontravam Pullings, Mowett e Bonden, e estavam radiantes de alegria e falavam como se estivessem em uma taberna, e no lado de barlavento se encontrava Jack, de pé e com as mãos nas costas, movendo-se ao ritmo do forte balanço do Worcester, e com a vista fixa num barco que estava a cinco milhas de distância.
- Esta é a surpresa - disse Jack. - Diga-me o que acha.
Durante muitos anos, Jack, Pullings e Mowett haviam feito muitas brincadeiras com o doutor Maturin a propósito de seus conhecimentos de náutica, e também o haviam feito, ainda que mais discretamente, Bonden, Killick, Joseph Plaice e muitos outros marinheiros, guardas-marinhas e oficiais, e por isso atuava com cautela. Olhou durante um longo tempo para o barco e, por fim, disse:
- Não estou completamente seguro, porém, a olho nu, parece um barco. Sim, provavelmente seja um barco de guerra.
- Estou totalmente de acordo contigo, doutor - disse Jack. - Porém, por que não usa a luneta para ver melhor?
- Estou quase certo de que é um barco de guerra, mas não deve se preocupar com isso, pois está rodeado de uma potente esquadra. Ademais, vejo que tem uma só fila de canhões… É uma fragata.
Enquanto falava teve a impressão de que conhecia a fragata, que continuava aproximando-se a grande velocidade com duas faixas de espuma de ambos os lados da proa, e se via maior a cada minuto que passava.
- Stephen, é nossa querida Surprise - murmurou Jack em tom alegre.
- Ah, é! - exclamou Stephen. - Eu a reconheço pela complexa forma da borda na parte frontal. Também reconheço o lugar onde dormia nas noites de verão. Magnífica fragata! Que Deus a bendiga!
- Alegra-me voltar a vê-la - disse Jack.
Era a embarcação que mais estimava, depois da Sophie, a primeira que havia tido sob seu comando. Quando era guarda-marinha havia servido nela durante certo tempo nas Antilhas, um tempo que recordava com agrado, e anos depois havia estado ao comando dela no oceano Índico. Ele a conhecia muito bem e a achava uma das embarcações mais bonitas que haviam saído dos estaleiros franceses e a melhor de sua classe. Gostava porque era estanque, muito rápida, se estava em boas mãos, navegava bem de bolina e, uma vez que se chegava a conhecer bem, quase se governava sozinha, ainda que já estava velha, sem dúvida, e sofrera muitos danos. Ademais, pensava que era pequena em comparação com as fragatas mais modernas, especialmente algumas com igual potência como as americanas que haviam sido construídas recentemente, pois só tinha 28 canhões, enquanto que as outras tinham 36 ou 38, e pesava menos de 600 toneladas, enquanto que as outras pesavam mais do dobro. Em verdade, conforme o moderno conceito de fragata, já nem sequer podia se considerar uma delas. Mas sabia que, apesar de tudo isso, a rapidez com que se movia e virava permitia ao seu capitão apresar barcos muito maiores. Uma vez, quando tinha o comando da fragata, havia sustentado um breve mas perigoso combate com um navio de linha francês, e havia logrado fazer-lhe tanto estrago como o que a fragata havia sofrido. Estava convencido de que compraria a Surprise antes de que qualquer outro barco, se fosse imensamente rico e se a Armada a vendesse, porque lhe parecia o melhor que tinha.
Seu capitão atual, Francis Latham, não havia feito mudanças importantes, e a fragata conservava ainda os altos mastros que correspondiam a uma de 36 canhões e também os brandais duplos que Jack havia colocado. Latham tinha fama de que não sabia manter a disciplina, mas a governava bem. Agora a fragata tinha as gáveas abertas com as alas de barlavento no mastro maior e o traquete e também as joanetes, e ainda que parecia perigoso que a Surprise levasse essa quantidade de velame desdobrado, isso era o mais apropriado para que navegasse velozmente, e podia alcançar dez ou onze nós, como agora, sem correr o risco de que os paus se rompessem ou desprendessem.
Como a fragata e a esquadra navegavam a uma considerável velocidade, aproximavam-se rapidamente; contudo, para quem ansiava receber cartas com notícias de casa e informação sobre o desenrolar da guerra em terra, acharam quase insuportáveis as necessárias formalidades, ou seja, que a fragata se identificasse, fizesse o sinal secreto, se pusesse em pairo e cumprimentasse ao navio insígnia com 17 canhonaços. O navio insígnia respondeu com outros 13, rápidos e ensurdecedores, e de imediato apareceu no tope de um mastro um sinal que ordenava a Surprise tirar os mastaréus, provavelmente devido a que, como diziam, o almirante preferia perder uma pinta de sangue do que um pau, e não queria que os mastros, as vergas, as velas e os aparelhos de nenhum barco sofressem danos porque os necessitariam no momento do supremo esforço, que poderia chegar quando menos o esperassem… talvez no dia seguinte.
A Surprise, agora com um aspecto estranho porque só tinha colocados os mastaréus, parou perto da popa do navio insígnia, e muitos viram como seu capitão, com um pacote envolto em um pedaço de tela, onde era provável que levasse os despachos, aproximava-se dele em sua falua, em cujo interior havia cinco sacas, que provavelmente continham a correspondência. Então o tempo passou ainda mais lentamente, apesar de que todos se distraíram olhando para a borrada silhueta de outro barco que se avistava ao sul. Seu velame parecia estranho, mas a chuva amainou, e pôde ver-se que em vez de um barco eram dois: uma corveta e um vivandeiro espanhol. Os que tinham relógios, olhavam-nos continuamente, e os que não, iam para a popa com qualquer pretexto para ver o relógio de areia de meia hora, e o infante da marítima que estava encarregado de dar-lhe a volta lhe deu uma pequena sacudida, sem que o vissem, para acelerar a queda dos grãos. Com infinitas suposições e vãs conjeturas trataram de explicar a causa do atraso, mas a opinião geral era que o almirante havia dito ao capitão Latham que sempre deveria navegar em companhia de um barco que transportasse apetrechos, que sabia tanto de náutica como o fiscal do Tribunal Supremo da Grã-Bretanha e que não lhe confiaria nem um bote em um rio trutífero. Mas justo no momento em que o guarda-marinha encarregado dos sinais afastou a vista do pau mezena do navio insígnia, ouviu a um monte de marinheiros pigarrear, e então voltou a olhar para ali e viu as bandeiras que formavam a mensagem: "Boyne: mande tenente em lancha ao navio insígnia". Imediatamente apareceu outra mensagem: "Defender: mande tenente em lancha ao navio insígnia". Logo se sucederam as mensagens para os outros navios, e, por fim, chegou a vez do Worcester. As lanchas caíram na água de todos os navios da esquadra e, tripuladas por duas filas de remadores, aproximaram-se rapidamente do navio insígnia e regressaram com a correspondência, que foi muito bem acolhida, e alguns jornais ingleses, que não foram tão bem acolhidos.
Com excessão dos tripulantes que estavam de guarda no convés, todos procuraram um lugar onde pudessem estar tão longe dos outros como era possível em um barco de guerra, um lugar onde os que sabiam ler se informavam pelas cartas do que passava no mundo que haviam deixado, e os que não sabiam se informavam por alguém que lhe lia. Nisso, ao igual que em muitas outras coisas, Jack tinha vantagem sobre a maioria, e como na grande cabine de popa havia duas cômodas poltronas, cada uma em um canto, convidou Stephen para acompanhar-lhe e a tomar café com ele. Havia recebido um grande número de cartas de Sophie, nas quais dizia que todos em casa estavam bem, que as crianças melhoraram da varicela e Caroline tivera que obturar os dentes e fora a um dentista de Winchester, e que os rosais foram atacados por uma estranha praga, enquanto que os carvalhos se desenvolviam perfeitamente. Também dizia que Diana a visitara muitas vezes, acompanhada do capitão Jagiello, e que a senhora Williams, sua mãe, adorava o jovem e o considerava o mais charmoso e um dos mais ricos que havia conhecido. E contava que seu novo vizinho, o almirante Saunders, era muito atento e serviçal, como todos os outros. Ademais, havia recebido umas notas que as crianças haviam escrito com esmero. Todos diziam que esperavam que ele se encontrasse bem, que eles estavam muito bem, que estava chovendo e que um dentista de Winchester obturara os dentes de Caroline. Mas todas as cartas que recebera, da primeira até a última, eram de casa, nenhuma de seus advogados. Depois de lê-las outra vez, pensou naquele silêncio, que não sabia se interpretava como um bom presságio ou não. Pegou um guinéu do bolso, a jogou para o ar e tratou de pegá-lo de novo, mas ele escapou e foi cair na mesa onde Stephen tinha suas cartas, entre as quais havia algumas de Diana, que continham garranchos e erros de ortografia, mas estavam escritas em tom alegre. Diana contava muitas coisas das reuniões de sociedade às quais costumava participar em Londres, e, de passada, que se equivocara com relação a sua gravidez. Também recebera outras cartas, na maioria das quais lhe falavam de questões científicas, dois informes, um despacho cifrado e uma nota do almirante acompanhada de uma carta de seu chefe, sir Joseph Blaine, que ostentava o comando do Serviço Secreto, uma carta afetuosa que começava: "Meu querido Maturin…". Já havia terminado com os informes e começava a ler uma das cartas que não faziam referência a questões científicas quando a moeda caiu sobre o despacho cifrado. Ao contrário do despacho, a carta que sustentava nas mãos não tinha que ser decifrada para ser compreendida, pois, apesar de seu autor anônimo ter tentado trocar a forma de sua letra, dizia com simplicidade e claridade que o doutor era um cornudo e que sua mulher o enganava com um agregado sueco, o capitão Jagiello. Contudo, Stephen esperava descobrir a identidade de seu autor ou, por assim dizer, decifrar sua chave, já que havia advertido na carta alguns detalhes significativos, como, por exemplo, que havia escrito seu nome com "h", o que raras vezes faziam os ingleses e, em troca, costumavam fazer os franceses. A carta e o enigma que encerrava lhe pareciam muito curiosos, principalmente porque seu autor havia ocultado quase com perfeição sua maldade debaixo de uma capa de justificada indignação, e se não houvesse sido por seu arraigado costume de manter tudo em segredo, teria mostrado a Jack, mas se limitou a devolver-lhe o guinéu sorrindo.
Contaram um ao outro de forma geral as notícias que haviam recebido de sua família, e Stephen disse que pensava em zarpar para Espanha pela manhã.
- O almirante me comunicou que quando o vivandeiro terminar de descarregar os repolhos, as cebolas e o tabaco, ele me levará para Barcelona.
- Oh, Stephen! - exclamou Jack, desanimado. - Tão cedo? Sentirei muito a sua falta.
- Se Deus quiser, logo voltaremos a nos ver - disse Stephen. - Espero estar de volta em Mahón dentro de pouco tempo.
Durante um momento de silêncio, ambos ouviram o sentinela dar um grito de uma lancha que se aproximava, e depois escutaram que dela respondiam: "Dryad!", o que significava que o capitão da Dryad ia subir a bordo.
- Maldito seja! - exclamou Jack e depois, ao ver que Stephen o olhava inquisitivamente, acrescentou: - É essa corveta de costados retos que chegou com o vivandeiro enquanto líamos a correspondência, uma horrível e desajeitada carraca holandesa com a popa redonda. Acho que foi capturada nos tempos da Armada espanhola, e lhe puseram muitos canhões: 14 de 12 libras. Não sei quem está ao comando dela agora - disse, pondo-se de pé - mas de qualquer maneira terei que receber-lhe cortesmente. Não saia, Stephen, por favor.
Regressou após alguns segundos, radiante de alegria, e fez entrar um oficial atarracado e de cabeça redonda que estava tão alegre como ele. Era um cavalheiro que havia entrado voluntário na Armada, havia servido de marinheiro de primeira, guarda-marinha e tenente sob o comando de Jack, e agora era o capitão da horrível e lerda carraca chamada Dryad.
- William Babbington, querido amigo! - exclamou Stephen. - Quanto me alegro de ver-te! Como vai?
O capitão da Dryad lhes falou com total franqueza, pois eram unidos por uma velha amizade, uma amizade tão estreita como permitia a diferença de idade (que havia perdido importância com os anos), e contou com detalhe muitas coisas que lhe haviam ocorrido. Depois de beber-se meia pinta de vinho de Madeira, de fazer todas as perguntas de praxe sobre a senhora Aubrey, as crianças e a senhora Maturin, e de prometer que comeria no Worcester no dia seguinte (se o tempo permitisse) em companhia de seus antigos companheiros de tripulação Pullings e Mowett, levantou-se de um salto no momento em que soaram três badaladas.
- Como a Dryad vai se unir à esquadra - disse - devo visitar o almirante Harte. Não seria conveniente ficar mal com ele, sobretudo porque já me tem inscrito em sua lista negra.
- Por que, William? - perguntou Jack. - O que você fez? Não é possível que o tenha incomodado enquanto estava no canal.
- Não, senhor - respondeu Babbington. - Não foi nada relacionado com a Armada o que o molestou. Lembra de sua filha Fanny?
O mundo de Jack e de Stephen caiu aos seus pés, pois recordavam vagamente de uma jovem gorducha, de cabelo hirsuto, com a pele cor ocre e a cara cheia de espinhas. Babbington havia perseguido às mulheres desde os primeiros anos de sua juventude, desde uma idade muito cedo, o que estava em consonância com a tradição da Armada mas, ainda que fosse um excelente marinheiro, em terra não tinha capacidade para discernir, e todas as pessoas com uma fralda posta lhe pareciam iguais. Às vezes tentava conquistar encantadoras criaturas, e geralmente o lograva ainda que tivesse muitos rivais, pois apesar de ser atarracado, agradava as mulheres por sua alegria, sua grande simpatia e seu inesgotável entusiasmo; contudo, outras vezes tratava de conquistar as esqueléticas solteironas de quarenta anos. Durante sua breve permanência em Nova Holanda{20}, havia gozado do favor de uma aborígine de Java e de uma dama chinesa que pesava 200 libras. O acne, o cabelo hirsuto e a cor ocre da pele da senhorita Harte não tinham importância para ele…
- Um dia nos encontrou nessa postura, sabem?, e ficou furioso e me proibiu a entrada em sua casa. E ficou mais furioso ainda quando soube que ela havia levado a sério o caso e que nos carteávamos. Disse que se eu buscava fortuna, seria melhor que fosse apresar barcos franceses. Depois me disse que fosse ao diabo e que ela era carne para o prato de meu superior. Isso foi muito descortês, senhor.
- Que fosse ao diabo ou que ela era carne para o prato de seu superior?
- Que diga que eu vá ao diabo acho normal, senhor, porque o diz todos os dias. Referia-me a isso de que ela era carne para o prato de meu superior. Em minha opinião isso é uma mesquinhez.
- Só um miserável o diria - corroborou Stephen. - Carne… Bah! Ele deveria ter vergonha!
- É uma mesquinhez - corroborou Jack. - Fala como um moço dos cavalos.
Ficou pensando alguns momentos e depois continuou:
- Porém, como é possível que alguém possa lhe chamar de caçador de dotes, William? Você não vive só de seu pagamento e tem muitas probabilidades de melhorar. Ademais, não se pode dizer que a jovem seja a heredeira de uma grande fortuna.
- É sim, senhor - disse Babbington. - Heredará pelo menos 20.000 libras. Ela mesma me disse. Seu pai herdou o dinheiro do velho Dilke, o investidor da rua Lombard, e agora tem muitas pretenções. Quer casá-la a todo custo com o secretário Wray.
- O senhor Wray? O secretário do Almirantado?
- Esse mesmo, senhor. Se sir John Barrow não se recuperar, e todos dizem que o pobre cavalheiro está a ponto de exalar o último suspiro, Wray será nomeado secretário. Pense na influência que isto permitirá para um homem com a posição do contra-almirante! Acredito que fez pressão para que mandassem a Dryad para o Mediterrâneo porque assim me tirava do meio e, ademais, podia vigiar-me enquanto regateiam o dinheiro que ela contribuirá como dote. A casamento se celebrará enquanto se firmem as capitulações matrimoniais.
CAPÍTULO 6
Jack Aubrey tinha muito mais comodidades do que qualquer dos homens que estavam a bordo do Worcester, pois dispunha de um lugar íntimo e de muito espaço. Além da grande cabine, na qual passava seus momentos de ócio ou recebia visitas ou tocava seu violino, e do mirante de popa, onde tomava ar sozinho quando não queria fazê-lo no abarrotado castelo de popa, também dispunha de uma cabine-refeitório, uma cabine de dormir, uma cabine de proa, onde dava aulas aos cadetes e se ocupava das questões administrativas, um quarto de asseio e um sanitário. Tinha seu própio dispenseiro e seu própio cozinheiro, um espaçoso lugar para guardar os animais vivos de sua propriedade, e recebia um pagamento e bonificações que permitiam a um homem sozinho ter suficientes provisões.
Seria uma ingratidão estar descontente, como ele mesmo havia dito a Sophie na variada e extensa carta que lhe escrevia dia a dia, isto é, em um dos fragmentos que acrescentava diariamente, no qual contava a partida de Stephen. Seria uma ingratidão, e ademais careceria de lógica. Sabia perfeitamente que na Armada se achavam os extremos opostos a que podia chegar uma situação, e muitos os havia conhecido por experiência. O primeiro fora a falta de espaço, que pudera apreciar nos primeiros anos de sua vida profissional, quando havia sido degradado por um aborrecido capitão, ou seja, havia passado da noite ao dia de guarda-marinha a simples marinheiro, e como os outros marinheiros do Resolution, tinha que pendurar sua maca na coberta inferior, separado 14 polegadas das de seus companheiros, como era obrigatório; contudo, como no Resolution havia dois turnos de guarda, e quando a metade da tripulação estava na coberta superior, a outra estava na inferior, na prática, as 14 polegadas se convertiam em 28. Apesar disso, as centenas de homens que estavam juntos naquele lugar mal ventilado formavam um tapete humano, e quando todos se balançavam por causa do embate das ondas, os corpulentos companheiros que Jack tinha de ambos os lados chocavam-se com ele. Todos eram homens robustos e lavavam apenas as mãos e a cara, e alguns rangiam os dentes, outros roncavam e outros falavam adormecidos durante as poucas horas de sono, que raras vezes chegavam a quatro e nunca superavam essa quantidade. A degradação fora uma terrível experiência, e lhe parecera que durara uma eternidade, mas havia sido muito útil, porque lhe servira para chegar a conhecer os marinheiros e compreender sua atitude diante dos oficiais, do trabalho e de seus companheiros melhor do que se o houvesse feito no castelo de popa, e, ademais, ensinara-lhe muitas coisas, entre elas o valor do espaço.
Agora tinha à sua disposição um espaço que podia medir em jardas quadradas em vez de em polegadas quadradas, como os camarotes dos guardas-marinhas, ou em pés quadrados, como as câmaras dos oficiais onde estivera quando era tenente. Mas também dispunha de espaço verticalmente, um ponto de grande importância para um homem de sua altura e um raro privilégio, já que a maioria dos barcos eram desenhados para pessoas de cinco pés e seis polegadas. Tinha espaço de sobra, e, contudo, não valorizava isso como deveria tê-lo feito. Uma das razões era que grande parte do espaço estava desabitado, pois havia chegado a um desses extremos que se encontravam na Armada, e agora vivia e comia completamente sozinho, enquanto que na coberta inferior comia em companhia de 500 pessoas de voraz apetite, e nos diversos camarotes dos guardas-marinhas e câmaras dos oficiais onde estivera, comia com uma dúzia aproximadamente. Nunca havia comido sozinho até que chegara a capitão, e desde então nunca havia comido acompanhado, a não ser que houvesse convidado a alguém.
Naturalmente, Jack convidava seus oficiais com freqüência, e ainda que não sabia com certeza qual era sua situação econômica atual, e, portanto, não se atrevia a dar refeições esplêndidas como as que oferecia em outros tempos, quando era mais rico, era raro que Pullings e um guarda-marinha não o acompanhassem para desjejuar e que o oficial encarregado da guarda da manhã e um cadete não almoçassem com ele, e, por outro lado, os oficiais o convidavam para almoçar uma vez por semana. Assim, amiúde Jack estava acompanhado durante o café da manhã e no almoço, mas almoçava às três e, como não gostava de deitar-se cedo, restava muito tempo livre, muito mais do que podia ocupar pensando nos problemas de seu navio no bloqueio, navegando de um lado para outro pelas águas próximas de Toulon, já que o primeiro oficial era muito competente e o almirante tomava todas as decisões.
O conhecido tédio do bloqueio fazia com que as tristes tardes que passava em sua espaçosa cabine fossem mais tristes e que sua cabine lhe parecesse mais espaçosa, e mais ou menos isso mesmo sentiam e pensavam todos os capitães que respeitavam a tradição e desejavam manter a autoridade, ainda que muitos tratavam de mudar aquela situação. Alguns levavam a bordo a sua mulher, apesar das normas, especialmente durante as viagens mais longas e menos perigosas, enquanto que outros levavam uma amante como companheira, ainda que numa esquadra sob o comando do almirante Thornton nenhuma das duas coisas era possível. Alguns navegavam em companhia de algum amigo, porém, apesar de que para Jack isso dera muito bom resultado, em geral, não eram muitos os amigos que suportavam estar tão perto um do outro por várias semanas, e muito menos vários meses ou inclusive anos. Outros se entregavam à bebida, e outros se tornavam raros, irascíveis e autoritários, e ainda que nenhum deles chegava a ser um bêbado nem um excêntrico, quase todos os que desempenharam o cargo de capitão durante muito tempo, os longos anos de serviço os marcaram profundamente.
Com relação a isso, Jack fora muito afortunado até agora. Desde que assumira o comando de um barco pela primeira vez, quase sempre havia navegado em companhia de Stephen Maturin, o que resultara muito agradável. Ainda que o doutor Maturin fosse membro da tripulação, como era o cirurgião do navio, gozava de certa independência devido à natureza de seu cargo e, na prática, só estava nominalmente sob as ordens do capitão, e, além disso, ainda que tivesse a categoria de oficial, não o haviam nomeado oficialmente como tal, por isso sua amizade íntima com o capitão não provocava ciúmes nem ressentimento entre os outros oficiais. Se bem que ele e Jack Aubrey eram dois homens quase completamente distintos, com diferente nacionalidade, religião, educação, tamanho, aspecto, profissão e forma de pensar, ambos estavam unidos por seu profundo amor pela música e haviam tocado juntos muitas, muitas noites, nas quais o violino seguia ao violoncelo ou ambos soavam juntos.
Agora o violino soava só, se soava em alguma ocasião, pois, desde que Stephen se partira, raras vezes Jack havia tido vontade de tocar música, e quando tinha, só interpretava uma das partituras manuscritas que comprara em Londres, cuja dificuldade aumentava gradualmente. O movimento do início estava cheio de dificuldades técnicas, e Jack duvidava que pudesse executá-lo corretamente, mas era a comprida chacona que vinha a seguir o que realmente o desconcertava. Era comparável com o movimento do princípio, este resultava simples, já que nela havia variações complexas e em marcado contraste, ainda que fosse possível fazer uma interpretação aceitável porque não eram muito difíceis; contudo, em um determinado momento, depois de repetir-se com insistência o segundo tema, o ritmo da chacona mudava, e com ele, a ilação lógica da composição. O fragmento que vinha a seguir era perigoso, pois causava a impressão de estar em meio de um pesadelo ou inclusive a beira da loucura, e ainda que Jack reconhecesse todas as partes da sonata, especialmente a chacona, eram impressionantes, pensava que se seguisse dedicando-se com afinco a interpretá-las, seu pensamento poderia chegar a estranhos lugares. Uma tarde que escrevia para Sophie, ao fazer uma pausa, teve uma idéia, um símile que serviria para que ela entendesse melhor como era o conjunto de movimentos da chacona: era como perseguir a raposa montado em um brioso cavalo que, ao saltar um obstáculo, mudava o passo e, por consequência disso, transformava-se em outro ser, e, portanto, um já não estava montado em um cavalo senão em um estranho animal muito maior e mais forte que se adentrava numa paragem desconhecida perseguindo sua presa, uma presa que já não era a raposa mas outro animal não identificado. Mas pensou que seria difícil explicar essa idéia e, ademais, que Sophie não gostava muito da música e detestava cavalos. Contudo, gostava de teatro, assim que Jack decidiu contar-lhe algo sobre as obras que se representariam no Worcester e escreveu: "Ainda não foram representados nem o oratório nem Hamlet, e acho que temos muitas pretenções por ser principiantes, pois a montagem de ambas as obras requer um grande esforço. Acredito que ao final poderemos vê-las, mas enquanto isso temos que nos contentar com espetáculos muito menos ambiciosos. Uma vez por semana, o dia de lavado pela tarde, quando o tempo permite, uma banda muito boa, formada por dez membros, toca um pouco de música, alguns marinheiros bailam, tão bem que poderiam atuar em Sadler's Wells, e outros representam obras de teatro curtas e uma espécie de farsa que continua semana após semana e se tornou muito popular, na qual dois eperimentados marinheiros do castelo ensinam a um homem de terra adentro gordo e estúpido quais são as tarefas de um marinheiro e os costumes da Armada e lhe batem com um falso garrote cheio de ar cada vez que se equivoca". Sorriu ao recordar como os 500 tripulantes do navio riam quando o tonto, recebendo golpes por ambos os lados, havia caído no balde de água pela sétima vez, e depois se pôs a escrever o final do parágrafo e voltou a pensar na sonata. Não era o tipo de composição que ele gostava de tocar quando estava sozinho ou triste, mas uma vez que havia começado a aprender uma partitura, não a largava por outra, assim que cada vez que tocava música, essa era a partitura que interpretava, ainda que não prestava atenção a outra coisa que não fosse seu aspecto técnico. "Suponho que quando Stephen regressar, eu já a saberei tocar perfeitamente - pensou. - Aí pedirei sua opinião. "
Jack Aubrey não tinha propensão para desanimar-se e raras vezes havia perdido a alegria em circunstâncias muito mais adversas que as atuais, mas nesta ocasião um resfriado que seguia seu curso lentamente, a monotonia do bloqueio, o fato de ver sempre ao Pompee na frente e ao Boyne atrás quando navegavam para o leste e inversamente quando iam para o oeste, e, ademais, o comprido período de mau tempo, impróprio dessa época do ano no Mediterrâneo, conjuntamente com sua solidão, fizeram-lhe perder os ânimos. Tratou de distrair-se pensando nos difíceis problemas que tinha na Inglaterra (ainda que era inútil porque as questões legais, que eram complicadas inclusive para os especialistas, um marinheiro apenas podia entendê-las, já que as únicas leis que conhecia eram as 36 que integravam o Código Naval) e em sua situação atual. Quando Jack pegara o comando do Worcester, sabia que seu destino era o Mediterrâneo e que Harte sucedia ao almirante Thornton no comando da esquadra que se achava ali; contudo, tanto ele como seus amigos sabiam que o almirante Thornton tinha uma personalidade forte e era autoritário, e que, portanto, o segundo ao comando da esquadra teria muito pouca importância, especialmente um homem insignificante como Harte. Mas se soubesse que havia muita probabilidade de que Harte assumisse o comando, intentaria por todos os meios conseguir outro barco.
Todos esses pensamentos voltaram a passar por sua mente dias depois, quando estava inclinado sobre a grade do mirante de popa e, limpando o nariz com um lenço, olhava umas vezes para a esteira turva e cinza do Worcester, outras para a proa do Pompee, situado a um cabo de distância, e outras para a Dryad, a embarcação de costados retos governada por Babbington, que estava situada a sotavento e se ocupava de repetir os sinais para que todos os navios pudessem vê-los, de uma ponta a outra da linha, que, apesar de ser mais curta agora porque o almirante fora a Palermo por alguns dias e haviam mandado reforços para a frota que permanecia perto da costa, tinha um comprimento de uma milha. A esquadra se deslocava para o leste na escuridão, e a tarefa de repetir os sinais não era fácil, porque todos os navios navegavam de bolina (uma posição da qual era difícil vê-las) e, sobretudo, porque Harte sempre estava subindo e descendo as bandeiras.
Jack já havia aprendido o nome em código de todos os navios da esquadra e, apesar de que de seu posto na perfeita linha quase não via nada mais que o Pompee e às vezes o Aquiles, que estava situado justo ao final de seu rastro, podia perceber a loquacidade de Harte através da Dryad. Viu o sinal que ordenava ao Culloden desdobrar mais velas, o que recordava ao Boreas que devia manter-se em seu posto e, em várias ocasiões, o que ordenava a uma distante fragata, a Clio, que mudasse o rumo, e, quando estava limpando o nariz com o lenço manchado de sangue, apareceu um nome em ccódigo que não conhecia, de um navio que não era da esquadra, e depois o sinal que ordenava a este colocar-se detrás do Thetis. Tinha a esperança de que o navio que acabava de incorporar-se à esquadra ia entregar cartas e a dar notícias da Inglaterra, pois poderia ter vindo dali, mas logo percebeu que, nesse caso, Pullings teria mandado lhe avisar imediatamente. Contudo, tinha tanta curiosidade por saber qual era o navio desconhecido que se virou com a intenção de subir para o convés, e nesse mesmo momento Killick saía da cabine com um balde cheio de lenços que ia a estender em seu estendedor particular.
- Mas, o que é isto, senhor? - perguntou aborrecido. - Por que não pôs um abrigo, uma casaca ou, pelo menos, um maldito cachecol?
Geralmente, o capitão Aubrey podia controlar seu dispenseiro olhando-lhe muito sério, mas agora Killick tinha uma grande autoridade sobre ele, uma autoridade moral, assim que se limitou a murmurar que havia saído para tomar ar por um momento nada mais e depois entrou na cabine, onde o aquecedor, desnecessariamente, estava aceso ao vermelho vivo.
- Quem veio para a esquadra? - perguntou.
- O que diria o doutor se estivesse aqui? - disse Killick. - Certamente o repreenderia por ter se arriscado a pegar uma pneumonia e lhe diria que deveria estar em sua maca.
- Por favor, Killick, dá-me um copo de limonada quente com rum.
- Primeiro tenho que estender os lenços, não acha? - disse Killick. - É o Niobe, que estava nas imediações de Alexandria. Reuniu-se com o navio insígnia frente a Sicília e o almirante o mandou vir aqui.
Enquanto Jack bebia a limonada quente com rum, refletia sobre a autoridade moral e a importância que tinha em todas as relações humanas, especialmente entre marido e mulher. Pensou na luta que havia para consegui-la inclusive nos casais mais enamoradas, no fato de que até as pessoas menos nobres reconheciam sua derrota… E nesse momento ouviu que desde o castelo de popa alguém gritava para um bote que se aproximava. A resposta, "Sim, sim", indicava que um oficial ia subir a bordo, e Jack pensou que poderia ser o senhor Pitt, o cirurgião do Niobe, um grande amigo de Stephen, que não sabia que este havia partido e vinha para visitar-lhe; contudo, quando chegou ao castelo de popa, compreendeu pela expressão de Pullings que não era o senhor Pitt nem ninguém agradável.
- É Davis outra vez, senhor - disse Pullings.
- Efetivamente, senhor - disse um robusto marinheiro de tez morena com um abrigo de pele. - Outra vez Davis, seu fiel servidor, sempre alegre e disposto e sempre em seu posto.
Avançou um passo bruscamente, jogando para um lado o sorridente tenente do Niobe, e se levou os nós dos dedos da mão esquerda à frente e estendeu a mão direita para o capitão. Na Armada não era usual que um homem com uma classe abaixo da de almirante puxasse conversa com o capitão no castelo de popa, e muito menos que lhe apertasse a mão, mas o capitão Aubrey, que sabia nadar muito bem, havia tido a desgraça de tirar Davis do mar a muitos anos atrás, salvando-lhe de morrer afogado e talvez também de ser devorado pelos tubarões. Davis nunca se mostrara muito agradecido por isso, mas o fato de ter sido resgatado o havia convertido numa espécie de carga para seu resgatador. Por ter salvado Davis, Jack estava obrigado a cuidar dele, conforme um acordo tácito que havia entre os homens do mar, e para Jack isso lhe parecia bastante justo. Contudo, lamentava. Davis não era um bom marinheiro, apesar de haver passado toda a vida navegando, e, ademais, era lerdo, desajeitado e muito perigoso quando se ofendia ou se embebedava, e se ofendia e se embebedava com facilidade. Umas vezes se havia oferecido voluntário para navegar nos barcos que estavam sob o comando de Jack e outras conseguira ser trasladado para eles de outros barcos, cujos capitães se alegraram de perder de vista um homem ignorante, rebelde e brigão.
- Bem, Davis… - disse Jack, dando-lhe a mão e fazendo um esforço para resistir ao seu terrível aperto. - Alegro-me de ver-lhe.
Não podia dizer outra coisa, dada a relação que os unia, porém, com a vã esperança de evitar ficar com aquele presente, disse ao tenente do Mofe que o Worcester tinha tão poucos tripulantes que não podia trocar nenhum, nem sequer um grumete de uma só perna. E nesse momento a Dryad repetiu o sinal: "Worcester: seu capitão deve apresentar-se a bordo do navio almirante".
- Minha falua, senhor Pullings, por favor - disse Jack. Depois seguiu conversando com o oficial do Niobe e perguntou pelo senhor Pitt, e enquanto falava viu como Davis se metia no grupo de marinheiros que preparavam a falua do capitão para descê-la e empurrava a um com enorme força para assegurar um posto entre eles e voltar a ser um dos remadores da falua. Jack deixou que Bonden e Pullings se ocupassem desse problema e foi para sua cabine para tomar um pouco mais de limonada quente com rum. Não soube se o resolveram sem dar um espetáculo, mas quando se sentou na falua, envolto em sua capa de chuva, com um monte de lenços quentes no bolso e um ridículo cachecol de lã ao redor do pescoço, observou que Davis estava na terceira fila, com um gesto triunfal e aborrecido de uma vez e um olhar sinistro, movendo o remo como costumava fazê-lo, com muita força mas com brusquidão e imprecisão. Parecia que Davis tinha o olhar fixo nele, mas não estava seguro porque era vesgo de um olho.
O capitão Aubrey se apresentou no navio do almirante o mais rápido que lhe foi possível, depois de percorrer uma distância de três quartos de milha sulcando o mar frio e turbulento com o vento contra; mas o navio não estava preparado para recebê-lo. Contudo, seu capitão, que era muito hospitaleiro, levou-lhe imediatamente para sua cabine junto com o capitão da esquadra e mandou trazer algo de beber.
- Agora que me dou conta, Aubrey - disse, observando atentamente para Jack, que tinha o nariz vermelho e alargado como uma garrafa e os olhos semicerrados - parece que pegou um resfriado. Tem que cuidar destas coisas, sabe? Baker, prepare dois de copos de minha poção explosiva e traga-os muito quentes.
- Eu lhe vi nadando outro dia - disse o capitão da esquadra - e pensei: "É uma loucura nadar em alto mar. Este homem vai pegar um resfriado e depois irá de uma ponta a outra da esquadra como um lunático e propagará a infecção para todos os lados". Nadar em alto mar… Que idéia! Eu não tenho nada contra nadar em uma enseada resguardada, sob a adequada supervisão, num dia cálido, com o sol oculto atrás das nuvens, quando não se tem o estômago cheio, mas nadar em alto mar, bem, isso é ter vontade de pegar um resfriado. E só o que serve para curá-lo é uma cebola crua.
Trouxeram o primeiro copo com a poção explosiva.
- Tome-a quente - disse o capitão do navio.
- Oh! - exclamou Jack quando bebeu. - Que Deus nos ajude!
- Aprendi a prepará-la na Finlândia - disse o capitão do navio. - Rápido, beba o segundo copo ou o efeito do primeiro será mortal.
- Isto é um soberano disparate - disse o capitão da esquadra. - Nada poderia ser pior para o senhor que esta mistura de álcool, pó de mosca espanhola e pimenta a ponto de ferver. Um enfermo não deve tomar álcool, nem tampouco pó de mosca espanhola. O que o senhor necessita é de uma cebola crua.
- Capitão Aubrey, por favor… - disse um jovem em tom respeitoso.
O almirante Harte estava sentado junto à sua mesa e ao seu escrevente e, em tom grandiloqüente, disse:
- Capitão Aubrey, há uma missão sumamente importante que levar a cabo, e deve ser encomendada a um oficial prudente e confiável… Se está resfriado, Aubrey, eu lhe agradeceria se sentasse mais longe - disse em tom informal ao ver que Jack espirrava. - Senhor Paul, abra o escotilhão. É uma missão sumamente importante… Em companhia da Dryad, que estará sob suas ordens, irá até Palermo e ali se reunirá com o transporte armado Polyphemus, que leva a bordo o senhor Hamilton, que foi designado cônsul em Barka, e presentes para o paxá desse país. Deve levar a esse cavalheiro e os presentes para Barka o quanto antes. Como provavelmente saberá, a neutralidade dos governantes de Berbería é de vital importância para nós, assim que não deve fazer nada que possa ofender ao paxá; porém, por outro lado, não deve ceder a petições inadequados nem fazer nada que tenha como consequência a perda da dignidade de nosso país, e, além disso, tem que insistir em que queremos uma satisfação pelo caso dos escravos cristãos. Também deve levar estes despachos ao cônsul britânico em Medina. Os passará para a Dryad quando se encontrem a um dia de navegação de Medina, e então o capitão Babbington irá até ali, os entregará ao cônsul e voltará a reunir-se com o senhor e o transporte para continuar navegando para o leste. Está claro que a Dryad se separará do senhor quando se encontrem a um dia de navegação de Medina, né?
- Sim, senhor, porém, de toda forma, lerei as ordens uma e outra vez até que guardá-las de memória.
Jack, assim como muitos outros capitães, sabia que quando o almirante Harte ordenava algo, era conveniente que desse as ordens por escrito, e, como este era um dos poucos pontos em que um capitão tinha direito a opor-se aos desejos de um almirante, logrou consegui-lo, ainda que não sem discutir. Harte estava em uma posição desvantajosa, pois seu interlocutor conhecia perfeitamente as normas da Armada, e depois de insistir em que aquele atraso era desnecessário e impediria aproveitar o vento favorável e em que a missão era urgente e as formalidades tinham pouca importância, mandou o escrevente que pusesse por escrito as ordens do capitão Aubrey o mais rápido que pudesse. E enquanto esperavam que o escrevente terminasse, Harte disse:
- Se lhe fizessem uma sangria, isso o ajudaria a curar-se do resfriado. Doze ou catorze onças seriam suficientes para produzir uma notável melhoria, e ainda o curaríam de uma vez para sempre.
Gostou muito desta idéia e, em voz baixa, repetiu:
- Curaríam-lhe de uma vez para sempre.
O Worcester e a Dryad se separaram da esquadra, e quando seus homens deixaram de ver as gáveas dos navios porque ficaram ocultas atrás do horizonte, o sol saiu e o vento aumentou tanto de intensidade que fez aparecer manchas brancas de formas caprichosas nas águas de cor azul escuro.
- Olha, formaram-se cavalos - disse o capitão com a voz rouca. - Os franceses os chamam de botões.
- Ah, é? - disse o capitão Babbington. - Não sabia. Que curioso!
- Na verdade, eles se parecem tanto com os cavalos como com as ovelhas - disse Jack e se soou o nariz - mas as ovelhas não são poéticas e os cavalos sim.
- Verdade, senhor? Não havia me dado conta.
- É claro que Sim, William. É o animal mais poético, com excessão da pomba, possivelmente. Pégaso é um exemplo. E recorde-se daquela obra na qual um tipo dizia: "Meu reino por um cavalo!". Não teria havido poesia na frase se dissesse "ovelha". Bem, aqui estão as ordens. Leia-as enquanto termino esta carta e guarde de memória as suas ou, se preferir, copie-as.
- Bem, senhor - disse Babbington quando Jack largou de um lado a caneta - parece que minha parte é muito simples. Tenho que separar-me do senhor quando estejamos a um dia de navegação de Medina, depois ir até ali e entregar os despachos ao cônsul e, finalmente, voltar a reunir-me com o senhor. A viagem acho realmente fácil: Palermo, Medina, Barka e depois regressar.
- Sim, para mim também me parece; por isso me admirou que o contra-almirante dissesse que esta missão era muito importante e que devia ser encomendada a um oficial prudente e confiável. E o disse com um olhar astuto.
Houve um breve silêncio. Jack e Babbington tinham quase a mesma opinião do almirante Harte, e ainda que cada um sabia o que o outro estava pensando, não o confessaram um ao outro mais que com um olhar.
- Será uma viagem muito agradável - disse Babbington. - Poderemos comprar atum em escabeche em Barka, além de muitas outras provisões, e teremos a possibilidade de capturar uma presa. Talvez um dia ao amanhecer e com vento favorável possamos apresar algum mercante procedente de Levante quando passe entre Pantelleria e a costa Africana.
- Quase me esqueci o que é uma presa - disse Jack, mas em seus olhos apareceu o brilho pirático de outro tempo. - Acho que aqueles dias já se acabaram, ainda que talvez se possa capturar alguma no Adriático ou mais ao leste. Nesta zona, os poucos barcos que seriam valiosas presas desdobram todo o velame e fazem rumo à costa Africana quando vêem um de nossos navios, e quando já estão próximos dela, estão seguros. Os beis e os paxás destes estados levam muito a sério a questão da neutralidade, e sua amizade é tão importante para nós atualmente que o almirante degradaria qualquer um que apresasse um barco perto de suas costas, ainda que estivesse carregado até os topes de seda, pérolas, ouro, incenso e mirra. Sei que Harvey, o capitão do Antíope, perseguiu um barco com um valioso carregamento até uma enseada ao oeste de Argel e, apesar de que na enseada só havia uma insignificante torre, o deixou ali por temor de molestar ao dey. O contra-almirante falou sobre essa questão esta manhã, e vejo que o escrevente faz referência a ela neste escrito. O pobre homem estava tão aturdido que escreveu tudo o que se falou. Está no final da página dois: "É preciso respeitar a neutralidade em qualquer situação".
- O almoço estará pronto em dez minutos e os cavalheiros acabam de chegar - anunciou Killick, entrando na cabine com uma bandeja com copos cheios de bebida e inclinando-se para contrapor a inclinação do navio para sotavento, e depois gritou: - Empurrem a porta!
Ouviu-se um ruído seco e a porta se abriu de golpe. Então entraram Pullings e Mowett, vestidos com seu uniforme de gala, e sorriram comprazidos ao ver Babbington, seu antigo companheiro de tripulação. Os três haviam desempenhado o cargo de guardas-marinhas no primeiro barco que Jack havia tido sob seu comando e, ademais, haviam navegado com ele em outros que lhe haviam designado posteriormente. Babbington, que era o mais jovem, já era capitão de corveta e provavelmente seria capitão de navio dentro de um ou dois anos, enquanto que os outros dois eram simples tenentes e seguiriam tendo essa classe por toda sua vida se não participassem de uma batalha vitoriosa; contudo, não lhe tinham inveja nem se queixavam do sistema pelo qual, apesar dos três terem os mesmos méritos, provavelmente Babbington se converteria em um almirante acomodado ao final de sua vida profissional e eles, em troca, teriam que viver com meio pagamento, com 109 libras e 10 xelins por ano. A única alusão a esta questão chegou mais tarde, quando Jack, depois de terminada a animada refeição, disse que se o vento se enquadrar e o transporte não lhes fizese perder tempo em Palermo, fariam uma viagem muito rápida, e perguntou:
- Quem está ao comando do Polyphemus agora?
Nenhum sabia. Os tenentes e inclusive os capitães que estavam ao comando dos transportes eram homens insignificantes, sem esperança de promoção, quase à margem da Armada.
- Acredito que seja algum tenente velho e aleijado - disse Pullings, e depois, com um amargo sorriso, acrescentou: - Mas eu me contentaria em estar ao comando de um transporte e içar um galhardete azul.
O transporte não os fez perder tempo. Estava pairando ao norte do cabo Galo quando o avistaram, e era óbvio que estava alerta e preparado para zarpar, como correspondia a um barco de guerra. Ambos navios se identificaram, e Jack mandou diminuir vela e fazer o sinal que ordenava ao capitão do Polyphemus reunir-se com ele.
Os tripulantes do transporte desdobraram as joanetes, a bujarrona e as velas de estai como o faziam os bons marinheiros, e como o barco tinha que dar numerosas bordejadas até alcançar a esteira do Worcester, Jack teve muito tempo para observá-lo.
Observou-o da grande cabine, onde estava sentado bebendo suco de lima quente, com a luneta apoiado no escaninho, mas a princípio não lhe prestou muita atenção. Imediatamente reconheceu o seu capitão, um velho tenente de nome Patterson que perdera um braço num ataque a um posto inimigo no início da guerra. Governava com grande habilidade o Polyphemus, um barco de coberta corrida que navegava bem de bolina, e na última bordada necessária para seguir o rumo do Worcester, fez que a quilha formasse com a direção do vento um ângulo muito menor que nas anteriores. Mas não era o gancho de aço de Patterson, que brilhava ao sol, o que fazia Jack olhar o transporte com mais atenção a cada vez, nem tampouco a precisão com que calculava o aumento de intensidade do vento, mas algo muito raro que ocorria no meio do convés. Seus tripulantes subiam e desciam algo que parecia um canhão cinzento, um canhão muito maior que os que levavam os navios de primeira classe na coberta inferior, porém, como não pôde ver bem aquilo da cabine nem do mirante de popa nem do castelinho, foi para o castelo de popa, chamou ao guarda-marinha encarregado dos sinais e disse:
- Ordene ao transporte que se aproxime, senhor Seymour.
Depois se voltou para o oficial de guarda e disse:
- Ficaremos em pairo por alguns momentos, senhor Collins.
O Polyphemus cruzou a esteira do Worcester, virou, avançou paralelamente a ele, pôs em pairo o velacho e se deteve em frente ao costado de sotavento e começou a se balançar com as ondas. Então seu capitão, que estava de pé na coberta, com o gancho enganchado no último brandal do pau maior, levantou a vista para o navio de linha. Era um homem velho e magro e usava um uniforme de estilo antigo desgastado e uma peruca loira que contrastava com seu rosto bronzeado, que tinha um gesto grave. Mas tampouco agora era Patterson o que atraía a atenção de Jack e dos tripulantes do Worcester que de seus postos podiam olhar por cima da borda, olhvam o rinoceronte que estava detrás do pau traquete, imóvel e rodeado dos homens que o cuidavam, que estavam imóveis também, pois nas duas embarcações, todos, por respeito aos dois capitães, permaneciam quietos e silenciosos enquanto eles, como dois gigantes bem educados, mantinham uma conversa.
Para cumprir com as normas de cortesia, Jack perguntou primeiro pelo almirante, e a resposta foi que havia zarpado na quinta-feira pela tarde em companhia do Melampus. Depois se interessou pelo senhor Hamilton, e foi informado de que iria lhe fazer uma visita quando pudesse se levantar, pois nesse momento não se encontrava bem por causa do movimento do barco. E, finalmente, inquiriu:
- Senhor Patterson, que animal é esse que está detrás do pau traquete?
- É um rinoceronte, senhor, um exemplar de rinoceronte cinzento. É um presente para o paxá de Barka.
- E o que estava fazendo?
- Exercício, senhor. É preciso obrigar-lhe a fazer exercício duas horas por dia para evitar que tenha um comportamento violento.
- Então deixe que continue, senhor Patterson. Não guarde cerimônia, eu lhe peço.
- Não, senhor - disse Patterson, e então, voltando-se para o marinheiro encarregado do grupo, ordenou: - Continue, senhor Clements.
O rinoceronte e os homens que o cuidavam se puseram em movimento como empurrados por uma mola. O animal deu três ou quatro passos curtos e arremeteu contra Clements, mas ele se agarrou ao seu corno e subiu em cima gritando: "Tranqüilo, tranqüilo, amigo!". Nesse momento os outros homens do grupo puxaram a corda de um aparelho, que estava atada ao largo cinturão que rodeava o ventre do rinoceronte, e o elevaram. Durante um tempo o animal esteve agitando as patas no ar, e enquanto isso, Clements lhe falava ao ouvido com uma voz cuja potência era adequada ao seu enorme tamanho e lhe dava afetuosas palmadas no lombo. Logo o desceram, e Clements o levou até o pau traquete puxando-lhe por uma orelha e dizendo-lhe que caminhasse depressa, que tivesse cuidado com o balanço e que olhasse bem por onde ia para não esmagar as pessoas com seu gordo traseiro. Elevaram-no outra vez, viraram, desceram de novo e o levaram para a popa. Nesta ocasião o rinoceronte caminhou mais devagar e muito poucas vezes sacudiu a anca e tratou de dar golpes com o corno. Elevaram-no uma vez mais, viraram, desceram de novo e o levaram para a proa. E continuaram levando-o de um lado para outro, sob o fascinado olhar dos tripulantes do Worcester, até que, por fim, o conduziram até a escotilha principal. O rinoceronte, com as orelhas erguidas e o lábio superior estirado, olhou ao seu redor movendo os pequenos olhos como se estivesse buscando algo. Clements lhe deu uma bolacha e ele a pegou com delicadeza e a comeu de boa vontade. Depois os marinheiros tiraram os quartéis das escotilhas e a atitude do animal mudou, e Clements lhe vendou os olhos. Então o senhor Patterson, tentando explicar isto, disse:
- É tímido. Tem medo da escuridão… ou da profundidade.
- Devagar - disse Clements, fazendo o rinoceronte passar por cima da borda da escotilha.
Depois, com uma mão na corda e outra no lombo do animal, desceu junto com ele, que, visivelmente angustiado, pendurava da corda com as quatro patas estiradas e as orelhas baixas.
- Como eu gostaria que o doutor estivesse aqui! - disse Jack para Pullings e depois gritou: - Senhor Patterson, felicito-lhe por sua habilidade para controlar os rinocerontes! Venha almoçar amanhã, se o tempo o permite!
O senhor Patterson respondeu que iria almoçar com o capitão Aubrey se o tempo permitisse, mas em tom pouco convencido, e enquanto falava, assinalou com a cabeça para barlavento, onde parecia que estavam se formando ventos violentos. E de fato, no outro dia o capitão Aubrey almoçou sozinho, enquanto os três barcos avançavam para o este-sudeste com as maiores desdobradas e as gáveas rizadas, por águas muito turbulentas para navegar por elas em bote sem perigo, mas se alegrou de isso, pois, apesar de sentir-se animado porque o vento era favorável e porque desfrutava de certa liberdade por se achar longe da esquadra, não se encontrava em condições de estar em companhia de ninguém porque o resfriado havia se agravado. "Como gostaria que o doutor estivesse aqui!", havia dito a Pullings outra vez no café da manhã, pensando que seria desleal com Stephen se recorresse ao senhor Lewis. Antes do almoço havia tomado alguns remédios que lhe recomendaram, e estes, ou talvez o vinho que bebeu depois, fizeram-lhe bem, porque quando se aproximavam do estreito de Pantelleria e ele ordenou que os barcos se situassem em linha com a esperança de poder capturar alguma presa, sentiu-se realmente alegre. Tinha poucas esperanças de lográ-lo, mas eram fundadas. Aquela era uma das rotas marítimas onde era mais provável encontrá-las, pois algumas embarcações se arriscavam a chegar a Levante porque ali podiam obter-se enormes benefícios, se bem que a maioria eram corsários e barcos que faziam contrabando. Também era possível que encontrem ali algum barco que houvesse saído para o alto mar apesar do bloqueio e regressasse para seu porto, o qual, indubtavelmente, estaria em uma posição muito desvantajosa, já que o vento soprava do sudoeste. Estava tão rouco que Pullings havia tido que repetir em voz alta suas ordens, mas em pouco tempo vira com satisfação como a Dryad virava para o sul e o Polyphemus para o norte e ambos se situavam a considerável distância de seu navio formando uma linha, de modo que entre as três embarcações vigiavam grande parte do estreito. O dia era luminoso e cálido, apesar do vento, um típico dia mediterrâneo, e havia grande visibilidade. As nuvens passavam velozes pelo céu e projetavam sua sombra sobre o mar jaspeado de branco, transformando sua cor azul em púrpura. E Jack pensou que ter resfriado em um dia assim era absurdo.
- Talvez devesse ir para sua cabine um pouco, senhor - murmurou Pullings. - acho que há muita umidade.
- Bobeiras! - exclamou Jack. - Se todo mundo fizesse caso para os resfriados, onde iríamos parar, meu Deus? A guerra poderia terminar. De toda maneira, só poderemos navegar assim um pouco mais, pois a Dryad partirá quando estivermos a um dia de navegação de Medina, aproximadamente à altura do cabo Carmo.
Navegaram durante todo o dia, enquanto os serviolas observavam constantemente o mar desde os topes. Mas não viram nenhum barco além de vários atuneiros frente a Lampedusa, aos quais compraram alguns atuns. Seus tripulantes lhes contaram que no dia anterior havia passado por ali um mercante francês, o Aurore, procedente do golfo de Esmirna, e que ia muito carregado e navegava com dificuldade porque sofrera muitos danos por causa do ataque de um pirata grego de Tenedos, mas eles levaram com serenidade, como os marinheiros devem levar as coisas, tão dependentes do vento, as marés e as correntes, se não querem ficar loucos. Quando o sol se ocultou pela popa e a lua saiu pela proa, Jack mandou a Dryad para Medina e ordenou ao Polyphemus que se aproximasse do Worcester, e ambos navios avançaram muito devagar para o leste, com ventos cada vez mais fracos. Enquanto Jack se consolava com Gluck e torradas com queijo, os marinheiros se reuniam no castelo nas cálidas noites de lua e bailavam até que começava a guarda de meia, ou até mais tarde, quando Pullings dava permissão. Agora Jack ouvia a bagunça com mais clareza, pois tinha aberta a escotilha e o vento havia rolado para o norte, mas ele gostava e se alegrava de ouvi-lo porque era uma prova de que aquele era em barco feliz. Os distantes ruídos entremesclados, as conhecidas melodias, os risos, as palmadas e os rítmicos golpes que os marinheiros davam com os pés lhe traziam muitos recordações, e ao ouvir as notas de Ho the dandy kiddy-o, enquanto passeava por seus domínios, por sua espaçosa e solitária cabine, deu vários passos de baile apesar do resfriado.
Quando estava deitado em sua maca, balançando-se ao ritmo do balanço do Worcester, recordou os dias em que bailava no castelo ao som do violino e do pífano. Mantinha reta a parte superior do corpo e movia os pés agilmente, cruzando-os ou apoiando o calcanhar e a ponta ou dando muitos outros passos, e, se o mar estava calmo, levava o ritmo à perfeição. Aqueles dias eram dourados, mas nem tudo o que brilhava era ouro, o que brilhava em muitos casos era uma grosseira imitação. Contudo, naqueles dias tinha coisas insubstituíveis, uma saúde de ferro, a agradável companhia de seus camaradas, e não tinha mais responsabilidade que a de cumprir as tarefas que lhe designavam. Recordou os momentos divertidos, mas esgotadores, em que, em meio de um grande alvoroço, alguns homens eram animados a competir com outros, e nesse momento adormeceu. Enquanto dormia ia muito longe com o pensamento, às vezes até o jardim de sua casa, onde encontrava a sua mulher, e às vezes até leitos não santificados; contudo, desta vez não saiu do barco, e quando despertou teve a impressão de que alguém acabava de lhe falar, pois a palavra "quinta-feira" ressoava em seus ouvidos.
Realmente era quinta-feira, e os marinheiros haviam guardado suas macas antes do amanhecer, no final da guarda de meia, e provavelmente havia advertido este fato inconscientemente. Muitos, muitos anos atrás, ele também teria recebido a ordem de se levantar e se lavar e teria que sair para o convés quando estava escuro, tanto se fizesse frio como se não; mas agora podia levantar-se quando queria.
A quinta-feira era o dia em que a aparência do Worcester deixava de ser marcial e se convertia em doméstica. A menos que o tempo fosse muito ruim ou que o navio estivesse numa batalha, esse dia pela manhã os tripulantes lavavam sua roupa em enormes tinas e a penduravam em cordas que se estendiam da proa à popa, e pela tarde a costuravam e a cerziam. Também era o dia em que Jack era convidado a almoçar com os oficiais, e agora, quando passava pelo castelo de popa para descer pela escada do castelinho e reunir-se com eles, pôde ver o conjunto de roupa lavada mais bonito que alguém pode imaginar: mais de 1.000 camisas, 500 calças, inumeráveis lenços e roupas interiores ondeando ao vento. Em verdade, a roupa não estava muito limpa, porque a haviam lavado com água do mar (devido à escassez de água doce que havia no Worcester) e o sabão não fazia espuma com ela, e, ademais, estava áspera e dura, mas formava um bonito conjunto multicolor que era digno de se ver.
Na câmara dos oficiais lhe dispensaram uma acolhida mais fria que em outras vezes e foram muito poucos os que não lhe recomendaram algum remédio para o resfriado ou lhe falaram de um resfriado que lhes havia durado muito, especificando as razões pelas quais o haviam afetado, que, entre outras, eram haver-se tirado o colete e posto uma casaca com capuz uma noite para fazer a guarda e a noite seguinte, não; ter falado com uma dama durante longo tempo sem o chapéu posto; haver-se molhado o cabelo com a chuva; ter estado sentado em uma corrente de ar, e ter suado muito. Essas histórias deram passagem a uma conversa geral e informal. Jack apenas falava, porque quase não tinha voz, mas seu gesto era alegre, e como todos lhe disseram que comer era bom para curar o resfriado e a febre, chegou a comer boa parte do atum fresco que ocupava a metade da mesa, que substituía a carne de porco salgada e representava uma agradável mudança de dieta. Enquanto comia, atendia à conversa dos oficiais que estavam no extremo da mesa onde ele se achava, e ouviu que comentavam diversos temas. Falaram dos rinocerontes, das espécies de um corno e das de dois, seu peso, sua dieta, qual era o melhor lugar para encerrá-los num barco, as propriedades do pó obtido de seus cornos; contaram uma anedota de um rinoceronte de Sumatra pertencente à Ariel que estava relacionada com o fato de gostarem de grogue e do motivo dele não lhes fazer bem; lamentaram que o doutor Maturin não estivesse entre eles; falaram de Barka e da possibilidade de conseguir mais animais vivos, especialmente ovelhas e frangos, e de que o paxá fosse generoso e lhes presenteasse alguns bois, já que lhe levavam um rinoceronte e um sem-fim de presentes que, provavelmente, eram muito valiosos também. Contudo, no outro extremo da mesa, Mowett e Rowan, o oficial que havia substituído ao desajeitado Somers, pareciam estar em desacordo e se falavam com acidez. Rowan era um jovem de cara vermelha e olhos brilhantes e tinha uma atitude decidida, e Jack o conhecia o suficiente para saber que, apesar de ser pouco instruído (era filho de um carpinteiro de barcos do oeste da Inglaterra), era um oficial da marinha competente e muito melhor que Somers. Jack quase não lhes ouvira, porém, nesse momento, os oficiais que estavam sentados de ambos lados dele fizeram uma pausa e escutou com assombro que Rowan dizia:
- Eu não saberei o que é um dáctilo, mas sei que "Quer uma ninharia deste pudim?" é poesia, diga, o senhor, o que diga. Rima, né? E o que rima é poesia.
Jack estava de acordo com ele e, apesar de lhe ter um grande afeto, devia admitir que Mowett tampouco sabia o que era um dáctilo.
- Eu lhe direi o que é poesia - disse Mowett. - Poesia é…
Nesse momento entrou correndo o guarda-marinha de guarda.
- Desculpe, senhor - disse, aproximando-se de Jack. - Da parte do senhor Whiting, o oficial de guarda, que avistaram a Dryad do tope, senhor, a trinta graus pela amura de estibordo. Pelo menos, parece a Dryad - acrescentou, estragando o efeito de suas palavras anteriores.
Era raro que alguém confundisse a Dryad, porque tinha uma exárcia peculiar e o típico galhardete de barco de guerra, mas também era raro que, com o vento que soprava, a Dryad houvesse chegado àquela posição sem desdobrar grande quantidade de velame.
- Que velas tem abertas?
- As sossobres, senhor.
Esse detalhe foi decisivo. Nenhum barco de guerra que não fosse a Dryad se afastaria daquela costa com tanta velocidade, arriscando-se até esse extremo.
- Muito bem, senhor Seymour - disse. - Felicite ao senhor Whiting e diga-lhe que desdobre as velas e vá ao encontro da Dryad, se essa embarcação for a Dryad. Subirei ao convés quando terminar de almoçar.
Depois, aproximando-se de Pullings, murmurou:
- Seria uma lástima desperdiçar esta magnífica sobremesa.
Era a Dryad. Navegava tão rápido como sua estranha forma permitia, quase a nove nós, estremecendo fortemente, com o vento pelo través, e tinha desdobradas todas as velas que podia levar estendidas. E enquanto chegou à distância adequada para fazer os sinais, pediu uma entrevista com o capitão do Worcester. O navio, que avançava em direção oposta, chegou a alcançar dez nós depois que os tripulantes terminassem de recolher a roupa estendida, e como as duas embarcações avançavam tão velozmente pelo mar brilhante e deserto, juntaram-se quando ainda não fazia meia hora que os oficiais do Worcester estavam no convés digerindo o almoço. Esta era a primeira vez que se abriam as sobrejoanetes e as velas de estai superiores do Worcester no Mediterrâneo, além das vezes que se haviam feito práticas, e era a primeira vez que sua atual tripulação as desdobrava com vento moderado, e apesar de Jack ter se animado ao ver que o navio se inclinava para sotavento, que a água passava com rapidez por seus costados e que a proa formava largas muralhas de espuma, havia franzido o cenho enquanto observava como cumpriam algumas ordens. Muitos dos guardas-marinhas e alguns dos marinheiros encarregados das vergas superiores não sabiam como realizar suas tarefas, e um dos cadetes estivera a ponto de cair, e talvez de perder a vida, quando ajudava a desdobrar a vela de estai do mastaréu do joanete de mezena, mas o marinheiro encarregado do cesto da gávea o havia agarrado pelo cabelo. E quando tiveram que arriar as alas, as numerosas alas, com o fim de que o navio perdesse velocidade e pudesse pôr-se em pairo para que Babbington subisse a bordo, Jack viu algumas coisas raras, por exemplo, dois membros do coro que cantava o Aleluia puxar um cabo com boa vontade e todas suas forças, mas na direção incorreta, até que um distraído ajudante do contramestre os empurrou para o outro lado; Sem dúvida, conheciam melhor as obras de Haendel que a arte da navegação. Na realidade, havia poucos autênticos marinheiros a bordo, e se bem que os homens de terra adentro, quando eram empurrados para seus postos, já faziam as tarefas ordinárias bastante bem ou, pelo menos, não muito ruim, teriam que ser vigiados e guiados por alguém numa situação de emergência, por exemplo se sustentarem uma encarniçada luta e ao seu redor caiam aparelhos, vergas e inclusive mastros, ou se o navio desse um solavanco para sotavento acidentalmente, ou se se inclinasse numa tempestade de maneira que o convés ficasse quase na vertical. Jack sabia que não se podia formar uma tripulação de marinheiros de primeira, nem sequer de marinheiros ordinários, em poucos meses, e que a única forma dos marinheiros aprenderem o que deviam fazer em uma forte tempestade ou numa batalha era passar por elas. Perguntava-se como reagiriam seus homens quando se encontrem pela primeira vez em ambas, pois, em sua opinião, não haviam estado realmente numa situação de emergência porque nenhuma das borrascas que lhes haviam açoitado podia considerar-se uma forte tempestade nem os disparos que haviam trocado com o inimigo podiam considerar-se uma batalha. Havia começado a pensar nestas coisas ao ver a excelente forma de navegar da Dryad, e deixou de pensar nelas ao ver o seu capitão subir pelo costado do Worcester como se não tivesse um momento a perder e, a julgar por sua alegre expressão, com boas notícias.
- Os franceses estão em Medina, senhor - disse quando chegaram à cabine.
- Ah, é? - disse Jack surpreendido.
- Sim, senhor. Um navio de setenta e quatro canhões e uma fragata de trinta e seis.
Vira os barcos quando virava para entrar no canal de Goleta, o comprido canal que levava ao porto de Medina. Estavam amarrados num lugar protegido pela mais potente das duas baterias situadas na entrada do canal da Goleta, e se ele não houvesse orçado imediatamente, a Dryad teria entrado no canal e depois não poderia escapar.
- Fizeram fogo? - perguntou Jack.
- Não, senhor. Acho que se assombraram tanto como eu, e não esperei para que se recuperassem da surpresa. Fugi dali tão rápido como pude. Viramos sem dificuldade, ainda que as gáveas só tinham um rizes, e dobramos o cabo tão somente a dez jardas da borda. Depois, arriscando tudo, viemos navegando a toda vela para nos reunirmos com o senhor, porque assim poderíamos ir juntos para destruí-los o quanto antes.
Babbington não parecia ter nenhuma dúvida de que poderiam destruir os barcos franceses nem de que seu comportamento havia sido correto. Provavelmente, pensava que poderia entregar os despachos ao cônsul de Medina depois de destruir os barcos.
- Quanto desejo que estejam ali ainda, senhor! - acrescentou.
- Bem, William, logo o averiguaremos - disse Jack.
Mas Jack desejava que tivessem partido. Além da delicada questão da neutralidade, um combate com barcos amarrados não se diferenciava muito de um combate entre soldados, porque nele não influíam as imprevisíveis mudanças do mar. Em um combate assim tampouco era possível que os marinheiros, graças à sua destreza, convertessem uma mudança do vento ou da corrente ou a presença de um banco de areia em uma vantagem e inclusive em um elemento decisivo, aliás que havia que lutar contra um adversário imóvel, que não estava afetado pelas mudanças do vento nem pela falta dele, no qual a tripulação tinha as mãos livres para repelir aos homens que o abordassem e disparar os canhões. Em alto mar havia mais espaço para manobrar, e onde encontrar a sorte, e Jack confiava muito na sorte. Pensava que se os franceses tivessem partido, como desejava, provavelmente navegavam rumo ao estreito de Gibraltar, porém, com o vento que soprava, ainda não podiam se encontrar do lado de barlavento do cabo Hamada; portanto, se virasse para oeste-sudeste, poderia avistá-los pela manhã seguinte e poderia situar-se em uma posição vantajosa, que lhe permitiria escolher até onde aproximar-se e quando começar o combate. Teria a possibilidade de agir de muitas maneiras, e devia aproveitar todas as oportunidades que se apresentassem para contrapor a grande potência deles, pois o Worcester provavelmente poderia lutar com qualquer navio francês de 74 canhões disparando a curta distância e, finalmente, abordá-lo, mas a Dryad e o Polyphemus não poderiam enfrentar-se com uma fragata bem governada a não ser que empregassem uma tática acertada e ao menos um dos dois pudesse disparar contra sua proa ou sua popa enquanto o Worcester a atacava por um lado. Mas podiam fazê-lo e ganhar a batalha se tivessem sorte e se seus rivais possuíssem menos destreza. Nas batalhas, Jack sempre havia tido boa sorte ou, pelo menos, não muito má; contudo, não contava com a segurança de que os franceses tivessem menos destreza nem de que não resistissem com todas suas forças a que eles os destroçassem. Não tinha dúvida de que muitos marinheiros franceses eram ineptos, mas não tantos como acreditavam em Londres, e com relação aos oficiais da marinha francesa, todos os que havia conhecido eram competentes, astutos e valentes. Os três barcos navegavam com rumo oeste-sudeste à maior velocidade que o mais lento podia alcançar, e ao mesmo tempo que Jack observava as cartas de navegação, ofegando e ofegando, bebia limonada quente com rum e pensava nos oficiais franceses que havia conhecido: o temível Linois, que lhe havia capturado no Mediterrâneo e que havia estado a ponto de afundar seu barco no oceano índico; Lucas, que havia lutado valentemente na batalha de Trafalgar; Christy-Pallière, e tantos outros… quanto aos navios franceses, não tinha dúvida de que escaparam de Toulon durante uma das recentes tormentas, e ainda que seus oficiais fossem competentes, era improvável que seus tripulantes tivessem muita experiência, mas se perguntava se seus própios tripulantes seriam muito melhores. Supondo que chegassem a entrar em combate com os franceses em alto mar, se as coisas saíssem tão bem como esperava, quer dizer, se o Worcester conseguisse situar-se entre o navio e a fragata, obviamente seus tripulantes teriam que disparar as baterias dos dois lados ao mesmo tempo, o que precisamente era o objetivo que se perseguia com a tática; contudo, até agora os tripulantes do Worcester apenas haviam praticado esse procedimento inusual.
- Mas isso pode ser remediado - disse com sua horrível voz rouca - ainda que só em parte.
Desse momento em diante os tripulantes deixaram de passar, costurar e cerzir a roupa e passaram a fazer todos os movimentos necessários para disparar as baterias dos dois costados ao mesmo tempo. Corriam de estibordo para bombordo tão rápido como podiam, suando sob o sol da tarde, e sacavam e guardavam os canhões, e se esforçaram o máximo possível desde o princípio até o final.
Mas seu esforço foi em vão, pois o capitão do Polyphemus falou com o capitão de uma galera argelina, um velho conhecido em quem confiava, e se informou de que os franceses não haviam saído de Medina nem pensavam em sair, já que haviam amarrado seus barcos mais perto do dique que havia ao final do canal de Goleta.
O senhor Patterson lhe comunicou isto pessoalmente, e Jack observou que parecia ter recuperado a alegria e a energia de sua juventude e que seus olhos brilhavam tanto como seu gancho. Depois Jack notou a mesma alegria nos oficiais do Worcester, que se encontravam no castelo de popa, e em todos os tripulantes, e se assombrou de que ele não a sentisse. Esta era a primeira vez que a idéia de entabular uma luta não o fizera reagir como se houvesse feito o som de um trompete. Não estava preocupado com o resultado do combate, ainda que era um desses combates que se enfrentavam por amor própio (quando um tinha muito orgulho para retirar-se, ainda que o fizesse com dignidade e ninguém pudesse repreendê-lo, mas não tanto como para fazer a um conceber muitas esperanças de êxito), o que ocorria era que não estava ansioso para entabulá-lo, como em outras vezes. Seu coração havia começado a bater mais rápido, ainda que não muito mais rápido, mas estava muito preocupado com os possíveis danos do navio, com a forma de dirigir um combate desse tipo e com a atitude do bei de Medina para sentir entusiasmo. "Sentirei-me melhor quando comece a batalha", se disse, e imediatamente deu as ordens necessárias para que os três barcos chegassem a Medina tão logo como o vento entabulado os levasse.
Ao amanhecer avistaram o cabo Malbek pela amura de estibordo, e quando os faxineiros terminaram de limpar e secar as cobertas, os três barcos chegaram à entrada da ampla baía que tinha Medina ao fundo. O vento amainou quando saiu o sol, mas ainda soprava com bastante força quando os barcos avançaram para a distante cidade pela parte oeste da baía, mantendo-se perto da costa, e passaram pela frente da longa fileira de lagunas salgadas, ao redor das quais podiam ver-se as filas de camelos com seu brilhante carregamento. Uma vez passou sobre o mar uma nuvem de flamengos, uns dez ou vinte mil juntos, e ao inclinar-se para mudar de bordo mostraram suas plumas cor escarlata.
- Como gostaria que o doutor estivesse aqui! - disse Jack mais uma vez.
Mas Pullings se limitou a responder:
- Sim, senhor.
Então Jack percebeu de que muitos dos oficiais que estavam no abarrotado castelo de popa tinham os olhos fixos nele e sabia que muitos outros tripulantes o olhavam de soslaio desde o castelinho, os corrimãos, o cesto da gávea do maior e vários pontos da proa. Como os marinheiros já haviam terminado de aduchar os cabos e de limpar e secar as cobertas, não tinham nenhuma tarefa imediata que realizar, e no navio havia um profundo silêncio e os únicos ruídos que se ouviam eram o sussurro do vento entre as exárcias e o burburinho da água ao passar devagar pelos costados do Worcester. Seus homens, que, como bem sabia, ansiavam fazer preparativos de combate, exerciam uma pressão moral sobre ele que podia perceber tão bem como o calor do sol, e depois de escutar alguns momentos o grasnido dos flamengos, que era muito parecido ao dos gansos, voltou-se para Pullings e disse:
- Senhor Pullings, chame os marinheiros para desjejuar. Depois, quando hajam terminado, mande todos aos seus postos. E nós deveríamos aproveitar o fogo da cozinha antes de que…
Haveria acrescentado "o apaguem" se um espirro não lhe houvesse impedido, mas todos subentenderam as palavras que faltaram, e, ademais, os ajudantes do contramestre já haviam começado a chamar aos marinheiros.
Geralmente, Jack pedia a Pullings e a um guarda-marinha que desjejuassem com ele, mas naquele dia, depois de ter passado quase toda a noite no convés sem dormir, estava muito cansado inclusive para conversar com Pullings, assim que foi para sua cabine sozinho, limpando o nariz com um lenço e murmurando:
- Meu Deus! Meu Deus! Maldita seja!
Tinha por norma comer abundantemente pouco antes das batalhas, isto é, do momento em que provavelmente começariam as batalhas, e Killick lhe serviu um prato de bacon e quatro ovos fritos e lhe pediu desculpas porque essa manhã só podia servir-lhe isso, mas acrescentou que a galinha manchada estava a ponto de pôr um ovo. Comeu mecanicamente, e lhe pareceu que nem a comida nem o café tinham seu sabor natural. Depois Killick, com um gesto triunfal, entrou com o quinto ovo frito, mas ele não o olhou com agrado e depois, sem ser visto, o jogou pelo escotilhão do jardim. O seguiu com a vista até que caiu no mar, e então viu que a água se punha marrom e depois se voltava a pôr transparente. É que os marinheiros haviam jogado pela borda todo o chocolate que haviam preparado para eles porque estavam ansiosos para fazer os preparativos de combate e sacar os canhões.
- Os Lascadores! - disse Killick, apontando para trás com o dedo polegar.
Um momento depois entrou o carpinteiro do navio, seguido de um grupo de ajudantes e do carpinteiro do capitão, e em tom mais cortês que o do dispenseiro, perguntou se podia começar.
- Assim que termine esta xícara, o lugar será seu, senhor Watson - disse e terminou de beber o café que tinha gosto ruim. - Tenha muito cuidado com esse objeto do doutor, por favor - acrescentou, assinalando a arqueta de Stephen, que agora servia de atril.
- Não se preocupe, senhor - disse o carpinteiro do navio e, assinalando para seu companheiro: - Pond fez uma caixa especial forrada com estopa.
- Este objeto está fora de lugar num barco, ainda mais quando há uma batalha.
Quando Jack saía da cabine, o grupo começou a golpear com força as cunhas para tirar os anteparos e para enrolar a lona de quadros que cobria o piso, e antes de que se passeasse de um lado para outro do castelo de popa meia dúzia de vezes, o objeto de Stephen e a louça, as taças e os móveis da cabine já estavam na bodega, e os anteparos haviam desaparecido, e com eles as diversas habitações. A cabine se convertera em um grande espaço entre a proa e a popa, e os impacientes artilheiros puderam situar-se ao redor das duas caronadas de 32 libras que Jack havia colocado nela.
Haviam começado muito cedo, muito cedo. Ainda tinham que passar pela frente de inumeráveis lagunas salgadas. O porto, ao fundo da baía, ainda estava escuro porque as colinas situadas atrás da cidade lhe davam sombra, e como Jack não queria entrar em suas águas sem tê-lo observado detalhadamente, ordenou arriar as maiores. A partir de então o Worcester e seus companheiros avançaram mais devagar, pois só tinham as gáveas desdobradas, as únicas velas que costumavam ficar estendidas em uma ação de guerra.
Havia numerosas embarcações locais saindo e entrando na baía, entre elas as dos pescadores de atum e de coral. Duas felucas corsários com uma grande vela latina negra passaram muito perto do Worcester em direção contrária, navegando a grande velocidade e muito afundados na água. Estavam abarrotados de homens, e muitos deles voltaram seu rosto para o navio ao passar junto dele. Alguns tinham a tez acobreada, outros, negra e brilhante, outros, bronzeada pelo sol; alguns tinham barba e outros, não; a maioria deles usavam a cabeça raspada ou coberta por um turbante; todos tinham o malicioso olhar dos saqueadores. Jack os olhou com desprezo e imediatamente afastou a vista deles.
- Vamos inspecionar o navio - disse a Pullings.
Como esperava de um primeiro oficial como Pullings, tudo estava em ordem. As escotilhas estavam tapadas pelos quartéis; as cobertas, que há pouco se achavam secas, agora estavam úmidas e cobertas de areia; os barris com água para que os artilheiros bebessem se achavam na coxia; os baús das armas estavam abertos; os suportes, cheios de balas. Ainda que não haviam sacado os canhões porque ainda não se havia dado a ordem de que todos ocupassem seus postos, as mechas de combustão lenta com que inflamavam sua carga já estavam ardendo miniaturas recipientes de metal e faziam propagar-se pela coberta um forte odor que todos conheciam muito bem, e os homens encarregados de fazer a abordagem já tinham na mão alfanjes ou machados com os extremos pontiagudos, que alguns preferiam nos combates corpo a corpo. Alguns tripulantes, tanto marinheiros como homens de terra adentro, pareciam angustiados, e muitos estavam muito excitados, ainda que a maioria deles tinham um gesto alegre, mas grave, e estavam muito tranqüilos. Em momentos como esse os tripulantes tomavam certas liberdades, e alguns dos que haviam navegado anteriormente com Jack falaram com ele quando estava fazendo a inspeção. "Sua Senhoria, recorda a Surprise e o banquete que nos deram em Calcutá?", perguntou um. "O vento soprava igual que agora quando apresamos o grande navio espanhol", disse outro. E Joseph Plaice disse algo tão gracioso sobre a Sophie, que seu própio riso impediu que se entendessem as últimas palavras. Em verdade, Jack tampouco havia entendido bem as primeiras, porque o resfriado lhe afetara o ouvido, ainda que não a vista, e quando terminou a inspeção e subiu ao cesto da gávea maior com sua luneta, pôde ver Medina perfeitamente. Distinguiu a mesquita, iluminada pelo sol, com sua dourada cúpula e seu alto minarete, e também a baía interior, muito pouco profunda para barcos de qualquer calado, mas o velacho lhe impediu ver o canal de Goleta.
- Mudar de bordo quinze graus para bombordo! - gritou.
E quando o navio virou, pôde ver o longo canal. Tinha vários cais dos lados, nos quais estavam descarregando alguns mercantes e muitos botes pequenos, e de cada lado da entrada havia duas torres que marcavam o final de dois diques de forma curva e de aproximadamente uma milha de comprimento. Os diques, construídos com enormes blocos de pedra ao estilo dos fenícios e dos romanos, passavam entre arrecifes e ilhotas e fechavam o fundo da baía. Da posição em que o Worcester se encontrava agora, também podia ver muito bem os dois barcos franceses, um navio de linha e uma fragata. Haviam mudado de lugar depois da visita da Dryad e agora estavam amarrados a um cabo de distância da torre mais distante e muito perto de uma parte do dique compreendida entre duas ilhotas, tão perto que não era possível passar entre o dique e eles. Obviamente, o capitão do navio de linha francês estava decidido a que não se repetisse o ocorrido no Nilo e havia se assegurado de que o navio não pudesse estar entre dois fogos, de que o inimigo não pudesse aproximar-se dele pelos dois lados. Ademais, o havia colocado de maneira que a proa ficasse protegida pelo dique e nenhum barco pudesse disparar-lhe por essa parte. A fragata também estava segura naquele refúgio, porém, em seu caso, era a popa a que estava protegida pelo dique. Ambos barcos tinham o costado de estibordo orientado para o interior da baía, e para o espaço que ficava entre eles, seus botes iam e vinham, mas Jack não pôde identificar o que faziam. Inclinou-se sobre a barricada formada pelas macas, depois enfocou a luneta e, por fim, pôde ver que os franceses, os muito astutos, estavam colocando os canhões de bombordo no dique para formar uma bateria que protegesse o espaço entre os dois barcos e, ademais, deixavam ali tonéis, paus e macas para protegê-los. Ainda que só trasladassem os canhões menos pesados, poderiam formar uma bateria da mesma potência que a de um costado da fragata, e a julgar pela forma com que trabalhavam, logo a acabariam de formar. Pelo fato de seus barcos estarem atracados, os capitães disporiam dos homens necessários para manejar os canhões, ou inclusive mais, e o uso dessa bateria aumentaria consideravelmente sua potência de fogo.
- Largar a traquete! - gritou e depois, dirigindo a luneta para a coberta, acrescentou: - Baixar a lancha e os cúteres!
E imediatamente disse ao guarda-marinha encarregado dos sinais:
- "Dryad e Polyphemus: Capitães devem apresentar-se a bordo. "
Os tripulantes do Worcester ainda estavam descendo a lancha quando Babbington e Patterson subiram pelo costado.
- Eu lhes direi qual é a situação, cavalheiros. Estão colocando os canhões no dique tão rápido como podem, e já colocaram seis. Dentro de uma hora este maldito lugar será outro Gibraltar, não poderá ser atacado por nenhum lado. Minha intenção é lutar com o navio de setenta e quatro canhões penol a penol durante cinco minutos e depois, em meio da espessa fumaça, abordá-lo. Quero que coloquem seus barcos o mais perto possível da popa de meu navio e que, quando dê a ordem, abordem o navio francês pela proa. Se não puderem chegar a ela diretamente, poderão fazê-lo através da popa de meu navio. Enquanto nós estivermos lutando penol a penol, disparem para a proa e para o castelo do navio francês com as armas leves… duvido que possam dirigir algum de seus canhões para eles… Porém, escutem-me bem, cavalheiros: não dispararemos nem um mosquete nem uma pistola nem um canhão até que eles disparem. Falo muito sério. Digam aos seus oficiais e aos seus guardas-marinhas que devem fazer com que os marinheiros o cumpram e que lhes comuniquem que quem disparar antes de que se lhe ordene será castigado com quinhentos açoites, e Deus sabe que falo sério quando digo quinhentos chicotadas; e o oficial da brigada à que pertença esse homem será degradado. Entenderam bem?
- Sim, senhor - respondeu Babbington.
Patterson, com o estranho sorriso que o caracterizava, disse que havia entendido perfeitamente, mas que não deviam preocupar-se porque nunca em sua vida havia visto nenhum barco francês respeitar a neutralidade num porto quando tinha mais probabilidades de ganhar.
- Espero que tenha razão, senhor Patterson - disse Jack - porém, sendo assim ou não, essas são minhas ordens. Bem, senhores, vamos ao nosso trabalho antes que essas probabilidades aumentem.
Despediram-se com um aperto de mãos e Jack os olhou até que terminaram de descer pelo costado e depois se virou para falar com Pullings.
- Chame todos para seus postos - disse, e imediatamente, alçando a voz para que o ouvissem apesar do ruído do tambor que acabava de começar, acrescentou: - Diga ao capitão Harris que venha.
O capitão da infantaria da marinha chegou correndo de seu posto, no castelinho.
- Capitão Harris - disse Jack - penso abordar o navio de setenta e quatro canhões depois de disparar-lhe com uma bateria durante um curto tempo e quero que entretanto o senhor e um grupo de homens passem por atrás da popa do navio francês nos botes, afastem os artilheiros da bateria do dique e dirijam os canhões para a fragata. Tem algum comentário a respeito?
- Não, senhor, só que essa será uma boa jogada.
- Então, leve todos os artilheiros que estime conveniente. Aqui poderemos prescindir de alguns para disparar umas poucas descargas. Quero que seus homens vão na lancha e nos cúteres de modo que não lhes vejam, que permaneçam junto de nós quando estejamos abordados com o navio francês e que esperem para que lhes dê o sinal para ir até o dique.
Chamou ao condestável e disse que canhões havia que sacar e ordenou que os carregasse com balas de corrente ou de vara para fazer os primeiros disparos, porque assim destruiriam a rede de abordagem; depois chamou o contramestre e disse que preparasse os ganchos para que pudessem se engatar ao navio francês e que mandasse marinheiros de primeira para os cestos das gáveas para que atassem os penóis dos dois navios; depois chamou o oficial de derrota para falar da rota a seguir e ordenou orçar enquanto passassem a ilhota que estava mais próxima das torres; e, finalmente, falou com Pullings da substituição dos infantes da marinha, da necessidade de que os sondadores medissem a profundidade do canal para que o Worcester pudesse navegar o mais perto possível da costa, e de uma dúzia de coisas mais. Sentiu uma grande satisfação ao comprovar que muitos desses homens haviam atuado acertadamente e lhe haviam antecipado, pois tinham quase preparadas a maioria das coisas que lhes havia pedido e haviam tomado medidas de acordo com suas ordens. Alegrou-se pensando nisso alguns momentos, enquanto observava como o dique se aproximava (as torres estavam a mil jardas de distância e os barcos franceses um pouco mais longe) e esperava ouvir o ruído das correntes com que se reforçariam as vergas. Gostaria dispor mais coisas, mas se limitara a ordenar as essenciais, já que os franceses estavam colocando os canhões com tanta rapidez que era preciso entrar em combate com eles imediatamente. Os tripulantes terminaram de acorrentar as vergas e o ruído metálico cessou, e então Jack, alçando quanto podia sua rouca voz, gritou:
- Tripulantes do Worcester! Vou abordar nosso barco com o navio francês de setenta e quatro canhões. Não façam nem um só disparo até que eu dê a ordem. Os franceses têm que disparar primeiro: essa é a lei. Quando der a ordem, dispararemos quatro descargas seguidas e, em meio da fumaça, abordaremos o navio. Os que nunca fizeram uma abordagem atquem e matem ao francês que tenham mais perto. Mas recordem que qualquer homem que dispare antes que eu dê a ordem será castigado com quinhentos açoites!
A arenga não foi o que se poderia considerar um discurso brilhante, mas Jack não era um bom orador e raras vezes havia pronunciado um melhor. Apesar de tudo, parecia ter satisfeito aos tripulantes do Worcester, e quando Jack se foi da coberta ouviu que murmuravam em tom de aprovação: "Quatro bombardeios seguidos e depois abordar".
Desceu para a entrecoberta, onde Killick lhe esperava com uma casaca de uniforme bastante usada e o sabre, um pesado sabre como o dos oficiais de cavalaria. Muitos marinheiros se passavam a trança para cima quando participavam de uma batalha, mas Killick formava uma bola com ela, e por usar o cabelo assim e estar carrancudo, parecia mais que nunca uma bruxa. Detestava que se estragasse a roupa boa e, quando ajudava a Jack a pôr a casaca, murmurou que recuperar as dragonas custava muito trabalho. Ele também havia trocado as calças e a casaca azul que devia usar porque era o dispenseiro do capitão por uma camisa velha e calções, e essa roupa aumentava sua semelhança com uma bruxa. Quando ajudava Jack a abotoar o cinturão com o sabre, disse:
- Há lenços limpos nos dois bolsos, e acho que agora lhe faz falta um.
- Obrigado, Killick - disse Jack e soou o nariz.
Esquecera-se do resfriado até esse momento, e voltou a esquecer-se dele quando voltou ao castelo de popa. Agora o inimigo se encontrava a menos de meia milha de distância, meio oculto por uma ilhota e o dique. O Worcester navegava a cinco nós só com as gáveas desdobradas, e as lanchas e os cúteres iam a reboque pelo costado de bombordo de modo que os franceses não pudessem vê-los; a Dryad e o Polyphemus estavam em seus postos. Não se ouvia nada mais que os gritos do sondador: "Profundidade onze! Profundidade onze! Marca dez!". Dentro de três minutos aproximadamente entrariam no canal de Goleta e então orientariam a verga maior e a mezena para reduzir a velocidade. Dois minutos depois começaria o combate. Esta operação era muito perigosa e dependia em grande medida do que os franceses pensassem do Polyphemus. Como o transporte era de grandes dimensões, cabia nele quase um regimento, e se os franceses acreditassem que estava cheio de soldados, era menos provável que tivessem confiança em si mesmos e que seu comportamento fosse agressivo. Mas perigosa ou não, essa era a única que podia realizar com tão pouca antecedência. A sorte já estava lançada. Agora deixava tudo com a sorte. O que mais lhe preocupava era que algum de seus homens, desejoso de lutar, fizesse o primeiro disparo, porque isso significaria que o Worcester faltaria com a lei. E sabia muito bem o importante que era respeitar a neutralidade dos estados de Berbería e recordava perfeitamente a frase que se referia a isso nas ordens: "É preciso respeitar a neutralidade em qualquer situação".
Sentiu uma grande angústia e percorreu a coberta com o olhar. Havia deixado o castelo de popa quase vazio para que cada guarda-marinha se encarregasse de dois canhões e cada oficial, de sete, e os chefes das brigadas de artilheiros eram eperimentados marinheiros de barcos de guerra, assim que não havia perigo.
Deixou de sentir angústia, mas esta voltou a invadir-lhe imediatamente. O navio se aproximava rapidamente da entrada do canal de Goleta, e quando já podiam ver claramente as torres pela a amura de estibordo, saiu do canal um enxame de barcos pesqueiros cujos tripulantes faziam soar caramujos, como se estivessem celebrando uma cerimônia. Provavelmente pensavam que o Worcester ia dobrar para a direita para entrar no canal, porém, ainda que não estavam seguros, seguiram navegando a toda vela perpendicularmente ao rumo do Worcester, e Jack só pôde evitar chocar com um um porque mudou a orientação do velacho justo a tempo. Sua voz rouca não era adequada para falar como a ocasião requeria, por isso se virou para o senhor Calamy, o único guarda-marinha que restava no castelo de popa, o único que lhe fazia companhia agora, e disse:
- Corra para a proa e diga ao senhor Hollar que lhes peça que virem porque nós seguiremos este rumo.
De seu posto, no castelo, o contramestre lhes deu a mensagem aos gritos, usando as poucas palavras em língua franca que conhecia e complementando-as com um sem-fim de gestos. Aparentemente, os pescadores entenderam, porque viraram para estibordo e depois continuaram navegando com um rumo divergente ao do Worcester, que os levaria para alto mar enquanto o navio adentrava no canal.
Jack voltou a mudar a orientação do velacho e o Worcester fez um brusco movimento para frente e seguiu avançando. Agora as torres estavam pela popa e o lugar onde os barcos franceses se encontravam estava muito perto. Jack estava preparado para dar a ordem pela qual o navio viraria, bordejaria a ilhota e se abordaria com o navio inimigo, e a tripulação estava preparada para recebê-la, mas nesse momento, inexplicavelmente, muitos dos barcos pesqueiros entraram de novo no canal. Os barcos pesqueiros avançaram devagar até a ilha, bordejaram-na e se aproximaram do dique. O navio já se encontrava em frente da ilha e a verga maior quase a roçava, e então o oficial de derrota gritou:
- Mudar de bordo o leme!
Imediatamente puderam ver o pequeno ancoradouro onde havia uma vintena de barcos pesqueiros com velas latinas cor marrom, e um pouco mais lá, o navio de linha francês, com a bandeira ondeando e todas as portalós abertas.
Não havia nem a mais remota possibilidade de que pudessem engatar nele os ganchos sem esmagar os barcos pesqueiros.
- Os trituramos, senhor? - perguntou o oficial de derrota, que estava junto ao leme.
- Não - respondeu Jack - viraremos a barlavento.
Nesses poucos segundos percorreram uma distância irrecuperável. O Worcester já se encontrava mais lá da popa do navio francês, e com o vento que soprava, nenhuma manobra poderia fazê-lo retroceder.
- Adiante! - ordenou Jack.
O Worcester, seguido da Dryad e do Polyphemus, continuou avançando, e todos se prepararam para receber os disparos dos canhões do dique e da fragata.
Mas não chegaram. Então os três barcos aumentaram a velocidade e pouco depois passaram a segunda ilhota, pondo-se assim fora do alcance dos canhões franceses. E todos deixaram de estar tensos.
O Worcester e seus acompanhantes não haviam feito nenhum disparo, e os barcos franceses, tampouco. Era certo que as embarcações locais ocultavam pela metade a bateria e a fragata, além do navio de linha, mas Jack havia visto que os homens com as armas leves estavam a postos nos cestos das gáveas, vira os mosquetes apontados para ele e como brilhavam quando os homens seguiam com eles seus movimentos, e, contudo, nenhum havia disparado.
Já não era possível pegá-los de surpresa, e ainda que os franceses já haviam visto os infantes da marinha e era evidente que o Polyphemus não era perigoso, os três barcos viraram em redondo quando dispuseram de espaço suficiente. O vento, que até então fora moderado, aumentava de intensidade e rolava para sudeste, pelo que seria muito difícil que os barcos pudessem fazer o mesmo percurso. Mas enquanto Jack olhava os franceses pela luneta, pensou que, de toda maneira, as coisas não poderiam se repetir exatamente. Agora havia uma intensa atividade em seus barcos, e, ao contrário, se não recordava mal, durante os poucos momentos em que estivera frente a frente, todos os tripulantes haviam permanecido imóveis; contudo, era possível que lhe falhasse a memória, como lhe ocorria com freqüência em momentos de grande tensão, e que houvessem movido outras coisas além dos malditos mosquetes, que era o que menos lhe agradava em uma batalha, já que seus disparos derrubavam os oficiais como às aves de seus ninhos. Estavam aproximando o navio de 74 canhões da ilhota a reboque, e já o haviam aproximado tanto que o gurupés estava por cima da margem e não seria possível que a Dryad e o Polyphemus o abordassem pela proa. Também estavam levando mais canhões para o dique.
Mas no Worcester também havia atividade. Os infantes da marinha subiam a bordo e alguns marinheiros pegavam uma amarra pela última portaló de bombordo para poder ancorar o navio pela proa e pela popa e talvez lutar com o inimigo, enquanto que outros começavam a fazer as manobras necessárias para levar outra vez o navio até seu ponto de partida, ou até um lugar próximo dele.
- Senhor - disse Harris - com sua permissão, queria fazer-lhe uma proposta: meus homens poderiam desembarcar no dique pela parte mais próxima da costa e atacar a bateria por trás. Ficaria admirado se os franceses não disparassem ao vê-los marchar para eles com passo rápido e as baionetas caladas.
Jack não respondeu imediatamente. Olhou para o dique, para onde corriam numerosas pessoas para ver o espetáculo, e em sua imaginação viu o pelotão de infantes da marinha do Worcester correndo entre elas. Uma ação desse tipo estava de acordo com o respeito da neutralidade? Não conhecia bem a Harris. Não tinha dúvida de que era valente, mas também tinha cara de estúpido. Não sabia se podia confiar em que não ia disparar primeiro nem ia arremeter contra tudo o que estivesse na frente, incluídas as tropas do bei, no caso de que interviessem no conflito. Ademais, se as duas partes não atuassem simultaneamente, se qualquer das duas se retardasse por um imprevisto, os infantes da marinha estariam expostos aos disparos dos canhões do costado de bombordo dos dois barcos. Era uma proposta atrevida, mas sem sorte nem total decisão nem sicronia, poderia trazer-lhes uma infinidade de problemas.
- Uma excelente proposta, senhor Harris - disse Jack - mas agora penso pôr-me diante do navio, jogar a âncora de popa e mudar a proa de bordo para ele com ajuda do vento. Não poderemos abordá-lo.
- Todos a mudar de bordo! - gritou Pullings.
Imediatamente o dique e os barcos franceses ficaram ocultos pelo traquete e o Worcester começou a segunda volta. Agora avançava mais lentamente, navegando de bolina, e, enquanto isso, dois velhos pilotos vigiavam as bordas de barlavento das velas para se começassem a ondear. Jack soou o nariz durante um momento e depois se aproximou do costado de estibordo. Olhou para a entrada do canal de Goleta e observou que da torre mais distante um homem com um esplêndido turbante parecia dizer-lhe algo fazendo gestos e agitando no ar uma calda de cavalo. Não sabia o que queriam dizer esses gestos nem podia tratar de interpretá-los agora, pois já estavam perto da ilhota em frente à qual deviam mudar de bordo para atacar o inimigo. Então viu que vários franceses arrastavam uma pesada caronada com a qual protegeriam o espaço por onde o Worcester avançaria e pensou que se houvessem chegado ali um momento depois, eles poderiam lançar metralha contra sua proa.
- Atenção de proa a popa! - gritou. - Preparados com os machados! Todos preparados!
- Mudar o leme de bordo! - murmurou o oficial de derrota em meio do silêncio.
- Sim, senhor, mudar o leme de bordo- disse o timoneiro, e o Worcester virou a proa para o refúgio dos franceses.
Então seus homens o puseram em pairo, orientando a vela maior de modo que contrariasse o impulso das outras, e se prepararam para receber o primeiro disparo e a ordem de cortar as amarras das âncoras e atacar o navio inimigo pelo costado.
Mas não receberam nenhum disparo nem nenhuma ordem. Não havia ruído nem movimento. O navio francês tinha os costados mais altos que o Worcester, e Jack não podia ver o castelo de popa nem se subisse num canhão para olhar por cima do parapeito, por que aquele encontro com o inimigo lhe parecia impessoal. Tinha todas as portalós abertas e os canhões assomavam por elas; no convés havia soldados postados ao longo do costado, ainda que só se viam seus chapéus e seus mosquetes. Não havia movimento, além do das finas volutas de fumaça que ascendiam desde as portalós inferiores e do dos mosquetes do cesto da gávea, que apontavam para Jack e variavam ligeiramente sua posição pelo fluxo de ondas. Depois de alguns segundos, Jack compreendeu que o capitão francês também havia proibido terminantemente disparar primeiro e que seus homens obedeciam a ordem de maneira tão estrita como os seus.
Os minutos passaram. O oficial de derrota, com grande habilidade, manteve o Worcester imóvel até que uma rajada de vento o fez cabecear e mover-se um pouco para frente, e então os marinheiros que estavam junto às amarras das âncoras levantaram os machados para cumprir a ordem que parecia iminente, mas Jack negou com a cabeça e, elevando sua voz rouca, ordenou:
- Girem a verga maior!
O Worcester fez um brusco movimento para frente e começou a avançar. Passou em frente à bateria do dique, agora mais potente, mas imóvel, como a do navio, e depois, pela frente da fragata, onde tampouco havia ruído nem movimento. Mas Jack, pelo menos, podia ver o convés da fragata e no castelo de popa avistou o seu capitão, um homem baixo com gesto grave e as mãos atrás das costas. Seus olhares se cruzaram e ambos se cumprimentaram com o chapéu.
Jack estava convencido de que os capitães franceses haviam decidido que seus homens não fariam o primeiro disparo, porém, como poderia haver alguns tontos entre os milhares de tripulantes de seus barcos, ordenou que os seus passassem de novo para um lado e para o outro. Mas não podiam provocar os franceses, e, além disso, ainda que provavelmente havia tontos entre eles, nenhum tinha a seu cargo um canhão ou sustentava um mosquete.
- Não acha que deveríamos passar pela frente deles mais uma vez, mas agora dando vivas? - sussurrou Pullings ao seu ouvido.
- Não, Tom, não seria conveniente - respondeu Jack. - Como o vento está rolando para esta direção, se nos ficarmos aqui outra meia hora nesta baía, não poderemos sair nunca dela, nós ficaremos presos aqui com esses miseráveis durante semanas por falta de vento.
Então afastou a vista do rosto de Pullings, no qual se refletiam a amargura e a decepção, e a dirigiu para o oficial e, alçando a voz, disse:
- Senhor Gill, por favor, faça rumo ao cabo Mero. E quando chegarmos ali decidiremos que rota tomar para ir a Barka.
Deu vários passos pelo castelo de popa para não fugir dos olhares de desalento dos artilheiros, que começavam a guardar os canhões, para não fugir do anticlímax, quando havia uma atmosfera de descontentamento e raiva na coberta. Os tripulantes estavam muito descontentes com ele, e ele estava muito descontente consigo mesmo.
CAPÍTULO 7
- E ali os deixei, senhor - disse Jack - e me dirigi a Barka depois de ordenar ao capitão da Dryad que viesse para informar-lhe onde se encontravam.
- Compreendo… - disse o almirante Thornton muito sério, apoiando a costas no respaldo da cadeira e pondo os óculos, e depois o escrutinou com o olhar. - Bem, antes de voltar ao assunto de Medina, conte-me brevemente o que ocorreu em Barka - acrescentou depois de uma desagradável pausa.
- Então, senhor, lamentavelmente, a viagem para Barka tampouco foi satisfatória. Quando chegamos, nos encontramos com que Muley, o filho do paxá Esmin, tinha sitiada a cidade, e o paxá nos pediu que além dos presentes lhe déssemos armas. Pensei que era meu dever não dá-las até que não tivesse o consentimento do senhor, mas depois de consultar ao senhor Hamilton, o cônsul, mandei para a cidade o carpinteiro, o condestável e uma dúzia de marinheiros para que voltassem a montar suas peças de artilharia, ainda que a maior parte delas estavam tão deterioradas que quase não podiam disparar. Contudo, apenas as deixaram em condições de poder defender a cidade, de Constantinopla chegou uma esquadra com um novo paxá e a ordem de que Esmin deixasse seu cargo. Mas Esmin não estava disposto a obedecê-la e escapou pela noite com a maioria dos presentes e as armas e foi reunir-se com seu filho para manter o sítio à cidade e derrocar ao novo paxá quando a esquadra se fosse. Então o novo paxá nos mandou dizer que, conforme o costume, quando um governante acedia ao poder em Barka se lhe dava as boas-vindas com música e fogos de artifícios e se lhe faziam presentes. E eu o acolhi com música e fogos artificiais - disse com um sorriso estereotipado.
Mas nem o almirante nem seu secretário, a quem Jack olhava alternativamente, responderam ao sorriso: o primeiro não mudou a expressão e o segundo olhou para seus papéis. E o almirante Harte, ainda que o sorriso não estava dirigido para ele, deu uma respiração em sinal de desaprovação.
Era estranho ver Jack Aubrey, um homem corpulento, na flor da vida, que exercia a autoridade há longo tempo, sentado na borda da cadeira e com gesto de angústia diante de um homenzinho velho, inchado e enfermo ao qual poderia esmagar com uma só mão. A Armada tinha muitos defeitos: nos estaleiros havia corrupção e empregados incompetentes, o recrutamento dos marinheiros era uma vergonha para a nação, a nomeação dos oficiais era arbitrário e tanto sua ascensão como, seu emprego geralmente dependiam do favoritismo e das influências. Contudo, a Armada podia dar almirantes capazes de fazer homens como Jack Aubrey tremerem, como, por exemplo, Saint Vincent, Keith, Duncan e o própio Thornton, que talvez era um dos mais temíveis.
- Viu o capitão da Dryad depois de reunir-se de novo com a esquadra? - perguntou o almirante Thornton depois de outra pausa.
- Sim, senhor.
Efetivamente, havia visto William Babbington quando havia avistado a esquadra do Worcester. Ia a bordo de um cúter que tinha duas filas de remadores e que parecia impossível que pudesse manter-se flutuando, já que o mar estava muito agitado.
- Então provavelmente saberá que tenho a intenção de levá-los a um conselho de guerra por terem desobedecido as ordens recebidas.
- Foi isso que Babbington me contou, senhor. Mas lhe disse que, apesar de estar muito aflito por ter desgostado ao senhor, acreditava que poderia demostrar que havia cumprido as ordens conforme as havia entendido. E queria acrescentar uma coisa, senhor: o capitão Babbington atuou em todo momento seguindo minhas indicações, e se cometeu algum erro, a responsabilidade é toda minha.
- O senhor ordenou que ele regressasse de Medina sem entregar os despachos ao cônsul?
- De certo modo, sim. Insisti em que devia respeitar a neutralidade de Medina, o que não haveria feito se se houvesse visto obrigado a entabular um combate com os franceses. Aprovo que haja regressado, porque se houvesse entrado no canal de Goleta, poderia ter sido capturado.
- Então, o senhor aprova que haja feito fracassar um plano cuidadosamente traçado? Acaso não sabia, senhor, que haviamos planejado que a Dryad ou qualquer embarcação similar fosse capturada? Não sabia que os cinco minutos de chegar a notícia da captura e, portanto, de que os franceses não houvessem respeitado a neutralidade, haveríamos mandado uma esquadra para evacuar o bei e substituir-lhe por um amigo nosso? Não sabia que a esquadra, ao mesmo tempo, apresaria todos os barcos franceses que estivessem nos portos do país? Não sabia nada disto?
- Não, senhor, dou a minha palavra de honra.
- Bobeiras! - exclamou Harte. - Eu lhe disse muito claramente.
- Não, senhor, não me disse. Falou vagamente sobre a missão. Disse que era importante e que requeria muita prudência, e isso me surpreendeu porque, em minha opinião, para levar presentes e despachos consulares não é preciso ter dotes excepcionais. E repetiu que era preciso respeitar a neutralidade dos estados de Berbería. Quando li as ordens, não encontrei absolutamente nada, nem sequer uma frase, que me fizesse pensar que tinham outro sentido: que devia pôr em uma armadilha a um barco que estava sob meu comando para que fosse capturado, provavelmente depois de uma luta que houvesse produzido grande número de baixas. Mas não me admira que falasse assim, senhor - disse, sentindo que aumentava sua cólera ao imaginar Babbington arriando por fim a bandeira sob o fogo salpicado do inimigo - não me estranha que não me ordenasse explicitamente enviar um amigo meu para esse porto em semelhantes circunstâncias. Além disso, nas ordens escritas se faz uma clara referência ao respeito à neutralidade, a mesma que fez o senhor nas que me deu verbalmente; portanto, resultava lógico pensar que era isso o que requeria prudência. E permita-me dizer-lhe, senhor - disse, olhando para o almirante Thornton nos olhos - que com um esforço sobre-humano respeitei a neutralidade.
Jack Aubrey havia dito estas palavras num tom cada vez mais agressivo e num dado momento havia conseguido a superioridade moral. Agora, sentado corretamente na cadeira, abriu as ordens para a página onde estava a referência e, entregando-as ao almirante Thornton, disse:
- Aqui está, senhor. Peço que me diga com franqueza se não acha que qualquer homem teria pensado que o mais importante era isto: "É preciso respeitar a neutralidade em qualquer situação".
Sir John voltou a pôr os óculos e começou a ler as ordens. Então Harte disse que o escrevente as havia redigido depressa porque não havia nem um minuto a perder e que poderia ter interpretado mal suas palavras e acrescentou que ele não havia tido tempo de lê-las. Também disse que para bom entendedor poucas palavras bastavam, mas que, de toda maneira, acreditava que qualquer um podia ter deduzido de suas ordens verbais qual era sua intenção, de que o fato de mandar um navio de 74 canhões para uma missão semelhante e ordenar-lhe que se detivesse a um dia de navegação de seu destino haveria feito compreender a qualquer que isso formava parte de um plano e que devia obedecer as ordens ao pé da letra. E, finalmente, disse que não tinha nada que repreender-se.
Falou em tom irritado e depreciativo, mas o almirante Thornton não lhe fez caso e, olhando para Jack, disse:
- Há que respeitar as normas internacionais, sem dúvida, mas inclusive a virtude pode ser exagerada. Não há que ser muito respeitoso, sobretudo numa guerra como esta, na qual o inimigo não cumpre sua palavra. Disparar a primeira descarga contra o inimigo em presença de testemunhas é uma coisa e enfrentá-lo quando está ancorado, quando é provável que ninguém possa determinar quem disparou o primeiro tiro, é outra. Não lhe ocorreu mandar desembarcar uma brigada de infantes da marinha?
- Sim, senhor. Na verdade, o própio capitão Harris, com grande valentia, fez essa proposta. Não sou mais estrito que o senhor nesta tipo de assuntos, senhor, e lhes haveria mandado desembarcar se as ordens que recebi não houvessem dado tanta importância ao respeito da neutralidade.
- Não lhe davam tanta importância! - negou Harte. - Se as houvesse entendido, teria percebido que não lhe davam.
Ninguém julgou oportuno fazer comentários sobre o assunto e, depois de alguns momentos, o almirante Thornton disse:
- Está bem, capitão Aubrey. Ainda que o resultado desta missão tenha sido péssimo, não acho conveniente dizer nada mais. Bom dia.
Jack Aubrey escreveu em sua carta serial:
"Oh, querida, que alívio tão grande senti! Quando regressava na falua, quase não me atrevia a sorrir nem a felicitar a mim mesmo. William Babbington estava esperando-me no navio com um gesto de angústia, e era lógico que assim fosse, já que o almirante descarregou sua ira contra ele primeiro. Eu o levei até a sacada de proa, porque a tarde era bonita e havia uma suave brisa que soprava do sul-sudoeste, tão suave que todos os navios da esquadra tinham desdobradas as sobrejoanetes, e como navegávamos com rumo leste tínhamos ante nós um esplêndido crepúsculo, e então lhe contei o que havia passado. Nós dois estávamos tão contentes como dois escolares que se houvessem livrado de uma forte surra ou da expulsão, e pedimos a Pullings e a Mowett que jantassem conosco. Não podia dizer-lhes o que pensava do contra-almirante, porque isso não seria correto, nem tampouco podia falar-lhes do doloroso que era ver um homem de sua idade e sua classe comportar-se como um ser desprezível, como um canalha. Mas todos sabíamos muito bem o que pensavam os outros, e Mowett me perguntou se me recordava de uma canção brincalhona que os marinheiros cantavam quando eu estava ao comando da Sophie. Conforme Mowett, o que ele não gostava nela não era a letra mas a medida dos versos, porque, aparentemente, não se ajusta às regras da métrica. "
Mas o tema tampouco era ortodoxo, como Jack recordava perfeitamente, pois as palavras menos ofensivas eram as do coro:
Que canalha é Harte! Que canalha é Harte,
esse filho bastardo de um maldito francês!
"Foi um jantar estupendo, e só faltava Stephen para que fosse perfeito. Por certo que Stephen se reunirá conosco dentro de dois dias, se o vento e o tempo permitirem. Esta manhã o almirante (com as bandeiras de sinais) me mandou a mensagem de que fosse vê-lo, e desta vez não me olhou com raiva nem me disse capitão Aubrey ou senhor, senhor, com arrogância aliás que me recebeu amavelmente e me deu a grata ordem de ir a Mahón para buscar alguns apetrechos e ao meu cirurgião. "
Na realidade, o almirante havia continuado: "Bem, Aubrey, o doutor Maturin me disse que o senhor conhece a natureza de algumas das atividades que realiza, que confia em sua discrição e que prefere navegar com o senhor que com qualquer outro capitão. Agora tem que ir para a costa francesa, acho que a um lugar ao oeste de Villeneuve; portanto, o senhor o levará até um lugar próximo que seja o mais apropriado para desembarcar e voltará para recolher-lhe no lugar e no momento em que decidam entre os dois, e espero que nenhum se atrase e que o doutor regresse são e salvo".
Porém, obviamente, Jack não podia incluir isto em sua carta, nem tampouco uma idéia que dava voltas e que raras vezes se afastava de sua consciência, ainda que pudesse expressar essa idéia indiretamente, e isso foi o que fez.
"Espero que logo sustentemos pelo menos uma escaramuça com o inimigo para esquecer o fiasco de Medina. Os oficiais e os marinheiros que haviam navegado comigo anteriormente sabem que não me faltam decisão nem coragem, mas a maioria dos tripulantes sabem muito pouco ou nada com respeito à mim, e acredito que alguns pensam que eu não quis lutar. Isto não é bom, porque se os marinheiros têm a suspeita de que seu capitão é um covarde, podem não respeitá-lo, e sem respeito não há disciplina…"
A disciplina, um elemento essencial num barco de guerra, tinha muita importância para Jack Aubrey, mas havia outras coisas que tinham ainda mais importância para ele, entre as quais estava a reputação. Jack não soube que lhe atribuía tanto valor até que Harris e Patterson começaram a tratar-lhe com muito menos respeito que antes. Mas isso não ocorreu imediatamente depois de que desse a impopular ordem de não atacar os franceses, no anticlímax, quando todos estavam decepcionados e desanimados e, sem dúvida, desejavam que fosse açoitado; isso ocorreu pouco depois do acontecido em Medina. Houve um incidente que passou quase despercebido e o seguiu um fato revelador: na lista de marinheiros que haviam cometido faltas apareceram os nomes de alguns acusados de haver-se brigado, e a metade eram de antigos tripulantes do Skate e a outra metade dos tripulantes que haviam navegado com ele anteriormente. Na Armada se administrava a justiça conforme um procedimento elementar, sem ter em conta muitas provas e testemunhos, e, geralmente, quando se preparava um mal feito no castelo de popa para executar os castigos, não havia muito tempo para julgar os casos, pelo que a verdadeira causa da acusação saía imediatamente à luz e provocava às vezes uma situação desagradável. O incidente se havia produzido porque os tripulantes do Skate compararam o comportamento de Jack com o do capitão Alien, o último capitão sob cujas ordens haviam servido, e disseram que o capitão Aubrey era muito menos combativo que ele. E um dos implicados havia contado: "Disse que o capitão Alien teria atacado os franceses com ordem ou sem ela e que não se preocupava tanto com sua saúde nem com a pintura do barco, assim que lhe dei um empurrãozinho, isto é, uma cotovelada para que se recordasse do que é o respeito".
Esse testemunho justificava o gesto amargado de muitos tripulantes que não haviam sido acusados de nada, como Bonden, Davis, Martens e alguns outros antigos companheiros de tripulação de Jack, incluído o plácido Joseph Plaice, e também o de muitos infantes da marinha e antigos tripulantes do Skate, assim como a crescente repreensão dos infantes da marinha contra os marinheiros. Para Jack também lhe pareceu que a atitude de seus oficiais havia mudado, que já não o tratavam com aquele respeito póximo à veneração que ele lhes inspirava por ter há muitos anos a fama de ser como a salamandra, uma fama que lhe havia facilitado seu trabalho e que, em sua opinião, tinha fundamento.
Jack poderia ter incluído tudo isto em sua carta, e poderia ter acrescentado sua idéia de que a perda da reputação tinha tanta importância para um homem como a perda da beleza para uma mulher e que ambos procuravam constantemente os sinais de uma e outra; contudo, isto não revelaria a Sophie o verdadeiro problema de seu esposo, que não era outro que o medo de que houvesse atuado realmente com covardia.
Jack dava muito valor à opinião dos marinheiros, dos autênticos marinheiros, que eram os que predominavam e tinham a força moral em sua atual tripulação, ainda que nela também havia alguns tontos e marinheiros de água doce, e, por outra parte, nunca os havia visto equivocar-se ao julgar assuntos desse tipo. Naquela ocasião, não estava animado para travar um combate, não sentia a emoção nem a imensa alegria que havia experimentado antes de outras batalhas e que eram cem vezes mais intensas que as que sentia na caça à raposa; mas pensava que isso não tinha importância, já que para um homem podiam faltar-lhe os ânimos para lutar sem que lhe faltasse a coragem, e, ademais, recordava que havia ido ao encontro do inimigo com prontidão e lhe havia oferecido a oportunidade de combater, ainda que tinha menos possibilidades de ganhar, e inclusive havia tratado de provocar-lhe. Mas também recordava que havia sentido um grande alívio ao compreender que os franceses não estavam dispostos a lutar, e esse sentimento era desleal, ou talvez deveria dizer ignominioso? Não, não acreditava que fosse. Era lógico que houvesse sentido alívio ao não ter que empurrar uma tripulação inexperta para uma horrível batalha na qual, sem dúvida alguma, muitos de seus membros teriam morrido ou ficado gravemente feridos ou mutilados. Sabia que nesse tipo de batalhas sempre se produzia grande quantidade de baixas e que a inexperiência da tripulação teria contribuído para que a quantidade fosse ainda maior. Ademais, havia muitas possibilidades de que o inimigo os derrotasse.
Quanto ao fato de não ter mandado desembarcar os infantes da marinha, pelo que recordava, havia atuado de boa fé, havia tomado essa decisão porque, conforme a interpretação que havia feito das ordens, essa era a forma correta de proceder; contudo, as palavras do almirante o haviam impressionado muito, e desde que as ouvira havia discutido o caso consigo mesmo com freqüência, acusara-se e havia negado indignado sua culpabilidade muitas vezes, tantas vezes que agora não podia saber qual havia sido sua verdadeira intenção, pois não era possível distingui-la entre os argumentos. Mas neste assunto o importante era a intenção, por isso não tinha sentido submeter seu comportamento ao julgamento de nenhuma outra pessoa no mundo. Acreditava que Sophie, por exemplo, diria que atuara corretamente, mas isso, apesar de que lhe agradaria, não lhe serviria de consolo, como nem sequer ela podia estar dentro de sua mente, seu coração e suas entranhas; portanto, não podia chegar a saber qual fora sua intenção então.
Tampouco Stephen podia chegar a sabê-lo, sem dúvida. Contudo, Jack ansiava encontrar-se com ele, e dois dias depois, quando o Worcester virou frente ao cabo da Mola e se aproximou do porto de Mahón, mas não pôde entrar porque o vento soprava do noroeste, embarcou na falua e a fez atravessar rapidamente a aperta entrada e percorrer o canal navegando de bolina, apesar do encarregado de distribuir as provisões da Armada Real lhe havia avisado por meio das bandeiras de sinais de que só havia recebido um pouco de alcatrão de Estocolmo para ser entregue à esquadra. Jack, seu timoneiro e pelo menos quatro dos remadores conheciam aquelas águas tão bem como as de Spithead e Hamoaze e as percorreram com a confiança que dá o conhecimento prévio de um lugar. Passaram roçando na ilhota onde estava o lazareto, bordejaram o redemoinho que estava em frente da ponta dos cornudos (uma faixa de terra de considerável largura, como era de esperar naquela latitude, onde o clima era cálido) e criticaram todas as mudanças feitas desde a época em que eles estiveram de serviço ali. Porém, em verdade, não tinha havido muitas. Ainda que agora a bandeira espanhola ondeava nos edifícios públicos em lugar da britânica e os barcos de guerra espanhóis que havia no porto não eram presas da Armada Real senão aliados, a maior parte das coisas não havia mudado. Mahón ainda parecia uma pequena cidade portuário inglesa da época georgiana situada sob o claro céu do Mediterrâneo e em meio de uma incongruente paisagem onde abundavam as oliveiras e os vinhedos e se elevava alguma ou outra palma.
Enquanto iam navegando pelo canal, Jack indicou alguns lugares importantes para um jovem desengonçado e com espinhas na cara que estava sentado do seu lado, um guarda-marinha de sobrenome Willet que visitava o lugar pela primeira vez. Indicou, entre outros lugares, o castelo de São Felipe, a fábrica de pólvora, o cais do serviço de material de guerra e o depósito de madeiras; contudo, devido ao jovem lhe ter tanto respeito e admiração que se sentir coibido diante dele, por estar muito ansioso por descer a terra e, provavelmente, a ser estúpido, não podia absorver muita informação, e quando já estavam perto da cidade, Jack guardou silêncio. "Tomaremos uma pinta de xerez no bar Joselito para recordar os velhos tempos - pensou. - E encomendarei um esplêndido jantar no Crown: pastel de carne, um assado e esses doces de amêndoas em forma de triângulo. E enquanto a preparam, daremos um passeio e visitaremos os lugares que frequentávamos. "Então olhou para Bonden e disse:
- Para o comando do porto!
A falua passou diante de um alto muro em um dos extremos do porto, um muro com uma discreta porta verde que conduzia ao pombal onde ele e Molly Harte haviam feito amor pela primeira vez. Pelas fendas do muro assomavam longas galhos de alcaparra, que estavam cheios de suas belas flores com pétalas como plumas, igual como daquela vez. E quando ainda sentia um intenso desejo sexual, ternura e nostalgia, a falua orçou e se aproximou do cais seguinte, o do comando do porto.
- Senhor Willet, vá rapidamente ver o comandante do porto, apresente-lhe meus respeitos e lhe pergunte onde está ancorado o vivandeiro em que veio o doutor - disse Jack. - Seu nome é Els set dolors.
- Sim, senhor - disse Willet, com uma expressão horrorizada. - Els set dolors, senhor. Em que dioma tenho que falar, senhor?
- Em espanhol ou em francês. E se isso não lhe vale, fale em latim. Bonden irá com o senhor.
- O comandante do porto lhe apresenta seus respeitos, senhor - disse Willet ao regressar - e diz que Els set dolors está ancorado em a… a…
- Aduana - disse Bonden.
- Mas o doutor Maturin foi para…
- Para a Cidadela numa mula.
- E acredita que não regressará antes do domingo pela tarde.
- Perdoe, senhor - interveio Bonden - mas disse que regressaria no dia de descanso, que nestas terras é o sábado, conforme tenho entendido.
- Obrigado, senhor Willet - disse Jack decepcionado. - De toda forma, acho que seria melhor que comêssemos aqui, antes de regressar ao barco.
Ficou pensando no guarda-marinha alguns momentos enquanto observava as mulheres que haviam se agrupado no cais. Antes de sair do barco, dera-lhe um guinéu do dinheiro que tinha direito, e sabia que, apesar de não ser um garoto simpático nem inteligente, poderia comprar a sífilis com ele, e queria evitá-lo.
- Eldon, acompanhe o senhor Willet para almoçar na hospedaria Bunce - ordenou a um remador de rosto curtido e cabelo grisalho - e depois mostre-lhe alguns lugares importantes de Mahón, por exemplo o serviço de material de guerra, o quereneiro, o polígono de provas, a Igreja protestante, o planp inclinado, se há algum barco em construção, e também o manicômio, se der tempo antes das seis.
Então disse aos remadores que tirassem na sorte quem ficaria cuidando da falua e para Bonden aonde devia levar os outros para almoçar, e depois se foi sozinho.
Para Jack Aubrey, a peregrinação sentimental nunca havia sido satisfatório, e as poucas vezes que a empreendera por vontade própia, ocorrera algo que havia estragado não só o momento presente senão também boa parte das recordações do passado; contudo, parecia que desta vez seria uma excessão. O dia era luminoso, como todos os que havia passado em Menorca na época em que era guarda-marinha e capitão, e também quente; por essa razão, quando subiu os degraus para chegar à parte alta da cidade, teve que desabotoar a casaca, uma casaca muito melhor que a que usava naqueles tempos, mas que não impediu que o reconhecessem nem que o acolhessem cordialmente no bar Joselito e em outros lugares nos quais entrou quando ia para o Crown.
Em Mahón ainda podiam ser vistos muitos sinais da relação que a cidade tivera com a Inglaterra durante longo tempo. Além dos oficiais e marinheiros dos três barcos da Armada Real que estavam no porto (duas corvetas e um bergantim encarregados de escoltar outras embarcações), outras pessoas de rosto rosado e cabelo loiro e brilhante como o de Jack Aubrey caminhavam por suas ruas; era possível encontrar nela chá, bolos, cerveja e tabaco ingleses; e no bar de Joselito havia exemplares dos jornais de Londres de apenas dois ou três meses atrás. Contudo, os dias dourados acabaram, os dias em que a esquadra do Mediterrâneo ficava ancorada no porto de Mahón e em que havia grande quantidade de soldados, e muito bem armados, no castelo de São Felipe e na cidadela. Agora a Armada Real atarcava seus barcos nas bases navais de Gibraltar e Malta; a Armada espanhola só mantinha ancorados dois bergantins no porto de Mahón, e a guarnição da cidade estava integrada por umas poucas companhias da milícia local; por isso era compreensível que a cidade parecesse adormecida e que os lugares onde os soldados costumavam se reunir para almoçar e beber estivessem quase vazios.
Jack entrou no Crown pela parte de trás, por um pátio de laranjeiras que tinha uma fonte no centro, e se sentou na borda da fonte para tomar fôlego e descansar da caminhada. O resfriado havia sumido já fazia tempo, mas não estava em forma e, ademais, cansava-se muito ao caminhar em terra firme porque havia passado semanas e inclusive meses caminhando pela coberta do barco, que estava em contínuo movimento. Das janelas do andar superior chegava a voz de uma mulher que cantava uma canção de ritmo estranho, uma mistura de canto flamenco e música moura, interrompida amiúde por fortes golpes dados a uma almofada ou o ruído de um colchão ao ser virado. Aquela voz de contralto lhe fez recordar de Mercedes, uma formosíssima jovem menorquina que havia conhecido nessa mesma hospedaria antes de que fosse ascendido a capitão. Perguntou-se o que lhe haveria ocorrido e pensou que provavelmente algum soldado a conquistara e agora teria muitos filhos e estaria gorda. Mas tinha a esperança de que continuasse sendo alegre.
A mulher continuou cantando e cada vez sua voz descia mais de tom e era mais suave, e Jack, a quem poucas coisas lhe emocionavam tanto como a música, escutava-a com deleite. Contudo, Jack não era somente ouvidos e espírito, e durante uma comprida pausa, na qual ouviu como ela metia um travesseiro em uma capa muito apertada, sentiu uma pontada no estômago, e então se levantou e entrou na cantina, uma ampla habitação de teto baixo, fresca e escura, com grandes barris incrustados nas paredes e com o solo coberto de areia. "Maldito estúpido!", gritou um louro sem muita convicção, rompendo o silêncio.
A maioria das vezes que Jack vira aquele lugar estava cheio de fumaça de tabaco, uma fumaça tão espessa que não podiam distinguir-se as casacas dos oficiais, e as vozes eram tão altas que havia que pedir as coisas gritando como quando se estava no cesto da gávea do traquete. Agora parecia formar parte de um sonho no qual todos os objetos da habitação estavam exatamente igual que antes, mas não havia vida. E para romper o encanto do lugar, gritou:
- Há alguém em casa?
Não obteve resposta, mas se alegrou de ver que pela porta que dava para o saguão entrava um enorme mastim, que deixou as primeiras pegadas na areia recém espalhada. Sempre houvera excelentes mastins ingleses no Crown, e esta, uma cachorra malhada com um lombo tão largo que se podia comer nele, provavelmente era neta de algum dos que ele conhecera. A cachorra, que, naturalmente, nunca lhe havia visto em sua vida, farejou sua mão com receio, mas com cortesia, e era óbvio que não tinha interesse nele porque imediatamente saiu para o pátio. Jack entrou no saguão, um espaço quadrado iluminado pelo sol no qual havia dois relógios de caixa e de onde partiam duas escadas. Então repetiu a pergunta, e quando o eco de sua voz se havia extinto, ouviu ao longe o grito: "Já vou!", e depois alguns passos no corredor do piso de cima.
Estava olhando um dos relógios, feito por William Timmins, de Gosport, e adornado com um bonito barco antigo, um barco que levava uma vela latina no pau mezena, quando os passos chegaram da escada situada à sua direita, e então levantou a vista e viu a Mercedes, a mesma Mercedes de outro tempo, com seus grandes peitos. Não se havia convertido em uma mulher gorda, bigoduda e de aspecto vulgar.
- Mercedes, querida, quanto me alegro de ver-te! - exclamou e foi até o pé da escada com os braços abertos.
Mercedes parou um momento e depois se jogou em seus braços gritando:
- Capitão, manyad!
Afortunadamente Jack era um homem forte e corpulento, pois Mercedes se encontrava em uma altura superior e, ainda que tivesse a cintura pequena, estava maciça. Resistiu ao suave choque, a apertou em seus braços até tirar-lhe o fôlego enquanto aspirava seu perfume e depois a levantou um pouco do solo e, com gesto comprazido, olhou seu rosto. Ela tinha as bochechas cor de pêssego e estava radiante de alegria. Jack lhe deu um beijo amoroso e apaixonado, e ela o beijou com a mesma paixão. No Crown os beijos não eram raros, e Jack e Mercedes haviam se beijado muitas vezes sem que o teto caísse, mas nesta ocasião seus beijos levantaram uma grande agitação: os dois relógios deram a hora, a porta da frente e duas janelas se fecharam de golpe por causa de uma lufada de vento, quatro ou cinco mastins começaram a ladrar e, ao mesmo tempo, o saguão começou a encher-se de pessoas que vinham da rua ou do pátio ou desciam pela outra escada, fazendo perguntas ou dando ordens ou mensagens em voz muito alta para que pudessem ser ouvidas apesar dos latidos. Mercedes deu alguns golpes nos mastins, respondeu às perguntas em inglês, espanhol e catalão, e entre duas respostas, disse a um moço que acompanhasse ao capitão à Sirena, uma habitação pequena e muito confortável que ficava no piso superior.
Em essa pequena habitação do Crown voltaram a encontrar tranqüilidade e, sentados a uma mesa redonda, comeram o almoço muito quente. Mercedes comeu muito menos que Jack, mas falou muito mais que ele, muitíssimo mais. Com os anos havia esquecido boa parte do inglês, que, por outra lado, nunca havia falado muito bem, e agora interrompia suas palavras, mais rápidas cada vez, com risos e exclamações como: "Falo muito mal o inglês, manyac, falo muito mal o inglês!". Contudo, Jack entendeu perfeitamente a essência do que disse. Mercedes lhe contou que se casara com o dono do Crown, um homem muito mais velho que ela, magro, débil, de mau aspecto e avaro que lhe havia proposto matrimônio só para poupar o soldo que lhe pagava e molestar a sua própia família. Também lhe contou que nunca havia recebido nenhum presente seu e que havia averiguado que o anel de casamento era de latão, pelo que, em sua opinião, não representava uma obrigação nem uma atadura, e acrescentou que o presente que Jack lhe dera algum tempo atrás, ainda que não muito, estava agora muito perto de seu coração. Mercedes se havia posto um avental novo, especial para a ocasião, e nesse momento lhe tirou e se inclinou sobre a mesa para que Jack pudesse ver bem o pingente de diamantes que usava em seu seio, o pingente que ele lhe presenteara em 1802 e que era parte do butim que conseguira ao capturar uma valiosa presa. Então ela disse que o dono do Crown havia feito um viagem para Barcelona e tardaria alguns dias em voltar e que Jack podia ficar em seu antigo quarto, ao qual fazia pouco lhe havia posto cortinas novas de cor carmim.
- Maldita seja! - exclamou. - Mercy, querida, agora sou capitão, sabe?, e não devo dormir fora de meu barco.
- Nem sequer pode tirar uma sesta na hora mais calorosa do dia e depois de ter comido tanto pastel de pato? - perguntou Mercy com inocência, abrindo descomedidamente os olhos.
Jack havia comido sopa de pescado, lagosta, costeletas de cordeiro, pastel de pato e queijo menorquino, e havia bebido três garrafas de vinho, e sua cara havia tomado um colorido vermelho mais intenso que o habitual. Então seus lábios se estenderam formando um sorriso tão amplo que seus olhos desapareceram, e Mercedes teve a certeza de que ia dizer algo gracioso, e o teria dito quando tivesse encontrado um termo para fazer um jogo de palavras com não dormir sem ser indelicado, se a inoportuna chegada de Stephen não lhe houvesse impedido. Jack e Mercedes haviam ouvido a desagradável voz de Stephen na escada, e ela já havia tido tempo de se levantar e adotar uma atitude de uma pessoa que servia a mesa quando ele apareceu na habitação impregnado do odor da mula.
- Bom dia, jovem - cumprimentou em catalão, olhando para Mercedes, e depois, sem fazer pausa, continuou: - Vamos, meu amigo, termine de tomar o café. Não há nem um minuto a perder. Temos que ir correndo para a falua.
Pegou a jarra de água, bebeu todo seu conteúdo e então reconheceu a Mercedes.
- Virgem santa! - exclamou. - Mas se é a senhora, jovem! Quanto me alegro em vê-la! Por favor, traga rapidamente a conta porque o capitão tem que ir já. Tem algum convidado, Jack? - perguntou ao dar-se conta de que na mesa havia postos dois talheres.
- Não, quer dizer, sim, sem dúvida - respondeu Jack, observando os dois talheres. - Stephen, nos encontraremos na falua dentro de duas horas… Não é conveniente antes porque concedi umas horas de licença a um guarda-marinha e não posso deixálo para trás.
- Jack, se eu pude fazer a minha pobre mula correr até o extremo de quase causar-lhe a morte, não há dúvida de que você pode abandonadonar a um guarda-marinha… a dez guardas-marinhas.
- Além disso, tenho que dar uma importante informação a um amigo que se encontra aqui.
- Diga-me, é muito importante essa informação para a Armada?
- Não. Está relacionada com assuntos pessoais, mas…
- Então, não falemos mais nisso, eu lhe peço. Acha que viria a galope de Cidadela até aqui na hora mais quente do dia, que lhe instaria a tomar o café, que não pediria café para mim e que lhe afastaria de seu convidado se não houvesse que fazer algo urgente, algo mais importante que ter uma agradável conversa ou faltar com a fidelidade conjugal? Por favor, jovem, traga rapidamente o chapéu, a casaca e o sabre do capitão. O dever o chama.
Jack cumpriu com seu dever, mas com desânimo e mau humor, e o timoneiro e os remadores, que foram pegos a toda pressa da taberna de Florio, compreenderam que se aproximava uma tormenta. Uma olhada para o rosto austero de seu capitão e uma olhada para seus camaradas, acompanhada de um movimento quase imperceptível da cabeça ou das pálpebras, haviam bastado para que se dessem conta disso e comunicassem uns aos outros, assim que os remadores se sentaram nas bancadas silenciosos e rígidos como escolares e Bonden começou a manobrar para sacar a falua do porto aproveitando o vento forte e favorável. E os dois oficiais se sentaram na bancada de popa sem dizer palavra.
Jack guardava silêncio porque tivera uma grande decepção, e Stephen, porque pensava na distância que deviam percorrer alguns colegas seus para chegar a um determinado lugar e o tempo que tardariam em percorrê-la. Essa mesma manhã lhe haviam informado que a reunião que ele e seus colegas teriam com altos cargos dos governos da França e seus aliados, uma reunião que poderia trazer consequências de grande importância, fora adiantada três dias para que um importante funcionário de Rochefort pudesse assistir a ela. Considerara tudo o relacionado com a reunião e estava convencido de que todos os participantes que estavam em terra podiam chegar a tempo às marismas onde se celebraria, mas não sabia se o Worcester poderia navegar o bastante rápido para que ele chegasse ao encontro pontualmente, e quando Jack e ele entraram na cabine de proa, inquiriu:
- Jack, poderia deixar-me na desembocadura do Aigouille na terça-feira pela noite?
- Onde fica o Aigouille? - perguntou Jack secamente.
Stephen se inclinou sobre a carta de navegação e passou o dedo pelo litoral da região de Languedoc, um litoral plano e salpicado de lagunas salgadas, marismas, canais e riachos que serpenteavam por pântanos infestados de paludismo, riachos não navegáveis, atravessados por bancos de areia, e, por fim, disse:
- Aqui.
Jack olhou a carta de navegação e deu um assobio.
- Tão longe? - perguntou. - Achava que estava nesta zona. Não é possível saber com certeza em quanto tempo o navio percorrerá essa distância a menos que possa predizer a intensidade e a direção do vento, especialmente, sua direção. Agora o vento não é desfavorável, mas poderia rolar em qualquer momento e soprar justamente contra a direção do navio. Admira-me que me faça uma pergunta tão tonta. Já deveria saber que, apesar de que se tenha a melhor vontade do mundo, a quilha de um barco não pode formar um ângulo menor de sessenta e sete graus e meio com a direção do vento, e que o valor do ângulo que o Worcester pode formar nem sequer se aproxima dessa medida. Suponho que terá ouvido falar do abatimento… Alguém deve de ter lhe falado do abatimento e…
- Por Deus, Jack, põe a proa do navio o mais perto possível da direção correta e fale-me do abatimento depois! Não há nem um minuto a perder.
Haviam lhe dito estas palavras tantas vezes durante os anos que servira na Armada que, apesar de sua angústia, sentiu uma grande satisfação ao dizê-las e inclusive as repetiu:
- Não há nem um minuto a perder.
- Quer que corte a amarra da âncora? - inquiriu Jack muito sério e depois, com o fim de expressar-se com mais clareza, acrescentou: - Quer que corte a amarra da âncora e largue a âncora no fundo?
- Isso ajudaria a poupar tempo?
- Apenas alguns minutos, já que aqui o fundo é plano e pouco profundo.
- Então é melhor conservar a âncora - disse Stephen - porque é um objeto muito valioso, um recurso muito importante.
Jack se foi para o convés sem responder. "Acho que o incomodei", pensou Stephen. Mas imediatamente voltou a pensar em igual que antes e apenas prestou atenção aos sons que se ouviram pouco depois: uma melodia que um violinista tocava perto do cabrestante, as fortes pisadas dos homens que tinham agarradas suas barras, o grito: "Empurrar todos juntos!", como o ritmo da melodia aumentava mais e mais e, finalmente, um grito muito mais forte: "Recolher a âncora!".
Dois minutos depois, já com a âncora atada no pescante, Jack fez rumo ao cabo da Mola, e então o Worcester começou a navegar de bolina só com as gáveas, a carangueja e a bujarrona desdobradas, e seus tripulantes se dispuseram a guindar os mastaréus. Enquanto dobraram o cabo, encontraram uma moderada tramontana e as velas do navio se incharam, e Jack, que estava de pé ao lado do leme junto com o oficial de derrota, ordenou:
- Leme a sotavento!
O navio moveu pouco a pouco a proa até que a borda de sotavento da gávea maior começou a ondear.
- Acostar as bolinas! - gritou Jack.
Sem tardar, os gavieiros do mastro traquete, do maior e do mezena deram sucessivamente o tradicional grito: "Um, dois, três, acostar!". Então Mowett, desde o castelo, se apressou a gritar: "Bolinas amarradas, senhor!". É que Mowett e todos os que haviam navegado com Jack Aubrey na Sophie estavam acostumados a zarpar de Mahón precipitadamente. Naqueles tempos Jack tinha informação privilegiada sobre a rota que seguiam os mercantes franceses e espanhóis, e a corveta saía do porto apressadamente para causar todo o estrago possível ao comércio francês e espanhol. E chegou a mandar tantas capturas ao porto que em uma ocasião o ancoradouro de Holborne se encheu e houve que amarrá-las no canal. Foi então quando o capitão da Sophie lhe deram o nome de Jack o Afortunado, e graças ao seu brio, sua boa fortuna e sua excelente informação, os tripulantes da corveta conseguiram um grande butim, o que lhes encantou. Mas ainda que os tripulantes não houvessem conseguido tanto dinheiro, ou houvessem conseguido muito menos, teriam gostado igualmente daqueles viagens, aquelas longas perseguições em que o perseguido e o perseguidor empregavam todos os conhecimentos de náutica e que terminavam com a captura da presa, com uma lícita ação pirata. Os tripulantes da Sophie informaram disto aos do Worcester com a rapidez com que os marinheiros costumam propagar as notícias, por isso agora todos puxavam as bolinas e faziam girar as vergas com muito mais brio que o habitual. Jack percebeu isso, sem dúvida, e também de que Pullings tinha uma expressão ansiosa e o olhava inquisitivamente, e sentiu uma grande dor ao compreender que ia decepcionar seus homens mais uma vez.
- Leme a sotavento! - repetiu.
O Worcester, com as velas orientadas o mais parecido possível às de um aparelho de velas áuricas, aproximou a quilha da direção do vento cinco graus mais. Jack observou o ângulo que formava o catavento, pediu um compasso para medir o ângulo azimutal com o fim de determinar as marcações com relação ao rastro e ao cabo da Mola e depois ficou um longo tempo olhando o céu, um céu com um aspecto que havia visto muitas vezes, o mesmo que tinha desde que soprava a tramontana, e viu como passava por ele uma procissão de brancas nuvens altas em direção da África. Foi desdobrando mais velame pouco a pouco e ordenou medir a velocidade com a barquilha a cada cinco minutos.
Regressou à cabine por fim e disse:
- Stephen, se o vento se fixe, e há muitas probabilidades de que assim seja, poderei deixá-lo na desembocadura desse rio no momento justo, fazendo três arribadas e aproveitando na última delas a corrente que se move para a costa. Mas quero que leve em conta que no mar não há garantias de nada.
Jack parecia mais alto e havia falado em tom grave e irritado. E mesmo depois de que Stephen expressou seu agradecimento com frases corteses, continuou falando no tom solene empregado pelos capitães.
- Não sei se se referiu a mim quando falou da falta de fidelidade conjugal no Crown, mas permita-me que diga que essa acusação me molestou muito.
Stephen tinha a intenção de negar ou explicar por que o havia dito, pois forçosamente empregaria uma falácia, ainda que pensava que era muito difícil poder enganar a um amigo íntimo; contudo, apenas havia passado uma ou duas vezes a língua pelos lábios, como um cachorro envergonhado por ter cometido uma falta, quando Jack saiu irado da cabine.
"Que mau humor, meu Deus! Que mau humor!", pensou Stephen e se inclinou sobre a carta de navegação e ficou um momento observando os caminhos que iam ao recondito lugar onde se celebraria a reunião. Seus colegas e outros agentes secretos usavam aquele lugar de reunião com mais freqüência que qualquer outro no sul, e ainda que ele há muitos anos não estivera ali o recordava muito bem. O rio desembocava numa laguna e mais lá ficava o grande dique que separava as marismas de outras terras. A bastante distância do dique se encontravam, à esquerda, uma cabana de pastor junto a um enorme estábulo onde no inverno colocavam as ovelhas durante a noite e um pavilhão de caça que raras vezes era utilizado, e, à direita, o povoado de Mandiargues, que estava quase despovoado por causa do paludismo, da febre de Malta e da deportação e ao qual se chegava por um caminho ainda praticável. Toda a zona estava coberta de canas e era um paraíso para os patos, as aves ancudas, os mejengras e os mosquitos. "Possivelmente o alcaravão já tenha chegado", disse com o propósito de afugentar a preocupação que tinha e se foi para o lugar do navio onde lhe correspondia estar.
Ali na enfermaria do Worcester estavam seus ajudantes, e junto com eles examinou os poucos pacientes que havia (um homem que fora mordido por um camelo e vários que tinham ossos quebrados), revisou as contas e inspecionou o estojo de remédios. O senhor Lewis atendera apropiadamente aos enfermos na ausência de Stephen, mas no estojo de remédios faltavam a sopa em pó e o vinho do porto que se dava aos enfermos. Ambas coisas haviam sido roubadas, junto com duas garrafas de quatro pintas de licor amoniacal, mas o ladrão, que, indubtavelmente, havia se confundido com a palavra "licor", ainda não fora descoberto.
- Saberemos quem foi quando ele comece a bebê-lo - disse o senhor Lewis - e, sem dúvida, poderemos recuperar o que ele e seus companheiros não tenham bebido, mas a sopa e o vinho do porto não aparecerão nunca. A culpa foi minha, por não guardá-los bem, e os pagarei de meu bolso. Meu único consolo é que vamos capturar uma presa muito valiosa, como todos dizem, e poderei pagar sem que minha mulher e eu caiamos na miséria. Talvez inclusive possamos comprar uma carruagem, ah, ah! O que o senhor pensa com relação a isto, doutor Maturin?
- Não sei nada sobre o futuro, senhor Lewis - respondeu Stephen - e ainda menos do passado imediato. O que ocorreu em Barka, esse lugar onde o camelo mordeu ao jovem Williams?
Lewis lhe contou detalhadamente o que ocorrera em Barka e também o que havia se passado em Medina, e terminou dizendo:
- … assim que, tendo em conta todas as coisas me atrevo a lhe assegurar que nunca vira uma tripulação tão… tão… abatida, talvez seja a melhor palavra, porque suas esperanças de lutar se frustraram. Tampouco havia visto nenhuma tão descontente com seus oficiais e com a inevitável situação, nem tão dividida nem tão propensa a cometer roubos e a brigar. Estou convencido de que as fraturas desses dois pacientes e os dentes quebrados dos outros são consequência disso, digam o que digam eles. Mas provavelmente a captura desta presa fará que esqueçam a sensação de fracasso e que tudo volte a ser como antes. Nosso ajudante mais jovem se senta à mesma mesa que dois antigos tripulantes da Sophie, e eles lhe contaram que todas, absolutamente todas as vezes que o capitão havia saído precipitadamente do porto de Mahón regressara com uma presa, e inclusive lhe juraram. Portanto, se fez isso com uma corveta de catorze canhões, que não fará com um barco de linha? Penso que capturará um galeão pelo menos, ou talvez dois.
- Senhor Lewis - disse Stephen, subindo a lanterna para ver melhor o brilho de cobiça que havia em seus olhos - o senhor esquece que já não estamos em guerra com os espanhóis.
O brilho se apagou, mas voltou a aparecer quando Lewis disse que, ainda que já não houvesse galeões, ainda sulcavam os mares muitos barcos carregados de grandes tesouros.
- Lembre-se do Hermione! - exclamou Lewis. - Somente a parte do butim que correspondeu ao cirurgião chegou a quatro mil libras!
Stephen se meteu em sua maca pensativo. Mas apesar dos pensamentos afluirem para sua mente e da expressão de sua cara indicar que tinha toda a atenção neles, não podia ordená-los nem fixá-los porque estava muito cansado por ter corrido a galope toda a manhã em uma mula magra e lerda. Pouco a pouco passou por sua mente uma série de idéias e frases que, aparentemente, não tinham relação, por exemplo: o convencimento de que o ocorrido em Medina justificava em parte o mau humor de Jack, a dúvida sobre que tipo de rinoceronte era aquele que, conforme a descrição de Lewis, tinha o lábio superior preénsil, a conjetura com respeito à distância a que se encontrava o subagente secreto Reynière e sua lealdade, e a reprovação por ter acusado Jack de falta de fidelidade conjugal no Crown. Ainda que a acusação fosse verdadeira, Stephen reconhecia que tê-la feito era injustificável, uma impertinência, uma indelicadeza, um imperdoável abuso de confiança, e não sabia se a fizera por causa da impaciência e da fadiga ou dos ciúmes que provavelmente sentira, ainda que sem ter consciência disso, ao ver aquela jovem bonita e doce. De toda maneira, achava que a acusação era imprecisa, pois, devido a Mercedes também estar casada, haveriam sido duas faltas cometidas. "Infidelidade conjugal…", disse para si. E depois de repetir isto três vezes, como se fosse um conjuro, adormeceu.
Dormiu muito, muito tempo, e quando despertou se sentiu muito bem porque seu corpo havia se moldado à maca e parecia leve. Ficou ali deitado, pensando em coisas agradáveis, durante um tempo indeterminado, e de repente se lembrou por que se achava a bordo do Worcester e sua expressão alegre desapareceu. Nesse mesmo momento notou que a porta se abria devagar e viu Killick assomar seu longo e vermelho nariz pela abertura. Sabia que aquela era a sexta ou a sétima vez que Killick fazia isso, e ainda que ignorasse por que sabia, acreditava nisso, e também nas palavras que ia pronunciar: "Se o doutor já está acordado, o capitão lhe roga que venha desjejuar em sua companhia". Mas depois de que Killick dissesse isto, acrescentou umas palavras que ele não esperava: "E deseja mostrar-lhe algo no convés".
Jack subira para a coberta durante a guarda de meia e voltara a subir antes do amanhecer, quando o vento aumentava de intensidade. Ainda que tivesse dormido pouco, havia sido profundamente e havia recuperado as forças, já que estava acostumado a dormir durante curtos intervalos de tempo. Por outro lado, o ar frio da noite e os salpicos da água do mar haviam lhe tirado parte de seu mau humor, e apesar de ter atrasado seu verdadeiro café da manhã até que Stephen despertasse, uma xícara de café e um pedaço de pão com mel que comera muito cedo haviam lhe devolvido a amabilidade que o caracterizava.
- Bom dia, doutor - disse quando Stephen se aproximava do castelo de popa pestanejando muito rápido porque a luz era intensa. - Olha isso. Não é bonito? Não acho que tenha visto nada igual em todos os anos que serviu na Armada.
O castelo de popa estava abarrotado, pois se encontravam ali todos os oficiais e os guardas-marinhas, e havia uma atmosfera de entusiasmo. Stephen notou que os homens com os quais tinha uma relação mais estreita o olhavam expectantes e com um sorriso triunfal, como se de um momento para outro a surpresa fosse deixar-lhe paralizado. Olhou para o céu, que havia tomado um colorido azul claro, depois para o mar, que tinha um colorido azul mais escuro e jaspeado de branco, e depois para a infinidade de velas, e como não queria ficar em ridículo diante de tantos estranhos nem decepcionar seus amigos, e com o maior assombro e a maior convicção que podia fingir com o estômago vazio, disse:
- Nunca havia visto nada igual. É um espetáculo impressionante, palavra de honra.
- O poderá ver ainda melhor de um lado do convés - disse Jack, conduzindo-lhe para um lado.
Stephen dirigiu a vista para o lugar em o que todos os que estavam no castelo de popa atavam olhando e viu uma série de velas triangulares superpostas acima do gurupés.
- Aí as tem! - exclamou Jack. - Todas as velas triangulares desdobradas: as velas de estai do traquete e do mastaréu de velacho, a giba, a bujarrona, a vela de estai, a polaca e a bujarrona voadora!
Depois lhe contou que havia feito muitos experimentos e comprovado que, com o aparelho que o Worcester tinha atualmente, quando os ventos eram fracos, como agora, o navio navegava melhor com aquele conjunto de velas abertas, e assinalou muitas outras velas de estai e a vela carangueja e chamou sua atenção sobre o fato de que não havia velas quadras no mastro maior e muito poucas nos outros. Explicou que tudo isso havia feito mudar o centro de rotação de modo que a quilha do Worcester podia chegar a formar um ângulo de sessenta e sete graus e meio, e que com um bom piloto governando-o e um bom timoneiro ao leme, o navio poderia navegar mais velozmente que qualquer outro barco de setenta e quatro canhões com suas mesmas características.
- Quando se cansar de olhá-las, venha desjejuar comigo - acrescentou. - Comeremos um excelente bacon de Menorca e poremos em ordem nossas idéias.
Então se foi e Pullings se aproximou de Stephen para dar-lhe bom dia e felicitar-lhe por ter visto tão bonito espetáculo.
- Já tem algo para contar aos seus netos - disse Mowett e, assinalando para cima, acrescentou: - E, sobretudo, não se esqueça da vela de estai do mastaréu do joanete de mezena.
- Hei navegado oito anos sob as ordens de sir Alan Howarth, que é um dos membros da Armada que mais gosta levar desdobradas as velas de estai e as bujarronas - disse Collins - mas nunca havia visto todas elas aplicadas juntas, nem uma só vez.
Stephen se perguntou quanto tempo devia seguir olhando o conjunto de velas para não parecer descortês, pois sentia o odor do café e do bacon e estava com água na boca.
- Senhor Pullings, meu amigo… - começou a dizer, mas justo nesse momento se desprendeu uma escota da bujarrona voadora, e então, aproveitando a confusão que se armou, partiu dissimuladamente.
Ainda não haviam terminado o desjejum abundante que costumava tomar na Armada quando o ajudante do oficial de guarda entrou na cabine quase antes de que Jack lhe autorizasse a fazê-lo.
- O senhor Mowett é o oficial de guarda, senhor - disse o senhor Honey - e lhe comunica que há quatro mercantes pela amura de bombordo.
- Não são barcos de guerra?
- Não, senhor. São mercantes carregados até os topes e estão amontoados. Ah, ah, ah!
O senhor Honey estava tão contente que lhe escapou o riso, mas ao ver que o capitão tinha um gesto grave, o transformou em tosse. Jack lhe disse que podia ir e, voltando-se para Stephen, disse:
- Acho que vou decepcioná-los outra vez, mas se queremos chegar à desembocadura do Aigouille amanhã pela tarde, não temos tempo de perseguir presas.
- Perdoe, senhor - disse Mowett da porta - mas acho que Honey não lhe deu a informação correta. Há quatro mercantes pela amura de bombordo, um deles de grande tamanho, e se não mudamos o rumo agora, estarão a barlavento do navio em menos de meia hora. Dou a ordem de mudar de bordo?
- Está seguro de que são mercantes?
- Completamente seguro, senhor - respondeu Mowett, com um olhar tão vivo como o de um lobo e um amplo sorriso.
- Então seguiremos navegando com rumo este-nordeste quarta ao norte.
- Sim, sim, senhor, rumo este-nordeste quarta ao norte - disse Mowett com grande esforço, já sem seu radiante sorriso, e saiu da cabine.
- Aí o tens! - disse Jack. - Me o temia. Uma perseguição de doze horas, com todas as velas desdobradas e inchadas, com os canhões de proa disparando e com todos os tripulantes na coberta, teria conseguido voltar a uni-los depois do ocorrido em Medina. Já ouviu falar disso?
- Sim, muito.
- Tive que decepcioná-los… ou, pelo menos, isso era o que achava. Desde então não são os mesmos, e eu estou sempre aborrecido. Pelas manhãs acordo chateado e durante o dia me irrito facilmente. Diga-me, Stephen, há pílulas ou poções para tirar a tristeza e o mau humor? Ultimamente estou muito triste, como, sem dúvida, terá notado. - Pensou confiar a Stephen a suspeita que tinha, mas então recordou o tipo de reunião que seu amigo ia celebrar e disse: - Se terminou, pode fumar, Stephen. Acredito que comprou o melhor tabaco picado de Mahón.
- Se realmente não se incomoda, fumarei - disse Stephen, apalpando os bolsos. - Para mim fumar um cigarro é o coroamento de um desjejum, a melhor forma de começar o dia, um meio de fazer a vida mais prazerosa. Sentir como range e cede este pequeno cilindro de papel e tabaco - disse, mostrando-o - me produz um grande prazer, por razões que me causam rubor, e sua lenta combustão me dá tanto gosto que não poderia deixar de fumar facilmente, ainda que o tabaco me fizesse mal. Mas não me faz mal, aliás pelo contrário. O tabaco purga a mente do fumante de tudo o que a perturba, aguça sua inteligência, torna-o mais vivo e faz mais claro seu julgamento. E logo vou necessitar de viveza e claridade de julgamento.
- Quisesse que não se fosse - disse Jack em voz baixa.
- Não tenho escolha - disse Stephen.
Jack assentiu com a cabeça. Indubtavelmente, desembarcar numa praia isolada dependia tão pouco da vontade de Stephen como participar de uma batalha naval dependia da sua; contudo, o desembarque numa praia solitária de noite era realmente atroz. Não gostava em absoluto da idéia do desembarque, mas conduzia o Worcester para a praia onde essa idéia se faria realidade tão habilmente como lhe permitiam os conhecimentos que acumulara ao longo de sua vida no mar. Fazia navegar o navio velozmente, sempre de bolina, e ele mesmo o governava em todo momento, e também fazia trabalhar duro os tripulantes, que deviam arriar e desdobrar bujarronas e velas de estai constantemente. Os tripulantes que tinham algumas noções de náutica estavam admirados, e os que não tinham nenhuma estavam atônitos, mas haviam compreendido que o capitão tinha muita pressa e, assim como seus companheiros, cumpriam as ordens com prontidão. Fez navegar o navio tão velozmente que avistaram terra várias horas antes do previsto, longas horas em que o Worcester teve que voltar a afastar-se e a aproximar-se dela enquanto a oeste o sol descia para o horizonte. E quando o sol se pôs, rodeado de um resplendor dourado, e o navio voltou a aproximar-se de terra com vento frouxo, levando atrás de si a escuridão, ainda faltava uma hora para que estivesse perto dela o bastante para que pudesse mandar um bote à solitária praia, e essa hora lhes parecia tão comprida como dez. Já haviam feito todos os preparativos, Jack repetira as recomendações várias vezes e Stephen escrevera todas as cartas necessárias. Jack inspecionou as coisas que Stephen devia levar, a lanterna com portinholas de corrediças, os foguetes, as pistolas e um dispositivo que fazia saltar faíscas, e acrescentou ao conjunto uma faca e algumas braças de cabo grosso.
- Troquei as pederneiras das pistolas - disse outra vez.
E Stephen lhe agradeceu outra vez. Depois olhou seu relógio e viu que só haviam passado sete minutos da hora.
- Vamos, improvisemos um pouco - disse, aproximando-se do estojo de seu violoncelo.
Os sons de seus instrumentos eram chiantes a princípio, mas depois de alguns minutos, os dois atritaram colofônio nas cordas dos arcos. Então Stephen interpretou um fragmento de uma sifonia de Haydn que haviam ouvido juntos, um fragmento raro, confuso e vacilante, que parecia de outro mundo. Jack o repetiu, e depois os dois o interpretaram juntos uma ou duas vezes e, a partir de então, tocaram uma infinidade de variações dele, umas vezes juntos e outras separados. Não tocavam muito bem, mas sim o bastante para expressar boa parte do que desejavam expressar, e seguiram tocando sem pausa até que Pullings entrou na cabine para dizer que o navio navegava agora por águas de dez braças de profundidade e que o cúter já estava na água pela popa.
Em comparação com a iluminada cabine, acharam que o convés estava muito escuro, pois a luz da bitácula era a única que se via ali, e alguns marinheiros que Stephen não pôde ver o conduziram para a escada. Não havia luzes nos cestos das gáveas do Worcester, os faróis de popa estavam apagados e os escotilhões e as janelas de popa da cabine e da câmara dos oficiais, tapados. Não se viam o mar nem as velas, e o navio se aproximava da costa, ainda mais escura que a coberta, produzindo um burburinho. E os tripulantes falavam em voz muito baixa.
Stephen passou por cima da borda, e alguém, desde a parte exterior do costado, pegou seus pés e os colocou no primeiro degrau. Sentiu a mão de Jack buscando a sua e a apertou e depois desceu para o cúter.
Um momento depois Mowett ordenou:
- Zarpar!
A alta popa do Worcester, ainda mais escura que a noite, seguiu movendo-se para frente e ocultou um grande fragmento do céu estrelado.
- Remar com força! - gritou Mowett, e um momento depois o cúter já estava completamente sozinho.
O vento soprava de terra e trazia seus odores: a pestilência das marismas, o odor do orvalho que cobria as canas, o aroma da vegetação… Tinham que percorrer uma longa distância, mas avançavam devagar, já que a lua não sairia até passada mais de uma hora. Ninguém falava, e os rítmicos golpes dos remos na água, a escuridão que os envolvia e sentir o cabeceio do cúter e seu movimento para frente sem vê-lo mover-se, causaram em Stephen a impressão de que estava num sonho ou inclusive em outro mundo. Mas imediatamente seus olhos se acostumaram com a escuridão, e pôde distinguir claramente a costa. Agora as estrelas, que às vezes ficavam ocultas atrás das nuvens que cruzavam o céu, pareciam brilhar com mais intensidade, e pôde reconhecer alguns dos tripulantes, ainda que não por sua cara senão por sua figura, ou como no caso de Fintrum Speldin pelo velho chapéu que não tirava nunca. Todos eram marinheiros fortes, sérios e discretos. Reconhecera Bonden primeiro, naturalmente.
- Trouxe a capa, doutor? - perguntou Mowett de repente.
- Não - respondeu Stephen - Mas não acho que vá necessitar porque a noite é quente e agradável.
- Sim, é. Contudo, pela rapidez com que passam essas nuvens e a direção que vão, como pode ver, acho que o vento vai rolar para o sul, e se o faz, choverá.
- O doutor está sentado em cima de sua capa - disse Bonden. - Eu mesmo a pus aí.
- Agora se pode ver a torre muito claramente - disse Mowett após um momento.
Stephen olhou para onde Mowett assinalava e viu a torre recortando-se sobre o céu. Era uma torre românica e estava situada no fundo de um braço de mar de cinco ou dez milhas de comprimento.
Não disseram nada mais até que ouviram as pequenas ondas romperem e viram uma branca linha horizontal.
- Estamos aproximadamente a um quarto de milha ao sul da barra, senhor - disse Mowett em voz baixa e se levantou quando os remadores deixaram de mover os remos. - Acha bom aqui?
- Perfeitamente bom, obrigado - respondeu Stephen.
- Remar com força! Adiante! - ordenou Mowett.
O cúter avançou mais e mais rápido cada vez até que, por fim, deslizou pela areia e, com um som sibilante, parou com a proa ligeiramente inclinada para cima. O remador que estava na proa saltou por cima da borda com uma prancha na mão. Bonden o ajudou a chegar até ali passando sobre as bancadas e depois lhe advertiu:
- Cuidado com os degraus, senhor.
E um momento depois Stephen desembarcou na costa francesa.
Em cinco minutos Bonden acendeu a lanterna de Stephen, fechou as portinholas, pôs o restante do equipamento numa bolsa de tecido, pendurou em seu pescoço e o fez pôr a capa. Então, em voz muito baixa, Mowett disse:
- Amanhã às quatro e meia da madrugada neste mesmo lugar, senhor, se não amanhã à meia-noite, se acender um foguete, ou no dia seguinte na alvorada.
- Exatamente - disse Stephen sem prestar atenção. - Boa noite.
Continuou subindo para a praia, afundando os pés na areia, e ouviu o ruído da prancha, o som sibilante que produzia o cúter ao retroceder pela praia e o choque dos remos com a água. Sentou-se onde começavam as dunas e olhou para o mar. À luz das estrelas podia ver as ondas romperem na margem e, ao longe, o horizonte; contudo, não via nenhum barco. O único que se ouvia era o sussurro do vento ao passar entre as dunas e o suave choque das ondas. Parecia que estava agora no princípio do mundo, quando só existiam os elementos e as luminosas estrelas.
Não tinha vontade de mover-se. Há muito tempo já não se considerava invulnerável, algo que lhe ajudara no início da guerra. A última vez que estivera na França fora aprisionado e, apesar de ter escapado sem sofrer nenhum dano, pelo menos dois agentes secretos franceses lhe haviam identificado. Se o prendessem agora, não podia esperar piedade dos franceses, seria torturado, talvez até a morte. Em outro tempo correra o mesmo risco, mas tinha algumas possibilidades de enganar ao inimigo ou escapar e, ademais, não estava casado, não tinha que preocupar-se mais que consigo mesmo, e sua vida lhe importava muito menos.
Ao longe apareceu um resplendor e se fez mais e mais intenso até que a lua assomou acima do horizonte, e seu intenso brilho feriu seus olhos, acostumados à escuridão. Quando a lua, corcunda e lerda, chegou a certa altura acima do mar, Stephen aproximou o relógio do ouvido e apertou o botão para ouvir os sinais que indicavam a hora. Tanto o relógio como a lua indicavam que havia chegado a hora de ir, e então se levantou e desceu até a margem da praia porque lhe custaria menos caminhar pela areia molhada e, ademais, não deixaria pegadas. Parou duas vezes para tentar vencer seu desânimo, e as duas vezes olhou para o mar, mas não viu absolutamente nada em suas águas, nem perto nem longe. Por fim pôde ver a barra da desembocadura do Aigouille, uma extensa faixa de areia coberta de troncos de árvores branqueados pelo sol, já que, salvo quando o rio transbordava, a maior parte de suas águas ia para as lagunas e as marismas, e só uma pequena parte chegava ao mar, por um espaço tão apertado que um homem podia saltá-lo. Ao aproximar-se dali assustou uma garça que estava pescando e pôde ver suas plumas brancas e negras à luz da lua quando se afastou voando, e seu grasnido, que ele conhecia tão bem, produziu-lhe um sentimento de alívio. Saltou sem dificuldade aquele espaço, ainda que tivera medo de falhar devido à torpeza que amiúde acompanha o medo, e quando chegou na outra margem do rio, viu as luzes que tinha que encontrar, uma em cima de outra, perto do pavilhão de caça. O homem com quem devia se encontrar estava ali, chegara pontualmente, mas para reunir-se com ele Stephen tinha que bordejar a laguna por um caminho de pescadores que atravessava um montículo coberto por um bosquezinho e depois avançar até o dique cruzando os canaviais que rodeavam três lagunas menores.
Esta parte do caminho, onde o solo era firme, passava pela frente de um montículo de terra seca e um braço de mar pouco profundo cheio de aves ancudas, que voaram dando espantosos grasnidos quando o viram se aproximar. Ainda que aparentemente havia silêncio nas marismas, pois não havia nenhum movimento em suas águas, onde se refletia a luz da lua, em realidade, podiam ouvir muitos sons, além do burburinho do vento nos canaviais. Stephen ouviu à sua esquerda a respiração dos flamengos adormecidos, de tom mais grave que a dos gansos, e por cima de sua cabeça, o adejo dos patos, e nesse momento, aproximadamente a uma milha de distância, atrás dos canaviais que devia atravessar para chegar ao dique, um alcaravão emitiu uma série de roucos sons a intervalos regulares, como os disparos de um canhão. Chegou ao montículo (uma ilhota em outro tempo), onde se encontravam as ruínas de uma cabana e armadilhas para enguias penduradas dos galhos de um salgueiro. Havia muitos coelhos ali, e enquanto se orientava, ouviu como um arminho pegava um.
Seguiu avançando e começou a atravessar os canaviais, onde a escuridão era quase total, pois apenas passavam raios de lua entre as delgadas folhas que se elevavam muito para cima de sua cabeça. À luz da lanterna, que agora tinha as portinholas abertas, Stephen achou uma vereda e avançou por ela atormentado pelos mosquitos que encontrava na sua passagem e com um horrível calor, e ainda que havia alguns lugares pelos quais era fácil passar porque as canas estavam quebadas, em muitas ocasiões tinha que abrir passagem como podia, passar por cima de montes de folhas e galhos secos e caminhar afundado até os tornozelos em barro fedorento. Às vezes não sabia com certeza para onde seguia a vereda, pois em alguns pontos se bifurcava ou se unia com outros ou os cruzava. Muitos deles provavelmente foram feitos por javalis, e em uma ocasião Stephen ouviu os grunhidos de uma manada que estava perto. Contudo, os javalis não chamavam sua atenção, o que chamava poderosamente sua atenção, mais que a reunião e seu êxito e mais que o medo atroz que às vezes o deixava paralizado, era o alcaravão. Estava se aproximando dele, pois seu bramido era cada vez mais forte. Acreditava que estava justamente no canavial que havia entre a última laguna que devia bordejar e o dique, e pensou que se se movia muito devagar e se a sorte o acompanhasse, poderia vê-lo à luz da lua. Mas sabia que a lua não ia brilhar muito mais tempo, porque cada vez que olhava para cima entre a espessa folhagem, via mais nuvens no céu, e ainda que não estivesse seguro de qual era a direção do vento, parecia que soprava do sul.
Aparentemente, a sorte o acompanhava, pois, ainda que fosse impossível avançar sem que pelo menos alguns rangidos fossem ouvidos, aproximava-se dele sem nenhuma dificuldade. Agora estava tão perto que podia ouvir o ruído que a ave fazia ao inspirar e o breve som que precedia ao seu bramido. O alcaravão parecia não se incomodar com o ruído que ele fazia, e não se assustou quando deu um passo em falso e caiu de joelhos no barro, talvez porque lhe tomou por um javali; contudo, ao ouvir uma voz trêmula que, do outro lado do canavial, disse: "Halte là! Qui vive?", guardou silêncio, apesar de que acabava de fazer uma inspiração.
- O docteur Ralphe - respondeu Stephen.
A outra pessoa deu a resposta combinada, disse que era Voltaire, mas por sua voz Stephen soube que se tratava de um agente secreto de nome Leclerc.
- Esperava encontrar-lhe no dique - disse, olhando para Leclerc à luz da lua, que agora se via claramente entre as nuvens.
Leclerc contou que havia ouvira ruído nas marismas e que achou que podia ser vis to com facilidade ali acima. Havia suposto que eram vacas, ainda que poderiam ter sido os caçadores furtivos, e também os contrabandistas, pois aquele era um lugar ideal para eles, e pensara que o mais prudente era não chamar a atenção. Havia deixado os cavalos no pavilhão de caça para não chegar até ali cavalgando, já que estavam muito nervosos. "Não me admira. Se se contagiaram com seu nervosismo estarão a ponto de começar a fugir", pensou Stephen. Em sua opinião, Leclerc era um tipo inteligente, mas ele nunca lhe haveria encomendado esta missão porque era um homem da cidade, e os homens da cidade não se sentiam bem nas marismas nem nas montanhas de noite, e, ademais, porque não tinha o temperamento adequado para encarregar-se dela.
Chegaram ao dique, e dali podia se ver o final das marismas e mais lá uma série de terrenos cobertos de pasto beirados por brilhantes canais, grupos de tamárices e outros arbustos mais altos, grandes canaviais, o serpenteante caminho que ia para Mandiargues e o canal do mesmo nome. Enquanto caminhavam, Leclerc disse quem eram as pessoas que já haviam chegado ao lugar do encontro quando ele havia saído dali, e estava dizendo os nomes das que faltavam para chegar quando duas grandes figuras brancas apareceram no dique.
- Oh, meu Deus! - exclamou, agarrando Stephen pelo braço. - Que é isso?
- Garcetas - respondeu Stephen. - E quem mais, além de Pangloss?
- Martinot e Egmont, e também os Duroure. São pessoas demais. Hei estado em contra desta idéia desde o princípio. Sempre há possibilidade de que alguém cometa uma indiscrição e de que surja algum problema, e quando se reúnem tantas pessoas, entre elas algumas que apenas conhecemos, num lugar como este… Silêncio! - murmurou de repente, metendo Stephen de um empurrão atrás de um canavial. - Que é isso?
- Onde?
- Na esquina, onde o dique dobra para a esquerda. Está se movendo.
Como a luz da lua variava de intensidade, era difícil estar seguro de qualquer coisa, porém, após alguns momentos, Stephen disse:
- Acho que é um poste. E na ponta está pernoitando uma coruja. Olhe: a coruja voou. Por favor, guarde essa pistola.
Continuaram caminhando, e entretanto Leclerc criticava aos organizadores da reunião com a ironia aguda e mal-intencionada própia de um homem assustado. Na realidade, o poste era um salgueiro cortado por um raio, e apenas haviam acabado de passá-lo, apenas haviam dobrado a esquina, quando ouviram o ruído de alguns disparos nas marismas, a algumas centenas de jardas à sua direita. Os disparos, acompanhados por vermelhas línguas de fogo que se destacavam na escuridão, partiam de dois lugares diferentes e pareciam se cruzar, e seu som retumbava nos canaviais e se propagava em direção ao caminho. Depois de ficarem imóveis e em silêncio por alguns momentos, Leclerc exclamou:
- Nos entregaram! Nos atraiçoaram!
Então passou a correr para o pavilhão de caça.
Stephen se deslizou por um lado do dique e se meteu em um canavial e ali ficou escutando com atenção. O que ouviu o deixou perplexo: os disparos se ouviam cada vez mais longe uns dos outros, como se os dois bandos estivessem se separando, não como se um perseguisse ao outro. Durante um bom momento houve disparos esporádicos, e, por fim, ficou em silêncio. Depois se ouviu ao longe um som parecido a um tamborilo, talvez produzido por cavalos que iam a galope, e depois nada mais. As nuvens terminaram por derrotar à lua, e a noite se tornou totalmente escura.
O vento do sul, que já estava soprando a algum tempo nas camadas altas da atmosfera, agora atravessava as marismas e movia as folhas e os altos talos das canas fazendo um ruído parecido ao das ondas ao romper na praia, e com ele haviam chegado alguns aguaceiros. O alcaravão voltou a berrar, e outro, muito longe dali, respondeu. Stephen pôs o capuz para proteger-se da chuva.
Permaneceu ali um longo tempo, e quando ficou seguro de que Leclerc não regressaria nem a pé nem a cavalo, voltou a subir o dique. Agora tinha que caminhar contra o vento sul e com a cabeça baixa porque ele soprava com muita força, mas queria chegar às dunas o mais rapidamente possível, antes de que tivessem tempo de organizar uma busca.
Ainda que estava preocupado porque o vento poderia provocar dentro de pouco tempo uma marejada tão forte que o cúter não pudesse pegar-lhe daquele lugar, já não sentia o medo atroz que experimentava antes e que o deixara paralizado em várias ocasiões. E quando passava por um vão do dique em cujos lados havia água estancada, sentiu mais raiva do que medo ao ver uma luz um pouco mais adiante, uma luz que, apesar de não ser muito forte, tinha demasiada intensidade e se movia muito rápido para ser fogo fátuo, e imediatamente teve a certeza de que a luz procedia de uma lanterna como a sua com alguma portinhola entreaberta.
Não queria meter-se em águas cuja profundidade desconhecia, e o único lugar próximo onde podia se esconder era entre um grupo de tamárices partidos, já que o canavial mais próximo se achava a várias centenas de jardas de distância. E como tampouco queria retroceder, pois lhe parecia uma perda de tempo, decidiu meter-se entre os arbustos até que a luz passasse, e uma vez ali se agachou e desceu o capuz para tapar a cara.
Observou como se aproximava a luz e chegou à conclusão de que o homem que levava a lanterna estava sozinho, não acompanhado por uma quadrilha, e não era um soldado. O homem caminhava com passo lento e vacilante e às vezes se detinha, porém, aparentemente, não olhava ao seu ao redor nem procurava nada dos lados do dique.
A luz já estava muito perto, e Stephen desceu os olhos. Nesse momento o vento aumentou de intensidade e houve uma rajada de chuva, e o homem que levava a lanterna, segurando o chapéu com a mão, se aproximou dos tamárices para proteger-se dela e se sentou apenas a três jardas de distância de Stephen. Permaneceu sentado ali, com a costas para o lado de onde vinha o vento e arqueada, até que a chuva cessou, tão repentinamente como havia começado. Então se levantou, e cada um poderia ter seguido seu caminho se não houvesse sido porque, de repente, voltou a sentar-se e abriu as portinholas da lanterna para examinar seu pé descalço e coberto de barro. Limpou o barro com o lenço, e imediatamente um fio de sangue correu por sua pele branca. Tratou de detê-lo com a gravata, e, à luz da lanterna, Stephen pôde reconhecer o rosto do professor Graham, apesar de estar crispado pela dor.
CAPÍTULO 8
Uma vez mais no navio insígnia apareceu o sinal que ordenava ao capitão do Worcester apresentar-se a bordo, e uma vez mais Jack Aubrey se sentou em uma cadeira diante da mesa do almirante; contudo, desta vez não se sentou na borda, pois tinha a consciência tão limpa como o claro céu do Mediterrâneo e havia trazido correio de Mahón além de apetrechos, e desta vez não lhe dispensaram uma fria acolhida.
- Assim que ao me informar de que a maioria dos paus ainda não haviam chegado, não tive objeção em aceder à petição do doutor Maturin de que o levasse de imediato a um lugar da costa francesa. Por sorte o vento foi favorável e pude deixá-lo no lugar combinado na data prevista e recolhê-lo no outro dia pela manhã. E junto com ele recolhi a um cavalheiro ferido, o professor Graham, esse professor que haviamos deixado em Mahón.
- Ah! Alegro-me muito de que haja trazido Maturin tão cedo. Estava preocupado por ele. Encontra-se a bordo do navio insígnia? Muito bem, muito bem. Falarei com ele imediatamente, mas primeiro diga-me quantos paus nos enviaram. Daria um olho da cara para ter grande quantidade de paus de reserva.
Jack disse ao almirante quais eram os paus que havia trazido e ele lhe falou da inconveniência de colocar mastros muito altos nos barcos, particularmente nos de costados retos, tanto para navegar pelo Mediterrâneo como por outros mares, e enquanto eles falavam, o doutor Maturin e o secretário, o senhor Alien, sentados na cabine deste, falavam e bebiam vinho de Marsala e comiam bolachas de Palermo. Contudo, Stephen não estava dando um relatório nem muito menos, estava falando dos maus resultados que se obtinham quando os organismos oficiais atuavam separadamente e punha como exemplo sua recente viagem.
- Não poderia encontrar um exemplo melhor - disse. - Aí tem senhor: um lugar muito apropriado para atividades deste tipo, marismas com veredas tortuosas e impraticáveis, e por essas veredas, em meio da escuridão da noite, avançam dois grupos de homens para assistir a reuniões muito similares, impulsionados pelos mesmos motivos, ainda que nenhum dos dois sabe que há outro grupo, e se vão aproximando e tropeçam e fogem aterrorizados, e isso arruina pelo menos um plano cuidadosamente elaborado e, ademais, faz nascer a suspeita de que alguém cometeu uma indiscrição ou mesmo uma traição, o que traz como consequência que seja quase impossível renovar os contatos.
- O tal Graham deve de ser um tonto, um tonto de capirote - disse Alien.
- Acredito que não me expressei bem - disse - Stephen. - Não era minha intenção criticar ao indivíduo senão ao sistema que permite que um ministério tenha seu própio serviço secreto que atue independentemente dos de outros e às vezes, sem saber, opondo-se a eles. O professor Graham é um homem brilhante. A ele se deveu a capitulação de Colombo, que deu muito que falar em seu tempo.
Alien era um recém chegado ao serviço secreto da Armada, e ficou desconcertado ao ouvir dizer que era um homem tão inteligente e formou duas vezes as palavra "Colombo" com os lábios sem pronunciá-la.
- Permita-me que lhe refresque a memória - disse Stephen. - Quando Bonaparte se apoderou da Holanda, nós nos apoderamos, ou tentamos apoderar-nos das possessões holandesas de ultramar, incluída Ceilão. Tomar a fortaleza de Colombo, a peça chave para o domínio da ilha, parecia apresentar dificuldades insuperáveis, por um lado, porque a guarnição era Suiça, pois, como todo mundo sabe, quando os suiços são bem pagos, não se pode expulsá-los facilmente de um lugar nem se pode conseguir que se vão mediante a persuasão, a intimidação ou o suborno, e por outro lado, porque ao comando da fortaleza se encontrava Hercule de Meuron, um oficial suiço com extraordinário talento para planejar e dirigir operações militares. Mas Hercule de Meuron era amigo do senhor Graham, um amigo íntimo, conforme entendi, e Graham chegou a Colombo disfarçado de turco, enviou-lhe uma mensagem de uma forma original, escondida dentro de um queijo holandês, e conseguiu com razões que acedesse a levar a sua tropa. Então os ingleses entraram no Ceilão e impediram que Bonaparte utilizasse seus recursos. Não sei que meios Graham empregou, mas estou completamente certo de que não foi dinheiro.
- Deve de ser um homem eloqüente.
- Sem dúvida ele é. A propósito, quero acrescentar que fala muito bem o turco. Eu o trouxe comigo porque domina o turco e queria apresentá-lo ao almirante.
- Receberíamos com os braços abertos uma pessoa confiável que dominasse o turco, pois agora só contamos com a ajuda de um eunuco grego caolho e velho e a crestomatia de Dupin. Mas o senhor acredita que o senhor Graham acederá trabalhar conosco?
- O senhor Graham não tem escolha. Compreende que, conforme a ética, é de minha propriedade, é uma presa de lei, e quando lhe disse que desejava que permanecesse a bordo de nosso navio em vez de desembarcar em Mahón, aceitou sem resmungar. Afinal de contas, estava caçando furtivamente em minha propriedade, a costa de nosso inimigo e desfez a rede que laboriosamente havia formado. Eu o tirei dessa costa, o que me acarretou muitos incômodos porque tive que apoiá-lo enquanto caminhamos longas milhas pelas marismas. Ademais, por sua culpa os valentes homens que se aproximaram da costa na hora acordada, navegando entre grandes ondas, entre enormes ondas, correram o risco de ser descobertos porque os disparos haviam despertado todo o povoado e já havia patrulhas rastreando as dunas. Esses homens tentaram chegar até a margem nove vezes, umas navegando de lado e outras retrocedendo, correndo um grave perigo, até que, por fim, subiram-no a bordo e o ataram em um paneiro e o levaram até o navio com quase todo o corpo coberto pela espuma das ondas.
O professor Graham tinha a mesma atitude humilde e o mesmo abatimento de quando tinha quase todo o corpo coberto de espuma quando subiu ao navio insígnia. Animava-se pouco quando não estava na presença de Stephen, a quem havia incomodado tanto e devia corresponder pelo favor recebido, porém, apesar de ocupar uma cátedra numa universidade de não pouca importância, tardou muito em recuperar o orgulho que sentia por ser um erudito porque cada vez que se punha ou se tirava a meia via sua ferida, uma ferida vergonhosa: havia destroçado o dedo pequeno de um pé porque havia tropeçado quando tinha a pistola preparada para disparar. Contudo, no navio insígnia voltou a sentir-se como um soberano no reino que abarcava a filosofia, o turco, o árabe e o grego moderno, e voltou a ser tratado com o respeito quase exagerado que tinham os membros da Armada pelos homens doutos, especialmente aos que conheciam muito bem a antiguidade clássica.
Um dia, depois que o Worcester havia voltado à rotina diária do bloqueio, Stephen foi ao navio insígnia e observou que o professor Graham, pelo menos em aparência, recuperara seu orgulho.
- Em nome de todos os oficiais do Worcester, vim convidá-lo para jantar amanhã - disse.
- São muito amáveis. Será muito agradável ver-lhes de novo tão cedo. Não pensara em voltar a subir no navio até que se representasse a obra de teatro.
- Sinto lhe dizer que a representação de Hamlet foi adiada mais uma vez, mas os preparativos para o oratório já estão quase terminados. O senhor Martin vem amiúde para acabar de corrigir as partes menos harmoniosas, e acredito que, por fim, vão cantá-lo no domingo. Esperamos que reuna uma grande quantidade de público, pois o almirante Thornton deu a sua aprovação.
- Muito bem, muito bem. Será um prazer para mim estar entre a platéia. E também será um prazer jantar com os oficiais do Worcester outra vez. Será como voltar ao lar… Ainda reina a harmonia ali, né?
- Não, senhor, desgraçadamente. Em uma câmara dos oficiais não pode ter dois poetas, e o senhor Rowan, que o senhor provavelmente recordará porque foi quem o atou ao paneiro, rivaliza com o senhor Mowett, e ainda que tenha menos fantasia e menos habilidade para usar a linguagem, tem mais facilidade para compor os versos e para declamar. Por outro lado, tem muitos seguidores, e os guardas-marinhas aprendem mais rápido seus versos que os de Mowett. Contudo, não está satisfeito com suas composições, e esta manhã me mostrou estes versos - disse, pegando um rolo de papel do bolso - para que o corrigisse. Também disse que me agradeceria muito que lhe dissesse algumas expressões própias da linguagem culta. Declinei essa honra por várias razões, mas lhe disse que na esquadra não havia um homem mais douto que o professor Graham e que, se quisesse, traria seus versos ao navio insígnia para dá-los. Aceitou encantado e me encarregou que lhe dissesse que acatará suas indicações e que tachará tudo o que não lhe agrade.
O senhor Graham franziu os lábios, pegou o rolo e leu:
Mas ao chegar ao ancoradouro,
nos contaram uma triste história,
que outra vez Buenos Aires havia sido capturado
e nosso pequeno exército esmagado.
Mas enviaram reforços desde o cabo
e o comodoro se propôs fazer uma proeza,
conquistar Montevidéu quis,
mas não pôde alcançar seu objetivo.
- Começou pelo final - disse Stephen.
- O princípio tem o mesmo tom? - inquiriu Graham.
- Muito parecido - respondeu Stephen.
- Naturalmente, estou muito agradecido ao senhor Rowan - disse Graham com uma expressão triste, folheando as outras páginas - ainda que me envergonha dizer que não pude ver-lhe claramente quando me levavam ao navio por entre as grandes ondas. É o cavalheiro de cara redonda e olhos negros, que ria muito e sempre afirmava ou negava categoricamente quando estávamos sentados à mesa e que brincava e corria por entre os cabos com os cadetes?
- O mesmo.
- Bem, farei o que possa por ele, sem dúvida, ainda que a correção de versos é uma tarefa ingrata.
Graham emitiu um som sibilante movendo para um lado e para outro a cabeça e pensou que ter sido resgatado tinha um aspecto pouco agradável, mas sorriu e acrescentou:
- Falando dos cadetes, como está o jovem Milo de Crotona? Segue carregando diariamente o bezerro? E como está esse jovem amigo seu que tem o cabelo esbranquiçado, o senhor Williamson? E como está o bezerro?
- O bezerro vai tranqüilamente de um lado a outro do navio e se mete onde quer, e como a tripulação se acostumou a ver-lhe na coberta, não será sacrificado nem castrado. Não duvido que dentro de pouco haverá um indócil hóspede na bodega do Worcester. Mas o que me preocupa mais é o senhor Williamson. Como provavelmente o senhor haverá ouvido, um maltês que veio em um vivandeiro contagiou com papeira vários tripulantes do navio, e o senhor Williamson foi um dos primeiros a contrair a doença e é um dos enfermos mais graves.
O senhor Graham não era um homem divertido, e poucas coisas lhe faziam graça e muitas menos lhe faziam rir; contudo, uma delas era a papeira, e nesse momento soltou uma estrondosa gargalhada.
- Não tem graça - disse Stephen, tirando dissimuladamente a saliva de Graham de sua gravata. - Não só causou o atraso da representação de Hamlet porque falta a Ofélia, já que o senhor Williamson era o único cadete com uma voz passável, senão que também é possível que o pobre jovem fique com voz de contralto por toda a vida.
- Ah, é? - perguntou Graham, sorrindo ainda. - O inchaço afeta as cordas vocais?
- Às cordas vocais não acontesse nada - respondeu Stephen. - O senhor nunca ouviu falar da orquite? Não sabe que uma complicação da papeira pode ser a inflamação dos testículos?
- Não - respondeu Graham e seu sorriso desapareceu.
- Tampouco meus companheiros de tripulação sabiam- disse Stephen - ainda que bem sabe Deus que é uma das complicações mais freqüentes da cynanche parotidaea e é muito prejudicial para os homens. Mas há que dizer algo em seu favor, e é que constitue um meio mais humano de prover nossos coros e óperas de castrati.
- Isso produz realmente a emasculação?
- Indubtavelmente. Porém, pode ficar tranqüilo, porque esse é o maior estrago que a doença pode acarretar: é benigna comparada com muitas outras que poderia citar. Que eu recorde, em toda a história da medicina não há sido registrado nenhum caso de morte por sua causa. Contudo, meus companheiros se angustiaram muito quando lhes falei dessa seqüela, pois muito poucos tiveram a doença em sua juventude…
"Eu tampouco", pensou Graham.
- Quanto angustiados estavam! - exclamou Stephen, sorrindo ao se recordar. - E quanto perturbados! Qualquer um teria achado que falávamos da peste bubônica. Insisti em que deviam ter em conta que haviam estado expostos à infecção muito pouco tempo, mas isso não me serviu de nada; eu lhes disse que os eunucos têm tranqüilidade de espírito e que nada afeta a sua capacidade de pensar, e dei como, exemplo a Narsés e a Hermias; pedi que considerassem que a união das mentes era muito mais importante que o simples ato carnal; contudo, poderia ter-me poupado as palavras, porque, aparentemente, os marinheiros não vivem para outra coisa que para fazer amor.
- A papeira é uma doença contagiosa, né? - perguntou Graham.
- Oh, muito contagiosa! - exclamou Stephen, pensando no gesto grave e preocupado de Jack, dos oficiais e o de um grupo de guardas-marinhas em quem seus companheiros haviam delegado para que fossem perguntar-lhe o que podiam fazer para se salvar, mas depois voltou a sorrir e acrescentou: - Se a comida fosse um ato tão secreto como copular, ou foder, como dizem os marinheiros, acha que seria uma obsessão para eles e que seria objeto de todas suas brincadeiras?
O professor Graham havia ido para o fundo da câmara dos oficiais do Ocean, e agora estava de pé diante de um escotilhão aberto. Quando Stephen se aproximou, caminhou até a porta o mais rápido que lhe permitia sua coxeadura e, ao chegar ali, parou e disse:
- Agora que me recordo, já estava comprometido para amanhã, assim que devo declinar o amável convite dos oficiais do Worcester. Por favor, apresente-lhes minhas desculpas e diga-lhes que lamento muito não poder ver-lhes amanhã.
- Sofrerão uma decepção, garanto - disse Stephen. - Mas não importa, porque virá escutar o oratório. Poderá ver a todos ali no domingo pela tarde.
- No domingo pela tarde? - inquiriu Graham. - Ah, que pena! Em consciência, não devo assistir a nenhum espetáculo no dia de descanso, o dia consagrado a Deus, ainda que o espetáculo não seja profano. Peço que me desculpe.
O domingo estava perto. O mistral esteve soprando durante a quinta-feira, a sexta-feira e o sábado, fazendo a esquadra deslocar-se uma grande distância para o sul de sua posição habitual, e este último dia rolou de repente e trouxe consigo negros nimbos e aguaceiros do este-noroeste. Os tripulantes do Worcester, tiveram que reunir-se debaixo do convés para o ensaio geral. Não lhes haviam dito que trajes deviam usar nem que movimentos deviam fazer no oratório, mas todos haviam pensado que o veleiro tinha razão quando havia dito: "Se não há mulheres no coro, acho que o lógico é que levemos trajes elegantes". Não havia mulheres no coro porque as três ou quatro esposas de suboficiais que navegavam no navio não sabiam cantar (assim que o oratório parecia um pouco raro porque estava incompleto), e os tripulantes do Worcester concediam muita importância aos trajes. Ainda que em um bloqueio não se permitia aos membros da Armada visitar aos de outros navios com freqüência, na realidade eles tinham bastante contato uns com os outros. Todos sabiam, por exemplo, que no Orion, em cuja tripulação se encontrava um grupo de tripulantes que haviam sido recrutados à força entre os componentes de um circo ambulante em bancarrota, havia um cuspidor de fogo e dois malabaristas que faziam maravilhas quando havia calmria. E também sabiam que no Canopus os espetáculos que davam uma vez por semana sempre começavam e terminavam com a atuação de bailarinos que haviam dnaçado nos teatros de Londres. Os tripulantes do Worcester ansiavam superar ao Orion e ao Canopus, e como esperavam que assistisse grande quantidade de público porque o almirante havia dito publicamente que dava sua aprovação à representação, era fundamental causar-lhe muita impressão, e os trajes contribuiríam para isso.
Desgraçadamente, o vivandeiro procedente de Malta que trazia a musselina de Aleppo que haviam encomendado havia sido interceptado por um corsário francês (agora o tecido dava um ar distinto às prostitutas de Marselha), e de Gibraltar não haviam recebido nada em absoluto. O dia da representação se aproximava e não era possível conseguir trajes elegantes e refinados a menos de mil milhas de distância, e, além disso, já fazia tempo que todo o dril que tinham no navio para fazer calças fora usado. O veleiro e seus ajudantes, e inclusive os outros tripulantes haviam pensado em pegar as velas que se colocavam mais altas nos paus e que eram pouco usadas, as monterillas, as sossobres e as alas das joanetes e das sobrejoanetes; contudo, o Worcester podia suportar a pressão de grande quantidade de velame e seu capitão havia demostrado que para aumentar a velocidade era capaz de usar todas as necessárias, ainda que isso significasse fazer mau uso dos bens do Governo, e devido à escassez de apetrechos que a esquadra tinha e ao fato de que se encontrava muito longe dos lugares onde podia reabastecer, não toleraria que roubassem nada, ainda que fosse muito pouco e sem más intenções. Contudo, haviam tentado se informar com cautela da opinião Pullings, a quem, obviamente, interessava que a representação tivesse êxito porque era muito zeloso da reputação de seu barco, e de forma indireta haviam comunicado sua intenção ao capitão, através de Bonden, de Killick e do doutor, através de um garoto preto que era seu servente provisoriamente, e de Mowett, pedindo-lhe com fingida ingenuidade que lhes aconselhasse o que deviam fazer. Então, Jack já pensara muito na questão (todos haviam pensado muito nela e a apoiavam) quando lhe perguntaram que decisão tomara, e sua resposta fora tão direta como esperavam os marinheiros. Respondera que a qualquer maldito marinheiro que estragasse uma vela, por mais desgastada que estivesse no centro ou nos lados, pregaria suas orelhas a uma prancha de quatro polegadas de grossura e o jogaria no mar com meia libra de queijo, mas dissera que o veleiro e seus ajudantes podiam fazer diversas velas para usar no alto dos paus com sete rolos de lona número oito que ainda restavam e que com isso se solucionaria o problema. O veleiro não havia entendido e lhe havia olhado assombrado e envergonhado.
- Diga-me, veleiro, que quantidade de lona de dois pés de largura faz falta para uma sobrejoanete do maior? - perguntara Jack.
- Dezessete para a parte de cima e vinte e dois para a parte de abaixo, Sua Senhoria.
- E que comprimento têm?
- Sete jardas e meia, sem contar as nesgas nem as bainhas, que podem variar.
- Pois aí o tem. Dobra a vela quatro vezes, põe estropos em duas pontas, os amarra por cima do ombro, e o senhor já tem um elegante e refinado traje de estilo clássico, muito parecido à toga dos romanos, e sem ter cortado a lona nem ter prejudicado ao barco.
Com estas togas haviam ido ao ensaio geral, porém, apesar de que fazer menos de uma semana que tinham sido terminadas, já haviam perdido a simplicidade que caracteriza o estilo clássico. Muitos poseram encaixes e todos costuraram fitas nas bordas, pois a idéia geral era usar trajes com adornos mais chamativos que as plumas e os ouropeles do Orion, e o toneleiro e seus ajudantes puseram em suas cabeças umas coroas feitas com os aros de latão dos tonéis. O coro tinha um aspecto estranho, e que seria mais estranho ainda com o tempo, mas cantava bem, e ainda que seus componentes estivessem apertados ali embaixo e os mais altos roçassem a cabeça na coberta e o toneleiro chocasse sua coroa contra ela, desfrutavam tanto com a música que não se importavam com os incômodos.
Apesar do mau tempo, o capitão Aubrey os escutava desde o castelo de popa, que estava coberto pela espuma das ondas e era açoitado pelo vento e pela chuva. Não era um homem ardente, pois passava horas e inclusive dias sem pensar nas mulheres, mas não queria chegar a ter a tranqüilidade de um eunuco; por isso, ainda que visitasse a enfermaria diariamente em cumprimento de seu dever e com um enorme esforço conseguia permanecer três minutos junto dos casos de papeira, evitava estar perto de seu amigo Maturin, que ia de um lado para outro do barco como se não se importasse em propagar a infecção, como se não se improtasse que todos os tripulantes tivessem a voz como a dos meninos do coro de uma igreja ou a potente voz que era um dos traços masculinos mais notáveis e que agora fazia vibrar os vaus do Worcester justo abaixo dele. Estava de pé no lado de barlavento com a costas para a chuva, protegido pela metade pela escada do castelinho, e tinha posto um grosso jaquetão com capuz. Na penumbra das últimas horas da tarde observava o Orion, que navegava justo diante de seu navio enquanto a esquadra se dirigia para o oeste com as gáveas aferradas e o vento ao largo, e pensava nos efeitos que produziriam no casco a ressonância e os harmônicos, já que os cantores estavam agora dentro da caixa de ressonância e não sobre ela, e também prestava atenção ao mastro maior do Worcester. Aquela enorme madeira de cento doze pés de altura e mais de uma jarda de largura na base rangia cada vez que o costado de bombordo do navio se elevava pelo impacto das ondas e, apesar de que, afortunadamente, agora não tinha em cima o mastaréu do joanete, que teria aumentado a inclinação do navio no balanço como uma alavanca, e tampouco muitas velas desdobradas, estremecia. Pensou que lhe poria outro contraestai e que se isso não serviria de nada, voltaria a usar seu velho sistema de acostar guindalezas finas aos topes, ainda que o navio ficasse com uma aparência horrível. Mas todo navio se estremecia, não só o pau maior. O Worcester não era uma embarcação apropiada para navegar pelo Mediterrâneo, pois o ritmo de suas ondas não lhe permitia mover-se na velocidade máxima que alcançava nem na velocidade média, e tinha que navegar com um rizes a menos nas gáveas que os navios que o acompanhavam, muito melhor construídos, ente os quais se encontravam muitos que haviam saído dos estaleiros espanhóis e franceses.
As guindalezas segurariam os mastros porque os fariam manter-se firmes, completamente apoiados no casco, se bem que o Worcester teria um aspecto desagradável e descuidado, mas Jack se perguntava que medidas poderia tomar para assegurar o casco. Jack escutava com atenção, e entre as vozes que cantavam o oratório, o rangido dos mastros, o ruído do mar e o rugido do vento, ouvia claramente ranger as balizas, que pareciam queixar-se, e pensou que se não lhe pusessem novas curvas quando o levasse para fazer os reparos que necessitava, teria que passar um cabo ao redor do casco muitas vezes, até que o navio parecesse uma crisálida, uma enorme crisálida. Ao imaginar isto, assomou-se um sorriso em seus lábios, um sorriso que se fez muito mais amplo porque o coro havia chegado à parte da obra que era sua favorita e cantava como se estivesse no Covent Garden, com toda sua força, e também com imensa alegria.
- Aleluia! - cantou com eles o capitão, e a chuva começou a cair de novo, golpeando seu capuz. - Aleluia! - repetiu uma e outra vez até que o inconfundível som de um canhonaço o interrompeu.
Nesse mesmo momento o serviola gritou:
- Barco à vista! Barco pela alheta de bombordo!
Jack atravessou o convés e se aproximou do costado de sotavento, ajudado pelos solavancos que o Worcester dava. Como os marinheiros não haviam guardado as macas no convés porque chovia muito, não havia nenhuma barreira que o impedisse ver o mar ao sul, mas não pôde ver nada. E ficou ali junto com Mowett, que era o oficial de guarda, tentando ver algo através da cinza cortina de chuva.
- Justo atrás do brandal do mastro mezena, senhor - gritou Pullings do cesto da gávea do maior, onde havia subido para evitar encontrar-se com o doutor Maturin.
Então a chuva cessou e Jack e Mowett gritaram:
- Surprise!
Era a Surprise, e estava muito longe, por sotavento. Por estar a tão grande distância e onde não soprava o vento, apesar de que tinha excelentes características para a navegação, não poderia reunir-se com a esquadra até dentro de muito tempo, mas era evidente que seu capitão desejava que a esquadra fosse reunir-se com a fragata, já que disparou outro canhonaço e soltou as escotas da gávea. A essa distância, com essa luz e com esse vento, Jack não podia distinguir a mensagem formada pelas bandeiras que ondeavam no tope do traquete, mas tinha certeza de qual era. Não tinha dúvida de que a esquadra francesa havia saído do porto, pois isso era o que diziam os gritos, o aspecto da fragata e seus movimentos: tinha desdobrado muito velame para navegar com aquele vento (levava aberta inclusive as joanetes quando deveria estar com as gáveas aferradas) tinha soltas as escotas da gávea e havia disparado canhonaços. E nesse momento lançou um foguete que se afastou com o vento, e isso só podia significar uma coisa: o inimigo estava em alto mar. Quando o almirante recebesse a mensagem, a esquadra viraria em redondo, amuraria as velas para estibordo e se dirigiria ao lugar onde estava a Surprise para averiguar o que mais seu capitão tinha a lhes dizer.
- Todos a mudar de bordo! - exclamou.
O guarda-marinha encarregado dos sinais, que havia tido a precaução de não afastar a vista do bergantim situado a certa distância da linha de navios para repetir os sinais que apareciam no Ocean, apenas visível agora, gritou com todas suas forças, tratando de ser ouvido apesar dos rugidos do contramestre:
- Sinal do navio insígnia para a esquadra: "Mudar de bordo em sucessão, rumo sudeste".
Hollar e seu ajudante de mais antiguidade, que odiavam Haendel, se achavam casualmente na escada do castelinho no momento em que Jack havia dado a ordem, e haviam corrido para onde estava o coro, que ignorava o que ocorria e estava no mais alto de um crescendo, e o primeiro ordenara: "Saiam daqui, rouxinóis!" e o outro havia ordenado: "Todos a mudar de bordo!" e havia apitado com tanta força que quase fizera explodir o apito de prata.
Alguns segundos depois, em silêncio, os rouxinóis correram para ocupar seus postos. Os autênticos marinheiros que havia entre eles haviam tirado a toga, mas os homens de terra adentro não, e o toneleiro ainda usava a coroa. Ao toneleiro lhe correspondia colocar-se junto a uma escota da traquete, e, casualmente, a dois dos homens que tinham estavam de toga lhes correspondia situar-se justamente atrás dele, e como os três compreendiam com dificuldade e lentidão, tinham os olhos muito abertos e um gesto de angústia, e por tudo isto seu aspecto era tão ridículo que Jack riu a gargalhadas quando olhou por cima deles para o Ocean para ver quando movia o leme. Seu coração batia aceleradamente e sentia a mesma emoção de outro tempo, uma emoção muito mais forte que o impulso para viver.
Os navios fizeram rumo para onde estava a distante fragata e imediatamente desdobraram mais velas. No momento em que o Worcester dirigiu a proa para seu novo destino, Jack mandou chamarem o contramestre e lhe ordenou que guindasse os mastaréus, que fazia tempo que não usavam.
- Provavelmente necessitaremos deles logo, senhor Hollar, ah, ah, ah! - acrescentou.
Depois lhe disse que queria atar guindalezas finas aos topes. Isso não era novo na Armada, pois lorde Cochrane e o capitão Aubrey e um ou dois capitães mais haviam logrado fazer proezas usando essas guindalezas, mas a Armada era resistente a aceitar inovações, particularmente, inovações que fariam que seus barcos tivessem um aspecto desagradável e descuidado, como o dos barcos corsários ou, pior ainda, como o dos barcos piratas. Era necessário ter um grande prestígio ou um título de lorde ou, preferivelmente, as duas coisas, para obrigar a introduzi-las a um contramestre experiente de certa idade, e a Surprise já estava bastante perto quando, finalmente, o contramestre acedeu, aparentemente convencido de que o Worcester devia ter mau aspecto para que não tivesse problemas se, como era provável, tinha a oportunidade de levar a cabo a perseguição da frota francesa. Depois que o contramestre partiu, Jack olhou para a Surprise e notou que o mar estava muito agitado para que um bote pudesse navegar e que o vento faria que o envio de sinais fosse difícil e lento, por isso pensou que, sem dúvida, o capitão da fragata comunicaria tudo ao capitão da esquadra aos gritos e que os homens sem escrúpulos poderiam aproveitar-se disto e informar-se do que falavam.
A esquadra se pôs em pairo, a Surprise se aproximou o mais possível do Omã, e seu capitão, aos gritos, deu ao capitão do navio insígnia a informação que possuía, que pôde ser ouvida por vários navios situados pela proa e pela popa, onde todos escutavam atentamente. A voz de Lathan, o capitão da Surprise, era muito potente, e a do capitão da esquadra, que falava em nome do almirante, mais potente ainda, mas sua breve conversa não pôde ser ouvida do Worcester. Contudo, nestes momentos de agitação, as formalidades e os ressentimentos eram esquecidos, e tão logo como apareceu no navio insígnia o sinal que indicava o novo rumo e ordenava "desdobrar todo o velame possível sem perigo para os mastros", Wodehouse, o capitão do Orion foi até o coroamento de seu barco para falar com Jack, que se encontrava no pescante de estibordo do Worcester, e, aos, contou-lhe que uma frota francesa formada por dezessete navios de linha, seis deles de três cobertas, e cinco fragatas se encontrava em alto mar e navegava com rumo sul quando o almirante Mitchell decidira mandar o capitão da Surprise para informar à esquadra e, posteriormente, a outros mensageiros, e entretanto continuaria perseguindo-a no São Josef. Acrescentou que o capitão da Surprise havia dito que, a julgar pela tenacidade com que as fragatas francesas lhe haviam perseguido quando se dirigia em direção leste, a frota francesa navegava com rumo a Sicília ou ao Mediterrâneo oriental, talvez Turquia ou Egito, mas depois, ao ser pressionado, havia admitido que essa era uma suposição sem fundamento.
- Que é isso de que os franceses estão em alto mar? - perguntou Stephen ao chegar ao abarrotado castelo de popa.
Nesse momento estavam guindando os mastaréus e estendendo as guindalezas até o alto da exárcia, duas manobras delicadas que requeriam a participação de todos os marinheiros especialistas do navio, uma imensa quantidade de cabos, grossos e finos, e, com aquele vento e o mar tão agitado, cumprir imediatamente as ordens e fazer os movimentos no instante preciso.
Stephen não se dirigia diretamente ao capitão, que agora estava no corrimão de barlavento e tinha a vista fixa na cruzeta do maior, como isso não era correto; contudo, o capitão, que não era tão comedido, gritou:
- Desça Desça imediatamente!
Surpreendido pela ferocidade com que Jack havia gritado, Stephen se voltou, mas nesse instante passava por ali uma brigada que lhe disse: "Com sua licença, senhor, com sua licença", mas lhe enganchou com um cabo fino e o fez cair no cabillero{21}. Quando tentava sair de entre os cabos do cabillero, seu tornozelo se enrolou em um que estava solto, e caminhou arrastando o cabo até que seu velho amigo Tom Pullings, com uma fúria que houvesse atemorizado a Belzebu, gritou:
- Deixe de brincar com esse cabo e vá para baixo!
Estava quase completamente escuro quando se atreveu a subir outra vez, e somente porque lhe haviam dado a amável mensagem: "O capitão envia saldações ao doutor e diz que se quer tomar ar, pode fazê-lo agora que a coberta está livre e tudo está arrumado".
Ventava muito agora, e vinha pelo lado de estibordo e, embora soprasse com mais intensidade do que antes, já não estava mesclado com a chuva. Jack convidou Stephen para reunir-se com ele no lado de barlavento, porque compartia a opinião geral de que o risco de adquirir a infecção era menor ao ar livre que debaixo da convés e, ademais, porque pensava tanto na batalha (uma batalha naval decisiva) que teria lugar tão cedo que tinha pouco tempo para preocupar-se com a doença.
- Há dezessete navios de linha franceses em alto mar - disse - assim que temos muitas esperanças de que ocorra algo bom.
- Realmente há probabilidades de que os encontremos? Vejo que estamos navegando para o leste - disse Stephen, assinalando com a cabeça os últimos frisos de colorido vermelho sangue deixados no céu pelo crepúsculo, que se viam pela amura de estibordo do Worcester.
- Para o oeste, eu acredito- disse Jack. - Permite-me dizer que, em geral, o sol se põe para o oeste no Mediterrâneo.
Stephen raras vezes tomava com tranqüilidade uma zombaria, mas agora só disse:
- Por o oeste, quero dizer. Está seguro de que se dirigem para o oeste?
- Espero que sim. Acredito que se os franceses quisessem ir ao Mediterrâneo oriental, levariam consigo alguns transportes, porém, de acordo com o que diz Lathan, o capitão da Surprise, a frota somente está formada por barcos de guerra, e estou convencido de que ele se aproximou o suficiente para estar seguro disso. Se nos equivocamos e, devido a isso, os franceses destruírem a Sicília e nossas bases no leste enquanto nós navegamos velozmente para o oeste, nós as pagaremos. Mas confio no almirante Thornton. O almirante pensa que se dirigem ao Atlântico e tomou um rumo que nos permitirá interceptá-la ao norte do cabo Cavaleira.
- Acha que poderemos interceptá-la? E se o fizermos, poderemos atacar dezessete navios com apenas doze?
- Acredito que poderemos avistá-la pela manhã. Com este vento, é muito provável que todas as frotas que se dirijam ao estreito de Gibraltar passem a dez ou quinze léguas do cabo Cavaleira. E no que se refere à diferença entre nossas forças, acredito que o almirante não se importaria que tivessem o dobro de barcos. Além disso, unir-se-ão conosco Mitchell também, no São Josef, e alguns barcos da frota que permanece próxima à costa, que quase lhe pisa os calcanhares de Emeriau. Se tudo vai bem, e espero que assim seja, amanhã entabularemos combate com os franceses.
- Deus queira - disse Stephen.
- Uma batalha vitoriosa nos permitiria deixar livre o Mediterrâneo, e depois poderíamos ir para a América do Norte e o almirante poderia ir para casa. O almirante se reanimaria, converteria-se em um novo homem, e eu também. Uma batalha vitoriosa levanta o ânimo, Stephen.
- E poderia pôr fim à guerra - disse Stephen. - Uma notável vitória neste momento poderia pôr fim à guerra. Diga-me, por que não…?
- Dar a volta no relógio e tocar o sino! - gritou o oficial que estava governando o navio.
- Dar a volta no relógio e tocar o sino! - repetiu o infante da marinha de guarda, avançando para o sino.
Quando soou a segunda badalada, um guarda-marinha que jorrava água, com a barquilha na mão, comunicou ao oficial de guarda qual era a velocidade do navio, e a seguir o carpinteiro comunicou qual era a altura de água na sentina. E o oficial de guarda, o senhor Collins, repetiu a informação:
- Oito nós e uma braça, senhor, com sua permissão. Dois pés e onze polegadas de água na sentina, senhor, e aumenta com rapidez.
- Obrigado, Collins - disse Jack. - Por favor, ordene que coloquem as bombas de proa também.
A água alcançava quase três pés de altura na sentina, dezoito polegadas mais do que Jack esperava, ainda que sabia perfeitamente que o navio havia navegado com dificuldade durante a última meia hora. Pensou que já se haviam tomado todas as medidas que podiam tomar no mar e que só o que lhes restava fazer era rezar para que as bombas não quebrassem, mas depois lhe ocorreu que também poderiam pôr uma espécie de prensaestopas{22}…
- O que disse? - perguntou.
- Por que não avançamos mais rápido? Sem dúvida, navegamos a uma considerável velocidade, porém, dado o objetivo que perseguimos, não achas que deveríamos navegar a toda vela?
- Na verdade, o almirante poderia se incomodar se nós o deixássemos para atrás, e decidiu que vamos a esta velocidade, porque mesmo as embarcações mais lentas podem alcançá-la. Ademais, pareceríamos um bando de marinheiros de água doce se chegássemos às imediações do cabo Cavaleira antes dos franceses. E se navegam nesta direção - acrescentou, fazendo uma inclinação de cabeça.
- Mas se queremos deter o inimigo, não é melhor chegar primeiro que ele ao lugar por onde tem que passar?
- Oh, não, meu amigo! - respondeu Jack. - No mar não. Isso nunca daria bom resultado no mar. Se o vento fosse favorável e pudéssemos chegar ao cabo Cavaleira primeiro que os franceses perderíamos a vantagem de estar a barlavento deles. Senhor Collins, suba a escota da traquete meia braça, por favor.
Percorreu o corrimão de estibordo em direção a proa, olhando as velas e apalpando os cabos, pois Hollar, apesar de ser um excelente contramestre, cuidava em excesso da aparência do navio e gostava que os brandais e os amantilhos estivessem muito esticados e, dissesse Jack o que dissesse, esticava tanto os cabos da exárcia que os mastros corriam o risco de torcer. Contudo, agora tudo estava bem, já que a colocação das guindalezas nos topes havia ferido Hollar em seu amor própio e o pobre já não puxava fraudulentamente dos acolladores{23}, portanto, os amantilhos estavam um pouco frouxos. O conjunto de guindalezas com os extremos desfiados, que os marinheiros chamavam de franja irlandesa, dava ao navio um aspecto verdadeiramente desagradável e descuidado, mas parecia ter sido colocado por marinheiros eperimentados e não era algo que não pudesse suportar por um momento qualquer um impecável navio de primeira classe. Por outro lado, permitia ao Worcester ter os mastaréus colocados de maneira que não pudessem cair pela borda e, especialmente, suportar a pressão de grande quantidade de velame. O navio tinha o vento pela alheta de estibordo, pelo lugar que mais favorecia seu movimento, e com as velas que agora usava desdobradas parecia navegar com facilidade, porém, na realidade, ainda recebia uma pressão excessiva por debaixo dos pescantes (as balizas se separavam um pouco quando os costados subiam no balanço e voltavam a juntar-se quando desciam) e lhe entrava mais água do que normalmente entrava. Os tripulantes moviam sem parar as bombas da proa e da coxia, que lançavam dois grandes jorros de água para sotavento, e todos se haviam acostumado a este trabalho, pois no Worcester havia que bombear pelo menos uma hora todos os dias inclusive em tempo sereno. Agora o turno de guarda era da guarda de estibordo, e quando Jack percorreu o corrimão, compreendeu que seus membros não o haviam perdoado pelo que havia feito em Barka. Não foram desrespeitosos nem se mostraram descontentes, aliás pelo contrário. Estavam muito animados porque iam lutar com a frota francesa e muito alegres apesar da decepção que lhes havia causado o oratório; contudo, Jack notou que o olhavam com receio. Um capitão nunca falava com os marinheiros, nem sequer em barcos pequenos com tão poucos tripulantes que o capitão conhecia a todos. Não tinham liberdade para intercambiar idéias e muito menos comunicar seus sentimentos, e em um navio com uma tripulação de mais de seiscentos homens havia ainda menos possibilidades de que se produzisse esse intercâmbio. Contudo, para quem sabia interpretar a linguagem dos olhos, do rosto e do corpo, seus movimentos tinham muita significação, e Jack sabia muito bem o que pensavam dele os tripulantes do Worcester que não haviam navegado com ele anteriormente, que constituiam a maioria da dotação e uma grande parte da guarda de estibordo. Achava lamentável, porque por consequência disso a eficiência do navio diminuía quando se transformava em uma máquina de guerra, mas não podia fazer nada para remediá-lo. Então voltou a reunir-se com Stephen e disse:
- Às vezes me pergunto se me expresso com clareza, se me faço entender. Não acredito que você tenha entendido em que consiste a vantagem de achar-se a barlavento.
- A hás mencionado muitas vezes - disse Stephen.
- Bem, pense em duas linhas de batalha, uma a barlavento e outra a sotavento - disse Jack. - É evidente que os barcos que estão a barlavento têm vantagem porque podem obrigar os outros a entabular um combate e decidem em que momento começará, porque podem mudar de bordo quando queiram e porque a fumaça de seus disparos se move para sotavento e se acumula diante deles, ocultando-os, o que é muito importante se estão ao alcance dos mosquetes do inimigo. Poderá dizer que se há marejada e um vento tão forte que obrigue a usar as gáveas rizadas, é difícil que os barcos de barlavento possam abrir as portalós inferiores quando viram, já que inclinam muito, e isso é absolutamente certo, porém, podem romper a linha de batalha do inimigo!
- Certamente que podem - disse Stephen.
- Por exemplo, o almirante poderia ordenar que um de cada dois navios avancem e se coloquem de ambos os lados da vanguarda da linha francesa para que possamos atacar cada um de seus navios pelos dois lados. Dessa forma poderemos destruí-los ou capturá-los antes que os barcos da retaguarda possam chegar até ali, e quando cheguem os atacaremos da mesma foram. Não restará nenhum que não haja sido queimado, afundado ou capturado! Perderia tudo isto só para ter a satisfação de chegar primeiro? Isso seria cometer alta traição.
- Simplesmente me ocorreu dizê-lo - disse Stephen. - Não sou um grande estrategista naval.
- Às vezes me pergunto se compreendeu realmente que o único que nos move é o vento. Com freqüência hás sugerido que vamos para a direita ou para a esquerda, conforme o caso, como se acreditasse que cavalgamos em briosos cavalos e podemos ir para onde queiramos. Fico admirado que não tenha aproveitado melhor o tempo que passou no mar. Na verdade, já viu bastantes batalhas.
- Talvez ainda que tenho capacidade para entender muitas coisas, entendo melhor as que têm relação com a terra. Mas também deve ter em conta que tenho que ficar debaixo do convés nas batalhas.
- Sim, e é uma lástima, uma verdadeira lástima - disse, movendo a cabeça para um lado e para o outro.
Depois, em tom mais amável, perguntou se Stephen queria que lhe informassem como se desenrolava uma batalha na qual suas quatro fases (aproximação, início, prosseguimento e terminação) eram perfeitas, uma batalha ideal, o tipo de batalha que sustentaria a esquadra no dia seguinte se a suposição do almirante era certa e se o vento se enquadrasse. E depois acrescentou:
- Deve compreender que tudo, tudo no mar depende do vento.
- Estou convencido disso, meu amigo. E gostaria muito de saber como se desenrolará esse combate ideal com monsieur Emeriau.
- Então confiemos em que o vento se enquadrará e que os cálculos do rumo e da velocidade estão corretos, e com respeito a isto devo dizer que o senhor Gill e eu havemos obtido por separado resultados quase iguais, com uma diferença de duas milhas mais ou menos. Confiemos também em que os cálculos do rumo e da velocidade da frota francesa que fizemos estão corretos, o que é provável, pois todos sabemos que três de seus navios são muito lentos, o Robuste, o Borée e o Lion, e não pode navegar mais rápido que o mais lento de seus componentes. Seguiremos navegando toda a noite com a vista fixa na luz que logo aparecerá em um cesto da gávea do navio insígnia e ao riscar a alvorada uma fragata se adiantará, e espero que seja nossa querida Surprise… Olha! Agora se dirige para seu posto. A repararam em Cádis, e agora está em excelentes condições. Puseram novas curvas e novos trancaniles{24}, acrescentaram-lhe chapuces{25}… Como navega rápido!
- Parece que se está aproximando muito de nós - disse Stephen, depois de observá-la uns instantes.
- Acredito que Lathan teve alguma inspiração graciosa a propósito das guindalezas com os extremos desfiados, porque há mais de uma hora está olhando o navio pela luneta e tagarelando com seus oficiais - disse Jack. - Meu Deus! Que rápido navega a fragata! Deve de ter uma velocidade de treze nós pelo menos.
Jack viu com satisfação como a fragata que estivera sob seu comando se aproximava de seu navio velozmente, envolta na escuridão, e como suas brancas velas, a branca espuma das ondas que formava sua proa e sua branca esteira se destacavam sobre o fundo cinza. Mas sua satisfação e sua admiração desapareceram quando a fragata, soltando uma escota para diminuir a velocidade, se abordou com o Worcester, impedindo que o vento chegasse ao navio, e o capitão Lathan lhe ofereceu os serviços de seu contramestre, caso quisesse tirar as franjas irlandesas do Worcester.
- Pelo aspecto da exárcia de sua fragata, nunca haveria imaginado que houvesse autênticos marinheiros a bordo, e muito menos um contramestre! - gritou com todas suas forças.
Os tripulantes do Worcester deram gritos de aprovação ao ouvir isto, e das portalós inferiores se ouviram alguns gritos perguntarem se deviam dar algumas ovelhas para a Surprise, uma pergunta ofensiva porque fazia alusão ao barbeiro da fragata, a quem fazia pouco um conselho de guerra havia condenado a morte por bestialidade.
- Acho que ajustamos as contas com Lathan - disse Jack muito satisfeito ao ver que a Surprise mudou a orientação das velas e seguiu navegando, provavelmente porque já não ocorria nada gracioso ao seu capitão.
- O que são as franjas irlandesas? - perguntou Stephen.
- Os extremos desfiados das guindalezas. Não está permitido usá-los na exárcia em condições normais. Ali estão. Vê? E ali. Nós as chamamos de franjas irlandesas.
- Ah, é? Mas os irlandeses não as usam na exárcia de seus barcos! Contudo, eles as viram em outros barcos e as chamam de franjas saxãs.
- Chamem-se como se chamem, são horríveis, e sei que todos na armada rirão e farão brincadeiras a propósito deles, mas eu me maldizeria se o navio perdesse um mastaréu ou se o almirante tivesse que nos fazer um sinal para que navegássemos mais rápido. Ademais, com um navio de costados retos e curvas ruíns, que pode…? Acaba de aparecer a luz no cesto da gávea.
Aguçou o ouvido e ouviu que no castelinho, Pullings, o subalterno em quem mais confiava, gritou:
- Mudar de bordo rápido para superar ao Orion!
E no Worcester os três faróis de popa projetaram sua dourada luz sobre a vela mezena e a maior vários segundos antes que em outros navios da esquadra.
- Antes você estava me falando de um exemplo de estratégia naval, de uma batalha ideal - disse Stephen.
- Sim. Conforme os capitães das fragatas, agora a frota inimiga está situada a sotavento, do que não há dúvida porque o vento se enquadrou, compreende? Provavelmente abarcará uma extensão de mar de umas duas milhas porque estará separada em dois ou três grupos, como costumam fazer os estrangeiros quando a costa está tão longe que não impede seus movimentos, e isso contribuirá para que seja mais fácil para o almirante Thornton decidir o momento de entabular o combate. Penso que o almirante atacará imediatamente, antes de que possam formar uma linha. Como nós navegamos quase em linha, provavelmente nos ordenará mudar de bordo quando a vejamos e atacar pelo ponto mais faco para lograr apresar, queimar ou afundar todos os barcos. Os franceses tardarão muito em formar uma linha, e nós, em troca, estamos acostumados a formá-la todos os dias e repetimos a manobra de formá-la a partir de posições distantes ao menos duas vezes por semana. Todos os capitães podemos colocar-nos imediatamente no lugar que nos corresponde, e como o almirante nos há explicado os planos que levará a cabo em meia dúzia de situações distintas, todos saberemos exatamente o que vai fazer. Far-se-ão muitos poucos sinais. O almirante não fará sinais mais que em caso de emergência. Por certo que a última vez que se reuniu com todos os capitães nos disse que se algum, por causa da fumaça, não pudesse distinguir o sinal que indicava como começar a batalha, devia lutar penol a penol com o navio francês mais próximo. Nossa esquadra tem menos navios, por isso é preciso que sejamos nós quem possamos forçar ao inimigo, talvez resistente a combater, para que lute conosco quando e onde nos convenha, e tudo isto depende de que tenhamos a vantagem de estar a barlavento, compreende?, quer dizer, que o vento se mova de onde nós estamos para onde eles estão. De verdade, Stephen, não me conformarei com menos de vinte presas e um ducado para o almirante.
- Entendo o que disse sobre o vento - falou Stephen em tom grave.
Ainda que desejava que Bonaparte fosse derrotado e que desaparecesse o sistema político implantado por ele, a idéia de que logo haveria uma matança o afligia muito, pois ter desempenhado suas funções durante as batalhas e depois delas lhe permitira conhecer bem o lado mais horrível da guerra, e havia visto muitos jovens aleijados. Mas não falou disto e perguntou:
- Vinte? Mas são mais barcos dos que tem Emeriau!
Jack havia dito aquele número de presas impossível para conjurar a má sorte. Acreditava de que a batalha ia ser muito dura, pois se bem os franceses faziam as manobras com lentidão por não poder passar muito tempo em alto mar, disparavam suas armas com grande precisão e seus navios eram novos e sólidos e estavam bem equipados. Contudo, como sabia muito bem o que pensava seu amigo, ia dizer que o número havia sido um simples erro ao falar, mas nesse momento o Renown, que se encontrava a um quarto de milha pela alheta do Worcester, içou uma fileira de faróis com luzes de cores para dizer ao almirante que levava muito velame desdobrado.
- Tem muito velame desdobrado - disse Jack - e certamente não é o único. Se o vento segue aumentando de intensidade e agitando com violência o mar, pela manhã veremos muitos navios sem mastaréus.
- O mar está muito, muito agitado - disse. - Tenho que segurar-me com as duas mãos.
Quando dizia estas palavras, um jorro de água com espuma acertou-lhe num lado da cara, e as gotas de água desceram para o interior de sua camisa. Pensou alguns instantes e depois acrescentou:
- O pobre Graham deve de estar muito mal. Ele ainda não aprendeu a mover-se como os marinheiros, inclinando-se e arrastando os pés, nem a preparar-se para receber o impacto das ondas.
- Acho que deveria ir dormir, Stephen. Provavelmente amanhã necessitará de todas suas forças. Eu o chamarei quando avistarmos a frota francesa, assim que não deve se preocupar com isso. Prometo que não perderá nada.
Mas o sol saiu e ninguém despertou o doutor Maturin. Uma luz cinzenta iluminava a cabine onde pendurava sua maca empapada, na qual estava deitado ainda, quase em estado de coma porque depois de ter passado oito horas sem dormir se havia tomado meio copo de láudano, e cada vez que o Worcester se balançava lhe caía em cima um jorro de água. Nesse instante o Worcester se inclinou muito e com extraordinária rapidez para sotavento, e as balizas se separaram bastante e depois voltaram a se juntar, e um jorro de água que entrou por uma das juntas acertou em cheio na cara de Stephen, e o fez sair de um sonho no qual havia baleias e despertar-se angustiado.
Sentou-se na maca e se agarrou nas linhas de vida que seus companheiros haviam tido a amabilidade de colocar ali para que subisse e descesse. Chamou seu servente alçando a voz o quanto pôde, tratando de que se parecesse o mais possível ao vozeirão dos oficiais da marinha. Mas nada ocorreu. Pensou que talvez seu grito havia sido abafado pelo onipresente ranger das balizas, do choque das ondas e do rugido do mar. "Maldito seja!", pensou e pôs os calções molhados e meteu neles a camisa de dormir empapada. Foi às apalpadelas até a câmara dos oficiais e chamou ao despenseiro, mas também desta vez gritou em vão. O lugar estava vazio, e na superfície da comprida mesa, sobre a qual haviam colocado tábuas de mau tempo que seguravam algumas tigelas vazias, se deslizava a cesta do pão para um lado e para outro com o cabeceio do Worcester. Na câmara dos oficiais sempre havia um barril de cerveja pendurando dos vaus do fundo para todos os oficiais que quisessem beber, e quando Stephen, que estava molhado por fora, mas seco por dentro, estava pensando se valia a pena ir até ali para beber a cerveja, o Worcester afundou a popa em sua própia esteira e ele teve que inclinar-se para não perder o equilíbrio. O navio ficou estremecendo uns momentos e Stephen voltou a pensar na cerveja, mas de repente a proa se afundou em uma sima que se havia formado nas águas com tanta violência que ele deu duas voltas de sino, ainda que caiu de pé e, milagrosamente, não se feriu.
"Por isso sonhava que via baleias e que o barco submergia como as baleias", pensou enquanto subia a escada. Assomou a cabeça pela escotilha, justo na borda do castelo de popa, e viu que o céu estava nublado e que o vento soprava com força e fazia saltar jorros de água e espuma. A maioria dos oficiais e dos guardas-marinhas se encontravam no castelo de popa e todos tinham uma expressão grave; vários homens moviam com rapidez a alavanca da bomba situada junto ao pau maior, e junto deles esperava o grupo de substitutos; Jack e Pullings estavam no lado de barlavento e, obviamente, falavam de algo importante sobre a exárcia.
Ainda que Jack não estivesse tão ocupado, Stephen não se haveria aproximado dele porque o capitão do Worcester não permitia aos guardas-marinhas subir ao convés vestidos incorretamente e esperava que os oficiais dessem bom exemplo. Ademais, ainda tinha a barba que havia crescido enquanto dormia, ainda que pelas olheiras que tinha não parecia que se deitara essa noite. Muitos dos homens que estavam ali tampouco pareciam ter deitado essa noite, e, a julgar pelo gesto de cansaço dos marinheiros, os homens dos dois turnos de guarda haviam permanecido no convés toda a noite. Para Stephen não restava dúvida de que se encontravam em uma situação séria, pois uma das normas mais antigas e mais respeitadas da Armada era que aos homens encarregados de proporcionar aos oficiais o necessário para seu bem-estar não se lhes ordenava ocupar-se de outra coisa se não fosse iminente o perigo de desintegração e entre os tripulantes que moviam a alavanca da bomba e os que esperavam para substituir-lhes estavam seu própio servente, o dispenseiro da câmara dos oficiais, Killick e o cozinheiro do capitão.
Desejoso de conhecer mais detalhes do que ocorria, meteu o gorro de dormir em um bolso, passou a mão por seu cerdoso cabelo para ficar mais apresentável e subiu os degraus que lhe faltavam com a intenção de colocar-se detrás do grupo de guardas-marinhas que estava no lado de sotavento do castelinho, onde o contador, um grande estrategista, parecia explicar o que sucedia aos seus dois ajudantes e ao escrevente do capitão. Mas tampouco agora contou com os estranhos movimentos do Worcester, e quando estava a ponto de sair pela escotilha, justo quando estava inclinando-se sobre a borda, o navio moveu a proa para um lado, afundou em outra sima e voltou a dar uma terrível sacudida que o fez atravessar o convés obliquamente, rodando como uma bola, e chegar aonde estava o capitão.
- Bravo, doutor! - exclamou Jack. - Poderia ganhar a vida como acrobata, se lhe fossem mal as coisas. Vá, homem, não está de chapéu! Esqueceu-se de pôr o chapéu. Senhor Seymour, vá a minha cabine de proa e traga o chapéu de mau tempo que está junto ao barômetro - ordenou a um guarda-marinha - e de passagem olhe o que marca.
- Vinte e oito polegadas e um dezesseis avos, senhor - disse o senhor Seymour, entregando-lhe o chapéu. - E segue baixando.
Jack pôs o chapéu em Stephen e Pullings lhe atou os cordões dos lados por debaixo do queixo, e depois entre os dois o aproximaram do costado do navio.
- Mas estão aí! - exclamou com a voz trêmula de emoção. - Meu Deus! Estão aí!
Em efeito, ali estavam os navios franceses, formando uma linha de uma milha de comprimento nas águas encrespadas e salpicadas de branca espuma, e os que formavam a retaguarda da esquadra estavam um pouco separados do restante e a pouco mais de duas milhas de distância dos navios ingleses.
- Parabéns, Jack, porque sua profecia se cumpriu- disse.
Mas apenas terminou de pronunciar estas palavras se arrependeu de tê-las dito, já que não se cumprira o mais importante da profecia. O vento, de intensidade variável, movia-se do lugar onde estava o inimigo para onde eles estavam, e essa era a razão por que seu amigo tinha um gesto amargado. Era Emeriau que tinha a vantagem de encontrar-se a barlavento e a aproveitava para esquivar-se da batalha e regressar ao seu país.
O vento havia mudado muito durante a noite. Depois de chegar quase a encalmar-se na guarda de meia, havia começado a soprar com mais intensidade que antes e havia rolado para noroeste, por isso, ainda que haviam encontrado a frota francesa nas imediações do cabo Cavaleira, como esperavam, a situação era completamente diferente. A frota inimiga navegava rumo ao seu país e a esquadra inglesa navegava de bolina e a toda vela com a esperança, a remota esperança de separar sua retaguarda.
- O problema é que seus navios, como são novos e têm os fundos limpos, navegam mais rápido de bolina que os nossos, que são velhos e têm os fundos sujos - disse Jack. - Mas ainda há possibilidade de que os alcancemos. O vento poderia mudar de direção e ajudar-nos, já que há variado muito durante as últimas horas, e, ademais, os franceses terão dificuldades devido à corrente próxima do cabo Cavaleira e a que vai para a costa.
- Que ruído é esse? É como uma sucessão de golpes. É espantoso!
- É o ruído que fazem alguns dos barcos especialmente construídos para navegar pelo norte quando passam entre ondas como estas, fortes, mas pequenas. Os armadores do Mediterrâneo acham muito engraçado.
- Achas que é perigoso?
Jack deu um assobio e respondeu:
- Bem, se não se solta nenhum baliza, o navio não irá a pique por consequência disto, mas lhe entra muita água e sua velocidade diminue. Agora peço que me desculpe, Stephen. Do castelinho poderá ver tudo melhor. Senhor Grimmond, senhor Savage, ajudem ao doutor a ir ao castelinho. É conveniente que se sente na braçarola para que possa agarrar-se do cabillero6 se o navio se move muito. Atenção, castelo! Está preparada a cevadeira?
Jack voltou a ocupar-se da difícil tarefa de fazer avançar um navio pesado, quase cheio de água e a ponto de desintegrar-se entre ondas caóticas, as piores que se formavam no Mediterrâneo, e enquanto o fazia, tratava de convencer a si mesmo de que a retaguarda da frota francesa não estava se afastando. A linha que formava a esquadra inglesa havia mudado muito desde o momento em que se formara, ao amanhecer: o Worcester se adiantara dois postos, já que o Orion se havia ficado para trás porque perdera o mastaréu do joanete de proa e no Renown havia se quebrado a trinca do gurupés. Os navios ingleses navegavam em perfeita ordem, a toda vela, arriscando-se a perder os cabos, as velas e os paus que tanto haviam tratado de proteger. Jack podia ver o almirante, que estava amarrado a uma cadeira com braços fixada no castelo de popa do Ocean e amiúde dirigia a luneta para o navio de Emeriau; contudo, não dispunha de muito tempo para olhar-lhe, pois navegar de bolina a essa velocidade e com um vento forte e instável cujas rajadas podiam desviar ou virar o Worcester exigia dedicar muita atenção ao navio, além do esforço constante de quatro experimentados timoneiros que tinham que mover o leme para evitar que virasse sem fazer que diminuisse sua velocidade.
Detrás do pau mezena, em um lugar solitário, incômodo, úmido e açoitado pelo vento onde Stephen estava sentado, apenas podia ver algo mais que ondas de cristas puntiagudas e cheias de espuma amarelada que se cruzavam em distintas direções, alguns redemoinhos, o céu cinzento e os relâmpagos que saíam dos nimbos acumulados a oeste. Havia visto ondas muito maiores, ondas enormes, como as que costumavam formar-se em latitudes mais ao sul ou nas imediações da ilha Mauricio durante as tempestades, mas nunca havia visto o mar tão furioso e, por assim dizer, traiçoeiro, com aquelas ondas pontudas e curtas que não ameaçavam a destruir tudo instantaneamente, como as monstruosas ondas antárticas, mas a causar danos até a destruição total. Observou os navios ingleses e percebeu de que vários já haviam sofrido danos. Notou que alguns já estavam sem algum mastaréu do joanete e, apesar de não ser um marinheiro profissional, notou também que alguns paus, velas e aparelhos tinham arranjos provisórios. Ademais, viu que em um navio atrasado um grupo de tripulantes estavam colocando uma bandola enquanto outro grupo fazia todo o possível para manter a velocidade. Mas os capitães de todos os navios aplicavam todos os conhecimentos de náutica possuíam e ideavam novos meios para lograr que seguissem navegando velozmente, como se para eles a felicidade fosse entabular um combate, um combate que tinha menos probabilidades de fazer-se realidade à medida que passava o tempo. E Stephen media a passagem do tempo pelas badaladas do Worcester, que soavam a intervalos regulares, e os marinheiros pelas emergências que surgiam de vez em quando, como a obstrução da bomba situada junto ao pau maior, a ruptura das trincas de um canhão da coberta inferior e o desprendimento do velacho de toda a relinga.
Quando soaram as quatro badaladas o doutor Maturin pôs sua velha e enrugada casaca negra e compareceu à enfermaria para passar visita. Compareceu mais cedo que o habitual, pois era estranho que uma tempestade que durava longo tempo não causasse um bom número de feridos, e, com efeito, na enfermaria havia mais pacientes do que esperava. Ainda que seus ajudantes haviam atendido já a muitos dos homens com torceduras, contusões e ossos quebrados, haviam lhe deixado alguns casos, entre eles o de um homem com uma fratura complicada que chegara há pouco.
- Isto nos ocupará até depois do almoço, cavalheiros - disse - mas é muito melhor operá-lo agora porque está inconsciente e tem os músculos relaxados, e ademais, porque assim não nos distrairemos com os gritos do pobre homem.
- De todas maneiras, não haverá nada quente para almoçar - disse o senhor Lewis. - Os fogões da cozinha estão apagados.
- Dizem que há quatro pés de água na bodega - disse o senhor Dunbar.
- Eles gostam de nos assustar - disse Stephen. - Por favor, preparem as gazes, as ligaduras, a correia forrada de couro e o retrator grande. Teremos que nos manter o mais firmes que possamos, assim que nos ataremos a estas madeiras verticais.
A fratura complicada lhes ocupou mais tempo do que pensavam, porém, finalmente, costuraram e enfaixaram o membro afetado e ataram o paciente na maca onde ficaria até que se curasse. Stephen pendurou sua casaca em seu cabide para que escorresse o sangue e secasse e depois partiu. Apareceu na câmara dos oficiais, onde só estavam o contador e dois infantes da marinha sentados muito perto e com uma garrafa entre eles, e depois voltou ao lugar do castelinho onde estava antes com uma casaca de lona alcatroada na mão.
Achou que a situação havia mudado muito pouco. O Worcester e todos os navios que podia ver de proa e a popa ainda navegavam a grande velocidade, com uma enorme quantidade de velame aberto e formando uma safena de espuma dos lados, o que refletia sua solidez, sua potência e sua urgência. No convés, um pouco mais abaixo de onde se encontrava, havia a mesma tensão ainda e os marinheiros corriam para fazer pequenas mudanças que Jack lhes ordenava desde o corrimão de barlavento, o lugar de onde se ausentara apenas cinco minutos desde que a perseguição começara e onde agora comia um pedaço de carne fria. As bombas ainda se moviam com rapidez, e na coxia havia uma mais, que lançava um jorro de água descrevendo uma grande curva para sotavento. A frota francesa ainda estava à metade da distância entre eles e a linha do horizonte e se dirigia a Toulon navegando com rumo nordeste. Aparentemente, não estavam muito longe, e para Stephen parecia que iam manter-se a essa distância indefinidamente. Não havia dúvida de que o Worcester navegava com dificuldade, mas navegava assim há tanto tempo que não havia nenhuma razão para que não pudesse seguir adiante. Stephen olhava tudo com muita atenção, e tinha a esperança de que navios franceses sofressem alguma desgraça que permitisse à esquadra ganhar essas poucas milhas essenciais. Estava fascinado com aquele espetáculo que estava tentado a chamar de "rapidez imóvel" (imóvel relativamente) e lhe causava a impressão de que o presente era perpétuo, e, com o desejo de não perder nada do que sucedesse, ficou contemplando-o até o final da tarde, quando Mowett se sentou na braçarola ao seu lado.
- Bem, doutor - disse com gesto de cansaço - fizemos o que pudemos.
- Então, já acabou? - perguntou Stephen. - É incrível, incrível…
- É incrível que a perseguição haja durado tanto e também que nosso navio haja navegado com tanta pressão e, contudo, haja podido manter-se flutuando. Olhe - disse, assinalando uma tira de estopa mesclada com breu que havia saído de uma das juntas do convés. - Que horror! Que Deus nos proteja! Faz tempo que a estopa sai dos costados, como era de esperar porque há navegado sob uma grande pressão, mas vê-la sair de uma junta da coxia…
- É por isso que abandonamos a perseguição?
- Oh, não! É que o vento não é favorável.
- Contudo, parece que ainda sopra com bastante força - disse Stephen, observando como a tira de estopa mesclada com breu era sacudida pelo vento e como se desprendiam da ponta alguns fragmentos que se perdiam na distância.
- Mas provavelmente haverá notado que há estado rolando durante uma hora mais ou menos. Dentro de pouco deixará de soprar nesta zona. Por essa razão o almirante quer fazer agora o último intento. O senhor não viu o sinal que a Doris repetiu?
- Não. Que sinal era?
- Enviou nossos barcos mais velozes para atacar a retaguarda da frota francesa. Se puderem alcançá-la antes que o vento se encalme, e se Emeriau retrocede para proteger seus barcos, nós iremos depois, e ele confia em que chegaremos antes de que causem muito estrago aos nossos navios.
- É uma ação desesperada, não acha, senhor Mowett?
- Talvez, senhor, talvez. Mas talvez tenha como resultado uma vitoriosa batalha antes que o sol se ponha. Olhe, aí vêm. São Josef, Berwick, Sultão, Leviatã e as duas fragatas que estão a barlavento. Não, senhor, a barlavento. São Pomone e nossa querida Surprise. Todos esses barcos são franceses ou espanhóis, sabe?, e todos têm recolhimento de costados. Alguns tipos têm sorte. Eu lhe trarei uma luneta para que não perca nada do que se passe.
Agora que já não tinham que navegar à velocidade da esquadra, os quatro velozes navios de linha se afastaram dela com movimentos rápidos e graciosos, e enquanto desdobravam mais velas e avançavam formaram uma linha. E à medida que passavam pela frente dos outros navios, os tripulantes lhes davam espontâneos vivas. Stephen viu ao alegre contra-almirante Mitchell no São Josef, ao cirurgião do Leviatã e a uma dúzia de conhecidos mais e notou que todos estavam animados como se fossem para uma festa. Também viu Martin no castelo de popa do Berwick e lhe disse adeus com a mão, mas Martin não viu o sinal porque lhe impedia a água que a proa do Berwick fazia saltar para o ar e que chegava até a popa.
Já estavam a bastante distância à frente da esquadra. Navegavam em direção ao espaço que havia entre a retaguarda e o centro da frota francesa, e o São Josef era o primeiro da linha e os demais seguiam sua esteira. Stephen os olhava atentamente pela luneta, e ainda que não observava muitos detalhes relacionados com a náutica, percebeu de que, ao cabo da primeira hora, não só os navios se haviam afastado bastante de seus companheiros senão que se haviam aproximado um pouco da frota inimiga.
Após a primeira hora… Mas entre as três e as quatro badaladas a situação apenas mudou. Aqueles navios bem armados e abarrotados de tripulantes seguiam navegando a toda vela, mas seu movimento não tinha efeito porque não se produzia uma aproximação nem um afastamento. Stephen se perguntou se não era esse o princípio do afastamento, uma diminuição do esforço, o primeira sinal de que aqueles homens estavam decepcionados. Dirigiu a luneta pelo castelo de popa, onde Jack Aubrey permanecia todo o tempo, como se fizesse parte do navio, mas não pôde deduzir nada de seu gesto austero.
Agora o capitão do Worcester tinha mais motivos que antes para achar que formava parte do navio, pois com os informes do oficial de derrota, do carpinteiro e do primeiro oficial havia podido fazer uma idéia bastante exata de que o que ocorria na bodega e sua intuição lhe havia proporcionado os detalhes restantes. Sentia o violento cabeceio do Worcester como se se produzisse dentro dele e sabia que da resistência dos dormentes e das curvas dependia que se mantivessem esticadas as guindalezas com que havia segurado os mastros ao casco e que ambas coisas estavam ao limite de sua resistência. Sabia também que se as guindalezas se soltavam, o navio não poderia levar desdobrado tanto velame como agora e, portanto, não poderia navegar à velocidade da esquadra e teria que mudar de bordo para sotavento e unir-se aos outros que haviam sofrido importantes danos. Durante muito tempo havia pedido a Deus que as guindalezas se mantivessem esticadas até que começasse o combate com a retaguarda francesa e que o Worcester pudesse aproximar-se dela o suficiente, mas agora sua aguda vista, mais aguda que a de seu amigo, permitiu-lhe dar-se conta de que não haveria combate. Muito antes de que Stephen visse o São Josef dar um solavanco e perder o mastaréu do joanete maior pela brusquidão do movimento, Jack havia advertido que os navios sob o comando de Mitchell tinham o vento pela proa. Havia visto ondear as bordas de barlavento e havia imaginado os tripulantes tirando com fúria as braças para fazer girar as vergas e esticando as bolinas. E também percebera que o espaço entre os navios franceses e os ingleses aumentava cada vez mais. Agora tinha a certeza de que os navios que se adiantaram para alcançar o inimigo não conseguiriam seu objetivo, de que a longa perseguição terminaria com a decepção e o abatimento.
Mas ainda não havia terminado.
- Olhe a Surprise e a Pomone, senhor! - gritou Pullings.
Então Jack deixou de observar o São Josef, dirigiu a luneta para as fragatas e viu que se adiantaram e, navegando a toda vela, se aproximaram do último navio da frota francesa, o Robuste, de oitenta canhões. Navegavam mais rápido que qualquer navio de linha, e quando o navio francês esteve ao alcance de seus canhões, dispararam com os de proa. Pouco depois dispararam com as baterias, e lançavam as balas altas com a intenção de derrubar algum mastro importante.
- Orçar, pelo amor de Deus, orçar! - gritou Jack enquanto as seguia com a vista para a perigosa rota paralela ao rumo do Robuste e pensava que em um caso assim era fundamental aproximar-se muito.
Mas nem a Surprise nem a Pomone orçaram. Ambas dispararam repetidamente as baterias a certa distância, aparentemente, sem causar danos. E quando o almirante Thornton observou que o esforço das fragatas era infrutuoso, mandou fazer o sinal de retirada e disparar dois canhonaços para dar ênfase a sua ordem. Sabia que lutando dessa distância, disparando descargas dessa distância, não conseguiriam nada, e o Robuste, em troca, poderia causar graves danos aos barcos menores ou afundá-los com seus potentes canhões. Esses dois canhonaços e as remotas e inúteis bombardeios que haviam sido disparados ao nordeste foram os únicos disparos que ouviram os membros da esquadra.
Quase imediatamente depois do segundo canhonaço que ordenou disparar o almirante, e como resposta a este, uma rajada de vento fez inclinar o Worcester e seu costado ficou envolto em uma nuvem de espuma. O navio recuperou sua posição pouco a pouco, enquanto os marinheiros se seguravam fortemente, mas no momento em que voltou a estar sob a pressão de todo o velame, em seu interior se ouviu o rangido que Jack tanto temia. Seu olhar se cruzou com o de Pullings, e então foi até o costado de bombordo, apalpou as guindalezas e, ao comprovar que estavam muito frouxas, chamou ao guarda-marinha encarregado dos sinais e lhe disse:
- Senhor Savage, prepare as bandeiras para transmitir o sinal: "Navio leva muito velame desdobrado".
CAPÍTULO 9
Quando Jack Aubrey levou seu navio para reunir-se com a esquadra no lugar combinado, a sudeste de Toulon, haviam lhe passado um cabo de doze polegadas de grossura ao redor do casco três vezes e haviam posto por baixo do fundo uma vela cevadeira que tinha costurada grande quantidade de estopa mesclada com breu. Tinha o aspecto de uma crisálida, como seu capitão havia imaginado uma vez num momento de frivolidade, mas pelo menos tinha ainda seus três mastros e todos seus canhões, ainda que para conservar estes últimos a tripulação havia tido que bombear com fúria durante vários dias, e estava limpo e sua exárcia tinha bom aspecto. Agora navegava com cautela pelas águas de um intenso azul acariciadas suavemente pela lânguida brisa do sul, e ainda que os jorros de água ainda saíam por seus lados, já não corria perigo de afundar.
O Worcester navegava tão devagar que Jack teve muito tempo de observar a esquadra. Faltavam alguns navios, ou porque não haviam chegado ainda, ou porque haviam sido enviados para Malta para serem reparados, mas haviam chegado dois navios de Cádis, um de setenta e quatro canhões e outro de oitenta, e pelo menos haviam chegado alguns apetrechos, pois já se viam apenas meia dúzia de bandolas. Ainda que a esquadra tivesse sofrido alguns danos e lhe faltassem navios, ainda tinha potência suficiente para impor um bloqueio. Jack observou isto de uma grande distância e o comprovou quando passou em sua falua diante dos navios para obedecer o sinal que aparecera no navio insígnia. O dia era ensolarado e havia calmaria, e todos os navios tinham as portalós abertas para ventilar a coberta inferior, e Jack pôde ver os canhões e os marinheiros preparando-os. Constatar que a esquadra era potente e ter chegado pontualmente para reunir-se com ela lhe produziam uma grande satisfação, porém, por outro lado, estava muito preocupado e tinha um mau pressentimento. Quando a falua passou diante da brilhante e esplêndida popa do Ocean, ouviu a cachorra do almirante latir, e quando Bonden tratou de engatar o croque por debaixo do portaló, falhou pela primeira vez desde que era o timoneiro do capitão, e por consequência disto, Jack teve que arrumar-se um pouco antes de subir a bordo.
A cerimônia com que lhe deram as boas-vindas foi silenciosa, e em todos os marinheiros Jack viu uma expressão grave como a sua. O secretário do almirante lhe conduziu para a cabine de popa e, em voz baixa, disse:
- Quando entrar, trate de que a entrevista seja o mais curta possível. O almirante teve um dia muito duro. O doutor Harrington está com ele agora.
Ambos permaneceram ali um tempo, olhando para fora pela portaló aberta, e, vista através daquele escuro retângulo, a luz do dia parecia mais brilhante, talvez por estar moldurada por ele. E a cachorra não parava de ladrar. "O doutor está com ele", pensou, Jack. "Com certeza que prenderam a cachorra na chupeta{26} porque, geralmente, os cachorros não suportam que ninguém toque em seu dono. "O Ocean virou dez graus, e agora dentro do marco se via um barco que se encontrava a grande distância e parecia rasgar a superfície nacarada do mar. Inclinou a cabeça para um lado e ligeiramente para trás, como fazem os marinheiros, e o olhou com atenção. Acreditava que era a Surprise e pensou que provavelmente acabava de separar-se da frota que permanecia perto da costa francesa, mas notou que lhe haviam pintado um costado de azul e haviam descido o galhardete para a cruzeta, e ambas coisas eram sinais de luto.
- O que aconteceu com o capitão Lathan? - inquiriu.
- Realmente pode ver a tão grande distância? - perguntou Alien, seguindo seu olhar. - O capitão Lathan morreu. O Robuste disparou contra a Surprise quando se aproximava para atacá-lo, e a mesma bala causou a morte do capitão e do primeiro oficial.
O doutor Harrington saiu da grande cabine com uma expressão triste e ao passar pela frente da chupeta, ele a abriu. A cachorra atravessou correndo a coberta, entrou na cabine antes de Jack e do secretário e se jogou debaixo da mesa do almirante.
Jack esperava encontrar o almirante muito triste, enfermo, talvez furioso (às vezes era como um tártaro) e sobretudo decepcionado, mas não esperava vê-lo sem o menor rastro de humanidade, e isso lhe desconcertou.
O almirante Thornton foi muito cortês e felicitou Aubrey por ter levado o Worcester até ali, escutou o resumo do relatório sobre seu estado que Jack deixou sobre sua mesa, e disse que teria que mandar o navio a Malta para que lhe fizessem todos os reparos que necessitava. Acrescentou que não poderia ser usado como barco de guerra até dentro de muito tempo ou talvez nunca mais, mas pensava primeiro em seus canhões nesse momento. Tinha a mente lúcida, e raras vezes vacilava antes de tomar as decisões própias de seu cargo, mas não parecia sentir como um ser humano e observava Jack como se estivesse a grande distância dali, não com um olhar indiferente, e muito menos com um de censura, mas como se estivesse em outro plano. E Jack se sentia cada vez mais envergonhado por estar vivo quando aquele homem já não existia.
- Entretanto, não ficará sem fazer nada, Aubrey - disse o almirante. - Como provavelmente saberá, o pobre Lathan morreu no combate com o Robuste, assim que o senhor irá na Surprise até as ilhas Jônicas. Por consequência da morte de um dos governantes turcos da costa jônica, a situação da zona é muito complexa, e talvez possamos aproveitá-la para expulsar os franceses de Marga e inclusive de Paxoí e Corfú, pelo que é necessário que tenhamos pelo menos uma fragata ali. Não lhe darei detalhes… Dentro de muito pouco deixarei este posto, sabe? Alien lhe descreverá minuciosamente a situação e o almirante Harte lhe dará as ordens. O doutor Maturin e o doutor Graham serão seus conselheiros. Acha adequado?
- Sim, senhor.
- Então, adeus, Aubrey - disse o almirante, dando-lhe a mão.
Mas a despedida não tinha calor humano, era um simples gesto de cortesia, numa ocasião de pouca importância, para um ser de outro tipo, um ser insignificante e tão distante como se estivesse olhando-lhe pela luneta pelo lado errado, ao qual, contudo, devia tratar corretamente.
Somente em duas ocasiões Jack notara que o almirante ainda estava em contato com o mundo real: quando havia posto o pé suavemente no lombo da cachorra para que deixasse de ofegar e quando havia dito "deixarei este posto". Todos sabiam que o Ocean zarparia com rumo a Mahón pela manhã e dali iria a Gibraltar, mas o sentido das palavras do almirante não teria passado despercebido nem mesmo para um homem menos religioso que Jack, que se comoveu ao ouvir-lhe falar com humildade e resignação.
Quando regressou para a cabine de popa, Stephen e o professor Graham estavam com o senhor Alien.
- Eu disse a Alien que não vou contigo para falar com o almirante Harte. Neste momento, determinadas circunstâncias me impedem de mostrar abertamente minha relação com este caso ou com qualquer outro que tenha a ver com o Serviço Secreto.
- Estou de acordo - disse Graham.
- Ademais - acrescentou Stephen - tenho que reunir-me com o doutor Harris dentro de quinze minutos porque vamos visitar o nosso paciente.
- Muito bem - disse Alien. - Então mandarei avisar ao doutor Harrington que o senhor está aqui. Cavalheiros, vamos falar com o contra-almirante?
O contra-almirante Harte nunca havia tido um cargo de grande importância em que pudesse atuar com autonomia, e a idéia de que teria que assumir as enormes responsabilidades do chefe da esquadra do Mediterrâneo lhe inquietava. Ainda que era indubitável que o Almirantado não ia deixar Harte em um posto para o qual não era apto e mandaria alguém para substituir-lhe quando chegasse a Londres a notícia da retirada do almirante Thornton por doença, as maneiras e inclusive a aparência do contra-almirante eram quase irreconhecíveis. Em seu feio rosto, onde se destacavam seus olhos profundos e quase unidos, havia uma expressão grave, uma expressão que Jack nuca vira antes, apesar de o conhecer há muito tempo. Tratou Jack com cortesia e quase com deferência a Alien e a Graham, que, contudo, não mostraram muito respeito por ele. O almirante nunca havia falado com Harte mais que de questões navais, e o contra-almirante não sabia nada de sua participação nos assuntos políticos da zona nem de sua pequena rede de espionagem. Alien contou brevemente qual era a situação das ilhas Jônicas, e todos notaram que Harte, cuja inteligência não era muito aguda, esforçava-se para compreender-lhe.
- Senhor - disse Alien - o primeiro que há que considerar não são as ilhas mas seus antigos aliados e suas antigas possessões na costa jônica, particularmente, Kutali e Marga. Como o senhor sabe, os franceses ainda estão em Marga, e parecem tão afiançados ali como em Corfú; contudo, faz pouco o chefe da esquadra se informou de que quem possuisse Kutali poderia bloquear o aqueduto de Marga e tomar a cidade por trás. Se em Kutali há um governante amigo e podemos usar o porto como base, nos seria mais fácil atacar Paxoí e Corfú, que inclusive Bonaparte chama as chaves do Adriático.
- Então, temos que tomar Kutali? - inquiriu Harte.
- Não, senhor - respondeu Alien pacientemente. - Kutali é turca, e não devemos ofender ao Sultão. Qualquer ataque não provocado a esta região proporcionará aos nossos inimigos uma grande vantagem em Constantinopla. Não há que esquecer que os franceses têm ali um grupo de homens muito inteligentes, que a mãe do Sultão é francesa e que depois das recentes vitórias de Napoleão, os simpatizantes dos franceses ganharam terreno. Mas a cidade, que, como o senhor recordará, era uma república cristã antes do Tratado de Pressburg, encontra-se rodeada de três territórios de fronteiras pouco definidas que são governados por beis, e em Constantinopla ainda não hão decidido que categoria terá. O governador anterior, cuja recente morte há provocado esta crise, só ia permanecer em seu cargo até que se decidisse quais iam ser os privilégios da cidade e outras questões, ou seja, em que categoria ia ser incluída. É um lugar importante, e os governantes vizinhos ambicionam possuí-la. Dois deles, Ismael e Mustafá, nos hão pedido ajuda, e acreditamos que um enviado do terceiro está em Malta atualmente.
- Que tipo de ajuda querem? - perguntou Harte.
- Canhões, senhor, e pólvora.
- Canhões! - exclamou Harte, olhando para os outros.
Não disse mais nada, mas fez um gesto de desagrado quando Alien e Graham disseram que nas províncias mais afastadas do centro do império otomano, ainda que os vahes, os paxás, os beis e os agás, em teoria, obedeciam ao Sultão, amiúde atuavam como governantes independentes e aumentavam seus domínios usurpando territórios de outros ou fazendo-lhes a guerra.
- Ali Arslan de Jannina venceu e matou o paxá de Shkoder não faz muito - disse Graham. - A verdade é que o paxá de Shkoder havia se rebelado, mas não se pode dizer o mesmo do paxá de Rumelia nem do bei de Menoglu.
- Quanto maior é a distância que os separa de Constantinopla, maior é o grau de liberdade - disse Alien. - Por exemplo, na Argélia é quase completa, ainda que se faz uso dela com discrição. Quando os governantes desses territórios fazem guerra, apregoam sua lealdade ao Sultão, pois, ainda que ele aceite um "fato consumado" se for acompanhado dos presentes adequados é conveniente fazê-lo acreditar que a causa era justificada, o que se consegue demostrando por qualquer meio que o derrotado ia cometer uma traição ou havia feito um pacto com o inimigo.
- Com excessão dos casos em que um paxá ou um váli se nega a seguir sendo um vassalo e quer converter seu território em um estado soberano, como fizeram há pouco os paxás de Shkoder e Pasanvoglu e como provavelmente fará o paxá Alí quando esteja seguro da posição do Peloponeso, salvo nos casos de rebelião, como digo, os governantes nomeados pelo Sultão são respeitados. Sim, são sagrados, exceto se são rebeldes.
- Os emissários dos três beis já estão em Constantinopla fazendo manipulações para conseguir mais território - disse Alien - mas é indubitável que eles pensam que poderão consegui-lo por si mesmos muito mais rápido e que o fato de que tenham mais; possessões e, naturalmente, mais riquezas, atuará em seu favor. Um deles também decidiu buscar o apoio de nosso embaixador, e isso, desgraçadamente, poderia complicar nossa missão, pois o embaixador está a favor de Ismael e o chefe da esquadra está a favor de Mustafá, que é um marinheiro e um antigo conhecido seu. Eles se conheceram quando Mustafá estava no estreito dos Dardanelos.
- Quem governa ali agora? - perguntou Jack.
- O outro bei, Sciahan. Bem, para dizer a verdade, governa a parte baixa da cidade e os subúrbios, enquanto que os cristãos têm o controle da cidadela e permanecem ali sem ser incomodados. Agora há uma tensa trégua. Nenhum se atreve a atacar com medo de encontrar-se com uma coligação formada pelos outros dois, e os cristãos esperam o momento oportuno. Mas a situação mudará quando os canhões chegarem.
Harte ficou pensativo por alguns momentos e depois disse:
- Então eles têm o propósito de lutar uns contra os outros e nós vamos proporcionar-lhes os canhões. O que as diversas partes oferecem em troca?
- Todos fazem a mesma promessa: atacar com os canhões as tropas francesas que ocupam Marga. Uma vez que entremos em Kutali, unir-se-ão a nós para atacar Marga, e assim poderemos tomar a praça antes de que intervenham os simpatizantes dos franceses que estão em Constantinopla.
- Entendo. Há canhões disponíveis?
- Sim, senhor. Já carregamos dois pequenos transportes, e estão em Valletta preparados para zarpar. O problema é que não sabemos em qual das partes confiar. Ismael disse claramente que o general Donzelot, que está ao comando das tropas francesas em Corfú, lhe fez uma oferta, mas talvez o diga só para dar mais valor à sua colaboração. Mustafá não falou de suas relações com os franceses, mas temos indícios de que ele também teve contato com eles. Assim que tendo em conta tudo isto, senhor, e considerando que é necessário agir com rapidez, o almirante pensou que era conveniente mandar o capitão Aubrey, acompanhado de um conselheiro político, para analisar a situação, falar com os beis e tomar a decisão e, ademais, se for possível levar a cabo a operação.
- Muito bem - disse Harte.
- Talvez seja conveniente escrever as ordens sem muitos detalhes, deixando uma ampla margem para que atue como considere oportuno.
- Naturalmente, naturalmente. Só escreva: "Não regateie esforços". Depois descreva a operação de forma geral e mencione seu objetivo e nada mais. Não lhe ataremos as mãos. Está bom assim, Aubrey? Se não for assim, diga-me, e poderá ditar as ordens o senhor mesmo. Eu gosto de ser justo.
Jack assentiu com a cabeça, e então houve um breve silêncio.
- Também há que considerar a questão da tripulação da Surprise, senhor - disse Alien. - Em vista de que o capitão Lathan e seu primeiro oficial morreram, o almirante pensou que o senhor estaria de acordo em que a melhor forma de solucionar o problema era dispersar a tripulação enviando pequenos grupos para os diversos navios da esquadra e dotar a fragata de uma nova tripulação composta pelos marinheiros dos barcos que vão ser reparados.
- Que diabos! - exclamou Harte. - Se fosse por mim, enforcaria a todos os sacanas que se amotinassem, desde o primeiro ao último. Porém, como perderam os dois chefes principais, acho que isso é o melhor.
- Como o Worcester terá que ser reparado, eu poderia formar a dotação completa da fragata com seus tripulantes, que estão acostumados a trabalhar juntos. Entre eles há inclusive alguns antigos tripulantes da Surprise.
- Adiante, Aubrey, faça isso - disse Harte em um inusual tom amável e, no mesmo tom acrescentou: - Sem dúvida, em uma missão deste tipo deve ir acompanhado de uma corveta. Se lhe parece bom, tratarei de que Babbington o acompanhe na Dryad.
- Ficarei encantado, senhor - disse Jack. - muito obrigado.
"Ficarei encantado, eu disse com um sorriso triunfal e o olhei de soslaio enquanto fazia uma inclinação de cabeça", escrevia Jack Aubrey em uma carta para sua esposa que iniciara: "Surprise, em alto mar". "Mas espero que não pense que sou malicioso, meu amor, se lhe digo que desconfio dele, quer dizer, desconfio da benevolência que há mostrado durante todo esse tempo. Se escolho o homem errado entre esses beis ou se as operações não sairem bem, jogar-me-á aos leões, e a William Babbington atrás de mim. Stephen tampouco confia nele…"
Fez uma pausa e pensou que não podia contar que Stephen se havia negado redondamente a falar na qualidade de agente secreto com o contra-almirante, apesar de que agora era o chefe interino da esquadra, porque o considerava "débil, colérico, indiscreto e incapaz de dominar-se". Então acrescentou: "o que é muito triste". Mas apenas terminou de escrever estas palavras, achou-as ridículas, e como não estava triste, muito pelo contrário, riu a gargalhadas.
- O que houve? - perguntou Killick aborrecido desde a cabine-dormitório.
Killick era um dos poucos tripulantes que não havia gostado do traslado para a Surprise e estava aborrecido desde que haviam zarpado de Malta. Seu predecessor, o senhor Hogg, o dispenseiro do capitão Lathan, a quem chamava de maldito sodomita, havia mudado tudo. O armário onde Killick sempre havia guardado a bússula e a linha para fazer pequenos consertos já não estava no lado de estibordo mas no de bombordo, e o escotilhão da coxia, debaixo do qual costumava trabalhar, estava tapado com uma tábua que haviam dado uma capa de tinta. Killick não podia encontrar nada nem tinha luz suficiente para costurar.
- Eu estava rindo - respondeu Jack.
- Se tivesse aquele Hogg agora em minhas mãos - disse Killick, cravando a agulha na bainha da gravata do capitão - eu lhe mostraria o que é rir, não tenha dúvida…
Ainda que a voz de Killick baixou de volume, como era escandalosa e penetrante, Jack ainda podia ouvir seus lamentos quando seguiu escrevendo a carta.
- … barco incômodo, e não me estranha… - continuou Killick. - Tudo está mudado… Como é possível que um pobre desgraçado veja com esta luz e costure uma roupa negra?
Havia dito estas últimas palavras com uma voz tão estridente que interrompeu a Jack.
- Se não pode ver aí, vá ao mirante de popa - disse, esquecendo que já não estavam no Worcester.
- Não há mirante de popa, senhor, porque nos rebaixaram de categoria e estamos num barco de sexta classe - disse Killick em tom triunfal e malicioso. - Os mirantes de popa são para os melhores, e eu tenho que sacrificar-me por outros e trabalhar na escuridão.
Jack seguiu escrevendo:
"Lamento dizer-te que Killick está furioso, e não acredito que se acalme até que voltemos a um navio de linha. Eu não me importaria que não voltasse a navegar nunca mais em um navio de linha, e depois de todos estes meses fazendo o bloqueio, estar ao comando de uma fragata parece a melhor coisa do mundo, e para meus oficiais também. Hoje vou almoçar com eles, e vai haver um concurso de poesia em que a escolha do ganhador será por votação secreta e o prêmio será o dinheiro das apostas feitas pelos competidores."
- Killick, traga-me uma jarra de cerveja amarga, por favor! - gritou ao recordar que o almoço dos oficiais sempre se servia mais cedo que a sua e que devia fazer as honras. - E, já que vai buscá-la, beba uma você também.
- Não resta cerveja amarga, senhor - disse Killick, que, pela primeira vez no dia, sentia satisfação. - Não se recorda que a caixa caiu na bodega quando foram guardá-la porque haviam feito em outro lugar o escotilhão do convés e não nos o haviam dito? Não resta cerveja amarga. Toda ela se derramou e caiu na sentina e ninguém a provou.
Então repetiu em tom lúgubre:
Toda se derramou
e na sentina caiu
e ninguém a provou.
- Dá no mesmo - disse Jack. - Darei um passeio pelo castelo de popa, e isso dará o mesmo resultado.
Isso deu melhor resultado. Os marinheiros já haviam terminado de almoçar e haviam bebido sua ração de grogue, mas os guardas-marinhas ainda estavam comendo purê de ervilhas, pés de porco e, além disso, arenques defumados grelhados, recém trazidos de Valletta, e o odor destes últimos chegava até o castelo de popa, e Jack ficou com água na ao senti-lo. Contudo, o odor dos arenques defumados não era necessário para abrir seu apetite, pois a alegria sempre lhe dava vontade de comer, e há dias sentia uma grande alegria, uma alegria irracional, que aumentara muito mais quando chegara àquele castelo de popa que lhe era familiar e que estava mais perto do mar que o castelo de popa do Worcester. Dali observava o velame da Surprise, que ia ao encontro da Dryad navegando rumo leste quase a três nós de velocidade, apesar do vento ser tão fraco que muitas embarcações não alcançariam uma velocidade suficiente para manobrar. A fragata, acariciada pelas ondas do sul, cabeceava suavemente, produzindo uma sensação de prazer que ele nunca havia experimentado em nenhum outro barco.
Sua alegria era irracional e superficial. Se procurasse em sua mente, debaixo da primeira capa encontraria a tristeza que sentia pelo almirante Thornton, a decepção que sofrera porque não ocorrera a batalha (uma batalha que seria equiparável à de Saint Vincent e a do Nilo e que provavelmente teria como consequência que Tom Pullings, a quem tanto apreciava, fosse promovido a capitão; mais abaixo encontraria a pena por ter fracassado em Barka; e ainda mais abaixo acharia sua preocupação com seus problemas legais e financeiros e a angústia que lhe produzia o comportamento de seu pai. Os jornais que lera em Malta diziam que o general Aubrey regressara ao Parlamento como representante de nada menos que duas circunscrições e que falava muito mais que antes. Agora estava do lado dos radicais e criticava o Governo quase diariamente, causando incômodos aos ministros constantemente. E se Jack pensasse no futuro, tampouco teria motivos para sentir uma alegria racional, porque teria que enfrentar a uma situação sumamente difícil na qual não teria o apoio de seu chefe e na qual uma escolha equivocada poderia truncar sua carreira.
Mas estava alegre. Havia deixado para trás, pelo menos por certo tempo, o tédio de fazer o bloqueio de um porto, navegando somente de um extremo a outro de uma zona reduzida em um barco pesado e mal construído que podia afundar a qualquer momento; deixara para trás o fatigoso traslado, a papelada e as discussões com as autoridades de Malta, e agora o Worcester, esse morto vivo, já não era um motivo de angústia para ele senão para o encarregado do estaleiro; largara para trás a horrível papeira, ainda que também o oratório, lamentavelmente. Além disso, mandara para outros barcos seus piores guardas-marinhas e todos os cadetes exceto a dois, Calamy e Williamson, porque tinha a obrigação moral de cuidar deles. E estava a bordo de uma fragata veloz, uma fragata que conhecia perfeitamente bem e por quem sentia um grande carinho, não só por suas qualidades mas também porque fazia parte de sua juventude. Além de ter levado a cabo recentemente uma missão no oceano Índico nessa excelente fragata, navegara há muito, muito tempo, e até o odor do pequeno e incômodo camarote dos guardas-marinhas lhe fazia sentir-se jovem outra vez. Era uma embarcação pequena (na Armada restavam muito poucas menores) e velha, e ainda que no estaleiro de Cádis a haviam reforçado e quase a haviam reconstruído, não poderia ser usada para atravessar o Atlântico e lutar contra as potentes fragatas norte-americanas. Jack comprovou com satisfação que as reparações não haviam mudado nem um pouco suas características para a navegação: podia mudar de bordo em redondo como um cúter e, se fosse governada por alguém que a conhecesse bem, podia navegar muito rápido e ultrapassar qualquer navio de linha. Era a melhor embarcação para navegar pelo Mediterrâneo oriental e, por todas suas características exceto a potência de seus canhões, também para levar a cabo uma missão deste tipo. Por sorte, Jack pudera escolher os tripulantes, duzentos no total, e todos os que escolhera sabiam aferrar, rizar e usar o leme. Muitos deles navegaram com Jack pela primeira vez no Worcester, mas muitos mais haviam navegado em numerosas ocasiões antes (todos os artilheiros mais velhos e seus ajudantes e quase todos os suboficiais), e onde quer que que olhava via caras conhecidas. Podia recordar o nome de todos, inclusive dos que não eram antigos companheiros seus de tripulação, e também o caráter que tinham, e ao contrário, ignorava os nomes de numerosos tripulantes do Worcester. Notou que estavam muito contentes, especialmente os antigos tripulantes da Surprise, e pensou que talvez se haviam contagiado de sua alegria. Se bem era certo que acabavam de tomar sua ração de grogue, que o tempo era bom e que esse era o dia que dedicavam a lavar e costurar, nunca vira tripulantes mais alegres que aqueles.
- A sorte acompanha outra vez o capitão - murmurou Bonden, que estava sentado no corrimão bordando o nome Surprise na cinta do chapéu que usava para descer a terra.
- Espero que assim seja - disse seu primo Joe, um homem bastante lerdo. - Há tempos que eu o havia abandonado. Maldito bastardo - disse, sem alçar a voz, para um infante da marinha que estava ao seu lado - levante seu gordo traseiro de minha camisa nova.
- Só o que quero é que não o abrace muito forte - disse Bonden e estirou a mão para tocar uma tábua da carreta do canhão número oito.
Joe assentiu com a cabeça. Ainda que fosse lerdo, entendia o que Bonden queria dizer com a palavra "sorte". Para Bonden a sorte não era a fortuna, não era uma causa indeterminável senão algo quase sagrado, algo muito parecido com o favor de um Deus e, em alguns casos, a força de um espírito que é capaz de apoderar-se de outro, e se o favor ou a força eram excessivos, suas consequências podiam ser fatais. Fosse o que fosse, pensava que devia ser tratada com grande respeito, que ao falar dela se devia empregar um alcunha em vez de seu nome ou fazer uma alusão, e que nunca se devia tratar de definir. Nada demonstrava que tinha que estar forçosamente acompanhada da moral e da beleza, ainda que, em geral, seus possuidores eram homens bons e bastante parecidos. Mas amiúde ia acompanhada de uma alegria especial, e essa particularidade havia sido a razão mais importante, mais importante que o número de presas capturadas, pelo que os marinheiros haviam chamado Jack o Afortunado ao capitão Aubrey nos primeiros anos de sua carreira. Agora Bonden, com uma devoção comparável à dos pagãos rogava para que a sorte não fosse excessiva.
O capitão Aubrey, apoiado na borda de barlavento, olhava para o mar e sorria recordando os tempos divertidos que passara nessa mesma fragata quando era um garoto. Então ouviu o rangido das botas do infante da marinha de guarda que se aproximava da popa e olhou para o catavento mecanicamente e, voltando-se para o timoneiro, disse:
- Muito bem, Dyce.
Depois desceu para buscar sua melhor gravata e a pôs enquanto o tambor tocava Roast Beef of Old England. Depois foi até a câmara dos oficiais com a cabeça agachada para não se chocar com os vaus e entrou justamente no momento em que Pullings se colocava junto da porta para dar-lhe as boas-vindas.
- Não é verdade que esta câmara é acolhedora? - perguntou Jack, olhando sorridente para os oito homens com expressão alegre que estavam apertados ao redor da mesa. - Sente-se algo como em casa.
De fato, todos os que se haviam criado em barcos abarrotados de tripulantes se sentiam ali como em casa, mas não achavam a câmara muito acolhedora porque havia um servente atrás da cadeira de cada um deles e porque o dia era caloroso e úmido e o ar não chegava até ali. Contudo, a comida parecia caseira. O prato principal era um enorme pedaço de búfalo assado, de um dos grandes búfalos de Calábria que na Armada chamavam franciscanos e que costumavam vender em Malta, e a sobremesa era pudim de passas.
- Isto é o que eu chamo de uma boa base para a literatura - disse Jack depois que todos brindaram ao Rei e sobre a mesa, já vazia, foram colocadas mais garrafas. - Quando vai começar o concurso?
- Imediatamente, senhor - respondeu Pullings. - Thompson, reparta as papeletas, coloque a urna na mesa, recolha as apostas e alcance-me o relógio. Senhor, havemos acordado que cada cavalheiro disporá somente de quatro minutos e meio para recitar, mas poderá fazer um resumo do resto do poema em prosa, falando rápido. E também combinamos que não haverá aplausos nem assobios, porque poderiam influir no voto. Há que dar a todos direitos iguais que como o hábeas corpus.
- Ou Nunc dimittis - disse o senhor Adams, o contador, que estava muito animado para participar do concurso e havia ajudado a estabelecer as regras.
Contudo, ele e alguns mais deram para trás no último momento, e depois que o concha onde se recolhiam as apostas deu a volta pela mesa, só havia dentro meio guinéu, algumas moedas de prata inglesas de diferentes valores e três moedas de oito peniques, que eram o total das apostas dos três concursantes que restavam: Mowett, Rowan e Driver. Este último era um infante da marinha que havia subido a bordo em Malta, um jovem robusto, rosado, de olhar apagado, amável e com tendência a rir entre os dentes, cuja habilidade para compor versos os oficiais ainda não haviam podido apreciar. Tiraram na sorte a ordem em que participariam e coube a Rowan ser o primeiro.
- Cavalheiros, este é um fragmento de um poema que fala do Courageux, que estava sob o comando do capitão Wilkinson, na noite que encalhou no arrecife de Anholt quando navegava com o vento pelo sudoeste, com dois rizes nas gáveas e na traquete e navegando a oito nós. Pode girar o relógio.
Pullings girou o relógio de areia, e Rowan, com um gesto de satisfação e sem mudar de tom nem de ritmo nem ter em conta a arte de declamar, seguiu falando:
Nos invadiu uma grande pena e muitos acreditamos
que seu fim estava a ponto de chegar,
porque chocou-se com violência e seus mastros
ameaçaram obedecer à proa e cair ao mar.
A quilha produziu espantosos chiados
e o brusco movimento fez a tripulação tremer.
Não foi possível mover o leme
e logo se soltou e se afundou no mar.
As velas que para passar o arrecife desdobramos
com mais rapidez arriamos
e as carregamos imediatamente e as aferramos ao final
com diligência tal que em outra tripulação não se poderia
encontrar.
Por fim chegou a horrível ordem de preparar os canhões
para jogar pela borda. Que desespero!
O terceiro a bordo se atreveu a fazer uma petição:
Oh, nobre cacique, pense outra vez!
- Casualmente eu estava de guarda então, senhor - disse a Jack em um aparte.
Recorde, senhor, disse esse mesmo oficial,
com todo o respeito, suplico que me escute:
Por experiência sabe o desastroso efeito que isto produz
e que desde que se há feito naufrágios há provocado.
Os canhões juntos na areia
tão perigosos como as rochas são
e o fundo do barco poderiam destroçar.
E agora que sopra o vento e esperanças temos,
com eles não poderíamos os botes baixar para nossas vidas
salvar.
Larguem-os amarrados!, gritou o valente capitão.
Em verdade, o vento favorável é. Larguem as gáveas
no momento e as maiores,
e puxem das braças para que peguem o vento.
A Divina Providência há vindo para proteger-nos.
Apesar das regras, houve um burburinho geral de aprovação do que se havia feito para conseguir sacar o barco dali, pois para a expressão de Rowan e pelo fato de que estava agora com eles, todos tinham a certeza que o Courageux havia saído do arrecife. Ademais, Wilkinson, que era um homem irritável, disse que era céptico com respeito às palavras que o terceiro ao comando havia dito ao capitão, e Rowan o ouviu e comentou:
- A expressão "nobre cacique" é uma licença poética, já sabe.
- Não pensava que ia acabar a tempo - disse Pullings. - Apenas restaram três grãos de areia. O seguinte.
Mowett tomou um gole de vinho do porto, empalideceu e disse:
- Eu também recitarei um fragmento, um fragmento de um poema épico dividido em três cantos sobre os marinheiros que navegam nestas águas ou, para ser mais exato, um pouco mais ao leste, nas imediações do cabo Spado. Cai uma tempestade e os marinheiros aferram as gáveas, tiram as vergas joanetes e depois aferram as maiores, e o fragmento descreve estas manobras. Vai precedido de um símile do qual estou muito orgulhoso e que se apreciaria melhor se eu retrocedesse até: "Agora para o norte, desde a tórrida costa da África, uma revoada de botos avança...", mas não acho que me daria tempo para recitar um pedaço tão comprido, ainda que, por outro lado, o fragmento poderia parecer raro sem ele. Bem, lá vai.
Fez um sinal para Pullings com a cabeça para que virasse o relógio e, com os olhos fixos na areia que caía da ampola e com tom lamuriento, recitou:
Cabeceia entre as ondas açoitado pela tempestade
e teme a vingança de tão cruel inimigo.
Como um cavalo orgulhoso com suntuosos jaezes,
exultante, lanç-se na sangrenta batalha
pisando forte a terra, orgulhoso de seu poder,
e ainda que se cambaleia na árdua luta,
conserva seu gualdrapa de orgulho
e o barco dança ao compasso das ondas.
Deu uma olhada rápida para seus companheiros para ver como haviam reagido ao ouvir seu símile, mas observou que todos tinham um gesto estúpido e pensou que isto provavelmente se devia ao fato das regras exigirem discrição; contudo, passou rapidamente para a parte que falava de coisas que todos eles conheciam bem:
Mais e mais forte soprou o demônio do sul,
e com mais violência agitou as rugidoras águas.
O barco já não podia levar as gáveas desdobradas,
e as esperanças de que o tempo melhorasse foram truncadas.
As bolinas e as adriças outra vez frouxas estavam,
e entre todos os chafaldetes{27} ataram e as escotas soltaram
e as gáveas carregaram e com as braças sua orientação mudaram.
Depois alguns marinheiros às vergas subiram
e as velas aferraram e as vergas giraram
por meio de polias.
O valente contramestre como um mastim pelo barco corria
e entre os rugidos da tormenta seus gritos se ouviam,
e aos lerdos dirigia
e aos especialistas elogiava e aos assustados consolava.
Então alguns subiram para tirar as vergas joanetes
e alguns subiram racas pelos brandais de barlavento
e outros os viradores aos topes amarraram.
Os marinheiros mais jovens tiraram das vergas superiores
os racamentos{28}, os amantilhos e as braças
e depois as embicaram e aos viradores as ataram,
e as vergas carregadas com suas velas pelos brandais desceram.
Já com o velame diminuído e os cabos aduchados,
descansam os tripulantes fatigados.
- Mas então as coisas pioram - disse Mowett - e o sol se põe. Vou saltar o pôr do sol. Que lástima! Vou ter que saltar a parte que fala da lua e das estrelas…
O barco já não podia levar as maiores desdobradas,
e o capitão ordenou aferrá-las
e os valentes marinheiros na popa se agruparam
para puxar dos brioles ao ouvir sua ordem.
Mas quem trata de vencer a a tormenta
não deve nunca mover primeiro a relinga de sotavento,
por isso os marinheiros se colocaram no lado de barlavento
para obedecer a ordem de puxar os brioles.
Então se prepararam para soltar as escotas e as braças de barlavento
e depois puxar os palanquins e os brioles de sotavento.
Todos já estavam preparados e o capitão gritou: Soltar escotas!
Com ímpeto…
- Tempo! - gritou Pullings.
- Oh, Tom! - exclamou Mowett desalentado, deixando-se cair na cadeira.
- Sinto muito, companheiro - disse Pullings - mas o justo é o justo, já sabe. Os infantes da marinha também tem que ter uma oportunidade.
O senhor Driver não tinha a cara rosada, como sempre, mas vermelha como sua casaca, mas não se sabia se isso era devido ao vinho do porto ou à sua turbação ou ao calor. Disse aos oficiais que não ia recitar um fragmento de um poema senão um poema completo. Os oficiais o escutaram atentamente e se informaram também que o poema tratava de um homem que aconselhava a um amigo que queria se casar e havia pedido um conselho a ele porque tinha mais experiência. Mas o senhor Driver falava com a cabeça inclinada e tão abaixada e ria tanto entre os dentes que não puderam escutar a maioria das coisas que disse antes de recitar:
Que seja amável e doce e não tenha
nenhum defeito natural nem causado pelo azar.
Que não tenha muitos anos nem seja mais velha que tu,
pois as mulheres decaem com rapidez quando passa a juventude.
Que tenha uma moderada fortuna, mas hás de pensar
que se reúne as anteriores condições
e sua fortuna considerável é, a dela não lhe deve importar.
Uma grande riqueza não deve ser sua aspiração maior,
porque as coisas que fazem nossas vidas prazerosas
são uma soma suficiente para viver com decoro e amor.
- Muito bem! - exclamou o contador enquanto escrevia em sua papeleta. - Porém, diga-me, senhor, que soma acha que é suficiente para viver com decoro? Por exemplo, para um homem que só recebe meio soldo.
O senhor Driver riu, ficou ofegando alguns momentos e depois disse:
- A que produza duzentos bônus do Tesouro, posto à sua disposição.
- Não façam comentários, cavalheiros, por favor - disse Pullings, dizendo que não com a cabeça ao professor Graham, que havia feito gesto de falar. - Não façam comentários antes da votação.
Então passou o estojo de um sextante, que servia de urna, ao redor da mesa, e quando se encheu, o colocou diante de Jack. Depois se voltou para Graham e disse:
- Desculpe-me por ter-lhe interrompido, senhor.
- Só ia dizer que o poema que recitou o capitão Driver me recordou um de Pomfret intitulado To his Friend Inclined to Marry (Ao seu amigo que se quer casar).
- Mas é o poema de Pomfret! - exclamou Driver, assombrado, e depois, em meio da confusão que seguiu, explicou: - Meu tutor me fez aprender de memória.
Ao ver que lhe atacavam por todos lados, recorreu a Jack.
- Como é possível que criam que qualquer um supusesse que os poemas tinham que ser originais? - perguntou. - Poemas originais! Por Deus! Supunha que iam dar um prêmio à declamação mais brilhante.
- Se se houvesse decidido outorgar um prêmio à declamação mais brilhante - disse Jack - Acredito de que o senhor Driver o haveria ganhado, porém, nas atuais circunstâncias, devemos exclui-lo do grupo de competidores e devolver-lhe o dinheiro que apostou. E não levaremos em conta as papeletas com seu nome. E quanto aos outros competidores - disse enquanto lia as papeletas - o senhor Rowan gana como poeta de estilo clássico e o senhor Mowett, como poeta de estilo moderno, portanto, o prêmio se divide em duas partes iguais ou metades. E me atrevo a assegurar que expresso os desejos do grupo quando lhes animo a que se ponham em contato com algum editor respeitável para que suas obras sejam publicadas, para satisfação de seus amigos e para orgulho da Armada.
- Isso, isso! - gritaram os outros oficiais dando golpes na mesa.
- Murray, John Murray é o homem adequado - disse Graham, com um olhar vivo. - Sua loja fica na rua Albermale. Tem uma excelente reputação, e devo dizer, para honra dos editores, que seu pai, que foi quem estabeleceu o negócio, era filho legítimo de um tenente da infantaria da marinha.
Aparentemente, o senhor Driver não ficou satisfeito com isto. Disse que se um tipo tinha um filho que não tinha talento nem era bem afeiçoado, era lógico que o colocasse em uma loja, porque assim a família não teria que ocupar-se dele depois que chegasse à idade adulta, a não ser que fizesse uma fortuna ou se convertesse em um competidor desleal. Depois acrescentou que um editor não era um livreiro comum e que ele havia conhecido a muitos que sabiam ler e escrever e a alguns que falavam muito bem.
- É verdade - disse Graham. - Precisamente o senhor Murray é um exemplo disso. Ademais, não tem a tacanharia do negócio, como chamam eles, sua má fama. Disseram-me que ele pagou ao lorde Byron quinhentas libras, quinhentas libras, senhores, pela primeira parte de sua obra Childe Harold (O jovem aristocrata Harold).
- Meu Deus! - exclamou Stephen - Então, quanto Harold teria recebido se houvesse sido adulto e houvesse entregado a obra completa?
- Childe é um termo arcaico que designa a um jovem de família nobre - disse Graham.
- Não espero que me pague tanto, porque não sou um lorde - disse Rowan - mas gostaria ver meu poema impresso.
Pela tarde, quando a fragata navegava lentamente através de uma fina capa de névoa que cobria a cálida superfície do mar e que os raios do sol que se punha haviam pintado de rosa, Jack disse:
- Não tenho palavras para expressar a alegria que me produziu voltar para a Surprise.
- A mim também - disse Stephen. - E me alegro muito de que se sinta assim.
Havia falado em tom irritado, pois estava raivoso porque o arco do violoncelo acabara de se romper, justo pela ponta. Ademais, pelo fato de ter dormido em terra enquanto estavam na base naval de Malta, os percevejos, as pulgas e os mosquitos o haviam picado por toda parte, e tinha comichão da cabeça aos pés, e, além disso, sentia mais calor do que estava acostumado a suportar. Contudo, não chegava ao extremo de desejar molestar os outros e ficou olhando para seu amigo atentamente. Perguntou-se se Jack havia feito alguma conquista em Valletta ou se (como Jack tinha menos brio que Babbington) uma astuta jovem, com a força de seus enganos, arrastara-o até um altar pagão, fazendo-lhe acreditar que realmente era ele o conquistador. Mas lhe parecia que seu olhar não denotava isso nem nada parecido ao convencimento masculino, senão à complacência de quem está em graça de um Deus pagão. E se convenceu disso quando Jack pôs o violino debaixo do queixo e tocou um tema estranho, mas alegre, e começou a fazer declinações sobre ele.
Jack nunca poderia ser um virtuoso, porque havia aprendido a tocar violino por si mesmo e porque havia sofrido numerosas feridas, mas nessa tarde tocava tão bem que dava gosto ouvir-lhe. A peça que interpretava agora era irregular, e parecia que em sua composição se haviam preocupado mais de transmitir alegria que de respeitar regras, mas uma alegria que distava muito de ser pueril. Stephen observava como tocava seu amigo, que estava sentado junto à janela de popa, e se admirou de que um capitão de navio de duzentas e vinte e cinco libras de peso, com papada e muitas cicatrizes pudesse tocar com tanta graça e soltura e lograsse dar realce à composição e expressar tão bem seu conteúdo. O Jack Aubrey que desfrutava fazendo jogos de palavras durante a refeição era muito diferente deste, ainda que os dois viviam na mesma pele.
Depois que Stephen recuperou o arco e que o violino terminou umas declinações com um delicioso e estremecedor agudo quase fora dos limites da percepção do ouvido humano, interpretaram juntos o delicado concerto em dó maior de Scarlatti, que conheciam tão bem, e ficaram tocando até a guarda de meia.
- Pergunto-me se William Babbington se recordará de trazer-me a almécega - disse Stephen ao despedir-se. - É um jovem sério, mas quando vê uma mulher se borra toda a mente, e Argostólion é famoso não só pela almécega como também por suas belas mulheres.
- Acredito que ele se lembrou - disse Jack - mas não acho que possamos reunir-mos com ele pela manhã, porque nós apenas podemos alcançar dois nós de velocidade e a Dryad, com essa exárcia extravagante que tem, quase não pode mover-se com vento frouxo. Ademais, se a névoa não se dissipar amanhã, pode ser que nós também nos detenhamos por falta de vento.
Stephen confiava plenamente em Jack como marinheiro e como profeta do tempo e o considerava uma espécie de papa do mar, mas na manhã seguinte, como o comichão e a falta de ar (os vinte pés quadrados do Worcester o haviam feito esquecer que a parte da Surprise que ficava abaixo da linha de flutuação era muito úmida e não tinha ventilação) não o deixavam dormir, subiu para o convés ao amanhecer, quando a névoa começava a fazer-se menos densa e as bombas começavam a jogar água sobre a coberta para a limpeza ritual, e então ouviu o serviola gritar: "Barco a vista! Barco pela amura de bombordo!" e se voltou para ali e, ainda que não o via perfeitamente, via pelo menos com a suficiente clareza para saber que era uma corveta, e então disse:
- É falível, Jack Aubrey, é falível. Finalmente vou ter a almécega!
Então foi até a proa, tratando de não ser alcançado pela areia e pela água que estavam polvilhando e coçando-se de vez em quando. Passou junto ao ajudante do oficial de guarda, que estava em cima de uma caronada com as calças arregaçadas para que não o molhassem e olhava fixamente a fantasmal embarcação, e disse:
- Aí está o senhor Babbington. Talvez venha para desjejuar.
O jovem, sem afastar a vista da embarcação, limitou-se a responder com uma risada, e Stephen seguiu andando até o turco de estibordo. Depois tirou o gorro e a camisa de dormir, os meteu debaixo das vigotas, se coçou durante um momento, subiu no turco e, fechando os olhos e apertando o nariz com a mão esquerda e pondo-se a outra no peito, deixou-se cair nas refrescantes águas do mar.
Não era um bom nadador, nem sequer um nadador comum, mas Jack, com grande esforço, pelo menos lhe ensinara a manter-se flutuando e a mover-se sobre a água umas cinqüenta ou sessenta jardas de uma só vez. Portanto, tinha a destreza suficiente para nadar de o pescante de proa até o bote amarrado à popa, que ia a reboque, e como a fragata avançava, poderia chegar até o bote com rapidez.
Mergulha-ra na água sem nenhum temor, ainda que nunca havia nadado sozinho, e quando as bolhas roçavam suas orelhas, pensou: "Me imagino o gesto de assombro que porá Jack quando lhe diga: Jajá! Fui nadar esta manhã". Mas quando emergiu para a superfície, ofegando e tirando a água dos olhos, viu que o costado da Surprise estava mais longe e imediatamente percebeu de que a fragata estava virando para bombordo. Então tratou de aproximar-se dela dando braçadas com todas suas forças, e gritava cada vez que uma onda lhe fazia tirar completamente a cabeça da água. Mas todos os marinheiros haviam sido chamados a ocupar seus postos e na Surprise se ouviam muitas ordens e apitadas, pois ainda estava virando e havia que desdobrar, arriar e mudar de orientação muitas velas. Além disso, todos os que tinham algum momento livre só olhavam para bombordo, mas por sorte John Newby se inclinou sobre a borda de estibordo para cuspir e viu o angustiado rosto de Stephen.
Stephen não sabia exatamente qual havia sido a seqüência dos acontecimentos que ocorreram a partir de então. Recordava que havia tragado muita água, que havia estado debaixo d’água alguns momentos, que depois não pôde orientar-se, perdeu as forças e apenas podia se manter boiando e que depois notou ao seu redor uma grande agitação e que passaram coisas que não pareciam haver-se sucedido no tempo mas ter acontecido em planos distintos. Achou ter ocorrido simultaneamente o distante grito: "Em pairo o velacho!", o afundamento de seu corpo nas águas, agora escuras porque o casco da fragata lhes dava sombra, os fortes puxões que umas mãos ásperas lhe haviam dado pela orelha, o cotovelo e o tornozelo do pé esquerdo para passar-lhe por cima da borda de uma lancha e a ansiosa pergunta do guarda-marinha: "Encontra-se bem, senhor? "Até depois de ficar um tempo ofegando e pensando na bancada de popa, não percebeu a ordem dos acontecimentos. Então percebeu que a ordem: "Remar, remar, pelo amor de Deus! "precedia ao choque da lancha com o costado da fragata e a petição de que lançassem um cabo, e já tinha outra vez a mente lúcida quando ouviu que um remador, em voz muito baixa, dizia ao seu companheiro:
- O delfim não sairá bem dessa se a presa escapa ao capitão por sua culpa.
Bonden, que quase não podia falar por causa da indignação, pegou-lhe como a um fardo e lhe subiu pelo costado e depois tencionou levá-lo abaixo como uma babá zangada, mas Stephen se soltou de sua mão e se dirigiu para onde o capitão Aubrey se encontrava. O capitão estava junto ao canhão de proa de bombordo junto com Pullings e o condestável, e um grupo de artilheiros dirigia o bonito canhão de bronze de nove libras para a corveta, que se encontrava a menos de uma milha de distância e tinha grande quantidade de velame desdobrado. Todos menos Jack voltaram a cabeça para ele quando chegou ali, e o olharam com indiferença.
- Bom dia, senhor. Peço que me desculpe por ter-lhe causado incômodos. Estava nadando.
- Bom dia, doutor - disse Jack com gesto austero. - Não sabia que o senhor estava no mar até que a lancha já havia chegado ao lugar onde se encontrava, graças à diligência do senhor Calamy. Mas lhe recordo que ninguém pode sair da fragata sem minha permissão. Ademais, essa não é a forma correta de vestir-se para sair para o convés. Falaremos disto em um momento mais oportuno. Agora vá para sua cabine, por favor. Condestável, empreste seu avental ao doutor, pegue desse suporte a bala com a superfície mais lisa, carregue o canhão com três libras e um quarto de pólvora e duas buchas, e comprove seu alcance.
Stephen ouviu de sua cabine o preciso disparo do canhão. Sentia uma grande tristeza, pois enquanto caminhava por ali todos lhe haviam lançado um olhar de censura e quando chegara e chamara seu servente não obtivera resposta. Pensava que se não fosse por essa maldita presa e pela cobiça de seus companheiros, todos teriam cuidado dele, teriam lhe prodigalizado toda classe de atenções e lhe felicitariam por ter escapado. Envolveu-se em um cobertor e, depois de cochilar um pouco, caiu em um profundo sono, do qual foi sacado bruscamente pelo senhor Calamy, que, com voz muito alta, disse:
- Borrell cortou as adriças da gávea maior da corveta a mil jardas de distância e a vela caiu imediatamente. Todos demos vivas até ficarmos roucos. Agora está abordada com a fragata, e o capitão pensou que o senhor gostaria de vê-la.
Durante o período em que o doutor Maturin havia atendido ao senhor Calamy quando tinha papeira, o cadete lhe havia tomado muito carinho, e sua forma de expressá-lo era tratando-lhe com confiança (por exemplo, quando o senhor Calamy estava convidado a almoçar na grande cabine, chamava Stephen àparte e lhe dizia: "O que haverá de sobremesa, senhor? Vamos, diga-me, senhor! Com certeza que o senhor sabe".) e atuando como se fosse ele o mais velho dos dois. E os acontecimentos dessa manhã o animavam ainda mais a agir assim. Por essa razão, agora obrigava Stephen a pôr roupa adequada para ocasiões solenes:
- Não, senhor. Tem que pôr calções. O capitão é o único que pode usar calças ali. Ademais, depois do ocorrido esta manhã, o mínimo que pode se esperar do senhor é que use calções e uma camisa com peitilho.
Portanto, Stephen ia quase de gala quando regressou para o convés, que agora estava cheio de caras sorridentes.
- Ah, por fim hás chegado, doutor! - exclamou Jack e lhe apertou a mão. - Pensei que gostaria ver nossa presa antes de que a mandasse para a base naval.
Jack o levou até o costado e ambos olharam a corveta capturada, que não era a Dryad e a única semelhança com ela era ter dois mastros. Era uma corveta muito veloz, comprida e estreita, com a proa puntiaguda, os mastros muito altos e um gurupés tão comprido que usava três mocas{29}. Era a Bonhomme Richard, uma corveta muito conhecida porque entrava e saía dos portos bloqueados.
- É possível que a capturássemos ao final do dia, porque o vento está aumentando de intensidade - continuou - mas o senhor Borrell, aqui presente, quis estar seguro de que assim seria e lhe cortou as adriças da gávea maior com uma bala disparada a mil jardas de distância.
- Simplesmente tive muita sorte, senhor - disse o condestável, rindo satisfeito.
- Como recordará, as adriça são os cabos que servem para subir as vergas, assim que se se cortam, as vergas caem, a menos que se ponham defesas debaixo, que, neste caso, não estavam postas.
- Há muito sangue no convés - disse Stephen. - Quando a verga caiu esmagou muitos homens?
- Oh, não! Já havia sido capturada por piratas gregos, que se aproximaram dela em seus botes quando havia calmaria e a abordaram. Mataram à maioria dos tripulantes, por isso há tanto sangue na coberta. Deixaram apenas o capitão e alguns poucos homens vivos para pedir resgate por eles.
- Piratas gregos! - exclamou Stephen. - Que pena!
Sentia grande admiração pela antiga Grécia e desejava fervorosamente que a Grécia atual fosse livre e, ainda que houvesse provas do contrário, queria seguir pensando que seus habitantes agiam honradamente.
- Certamente há muito poucos - acrescentou.
- Oh, não! Nestas águas e mais ao leste, qualquer simples caique que veja uma embarcação menor se transforma imediatamente em um barco pirata, a menos que a embarcação seja de seu povoado ou de sua ilha. Aqui todos os barcos se comportam igual que os de Berbería, que atuam como corsários quando surge a ocasião. Apesar da presença dos turcos, sempre vigiam este canal, porque por aqui passam todos os barcos que vêm de Levante e vão para os portos do mar Adriático. Diz o capitão francês que esses tipos se aproximaram em seu falucho da corveta e falaram com ele e que o falucho seguiu navegando muito perto da corveta por todo o dia, mas à noite, quando o vento se acalmou, aproximaram-se em botes e a abordaram. E quando a verga caiu, subiram em seus botes outra vez e se afastaram remando com todas suas forças, largando os franceses sob o fogo de nossos canhões. Quer subir a bordo da corveta? Será interessante vê-la.
Ver um convés cheio de sangue não era novo nem de interesse para Stephen, e tampouco ver as cabines e as câmaras saqueadas, mas Jack o levou até o fundo da bodega, um lugar muito escuro apesar das escotilhas estarem abertas e com um odor muito agradável, mas tão forte que fazia o ar quase irrespirável.
- Esses malditos haviam começado a tirar as anteparas - disse Jack.
Stephen notou que seus olhos iam se acostumando pouco a pouco com a escuridão e, por fim, percebeu que estavam caminhando sobre uma mistura de noz moscada, canela, cravos e curcuma que se haviam derramado de alguns sacos.
- Só está carregado de especiarias? - perguntou, detendo-se ao sentir o penetrante odor que saía de um frasco de almíscar rompido.
- Não - respondeu Jack. - O capitão me disse que as especiarias foram a última carga que subiram a bordo. As carregaram em Scanderoon. A carga mais importante é o índigo, e também há alguns tonéis de cochinilha. Mas o que esses vermes procuravam- disse, referindo-se aos gregos, e fazendo Stephen passar entre alguns pilares inclinados que se encontravam no final da sombria bodega e estavam iluminados por alguns raios de sol cheios de manchas de poeira - e o que me alegro de dizer que não tiveram tempo de levar para seus botes, era isto.
Dobraram no final de uma fileira de sacos de índigo, passaram com a cabeça baixa por debaixo de algumas madeiras e viram brilhar em um canto um monte de moedas de prata, um monte de coroas, que se haviam derramado de um cofre, e, à luz de várias lanternas, dois grumetes as recolhiam com pás e as jogavam em bolsas de lona, debaixo da vigilância do sargento da infantaria da marinha e um suboficial. Os rostos dos grumetes brilhavam por causa do suor e em seus olhos havia um brilho ainda mais intenso, um brilho de satisfação, e tanto eles como seus guardiães olharam sorridentes paran o capitão.
- Todos teremos uma pequena parte disto - disse Jack.
Então decidiram regressar para a Surprise, e quando Jack ajudava Stephen a passar pela passarela que haviam colocado para levar as bolsas de moedas para a fragata, apontou para o falucho dos gregos, que, assim que os grupos dos botes chegaram a bordo, fizeram rumo leste, e agora se afastava navegando velozmente com suas duas velas latinas desdobradas e movendo com rapidez seus compridos e pesados remos.
- Vai persegui-los? - perguntou Stephen.
- Não. Se os aprisionasse, teria que levá-los para Malta para que fossem julgados, e não posso perder tempo. Se pudesse tratar os prisioneiros ao estilo turco, isso seria diferente. Mas lhes dispararia um ou dois canhonaços se por casualidade tivessem ao alcance dos canhões, mas é improvável que isso aconteça - disse Jack e imediatamente ordenou: - Digam ao senhor Rowan que venha.
Passou o restante da tarde resolvendo a tudo o relacionado com a presa e dando conselhos a Rowan, que ia ser seu capitão, sobre como governá-la e indicando-lhe que rota devia seguir. E assim que soaram as oito badaladas, ao ouvir ao serviola dizer que havia um barco a vista, perguntou:
- Onde?
- Pela amura de estibordo. É uma corveta. Ah, ah, ah!
Era estranho que as respostas fossem acompanhadas por risos nos barcos sob o comando de Jack Aubrey mas nesse dia era um dia fora do comum. Pelo tom jocoso e o riso do serviola e pela posição em que se encontrava, o mais provável é que a corveta fosse a desafortunada Dryad. Era desafortunada porque lhe haveria correspondido uma parte do butim conseguido se houvesse chegado antes, se ao menos houvesse aparecido no horizonte enquanto eles perseguiam a presa, e todos os tripulantes da Surprise, do primeiro ao último se alegravam muito de que houvesse chegado tarde.
- Por fim vai ter a almécega - disse Jack, rindo também. - Mas o pobre Babbington ficará pálido como um morto, ainda que o único que tem culpa do que lhe passou é ele. Sempre lhe dizia, quando era menino, que não perdesse nem um minuto. Ah, ah, ah! Senhor Pullings, quando o escrevente esteja preparado, passaremos em revista, mas somente lendo os nomes da lista.
Esse não era o dia da semana em que habitualmente se passava revista, e os tripulantes não se haviam barbeado nem haviam posto camisas limpas, e ainda que muitos, para melhorar sua aparência, tivessem feito de novo as tranças e haviam posto suas casacas azuis, a maioria deles compareceram à chamada tal e como estavam trabalhando na maltratada exárcia da presa. Mas todos estavam alegres e, quando o contramestre tocou o apito, passaram para o lado de bombordo e se amontoaram junto ao castelo de popa e no corrimão, como costumavam fazer. Então voltaram a olhar para o escrevente do capitão, que se havia colocado junto ao cabrestante em vez de diante do leme, e olharam com cobiça várias bolsas de lona que havia aos seus pés, e todos os que haviam navegado antes com o capitão Aubrey recordaram que ele detestava os lentos procedimentos dos tribunais do Almirantado e a demora de seus erros.
- Silêncio de proa a popa! - gritou Pullings e, voltando-se para Jack, disse: - Todos presentes, limpos e sóbrios, senhor, com sua licença.
- Obrigado, senhor Pullings - disse Jack. - Então vamos passar a lista - acrescentou e, alçando a voz disse: - Escutem-me todos: na corveta francesa havia algumas moedas de prata, e, em vez de esperar seis meses para que o tribunal competente disponha como se há de fazer a distribuição, as repartiremos agora. Adiante, senhor Ward.
- Abraham Wisover! - disse o escrevente.
Abraham Wisover abriu passagem na multidão, chegou ao castelo de popa e depois cumprimentou ao capitão. O escrevente fez uma marca junto ao seu nome e foram depositadas em suas mãos vinte e cinco coroas, uma quantidade equivalente ao pagamento de três meses. Abraham as pôs em seu chapéu e, rindo-se entre os dentes, foi até o corrimão de estibordo. Jack pensou que tardariam muito tempo em chamar a todos, mas que valia a pena fazê-lo, e ainda não havia terminado quando a Dryad, que havia podido aproximar-se com rapidez porque o vento havia aumentado de intensidade, chegou a um ponto em que Jack pôde ver sem a luneta que havia um grupo de pessoas na popa e lhe pareceu que eram mulheres.
Então olhou a corveta pela luneta e comprovou que eram mulheres e viu ao capitão da Dryad entre elas. Depois viu outras agrupadas junto ao mastro maior, ao redor de alguns oficiais, e outras por todo o corrimão, entre os marinheiros. Havia visto mulheres se aglomerarem aos barcos de guerra recém chegados aos portos de tal maneira que os barcos se afundavam um pouco mais sob seu peso, mas nunca, nem sequer nos barcos de capitães mais dissolutos nem na base naval das Antilhas, havia visto tantas como agora no convés, tantas que parecia que havia mais mulheres que marinheiros a bordo.
Quando o último marinheiro atravessou o castelo de popa e se ordenou à tripulação a voltar para suas tarefas, Jack chamou o guarda-marinha encarregado dos sinais.
- Faça o sinal: "Dryad: capitão suba a bordo imediatamente".
Depois se voltou para Rowan e disse:
- O senhor zarpará assim que o capitão Babbington nos diga se os transportes já chegaram a Cefalonia ou não. Depois não tarde nem um minuto em aproveitar este vento tão favorável. Ah, aqui está! Bom dia, capitão Babbington. Os transportes Já chegaram a Cefalonia? Está tudo bem?
- Sim, senhor.
- Senhor Rowan, apresente meus respeitos ao chefe da esquadra e informe-lhe que os transportes já chegaram a Cefalonia e que tudo está bem. Não deve comentar que viu a um dos barcos da esquadra cheio de mulheres. Não deve informar ao chefe da esquadra desta vergonhosa e patente violação do disposto pelo Código Naval, pois essa desagradável tarefa corresponde a seus superiores. Tampouco deve falar do relaxamento da disciplina nas cálidas águas orientais nem da possibilidade de encontrar nelas bordéis flutuantes, porque o chefe da esquadra pensará nisso por si mesmo, sem sua ajuda. Agora, por favor, suba a bordo de nossa presa e zarpe rumo a Malta sem perder um minuto. Nem todos podem permitir-se passar o tempo flertando.
- Oh, senhor! - exclamou Babbington quando Rowan desceu pelo costado. - Permita-me que proteste, que negue…
- Não negará que são mulheres, né? Posso distinguir Adão de Eva, como todo mundo, ainda que talvez o senhor não… E também posso distinguir a um oficial diligente de um marinheiro de água doce que se fica muito tempo no porto com o fim de satisfazer seus caprichos. É inútil que tente me enganar.
- Não o nego, senhor. Mas são mulheres respeitáveis.
- Então, por que olham de soslaio e fazem gestos provocativos?
- É sua maneira de ser, senhor. São lésbicas…
- E, sem dúvida, todas são filhas de pastores ou primas distantes suas, como aquela jovem do Ceilão.
- … e as lésbicas sempre se pegam as mãos assim em sinal de respeito.
- Não sabia que era um entendido em costumes das mulheres gregas.
- Oh, senhor! - exclamou Babbington em voz mais alta ainda. - Sei que não gosta que haja mulheres a bordo…
- Acredito que nos últimos dez anos lhe disse isso cinqüenta ou sessenta vezes.
- Porém, se deixar que me lhe explique…
- Será interessante saber como se pode explicar a presença de trinta e sete, não, trinta e oito mulheres em uma corveta de Sua Majestade, porém, como desejo que meu castelo de popa siga sendo um lugar decente, prefiro que me a explique em minha cabine.
E ao chegar na cabine, disse:
- William, isto passa dos limites. Subir a bordo trinta e oito mulheres passa dos limites.
- Seria assim se o houvesse feito com malícia ou com a idéia de passar o tempo, mas lhe dou minha palavra de que não pequei de pensamento, nem de palavra e nem de obra. Bem… nem de palavra nem de obra.
- É melhor que comece sua explicação.
- Pois bem, senhor, assim que comprovei que os transportes estavam em Argostólion, fiz rumo às ilhas Strofadhes, e ao final do dia o serviola avistou um barco com o sinal de socorro por sotavento, que resultou ser um barco corsário da Tunízia. Uma tormenta o havia desaparelhado, e como levava muitos prisioneiros a bordo, havia ficado sem água. Os corsários estiveram navegando pelos arredores das ilhas em busca de mulheres e haviam tido muita sorte, pois haviam capturado as participantes de um concurso de costura na costa de Naxos e todas as mulheres convidadas para um casamento em Lesbos quando atravessavam em botes o porto de Peramo.
- Porcos! - exclamou Jack. - Então, são essas as mulheres?
- Não todas, senhor - respondeu Babbington. - Naturalmente, dissemos para os mouros que as mulheres cristãs deveriam ser libertadas, e dissemos para as mulheres que as levaríamos para a Grécia. Mas as de Naxos, que estavam a bordo há muito tempo, não queriam se separar dos corsários, e as de Lesbos, ao contrário, tinham muita vontade de voltar para sua terra. A princípio não sabíamos disto, mas logo as de Naxos começaram a discutir com as de Lesbos e puxaram os cabelos umas das outras, e compreendemos o que se passava. Meus homens as separaram o mais delicadamente possível, mas elas morderam o contramestre e arranharam vários marinheiros. Depois ajudamos os mouros a pôr uma bandola, demos bolachas e água suficiente para a viagem de regresso ao seu país e desdobramos todo o velame que pudemos para vir nos reunir com o senhor. E aqui estou, senhor, e estou satisfeito de ter cumprido meu dever e não me importa ter sido reprovado, insultado e humilhado publicamente por isso.
- Bem, William… Eu sinto muito, sinto muito. Mas a injustiça é uma característica da Armada, como sabe muito bem, e como terá que suportar muitas reprimendas imerecidas, é melhor que as receba dos lábios de seus amigos.
- Sem dúvida, senhor. Que devo fazer agora, senhor?
- Deve beber alguns copos de vinho de Madeira e imediatamente, como o vento é favorável, levar a Cefalonia essas bonitas criaturas, virgens intactas, sem dúvida. Ali as encomendarás ao governador, o capitão Bosset, que é um oficial confiável e enérgico e entende o grego. O capitão as cuidará, as proverá de víveres e as alojará em um lugar adequado na costa, onde permanecerão até que ele encontre algum mercante robusto que vá para Lesbos. Killick! - gritou, porque tinha o hábito de alçar a voz, mas era desnecessário, pois podia ouvir seu dispenseiro respirar do outro lado da antepara. - Killick, traga uma garrafa de vinho de Madeira e pergunte ao doutor e ao senhor Pullings se gostariam de descer para a cabine.
- Tenho que contar-lhe ao doutor que um pelicano de uma espécie de grande tamanho passou voando por cima de nós quando estávamos nas imediações de Zante - disse Babbington. - Ah! Estava esquecendo de lhe dizer que nos encontramos com uma fragata turca pouco antes de nos reunirmos com o senhor. Fez uma salva quando içamos nossa bandeira e nossa corveta fez outra como resposta, mas não falamos porque estava perseguindo um falucho por sotavento. Por ser uma embarcação turca, navegava muito rápido, navegava com as alas abertas acima e abaixo em ambos os lados.
O professor Graham, que tinha uma lista recente dos barcos de guerra do Sultão, disse que a fragata era a Torgud, e que tinha 30 canhões. Também disse que esta fragata, um barco de vinte canhões, o Kitabi, e alguns barcos menores estavam sob o comando de Mustafá, o governador de Karia, que era o oficial da marinha de maior patente naquela zona, e acrescentou que Mustafá utilizava estas embarcações como se fossem de sua propriedade, quando lhe parecia oportuno, sem contar com Constantinopla, e que isso era bastante justo porque Constantinopla não pagava aos marinheiros e Mustafá tinha que alimentar-lhes e dar-lhes um pagamento. Finalmente, contou que, conforme diziam, Mustafá era um oficial competente e combativo. E depois de perder de vista a Bonhomme Richard e a Dryad e navegar uma ou duas horas, quando as montanhas de Epiro se desenhavam na distância, encontraram provas de sua competência e de sua combatividade: os restos carbonizados de uma embarcação a ponto de afundar, cujo aspecto, contudo, ainda permitia reconhecer que era um falucho. E perto dali viram uma longa fila de cadáveres arrastados pela corrente. Todos os cadáveres, uns vinte ou trinta, eram de gregos e estavam nus, e alguns não tinham cabeça, outros tinham o pescoço cortado, outros estavam empalados e três estavam cravados em uma cruz como a de São Andrés feita com os remos do falucho.
CAPÍTULO 10
A Surprise estava diante de Mesenteron, amarrada em águas de quinze braças de profundidade, cabeceando suavemente enquanto a proa olhava para o porto, um porto enlameado há muito tempo e agora cheio de troncos de árvores que haviam chegado até ali na última cheia do rio que serpenteava pelas terras pantanosas onde se assentava a insalubre cidade. Dois castelos custodiavam os troncos e uma vintena de pequenas embarcações que estavam ancoradas no porto. Haviam pertencido a Veneza, e nas muralhas que os rodeavam ainda se via o leão de São Marcos talhado em relevo, mas agora tinham içada a bandeira turca. A fragata havia feito uma salva quando havia jogado a âncora, e os castelos havia feito outra em resposta, e o rugido dos canhões havia feito fugir revoadas de pelicanos de uma distante laguna.
Mas desde então não havia passado nada, quer dizer, nada importante. Os pelicanos haviam recuperado a tranqüilidade e haviam regressado ao lamaçal salobro onde habitavam, e os barcos pesqueiros continuavam movendo-se de um lado para outro do porto enquanto os pescadores cravavam seus arpões nas lulas que subiam para a superfície do mar no êxtase por uma cópula com dez tentáculos, mas até agora nenhuma embarcação oficial havia zarpado dos cais dos castelos nem nenhum paxá havia mostrado a calda de cavalo que usava como estandarte, e todos na fragata tinham o relaxamento própio do anticlímax.
Qualquer marinheiro perceberia que a fragata estava muito mais arrumada do que nunca, pois tinha as velas aferradas à espanhola e as braças aduchadas ao estilo flamenco, e qualquer homem que não fosse marinheiro teria percebido que os oficiais se haviam trocado a roupa de trabalho, cômodos calças de nanquim e casacas finas, pelo uniforme e botas hessianas, e também que os tripulantes da falua já haviam posto suas calças brancas como a neve, suas casacas azul escuro e seus chapéus de palha e estavam preparados para levar o capitão para a costa quando fosse convidado. Nos castelos não havia sinais de vida, e o capitão Aubrey, indubtavelmente, não ia dar o primeiro passo. O capitão estava sentado em sua cabine elegantemente vestido, ainda que vestido pela metade, pois ainda não havia amarrado a gravata, não havia abotoado os calções no joelho e sua casaca com galões dourados estava em cima da maca junto com o sabre de cem guinéus da Associação patriótica, e bebia uma xícara de café e comia bolachas com tranqüilidade, preparado para entrevistar-se com o bei Ismael, se o cavalheiro viesse ou lhe mandasse buscar. Mas se não visse, seguiria navegando para o norte para entrevistar-se com Mustafá, e se não visse Mustafá, iria entrevistar-se com Sciahan, o bei de Kutali. Tinha planejado falar com os três turcos em um ordem lógica, na ordem em que encontraria suas respectivas cidades em sua rota, porque assim perderia menos tempo. Pensara que iria primeiro a Mesenteron, onde governava Ismael, depois a Karia, onde governava Mustafá, e, por último, depois de passar por Marga, dominada pelos franceses, a Kutali, mas em uma missão tão importante como a que lhe haviam encomendado, não havia que preocupar-se com esses detalhes, e se os turcos não estavam em sua cidade quando ele passava por ali, iria visitar-lhes em outra ordem. Mas o que mais desejava era poder estar já em alto mar quando anoitecesse, pois no dia anterior, durante as práticas de artilharia, sofrera uma decepção ao ver que os tripulantes não manejavam bem os canhões, e ainda que a causa dos marinheiros tere disparado os canhões descuidadamente poder ter sido a alegria de ter obtido um butim, também podia ter sido por que não conheciam bem os canhões da fragata, e pensava que praticar durante um par de horas, disparando de verdade, produziria extraordinários resultados, ainda que significasse gastar grande parte da pólvora que havia pego da presa.
A ausência de Ismael não o incomodava muito, mas assombrava. Nestas circunstâncias, em que os canhões que ele ia proporcionar a uma das três partes poderiam significar a vitória sobre as outras, esperava que iam lhe dispensar uma apoteótica recepção, com soldados turcos tocando uma marcha turca, fogos de artifício e inclusive com um tapete oriental estendido. Era essa aparente indiferença uma atitude comum das autoridades turcas? Era uma manobra usual no Oriente? Gostaria de perguntar ao professor Graham, mas pela manhã cedo, quando se viam claramente as montanhas de Epiro ao leste, o professor e o doutor Maturin haviam subido ao cesto da gávea do maior, acompanhados e vigiados por Honey e Maitland, dois robustos ajudantes do oficial de derrota, para contemplar a terra dos clássicos, não Ática nem Beocia mas a Grécia. Os pobres jovens estavam chateados, chateados até limites imprevisíveis, de ouvir a história de Teopompo e os molosianos, de Agatocles e os molosianos, e de Temístocles e os molosianos, contadas com luxo de detalhes, e dos jogos de Accio e da famosa batalha de Accio, respeito à qual nem Graham nem Maturin podiam recordar qual das duas partes tinha a vantagem de estar a barlavento. Os únicos momentos de alívio em meio da chateação foram quando Graham, que repetia com emoção umas palavras de Plutarco sobre Pirro, retrocedeu e meteu o pé na boca de lobo, e quando lhes mandaram buscar mapas e o bússola para medir o azimute com o fim de determinar atrás de qual das montanhas que se recortavam sobre o horizonte estava Dodona, onde havia um carvalho que dava os oráculos e, como contava Graham, dizia Homero que viviam os selloi, que dormiam no solo e não se lavavam os pés.
"Talvez esse seja Graham", pensou Jack ao ouvir alguém falando com o sentinela que estava na porta da cabine.
Mas não foi ele senão Stephen quem entrou na cabine, porque havia sido atraído pelo odor do café e talvez também porque Graham lhe havia agoniado fazendo exibição de sua memória de elefante (agora estava contando aos ajudantes do oficial de derrota o que diziam Polibio, Dionisio de Halicarnaso e Pausanias sobre Pirro, que havia nascido e se havia criado atrás das montanhas de cor azul cinzento que agora se elevavam diante deles).
- Estava pensando em Graham - disse Jack.
- Eu também - apressou-se a dizer Stephen. - Outro dia me disse que a Armada era uma escola de covardes, e queria que eu desse alguns argumentos para demostrar-lhe o contrário. Lembrei-me disso quando descia porque ouvi um guarda-marinha repreendendo a um marinheiro.
- Como Graham formou essa idéia? - perguntou Jack. - Killick, traga outra xícara de café!
- Disse que havia visto um almirante jogar um tinteiro na cabeça de um capitão de navio e que o capitão de navio, um homem irrascível e despótico, dominou seu desejo de desforrar-se fazendo um grande esforço, obrigando a si mesmo a observar a disciplina, e mais tarde lhe explicou que se houvesse levantado a mão para seu superior, isso teria acabado com sua carreira e talvez inclusive com sua vida. Graham disse que o almirante podia ofender e agredir ao capitão impunemente, da mesma maneira que o capitão podia ofender e agredir aos tenentes que estavam sob seu comando e estes a seus subordinados e assim sucessivamente até chegar aos que ocupavam o penúltimo posto na hierarquia da tripulação. Conforme ele, o almirante, desde seus primeiros dias na Armada, vira cometer-se atos covardes, havia visto ofender e bater em homens que não podiam revidar nem defender-se, e agora que usava a indiscutível armadura da nomeação real, achava normal fazer o mesmo. Não respondi imediatamente porque queria conhecer sua opinião. Recordei-me do que me havia dito quando ouvi esse jovem repreendendo a um marinheiro e ameaçando-o com o açoite ainda que ele poderia ter-lhe feito calar. E apesar de que atualmente nos encontramos em uma situação fora do comum, o marinheiro teve a suficiente resistência e a suficiente benevolência para não responder.
- Quem era o guarda-marinha? - perguntou Jack, visivelmente desgostoso.
- Meu amigo, não sou um delator - disse Stephen. - Mas diga-me, como posso derrotar o professor Graham?
- Bem, com relação a isso… - disse Jack e olhou para o porto por a janela de popa enquanto soprava o vapor do café. - Com respeito a isso… Se você não quer chamá-lo de tonto e dar-lhe um chute porque seria descortês, poderia dizer-lhe que "pelas flores se conhecem as árvores".
- Quererá dizer que "pelos frutos se conhecem as árvores".
- Não, não, Stephen, você está equivocado. Pelos frutos não se distinguem bem. E então poderia perguntar-lhe se viu muitos homens pusilânimes na Armada.
- Não entendo o que quer dizer com "pusilânimes".
- Poderia dizer que os homens pusilânimes são aqueles cuja presença não é tolerada pela Armada - disse e, pensando nos animais que Stephen havia subido a bordo em uma missão anterior, acrescentou: - como por exemplo, o uombat. São homens de pouco ânimo para afrontar perigos ou dificuldades, ou seja, covardes.
- É injusto com o uombat, Jack, e foi injusto com o preguiçoso. Como pode falar tão mal deles? Porém, deixando de lado os uombats e voltando aos pusilânimes, Graham poderia dizer que viu muitos valentões, e talvez alguns e outros lhe pareçam iguais.
- Mas não o são, sabe? Não se parecem em nada. Uma vez pensei que eram, quando era um guarda-marinha e prestava serviço no Queen. Enfrentei um valentão com a certeza de que era um medroso e se recuaria, mas me deu uma surra de morte - disse, rindo com vontade ao recordá-lo - e, quando eu já não podia nem ouvir nem ver nem manter-me em pé, ele me subiu em cima de uma maca…
Há vários minutos via a vários homens movendo-se diante do castelo mais próximo, entre a guarita e a margem, e agora prestou mais atenção.
- Finalmente prepararam um barco - disse. - É um caique com um toldo - concluiu e pegou sua luneta. - Sim, é uma embarcação oficial. Vejo a um velho cavalheiro com barba… Dois negros o carregam… Killick, mande buscar o professor Graham. Diga ao senhor Gill que ordene aos dois ajudantes do oficial de derrota que o desçam entre os dois. Bando de marinheiros de água doce! - exclamou, assinalando o distante caique com a cabeça. - Esbarraram em um tronco. Agora deram um solavanco. Que Deus os ajude! Demorará muito tempo antes que tenhamos que pôr as casacas.
Esta era também a opinião dos oficiais, e todos os que não estavam de serviço regressaram para a câmara dos oficiais para seguir jogando o tejo. Jogavam com freqüência desde que haviam saído de Malta, e ainda que as apostas somavam doze libras e seis peniques, uma quantidade insignificante comparada com o butim do Buonhomme Richard, dedicavam grande atenção ao jogo e não lhes interessava ver o claro céu nem o tranqüilo mar nem a admirável costa jônica nem os pelicanos dálmatas nem saber nada de Pirro, dava no mesmo estar num comboio no mar do Norte e debaixo de chuva. Pullings olhou com atenção a coberta e comprovou que tudo estava em ordem: os varandins novos haviam sido colocados, os grumetes com luvas brancas estavam preparados para subir o visitante a bordo, os infantes da marinha, com seus reluzentes uniformes, estavam prontos para apresentar armas, e o contramestre e seus ajudantes tinham na mão os brilhantes apitos de prata. Então desceu para a câmara dos oficiais para jogar ao tejo também, e regressou para o convés quando o caique já estava muito perto. A coberta estava sob a vigilância do senhor Gill, o oficial de guarda, e na cabine, Killick havia posto um monte de almofadas no solo, à maneira oriental, por recomendação do professor Graham e havia aceso uma cachimbo de água que havia subido a bordo precisamente para essa ocasião em Valletta. Agora a fumaça do tabaco saía pela clarabóia, e os homens da guarda de popa o aspiravam com fruição.
Os cálculos resultaram frustados, porque o caique, no último momento, rodeou a fragata e se abordou com ela pelo costado de bombordo, mas os membros da Armada estavam acostumados às excentricidades dos estrangeiros, e resolveram o problema imediatamente passando-se para o outro lado, onde celebraram uma cerimônia que era uma cópia exata da correta e subiram o velho cavalheiro sem romper-lhe uma só pluma do penacho que enfeitava seu turbante.
O cavalheiro foi conduzido à cabine, onde Jack lhe deu as boas-vindas. Graham fez de intérprete e disse que a única missão do cavalheiro era convidar ao capitão Aubrey para jantar com o bei e pedir-lhe desculpas pela demora do convite, que se havia produzido porque o bei estava caçando nas marismas e havia tardado muito em receber a notícia de sua chegada.
- O que o bei caçava? - perguntou Jack, que tinha interesse por estas coisas e, ademais, achava que um pouco de conversa amena com o cavalheiro o compensaria do efeito desagradável que, obviamente, cauzaram-lhe o sorvete morno que Killick havia preparado e o cachimbo de água, que havia sido um claro erro da Armada.
- Judeus - disse Graham depois de traduzir a pergunta e a resposta.
- Por favor, pergunte a Sua Excelência se os pelicanos aninham aqui - disse Stephen - Sei que os turcos apreciam muito as cegonhas e as protegem, e talvez seu humanitarismo se estenda ao pelicano, pois ambos têm um aspecto parecido.
- Com sua licença, senhor - disse Pullings, irrompendo na cabine. - O caique se afundou, mas o subimos amarrado pela proa e pela popa, e a tripulação está a bordo.
- Muito bem, senhor Pullings. Acredito que quererão comer algo, algo que não seja carne de porco, sabe? Diga-lhes que non porco, pas porco e mande descer para água a falua porque vou desembarcar. Senhor Graham, por favor, comunique a má notícia à Sua Excelência e diga-lhe que provavelmente nossos carpinteiros poderão reparar os danos.
O velho cavalheiro não pareceu muito impressionado. Disse que essa era a vontade de Deus, que desde que havia sido lançado ao mar havia ocorrido uma desgraça e que o contrário lhe haveria estranhado.
- Espero que nada lhe cause estranheza quando formos até a costa, pois teremos que navegar em minha falua - disse Jack.
Pouco depois seguiu com a carta que escrevia para sua esposa:
Quinta-feira, no mar.
… Assim que levei ao velho cavalheiro para a costa, advertindo aos meus homens que remassem de maneira que não entrasse água, e, afortunadamente, não caiu nem uma gota de água dentro da falua, ainda que navegar por esse porto enlameado e com troncos de árvores cravados no fundo ou flutuando não foi costurar e cantar. Contudo, Bonden sabia que nossa honra estava em jogo e abordou a falua ao cais de uma forma admirável. Os turcos haviam estendido um magnífico tapete azul com flores rosadas do tamanho da sala de café da manhã de nossa casa, o que me compraziu muito, e no meio dele estava o bei Ismael, o governante deste lugar, que me fez uma recepção muito cortês e me conduziu até onde estava um cavalo semental, um bonito cavalo baio no qual percorreria as trezentas jardas que nos separavam do castelo. Atravessamos vários pátios e nos detivemos em um cheio de laranjeiras e coberto por um toldo no qual havia uma mesa com uma toalha de mesa. A mesa tinha as pernas exageradamente curtas, mas era melhor assim porque não havia cadeiras para se sentar senão um banco baixo com almofadas, e de meu lugar podia ver minha querida Surprise justamente no centro de uma fresta.
Éramos seis: o bei, eu, o vizir, o professor Graham, o astrólogo e Stephen. O bulbuljibashi, que cuidava dos rouxinóis, e o tournajibashi, que cuidava das grous, vieram para falar a Stephen sobre os pelicanos, mas o bei não os autorizou sentar na mesa. Não tínhamos pratos nem garfos nem facas (ainda que tínhamos uma colher feita de concha de tartaruga), e a refeição não foi composta de dois pratos e sobremesa mas de trinta e seis pratos e muitas sobremesas que se sucederam com rapidez. A chegada de cada um era anunciada por um toque de timbale, e o traziam entre vários negros e o punham em cima de uma esplêndida bandeja de ouro colocada sobre uma almofada bordada no centro da mesa, e então todos nós pegávamos pedaços com os dedos, a menos que fosse algo muito mole, e nesse caso, usávamos as colheres. Um dos pratos era um cordeiro assado recheado de arroz amarelo, e o bei pegou uma perna e partiu facilmente vários pedaços e nos deu. Graham nos serviu de grande ajuda, pois mantinha uma animada conversa em turco e nos dizia como devíamos nos comportar. Teria rido se houvesse ouvido como, de vez em quando, sem olhar para Stephen, ele dizia: "Dê de comer ao cuidador dos rouxinóis" ou "Dê de comer ao cuidador das grous". E quando Stephen o ouvia, punha um pouco de comida na boca desses homens, que estavam atrás dele. Às vezes Graham, no mesmo tom de Killick, dizia: "Capitão Aubrey, metiu a manga na comida", e eu me dava conta então de que a havia metido, o que ocorria com freqüência porque a casaca do uniforme não foi criada para comer metendo a mão no prato até a munheca. Mas deixando isso de lado, a refeição foi solene e não houve quase nenhum sorriso do início até o fim. Durante todo o tempo só bebemos água, e, ao final, tomamos café, que nos serviram em umas estranhas taças de porcelana sem assas colocadas sobre um suporte de ouro com diamantes, rubis e esmeraldas incrustadas. O da minha tinha esmeraldas, e cometi a imprudência de elogiá-lo, e imediatamente Ismael ordenou pô-lo em uma caixa e levá-lo para a falua, mas graças à intervenção de Graham, que disse que em nosso país acreditávamos que dar ou receber presentes nesse dia trazia má sorte, solucionou-se o problema. Isso me teria feito sentir obrigado a comprazer ao bei, e eu não devo comprometer-me a nada. Ainda que o bei tenha boas relações com nosso embaixador em Constantinopla e seja um homem cortês e de finas maneiras, acredito que é um tipo desagradável e boboca (não se parece em nada com a idéia que eu havia formado de um turco, e Graham me disse que, em verdade, é filho de um apóstata grego e de uma egípcia), e eu tinha que evitar me ver em uma situação comprometida ao final do banquete, quando nos ficaríamos sozinhos e falaríamos do verdadeiro motivo de nossa reunião. Não lhe cansarei com os detalhes das negociações, somente direi que, ainda que por minha profissão estou obrigado a sofrer muitas coisas por meu Rei e por meu país, estar sentado durante mais de três horas com as pernas cruzadas e com as fivelas dos calções cravadas até o osso produz um sofrimento muito maior do que o dever exige suportar. Devo mandar um resumo de nossa conversa ao chefe da esquadra, e será muito chato escrevê-lo duas vezes, sobretudo porque as negociações foram um fracasso.
Esta era a segunda parte de uma nova carta, porque a outra a havia enviado de Malta, e a havia começado falando da Surprise. Dissera a Sophie que era muito afortunado por tê-la sob seu comando outra vez, que haviam capturado uma valiosa presa que, apesar de não ser uma Golconda flutuante nem a Santa Brígida nem haver-lhe proporcionado um butim que permitisse solucionar todos os problemas econômicos que tinham, permitiria melhorar sua situação, e, sem dúvida, ela poderia comprar uma bonita pelerine nova. Depois lhe falara de Babbington, das mulheres gregas, e da admirável costa de Epiro. E ao reler as linhas nas quais recomendava às suas filhas que procurassem Epiro no mapa e ao seu filho que lesse o que dizia Gregory sobre Pirro em Polite Education, pois como ele explicava, "seria uma lástima que George não soubesse nada de Pirro quando fosse mais velho", sentia remorso, pois começara a falar com hipocrisia quando havia se convertido em pai e ainda era difícil fazê-lo.
Então pensou no relatório que tinha que fazer, no resumo de sua conversa com o bei Ismael. Chegara à conclusão de que era melhor buscar outro mercado se queriam intercambiar os canhões britânicos por ações efetivas contra os franceses em Marga. Para ele e para seus conselheiros Ismael parecia mais político que guerreiro. Não tinha um plano para tomar Kutali, e muito menos Marga, aliás pensava que Kutali cairia forçosamente em suas mãos quando tivesse em seu poder os canhões, nem soubera dizer-lhes o número exato de tropas que usaria para as duas operações e se limitara a assegurar que era "muito, muito mais do que necessitavam" e que gostaria de fazê-las desfilar na praça para que as vissem, mas que dois regimentos e a maioria dos oficiais estavam fora da cidade, tratando de reprimir aos rebeldes no norte, e que havia milhares de soldados mais ao longo da fronteira. Acrescentara que se o capitão Aubrey lhe avisasse com antecedência da próxima vez que fosse visitar Mesenteron, haveria um grande desfile, e o capitão poderia ver um grupo de excelentes soldados partidários dos britânicos, que estavam ansiosos para contribuir para a derrota dos franceses e que só necessitavam dos canhões para estar perfeitamente equipados. Suas palavras pareceram falsas para Jack, e pelo fato de que se informava de seu conteúdo por uma tradução, desligada dos olhares e dos gestos que acompanhavam as palavras originais, elas pareciam mais falsas ainda. Mas uma das poucas coisas das quais tinha a certeza era que o bei discordava de sua idéia de que a situação requeria agir urgentemente.
A maior parte do tempo, Ismael falara de suas excelentes relações com o embaixador britânico e da personalidade de Mustafá e de Sciahan, que rivalizavam com ele pela posse de Kutali. Conforme ele, eram homens desprezíveis, em quem a maldade e a ambição lutavam para superar a inépcia e a covardia, e tratariam de enganar ao capitão Aubrey mas o capitão compreenderia imediatamente que o primeiro não era outra coisa que um corsário analfabeto, apenas um pouco melhor que um pirata, uma pessoa na qual ninguém podia confiar, e que o segundo, que ainda era um homem leal ao Sultão, estava completamente dominado por Ali, o paxá de Jannina e era tão impotente no campo da batalha como no harém, e que ambos eram partidários de Napoleão.
Graham advertira Jack que no Oriente as negociações eram muito lentas e que a tradução era aceita até certo ponto, e lhe dissera que o vizir de Ismael, que havia voltado para perguntar que recompensa o capitão Aubrey queria por seus bons ofícios, havia oferecido a ele oitocentas e quarenta piastras por cada canhão que fosse entregue ao bei. O princípio da missão não fora alentador, e era possível que os outros beis fossem iguais, ainda que também era possível que o embaixador houvesse se equivocado e que Ismael fosse o pior de todos.
- Entre! - disse em voz baixa e com tristeza.
Então Elphinstone, um guarda-marinha, entrou na cabine muito arrumado e sorridente.
- Bom dia, senhor - disse. - Desejava me ver?
- Ah, sim, senhor Elphinstone! O senhor incluíu três homens na lista dos que cometeram falta. Dois deles cometeram faltas leves e bastará como castigo dar-lhes grogue aguado por dois dias, mas Davis está acusado de ter cometido uma falta grave, que se castiga com açoites. Se ninguém sai em sua defesa e se não nega de forma convincente havê-la cometido, terei que ordenar que lhe dêem pelo menos uma dúzia ainda que não goste de ver os marinheiros serem açoitados. O senhor gosta de ver os marinheiros serem açoitados?
- Oh, não, senhor! Porém, não é necessário fazê-lo para manter a disciplina?
- Alguns pensam que sim, e talvez seja em alguns casos, mas conheço capitães que ficaram mais de um ano sem ordenar que açoitassem os marinheiros, e eram capitães enérgicos e estavam ao comando de potentes navios.
- Davis replicou, senhor. Disse uma grosseria quando lhe ordenei que colocasse de novo um moitão, algo como "Vá cagar", e os outros riram.
- Davis é um caso especial. É um pouco velho e sempre se tolerou mais coisas dele que dos outros. Navega muito antes de que o senhor nascesse e, apesar de não ser muito hábil para pendurar os moitões nem para tirar os cabos, tem outras qualidades como marinheiro, outras qualidades que, sem dúvida, o senhor debe ter percebido. É muito forte, é sempre o primeiro a saltar em uma abordagem, é capaz de aterrorizar ao inimigo… Mas me esquecia que o senhor nunca presenciou uma abordagem. Isto é tudo o que tenho a dizer-lhe pelo momento, senhor Elphinstone. Bom dia. Por favor, quando sair diga ao meu dispenseiro que venha.
- Não ficou bom, senhor - disse, aborrecido, entrando na cabine com a melhor casaca de Jack sobre o braço. - Este asqueroso molho estrangeiro não se tira do todo, e tratei de cobrir a mancha do galão dourado com açafrão e ficou ainda pior. Eu lhe disse muitas vezes: "Tenha cuidado de não meter a mão na comida, senhor". E até agora só tinha manchas de molho do assado ou de pudim de passas ou de menino refogado ou de coisas parecidas, todas difíceis de tirar, mas este molho estrangeiro…
- Vamos, Killick, calesse e me dê a casaca - disse Jack. - Não há nem um momento a perder.
- Sim senhor - disse Killick, ajudando-o a pôr a casaca, e acrescentou algo em voz baixa, mas só se pôde ouvir "só rindo".
Contudo, quando o capitão Aubrey subiu para o castelo de popa, não encontrou uma atmosfera alegre. Era quarta-feira, e nas quartas-feiras, quando soavam as seis badaladas da guarda da manhã era costume que os marinheiros presenciassem um ato solene, a aplicação dos castigos na popa. Soaram as seis badaladas. Todos os oficiais e os guardas-marinhas estavam presentes e vestiam uniforme completo. O gradeado estava pronto, e de seu lado se encontravam o contramestre e seus ajudantes, preparados para pegar os marinheiros declarados culpados quando o capitão ordenasse e açoitá-los com um chicote que estava em uma bolsa de feltro aos pés do senhor Hollar, um chicote com nove cabos de meia jarda na ponta.
O chicote não foi necessário para castigar os primeiros homens julgados. Todos haviam cometido faltas leves, como blasfêmias, insultos, maldições, provocações, tanto em forma de palavras como de gestos, falta de asseio e bebedeira, e foram castigados com trabalho extra, tirando-lhes por um período a ração de grogue ou dando-lhe grogue aguado. Depois foi pronunciado o nome de Davis e se leram em voz alta as faltas que se lhe imputavam, e como Davis as admitiu ou, pelo menos, não as negou, o contramestre começou a abrir a bolsa de feltro.
- Esta situação é muito desagradável, Davis - disse Jack. - É lamentável que você, um marinheiro de primeira há mais de vinte anos, tenha respondido a um oficial. Deve ter ouvido os artigos do Código Naval várias centenas de vezes e, contudo, respondeu a um oficial. Senhor Ward, leia a segunda parte do número vinte e dois.
- A segunda parte do artigo vinte e dois do Código Naval, senhor - repetiu o escrevente e depois, em tom grandiloqüente, leu: - "Se um marinheiro ou qualquer outro membro da Armada, estando de serviço, atreve-se a replicar a um oficial superior ou desobedecem uma ordem de um oficial superior, serão levados ante um conselho de guerra e, se este conselho de guerra lhes declarar culpados, pode impor-lhes pena de morte, pena de morte - repetiu e depois, em tom mais comedido, continuou: - ou outro castigo, de acordo com a natureza e a magnitude de sua falta".
- Aí está - disse Jack a Davis, que olhava fixamente a coberta. - Espera escapar dos açoites? Tem algo a dizer em sua defesa?
Davis não respondeu e começou a baixar a camisa.
- Alguém tem algo a dizer em sua defesa?
- Com sua permissão, senhor - disse Elphinstone, tirando o chapéu de três bicos que havia posto para estar de acordo com aquela solene ocasião. - Davis está em minha divisão e até agora sempre obedeceu as ordens e foi cumpridor, diligente e respeitoso.
Ao ouvir isto, um marinheiro oculto pela multidão, um dos que comiam na mesma mesa que Davis, soltou uma gargalhada, mas Elphinstone, agora vermelho de vergonha, continuou:
- Acho que teve uma ofuscação momentânea, senhor, e lhe rogo que suspenda o castigo.
- Isso é o que eu chamo de generosidade - disse Jack. - Ouviu, Davis? O senhor Elphinstone roga que não seja açoitado.
Então fez um chato sermão no qual falou do bem e do mal, cujo único mérito era ser bastante curto e fazer-lhe sorrir interiormente.
Tinha um gesto sorridente quando Stephen entrou na cabine com uma expressão austera. Jack, como muitos homens corpulentos, bonachões e faladores, tinha imerecidamente um grande número de amigos magros e aborrecidos. Um de seus primeiros companheiros de tripulação e de seus mais íntimos amigos, Heneage Dundas, ganhara o apelido de Joe o Avinagrado; seu dispenseiro era um resmungão; e às vezes até mesmo Sophie… Portanto, era muito sensível ao mau humor, e antes de que Stephen abrisse a boca, soube que ia dizer algo desagradável.
- Vou fazer uma pergunta para obter uma informação geral, sem referência a ninguém em particular - disse. - Quando os capitães se erigem em juízes e fazem cumprir as leis da moral e da Armada exaltando virtudes que não praticam ou nunca a praticaram, percebem que cometem uma ação mesquinha?
- Acredito que sim - respondeu Jack, ainda sorrindo. - Eu mesmo me admirei muitas vezes de que não me caísse um raio. Mas não há nenhum cristão livre de culpas a bordo de nenhum barco, assim que é o capitão quem tem que moralizar como possa para manter a disciplina.
- Compreendo - disse Stephen. - Assim que não ignora a natureza da ação que comete, mas não a comete para enaltecer a si mesmo, nem para arejar suas própias opiniões diante de um público que não se atreve a fazer comentários nem a discordar, nem pelo degradante prazer de exercitar seu quase ilimitado poder, mas para manter a disciplina, pelo bem do país. Muito bem. Fico alegre - disse e, depois de inspirar, continuou: - Diga-me, por favor, o que significa isso de passar no exame de cavalheiro?
Jack tinha a suficiente agudeza para dar-se conta de que Stephen havia estado falando com o novo infante da marinha que havia subido a bordo em Malta, o senhor Driver, que reverenciava os reis, as famílias ilustres, os títulos nobres, os escudos de armas, os cargos hereditários e os privilégios.
- Bem… - respondeu. - Sabe o que queremos dizer com passar o exame de tenente, né? Quando um guarda-marinha serviu na Armada durante seis anos, apresenta-se ante um tribunal com seus certificados e seus diários de navegação, e os capitães que formam o tribunal o examinam e se considerarem que conhece a sua profissão o nomeiam tenente.
- Sim, ouvi falar disso muitas, muitas vezes. Recordo que o pobre Babbington tremia de ansiedade quando ia fazê-lo, mas lhe dei três gotas de essência de eléboro em um torrão de açúcar para que se acalmasse, e passou com vento ao largo.
- Quer dizer com vento em popa.
- Deixemo-nos de pedantismos, por favor.
- Mas foram tantos os que fizeram o exame desde que a guerra começou - disse Jack - e são tantos os que foram nomeados tenentes que nem todos podem conseguir um emprego, e muito menos uma ascensão. Há alguns anos, os que não procediam de família nobre perceberam que era a eles que o Almirantado deixava em terra. Esses homens não são cavalheiros nem têm amigos nem conexões que intercedam em favor deles, alguns são excelentes marinheiros. Tom Pullings tardou muito em encontrar um barco, e, certamente, quem não tem um barco não pode conseguir uma promoção. Fiz o que pude para ajudá-lo, sem dúvida, mas não logrei conseguir nada com as diligências e, ademais, estive fora do país durante longos períodos. Pouco antes de me designaram o Worcester, eu o convidei para jantar comigo e com Rowlands, o capitão do Hebe, em Slaughter's. Os dois se simpatizaram, mas depois Rowlands me disse que não queria ter entre seus oficiais alguém que falasse "vagamundo" em vez de "vagabundo", e, por desgraça, o pobre Tom o dissera. Repete-se a velha história dos capitães cavalheiros e dos marinheiros.
- Qual sua opnião sobre o assunto?
- Ainda não formei uma opinião. Tem tantos aspectos…! Mas a opinião de cada um dependerá em grande medida da significação que se atribua a "cavalheiro". Suponhamos que um cavalheiro é alguém cuja família enriqueceu há três gerações, alguém que tem boas maneiras e, pelo menos, um pouco de educação, então, se sabe tanto de náutica como outro que não é cavalheiro, eu escolheria a ele, em parte porque os oficiais acham mais fácil conviver com pessoas que se guiam por normas de comportamento similares, e sobretudo porque os marinheiros valorizam muito a origem dos oficiais, talvez mais do que deveriam.
- Então, acredita que o oficial da marinha ideal é um cavalheiro que seja também um navegante?
- Sim. Porém, de acordo com isso, ficariam excluídos Cook e outros marinheiros excelentes. Pode ser que seja assim na maioria dos casos, mas acho que um oficial realmente bom é sempre um ser excepcional, a quem não se pode avaliar conforme um padrão estabelecido. Ponhamos por exemplo o caso de Tom Pullings. Ainda que Tom não chegue a ser um Howe nem um Nelson, acredito que será melhor capitão do que muitos… no mar não temos muitas ocasiões de falar dos vagabundos… Tratei de que o ascendessem muitas vezes, como sabe muito bem, mas às vezes empurrar não dá bom resultado e é possível que empurrar muito seja prejudicial. Olhe - disse, pegando uma carta de entre os papéis que havia sobre sua mesa e entregando-a.
Stephen leu:
- "A Junta considera que o serviço (citado pelo senhor em sua carta do passado dia 14) que o tenente Pullings prestou não o faz merecedor de uma ascensão, e devo confessar-lhe que me surpreende que o senhor me tenha escrito sobre este tema. Atentamente, seu humilde servidor, Melville."
- Isso ocorreu há anos - disse Jack. - Foi a captura da Rosa em um porto. Contudo, as condições não são melhores agora, senão piores, pois meu pai está fazendo das suas na Câmara dos Comuns e, como consequência disso, minhas recomendações não são levadas em consideração. A única esperança de Pullings é uma batalha vitoriosa. Por isso nos afligimos tanto quando Emeriau escapou… Mas confio em que o outro turco que vamos ver agora, esse tal Mustafá, nos dará mais esperanças de que entabularemos um combate que o que acabamos de ver. Quase com toda segurança, a expulsão dos franceses de Marga será valorizada como a captura de uma fragata, que leva inerente a ascensão do primeiro oficial. Com este vento, chegaremos a Karia amanhã e poderemos formar uma opinião do bei capitão.
Em verdade, formaram uma opinião dele muito antes. A Surprise avançava para o norte, rodeada de uma nuvem de espuma que ela mesma formava a sua passagem, quando o serviola avisou que havia dois barcos pela alheta de estibordo, o costado mais próximo de terra. Haveria dado o aviso antes se não houvesse estado vendo a competição entre as guardas dos dois costados, e seu grito tinha um tom de angústia porque já se viam os cascos dos barcos e avisar em atraso era uma das poucas faltas que o capitão Aubrey não perdoava. Para compensar o atraso, acrescentou uma série de detalhes:
- É uma fragata turca. Navega com rapidez, com as alas desdobradas por cima e abaixo. A outra parece uma embarcação de vinte canhões. Também é turca. Está mais próxima da costa e não se pode ver bem.
A guarda de estibordo acabava de destroçar um casco que flutuava no mar a quatrocentas jardas de distância, ao final das práticas de tiro, nas quais haviam logrado disparar com muita precisão e rapidez, e Jack disse:
- Guardem os canhões. A guarda de estibordo ganhou. As práticas foram magníficas, senhor Pullings.
Depois se aproximou do coroamento e dirigiu a luneta para a embarcação mais próxima e sua distante companheira. Graham e Stephen se achavam junto ao farol de popa, e Jack, sorrindo, disse:
- Tivemos sorte. Aí estão todas as embarcações que a frota turca tem neste lado do arquipélago: a primeira é a Torgud e a outra, que está mais perto da terra, é o Kitabi. Acredito que o bei capitão está a bordo da fragata.
Então, alçando a voz, deu as ordens precisas para que a Surprise orçasse e, com as velas amuradas para estibordo, seguisse um rumo que a faria passar pela frente da proa da Torgud. Enquanto a Surprise virava, foi até o castelo, e dali observou a fragata turca. Tinha o aspecto de uma fragata européia, e era provável que houvesse sido construída na França ou em Veneza. Ademais, ainda que seus homens usassem turbantes ou casquetes vermelhos, a tripulavam à maneira européia. Estava muito bem governada, muito melhor que sua lerda companheira, que ele havia visto dobrando o cabo muito inclinada para sotavento quando havia dirigido para ela a luneta. A Torgud tinha muito velame desdobrado e formava grandes ondas com a proa e navegava da forma com que alcançava maior velocidade, com o vento ao largo, e como a Surprise também avançava na maior velocidade que podia, pois navegava de bolina, ambas fragatas se aproximavam com muita rapidez. Durante um tempo estiveram quase frente a frente, mas a Torgud se desviou consideravelmente do rumo para aproximar-se da Surprise pela popa e cruzar sua esteira. Quando começou a mudar de bordo, puderam sr vistos os brilhantes canhões de bronze de um costado, e Jack, que via suas armas pela primeira vez, apercebeu-se então da potência que tinha. Era uma fragata mais potente do que a Surprise e, além, da bateria, tinha outros dois canhões com estranhas portalós na coxia. Jack pensava que usava mutas velas abertas, que não viraria com facilidade e que poderia perder os estais, e ao observar a agitação das águas da esteira, pensou que estava muito inclinada para barlavento. Mas teve pouco tempo para observá-la.
- Senhor, acredito que vão se aproximar pela popa - disse Pullings.
- Isso deve de ser uma cortesia - disse Jack. - Professor Graham, o senhor conhece o protocolo da Armada turca?
- Não, senhor - respondeu Graham. - Porém, em geral, se guiam pelos franceses.
- Que tontos! - exclamou Jack - contudo, o capitão deseja ser cortês. Senhor Borren, prepare os canhões para fazer treze salvas enquanto arriam a bujarrona.
A fragata turca avançou com rapidez, rodeou a Surprise e se abordou com ela por sotavento. Seus tripulantes haviam feito a manobra bastante bem, mas pior que a faziam na Armada. Haviam feito tudo desordenadamente, especialmente, arriar as alas, e não se haviam acoplado ao puxar as amuras, mas poucas tripulações de mercantes ou de barcos corsários poderiam tê-lo feito melhor.
E nenhuma haveria descido uma lancha para a água com mais rapidez. A lancha caiu na água produzindo um grande estrondo, e seus tripulantes passaram por em cima da borda com assombrosa agilidade, e lhes seguiram alguns homens com túnicas, provavelmente os oficiais. Jack pensava que o capitão e ele somente iam intercambiar frases corteses de seus respectivos barcos, e quando regressou ao castelo de popa, a lancha turca já havia percorrido a metade da distância que os separava. Os remadores não estavam vestidos com elegância (um deles só usava uma calça de percal rota) nem remavam muito bem, mas o faziam com tanta força e tanta rapidez que parecia que estavam perseguindo uma presa. Sentado na proa, de frente para os remadores, e atuando como timoneiro, havia um homem com um turbante e calças bombachas de cor púrpura e com uma barba vermelha que chegava até sua enorme barriga, um homem tão corpulento que era assombroso que a popa da lancha não estivesse mais afundada.
Jack pegou o chapéu de três bicos que Killick lhe entregou silenciosamente, olhou ao seu redor e observou que Pullings, que havia reagido mais rápido que seu capitão, já havia mandado os infantes da marinha colocarem-se em seus postos e havia preparado tudo o necessário para uma adequada recepção. Então ouviu engatar-se o croque da lancha e se inclinou sobre a borda. O homem corpulento se agarrou às linhas de vida e subiu pelo costado tão agilmente como um garoto. Ao chegar ao castelo de popa pôs a mão na testa e depois, pondo-a no coração, fez uma profunda reverência, tão profunda que teria parecido exagerada em um homem de menor tamanho, e Jack pensou que além de ter um enorme tamanho, tinha muita presença. Não era tão alto como Jack, mas era muito mais gordo, e suas calças bombachas de cor púrpura lhe faziam parecer ainda mais.
- Mustafá, bei capitão - disse com voz potente.
O mirrado oficial que o acompanhava repetiu suas palavras e depois, em grego e em algo parecido ao inglês, acrescentou:
- Chefe da frota da grande Turquia nestas águas e senhor de Karia.
- Bem-vindo a bordo, senhor - disse Jack, dando um passo para frente e estendendo-lhe a mão. - Professor Graham, por favor, diga a estes homens que são bem-vindos e que tomaremos café na cabine.
- Então o senhor fala turco - disse Mustafá, dando palmadinhas na bochecha de Graham. - Muito bem, muito bem. Então Ulusán pode regressar para a lancha.
- Ele não gostaria de tomar algo na câmara dos oficiais? - perguntou Jack quando viu Ulusán fazer uma reverência e dar a volta.
- O bei capitão diz que Ulusán poderia sucumbir à tentação de beber vinho e licores, que os muçulmanos são proibidos de tomar, e que estará melhor na lancha - disse Graham.
Na cabine Jack sentiu uma grande satisfação ao ver que o bei capitão podia sorrir e inclusive gracejar. A seriedade de seus anfitriões em Mesenteron o abatera, pois havia feito parecer que o assunto que tratavam era ainda mais grave e convertera a reunião em um funeral. Ademais, Ismael e seus conselheiros haviam mantido os olhos fixos na mesa quando se dirigiam a ele, e isso, que talvez fosse um costume turco, havia lhe desconcertado; em troca, agora se sentia à vontade porque Mustafá tinha seus olhos, vivos e inteligentes e alegres, cravados nos seus. Os olhos de Mustafá, de um estranho colorido amarelo alaranjado, pareciam muito pequenos para sua larga cara, e quando Mustafá sorria, pareciam ainda menores e quase chegavam a desaparecer atrás da encrespada barba pintada de vermelho, por onde assomavam ao mesmo tempo seus dentes brancos. Isto se refletia com mais freqüência à medida que a tarde avançava, e logo todos viram que para Mustafá não era fácil resistir à tentação de beber vinho e licores.
Fizeram um percurso pela fragata, e Jack notou que Mustafá não só era entendido em barcos mas também em canhões. Mustafá ficou assombrado ao ver as melhorias que Jack havia feito nos canhões longos guiando-se pelas que Philip Broke, o capitão da Shannon, fizera e os seus olhos brilharam de satisfação quando viu as caronadas, as peças de artilharia mais potentes da Surprise, que flanqueavam o castelo de popa, pois pensava que a batalha ideal era aquela em que se disparavam rápidas descargas enquanto se avançava para o inimigo e depois se passava para abordagem.
- Gostei dos canhões - disse quando estavam na cabine fumando o cachimbo de água e bebendo ponche. - São difíceis de conseguir desde que Veneza caiu, e necessito de muitos para tomar Kutali. Fico alegre que me haja trazido tantos.
- Para mim me agradaria dar os canhões a um colega - disse Jack, sorrindo - mas são de meu chefe e devo entregá-los ao aliado melhor preparado para ajudar-nos a expulsar os franceses de Marga. Suponho que saberá que outros dois cavalheiros nos ofereceram sua ajuda, e é justo que escute o que todos os que estão relacionados com este assunto têm a dizer.
- Sei o que Ismael lhe disse de mim - disse Mustafá. - Disse que sou um corsário analfabeto, que sou muito amigo dos franceses e que não sou de confiança. E Sciahan lhe dirá que eu e o paxá Ali nos aliamos para nos rebelar contra o Sultão e que não sou de confiança. Ah, ah, ah! Mas nenhum dos dois pode dizer que não conquistei Djerba ou não pacifiquei o Peloponeso em uma campanha de dois anos, deixando atrás uma centena de cidades e povos em chamas. E nenhum poderá ajudar-lhe a expulsar os franceses de Marga. Ismael é um eunuco egípcio que se horroriza de ouvir e ver uma batalha, e Sciahan é muito velho para fazer a guerra e prefere negociar a lutar, e isso não dá resultado com os franceses. Mas quando eu tenha Kutali em meu poder, tudo será muito fácil. Atacaremos por terra e por mar, e, ao mesmo tempo, os muçulmanos da cidade se sublevarão. Não poderão resistir ao nosso ataque. Creia-me, capitão, não poderão resistir ao nosso ataque. Venha ver minha fragata e verá o que é capaz de fazer e verá a classe de marinheiros que estão ao meu serviço.
"Sacanas peludos", murmurou Bonden, olhando para cima, e observou como seu capitão subia pelo costado da Torgud e depois ouviu os sons dos címbalos com que foi recebido.
O que Bonden havia querido dizer com estas palavras era que, além de serem barbudos, eram agressivos, ferozes como tigres, malvados e cruéis. Jack também pensou que eram assim, e com mais motivos, porque pôde ver todos os tripulantes, ao surpreendente número de tripulantes, e notou que tinham traços semelhantes, como se pertencessem à mesma família, apesar de que eram de diferentes raças e tinham a pele de cores muito distintas, desde o preto brilhante até o cinza dos habitantes de Besarabia. Era provável que tivessem a mesma religião, e tremiam tanto ante o bei capitão que não havia dúvida de que lhe tinham o mesmo terror, provavelmente porque na Torgud, os que cometiam faltas eram despedaçados e usados como isca. Parecia que os oficiais eram turcos, e a julgar pela forma com que mostraram e falaram dos canhões e das armas lieves, conheciam bem tudo o relacionado com a artilharia, e a julgar pela forma com que a fragata havia virado, ao menos alguns deles eram marinheiros competentes; contudo, não pareciam ter nem a mais remota idéia do que eram a ordem, a disciplina e a limpeza de qualquer outra coisa que não fosse um canhão. Todos os canhões eram de bronze e todos brilhavam à luz do sol do entardecer. Aparentemente, na tripulação da Torgud não havia primeiro oficial nem contramestre, e os cabos ecaixados da exárcia haviam sido amarrados em vez de atados, e as tábuas da coberta não podia ser vista devido à sujeira, e entre os canhões havia restos de excrementos humanos. Apesae disso, a Torgud era uma embarcação imponente, com um aspecto não muito distinto ao dos barcos piratas que Jack havia visto nas Antilhas, ainda que de menor tamanho. Mas Jack não tinha muito tempo de refletir, pois enquanto Mustafá LHE mostrava a fragata, explicava seu plano de ataque a Kutali, e dava tantos detalhes que era preciso prestar a máxima atenção, sobretudo porque às vezes Graham não encontrava o termo náutico adequado. O ataque consistiria em disparar bombardeios de várias canhoneiras, quer dizer, embarcações de pequeno calado armadas com os canhões que Jack ia proporcionar-lhe, e depois lançar-se ao assalto. Mustafá tinha as embarcações apropiadas para isso, quase quarenta caiques, ao longo da costa, e quando os caiques abrissem meia dúzia de brechas na muralha, seus homens tomariam a praça por assalto. Enquanto falava olhava atentamente para Jack, mas Jack se limitava a inclinar a cabeça cortesmente, pois não tinha nada que dizer com respeito a um ataque a uma cidade cuja costa e cuja fortificação nunca havia visto. O canhão que estava no meio da comprida fila de canhões de dezoito libras parecia muito maior que os demais, mas agora estava quase coberto de lona e sua enorme portaló estava fechada.
- Este é meu preferido - disse Mustafá, tirando a lona.
Jack viu com assombro que era um canhão de trinta e seis libras, um canhão tão grande que fazia os outros da fila parecerem muito menores e muito potente para levar a bordo de uma fragata, e pensou que não havia visto nenhum em nenhuma fragata e que nem sequer os navios de primeira classe tinham canhões de mais de trinta e duas libras. E do outro lado da coxia, no costado de bombordo, estava seu companheiro, seu necessário contrapeso.
- Nunca havia visto um canhão tão bonito - disse Jack - observando os delfins que rodeavam o escudo de armas do rei de Portugal e a culatra, e depois, olhando as tábuas que reforçavam a coberta e o costado e os numerosos olhais, perguntou: - Mas o senhor acha que vale a pena carregar tanto peso e ter dificuldades para poder atacar com ele?
Enquanto se dirigiam para a cabine falaram das vantagens e desvantagens da colocação dos canhões na fragata: compararam a inconveniência de ter canhões de distinto calibre na mesma coberta e de levar um peso extra na parte superior do barco, que afetaria o balanço quando fizesse mau tempo, com a conveniência de causar graves danos ao inimigo com uma bala de trinta e seis libras.
E quando estavam na cabine, uma cabine suntuosa com cortinas de damasco cor carmim, a chegada do café interrompeu sua conversa. Jack disse que se iria dentro de pouco e não se deixou convencer por Mustafá de que se ficasse mais tempo e fosse ver o porto de Karia, já que tinha um encontro com sea companheira, a Dryad. Então Mustafá repetiu seu plano de ataque, fez uma relação das forças de que dispunha e voltou a expressar sua opinião sobre os beis Sciahan e Ismael.
Aparentemente, o pior defeito de Sciahan, além de sua ambição e avareza, era sua idade, que o incapacitava para lutar, e para Jack lhe pareceu que Mustafá não sentia antipatia por ele, apesar de que o expulsaria de Kutali se pudesse o mataria na batalha. Sua atitude para Ismael era diferente. Ele o acusou insistentemente de deslealdade e hipocrisia e depois, alçando mais a voz e abrindo descomedidamente os olhos, pediu a Deus que maldissesse seus própios filhos se alguma vez permitia que aquele homem afeminado, ruim e traiçoeiro lhe derrotasse.
Jack havia visto muitos homens furiosos, mas não havia visto a nenhum que tivesse tanta raiva, que agitasse o punho com tanta força e que tivesse os olhoais mais sanguinolentos. Era evidente que entre Mustafá e Ismael havia algo mais que a rivalidade pelo domínio de Kutali, ainda que não havia dúvida de que Mustafá também estivesse ansioso de possuí-la.
A voz do bei capitão, agora muito parecida ao som de um órgão, foi ouvida desde a falua, e Bonden exclamou:
- Como fala o capitão! Parece um touro bufando.
Nesse momento se abriu o portaló do canhão de trinta e seis libras de estibordo e por ela se assomou um homem com uma grande barba e turbante.
- Bem, já me viu muito bem, amigo - murmurou Bonden depois que o homem o olhou fixamente por um minuto.
- Barret Bonden! - gritou o barbudo. - Não se recorda de mim?
- Com essa barba que tem não posso ver bem sua cara, amigo.
- Sou Ezequiel Edwards, Zeque Edwards, ajudante do condestável do Isis quando você estava encarregado do cesto da gávea do traquete. Eu escapei quando ancoramos em frente de Tiberias.
- Zeque Edwards! - exclamou Bonden, assentindo com a cabeça. - Sim. Mas o que faz nesse barco? Foi capturado? É um prisioneiro?
- Não, pertenço à sua tripulação. Sou ajudante do condestável.
Bonden pensou alguns momentos e depois disse:
- Então que voltou a ser turco, deixou crescer a barba e enrolou um pedaço de tecido na cabeça.
- Exatamente, amigo. Não me habituaram a cumprir com a religião, e, ademais, já me haviam feito a circuncisão.
Os outros remadores estiveram olhando para Edwards fixamente e com a boca aberta e nesse momento a fecharam, fizeram um gesto de desaprovação e olharam para o mar. Mas Edwards falara em um tom angustiado e triste, como se sentisse saudade de ouvir e falar uma língua cristã, e Bonden seguiu conversando com ele. Bonden perguntou em tom grave que demônios fazia um canhão de trinta e seis libras, nada menos que um canhão longo de trinta e seis libras na fragata.
A pergunta foi seguida por um torrente de palavras que revelaram alguns segredos, uma mistura de vocábulos gregos, turcos, e de uma língua franca com outros do inglês ditos com o sotaque do oeste da Inglaterra. Os canhões procediam de Corfú, eram do general francês que governava Corfú, mas o general havia dado ao capitão porque nem as balas francesas de trinta e seis libras nem nenhuma outra das balas que se fabricavam eram adequadas para eles. Contudo, para o capitão isso não importava porque encomendava balas de mármore aos gregos de Paros, balas de superfície lisa como o cristal. O mau era que se rachavam se não se armazenavam bem e que custavam muito dinheiro e, por outro lado, que não se podiam conseguir grandes coisas só com meia dúzia delas e não podiam jogar muitas porque custavam dezenove piastras cada uma.
- Balas de mármore! - exclamou Bonden, pensando com pena nas simples balas de ferro da Surprise. - Balas de mármore!
- Nunca vira uma lancha tão suja como esta - disse um remador da proa e cuspiu para sotavento. - Nunca limpam as lanchas?
Edwards percebeu o que Bonden pensava e disse humildemente que sua intenção não fora gabar-se das riquezas do barco nem fazer-lhes acreditar que tinham suportes cheios de balas de mármore quando, na realidade, tinham só cinco para o canhão de estibordo e quatro para o de bombordo, uma delas descascada. Mas não pôde dizer nada mais porque nesse momento se ouviram redobres de tambores e os sons produzidos pelos címbalos e os caramujos, já que o capitão estava se despedindo. Então o capitão, acompanhado do professor Graham, desceu para a falua, já envolta na escuridão, e permaneceu silencioso e pensativo durante toda a viagem de regresso.
E na alvorada, quando o capitão se achava no castelo de popa, também estava silencioso e pensativo. Marga quase já não se via pela alheta de estibordo, e ele dirigiu para ali a luneta, deu a última espiada para a cidadela de pedra e para o grande cais veneziano e depois reiniciou seu passeio. Estava silencioso, em parte porque há muito tempo tinha o costume de passear sozinho pelo lado de barlavento do castelo de popa de todos os barcos que estavam sob seu comando, desde que não interrompesse as tarefas rotineiras, e em parte porque nenhum de seus conselheiros estavam acordados, já que havia estado falando com eles de Mustafá e Ismael até muito depois da guarda de meia. E estava pensativo porque não podia afastar de sua mente a idéia de que Mustafá era um excelente capitão em muitos aspectos, mas provavelmente não se esforçaria para expulsar os franceses de Marga porque ele e o general Donzelot tinham muito boas relações, como Bonden lhe informara, primeiro através de Killick e depois pessoalmente. Quando desviou a vista, pôde ver o velame de um barco em alto mar, por trás da Dryad, que havia se reunido com a Surprise na noite anterior e agora navegava seguindo um rumo paralelo ao seu, mas muito separada dela para que juntos as duas pudessem capturar qualquer barco francês ou aliado dos franceses que passasse por ali em direção a Corfú ou, melhor ainda, que houvesse saído de Corfú e se dirigisse para Marga. Olhou o barco através da luneta, porém, quando percebeu de que estava tão longe que tardaria muito tempo para alcaçá-lo e recordou que não podia perder tanto tempo, olhou para a Dryad e pôde ver Babbington inclinado sobre a borda com uma jovem que tinha um vestido de renda rosa. Babbington indicava para a jovem algo no mar, e ambos riam.
Imediatamente os olhou através da luneta. Recordava que Babbington lhe contara, ao se apresentar a bordo da fragata, que concordara em levar uma matrona italiana, a viúva de um oficial, de Cefalonia para Santa Maura, mas que tivera que deixá-la a bordo da corveta porque o vento não era favorável para ir a Santa Maura e porque não queria chegar com atraso ao seu encontro com ele. Então pensou que era possível que uma matrona tivesse vinte anos e que uma viúva fosse alegre, mas que não era bom que essa mulher se encontrasse ali.
Depois de dar outro passeio, encontrou-se frente a frente com algo que tampouco estava bom: o senhor Williamson, o guarda-marinha de guarda parecia enfermo outra vez. Era um jovem que não tinha a fortaleza suficiente para viver no mar, e Jack nunca o teria admitido a bordo se não fosse filho de Dick Williamson. Jack não desejava levar a bordo nenhum jovem que navegasse pela primeira vez ou que fosse incapaz de substituir a um companheiro no convés às quatro da madrugada com o estômago vazio, mas a realidade era que ainda era responsável por dois dos garotos que suas mães haviam posto ao seu cuidado, apesar de que necessitava dedicar toda sua atenção a assuntos muito mais importantes que os valores morais e o estado físico de um par de pombinhos. Queria convidar o garoto para desjejuar e pedir para Stephen que os acompanhasse para que o visse. De toda maneira, Stephen deveria se levantar logo se quisesse ver a baía de Kutali desde a entrada, pois já se avistava o cabo Stavro.
- Senhor Williamson - disse, e o garoto deu um salto como se tivesse culpa de algo - vá à cabine do doutor Maturin e, caso esteja acordado, cumprimente-o de minha parte e diga que dentro de pouco entraremos na baía de Kutali, que, conforme dizem, é um magnífico espetáculo. E faça-nos o senhor a honra de desjejuar conosco.
Enquanto esperava por Stephen, e teria que esperar por muito tempo porque naquela noite o doutor Maturin havia tomado quatro doses consecutivas para poder dormir, e enquanto a fragata se aproximava da baía, observou a costa, que era digna de ser vista porque era formada por uma enorme massa de rochas cinzas que pareciam apoiadas no mar, atrás das quais havia montanhas pontiagudas, com ladeiras empinadas, tão altas que quase tocavam o céu, iluminadas pelos primeiros raios do sol, que chegavam do sudeste, de tal maneira que podiam ver claramente os sete grupos que formavam e os frondosos bosques que as cobriam e os desfiladeiros cinzentos que havia entre elas. Jack não gostava de navegar perto da costa senão a mais de cinqüenta léguas dela, porque queria ter muito espaço para manobrar, portanto, preferia estar sempre em águas profundas; contudo, agora se encontrava tão perto que seus canhões podiam alcançá-la e navegava por águas de cem braças de profundidade, mas isso não importava porque o tempo era sereno. A fragata tinha o vento de través, um vento que permitia usar as joanetes desdobradas e que parecia enviado por Deus especialmente para que dobrasse o cabo e entrasse na baía, mas Jack duvidava se seria favorável para mudar de bordo para o leste e avançar para Kutali, porque era instável e às vezes diminuía consideravelmente de intensidade, o que poderia trazer como consequência que tivessem que esperar para que a brisa marítima soprasse para terra para terminar seu percurso ao redor da grande península.
De fato, o vento havia amainado quando estavam desjejuando. Mas o café da manhã durou tanto que, antes que acabasse, a Surprise teve tempo de dobrar o cabo e inclusive chegar ao meioda baía e o doutor Maturin pôde recobrar seu bom humor. Quando começara o dia, Stephen não estava de bom humor nem em disposição de apreciar as belezas naturais, mas agora que fumava seu cigarro da manhã, depois de ter desjejuado bem e de ter tomado café, admirava a vista que tinham diante e estava disposto a admitir que poucas vezes vira lugares mais bonitos que Kutali e seus arredores. A superfície da água da baía era ondulante em algumas partes e lisa como o cristal em outras, e nestes espelhos naturais podiam ver-se refletidas as gigantescas montanhas que se erguiam na beira do mar e toda a cidade, que estava ao pé delas. Superpostos sobre estas imagens se encontravam numerosos barcos e lanchas, dos quais alguns estavam imóveis e pareciam suspensos e outros deslizavam devagar e tocando suavemente a superfície com os remos. E a calmaria, o céu sem nuvens, a imobilidade da fragata e o fato de que pareciam estar sobre um espelho ou dentro dele, induziram-lhes a falar em voz muito baixa ou a guardar silêncio.
A compacta cidade formava um cone duplo com sua imagem, na qual estavam repetidas suas ameias cinzentas, seus tetos vermelhos e suas paredes brancas, porém, de repente, uma rajada de vento destruiu a imagem, só não alterou o reflexo das muralhas da parte alta da cidade e da cidadela. Agora que havia desaparecido a imagem da parte baixa da cidade, as muralhas pareceram reduzir-se à metade da altura. Jack deixou de se impressionar com a cidade e pensou que a idéia de Mustafá de atacá-la com canhoneiras era factível.
Ainda que, à primeira vista, Kutali parecia uma cidade compacta, uma massa triangular entre o mar e as montanhas, na realidade, estava dividida em três partes. A parte inferior, que superava ambos lados do porto, era vulnerável, pois só era protegida por uma muralha exageradamente comprida e de pouca grossura; a parte central, como Jack notou depois de olhá-la atentamente alguns momentos através da luneta, tampouco era bem protegida, não poderia resistir a um ataque massivo; a parte superior, em troca, era rodeada por uma grossa muralha. Esta era a parte cristã da cidade, e enquanto Jack observava as torres de suas igrejas sobressaindo da muralha, pensou que se se colocasse nelas ainda que fosse uma pequena bateria, uma bateria composta por três ou quatro canhões de doze libras, e se se manejasse bem, seus habitantes poderiam afundar as canhoneiras que tentassem atacar a cidade. Evidentemente, não fariam falta as fortificações nas partes mais baixas da cidade se ambas as partes e a baía estivessem protegidas pela artilharia.
Mustafá dissera que os cristãos só tinham dois canhões, velhos e desconjuntados, e algumas catapultas, mas que, ainda que tivessem uma dúzia, ele não desistiria de atacar Sciahan, já que eles não interviriam em uma luta entre muçulmanos, e Jack pensou que talvez tivesse razão enquanto considerava a possibilidade de que o porto se tornasse uma base naval, uma espaçosa base naval onde os ancoradouros tinham águas profundas e a água doce e a madeira, excelente madeira de carvalho, estavam ao alcance da mão.
- Na parte alta da cidade habitam os cristãos - disse Graham, que estava do seu lado. - Como Sem dúvida haverá notado, não se vê nenhuma mesquita dentro da muralha. Na parte central vive um variado grupo de mercadores, e na parte mais próxima ao mar, os pescadores, os armadores de barcos e homens de outras profissões. A maioria dos turcos habitam em um bairro dos arredores da cidade, à direita daquele riacho. Ali está a tenda do governador, atrás daquelas ruínas, que acho que são de um templo que os pelasgos haviam dedicado a Zeus. Sim, ali está o estandarte de Sciahan. Como sua graduação é equivalente à de general-de-brigada, usa uma só fila de cavalos.
Stephen esteve a ponto de dizer que uma falua acabava de zarpar, porém, como Jack, Graham e Pullings estavam ao seu lado no castelo e também olhavam para o lugar onde esta se encontrava, não desperdiçou suas palavras.
- Treze salvas para um general-de-brigada, senhor? - perguntou Pullings.
Jack ficou olhando pela luneta por alguns momentos e, por fim, disse:
- Esse não é um general-de-brigada. Não vi a nenhum general-de-brigada, nem com uma fila de cavalos nem com duas. Acho que esse é um sacerdote grego, um pope, como dizem por estas terras.
Os tripulantes da Surprise não estavam tão seguros da recepção que deviam dar a um pope ortodoxo, vestido com sua sotaina e seu barrete negros, como da que deviam dar a um general-de-brigada, mas fizeram o que acreditaram melhor, e os que deviam atendê-lo na grande cabine ficaram perplexos ao informar-se de que o padre Andros não só era o representante dos cristãos de Kutali senão também um dos conselheiros políticos do bei e seu emissário nesta ocasião. O bei estava indisposto e, apesar de que receberia com gosto ao capitão Aubrey quando se restabelecesse, como lhe parecia que o assunto que tinham a tratar era urgente, havia pedido ao padre Andros que fosse vê-lo para apresentar-lhe seus respeitos, dizer-lhe qual era realmente a situação e quais eram suas petições e suas correspondentes ofertas. O padre Andros entregou a Jack sua credencial, uma carta muito bem escrita com um selo, e, em um aparte, disse a Graham:
- Osmán o Esmirniano lhe manda saldações.
- Está em Kutali?
- Não. Teve que ir a Jannina para ver o paxá Ali no dia que o senhor falou com Ismael.
- É uma carta com um estilo muito elegante - disse Jack, dando-a para Graham. - Mas diga ao cavalheiro que não necessitava mais credenciais que seu traje e seu semblante.
Era evidente que Killick compartia a boa opinião que seu capitão tinha do padre Andros (um sacerdote cujo semblante era realmente bondoso), pois nesse momento trouxe uma garrafa de vinho com um selo amarelo, uma garrafa do melhor vinho de Madeira que Jack possuía. Tentaram o padre Andros a beber vinho e licores, mas não se serviu de nada, nem sequer durante as últimas horas do dia. O padre Andros não ria nem sorria, pois o caso do qual ia falar era muito sério, e, por fim, falou dele com claridade e, na opinião de Jack, com muita sinceridade.
O padre Andros disse que era justo que Sciahan reivindicasse Kutali, de acordo com as leis e os costumes turcos, e que era indubitável que, com o tempo, o Sultão lhe concederia o comando da cidade. Contudo, fez ênfase em que não desejava aprofundar neste tema senão falar de algo mais concreto: que o almirante britânico queria Kutali para atacar dali às tropas francesas que ocupavam Marga e usar seu porto como o lugar onde os barcos britânicos pudessem refugiar-se e apetrechar-se no mar Jônico, e que daria canhões em troca disso, sob a condição de que também fossem usados para atacar os franceses.
Conforme o padre Andros, Marga só poderia ser atacada das montanhas que estavam detrás, e para chegar a elas era necessário passar por Kutali, e somente de Kutali podia bloquear-se o aqueduto de Marga. Tanto Mustafá como Ismael teriam muita dificuldade para tomar Kutali, pois as tropas de Sciahan seriam apoiadas pelas dos cristãos, que não desejavam ser governados por Mustafá nem por Ismael porque ambos eram rapazes e muçulmanos fanáticos, e, ademais, todos os mercadores, os armadores e os pescadores, tanto os cristãos como os muçulmanos, tinham aversão por Mustafá, que se diferenciava muito pouco de um pirata. No improvável caso de que ganhassem, ainda que cumprissem sua palavra de unir-se aos britânicos para atacar aos franceses, algo que o padre Andros duvidava, não poderiam ajudar muito porque provavelmente lhes restariam muito poucos homens. Também havia que ter em conta que nem Mustafá nem Ismael teriam o apoio dos cristãos de Marga, o que era muito importante se se desejava que o ataque tivesse um resultado satisfatório imediatamente e não desse lugar a uma luta tão longa que os simpatizantes dos franceses que haviam em Constantinopla pudessem intervir; e a maioria dos habitantes de Marga era de cristãos. Por outro lado, o bei Sciahan já tinha o comando de Kutali. Seguia governando da mesma forma, tolerante e apenas perceptível, que o anterior váli, havia permitido aos cristãos manter seus própios tribunais e o controle das cidades, e tinha tão boas relações com outras três comunidades da cidade, a albanesa, a valaca e a grega, que elas iam lhe proporcionar seiscentos e oitenta homens armados, muitos deles guegues mirditas. Em verdade, Sciahan era o aliado ideal para o almirante britânico. Sua fama de excelente militar lhe haviam dado vinte e três campanhas, duas delas levadas a cabo na Síria e no Egito, junto com os ingleses, a quem estimava, e contra os franceses, a quem odiava. Era um verdadeiro turco, um homem de palavra, não um descendente de escravos egípcios nem de renegados argelinos. Tampouco era o tipo de homem que pegaria os canhões e depois encontraria pretextos para negar-se a participar no ataque. Convidava ao capitão Aubrey a descer a terra com o fim de que visse as suas tropas e desse um passeio pela cidade com o padre Andros para que comprovasse por si mesmo quais eram seus pontos fortes e fracos.
- É uma excelente idéia - disse Jack. - Killick, minha falua!
- O senhor conhece esta cidade, né? - perguntou Stephen a Graham quando subiam para a abarrotada cidade seguindo o capitão Aubrey e o padre Andros.
- Nunca havia vindo aqui, mas estive em Ragusa e em Cattaro, que são parecidas, e em algumas cidades do interior.
- Então poderá dizer-me quem são esses homens que usam uma fralda curta branca, um gorro vermelho e um monte de armas.
- São tosques, albaneses do sul. Meu bom amigo o paxá Ali é um tosque. É muçulmano, sem dúvida, ainda que muitos tosques, a maioria dos quais vivem nestas terras, são cristãos ortodoxos. Observe com quanto respeito tratam o padre.
Era verdade. À medida que o padre, com passos compridos e ágeis, avançava pela concorrida rua maior, uma rua empinada que tinha o aspecto de uma escada, que as pessoas se afastavam e encostavam as mulas e as crianças nas paredes das casas, sorrindo e cumprimentando-lhe com uma inclinação de cabeça.
- Mas nem todos o tratam com respeito - disse Stephen pouco depois. - Esse homem o olha com desprezo, esse que está aí nessa porta mordendo o polegar, esse que tem um bigode enorme e duas pistolas, um curioso sabre e duas adagas na cintura, e usa calças cor carmim e uma casaca dourada curta.
- É um guegue, um albanês do norte - disse Graham. Os guegues são tipos inclinados ao crime e a rapina. É provável que seja um papista ou um muçulmano. Essa espécie de sabre que leva é um iatagã. Olhe, esse guegue, esse homem que leva uma comprida túnica branca com uma faixa vermelha e calças brancas, realmente é um papista. Não o olhe muito, pois é propenso a se sentir ofendido, igual a todos os de seu grupo, e, como pode ver, anda com um arsenal. Pertence aos mirditas, um grupo de guegues católicos. Há muitos na cidade, ainda que a maioria deles vivam nas montanhas do norte.
- Aqui devem de se sentir como em casa - disse Stephen - porque a cidade parece construída para as camurças e outros animais de seu grupo ou a cabra montês.
A rua, cada vez mais empinada, virava para a esquerda, e quando eles dobraram, o sol lhes dava pelas costas. O padre Andros seguia dando passadas e, de vez em quando, agitando sua sotaina, assinalava os distintos bairros, o veneziano, o grego, o judeu, o armênio e o valaco, todos protegidos por sua própia muralha, que haviam erigido nos tempos da república.
Jack não havia estado em terra há meses, salvo as poucas horas que passara em Malta e em Mesenteron, e as botas o molestavam muito. Mas também lhe molestava a casaca do uniforme, que havia posto para passar revista às tropas na parte mais baixa da cidade, e os calções, o cinturão com o sabre e a gravata. O jovem Jack teria seguido subindo sem protestar, teria seguido ofegando até que explodisse, mas o atual capitão Aubrey não.
- Detenha-se! - exclamou. - Detenha-se um momento! O senhor vai matar seus aliados!
Andros os levou a uma praça com uma fonte debaixo de uma frondosa árvore com o tronco liso e cinzento, e enquanto Jack, sentado na sombra da árvore, bebia um vinho raspante muito frio que lhe haviam trazido de uma casa próxima, tratava de encontrar a razão pela qual usara a palavra "aliados".
A praça estava muito concorrida, pois ao fundo, junto da igreja, havia um mercado, e passavam de um lado para outro homens e mulheres de meia dúzia de raças, a maioria deles armados e muitas mulheres com véu. Ainda que todos estivessem cheios de curiosidade, todos, incluídos as crianças eram discretos. Contudo, após um tempo Stephen notou que um homem alto com aspecto de guerreiro se separou de um grupo de guegues católicos e começou a caminhar na direção deles, alisando o bigode com a mão, na qual tinha um anel com uma esplêndida ametista. Vestia uma sotaina, usava penduradas na cintura duas pistolas com culatras de prata e tinha apoiado no ombro um mosquete, que a princípio Stephen achou ser um rifle de caça, e por debaixo da culatra deste podia se ver uma cruz que tinha no peito. Stephen percebeu de que havia uma atmosfera tensa e notou que tanto Andros como o desconhecido calcularam muito bem o momento em que deviam cumprimentar para não antecipar-se nem em meio segundo ao cumprimento do outro.
- Este é o bispo católico de Prizren, que acompanha a um grupo de paroquianos - disse o padre Andros.
Jack e Graham se levantaram e fizeram uma inclinação de cabeça. Stephen beijou o anel do bispo e falou com ele em latim durante um momento. O bispo estava ansioso para saber se era verdade que o rei da Inglaterra estava a ponto de converter-se e se era possível convencer o almirante britânico a ajudar Kutali a ser independente. Stephen não pôde satisfazer sua curiosidade porque não sabia a resposta de nenhuma das perguntas, mas ambos se despediram como dois bons amigos, e os austeros guegues olharam com mais benevolência para o grupo, pois agora sabiam que ao menos um de seus membros pensava como era devido.
Isto se notou muito mais quando o grupo chegou à cidadela, que era vigiada apenas pelos guegues a essa hora do dia. Os gueges, que tinham um gesto simultaneamente tosco e depreciativo, sorriram amavelmente quando um dos numerosos meninos que acompanhava o grupo lhes contou o ocorrido. Mas nenhum dos meninos e nenhum dos homens que os haviam seguido até ali tiveram a permição de passar para o outro lado da porta. E quando o padre Andros passou para o outro lado da porta, suas palavras deixaram de fluir e em seu rosto apareceu uma expressão grave. Ele os conduziu por uma vereda sinuosa que levava até a plataforma rochosa onde havia uma bateria que estava disposta em forma de meia lua e que protegia a baía e as partes mais baixas da cidade e seus arredores. À medida que subiam pela vereda que atravessava as escarpadas rochas, Jack contou as frestas, que eram vinte e uma no total, e observou que todas estavam cheias e pensou que uma bateria com essa quantidade de canhões poderia destruir uma potente esquadra, desde que os canhões fossem medianamente bem manejados. Mas quando dobraram a última curva da vereda e chegaram à última porta de ferro, o padre Andros parou, vacilou um momento e disse:
- Somos muito confiados, como pode ver - disse, abrindo a porta por fim. - O bei Sciahan diz que confia plenamente nos oficiais da marinha britânicos porque são homens de honra.
O comentário não foi bem recebido. "Se isso é o que pensa, não necessita dizê-lo, e muito menos repeti-lo constantemente", pensou Jack.
- Esta é uma tentativa desajeitada de fazer chantagem - disse Stephen.
Então Graham disse a tradução de suas palavras em um tom de censura, ainda que o padre Andros estava muito nervoso para prestar-lhes atenção. Se aproximaram da bateria, e quando o pequeno grupo de artilheiros que estavam encarregados dos canhões se afastaram, Jack compreendeu o motivo de seu nervosismo: todos os canhões exceto três eram feitos de madeira e pintados, e desses três, dois tinham os tocos quebrados, assim que não se podiam apontar bem, e o terceiro era muito antigo e estava em más condições porque alguém havia tratado de aumentar a chaminé com uma alavanca. Então pensou que Mustafá poderia fazer suas canhoneiras entrarem na baía à luz do dia se desejasse, e ter a satisfação de destruir a muralha da parte mais baixa da cidade, porque em Kutali não havia nada capaz de impedi-lo.
- Estes dois são usados para fazer as salvas - disse Andros - para enganar a todo mundo. O terceiro não nos atrevemos a tocá-lo.
- E o bei não tem peças de artilharia? - inquiriu Jack.
- Um só canhão que lança balas de três libras nada mais. Ele o tem em seu acampamento. Se o trouxéssemos aqui para cima, as pessoas suspeitariam qual é a verdadeira situação.
Jack assentiu com a cabeça. Então se inclinou sobre o parapeito e pensou que era possível subir canhões desde a margem do mar até ali usando quatro cabos atados e polias bem lubrificadas, pois um canhão de dezoito libras não pesava mais que uma âncora de leva. Também pensou que com meia dúzia de canhões ali, a cidade seria inexpugnável, mas que tardariam semanas em subir um ou dois por aquelas ruas tortuosas, apertadas e escalonadas. As principais dificuldades seriam o lugar onde se amarraria o extremo do conjunto de cabos ali em cima e a enorme tensão que teriam que suportar, mas acreditava de que as resolviriam quando tivessem que enfrentar-se a elas, sobretudo porque Tom Pullings tinha habilidade para encontrar meios de solucionar qualquer problema relacionado com a náutica.
- Bonita vista, né? - perguntou o padre Andros, que agora estava menos ansioso, como se houvesse lido o pensamento de Jack, e sorria pela primeira vez depois que haviam descido para terra.
- Hã? - inquiriu Jack. - Oh, sim, muito bonita!
Então se endireitou e tratou de orientar-se. O cabo Stavro se encontrava ao sudoeste, com a ponta onde estava situada Marga ao sul e Kutali ao norte, ambas separadas por uma massa de água de trinta milhas e unidas por terra ao longo de três milhas. Mas ao longo dessas três milhas havia tantas montanhas que era difícil imaginar como poderiam atravessá-las.
- Onde está o aqueduto que leva a água para Marga? - perguntou.
- Não se pode ver daqui - respondeu Andros - mas posso mostrá-lo porque não fica muito longe. Há uma vista muito bonita de um precipício próximo. Ouvi dizer que os viajantes britânicos apreciam muito as vistas bonitas.
- Por favor, pergunte-lhe que quer dizer com "não fica muito longe"- disse Jack.
- A menos de uma hora por um caminho de cabras - disse Graham, depois de traduzir a resposta - Mas diz que poderíamos ir a cavalo pelo caminho mais longo, caso não se importe de perder a bonita vista.
- acho que não estamos aqui para deleitar-nos com bonitas vistas - disse Jack. - O dever exige que nós vamos a cavalo.
Pelo caminho mais comprido, coberto de grama curta, subiram e desceram numerosas montanhas a passo ligeiro e se detiveram em uma depressão da montanha também coberta de grama curta, onde o padre desmontou e disse:
- Aqui!
- Onde? - perguntou Jack, olhando ao seu redor para ver em que parte estavam os arcos de pedra que se erguiam naquele lugar.
- Aqui - repetiu o sacerdote, golpeando com o pé uma pedra calcário muito grande e plana que estava meio oculta pelo capim. - Escutem todos!
Todos agacharam a cabeça e, em meio do silêncio, puderam ouvir a água correr por debaixo da pedra. O manancial ficava no monte Shkrel, e a água descia por um canal meio coberto até as montanhas situadas atrás de Marga.
- Olhe, parece um sinuoso caminho verde. A partir dali desce verticalmente, e posso mostrar-lhe vários lugares nos quais se pode cortar a passagem da água com facilidade.
Jack olhou para Marga e teve vontade de dizer que não gostaria estar na pele do oficial ao comando da guarnição quando a cidade não tivesse água e fosse atacada por uma bateria desde aquela altura. Acreditava que poderia levar canhões e inclusive caronadas até ali, pois, ainda que fossem difíceis de transportar por terra, sobretudo se o terreno era montanhoso, poderia movê-los com bastante facilidade por aquele terreno firme e coberto de grama curta, seguindo o canal, depois que lograsse subi-los para a cidadela. Contudo, não se atrevia a desafiar o destino nem na terra nem no mar, e se limitou a dizer que talvez fosse melhor que regressassem e que estava tão faminto que poderia comer um boi inteiro e pedir ainda mais comida depois.
Começaram a viagem de regresso e pouco depois já avançavam a galope pelo caminho. Os cavalos estavam ansiosos para chegarem aos estábulos, e os homens, ansiosos para chegarem a um lugar onde comer. No caminho se encontraram com um oficial turco, que falou com o padre Andros em um aparte, e ainda que os demais não puderam ouvir o que diziam, notaram seu tom de satisfação. Então o padre Andros lhes disse, tratando em vão de falar com naturalidade, que o bei havia se recuperado de sua indisposição e que tinha muito gosto em convidar ao capitão Aubrey para…
- É um termo raro - disse Graham. - acho que foi pego do albanês. Poderia traduzir-se como "sanduíche" ou "almoço frugal".
Uma tradução mais exata teria sido: cordeiro refogado com açafrão, precedido de três pratos e seguido de outros três. Durante o almoço, com o fim de que Graham tivesse tempo de comer, Sciahan trouxe um intérprete moldavo para substituir-lhe, e lhe falou a Jack da campanha que realizara na Síria junto com sir Sidney Smith em 1799, uma campanha que havia concluído com a expulsão das tropas de Bonaparte de Acre, e também das manobras que havia feito conjuntamente com a frota britânica dias antes da batalha da baía de Abukir. Jack achava que sir Sidney era muito presunsoso, por isso não o considerava um dos membros da Armada mais dignos de admiração, mas escutava comprazido os elogios da Armada, sobretudo porque saíam dos lábios de um militar como o bei, que havia participado em tantas e tão encarniçadas batalhas. Mas seu anfitrião, um homem baixo e com uma comprida barba cinzenta, de toda maneira lhe haveria sido simpático, porque era um homem cavalheiresco e sincero, apesar de que, atuando diplomaticamente, fingira que estava indisposto e mandara o padre Andros para vê-lo para que ele se informasse de qual era a situação por um cristão. Era um homem simples e confiável, como Jack esperava que seriam os turcos. Ao final da refeição Sciahan disse:
- O padre Andros me disse que o senhor já viu em que condições Kutali se encontra, e me alegro com isso. Conforme tenho entendido, o almirante britânico quer que seus barcos usem o porto como base e que o ajudemos a expulsar os franceses de Marga. Se me dé os canhões, eu e todos os habitantes de Kutali lhe prestaremos ajuda.
- Muito bem - disse Jack. - Mandarei meu companheiro buscar os canhões em Cefalonia assim que comece a soprar o vento do norte.
CAPÍTULO 11
Depois do reza de cada uma das horas canônicas, matinas e laudes, prima, terça, sexta, nona, vésperas e completas, em todas as igrejas de Kutali se ouviam orações para que o vento do norte soprasse, orações nas quais os crentes punham mais fervor do que Jack e seus conselheiros houvessem podido imaginar. Os habitantes de Kutali odiavam e temiam ao bei Ismael, mas odiavam e temiam ainda mais a Mustafá. Sabiam por experiência ou por histórias que lhes haviam contado que Mustafá era agressivo, cruel e sofria freqüentes ataques de cólera, e eram poucos os gregos que não haviam perdido algum familiar nos povos queimados ou nos campos devastados por ele no Peloponeso. Além disso, todos pensavam que havia mais probabilidade de que fosse Mustafá que lhes atacasse porque tinha a supremacia naqueles mares e era um homem de ação. Seu medo podia ser medido pela amabilidade com que tratavam os marinheiros que se encontravam em terra e pela ajuda que prestaram aos oficiais quando tencionaram colocar alguns postes pelos quais passaria um enorme cabo que se estenderia do cais até a cidadela, um cabo que forçosamente se curvaria e que deveria ter espaço em ambos os lados de uma ponta a outra. O oficial responsável da colocação do cabo, o senhor Pullings, a quem os habitantes de Kutali chamavam a Donzela porque tinha traços suaves e maneiras finas, só tinha que dar a entender que um muro, um reservado, uma chaminé ou um pombal atrapalhavam para que fossem derrubados imediatamente, por seus donos ou por seus vizinhos ou outros membros da comunidade.
As orações para que soprasse o vento do norte não foram atendidas imediatamente, mas o capitão Aubrey achou que melhor assim porque teve tempo de fazer um relatório, um longo e detalhado relatório do que havia feito, para que o capitão da Dryad entregasse ao chefe da esquadra, e de fazer um escrito no qual solicitava o envio de mais infantes da marinha para levar a cabo o ataque final, o envio de duas corvetas para fazer ataques que distraíssem o inimigo e para evitar que os franceses que ocupavam Corfú mandassem reforços e provisões para Marga, e o envio de dinheiro para contratar por um período de três semanas a três brigadas de mirditas e uma de guegues muçulmanos, que receberiam nove piastras de Gjirokastra por mês, mas que custeariam seu armamento e seu aprovisionamento. Jack tinha poucas esperanças de que mandassem as corvetas, mas acreditava que mandariam o dinheiro, e que a bordo da Dryad regressariam os oficiais e os marinheiros que haviam levado a Bonhomme Bichará, talvez com notícias de que a presa fora vendida, e provavelmente viriam as cartas de sua esposa que houvessem chegado durante sua ausência. Também teve tempo de melhorar suas relações com o professor Graham, com quem tivera uma acalorada discussão, e se bem não resolveram suas diferenças, ao menos chegaram a um ponto em que podiam discordar sem deixar de ser corteses.
As palavras que haviam motivado a discussão, que foram pronunciadas por Jack quando estavam comendo com Sciahan e quase fizeram Graham se engasgar com um pedaço de folha de parreira inteira, eram: "Muito bem, mandarei meu companheiro buscar os canhões…".
- Se não tivesse sido por esse intérprete moldavo, essas palavras nunca teriam sido traduzidas! - havia exclamado Graham quando, por fim, ficaram sozinhos. - Eu me negaria a traduzir semelhante indiscrição - dissera com ênfase e, depois de ofegar durante uns momentos, gritara: - O senhor tinha todas as vantagens que um negociador pode desejar e sem pedir conselho, sem nem sequer parar para pensar, decidiu jogá-las pela borda, sim senhor, jogá-las pela borda.
Então dissera que, ainda que o capitão Aubrey não houvesse considerado oportuno consultar seus conselheiros sobre a postura que devia adotar com relação às negociações com o bei Sciahan, tinha que ter advertido que estava em uma posição em que podia conseguir que os termos do trato fossem ainda mais benéficos para ele. Sem dúvida, o bei teria lhe dado um de seus sobrinhos como refém, e igualmente teriam feito as diversas comunidades da cidade. Em todas as negociações, e, a priore, em todas as negociações com os orientais, cada lado esperava tirar os maiores benefícios possíveis em função da relação de forças, e se uma delas não o fizesse assim, a outra pensava que não era tão forte como aparentava, de modo que aceitar um trato sem pôr mais condições era uma claríssima prova de fraqueza. Porém, além dos reféns e da garantia de que os barcos britânicos poderiam usar o porto, havia muitos outros pontos dos quais tinha que ter falado antes de chegar a um acordo com Sciahan. Por exemplo, o bei e seus conselheiros, homens inteligentes e acostumados a negociar, provavelmente tentariam manter afastado a Mustafá oferecendo-lhe em compensação da perda de Kutali uma parte do território de Marga da qual ele e Sciahan se apoderariam depois de formar uma aliança, uma aliança que os converteria em governantes mais poderosos que Ismael. Por sorte, não era muito tarde, porque as desafortunadas palavras do capitão Aubrey não lhe comprometiam a nada e poderiam considerar-se como uma forma de cortesia, e os conselheiros de ambas partes poderiam começar as verdadeiras negociações.
Jack havia replicado que com aquelas palavras havia adquirido um compromisso, que se entendia muito bem com Sciahan e que, no final das contas, a responsabilidade era do capitão da Surprise. Estas foram as últimas frases de tom moderado da discussão, que se converteu então em uma repreenda acalorada na qual não faltaram os ataques pessoais. Graham dissera que não seguisse repetindo como um louro que era sua a responsabilidade, porque se seu país havia perdido a oportunidade de conseguir algo importante por causa do capricho e da ignorância de um de seus servidores, aos afetados não lhes servia de consolo saber que era sua a responsabilidade, e havia sublinhado que na guerra, sobretudo quando se tratava dos assuntos políticos que influíam nela, havia que considerar as coisas com a objetividade com que um naturalista observava como reagiam um ácido e uma base e como se movia a pata de uma rã morta por efeito de um fluido elétrico, havia que deixar aparte todos os sentimentos e gostos que um tinha e julgar objetivamente. Também dissera que aquele maldito dia o capitão Aubrey se havia guiado por seus gostos e pelo fato de que muitos daqueles homens se chamavam a eles mesmos de cristãos, que havia tomado uma decisão baseando-se em seus sentimentos, e que era evidente que havia atuado assim desde o momento em que havia chegado a terra até que se havia ido, assim que não servia de nada que falasse de respeito e disciplina. Havia acrescentado que ele não era um dos subordinados do capitão Aubrey, que o capitão não podia aplicar-lhe um castigo brutal e sangrento, não podia castigar-lhe com o chicote, como ele vira fazer no barco com profunda pena, e que se fosse um subordinado isso não o impediria de cumprir com seu dever e protestar com energia de uma ação totalmente desacertada. Depois havia acrescentado que era inútil que o capitão fizesse um gesto ameaçador e gritasse, porque ele não se acovardava ante nada, que se o capitão Aubrey, como alguns militares, confundia a superioridade física com a autoridade intelectual, esse era um problema do capitão. Havia insistido em que nada impediria que ele dissesse a verdade serenamente e sem levantar a voz porque o volume da voz não tinha nenhuma relação com a veracidade das palavras, que o capitão podia gritar se quisesse, mas isso não podia mudar a verdade, e que ainda que disparasse contra ele um canhão, a ultima ratio regum que outros empregavam, a verdade não mudaria. Então, rouco de tanto gritar, dissera que o capitão Aubrey não tinha o monopólio da sabedoria, ainda que afirmar isso era supérfluo, como o seria afirmar que era um homem de considerável tamanho e sem educação, e que qualquer observador imparcial se daria conta disso ao comparar sua ignorância supina e sua pretenção com os amplos conhecimentos que tinha de língua, literatura e história turcas e tudo o que sabia com respeito aos costumes e à política turcas, e ademais… nesse momento Stephen entrara, passara a falar e não havia deixado que lhe interrompessem até que o bendito toque do tambor lhe havia permitido levar o invencível Graham para a câmara dos oficiais, e ali, rodeado de homens silenciosos e tensos (pois todos haviam ouvido aos dois cavalheiros, já que as anteparas não eram muito grossas e a discussão fora muito violenta, tão violenta que os gritos teriam atravessado inclusive anteparas de nove polegadas de grossura), esquartejou um par de aves de Kutali.
Jack lamentava que durante a discussão, como sempre, as palavras lhe haviam faltado, enquanto que dos lábios de Graham não haviam deixado de fluir palavras bem escolhidas, e também que Stephen não lhe houvesse apoiado como ele esperava.
- Esperava que me apoiasse um pouco mais - dissera. - Gostaria que tivesse dito algo em latim ou grego quando ele me criticou por meu tamanho.
- Bem, meu amigo, você já o havia chamado depreciativamente de rato de biblioteca. A verdade é que então ambos estavam insultando, e isso põe fim às argumentações. E não intervim antes, quando falavam como cristãos em vez de criticar como turcos, porque pensava que, em parte, Graham tinha razão.
- Acha que fiz mal? Nas negociações deste tipo e com homens como Sciahan, é melhor atuar com espontaneidade do que regatear e fazer um trato formal.
- Acredito que devia ter consultado a Graham antes de tomar essa decisão, já que conhece muito bem a cultura e a política turca. Você o feriu por não tê-lo consultado. Provavelmente tenha razão no que disse com respeito a Mustafá, pois quanto mais ouço falar do bei capitão e mais penso na situação, mais certo estou de que tem menos interesse em possuir Kutali que em evitar que caia em mãos de Ismael, quer dizer, que quer chatear a Ismael, como diriam os marinheiros. Ouvi muitos relatos que demostram que sente por ele um ódio mortal, e, em minha opinião, se não tivesse se comprometido com Sciahan, poderia ter se beneficiado disto, porque, afinal de contas, dizem que na guerra não há distinção entre turcos e cristãos nem moral.
- Se a guerra é assim, não vale a pena fazê-la - disse Jack.
- Mas Deus sabe que a guerra não é um jogo - respondeu Stephen.
- Não - concordou Jack. - Talvez deveria ter dito que se era assim, não valia a pena ganhá-la.
O vento do norte chegou. A Dryad iniciou sua viagem para Cefalonia e Malta; o bei proibiu a saída de barcos mercantes e pesqueiros do porto para que a notícia do ataque a Marga não chegasse à cidade antes que a primeira bala de canhão e a mensagem com que obrigariam à máxima autoridade a se render; e os tripulantes da Surprise começaram a construir aquela espécie de teleférico.
A princípio tinham a esperança de que poderiam tê-lo terminado quando os transportes voltassem (após quatro ou cinco dias com o vento variável que era própio dessa estação do ano, mas logo compreenderam que haviam sido muito otimistas e que necessitariam pelo menos de uma semana, já que a boa vontade dos habitantes de Kutali não chegava ao extremo de fazer-lhes derrubar as torres de três igrejas muito apreciadas por eles e um muro com nichos de um cemitério, e a única maneira que podiam esquivá-los era estabelecendo uma nova rota por onde o cabo passaria, partindo da ponta do cais, o que levaria muito mais tempo. Contudo, começaram a trabalhar com muito brio, e os mercadores e os armadores de Kutali lhes deram tornos e grande quantidade de cordas de vários tipos (ainda que nenhuma podia se comparar com os cabos da Armada), e logo o sistema estava montado, ainda que com guindalezas{30} finas de cima até em baixo. Mas esta montagem era provisória, porque as guindalezas seriam sustituídas por vários pedaços de cabo de dezessete polegadas atados, cada um de cento vinte braças de comprimento, e o conjunto seria elevado e esticado tanto como fosse possível.
O número de orações para que soprasse o vento do norte que haviam dito os albaneses católicos, os gregos ortodoxos e os membros de outros grupos religiosos minoritários, como os melquitas, os coptas, os judeus e os nestorianos, fora exagerado, e a resposta a elas também foi. O vento do norte começou a soprar por fim, mas se bem fez que a Dryad chegasse rapidamente a Cefalonia, impedira os transportes de sair dali, e muito cedo se formaram ondas tão grandes que ninguém podia trabalhar na ponta do cais. Pullings e o contramestre e seus homens se viram obrigados a trabalhar no último vão da rota ou em vãos intermédios, e como tiveram que subir e descer as ensolaradas ruas da cidade dia após dia, chegaram a conhecer muito bem a cidade e seus habitantes, com quem falavam usando as poucas palavras de albanês e grego que haviam aprendido na Armada.
No início Jack passava o tempo supervisando a construção do teleférico e examinando o caminho por onde seriam transportados alguns canhões com os quais atacariam Marga, e o acompanhavam o condestável e o tenente da infantaria da marinha para ajudá-lo a escolher o lugar de localização dos canhões, mas logo percebeu que era uma imprudência pass;ar muito tempo ali em cima, já que isso poderia levantar suspeitas, e aceitou com gosto o convite do bei Sciahan para ir para a caça do lobo. Levou com ele Williamson, o guarda-marinha doentio, pensado que lhe cairia bem tomar ar, e lhe recomendou que não se separasse dos sobrinhos do bei, que lhe mostrariam o que tinha que fazer e de que forma evitaria ser devorado pela presa. Passaram um dia muito agradável, salvo pelo fato de que o cavalo de Jack, apesar de ser um magnífico cavalo de raça epirota, quase não podia suportar o peso de seu jóquei, e pela tarde, quando o lobo se adentrou em um espesso bosque, onde ele e muitos outros lobos tinham sua guarida, negou-se a continuar a marcha ao chegar em uma clareira. O lugar estava muito escuro, e os dois estavam sozinhos, pois o bei, seus sobrinhos, o senhor Williamson e a matilha haviam desaparecido atrás das árvores fazia algum tempo, e Jack notou que o cavalo tremia e suava, e pensou que seria inútil tratar de persuadi-lo a seguir porque não podia mais. Desmontou e ouviu o cavalo inspirar com alívio e depois enrolou as rédeas no braço e, muito devagar, retrocedeu com ele pelo mesmo caminho com a intenção de sair para o lugar por onde haviam entrado, um lugar coberto de grama próximo a um arroio. De vez em quando o cavalo voltava para Jack seus olhos brilhantes e inteligentes, como se quisesse dizer algo, possivelmente que estava angustiado, pois cada vez estava mais escuro e o lugar coberto de grama não aparecia. Então, quando Jack observava a pequena parte do céu que podia ver através da folhagem para orientar-se, ouviu o uivo de um lobo bastante longe, à sua direita, e outro um pouco mais longe. O cavalo começou a se agitar e pouco depois recuperou por completo as forças, e ainda que Jack o tivesse firmemente seguro pela braçadeira, não podia montá-lo. Ambos giravam ao mesmo tempo, cada vez mais rápido, e, por fim, Jack conseguiu que colasse a anca em uma árvore e aproveitou a oportunidade para subir nele saltando como uma rã. Quando logrou meter de novo os pés nos estribos (um processo longo) e controlar a marcha do cavalo, que mantinha as orelhas erguidas, já não estavam entre as árvores, subiam trabalhosamente a ladeira de uma colina coberta de samambaia em cujo cume havia uma pequeno arvoredo que apenas podia ver-se. Voltou a ouvir uivos de lobos, à sua direita e à sua esquerda, e depois outro no arvoredo, ao que seguiu o grito: "Ei, capitão!" Então viu as silhuetas de Williamson e do mais jovem dos sobrinhos do bei recortar-se sobre o horizonte quando saíam do arvoredo, e quando os dois se aproximavam dele, voltaram a uivar.
- Por que está dando esses malditos uivos, cadete?
- Estamos imitando os lobos, senhor. Solimán o faz tão bem que quase sempre lhe repondem. Não acha divertido? Como os outros garotos vão nos invejar!
Stephen também achou uma distração enquanto o vento impedia que os canhões chegassem de Cefalonia. Nunca em sua vida vira uma águia manchada e desejava veementemente ver uma, e como por aquelas terras abundavam as águias manchadas, decidiu dizer a todos qual era seu desejo. O padre Andros não sabia nada de águias, nem manchadas nem sem manchas, mas ouvira dizer que uma família dos arredores de Vostitsa que se dedicava ao pastoreio sabia muito de aves, sabia seus nomes e como chamá-las, e, ademais, pegavam os pintinhos dos falcões de seus ninhos e os criavam e adestravam para serem utilizados na cetraria. Visitaram a mãe dos dois irmãos pastores, e a mulher disse que conhecia muito bem a águia manchada, que seu marido lhe havia mostrado muitas vezes quando haviam ido juntos às montanhas e que seus filhos encontrariam uma para que o cavalheiro a visse. Stephen confiava na boa vontade da mulher, mas em nada mais, porque ele havia feito algumas prováveis descrições da ave e ela afirmara que a ave correspondia a todas as descrições e porque, obviamente, ela desejava tanto comprazer ao sacerdote que teria prometido a ele inclusive um casuar. Portanto, Stephen começou a percorrer o caminho de dezessete milhas que levava às montanhas sem muitas esperanças, mas regressou tão alegre e excitado que suas pernas tremiam, e entrou na cabine cambaleando.
- Felicite-me, Jack! Eu vi cinco águias manchadas, duas velhas e três jovens!
Durante aqueles dias, o professor Graham se reuniu com freqüência com o bispo mirdita, o padre Andros, os chefes de outras comunidades cristãs, os conselheiros turcos do bei e alguns funcionários turcos que estavam de passagem pela cidade, a quem havia conhecido fazia tempo em Constantinopla. Quando falava em turco ou em grego, deixava de usar seu acostumado tom empolado, o que lhe convertia em uma pessoa mais agradável e, portanto, em um agente secreto mais eficiente. Conseguiu recolher uma assombrosa quantidade de informações sobre as relações de Ismael com os franceses, as atraições dos paxás do interior da região, o pedido do vice-rei egípcio aos ingleses de que o ajudassem quando se sublevasse contra o Sultão e a amizade, a briga e a reconciliação de Mustafá e Ali, o paxá de Jannina, e comunicou a Stephen, acrescentando que apesar de que ninguém apreciava seus conselhos nem lhe pedia, era um homem de consciência, e que talvez o doutor Maturin pudesse fazer-se ouvir onde ele não podia. Graham pôde dedicar a esta tarefa muito tempo, muito mais do que esperava, pois, ainda que as grandes ondas deixaram de se formar, o que permitiu continuar o trabalho no cais, o vento seguiu soprando obstinadamente do norte. O teleférico foi terminado quando não havia nem sequer indícios de que os transportes estavam perto, e todos os guardas-marinhas e os grumetes da corveta, com um pretexto ou outro, caminharam ou engatinharam de uma ponta a outra daquela impressionante série de catenárias, e uma caronada de trinta e duas libras e um canhão longo de doze fizeram com êxito as viagens de teste até o ponto mais alto e depois voltaram a descer. Em resumo, tudo já estava pronto mas os canhões ainda não haviam chegado, e os espiões que haviam sido enviados para Marga pelos caminhos que cruzavam as montanhas haviam informado que na cidade ninguém ouvira falar do ataque.
Mas o vento do norte seguiu soprando, soprou sem parar um dia depois do outro. Foi então, quando a espera se fez tediosa e muito difícil de suportar, quando as coisas já estavam maduras, quase maduras demais para o ataque, quando Jack teve o temor de que o plano, que começara a desenvolver-se tão bem, saísse mal, talvez por uma simples razão, o vazamento de informação a respeito dele e perdessem a vantagem do ataque surpresa, o que era provável, pois, devido a Sciahan ter proibido a saída de barcos do porto, cada vez se acumulavam ali mais embarcações, e provavelmente o inimigo não tardaria em descobrir o motivo. Uma noite, quando Stephen e ele estavam sentados em silêncio na cabine, durante um intervalo entre duas peças musicais, enquanto a fragata balançava suavemente nas águas próximas ao cais de Kutali, Graham subiu a bordo. Ambos ouviram o sentinela dar o alto e a Graham responder-lhe com sua inconfundível voz escandalosa, e alguns momentos depois, Killick entrou na cabine para dizer que o professor queria falar com o capitão.
- Tenho que informar-lhe de algo, senhor - disse Graham em tom formal. - Pelo acampamento turco corre o rumor de que Ismael foi nomeado governador e que o Sultão confirmou a nomeação e que o documento onde consta isto já chegou a Nicópolis.
Jack pôs o violino sobre o escaninho enquanto pensava: "Oh, meu Deus, dei meu apoio à pessoa errada!" e muitas outras coisas terríveis.
- O senhor acha que é verdade? - perguntou.
- Não o sei - respondeu Graham. - Acho raro que em um assunto deste tipo o Sultão tenha tomado uma decisão tão rápido, porém, por outro lado, nosso embaixador, desgraçadamente, estava fazendo uma grande pressão.
- Por que diz "desgraçadamente"?
- Porque se Ismael tomar o poder não poderemos atacar Marga. Como provavelmente o doutor Maturin lhe terá dito, tenho provas irrefutáveis de que tem muito boas relações com os franceses, das quais tira muito proveito.
- Sabe de onde procede o rumor?
- O mais provável é que o haja lançado um correio que passou pela cidade e que levava mensagens ao paxá Ali. Ainda que acho que é exagerado, é possível que no fundo haja algo de verdade. Ninguém inventaria uma notícia tão horrível.
- Se o rumor for verdadeiro, o que o senhor acha que deveríamos fazer?
- Está me pedindo conselho, senhor?
- Sim, senhor.
- Não posso dar uma resposta adequada. Não obtive de primeira mão esta informação, mas depois que havia passado por muitas pessoas, e por isso provavelmente estará distorcida. Tenho que falar com o bei amanhã pela manhã. Por sorte, é madrugador…
O velho turco saiu de sua tenda e subiu em seu cavalo ao amanhecer, ainda que não se levantara antes do capitão Aubrey, porque o capitão não se deitara. Jack passara boa parte da noite caminhado de um lado para outro do convés, observando as nuvens que vinham do norte, pelo que havia irritado aos homens que faziam guarda no porto e havia causado terror a Mowett quando voltava silenciosamente para a fragata depois de um encontro com uma mulher. E durante esse tempo se repreendera inutilmente por não ter feito o que deveria ter feito, mostrando-se várias maneiras de agir que forçosamente houvessem tido como consequência o êxito de sua missão. Por exemplo, pensara que se houvesse fechado o trato com Mustafá e houvesse mandado buscar os canhões imediatamente, quando o vento era favorável, Mustafá teria se apoderado imediatamente de Kutali, e agora os dois estariam atacando Marga, porque o bei capitão era um rufião e um homem irrascível e de reações imprevisíveis, mas também era um homem de ação. Mas havia replicado que isso era absurdo, que provavelmente Mustafá não pudesse apoderar-se de Kutali porque para fazê-lo haveria tido que conquistar rua por rua, ainda que tivesse destruído suas muralhas e suas casas com os canhonaços, e havia acrescentado que não tinha a segurança de que Mustafá cumpriria sua palavra de atacar Marga. Quando já estava farto e mais que farto de se sensurar, fora para baixo, e depois de observar durante um tempo as cartas de navegação onde aparecia o canal situado ao norte de Cefalonia (cartas de navegação que conhecia de memória), continuara a inacabada carta para sua esposa:
"… muito, minha querida, em minha vida profissional, porque se tudo isto for verdade, terei perdido tempo e dinheiro e terei desperdiçado a oportunidade de triunfar. Como somos uma mesma pessoa, posso dizer-te como isso afetará minha própia vida: se regresso a Malta com os canhões, sem ter cumprido minha missão, as mostras de boa vontade e o apoio de Harte não terão nenhum valor, não o impedirão de jogar-me pela borda. Poderá dizer que apoiei à pessoa errada, e não poderei negar. Eu sou o responsável e o culpado de ter feito isso, e nenhuma das razões que aduza para justificá-lo (e poderia aduzir muitas) influirá na avaliação que os demais farão. E se tiver má vontade, pode fazer parecer ainda pior o que fiz. Mas mesmo um relatório favorável (que não espero) faria que pusessem uma cruz junto ao meu nome, e isso, depois do fracasso de Medina, poria-me em uma posição desvantajosa em Whitehall. O que mais me entristece é que, como consequência de isso, ser-me-á mais difícil de ajudar a Tom Pullings. Se lhe dão uma ascensão e um emprego que corresponda à categoria alcançada, teriam que dá-lo muito cedo, porque não deve haver homens mais velhos de trinta e cinco anos, e muito menos anciãos, ao comando de uma corveta da Armada. Além disso, estou convencido de que os habitantes de Kutali teriam oposto resistência a Mustafá ainda que ele tivesse destruído as muralhas da cidade, e quando penso no que seus homens teriam feito ali, alegro-me de não ter contribuído com isso. "
Então pensou em Andrew Wray, na terrível aliança de Wray e Harte, na grande quantidade de homens influentes a quem ele se negara a comprazer, em seu pai…
Oito badaladas. Entre seus pensamentos passou um grito que vinha da escotilha principal: "Todos os marinheiros levantem-se!". Logo ouviu os ajudantes do contramestre gritarem: "para cima, marinheiros! Vamos, marinheiros! Levantar para trabalhar! Levantar para trabalhar! Estou com uma faca afiada e a consciência tranqüila! Levantar para trabalhar! Fora da maca ou vão ao chão! Levantem-se, preguiçosos!". E depois, ao longe, ouviu como os marinheiros riam porque Parslow o Dorminhoco havia caído ao chão após cortarem os cabos de sua maca.
Oito badaladas. Killick tirou os postigos das janelas de popa, através das quais entrou a luz cinzenta da manhã, e arqueou as sobrancelhas e virou para um lado e para outro sua cara de rato. Jack pôde ver bem sua cara de rato e notou que estava muito limpa, ainda que não entendia como era possível, pois lembrava do tempo que passara na coberta inferior e sabia que os marinheiros não tinham água com que se lavar até a guarda da manhã, e nunca tinham muita. Killick tinha a cara limpa e, além disso, uma expressão benevolente esta manhã, porque era evidente que o capitão estava abatido. É que atuava como uma pessoa sentada em um dos extremos de uma gangorra, pois tinha mau humor quando Jack estava contente, e vice-versa. Informou a Jack que o vento seguia soprando do nor-nordeste e que o tempo era bastante bom e depois foi buscar o café.
- O professor desceu para terra muito cedo - disse em tom amável quando trouxe o café.
- Ah, é? - perguntou Jack. - Quero vê-lo quando regressar. Chama-me no momento em que suba a bordo.
Depois de um comprido intervalo, durante o qual os faxineiros limparam o convés entre os habituais ruídos da pedra arenito, os esfregões e os jorros de água e uma horda de mais de duzentos marinheiros colocaram as macas no convés entre o estrondo de seus apressados passos e seus gritos e quase imediatamente depois correram para popa para desjejuar, Stephen entrou na cabine, e Jack e ele, sem apetite, se puseram a comer torradas com manteiga e decidiram ficar ali esperando por Graham.
- Pelo menos o barômetro está baixando - disse Jack.
- E o que significa isso?
- Que o tempo vai mudar. Provavelmente o vento vai rolar para leste ou para sudeste. Oh, meu Deus, quanto o desejo! Ainda que role muito pouco para leste, isso será suficiente para que os transportes possam vir. Venable e Alien são homens de brio e excelentes marinheiros, e acredito que se farão ao mar assim que for possível. Com um forte vento que permita levar desdobradas as gáveas, não tardarão mais de dois dias de navegação.
- Bom dia, Tom - disse, com uma expressão de surpresa. - Sente-se e coma algo.
- Desculpe-me por ter irrompido na cabine, senhor - disse Pullings - mas acabo de vir do cais e queria lhe dizer que a cidade é uma barulheira. Conforme dizem, Ismael será o governador da cidade e todos querem que lhes demos canhões para defenderem-se contra ele. Um grupo de homens veio para ver-lhe, senhor. Estão tão angustiados que lhes disse que o senhor os receberia.
- Bem, Pullings… - Jack começou a dizer, mas os homens já estavam a bordo e nada poderia impedir que entrassem.
No grupo havia muitos eclesiásticos de distintas religiões (mas o padre Andros não estava no grupo), mas também alguns homens que haviam sido senadores em tempos da república e mercadores de meia idade ou anciãos. Disseram ao capitão Aubrey que seu dever como cristão era proteger seus correligionários e ajudar-lhes a conseguir a independência de Kutali ou, pelo menos, manter sua condição de cidade privilegiada. Se a cidade era turca, nominalmente turca, em vez de fazer parte da república das Sete Ilhas, era só por um erro que logo Deus retificaria. Jack replicou que era simplesmente um oficial que cumpria ordens e que não podia comprometer seu almirante e muito menos ao governo de seu país e ao seu rei. Os homens explicaram que a situação especial de Kutali se mantivera, principalmente, porque eles possuíam a cidadela e porque o bei Sciahan respeitara seus direitos, mas acrescentaram que Ismael não os respeitaria e que, desgraçadamente, agora se sabia que a cidadela estava vazia, que não era uma ameaça. Estavam certos de que com vinte canhões poderiam impor condições a Ismael e rogaram ao capitão Aubrey que enviasse pelo menos os canhões da coberta superior para a cidadela e lhe propuseram que os substituisse com os que os transportes trariam dentro de pouco, e um dos antigos senadores, um armador e um homem de experiência, disse que pelas nuvens que se haviam formado, nos arredores de Cefalonia o vento já soprava do leste. Jack insistiu em que não podia fazer o que lhe pediam porque sua fragata e tudo o que havia nela pertencia ao seu rei. Então eles lhe contaram o que as tropas turcas faziam quando se apoderavam de uma cidade cristã, sobretudo os mercenários, os bashi-bazouks, que eram numerosos entre as tropas de Ismael: faziam uma matança, violavam as mulheres, sodomizavam os meninos e os homens, profanavam as tumbas, as igrejas e todas as coisas sagradas. Nesse momento Jack sentiu uma grande pena, pois alguns daqueles homens velhos e dignos se ajoelharam.
- Cavalheiros, cavalheiros! - exclamou Stephen. - Acredito que nos precipitamos muito. Isso não é mais que um rumor, simples palavras que o vento leva de um lado para outro. Peço que não ajam com desespero e que antes de dar um passo que talvez ofenda os turcos vão falar com o bei Sciahan para averiguar qual é a verdade e o que ele pensa em fazer.
- Já ouvido algum rumor que não fosse verdadeiro? - perguntou um homem alto com uma barba branca.
- Pobre gente! Pobre gente! - murmurou Jack quando os olhava atravessar o portal, e depois, alçando a voz, disse: - Senhor Gill, ordene rebocar a fragata para aproximá-la um cabo mais do canal.
Deu essa ordem porque vira que muitas mulheres, umas com véu e outras com manto, se estavam agrupando no cais, e não poderia suportar que subissem a bordo e implorassem sua ajuda. Os marinheiros que transportaram a âncora pequena para fazer o reboque e os que desamarraram a fragata sabiam por que o faziam, e tanto em seus rostos como nos dos oficiais e do capitão, refletiam-se a tristeza e a vergonha quando a fragata, com suas potentes baterias, afastava-se do abarrotado e silencioso cais.
Graham chegou depois de meio-dia. Estava vestido como os turcos, e tinha um aspecto tão normal com aquela roupa que a princípio nem Jack nem Stephen notaram a diferença.
- Acho que cheguei ao fundo do assunto - disse Graham - à verdade subjacente ao rumor. Parece que deram a Ismael um tsarfetim, uma espécie de nomeação preliminar, mas o Sultão não assinou a nomeação oficial e, portanto, esse documento não chegou a Nicópolis nem a nenhuma parte. Mas talvez o tsarfetim tenha chegado, porque não é raro que estes documentos que anunciam quem vai governar em determinados lugares sejam enviados para eles para conhecer a opinião de seus habitantes. Há certa semelhança entre isto e a publicação dos proclames antes de um casamento. Vou cavalgando até Constantinopla para falar com o embaixador britânico, e acredito de que quando lhe mostrar as provas de que Ismael tem excelentes relações com os franceses, não só retirará seu apoio como também fará pressão para que o tsarfetim seja anulado. Ademais, Sciahan e os habitantes de Kutali me deram uma série de letras de troca por uma soma suficiente para conseguir sua anulação e, quase com toda segurança, a nomeação de Sciahan. Também me proporcionaram uma guarda e cavalos albaneses.
- Suas palavras me fizeram sentir um grande alívio, professor Graham - disse Jack. - Ainda podemos lançar o ataque contra Marga.
- Isso espero - disse Graham. - Mas Sciahan ainda não está seguro de que lhe darão a nomeação e não quer esticar muito a corda do arco com temor de que se rompa, não quer mover-se antes que retirem o tsarfetim; contudo, diz que quando for nomeado governador, cumprirá com sua parte do acordo. E é provável que então os canhões já estejam aqui.
- Com este vento, acredito que chegarão depois de amanhã - disse Jack. - Porém, diga-me, não lhe parece que se cansará muito fazendo uma viagem tão longa a cavalo? Não preferiria viajar em um desses magníficos caiques? Navegam muito bem de bolina, e ouvi dizer que podem chegar a percorrer duzentas milhas em um dia.
- Não o duvido - disse Graham - mas o mar é um elemento inseguro, muda com a lua, como a mulher, e se move ao capricho. Por exemplo quando um avança uma milha pela superfície, ao mesmo tempo a massa de água que está debaixo retrocede uma légua. Prefiro a leal terra, onde o avanço que um faz é absoluto, se bem mais fatigoso. Ademais, em um barco me encontro tão mal como um turco ou um gato. E agora, digam-me, cavalheiros, querem que lhes traga algo de Constantinopla? Se não tem, com sua permissão, partirei imediatamente.
Stephen desceu para terra com Graham, e quando se dirigiam para a planície onde se achavam os cavalos, Graham disse:
- Passarei por Jannina para que o paxá Ali me conte como estão as coisas no palácio do Sultão e para falar com seus conselheiros gregos cristãos e com Osman o Esmirniano, que conhece o modo de pensar do Sultão. É o autor dos contos de Pera, que o senhor elogiou tanto.
- Tem boas relações com o paxá Ali?
- Uma vez lhe fiz um favor, e ainda que seja um homem de temperamento, não é um ingrato. Proporcionar-me-á um grupo maior de soldados como guarda, mas não o aceitarei.
- Por que, estimado colega?
- Porque se suspeita que Ali seja desleal, que quer converter-se em um governante independente, como outros paxás fizeram ou tentaram fazer. Penso que o faria se pudesse desfazer-se de Mustafá, que pode atrapalhar-lhe no mar. Assim que quanto menos me vejam com ele ou com seus homens, melhor. Os guegues que vão me acompanhar estão chegando. Adeus, Maturin.
O capitão Aubrey tinha a intenção de zarpar imediatamente e ficar em alto mar até o dia em que provavelmente Graham regressaria, em parte porque desejava ir ao encontro dos transportes e aproximar-se com eles de Paxoí, Corfú e outros lugares ocupados pelos franceses para atacá-los se se apresentasse ocasião, em parte porque a comprida permanência no porto de uma cidade tão hospitaleira prejudicava a saúde e a disciplina da tripulação, e, sobretudo, porque se prolongasse sua permanência ali, o chefe da guarnição francesa de Marga se preocuparia. Apesar de que nenhum barco podia sair do porto, nessa região parecia que as notícias se propagavam pelo vento, e o padre Andros, um dia que lhe levara um cervo que Sciahan mandou de presente, e lhe comunicara que nos mais remotos povoados das montanhas já circulavam várias versões do rumor da nomeação de Ismael. Mas nem o capitão Aubrey nem o primeiro oficial nem o contramestre desejavam zarpar deixando tanta quantidade de cabos, entre eles os melhores que tinham, estendidos entre o cais e a cidadela, pois, geralmente, um barco necessitava usar muita quantidade em uma tormenta, às vezes dois ou três rolos unidos pelos extremos, e fariam papel de bobos se o barco fosse arrastado para uma costa a sotavento por não poder jogar a âncora no lugar apropriado por ter deixado para trás, oscilando na ladeira de uma montanha, meia milha de cabo de dezessete polegadas de excelente qualidade. Por outro lado, ainda que os habitantes de Kutali estivessem menos angustiados que no início, ainda entravam um depois de outro nas igrejas, e para Jack lhe custava decidir-se em dar a ordem de tirar o cabo do teleférico.
Não costumava discutir com ninguém as ordens que pensava dar, porque considerava que um barco, e especialmente um barco de guerra, não era "uma maldita associação destinada a organizar debates" nem "a condenada Câmara dos Comuns", mas desta vez consultou a Pullings.
- O que você acha, Tom?
- Acho que haverá uma revolta, senhor - respondeu Pullings - porque pensarão que os abandonamos. Acredito de que se eu tocasse ainda que fosse em um pequeno cabo, Annie teria um ataque de nervosismo.
- Quem é Annie? - perguntou Jack.
- Bem, senhor… - respondeu Pullings, vermelho de vergonha. - É uma jovem que visito às vezes para tomar café com ela, muito pouco café, e para aprender a língua e os costumes da região.
Stephen perguntou ao padre Andros qual era sua opinião, e o padre Andros, depois de ficar um pouco com o cenho franzido e mexendo na barba, respondeu que seria melhor esperar um ou dois dias para dar tempo para que as pessoas compreendessem que seus temores eram infundados, pois a fragata não iria definitivamente, e que no final tudo ia sair bem.
- Pode-se conseguir muitas coisas lançando um rumor, usando adequadamente a transmissão de informação de boca em boca - disse, com uma expressão que causou assombro para Stephen. - Se me o houvesse dito antes, o rumor já estaria circulando.
Por fim, sexta-feira à noite, a Surprise já estava ancorada só com uma âncora, balançando suavemente, com a proa dirigida para o sudeste, para o lugar de onde vinha o vento, e o capitão pensava em recolher os cabos pela manhã seguinte. O capitão e o cirurgião estavam tocando fortíssimo, aproximando-se do clímax do concerto em dó maior de Corelli, e nesse momento a porta se abriu bruscamente e no espaço apareceu Graham. Ficaram tão surpresos em vê-lo que ficaram olhando-o com os olhos muito abertos sem poder falar. Os sons cessaram de repente e Graham disse:
- Mustafá está em alto mar. Aprisionou os transportes. Se se apressar, poderá capturá-lo.
- Onde está?
- Os levou para Andípaxoi e voltará a zarpar ao amanhecer para ir se reunir com o paxá Ali em Makeni.
Jack atravessou a grande cabine com passos compridos e, a escuras, subiu pela escada até o castelo de popa. Teve a tentação de ordenar cortar a amarra da âncora, mas então pensou que teria que fazer-se ao mar quase sem nada que pudesse segurar a fragata ao fundo do mar e sentiu horror e lhe pareceu que era um ato indevido, quase ímpio, assim que ordenou:
- Todos a recolher a âncora!
Quando se foi do convés, os marinheiros já estavam empurrando as barras do cabrestante e seu cilindro já havia dado uma ou duas voltas, acompanhado do rítmico som da catraca. Só tinham para iluminar-se três faróis nos cestos das gáveas e alguns no convés e na entrecoberta, mas era assombroso ver como os tripulantes de um barco de guerra que haviam se acostumado a trabalhar juntos se moviam agilmente e faziam corretamente seu trabalho apesar de estar nessas condições e de que apenas cinco minutos antes a metade deles ainda estavam dormindo.
Quando voltou para a cabine, Stephen estava tirando as botas de Graham para tratar as roçaduras que lhe haviam feito.
- Parece que sua viagem foi esgotador. De onde vem?
- De Jannina.
- Então a viagem foi bastante longa. Gostaria de tomar um copo de conhaque e comer algo? Killick! Killick!
- O senhor é muito amável. Eu gostaria de tomar leite com cacau e um ovo passado em água, mas já os estão preparando.
- Quando haja recobrado as forças, contem-nos como Mustafá realizou esta extraordinária ação.
Trouxeram a leite com cacau, mas as mãos de Graham tremiam tanto que quase não podia beber diretamente do jarro. Então, como a fragata apenas se balançava, o pôs sobre o atril de Diana e tomou o leite por sucção.
- Estava muito boa - disse e estendeu o braço com o jarro firmemente seguro para que pusessem mais. - Eu lhe contarei agora. Mustafá se sublevou, rebelou-se contra o Sultão e se proclamou soberano de seu país. Necessitava dos canhões e se apropiou deles.
- Houve um combate? Feriu muitos de nossos homens?
- Não. Atraiu os transportes com uma estratagema e tratou bem aos tripulantes porque espera fazer um trato.
- Está seguro de que irá de Andípaxoi para Makeni ao amanhecer?
- Tão seguro como posso ficar de algo neste mundo de falsas aparências- respondeu Graham. - Amanhã pela tarde tem um encontro com o paxá Ali em Makeni e irá até ali na Torgud.
- Desculpe-me um momento - disse Jack.
No convés, o cabrestante girava constantemente. A fragata começava a deslizar pelas águas negras. Jack entrou na cabine do oficial de derrota e, no momento em que pedia um lanterna, ouviu que do castelo o contramestre dizia: "recolhida a amarra, senhor!" e que Pullings respondia: "Preparados para recolher a âncora!"
Jack examinou várias cartas de navegação sob a luz do farol, e observou que entre Andípaxoi e Makeni o vento costumava soprar do sudeste e ter uma intensidade que permitia usar as joanetes desdobradas. Traçou a rota que Mustafá teria que seguir e outra que convergia com ela perto da entrada do canal de Corfú, cujos lados eram tão próximos que obrigariam a seguir o rumo correto inclusive ao navegante turco que mais tivesse se desviado dele. Examinou as rotas duas vezes, tendo em conta a forma de navegar de ambas embarcações, e chegou ao convencimento de que era quase impossível que não se encontrassem. O senhor Gill, que apesar de estar ainda sem se barbear e dando bocejos, fazia cálculos numéricos com rapidez e exatidão, chegou à mesma conclusão independentemente. Pensado na rota que ia seguir foi até a proa para ver subir a âncora para o pescante e amarrá-la, e enquanto estava ali de pé, notou qual era o estado de ânimo da tripulação. Todos estavam excitados porque pensavam que iam entabular um combate e tinham muita curiosidade para saber quem era seu adversário e, ademais, estavam ansiosos para que o capitão desse a ordem de repartir grogue, como costumavam fazer os capitães mais humanitários, entre eles o capitão Aubrey, quando mandavam os marinheiros levantarem-se fora da hora habitual, sobretudo se se achavam em um porto. Regressou para a popa pelo corrimão de estibordo, olhando como se afastavam as últimas luzes de Kutali, e ao chegar ao castelo de popa, chamou o oficial de guarda e ordenou:
- Faça rumo ao norte para dobrar o cabo. Porém, por favor, senhor Mowett, mantenha a fragata a bastante distância da margem. E quando o hajamos dobrado, faça rumo ao sudoeste e desdobre as gáveas e a bujarrona.
- Rumo ao norte, sim, senhor. A bastante distância da margem. Depois rumo ao sudoeste. Gáveas e bujarrona.
O professor Graham tinha em sua frente o prato com os ovos, que ainda não começara a comer, e na mão uma torrada com manteiga. Parecia mais velho, muito débil e enfermo.
- Pusemos a proa para o alto mar, senhor - disse Jack. - Se a informação com respeito à Mustafá for certa e se o vento seguir soprando na mesma direção e com a mesma intensidade, encontraremo-nos com ele amanhã pela tarde.
- Acredito que é certa - disse Graham. - Eu lhe darei mais detalhes deste assunto.
Guardou silêncio, e durante alguns momentos só se ouviram os rangidos de inumeráveis cabos, aparelhos e paus, que se produziam porque a fragata aumentava de velocidade e porque suas velas mudavam de orientação para pegar o vento, e o rumor da água ao passar pelos costados da fragata. Depois continuou:
- Estou muito cansado e aturdido para dar todos os detalhes, e é possível que me esqueça de alguns importantes. Então, senhor, o rumor da nomeação de Ismael era falso, era uma invenção do paxá Ali. Em toda a região acreditaram que era verdadeiro, eu acreditei, do que estou envergonhado, e Mustafá acreditou, que era a quem se tencionava enganar com ele.
- Por que Mustafá?
- Para fazê-lo rebelar-se, o que já estava a ponto de fazer. Mustafá não ia tolerar que Ismael triunfasse, e, com efeito, ao informar-se disso, acometeram-lhe os ciúmes e a cólera. Além disso, o paxá Ali também o induziu a fazê-lo mandando um amigo íntimo para lhe propor que juntassem suas forças para repartirem as províncias ocidentais e para instar-lhe a dar o primeiro passo imediatamente, apresando os transportes, que estavam ao seu alcance, e a que se reunisse com ele imediatamente depois para planejar o ataque a Ismael.
- Que motivos tem Ali?
- Pensa rebelar-se, e Mustafá seria um dos poucos homens que poderiam atrapalhar se seguisse sendo leal ao Sultão. Se Ali manda a cabeça de Mustafá para Constantinopla, as suspeitas de que é desleal se desvanecerão, e, ademais, terá o campo livre. Por outro lado, faz tempo romperam bruscamente a amizade, e ainda que parecesse que tudo estava esquecido, Ali lhe guarda rancor.
- Ali pretende cortar-lhe a cabeça nessa reunião, né?
- Sim, se Mustafá chega a comparecer a ela. Acho que Ali espera que o senhor intervenha antes e se contentará em confiscar o dinheiro, o harém e o território de Mustafá em nome do Sultão. Por isso seus conselheiros me deram uma informação detalhada e verdadeira sobre seus movimentos.
- Parece incrível…
- Não… não… - disse Graham com voz débil. Então rogou que o desculpassem, pois não podia falar mais.
Pela enésima vez, Jack se despertou com o ruído da pedra arenito roçando o convés. Provavelmente a Surprise tomaria parte em uma batalha mais tarde, mas tomaria parte nela limpa como uma pátena, e podia se ouvir o primeiro oficial insistir com inusual energia em que os faxineiros tirassem três manchas de alcatrão. Jack tinha seu volumoso corpo completamente relaxado, e se movia com o suave balanço. Subira ao convés duas vezes durante a guarda de meia, mas depois passara várias horas sumido em um sono profundo e aveludado, e agora estava descansado e se sentia muito bem. A tensão pela interminável espera dos transportes desaparecera, e com ela a angústia, a preocupação por Kutali, e o temor das traições e das indiscrições que havia em terra. O que tinha que fazer agora era algo simples, era uma operação que poderia realizar facilmente, por suas aptidões, por seu adestramento e porque dispunha de um magnífico instrumento para levá-la ao cabo, e sem necessidade do conselho de ninguém. Porém, apesar de que passara bastante tempo na cabine, a idéia de seu provável encontro com a Torgud não se fora de sua mente. Adormecera calculando o peso total das balas que lançava em uma descarga, e imediatamente depois de despertar começou a fazer a soma. Mas se perguntava se devia contar as balas de trinta e seis libras dos enormes canhões e se podia confiar no renegado, que dissera que só havia nove balas para os dois. Ademais, não sabia como os turcos manejavam os canhões. Se não os manejassem melhor do que manobravam, seus disparos não seriam muito precisos, mas a habilidade para uma coisa e a habilidade para a outra não eram necessariamente iguais. Quanto ao número de tripulantes, na Torgud havia ao redor de cento e cinqüenta a mais que na Surprise quando a havia visitado, mas provavelmente um bom número deles tripularia as presas agora, um número equivalente ao de tripulantes da Surprise que se encontravam em Malta ou regressavam na Dryad. Pensou em exclamar: "Graças a Deus que a Dryad não está aqui", porque inclusive uma pequena carraca como ela poderia romper o equilíbrio de forças e tirar a glória da batalha, mas percebeu de que nada podia ser mais arrogante nem trazer pior sorte que isso e apagou imediatamente o pensamento de sua mente e depois saltou da maca e, com sua melodiosa voz de baixo, cantou:
O lírio, o lírio e a rosa plantarei
no jardim do palácio e os sinos tocarei…
Como um boneco de uma caixa surpresa, Killick entrou na cabine com a água para o barbeado, e quando Jack estava se ensaboando, disse-lhe:
- Hoje usarei calções, Killick. É provável que entremos em combate.
Se fosse pela vontade de Killick, Jack nunca teria usado outra coisa além de calças de nanquim velhas e uma casaca com os punhos e os cotovelos desgastados e sem galões, e seus uniformes em bom estado haveriam estado sempre envoltos em papel de seda e guardados onde nem o sol nem a umidade os estragassem. Agora se opunha à mudança expondo que um turco, especialmente um turco rebelde, não podia apreciar a elegância dos calções.
- Pegue os calções e cale - disse Jack energicamente depois que Killick ficou protestando um momento.
Mas quando tirou a camisa de dormir e se voltou, descobriu que a pesar de Killick ter obedecido ao pé da letra a ordem, fizera algo que não correspondia à sua intenção real, como sempre, pois deixara ali um par de calções inapresentáveis, com vários cerzidos, um par de meias desfiadas, a camisa do dia anterior e a casaca que havia estragado quando jantara com Ismael. Então, impondo sua autoridade, abriu um armário, pegou o esplêndido uniforme com que visitava aos almirantes, os paxás e os governadores, lhe pôs, subiu ao castelo de popa, que já estava abarrotado, deu os bons dias e olhou ao seu ao redor. Havia muita claridade, pois o sol já se encontrava a um palmo do horizonte e no céu havia nuvens pequenas como manchas; o vento era forte; o mar tinha frisos brancos onde o vento se chocava com as últimas ondas do norte. Conforme os dados da tabuinha onde se indicava a posição da fragata a cada meia hora e da tabuinha de navegação, a Surprise estava quase exatamente onde ele queria que estivesse nesse momento, com o cabo Doro pelo través de estibordo, e dentro de uma hora ou duas avistariam Fanari. Passeou de uma ponta a outra da fragata duas vezes, deleitando-se em aspirar o aroma da brisa marítima e das úmidas tábuas do convés recém baldeada, depois de ter estado encerrado em sua cabine tanto tempo. Os tripulantes já haviam desjejuado, e a maioria deles estavam no convés, e durante o percurso Jack viu a muitos que conhecia muito bem. Todos estavam alegres, em atitude expectante, e lhe lançaram olhares de aprovação e cumplicidade. Alguns estavam embelezando as longas juntas do corrimão de bombordo com uma solução negra e brilhante que o senhor Pullings havia inventado, e outros revisavam as retrancas dos canhões ou tiravam a ferrugem das balas para que a superfície ficasse lisa, para que tivessem uma forma esférica perfeita, pois desse modo sua trajetória seria exata e poderiam causar mais estrago. O armeiro estava na armaria, debaixo do castelo, com uma comprida fileira de brilhantes alfanjes e machados de abordagem e os sabres dos oficiais a seus pés, e os afiava na pedra de amolar enquanto dava conselhos a um grupo de marinheiros que estava ao seu redor e se revezavam para mover a manivela. Perto dele, seus ajudantes examinavam as pistolas, e um pouco mais longe, os infantes da marinha, que pareciam mais humanos agora porque estavam em mangas de camisa, poliam seus já imaculados mosquetes e baionetas.
Depois do segundo passeio, aproximou-se do oficial de guarda e disse:
- Senhor Gill, empreste-me sua luneta.
Então trepou em um suporte cheio de macas e depois subiu e subiu pela exárcia somente porque o movimento ascendente lhe produzia uma agradável sensação. O serviola, alertado pelo rangido dos amantilhos, trepou na verga joanete como um símio para dar lugar a Jack, e Jack se sentou na cruzeta e observou o mar ao seu redor, que parecia um enorme disco azul beirado pelo céu. O cabo Doro se avistava pelo estibordo, a uns dez graus da posição onde esperava encontrá-lo, e lhe pareceu ver a silhueta de Fanari à distância.
- Simms - disse ao serviola que estava na verga - quero que extreme a vigilância, ouviu? É provável que o cavalheiro que esperamos venha do sul, porém, como é um turco, poderia vir de qualquer lado.
Depois de dizer isto, regressou ao convés, onde se encontrou com Stephen e Graham. Convidou aos dois para desjejuar e também a Pullings e a dois cadetes, Calamy e Williamson, e enquanto o preparavam, disse ao condestável que quantidade de cartuchos tinha que preparar e ao carpinteiro que preparasse buchas para tapar buracos feitos por balas de quarenta libras.
- Porque nosso possível adversário - acrescentou - e só digo possível, senhor Watson…
- Ou hipotético, senhor.
- Exatamente. Então, é o capitão da Torgud, e sua fragata tem dois canhões portugueses de trinta e seis libras, que têm mais ou menos o mesmo efeito que nossas balas de quarenta libras.
- Hipotético - murmurou Killick com tom sarcástico e depois alçando tanto a voz que impediu se ouvir a resposta do carpinteiro, disse: - O café da manhã está servido, senhor, com sua permissão.
Foi um alegre café da manhã. Jack era um excelente anfitrião, ficava muito a vontade com as crianças do camarote de guardas-marinhas, ainda que apenas dispunha de tempo para ocupar-se deles, e, como também estava muito alegre, divertiu-se e lhes divertiu contando-lhes que o território de onde acabavam de ir embora era praticamente Dalmacia, era como uma continuação de Dalmacia, uma região famosa por seus cachorros com manchas, e que vira montes de cachorros com manchas, inclusive matilhas, e havia caçado com eles. Depois disse que em Kutali também havia mocinhos e mocinhas com espinhas que pareciam manchas e que o doutor vira águias manchadas… Então riu até que sair lágrimas e, por fim, disse que em uma estalagem dálmata um tipo podia pedir de sobremesa um cachorro com manchas, tirar um pedaço de um cachorro com manchas e jogar os restos para as águias manchadas.
Enquanto os outros acrescentavam possibilidades, Graham se voltou para Stephen e, em voz baixa, perguntou:
- Qual é a águia manchada? É uma brincadeira?
- Corresponde a uma espécie que alguns autores chamam Aquila maculosa ou discolor e que Linneo chama Aquila clanga. O capitão gosta de brincar e costuma fazê-lo pelas manhãs.
- Desculpe, senhor - disse o guarda-marinha de guarda, irrompendo na cabine. - De parte do oficial de guarda, o senhor Mowett, que há doi;s barcos pelo través de bombordo e do tope se vê o velame das gáveas para cima.
- Duas? - perguntou Jack. - São barcos de guerra?
- Ainda não se sabe com certeza, senhor.
- Posso ir, senhor? - perguntou Pullings com uma expressão ansiosa, fazendo gesto de levantar-se da cadeira.
- Sim, vá - respondeu Jack. - Nós comeremos seu bacon.
Eram dois barcos de guerra. Eram dois barcos turcos, ainda que eles não esperavam encontrar-se com nenhum tão cedo. Eram a Torgud e o Kitabi. Mustafá havia zarpado muito mais cedo do que ele havia suposto e provavelmente havia trazido consigo o seu companheiro porque agora confiava menos em Ali.
- Maldito seja! - exclamou Graham, retorcendo-se as mãos, quando isto foi confirmado. - Que decepção! contudo, acredito de que Osman me deu toda a informação que possuía.
- Não se preocupe, senhor - disse Jack. - O combate será mais duro, mas não há motivo para desespero.
- O senhor não pode atacar os dois barcos - disse Graham, aborrecido. - A Torgud tem trinta e dois canhões e quase quatrocentos tripulantes, e o Kitabi, vinte canhões e cento oitenta tripulantes. A tripulação deles excedem em mais de cento e oitenta homens à sua. Não é vergonhoso retirar-se quando as forças do adversário são muito superiores.
Quando Graham disse isto, alguns dos oficiais que estavam no castelo de popa consentiram com a cabeça, outros puseram uma expressão grave e somente Pullings e Mowett franziram o cenho em sinal de desaprovação. Stephen notou que a maioria deles estavam de acordo com Graham, mas não sabia o que pensar porque não tinha capacidade para julgar os assuntos navais, ainda que sabia o quanto Jack desejava apagar a recordação do desastre de Medina e pensava que esse desejo poderia impedi-lo de julgar desapaixonadamente.
- Bem, professor, acho que o senhor meteu a foice em seara alheia - disse Jack em tom jocoso.
Graham ficou muito sério, pediu desculpas e partiu.
Inclinado sobre o parapeito no lado de bombordo, Jack observou as duas embarcações que sulcavam as águas cristalinas. A fragata e o barco de vinte e um canhões se achavam apenas a duas milhas de distância e seguiam o rumo estabelecido navegando com grande quantidade de velame desdobrado, e a Surprise se aproximava deles navegando com as velas amuradas a bombordo e com o vento, que soprava agora do sudeste, ao largo.
"Meu Deus, quanto me alegro de ter levantado âncoras imediatamente!", pensou e depois sorriu ao imaginar como ficaria furioso se houvesse chegado muito tarde para esperar recolher as guindalezas e os outros cabos que estavam em terra e, finalmente, riu a gargalhadas.
Já se encontravam no castelo de popa todos os oficiais, os suboficiais, os guardas-marinhas, incluídos os encarregados de fazer sinais, os mensageiros, os timoneiros e todos os tripulantes a quem correspondia estar ali, e Stephen e Graham haviam sido esquecidos e agora estavam detrás do escrevente e do contador.
- Haverá que esperar muito para que ocorra algo, e acho que isso será muito desagradável - disse Graham em voz baixa. - O senhor já presenciou muitas batalhas navais, né?
- Vi o princípio de algumas, mas quando a situação se torna perigosa, busco refúgio em um lugar debaixo do convés - respondeu Stephen.
- Todos os senhores têm vontade de brincar esta manhã - disse Graham aborrecido, e depois, assinalando com a cabeça para Jack e para Pullings, que falavam sobre o modo de se aproximar do inimigo e riam, perguntou: - Já ouviu, senhor, falar do êxtase que precede a morte?
- Não - respondeu Stephen.
Na realidade, sabia perfeitamente ao que Graham se referia, mas não tinha vontade de falar do fato de que seu amigo sentia uma grande alegria naquela perigosa situação.
- Não sou supersticioso, mas se estes cavalheiros são casados e se suas esposas…
- Todos os marinheiros para popa! - gritou Jack, e as chamadas que seguiram e o estrépito que produziram os passos de centenas de homens afogaram a voz de Graham.
- Não vou fazer um discurso - disse Jack aos marinheiros. - Conheço a todos muito bem e não acho necessário recordar-lhes qual é seu dever. Quando estávamos em Medina lhes pedi que não atacassem o inimigo se ele não nos atacasse antes, e como não nos atacou, tivemos que ir sem ter feito nada. E alguns dos senhores não gostou disso. Mas desta vez será diferente. Esses são dois barcos de guerra turcos e seus capitães se rebelaram contra o Sultão.
Os tripulantes da Surprise não se importavam nem um pouco com os problemas do sultão da Turquia, e, sem mudar de expressão, seguiram olhando para o capitão com grande atenção.
- Ademais - continuou Jack - apresaram nossos transportes. Assim que é lógico que façamos que recuperem a razão e resgatemos os prisioneiros, os transportes e os canhões. Provavelmente todos saberão que têm uma tripulação numerosa, portanto, em vez de abordá-los imediatamente, nós dispararemos repetidamente de certa distância. Os senhores devem disparar para seus cascos, diretamente para seus cascos, ou seja, fazer disparos baixos e precisos, e franquear todas as balas. Senhor Pullings, ordene fazer os preparativos de combate e chame todos para seus postos.
Houve que fazer muito poucas coisas. Todos os suboficiais estavam prevenidos e já fazia tempo haviam preparado muitas coisas. Por exemplo, o senhor Hollar subira as defesas para os cestos das gáveas há horas e Killick havia levado os melhores trajes de Jack e todos seus pertences para a bodega e havia metido a arqueta de Diana (que se havia manchado de leite com cacau quando Graham havia posto o jarro em cima) na caixa de paredes duplas construída para protegê-la para que a levassem imediatamente ao paiol do pão. Somente faltava que os marinheiros apagassem o fogo da cozinha, que os carpinteiros tirassem os anteparos das cabines de Jack e do oficial de derrota e que os artilheiros se encarregassem dos enormes canhões que compartiam a cabine com Jack, para terminar o preparativo de combate.
Os diversos oficiais informaram a Pullings da situação e Pullings avançou até onde Jack estava e disse:
- Terminados os preparativos de combate, com sua permissão.
- Obrigado, senhor Pullings - disse Jack, e ambos permaneceram ali no cost de estibordo, olhando sorridentes para a frente e pensando no futuro promissor.
Na Surprise havia absoluto silêncio, e a maioria dos tripulantes tinham uma expressão grave, ainda que não estivessem muito preocupados porque quase todos se haviam enfrentado com o inimigo muitas vezes. Contudo, não muitos haviam enfrentado a um que tivesse forças muito superiores e alguns pensavam que o capitão deveria se recordar de que quem muito abarca pouco aperta. "Acho muito bom, acho muito bom, se isso não me custar a pele" dissera William Pole ao ouvir a notícia. E os outros artilheiros de sua brigada, com tom de censura, responderam: "Deveria envergonhar-te, Bill Pole". A Surprise se aproximava do inimigo. Tinha desdobradas as velas que era conveniente levar estendidas num combate; o oficial de derrota a governava; os canhões tinham as bocas para fora das portalós e, atrás deles, os grumetes servidores de pólvora estavam sentados em cima dos estojos de pele que continham os cartuchos; os suportes estavam cheios de balas; a rede que protegia contra os pedaços de madeira desprendidos estava estendida; o convés estava molhado e coberto de areia, e ao longo dela estavam colocados os barris de água; as escotilhas por onde se descia para a santa-bárbara estavam cobertas com feltro umedecido, e na santa-bárbara, o condestável estava sentado em meio de barriletes com uma mortífera carga. Mowett tinha a seu cargo os canhões de proa da coberta principal, e Honey, o ajudante do oficial de derrota de mais antiguidade, os de popa, e tinham como ajudantes vários guardas-marinhas, que se ocupavam de três canhões cada um; contudo, esses eram os guardas-marinhas de mais idade, pois Jack havia ordenado aos cadetes que haviam desjejuado com ele que permanecessem do seu lado no castelo de popa, desempenhando as funções de assessores. Os infantes da marinha que não se encarregavam de nenhum canhão, estavam apostos ao longo do corrimão, e, sob a forte luz do sol, o vermelho brilhante de suas casacas contrastava com o branco das macas metidos no suporte e o azul escuro do mar. O primeiro oficial estava agora na coxia, junto ao contador e o escrevente do capitão, e, sem falar, os três olhavam fixamente os barcos turcos.
Em meio do sepulcral silêncio, Graham se voltou para Stephen, que ainda não havia ido ocupar o posto que lhe correspondia nas batalhas, e sussurrou:
- Por que o capitão Aubrey disse aos tripulantes que deviam franquear todas as balas?
- Na Inglaterra, interceptar as cartas de Sua Majestade é um delito castigado com a pena capital, e, por extensão, interceptar todas as que levem selos emitidos com autorização real terá o mesmo castigo. Por outro lado, quem intercepte uma bala de canhão provavelmente não sobreviverá.
- Então isso era uma brincadeira?
- Exatamente.
- Brincar em um momento como este! Que Deus nos proteja! Um homem assim é capaz de fazer piadas no funeral de seu pai.
Fazia alguns minutos que os barcos haviam superado o limite do alcance dos canhões inimigos. Os barcos turcos se aproximavam da Surprise pela amura de bombordo, seguindo ainda o mesmo rumo, e o Kitabi navegava paralelamente à Torgud, a uma distância de um quarto de milha para sotavento. Bonden, o chefe da brigada da caronada de estibordo, movia-a constantemente com a alavanca para que sempre ficasse apontada para a Torgud. A velocidade combinada com que os barcos se aproximavam era de dez milhas por hora, e quando se encontravam tão perto que era quase impossível que seus canhões errassem o alvo, o estridente som dos trompetes dos turcos rompeu o silêncio.
- Meu Deus, como isto levanta o ânimo! - exclamou Jack e ordenou: - Icem uma bandeira no pau maior e outra no traquete!
Dirigiu a luneta para a fragata turca, observou a abarrotada coberta e viu como um marinheiro movia as adriças para içar a bandeira. Seguiu a bandeira com a vista até que chegou em cima e se desdobrou, e quando viu que era a bandeira turca, pensou: "Acha que não sabemos nada ainda e provavelmente terá a esperança de poder seguir adiante sem sofrer um ataque, mas tem os canhões preparados…". Então disse:
- Professor Graham, por favor, coloque-se ao meu lado. Senhor Gill, viraremos para estibordo e nos aproximaremos da Torgud até que seu costado de estibordo esteja a um tiro de pistola da fragata.
Nesse momento ficou demostrado o que podiam conseguir os experimentados marinheiros. Os tripulantes encarregados de mudar de orientação as velas abandonaram imediatamente seu posto junto aos canhões, e de imediato se abriram a vela traquete, as velas de estai e as bujarronas. A fragata avançou bruscamente como um cavalo ao qual lhe houvessem cravado as esporas e virou com rapidez, como Jack sabia que o faria, e apontou para os barcos turcos com os canhões de bombordo quando os turcos ainda esperavam que se aproximasse pelo outro lado.
- Soltar as escotas do velacho! - gritou Jack, observando o castelo de popa da Torgud, onde se encontrava seu corpulento capitão. - Senhor Graham, diga-lhe que exijo que se renda imediatamente. Preparem os canhões de bombordo!
Graham fez a pergunta com voz alta e clara. Jack viu aparecer brancos lampejos na vermelha barba de Mustafá quando deu aos gritos sua resposta, uma comprida resposta.
- Naturalmente, ele se nega - disse Graham.
- Fogo!
A bateria de bombordo da Surprise disparou uma terrível descarga que alcançou os barcos turcos em distintos pontos desde o tope dos paus à sobrequilha e deteve o vento um instante, e a partir de então, em meio da espesso fumaça que se propagava para sotavento e pouco a pouco ia cobrindo a Torgud, os barcos dispararam descargas com extraordinária rapidez. Viam-se vermelhas labaredas entre a fumaça; ouviam-se o assobio das balas ao passar por cima do convés, o ruído das balas ao se chocarem contra o casco e muitos outros ruídos por todas as partes; cabos se rompiam, aparelhos caíam, desprendiam-se e saltavam para o ar pedaços de madeira das bordas, dos costados e das cobertas. Os turcos, depois de um tímido começo porque foram pegos desprevenidos, haviam disparado com mais precisão e rapidez, ainda que sem regularidade, e a primeira bala de trinta e seis libras que haviam lançado havia feito um enorme buraco no parapeito e um sulco de dezoito polegadas no mastro maior, porém, por milagre, não havia matado nenhum homem. Os tripulantes da Torgud disparavam com bastante precisão e rapidez, mas os da Surprise disparavam melhor do que nunca, e ainda que agora Jack não tinha a certeza de que todos o faziam melhor porque os canhões não disparavam simultaneamente desde a terceira ou a quarta descarga, a julgar pelo número sete, que se encontrava justo debaixo dele, o intervalo entre dois canhonaços era de setenta segundos, e era evidente que as caronadas disparavam ainda mais rápido; contudo, acreditava que acertavam o alvo muito mais vezes que os turcos. Olhou para barlavento e viu que a umas vinte ou trinta jardas de distância caía um monte de metralha e balas disparadas pelos turcos sobre uma grande extensão do mar e depois deu vários passos pelo castelo de popa olhando para sotavento, tratando de ver através da fumaça. "Não sei como a fragata turca pode resistir tanto tempo", pensou, e nesse momento viu que as gáveas da Torgud mudavam de orientação e que a fragata começava a aproximar-se do Kitabi, que estava a sotavento. Seu olhar se cruzou com o do senhor Gill, o oficial de derrota, e compreendeu que ele já seguia esse movimento.
Depois que virassem, a fumaça estaria longe da proa, e os expertos atiradores teriam a oportunidade de intervir. Jack se inclinou para os cadetes e, alçando a voz de modo que pudessem ouvir-lhe apesar do estrondoso ruído que já havia ensurdecido a todos os tripulantes, ordenou:
- Senhor Calamy, suba rapidamente para os cestos das gáveas e diga aos atiradores que tratem de causar o maior estrago possível ao canhão turco de trinta e seis libras. Senhor Williamson, diga ao senhor Mowett e ao senhor Honey que reduzam as cargas um terço. Senhor Pullings, comprove que isto se cumpra.
O ritmo com que os canhões disparavam era tão rápido que esquentavam muito e retrocediam muito violentamente depois de disparar. Jack pôde ver como uma caronada do castelo de popa se soltou das retrancas e virou quando ele se aproximava do coroamento para ver através da fumaça.
- Inclinou-se para frente para atar um cabo que segurava um aparelho, e a onda provocada por uma bala de trinta e seis libras que passou por cima de sua cabeça, apenas a um pé de distância, fez com que cambaleasse. Nesse momento, entre o ruído da metralha, as balas esféricas e as balas de vara ao cair na Surprise ou cruzar a coberta, e outros muitos ruídos que se ouviam por toda a fragata se distinguiu um de tom diferente. A Torgud, seguida da Surprise, havia se aproximado muito mais do Kitabi, e o barco começara disparar com seus canhões de doze libras. Até então a Surprise havia sofrido poucos danos graves, exceto no casco, mas um desses disparos alcançou um canhão de proa quando retrocedia e o empurrou até o centro do convés, causando profundas feridas a três dos artilheiros que o manejavam. Outra vez o canhão de trinta e seis libras disparou, e ao estrondo que produziu o choque da enorme bala, seguiu um alarido que pôde ser ouvido durante dois minutos durante o rugido dos canhões. Pouco depois puderam ver na coberta os rastros de sangue que indicavam por onde haviam levado os feridos para a enfermaria.
A fragata seguia disparando quase no mesmo ritmo. A pólvora e as balas chegavam constantemente da santa-bárbara; os artilheiros sacavam e metiam os pesados canhões com extraordinária rapidez e os limpavam, os carregavam, introduziam calços, os elevavam e os disparavam com tal coordenação que causavam admiração. Era impossível ver claramente as coisas mas Jack tinha certeza de que haviam causado sérios danos à Torgud, pois os turcos não disparavam com tantos canhões nem tão rápido como antes, e esperava que de um momento para outro, amparada pela fumaça, virasse para fugir ou lançar descargas com a bateria de bombordo, que estava intacta. Então voltou-se a ouvir o estridente som dos trompetes turcos. A Torgud ia abordar a Surprise.
- Metralha! - gritou Jack para Pullings e para seus mensageiros, e depois, alçando a voz, ordenou: - Preparados para bracejar!
Todos os canhões da Torgud, exceto os de proa deixaram de disparar. A fumaça se dissipou e pôde ver-se claramente a Torgud orçar e avançar em direção da Surprise com o gurupés e o botaló cheios de tripulantes, e Jack compreendeu que contanto que abordasse, ao seu capitão não lhe importava que disparassem pela proa de sua fragata.
- Esperem! - gritou.
Tinha que mudar de bordo a fragata antes que os turcos a abordassem, tinha que virá-la em pouco tempo e em um espaço pequeno, mais apropriado para que virasse um cúter, e isso era muito perigoso, mas a conhecia muito bem.
- Esperem! Esperem! - voltou a gritar enquanto tentava calcular sua velocidade e a força do vento e do fluxo de ondas. - Fogo! - ordenou e, um segundo depois, acrescentou: - Todos a mudar de bordo!
A Surprise virou e a Torgud não. Os turcos ficaram perplexos, e os tripulantes da Surprise gritaram como loucos quando a Torgud passou pelo lado de sua fragata, e Jack percebeu de que a chuva de metralha causara muitas mortes ao ver que a proa da fragata turca estava vazia.
- Esta é uma batalha encarniçada, professor - disse para Graham durante uma breve pausa.
- Ah, é? Esta é a primeira vez que presencio uma batalha naval importante.
- É uma batalha encarniçada, eu lhe asseguro, mas os turcos não podem disparar tão rápido como nós. Essa é a desvantagem dos canhões de bronze, que se forem disparados neste ritmo se derretem. São muito bonitos, não há dúvida, mas com eles os turcos não podem disparar tão rápido como nós. Senhor Gill, por favor, nós nos aproximaremos da Torgud pela alheta de bombordo e quando estivermos bastante perto dispararemos.
A Torgud havia se desviado de seu rumo e agora navegava com o vento em popa, e a Surprise virou e começou a persegui-la. Agora só os canhões de proa podiam alcançar a fragata turca, e os artilheiros dos outros canhões relaxaram. Estavam empapados de suor, ainda que a maioria deles estavam desnudos de cintura para cima, e alguns beberam água dos barris e outros jogaram água na cara, mas todos estavam muito contentes. Um dos artilheiros que manejava uma caronada do castelo de popa mostrou aos seus companheiros a mão em que lhe faltava um dedo e disse repetidas vezes:
- Não notei quando o perdi. Não notei quando o perdi.
Mas agora, quando ninguém esperava, o Kitabi avançou com rapidez. Era evidente que seu capitão tinha a intenção de passar entre a Surprise e a Torgud, e possivelmente depois viraria e rodearia a Surprise com o fim de que ficasse presa entre dois fogos.
"Não serve de nada, meu amigo, não serve de nada, ainda que seja um gesto valente", pensou Jack, observando como se aproximava.
- Disparem uma descarga! - gritou. - Disparem todos de proa a popa ao ouvirem a ordem!
Alguns minutos depois, quando as três embarcações estavam muito perto e a Torgud estava situada a sotavento de seu companheiro e não podia servir-lhe de apoio, Jack fez ondear a gávea maior e a sobremezena, e a Surprise abateu e se aproximou ainda mais do Kitabi, mas não respondeu aos seus disparos, imprecisos e, em geral, altos, até que esteva um cabo de distância dele.
Então disparou seis descargas contra a coxia do Kitabi, unindo entre si cinco portalós e fazendo que os canhões guardassem silêncio. Depois do sexto bombardeio, houve uma tremenda explosão a bordo do Kitabi, e uma parte do barco se incendiou. E quando a Surprise passou pelo lado do barco, que estava a deriva, seus tripulantes puderam ver os turcos estendendo uma mangueira e correndo com baldes de água.
O vento havia se acalmado, como se houvesse se assustado com os canhonaços, e a Surprise desdobrou as joanetes para perseguir a Torgud, que, apesar de navegar com pouco velame desdobrado, seguia outra vez seu rumo original, talvez porque seu capitão tinha a esperança de reunir-se com o paxá Ali. Já se avistava terra, e uma cordilheira de montanhas se desenhava no horizonte, e possivelmente as ilhas Morali estariam ainda mais perto. Seguiu uma silenciosa pausa, na qual o contramestre e seus ajudantes amarraram e ataram cabos por toda a exárcia, e Jack observou a Torgud por alguns momentos e viu como seus homens joguavam pela borda aos mortos, que formaram uma comprida fileira em sua esteira, e depois deu uma volta pelo barco. Observou que havia menos danos do que temia: um canhão desmontado e três buracos feitos por balas de trinta e seis libras no casco. Por outro lado, Stephen só tivera que atender a seis feridos que ainda estavam graves e a outros três que agora estava envoltos em suas macas, e esse número de feridos era realmente baixo para uma batalha tão violenta como aquela.
Quando subiu para o convés, notou que o vento já começara a soprar de novo e que a Surprise se aproximava com rapidez da Torgud. A fragata turca estava ao alcance de seus canhões, porém, como já se avistava a costa, Jack achava melhor lutar a curta distância, sob a condição de que evitasse que a fragata fosse abordada, e esperou para que a Surprise estivesse quase abordada com a Torgud para diminuir vela e abrir fogo. A fragata se encontrava frente ao costado de bombordo da Torgud, que tinha a bateria intacta, e os turcos dispararam com a mesma rapidez que antes. Outra vez uma bala de trinta e seis libras passou muito perto da cabeça de Jack e o fez cambalear, e desta vez Jack inclusive pôde vê-la borradamente quando passava. Então chamou ao capitão da infantaria da marinha e disse:
- Ordene aos seus subalternos que estão na coxia que concentrem seus disparos nos homens que carregam esse maldito canhão.
- Posso pegar um mosquete, senhor? - perguntou Graham, que estava muito perto dele. - Assim poderei ajudar. Aqui corro perigo e não sou útil para nada.
De fato, ali corria perigo. Agora que as duas fragatas estavam com o vento em popa e a fumaça se movia rapidamente para a proa, os disparos da Torgud eram mais precisos, e quando as balas se chocavam contra o casco e a borda faziam desprender-se inumeráveis pedaços de madeira que cruzavam a coberta, alguns inofensivos e outros mortíferos, que haviam derrubado Graham em duas ocasiões e haviam golpeado à maioria dos que se encontravam na coberta.
A Torgud ainda tinha um grande número de tripulantes, e todos disparavam os canhões com fúria. Depois de fazer algumas descargas, voltou a mudar de bordo e a avançar para a Surprise, e outra vez o gurupés e o botaló se encheram de tripulantes. Agora a Surprise não tinha espaço para mudar de bordo, mas tinha a traquete carregada, prevendo um caso de emergência como esse. Então os tripulantes a largaram, e a fragata se moveu para frente bruscamente, ainda que não o bastante rápido para evitar que o botaló da Torgud se enganchasse nos gradis da penico, porém, apesar disso, seguiu avançando enquanto seus canhões de popa lançavam metralha contra a abarrotada coberta da fragata turca, cujo efeito sangrento fez os artilheiros se reprimirem de dar vivas. Quando teve velocidade suficiente para mudar de bordo, passou pela frente da popa da Torgud disparando-lhe. Depois soltou as escotas, e a Torgud, separando-se um pouco, começou a disparar com a bateria de estibordo. Estava terrivelmente ferida pelas últimas descargas que havia recebido, pois ao menos sete canhões estavam desmontados e muitas portalós estavam enegrecidas ou com os marcos destruídos, e o sangue jorrava dos embornais e ressaltava pelos costados.
Estava terrivelmente ferida, mas ainda era perigosa. Qualquer contendedor teria se rendido nessas condições, mas o capitão turco disparou doze ou treze canhonaços, e duas das balas causaram mais estrago à Surprise que todas as que lhe haviam acertado antes: uma bala que deu na ponta de uma cavilha do leme e o torceu, e outra, a última, que deu no casco por baixo da linha de flutuação, porque nesse momento a fragata subia no balanço e tinha fora da água a parte do costado coberta de lâminas de cobre. Depois virou para disparar, e no momento em que Jack estava dando a Williamson umas ordens para que as transmitisse aos que estavam na proa, uma bala arrancou o antebraço do garoto. O garoto ficou branco como o papel, fez um gesto de assombro e depois de preocupação, mas não de dor, e Jack lhe atou fortemente o toco com um lenço para deter a saída da sangue e o pôs nos braços de um suboficial para que o levasse abaixo.
Quando os tripulantes da Surprise terminaram de reparar o leme e tapar a entrada de água, a Torgud estava muito mais perto de terra. Além de fazer alguns disparos com os canhões de popa enquanto avançava para a costa, seu capitão não havia tentado aproveitar a vantagem que tinha, e muito menos abordar. Era possível que não soubesse que havia causado tanto estrago, mas era indubitável que um grande número de seus homens haviam morrido no último enfrentamento. A Torgud se afastava cada vez mais, e o Kitabi, que desde o momento em que a Surprise havia se afastado dele havia navegado sem fazer viradas, agora deslizava por sua esteira. Era evidente que ambas embarcações se dirigiam para o mesmo porto.
- Desdobre a maior quantidade de velame possível, senhor Pullings - disse Jack, dirigindo-se para a proa para olhar a Torgud através de uma luneta emprestada, já que uma bala de mosquete havia feito em pedaços a sua quando a tinha nas mãos, ainda que não lhe havia causado nenhuma ferida.
- Não havia dúvida de que a Torgud havia sofrido graves danos, pois navegava muito devagar e bastante afundada na água. Ainda que a Surprise aumentava de velocidade a medida que se aplicavam mais velas por ordem de Pullings, que estava tão ansioso para alcançar a Torgud que havia mandado abrir inclusive as joanetes e as alas de barlavento, a fragata turca não ganhava velocidade, talvez porque não podia ou talvez porque seu capitão não queria. E seus tripulantes ainda seguiam atirando cadáveres ao mar.
- Não, não dispare - disse Jack para Bonden quando apontava com o canhão de proa de estibordo para a Torgud, que se aproximava cada vez mais. - Não devemos detê-la senão abordá-la, e quanto antes melhor.
- De toda maneira, senhor, esse maldito estúpido está no meio.
Ele se referia ao Kitabi, que havia desdobrado uma grande quantidade de velame para unir-se à Torgud, pois seu capitão estava convencido de que a Surprise queria alcançá-lo, e agora se achava entre as duas fragatas.
Jack regressou para a popa, e a medida que passava, os membros das brigadas de artilheiros que iam participar da abordagem sorriam ou assentiam com a cabeça ou diziam palavras de ânimo como: "Falta pouco, senhor". E de novo sentiu uma grande excitação ao pensar na iminente luta, uma excitação maior que a que lhe provocava qualquer outra coisa no mundo.
Falou com os infantes da marinha, que também estavam muito animados, e depois de dar umas voltas, desceu a escada e foi até a enfermaria, apenas iluminado por uma lanterna.
- Como está o garoto?
- Acredito que se salvará.
- Espero que assim seja. Quando alcançarmos a fragata turca, nós a abordaremos.
Apertaram a mão e Jack regressou para o convés. Por ordem de Pullings, os tripulantes já estavam arriando as alas para não ultrapassar a Torgud. Inexplicavelmente, o Kitabi seguia ali entre as duas fragatas. Não disparava e parecia que a proa havia se partido.
- Atenção na proa! - disse Jack para os artilheiros que manejavam os canhões de proa. - Lancem uma bala em cima do convés do barco.
- Meu Deus! - exclamou o oficial de derrota quando o barco se estremeceu pelo impacto da bala. - Meu Deus! Vai se chocar com a Torgud se não tiver cuidado! Meu Deus! Não pode esquivá-la! Meu Deus! Se chocou!
A apenas quatrocentas jardas da Surprise, com grande estrépito, o Kitabi chocou-se contra o lado de estibordo da Torgud, e seu mastro traquete caiu no convés da fragata.
- Aproxime a popa do barco da fragata - disse Jack e depois, alçando a voz, ordenou: - Disparem uma descarga ao ouvirem a ordem, e depois, em meio da fumaça, passem para a abordagem!
A Surprise começou a mudar de bordo, e Jack foi até a proa para o lado de estibordo, aproximou-se da parte do parapeito onde as balas turcas haviam feito um enorme buraco e pegou as pistolas e o sabre. À sua direita se colocou Pullings, que tinha um intenso brilho nos olhos, e depois, como se houvesse saído do nada, apareceu perto dali o temível Davis e se pôs a sua esquerda afastando Bonden de um empurrão. Davis tinha espuma nas comissuras dos lábios e os olhos exorbitados como um louco furioso e levava na mão uma faca de açougueiro.
A fragata deslizou devagar pelas águas e, por fim, chocou-se suavemente com o costado do barco, e se ouviram rugir os canhões imediatamente depois que Jack deu a ordem. Então, em meio da fumaça, saltou para o convés do Kitabi gritando:
- Abordar!
Cerca de quarenta turcos, formando uma linha, ofereceram resistência, mas Jack e seus homens os venceram imediatamente, e entre a fumaça, que começava a dissipar-se, viram a um oficial que tinha o sabre agarrado pela ponta e o sustentava diante dele com o braço estendido e gritava:
- Rendre, rendre.
- Senhor Gill, encarregue-se desse barco - ordenou Jack e correu para a proa entre os estrondosos canhonaços que a Torgud disparava contra o Kitabi desde a popa. - Vamos! Vamos! Venham comigo!
Não era necessário saltar muito para subir para a Torgud, pois estava muito afundada na água, e Jack observou que a água que entrava pelas portalós da coxia saía vermelha. Então se trepou na parte da borda que rodeava o castelo de popa.
Ali a situação era diferente. A coberta estava sangrenta e tinha inumeráveis fendas causadas pelas balas, mas ainda estava cheia de tripulantes. Muitos deles olhavam para a popa, agora coberta de fumaça, e um se voltou e, ao ver Jack, atacou-lhe com seu alfanje. Jack deteve o alfanje com seu sabre e, ainda subido na borda, empurrou o turco com o pé com uma força enorme e o fez cair na água que cobria o convés da fragata, que estava a ponto de ir a pique.
Então desceu para a coberta de um salto. Nunca havia se sentido tão forte nem tão lieve nem em um estado físico tão bom, e quando viu entre aquela multidão que uma lança se movia na direção de seu ventre, deu um corte com tanta força e precisão que arrancou a ponta metálica do pau. A partir de então a luta continuou de acordo com um plano. Jack, Pullings e a maioria dos homens que haviam feito a abordagem estavam na parte do castelo de popa mais próxima da proa e do costado de estibordo e tentavam avançar para a popa pelo corrimão, enquanto que outro grupo de homens e todos os infantes da marinha subiam pelo mirante de popa para atacar pelo coroamento.
Havia uma grande confusão, a confusão que acompanhava sempre à luta corpo a corpo. Os contendores davam gritos, forcejavam, apenas podiam mover-se porque estavam rodeados de grande quantidade de companheiros e inimigos, e não podiam mover o sabre da maneira indicada para combater, pelo que a luta ficava reduzida a dar golpes ao acaso, empurrões, chutes, punhaladas e fazer disparos com armas leves, ou seja, a cada bando opor sua força física e sua força moral às do outro.
A massa humana se movia para frente e para trás. De um lado se viam turbantes, casquetes, olhos ambarinos injetados de sangue e rostos bronzeados e barbudos, e do outro, rostos pálidos, mas em ambos os lados os homens lutavam com a mesma ferocidade. A enorme massa se movia com brusquidão e às vezes se dividia em duas, deixando no meio um espaço livre ao qual passava um grupo em que cada homem entabulava uma luta com um só adversário, uma luta que costumava ter consequências fatais, e depois se unia outra vez e os homens voltavam a estar cotovelo com cotovelo, cara com cara, peito com peito.
Nenhum dos dois grupos ainda tinha vantagem. O grupo de Jack, formado por cerca de cem homens, avançara umas poucas jardas, mas agora seus adversários lhes impediam a passagem, enquanto que o grupo de popa, aparentemente, já não se achava em uma boa posição. Jack havia sofrido três feridas: uma causada por uma bala de pistola, que lhe havia atravessado as costelas, um golpe no lado oposto e um corte na testa que Davis lhe havia feito ao golpear-lhe com o cabo da faca de açougueiro, quase derrubando-lhe. Por outro lado, sabia que havia infligido algumas feridas graves. E não havia deixado de buscar por Mustafá com a vista nem um momento, mas não o vira ainda, apesar de que escutava seu vozeirão.
De repente se desocupou um pequeno espaço diante dele, pois alguns turcos retrocederam, ainda que sem deixar de lutar. Pullings, que estava à sua direita, avançou até esse espaço dando cortes para seu adversário, mas tropeçou em uma cavilha e caiu. Jack viu que Pullings voltava seu rosto para ele e um instante depois viu ao turco descer seu alfanje, e o espaço foi ocupado de novo.
- Não, não, não! - gritou Jack, abrindo passagem entre a multidão aos empurrões.
Ficou em pé com os pés aos lados Pullings e, segurando seu pesado sabre com as duas mãos, dava cortes e reveses com tanta fúria que muitos turcos se retiraram assustados e, sem dúvida, convencidos de que tinha superioridade moral. Chamou Davis e lhe ordenou que pusesse Pullings debaixo da escada e ele continuou avançando para a popa, seguido dos marinheiros restantes de seu grupo. Ao mesmo tempo, os infantes da marinha, que haviam sido repelidos quando subiam pela popa e haviam logrado agrupar-se um pouco mais adiante, avançavam pelos dois corrimãos com as baionetas caladas.
O grupo de turcos era cada vez menor: alguns fugiam e outros retrocediam até o coroamento. E ali detrás do cambaleante mastro de mezena estava Mustafá, sentado atrás de uma mesa cheia de pistolas, a maioria descarregadas. Tinha quebrado uma perna durante as primeiras horas do dia, e agora a tinha apoiada em um tambor manchado de sangue. Dois de seus oficiais lhe seguravam as mãos, e outro, olhando para Jack, disse:
- Nos rendemos.
Era Ulusán, o oficial que visitara a Surprise com Mustafá. Avançou alguns passos, arriou a bandeira e a desatou. Os outros oficiais conseguiram que Mustafá lhes desse seu alfanje, e Ulusán pôs a bandeira ao seu redor e lhe entregou a Jack em meio de um silêncio sepulcral.
Mustafá, agarrando-se à mesa, levantou-se e acometido pela raiva ou pela tristeza, jogou-se na coberta, e o golpe que recebeu na cabeça ao cair foi como uma porrada. Jack o olhou com indiferença.
- Parabéns, senhor - disse Mowett, que estava ao seu lado. - Finalmente o senhor fez a ponte de Nelson{31}.
Jack, com a cara pálida e uma expressão triste, voltou-se para ele e perguntou:
- Viu Pullings?
- Oh, sim, senhor! - respondeu Mowett, desconcertado. - Estragaram o seu colete e o golpearam na cabeça, mas não lhe tiraram o ânimo.
- Seria melhor que regressasse para a fragata, senhor - murmurou Bonden, pondo a bandeira e os alfanjes dos outros oficiais debaixo do braço. - Este turco foi para o outro mundo.
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X
X
{1} Satín: Certa madeira americana parecida com a nogueira.
{2} Royal Society: Organização criada por Carlos II da Inglaterra em 1662 para o desenvolvimento das ciências, sobretudo da náutica.
{3} Posset: Bebida feita com leite quente, qualhada com cerveja ou vinho, açúcar e especiarias.
{4} Curva: Peça de madeira naturalmente curva que se emprega nos barcos para fixar duas madeiras unidas em ângulo.
{5} Ala: Vela suplementar que se desdobra ao lado das velas quadradas em tempo bom.
{6} Chaquete: Jogo parecido ao de damas, que se começa pondo peões em todas as casas.
{7} Acushla: Palavra irlandesa que se emprega como apelido carinhoso.
{8} Sally Port: Cais de Portsmouth reservado para as lanchas e os membros da Armada Real.
{9} Guinda: Mar. Altura de um mastro, desde a linha de flutuação até o ponto mais alto.
{10} Pílula azul: Antigo preparado farmaceutico entre cujos componentes estava o mercúrio, que lhe dava sua cor azul.
{11} Estadio: Medida de longitude equivalente a 201,2 metros.
{12} Menino afogado: Nome que davam os marinheiros a um pudím de sebo que se fazía envolto em um pano e fervido.
{13} Troza: Mar. Combinação de dois pedaços de cabo grosso e forrado de couro, mediante o qual se une e assegura a cruz da verga maior ao pescoço de seu mastro.
{14} Andullo: Mar. Tecido que se põe nos cabos e moitões dos barcos, para evitar o atrito.
{15} Cabo: Medida de longitude que tem a décima parte de uma milha (aproximadamente 100 braças ou 185 metros).
{16} Noite de Guy Fawkes: em 5 de novembro de 1605 os católicos fracassaram em sua tentativa de volar ao Parlamento inglês, como protesto às leis ditadas contra eles e como parte de um complô ("Conspiração da pólvora") para acabar com Jacobo I. Seu lider, Guy Fawkes, foi capturado e executado. Os protestantes comemoram essa data queimando pela noite um boneco de palha que lhe representa. (N. do T.)
{17} Jardim: nome dado ao sanitário nos barcos.
{18} Monterilla: vela triangular que em tempo sereno se larga sobre os últimos joanetes.
{19} Jómer: unidade de medida antiga.
{20} Nova Holanda: Antigo nome da Austrália.
{21} Cabillero: Mar. Peça de madeira ou metal com furos, pelos quais se atravessam as barras que servem para amarrar e dar voltas nos cabos de trabalho.
{22} Prensaestopas: Mec. Peça metálica roscada com a qual se aperta a estopa ao redor da barra móvel de uma chave grifo ou chave de passo, para evitar a saída de líquidos ou gases.
{23} Acolladores: Mar. Cabo de proporcionada grossura que se passa pelos olhos das vigotas e serve para tesar o cabo mais grosso ao qual estão engastados.
{24} Trancaniles: Mar. Série de madeiras fortes tendidos ponta a ponta da proa à popa, para ligar os vaus a as balizas ao forro exterior.
{25} Chapuces: Mar. Cada uma das peças que se acrescentam exteriormente às principais que formam um mastro, para completar sua redondez.
{26} Chupeta: Mar. Pequena câmara que há na popa na coberta principal de alguns navios.
{27} Chafaldete: Mar. Cabo que serve para carregar os punhos de gáveas e joanetes levando-os ao centro de suas respectivas vergas.
{28} Racamento: Mar. Guarnição, espécie de anel que sujeita as vergas aos seus paus ou mastaréus respectivos, para que possam correr facilmente ao longo deles.
{29} Moco: Cada uma das perchas pequenas que pendem do gurupés, pelas quais se passan os cabos que asseguram a botaló.
{30} Guindaleza: cabo de 12 a 25 cm de diâmetro, de três ou quatro cordões torcidos da direita para a esquerda e de 100 o mais braças de comprimento, que se usa a bordo e em terra.
{31} O autor faz referência a uma batalha na qual Nelson abordou e capturou o navio San Nicolás e dali abordou o San José, que também capturou.
Patrick O'brian
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