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EXISTEM SUPER-HOMENS E SUPERMULHERES CAMINHANDO pela Terra. Estou falando sério e pode levar o que eu digo ao pé da letra. Jesus Cristo, por exemplo, foi um super-homem espiritual, assim como Martinho Lutero e Gandhi. Júlio César também foi sobre-humano. O mesmo vale para Gengis Khan, Thomas Jefferson, Abraham Lincoln e Adolf Hitler. Pense no filósofo Aristóteles e nos cientistas Galileu, Albert Einstein e Robert Oppenheimer. Considere artistas como Leonardo da Vinci, Michelangelo e Vincent van Gogh – meu favorito, cuja superioridade o levou à loucura. Mas, sobretudo, não se esqueça dos seres atleticamente superiores, como Jim Thorpe, Babe Didrikson Zaharias, Jesse Owens, Larisa Latynina, Muhammad Ali, Mark Spitz e Jackie JoynerKersee. Humildemente também me incluo nesse grupo sobre-humano – e com merecimento, como você logo verá. Pessoas como eu vêm a este mundo para realizar feitos grandiosos. Nós superamos as adversidades. Queremos conquistar. Buscamos romper todos os limites – espirituais, políticos, artísticos, científicos e físicos. Buscamos consertar o que há de errado, por menores que sejam as chances. E estamos dispostos a sofrer em nome dessa grandeza, a fazer esforços imensuráveis e a enfrentar uma preparação exaustiva com o mesmo fervor de um mártir – o que, a meu ver, é um traço de caráter excepcional em qualquer ser humano, de qualquer idade. Neste momento, devo admitir, estou me sentindo extraordinário, de pé aqui no jardim de Sir Denton Marshall, o filho da mãe mais desprezível e corrupto que já existiu. Ele está de joelhos, de costas para mim, com minha faca encostada em sua garganta. Ora, ora... ele não para de tremer. Está sentindo este cheiro? É o medo que faz liberar um fedor forte como o que impregna o ar depois da explosão de uma bomba. – Por quê? – pergunta ele, ofegante. – Você me irritou, seu monstro – respondo com um rosnado, sentindo uma raiva incontrolável partir minha cabeça ao meio e invadir cada célula do meu corpo. – Ajudou a arruinar os jogos, a transformá-los numa piada, numa aberração. – O quê? – grita ele, fingindo espanto. – Que história é essa? Apresento as evidências contra ele em três frases de condenação que fazem a pele do seu pescoço ficar lívida e sua carótida pulsar, roxa e repugnante. – Não! – exclama. – É... é mentira. Você não pode fazer isso. Está completamente louco? – Louco? Eu? Impossível. Sou a pessoa mais sã que conheço.
– Por favor – implora, com lágrimas escorrendo pelo rosto. – Tenha piedade. Estou de casamento marcado para a véspera do Natal. Minha risada é cáustica como ácido. – Em outra vida, Denton, devorei meus próprios filhos. Nem eu nem minhas irmãs vamos ter pena de você. Enquanto ele se entrega de vez à incompreensão e ao terror, ergo os olhos para o céu noturno, sinto a tormenta surgir em minha mente e, mais uma vez, entendo que sou mesmo superior, sobre-humano, imbuído de forças que remontam a milhares de anos. – Para os verdadeiros olimpianos, este ato de sacrifício marca o início do fim dos jogos modernos – declaro. Puxo sua cabeça para trás, fazendo suas costas se arquearem. E então, antes que ele possa gritar, deslizo furiosamente a lâmina da faca por sua garganta, com tanta força que a única coisa que impede sua cabeça de se desprender do corpo é a coluna.
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PARTE UM
AS FÚRIAS
1
Quinta-feira, 26 de julho de 2012, 9h24.
FAZIA UM CALOR INSUPORTÁVEL EM Londres. A camisa e o paletó de Peter Knight estavam encharcados de suor enquanto ele corria pela Chesham Street na direção norte, passando pelo hotel Diplomat e dobrando a esquina a toda a velocidade em direção a Lyall Mews, no coração de Belgravia, bairro onde ficam alguns dos imóveis mais caros do mundo. Não permita que seja verdade, Knight gritava por dentro quando entrou no beco. Por favor, meu Deus, não permita que seja verdade. Então viu um grupo de jornalistas diante da faixa de isolamento da Polícia Metropolitana de Londres, que havia fechado a rua em frente a uma casa bege, de estilo georgiano. Knight parou bruscamente e teve a sensação de que estava prestes a vomitar os ovos com bacon que comera no café da manhã. O que iria dizer a Amanda? Antes que conseguisse organizar os pensamentos ou acalmar o estômago, seu celular tocou. Ele tirou o aparelho do bolso e atendeu sem olhar o identificador de chamadas. – Knight – conseguiu dizer, apesar da voz abafada. – É você, Jack? – Não, Peter, aqui é Nancy – respondeu a voz com sotaque irlandês. – Isabel está doente. – O quê? – grunhiu ele. – Não... faz apenas uma hora que saí de casa. – Ela está com febre – insistiu a babá. – Acabei de medir a temperatura. – De quanto é a febre? – É de 37,8. Ela também está reclamando de dor de barriga. – E Luke? – Ele parece bem – respondeu Nancy. – Mas... – Dê um banho frio nos dois e me ligue de novo se a febre de Isabel passar de 38 – instruiu Knight. Ele desligou o celular e engoliu a bile que queimava o fundo de sua garganta. Magro e musculoso, com pouco mais de 1,80m de altura, rosto atraente e cabelos castanho-claros, Knight havia trabalhado como investigador de casos especiais no Old Bailey, sede do Tribunal Central Criminal da Inglaterra. Dois anos antes, porém, fora contratado pelo escritório londrino da Private, uma agência internacional de investigações, ganhando o dobro do salário e do prestígio. A Private já tinha sido chamada de Agência Pinkerton do século XXI. Com filiais nas cidades mais
importantes do mundo, empregava profissionais da mais alta categoria – peritos, especialistas em segurança e investigadores particulares como Knight. Separe as coisas, disse a si mesmo. Seja profissional. Mas aquilo parecia a gota d’água. Knight já suportara muitas dores e perdas, tanto do ponto de vista pessoal quanto do profissional. Na semana anterior, seu chefe, Dan Carter, e três colegas de trabalho tinham morrido no mar do Norte, num acidente de avião que ainda estava sendo investigado. Seria ele capaz de suportar outra morte? Deixando de lado esse pensamento e a febre da filha, Knight se forçou, apesar do calor sufocante, a caminhar depressa em direção à faixa de isolamento, contornando o aglomerado de jornalistas. Ao fazer isso, viu Billy Casper, um inspetor da Scotland Yard que conhecia havia 15 anos. Foi direto até Casper, um homem parrudo, com o rosto marcado por cicatrizes de acne. Ele fechou a cara assim que viu Knight chegar. – Isto aqui não é assunto da Private, Peter. – Se o corpo for de Sir Denton Marshall, é assunto da Private, sim. E meu também – retrucou Knight, firme. – É uma questão pessoal, Billy. Foi Sir Denton quem morreu? Casper não disse nada. – Foi ou não foi? – insistiu Knight. Por fim, o investigador assentiu com a cabeça, mas não pareceu contente e perguntou, desconfiado: – Por que você e a Private estão envolvidos nisto? Knight ficou parado alguns instantes, sentindo-se devastado e perguntando-se mais uma vez como daria aquela notícia a Amanda. Então afastou o desespero e disse: – O Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos de Londres é cliente da Private. Logo, Sir Denton é nosso cliente também. – E você? – indagou Casper. – Qual é o seu envolvimento pessoal nisto? Por acaso é amigo dele? – Muito mais que isso. Ele estava noivo da minha mãe. A expressão no rosto de Casper se abrandou um pouco e ele mordeu o lábio antes de dizer: – Vou ver se consigo deixá-lo entrar. Elaine vai querer conversar com você. Knight teve a sensação de que forças invisíveis conspiravam contra ele. – É Elaine que está cuidando do caso? – perguntou, sentindo vontade de socar alguma coisa. – Não está falando sério. – Seriíssimo, Peter – disse Casper. – Que sorte a sua.
2
A INVESTIGADORA-CHEFE ELAINE POTTERSFIELD ERA UMA das melhores profissionais a serviço da Polícia Metropolitana, uma veterana, com 20 anos de casa e um estilo belicoso e arrogante que dava resultados. Nos últimos dois anos Elaine solucionara mais assassinatos do que qualquer outro investigador da Scotland Yard. Também era a única conhecida de Knight que o desprezava abertamente. Ela era atraente, tinha 40 e poucos anos e os grandes olhos redondos, o nariz aquilino e os cabelos grisalhos, caídos sobre os ombros, sempre faziam Knight pensar num cão da raça borzoi. Quando ele entrou na cozinha de Sir Denton Marshall, Elaine lançou-lhe um olhar de superioridade, empinando o nariz e parecendo disposta a mordê-lo se tivesse oportunidade. – Peter – disse ela, fria. – Elaine – respondeu Knight. – Deixá-lo entrar na cena do crime não foi exatamente ideia minha. – Imagino que não mesmo – retrucou Knight enquanto lutava para controlar as próprias emoções, que ficavam mais exaltadas a cada segundo. Elaine sempre tivera esse efeito sobre ele. – Mas aqui estamos. O que tem para me contar? A investigadora passou alguns instantes sem responder. Por fim, disse: – Faz uma hora que a empregada o encontrou no jardim. Bem... o que sobrou dele. As lembranças de Sir Denton, o homem culto e divertido que Knight conhecera e passara a admirar ao longo dos últimos dois anos, fizeram suas pernas bambearem e ele precisou estender a mão coberta por uma luva de borracha e se apoiar na bancada. – O que sobrou dele? Elaine fez um gesto sombrio em direção à porta de vidro, que estava aberta. Knight não tinha a menor vontade de ir ao jardim. Queria se lembrar de Sir Denton como na última vez em que o vira, duas semanas antes: o topete de cabelos muito brancos, a pele rosada e brilhosa, o riso fácil e contagiante. – Entendo se você não quiser ver – disse Elaine. – O inspetor Casper me disse que sua mãe estava noiva de Sir Denton. Desde quando? – Desde o réveillon do ano passado – respondeu Knight. Ele engoliu em seco e deu um passo em direção à porta. – O casamento estava marcado para a véspera do Natal – acrescentou com amargura. – Mais uma tragédia. Era só o que me faltava, não é? Com a expressão contorcida de dor e raiva, Elaine baixou os olhos para o chão da cozinha enquanto Knight passava por ela e saía para o jardim. Do lado de fora, o calor aumentava. O ar do jardim estava parado e tinha um cheiro fétido, de morte e vísceras. Sobre as pedras do pátio, litros e litros de sangue –
tudo o que havia no corpo de Sir Denton – tinham escorrido e endurecido em volta de seu cadáver decapitado. – O legista acha que a arma usada foi uma faca comprida e curva de lâmina serrilhada – disse Elaine. Knight tornou a reprimir a ânsia de vômito. Tentou absorver toda a cena, gravá-la na mente como se fosse uma série de fotografias, e não a realidade. Manter tudo a uma distância segura era a única forma que ele conhecia de suportar algo assim. – E, se você olhar mais de perto, vai ver que parte do sangue foi empurrada de volta em direção ao corpo com água da mangueira – disse Elaine. – Imagino que o assassino tenha feito isso para apagar pegadas e vestígios. Knight assentiu e então, reunindo todas as forças, transferiu a atenção para além do corpo, mais para o fundo do jardim, passando pelos peritos que recolhiam indícios dos canteiros de flores e virando-se para um fotógrafo que tirava fotos junto ao muro. Contornando o corpo, mantendo uma distância de poucos metros, pôde ver o que o fotógrafo registrava. Era um objeto da Grécia Antiga e uma das preciosidades de Sir Denton: uma estátua feita em pedra calcária que representava um senador ateniense sem cabeça, com um rolo de pergaminho no colo e empunhando o cabo de uma espada quebrada. A cabeça de Sir Denton tinha sido posta no espaço vazio entre os ombros da estátua. O rosto estava inchado, flácido. A boca, torcida para a esquerda, parecia cuspir. E os olhos, abertos e sem brilho, deram a Knight uma chocante impressão de abandono. Por alguns segundos, o investigador da Private sentiu que iria desabar. Mas, logo em seguida, a indignação brotou dentro dele. Quem seria o bárbaro capaz de fazer uma coisa dessas? E por quê? Que motivo haveria para decapitar Denton Marshall? Ele era um ótimo homem. Ele era... – Você não está vendo tudo, Peter – disse Elaine atrás dele. – De uma olhada na grama em frente a estátua. Knight cerrou as mãos e foi até o gramado, que roçou os protetores de papel que envolviam seus sapatos, produzindo um som irritante como o de uma unha deslizando por um quadro-negro. Foi então que ele viu. E parou imediatamente. Cinco anéis entrelaçados, o símbolo dos Jogos Olímpicos, tinham sido pintados na grama com tinta em spray. Por cima do símbolo alguém tinha desenhado um X com sangue.
3
QUAL É O LUGAR MAIS provável de os monstros botarem seus ovos? Que ninho os choca até a eclosão? Que detritos tóxicos alimentam os filhotes até a idade adulta? Muitas vezes, durante as dores de cabeça que dilaceram minha mente como os trovões e os raios de uma tempestade, fico pensando em questões como essas. Ao ler estas linhas, você deve estar formulando suas próprias perguntas, como, por exemplo: “Quem é você?” Meu verdadeiro nome é irrelevante. Pelo bem desta história, porém, pode me chamar de Cronos. Na mitologia grega, Cronos era o mais poderoso dos titãs, um devorador de universos, deus e senhor do tempo. Se eu penso que sou deus? Não seja ridículo! Esse tipo de arrogância é uma provocação à sorte. Orgulho e confiança tão grandes assim são uma afronta aos deuses. E nunca cometi esses pecados traiçoeiros. No entanto, sou um desses seres raros que surgem na Terra a cada uma ou duas gerações. De que outra forma seria possível explicar que, muito antes de as tormentas na minha cabeça terem início, minha mais antiga lembrança seja o ódio e meu primeiro desejo tenha sido matar? Em algum momento de meu segundo ano de vida, tomei consciência do ódio, como se ele e eu fôssemos almas gêmeas trazidas da imensidão vazia para dentro do corpo de uma criança. E, durante algum tempo, foi assim que me enxerguei: como uma ardente singularidade prenhe de ódio, jogada em um canto do chão dentro de uma caixa cheia de trapos. Então, certo dia, como por instinto, comecei a engatinhar para fora da caixa e, com esse movimento e essa liberdade, logo entendi que era mais do que a raiva, que era uma criatura independente – que passava dias com fome e com sede, que estava nua e com frio, que ficava horas e horas sozinha, raramente tomava banho, quase nunca era pega no colo pelos monstros à sua volta, como se fosse algum tipo de alienígena surgido entre eles. Foi então que tive meu primeiro pensamento objetivo: quero matálos. Tive esse impulso selvagem muito antes de entender que meus pais eram viciados em drogas, incapazes de criar um ser superior como eu. Quando eu tinha 4 anos, pouco depois de cravar uma faca de cozinha na coxa de minha mãe, que estava desacordada, uma mulher apareceu no lugar imundo onde morávamos e me tirou de vez dos meus pais. Fui levado para uma instituição e obrigado a conviver com monstrinhos abandonados, cheios de ódio e desconfiados de qualquer um.
Logo entendi que eu era mais esperto, mais forte e mais visionário do que todos eles. Aos 9 anos ainda não sabia exatamente o que eu era, mas achava que talvez pertencesse a alguma espécie diferente, uma supercriatura capaz de manipular, dominar ou destruir qualquer monstro em meu caminho. Tive certeza disso quando começaram as tormentas em minha cabeça. Eu tinha 10 anos. Meu pai adotivo, a quem chamávamos de pastor Bob, estava dando uma surra de cinto em um dos monstrinhos e não suportei ouvir aquilo. A choradeira me deixou fraco e não consegui suportar essa sensação. Saí de casa, pulei a cerca dos fundos e perambulei pelas piores ruas de Londres até encontrar silêncio e conforto na pobreza familiar de um prédio abandonado. Já havia dois monstros lá dentro. Eram mais velhos do que eu, adolescentes, e faziam parte de uma gangue de rua. Percebi de cara que tinham usado drogas. Disseram que eu invadira o território deles. Tentei usar minha velocidade para escapar, mas um deles atirou uma pedra que me acertou a mandíbula. Fiquei tonto e caí. Eles riram e ficaram ainda mais irritados. Começaram a atirar mais pedras, que quebraram minhas costelas e romperam vasos sanguíneos em minha coxa. Foi então que senti o forte impacto acima da minha orelha esquerda, seguido por uma explosão de cores que varou meu cérebro como os braços deformados de centenas de raios rasgando um céu de verão.
4
OLHANDO ORA PARA O SÍMBOLO olímpico riscado com sangue, ora para a cabeça decapitada do noivo de sua mãe, Peter Knight se sentia impotente. A investigadora-chefe se aproximou dele. Em voz baixa, pediu: – Fale-me sobre Sir Denton. Engolindo o sofrimento, Knight respondeu: – Denton era um homem incrível, Elaine. Administrava um grande fundo de investimento, ganhava rios de dinheiro, mas doava quase tudo para caridade. Também era um membro importantíssimo do Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos de Londres. Muitas pessoas acham que, sem o esforço de Sir Denton, nunca teríamos derrotado Paris na disputa para sediar as Olimpíadas. E ele fazia minha mãe muito feliz. – Não achei que isso fosse possível – observou Elaine. – Nem eu. Nem ela mesma. Mas é verdade – disse Knight. – Até agora, eu achava que Denton Marshall não tinha um inimigo sequer. Elaine fez um gesto em direção ao símbolo olímpico coberto de sangue. – Talvez isso tenha mais a ver com as Olimpíadas do que com quem ele era nas outras áreas da vida. Knight encarou a cabeça de Sir Denton Marshall e tornou a olhar para o corpo, antes de dizer: – Pode ser. Ou talvez seja só para nos despistar. Cortar a cabeça de alguém pode ser facilmente interpretado como um ato de fúria, o que quase sempre é pessoal. – Está dizendo que poderia ser algum tipo de vingança? – indagou Elaine. Knight deu de ombros. – Ou um ato político. Ou a obra de uma mente insana. Ou uma combinação dos três. Não sei. – Você sabe onde Amanda estava ontem, entre onze horas e meia-noite e meia? – perguntou Elaine de repente. Knight olhou-a como se ela fosse uma imbecil. – Minha mãe amava Denton. – A decepção amorosa pode ser uma grande motivação para a raiva – observou a investigadora-chefe. – Não houve decepção nenhuma – disparou Knight. – Eu teria sabido. Além do mais, você já viu minha mãe. Ela mede 1,65m e pesa 50 quilos. Denton tinha 100 quilos. Minha mãe não teria força física nem emocional para cortar a cabeça dele. Isso sem falar na ausência de motivo. – Então você sabe onde ela estava? – insistiu Elaine.
– Vou descobrir e lhe direi. Mas antes tenho que contar a ela. – Se você achar melhor, eu posso contar. – Não. Eu mesmo faço isso, pode deixar – disse Knight, analisando a cabeça de Sir Denton pela última vez e concentrando o olhar na forma como a boca estava retorcida, como se o morto estivesse tentando cuspir alguma coisa. Knight pegou no bolso uma lanterna do tamanho de uma caneta, contornou o símbolo olímpico e apontou o facho de luz para o espaço entre os lábios de Sir Denton. Viu o brilho de algo lá dentro e tornou a levar a mão ao bolso em busca de uma pinça que sempre levava consigo para o caso de querer pegar algum objeto sem tocá-lo. Recusando-se a fitar os olhos mortos do noivo da mãe, começou a manejar a pinça entre os lábios do cadáver. – Peter, pare com isso – ordenou Elaine. – Você está... Mas Knight já se virava para ela, mostrando-lhe uma moeda de bronze manchada que havia retirado da boca de Sir Denton. – Nova teoria – disse ele. – O motivo foi dinheiro.
5
QUANDO RECOBREI A CONSCIÊNCIA, VÁRIOS dias depois de ter sido apedrejado, estava internado por causa de um traumatismo craniano e com a nauseante sensação de que, sem saber como, tinha sido reprogramado para me tornar ainda mais alienígena do que antes. Lembrava-me de cada detalhe do ataque e dos agressores. No entanto, quando a polícia me perguntou o que havia acontecido, falei que não tinha a menor ideia. Disse que me lembrava de ter entrado no prédio e eles logo pararam de fazer perguntas. Recuperei-me aos poucos. Uma cicatriz em forma de caranguejo se formou no meu couro cabeludo. Os cabelos tornaram a crescer e a esconderam. Comecei a acalentar uma fantasia sombria, que se tornou minha primeira obsessão. Duas semanas depois voltei para a casa do pastor Bob e dos monstrinhos. Até eles perceberam que eu havia mudado. Não era mais um menino malcomportado. Passei a sorrir e agir como se estivesse feliz. Comecei a estudar e a cuidar do corpo. O pastor Bob pensou que eu tivesse encontrado Deus. Mas confesso que fiz tudo isso motivado pelo ódio. Acariciava a cicatriz em minha cabeça e concentrava meu ódio, meu mais antigo aliado emocional, em coisas que queria possuir ou desejava que acontecessem. Com o coração duro, ia atrás de todas elas, tentando mostrar ao mundo inteiro quão diferente eu era. E, embora em público eu agisse como se tivesse mudado – o menino solidário, feliz, bem-sucedido –, nunca me esqueci do apedrejamento nem das tormentas que o incidente desencadeara em minha mente. Aos 14 anos comecei a procurar secretamente os monstros que me agrediram. Acabei encontrando os dois vendendo saquinhos de metanfetamina por 10 libras em uma esquina a 12 quadras de onde eu morava com o pastor Bob e os monstrinhos. Vigiei-os até que completei 16 anos. Foi quando me senti grande e forte o suficiente para agir. Antes de encontrar Jesus, o pastor Bob trabalhara como ferreiro. No sexto aniversário do meu apedrejamento, peguei um de seus martelos mais pesados e um de seus antigos macacões de trabalho e saí de fininho à noite, quando todos pensavam que eu estivesse estudando. Vestido com o macacão e levando o martelo dentro de uma mochila que eu catara no lixo, encontrei os dois monstros. Seis anos fazendo uso de drogas e meu desenvolvimento físico haviam me apagado de sua memória. Com o intuito de atraí-los até um terreno baldio, prometi que lhes daria dinheiro. Chegando lá, martelei seus cérebros de monstro até transformá-los em uma papa ensanguentada.
6
POUCO DEPOIS DE A INVESTIGADORA-CHEFE Elaine Pottersfield mandar recolher os restos mortais de Sir Denton, Knight saiu do jardim e da mansão tomado por um temor ainda maior do que sentira ao chegar. Passou por baixo da faixa de isolamento, esquivou-se dos jornalistas e saiu de Lyall Mews imaginando como daria à mãe a notícia da morte de Denton. Sabia que tinha que fazer isso logo, antes que Amanda ficasse sabendo por outra pessoa. Não queria de jeito nenhum que ela estivesse sozinha quando descobrisse que a melhor coisa que acontecera em sua vida havia... – Knight? – chamou uma voz de homem. – É você? Knight ergueu os olhos e viu um homem alto e atlético, de 40 e poucos anos, vestido com um terno italiano de boa qualidade, correndo em sua direção. Por baixo dos cabelos grisalhos e cheios, seu rosto largo estava afogueado e contorcido de aflição. Knight havia encontrado Michael Lancer, ou Mike, apenas duas vezes no escritório londrino da Private desde que a agência fora contratada para agir como uma força de segurança especial durante os jogos olímpicos. No entanto, já conhecia bem sua reputação. Bicampeão mundial de decatlo nas décadas de 1980 e 1990, Lancer servira no Regimento Coldstream e na Guarda da Rainha, o que lhe permitira treinar em tempo integral. Durante as Olimpíadas de Barcelona, em 1992, no fim do primeiro dia do declato, ele estava liderando a competição, mas no segundo dia teve cãibras por causa do calor e da umidade e acabou não conseguindo se colocar entre os 10 primeiros. Desde então ganhava a vida dando palestras sobre motivação e prestando consultoria em segurança. Frequentemente trabalhava com a Private em grandes projetos. Também era integrante do Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos de Londres, responsável pela segurança do megaevento. – É verdade? – perguntou Lancer com a voz alterada. – Denton está morto? – Infelizmente sim, Mike – respondeu Knight. Os olhos de Lancer se encheram de lágrimas. – Quem faria uma coisa dessas? Por quê? – Parece que foi alguém que odeia as Olimpíadas – disse Knight e em seguida explicou como Sir Denton fora assassinado e falou sobre o X feito com sangue. Abalado, Lancer perguntou: – Vocês têm ideia de quando isso aconteceu? – Pouco antes da meia-noite – informou Knight. Lancer balançou a cabeça.
– Quer dizer então que estive com ele apenas duas horas antes. Ele estava saindo da festa da Tate com... – Ele se interrompeu e olhou para Knight com uma expressão triste. – Com minha mãe, provavelmente – emendou Knight. – Eles estavam noivos. – É, eu sabia que você era filho dela – disse Lancer. – Meus pêsames, Peter. Amanda já sabe? – Vou contar para ela agora. – Coitado de você – comentou Lancer, olhando então para a faixa de isolamento. – Os jornalistas já chegaram? – Um bom número deles, e ainda virão mais – respondeu Knight. Lancer balançou a cabeça com amargura. – Com todo o respeito e carinho que Denton merece, essa era a última coisa de que precisávamos antes da cerimônia de abertura de amanhã. Daqui a pouco o mundo inteiro estará sabendo de cada detalhe mórbido. – Não há nada que se possa fazer para impedir isso – disse Knight. – Talvez seja bom intensificar a segurança de todos os membros do comitê organizador. Lancer deu um muxoxo, em seguida aquiesceu. – Tem razão. É melhor eu pegar um táxi e voltar para o escritório. Marcus vai querer ouvir essa notícia pessoalmente. Marcus Morris, um político que abandonara a vida pública nas últimas eleições, era o presidente do Comitê Organizador de Londres. – Minha mãe também – disse Knight, e os dois caminharam juntos em direção à Chesham Street, onde seria mais fácil pegar um táxi. De fato, mal tinham chegado lá quando um táxi preto se aproximou pelo outro lado da rua, vindo da direção sul, bem em frente ao hotel Diplomat. Ao mesmo tempo, um táxi vermelho veio do norte descendo a pista em cuja calçada eles estavam. Knight fez sinal. Lancer chamou o táxi preto e disse: – Mande meus sentimentos a sua mãe. E diga a Jack que ligarei para ele mais tarde. Jack Morgan era o americano dono da Private. Estava em Londres desde que o avião com quatro integrantes da filial da agência caíra no mar do Norte sem deixar sobreviventes. Lancer desceu o meio-fio e seguiu confiante, atravessando a rua em diagonal enquanto o táxi vermelho se aproximava. Então, para seu horror, Knight ouviu o ronco de um motor e pneus cantando. O táxi preto estava acelerando direto para cima do integrante do comitê.
7
KNIGHT REAGIU POR INSTINTO. PULOU para o meio da rua e empurrou Lancer, tirando-o da frente do táxi. Um segundo depois, sentiu o para-choque do táxi preto a menos de um metro de distância e tentou dar um salto para não ser atingido. Ele não conseguiu impulso suficiente para sair da trajetória do táxi. O para-choque e a grade dianteira do veículo atingiram sua canela e seu joelho esquerdos. O motorista não parou. Knight foi lançado ao ar. Seus ombros, seu peito e seus quadris bateram com força no capô e ele deu de cara no para-brisa, o que lhe permitiu ver o motorista por uma fração de segundo. Um lenço. Óculos escuros. Seria uma mulher? Ele foi jogado por cima do teto do carro como se fosse uma boneca de pano. Caiu com todo o seu peso sobre o lado esquerdo do corpo. O choque o deixou sem ar e, durante alguns instantes, tudo o que conseguiu perceber foi a traseira do táxi preto se afastando em alta velocidade, o cheiro da fumaça do cano de descarga e suas têmporas latejando. Então pensou: Parece milagre, mas acho que não quebrei nada. O táxi vermelho avançou cantando pneus na direção de Knight e ele entrou em pânico, pensando que, no fim das contas, seria mesmo atropelado. Mas o carro deu um giro de 180 graus e parou com uma leve derrapada. O motorista, um velho rastafári com os dreads cobertos por um gorro de crochê verde e dourado, abriu a porta e saltou. – Knight, não se mexa! – gritou Lancer, correndo até ele. – Você está ferido! – Eu estou bem – rebateu Knight com a voz rouca. – Mike, vá atrás daquele táxi. Lancer hesitou, mas Knight insistiu: – Ela está fugindo! Lancer ergueu Knight pelas axilas e o levou até o banco traseiro do táxi vermelho. Em seguida gritou para o motorista: – Siga aquele táxi! Com as mãos nas costelas, Knight ainda lutava para recuperar o fôlego quando o rastafári saiu atrás do táxi preto, que, a essa altura, já estava a vários quarteirões de distância e fazia uma curva rápida para entrar na Pont Street, no sentido oeste. – Vou pegá-la, cara! – prometeu o taxista. – Aquela louca tentou matar você! Lancer olhava alternadamente para a rua à sua frente e para Knight. – Tem certeza de que está bem? – Estou todo dolorido e vou ficar cheio de hematomas – grunhiu Knight. – E não era a mim que ela queria atropelar, Mike. Era você. O taxista entrou a toda a velocidade na Pont Street, indo na direção oeste. O táxi
preto estava dois quarteirões à frente e as luzes de freio piscaram antes de o carro fazer uma curva fechada para entrar na Sloane Street. O rastafári pisou fundo no acelerador e a rua arborizada virou um borrão. Chegaram ao cruzamento com a Sloane tão depressa que Knight teve certeza de que iriam alcançar a mulher que quase o matara. Mas então dois outros táxis pretos passaram depressa por eles, ambos seguindo a Sloane Street no sentido norte, e o rastafári foi obrigado a frear e a dar uma guinada com o volante para não bater. O táxi em que eles estavam derrapou e quase colidiu com outro carro: uma viatura da Polícia Metropolitana. A sirene começou a tocar. As luzes se acenderam. – Não! – berrou Lancer. – Cara, é sempre assim! – gritou o taxista, frustrado, diminuindo a velocidade até parar. Tonto e zangado, Knight balançou a cabeça e, pelo para-brisa, viu o táxi que o atropelara se misturar ao tráfego que seguia em direção ao Hyde Park.
8
FLECHAS BRILHANTES ZUMBIAM E RASGAVAM o ar quente do meio da manhã. Iam se enterrar no centro e ao redor dos alvos: círculos amarelos rodeados por outros maiores, vermelhos e azuis, numa longa série de alvos montados sobre o gramado verde-claro do estádio Lord’s Cricket Grounds, perto do Regent’s Park, no centro de Londres. Arqueiros de seis ou sete países terminavam a última rodada de treinos. O arco e flecha seria uma das primeiras modalidades disputadas após o início das Olimpíadas de Londres. A competição de equipes estava marcada para o meio da manhã de sábado, dali a dois dias, e a cerimônia de entrega das medalhas aconteceria nessa mesma tarde. Era por isso que Karen Pope estava na arquibancada, olhando por um binóculo, com todo o tédio que sentia estampado no rosto. Ela era jornalista esportiva do The Sun, tabloide britânico que se orgulha de ter mais de sete milhões de leitores graças a seu jornalismo agressivo, desleal, e à tradição de publicar fotos de moças de peito de fora na página 3. Karen tinha 30 e poucos anos e era bonita ao estilo da atriz Renée Zellweger em O diário de Bridget Jones, mas tinha o busto tão pequeno que jamais seria cogitada para estampar a página 3. Era também uma repórter tenaz, além de extremamente ambiciosa. Nessa manhã, trazia pendurada no pescoço uma credencial de imprensa de acesso irrestrito aos jogos. Apenas 14 dessas haviam sido concedidas ao The Sun. O número de credenciais fora muito limitado para a imprensa britânica, pois mais de 20 mil jornalistas de todo o mundo também estariam em Londres para cobrir os 17 dias do megaevento. Pelo menos para os jornalistas britânicos, as credenciais de acesso irrestrito tinham se tornado quase tão valiosas quanto medalhas olímpicas. Karen não parava de pensar que deveria se sentir feliz por ter conseguido a credencial e por estar ali cobrindo os jogos, mas até aquele momento não conseguira encontrar nada sobre arco e flecha que merecesse virar notícia. Ela fora procurar os sul-coreanos, favoritos à medalha de ouro, mas descobrira que eles tinham encerrado o treino antes de ela chegar. Droga! – reclamou. – Finch vai me matar. Concluiu então que sua melhor opção era levantar dados para uma matéria que, com um bom texto, talvez até pudesse ser publicada. Mas que tipo de matéria? Com que gancho? Arco e flecha: A versão chique dos dardos? Não. Não havia absolutamente nada de chique no arco e flecha. Pelo amor de Deus, o que ela entendia de arco e flecha? Fora criada numa família
que gostava de futebol. Mais cedo nessa manhã, tentara explicar a Finch que seria melhor mandá-la cobrir o atletismo ou a ginástica. Mas seu editor lhe lembrara muito claramente que fazia apenas seis meses que ela trabalhava no jornal, vinda de Manchester, e que, por isso, ocupava o lugar mais baixo na hierarquia da redação de esportes. – Consiga uma matéria importante que eu lhe dou pautas melhores – dissera Finch. Karen obrigou-se a prestar atenção nos arqueiros. Percebeu que os atletas pareciam muito calmos. Era quase como se estivessem em transe. Não lembravam em nada um rebatedor de críquete ou um tenista. Será que ela deveria escrever sobre isso? Descobrir como os arqueiros chegavam a tal estado de concentração? Ai, sério, pensou, irritada. Quem vai querer ler sobre atletas zen na página de esportes quando pode olhar os peitos da página 3? Ela suspirou, largou o binóculo e mudou de posição em sua cadeira da Grand Stand, a tribuna do estádio em que estava sentada. Reparou no maço de correspondência que pegara e enfiara na bolsa ao sair da redação. Deu uma olhada nos envelopes e encontrou vários releases de imprensa e outros papéis que não despertavam nenhum interesse. Então viu um envelope grosso de papel pardo, com seu nome e o título escritos na frente, em estranhas letras de fôrma pretas e azuis. A jornalista torceu o nariz como quem acaba de sentir um cheiro ruim. Tinha certeza de que recentemente, pelo menos desde que chegara a Londres, não havia escrito nada que justificasse uma carta de insultos. Todo repórter com um mínimo de valor recebe cartas desse tipo. É fácil reconhecê-las. Em geral chegavam depois de você assinar algum texto controverso ou sugerir uma conspiração diabólica. Ela abriu o envelope mesmo assim e tirou de dentro dele um maço de 10 páginas. Preso a elas por um clipe havia um cartão simples dobrado ao meio. Não havia nada escrito no cartão. Ao abri-lo, porém, ela ativou um pequeno chip e uma flauta começou a tocar uma estranha melodia que a deixou arrepiada e a fez pensar que alguém tinha acabado de morrer. Karen fechou o cartão e olhou a primeira página do maço que tinha nas mãos. Era uma carta endereçada a ela, escrita em uma dúzia de fontes diferentes, o que dificultava a leitura. No entanto, começou a entender o teor da carta e a releu três vezes. Seu coração batia mais depressa a cada linha, até que ela começou a sentir sua garganta latejar. Deu uma olhada rápida no restante dos papéis presos à carta e ao cartão e achou que fosse desmaiar. Descontrolada, enfiou a mão na bolsa para pegar o celular e ligou para seu editor. – Finch, sou eu, Karen – falou, ofegante, assim que ele atendeu. – Pode me dizer se Denton Marshall foi assassinado? Com um sotaque londrino carregado, Finch respondeu: – O quê? Sir Denton Marshall?
– É. Aquele magnata do fundo de investimento, filantropo, integrante do comitê organizador – explicou ela, recolhendo seus pertences e já procurando a saída mais próxima do estádio. – Por favor, Finch, talvez eu tenha um grande furo. – Espere um instante – rosnou o editor. A jornalista já estava na rua e tentava pegar um táxi em frente ao Regent’s Park quando o editor finalmente voltou à linha. – A casa de Sir Denton em Lyall Mews está isolada pela polícia e a van do médico-legista acabou de chegar. – Finch, você vai ter que arrumar outra pessoa para cobrir o arco e flecha e a equitação – vibrou Karen. – O furo que acabei de conseguir vai sacudir Londres feito um terremoto.
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– LANCER DISSE QUE VOCÊ SALVOU a vida dele – comentou Elaine Pottersfield. Um paramédico examinava Knight, que fazia uma série de caretas sentado no para-choque de uma ambulância junto à calçada da Sloane Street, a poucos metros do táxi vermelho do rastafári. – Eu só reagi – insistiu Knight, com o corpo todo dolorido e a sensação de que o calor que subia da calçada o fritava. – Você se arriscou – afirmou a investigadora-chefe com frieza. Knight ficou irritado: – Você acabou de dizer que salvei a vida dele. – E quase perdeu a sua – retrucou ela. – O que teria acontecido... – Ela fez uma pausa. – Com as crianças? – Elaine, vamos deixar as crianças fora disso – esbravejou ele. – Eu estou bem. As câmeras da rua devem ter filmado aquele táxi. Londres tinha 10 mil câmeras de circuito fechado espalhadas pela cidade, todas ligadas 24 horas por dia. Várias funcionavam desde os atentados no metrô, em 2005, que tinham deixado 56 mortos e mais de 700 feridos. – Vamos checar – prometeu Elaine. – Agora, encontrar um táxi preto em Londres? Como nenhum de vocês anotou a placa, vai ser quase impossível. – Não se vocês limitarem a busca a esta rua, sentido norte, no horário aproximado em que ela fugiu. E liguem para todas as empresas de táxi. Devo ter amassado um pouco o capô ou a frente do carro dela. – Tem certeza de que era uma mulher? – indagou Elaine, cética. – Tenho – insistiu Knight. – Uma mulher de lenço e óculos escuros. E muito nervosa. A investigadora-chefe da Scotland Yard lançou um olhar rápido para Lancer, que estava sendo entrevistado por outro policial. – Ele e Sir Denton – comentou ela. – Ambos integrantes do comitê organizador. Knight assentiu com a cabeça. – Eu começaria logo a procurar pessoas que tenham alguma rixa com o comitê. Elaine não respondeu, pois Lancer se aproximava. Ele havia afrouxado a gravata e estava secando o suor da testa com um lenço. – Obrigado – disse a Knight. – Fico lhe devendo uma. – Não foi nada que você também não teria feito por mim – respondeu Knight. – Vou ligar para Jack – disse Lancer. – Contar para ele o que você fez. – Não precisa – disse Knight. – Precisa, sim – insistiu Lancer. Ele hesitou. – Gostaria de retribuir.
Knight balançou negativamente a cabeça. – O comitê é cliente da Private, Mike, o que significa que você também é. Não fiz nada que não fosse parte do trabalho. – Não, você... – Lancer hesitou antes de completar o raciocínio: – Você é meu convidado para a cerimônia de abertura amanhã. O convite deixou Knight sem ação. Os ingressos para a cerimônia de abertura eram quase tão valiosos quanto tinham sido os convites para o casamento do príncipe William com Kate Middleton em 2011. – Se eu conseguir uma babá para ficar com as crianças, aceitarei. O rosto de Lancer se iluminou. – Vou pedir que minha secretária mande uma credencial e os ingressos para você amanhã de manhã. – Ele deu um tapinha no ombro não machucado de Knight, sorriu para Elaine e então se afastou, indo em direção ao taxista rastafári, que ainda se explicava aos guardas de trânsito que o haviam parado. – Vou precisar que você preste depoimento formal – disse Elaine para Knight. – Não vou fazer nada antes de falar com minha mãe.
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VINTE MINUTOS DEPOIS, UMA VIATURA da Polícia Metropolitana deixou Knight em frente à casa de sua mãe, na Milner Street, Knightsbridge. Os paramédicos tinham lhe oferecido analgésicos, mas ele não aceitara. Descer da viatura da polícia foi terrível e ele não parava de se lembrar, em flashes, de uma linda mulher grávida em pé no meio de um pântano ao pôr do sol. Felizmente conseguiu tirá-la da cabeça ao tocar a campainha, subitamente dandose conta de como suas roupas estavam sujas e rasgadas. Amanda não iria gostar nada daquele visual. Nem ela nem... A porta foi aberta por Gary Boss, assistente particular de sua mãe havia muitos anos. Boss já tinha passado dos 30, era magro, bem cuidado e usava roupas impecáveis. Observou Knight piscando por trás dos óculos redondos de aro de tartaruga. – Peter, eu não sabia que você tinha hora marcada – falou. – O filho único dela não precisa marcar hora – respondeu Knight. – Pelo menos não hoje. – Ela está ocupadíssima – insistiu Boss. – Sugiro que... – Denton morreu, Gary – disse Knight em voz baixa. – O quê? – retrucou Boss, antes de remexer o corpo com uma atitude de desdém. – Impossível. Ela esteve com ele ontem mesmo... – Foi assassinado – acrescentou Knight, entrando. – Vim direto da cena do crime. Preciso contar para ela. – Assassinado? – repetiu Boss e então sua boca se escancarou. Fechou os olhos, como se previsse um grande sofrimento. – Meu Deus. Ela vai ficar... – Eu sei – disse Knight, passando por ele. – Onde ela está? – Na biblioteca – respondeu Boss. – Escolhendo tecidos. Knight fez uma careta. Sua mãe detestava ser interrompida quando estava examinando amostras de tecidos. – Não tem outro jeito – falou, atravessando o hall em direção à porta dupla que levava à biblioteca e se preparando para contar à mãe que ela acabara de ficar viúva pela segunda vez. Quando Knight tinha 3 anos, seu pai, Harry, morrera num terrível acidente na fábrica em que trabalhava, deixando um parco seguro para a jovem viúva e o filho. A perda deixara sua mãe amargurada, mas ela transformou essa amargura em energia. Como sempre gostara de moda e costura, usou o dinheiro do seguro para criar uma empresa de roupas que batizou com o próprio nome. A Amanda Designs tinha nascido na cozinha de sua casa. Knight se lembrava de
como a mãe parecia considerar a vida e o trabalho uma luta longa e sem fim. Mas esse estilo beligerante rendera frutos. Quando Knight completou 15 anos, sua mãe já havia transformado a Amanda Designs numa empresa sólida e respeitável, graças à sua atitude eternamente insatisfeita e sempre pressionando todos à sua volta para que dessem o melhor de si. Pouco depois de Knight se formar no Christ Church College, em Oxford, a mãe vendera ações da empresa no valor de dezenas de milhões de libras e usara o dinheiro para lançar outras quatro linhas de roupas, todas bem-sucedidas. Durante todo esse tempo, porém, Amanda nunca se permitira apaixonar-se de novo. Tivera amigos, namorados e, Knight desconfiava, vários casos passageiros. No entanto, desde o dia em que Harry morrera, Amanda havia erguido ao redor de seu coração uma muralha intransponível que ninguém a não ser o filho conseguia romper. Até Denton Marshall entrar em sua vida. Os dois tinham se conhecido em um evento beneficente em prol das vítimas de câncer e, como sua mãe gostava de dizer, “foi tudo à primeira vista”. Naquela noite, Amanda deixou de ser uma megera fria e distante e se transformou em uma colegial boba com sua primeira paixão. Desse dia em diante, Sir Denton havia sido sua alma gêmea, seu melhor amigo, a fonte da mais profunda felicidade de sua vida. Knight teve outro flash da imagem da mulher grávida, bateu na porta da biblioteca e entrou. Amanda Knight era uma mulher elegante, independentemente dos padrões de avaliação: com 50 e tantos anos, tinha a postura de uma bailarina, a beleza de uma atriz de cinema e a atitude de uma rainha benevolente. Estava de pé diante de uma mesa de trabalho coberta com dúzias de amostras de tecidos. – Gary – repreendeu ela sem erguer os olhos. – Avisei que não queria ser... – Sou eu, mãe – disse Knight. Amanda virou seus olhos cor de ardósia para o filho e franziu o cenho. – Peter, Gary não disse que eu estava escolhendo... – Então, percebendo algo no semblante de Knight, ela se calou. Em seguida fez uma careta de reprovação. – Nem precisa me dizer: aquelas pestes dos seus filhos puseram mais uma babá para correr. – Não – respondeu Knight. – Queria que fosse algo simples assim. Então ele se viu obrigado a estilhaçar em mil pedacinhos a felicidade da mãe.
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SE QUISER MATAR MONSTROS, VOCÊ precisa aprender a pensar como eles. Só entendi isso na noite seguinte à explosão que partiu minha cabeça pela segunda vez, 19 anos depois de eu ter sido apedrejado. Já havia tempo que eu deixara Londres. Meu primeiro plano para mostrar ao mundo que eu era mais que diferente – que era infinitamente superior a qualquer outro ser humano – tinha sido frustrado. Os monstros haviam vencido a guerra contra mim valendo-se de subterfúgios e sabotagem. Consequentemente, quando aterrissei nos Bálcãs no final da primavera de 1995 como membro de uma missão de paz da Otan, meu ódio não tinha limites. Sua profundidade e dimensão eram insondáveis. Depois do que tinham feito comigo, não era paz que eu queria. Queria violência. Sacrifício. Sangue. Então talvez seja possível dizer que o destino interveio a meu favor cinco semanas depois de minha transferência para os campos de batalha castigados, instáveis e muito perigosos da Sérvia, da Croácia e da Bósnia-Herzegovina. Era julho, fim de tarde, numa estrada poeirenta a quase 30 quilômetros da cidade sitiada de Srebrenica, no vale do rio Drina. Eu estava no banco do carona de um Land Cruiser camuflado da Toyota, olhando pela janela, usando um capacete e um colete à prova de balas. Lia um livro sobre mitologia grega que pegara emprestado e pensei que aquela paisagem balcânica maltratada pela guerra poderia ter servido de cenário a um mito escuro e perverso. Rosas selvagens floresciam por toda parte em volta dos cadáveres mutilados que tínhamos visto por ali, vítimas das atrocidades de algum dos campos adversários. A bomba explodiu sem aviso. Não me lembro do barulho da explosão que matou o motorista, os dois outros passageiros e destruiu o utilitário. Mas ainda posso sentir o cheiro da cordite e do diesel queimado. E ainda posso sentir o golpe secundário do punho invisível que me atingiu com toda a força, fazendo meu corpo atravessar o para-brisa e desencadeando uma tempestade elétrica de proporções gigantescas dentro do meu crânio. Já estava anoitecendo quando recobrei os sentidos. Meus ouvidos zumbiam, eu estava atordoado e enjoado. De início, achei que tivesse 10 anos e houvesse acabado de ser apedrejado até desmaiar. Mas então o balanço e o rodopio dentro da minha cabeça diminuíram o bastante para que eu pudesse distinguir os restos fumegantes do Land Cruiser e os cadáveres de meus colegas, irreconhecíveis de tão carbonizados. Ao
meu lado, vi uma submetralhadora Sterling e uma pistola Beretta, que haviam caído do veículo. Quando consegui me levantar, pegar as armas e sair andando, já estava escuro. Percorri vários quilômetros de floresta, cambaleando e caindo, antes de chegar a um vilarejo em algum lugar a sudoeste de Srebrenica. Entrei no povoado com as armas na mão e ouvi alguma coisa acima do zumbido que ainda ecoava em meus ouvidos. Em algum lugar na escuridão à minha frente, homens gritavam. Aquelas vozes zangadas me atraíram e, enquanto caminhava em direção a elas, senti o ódio, meu velho amigo, ganhar força dentro de mim, um ódio irracional que me instigava a matar alguém. Qualquer um.
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OS HOMENS ERAM BÓSNIOS, SETE ao todo, armados com velhos fuzis de um cano só e espingardas enferrujadas que usavam para cutucar três adolescentes algemadas a sua frente, como se tocassem o gado para o curral. Um deles me viu, deu um grito, e todos viraram as armas na minha direção. Por motivos que só consegui explicar a mim mesmo bem mais tarde, não abri fogo para matar todos eles, os homens e as adolescentes, ali mesmo. Em vez disso, disse-lhes a verdade: que fazia parte da missão de paz da Otan, que nosso jipe tinha explodido e que eu precisava ligar para minha base. Isso pareceu acalmá-los e eles abaixaram as armas e me deixaram ficar com as minhas. Um deles falava um pouco de inglês e disse que eu podia ligar da delegacia do vilarejo, para onde estavam indo. Perguntei por que as meninas tinham sido presas e o que falava inglês respondeu: – São criminosas de guerra. Fazem parte de um esquadrão da morte sérvio que trabalha para Mladić, aquele demônio. São conhecidas como as Fúrias. Essas meninas matam rapazes bósnios. Muitos. Todas elas. Pode perguntar à mais velha. Ela fala inglês. Fúrias?, pensei, interessado. Tinha lido sobre as Fúrias na véspera, num livro de mitologia grega. Apertei o passo para poder estudá-las, principalmente a mais velha, que tinha sobrancelhas grossas, um ar azedo, cabelos pretos também grossos e olhos escuros, sem vida. Fúrias? Aquilo não podia ser coincidência. Do mesmo jeito que eu acreditava que o ódio era um presente que eu havia recebido ao nascer, passei a acreditar que aquelas moças tinham sido postas no meu caminho por algum motivo. Apesar da dor em meu cranio, me aproximei da mais velha e perguntei: – Você é criminosa de guerra? Ela virou para mim os olhos sem vida e cuspiu a resposta: – Não sou criminosa coisa nenhuma. Nem minhas irmãs. No ano passado, uns porcos bósnios mataram meus pais e passaram quatro dias estuprando minhas irmãs e a mim. Se pudesse, daria um tiro em todos os porcos bósnios. Quebraria a cabeça deles. Mataria todos. As irmãs devem ter entendido o que ela dizia, porque também viraram os olhos sem vida na minha direção. O choque da explosão, a cabeça latejando, a raiva galopante, os olhos sem vida das meninas sérvias, o mito das Fúrias – tudo isso de repente pareceu se encaixar para formar algo que me parecia predestinado. Os bósnios algemaram as meninas a cadeiras de madeira pesadas, chumbadas no piso da delegacia, e trancaram as portas. Os telefones fixos não funcionavam. Nem as
primitivas torres de telefonia celular. Porém, fui informado deque poderia esperar ali até que uma força de paz fosse chamada para levar as meninas sérvias e a mim até um local mais seguro. Quando o bósnio que falava inglês saiu da sala, aninhei minha arma nos braços, cheguei mais perto da menina que tinha falado comigo e perguntei: – Você acredita em destino? – Me deixe em paz. – Acredita em destino? – insisti. – Por que esta me perguntando isso? – Pelo que vejo, como criminosa de guerra capturada, seu destino é morrer – respondi. – Se você for condenada por matar dúzias de rapazes desarmados, isso é genocídio. Mesmo que você e suas irmãs tenham sofrido um estupro coletivo antes, vão ser enforcadas. É isso que acontece nos casos de genocídio. Ela ergueu o queixo, altiva. – Não tenho medo de morrer pelo que fizemos. Nós matamos monstros. Era justiça. Restauramos o equilíbrio onde ele não existia mais. Monstros e Fúrias, pensei, cada vez mais animado. – Pode até ser, mas vocês vão morrer mesmo assim e sua história vai acabar. – Fiz uma pausa. – Mas talvez seu destino seja outro. Talvez tudo na vida de vocês tenha sido uma preparação para este momento específico, para este lugar, nesta noite, aqui e agora, quando nossos destinos se cruzariam. Ela parecia confusa. – Que história é essa de destinos se cruzando? – Vou tirá-las daqui – falei. – Conseguirei documentos novos para vocês, vou escondê-las e protegê-las para sempre. Vou dar a vocês uma chance de viver. Seu olhar endureceu outra vez. – E em troca? Olhei dentro de seus olhos e pude ver sua alma. – Vocês estarão dispostas a enfrentar a morte para me salvar, como vou enfrentar a morte agora para salvar vocês. A mais velha das três me olhou de lado. Então se virou e começou a falar com as irmãs em sérvio. Elas passaram um bom tempo discutindo em sussurros ásperos. Por fim, a que falava inglês perguntou: – Você pode nos salvar? O barulho na minha cabeça persistia, mas a névoa havia desaparecido, proporcionando uma clareza mental que era quase elétrica. Assenti com a cabeça. Ela me encarou com aqueles olhos escuros e sem vida e disse: – Então salve. O bósnio que falava inglês tornou a entrar e me chamou: – Que mentiras esses demônios estão contando? – Elas estão com sede – respondi. – Precisam de água. Conseguiram fazer a
ligação? – Ainda não – respondeu ele. – Que bom – rebati, soltando a trava de segurança da submetralhadora enquanto virava o cano para os homens que haviam capturado as Fúrias. Abri fogo e matei todos eles.
PARTE DOIS
QUE COMECEM OS JOGOS
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QUANDO O TÁXI PAROU EM frente a um estéril arranha-céu no coração da City of London – o centro financeiro da cidade –, Peter Knight ainda podia ouvir os soluços da mãe. Só a vira chorar daquele jeito junto ao corpo de seu pai, depois do acidente. Ao saber da morte do noivo, Amanda havia desabado nos braços do filho. Knight pôde sentir seu desespero lancinante – um sentimento que conhecia bem. Sua mãe tinha sido atingida na alma. Não era uma sensação que Knight desejasse a ninguém, muito menos à própria mãe. Eles ficaram abraçados durante a pior fase daquela hemorragia mental e emocional que reavivava suas próprias lembranças das perdas que sofrera. Por fim, Gary Boss fora à biblioteca e quase caíra em prantos ao ver o desespero de Amanda. Minutos depois, Knight recebeu uma mensagem de texto de Jack Morgan pedindo-lhe que fosse depressa ao escritório da Private Londres, pois o The Sun tinha contratado a agência para analisar uma carta enviada por alguém que se dizia o assassino de Sir Denton. Boss prometeu que cuidaria de Amanda. – Eu deveria ficar aqui – falou Knight, sentindo uma grande culpa por pensar em ir embora. – Jack vai entender. Vou ligar para ele. – Não! – disse Amanda com raiva. – Vá trabalhar, Peter. Faça o que sabe fazer melhor. Quero que encontre o doente que fez isso com Denton e o ponha atrás das grades. Quero que ele seja queimado vivo. Enquanto subia de elevador até os últimos andares do arranha-céu, seus pensamentos foram dominados pela missão que a mãe havia lhe confiado e, apesar da dor no corpo, podia sentir que estava ficando obcecado. Isso sempre acontecia quando ele cuidava de um caso importante – ficava obcecado, possuído –, mas agora, com o envolvimento da mãe, aquela investigação mais parecia uma cruzada: acontecesse o que acontecesse, fossem quais fossem os obstáculos, Knight jurou encontrar o assassino de Denton Marshall. A porta do elevador se abriu para uma recepção, um lugar ultramoderno equipado com obras de arte que ilustravam os principais momentos da história da espionagem, da criminalística e da criptografia. Embora o escritório londrino precisasse de mais funcionários, a sala estava repleta de agentes da Private, vindos de todo o mundo, para buscar suas credenciais e receber instruções sobre a segurança dos Jogos Olímpicos. Knight contornou a multidão, reconhecendo só algumas pessoas, antes de passar por uma réplica do cavalo de Troia e por um busto de Sir Francis Bacon até chegar a uma parede de vidro blindado e escuro. Passou o olho por um scanner de retina ao mesmo tempo que encostava o indicador num leitor de impressões digitais. Uma parte do vidro se abriu, revelando um homem mal-ajambrado, sardento e ruivo, com uma barba desgrenhada. Ele usava jeans cargo e camisa do time West Ham e calçava
sandálias de dedo pretas. Knight sorriu. – Bom dia, Hooligan. – Que porra é essa, Peter? – retrucou Jeremy Crawford, ou Hooligan, olhando para as roupas de Knight. – Trepou com um orangotango? Com a morte de Wendy Lee no desastre de avião, Hooligan havia se tornado chefe de ciência, tecnologia e criminalística da Private Londres. Aos 30 e poucos anos, era um homem ácido, independente e desbocado – além de extraordinariamente inteligente. Nascido e criado em Hackney Wick, um dos bairros mais barras-pesadas de Londres, e filho de pais que não haviam completado nem o ensino médio, Hooligan ainda assim conseguira se formar em matemática e biologia em Cambridge, com apenas 19 anos. Aos 20, obtivera seu terceiro diploma, em criminalística e ciências criminais, na Universidade de Staffordshire e fora contratado pelo MI5, onde trabalhara por oito anos antes de ser contratado pela Private pelo dobro do salário que recebia do governo. Hooligan era fanático por futebol e assistia a todos os jogos do West Ham United. Apesar da inteligencia notável, quando era mais novo às vezes se descontrolava durante partidas importantes. Foi nessa época que seus irmãos e irmãs lhe deram o apelido que usava com tanto orgulho. – Briguei com o capô e o teto de um táxi e sobrevivi para contar a história – respondeu Knight. – A carta do assassino já chegou? O cientista se espremeu para passar por ele. – Ela está trazendo agora. Knight deu meia-volta e olhou por cima da multidão de agentes, na direção do elevador, cuja porta se abria. De dentro dele saiu a repórter do The Sun Karen Pope, muito animada, apertando contra o peito um grande envelope pardo. Hooligan foi até ela. A moça pareceu espantada com seu aspecto mal-ajambrado e apertou sua mão frouxamente. Ele a conduziu até o corredor e apresentou-a a Knight. Na mesma hora, Karen ergueu a guarda e analisou o investigador com uma expressão desconfiada, dedicando especial atenção a seu paletó rasgado e imundo. – Meus editores querem que isso seja feito com discrição e rapidez e que o menor número de pessoas possível tome conhecimento. No que diz respeito ao The Sun, isso significa só o Sr. Crawford. – Pode me chamar de Hooligan. Knight achou Karen ríspida e defensiva à primeira vista, mas talvez fosse por causa da sensação de que todo o lado esquerdo de seu corpo havia sido espancado e por ter suportado a provação emocional de lidar com o desespero da mãe. – Fui encarregado pela Private, e também por minha mãe, de investigar o assassinato de Marshall – disse ele. – Sua mãe? – estranhou Karen. Knight explicou a relação, mas a jornalista ainda pareceu hesitante.
Então, perdendo a paciência, Knight perguntou: – Já lhe ocorreu que talvez eu saiba alguma coisa sobre este caso que você não sabe?
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A FRASE SURTIU EFEITO. O ROSTO de Karen corou de indignação. – Seu nome não me soa familiar – prosseguiu Knight. Você trabalha na editoria de cidade? Ou na policial? – Esportes – disse ela, empinando o queixo para Knight. – Algum problema? – Isso quer dizer que sei coisas sobre este caso que você não sabe – falou Knight. – É mesmo? – rebateu Karen. – Bem, sou eu que estou com a carta, certo, Sr. Knight? Sabe, eu realmente preferiria tratar deste assunto com o senhor... humm... Hooligan. Antes que Knight pudesse responder, um homem com sotaque americano interveio: – Seria mais inteligente deixar Peter participar da perícia, Srta. Pope. Ele é nosso melhor agente. Magro e alto, com uma aparência de surfista, o americano estendeu a mão e apertou a da jornalista. – Jack Morgan – apresentou-se. – Seu editor acertou comigo a perícia da carta. Eu também gostaria de estar presente, se possível. – Tudo bem – disse Karen sem nenhum entusiasmo. – Mas o conteúdo deste envelope não pode ser divulgado para ninguém antes de sair no The Sun. Combinado? – Combinadíssimo – respondeu Jack com um sorriso sincero. Knight admirava o dono da Private. Jack era mais novo – e ainda mais ocupado – do que ele. Também era inteligente e focado. Acreditava que devia se cercar de pessoas igualmente inteligentes e focadas – e pagar-lhes bem. Também se importava com os profissionais que trabalhavam para ele. Ficara arrasado com a morte de Carter e dos outros agentes da Private Londres e cruzara o Atlântico na mesma hora para ajudar Knight com a falta de pessoal. Os quatro foram até o laboratório de Hooligan, no piso inferior. Jack acertou o passo com o de Knight, que andava bem mais devagar que os outros. – Bom trabalho com Lancer – falou. – Quer dizer, por ter salvo a pele dele. – Estamos aqui para isso – disse Knight. – Ele ficou muito grato e disse que eu deveria aumentar o seu salário – contou Jack. Knight não respondeu. Ainda não haviam conversado sobre dinheiro depois que ele assumira suas novas atribuições. Jack pareceu se lembrar disso e acrescentou: – Falaremos sobre isso depois dos jogos. – Então examinou Knight com um olhar mais crítico. – E você, como está?
– Parece que acabei de jogar uma partida de rúgbi, mas, fora isso, tudo bem – garantiu-lhe Knight enquanto todos entravam no laboratório científico da Private Londres, que podia ser considerado de última geração sob todos os aspectos. Hooligan os conduziu até uma antessala num canto afastado e pediu a todos que vestissem macacões e capuzes brancos descartáveis. Knight resmungou, mas, depois de vestir a roupa especial, seguiu Hooligan por uma câmara pressurizada e entrou na sala estéril. Hooligan foi até uma estação de trabalho equipada com um microscópio eletrônico e um espectrógrafo de ponta. Pegou o envelope da mão de Karen, abriu-o e espiou lá dentro. – Foi você que pôs os papéis nos plásticos ou eles chegaram assim? Knight ouviu a pergunta por um fone de ouvido acoplado ao capuz, o que fez a conversa subsequente parecer uma transmissão do espaço sideral. – Fui eu – respondeu Karen. – Entendi imediatamente que os documentos tinham que ser protegidos. – Esperta – disse Hooligan, agitando o dedo enluvado para ela e olhando na direção de Knight e Jack. – Muito esperta. Apesar da antipatia inicial que sentira pela jornalista, Knight foi obrigado a concordar. – Quem tocou nos documentos antes de você guardá-los nos plásticos? – perguntou. – Só eu – respondeu Karen enquanto Hooligan pegava o saco que continha a carta. – E o assassino, suponho. vocês verão que ele se intitula Cronos.
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ALGUNS MINUTOS DEPOIS, O CARTÃO começou a tocar a estranha melodia de flauta, deixando Knight irritado e dando-lhe a sensação de que o assassino estava brincando com eles. Quando terminou de examinar a carta, Knight entregou-a a Jack. A música também devia ter incomodado o dono da Private, porque ele fechou o cartão com força, interrompendo a melodia. – Esse cara é doido – disse Jack. – Doido e esperto. Principalmente naqueles trechos sobre Marshall e Guilder, seu ex-sócio – comentou Karen. – Os documentos confirmam o que ele diz. – Não acredito nesses documentos – declarou Knight. – Conhecia Denton Marshall. Ele era um homem extremamente honesto. E, mesmo que esses documentos sejam verdadeiros, não justificam cortar a cabeça de alguém. Jack tem razão. Esse cara é totalmente desequilibrado e muito arrogante. Ele está nos provocando. Acha que não podemos detê-lo. E está dizendo que essa história ainda não terminou, que talvez seja só o início. Jack assentiu e disse: – Quando se começa com uma decapitação, o caminho da selvageria promete ser longo. – Vou fazer alguns testes – disse Hooligan, olhando para o cartão. – Existem muitos cartões com esses chips musicais. Não deve ser difícil rastrear a marca e o modelo. – Gostaria de ler a carta mais uma vez – pediu Knight. Enquanto Karen e Jack observavam Hooligan desmontar o cartão musical, Knight voltou à carta e começou a relê-la assim que a melodia de flauta silenciou. A primeira frase estava escrita com símbolos e letras que Knight não entendeu, mas que supôs ser grego antigo. O restante da carta estava escrito normalmente.
Os antigos Jogos Olímpicos foram conspurcados. Os jogos modernos não são uma celebração dos deuses e dos humanos. Não têm sequer a ver com a boa vontade entre os homens. Os jogos modernos são uma piada, um espetáculo secundário que acontece a cada quatro anos. E ficaram assim por causa de diversos ladrões, embusteiros, assassinos e monstros. Veja o exemplo do poderoso e louvado Sir Denton Marshall e de seu corpulento sócio, Richard Guilder. Há sete anos, Sir Denton destruiu o movimento olímpico como força motriz de uma competição honesta. Nos documentos que acompanham esta carta, você verá que, para garantir que Londres fosse escolhida como sede dos jogos de 2012, Sir Denton e o Sr.
Guilder desviaram com astúcia os recursos de seus clientes e secretamente transferiram o dinheiro para contas no exterior em nome de empresas-fantasma pertencentes a outras empresas-fantasma de membros do Comitê Olímpico Internacional. Paris, a segunda colocada, nunca teve a menor chance. Assim, para purificar os jogos, as Fúrias e eu achamos justo que Sir Denton morresse por causa de suas ofensas. E assim foi. Somos seres invencíveis, muito superiores, capazes de ver a corrupção onde ninguém consegue percebê-la, capazes de desmascarar monstros e matá-los pelo bem dos jogos. Cronos
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DEPOIS DE LER A CARTA pela segunda vez, Knight ficou ainda mais perturbado e aflito do que antes. Considerando-se o que havia sido feito com Sir Denton, Cronos parecia um louco – embora racional – capaz de provocar arrepios em Knight. Para piorar, aquela sinistra melodia de flauta não lhe saía da cabeça. Que tipo de mente seria capaz de produzir aquela música e escrever aquela carta? Juntas, as duas coisas criavam uma grande sensação de ameaça e violação iminentes. Como Cronos conseguia fazer aquilo? Ou será que o caso era próximo demais de Knight para que ele se sentisse de outro modo? Ele pegou uma câmera e começou a tirar fotos da carta e dos documentos. Jack se aproximou. – O que acha, Peter? – Há uma boa chance de que uma das Fúrias, como ele as chama, seja a mulher que tentou atropelar Lancer hoje à tarde – respondeu Knight. – Porque era uma mulher que estava dirigindo aquele táxi. – O quê? – protestou Karen. – Por que você não me contou isso? – Acabei de contar – respondeu Knight. – Só não diga que fui eu. De repente, Hooligan soltou um grito: – Erro crasso! Todos se viraram. Hooligan segurava alguma coisa com uma pinça. – O que você achou? – perguntou Jack. – Cabelo – respondeu Hooligan, triunfante. – Estava na cola da aba do envelope. – DNA, certo? – indagou Karen, animada. – Vai dar para identificar? – Pelo menos posso tentar. – Quanto tempo vai levar? – Para uma análise combinatória completa... cerca de um dia. Karen balançou a cabeça negativamente. – Vocês não podem ficar com o material por tanto tempo assim. Meu editor foi bem claro: temos que entregar tudo à Scotland Yard antes de publicar a matéria. – Ele vai pegar só uma amostra e deixar o resto – prometeu Jack. Knight começou a andar em direção à porta. – Aonde você vai? – perguntou Karen. Knight parou onde estava, sem saber muito bem o que responder. Então disse a verdade: – Imagino que a primeira frase da carta esteja escrita em grego antigo, então vou ligar para James Daring... sabe quem é? Aquele cara que apresenta o programa
Segredos do passado no canal Sky. Quero ver se pode decifrar o que está escrito. – Já estive com ele uma vez – disse a jornalista com um tom de desdém. – Aquele babaca se acha o Indiana Jones. – Aquele babaca, como você diz, fez doutorado em antropologia e arqueologia em Oxford e é curador de antiguidades gregas do Museu Britânico – rebateu Hooligan. Então olhou para Knight. – Daring com certeza vai saber o que está escrito, Peter, e aposto que também terá algo a dizer sobre Cronos e as Fúrias. Ótima ideia! Pelo visor transparente do capuz da jornalista, Knight pode vê-la franzir os lábios, como se sentisse um gosto amargo. – E depois? – perguntou ela. – Falar com Guilder, acho. – O sócio? – exclamou Karen. – Nesse caso, irei com você. – De jeito nenhum – retrucou Knight. – Eu trabalho sozinho. – Eu sou a cliente – insistiu ela, olhando para Jack. – Posso ir com ele, não posso? Jack hesitou e Knight pôde perceber o peso de toda a preocupação que o dono da Private carregava nos ombros. Ele acabara de perder cinco de seus melhores agentes num acidente aéreo suspeito. Todos tinham um papel importante no esquema da Private para a segurança das Olimpíadas. E agora precisava lidar com o assassinato de Sir Denton e com aquele louco chamado Cronos. Knight sabia que se arrependeria, mas mesmo assim disse: – Não precisa decidir, Jack. Eu mudo as regras desta vez. Ela pode vir comigo. – Obrigado, Peter – disse o americano com um sorriso cansado. – Fico lhe devendo mais essa.
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NA CALDA DA NOITE, 48 horas depois de eu abrir fogo e matar sete bósnios, no verão de 1995, um homem moreno de olhar esquivo cheirando a cigarro e a cravo abriu a porta de um atelie imundo num bairro destruído de Sarajevo. Ele era o tipo de monstro que prospera em tempos de guerra e conflitos políticos, uma criatura das sombras, de identidade duvidosa e alianças inconstantes. Eu soubera do falsário por meio de um colega da força de paz que havia se apaixonado por uma moça da região que não podia viajar com o próprio passaporte. – Como combinamos ontem – disse o falsário quando eu e as três sérvias entramos. – Seis mil por três passaportes. Mais mil de taxa de urgência. Assenti e entreguei-lhe um envelope. Ele contou o dinheiro, em seguida me entregou um envelope parecido, contendo três passaportes falsos – um alemão, um polonês e um esloveno. Estudei os documentos, satisfeito com os novos nomes e identidades que escolhera para as meninas. A mais velha agora se chamava Marta. Teagan era a do meio e Petra, a caçula. Sorri ao pensar que, com os cabelos cortados e pintados, ninguém jamais as reconheceria como as três irmãs sérvias que os bósnios chamavam de as Fúrias. – Excelente trabalho – falei ao falsário, pondo os passaportes no bolso. – E minha arma? O falsário foi até um cofre, abriu-o e tirou de lá uma arma. Então se virou, apontando-a para nós quatro. – De joelhos – rosnou ele. – Li sobre um massacre de policiais perto de Srebrenica e sobre três meninas sérvias procuradas por crimes de guerra. Estão oferecendo uma ótima recompensa. – Seu safado imundo – falei com desprezo, mantendo a atenção dele concentrada em mim enquanto me ajoelhava. – Nós lhe damos dinheiro e você nos entrega? Ele sorriu. – Acho que isso se chama ganhar dos dois lados. O tiro da pistola .9 com silenciador passou zunindo por cima da minha cabeça e acertou o falsário bem no meio dos olhos. Ele cambaleou para trás e caiu morto sobre a mesa, largando meu fuzil. Peguei a arma do chão e virei-me para Marta, que exibia um furo de bala no bolso direito do casaco. Pela primeira vez vi em seus olhos outra coisa que não uma expressão sem vida. Eles tinham um brilho de empolgação que eu entendia e compartilhava. Eu matara por ela. E ela matara por mim. Nossos destinos achavam-se completamente interligados. Estávamos embriagados pelo tipo de bebida que fermenta e destila no coração dos
integrantes de unidades militares de elite após cada missão, a viciante bebida dos seres superiores, que detêm o poder sobre a vida e a morte. Ao sair do prédio, porém, tive total consciência de que mais de dois dias haviam se passado desde que a bomba me lançara para fora do Land Cruiser. As Fúrias estavam sendo caçadas, pelo que dissera o falsário. Alguém já devia ter encontrado o jipe explodido e queimado. Alguém devia ter contado e examinado os corpos carbonizados e concluído que eu estava desaparecido. O que significava que estariam atrás de mim. Decidi que talvez fosse melhor que me encontrassem logo.
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ÀS 15H20 DAQUELA QUINTA-FEIRA, KAREN e Knight atravessaram o pátio e subiram a escadaria de granito da frente do venerável Museu Britânico, no centro de Londres. Quando entraram no museu, Knight estava rangendo os dentes. Gostava de trabalhar sozinho porque de vez em quando isso lhe proporcionava silêncio suficiente para refletir sobre os fatos durante uma investigação. No entanto, Karen falara quase sem parar desde que saíram do escritório da Private, dando a Knight todo tipo de informação que ele na verdade não precisava saber – como os pontos altos de sua carreira, o canalha chamado Lester que ela havia namorado em Manchester e as agruras de ser a única mulher na editoria de esportes do The Sun. – Deve ser difícil – comentou ele, imaginando se haveria um jeito de se livrar da jornalista sem causar mais um problema para Jack. Em vez disso, porém, foi até uma senhora atrás do balcão de informações, onde se identificou e disse que uma pessoa da Private havia ligado antes para combinar uma conversa rápida com o Dr. James Daring. A mulher murmurou algo sobre o curador estar muito ocupado, pois sua exposição seria inaugurada naquela noite, mas em seguida lhes deu instruções para encontrá-lo. Os dois subiram até o andar de cima e seguiram em direção aos fundos do imenso prédio. Por fim, chegaram a uma passagem em forma de arco acima da qual estava pendurado um imenso banner que dizia: Os Jogos Olímpicos da Antiguidade: relíquias & retrospectiva. Dois seguranças estavam em pé diante da cortina roxa que fechava a passagem. Funcionários de um bufê montavam mesas de comida e um bar no saguão, para o coquetel de abertura. Knight mostrou seu crachá da Private e perguntou por Daring. – O Dr. Daring saiu para... – começou o segurança. – Almoçar tarde, Carl, mas já estou de volta – completou uma voz masculina afobada, do outro lado do saguão. – O que está acontecendo? Quem são essas pessoas? Deixei claro que ninguém poderia entrar antes das sete! Knight se virou e deparou com a conhecida figura do Dr. Daring vindo em sua direção. Ele era um homem bonito, vigoroso, usava uma bermuda cargo de lona, uma camisa em estilo safári e um par de sandálias. Seus cabelos estavam presos num rabo de cavalo, que balançava sobre os ombros. Carregava um iPad. Seus olhos corriam de um lado para outro. É claro que Knight já vira James Daring várias vezes na televisão. Por motivos que não entendia muito bem, Luke, seu filho de quase 3 anos, adorava assistir a Segredos do passado, embora desconfiasse que fosse por causa da trilha sonora
melodramática que acompanhava quase todos os episódios. – Meus filhos são seus fãs – disse Knight, estendendo a mão. – Peter Knight, da Private. Ligaram mais cedo da agência. – E Karen Pope. Trabalho no The Sun. Daring lançou um olhar para ela e disse: – Já convidei um jornalista do The Sun para vir à exposição com os outros representantes da imprensa... às sete da noite. O que posso fazer pela Private, Sr. Knight? – Na verdade, a Srta. Pope e eu estamos trabalhando juntos – disse Knight. – Sir Denton Marshall foi assassinado. O astro da TV ficou pálido e piscou várias vezes antes de dizer: – Assassinado? Meu Deus! Que tragédia! Ele... Daring gesticulou em direção as cortinas roxas que impediam a entrada na exposição. – Sem o apoio financeiro de Denton, não teria sido possível realizar esta exposição. Ele era um homem bom e generoso. Os olhos de Daring se encheram de lágrimas. Uma delas escorreu pelo rosto. – Eu pretendia agradecer a ele em público hoje à noite, na inauguração. E agora... o que houve? Quem fez isso? Por quê? – O assassino se autodenomina Cronos – respondeu Karen. – Ele me mandou uma carta. Parte do texto está em grego antigo. Achamos que o senhor talvez pudesse decifrar o que está escrito. Daring deu uma olhada no relógio de pulso, em seguida fez que sim com a cabeça. – Posso lhes dar 15 minutos agora. Sinto muito, mas... – A exposição – disse Karen. – Nós entendemos. Quinze minutos já seria incrível. Depois de uma breve pausa, Daring falou: – Então venham comigo. O curador os fez passar pela cortina, entrando na área onde estava montada uma exposição notável que apresentava os Jogos Olímpicos da Antiguidade e os comparava à versão moderna. A exposição começava com uma gigantesca fotografia aérea das ruínas de Olímpia, na Grécia, cidade onde aconteciam os jogos antigos. Enquanto Karen mostrava ao Dr. Daring uma cópia da carta de Cronos, Knight estudava a foto de Olímpia e os diagramas que explicavam as ruínas. Cercada por olivais, a área era dominada pelo Altis, um santuário localizado no centro da cidade e que abrigava diversos templos, um deles dedicado a Zeus, o mais poderoso dos antigos deuses gregos. Durante os jogos, rituais e sacrifícios eram realizados naqueles templos. Na verdade, segundo a exposição de Daring, toda a área de Olímpia era um local de culto sagrado, incluindo o estádio. Durante mais de mil anos, tanto em tempos de paz quanto de guerra, os gregos se reuniam em Olímpia para celebrar o festival de Zeus e competir. Não havia medalhas de bronze, prata ou ouro. Uma coroa de ramos de oliveira era o bastante para
imortalizar o vencedor, sua família e sua cidade. A exposição prosseguia comparando os jogos antigos com os modernos. Knight estava bastante impressionado. Minutos depois de ter começado a olhar as vitrines que comparavam as duas versões dos jogos, porém, sentiu que a versão grega estava sendo fortemente beneficiada em detrimento das Olimpíadas atuais. No mesmo instante em que chegou a essa conclusão, Karen chamou-o do outro lado da sala: – Knight, acho que vai querer ouvir isso.
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EM PÉ NA SALA DE exposição, em frente a uma vitrine que exibia antigos dardos, discos e vasos de terracota decorados com cenas de competições atléticas, o Dr. Daring apontou para a primeira frase da carta. – Está mesmo em grego antigo – falou. – A frase diz: “Olimpianos, vocês estão no colo dos deuses.” É uma citação da mitologia grega. Significa que o destino dos mortais está sob o controle dos deuses. Acho que é mais usada quando um mortal comete um erro grave o suficiente para incomodar os moradores do monte Olimpo. Mas sabem quem seria melhor consultar a respeito desse tipo de coisa? – Quem? – indagou Knight. – Selena Farrell – respondeu ele. – Ela é professora de Antiguidade Clássica no King’s College. Uma mulher excêntrica, brilhante. Trabalhou para a Otan nos Bálcãs. Foi lá que eu, ahn... a conheci. Vocês deveriam conversar com ela. Selena Farrell é uma pensadora bastante iconoclasta. Enquanto anotava o nome da professora, Karen perguntou: – Quem é Cronos? O curador do museu pegou o iPad e começou a digitar enquanto respondia: – Um titã, um dos deuses que governavam o mundo antes dos olimpianos. Mais uma vez, Selena Farrell explicaria melhor do que eu, mas Cronos era o deus do tempo, filho de Gaia e de Urano, antigos senhores da Terra e do céu. O Dr. Daring explicou que, instigado pela mãe, Cronos acabou se rebelando contra o pai e o castrou com uma foice. Uma lâmina comprida e curva, pensou Knight. Não foi assim que Elaine descreveu a arma que matou Denton? – Segundo o mito, o sangue do pai de Cronos caiu no mar e deu origem às três Fúrias – prosseguiu Daring. – Elas eram meias-irmãs de Cronos... espíritos vingativos com serpentes no lugar dos cabelos, como a Medusa. O curador seguiu explicando que Cronos havia se casado com Reia, com quem tivera sete dos 12 deuses que iriam se tornar os primeiros olimpianos. De repente ele se calou, parecendo abalado. – O que foi? – perguntou Karen. O curador franziu o nariz, como se estivesse sentindo um cheiro ruim. – Ao ficar sabendo de uma profecia segundo a qual um filho seu se voltaria contra ele, Cronos cometeu um ato brutal. – Que ato? – quis saber Knight. O Dr. Daring virou o iPad para eles. A tela exibia um quadro escuro e perturbador de um homem desgrenhado, barbado e seminu mastigando um pequeno
braço humano ensanguentado. A cabeça e o outro braço já haviam desaparecido. – Esse é um quadro do pintor espanhol Goya – explicou. – Saturno devorando o próprio filho. Saturno era o nome romano de Cronos. O quadro causou repulsa em Knight. – Não estou entendendo – disse Karen. – Nos mitos romanos e gregos, Cronos devorou os filhos um a um.
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– DEVOROU? – REPETIU A JORNALISTA, com uma careta. Knight olhou para a imagem outra vez e visualizou os próprios filhos brincando em um parquinho perto de casa. Sua repulsa aumentou mais ainda. – É um mito. O que mais posso dizer? – respondeu o Dr. Daring. Então explicou que Reia detestava o marido por ter devorado os próprios filhos e jurou que nenhuma outra criança que viesse a conceber teria o mesmo destino. Assim, ela fugiu para ter o filho que batizou de Zeus e escondeu o menino tão logo ele nasceu. Em seguida embriagou Cronos e, em vez do filho recém-nascido, deu-lhe uma pedra enrolada num cobertor para que ele comesse. – Bem mais tarde – continuou o Dr. Daring –, Zeus se rebelou, derrotou Cronos, forçou-o a regurgitar os filhos que comera e em seguida atirou o pai nos abismos escuros e sem fundo do Tártaro... ou algo do gênero. Perguntem a Selena. – Está bem – disse Knight, incerto de que aquelas informações fossem úteis à investigação e imaginando se a carta seria um ardil para fazê-los tomar uma direção equivocada. – O senhor é fã dos jogos olímpicos modernos, professor? O Dr. Daring franziu o cenho. – Por que a pergunta? – Sua exposição me parece um pouco tendenciosa na defesa dos jogos antigos. O curador demonstrou uma indignação contida: – Na minha opinião, a mostra está bem equilibrada. Mas eu lhe garanto que os jogos da Antiguidade tinham a ver com honra e com a excelência na celebração da religião grega, enquanto a versão moderna, na minha opinião, foi muito influenciada pelas empresas e pelo dinheiro. O que é uma ironia, eu sei, já que esta exposição foi montada graças a patrocínios privados. – Então, de certa forma, o senhor concorda com Cronos? – perguntou Karen. A voz do curador ficou gelada: – Posso até concordar num ponto: que os ideais originais das Olimpíadas talvez estejam se perdendo nos jogos atuais. Mas com certeza não concordo em matar pessoas para “purificar” esses jogos. Agora, se me dão licença, preciso terminar tudo aqui e trocar de roupa antes da inauguração.
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VÁRIAS HORAS DEPOIS DE MARTA ter matado o falsário, nós quatro estávamos hospedados num hotel barato nos subúrbios do oeste de Sarajevo. Entreguei às irmãs três envelopes contendo seus passaportes e dinheiro suficiente para viajar. – Vocês não podem ser vistas juntas. Cada uma deve pegar um táxi ou ônibus para a estação de trem. Depois usem caminhos completamente diferentes para chegar ao endereço que está anotado em seus passaportes. Debaixo do terceiro tijolo a partir da esquerda vão encontrar uma chave. Comprem comida. Entrem e esperem eu chegar. Não façam barulho. Só saiam se for imprescindível. Não chamem atenção. Aguardem. Marta traduziu e então perguntou: – Quando você vai chegar? – Em poucos dias – respondi. – Não mais de uma semana, imagino. Ela assentiu. – Esperaremos você. Acreditei nela. Afinal, para onde mais ela e as irmãs poderiam ir? Seus destinos me pertenciam e o meu, a elas. Sentindo que tinha mais controle sobre meu destino do que em qualquer outro momento da vida, deixei as três sérvias e saí. Na rua, usei sujeira e fuligem para encardir mais ainda minhas roupas rasgadas e ensanguentadas. Então limpei as armas e as atirei dentro de um rio. Uma hora antes de amanhecer, cheguei ao portão de segurança do quartel da Otan e agi como se estivesse em choque. Fazia dois dias e meio que estava desaparecido. Narrei vagamente para meus superiores e para os médicos a explosão da bomba que destruíra o Land Cruiser. Disse que havia passado muitas horas andando sem rumo e que dormira no mato. Pela manhã, recomeçara a andar. Só na noite anterior havia me lembrado exatamente de quem era e para onde deveria ir. Então tomara o rumo do quartel com o mesmo senso de direção distorcido de um bêbado tentando voltar para casa. Os médicos me examinaram e concluíram que eu havia fraturado o crânio pela segunda vez na vida. Dois dias depois, eu estava a bordo de um transporte médico – Cronos voando para casa, a fim de encontrar suas Fúrias.
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FALTANDO CINCO MINUTOS PARA AS quatro horas daquela tarde de quinta-feira, Knight saiu do One Aldwych, um hotel cinco estrelas no West End londrino, região dos teatros, e encontrou Karen à sua espera na calçada, olhando atentamente a tela do BlackBerry. – A secretária não estava mentindo. Segundo o porteiro, ele vem aqui com frequência tomar um drinque, mas ainda não apareceu – disse Knight referindo-se a Richard Guilder, sócio de Sir Denton havia muitos anos.– Vamos esperar lá dentro. Karen fez que não com a cabeça e então apontou para o outro lado da Strand, indicando uma fileira de prédios em estilo eduardiano. – Aquele é o King’s College, não é? É lá que Selena Farrell trabalha... a especialista em Antiguidade Clássica que aquele aspirante a Indiana Jones mandou que procurássemos. Fiz algumas pesquisas. Ela de fato escreveu muita coisa sobre Ésquilo, o dramaturgo da Grécia antiga, e sobre sua peça As Eumênides, outro nome das Fúrias. Poderíamos ir falar com ela e voltar aqui a tempo de encontrar Guilder. Knight fez uma careta. – Para ser sincero, não sei se conhecer mais sobre o mito de Cronos e das Fúrias vai nos ajudar a chegar mais perto do assassino de Sir Denton. – Agora sou eu que sei de algo que você não sabe – disse ela, agitando o BlackBerry com um ar superior. – O fato é que Selena Farrell lutou com unhas e dentes contra as Olimpíadas de Londres. Ela abriu um processo para interromper os preparativos, em especial a desapropriação que abriu todo aquele espaço no leste de Londres para o parque olímpico. A professora perdeu a casa com a construção do parque. Sentindo o coração bater mais depressa, Knight partiu na direção do prédio da universidade dizendo: – Foi Denton quem cuidou do processo de desapropriação desses terrenos. Ela devia odiá-lo. – Talvez o suficiente para cortar a cabeça dele – disse Karen, apressando-se para não ficar para trás. Foi então que o celular de Knight vibrou. Era uma mensagem de Hooligan:
1o teste de DNA: o cabelo é de mulher.
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OS DOIS ENCONTRARAM SELENA FARRELL em seu escritório. Aos 40 e poucos anos, a professora era uma mulher de seios fartos que usava uma roupa meio hippie: um vestido solto e desbotado, óculos pretos de armação oval, nenhuma maquiagem e tamancos. Tinha a cabeça envolta num lenço preso por dois grampos de madeira. Mas o que chamou a atenção de Knight foi a pinta. Localizada um pouco abaixo do meio da bochecha direita, a pinta lhe lembrou Elizabeth Taylor quando jovem e ele pensou que, em outras circunstâncias e com as roupas certas, a professora até seria uma mulher bem atraente. Enquanto a Dra. Farrell examinava sua identidade, Knight olhou em volta para as diversas fotografias emolduradas que enfeitavam a sala: uma delas mostrava a professora escalando na Escócia, em outra ela posava diante de ruínas gregas e, numa terceira, ela aparecia bem mais jovem, de óculos escuros, calça e camisa cáqui, segurando uma arma automática ao lado de um caminhão em cuja lateral estava escrito Otan. – Certo – disse Selena, devolvendo-lhe o crachá. – Sobre o que vamos conversar? – Sobre Sir Denton Marshall, um integrante do Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos – respondeu Knight, atento à reação dela. Selena retesou o corpo e franziu os lábios, demonstrando antipatia. – O que tem ele? – Foi assassinado – disse Karen. – Degolado. A professora pareceu genuinamente chocada. – Degolado? Que horror! Eu não gostava dele, mas... que barbaridade! – Sir Denton tomou sua casa e seu terreno – observou Knight. A voz de Selena se tornou mais dura: – É, tomou. Eu o detestava por isso. Ele e todos os outros que eram a favor das Olimpíadas. Mas não o matei. Não acredito em violência. Knight olhou de relance para a foto em que ela segurava a arma automática, mas decidiu não questioná-la. Em vez disso, perguntou: – Pode confirmar seu paradeiro por volta das 10h45 da noite de ontem? A especialista em Antiguidade Clássica se recostou na cadeira e tirou os óculos, revelando incríveis olhos cor de safira que se cravaram em Knight. – Posso, mas só vou fazer isso se for necessário. Prezo minha privacidade. – Fale-nos sobre Cronos – pediu Karen. A professora jogou a cabeça um pouco para trás. – Você está se referindo ao titã? – Isso mesmo – confirmou a jornalista.
Selena deu de ombros. – Ele é mencionado por Ésquilo, sobretudo em As Eumênides, terceira peça do ciclo. As Eumênides são as três Fúrias da vingança nascidas do sangue do pai de Cronos. Por que querem saber sobre ele? Afinal de contas, Cronos não é um personagem importante da mitologia grega. Karen olhou de relance para Knight, que assentiu. A jornalista então levou a mão à bolsa, pegou o celular e mexeu nele por vários segundos enquanto dizia à professora: – Hoje recebi uma carta de alguém que diz se chamar Cronos e afirma que é o assassino de Sir Denton. Junto com ela, havia isto aqui. É a gravação de uma gravação, mas... Enquanto Karen voltava a revirar a bolsa em busca da cópia da carta de Cronos, seu celular começou a reproduzir a estranha e irritante melodia de flauta. Bastaram algumas notas para que Selena Farrel ficasse paralisada. Enquanto a melodia soava, ela manteve os olhos cravados na mesa e começou a aparentar nervosismo. Então olhou em volta com uma expressão insana, como se ouvisse o zumbido de marimbondos. Ergueu as mãos depressa para tapar os ouvidos, fazendo os grampos saírem do lugar e o lenço se soltar. Ela pareceu entrar em pânico e levou as mãos a cabeça para segurar o lenço. Então se levantou com um pulo e correu em direção à porta. Com a voz abafada, conseguiu dizer: – Pelo amor de Deus, desliguem isso! Estou ficando com enxaqueca! Estou passando mal! Knight também se levantou depressa e saiu atrás de Selena, que desceu o corredor a toda a velocidade antes de entrar correndo no banheiro feminino. – Uma reação e tanto – comentou Karen, que surgira atrás do investigador. – Pois é – concordou Knight, voltando à sala de Selena e indo direto até a mesa da professora enquanto tirava do bolso um pequeno saco plástico para recolher indícios. Virou o saco do avesso e recolheu um dos grampos de cabelo que tinham caído antes de Selena sair correndo. Em seguida, enrolou o grampo com o saco, virou-o do avesso novamente e o largou sobre a mesa. – O que está fazendo? – perguntou Karen num sussurro. Knight lacrou o saco plástico e murmurou: – Hooligan disse que a amostra de cabelo encontrada no envelope era de mulher. Ao ouvir alguém se aproximando da sala, pôs o saco no bolso interno do paletó e voltou a se sentar. Karen continuou de pé. Ela olhava para a porta quando outra mulher, bem mais nova do que Selena, mas com igual falta de senso estético, entrou e disse: – Desculpem. Meu nome é Nina Langor, sou assistente de pesquisa da professora Selena Farrell. – Ela está bem? – perguntou Karen. – Ela disse que está com enxaqueca e que vai para casa. Falou que, se vocês
ligarem na segunda ou na terça-feira, ela poderá explicar tudo. – Explicar o quê? – quis saber Knight. Nina Langor parecia atônita. – Sinceramente, não faço a menor ideia. Nunca a vi agir desse jeito antes.
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DEZ MINUTOS DEPOIS, KNIGHT ACOMPANHAVA Karen pela escadaria do One Aldwych. Ele olhou para o porteiro com quem tinha falado mais cedo, que acenou positivamente com a cabeça. Knight entregou-lhe discretamente uma nota de 10 libras e seguiu Karen em direção aos ruídos abafados de vozes animadas. – Aquela música incomodou Selena de verdade – comentou Karen. – Ela certamente já a escutou antes. – Concordo – disse Knight. – Ela ficou transtornada. – Será possível que Selena seja Cronos? – indagou a jornalista. – E que use esse nome para nos fazer pensar que o assassino é um homem? Claro. Por que não? Os dois entraram no impressionante Lobby Bar do hotel, que tinha formato triangular e pé-direito altíssimo e abobadado, piso claro e polido de pedra calcária, janelas que iam do chão ao teto e vários conjuntos de móveis elegantes dispostos de forma intimista. Assim como o Beaufort Bar do hotel Savoy, localizado mais acima na mesma rua, era um retrato do glamour, o Lobby Bar era um retrato do dinheiro. O One Aldwych ficava perto do centro financeiro de Londres e irradiava elegância corporativa suficiente para transformá-lo num ímã para banqueiros gananciosos, investidores abastados e pessoas comemorando grandes contratos. Havia uns 40 ou 50 clientes desses no bar, mas Knight identificou Richard Guilder, o sócio de Sir Denton, quase imediatamente: um homem corpulento, de cabelos grisalhos, vestido com um terno escuro e sentado sozinho no balcão no fundo do bar, com os ombros encolhidos. – Deixe que eu falo primeiro – disse Knight. – Por quê? – reclamou Karen. – Por que sou mulher? – Com quantos magnatas supostamente corruptos você conversou nos últimos tempos trabalhando para o caderno de esportes? – perguntou ele em tom casual. A contragosto, a jornalista fez um gesto exagerado para que ele fosse na frente. O sócio de Sir Denton tinha o olhar perdido. Dois dedos de uísque sem gelo giravam dentro do copo de cristal que ele segurava. À sua esquerda havia um banco vazio. Knight fez menção de se sentar nele. Antes que conseguisse fazê-lo, um brutamontes de terno escuro apareceu na sua frente. – O Sr. Guilder prefere ficar sozinho – disse o homem com um forte sotaque do Brooklyn. Knight lhe mostrou seu crachá. O guarda-costas de Guilder deu de ombros e
mostrou o seu. Joe Mascolo trabalhava para a Private de Nova York. – Veio reforçar a equipe para os jogos? – perguntou Knight. Mascolo fez que sim com a cabeça. – Jack me chamou. – Então vai me deixar falar com ele? O agente de Nova York fez que não. – Ele quer ficar sozinho. Com a voz alta o bastante para que o Sr. Guilder escutasse, Knight falou: – Sr. Guilder? Meus pêsames. Meu nome é Peter Knight, também sou da Private. Estou trabalhando para o Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos de Londres e para minha mãe, Amanda Knight. Furioso por Knight tentar passar por cima dele, Mascolo se virou. No entanto, o Sr. Guilder retesou o corpo, girou no banco do bar, olhou Knight de cima a baixo e então disse: – Amanda. Meu Deus. É... – Ele balançou a cabeça e enxugou algumas lágrimas. – Por favor, Knight, escute o que Joe está dizendo. Não estou em condições de falar sobre Denton agora. Estou aqui para chorar a morte dele. Sozinho. Como imagino que sua querida mãe também esteja fazendo. – Por favor, Sr. Guilder – recomeçou Knight. – A Scotland Yard... – Já concordou em conversar com ele amanhã de manhã – rosnou Mascolo. – Ligue para o escritório. Marque uma hora. E deixe-o em paz hoje à noite. O agente da Private de Nova York fitou Knight com um olhar duro. O sócio de Sir Denton já se virava de novo para sua bebida e Knight estava se resignando a deixá-lo em paz até o dia seguinte quando Karen disse: – Sr. Guilder, eu trabalho para o The Sun. Recebemos uma carta do assassino de Sir Denton. Ele cita o senhor e sua empresa e diz que matou seu sócio por causa de algumas atividades ilegais nas quais o senhor e Sir Denton supostamente se envolveram. Lívido, Guilder se virou para ela. – Como se atreve?! Denton Marshall era o homem mais honesto do mundo. Ele nunca, jamais se envolveu em nada ilegal. Nem ele nem eu. Seja o que for que essa carta diga, é tudo mentira. Ela tentou entregar a ele as cópias dos documentos que Cronos lhe mandara, dizendo: – O assassino de Sir Denton alega que estas cópias foram tiradas dos arquivos da Marshall & Guilder... ou, para ser mais exata, dos arquivos secretos da empresa. Guilder olhou para os papéis, mas não os pegou, como se não tivesse tempo a perder com acusações tão ultrajantes. – A Marshall & Guilder nunca teve arquivos secretos. – É mesmo? – disse Knight. – Nem para as transações em moeda estrangeira dos seus clientes mais ricos?
O financista não disse nada, mas Knight poderia jurar que suas bochechas rosadas tinham perdido um pouco de cor. – Segundo esses documentos, o senhor e Sir Denton estavam embolsando uma parte das libras esterlinas, dos dólares e de todas as outras moedas que passavam pelas suas mesas de operações – disse Karen. – Pode não parecer grande coisa, mas, quando se trata de centenas de milhões de libras por ano, essa parte acaba virando uma fortuna. Esforçando-se ao máximo para manter a compostura, Guilder pousou o copo de uísque no balcão. Mas Knight poderia jurar que detectara um leve tremor em sua mão quando ele a levou de volta à coxa. – É só isso que o assassino do meu melhor amigo está alegando? – Não – respondeu Knight. – Ele também diz que o dinheiro foi transferido para contas no exterior e depois para integrantes do COI, antes que eles tomassem sua decisão em 2005. Segundo ele, seu sócio subornou o comitê para que Londres sediasse as Olimpíadas. O peso dessa acusação pareceu deixar Guilder abalado, pois sua expressão se tornou ao mesmo tempo atordoada e cautelosa, como se de repente ele tivesse se dado conta de que estava embriagado demais para ter aquela conversa. – Não – disse ele. – Isso não é... Joe, por favor, faça-os ir embora. Apesar de parecer dividido, Mascolo disse: – Deixem-no em paz até amanhã. Tenho certeza de que, se ligarmos para Jack, ele dirá a mesma coisa. Antes que Knight pudesse responder, ouviu-se um barulho que parecia o de uma taça de cristal se estilhaçando. A primeira bala atravessou uma janela do lado direito do bar. Passou raspando por Guilder e deixou em cacos o imenso espelho atrás do balcão. Tanto Knight quanto Mascolo entenderam na hora o que tinha acontecido. – Abaixem-se! – gritou Knight, levando a mão à arma e olhando para as janelas à procura do atirador. Mas eles não foram rápidos o bastante. Um segundo tiro foi disparado. A bala acertou Guilder logo abaixo do esterno com um ruído que lembrou um travesseiro sendo afofado. O sangue brotou na camisa branca engomada do financista e ele despencou para a frente, derrubando um balde de champanhe ao cair no piso claro do bar.
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NO BREVE SILÊNCIO QUE TOMOU conta do lendário Lobby Bar, o atirador, uma figura ágil vestida com uma roupa de couro de motociclista e usando um capacete com viseira, deu meiavolta e pulou do peitoril da janela para fugir. – Chamem uma ambulância! – gritou Karen. – Ele foi baleado! O bar irrompeu em gritos. Joe Mascolo pulou por cima de seu cliente caído e avançou feito uma locomotiva, ignorando os clientes que gritavam e se jogavam no chão para tentar se proteger. Knight estava menos de um metro atrás de Mascolo quando este saltou por sobre uma mesa baixa com tampo de vidro e subiu nas costas de um sofá cinza macio junto à parede esquerda do bar. Quando Knight tentou subir no sofá ao seu lado, constatou, surpreso, que o americano estava armado. As leis de porte de arma no Reino Unido eram muito rígidas. Durante dois anos Knight tivera de lidar com todo tipo de burocracia a fim de conseguir a autorização para andar armado. Porém, antes que ele pudesse refletir mais sobre o assunto, Mascolo fez um disparo pela janela. Naquele recinto todo feito de pedra e vidro, o barulho soou como um tiro de canhão. A histeria tomou conta do bar. Knight viu a atiradora no meio da rua – embora não tivesse conseguido olhar bem para seu rosto, estava claro que era uma mulher. Ao ouvir o tiro, ela girou o corpo, jogou-se no chão e mirou a arma com um movimento só: uma verdadeira profissional. A mulher atirou antes de Knight e antes que Mascolo pudesse disparar pela segunda vez. A bala acertou o agente nova-iorquino na garganta, matando-o na hora. Mascolo caiu do sofá e espatifou-se de costas em cima da mesa baixa de vidro. A atiradora agora mirava em Knight. Ele se abaixou, ergueu a pistola por cima do peitoril da janela e puxou o gatilho. Estava começando a se levantar quando dois novos tiros estilhaçaram as vidraças acima dele. Uma chuva de cacos caiu sobre Knight, que viu a imagem dos filhos num flash rápido e hesitou por um segundo, antes de se preparar para atirar outra vez. Então ouviu um grito agudo. Quando se levantou, Knight viu a atiradora montada numa moto preta. O pneu traseiro soltou fumaça e deixou uma marca no asfalto quando o veículo saiu a toda a velocidade e fez a curva para entrar na Strand. A mulher partiu no sentido oeste e desapareceu antes que Knight conseguisse atirar de novo. Ele soltou um palavrão, virou-se para trás e, chocado, olhou para Mascolo, para quem já não havia esperança. Mas então ouviu Karen gritar: – Guilder está vivo, Knight! Cadê a ambulância?
Knight pulou do sofá e atravessou correndo a multidão que começava a se formar, as pessoas gritando, até chegar ao corpo caído de Richard Guilder. Karen estava ajoelhada ao seu lado no meio de uma poça de champanhe, sangue, gelo e vidro. A respiração do financista saía em arquejos enquanto ele pressionava com força a parte superior do abdome, o sangue se espalhando em sua camisa, ficando mais escuro. Por alguns segundos, Knight teve um déjà vu e imaginou o sangue se espalhando num lençol. Então afastou aquela imagem e se abaixou ao lado de Karen. – Disseram que a ambulância está a caminho – disse a jornalista com a voz alterada. – Mas não sei o que fazer. Ninguém aqui sabe. Knight tirou o paletó, afastou as mãos de Guilder do peito e apertou a roupa contra seu tórax. O sócio de Sir Denton o encarou como se ele fosse a última pessoa que veria na vida e esforçou-se para falar. – Calma, Sr. Guilder – disse Knight. – A ajuda já está chegando. – Não – grunhiu Guilder baixinho. – Por favor, escute... Knight se inclinou mais para perto do rosto do financista e ouviu-o sussurrar um segredo com a voz rouca, antes de os paramédicos irromperem pela porta do Lobby Bar. Assim que terminou a confissão, o sócio de Sir Denton pareceu simplesmente se exaurir. Um filete de sangue escorreu de sua boca, seus olhos ficaram opacos e seus músculos relaxaram, do mesmo jeito que a mão de uma mulher adormecida escorrega para fora da cama.
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ALGUNS MINUTOS MAIS TARDE, KNIGHT estava em pé na calçada em frente ao One Aldwych, alheio aos clientes que passavam por ele apressados a caminho de restaurantes e teatros, totalmente hipnotizado pela visão e pelo som da ambulância que, com a sirene ligada, corria para levar Guilder e Mascolo até o hospital mais próximo. Teve uma visão de si mesmo em pé na calçada, tarde da noite, quase três anos antes, vendo outra ambulância se afastar. O som daquela sirene, que ficava cada vez mais baixo à medida que se distanciava, trouxe de volta uma tristeza que ainda não havia passado por completo. – Knight? – chamou Karen atrás dele. O investigador piscou e reparou nos ônibus de dois andares freando, nos táxis buzinando, nas pessoas à sua volta correndo para casa. De repente, sentiu-se desconectado, de um jeito muito semelhante a como se sentira naquela noite distante, ao ver a outra ambulância se afastando a toda a velocidade. Londres continua, pensou ele, sem fazer julgamento algum. Londres sempre continua, mesmo diante da tragédia e da morte, seja a vítima um financista corrupto, um guarda-costas ou uma jovem... A mão de alguém surgiu diante do seu nariz. Os dedos estalaram e ele se sobressaltou. Karen olhava para ele irritada. – Terra para Knight. – O que foi? – rosnou ele. – Perguntei se você acha que Guilder vai sair dessa. Knight fez que não com a cabeça. – Não. Senti o espírito dele ir embora. A jornalista o encarou com um ar cético. – Como assim, sentiu? Knight passou a língua pela parte de dentro do lábio inferior antes de responder. – Foi a segunda vez que uma pessoa morreu nos meus braços, Karen. Na primeira eu também senti. Aquela ambulância pode ir mais devagar. Guilder está tão morto quanto Mascolo. Os ombros de Karen se encolheram um pouco e houve um breve silêncio constrangido antes de ela dizer: – É melhor eu voltar para a redação. Tenho que entregar meu texto até as nove. – Você deveria incluir na sua matéria que Guilder confessou a fraude no exterior imediatamente antes de morrer – disse Knight. – Confessou? – perguntou Karen, já levando a mão ao bolso para pegar o bloco de notas. – O que exatamente ele disse?
– Que o esquema era dele e que o dinheiro não foi para nenhum membro do COI, mas para suas contas pessoais no exterior. Sir Denton era inocente. Foi vítima das falcatruas de Guilder. Karen parou de escrever e o ceticismo dominou novamente sua expressão. – Não acredito – disse ela. – Ele está tentando proteger Marshall. – Foram as últimas palavras que ele disse – rebateu Knight. – Eu acredito. – Mas você tem um motivo para acreditar, não é? Isso inocenta o falecido noivo da sua mãe. – Foi o que ele me disse – insistiu Knight. – Você tem que dizer isso na matéria. – Vou deixar que os fatos falem por si – concedeu ela. – Vou incluir o que você diz que Guilder lhe contou. – Ela olhou de relance para o relógio. – Preciso ir. – Não vamos a lugar algum tão cedo – disse Knight, sentindo-se subitamente exausto. – A Scotland Yard vai querer falar conosco, ainda mais tendo havido troca de tiros. Enquanto isso, preciso ligar para Jack, a fim de inteirá-lo dos fatos, e depois tenho que falar com minha babá. – Babá? – repetiu Karen, surpresa. – Você tem filhos? – Um casal de gêmeos. Ela olhou rapidamente para a mão esquerda de Knight e, em tom de brincadeira, falou: – E sem aliança. Você é divorciado? Enlouqueceu sua mulher e ela o largou com as crianças? Admirado com a insensibilidade dela, Knight a encarou com um olhar frio antes de responder: – Sou viúvo. Minha mulher morreu de hemorragia no parto. Sangrou em meus braços até a morte, há dois anos, onze meses e duas semanas. Foi levada numa ambulância cuja sirene uivava igualzinho a que acaba de sair daqui. A jornalista ficou boquiaberta, parecendo horrorizada. – Ai, Peter, eu sinto muito, eu... Mas Knight já tinha virado as costas e estava subindo a calçada em direção à investigadora Elaine Pottersfield, que acabara de chegar.
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A ESCURIDÃO CAI SOBRE LONDRES E meu velho amigo ódio se agita quando penso que toda a minha vida não passou de um prelúdio para esse momento crucial, exatamente 24 horas antes da cerimônia de abertura do evento mais hipócrita do mundo. O ódio fervilha em minhas entranhas quando me viro para minhas irmãs. Estamos no meu escritório. Em muitos dias, esta é a primeira oportunidade que nós quatro temos de conversar frente a frente e eu absorvo a imagem das três com um só olhar. A loura e calma Teagan está tirando o lenço, o chapéu e os óculos escuros que usou mais cedo ao dirigir o táxi. Marta, com os cabelos muito pretos e um ar calculista, pousa o capacete de motociclista no chão ao lado da pistola e abre o zíper do macacão de couro. A bela Petra, a mais nova e mais bonita das três, é também a melhor atriz, portanto a mais impulsiva. Olhando-se no espelho da porta do armário, verifica o caimento de um elegante vestido de coquetel cinza e confere o penteado estiloso dos cabelos ruivos e curtos. Ao ver as irmãs assim reunidas, conhecendo cada uma delas tão bem como conheço, acho difícil acreditar que tenha havido um tempo em que não estávamos juntos, em que tocávamos nossas respectivas e atarefadas vidas públicas de fachada, sem qualquer relação uns com os outros – pelo menos aos olhos do mundo. E por que as irmãs não continuariam comigo depois de 17 anos? Em 1997, o tribunal de Haia as condenou in absentia pela execução de mais de 60 bósnios. Desde que Ratko Mladić, o general que supervisionava os esquadrões da morte sérvios na Bósnia, foi preso, há um ano, a caçada às minhas Fúrias se intensificou. Eu me mantenho atualizado sobre esses assuntos. É disso que dependem meus sonhos. As irmãs convivem há tanto tempo com o risco de serem descobertas que trazem isso gravado no DNA, mas essa ameaça constante, arraigada, tornou-as ainda mais fanáticas em sua devoção a mim – tanto mental, quanto física, espiritual e emocionalmente. De fato, muito devagar, ao longo dos anos, meus sonhos de vingança se tornaram seus também. O desejo que elas tem de ver esses sonhos se realizarem é quase tão ardente quanto o meu. Ao longo dos anos, além de protegê-las, eu as instruí, paguei pequenas cirurgias plásticas e as treinei para que se tornassem exímias atiradoras, lutadoras, farsantes e ladras. Essas duas últimas habilidades renderam 10 vezes o valor do meu investimento, mas essa é outra história. Digamos apenas que, até onde sei, elas são as melhores do mundo em matéria de fingimento, superiores a qualquer outra pessoa, exceto eu. Alguns de vocês talvez estejam se perguntando se sou parecido com Charles Manson, “profeta” insano que, nos anos 1960, reuniu um grupo de mulheres
traumatizadas e as convenceu de que eram apóstolos enviados a Terra em missões homicidas destinadas a desencadear o Apocalipse. No entanto, comparar-me a Manson e comparar as Fúrias às moças do Helter Skelter é um grande erro. É como comparar uma história verdadeira a um mito. Nós somos mais poderosos, transcendentes e mortíferos do que Manson sequer poderia ter sonhado em seus mais loucos pesadelos induzidos pelas drogas. Teagan serve-se de uma dose de vodca, toma um grande gole e diz: – Eu nunca poderia ter imaginado que aquele homem iria pular na frente do meu táxi. – O nome dele é Peter Knight. Ele trabalha para a Private Londres – digo e então faço deslizar por cima da mesa uma fotografia que encontrei na internet. Nela, Knight está segurando uma bebida, de pé ao lado da mãe, no lançamento da última linha de roupas de Amanda. Teagan examina a fotografia e em seguida assente com a cabeça. – É ele mesmo. Olhei bem quando ele se esborrachou de cara no meu para-brisa. Marta franze a testa, pega a foto e a estuda. Então me encara com seus olhos escuros cor de ágata. – Ele também estava com Guilder agora mesmo no bar. Tenho certeza. Atirou em mim depois que matei o segurança. Levanto uma sobrancelha. Private? Knight? Eles quase frustraram meus planos duas vezes no mesmo dia. Seria o destino, uma coincidência ou um aviso? – Ele é perigoso – diz Marta, sempre a mais perspicaz das três, aquela cujo pensamento estratégico é mais parecido com o meu. – Concordo – digo, antes de voltar os olhos rapidamente para o relógio de parede e depois para a irmã de cabelos ruivos, ainda se arrumando em frente ao espelho. – Está na hora de ir para a inauguração, Petra. Vejo você mais tarde. Lembre-se do plano. – Não sou burra, Cronos – diz Petra, lançando-me um olhar irado, cor de esmeralda graças a lentes de contato compradas especialmente para essa ocasião. – Nem um pouco – respondo com uma voz neutra. – Mas você tem uma tendência a ser impetuosa, a improvisar, e sua tarefa de hoje à noite exige total disciplina em relação aos detalhes. – Eu sei o que tenho que fazer – diz ela, fria, antes de se retirar. Marta não desgruda os olhos de mim. – E Knight? – pergunta, mostrando novamente que a persistência é mais uma de suas encantadoras qualidades. – Suas próximas tarefas são só para amanhã à noite – falo. – Enquanto a hora não chega, gostaria que vocês duas se informassem melhor sobre o Sr. Knight. – O que devemos procurar? – pergunta Teagan, pousando o copo de bebida em cima da mesa. – Os pontos fracos dele, irmã. As vulnerabilidades. Qualquer coisa que possamos
explorar.
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ERAM QUASE OITO DA NOITE quando Knight chegou em sua casa, uma construção de tijolos reformada, em Chelsea. Sua mãe havia comprado o imóvel para ele vários anos antes. Estava mais exausto e dolorido do que jamais se sentira após um dia de trabalho – tinha sido atropelado, alvejado por um atirador e obrigado a destruir os sonhos da mãe. Sem contar o fato de ter sido interrogado três vezes pela intimidadora Elaine Pottersfield. A investigadora-chefe da Polícia Metropolitana não ficou nada feliz ao chegar ao One Aldwych. O tiroteio não só havia deixado dois mortos como ela ouviu um boato segundo o qual o The Sun teria recebido uma carta do assassino de Sir Denton e ficou possessa ao descobrir que o laboratório de criminalística da Private tivera a oportunidade de analisar o material antes da Scotland Yard. – Eu devia prender você por obstrução da justiça! – gritou ela. Knight ergueu as mãos. – Foi uma decisão da nossa cliente Karen Pope, jornalista do The Sun. – E onde ela está agora? Knight olhou em volta. Karen havia sumido. – Ela estava com um prazo apertado. Sei que eles pretendem entregar todas as evidências a vocês depois que o jornal for para a gráfica. – Você deixou uma testemunha ocular sair do local de um crime? – Eu trabalho para a Private, não para a justiça. E não posso controlar Karen. Ela faz o que bem entender. A investigadora o encarou com um olhar furioso. – Tenho a impressão de já ter ouvido essa desculpa de você, Peter, com consequências fatais. Knight enrubesceu e sentiu um nó na garganta. – Não vamos ter essa conversa outra vez. Você deveria estar perguntando sobre Guilder e Mascolo. Elaine bufou antes de dizer: – Pode ir falando. Não esconda nada. Knight contou tudo: falou dos encontros com o Dr. Daring e com a Dra. Selena Farrell e fez um relato minucioso do que havia acontecido no Lobby Bar. Quando ele terminou, Elaine perguntou: – Você acredita na confissão de Guilder? – Alguém mente à beira da morte? – argumentou Knight. Enquanto subia os degraus da frente de sua casa, Knight refletia outra vez sobre a confissão de Guilder. Então lembrou-se do Dr. Daring e de Selena Farrell. Será que
eles estavam envolvidos naquelas mortes? Quem poderia garantir que o Dr. Daring não era um maluco que agia por baixo dos panos com o intuito de destruir os jogos modernos? E quem poderia garantir que Selena Farrell não fosse a assassina vestida de couro preto e usando um capacete de motoqueiro? Afinal, ela segurava uma arma automática naquela foto em sua sala. Talvez os instintos de Karen estivessem certos. Será que a professora poderia ser Cronos? Ou pelo menos ter algum envolvimento com ele? E o Dr. Daring? Ele não tinha dito que conhecera Selena em algum momento no passado? Nos Bálcãs, na década de 1990? Então uma voz dentro de Knight exigiu que ele pensasse menos nos vilões e mais nas vítimas. Como estaria sua mãe? Passara o dia inteiro sem notícias dela. Entraria em casa e ligaria para a mãe. No entanto, antes de conseguir enfiar a chave na fechadura, ouviu sua filha Isabel soltar um grito de gelar o sangue: – Não! Não!
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KNIGHT ABRIU A PORTA DA frente às pressas e entrou no hall no exato momento em que o grito de Isabel se transformou num guincho agudo: – Não, Luke! Não! O pai ouviu uma risada estridente e insana seguida do barulho de passos miúdos antes de entrar na sala de estar, que parecia ter sido devastada por uma tempestade de neve. Uma poeira branca pairava no ar, cobria os móveis e sua filha de quase 3 anos, que, ao vê-lo, desatou a chorar. – Papai, é o Luke, ele... ele... A menininha delicada começou a soluçar histericamente e correu em direção ao pai, que tentou se abaixar para reconfortá-la. Knight cerrou os dentes ao sentir uma dor latejante em todo o lado esquerdo do corpo, mas mesmo assim pegou a filha no colo. Teve vontade de espirrar por causa do cheiro. As lágrimas de Isabel tinham deixado rastros no talco em seus cílios e bochechas. Mesmo coberta de pó branco daquele jeito, ela era tão linda quanto a falecida mãe: cabelos cacheados castanho-claros e imensos olhos cor de azul-cobalto que, mesmo quando não estavam chorando, eram capazes de partir o coração de Knight. – Está tudo bem, meu anjo – disse Knight. – Papai já chegou. O choro se transformou em soluços fracos. – O Luke... ele jogou talco de bumbum em cima de mim. – Estou vendo, Bella. Mas por quê? – Ele acha talco de bumbum engraçado. Knight segurou a filha com o braço que não estava doendo e seguiu em direção à cozinha e à escada que levava aos pisos superiores. Enquanto subia, pôde ouvir o filho tagarelando em algum lugar lá em cima. No alto da escada, Knight se virou em direção ao quarto das crianças e escutou uma mulher gritar: – Ai! Seu monstrinho! O filho de Knight saiu correndo do quarto, só de fralda, com o corpo todo coberto de branco. Tinha na mão um frasco enorme de talco infantil e sua risada era de pura alegria até que viu o pai encarando-o com os olhos apertados. Luke parou, petrificado, e começou a recuar, acenando com as mãos para Knight como se o pai fosse uma aparição que ele pudesse apagar. – Não, papai! – Luke! – começou Knight. Nancy, a babá, apareceu na soleira da porta atrás do menino para impedi-lo de entrar. Também coberta de talco, segurava com força o próprio pulso e tinha o rosto
contorcido de dor. – Quero minhas contas – disse ela, cuspindo as palavras como se fossem fel. – Essas crianças são loucas. – Quando ela apontou para Luke, seu braço tremia. – Esse pagãozinho aí vive me mordendo e ainda faz cocô nas calças! Tentei levá-lo ao banheiro, mas ele me deu uma dentada. Chegou a tirar sangue. Quero minhas contas e é o senhor quem vai pagar o médico.
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– VOCÊ NÃO PODE PEDIR AS contas – protestou Knight enquanto a babá passava por trás de Luke. – Ah, posso, sim – afirmou Nancy, passando direto por ele e descendo a escada. – Eles já comeram, mas ainda não tomaram banho. E esta é a terceira vez que Luke fez cocô na fralda hoje à tarde. Boa sorte, Peter. Ela pegou suas coisas e saiu, batendo a porta com força. Isabel voltou a chorar. – Nancy foi embora e a culpa é do Luke. Estupefato, Knight olhou para o filho e começou a gritar de raiva e frustração: – Só este ano foram quatro, Luke! Quatro! E essa só ficou três semanas! O menino franziu o rosto. – Luke está triste, papai – disse ele, chorando. – Triste. Em segundos, seu filho havia deixado de ser uma força da natureza capaz de gerar um furacão e se transformara em um menininho tão cativante que o coração de Knight até amoleceu. Fazendo uma careta por causa da dor no corpo, ele se abaixou, ainda com Isabel no colo, e chamou Luke com um gesto. O menino correu até o pai e abraçou Knight com tanta força que o fez arquejar por causa da dor. – Te amo, papai – disse Luke. Apesar do mau cheiro que o menino exalava, Knight soprou o talco de suas bochechas e lhe deu um beijo. – Também amo você, filho. Então deu um beijo tão forte no rosto de Isabel que ela começou a rir. – Luke tem que trocar de roupa e tomar banho – disse ele, pondo os filhos no chão. – E, Isabel, para o banho você também. Minutos mais tarde, depois de Knight ter tirado a fralda suja de Luke, os dois filhos estavam no grande box da suíte do pai, brincando de jogar água um no outro. Knight pegou o celular na mesma hora em que Luke empunhava um bastão feito de espuma e acertava a cabeça da irmã. – Papai! – reclamou Isabel. – Bata nele de volta – disse Knight. Ele olhou rapidamente para o relógio. Eram mais de oito da noite. Nenhuma das agências de babás que ele conhecia estaria aberta a essa hora. Digitou o número da mãe. Amanda atendeu no terceiro toque. Sua voz soou exausta: – Peter, diga que isso tudo é só um pesadelo e que daqui a pouco vou acordar. – Sinto muito, mãe. Ela passou um tempo chorando, com soluços abafados, depois falou:
– Estou me sentindo pior do que quando seu pai morreu. Deve ter sido isso que você sentiu com Kate. As lágrimas fizeram arder os olhos de Knight e ele sentiu um vazio terrível no peito. – Ainda sinto muitas vezes. Amanda assoou o nariz e então disse: – Conte-me o que sabe, o que descobriu. Knight tinha certeza de que a mãe não iria sossegar até que ele lhe contasse, por isso falou de uma vez, atendo-se aos fatos principais. Ela arquejou e protestou enfaticamente quando ele descreveu a carta de Cronos e as acusações a Sir Denton, depois chorou ao ouvir sobre a confissão de Guilder, que inocentava seu ex-noivo. – Eu sabia que não podia ser verdade – disse Knight. – Denton era um grande homem, honesto e com um coração enorme. – Era mesmo – concordou sua mãe, com a voz embargada. – Em todos os lugares onde estive hoje, as pessoas comentaram sobre a generosidade e a energia dele. – Fale disso – pediu Amanda. – Por favor, Peter, preciso ouvir essas coisas. Knight lhe falou do desespero de Michael Lancer com a morte de Sir Denton e de como ele chamara o financista de mentor, amigo e um dos líderes visionários responsáveis pelas Olimpíadas de Londres. – Até James Daring, sabe quem é? Aquele cara do Museu Britânico que tem um programa de TV? – continuou Knight. – Ele disse que, sem o apoio de Denton, o programa e a nova exposição sobre os jogos da Antiguidade nunca teriam saído do papel. Ele disse que iria agradecer a Denton em público hoje à noite, no coquetel de abertura da exposição. Houve uma pausa do outro lado da linha. – James Daring disse isso? – Sim – confirmou Knight, esperando que a informação fosse reconfortá-la. Em vez disso, sua mãe explodiu: – Que mentiroso sem-vergonha! – Como assim? – perguntou Knight, espantado. – Denton realmente deu a Daring parte do capital inicial para o programa de TV – admitiu Amanda. – Mas com certeza não apoiou essa nova exposição. Na verdade, eles tiveram uma briga feia por causa do teor da mostra. Denton me disse que era muito parcial, contra os jogos modernos. – É verdade – disse Knight. – Achei a mesma coisa. – Denton ficou uma fera – contou-lhe a mãe. – Ele se recusou a dar mais dinheiro a Daring e os dois pararam de se falar. Definitivamente não foi o que Daring me disse, pensou Knight, e então perguntou: – Quando foi isso?
– Uns dois ou três meses atrás – respondeu Amanda. – Nós tínhamos acabado de voltar de Creta e... – Ela começou a engasgar outra vez. – Ainda não sabíamos, Peter, mas Creta foi nossa lua de mel. Sempre vou pensar nessa viagem desse jeito – completou ela antes de cair em prantos. Durante vários segundos agoniantes, Knight ouviu a mãe chorar. Depois perguntou: – Mãe, tem alguém aí com você? – Não – respondeu ela com uma voz quase inaudível. – Pode vir para cá, Peter? Knight sentiu-se um trapo. – Eu queria muito ir, mas perdi outra babá... Amanda soltou o ar pelo nariz, incrédula. – Mais uma? – Ela pediu as contas há meia hora – reclamou Knight. – Vou ter que trabalhar todos os dias durante as Olimpíadas, e não sei o que fazer. Já usei todas as agências da cidade e acho que nenhuma delas vai querer mandar ninguém. Houve um longo silêncio ao telefone que o levou a dizer: – Mãe? – Estou aqui – respondeu Amanda, soando o mais equilibrada que havia se mostrado desde a notícia da morte de Sir Denton. – Deixe que eu cuido disso. – Não – protestou ele. – Você não está... – Assim terei algo para fazer além do trabalho – insistiu ela. – Preciso de alguma ocupação que não tenha a ver nem comigo nem com a empresa, Peter, senão acho que vou enlouquecer ou começar a beber e tomar remédios para dormir, e não suporto pensar em nenhuma dessas alternativas.
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NESSE MESMO MOMENTO, NO ANDAR de cima do Museu Britânico, no hall em frente a sua nova exposição sobre os jogos antigos, o Dr. James Daring sentia vontade de dançar, de tão feliz que estava com sua sorte, enquanto percorria, triunfante, os grupos de londrinos ricos e famosos que tinham se reunido ali para a abertura da mostra. A noite tinha sido boa. Ótima! De fato, o curador do museu fora fartamente elogiado pelos críticos que tinham ido visitar a exposição. Eles a consideraram audaciosa e convincente, uma reinterpretação dos jogos antigos que conseguia expor de forma totalmente relevante a situação dos jogos modernos. Melhor ainda, vários benfeitores ficaram impressionados e demonstraram interesse em patrocinar e comprar cotas publicitárias de Segredos do passado. Aquele babaca do Sir Denton não sabia de nada. Absolutamente nada, pensou Daring, ácido. Sentindo-se vingado, saboreando o sucesso de um trabalho benfeito, um trabalho que saíra bem melhor do que o planejado, Daring foi até o bar e pediu mais um martíni para comemorar a exposição – e outras coisas. Muitas outras coisas. De fato, depois de pegar o drinque e, mais uma vez, num tom simpático, conversar com um dos grandes patronos do museu sobre a chocante e terrível morte de Sir Denton, Daring voltou sua atenção para a recepção, ansioso. Onde ela estaria? O astro da TV continuou olhando até ver uma mulher com um ar deliciosamente felino. Tinha os cabelos ruivos na altura dos ombros pálidos, revelados por um lindo vestido de coquetel cinza que realçava seus fantásticos olhos cor de esmeralda. Daring tinha um fraco por ruivas de olhos verdes cintilantes. Ela realmente se parece muito com minha irmã, sob vários aspectos, pensou o curador. Seu jeito de inclinar a cabeça quando ria, como fazia agora, segurando uma flûte de champanhe de haste longa e flertando com um homem bem mais velho. Um homem, aliás, que parecia conhecido. Quem seria? Não importa, pensou Daring, tornando a olhar para Petra. Ela era atrevida, audaciosa, meio doidinha. O curador sentiu um arrepio percorrer seu corpo. Ela manipulava o tal homem, fazendo gestos obviamente ensaiados parecerem naturais e espontâneos. Atrevida. Audaciosa. Doidivanas. Petra pareceu escutar seus pensamentos. Virando o rosto para longe do homem com quem estava conversando, viu Daring no meio da multidão e o olhou com uma expressão tão cheia de desejo e promessa que
ele estremeceu, como quem antecipa um grande prazer. Depois de encará-lo por mais alguns segundos, Petra piscou os olhos e tornou a voltar a atenção para o outro homem. Levou a mão ao peito, deu uma risada e em seguida pediu licença. Ela avançou em direção a Daring sem olhar para ele nem uma vez sequer. Pegou outra bebida e foi até a mesa de doces, onde o curador juntou-se a ela, tentando demonstrar interesse no crème brûlée. – Ele está bêbado e vai pegar um táxi para casa – murmurou Petra com um leve sotaque do Leste Europeu enquanto revirava uma pilha de kiwis com um pegador. – Acho que também já está na hora de irmos, não acha, amor? Ele a encarou. Uma doida de olhos verdes! O astro da TV enrubesceu de empolgação e sussurrou: – Claro. Vamos nos despedir e ir embora. – Não juntos, seu bobo – alertou Petra enquanto pegava dois pedaços de fruta da pilha e colocava-os no prato. – Não queremos chamar atenção, não é? – Não, claro que não – sussurrou Daring, sentindo que fazia algo incrivelmente ilícito e desonesto. – Espero você mais embaixo na rua, perto da Bloomsbury Square.
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POUCO DEPOIS DAS NOVE DA noite e após a matéria de Karen Pope ter sido publicada no site do The Sun, as estações de rádio começaram a repetir a notícia, dando ênfase à existência de Cronos e reproduzindo a melodia de flauta. Às dez horas, pouco depois de Knight ler uma história para os gêmeos, trocar a fralda de Luke e pôr os dois para dormir, a BBC já tinha entrado em surto, noticiando todas as acusações sobre Sir Denton e o processo de seleção da cidade que sediaria as Olimpíadas, bem como a confissão de Guilder, à beira da morte, de que o desvio de dinheiro era obra unicamente sua. Knight ficou até as onze limpando e aspirando o talco da casa. Então bebeu uma cerveja, depois serviu-se de uma dose de uísque, tomou um analgésico e foi para a cama. Jack telefonou, abalado com a morte de Joe Mascolo, e insistiu em que Knight descrevesse com detalhes o tiroteio do One Aldwych. – Ele foi destemido – disse Knight. – Partiu direto para cima da atiradora. – Joe Mascolo era assim mesmo – respondeu Jack com voz triste. – Um dos melhores do Brooklyn antes de eu contratá-lo para fazer nossa segurança em Nova York. Chegou a Londres há apenas dois dias. – Que tristeza! – comentou Knight. – É, e vai ficar ainda pior – disse Jack. – Tenho que ligar para a mulher dele. Jack desligou. Knight se deu conta de que não contara ao dono da Private que estava sem babá. Depois de vários instantes de preocupação, concluiu que era melhor assim. Jack já tinha muitos problemas com que se preocupar. Ligou a televisão e viu notícias sobre os assassinatos de Marshall e Guilder em todos os canais de TV aberta e nos programas sensacionalistas da TV a cabo, que descreviam a história como um escândalo de assassinato e mistério, um vislumbre chocante do mundo intricado que existia por trás do processo de escolha da cidadesede, além de um tapa na cara de Londres – na verdade, de todo o Reino Unido – às vésperas dos jogos. Apesar das palavras de Guilder antes de morrer, parecia que os franceses estavam particularmente contrariados com as alegações de Cronos sobre a corrupção nas Olimpíadas. Knight desligou a TV e ficou sentado no quarto silencioso. Pegou o copo de uísque e tomou um grande gole antes de olhar para o porta-retrato em cima da penteadeira. Com a gravidez avançada e incrivelmente linda, sua falecida mulher, Kate, estava em pé de perfil no meio de um pântano na Escócia, sob a luz de um sol poente de julho. Olhava para trás, por cima do ombro esquerdo, e seus olhos pareciam encará-lo da
fotografia, irradiando toda a alegria e o amor que lhe tinham sido roubados de forma tão cruel quase três anos antes. – Tive um dia duro, Katie – sussurrou. – Estou todo machucado, alguém está tentando acabar com as Olimpíadas. Minha mãe está destruída. E as crianças botaram mais uma babá para correr. Eu... sinto tanta saudade de você. Mais do que nunca. Sentiu um peso conhecido voltar ao seu coração e à sua mente, provocando-lhe um aperto no peito. Entregou-se a essa sensação – na verdade, afogou-se nela por um ou dois minutos –, então fez o que sempre fazia quando chorava abertamente a morte de Kate em uma noite como essa. Pegou seus travesseiros e cobertas e foi para o quarto dos filhos. Deitou-se no sofá-cama de frente para os dois berços, sentindo o cheiro das crianças, até que o ritmo suave da respiração deles o embalou.
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Sexta-feira, 27 de julho de 2012.
O EFEITO DOS ANALGÉSICOS COMEÇOU A passar e, por volta das sete horas da manhã seguinte, Knight voltou a sentir dores no corpo. Ouviu um rangido e virou-se no sofá-cama em que estava deitado, no quarto das crianças. Isabel estava de bruços, com os olhos fechados, imóvel. Mas o berço de Luke estava balançando de leve. Seu filho estava de joelhos, com o peito e a cabeça apoiados no colchão, chupando o dedo. Mesmo dormindo, se balançava de um lado para o outro. Knight sentou-se para observá-lo. Pelos dois últimos anos, Luke fazia isso todas as manhãs, antes de acordar. Instantes depois, Knight saiu de fininho do quarto, pensando se aquela mania do filho teria algo a ver com o sono REM. Será que Luke tinha algum distúrbio do sono? Será que sofria de apneia? Por isso o menino era tão agitado, enquanto a irmã era tão calma? Seria isso que atrasava o desenvolvimento de sua fala e o impedia de largar a fralda, coisa que Isabel já fizera meses antes? Seria por isso que Luke mordia? Knight não chegou a nenhuma conclusão enquanto tomava um banho e fazia a barba ouvindo o rádio. Segundo as notícias, o assassinato de Sir Denton e as ameaças de Cronos haviam feito Michael Lancer e os porta-vozes da Scotland Yard e do MI5 anunciarem um forte reforço do esquema de segurança durante a cerimônia de abertura. Aqueles que tinham a sorte de ter ingressos estavam sendo instruídos a chegar ao Parque Olímpico durante a tarde, para evitar a aglomeração prevista nos postos de controle à noite. Depois de ouvir que a Private participaria do reforço da segurança, Knight tentou ligar para Jack. Ninguém atendeu, mas o chefe provavelmente precisaria dele em breve. Sabia que sua mãe tinha prometido ajudar, mas precisava de uma babá com urgência. Abriu a gaveta para pegar uma pasta que infelizmente conhecia bem. Dentro da pasta havia uma lista de todas as agências de babás de Londres. Ele começou a ligar para uma após outra. Ao ouvi-lo explicar sua situação, a mulher que tinha enviado Nancy e a babá anterior a ela riu. – Outra babá? – perguntou. – Para agora? Bem complicado. – Por quê? – Porque seus filhos têm uma péssima reputação e as Olimpíadas começam hoje. Todos os meus funcionários estão com a agenda cheia pelos próximos 15 dias, no mínimo.
Knight ouviu a mesma história nas três agências seguintes e sua frustração começou a aumentar. Ele amava os filhos, mas tinha prometido encontrar o assassino de Sir Denton e a Private seria mobilizada para reforçar a segurança dos jogos olímpicos. Estavam precisando dele. Agora. Em vez de ficar com raiva, torceu para que a mãe tivesse mais sorte em encontrar alguém para cuidar dos gêmeos e começou a fazer o que podia de casa. Lembrando-se da amostra de DNA que havia recolhido no grampo de cabelo de Selena Farrell, chamou um motoboy e mandou que ele entregasse o indício a Hooligan, no escritório da Private Londres. Então pensou em Daring e em Selena e chegou a conclusão de que precisava saber mais sobre os dois – pelo menos onde seus caminhos haviam se cruzado. Daring não dissera alguma coisa sobre os Bálcãs? Será que foi lá que ela tirou aquela foto com a arma na mão? Tinha de ser. No entanto, quando Knight começou a pesquisar o nome de Selena na internet, tudo o que encontrou foram referências a suas publicações acadêmicas e, sete anos antes, sua oposição à construção do Parque Olímpico. “Essa decisão é um grande erro”, afirmava Selena Farrell em um artigo publicado no The Times. “As Olimpíadas se transformaram num meio de destruir bairros inteiros e desalojar famílias e empresas. Rezo para que um dia os responsáveis por essa decisão sejam obrigados a pagar pelo que fizeram comigo e com meus vizinhos à custa do dinheiro público.” Obrigados a pagar, professora?, pensou Knight, sombrio. Obrigados a pagar?
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QUASE 24 HORAS DEPOIS DE ter desencadeado uma enxaqueca brutal e uma violenta crise de enjoo, a melodia de flauta continuava tocando na cabeça de Selena Farrell, como uma trilha sonora cruel para seus pensamentos. Ela estava deitada na cama, com as cortinas do quarto fechadas. Como aquilo era possível? E o que Peter Knight e Karen Pope tinham pensado dela? Ao fugir da universidade daquele jeito, a professora praticamente lhes dera um motivo para suspeitar dela. E se eles começassem a investigar? Pelo que pareceu a milésima vez desde que saíra correndo de sua sala e fugira para seu pequeno e bem-arrumado apartamento em Wapping, Selena engoliu em seco, tentando aliviar uma ardência na garganta que não queria ir embora. Passara a tarde inteira bebendo água e tomara vários antiácidos, mas isso só havia ajudado um pouco. Ela sofria de enxaquecas desde criança e um remédio receitado pelo médico eliminara a sensação de latejar, deixando apenas um vago vestígio de dor na parte de trás de seu crânio. Selena tentou resistir ao impulso de aliviar essa sensação com álcool. Não só era uma péssima ideia misturar bebida com o remédio que havia tomado como também, quando bebia, a professora tendia a mudar completamente de personalidade. Não vou lá hoje à noite, pensou. Então se lembrou da imagem de uma mulher exótica sentada no canto de um sofá capitonê cor-de-rosa. Com isso, a decisão foi tomada por ela. Selena se levantou da cama, arrastou os pés até a cozinha, abriu o congelador e pegou uma garrafa de vodca Grey Goose. Em pouco tempo, a professora de Antiguidade Clássica já estava no segundo martíni, a dor de cabeça havia sumido e ela acreditava ter conseguido apagar a lembrança da melodia de flauta. Na verdade, a melodia de uma siringe. Também conhecida como flauta de Pã, consiste em sete pedaços de bambu amarrados lado a lado. Junto com a lira, a siringe é um dos instrumentos musicais mais antigos do mundo. No entanto, sua tonalidade sinistra tinha sido banida dos antigos Jogos Olímpicos por soar fúnebre demais. – E daí? – resmungou Selena, tomando um gole da bebida. – As Olimpíadas que se danem. Sir Denton que se dane. Que se danem todos eles. Quase transformada em outra pessoa pela vodca, Selena jurou que, agora que a enxaqueca havia passado, não ficaria ali pensando em perda, injustiça ou opressão. Era sexta-feira à noite em Londres. Tinha lugares aonde ir. Pessoas a encontrar. Sentiu seu corpo ser atravessado por uma animação que foi se tornando desejo enquanto ela subia o corredor, entrava no closet do quarto e abria o zíper da capa de proteção de uma roupa pendurada.
Dentro do plástico havia uma estilosa saia preta, justa nos quadris e com uma fenda provocante na lateral direita, e uma blusa sensual de cetim bordô, sem mangas e com um decote generoso.
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ÀS CINCO DA TARDE DESSA sexta-feira, Knight estava na cozinha, preparando o jantar dos filhos e conformado com a ideia de não assistir ao vivo a cerimônia de abertura das Olimpíadas. De toda forma, estava exausto. Desde o instante em que Luke acordara chorando, Knight passara o dia inteiro consumido pelas demandas dos filhos, pela frustração com a questão da babá e pela incapacidade de tocar a investigação sobre Cronos. Por volta do meio-dia, enquanto os gêmeos brincavam, tinha ligado para a mãe e perguntado como ela estava. – Dormi duas horas – disse ela. – Pegava no sono, mas sempre via Denton em meus sonhos. Só que toda vez que sentia essa alegria eu acordava e tinha de enfrentar outra vez o mesmo desespero. – Ai, mãe, que horror! – respondeu Knight, recordando como sofrera com a insônia e a angústia nas semanas seguintes ao nascimento dos gêmeos e à morte de Kate. Em muitas noites, pensou que fosse enlouquecer. Então mudou de assunto: – Esqueci de contar: Mike Lancer me convidou para assistir à cerimônia de abertura no camarote do comitê organizador. Se você me arrumar uma babá, podemos ir juntos. – Não sei se estou preparada para receber tantas demonstrações de compaixão. Além do mais, nenhuma homenagem a Denton foi planejada. Não fica bem eu aparecer em público como se estivesse comemorando. – A Olimpíada faz parte do legado de Denton – lembrou-lhe Knight. – Você estaria honrando seu nome. Além disso, vai ser bom você sair de casa e me ajudar a defender a reputação dele. – Vou pensar. – Aliás, sem babá não consigo investigar o assassinato de Denton. – Eu não sou burra, Peter! – disparou ela e em seguida desligou na cara do filho. Por volta das três da tarde, enquanto as crianças tiravam uma soneca, Knight conseguira falar com Jack. O dono da Private em geral era muito calmo, mas, mesmo ao telefone, Knight pôde perceber a pressão que Jack estava sofrendo. – Estamos fazendo de tudo para arrumar uma babá – disse Knight. – Que bom – respondeu Jack. – Porque precisamos de você aqui. – Merda! – praguejou Knight depois de desligar. A campainha tocou por volta das cinco e meia. Knight olhou pelo olho mágico e viu a mãe. Ela vestia uma blusa preta elegante e uma calça também preta, estava de sapatos pretos de salto e com um colar e brincos de pérolas cinzentas. Usava óculos
escuros. Ele abriu a porta. – Consegui uma babá para hoje à noite – informou Amanda, dando um passo para o lado e fazendo aparecer Gary Boss, que tinha um ar extremamente infeliz. Ele estava vestido de forma resplandecente, com uma calça capri cáqui, meias com estampa de losangos em estilo argyle, mocassins e uma gravata-borboleta de listras vermelhas e brancas diagonais. O assistente de Amanda olhou para Knight, torceu o nariz, como se estivesse diante da pessoa mais desagradável do mundo, e disse: – Sabia que liguei pessoalmente para todas as agências de babás da cidade? Eu diria que seus filhos têm uma reputação e tanto, Peter... Onde estão os pestinhas? Imagino que eu vá precisar saber os horários deles. – Estão na sala assistindo à televisão – respondeu Knight. Depois que Boss desapareceu dentro da casa, ele olhou para a mãe. – Ele está mesmo disposto a fazer isso? – Pelo triplo da exorbitante quantia que recebe por hora, tenho certeza de que ele vai dar um jeito – disse Amanda, tirando os óculos escuros e revelando olhos vermelhos e inchados. Knight subiu correndo até o quarto e trocou de roupa depressa. Ao descer, encontrou os gêmeos escondidos atrás do sofá, espiando Boss com um ar desconfiado. Sua mãe não estava por perto. – Sua alteza está no carro – disse Boss. – Esperando você. – Papai, eu fiz – disse Luke, dando um tapinha no bumbum. Por que ele não podia simplesmente usar o banheiro? – Bom, é o seguinte – começou Knight, falando com Boss. – A comida deles está na geladeira, dentro de potes de plástico. É só esquentar. Luke pode tomar um pouco de sorvete. Bella tem alergia, então, para ela, é só biscoito. Depois banho. Um livro. E para a cama às nove. Acho que voltaremos por volta de meia-noite. Knight se aproximou dos filhos e os beijou. – Obedeçam ao Sr. Boss. Ele vai ser a babá hoje. – Papai, eu fiz – reclamou Luke. – Certo – disse Knight para Boss. – E Luke fez cocô. É melhor você trocar a fralda dele agora, senão vai ter que dar banho muito antes do previsto. Boss ficou ainda mais agitado. – Eu? Trocar uma fralda? – Agora você é a babá – disse Knight ao sair, reprimindo uma risadinha.
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NAQUELA NOITE, A PROFESSORA SELENA Farrell estava se sentindo incrivelmente sexy. A noite caía no Soho. Fazia calor, ela tinha bebido vodca e estava vestida para matar. Enquanto caminhava da Tottenham Court Road em direção a Carlisle Street, a especialista em Antiguidade Clássica admirava seu reflexo em todas as vitrines pelas quais passava e nos olhos dos homens e mulheres que não podiam evitar reparar no molejo de seus quadris e no balanço de seus seios dentro da saia e da blusa sem mangas grudada em seu corpo como uma segunda pele. Ela havia se maquiado de um jeito provocante, pusera lentes de contato azuis e estava sem o lenço na cabeça. Seus cabelos eram tingidos de preto e repicados de um jeito que emoldurava seu rosto e atraía o olhar para aquele pequeno sinal escuro na linha do maxilar direito. Não fosse a pinta, ninguém – nem mesmo sua assistente de pesquisa – jamais teria sido capaz de reconhecê-la. Ela adorava se sentir assim. Anônima. Sensual. À caça. Parecia muito diferente da mulher que era no dia a dia, uma pessoa completamente diferente. O caráter ilícito daquilo tudo deixava a professora ainda mais excitada, dando-lhe uma sensação de poder e fazendo com que se sentisse atraente, hipnótica... enfim, irresistível. Chegando à Carlisle Street, encontrou o número 4 e entrou. O Candy Bar era uma das maiores e mais antigas boates lésbicas de Londres, o lugar favorito de Selena quando precisava relaxar um pouco. A professora se dirigiu até o comprido balcão do térreo, onde várias mulheres lindas estavam reunidas. Uma delas, de estilo mignon, notou Selena, virou-se na cadeira com um mojito na mão e lançou-lhe um sorriso de reconhecimento. – Syren St. James! – Oi, Nell – disse Selena, beijando a outra mulher no rosto. Nell pousou a mão no braço de Selena e examinou suas roupas. – Ora, ora, Syren. Olhe para você... cintilante e deliciosa como nunca. Por onde andou? Há quase um mês que não a vejo. – Estive aqui na outra noite – disse Selena. – Antes estava em Paris. Trabalhando num projeto novo. – Que sorte a sua – comentou Nell. Então prosseguiu em tom conspiratório: – Você sabe que sempre podemos ir embora e... – Hoje não, meu bem – disse Selena, gentil. – Já tenho outros planos. – Que pena – lamentou Nell. – Seus planos já chegaram? – Ainda não procurei. – Qual é o nome dela?
– Segredo. – Bom – disse Nell, ofendida –, se o seu segredo não aparecer, pode voltar. Selena lançou-lhe um beijo antes de se afastar. A expectativa fazia seu coração bater no ritmo da música eletrônica que vinha do subsolo. Deu uma olhada em todos os cantos do térreo antes de subir até o andar de cima, onde correu os olhos pelas mulheres reunidas em volta da mesa de bilhar cor-de-rosa. Nada. Começava a pensar que tinha levado um bolo até descer para o subsolo, onde uma dançarina de visual exagerado fazia uma apresentação de pole dancing ao som dos riffs e dubs de um DJ chamado V .J. O número era muito provocante. Sofás cor-de-rosa margeavam as paredes diante da stripper. Foi num desses sofás que a professora viu sua presa, no canto mais afastado do recinto, com uma taça de champanhe na mão. Com os cabelos muito pretos puxados para trás num penteado firme, a mulher estava muito elegante num vestido de coquetel preto fechado e usando um chapéu sem abas com um véu de renda preto que lhe ocultava todos os traços do rosto, exceto a pele morena e os lábios cor de rubi. – Oi, Marta – disse Selena, sentando-se em uma cadeira ao seu lado. Marta tirou os olhos da stripper, sorriu e respondeu, com um leve sotaque do Leste Europeu: – Tinha esperança de encontrá-la aqui, irmã. A professora sentiu o perfume de Marta, enfeitiçada. – Não consegui ficar longe. Marta correu as unhas cor de rubi pelas costas da mão de Selena. – É claro que não conseguiu. Vamos começar a brincadeira?
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ÀS SETE HORAS DESSA MESMA noite, os olhos do mundo inteiro estavam voltados para os quase 250 hectares de cais do porto decadente no East End londrino transformados no novo Parque Olímpico da cidade: um estádio lotado por 80 mil espectadores sortudos, uma vila olímpica repleta de atletas e instalações elegantes e modernas para ciclismo, basquete, handebol, natação e salto ornamental. Todas essas instalações eram belas estruturas, mas a mídia havia escolhido a escultura do artista britânico Anish Kapoor chamada ArcelorMittal Orbit como símbolo do design do parque – na verdade, dos jogos como um todo. Com 115 metros de altura, montada bem em frente ao portão leste do estádio, a escultura era mais alta do que o Big Ben ou a Estátua da Liberdade. Era uma torre vermelha, com imensos braços formados por treliças de aço que se curvavam, se contorciam e se entrelaçavam de uma forma que fazia Knight pensar em hélices de DNA enlouquecidas. Perto do topo, a estrutura tinha um deque panorâmico circular e um restaurante. Acima desse deque, outra hélice de DNA se curvava, formando um arco gigantesco. De onde estava, bem no alto do lado oeste do estádio, na janela de um luxuoso camarote reservado aos integrantes do comitê organizador, Knight voltou o binóculo para a imensa pira olímpica, montada sobre uma plataforma erguida acima do telhado do deque panorâmico da Orbit. Perguntou-se como iriam acendê-la e então se deixou distrair por um apresentador da BBC que apareceu numa tela de TV próxima. Segundo ele, o número estimado de pessoas que assistiriam à cobertura da cerimônia de abertura dos jogos olímpicos era de quase quatro bilhões. – Peter? – chamou Jack Morgan atrás dele. – Tem uma pessoa aqui que gostaria de falar com você. Knight baixou o binóculo e, ao se virar, deu de cara com o dono da Private ao lado de Marcus Morris, presidente do Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos de Londres. Morris tinha sido um popular ministro dos Esportes num governo trabalhista anterior. – Sou Morris – apresentou-se ele e os dois se cumprimentaram com um aperto de mãos. – É uma honra – disse Knight. – Preciso que me conte exatamente o que Richard Guilder lhe disse sobre Denton Marshall antes de morrer. Knight repetiu as palavras de Guilder e depois disse: – O golpe financeiro não tinha nada a ver com as Olimpíadas. Foi pura ganância de Guilder. Posso confirmar isso. Morris apertou a mão de Knight mais uma vez.
– Obrigado – falou. – Não quero que haja nenhuma suspeita de má conduta em relação a estes jogos. Mas isso não fará com que nenhum de nós se sinta melhor em relação à morte de Denton. Que tragédia! – Sob muitos aspectos – disse Knight. – Sua mãe parece estar aguentando firme – respondeu Morris. De fato, quando eles chegaram, muitas pessoas tinham ido dar os pêsames a Amanda, que nesse momento se encontrava em algum lugar no meio da multidão atrás deles. – Ela é uma mulher forte. Quando esse maluco chamado Cronos acusou Sir Denton de corrupção, ela ficou zangada... muito zangada. E isso não é bom. – Imagino que não seja mesmo – concordou Morris com um sorriso. – Agora peço licença, tenho um discurso a fazer. – E Olimpíadas a abrir – acrescentou Jack. – É, isso também – disse Morris, afastando-se. Jack olhou pela janela do camarote para o estádio lotado, correndo os olhos pela linha do telhado. Knight reparou no olhar do chefe e disse: – O esquema de segurança parece estar incrível, Jack. Amanda e eu levamos mais de uma hora para passar pelos postos de controle em Stratford. E os caras armados eram todos gurkhas. – Os guerreiros mais temidos do mundo – disse Jack, aquiescendo. – Precisa de mim em algum lugar? – Não, está tudo bem – disse Jack. – Aproveite o espetáculo. Você merece. Knight olhou em volta. – Por falar nisso, onde está Lancer? Não se falta à própria festa. Jack deu uma piscadinha. – É segredo. Mike me pediu que lhe agradecesse mais uma vez. Enquanto isso, acho que deveria me apresentar à sua mãe para que eu possa lhe prestar minhas condolências. O celular de Knight vibrou dentro do bolso. – Claro, Jack. Só um minuto. Ele tirou o aparelho do bolso, viu que era Hooligan e atendeu na mesma hora em que a iluminação do estádio diminuiu e a plateia começou a aplaudir e assobiar. – Estou no estádio – disse Knight. – A cerimônia de abertura vai começar agora. – Desculpe incomodá-lo, mas alguns de nós têm que trabalhar – disse Hooligan, sem paciência. – Estou com os resultados daquela amostra de cabelo que você mandou hoje de manhã. Eles... O som das trombetas começou a sair por todos os alto-falantes do estádio, abafando as palavras de Hooligan. – Pode repetir? – pediu Knight, tapando o ouvido. – O cabelo no envelope de Cronos e o de Selena Farrell – berrou Hooligan. –
Eles batem, porra!
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– ENCONTRAMOS CRONOS! – DISSE KNIGHT num sussurro rouco enquanto desligava o celular e um potente facho de luz rompia a escuridão e iluminava uma solitária figura agachada no meio do estádio. – O quê? – perguntou Jack, surpreso. – Ou pelo menos uma de suas Fúrias – disse Knight e em seguida explicou-lhe a equivalência das amostras. – A casa de Selena Farrell foi destruída para a construção deste estádio. Ela declarou publicamente que as pessoas que tinham feito isso com ela iriam pagar e surtou quando pusemos a música de flauta para tocar. – Ligue para Elaine Pottersfield – instruiu Jack. – Mande-a à casa de Selena. E diga a ela para manter a professora sob vigilância até conseguirem um mandado. No estádio, teve início um solo de clarineta e, pelo canto do olho, Knight viu a pessoa agachada no chão do estádio se levantar. Estava usando uma roupa verde e segurava um arco. Um cesto de flechas pendia de suas costas. Seria Robin Hood? – A menos que Selena esteja aqui no estádio – disse Knight, sentindo uma angústia dominar seu peito. – Em algum lugar eles têm a lista de todos os nomes correspondentes aos ingressos e convites – disse Jack, afastando-se da janela em direção à saída com Knight em seu encalço. Atrás deles, a multidão vibrou quando o espetáculo criado pelo cineasta britânico Danny Boyle começou para valer, narrando em canções e coreografias a rica história de Londres. No corredor comprido do lado de fora do camarote protegido por um forte esquema de segurança, Knight pôde ouvir a percussão e os ecos da música. Apertou a tecla de discagem automática para o número de Elaine Pottersfield. Ela atendeu no terceiro toque, então ele explicou como os indícios de DNA relacionavam Selena Farrell à carta de Cronos. Ao seu lado, Jack também estava ao telefone explicando a mesma coisa para a pessoa que, naquele momento, encontrava-se no comando da segurança do lado de fora do Parque Olímpico. – Como você conseguiu o DNA de Selena Farrell? – perguntou Elaine. – É uma longa história – respondeu Knight. – Estamos procurando por ela aqui dentro do estádio. Sugiro que vocês comecem a procurar em casa. Ele e Jack desligaram ao mesmo tempo. Knight olhou para os quatro agentes armados da Private que protegiam a entrada do camarote do comitê. Jack pareceu ler seus pensamentos e disse: – Ninguém vai entrar aí. Knight quase assentiu, mas então, pensando em Guilder e Mascolo, falou:
– Não podemos partir do princípio de que os integrantes do comitê são os únicos alvos. Isso ficou claro com Guilder. Jack assentiu. – É, você tem razão. Os dois entraram no camarote no momento em que Mary Poppins levantava voo da Orbit, segurando bem alto um guarda-chuva enquanto flutuava por cima do telhado e da multidão em delírio, indo em direção a uma réplica da Torre de Londres trazida para dentro do estádio. Ela aterrissou perto da torre, mas desapareceu no meio da fumaça quando luzes vermelhas e brancas começaram a piscar e tambores ribombaram, imitando a Blitz durante a Segunda Guerra Mundial. Quando a fumaça se dissipou, centenas de pessoas vestidas com as mais variadas fantasias começaram a dançar em volta da réplica da Torre e Knight ouviu alguém dizer que elas representavam a Londres moderna e as diversas origens dos habitantes da cidade mais cosmopolita do mundo. Mas Knight não estava interessado no espetáculo. Olhava para todos os cantos do estádio, tentando prever o que uma louca faria numa situação como aquela. Identificou uma entrada no lado oeste do estádio. – Aonde vai dar aquilo ali? – perguntou a Jack. – Na pista de treinamento – respondeu Jack. – É lá que as equipes estão se preparando para o desfile das delegações. Por motivos que não conseguiu explicar, Knight foi atraído para aquela parte do estádio. – Quero dar uma olhada – falou. – Vou com você – disse Jack. Juntos, atravessaram o estádio enquanto todas as luzes diminuíam, menos o refletor focado no personagem de Robin Hood, agora suspenso muito acima do palco no canto sul do estádio. O ator apontava para o topo da escultura Orbit, acima do deque panorâmico, onde outros refletores revelaram dois integrantes armados da Guarda da Rainha, de casacos vermelhos e chapéus pretos de pele de urso. Eles marchavam a passos duros, vindos de lados opostos do telhado, indo em direção à pira. Então ambos deram meia-volta e ficaram imóveis, um de cada lado da pira, com uma postura ereta de atenção. Dois outros guardas entraram no estádio pelas laterais do palco principal. A música foi sumindo e o apresentador anunciou: – Senhoras e senhores, mesdames et messieurs: a rainha Elizabeth II e a família real.
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AS LUZES DO PALCO SE acenderam e a rainha apareceu usando um terninho azul. Sorridente, acenou ao avançar na direção do microfone, seguida por Charles, William, Kate e vários outros membros da Casa de Windsor. Knight e Jack diminuíram o passo e passaram alguns segundos admirando enquanto a rainha fazia um breve discurso de boas-vindas a Londres para a juventude de todo o mundo, mas logo continuaram em direção ao portão por onde entrariam as delegações. Enquanto outras figuras importantes faziam seus discursos, Knight e Jack chegaram às arquibancadas acima do portão em forma de túnel e tiveram de mostrar crachás e identidades para chegar à grade. Grupos de gurkhas armados postavam-se dos dois lados do túnel abaixo deles. Vários dos guardas nepaleses imediatamente se puseram a analisar Knight e Jack, avaliando seu potencial de ameaça. – Eu certamente não iria querer um desses caras puto comigo – comentou Jack enquanto os atletas do Afeganistão começavam a aparecer no portão. – Os soldados mais temidos do mundo – disse Knight, estudando os compridos facões típicos que vários dos gurkhas traziam embainhados no cinto. Uma faca curva e comprida havia cortado a cabeça de Sir Denton, certo? Estava a ponto de comentar isso com Jack quando Marcus Morris, elevando a voz, concluiu seu discurso: – Nós damos as boas-vindas aos jovens de todo o mundo à cidade mais incrível da Terra! A banda The Who subiu ao palco montado no canto sul do estádio e começou a tocar “The Kids Are Allright”, enquanto o desfile das delegações tinha início com a entrada dos atletas afegãos. A multidão foi à loucura e entrou em êxtase quando o The Who terminou, foi substituído por Mick Jagger e os Rolling Stones e Keith Richards começou a tocar na guitarra o riff inicial de “Can’t You Hear Me Knocking”. Milhares de flashes dispararam e Londres se entregou por completo ao frenesi olímpico. Abaixo de Jack e Knight, a delegação de Camarões saía do túnel. – Qual desses atletas é Mundaho? – perguntou Jack. – Ele é camaronês, não é? – É, sim – respondeu Knight, percorrendo com os olhos a delegação vestida de verde e amarelo até encontrar um homem alto, musculoso e sorridente, com os cabelos trançados e enfeitados com búzios. – É aquele ali. – Ele acha mesmo que vai derrotar Shaw? – Acha, com certeza – disse Knight.
Filatri Mundaho surgira do nada no atletismo internacional, numa corrida em Berlim, sete meses antes das Olimpíadas. Era um homem grande, comprido, com um porte físico semelhante ao do lendário corredor jamaicano Zeke Shaw. Shaw não havia corrido em Berlim, mas muitos dos outros homens mais rápidos do mundo, sim. Mundaho disputara três modalidades no evento: 100, 200 e 400 metros rasos. Vencera de forma convincente todas as corridas classificatórias e todas as provas, um feito inédito num evento desse porte. Seu sucesso dera origem a um frenesi de especulação quanto aos resultados que ele poderia conseguir nas Olimpíadas de Londres. Nos jogos de 1996, em Atlanta, o americano Henry Ivey ganhara medalha de ouro e quebrara os recordes mundiais dos 400 e dos 200 metros. Em Pequim, em 2008, Shaw vencera os 100 e os 200 metros rasos, estabelecendo também os recordes mundiais das duas modalidades. Mas nenhum homem – nem mulher, aliás – jamais vencera todas as três corridas em uma única edição dos jogos. Filatri Mundaho iria tentar. Seus treinadores diziam que Mundaho fora descoberto participando de uma corrida regional no leste de Camarões, após escapar de forças rebeldes que o haviam sequestrado quando criança e o transformado em menino-soldado. – Você leu aquela matéria no outro dia, quando ele disse que a velocidade e a resistência com que corria se deviam às balas que costumavam zunir atrás dele? – perguntou Jack. – Não – respondeu Knight. – Mas entendo que isso possa ser uma motivação e tanto.
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VINTE MINUTOS MAIS TARDE, ENQUANTO o The Who e os Stones ainda se revezavam tocando suas músicas mais famosas, a delegação dos Estados Unidos entrou no estádio conduzida pelo porta-bandeira Paul Teeter, um homem imenso e barbado que Jack conhecia de Los Angeles. – Paul estudou na UCLA – disse Jack. – É arremessador de peso e de disco e tem uma força descomunal. Também é um cara muito bom. Tem vários projetos com jovens de comunidades carentes. Há grandes expectativas quanto à participação dele nesses jogos. Knight tirou os olhos de Teeter e reconheceu a mulher que vinha logo atrás do porta-bandeira. Curiosamente, já tinha visto uma foto dela de biquíni no The Times de Londres na semana anterior. A mulher tinha pouco menos de 40 anos e um dos corpos mais invejáveis que ele já vira. E era ainda mais bonita pessoalmente. – Aquela ali é Hunter Pierce, não é? – perguntou. Jack assentiu, admirando-a. – Que história essa mulher tem! Hunter Pierce havia perdido o marido num acidente de carro dois anos antes e ficara sozinha para criar três filhos, todos com menos de 10 anos. À época, era médica de um pronto-socorro em San Diego. Tinha sido atleta de saltos ornamentais aos 21 anos e quase entrara para a equipe olímpica de 1996, mas depois desistira do esporte para estudar medicina e formar uma família. Quinze anos depois, para superar a morte do marido, tinha voltado a treinar. Por insistência dos filhos, começara a competir de novo aos 36 anos. Após um ano e meio, com os filhos assistindo, deixara a comunidade norte-americana de salto ornamental de queixo caído ao vencer a disputa classificatória para as Olimpíadas de Londres na plataforma de 10 metros. – Ela é incrível – disse Knight, vendo-a acenar e sorrir. A delegação do Zimbábue já entrava no estádio. A última delegação a entrar foi a do Reino Unido – o país-sede. Audrey Williamson, nadadora de 23 anos, vencedora de duas medalhas de ouro em Pequim, carregava a bandeira britânica conhecida como Union Jack. Knight apontou para Jack os vários atletas da delegação britânica que todos acreditavam que tinham chance de ganhar medalhas, entre eles a maratonista Mary Duckworth, Mimi Marshal, que tinha 18 anos e era a sensação do atletismo, o boxeador Oliver Price e a equipe de remo. Logo depois foi entoado o hino do Reino Unido, “God Save the Queen”, seguido pelo hino olímpico. Os atletas prestaram o juramento olímpico e um forte sentimento de
expectativa tomou conta da plateia. Muitas pessoas olhavam na direção do portão de entrada logo abaixo de Knight e Jack. – Quem será que vai acender a pira olímpica? – perguntou Jack. – É o que você e todos os outros habitantes da Inglaterra querem saber – respondeu Knight. De fato, as especulações sobre quem teria essa honra haviam se intensificado muito desde que a tocha olímpica chegara da Grécia à Grã-Bretanha, no começo do ano, e fora levada para Much Wenlock, no condado de Shropshire – onde, em 1892, Pierre de Coubertin, considerado o pai das Olimpíadas modernas, havia sugerido em público pela primeira vez que os jogos fossem reinstaurados. Desde então, a tocha vinha percorrendo a Inglaterra, o País de Gales e a Escócia. A cada parada, a curiosidade e os boatos aumentavam um pouco mais. – Os apostadores estão pondo suas fichas em Sir Cedric Dudley, medalhista de ouro no remo cinco vezes seguidas – disse Knight. – Mas outros dizem que deveria ser Sir Seymour Peterson-Allen, o primeiro homem a correr uma milha em menos de quatro minutos. Nesse momento, um rugido se ergueu da multidão quando a música-tema do filme Carruagens de fogo começou a tocar e dois homens entraram correndo no estádio logo abaixo de onde Knight e Jack estavam, carregando em dupla a tocha olímpica. Era mesmo Sir Cedric Dudley e ele estava correndo ao lado de... – Meu Deus, é Lancer! – exclamou Knight. Mike Lancer sorria e acenava alegremente para a multidão, enquanto ele e Sir Cedric corriam pela pista em direção a uma escada em caracol ao lado da réplica da Torre de Londres e de uma pessoa vestida de branco que os aguardava ali.
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NESSE EXATO MOMENTO, KAREN POPE estava na redação do The Sun, no oitavo andar de um moderno prédio comercial na Thomas More Square, perto da marina de St. Katharine, na margem norte do Tâmisa. Queria ir para casa dormir um pouco, mas não conseguia tirar os olhos da cerimônia de abertura. Na tela da TV , Lancer e Dudley corriam em direção àquela pessoa vestida de branco postada ao pé de uma escada íngreme que conduzia ao alto da torre. Ao ver a alegria estampada no rosto de todos os espectadores do estádio, o cinismo habitual de Karen arrefeceu e ela começou a ficar emocionada. Que momento incrível para Londres, para toda a Grã-Bretanha! Ela olhou para Finch, seu editor, um pouco mais afastado na redação. Os olhos do jornalista esportivo veterano e durão estavam vidrados de emoção. Ele olhou para ela e disse: – Sabe quem é esse, não sabe? O que será o último a carregar a tocha? – Não faço ideia, chefe – respondeu Karen. – Porra, esse daí é... – Você é Karen Pope? – perguntou um homem atrás dela, interrompendo Finch. Ao se virar, ela deparou com a visão – e com o cheiro – de um mensageiro imundo fitando-a com uma expressão entediada. – Sim – respondeu ela. – Sou eu. O mensageiro estendeu um envelope com seu nome escrito em letras de formato estranho, em várias fontes e cores diferentes. Karen sentiu um frio arrepiante na barriga.
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QUANDO O ÚLTIMO PORTADOR DA tocha olímpica subiu a escada ao lado da réplica da Torre de Londres, a multidão já estava soltando vivas, assoviando e batendo os pés no chão. Knight franziu o cenho e olhou de relance para o topo da escultura Orbit e para os guardas postados junto à pira. Como eles fariam para transferir a chama do alto da réplica da Torre de Londres para o alto da Orbit? O último portador da tocha ergueu-a bem alto acima da cabeça enquanto as palmas se tornavam estrondosas e davam lugar a um arquejo coletivo. Segurando o arco, com uma flecha já preparada, Robin Hood pulou do andaime erguido acima do palco sul e saiu voando pelo estádio, suspenso por cabos de aço, em direção à tocha olímpica. Ao passar zunindo, o arqueiro mergulhou a ponta da flecha na chama para acendêla. Então continuou voando, cada vez mais alto, retesando o arco à medida que avançava. Quando estava quase na mesma altura do topo da Orbit, Robin Hood girou o corpo e disparou a flecha acesa, que desenhou um arco pelo teto do estádio, rasgou o céu escuro e passou entre os dois guardas da rainha, poucos centímetros acima da pira. Uma grande e flamejante labareda explodiu dentro da pira, fazendo o barulho no estádio se tornar estrondoso outra vez. A voz de Jacques Rogge, presidente do Comitê Olímpico Internacional, ecoou pelos alto-falantes: – Declaro abertos os Jogos Olímpicos de Londres de 2012! Fogos de artifício irromperam da Orbit e explodiram bem alto no céu do leste de Londres, ao mesmo tempo que os sinos de todas as igrejas da cidade começavam a badalar. No estádio, os atletas se abraçavam, trocavam bottons e faziam fotos e vídeos desse momento mágico, quando todo e qualquer sonho com o ouro olímpico parecia possível. Ao ver os atletas e depois erguer os olhos para a chama olímpica enquanto luzes coloridas estouravam no ar, os olhos de Knight se encheram de lágrimas. Não esperava sentir um orgulho tão arrebatador de sua cidade e de seu país. Então seu celular tocou. Karen Pope estava quase histérica: – Cronos acabou de me mandar outra carta. Ele está assumindo a morte de Paul Teeter, o arremessador de peso americano! Knight fez uma careta de incompreensão. – Não, eu acabei de ver Teeter, ele está... Foi então que entendeu. – Onde está Teeter? – gritou para Jack, já começando a correr. – Cronos está
tentando matá-lo!
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KNIGHT E JACK FORAM ABRINDO caminho pelo meio da multidão. Jack berrava ao celular, alertando o chefe da segurança do estádio sobre a situação. Ambos mostraram seus crachás da Private para entrar no gramado. Knight viu Teeter segurando a bandeira norte-americana e conversando com Filatri Mundaho, o corredor camaronês. Saiu em disparada pelo meio do estádio na mesma hora em que a bandeira que ele segurava começou a tombar. O porta-bandeira caiu no chão junto com ela, tomado por uma convulsão e com uma espuma sangrenta na boca. Quando Knight conseguiu chegar à delegação americana, as pessoas já gritavam por um médico. A Dra. Hunter Pierce abriu caminho pela multidão e foi até junto do arremessador, enquanto Mundaho observava, horrorizado. – Ele simplesmente caiu – disse o ex-menino-soldado a Knight. Jack parecia tão atônito quanto Knight. Tudo acontecera muito depressa. Três minutos de antecedência. Foi tudo o que tiveram. O que mais poderiam ter feito para salvar o americano? De repente, o sistema de alto-falantes emitiu um chiado e a estranha melodia de flauta de Cronos começou a tocar. Knight foi tomado pelo pânico. Lembrou-se da reação de Selena Farrell na universidade e então reparou que muitos dos atletas à sua volta apontavam para os imensos monitores de vídeo espalhados pelo estádio, todos exibindo as mesmas três palavras em vermelho: VERGONHA OLÍMPICA REVELADA!
PARTE TRÊS
O HOMEM MAIS VELOZ DO MUNDO
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KNIGHT ESTAVA FURIOSO. CRONOS NÃO apenas havia conseguido envenenar Teeter impunemente, mas também dera um jeito de hackear o sistema de computadores do Parque Olímpico e de controlar o placar eletrônico. Será que a professora Selena Farrell seria capaz de fazer uma coisa dessas? Mike Lancer correu até Knight e Jack. Parecia ter envelhecido 10 anos nos últimos segundos. Apontou para os monitores. – Que porcaria é essa? O que é essa música dos infernos? – É Cronos, Mike – disse Knight. – Ele está assumindo o atentado. – O quê? – gritou Lancer, transtornado. Foi então que viu a Dra. Pierce e dois paramédicos reunidos em volta do arremessador americano. – Ele morreu? – Eu o vi antes de a Dra. Pierce chegar perto – disse Knight. – Estava espumando pela boca e havia traços de sangue. Estava engasgado, tendo uma convulsão. Abalado e atônito, Lancer perguntou: – Veneno? – Vamos ter que esperar o exame de sangue. – Ou a autópsia – emendou Jack, enquanto os paramédicos punham Teeter, desacordado, numa maca e saíam correndo em direção à ambulância com a Dra. Pierce atrás deles. Algumas pessoas que ainda estavam no estádio aplaudiam baixinho o atleta americano. No entanto, a maioria do público se encaminhava para as saídas, com as mãos nos ouvidos, tentando abafar a lúgubre melodia de flauta, lançando olhares aflitos para a mensagem de Cronos que ainda brilhava nos monitores: VERGONHA OLÍMPICA REVELADA! Quando a ambulância se afastou, Jack disse com a voz trêmula: – Não dou a mínima para o que Cronos alega. Paul Teeter era um homem bom, um gigante gentil. Fui visitar uma de suas clínicas em Los Angeles. As crianças eram loucas por ele. Elas o adoravam. Que doente mental faria uma coisa dessas, numa noite como a de hoje, com uma pessoa tão boa? Knight pensou na professora Selena Farrell fugindo da própria sala no dia anterior. Onde estaria ela? Será que Elaine Pottersfield conseguira prendê-la? Será que ela era Cronos? Ou seria uma das Fúrias? E como haviam conseguido envenenar Teeter? Knight foi até Mundaho, apresentou-se e perguntou o que havia acontecido. Com seu inglês precário, o corredor camaronês respondeu que, antes de cair, Teeter estava suando muito e tinha o rosto bastante vermelho. Knight então conversou com os membros da delegação americana para descobrir se alguém tinha visto Teeter beber alguma coisa antes do início da cerimônia. Um
atleta do salto em altura disse que vira o arremessador beber água de uma dos milhares de garrafinhas de plástico que os voluntários das Olimpíadas de Londres, ou “Mestres dos Jogos”, estavam distribuindo para os atletas na concentração do desfile das delegações. Knight disse isso a Jack e a Lancer, que se descontrolou e começou a gritar no rádio, ordenando que todos os Mestres dos Jogos fossem retidos dentro do Parque Olímpico até segunda ordem. O chefe da segurança do estádio, que tinha chegado ao local poucos minutos antes, ergueu os olhos irados para os monitores acesos e berrou pelo rádio: – Desliguem o sistema de som e acabem com essa maldita flauta! E tirem essa frase dos placares. Quero saber como alguém conseguiu hackear nossa rede. Agora!
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Sábado, 28 de julho de 2012.
PAUL TEETER, ESTRELA DO ATLETISMO e incansável defensor da juventude carente, morreu a caminho do hospital, pouco depois da meia-noite. Tinha 26 anos. Horas depois, Knight teve um pesadelo envolvendo a melodia de flauta, a cabeça de Denton Marshall, a mancha de sangue que brotava no peito de Richard Guilder, Joe Mascolo despencando por cima da mesa de vidro no Lobby Bar e a espuma ensanguentada nos lábios do arremessador americano. O agente da Private acordou com um sobressalto e, durante vários segundos, com o coração disparado, não teve a menor ideia de onde estava. Então ouviu Luke chupando o dedo no escuro e entendeu. Começou a se acalmar, puxou os lençóis em volta dos ombros e pensou na expressão de Gary Boss quando havia chegado em casa, às três horas da manhã. A casa estava de pernas para o ar e o assistente particular de sua mãe jurou que nunca mais bancaria a babá dos filhos malucos de Peter. Nem que Amanda pagasse cinco vezes o seu salário. Amanda também tinha ficado chateada com Knight. Ele não apenas a deixara sozinha durante a cerimônia de abertura como também não atendera seus telefonemas após a morte de Teeter ter sido anunciada. Mas Knight não tivera tempo para isso. Tentou pegar no sono outra vez, mas sua mente se alternava entre a preocupação de encontrar uma babá nova para as crianças, sua mãe e o conteúdo da segunda carta de Cronos. Ele, Jack e Hooligan haviam examinado a carta na sala estéril da Private Londres pouco depois de Karen levar o envelope até lá, por volta da uma da manhã. “Que honra pode haver numa vitória não merecida?”, começava Cronos. “Que glória pode haver em vencer o adversário com uma trapaça?” Segundo Cronos, Teeter era uma fraude “que representava as legiões de atletas olímpicos corruptos dispostos a usar qualquer droga ilícita disponível para melhorar seu desempenho”. A carta afirmava que Teeter e outros atletas não especificados que participavam dos jogos de Londres estavam usando um extrato da penugem que revestia a galhada de cervos e alces para aumentar sua força e sua velocidade e diminuir o tempo de recuperação após o esforço. As galhadas têm o crescimento mais rápido do mundo, porque, durante seu desenvolvimento, apresentam um revestimento rico em nutrientes, conhecido como veludo, com alta concentração de IGF-1, ou fator de crescimento insulínico 1, um hormônio de crescimento superpotente banido pelo regulamento das
Olimpíadas. No entanto, se administrado com cautela e por meio de um spray nasal em vez de uma injeção, o veludo da galhada era quase impossível de detectar. “Os benefícios do IGF-1 são enormes”, escrevia Cronos. “Principalmente para um atleta de força como Teeter, pois o hormônio lhe permite desenvolver músculos mais depressa e se recuperar com mais rapidez do esforço físico.” A carta prosseguia acusando dois revendedores de ervas – um de Los Angeles e outro de Londres – de estarem envolvidos na complexa fraude orquestrada por Teeter. Os documentos que acompanhavam a carta pareciam corroborar as alegações de Cronos. Quatro deles eram recibos dos revendedores comprovando a venda e a entrega de veludo de cervo-vermelho da Nova Zelândia na caixa postal de uma construtora de Los Angeles que pertencia ao cunhado de Teeter, Philip. Outros papéis supostamente apresentavam os resultados de exames independentes de última geração feitos em amostras do sangue de Teeter. “Esses exames deixam clara a presença do IGF-1 no organismo de Teeter ao longo dos últimos quatro meses”, escrevia Cronos, antes de concluir: “Assim, Paul Teeter, que agiu de forma deliberadamente desonesta, teve de ser sacrificado para expurgar os jogos e torná-los puros outra vez.” Deitado no sofá do quarto dos filhos, muitas horas depois de ter lido essas palavras, Knight encarou a silhueta difusa das duas crianças e pensou: É esse o jeito de purificar as Olimpíadas? Matando pessoas? Quem é o louco capaz de pensar assim? E por quê?
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DEPOIS DO COLAPSO DE TEETER diante do mundo inteiro, passo muitas horas vagando pela cidade, carregando o orgulho secreto de nossa vingança, deleitando-me com a prova de nossa superioridade sobre os esforços pífios da Scotland Yard, do MI5 e da Private. Eles jamais chegarão perto de encontrar minhas irmãs e eu. Em todos os lugares por onde passo, mesmo já sendo tarde, vejo londrinos chocados e jornais mostrando a imagem dos gigantescos monitores do estádio com nossa mensagem estampada: Vergonha olímpica revelada! E leio a manchete: A morte ronda os jogos! Bom, o que eles esperavam? Que simplesmente os deixássemos continuar a transformar os antigos ritos esportivos em uma piada? Que permitíssemos que eles conspurcassem os princípios da competição justa, da superioridade merecida e da grandeza imortal? Pouco provável. E agora os nomes de Cronos e das Fúrias estão na boca de bilhões de pessoas mundo afora: impossíveis de capturar, capazes de matar à vontade, determinados a denunciar e a eliminar o lado obscuro do maior evento esportivo do mundo. Alguns tolos estão nos comparando aos palestinos que sequestraram e mataram atletas israelenses durante os jogos de 1972, em Munique. Dizem que somos terroristas com uma motivação política desconhecida. Tirando esses imbecis, sinto que o mundo agora está começando a entender minhas irmãs e eu. Uma onda de animação percorre meu corpo quando vejo que pessoas de todos os lugares estão percebendo nossa grandeza. Estão se perguntando como criaturas assim podem viver entre elas, brandindo o poder da morte em resposta ao engodo e à corrupção e fazendo sacrifícios em nome de tudo o que há de bom e honrado. Na minha mente, posso ver os monstros que me apedrejaram, os olhos mortos das Fúrias na noite em que matei os bósnios e o choque no semblante dos apresentadores ao explicar a morte de Teeter. Finalmente estou fazendo os monstros pagarem pelo que fizeram comigo. Ainda estou pensando nisso quando a aurora desponta e vem banhar as nuvens finas e perenes que pairam no céu londrino com uma luz vermelho-escura que as faz parecer lanhos na pele de alguém. Bato na porta lateral da casa em que moram as Fúrias e entro. Marta é a única que ainda está acordada. Seus olhos escuros de ágata estão molhados de lágrimas e ela me abraça com alegria, irradiando uma felicidade tão incandescente quanto a minha. – Foi como um reloginho – diz ela, fechando a porta atrás de mim. – Tudo saiu
perfeito. Teagan entregou a garrafa ao americano, depois trocou de roupa e saiu antes de o caos começar, como se tudo já estivesse escrito pelo destino. – Você não disse a mesma coisa quando Londres foi escolhida para sediar as Olimpíadas? – pergunto. – Não falou isso quando descobrimos a fraude financeira e o doping, exatamente como eu afirmara que faríamos? – Isso tudo é verdade – responde Marta, com a mesma expressão fanática de qualquer mártir. – É o nosso destino. Somos superiores. – Sim, mas não se iluda: eles agora vão nos caçar – digo. – Você disse que está tudo pronto? – Tudo – confirma ela, assumindo um tom muito profissional. – E a fábrica? – Teagan verificou que está bem lacrada. Não há como alguém descobrir. – E a sua parte? – pergunto. – Correu sem problemas. Assinto com a cabeça. – Então está na hora de ficarmos nas sombras. Vamos deixar que a Scotland Yard, o MI5 e a Private trabalhem em alerta total por tempo suficiente para se cansarem, acharem que terminamos e se permitirem baixar a guarda. – Tudo conforme o planejado – diz Marta. Então acrescenta, hesitante: – E esse tal de Peter Knight? Ele ainda é uma ameaça para nós? Reflito um instante e então respondo: – Se existe uma ameaça, é ele. – Nesse caso, descobrimos algo. Knight tem um ponto fraco. E dos grandes.
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KNIGHT ACORDOU SOBRESSALTADO NO QUARTO dos gêmeos. Seu celular estava tocando. O sol invadia o cômodo, ofuscando sua visão. Ele tateou em busca do telefone e atendeu. – Selena Farrell desapareceu – disse Elaine Pottersfield do outro lado da linha. – Não está na universidade nem em casa. Ainda sem conseguir abrir os olhos, Knight sentou-se na cama e falou: – Vocês revistaram os dois lugares? – Só vou conseguir um mandado quando meu laboratório confirmar a análise de Hooligan. – Ele encontrou mais uma coisa ontem, na segunda carta de Cronos. – O quê?! – gritou Elaine. – Que segunda carta? – Já está lá no seu laboratório – respondeu Knight. – Mas Hooligan recolheu algumas células epidérmicas do envelope. Mandou metade da amostra para vocês. – Droga, Peter – reclamou a investigadora-chefe. – A Private não pode analisar nada relacionado a esse caso sem... – Elaine, quem decide isso não sou eu – reagiu Knight sem hesitar. – Essa decisão cabe ao The Sun. O jornal é cliente da Private! – Estou pouco ligando para quem... – Que tal fazer a sua parte? – sugeriu Peter. – Parece que sou sempre eu que estou dando informações a vocês. Ela fez uma pausa antes de responder: – O mais importante é saber como Cronos conseguiu hackear o... Então Knight percebeu que os gêmeos não estavam em seus berços e parou de escutar. Seus olhos se voltaram para o relógio. Dez da manhã! Ele não dormia até tão tarde desde antes do nascimento dos filhos. – Elaine, tenho que desligar! As crianças – falou, cortando a ligação. Todos os medos que os pais são capazes de ter passaram pela sua cabeça enquanto ele corria porta afora e chegava ao topo da escada. E se eles tivessem caído? E se tivessem resolvido mexer no...? Então ouviu a TV transmitindo as eliminatórias do revezamento de 400 metros livres de natação e sentiu como se todos os músculos de seu corpo tivessem virado borracha. Teve que segurar firme o corrimão para descer. Luke e Isabel haviam tirado as almofadas do sofá e empilhado no chão. Estavam sentados em cima delas como dois Budas, ao lado de caixinhas vazias de cereal e de suco. Knight achou que nunca tinha visto nada mais bonito na vida. Deu comida aos filhos e os vestiu enquanto dava uma olhada na cobertura da imprensa em relação ao assassinato de Teeter. Nem a Scotland Yard nem o MI5
haviam divulgado nada. O mesmo valia para a F7, empresa contratada pelo comitê organizador para administrar a segurança dos jogos. Mike Lancer, no entanto, estava em todos os noticiários, garantindo aos repórteres que as Olimpíadas estavam seguras, defendendo suas ações e, ao mesmo tempo, assumindo total responsabilidade pelas falhas na segurança. Abalado porém decidido, Lancer jurou que Cronos seria detido, capturado e punido. Enquanto isso, Knight continuava tendo que aceitar que não tinha babá e, até que arrumasse uma, não poderia se dedicar totalmente ao caso Cronos. Já havia ligado para a mãe várias vezes, mas Amanda não atendera. Telefonou então para outra agência, explicou a situação e implorou que lhe enviassem uma temporária. A atendente lhe respondeu que talvez conseguisse alguém para terça-feira. – Terça-feira? – exclamou ele. – É o melhor que posso fazer. Não tenho mais ninguém disponível por causa das Olimpíadas – disse a mulher antes de desligar. Por volta do meio-dia, os gêmeos quiseram ir à pracinha. Imaginando que isso os ajudaria a dormir à tarde, Knight concordou. Pôs os dois no carrinho, comprou um exemplar do The Sun e foi a pé até um parquinho que ficava no jardim do Royal Hospital de Chelsea, a uns 10 minutos de sua casa. O calor havia diminuído e não se via uma nuvem sequer no céu. Um dia perfeito em Londres. No entanto, sentado num banco da praça vendo Luke descer no escorrega e Isabel brincar na caixa de areia, Knight não pensava nos filhos nem no tempo maravilhoso daquele primeiro dia de competição. O que ocupava sua mente era Cronos, se ele voltaria a atacar e quando. Recebeu um torpedo de Hooligan no celular:
As células de pele na segunda carta são de homem, ainda não identificadas. Estou indo para Coventry ver a partida de futebol Inglaterra x Argélia.
Masculinas?, pensou. Serão de Cronos? Quer dizer então que Selena Farrell é uma das Fúrias? Frustrado, Knight pegou o jornal que havia comprado. A matéria de Karen dominava a primeira página sob a manchete: A morte ronda os jogos. A jornalista esportiva começava o texto com a descrição de Teeter desabando no estádio, um relato conciso e fatual dos acontecimentos conforme haviam acontecido durante a cerimônia de abertura. Mais para o final da matéria, ela incluíra as declarações do cunhado de Teeter, que estava em Londres para os jogos, desmentindo as acusações de Cronos. Ele alegava que os resultados dos exames laboratoriais apresentados por Cronos eram falsos e que era ele quem usava o veludo de galhada. Disse que, como trabalhava o dia inteiro na construção civil, precisava de algo que aliviasse fisgadas crônicas nas costas. – Olá? Senhor? – disse uma voz de mulher. O sol estava tão forte que, a princípio, tudo o que Knight conseguiu ver foi uma
silhueta em pé na sua frente estendendo um papel na mão estendida. Estava a ponto de dizer que não tinha interesse, mas então levou a mão à testa para proteger os olhos do sol. A moça tinha um rosto meio sem graça, cabelos curtos e escuros, olhos igualmente escuros e um porte atarracado e atlético. – Pois não? – disse ele enquanto pegava a filipeta. – Desculpe – falou ela com um sorriso humilde e, pela primeira vez, ele ouviu o leve sotaque do Leste Europeu. – Por favor, vi que o senhor tem filhos e estava pensando... conhece alguém que esteja precisando de uma babá? A surpresa de Knight foi tanta que ele piscou várias vezes antes de baixar os olhos para o papel em que estava escrito: “Babá experiente, com excelentes referências. Formação universitária em desenvolvimento na primeira infância. Aceita no programa de pós-graduação em fonoaudiologia.” O texto continuava, mas Knight ergueu os olhos para a moça. – Qual é o seu nome? Ela se sentou ao seu lado com um sorriso animado no rosto. – Marta – respondeu. – Marta Brezenova.
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– VOCÊ É UMA RESPOSTA INESPERADA às minhas preces, Marta Brezenova, e não poderia ter aparecido em melhor hora – disse Knight, satisfeito com a própria sorte. – Meu nome é Peter Knight e estou precisando desesperadamente de uma babá. A expressão de Marta passou da incredulidade à alegria. Levando os dedos aos lábios, ela disse: – Mas o senhor foi a primeira pessoa a quem entreguei esse anúncio! Parece destino! – Pode ser – disse Knight, achando graça no entusiasmo contagiante da moça. – Não, é sim! – afirmou ela. – Posso me candidatar? Ele tornou a ler o papel. – Você tem um currículo? Alguma referência? – Tenho as duas coisas – respondeu ela sem hesitar, levando a mão à bolsa e sacando um currículo de aspecto profissional e um passaporte da Estônia. –Agora o senhor sabe quem eu sou. Knight passou os olhos pelos documentos antes de dizer: – Vamos fazer o seguinte. Aqueles ali são meus filhos. Luke está no escorrega e Isabel, na caixa de areia. Apresente-se a eles. Enquanto isso, vou ler seu currículo e ligar para pegar referências. Knight queria ver como os filhos iriam interagir com Marta, uma pessoa que nunca tinham visto antes. Os dois já haviam se rebelado contra tantas babás que ele não queria ter o trabalho de ligar para pedir referências se Marta e os gêmeos não se dessem bem. Por mais que precisasse desesperadamente de alguém para cuidar dos filhos, o esforço não valeria a pena se não houvesse empatia. Para sua surpresa, porém, Marta se aproximou de Isabel, a mais cínica dos dois, e conseguiu conquistá-la quase imediatamente, ajudando-a a construir um castelo de areia com tanto entusiasmo que Luke logo saiu do escorrega para se juntar a elas. Em apenas três minutos, Marta já tinha conseguido fazer Luke Knight, o grande mordedor que aterrorizava Chelsea, dar risadas e encher baldinhos de areia. Ao ver os filhos se renderem com tanta facilidade aos encantos de Marta, Knight leu o currículo com atenção. Ela era estoniana, tinha 30 e poucos anos e se formara na Universidade Americana de Paris. Nos últimos dois anos de curso e durante seis anos depois de se formar, havia trabalhado como babá para duas famílias parisienses. Os nomes e telefones das antigas patroas estavam indicados no currículo. Marta também falava inglês, francês, estoniano e alemão e fora aceita no programa de pós-graduação em fonoaudiologia da City University, em Londres, para o
ano letivo de 2014. Sob muitos aspectos, ela personificava as várias mulheres instruídas que tinham se mudado para Londres nos últimos tempos: dispostas a aceitar empregos abaixo de suas qualificações para morar e ganhar a vida na cidade mais incrível do mundo. Que sorte a minha, pensou Knight. Tirou o celular do bolso e começou a ligar para as referências enquanto pensava: Por favor, Deus, permita que isso seja verdade. Por favor, permita que alguém atenda o... Petra DeMaurier atendeu quase na mesma hora, falando francês. Knight se apresentou e perguntou se ela falava inglês. Reticente, ela respondeu que sim. Porém, quando ele lhe disse que estava pensando em contratar Marta Brezenova como babá, a voz da mulher se tornou efusiva e ela começou a elogiar Marta e a dizer que a moça fora a melhor babá que seus filhos tiveram – paciente, carinhosa, mas firme quando necessário. – Por que ela parou de trabalhar para a senhora? – quis saber Knight. – Meu marido foi transferido para o Vietnã por dois anos – respondeu a mulher. – Marta não quis ir conosco, mas seu desligamento foi muito amigável. É um homem de sorte por tê-la trabalhando para o senhor. A segunda referência, Teagan Lesa, foi igualmente positiva: – Quando Marta foi aceita na pós-graduação em Londres, quase chorei. Meus três filhos choraram, inclusive Stephan, que em geral é meu homenzinho corajoso. Se eu fosse o senhor, contrataria Marta antes que outra pessoa o faça. Melhor ainda: diga a ela para voltar a Paris. Vamos recebê-la de braços abertos. Depois de encerrar as ligações, Knight passou vários instantes pensando. Sabia que deveria conferir as informações junto às universidade em Londres e em Paris, mas, na melhor das hipóteses, só conseguiria fazer isso na segunda-feira. Então teve uma ideia. Hesitou um pouco, mas em seguida ligou outra vez para Elaine Pottersfield. – Você desligou na minha cara – reclamou ela. – Tive que desligar – disse Knight. – Preciso que você verifique para mim um passaporte da Estônia. – De jeito nenhum – rebateu Elaine. – É para os gêmeos, Elaine – disse Knight em tom de súplica. – Surgiu a oportunidade de contratar uma babá que parece ótima. Eu só queria me certificar, mas durante o fim de semana não tenho como fazer isso. Seguiu-se um longo silêncio e então Elaine perguntou: – Qual é o número do passaporte? Knight ditou o número e ouviu a investigadora-chefe da Scotland Yard digitá-lo do outro lado da linha. Enquanto isso, viu Marta subir no escorrega com Isabel no colo. Sua filha no escorrega? Aquilo era inédito. As duas deslizaram pelo brinquedo e apenas um traço de medo se estampou no rosto de Isabel antes de ela começar a bater palmas. – Marta Brezenova – disse Elaine. – Um tanto comum, hein?
– O que você esperava? Uma supermodelo fazendo bico de babá? – É, acho que não – admitiu a investigadora-chefe. – Ela chegou no Reino Unido de Paris, de avião, 10 dias atrás. Entrou com um visto de estudante emitido pela City University. – Programa de pós-graduação em fonoaudiologia – disse Knight. – Obrigado, Elaine. Fico devendo essa. Enquanto ouvia Luke soltar uma risada estridente, desligou e viu os gêmeos correndo no meio do trepa-trepa com Marta em seu encalço fingindo que era um monstro e rindo feito uma louca. Você não é lá muito bonita, pensou Knight. Mas, obrigado, Deus. Está contratada.
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Segunda-feira, 30 de julho de 2012.
NO INÍCIO DA TARDE BILLY Casper, investigador da Polícia Metropolitana, olhou para Knight com uma expressão desconfiada e falou: – Não acho adequado você ter acesso, mas Elaine queria que visse com seus próprios olhos. Então pode subir. Segundo andar. Porta da direita. Knight subiu a escada. Estava totalmente concentrado na investigação desde que Marta Brezenova tinha aparecido. Aquela mulher era um milagre. Em menos de dois dias tinha enfeitiçado seus filhos. Os gêmeos estavam mais limpos, bem-comportados e felizes. Ele chegara até a ligar para a City University para confirmar as informações. Não havia dúvida: Marta Brezenova fora mesmo aceita no programa de fonoaudiologia. Não precisara se dar o trabalho de ligar para a Universidade Americana de Paris. Esse aspecto de sua vida parecia finalmente resolvido. Chegara até a telefonar para a agência que tinha oferecido uma babá temporária para cancelar o pedido. Agora, Elaine Pottersfield estava à sua espera na porta do apartamento de Selena Farrell. – Alguma coisa? – indagou ele. – Muitas, na verdade. Ela o fez calçar luvas e protetores de sapatos e conduziu-o para dentro do apartamento. Uma unidade inteira especializada em cena do crime da Scotland Yard e peritos do MI5 estavam virando o lugar do avesso. Knight e Elaine entraram no quarto da professora. Chamava atenção uma imensa penteadeira com três espelhos e várias gavetas abertas repletas de todo tipo de produto de beleza – uns 20 batons diferentes, um número equivalente de vidros de esmalte e diversos itens de maquiagem. A Dra. Farrell? Aquilo não combinava com a professora que ele e Karen Pope tinham conhecido na universidade. Knight correu os olhos pelo quarto e viu os armários abertos, recheados de roupas femininas elegantes e caras. Selena Farrell era uma fashionista secreta ou algo assim? Antes que ele conseguisse expressar sua incompreensão, Elaine gesticulou para um arquivo no canto do quarto, atrás de um perito em criminalística que examinava um laptop em cima da penteadeira. – Encontramos vários escritos criticando a destruição que os jogos causaram no East End e na região das Docklands, incluindo diversas cartas cheias de raiva
endereçadas a Denton... – Investigadora? – interrompeu o perito, animado. – Acho que consegui! Elaine arqueou as sobrancelhas. – O quê? O perito apertou uma tecla do laptop e uma lúgubre melodia de flauta começou a tocar – a mesma que havia ecoado pelo estádio olímpico na noite em que Paul Teeter fora envenenado, a mesma que soava do cartão que acompanhava a primeira carta de Cronos. – O que tem no laptop? – indagou Knight. – Parte de um arquivo executável simples criado para tocar a música e para exibir isto aqui. O perito virou o computador para mostrar a eles as três palavras centralizadas no monitor: Vergonha olímpica revelada!
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Terça-feira, 31 de julho de 2012.
COM TOUCA E MÁSCARA CIRÚRGICAS, um avental de borracha comprido e luvas de borracha que vão até os cotovelos, como as usadas nos abatedouros, ponho cuidadosamente a terceira carta dentro de um envelope endereçado a Karen Pope. Mais de 72 horas já se passaram desde que matamos aquele monstro do Teeter e o frenesi inicial que provocamos na mídia global já arrefeceu, porque os jogos de Londres prosseguiram e atletas ganharam medalhas de ouro. No sábado, dominávamos praticamente todos os noticiários de TV e toda a cobertura da imprensa escrita relativa à cerimônia de abertura. No domingo, as matérias sobre a ameaça que constituíamos foram mais curtas e focaram nos esforços dos órgãos de segurança pública para entender como o sistema de computadores tinha sido hackeado. Houve também uma cobertura insignificante da homenagem póstuma que os atletas norte-americanos improvisaram para Teeter, aquele porco imundo. Ontem, fomos mencionados em notícias que afirmavam que, exceto pelo assassinato de Teeter, os Jogos Olímpicos de 2012 estavam correndo sem problemas. Hoje de manhã nem sequer aparecemos na primeira página, que foi dominada pela revista do apartamento de Selena Farrell e de seu escritório na universidade, onde haviam sido encontradas provas conclusivas de seu envolvimento com os assassinatos perpetrados por Cronos. Também havia matérias informando que a Scotland Yard e o MI5 tinham dado início a uma caçada a nível nacional pela especialista em Antiguidade Clássica. De certa forma, essa é uma notícia preocupante, mas não chega a ser inesperada. Assim como não é inesperado que mais uma ou duas mortes tenham que acontecer para destruir os jogos olímpicos modernos. Sei disso desde a noite em que Londres foi escolhida para sediar os jogos. Minhas irmãs e eu tivemos sete anos para elaborar nosso complexo plano de vingança; sete anos para criar um número suficiente de pistas falsas a fim de manter a polícia dividida e no escuro, incapaz de prever nosso objetivo final antes que seja tarde demais. Ainda de avental e luvas, ponho o envelope dentro de um saco plástico e o entrego a Petra. Ela está de pé ao lado de Teagan, ambas disfarçadas de modo a ficarem gordas e irreconhecíveis para qualquer um que não eu ou sua irmã mais velha. – Não se esqueçam da maré – digo. Petra não responde e desvia os olhos de mim, como se enfrentasse algum tipo de conflito interno. O movimento faz nascer uma inquietação dentro de mim.
– Não vamos esquecer, Cronos – diz Teagan, pondo um par de óculos escuros por baixo do boné oficial de voluntária das Olimpíadas que está usando. – Tudo bem com você, irmã? – pergunto, me aproximando de Petra. Há conflito em seus olhos, mas ela assente. Dou-lhe um beijo na bochecha e me viro para Teagan, minha guerreira fria. – E a fábrica? – indago. – Hoje de manhã – responde ela. – Comida e remédios suficientes para quatro dias. Dou-lhe um abraço e sussurro em seu ouvido: – Fique de olho na sua irmã. Ela é impulsiva. Quando nos separamos, o rosto de Teagan não exibe expressão alguma. Tiro o avental e as luvas e observo as irmãs irem embora. Então minha mão se move até a cicatriz em forma de caranguejo na parte de trás da minha cabeça. Quando a coço, o ódio se acende quase no mesmo instante e sinto um desejo profundo de poder ser uma daquelas duas mulheres esta noite. Para me consolar, porém, lembro a mim mesmo que a derradeira vingança será minha, só minha. O celular descartável toca dentro do meu bolso. É Marta. – Consegui grampear o celular de Knight antes de ele sair para o trabalho – informa ela. – Quando as crianças dormirem, entro no computador da casa. – Ele deu folga para você hoje? – Eu não pedi. Se aquela vaca imbecil estivesse na minha frente, juro que iria torcer seu lindo pescocinho. – Como assim, não pediu? – pergunto com a voz tensa. – Relaxe – diz ela. – Vou estar exatamente onde devo, na hora certa. As crianças estarão dormindo. Não vão nem perceber que eu saí. Nem elas, nem Knight. Ele me disse que só retornaria por volta da meia-noite. – Como você pode ter certeza de que os pirralhos vão estar dormindo? – O que você acha? Vou dopá-los.
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MUITAS HORAS DEPOIS, NO COMPLEXO aquático dentro do Parque Olímpico, a americana Hunter Pierce saltou da plataforma de 10 metros com um mortal para trás. Desceu girando pelo ar com cheiro de cloro e executou dois parafusos antes de furar a água com uma batida seca que praticamente nem chegou a encrespar a superfície da piscina. Knight vibrou junto com a multidão que lotava as arquibancadas, batendo palmas e assoviando. Mas ninguém comemorou mais do que os três filhos da atleta – um menino e duas meninas. Sentados na primeira fila, eles bateram com os pés no chão e ergueram os punhos fechados para a mãe quando ela emergiu da água com um largo sorriso estampado no rosto. Aquele era o quarto salto de Hunter – o melhor de todos, na avaliação de Knight. Depois de saltar três vezes, ela estava em terceiro lugar, atrás de uma sul-coreana e de uma panamenha. Surpreendentemente, as chinesas só tinham conseguido os quarto e quinto lugares. Ela está no páreo, pensou Knight. Deve sentir que está. Ele estava de pé na entrada localizada na extremidade do estádio oposta à plataforma de 10 metros, observando os espectadores e a competição. Permanecera ali por boa parte das duas horas anteriores. Quase quatro dias haviam se passado desde a morte de Teeter – quatro dias sem nenhum outro ataque – e um desde que haviam encontrado no computador de Selena Farrell o software criado para hackear e controlar o placar eletrônico do estádio olímpico. Todos diziam que estava tudo acabado. Capturar a professora louca era apenas uma questão de tempo. A investigação não passava de uma caçada. Mesmo assim, Knight temia que houvesse outra morte. Estudava a agenda olímpica tarde da noite, tentando prever onde Cronos poderia voltar a atacar. Imaginou que seu alvo seria algum lugar importante, com forte cobertura da mídia, como era o caso do parque aquático onde Hunter Pierce tentava se tornar a mulher mais velha a vencer a competição de salto ornamental de plataforma. A americana saiu da piscina, pegou uma toalha e correu para bater nas mãos espalmadas dos filhos antes de seguir para a Jacuzzi, a fim de manter os músculos relaxados. Antes de chegar lá, um rugido ecoou quando suas notas piscaram no placar: só oito e nove. A americana acabara de pôr as mãos na medalha de prata. Knight tornou a aplaudir, dessa vez com mais energia. Os jogos de Londres precisavam de uma história inspiradora que compensasse a sombra lançada por Cronos, e essa história bem poderia ser a de Hunter. A atleta estava desafiando a própria idade, as estatísticas e os assassinatos. De fato, havia se tornado uma espécie de porta-voz da delegação americana, condenando Cronos após a morte de Teeter. E
agora estava ali, com chances de conquistar o ouro olímpico. Que sorte a minha estar aqui, pensou Knight. Apesar de tudo, tenho muita sorte, principalmente por ter encontrado Marta. A babá era uma dádiva dos céus. Com ela, seus filhos pareciam crianças diferentes, como se Marta fosse o flautista de Hamelin. Luke estava até falando em usar o “banheiro de menino grande”. E a babá era muito profissional. A casa nunca estivera tão organizada e limpa. De modo geral, era como se um enorme peso tivesse sido tirado dos ombros de Knight, deixando-o livre para caçar o louco que ameaçava as Olimpíadas. Ao mesmo tempo, porém, sua mãe começara a demonstrar seu antigo comportamento pré-Denton Marshall. Decidira fazer uma homenagem póstuma ao noivo após os jogos e então mergulhara no trabalho. Sempre que Knight falava com ela, ouvia amargura em sua voz. – Você atende o celular de vez em quando, Knight? – reclamou Karen Pope. Knight sobressaltou-se e ergueu os olhos, surpreso por ver a jornalista de pé ao seu lado na entrada do parque aquático. – Para falar a verdade, meu telefone tem andando ruim – disse ele. Era verdade. Desde a véspera um estranho chiado de estática vinha atrapalhando as chamadas de Knight, mas ele não tivera tempo de mandar consertar o aparelho. – Então arrume outro – disse Karen, ríspida. – Estou sendo pressionada para escrever matérias e preciso da sua ajuda. – Acho que você está se saindo muito bem por conta própria – retrucou Knight. Era verdade: além da matéria sobre os arquivos encontrados no computador da casa de Selena Farrell, Karen havia publicado um texto detalhando os resultados da autópsia de Teeter: o atleta tinha ingerido um coquetel não de veneno, mas de remédios destinados a aumentar radicalmente a pressão sanguínea e o ritmo cardíaco, o que provocou uma hemorragia da artéria pulmonar. Isso explicava a espuma ensanguentada que Knight vira em sua boca. Na mesma matéria, a jornalista havia conseguido um furo de Mike Lancer, explicando como Selena Farrell devia ter identificado uma falha no sistema de tecnologia das Olimpíadas que lhe proporcionara uma porta de entrada para o servidor e para o placar eletrônico do estádio. Segundo Lancer, a falha havia sido localizada e reparada, e todos os voluntários estavam passando por uma verificação mais rigorosa. Lancer também revelou que as câmeras de segurança tinham filmado uma mulher com o uniforme de Mestre dos Jogos entregando uma garrafa d’água a Teeter pouco antes do desfile das delegações. No entanto, como ela usava o boné distribuído aos voluntários, seu rosto não podia ser identificado. – Por favor, Knight – implorou Karen. – Preciso de alguma coisa. – Você sabe mais do que eu – respondeu ele, ao mesmo tempo que via a atleta panamenha que estava em terceiro lugar exagerar na rotação em seu último salto, o que
lhe custou pontos importantes. Então foi a vez de a sul-coreana que estava em primeiro lugar tropeçar. Sua saída não teve impulso suficiente e isso afetou toda a trajetória do salto, resultando em uma nota medíocre. O caminho agora estava livre para Hunter. Knight não conseguiu desgrudar o binóculo da médica americana quando ela começou a subir até o alto da plataforma para seu quinto e último salto. Karen deu-lhe um cutucão e disse: – Alguém me contou que a investigadora-chefe Elaine Pottersfield é sua cunhada. Você deve saber coisas que eu não sei. – Elaine só fala comigo em caso de extrema necessidade – disse Knight, baixando o binóculo. – Por quê? – perguntou a jornalista, cética. – Porque ela acha que sou responsável pela morte da minha mulher.
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KNIGHT VIU HUNTER CHEGAR AO alto da plataforma e em seguida olhou para Karen, que estava chocada. – E você é? Responsável? – perguntou ela. Knight deu um suspiro. – Kate teve problemas durante a gravidez, mas quis ter um parto natural em casa. Eu sabia quais eram os riscos... nós dois sabíamos... mas acatei a decisão dela. Se estivesse no hospital, ela não teria morrido. Vou ter que encarar isso pelo resto da vida, porque Elaine nunca me deixará esquecer. A confissão de Knight deixou a jornalista ao mesmo tempo confusa e entristecida. – Alguém já disse que você é um cara complicado? Ele não respondeu. Estava enfeitiçado por Hunter, rezando para que ela conseguisse. Nunca tinha sido um grande fã de esportes, mas aquilo lhe parecia... bem, por algum motivo parecia muito importante. Ali estava ela, aos 38 anos, viúva e mãe de três filhos, prestes a dar o quinto e último salto, o mais difícil de seu repertório. O que estava em jogo: o ouro olímpico. Hunter parecia calma enquanto recuperava o fôlego e dava dois passos rápidos até a borda da plataforma. Então projetou-se da borda com um salto carpado para a frente e para cima. Deu um mortal para trás em direção à plataforma, um parafuso e, por fim, mais duas cambalhotas para a frente antes de atingir a água. A multidão foi ao delírio. Os filhos da atleta começaram a dançar e se abraçar. – Ela conseguiu! – gritou Knight, sentindo lágrimas lhe encherem os olhos. Estava confuso: por que aquilo o deixava tão emocionado? Não soube responder a essa pergunta, mas ficou todo arrepiado ao ver Hunter correr para os filhos em meio aos aplausos que se tornaram ensurdecedores quando as notas apareceram no placar, confirmando que ela conquistara a medalha de ouro. – Tudo bem, ela ganhou – disse Karen, impaciente. – Por favor, Knight. Ajude uma moça necessitada. Knight estava de cara feia quando sacou o telefone do bolso. – Tenho uma cópia da lista completa dos objetos encontrados na casa e no escritório de Selena Farrell. Os olhos da jornalista se arregalaram. – Obrigada, Knight. Fico lhe devendo essa. – Não há de quê. – Quer dizer que acabou mesmo... – disse ela, com mais do que um traço de tristeza na voz. – Daqui em diante é só uma caçada. Com a segurança reforçada, seria impossível Selena Farrell atacar outra vez. Não é?
Knight assentiu enquanto observava Hunter abraçar os filhos, sorrindo em meio às lágrimas, e sentiu uma satisfação intensa. O desempenho da americana havia proporcionado algum tipo de equilíbrio. É claro que outros atletas também tinham demonstrado uma superação notável naqueles quatro dias de competição. Um nadador australiano que havia quebrado a perna direita no ano anterior ganhara o ouro na disputa dos 400 metros livres. Um boxeador peso-mosca da Nigéria, criado na mais absoluta miséria, com longos períodos de desnutrição, conseguira desenvolver um coração de leão que lhe permitiu ganhar suas duas primeiras lutas com nocautes no primeiro round. Mas a história de Hunter e seu desafio aberto a Cronos pareciam ecoar e ampliar o que continuava a ter valor nos jogos olímpicos modernos. A médica havia conseguido produzir algo belo em condições terrivelmente adversas. Tinha superado a morte de Teeter e vencido. Graças a ela, os jogos não pareciam mais conspurcados. Pelo menos para Knight. Então seu celular tocou. Era Hooligan. – E aí, cara, o que você sabe que eu não sei? – perguntou Knight animado, fazendo Karen dar um sorriso de sarcasmo. – Sabe aquelas células epidérmicas que estavam na segunda carta? – disse Hooligan, parecendo abalado. – Passei três dias sem conseguir nenhuma identificação. Mas então, graças a um velho amigo do MI5, acessei um banco de dados da Otan em Bruxelas e a amostra bateu... de um jeito que me deixou tonto. A felicidade provocada pela vitória de Hunter desapareceu e Knight virou as costas para Karen ao mesmo tempo que dizia: – Pode falar. – O DNA corresponde a uma amostra de cabelo coletada em meados dos anos 1990 num exame para detectar o uso de drogas. O exame foi feito em candidatos a vagas de consultores na força de paz da Otan enviada aos Bálcãs para garantir o cumprimento do cessar-fogo. Knight não entendeu direito. Selena Farrell estivera nos Bálcãs em algum momento da década de 1990. Mas, segundo Hooligan, a análise inicial indicara que as células contidas na segunda carta de Cronos pertenciam a um homem. – De quem é o DNA? – indagou Knight. – Do Indiana Jones – respondeu Hooligan, soando muito decepcionado. – Da porra do Indiana Jones.
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A OITO QUILÔMETROS DO PARQUE AQUÁTICO, em Greenwich, Petra e Teagan caminhavam sob um céu de chumbo em direção ao portão de segurança da arena O2, uma estrutura ultramoderna com telhado em forma de cúpula, que ficava centenas de metros ao sul do rio Tâmisa. A cúpula era perfurada e sustentada por vigas amarelas. Situada na extremidade norte de uma península, a arena O2 costuma ser palco de shows e grandes montagens teatrais. Para as Olimpíadas, porém, fora transformada em um ginásio e rebatizada de arena de North Greenwich. Petra e Teagan usavam uniformes oficiais de Mestres dos Jogos e portavam crachás também oficiais que as identificavam como voluntárias recrutadas e liberadas para o evento mais aguardado da noite: a final de equipes da ginástica feminina. Enquanto avançavam em direção à fila de voluntários e fornecedores que aguardavam para passar pela segurança, Teagan tinha um semblante fechado, concentrado e decidido. Petra, porém, não parecia tão certa e caminhava com um andar hesitante. – Eu já pedi desculpas – disse Petra. – Esse não é um comportamento digno de um ser superior – respondeu Teagan com uma voz gelada. – Estava com a cabeça em outro lugar – retrucou sua irmã. – Onde mais a sua cabeça poderia estar? Este é o momento pelo qual estávamos esperando! Petra hesitou antes de dizer num sussurro: – Esta tarefa não é igual às outras que Cronos nos deu. Parece uma missão suicida. O fim de duas das Fúrias. Teagan parou de andar e lançou à irmã um olhar enraivecido. – Primeiro a carta e agora dúvidas? Petra retesou o corpo. – E se formos pegas? – Isso não vai acontecer. – Mas... Teagan a interrompeu. – Você quer mesmo que eu ligue para Cronos e diga a ele que agora, na última hora, você está deixando tudo nas minhas costas? – perguntou com ironia. – Quer mesmo provocá-lo desse jeito? Petra piscou os olhos e seu rosto então se contorceu, alarmado. – Não, não. Nunca falei nada disso. Por favor. Eu vou... vou cumprir a missão. – Ela se empertigou e passou os dedos pelos cabelos. – Tive um momento de dúvida, só
isso – acrescentou. – Nada sério. Até os seres superiores têm dúvidas, irmã. – Não têm, não – retrucou Teagan. “Impetuosa”. Não fora assim que Cronos havia descrito sua irmã caçula? Parte dessa descrição com certeza era verdade. Petra havia acabado de provar isso, não é? Enquanto as duas esperavam numa calçada próxima ao King’s College, sua única parada a caminho do ginásio, a caçula das Fúrias tinha se esquecido de usar luvas para tirar do bolso a última carta endereçada a Karen Pope. Teagan havia limpado o envelope com um lenço descartável, depois o usara para segurá-lo até poder entregá-lo a um mensageiro com cara de chapado, que mal reparou nelas por causa dos disfarces de gordas. Como se estivesse reagindo à mesma lembrança, Petra ergueu o queixo em direção a Teagan: – Eu sei quem sou, irmã. Sei o que o destino me reserva. Agora tenho certeza disso. Teagan hesitou, mas depois fez um gesto para que Petra fosse na frente. Embora a irmã tivesse dúvidas, tudo o que ela sentia eram ondas de certeza e prazer. Matar um homem com remédios era uma coisa, mas nada se comparava a olhar a vítima nos olhos para mostrar a ela todo o seu poder. Fazia anos que isso não acontecia – desde a Bósnia, para ser exato. O que ela fizera naquela época deveria lhe causar pesadelos, mas não era isso que Teagan sentia. Ela muitas vezes sonhava com os homens e meninos que havia executado depois da morte dos pais e do estupro coletivo. Esses sonhos violentos eram seus favoritos, verdadeiras fantasias que ela gostava de reviver vezes sem conta. Sorriu ao pensar que os atos que iria cometer nessa noite lhe garantiriam um novo sonho por muitos anos, algo para celebrar no escuro, algo a que se agarrar nos momentos difíceis. Por fim, as duas chegaram aos detectores de raios X. Gurkhas de semblante impassível portando armas automáticas ladeavam o posto de controle. Por um instante Teagan temeu que Petra se acovardasse e recuasse diante daquela exibição de força. Sua irmã, contudo, agiu como uma profissional e entregou seu crachá ao segurança, que passou o documento por um leitor óptico e comparou o rosto dela a uma ficha no computador que a identificava como Caroline Thorson. A mesma ficha informava que ela era diabética e que, por isso, tinha autorização para entrar no ginásio com um kit de insulina. O segurança apontou para uma bandeja de plástico cinza. – Ponha o kit de insulina e todos os objetos de metal naquela bandeja. Joias também – instruiu ele, apontando para o anel de prata cheio de furinhos que ela usava. Petra sorriu, tirou o anel e o depositou na bandeja junto com o kit de insulina. Então passou pelo detector de metais sem problemas. Depois de ter seu crachá verificado, Teagan tirou do dedo um anel idêntico ao da
irmã e o pôs na bandeja. – Mesmo anel? – indagou o segurança. Teagan sorriu e fez um gesto na direção de Petra. – Somos primas. Quem nos deu esses anéis foi nossa avó, que adorava as Olimpíadas. Ela morreu no ano passado, coitadinha. Em sua homenagem, estamos usando os anéis em todas as competições nas quais estamos trabalhando. – Que legal – disse o segurança e acenou para ela passar.
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O DEQUE PANORÂMICO DA ORBIT GIRAVA lentamente no sentido horário, proporcionando uma visão em 360 graus do interior do estádio olímpico, onde vários atletas e treinadores inspecionavam a pista, e do parque aquático, de onde Knight acabara de sair. De pé junto ao guarda-corpo do deque, sob um vento fresco que soprava do leste e fazia as nuvens correrem pelo céu de chumbo, Mike Lancer estreitou os olhos e perguntou a Knight: – O cara da televisão? – E curador de antiguidades gregas do Museu Britânico. – A Scotland Yard já sabe? – perguntou Jack. Depois de ligar para Jack e ficar sabendo que ele e Lancer estavam no topo da Orbit, inspecionando o esquema de segurança que protegia a chama olímpica, Knight correra para se juntar a eles. Ao ouvir a pergunta de Jack, assentiu com a cabeça e disse: – Acabei de falar com Elaine Pottersfield. Ela já enviou equipes ao museu e à casa dele. Os três passaram vários minutos sem dizer nada. Tudo em que Knight realmente prestava atenção era no cheiro de gás carbônico liberado pela pira olímpica, acesa no telhado acima deles. – Como podemos ter certeza de que Daring sumiu? – perguntou Jack. – Antes de ligar para Elaine, telefonei para a secretária dele, que me disse que Daring foi visto pela última vez na quinta à noite, por volta das 10 horas, quando saiu da abertura da exposição – respondeu Knight. – Isso deve ter sido umas seis horas após a última vez em que Selena Farrell também foi vista. Lancer balançou a cabeça. – Você já tinha imaginado uma coisa dessas, Peter? Que eles poderiam estar juntos nisso? – Nem cheguei a cogitar essa possibilidade – reconheceu Knight. – Mas os dois trabalharam para a Otan nos Bálcãs na década de 1990 e tinham problemas com os jogos olímpicos modernos. Além disso, os resultados do exame de DNA não mentem. – Agora que sabemos quem eles são, é só uma questão de tempo para serem pegos – disse Lancer. – A menos que consigam atacar outra vez antes disso – comentou Jack. O consultor de segurança do comitê organizador ficou pálido, projetou os lábios para a frente e bufou. Estava preocupado. – Mas onde? Não paro de me perguntar. – Vai ser em algum evento importante – disse Knight. – Eles mataram durante a
cerimônia de abertura para que fossem vistos pelo mundo inteiro. – Tudo bem, então qual é o próximo evento importante? – perguntou Knight. Lancer deu de ombros. – O que tem chamado mais atenção são as provas de atletismo. Milhões de pessoas se candidataram a um lugar no estádio para a noite do próximo domingo, quando acontece a final dos 100 metros rasos masculinos, por causa da chance de um duelo entre Zeke Shaw e Filatri Mundaho. – E entre hoje e amanhã? Qual é o ingresso que todos querem? – perguntou Knight. – Deve ser para a final da ginástica feminina – respondeu Jack. – Pelo menos nos Estados Unidos, esse é o evento de maior audiência na televisão. Lancer olhou de esguelha para o relógio e reagiu como se houvesse acabado de ter uma crise de azia. – A final feminina por equipes começa em menos de uma hora. Sentindo a angústia dominá-lo, Knight falou: – Se eu fosse Cronos e quisesse fazer alarde, meu próximo alvo seria a ginástica feminina. Com uma careta, Lancer começou a andar em direção ao elevador. – Detesto dizer isso, Peter, mas acho que talvez você tenha razão. – Qual é o jeito mais rápido de chegar à arena olímpica? – perguntou Jack, seguindo depressa o consultor do comitê organizador. – Pelo túnel de Blackwall – respondeu Knight. – Não – disse Lancer. – A Scotland Yard fechou o túnel durante os jogos para evitar um possível atentado com carro-bomba. Vamos de ônibus-barco pelo rio.
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DEPOIS DE SE APRESENTAR AOS supervisores de Petra, as duas irmãs identificaram os lugares da plateia pelos quais ela ficaria responsável. Localizavam-se do lado norte do ginásio, na parte baixa das arquibancadas, bem junto ao lugar onde seriam realizadas as provas de salto. Teagan deixou a irmã ali e foi até o camarote no qual deveria trabalhar como garçonete. Lá, disse ao seu chefe de equipe que iria dar um pulo no toalete e voltaria em seguida. Petra estava à sua espera no banheiro. Elas entraram em dois cubículos vizinhos. Teagan abriu o dispenser de protetores de assento de seu cubículo e pegou duas finas latinhas verdes de CO2 e duas pinças de plástico que tinham sido presas lá dentro com fita adesiva. Guardou uma das latinhas e uma das pinças e passou as outras por baixo da divisória entre os cubículos. Petra, por sua vez, entregou a Teagan dois minúsculos dardos que não tinham nem o comprimento de um ferrão de abelha, cujos estabilizadores de plástico em miniatura estavam colados a finas agulhas de insulina e presos a um pedacinho de fita adesiva. Em seguida, Petra passou para a irmã um pedaço de tubo de plástico transparente de 15 centímetros, com pequenas roscas de metal em ambas as pontas. Teagan tirou o anel que usava no dedo e prendeu a rosca macho do tubo em um dos furinhos de prata na parte interna dele. Satisfeita com o encaixe, desenroscou o tubo e enrolou-o para trás, até onde havia prendido a latinha de CO2. Usou uma fita adesiva para prender a latinha e o tubo de gás enrolado ao próprio antebraço, e então recolocou o anel no dedo. Mal havia terminado a sua parte quando Petra passou a ampola do kit de insulina por baixo da divisória. Teagan usou a pinça para pegar um dos dardos e usou a ponta para perfurar a tampa de borracha da ampola até esta encostar no líquido, retirou-o, e encaixou-o de costas em um minúsculo furinho de seu anel, do lado oposto ao da conexão de gás. Depois de mergulhar o segundo dardo em miniatura, soprou-o com cuidado até o líquido secar, em seguida prendeu-o com muita delicadeza na lapela do uniforme, para o caso de precisar dar um segundo tiro. Com muita cautela, abaixou a manga da blusa antes de dar a descarga e sair do compartimento. Petra apareceu quando Teagan estava lavando as mãos. Deu um sorriso hesitante para a irmã mais velha, mas em seguida sussurrou: – Mire duas vezes. – Atire uma só – disse Teagan, pensando que aquilo já parecia parte de um sonho. – Está com as suas abelhas?
– Estou.
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SOB A CHUVA FINA, UMA névoa atípica para a estação subia do Tâmisa e vinha de encontro ao ônibus-barco que passava a toda a velocidade pela Isle of Dogs em direção à península de Greenwich e ao píer Rainha Elizabeth II. A embarcação estava lotada de espectadores retardatários com ingressos para as finais da ginástica por equipes, marcadas para começar em poucos minutos. Mas Knight não estava prestando atenção nos outros passageiros. Ele olhava para a frente, para a cúpula muito iluminada da arena O2 que se aproximava. Tinha a forte sensação de que aquele poderia ser o cenário do próximo ataque de Selena Farrell e Daring. Ao seu lado, Lancer falava sem parar ao telefone, explicando que estava a caminho com reforços para o esquema de segurança e ordenando que a equipe operasse em alerta máximo. Já havia ligado para a Unidade de Policiamento Marítimo da Scotland Yard e fora informado de que havia um barco-patrulha ancorado junto aos fundos da arena. – Olhe a patrulha ali – disse Jack, enquanto eles contornavam a ponta da península, apontando para o sul, onde uma embarcação grande, rígida e inflável, equipada com dois motores de popa, flutuava em meio à bruma. De pé no barco, cinco agentes de capa de chuva preta segurando armas automáticas os viram chegar. Um sexto agente, uma mulher de roupa de mergulho, pilotava um jet ski preto ultrassilencioso que acompanhou o ônibus até o cais. – Essas embarcações são específicas para combater ataques terroristas, especialmente aquele jet ski – disse Jack, admirado. – Sem chance de alguém chegar ou sair pela água com esse pessoal por perto. Em terra, a segurança em torno da arena estava igualmente reforçada. O ginásio era rodeado por cercas de três metros de altura junto às quais gurkhas armados postavam-se a cada 50 metros. O procedimento de revista na entrada era muito rígido. Uma longa fila de pessoas ainda aguardava para ser liberada. Sem Lancer, eles teriam precisado de pelo menos meia hora para passar pelos detectores. Mas o consultor do comitê conseguiu colocá-los para dentro em menos de cinco minutos. – O que estamos procurando? – perguntou Knight enquanto aplausos vindos do portão de entrada à sua frente se faziam ouvir e uma voz de mulher no sistema de altofalantes anunciava a primeira rodada das finais femininas por equipes. – Qualquer coisa fora do normal – respondeu Lancer. – Quanto tempo faz que os cachorros vasculharam o ginásio? – perguntou Jack. – Três horas – informou Lancer. – Eu os traria de volta – recomendou Jack enquanto os três entravam. – Estão
monitorando o serviço de telefonia celular? – O sinal foi cortado – disse Lancer. – Achamos que era mais simples assim. Enquanto o chefe da segurança do comitê organizador dava ordens pelo rádio para chamar de volta os cães farejadores, Knight e Jack varreram o ginásio com os olhos e detectaram equipes enfileiradas junto a cada aparelho de ginástica. As chinesas estavam na extremidade sul do ginásio, preparando-se para competir nas barras assimétricas. Atrás delas, as russas se alongavam junto à trave de equilíbrio. A equipe do Reino Unido, que tinha se saído surpreendentemente bem na etapa classificatória, graças às corajosas apresentações da ginasta-estrela Nessa Kemp, estava se organizando junto ao tatame das apresentações de solo. Na outra ponta da arena, as americanas se preparavam para o salto. Seguranças, muitos dos quais também eram gurkhas, espalhavam-se por vários pontos do ginásio, de costas para as atletas, para que pudessem vigiar o público sem qualquer distração. Knight concluiu que um ataque a um dos atletas no chão do ginásio era praticamente impossível. Mas e a segurança nos vestiários? Ou no caminho de ida e volta da vila olímpica? Será que o próximo alvo era mesmo um atleta?
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ÀS 18H15 DAQUELA TERÇA-FEIRA, A última ginasta chinesa terminou sua apresentação saltando da trave de equilíbrio e aterrissando de pé praticamente sem vacilar. Os espectadores reunidos no camarote VIP da Associação Chinesa de Ginástica, bem no alto da arena, soltaram urros de alegria. Faltando apenas uma rodada, sua equipe ia conquistando uma bela vitória. Surpreendendo a todos, as britânicas estavam em segundo lugar, enquanto as americanas seguiam firme no terceiro. As russas haviam decepcionado e estavam em quarto. Em meio as comemorações, Teagan pousou a bandeja de bebidas no balcão e propositalmente deixou uma caneta cair no chão. Agachou-se e, em poucos segundos, fez o gás começar a correr pelo fino tubo enrolado em seu pulso, subindo pela palma da mão e pelo dedo mindinho, até por fim ir se prender a parte de trás do anel. Ela então se levantou e sorriu para o barman. – Vou recolher alguns copos. Ele parou o que estava fazendo, assentiu e voltou a servir o vinho. Quando a equipe chinesa foi se posicionar na área do salto, todos os sentidos de Teagan estavam em alerta máximo. Ela atravessou o camarote lotado em direção a uma mulher atarracada de terninho cinza que assistia de um canto. Seu nome era Win Bo Lee, a presidente do comitê nacional da Associação Chinesa de Ginástica. A seu modo, era tão corrupta quanto Paul Teeter e Sir Denton Marshall tinham sido antes de morrer. Cronos tinha razão, pensou Teagan. Gente como Win Bo Lee merecia ser desmascarada e morta. Enquanto se aproximava da mulher, Teagan manteve o braço direito abaixado junto à cintura, ao mesmo tempo que enfiava a mão esquerda no bolso do uniforme e tateava algo pequeno e áspero. Quando a distância entre ela e Win Bo Lee era de mais ou menos meio metro, Teagan ergueu a mão num movimento rápido e, com o dedo mindinho, pressionou a lateral direita do anel. Com um ruído de ar sendo expelido, inaudível por causa das conversas no camarote, o minúsculo dardo saiu voando e atingiu Win Bo Lee na parte de trás do pescoço. Ela tomou um susto e falou um palavrão. Tentou levar a mão à nuca, mas, antes que conseguisse fazer isso, Teagan deu-lhe um tapa bem ali, fazendo o dardo se soltar e cair no chão. Então esmagou-o com o sapato. Win Bo Lee virou-se com uma expressão zangada e fixou em Teagan um olhar furioso. A garçonete a fitou bem fundo nos olhos, saboreando aquela expressão, gravando-a na memória, e então disse: – Matei. Agachando-se antes que a chinesa conseguisse responder, fingiu catar alguma
coisa com a mão esquerda. Então se levantou e mostrou a Win Bo Lee uma abelha morta. – É verão – disse ela. – Elas sempre dão um jeito de entrar. Win Bo Lee encarou primeiro a abelha e depois Teagan, parecendo mais calma, e falou: – Você é rápida, mas não tanto quanto essa abelha. Ela me picou! – Mil desculpas – disse Teagan. – Quer um pouco de gelo? A presidente da Associação Chinesa de Ginástica fez que sim com a cabeça enquanto levava a mão ao pescoço para massageá-lo. – Vou buscar – disse Teagan. Ela recolheu os copos vazios da mesa, encarou Win Bo Lee uma última vez e então foi deixar os copos no bar. Ao se dirigir para a saída sem intenção de voltar, Teagan já reproduzia na mente cada instante de seu silencioso ataque, como se esse fosse o vídeo em câmera lenta de uma notícia importante.
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EU SOU SUPERIOR, DISSE PETRA a si mesma enquanto caminhava junto ao guarda-corpo da área das provas de salto, indo em direção ao gurkha de bigode preto e fino. Não sou como eles. Sou uma arma de vingança, uma arma de purificação. Carregando uma pilha de toalhas que escondia seu braço direito, sorriu para o gurkha e disse: – São para a estação de salto. O segurança assentiu. Era a terceira vez que aquela gorda levava toalhas para lá, por isso ele nem se deu o trabalho de verificá-las. Eu sou superior, repetia Petra para si mesma sem parar. Então, exatamente como durante o estupro e os assassinatos, quando era mais nova, tudo pareceu começar a se mover de um jeito estranhamente silencioso e lento. Nesse estado alterado, ela detectou sua presa: um homem franzino vestido com um casaco de moletom vermelho com zíper na frente e uma calça branca, que começava a andar de um lado para outro enquanto a primeira chinesa ajustava a mola e se preparava para saltar. Gao Ping, o treinador da equipe feminina de ginástica da China, era conhecido por andar para lá e para cá durante as competições importantes. Petra já o vira fazer isso em vários vídeos que havia estudado. Extrovertido e cheio de energia, Ping gostava de incentivar suas atletas a ter desempenhos grandiosos. Era também um treinador que cometera vários crimes contra o ideal olímpico, selando assim o próprio destino. Sua assistente, An Wu – tão criminosa quanto Ping –, havia se sentado, mostrando-se impassível na mesma medida que o chefe estava agitado. An Wu era um alvo mais fácil do que o treinador, que estava sempre em movimento. Mas Cronos tinha sido claro ao ordenar que Petra matasse Ping primeiro e, apenas se tivesse chance, atacasse a assistente. Petra diminuiu o passo para acertar seu ritmo com o de Ping. Entregou as toalhas para outro Mestre dos Jogos, passando-as por cima do guarda-corpo que a separava da área dos atletas, e posicionou-se alguns passos para o lado do treinador chinês que, curvado, incentivava sua atleta miúda a fazer uma excelente apresentação. A primeira chinesa correu em direção ao cavalo. Ping deu dois passinhos saltitantes atrás dela e parou bem na frente de Petra, a apenas dois metros e meio de distância. Petra pousou a mão no guarda-corpo, com os olhos cravados no pescoço do treinador. Quando a ginasta chinesa pisou na mola para pegar impulso e saltar, ela disparou. Eu sou um ser superior, pensou quando o dardo acertou Ping. Sob todos os aspectos.
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O TREINADOR CHINÊS DEU UM TAPA na própria nuca logo antes de sua atleta aterrissar fazendo a plateia vibrar. Com uma careta, Ping olhou em volta, espantado com o que havia acontecido. Então livrou-se do ferrão e saiu correndo, batendo palmas, em direção à ginasta, que, radiante, sacudia as mãos acima da cabeça. – Essa menina garantiu a vitória – disse Jack. – Ah, é? – perguntou Knight, baixando o binóculo. – Eu estava olhando Ping. Ele viu o treinador chinês esfregar o pescoço novamente antes de recomeçar seu ritual histriônico enquanto a atleta seguinte se preparava para saltar. – Acho que ele levou uma picada – comentou Knight, tornando a erguer o binóculo. – Picada de quê? De inseto? Como conseguiu ver isso daqui? – Não consegui ver nenhum inseto – respondeu Knight. – Mas vi a reação dele. Ouviu Lancer falar no rádio com uma voz tensa atrás de onde eles estavam, conversando com as forças de segurança dentro e fora da arena, detalhando sua ação durante a cerimônia de entrega das medalhas. Knight não estava tranquilo. Com o binóculo, observou o treinador chinês incentivar mais três atletas no salto. Quando a última ginasta correu para saltar, Ping começou a dar pulinhos, como se fosse um dançarino numa cerimônia vodu. Até sua taciturna assistente, An Wu, deixou-se contagiar pela alegria do momento. Com a mão em frente à boca, ela se levantou para ver a última ginasta rodopiar e dar uma cambalhota depois de pular por cima do cavalo. Então, de repente, An Wu deu um tapa na própria nuca. A ginasta fez uma aterrissagem perfeita. A plateia irrompeu em aplausos. As chinesas tinham acabado de ganhar o ouro olímpico. O Reino Unido ficara com a prata – melhor resultado de todos os tempos para uma equipe britânica de ginástica olímpica. Treinadores e atletas de ambos os países comemoravam, assim como os americanos, que tinham conquistado o bronze. Knight tinha consciência de que tudo isso estava acontecendo enquanto usava o binóculo para vasculhar a plateia ruidosa que dava vivas e mirava suas câmeras fotográficas na área de salto. Ping fazia uma dancinha erguendo as pernas bem alto no ar e suas atletas comemoravam com ele. A atenção de quase todos naquela parte do ginásio estava concentrada na vitoriosa equipe chinesa. A única exceção era uma Mestre dos Jogos gorda de cabelos platinados. De costas para a comemoração, ela subia a escada do ginásio a passos apressados e estranhos, afastando-se da área de competição. Então desapareceu na passagem e seguiu em direção aos corredores externos.
Knight sentiu-se subitamente sem ar. Baixou o binóculo e disse para Jack e Lancer: – Tem alguma coisa errada. – O quê? – perguntou Lancer. – Os treinadores chineses. Vi os dois darem tapas na própria nuca, como se tivessem sido picados por alguma coisa. Primeiro Ping, depois Wu. Logo após a assistente fazer isso, vi uma Mestre dos Jogos gorda, loura platinada, sair às pressas do ginásio enquanto todos os outros espectadores estavam concentrados na comemoração das chinesas. Jack fechou um dos olhos, como quem mira em um alvo distante. Lancer franziu os lábios. – Dois tapas na nuca e uma voluntária acima do peso indo assumir sua posição? Só isso? – Só. É que pareceu fora de sintonia com... fora de sintonia, só isso. – Por onde a voluntária saiu? – perguntou Jack. Knight apontou para o outro lado do ginásio. – Pela saída de cima, entre as seções 115 e 116. Faz uns 15 segundos. Ela também estava andando de um jeito estranho. Lancer pegou o rádio e rosnou: – Central, estão vendo na câmera dos corredores da seção 115 uma Mestre dos Jogos de cabelos platinados, gorda? Vários instantes se passaram enquanto os voluntários dos jogos levavam o pódio de entrega de medalhas até o meio do ginásio. Por fim, o rádio de Lancer chiou. – Negativo. Knight franziu o cenho. – Não, ela tem que estar lá em algum lugar. Acabou de sair. Lancer tornou a olhar para ele com atenção antes de dizer pelo rádio: – Diga aos agentes que, se eles virem por essa área uma Mestre dos Jogos com essa descrição, ela deve ser detida para interrogatório. – Talvez seja uma boa ideia pedir que um médico dê uma olhada nos treinadores – sugeriu Knight. – Os atletas não gostam de ser atendidos por estrangeiros, mas vou avisar pelo menos à equipe médica chinesa. Está bom assim? Knight quase assentiu antes de dizer: – Onde fica a sala de monitoramento das câmeras de segurança? Lancer fez um gesto em direção a uma área fechada e espelhada na galeria acima deles. – Vou até lá – disse Knight. – Você autoriza a minha entrada?
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PETRA LUTOU PARA NÃO ENTRAR em pânico enquanto fechava a porta do cubículo do meio, no banheiro feminino à esquerda da entrada norte da arena, no alto das arquibancadas. Respirou fundo e teve vontade de gritar por causa da sensação de poder que a invadia, um poder havia muito esquecido. Estão vendo? Sou superior. Eu matei monstros. Desferi a vingança. Sou umaFúria. E monstros não pegam Fúrias. Basta ler os mitos! Tremendo de tanta adrenalina, Petra arrancou a peruca platinada, revelando os cabelos ruivos presos junto a cabeça. Tirou os grampos de plástico e soltou os cachos curtos. Então ergueu as mãos e, segurando as bordas externas do dispenser de protetores de assento, deu um puxão e o soltou da parede. Ela o pôs em cima da privada, em seguida levou a mão ao interior da cavidade escura que havia revelado e tirou de lá uma mochila de borracha azul-escura: era uma bolsa impermeável que continha uma muda de roupa. Pôs a mochila em cima do dispenser, despiu o uniforme de Mestre dos Jogos e o pendurou num gancho na porta do cubículo. Em seguida retirou as próteses de borracha que havia colado aos quadris, à barriga e às pernas para deixá-la gorda. Ia guardá-las na bolsa, mas achou que ficaria pesada demais e difícil de carregar pela rota de fuga que teriam que usar. Então enfiou as próteses dentro do buraco na parede, seguidas pela peruca. Quatro minutos depois, com o dispenser de protetores de assento novamente no lugar e o uniforme escondido dentro da mochila impermeável, Petra saiu do cubículo. Lavou as mãos e, no espelho, deu uma avaliada no visual: tênis de lona de cano baixo, uma calça branca justa, uma blusa branca de tricô sem mangas, uma corrente de ouro simples no pescoço e um blazer de linho azul. Acrescentou um par de óculos de grife sem grau e sorriu. Agora poderia se fazer passar por qualquer grã-fina. O compartimento logo à direita do de Petra se abriu. – Está pronta? – perguntou ela, sem olhar. – Esperando você, irmã – respondeu Teagan, postando-se ao lado de Petra diante do espelho. Estava sem a peruca escura, exibindo seus cabelos louro-claros. Ela usava uma roupa casual e segurava uma mochila parecida com a de Petra. – Sucesso? – perguntou. – Duplo – respondeu Petra. Teagan inclinou a cabeça, reconsiderando sua avaliação anterior. – Ainda vão escrever mitos sobre você. – Vão mesmo – disse Petra com um sorriso.
Juntas, as duas Fúrias se encaminharam para a porta do banheiro feminino. Nos alto-falantes do corredor, ouviram o apresentador da arena anunciar: – Mesdameset messieurs, senhoras e senhores, queiram voltar a seus lugares. A cerimônia de entrega das medalhas vai começar.
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A ATENÇÃO DE KNIGHT ESTAVA DIVIDIDA entre as várias imagens nos monitores de segurança que tinha à sua frente. Cada uma delas mostrava diferentes ângulos no corredor superior das seções 115 e 116 da arena O2, onde os fãs se apressavam para retomar seus lugares. Duas mulheres – uma delas esbelta e com os cabelos louro-claros com um corte estiloso, a outra igualmente magra e com cabelos ruivos e curtos – saíram do banheiro feminino e se misturaram às outras pessoas que voltavam ao interior do ginásio. Como ainda estava à procura de uma loura platinada e gorda usando um uniforme de Mestre dos Jogos, Knight só as olhou por um breve instante. No entanto, alguma coisa no jeito de andar da ruiva deixou-o intrigado, fazendo-o voltar o olhar para a câmera em que as tinha visto. Elas haviam desaparecido. Será que a mulher estava mancando? Ele achara que sim, mas ela era magra, não gorda; e ruiva, não loura platinada. A cerimônia das medalhas começou com a entrega do bronze. Da sala de monitoramento, Knight mirou o binóculo para o norte, à procura da ruiva e de sua acompanhante entre os fãs que ainda corriam para seus lugares. Sua tentativa foi prejudicada pelo anúncio da medalha de prata para a GrãBretanha, que fez os torcedores do país-sede se levantarem, baterem palmas, assobiarem e gritarem. Vários homens na extremidade norte da arena desfraldaram grandes bandeiras britânicas Union Jacks e começaram a agitá-las freneticamente, atrapalhando ainda mais a visão de Knight. As bandeiras ainda tremulavam quando a equipe chinesa foi chamada para subir ao degrau mais alto do pódio. Knight abandonou temporariamente a busca e tentou localizar os treinadores da China. Ping e Wu estavam um pouco mais afastados, junto ao tatame das apresentações de solo, ao lado de uma chinesa atarracada com cerca de 50 anos. – Quem é aquela? – perguntou Knight a um dos homens que trabalhavam na sala de monitoramento. O funcionário ergueu os olhos e respondeu: – Win Bo Lee. Presidente da Associação Chinesa de Ginástica. Peixe grande. Knight manteve o binóculo voltado para Ping e Wu enquanto o hino chinês começava a tocar e a bandeira do país era hasteada. Esperava que o treinador demonstrasse uma forte emoção. Para sua surpresa, porém, achou o semblante de Ping estranhamente fechado para um homem cuja equipe havia acabado de ganhar o ouro olímpico. Com os olhos pregados no chão, o chinês esfregava a parte de trás do pescoço e nem sequer olhava para a bandeira chinesa quando ela chegou ao topo.
Knight estava prestes a virar o binóculo para o norte outra vez, a fim de procurar as duas mulheres, quando Win Bo Lee de repente cambaleou como se estivesse tonta. Wu a segurou pelo cotovelo para ampará-la. A presidente da Associação Chinesa de Ginástica levou a mão ao nariz para secálo e depois olhou os próprios dedos. Pareceu alarmada e disse alguma coisa a An Wu. Nessa hora, porém, a atenção de Knight foi atraída por um solavanco ao lado da mulher mais velha. Ao som dos últimos compassos do hino nacional chinês, Ping avançou pelo tatame usado para os exercícios de solo. O treinador vitorioso cambaleou em direção ao pódio, com a mão esquerda pressionando a própria garganta e a direita estendida em direção à sua equipe, como se ela fosse uma corda e ele estivesse se afogando. O hino terminou. As atletas chinesas tiraram os olhos da bandeira, com lágrimas escorrendo pelos rostos, e viram seu treinador agonizante tropeçar e cair no tatame à sua frente. Várias delas começaram a gritar. Mesmo de onde estava, a quase meio ginásio de distância, Knight pôde ver o sangue escorrer pela boca e pelo nariz de Ping.
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ANTES QUE OS PARAMÉDICOS CONSEGUISSEM chegar ao treinador caído, Win Bo Lee começou a se queixar histericamente, pois não enxergava nada, e em seguida desabou no chão, sangrando pela boca, pelos olhos, pelo nariz e pelos ouvidos. O público começou a entender o que estava acontecendo e gritos e exclamações de incredulidade e medo ecoaram pelo ginásio. Muitos começaram a recolher suas coisas e se dirigir para a saída. No posto de monitoramento das câmeras de segurança, Knight entendeu que a treinadora-assistente da China, An Wu, estava correndo risco de vida, mas forçou-se a desviar a atenção do drama que se desenrolava no chão do ginásio para examinar as imagens das câmeras localizadas na passagem pela qual as duas mulheres haviam entrado na arena. Os agentes do posto de monitoramento estavam assoberbados, atendendo as chamadas de rádio. De repente, um deles berrou: – Temos uma explosão bem a sudeste da arena, na margem do rio! A unidade marítima está sendo acionada! Graças a Deus, ninguém havia escutado a bomba dentro do ginásio. Um grande número de espectadores avançava em direção às saídas e o barulho da explosão poderia ter causado um empurra-empurra. De repente, An Wu caiu no chão, sangrando, e o pânico aumentou ainda mais. Foi então que, no monitor mais próximo a ele, Knight avistou a loura e a ruiva passando pela saída norte junto com um fluxo constante de outras pessoas assustadas. Embora não tenha conseguido distinguir seus rostos, não havia dúvida de que a ruiva estava mancando. – É ela! – gritou Knight. Os homens da sala de monitoramento mal olharam para ele, de tão ocupados que estavam tentando responder pelo rádio às perguntas vindas de todas as partes do ginásio. Ao perceber que eles não estavam dando conta da situação, Knight saiu correndo em direção à porta, escancarou-a e começou a abrir caminho por entre o público chocado. Sua intenção era deter as duas mulheres. Mas em que direção elas teriam ido? Leste ou oeste? Knight resolveu apostar que tinham seguido para a saída mais próxima ao sistema de transporte público. Então disparou pelo corredor oeste, varrendo com os olhos o mar de gente que avançava em sua direção, até ouvir Jack gritar: – Knight! Olhou para a direita e viu o dono da Private chegar correndo da parte interna do ginásio.
– Achei, são duas! – gritou Knight. – Duas mulheres, uma ruiva e a outra de cabelos louro-claros. A ruiva está mancando! Avise Lancer. Diga a ele para fechar o perímetro do ginásio. Jack pôs-se a correr junto com ele, tentando digitar no celular enquanto serpenteava entre a multidão que buscava sair. – Porra! – reclamou Jack. – Eles cortaram o sinal de celular! – Então a bola está conosco – resmungou Knight. Decidido a não deixar as duas mulheres fugirem, ele apressou o passo. Em poucos segundos, os dois chegaram à parte do corredor norte que ele tinha visto pelo monitor. Não havia como elas terem passado por ele, pensou Knight, amaldiçoando a si mesmo por não ter seguido pelo corredor leste. De repente, viu as duas de relance algumas centenas de metros mais à frente, passando por uma saída de incêndio. – Ali! – berrou ele, erguendo no ar o crachá e sacando a arma. Deu dois tiros para o alto ao mesmo tempo que gritava: – Todo mundo no chão! Foi como se Moisés tivesse aberto o mar Vermelho. Espectadores começaram a se jogar no chão de cimento e a tentar se proteger de Knight e Jack, que corriam em direção à saída de incêndio. Foi então que Knight entendeu. – Elas estão indo para o rio! – gritou. – A bomba foi uma distração para afastar a unidade marítima da arena! Nesse momento as luzes piscaram e se apagaram, mergulhando o ginásio em total escuridão.
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KNIGHT PAROU DE SÚBITO escuridão, derrapando um pouco, com a sensação de que estava equilibrado na beira de um penhasco, tomado pela vertigem. À sua volta, pessoas gritavam enquanto ele tirava do bolso uma pequena lanterna presa a seu chaveiro. Acendeu a lanterna bem na hora em que as luzes de emergência começaram a funcionar. Ele e Jack percorreram a toda os últimos metros até a saída de incêndio e tentaram abrir a porta com o ombro. Estava trancada. Knight deu um tiro na tranca, o que provocou um novo caos entre o público aterrorizado, mas pelo menos a porta cedeu quando eles a chutaram. Os dois desceram a escada correndo e foram parar acima do cais de serviço da arena, lotado de caminhões de produção da imprensa e outros equipamentos de suporte do ginásio. Luzes vermelhas de emergência também tinham se acendido ali, mas Knight não conseguiu encontrar logo as duas fugitivas, pois muitas pessoas se moviam abaixo deles, aos gritos, querendo saber o que havia acontecido. Foi então que as viu, atravessando uma porta aberta na extremidade nordeste da arena. Ele desceu correndo a escada, esquivando-se de técnicos de jornalismo revoltados, e viu um segurança de pé junto à saída. Ergueu o crachá e perguntou, ofegante: – Duas mulheres. Para onde foram? O segurança olhou para ele sem entender. – Que mulheres? Eu estava... Knight passou por ele com um empurrão e correu para o lado de fora. Todas as luzes da extremidade norte da península estavam apagadas, mas havia uma tempestade e raios riscavam o céu por todos os lados, provocando clarões que permitiam que ele enxergasse alguma coisa. A névoa fora de época rodopiava. Knight teve de erguer o antebraço para proteger os olhos da chuva. Quando os raios seguintes clarearam o céu, ele correu os olhos por toda a extensão da cerca de arame de quase três metros de altura situada entre a arena e uma trilha que margeava o Tâmisa e seguia para o leste e para o sul até o píer onde ficava a parada do ônibus-barco. A Fúria loura estava agachada no chão do outro lado da cerca. A ruiva já havia escalado a cerca e estava descendo. Knight ergueu a pistola, mas então tudo ficou escuro outra vez, e sua pequena lanterna não era páreo para a noite e para o temporal. – Vi as duas – grunhiu Jack. – Eu também – disse Knight. No entanto, em vez de ir direto atrás das mulheres, Knight correu até a cerca, ao
mesmo tempo que guardava a lanterna no bolso e prendia a pistola no cós da calça, às costas. Escalou a cerca e pulou para o outro lado. Já fazia cinco dias que tinha sido atropelado, mas suas costelas doloridas fizeramno gemer quando ele aterrissou na trilha de cimento do outro lado. À sua esquerda, ainda bem distante no rio, viu o ônibus seguinte se aproximando. Jack também pulou a cerca e foi cair bem ao lado de Knight, que sacara de novo a pistola e a lanterna. Juntos, os dois correram em direção ao píer, agora iluminado por várias luzes de emergência vermelhas e fracas. Diminuíram o passo a menos de 20 metros da rampa de acesso ao píer. Dois gurkhas jaziam mortos no chão, com as gargantas cortadas de lado a lado. A chuva tamborilava no piso do cais. À medida que o ônibus ia se aproximando, o rugido dos motores aumentava de volume. Nesse momento Knight pôde jurar ter escutado outro motor sendo ligado. Jack ouviu a mesma coisa. – Elas têm um barco! Pulando por cima da corrente que isolava a rampa, Knight correu em direção ao cais, movendo a pistola e a lanterna de um lado para outro à procura de algum movimento. A agente da Polícia Metropolitana que mais cedo estava pilotando o jet ski encontrava-se caída no píer, morta, com os olhos esbugalhados e o pescoço torcido num ângulo esquisito. Knight passou correndo por ela e foi até a beira da plataforma, onde ouviu um motor de popa acelerar em meio à névoa e à chuva. Reparou no jet ski da policial amarrado ali perto, correu até ele, viu a chave na ignição, pulou para o veículo e deu a partida enquanto Jack pegava o rádio da mulher morta e subia na garupa dizendo: – Aqui é Jack Morgan, da Private. Tem uma agente da Unidade de Policiamento Marítimo da Polícia Metropolitana morta no píer Rainha Elizabeth II. Estamos perseguindo as assassinas pelo rio. Repetindo: estamos perseguindo as assassinas pelo rio. Knight acelerou. O jet ski se afastou do píer com um pulo, quase sem fazer barulho, e em poucos segundos os dois estavam em meio à névoa densa, que reduzia a visibilidade a menos de 10 metros. Além disso, a água estava batida, com uma forte correnteza puxando para o leste por causa da maré vazante. Palavras chiaram no rádio de Jack em resposta ao seu chamado, mas ele não respondeu e diminuiu o volume do aparelho para os dois poderem ouvir melhor o motor de popa que resfolegava em algum ponto à sua frente, em meio à bruma. Knight reparou que o painel do jet ski era equipado com uma bússola digital. A embarcação com motor de popa seguia para norte-nordeste em direção ao meio do curso do Tâmisa. A baixa velocidade sem dúvida se devia à falta de visibilidade. Confiante de que agora conseguiria alcançá-las, Knight acelerou o máximo que pôde e rezou para não baterem em nada. Será que havia boias por ali? Devia haver. Bem no
meio do curso d’água, viu o farol de Trinity Buoy Wharf piscando. – Elas estão indo em direção ao rio Lea – gritou ele por cima do ombro. – Ele dá a volta e torna a passar pelo Parque Olímpico. – Assassinas seguindo em direção à foz do rio Lea – rosnou Jack no rádio. Então eles ouviram sirenes vindas das margens do Tâmisa e o motor de popa acelerou até a velocidade máxima. A névoa se dissipou um pouco e, menos de 100 metros à frente, Knight viu passar depressa a sombra de uma lancha de proa aberta com os faróis apagados. Ouviu o motor roncar no máximo da potência. Girou o acelerador do jet ski no mesmo instante em que percebeu que o barco em que as duas fugiam na verdade não estava se dirigindo à foz do Lea: a trajetória da embarcação era bem diferente, seguindo a toda a velocidade para o alto muro de contenção localizado no lado leste da confluência do Lea com o Tâmisa. – Elas vão bater! – berrou Jack. Knight soltou o acelerador do jet ski uma fração de segundo antes de a lancha bater de frente no muro de concreto e voar pelos ares em uma série de explosões, formando uma bola de fogo e labaredas. Destroços e estilhaços de metal choveram sobre eles, forçando Jack e Knight a recuar. Nenhum dos dois ouviu o som das braçadas de três nadadoras seguindo na direção leste, com a ajuda da maré vazante.
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Quarta-feira, 1ode agosto de 2012.
A TEMPESTADE HAVIA PASSADO E JÁ eram quatro da manhã quando Knight pegou um táxi e informou ao motorista o endereço de sua casa em Chelsea. Apesar de tonto, molhado e intoxicado pela fumaça, sua mente funcionava a pleno vapor, repassando tudo o que havia acontecido desde que a lancha das Fúrias se chocara com o muro de contenção do rio. Meia hora depois do acidente, a água já estava cheia de mergulhadores à procura dos corpos, embora a forte correnteza prejudicasse as buscas. Elaine Pottersfield fora chamada no meio da revista do escritório e da casa de James Daring e chegara à arena O2 acompanhada por uma imensa equipe da Scotland Yard que havia sido enviada para lá após o triplo assassinato. Depois de receber todas as informações de Knight e Jack, ela conversara com Lancer, que corria para a área de competição do ginásio no momento em que as luzes se apagaram e o lugar virou um pandemônio. Depois de escutar os tiros de Knight no corredor, o ex-decatleta tivera a presença de espírito de ordenar que o perímetro ao redor da arena fosse isolado, mas a ordem não chegara a tempo de evitar que as Fúrias fugissem. Quando Lancer mandou religar a energia, os eletricistas descobriram que um sistema simples, usando um timer e um disjuntor, havia sido conectado à chave principal de energia do estádio e que o mecanismo que acionava automaticamente os geradores de emergência fora desligado. Em meia hora, porém, a energia voltou, e Knight e Elaine puderam estudar com atenção as imagens das câmeras de segurança enquanto Lancer e Jack ajudavam a revistar os milhares de testemunhas, literalmente falando, daquele triplo assassinato. Para consternação dos dois, as imagens das duas Fúrias não mostravam quase nada de seus rostos. As mulheres pareciam saber exatamente quando se virar para um lado ou para outro a fim de evitar as câmeras. Lembrando-se de ter visto as duas saindo do banheiro feminino depois de a Mestre dos Jogos gorda desaparecer e antes do início da cerimônia de entrega das medalhas, Knight disse: – É lá que elas devem ter trocado de disfarce. Ele e Elaine foram revistar o banheiro. No caminho, a cunhada lhe disse que havia encontrado a melodia de flauta no computador de casa de Daring, bem como textos – na verdade, verdadeiras arengas – maldizendo o caráter comercial e corporativo dos Jogos Olímpicos modernos. Em pelo menos duas ocasiões, o astro da TV e curador do
Museu Britânico havia observado que o tipo de corrupção e trapaça que ocorria nas Olimpíadas teria recebido um tratamento implacável na Antiguidade. – Segundo ele, os deuses do Olimpo teriam eliminado essas pessoas uma a uma – disse Elaine quando os dois estavam entrando no banheiro. – Ele disse que essas mortes teriam sido um “sacrifício justo”. Sacrifício justo?, pensou Knight com amargura. Três pessoas estão mortas. Para quê? Enquanto vasculhava o banheiro com Elaine, ele se perguntou por que Karen não havia telefonado. A essa altura, ela já deveria ter recebido outra carta. Vinte minutos depois de iniciada a busca, Knight achou o dispenser de protetores de assento meio frouxo e o removeu da parede com um puxão. Demorou mais um minuto para encontrar, no buraco da parede, uma peruca loura platinada, entregá-la a Elaine e dizer: – Este é um grande erro. Tem que haver DNA nisso aí. Com ar contrariado, a investigadora-chefe colocou a peruca dentro de um saco plástico. – Muito bem, Peter, mas prefiro que ninguém mais fique sabendo sobre esta peruca, pelo menos antes de eu conseguir mandar analisá-la. Principalmente aquela sua cliente Karen Pope. – Absolutamente ninguém – prometeu ele. De fato, por volta das três horas da manhã, pouco antes de sair da arena, Knight tornou a encontrar Jack e não comentou nada sobre a peruca. O dono da Private, por sua vez, informou-lhe que um dos seguranças do portão de entrada dos voluntários lembrava-se muito bem de duas primas gordas que passaram pelos detectores de metal logo cedo: uma delas era diabética e ambas usavam anéis idênticos. O sistema de computadores as identificou como Caroline e Anita Thorson. Elas moravam ao norte da Liverpool Street. Policiais enviados ao apartamento encontraram Caroline e Anita Thorson dormindo. As duas afirmaram que não haviam chegado nem perto da arena O2, muito menos tirado credenciais de Mestres dos Jogos para as Olimpíadas. Estavam a caminho da New Scotland Yard para serem interrogadas mais a fundo. Knight, porém, não tinha esperança nenhuma de que fossem descobrir algo ali. As moças foram usadas; tiveram suas identidades roubadas. O táxi parou em frente à casa de Knight logo antes de o dia nascer. Ele imaginou que Cronos ou uma de suas Fúrias fosse um hacker sofisticado e que, em determinado momento, tivera acesso à infraestrutura elétrica da arena. Certo? De tão cansado, não conseguiu responder à sua própria pergunta. Pagou o taxista e lhe pediu que esperasse. Cambaleou até a porta da frente, entrou e acendeu a luz do hall. Ouviu um rangido e olhou para dentro do quarto dos filhos. Deitada no sofá, Marta bocejou e deixou cair o cobertor que tinha sobre os ombros.
– Sinto muito mesmo – disse Knight baixinho. – Estava na arena assistindo à competição de ginástica, e eles cortaram o sinal de celular. Não consegui ligar. Ela levou a mão à boca. – Eu vi na televisão. O senhor estava lá? Eles pegaram quem fez aquilo? – Não – respondeu ele com repulsa. – Não sabemos nem se os responsáveis estão vivos. Mas cometeram um erro grave. Se sobreviveram, serão pegos. Marta tornou a bocejar, dessa vez abrindo mais a boca. – Que erro? – Não posso dar detalhes – respondeu Knight. – Um táxi está lá fora esperando você. Eu já paguei. Marta deu um sorriso sonolento. – É muita gentileza sua, Sr. Knight. – Pode me chamar de Peter. A que horas você pode voltar? – Uma da tarde? Knight concordou. Nove horas. Ele teria sorte se conseguisse dormir quatro horas antes que os gêmeos acordassem, mas era melhor do que nada. Como se lesse seu pensamento, Marta se dirigiu para a porta e disse: – Isabel e Luke estavam muito, muito cansados hoje. Acho que vão lhe dar um presente e dormir até mais tarde.
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POUCO DEPOIS DO AMANHECER DESSE dia, atormentado por uma dor de cabeça que me dá a sensação de ter o crânio partido ao meio, pergunto a Marta com uma voz estrondosa: – Que erro? Seus olhos têm a mesma expressão morta daquela primeira noite em que a vi na Bósnia. – Não sei, Cronos. Ele não quis me dizer. Olho em volta para suas duas irmãs, atarantado. – Que erro? Teagan balança a cabeça. – Não houve erro nenhum. Tudo correu exatamente conforme o planejado. Petra chegou até a disparar o segundo dardo em Wu. – É, disparei sim – confirma Petra, olhando para mim com uma expressão próxima do delírio. – Eu fui superior, Cronos. Fui uma campeã. Ninguém poderia ter executado melhor o plano. Lá no rio nós pulamos do barco bem antes do muro e cronometramos as marés com uma precisão milimétrica. Tiramos 10, nota 10 em todos os quesitos. Marta assente. – Eu já estava de volta à casa de Knight quase duas horas antes de ele chegar. Nós vencemos, Cronos. Com certeza eles agora vão suspender os jogos. Balanço a cabeça negativamente. – Isso não está nem perto de acontecer. As empresas patrocinadoras e as emissoras de TV só vão deixá-los parar quando já for tarde demais. Mas que erro nós poderíamos ter cometido? Olho para Teagan. – E a fábrica? – Deixei bem lacrada. – Vá verificar – ordeno. Então caminho até uma cadeira junto à janela, perguntando-me mais uma vez que erro poderíamos ter cometido. Meus pensamentos frenéticos vislumbram diversas possibilidades, mas a verdade é que não disponho de todas as informações. Não posso tomar as providências necessárias para neutralizar o suposto erro se desconheço a sua natureza. Por fim, lanço um olhar irado para Marta. – Descubra. Pouco me importa o que você tenha que fazer. Descubra que erro foi esse.
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ÀS 11H40 DESSA MESMA QUARTA-FEIRA, Knight estava empurrando Isabel no balanço do parquinho do Royal Hospital. Luke já aprendera a se balançar sozinho e agitava os pés e as mãos feito um louco para tentar subir cada vez mais alto. De vez em quando o pai o segurava delicadamente, para diminuir sua velocidade. – Papai! – gritou Luke, frustrado. – Luke quer mais alto! – Não tão alto – disse Knight. – Você vai cair e quebrar a cabeça. – Não vou, não, papai – resmungou Luke. Isabel riu. – Luke já tem a cabeça quebrada! A frase provocou um problema. Knight teve que tirar os gêmeos dos balanços e separá-los. Pôs Isabel na caixa de areia e Luke no trepa-trepa. Quando ambos finalmente ficaram entretidos com as novas brincadeiras, Knight bocejou, olhou para o relógio – faltava uma hora e 15 para Marta chegar – e foi até o banco da pracinha. Acomodou-se e usou o iPad para acompanhar a cobertura da imprensa. O país, ou melhor, o mundo inteiro, estava indignado com as mortes de Gao Ping, An Wu e Win Bo Lee. Tanto atletas quanto chefes de Estado condenavam Cronos, as Fúrias e suas táticas brutais. Knight clicou em um link para um vídeo da BBC que começava mostrando a reação às mortes dos treinadores chineses, depois uma entrevista com pais de atletas espanhóis, russos e ucranianos, preocupados com a segurança dos jogos mas ao mesmo tempo hesitantes em destruir os sonhos dos filhos e insistir em que abandonassem a competição. Os chineses haviam protestado vigorosamente junto ao COI e divulgado um comunicado dizendo-se decepcionados com o fato de o país-sede mostrar-se incapaz de garantir a segurança dos jogos – coisa que os chineses fizeram muito bem quatro anos antes, em Pequim. Em seguida, a matéria da BBC tentava encontrar culpados para aquelas falhas. Os alvos eram numerosos e incluíam a F7, empresa de segurança corporativa contratada para administrar os equipamentos de segurança dos estádios e ginásios. Um porta-voz da F7 defendeu com vigor a atuação da empresa, afirmando que os equipamentos eram de última geração e estavam sendo operados pelos “profissionais mais qualificados da área”. O vídeo também observava que o sistema de segurança dos computadores fora projetado por agentes da Scotland Yard e do MI5 e havia sido considerado “impenetrável” e “invencível” antes do início dos jogos. Nenhuma das duas organizações, porém, quisera se pronunciar em relação ao que obviamente eram falhas muito sérias. Isso pusera o “pressionado Mike Lancer” no centro dos acontecimentos e ele fora
obrigado a encarar as câmeras depois de vários integrantes do Parlamento terem solicitado sua renúncia ou demissão. – Não é do meu feitio me esquivar da culpa quando ela se justifica – dizia Lancer, soando ao mesmo tempo zangado e triste. – Esses terroristas conseguiram encontrar brechas no nosso sistema que não fomos capazes de ver. Quero garantir ao público que estamos fazendo tudo o que está ao nosso alcance para fechar essas brechas e sei que a Scotland Yard, o MI5, a F7 e a Private estão fazendo todo o possível para encontrar essas assassinas e detê-las antes que mais uma tragédia atinja o que deveria ser uma celebração mundial da juventude e da renovação. Em resposta aos pedidos de demissão de Lancer, Marcus Morris, presidente do comitê organizador, comportava-se como um britânico típico e mantinha-se firme diante da adversidade: recusava-se terminantemente a ceder terreno a Cronos e estava certo de que Lancer e as forças de segurança mobilizadas conseguiriam evitar novos ataques, encontrar os assassinos e fazê-los responder por seus crimes. Apesar de seu tom pessimista, a reportagem terminava com uma imagem positiva. O cenário era a vila olímpica. Pouco depois do amanhecer, centenas de atletas começaram a invadir os gramados e calçadas, acendendo velas em homenagem aos mortos. Hunter Pierce, Filatri Mundaho e as meninas da equipe de ginástica da China haviam feito declarações e tachado os assassinatos de “insanos, injustificados, um ataque direto a tudo que os jogos simbolizam”. No fim da matéria, o repórter informava que mergulhadores da polícia continuavam vasculhando o fundo lodoso do Tâmisa junto à confluência com o Lea. Haviam achado indícios de que a lancha que se chocara contra o muro de contenção estava carregada de explosivos. Nenhum corpo fora encontrado até aquele momento. – Esses fatos não são um bom prognóstico para a já abalada Olimpíada de Londres – afirmava ele ao encerrar a reportagem. – Knight? Karen Pope cruzava o portão do parquinho, parecendo ansiosa e deprimida. Knight franziu o cenho. – Como me achou aqui? – Hooligan me disse que você gosta de vir aqui com as crianças – respondeu ela, e sua aflição pareceu aumentar. – Tentei primeiro a sua casa, depois vim para cá. – O que houve? – indagou Knight. – Está tudo bem com você? – Na verdade, não – respondeu a jornalista com a voz abalada, sentando-se ao seu lado no banco. Seus olhos se encheram de lágrimas. – Tenho a sensação de estar sendo usada. – Por Cronos? – E pelas Fúrias – respondeu ela, enxugando o rosto com raiva. – Eu não pedi isso, mas agora me tornei parte da loucura deles, do terror que estão criando. Admito que no começo fiquei feliz com o furo. Foi incrível para a minha carreira e tudo mais, só que agora...
A voz de Karen ficou presa na garganta e ela olhou para o outro lado. – Ele escreveu para você de novo? Ela assentiu. – Estou com a sensação de que vendi minha alma, Knight – declarou, com voz fraca. Ao ouvir isso, ele passou a ver a jornalista de um modo totalmente diferente. Sim, ela às vezes era cáustica e insensível. No fundo, porém, era humana. Tinha alma e princípios, e aquele caso afetava as duas coisas. Karen subiu muito em seu conceito. – Não pense assim – disse ele. – Você não apoia o que Cronos faz, não é? – Claro que não – respondeu ela. – Então está só fazendo o seu trabalho: é difícil mas necessário. Trouxe a carta com você? Ela balançou a cabeça. – Deixei com Hooligan hoje de manhã. – Ela fez uma pausa. – Um mensageiro chapado foi me entregar a carta ontem no meu apartamento. Segundo ele, duas gordas o encontraram em frente ao King’s College e lhe deram a carta. Elas estavam usando uniformes oficiais de voluntárias das Olimpíadas. – É, a informação bate – disse Knight. – Que motivo Cronos deu para matar os chineses? – Diz que eles eram responsáveis por trabalho escravo infantil encoberto pelo Estado. Cronos alegava que era frequente a China ignorar as regras com relação à idade dos atletas olímpicos, forjando certidões de nascimento para forçar crianças a entrarem para o que, na prática, era uma escravidão do esporte. Ping e Wu sabiam que 60 por cento da equipe feminina de ginástica da China eram menores de idade. Win Bo Lee também sabia – segundo Cronos, ela era o cérebro por trás de todo o esquema. – Há vários documentos de comprovação – disse Karen. – Cronos defende bastante bem o seu caso. Na carta estava escrito que os chineses “escravizam menores de idade em nome da glória nacional” e que a punição para isso era a morte. Outra vez em prantos, ela olhou para Knight. – Eu poderia ter publicado tudo isso ontem à noite. Poderia ter ligado para o meu editor e escrito a matéria antes do fechamento do jornal de hoje. Mas, Knight, não consegui. É que... eles sabem onde eu moro. – Papai, Luke quer leite – pediu o menino. Knight tirou os olhos da repórter muito abalada e viu seu filho olhando para ele com um ar de grande expectativa. Então Isabel também apareceu. – Eu também quero leite! – Droga – resmungou Knight. – Esqueci o leite – falou em tom de quem pede desculpas. – Mas vou agora mesmo lá em casa buscar. Esta é Karen. Ela
trabalha no jornal. É minha amiga. Ela vai ficar sentada aqui com vocês até eu voltar. Karen arqueou as sobrancelhas. – Eu acho que não... – Dez minutinhos – disse Knight. – Quinze, no máximo. A jornalista olhou para Luke e Isabel e então, com relutância, falou: – Tudo bem. – Já volto – prometeu Knight. Ele saiu correndo pelo gramado e atravessou o terreno do Royal Hospital em direção à sua casa. O percurso até lá durou exatamente seis minutos. Ele chegou suado e ofegante. Quando ia enfiar a chave na fechadura, ficou surpreso ao constatar que a porta estava destrancada. Teria se esquecido de trancar? Esse tipo de coisa não era típico dele, mas, nos últimos tempos, vinha dormindo muito pouco e estava no limite. Knight entrou no hall. Uma tábua do piso rangeu em algum lugar acima dele. E então uma porta se fechou.
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KNIGHT DEU QUATRO PASSOS LEVES até o armário do hall de entrada, esticou o braço para uma prateleira alta e pegou a Beretta sobressalente que guardava ali. Ao ouvir um barulho parecido com móveis sendo arrastados, tirou os sapatos e pensou: No meu quarto ou no das crianças? Subiu a escada feito um gato, olhando à sua volta, e ouviu um ruído à frente. Vinha do seu quarto. Desceu o corredor de fininho, com a arma apontada, e espiou para dentro do cômodo. Viu a escrivaninha e, sobre ela, seu laptop fechado. Parou e escutou com atenção. Por vários segundos, não ouviu nada. Então a descarga foi acionada. Era comum os ladrões usarem o banheiro na casa das vítimas. Knight sabia disso havia muitos anos e imaginou que estivesse lidando com um assalto. Entrou no quarto e apontou a pistola para a porta fechada. A maçaneta girou. Knight soltou a trava de segurança da Beretta. A porta se abriu. Marta saiu do banheiro e deparou com Knight e a pistola. Com um arquejo, ela levou a mão ao peito e gritou: – Não atire! As sobrancelhas de Knight se arquearam, mas ele abaixou a pistola vários centímetros. – Marta? A babá estava ofegante. – O senhor me assustou! Meu Deus, meu coração está disparado. – Desculpe – disse ele, abaixando a pistola para junto do corpo. – O que está fazendo aqui? Achei que você só chegaria à uma da tarde. – Cheguei cedo para o senhor poder ir logo para o trabalho – respondeu ela, sem fôlego. – O senhor me deu a chave. Eu entrei, vi que o carrinho não estava e imaginei que estivesse no parquinho, então comecei a limpar a cozinha e depois subi para arrumar o quarto dos gêmeos. – Mas você está no meu quarto – disse ele. – Desculpe – choramingou Marta. – Precisei fazer xixi. Estava apertada – concluiu ela, constrangida. Depois de alguns segundos, sem ter percebido nenhum fingimento na atitude da babá, Knight guardou a arma no bolso. – Perdão, Marta. Estou estressado. Tive uma reação exagerada. – Mas a culpa também é minha – disse ela. Então o celular de Knight tocou. Ele o pegou depressa e, assim que atendeu, ouviu Isabel e Luke histéricos, aos prantos.
– Karen? – Cadê você? – perguntou a jornalista, aflita. – Você disse que voltaria logo e os seus filhos estão tendo um ataque. – Dois minutos – prometeu ele e desligou. Olhou para Marta, que tinha um ar preocupado. – Minha amiga. Ela não tem muito jeito com crianças. Marta sorriu. – Então foi bom eu ter vindo mais cedo, não foi? – Foi muito bom – concordou Knight. – Mas vamos ter que correr. Ele desceu depressa a escada até a cozinha. Ao chegar lá, viu que a louça do café da manhã tinha sido lavada e guardada. Pegou o leite e o pôs em uma sacola junto com alguns biscoitos e dois copos de plástico. Knight trancou o apartamento e, juntos, ele e Marta voltaram apressados para o parquinho, onde Luke estava sentado sozinho na grama, batendo no chão com sua pá, enquanto Isabel chorava, de joelhos no chão e com a cabeça na caixa de areia . Karen estava simplesmente parada, atônita diante daquela situação desconhecida, sem ter a menor ideia de como agir. Marta se abaixou para pegar Luke no colo. Fez cócegas em sua barriga, arrancando risadas do menino. – Marta! – gritou ele. Ao ouvir isso, Isabel parou de chorar e levantou a cabeça da areia. Viu Knight andando na sua direção e abriu um sorriso. – Papai! Knight pegou a filha no colo, limpou a areia de seus cabelos e lhe deu um beijo. – Papai voltou. Marta também. – Quero leite! – pediu Isabel, fazendo biquinho. – Não esqueça os biscoitos – disse Knight, entregando a filha e a sacola com o leite e os biscoitos à babá, que levou as crianças até uma mesa de piquenique e começou a lhes dar a comida. – Qual foi o motivo do ataque? – perguntou Knight a Karen. Encabulada, a jornalista respondeu: – Para falar a verdade, não sei. Foi como se houvesse uma bomba-relógio que eu não consegui ouvir antes que explodisse. – Acontece com frequência – observou Knight com uma risada. Karen avaliou Marta. – Faz tempo que ela está com vocês? – Menos de uma semana – respondeu Knight. – Mas ela é fantástica. A melhor que eu já... O celular de Karen tocou. Ela atendeu e escutou. Depois de vários instantes, exclamou: – Não pode ser! Estaremos aí em 20 minutos! A jornalista desligou o telefone e pôs-se a falar em voz baixa e urgente.
– Era Hooligan. Ele achou uma impressão digital no envelope que Cronos mandou para mim ontem à noite. Confrontou com os bancos de dados e quer nós dois lá na Private o mais rápido possível.
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CERCADO POR UMA BARBA RUIVA de quatro dias, o sorriso no rosto de Hooligan fez Knight pensar num duende insano. Essa imagem ficou ainda mais vívida quando o principal cientista da Private Londres deu um pulinho atrás de sua mesa no laboratório e disse: – Conseguimos um terceiro nome... e, como diria Jack, isso acionou vários alarmes. Só na última hora já recebi duas ligações de Haia. – Haia? – repetiu Knight, sem entender. – Sede do Tribunal de Crimes de Guerra – explicou Hooligan enquanto Jack entrava na sala com ar pálido e abatido. – A impressão digital pertence a uma mulher procurada por genocídio. Knight estava sendo atingido tão depressa por aquelas informações que sua mente era um turbilhão de pensamentos desconexos. Tanto Selena Farrell quanto o Dr. Daring tinham trabalhado para a Otan no final da guerra dos Bálcãs, certo? Mas crimes de guerra? Genocídio? – Pode prosseguir – disse Jack. Hooligan digitou vários comandos num laptop. Num grande monitor situado a um dos cantos do laboratório surgiu a imagem granulosa em preto e branco de uma adolescente. Tinha os cabelos curtos e usava uma blusa branca de colarinho. Como a foto estava bastante desfocada, Knight não soube dizer muito mais sobre a garota. – O nome dela é Andjela Brazlic – informou Hooligan. – Segundo o promotor de crimes de guerra, essa foto foi tirada uns 17 anos atrás, o que significa que ela agora deve estar com quase 30. – O que ela fez? – perguntou Knight, tentando coadunar o rosto embaçado da adolescente com a acusação de genocídio. Hooligan pressionou outra tecla no computador e o monitor exibiu uma imagem estourada de três meninas de blusa branca e saia preta. Elas estavam em pé ao lado de um homem e de uma mulher cujas cabeças haviam sido cortadas da foto. Knight reconheceu o corte em cuia do cabelo de uma das meninas e percebeu que a primeira imagem era uma ampliação daquela. A luz forte do sol escondia o rosto das outras duas, que tinham os cabelos mais compridos e eram mais altas. Ele deduziu que tivessem 14 e 15 anos. Hooligan pigarreou e disse: – Andjela e suas irmãs, que aparecem nessa foto, Senka , a mais velha, e Nada, a do meio, foram acusadas de participar de atos genocidas na cidade de Srebrenica e arredores no final de 1994 e inicio de 1995, já quase no fim da guerra civil que sucedeu o fim da antiga Iugoslávia. As irmãs supostamente faziam parte dos esquadrões da morte supervisionados por Ratko Mladić, responsáveis pela execução de oito mil
homens e meninos muçulmanos bósnios. – Meu Deus! – exclamou Karen. – O que faz três meninas tão jovens entrarem para um esquadrão da morte? – Estupro coletivo e assassinato – respondeu Hooligan. – Segundo o promotor especial, pouco depois de essa foto ter sido tirada, em abril de 1994, Andjela e as irmãs foram estupradas repetidamente durante três dias por integrantes de uma milícia bósnia, que também torturaram e mataram os pais na frente delas. – E, isso basta – disse Jack. Hooligan meneou a cabeça com ar sombrio. – Em retaliação, as irmãs supostamente executaram mais de 100 muçulmanos bósnios. Alguns morreram baleados. Mas a maioria foi golpeada por uma picareta... O mesmo tipo de arma usado para matar os pais das meninas. Um golpe lhes partia a cabeça e outro era desferido nos genitais. E a coisa fica pior – prosseguiu o cientista da Private Londres. – O promotor de crimes de guerra me disse que, segundo todas as testemunhas oculares, as irmãs demonstravam um deleite sádico ao matar e mutilar os meninos bósnios... Por isso as mães de Srebrenica, aterrorizadas, atribuíram um apelido a elas. – Que apelido? – indagou Knight. – As Fúrias. – Meu Deus! – soltou Jack. – São elas. Houve alguns instantes de silêncio antes de Jack pedir à jornalista: – Karen, pode nos dar licença um instante? Temos que falar sobre um assunto que não tem nada a ver com este caso. Ela hesitou, mas por fim meneou a cabeça com ar constrangido e disse: – Claro. Depois que ela havia saído, Jack tornou a olhar para Knight e Hooligan. – Tenho uma coisa difícil para dizer a vocês. – Fomos demitidos da equipe de segurança das Olimpíadas? – perguntou Knight. Jack fez que não com a cabeça e ficou ainda mais pálido. – Longe disso. Acabei de sair de uma reunião com os agentes do Escritório de Investigação de Acidentes Aéreos que estavam trabalhando na queda do avião. – E...? – indagou Hooligan. Jack engoliu em seco. – Foram encontrados indícios de uma bomba. Não houve pane alguma. Dan, Kirsty, Wendy e Suzy foram assassinados.
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– PETER, É MELHOR QUE O assunto seja importante – resmungou Elaine Pottersfield. –Estou sob uma pressão enlouquecedora e sem muita disposição para um jantarzinho elegante. – Nós dois estamos sob uma pressão enlouquecedora – rebateu Knight. – Mas preciso conversar com você. E tenho que comer. E você também tem. Então pensei: por que não marcar um encontro aqui e matar dois coelhos com uma cajadada só? “Aqui” era em um restaurante perto da Tottenham Court Road chamado Hakkasan. Era o chinês favorito de Kate em Londres. E era também o preferido da investigadorachefe. – Mas este lugar está lotado – disse Elaine, sentando-se com certa relutância. – Provavelmente vamos levar uma hora para... – Eu já fiz o pedido – disse Knight. – O prato preferido de Kate. Sua cunhada baixou os olhos para a mesa. Daquele ângulo, não havia como negar que ela era a irmã mais velha de Kate. – Tudo bem – disse ela por fim. – O que estou fazendo aqui, Peter? Knight lhe contou resumidamente a história das irmãs Brazlic – as Fúrias – e de seus supostos crimes de guerra. Quando ele estava terminando, o jantar chegou: uma porção dupla de carne Wagyu à moda de Szechuan. Elaine esperou o garçom se afastar antes de perguntar: – E quando foi a última vez que se teve notícias dessas irmãs? – Julho de 1995, pouco depois do fim do cessar-fogo supervisionado pela Otan – respondeu Knight. – Elas supostamente foram detidas por policiais bósnios depois que a mãe de duas de suas vítimas as reconheceu enquanto as Fúrias tentavam comprar comida em um mercado de produtores. Segundo essa mesma mulher, as meninas foram levadas à noite para a delegacia de um povoado a sudoeste de Srebrenica, onde deveriam ser entregues às forças da Otan que estavam investigando os crimes. – E o que aconteceu? Elas fugiram? – perguntou Elaine. Knight assentiu. – No meio da noite, os moradores do povoado ouviram tiros de metralhadora vindos da delegacia. Ficaram assustados demais para ir ver o que estava acontecendo antes do amanhecer, quando foram encontrados os corpos chacinados de sete bósnios, inclusive os dois policiais. Desde então as irmãs Brazlic vêm sendo caçadas, mas nenhuma delas dera sinal de vida até hoje. – E como elas conseguiram sair da delegacia? – perguntou Elaine. – Imagino que tenham sido algemadas. – É provável – concordou Knight. – Só que tem mais uma coisa estranha. Os esquadrões da morte de Mladić usavam balas de cobre da era soviética. A polícia
bósnia também. Essa era a munição usada pelo Exército Vermelho e foi encontrada em todas as armas não detonadas. Mas os sete bósnios massacrados na delegacia foram mortos por armas de 5.56mm que disparavam balas totalmente diferentes... na verdade, o tipo de arma usado pelas forças de paz da Otan. Elaine pegava a comida com os hashis, pensativa. Depois de um tempo, falou: – Então talvez um dos homens mortos nessa noite estivesse com uma arma da Otan e as irmãs tenham conseguido pegá-la e fugir de lá. – É uma das explicações possíveis. Ou então outra pessoa as ajudou, alguém que fazia parte da operação da Otan. Estou mais inclinado a acreditar nessa explicação. – Com base em que provas? – perguntou ela. – Nas balas, principalmente – respondeu Knight. – Mas também no fato de James Daring e Selena Farrell terem estado nos Bálcãs em meados da década de 1990, participando da missão da Otan. Daring foi destacado para proteger antiguidades de saqueadores. Mas, apesar de ter visto uma foto de Selena segurando uma arma automática em frente a um caminhão da Otan, não faço a menor ideia de qual tenha sido seu papel nessa operação. – Mas logo vai fazer – disse Elaine. – Vou enviar uma intimação à Otan pedindo a ficha dela. – O promotor de crimes de guerra já está cuidando disso – disse Knight. A investigadora assentiu, mas estava pensando em outra coisa. – Qual é a sua teoria, então? Você acha que essa pessoa que as ajudou a fugir... Daring, ou Selena, ou os dois... Acha que essa pessoa poderia ser Cronos? – Talvez – respondeu Knight. – Faz sentido, pelo menos. – De certa forma – concordou ela, mas sua voz continuava cética. Os dois passaram alguns minutos comendo sem dizer nada, então Elaine falou: – Só tem uma coisa que me incomoda nessa sua teoria, Peter. – O quê? Sua cunhada estreitou os olhos e apontou os hashis para ele. – Digamos que você esteja certo e que Cronos seja a ou as pessoas que ajudaram as irmãs a fugir, e digamos que ele tenha conseguido transformar essas criminosas de guerra em anarquistas, inimigas das Olimpíadas, ou como queira chamá-las. Os indícios que temos até agora nos levam a crer que essas pessoas não apenas são brutais, mas incrivelmente eficazes. Elas conseguiram burlar um dos esquemas de segurança mais fortes do mundo, matar e escapar duas vezes. Knight viu aonde ela estava querendo chegar. – Está dizendo que elas prestam atenção em cada detalhe, que planejam tudo minuciosamente, mas mesmo assim cometeram erros com as cartas. Elaine assentiu. – Cabelo, pele e agora uma impressão digital? – Não esqueça a peruca – disse Knight. – Alguma novidade em relação a isso? – Ainda não, mas essa história de crimes de guerra talvez nos ajude, caso alguma
amostra de DNA das irmãs tenha sido coletada. Knight comeu mais um pouco e depois falou: – Tem também a questão de saber se Selena, Daring ou ambos tinham condições e recursos financeiros para planejar um ataque mortal às Olimpíadas. Isso deve ter custado muito dinheiro. – Também já pensei nisso – retrucou Elaine. – Hoje de manhã demos uma olhada nas contas bancárias e nos extratos de cartão de crédito de Daring. Aquele programa de TV o deixou rico. E as contas dele mostram vários saques recentes de valores altos. A professora, por sua vez, vive de modo mais modesto. Com exceção de compras importantes em grifes aqui e em Paris e de frequentar um salão de cabeleireiro chique uma vez por mês, ela leva uma vida bem austera. Knight se lembrou da penteadeira e das roupas de boa qualidade no quarto da professora e tentou mais uma vez fazer aquilo combinar com a mulher simples que tinha conhecido no King’s College. Não conseguiu. Será que ela se produzia para encontrar Daring? Será que havia alguma relação entre os dois que todo mundo desconhecia? Ele olhou para o relógio. – Então vou pagar e ir andando. A babá nova está fazendo hora extra. Elaine desviou os olhos enquanto ele deixava o guardanapo em cima da mesa e levantava a mão para pedir a conta. – Como eles estão? – perguntou ela. – Os gêmeos? – Bem – respondeu Knight, então olhou para a cunhada com uma expressão sincera. – Sei que eles adorariam conhecer a tia Elaine. Não acha que eles merecem ter um relacionamento com a irmã da mãe deles? Foi como se um escudo invisível houvesse se erguido em apenas um segundo diante da investigadora. Ela contraiu o corpo e disse: – Ainda não estou pronta. Não sei se iria aguentar. – Eles vão fazer 3 anos no sábado da próxima semana. – Você acha mesmo que algum dia vou conseguir esquecer aquele dia? – indagou Elaine, levantando-se da mesa. – Não, Elaine – respondeu Knight. – Nem você, nem eu. Nunca. Mas tenho esperança de que, em algum momento, consiga perdoar esse dia. E torço para que você também consiga. – Você paga a conta? – indagou ela. Knight fez que sim com a cabeça. Elaine se virou para ir embora. Ele a chamou: – Elaine, em algum momento eu devo fazer uma festa de aniversário para eles. Gostaria que você fosse. Ela olhou para Knight por cima do ombro e respondeu, com a voz rouca: – Como eu disse, Peter, não sei se já estou pronta para isso.
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NO TÁXI A CAMINHO DE casa Knight se perguntou se a cunhada algum dia iria perdoá-lo. Será que isso tinha importância? Tinha. Ele ficava deprimido ao pensar que talvez seus filhos jamais conhecessem a última parente viva da mãe. No entanto, em vez de se entregar à depressão, ele se forçou a pensar em outras coisas. Selena Farrell era uma fashionista. Esse fato o estava incomodando tanto que ele ligou para Karen Pope. A jornalista atendeu parecendo estar de mau humor. Mais cedo, no laboratório de Hooligan, os dois tinham discutido sobre quando e como ela deveria lidar com as informações sobre os crimes de guerra. Karen queria publicar aquilo imediatamente, mas Knight e Jack tinham dito que ela deveria aguardar as confirmações de Haia e da Scotland Yard. Nenhum dos dois queria a informação creditada à Private. – Quer dizer que a sua cunhada confirmou a identificação da impressão digital? – perguntou a jornalista. – Acho que só amanhã, na melhor das hipóteses – respondeu Knight. – Que ótimo – ironizou ela. – E o promotor de Haia não retorna as minhas ligações. Então não tenho matéria nenhuma para amanhã. – Tem outra coisa na qual você poderia dar uma olhada – sugeriu Knight no momento em que o táxi encostou em frente à sua casa. Ele pagou o taxista e, de pé na calçada, contou à jornalista que vira a penteadeira e as roupas caras na casa de Selena Farrell. – Roupas de luxo? – perguntou ela, incrédula. – Aquela mulher? – Eu tive exatamente a mesma reação – disse ele. – E acho que isso implica várias coisas. Ela precisava ter alguma outra fonte de renda além da universidade. O que significa que tinha uma vida secreta. Se você descobrir qual é, talvez descubra onde ela está. – Muito fácil para você dizer isso – comentou Karen. Meu Deus, como aquela mulher o irritava. – É só isso que eu tenho para informar – disse ele, ríspido. – Olhe aqui, Karen, tenho que pôr meus filhos para dormir. Falo com você amanhã. Ele desligou com a sensação de que aquele caso o estava devorando da mesma forma que, na mitologia, Cronos havia devorado os próprios filhos. Esse pensamento o deixou extremamente frustrado. Se não fossem as Olimpíadas, ele estaria se dedicando em tempo integral a descobrir quem tinha matado seus quatro colegas da Private, e por quê. Prometeu a si mesmo que, quando aquilo tudo terminasse, não iria parar até solucionar esse crime.
Knight entrou em casa e subiu a escada. Ouviu uma porta deslizar sobre o carpete, depois escutou passos. Marta estava saindo do quarto das crianças. Ela levou o indicador aos lábios quando viu Knight. – Posso ir dar boa-noite? – perguntou ele num sussurro. – Já estão dormindo – respondeu Marta. Knight olhou para o relógio. Eram oito horas. – Como você consegue? Comigo eles nunca dormem antes das dez. – É uma antiga técnica estoniana. – Você tem que me ensinar um dia desses – disse Knight. – Amanhã de manhã às oito? – Combinado – respondeu ela. Então hesitou antes de passar por ele e descer a escada. Knight foi atrás, pensando em tomar uma cerveja e dormir cedo. Marta vestiu a jaqueta e começou a sair pela porta da frente, mas parou e tornou a olhar para ele. – Já pegaram os malfeitores? – Não – respondeu Knight. – Mas acho que estamos chegando bem perto. – Que bom – disse ela. – Bom mesmo.
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MAIS TARDE NESSA NOITE, SENTADA diante de sua mesa na redação do The Sun e assistindo sem prestar muita atenção aos melhores momentos da incrível vitória da Inglaterra sobre Gana na última partida das eliminatórias de futebol, Karen mais uma vez esbravejou em silêncio por não poder revelar a ligação entre Cronos, as Fúrias e os crimes de guerra cometidos nos Bálcãs. Até Finch, seu editor, lhe dissera que, por mais fantástica que fosse aquela história, ela não tinha material suficiente para publicar – e talvez continuasse sem ter por dois ou três dias, pelo menos até o promotor de Haia aceitar conversar com ela oficialmente. Três dias!, gemeu para si mesma. Isso quer dizer no sábado. O jornal nunca vaipublicar uma reportagem dessas num sábado. Vão esperar até domingo. Quatro dias! Todos os jornalistas londrinos que cobriam os casos mais quentes estavam trabalhando no caso Cronos, todos no encalço de Karen, tentando igualar ou superar suas matérias. Até esse momento, ela estivera muito a frente dos demais. Agora, porém, tinha medo de que a revelação sobre os crimes de guerra vazasse antes que ela conseguisse publicar o furo. E o que iria fazer enquanto isso? Ficar ali sentada? Esperando o promotor de crimes de guerra ligar? Esperando a Scotland Yard comparar a impressão digital com seu banco de dados e confirmar a identificação para o mundo? Aquela situação a estava deixando louca. Deveria ir para casa e descansar um pouco. Mas o fato de Cronos saber seu endereço a incomodava. Na verdade, ela estava com medo. Resolveu começar a examinar com atenção cada detalhe de que dispunha para tentar descobrir qual deles era mais passível de fazer evoluir a matéria. Por fim, com alguma relutância, lembrou-se do conselho de Knight de que investigasse melhor Selena Farrell. Porém, já fazia quatro dias que o DNA da professora fora identificado no cabelo encontrado na primeira carta de Cronos, e três que o MI5 e a Scotland Yard tinham começado a caçá-la, ainda sem nenhum resultado. A professora tinha evaporado. Se eles não conseguiram encontrá-la, quem sou eu para tentar? Esse foi o primeiro pensamento de Karen, mas depois seu lado mais beligerante a dominou. Bom, por que não eu? Ela mordeu o lábio enquanto pensava na revelação de Knight de que Selena era uma especialista em moda. Então se lembrou da lista completa de indícios recolhidos na casa e no escritório da professora que ele lhe mandara na véspera, quando estavam no parque aquático. Naturalmente dera uma olhada na lista à procura de sinais de
algum sentimento antiolímpico, dos textos que denunciavam os jogos e da gravação da melodia de flauta. Mas não estava procurando por roupas, estava? Abriu o arquivo com a lista e começou a estudá-la. Não levou muito tempo para encontrar referências a vestidos de coquetel da Liberty e saias e blusas da Alice by Temperley. Roupas que valiam uma nota. Centenas de libras. Knight dissera que Selena tinha uma vida secreta. Talvez ele tivesse razão. Animada, Karen começou a folhear seu bloquinho de notas à procura do telefone de Nina Langor, assistente de pesquisa da professora. Tinha falado com ela em várias ocasiões durante os últimos quatro dias, mas Nina sempre se dissera surpresa com o súbito sumiço da chefe e afirmara que não tinha a menor ideia de por que o DNA de Selena havia surgido na investigação sobre Cronos. A assistente de pesquisa atendeu o telefone desconfiada e sua voz soou chocada quando Karen lhe revelou o gosto de Selena pela alta-costura. – Como é que é? – reagiu a assistente. – Não. Impossível. Ela costumava zombar de tudo que tivesse a ver com moda e penteados. Mas é bem verdade que estava sempre de lenço. – Ela saía com alguém, tinha namorado? – perguntou a jornalista. – Alguém para quem pudesse se produzir? Nina adotou uma atitude defensiva. – A polícia me perguntou a mesma coisa. Vou dizer a você o que disse a eles. Acho que ela era gay, mas sei lá. Ela era uma pessoa discreta. A assistente então disse que precisava desligar e, às onze da noite daquela quartafeira, Karen estava tão exausta quanto se tivesse corrido várias maratonas nos últimos seis dias. No entanto, forçou-se a retomar a lista de indícios e seguiu em frente. Não encontrou nada até o finalzinho, quando viu uma referência a uma caixa de fósforos cor-de-rosa na qual se podiam ler as letras CAN. Tentou visualizar uma caixa de fósforos cor-de-rosa com as letras CAN. Instituto do câncer? Luta contra o câncer de mama? O rosa não é a cor desse movimento? Ou seria alguma outra coisa? Por volta da meia-noite, frustrada com sua incapacidade de fazer os indícios falarem, Karen fez uma última tentativa usando uma técnica descoberta meio por acidente alguns anos antes, ao se deparar com fatos díspares que não faziam sentido entre si. Começou a digitar no Google várias sequências de palavras para ver o que aparecia. “Rosa Can Londres” não gerou nenhum resultado interessante. “Rosa Can Londres Olimpíada” também não a levou a lugar algum. Então digitou “Londres Rosa Can Gay Moda Design Liberty Alice”. O Google demorou um pouco e então mostrou os resultados da pesquisa. – Ah, professora – disse Karen, sorrindo. – Quer dizer então que a senhora era
uma lesbian chic?
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Quinta-feira, 2 de agosto de 2012.
ÀS DEZ HORAS DA NOITE seguinte, Karen chegou à Carlisle Street, no Soho. Tivera um dia irritante, improdutivo, daqueles de dar nos nervos. Ligara umas 10 vezes para o promotor de Haia e em todas as vezes uma secretária lhe garantira que ele logo retornaria a ligação, mostrando-se tão gentil e educada que Karen tivera vontade de lhe dar um soco. Pior do que isso: fora obrigada a criar uma matéria com base em outra publicada no Mirror que descrevia a implacável caçada global a Selena Farrell e James Daring. Pior ainda: tivera que escrever a respeito de outra matéria, do The Times, sobre a autópsia e os primeiros resultados dos exames toxicológicos feitos nos treinadores chineses assassinados. Furinhos do tamanho de ferrões de abelha haviam sido encontrados no pescoço de todos eles. Mas as mortes não foram provocadas por choque anafilático. Eles tinham sucumbido a uma neurotoxina mortal chamada calciseptina, derivada e sintetizada do veneno de cobras da espécie mamba-negra. Cobras da espécie mamba-negra?, pensou Karen pela centésima vez nesse dia. Todos os jornais do mundo estavam ficando loucos com esse detalhe e ela deixara passar. Isso apenas a deixou ainda mais determinada. Ao chegar à porta do Candy Bar, teve a bolsa revistada por uma negra maori imensa e em seguida entrou no térreo. A boate estava surpreendentemente cheia para uma noite de quinta-feira. Na mesma hora a jornalista ficou pouco à vontade ao sentir várias mulheres estilosas a observando, avaliando-a. Mesmo constrangida, Karen traçou uma reta até as mulheres, apresentou-se e mostrou-lhes uma foto de Selena Farrell. Elas não a tinham visto, tampouco as seis seguintes a quem a jornalista fez a mesma pergunta. Karen então foi até o bar, onde viu uma caixinha de fósforos cor-de-rosa que correspondia à descrição da lista de indícios. Uma garçonete se aproximou e a jornalista lhe perguntou que drinque ela recomendava. – Que tal um Mamilo Amanteigado? – respondeu a moça. – Schnapps de butterscotch com Bailey’s. Karen franziu o nariz. – Doce demais. – Uma jarra de Pimm’s, então – disse uma mulher sentada no banquinho do bar ao seu lado. Mignon, loura, beirando os 40 anos e muito atraente, ela ergueu um copo
longo do qual despontava um galho de hortelã. – Sempre refrescante numa noite quente de verão. – Perfeito – respondeu Karen, lançando à mulher um sorriso débil. Pretendia mostrar a foto de Selena à garçonete, mas ela já se afastara para preparar seu drinque. Karen então pôs a fotografia em cima do bar e virou-se para a cliente que havia sugerido a bebida. A mulher a examinava com ar de quem estava achando uma certa graça. – Primeira vez aqui no Candy Bar? – perguntou ela. Karen enrubesceu. – Está tão na cara assim? – Para quem sabe olhar, sim – respondeu a mulher e uma expressão fugaz de lascívia atravessou seu rosto enquanto ela estendia a mão de unhas bem-feita. – Meu nome é Nell. – Karen Pope – respondeu a jornalista. – Eu escrevo no The Sun. Nell arqueou as sobrancelhas. – Ah, eu adoro a página 3... Karen deu uma risadinha nervosa. – Infelizmente, eu não. – Que pena – disse Nell, parecendo desapontada. – Nem um pouquinho? – Uma pena, mas não – respondeu Karen e em seguida lhe mostrou a foto. Nell suspirou e chegou mais perto da jornalista para estudar a imagem de Selena, que aparecia sem maquiagem, vestida com uma saia largona e com a cabeça coberta por um lenço no mesmo tom. – Não – disse Nell com um gesto da mão. – Essa eu sei que nunca vi por aqui. Ela não faz exatamente o tipo do bar. Mas você, devo dizer, se encaixa aqui feito uma luva. Karen tornou a rir antes de apontar para a foto e dizer: – Pense nela usando um vestido de coquetel justo da Liberty ou da Alice by Temperley, com os cabelos arrumados em um salão chique... e, bem, não dá para ver nesta foto, mas ela tem uma pinta bem pequenininha perto do maxilar. – Uma pinta? – perguntou Nell com um muxoxo. – Do tipo que tem cabelos? – Não. Tipo um sinal. Como aquele que Elizabeth Taylor tinha. Nell pareceu confusa e em seguida tornou a estudar a fotografia. Instantes depois, soltou um arquejo e disse: – Meu Deus, é Syren!
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Sexta-feira, 3 de agosto de 2012.
NA MANHÃ SEGUINTE, KNIGHT OUVIU pezinhos batendo no chão às sete e meia. Apertou os olhos antes de abri-los e deparou com Isabel segurando sua manta do Ursinho Pooh. – Papai – começou a menina, muito séria. – Quando é que eu faço 3 anos? – No dia 11 de agosto – resmungou Knight em resposta, ao mesmo tempo que olhava para a foto de Kate no pântano da Escócia. – De amanhã a uma semana, meu anjo. – Que dia é hoje? – Sexta. Isabel pensou um pouco nessa informação. – Então falta mais um sábado e mais uma sexta, e aí é amanhã? Knight sorriu. O funcionamento peculiar da mente da sua filha sempre o fascinava. – Isso – respondeu ele. – Dê um beijo no pai. Isabel o beijou. Em seguida, arregalou os olhos. – Vamos ganhar presentes? – Claro, Bella – respondeu Knight. – Vai ser seu aniversário. Louca de animação, a menina começou a bater palmas e a dançar em um pequeno círculo antes de parar de repente. – Que presentes? – Que presentes? – perguntou Luke da porta. Ele entrou no quarto bocejando. – Ah, isso eu não posso contar – respondeu Knight. – Senão estraga a surpresa. – Poxa – disse Isabel, decepcionada. – Luke 3 anos? – perguntou o menino. – Semana que vem – garantiu-lhe Knight. Então ouviu a porta da frente se abrir. Era Marta. Tinha chegado cedo outra vez. A primeira babá perfeita do mundo. Knight vestiu uma calça de moletom e uma camiseta e levou os gêmeos para o andar de baixo. Marta sorriu para eles. – Estão com fome? – Daqui a um sábado e uma sexta é meu aniversário – anunciou Isabel. – Meu também – emendou seu irmão. – Eu vou ser 3 anos. – Vai fazer 3 anos – corrigiu Knight. – Nesse caso, vamos ter que organizar uma festinha – disse Marta enquanto Knight botava as crianças no chão. – Festinha! – repetiu Isabel com um grito e bateu palmas.
Luke soltou um gritinho de alegria, começou a rodopiar e exclamou: – Festinha! Festinha! Os gêmeos nunca haviam tido uma festa de aniversário, pelo menos não no dia certo. A data era uma mistura tão grande de felicidade e tristeza que Knight sempre adiava a comemoração com bolo e sorvete por um ou dois dias, e fazia questão de limitar as festividades. Não soube muito bem como responder à sugestão de Marta. Luke parou de rodopiar e perguntou: – Vai ter balão? – Então, Sr. Knight? – continuou Marta. – O que acha? Vai ter balão? Antes de Knight conseguir responder, a campainha tocou, depois tocou outra vez e mais outra, sem parar. Então alguém bateu a aldraba com tanta força que o barulho o fez pensar num pedreiro quebrando pedras. – Ué, mas que droga, quem pode ser? – resmungou Knight, encaminhando-se para a porta. – Pode dar o café deles, Marta? – Claro – respondeu ela. As fortes batidas recomeçaram antes mesmo que ele pudesse espiar pelo olho mágico e ver Karen Pope em frente à porta de sua casa, com uma expressão irritada no rosto. – Karen – disse ele. – Não estou com tempo para... – Então arrume tempo – gritou ela do outro lado. – Descobri uma coisa que muda completamente o caso. Knight correu os dedos pelos cabelos ainda bagunçados antes de abrir a porta. Com cara de quem tinha passado a noite em claro, Karen foi entrando sem fazer cerimônia enquanto Marta se dirigia para a cozinha com Luke e Isabel. – Luke quer panqueca e salsicha – disse o menino. – Saindo panqueca e salsicha – respondeu Marta enquanto os três sumiam de vista. – Que informação? – perguntou Knight a Karen, encaminhando-se para a sala de estar e tirando uma quantidade suficiente de brinquedos do sofá para que os dois pudessem sentar. – Você tinha razão – disse a jornalista. – Selena Farrell tinha uma vida secreta. Ela então contou a Knight que a professora tinha um alter ego chamado Syren St. James, que assumia quando ia ao Candy Bar paquerar mulheres. Syren era tudo que a professora não era – exuberante, engraçada, promíscua, uma festeira. – Selena Farrell? – perguntou Knight, balançando a cabeça. – Pense nessa parte dela como Syren St. James – retrucou Karen. – Fica mais fácil. – E como você descobriu isso tudo? – indagou ele, sentindo cheiro de salsichas fritando e ouvindo o barulho de panelas e louça na cozinha. – Por uma mulher chamada Nell, que frequenta o Candy Bar e foi para a cama várias vezes com Syren nos últimos anos. Ela a identificou graças àquele sinal perto do
lado direito do maxilar. Knight se lembrou de como havia pensado que a professora seria bonita nas circunstâncias certas. Deveria ter dado ouvidos a seus instintos. – E quando foi a última vez em que essa mulher viu... ahn, Syren? – Na sexta passada, no final da tarde, antes da abertura dos jogos – respondeu Karen. – Ela foi ao Candy Bar vestida para matar, mas dispensou Nell dizendo que já tinha um encontro marcado. Mais tarde, Nell a viu indo embora com uma desconhecida, uma mulher usando um chapéu sem abas com um véu de renda preto que escondia a parte superior de seu rosto. Acho que essa mulher poderia ser uma das irmãs Brazlic, não concorda? Na cozinha de Knight, algum objeto frágil caiu no chão e se estilhaçou.
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A VILA OLÍMPICA JÁ ACORDOU FAZ tempo. Nadadores australianos estão a caminho do parque aquático, onde acontecerão as eliminatórias dos 1.500 metros masculinos. Ciclistas espanhóis dirigem-se ao velódromo para uma pedalada leve antes da competição masculina por equipes, marcada para mais tarde. Um time de handebol da Moldávia acaba de passar por mim. E também aquele jogador de basquete americano – cujo nome sempre esqueço. Tudo isso é irrelevante. O que importa é que estamos no final da primeira semana dos jogos e todos os atletas da vila olímpica estão tentando não pensar em mim ou em minhas irmãs, tentando não se perguntar se serão os próximos. Mas agora já acham impossível não pensar em nós. Conforme previ, a mídia ficou louca com nossa história. Para cada reportagem comovente na TV sobre um atleta que superou o câncer ou a morte de um parente e ganhou uma medalha de ouro, houve três outras reportagens sobre o efeito que estamos tendo nas competições. Estão nos chamando de tumores. De flagelo. De manchas negras que estão maculando as Olimpíadas. Ah! Os únicos tumores e manchas negras são aqueles que foram gerados pelos próprios jogos. Eu apenas estou revelando o que eles realmente são. De fato, ao caminhar assim em meio aos olimpianos – anônimo, entusiasmado, disfarçado, um outro eu –, tenho a sensação de que, com exceção de alguns percalços menores, tudo tem corrido espantosamente de acordo com os planos. Petra e Teagan se vingaram dos chineses e executaram sua fuga com perfeição. Marta conseguiu entrar na vida de Knight e está monitorando sua atividade virtual, fornecendo-me informações privilegiadas sobre todas as investigações que ele iniciou e por quê. Por fim, hoje mais cedo fui buscar a segunda sacola de raspas de magnésio, a que havia escondido no velódromo durante a obra, há quase dois nos. Estava exatamente onde eu a deixara. A única coisa que está me incomodando é... Meu celular descartável toca. Faço uma careta. Antes de saírem para sua mais recente missão, ao meio-dia de ontem, Petra e Teagan receberam ordens expressas para que não me ligassem. Então deve ser Marta. Atendo e falo rispidamente antes mesmo de ela conseguir abrir a boca: – Sem nomes! E jogue esse telefone fora assim que desligarmos. Descobriu qual foi o erro? – Não exatamente – responde Marta com um quê de alarme na voz que é bastante raro, e que por isso mesmo me perturba no mesmo instante. – O que houve? – pergunto. – Eles sabem – sussurra ela. Ao fundo, ouço o choro de um monstrinho.
O choro e o sussurro de Marta me atingem como pedras e bombas detonadas em carros, provocando na minha cabeça uma violenta tempestade que destrói meu equilíbrio. Abaixo-me e apoio um dos joelhos no chão, com medo de cair. A luz à minha volta parece ultravioleta, com exceção de um halo verde cor de óleo diesel que pulsa no mesmo ritmo das sensações lancinantes dentro do meu crânio. – Está tudo bem? – pergunta uma voz de homem. Posso ouvir o choro pelo celular, agora pendurado dentro da minha mão junto ao corpo. Ergo os olhos através do halo verde e vejo um funcionário de manutenção da vila em pé a poucos metros de mim. – Tudo – consigo dizer, lutando para me controlar apesar da raiva que cresce dentro de mim e me faz querer arrancar a cabeça dele, só por maldade. – Fiquei meio tonto, só isso. – Quer que eu chame alguém? – Não – respondo, esforçando-me para ficar de pé. Embora o halo verde ainda pulse e o interior do meu crânio continue sendo rasgado, o ar à minha volta já cintila um pouco menos. Afastando-me do funcionário, rosno para o celular: – Faça essa criança calar a boca. – Se pudesse eu faria, pode acreditar – responde Marta. – Espere aí, vou lá para fora. Ouço uma porta se fechar, seguida pelo barulho de uma buzina. – Melhorou? Só um pouco. Meu estômago se revira quando pergunto: – Eles sabem do quê? Falando com dificuldade, Marta me conta que eles sabem das irmãs Brazlic e tudo recomeça: os rasgos, o halo verde e a raiva violentíssima que agora me domina tão completamente que me sinto como um animal acuado, eu próprio um monstro, prestes a dilacerar a garganta de quem se aproximar. Vejo um banco mais adiante e vou me sentar. – Como? – Não sei – responde Marta e em seguida explica como entreouviu Karen mencionar as irmãs Brazlic e ficou tão abalada que derrubou uma tigela, fazendo-a se espatifar no chão da cozinha. Com vontade de esganá-la, pergunto: – Knight está desconfiado? – De mim? Não – responde Marta. – Eu me fiz de constrangida e pedi desculpas, dizendo que a tigela estava molhada. Ele me disse que aquilo não tinha a menor importância e para eu apenas me certificar de ter recolhido todos os cacos antes de deixar os pirralhos andarem na cozinha. – Onde eles estão agora... Knight e a jornalista? O que mais eles sabem? – Ele saiu com ela faz uns 10 minutos e disse que só voltaria tarde – responde
Marta. – Tudo que sei é o que acabei de contar. Mas, se eles sabem sobre as irmãs, então sabem também o que as irmãs fizeram na Bósnia, e os promotores de crimes de guerra sabem que estamos em Londres. – Provavelmente sim – acabo concordando. – Mas é tudo que eles têm. Se soubessem mais alguma coisa, estariam procurando vocês por um dos nomes que estão usando. Estariam na nossa porta. Após alguns instantes de silêncio, Marta pergunta: – O que eu faço, então? Cada vez mais certo de que a distância entre quem as Fúrias eram e quem haviam se tornado é grande o suficiente para evitar qualquer conexão, respondo: – Fique perto dessas crianças. Podemos precisar delas nos próximos dias.
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Domingo, 5 de agosto de 2012.
ÀS SETE DA NOITE, O clima dentro do estádio olímpico estava mais que agitado. De sua posição nas arquibancadas do lado oeste, bem acima da linha de chegada da pista de corrida, Knight podia sentir a expectativa que dominava as 80 mil pessoas sortudas o bastante para conseguir um ingresso e ver quem seria o homem mais rápido do mundo. Também podia ver e ouvir o medo competindo com a expectativa. Todos estavam se perguntando se Cronos iria atacar ali. A disputa com certeza era importante o suficiente. Até o momento, a prova de 100 metros rasos se desenrolava conforme o previsto. Tanto Shaw quanto Mundaho tinham se saído extremamente bem nas corridas classificatórias da véspera. Ambos haviam dominado e vencido com facilidade suas respectivas provas. No entanto, enquanto o jamaicano pudera descansar entre as corridas, o camaronês tivera que enfrentar também as classificatórias para os 400 metros. O desempenho de Mundaho tinha sido quase sobre-humano: um tempo de 43,22”, só quatro centésimos de segundo a mais que o recorde mundial estabelecido por Henry Ivey no campeonato mundial de atletismo em Sevilha, 43,18”. Nessa noite, Mundaho e Shaw venceram suas respectivas semifinais para a disputa dos 100 metros rasos e o camaronês ficou apenas dois centésimos de segundo abaixo do recorde mundial de Shaw, 9,58”. Os dois estavam se preparando para o confronto na grande final. Em seguida, Shaw poderia descansar, enquanto Mundaho teria que correr as semifinais dos 400 metros. Dureza, pensou Knight enquanto examinava o público pelo binóculo. Será que Mundaho iria conseguir ganhar os 100, os 200 e os 400 metros em uma única edição dos jogos? No final das contas, será que isso tinha mesmo importância? Será que as pessoas iriam de fato ligar para isso depois de tudo o que acontecera nos jogos de Londres em 2012? Tirando a alegria demonstrada pelos londrinos mais cedo nesse dia, quando a britânica Mary Duckworth vencera a maratona feminina, a ansiedade em relação às Olimpíadas tinha aumentado dramaticamente nas últimas 48 horas. No sábado, o The Sun finalmente publicara a matéria de Karen explicando a ligação entre os assassinatos e as irmãs sérvias chamadas Brazlic, procuradas por crimes de guerra. A jornalista revelava também que tanto James Daring quanto Selena Farrell tinham servido nos Bálcãs por volta da época em que as Brazlic estavam na ativa, executando homens e meninos inocentes na cidade de Srebrenica e arredores.
Descobrira-se que Selena era uma voluntária das Nações Unidas destacada para atuar junto à Otan na área atingida pelo conflito. Ainda não havia muitos detalhes quanto às atribuições exatas da professora naquela missão, mas Karen descobrira que Selena ficara gravemente ferida em algum tipo de acidente automobilístico no verão de 1995 e fora mandada para casa. Após uma curta convalescença, ela havia retomado o doutorado e tocado a vida. A matéria causou um rebuliço que se tornou ainda maior quando, no final da noite de sábado, o corpo de Emanuel Flores, árbitro brasileiro de judô, foi encontrado perto de um aterro de lixo na região das docas de Londres conhecida como Docklands, a vários quilômetros da arena ExCeL, estádio que não ficava na área do parque olímpico e no qual ele vinha trabalhando. Apesar de ser especialista em combate corpo a corpo, Flores fora estrangulado com um garrote feito com um pedaço de cabo de aço. Em uma carta para Karen Pope totalmente desprovida de indícios criminalísticos, Cronos afirmava que Flores havia aceitado subornos para favorecer determinados atletas nas lutas. A documentação sustentava as alegações sob alguns aspectos, mas não sob outros. Essa morte desencadeou uma reação entre emissoras e jornalistas do mundo inteiro, que exigiram uma ação do governo britânico e expressaram indignação generalizada com o fato de Cronos e suas Fúrias estarem agindo com aparente liberdade. Naquela manhã, Uruguai, Coreia do Norte, Tanzânia e Nova Zelândia haviam decidido retirar seus atletas da última semana de competições. Integrantes do Parlamento e da Greater London Authority – governo regional formado pelo prefeito de Londres e uma assembleia eleita – haviam reagido tornando a pedir com veemência a renúncia ou a demissão de Mike Lancer e a intensificação da caçada a Daring e Selena. Lancer, visivelmente abatido, passara o dia inteiro diante das câmeras defendendo suas ações. Por volta da meia-noite, anunciara que estava dispensando a F7 do controle das entradas do Parque Olímpico e trazendo Jack Morgan, da Private, para comandar o esquema de segurança. Junto com a Scotland Yard e o MI5, decidiu-se implantar medidas draconianas para o acesso aos estádios, incluindo novos detectores de metal, mais controles de identidade e revistas corporais. Mas isso não bastou para acalmar os ânimos. Dez países, entre eles a Rússia, tinham aventado a ideia de que os jogos deveriam ser interrompidos até que a segurança pudesse ser garantida. No entanto, numa reação imediata e agressiva, um número espantoso de atletas tinha feito um abaixo-assinado digital, redigido e distribuído pela americana Hunter Pierce, que não apenas condenava os assassinatos, mas também exigia, em tom desafiador e veemente, que o COI e o comitê organizador não cedessem ao pedido de cancelar os jogos. O prefeito de Londres, o primeiro-ministro e Marcus Morris felizmente haviam escutado os atletas e decidiram dar continuidade às Olimpíadas, alegando que a GrãBretanha nunca se dobrara ao terrorismo e que não era agora que o faria.
Apesar do aumento estarrecedor de medidas de segurança, alguns espectadores tinham mantido distância do que prometia ser o maior evento esportivo dos jogos. Knight podia ver alguns lugares vazios espalhados pelo estádio, algo impensável antes do início do evento. Pensando bem, quase tudo o que havia acontecido até ali era impensável antes dos jogos. – Esses malditos estragaram tudo, Knight – disse Lancer, amargurado. O chefe da segurança tinha aparecido ao seu lado enquanto ele observava a multidão. Assim como Knight, Lancer tinha na orelha um fone de rádio sintonizado na frequência da segurança do estádio. – Aconteça o que acontecer daqui para a frente, 2012 está maculado para sempre... A multidão ao seu redor se levantou com um pulo e começou a aplaudir freneticamente. Os competidores da final dos 100 metros rasos estavam entrando na pista. Shaw, atual campeão olímpico, foi o primeiro a aparecer, e pôs-se a dar pequenas corridinhas e a sacudir as mãos, golpeando o ar como se elas fossem ferramentas de cortar. Mundaho entrou na pista por último, correndo bem devagar, com um ar quase sonolento. Então se agachou e pôs-se a pular pela pista feito um canguru. Tinha tanto poder de explosão que muitos espectadores arquejaram e Knight pensou: Isso é possível? Alguém já fez isso antes? – Esse cara é um fenômeno – comentou Lancer. – Um verdadeiro fenômeno da natureza.
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A CHAMA OLÍMPICA NO ALTO DAOrbit ardia reta, sem qualquer oscilação, e as bandeiras em volta do estádio pendiam dos mastros. O vento e estava praticamente a zero, condição perfeita para uma corrida de velocidade. O fone de Knight chiava com chamados e respostas trocados por Jack, a equipe de segurança e Lancer, que havia se afastado para assistir a prova de outro ângulo. Knight olhou em volta. Bem no alto do estádio, atiradores de elite do SAS, o Serviço Aéreo Especial do Exército britânico, estavam deitados de bruços atrás dos fuzis. Um helicóptero cruzou o céu. Os aparelhos militares tinham passado o dia inteiro sobrevoando o Parque Olímpico e o número de guardas armados ao redor da pista fora duplicado. Nada de ruim vai acontecer aqui hoje, disse Knight a si mesmo. Qualquer ataque seria um suicídio. Os corredores foram até os blocos de largada, equipados com um sistema de cronometragem de última geração e totalmente automático chamado FAT. Cada bloco era construído ao redor de placas de pressão ultrassensíveis conectadas a computadores, a fim de detectar qualquer largada antecipada. Na linha de chegada, conectada a esses mesmos computadores, havia uma grade invisível formada por fachos de raios laser e calibrada a um milionésimo de segundo. O público agora estava em pé, tentando ter uma visão melhor do estádio, enquanto o apresentador chamava os velocistas para suas marcas. Shaw correria na raia três e Mundaho, na cinco. O jamaicano olhou de relance para o camaronês, que girava o corpo em frente ao seu bloco de largada. Os corredores então posicionaram as sapatilhas sobre os sensores de pressão e levaram os dedos abertos à pista, abaixando à cabeça. Dez segundos, pensou Knight. Esses caras passam a vida inteira se preparando para correr 10 segundos. Não conseguia imaginar uma coisa assim: toda a pressão, todas as expectativas, toda a força de vontade e todo o sofrimento necessários para se tornar um campeão olímpico. – Preparar – anunciou o árbitro e os corredores ergueram os quadris. O tiro foi dado, a multidão soltou um rugido e Mundaho e Shaw pareceram duas panteras saindo em disparada atrás de uma presa. O jamaicano foi mais rápido nos primeiros 20 metros, pois conseguiu desenrolar as longas pernas e braços antes do camaronês. Nos 40 metros seguintes, porém, o ex-menino-soldado correu como se houvesse balas em seu encalço. Mundaho alcançou Shaw aos 80 metros, mas não conseguiu ultrapassar o jamaicano.
E Shaw não conseguiu se desvencilhar do camaronês. Lado a lado, os dois foram avançando pela pista, correndo atrás da imortalidade e tentando entrar para a história, como se os outros competidores nem ao menos estivessem ali. Eles pareceram inclinar o tronco para a frente e romper a linha de chegada simultaneamente com o tempo de 9,38”, dois centésimos de segundo abaixo do incrível desempenho de Shaw em Pequim. Um novo recorde olímpico! Um novo recorde mundial!
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O ESTÁDIO EXPLODIU EM GRITOS e assovios para Mundaho e Shaw. Mas qual dos dois havia vencido? Nos grandes monitores, os resultados ainda não oficiais mostravam Shaw em primeiro e Mundaho em segundo. Os tempos, contudo, eram idênticos. Pelo binóculo, Knight pôde ver os dois velocistas arquejando para recuperar o fôlego, mãos na cintura, olhando não um para o outro, mas para os monitores que reprisavam a corrida em câmera lenta, enquanto juízes estudavam os dados dos raios laser na linha de chegada. Knight ouviu o apresentador dizer que, embora no passado já tivesse havido empates em eventos olímpicos com juízes, como a ginástica, além de um empate entre dois nadadores norte-americanos nas Olimpíadas de Sydney em 2002, isso nunca acontecera no atletismo, em nenhuma edição dos Jogos Olímpicos da Era Moderna. Segundo o apresentador, os árbitros iriam examinar fotografias e aumentar a precisão da cronometragem para milésimos de segundos. Ele observou os árbitros reunidos junto à pista e viu quando o mais alto deles balançou a cabeça. Instantes depois, os monitores estamparam as palavras resultados oficiais e divulgaram um empate entre Shaw e Mundaho, com 9,382”. – Minha decisão é não fazer outra corrida – anunciou o árbitro. – Considero esta a maior corrida de todos os tempos, e o cronômetro está correto. Os dois bateram o recorde mundial. Os dois ganharam o ouro olímpico. O estádio tornou a ser sacudido por vivas, assovios e gritos. Pelo binóculo, Knight viu Shaw com os olhos erguidos para os resultados e depois olhar para o árbitro com uma expressão cética e irritada. Em seguida, porém, a expressão do jamaicano se abrandou com um sorriso que se abriu até ocupar todo o seu rosto. Ele deu uma corridinha até Mundaho, que também estava sorrindo para ele. Os dois trocaram umas poucas palavras. Então apertaram-se as mãos, ergueram-nas no ar e foram correndo até os espectadores extasiados, segurando, cada um em sua mão livre, a bandeira de seu país. Os dois atletas deram juntos a longa volta olímpica pelo estádio e, para Knight, foi como se uma agradável chuva de verão tivesse vindo dissipar do ar uma fumaça malcheirosa. Cronos e as Fúrias não pareciam mais uma força tão dominante nas Olimpíadas de Londres quanto eram poucos minutos antes. Correr assim, juntos, numa grandiosa demonstração de espírito esportivo, era a forma de os dois velocistas dizerem ao mundo que os jogos modernos ainda representavam uma força do bem, uma força capaz de exaltar a humanidade compartilhada por todos diante dos cruéis ataques de Cronos.
Foi isso que Shaw disse quando ele e Mundaho voltaram à linha de chegada e começaram a responder às perguntas dos jornalistas. Knight acompanhou tudo nos grandes monitores do estádio. – Quando vi o empate, não acreditei – reconheceu o jamaicano. – Para dizer a verdade, minha primeira reação foi ficar com raiva. Eu tinha batido meu recorde, mas não tinha terminado na frente de todos os outros, como em Pequim. Mas depois pensei em tudo o que já aconteceu aqui e vi que o empate era uma coisa linda, boa para o velocismo, para o atletismo e para as Olimpíadas. Mundaho concordou dizendo: – Fico honrado por ter corrido ao lado do grande Zeke Shaw. A maior honra da minha vida é ter meu nome citado junto ao dele na mesma frase. O jornalista então perguntou quem iria ganhar a final dos 200 metros, na quartafeira à noite. Ambos bateram no peito e disseram: “Eu.” Então riram e deram tapinhas nas costas um do outro. Quando os dois atletas saíram do estádio, Knight respirou aliviado. Pelo menos Cronos não os havia escolhido como alvos. Na hora seguinte, durante as semifinais dos 1.500 metros masculinos e dos 3 mil metros com obstáculos, Knight começou a pensar na mãe. Amanda prometera não se tornar amargurada e retraída como tinha feito após a morte do pai de Knight. Mas as duas últimas conversas que ele tivera com Gary Boss o levavam a pensar que era exatamente isso que ela estava fazendo. Amanda não estava atendendo às suas ligações. Não estava atendendo às ligações de ninguém, nem mesmo daqueles que desejavam ajudar a organizar uma cerimônia de homenagem a Denton Marshall. Segundo seu assistente, passava todas as horas de seu dia em frente à mesa de trabalho, desenhando roupas – centenas de croquis. Ele quisera visitá-la na véspera e naquele dia pela manhã, mas Boss insistira para que não o fizesse. O assistente achava que ela precisava atravessar aquela fase sozinha, pelo menos por mais alguns dias. Knight estava muito triste pela mãe. No fundo, sabia o que ela estava enfrentando. Ele próprio havia pensado que a tristeza pela morte de Kate nunca iria passar. E, de certa forma, nunca iria mesmo. Mas havia encontrado nos filhos uma forma de seguir em frente. Torceu para que a mãe também encontrasse seu jeito de fazer isso – outro jeito que não o trabalho. Então pensou nos gêmeos. Estava a ponto de ligar para casa e dar boa-noite quando o apresentador chamou os competidores da semifinal dos 400 metros masculinos. O público tornou a se levantar quando Mundaho emergiu do túnel que vinha da pista de aquecimento. O camaronês entrou no estádio correndo, exibindo a mesma confiança anterior à prova dos 100 metros, movendo-se daquela maneira típica, como se todas as juntas de seu corpo fossem frouxas. No entanto, em vez de dar aqueles explosivos pulos de canguru, o velocista pôs
se a saltitar e em seguida a dar pulos altos, afastando bem os pés da superfície da pista e projetando o corpo para a frente como se fosse um cervo ou uma gazela. Que outro homem consegue fazer isso?, pensou Knight com admiração. De onde teria vindo a ideia de que ele podia fazer isso? Das balas zunindo em seu encalço? O camaronês diminuiu o passo ao se aproximar do bloco de largada na raia 1, a posição mais para dentro e mais para trás da fileira de corredores. Será que Mundaho conseguiria aquele feito? Correr uma distância quatro vezes maior que a que acabara de vencer em tempo recorde? Era óbvio que Zeke Shaw também queria saber isso, pois reapareceu na entrada que ligava a pista de treino ao estádio e ficou ali parado junto com três gurkhas, todos olhando para o norte em direção aos atletas prestes a competir. – Às suas marcas – anunciou o apresentador. Mundaho encostou no bloco de largada as sapatilhas de corrida com pequeninas travas de metal na sola. Agachou-se e retesou o corpo quando o árbitro anunciou: – Preparar. O tiro ecoou no estádio quase silencioso. O camaronês deu impulso para longe do bloco de largada, que, um milionésimo de segundo depois, irradiou uma luz branca ofuscante e prateada ao explodir e se desintegrar, projetando rente ao chão um rastro de fogo e estilhaços de metal afiados e incandescentes que atingiram por trás a parte inferior do corpo de Mundaho, empurrando o camaronês para a frente e para o chão, onde ele se encolheu e começou a gritar.
PARTE QUATRO
MARATONA
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KNIGHT FICOU TÃO CHOCADO QUE passou vários segundos sem conseguir se mexer. Como muitos dos espectadores que estavam no estádio, ficou apenas olhando Mundaho se contorcer no chão, soluçando e gemendo de agonia, segurando as pernas carbonizadas e cobertas de sangue. Sentiu um horror tão grande que seu estômago chegou a embrulhar . A corrida foi interrompida e os outros velocistas olharam para trás, atônitos com a carnificina que acabara de acontecer na raia 1. A intensa labareda metálica se apagou, deixando a pista chamuscada no lugar onde antes ficava o bloco de largada. Dali emanava um forte cheiro de queimado que fez Knight pensar em sinalizadores de segurança e pneus derretidos. Paramédicos entraram às pressas no estádio para socorrer o atleta camaronês e vários auxiliares da corrida que também haviam sido atingidos pelos estilhaços incandescentes. – Quero todos os envolvidos na fabricação desses blocos de largada detidos para interrogatório – berrou Lancer pelo rádio, quase descontrolado. – Encontrem os cronometristas, os árbitros, todo mundo. Detenham todos eles! Sem exceção! Em volta de Knight, os espectadores começavam a sair do estado de choque inicial – alguns choravam, outros maldiziam Cronos. Muitos começaram a se dirigir para a saída, enquanto voluntários e seguranças tentavam manter a calma. – Jack, Mike, algum de vocês consegue me fazer entrar lá embaixo? – perguntou Knight. – Negativo – respondeu Jack. – Sem chance – reiterou Lancer. – A Scotland Yard já mandou isolar a pista para a unidade especializada em bombas. De repente, Knight ficou furioso por aquilo ter acontecido com Mundaho e com as Olimpíadas – furioso por terem sido pegos nos meandros podres de uma mente doentia e serem obrigados a sofrer por isso. Não dava a mínima para o que Cronos iria alegar sobre o velocista. Independentemente do que Mundaho pudesse ter feito, ele não merecia estar ali caído na pista, todo queimado. Deveria era estar fazendo todos os outros atletas comer poeira em sua busca pela imortalidade olímpica. Mas em vez disso estava sendo retirado da pista numa maca. O público começou a bater palmas enquanto os paramédicos empurravam o corredor camaronês em direção a uma ambulância. Tinham espetado sondas em seu braço, e estava claro que haviam lhe administrado algum remédio, embora Knight pudesse ver pelo binóculo que o ex-menino-soldado ainda sentia uma dor lancinante. Knight ouviu pessoas dizendo que os jogos agora teriam que ser cancelados e
ficou furioso ao pensar que Cronos talvez tivesse vencido, que talvez aquele fosse mesmo o fim de tudo. Mas então ouviu um homem no meio da multidão dizer que não havia a menor hipótese de aquilo acontecer, pois, segundo um artigo que lera no Financial Times, apesar de os patrocinadores e veículos oficiais de transmissão dos jogos de Londres 2012 mostrarem-se publicamente indignados com os atos de Cronos, estavam secretamente maravilhados com a cobertura 24 horas que os jogos estavam tendo e com o apetite aparentemente insaciável do público pelas diversas facetas da história. – A audiência das Olimpíadas está sendo a maior de todos os tempos – disse o homem. – Estou dizendo: não há a menor chance de os jogos serem cancelados. Knight não teve tempo de pensar em nada disso. De repente, Shaw surgiu correndo da entrada do estádio, trazendo na mão a bandeira de Camarões, junto com mais ou menos uma dezena de atletas que ainda participavam da prova dos 400 metros rasos. O grupo correu até a traseira da ambulância e puxou o coro: – Mundaho! Mundaho! O público que restava no estádio foi à loucura. Alguns gritavam e choravam, enquanto outros, aos berros, condenavam Cronos e as Fúrias. Apesar dos paramédicos à sua volta, apesar da dor lancinante que lhe varava o corpo, apesar dos remédios, Mundaho ouviu os gritos e viu a homenagem que os companheiros de esporte e o público lhe prestavam. Antes de ser embarcado na ambulância, o velocista camaronês ergueu o braço direito e cerrou o punho. Todos no estádio aplaudiram o gesto, inclusive Knight. Mundaho estava ferido, mas não aniquilado. Mesmo queimado, ainda era um soldado aguerrido. Talvez nunca mais voltasse a correr, mas sua energia e seu espírito olímpico seguiam fortes.
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COM A SENSAÇÃO DE QUE ia vomitar, Karen Pope engoliu alguns comprimidos de antiácido enquanto olhava incrédula a TV da redação do The Sun, que mostrava os paramédicos pondo o valente corredor camaronês dentro da ambulância. Ela e Finch, seu editor, estavam esperando a carta de Cronos chegar – eles e os investigadores da Polícia Metropolitana que haviam ocupado a recepção do jornal à espera do mensageiro, na esperança de conseguir rastrear rapidamente o local onde a carta lhe fora entregue. Karen não queria ler o que Cronos tinha a dizer sobre Mundaho. Pouco lhe importava. Ela se aproximou de Finch e disse: – Estou fora. – Você não pode fazer isso – disparou o editor em resposta. – Que história é essa? Esta é a matéria da sua vida. Agarre esta chance, Karen. Você tem sido brilhante. Ela caiu em prantos. – Não quero agarrar esta chance. Não quero fazer parte disto, de matar e aleijar pessoas. Não foi para isto que escolhi ser jornalista. – Você não está matando nem aleijando ninguém – retrucou Finch. – Mas estou ajudando! – gritou ela. – Nós somos iguais àquela gente que publicou o manifesto do Unabomber nos Estados Unidos quando eu era pequena! Estamos sendo cúmplices de assassinato, Finch! Eu estou sendo cúmplice de assassinato e me recuso a fazer isso. Não consigo. – Você não está sendo cúmplice de nada – disse Finch, abrandando a voz. – Nem você, nem eu. Estamos apenas dando as notícias, do mesmo modo que jornalistas antes de nós noticiaram Jack, o Estripador. Você não está ajudando: está revelando os fatos. É essa a nossa obrigação, Karen. A sua obrigação. Ela o encarou. Sentia-se muito pequena, insignificante. – Por que eu, Finch? – Não sei. Talvez algum dia descubramos por quê, mas agora eu não sei. Karen não conseguiu mais discutir. Simplesmente se virou, foi até sua mesa, deixou-se cair na cadeira e abaixou a cabeça. Então seu BlackBerry apitou, alertando-a sobre o recebimento de uma mensagem. Ela expirou pela boca e pegou o aparelho. Viu que tinha recebido um e-mail do remetente “Cronos”, com um arquivo anexado. Quis quebrar o telefone em mil pedaços, mas não parava de ouvir a voz de seu editor lhe dizendo que era sua obrigação expor aquelas pessoas, mostrar como realmente eram. – Chegou, Finch – disse ela com voz trêmula. – É melhor alguém avisar à polícia que não vai aparecer nenhum mensageiro. Finch assentiu.
– Deixe que eu aviso – disse ele. – Você tem uma hora até o fechamento. Karen hesitou, mas logo em seguida ficou com raiva e abriu o arquivo anexo. Cronos imaginara que Mundaho fosse morrer na pista. Sua carta justificava a “morte” como “uma justa retribuição pelo crime da arrogância”, um dos maiores pecados da Grécia antiga. Arrogante, vaidoso, orgulhoso, um homem que desafiava os deuses – eram essas as acusações contra Mundaho. Cronos havia anexado e-mails, mensagens de texto e postagens e comentários do Facebook que Mundaho trocara com Matthew Hitchens, seu agente de Los Angeles. Segundo Cronos, as conversas entre os dois não tratavam da luta para alcançar a grandeza em si ou para obter a aprovação divina, como acontecia nos jogos antigos. Muito pelo contrário: Cronos mostrava uma correspondência centrada no dinheiro e nos ganhos materiais, com longas conversas sobre como o fato de vencer a “trifeta” do velocismo nas Olimpíadas de Londres provavelmente aumentaria o valor mundial de Mundaho em várias centenas de milhões de dólares ao longo de uma carreira publicitária que iria durar duas décadas. “Mundaho pôs à venda o dom que lhe foi dado pelos deuses”, concluía Cronos. “Para ele, não havia glória nenhuma no simples fato de ser o homem mais rápido do mundo. Só pensava no lucro. Com isso, sua arrogância para com os deuses se destacava ainda mais. Na verdade, Mundaho se considerava um deus, merecedor de grande riqueza e da imortalidade. O castigo para o crime da arrogância deve ser rápido e certeiro.” Mas Mundaho não morreu, pensou Karen, com uma satisfação que a dominou por completo. – Você tem o telefone do agente de Mundaho? – gritou ela para Finch. Depois de pensar por alguns instantes, o editor fez que sim com a cabeça. – Está aqui, na lista que compilamos para os jogos. Ele deu o número para Karen, que mandou um torpedo para o agente:
Sei q está com Mundaho. Cronos está fazendo acusações a ele e a vc. Me ligue.
Depois de enviar a mensagem, ela deixou o telefone de lado e começou a escrever um rascunho de sua matéria. Repetia para si mesma que não estava ajudando Cronos. O fato de expô-lo no jornal significava que ela o estava combatendo. Para sua surpresa, o celular não demorou nem cinco minutos para tocar. Era Matthew Hitchens, claramente abalado, a caminho do hospital para onde Mundaho havia sido levado. Karen lhe disse quanto lamentava o ocorrido e em seguida confrontou o agente com as acusações de Cronos. – Ele não está contando a história toda – reclamou Hitchens em tom amargurado. – Ele não disse por que Filatri queria todo esse dinheiro. – Então me diga você – pediu a jornalista. – O plano dele era usar o dinheiro para ajudar crianças sobreviventes de zonas de
guerra, sobretudo as que tivessem sido raptadas e obrigadas a combater como meninossoldados em conflitos que não compreendiam e nos quais não acreditavam. Nós já criamos a Fundação Mundaho para Órfãos de Guerra, cujo objetivo é ajudar Filatri a realizar esse sonho depois das Olimpíadas. Posso lhe mostrar os documentos de registro da fundação. Eles foram assinados muito antes de Berlim, muito antes de qualquer boato sobre ele ganhar três medalhas de ouro. Ao ouvir isso, Karen viu como poderia revidar o ataque de Cronos. – Quer dizer que, além de arruinar o sonho e a vida de um ex-menino-soldado, as ações de Cronos podem ter destruído a esperança e as oportunidades de crianças traumatizadas pela guerra no mundo inteiro? Foi com a voz embargada que Hitchens respondeu: – Acho que isso resume mais ou menos a tragédia que acabou de acontecer. Karen pensou em Mundaho, cerrou o punho e disse: – Então, Sr. Hitchens, é isso que a minha matéria vai dizer.
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Segunda-feira, 6 de agosto de 2012.
UM FURACÃO DE CATEGORIA CINCO devasta meu cérebro, projetando raios afiados como facas e mais ofuscantes do que o magnésio em combustão. Tudo à minha volta parece saturado de azuis e vermelhos elétricos que, mais que cintilar e brilhar, parecem se rasgar e verter sangue. Aquela vadia imbecil. Ela nos traiu. E Mundaho escapou de uma vingança justa. Tenho gana de aniquilar todos os monstros de Londres. Mas vou me contentar com um só. Tenho plena consciência de que esse ato talvez prejudique um delicado equilíbrio que venho conseguindo manter há mais de 15 anos. Se eu errar a mão, ele poderá se voltar contra mim. Mas a tormenta em meu cérebro não me permite pensar muito nesses possíveis desdobramentos. Em vez disso, como se estivesse assistindo a um velho filme cheio de chuviscos, vejo-me cravar uma faca várias vezes na coxa de minha mãe e lembro, com uma enxurrada de pura emoção, como foi bom, como pareceu correto ter sido injustiçado e em seguida vingado. Quando chego em casa, por volta das quatro da manhã, Petra está à minha espera. Tem os olhos fundos, arredios, vermelhos. Estamos sozinhos. As duas outras irmãs saíram para cumprir novas tarefas. – Por favor, Cronos – começa ela. – A digital foi um erro. O furacão volta a rodopiar furiosamente dentro do meu crânio e é como se ela estivesse olhando para mim do fundo de um funil dominado por um estrondoso redemoinho. – Erro? – repito bem baixinho. – Você por acaso tem ideia do que fez? Deixou os cães nos cercarem. Eles estão sentindo seu cheiro, Andjela. O cheiro de suas irmãs. O meu cheiro. Estão nos esperando com uma jaula para nos levar à força. O rosto de Petra se contorce com uma raiva tão intensa quanto a minha. – Eu acredito em você, Cronos. Entreguei minha vida a você. Matei os dois técnicos chineses por você. Mas, sim, cometi um erro. Um erro só! – Um, não – respondo com a mesma voz suave. – Você deixou sua peruca dentro da parede do banheiro feminino do ginásio. Eles agora têm o seu DNA também. Foi um gesto impetuoso. Você não respeitou o plano. Petra começa a tremer e a chorar. – O que você quer que eu faça, Cronos? O que posso fazer para consertar meu
erro? Passo vários segundos sem responder. Em seguida suspiro e caminho até ela de braços abertos. – Nada, irmã – respondo. – Não há nada que você possa fazer. A luta continua. Petra hesita, mas acaba aceitando meu abraço e me aperta com tanta força que passo alguns instantes sem ter certeza do que fazer. Mas então minha mente se detém na imagem de uma sonda intravenosa espetada em meu braço e conectada a uma bolsa plástica cheia de líquido. Por um breve instante penso no que essa imagem significou para mim, em como ela me consumiu, me guiou e me moldou. Sou bem mais alto do que Petra. Ao retribuir seu abraço, meus braços se fecham naturalmente atrás de seu pescoço e pressionam seu rosto com força de encontro a meu peito. – Cronos – diz ela antes de sentir a pressão aumentar. Petra começa a sufocar. – Não! – consegue articular com um sussurro rouco. Em seguida se debate violentamente entre meus braços, tentando me dar socos e chutes. Sei muito bem quão perigosa ela é e com quanta ferocidade consegue lutar se tiver espaço. Por isso, minha pressão em seu pescoço não cede. Em vez disso fica cada vez mais forte, até que dou um grande passo para trás e em seguida giro os quadris com um movimento seco. O gesto tira Petra do chão e a faz balançar no ar com tanta força que, quando projeto o peso do corpo novamente para o outro lado, ouço as vértebras de seu pescoço estalarem e se estilhaçarem como se tivessem sido atingidas por um raio.
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Quarta-feira, 8 de agosto de 2012.
POUCO DEPOIS DAS DEZ DA manhã, Marcus Morris se remexeu na calçada em frente ao Parlamento. Estava pouco à vontade, mas forçou-se a olhar para as câmeras, os microfones e a multidão de jornalistas reunidos à sua volta. – Embora Michael Lancer continue sendo um respeitado colega que trabalhou mais de 10 anos para que estes jogos pudessem acontecer, ele foi dispensado de suas funções até o final das Olimpíadas. – Já não era sem tempo! – berrou alguém. Então, como negociadores ensandecidos na bolsa de valores, os jornalistas aglomerados ao redor de Karen Pope explodiram em perguntas para o presidente do comitê organizador. Ela também queria saber a resposta para a maioria das perguntas feitas ali. Os jogos iriam continuar? Ou seriam cancelados? Se fossem continuar, quem substituiria Lancer como chefe de segurança do comitê? E os países, cada vez mais numerosos, que estavam retirando suas equipes da competição? Será que deveriam dar ouvidos aos atletas, que se mantinham contrários ao cancelamento dos jogos? – Nós estamos ouvindo os atletas – declarou Morris com voz firme. – As Olimpíadas vão prosseguir. O ideal e o espírito olímpicos vão sobreviver. Não cederemos a essa pressão. Quatro dos melhores especialistas da Scotland Yard, do MI5, do SAS e da Private vão supervisionar a segurança durante os últimos quatro dias de competição. Pessoalmente, fico triste que alguns países tenham decidido abandonar o evento. É uma tragédia para os jogos e para os atletas. Morris então se retirou junto com um grupo de agentes da Polícia Metropolitana, que abriram um buraco na multidão para ele passar e guiaram-no em direção a um carro. A grande maioria dos jornalistas avançou atrás do presidente do comitê organizador, gritando perguntas de todos os tipos. Karen não seguiu os colegas. Apoiou-se na cerca de ferro forjado que protege o Parlamento e releu suas anotações e as declarações daquela manhã e da noite anterior. Com um golpe de sorte, conseguira localizar Elaine Pottersfield e descobrir que, além da intensificação radical da caçada a Selena Farrell e James Daring, os esforços das agências de segurança pública estavam concentrados no bloco de largada que havia explodido e ferido Filatri Mundaho. O velocista continuava internado em estado crítico no hospital London Bridge, mas, segundo os boletins médicos, estava demonstrando “uma força impressionante”
após as duas cirurgias de urgência pelas quais havia passado para retirar os estilhaços e tratar as queimaduras. O bloco de largada que havia explodido era outra história. Fabricado pela empresa de equipamentos esportivos Stackhouse usando sua célebre tecnologia International “BEST” Newton TI008, já tinha sido usado 10 vezes por 10 atletas diferentes ao longo da etapa classificatória anterior à corrida. Entre as provas, os blocos eram retirados da pista por funcionários do COI e ficavam trancados dentro de uma sala especial no subsolo do estádio. Antes das corridas, eram montados por uma equipe de especialistas em cronometragem que afirmavam não ter constatado nenhuma falha nos equipamentos antes da explosão. Vários desses especialistas haviam se ferido junto com Mundaho. O auxiliar de atletismo que os havia guardado na noite de sábado era o mesmo que havia destrancado a sala no final da tarde de domingo. Ele se chamava Javier Cruz, era panamenho e, de todos os auxiliares que supervisionavam a corrida, fora o que havia sofrido os ferimentos mais graves: os estilhaços de metal haviam lhe custado um dos olhos. Segundo os especialistas em bombas da Scotland Yard, o artefato explosivo utilizado tinha o formato de um bloco de metal criado para reproduzir nos mínimos detalhes os padrões da Stackhouse. Só que esse bloco continha um espaço oco no qual fora possível inserir raspas de magnésio e um detonador. O magnésio é um material altamente inflamável, que explode e queima com a mesma intensidade do acetileno. “A bomba teria matado qualquer homem comum”, havia declarado Elaine Pottersfield. “Mas o tempo de reação fora do normal de Mundaho salvou sua vida, embora não tenha conseguido salvar suas pernas.” Karen fechou o bloquinho e teve a sensação de que já dispunha de material suficiente para escrever sua matéria. Pensou em ligar para Knight e ver se ele tinha algo a acrescentar ao que ela já sabia, mas nesse momento viu um homem alto sair pelo portão de visitantes do Parlamento, com os ombros curvados para a frente, e seguir apressado rumo ao sul, em direção à St. Margaret Street, no sentido oposto ao da multidão de jornalistas que já começava a se dissipar. Karen olhou de relance para os colegas e, percebendo que nenhum deles tinha visto Michael Lancer, correu atrás dele. Conseguiu alcançá-lo quando Lancer estava entrando no Victoria Tower Gardens. – Sr. Lancer? – chamou ela, diminuindo o passo ao seu lado. – Meu nome é Karen Pope. Eu trabalho no The Sun. O ex-chefe de segurança das Olimpíadas deu um suspiro e a fitou com uma expressão tão desesperada que ela quase não teve coragem de lhe perguntar nada. Dentro da cabeça, porém, ouviu a voz de Finch, aos gritos, mandando-a continuar. – O senhor considera justa a sua demissão? – perguntou ela. Lancer hesitou, parecendo travar um combate dentro de si mesmo, mas por fim baixou a cabeça.
– Sim, considero. Eu quis que os jogos de Londres fossem os mais grandiosos de todos os tempos e também os mais seguros. Durante os anos que passamos nos preparando, sei que tentamos prever todas as eventualidades possíveis. Mas a verdade é que não conseguimos prever alguém como Cronos, um fanático auxiliado por um pequeno grupo de seguidores. Em suma: eu fracassei. Serei responsabilizado pelo que aconteceu. Terei que carregar esse fardo sozinho. Agora, se me dá licença, preciso começar a conviver com isso pelo resto da minha vida.
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Sexta-feira, 10 de agosto de 2012.
É A ÚLTIMA VEZ QUE VOU ter que vir a este maldito buraco, pensou Teagan enquanto passava uma mochila por um rombo aberto na cerca de arame que rodeava o prédio condenado e contaminado de uma fábrica desativada na região das Docklands, a vários quilômetros do Parque Olímpico. Ela se espremeu para passar pela cerca, em seguida tornou a pegar a mochila e ergueu os olhos para o céu negro como tinta. Em algum lugar, uma sirene de nevoeiro ecoou. Logo amanheceria e Teagan tinha muito o que fazer antes de poder sair de uma vez por todas daquele lugar horrível. O orvalho intensificava o cheiro das ervas daninhas pelas quais ela passava ao seguir apressada em direção a sombra escura do prédio abandonado. Perguntou-se como sua irmã Petra estaria se adaptando à nova vida em Creta. Teagan havia lido a reportagem sobre a digital encontrada e temera que Cronos fosse ficar louco de raiva por causa do erro da irmã. Mas a reação dele tinha sido mais prática do que vingativa: Petra fora despachada para a Grécia antes do previsto, a fim de preparar a casa em que os quatro iriam morar depois que tudo aquilo tivesse terminado. Enquanto entrava no prédio por uma janela que havia arrancado com um chute meses antes, Teagan imaginou a casa onde Petra estaria agora, em cima de uma colina com vista para o Egeu, as paredes caiadas contrastando com o azul-cobalto do céu, equipada com tudo que eles poderiam querer ou precisar. Acendeu uma lanterna fina de facho vermelho, prendeu-a ao boné e usou a luz suave para se orientar no que antes era o chão de fábrica de uma tecelagem. Tomando cuidado com o entulho espalhado por ali, foi até a escada que conduzia a um subsolo empoeirado. Não demorou muito a sentir um cheiro ruim e tão forte que fez seus olhos lacrimejarem e a obrigou a parar de respirar pelo nariz e a largar a mochila em cima de um banquinho de três pés. Apoiando o peso do corpo no banquinho para impedi-lo de balançar, ela retirou da mochila oito bolsas para aplicação intravenosa. Dispôs as bolsas na ordem correta e, em seguida, com o auxílio de uma agulha hipodérmica, retirou o líquido de uma ampola e o distribuiu em partes iguais dentro das bolsas. Ao terminar, pescou a chave que trazia pendurada em um cordão no pescoço e pegou as oito bolsas plásticas, quatro em cada mão. Ao chegar à porta em frente à qual o mau cheiro era mais intenso, pousou as bolsas no chão e inseriu a chave no cadeado. A argola se soltou com um estalo. Ela pôs
o cadeado no bolso e abriu a porta com um empurrão sabendo que, se respirasse pelo nariz, iria vomitar. Um gemido ecoou da escuridão e se transformou em grunhido. – Hora do jantar – disse Teagan, fechando a porta atrás de si. Quinze minutos mais tarde, saiu do depósito confiante no trabalho que acabara de fazer. Dali a quatro dias, o... No antigo chão de fábrica mais acima, ouviu o barulho de um objeto caindo. Escutou risos e vozes animadas antes de um novo estrondo ecoar pelo espaço abandonado. Ela ficou imóvel, refletindo sobre como agir. No ano anterior, Teagan estivera naquela fábrica mais de 10 vezes. Em nenhuma delas encontrara alguém, nem esperava por isso. O prédio estava contaminado com solventes, metais pesados e outras substâncias cancerígenas e a cerca que o isolava tinha várias placas de alerta indicando a presença de materiais perigosos. Sua primeira reação foi atacar. Mas Cronos tinha sido claro. Não deveria haver confrontos se fosse possível evitá-los. Ela apagou a lanterna, deu meia-volta e estendeu a mão para fechar a porta do depósito. Tateou o bolso em busca do cadeado. Quando finalmente conseguiu encontrálo, passou a argola pelos anéis de ferro da porta e do batente. Uma garrafa quicou na escada atrás dela e se espatifou no chão do subsolo. Ela ouviu passos descendo a escada e vozes masculinas embriagadas. Teagan ergueu a mão no escuro para prender o cadeado e sentiu a argola se fechar. Afastou-se com alguns passos apressados, mas depois parou, insegura. Será que o cadeado estava mesmo trancado? O facho de uma lanterna começou a iluminar a escada. Dessa vez, ela se afastou sem hesitar, correndo na ponta dos pés, como fazem os velocistas. Como já fazia muito tempo que havia decorado a planta da fábrica contaminada, esgueirou-se rapidamente para um corredor que a levaria a uma escada de pedra e a um alçapão. Dois minutos mais tarde, estava fora da fábrica. A aurora lançava seus primeiros raios de luz cor-de-rosa no céu de Londres. Teagan ouviu mais barulhos e vozes vindas lá de dentro e concluiu que devia ser um bando de vândalos embriagados. Disse a si mesma que, assim que sentissem o cheiro daquele subsolo, desistiriam da exploração. Enquanto rastejava para tornar a sair pelo buraco na cerca, porém, tudo em que conseguia pensar era no cadeado, se realmente havia se fechado.
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NO MEIO DA TARDE DAQUELA segunda sexta-feira dos Jogos Olímpicos, antepenúltimo dia de competição, Peter Knight entrou no laboratório da Private Londres e caminhou apressado em direção a Hooligan, segurando com cuidado uma caixa envolta em papel pardo e fita adesiva. – Isto aqui é uma bomba? – perguntou, muito sério. O cientista desviou os olhos da página de esportes do The Sun, que trazia uma avaliação favorável das chances da Inglaterra contra o Brasil na final do futebol. Encarou o embrulho com um ar preocupado. – Por que você acha que é uma bomba? Knight encostou o dedo no endereço do remetente. Hooligan estreitou os olhos. – Não consigo ler isso. – Não consegue porque é grego antigo – disse Knight. – Está escrito “Cronos”. – Porra. – Pois é – disse Knight, pousando o embrulho sobre a mesa ao lado de Hooligan. – Acabei de pegar lá na recepção. – Dá para ouvir alguma coisa aí dentro? – perguntou o cientista. – Não tem nenhum tique-taque. – Pode ser um mecanismo digital. Ou acionado por controle remoto. Knight empalideceu. – Acha melhor evacuar a empresa? Chamar o esquadrão antibombas? O cientista coçou a barba ruiva desgrenhada. – Essa decisão cabe ao Jack. Dois minutos depois, Jack estava em pé no laboratório, olhando para o embrulho com ar exausto. Aquela era uma das únicas tréguas que tinha desde que assumira a administração da segurança do Parque Olímpico, na segunda-feira. Não houvera nenhum outro ataque desde o atentado a Mundaho. Na opinião de Knight, isso se devia em grande parte aos esforços hercúleos de Jack. – Você consegue passar a caixa pelo raio X sem nos fazer voar pelos ares? – perguntou Jack. – Posso tentar – respondeu Hooligan, segurando o embrulho como se este fosse mordê-lo. O cientista levou a caixa até uma mesa de trabalho no outro extremo do laboratório. Ligou um scanner portátil parecido com os que estavam sendo usados nos estádios e ginásios olímpicos, depositou a caixa junto ao scanner e ficou esperando o aparelho aquecer.
Knight manteve os olhos fixos na caixa, como se ela tivesse o poder de selar seu destino. Em seguida tentou reprimir uma súbita ânsia de sair do laboratório. Tinha dois filhos que iriam completar três anos no dia seguinte. De certa forma, ainda tinha sua mãe. Será que podia correr o risco de ficar num ambiente fechado onde havia um artefato potencialmente explosivo? Para distrair a mente do perigo, olhou para a TV , que transmitia as principais notícias e um sem-fim de imagens de atletas do mundo inteiro, após ganhar a medalha de ouro, dando a volta olímpica com a bandeira de seus países e a de Camarões. Fora uma reação espontânea. Com aquela atitude, os atletas ao mesmo tempo demonstravam respeito a Mundaho e desafiavam Cronos. Dezenas deles tinham carregado a bandeira de Camarões, inclusive o time de futebol inglês após a vitória na semifinal contra a Alemanhã, três dias antes. A mídia estava adorando e qualificava o gesto de protesto universal contra o louco que ameaçava os Jogos Olímpicos. Hunter Pierce, a americana campeã de saltos ornamentais, continuava liderando o protesto contra Cronos. Fora entrevistada quase diariamente desde a tragédia que acometera Mundaho e todas as vezes havia se referido em tom decidido à solidariedade dos atletas que se recusavam a aceitar que os jogos fossem suspensos ou interrompidos. O estado de saúde do corredor camaronês já não era mais considerado crítico, apenas grave. Apesar de ter sofrido ferimentos e queimaduras de terceiro grau em quase toda a parte inferior do corpo, os boletins informavam que estava lúcido, consciente dos protestos e revigorado pelas demonstrações mundiais de solidariedade. Por mais animador que fosse tudo isso, Knight obrigou-se a desviar a atenção da TV do laboratório. Não acreditava que os atentados fossem parar só por causa dos protestos dos atletas. Cronos atacaria outra vez antes do fim dos jogos. Knight tinha certeza disso. Mas onde? E quando? Na corrida de revezamento, na tarde do dia seguinte? Na final de futebol entre Inglaterra e Brasil no estádio de Wembley, no sábado à noite? Na maratona masculina de domingo? Ou na cerimônia de encerramento? – Lá vamos nós – disse Hooligan, empurrando a caixa de Cronos para uma pequena esteira rolante que a fez passar pelo aparelho. Ele posicionou o monitor do scanner para que todos pudessem ver. A caixa apareceu no monitor e seu conteúdo também. Knight franziu o rosto com uma careta. – Meu Deus – disse Jack. – Isso é de verdade?
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AS MÃOS PÁLIDAS DA MULHER tinham sido cortadas nos pulsos com uma lâmina e uma serra, deixando a carne lisa e os ossos lascados e cheios de farpas. – Querem que eu tire as impressões digitais? – perguntou Hooligan. – Vamos deixar a Scotland Yard fazer isso – respondeu Jack. – Não faz diferença – disse Knight. – Aposto que são as mãos de uma criminosa de guerra. – Andjela Brazlic? – sugeriu Jack. Hooligan assentiu. – Tudo indica que sim, não é? – Mas por que mandar as mãos para você? – perguntou Jack a Knight. – Não sei. Mais tarde nessa mesma noite a pergunta continuou a assombrar Knight no trajeto até sua casa. Por que ele? Imaginava que Cronos estivesse usando as mãos para transmitir um recado. Mas em relação a quê? À impressão digital que ela havia deixado na carta? Seria aquela a forma de Cronos demonstrar quanto era implacável? Knight ligou para Elaine Pottersfield avisando que Hooligan levaria as mãos para a Scotland Yard e lhe comunicou suas suspeitas em relação à identidade da vítima. – Se forem mesmo as mãos de Andjela Brazlic, isso mostra que houve uma dissidência entre os seguidores de Cronos – comentou a investigadora. – Ou então ele só está dizendo que é inútil tentar rastrear essa criminosa de guerra. Ela cometeu um erro. E agora está morta. – É só isso? – perguntou Elaine. – Amanhã de manhã nós vamos à floresta de Kate – disse Knight. – E a festinha vai ser às cinco e meia. O silêncio foi breve. – Sinto muito, Peter – disse ela e desligou. Knight chegou por volta das dez horas, imaginando se a cunhada algum dia faria as pazes com ele ou conseguiria aceitar a morte da irmã. Somente quando se viu de pé diante da porta de casa se permitiu pensar que, três anos antes, mais ou menos por volta daquele mesmo horário, sua esposa tinha entrado em trabalho de parto. Teve uma súbita lembrança da expressão no rosto de Kate depois de a bolsa estourar – nenhum medo, apenas alegria diante do milagre iminente. Então lembrou-se da ambulância levando-a embora. Abriu a porta e entrou, tão profundamente atordoado e arrasado quanto se sentira 36 meses antes. A casa recendia a chocolate e havia dois presentes embrulhados em papel colorido sobre a mesa do hall. Ele fez uma careta ao se dar conta de que ainda não
tivera oportunidade de comprar um presente para os filhos. O trabalho havia consumido toda a sua energia. Ou será que ele havia deixado que isso acontecesse para não ter que pensar no aniversário dos filhos nem nos três anos da morte da mulher? Sem conseguir encontrar resposta adequada a qualquer uma dessas perguntas, Knight examinou os presentes e ficou surpreso ao constatar que eram de sua mãe. Os cartões tinham a dedicatória: “Com amor, Vovó.” Ele sorriu e sentiu os olhos se encherem de lágrimas. Se a mãe tinha se dado o trabalho de sair de seu isolamento, de sua dor e de sua amargura para comprar presentes para os netos, então talvez não estivesse se permitindo mergulhar tão completamente na depressão quanto depois da morte de seu pai. – Já vou então, Sr. Knight – disse Marta, surgindo da cozinha. – Eles estão dormindo. A cozinha está limpa. Já fiz a calda do bolo. Luke tentou usar o banheiro dos meninos grandes, mas sem sucesso. Comprei brindes para a festa e encomendei uma torta também. Amanhã posso ficar o dia inteiro e durante a festa. Mas preciso de folga no domingo. Domingo. Dia da maratona masculina. Da cerimônia de encerramento. Knight precisava estar disponível. Talvez conseguisse convencer a mãe ou Boss a ficar com os gêmeos uma última vez. – Então pode folgar no domingo. E amanhã não precisa chegar antes do meio-dia – disse Knight. – Na manhã do aniversário dos meninos, costumo ir com eles à floresta de Epping e à igreja de High Beach. – O que tem lá? – quis saber a babá. – Minha mulher e eu nos casamos nessa igreja. As cinzas dela foram jogadas na floresta lá perto. Ela foi criada na cidadezinha de Waltham Abbey e a floresta era um de seus lugares favoritos. – Ah, sinto muito – desculpou-se Marta, encabulada, avançando em direção à porta. – Meio-dia, então. – Ótimo – disse ele e fechou a porta atrás dela. Apagou as luzes, deu uma olhada nas crianças e foi para o quarto. Sentou-se na beira da cama e ficou olhando para Kate, que o encarava de volta da fotografia. Lembrou-se com todos os detalhes da maneira como ela havia morrido. Então começou a chorar.
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Sábado, 11 de agosto de 2012.
– EU TENHO 3 ANOS! – gritou Isabel no ouvido do pai. Knight despertou sobressaltado. Em seu sonho Cronos fazia Kate refém – Não o Cronos louco que agora assombrava as Olimpíadas, mas o antigo deus grego que trazia na mão uma foice comprida e devorava os próprios filhos. Pingando de suor, com a expressão contorcida de apreensão, Knight olhou para a filha com ar atônito. A menina pareceu assustada e começou a recuar para longe do pai, apertando a manta com força contra o rosto. Knight caiu em si e pensou: Ela está bem! Luke está bem! Foi só um pesadelo, um pesadelo horrível. Soltou o ar dos pulmões, deu um sorriso e disse: – Como você está grande! – Três anos – disse Isabel, voltando a sorrir. – Luke também tem 3 anos! – disse seu filho da porta do quarto. – Não me diga – comentou Knight ao mesmo tempo que Luke pulava em cima da cama e se jogava em seus braços. Isabel subiu atrás do irmão e se aninhou junto ao pai. O cheiro das crianças o envolveu, acalmando-o, fazendo-o se dar conta mais uma vez de quanta sorte tinha por ter os gêmeos ali, uma parte de Kate que seguiria vivendo e crescendo. – Presente! – exigiu Luke. – Os presentes ainda não chegaram – respondeu Knight, depressa demais. – Só vão chegar na hora da festa. – Não, papai – protestou Isabel. – Aquele homem engraçado trouxe um presente ontem. Está lá embaixo. – Quem trouxe os presentes foi Boss? – perguntou ele. Seu filho assentiu com ar sombrio. – Boss não gosta de Luke. – Azar o dele – retrucou Knight. – Vão buscar os presentes. Podem abrir aqui em cima. Suas palavras provocaram um verdadeiro estouro de boiada e os gêmeos desceram da cama correndo e se empurrando. Vinte segundos depois, tornaram a entrar no quarto, ofegantes, sorrindo de orelha a orelha. – Podem abrir – disse Knight. Rindo, os dois começaram a rasgar o papel dos embrulhos e não demoraram para
abrir os presentes de Amanda. O de Isabel era uma linda medalha de prata presa a um cordãozinho. Dentro da medalha havia uma foto de Kate. – É a mamãe? – perguntou Isabel. Knight ficou genuinamente comovido com a sensibilidade de sua mãe. – É. Assim você pode levar a mamãe aonde for – respondeu ele, com a voz rouca. – O que é isso, papai? – perguntou Luke, olhando desconfiado para o presente que havia recebido. Knight pegou o presente, examinou-o e disse: – É um relógio muito especial para um menino grande. Está vendo? Um relógio com mostrador do Harry Potter. E tem o seu nome gravado atrás, Luke. – Relógio de menino grande? – perguntou o filho. – Isso mesmo – respondeu Knight. – Vamos guardar até você crescer mais um pouco – brincou ele. Luke estendeu o pulso, indignado. – Não! Luke já grande! Três anos! – Ah, é, esqueci completamente – disse Knight, fechando o relógio em volta do pulso do filho. Para sua surpresa, o tamanho da pulseira ficou quase perfeito. Enquanto Luke desfilava pelo quarto admirando seu relógio, Knight pôs o cordão no pescoço de Isabel, prendeu o fecho e soltou exclamações de admiração vendo a filha se olhar no espelho. Ela era igualzinha a Kate quando pequena. Knight trocou a fralda de Luke, deu comida aos gêmeos, em seguida pôs um vestido em Isabel e um short azul e uma camisa polo branca em Luke. Depois de lhes recomendar que não sujassem as roupas, tomou uma ducha, fez a barba e se vestiu em tempo recorde. Às nove horas, os três saíram de casa, foram até a garagem a alguns quarteirões de distância e pegaram o Range Rover que Knight raramente usava. Com Isabel e Luke acomodados em suas cadeirinhas no banco de trás, Knight foi percorrendo as ruas rumo ao norte enquanto escutava o noticiário no rádio. Era o último dia inteiro de competições das Olimpíadas e muitas finais de atletismo aconteceriam naquela noite. Os comentaristas faziam as fortes críticas à Scotland Yard e ao MI5 por sua incapacidade de apresentar qualquer progresso significativo na investigação sobre Cronos. Mas as mãos da criminosa de guerra não foram mencionadas. Elaine Pottersfield pedira que a informação não fosse divulgada por enquanto. Muitos atletas que já haviam encerrado sua participação estavam indo embora de Londres. A maioria dos outros, como Hunter Pierce, tinha jurado permanecer no Parque Olímpico até o final, quaisquer que fossem as ameaças de Cronos e das Fúrias. Knight foi até Enfield, depois seguiu em direção ao leste e ao sul de Waltham Abbey, rumo a High Beach e à floresta de Epping. – Muita árvore – comentou Isabel quando eles adentraram a floresta. – Mamãe gostava de muitas árvores. A luz entrecortada do sol entrava por entre a folhagem que rodeava a igreja de
High Beach, situada em uma clareira quase à margem da floresta. Vários carros estavam estacionados ali, mas Epping era um lugar popular para caminhadas, e Knight não imaginou que alguém estivesse ali especificamente por causa de Kate. Sua mãe estava mergulhada na própria tristeza e os pais de Kate tinham morrido ainda jovens. Os três entraram na igreja vazia, onde Knight fez cada um dos filhos acender uma vela em homenagem à mãe. Ele próprio acendeu uma terceira e depois outras quatro, pelos colegas mortos no acidente aéreo. Segurando as mãos de Isabel e de Luke, conduziu-os para fora da igreja e por uma trilha que entrava na floresta. Uma leve brisa fazia as folhas farfalharem. Após alguns minutos de caminhada, a vegetação ficou mais esparsa e eles passaram por um muro de pedra meio em ruínas até chegar a um bosque de velhos carvalhos espaçados, plantados no meio de um capim selvagem que a brisa de verão fazia sussurrar. Knight ficou parado por alguns segundos admirando aquela cena, com os dois filhos abraçados a ele. Lutava para controlar as próprias emoções e não assustar as crianças. – Sua mãe costumava ir àquela igreja quando era pequena, mas o que ela mais gostava era de vir aqui –disse-lhes com voz suave. – Dizia que as árvores aqui eram tão antigas que este era um lugar sagrado onde ela podia falar com Deus. Foi por isso que eu joguei as... Ele engasgou. – Foi uma escolha perfeita, Peter – disse uma voz de mulher carregada de emoção atrás deles. – Este aqui era o lugar preferido de Kate. Knight se virou ao mesmo tempo que enxugava as lágrimas com a manga da roupa. Apertando com força a perna da calça do pai, Isabel perguntou: – Papai, quem é essa moça? Knight sorriu. – Sua tia Elaine, meu anjo. A irmã mais velha da mamãe.
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– EU SABIA QUE NÃO CONSEGUIRIA ir a festinha – explicou a cunhada de Knight rapidamente no caminho de volta, enquanto as crianças dormiam em suas respectivas cadeirinhas. – Além do mais, achei que conhecer as crianças lá faria com que eu me sentisse melhor. Eles estavam se aproximando da garagem onde Knight estacionava o Range Rover. – E fez? – indagou ele. Elaine assentiu e seus olhos ficaram marejados. – Parecia a coisa certa. Foi como se eu pudesse sentir a presença dela. – Ela hesitou antes de prosseguir. – Eu sinto muito. Pelo jeito como tratei você. Sei que a decisão de fazer o parto dos gêmeos em casa foi de Kate. Mas é que... – Não vamos mais falar nisso – disse Knight, estacionando o carro. – Isso tudo já passou. Meus filhos têm sorte por ter você na vida deles. Eu tenho sorte por ter você na minha vida. Ela suspirou e deu um sorriso triste. – Tudo bem. Quer ajuda? Knight olhou por cima do ombro para os gêmeos adormecidos. – Quero. Eles estão ficando grandes para eu carregar os dois sozinho por essa distância toda. Elaine pegou Isabel no colo, Knight pegou Luke e, juntos, percorreram os dois quarteirões até a casa. Ele ouviu a televisão ligada lá dentro. – É a nova babá – explicou, pegando as chaves no bolso. – Ela sempre chega cedo. – Coisa rara hoje em dia. – Na verdade, está tudo correndo às mil maravilhas – admitiu Knight. – Ela é um verdadeiro milagre, a única que conseguiu domar os gêmeos até hoje. Eles agora ajudam a arrumar o quarto e vão dormir com um simples estalar dos dedos. Ele abriu a porta e Marta apareceu quase no mesmo instante. Ao ver Luke dormindo no ombro do pai, franziu o cenho. – Acho que a animação deve ter sido demais para ele – comentou, pegando-o do colo de Knight e lançando um olhar curioso para Elaine. – Marta, esta é Elaine – apresentou Knight. – Minha cunhada. – Ah, oi – cumprimentou a investigadora-chefe, estudando Marta. – Peter fala muito bem de você. Marta deu uma risada nervosa e abaixou a cabeça dizendo: – O Sr. Knight é muito gentil. – Fez uma pausa antes de continuar: – Foi a senhora que eu vi na TV?
– Pode ter sido. Eu trabalho na Scotland Yard. Marta parecia prestes a responder quando Isabel acordou mal-humorada, olhou para a tia e choramingou: – Eu quero o papai. Knight olhou para a filha e disse: – Papai precisa ir trabalhar, mas vai voltar a tempo para a festinha. – Vamos buscar o bolo daqui a pouco? – indagou Marta à menina. – E os balões? O rosto de Isabel se animou e Luke acordou. O celular de Elaine tocou. Ela ouviu com atenção, começou a menear a cabeça e então disse: – E para onde a estão levando? Ela continuou ouvindo enquanto Marta pegava Isabel do colo de Knight e começava a levar os dois irmãos pelo corredor em direção à cozinha, perguntando: – Quem quer suco de maçã? Elaine desligou o celular, olhou para Knight e disse: – Um policial de uniforme acaba de prender Selena Farrell andando a esmo por algum lugar dentro das ruínas da velha usina de gás de Beckton, dizendo coisas incoerentes, toda suja e coberta com os próprios excrementos. Ela está sendo levada para o hospital London Bridge. Knight olhou de relance por cima do ombro para Marta, que segurava com força as mãos de Isabel e de Luke. – Volto às cinco para ajudar você com os enfeites – prometeu ele. – A essa hora já vai estar tudo sob controle – retrucou ela, confiante. – Pode deixar que eu cuido de tudo, Sr. Knight.
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– TEM CERTEZA? – PERGUNTO, FAZENDO todo o possível para não gritar no celular. – Absoluta – sibila Marta em resposta. – Ela foi encontrada perambulando pelo terreno da usina de gás de Beckton, não muito longe da fábrica. Quem esteve lá por último? Primeiro Petra e agora você, Teagan? é o pensamento assassino que atravessa minha mente quando olho de relance para a irmã de Marta, sentada ao meu lado ao volante de seu carro. Minha mente está novamente em ebulição. Mas minha resposta para Marta é enigmática: – Isso tem importância? – Se eu fosse você, iria limpar aquela fábrica – diz Marta. – Eles estão chegando perto. É verdade. Apesar do zumbido homicida que me domina os ouvidos, quase posso escutar os cães ladrando. Que erro! Que erro absurdo! Selena Farrell só deveria ser solta amanhã de manhã, uma distração para atrair a atenção da polícia para ela enquanto eu concluiria minha vingança. Eu deveria simplesmente ter matado Selena quando tive oportunidade. Mas não, quis bancar o esperto. Precisava acumular farsa sobre farsa, ao infinito. Mas desta vez a farsa se voltou contra mim. Meus dedos se movem até a cicatriz na parte de trás da minha cabeça e o ódio se acende. Fui forçado a fazer isto. Minha única chance é ser implacável. – Pegue as crianças – digo. – Agora. Você sabe o que fazer. – Sei, sim – responde Marta. – Os queridinhos já estão dormindo a sono solto.
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AS IMAGENS, OS SONS E o cheiro do hospital London Bridge perturbaram Knight de uma forma que ele não havia previsto. Ele não entrava em um estabelecimento médico, de qualquer tipo que fosse, desde que o corpo de Kate fora levado para um deles. Por isso ficou abalado quando finalmente chegou com Elaine à unidade de terapia intensiva. – Era assim que ela estava quando foi encontrada – disse o agente da Polícia Metropolitana que vigiava o quarto, mostrando-lhes uma foto. Selena Farrell estava vestida como Syren St. James, imunda, e parecendo tão atordoada quanto alguém que tivesse passado por uma lobotomia. Uma sonda intravenosa pendia de uma de suas mãos. – Ela consegue falar? – perguntou Elaine. – Ficou resmungando alguma coisa sobre um cadáver sem mãos – respondeu o policial. – Sem mãos? – repetiu Knight, olhando para a cunhada. – Quase nada do que ela disse fazia sentido. Mas talvez vocês tenham mais sucesso agora que ela tomou um antinarcótico. – Ela estava sob o efeito de narcóticos? – indagou Elaine. – Tem certeza disso? – Doses cavalares e associados a sedativos – respondeu o policial. Os dois entraram na UTI. A professora Selena Farrell estava adormecida em cima de uma cama, cercada por aparelhos de monitoramento. Sua pele tinha um tom cinza cadavérico. Elaine foi até junto dela e disse: – Professora Farrell? O rosto da acadêmica se contorceu de raiva. – Vão embora. Cabeça. Dor. Muita dor. – Suas palavras saíram arrastadas e malarticuladas. – Professora Farrell – repetiu Elaine com voz firme. – Meu nome é Elaine Pottersfield, sou investigadora da Polícia Metropolitana. Preciso falar com a senhora. Abra os olhos, por favor. Selena piscou e franziu o rosto. – Apaguem a luz. Enxaqueca. Uma enfermeira fechou as cortinas. Farrell tornou a abrir os olhos. Olhou em volta para o quarto, viu Knight e tornou a se virar para Elaine, sem entender. – O que aconteceu comigo? – Estávamos torcendo para que você pudesse nos explicar, professora – foi a resposta de Knight. – Eu não sei. – Pode explicar como o seu DNA... um fio de cabelo seu, para ser mais exata, foi
encontrado em uma das cartas de Cronos para Karen Pope? – indagou Elaine. A informação demorou a ser registrada pelo cérebro embotado de Selena. – Karen Pope? A jornalista? – perguntou ela a Knight. – Meu DNA? Não, eu não me lembro. – Do que a senhora se lembra? – perguntou Knight. Ela piscou os olhos, soltou um grunhido e disse: – Um quarto escuro. Estou deitada em uma cama, sozinha. Amarrada. Não consigo me levantar. Minha cabeça está rachando de tanta dor e elas não querem me dar nenhum remédio. – “Elas” quem? – insistiu Knight. – Mulheres. Várias mulheres. Elaine estava começando a ficar irritada. – Selena, você entende que o seu DNA a vincula a sete assassinatos nos últimos 15 dias? – perguntou ela. Isso deixou a professora chocada e imediatamente mais alerta. – O quê? Sete? Eu não matei ninguém. Eu nunca... que dia é hoje? – Sábado, 11 de agosto de 2012 – respondeu Knight. A professora soltou um gemido. – Não. Eu tive a impressão de só ter passado uma noite lá. – No quarto escuro com as mulheres? – indagou Elaine. – Não estão acreditando em mim? – Não – respondeu a investigadora. – Por que você fingiu passar mal e fugiu da sua sala quando Karen Pope pôs para tocar a melodia de flauta? – perguntou Knight. Ela arregalou ainda mais os olhos. – A música me fez passar mal porque... eu já a tinha ouvido antes.
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ENCERRO A LIGAÇÃO COM MARTA e olho para Teagan. Tenho vontade de arrancar sua cabeça ali mesmo. Mas ela está dirigindo e um acidente de carro está fora de cogitação a esta altura dos acontecimentos. – De meia-volta – ordeno, esforçando-me para manter a calma. – Temos que ir para a fábrica. – Para a fábrica? – retruca Teagan, nervosa. – Está de dia. – Selena Farrell fugiu. Foi encontrada dentro da usina de gás. Knight e a investigadora da Scotland Yard estão com ela no hospital agora. Teagan fica pálida. – Como isso pode ter acontecido? – pergunto em voz baixa. – Ela só deveria ser solta amanhã de manhã. Era responsabilidade sua cuidar disso, irmã. Tomada pelo pânico, ela diz: – Eu deveria ter contado, mas sabia que você estava sob muita pressão. Uns rapazes bêbados entraram na fábrica quando eu estava lá ontem de manhã. Imaginei que o cheiro fosse mantê-los afastados do depósito. Eles devem ter quebrado o cadeado e a deixado sair. Eu não sei. – Temos que limpar aquilo lá – digo. – Leve-nos até a fábrica. Agora. Não conversamos durante o trajeto, nem quando entramos no terreno contaminado, nem quando nos esgueiramos até o subsolo. Só estive ali uma vez antes disso, de modo que Teagan segue na frente. Ambos carregamos sacos de lixo. O cheiro que vem da porta aberta do depósito é insuportável. Mas Teagan entra sem hesitar. Olho de relance para os anéis presos à porta e ao batente, ambos intactos, e então percorro o chão com o olhar. O cadeado está no canto, com a argola aberta, mas não está quebrado. Abaixo-me, recolho o cadeado e o ponho ao redor do dedo médio da mão direita, como se fosse um soco inglês, escondendo o corpo na palma da mão. Lá dentro, Teagan já está de luvas, enfiando equipamentos para aplicação intravenosa usados dentro do saco de lixo. – Vamos acabar logo com isto – digo e dou um passo na sua direção antes de me agachar para pegar uma seringa usada com a mão esquerda. Levanto-me e, com o mesmo ímpeto vingativo de um amante desprezado, estendo a seringa em direção ao saco de lixo como distração antes de desferir um soco com a mão direita, com a argola do cadeado virada para a frente. Teagan não tem chance alguma de se defender. Nem sequer vê o golpe chegando. O impacto do cadeado esmaga sua laringe. Ela cambaleia para trás, engasgada, com o rosto já roxo e os olhos arregalados,
encarando-me com uma expressão de incredulidade. O segundo golpe quebra seu nariz, projeta-a contra a parede e a faz entender que sou um ser infinitamente superior. Meu terceiro golpe a atinge na têmpora e ela desaba, encolhida no meio da imundície.
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– É CLARO QUE VOCÊ JÁ TINHA ouvido a música antes – disparou Elaine em resposta. – Ela estava no seu computador. Assim como um software para hackear e controlar o placar eletrônico do estádio olímpico na noite da cerimônia de abertura. – O quê? – exclamou a professora, esforçando-se para se sentar ereta e fazendo uma careta de dor. – Não, não! Alguém começou a me mandar essa música há mais ou menos um ano, pela secretária eletrônica e anexada a e-mails enviados de endereços anônimos. Era como se eu estivesse sendo perseguida. Depois de algum tempo, sempre que eu escutava a música, começava a passar mal. – Que desculpa esfarrapada – rebateu a investigadora. – E o programa no seu computador? – Não sei de que programa vocês estão falando. Alguém deve ter posto lá, talvez a mesma pessoa que estava me mandando a música. Knight não conseguia acreditar no que ouvia. – Você falou com alguém sobre essa perseguição virtual? A especialista em Antiguidade Clássica assentiu, decidida. – Na verdade, dei queixa duas vezes na delegacia de Wapping. Mas os investigadores disseram que enviar melodias de flauta não era crime e eu não tinha nenhuma outra prova de que estivessem me perseguindo. Disse que tinha suspeitas de quem me mandava aquela música, mas eles responderam que não queriam ouvir. Aconselharam-me a trocar de telefone e de e-mail e eu obedeci. A perseguição parou. E as dores de cabeça foram embora até o dia em que vocês tocaram a música outra vez no meu escritório. Knight semicerrou os olhos, tentando encontrar algum sentido naquela explicação. Seria possível que Selena Farrell tivesse sido usada como uma pista falsa? Por que não a haviam simplesmente matado e pronto? Elaine devia estar pensando mais ou menos a mesma coisa, porque perguntou: – Quem você acha que estava mandando a música? Selena respondeu com um fraco dar de ombros: – Bem, só conheci uma pessoa que tocava flauta de Pã. Knight e Elaine não disseram nada. – James Daring – continuou a professora. – O curador do Museu Britânico, sabem quem é? O que apresenta aquele programa de TV? Agora a coisa muda de figura, pensou Knight, lembrando-se de como Daring elogiara Selena e dissera a ele e a Karen várias vezes que fossem falar com ela. Seria tudo parte da mesma pista falsa? Elaine ainda soava muito cética.
– Como você sabe que ele tocava flauta de Pã? E por que ele iria usar a música para importuná-la? – Nos anos 1990, lá nos Bálcãs, ele tinha uma flauta assim. Costumava tocar para mim. – E...? – disse Knight. Selena pareceu pouco à vontade. – Ele, Daring, estava interessado em mim. Eu disse a ele que não sentia o mesmo por ele, o que o deixou zangado e depois obcecado por mim. Ele me perseguiu por um tempo. Também dei queixa contra ele nessa época. Mas no fim das contas isso não teve importância. Eu me feri em um acidente de caminhão e fui retirada de Sarajevo de avião. Nunca mais o vi desde então. – Nenhuma vez sequer, em quantos anos? – indagou Knight. – Dezesseis? Dezessete? – Mas mesmo assim desconfiou dele? – perguntou Elaine. A professora fechou a cara. – Não tinha mais ninguém de quem desconfiar. – Imagino que não – disse a investigadora. – Porque Daring também está desaparecido. A expressão de Selena tornou a ficar confusa. – O quê? – Você disse que foi mantida num quarto escuro e que mulheres cuidavam de você – disse Knight. – Como conseguiu sair? Selena Farrell pensou por vários segundos antes de responder: – Uns rapazes, mas eu não tenho... não, com certeza me lembro de ter ouvido vozes de rapazes, depois tornei a perder os sentidos. Quando acordei, vi que conseguia mexer os braços e as pernas. Então me levantei, encontrei uma porta e... – Ela hesitou, e seu olhar se perdeu ao longe. – Acho que estava em algum tipo de fábrica desativada. As paredes eram de tijolo. – A senhora comentou com o policial sobre um cadáver sem mãos – disse Elaine. O medo atravessou o semblante da professora enquanto ela olhava alternadamente para Knight e para a investigadora. – Havia moscas em cima dela. Centenas de moscas. – Onde? – Não sei – disse ela com uma careta, esfregando a cabeça. – Em algum lugar da fábrica, acho. Eu estava tonta. Caí várias vezes. Não conseguia pensar direito. Após uma longa pausa, Elaine pareceu chegar a uma conclusão. Sacou o celular, levantou-se e deu vários passos para longe da cama de hospital de Selena. Instantes depois, disse: – Aqui é Elaine. Procurem algum tipo de fábrica abandonada perto da usina de gás de Beckton. Paredes de tijolo. Pode ser que haja um cadáver sem mãos lá dentro. Talvez outros.
Enquanto isso, Knight pensou nas matérias que Karen Pope escrevera sobre Selena Farrell e perguntou: – Como você chegou a esse tal quarto na fábrica? A professora balançou a cabeça. – Não me lembro. – Qual é a última coisa de que se lembra? – perguntou Elaine, fechando o telefone. Selena piscou, então retesou o corpo e disse: – Não posso dizer. – Syren St. James saberia? – indagou Knight. O nome obviamente deixou a professora espantada, pois ela perguntou baixinho: – Quem? – O alter ego que você usa para frequentar a nata do mundo lésbico de Londres – explicou a investigadora. – Eu não sei do que vocês estão... – Londres inteira já conhece Syren St. James – interrompeu Knight. – Ela saiu em todos os jornais. A expressão da professora tornou-se arrasada. – O quê? Como? – Karen Pope – respondeu Knight. – Ela descobriu sua vida secreta e escreveu sobre ela no jornal. Selena Farrell deu um grito débil. – Mas por que ela faria uma coisa dessas? – Porque seu DNA relacionava você às mortes – respondeu Elaine. – E continua relacionando. O DNA indica que você está envolvida com Cronos e suas Fúrias. Selena ficou histérica e começou a gritar: – Eu não sou Cronos! Não sou uma das Fúrias! Eu tinha uma vida secreta, mas isso não interessa a ninguém. Nunca tive nada a ver com morte nenhuma! A enfermeira de plantão irrompeu no quarto e mandou que saíssem. – Só mais um minutinho – insistiu Elaine. – Na última vez em que foi vista, duas semanas atrás, no dia 27 de julho, a senhora estava no Candy Bar. A informação pareceu deixar a professora confusa. – Sua amiga Nell disse que a viu lá – prosseguiu Knight. – Ela contou a Karen Pope que você estava acompanhada por uma mulher de chapéu sem abas com um véu escondendo o rosto. Selena Farrell vasculhou a própria memória e então assentiu devagar. – Sim. Eu a acompanhei até o carro, onde ela pegou uma garrafa de vinho, serviume um copo e... – Ela encarou Elaine. – Ela me drogou. – Quem é ela? – quis saber a investigadora. Encabulada, Selena respondeu: – O nome verdadeiro? Eu não saberia dizer. Imagino que estivesse usando um
pseudônimo, assim como eu. Mas ela me disse para chamá-la de Marta. Disse que era da Estônia.
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VIOLENTAS TEMPESTADES RASGARAM O CÉU de Londres no final da tarde daquele sábado. Raios trouxeram uma chuva que castigava o para-brisa enquanto o carro de Elaine, um veículo civil, seguia a toda a velocidade em direção a Chelsea, com a sirene ligada. Irada, a investigadora não parava de relancear os olhos na direção de Knight, que parecia ter visto um fantasma. Ele tornou a ligar para o celular de Marta. – Atenda – repetia ele sem parar. – Atenda, sua piranha. – Como você pôde não verificar as referências dela, Peter? – gritou Elaine. – Eu verifiquei, Elaine! – berrou Knight de volta. – E você também! Ela era tão perfeita para o que eu precisava... O carro parou cantando pneus em frente à casa de Knight, onde piscavam as luzes de várias viaturas de polícia já estacionadas. Apesar da chuva, um grupo havia se juntado. Policiais em trajes civis já começavam a montar barreiras. Knight pulou para fora do carro de Elaine com a sensação de estar se balançando na beira de um abismo escuro e sem fundo. Isabel? Luke? Hoje é aniversário deles. O investigador Billy Casper foi ao encontro de Knight na porta da casa, com uma expressão séria. – Sinto muito, Peter. Chegamos tarde. – Não – gemeu ele, correndo para dentro de casa. – Não. Para onde quer que olhasse, Knight via os objetos dos filhos – os brinquedos, a embalagem de talco, os pacotes de balões, serpentinas e velas. Passou por tudo isso como um robô, até chegar à cozinha. A tigela de cereal que Luke havia comido no café da manhã ainda tinha um pouco de leite no fundo. A manta de Isabel estava caída no chão ao lado da cadeirinha de refeições. Knight recolheu a manta e pensou: Isabel deve estar desnorteada sem ela. A gravidade da situação de repente ameaçou aniquilá-lo. Mas ele se recusou a ceder e reagiu da única maneira que sabia: manteve-se em movimento. Foi ao encontro de Elaine e disse: – Façam uma busca no apartamento dela. O endereço está no currículo. E as impressões digitais dela devem estar espalhadas por toda a casa. Vocês conseguem rastrear o celular? – Só se o aparelho estiver ligado – respondeu a investigadora. – Enquanto isso, ligue para sua amiga Karen. Também vou entrar em contato com os jornalistas que conheço. Vamos espalhar a foto dos gêmeos por toda a mídia, Peter. Alguém com certeza deve ter visto seus filhos. Knight começou a assentir, mas então disse:
– E se for exatamente isso que eles querem? – Como assim? – estranhou Elaine. – Por quê? – Como distração – argumentou ele. – Para desviar nossa atenção. Pense um pouco. Se vocês puserem a cara dos meus filhos na mídia e disserem ao público que eles foram raptados por uma mulher que acreditamos ser uma das cúmplices de Cronos, todo o contingente das forças de segurança pública e toda a atenção da mídia vão ser transferidos para Isabel e Luke... e as Olimpíadas ficarão vulneráveis a um novo ataque. – Peter, precisamos fazer alguma coisa. Embora ele próprio não conseguisse acreditar no que estava dizendo, Knight retrucou: – Podemos esperar ao menos algumas horas, Elaine. Para ver se eles ficam nervosos. Para ver se ligam. Se não ligarem até as oito, digamos, aí liberamos as fotos dos gêmeos para a mídia. Antes que ela pudesse responder, ele pegou o celular e digitou o número de Hooligan. Ouviu gritos de alegria do outro lado e Hooligan exclamou: – Você viu, Peter? Está um a um. Nós empatamos! – Venha até a minha casa – disse Knight. – Agora. – Agora? – repetiu Hooligan, soando um pouco embriagado. – Ficou louco? Este jogo vale a porra da medalha de ouro e o meu lugar é bem no meio do campo! – Cronos pegou meus filhos – disse Knight. Silêncio. – Não pode ser! – explodiu Hooligan. – Puta que pariu. Estou indo, Peter. Agora mesmo. Knight desligou. Elaine estendeu a mão para pedir seu celular. – Vou precisar do aparelho por alguns minutos para instalarmos o rastreador. Ele lhe entregou o telefone e foi até o andar de cima. Pegou a fotografia de Kate e levou-a consigo para o quarto dos filhos enquanto uma trovoada sacudia a casa. Sentou-se no sofá-cama do quarto, olhou para os berços vazios e para o papel de parede que Kate havia escolhido e pensou se o seu destino seria sempre a tragédia e a perda. Foi então que reparou no frasco de anti-histamínico infantil em cima do trocador. Pousou o retrato de Kate e foi até lá. Viu que o remédio estava quase no fim. Essa constatação o fez se sentir enganado e furioso. Ela vinha drogando seus filhos bem debaixo do seu nariz. Elaine bateu na porta e entrou. Olhou de relance para o retrato de Kate sobre o sofá-cama e então lhe estendeu o celular. – Você agora está conectado ao nosso sistema. Devemos conseguir rastrear qualquer ligação feita ou recebida pelo seu telefone. E acabei de receber um alerta. Encontramos dois corpos numa fábrica desativada, contaminada com lixo tóxico, não
muito longe da usina de gás. Duas mulheres na casa dos 30 anos. Uma delas morreu espancada há poucas horas. Ainda não foi identificada. A outra morreu no início da semana e estava sem as mãos. Estamos supondo que sejam Andjela Brazlic e sua irmã do meio, Nada. – Duas das Fúrias estão mortas. Agora só sobraram Marta e Cronos – disse Knight. – Depois do que Selena nos disse, você acha que Daring pode ser Cronos? A perseguição lá nos Bálcãs... e a flauta? – Não sei. De repente, Knight sentiu-se rodeado pela dúvida, uma sensação tão forte que o deixou claustrofóbico. – Tem alguma importância onde eu estiver quando receber a ligação? – Em princípio, não – respondeu Elaine. Ele olhou para o retrato de Kate e disse: – Elaine, não vou conseguir ficar aqui parado. Sinto que preciso me mexer. Vou dar uma volta. Tudo bem? – É só não desligar o celular. – Diga a Hooligan para me ligar quando chegar aqui. E alguém precisa avisar Jack Morgan. Eles estão no estádio para as corridas de revezamento. Ela assentiu e falou: – Nós vamos encontrá-los. – Eu sei – concordou ele, embora sua certeza estivesse diminuindo. Knight vestiu uma capa de chuva e saiu pela porta dos fundos, para o caso de os jornalistas já estarem aglomerados em frente à casa. Enquanto descia a rua de trás, tentava decidir se ficaria apenas andando a esmo ou se pegaria o carro e voltaria à igreja de High Beach para rezar. Mas então compreendeu que na verdade só tinha um lugar no mundo aonde ir e apenas uma pessoa que desejava encontrar. Mudou de direção e seguiu andando pela cidade chuvosa, passando em frente a pubs e ouvindo gritos de alegria lá dentro. A Inglaterra parecia estar ganhando o ouro olímpico no futebol, enquanto ele perdia tudo de mais importante na sua vida. Seus cabelos e as pernas de sua calça estavam ensopados quando chegou à porta da casa na Milner Street, tocou a campainha e acionou a aldraba enquanto erguia o rosto para a câmera de segurança. A porta se abriu e Boss apareceu. – Ela está ocupada – disse ele, ríspido. – Saia da minha frente, seu nanico – disse Knight em tom tão ameaçador que o assistente de sua mãe deu um passo para o lado sem protestar. Knight abriu a porta do escritório da mãe sem bater. Amanda cortava um tecido, curvada sobre a mesa de trabalho. De 10 a 15 modelos originais recém-criados estavam pendurados em manequins espalhados pelo cômodo. Sua mãe ergueu os olhos com uma expressão gélida.
– Peter, eu já não deixei claro que quero ficar sozinha? Avançando na sua direção, Knight começou: – Mãe... Mas ela o interrompeu: – Me deixe em paz, Peter. Mas o que está fazendo aqui, afinal de contas? Hoje é aniversário dos seus filhos. Deveria estar com eles. Foi a gota d’água. Knight ficou tonto e então perdeu os sentidos.
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SOB A CHUVA FINA E a luz fraca do dia, Karen Pope caminhou apressada em direção à casa de Knight em Chelsea. Fora avisada pelo repórter responsável pela página policial do The Sun que alguma coisa importante estava acontecendo na casa do agente da Private. Por isso fora direto para lá. No caminho, ligara diversas vezes para o celular de Knight. Todas as vezes, porém, escutara um bipe estranho seguido por uma voz avisando que aquele número estava “passando por dificuldades técnicas”. Já podia ver o cordão policial mais à frente e... – Oi... Quer dizer que Peter chamou você também? – perguntou Hooligan, apressando o passo para alcançá-la. Tinha os olhos vermelhos e seu hálito recendia a cigarro, alho e cerveja. – Acabei de chegar da porra do jogo pela medalha de ouro. Perdi o gol da vitória! – Perdeu por quê? – quis saber ela. – O que a Scotland Yard está fazendo aqui? Quando ele lhe contou, Karen sentiu vontade de chorar. – Por quê? Por que os filhos dele? Fez a mesma pergunta a Elaine quando entraram na casa. – Peter acha que é uma tática para desviar a atenção – respondeu a investigadora. – Pode ser – disse Hooligan, sem conseguir disfarçar a embriaguez na voz. – Mas essa tal de Marta passou as duas últimas semanas vindo aqui, não foi? – Mais ou menos isso, acho – respondeu Karen. – Certo. Então estou pensando no motivo para ela ter feito isso – continuou Hooligan. – E acho que Cronos a mandou para cá como espiã. Como não conseguiu infiltrar ninguém na Scotland Yard, infiltrou essa tal de Marta na Private... não faz sentido? – O.k. – concordou Elaine, estreitando os olhos. – Onde estão os computadores de Peter? E os telefones? – Ele levou o celular – respondeu a investigadora. – O fixo está na cozinha. Vi o computador lá em cima, no quarto dele. Vinte minutos mais tarde, Hooligan se juntou a Elaine e Karen, que conversavam com Billy Casper. – Achei que você talvez fosse querer dar uma olhada nisto aqui, investigadora – disse ele, erguendo dois sacos plásticos pequenos. – Achei o grampo no telefone e os gravadores de teclado no cabo DSL. Aposto que o celular dele também está grampeado. Talvez haja mais grampos. – Ligue para ele – disse Elaine. – Já tentei – respondeu Hooligan. – E mandei torpedos também. Ninguém
responde, a não ser uma gravação sobre problemas técnicos.
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A NOITE CAÍA. O CELULAR DE Knight estava na mesa de centro do escritório de Amanda. Sentado no sofá, ele olhava para o aparelho com a sensação de que o seu cérebro tinha sido fervido e de que o seu estômago estava mais vazio do que nunca. Por que eles não tinham ligado? Ao seu lado, sua mãe disse: – Isso é mais do que uma pessoa boa como você deveria suportar, Peter, mas você não pode perder as esperanças. – De jeito nenhum – disse Boss, enfático. – Aqueles seus pestinhas são dois guerreiros. Você também tem que ser. Mas Knight estava se sentindo tão derrotado quanto ao segurar os filhos recémnascidos no colo e ver o corpo da mulher ser carregado às pressas para a ambulância. – Hoje é aniversário deles – falou baixinho. – Eles estavam esperando o que qualquer criança de 3 anos espera. Bolo, sorvete... Amanda estendeu a mão e afagou os cabelos do filho. O gesto era tão raro e foi tão inesperado que Knight olhou para ela com um sorriso fraco. – Eu sei como a vida foi cruel com você nos últimos tempos, mãe, mas queria agradecer pelo seu carinho com as crianças. Os únicos presentes que elas conseguiram abrir foram os seus. Ela fez cara de surpresa. – É mesmo? Não achei que fossem chegar tão depressa. – Eu mesmo os levei – disse Boss. – Achei que deveriam chegar no dia. – Obrigado, Boss – agradeceu Knight. – Eles adoraram. E devo dizer que pôr a foto de Kate dentro da medalha foi um dos seus gestos mais gentis e atenciosos, mãe. Geralmente contida, sua mãe ficou com os olhos marejados. – Boss e eu ficamos preocupados com o fato de os presentes não serem brinquedos... – Não, eles adoraram – insistiu Knight. – Luke pôs o relógio como se fosse uma medalha de ouro. E o cordão serviu direitinho em Isabel. Acho que ela nunca mais vai tirá-lo do pescoço. Amanda piscou várias vezes e então olhou rapidamente para Boss antes de perguntar: – Peter, você acha que eles estão usando o cordão e o relógio agora? – Imagino que sim – respondeu Knight. – Não vi os presentes lá em casa. Amanda então olhou para Boss, que sorria. – Você ativou os aparelhos? – Antes mesmo de entregar o certificado de garantia! – respondeu Boss.
– Que história é essa? – indagou Knight. – Peter, você não olhou as caixas dos presentes? – perguntou Amanda, animada. – O cordão e o relógio foram fabricados pela Trace Angels, uma das empresas nas quais investi. Eles têm minúsculos transmissores GPS embutidos, para os pais poderem rastrear seus filhos!
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OLHANDO PARA DOIS MINÚSCULOS ÍCONES em forma de coração pulsando e se movendo bem devagar num mapa na tela de seu iPhone, Knight saiu correndo da casa da mãe. Segundo o mapa, Luke e Isabel estavam a menos de 3 quilômetros dali! Ele foi à rua para tentar chamar um táxi e ver por que seu celular não estava recebendo chamadas dentro de casa. Tornou a digitar o número de Elaine, mas não obteve resposta, a não ser uma gravação sobre problemas de rede. Estava prestes a dar meia-volta e correr novamente para a casa da mãe quando viu um táxi se aproximar. Fez sinal e pulou para dentro do carro. – Metrô de Lancaster Gate! – disse. – Falou, cara – respondeu o taxista. – Ué! É você! Knight demorou alguns segundos para se dar conta de que aquele era o mesmo motorista que perseguira o táxi que havia tentado atropelar Lancer e ele. – Cronos levou meus filhos. – Aquele maluco que explodiu Mundaho? – exclamou o jamaicano. – Pode pisar fundo, cara – disse Knight. O carro partiu a toda a velocidade em direção à Brompton Road enquanto Knight tentava ligar mais uma vez para a cunhada. A ligação não se completou, mas, assim que ele desligou, o aparelho vibrou avisando que um torpedo havia chegado. A mensagem era de Hooligan e dizia:
Estou na sua casa. Seu computador e o telefone fixo estão grampeados. Imagino que o celular tb. Vc pode estar sendo rastreado. Ligue para cá.
Rastreado?, pensou Knight. Eles estão me rastreando? – Pare o carro! – gritou. – Mas e os seus filhos, cara? – estranhou o taxista. – Pare o carro – repetiu Knight, forçando-se a ficar calmo. Olhou para os corações que pulsavam na tela do iPhone. Seus filhos tinham entrado numa casa em Porchester Terrace. – Você tem celular? – O telefone da minha mulher quebrou hoje de manhã – respondeu o taxista, encostando junto ao meio-fio. – Deixei o meu com ela. – Filho da... – xingou Knight. Olhando para a tela pela última vez, decorou o endereço de onde seus filhos estavam. Em seguida entregou o telefone ao taxista junto com duas notas de 50 libras. – Escute com atenção, parceiro. Vou deixar esse celular com você e quero que vá
com ele até Heathrow. – Hein? – Não discuta – disse Knight, fazendo uma rápida anotação num cartão de visita. – Vá até Heathrow, depois até este endereço em Chelsea. Lá vai encontrar a polícia. Peça para falar com a investigadora Elaine Pottersfield ou então com Hooligan Crawford, da Private. Entregue o iPhone para eles. Vai receber uma recompensa por isso. – E os seus filhos, cara? Mas Knight já tinha descido e estava atravessando a Brompton Street às pressas em direção à Montpelier Street no sentido norte, rumo ao Hyde Park, pensando que a última coisa que queria era que a polícia chegasse em peso, cercasse a casa e forçasse Marta a agir... ou Cronos. Isso poderia custar a vida a Isabel e a Luke e Knight não sobreviveria a uma coisa dessas. Planejava vigiar o local, depois encontrar um telefone para poder avisar Elaine, Jack, Hooligan, Karen e todo o restante de Londres. Quando chegou à trilha que corre paralela à margem oeste do lago Serpentine, estava sem ar. Dez minutos depois, ao sair do parque e atravessar a Bayswater Road em frente à estação de metrô de Lancaster Gate, sentiu os pulmões queimarem. Seguiu pela Bayswater na direção oeste, passou por um grupo de torcedores reunidos no pub Swan, ainda comemorando a vitória da Inglaterra de virada contra o Brasil, e por fim virou à esquerda em Porchester Terrace. O endereço que estava procurando ficava do lado oeste da rua, perto de Fulton Mews. Knight se manteve na calçada leste e foi avançando metodicamente para o norte até chegar o mais perto que se atrevia do endereço. Desejou desesperadamente ter um binóculo, mas pôde ver que o prédio branco tinha sacadas em todos os andares e barras de ferro nas janelas do térreo. O imóvel que interessava a Knight era ladeado por prédios idênticos. Todas as janelas estavam apagadas, com exceção de uma luz vinda de uma porta alta envidraçada que conduzia à sacada de um dos apartamentos, no canto nordeste do segundo andar. Seria para lá que Marta levara seus filhos? Voltou a chover forte o bastante para fazer Knight decidir que não pareceria estranho se cobrisse a cabeça com o capuz da capa e passasse em frente ao prédio pela calçada leste da rua. Será que Isabel e Luke estavam lá dentro? Ou Cronos? Seria aquele o seu esconderijo? Knight percorreu a calçada lançando olhares casuais para a porta do prédio e pensando se deveria se arriscar a atravessar a rua para ver melhor antes de ir a um dos hotéis de Inverness Terrace e ligar para Elaine. Foi então que percebeu como a sacada iluminada ficava perto da sacada ao lado, mais ao norte, que pertencia ao prédio contíguo. Teve quase certeza de que, dessa segunda sacada, seria possível olhar para dentro do prédio ao lado e ver o apartamento onde ele achava que Luke e Isabel estavam. Ora, provavelmente daria até para pular de uma para outra.
Knight diminuiu o passo e estudou a fachada dos dois prédios, tentando descobrir um jeito de subir até lá. Mas nessa hora uma luz se acendeu na sacada contígua. Alguém havia chegado em casa. Na mesma hora, um plano se formou na mente de Knight. Iria tocar o interfone do apartamento ao lado, explicar o que estava acontecendo e pedir para usar o telefone e ir até a sacada vigiar o outro apartamento. Mas então teve a ideia de ir verificar os fundos de ambos os prédios, para ver se havia alguma outra luz acesa. Levou três minutos para fazer isso. Não viu mais nenhuma. Voltou a Porchester Terrace na mesma hora em que uma mulher estava saindo pela porta da frente do prédio no qual queria entrar. Knight correu para passar por ela, sorriu para a mulher como se os dois fossem velhos amigos, subiu a escada correndo e segurou a porta de segurança antes que ela se fechasse. Melhor ainda. Iria subir direto e bater na porta do apartamento no canto sudeste do segundo andar. Quando os moradores vissem seu crachá da Private, com certeza o deixariam entrar. Subiu correndo os dois lances de escada e chegou a um corredor central, que recendia a linguiça frita. O segundo andar tinha dois apartamentos. Knight avançou até a porta do que dava para o sudeste, apartamento 3B, ouviu uma televisão ligada lá dentro e bateu com força na porta antes de erguer o crachá da Private e sua identidade junto ao olho mágico. Ouviu passos se aproximando. Em seguida houve uma pausa antes de os trincos serem soltos e a porta do apartamento se abrir, revelando Michael Lancer, que, com expressão intrigada, perguntou: – Knight? O que você está fazendo aqui?
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LANCER ESTAVA USANDO UMA CALÇA e um suéter de moletom e havia muitos dias que não fazia a barba. Tinha os olhos encovados, fundos, como se houvesse dormido muito pouco desde que fora dispensado de seu cargo no comitê organizador. – Mike, este apartamento é seu? – perguntou Knight, incrédulo. – Há mais de 10 anos – respondeu Lancer. – O que está acontecendo? Agora também intrigado, Knight perguntou: – Posso entrar? – Ahn, claro – respondeu Lancer, dando um passo para o lado. – Está tudo uma bagunça, mas... o que você está fazendo aqui? Knight desceu um corredor até uma sala de estar bem equipada. Garrafas de cerveja e embalagens de comida chinesa entregue em domicílio lotavam a mesa de centro. A parede virada para o sul era de tijolo aparente. Encostado nessa parede, um armário aberto sustentava uma televisão sintonizada no resumo completo da BBC do último dia de competições. Ao lado da TV havia uma escrivaninha e, sobre ela, um laptop ligado. Um cabo azul saía da lateral do computador e ia se conectar a uma entrada na parede. Ao ver esse cabo, tudo fez sentido para Knight. – O que você sabe sobre os seus vizinhos do outro lado dessa parede? – perguntou, localizando a porta envidraçada que se abria para a sacada. – Do outro prédio, você quer dizer? – indagou Lancer, sem entender. – Isso – respondeu Knight. O ex-membro do comitê organizador balançou a cabeça. – Nada. Acho que o apartamento está vazio há quase um ano. Pelo menos faz quase um ano que não vejo ninguém na sacada. – Tem alguém lá agora – disse Knight, gesticulando então na direção do cabo azul. – Aquilo ali é um cabo de rede? Lancer parecia estar se esforçando para entender aonde Knight queria chegar com aquelas perguntas. – Claro que é. – Você não tem wi-fi? – indagou Knight. – O cabo é muito mais seguro. Por que esse interesse todo no apartamento do prédio ao lado? – Porque acho que Cronos ou uma de suas Fúrias alugou o apartamento para poder interceptar a sua conexão. O queixo de Lancer caiu. – Como é que é?
– Foi assim que eles conseguiram hackear o sistema de segurança das Olimpíadas – continuou Knight. – Interceptaram sua conexão, roubaram suas senhas e pronto. O ex-decatleta olhou para o próprio laptop e piscou. – Como você sabe de tudo isso? Como sabe que eles estão aí ao lado? – Porque meus filhos estão lá dentro. – Seus filhos? – repetiu Lancer, chocado. Knight assentiu, cerrando os punhos com força. – Uma mulher chamada Marta Brezenova, uma babá que contratei há pouco tempo, sequestrou os meninos a mando de Cronos. Só que ela não sabe que eles estão usando um cordão e um relógio equipados com transmissores de GPS. O sinal está vindo do apartamento ao lado. – Meu Deus – disse Lancer, zonzo. – Eles estavam bem aqui do meu lado desde o... Temos que ligar para a Scotland Yard, para o MI5. Chamar uma unidade especial. – Faça isso você – disse Knight. – Eu vou tentar olhar da sua sacada para dentro do apartamento ao lado. E diga a eles para serem discretos. Nada de sirenes. Não quero que meus filhos morram por causa de um ato reflexo. Lancer assentiu enfaticamente, sacou o celular e começou a digitar enquanto Knight saía pela porta envidraçada para a sacada encharcada de chuva. Ele passou por alguns móveis de jardim molhados e tentou espiar para dentro do outro apartamento. A sacada ao lado ficava a menos de dois metros de distância e tinha uma grade de ferro. A porta envidraçada de folha dupla era coberta por cortinas brancas transparentes que deixavam passar a luz, mas não permitiam que Knight distinguisse com clareza o interior do apartamento. À sua direita, ouviu Lancer falando ao celular e explicando o que estava acontecendo. Um vento começou a soprar. A porta da sacada ao lado se abriu vários centímetros, revelando um carpete muito branco e uma mesa também branca, de estilo rústico, sobre a qual repousavam diversos computadores ligados, todos conectados a cabos de rede azuis. Knight estava prestes a voltar para dentro da casa de Lancer para lhe contar o que acabara de ver quando ouviu Luke choramingar em algum lugar dentro do apartamento ao lado. – Não, Marta! Luke quer ir para casa, para a festa de aniversário! – Cale essa boca, seu pirralho mimado – sibilou Marta antes de Knight ouvir o estalo de um tapa e Luke abrir o berreiro. – E veja se aprende a usar o banheiro!
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O INSTINTO PRIMEVO DE UM PAI querendo proteger a cria dominou Knight tão completamente que, sem pensar nas consequências, ele subiu no guarda-corpo da sacada de Lancer, a 10 metros do chão, agachou-se e projetou o corpo para a frente. Ao se desprenderem do guarda-corpo molhado, os sapatos de Knight escorregaram de leve e ele soube no mesmo instante que não conseguiria chegar à sacada ao lado. Não seria capaz sequer de alcançar o guarda-corpo e teve certeza de que iria despencar e quebrar todos os ossos do corpo. No entanto, não se sabe como, seus dedos conseguiram agarrar a balaustrada de ferro no ponto em que esta se prendia à sacada, e ele se segurou com todas as forças. Pendurado ali, pensou em quanto tempo poderia aguentar. – Cale essa boca! – disparou Marta, dando outro tapa em Luke. Os soluços do menino se tornaram mais intensos e isso foi o suficiente para provocar uma forte onda de adrenalina em Knight. Ele balançou o corpo para a esquerda e para a direita, como um pêndulo. Sentiu o ferro do guarda-corpo ferir suas mãos, mas não deu atenção à dor, e na terceira vez conseguiu alcançar a borda da sacada com a ponta do pé direito. Segundos depois, já havia escalado o guarda-corpo e conseguido pisar na sacada ao lado. Todos os seus músculos tremiam e ele sentiu um gosto amargo na boca. O choro de Luke agora estava abafado, nasalado, como se Marta o tivesse amordaçado. Ignorando a ardência que sentia nas mãos, Knight sacou a pistola e avançou até a porta aberta da sacada. Espiou lá para dentro e viu que a sala de estar era parecida com a do apartamento de Lancer. Os móveis, porém, eram bem diferentes, muito mais impessoais. Tudo naquela sala, com exceção de uma tapeçaria vermelha e dourada pendurada na parede norte, tinha a mesma cor branca ofuscante do carpete. Os gritos abafados de Luke vinham de um corredor perto da cozinha. Knight empurrou a porta de folha dupla para abri-la por completo e entrou. Tirando os sapatos, seguiu rapidamente até o corredor sem fazer barulho. Agora já não tinha qualquer ilusão quanto ao que estava fazendo. Marta fora cúmplice da morte de Denton Marshall. Ajudara a destruir a felicidade de sua mãe. Tentara acabar com as Olimpíadas e depois sequestrara seus filhos. Ele não hesitaria em matá-la para salvar os gêmeos. Os gritos de Luke diminuíram o suficiente para Knight conseguir ouvir também o choro de Isabel, seguido por um grunhido mais grave. Tudo isso vinha de um cômodo à esquerda. A porta estava aberta, as luzes acesas. Knight continuou a avançar rente à parede até chegar à porta. Olhou mais para a frente no corredor e viu duas outras portas. Ambas estavam abertas, com as luzes dos cômodos apagadas.
Tudo estava acontecendo no cômodo bem ao seu lado. Ele soltou a trava de segurança da pistola. Com a arma apontada para a frente, movendo-se de um lado para outro, Knight cruzou o limiar da porta e varreu o cômodo com a pistola e o olhar. Viu Isabel deitada de lado em cima de um colchão sem roupa de cama posicionado no chão à sua direita, amarrada e com a boca tapada com fita adesiva, olhando para Marta. A babá estava a cerca de cinco metros de Knight, de costas para a porta, trocando a fralda de Luke em cima de uma mesa encostada na parede. Não percebeu que Knight estava em pé na soleira da porta atrás dela, tentando encontrar uma linha de tiro desimpedida. Mas James Daring percebeu. O curador do Museu Britânico e astro da TV tinha os olhos grudados em Knight, que demorou apenas um segundo para entender grande parte da situação. Deu um passo à frente, sem mudar a mira da pistola, e disse: – Saia de perto do meu filho, sua vadia criminosa de guerra, senão dou um tiro na sua cabeça e ainda vou sentir prazer nisso. A babá se virou para Knight com uma expressão incrédula no rosto e seus olhos se voltaram de relance para um fuzil automático preto encostado no canto, a vários metros de onde estava. – Nem pense nisso – disse Knight, avançando mais um passo. – Deite de bruços no chão com as mãos na cabeça. Agora. O olhar de Marta se tornou morto e vazio, mas ela começou a obedecer devagar, abaixando o tronco sem tirar os olhos dele, como faria uma leoa encurralada. Knight deu mais um passo na sua direção, segurando a Beretta com as duas mãos e vendo Marta enquadrada pela mira da pistola. – Falei para se abaixar! – berrou. Marta se deitou de bruços no chão e levou as mãos a cabeça. Knight relanceou os olhos para Daring. – Cronos? – indagou. Os olhos do astro da TV tinham uma expressão modorrenta e então Knight ouviu um baque seco muito próximo, e um objeto extremamente duro atingiu seu crânio. Foi como os temporais que ele tinha visto avançar sobre as planícies secas de Portugal: os trovões ecoaram com tanta força que Knight ficou surdo, ao mesmo tempo que uma onda de calor o atingiu, fazendo seu cérebro ser varado por tentáculos elétricos, tão brilhantes que o cegaram e o fizeram mergulhar na escuridão.
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Domingo, 12 de agosto de 2012.
O BARULHO DE PORTAS AUTOMÁTICAS SE abrindo e de sapatos batendo no chão de ladrilho despertou Karen Pope de seu sono leve. A jornalista do The Sun estava deitada num sofá no laboratório da Private Londres, derrubada por um misto de cansaço e aflição. Ninguém tivera notícias de Knight desde que ele saíra pela porta dos fundos de sua casa. Nem Elaine, nem Hooligan, nem Karen, nem Morgan, nem qualquer outra pessoa da Scotland Yard ou da Private. Tinham ficado à espera dele na casa de Chelsea até pouco depois do amanhecer, quando Elaine fora embora examinar os cadáveres das duas mulheres encontradas mortas na fábrica desativada. Karen e Hooligan foram para a Private tentar identificar as digitais recolhidas na casa de Knight com a ajuda do banco de dados de crimes de guerra nos Bálcãs. A identificação fora quase imediata: Senka, a mais velha das irmãs Brazlic, tinha deixado suas digitais pela casa inteira. Quando Hooligan avisou Elaine, a investigadora lhe disse que os exames preliminares das digitais da mulher morta mais recentemente a identificavam como Nada, a irmã do meio. Fora nesse ponto, por volta das oito da manhã, que Karen havia sucumbido à exaustão e se deitado no sofá, usando um dos jalecos de laboratório de Hooligan como cobertor. Quanto tempo teria dormido ali? – Hooligan, acorde – ouviu Jack dizer. – Tem um rastafári na recepção procurando por você. Diz que está com alguma coisa que Knight pediu que lhe entregasse em mãos. Não quis entregar a mim. Ao ouvir isso, Karen entreabriu um dos olhos e viu o americano em pé junto à mesa de trabalho de Hooligan, tentando acordar o cientista de uma soneca. Acima dele, o relógio marcava 10h20 da manhã. Duas horas e 20 minutos? Ela se sentou, ainda grogue, em seguida pôs-se de pé e saiu cambaleando atrás de Hooligan e Jack até a recepção, onde um jamaicano estava sentado pouco à vontade em uma das cadeiras perto do elevador. Uma grande atadura cobria sua bochecha muito inchada. Um dos braços estava engessado e pendia de uma tipoia. – Eu sou Hooligan – disse o cientista. O rastafári se esforçou para ficar de pé e cumprimentou Hooligan com a mão boa enquanto dizia:
– Ketu Oladuwa. Eu sou taxista. Hooligan gesticulou na direção do gesso e da atadura. – Bateu com o carro? Oladuwa fez que sim com a cabeça. – Bati feio, cara. A caminho de Heathrow. Uma van me pegou de lado. Passei a noite inteira no hospital. – E Knight? – perguntou Karen. – Então, cara – respondeu o rastafári, levando a mão ao bolso e sacando um iPhone esmigalhado. – Ele me deu este celular ontem à noite e me disse para ir até Heathrow e depois voltar para a casa dele para encontrar você ou algum investigador da polícia. Fui lá hoje de manhã depois de sair do hospital e a polícia me disse que você tinha ido embora, então vim para cá. – Para nos entregar um telefone espatifado? – estranhou Jack. – Não estava espatifado antes do acidente – disse o rastafári, indignado. – Ele disse que tem alguma coisa neste telefone que vai ajudar vocês a encontrar os filhos dele. – Puta que pariu – resmungou Hooligan. Pegando os restos do celular de Knight, ele deu meia-volta e partiu em direção ao laboratório, com Karen e Jack em seu encalço. – Ei! – gritou Oladuwa para eles. – Ele disse que eu iria ganhar uma recompensa!
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KNIGHT RECUPEROU A CONSCIÊNCIA DEVAGAR despertando bem lá no fundo da parte mais primitiva de seu cérebro, e acordou sentindo cheiro de bife na frigideira. No início, não teve a menor noção de quem era nem de onde estava – tudo o que conseguiu perceber foi o cheiro daquele bife. Então compreendeu que estava deitado de costas em cima de algo duro. Em seguida recuperou a audição: no início, como ondas quebrando na praia, que logo se transformaram em um chiado de estática e depois em vozes vindas da televisão. Knight então lembrou quem era e se recordou vagamente de ter estado naquele quarto com os filhos, Marta e Daring antes de apagar. Tentou se mexer. Não conseguiu. Tinha os pulsos e as mãos amarrados. A flauta começou a tocar, leve e aguda, e Knight forçou-se a abrir os olhos. Sua visão turva lhe revelou que ele não estava mais no mesmo quarto do apartamento branco. O piso debaixo dele era de tábua corrida, não de carpete. E as paredes à sua volta, escuras, eram revestidas de madeira e balançavam para a frente e para trás como um mar revolto. Knight sentiu náuseas e fechou os olhos. Ainda podia escutar a melodia da flauta. Ouviu os apresentadores do noticiário conversando entre si antes de mexer a cabeça e sentir um latejar horrível na parte de trás do crânio. Depois de vários segundos, abriu os olhos pela segunda vez e constatou que o foco de sua visão havia melhorado. Viu Isabel e Luke inconscientes no chão, não muito longe, ainda amarrados e amordaçados. Então virou a cabeça para tentar localizar de onde vinha a música e viu uma cama de baldaquino bem no meio do quarto. James Daring estava deitado nela. Por mais atordoado que estivesse, bastou um só olhar para Knight entender a situação de Daring. Era a mesma em que ele vira o curador do museu antes de tudo ficar preto: o astro da TV estava deitado no colchão com os braços e pernas abertos e presos às colunas da cama, vestido com uma camisola de hospital. Uma sonda intravenosa saía de uma bolsa plástica pendurada a um suporte junto à cama e entrava em seu pulso. A música da flauta cessou e Knight viu alguém vindo na sua direção, a silhueta se destacando contra a forte luz do sol que entrava no quarto. Mike Lancer segurava frouxamente na mão esquerda uma carabina preta e, na direita, um copo de suco de laranja. Pousou o copo sobre uma mesa e agachou-se junto a Knight. Encarou-o com ar de quem estava achando graça e disse: – Finalmente você acordou. Parece que houve um terremoto na sua cabeça, não é? – Ele riu e mostrou a arma. – Estas velhas armas para conter multidões são uma maravilha. Mesmo disparados por ar comprimido, os chumbinhos têm muita potência,
ainda mais quando disparados à queima-roupa. – Cronos? – perguntou Knight ainda tonto, sentindo cheiro de bebida no hálito de Lancer. – Sabe, Knight, eu tive uma intuição em relação a você desde o começo, ou pelo menos desde a morte prematura de Dan Carter... uma intuição de que você era quem chegaria mais perto de me desmascarar – disse Lancer. – Mas tomei as precauções necessárias e aqui estamos nós. Sem entender nada, Knight falou: – As Olimpíadas eram a sua vida. Por quê? Lancer apoiou a carabina na parte interna do joelho e esticou o braço para trás para coçar a cabeça. Quando fez isso, Knight viu seu rosto ficar corado de raiva. Lancer se levantou, pegou o copo de suco e tomou um gole antes de responder: – Os jogos modernos se corromperam desde o início. Juízes subornados. Aberrações genéticas. Monstros movidos a drogas. Era preciso fazer uma limpa e eu... Apesar do estado atordoado de Knight, aquilo não fez sentido para ele. – Que bobagem – falou. – Não acredito em você. Lancer o encarou com fúria antes de atirar o copo em seu rosto. Porém não acertou o alvo e o copo se espatifou na parede atrás de Knight. – Quem é você para questionar meus motivos? – bradou Lancer. Com ou sem concussão cerebral, com ou sem ameaças, as coisas estavam ficando mais claras para Knight. – Você não fez isso só para expor as irregularidades. Você sacrificou aquelas pessoas na frente do mundo todo. Tem que haver uma raiva incontrolável por trás disso. Lancer ficou ainda mais irado. – Eu sou uma emanação do Senhor do Tempo. – Ele olhou para os gêmeos. – Cronos. O devorador de crianças. A ameaça sugerida por essas palavras varou o corpo de Knight. Até onde iria a loucura daquele homem? – Não – disse Knight, apostando em seu instinto zonzo. – Alguma coisa aconteceu com você. Alguma coisa que o encheu de ódio e que o fez querer cometer todos esses atos. A voz de Lancer ficou mais alta: – As Olimpíadas deveriam ser um festival religioso, no qual homens e mulheres honrados competiriam ante os olhos dos deuses. Os jogos modernos são exatamente o contrário disso. Os deuses ficaram ofendidos com a arrogância dos homens, com a húbris humana. A visão de Knight ficou ligeiramente embaçada e ele se sentiu novamente enjoado, mas seu cérebro funcionava melhor a cada segundo. Ele balançou a cabeça. – Os deuses não ficaram ofendidos. Foi você quem ficou. Quem eram eles? Esses homens arrogantes?
– Os que morreram nos últimos 15 dias – retrucou Lancer, exaltado. Então sorriu. – Inclusive Dan Carter e seus outros queridos colegas de trabalho. Knight o encarou sem dizer nada, incapaz de compreender o tamanho de sua loucura. – Você derrubou o avião? – Carter estava chegando perto demais – respondeu Lancer. – Os outros foram só efeito colateral. – Efeito colateral! – gritou Knight, com vontade de matar o homem em pé na sua frente e arrancar seus membros um a um. Mas sua cabeça começou a oscilar e ele ficou parado olhando para Lancer. Depois de vários segundos, conseguiu dizer: – Quem ofendeu você? A expressão de Lancer se endureceu ao relembrar o passado. – Quem foi? – insistiu Knight. O ex-decatleta olhou para ele com uma expressão de fúria e respondeu: – Médicos.
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DE MODO RESUMIDO E AMARGURADO, conto a Knight uma história que ninguém nunca ouviu do início ao fim, a não ser as irmãs Brazlic. Uma história que começa com o ódio que me acompanha desde que nasci e passa pelo dia em que esfaqueei minha mãe e matei os monstros que me apedrejaram depois que fui morar com o pastor Bob em Brixton, o bairro mais perigoso de Londres. Conto a Knight que, depois de ser apedrejado, aos 15 anos, o pastor Bob me fez entrar para uma competição de corrida, porque achava que eu era mais forte e mais rápido do que a maioria dos outros meninos. Ele não fazia a menor ideia do que eu era capaz. Nem eu. Nessa primeira competição, ganhei seis provas – 100 metros rasos, 200 metros rasos, arremesso de dardo, salto triplo, salto em distância e arremesso de disco. Repeti o mesmo feito em um campeonato regional, e outra vez numa disputa juvenil de nível nacional em Sheffield. – Um homem chamado Lionel Higgins veio falar comigo depois de Sheffield – digo a Knight. – Ele era um treinador independente de decatletas. Disse-me que eu tinha talento para ser o maior decatleta do mundo e para ganhar o ouro olímpico. Ofereceu-se para me ajudar a encontrar um jeito de treinar em tempo integral e encheu minha cabeça com sonhos falsos de glória e de uma vida seguindo os ideais olímpicos da competição justa, que vença o melhor, essa baboseira toda. – Com um muxoxo de desprezo, continuo: – O matador de monstros que carrego dentro de mim mordeu a isca direitinho. Sigo contando a Knight como vivi o ideal olímpico durante meus 15 anos seguintes. Apesar das dores de cabeça que me derrubavam pelo menos uma vez por mês, Higgins organizou tudo para me fazer entrar para o Regimento Coldstream, no qual, em troca de uma década de serviço militar, eu poderia treinar. E foi o que fiz, de maneira furiosa e decidida... alguns dizem até obsessiva. Fiz isso para alcançar a imortalidade atlética e tive uma chance nas Olimpíadas de Barcelona, em 1992. – Nós já tínhamos previsto que o calor e a umidade seriam opressivos – digo a Knight. – Higgins me mandou à Índia para treinar no calor, imaginando que Mumbai seria pior do que a Espanha. Ele tinha razão. Eu era mesmo o mais bem treinado e estava mentalmente preparado para sofrer mais do que qualquer outro atleta. Envolto em minhas mais obscuras lembranças, balanço a cabeça vigorosamente e digo: – Nada disso teve importância. Conto como estava liderando o decatlo de Barcelona no final do primeiro dia, após as provas de 110 metros com obstáculos, salto em altura, arremesso de disco,
salto com vara e 400 metros rasos. O calor passava dos 35 graus e o ar opressivo e saturado surtiu seu efeito em mim: tive uma cãibra e desabei depois de conseguir o segundo lugar nos 400 metros. – Fui levado às pressas para uma tenda de atendimento médico. Mas eu não estava preocupado. Higgins e eu já tínhamos previsto que eu iria precisar de uma reposição eletrolítica depois do primeiro dia, e isso era permitido. Eu não parava de chamar meu treinador, mas os atendentes não o deixaram entrar. Vi que eles iam pôr uma sonda intravenosa em mim. Disse a eles que preferiria que meu próprio treinador dosasse a reposição dos líquidos e sais minerais que eu perdera com uma mistura adaptada ao meu metabolismo. Mas eu não estava em condições de lutar quando eles enfiaram a agulha no meu braço e a prenderam em uma bolsa de sabe-se lá o quê. Olhando para Knight e sentindo o rosto empalidecer, tenho a impressão de reviver aquela experiencia. – No dia seguinte, eu parecia uma sombra pálida de mim mesmo. O arremesso de dardo e o salto em distância eram as modalidades em que eu me saía melhor, mas fracassei nas duas. Não fiquei sequer entre os 10 primeiros colocados. E eu era o campeão mundial à época. Sinto uma raiva quase insuportável ao dizer: – Nada de sonho realizado, Knight. Nada de glória olímpica. Nenhuma prova da minha superioridade. Fui sabotado por aquilo em que os jogos modernos se transformaram. Knight me encara com a mesma expressão desconfiada e temerosa de Marta quando me ofereci para salvar suas irmãs e ela naquela delegacia da Bósnia. – Mas você foi campeão mundial – diz Knight. – Duas vezes. – Os imortais têm que ganhar o ouro olímpico. O ser superior precisa do ouro. Minha oportunidade foi roubada por monstros. Foi uma sabotagem premeditada. Knight agora me olha com ar incrédulo. – Quer dizer então que você começou a bolar sua vingança ali mesmo, 20 anos atrás? – O escopo da minha vingança foi aumentando com o tempo – admito. – Começou com os médicos espanhóis que me doparam. Eles morreram de causas naturais em setembro de 1993. Os árbitros da competição sofreram acidentes de carro em 1994 e no início de 1995. – E as Fúrias? – pergunta Knight. Sento-me em um banquinho na sua frente. – Quase ninguém sabe que, no verão de 1995, depois que o meu regimento encerrou seus serviços na Guarda da Rainha, fomos mandados para Sarajevo para nos revezarmos com a missão de paz da Otan. Fiquei lá menos de cinco semanas, por causa de uma bomba na beira da estrada que partiu minha cabeça pela segunda vez na vida. As palavras de Knight agora saíam menos arrastadas, e seus olhos estavam menos baços quando ele disse:
– Isso foi antes ou depois de você ajudar as irmãs Brazlic a fugir daquela delegacia perto de Srebrenica? Dou um sorriso amargo. – Depois. Com novos passaportes e novas identidades, eu trouxe as Fúrias para Londres e as instalei num apartamento ao lado do meu. Chegamos até a abrir uma porta secreta atrás do meu armário e da tapeçaria do apartamento delas, para fingir que levávamos vidas separadas. – Dedicadas a destruir as Olimpíadas? – pergunta Knight, ácido. – Isso mesmo. Como eu disse, são os deuses que estão por trás disso, por trás de mim. Foi o destino que quis assim. De outro modo, como explicar que, bem no começo de tudo, eu tenha sido chamado para participar do comitê organizador e, como num passe de mágica, Londres tenha sido escolhida para sediar os jogos? Foi o destino que me permitiu participar de tudo desde o início, esconder objetos nos lugares em que iria precisar deles, modificá-los se fosse necessário, ter acesso irrestrito a cada cantinho de cada local do evento. E agora, com todos atrás de você e dos seus filhos, o destino vai me permitir terminar o que comecei. O rosto de Knight se contorce. – Você é louco. – Não, Knight – respondo. – Sou apenas superior de maneiras que você é incapaz de compreender. Levanto-me e começo a me afastar. Ele me chama de volta: – Então você vai liquidar todas as Fúrias antes do grand finale? Matar Marta e depois fugir? – Nada disso – respondo com uma risadinha. – Marta saiu para pôr o cordão de sua filha e o relógio de seu filho em dois trens rumo à Escócia e à França. Quando ela terminar, vai voltar para cá, soltar o Dr. Daring e matar seus filhos. Depois vai matar você.
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KNIGHT SENTIU A CABEÇA BALANÇAR e latejar como se houvesse levado um novo golpe. Sua atenção voltou-se para os filhos adormecidos. O cordão e o relógio tinham mesmo desaparecido. Agora já não havia mais como rastreá-los. Mas e o taxista? Por que não entregara o telefone a Hooligan ou a Elaine? Por que eles não tinham ido buscá-lo? Estariam seguindo Marta até os trens? Knight tornou a olhar para Lancer, que agora recolhia uma bolsa e alguns papéis. – Meus filhos não fizeram nada – disse Knight. – Eles só tem 3 anos. São inocentes. – São pequenos monstros – disse Lancer com uma voz sem entonação, virando-se para a porta. – Adeus, Knight. Foi bom competir com você, mas o melhor venceu. – Você não venceu! – gritou Knight para suas costas. – Mundaho provou isso. Você não venceu. Não importa o que faça, o espírito olímpico vai continuar vivo. O comentário atingiu algum ponto sensível, porque Lancer se virou e marchou de volta na direção de Knight, mas teve um movimento de recuo e estacou ao ouvir o barulho de um tiro. O som vinha da televisão e fez Lancer relaxar e dar um sorriso de ironia. – A largada para a maratona masculina – disse ele. – A última partida começou. Sabe de uma coisa, Knight? Já que eu sou um ser superior, vou deixar você vivo para assistir ao final. Antes de matá-lo, Marta vai deixar você testemunhar como vou apagar de uma vez por todas esse tal espírito olímpico.
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MEIA HORA MAIS TARDE, AO meio-dia em ponto, Karen tirou os olhos nervosos da cobertura da maratona masculina e os pousou em Hooligan, que ainda estava curvado por cima dos estilhaços do iPhone, tentando descobrir o paradeiro de Knight. – Alguma novidade? – perguntou a jornalista, sentindo-se extremamente frustrada. – O chip está bem detonado – respondeu o cientista-chefe da Private sem erguer os olhos. – Mas acho que estou chegando lá. Jack saíra para supervisionar a segurança na linha de chegada da maratona masculina. Elaine Pottersfield, porém, estava ali no laboratório. A investigadora da Scotland Yard havia chegado pouco antes, agitada e exausta pelos acontecimentos das últimas 24 horas. – Onde mesmo o taxista disse que tinha pegado Peter? – perguntou ela, impaciente. – Em algum lugar de Knightsbridge, eu acho – respondeu Karen. – Se Oladuwa tivesse celular, poderíamos ligar para ele, mas ele disse que deixou o telefone com a mulher. Elaine pensou por alguns minutos. – Teria sido na Milner Street? – É, foi lá mesmo – grunhiu Hooligan. – Quer dizer que Knight passou na casa da mãe – disse a investigadora. – Amanda deve saber de alguma coisa. – Ela sacou o telefone com um gesto nervoso e começou a procurar o número. – Pronto – disse Hooligan, erguendo a cabeça de dois sensores presos a uma das peças remanescentes do chip do celular de Knight e olhando para um monitor inteiramente ocupado pela linguagem incompreensível dos códigos. Inclinando-se até junto de um teclado, ele começou a digitar ao mesmo tempo que Karen ouvia Elaine dizer alô, apresentar-se como investigadora de polícia e irmã da falecida esposa de Knight e pedir para falar com Amanda. A investigadora então saiu do laboratório. Dois minutos mais tarde, a imagem no monitor de Hooligan deixou de ser um quadro composto por hieróglifos eletrônicos e se transformou no screenshot borrado de um site da internet. – O que é isso? – perguntou Karen. – Parece uma espécie de mapa – respondeu Hooligan, ao mesmo tempo que a investigadora entrava correndo no laboratório. – Só não estou conseguindo ler a URL. – Trace Angels! – berrou Elaine Pottersfield. – A URL é Trace Angels!
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A MULTIDÃO QUE OCUPA O LADO sul da passarela de Birdcage Walk, de frente para o St. James Park, é maior e mais compacta do que eu havia previsto. Mas, pensando bem, a maratona masculina é a última prova dos jogos. Faz um calor sufocante, são onze e meia da manhã e os líderes da corrida estão chegando para dar início à segunda das quatro voltas da prova. Ouço o rugido dos espectadores e os vejo correndo na direção oeste, rumo ao monumento Victoria Memorial e ao Palácio de Buckingham. Com uma pequena bolsa a tiracolo, abro caminho até a frente da multidão, segurando bem alto minha credencial de segurança das Olimpíadas, que ninguém jamais pensou em confiscar. É muito importante que eu seja visto agora, aqui, neste instante. Meu plano era encontrar qualquer policial uniformizado que estivesse por perto. Quando olho para as pessoas reunidas junto à pista, porém, vejo um rosto conhecido. Abaixo-me para passar por baixo da fita e caminho em direção a ele, com a credencial erguida no ar. – Investigador Casper? – pergunto. – Mike Lancer. O inspetor da Scotland Yard meneia a cabeça. – Se quer saber minha opinião, acho que foram muito duros com o senhor. – Obrigado – agradeço. Então continuo: – Eu não faço mais parte da equipe oficial, claro, mas estava pensando se poderia cortar caminho atravessando a rua quando houver uma brecha entre os corredores. Queria assistir do lado norte, se possível. Casper reflete um pouco sobre o pedido antes de dar de ombros e dizer: – Claro, por que não? Trinta segundos depois, estou do outro lado da rua, abrindo caminho pela multidão outra vez para entrar no parque. Uma vez lá dentro, sigo na direção leste, olhando rapidamente para o relógio e pensando que Marta vai soltar Daring em mais ou menos 90 minutos, por volta do final da maratona, fato que deverá manter a polícia bem ocupada e me dará vantagem suficiente para garantir que não haverá como eles me derrotarem. Não serei derrotado hoje, penso. Nem hoje, nem nunca.
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NO QUARTO DE HÓSPEDES DE Lancer, com a boca tapada por fita adesiva, a cabeça latejante e enevoada, Knight passou a última meia hora alternando-se entre tentativas de se soltar, arquejos de frustração e olhares impotentes para os filhos desacordados. Tinha uma vaga consciência da cobertura da maratona passando em volume máximo na TV. Faltavam cinco minutos para o meio-dia. No quilômetro 17, pouco mais de uma hora depois de iniciada a corrida, atletas do Reino Unido, da Etiópia, do Quenia e do México tinham aberto vantagem sobre os demais ao margearem o Tâmisa no Victoria Embankment. Estavam usando um ao outro para ganhar terreno enquanto deixavam para trás a London Eye e seguiam em direção ao Parlamento num ritmo digno de recorde olímpico, apesar do calor escaldante. Knight se perguntava com pessimismo qual seria a atrocidade planejada por Lancer em algum ponto do percurso da maratona, mas recusava-se a pensar no que Marta poderia ter em mente para ele e os gêmeos depois que a última disputa dos jogos acabasse. Fechou os olhos e começou a rezar a Deus e a Kate, suplicando-lhes que o ajudassem a salvar os filhos. Disse que não se importava em morrer se fosse para estar com Kate outra vez. Mas as crianças não, elas mereciam... Marta entrou no quarto carregando a carabina preta que Knight tinha visto na véspera e uma sacola plástica com três garrafas de dois litros de Coca-Cola. Seus cabelos escuros tinham sido cortados e tingidos num tom de louro ofuscante, realçado por mechas prateadas que, de alguma forma, combinavam com a saia de couro preta, a camiseta justa e as botinas de cano curto que ela estava usando. Se não tivesse passado tanto tempo em sua companhia nos últimos 15 dias, Knight talvez nunca tivesse reconhecido a babá de cara fechada que fora falar com ele no parquinho com aqueles cabelos descoloridos e aquela maquiagem pesada. Marta não prestou a menor atenção em Knight. Era como se ele e todas as outras pessoas presentes naquele recinto não tivessem a menor importância. Pôs as garrafas em cima de uma cômoda, em seguida aninhou a carabina no braço e caminhou até junto de Daring. Pôs a arma no chão, pegou uma agulha hipodérmica e espremeu seu conteúdo para dentro da sonda intravenosa que entrava no braço do curador. – Hora de acordar – falou, tornando a empunhar a carabina. Ela pegou uma maçã no bolso. Enquanto a mordia, assistia distraída à cobertura televisiva da maratona. Luke se mexeu e abriu os olhos, que se cravaram direto no pai. O menino os arregalou. Suas sobrancelhas se contraíram, seu rosto ficou vermelho feito um pimentão e ele começou a choramingar, não de medo: era como se estivesse
desesperado para dizer alguma coisa ao pai. Knight reconheceu a expressão e o rosto vermelho do filho e entendeu o que significavam aqueles gemidos abafados. Ao ouvir Luke, Marta olhou para o menino com uma expressão tão fria que o cérebro latejante de Knight gritou mandando-o fazer a mulher olhar para ele, não para seu filho. Knight começou a gemer atrás da fita adesiva. Mastigando um pedaço de maçã, Marta voltou os olhos para ele e disse: – Cale a boca. Não quero ouvir você chorar feito esse pirralho. Em vez de obedecer, Knight pôs-se a gemer mais alto ainda e bateu com os pés no chão, não só para tentar alertar alguém no andar de baixo, mas também para incomodar Marta. Queria fazê-la continuar falando. Tinha experiência suficiente em negociações de reféns para entender que era fundamental fazer o sequestrador continuar falando. Isabel acordou e começou a chorar. Marta pegou a arma, marchou até Knight e riu. – O apartamento de baixo é nosso também. Pode continuar fazendo barulho. Ninguém vai escutar. Então desferiu um chute na barriga de Knight, que dobrou o corpo e se virou até ficar deitado de costas, gemendo e sentindo os cacos de vidro do copo de suco quebrado se partirem sob ele e cortarem sua pele. Luke começou a chorar também. Marta olhou para os gêmeos com ódio. Knight teve certeza de que ela iria chutá-los. Mas então ela se agachou e arrancou a fita adesiva da boca de Knight. – Faça com que eles calem a boca ou mato todos vocês agora mesmo. – Luke quer ir ao banheiro – disse Knight. – Tire a fita de sua boca. Pergunte a ele. Marta lançou-lhe um olhar mau, em seguida andou rapidamente até o menino e retirou a fita. – O que foi? Luke se retraiu para longe de Marta, mas olhou para o pai e disse: – Luke quer fazer cocô. No banheiro dos meninos grandes. – Por mim pode cagar nas calças, não estou nem aí. – No banheiro dos meninos grandes, Marta – insistiu o menino. – Luke quer ir no dos grandes. Na fralda, Não. – Dê uma chance ao menino – pediu Knight. – Ele só tem 3 anos. A expressão de Marta se transformou em um esgar de repulsa. Mesmo assim, ela pegou uma faca e soltou os tornozelos de Luke. Segurando a carabina com uma das mãos, pôs o menino de pé e rosnou: – Se isso for um alarme falso, é você quem vou matar primeiro. Os dois passaram por Daring e saíram pela porta para o corredor. Knight olhou em volta, moveu o corpo ligeiramente para trás e ouviu os cacos de vidro se quebrarem outra vez. Sentiu pequenas pontas afiadas penetrarem em suas costas e seus braços. A dor despertou seu cérebro, que percebeu então a oportunidade: ele começou a
arquear as costas feito um louco e a se mexer de um lado para outro enquanto usava os dedos para tatear debaixo do próprio corpo. Por favor, Kate. Por favor. O indicador de sua mão direita sentiu a borda afiada de um caco maior do que os outros, com uns cinco centímetros de comprimento, talvez, e ele tentou segurá-lo na mão. Mas seus gestos foram desajeitados e ele o deixou cair. Soltando um palavrão por entre os dentes, tentou outra vez. Ainda não tinha conseguido segurar o caco quando ouviu Luke exclamar: – Viu só, Marta? Menino grande! No instante seguinte, ouviu o barulho da descarga e começou a agitar os dedos freneticamente. Nada. Ouviu passos, tornou a arquear os quadris e projetou o corpo mais para perto de onde o copo havia se quebrado. Então Luke entrou no quarto, com os pulsos ainda presos na frente do corpo, e olhou para o pai com ar radiante. – Luke agora menino grande, papai – disse ele. – Três anos. Sem fralda.
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– MUITO BEM, GAROTO – ELOGIOU Knight, tornando a se deitar e sorrindo para o filho ao mesmo tempo que relanceava os olhos para Marta, que ainda estava com a arma na mão. Sentiu um caco grande do copo de suco no chão, bem embaixo da sua lombar. Os dedos de sua mão direita se fecharam em volta do caco ao mesmo tempo que Marta dizia a Luke: – Agora vá sentar ao lado da sua irmã e fique quieto. – Ela se virou para examinar Daring, que começava a se mexer em cima da cama. – Acorde – tornou a dizer. – Daqui a pouco vamos ter que sair. Daring gemeu enquanto Knight pressionava o caco de vidro contra a fita que prendia seus pulsos, começando a cortá-la. Luke foi até o pai com um sorriso no rosto e disse: – Luke menino grande. Tornando a olhar para Marta, Knight respondeu: – Maravilha, filho. Agora vá se sentar, como Marta mandou. O garoto, porém, não saiu de onde estava. – Papai, vamos para casa? – pediu o menino, e Isabel começou a choramingar por trás da mordaça, concordando com o irmão. – Vamos para a festinha? – Daqui a pouco – respondeu Knight, sentindo a fita adesiva começar a se romper e a se soltar. – Daqui a pouquinho. Então Marta pegou a carabina e um rolo de fita e começou a andar em direção a Luke. Ao ver a fita, o menino gritou: – Não, Marta! Ele se encolheu e saiu correndo. Marta ficou furiosa. Apontando a arma para o menino, vociferou: – Sentado. Agora. Senão você morre. Mas o filho de Knight era jovem demais para entender exatamente o que significava ter uma arma apontada em sua direção. – Não! – disse ele, destemido, e pulou em cima do colchão ao lado de Isabel, correndo os olhos pelo quarto à procura de uma saída. – Então você vai ver – disse Marta, marchando em direção ao menino com os olhos cravados nele e não em Knight, que sentiu os pulsos se soltarem. Quando ela passou por ele para tentar encurralar Luke, Knight deu um chute com os pés amarrados. Acertou com força o tendão de aquiles de Marta, que gritou ao mesmo tempo que suas pernas cediam e ela caía de lado no chão. A carabina escapou de suas mãos e foi parar longe. Knight girou o corpo, segurando com força o caco de vidro, e tentou cortá-la. Mas
o tempo de reação de Marta foi espantosamente rápido. Ela ergueu o antebraço para aparar o golpe e em seguida deu uma joelhada no peito de Knight. Sem ar, ele largou o caco. Transtornada de raiva, Marta pôs-se de pé e tornou a pegar a arma. Marchou até uma das garrafas de refrigerante, abriu-a e encaixou o cano da arma no gargalo antes de dizer: – Dane-se o que Cronos quer. Já estou de saco cheio de você e desses seus malditos filhos. Com gestos habilidosos, Marta passou a fita adesiva em volta do braço que sangrava, em seguida em volta do cano da arma e do gargalo da garrafa; então virou na direção de Knight a arma equipada com aquele silenciador improvisado. Tinha o olhar escuro, sem vida, e Knight teve um vislumbre do que todos aqueles rapazes bósnios deviam ter visto ao receber a visita das irmãs Brazlic. Com um ar sombrio e decidido, Marta marchou em direção a Luke, ainda em pé ao lado da irmã, e disse para Knight: – O menino vai ser o primeiro. Quero que você veja como se faz. – Lancer vai matar você! – gritou Knight atrás dela. – Como matou suas irmãs! Isso a fez estacar. Ela se virou para ele e disse: – Minhas irmãs estão vivas. Elas já fugiram de Londres. – Não – disse Knight. – Lancer matou as duas. Quebrou o pescoço de Andjela, depois cortou as mãos dela e mandou para mim. E a garganta de Nada foi cortada de orelha a orelha. – É mentira! – rosnou ela, aproximando-se dele com a arma erguida. – Elas foram encontradas na mesma fábrica desativada perto da usina de gás que vocês usaram como cativeiro para Selena Farrell. A informação fez Marta se deter por um breve instante. – E por que o noticiário não disse nada? – A polícia não deve ter avisado a imprensa – disse Knight, tentando encontrar uma resposta. – Eles às vezes fazem isso, sabe... escondem informações. – Você está mentindo – disse ela, dando de ombros. – Mas, se for verdade, é até melhor para mim. Estou farta daquelas duas. Eu mesma de vez em quando penso em matá-las. Então Marta soltou a trava de segurança da carabina.
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DE REPENTE, SIRENES SE FIZERAM ouvir em algum lugar ali perto, cada vez mais próximas, e o coração de Knight voltou a se encher de esperança. – Eles estão vindo atrás de você – disse ele, dando um sorriso louco para Marta e para o fundo da garrafa de Coca-Cola. – Não importa o que faça comigo e com meus filhos, você vai pagar. – Não vou, não – respondeu ela com uma risada ácida. – Se eles entrarem, vai ser primeiro no apartamento do prédio do lado. Enquanto isso, mato vocês e depois fujo pelo túnel. Ela tentou encostar a garrafa na cabeça de Knight, mas ele a afastou com um tapa e se contorceu, ouvindo as sirenes chegarem mais perto e ficarem cada vez mais altas. Tente ganhar tempo, pensou. Pelo menos os gêmeos vão conseguir escapar. Mas então Marta pisou na lateral do pescoço de Knight com a bota, sufocando-o, e tornou a abaixar a carabina. Ele ergueu os olhos para Marta e a segurou pelos tornozelos para tentar fazer com que ela perdesse o equilíbrio. Mas ela apenas pisou com mais intensidade em seu pescoço, até as forças dele se exaurirem. Então fitou-o lá de cima com ar sonhador. – Adeus, Sr. Knight. Pena que eu não tenha uma picareta.
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A ÚLTIMA COISA EM QUE KNIGHT pensou foi em Kate, um segundo antes de os olhos de Marta se esbugalharem. Ela deu um grito de dor, tirou o pé de seu pescoço e afastou a garrafa de Coca-Cola da cabeça dele com um safanão, fazendo a arma disparar. Com um estranho baque misturado ao som de líquido se derramando, a arma abriu um rombo na parede logo acima da cabeça de Knight. Uma chuva de refrigerante e estilhaços de plástico caiu em cima dele enquanto Marta gritava novamente. Ensandecida, ela girou o corpo para longe de Knight enquanto tateava feito uma louca atrás de si. Luke havia mordido a parte interna do joelho de Marta e estava segurando firme enquanto a ex-babá batia furiosamente no menino, sem parar de gritar. Knight lhe deu um chute forte na canela e ela deixou a arma cair antes de dar uma cotovelada na lateral do tronco de Luke. O menino foi projetado contra a parede e não se mexeu mais. Knight engatinhou na direção da arma enquanto Marta lançava a Luke um olhar irado e tateava a perna à procura da ferida que sua mordida havia deixado. Só reparou em Knight quando ele já estava a poucos centímetros da carabina. Ela então soltou um palavrão e se esticou para cima de Knight ao mesmo tempo que o dedo dele encontrava o gatilho e ele tentava apontar a arma na sua direção. Com um movimento do braço livre, ela acertou a lateral do cano, desviando a trajetória de um segundo tiro que foi seguido por um estrondo ensurdecedor, deixando Knight desorientado por alguns segundos. Tonto, ele olhou em volta, rezando para ter conseguido atingir Marta em algum lugar. Mas então a mais velha das Fúrias lhe deu um chute nas costelas e tirou a carabina de suas mãos. Com um arquejo e um sorriso de vitória, apontou o cano para Luke, que estava desacordado. – Assista à morte dele – rosnou Marta. Para Knight, o tiro soou distante, parecendo vir de outro mundo, mas acertou em cheio seu coração despedaçado. Ele imaginou que o impacto da bala fosse fazer o corpinho de Luke pular. Em vez disso, porém, a garganta de Marta explodiu, fazendo jorrar uma gosma de sangue, e a criminosa de guerra desabou no chão e caiu morta entre Knight e o filho. Atordoado e boquiaberto, Knight virou a cabeça a tempo de ver a irmã mais velha de Kate se levantar da postura agachada que havia adotado para atirar.
PARTE CINCO
A LINHA DE CHEGADA
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VINTE E CINCO MINUTOS DEPOIS de Elaine matar Senka Brazlic, a criminosa de guerra procurada pela polícia, Knight e a cunhada já estavam no carro dela, com a sirene ligada e as luzes piscando. Seguiam a toda a velocidade pelas ruas de Chelsea em direção ao Mall, onde os primeiros colocados da maratona já estavam quase no fim da quarta e última volta da prova. Em geral, a maratona masculina termina no estádio olímpico da cidade-sede. O Comitê Organizador dos Jogos de Londres, porém – em grande parte por insistência de Lancer, como se descobriu depois –, havia decidido que fazer os corredores percorrerem o malcuidado East End não era a melhor forma de divulgar para o mundo os encantos da capital britânica. Assim, os organizadores optaram por fazer os maratonistas darem quatro voltas num percurso que passava pelos mais famosos pontos turísticos de Londres, que serviriam de cenário para a transmissão da corrida pela TV: de Tower Hill até o Parlamento, passando pela London Eye e pelo Obelisco de Cleópatra, com o ponto de largada e de chegada situado no Mall, com vista para o Palácio de Buckingham. – Quero a fotografia dele no celular e no rádio de todo mundo – gritou Elaine em seu rádio. – Encontrem Lancer! Fazer a maratona passar por aqui foi ideia dele! Knight estava pensando em quanto sua cunhada era boa profissional. Ela havia ligado para os responsáveis pelo site Trace Angels e descoberto que as crianças tinham sido postas em dois trens diferentes, mas depois tivera a ideia de checar sua localização anterior e encontrara o endereço de Porchester Terrace. Depois de entrar em contato com os trens e de receber dos condutores a informação de que nenhuma criança a bordo correspondia à descrição dos filhos de Knight, ela mandou uma equipe da Scotland Yard até o prédio perto de Lancaster Gate. Estavam no apartamento das Fúrias quando a arma foi disparada no apartamento do prédio ao lado e, apesar do silenciador improvisado, escutaram o tiro. Então haviam encontrado o acesso ao apartamento de Lancer atrás da tapeçaria na parede e lançaram uma granada atordoante instantes depois de Knight disparar. Elaine largou o rádio e disse, com voz trêmula: – Nós vamos pegá-lo. Todo mundo está atrás dele agora. Knight soltou um grunhido enquanto olhava para a luz ofuscante do dia, ainda meio tonto e dolorido por causa das agressões que sofrera. – Está tudo bem com você, Elaine? Depois de ter dado o tiro? – Se está tudo bem comigo? Peter, você não deveria nem estar aqui – censurou ela. – Deveria estar lá dentro da ambulância com seus filhos, a caminho do hospital. Você também precisa de cuidados médicos.
– Amanda e Boss estão indo para lá e ficarão com Luke e Isabel. Irei ao médico depois que pegarmos Lancer. Elaine diminuiu a marcha e virou na Buckingham Palace Road. – Tem certeza de que Lancer disse que o atentado seria durante a maratona? Antes de responder, Knight fez um esforço para se lembrar. – Antes de ele ir embora eu lhe disse que, não importava o que ele fizesse, o espírito olímpico jamais iria morrer. Disse a ele que Mundaho tinha provado isso. Ele ficou louco de raiva e tive certeza de que iria me matar. Mas então foi dada a largada para a maratona e ele falou algo do tipo: “A maratona masculina. A última partida começou. E, já que eu sou um ser superior, vou deixar você vivo para assistir ao final. Antes de matá-lo, Marta vai deixar você testemunhar como vou apagar de uma vez por todas esse tal espírito olímpico.” O carro derrapou de leve quando Elaine parou em frente à barreira policial montada do outro lado da rua que margeava o St. James Park e desceu segurando o crachá para mostrá-lo aos agentes. – Ele trabalha para a Private e está comigo. Onde está o investigador Casper? O policial, que tinha um ar muito agoniado sob o calor insuportável, apontou para o norte em direção à rotatória em frente ao Palácio de Buckingham e disse: – Quer que eu o chame? A investigadora-chefe fez que não com a cabeça antes de passar pela barreira e começar a empurrar a multidão para abrir caminho até a passarela de Birdcage Walk. Ainda meio atordoado, Knight foi atrás dela. Os atletas posicionados bem mais atrás dos líderes da maratona corriam em direção ao Victoria Memorial, situado no centro da rotatória. O corpulento Billy Casper já estava abrindo caminho em direção a Knight e a Elaine. – Meu Deus, investigadora – disse ele. – O filho da mãe estava na minha frente há menos de uma hora. Ele entrou no St. James Park. – Você recebeu a foto de Lancer? – A polícia toda recebeu a foto há 10 segundos – respondeu Casper, adquirindo então uma expressão sombria. – O percurso da maratona tem mais de 12 quilômetros. O público é de meio milhão de pessoas, talvez mais. Como vamos encontrá-lo? – Na linha de chegada ou em algum lugar lá perto – disse Knight. – Com o gosto que ele tem pelo espetáculo, faz sentido. Você viu Jack Morgan por aí? – Ele está muito na sua frente, Peter – retrucou o investigador da polícia. –Assim que ficou sabendo que Cronos era Lancer e que continuava solto, Jack foi direto para a linha de chegada. Ele é bem esperto para um americano. No entanto, 26 minutos depois, enquanto rugidos se erguiam da multidão ao longo do percurso da maratona ao sul do St. James Park, Lancer ainda não tinha sido visto e cada detalhe do sistema de cronometragem havia sido reexaminado em busca de armadilhas.
Em pé no alto das arquibancadas montadas ao longo do Mall, Knight e Jack usavam binóculos para observar a copa das árvores e ver se Lancer por acaso tinha subido em alguma delas para fazer as vezes de atirador. Casper e Elaine faziam mais ou menos a mesma coisa do outro lado da rua. Seu campo de visão, porém, era atrapalhado por dezenas de imensas bandeiras britânicas e olímpicas que tremulavam em mastros enfileirados rumo a oeste na direção do Palácio de Buckingham. – Fui eu mesmo quem verifiquei os antecedentes dele... – disse Jack, desanimado, abaixando o binóculo. – De Lancer. Quando ele trabalhou para nós alguns anos atrás, em Hong Kong. A ficha dele era impecável e todos que o conheciam eram só elogios. Além do mais, não me lembro de ter visto em momento algum que ele serviu nos Bálcãs. Tenho certeza de que teria me lembrado de algo assim. – Ele passou menos de cinco semanas lá – disse Knight. – Tempo suficiente para recrutar três piranhas sanguinárias tão malucas quanto ele – comentou Jack. – Foi provavelmente por isso que ele deixou o serviço militar fora do currículo – disse Knight. Antes de Jack conseguir responder, o rugido da multidão foi ficando mais alto e o público das arquibancadas montadas ao redor do Victoria Memorial se levantou quando dois policiais de moto surgiram uns 100 metros à frente dos mesmos quatro maratonistas que haviam se distanciado dos outros por volta do quilômetro 20. – Aqueles motociclistas ali – disse Knight, erguendo o binóculo para tentar distinguir o rosto dos policiais. Mas logo viu que nenhum dos dois era Lancer. Logo atrás das motos surgiram os quatro atletas: o queniano, o etíope, o mexicano que corria descalço e o rapaz britânico de Brighton. Todos carregavam pequenas bandeiras olímpicas e de Camarões. Depois de correr 42 quilômetros, o queniano e o britânico estavam na frente, lado a lado. No entanto, a menos de 200 metros da chegada, o etíope e o mexicano, que estavam logo atrás dos líderes, se separaram e avançaram para junto deles. A multidão foi à loucura enquanto os quatro corredores muito magros avançavam pela reta final rumo ao ouro e à glória, os quatro lado a lado, nenhum deles querendo ceder terreno. A menos de 20 metros da chegada, o rapaz de Brighton acelerou e pareceu que o Reino Unido iria ganhar seu primeiro ouro olímpico na maratona masculina, para fazer par com a vitória histórica de Mary Duckworth na prova feminina, no domingo anterior. A poucos metros do final, porém, para surpresa de todos, o britânico diminuiu o ritmo, os quatro maratonistas ergueram suas bandeiras e romperam ao mesmo tempo a fita de chegada. A multidão demorou um segundo para reagir, tamanho o espanto, e Knight pôde ouvir apresentadores anunciando o feito inédito e seu possível significado. Então todas
as pessoas presentes no Mall entenderam o que havia acontecido e começaram a aplaudir bem forte a atitude dos atletas. Knight também aplaudiu. Está vendo isso, Lancer? Ou seria Cronos? Você não consegue apagar o espírito olímpico porque ele não existe em um lugar só: ele está vivo no coração de todos os atletas que um dia já lutaram para alcançar a grandeza. E sempre estará. – Não houve nenhum atentado – comentou Jack quando a multidão se acalmou. – Talvez a segurança reforçada no percurso da corrida tenha intimidado Lancer. – Pode ser – concordou Knight. – Ou talvez ele não estivesse se referindo ao final da maratona.
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O NAUSEANTE FINAL DA MARATONA MASCULINA não para de ser reprisado nos monitores ao redor dos postos de controle enquanto aguardo pacientemente na fila, sob o calor escaldante, para entrar no Parque Olímpico pelo portão norte, perto da Ruckholt Road. Minha cabeça está raspada e, assim como cada centímetro de pele exposta em meu corpo, foi tingida com henna até adquirir um tom de cobre escuro 10 vezes mais moreno do que minha pele natural. O turbante branco ficou perfeito. A barba preta também, assim como a pulseira de metal no pulso direito e o passaporte indiano – e também as lentes de contato castanho-escuras, os óculos de grau e o kurta branco e folgado que, junto com uma gota de óleo de patchuli, completam meu disfarce como Jat Singh Rajpal, comerciante de tecidos sique originário do Punjab que teve a sorte de conseguir um ingresso para a cerimônia de encerramento. Estou a menos de um metro do detector de metais quando meu rosto – meu rosto normal – aparece em um dos monitores que antes transmitiam o final da maratona. No início, sinto um pânico tomar conta de mim, mas logo me controlo e lanço vários olhares discretos para a tela, na esperança de que o noticiário esteja apenas recapitulando os acontecimentos desde o início das Olimpíadas, entre eles minha demissão do comitê. Mas então vejo a faixa escrita passando abaixo da imagem com a notícia de que estou sendo procurado por ter ligação com os assassinatos cometidos por Cronos. Como é possível?! Diversas vozes começam a ecoar como trovões dentro da minha cabeça, desencadeando uma daquelas enxaquecas lancinantes que chegam a me cegar. Faço todo o possível para manter a compostura ao dar um passo em direção a uma agente de segurança da F7, alta e imponente, e a um policial uniformizado da Scotland Yard, responsáveis por conferir ingressos e identidades. – Está bem longe de casa, Sr. Rajpal – comenta o policial enquanto olha para mim com um semblante inexpressivo. – Para um evento espetacular como este, vale a pena viajar – respondo, usando um sotaque ensaiado que sai perfeito apesar do latejar dentro da minha cabeça. Tenho que me esforçar para não levar a mão até debaixo do turbante e tocar a cicatriz que pulsa na parte de trás da minha cabeça. A segurança olha para a tela de um laptop. – O senhor já assistiu a algum outro evento dos jogos? – pergunta ela. – Sim, dois – respondo. – Assisti às provas de atletismo na tarde da última quintafeira e ao hóquei sobre a grama no começo da semana. Segunda à tarde. Índia contra Austrália. Nós perdemos. Ela corre os olhos pela tela do computador e meneia a cabeça.
– Vamos ter que passar sua bolsa e todos os objetos metálicos pelo raio X. – Naturalmente – respondo, depositando a bolsa sobre a esteira rolante e pondo moedas, pulseira e celular dentro de uma bandeja plástica que segue atrás da bolsa. – Não está carregando uma kirpan? – pergunta o policial. Sorrio. Rapaz esperto. – Não. Deixei minha adaga cerimonial em casa. O policial assente. – Ficamos gratos por isso. Alguns dos seus conterrâneos já tentaram entrar com elas. Pode passar, senhor. Instantes depois, minha dor de cabeça melhora. Já peguei de volta minha bolsa, dentro da qual há apenas uma câmera e um tubo grande de algo parecido com protetor solar. Passo depressa pelo estádio de Eton Manor e atravesso uma passarela de pedestres que me conduz à esplanada nordeste do estádio. Margeando o velódromo, a quadra de basquete e a vila olímpica, sigo rumo ao sul, passando pela área VIP dos patrocinadores. Paro um instante para observá-los e me dou conta de que ignorei muitos possíveis violadores dos ideais olímpicos. Pouco importa. Meu último ato vai mais do que compensar essa omissão. Quando penso nisso, minha respiração se acelera. O mesmo acontece com as batidas do meu coração, que está aos pulos quando sorrio para os guardas no pé da escada que sobe entre as pernas da escultura Orbit. – O restaurante ainda está aberto? – pergunto. – Até as três e meia, senhor – responde um dos guardas. – Faltam duas horas ainda. – E se eu quiser comer depois disso? – Todos os outros restaurantes aqui de baixo vão continuar abertos – responde ele. – Só o lá de cima vai fechar. Faço que sim com a cabeça e dou início a uma longa subida, mal prestando atenção nos monstros anônimos que passam por mim descendo a escada, todos alheios à ameaça que represento. Doze minutos mais tarde, chego ao andar do restaurante, que gira lentamente, e me aproximo da recepcionista. – Rajpal – digo. – Mesa para um. Ela franze o cenho. – O senhor aceita dividir a mesa? – Com prazer – respondo. Ela assente. – Vai demorar de 10 a 15 minutos. – Posso usar o toalete enquanto espero? – pergunto. – Claro – diz ela, dando um passo para o lado. Outros clientes em potencial se aglomeram atrás de mim, deixando a mulher tão ocupada que tenho certeza de que ela já começou a me esquecer. Quando chamar meu nome, vai pensar que me cansei de esperar e fui embora. Mesmo que mande alguém
verificar o toalete masculino, ninguém vai me encontrar. Rajpal já terá sumido. Entro no banheiro e o cubículo de que preciso por sorte está desocupado. Cinco minutos se passam antes de o resto do banheiro se esvaziar. Então, o mais rápido possível, suspendo-me até me sentar em uma das divisórias entre os cubículos e empurro uma das placas do teto, revelando um forro reforçado construído para que funcionários da manutenção pudessem acessar com facilidade a rede elétrica e o sistema de refrigeração. Após alguns segundos de esforço, estou lá dentro, deitado no forro, e a placa do teto está de volta ao seu lugar. Agora tudo que preciso fazer é me acalmar, me preparar e confiar no destino.
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KNIGHT E JACK CHEGARAM AO Parque Olímpico às quatro da tarde. O sol ainda estava forte e o calor fazia o ar tremeluzir junto ao chão. Segundo a Scotland Yard e o MI5, que por ordem do primeiro-ministro haviam assumido em conjunto o controle da segurança, Mike Lancer não fizera nenhuma tentativa de entrar no Parque Olímpico usando sua credencial, bloqueada assim que o alerta a seu respeito fora divulgado. Por volta das quatro e meia, a cabeça de Knight ainda doía enquanto ele seguia Jack para dentro do estádio vazio, patrulhado por equipes que conduziam cães farejadores de bombas. Naquele momento, sua maior preocupação não era encontrar Lancer, mas saber como estavam seus filhos. Estaria tudo bem no hospital? Será que Amanda estava lá com eles? Knight estava se preparando para ligar para a mãe quando Jack disse: – Talvez ele tenha mesmo ficado assustado depois da maratona. Talvez aquela tenha sido sua última chance. Ele viu que não ia dar certo e agora está fugindo. – Não – discordou Knight. – Ele vai tentar alguma coisa aqui. Algo grande. – Então ele vai ter que virar Houdini – comentou o americano. – Você ouviu... a segurança agora está no mesmo nível de uma zona de guerra. Estão posicionando equipes duplas de atiradores de elite nos pontos mais altos do estádio e todos os agentes disponíveis da Scotland Yard nos corredores e escadas. – Eu sei, Jack – respondeu Knight. – Mas, considerando o que esse louco filho da mãe fez até agora, não podemos ter certeza de que a segurança vai funcionar, por mais reforçada que esteja. Pense bem. Lancer supervisionou o gasto de um bilhão e meio de libras para as Olimpíadas. Ele conhece todas as situações que a Scotland Yard e o MI5 se prepararam para enfrentar. E durante a maior parte dos últimos sete anos teve acesso a cada centímetro de cada estádio construído para o evento. Cada porcaria de cada centímetro.
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ÀS TRÊS E MEIA DA tarde, no espaço de 35 centímetros de altura que separa o teto do banheiro masculino do telhado da Orbit, ouço o eco dos motores hidráulicos freando e parando e sinto a lenta rotação do deque panorâmico cessar. Fecho os olhos e tento acalmar a respiração, preparando-me para o que vem pela frente. Meu destino. Minha sina. Minha derradeira e justa recompensa. Faltando 10 minutos para as quatro horas, espremo o creme especial do frasco sobre o pano do turbante e o uso para deixar minha pele quase preta. Uma equipe de manutenção entra no banheiro abaixo de mim para fazer a limpeza. Ouço os esfregões batendo na parede por vários minutos, seguidos por meia hora de silêncio interrompida apenas pelo ruído suave dos movimentos que faço ao besuntar de creme a cabeça, o pescoço e as mãos. Às 16h12, o primeiro esquadrão antibomba com cães farejadores entra no banheiro masculino e subitamente me ocorre a terrível ideia de que os monstros talvez tenham sido espertos o bastante para dar a seus animais uma peça de roupa minha para farejar. Mas o esquadrão entra e sai do banheiro em menos de um minuto, sem dúvida enganado pelo cheiro do óleo de patchuli. Os cães tornam a aparecer às cinco e novamente às seis. Quando vão embora pela terceira vez, sei que minha hora está próxima. Com muito cuidado, tateio debaixo de uma placa de isolamento térmico e encontro o pente de munição cheio que guardei ali meses antes. Ponho o pente no bolso, desço para o compartimento do banheiro e então tiro o restante das roupas, o que me transforma em uma criatura bicolor, preta e branca – um reflexo aterrorizante no espelho. Agora nu, exceto pelo relógio de pulso, rasgo uma tira do pano do turbante e o uso para enrolar as duas mãos, deixando no meio uma parte frouxa de 45 centímetros. Assumo posição colado à parede junto à porta e aguardo. Às 18h45, ouço passos e vozes masculinas. A porta se abre e me acerta em cheio no rosto antes de tornar a se afastar na direção contrária, revelando as costas de um monstro alto e atlético, de calça e suéter de moletom, carregando uma bolsa de lona volumosa. O homem é grande. Imagino que seja experiente. Mas não é páreo para um ser superior. O pedaço frouxo de turbante passa por cima de sua cabeça e prende-se abaixo de seu queixo. Antes que ele possa sequer reagir, já estou com o joelho apoiado em suas costas, estrangulando-o com o tecido. Instantes depois, ainda sentindo o tremor e ouvindo os fracos gemidos nasalados de sua morte, arrasto o corpo do monstro até o último cubículo do banheiro, depois me aproximo de sua bolsa de lona e olho
rapidamente para o relógio. Faltam 30 minutos para o início do espetáculo. Levo menos da metade desse tempo para vestir o uniforme de desfile da Guarda da Rainha e pôr na cabeça o chapéu de pele de urso, sentindo o peso conhecido assentar acima das minhas sobrancelhas e apertar minhas orelhas. Depois de um ajuste mínimo, prendo a correia de couro com firmeza sob o maxilar. Por fim, pego o fuzil automático do guarda, plenamente consciente e indiferente ao fato de que a arma está vazia. O pente de munição, por sua vez, está cheio. Retorno então ao compartimento do meio e aguardo. Às 19h15, ouço a porta se abrir e uma voz rosnar: – Supple, está na nossa hora. – Só um segundo – respondo, tossindo. – Pode ir para o alçapão. – Vejo você lá em cima – responde o outro guarda. Suas palavras me fazem pensar espero que não antes de eu ouvir a porta se fechar atrás dele. Do lado de fora do compartimento, vou até a porta enquanto observo com atenção o segundo ponteiro do meu relógio. Deixo passar exatamente 90 segundos, então respiro fundo e saio pela porta do banheiro para o corredor, levando a bolsa de lona. Com passos rápidos e o olhar fixo à frente, sem qualquer expressão no rosto, atravesso o restaurante até as portas de vidro do lado direito do salão. Dois soldados do SAS já estão destrancando as portas. Quando as abrem, fazendo entrar o calor do lado de fora, pouso a bolsa de lona ao lado de outra igualzinha e passo por eles até chegar ao deque panorâmico e passar por uma porta estreita e aberta, vigiada por outro soldado do SAS. Meu timing foi perfeito. O guarda sibila: – Quase perdeu a hora, hein? – Estava caprichando na barba, como deve fazer um Guarda da Rainha – retruco, abaixando-me para passar por ele e chegar a uma escada apertada com degraus de metal estreitos que levam a um alçapão retrátil que se abre para o telhado do deque panorâmico, ao ar livre. Vejo o céu do início da noite e as nuvens correndo por ele. Ao som de cornetas distantes, subo em direção ao meu destino. Agora estou tão perto que posso senti-lo qual uma queimação nos músculos, e seu sabor em meus lábios é como um delicioso suor.
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LÁ EMBAIXO, NO ESTÁDIO OLÍMPICO, os corneteiros postados dos lados do palco tocavam uma melodia triste que Knight não reconheceu. Bem no alto das arquibancadas na parte norte do estádio, ele usava o binóculo para observar a multidão. Estava cansado, com dor de cabeça e extremamente irritado com o calor inclemente e com as cornetas que davam início à cerimônia de encerramento. Quando estas silenciaram, os monitores espalhados por todo o estádio começaram a exibir uma imagem em plano médio da pira olímpica bem no topo da Orbit, ladeada, como desde a cerimônia de abertura, por dois empertigados membros da Guarda da Rainha. Os guardas que estavam na plataforma erguida acima do deque panorâmico da Orbit levaram as armas ao ombro, viraram-se a 45 graus e marcharam em direções opostas com passos rígidos e os braços se movendo no mesmo ritmo. Foram até dois outros guardas que, por sua vez, subiram no telhado por dois alçapões situados em cada uma das extremidades do deque panorâmico, para em seguida avançarem em direção à plataforma e à pira. Os guardas que estavam saindo e os que estavam chegando se cruzaram exatamente na metade do caminho entre a pira e as escadas, então os que saíam desapareceram do telhado enquanto a nova dupla subia na plataforma, um de cada lado, e ia se postar em posição de sentido junto à chama olímpica. Knight passou a hora e meia seguinte vasculhando a multidão de espectadores. À medida que o céu de verão começava a escurecer e o vento a soprar, ficou animado ao ver que, apesar da ameaça que Lancer ainda representava, um número impressionante de atletas, treinadores, juízes, árbitros e torcedores decidira comparecer à cerimônia de encerramento, quando teria sido muito mais fácil ficar em casa, onde a segurança era mais garantida. O evento fora planejado como uma celebração tão cheia de alegria quanto a abertura, antes da morte do arremessador de peso americano. Depois dos assassinatos, porém, os organizadores haviam adaptado o encerramento, tornando-o mais sério e mais carregado de significado graças à participação da Orquestra Sinfônica de Londres, que acompanhou Eric Clapton em uma execução comovente da canção “Tears in Heaven”. No mesmo espírito, enquanto Knight avançava rumo ao sul dentro do estádio, Marcus Morris pronunciou um discurso que era parte homenagem às vítimas, parte celebração de tudo de grandioso e extraordinário que havia acontecido durante as Olimpíadas, apesar de Cronos e das Fúrias. Knight olhou para o programa do evento e pensou: Faltam mais alguns discursos,
uma ou duas apresentações e a entrega da bandeira olímpica ao Brasil.Depois o prefeito do Rio dirá algumas palavras e... – Aconteceu alguma coisa, Peter? – perguntou Jack pelo fone do rádio. Eles haviam trocado a frequência utilizada pela equipe de segurança, para o caso de Lancer estar tentando monitorar suas transmissões. – Nada – respondeu ele. – Mas ainda não estou tranquilo. Era esse o pensamento que dominava a mente de Knight até o momento em que os organizadores se desviaram da programação oficial para apresentar alguns “convidados especiais”. A Dra. Hunter Pierce subiu ao palco acompanhada por Zeke Shaw e pelos quatro maratonistas que tinham conquistado a medalha de ouro. Chegaram empurrando Filatri Mundaho numa cadeira de rodas, acompanhado por enfermeiros e com um lençol cobrindo suas pernas. O corredor camaronês tinha sofrido extensas queimaduras de terceiro grau na parte inferior do corpo e na semana anterior tivera de passar por várias intervenções extremamente penosas. O codetentor do recorde mundial dos 100 metros rasos devia estar sentindo dores terríveis, provavelmente não conseguia nem sair da cama. Aquilo era realmente espantoso . O ex-menino-soldado tinha a cabeça erguida e um porte altivo, ereto. Acenou para o público, que se levantou e começou a saudá-lo. Knight ficou com os olhos marejados. Mundaho estava demonstrando uma incrível coragem, além de uma determinação de ferro e de uma humanidade tão profunda que Lancer nem sequer era capaz de conceber. O corredor recebeu sua medalha de ouro e, enquanto os alto-falantes executavam o hino nacional de Camarões, Knight teve dificuldade para encontrar alguém no estádio cujos olhos não estivessem marejados. Então Hunter Pierce começou a falar sobre o legado deixado pelos jogos de Londres, dizendo que, no final das contas, aquela edição das Olimpíadas iria significar um fortalecimento e uma reafirmação dos sonhos e ideais olímpicos originais de Pierre de Coubertin. No início, Knight ficou fascinado com o discurso da atleta americana. Logo, porém, forçou-se a empurrar a voz dela para segundo plano e a tentar pensar como Lancer e seu alter ego Cronos. Pensou nas últimas coisas que o louco tinha lhe dito. Tentou visualizar as palavras de Lancer como se fossem objetos físicos que ele pudesse pegar e examinar nos mínimos detalhes: No final, Knight, logo antes de você morrer, vou me certificar de que você e seus filhos sejam testemunhas da minha engenhosidade para conseguir apagar para sempre o espírito olímpico.
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OLHEM PARA MIM AGORA, ESCONDIDO bem na frente de 100 mil pares de olhos e câmeras conectadas a outros bilhões de pessoas. Marcado pelo destino. Escolhido. Presenteado pelos deuses. Está claro que sou um ser superior sob todos os aspectos, certamente superior aos patéticos Mundaho e Shaw, aquela vadia manipuladora da Hunter Pierce, e a todos os outros atletas no palco do estádio lá embaixo, todos me condenando por ser... O vento agora sopra com mais força. Transfiro minha atenção para o vento, para noroeste, muito além do estádio, muito além de Londres. Ao longe, no horizonte, nuvens escuras se adensam prometendo chuva. Que cenário poderia ser mais propício? Marcado pelo destino, torno a pensar e então ouço um rugido se erguer do estádio. Mas o que é isso? Sir Elton John e Sir Paul McCartney subindo ao palco e se sentando diante de dois pianos brancos idênticos, um de frente para o outro? E quem é aquela ali com eles? Marianne Faithfull? Ah, por favor, eles Estão cantando “Let It Be” para Mundaho... Quando ouço os seus grasnidos monstruosos, sinto uma vontade quase incontrolável de sair da posição de sentido, coçar minha cicatriz e acabar de uma vez por todas com esse espetáculo hipócrita de quinta categoria. No entanto, com os olhos grudados na tempestade que se aproxima, digo a mim mesmo para manter a calma e seguir o plano até sua conclusão natural e inevitável. Para impedir que a cantoria infernal me afete, concentro-me no fato de que, daqui a poucos minutos, aí sim irei me expor. E então, quando isso acontecer, poderei me deliciar com seu terror coletivo – McCartney, John, Faithfull, todos eles. Verei todos pisotearem Mundaho ao correr para as saídas quando estiver fazendo com alegria o sacrifício final em nome de todos os verdadeiros olimpianos que já pisaram nesta Terra.
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ENQUANTO OUVIA O PÚBLICO DO estádio cantar “Let It Be”, Knight correu até a base da Orbit e deu de cara com Jack, que havia chegado lá antes dele e fazia perguntas aos gurkhas encarregados de vigiar a escada que subia em espiral pela estrutura em forma de DNA da torre em direção ao deque panorâmico circular. Ao chegar lá, sentindo caibras nas pernas e com a cabeça quase estourando de dor, Knight perguntou: – Lancer subiu? – Segundo os guardas, as únicas pessoas que subiram depois das três e meia foram atiradores de elite do SAS, um esquadrão de cães farejadores e os dois guardas da rainha que estão protegendo a... – Temos como avisar os homens lá no telhado? – indagou Knight, interrompendo Jack. – Não sei – respondeu o americano. – Quer dizer, acho que não. – Acho que Lancer está planejando explodir a pira, talvez até a escultura inteira. Onde ficam o tanque de gás propano e o tubo que alimenta a chama? – Por aqui – respondeu a voz ofegante de um homem que vinha apressado na sua direção. Stuart Meeks era o principal responsável pelas instalações do Parque Olímpico. Baixinho, na casa dos 50 anos, com um bigode fino e cabelos pretos penteados com gel, trazia na mão um iPad e suava em bicas enquanto usava uma senha eletrônica para abrir uma porta recortada no concreto que descia para um imenso subterrâneo que passava sob as pernas da Orbit e seguia por baixo do rio e da esplanada em direção ao estádio. – Qual é o tamanho do tanque lá embaixo? – indagou Knight enquanto Meeks erguia a porta. – Imenso... 500 mil litros – respondeu Meeks estendendo o iPad, que exibia uma planta do sistema de gás. – Mas, como dá para ver aqui, ele alimenta não só a pira, mas todos os equipamentos movidos a propano do parque. O gás sai do reservatório principal, aqui, e vai até tanques de armazenamento menores em cada um dos setores e na vila olímpica, é claro. Assim como o sistema elétrico, foi projetado para ser autossuficiente. Knight olhou para ele, de queixo caído. – Está me dizendo que, se o tanque explodir, tudo explode junto? – Não, eu não... – Meeks parou no meio da frase e empalideceu. – Sinceramente, não sei. – Peter e eu subimos ao deque panorâmico junto com Lancer umas duas semanas
atrás, pouco depois de ele terminar de verificar a segurança da pira – disse Jack. – Durante essa verificação Lancer desceu até este subterrâneo, Stu? Meeks fez que sim com a cabeça. – Mike insistiu em dar uma última olhada em tudo. Do tanque até a conexão das canalizações com a pira. Levamos mais de uma hora para verificar tudo. – Não temos uma hora – disse Knight. Jack já estava na escada, preparando-se para descer e verificar o imenso tanque de gás propano. – Stu, chame de volta o pessoal dos cachorros. Mande-os descer para o subterrâneo assim que chegarem. Peter, localize a canalização de gás que sobe até o teto. Knight aquiesceu antes de perguntar a Meeks se ele trouxera alguma ferramenta. O responsável pelas instalações do Parque Olímpico tirou uma multiferramenta Leatherman de uma cartucheira presa ao quadril e disse a Knight que iria mandar a planta do sistema da canalização do gás para o seu telefone. A menos de 20 metros do pé da escada em espiral que subia pela Orbit, Knight sentiu o celular vibrar, avisandolhe que a planta havia chegado. Estava prestes a clicar no link quando pensou em algo que fez a planta parecer irrelevante. Acionou o microfone do rádio e disse: – Stuart, como é que se controla a canalização de gás que alimenta a pira? Existe alguma válvula manual lá em cima que precise ser fechada para apagar a chama ou é tudo eletrônico? – Tudo eletrônico – respondeu Meeks. – Antes de chegar à pira, os canos passam por um forro que abriga o sistema de dutos acima do restaurante e abaixo do telhado. Apesar da cabeça latejando e de uma irritação generalizada, Knight foi aumentando a velocidade conforme subia. O vento agora soprava com força. Ao longe, pensou ter ouvido o ronco de um trovão. – Existe algum jeito de chegar ao telhado? – indagou. – Em cada uma das pontas do telhado há um alçapão retrátil e uma escada – respondeu Meeks. – É assim que os soldados têm subido e descido na troca da guarda. Há também uma grade de ventilação no espaço sob o telhado, a vários metros de distância dessa válvula sobre a qual você perguntou. Antes de Knight conseguir pensar sobre o que acabara de ouvir, Jack disse: – O tanque principal parece estar em ordem. Stuart, nós sabemos qual é a capacidade máxima e quanto gás há no tanque agora? Após uma longa pausa, o responsável pelas instalações do Parque Olímpico respondeu com voz rouca: – O tanque foi enchido na madrugada de anteontem, Jack. Sessenta metros acima do Parque Olímpico, Knight compreendeu que, no subterrâneo, entre a Orbit e o estádio, havia um artefato altamente explosivo com capacidade para derrubar a torre, sem dúvida, mas também para causar enormes danos
ao lado sul do estádio e a todos os espectadores sentados ali, sem falar no que poderia acontecer caso uma explosão central acarretasse novas detonações em outras partes do parque. – Jack, mande evacuar o local – disse ele. – Avise à segurança para interromper a cerimônia e tirar todo mundo do estádio e do parque. – E se ele estiver assistindo a tudo? – retrucou Jack. – E se puder acionar a explosão por controle remoto? – Não sei – respondeu Knight, tomado por um dilema. Sua inclinação pessoal era dar meia-volta e sair correndo dali. Ele tinha dois filhos. Já quase morrera uma vez nesse mesmo dia. Será que se atreveria a desafiar o destino uma segunda vez? Sem parar de subir a escada, Knight tornou a examinar a planta que havia recebido pelo celular. Estava tentando encontrar a válvula digital que ficava abaixo da pira, entre o telhado e o teto do restaurante. Bastou uma olhada rápida para ter quase certeza de que a válvula de controle era o lugar mais provável para Lancer acoplar à canalização de gás principal um mecanismo de detonação. Se conseguisse chegar lá, talvez pudesse desarmar o detonador. Mas se não conseguisse...
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UM RAIO RISCOU O CÉU ao longe e o vento começou a soprar em rajadas fortes quando Knight chegou à entrada do deque panorâmico da Orbit. No estádio olímpico, um samba tocava em volume máximo, como parte da celebração dos jogos de 2016 no Brasil. Embora houvessem sido avisados sobre a sua chegada, os gurkhas na entrada do deque fizeram questão de conferir a identidade de Knight antes de permitir que ele entrasse. O supervisor do SAS, um homem chamado Creston, já o aguardava lá dentro e disse que ele, seus homens e uma equipe de televisão reduzida estavam ali mais ou menos desde as cinco da tarde, horário em que o restaurante fechara as portas para todos, exceto os membros da Guarda da Rainha, que estavam usando os banheiros do restaurante para trocar de roupa. Guarda da Rainha, pensou Knight. O regimento de Lancer serviu na Guarda da Rainha. Não foi isso que ele disse? – Dê um jeito de me fazer entrar nesse restaurante – pediu Knight. – Pode ser que haja um detonador acoplado à canalização de gás acima da cozinha. Em segundos, Knight já estava atravessando o restaurante às pressas em direção à cozinha, com o supervisor do SAS em seu encalço. – Os alçapões do telhado estão abertos? – Não – respondeu o atirador. – Só vão abrir no final da cerimônia. A abertura é automática, com hora marcada. – Não temos como falar com os guardas que estão lá em cima? Creston fez que não com a cabeça. – Eles nem sequer estão armados. É uma participação cerimonial. Knight acionou o microfone do rádio. – Stuart, como é que eu subo até o forro? – Pela cozinha, à esquerda da coifa do fogão – respondeu Meeks. – A cozinha fica depois dos banheiros, passando pela porta dupla. Quando Knight entrou no corredor e viu os banheiros, lembrou-se que era ali que os guardas se trocavam. Então teve uma repentina e estranha intuição. – A que horas os guardas do turno anterior saíram? – perguntou ele ao atirador. Creston deu de ombros. – Assim que o turno deles terminou. Eles tinham ingressos para o estádio. – Trocaram de roupa e foram embora? O atirador assentiu. Mesmo assim, em vez de entrar direto na cozinha, Knight se deteve e empurrou a porta do banheiro feminino. – O que está fazendo? – quis saber o atirador.
– Não sei bem – respondeu Knight, constatando que não havia ninguém no banheiro e se abaixando para olhar por baixo das divisórias. Todos os compartimentos estavam vazios. Então seguiu depressa até o banheiro masculino, onde fez a mesma coisa. Dessa vez, encontrou o corpo nu de um homem negro jogado no último compartimento. – Tem um guarda morto no banheiro masculino do restaurante – bradou Knight no rádio enquanto seguia em direção à cozinha. – Acho que Lancer vestiu o uniforme dele e deve estar no telhado agora. Ele olhou para o atirador. – Arrume um jeito de abrir esses alçapões que dão acesso ao telhado. Creston assentiu e se afastou enquanto Knight seguia na direção oposta. Ao irromper na cozinha, logo viu o alçapão no teto, do lado esquerdo da coifa do fogão. Arrastando uma mesa de aço inox para baixo do alçapão, acionou o microfone e disse: – Será que alguém consegue ver os guardas, para confirmar se um deles é mesmo Lancer? Enquanto ouvia Jack repetir a pergunta para os atiradores posicionados bem no alto do estádio, Knight viu pela primeira vez que o alçapão estava trancado com um cadeado. – Stu, preciso da combinação do cadeado – disse ele no rádio. Meeks lhe ditou os números e, com as mãos trêmulas, Knight girou o mostrador e sentiu o cadeado se abrir. Usou uma vassoura para empurrar o alçapão, depois correu os olhos pela cozinha uma última vez, para ver se avistava alguma coisa que pudesse usar ou que pudesse funcionar para bloquear uma canalização de gás. Um daqueles maçaricos usados pelos chefs de cozinha para caramelizar açúcar chamou sua atenção. Ele pegou o instrumento e atirou-o dentro do forro. Knight então balançou os braços duas vezes para soltar os músculos, depois deu um pulo e segurou as laterais do alçapão. Ficou pendurado ali por um segundo, tomou fôlego e então ergueu as pernas à frente do corpo antes de projetá-las para trás com tanta força que conseguiu se içar até o forro entre o teto do restaurante e o telhado da Orbit. Sacou do bolso uma lanterna fina, acendeu-a e, empurrando-a diante de si, foi se contorcendo em direção a um pedaço de cano de cobre onde a canalização se bifurcava, uns dois metros mais à frente. Não teve que chegar muito mais perto para ver um volume coberto por fita isolante preta, que prendia ao cano um telefone celular e algum outro objeto. – Achei o detonador: é uma pequena bomba de magnésio presa ao cano de gás com fita adesiva – disse ele no rádio. – Não está conectada a um timer. Ele vai acionála por controle remoto. Interrompam todo o fornecimento de gás. Apaguem a chama olímpica. Agora.
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SOPREM, VENTOS, SOPREM. Um raio cai e uma trovoada ruge a nordeste, na direção de Crouch End e Stroud Green, não muito longe de onde meus pais drogados me puseram no mundo. Nada mais adequado. É o destino. E, de fato, enquanto o imbecil que dirige o Comitê Olímpico Internacional se prepara para mandar arriar as bandeiras, declarar encerrados os jogos e ordenar a extinção da chama olímpica, abraço meu destino por completo. Saindo da rígida posição de sentido, olho para o muro negro da tempestade que se aproxima e penso como é notável que minha vida tenha tido a mesma trajetória oval de uma pista de corrida, que começa e termina praticamente no mesmo lugar. Saco um celular do bolso, pressiono uma tecla de discagem rápida e ouço a ligação se completar. Torno a pôr o celular no bolso, ergo o fuzil, dou dois passos à frente e giro o corpo para a direita, na direção da pira.
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ALGUNS MINUTOS ANTES, KAREN POPE tinha chegado desanimada às arquibancadas do lado oeste do estádio olímpico, bem na hora em que, com um semblante abatido e sério, Jacques Rogge, o presidente do COI, caminhava até o atril montado no palco. A jornalista havia acabado de publicar sua última atualização no site do The Sun, informando como Knight e seus filhos tinham conseguido se salvar e noticiando a morte de Marta e de suas irmãs e a caçada mundial a Mike Lancer. Enquanto Rogge discursava, acompanhado por um vento cada vez mais forte e pelo rugido cada vez mais alto dos trovões, Karen pensou que aqueles malditos jogos finalmente estavam chegando ao fim. Achava que já não era sem tempo. Nunca mais queria escrever sobre as Olimpíadas na vida, mas sabia que isso era um sonho impossível. Sentia-se deprimida, letárgica e imaginou se o que estava sentindo seria o cansaço do guerreiro ou se precisava desesperadamente dormir. Além do mais, Knight não estava atendendo o celular. Nem ele, nem Jack Morgan, nem a investigadora Elaine Pottersfield. O que estaria acontecendo que ela não sabia? Rogge já se preparava para declarar encerrados os jogos quando Karen por acaso ergueu os olhos para a pira situada no topo da Orbit e viu a chama olímpica tremeluzir ao vento. Admitiu que estava ansiosa para que ela se apagasse, embora também sentisse uma certa culpa em relação a... De repente, o Guarda da Rainha à esquerda da pira ergueu sua arma, jogou longe o chapéu de pele de urso, avançou até a frente da chama olímpica, deu meia-volta e disparou. O corpo do outro guarda deu um tranco, cambaleou e despencou de lado da plataforma, batendo no telhado, escorregando e caindo da Orbit, indo parar lá embaixo no chão do estádio. O arquejo horrorizado de Karen foi abafado pelos gritos da multidão reunida no estádio, que soltou um mesmo clamor trêmulo antes de uma voz portentosa sair dos alto-falantes: – Suas criaturas desprezíveis e inferiores. Não acharam que um instrumento dos deuses fosse deixar vocês escaparem assim tão facilmente, não é?
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APERTO O CELULAR NA MÃO esquerda enquanto falo no microfone do aparelho e ouço a potência da minha voz ecoar de volta em meus ouvidos. – E todos vocês, atiradores do SAS espalhados pelo Parque Olímpico, não sejam estúpidos. Estou segurando um detonador. Se atirarem contra mim, esta torre inteira, boa parte do estádio e dezenas de milhares de pessoas vão voar pelos ares. Lá embaixo, a multidão se levanta e é tomada pelo mesmo pânico de ratos tentando fugir de um navio em chamas. Ao vê-la correr e rastejar, dou um sorriso de intensa satisfação. – A noite de hoje marca o fim dos Jogos Olímpicos Modernos – brado no celular. – Esta noite vamos apagar a chama que vem ardendo de forma tão corrompida há mais de um século, desde que Coubertin, aquele traidor, inventou esta imitação ordinária dos verdadeiros jogos!
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KNIGHT OUVIU OS TIROS E as estrondosas ameaças de Lancer através de uma grade de ventilação no forro, vários metros depois do cano de cobre e do detonador, que não tivera tempo de tentar desarmar. Além disso, Lancer poderia muito bem tê-lo programado para se acionar automaticamente caso fosse manipulado. – Que tal isolar os outros tanques? – perguntou ele pelo rádio. – É uma tragédia, Peter – foi a resposta de Jack. – Ele soldou as válvulas para mantê-las abertas. Acima de onde ele estava, Lancer iniciou um trecho mais longo de seu discurso, começando com os médicos de Barcelona que o drogaram para evitar que ele ganhasse a medalha de ouro no decatlo, impedindo que ele se tornasse o maior atleta polivalente do mundo. Ao fundo, Knight ouviu o público aterrorizado tentando fugir do estádio e entendeu que tinha apenas uma chance. Empurrou o maçarico de cozinha diante de si e espremeu-se atrás dele pelo forro até depois do cano de gás e do detonador, conseguindo ficar deitado bem debaixo da grade de ventilação. Pelas frestas, pôde ver o clarão dos raios que se aproximavam e o brilho tremeluzente da chama olímpica ainda acesa. Quatro parafusos prendiam a grade e todos eles pareciam lacrados com algum tipo de resina química. Talvez ele conseguisse derretê-la. Knight segurou o maçarico, acendeu-o e direcionou a chama para os parafusos, um de cada vez. Agindo o mais depressa possível, derreteu a resina até torná-la mole e pegajosa, depois segurou o parafuso mais próximo com o alicate da multiferramenta Leatherman que Meeks havia lhe emprestado. Puxou o alicate e constatou entusiasmado que o parafuso cedia.
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RAIOS RISCAM O CÉU, E a trovoada ruge como se fossem tiros de canhão enquanto sigo bradando para a multidão enlouquecida que tenta fugir do estádio: – É por esses motivos e milhares de outros que os jogos modernos devem acabar. Vocês com certeza entendem isso! No entanto, em vez de gritos de terror ou mesmo de vivas de aprovação, o que ouço de volta é algo que eu não esperava. Os monstros estão me vaiando. Estão assobiando e gritando palavrões em resposta à minha genialidade, à minha superioridade. Essas são as derradeiras humilhações que um mártir precisa suportar em nome de uma causa justa – dolorosas, cruéis, mas que não são nada se comparadas a um carro bombardeado ou a uma pedrada. Nada capaz de me impedir de cumprir o meu destino. Apesar disso, a rejeição basta para fazer brotar dentro de mim uma onda de ódio maior do que qualquer outra, um tsunami de desprezo por todos os monstros presentes no estádio aos meus pés. Erguendo os olhos para o céu negro e ruidoso que dispara raios e despeja chuva, grito: – Para vocês, deuses do Olimpo. É em seu nome que faço tudo isso!
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KNIGHT JÁ HAVIA DEIXADO BEM para trás o duto de ventilação e subira na plataforma elevada que rodeava a pira. Agora corria a toda a velocidade sob a chuva torrencial. Antes que Lancer pudesse acionar a tecla do celular, Knight o atingiu na parte inferior do corpo, com força e de lado, um golpe atordoante que fez o assassino insano cair no chão da plataforma. Sua arma automática deslizou para longe. Knight caiu por cima de Lancer, que ainda segurava o telefone celular. O excampeão de decatlo tinha uns 10 anos a mais do que Knight. No entanto, logo ficou claro que era maior, mais forte e lutava melhor do que o agente. Com as costas da mão, Lancer atingiu Knight com tanta força que este foi arremessado de lado e quase trombou na lateral escaldante da pira. O calor infernal e a chuva forte o revigoraram quase no mesmo instante. Ele se virou e viu que Lancer estava tentando se levantar outra vez. Deu-lhe um violento chute no tornozelo. O louco soltou um uivo e ergueu-se com esforço sobre um dos joelhos. Estava se levantando novamente quando Knight conseguiu passar o braço direito em volta de seu grosso pescoço, por trás, para tentar sufocá-lo e tomar-lhe o celular antes que a bomba de gás pudesse ser detonada. Apertou a garganta de Lancer e agarrou seu polegar para tentar fazê-lo soltar o telefone. Mas então Lancer abaixou o queixo com força para atingir o antebraço de Knight, girou o tronco e golpeou com os dois cotovelos, acertando-o nas costelas ainda doloridas por causa da tentativa de atropelamento da Fúria. O agente da Private soltou um grunhido de dor, mas aguentou firme, mentalizando uma visão de Luke e Isabel. Então, seguindo o exemplo do filho, mordeu com toda a força a parte de trás da cabeça do louco e sentiu um naco de tecido cicatrizado se soltar de seu couro cabeludo. Lancer soltou um urro de dor e de raiva. Knight afrouxou o maxilar e tornou a morder, dessa vez mais embaixo, enterrando os dentes nos músculos do pescoço de Cronos como um leão tentando derrubar um búfalo. Lancer surtou. Começou a girar e a se contorcer, aos gritos, tomado por uma fúria cega e primeva, enquanto arremetia os punhos por cima do ombro e acertava Knight na cabeça antes de tornar a golpear-lhe o tronco com os cotovelos, com tanta força que várias das costelas do agente da Private estalaram ao se partir. Foi demais. Todo o ar se esvaiu dos pulmões de Knight e a dor em seu flanco foi tão aguda que ele soltou os dentes do pescoço de Lancer. Desabou na plataforma, debaixo da chuva, grunhindo e tentando recuperar o fôlego e aliviar um pouco a dor que sentia.
Com sangue pingando das mordidas, Lancer se virou e lançou para Knight um olhar raivoso de triunfo e ódio. – Você não tinha a menor chance, Knight – gabou-se ele, recuando para erguer o celular novamente em direção ao céu. – Estava lutando contra um ser infinitamente superior. Não tinha a menor... Knight atirou a Leatherman em Lancer. A multiferramenta rodopiou pelo ar antes de as pontas estreitas do alicate atingirem e perfurarem o olho direito de Lancer, cravando-se bem fundo no tecido mole. Ele cambaleou para trás, erguendo a mão que ainda segurava o celular num gesto inútil para tentar agarrar a ferramenta que selava o seu destino. Soltou uma série de urros de gelar o sangue que fizeram pensar em uma criatura mítica e condenada, como Cronos depois de atirado por Zeus no precipício mais escuro e abissal do Tártaro. Por um segundo, Knight temeu que Lancer fosse recuperar o equilíbrio e conseguir detonar a bomba. Nessa hora, porém, um raio caiu bem em cima da Orbit, traçando um risco ofuscante e serrilhado que passou pelos para-raios instalados bem acima do deque panorâmico e atingiu o cabo da ferramenta cravada no olho de Lancer, eletrocutando aquele que se dizia o instrumento dos deuses e projetando-o para trás e para dentro da pira, onde ele foi engolfado e consumido pelas labaredas da chama olímpica.
EPÍLOGO
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Segunda-feira, 13 de agosto de 2012.
NO TERCEIRO ANDAR DO HOSPITAL London Bridge, sentado numa cadeira de rodas, Knight deu um sorriso tenso para as pessoas reunidas em volta das camas em que estavam deitados Luke e Isabel. Embora os efeitos de sua concussão houvessem diminuído e agora não passassem de um latejar difuso na cabeça, as costelas machucadas e quebradas eram uma verdadeira tortura e cada respiração era como se uma serra estivesse cortando seu peito ao meio. Mas ele estava vivo. Seus filhos estavam vivos. As Olimpíadas foram salvas e vingadas por forças que Knight estava muito longe de compreender. E a investigadora chefe Elaine Pottersfield, da Scotland Yard, acabara de entrar no quarto trazendo dois pequenos bolos de chocolate, cada um enfeitado com três velinhas de aniversário acesas. Hooligan, que nunca deixava passar a oportunidade de uma cantoria, começou a entoar um “Parabéns pra você”, sendo logo acompanhado pelas enfermeiras e pelos médicos que cuidavam dos gêmeos, além de Jack Morgan, Karen Pope, Amanda Knight e até mesmo Gary Boss, que tinha chegado cedo para decorar o quarto com balões e bandeirinhas coloridas. – Fechem os olhos e façam um pedido – disse a tia dos gêmeos. – Um pedido ambicioso! – exclamou a avó. Isabel e Luke fecharam os olhos por um segundo, tornaram a abri-los, tomaram fôlego e sopraram todas as velinhas. Os adultos deram vivas e bateram palmas. Em seguida Elaine cortou o bolo. Karen fez uma pergunta típica de jornalista: – O que vocês pediram? O filho de Knight se irritou: – Luke não vai dizer. É segredo. Mas Isabel olhou para Karen com uma expressão singela e disse: – Eu pedi uma nova mamãe. O semblante de seu irmão se fechou. – Não vale. Foi Luke que pediu isso. Todos consolaram o menino e Knight sentiu o coração se partir mais uma vez. Isabel o encarava. – Chega de babás, papai. – Chega de babás – prometeu ele, olhando para Amanda. – Não é, mãe?
– Só sob a minha supervisão direta e constante – respondeu ela. – Ou minha – emendou Boss. O bolo foi servido com sorvete. Depois de várias garfadas, Karen disse: – Sabe o que mais me intrigou em Lancer, o que me impediu de pensar nele como suspeito? – O quê? – perguntou Hooligan. – Ele mandou uma das Fúrias tentar atropelá-lo no primeiro dia – disse ela. – Não foi? – Com certeza – concordou Knight. – Aposto que tinha planejado isso desde o início. Só que eu apareci. – Pensando bem, houve outra pista – continuou Hooligan. – Cronos nunca mandou uma carta explicando por que Lancer deveria morrer. – Nunca pensei nisso – disse Knight. – Nem eu – disse Jack, levantando-se da cadeira para jogar o prato de papel no lixo. Depois de se deliciarem com o bolo e desembrulharem os presentes que todos haviam trazido, os filhos de Knight não demoraram muito a ficar com sono. Quando os olhos de Isabel se fecharam e Luke começou a balançar o corpo e chupar o dedo, Amanda e Boss foram embora sussurrando promessas de voltar na manhã seguinte para ajudar a levar Knight e as crianças para casa. Elaine saiu em seguida, dizendo: – Contratar uma criminosa de guerra para ser babá dos seus filhos não foi a melhor decisão que você já tomou, Peter, mas no fim você foi incrível. Absolutamente incrível. Kate teria ficado muito orgulhosa de como você lutou pelos meninos, pelas Olimpíadas, por Londres e por todo mundo. O coração de Knight se partiu mais uma vez. – Eu até daria um abraço em você, Elaine, mas... Ela soprou-lhe um beijo, disse que iria passar para ver como Selena Farrell e James Daring estavam e saiu. – Antes de ir embora, Peter, tenho um presente para você – disse Jack. – Quero que aceite um aumento de salário vergonhoso e que leve seus filhos para passar algumas semanas num país tropical. Tudo por conta da Private. Podemos combinar os detalhes quando eu voltar a Los Angeles. Por falar nisso, está quase na hora do meu voo. Depois que o dono da Private saiu, Karen e Hooligan se levantaram para ir embora também. – E nós vamos para o pub beber – disse Hooligan. – Estão reprisando todos os melhores momentos do futebol olímpico. – Nós vamos? – estranhou Knight, arqueando as sobrancelhas para Karen. A jornalista deu o braço a Hooligan e sorriu. – Na verdade, Knight, nós temos muita coisa em comum. Meus irmãos todos
também são loucos por futebol. Dessa vez foi Knight quem sorriu. – É, até que faz sentido. Hooligan passou o braço pelo ombro de Karen. – Porra, Peter, acho que nessa você acertou. – Acertou em cheio – concordou a jornalista e os dois foram embora rindo. Por fim, as enfermeiras se retiraram e Knight ficou sozinho com os filhos no quarto do hospital. Ergueu os olhos para a TV por alguns instantes e viu uma imagem da chama olímpica ainda acesa acima de Londres. Depois da morte de Lancer, Jacques Rogge pedira que a chama fosse deixada acesa por mais algum tempo, e o governo concordara. Aquilo era uma coisa boa, pensou Knight. Então deixou a atenção se concentrar em Luke e Isabel, pensando em como seus filhos eram lindos e agradecendo a Deus por tê-los salvado de um fim cruel. Deu um suspiro e pensou em como seu coração se contraíra primeiro ao ouvir Isabel e Luke desejando uma nova mãe, em seguida quando Elaine lhe dissera como Kate teria se orgulhado dele. Kate. Ele ainda sentia sua falta e pensava, desanimado, que talvez ela tivesse sido sua alma gêmea, o único amor que o destino havia lhe reservado. Talvez sua sina fosse prosseguir sozinho. Criar os filhos e... Alguém bateu na porta do quarto e uma voz feminina animada, com sotaque americano, chamou baixinho do corredor: – Sr. Knight? Está aí? Ele olhou em direção à porta. – Estou. Uma mulher linda e atlética entrou no quarto. Ele a reconheceu imediatamente e tentou se levantar enquanto dizia, num sussurro: – Vejam só, é Hunter Pierce. – Sim, eu mesma – respondeu a atleta, que o examinava com atenção e ostentava um sorriso radiante. – Não se levante. Soube que se feriu. – Não foi nada grave – disse ele. – Tive sorte. Todos nós tivemos. Hunter assentiu e Knight não pôde evitar pensar em quanto ela era atraente pessoalmente, e assim tão perto. – Eu estava no parque aquático – disse ele. – Quando você ganhou o ouro. – É mesmo? – respondeu ela, levando os dedos ao pescoço. Knight não sabia por quê, mas seus olhos estavam marejados. – Aquilo foi o maior exemplo de beleza em circunstâncias adversas que eu já tive a honra de testemunhar. E o jeito como você falou de Cronos, com decisão e consistência. Aquilo foi... bem, foi impressionante mesmo e espero que todo mundo tenha lhe dito isso.
A campeã de salto ornamental sorriu. – Obrigada. Mas todos nós... Shaw, Mundaho, todos os atletas... foram eles que me mandaram vir aqui para dizer que achamos que a sua atuação ontem à noite superou a de todos nós. – Ora, eu... – Não, sério – insistiu ela. – Eu estava no estádio. Meus filhos também. Nós o vimos enfrentá-lo. Você arriscou a sua vida para salvar a nossa, para salvar as Olimpíadas. Nós... eu... queria lhe agradecer pessoalmente, do fundo do meu coração. Knight sentiu a emoção formar um nó em sua garganta. – Eu... não sei o que dizer. A atleta americana olhou na direção de seus filhos. – E esses são os corajosos gêmeos que saíram no The Sun de hoje? – Luke e Isabel – respondeu Knight. – Eles são a luz da minha vida. – Que lindos. Eu diria que você é um homem abençoado, Sr. Knight. – Pode me chamar de Peter – disse ele. – E, sinceramente, você não faz ideia do quanto estou grato por tê-los aqui. Do quanto isso é uma bênção. E do quanto é uma bênção ter você aqui também. Por vários instantes, os dois ficaram se olhando como se houvessem acabado de reconhecer algo familiar, há muito esquecido. Hunter inclinou a cabeça e disse: – Eu pretendia dar só uma passadinha, Peter, mas acabo de ter uma ideia melhor. – Que ideia? – perguntou ele. A atleta tornou a sorrir e, imitando um sotaque britânico afetado, falou: – Gostaria que eu empurrasse você daqui até o café do hospital? Podemos tomar um chazinho e pôr a conversa em dia enquanto os seus pequenos estão nos braços de Morfeu. Knight sentiu a felicidade inundá-lo por dentro. – Gostaria, sim – respondeu. – Acho que eu gostaria muito disso.
James Patterson
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