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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MISTER GREGORY / Sveva Casati Modignani
MISTER GREGORY / Sveva Casati Modignani

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Aos oitenta e cinco anos, Gregorio Caccialupi passa em revista uma vida intensa marcada por contrariedades e vitórias. Para trás ficam as recordações de uma infância pobre na Itália dos anos 1930 e uma decisão que mudou para sempre a sua vida - emigrar para a América em busca de um futuro melhor.
Ambicioso e determinado, coleciona sucesso atrás de sucesso e uma série de mulheres procuram conquistar o seu coração. Florencia, o seu primeiro amor, Nostalgia, com quem se casou, e Erminia, a sua derradeira paixão. com o decorrer do tempo, Gregorio Caccialupi torna-se Mister Gregory, dono de uma importante cadeia de hotéis, um homem rico e influente. Porém, um investimento mal calculado leva-o à ruina. Conformado com a sua vida discreta num lar de idosos, está longe de saber que um encontro inesperado lhe trará uma revelação surpreendente e a possibilidade de retomar as rédeas do seu destino.
Mister Gregory é um magnífico romance de Sveva Casati Modignani, que pela primeira vez elege como protagonista um homem: complexo, terno e fiel aos seus princípios, sedutor, esquivo e sempre irresistível.

 

 

 


 

 

 


MILÃO
A limusina parou suavemente diante da entrada do Grand Hotel Delta Continental, no centro de Milão. O motorista, um jovem africano com uma impecável farda antracite, saiu do carro e apressou-se a abrir a porta traseira.
De dentro do carro saiu um homem alto, magro, elegante, com uma cabeleira muito branca e o rosto iluminado por uns grandes olhos cinzentos e penetrantes. Vestia um blazer azul de corte clássico, calças cinza-escuro e um lenço de seda branca bem preso ao pescoço. Calçava sapatos de fabrico inglês.
- Obrigado, meu caro - disse, dirigindo-se ao motorista.
Um porteiro cheio de galões foi rapidamente ter com ele e sussurrou-lhe, a sorrir: - Bem-vindo, Mister Gregory.
- Prazer em ver-te - respondeu o homem, e voltou-se para observar a via Manzoni, ladeada por edifícios austeros e percorrida por automóveis e elétricos ruidosos. Depois ergueu os olhos para o céu cinzento e inspirou, quase com avidez, o ar poluído de Milão. O porteiro perguntou-lhe: - Fez boa viagem, Mister Gregory?
- Ótima, obrigado.
Através da porta giratória saiu uma mulher loura, esguia, jovem e bonita, seguida por uma multidão de fotógrafos prontos a disparar. Mr. Gregory lançou-lhe um olhar de entendedor e comparou-a a um pé de alface insípido. Depois, entrou.
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O hall do hotel era revestido de painéis de mogno que alternavam com grandes espelhos; sobre as consolas havia arranjos de flores exóticas sabiamente dispostas; o chão era coberto por uma alcatifa de veludo azul cobalto; no ar pairava um perfume subtil de sândalo e citrinos. Era uma essência que ele mesmo tinha selecionado, anos antes, com os perfumistas do Floris e que caracterizava toda uma cadeia de hotéis italianos que o Guia Michelin definia como "avec beaucoup de tradition".
O chefe da receção viu-o e foi ao encontro dele.
- É um prazer voltar a vê-lo, Mister Gregory - disse.
- Meu caro Santini, acho-te um pouco envelhecido - brincou o recém-chegado, ao reparar no andar rígido do velho empregado.
- Tal como eu, de resto - acrescentou, ao mesmo tempo que lhe estendia a mão.
- Se me permite, o senhor fez um pacto com o diabo: os anos passam para toda a gente, menos para si - replicou. Depois, indicando-lhe o bar, acrescentou: - O Sàndro já sabe da sua chegada e está à sua espera para o café.
- O Sàndro ainda cá está? E quem mais... da velha guarda?
- A Erminia... mas ela é nova... Eu reformo-me daqui por uns meses, e o Sàndro no ano que vem, na primavera. Acabou uma época...
Um casal de americanos estava à espera de falar com Santini e Mister Gregory aproveitou para se dirigir ao bar.
Constatou com prazer que nada mudara naquela sala. Ainda havia os pequenos divãs e as poltronas de fins do século XIX, com as almofadas de penas de ganso e, nas paredes, as preciosas gravuras que reproduziam a Milão de outros tempos. Alguns homens de negócios estavam embrenhados em discussões em voz baixa. Um conhecido ator americano, protegido pelo seu assessor de imprensa e por duas secretárias, respondia às perguntas de um jornalista. Um russo corpulento afagava o braço nu de uma morena misteriosa vestida de uma forma extravagante.
Sàndro, o barman, foi ao encontro do hóspede.
- Fico muito feliz por voltar a vê-lo, Mister Gregory - sussurrou.
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- A quem o dizes... Olho para ti e regresso meio século atrás, quando usavas calções curtos e não distinguias o garfo do doce do da fruta... belos tempos! - suspirou, ao mesmo tempo que se deixava cair numa confortável poltrona.
Aproximou-se um empregado que pousou em cima da mesa, diante do hóspede, a cafeteira e a leiteira de prata, uma pequena taça com uns doces convidativos, uma chávena de porcelana branca e um guardanapo imaculado. O barman continuava em pé, ao lado daquele que tinha sido o seu mestre, remetendo-se ao silêncio, apesar de lhe apetecer perguntar-lhe como estava, onde vivia e o que fazia desde que se retirara dos negócios. Mas não ousava fazer perguntas a Gregorio Caccialupi, a quem toda a gente chamava Mister Gregory, um homem poderoso que impunha respeito, apesar de o Grand Hotel Delta Continental e os restantes hotéis da sua cadeia, a Delta, já não lhe pertencerem.
Este da via Manzoni tinha sido o primeiro hotel que adquirira, no fim da Segunda Guerra Mundial. Restaurara-o integralmente, apagando todos os horríveis vestígios deixados pela ocupação nazi, e devolvera-o ao seu antigo esplendor. Ali, como nos outros hotéis, tinha-se rodeado de pessoal fiel e eficiente. Tal como ele, muitos dos seus empregados eram originários das aldeias do delta do Pó. Gregorio conhecia a história de cada um deles, assim como eles conheciam a sua vida extraordinária. Cinco anos antes tinha vendido o seu império, tinha-se eclipsado e ninguém conseguira ainda penetrar no mistério de que se rodeara.
Sandro serviu-lhe o café enquanto Mr. Gregory, como se tivesse intuído as perguntas não expressas, suspirava: - Meu amigo, somos dinossauros num mundo que já não quer saber de nós.
O aroma do café, de uma qualidade absolutamente magnífica, desenhou-lhe nos lábios um leve sorriso.
- O facto, Mister Gregory, é que já não há bons mestres. Agora há as escolas de hotelaria, que deitam cá para fora diplomados sem diplomacia... - queixou-se o barman. E notou logo um pequeno sinal de impaciência do hóspede. Por isso desapareceu imediatamente.
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Gregorio Caccialupi começou a saborear o café em pequenos goles, enquanto observava através das portas de vidro o jardim onde floriam rosas escarlates e dálias túrgidas de um bonito vermelho coral, num canteiro de dicondra tenra e cintilante. Era um oásis verde, fechado entre os muros de edifícios altos, que tinha conhecido florescências melhores quando o ar da cidade era menos poluído. Naquele jardim, nos meses de verão, tinham-se realizado festas muito restritas; também ali Gregorio Caccialupi fechara negócios com um simples aperto de mão e declarara o seu amor a mais do que uma mulher. Quantas tinha ele amado? Quem se lembra?, pensou. Eram atrizes, bailarinas, secretárias, jornalistas... tentava sempre evitar mulheres casadas. "Não desejar a mulher do próximo" era a recomendação que lhe ficara da infância, quando lhe tinham levado aquela que lhe era mais querida.
Agora restava Erminia, a chefe de pessoal do hotel, a última e a mais leal das suas conquistas femininas.
Gregorio saía do seu misterioso isolamento uma vez por ano, no dia quatro de outubro, quando vinha a Milão para festejar com ela o seu próprio aniversário. Almoçavam juntos na suíte do Delta Continental, onde tinha vivido durante sessenta anos, não tendo nunca possuído uma casa. Ao vender os seus hotéis a uma cadeia americana, pôs aos compradores uma única condição: dispor daquela suíte do hotel de Milão um dia por ano, o dia quatro de outubro, precisamente.
Gregorio considerava Erminia a sua obra de arte. Tinha-a resgatado de umas condições de vida humilhantes. Durante alguns anos foram amantes. Depois, pouco antes de se retirar dos negócios, disse-lhe: "Chegou o momento de transformarmos a nossa história de amor numa bela amizade." Ela perguntou-lhe então: "Já não gostas de mim?" "Nunca deixarei de te amar. Mas, na minha idade, o sexo é inconveniente, deselegante", respondeu Gregorio.
- A sua suíte está pronta, senhor - sussurrou-lhe um empregado, ao mesmo tempo que lhe entregava um cartão magnético. - Permite-me que o acompanhe? - acrescentou.
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- Obrigado. Eu sei o caminho - replicou. Levantou-se e o barman foi ter com ele: - Queria despedir-me, Mister Gregory, e agradecer-lhe por ter voltado aqui mais uma vez. No ano que vem já não nos encontramos, porque vou reformar-me.
- Boa sorte, Sandro - desejou-lhe Mr. Gregory, apertando-lhe a mão. Depois dirigiu-se à escadaria que dava acesso ao primeiro andar. Inseriu o cartão na ranhura e abriu a porta. Entrou e ficou petrificado.
- Não é possível... - murmurou, desconsolado, enquanto olhava para a sala onde tinham sido mudadas as cores das paredes, os sofás, as mesas, mas sobretudo de onde tinha desaparecido o seu ex-voto, uma pintura em madeira realizada por um pintor da sua aldeia, que Gregorio tinha deixado ali, pendurado naquela sala, quase como que a marcar o seu território.
Agarrou no telefone e ligou para a receção. Foi Santini quem atendeu.
- O meu ex-voto... onde é que foi parar? - berrou.
- Desculpe, Mister Gregory. Tinha-me esquecido de o avisar. O arquiteto que remodelou a suíte tinha-o deitado fora, mas nós salvámo-lo. É a Erminia que o tem guardado... mas não tínhamos maneira de lho mandar entregar.
Ele desligou o telefone e observou com um trejeito de repulsa uma pintura abstrata pendurada na parede, que ligava com os tons caramelo da decoração.
com uma certa relutância, entrou então no quarto, que era de um minimalismo confrangedor. Continuou em direção à casa de banho e ficou horrorizado perante a visão de um enorme lavatório de vidro transparente e de uma banheira quadrada revestida com um mosaico que pretendia fazer lembrar uma piscina de Roma antiga.
- Mas quem é que será capaz de se lavar aqui dentro? - resmungou.
- Tu com certeza que não, porque és rígido como um bacalhau e se te dobrares partes - replicou alegremente uma voz de mulher atrás de si.
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Gregorio Caccialupi sorriu e voltou-se.
- Nem tu, que ficaste uma baleia - afirmou, ao mesmo tempo que lançava um olhar meigo àquela bela mulher já não muito jovem, de formas arredondadas, que o vestido negro tornava mais esguia. Erminia deu alguns passos em direção a ele, abraçou-o e suspirou, a sorrir: - Ainda estás mais magro do que no ano passado. Estás parecido com a minha gata que, quando era jovem, parecia um leopardo e agora, que tem dezasseis anos, é um esqueleto coberto de pelo.
Gregorio deu uma gargalhada.
- Que alegria constatar que não mudaste: pouco simpática, como sempre - disse-lhe.
- Sincera, é mais isso - replicou ela. Deu-lhe o braço e levou-o para a sala.
Em cima de uma consola estava um embrulho atado com um cordel. - O teu ex-voto - explicou, indicando-lho. E acrescentou:
- Salvámo-lo por milagre. Não fazes ideia da quantidade de coisas boas que foram parar ao lixo. Estes arquitetos americanos não distinguem um Gobelins de uma tapeçaria moderna.
- O passado é um fardo incomodativo para as novas gerações comentou ele, ao mesmo tempo que se sentava num sofá, diante de uma horrível mesa dourada revestida de escamas de madrepérola. Erminia instalou-se num sofá diante dele, enquanto dois empregados que se moviam silenciosamente dispunham pratos, copos e talheres na mesa de jantar.
Erminia tirou um cigarro do bolso e enfiou-o nos lábios.
- Dá-me um também - disse Gregorio.
- Ainda fumas?
- Só os dos outros.
Ela carregou no comando da aparelhagem e espalharam-se pela sala os acordes pungentes de La vie en rose cantada por Edith Piaff. Fumavam ambos e escutavam aquela velha canção de amor num silêncio carregado de recordações e emoções, enquanto os empregados continuavam a andar de um lado para o outro, fugazes como sombras.
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Gregorio reagiu à comoção.
- Então o que é que temos para o meu aniversário? - perguntou.
- O costume: linguado no vapor e bolo de chocolate, um Ribolla do Friuli e espumante de Franciacorta - respondeu ela, olhando com ternura para o velho cavalheiro que, de um dia para o outro, tinha desaparecido do mundo. Excêntrico como sempre, pensou, e generoso, por vezes de uma forma muito teatral. De resto, era um homem muito rico e nunca se tinha preocupado com o facto de os outros repararem nisso.
- Comida saudável e ótimo vinho. Foi esta a dieta que me fez chegar aos oitenta e cinco anos - afirmou Gregorio.
- Como é que estás? - perguntou Erminia, com ternura.
- Melhor do que tu, que só tens cinquenta - replicou, na brincadeira.
- Tenho saudades tuas, sabias?
- Também eu, minha querida.
Os empregados deixaram as travessas num carrinho e retiraram-se.
- Vamos sentar-nos à mesa? - propôs ela.
- Espera um instante. Primeiro quero que tu ponhas isto disse ele, ao mesmo tempo que tirava de um bolso do casaco uma caixinha de camurça cor de marfim. Deu-a a Erminia, que a abriu e susteve a respiração: um diamante lapidado em forma de coração pendia de um fio delgado de platina.
- Põe-no ao pescoço - pediu ele.
- Não posso, de maneira nenhuma, aceitar uma jóia que vale uma fortuna - protestou Erminia.
- Tinhas coragem de rejeitar o meu coração?
- O teu coração, o verdadeiro, é meu há muito tempo.
- Aceita-o, por favor. Sabe-se lá se no ano que vem eu posso cá vir...
Foi ele que colocou o fio em volta do pescoço de Erminia. Ela abraçou-o e deu um beijo leve na testa de Gregorio, ao mesmo tempo que lhe sussurrava: - De nós os dois, o mais sentimental és tu, velho sem juízo. E não me venhas dizer que não voltamos a
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ver-nos porque eu começo já aos gritos. Cumpri a minha parte e, durante todos estes anos, sempre esperei o teu regresso sem te procurar. Promete-me que vens no próximo ano, ou eu vou encontrar-te onde quer que estejas! - exclamou.
Jantaram a recordar os tempos passados, e depois Gregorio levantou-se e disse: - Agora tenho mesmo de ir.
- Eu sei - respondeu Erminia, num sussurro.
Ele saiu do hotel com o coração pesado de tristeza e o seu ex-voto apertado debaixo do braço.
- Aonde deseja que o leve, senhor? - perguntou o motorista, que estava à espera dele.
- Ao mesmo sítio onde me foste buscar, meu caro. À estação.
Gregorio Caccialupi descobriu no placará das partidas o comboio que o levaria de volta ao lugar onde vivia há cinco anos. O diamante que acabava de oferecer a Erminia era tudo aquilo que restava de uma imensa riqueza que já não possuía.
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A irmã Antonia dirigia a casa de repouso Stella Mundi, na província de Brescia, com garra empresarial e compreensão materna, qualidades excecionais, dada a sua jovem idade e a beleza que o hábito monástico não conseguia castigar.
O nome da residência, evocativo das devoções marianas, assim como o fascínio da irmã Antonia, tinham levado Gregorio Caccialupi a escolher aquele refúgio cinco anos antes, quando perdera todo o seu património.
Tinham-lhe restado as jóias pertencentes a Nostalgia, a mulher já desaparecida há algum tempo, e uma reforma quase ridícula, sobretudo para ele, habituado a dispor de muitíssimo dinheiro. Tinha vendido todas as jóias num leilão, em Nova Iorque, guardando para si o coração de diamante que agora resplandecia no pescoço de Erminia.
Saiu do comboio na estação de Iseo e percorreu uma alameda de tílias que a doce brisa outonal ia despindo da folhagem. Chegou diante de um portão de ferro forjado através do qual se via um jardim bem tratado onde se erguia, ao fundo, a fachada de um palacete oitocentista doado às monjas por uma família aristocrata da região, para que fizessem dele um lar digno para idosos.
Entre as peculiaridades daquela casa havia uma que permitia aos hóspedes decorar os quartos com os seus móveis e continuar a
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encontrar-se com familiares e amigos, tanto fora como no interior da casa. Gregorio abriu o portão, entrou no jardim e, vencido pelo cansaço, sentou-se num banco. Pousou nos joelhos o embrulho que continha o seu ex-voto e afagou-o, sussurrando: - Meu Deus... tenho oitenta e cinco anos. Sou mais velho do que o meu pai e do que os meus avós... quando deixaram este mundo. Sobrevivi a todos eles, ao sucesso, à ruína...
- Gregorio, agora falas sozinho? - perguntou uma voz doce, mas enérgica. A irmã Antonia estava diante dele, de olhar sorridente e com as mãos escondidas dentro das mangas amplas do hábito negro.
- Como todos os velhos - respondeu ele, ao mesmo tempo que se levantava do banco com pouca vontade. Antes de partir para Milão, naquela manhã, tinha ido despedir-se dela com o ar atrevido de quem está prestes a viver um dia de glória. Agora segurava o seu ex-voto com ambas as mãos, e disse-lhe: - Estou cansado, minha menina.
- Vá, vamos para dentro. Vão servir o chá e também temos o teu bolo de aniversário - incitou-o.
- É mesmo preciso? - perguntou ele.
Se se tratasse de outro hóspede, a irmã Antonia teria dito: "Não faças fitas." Gregorio, porém, não era um velho caprichoso, e ela via perfeitamente que ele estava mesmo cansado.
- Empreitada difícil, não foi? - comentou docemente.
- Nem imaginas quanto - murmurou ele.
Tinham entrado no hall e, através da porta aberta de uma sala ampla, chegava até eles o ruído das conversas dos idosos misturado com as notas de um concerto de Chopin transmitido pela rádio.
- Eles querem fazer-te uma festa e tu não os podes desiludir insistiu ela.
- vou deixar este embrulho no meu quarto e venho já ter com eles - disse Gregorio, e dirigiu-se devagar ao ascensor.
Pouco depois entrou no salão onde foi recebido por um coro que entoou os "Parabéns a você". As vozes trémulas dos hóspedes trouxeram-lhe à memória, por contraste, as vozes vigorosas dos
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empregados e dos colaboradores que, sessenta anos antes, no hall do Grand Hotel Delta Continental acabado de restaurar, lhe tinham cantado "Happy birthday, Mister Gregory", a ele que tinha chegado dos Estados Unidos com uma montanha de dinheiro e um crédito ilimitado. Naquele momento já não possuía nada.
Comoveu-se com a pequena festa afetuosa entre os mais velhos.
Olhou para os seus companheiros de declínio, homens e mulheres com quem nada tinha em comum e com quem, no entanto, partilhava as refeições, os jogos de cartas, a hora diária da fisioterapia, os passeios no jardim. Ouvia-os falar e suportava as suas manias senis e os ralhetes por causa do seu temperamento esquivo. Ninguém conhecia a sua história e, no entanto, emanava dele um fascínio particular, como se fosse um rei no exílio, e as mulheres estavam todas apaixonadas por ele.
Recebeu com gratidão os seus presentes: loções para a barba, gel de banho, um cachecol de lã, chinelos de feltro. Ele, que tivera tudo da vida, ficou contente com aquelas ofertas modestas. A irmã Antonia, que conhecia uma parte da sua história, dirigiu-lhe um sorriso de cumplicidade.
Quando Gregorio tinha tocado pela primeira vez à porta da casa de repouso, pensou que fosse um benfeitor, porque naquele local de acolhimento confluíam legados que permitiam garantir aos hóspedes uma ótima qualidade de vida. Aquele homem elegante, bonito, com ar de pessoa importante, tinha-a impressionado.
Ele tinha pousado um cheque em cima da secretária, dizendo-lhe: - Isto é tudo o que tenho. Em troca, peço a vossa hospitalidade.
- E o senhor já reparou que, com esta quantia, podia viver num hotel até ao fim dos seus dias? - observara ela.
- Vivi em hotéis de luxo durante toda a vida. Agora preciso de um lugar tranquilo como este, onde não conheça ninguém nem ninguém me conheça a mim. Gostaria de ter um aposento grande, o pequeno-almoço no quarto e alguém que trate da minha roupa, à qual não tenciono renunciar. Quanto a tudo o resto, adequar-me-ei às regras da casa.
Ela não estava arrependida de o ter recebido.
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Quando terminou a pequena festa de aniversário, a irmã Antonia seguiu Gregorio enquanto ele subia até ao quarto.
- Agora não me queres dizer o que é que está dentro daquele embrulho que trouxeste de Milão?
- Tu até podes ser freira, mas és mais curiosa do que sei lá o quê - brincou ele, ao mesmo tempo que a convidava a entrar.
O embrulho estava pousado em cima da cama. Gregorio abriu-o e deixou à vista uma tábua de madeira pintada a óleo que representava uma mulher jovem, deitada numa cama. À cabeceira, um homem e um menino choravam desesperadamente. A cena, mergulhada na penumbra, era iluminada por um feixe de luz que envolvia a ingénua representação da Virgem, sobre uma nuvem
dourada, em vias de operar o milagre de uma cura. Era também
bem visível uma data: dezembro de 1928.
- É um belo ex-voto - observou a irmã Antonia. - Como é que o arranjaste?
- Foi a partir desta pintura que começou a história da minha vida, daquilo que fui e que sou ainda... - explicou tristemente.
- O que é que eu posso fazer para te levantar o moral?
- Gostava de ficar sozinho, se não te importas - respondeu ele. A freira anuiu.
- Nossa Senhora te abençoe - disse-lhe, com um sorriso, antes de sair do quarto.
Aquelas palavras ressoaram na mente de Gregorio. Reviu-se na sua cama de criança quando, à noite, se encolhia desesperado porque a mãe, tão bonita, tão estranha, tão diferente das outras mulheres, o tinha deixado, com o pai e com os avós, no casal de Porto Tolle, um lugarejo que se estendia ao longo do delta do Pó.
- Nossa Senhora te abençoe, meu pequenino - sussurrava-lhe, à noite, a avó Lena, ao mesmo tempo que se debruçava sobre ele para lhe dar um beijo na testa.
A voz da avó zumbia-lhe na cabeça e repetia até ao infinito: "Nossa Senhora te abençoe, meu pequenino..."
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PORTO TOLLI
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- Deixa-te de fitas, porque nas pernas e na cara não se sente o frio - disse a avó Lena, que o segurava pela mão, arrastando-o ao longo da estrada de terra batida que ia dar ao centro da vila.
A avó ia embrulhada num grande xaile de lã negra que lhe chegava aos tornozelos. Gregorio, que tinha oito anos, tropeçava com os tamancos na terra gelada. Era inverno, o Natal estava à porta, e ele, como todas as crianças das redondezas, usava uns calções curtos que mal lhe cobriam as coxas, um casacão de fazenda escura e um cachecol comprido que lhe protegia a cabeça e o pescoço. Queixava-se do frio, que lhe fazia lacrimejar os olhos e lhe trespassava os joelhos avermelhados de frieiras.
A avó tinha-o arrancado ao calor da cama, na penumbra do quarto que partilhava com o pai, para o levar à primeira missa.
- Quando a minha mãe voltar, vais ver que me deixa ficar na cama até tarde, ao domingo. Vais ver! - choramingou.
- Bem podia voltar depressa! Porque eu estou farta de birras. Agora vê lá se deixas de me atormentar.
- Depois... compras-me doce de castanha? - pediu Gregorio, cheio de esperança. Estavam quase a chegar à igreja e ele sabia que, no adro, estava Mengo com o seu carrinho.
Vendia doce de castanha, pevides, amendoins, tremoços, e era o desespero das mães porque lhes cativava os filhos com o seu
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canto de sereia: - Chorem, meninos, que a mamã dá-vos um tostãozinho para comprar tremoços - dizia, enquanto abanava um leque de penas de peru para atiçar o carvão que mantinha quente o doce de castanha.
Quando a avó Lena e Gregorio chegaram à praça, viram Mengo sair da taberna onde tinha tomado o primeiro bagaço do dia.
Lena tinha já posto de lado umas moedas para oferecer ao neto aquele consolo dominical. No entanto, disse: - Vamos a ver. Primeiro tens de rezar a Nossa Senhora com devoção e demonstrar-lhe que és um bom menino.
Foram dos primeiros a entrar na igreja. O padre ainda não tinha aparecido no altar e Lena guiou os passos da criança em direção a uma capela dedicada a Nossa Senhora. A imagem da Virgem estava encerrada numa redoma de vidro para a proteger da humidade.
A coroa da imagem de madeira era formada por muitos corações de prata "Por Graça Recebida", e havia também ex-votos pintados em cartão ou em madeira, porque aquela Nossa Senhora era milagrosa e tinha salvado homens e animais das inundações, curado doentes graves, sanado conflitos e concedido pescarias abundantes de enguias e esturjões. - Agora ajoelha-te e vamos rezar uma salve-rainha e três ave-marias pelas minhas intenções anunciou a avó.
Gregorio imaginava que as intenções da avó não fossem muito diferentes das suas mas, no entanto, perguntou-lhe: - Quais são as tuas intenções?
- Não se dizem, são um segredo. Tu reza.
E, tal como Lena, ele rezou à Virgem para que curasse a mãe e a fizesse voltar para casa depressa.
A mãe chamava-se Isola e era linda como o sol. Filha única de Gàbola, o empalhador de cadeiras e bancos, tinha poucos meses quando a mãe morrera de broncopneumonia. Ao crescer, a menina tinha suscitado muitos comentários entre as pessoas do lugar, porque não se parecia nada com o pai, pouquíssimo com a mãe, mas era o
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retrato vivo do "ilustríssimo senhor conde Ugo Zulian", um nobre veneziano que se instalava no palácio de família em Porto Tolle e ali passava, na companhia dos amigos, os meses de caça na laguna. Naquelas ocasiões, a mulher de Gàbola era convocada, com outras mulheres da terra, para ajudar a criadagem do palácio e, uma vez que a predileção do "ilustríssimo senhor conde" pelas graças femininas era conhecida por toda a gente, as pessoas, ao observarem a semelhança entre ele e a pequena Isola, tinham tirado as suas conclusões. A menina crescia com a ajuda das famílias que moravam naquela aldeia, enquanto que o pai não se preocupava com estes murmúrios, se é que efetivamente eles tinham chegado até ele, frequentador assíduo da taberna. Isola acabou a escola primária e foi servir a jovem condessa Elisabetta, última de uma ninhada de filhos do "senhor conde".
com dezasseis anos era uma rapariga muito bonita e Saro Caccialupi, que era muitos anos mais velho do que ela e morava na propriedade que confinava com a de Gàbola, apaixonou-se perdidamente e decidiu casar-se com ela. Não lhe importava que não tivesse um dote, nem sequer um par de sapatos, nem quis ouvir os avisos dos pais e do próprio pároco que estavam sempre a dizer-lhe: - A Isola é demasiado jovem e demasiado bonita para ti.
Aquela noiva deslumbrante entrou na casa dos Caccialupi levando apenas consigo os seus sonhos de rapariga. Nove meses depois das núpcias com Saro, nasceu o pequeno Gregorio e tudo correu bem durante sete anos, até que ela adoeceu de tuberculose. Internaram-na no hospital, onde estava já havia vários meses, e apenas uma vez lhe tinham permitido ver o seu menino, que sofria atrozmente com a falta da mãe.
Agora, depois de ter rezado as suas orações diante da estátua da Virgem, Gregorio perguntou à avó em voz baixa: - Nossa Senhora faz sempre aquilo que lhe pedimos?
- Nossa Senhora faz sempre aquilo que é justo - respondeu Lena, ao mesmo tempo que se levantava do banco para se dirigir com o neto ao altar-mor, onde o padre aparecera com um acólito.
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Entretanto, a igreja tinha-se enchido de fiéis, sobretudo mulheres e crianças. Os homens aproveitavam o domingo para descansar, como faziam Pietro Caccialupi e os seus dois filhos: Saro e Neri.
- Socialistas sem Deus - chamava-lhes Lena, porque não iam à igreja e se recusavam a pedir o cartão do Partido Fascista.
Em Porto Tolle os fascistas eram muitos e poderosos. Andavam por todo o lado numa pose arrogante, a fazer rodar o bastão para assustar as pessoas. Saro Caccialupi dizia ao filho Gregorio que eles eram "uma raça malvada", mas recomendava-lhe que não repetisse aquilo a ninguém, "porque os fascistas são capazes de tudo, até de se meterem com crianças".
Na escola, por baixo do crucifixo, estavam penduradas fotografias do rei e de Mussolini. Gregorio observava aqueles dois rostos que não lhe inspiravam simpatia, porque eram feios e carrancudos.
O avô, o pai e o tio, pelo contrário, tinham rostos abertos e radiosos. Mas os homens da sua família não contavam nada, enquanto que o rei e Mussolini eram os donos da Itália e ele, como todos os alunos, devia fazer a saudação romana e dizer em coro com os companheiros: "Duce, a nós." Ele, e não era o único, deturpava a última palavra dizendo: "Duce, a moj", que no dialeto local significava "de molho na laguna". Depois trocava olhares de entendimento com aqueles que, como ele, tinham a mesma ousadia.
Agora, ignorando a devoção litúrgica, enquanto a avó murmurava as suas orações, ele esfregava os joelhos gelados e doridos, esperando que a missa acabasse muito depressa para poder ir até ao adro comer a sua fatia de doce de castanha.
Assim que o padre disse "lie, Missa est", arrastou a avó para fora da igreja. Lena sorriu e deu-lhe duas moedas, dizendo: - Vá lá, corre até ao Mengo, que eu fico aqui à tua espera.
Ele partiu a correr, enquanto a avó respondia ao cumprimento de uma mulher da terra, à qual se juntou uma outra, e outra ainda. Formaram-se pequenos grupos de mulheres no adro, enquanto as crianças se acotovelavam diante do carrinho do vendedor ambulante.
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Gregorio foi um dos primeiros a receber a sua fatia fumegante de doce de castanha. Trincou-a, levantou os olhos e viu um grande automóvel brilhante parado ao fundo da praça. Um motorista fardado saiu do carro e abriu a porta traseira. De lá saiu uma mulher jovem e deslumbrante, com um casaco de peles dourado e um chapéu doche que lhe emoldurava o rosto. Era a sua mãe.
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Gregorio sentiu o coração explodir-lhe no peito. Correu ao encontro dela, com o casacão negro a abrir-se como as asas de um morcego. Voou nos braços de Isola e deixou-se apertar e beijar pela mãe, envolvido pelo seu perfume-de alfazema e violeta. Pensou que a Virgem devia ter decidido que a sua oração era justa, se tinha satisfeito o seu desejo.
- Meu menino... meu menino... - murmurava a jovem mulher.
- Como tu cresceste! Como estás bonito! - disse, afastando-o de si para olhar para ele. Levantou os olhos e viu, na praça, os rostos curiosos das mulheres que observavam a cena. A sogra veio ao encontro deles num passo rápido e Isola reforçou o aperto em volta dos ombros de Gregorio, como se receasse que Lena pudesse levar-lhe o filho.
Quando chegou junto deles, Lena esboçou um sorriso embaraçado e resmungou: - O que é que vem a ser este luxo todo? Tinhas mesmo de vir à praça mostrar tanta elegância?
A jovem corou e balbuciou: - Perdoe-me, mãe. Não pensei nisso e... - Deixou a frase em suspenso e teve um ataque de tosse.
- Então, estás curada ou não? - perguntou Lena, alarmada.
A tosse tinha marcado a entrada de Isola na família Caccialupi. Isola e Saro casaram-se numa manhã de janeiro, na igreja da terra. Quando acabou o banquete, oferecido em casa dos Caccialupi,
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e quando os convidados se foram embora, os pais e o irmão de Saro eclipsaram-se, deixando os noivos sozinhos na grande cozinha. Isola teve um ataque de tosse e o marido apressou-se a chegar-lhe uma concha de água que tirou de um pote de cobre pendurado ao lado do balcão. A tosse acalmou e Isola sorriu, embaraçada.
O fogo crepitava na lareira e eles recordaram, passando-os em revista, os presentes que tinham recebido: duas esteiras de palha entrançada para pousar no chão de tijoleira ao lado da cama, dois potes em cerâmica debruados a dourado, uma panela de cobre brilhante para cozer a polenta, umas peneiras para a farinha e um cobertor de lã macia e cara, presente da condessa Zulian Vianello, dona da propriedade agrícola onde trabalhavam os Caccialupi.
- Mas... que ricos presentes! - disse Isola, satisfeita, enquanto Saro atiçava o fogo de costas para ela. Agora que a rapariga por quem se apaixonara perdidamente era sua mulher, não ousava sequer tocar-lhe com os olhos.
Ela sentou-se em frente à lareira, tendo o cuidado de verificar se a bonita saia de musselina cinzenta não tocava nas brasas. O marido tirou o casaco e pousou-o nas costas de uma cadeira. Depois instalou-se no banco, ao lado da mulher.
O sol tinha desaparecido e a luz da lareira projetava as suas sombras nas paredes do aposento mergulhado na penumbra.
Para quebrar o silêncio, sublinhado pelo crepitar da lenha que ardia, Isola perguntou a Saro: - Tem fome? Está cansado?
Tratava o marido por você, segundo o hábito camponês.
- Cansado de quê? Não fiz nada. Quanto à fome... tu é que deves querer comer alguma coisa... não tocaste na comida. - Saro tinha decidido tratar a mulher por tu porque era catorze anos mais nova do que ele, apesar de a beleza e os traços dela aristocráticos lhe imporem algum respeito.
- Estava comovida, e um pouco confusa - desculpou-se ela. E recomeçou a tossir.
Na aldeia, toda a gente sabia que Isola tinha muitas vezes ataques de tosse, mas que bastava um pouco de água para os fazer
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parar. Por isso, nunca ninguém se preocupara em verificar a origem daquele distúrbio.
- vou dar-te mais água - propôs Saro. Quando encostou a concha aos lábios da mulher, ela pousou a mão sobre a do marido. com aquele contacto, Saro ficou de tal maneira emocionado que se afastou de repente, deixando cair a concha e a água, que molhou a saia da noiva.
- Desculpa - disse ele, corando.
- Não faz mal. É só água - respondeu ela, com um sorriso. Saro admirou o belo rosto de Isola, tocou-lhe na mão com
uma carícia e sussurrou: - Gosto muito de ti.
Ela corou e disse: - Estou-lhe grata por me ter querido para mulher.
- Vamos subir até ao nosso quarto; assim podes secar-te - propôs ele.
Os Caccialupi, como todos os assalariados daquela grande exploração agrícola, tinham à sua disposição uma casa de dois andares. No andar térreo ficava a cozinha e o armazém das alfaias e das provisões e no primeiro andar os quartos. Um dos quartos fora renovado para os noivos. Saro comprara uma cama nova e um lavatório muito bonito, com uma bacia de majólica e um jarro para a água, toalheiro e espelho. Num canto do quarto tinha montado uma salamandra de ferro fundido para o aquecer nos meses mais frios.
Quando Isola entrou naquele quarto, que via pela primeira vez, olhou em volta, com os olhos arregalados de espanto.
- Que lindo que é! - exclamou, feliz.
Em muitas casas rurais, os camponeses dormiam em colchões enchidos com folhas de milho, ao lado dos grandes estrados onde se conservavam as maçãs e as batatas. Aquilo que o marido lhe oferecia era um quarto de luxo.
- Gostas mesmo? - perguntou Saro.
- Muitíssimo! - respondeu ela, ao mesmo tempo que afagava a colcha de algodão que cobria a cama.
- O colchão é de lã inglesa - esclareceu ele, orgulhoso.
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- Imagino o que lhe terá custado!
- Tu ainda merecias mais e melhor - replicou Saro, a olhar para ela. Estava ofuscado pela beleza da mulher, que desabrochara misteriosamente naquelas terras malsãs, infestadas de cobras e de mosquitos, sufocadas pelos miasmas das canas que apodreciam sob o sol de verão e gelavam nos longos invernos, quando a neblina cobria os pântanos. Pensou, comovido, que Isola era sua para toda a vida, porque diante do padre lhe tinha dito "sim" a ele, um homem sem graça, grande e forte como uma montanha. Perguntou a si mesmo como poderia tocar em Isola, delicada e preciosa como uma renda, com as suas mãos rudes de camponês.
- Tens a saia molhada. Tira-a e enfia-te na cama. Eu vou acender a salamandra - e virou-lhe as costas para pegar na lenha e procurar os fósforos.
Ficou assim mesmo depois de a salamandra ter começado a aquecer, com as mãos pousadas no ferro para lhe absorver o primeiro calor, enquanto ouvia o rumor das roupas de Isola que caíam ao chão, e depois o ranger da rede da cama onde ela se deitava. Quando tudo ficou silencioso, voltou-se. A mulher estava por baixo da colcha, tapada até ao pescoço, e observava-o. Então ele sorriu e disse: - vou buscar o casaco. Estás cansada. Tenta dormir.
Saiu do quarto e desceu à cozinha.
Os pais e o irmão, que tinham regressado há pouco, olharam para ele com surpresa, mas não fizeram comentários. Ele tirou um cigarro do bolso do casaco, sentou-se em frente à lareira e acendeu-o.
- Está tudo bem? - perguntou a mãe, por fim.
- Sim - respondeu, pelo meio de amplas baforadas de fumo.
Lena estava a preparar o jantar. O pai e o irmão estavam sentados à mesa, à espera da comida. Não acrescentaram nem mais uma palavra. O silêncio dos seus familiares exprimia uma interrogação: "Porque é que não estás com a tua mulher?"
Saro hesitou, depois reuniu toda a sua coragem, apagou o cigarro e anunciou: - vou para a cama.
Naquela noite, entre mil e um receios, Saro e Isola conceberam Gregorio.
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Isola representava um mistério impenetrável para os Caccialupi. Falava muito pouco, trabalhava sem trégua, sorria sempre e ficava encantada a olhar para a flor que desabrochava entre as folhas das abóboras, o porte elegante .de um pato-bravo ou de um rouxinol, o arco-íris que, após um temporal, abraçava a laguna e os campos. Ao fim da tarde, quando acabava o trabalho, dava a mão ao seu menino, percorriam juntos o caminho de regresso a casa e ela indicava-lhe as margens alagadas, os arrozais, as zonas de pesca que se perdiam no horizonte. Mostrava-lhe as línguas de terra que se diluíam em pântanos argilosos, cobertos de canas palustres e bancos de areia com formas de vasos e ânforas, refúgio de gaivotas. Falava sem parar e inventava para ele histórias que nunca ninguém lhe contara. Uma vez por mês, com uma grande carroça puxada por um paciente e poderoso cavalo, passava o homem que vendia tecidos e rendas, louças e sabonetes, utensílios para a casa e para o campo, almanaques e postais ilustrados. Então Isola largava o trabalho e ia a correr admirar a mercadoria; depois dizia: - Que bonito!
Ensinava ao pequeno Gregorio os nomes dos povoados do delta: Baricetta, Bellombra, Bottrighe, CaEmo, Cavanella, Fasana, Isolella... e depois dizia-lhe: - Esta terra é uma terra de águas, é antiga como o mundo e, se navegares num barco, depois da água cinzenta
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do rio encontras a azul do mar e podes chegar aos confins da Terra. - com aquela mãe que nunca tinha ido além da cidade de Adria, Gregorio aprendia a imaginar viagens aos confins do mundo.
A índole sonhadora de Isola deixava atrapalhada a família Caccialupi, que a olhava como se ela fosse um ser de outro planeta, estranha à realidade dura e áspera da vida deles. Ficavam desconcertados com o facto de todas as semanas Isola tomar banho. Quando os homens andavam nos campos, transportava a tina de madeira para a cozinha, diante da lareira, enchia-a de água quente e metia-se lá dentro para se lavar. Naqueles campos, nenhuma mulher tomava banho de sete em sete dias.
Perante a estranheza da nora, Lena pensou que Isola devia realmente ser filha do conde, como se dizia por ali. De facto, era sabido que só os ricos sentiam a necessidade de se lavar muitas vezes, como se o sabão apagasse os seus pecados.
Quando Lena descobriu que Isola se metia na água com o menino de poucos meses, os dois nus dentro da tina, decidiu fazer-lhe frente.
Escancarou a porta da cozinha e fingiu-se admirada por os encontrar no banho.
- Oh, santo Deus! Também puseste o menino de molho?
- exclamou.
O bebé ria entre os braços da mãe.
- É tão bom - respondeu Isola, esforçando-se por conter aquela tosse habitual que a atormentava.
- Agora percebo porque é que andas sempre com tosse. A água faz mal e vais acabar por fazer com que o menino fique doente também - prognosticou.
- Mas o que é que está a dizer, mãe Lena? O banho é bom e ele diverte-se - rebateu a nora.
com um ar de autoridade, a avó tirou o neto da tina e embrulhou-o numa toalha para o secar, mas ele desatou aos gritos. Contrariada, Isola saiu da tina, vestiu-se, pegou em Gregorio ao colo e ofereceu-lhe o seio para lhe acalmar o choro. Lena observava-a,
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perplexa, e Isola disse-lhe então: - Quando eu estava ao serviço da condessa Elisabetta, enchia de água quente uma grande banheira de mármore branco onde ela depois se metia, e eu esfregava-lhe as costas. Uma vez deu-me autorização para entrar na água depois de ela ter saído. Que maravilha! Quando vi em vossa casa a tina de madeira, pensei usá-la para tomar banho. Incomoda-a tanto que eu me lave... todas as semanas?
O pequeno Gregorio sugava lentamente o leite da mãe e Lena abanava a cabeça, resignada com o destino que tinha feito entrar na sua família aquela rapariga que não era seguramente filha de Gàbola.
- Voz do povo, voz de Deus - resmungou baixinho, pensando que os mexericos da terra sobre o nascimento de Isola tinham um fundamento sólido.
- Como diz? - perguntou a nora, que era a única, para além do pai, a ignorar aquelas bisbilhotices.
- Nada, estava a pensar alto - respondeu Lena, que continuou a meditar sobre a personalidade daquela mulher tão diferente das outras camponesas da aldeia.
com o passar do tempo, quando Gregorio fez sete anos, Isola deixou de tomar banho com ele; lavava primeiro o filho na tina e depois lavava-se ela. Este hábito acabou por ser aceite pelos Caccialupi e passou a fazer parte das rotinas domésticas, embora preferissem não lhe fazer qualquer referência.
Também ninguém falava da tosse persistente de Isola, que preocupou Saro uma noite em que, no leito conjugal, ela tossiu e Saro lhe afagou a testa.
- Estás a arder - disse-lhe.
- Porque estou cansada. De manhã estou mais fresca do que uma rosa - respondeu, despreocupada.
Mas uma noite, depois de um acesso de tosse, Isola limpou os lábios com um lenço e o marido reparou numa risca de catarro rosado sobre a brancura do linho. Nessa altura assustou-se.
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No fim da Primeira Guerra Mundial, Saro tinha visto muitos soldados que regressavam da frente doentes de tuberculose e conhecia os sintomas.
Sabia que era uma doença devastadora, extremamente contagiosa, para a qual não existiam medicamentos e da qual só alguns afortunados se salvavam.
No dia seguinte, sem querer saber dos protestos da mulher, que continuava a afirmar que estava muito bem, obrigou-a a ir à consulta do Dr. Zanotti, o médico do município.
- Pode ser um princípio de tuberculose - declarou o médico a Saro, depois de ter auscultado a jovem. E acrescentou: - Tens de a levar já ao hospital de Adria. Há lá um Serviço de Pneumologia dirigido por um estudioso desta doença. É o professor Ferrante Josti. Ele saberá o que fazer.
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Gregorio, que acabara de fazer sete anos, tinha querido também acompanhar a mãe a Adria. Os palácios, as ruas empedradas, os automóveis, os estabelecimentos, tudo era um espetáculo surpreendente para o menino, que nunca tinha-saído da aldeia. Parou, encantado, diante dos doces expostos na montra brilhante de uma confeitaria, de tal maneira que Isola lançou ao marido um olhar suplicante e Saro comprou um saquinho de caramelos.
Comeram-nos os três, enquanto se dirigiam ao hospital onde Isola não tinha vontade nenhuma de chegar, e por isso estava grata ao filho que, de vez em quando, parava a ver as lojas. Na montra de um estabelecimento de brinquedos estava exposto um bonito cavalo de baloiço em madeira. Gregorio foi conquistado por ele e, uma vez que sabia que nunca o poderia possuir, não conseguiu conter duas grossas lágrimas que lhe sulcaram o rosto. A mãe apercebeu-se, acariciou-lhe os cabelos e murmurou: - Eu também gostava de ter muitas coisas bonitas... mas lembra-te que temos muita sorte, porque não nos falta o necessário, e tu até tens sapatos. Sabes que o meu primeiro par de sapatos foi o pai que mo ofereceu quando nos casámos? Antes só tinha tamancos - explicou, para o consolar.
Chegaram ao hospital, entraram e um guarda encaminhou-os para uma pequena moradia isolada no interior do complexo.
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Na porta, uma placa de latão luzidio dizia: SERVIÇO DE PNEUMOLOGIA, DIREÇÃO DO PROFESSOR FERRANTE JOSTI.
com um passo hesitante, entraram num átrio luminoso onde pairava um odor a desinfetante. Um porteiro de bigode foi ao encontro deles e disse: - Subam as escadas, a consulta externa fica no primeiro andar. Mas as crianças não podem entrar, se não estiverem doentes - declarou, com um tom autoritário.
- Eu tenho de ir com a minha mulher... - disse Saro, aflito.
- Eu tomo conta do vosso filho - ofereceu-se o porteiro. Depois voltou-se para o menino: - Vai para a janela e olha para o jardim.
- Não confio neste homem - sussurrou Isola ao marido, sem se decidir a subir.
- Se ele diz que toma conta dele... - protestou Saro, dividido entre duas preocupações: a mulher e o filho.
- Eu fico aqui e não me mexo - afirmou Gregorio, para os tranquilizar.
O átrio do primeiro andar era delimitado em dois lados opostos por paredes de vidro fosco: na do lado direito estava escrito
INTERNAMENTO HOMENS, na da esquerda INTERNAMENTO MULHERES. A parede em frente tinha uma porta onde se lia: CONSULTA
EXTERNA.
Isola e o marido entraram e encontraram-se numa sala de espera com bancos de ferro esmaltado onde estavam sentadas algumas mulheres de roupão e chinelos. Obviamente, eram doentes à espera da consulta. Abriu-se uma porta e apareceu uma enfermeira que se dirigiu a Isola e a Saro e perguntou: - São os senhores que vieram por indicação do Dr. Zanotti? - Eles assentiram.
- Venham, depressa, porque o professor tem muitas consultas hoje.
Entraram num gabinete médico onde o cheiro a desinfetante era ainda mais forte. Havia uma marquesa, um lavatório de cerâmica branca, aparelhos estranhos, bancos, armários pequenos de vidro que continham medicamentos e instrumentos médicos e uma porta de onde provinham vozes.
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Assustada, Isola olhou para o marido, sem falar. Ele sorriu-lhe e disse em voz baixa: - Estás aqui para saber... e para te curares, se houver necessidade.
- Nunca mais me vão deixar sair daqui - respondeu por sua vez, com os olhos marejados de lágrimas. E começou a tossir.
De entre as vozes que chegavam do outro lado da porta distinguiu-se o timbre alegre, de barítono, de um homem que disse:
- Vemo-nos daqui a três meses. Por agora pode dormir em paz, porque a doença foi derrotada.
Ao ouvir aquelas palavras, Isola deixou de tossir, limpou as lágri mas e sorriu para o marido. Ele acariciou-lhe o rosto e murmurou:
- Estás a ver? Ainda que fosse... depois fica-se curado. - Rodeou-lhe . os ombros com um braço e manteve-a apertada contra si.
Naquele momento a porta abriu-se e, na soleira, surgiu a figura imponente de um homem de bata branca. Tinha o rosto iluminado por um sorriso franco, os cabelos negros, os olhos azuis e as suíças grisalhas.
com um gesto, convidou Saro e Isola a seguirem-no até à sala ao lado. Fechou a porta e disse: - Sou Ferrante Josti. - Olhou alternadamente para os dois, depois deteve o olhar em Isola e perguntou:
- És tu a jovem esposa de Porto Tolle de quem o Zanotti me falou?
Isola assentiu e baixou os olhos, não antes de ter reparado na camisa imaculada por baixo da bata, no colarinho perfeitamente engomado, no nó impecável da gravata às riscas, e de ter sentido um vago perfume de flores de lavanda e folhas de louro.
O médico sentou-se a uma secretária e indicou ao casal duas pequenas poltronas na frente dele. Da sala ao lado chegava o ruído dos movimentos da enfermeira, que preparava os instrumentos para a consulta.
Josti pegou num papel e numa caneta e, com um sorriso cordial, anunciou: - Vamos ter de nos conhecer, e por isso eu vou fazer-te umas perguntas.
Perguntou a Isola os seus dados pessoais, as doenças que tinha tido, com que idade se tornara mulher, quantos filhos tinha tido, por que razão tinha tido apenas um filho em quase oito anos de
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casamento. A esta pergunta respondeu Saro, declarando que, atendendo aos tempos, uma criança era mais do que suficiente.
O médico quis também saber se viviam num casal ou numa quinta, se o chão da casa era de tijoleira ou de terra batida, como se alimentava habitualmente, que trabalho fazia, se sabia ler e escrever. Por último abordou o assunto da tosse. Quando tinha começado a tossir, se e quando se manifestava a febre.
De vez em quando interrompia as perguntas, pousava a caneta com a qual anotava a história de Isola e falava dele. A mãe tinha morrido de tuberculose e, durante os anos da doença, ele decidira ser médico e especializar-se em doenças pulmonares. Fora ele que tinha exigido o pavilhão de Pneumologia onde se encontravam e a bater-se para o dotar dos aparelhos mais modernos.
- Daquele lado está tudo pronto - anunciou a enfermeira, que apareceu à porta.
- Então vamos lá interrogar também o tórax desta jovem decidiu o médico.
Levantou-se da secretária, com um gesto indicou o gabinete de consulta e entrou com Isola, enquanto a enfermeira detinha Saro, que se preparava para os seguir.
- O senhor vai esperar aqui - explicou-lhe, e depois fechou a porta do gabinete.
Isola estava imóvel, no centro da sala, com o coração apertado pela angústia.
- Vai despir-te ali atrás - ordenou-lhe a enfermeira, ao mesmo tempo que lhe indicava um biombo metálico com cortinas de tecido branco.
- Despir-me... como? - perguntou a rapariga.
- Podes ficar com a combinação, mas tira tudo o resto, incluindo as meias - explicou a enfermeira, e foi atrás dela para a ajudar. Depois disse-lhe que se deitasse na marquesa, enquanto o médico lavava as mãos.
Isola, deitada de costas na marquesa, estava tapada com um lençol imaculado. Ferrante Josti aproximou-se dela, sorridente.
- Agora vamos lá observar este pequeno tórax - disse.
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Isola tinha frio e estava aterrorizada. A enfermeira afastou o lençol e depois ficou muito direita aos pés da marquesa, para assistir à consulta em silêncio.
Josti fez deslizar as alças da combinação ao longo dos braços da rapariga e pousou-lhe as mãos nos ombros com delicadeza. Ela sentiu aquele toque ligeiro e, em parte, ficou mais sossegada.
O professor Josti observou Isola atentamente, tateando-lhe o corpo palmo a palmo, desceu dos ombros ao longo dos braços, deteve-se a examinar as mãos, os nós dos dedos, as unhas, as cavidades axilares, o ventre, as pernas e, finalmente, os tornozelos. Isola suportou aquela manipulação pensando que nem sequer o marido se tinha alguma vez permitido tanto.
- Agora senta-te - ordenou.
Ela cobriu o peito com o lençol e o médico auscultou-lhe os ombros e as costas.
- Respira... tosse... sustém a respiração... respira fundo outra vez - dizia. Por fim, concluiu: - Agora podes vestir-te. Espero por ti no meu consultório.
A enfermeira seguiu Isola até ao lado de trás do biombo, enquanto o médico regressou ao lavatório, lavou as mãos e se dirigiu à sala ao lado.
Quando Isola, já completamente vestida, voltou ao consultório, o professor já estava sentado à secretária e disse: - Há qualquer coisa que não está bem no ápice do pulmão esquerdo. São precisos mais exames. Para já, tenho a dizer que a tosse nervosa que te aflige desde sempre não tem nada a ver com esta mais recente, acompanhada pela febre e pela expetoração com vestígios de sangue. Devo acrescentar - e aqui dirigiu-se a Saro - que tem uma esposa com uma boa constituição física... se não fosse por este pequeno problema pulmonar... - Ficou calado durante alguns instantes.
- E então? - perguntou Saro, angustiado.
- Você vai regressar à aldeia com o seu filho, porque é preciso separar o menino da mãe, e eu vou internar imediatamente a sua esposa neste hospital - declarou o médico.
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Marido e mulher olharam um para o outro, muito aflitos. O médico saiu, deixando-os sós. Isola encolheu-se nos braços de Saro e chorou sem contenção.
- Eu não fico aqui... não vos deixo... - disse, a soluçar. Estava preocupada com a sua saúde e, para além disso, a ideia de abandonar Saro e o seu menino lançava-a num profundo desespero.
- Coragem, vais voltar para casa em breve. Tu também ouviste o senhor doutor, quando estávamos na outra sala, a despedir-se de alguém que estava curado - tentou sossegá-la.
- Ouvi - sussurrou ela. Limpou as lágrimas e reencontrou a sombra de um sorriso.
Entrou a enfermeira, que olhou com desagrado para o casal e depois se dirigiu a Isola: - O que é que ainda estás aqui a fazer? A irmã está à tua espera no internamento. Ô professor foi falar com ela. Vá lá, que ele já está a vir aí e tem outras consultas.
- Pelo menos o menino... tenho de me despedir - implorou Isola.
Desceram até ao átrio e viram Gregorio a brincar com dois berlindes coloridos no peitoril da janela.
- É um bom menino e não incomodou nada - afirmou o porteiro.
Ele viu-os e correu ao encontro da mãe.
- Tenho fome - anunciou.
O pai, a caminho da cidade, tinha-lhe prometido que, ao meio-dia, iam almoçar a um restaurante.
- Vão os dois - disse Isola. E acrescentou: - Eu vou ficar aqui uns dias.
- A tua mãe tem de fazer alguns exames, porque só assim é que vão saber como a podem curar - explicou Saro ao filho.
- Então não vem para casa connosco? - perguntou o menino, aflito, e levantou os braços para que ela o beijasse. Mas ela afastou-se.
- Não podes tocar muito em mim, eu posso ter uma doença contagiosa - sussurrou, corando, porque tinha vergonha de ser tísica. A tuberculose era uma doença da qual era preferível não falar, não só pelo facto de poder ter consequências mortais mas
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também porque muitas vezes atacava as mulheres de má vida ou as pessoas que viviam na imundície e na miséria. Isola não conseguia perceber por que razão uma doença tão feia a tinha atingido.
- Tens mesmo de ir com o teu pai, meu querido Gregorio. Mas eu vou pensar em ti todos os dias e vou escrever-te - disse, afastando-o de si.
Depois ficou imóvel, a observar o filho que se esforçava por não chorar e a fitava quase com ódio, porque ela se recusava a abraçá-lo.
- És má! - gritou.
Isola olhou para ele com uma pena infinita, pois sentia a mesma dor.
- Pede já desculpa à tua mãe - ordenou Saro.
- Não! - gritou Gregorio.
A mão do pai abateu-se fulminante sobre a face do menino e Isola, esquecendo toda a prudência, levantou Gregorio do chão, apertou-o contra ela e começou a sussurrar-lhe ternas palavras de amor.
O marido arrependeu-se do impulso que o tinha levado àquele ato de violência, motivado unicamente pela dor de ter de se separar da mulher e pela angústia que a sua doença lhe causava. Mas encheu-se de forças e reagiu. Tirou Gregorio dos braços da mãe e murmurou-lhe: - Coragem... não deves estar perto do menino, já sabes...
Choravam os três abraçados quando uma freira de estatura baixa, de rosto pálido e voz melodiosa, se dirigiu a eles com um ar maternal.
- Já se despediram que chegasse. Ânimo! Esta linda jovem não vai para a América... fica aqui connosco, e quis a sorte que o professor se tivesse interessado por ela. Vai devolvê-la num instante, curada.
Afagava a cabeça de Gregorio e olhava para Saro com ternura.
- O que é que quer dizer com isso? - perguntou ele.
- O professor recomendou que a sua mulher fosse tratada com todas as atenções, porque lhe foi encaminhada pelo médico da
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vossa terra, que é amigo dele - explicou. - Podem vir visitá-la daqui a duas semanas. Se tiver sido um falso alarme, leva-a logo para casa. Se não, a sua mulher fica connosco até estar restabelecida.
- E o meu filho? - perguntou Isola, num sopro.
- Para o bem dele, é melhor que fique longe deste lugar - respondeu a freira.
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O pequeno quarto era de uma brancura ofuscante, mas o cheiro do lisofórmio atacou a garganta de Isola, que começou a tossir.
A freira que a acompanhava, responsável pelo serviço, correu até à janela, abriu-a de par em par e disse: - Ânimo, minha linda. Este vai ser o teu quarto enquanto estiveres connosco. vou mandar trazer-te alguma roupa.
Quando ficou sozinha, Isola deu alguns passos em direção à janela, debruçou-se para inspirar o ar fresco de maio e olhou para o jardim do hospital, salpicado de roseiras em flor. Naquele momento teve a consciência de que a sua vida estava a mudar e que tinha de se abandonar como uma folha à súbita rajada de vento que a ia conduzir sabe-se lá onde.
- Talvez até à morte - murmurou.
Via os rostos do filho e do marido a desaparecer numa neblina leitosa. Estou a morrer, pensou, e em vez do desespero sentiu-se envolvida por uma onda de serena resignação.
- Aqui está a roupa para a número trinta e seis - anunciou uma voz estridente atrás dela.
Isola voltou-se e viu uma empregada a pousar em cima da cama uma pilha de roupa cuidadosamente dobrada. Tinha passado a ser um número, o mesmo que estava inscrito num pequeno letreiro de metal na cabeceira da cama.
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- Estás bem? - perguntou-lhe a mulher num tom afetuoso, ao captar o olhar pensativo da rapariga. - Vai à sala de jantar, porque vão servir agora uma refeição - acrescentou.
Isola anuiu. Quando a empregada saiu do quarto, sentou-se na cama e inspecionou a roupa. Depois despiu-se, vestiu a camisa de noite do hospital e enfiou-se debaixo dos lençóis. Estava exausta e não tinha fome. Adormeceu.
Foi acordada pela voz já conhecida da freira.
- Menina linda, olha que com a tua doença tens de te alimentar. Na mesa de cabeceira ao lado da cama estava uma tigela de
leite quente e um pratinho cheio de biscoitos secos. A freira sentou-se numa cadeira aos pés da cama. Isola abriu os olhos, voltou-se para a janela e reparou que o sol se estava a pôr.
- Quanto tempo dormi?
- O tempo necessário. Pelo menos, foi isso que disse o professor, que destinou este quarto só para ti. De resto, ele sabe sempre o que é melhor para os doentes - disse ainda a freira, em seguida cruzou as pernas e massajou um joelho. - Coitados dos meus ossos! Sou velha, e o meu Senhor nem sempre é misericordioso com as suas esposas... mas também Ele sabe a cada momento o que é melhor para mim.
Isola sentou-se na cama. A freira sorriu-lhe.
- Bebe o leite enquanto está quente - sugeriu-lhe.
- O que é que adianta? De qualquer maneira, vou morrer
- murmurou.
- Todos morreremos, mais dia, menos dia, mas por enquanto estás viva e tens de comer. Foi isso que o professou mandou, e as ordens dele não se discutem.
Isola deixou cair os biscoitos no leite e esvaziou a tigela.
- Que bom! - exclamou. E acrescentou: - Os condes Zulian também comem biscoitos com leite - disse, recordando o tempo em que servia o pequeno-almoço à jovem condessa Elisabetta.
com um suspiro de resignação, talvez devido à disparidade injusta entre a opulência dos ricos e a pobreza da gente do Delta,
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talvez pelos seus ossos cansados, a freira levantou-se da cadeira, pegou na tigela vazia e saiu, dizendo: - Daqui a pouco vem a enfermeira medir-te a temperatura. Depois chega-te à porta do quarto para rezar o terço.
Aquele anúncio trouxe Isola de volta à realidade.
Na noite anterior tinha estado na igreja com todas as outras mulheres e crianças da aldeia a cantar louvores à Virgem: - Olha o teu povo, linda Senhora, que cheio de júbilo te adora...
Naquela noite, o seu Gregorio devia ter dormido com o pai, tinha a certeza, como tinha também a certeza de que, nessa noite, Saro não iria à taberna com os outros homens. Naquele quarto asséptico faltavam-lhe os cheiros da sua casa, os braços ternos do filho à volta do seu pescoço, as carícias do marido que lhe desejava "Uma santa noite".
Em poucas horas, a sua vida tinha realmente mudado. O filho e o marido, tão discreto e parco em palavras e gestos, eram uma luz tranquilizadora. E agora parecia-lhe cambalear na escuridão.
Deixou que lhe medissem a temperatura.
- Quanto tenho? - perguntou, quando a enfermeira registou a temperatura num papel.
- O que tem de ser.
Depois do terço, as luzes foram apagadas e Isola sentou-se na cama a olhar as estrelas.
O silêncio da noite era interrompido, de vez em quando, por ataques de tosse que provinham dos outros quartos. Sabia, por ter reparado ao passar por eles, que as enfermarias eram de oito camas e considerou-se com sorte por ter ficado com o último quarto de uma só cama, adjacente à sala das enfermeiras.
Sentiu um rumor de passos no corredor, olhou naquela direção e, na luz azulada que o iluminava ligeiramente, viu duas sombras envoltas em roupões e as brasas de dois cigarros. Depois, de repente, um som de passos decididos e uma bonita voz de barítono que dizia: - Deitem fora esses cigarros! Vocês as duas não estão com vontade nenhuma de melhorar!
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À entrada da porta do seu quarto perfilou-se a sombra do médico.
- Porque é que não dormes? - perguntou o professor Josti, aproximando-se da cama.
- Estava a olhar para as estrelas - respondeu Isola, tristemente. O médico agarrou na cadeira de metal, aproximou-a da cama
e sentou-se pesadamente. Trazia um fato escuro e, ao mexer-se, libertou um ténue perfume de alfazema.
Estendeu uma mão para lhe pegar num braço e pousou-lhe as pontas dos dedos no pulso. Ao fim de alguns segundos, disse:
- A febrezita do costume. Tossiste?
Isola abanou a cabeça.
- Amanhã vais ter um dia um pouco cansativo. - Não se decidia a largar-lhe o pulso, e aquele toque prolongado transmitiu-lhe uma sensação de bem-estar. Na penumbra do quarto, Isola viu os lábios do médico abrirem-se num sorriso.
Depois levantou-se de repente, voltou a pôr a cadeira aos pés da cama e, quando ia a sair, murmurou: - Boa-noite, Isolina.
- Chamo-me Isola - protestou em voz baixa, quando os passos do médico se afastaram. Depois acrescentou: - Mas que bonito que ele é!
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O professor Ferrante Josti dirigiu-se a pé ao palácio Negri Dolfin, onde era esperado para o habitual "jantar de segunda-feira", que reunia em volta de uma mesa bem guarnecida um grupo de amigos restrito.
O conde Attilio Negri Dolfin e a sua mulher Clarissa, Moretto Mocenigo em solteira, pertenciam à aristocracia veneziana que retirava os seus rendimentos das várias propriedades agrícolas no Polesine. Os jantares de segunda-feira eram um pretexto para conversarem com os amigos sobre a situação política e económica, com a consciência de se poderem exprimir livremente, porque tudo aquilo que era dito ficava encerrado dentro das paredes do palácio. Era também uma maneira de ouvir boa música americana, odiada pelo poder fascista, e falar de realidades que a imprensa censurava.
Ferrante e Attilio conheciam-se desde os tempos da universidade. Tinham frequentado ambos a Faculdade de Medicina até ao momento em que Attilio, na sala de anatomia, desmaiara diante da dissecação de um cadáver. Passara depois para a jurisprudência, mas a amizade entre os dois tinha continuado. Aquando estudantes tinham sido companheiros de patuscadas e partilhado mulheres.
Naquela noite foram chegando, aos poucos, o correspondente em Rovigo de U Resto dei Carlino, o diretor da sociedade responsável
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pelas obras de saneamento, um deputado socialista e um pintor cheio de talento mas sem dinheiro. Estavam também as respetivas mulheres. Ferrante era o único solteirão autorizado pela dona da casa a apresentar-se com a amiga do momento.
Naquele período, tratava-se de uma arqueóloga que tinha chegado a Adria para se documentar sobre umas escavações da Época Romana que tinham emergido durante as obras de drenagem dos pântanos do delta.
Chamava-se Giordana Sacerdote, era judia, casada com um médico de origem francesa e vivia em Ferrara.
Quando ficava em Adria por causa dos seus estudos, gozava da hospitalidade do casal Coen: ela, professora de Piano; ele, professor de Letras.
Ferrante e Giordana tinham-se conhecido num concerto no Teatro Social uns meses antes e, a partir daí, viviam uma pacífica ligação clandestina, mas não demasiado. Tanto que Clarissa, ao cumprimentar o amigo à chegada, lhe perguntou: - Sei que a Giordana está cá. Porque é que não veio esta noite?
- Não se sente muito bem - respondeu ele, lacónico.
Ela tinha-lhe telefonado para lhe dizer que não lhe apetecia ir ao jantar dos Dolfin e o médico foi ter com ela depois de sair do hospital.
Encontrou-a na cama, com as costas apoiadas numa pilha de almofadas e um livro nas mãos.
- Como é que vai isso? - perguntou-lhe, enquanto se sentava na beira da cama e, por hábito, lhe pegava no braço para contar as pulsações.
- Não tens febre - constatou.
- Pois não... é só aquele incómodo mensal do costume. Tomei um comprimido e amanhã vou estar em grande forma - replicou.
Ferrante observou-a em silêncio à luz rosada do candeeiro
aceso em cima da mesa de cabeceira. Giordana tinha cerca de trinta anos, era saudável, sólida, agradável. Os olhos escuros e profundos reluziam de inteligência e ironia. E, enquanto olhava para ela, sobrepôs aos seus traços marcados e determinados os outros
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mais doces, quase evanescentes, da jovem de Porto Tolle. A partir do momento em que a vira, nunca mais tinha conseguido esquecê-la, porque uma beleza como a de Isola só tinha admirado em algumas mulheres retratadas pelos grandes pintores do Renascimento.
- O que é que se passa? - perguntou-lhe Giordana.
Ferrante não respondeu. Levantou-se e sorriu à amante enquanto lhe fazia uma carícia, antes de sair para se dirigir ao palácio Negri Dolfin.
Agora Clarissa fez-lhe a mesma pergunta: - O que é que se passa?
- Porque perguntas?
- Acho-te estranho. Tens a certeza de que está tudo bem? Discutiste com a tua arqueóloga? - Retinha-o no vestíbulo, decidida a descobrir a razão daquele olhar pensativo. Gostava daquele amigo tão querido que, ao longo dos anos, tentara inutilmente casar. Por fim, sentenciara: "O Ferrante casou-se com a Medicina, tal como um padre casa com a Igreja." Olhava com uma terna compaixão para as mulheres que, de vez em quando, apareciam ao seu lado e se iludiam quanto ao facto de poderem viver ao lado dele para sempre. Naquela noite, porém, leu-lhe no rosto a sombra de uma perturbação.
- Não discuti e estou ótimo - rematou, enquanto avançava com ela em direção à sala de jantar, onde estavam reunidos os amigos.
- Nem mesmo sob o domínio de Napoleão a arte foi tão manipulada como é agora - sentenciou o pintor miserável, que considerava com desprezo os novos cânones artísticos em voga, inspirados na romanidade.
- E, no entanto, se bem me lembro, tu defendias que o futuro estava no socialismo, e mais adiante disseste que o fascismo ia apressar o desenvolvimento social e cultural - observou o anfitrião.
- Tens a certeza?
- Em 1921 todos nós acreditámos em Mussolini - interveio Ferrante, ao mesmo tempo que ocupava o seu lugar à mesa. E prosseguiu: - Mas no ano seguinte, com as fogueiras de Berlim, percebi
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que me tinha enganado. Alemães e fascistas querem extirpar os males do mundo com a violência, e isso não só não me agrada como me mete medo.
- Pois... o medo é um sentimento que se insinua em toda a gente, hoje em dia. Eu tenho medo de escrever aquilo que sei, porque agora é evidente que a política já não atua segundo os interesses do nosso país, mas na defesa da posição de um só homem
- afirmou o jornalista do U Resto dei Carlino.
- No parlamento tornam-nos a vida difícil. Em breve chegará o dia em que vamos ter receio até de trocar opiniões entre nós disse o deputado.
- Por favor... não entremos no catastrofismo! Não à mesa, pelo menos - interveio Clarissa. Depois voltou-se para o médico e perguntou: - Tens a certeza de que estás bem, Ferrante?
- Esta noite estás com um ar cansado - observou a mulher do jornalista que, tal como Clarissa, se tinha apercebido do ar fatigado do médico.
Clarissa, que estava sentada ao lado dele, murmurou: - Estás a ver? Não fui eu a única a reparar.
Quando passaram todos à sala de estar, para o café e os digestivos, Ferrante Josti aproveitou para se despedir.
- Tão cedo? - protestaram as senhoras.
- vou dormir - afirmou ele.
Clarissa acompanhou-o até ao vestíbulo.
- Vais ter com a Giordana? - perguntou, com um ar malicioso.
- Por favor! Para com isso! Estou mesmo cansado. vou direto para casa - protestou. Saiu para a rua e ela afastou a cortina de musselina da janela para o espiar. O médico vivia no palacete em frente ao dos Negri Dolfin, mas em vez de atravessar a rua e entrar em casa virou à direita, seguindo em direção ao hospital.
Nesse momento Clarissa pensou que o amigo estava preocupado com algum doente e a sua curiosidade acalmou.
Ferrante entrou no hospital, subiu até ao seu serviço, percorreu o corredor, mas não chegou até ao quarto ocupado por Isola.
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Deteve-se, deu meia-volta e foi-se embora, a chamar estúpido a si próprio, porque aquilo que estava a fazer não tinha sentido. Estava furioso consigo próprio e achou que se estava a comportar como se tivesse treze anos, em vez de quarenta.
Guerino, o criado, abriu-lhe a porta de casa e ficou espantado por o ver sozinho, porque à segunda-feira regressava sempre com a arqueóloga, que passava a noite com ele. Admirou-se também com o ar carrancudo do patrão, que não lhe dirigiu um olhar e se afastou rapidamente em direção ao quarto. Mas, uma vez que conhecia bem as regras da sua profissão, não proferiu uma palavra.
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- Ora aqui está a trinta e seis - anunciou a enfermeira, ao mesmo tempo que introduzia Isola no gabinete do professor.
Já se tinha habituado a ser chamada com um número. O médico, no entanto, nunca mais lhe tinha chamado Isolina, até porque tinha desaparecido. Confiara-a aos seus assistentes, que tratavam dela com a máxima atenção.
Isola tinha ficado a saber pelas outras doentes que o professor estava em Pádua, na universidade, onde lecionava a cadeira de Pneumologia.
Naqueles dias fora submetida a uma série de exames: medições sistemáticas da temperatura, colheitas de sangue, radiografias e auscultações repetidas. Ingerira xaropes nojentos à base de óleo de fígado de bacalhau. Era agora obrigada a alimentar-se o melhor possível e a beber um copo de vinho às refeições principais.
- Como é que eu estou? - perguntava muitas vezes à freira.
- O professor diz-te quando voltar - respondia ela. Entretanto, tinha vindo uma mulher da sua aldeia visitar o
marido, que estava internado no hospital, e trouxera-lhe um embrulho com roupa e notícias de casa.
- E o meu Gregorio? - perguntou Isola.
- Esse anda o dia todo aos saltos como um potro. Está bem.
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Depois abriu o embrulho e, no meio da roupa, encontrou uma mensagem do marido: "Querida mulher, está tranquila como eu estou, porque o Dr. Zanotti diz que aí te vão curar. O nosso filho, desde que cá não estás, anda um bocado zangado, mas acaba por lhe passar. Gosto muito de ti. Saro."
Ela nunca se tinha sentido tão sozinha. O afastamento da sua casa fora de tal forma repentino e total que, no estado de vigília, perguntava a si mesma se não estaria a viver um sonho mau.
Agora, ao fim de tantos dias, ali estava ela, no gabinete do diretor do serviço que, de cabeça inclinada sobre o microscópio, instrumento que Isola desconhecia, e sem se dignar cumprimentá-la, lhe disse: - Anda cá.
A enfermeira, com um gesto, indicou-lhe que devia obedecer, ao mesmo tempo que comunicava ao professor: - Esta jovem come com pouca vontade e tem o moral em baixo.
Ferrante levantou o rosto do microscópio, olhou para a paciente e abriu a boca para dizer alguma coisa. Mas dirigiu-se apenas à enfermeira, a resmungar: - Já sei tudo aquilo que preciso de saber.
A enfermeira eclipsou-se, enquanto Isola continuou muito direita, em pé, diante dele.
- Olha para dentro desta lente. Quero apresentar-te o hóspede indesejado que se instalou no teu pulmão. - As últimas palavras foram pronunciadas num tom quase carinhoso, enquanto convidava Isola a sentar-se num banco diante do microscópio. O médico pousou uma mão sobre os cabelos fulvos da rapariga, para lhe aproximar a cabeça da lente. Isola estava tão perto que ele foi envolvido pelo seu perfume.
- O que é que vês? - perguntou-lhe o professor, quando Isola encostou um olho à lente sob a qual estava colocada a lâmina.
- Nada. É tudo confuso - murmurou.
Ele inclinou-se sobre o microscópio e rodou lentamente a objetiva, até que ela exclamou: - Agora vejo!
- O quê? - perguntou ele.
- Uma espécie de pequena bengala, com uma pega curva...
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Essa bengalinha é o senhor Koch, responsável pela tua doença - anunciou o médico.
Isola levantou-se do banco e apertou mais o roupão. Ele foi sentar-se atrás da secretária e pegou numa radiografia. - Isto são os teus pulmões - explicou. com a ponta de um lápis indicou-lhe uma zona na chapa e prosseguiu: - O senhor Koch, que viste naquele vidrinho, está instalado aqui. É claro que se sente ali muito bem. Come, bebe, dorme, passeia... Temos de o tirar dali para fora, aproveitando o facto de ele estar ali há pouco tempo e não ter ainda conseguido provocar grandes danos. Estás a acompanhar-me?
Isola anuiu e perguntou em voz baixa: - Estou mesmo tísica?
- Só um bocadinho - respondeu ele, com ternura.
- Os tísicos morrem - comentou ela.
- Quando não são logo tratados da melhor maneira.
- O senhor vai tratar-me... da melhor maneira?
- Podes ter a certeza. Este bacilo tem sete vidas como os gatos e, pelo menos por enquanto, não existem medicamentos que o possam matar. Imagina que ele sobrevive dias e dias, até numa expetoração já seca. Aquilo que podemos, e devemos, fazer é tornar inóspito o sítio onde o bacilo se instalou. A ele, por exemplo, incomoda-o muito o ar limpo, fresco e saudável. Também não gosta do sol e detesta a limpeza. Nós vamos adotar uma boa dieta alimentar e vamos fazer muita ginástica respiratória. O senhor Koch vai morrer - garantiu.
Isola lançou ao médico um olhar duvidoso, apesar de as suas palavras fazerem tudo parecer muito simples. A tuberculose era uma doença devastadora e, nas aldeias do Delta, os tísicos eram mais numerosos do que no resto da Itália. Dizia-se que os miasmas das zonas que ainda não tinham sido drenadas, a humidade e as neblinas que envolviam os canaviais, eram os responsáveis por aquela terrível epidemia. Não se falava da miséria, da escassez de comida, das condições desumanas em que aquela gente era muitas vezes obrigada a viver. Ela, porém, não estava malnutrida, nem era suja, e sempre se mantivera longe das casas onde havia um
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tuberculoso. - E como foi que este maldito deste senhor Koch conseguiu entrar? - ousou perguntar, com um fio de voz.
- Por contágio. Basta que tenhas tocado num batente de uma porta que um tísico, com uma mão suja de sangue, tivesse tocado antes de ti. Depois levaste a mão aos lábios. Ele gostou dos teus lábios - brincou o professor.
Isola sorriu e pensou que, ao fim de muitos dias, aquele era o primeiro momento em que se sentia menos só.
O médico levantou-se, contornou a secretária, pôs-se diante dela, pousou-lhe as mãos nos ombros e depois declarou: - Tu e eu, juntos, vamos arranjar maneira de te curar o mais depressa possível.
Isola ficou perturbada com o toque leve e tépido daquelas mãos.
- Quanto tempo vai ser preciso? - perguntou.
- Alguns meses... um ano... um ano e meio. Ela pensou: uma eternidade.
Ele afastou-se e sentou-se na beira da secretária. Aquela camponesa jovem e bela, de feições nobres e porte elegante, fascinava-o. Olhou-a durante um longo instante, depois afastou o olhar e disse: - Podes voltar ao teu quarto.
Quando Isola entrou no quarto, encontrou em cima da mesa de cabeceira uma salada de fruta fresca e uma taça de gelado de baunilha.
- Ordens do professor - disse a freira, a sorrir, quando ia a sair do quarto. E acrescentou: - Quando um paciente não se alimenta como deve, o médico muda-lhe a dieta, porque comer é importante.
- E estes livros? - perguntou Isola, indicando dois volumes pousados na almofada da cama.
- Também são ordens do professor. Diz que tens de ler... mas isso é uma das muitas manias dele.
Isola olhou para as capas e leu em voz alta: - Grazia Deledda... Canas ao Vento, Alain-Fournier, O Grande Meaulnes... Fitou a freira com um ar interrogativo.
- Tenho de ler estes livros porque me vão ajudar a curar?
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- Não sei, mas se fosse a ti obedecia. Para os doentes deste pavilhão, quem dita as regras é o professor Josti, que não tolera desobediências. Se ele te manda ler, tu lês. E despacha-te a comer o gelado, antes que derreta, e depois vai fazer a cura de sol.
Isola saboreou o gelado com a avidez de uma criança, comeu a salada de frutas, depois agarrou no livro de Grazia Deledda e saiu para o terraço onde já outros pacientes, nas espreguiçadeiras, apanhavam o sol da manhã.
Ocupou a sua cadeira e abriu o livro. Começou a ler enquanto pensava que, desde que tinha entrado no hospital, tinha aprendido muitas coisas novas e bonitas com o professor Ferrante Josti, que prometera salvar-lhe a vida.
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Pai e filho saíram da camioneta. Na praça de Adria, as brumas do outono dissolviam-se ao pálido sol da manhã. - Ainda é cedo para a visita - disse Saro.
- Mas quando chegarmos ao hospital... já vão ser horas - replicou Gregorio, que não via a mãe há mais de seis meses e estava numa grande agitação provocada pelo desejo de estar com ela.
Seguiram ao longo da avenida. O menino pavoneava-se com umas botas novas em que tinham sido aplicados, por baixo da sola, uns pequenos ferros em forma de meia-lua para evitar que o couro se gastasse. Os protetores batiam no empedrado e davam-lhe o prazer de imprimir uma cadência musical aos seus passos. Entretanto, olhava em volta com curiosidade.
Na ponte de Castello, da qual se dominava a bacia do Canalbianco, ele e Saro pararam a admirar os grandes barcos negros ancorados nas margens de betão que delimitavam o curso de água.
- Olha, pai! - exclamou Gregorio, excitado com o vaivém dos homens que descarregavam sacos pesados das embarcações e depois atravessavam como equilibristas os passadiços de madeira que os ligavam à terra firme, onde estava em curso uma disputa feroz entre dois grupos opostos de estivadores.
- Porque é que estão a discutir? - perguntou o menino.
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- Por dinheiro... para apanharem uma carga... fazem a guerra entre pobres - lamentou Saro.
Chegavam até eles os gritos e as blasfémias daqueles homens. Entretanto, iam-se amontoando no molhe sacos de farinha e de arroz, cestos a abarrotar de hortaliças, lenha, carvão. Tudo mercadoria chegada do Delta, mas também dos portos do Veneto e das costas da Dalmácia.
- Nós também somos pobres. Tu com quem discutes? - perguntou o rapazinho.
- Já alguma vez me ouviste levantar a voz com alguém?
- Não, nunca. Mas não há assim ninguém com quem gostasses de andar à pancada, como o tom Mix1?
- Haver, há... mas está em Roma, no palácio Venezia, e faz o que quer e lhe apetece na nossa cara.
- Sei muito bem de quem falas, e também sei que não devo abrir a boca com ninguém. Quando for rico, vou lá eu dizer-lhe das boas - afirmou Gregorio, muito seguro.
Depois distraiu-se a olhar para as margens, onde sobressaíam as cortinas avermelhadas das tabernas, e apeteceu-lhe um copo de gasosa.
Saro adivinhou o desejo do filho: - Vamos beber qualquer coisa?
Gregorio mergulhou o nariz no copo para sentir as cócegas das bolhinhas da gasosa, enquanto o pai saboreava lentamente um copo de vinho tinto.
É PROIBIDO BLASFEMAR E ESCARRAR NO CHÃO, advertia o cartaz pendurado na estante atrás do balcão. O pequeno leu-o e perguntou: - O que é que os escarros têm a ver com as blasfémias? Toda a gente escarra e o Senhor não se ofende com isso.
- Os escarros difundem as doenças como a que tem a mãe respondeu Saro. - E agora vamos lá despachar-nos, porque daqui a pouco abrem os portões do hospital.
1 Ator norte-americano (1880-1940) do cinema mudo, que protagonizou inúmeros filmes western. (N. do E.)
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Seguiram pela rua que levava à parte sul da cidade, em direção ao jardim público cheio de árvores e ao hospital. Encontraram pessoas que confluíam para o mesmo lugar. Toda a gente levava sacos cheios e embrulhos amarrados com cordel para os familiares internados. - Nós não trouxemos nada à mãe - observou Gregorio.
- Porque na carta que escreveu disse que não precisava de nada. Mas eu tenho aqui no bolso uma coisa de que ela vai gostar respondeu Saro, com um sorriso.
- Que coisa, pai?
- Vais ver.
- Eu também tenho uma coisa para a mãe - afirmou Gregorio, ao mesmo tempo que tirava do bolso das calças um minúsculo assobio que ele mesmo tinha feito de um pedaço de cana. Mostrou-o ao pai e explicou: - Se conseguir assobiar aqui para dentro, quer dizer que está mesmo curada. - Quando tentaram entrar no serviço de mulheres do pavilhão de Pneumologia, uma enfermeira mandou-os parar.
- Não são admitidas crianças - declarou.
- Isola, a minha mulher, escreveu-me e disse-me que eu podia trazer o menino, porque já não há perigo de contágio - objetou Saro.
- Bendito homem! Porque não disse logo que era o marido da trinta e seis? Está à vossa espera lá em baixo, no jardim. Oh, está à vossa espera, e de que maneira! Esta noite não pregou olho com a alegria de voltar a ver este rapazinho - disse a enfermeira, despenteando com a mão o cabelo de Gregorio.
Confortavelmente instalada numa espreguiçadeira, tendo como fundo uma sebe de rosas trepadeiras que começavam a florir, Gregorio viu a mãe. Estava muito mais bonita do que aquilo que se lembrava dela. Linda como uma rainha, pensou. Também ela o viu. Levantou-se de repente, abriu os braços e apertou-o contra si.
- É melhor não te dar um beijo... ainda não, quero dizer explicou, a chorar e a sorrir.
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Saro mantinha-se à distância, intimidado com aquela rapariga bonita que vestia roupas elegantes mais apropriadas para uma senhora do que para uma camponesa.
Isola reparou na surpresa do marido, estendeu-lhe as mãos e explicou: - A condessa Clarissa Negri Dolfin faz voluntariado aqui, simpatizou comigo e ofereceu-me uns vestidos.
Saro acariciou-lhe o rosto e disse: - Estás mesmo bem. - Esforçou-se também por sorrir, mas estava um pouco desorientado.
Naqueles longos meses de doença, estivera com ela algumas vezes no parlatório, mas só agora se apercebia de que a mulher, ao curar-se daquele mal terrível, tinha mudado. Tornar a-se mais bonita e também mais refinada, perdera até o sotaque rude de Porto Tolle.
- Agora já podes ir para casa? - perguntou.
Isola, que continuava a apertar o filho contra o peito, respondeu: - É precisamente sobre isso que temos de falar.
com a ajuda dos muitos livros que lera durante aqueles longos meses, Isola transpusera o limiar de um mundo que não conhecia. Estabelecera também uma relação com as freiras e com os médicos que lhe permitia exprimir emoções e pensamentos aos quais nunca teria sido capaz de dar voz. Começou então a dizer: - Estamos em novembro, e este frio húmido não é apropriado para uma convalescença. Preciso de ar limpo, vento e sol. Por isso, a condessa Clarissa quer levar-me para a casa dela, na Ligúria.
- Porquê para casa dela? Há sítios próprios para os convalescentes - objetou Saro. Não estava contente nem contrariado, mas apenas determinado a perceber o que estava a acontecer à mulher.
A resposta veio-lhe diretamente de Clarissa, que foi ter com eles, os cumprimentou e ofereceu um rebuçado ao pequeno Gregorio. Depois explicou a Saro: - Afeiçoei-me à Isola e gostaria de tratar dela pessoalmente. Garanto-lhe que vai ter todas as atenções e cuidados necessários até estar completamente curada. Pode ir ter com ela a Lerici sempre que o desejar e, quando o fizer, leve também este menino - concluiu, referindo-se a Gregorio que rodava entre os dedos o apito destinado à mãe, sem se decidir a dar-lho.
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Saro sabia por experiência que os senhores gostam de praticar boas ações enquanto as consideram um jogo. Por agora, Isola ia habituar-se às facilidades que aquela nobre dama lhe oferecia. E depois? Terminada a convalescença, quando regressasse a casa, como iria dar-se no seu pequeno mundo de camponeses?
A condessa acrescentou: - Então, estamos de acordo. Amanhã venho buscar a Isola e levo-a comigo para Lerici. Hoje, tanto quanto me disseram, têm o dia todo para vós.
Não foi o dia feliz que o pai e o filho tinham imaginado. Foram passear pela cidade. Isola ia agarrada ao braço do marido e à mão do filho e parecia qua não tinham nada para dizer.
A certa altura encheu-se de coragem e perguntou a Saro:
- Não o vejo contente. O que é que tem?
- Quantos meses vão ser precisos até voltares para casa?
- Não sei.
- Mas tu, pelo menos... estás contente por ficar numa casa de senhores?
- Eu só quero curar-me desta doença terrível. Tive muito medo de morrer, e agora tenho muita vontade de voltar a viver.
Gregorio ofereceu-lhe o apito, mas Saro não lhe deu os pequenos brincos de ouro que tinha no bolso porque lhe pareceram inadequados para uma mulher tão bonita e elegante. Continuava a interrogar-se sobre a razão de tanta generosidade por parte da condessa Clarissa, e não podia imaginar que aquilo era uma promessa feita pela condessa ao professor Ferrante Josti, o chefe do Serviço de Pneumologia.
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A decisão de hospedar Isola na Ligúria para passar o inverno tinha sido tomada algumas semanas antes, quando o professor Ferrante Josti abrira o coração à sua amiga Clarissa, que habitualmente passava os meses mais frios na Riviera.
Uma noite, Ferrante apresentou-se no palácio Dolfin muito antes do horário do jantar habitual de segunda-feira. A dona da casa estava nos seus aposentos a encher os baús com a ajuda da empregada, nos preparativos da partida para Lerici. Ferrante sentou-se num banco de madeira antigo e observou, divertido, os tecidos multicolores dos vestidos e os chapelinhos que iam sendo cuidadosamente acomodados. - Acho-te um pouco cansado observou a amiga, enquanto continuava a escolher a roupa.
Ele acendeu um cigarro e não replicou.
- Dá-me um - disse Clarissa, ao mesmo tempo que estendia à empregada um par de calças para meter no baú. Depois sentou-se num banco à frente dele, segurando na mão um pequeno cinzeiro de vidro de Murano.
Ferrante acendeu-lhe o cigarro e ela olhou-o nos olhos.
- O que é que se passa? Há meses que não és o mesmo. - O médico pusera um fim à relação, de resto pouco envolvente, com a arqueóloga de Ferrara e, desde então, nenhuma outra mulher aparecera ao seu lado.
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- Nada - respondeu ele, continuando a fumar tranquilamente. Ferrante tinha faltado a muitos jantares de segunda-feira.
Ausentava-se com frequência para participar em congressos de Medicina e prolongava o tempo das estadias. Nada incomodava mais Clarissa do que os segredos que os amigos não partilhavam com ela. Decidiu arriscar.
com um gesto de cabeça, pediu à empregada que os deixasse sós e depois perguntou: - Quem é ela?
Ele deixou escapar um daqueles sorrisos que o tornavam irresistível e não respondeu.
- Se não fosses o meu amigo mais querido, mandava-te para o diabo - disse Clarissa. E prosseguiu: - Estás aqui há um quarto de hora e ainda não pronunciaste uma palavra. No entanto, é como se já me tivesses dito tudo. Já sabes que eu leio o que te vai no coração, e agora vejo que estás apaixonado por uma mulher que te tem amarrado... que gostavas de te livrar dessa paixão, mas que não consegues.
A condessa Dolfin nutria uma grande afeição por Ferrante e gostaria que aquele homem bonito, culto, fiável e reservado tivesse uma mulher digna de si e que o tornasse feliz.
- Então, quem é ela? - insistiu.
Ferrante apagou o cigarro, levantou-se do banco, atravessou o quarto evitando malas, baús e mesinhas e afastou a cortina de musselina da porta envidraçada que se abria para o pátio interior do palácio onde, ao centro, se erguia o murete de um poço antigo.
- É uma doente minha - sussurrou, de costas voltadas para a amiga. Soltou um suspiro e prosseguiu: - É muito jovem... de uma beleza indescritível e de uma candura desarmante. É casada e tem um filho, um rapazinho de oito anos. O marido é um bom homem que a venera como uma Nossa Senhora. De resto, a sua pureza faz-me sentir um velho cabrão. - Finalmente virou-se, ficou diante da amiga e concluiu: - Estou apaixonado.
- E ela? - quis saber Clarissa.
- Se é que eu conheço as mulheres, e alguma coisa conheço, diria que ela também me ama.
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- Falaste com ela...
- Não digas disparates! Nem sequer lhe toquei, nunca, mais do que para a observar ou lhe fazer uma festa no cabelo, como faço com os meus pacientes para lhes assegurar que o seu médico gosta deles e se preocupa com o seu estado. Porque é que achas que nos últimos meses passei mais tempo por aí em congressos do que no hospital? Não consigo tirá-la da cabeça. Quando regresso e a encontro, tenho de lutar ferozmente contra o desejo de a abraçar.
Clarissa apagou o cigarro no cinzeiro e olhou para os sapatos de camurça de cor peito de rola.
- Quem é ela? Como se chama? - perguntou, referindo-se à origem e ao estrato social da maravilhosa criatura capaz de desassossegar o imperturbável professor.
- É uma camponesa de Porto Tolle. Só fez a instrução primária mas tem uma inteligência superior à média. Desde que está no hospital, já devorou mais livros do que os que eu li em toda a minha vida. Obviamente, fui eu que lhos forneci. Não imaginas o que me custa saber que, daqui por seis meses, vou ter de a mandar para casa... entregá-la ao marido... Ela está curada. Não lhe resta senão fazer uma longa convalescença - disse o médico.
- Meu pobre amigo, já não tens vinte anos e não havia necessidade de uma pancada destas. O que é que eu posso fazer por ti? perguntou Clarissa.
- É para te pedir ajuda que aqui estou. Devia mandá-la para um sanatório, onde teria de ficar até à primavera. O ápice do pulmão está cicatrizado e agora, mais do que nunca, precisa de sol e ar limpo. Eu conheço bem esses espaços, geridos pelo nosso sistema de saúde, e não tenho coragem de a mandar para lá. Há instituições privadas... na Suíça, no Tirol... que eu poderia pagar, mas não sei como havia de justificar isso perante a família - continuou ele.
- Portanto, querias que eu, como voluntária do hospital, lhe fizesse a proposta de ir para Lerici comigo - concluiu a condessa.
- Precisamente - confessou ele, com um certo alívio.
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- E tu ias fazer-lhe a corte a minha casa, e isso não me agrada nem um bocadinho - protestou ela.
- Nada disso. Podia entregá-la a um colega de Santa Margherita. É um médico que estimo e que me pode manter informado sobre o estado da Isola.
- É assim que se chama a pequena Circe que te enfeitiçou? Ferrante anuiu.
- Se eu aceitasse o teu pedido, já pensaste nas consequências? Como é que se ia sentir essa pobre rapariga no dia em que passasse da casa de Lerici para a miséria do Delta? - perguntou-lhe.
- Não pensei nisso, nem quero pensar por enquanto. Bastava-me sabê-la sob a tua proteção.
- Tudo bem. vou conhecê-la amanhã mesmo.
- Devias encontrar-te também com o marido, para lhe garantir que Lerici é o melhor sítio para a convalescença.
Clarissa deu um longo suspiro de resignação: parecia que Ferrante estava realmente muito apaixonado por aquela jovem camponesa que pertencia a um mundo tão distante do seu.
Quando, pouco depois, se reuniram à mesa, Ferrante mostrou-se mais eloquente do que era habitual e recuperou aquele espírito de salão que o tinha abandonado.
Clarissa observava-o de soslaio e temia por ele. A história com aquela jovem não deixava pressagiar nada de bom para o seu amigo quarentão, apaixonado como um adolescente. Mas sabia que nada, nem ninguém, poderia mudar o curso de um sentimento tão ingovernável como o amor. Em qualquer caso, estava feliz por poder fazer alguma coisa por ele.
No dia seguinte conheceu Isola no hospital e percebeu por que razão Ferrante a amava. Deparou-se com uma rapariga fora do comum, não só pela beleza e pelas feições aristocráticas, mas também pela riqueza interior que exprimia com as palavras, os olhares, os silêncios, a voz suave e o sorriso desarmante. E quando falou de Lerici com o marido dela, percebeu que também aquele
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camponês não era estúpido nenhum. Ainda que confusamente, o homem intuíra que, por trás da oferta da sua hospitalidade, deveria haver um motivo misterioso. Mas não se opôs, única e simplesmente pelo amor que dedicava àquela mulher lindíssima.
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Tinham passado menos de dois meses desde a partida de Isola para Lerici e, na praça da aldeia, Gregorio estava entre os seus braços.
- Devias regressar na Páscoa, ainda não estamos no Natal e já cá estás - disse o menino. - O que foi que aconteceu?
- A senhora condessa foi à Suíça ter com os filhos, que estão no colégio. Eu não queria ficar sozinha naquela casa tão grande à beira-mar e apetecia-me estar perto de ti, pelo menos até que a senhora me venha buscar - explicou Isola.
Depois voltou-se para Lena e acrescentou: - Estou muito feliz por voltar a vê-la, mãe. Agora, por favor, entrem no carro comigo, vamos para casa juntos.
Gregorio, que não cabia em si de contente, já se tinha enfiado dentro do carro. A avó, porém, retraiu-se.
- Quero evitar os comentários da aldeia inteira e, de resto, as minhas pernas ainda estão boas e conhecem o caminho - declarou, enquanto censurava Nossa Senhora por ter satisfeito o seu desejo de uma forma tão teatral. Teria sido melhor se a nora tivesse chegado na camioneta, de preferência de braço dado com Saro e, sobretudo, sem aquela elegância que a fazia parecer-se com certas atrizes que se viam nos filmes do cinema paroquial, nas noites de sábado.
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No adro, as mulheres observavam com curiosidade e já conversavam entre elas.
- Eu voltava consigo a pé, mas o menino, como vê, está muito feliz por poder andar de carro. Perdoe-me, mas vou com ele.
Sentou-se no banco ao lado do filho e o motorista ligou o motor.
Lena, por sua vez, precipitou-se em direção ao estabelecimento do barbeiro, que tinha aberto a porta há pouco tempo. O homem estava a meter lenha na pequena salamandra de ferro que lhe servia para aquecer a sala e a água onde misturava o sabão para as barbas hirsutas dos camponeses. Já havia alguns clientes à espera.
- A minha nora voltou. Quero uma pintura bonita para pôr na igreja, para agradecer a Nossa Senhora - disse, de um só fôlego.
- Como é que a quer? Em cartão, em madeira ou em tela? perguntou o barbeiro, que era também um pintor diletante.
Lena hesitou, porque não estava à espera de ter de responder a uma pergunta de tanta responsabilidade.
- Faça como entender. Basta que fique bonita. Pago-lhe com um capão, no Natal - garantiu-lhe.
- Então vou fazê-la em madeira. Mas vai ter de me dar o capão limpo e recheado, pronto para cozinhar. Quando mo trouxer, eu dou-lhe o quadro.
A transação estava concluída e Lena saiu para a praça a pensar como iria resolver o problema do almoço natalício agora que o capão, criado com tanto amor, tinha voado.
No pátio da casa, Saro rachava lenha para a lareira. Ouviu o ruído de um automóvel que se aproximava e pensou que devia tratar-se de algum forasteiro rico que se tivesse perdido ali na zona. Quando o automóvel parou perto do armazém das alfaias, não estava à espera de ver sair o filho, excitado e feliz, e uma criatura de sonho, na qual só ao fim de alguns instantes reconheceu a mulher.
- Pai, pai, a mãe voltou - gritou Gregorio, correndo ao seu encontro.
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- Estou a ver - disse Saro. Deu uma pancada com o machado em cima de um toro e depois olhou para a mulher com um ar severo.
O sorriso de Isola extinguiu-se quando se aproximou de Saro, que a fitava de testa franzida e sem se mexer, sem falar. A hostilidade do marido atingiu-a como uma pedra. Começou a tossir.
- Estou a ver que ainda tens tosse - observou ele. Permaneciam imóveis, um em frente ao outro, e Gregorio, no
meio deles, observava-os sem perceber o que se estava a passar. Apetecia-lhe contar ao pai como tinha sido bom andar pelos campos no assento confortável de um automóvel bonito, com um tapete de pele de carneiro no chão, que ele tinha tido o cuidado de não sujar com os tamancos enlameados. Queria dizer-lhe que o motorista lhe tinha prometido que o ia sentar ao lado dele e que o ia deixar tocar a buzina, da próxima vez. Mas ficou calado.
Perguntou a si mesmo por que razão os adultos eram tão complicados. Sabia o quanto o pai gostava da mãe. Ao cair da noite, quando voltava dos campos, olhava ansioso para o tampo do louceiro a ver se tinha chegado alguma carta da mulher. Quando encontrava uma, saía, isolava-se no armazém das alfaias e lia e relia as palavras de Isola. E à noite, quando todos dormiam, acendia o lume, pegava num papel e numa caneta, sentava-se à mesa da cozinha e respondia-lhe. No dia seguinte pedalava a toda a velocidade até ao correio para mandar a carta.
E agora, por que razão olhava para ela tão zangado?
- É a minha tosse nervosa do costume... não tem nada a ver com o pulmão - tranquilizou-o Isola.
- Estávamos à tua espera para a primavera. Porque é que estás aqui? - perguntou Saro.
- Tive oportunidade... Tinha tanta vontade de o ver, e ao menino - respondeu num sussurro, e corou. A satisfação que a trouxera até ali estava a esfumar-se diante da frieza e do comportamento inexplicavelmente hostil de Saro. Viu que o motorista se preparava para tirar a sua mala e fez-lhe sinal para esperar. Não se queria separar do filho, que acabava de reencontrar, mas não tinha a certeza de querer ficar com o marido e passar as festas com ele.
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- Talvez fosse melhor entrarmos em casa porque estou a ver que, apesar do casaco de peles, estás a tremer de frio - propôs Saro.
O motorista chamava-se Guerino e estava com pressa, porque o professor Josti mandara-o levar a rapariga a Porto Tolle e voltar rapidamente à cidade. No entanto, teve de esperar.
Na cozinha, Saro ia mexendo com os ferros na lareira, enquanto dizia: - Deves perceber que me espantou ver-te arranjada como uma senhora rica.
- Não o sou, como bem sabe. As roupas que trago vestidas foi a condessa que mas deu. Portanto, não olhe para mim como se eu fosse uma mulher frívola. O coração e as saudades de casa levaram-me a voltar aqui, em vez de ficar em Lerici, como devia. Perante as minhas lágrimas, a senhora condessa telefonou ao professor Josti e, há dois dias, quando voltei a Adria, passei pelo hospital para mostrar as radiografias. O professor examinou imediatamente as chapas e pareceu satisfeito, tanto que me deu logo autorização para vir. A senhora foi ter com os filhos à Suíça e o doutor mandou o motorista trazer-me aqui. A vida que fiz durante este período, conhece-a bem através das cartas que lhe escrevi. Dei longos passeios pela praia, apanhei sol, respirei bons ares, li muitos livros que me agradaram, dormi num quarto virado para o mar, fiz as minhas refeições com os criados, apanhei a camioneta todas as semanas para ir à consulta, tentei tornar-me invisível para não incomodar a minha anfitriã, que é muito caridosa comigo. Agora, pela forma como olha para mim, parece-me que não ficou contente por eu ter vindo. Por isso lhe peço que me confie o nosso filho durante estes poucos dias, porque sofro muito longe dele. Fica comigo no palácio Dolfin, onde ficaram dois criados que poderão tratar de nós dois até ao regresso da senhora. Pode parecer que me estou a aproveitar da generosidade da condessa, mas sendo assim não me deixa outra escolha.
Saro ouviu-a e ficou sem fôlego. Em tantos anos de casamento, nunca Isola lhe fizera um discurso tão longo e articulado, sem um ataque de tosse. A mulher transformara-se numa jovem senhora
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capaz de se exprimir melhor do que uma professora e de lhe dar a entender que não se considerava um objeto de sua propriedade.
- Mudaste, realmente, minha querida Isola - sussurrou, com amargura.
- Quero regressar a Adria com o Gregorio - insistiu ela. Saro agarrou-se aos seus direitos de marido e de pai.
- Não. O Gregorio não é filho dos Dolfin, não frequenta um colégio suíço, nem anda de automóvel. Deixá-lo viver como um senhor durante duas semanas e depois trazê-lo de volta à nossa miséria seria uma crueldade. Se és assim tão inteligente, percebes o que quero dizer. E, para ser totalmente sincero, vejo que estás com muita vontade de te ires embora.
- Se tivesse tido uma receção diferente, não teria sentido esse desejo - admitiu ela.
O rosto do marido tornou-se mais doce.
- Sinto-me um pobre diabo, incapaz de te dar o que gostaria. Tu mereces o luxo e eu só te posso oferecer canseiras e dificuldades. Mas não consigo deixar de gostar de ti. Se é que isso é possível, ainda gosto mais de ti agora do que quando me casei contigo
- disse, com um sorriso.
Isola foi até junto dele, acariciou-lhe o rosto e disse: - Peça a minha mala e mande o motorista embora.
Saro era o melhor dos maridos, e ela ia viver ao lado dele para o resto da vida.
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Neri tinha pescado na laguna umas enguias pequenas que Lena assava agora no fogo, enquanto Pietro, com a ajuda de uma colher de pau, mexia a polenta no tacho de cobre. Saro e o irmão tinham ido à aldeia comprar uma garrafa de vinho bom para a refeição do meio-dia. Isola estava sentada ao lado de Gregorio, no vão da janela por onde entrava pouca luz, com um livro no colo. Era um romance de ítalo Svevo, A Consciência de Zeno, que Clarissa lhe tinha oferecido dizendo-lhe: - Lê-o. Se perceberes a complexidade de Zeno Cosini, o protagonista, também vais perceber algumas coisas sobre ti e sobre estes anos absurdos que estamos a viver.
Isola começara a lê-lo ainda em Lerici, mas avançava com dificuldade, porque não gostava de Zeno e a sua inércia transmitia-lhe um desconforto inquietante.
Enquanto a sogra lhe lançava olhares de soslaio de vez em quando, perguntando a si mesma onde é que se tinha visto uma mulher com um livro na mão, Isola fazia de conta que lia, mas o seu espírito estava noutro lugar. Ao lado dela, Gregorio pintava um álbum de desenhos que a mãe lhe tinha trazido juntamente com um estojo de madeira cheio de lápis de todas as cores. Ela ouvia o ruído das enguias a assar no fogo, a lenha a crepitar na lareira, o borbulhar rítmico da polenta a cozer no tacho e recordava o dia anterior, quando tinha ido ao hospital acompanhada por Clarissa.
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Entraram juntas no consultório do professor Josti. O médico parecera-lhe muito mais bonito do que se lembrava.
Olharam-se nos olhos durante alguns instantes, e depois ela afastou o olhar daquele homem fascinante que a perturbava.
Após os cumprimentos iniciais, disse: - Estas são as últimas radiografias que fiz. O médico de Santa Margherita viu-as e garantiu-me que está tudo bem.
Ferrante colocou-as num visor e examinou-as em silêncio.
Depois sorriu.
- Fizeste um bom trabalho, Isola. O senhor Koch foi-se embora para sempre. Parabéns!
- Na verdade, quem fez um bom trabalho foi o senhor, professor - respondeu. Sentada ao lado de Isola, Clarissa observava-os e concluía que a distância não tinha servido para diminuir a paixão de Ferrante pela bela camponesa, que estava visivelmente emocionada diante dele. Entre aqueles dois havia um emaranhado de sentimentos por exprimir que, mais cedo ou mais tarde, acabaria por explodir.
Clarissa disse: - Amanhã eu e o Attilio vamos a Genebra buscar os pequenos ao colégio e mudamo-nos para Saint-Moritz. Gostava que a Isola viesse connosco.
Isola esperou que o médico não estivesse de acordo com aquele projeto. Sentia muitas saudades de Gregorio, queria abraçá-lo, ficar perto dele e voltar a ver o marido.
- A Isola fez uma viagem longa. Uma segunda viagem, ainda mais longa, seria demasiado para as suas poucas forças. O sol da montanha ia fazer-lhe muito bem... talvez depois da Páscoa... no verão. De momento, Lerici continua a ser o lugar ideal para a convalescença - respondeu Ferrante.
- Mas depois das festas quero ir com o Attilio até Veneza, e só regresso a Lerici em meados de janeiro. A Isola ia ficar sozinha durante muito tempo - contrapôs Clarissa.
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- Até lá eu podia mantê-la aqui no hospital - respondeu ele, levemente contrariado.
- Sabes, estou a afeiçoar-me a esta rapariga. Não imaginas a capacidade que ela tem de aprender. Agora sabe cozinhar, pôr uma mesa, gerir a organização doméstica. Uma vez que, tanto quanto percebi, a sua saúde não lhe vai permitir continuar a trabalhar nos campos, está a aprender uma profissão que lhe pode ser útil no futuro - explicou a condessa.
- Gostava tanto de estar uns dias com o meu filho - murmurou Isola.
Fez-se silêncio. Depois o professor disse: - A tua casa não é o melhor lugar... pelo menos, ainda não é - esclareceu. Depois leu um grande desconforto no rosto da rapariga e acrescentou: - De qualquer maneira, com alguns cuidados...
Os olhos grandes e lânguidos de Isola diziam: Por favor, deixa-me estar com o meu filho, deixa-me ir, tenho um marido que gosta muito de mim e eu também gosto muito dele.
Como se tivesse lido os seus pensamentos, Ferrante concluiu:
- Está bem, vou mandar-te para casa durante duas semanas.
Gregorio coloria aplicadamente um aeroplano, ela fitava uma página do romance de ítalo Svevo, Saro e o irmão entraram na cozinha com o vinho e mais alguns toros de lenha para a lareira. com eles estava também o pai de Isola, que tinham trazido da taberna. Gàbola abraçou a filha, limpou algumas lágrimas de comoção e disse: - Se a minha pobre Tilde cá estivesse, o que ela havia de gostar de te ver assim tão linda.
Sentaram-se todos à mesa da cozinha e Lena serviu o almoço. Isola depenicou aquela comida de que já não gostava, enquanto respondia por monossílabos às perguntas da família. Gregorio estava sentado ao lado dela e, por baixo da mesa, mãe e filho mantinham as mãos unidas. O almoço ainda não tinha terminado quando ela se levantou e disse: - Sinto-me cansada, vou até ao quarto repousar.
- Posso ir contigo? - perguntou Gregorio.
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Deslizaram juntos para debaixo da colcha de algodão.
- Quando voltares para Lerici, levas-me contigo?
- Não posso. Não estou em minha casa, como tu bem sabes. E depois tens de ir à escola.
- É assim tão bonita a casa onde estás? - perguntou, referindo-se às coisas que a mãe lhe tinha contado nas suas longas cartas.
- É lindíssima, mas isso não me interessa. Esta é a nossa casa e temos de agradecer ao Senhor e ao teu pai por não deixarem que nos falte nada.
- Mãe, prometo-te que um dia vou ser rico e que vou comprar uma casa para ti, e para mim um automóvel onde possa levar todos os meus amigos.
- Para ser rico é preciso ser-se instruído, lembra-te disso. Trata de estudar, para já.
- Não gosto de estudar e ainda gosto menos de ir à escola. O professor trata-me mal porque o pai me tirou dos treinos dos jovens Balilla1 - confessou Gregorio.
Isola abanou a cabeça, desconsolada.
- O pai ainda vai arranjar problemas - disse.
Depois foi acometida por um súbito ataque de tosse. Levou o lenço aos lábios e descobriu, com horror, pequenos filamentos de sangue. com um gesto enérgico afastou o filho de si, ao mesmo tempo que o terror se apoderava dela.
1 A Opera Nazionale Balilla foi criada em 1926 com o objetivo de educar moral, psicológica e fisicamente os futuros fascistas. (N. da T.)
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Era a última manhã do ano. Numa paisagem opalescente, coberta de gelo, Isola e o marido entraram na camioneta com destino a Adria. Aquela jovem senhora, envolvida num casaco de peles, com o rosto parcialmente escondido por um cloche, e aquele homem corpulento, enfiado num capote negro e com a cabeça protegida por um gorro de lã, formavam um par estranho. Ela tinha os olhos vermelhos de chorar, ele, o rosto tenso e o sobrolho franzido.
Na noite anterior, tinha ido a correr à procura do médico para que viesse ver a mulher, mas descobrira que tinha ido passar o fim de ano a casa de uns parentes, em Adria.
Fora uma noite sombria para toda a família. O avô Pietro ficou muito tempo à lareira antes de ir dormir, Neri refugiara-se em casa da companheira, que vivia na quinta CaCamerini, a velha Lena rezou várias vezes o terço sentada à mesa da cozinha e o pequeno Gregorio foi dormir na cama dos avós. Saro e Isola, no quarto, estendidos na cama, permaneciam em silêncio, oprimidos pela angústia.
Saro pensava: a Isola está doente e, ainda que se cure, nunca mais vai poder trabalhar. Esta vida não serve para ela. E depois já não a reconheço. Aquela gente importante transformou-a, agora a minha Isola já não é minha. Tenho a certeza de que adoeceu outra
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vez porque já não quer estar aqui. Como é que eu posso deixar de lhe dar razão? O que é que eu lhe posso oferecer? Só complicações e canseiras. Se calhar devia fazer como alguns homens daqui, que foram para a Argentina. Mas esses também não fizeram fortuna. Trabalham como umas mulas, tanto como nós trabalhamos aqui, neste maldito Polesine. Eu estou quase a dar-lhe os brincos... vou dar-lhos agora, que está desesperada. Pobre Isola, finge que dorme, mas está tão acordada como eu e sabe-se lá em que pensará ela. vou para a América e tento a sorte. Mas há o menino... O que é que pode fazer uma criança com um pai emigrado e uma mãe no hospital? Se ao menos eu tivesse a coragem de lhe fazer uma carícia, de a confortar, mas nem ouso aproximar-me dela. Desejei que voltasse para fazer amor com ela. E ela, não sentiria também saudades do marido? Quem me garante que durante este tempo todo não se entregou a algum dândi? Mas, pelas cartas que me escreveu, eu nunca tive nenhuma suspeita. E se mentisse? Não... a minha mulher é límpida como a água. E se ela não se cura? Só Deus sabe o quanto preciso dela, e depois temos um filho para criar...
Ao seu lado, Isola estava mergulhada num pântano de maus presságios. Pensava: o senhor Koch regressou porque eu não fiquei em Lerici. A vida na laguna não dá para mim. Nunca me senti tão bem como quando estava no hospital e depois na praia. É verdade, sentia a falta do meu menino e também do Saro... Ele é um bom marido. Antes de eu adoecer, pedia-me sempre permissão para fazer amor e, depois, abraçava-me e acariciava-me. Mas faltou-me sempre alguma coisa para me sentir feliz com ele.
Talvez Deus me esteja a castigar e queira que eu morra porque nos meus pensamentos se insinua, com cada vez mais frequência, o rosto luminoso e tranquilizador de Ferrante Josti. Oh, Senhor Jesus, será que vou morrer em pecado mortal porque penso num homem que não é o meu marido?
Isola afastou a colcha para o lado, levantou-se, pôs o xaile de lã sobre os ombros e desceu até à cozinha.
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O fogo estava a esmorecer e Gregorio tinha sido retirado da cama dos avós e posto a dormir no banco. Apetecia-lhe pegar nele e cobri-lo de beijos, mas apenas se atreveu a arranjar-lhe o cobertor, que estava quase a cair. Em seguida sentou-se no banco, ao lado da lareira, a chorar lágrimas silenciosas.
Pouco depois, com um candeeiro na mão, Saro foi ao seu encontro.
- O que é que estás aqui a fazer, no escuro? - perguntou-lhe em voz baixa.
- A mesma coisa que veio fazer - respondeu-lhe.
- Está a ser uma noite muito má, não está? - Saro sorriu-lhe com ternura e disse-lhe: - Coragem! Onde foi parar aquela rapariga alegre com quem me casei?
Umas horas antes, depois de ter procurado inutilmente o Dr. Zanotti, Isola pedira ao marido para ir ao telefone público e ligar ao professor Josti.
- Ele deu-me o número de casa e recomendou-me que lhe ligasse se acontecesse alguma coisa - explicou ao marido.
Saro falou com o criado do professor e soube que o médico estava em Pádua, com a família.
- Então não vale a pena ir ao hospital, porque os médicos devem estar todos para fora, por causa das festas - concluiu Isola.
Porém, pouco depois, chegou o funcionário dos telefones a avisar que fossem depressa ao posto público porque havia uma chamada para um parente de Isola Caccialupi.
Saro montou novamente na bicicleta e ouviu a voz do professor Josti a perguntar o que tinha acontecido.
- Cuspiu sangue - respondeu Saro.
- Leve-a ao hospital amanhã de manhã. Eu estou lá à espera dela - disse o médico.
Agora estavam na camioneta, cada um encerrado na sua própria dor, incapazes de dar voz a um desespero que deveria aproximá-los e que, porém, os afastava cada vez mais.
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Só quando saíram em frente à estação e avançaram ao longo da alameda deserta, em direção ao hospital, Saro disse: - Esta noite não me respondeste quando te perguntei onde foi parar a rapariga alegre com quem me casei.
Isola demorou algum tempo a responder e depois disse: - Por vezes, já nem me lembro daquela que eu era. Mas não faz mal, porque em breve tudo estará acabado. Ainda não percebeu que estou a morrer?
Então, num impulso, Saro parou, segurou-a pelos ombros e, abrindo os braços, envolveu-a com o seu capote, apertando-a contra si. Enterrou a cara na gola do casaco de peles e desatou a chorar.
Também Isola chorava, a pensar que aquele seria provavelmente o seu último abraço.
Quando chegaram à entrada do pavilhão de Pneumologia, encontraram um homem com a gola do casaco levantada, o chapéu enterrado sobre os olhos e as mãos enfiadas nos bolsos.
Era o professor Ferrante Josti.
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Depois da partida de Isola e Saro para Adria, a avó Lena e Gregorio ficaram sozinhos na grande cozinha.
- Custou-me um capão, e afinal para que é que me serviu? queixou-se a avó, referindo-se à pintura, que tinha metido na arca.
Panòcia, o barbeiro, fora lá entregá-la, recebendo em troca o capão pronto para cozinhar. A avó embrulhara a gravura num pano e pousara-a no banco para a levar ao padre no dia seis de janeiro, festa da Epifania. O padre ia benzê-la para depois a pendurar, juntamente com os outros testemunhos de Graças Recebidas, na capela da Virgem. Panòcia tinha escrito em cima, à esquerda, a data: DEZEMBRO 1928. Nos dias seguintes, quando estava sozinho na cozinha, Gregorio tinha pegado nela várias vezes para a admirar.
Gostava daquela pequena cena de intimidade doméstica em que o barbeiro os tinha representado, a ele e ao pai, ao lado da cama da mãe. Panòcia conhecia a família desde sempre e tinha-se divertido a pintar o rosto luminoso de Nossa Senhora, dando-lhe as feições de Lena. Não as atuais, obviamente, mas as de quando era jovem e bonita. Teria casado com ela de boa vontade, se Pietro Caccialupi não tivesse chegado primeiro. A avó, que tinha a visão um pouco fraca, por causa da idade, não se apercebera da semelhança; porém, o facto não escapou ao pequeno Gregorio que, quando viu a pintura, lhe disse: - A Nossa Senhora tem a tua cara.
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- Ora, ora, seu patarata! - respondeu-lhe a avó Lena.
Mas naquela manhã pôs os óculos, pegou na tábua que estava em cima do banco e aproximou-se da janela para a examinar. Nos seus lábios finos pairou a sombra de um sorriso ao recordar as palavras do neto. Depois resmungou: - Neste mundo mentiroso, não se pode confiar em ninguém, nem mesmo nos santos. Nossa Senhora deu-me a entender que tinha ouvido as minhas orações, e afinal a tua mãe está outra vez no hospital. Que rica maneira de fazer pouco de uma pobre velha!
Raiva e desilusão eram sentimentos que, naquele momento, partilhava com Gregorio, que ficou estupefacto quando a viu atirar a pintura para cima do monte de lenha para queimar.
- Não a vou levar para a igreja. Vai mesmo acabar no fogo exclamou Lena, e saiu para o pátio com um balde cheio de ração para dar de comer às galinhas. O menino pegou na pintura, embrulhou-a novamente no pano, subiu ao quarto e escondeu-a debaixo da cama. Gostava daquela pintura e queria guardá-la. Ao fim e ao cabo, tinha custado um capão, aquele que a família deveria ter comido no Natal, em vez de se contentarem com enguias e polenta.
Depois vestiu o casaco, pôs o cachecol e saiu para o pátio. O tio Neri e o avô estavam a limpar o armazém das alfaias e a avó estava ocupada com as galinhas.
O inverno era a estação em que os camponeses se dedicavam a tratar das alfaias agrícolas: afiavam as foices, substituíam as redes danificadas dos crivos, reparavam os dentes das debulhadoras, mudavam os cabos às enxadas e aos ancinhos. A avó espalhava a ração e, entretanto, conversava com uma vizinha que tinha ido ter com ela para saber do estado da nora e para a pôr a par das notícias do dia: a mulher do Farina estava de cama por causa do excesso de pancada que o marido lhe tinha dado, e a Cisina, mulher do Stoco, estava à espera do décimo filho.
- Eh! Aos senhores tanta fartança e aos pobrezinhos tanta criança - suspirou Lena, só para dizer alguma coisa, porque tinha muito mais em que pensar.
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Depois de ouvir aquele antigo ditado da sabedoria popular, Gregorio anunciou: - vou apanhar erva para os coelhos - e afastou-se com o cesto.
Caminhou ao longo dos muretes e pelas margens dos canais à procura daquele precioso alimento para os animais.
Viu Andrea Pezzolato, companheiro de escola e de tropelias que, com uma fisga, abatia ninhos de pássaros dos ramos despidos das árvores.
Os Caccialupi não queriam que Gregorio andasse com Andrea Pezzolato, porque ensinava os companheiros a fazer cigarros com as beatas que se apanhavam à porta da taberna e a meter-se nos galinheiros, esquivando-se à vigilância dos cães, para roubar os ovos. Gregorio nem sempre participava nas suas iniciativas, mas respeitava-o.
Quando contava secretamente à mãe as aventuras do amigo, Isola abanava a cabeça e dizia-lhe: - Esse Andrea não tem pai, que emigrou para a América do Sul, e a mãe não tem tempo para tomar conta dele, porque tem de trabalhar para sustentar os filhos. Ele é um rapazinho muito revoltado e faz coisas que não são bonitas. Se tu o imitares, dás-me um desgosto.
Agora, ao vê-lo danificar os ninhos, Gregorio gritou-lhe: - És parvo? Os pássaros morrem se lhes destruíres a casa.
- Quero lá saber - respondeu o amigo.
- Falas como o Duce. Mas à força de não se querer saber, onde é que vamos parar? - replicou Gregorio, repetindo aquilo que o pai lhe dizia.
- Vai pentear macacos - resmungou o outro, e continuou a atirar pedras com a fisga.
- A minha mãe voltou para o hospital - anunciou então, preocupado.
- Não me digas! Toda a gente achava que ela estava curada respondeu Andrea, renunciando a um novo tiro.
- Também eu - suspirou Gregorio.
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- Não penses nisso e faz como eu, que quando acordo maldisposto, invento qualquer coisa para fazer. Agora já estou cansado de atirar pedras com a fisga. Vamos pisar couves - propôs.
Era uma brincadeira divertida que consistia em pisar as couves com os tamancos, fazendo-as estalar. Gregorio sabia que aquele ato de vandalismo lhe poderia dar algum alívio, porque o sentimento de culpa por o ter praticado ia sufocar o seu descontentamento.
Encaminhavam-se para a horta quando Gregorio olhou a extensão dos campos e, na estrada, viu avançar a caleche de Bepi Zerbin, o feitor de Cazulian Vianello. Ao lado dele vinha sentado o seu pai. Sozinho.
Correu ao encontro dele. A caleche abrandou, o pai pegou nele e sentou-o nos joelhos.
- Quando estava à espera da camioneta, na praça da estação, o senhor Bepi passou por ali e deu-me boleia - explicou Saro ao filho.
- E a mãe? - perguntou Gregorio, ansioso.
- O professor disse: "Vai cá ficar para fazer alguns exames." Não sei mais nada, por enquanto.
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O rosto carregado de Saro Caccialupi espantou os frequentadores da taberna, que sempre o tinham considerado um homem moderado e sereno. Espantou-os também o facto de o verem beber um copo atrás do outro até se embriagar. Entrou no estabelecimento ao princípio da tarde, sentou-se a uma mesa e pediu um litro de vinho tinto, ignorando os conterrâneos que o convidavam a juntar-se a eles para uma partida de cartas. Olhou de lado para todos aqueles que tentaram falar com ele e, às nove horas da noite, quando a taberna estava prestes a fechar, Saro continuava sentado à mesa e tinha despachado um número considerável de garrafas.
Os outros olhavam para ele, espantados. Saro era um homem sério, um grande trabalhador e um marido afortunado por ter casado com Isola, uma rapariga lindíssima que todos invejavam. Claro que a sorte não estava do seu lado havia já algum tempo. A mulher adoecera com aquele mal terrível do qual ninguém se curava, a não ser em casos excecionais. E precisamente quando parecia que Isola tinha regressado a casa já restabelecida, tinha sido mais uma vez levada de urgência para o hospital. Por isso, Saro tinha um bom motivo para se embriagar sozinho.
Àquela hora, porém, estava a fazer-se tarde e, aos poucos, os clientes iam saindo para regressarem às suas casas, tentando evitar
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a ronda fascista que patrulhava as ruas depois do pôr do sol e não perdia uma oportunidade para usar o bastão.
Naquela noite, a ronda, composta por quatro rapazotes, filhos de pequenos comerciantes do lugar, entrou de rompante na altura em que o estabelecimento começava a esvaziar.
- Então, tudo bem por aqui? - perguntou o chefe dos fascistas, um meliante de dezoito anos, filho de um comerciante de arroz. Chamava-se Amilcare Pregnolato, mais conhecido por Cojòn desde o tempo da escola primária, porque nunca tinha conseguido aprender nem sequer a tabuada. Quando era criança, o professor obrigava-o a usar na aula umas orelhas de burro de cartão. Quando cresceu, para se vingar das humilhações, tornou-se briguento e agressivo. O professor foi encontrado uma noite, na margem do Pó em Tolle, agonizante devido às bastonadas que apanhara. Nunca chegaram a encontrar o culpado, mas toda a gente sabia que tinha sido Cojòn, que assim se vingara dos castigos sofridos muitos anos antes.
- Está tudo em ordem - garantiu o taberneiro.
Amilcare Pregnolato fazia rodar o bastão, enquanto os seus acólitos, com ar de desafio, mantinham os polegares enfiados nos cinturões.
Cojòn olhou para Saro Caccialupi, que continuava de cabeça baixa, no seu canto, tomado pelos vapores do vinho. O rapaz odiava Saro porque, alguns meses atrás, durante a festa do santo padroeiro, quando dirigira um cumprimento demasiado audaz à bela Isola, que estava ao lado do marido, este lhe dissera: - Ainda tens a boca suja de leite. Vai a casa da tua mãe limpá-la. - Em suma, pusera-o no lugar com bonomia, quase a sorrir.
Por isso, naquele momento aproximou-se de Saro a bater com os tacões no chão de madeira e, sempre a rodar o bastão, dirigiu-lhe a palavra: - Eh, tu, larga isso que estás bêbedo que nem um cacho. Vai curar a borracheira ao pé da tua mulherzinha.
E ria-se, apoiado pelos três compinchas.
O taberneiro, de repente, lembrou-se de que tinha qualquer coisa para fazer na cozinha e desapareceu. Os outros clientes emudeceram, a fitar a porta para onde não ousavam dirigir-se.
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Saro, atordoado pelo vinho, tinha ouvido alguém dizer-lhe alguma coisa, mas não tinha percebido o significado das palavras, nem visto quem as pronunciara, porque continuava com a cabeça inclinada sobre a mesa.
- Estou a falar contigo, estás a ouvir? Vai curar a borracheira ao pé da tua mulherzinha, que deve saber fazer coisas muito boas com aquelas mãozinhas de ouro - insistiu Cojòn, que se sentia forte com o apoio dos seus capangas.
Desta vez Saro percebeu bem o significado daquelas palavras e os vapores do vinho dissolveram-se num ápice.
Amilcare Pregnolato estava diante dele e observava, com um ar agressivo, aquele homem grande e forte que continuava com a cabeça inclinada sobre o copo. Fez-se silêncio na taberna.
Da praça deserta chegaram os miados dos gatos vadios. O relógio de parede, atrás do balcão, bateu as onze horas. Os clientes que ainda estavam presentes, movendo-se com circunspeção, chegaram até à porta e saíram.
Saro pensou em Isola, naquela manhã, a soluçar à entrada do hospital nos braços do professor Josti enquanto ele os observava, incapaz de se mexer ou de pronunciar uma palavra. Aquele homem bonito, rico e instruído abraçava a sua mulher e afagava-lhe os cabelos cor de fogo, e Saro limitava-se a olhar para eles como que hipnotizado com aquela cena da qual se sentia completamente excluído.
Num instante, percebera que Isola já não lhe pertencia.
Agora um rapaz de camisa negra acabava de o insultar, fazendo-se forte graças ao apoio dos companheiros e do bastão que o regime fascista o autorizava a usar.
- Claro que a Isola deve saber usar bem as suas mãozinhas, já que lhe renderam casacos de pele e chapelinhos - insistiu Cojòn, trocista.
Saro afastou a mesa lentamente, levantou-se e fulminou o jovem Amilcare com o olhar. O sorriso apagou-se no rosto do rapaz, que empunhou com força o bastão, imitado pelos companheiros. Preparava-se para atingir a cabeça de Saro quando na mão deste
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apareceu a navalha que, como todos os camponeses, também ele trazia presa ao cinto. Fulminante, espetou-a no ombro do rapaz, que caiu ao chão.
Os outros três, aterrorizados, em vez de o socorrerem desataram a fugir. Saro inclinou-se sobre o rapaz, que olhava para ele com os olhos esbugalhados.
- Matei-o! - disse.
De repente, surgiram ao lado dele o taberneiro e os clientes que tinham saído e que tinham ficado lá fora a ver o que ia acontecer.
- Foge - disseram-lhe.
- Nós tratamos dele - acrescentou o taberneiro.
- Eu não queria, eu não queria... - repetia Saro, com os olhos inchados de lágrimas. Levantou-se e saiu da taberna a correr.
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Gregorio estava em casa dos vizinhos, onde a avó o tinha deixado com a ordem categórica de não sair enquanto ela não o chamasse. Da janela da cozinha, juntamente com as outras crianças, olhava para os guardas que, no pátio varrido por um vento gélido, falavam com os avós e com o tio Neri.
Na cozinha, as crianças riam, excitadas, enquanto os adultos conversavam uns com os outros e abanavam a cabeça.
Tinha sido precisamente Gregorio a descobrir os guardas que, de bicicleta, pedalavam ao longo da estrada gelada em direção ao casal dos Caccialupi. Foi a correr para dentro de casa a gritar: - Vêm aí os guardas!
Os avós e o tio já esperavam aquela visita e estavam sentados, em silêncio, ao pé da lareira.
A avó deu-lhe a mão e arrastou-o até ao fundo do pátio, enquanto ele protestava, dizendo: - Também quero ficar aqui. Juro que não falo, mas quero ouvir.
- Isto são coisas de adultos e tu vais obedecer - concluiu a avó, que o entregou à vizinha.
- Mas eu não sou nenhuma criança - protestou, porque era aquilo que o pai lhe tinha dito quando o acordara a meio da noite.
- Gregorio, ouve bem o que eu te vou dizer. Preciso de falar contigo de homem para homem - começou Saro, sentando-se ao lado dele na beira da cama.
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- Acende o candeeiro, pai - disse o rapaz.
- Há coisas que é melhor dizer às escuras. Ouve bem. Eu vou agora para o cais. Está lá um amigo à minha espera, para me levar no barco dele até Ancona. Depois vou tentar embarcar num navio.
- Aonde vais? - perguntou Gregorio. E voltaram-lhe à memória as histórias da mãe: "Esta terra é uma terra de águas, é antiga como o mundo e, se navegares num barco, depois da água cinzenta do rio encontras a azul do mar e podes chegar aos confins da Terra."
- vou para a América.
- Posso ir contigo? - perguntou, cheio de esperança. Gregorio nunca tinha visto o mar. De vez em quando parava a observar o mapa que estava pendurado na sala de aula, percorria com o dedo as costas recortadas dos continentes e lia os nomes dos oceanos: Atlântico, Pacífico, Índico...
- Não te posso levar porque vou fugir - confessou o pai.
- Os fascistas, não é? - perguntou Gregorio.
- Acho que matei um deles, e não faz mal que tu fiques a saber, porque amanhã de manhã toda a gente vai falar disso. Fiz uma coisa muito feia e não adianta dizer-te que fui provocado, porque não se deve matar ninguém, nunca, por nenhuma razão. Percebeste?
Gregorio apertou os braços em volta do pescoço do pai.
- E eu? O que é que eu vou fazer? - perguntou, a chorar.
- Aquilo que fazem todas as outras crianças sem pai. Esta terra está cheia delas. Eu escrevo-te quando tiver chegado a algum lugar. Promete-me que nunca vais deixar os avós e o tio Neri e que só lhes vais obedecer a eles. Quando vires a mãe, dá-lhe isto da minha parte e diz-lhe que gosto muito dela.
- Prometo - disse o filho.
Saro meteu-lhe na mão uma caixinha e, de manhã, Gregorio abriu-a e encontrou uns brincos de ouro em forma de rosa.
- Pobre criança - murmurou a vizinha, enquanto lhe fazia uma carícia.
Gregorio queria ter ouvido aquilo que os guardas estavam a dizer aos avós e ao tio. Viu-os entrar em casa e, pouco depois,
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foram-se embora nas suas bicicletas e a avó veio buscá-lo. Tinha os olhos vermelhos de chorar.
- Mas será que foi mesmo o seu Saro? - perguntou a vizinha.
- Que fez o quê? - perguntou a avó, com um tom brusco.
- Dizem por aí que matou o rapaz do Pregnolato, o Cojòn disse a vizinha.
- Aquele fascista não morreu! Está no hospital e vai ficar bom
- respondeu a avó, enxugando uma lágrima.
- A erva daninha nunca morre - resmungou o marido da vizinha. Ele, como muitos outros na aldeia, detestava os fascistas por causa daqueles abusos constantes.
Lena contou aos vizinhos a história dos guardas. O jovem Pregnolato tinha sido encontrado, ferido e sem sentidos, no adro da igreja, pelo chefe dos correios que regressava a casa depois de um jantar em casa de uns amigos. Quando o homem se preparava para ir a correr procurar o médico, chegaram os guardas, porque os companheiros de ronda de Amilcare Pregnolato tinham lá ido acusar Saro Caccialupi de ter matado o amigo na taberna. Mas quando os guardas entraram no estabelecimento, não viram nenhum cadáver. Mais, o taberneiro jurara que não acontecera nada de estranho naquela noite e que a ronda tinha passado quando ele estava a fechar.
Uma vez que aquele bando de fascistas tinha por hábito fazer brincadeiras do género, os guardas decidiram regressar à esquadra passando à frente da igreja, e ali tinham encontrado Amilcare Pregnolato.
Na realidade, os factos desenrolaram-se da seguinte maneira: depois de terem mandado fugir Saro Caccialupi, o taberneiro e os outros homens tinham transportado o corpo de Cojòn, abandonando-o diante da igreja. Estava uma noite muito fria e não havia ninguém nas ruas. O taberneiro regressou depois ao estabelecimento para limpar as marcas de sangue no chão, e os outros voltaram para casa. Nenhum deles diria nada e, se fossem interrogados, negariam tudo: a sua palavra de gente honesta contra a dos jovens fascistas, conhecidos de toda a gente pela sua malvadez e mentiras.
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- O frio travou a hemorragia - comentou o médico, chamado pelos guardas, depois de ter constatado que o rapaz estava vivo. Avisaram o pai e Amilcare foi transportado de urgência para o hospital de Adria. A navalhada tinha cortado nervos e tendões no ombro, mas o jovem foi operado imediatamente com a informação de que estaria curado dentro de poucas semanas apesar de, provavelmente, nunca recuperar completamente o uso do braço. O comerciante de arroz, o pai de Cojòn, comentou: - Assim queira Deus, para ver se deixa de se armar em forte com aquele bastão.
Mas, no meio de tudo isto, o desaparecimento de Saro Caccialupi soava como uma autodenúncia, e os pais não sabiam como haviam de justificar a sua ausência perante os guardas que tinham ido procurá-lo. Finalmente, o chefe da guarda disse: - Se por acaso falarem com ele, digam-lhe que não matou ninguém e que, se quiser voltar, o caso foi arquivado como de autoria desconhecida.
Mais do que isto o chefe da guarda não podia fazer, se não quisesse ser despachado para as montanhas da Sardenha.
No entanto, o mal estava feito, e Saro Caccialupi tinha partido
para sempre.
Gregorio regressou a casa com a avó, subiu até ao quarto, pegou na caixinha com os brincos de ouro que o pai lhe tinha entregado e escondeu-a debaixo da cama, juntamente com o ex-voto que resgatara das chamas da lareira. Agora estava só, completamente só.
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Naqueles dias de festas, de um frio que gelava os campos, o único lugar onde Gàbola se podia aquecer e alhear-se da miséria e da tristeza era a taberna. Por isso tentava trabalhar para juntar uns trocos para se embriagar.
Andava pelas margens e pelos quinteiros, rompendo o silêncio com o seu pregão: "o homem das cadeiras!", e as mulheres punham fora da porta uma cadeira furada, um banco em mau estado, um guarda-chuva partido.
Então o homem parava, sentava-se num degrau e reparava-os. Depois continuava o seu caminho.
Pensava em Isola, a sua única filha, lindíssima, que estava outra vez no hospital.
Seguia pela estrada que ia dar à aldeia, levando na mão as cordas e os poucos utensílios de que precisava para empalhar as cadeiras e amarrar as varas dos guarda-chuvas, quando ouviu o seu nome gritado pela voz aguda de Gregorio, o seu neto. Viu o rapaz correr ao encontro dele a gritar: - Avô! Avô! - Parou e olhou para ele, preocupado. Temia alguma nova desgraça.
- O meu pai fugiu para a América - disse o rapazinho, de um só fôlego, assim que chegou junto dele. E continuou: - Já toda a gente sabe, até o chefe da guarda que foi à procura dele. O meu pai não matou ninguém, mas ele não sabe, e nós não lhe podemos dizer
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porque não sabemos onde está. Antes de se ir embora, disse-me que não devo sair daqui por motivo nenhum, mas eu também gostava muito de me meter num navio que me levasse para a América.. Mas a mãe fica sozinha no hospital... - acrescentou, com os olhos cheios de lágrimas.
O velho Gàbola pousou as suas ferramentas no chão e debruçou-se sobre o neto: - Não percebi nada daquilo que me disseste. O que foi que aconteceu?
E Gregorio explicou-lhe tudo, pormenorizadamente.
- Então o Saro fugiu... - murmurou o avô, e sentiu um aperto no coração pela sorte do genro, da filha e do neto que, com o olhar, implorava a sua ajuda.
- A América! - acrescentou. E voltaram-lhe à memória os anos da infância, quando os homens daquelas terras embarcavam com o grito "Viva a América e morte aos senhores". Depois, daquela terra sonhada chegavam cartas desesperadas com histórias de uma vida ainda mais miserável do que a que tinham deixado.
Agora ali estava o pequeno Gregorio, diante dele, assustado e aflito.
- O que dizem os teus avós? - perguntou-lhe.
- A avó diz: "Que escândalo, estamos nas bocas de toda a gente." O avô Pietro e o tio Neri dizem: "O Saro fez mal em ferir o Cojòn. Devia tê-lo matado, porque assim era um fascista a menos."
- E tu, o que pensas?
- Eu quero a minha mãe - confessou Gregorio, e desatou a chorar.
- Então vai avisar os Caccialupi que nós vamos agora os dois a Adria ter com a tua mãe - decidiu o Gàbola.
Demoraram algumas horas de bicicleta e, quando chegaram ao hospital, o pobre Gàbola estava sem fôlego.
- A Isola Caccialupi já não está aqui. O professor deu-lhe alta hoje de manhã - comunicou-lhes a freira do Serviço de Pneumologia.
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Quando Saro chegou com a mulher a Adria, encontrou o professor Ferrante Josti à entrada do hospital. O médico estava à espera de Isola, e a ansiedade da espera associava-se à angústia de ter errado o diagnóstico.
Recordava mentalmente as últimas radiografias aos pulmões e a auscultação minuciosa do tórax. Tudo indicava, sem sombra de dúvida, que a rapariga estava curada. Não sabia como explicar os vestígios de sangue que Isola tinha encontrado no lenço depois de tossir.
Ao falar com Saro ao telefone, sentira a terra faltar-lhe debaixo dos pés. Ocorriam recidivas à distância de anos, porque um ex-paciente voltava a ser infetado. Mas ele tinha observado Isola apenas uma semana antes, e estava bem. Nunca lhe tinha acontecido um caso semelhante.
Partiu de Pádua a meio da noite, desafiando o nevoeiro e o piso gelado, e já ali estava há uma hora, ao frio, à espera.
Quando a viu, ao lado do marido, a avançar em direção a ele, sentiu um aperto no coração. Queria correr ao encontro dela e abraçá-la. Porém, esperou que chegassem junto dele e disse:
- Sigam-me.
Avançou à frente do casal pela escadaria que dava acesso ao primeiro andar e ao seu consultório. Entregou a uma enfermeira o
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casaco, as luvas e o chapéu. A mulher viu a expressão preocupada do médico e afastou-se, silenciosa.
O professor indicou a Saro a cadeira em frente à secretária e depois dirigiu-se ao gabinete contíguo, seguido por Isola e pela enfermeira, que fechou a porta.
Saro esperou meia hora antes que o médico regressasse ao consultório. Quando apareceu, sem dizer uma palavra, pegou no processo e saiu novamente.
Pouco depois Isola e a enfermeira voltaram.
- Então? - perguntou Saro, alarmado.
- Observou-me, mas não disse nada - comunicou-lhe Isola, em voz baixa.
- O doutor foi-se embora. O que é que nós vamos fazer? perguntou Saro à enfermeira.
- Vamos esperar - respondeu, e regressou à sala ao lado.
O professor voltou ao fim de poucos minutos e deu um longo suspiro: - Na auscultação não encontrei absolutamente nada. Hoje é feriado e o laboratório de análises está fechado. O meu serviço está quase cheio, mas consegui encontrar um quarto livre. Amanhã vou ter pessoal à disposição para as radiografias, as análises de sangue e da expetoração e todos os outros exames necessários - concluiu.
- Então, vou ter de ficar aqui? - protestou Isola, com um fio de voz. Depois desatou a soluçar.
O professor Josti abraçou-a, acariciou-lhe os cabelos e disse-lhe docemente: - Não te posso deixar regressar à tua aldeia nestas condições.
Depois afastou-a quase bruscamente e voltou-se para Saro:
- Venha cá daqui a dois dias saber notícias. vou dar ordens para o deixarem entrar mesmo que não seja horário de visita - e saiu imediatamente do gabinete.
Agora avô e neto ficaram a saber que Isola tinha tido alta e olhavam aflitos para a freira, que disse a Gregorio: - A tua mãe está no palácio Dolfin. Foi o senhor professor que a levou para lá. Vão ter com ela, e ela explica-vos tudo - e deu-lhes indicações para lá chegarem.
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Chegaram ao palácio Dolfin e, diante da porta de entrada, Gregorio pediu ao avô que pegasse nele ao colo para puxar o manipulo que acionava uma campainha. Após um tempo infinito, abriu-se um postigo e dois olhos observaram o velho e a criança. Depois uma voz ordenou: - Dobrem a esquina e batam à porta de serviço. - O postigo fechou-se.
Gàbola suspirou, resignado: - Estás a ver, Gregorio? Também aqui os senhores são iguais aos de Porto Tolle, e os pobres têm de bater à porta dos criados.
- Como é que eles sabem que somos pobres? - protestou o menino.
- Vêem pelas roupas que trazemos vestida - respondeu o avô.
- Um dia vou ser rico e vou vestir-me como um senhor - exclamou Gregorio, sentindo-se profundamente humilhado.
Chegaram à porta de serviço e, nesse preciso momento, sem precisarem de bater, a porta abriu-se. Na soleira viram Isola que, com um sorriso radiante, abriu os braços para os receber.
- Entrem depressa, porque aqui gela-se - pediu-lhes. Avançou à frente deles ao longo do corredor e Tina e Pepi, um
casal de velhos empregados, receberam-nos alegremente numa copa adjacente à cozinha, onde estava posta a mesa para o almoço.
- Eu logo vi que este menino tão lindo era o filho da Isola disse Tina. E acrescentou: - Mas... nunca se sabe... com tanto vagabundo que anda por aí hoje em dia.
- Almocem connosco - convidou Pepi, depois de ter ficado a saber que Gàbola era o pai de Isola.
- Estou curada! - anunciou a rapariga. E explicou: - Aquele episódio horrível do outro dia foi um falso alarme. Tinha tossido muito, nos dias anteriores, e a traqueia estava inflamada. Agora, já quase não tusso.
- Então vamos embora para casa - exclamou Gregorio, que renunciaria de boa vontade à refeição e ao calor daquele aposento para poder ter a mãe só para ele.
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- Primeiro comemos, depois conversamos - disse Isola, ao mesmo tempo que mandava sentar o filho ao pé de si. - Porque é que o teu pai não veio? - perguntou a Gregorio.
- Primeiro comemos, depois conversamos - repetiu Gàbola, que se sentia pouco à vontade naquele espaço de gente rica.
No centro da mesa sobressaía uma terrina cheia de risotto com
carne picada. Num jarro de vidro transparente havia um vinho tinto que Gàbola contemplou com avidez, mas no momento em que o criado se preparava para o deitar no seu copo ele deteve-o.
- Para mim, só água - disse. E, pela primeira vez em tantos anos, sentiu-se orgulhoso de si mesmo.
- O pai fugiu. Nunca mais volta - anunciou Gregorio, depois da última garfada de risotto.
Isola empalideceu. - Mas que história vem a ser essa? - perguntou, voltando-se para o pai.
Gàbola explicou à filha o que tinha acontecido. Desorientada, Isola escondeu o rosto nas mãos e depois perguntou: - O que é que vai ser dele? Quem é que vai tratar do meu filho? Eu não posso ir para casa... daqui por uns dias tenho de voltar para a praia... é importante para a minha saúde.
Gregorio gostaria de lhe dizer: "Eu vou contigo", mas calou-se. Percebia que a mãe era uma hóspede naquela casa e não devia avançar com outros pedidos. Além disso, tinha prometido ao pai que não deixaria os avós e o tio.
- Para o teu Gregorio, estou cá eu - garantiu-lhe Gàbola, com orgulho.
- Vais ver que no fim da primavera a tua mãe vai regressar a casa mais sadia e mais forte - garantiu Tina, a sorrir para Gregorio. Depois voltou-se para Gàbola: - O senhor tem uma filha que é um modelo de modéstia e de educação. Nós, que não passamos de dois velhos, gostamos de a ter aqui, mesmo que seja por poucos dias, porque quando a senhora condessa voltar da Suíça vai levá-la outra vez para Lerici. Mas, entretanto, já somos amigas e tenho a certeza de que a Isola ainda cá voltará para nos ver.
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Acabaram de almoçar num silêncio carregado de pensamentos contraditórios. Isola olhava para o filho, que se esforçava por lhe sorrir. Sofria por ter de o deixar mais uma vez, mas também recordava com alegria o rosto radioso de Ferrante no momento em que lhe anunciara: "Está tudo perfeito. Os teus pulmões estão fantásticos, a tua expetoração é sã e podes beijar..."
- O meu menino? - apressou-se ela a perguntar.
- Sem receio de o contagiar - concluiu o médico.
- Obrigada, professor - disse e, quase sem se dar conta, achou-se nos braços daquele homem maravilhoso que lhe salvara a vida. Chorava e ele enxugou-lhe as lágrimas com um lenço perfumado de alfazema. Depois disse-lhe: - Nunca mais voltas a este hospital. Agora vou levar-te ao palácio Dolfin. A minha amiga Clarissa está a par da situação e os criados estão à tua espera.
Não entraram pela porta de serviço, mas sim pela principal e, no momento em que se iam despedir, Ferrante leu no olhar de Isola a gratidão por aquele alojamento privilegiado e a tristeza por ter de o deixar.
Então segurou as mãos de Isola entre as suas, levou-as aos lábios e, inventando um ar desenvolto que não lhe pertencia, perguntou-lhe: - O que vem a ser esta cara de enterro? Estás bonita como uma sereia, sã como um pêro... vou mandar-te uns livros para estes dias que vais passar em Adria e... se puder, virei visitar-te.
Quando Isola ouviu tocar a campainha da porta de entrada estremeceu, esperando que fosse ele. Nem por um instante pensou no pequeno Gregorio e agora, ao olhar para ele, sentia-se culpada.
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- Anda, Gregorio. vou mostrar-te o palácio - disse a velha criada, ao mesmo tempo que dava a mão ao menino e, seguida pelo marido, deixava Isola com o pai, para que pudessem conversar à vontade.
Gregorio destilava espanto quando regressou de uma volta rápida pelos salões com frescos nas paredes daquela antiga residência nobre. Refugiou-se imediatamente nos braços da mãe, enquanto resumia as suas impressões com uma única palavra: - Lindíssimo!
- Porque é que não ficas aqui com o teu filho enquanto os senhores não regressam? - propôs o criado. - São boas pessoas e não vão ficar zangados se o encontrarem aqui.
- Queres, Gregorio? - perguntou a mãe, cheia de esperança.
O menino olhou para o avô, quase como se estivesse à espera de uma resposta dele. Depois recordou a promessa que fizera ao pai e respondeu com firmeza: - Tenho de ir para casa dos avós. Não os posso deixar.
Isola conhecia-o bem e percebeu que nem mesmo o amor que sentia por ela o ia demover da sua decisão.
- Vais ver como eu arranjo maneira de tratar deste malandro prometeu Gàbola, preocupado com a filha, que estava só, sem marido e com um filho para criar. Abraçaram-se, e depois avô e neto foram-se embora.
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Isola refugiou-se no quartinho que Tina lhe tinha preparado na ala da criadagem, o mais confortável de todos, aquele que era habitualmente ocupado pela criada pessoal da condessa. Abriu a janela, por onde entrava um sol pálido, e estendeu-se em cima da cama, cobrindo-se até ao queixo com a colcha de lã. Agora que o medo de uma recaída tinha desaparecido, pesava-lhe cada vez mais o afastamento do filho.
Pensou em Saro, que tinha fugido, desesperado, num navio que o levaria para longe. Esperou com toda a alma que conseguisse fazer fortuna na América e que em breve lhe mandasse boas notícias. Naquele momento, porém, e apesar de estar preocupada, apercebeu-se de que o marido não lhe fazia falta, e isso encheu-a de aflição.
Mas que espécie de mulher sou eu?, perguntou a si mesma. Aquela questão perturbou-a de tal maneira que desatou a chorar, desesperada.
- Santo Deus! Não sentes o frio que está aqui dentro? - ralhou Tina, que tinha aparecido à porta do quarto. Entrou, pousou um embrulho em cima da cama de Isola e foi rapidamente fechar as janelas. Depois regressou junto dela e viu que estava a chorar.
- Pobre rapariga! - murmurou, e fez-lhe uma carícia. Depois acrescentou, sorridente: - Este embrulho foi o Guerino, o criado do professor Josti, que o veio entregar. É para ti. Ânimo, minha filha! Não estás só. O teu marido está longe, mas todos nós gostamos muito de ti. Não saias da cama enquanto o quarto não estiver mais quente. Depois anda à cozinha, que tens lá uma rica malga de leite quente à tua espera. - A criada saiu. Isola limpou as lágrimas e abriu o embrulho que continha dois livros e uma caixa de bombons. Decidiu mandar os chocolates ao filho, que ia com certeza ficar muito satisfeito com aquele presente. Depois leu os títulos dos livros: Orgulho e Preconceito, de Jane Austen, e Os Indiferentes, de Alberto Moravia.
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Prometeu a si mesma atacar primeiro o romance de Jane Austen. O professor nunca lhe dava livros aborrecidos e, ao lê-los, encontrava sempre um motivo de distração ou de reflexão.
Levantou-se da cama, lavou a cara no lavatório de porcelana e saiu do quarto, levando o livro consigo.
Percorreu o corredor, para o qual davam os quartos da criadagem, e chegou à cozinha. Foi envolvida pela tepidez daquele grande aposento onde, em cima do fogão, ferviam os legumes para a sopa, e entrou na copa. Em cima da mesa viu a caneca do leite e a cafeteira com o café. Tina fazia tricô e o marido fumava cachimbo enquanto folheava La Domenica dei Corriere.
- Oh, menina linda! Anda cá fazer companhia a estes dois velhos. Quando os senhores não estão no palácio, nós temos muito pouco que fazer - disse a criada, convidando Isola a sentar-se com eles.
Ela deitou o leite quente na malga, acrescentou-lhe um fio de café e começou a bebê-lo em pequenos goles.
- Deem-me alguma coisa para fazer... gostava de poder ser útil.
- O que é que gostavas de fazer?
- Em Lerici, a senhora condessa ensinou-me a tratar da casa. Também aprendi a bordar.
Na parede, o tiquetaque de um relógio ia marcando a passagem do tempo.
- Então amanhã vais limpar as pratas. Agora pega nesta meada de lã e segura-a bem esticada nos braços, enquanto eu puxo o fio e faço um novelo - propôs Tina.
Nunca como naquela tarde de inverno Isola se sentiu tão dilacerada pela tristeza. Depois de ter ajudado Tina, quis pôr a mesa. A criada serviu a sopa de arroz e legumes, enquanto Pepi partia umas fatias de toucinho para pôr em cima de pão torrado.
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Quando acabaram de jantar, Pepi deu uma volta pelo palácio para se assegurar de que as janelas e as portas estavam bem fechadas. Tina lavou a louça. Isola secou-a, depois sentou-se à mesa da copa e abriu o romance de Jane Austen.
- Posso ficar aqui um bocadinho a ler? - perguntou.
- Está à vontade. Nós vamos dormir - respondeu Tina.
Foi então que a campainha da porta principal começou a tocar.
- Mas quem será, a esta hora? - comentaram, espantados.
O empregado foi abrir. Pouco depois, Ferrante Josti entrou na copa com Pepi, que justificava aquele acolhimento dizendo:
- Fartei-me de insistir para o senhor professor ficar na sala.
- Não é preciso fazer cerimónia. Só vim ver como está a minha doente - disse, a sorrir para Isola, e foi ver que livro ela estava a ler.
Ela só esperou que ele não quisesse auscultar-lhe o coração, que batia loucamente.
- Posso oferecer-lhe um licor, um café...? - sugeriu Tina.
- Um café - respondeu ele, enquanto tirava o sobretudo, que pousou em cima de um banco. Depois sentou-se à frente de Isola. Olharam-se nos olhos durante um breve instante e, logo a seguir, a jovem inclinou a cabeça sobre o livro e desejou que Ferrante Josti ficasse ali até à eternidade.
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Os dois empregados foram à cozinha preparar o café.
- O Pepi contou-me do teu marido. Se não tivesse fugido, arranjava-se maneira de o ajudar - começou Ferrante.
- Aconteceu tudo muito depressa. Eu também só soube hoje respondeu Isola.
Tina entrou levando nas mãos um tabuleiro coberto com uma renda imaculada sobre o qual tinha pousado a cafeteira e o açucareiro de prata e uma chávena de um serviço antigo e valioso.
- Esta pobre rapariga está muito aflita. Agora, que está finalmente curada, o marido meteu-se em confusões e ela ficou sozinha. É mesmo verdade que o Senhor nunca nos quer ver sossegados comentou a criada, enquanto servia o café ao médico. Depois anunciou: - com a sua licença, senhor professor, vou retirar-me. A Isola trata de fechar o portão, quando o senhor sair - e saiu da copa.
Ferrante bebeu o café. Depois tirou um cigarro da cigarreira de ouro e acendeu-o com um fósforo. Soprou uma pequena nuvem de fumo que se contorceu por baixo do candeeiro suspenso sobre o centro da mesa, enquanto Isola, com as mãos pousadas sobre o livro aberto, continuava calada.
Ferrante olhou-a nos olhos durante muito tempo, sem falar. Depois sorriu-lhe com uma ternura infinita e disse: - Não estás sozinha. Eu estou apaixonado por ti.
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Isola baixou os olhos, com a garganta apertada num nó que quase não a deixava respirar. Ficou imóvel, sem dizer uma palavra.
Então ele apagou o cigarro no cinzeiro, levantou-se, pegou no sobretudo e foi-se embora.
O relógio bateu as oito horas.
Isola cobriu o rosto com as mãos, enquanto os seus pensamentos voavam como abelhas enlouquecidas; as poucas e pequenas certezas da sua vida tinham desaparecido, derrubadas por um sentimento que lhe explodira no coração.
O bom senso dizia-lhe: Salva-te, enquanto é tempo, volta para o teu filho, para o casal dos Caccialupi, onde também Saro, mais cedo ou mais tarde, acabará por voltar. Mas entretanto tinha-se apaixonado por Ferrante e ele acabava de lhe dizer que a amava. Agora só isso contava para ela.
Fechou o livro, foi ao quarto, vestiu o casaco de peles e saiu.
Dirigiu-se ao outro lado da praça, onde ficava o edifício no qual Ferrante Josti morava. Ao acompanhá-la a casa dos Dolfm, ele próprio lho indicara.
Entrou no átrio e veio ao encontro dela um porteiro.
- O que deseja, menina?
- Preciso de falar com o professor Josti - respondeu, com a voz a tremer.
- O senhor professor está à sua espera? - perguntou o homem. Ela assentiu. Então o porteiro indicou-lhe a escadaria, dizendo:
- Suba ao primeiro andar. vou avisar imediatamente o criado do senhor professor.
com o coração na garganta, Isola subiu rapidamente as escadas e deparou-se com Guerino, que a cumprimentou e lhe perguntou, preocupado: - Aconteceu alguma coisa? O senhor professor chegou a casa há pouco. Siga-me, por favor. - Avançou à frente dela até um vestíbulo amplo.
Vestia uma libré às risquinhas vermelhas e brancas com botões dourados, em vez da farda de motorista com que ela costumava vê-lo.
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- Fique à vontade - disse, ao mesmo tempo que a convidava a entrar numa salinha com sofás e poltronas forrados de veludo azul, e acrescentou: - vou já chamar o senhor professor.
Isola aproximou-se da janela, de onde se via a praça iluminada pelos lampiões. Pensou que aquele apartamento não tinha a opulência do palácio Negri Dolfin, mas que era em qualquer caso demasiado elegante para uma camponesa como ela, que deveria ter ficado nos aposentos de serviço. Apercebeu-se de que tinha dado um passo demasiado ousado e então voltou-se de repente para se ir embora. Mas Ferrante estava ali, à sua frente, e olhava para ela, incrédulo.
- Ainda agora chegaste e já queres fugir? - perguntou, docemente.
- Fiz um disparate em ter cá vindo - murmurou ela, e os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.
Ferrante puxou-a para si e apertou-a nos braços.
- Eu também estou apaixonada por ti - confessou Isola.
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Isola, envergando um roupão branco de lã macia, abriu a porta envidraçada da salinha. O sol de janeiro, doce como uma carícia, envolveu-a enquanto saía para o terraço da suíte do Grand Hotel dês Anglais de Sanremo, onde estava hospedada havia já alguns dias.
Eram onze horas da manhã e um empregado estava a preparar a mesa para o pequeno-almoço.
Observava a extensão de mar que se perdia no horizonte. Quando o empregado saiu, ela, em bicos de pés, abriu a porta do quarto.
Ferrante ainda dormia. Debruçou-se sobre ele e deu-lhe um beijo leve na testa. Ele abriu imediatamente os olhos, sorriu-lhe e levantou os braços para a abraçar. Isola esquivou-se.
- O pequeno-almoço está servido. Estou ali à tua espera anunciou, sem se mexer.
- Nem sequer me desejas um bom dia? - perguntou ele, contrariado.
- Já to desejei há uma hora, e tu respondeste-me: "vou já levantar-me", e afinal voltaste a adormecer - respondeu ela. Ia afastar-se mas ele agarrou-a e abraçou-a.
- Diz-me que não és um sonho - sussurrou.
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- Não posso, querido... porque tu és um sonho... é um sonho o nosso amor. Um dia vou acordar e tudo isto já não existe - respondeu ela.
- Porque é que dizes isso?
- Porque estou demasiado feliz e tenho muito medo.
- Minha pequenina, deixa-te embalar por este homem perdidamente apaixonado por uma mulher maravilhosa.
- O pequeno-almoço está a arrefecer - disse ela, para disfarçar a comoção.
- Mandamos vir outro. Eu preciso de te sentir nos meus braços. O sol já alto passava através das persianas e iluminava o
quarto. Ferrante não fazia umas férias há anos, praticamente desde que se formara e iniciara logo a seguir a carreira universitária. Agora decidira recuperar aquilo que lhe pertencia por direito, com a mulher que amava.
De manhã, ele e Isola dormiam até tarde e, depois de tomarem o pequeno-almoço, desciam até à praia porque era importante que ela continuasse os exercícios de respiração e os passeios à beira-mar.
Regressavam ao hotel cheios de fome; depois do almoço, descansavam ao sol, no terraço, embrulhados nas mantas, a ler romances e a conversar. Ao fim da tarde iam dar uma volta pelas lojas e fazer compras. Às vezes iam parar a França e jantavam em pequenos restaurantes ao longo da costa. Isola estava feliz, mas uma parte do seu coração tinha ficado nas terras do Delta onde vivia o seu filho, que ela desejava tanto ter consigo.
Por vezes, Ferrante lia-lhe nos olhos a dor pelo afastamento da criança e então deixava-a tranquila, à espera que o sofrimento acalmasse.
Quando decidiram ir de férias, Isola voltou a Porto Tolle para propor a Gregorio que a acompanhasse. Desta vez apanhou a camioneta, para evitar o falatório na aldeia.
O encontro com a sogra não foi fácil, até porque a velha Lena não fazia outra coisa que não fosse repetir: - O que é que eu fiz de mal para merecer do Senhor um castigo tão grande?
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Isola não tinha argumentos para contrapor e limitava-se a dizer: - Calhou assim - com o coração cheio de pena daquela pobre mulher que, já no limiar da vida, tinha ficado só com um filho, Neri, e não soubera mais nada de Saro.
- Se ao menos tu cá estivesses. Quando é que voltas para casa?
- Sinto muito, mãe Lena. A senhora é muito boa para mim e para o meu filho. Mas eu não posso voltar.
A sogra teve um sobressalto. - Porque é que dizes isso? - perguntou, desolada.
Isola teve grande dificuldade em arranjar uma resposta que não soasse a mentira.
- com a doença que eu tive, nunca mais posso trabalhar nos campos, e o ar húmido destas terras é perigoso para a minha saúde.
Começou a tossir e Lena deu-lhe um púcaro de água.
- Gostava de levar o meu filho comigo - concluiu.
- Também me levas o menino? E depois, onde é que iam viver, e de quê?
Naquele momento, Gregorio chegou da escola e refugiou-se, feliz, nos braços da mãe.
- Queres vir para a praia comigo? Depois vamos a Adria. Estás contente? - sussurrou-lhe ao ouvido.
Gregorio soltou-se dos seus braços.
- Se não ficas aqui, eu não vou contigo - respondeu.
- Não posso voltar para casa, já sabes. É demasiado perigoso para a minha saúde - disse-lhe.
- E eu não vou deixar os avós. Foi uma promessa que fiz ao pai.
- Por favor, meu filho! Eu não posso ser feliz sem ti.
- Nem eu. Mas fico aqui.
Em seguida, Gàbola obrigou-a a refletir sobre a recusa do filho. - Nunca desconfiaste de que o Saro não dá notícias para te deixar livre de viveres a tua vida? Fez o Gregorio prometer que tratava dos Caccialupi, que ficava com a família dele e não com aquela que tu, se calhar, tencionas construir.
- O Saro gosta mesmo assim tanto de mim? - perguntou ela, em voz baixa.
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- Mais do que mereces - respondeu o pai. Depois acrescentou:
- Tu casaste-te com ele para te livrares de um pai bêbedo, que não prestava para nada, e ele casou-se contigo porque gostava de ti. Como vês, o velho Gàbola já não bebe, até porque agora tem um neto para cuidar. E tu não vivas à custa de ninguém, aprende uma profissão e vive do teu dinheiro, não do dinheiro dos outros.
Agora, enquanto passeava com Ferrante pela praia de Sanremo, Isola disse: - Não me sinto bem a depender de ti para tudo.
- Porquê? Eu também não dependo de ti? A minha felicidade está nas tuas mãos.
- Meu amor, não estou a brincar. Quero sentir-me útil e ganhar dinheiro.
Ferrante também não brincou mais, porque Isola estava com um ar muito sério.
- O que é que tu gostavas de fazer?
- Quero aprender a conduzir. O Guerino está a ficar velho e já não tem os reflexos muito rápidos. Ele ensina-me, eu aprendo tudo sobre motores e condução, e passo a ser a tua motorista.
Ferrante teve vontade de sorrir mas, uma vez que Isola parecia muito determinada, disse: - Negócio fechado. E vou pagar-te um salário.
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- Hoje fui a Rovigo de carro com a Isola fazer compras. Foi ela a conduzir, e olha que conduz muito bem - contou Clarissa a Ferrante quando este se apresentou no palácio Dolfin para o habitual jantar de segunda-feira.
- Estou muito orgulhoso dela - respondeu o médico. Clarissa deu-lhe o braço enquanto se encaminhavam para a sala
de estar, à espera que chegassem os outros convidados, e prosseguiu:
- É uma mulher inteligente que, no entanto, está a criar alguma confusão nesta cidade. Especialmente no seio de certas senhorecas que se importam mais com os assuntos dos outros do que com os delas próprias. Para te dizer a verdade, estou preocupada com a Isola.
- Porquê?
- Tenho de ser eu a dizer-to? Não é uma esposa nem uma cocotte. Se te acontecesse alguma coisa, o que ia ser dela?
- Já nos teríamos casado se ela não tivesse um marido. É a minha companheira, e isso basta-nos. Vive comigo abertamente. O facto de se recusar a frequentar a sociedade só abona em favor dela. Não se sente preparada para as nossas conversas de salão e efetivamente não está, mas tem qualidades que muitas das tuas amigas nunca chegarão a ter. É espontânea, sabe entrar numa discussão e, sobretudo, é muito inteligente. Agora decidiu tirar o curso do liceu e estuda com um empenho que me comove - explicou Ferrante.
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Clarissa olhava com ternura para o seu amigo, tão perdidamente apaixonado que não entendia que Isola era uma criatura imprevisível, e que chegaria um dia em que a falta do filho se ia tornar tão insuportável para ela que a faria regressar às terras do Delta.
- Aproveita esta história tão bonita e tão badalada, mas lembra-te de que a tua companheira é um campo minado: deves esperar tudo dela.
- Essa é a melhor parte da nossa relação. Mantém-me sempre muito atento - admitiu.
De vez em quando, Isola deixava o carro na garagem, apanhava a camioneta e ia a Porto Tolle para estar com o filho. Gregorio parecia cada vez mais distante e demorava algum tempo até se decidir a confiar a sua mão à da mãe e a segui-la no passeio ao longo das margens do rio. A primavera regressara e mãe e filho sentavam-se na erva, e Isola abria o cesto de vime do qual extraía pão fresco com carne assada e tabletes de chocolate com avelãs. Havia sempre uma garrafa de gasosa que bebiam juntos em pequenos copos de prata.
Todas as vezes que se encontrava com a mãe, Gregorio enfiava no bolso dos calções os brincos de ouro que Saro lhe tinha entregado para ele lhe dar. E de todas as vezes ficava com eles, dizendo para si: Ainda não é o momento. Mas naquele dia confessou-lhe:
- O pai está na Argentina. Escreveu-me.
- O que é que ele conta?
- Está bem, e quando puder manda-me dinheiro para ir ter com ele.
- Só isso?
- Também mandou um abraço para ti.
- E tu o que lhe respondeste?
- Escrevi-lhe a dizer que estás curada, mas que já não vives connosco e que eu vou ter com ele com ou sem o dinheiro.
- Da próxima vez, diz-lhe que eu também gosto muito dele. Isola sabia que os emigrantes italianos naqueles países viviam
em condições infames. E Gregorio também devia saber, porque
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acrescentou com tristeza: - Aqui, pelo menos, o pai tinha uma casa e uma família. Lá vive com mais trinta trabalhadores numa barraca de chapa.
Isola sentiu o coração apertar-se-lhe de pena. Olhou para Gregorio e lembrou-se de quando ele era pequeno e, os dois, tomavam banho na tina e depois iam dar uma volta pelo campo. Então ela contava-lhe longas histórias que o fascinavam, criando entre eles uma cumplicidade cheia de ternura. Agora tinha dez anos, fazia uma patifaria atrás da outra, ia à escola de má vontade, olhava-a com desconfiança e também ele sonhava partir para a América.
- Daqui a pouco é verão. O professor Josti vai mandar-me para a montanha - anunciou Isola.
- Para onde?
- Para um sítio muito bonito que se chama Asiago. Queres vir comigo?
A família de Ferrante possuía em Asiago uma casa no meio da floresta e o médico tinha decidido que Isola deveria passar ali alguns meses para oxigenar os pulmões. Ele iria ter com ela todos os fins de semana e ela ficaria naquela casa com uma irmã de Ferrante, mãe de cinco crianças endiabradas. Chamava-se Jole e Isola já a tinha conhecido em Adria. Era a única da família Josti que a aceitava. Os pais tinham encerrado o assunto daquela relação de Ferrante com a bonita camponesa sentenciando: "Vai acabar como todas as outras. Mas, entretanto, não a queremos conhecer."
Isola acariciou o rosto do filho, marcado por um arranhão profundo. Tinha notado também uma nódoa negra por baixo do maxilar.
- Andaste à pancada, como sempre. Porque é que não ficas sossegado? - perguntou-lhe com doçura.
- Se me tivesses visto há uma semana... Agora já estou a ficar bem - afirmou Gregorio, quase com orgulho.
Tinha apanhado, mas também tinha dado sem dó nem piedade numa luta ímpar, porque estava só contra dois rapazes maiores do que ele. Tinha lutado com eles porque os tinha ouvido
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cantarolar: - Há um homem que está na América e tem chifres e não sabe. A mulher arranjou namorado e vive com ele na cidade.
- Porque é que passas a vida a andar à pancada? - perguntou Isola.
Em vez de responder, ele atacou-a com outra pergunta.
- É verdade que tens um namorado? - e esperou ardentemente que a mãe negasse.
Isola baixou a cabeça e ficou calada.
- Tu tens um namorado? - repetiu Gregorio com mais força. Isola continuou calada. O filho merecia o seu respeito e ela
não podia enganá-lo.
Naquele momento, o rapaz despejou em cima dela toda a sua raiva e toda a sua desilusão.
- Eu odeio-te! - gritou, com os olhos repletos de lágrimas. Levantou-se e desatou a correr em direção à laguna.
Isola podia facilmente chegar junto dele, segurá-lo, exigir que escutasse as suas razões. Não o fez, até porque não saberia como fazê-lo entender aquilo que ela não conseguia explicar a si própria: o seu amor por Ferrante.
Ali ficou, sentada, a olhar para o seu menino que se ia tornando num pontinho cada vez mais pequeno no horizonte da laguna.
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ISEO
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As tisanas à base de dormideira, cidreira, valeriana e passiflora, que a irmã Michela lhe dava para conciliar o sono, não surtiam qualquer efeito, e a irmã Antonia bebia-as para não desiludir a idosa Michela, apesar de saber que seria preciso muito mais para derrotar a insónia que a atacava a cada mudança de estação. E agora, justamente, o outono tinha começado.
Eram dez horas da noite e a irmã Antonia dava voltas na cama sem descanso. De madrugada, quando descesse à capela para as Matinas, ia ter sérios problemas em enfrentar mais um dia de trabalho.
Acendeu a luz na mesa de cabeceira, abriu ao acaso o Evangelho, começou a ler o de S. Lucas... não havia nada a fazer, o sono não chegava. À meia-noite enfiou um roupão e desceu ao rés do chão. Precisava de um calmante e sabia que o encontraria no gabinete médico, dentro do pequeno armário dos medicamentos. Passou diante da sala de jantar e viu uma luz que provinha da marquise. O gato da casa enroscou-se-lhe nas pernas, vindo sabe-se lá de onde. Ela baixou-se para lhe fazer uma festa e ele avançou à frente dela em direção à marquise. Entrou e, enterrado num cadeirão de vime, com um cigarro aceso na mão, estava Gregorio.
- O que é que estás aqui a fazer, a esta hora? Agora também começaste a fumar! - ralhou.
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O velho hóspede não se perturbou e sorriu. - Não te armes em beata, porque isso não tem nada a ver contigo. Também queres um cigarro? - perguntou.
- Whisky, também! - exclamou a freira quando viu a garrafa e um copo meio vazio em cima da mesinha.
- On the rocks - esclareceu ele.
- Pensei que o teu dia de glória já tinha terminado há um pedaço - comentou ela, baixando a voz, ao mesmo tempo que se sentava diante dele.
- Esse, de facto, já terminou. Depois, inaugurei o serão das recordações, que são as piores companheiras da velhice. Muitas vezes são até embaraçosas... mas são também um refúgio do qual Deus não me pode expulsar. As recordações devem ser exploradas na companhia de um cigarro e de uma boa dose de whisky - respondeu Gregorio, com um ar ligeiro.
- No entanto, devias estar a dormir. E para além do mais conheces as regras da casa: álcool e tabaco são proibidos.
- Tu também devias estar a dormir e afinal andas atrás de um sonífero. Julgas que nunca reparei nos teus períodos sombrios? Nem mesmo o teu chefe, lá em cima, pode fazer alguma coisa para afugentar os teus fantasmas. Ouve o que eu te digo, rapariga, fuma um cigarro e bebe um copo com este velho triste e só - sugeriu-lhe, ao mesmo tempo que pousava um olhar carinhoso nos caracóis escuros que emolduravam o belo rosto daquela mulher.
A irmã Antonia levantou-se e fez-lhe frente, com um ar zangado, de braços cruzados dentro das mangas largas do roupão.
- Não sou assim tão inconsciente que te faça a vontade. Onde foste buscar os cigarros e o whisky?
- Os cigarros... roubei-os a uma amiga que se esqueceu deles em cima de uma mesa, hoje, em Milão. Quanto ao whisky, metediça como tu és, sabes perfeitamente que o tenho no armário do meu quarto. O gelo fui buscá-lo à cozinha. Estás satisfeita? - perguntou por sua vez, impaciente. Depois, recuperando o tom autoritário de sempre, acrescentou: - Em suma, estava aqui mergulhado
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nos meus pensamentos, não estava a incomodar ninguém e tu vens aborrecer-me. De qualquer modo, já que aqui estás, vê se tens calma, senta-te outra vez e bebe comigo. Vais sentir-te menos só.
- Eu tenho Deus ao meu lado e Ele nunca me faz sentir só protestou a jovem freira.
- Não acredito. com todo o respeito, entenda-se. Eu tenho a melancolia dos velhos. Quando a testosterona funcionava melhor do que a cabeça, nunca estava sozinho. Tu tens os problemas de uma mulher saudável que, para a sua idade, vive, desculpa a sinceridade, contranatura. Resultado: noites insones para os dois. Repito: bebe um copo. É melhor do que um sonífero.
A irmã Antonia sentou-se outra vez à frente dele.
- Meu caro Gregorio, vesti o hábito depois de ter bebido demasiados copos, porque percebi que não me iam levar muito longe. Acontece que nem sempre consigo sentir-me em paz comigo mesma, mas em cada instante desta existência aparentemente plana sei que sirvo a Deus ao tratar dos hóspedes desta casa. Não é muito, mas é melhor do que nada. Portanto, se estás com vontade de desabafar, aproveita esta noite em branco, porque eu estou aqui para te ouvir, velho pecador.
- És muito boa a fazer parecer tudo muito simples, mas tu, melhor do que ninguém, sabes que as nossas insónias não se devem a não termos feito bem a digestão do jantar. Se me falares de ti, eu falo-te de mim.
- Preocupas-me. Esta noite de farra é só um acaso ou é um hábito? - perguntou ela, ao ver que Gregorio deitava mais whisky no copo.
- Vá lá! Normalmente durmo como um anjinho. É por causa daquele ex-voto que trouxe de Milão... fez-me recordar os tempos da minha infância, a miséria daqueles anos, a casa onde cresci. Os sapatos eram um luxo para mim e para a minha família. Nessa altura, tinha um único objetivo: ser rico. E, de facto, a partir de um certo momento da minha vida tive roupa, guarda-fatos repletos, palácios, poder e uma grande quantidade de dinheiro para gastar.
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Mas apercebi-me de que a riqueza não me interessava. Agora voltei a ser pobre, e para mim está bem assim.
- Se quisermos chamar pobreza ao roupão de caxemira que trazes, aos pijamas de seda e aos sapatos por medida... Não tens nada para deixar em herança a ninguém. Mas não é isso que conta. Sabes como dizia um poeta de quem eu gosto muito... "Somente quem não legou bons afetos..."
- "...olhará as urnas com tristeza." Eu sei. É Foscolo, se a memória não me atraiçoa. Frequentei pouco a escola mas, por minha conta, fui lendo alguma coisa.
- Tens uma rica cabeça, que trabalha um bocadinho de mais.
- Como a tua, irmã Antonia.
- Não sou eu que estou em causa. Estamos a falar daquele teu ex-voto, que não te deixa dormir esta noite. Fica sossegado, Gregorio. Tiveste uma vida extraordinária. Não te atormentes mais do que aquilo que é preciso. Vai descansar. Mas antes lava o copo, porque não quero que amanhã de manhã alguém o encontre sujo de whisky - disse ela, e preparava-se para se despedir quando reparou, ao lado da garrafa, em dois minúsculos brincos em forma de rosa.
- E aquilo, de onde veio? - perguntou.
- O meu pai tinha-os comprado para oferecer à minha mãe. Nunca lhos deu. Quem sabe... se tivesse tido a coragem de lhos meter na mão, talvez... Ou talvez não. A minha mãe era escorregadia como uma enguia. Nunca ninguém a conseguiu segurar, para além de um homem extraordinário, que detestei durante muito tempo porque fui um asno. Agora tenho pena de não o ter conhecido melhor e apreciado por tudo aquilo que deu à minha mãe.
A irmã Antonia, que se preparava para se ir embora, instalou-se melhor na sua poltrona e sorriu.
- Isso tem todo o ar de ser uma história interessante - disse, curiosa.
"Sol chi non lascia credita daffetí poçagioia na deli urna", in Dei Sepokri.
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- E é, mas eu não quero roubar mais horas ao teu sono.
- Deixa de te armar em esperto. Temos a noite toda pela frente.
- Alguma vez te contei de quando fui bellboy no Hotel Quattro pontane, no Lido de Veneza?
- Foi assim que começaste?
- Tinha onze anos. Nessa altura não sabia que os hotéis haviam de fazer a minha fortuna.
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VENEZA
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Gregorio viu-se ao espelho e deixou escapar um sorriso de satisfação. A casaca bordeaux, debruada com um cordão dourado e de botões brilhantes, parecia feita à sua medida. O boné do mesmo tecido, ligeiramente inclinado sobre a testa, fazia-o parecer ainda mais alto. Já para não falar das calças pretas, compridas, à homem. Pensou: pareço um figurino de Paris. Só gostava de ver a cara deles, na aldeia, se me vissem assim!
Teve vontade de saltar e fazer piruetas, mas se alguém o surpreendesse podia considerá-lo inadequado àquele papel tão importante que lhe tinham atribuído. A sua tarefa consistia em andar pelos salões do hotel com uma lousa onde estava escrito o nome do hóspede desejado ao telefone, tocando uma pequena campainha para chamar a atenção.
Estava na camarata onde dormiam os empregados. Dois colegas, que o observavam enquanto se vestia, gozaram com ele por causa da sua satisfação com a farda.
Gregorio não reagiu, porque as instruções recebidas do chefe do pessoal tinham sido categóricas: - Disseram-me que és um garoto. Não te esqueças de que estás à experiência. Não imaginas a quantidade de rapazinhos como tu que ficariam felizes com o teu lugar. Portanto, anda direito se queres conservar este trabalho e, sobretudo, respeita a hierarquia.
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Saiu da camarata e, através de um dédalo de corredores, saiu para os jardins do hotel. Apresentou-se no gabinete da telefonista.
- Sou o novo bellboy - começou, sem saber exatamente o que significava aquela palavra em inglês.
- Como te chamas? - perguntou uma empregada idosa com uma voz de anjo.
- Gregorio - respondeu.
- Daqui em diante vais chamar-te "moço" - disse a mulher. Tinha uns auscultadores nos ouvidos e manobrava um emaranhado de fios que terminavam em cavilhas que iam sendo inseridas em cavidades próprias num grande quadro negro salpicado de luzinhas verdes e vermelhas que se acendiam e apagavam como estrelas coloridas num céu noturno. Naquele gabinete comprido e estreito estavam mais duas raparigas ao lado da mulher: vestiam as três uma farda preta de veludo brilhante com um colarinho imaculado.
Uma das raparigas escreveu a giz um nome numa lousa e entregou-lha, dizendo: - Vai ao hall e às salas, ao pátio e ao jardim. Toca a campainha com discrição e mostra a lousa.
- Só isso? - perguntou, tentando decifrar aquele nome estrangeiro, impronunciável para ele, e interrogava-se qual das salas seria o hall.
- Despacha-te - pediu a rapariga.
Gregorio agarrou na lousa, saiu do gabinete e começou a percorrer salões e salas, fazendo-se anunciar com um delicado toque de campainha. Parecia-lhe estar a desempenhar uma tarefa importante e sorria para toda a gente. Quem olhava para ele retribuía o sorriso, porque Gregorio era um rapaz bonito e tinha um rosto luminoso, de traços perfeitos. A certa altura, ao atravessar o átrio da entrada do hotel, toda cheia de espelhos e dourados, ouviu alguém dizer: - Espero por ti aqui, no hall. - Então aquilo era o hall. Fácil, pensou.
E, precisamente ali, uma jovem senhora que usava uma espécie de pijama de tecido flutuante e um chapéu de palha de aba larga leu o nome na lousa e disse: - Oh, its me. Thank you, dear. -
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E dirigiu-se a uma cabine telefónica. Mas, antes de se afastar, meteu-lhe uma moeda na mão.
Acabava de receber a sua primeira gorjeta de uma simpática senhora que, ao mexer-se, deixava atrás de si um rasto de perfume delicioso. Não tinha percebido o significado das suas palavras, mas ficou a repeti-las durante algum tempo, porque gostava daqueles sons.
Gregorio foi incansável: durante todo o dia realizou o seu trabalho de uma forma irrepreensível, ainda que, de vez em quando, se cruzasse com rapazes da sua idade, com o cabelo comprido como o das meninas, e que usavam fatos de marinheiro e uns barretes engraçados com fitas que desciam até ao pescoço. Os hóspedes do hotel eram muito elegantes, como os atores que tinha visto no cinematógrafo, falavam todas as línguas do mundo e, a conversar uns com os outros, explodiam muitas vezes em gargalhadas sonoras enquanto seguravam entre os dedos cigarros enfiados em boquilhas de vários formatos e cores. Mas aquilo que o impressionava mais naqueles senhores ricos e felizes, envolvidos em perfumes intensos, eram as dentaduras resplandecentes que mostravam quando sorriam. Pensou que, à primeira vista, aquilo que distinguia os ricos dos pobres era precisamente os dentes e o perfume.
À noite, quando terminou o trabalho, olhou para o espelho e constatou, satisfeito, que os seus dentes também eram perfeitos. Como tinha os bolsos cheios de dinheiro que tinha recebido em gorjetas, prometeu a si mesmo comprar um perfume caro. Sentou-se no degrau de uma fonte e, naquele silêncio acentuado pelo rumor da água, adormeceu.
Acordou-o um jardineiro que estava a limpar os caminhos cobertos de saibro.
- Rapazinho! Não sabes que aqui as noites são húmidas?
Não lhe respondeu que vinha de um sítio que era muito mais húmido do que o Lido de Veneza, mas disse: - Estou feliz!
Atravessou o jardim a correr, entrou no parque e chegou ao anexo destinado ao pessoal.
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Sentia-se realmente feliz e prometeu a si mesmo escrever ao avô Gàbola para lhe agradecer, porque aquele trabalho tão entusiasmante devia-o a ele.
Acontecera que o avô, enquanto bebia uma gasosa na taberna, tinha encontrado o seu amigo Dante Grazziottin que, durante o verão, trabalhava como porteiro num grande hotel do Lido de Veneza. O homem, ao ver o ar pensativo de Gàbola, ex-companheiro de bebedeiras invernais, disse-lhe: - A falta do vinho não te está a fazer nada bem. Nunca te vi tão acabrunhado.
Gàbola contou-lhe as suas preocupações relativamente ao seu único e estouvado neto, que desfiava disparates como contas de um rosário. E Dante propôs-lhe: - Eu arranjo maneira de ele trabalhar como bellboy no meu hotel. Vais ver que to endireito em três meses.
Gàbola conversou com os avós paternos de Gregorio e o rapaz, com a sua bênção, partiu para Veneza com aquele ilustre conterrâneo. Nunca imaginaria que ia encontrar um lugar tão fascinante.
Uma manhã, enquanto vestia a farda para iniciar o seu trabalho, começou a rir e a olhar-se ao espelho. Um colega mais velho, que tinha o cargo de liftboy, perguntou-lhe: - Ganhaste a lotaria?
- Muito mais do que isso. Sabes aquelas senhoras bonitas e elegantes que estão hospedadas aqui no hotel?
- Elegantes são todas, mas as bonitas são poucas.
- Essas poucas um dia vão cair aos meus pés, porque eu vou ser rico e poderoso.
- Presunção e água benta... Tu tens demasiadas fantasias na cabeça. Despacha-te, porque são quase sete horas.
- Tenho a certeza de que vou realizar o meu sonho - retorquiu Gregorio, cheio de orgulho.
- Esse teu sonho, mais cedo ou mais tarde, vai acabar por te cair em cima da cabeça como um tijolo e vai deixar-te moribundo.
Não passou uma hora antes que o aviso do liftboy se tornasse realidade. Gregorio ia a atravessar o hall com a sua lousa à procura de Mr. John Hempton e viu entrar, vinda do jardim, uma jovem mulher lindíssima com um vestido de seda cor de marfim. Os cabelos
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de fogo emolduravam um rosto de alabastro. Vinha de braço dado com um homem elegante e de aspeto severo. Gregorio empalideceu. A mulher era a sua mãe e estava visivelmente grávida. O homem era o professor Ferrante Josti.
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Para Gregorio foi como se um abismo se tivesse aberto debaixo dos pés, onde ele se precipitava sem encontrar nada a que se agarrar. A sua queridíssima mãe estava diante dele, trazia uma criança no ventre e apoiava-se, feliz, no braço de um homem. Sentiu-se completamente estranho àquele casal, do qual o separava uma distância intransponível. Tinha de fugir para não deixar que ela o reconhecesse. Deslizou para trás do balcão da portaria, acocorou-se numa reentrância escondida e desatou a chorar. Sentia-se um miserável, só e abandonado por todos.
A última vez que tinha estado com a mãe tinha-lhe dito que a odiava, mas não era verdade, porque ele amava-a profundamente e ela também gostava muito dele. Provavelmente, se não a tivesse rejeitado, aquela nova criança não existiria agora. Gregorio sentiu que a odiava, mas sobretudo detestava o homem que vira ao lado da mãe.
Recordou, com um grande sofrimento, os anos felizes em que a mãe o mantivera junto dela, doce e protetora, e lhe contava as histórias da laguna, enquanto ele bebia as suas palavras. Recordou quando ele insistira para que comprasse ao vendedor ambulante um vestido de que ela gostava muito, enquanto que agora se vestia de seda, como uma verdadeira senhora. E ele, com aquela sua farda
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de bellboy que até há poucos instantes lhe parecera tão bonita, tinha vergonha de se mostrar.
O porteiro estava a chamá-lo, mas Gregorio não se podia apresentar, com o risco de a mãe o reconhecer. Tinha de desaparecer.
Esgueirou-se para fora do hall, deu a volta ao jardim, entrou no parque e chegou ao anexo dos empregados, ao mesmo tempo que repetia para si mesmo: tenho de fugir.
Entrou na camarata, abriu o armário, pegou no saco de juta e começou a enchê-lo com as suas coisas. Depois extraiu de debaixo do colchão o ex-voto que tinha levado consigo com receio de que a avó, se o encontrasse, o atirasse ao lume. Observou-o por um instante antes de o arrumar e pensou que Nossa Senhora, depois de ter operado aquele milagre de curar a mãe, lha tinha tirado segundo um desígnio divino que ele não conseguia entender. Tinha-lhe tirado também o pai, deixando-o assim completamente órfão. Agora estava sozinho no mundo. Naquele momento percebeu que a fuga não ia apagar o sofrimento e a humilhação. Voltou a meter a tábua debaixo do colchão, esvaziou o saco e saiu da camarata para regressar ao trabalho.
- Ando há uma hora à tua procura. Onde te meteste? - perguntou o chefe da portaria, zangado.
- Tive um problema. Peço desculpa - respondeu Gregorio, mais calmo. Agora já não tinha medo de enfrentar a mãe, aliás, estava até orgulhoso de si, daquele trabalho que lhe permitia ganhar honestamente dinheiro para ele e para os avós sem ter de agradecer a ninguém.
Não o ia largar para evitar a mãe, decidiu, ao mesmo tempo que o chefe da portaria lhe passava um sermão que terminou assim:
- Vê lá se não voltas a desaparecer sem avisar, porque se assim for serei obrigado a despedir-te.
- É mais do que justo, senhor. Não voltará a ter ocasião de se queixar de mim - respondeu, sério. E, logo a seguir, pegou na lousa com a campainha para ir procurar Miss Josephine Baker. Encontrou-a encostada ao balcão do bar, a tomar uma bebida fresca enquanto oferecia a alguns jovens admiradores as suas fotografias
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em formato de bilhete postal, que a retratavam de seios nus com uma saia curta feita de bananas. Como resposta ao chamamento da campainha, a bailarina sorriu-lhe e estendeu-lhe a gorjeta, dizendo: - Merci bien, mon petit garçon. - E ele respondeu: - Merci à vous, madame. - Não sabia nenhuma língua estrangeira mas Dario, que se considerava seu protetor, ensinara-lhe algumas frases fundamentais em francês e em inglês e ele repetia-as sempre a propósito, cheio de orgulho pela sua pronúncia perfeita.
Voltou ao hall, muito empertigado, quando ouviu chamar:
- Gregorio! - Era a mãe. Estava sentada num pequeno divã no centro da grande sala.
- Olá, mãe - respondeu, enquanto passava ao lado dela para continuar até à central telefónica, com o coração a explodir-lhe no peito.
Uma das raparigas entregou-lhe outra lousa que tinha escrito o nome de um hóspede. Ele continuou a sua ronda, evitando olhar na direção da mãe. Mas depois de ter passado por ela voltou-se por um instante e apercebeu-se de que Isola já ali não estava.
Continuou a trabalhar, e depois o porteiro chamou-o para lhe dizer: - Sobe ao segundo andar, ao quarto 207. Precisam de ti para um recado.
- Sim, senhor - respondeu ele. Entregou a lousa e subiu. Bateu à porta do quarto e a mãe veio abrir.
Ela abriu os braços e Gregorio refugiou-se neles, escondendo o rosto no seu ombro.
- Vim aqui por tua causa, só por tua causa. Os avós Caccialupi não querem voltar a falar comigo, mas o meu pai disse-me onde estavas e o que fazias. Estou orgulhosa de ti, meu filho. És a maravilha das maravilhas. Suplico-te, anda viver comigo - rogou-lhe, ao mesmo tempo que lhe tirava o boné da cabeça e lhe beijava os cabelos.
Ele afastou-se daquele abraço e olhou-a bem nos olhos: - Porque é que não vens tu viver comigo? - perguntou-lhe.
- Não posso, Gregorio - respondeu Isola, num sussurro.
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- Tu traíste-me a mim e ao pai. Eu nunca viverei com um homem que não é meu pai - afirmou.
- Promete-me, pelo menos, que me vais visitar a Adria pediu-lhe Isola.
Ele baixou a cabeça e não respondeu.
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Era loira, bonita, vestia-se com vestidos diáfanos, era mexicana, chamava-se Florencia e provocava-o de mil e uma maneiras. Gregorio tinha quinze anos, um corpo harmonioso e um rosto atraente a que um acne ligeiro não conseguia retirar beleza.
- Para as espinhas, precisas de apanhar muito sol - aconselhara o chefe de sala, do qual dependia.
Agora que tinha avançado de posto e trabalhava como empregado de mesa dispunha de duas horas livres por dia, entre o fim do almoço e a hora do chá, que era servido no jardim, e por isso aproveitava para vestir o fato de banho e estender-se ao sol na praia, longe da zona das barracas reservada aos clientes do hotel. Invariavelmente, Florencia ia ter com ele e fazia mil e um pedidos.
"Gregorio, por favor, espalhas-me o óleo nas costas", "Gregorio, piquei-me num ouriço. Olhas-me para a planta do pé", "Sei que não estás de serviço, mas está um inseto enorme na minha barraca. Por favor, anda matá-lo". Todos os dias inventava um pretexto para chamar a sua atenção e pronunciava o seu nome com um sotaque espanhol lânguido e irresistível.
Organizado como um exército, o pessoal do hotel obedecia a regras rigorosas que não podiam ser quebradas, sob pena de despedimento imediato. Entre essas regras estava a proibição absoluta de estabelecer qualquer tipo de familiaridade com os hóspedes.
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Florencia era filha de don Juan Álvarez Sánchez y Mendoza, um rico fazendeiro de café, que vinha todos os anos para Itália, para Veneza, com os filhos e com a mulher, uma florescente matrona de origem veneziana. O homem era tão rico como mal-encarado e mantinha a família num estado de subserviência. Tanto a mulher, dona Isabella, como os filhos, Florencia e Emiliano, só conseguiam respirar de tarde, quando don Juan se retirava para dormir a sesta que se concluía, invariavelmente, às cinco em ponto para tomar o chá no jardim. Naquelas poucas horas de paz, dona Isabella jogava as cartas com outras senhoras e perdia alegremente grandes somas de dinheiro, o jovem Emiliano, que tinha mais alguns anos do que a irmã, eclipsava-se para ir sabe-se lá até onde, e Florencia tentava atrapalhar Gregorio, que resistia, inflexível, não porque a rapariga, que tinha dezasseis anos, não lhe agradasse, mas porque lhe agradava demasiado e parecia prometer-lhe experiências que ele não tinha ainda realizado.
Espalhava-lhe nas costas o óleo, que cheirava a coco, e ela suspirava de prazer; entrava com ela na barraca, à caça de insetos inexistentes, e então Florencia tentava beijá-lo enquanto ele, apesar de enlouquecer de desejo, a repelia de uma forma cortês mas decidida.
- Perder o emprego até nem era nada comparado com aquilo que te ia acontecer se o velho mexicano te apanhasse com a filha. Não sabes que ele anda por aí de revólver no bolso? - avisou-o um colega, que já tinha reparado nas manobras de Florencia.
Gregorio, que já andava aterrado, sentiu o chão fugir-lhe debaixo dos pés. E quando Florencia voltou a espicaçá-lo, ele disse-lhe: - Sou demasiado jovem para morrer. Deixa-me em paz.
Florencia deu uma gargalhada sincera.
- Contaram-te do revólver! Está carregado de cartuchos vazios. A minha mãe tratou de eliminar as balas.
- Mesmo que não disparasse sobre mim ia fazer-me muito mal, porque ele é grande como uma montanha e eu sou magro como um palito, para além do facto de perder o emprego - declarou.
Gregorio tinha ido ter com ela à pequena varanda da barraca de madeira, depois de ela ter esbracejado para chamar a sua atenção.
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- É agora ou nunca - sussurrou-lhe ao ouvido, fazendo-o estremecer de prazer.
Gregorio debatia-se entre o desejo de viver a sua primeira experiência de amor e o terror de ser descoberto por alguém.
- Florencia, por favor, deixa-me ir embora - suplicou, olhando para a rapariga que lhe prometia o paraíso.
- Eu quero-te, Gregorio, com todo o meu ser. Preciso de um rapaz honesto como tu - sussurrou ela, acariciando-lhe o rosto ao de leve.
Ele perscrutou a praia deserta, depois pegou-lhe na mão e abriu a porta da barraca. O sol daquela tarde de agosto iluminou uma cena que os deixou estarrecidos. O irmão de Florencia, o belo Emiliano, era sodomizado por um indivíduo musculoso, desencantado sabe-se lá onde.
Recuaram os dois e Florencia correu em direção ao mar. Gregorio foi ter com ela e viu que estava a vomitar.
Deu-lhe a mão, entrou na água com ela e lavou-lhe a cara. Ela soluçava, desesperada. Quando se acalmou, sentaram-se na areia, à sombra de um barco. - Percebeste agora porque é que eu preciso de ti? - confessou ela.
Estava pálida e a tremer.
- Lamento... lamento muito - disse ele.
Após um longo silêncio, Florencia continuou: - Ainda não sabes nada. Durante dois anos, o meu pai abusou de mim. O meu irmão surpreendeu-nos num momento em que eu, a soluçar, estava a ser molestada. Estávamos nas estrebarias. O Emiliano agarrou num chicote e atingiu o pai numa face, com tanta força que lhe deixou aquela cicatriz que ele ainda tem. Desde aquele dia, o meu pai nunca mais me tocou.
- Pobre menina - sussurrou ele. Tinha menos um ano que Florencia, mas achava-se muito mais adulto do que ela e sentia uma pena infinita daquela rapariga. Pôs-lhe um braço à volta dos ombros, afagou-lhe os cabelos de ouro e depois, em voz baixa, disse-lhe: - Amo-te.
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- Eu também te amo, Gregorio... e amanhã vou deixar-te... e se calhar não voltamos a ver-nos.
- Vais voltar para o México?
- O nosso barco parte ao meio-dia da Giudecca para a Grécia, onde vamos ficar duas semanas, e depois de lá apanhamos um transatlântico para o México. Queria levar comigo a recordação de um amor puro. Mas não aconteceu. - Sorriu-lhe e continuou:
- Sabes uma coisa? Eu não te vou esquecer.
- Eu também não.
- Daqui a uns meses vou casar-me na Cidade do México, onde vivemos, com um jovem fazendeiro rico e corrupto. Aquilo que conta, no nosso meio, é o poder, a riqueza e, sobretudo, salvar sempre as aparências. O meu irmão é maricas, mas namora e vai casar-se com uma herdeira rica, vai fazer-lhe filhos, e vai continuar a andar com homens às escondidas. Viverá infeliz, e eu também, mas toda a gente ficará contente.
- Tens mesmo de te casar com alguém que não amas?
- Ter uma paixão é um luxo que nós, os Mendoza, deixamos para os nossos trabalhadores e para os vagabundos.
- E se eu fosse ao México e te raptasse?
- Seria fantástico! Nunca vai acontecer, mas é bonito teres pensado nisso. Obrigada, Gregorio. - Deu-lhe um beijo leve na face.
- Pensei e vou fazê-lo - garantiu ele, com uma grande seriedade. Depois acrescentou: - Amanhã vou ao cais ver-te partir.
No dia seguinte, inventou uma desculpa plausível e suplicou ao chefe de sala que o deixasse livre à hora do almoço.
No porto de Veneza, o navio em que Florencia ia embarcar estava ancorado diante dos armazéns Lloyd.
Gregorio ficou ali, encantado, a observar os carregadores que transportavam para bordo as bagagens dos passageiros, as gruas que levantavam a carga destinada ao porão, os viajantes de primeira e segunda classe que embarcavam. À volta daquele enorme navio branco era um vaivém de barcos, um alarido de saudações e ordens. Pelas chaminés saía um fumo branco em grandes volutas que se perdiam no céu. Florencia trazia um vestido branco com
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uma faixa de seda verde à volta da cintura e um chapéu de abas largas. Estava entre a mãe e o irmão. Iam escoltados por um casal de criados mexicanos. O terrível don Juan fechava o grupo. Quando chegou ao topo da escada de portaló, Florencia voltou-se e olhou para o cais. Gregorio levantou um braço e acenou-lhe. Ela viu-o e fez-lhe um cumprimento com a mão. Ele teve a impressão de que a rapariga estava a chorar. De resto, também ele estava a chorar.
Dali a pouco as escadas de portaló foram retiradas e o barco levantou âncora. De dentes apertados, Gregorio repetiu a sua promessa: - vou ao México raptar-te e ficaremos juntos para sempre.
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De regresso a casa, depois do seu quarto verão no Lido de Veneza, antes de se dirigir a Porto Tolle, Gregorio foi ter com a mãe, a Adria, ao palacete onde vivia com o professor Ferrante Josti.
O porteiro, a quem perguntou por Isola Caccialupi, indicou-lhe um automóvel estacionado do outro lado do pátio. Sentada no chão, ao lado do carro que tinha o capo aberto, estava uma menina que o viu aproximar-se e lhe sorriu.
- Olá - disse-lhe, quando ele chegou junto dela.
- Olá - respondeu Gregorio, ao mesmo tempo que pousava o saco no chão.
- Eu chamo-me Stella. E tu? - perguntou, sem o mínimo acanhamento.
- Ele chama-se Gregorio e é o tal irmão de quem estamos sempre a falar - respondeu Isola, radiante, emergindo do capo.
Tinha as mãos e os braços besuntados de óleo. Sorriu, feliz, a Gregorio, e acrescentou: - Se te abraçar, vou sujar-te todo.
- Depois eu lavo-me - retorquiu ele, e abraçou a mãe.
Foi como se nunca se tivessem separado. Os anos tinham atenuado os ciúmes e os mal-entendidos.
- Como estás bonito, Gregorio - disse, olhando para ele. A menina fez ouvir uma gargalhada cristalina.
- Estão todos sujos - observou, divertida.
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- Agora vamos sujar-te a ti também - disse Isola, ao mesmo tempo que a levantava do chão. E acrescentou: - Vamos para casa.
- Começou a andar com a menina ao colo e um braço em volta dos ombros do filho.
- Agora és mecânica? - perguntou Gregorio.
- O carro é meu e tenho de tratar dele.
- A minha mãe é uma condutora fantástica. O pai só confia nela. Quando eu for grande, também vou ser motorista. Não é, mãe?
- A Stella é muito segura de si. É parecida com o pai - observou Isola. E acrescentou, com um sorriso: - Tu, pelo contrário, és parecido comigo.
- Vens viver connosco? - perguntou Stella.
- Não posso. Quero fazer uma viagem por mar - respondeu Gregorio, resoluto.
Isola olhou com ar de sofrimento para o filho, tão bonito, que acabava de reencontrar e estava em vias de perder de novo. Gostaria de lhe fazer mil e uma perguntas, mas decidiu esperar para o interrogar quando estivessem em casa.
- Vamos ao andar de cima lavar-nos - propôs. Atravessaram o pátio e subiram a escadaria de mármore que conduzia ao primeiro andar. Uma vez que o filho hesitava em segui-la, sussurrou-lhe:
- Fica sossegado, só cá estamos os três.
Gregorio entrou no apartamento, que tinha o chão coberto de tapetes orientais, móveis valiosos, pratas brilhantes e porcelanas delicadas. Poderia não dar razão à mãe por ter preferido a sua vida atual à do casal de Porto Tolle?
Tomou um longo banho numa banheira esmaltada como as que havia no luxuoso hotel onde trabalhava.
Quando se reuniram os três na sala de estar, uma empregada serviu-lhes um chá gelado. Gregorio reparou que Isola nunca largava a menina, como fazia com ele, quando era pequeno. Por aquela criança, que ele detestara sem a conhecer, sentia agora uma espécie de ternura quase paternal.
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- Então, porque foi que decidiste partir? - perguntou Isola. - Na tua idade, ou se foge para escapar a um amor infeliz, ou se desafiam tempestades para ir ao encontro de um amor cheio de promessas.
- Não se trata disso - respondeu ele.
Stella, ao colo da mãe, olhava para ambos e seguia com atenção aquela troca de palavras.
- O meu trabalho atual não me permite ir muito longe. Fui promovido a empregado de mesa, mas ainda que, um dia, chegasse a diretor do hotel, não ia conseguir acumular grande riqueza. Tenho de arranjar um trabalho mais rentável e estimulante.
- Só tens quinze anos... ainda és um rapazinho. Para além disso, não quiseste continuar a estudar, e a instrução é importante para fazer carreira.
- A escola não dá para mim, mãe. Prefiro trabalhar.
- Mas para onde é que tu queres ir? Ainda não me disseste.
- Para o México. Daqui a cinco dias há um cargueiro que parte para Tampico, e eu vou embarcar.
- E tens cédula marítima?
- Já iniciei o processo para a obter. Vim despedir-me de ti antes de partir.
Isola sentiu o coração apertado, mas sorriu-lhe.
- Não ficas aqui a brincar comigo? - perguntou Stella que, até àquele momento, os tinha escutado em silêncio.
- Não, maninha - respondeu Gregorio, reconhecendo, pela primeira vez, os laços de sangue que os uniam. Pensou que aquela menina de olhar vivo estava destinada a uma existência muito diferente da sua. Não invejou o seu bem-estar e sentiu até pena dela, porque nunca iria conhecer o prazer de construir uma vida contando apenas com as próprias forças.
- Tampico? Que nome estranho. Tens a certeza de que existe e que fica no México? - perguntou Isola, que tentava esconder-lhe a angústia que sentia relativamente a uma viagem que o filho considerava uma aventura e ela imaginava cheia de perigos.
- Dali posso ir até à América do Sul, ter com o pai - continuou Gregorio.
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- Ele escreve-te, de vez em quando?
- Mais do que outra coisa, para me perguntar por ti.
- Quando lhe responderes, diz-lhe que não o esqueci.
- Ele sabe. Agora vou ter com os avós.
Alguns dias depois, Gregorio regressou a Veneza e apercebeu-se de que não era efetivamente fácil obter uma cédula marítima: a burocracia levava tempos infinitos e ele não podia esperar.
Apresentou-se ao imediato do navio mercante Vega, o mesmo que lhe fornecera as informações para regularizar a sua presença a bordo e, como ator consumado que era, encenou o drama de um pobre órfão.
- Não tenho casa, nem família. Não quero dar em vagabundo, quero trabalhar. Por favor, senhor, não me abandone.
O homem era um pai de família. Pensou nos filhos, tratados com muito amor numa casa modesta mas digna, e comparou-os com aquele bonito rapaz que aparentava ter mais idade do que realmente tinha. Não teve coragem de lhe negar a sua ajuda.
- Está bem. Podes embarcar. Ficas a trabalhar como moço de fretes, mas vê lá se andas direito, porque se não desembarcas no porto mais próximo.
- Não se vai arrepender, senhor.
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TAMPICO
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Em Veneza, antes da partida, Gregorio enchera-se de coragem para ir à Biblioteca Marciana consultar alguns textos elementares sobre navegação. Perdeu-se nos meandros de mapas marítimos e celestes, esforçando-se por os interpretar mas percebendo pouco ou nada. Numa livraria, comprou um manual sobre ventos, correntes, marés e estrelas.
Num mapa geográfico do México encontrou a indicação de Tampico, cidade portuária no estado de Tamaulipas, na margem esquerda do rio Pánuco, entre a laguna de Chairel e a de Carpintero. Aqueles nomes estranhos pareceram-lhe lindíssimos e levaram-no a imaginar ambientes exóticos que prometiam aventuras extraordinárias.
Os textos, porém, não podiam assinalar a presença, para aqueles lados, de uma absoluta maravilha: Florencia. com o decorrer dos dias, o rosto, a voz e o toque suave da sua mão iam-se tornando numa lenda e amava-a cada vez mais. Via-a como um cordeiro sacrificial sobre o altar de uma família opulenta e perversa que a queria destruir, e via-se a si próprio no papel de um antigo cavaleiro que enfrentava uma longa viagem para a ir salvar. O navio era o seu cavalo, a coragem a sua armadura, o oceano, com todos os perigos, era o caminho a percorrer para chegar até ela, que lhe estendia os braços e dizia: "Finalmente, meu amor!" Juntos iam atravessar os
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sete mares, viver mil e uma aventuras, derrotar quem quer que se
opusesse ao seu amor.
Quando o cargueiro em que tinha embarcado levantou âncora e, no meio de uma chiadeira inquietante, começou a mover-se lentamente em direção ao alto mar, Gregorio sussurrou o nome de Florencia. Enquanto observava da amurada a terra firme que se afastava, foi percorrido por um arrepio e sentiu vontade de chorar. Imaginara aquela partida como o início de uma viagem rumo à felicidade e, afinal, sentiu a dor da separação da sua terra, dos seus pontos de referência, das certezas que sempre o tinham sustentado.
Naquele momento perguntou a si próprio em que se estaria a meter. A extensão infinita de água que a quilha do navio ia cortando, erguendo dos lados uma espuma branca e densa, aterrorizava-o. Agora estava realmente só, muito mais só do que quando a mãe tinha saído de casa e o pai fugido. Ele, que sofrera pelo abandono dos pais, estava agora a abandonar tudo e todos. Para quê? Para ir atrás de um sonho.
- Mas será que se pode ser mais doido do que isto? - explodiu, e o seu rosto encheu-se de lágrimas que o vento secou. Perguntou a si mesmo se Florencia corresponderia realmente aos seus sentimentos.
- Eh, tu! Estás aqui para trabalhar ou para fazer um cruzeiro?
- gritou-lhe o contramestre.
Aquele chamamento à realidade foi como uma esponja em cima das suas angústias.
Entrou na rotina da vida a bordo executando rapidamente as tarefas que lhe destinavam. Ao fim de alguns dias, o ruído das ondas e a oscilação do navio infundiam-lhe segurança. Não demorou muito a fazer amizade com o pessoal de bordo. Gostava sobretudo de conversar com o contramestre, um veneziano que tinha atravessado o oceano Atlântico dezenas de vezes e conhecia todos os portos da América central e meridional.
- Em Tampico tenho uma namorada que é lindíssima. Chama-se Maria de la Concepción, que é como Maria Concetta, mas o nome em mexicano faz mais efeito - contou-lhe.
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- É verdade que os marinheiros têm uma mulher em cada porto? - perguntou Gregorio.
- Os outros não, mas eu tenho uma namorada em Port of Spain, uma no Recife, uma na Baía e duas no Rio de Janeiro. Também tenho em Porto Alegre e em Montevideu, mas a melhor é a Maria de la Conceptión. É macia, quente e barulhenta como Tampico... que cidade! Ali bebe-se, faz-se música, canta-se e faz-se amor, meu rapaz. Vais ver! As mulheres de Tampico põe-te louco e não te arranjam complicações, percebes?
Não percebia, mas escutava-o, arrebatado.
- Em Veneza conheci uma mexicana. Chama-se Florencia e gostamos um do outro - confessou-lhe.
- Em Veneza? Então é uma pessoa que viaja... que tem dinheiro.
- O pai dela, don Juán Álvarez Sánchez y Mendoza, é um fazendeiro.
- Esquece, rapaz. Os ricos andam com os ricos, e com certeza que não ligam a uma pessoa como tu.
- Achas? Prometi-lhe que ia à Cidade do México e que a raptava, porque ela é muito infeliz.
- Esquece... ouve quem sabe mais do que tu. Eles, quando te virem lá, soltam-te os cães e cortam-te aos bocados. Além disso, nós não vamos à Cidade do México.
- Mas eu tenho de a ver. Prometi-lhe. Foi para ir ter com ela que embarquei - explicou Gregorio.
- És mesmo burro, rapaz. Só vamos parar três dias em Tampico, o tempo de descarregar e depois carregar feijões, café e tabaco. Sabes quanto é que demoras dali até à Cidade do México? O que é que tu pensas, que os caminhos de ferro funcionam como em Itália? És mesmo burro! - comentou o contramestre.
Pensara em Florencia durante dias e semanas. Os avisos dos marinheiros eram inúteis. Quando o cargueiro lançou âncora no porto de Tampico, Gregorio desceu a terra, determinado a procurar um meio de transporte que o levasse à Cidade do México.
Encontrou-se num cais atulhado de carros e carrinhos, animais e homens atarefados, marinheiros bêbedos, crianças barulhentas e
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mulheres de todas as idades de vestidos decotados e a falar em voz alta, com seios opulentos e ornamentados de colares dourados. A cada passo, um vendedor ambulante tentava aliciá-lo com a sua mercadoria. Aromas densos de comidas cheias de especiarias misturavam-se com o cheiro nauseabundo da imundície.
Foi arrastado por um rio de gente até uma viela malcheirosa e acabou no interior de um estabelecimento onde voavam cadeiras e garrafas e dois grupos adversários se confrontavam entre insultos e empurrões, com o apoio da respetiva claque. Gregorio não conseguia descobrir uma abertura para se ir embora. As pás de uma ventoinha dificilmente faziam deslocar um ar tórrido. Os gritos tornavam-se cada vez mais ameaçadores; depois, de repente, fez-se silêncio. Uma faca caiu ao chão, um homem tombou a vomitar sangue, as pás continuavam a rodar num rumor monótono e a multidão compacta abriu-se para deixar uma passagem ao agressor, que desatou a fugir. Ele segui-o até ao exterior. Não era aquela a Tampico que o contramestre lhe descrevera. O homem que esfaqueara o adversário tinha desaparecido e Gregorio descobriu aos pés um cão esquelético que farejava o ar à procura de comida. Olhou em volta. Estava sozinho no centro de uma pequena praça sombria. De uma janela saíam os acordes dolentes de uma guitarra e uma voz que cantava palavras incompreensíveis. Ele gostaria de encontrar em alguém que lhe indicasse como chegar à Cidade do México, mas não havia vivalma. Estava desesperado.
Onde foi que eu vim parar?, perguntou a si mesmo, cheio de medo.
Uma mão forte agarrou-o por um ombro e uma voz rouca sussurrou-lhe: - Pobre nino.
Voltou-se de repente e viu à sua frente uma mulher de idade indefinida, forte e escura como a noite, que lhe sorria. Do decote do vestido surgiam uns seios enormes e toda ela emanava um cheiro acre de alho e canela.
- Pobre nino - repetiu a mulher, arrastando-o consigo.
Gregorio já não pensava em nada, não viu o lugar para onde a mulher o levou, nem a cama onde o deitou. De tudo aquilo que
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aconteceu, apenas recordou em seguida a girândola de luzes coloridas que lhe nascia das virilhas e explodia no cérebro e uma mão enfiada no bolso das suas calças a extorquir todo o dinheiro que tinha.
Era noite cerrada quando reencontrou o caminho do porto e subiu a bordo do navio adormecido. Caiu exausto no convés. Enroscou-se e chorou num desconforto infinito.
Estava já a nascer o dia quando alguém lhe deu um encontrão. Era o contramestre que regressava depois de ter passado a noite com Maria de la Concépcion.
- Eh, rapazinho, acorda! - disse-lhe. - A julgar pelo estado em que te vejo, a noite não deve ter sido grande coisa. Da próxima vez vai correr melhor.
Não vai haver próxima vez, pensou Gregorio, ao mesmo tempo que no seu coração dizia adeus ao México, a Florencia e às fantasias exaltantes da sua primeira relação com uma mulher.
O porto começou a animar-se e, ao longe, uma voz de tenor cantou: - E reluziam as estrelas1...
1 E lucean lê stelle. Trata-se uma ária do terceiro ato da ópera Tosca, de Giacomo Puccini. (N. da T.)
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ADRIA
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- E depois, o que aconteceu? - perguntou a irmã Antonia, fascinada com a história de Gregorio.
Ele olhou para o relógio e disse: - Minha cara amiga, é muito tarde e eu estou um pouco cansado. E, além disso, já sabes mais ou menos como correu a minha vida até que cheguei a esta casa.
- Está bem, vamos dormir - respondeu a freira, levantando-se da cadeira. Ajudou-o a erguer-se do cadeirão de vime, ele apoiou-se no braço da irmã Antonia e saíram da marquise.
No dia seguinte, Gregorio e uma hóspede da casa de repouso, Clelia Ornaghi, aproveitaram a temperatura amena de outubro para passear no jardim e falar de um tema muito do agrado da antiga professora: a literatura. Naquele momento ela expunha-lhe uma convicção pessoal: - No século XIX, em Itália, o melodrama foi um fenómeno cultural importante.
- E reluziam as estrelas... - cantarolou Gregorio, que durante a noite tinha tirado o pó às recordações da sua primeira viagem ao outro lado do oceano. E acrescentou: - Ora bem... O que pensas de "E doce naufragar-me neste mar1"?
Clelia Ornaghi sorriu e divertiu-se a espicaçá-lo.
- E de Carducci, o que me dizes?
"E il naufragar mè dolce in questo maré", in Llnfinito, de Giacomo Leopardi. (N. da T.)
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- Pomposo, seguro de si, completamente diferente de Pascoli, que é como um doce creme de baunilha. Nunca suportei o DAnnunzio, talvez porque sou um ignorante.
- Tenta relê-lo. É um dos grandes! Escreveu versos notáveis. A irmã Antonia saiu de casa e foi ao encontro deles.
- Gregorio, está ali uma senhora que veio à tua procura anunciou, entusiasmada.
- Oh, valha-me Deus! Quem é? - perguntou ele, preocupado.
- Não te digo. É uma surpresa. Está à tua espera na sala de estar.
- Meu caro amigo, de que estás à espera? - incitou-o a antiga professora. Ele afastou-se de má vontade.
Voltou-se para a irmã Antonia, que o seguia de perto, e resmungou, com um ar carrancudo: - Já sabes que não gosto de surpresas.
A diretora da casa de repouso tentou animá-lo: - Vais ficar muito feliz por ver aquela mulher tão bonita.
Gregorio abriu a porta da sala de estar e viu, de costas, uma mulher com uns cabelos muito brancos presos num chignon. Ela voltou-se e Gregorio sorriu.
- Stella! - disse, ao mesmo tempo que avançava em direção a ela.
- Finalmente - respondeu a irmã. E abraçaram-se.
- Como foi que conseguiste descobrir-me?
- E como foi que tu conseguiste desaparecer assim durante este tempo todo? Esqueceste-te de que tinhas uma irmã?
- Imagina! Passo os dias a recordar, a reordenar as peças da minha vida... como estás?
Convidou-a a sentar-se num sofá e instalou-se numa poltrona diante dela.
Stella trazia umas calças pretas e um casaco de espinha preto e branco. A elegância austera era avivada por brincos de pérolas que lhe iluminavam o rosto, maquilhado com sabedoria.
- Estás lindíssima, minha pequena Stella - observou, satisfeito.
- Tu também, mas talvez fosse melhor pegarmos nos óculos antes de começar com estes cumprimentos todos!
- Fala por ti, eu vejo lindamente. És parecida com a mãe, sabias?
- Ela era um espanto, em todos os sentidos - sublinhou Stella.
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- Não imaginas a falta que me faz. Passei a vida a manter a distância em relação a ela e agora... - disse Gregorio.
- E agora lamentas - completou Stella.
- Não se trata de lamentar, mas sim de remorsos - esclareceu Gregorio. Depois repetiu a pergunta: - Como é que conseguiste descobrir-me?
Depois de vender todas as suas propriedades, Gregorio telefonara-lhe para a informar de que se retirava para uma vida mais pacata. E acrescentara: - É provável que não te dê notícias durante algum tempo, porque preciso de estar sozinho.
Stella contou ao irmão a história da neta que, casada com um farmacêutico de Iseo, esperava o primeiro filho e estava a passar por uma gravidez difícil. Por isso, ela tinha-se oferecido para a substituir na farmácia.
- Sou viúva, a vida de reformada pesa-me e a minha neta aceitou a minha proposta com alegria. Por isso parti de Veneza e atirei-me ao trabalho. No outro dia, ao inspecionar umas receitas médicas, encontrei uma em teu nome. Imagina a minha surpresa! Estava convencida de que tinhas voltado para a América. Espero não ter sido demasiado invasiva por vir ao teu encontro.
- Só um bocadinho. Mas agora que estás aqui, não imaginas como estou contente por te ver - respondeu Gregorio.
- Então, anda! Vamos almoçar fora os dois e limpar o pó ao passado - propôs ela, entusiasmada.
Foram almoçar a um pequeno restaurante no centro histórico de Iseo, onde a Dr.a Stella Josti era conhecida, e ocuparam a melhor mesa numa pequena sala com a lareira acesa.
Enquanto saboreavam uma polenta com cogumelos salteados, Gregorio confessou: - Sabes que passei anos a roer-me de ciúmes? Tinha a certeza de que a mãe gostava mais de ti do que de mim.
- Então estamos quites. Não imaginas as vezes que eu surpreendi a mãe a soluçar no ombro do meu pai e a dizer: "Quero o meu Gregorio." Uma vez perguntei-lhe: "Não te chego eu?" e ela não me respondeu - contou Stella.
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- Devíamos ter convivido mais - concordou Gregorio. E acrescentou: - Mas... que mulher! Andávamos todos a disputar o seu amor: o meu pai, o teu, tu, eu... Mas sabes o que te digo? Sem estes ciúmes em relação à mãe, talvez eu não tivesse ido para a América, com tudo aquilo o que daí derivou. E não imaginas como me diverti! Mas agora, de vez em quando, dá-me a saudade dos nossos velhos pais e tenho pena de não ter lá estado quando, um a um, partiram deste mundo.
- Pois! Ou estavas na América, ou então recusavas-te a aparecer quando eu te procurava. Não estavas lá quando morreu o avô Gàbola, nem os teus avós Caccialupi, nem a mãe. Depois do funeral dela esperei que houvesse uma reaproximação entre nós, porque tinha muitas coisas para te dizer...
- Não me estás a aliviar nada a consciência - observou Gregorio, contrariado.
- Mas vamos ter de começar a falar daquelas verdades que nunca dissemos um ao outro, e não porminha culpa. Sempre foste muito bom a escapulir-te. Há dez anos, por exemplo, depois do funeral da mãe, procurei-te porque, repito-te, tinha coisas importantes para te dizer; mas tu, habilmente, conseguiste fazer com que não te encontrasse. Ainda agora, estás aqui mas tenho a certeza de que te apetecia fugir.
- Estás com vontade de discutir? - perguntou ele, e pousou o guardanapo em cima da mesa, pronto para se ir embora.
- Não te mexas e ouve-me - ordenou Stella, com um tom imperioso, levantando a voz.
Os outros comensais, que conversavam em voz baixa nas suas mesas, calaram-se e dirigiram olhares curiosos aos dois idosos que pareciam querer discutir.
Gregorio apercebeu-se e sorriu, divertido: - Estamos a escandalizar toda a gente. - E acrescentou: - Ganhaste! Então, por onde começamos?
- Amanhã de manhã vamos juntos a Adria. Tem mesmo de ser, acredita em mim - respondeu Stella.
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Stella abriu a porta do apartamento de Adria, onde Isola tinha vivido com ela e com Ferrante Josti, e onde Gregorio pusera os pés pela primeira vez quando tinha quinze anos.
Entraram nos aposentos já desabitados havia muito tempo. Os móveis e os objetos de decoração estavam cobertos com grandes panos para os preservar do pó.
Abriram juntos algumas janelas para deixar entrar a luz do dia.
- Agora dizes-me porque é que estamos aqui? - perguntou Gregorio.
- Cada coisa a seu tempo. Primeiro tenho de encontrar a Amélia, uma santa mulher que tratou da nossa mãe nos últimos anos. vou telefonar-lhe e mandá-la vir. Tu, entretanto, podias ir ao cemitério visitar a campa da mãe. Encontramo-nos aqui dentro de duas horas - disse Stella, ao mesmo tempo que lhe metia na mão as chaves do seu carro.
- Santa paciência! - resmungou ele, e saiu.
Entrou no carro, que estava estacionado na praça, diante do palácio Dolfin. Perdeu-se num labirinto de sentidos proibidos e, finalmente, encontrou o caminho que levava ao cemitério.
Os portões estavam abertos e os visitantes, sobretudo mulheres idosas, andavam pelo meio das campas com ramos de crisântemos.
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Descobriu logo o jazigo da família Josti ao fundo de uma alameda. Foi procurar o guarda e pediu-lhe para lhe abrir a porta do jazigo.
As paredes do monumento fúnebre estavam cobertas de lápides com os nomes e as fotografias dos defuntos. Por baixo da lápide de Ferrante Josti estava a de Isola Silvan Caccialupi.
A mãe nunca se casara com Ferrante, nem mesmo depois de ficar viúva de Saro e apesar da insistência do professor. Assim, o seu apelido tornava-se anómalo naquele jazigo onde todos os defuntos se chamavam Josti.
Gregorio ficou durante muito tempo diante da fotografia da mãe, que olhava para a objetiva com um sorriso misterioso.
Sem se dar conta, começou a sussurrar uma oração que Isola lhe ensinara quando era pequeno.
Recordou-a sentada, muito direita, no cais da Giudecca. Estava à espera que ele descesse do cargueiro que regressava do México.
Abraçaram-se, e depois ele perguntou-lhe: - Porque é que estás aqui?
- Para te levar para casa.
- Sabes muito bem que a minha casa é em Porto Tolle. Eu a tua casa não vou.
Isola agarrou-se ao braço do filho.
- Se eu te convidasse para um restaurante simpático, ias comigo?
- Então digamos que sou eu que te convido - replicou com orgulho, sabendo que tinha no bolso uma bela quantia em dinheiro. Era novembro, e Veneza cobrira-se de uma bruma vaporosa e leve. Gregorio estava feliz por se encontrar com a mãe, apesar de não se conseguir libertar do rancor que o separava dela.
Escolheram um restaurante tranquilo na margem do rio Tolentini.
Isola olhava para o seu bonito filho que estava sentado diante dela. Sentia-se orgulhosa pelo seu espírito de aventura, mas captara uma sombra de amargura nos seus olhos. Dois meses antes, quando partira, era um adolescente feliz; agora parecia mais adulto e pensativo.
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- Estás a observar-me? - perguntou Gregorio, enquanto saboreavam o gosto doce e redondo do fígado com cebola.
- Estou a tentar interpretar os teus silêncios - respondeu ela. Ele gostaria de lhe falar da tristeza da sua primeira experiência
de homem, da amargura de um sonho de amor naufragado, do medo da solidão. Mas replicou apenas: - Há pouco para dizer... gosto de andar no mar. Acho que vou procurar outro navio.
Agora, no cemitério, depois de ter ficado muito tempo diante do túmulo de Isola, tirou do bolso do casaco os brincos de ouro que trazia consigo há mais de setenta anos e pousou-os na moldura oval que encerrava o retrato da mãe.
Passou as pontas dos dedos pela fotografia com um gesto atrapalhado que pretendia ser uma carícia e foi-se embora. Meia hora depois estava outra vez na casa de Ferrante Josti.
Stella abriu-lhe a porta e ele seguiu-a até uma sala de estar onde havia uma lareira acesa.
- Quem está aqui em casa, para além de nós dois? - perguntou-lhe.
- A Amélia. Arrumou a cozinha e está a preparar-nos um bom café - respondeu a irmã.
- Então, o que é que me querias dizer?
- Agora não posso. Tenho de encaixotar umas coisas que vou levar para Veneza. Porque é que tu não vais ao quarto da mãe?
- Nem sequer sei onde é - respondeu.
Amélia serviu o café, que tomaram em silêncio. Depois Stella levou o irmão até junto de uma porta e abriu-a.
- É mesmo necessário? - perguntou ele, sem se decidir a entrar.
- Talvez seja - disse Stella, e deixou-o sozinho.
Gregorio entrou no quarto de Isola. Estava a vê-lo pela primeira vez.
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Abriu as janelas de par em par e olhou à volta. Aquele quarto não tinha nada a ver com frivolidades femininas, apesar de possuir uma graça que refletia a essência de Isola. O teto apainelado, o pavimento veneziano com pequenos mosaicos brancos e cinzentos, a cama de nogueira, uma cómoda com tampo de mármore, uma escrivaninha e uma pequena cadeira estofada, um armário com duas portas de espelho e uma estante que ocupava uma parede inteira.
Era mesmo aquele o quarto da mãe? Pegou num livro ao acaso.
Era o Pequeno Mundo Antigo, de Fogazzaro, e ele abriu-o. Na página em branco, ao alto, Isola tinha escrito o seu nome e a data em que o livro fora comprado ou oferecido. Olhou então com curiosidade para os títulos e os autores dos outros volumes e descobriu que a mãe tinha lido Moravia e Tolstói, as irmãs Brónte e Maupassant, Giovanni Verga e Matilde Serão, Henry James e Pearl Buck, Stendhal e Manzoni.
Folheou alguns cujas páginas tinham sublinhados e breves notas nas margens.
Imaginou Isola sentada à secretária atenta a ler, a refletir, a analisar os livros naquele silêncio sublinhado pelo ligeiro tiquetaque do relógio de mesa pousado num gracioso apoio recoberto de veludo verde.
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Abriu as portas do armário que continha ainda a roupa de Isola. Mergulhou o rosto nos tecidos para procurar o perfume da mãe. Nos gavetões da cómoda encontrou a roupa interior cuidadosamente dobrada, pronta para ser usada. Uma das gavetas da secretária continha um envelope onde ela tinha escrito: "Para o meu filho Gregorio."
- Meu Deus, há quantos anos estará aqui? - murmurou. Pegou nele. Estava lacrado. Não o quis abrir. Meteu-o no bolso,
fechou as janelas sobre um céu que começava a escurecer e saiu do quarto. Encontro Stella na cozinha com Amélia. A irmã sorriu-lhe, enquanto acabava de dispor a fruta fresca numa taça de porcelana com pé. Das panelas e do fogão provinha o cheiro de um assado e de um caldo de legumes.
- O que é que estás a fazer? - perguntou-lhe Gregorio.
- Estamos a preparar o jantar, mas agora a Amélia vai servir-nos o chá - respondeu, enquanto secava as mãos numa toalha.
- O jantar... para quem?
- Para nós os dois - respondeu ela, com um ar despachado, e avançou à frente dele em direção à sala de estar.
- Eu devia regressar a Iseo... - protestou Gregorio, ao mesmo tempo que se sentava numa poltrona.
A irmã não o deixou acabar a frase.
- Já está escuro e eu à noite não conduzo. De resto, não estava à espera que ficasses mais de três horas no quarto da mãe.
- Fiquei assim tanto tempo lá dentro? - perguntou, espantado.
- Foi o tempo de preparar alguns quartos, de ir às compras e de fazer as camas - explicou Stella.
- Por acaso não tens um cigarro? - perguntou Gregorio.
- Claro que tenho - respondeu ela, ao mesmo tempo que tirava da carteira um maço que estendeu ao irmão.
- Eu de facto deixei de fumar quando tinha a tua idade. Agora fumo os cigarros dos outros - explicou e, depois de ter acendido o cigarro, deixou-se cair sobre as costas da cadeira com um ar satisfeito.
- Fala-me um pouco de ti - pediu Stella.
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- De mim? O que é que tu queres saber?
- Quando eu era pequena, vivia fascinada contigo. Encontrámo-nos duas ou três vezes, mas a mim parecia-me que te conhecia desde sempre, porque não se passava um dia sem que a mãe falasse de ti e, quando não o fazia, era eu que a incitava. Aquele irmão distante e misterioso, rebelde e orgulhoso, rico de experiências e espírito de aventura, arrebatava-me, literalmente. Eras o meu herói.
- Coitado de mim!
- Estás a brincar? A mãe mostrava-me os jornais que falavam de ti: tu em conversa com o ministro do Turismo, tu na presidência de congressos sobre a formação profissional dos jovens, tu numa estreia do Scala com uma diva de Hollywood. Tinha orgulho nos teus sucessos.
- Coitado de mim! - repetiu.
- Para de te lamentares - protestou Stella. - Também eu tinha orgulho neste irmão que ia construindo um império hoteleiro.
Gregorio passou a mão no bolso do casaco onde tinha enfiado a carta da mãe e olhou para Stella nos olhos.
- vou dizer-te uma coisa: eu nunca soube quem era verdadeiramente a Isola. Era uma mulher realista ou uma sonhadora? Era generosa ou egoísta? Era uma mulher frustrada ou satisfeita? Eu não sei. Só sei que se tinha casado com o meu pai, mas que depois seguiu o homem por quem se apaixonou, deixando tudo e todos, a mim inclusive, para fazer parte daquele mundo dourado, muito diferente do casal de Porto Tolle.
- Sabes, Gregorio, há mulheres que se dedicam inteiramente à família, aos maridos e aos filhos, e renunciam a cultivar a sua própria feminilidade. A mãe rebelou-se contra este esquema e pensou: Eu também existo! Amava a beleza em todas as suas formas, lia imenso, ia ao teatro e aos concertos. E, no entanto, nunca renegou as suas raízes, nunca se esqueceu do marido, nem do filho, nem das terras do Delta.
- Nunca conheci essa mulher de quem me falas. Talvez não pudesse conhecê-la, dominado como estava pela raiva e pelo rancor por ter escolhido viver com um homem que não era o meu pai.
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Sempre encarei o Ferrante Josti como um rival e fiz tudo para me tornar rico e poderoso para lhe demonstrar que valia mais do que ele. Amava desesperadamente a mãe e provavelmente nunca tive uma relação feliz com uma mulher porque, sempre que me apaixonava, procurava-a na mulher do momento e nenhuma era tão perfeita como ela.
- Pela maneira como falas, até parece que a mãe foi a tua ruína
- reagiu Stella.
- E é assim, de certa maneira. Pelo menos, foi-o naquilo que diz respeito à minha vida afetiva, sentimental. Quanto ao império que construí porque estava zangado com ela, esse já não existe. Perdi tudo. Minha querida Stella, vivo num hospício porque não tenho mais nada.
Fez-se silêncio, até que Stella disse: - Não é exatamente assim. Tens um património notável, meu caro Gregorio, em dinheiro, casas e terrenos. Sabes, o meu pai não enriqueceu com certeza a trabalhar como médico. Os Josti eram uns dos maiores proprietários de terras da nossa região. À nossa mãe, o pai ofereceu terrenos, edifícios e também o apartamento onde estamos agora. E a mãe deixou todos os seus bens a ti.
Gregorio passou uma mão na testa, aflito.
- Na escrivaninha do quarto dela está uma carta à tua espera há dez anos, em que ela te explica tudo - acrescentou Stella.
Gregorio tirou a carta do bolso. - Esta? Stella anuiu.
Amélia surgiu à porta da sala e perguntou: - Posso servir o jantar? Está tudo pronto.
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Pela primeira vez ao fim de muito tempo, Gregorio tinha passado a noite longe da casa de repouso Stella Mundi. Quando regressou, parou diante da porta escancarada do gabinete da irmã Antonia. Ela estava sentada à secretária; levantou os olhos e viu-o. Então Gregorio dirigiu-lhe um dos seus sorrisos maliciosos e foi-se embora.
- Gregorio! - vociferou a freira.
Ele voltou atrás e entrou no escritório.
- Posso saber onde estiveste? - perguntou a religiosa com severidade.
Ele sorriu outra vez e não respondeu.
- Será que preciso de te lembrar que esta casa não é um hotel?
- Isso é aquilo que as mães costumavam, em tempos, dizer aos filhos! Se calhar ainda o dizem, mas não tenho a certeza - replicou, com uma voz alegre.
- Porque não me telefonaste a dar notícias? Eu sabia que estavas com a tua irmã, mas mesmo assim fiquei preocupada contigo censurou-o, já num tom mais suave, ao mesmo tempo que o convidava a sentar-se diante dela.
- O facto é que não tenho telemóvel, como tu sabes. E o sítio onde dormi não tinha a linha telefónica ligada. Chega-te como explicação?
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- De maneira nenhuma.
- Tive mais que fazer e esqueci-me. É esta a verdade.
- Deve ter sido alguma coisa de muito importante...
- É como dizes. Tenho a vaga impressão de que a minha vida está a mudar e tenho a certeza de que tu estás a morrer de curiosidade.
- Talvez.
- Talvez? De certeza! Ouve bem: agora preciso de ficar sozinho, para pôr as ideias em ordem. Depois conto-te tudo - prometeu Gregorio.
- Trouxeste contigo mais um ex-voto?
- Só uma carta.
- Tens uma capacidade extraordinária para me deixares a morrer de curiosidade.
- Eu sei. Deixa-me ir para o meu quarto, por favor - concluiu Gregorio, e saiu do escritório.
Subiu as escadas e entrou no quarto.
Sentou-se na poltrona e sussurrou: - Descansa em paz, mãe, e obrigado por tudo.
Pegou na carta da mãe, desdobrou-a e leu-a outra vez.
Querido Gregorio,
Quando eu já cá não estiver, tudo aquilo que o Ferrante Josti me deu será teu. Quem havia de dizer que a filha do pobre Gàbola ia ter este património para deixar em herança! Mas é assim mesmo. Agora és um homem de sucesso e és muito rico, mas um dia, quem sabe, aquilo que te deixo poderá ser-te útil. À data da minha morte serei substituída por um fideicomisso que foi constituído para administrar da melhor maneira os bens que te deixo até entrarem em tua posse.
Nomeio-te único herdeiro de pleno direito de tudo o que me pertence, inclusive este apartamento onde vivi serenamente com Ferrante e com a tua irmã Stella. Sei o quanto gostaste de mim. Agora sabes o quanto eu gostei de ti.
Mãe
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Na tranquilidade do apartamento de Adria, enquanto jantava com Stella, esta contara-lhe que a mãe, ao receber de presente de Ferrante uma propriedade agrícola na zona de Pádua, se revelara imediatamente uma administradora inteligente e soubera introduzir inovações extraordinárias e muito rentáveis, de tal maneira que ele lhe tinha oferecido outras propriedades.
- Imagina que a mãe sempre se interessou pelas novas tecnologias agrícolas e adotou-as nas suas terras. Foi assim que triplicou o valor dos bens que o meu pai lhe ofereceu - explicou-lhe.
- Resta-nos o facto de tu teres visto subtraírem-te uma parte da tua herança - objetou ele.
Stella riu com satisfação.
- Sabes muito pouco acerca da minha família. Houve um tempo em que os Josti eram grandes latifundiários, para além de comerciantes de trigo. O meu pai deixou-me palácios em Veneza e em Pádua, moradias nas margens do Brenta e aqui no Polesine, para além de muito dinheiro investido de várias maneiras. A herança que a mãe te deixou a ti pertence-te por direito - garantiu-lhe.
- Se nos conhecêssemos melhor, saberias como me importa pouco possuir bens e dinheiro. Se ficar com este apartamento, será a primeira vez que tenho uma casa. Porque é que eu deveria aceitar tudo aquilo que a mãe me deixou? No fundo, estou bem como estou. Sabes que as mudanças podem ser traumáticas na minha idade. Culpa tua e dela! Parece-me que me pregaram uma grande partida. Em suma, amanhã de manhã levas-me de volta à casa de repouso e eu vou avaliar a situação - concluiu.
Stella, quando lhe deu as boas-noites, sugeriu-lhe: - Dorme sobre o assunto, meu irmão, e depois decides o que vais fazer.
Agora, depois de ter relido a carta, pareceu-lhe ouvir a mãe dizer: Não tolero que tu passes aqui dentro os teus últimos anos de vida. Já olhaste à tua volta? Viste a solidão destes pobres velhos, que se agarram a pequenas manias para dar um sentido à sua existência? O mundo é impiedoso para com os idosos. Se já não produzes porque estás velho, chega-te para o lado, deixa espaço para os jovens, vai morrer na solidão.
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Também é verdade que muitas vezes os idosos já não têm vontade de lutar. Envergonham-se da sua decadência física, consideram-se dinossauros num mundo que já não quer saber deles. Queres mesmo acabar assim?
- Que idiota que eu fui! - disse. Voltou a dobrar a carta da mãe e meteu-a numa gaveta, afirmando: - A partir de amanhã vou recomeçar a viver.
A irmã Antonia bateu à porta e apareceu à entrada do quarto.
- Está tudo bem? - perguntou.
- Vens mesmo no momento certo. Gostas muito do meu ex-voto. Ofereço-to. Já não preciso dele.
- Tens a certeza?
- Amanhã vou inaugurar um novo capítulo da minha vida, porque estou com uma vontade louca de mais desafios. E não olhes assim para mim, porque não estou maluco.
- Ai não? Não será que te apaixonaste por uma mulher de
trinta anos?
- Eu falei de desafios, não de ridículas paixões senis. Sinto-me como quando tinha dezasseis anos e parti à descoberta da América
- anunciou Gregorio, feliz.
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NOVA IORQUE
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Gàbola estava sentado à porta de casa, embrulhado numa manta, com o barrete enterrado até às orelhas e umas luvas de meios dedos, a entrelaçar os fios de palha no assento de uma cadeira ao sol pálido de novembro. Uma vizinha levou-lhe uma malga de sopa fumegante. Ele sorriu-lhe e começou a recitar uma cantilena: Mesogiorno elpan lê in forno, se lê coto damne um toco...1
- A boa disposição nunca o abandona - observou a mulher.
- E que motivo havia eu de ter para estar maldisposto? Tenho trabalho, sol também, e você serve-me a sopa quente. Sinto-me um rei.
- Está contente porque sabe que o seu neto está para chegar. Nem cabe em si de contente.
- E se fosse isso? É alguma vergonha?
- Meu caro Gàbola, estamos todos felizes por si - disse a vizinha, sentando-se ao lado dele. - Vá lá, coma, antes que arrefeça. Também lá pus dentro um pedaço de toucinho frito - esclareceu, satisfeita.
Gàbola tinha apenas sessenta e cinco anos, mas parecia muito mais velho. Rugas profundas sulcavam-lhe o rosto, e por ter sido alcoólico durante muitos anos tremiam-lhe as mãos de vez em
1 "Meio-dia o pão está no forno, se estiver cozido dá-me um pedaço..." (N. da T.)
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quando. Trabalhava cada vez menos e até podia viver sem fazer nada, porque Isola dava dinheiro às mulheres que moravam perto e que tinham a preocupação de olhar por ele. Ele já tinha percebido, mas fazia de conta que não sabia. Por isso, disse à vizinha:
- Se não fosse muita maçada, apetecia-me logo à noite uma enguia com polenta.
- Apanhei uma grande como um leitão e já a preparei, porque o meu marido também andava com desejos de enguia - replicou a mulher.
Gàbola meteu-se em casa quando o sol se pôs. Acendeu o lume na lareira, esperou que o calor se espalhasse na cozinha e, só então, tirou as luvas, o barrete e a manta. Depois pôs as castanhas numa panela de ferro que pousou no fogo, acendeu um cigarro e, sentado em frente à lareira, começou a fumar, abanando as castanhas de vez em quando para elas assarem. O neto gostava delas bem tostadas e sabia que ele ia chegar dentro em breve.
Quando Gregorio entrou em casa, quase não o reconheceu. Parecia já um homem feito.
Trazia um casaco azul de marinheiro e os cabelos castanho-dourados escondidos dentro de um boné de fazenda. Pousou no chão o saco de lona. Depois deu-lhe uma pancada afetuosa no ombro, e disse: - Cheguei.
- Estou a ver - respondeu o avô, sorrindo-lhe, feliz. Rebentava de alegria, mas as efusões não faziam parte dos seus
hábitos. Gregorio sentou-se ao lado da lareira e aproximou as mãos das chamas para as aquecer.
- Estão prontas? - perguntou o rapaz, indicando as castanhas.
- Já falta pouco. O leite está ao frio, na janela - disse Gàbola. Gregorio pegou no recipiente que estava pousado no peitoril,
tirou-lhe a tampa e observou a camada densa de nata que boiava à superfície. Mergulhou um dedo e levou-o aos lábios.
- Que bom! - sorriu. Pendurou o pequeno pote na corrente que estava suspensa na chaminé e sentou-se outra vez, enquanto esperava que o leite aquecesse.
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Quando se sentaram à mesa a descascar as castanhas e a comê-las, ao mesmo tempo que bebericavam o leite quente, o avô perguntou-lhe finalmente: - Como foi que te correu, rapaz?
- Não sei. Vi muitas coisas... aprendi outras tantas... dias sempre iguais, entre mar e céu... e, ao aportar no México, uma grande confusão, barulho, música, cheiros estranhos nas ruas, muitos homens e mulheres de má vida...
Pensava na mulher que o tinha assediado e no seu cheiro, que continuava a persegui-lo. Aquela experiência causava-lhe horror e não queria falar sobre isso com ninguém.
- Não pareces muito satisfeito - observou Gàbola.
- No navio trabalhei no duro e pagaram-me o que era justo disse, ao mesmo tempo que tirava do bolso um rolo de dinheiro.
- Estão dispostos a levar-me outra vez para o mês que vem, mas eu ainda não sei o que vou fazer - acrescentou.
- Não gostavas de continuar a estudar? - propôs o avô.
- Grande e forte como sou, como é que posso ir para a escola com os miúdos? - Levantou-se da mesa e disse, enquanto abria o saco: - Trouxe-te uma coisa.
Deu a Gàbola um cachimbo e um gorro de lã de marinheiro. O avô pô-lo na cabeça e enfiou o cachimbo na boca com um ar atrapalhado, porque nunca tinha fumado nenhum.
- O cachimbo é uma brincadeira, avô. Mas isto é um presente sério - exclamou o rapaz, estendendo-lhe uma caixa de charutos mexicanos. O rosto do avô iluminou-se.
- Assim está melhor. E o barrete aquece mesmo.
Foi a sua maneira de lhe agradecer. Depois aclarou a voz e anunciou: - No mês passado chegou uma carta do teu pai. Está ali, em cima do armário.
- Leste-a?
- É para ti. Eu não tenho nada a ver com isso.
Gregorio pegou nela e sentou-se diante do fogo. Abriu o envelope e leu. Saro contava-lhe que tinha conseguido abandonar o trabalho nos campos da Argentina, que se tinha mudado para o Brasil e que, juntamente com alguns perseguidos do regime fascista,
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tinha aberto uma loja de revenda por grosso de produtos agrícolas. "Uma sorte inesperada", continuava, "foi encontrar o professor Filippo Melegan, exilado por Mussolini como subversivo. Ele tem muitos amigos aqui no Rio de Janeiro e como vem da mesma região que eu fizemos logo amizade. Encontrei também uma mulher simpática que se chama Ana, é professora, e acho que te posso dizer que gostamos um do outro, apesar de eu não ter esquecido nem vir nunca a esquecer a tua mãe. Da próxima vez que embarcares, apanha um navio que venha para o Rio. Por enquanto não te posso pagar a viagem, mas tenho muita vontade de te ver".
Gregorio voltou a dobrar a carta e murmurou: - Também ele!
- Também ele o quê? - perguntou o avô, aproximando-se dele.
- Arranjou amante, como a mãe - respondeu o neto, com amargura.
- Um homem sem mulher, ou se agarra à garrafa, ou a outra mulher. Eu escolhi a garrafa e garanto-te que só me trouxe dissabores - comentou Gàbola.
- Eu, com as mulheres, já desisti. Chega - afirmou o rapaz, muito sério.
O avô escondeu um sorriso e pensou: o Gregorio fez-se homem! Jovem e bonito como é, depressa esquecerá a experiência pouco feliz que deve ter tido.
- E agora, onde vais? - perguntou-lhe, ao vê-lo aproximar-se da porta de casa.
- vou ter com os avós - respondeu ele.
- Daqui a pouco a Tina vai trazer-nos a polenta com a enguia. Já é noite. Vais amanhã ter com os Caccialupi.
Mas Gregorio precisava de estar sozinho com a sua amargura. Durante todos aqueles anos tinha esperado voltar a abraçar o pai, poder dizer-lhe: "Agora estou aqui e nunca mais vais estar sozinho." Mas os pais tinham feito escolhas diferentes daquilo que ele desejava.
Avançava na neblina, por um caminho que conhecia de cor e serpenteava pelo meio dos campos de feno. Tremia naquela solidão desolada e gélida, tão parecida com a que trazia no coração.
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Regressara decidido a ganhar raízes para sempre naquelas terras, porque a vida de marinheiro não o tinha entusiasmado. Agora sentia que o seu destino estava noutro lugar. Ia cumprimentar os avós e procurar um novo embarque.
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Gregorio sentiu-se um génio quando, ao ter de raspar e dar brilho a uma enorme panela cilíndrica, a inclinou no chão e se meteu lá dentro até metade do tronco para conseguir desincrustar o fundo, munido de uma escova metálica, cinzas, lixívia e muita força nos braços. Soube depois por um ajudante de cozinha que meter-se dentro das panelas era a única maneira de conseguir lavá-las em condições.
Tinha aceitado aquele trabalho repugnante e cansativo para obter uma contratação no transatlântico Julius, que fazia rota para a América setentrional e para o porto de Nova Iorque. E, uma vez que gostava se esmerar, decidira tornar-se no melhor do navio a lavar a loiça. Esfalfava-se até que panelas e talheres ficavam a brilhar, apesar de aquela cozinha não ser a dos passageiros, mas sim a do pessoal. À noite, ao fim de um dia de trabalho, tinha o corpo impregnado de gordura e do cheiro a comida e, por mais que se lavasse da cabeça aos pés, aquele fedor nunca desaparecia completamente.
O cozinheiro era um genovês irascível. Quando agarrava numa frigideira ou numa caçarola escorregadias, atirava-as para longe e gritava: - Isto não é obra do Gregorio, mas daquele malandro do Gaspare. - E reservava sempre para Gregorio os pedaços melhores da refeição, dizendo-lhe: "Come, que ainda precisas de
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ficar mais forte", ou então "Fiz um gâteau que é o fim do mundo. Pus de lado uma bela dose para ti".
À noite, depois de se ter lavado, Gregorio vestia roupa limpa e, à socapa, subia ao convés. Enfiava-se numa baleeira, comia o jantar numa solidão religiosa e fazia projetos grandiosos para o futuro. Desde que era criança e vivia com os pais, sempre sonhara tornar-se num homem rico e poderoso. Mas agora queria chegar mais alto, muito alto, para demonstrar ao pai e, sobretudo, à mãe, que valia muito mais do que os companheiros de vida que eles tinham escolhido, deixando-o só.
Às vezes, a meio da noite, subia ao convés da primeira classe, onde estavam alinhadas umas espreguiçadeiras confortáveis sobre as quais os passageiros se estendiam a apanhar sol, e através das grandes vigias espreitava os sumptuosos salões interiores, com o coração num sobressalto pela emoção e o medo de ser descoberto numa zona que lhe era vedada. Um nó apertava-lhe a garganta e os olhos enchiam-se-lhe de lágrimas quando regressava ao ventre malcheiroso do navio para se dirigir à sua enxerga. Caía num sono profundo, que era bruscamente interrompido às cinco horas da manhã, hora a que tinha de descer ao porão para ir buscar o carvão e depois subir até à cozinha e despejá-lo nos fornos que acendia. Todas as manhãs, a descida ao porão era um pesadelo, porque daquela montanha de carvão saltavam grandes quantidades de ratos grandes como gatos e ele tinha de distribuir safanões com a pá para não ser agredido, como acontecera no primeiro dia de viagem, quando tinha desatado a gritar, aterrorizado, porque um rato lhe mordera um tornozelo. Na enfermaria desinfetaram-lhe a ferida, que sangrava, e depois aplicaram-lhe uma pomada acastanhada antes de a cobrir com uma ligadura.
- Isso não é nada - disse o enfermeiro.
- Que caraças! Os ratos transmitem doenças - protestou ele.
- Da próxima vez pede para te darem umas botas antes de desceres para ir buscar carvão. E aprende a defender-te com a pá. Os ratos são animais inteligentes, vais ver que ficam longe de ti garantiu-lhe.
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- E se me pegaram a peste? - perguntou, aterrorizado.
- Se logo à noite tiveres febre, vem cá outra vez e eu peço ao médico para te ver; se não, volta amanhã de manhã para eu te mudar a ligadura - rematou o enfermeiro.
A mordedura era superficial, a febre não se manifestou e agora descia ao porão com umas robustas galochas de borracha. Os ratos não voltaram a mordê-lo, mas a repulsa e o terror assaltavam-no de todas as vezes. Sarou numa semana e o enfermeiro disse-lhe:
- Tens um sangue são.
Às seis horas da manhã já estava a descascar batatas, maçãs e cenouras. Depois passava a vassoura e lavava o chão porque, quando o cozinheiro começava a trabalhar, queria ver a cozinha a brilhar como um espelho. Era um trabalho extenuante, que ele realizava com uma determinação cheia de raiva.
- Se fizermos outra viagem juntos, levo-te como meu ajudante
- disse-lhe um dia o cozinheiro, dirigindo-lhe um sorriso malicioso.
- Esqueça, senhor. Depois desta viagem, só subirei a bordo de um navio como passageiro. De primeira classe, obviamente esclareceu, enquanto limpava os talheres para o almoço com um pano lavado.
- Nesse dia, eu serei o comandante do navio e vou convidar-te para a minha mesa - replicou o cozinheiro. - Mas, entretanto, dispenso-te da incumbência do carvão. A partir de amanhã, vou mandar o Gaspare ao porão - concluiu. Esticou uma mão e acariciou-lhe a face.
Gregorio deu um salto para trás, como se, em vez de uma carícia, tivesse recebido uma dentada.
- És mais arisco que uma gatinha selvagem - disse o homem, a rir. E acrescentou: - Estava a brincar.
- Desculpe. É que eu não tenho sentido de humor - respondeu.
Continuou a limpar os talheres, sentindo-se inquieto e embaraçado, e nesse momento interrogou-se sobre o significado das atenções que o irascível cozinheiro reservava apenas para ele, incluindo aquela carícia que não lhe tinha agradado nada.
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A preparação da refeição avançava e Gregorio, na cozinha, ia limpando a bancada de trabalho, quando apareceu Gaspare, que tinha estado na enfermaria durante dois dias, queixando-se de dores de estômago.
- Oh, já regressou o menino! - disse o cozinheiro, dirigindo-lhe um olhar maldoso.
- O que é que eu tenho de fazer, chefe? - perguntou o rapaz.
- Preciso de mais carvão, vai depressa buscá-lo.
- Mas isso é tarefa do Gregorio - protestou Gaspare.
- A partir deste momento, é tarefa tua - rematou o cozinheiro. Gaspare passou ao lado de Gregorio e sibilou: - Dois dias de
doença, e já me destronaste. Agora a puta dele és tu.
Foi como um raio de luz na escuridão, e a reação de Gregorio não se fez esperar. Atingiu o colega em pleno peito com um murro. O rapaz vacilou e caiu ao chão, dobrado sobre si mesmo.
- Eu não sou a puta de ninguém, que fique bem claro! E se alguém estiver com apetites, é bom que os vá satisfazer a outro sítio - disse com uma voz firme, e olhou para o cozinheiro com severidade.
Como única resposta, o homem riu-se, imitado por Gaspare.
- És muito melindroso, rapaz. Mas aqui a travessia é longa, mulheres não há e é bom costume divertirmo-nos um pouco entre nós - explicou.
- Pois, precisamente, entre vós! - esclareceu Gregorio. Logo a seguir enfiou as galochas e desceu ao porão com o cesto para ir buscar o carvão.
Começaram então dias ainda mais difíceis, porque o cozinheiro descarregava em cima dele todo o seu descontentamento. Gregorio deixava correr, e esperava a tranquilidade da noite para se esquivar ao inferno quotidiano. Subia ao convés, escolhia uma baleeira, levantava a tela e enfiava-se lá dentro, sentindo-se um pequeno peixe engolido por um enorme cetáceo. Imaginava o navio como um monstro marinho que encerrava no ventre homens e coisas e os transportava sobre o oceano com o seu andamento lento e inexorável, entre tempestades e bonanças, para diante,
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sempre para diante. Pensava no momento em que chegariam a Nova Iorque, aos arranha-céus altíssimos, às luzes que encandeavam, aos imensos automóveis que enchiam as ruas. Essa, pelo menos, era a cidade que ele tinha visto nos filmes. Para ele, Nova Iorque simbolizava a riqueza, o progresso, o poder, e tencionava descer do navio para nunca mais voltar a partir! Realizaria o seu projeto a qualquer custo, apesar de o pessoal não ter autorização para pôr os pés em terra.
Uma noite, deitado na baleeira, estava quase a adormecer, embalado pelo som monótono dos motores e da água que embatia contra o barco, quando ouviu um ruído. Alguém afastou a tela e se enfiou no habitáculo. Gregorio empunhou rapidamente a navalha, que trazia sempre consigo, enquanto o intruso procurava às apalpadelas um ponto em que se pudesse deitar.
Tinha-se posto de gatas, pronto para atacar, quando, na semiobscuridade, se apercebeu de que se tratava de uma mulher. Também ela o viu e soltou um grito, que o rapaz abafou, tapando-lhe a boca com uma mão.
- Quem és tu? - perguntou.
- E tu, quem és? - protestou ela, em voz baixa.
- Sai daqui! Esta baleeira é minha.
- Mas é que nem penses. Há vários dias que ando a tentar escapar daquele nosso dormitório nojento.
Era uma rapariga, exprimia-se com um acentuado sotaque meridional, era uma emigrante.
- Eu sou um ajudante de cozinha. Chamo-me Gregorio. Porque é que te enfiaste aqui dentro? - perguntou-lhe.
- Já te expliquei. E tu, o que é que estás aqui a fazer?
- Não me disseste como te chamas.
- Peppina Ruotolo. Sou napolitana. Mas tu és do Norte, percebe-se logo - respondeu ela, alegremente.
Riram-se os dois.
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De repente, aquele trabalho esgotante e humilhante já não era um peso, mas apenas o preço a pagar para chegar ao paraíso da noite, quando se refugiava nos braços apaixonados de Peppina.
Tinha começado como um jogo, ficarem juntos e acariciarem-se, enquanto trocavam confidências dolorosas.
Peppina viajava com a mãe e dois irmãos mais novos. Tinham abandonado os bairros espanhóis de Nápoles para se juntarem ao pai e a um tio que viviam em Detroit e tinham aberto uma padaria.
- O meu pai mandou-nos o dinheiro para a viagem e diz que lá na América, se uma pessoa tiver vontade de trabalhar, consegue fazer fortuna. Não é como na nossa terra, que quando se nasce desgraçado fica-se assim toda a vida - contava Peppina, cheia de esperança.
- E com a língua, como é que fazes? Tu falas inglês?
- E como é que podia? Mas o meu pai diz que se aprende depressa, e depois ele entendeu-se por gestos durante anos, com os americanos. No bairro onde tem a loja são todos da mesma terra e falam a nossa língua. Nem vejo a hora de chegar, para me poder lavar com água a sério e com sabão, e nunca mais vou comer couves, nem batatas, nem carne de porco salgada.
- Como é que as pessoas se lavam na terceira classe?
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- É um inferno! Água do mar, gelada. Seis casas de banho pestilentas para toda a gente, que muitas vezes ficam inundadas. Eh, querido Gregorio! Sorte têm os senhores que viajam em primeira classe. Eu quero casar com um americano, ter uma casa com jardim, rádio, frigorífico e automóvel. É a isso que eu tenho de chegar!
- Ainda nem nos separámos e já estás a pensar noutro? - disse Gregorio, na brincadeira.
Em algumas ocasiões tinha conseguido ver Peppina à luz do dia. Era uma bonita rapariga, de cabelos muito negros e pele dourada, magra mas com uns seios imponentes que os vestidos não conseguiam conter. Tinha dezasseis anos e deslocava-se com o passo ligeiro de uma bailarina de gestos lânguidos. Gregorio estava convencido de que a amava, até porque o tinha feito esquecer a sua primeira e humilhante experiência mexicana reconciliando-o com as mulheres. Era suficientemente maduro para perceber que aquela intimidade, nascida da necessidade de um contacto apaziguador para ambos, acabaria quando o transatlântico chegasse ao porto americano. De resto, Peppina não lhe permitia acalentar qualquer ilusão sobre o futuro porque lhe dizia que não o considerava digno de atenção.
- Então, se pensas assim, porque é que vens ter comigo todas as noites à baleeira? - perguntou-lhe uma noite, irritado.
- Porque gosto de ti, palerma! Ficava contigo toda a vida, se tu não fosses um miserável como eu - rematou ela.
- Se o teu pai chegou a dono de uma padaria, eu posso chegar a dono de um império - replicou.
- Como o Mussolini?
- Como o Gregorio Caccialupi. Vai lá, casa-te com um americano rico que te compre um frigorífico. Eu, um dia, ainda te ia poder comprar uma centena!
- Ora! - disse ela, afagando-lhe o peito.
- Não acreditas?
- Receio que nem chegues a pôr um pé em solo americano, porque quando nós desembarcarmos tu vais estar às voltas com a vassoura a preparar a cozinha para a viagem de regresso.
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- Dá-me a tua direção em Detroit e, um dia, vou ter contigo ao
volante de um Pontiac com seis metros de comprimento - prometeu ele, muito sério.
Peppina riu-se com vontade, enquanto procurava um bilhetinho que tinha enfiado no soutien.
- Ora aqui está, senhor fanfarrão. A direção já eu a tinha
escrito para te dar desde a primeira noite que passámos juntos. Ia dar-ta no momento oportuno. Guarda-a e lembra-te de que, se daqui a dois anos não te voltar a ver, caso-me com um americano. Mas, até esse momento, vou esperar por ti, palavra de Peppina Ruotolo.
Gregorio enfiou o bilhete no bolso e sentiu-se mais seguro no seu orgulho de homem.
- Somos parecidos - disse ele.
- Porquê?
- Tal como eu, também tu vês o futuro em grande. Mas o meu vai ser muito maior do que o teu.
- Senhor fanfarrão, porque é que falas tanto quando eu estou cheia de vontade de fazer amor? - provocou ela, ao mesmo tempo que o acariciava.
O medo de serem descobertos tornava aqueles encontros ainda mais excitantes. Peppina pensava que, depois de Gregorio, nunca mais ia ter nenhum rapaz tão atraente e tão simpático. Gregorio pensava que, depois dela, nunca mais ia encontrar uma rapariga tão apaixonada e tão louca.
Quando se separavam para regressar, por caminhos diferentes, às respetivas enxergas, cada um deles levava consigo o calor do outro e temia o dia, já próximo, em que se iam separar, mantendo ainda a ilusão de que a sorte os ia reunir.
Se não era amor, era qualquer coisa que se parecia muito com isso.
Uma manhã, Gregorio ia a sair do porão com um cesto carregado de carvão quando sentiu uma espécie de clamor que se erguia do convés do navio. Pousou então o cesto e subiu a correr as escadas que davam acesso ao convés da terceira classe. Os passageiros e
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a tripulação acotovelavam-se ao longo das amuradas e gritavam, felizes: - A América! A América!
Gregorio viu, na neblina da manhã, o perfil cinzento da costa de Ellis Island. Sentiu toda a solenidade daquele momento e um soluço explodiu-lhe no peito. Quando chegaram perto do molhe, vieram muitos rebocadores pequenos ao encontro do transatlântico, no meio de sons de sirenes festivas, para o escoltar até ao interior do porto de Nova Iorque. A grande Estátua da Liberdade, que brandia a sua tocha com um ar austero, recortava-se contra o céu e, na distância, perfilavam-se os arranha-céus de Manhattan.
- Estou na América! - disse Gregorio, incrédulo.
Procurou com o olhar Peppina Ruotolo, por entre os emigrantes que enchiam o convés, mas não a viu. Enquanto o navio atracava ao molhe 45, ele desceu ao dormitório deserto.
Encheu o saco de viagem com todas as suas coisas, lavou-se o melhor que pôde, vestiu outra roupa por baixo da farda de ajudante de cozinha, escondeu o saco no vão de uma pequena escada junto ao convés e regressou à cozinha para desempenhar as suas tarefas. Sabia que o comandante do navio só depois de ter despachado todas as complexas formalidades aduaneiras poderia deixar desembarcar os passageiros da primeira e da segunda classe. Por último, não antes do meio-dia, desceriam os emigrantes. Gregorio tinha decidido deixar o navio misturando-se com eles. Mas entretanto ia fazer o seu trabalho, como se toda aquela confusão não tivesse nada a ver com ele. Naquele dia havia mais trabalho do que era habitual, porque era preciso limpar o navio de uma ponta à outra para poder receber, setenta horas depois, novos passageiros que se dirigiam a Itália. Tinham-nos posto a todos de faxina e ele trabalhava com uma calma que contradizia a ansiedade que sentia relativamente à decisão que tinha tomado.
- A América é a minha terra, o meu futuro, a minha oportunidade - disse para si mesmo no momento em que viu o perfil do continente americano. Sabia que corria um grande risco ao tentar a fuga, mas o instinto dizia-lhe que ia correr tudo bem. Entretanto, concentrava-se no trabalho.
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- Preciso de ajuda para as retretes da terceira classe - gritou um marinheiro que apareceu à porta da cozinha.
- Gregorio, vai tu fazer as honras - troçou o cozinheiro, que nunca se cansava de o humilhar.
- Sim, senhor - respondeu ele, muito compenetrado, enquanto rejubilava porque a sorte lhe estava a oferecer um pretexto para realizar o seu plano.
Quando entrou na parte das mulheres da zona dos emigrantes, apercebeu-se de como era o inferno que Peppina lhe descrevera tantas vezes.
As pessoas andavam atarefadas a recolher haveres e crianças. Ouviu uma mulher gritar: - Peppinella, ajuda o Salvatore, que não sabe apertar os sapatos.
Ali estava a sua miúda, no meio de uma montanha de bagagens miseráveis, inclinada a apertar os atacadores de um sapatinho muito gasto. E lá ia a mãe, ajudada por um rapazinho maior, a abrir caminho pelo meio dos catres para levar a bagagem para o exterior.
- Eu ajudo-te - propôs Gregorio a Peppina, enquanto pegava num menino com cerca de oito anos, perfeitamente capaz de se arranjar sozinho.
Peppina foi atrás de Gregorio enquanto este se punha na fila, juntamente com as famílias que enchiam a escada de portaló, para desembarcar.
- Mas o que é que tu estás a fazer? - perguntou-lhe em voz baixa.
- Estou a ajudar-te - repetiu ele. Depois voltou-se para o oficial e disse-lhe: - O miúdo torceu o tornozelo. Posso levá-lo a terra?
O oficial viu a farda de ajudante de cozinha e assentiu.
Peppina percebeu imediatamente a situação e, com um gesto, intimou Salvatore a ficar calado. O miúdo nem bufou.
Quando pousou o rapazinho no chão, Peppina pensou que tinha interpretado mal o gesto de Gregorio, porque o viu subir novamente a bordo, abrindo caminho pelo meio daqueles que ainda desciam.
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- Esqueceram-se de um saco. vou buscá-lo - explicou Gregorio ao oficial. Foi a correr buscar o saco que tinha escondido e voltou a descer a escada de portaló, misturando-se com os emigrantes que iam passar a noite num velho armazém do porto, à espera do exame médico para obterem o visto de entrada no país.
Já era noite, e ninguém conseguiria descobrir Gregorio naquela massa anónima de homens, mulheres e crianças.
Quando chegou a terra, despiu a farda de ajudante de cozinha e procurou uma maneira de sair da zona vigiada pela polícia americana.
Viu um camião atulhado de bagagens que avançava lentamente ao longo do East River. Aproximou-se, trepou para se esconder no meio das malas e saiu miraculosamente da zona de controlo alfandegário.
Depois rolou para o chão, juntamente com o seu saco, encostou-se à parede de um edifício decadente que tinha funcionado como armazém, e respirou fundo.
Estava na América e nunca mais voltaria atrás.
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Já era noite e o porto estava semideserto quando Gregorio pôs o saco ao ombro e começou a andar. Agora que a razão voltava a prevalecer sobre o instinto, perguntou a si mesmo o que faria num país do qual nada conhecia, nem sequer a língua. Estava só, não tinha um ponto de referência, levava meia dúzia de trocos nos bolsos e era clandestino.
Cheio de frio e de fome, parou a olhar para o seu navio ancorado, com o terror de que alguém pudesse apanhá-lo e prendê-lo.
Voltou para junto do armazém abandonado, encontrou uma entrada no meio das tábuas desconexas que bloqueavam a passagem, entrou naquele espaço sombrio e foi chocar com um grande bidão, produzindo um barulho enorme. Ficou imóvel. Não aconteceu nada. Encheu-se de coragem e continuou, enquanto os olhos se iam habituando à escuridão. Descortinou uma quantidade de bidões metálicos, caixas de madeira quase desfeitas, restos de mastros carunchosos, bancos de embarcações destruídas. Um gato vadio passou velozmente ao lado dele, a miar, assustado.
Gregorio deixou-se cair num dos bancos, pensou na mãe e começou a chorar.
Recordou uma tarde de outono, quando Isola, com a pequena Stella, tinha ido ter com ele a Porto Tolle, a casa do avô Gàbola, num carro desportivo. A mãe estava cada vez mais bonita e os
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primeiros fios brancos no meio daquela farta cabeleira fulva tinham-lhe parecido estrelas cadentes, cintilantes, que iluminavam um rosto extremamente doce. Isola trazia uma camisola azul de gola alta e umas calças de lã, largas, como as dos marinheiros: mexia-se com uma graciosidade que o encantava.
Stella correu ao encontro dele e entregou-lhe um pequeno embrulho.
- Trouxe-te um doce de castanha que eu fiz, com as minhas mãos - disse-lhe, cheia de orgulho.
Agora desejava ardentemente aquele doce que, naquela altura, aceitara com relutância, e gostaria de poder abraçar aquela menina e a mãe, que iam ao encontro dele com amor. Nessa altura tinha sido odioso, como sempre. Stella entrou em casa e Isola disse ao filho: - Se quiseres, ensino-te a guiar.
- Já sabes que eu gostava muito. Estás a tentar conquistar-me?
- respondeu, com um sorriso irónico.
- Não sei por onde hei de aproximar-me de ti, Gregorio. Preciso muito de ti, porque te quero muito, meu filho.
Acariciou-lhe a face. Ele pousou a mão na da mãe, levou-a aos lábios e beijou-lhe a palma da mão, dizendo-lhe: - Também eu. Mas, por favor, deixa-me seguir o meu caminho.
- É exatamente aquilo que estou a fazer há anos.
- vou partir. Arranjei uma passagem para os Estados Unidos... Nova Iorque. - Depois acrescentou: - Sabes que o pai tem outra mulher? - Enquanto dizia aquilo, perguntou a si mesmo que necessidade tinha de lhe contar.
- Ele escreveu-me e referiu isso. Estou contente por ele.
Isola sorria, ao pensar que ela e Saro tinham encontrado um novo equilíbrio nas suas vidas e que também Gregorio acabaria por fazer as pazes com ela.
- Já tens dezasseis anos, mas insistes em comportar-te como uma criança. Vá lá, entra. Deixamos a Stella com o avô e vamos dar uma volta de carro, só nós dois.
Ele estava a morrer de vontade de se sentar ao volante ao lado de Isola e de deixar que ela o ensinasse a conduzir. Mas fez-lhe a
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vontade com relutância. Era esta ambivalência relativamente à mãe que o fazia sentir-se mal.
Mas ali, na solidão desesperada daquele armazém, em terra estranha, percebia como teria sido mais simples admitir que a amava, decidir voltar atrás e ficar ao lado dela, porque ela podia realizar todos os seus sonhos.
- Desculpa, mãe - sussurrou, com o estômago contraído pela fome e os membros paralisados de frio.
Acabou por adormecer abraçado ao saco e, quando acordou, através das grandes janelas poeirentas do armazém entrava a luz de um novo dia.
No exterior, ouviu a voz de dois homens que passavam à frente do armazém a falar uma língua que ele não conhecia.
Custou-lhe levantar-se e encaminhar-se para a saída, porque estava exausto e dorido. O gato, que na noite anterior o tinha assustado, surgiu agora com a espinha arqueada e começou a esfregar-se nas suas pernas.
- Tu andas à procura de comida, mas aviso-te já que não tenho nada. Vamos fazer um pacto: eu faço-te festas e tu indicas-me um sítio onde eu possa encontrar alguma coisa para comer - propôs.
O bicho miou.
- Pois é, tu és um gato americano e não me entendes. Um de nós vai ter de se decidir a aprender a língua do outro - resmungou Gregorio, enquanto se aproximava da passagem por onde tinha entrado.
Espreitou a rua, para controlar a situação.
Viu alguns funcionários portuários a passar, moços de fretes a descarregar caixas de um camião, uma mendiga a remexer no lixo.
No navio de que tinha descido alguém definira a América como "the lana of opportunity". Tinha aprendido aquela definição de cor. Então pensou: Vamos descobrir se é verdade.
Encolheu-se para sair do seu esconderijo por entre as tábuas desconexas e avançou ao longo do East River, na esperança de encontrar um sítio onde pudesse comer alguma coisa e aquecer-se um pouco. Olhava em volta e via uma paisagem deprimente, varrida por um vento gelado e salpicada de edifícios tristes. Continuou
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a caminhar, até que viu uma placa que dizia: rua 52 e, pouco depois, um estabelecimento com um letreiro familiar: SOLE MIO.
Empurrou a porta e só então se deu conta de que o gato o tinha seguido e estava colado aos seus pés.
- Podias ter ido atrás de alguém melhor - resmungou Gregorio, e entrou no estabelecimento.
Devia ter um péssimo aspeto, porque a mulher que estava atrás do balcão e dois clientes sentados a uma mesa olharam para ele com um ar consternado.
- Queria comer - disse à mulher, ao mesmo tempo que contemplava com avidez um prato cheio de pequenos bolos acastanhados.
- Fugiste de um navio? - perguntou ela, atrás do balcão.
- O meu gato também está com fome - continuou ele, ignorando a pergunta.
Um monumental fogão de ferro fundido aquecia o estabelecimento, e Gregorio começou a sentir-se melhor.
- Dê-lhe leite quente e uns muffins - ordenou à mulher um dos clientes sentados à mesa.
Gregorio voltou-se e olhou para ele. Era um homem robusto, vestido com elegância.
- Eu posso pagar - esclareceu Gregorio, ao mesmo tempo que pousava algumas moedas em cima do balcão.
A mulher estendeu-lhe uma malga de leite e o prato dos doces.
- Serve-te do que quiseres. É don Salvatore quem oferece - e indicou-lhe o cliente que tinha falado.
- Obrigado, senhor - murmurou Gregorio, dirigindo-se a ele. Enterrou os dentes num muffin, bebeu o leite, deu uns pedaços
ao gato, e quando levantou os olhos para o homem que lhe tinha oferecido comida sentiu-se gelar. Don Salvatore sorria-lhe, ao mesmo tempo que exibia uma fiada inteira de dentes de ouro reluzente. Confessou-lhe então: - Saí do Julius ontem à noite. Não tenho documentos, não sei para onde ir, não conheço ninguém... para além deste gato.
- Escuta bem, rapazinho - disse o homem que estava na companhia de don Salvatore -, quando acabares de comer, vai ao
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Hospital Italiano. Encontra-lo no cruzamento com a Highway. Entras, perguntas pela dona Assunta e dizes-lhe que vais da parte de don Salvatore Matranga.
- E depois? - perguntou Gregorio.
- Eh... queres saber muitas coisas! - respondeu, ao mesmo tempo que saía do estabelecimento com o outro.
Pouco depois, também Gregorio, que se sentia já refeito, decidiu ir embora.
- Então, muito obrigado - disse à mulher ao balcão, e perguntou-lhe um pouco hesitante: - Posso confiar naqueles homens, não posso?
- Podes confiar - confirmou ela. Quando chegou à rua, o gato foi atrás dele.
- Escuta, meu amigo, eu já cumpri o meu dever. Agora, cada um segue o seu caminho - esclareceu.
O gato fitou-o e respondeu com uma miadela.
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Dona Assunta Pappalardo tinha todo o ar de ser uma doméstica satisfeita. Era mais larga do que alta e emanava um cheiro a refogado e caponata1 de beringelas. Ostentava sobre o seio farto um medalhão de ouro com a fotografia de um homem, o marido defunto. A aliança que trazia enterrava-se na gordura que lhe cobria o dedo. Falava com a voz suave de uma menina e sorria, mostrando uma dentadura ofuscante.
O seu escritório era um aposento atulhado de latas de carne, embalagens de massa, sacos de arroz e garrafas de azeite. Era o reino da abundância, aquilo que Gregorio observava, arrebatado, depois de ter contado à mulher a sua breve história.
- Estás com má cara e precisas de te lavar, porque cheiras muito mal. Uma vez que é don Salvatore quem te manda, vou ver o que posso fazer. Entretanto, lava-te e muda-te. Tens roupa limpa?
Gregorio anuiu. O ar maternal de dona Assunta tranquilizou-o.
- Quem é don Salvatore? - perguntou.
- É uma pessoa em quem devemos confiar, sem fazer demasiadas perguntas. Agora volta ao corredor e desce até à cave. Lá encontras as casas de banho. Há toalhas lavadas numa prateleira. Pega numa e usa-a.
1 Prato típico siciliano à base de legumes estufados com molho de tomate. (N. da T.)
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Gregorio obedeceu e perguntou a si mesmo por que razão aquele pequeno edifício, bastante decrépito, ostentava um letreiro que dizia HOSPITAL ITALIANO, porque ainda não tinha visto nem doentes, nem pessoal médico. Em qualquer caso, achou por bem aceitar o conselho de não fazer demasiadas perguntas e desceu à cave. A casa de banho era limpa, a água quente, o sabonete cheirava a ervas aromáticas e usou-o também para rapar a escassa penugem que lhe cobria o lábio superior.
Voltou a subir as escadas e cruzou-se no corredor com uma mulher vestida de enfermeira a empurrar uma cadeira de rodas que transportava um homem idoso. Sorriram-lhe os dois.
- Não há dúvidas, és um belo rapaz - comentou dona Assunta, quando o viu entrar no escritório. E acrescentou: - Agora podes deixar aqui o teu saco. Sobe ao primeiro andar, vão servir o almoço. Pega nesta senha e entrega-a ao pessoal que te servir. Estou a tratar de ti e depois, quando acabares de almoçar, conversamos. - Mandou-o embora com um gesto, uma vez que à frente dela estava sentado um homem mal-arranjado a quem dirigiu um sorriso maternal.
Naquele espaço que funcionava como cantina toda a gente falava italiano, com um forte sotaque meridional, misturado com palavras em inglês que ele se esforçava por interpretar, recordando as noções que adquirira quando trabalhava no Hotel Quattro Fontane, no Lido de Veneza. Entregou a senha de refeição e pousou num tabuleiro os pratos que lhe ofereceram: lasanha com molho de carne picada, almôndegas, batatas e pudim. Depois olhou em volta, para procurar um sítio onde se sentar. Uma parte da cantina era efetivamente ocupada por mulheres e homens em pijama e roupão. Um pequeno setor, porém, destinava-se a pessoas como ele.
Encontrou um lugar vazio ao lado de dois rapazes um pouco mais velhos do que ele: Tonio, natural de Abruzzo, e Franco, da Emilia-Romagna. Tinham ambos perdido o emprego e iam ali fazer as refeições enquanto esperavam por uma nova ocupação.
- Isto é um hospital para os imigrantes, mas funciona também como centro de acolhimento para os clandestinos, como nós.
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As autoridades sabem disso, mas em vez de fecharem o centro e de nos recambiarem para casa, fazem de conta que não sabem e deixam-nos em paz - explicou Tonio, que tinha desembarcado havia já alguns anos e trabalhara numa barbearia, na rua 42. O barbeiro tinha morrido uma semana atrás, a viúva fechara o estabelecimento e ele estava desempregado.
- Onde é que dormes? - perguntou Gregorio.
- Em casa de uma pessoa da minha terra. Estou à espera de uma vaga para trabalhar nos armazéns do porto. É uma questão de dias, disse-me a dona Assunta - explicou.
Franco, por sua vez, fazia limpeza em alguns estabelecimentos da zona e dormia na arrecadação de uma escola de dança na rua 38.
- Em compensação, todas as manhãs tenho de limpar o soalho. A diretora é uma alemã pedante, que vê grãos de poeira até onde não existem. Mas eu afeiçoei-me àquele lugar, até porque à força de olhar para os alunos aprendi a dançar e, de vez em quando, saco uma lição à alemã, porque quando ela bebe um copito a mais fica simpática e ensina-me a técnica.
- E depois... o que é que fazes com essa técnica? - perguntou Gregorio.
- Ao sábado, ajudo a servir às mesas numa sala onde há uma pista de dança. Se conseguir que me contratem como bailarino, estou como quero. Não imaginas a quantidade de mulheres maduras, cheias de dinheiro, que frequentam aquela sala! Bonito como sou, engato uma e instalo-me para o resto da vida - explicou Franco.
- Eras capaz de viver por conta de uma mulher? - perguntou Gregorio, espantado, e arrependeu-se imediatamente de ter exteriorizado a sua desaprovação. Mas Franco não levou a mal.
- A vida é só dar e receber, meu caro - sentenciou.
- Tu fazes muitas perguntas, mas de ti não falas - observou Tonio.
- Porque não tenho nada para dizer. Só aqui cheguei ontem.
- E a tua família?
- Não tenho - rematou, e voltaram-lhe à memória as lágrimas da noite anterior, no gelo do armazém abandonado, enquanto pensava na mãe. Preferiu mentir a explicar a sua situação familiar.
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- Encontrei um gato - disse, para mudar de assunto. - Seguiu-me até aqui. Espero que se tenha ido embora. - Mas quando saiu ficou contente por o encontrar à porta do Hospital Italiano.
Caminhou a passos largos, levando na mão, como uma relíquia, o endereço que dona Assunta lhe tinha dado e as indicações para chegar à pizaria Bella Napoli.
- Não apanhes transportes públicos, porque te vais enganar. Não peças informações, porque não vais perceber o que te disserem. Vai a pé e segue as minhas indicações. Don Luigi está à tua espera - disse-lhe ela.
Gregorio fez exatamente assim, e chegou à frente da pizaria quando começavam a descer as primeiras sombras da noite.
Encontrou a porta escancarada, e viu que lá dentro as cadeiras estavam pousadas em cima das mesas. Uma rapariga andava de gatas a lavar o chão com uma escova e água cheia de sabão.
Viu os sapatos dele, levantou os olhos e disse-lhe qualquer coisa em inglês, ao mesmo tempo que lhe indicava a porta de saída.
- I do not understand - respondeu sensatamente Gregorio. E acrescentou: - Sou italiano, chamo-me Gregorio e estou à procura do signor Luigi.
Então a rapariga levantou-se, virou na cabeça para o fundo do estabelecimento e gritou: - Pai, chegou o Gregorio. - Falou em italiano, e depois repreendeu-o: - Manda embora aquele gato que trouxeste contigo.
Gregorio voltou-se e viu o animal, que começou a miar. - Anda atrás de mim desde hoje de manhã, mas não é meu.
- Então vê-se logo que é uma fêmea e que gosta de ti - disse a rapariga, com um sorriso. Depois agarrou num trapo e atirou-o ao gato, que se esquivou com um salto. Gregorio não apreciou aquele gesto e ela apercebeu-se.
- O gato é teu, e contaste-me uma mentira. De qualquer maneira, neste estabelecimento não são admitidos animais.
Era engraçada e tinha um sorriso bonito. Trazia os cabelos cobertos com um lenço amarrado na nuca, e o corpo enfiado numa bata informe.
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- E aquele papagaio lá em cima? - perguntou Gregorio, indicando uma arara num poleiro, com uma pata amarrada a uma corrente, a grasnar: - Venham à Bella Napoli.
- Não faças demasiadas perguntas - censurou a rapariga, ao mesmo tempo que se punha outra vez de joelhos.
Gregorio atravessou o pavimento molhado, em bicos de pés, e entrou numa cozinha ampla e sobreaquecida, onde um homenzinho de ar irascível pescava de um balde uma mão-cheia de pés de salsa e, com uma espécie de cacarejo, ralhava a uma mulher robusta que estava a cortar cebolas: - Quantas vezes é preciso dizer-te que estes pés não se deitam fora? Ainda me vais arruinar!
Os fogões estavam acesos, havia grandes panelas ao lume, e uma mulher idosa chamuscava um frango depenado que segurava pelas patas e pelo pescoço, enquanto blasfemava contra a avareza do homem.
Gregorio apresentou-se ao cozinheiro.
- Ah, tu és o Gregorio - exclamou ele. Depois gritou: - Mena, acompanha o rapaz lá acima, e depois desçam depressa porque há muito que fazer.
A jovem Mena apresentou-se na cozinha a limpar as mãos à bata e disse a Gregorio: - Anda comigo.
Avançou à frente dele por um lanço de escadas que dava acesso ao primeiro andar. Abriu uma porta e entraram numa sala de estar.
- Isto é a nossa casa. Vais dormir com o meu irmão, o Vittorio. O quarto dele é o segundo à direita, nesse corredor. Ele agora está na escola. Eu chamo-me Filomena. Se fores bem-educado e não roubares, como fez o rapaz que cá esteve antes de ti, vais sentir-te em família. O meu pai está sempre a gritar, mas é um doce. Arruma o teu saco e depois desce - disse-lhe, e em seguida desapareceu.
Gregorio olhou em volta e disse em voz baixa: - Então sempre é verdade que este é o país das oportunidades!
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Luigi Bartiromo tinha emigrado para a América vinte anos antes, levando consigo a mãe, viúva, e um irmão mais novo. Estabelecera-se imediatamente ali, naquela pizaria, que então se chamava Da Edoardo - Pizzeria Vesuvio. Era um espaço mal-arranjado, porque o proprietário tinha adoecido e não podia tratar dele. Depois da sua morte, a mulher, prima em segundo grau dos Bartiromo, mandou-os vir de Itália para lhe entregar o estabelecimento e regressar a Mergellina. Partiu logo após a chegada dos Bartiromo, cedendo a atividade a Luigi, que se comprometeu então a pagar o que devia num prazo de cinco anos.
com a ajuda do irmão e da mãe, limpou o estabelecimento, mudou o letreiro e seguiu as indicações de um compatriota muito considerado no bairro: Salvatore Matranga. Luigi abastecia-se nos armazéns que don Salvatore lhe sugeria, fechava as portas ao público quando don Salvatore queria reunir-se ali com os seus amigos e casou-se com Marilena, a mulher que don Salvatore lhe apresentou. Luigi satisfazia sempre os seus pedidos, porque sabia que só teria vantagens com isso.
- Se don Salvatore te mandou ter comigo, ofereço-te comida, alojamento e salário. Vais trabalhar como empregado de mesa, mas atenção para não falhares nunca - comunicou-lhe naquela noite, quando Gregorio se sentou à mesa com a família Bartiromo.
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- Pode contar comigo - garantiu Gregorio.
Não lhe parecia verdade ter um teto por cima da cabeça e um trabalho decente.
- Mas trouxeste um gato atrás de ti, e chegas-lhe a comida por baixo da mesa - observou Luigi, contrariado.
- Foi o primeiro ser vivo que tive junto de mim assim que desembarquei. Passámos a noite juntos, num armazém abandonado. Não imaginava que viesse atrás de mim. Já tentei mandá-lo embora, mas ele volta sempre - justificou-se.
- Pai, podemos ficar com ele? - perguntou Vittorio.
- Façam como quiserem, mas eu não quero andar aí a tropeçar nele - concluiu Luigi. Gregorio tinha ido parar ao meio de pessoas que o consideravam parte da família, mesmo que fosse para fazer a vontade ao homem dos dentes de ouro.
Naquela família trabalhavam todos, mesmo o rapazinho, cuja tarefa era despejar o lixo na viela e escrever o menu numa lousa que estava pendurada à porta do estabelecimento.
A pizaria tinha duas salas: uma grande, que dava para a Mulberry Street, e outra mais recolhida e elegante, que dava para a viela. Na grande servia-se piza, vinho e cerveja; o espaço mais pequeno era um restaurante onde se comiam, cozinhados pela velha senhora Bartiromo e pela nora, os pratos típicos da cozinha meridional italiana. Tinha apenas cinco mesas, que estavam sempre reservadas. Os poucos clientes habituais entravam diretamente pela viela; a recebê-los, estava sempre o gato de Gregorio que, de comum acordo, tinha sido batizado com o nome de Mussolini: Benito.
- Assim, quando me irritar, posso dar-lhe um pontapé - decretou Luigi, apesar de saber que o gato era extremamente hábil nos desvios fulminantes e na fuga. Por vezes, don Salvatore reservava a pequena sala do restaurante para si e para os seus convidados. Nessas ocasiões, só Luigi tinha acesso àquele espaço para receber os pedidos e para servir.
Um dia, Gregorio disse-lhe: - Don Salvatore só tem quatro convidados. As outras mesas vão ficar desocupadas.
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- Rapaz, mete-te na tua vida - replicou Luigi, e fulminou-o com um olhar tão ameaçador que deixou Gregorio sem fôlego.
Todas as semanas, o patrão pagava-lhe regularmente o salário, para além de lhe deixar todas as gorjetas. Gregorio amealhava dólar sobre dólar para pagar a escola, que frequentava ao domingo, dia de encerramento do restaurante, e onde aprendia a ler e a escrever corretamente o inglês. À noite, quando se retirava para o quarto, enquanto Vittorio dormia ele estudava, e depois ficava feliz quando o professor lhe dava os parabéns pelos seus progressos.
Vittorio era um bom companheiro de quarto. Às vezes conversavam, e o rapazinho queria saber como era a Itália, que ele nunca tinha visto.
- Até eu sei pouca coisa, apesar de lá ter nascido, porque fui criado no campo e ali apenas chegam ecos dos grandes acontecimentos. De qualquer modo, agora em Itália há os fascistas, e veem-se por todo o lado estátuas e retratos de Mussolini, como vocês têm por todo o lado retratos de Roosevelt.
- O nosso presidente está a ajudar-nos a sair da crise. Como é a situação no vosso país?
- Eu não teria vindo para a América se não houvesse crise no nosso país.
- Mas a tua mãe é rica e o teu pai iniciou uma atividade no Brasil. Porque é que insistes em trabalhar como empregado de mesa, em vez de ficares com os teus pais?
- Eles ganharam a fortuna deles. Eu tenho de ganhar a minha.
À noite, de vez em quando, Vittorio surpreendia o companheiro de quarto a escrever longas cartas à mãe e ao pai. Quando chegavam as respostas, tinha pena de conhecer tão pouco e tão mal a língua italiana, porque sentia vontade de pedir a Gregorio que lhe lesse aquelas notícias que voavam de um lado para o outro do oceano. Pedido que Gregorio, em qualquer caso, não satisfaria, para evitar que o rapazinho descobrisse as mentiras que contava aos pais. De facto, dizia-lhes que o trabalho corria muito bem e que, graças a ele, a clientela da pizaria tinha aumentado, de tal forma que o proprietário o tinha promovido a diretor. Para demonstrar
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o seu sucesso, tinha pedido a Vittorio que lhe tirasse uma fotografia, no meio do estabelecimento, com um fato elegante que tinha comprado no Saks na Quinta Avenida, esbanjando uma parte considerável das suas economias, porque adorava peças de vestuário requintadas e caras.
Quando Mena, a filha de Luigi, o viu assim tão elegante, ficou fascinada, porque Gregorio estava realmente a tornar-se num jovem esplêndido.
Alisava o cabelo com brilhantina e perfumava-se discretamente com uma essência inglesa do Floris, porque tinha lido no jornal que aquele era o perfume que usavam as estrelas de Hollywood.
O galã do cinema em que se inspirava era Clark Gable e, tal como ele, punha os dentes a brilhar e ostentava um sorriso aberto para os mostrar. Só lhe faltava o bigode porque, com grande pena sua, a barba tardava a crescer-lhe.
Tinha agora dezoito anos, e a admiração de Mena causava-lhe alguma perturbação. Mas sabia que seria um erro misturar o trabalho e a hospitalidade dos Bartiromo com os seus impulsos juvenis. Para além do mais, Mena estava, havia já algum tempo, destinada a um compatriota cujos pais possuíam uma drugstore no mesmo bairro. Os dois jovens eram oficialmente noivos, e já estariam casados se Mena não continuasse a adiar o casamento.
Um dia, quando estavam sozinhos na cozinha, ela arranjou maneira de se roçar nele. Gregorio deu um salto para trás.
- Será que não gostas de mulheres? - perguntou ela, desconfiada.
- Tu queres arranjar-me complicações. Se eu te puser uma mão em cima, o teu pai põe-me na rua, o teu noivo dá-me uma facada e, além disso, vou sentir-me um verme por ter traído a confiança que têm em mim - explicou abertamente.
- O noivado existe precisamente para as pessoas perceberem se são feitas uma para a outra - disse Mena.
- Mesmo que tu rompesses com o teu namorado, eu não começava a namorar contigo. Não por não gostar de ti, mas porque
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nunca ocuparia o lugar daquele excelente rapaz. Não tenciono casar-me, nem agora, nem no futuro. Fiz-me entender?
- Já percebi - respondeu ela, de má vontade.
Uma vez que uma mulher rejeitada passa de apaixonada a inimiga, a filha de don Luigi atormentava-o com uma quantidade de pequenas prepotências, que Gregorio se esforçava por ignorar, da mesma forma que anteriormente tinha repelido as suas tentativas de sedução.
No entanto, o instinto dizia-lhe que tinha chegado o momento de fazer as malas e procurar emprego noutro lado.
A solução caiu-lhe do céu de repente. Uma noite de outubro, a sala que dava para a viela foi encerrada ao público, porque don Salvatore queria jantar com alguns amigos. Gregorio estava à porta para o receber. Havia já um ano que lhe tinha sido oferecido o privilégio de servir à mesa o homem e os seus convidados. Don Salvatore perguntou-lhe: - Quantos anos tens agora, Greg?
- Dezanove, senhor - respondeu ele, muito compenetrado.
- Portaste-te bem com o Luigi. Excelente! - Deu-lhe uma pancadinha na face e sorriu-lhe, mostrando os seus dentes de ouro.
- Obrigado, senhor.
- Amanhã vem ter comigo ao meu escritório, porque eu preciso de falar contigo.
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Durante toda a noite, sentiu na face, aquela pancadinha de don Salvatore. Parecera-lhe uma carícia que se faz a um cachorrinho obediente. Obviamente, estava-lhe grato pelo emprego e por aquelas instalações tão dignas, mas de cada vez que se encontravam e o homem o gratificava com aquele sorriso dourado, Gregorio sentia um mal-estar que não conseguia ultrapassar. De resto, a três anos de distância do primeiro encontro, raras vezes lhe dirigira a palavra. Na manhã seguinte, decidiu falar sobre o assunto com don Luigi.
- Já fui avisado - respondeu ele. E acrescentou: - Vai bem vestido, porque ele liga muito a essas coisas. - Depois explicou-lhe onde devia ir.
- O que será que ele quer de mim?
- Não sei, mas ainda que soubesse não te dizia. De resto, é uma pessoa correta, em quem se pode confiar.
- Não vou conseguir regressar a tempo para servir os clientes do almoço - lamentou Gregorio, que receava aquele encontro e esperava que o patrão tentasse retê-lo.
- Para de arranjar desculpas, ele não te come.
Gregorio caminhou ao longo da Mulberry Street. Gostava daquela rua barulhenta, frequentada por pessoas de diferentes países que falavam os seus dialetos recheados de palavras inglesas,
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criando assim uma língua particular, muito colorida. Ele já dominava o inglês, mas continuava a frequentar a escola ao domingo porque tinha um objetivo: ser confundido com um verdadeiro yankee. Gostava de tudo, na América: da vida frenética, da música, da moda, da literatura, do presidente.
De manhã, quando descia à pizaria, parava diante do retrato de Franklin Delano Roosevelt e dizia: - Bom-dia, chefe. Ainda vai chegar um dia em que nos vamos encontrar e tu me vais apertar a mão.
A velha senhora Bartiromo resmungava: - Devias agradecer a Nossa Senhora! A ela é que devias pedir que te estendesse uma mão, porque pensas demasiado em raparigas e isso não é bom.
A senhora não sabia que Gregorio, todas as noites, antes de se deitar, erguia os olhos para a tábua votiva que tinha trazido de Itália e pousado numa consola, por cima da cama, e rezava: - Virgem Santa, põe as tuas mãos sobre a minha cabeça e conduz-me ao sucesso. - As mulheres eram apenas um modo, um instrumento para ter a certeza de que alguém o amava. Precisava dessa confirmação, porque sentia terrivelmente a falta da família.
Para conquistar as raparigas, percebera que devia falar pouco, o estritamente indispensável, e ouvir muito, sem nunca exprimir juízos.
- Hoje estás de folga? - disse alguém atrás dele, enquanto percorria a Mulberry Street.
Voltou-se e viu Franco Fantuzzi, um dos rapazes que conhecera no Hospital Italiano, quando tinha acabado de desembarcar na América, que se pôs ao lado dele a caminhar com o seu passo elástico.
- Estou. E tu? - respondeu Gregorio.
- Eu vou para casa descansar, porque estou a pé desde as quatro horas da manhã - explicou-lhe o jovem, a sorrir.
Tinham voltado a encontrar-se alguns anos antes e, desde então, iam juntos de vez em quando dançar a um sítio frequentado por italianos. Franco ensinava a Gregorio os passos das danças
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mais na moda e ele, um pouco atrapalhado, esforçava-se por adquirir uma naturalidade que não lhe pertencia. Mas gostavam daquele lugar, porque era o sítio ideal para conhecer raparigas. Naquele período andavam a dividir equitativamente os favores de uma americana de primeira geração. Chamava-se Angelina Pardo, tinha vinte anos e era empregada numa loja de brinquedos na rua
42. A mãe, uma siciliana de Ragusa, trabalhava como empregada doméstica a horas, o pai era um alcoólico crónico, o irmão mais velho era sargento da polícia e uma irmã tinha-se alistado no Exército de Salvação. Angelina vivia consumida pela vontade de viver, considerava o trabalho um castigo de Deus e o amor um bálsamo para as suas frustrações.
- Esta noite vou sair com a Angelina - anunciou Franco. - Se tu não tiveres nada em contrário, claro.
Gregorio tinha a cabeça noutro lugar. O encontro com don Salvatore preocupava-o, e Angelina representava o último dos seus pensamentos.
- Dá-lhe cumprimentos meus - respondeu, simplesmente. Franco conhecia-o o suficiente para saber que tinha chegado o
momento de se despedir.
- Até um dia destes - disse, e afastou-se.
O escritório de don Salvatore ficava no rés do chão de um velho edifício. Na fachada, ao nível do primeiro andar, via-se um letreiro com letras douradas sobre um fundo vermelho: MATRANGA
- IMPORT-EXPORT.
Bateu a uma porta de vidro, perguntando a si mesmo o que poderia don Salvatore importar e exportar. A única coisa que sabia dele era que os Bartiromo o veneravam. Desde que lhe fora concedido o privilégio de o servir à mesa, tinha inutilmente arrebitado as orelhas para ouvir as conversas do homem com os seus convidados. Falavam de banalidades: das doenças dos filhos, dos espetáculos da Broadway, da penosa recuperação da economia americana. Reservavam os assuntos mais interessantes para quando Gregorio saía e os deixava sós.
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Uma noite, um dos convidados colocou em cima da mesa uma pilha de pequenas caixas de cartão. - Para as vossas senhoras anunciou. - São uma novidade absoluta. De hoje em diante, acabaram-se as meias de seda; agora é só nylon.
- E o que é esse nylon? - perguntou Sal Matranga, ao mesmo tempo que extraía um par de meias de uma das caixas.
- Uma fibra artificial, muito mais resistente do que a seda. As mulheres vão ficar doidas com estas meias, e eu tenciono ser o primeiro a comercializá-las. Tu podias exportá-las para Itália. Por enquanto são um bocado caras, mas são indestrutíveis.
- Neste momento, em Itália, as pessoas não têm nem sequer lágrimas para chorar; imagina se iam comprar estas meias. Daqui a uns anos... talvez... de qualquer modo, obrigado. vou levar estas à minha senhora - disse don Salvatore.
Acontecia por vezes falarem do fascismo e de Mussolini, mas sempre com um ar distanciado, como se os destinos daquele país longínquo não lhes dissessem respeito. Matranga, de resto, era o menos falador. Quando acabavam de jantar, depois de Gregorio ter servido o café e os licores, Sal dizia-lhe: - Obrigado. Podes sair e fechar a porta.
A porta de vidro a que Gregorio acabava de bater abriu-se, e na soleira perfilou-se um velhinho de aspeto enérgico, com um charuto enfiado nos dentes, que olhou para ele com um ar interrogativo. Era Antonino, o pai de Sal Matranga.
Gregorio tirou o chapéu e disse: - Don Salvatore mandou-me vir ter com ele.
- Então, entra - respondeu o velho. Voltou a fechar a porta e Gregorio achou-se numa espécie de armazém atulhado de caixas de cartão empilhadas até ao ao teto. Em todas elas estava escrito, a vermelho: MATRANGA - IMPORT-EXPORT.
- Salvatore, está aqui um rapaz à tua procura - gritou, e com um gesto indicou a Gregorio uma porta ao fundo do aposento, ao mesmo tempo que se sentava atrás de uma secretária e, reclinando-se, acendia o charuto.
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Matranga não se encontrava só. com ele estavam mais três homens que Gregorio nunca tinha visto. Estavam todos em mangas de camisa em volta de uma mesa de bilhar, e disputavam uma partida.
Era então aquele o escritório de Sal Matranga?, perguntou Gregorio a si mesmo. À entrada um velho a fumar charuto, e aqui uma sala de bilhar onde se joga às dez horas da manhã?
De resto, o primeiro encontro com don Salvatore não tinha ocorrido num lugar assim tão diferente: estava sentado à mesa de um bar italiano, o Sole mio, a conversar com um sujeito muito parecido com ele.
Do lado de fora de um janelão com grades, ao fundo daquele aposento, via-se um pátio, onde alguns homens descarregavam caixas de um camião.
Uma vez que ninguém parecia aperceber-se da sua presença, Gregorio pigarreou, embaraçado. Don Salvatore, com o corpo quase empoleirado no taco que apertava com as duas mãos, resmungou:
- Silêncio! - E continuou a jogar, como se ele ali não estivesse.
Cada vez mais inquieto, nada interessado no jogo, Gregorio empertigou-se e começou a rodar o chapéu entre as mãos.
Teria realmente valido a pena "ir bem vestido", como lhe recomendara don Luigi, para chegar ali e ficar a ver aqueles quatro a jogar bilhar? Talvez don Salvatore quisesse pô-lo a trabalhar como carregador? Carregar e descarregar caixotes com a marca Matranga... mas que rica perspetiva!
Uma imprecação fê-lo estremecer. Don Salvatore atirou o taco para o outro lado da sala. Os outros fizeram troça. Ele vociferou:
- Vão trabalhar, desgraçados!
Os três pegaram nos casacos e saíram para o pátio.
- Tu vens comigo - ordenou don Salvatore a Gregorio.
Passou-lhe pela frente sem olhar para ele, e o rapaz seguiu-o ao longo de um corredor cheio de caixotes.
Sal abriu uma porta e entraram num escritório a sério, com uma secretária de mogno, dois telefones, um móvel-bar e quadros com imagens de Nápoles pendurados nas paredes.
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- Senta-te - ordenou-lhe, em dialeto napolitano, indicando uma cadeira em frente à secretária.
Matranga deixou-se cair pesadamente numa cadeira giratória, pousou os cotovelos no tampo da secretária, atulhado de documentos, e perscrutou-o durante alguns instantes com um ar absorto.
- Andei a observar-te durante estes anos. És um bom rapaz... respeitador e trabalhador... e isso deixa-me contente - começou.
Gregorio escutava-o, preocupado, sem mexer um músculo.
- O teu tempo com don Luigi chegou ao fim - prosseguiu o homem dos dentes de ouro. - Agora já estás preparado para um job mais qualificado - concluiu.
Gregorio não conseguia afastar os olhos dos dentes de ouro, que o inquietavam. Gostava de lhe ter perguntado. - Que trabalho? - Mas limitou-se a assentir.
- Se o senhor o diz... mas tenho pena de deixar os Bartiromo murmurou.
- Isso só abona em teu favor. Eles são bons amigos. Mas, na próxima semana, vais apresentar-te aqui com a tua bagagem. Vamos instalar-te em grande.
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Gregorio regressou à pizaria a tempo para o jantar. Vestiu o casaco de empregado de mesa e começou a servir os clientes.
Quando as últimas pessoas saíram do estabelecimento e a porta foi fechada à chave, sentou-se a uma mesa com don Luigi, que tinha acabado de abrir uma garrafa de vinho.
- Agora conta-me tudo - pediu o homem.
Gregorio falou-lhe do encontro na sede da Matranga - Import-Export e concluiu: - Don Luigi, vamos ter de nos despedir.
- Eu sei - respondeu ele, e serviu nos copos uma dose generosa de vinho.
- Tenho muita pena - disse Gregorio.
Sempre soubera que um dia teria de deixar a pizaria, mas as separações angustiavam-no.
- Também sei isso. Mas é para o teu bem. És demasiado inteligente para ficares a servir piza toda a vida - observou don Luigi.
- Aprendi muito aqui e, sobretudo, senti-me acolhido e amado pela vossa família. Isto foi muito importante para mim, e quero que o saibam.
- Ninguém te deu nada. Tudo aquilo que tiveste, mereceste-o. Foste honesto e leal... Também te portaste bem com a minha filha. Não penses que não dei conta da forma como te atormentou. Tem um fraquinho por ti. Outro qualquer, no teu lugar, teria aproveitado...
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És realmente um ótimo rapaz - disse don Luigi, e acrescentou:
- À tua, Greg. Felicidades - e tocou com o seu copo no de Gregorio, para brindar.
- Felicidades para si também - respondeu o rapaz. Beberam um trago de vinho e depois don Luigi levantou-se da
mesa.
- Já está a ficar tarde, vamos dormir - sugeriu. Gregorio continuou colado à cadeira.
- Há uma coisa que eu tenho de lhe perguntar, que gostava de saber... para a minha tranquilidade.
Don Luigi voltou a sentar-se.
- Desembucha.
- Porque é que Sal Matranga se incomoda tanto comigo?
- Já me tinhas perguntado isso uma vez. Ele incomoda-se muito com muita gente.
- Qual é a contrapartida?
- Mas que contrapartida? Se pensas isso, estás a ofendê-lo! É uma pessoa que tem o sentido da amizade.
- Gostava de perceber. Quando ele me mandou ter consigo, eu tinha-o encontrado por acaso. Andava à procura de um teto e de um trabalho. Sempre por acaso, ele sabia que aqui precisavam de ajuda. Mas eu agora não lhe pedi nada, e ele obriga-me a mudar de emprego. Porquê? - teimou em saber.
- E não estás satisfeito?
- Claro que estou, mas é uma satisfação que não me dá tranquilidade.
- Explica-te, porque não te percebo.
- Ora bem, imaginemos que amanhã o senhor diz a don Salvatore que não lhe compra mais produtos, porque encontrou alguém que lhe faz uns preços mais interessantes...
Don Luigi, que começara já a manifestar sinais de algum desconforto, naquele momento levantou-se de um salto e gritou:
- Que caraças, mas será que tu ficaste maluco? Queres arranjar-me alguma complicação? Estás agora para aí a dizer disparates?
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- Perdoe-me, don Luigi. Admiti uma hipótese errada - desculpou-se Gregorio, corando, mas perguntou a si mesmo por que razão o homem se teria assustado. Talvez Sal Matranga tivesse don Luigi na mão, e sabe-se lá quantas outras pessoas como ele, obrigadas a dirigir-se à sua firma de importações para se reabastecerem de alguma coisa. E, no entanto, os Bartiromo respeitavam-no e veneravam-no como um santo. Isso queria dizer que havia alguma contrapartida. Mas se tinha bastado a hipótese de uma deserção para transtornar aquele homem, isso também significava que don Salvatore era temido. Don Luigi tinha medo dele. Porquê?
Gregorio conhecia os mafiosos da zona. Eram gente má que incomodava um pouco toda a gente, mas não os Bartiromo, porque eram protegidos de Salvatore Matranga, o qual, evidentemente, era muito temido; ou talvez também eles lhe devessem alguma coisa.
Ele próprio devia o seu trabalho na pizaria a don Salvatore que, agora, o queria instalar "à grande".Assim, a dívida que tinha para com ele ia aumentar. Era esta ideia que não lhe dava paz.
Então disse: - Perdoe-me, don Luigi. O que acontece é que eu me interrogo sobre algumas questões... Tenho a sensação de que don Salvatore quer planificar a minha vida.
- E se fosse assim? Será que ele te disse que tens de roubar... de matar? Só te está a pôr a trabalhar, trabalho honesto, entenda-se. Aconteceu-te alguma coisa de mal durante o tempo em que estiveste a trabalhar connosco?
- Só coisas boas, acabei de lhe dizer isso.
- E então, o que é que tu queres? - Tinha acalmado, e pousou-lhe uma mão no ombro, com um ar paternal. - És muito desconfiado, Greg, e isso não está bem. Uma pessoa estende-te a mão e tu queres recusá-la?
- Gostava de lha poder estender também, porque assim ficávamos quites. Não gosto de ficar a dever nada a ninguém.
- Pois é... tu vens do Norte e não nos conheces. Nós, os napolitanos, mesmo vivendo em Nova Iorque nunca vamos mudar. Temos o coração grande. Don Salvatore tem um coração tão grande
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como Manhattan. Não te deixes assustar pelos seus dentes de ouro. Ele fez aquilo quando era jovem e queria mostrar a toda a gente que era um homem rico. E agora conserva-os, apesar de já não se usarem, porque limou os dele para os cobrir com ouro. Tem uma fortuna dentro da boca...! Em qualquer caso, digamos que eu não ouvi aquele chorrilho de disparates que deitaste cá para fora.
- E não ouviu, até porque eu não disse nada - afirmou Gregorio.
- Exatamente. E agora vamos dormir, que é o melhor.
Como sempre que estava preocupado, Gregorio dirigiu uma prece especial àquela Virgem que tinha as feições da sua avó. Pediu-lhe que o tranquilizasse.
Mas continuou às voltas na cama, tentando inutilmente adormecer. Nem sequer a presença do gato Benito, enroscado aos seus pés, lhe dava sossego.
- Acordaste-me - queixou-se Vittorio.
- Desculpa - disse Gregorio.
- Não te sentes bem?
- Estava só a pensar.
- Então pensa quieto... em que é que estavas a pensar?
- Que talvez pudesse ir a Chicago... alguma vez te falei da Peppina Ruotolo?
- A padeira? Aquela que tinha umas mamas de a gente se perder lá no meio? - perguntou Vittorio, já completamente acordado.
- Essa - confirmou Gregorio.
- Então?
- Parece que não arranjou nenhum americano bem instalado na vida que quisesse casar-se com ela. A última vez que fui ter com ela, propôs-me trabalhar na padaria. Ia passar da piza para o pão. Mas tinha de me casar com ela...
- Mas tu queres mesmo casar-te?
- É melhor não, não é? Ela ia entalar-me para toda a vida, e eu não me vejo a fazer massa de pão para o resto dos meus dias.
Recordou as noites com Peppina dentro da baleeira, numa alternância de abraços apaixonados e de projetos para o futuro.
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Nessa altura tinha apenas dezasseis anos e acreditava que, se chegasse à land of opportunity, ia enriquecer em poucos meses. Peppina sonhava com um marido americano que lhe ia oferecer uma casa com jardim, um automóvel e um frigorífico. Tinham passado três anos e os seus sonhos ainda não se tinham realizado.
- Já sem contar que, se te mudares para Chicago, nunca mais nos vemos - comentou Vittorio.
- Tenho de pensar no assunto - respondeu Gregorio. E continuou: - Agora vamos dormir.
O facto de gostar de Peppina Ruotolo não chegava para o levar ao matrimónio. A profissão de padeiro não lhe parecia assim muito atrativa. Aceitar trabalhar para don Salvatore, ao fim e ao cabo, era uma nova oportunidade.
Decidiu que a Virgem do seu ex-voto lhe tinha sugerido a decisão mais sensata. E adormeceu finalmente.
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Algum tempo antes, aproveitando os saldos, Gregorio tinha comprado na Alexanders, na Lexington Avenue, uma mala de couro claro. Pousou-a agora em cima da cama e começou a enchê-la com as suas coisas. No fundo colocou o ex-voto, embrulhado numa camisola, e as cartas dos pais. Depois dobrou cuidadosamente a roupa, incluindo duas preciosas camisas de seda compradas no Macys, em Herald Square. Enfiou os livros, os sapatos e os objetos de toilette no seu velho saco de marinheiro. Deixou aos Bartiromo os lençóis e as toalhas que tinha comprado.
Não sabia como nem onde don Salvatore o ia alojar, mas tinha decidido comprar no Bloomingdales roupa interior nova. Agora que ia trabalhar para uma pessoa tão importante como Sal Matranga, considerou que devia adaptar-se em tudo ao seu novo papel.
Vittorio Bartiromo, com a curiosidade das crianças, assistiu à preparação da bagagem.
- Tu és mesmo uma pessoa com sorte. vou chamar-te Lucky Gregory - declarou.
- Só vou mudar de emprego, e nem sequer sei o que é que me vão mandar fazer - disse Gregorio.
- Mas és inteligente e tens vistas largas. É assim que se chega a milionário - comentou o rapazinho.
- Se fosse assim tão fácil, eu já estava rico - replicou Gregorio.
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- Também eu - suspirou Vittorio. - E, sobretudo, não tinha de me consumir nestes anos todos de escola. O meu pai diz que eu tenho de ser advogado, porque quem conhece bem as leis nunca morre à fome. A minha mãe defende que eu tenho de ser médico, porque há sempre trabalho para quem sabe tratar das pessoas. Eu concluo que vou ter de me contentar com uma destas coisas, apesar de preferir ser ator de cinema ou cantor num night-dub. Boas roupas, bons automóveis, mulheres bonitas e muitas viagens. Ou então gostava de ser jogador de baseball, de ser contratado pelos New York Yankees ou pelos New York Mets e exibir-me no Yankee Stadium ou no Shea Stadium, até porque assim também tinha roupas, mulheres e viagens. Tu és uma pessoa com sorte porque não tens uns pais chatos como os meus e podes fazer o que te apetecer, sem teres de prestar contas a ninguém.
Gregorio sentou-se na mala para conseguir fechá-la.
- Tenho de prestar contas a mim mesmo, e isso ainda é pior suspirou, ao mesmo tempo que pensava nos seus sonhos infantis de grandeza, que ainda não realizara.
- Acredita naquilo que eu te digo: não há nada pior do que o meu pai e a minha mãe - insistiu o rapazinho, e estava com uma expressão tão séria e sofrida que enterneceu Gregorio.
Depois de fecharem o restaurante, os Bartiromo fizeram uma espécie de jantar de despedida para aquele jovem que tinha vivido com eles durante três anos, partilhando casa e trabalho, e que se comportara com tanta correção e honestidade.
Gregorio comprara dois grandes ramos de flores e um bouquet de violetas para as senhoras, uma camisola dos New York Yankees para Vittorio e um disco de canções napolitanas, cantadas por Caruso, para don Luigi.
Distribuiu os presentes antes de se sentar à mesa, e recebeu da família um envelope que continha dinheiro.
A mãe e a mulher de Luigi ficaram comovidas, Mena cheirou as violetas e suspirou, lançando-lhe um olhar cheio de subentendidos, Vittorio abraçou-o e Luigi apertou-lhe a mão com energia.
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- Atenção, seu mulherengo ímpio, que isto não pretende ser um jantar de despedida - disse a velha senhora Bartiromo. Por trás daquele tom arisco escondia uma simpatia evidente por Gregorio e, ao ter intuído o fraquinho que a neta Mena tinha por ele, lamentava que o rapaz não fosse suficientemente rico para poder competir com o namorado, que não tinha nada, mas era filho único e ia herdar a drugstore dos pais, o apartamento que possuíam por cima do estabelecimento e uma quinta na Puglia.
- A cama no quarto do Vittorio estará sempre preparada para ti, quando quiseres fazer-nos uma visita - disse Luigi.
- Quem sabe! Mas receio que já esteja ocupada por outro.
- O outro vem amanhã. Foi a dona Assunta Pappalardo que o mandou. Mas vai dormir aqui em baixo, no armazém em frente à viela - garantiu Luigi.
Gregorio sentiu-se lisonjeado. Um ano atrás tinha assistido às obras de restauro do armazém; don Luigi tinha conseguido fazer ali um quarto minúsculo e uma casa de banho, dizendo: - Pode sempre dar jeito. - O negócio corria bem, e estava a projetar aumentar a pizaria e a cozinha.
- Meu caro rapaz, tu deste-nos sorte - sussurrou a senhora Bartiromo.
- Espero que também me dêem sorte a mim - respondeu ele. Teve um instante de hesitação, e depois disse: - Acho que não
vou poder levar o Benito comigo.
- Nem ele ia atrás de ti. Está aqui muito bem - disse Vittorio, muito depressa.
- Já faz parte da família - acrescentou don Luigi.
O jantar em honra de Gregorio concluiu-se com um brinde de espumante italiano no qual participou também Franco Fantuzzi, que tinha ido buscá-lo para irem dançar.
- Vê lá se não te deitas muito tarde, porque se não amanhã don Salvatore põe-te na rua, em vez de te pôr a trabalhar - recomendou-lhe don Luigi.
Franco não tinha ainda uma casa e continuava a dormir na arrecadação da escola de dança, mas possuía um Cadillac azul, que lhe
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tinha sido oferecido por uma viúva quarentona, Floris Hashwood, que ele levava a dançar todos os sábados ao Sanremos Café.
O Cadillac estava agora estacionado diante da pizaria e dentro dele estava Angelina Pardo, que trazia um vestido a condizer com a cor do carro.
- Meninos, esta noite vou dividir os meus favores pelos dois disse Angelina.
- Queremos oferecer-te uma festa memorável para inaugurar um capítulo novo da tua vida - declarou Franco, enquanto se sentava ao volante.
- Amanhã de manhã deixamos-te em frente à sede da empresa Matranga, fresco e repousado como um anjinho - garantiu Angelina.
- Não brinquem comigo! Já brindei que chegasse com os Bartiromo e não me quero embebedar. Não sei o que me espera mas, seja o que for, quero estar lúcido e apresentável. E depois que história vem a ser esta de fazer amor a três? - perguntou Gregorio, ao mesmo tempo que o carro se punha em movimento.
- Isso escandaliza-te? - riu Angelina. - A mim parece-me muito excitante. Ao fim e ao cabo, amo-vos da mesma maneira e, por uma vez, agrada-me a ideia de estar ao mesmo tempo com os meus dois fantásticos rapazes - acrescentou.
- Não é uma ideia extraordinária? -comentou Franco, a rir-se
por sua vez.
- A mim parece-me uma ideia nojenta. Não sinto vontade nenhuma de me encontrar numa cama contigo, nu, ao meu lado protestou Gregorio, convencido de que estavam ambos a brincar.
- Mas que festa memorável iria ser se tu ficasses com a Angelina e eu tivesse de me contentar apenas com a pobre, terna e generosa miss Hashwood? - perguntou Franco.
- Queríamos fazer-te uma surpresa, mas não faz mal que fiques já a saber: alugámos um quarto no Plaza - revelou Angelina.
O automóvel avançava pela Quinta Avenida, em direção à rua 59.
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- O Plaza! - sussurrou Gregorio, enquanto pensava que era naquele hotel onde ele gostaria de se instalar para o resto da vida. Um dia tinha até arranjado coragem para entrar, e dera-se ao luxo de uma cerveja no Oyster Bar pelo prazer de olhar em volta e respirar o perfume do dinheiro e da elegância.
Tinha sido servido por um jovem empregado italiano que o tratou por "senhor", e foi assim que se sentiu naquele momento.
- No Plaza - confirmou Franco, ao estacionar o automóvel em frente ao luxuoso hotel.
Gregorio saiu do carro e, ao mesmo tempo que observava o átrio iluminado daquele hotel de prestígio, confessou: - Dava um ano da minha vida por uma noite no Plaza.
- Estás a ver como organizámos bem o serão?
- Mas não dou nem cinco minutos para a passar na cama contigo - disse, voltando-se para o amigo.
Enquanto o porteiro do hotel se dirigia aos três jovens, ele avançou até à esquina da rua 59 e levantou um braço para chamar um táxi. Gostava muito de Angelina e de Franco, mas mais uma vez se convenceu de que era diferente do amigo. Franco Fantuzzi não tinha a noção dos limites, e por isso vivia à custa de uma quarentona um pouco passada e planeara uma noite de amor a três.
- Para mim é realmente inaceitável - resmungou, enquanto entrava no táxi. Deu a direção da pizaria e pensou que don Luigi ia ficar feliz por o ver entrar tão cedo e tão sóbrio. E ele também estava contente.
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Às oito horas da manhã seguinte, Gregorio apresentou-se à porta da firma Matranga. Tocou e foi o velho do costume quem veio abrir.
- Bom-dia. Eu sou... - começou Gregorio.
- Eu sei quem tu és. Mas agora tenho mais que fazer. Entra resmungou o homem, enquanto se dirigia, com pequenos passos apressados, a uma sala que comunicava com o armazém.
Gregorio fechou a porta, pousou a bagagem no chão e, como não viu mais ninguém a quem se dirigir, foi atrás do velho até à outra sala.
Naquele momento, o homem tirou do fogareiro a álcool uma cafeteira napolitana um pouco danificada e, com um gesto decidido, virou-a ao contrário, pousando-a em cima da mesa ao lado do fogareiro.
- O primeiro café da manhã tem de ser bebido acabado de fazer, porque se não, sem esta fragrância, corre-me mal o dia disse, muito concentrado naquilo que, para ele, devia ser um ritual. Abriu o açucareiro de alumínio, enterrou a colher, tirou o açúcar, deitou-o delicadamente numa chávena branca, pousou a colher no prato e inspirou o perfume que saía pelo bico da napolitana.
- Depois, o que sobrar, posso bebê-lo a meio da manhã, mas sem o deixar ferver, porque se não fica uma porcaria. Não sei se me faço entender. - Levantou os olhos para Gregorio, com o tom de um professor que instrui um aluno.
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- Se calhar também te está a apetecer um bom café? - perguntou a Gregorio.
Tirou outra chávena com pires de um pequeno armário e pousou-a ao lado da dele.
- Obrigado, com muito gosto - respondeu o rapaz.
- Põe-te à vontade.
Gregorio sentou-se à mesa, em frente a ele.
Beberam o café em silêncio. Depois o homem tirou do bolso do casaco um resto de charuto e enfiou-o nos lábios; acendeu-o com um fósforo que riscou na parede e depois deixou-se cair, satisfeito, contra as costas da cadeira.
- Agora diz-me o que queres.
- Estou desde hoje de manhã ao serviço de don Salvatore afirmou Gregorio.
- Mas calhou-te mal, porque o meu filho não está cá. Não está cá ninguém, hoje de manhã.
- E eu... o que é que eu devo fazer? - exclamou o rapaz, um pouco aflito.
- E queres que eu te diga? Estou aqui para abrir a porta a quem tocar. Não sei mais nada.
Gregorio perguntou a si mesmo se o velho seria meio tolo, ou se estaria só a fingir. Em qualquer caso, era tão indecifrável como o homem dos dentes de ouro.
- Então, o que é que faço?
- Esperas, como eu - respondeu, e continuou a fumar o seu charuto.
- Começamos bem - murmurou Gregorio, entre dentes. Estava a ficar cada vez mais inquieto.
Ouviu o ruído de um camião que percorria lentamente a passagem que dava acesso à entrada do armazém. Logo a seguir ouviram-se vozes, e alguém entrou no barracão. Depois perfilou-se à entrada da sala um homem relativamente jovem, que tinha o aspeto de um empresário: fato cinzento impecável, chapéu italiano, óculos dourados.
- Tu és o Gregorio Caccialupi, não é verdade?
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Gregorio levantou-se de repente e apertou a mão que o homem lhe estendia.
- Eu sou o Anthony Francis Rapello. Podes tratar-me por tu. Segue-me.
Tinha um ar apressado, e avançou à frente dele por uma escada estreita que conduzia a um outro corredor para o qual davam várias portas. Abriu uma delas e surgiu um escritório, amplo e luminoso, com as paredes revestidas de madeira e cobertas em parte por estantes. Pairava um perfume intenso de flores, proveniente de umas taças de porcelana pousadas numas mesas baixas que se encontravam em frente a um sofá de pele verde-escura, por baixo das duas janelas. Em cima da secretária, imponente e atulhada de papéis e fotografias emolduradas, havia um telefone que estava a tocar, um intercomunicador e um ditafone.
Anthony Rapello levantou o auscultador e disse: - Agora estou ocupado. Seja quem for, diz que eu ligo mais tarde.
Indicou ao jovem o sofá e sentou-se numa poltrona à frente dele.
- Sou o diretor desta casa, e agora vamos lá tratar de nós disse, cruzando as pernas.
- Estou a ouvir, senhor - disse Gregorio.
- Chama-me Tony.
- Ok, Tony.
- Tu já cá estás há três anos e ainda não tens documentos. Isto significa que podes ser preso de um momento para o outro, que não podes tirar a carta, que não podes ter um cartão de saúde, que não podes abrir uma conta bancária, que não podes fazer uma série de outras coisas. Tens a consciência disso?
- Perfeitamente, Tony.
- Muito bem. A minha secretária já tratou de arranjar os impressos que tu vais ter de preencher para conseguires uma autorização de residência.
- E se ma recusarem?
- Isso está fora de questão. Temos amigos em todo o lado, e amanhã vais estar legalizado. Sabes conduzir um automóvel?
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- Pode crer, senhor.
- Tony, chama-me Tony. Nós somos uma família. Portanto, com a autorização de residência, terás também a carta de condução.
- Tenho de fazer um exame? - perguntou Gregorio.
- Não é preciso. O importante é que tenhas a carta. Está sossegado, Greg. Aqui tem de ser tudo legal. Amanhã, quando estiver tudo em ordem, vais levar-me a dar uma volta no meu carro. Se a tua condução for de confiança, vais ser o motorista suplente.
- Vai ser esse o meu trabalho? - perguntou o rapaz, um pouco desiludido.
- Eu disse suplente. O teu trabalho vai ser outra coisa.
A maneira de ser de Anthony, segura e despachada, talvez demasiado superficial, transmitiu a Gregorio uma sensação de desconforto.
- Passa-se alguma coisa? - perguntou o diretor.
Gregorio refletiu rapidamente: não podia regressar a casa dos Bartiromo, que o iam mandar embora porque as ordens de Matranga não se discutiam. Mas não era assim tão ingénuo que não percebesse que Matranga dava a volta à lei a seu bel-prazer. Naquele momento, porém, Gregorio apenas podia adaptar-se aos acontecimentos.
- Está tudo ótimo, Tony - declarou, quase resignado. O homem sorriu.
- Vais dar-te bem connosco. Don Salvatore acha que tu és bom, e ele dificilmente se engana. Agora vou apresentar-te a Polly, a minha secretária. Podes confiar nela. Nós voltamos a encontrar-nos amanhã.
Era uma despedida.
Polly Maclntire era uma irlandesa de ar apagado e olhar perdido por trás de umas espessas lentes de míope; mas quando Gregorio foi atrás dela até ao seu escritório e a viu trabalhar, revelou segurança e competência. Mandou-o preencher e assinar uma quantidade de impressos, disse-lhe onde havia um fotógrafo para tirar fotografias tipo passe, à hora de almoço ofereceu-lhe cerveja e sanduíches e revelou-lhe que o velhote que estava de guarda à
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entrada, o pai de don Salvatore, tinha de estar na firma de manhã à noite porque a mulher não queria andar a tropeçar nele em casa.
- Logo vais com ele para casa, em Brooklyn. Serás hóspede dos Matranga até nova ordem - comunicou-lhe.
Gregorio ia instalado num Ford quando sobre a cidade começavam a cair as primeiras sombras da noite. Ao volante estava um homem corpulento, de fato escuro, e ao lado dele ia o velho Matranga, fechado num silêncio impenetrável. Gregorio estava atrás deles. - Vais ficar instalado no anexo da casa - dissera-lhe
Polly. Gregorio não imaginava que o anexo fosse uma moradia apenas um pouco mais pequena do que aquela que se recortava, imponente, contra o céu noturno, tendo como fundo um bosque de áceres avermelhados.
O motorista parou o carro em frente à entrada iluminada e disse a Gregorio: - Chegaste.
O pai de don Salvatore, com o seu passo saltitante, já tinha desaparecido dentro de casa. Gregorio pegou na bagagem e entrou no vestíbulo, hesitante, enquanto uma mulher idosa, de ar maternal, avançava ao encontro dele, sorridente.
- Instala-te, meu filho. Bem-vindo! Como te chamas?
- Greg, minha senhora - respondeu ele.
- Mas que senhora! Eu sou a mamma Lina para toda a gente. Anda comigo. Preparei-te um quarto no rés do chão, que dá para o jardim. Anda comigo - repetiu, ao mesmo tempo que avançava à frente dele ao longo de um corredor e continuava a falar. - Daqui a meia hora vamos para a mesa, por isso ainda vais ter tempo para desfazer a mala e mudar de roupa. Se precisares de alguma coisa, pedes-me a mim. Encontras-me sempre na cozinha. com a minha idade, já não tenho mais nada que fazer senão preparar as refeições para toda a gente, até para aquela ali... a que está na casa grande e se dá ares de grande dama.
Gregorio percebeu que se referia à nora, e ficou logo bem claro que mamma Lina não gostava dela.
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- Então, que te parece? - perguntou-lhe a mulher, quando o mandou entrar para um quarto que achou muito luxuoso. Tinha um papel de parede florido, cortinas adamascadas nas janelas, uma grande cama com a cabeceira de embutidos e um belo tapete macio.
- Acho lindíssimo - respondeu Gregorio, admirado.
- Pois é, o meu filho, quando faz as coisas, fá-las em grande estilo - explicou, com um ar satisfeito. Depois continuou, indicando as duas portas ao fundo do aposento: - Ali é a casa de banho e o quarto de vestir. Fica à vontade - concluiu, e foi-se embora.
Há quantos anos não dormia numa cama tão grande? Desde que era criança e a mãe o acolhia junto dela. Naquele momento, Gregorio esqueceu receios e desconfianças, deixou-se cair em cima da cama, abriu os braços e sentiu-se feliz.
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Mais uma vez, Gregorio era hóspede de uma família. Estavam todos sentados à volta de uma grande mesa oval: mamma Lina e o marido; as duas filhas, Elvira, uma solteirona de ar conflituoso, e Donata, com o marido, Jo, e os dois filhos adolescentes; estava também Frank, o motorista que tinha levado Gregorio, e a mulher, Judy, que tratava da casa. Finalmente, Sam Farrelli, o jardineiro, e a mulher, Jinny, costureira em casa de don Salvatore. Viviam todos no anexo da casa grande, sob o controlo de mamma Lina.
A Gregorio foi destinado o lugar ao lado de Mike e Al, os filhos de Jo e Donata, que começaram imediatamente a enchê-lo de perguntas, até que Jinny levou para a mesa uma grande terrina de porcelana cheia de esparguete negro de choco. Falavam todos em dialeto napolitano, misturado com palavras do calão americano.
Enquanto esperavam que os servissem, Mike e Al começaram a atirar um ao outro bolinhas de miolo de pão. Uma delas foi parar ao prato do pai, que pegou nela e a enfiou à força na boca de Mike, que protestou porque a bolinha tinha sido lançada não por ele mas pelo irmão.
Sam Farrelli explicava respeitosamente ao velho Antonino Matranga que ele tinha feito asneira com o estrume para as azáleas.
- Já lhe disse tantas vezes, don Totonno, para não usar o esterco dos cavalos. Agora as raízes estão queimadas, a dona Miranda vai fazer uma algazarra e depois a culpa é minha.
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- Vê lá se te calas! Tu tens a desgraça de ser napolitano, e não conheces a terra. Só conheces as pedras de Chiaia! Eu, que sou de Avellino, trabalhei, sachei e adubei a terra desde o tempo em que andava de fraldas. As raízes foste tu que as queimaste, com os teus adubos químicos - reagiu o velho.
- Tenha paciência, Sam. O meu marido tem as suas manias e, para além do mais, trabalhou toda a vida e ainda não consegue ficar de mãos nos bolsos - interveio mamma Lina.
- Paciência eu tenho, mas depois a dona Miranda pega comigo retorquiu Sam.
- Ai, aquela mulher! Pega com toda a gente - bufou a matriarca.
- Aquela mulher recebeu de prenda do meu irmão uma gargantilha de diamantes da Tiffany - referiu Elvira, a solteirona. E olhou em volta, à espera do efeito daquele anúncio.
- O teu irmão, com o dinheiro dele, faz aquilo que lhe apetecer - disse a mãe, para a calar.
- É um facto, mãe, que o Sal tem de se fazer perdoar por causa da amante - sibilou Donata.
- E tu vê lá se estás calada, porque estão aqui crianças - retorquiu mamma Lina, exaltada, indicando os dois netos adolescentes. Um dos quais, Mike, informou Gregorio de que a amante atual do tio era uma ruiva de cortar a respiração, cantora de um night-club.
- Foi contratada pela Warner para interpretar uma comédia musical. Nos jornais aparece como a namorada do produtor. Mas o produtor, como toda a gente sabe, é homossexual - sussurrou Al.
As duas "crianças" sabiam mais coisas do que a avó imaginava. Mas a avó ouvia bem e respondeu-lhes: - Calem essa boca, meninos. E lembrem-se todos de que, se não fosse o meu filho, ainda estávamos em Avellino a desfazer os torrões de terra com as mãos.
Gregorio escutava em silêncio, e começava a fazer uma ideia sobre a família Matranga e o papel de mamma Lina, que tinha de aplacar continuamente as animosidades dos parentes que, em vez de se mostrarem gratos a don Salvatore, não perdiam uma ocasião para o criticar.
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Esta constatação atenuou a sua desconfiança em relação ao homem dos dentes de ouro.
A dona de casa olhou para Gregorio, sorriu-lhe e disse: - Estás a ver, rapaz, que rica receção te estamos a fazer?
- Estou muito grato por poder sentar-me à vossa mesa, minha senhora - respondeu ele.
- Ora aqui está um jovem educado e de bom senso - replicou ela. - E não me chames senhora. Eu sou a mamma Lina para toda a gente, não me obrigues a repetir isto outra vez.
Ouviram-se passos provenientes do vestíbulo e Sal Matranga fez a sua entrada na sala de jantar. Os homens, com exceção do pai, levantaram-se da mesa. - Boa-noite a todos - saudou. E beijou a mãe na testa. Toda a gente sabia que tinha ido a Hollywood ter com a amante.
Depois pegou num pedaço dafocaccia que estava em cima da mesa e meteu-a na boca. Despenteou o cabelo dos sobrinhos, observou Gregorio e perguntou: - Estás a ambientar-te, meu filho?
- Em grande - respondeu ele.
- Amanhã à noite falamos - anunciou. Depois voltou-se para a família e disse: - Desejo-vos a continuação de um bom jantar.
Quando se foi embora, a sala de jantar pareceu vazia. Naquele momento, Gregorio percebeu que Sal Matranga se tinha tornado rico e poderoso porque era um homem especial. Talvez os seus negócios não fossem muito transparentes, mas ainda assim Gregorio admirou-o, enquanto perguntava a si mesmo de que coisas iriam falar no dia seguinte.
Depois de jantar, quando todos se retiraram para os seus quartos, Gregorio entrou no dele, abriu uma porta envidraçada e saiu para o jardim, a observar o céu.
Estava frio, e por isso levantou a gola do casaco e avançou ao longo de uma alameda arborizada.
De um ponto indefinido chegou até ele o ladrar dos cães. Olhou em volta e, na escuridão, viu pulsar uma luzinha vermelha. Da sombra
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emergiu uma figura feminina, envolta num casaco de peles escuro, e parou debaixo de um lampião.
- Assustei-te? - perguntou a figura feminina.
Gregorio não respondeu e observou-a. Tinha um rosto de menina, sobrancelhas negras e fartas, olhos escuros, e dos lábios saía-lhe uma espiral de fumo. O casaco de peles, muito largo, tinha um capuz que lhe escondia os cabelos.
- Sou a Nostalgia - disse ela ainda.
- Como é que disseste?
- Nostalgia. Foi assim que o meu pai me chamou. Nostalgia de um país que eu não conheço. Mas deve ser muita... - explicou. Depois esclareceu: - Sou a filha de don Salvatore.
- Quantos anos tens? - perguntou-lhe.
- Os suficientes para fumar às escondidas - disse ela a rir. E acrescentou: - Nunca te vi. Quem és?
Tinha uma voz quente e um sorriso um pouco descarado e um pouco triste.
- Sou o Gregory. É a minha primeira noite aqui.
- De onde vens?
- Sou italiano, como tu.
- Ninguém diria. Tens sotaque da rua 42.
- Estás a falar a sério? Cada rua tem um sotaque diferente? perguntou Gregorio, curioso.
- Quase. Os de Mulbery Street falam de maneira diferente dos de Queens, dos do Bronx e dos de Wall Street.
- Por favor...
- Estou a brincar, mas há alguma coisa de verdadeiro naquilo que eu disse.
Apagou o cigarro contra a base do lampião e depois atirou a beata para o meio de um arbusto de azevinho.
- Então, és um novo recruta - constatou, a olhar para ele.
- O que foi que disseste?
- Outra vez! Porque é que pedes sempre para te repetirem as
coisas?
- Quantos anos tens?
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- Quinze, e devia andar no liceu, mas fui expulsa e agora está a decorrer um conselho de família para decidir se me vão encerrar nas celas desta casa ou se vão fazer uma doação a outra instituição que seja suficientemente ávida para me aceitar - contou, de um fôlego. Virou-se e foi-se embora, envolvida naquele enorme casaco de peles que era seguramente da mãe, dizendo: - Até um dia destes!
Gregorio viu-a desaparecer em direção à casa grande.
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Na manhã seguinte, Gregorio entrou na banheira e mergulhou até ao pescoço numa água perfumada com sais, sentindo-se um rei.
Até ao dia anterior, tinha partilhado a casa de banho com a família Bartiromo, e as lavagens tinham de ser rápidas para todos terem tempo. Agora parecia-lhe que tinha passado um século desde que dormira no apartamento por cima da pizaria, no quarto que dividia com Vittorio.
Quando chegou à sala de jantar, foi acolhido pela fragrância do pão ainda quente, o aroma do café e o sorriso ligeiramente ensonado de mamma Lina, que dispunha por cima de uma toalha imaculada as chávenas e os pratos para o pequeno-almoço.
- Bom-dia, mamma Lina - disse.
- Bom-dia, meu filho. És o primeiro. Senta-te - respondeu ela. Através das janelas, protegidas por umas cortinas de tule branco, entrava ainda pouca luz, e o lustre veneziano, que estava suspenso sobre o centro da mesa, tinha as luzes acesas.
Mamma Lina chegou-lhe a tábua de madeira onde estava o pão acabado de cortar. Depois colocou à frente dele uma taça de porcelana onde brilhava uma compota escura e reluzente.
- Come, Greg! Isto é feito com as nossas cerejas e até o pão é feito por mim, todos os dias. Não tem nada a ver com o pão que comem estes selvagens destes americanos.
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Gregorio espalhou a compota sobre uma fatia de pão e comeu-a com avidez, enquanto a mulher, com gestos comedidos, lhe enchia uma chávena de café com leite.
Gregorio lembrou-se de que a avó, no casal de Porto Tolle, também lhe servia o pequeno-almoço de manhã. Há quantos anos não a via? Imaginou-a na cozinha sombria a virar as fatias de polenta na grelha, em frente à lareira. Polenta e leite quente tinham sido, durante anos, o seu pequeno-almoço.
Mamma Lina sentou-se à frente dele, pousou os cotovelos na mesa, olhou para ele com ternura e perguntou-lhe: - Em quem estás a pensar?
- Na minha avó.
- É bonito pensares nela, e ela sabe, porque os pensamentos voam por todo o lado. Meu caro Greg, tens mesmo ar de seres um bom rapaz. Come, come, porque ainda tens de crescer.
Gregorio recordou os versos de uma lengalenga que tinha aprendido na escola: "E se tanto vais crescer, grãozinho que vais fazer?" Referia-se a um grão de trigo que germinava debaixo da terra.
Do corredor chegou até eles o zunido de um aspirador. O relógio bateu as sete horas. Frank e o velho Matranga entraram para tomar o pequeno-almoço, e ele foi até ao pátio e acendeu um cigarro.
Na luz clara da manhã, o rapaz abarcou com o olhar aquele lugar maravilhoso, que parecia desenhado por um grande arquiteto. As construções e os jardins tinham por trás um bosque que se perdia ao longe. A casa senhorial era soberba, o anexo onde estava instalado era um edifício harmonioso, de uma certa elegância, e era parecido com o da portaria.
Pareceu-lhe improvável que uma firma de import-export pudesse produzir lucros tais que permitissem uma residência como aquela.
- Vamos lá? - disse Antonino Matranga, que apareceu ao lado dele de repente.
Naquele momento, Gregorio viu uma figura esguia montada num cavalo que galopava em direção ao bosque como se estivesse a ser perseguido por bandidos.
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- Quem é? - perguntou ao velho.
- Aquela é a Nostalgia, a minha neta. É tão maluca como aquele potro. Está sempre a fugir. E para ir onde, afinal? - lamentou o avô.
Frank já estava ao volante, à espera deles. Entraram no carro. Gregorio conhecia bem os animais e sabia que havia uns agressivos, nascidos para atacar uma presa, e outros assustados, nascidos para fugir, como os cavalos. Pensou que Nostalgia devia estar constantemente em fuga porque vivia assustada. E sentiu uma certa ternura por ela.
O carro parou em frente à portaria, da qual saiu um brutamontes que olhou para dentro do carro, sorriu e depois abriu o portão. Uma vez que estava armado, Gregorio pensou que don Salvatore, tal como a filha, também devia ter constantemente medo de alguma coisa.
Polly estava à espera dele no escritório, com uma chávena de café e uma série de documentos.
- Aqui está, Greg: permission to stay, identity card, driving licence. Agora está tudo ok.
Ele agradeceu-lhe e pensou que sempre tinha achado que estava tudo ok, mesmo sem documentos, porque estava convencido de que não era a papelada a fazer de um homem um cidadão honesto. Ainda por cima, agora não estava mesmo nada ok, uma vez que aqueles documentos lhe tinham sido entregues em tão poucas horas. Mas guardou para si aquelas considerações.
Naquele momento, Anthony Francis Rapello abriu a porta do escritório e perguntou: - Está tudo em ordem?
Polly anuiu.
- Então, Greg, agora vais levar-me a dar uma volta - anunciou. Parecia ter pressa e avançou à frente dele em direção ao pátio, onde estavam estacionados alguns camiões e o seu automóvel.
Gregorio sentou-se ao volante e Anthony instalou-se ao lado dele.
- Onde queres ir? - perguntou Gregorio.
- A Beaver Street. Estás a ver?
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- Downtown Wall Street - esclareceu o rapaz, placidamente.
- És melhor do que um taxi driver - comentou Anthony, satisfeito.
Gregorio desenvencilhou-se no meio do trânsito como se sempre tivesse sido motorista, enquanto o seu passageiro consultava uma série de documentos que ia extraindo aos poucos da sua pasta de pele escura.
Tony entrou num edifício de Beaver Street, e quando saiu pediu a Gregorio para o levar a Trinity Place e, finalmente, a Hanover Square.
À hora de almoço entregaram o carro ao porteiro do River Café, em Wall Street, nas proximidades da ponte de Brooklyn. Não tinham trocado uma única palavra durante toda a manhã. Quando se sentaram à mesa do restaurante, com vista para os arranha-céus de Manhattan e para o East River, Anthony pediu o almoço para ambos. Depois observou Gregorio como se estivesse a vê-lo pela primeira vez. - Foste um motorista excelente. Vamos almoçar e, a seguir, vais levar-me ao aeroporto. Tenho de ir a Los Angeles, e tu podes ficar com o carro. vou dar-te algumas informações sobre o teu novo trabalho. Faço-o eu porque o boss teve de partir de repente - explicou Tony.
- Então logo à noite não o vou ver - deduziu Gregorio.
- Não me parece que ele volte antes de amanhã - disse Tony. Barraram com patê de foi gras umas fatias crocantes de pão
quente.
- Como é trabalhar para ele? - perguntou ainda Gregorio.
- Se cada um cumprir o seu dever, é a coisa mais simples do mundo. Sabes, o boss é uma pessoa que se fez por si, sem ter santos no Paraíso. O primeiro dinheiro ganhou-o durante a Lei Seca, assumindo a gestão de um speakeasy, sabes... aqueles armazéns nas traseiras onde se destilavam e despachavam clandestinamente as bebidas alcoólicas. Ele era muito hábil em manter a polícia à distância, e por isso os clientes jogavam pelo seguro com ele. Nunca, como nessa altura, os americanos tiveram tanta sede. Foi assim que começou a sua fortuna.
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- Eu julgava que isso eram coisas de gangsters, como o Al Capone - observou Gregorio.
- Isso era uma corja. O boss sempre preferiu a arma da inteligência às balas. Comprou aquele estabelecimento que geria, e depois outro, e outro ainda, e entretanto ia estabelecendo ligações sólidas com a gente que interessa. A sua rede de amizades chega a Washington - explicou-lhe Anthony.
- E a dos inimigos? - deixou escapar Gregorio.
Por um instante, Anthony olhou para ele, perplexo, e depois soltou uma gargalhada.
- Boa pergunta! Então desde já te digo que não existe homem influente que não tenha inimigos. O que importa é conhecê-los e torná-los inofensivos. E, nisso, o boss é um mestre.
- E que papel é que eu vou ter no meio disto tudo?
- Tu vais trabalhar no Piccolo Club, na rua 42. Tens classe, falas inglês como um verdadeiro yankee e és honesto.
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O Piccolo Club era um estabelecimento nascido no início dos anos vinte que tinha tido o seu momento de esplendor durante a Lei Seca, quando ali se consumiam bebidas alcoólicas em chávenas de café, se fazia ótima música, atuavam cantores extraordinários e, entre os clientes de mais destaque, contava-se o próprio Al Capone. com o fim da Lei Seca e o advento da Grande Depressão, o espaço tornara-se numa espécie de strip-tease parlour que já mais ninguém se gabava de frequentar. Os clientes iam lá às escondidas, e o estabelecimento continuava a prosperar. Depois ocorreram ali episódios desagradáveis, ligados ao mundo do crime. Um deputado do Congresso foi morto por motivos fúteis de ciúmes e as autoridades encerraram aquele espaço histórico.
Agora Sal Matranga tinha-o adquirido por um punhado de dólares, restruturara-o e o Piccolo Club estava prestes a abrir as suas portas após anos de abandono.
- Foi programada uma inauguração em grande estilo. Don Salvatore foi a Hollywood garantir a presença do Fred Astaire e da Ella Fitzgerald, vai lá estar toda a imprensa que conta e o champanhe vai correr a rodos. O boss, quando faz as coisas, fá-las em grande estilo - explicou Tony.
- Estou aterrorizado - disse Gregorio, que se agarrava à esperança de que Tony estivesse a brincar.
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- Devias estar orgulhoso de ti. Don Salvatore nunca escolhe homens ao acaso.
- Servi pizas durante três anos. O que é que eu sei sobre estabelecimentos de luxo?
- A América, Gregory, é a terra das oportunidades. Basta saber agarrá-las. E esta é a tua grande oportunidade.
No dia seguinte, quando chegou ao Piccolo Club, Gregorio achou-se no meio de empregados que desembalavam mesas, pequenos divãs e poltronas de pele negra, montavam prateleiras em madeira e em vidro, instalavam placas de mármore nos balcões, desembrulhavam copos de cristal da Boémia e colocavam nos seus lugares vinhos e licores.
Foi ao seu encontro um homem com cerca de sessenta anos que tinha a compleição e o porte de um general.
- Tu és o Greg Caccialupi - disse, apontando-lhe um dedo, como se quisesse acusá-lo. Logo a seguir sorriu e estendeu-lhe a mão. - Eu sou o Al Tarantino. Vais trabalhar comigo e aprender tudo aquilo que há para saber. São estas as ordens do patrão.
Gregorio apertou-lhe a mão e perguntou: - No sentido em que o senhor será a mente e eu o braço?
- Mais ou menos. vou ensinar-te uma série de coisas, outras vais aprendê-las sozinho, porque tens um ar atento. Começa a familiarizar-te com o ambiente e o resto virá por si.
Al Tarantino tinha sido o mítico diretor do Stork Club e fora ele quem determinara o seu sucesso. Sabia tudo sobre o pessoal e sobre os clientes e alterava o tratamento em função da personagem
em causa.
- Mr. Tarantino, não sei por onde começar - confessou Gregorio. O homem franziu as sobrancelhas fartas e loiras e resmungou:
- Ainda agora chegaste e já me estás a chatear? Observa e aprende.
Largou-o assim mesmo, para protestar com alguém que estava a maltratar as garrafas de um vinho precioso.
Gregorio deu uma volta pelo estabelecimento, aflito, entrou na cozinha, subiu ao andar superior, espreitou o escritório. Por todo o lado havia homens atarefados, e ele não conseguia distinguir quais
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eram os operários, que depois se iam embora, e quais os empregados que, pelo contrário, iam ali ficar.
Não lhe parecia ter um ar assim tão atento, como afirmara Al. De qualquer modo, tinha de começar por algum lado. Por isso voltou à cozinha, onde não estava ninguém, e abriu umas caixas que continham panelas de todos os tipos. Então sentiu-se no seu elemento.
Começou a separar as frigideiras para fritar dos tachos para cozer, as colheres dos coadores, alinhou batedeiras, martelos de carne, facas e descascadores, pinças e garfos. Arregaçou as mangas, pôs um avental e começou a lavar tudo. Talvez não fosse aquela a melhor maneira de iniciar um trabalho que, segundo Anthony, requeria boa presença e domínio da língua, mas de momento era o único modo que tinha para justificar o excelente salário que Tony lhe garantira.
Quando Al Tarantino entrou na cozinha e viu aquele monte de trabalho realizado, anuiu, satisfeito.
Ao fim de alguns dias, o Piccolo Club adquirira o aspeto de um local requintado.
Gregorio já tinha visto pela cidade os homens-sanduíche que faziam reclame à sua abertura e anunciavam a participação das personalidades de Hollywood na noite da inauguração. As estações radiofónicas transmitiam mensagens publicitárias, impressas também nas páginas dos jornais.
Gregorio regressava a casa exausto, mas orgulhoso por se sentir parte daquela nova empresa.
Na véspera da inauguração, todo o pessoal do clube jantou no local. com eles estava também Anthony Rapello.
Depois do jantar, Gregorio saiu à rua para fumar um cigarro e Anthony fez-lhe companhia. Havia já alguns dias que Salvatore Matranga brilhava pela ausência. Dizia-se que estava em Hollywood para acertar os contratos dos artistas que iam estar presentes na noite da inauguração.
- É verdade que o boss está a tentar que venha o Fred Astaire? perguntou-lhe Gregorio. Tony era o único a quem ousava fazer perguntas, até porque habitualmente obtinha respostas.
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- Deves saber, filho, que o Piccolo Club não é um business. É evidente que o Sal vai cá enterrar muito dinheiro. Mas chegou o momento, para ele, de ter uma montra de prestígio. Este local vai permitir-lhe receber em grande estilo as pessoas que contam. Portanto, apesar de enterrar aqui muito dinheiro, vai engrandecer a sua imagem. Percebes?
Percebia e se, por um lado, estava grato a don Salvatore pela ajuda que lhe dava, por outro perguntava a si mesmo se alguma vez ia chegar o dia em que conseguiria desvincular-se dele. Porque tinha uma certeza: a de estar atado de pés e mãos a Salvatore Matranga.
Regressou a Brooklyn e, em vez de entrar em casa, começou a correr pelas alamedas do parque para se aquecer e cansar e também para libertar a mente daqueles pensamentos.
Viu, perto do portão da entrada na propriedade, um carro a travar com um ruído de pneus e o homem de guarda sair da portaria com uma lanterna na mão. Naquele momento abriu-se uma porta do carro e saiu Nostalgia, vestida com um uniforme, com os cabelos escondidos dentro de um gorro de lã vermelha.
- Então, decides-te a abrir? - gritou a rapariga ao guarda. O homem saiu por um pequeno portão lateral, falou com o condutor e depois voltou a entrar pelo mesmo sítio com a rapariga, sem abrir o portão grande para deixar passar o carro, que fez inversão de marcha e se afastou.
Tanto quanto sabia, Nostalgia partira alguns dias antes para uma escola no Connecticut e não percebia o que teria acontecido para a levar a regressar de noite, tão tarde, nem por que razão o guarda não tinha deixado entrar o seu acompanhante. Mas ouviu as injúrias da rapariga contra o homem da segurança, que se oferecia para a escoltar até à casa.
- És um estúpido! Tens medo que os meus amigos assaltem a propriedade?
- Deixe-me acompanhá-la, Miss Gia - insistiu o homem.
- Vai para o inferno! - ripostou ela, avançando ao longo da alameda em passo de marcha.
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Não tinha visto Gregorio, que estava encostado a uma sebe, e só reparou nele quando ele chegou junto dela.
- Olá, Nostalgia! Eu vou contigo - disse-lhe.
- Vai tu também para o inferno - respondeu ela, furiosa. Tinha a certeza de que a filha de don Salvatore fugira do novo
colégio e que arranjara um amigo disposto a levá-la a casa.
Revia-se naquela rapariga, permanentemente zangada, quando era um adolescente convencido de que o universo conspirava contra ele. Tinha vivido dominado pela mesma impotência raivosa que, com os anos, se transformara em desconfiança.
Talvez tivesse chegado o momento de se deixar ir e aceitar aquilo que a vida lhe oferecia: um quarto acolhedor numa bela casa, um trabalho bem remunerado, um homem poderoso que lhe estendia a mão.
Quem sou eu, para julgar?, perguntou a si mesmo num sussurro, enquanto entrava no anexo.
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A noite da inauguração do Piccolo Club estava a revelar-se um sucesso. com o espaço a abarrotar de convidados e havia sempre mais gente a chegar. A cozinha e o bar trabalhavam em pleno e os empregados, irrepreensíveis, serviam às mesas com um sorriso estampado nos lábios. Al Tarantino fazia as honras da casa e trocava comentários com muitos clientes que conhecia há uma vida, enquanto as personalidades vindas de Hollywood se alternavam nas exibições: estalavam os aplausos, disparavam os flashes dos fotógrafos e esbanjavam-se sorrisos e gargalhadas.
Lá fora, os guardas controlavam o público que se acotovelava para entrar naquele novo e prestigiado templo do entretenimento.
No andar superior, atrás de um vidro espelhado, Sal Matranga e Anthony Rapello observavam a sala sem serem vistos, satisfeitos porque o estabelecimento tinha arrancado da maneira certa.
Apesar do barulho e da multidão, tudo estava a processar-se sem complicações. Não se partiram pratos nem copos, ninguém se estava a embebedar, nenhum empregado se enganara em qualquer serviço e Al Tarantino mostrava-se satisfeitíssimo.
Entre um serviço e outro, Gregorio guardava as gorjetas generosas que, ao fim da noite, ia dividir com os outros empregados, conseguindo assim uma bela porção de dólares.
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A certa altura, provenientes da zona ao lado da entrada, ouviram-se os gritos de uma mulher. Era uma deliciosa criatura em vestido de noite que insultava um guarda por este se recusar a deixá-la passar. Como que surgido do nada, Al Tarantino estava já ao lado dos dois. Os olhares dos convidados convergiram para aquele ponto. Os flashes dos fotógrafos dispararam. Gregorio colocou-se à frente deles para fazer de escudo, porque a deliciosa e iracunda criatura que, no seu vestido de tafetá com reflexos de um tom azul-celeste, desfiava impropérios, era Nostalgia, a filha de Sal Matranga.
- Este estabelecimento é do meu pai e eu vou mandar despedir-vos a todos - gritava. Depois viu Gregorio e resmungou: - Tu, outra vez! Estás em todo o lado.
Como única resposta, ele pousou-lhe uma mão no ombro e sussurrou-lhe: - Está tudo bem, Nostalgia.
Ao som da sua voz, ela acalmou.
Naquele momento chegou Anthóny, que disse a Gregorio:
- Pede que te arranjem um carro e vai já levá-la a casa.
Num instante, tinha regressado a calma.
Gregorio apanhou do chão a estola de vison que escorregara dos ombros de Nostalgia, colocou-a sobre os ombros dela e, segurando-a com força por um braço, conduziu-a até ao exterior, onde um Corvette estava já à disposição deles com o motor ligado. Gregorio deixou entrar a rapariga, sentou-se ao volante e arrancou em direção a Brooklyn.
Nostalgia chorava, e ele estendeu-lhe um lenço.
- Está tudo bem - repetiu-lhe, com uma voz persuasiva.
- Não quero ir para casa - balbuciou ela, enquanto limpava as lágrimas.
Era evidente que estava embriagada, e ele não a queria contrariar.
- Se calhar, devias arranjar-te primeiro. Estás bastante despenteada e tens o rímel a escorrer dos olhos.
- Só bebi uma coisinha de nada. E, de qualquer maneira, era um direito meu participar na inauguração, mas o meu pai mantém-me fora de tudo... e do rímel não quero saber.
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- Não é um sítio para menores.
- E a minha casa também não é, apesar de não haver nenhum cartaz com a proibição de acesso a menores. Tu não sabes, mas aquilo é um covil de hipócritas.
- Estás a falar da tua casa? Não estou a perceber.
- Como é que podes? Não sabes nada sobre os Matranga. Acham que eu sou uma tonta, mas eu tenho olhos para ver e ouvidos para ouvir, e aquilo que vejo e ouço não me agrada nada... nunca me agradou.
- Se não gostas da tua casa, porque fugiste da escola? Apercebeu-se demasiado tarde da banalidade da pergunta.
com efeito, ela replicou, cortante: - Estúpido.
Gregorio parou o carro na berma da estrada e fulminou-a com um olhar.
- Fiz-te uma pergunta estúpida, mas tu não estás a agir como uma pessoa inteligente. Uma rapariga inteligente não se embebeda, não anda por aí sozinha de noite, não tenta entrar num estabelecimento noturno, não deixa que a expulsem de todas as escolas dos Estados Unidos e não foge do último colégio disposto a acolhê-la. Eu não conheço as razões do teu descontentamento, não conheço os Matranga até porque, como tu mesma disseste, sou o último recruta, mas uma coisa sei: se desprezas tanto o prato onde comes, tem ao menos a dignidade de o recusar, em vez de continuares a comer dele - disse Gregorio, exaltado, ao mesmo tempo que a mantinha agarrada pelos ombros, obrigando-a a olhá-lo de frente.
- Já acabaste? - perguntou ela.
Ele não disse nada, voltou a ligar o motor e conduziu a toda a velocidade até chegar diante da entrada da casa.
Quando o guarda abriu o portão para os deixar entrar, Nostalgia perguntou: - Está alguém em casa?
- Não, Miss Gia. Mas, de qualquer maneira, estávamos à sua espera - respondeu o guarda. Depois dirigiu-se a Gregorio: - Se quiseres ir já embora, eu acompanho Miss Gia até casa.
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- É melhor - respondeu ele, abrindo a porta do carro para deixar sair Nostalgia. Para o fazer inclinou-se sobre ela, e pela primeira vez sentiu o seu perfume, ténue, mas inequívoco: cheirava a infância infeliz.
Regressou rapidamente à cidade e retomou o trabalho. Passaram duas semanas. No domingo, dia de fecho do estabelecimento, decidiu ir ter com don Luigi e com a família. Tony tinha-lhe dito que, para as deslocações pessoais, podia usar um Fiat Topolino que estava na garagem da casa desde que don Salvatore o tinha mandado vir de Itália e ninguém tinha usado. Não era tão confortável para conduzir como um Corvette ou um Chevy, e no meio dos grandes automóveis americanos parecia mesmo um ratinho, mas Gregorio apanhou-lhe rapidamente o jeito. A família Bartiromo estava à espera dele para o almoço, e receberam-no como se não o vissem há séculos.
Mena e Vittorio assaltaram-no com perguntas sobre o novo emprego, sobre a nova morada, sobre a grande família que o acolhia. Conseguiram apenas umas respostas lacónicas, que tiveram a aprovação do pai, enquanto que a avó pôs de lado o seu ar carrancudo para lhe dizer, com um olhar apaixonado: - Meu querido rapaz, fazes cá falta. Fazes falta a todos nós.
- Também eu sinto a vossa falta, nem imaginam quanto. Durante três anos foram a minha família e, agora, sinto-me órfão uma vez mais. - Suspirou, e leu nos olhos deles a satisfação proporcionada por aquela afirmação, substancialmente sincera.
Chegou o noivo de Mena e a senhora Bartiromo anunciou:
- Os nossos dois pombinhos vão-se casar daqui por oito dias.
- vou ter de vos dar um presente - disse Gregorio.
- E que seja bonito - precisou Mena, que estava prestes a levantar-se da mesa, porque ia com o noivo buscar as lembranças para os convidados. Depois, quando estavam a despedir-se, arranjou maneira de lhe sussurrar ao ouvido: - Um presente bem bonito,
Em italiano, Topolino significa pequeno rato. (N. do E.)
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para me consolares do facto de me teres rejeitado, quando eu queria tanto que o noivo fosses tu.
Gregorio não respondeu, mas pensou que aquela boda iminente não deixava pressagiar um bom casamento.
À noite, quando regressou à propriedade dos Matranga e estacionou o carro na garagem, encontrou à frente dele Nostalgia, que não voltara a ver depois da inauguração do Piccolo Club.
Tinha o ar de uma menina perdida e cheia de frio.
- Estava à tua espera - disse-lhe.
- Porquê?
- Comportei-me como uma idiota. Queria pedir-te desculpa.
- Deixa lá. Eu também não fui muito meigo contigo.
- Refleti muito durante estes dias. Sabes que o meu pai decidiu mandar-me para Avellino?
- Vai mandar-te para Itália?
- Pois vai. Para um convento de freiras. Achas isto possível?
- Deixaste-lhe mais alguma possibilidade? Eu acho que ele se preocupa muito com o teu futuro.
- Mas não devia, porque eu já sei o que vou fazer.
- A sério?
- vou casar-me contigo, Gregory, e ai de ti se arranjares desculpas para me rejeitares.
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Gregorio pôs um braço em volta dos ombros da rapariga com um ar quase paternal e disse: - Anda, vamos dar uma volta.
- Tenho frio - queixou-se ela.
Ele tirou o blusão de carneira e pôs-lho nos ombros. Caminharam ao longo da alameda ladeada de árvores que conduzia ao anexo.
- Apetece-te falar? - perguntou-lhe.
- Aquilo que tinha para te dizer, já disse - respondeu ela, com um ar amuado.
- Acho que o problema é esse. Tu não falas. Guardas tudo lá dentro e depois fazes um monte de disparates. Eu sei do que estou a falar, porque durante muitos anos fui exatamente como tu.
- Se calhar, ainda és.
- Talvez. Mas fiz muitas coisas... e também refleti. Em suma...
- Tu não sabes como se vive na minha família.
- Nem quero saber, porque não tenho nada a ver com isso.
- Perguntaste-me se me apetecia falar. Uma vez que um dia vais ser o meu marido, é justo que saibas - disse Nostalgia, com um tom que não admitia réplicas.
Gregorio pensou que, se a ouvisse, corria o risco de se meter em trabalhos. Mas sentia que a jovem precisava de desabafar, e naquele momento voltou-lhe à memória Florencia Sánchez y Mendoza,
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a loira mexicana que, numa tarde de agosto, na praia do Lido de Veneza, tinha despejado em cima dele todo o seu desespero, contando-lhe a história da sua família. Agora, a pequena Nostalgia estava a fazer a mesma coisa.
Exatamente como Florencia, também Nostalgia tinha decidido que ele seria a sua via de fuga. Tinha a certeza de que a bela mexicana já se tinha esquecido dele e, em breve, também aquela rapariguinha ia superar a sua fixação. No entanto, havia uma diferença entre as duas: Nostalgia apenas lhe inspirava ternura, enquanto que Florencia era um capítulo ainda em aberto, e bastava-lhe pensar nela para a desejar intensamente.
- Por favor, não me compliques a vida. Sou apenas um estranho e não quero mesmo saber de histórias que não me dizem respeito.
Ela não o ouviu e resmungou: - O meu pai teve a coragem de me acusar de ser pior do que uma puta irlandesa. Percebes isto?
- Mas não era isso que ele pensava.
- Então eu não resisti a gritar-lhe na cara: "Se tu o dizes... toda a gente sabe que de putas percebes tu." Deu-me uma bofetada. Ainda sinto a cara a arder.
- Tinha-lo provocado.
- E então a minha mãe começou a gritar com ele. Devias tê-los ouvido, quando começaram a insultar-se em dialeto napolitano. Eu não falo, mas percebo. O meu pai atirou-lhe à cara que tinha aos ombros os parentes todos dela, e ela acusou-o de passar a vida com putas. É sempre assim: basta uma coisa de nada para aqueles dois atirarem baldes de veneno um ao outro. Ele afirma que criou um ninho de serpentes prontas para o morderem, e ela acusa-o de preferir os estranhos aos próprios filhos. Porque as coisas também não correm melhor com o meu irmão. O pai considera-o um traidor, porque é advogado e se recusa a entrar em negócios com ele...
Nostalgia confiava-lhe todo o seu descontentamento, e Gregorio imaginava aquela família consumida pela inveja e pela cobiça. Sentiu o coração apertado, porque era evidente o ciúme que a filha sentia pelo pai. Ele conhecia bem aquele sentimento devastador.
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Tinha a certeza de que Nostalgia fazia disparate atrás de disparate só para chamar a atenção do pai.
- E agora aquele sacana despacha-me para Avellino, para se livrar de mim... porque sou um problema demasiado grande para aquele grande homem. Percebes?
- Percebo que és infeliz, mas o facto de continuares a fazer asneiras não vai mudar as coisas.
- Por favor, Greg, vamos fugir os dois. Tenho muito dinheiro em meu nome e não vamos ter problemas para viver - implorou, com uma seriedade que o fez sorrir.
- Para fugirmos juntos, precisávamos de estar apaixonados. E não estamos.
- Fala por ti. Eu estou - sussurrou, e baixou os olhos para a relva que os lampiões do parque iluminavam.
Pelo meio daquele verde ainda brilhante, sobressaíam muitas flores minúsculas, rendilhadas e redondas, que resistiam ao frio de novembro. Ela disse então: - Eu sou como estas florzinhas, humildes mas obstinadas: mesmo quando alguém as pisa, voltam a levantar a cabecinha. Por isso é que eu te digo que não tens saída, Greg: um dia vou ser tua mulher.
Ele não queria ferir aquela inquieta rapariga de quinze anos. No rosto pálido, iluminado por uns grandes olhos escuros, profundos e inteligentes, ele lia sofrimento e medo.
- E se em vez de pensares em casamento arranjasses um objetivo para o futuro? - perguntou Gregorio.
Tinham chegado perto dos estábulos.
- Anda, vou apresentar-te o meu pónei. É um animal extraordinário - disse Nostalgia, sem responder à sua questão.
Um moço de estrebaria varria o chão em frente às boxes, de onde os animais espreitavam tranquilamente.
- Quem é que os monta? - perguntou Gregorio.
- Eu, quando posso, o meu irmão, nas raras vezes em que nos honra com a sua presença, a mulher dele, quando vem visitar-nos. O moço monta-os todos os dias. Eu gostava de ter um rancho com muitos cavalos. Nos poucos dias em que estive nesta nova escola,
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no Connecticut, deitei o olho a uma zona fantástica. Gostava de ter uma escola de equitação para crianças. Sabes, os cavalos gostam muito das crianças - disse-lhe. Depois cumprimentou o moço de estrebaria, que lhe respondeu muito educadamente: - Boa-noite, Miss Gia.
Na última boxe, outro moço, que segurava entre os joelhos a pata de um cavalo, limava-lhe os cascos com uma lima grossa.
- Qual é o problema, George? - perguntou Nostalgia.
- Pusemos-lhe ferraduras novas na semana passada, e hoje de manhã estava a mancar. Chamei o veterinário, que descobriu que ele tinha uma infeção, medicou-o e disse para ele ficar em repouso durante uns dias.
Nostalgia acariciou o focinho do cavalo.
- Este é o Goodfellow, tem nove anos. Olha que jarretes fantásticos... e a curva da barriga... é perfeita. Tem um temperamento doce. Mas a minha preferida é a Morgana - explicou a Gregory, enquanto entrava na boxe onde a sua égua comia placidamente um monte de feno. Acariciou-a, e o animal foi percorrido por um arrepio ao longo da espinha.
- Um dia vi-te montada nela - revelou Gregorio.
- Era capaz de passar a minha vida com ela - confessou-lhe.
- Então já tens um objetivo para o teu futuro: um rancho no Connecticut e uma escola de equitação para crianças.
- Só que me vão despachar para Avellino, para um convento queixou-se. Depois declarou: - Mas estão redondamente enganados, porque eu para lá não vou.
- Olha que vais, isso garanto-te eu - ordenou uma voz áspera atrás deles.
Don Salvatore aparecera de repente e olhava para a filha com severidade.
Gregorio sabia que o homem devia ter movido as suas amizades para impedir que as fotografias da filha embriagada, na inauguração do Piccolo Club, aparecessem nos jornais. Nostalgia já se tinha eclipsado. O casaco que Gregorio lhe tinha posto nos ombros estava no chão, e ele apanhou-o.
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- Ainda não te agradeci por ma teres trazido a casa, na noite da inauguração - disse-lhe Salvatore Matranga.
- Acho que a Nostalgia é uma menina pouco feliz - observou Gregorio.
- É apenas uma rapariguinha ingovernável. Devo dizer-te que, no fim de contas, eu gosto da Nostalgia, porque é muito parecida comigo. Não tem nada a ver com o irmão, o Bob, que sai completamente à mãe e é um homem indeciso a todos os níveis.
Caminharam em direção ao anexo.
- Se é que lhe posso dizer isto, eu acho a Nostalgia muito simpática - confessou Gregorio.
- Nota-se... e é precisamente por isso que não se deve estragar, mas sim domar, como os potros de raça. Não vou permitir que faça mais disparates. Na próxima semana vou metê-la num avião para Itália. Lá ela vai estudar e aprender a conhecer a terra do pai e do avô. Sabes, eu conto-te estas coisas porque te considero um membro da família.
Esse é que é o problema, pensou Gregorio. O boss estava a envolvê-lo cada vez mais nas suas questões familiares.
Don Salvatore pousou-lhe uma mão no ombro e continuou: De ti dizem-me coisas boas. Parece que tens a capacidade de aprender tudo rapidamente. De resto... eu nunca me engano ao avaliar as pessoas.
- Faço o melhor que posso, don Salvatore - respondeu Gregorio.
- É evidente que tens no sangue a arte da hospitalidade, e esse dom vai abrir-te novas perspetivas. Porque, quero eu dizer, não julgas que vais ser empregado de mesa toda a vida, pois não?
- Realmente, quando vim para a América, sonhava com a glória. Depois redimensionei os meus objetivos.
- Nunca faças isso, e continua a sonhar com a glória, até porque eu tenho em mente outros projetos para ti.
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- Pobre criatura, sempre aos trambolhões, de um lado para o outro, como uma embalagem postal - suspirou Elvira Matranga, a solteirona da família, enquanto se empanturrava de doçaria napolitana.
Naquela noite, à mesa, o tema dominante era a decisão tomada por don Salvatore de mandar Nostalgia para Itália.
- Se deixasses de te afogar em comida, a tua compaixão seria mais credível - observou mamma Lina, que confecionara aquele doce napolitano.
- Deixe-a em paz, mamma! Quer tirar-lhe também a consolação da comida? - interveio Donata, em defesa da irmã.
- Mas por favor! Esta mulher queixa-se por tudo e por nada porque não tem preocupações. Se tivesse um marido... - recriminou a mãe.
- Cá estamos nós outra vez. Está sempre a atirar-me à cara que não me casei, como se isso fosse um erro, uma desonra - encrespou-se Elvira.
- Claro, e é assim mesmo. Um era demasiado magro, outro demasiado baixo, outro demasiado palerma. Até recusaste o Albert Sciortino porque usava meias vermelhas - interveio o velho Matranga.
- Disse sempre que não, a Elvira linda, para envelhecer solteira ainda - sentenciou Jo, o marido de Donata.
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Elvira atirou o guardanapo para cima da mesa e gritou: - Mas tu vê lá se calas a boca, que é melhor.
- Estava só a brincar - justificou-se ele.
- Pois bem, para a próxima brinca mas é com as mulheres da tua família - ralhou a sogra.
Al, um dos filhos de Donata, resmungou: - Ufa, que seca! Já não chegam as histórias da Gia, agora vêm também com as da tia Elvira.
- Está calado. Estas coisa não te dizem respeito - avisou a mãe.
- Então porque é que falam delas quando nós estamos presentes? - perguntou o pequeno Mike.
- Acabou o jantar. Vão já os dois imediatamente para a cama ordenou Jo, ao mesmo tempo que se levantava da mesa. Agarrou nos filhos por um braço e arrastou-os para fora da sala de jantar.
- Jesus, SantAna, José e Maria, ponde em paz esta família suplicou mamma Lina.
- E depois ainda protesta porque eu não tenho marido. Ter marido significa ter filhos, e eu já tenho a minha parte de preocupações com estes sobrinhos - declarou Elvira, ao mesmo tempo que, com os dedos, recolhia as migalhas de doce que tinham ficado no prato.
Gregorio levantou-se da mesa e disse: - com licença.
O velho Matranga observou: - Tu nunca falas. - Disse-o como uma acusação.
Ele replicou, com uma voz clara: - Não falo porque não sei nada, e sobre nada não há nada a dizer.
Na realidade, sabia mais do que queria, e isso não lhe agradava. Fechou-se no seu quarto, instalou-se no sofá, pegou no livro que tinha comprado na cidade no dia anterior e suspirou: - Meu Deus, que dia!
Nostalgia tinha-lhe traçado um quadro familiar desagradável que ele preferiria ignorar e, com a obstinação de uma adolescente mimada, elaborara um plano que o envolvia e sobre o qual, mais cedo ou mais tarde, deveria conversar com o boss, para evitar que este pensasse que ele a tinha desencaminhado.
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- Que desastre! - suspirou.
Levantou os olhos para a sua tábua votiva, suspensa num nicho em frente à cama, e pediu à Virgem para o ajudar. Obviamente, não chegou nenhuma resposta, e ele baixou os olhos para a capa do livro e leu o título: A Farewell to Arms1.
Gostava de entrar nas livrarias e dar uma volta pelos corredores atulhados de livros. Deixava-se atrair por uma capa ou por um título. Abriu o romance no ponto em que o tinha deixado e ouviu bater à porta. Era Frank, o motorista do velho Matranga.
- Miss Gia desapareceu. Andamos todos à procura dela. Precisamos também da tua ajuda - anunciou.
Don Salvatore e a mulher tinham jantado sozinhos, convencidos de que a filha se tinha fechado no quarto em protesto contra a decisão de a mandarem para Itália. No entanto, antes de se deitar, a mãe foi bater-lhe à porta e, como não obteve resposta, entrou e descobriu que a cama estava intacta e que Nostalgia tinha desaparecido.
Foi dado o alarme e toda a gente começou a inspecionar a casa e o parque, sem a encontrarem.
- Não saiu pelo portão, porque o guarda de turno não a viu e, de resto, os carros estão todos na garagem. Por isso, escondeu-se dentro da propriedade - explicou Frank, entregando uma lanterna a Gregorio.
- Viram nos estábulos? - perguntou ele, considerando que a rapariga podia ter decidido passar lá a noite.
- Não sei. De qualquer maneira, dividimos o parque entre nós. Tu vais para o lado norte.
Do lado norte ficavam as construções baixas que albergavam galinhas, coelhos e perus. Alguns dias atrás, o velho Matranga mostrara a Gregorio um peru de dezassete quilos que ia ser sacrificado daí a poucos dias para a festa da Ação de Graças. Era de excluir que Nostalgia se tivesse escondido num galinheiro ou no bosque. Em qualquer caso, por precaução, apontou a lanterna para o chão coberto por uma camada abundante de folhas caídas, à procura de
1 O Adeus às Armas, de Ernest Hemingway. (N. do E.)
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pegadas sobre o húmus que se desfazia. E encontrou-as. Eram pegadas de botas femininas. Seguiu-as. Terminavam diante de uma escada de madeira encostada ao muro coberto de hera. Trepou à escada. Nostalgia tinha-se deixado cair do outro lado, agarrando-se às ramificações sólidas da hera que cobria também o lado de fora do muro. Depois, pensou Gregorio, devia ter-se afastado em direção à Atlantic Street. Nesse momento informou os outros. Don Salvatore foi o primeiro a acorrer. Viu Gregorio descer a escada e resmungou: - Mas onde é que ela terá ido?
A hipótese mais provável era que Nostalgia tivesse pedido ajuda a algum amigo que estivesse à espera dela de carro, do lado de fora do muro da propriedade.
- E agora, quem é que a encontra? - murmurou o pai, desesperado.
Mandou embora os seus homens e disse a Gregorio: - Anda comigo.
Pela primeira vez desde que era hóspede dos Matranga, Gregorio entrou pela porta da casa grande.
A mulher de don Salvatore foi ao encontro do marido, a chorar.
- Então? - perguntou.
- Fugiu - respondeu ele.
- É preciso avisar imediatamente a polícia... telefonar para os hospitais... - começou ela a dizer.
- É melhor tu ires para o quarto - gritou ele. O tom não admitia réplicas.
A mulher, obediente, subiu as escadas que davam acesso ao andar superior, a soluçar: - A minha menina... quem sabe onde estará agora... tudo por tua culpa...
O marido calou-se e depois disse a Gregorio: - Vamos para ali.
Entraram numa sala mobilada com peças venezianas do século XVIII e tapeçarias de seda bordada que representavam ramos de pessegueiro e pássaros a esvoaçar.
Don Salvatore deixou-se cair numa pequena cadeira estofada, tão delicada que Gregorio receou que se desmanchasse. Mas aguentou o peso.
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- Eu devia chamar a polícia - começou. E prosseguiu: - Mas se ela se refugiou em casa de alguma amiga, quem é que a encontra? De resto, eu devia saber quem são os amigos da minha filha. Mas não sei. Sabe a minha mulher que, de certeza, já deve ter ligado para eles todos. Inutilmente.
Gregorio estava imóvel, à porta da sala, e perguntava a si mesmo se aquele seria o momento mais oportuno para revelar ao boss as intenções de Nostalgia.
Deu alguns passos na sala, sentou-se à frente dele e, contendo um suspiro, decidiu que devia falar.
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- Hoje, quando foi ter connosco aos estábulos, a Nostalgia estava a falar-me de uma coisa - começou.
- De quê? - perguntou Sal, ansioso.
- Falou-me da sua intenção de se casar comigo, quando chegar o momento.
Seguiram-se longos instantes de silêncio.
- Imagino que tu não tenhas feito nada para a encorajar nesse sentido - disse por fim, com um fio de voz.
- Claro que não, don Salvatore - garantiu o jovem.
- Eu tinha a certeza. - Depois acrescentou: - Vê ali, dentro daquele armário. Há whisky. Arranja para os dois.
Gregorio obedeceu.
Don Salvatore engoliu um grande trago de whisky e depois disse: - A Gia sabe ver ao longe e faz os seus investimentos.
Gregorio não comentou.
Beberam ainda durante algum tempo, em silêncio. - De qualquer maneira, não posso ficar aqui de braços cruzados. Aquela pobre mulher lá em cima - continuou, referindo-se à esposa - está agora desesperada, na maior solidão, e todos os outros estão nas mesmas condições. Porque, não sei se estás a ver, meu filho, a minha família é um ninho de serpentes, mas quando é preciso sabe unir-se, e a dor de um torna-se na dor de todos. Até logo ao fim da
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noite tenho de entregar a Gia à mãe e, portanto, é preciso começar a fazer alguma coisa. Para já, vou chamar a polícia.
Naquele momento Gregorio lembrou-se de que, na noite da inauguração do Piccolo Club, quando Nostalgia lhe confessara que se tinha embriagado num sítio público, lhe tinha dito: "Quando estou muito triste, bebo cerveja sozinha ou com alguém." Mas onde tinha ela ido beber cerveja?
Don Salvatore estava a falar com alguém na esquadra da polícia.
- Estou tão cansado de lutar! - suspirou don Salvatore. Tinha desligado a chamada e olhava para ele, talvez à espera
de uma palavra de encorajamento. Que não veio. Por isso prosseguiu: - Agora vamos procurá-la com discrição nos locais frequentados pelos jovens. Que mais posso eu fazer? - Inesperadamente, sorriu-lhe com aqueles seus dentes de ouro confrangedores.
- Se eu puder fazer alguma coisa... - sugeriu Gregorio, enquanto se mexia na cadeira.
- Podes fazer-me companhia. Estou tão só...
- Percebo - anuiu Gregorio.
- Sabes, estou a olhar para ti e a pensar como eras quando te vi pela primeira vez naquele bar, junto do porto... um rapazinho mal-arranjado, acompanhado por um gatito que te seguia para todo o lado. Estavas sujo, esfomeado, assustado, e no entanto... No entanto, no fundo desses teus olhos cinzentos eu vi a determinação de um homem. Fizeste-me lembrar como eu era, quando desembarquei nesta grande cidade com a minha família. Era mais novo do que tu, mas tal como tu tinha uma fome que me devorava, um frio que me paralisava, e tudo me metia medo. Eu não queria vir para a América, onde o desespero nos tinha trazido. Tínhamos desembarcado havia apenas dois ou três dias e já a minha mãe se tinha posto a limpar as escadas de um grande edifício. O meu pai vivia de trabalhos temporários. Eu tinha de tratar das minhas irmãs. Andava pela Mulberry Street com um saquinho de lona a apanhar os restos de frutas e verduras. Dormíamos os cinco na mesma cama infestada de pulgas. A retrete, a única para vinte famílias, era um buraco malcheiroso ao fundo das escadas.
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Quando te vi, voltou-me à memória todo o passado. E agora... os meus filhos armam-se em senhores e quase têm vergonha de mim: o Bob faz a vida dele e nunca o vejo, a Nostalgia arranja maneira de ser expulsa de todas as escolas... Quem diria que, quando está contente, os olhos lhe brilham como estrelas. Agora está apaixonada por ti...
Era evidente que don Salvatore falava para superar aquele tempo angustiante de espera.
- Não acredito que a Nostalgia esteja apaixonada por mim. Quer qualquer coisa, mas não sabe o quê - replicou Gregorio.
- Dizes bem. Se ela quisesse leite de galinha, eu arranjava-lho. Mas ela foge. Assim que a apanhar, despacho-a rapidamente para Avellino, para o colégio do Sagrado Coração. Ali, é garantido, conseguem endireitá-la. Mas entretanto... onde é que ela estará?
- Tenho a certeza de que a Nostalgia quer apenas opor-se à sua decisão de a mandar para Itália. Amanhã volta, tenho a certeza afirmou Gregorio.
- Eu também acho que tu tens razão. Quer fazer braço de ferro comigo. Mas desta vez sou eu que vou ganhar. E agora, meu filho, vai dormir. Eu fico à espera dela.
Gregorio regressou ao anexo quase com relutância, porque tinha a sensação de ter descurado alguma coisa, uma palavra, um sinal que a rapariga lhe fornecera e ele não tinha apanhado, ou não conseguia recordar.
Depois da confusão, a casa estava mergulhada no silêncio. Só mamma Lina estava ainda a pé: encontrou-a na cozinha a amassar a farinha para fazer o pão.
- Apetecia-me uma bebida quente - disse Gregorio.
- vou fazer-te um café muito bom e, às tantas, também eu bebo - exclamou a senhora, ao mesmo tempo que limpava as mãos enfarinhadas ao avental.
Ele sentou-se num banco ao lado da janela e observou os gestos lentos, quase solenes, de mamma Lina, que se movia na cozinha como a sua avó. Quem sabe quantas vezes a avó Lena teria estado
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em cuidado por causa dele, como agora estava aquela mulher por causa da neta. Talvez a avó estivesse ainda preocupada, e as suas cartas e os dólares que lhe mandava de vez em quando não chegassem para a tranquilizar. Quem sabe quantas noites, também ela, teria passado na pobre cozinha de Porto Tolle, a cortar legumes, a limpar enguias, a remendar meias, enquanto sussurrava orações para invocar a ajuda do Céu!
- Como está o meu filho? - perguntou mamma Lina.
- De certeza que a Nostalgia vai voltar depressa - limitou-se a dizer Gregorio.
Do corredor chegaram até eles as badaladas do relógio de pé. Eram onze horas da noite.
- Deram-lhe demasiado mimo. As melhores escolas, as roupas mais bonitas, os cavalos... Deram-lhe tudo, mas não amor. Esse é que é o problema. Quando era pequenina, vinha ter comigo e queria que eu pegasse nela ao colo. Escondia a carinha no meu peito e ficava em silêncio, muito sossegadinha. Depois dizia: "Que perfume tão bom que tu tens, avó." Fazia-me chorar. A mãe nunca estava em casa. Aquela palerma andava sempre a correr, pendurada no marido, para o espiar, para saber onde ia e com quem; não ficava contente enquanto não o apanhasse com alguma prostituta. Então fazia uma tempestade, e a pequena Gia punha-se atrás das portas a ouvir aqueles dois desgraçados a discutir. E tremia, pobre menina!
Mamma Lina serviu o café. Gregorio mexeu lentamente o açúcar e imaginou Nostalgia a espiar, assustada, as discussões dos pais e a refugiar-se depois nos braços da avó. A ele tinha acontecido pior: depois de lhe terem dado tanto amor, os pais deixaram-no sozinho. No entanto, dava-se conta agora, na primeira infância tinha vivido num casulo de amor. Para Nostalgia, evidentemente, não tinha sido assim. Sentiu por ela uma ternura infinita.
- com o Bob, o irmão mais velho da Gia, as coisas correram melhor. Nasceu quando o Salvatore e a minha nora eram ainda jovens e estavam apaixonados. Depois ela deu-se ares de grande dama, fazia exigências, ficava azeda, e o meu filho começou a procurar
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noutros lugares aquilo que a mulher já não lhe dava. De resto, sabe-se que para o homem a família é sagrada, a esposa um pouco menos. Uma mulher inteligente cala-se e deixa correr; uma cretina, mesmo quando não sabe, tenta saber e depois dá espetáculo. Agora estou eu aqui, a amassar o pão, e vou imaginando as coisas piores. Onde estará a esta hora aquela pobre menina? Quando era pequenina, corria até mim para eu a consolar. Agora que é grande...
Do peito do avental tirou um lenço, assoou-se ruidosamente e limpou as lágrimas.
Gregorio olhou com afeto para aquela mulher que sofria e apeteceu-lhe abraçá-la, mas não o fez. Nunca o fizera nem com a avó, que era áspera como um ralador e manifestava o seu amor por ele só com o olhar, quando estavam os dois sozinhos, e lhe dava algumas moedas para comprar doce de castanha ou granizado.
A ideia ocorreu-lhe chegou de repente. Ali estava o que Nostalgia lhe tinha confiado naquela noite, quando a foi levar a casa:
- Quando estou zangada, telefono à- Crystal. É uma yankee e vive na Village. O pai dela é gerente de um pub decrépito na rua 42, ao lado do Piccolo Club. Bebemos uma cerveja, escondemo-nos a fumar atrás de um biombo e, por fim, rimo-nos de tudo.
- Obrigado pelo café - disse a mamma Lina.
- Estás cansado. Vai dormir - respondeu ela, enquanto pousava as chávenas vazias no lava-louça.
- Não estou cansado. vou dar uma volta até à cidade. Sentou-se ao volante do Topolino.
O guarda que lhe abriu o portão perguntou-lhe: - Não é um bocadinho tarde para sair?
Apeteceu-lhe mandá-lo meter-se na vida dele, mas sorriu e replicou: - Depende do ponto de vista.
Chegou à cidade. O pub ao lado do Piccolo Club ainda estava aberto. Através do vidro embaciado viu Nostalgia sentada a uma mesa, enchouriçada no casaco de peles da mãe, que a fazia parecer um palhaço de circo. Ao lado estava sentado um homem com um braço pousado nos ombros dela.
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Gregorio entrou naquele espaço cheio de fumo e descobriu imediatamente a mesa de Nostalgia e do companheiro. Estavam calados, com os olhos postos nos copos.
Sem os perder de vista, foi até ao telefone, inseriu algumas moedas e marcou o número de casa de don Salvatore. O boss atendeu imediatamente.
- Encontrei a Nostalgia - murmurou Gregorio.
- O Céu seja louvado! Como é que ela está?
- Bem, acho eu. Ela ainda não me viu. O que é que eu faço? Mantenho-a debaixo de olho e o senhor vem buscá-la?
- Agarra-a pelos colarinhos e traz-ma para casa. Imediatamente - gritou ele. Agora que a filha tinha sido encontrada, podia dar largas à sua fúria.
- O senhor avisa a polícia? - perguntou Gregorio, enquanto perguntava a si mesmo como enfrentar a situação.
- Sim, sim, eu trato disso. Anda depressa! - concluiu don Salvatore.
O gerente do pub, um irlandês magro, estava atrás do balcão, sonolento, à espera da hora de fechar.
Gregorio saiu da cabine telefónica, deu meia dúzia de passos para chegar até à mesa da rapariga e do companheiro, um sujeito de cabelo ruivo, pescoço maciço e uma musculatura que transbordava
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do casaco. Levantaram os dois os olhos ao mesmo tempo. O rapaz fitou-o, desconfiado. Nostalgia, pelo contrário, sorriu-lhe.
- vou levar-te para casa - disse Gregorio.
- E quem vem a ser este? - perguntou o rapaz a Nostalgia.
- O meu irmão - mentiu ela.
Gregorio voltou-se para o rapaz de ar robusto: - Não sou o irmão dela, mas isso não te diz respeito. Sabes que é menor, não sabes?
Os clientes, ensonados e bêbedos, tinham de repente saído do torpor em que se encontravam.
O rapaz levantou-se, pôs as mãos para a frente e declarou:
- Escuta, amigo, não quero confusões, mas a verdade é que esta doida me rebocou até aqui, me disse que tinha dezoito anos e me propôs algo mais do que uma cerveja. Só que não queria ir comigo até minha casa. Vocês, italianos, são uma raça malvada e eu não quero ser apanhado no meio das vossas confusões. - Pronunciou as palavras quase a gritar e esgueirou-se para fora do pub como se estivesse a ser perseguido pela polícia.
- Obrigaste-me a fazer uma bela figura! - resmungou Nostalgia, sem grande convicção e sem se deixar intimidar pelo olhar severo de Gregorio.
Levantou-se da mesa e, enquanto avançava à frente dele em direção à porta, quase o censurou: - A verdade é que demoraste imenso tempo antes de me encontrar. Se demorasses mais uns momentos, eu ia fazer um disparate, e a culpa era só tua.
- Mas que impertinência! - resmungou ele, de dentes cerrados. Estava realmente irritado com aquela rapariguinha petulante e mimada.
- Não quero voltar à toca dos lobos - choramingou logo a seguir, quando estava já dentro do carro e Gregorio a levava de volta a Brooklyn.
- Por favor, cala-te! Estou farto dos teus caprichos. Tu julgas que a vida é uma comédia, porque nunca precisaste de ganhar o pão que comes. Por isso fazes umas cenas patéticas que, francamente, são muito aborrecidas. Não me apetece falar, estou cansado, vê se te calas.
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- Caramba! Estás mesmo zangado. Gosto disso - exclamou ela, que parecia realmente não se aperceber das confusões que arranjara. Depois, apesar de ele lhe ter pedido que se calasse, Nostalgia gabou-se da sua fuga. - Quando me deixei cair para o lado de fora do muro, escorreguei e quase parti uma perna. Acho que fiz uma entorse, porque de facto tenho um tornozelo inchado que me dói. Apanhei um táxi e pedi para me levar ao pub, porque tinha a certeza de que tu me ias lá procurar. Mas não queria que me visses chorar. Encontrei aquele rapaz irlandês e abordei-o para beber uma cerveja. Mas ele só queria... tu sabes o quê. Obviamente, eu não tencionava de todo fazer-lhe a vontade, e estava a ficar nervosa. Há várias horas que estava para ali a tergiversar. Percebes o risco que me fizeste correr? - censurou-o.
Gregorio parou o carro e, voltando-se para ela com um olhar feroz, esteve no limite de lhe dar um par de estalos. Ela apercebeu-se disso e começou aos gritos, a chorar.
- Perdoa-me! Só fiz isto por ti. Queria que tu ficasses preocupado e com ciúmes daquela besta que estava ali sentada ao meu lado.
Gregorio deu um longo suspiro de resignação e, quando a entregou a don Salvatore, a única coisa que conseguiu dizer foi:
- Acho que precisa de um médico, porque tem um tornozelo magoado. Quanto ao resto, está sã como um pêro. Se me é permitido dizer... espero que a fechem num convento.
Finalmente foi para a cama. O seu último pensamento, antes de adormecer, foi para Nostalgia. Mas não foi um pensamento benévolo: lamentou não lhe ter dado um par de estalos. E, no meio desta frustração, adormeceu.
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Seguiram-se dias de trabalho extenuante no Piccolo Club, que transbordava de clientes todas as noites. Só se cruzava com os Matranga de manhã, quando tomavam o pequeno-almoço.
Soube por eles que Nostalgia tinha partido para Itália, acompanhada pelos pais.
Foi ao casamento de Mena Bartiromo e encontrou Franco Fantuzzi. Franco confessou-lhe que Angelina era um capítulo encerrado.
- Saiu-lhe a lotaria, e adeus, até qualquer dia - comunicou-lhe.
- Saiu-lhe mesmo a lotaria? - perguntou Gregorio.
- No sentido em que se arrumou para o resto da vida. Casou-se com um solteirão de ouro, proprietário de uma cadeia de lojas de brinquedos. Parece que é um rapaz tímido, com muito dinheiro. Do nosso miserável trio, ela é a primeira a ser bafejada pela sorte. O próximo será um de nós os dois, garanto-te.
- Estás a dizer-me que ela se apaixonou por ele?
- Apaixonou-se pelo património dele.
- Coitada da Angelina! - lamentou Gregorio.
- O que é que estás a dizer?
- Estou a dizer que não vai ser feliz.
- É claro que tu és sempre do contra - censurou Franco, que não partilhava da opinião do amigo.
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- Às vezes gostava de ser como tu e como ela, mas não consigo. A minha consciência tem uma voz desagradável, e quando penso fazer alguma coisa com que ela não concorda, começa a gritar mais alto que um porco nas mãos do matador.
Quando regressou da boda, encontrou Anthony Francis Rapello na cozinha de mamma Lina.
- Estava à tua espera - disse Anthony. Não tinha uma cara alegre.
- Anda, vamos para ali conversar. Isolaram-se na copa.
- O boss regressou de Itália e não traz boas notícias - começou.
- A Nostalgia? - foi a primeira pergunta que lhe ocorreu.
- Não. A rapariga está em segurança, dentro dos muros do colégio. Mas don Salvatore tem amigos influentes em Roma, gente que sabe o que se vai cozinhando. Disseram-lhe que podia em breve rebentar uma guerra, ainda que as aparências não o deixem supor de maneira nenhuma. Chegou uma convocatória para ti. Vais ter de te apresentar à inspeção, e depois tens de regressar a Itália, para o serviço militar. Partindo do princípio que não vai rebentar conflito nenhum, dois anos de paragem ninguém te tira.
Gregorio escutou-o com a respiração suspensa. Voltar a Itália para pegar numa arma não estava nos seus planos.
- E agora? - perguntou.
- Podias contornar isto tudo se tivesses cidadania americana.
- Mas não tenho.
- Então estás lixado. A não ser que...
- A não ser que...? - perguntou Gregorio, com o espírito em grande agitação.
Pensou no regresso a Itália, nos longos dias de travessia, nos anos de serviço militar que iriam adiar a realização de tantos projetos. Não queria regressar, e por isso agarrou-se àquele "a não ser que" como a uma tábua de salvação.
- A não ser que se consiga regularizar a tua situação aqui, nos Estados Unidos - suspirou Anthony. Extraiu do bolso o postal do exército italiano e entregou-lho.
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À copa chegavam os ruídos da sala de jantar, onde a empregada estava a pôr a mesa para refeição da noite. Chegavam também as vozes estridentes dos dois filhos de Donata, que lutavam por causa de uma coisa qualquer no corredor, e os protestos de mamma Lina contra o marido e o seu "charuto fedorento", que empestava o ar.
Gregorio acabava de receber uma notícia terrível, a sua vida estava à beira de uma reviravolta e, no entanto, naquela grande família, tudo se processava como de costume.
- O que é que queres dizer com regularizar a minha situação?
- perguntou, dividido entre a esperança e a suspeição.
- Temos boas relações nas altas esferas - limitou-se Anthony a dizer.
- E daí?
- Tens de nos dar tempo para fazer alguns telefonemas... para sondar o terreno... - replicou o outro,
- Não achas que eu também devia saber alguma coisa sobre isso, uma vez que sou a pessoa diretamente interessada?
- Não há nada para saber. Só tens de confiar.
- Porque é que eu tenho de confiar permanentemente? Porque é que não posso saber o que é que tu e don Salvatore têm em mente? protestou o rapaz.
- Alguma vez tiveste a perceção de teres depositado mal a tua confiança? - perguntou Anthony, agastado, porque não tinha apreciado aquela reação de Gregorio. E prosseguiu: - Estás debaixo da nossa asa. É assim tão terrível? Já não te apetece estar no quente? É só dizeres. A América é muito grande, e tu és livre de ires para onde te apetecer.
Gregorio baixou os olhos e disse: - Eu sei que vos devo tudo e, no entanto, às vezes sinto-me como um cão amarrado à trela. Dependo de vocês para tudo, até para a questão da tropa. Dá-me jeito, dá-me um jeito louco este cobertor envolvente, mas como é que eu faço para saber quem sou e quanto valho se nunca consigo medir-me sozinho com as minhas forças? Além disso, para ser
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franco, às vezes pergunto a mim mesmo o que é que me vai ser pedido em troca de tanta generosidade.
Anthony espetou os cotovelos com força na mesa e, olhando-o diretamente nos olhos, perguntou-lhe: - Alguma vez te ocorreu que és um rapaz egoísta? Alguma vez pensaste que renunciaste à tua família por medo das obrigações que daí te poderiam advir? O teu pai chamou-te da América do Sul mais do que uma vez. A tua mãe suplicou-te que fosses viver com ela. Sempre representaste o papel do filho ofendido. Agora sou eu que te pergunto: "Porquê?" E se calhar também devias fazer essa pergunta a ti mesmo. Bem, tenho mais que fazer e vou-me embora - concluiu.
Naquele momento, mamma Lina apareceu à porta para anunciar que o jantar estava na mesa.
Gregorio acompanhou Tony até ao carro.
- Não sou um ingrato e não tenho vontade nenhuma de regressar a Itália para ser soldado. Acho que disseste uma coisa profundamente verdadeira sobre o meu medo de dever alguma coisa a alguém e, sobre esse assunto, eu devia fazer algumas contas comigo. Mas tens de acreditar em mim quando te digo que me sinto como um cão amarrado à trela. Por exemplo, como foi que soubeste que eu recusei os convites do meu pai e da minha mãe?
Anthony sorriu.
- Ora aí está outra vez a tua desconfiança! És capaz de imaginar sabe-se lá que operação de espionagem. Greg, eu ouço-te quando falas, apesar de falares raramente, porque és muito reservado. Portanto, não me lixes com os teus melindres de solteirona velha concluiu, ao mesmo tempo que se metia no carro.
Naquela noite, Gregorio não conseguiu conciliar o sono. Mais ainda do que o postal que recebera para se apresentar à inspeção, fora a discussão com Tony que o fizera sentir-se mal, porque as palavras daquele homem tinham posto em evidência alguns dos seus problemas mais profundos e dolorosos.
Agora era obrigado a refletir sobre as razões que, desde rapaz, o tinham levado a fugir, indo de encontro a situações hostis, difíceis,
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perigosas, só para ficar distante das pessoas que o amavam e que ele amava.
Pela primeira vez, perguntou a si mesmo se não teria confundido com ciúme um egoísmo feroz. Não podendo ter tudo, escolhera não ter nada.
Talvez tivesse chegado o momento de aceitar também essa visão de si mesmo.
Incapaz de conciliar o sono, levantou-se e saiu do quarto para ir comer qualquer coisa. Percorreu o longo corredor e, da cozinha, onde as luzes estavam acesas, chegou até ele um murmúrio de vozes. Estacou.
- Lá em baixo respira-se um ar fétido, mamma. Imagine que eu tive de ir a Roma para denunciar os abusos do regedor sobre os nossos terrenos e sobre as casas... - dizia don Salvatore.
- Como é que os teus amigos não te informaram? - perguntou mamma Lina ao filho.
- Têm todos medo, mamma. Nem lhe conto da voz grossa do funcionário de Roma em resposta às minhas denúncias. Eu fiz uma voz ainda mais grossa e ele, assustado como todos os prepotentes, baixou a crista e prometeu intervir.
- Mas então é verdade que o fascismo é uma desgraça!
- Não sei. Só lhe posso dizer que a miséria da qual nós fugimos continua a mesma e agora, à paulada dos patrões, foi juntar-se a dos fascistas.
- E tu tiveste coragem para deixar a tua filha ali? - acusou mamma Lina.
- com as freiras, a Gia está protegida de todos os perigos. Naquele colégio de Avellino está mais bem guardada do que num cofre.
- Deus te ouça! Mas diz-me, viste a gente da nossa terra? A dona Assunta, os Ciriello, os Scognamiglio...
- Estive com eles. Sabe que as encomendas que lhes manda chegam abertas?
Gregorio, em bicos de pés, voltou para trás e fechou-se outra vez no quarto.
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A conversa entre mãe e filho faziam-no pensar nos avós e na mãe. As suas cartas eram sempre tranquilizadoras, mas deveria ele acreditar na serenidade daquelas palavras? Sentou-se à secretária, pegou num papel e numa caneta e começou a escrever: "Querida mãe, gosto muito de ti."
Encheu duas folhas e concluiu: "Foi preciso muito tempo para perceber isto, mas agora sei que fui um filho difícil e egoísta. Peço-te que me perdoes."
Depois da longa confissão, sentiu-se melhor. Meteu-se na cama e adormeceu imediatamente.
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Franco Fantuzzi contou a Gregorio que tinha encontrado finalmente um alojamento, não muito distante da pizaria de don Luigi.
- Não é uma maravilha, mas sempre é uma casa, e como tem dois quartos, se quiseres, podemos dividir o espaço e a renda - propôs-lhe.
Gregorio considerou aquela oferta com alguma perplexidade.
- Tenho de pensar. Os Matranga gostam que eu viva em casa deles - respondeu.
Depois da discussão com Anthony Rapello, pensou que uma habitação autónoma seria um bom ponto de partida para afirmar a sua independência.
Por isso telefonou a Franco, que lhe deu o endereço da casa, num bairro que parecia um formigueiro, com as escadas atulhadas de crianças irrequietas e mães barulhentas. Chegou lá acima e bateu a uma porta um pouco danificada.
Franco abriu-a imediatamente e convidou-o a entrar, com uma vénia de grande cortesão.
Gregorio olhou em volta, silencioso. Sentou-se num banco e anunciou: - Chegou o postal para me apresentar à inspeção.
- Estás frito, meu amigo - disse Franco.
- Como é que tu não recebeste?
- Tenho cidadania americana.
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- Nunca me tinhas falado nisso - replicou, sentindo-se quase traído pelo amigo.
- Nunca me tinhas perguntado. De resto, estou na América há mais tempo do que tu... Sendo assim, uma casa não te serve de muito.
- Não é evidente. Há sempre uma solução para cada problema
- respondeu Gregorio, que se agarrava ao poder dos Matranga para evitar o regresso à pátria.
Considerou o assunto encerrado e olhou em volta. Era uma água-furtada com duas janelas que se abriam para o céu que, porém, não se via porque os vidros estavam cobertos por uma camada de imundície. O chão irregular deixava entrever, aqui e ali, um fundo de cimento partido.
- Não é um palácio, eu sei - admitiu Franco.
- É um desastre.
- Bem... para alguém que mora num palacete em Brooklyn...
- Não percebes que o dono da casa te está a roubar?
- A dona da casa, queres tu dizer. Sim, percebo. Mas não resisti ao fascínio desta viúva siciliana, redonda e perfumada como um bolinho. Digamos que é uma solução provisória. O tempo de trabalhar a viúva e depois... ainda por cima, já não aguentava mais aquela arrecadação na escola de dança - explicou, enquanto esmagava debaixo do sapato um escaravelho avermelhado que tinha saído do chão.
- Gostava de falar com essa senhora - disse Gregorio.
- Hoje é dia de receber as rendas. A signora Carmela dá uma volta pelos inquilinos, e entretanto examina as suas propriedades. Não vá dar-se o caso de alguém lhe estragar os frescos preciosos brincou o amigo. E prosseguiu: - Mas não visitaste todos os aposentos da mansão. Aquela é a porta do quarto que tu podes ocupar.
- Gregorio espreitou para uma cela gelada e sombria, com um postigo no topo de uma parede, por onde entravam eflúvios de comida e gritos dos vizinhos.
Pensou no seu quarto fantástico, na casa dos Matranga, na comida genuína preparada por mamma Lina, na roupa que encontrava
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sempre lavada e passada, e decidiu que ir morar para aquele sótão com Franco era uma loucura.
No entanto, desagradava-lhe a ideia de deixar o amigo numa situação tão aviltante, e por isso enfrentou a dona da casa, no momento em que esta apareceu à porta, lançando-lhe o mais encantador dos seus sorrisos.
Franco fez as apresentações e ele beijou-lhe a mão. Era tão bonito e elegante que a viúva corou com aquelas atenções.
- Tenho a certeza de que a senhora tem umas instalações melhores para o Franco e para mim, que queria vir morar com ele
- disse-lhe, ao mesmo tempo que a convidava para se sentar num banco desconchavado.
- Ter, tenho. E é mesmo no prédio aqui em frente. Dois quartos bem iluminados no segundo andar, com casa de banho. Mas... o aluguer muda - respondeu ela.
- Compreendo. Podemos ver? - perguntou Gregorio.
A mulher não se fez rogada. Mostrou um apartamento mais decoroso, e pediu um aluguer muito elevado. Enquanto Franco, que estava nervoso, pensava que mesmo dividindo as despesas o aluguer era demasiado alto para o seu bolso, Gregorio perguntou:
- Podemos ocupá-lo imediatamente?
- Têm de me pagar uma renda antecipada.
- Só ficamos aqui provisoriamente, enquanto os serviços sociais inspecionam a nossa água-furtada, que está infestada de insetos. Ia agora mesmo pedir essa intervenção. Depois, quando estiver tudo limpo, voltamos lá para cima.
Quando ouviu mencionar os serviços sociais, a viúva estremeceu.
- Mas os senhores querem meter-me em sarilhos! - protestou.
- De maneira nenhuma. Uma pessoa boa como a senhora não merece ser metida em sarilhos. Mas lá em cima, francamente, está tudo tão sujo... tão mal-arranjado... há correntes de ar por todo o lado... Em suma, aquela água-furtada precisa de ser arranjada. A senhora percebe, não percebe?
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Percebeu tão bem que, uma hora depois, Franco Fantuzzi se instalou no novo apartamento, pagando a mesma renda da água-furtada.
- Mas como é que tu conseguiste? Aquela mulher tem pelo na venta, empresta dinheiro a juros altos; o marido morreu há uns anos, deram-lhe um tiro mesmo aqui em baixo, na rua. Ela não se assustou nem um bocadinho, e continua com aquele ofício sujo sem se deixar intimidar - explicou Franco.
- Não é como tu julgas. Algum medo ela tem. Bastou acenar com a intervenção dos serviços sociais e ficou maleável como barro.
- És forte, Gregorio. Tu sim, tu vais longe.
- Por enquanto, vou ser empregado de mesa e, se não te ofendes, pago a minha parte, mas raramente virei cá dormir. Estou muito melhor em casa dos Matranga.
- Estás a fazer caridade comigo?
- De modo nenhum, até porque tu não precisas. Escolhe o quarto que quiseres, mas deixas o outro para mim. Basta-me saber que tenho um quarto decente à disposição. Um destes dias venho cá deixar alguns livros e roupa de casa.
Chegou ao Piccolo Club no momento em que o pessoal da limpeza estava a preparar o espaço para a abertura dessa noite.
Os outros empregados ainda não tinham chegado e Gregorio enfiou-se no balneário para mudar de roupa. Depois dirigiu-se ao escritório.
Al Tarantino, o gerente, estava sentado num banco alto a bebericar um espumante italiano na companhia de don Salvatore que, quando o viu, o convidou a juntar-se a eles.
- Prova este vinho e diz-me o que achas - pediu Sal. Gregorio não era efetivamente um especialista, mas era capaz de apreciar um vinho bom.
Provou um gole de espumante, que estava à temperatura certa.
- Então? - perguntou o gerente.
- Muito simpático. Desliza que é uma maravilha - respondeu.
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Era aquilo que Matranga queria ouvir. com efeito, começou a explicar que, com a ocupação nazi em França, as importações de champanhe andavam muito lentas, mas que ele tinha encontrado um ótimo espumante durante a sua permanência em Itália. Agora estava a tentar perceber se não seria o caso de importar uma certa quantidade para fazer a experiência, não só no seu estabelecimento como também no Oyster Bar do Plaza, cujo diretor era um amigo de confiança.
- Se conseguirmos promover bem o espumante italiano, vamos fazer aí um negócio em grande - anunciou, abrindo os lábios sobre os seus dentes de ouro.
Gregorio já não via don Salvatore desde a noite em que lhe tinha entregado Nostalgia. Don Salvatore disse-lhe: - Senta-te, preciso de falar contigo.
Tarantino foi-se embora e don Salvatore começou: - Estás com um problema, meu filho. Já sei que o Tony te informou.
Gregorio anuiu, à espera do que se ia seguir.
- Os descuidos pagam-se. Nenhum de nós pensou em prevenir esta situação. Tens de ir a Itália fazer o serviço militar.
- Eu sei, don Salvatore, e a coisa não me agrada nada.
- Mas... quando a pátria chama... - hesitou Matranga.
- O melhor é pôrmo-nos a andar, quando podemos - afirmou Gregorio.
- Arranjar-te uma autorização de residência foi muito fácil. Mas conseguir declarar-te cidadão americano não é brincadeira... No entanto, temos bons amigos um pouco por todo o lado... só que é preciso agir com muita cautela... o Tony está a mexer-se nesse sentido, mas não é certo que se consiga... não te queria perder. Investi em ti desde o dia em que desembarcaste nesta cidade. Como bom homem do Sul, tenho as minhas superstições. Quando entraste naquele café, com o gato pelado, olhei-te nos olhos e senti que te devia ajudar. Nunca me arrependi. vou colecionando gente de confiança entre os estranhos, porque não posso confiar no meu filho Bob, que se mantém ao largo dos meus negócios. Ajudei o Anthony Rapello e correu-me bem. Agora gostava de te ajudar a ti.
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Al Tarantino era um homem paciente com os empregados. Conhecia as dificuldades de uma profissão que tinha aprendido, passo a passo, quando os cocktails ainda não tinham sido inventados. Fora muito hábil a subir os degraus de uma hierarquia rígida e tornara-se no mítico gerente do Stork Club quando tinha já passado os quarenta anos.
Depois fora um excelente mestre para muitos jovens, um profissional que sabia reconhecer o talento, quando o encontrava, numa profissão que implicava não só o conhecimento dos produtos e o modo de os apresentar, mas também a sensibilidade para saber captar o temperamento dos clientes e satisfazê-los. Em Gregorio sentira imediatamente os dotes de alguém fora de série: aquele rapaz tinha uma capacidade de aprendizagem extraordinária e um refinamento inato. Sussurrava, mais do que falava. com ele no Piccolo Club, cada cliente se sentia um hóspede privilegiado. Gregorio escutava os discursos de quem já tinha bebido de mais e conseguia, mesmo com as personalidades mais difíceis, arranjar maneira de as meter num carro e mandar para casa. A sua farda estava sempre impecável e a sua beleza suscitava alguma perturbação entre as senhoras que frequentavam o estabelecimento; e quando era alvo de alusões veladas, sabia sair da situação com uma classe inimitável.
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- Mais uns anos, e serás melhor do que eu - disse-lhe Al, ao mesmo tempo que o observava a mergulhar umas cebolas frescas minúsculas dentro de um creme de chocolate para acompanhar um cocktail de cores variadas. Nos momentos livres, o rapaz gostava de fazer experiências no escritório, e inventava canapés extravagantes. Al deixava-o fazer e, por vezes, até apreciava algumas invenções. - Vais percorrer um longo caminho, meu pequeno Greg garantiu.
- A pé ou de carro? - brincou ele.
- Num Rolls, com motorista - garantiu Al.
Faltava quase uma hora para a abertura do estabelecimento. Na cozinha, o chefe os seus ajudantes preparavam carnes e molhos; os empregados chegavam aos poucos, mas Gregorio já tinha dado uma volta pelas mesas para ter a certeza de que estavam bem postas. Os artistas arranjavam-se nos camarins e Gregorio tinha-se retirado para o escritório, para experimentar ligações de sabores contrastantes, enquanto Al Tarantino examinava a lista das reservas. O rapaz enfiou num palito a minúscula cebola coberta de chocolate derretido e estendeu-lha, dizendo: - Enquanto espero pelo Rolls, posso pedir-lhe para experimentar esta novidade?
O diretor apreciou a prova, de tal maneira que pediu mais uma, e depois disse: - É um sabor insólito. De onde copiaste isto?
- De um livro de cozinha do Renascimento italiano, quando o cacau começava a difundir-se na Europa - explicou.
- Tu lês livros de cozinha?
- Às vezes - respondeu Gregorio, com modéstia.
- Esta noite vou propor isto como alternativa às azeitonas.
- Mas não com o martini; é preferível com esta mistela - afirmou Gregorio, enquanto lhe estendia um novo cocktail.
O gerente provou também aquilo e depois anunciou: - Não gosto. Tenta outra combinação, mas cuidado para não entrares em conflito com o Dustin. vou dizer-lhe que as cebolinhas são uma ideia minha. - Dustin era o barman, e não admitia interferências no seu trabalho.
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- Não quero roubar o lugar ao Dustin, nem quero ser barman,
e estas combinações são só uma brincadeira - esclareceu Gregorio. - As ideias melhores às vezes nascem por brincadeira, mas tu até as tens em demasia.
- Acha mesmo? Quando eu era pequeno tinha ideias claras, mas depois deparei-me com muitas dificuldades, e agora não sei o
, que vou fazer.

- Quais eram essas ideias claras?
- Queria tornar-me num homem rico e importante, mas percebi que não basta desejar uma coisa para a ter. Aos onze anos era bellboy num grande hotel de Veneza. Andava pelo meio do luxo daqueles salões e salas, e olhava encantado para a elegância desenvolta dos hóspedes, que pertenciam a um mundo privilegiado. Desejava ser um deles e, afinal, pouco depois dei por mim a trabalhar como moço de fretes num cargueiro, para ir atrás de uma rapariga que tinha dito que me amava. Obviamente, não voltei a vê-la, e às vezes pergunto a mim mesmo se a encontrei mesmo ou se só sonhei com ela. Para chegar à América andei a carregar carvão num transatlântico. Depois servi pizas ao meio-dia e à noite num estabelecimento de uns italianos. E agora, aqui estou eu. Por muito que me esforce por olhar para longe, não vejo nem sequer a sombra de um Rolls com motorista - confessou, ao mesmo tempo que fazia desaparecer os vestígios das suas experiências.
- Eu vim para a América com a minha mãe que, pouco depois, definhou até à morte. Meteram-me num orfanato, do qual fugi. Aos treze anos era mineiro. Uma galeria desabou e eu salvei-me, porque era o destino. Depois lavei louça e ia à escola à noite, percorri todas as etapas desta profissão e pus de lado o suficiente para terminar confortavelmente os meus dias ao lado da minha mulher. Os teus sonhos eram mais ambiciosos do que os meus. O mundo moderno oferece mais oportunidades a quem, como tu, tem muita vontade de chegar longe - concluiu Al Tarantino.
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Alguém acendeu as luzes, os artistas começaram a subir ao palco, a porta do estabelecimento abriu-se. Tinha começado mais uma noite de trabalho.
Quando regressou a casa, Gregorio encontrou em cima da mesa do quarto uma carta da mãe e uma série de impressos para preencher, para o pedido da cidadania americana. Estava muito cansado, e uma vez que no outro dia era domingo, decidiu ir dormir e adiar a leitura para a manhã seguinte. Acordou cedo e desceu logo à cozinha, esperando não encontrar ninguém para tomar o primeiro café do dia e fumar o primeiro cigarro. Sobre uma tábua tapada com um pano de linho imaculado repousavam ninhos de tagliatelle com ovo, que mamma Lina tinha preparado durante a noite para o almoço de domingo.
Estava a pôr açúcar no café quando chegou Elvira Matranga, a bocejar.
- Ainda há um bocadinho para mim? - perguntou.
- Ofereço-lhe o meu, dona Elvira - respondeu ele, preparando-se para regressar ao quarto, porque não estava com vontade de ouvir a conversa dela.
- Era o que faltava. Eu faço um para mim. Oh, meu Deus, que noite horrível eu passei - lamentou-se, enquanto lavava a cafeteira que Gregorio tinha usado.
Ele sentou-se à mesa, resignado, porque ia ter de ouvir uma série infinita de queixumes. Bebeu um gole de café e exclamou:
- Desejo-lhe um dia melhor.
- Quem me dera! Mas chegou a mulher do meu sobrinho Bob, e vai haver problemas em casa do meu pobre irmão. A minha cunhada ainda não voltou de Itália e o Salvatore não sabe mesmo o que há de fazer com aquela estrangeira que, aqui para nós, ainda é mais maluca do que a Gia. vou acabar por ser eu a ter de a aturar.
Gregorio não tinha qualquer intenção de aprofundar um assunto que não lhe dizia respeito, e limitou-se a anuir, como se soubesse e entendesse.
- Porque, estás a ver, o meu sobrinho Bob, que vive entre Manhattan e Miami, casou com aquela estrangeira. Quando o
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marido cá não está, vem ter connosco. É uma longa história... mas o Bob também é um bocado palerma, que Deus me perdoe. Então, ela chegou ontem à noite e desprezou um jantar especial que a mamma lhe tinha preparado - prosseguiu Elvira.
Gregorio tinha acabado de tomar o seu café. Levantou-se e disse: - Se me dá licença, dona Elvira, vou tomar um duche, porque daqui a pouco vou ter com um amigo meu à cidade.
Dona Elvira não replicou, ligeiramente incomodada por não ter conseguido suscitar o interesse de Gregorio.
Ele regressou ao quarto, sentou-se na poltrona, acendeu um cigarro e abriu a carta da mãe, que lhe anunciava a morte do avô Gàbola. Dizia: "Morreu durante o sono. Encontrou-o a vizinha, que tinha lá ido levar-lhe leite quente. Foi-se embora em bicos de pés, tal como viveu e, só agora que ele já cá não está, eu entendo muitas coisas dele, da sua discrição, da sua honestidade, da sua coragem. Sei que esta notícia te vai entristecer, como me entristeceu a mim."
Gregorio releu várias vezes a carta e recordou aquele velho que, quando ele era uma criança infeliz e só, tinha deixado de beber para ficar ao seu lado, e tinha tido bom senso suficiente para perceber que aquele neto precisava de ser ajudado para não acabar por maus caminhos. Em memória do avô, naquela manhã dirigiu-se à igreja, assistiu à missa muito compenetrado, confessou-se e comungou. Depois decidiu que ia passar o dia no seu quarto, em vez de se dirigir à cidade, onde tinha um encontro com Franco.
Ia ler um livro qualquer e recordar todos os momentos passados com o velho Gàbola.
Quando voltou da missa, mamma Lina disse-lhe que don Salvatore queria falar com ele. Tocou então à porta da casa principal. Quando esta se abriu, perfilou-se diante dele uma mulher de uma beleza fulgurante. Gregorio ficou sem fôlego.
- Florencia! - sussurrou.
A loira mexicana por quem, aos quinze anos, tinha atravessado o oceano, olhou para ele como se estivesse a vê-lo pela primeira vez.
- Já nos conhecemos? - perguntou ela.
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Gregorio ficou espantado a olhar para aquela criatura maravilhosa, um anjo loiro e diáfano, os cabelos compridos apanhados num penteado de deusa grega, o corpo suave acariciado por um vestido de um bonito violeta intenso, dois fios de coral escarlate à volta do pescoço, as pernas longas realçadas por sapatos de veludo vermelho de tacão vertiginoso. Num relâmpago, voltou a vê-la, na praia cheia de sol do Lido de Veneza, enquanto ele lhe prometia que ia ter com ela ao México, para a raptar e subtrair àquele casamento, imposto pelo pai, com um fazendeiro rico que ela não amava. Nessa altura ele tinha apenas quinze anos e trabalhava no Hotel Quattro Fontane, onde Florencia estava hospedada com a família.
Gregorio tinha atravessado o oceano para a procurar e fugir com ela, e afinal aquela viagem concluíra-se em Tampico, com o abraço repugnante de uma velha prostituta.
Agora estava ali, paralisado, na soleira da porta da casa de Salvatore Matranga, ofuscado pelo sorriso de Florencia, que lhe dizia:
- Posso ser-lhe útil?
- Don Salvatore está à minha espera - respondeu.
- Então entre, por favor. O meu sogro está na biblioteca disse ela, abrindo completamente a porta.
Gregorio passou o indicador por dentro do colarinho da camisa, porque teve a impressão de que estava demasiado apertado, que o sufocava.
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Daquela grande casa conhecia o vestíbulo, com as suas colunas de mármore e os capitéis de estuque decorados a ouro, e a sala onde tinha receado com don Salvatore pela sorte de Nostalgia. Não sabia que também havia uma biblioteca.
Uma empregada, de farda preta e avental branco, perfilou-se no vestíbulo. Florencia viu-a e despachou-a com um gesto, dizendo: - Obrigada, eu trato deste assunto.
Gregorio estava tão atrapalhado que tropeçou num tapete.
- Eu acompanho-o- ofereceu-se ela.
Perguntou a si mesmo se Florencia estaria a ser sincera ou se fazia de conta que não o reconhecia. Conduziu-o ao longo um corredor amplo, iluminado por janelas em arco que davam para o jardim. Caminhavam lado a lado, em silêncio, os passos abafados por uma alcatifa azul, alta e macia. Era ela então a nora estrangeira a que se referira Elvira Matranga, definindo-a como sendo "mais maluca do que a Nostalgia". Afinal não se tinha casado com o mexicano rico que o pai lhe destinara, mas com o filho de don Salvatore.
De repente, a meio do corredor, ela parou e sussurrou-lhe:
- Levei uns segundos a reconhecer-te. Obviamente, eu não mudei, mas tu sim. Eras um rapaz bonito, agora és um homem lindíssimo. Que relações tens tu com os Matranga? Não, não me digas nada. Havemos de ter tempo para conversar sobre tudo isso. - Falava em voz baixa, com frases cortadas.
Continuou até chegar a uma porta de madeira maciça.
- Bate e entra - disse.
- Espera - sussurrou ele, tentando detê-la.
- Agora não. - Fê-lo calar, pousando-lhe um dedo nos lábios. Virou-se e foi-se embora.
Gregorio respirou fundo várias vezes e bateu à porta.
Salvatore Matranga, em mangas de camisa e colete de malha, estava enterrado numa poltrona, com as pernas estendidas sobre um puff e o serviço de café pousado em cima de uma mesinha baixa ao seu lado. Naquele aposento, forrado de livros, pairavam os aromas do charuto e do café.
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- Entra, Greg. Põe-te à vontade - convidou o boss. Pousou em cima da mesa o livro que estava a ler.
Gregorio olhou para a capa e leu o título.
- A Farewell to Arms... fantástico! Acabei de o ler e mexeu
muito comigo.
- Eu estou a lê-lo e sinto-me horrorizado. É muito bom, este Hemingway... conta aquilo que acontece no mundo, e também aquilo que se passa dentro de nós. - Fez uma pausa e prosseguiu: - Então gostas de ler.
- Imenso, don Salvatore. Não imaginava que também o senhor...
- indicou com um gesto as paredes recobertas de livros, fingindo-se interessado no diálogo, no entanto, o seu espírito estava noutro lugar, a perseguir Florencia.
- É uma paixão que cultivo em segredo. Ia dar cabo da minha reputação. Já a coloquei em risco, quando era pequeno, com a história da boneca - resmungou, e prosseguiu: - Às vezes a minha mãe levava-me com ela para as casas onde trabalhava como mulher a dias. Numa delas havia um menino, mais ou menos da minha idade, que trazia sempre uma boneca ao colo. Eu, que andava de maravilha em maravilha quando passava por aqueles aposentos luxuosos, pensei que ter aquele brinquedo era sinónimo de riqueza. Então, quando o meu pai me pegou na mão e me levou a um grande armazém para me dar um presente de Natal, eu escolhi uma boneca. Vi o meu pai ficar branco, depois corar de cólera e, por fim, dar-me uma grande bofetada. Mas eu queria-a, mesmo assim. Então roubei uma, meio desconchavada, que era das minhas irmãs, e andei por aí a mostrá-la aos amigos. Ainda sou capaz de ouvir as gargalhadas de escárnio, acompanhadas por um epíteto pouco honroso. Uma rica lição! Percebi que nem sempre é oportuno imitar o que fazem os ricos.
Gregorio objetou: - Eu percebo... mas os livros...
- No meu meio, é coisa de maricas. Portanto, é melhor não se saber - rematou don Salvatore. E continuou: - Mas, voltando à nossa questão, se regressares a Itália, vais tornar-te brevemente em
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carne para canhão. - com um pé empurrou o puff para longe e acrescentou: - Vamos lá tomar o café, enquanto ainda está quente. Gregorio pegou na cafeteira e começou a encher as chávenas, enquanto o boss o observava e perguntava a si mesmo o que o teria levado a contar àquele rapaz um episódio da sua vida que tinha escondido a toda a gente. Atribuiu aquela fraqueza ao facto de sentir que tinha mais afinidades com Gregorio do que com o filho. Bob sempre o mantivera à distância, tinha vergonha dele e dos seus dentes de ouro, da maneira como ganhara tanto dinheiro e de como o empregava, tratava-o por dad e olhava-o de distâncias siderais, como se ele fosse um astro do firmamento e o pai um insignificante pedaço de terra. Gregorio, pelo contrário, manifestava um respeito misturado com uma desconfiança velada, e isso agradava-lhe.
- Estive a ver aqueles impressos para o pedido da cidadania. Devia ter feito esse pedido há pelo menos um ano; mas, de qualquer modo, uma vez que só cá estou há três anos e não há cinco, como a lei exige, acho realmente que... - começou o rapaz a dizer.
- Esquece a lei. Faz de conta que já submeteste o teu pedido para te tornares cidadão americano e o Tony trata do resto. Daqui a duas semanas está tudo em ordem. Prepara-te para deixar o Piccolo Club. Aprendeste tudo aquilo que havia para saber. Assim que tiveres prestado juramento, mando-te para Filadélfia - anunciou. Depois fez uma pausa para tomar o café.
- Para Filadélfia? - perguntou Gregorio, espantado.
- Sim, para Filadélfia. Descobri um espaço com uma péssima reputação e quero transformá-lo no Piccolo Club número dois. Amanhã, antes de ires trabalhar, passa pelo Tony, e ele explica-te tudo.
- Nunca saí de Nova Iorque... não conheço ninguém em Filadélfia.
- O Tony e mais dois ou três homens de confiança vão contigo. Não vais demorar muito a ganhar alguma familiaridade com aquela cidade e com a gente que interessa. Fica sossegado, Greg, e preenche os malditos impressos.
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Era uma despedida. Gregorio saiu da biblioteca mais perturbado do que quando entrara. Fechou atrás de si a porta de casa e, lá fora, dentro de um Buick ruidoso, estava Florencia, que se debruçou da janela e disse: - Despacha-te! Entra no carro.
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Gregorio virou-se para observar a soberba mansão dos Matranga e pareceu-lhe distinguir, por detrás dos vidros de uma janela, o rosto do boss.
Entrou no carro, que avançou lentamente ao longo da alameda e em direção à saída da propriedade.
- Para onde é que estamos a ir? - perguntou a Florencia.
- A Elvira disse-me que ias à cidade, onde tens um alojamento qualquer. Portanto, vou levar-te a casa - disse ela.
- Mas qual casa? É uma espelunca na rua 42.
- De qualquer maneira, eu vou levar-te.
Agora percorriam rapidamente a Atlantic Avenue.
Gregorio observou o perfil doce e altivo de Florencia, o ouro dos seus cabelos, o pescoço comprido e fino que despontava da gola do casaco de castor claro e lembrou-se de Isola, num domingo gélido da sua infância, a sair de um automóvel resplandecente na praça da aldeia. Trazia um casaco de peles praticamente idêntico. Foi envolvido pelo perfume da mexicana e regressou-lhe à memória o perfume suave da mãe. Sentiu um aperto no coração.
Após um longo silêncio, Gregorio perguntou: - Porque esperaste por mim? Preciso de saber.
Florencia não respondeu, limitando-se a sorrir.
Tinham chegado a Manhattan, e ela estacionou o carro na rua 42.
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- Agora leva-me à tua espelunca - disse, ao mesmo tempo que saía do carro.
Gregorio estava confuso e embaraçado. - Pode cá estar um amigo meu que aqui mora.
- E então? Já não tens quinze anos e já não estamos no Hotel Quattro Fontane de Veneza. Também nessa altura jogavas à defesa.
- E, tal como nessa altura, continuas determinada a provocar-me de qualquer maneira - constatou ele.
Ela tornou-lhe o braço e entraram juntos no átrio do prédio. Subiram dois lanços de escadas e pararam em frente a uma porta onde estava colado um pequeno cartão branco que dizia FRANCO
FANTUZZI - PROFESSOR DE DANÇA.
Gregorio meteu a chave na fechadura, abriu a porta e certificou-se de que o amigo não estava em casa. Então escreveu rapidamente um bilhete: "Não estou sozinho. Por favor, põe-te a milhas", e enfiou-o na porta. Depois convidou Florencia a entrar. Ela olhou em volta.
Era uma sala de estar minúscula, de uma simplicidade espartana, limpa e arrumada. Havia uma mesa redonda coberta com uma toalha de renda, quatro cadeiras, um sofá de pele castanha, uma mesinha baixa que servia de apoio a um gramofone e um rádio, e uma estante de metal cheia de livros.
Gregorio tirou o casaco e ajudou Florencia a fazer o mesmo.
- É para aqui que trazes as tuas namoradas? - perguntou ela, com um sorriso malicioso.
- Mesmo que fosse, não te dizia - declarou, e acrescentou:
- À direita há uma pequena cozinha, à esquerda uma casa de banho, ali é o quarto do Franco e este é o meu - anunciou, ao mesmo tempo que abria a porta de um quarto pequeno, pintado de branco, com uma cama e um armário. Por cima da cabeceira da cama sobressaía o ex-voto de Porto Tolle. Florencia parou a observá-lo.
- Ingénua, mas muito bonita, esta invocação de algum milagre - disse.
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- É o meu talismã - explicou ele.
- Funciona mesmo? - perguntou ela.
- De que maneira! Fez-me voltar a encontrar-te - exclamou Gregorio.
Ela tirou os sapatos e aninhou-se na cama.
- Lembras-te de quando eu inventava pretextos para te provocar? Tu enlouquecias de desejo e eu sentia-me forte, importante, dominadora.
- Lembro-me - sussurrou ele, que estava ainda em pé, imóvel. A beleza e a elegância de Florencia conferiam uma aura de nobreza àquele quartinho esquálido. - Nunca tinha tido uma namorada e desejava-te - confessou.
- Eras a única pessoa honesta que eu tinha à minha volta recordou ela.
- E agora?
- Aprendi a aceitar tudo o que a vida me dá, as coisas boas e as más.
- Foi por isso que quiseste vir aqui comigo? - decidiu-se a perguntar-lhe, sentando-se ao lado dela.
- Isto faz parte do desejo - sussurrou-lhe ao ouvido. Depois tocou-lhe o rosto com as pontas dos dedos e prosseguiu: - Tornaste-te num homem fantástico, e os teus olhos não perderam a luz límpida de quando eras um rapazinho.
Gregorio pensou em don Salvatore que, da janela, o tinha visto entrar no carro e afastar-se com ela.
- Acho que devias voltar a vestir o casaco e regressar a casa a correr - disse, levantando-se de um salto.
- Estás a pensar no meu sogro, que nos viu juntos? - perguntou ela, com um tom frívolo.
- Não sei nada sobre ti nem sobre o teu marido. Quando pensava em ti, porque pensei em ti durante muito tempo, julgava que estavas no México, casada com um fazendeiro, e venho encontrar-te em Nova Iorque, casada com um yankee, que ainda por cima é filho do homem para quem trabalho - confessou Gregorio.
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Ela levantou-se da cama, foi até junto dele, afagou-lhe o rosto e murmurou: - Quero-te, não para te dominar, mas para te amar e sentir-me amada.
Naquele quarto de aluguer pequeno e esquálido, Gregorio deixou-se levar pela vertigem do desejo no meio das sombras e das luzes infinitas de que são feitos os sonhos.
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- Estou feliz - sorriu Gregorio, apertando Florencia contra si.
- Nós, os mexicanos, dizemos que quem é feliz não tem passado.
- De facto, tenho a sensação de só ter nascido hoje.
O quarto estava mergulhado na penumbra. Através da janela entrava a luz débil de um lampião que iluminava os seus corpos jovens e esplêndidos, abraçados.
- Sei que vou ter de esquecer estas horas que passei contigo disse Gregorio, com alguma tristeza.
Florencia soltou-se do seu abraço, levantou-se da cama e começou a vestir-se.
- Hoje de manhã, ao pequeno-almoço, o meu sogro disse que estava à espera de um tal Greg. Não te reconheci quando abri a porta. Ia regressar a Park Avenue, a minha casa. Se estás preocupado com o Sal Matranga, sossega, porque só pode ter pensado que apanhaste uma boleia até à cidade.
- Parece tudo demasiado simples - observou ele, enquanto pensava em don Salvatore, que o queria mandar para Filadélfia, atribuindo-lhe um cargo importante, e que estava a fazer todos os esforços para lhe conseguir a cidadania americana. Que rica maneira de retribuir a sua confiança, pensou.
No entanto, Florencia era uma espécie de dádiva inesperada, um prémio pela perseverança com que a desejara, seguira inutilmente,
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amara pela sua profunda infelicidade, lamentara pensando que a tinha perdido e de repente reencontrara por vontade da sorte, como se fosse um direito que lhe cabia.
Só que, entretanto, Florencia se tinha tornado nora de Sal Matranga. E ainda que, tanto quanto sabia, as relações com o seu filho Bob não fossem propriamente idílicas, Florencia sempre era
sua nora.
- Parece simples, mas não é - disse ela, tristemente.
- Tu atrais as complicações como um íman - disse Gregorio, ao mesmo tempo que se sentava na cama.
- E pensar eu que, com a morte do meu pai, achei que estava tudo resolvido - respondeu ela.
Portanto, o terrível Juan Álvarez y Mendoza já não existia. Ela sentou-se ao lado dele enquanto calçava as meias.
- Morreu de enfarte, no navio que nos trouxe para casa começou a contar. E prosseguiu: - A minha mãe, o meu irmão e eu vivemos aquela tragédia como um momento de libertação. Éramos escravos libertados das correntes, por vontade do Céu, e deixámos de tremer de medo, porque o monstro já não existia. Quando chegámos a casa, organizámos uma cerimónia fúnebre sumptuosa, na convicção de que, com ele, íamos sepultar também anos de abusos, violência e despotismo. A minha mãe não hesitou em fazer as malas e transferiu-se para aqui, para Nova Iorque. Agora vive numa casa virada para Central Park. Se tu a visses! Emagreceu e, apesar de já ter quarenta e cinco anos, parece uma rapariga. Vai voltar a casar com um texano do petróleo. O Emiliano, o meu irmão, vive em Havana. Tem um séquito de novos amigos e dedicou-se à pintura. Dizem que é um artista promissor. Eu fiquei sozinha a tratar dos assuntos familiares. Por muito ingénua que fosse, não demorei muito a perceber que os colaboradores de confiança do meu pai me estavam a enganar. Uma vez que a minha mãe e o Emiliano viviam nas nuvens, assumi uma responsabilidade da qual, na realidade, nada sabia: tratar dos negócios da família. Foi então que conheci o Bob Matranga. Se o meu sogro é um génio do comércio, o meu marido é um campeão para os negócios.
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Imagina que hoje a nossa fazenda produz o dobro do que produzia quando o meu pai morreu. Neste sentido, devo muito ao Bob... Devo-lhe tanto que, quando me pediu em casamento, aceitei. Queres saber se o amo? Não sei, nunca me interroguei sobre essa questão. Estimo-o, isso sim. Até porque respeita a gente que trabalha nas plantações e isso, no México, é um facto único, extraordinário.
Tinha acabado de se vestir e estava a pôr bâton nos lábios, olhando-se ao espelho da caixa de pó de arroz.
Gregorio levantou-se da cama e vestiu-se.
- Agora o Bob está no México, a acompanhar a venda do café. Às vezes, quando o meu marido viaja, eu vou ter com os Matranga. As mulheres da família consideram-me excêntrica; quanto ao meu sogro... enternece-me quando tenta conquistar o filho. Nunca vai conseguir, mas não sou eu quem lhe vai dizer isso. O Sal Matranga é um homem impiedoso nos negócios, mas incrivelmente ingénuo nos sentimentos...
- Vamos beber um copo de vinho - disse-lhe Gregorio, enquanto avançava à frente dela até à sala de estar, para prolongar aquele encontro.
Abriu um armário onde tinha arrumado algumas garrafas e sentiu-se grato a Franco por não lhas ter aberto.
Sentaram-se no sofá a saborear um tinto generoso da Campânia, acariciando-se com o olhar.
- Porque quiseste abrir a porta do nosso passado de adolescentes? - perguntou Gregorio.
- Porque queria reencontrar a rapariga que, há séculos, na praia do Lido de Veneza, procurava em ti algum conforto para o seu desespero - sussurrou ela.
- E reencontraste-a?
- Não. Ou talvez sim. Não sei. E tu, o que foi que reencontraste daquele longo verão?
Gregorio pousou o copo em cima da mesa, levantou-se de repente, enfiou o sobretudo e estendeu-lhe o casaco de peles.
- Vamos sair - disse.
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Enquanto desciam as escadas, ela disse-lhe: - Não me respondeste.
Quando chegaram à rua, fez-lhe uma carícia. O rosto de Florencia resplandecia, diáfano, na penumbra da noite. Tentou sorrir e confessou-lhe: - Reencontrei-te a ti, exatamente como te recordava, e continuas a sofrer. Porquê?
- Tu nunca viste as pessoas que trabalhavam para o meu pai. Eram os filhos daqueles a quem tinham sido tiradas as correntes. No entanto, moviam-se como se ainda as tivessem. E continua a ser assim. A morte daquele homem cruel não os libertou, nem a eles nem a mim, daquela escravatura - confessou num murmúrio.
- Tu acreditas no destino? - perguntou-lhe, enquanto caminhavam lado a lado.
- Referes-te a nós dois?
Gregorio anuiu.
- O destino somos nós que o escrevemos. Poderíamos, ao voltar a encontrar-nos, ter-nos cumprimentado e conversado como velhos amigos. Mas eu enfiei-me na tua cama e tu não fizeste nada para evitar que isso acontecesse - comentou Florencia.
Gregorio parou, agarrou-a pelos ombros e confrontou-a: - Estás a acusar-me de me ter aproveitado de ti?
- Estou a dizer-te que te amo. Em todos estes anos, o teu olhar límpido e o teu sorriso franco ficaram intactos na minha memória e, ao pensar em ti, dizia para mim mesma que ainda há homens extraordinários, que nos resgatam de tantas coisas horríveis.
- Mas o homem que se casou contigo, que eu não conheço e que não me fez mal nenhum, feri-o no momento em que te desejei com todo o meu ser - confessou ele, apercebendo-se de que, se Florencia não tivesse ficado à espera dele ao pé de casa, ele a tinha ido procurar, porque voltar a vê-la e mergulhar mais uma vez na sua paixão adolescente tinha sido uma e a mesma coisa. Recordou as noites agitadas no grande dormitório dos empregados do hotel, quando o rosto de Florencia, a candura da sua pele e a sua respiração que cheirava a hortelã e a tomilho não lhe davam trégua.
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- Eu não devo, nem quero, complicar-te a vida. Não podemos voltar a ver-nos - afirmou Gregorio.
Continuaram a caminhar em direção à Quinta Avenida.
- É isso que te diz o coração? - perguntou Florencia.
- O meu coração diz-me para te manter junto a mim. Mas a razão...
- Eu entendo que ias arranjar problemas se don Salvatore descobrisse que tens uma relação com a nora. Nem as coisas iam correr melhor comigo e com o Bob, que se mantém distante do pai desde sempre, mas que se parece mais com ele do que gostaria. Puseram-nos umas correntes e vamos usá-las durante toda a vida, se continuarmos a ter medo deles. Don Salvatore tem-te na mão e tu sabes disso - afirmou Florencia.
- E o teu marido? O que me dizes dele? - reagiu Gregorio.
- Eu devia-lhe gratidão, ele queria casar-se comigo e eu casei-me com ele. Os Matranga acham que sou doida porque, de vez em quando, desapareço e ninguém sabe para onde vou. Digo-te a ti: volto ao México, ao cemitério onde está o grande mausoléu da família Álvarez Sánchez y Mendoza. Choro sobre o túmulo do meu pai, e penso na sua perversão, nas violências sofridas, no amor roubado. Gostava muito de ter sido amada por ele como uma filha. Depois, pacificada, regresso à minha vida de sempre. Não quero estar com a minha mãe, não tenho nenhuma relação com o meu irmão... Trato do meu marido, desempenho o papel da senhora casada, rica e bonita, da upper class americana para não morrer de tédio ou de sofrimento... E depois, de repente, vi-te. Foi como sair da lama e mergulhar na água límpida de um rio. Estou apaixonada por ti, apetecia-me deixar tudo para trás e começar uma vida nova... contigo, Gregorio.
Caminharam durante algum tempo em silêncio, com as mãos enterradas nos bolsos, os olhos brilhantes de frio e os corações num tumulto.
Tinham-se aproximado do local onde Florencia estacionara o carro.
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- Não tens nada para me dizer? - perguntou ela, olhando-o nos olhos.
Gregorio calou-se e baixou os olhos. Estava perturbado, desorientado, desesperado.
Don Salvatore tinha-o bem seguro, de facto, mas sem ele nunca teria sabido como enfrentar a vida depois da sua chegada a Nova Iorque. Tinha uma dívida para com ele, e nunca poderia esquecer isso.
Florencia abriu de repente a porta do carro e disse, com amargura: - Portanto, isto é uma despedida. Mas há de chegar um momento em que vais ter de fazer as contas contigo mesmo.
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Depois de ter deixado Gregorio, Florencia dirigiu-se ao seu apartamento em Central Park, que ocupava todo o décimo sexto andar de um prédio luxuoso e moderno.
- A senhora pretende jantar? - perguntou o criado que a recebeu à entrada.
Ela entregou-lhe o casaco de peles e respondeu: - Não, obrigada, não preciso de nada. Tu e a Pilar podem retirar-se. - E acrescentou: - Não te esqueças de ir buscar o senhor, amanhã às dez, ao aeroporto.
Roxana, a criada que trouxera do México e tratava dela desde criança, foi ter com ela à sala.
- Qué pasa, nina? - perguntou, uma vez que sabia que Florencia tinha ido a casa dos Matranga.
- Nada - respondeu. Encostou-se à lareira e começou a mexer com a tenaz na lenha que ardia.
- Vai acabar assada, se continua a meter lenha na boca desse vulcão. Aqui dentro está um calor insuportável - observou a mulher.
Florencia não replicou. Continuou imóvel, em frente à lareira, a olhar para as línguas de fogo que se erguiam dos toros crepitantes.
Passaram-se alguns instantes, e depois Roxana disse: - vou preparar-lhe um chocolate. - E saiu da sala.
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Florencia percorreu um dédalo de corredores e chegou ao quarto, de móveis laçados, de cor creme, ricas cortinas de seda e uma cama coberta com uma colcha macia de veludo brilhante. com alguns gestos rápidos libertou-se do vestido e da roupa interior e enfiou-se na cama. Cobriu o rosto com o lençol e começou a chorar.
- Oh!... que pena! - murmurou Roxana, ao seu lado. Florencia soluçava e a velha criada acariciou-lhe os ombros
cobertos com a colcha.
- O que se passa, minha menina? - perguntou. Florencia destapou o rosto lavado em lágrimas.
- Beba o chocolate, enquanto está quente. Juntei-lhe umas especiarias boas, que a vão acalmar - disse-lhe e estendeu-lhe uma taça de barro da qual emanava um aroma delicado.
Florencia enxugou os olhos, pegou na taça e levou-a aos lábios. A criada sentou-se na cama, ao lado dela, e sussurrou docemente: - Sou toda ouvidos.
- Estou apaixonada, mas ele não me quer, porque sou casada confessou Florencia.
- Ele tem bom senso, a menina não - observou Roxana. E prosseguiu: - O senhor Bob é o seu marido, e se a menina tivesse um pouco de temor a Deus, não desafiava a ira do Padre Eterno. E depois, quem é esse homem?
- É o Gregorio, lembras-te?
- O rapazinho da fotografia, aquele empregado de Veneza? Roxana referia-se à fotografia que Florencia tirara na praia do
Lido, imortalizando-o no momento em que, na sua farda de empregado, servia à mesa onde ela estava sentada com a família. E uma vez que o pai a fulminara com um olhar, ela disse: - Estou a tirar fotografias para levar para casa, como recordação. - Mandou revelar aquela fotografia depois do funeral do pai e meteu-a na moldura do toucador, no seu quarto.
- Quem é aquele rapazinho tão bonito? - perguntara-lhe Roxana.
- O meu amor italiano.
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A empregada surpreendeu-a muitas vezes, sentada em frente ao espelho a olhar para aquela imagem e, um dia, troçou dela, com muita ternura, por tanta admiração.
- Ri-te, ri-te muito, mas olha que um dia o Gregorio vem buscar-me para me levar desta casa - disse Florencia.
Depois a fotografia desapareceu e Florencia casou-se com o advogado Bob Matranga.
Agora confiou-lhe: - Aquele empregado de mesa de Veneza trabalha em Nova Iorque para o pai do Bob.
- O seu marido também é um homem fantástico, que a ama e trata dos seus interesses - recordou-lhe Roxana. E acrescentou:
- Percebe isso?
O chocolate com especiarias começava a fazer efeito.
Florencia deixou que a velha criada lhe enfiasse a camisa de noite, sufocou um bocejo e sussurrou: - Provoquei-o... feri o seu orgulho... fi-lo sentir-se uma marioneta nas mãos de don Salvatore, mas tinha de o fazer... para o bem dele.
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Franco Fantuzzi estava sentado à mesa da cozinha, a devorar com satisfação uma abundante porção de esparguete com molho de tomate, acompanhada por aquilo que restava do generoso tinto que Gregorio tinha bebido na companhia de Florencia.
- Deixaste alguma coisa para eu comer também? - perguntou Gregorio, que entrou em casa naquele momento.
- É a fome que te provoca essa cara de enterro? - perguntou o amigo.
Gregorio não respondeu e, aproximando-se do lava-louça, transferiu para um prato o esparguete que tinha ficado no coador. Regou-o com um fio de azeite da Puglia, importado pela firma Matranga, e engoliu-o em duas garfadas. Depois abriu uma garrafa de vinho, tirou do frigorífico um pedaço de parmigiano e sentou-se em frente ao amigo, alternando o queijo com robustos goles de vinho.
- Vais contar-me o que aconteceu? - disse Franco. E, uma vez que Gregorio continuava calado, prosseguiu: - Não é preciso ser um adivinho para saber que estiveste com uma rapariga, mas gostaria de ter mais algumas informações, uma vez que andei por aí às voltas como um cretino, durante todo o dia, depois da tua perentória proibição de acesso.
Gregorio não respondeu, mergulhado nos seus próprios pensamentos. Refletia sobre o facto de, desde que chegara a Nova Iorque,
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Salvatore Matranga ter guiado os seus passos e ele apenas ter obtido benefícios com isso, apesar de a proteção do homem dos dentes de ouro o ter sempre preocupado.
Sabia, efetivamente, que havia de chegar o dia em que don Salvatore lhe ia pedir para saldar as dívidas que tinha contraído com ele.
Quanto a Florencia, tinha-o encostado à parede ao dizer-lhe substancialmente para se libertar de Matranga e fugir com ela. O que, na prática, para ele significava passar de uma dependência para outra, porque ela tinha muito dinheiro e ele dependeria sempre da sua riqueza.
Do outro lado da mesa, o amigo observava-o enquanto esperava por uma explicação, e por isso Gregorio disse: - Ela é rica, eu estou perdidamente apaixonado por ela, mas é casada e é também a nora do Sal Matranga. E, por favor, não me faças mais perguntas.
- Oh, my god - murmurou Franco.
- E não é só isso. Agora vão mandar-me para Filadélfia dirigir um restaurante, coisa que eu não sei fazer. É um encargo que contradiz o mais elementar bom senso. Tenho só dezanove anos, e vou ter de orientar uma equipa de profissionais muito mais experientes do que eu, percebes?
- O que eu percebo é o teu prazer em complicar a vida. Tivesse eu um homem poderoso a guiar os meus passos... Alguma vez te envolveu em algum negócio obscuro? Tu és muito palerma - sentenciou Franco.
Gregorio foi para o quarto, enfiou-se na cama e enterrou rosto na almofada que conservava ainda o perfume de Florencia. Foi inundado por uma onda de sofrimento, tornada ainda mais intensa pelos remorsos que o atormentavam.
Sentia-se culpado por amar uma mulher casada, por ter escolhido a via mais fácil para enfrentar o futuro ao entregar-se totalmente a Salvatore Matranga, por não ter estado ao pé do avô Gàbola, que morrera em solidão, tal como tinha vivido.
Pareceu-lhe sentir na sua a mão áspera do avô e sussurrou:
- Diz-me, avô, o que devo fazer?
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Depois de uma noite em claro, na manhã seguinte Gregorio levantou-se decidido a clarificar o seu futuro e foi à procura de don Salvatore na sede da empresa.
Pareceu-lhe que Sal estava à espera dele, porque lhe disse, assim que o viu entrar no escritório: - Sei que esta noite não voltaste para casa, e o Tony anda à tua procura por causa daquele processo da cidadania. Vai já ter com ele.
- E eu vim à sua procura, don Salvatore, porque preciso de falar consigo - respondeu Gregorio.
- Estou a ouvir - respondeu ele, olhando-o nos olhos.
- Eu não vou para Filadélfia. Renuncio à cidadania americana, despeço-me e volto para Itália. Apresento-me na inspeção e, se houver uma guerra, como o senhor diz, vou combater - disse de um só fôlego, corando e com o coração a bater loucamente.
Don Salvatore não se perturbou. Continuou a olhar para ele e perguntou: - É tudo o que tens para me dizer... ou há mais alguma coisa?
- Ontem passei o dia com uma senhora que conheci em Veneza, quando tinha quinze anos. Não foi um encontro inocente. A senhora em questão é muito importante para mim mas, como não quero trair a confiança de quem me ajudou, vou-me embora.
Seguiram-se uns intermináveis instantes de silêncio. Don Salvatore, enterrado na sua poltrona de pele, atrás da secretária, avaliava friamente o jovem que continuava muito direito, em pé, à frente dele.
- Sinto muito se o desiludi, don Salvatore - acrescentou Gregorio, com um fio de voz.
- Nunca mais apareças à minha frente, rapaz - sibilou Matranga. Gregorio voltou-se e saiu.
Mas foi precisamente don Salvatore, ainda que por entreposta pessoa, quem deu sinais de vida poucos dias depois daquela conversa.
Gregorio preparava-se para embarcar no transatlântico que o levaria de volta a Itália como passageiro de primeira classe, orgulhoso
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por se ter mantido fiel ao propósito de nunca mais viajar como moço de fretes como fizera, alguns anos atrás, para chegar à América.
Agora era um jovem que não passava despercebido, quer pela beleza, quer pelo estilo. Possuía um guarda-roupa elegante, cuidadosamente arrumado nas malas. As camisas e os sapatos eram de fabrico inglês e os fatos, com um corte perfeito, tinham a etiqueta do Saks.
Estava à espera de subir a bordo quando Tony foi ter com ele.
- Vim despedir-me de ti - disse-lhe, ao mesmo tempo que trocavam um abraço.
- Desculpa, devia ter sido eu a procurar-te antes de partir. Mas don Salvatore foi categórico. Intimou-me a desaparecer - respondeu Gregorio.
- Bem, aquilo que tu fizeste não tem justificação, e ir-lhe contar não foi propriamente uma jogada inteligente.
- Mas tinha de ser. A lealdade era uma obrigação - explicou ele.
- E o Matranga apreciou-a. Manda-te este presente - disse Tony, ao mesmo tempo que tirava do bolso do sobretudo um estojo de pele clara. Gregorio abriu-o e, enrolado numa almofada de veludo, estava um relógio de pulso de ouro maciço da Cartier.
Num impulso, Gregorio abriu a mala de viagem, retirou um embrulho retangular amarrado com um cordel e entregou-o a Tony. Era o seu ex-voto.
- Entrega isto a don Salvatore. Diz-lhe que o guarde como uma recordação minha.
Foi um gesto ditado pela emoção do momento, e Sal Matranga nunca poderia imaginar que, com aquela pintura, Gregorio lhe entregava uma parte importante de si próprio.
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ADRIA
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Eram sete e meia da tarde e àquela hora, na casa de repouso Stella Mundi, era servido o jantar. Gregorio pedira para tomar a refeição no quarto. A irmã Michela levara-lhe o tabuleiro com a habitual sopa de massa, fiambre, curgetes cozidas e uma maçã assada, adoçada com mel e polvilhada com canela. No fim de contas, era uma dieta saudável, à qual não só se habituara, mas também acabara por apreciar. Concluiu a refeição a rapar com a colher de sobremesa o mel que se tinha depositado no fundo da tigela.
Gregorio colocou o tabuleiro em cima da cómoda e alguém bateu à porta.
Pensou que fosse a irmã Michela que vinha buscar a louça e desejar-lhe boa-noite. Em vez disso, encontrou à sua frente o rosto gorducho e sorridente de Clelia Ornaghi.
- Incomodo? - perguntou, com a elegância habitual.
- Minha cara amiga, tu nunca incomodas - respondeu Gregorio, enquanto se afastava para que a antiga professora pudesse entrar. Espalhou-se pelo quarto o perfume do pó de arroz que a senhora costumava aplicar no rosto, que conservava uma textura rosada e juvenil. A signorina Clelia tinha consciência daquela qualidade e, com uma coqueteria ingénua, usava, dependendo das estações, camisolas ou camisas em tons pastel que favoreciam a
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candura rosada da sua pele. "Trazia agora um casaco macio de angora cor de glicínia.
Sentaram-se no sofá, em frente à janela.
- Há já uns dias que lá em baixo vai um grande falatório sobre ti - começou ela, e prosseguiu: - É claro que a irmã Antonia tem a boca cosida, mas toda a gente, eu inclusive, gostava muito de saber o que está a acontecer ao nosso misterioso companheiro.
Gregorio levantou-se, abriu o minúsculo móvel-bar que possuía no quarto e, em vez de lhe responder, perguntou: - Queres um bombom? Eu vou beber um golinho de whisky. - Estendeu-lhe uma taça de porcelana pintada à mão cheia de trufas de chocolate.
- vou provar, só para te fazer a vontade - respondeu a signorina Clelia, pegando num bombom, que levou à boca com todo o cuidado.
Ele reparou nas unhas bem arranjadas, pintadas com um verniz transparente, e sorriu daquela pequena característica que ligava a velha solteirona a todas as mulheres do mundo. O cuidado constante com a aparência era uma qualidade muito feminina, que sempre o fascinara. Pousou em cima da mesa a garrafa de whisky, um copo, e disse: - Gostava de poder abrir para ti uma garrafa de champanhe, mas não tenho. Desculpa, querida Clelia.
- És muito hábil a escapar da curiosidade dos outros... e deves achar que eu sou uma intrometida insuportável. Perdoa-me, e entende que, dentro destas paredes, nunca acontece nada de interessante. Pode ocorrer que um de nós, qualquer dia, seja internado num hospital e nunca mais volte, ou que dois hóspedes se peguem por uma coisa de nada e então todos os outros gritem como crianças de escola. Tu, desde que chegaste, és o nosso polo de atração. Agora vais e vens, passas a noite fora, e nós gostávamos de saber. Não me parece bem que te isoles e não nos deixes participar na tua vida - continuou ela, com um tom entre a censura e o lamento.
- E então encarregaram-te a ti de indagar - constatou ele.
- Mais ou menos, mas eu teria vindo ter contigo de qualquer maneira. Sabes bem que nos estás a faltar há demasiados dias.
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Gregorio serviu dois dedos de whisky no copo, fê-lo rodar observando em contraluz a sua cor de âmbar, bebeu um gole e por fim disse: - Receio que, muito em breve, vos venha a faltar completamente.
A signorina Clelia arregalou os olhos e levou uma mão aos lábios para abafar uma exclamação de sobressalto.
- Agora percebo... - sussurrou, imaginando que Gregorio estava gravemente doente.
- Não percebes rigorosamente nada - disse ele a rir, e prosseguiu: - O diabo, como ameaça a irmã Antonia, ainda não me veio agarrar pelos pés. Acontece que de repente me caiu nas mãos uma herança extraordinária. Imagina tu, querida Clelia, que a minha mãe me deixou um património para eu gerir. Assim sendo, acho que os meus dias na casa de repouso Stella Mundi estão prestes a acabar.
A velha amiga, que o escutara com a boca aberta de espanto, ameaçou-o com o indicador da mão direita, como fazia muitos anos atrás com os seus alunos.
- Cuidado, Gregorio! Não acho nada bem fazeres pouco de nós - avisou-o.
Ele segurou as mãos da amiga entre as suas e olhou-a nos olhos, murmurando: - A verdade não precisa de ser gritada e, portanto, isto é uma confidência só para ti. A senhora que me veio procurar há uns dias é a minha irmã. Descobriu-me aqui por acaso e, depois daquilo que me contou, decidi voltar a viver no lugar onde nasci, no Polesine.
Os olhos da signorina Clelia humedeceram-se com a comoção.
- A irmã Antonia tem razão quando afirma que esta casa não é um lugar para onde uma pessoa se retira do mundo à espera do fim. Fico muito, muito contente por ti, meu querido amigo. Mas por mim fico triste, porque vou sentir a tua falta - declarou a delicada senhora.
A irmã Michela entrou no quarto para ir buscar o tabuleiro do jantar. Viu os dois hóspedes, tão idosos como ela, naquela conversa íntima, e foi-se embora rapidamente, para não incomodar.
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Ora lá vou eu começar de novo, pensou Gregorio, enquanto saía do comboio na estação de Pádua e, a pé, se dirigia ao centro da cidade. Tinha um encontro marcado com o gestor do fideicomisso e com o notário para tomar conhecimento da sua situação patrimonial. O escritório do notário ficava em frente ao Caffè Pedrocchi e, uma vez que estava adiantado, aproveitou para fazer uma pausa naquele local histórico que, ao longo dos anos, tinha mudado um pouco mas conservava ainda o carisma que o tornara célebre em todo o mundo.
Enquanto saboreava um espresso ao balcão do bar, olhou em volta e regressaram-lhe à ideia as exclamações admiradas da gente da sua terra, quando era criança. Referiam-se aos jovens das classes mais abastadas, que viviam na cidade universitária e iam "fazer patuscadas" para o Pedrocchi. Falavam de pândegas, enredos amorosos, bebedeiras memoráveis. Histórias que, para ele, uma criança, se tornavam lendas e lhe aumentavam a frustração de pertencer à classe mais pobre, para quem aquele mundo estava vedado. Então disse àquele menino: "Estás a ver o caminho que percorreste? Agora trazes vestido um fato assinado por um grande costureiro, um sobretudo de caxemira, e podes constatar que este estabelecimento tão famoso, no fundo, não tem nada de especial, não há marajás sentados às mesas nem damas cobertas de jóias instaladas
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nos sofás. Olha em volta e vais aperceber-te de que és o cliente mais interessante."
Sorriu para a menina da caixa enquanto pagava a sua despesa e depois saiu, satisfeito.
No escritório do notário recebeu os cumprimentos do gestor do fideicomisso pelo seu aspeto, que contradizia a idade real, e retribuiu-os quando analisou os documentos que lhe revelaram uma orientação muito inteligente do património que a mãe lhe tinha destinado.
Diante do notário e do gestor, declarou: - Se estiverem de acordo, tenciono continuar a usufruir da vossa colaboração. Preciso de tempo para refletir sobre algumas alterações que gostaria de introduzir relativamente a alguns imóveis. Por exemplo, estou a ver que este edifício, que dá para a piazza delle Erbe, rende muito pouco porque os contratos de aluguer estão bloqueados. Quero visitá-lo e verificar pessoalmente o seu estado de conservação e... Bem, tive uma ideia... vou ficar na cidade durante todo o dia para dar uma volta por aí, a ver.
- Imagino que queira pôr em seu nome a conta onde está depositado o dinheiro que lhe pertence - disse o notário, que conhecia em parte a sua história, porque Isola Caccialupi lha tinha contado quando se dirigira a ele para redigir o testamento.
- com efeito, estava a pensar passar pelo banco - respondeu Gregorio.
Mas, em vez disso, foi convocado ao escritório do notário o diretor da filial, que se apresentou com uma pasta cheia de impressos para preencher e assinar.
Era hora de almoço quando a reunião terminou, e o notário convidou-o para ir com ele a um restaurante. Gregorio declinou o convite, porque já tinha os seus pensamentos para lhe fazerem companhia. Saiu do escritório, voltou a passar em frente ao Pedrocchi e continuou em direção a uma loja de telecomunicações. Ao fim de tantos anos de isolamento, comprou um telemóvel.
- O mais fácil de usar - explicou ao funcionário.
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Gregorio não tinha nenhuma familiaridade com a tecnologia e não queria sequer tentar adquiri-la.
Deram-lhe um número muito simpático, composto pelo três e pelos seus múltiplos, o que ele considerou de bom agouro.
Descobriu um pequeno restaurante na piazza delle Erbe, mesmo em frente ao palácio renascentista que agora lhe pertencia e, enquanto saboreava uma quiche de chicória vermelha, observou-o com atenção. Era um edifício valioso, e gostaria de conhecer os rostos e a história das pessoas que ali tinham habitado. Gostaria de entrar no átrio, subir as escadas, inspecionar todos os apartamentos. Pelo gestor soubera que, para além das horríveis boutiques do rés do chão, o imóvel era ocupado por escritórios e somente no último andar vivia um jovem arquiteto e um casal de idosos que estavam ali há um tempo imemoriável.
Quando saiu do restaurante, atravessou a praça e entrou no edifício, depois de ter admirado a bonita entrada esculpida e a porta enorme de dois batentes de madeira e pregos à vista. O átrio tinha o teto em arco rebaixado, com vestígios de frescos. O pavimento mostrava sinais de reparações em várias épocas: uma parte era em tijoleira e outra, mais recente, em mosaico veneziano. No centro do poço das escadas sobressaía a gaiola de um ascensor em ferro forjado do período Liberty. Ao fundo do átrio havia uma porta envidraçada. Abriu-a e descobriu um claustro retangular com um poço no centro. Naquele instante inclinou-se e viu um rato que foi enfiar-se dentro de uma grade ao nível do solo. Ficou horrorizado. Aquele grande palácio estava a naufragar devido à incúria. Voltou a percorrer o átrio, admirando a escadaria dupla com degraus e balaustrada em mármore de Verona, e percebeu que aquele imóvel suplicava para ser restaurado.
Naquele momento sentiu cansaço. Demasiadas emoções e demasiados projetos rodopiavam no seu espírito como girândolas ao vento. Naquela bonita praça, que começava a animar-se depois da pausa do almoço, notou a existência de uma agência turística.
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Empurrou uma porta com campainhas e uma jovem mulher, muito atraente, perguntou-lhe: - Posso ser-lhe útil?
- Tencionava regressar a Adria, mas estou tão cansado que gostaria de ficar em Pádua esta noite. Pode indicar-me o melhor hotel? - perguntou ele.
A rapariga avaliou Gregorio, a sua elegância e o seu estilo.
- Receio que a nossa cidade não tenha nenhum hotel de cinco estrelas.
- A sério?
- Nunca cá esteve antes?
- Nunca, e tenho pena, porque têm um património artístico notável. Mas tenciono compensar isso. Então, onde me manda dormir?
- Mando-o para fora da cidade. Nos arredores há alojamentos fantásticos - propôs a rapariga.
Gregorio sabia que onde há hotéis de muita qualidade chegam turistas ricos. E ele, naquele momento, era um turista de classe descontente por não poder ser recebido condignamente na cidade.
- Os arredores não me interessam e, sendo assim, peço-lhe para me arranjar um carro com motorista para me levar a casa.
Uma hora mais tarde, comodamente instalado no banco de trás de uma berlina azul, enquanto viajava de regresso a Adria, repetia mentalmente o ensinamento de Sal Matranga: "O sucesso de um grande hotel depende de três fatores: primeiro, a localização, segundo, a localização, terceiro, a localização." Pensou então: A localização daquele edifício é ótima, é a melhor, absolutamente. Depois deixou escapar uma gargalhada que surpreendeu o motorista.
Gregorio justificou-se, dizendo-lhe: - Sabe, meu amigo, um homem para ser feliz tem de fazer projetos e eu, neste momento, esbocei um que me está a entusiasmar.
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Stella Josti tinha percebido que o irmão precisava de uma ajuda, pelo menos para os primeiros tempos. Assim, quando Gregorio saíra de Iseo, tinha partido com ele de regresso a Adria e sugerira-lhe que contratasse a tempo inteiro Amélia, a empregada que já conhecera. O grande apartamento do professor Ferrante Josti tinha uma parte destinada aos funcionários. Muitos anos antes fora habitado por um casal de criados e por Guerino, o homem de confiança do professor, que Gregorio recordava como um personagem mítico porque uma vez, quando era criança, o tinha mandado entrar para o carro e sentar-se ao lado dele.
Stella ficou junto do irmão quando ele saiu da casa de repouso que o albergara durante cinco anos. Gregorio comoveu-se sobretudo quando se despediu da irmã Antonia. A bela freira de ar autoritário disse, entre lágrimas: - Que Deus te abençoe, Gregorio! Foste um hóspede maravilhoso, e vou sentir a tua falta... Obrigada pela oferta da tábua votiva.
E ele respondeu: - Foste o último amor da minha vida. Tivesse eu menos cinquenta anos, e íamos brilhar, nós os dois.
Riram-se ambos, para dissolver a tristeza daquela despedida. Gregorio acrescentou: - A vida é uma fonte inesgotável de surpresas. Não é de excluir que um dia eu tenha de voltar para aqui, e quero encontrar-te perfeitamente em forma.
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Agora, ao regressar de Pádua, onde insistira em ir sozinho, Stella recebeu-o no apartamento de Adria.
- Lembras-te do palácio da piazza delle Erbe? - perguntou-Ihe, enquanto Amélia lhes servia um empadão de bacalhau.
- Conheço-o perfeitamente. O meu pai queria desfazer-se dele, porque tinha alguma dificuldade em pagar as despesas, e a mãe conseguiu que ele lho oferecesse. Depois, ao longo dos anos, foram abertas as boutiques do rés do chão e, a pouco e pouco, os velhos inquilinos foram saindo e as habitações substituídas por escritórios. Agora está uma ruína.
- Vai ficar estupendo - afirmou ele. Mas apressou-se a acrescentar: - Só que ainda é cedo para falar nisso.
Depois do jantar passaram para a sala e tomaram aquela bebida que Stella definia como "um caldo" e Gregorio como "um requintado café americano". Stella ofereceu ao irmão um dos seus cigarros e depois instalou-se o silêncio entre os dois.
- Se os senhores não precisam de mais nada, eu retiro-me disse Amélia, que apareceu à porta.
Stella mandou-a embora ao mesmo tempo que Gregorio, pela primeira vez, considerava a irmã com atenção. Viu uma bela mulher de setenta e quatro anos, de traços distintos, gestos contidos e olhar sereno.
- Sinto-me bem contigo - confessou-lhe.
- Também eu. É como se sempre nos tivéssemos dado.
- Fui mesmo um estúpido em manter a distância durante tantos anos. Perdi um monte de coisas da vida da mãe e da tua.
- Da minha, perdeste pouco. Fui a clássica rapariga de boas famílias, cresci sem problemas, não me estafei a perseguir quimeras, no momento certo casei-me com o homem certo, e quando me faltou chorei-o durante o tempo certo. Tenho uma filha maravilhosa e uma neta que está prestes a tornar-me bisavó... Nada de abanões, nem de aventuras, nem de dramas.
- És uma alma tranquila. Provavelmente, pareces-te com o teu pai.
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- Era o que a mãe dizia. Ela, pelo contrário, nunca conseguia estar tranquila. com ela nunca ninguém se aborrecia. Era um vulcão de projetos, de iniciativas... andava sempre a passear, como uma vagabunda. Eu sou um animal doméstico - declarou. Apetece-te ouvir música? - propôs-lhe, ao mesmo tempo que se levantava e se aproximava de um móvel dos anos cinquenta que continha rádio, televisão e gira-discos.
- São discos da nossa mãe? - perguntou Gregorio, curioso.
- Ouvia-os à noite. Música clássica e canções ligeiras. Esta era a canção preferida dela - disse Stella, enquanto punha no prato um 78 rotações de baquelite. Ecoaram imediatamente as palavras de uma canção de sucesso no início dos anos quarenta: Besame mucho.
Gregorio escutou-a, repetindo aquelas palavras espanholas que conhecia de cor, e recordou o belo rosto de Florencia.
- O que foi? Estás comovido? - perguntou Stella. Os olhos de Gregorio tinham-se humedecido.
- Um pouco - admitiu.
- Faz-te lembrar uma história de amor?
- Esta canção faz-me lembrar a mulher que amei mais do que todas as outras.
- Gostava muito de conhecer essa história.
- Mas eu não ta vou contar, e agora vou dormir - disse ele, levantando-se. Tirou o disco do prato e voltou a metê-lo na capa; depois saiu da sala.
Ao dirigir-se ao seu quarto, chegou até ele a voz de Stella.
- Dorme bem, maninho.
Gregorio tinha-se instalado no quarto de Isola. Por baixo da roupa daquela cama sentia-se protegido. Imaginava que voltava a ser criança e sentia ao seu lado a presença da mãe, uma mãe com vinte anos, vestida de camponesa. Afagava-lhe os cabelos e sussurrava: - Estamos aqui, tu e eu, juntos. Que bom!
Quando regressou a Itália para fazer o serviço militar, Isola estava em Génova à espera dele.
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Ele ia a descer a escada de portaló da primeira classe e viu aquela mulher bonita de braços abertos, pronta para o abraçar.
Ficaram enlaçados durante longos instantes, e depois Isola sussurrou-lhe ao ouvido: - A vida dá voltas e mais voltas, e aqui estamos nós, tu e eu, juntos. Que bom!
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Isola tinha ido buscá-lo ao porto de Génova com um cabriolei Talbot-Lago de cor creme que o marido lhe tinha oferecido nos anos.
- Deixas-me guiar? - pediu Gregorio, depois de terem arrumado a bagagem na mala e no assento de trás.
Isola entregou-lhe as chaves.
- Vamos a Santa Margherita, a casa da condessa Dolfin. Clarissa tornara-se na amiga mais querida de Isola, e convidara-
-os para passar aquela noite em casa dela. Regressariam ao Delta no dia seguinte.
Era um prazer conduzir aquele carro desportivo, que dava cento e oitenta à hora e se agarrava bem nas curvas.
- Foi aqui que passaste aquele inverno, quando saíste do hospital? - perguntou Gregorio, ao mesmo tempo que parava o carro num caminho de saibro, aos pés de uma escadaria que dava acesso à entrada da villa.
- Foi aqui que os meus pulmões ficaram curados. Mas o meu coração tinha ficado contigo e com o teu pai, em Porto Tolle.
Estavam parados, dentro do carro, e Isola acariciou-lhe uma face, dizendo: - O meu fantástico filho americano. Gregorio corou e afastou o rosto.
- Eu cresci, mãe. Não me trates como quando eu tinha oito
anos - resmungou.
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- Que mais posso eu fazer, meu filho? Não me deste oportunidade de te ver crescer, nem de te dar nenhuma ajuda. Não achas que me castigaste o suficiente? - perguntou Isola, e os seus olhos claros e belos encheram-se de lágrimas.
Gregorio voltou-se para ela e, num impulso, abraçou-a.
- Também me castiguei a mim, mãe, e não imaginas quanto
- murmurou.
Um criado de libré desceu a escadaria para ir ao encontro dos hóspedes. Viu-os e estacou: mais do que mãe e filho, pareciam dois apaixonados.
Também Gregorio o viu e afastou-se bruscamente dos braços da mãe.
- Vais ser sempre um camponês sisudo e desconfiado, vais viver sempre como uma fraqueza os teus sentimentos e as tuas emoções - censurou Isola.
Naquela noite, no quarto que a dona da casa lhe destinara, ele pensou nas palavras da mãe e constatou que Isola tinha razão. Dava agora conta de ter abandonado Nova Iorque e todas as possibilidades que Sal Matranga lhe oferecia para escapar a uma história de amor difícil, que ele não sabia onde o poderia conduzir.
Se reconsiderasse as suas aspirações infantis, verificava que não tinha percorrido um caminho muito longo para o sucesso. Partira para a América como moço de fretes e regressara a Itália com a qualificação de empregado de mesa. À ida dormira no porão, à vinda tinha-se dado ao luxo de um bilhete de primeira classe, um guarda-roupa requintado e uma pequena reserva em dólares, mas a sua condição social não tinha mudado.
Tinha partido zangado, frustrado, sem perguntar a si mesmo de que ia à procura, e regressara com a única perspetiva de se apresentar à inspeção para vestir a farda militar.
Na manhã seguinte, partiu novamente com a mãe de regresso
a casa.
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- Quero ir já a casa dos avós, e depois ao cemitério, à campa do avô Gàbola - disse Gregorio.
- Vamos parar em Adria - decidiu Isola, com um tom imperioso. E apressou-se a acrescentar: - A Stella tem muita vontade de ver o irmão, e está à tua espera. Dormes em nossa casa, no quarto de hóspedes, e vais a Porto Tolle amanhã. Empresto-te um carro para as tuas deslocações.
Demoraram quase todo o dia a chegar a La Spezia, e dali a Parma, e depois a Ferrara e, finalmente, chegaram a Adria.
Era hora de jantar quando Stella, depois de ter abraçado o irmão, disse, com os olhos postos nele: - Pareces mesmo um americano.
- E tu conheces mais algum? - perguntou Gregorio, curioso.
- Não... sim. É um colega do pai.
Stella tinha quase dez anos e era tão graciosa nas maneiras e no aspeto que parecia saída de um postal ilustrado.
- Sabes que eu também quero ir para a América, quando for grande? - afirmou, muito séria. Depois prosseguiu: - A mãe disse que estás aqui para fazer a tropa. Mas depois, voltas para Nova Iorque?
- Não sei. Talvez sim, talvez não. Depende.
- Gostava de ir para a América contigo, e já comecei a estudar inglês. Este ano vou a Londres com a mãe e com o pai.
Isola tinha-se retirado, deixando-os sozinhos na sala.
Naquele momento, uma voz calma e viril ordenou: - Stella, não maces o teu irmão.
Gregorio voltou-se de repente e deparou-se com o professor Ferrante Josti.
Era uma figura imponente e notável. Os cabelos salpicados de prata, o rosto claro, o olhar luminoso, a elegância do porte que agora Gregorio conseguia apreciar, certamente infundiam segurança naquela filha concebida na idade madura.
O médico virou-se para ele com um largo sorriso e estendeu-lhe a mão, dizendo-lhe: - Bem-vindo. A tua mãe mandou-me avisar que o jantar está pronto. Vamos para a mesa?
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Gregorio apertou-lhe a mão e esforçou-se por lhe sorrir. Não tinha senão motivos para se sentir grato para com aquele médico que curara Isola e, tirando-a da miséria, lhe proporcionara uma existência desafogada. Mas o ciúme impedia-o de apreciar plenamente a generosidade e a honestidade de Ferrante, de tal maneira que, depois do jantar, disse à mãe: - Se me emprestares um carro, prefiro ir já para casa dos avós.
- A esta hora devem estar a dormir - observou ela, apesar de saber que não o ia demover do seu propósito.
Quando chegou ao casal era já de noite. Um cão ladrou; ele bateu à porta dos Caccialupi até que a porta se abriu e um bastão o atingiu na cabeça, deixando-o atordoado.
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- É esta a receção que me fazem? - gritou Gregorio, agarrando no braço do homem que se preparava para o atingir uma segunda vez. Depois olhou-o de frente e exclamou: - Tio Neri, sou eu, o teu sobrinho.
- Que Deus te abençoe! Gregorio, és mesmo tu! Anda cá, deixa-me abraçar-te. Magoei-te? - disse o tio Neri. Depois, feliz, acrescentou: - E chega-se assim... de noite, sem avisar?
- Podias ter-me matado - protestou Gregorio, ao mesmo tempo que, com a mão, apertava a testa no sítio onde tinha sido atingido.
- O que foi que aconteceu? Que confusão é esta? - perguntou a avó Lena, que apareceu à porta. Por cima da camisa de noite de lã trazia o xaile negro do costume.
Estava mais velha e mais curvada do que quando Gregorio partira, e o seu rosto parecia ainda mais encovado e cansado.
- Sou eu... avó - exclamou Gregorio, e abraçou-a. Entraram em casa, onde estava a mulher com quem Neri se
tinha casado e os dois filhos.
- És mesmo tu, o meu Gregorio? - repetia a avó, que continuava a olhava para ele, incrédula.
- E o avô? - perguntou ele.
- Está a dormir. Agora está surdo como uma porta e não ouve nem um tiro de canhão - respondeu ela, enquanto o tio Neri punha em cima da mesa uma garrafa de vinho e copos.
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A avó molhou um pedaço de tecido com água oxigenada e pô-lo na testa do neto, para conter o hematoma que começava a expandir-se.
Foi com aquela testa azulada e inchada que, na manhã seguinte, Gregorio se apresentou à inspeção em Rovigo, depois de ter ido ao cemitério rezar junto da campa do avô Gàbola.
Quando mostrou a documentação que atestava uma longa permanência nos Estados Unidos, o coronel, que o declarou apto, perguntou-lhe: - Voltaste cá para apanhar umas pauladas e ir parar à tropa? Não deves ser assim muito esperto. Para já, vais fazer a instrução em Roma. Depois, logo se vê.
Tinha uma semana para se apresentar ao Comando para a recruta. Durante cinco dias, Gregorio andou às voltas como uma alma penada, por entre diques e vielas, na tentativa de recuperar as recordações da infância. Ouviu os camponeses que se queixavam dos patrões e dos fascistas, dos burgueses que definiam o Duce como "uma boa pessoa" que, no entanto, tinha a desgraça de estar rodeada por malfeitores. Olhando em volta, Gregorio apercebeu-se de que só os fascistas tinham alguma possibilidade de triunfar, enquanto que as pessoas melhores eram postas de parte e ignoradas. A corrupção e a delação reinavam por todo o lado, mesmo no meio dos pobres, e quem ousava insultar um fascista passava trabalhos sérios. A solidariedade de outros tempos tinha dado lugar à desconfiança, ao ódio e à arrogância.
Pensou que o avô Gàbola tinha fechado os olhos a tempo de não ver como tinha ficado feia a sua gente.
À noite regressava a casa dos avós e suportava as perguntas dos filhos do tio Neri, que queriam saber como era a América. Ele descrevia os arranha-céus que tocavam as nuvens, os grandes armazéns onde se vendia de tudo, como no mercado da aldeia, o fluxo incessante dos automóveis, o metropolitano que corria velozmente por baixo do chão, e também outras coisas que inventava de vez em quando, para não os desiludir. A avó continuava a tostar a polenta na grelha, o avô fumava o seu cigarro em silêncio. Desde
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que ficara surdo, quase deixara de falar. Os vizinhos vinham visitá-los para verem "o americano", como se ele fosse uma curiosidade de circo.
Ao fim de uma semana, confiou o seu precioso baú à vizinha que tinha tratado do avô Gàbola, abraçou a família e foi a Adria ter com a mãe. Devolveu-lhe o carro e ela foi levá-lo a Verona, onde ia apanhar o comboio para Roma.
Isola conduzia e, de vez em quando, observava o rosto sombrio do filho que ia sentado ao lado dela, fechado em pensamentos insondáveis.
- Então, quem é ela? - decidiu-se a perguntar, tal como fizera anos atrás, quando Gregorio regressara do seu trabalho sazonal no Lido. E acrescentou: - a jurar que estás apaixonado e infeliz.
- Nunca te enganas - disse Gregorio.
Seguiu-se um longo silêncio, e depois confessou: - É a mesma mulher por causa de quem fui ao México quando tinha quinze anos. Encontrei-a em Nova Iorque... está lindíssima... Só que agora é casada.
- É uma história que ambos conhecemos bem, não é?
- Mas não é casada com um homem qualquer. O marido é o filho do Sal Matranga, o boss de quem te falei muito nas minhas cartas.
- Por isso fugiste.
- Que mais podia eu fazer?
- Enfrentar a situação. Presume-se que um homem seja capaz de fazer isso.
- Não é assim tão simples...
- Eu sei. Nada na vida é simples - afirmou Isola. Entretanto, tinham chegado à estação de Verona. Enquanto se
despediam, Gregorio disse-lhe: - Fez-me bem estar contigo.
Isola abraçou-o, pensando que aquela relação intensa que tinha existido entre eles em anos longínquos sobrevivia intacta, apesar de Gregorio ter feito de tudo para a apagar.
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Durante as cinco semanas de instrução, Gregorio teve por duas vezes uma licença de vinte e quatro horas e, em ambas as ocasiões, instalou-se num pequeno hotel da capital para poder tomar um banho e dormir numa cama confortável.
Não fez amizade com aqueles a quem chamava "companheiros de desventura", porque os seus pensamentos estavam noutro lugar, nunca sofreu nenhum castigo, ganhou a simpatia do comandante e, quando acabou a recruta, foi-lhe comunicada uma notícia reconfortante: tendo em consideração a sua permanência no estrangeiro, tinham-lhe reduzido o serviço militar para seis meses. Entretanto ia ficar no Ministério da Marinha, em Roma, com a função de telefonista.
Para festejar esse facto, Gregorio instalou-se num grande hotel da via Veneto, percorreu a cidade de um lado ao outro e visitou monumentos e igrejas, encantado com tanta beleza. Uma manhã, sentado num banco no parque de Villa Borghese, a ler num jornal as crónicas que idolatravam o Duce e -os seus ministros e um artigo sobre a importância da "raça ariana", ouviu alguém chamá-lo pelo
seu nome.
Levantou a cabeça e encontrou à frente uma rapariga com o uniforme de um colégio, de rosto gracioso e sorridente.
O jornal caiu-lhe das mãos, ao mesmo tempo que dizia: - Nostalgia!
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Em Nostalgia, já não havia qualquer vestígio da rapariguinha que vestia o casaco de peles da mãe, fumava às escondidas e ostentava um rosto carrancudo e antipático. Gregorio viu uma jovem bela e serena, de movimentos seguros e plácidos, olhar ingénuo e curioso e roupa de estudante: saia de pregas, camisa branca, casaquinho azul. Fez-lhe lembrar a sua irmã Stella.
Aquele encontro inesperado proporcionou-lhe um lampejo de alegria.
- Mas és mesmo tu! - disse, enquanto se levantava. Nostalgia sorriu-lhe com doçura.
- Podia dizer-te a mesma coisa - e estendeu-lhe a mão, esboçando uma ligeira vénia.
Ele, que estava à espera que ela lhe voasse para os braços, adaptou-se imediatamente e estendeu-lhe a mão.
- O exército tomou conta de mim - explicou Gregorio.
- Eu estou num passeio da escola. Já aqui estamos há alguns dias... Sabes, as coisas do costume... igrejas, museus, ruínas arqueológicas - contou Nostalgia, enquanto uma freira de saia flutuante se apressou a ir ao encontro dela, com um ar protetor.
- Posso saber quem é este militar? - perguntou.
- Cara madre Cecília, este senhor é um amigo... um querido amigo. Chama-se Greg... trabalha com o meu pai e eu não estava
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nada à espera de o encontrar em Roma - explicou, com um tom muito seguro. - Até porque não me comunicou que tinha regressado a Itália.
Nestas últimas palavras, Gregorio captou a sombra de uma censura e, não sabendo como responder, limitou-se a balançar-se sobre as pernas com um ar atrapalhado.
Nunca mais pensara em Nostalgia, mas agora tinha pena de se ter esquecido dela.
As outras alunas tinham formado uma fila compacta a alguns metros deles e olhavam para Gregorio, extasiadas.
- Muito bem. Agora que já se cumprimentaram, vamos continuar o nosso percurso - ordenou a madre Cecilia, um pouco irritada e cheia de vontade de dar uns cachaços àquelas "tontas das suas meninas", prestes a desmaiar diante de um rapaz bonito. Porque aquele jovem era realmente um espetáculo, pensou a monja.
Gregorio, pelo contrário, hesitava em deixar Nostalgia ir-se embora. Lançou à irmã Cecilia um dos seus irresistíveis sorrisos e disse-lhe: - A Nostalgia é quase uma pessoa de família. Seria muito indiscreto se lhe pedisse para poder trocar algumas palavras com ela? - Esticou um braço para indicar um caramanchão florido, no centro de uma praceta, onde estavam sentados alguns turistas a tomar granizados e cafés. E prosseguiu: - Posso propor uma breve pausa para uma bebida?
A freira não foi capaz de recusar aquele pedido, formulado com tanta delicadeza.
- Meia hora, nada mais - rendeu-se.
Sentados à mesa, em frente à freira, os dois jovens começaram a falar em inglês.
- Sabes que mudaste imenso? Agora estás realmente uma menina cheia de graça.
- Aqui toda a gente gosta de mim... e não é só por causa do dinheiro do meu pai. Em qualquer caso, não me chames menina, porque eu cresci... Ninguém me disse que estavas em Itália. Quando voltas para Nova Iorque? - perguntou ela.
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- O exército decidiu manter-me aqui durante mais seis meses. Depois, não sei o que vou fazer.
- Vamos regressar a casa juntos, tenho a certeza. Eu sei... sinto que... Não sabes o que eu chorei quando me trouxeram para Itália. A minha mãe ficou comigo quase um mês, com medo que eu fugisse. Mas devo dizer-te que, com as minhas colegas e com estas santas mulheres, não estou nada mal. É claro que se nos obrigassem a pagar menos e a estudar mais, era melhor. Em contrapartida, temos um programa intenso de atividades desportivas, e eu divirto-me a aprender o dialeto de Avellino com as cozinheiras e com o jardineiro. Tens de me ir fazer uma visita. O convento é muito bonito. Foram os Bourbons que o construíram no século XVII. Não imaginas a magnificência daquelas salas. Eu divido com uma colega um quarto que tem o teto inteiramente coberto de frescos. Tenho saudades de Nova Iorque. Tenho saudades dos meus amigos e também um bocadinho do meu pai. Mas, acima de tudo, tenho saudades tuas, que és o fantástico homem da minha vida.
- Nostalgia, eu julgava que tinhas deixado de brincar à menina apaixonada - disse ele, admirado, embora continuasse a olhar para ela com ternura, porque começava a apreciar aquela jovem tão calma e determinada.
- Não estou a brincar. Tenho de te dar tempo para te tornares alguém, e a mim para crescer ainda um pouco mais. Depois, as nossas histórias vão ligar-se indissoluvelmente. Lembras-te daquela noite em que eu te disse que ia casar-me contigo?
Gregorio sorriu e anuiu.
- Nessa noite ouvi uma vozinha que me dizia: "O teu futuro está aqui, à tua frente." Herdei do meu pai a difícil arte de ter paciência. Por isso, vou esperar pelo dia em que estiveres louco de amor por mim. Entretanto, deixo-te livre para fazeres tudo aquilo que quiseres. Mas quando eu te puser a corda ao pescoço, se tentares puxá-la, eu esgano-te - prometeu, com uma serenidade desconcertante.
A irmã Cecília, que tinha algumas noções de inglês, esforçava-se por apanhar algumas frases, sem conseguir.
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Gregorio fez de conta que ficava zangado e disse-lhe: - Para com essas criancices.
Ela, com a mesma firmeza, replicou: - Já parei, até porque a ideia ficou clara e tu recebeste a mensagem.
Nostalgia levantou-se da mesa sem ter sequer provado a sua limonada e acrescentou: - Tenho a certeza de que o meu pai me vai deixar regressar a casa muito em breve, e tu vais encontrar-me lá. Depois voltou-se para a freira, que não tinha percebido nada, e com um tom decidido disse: - Podemos ir. - Deu meia-volta e afastou-se.
Naquele mesmo dia, Gregorio escreveu uma carta a don Salvatore. Começava assim:
Encontrei em Roma, nos jardins de Villa Borghese, a sua Nostalgia. Estava com um grupo de colegas e uma freira. Aquele encontro deu-me coragem para lhe escrever, finalmente, para lhe expressar toda a minha gratidão. Foi um pai para mim, e peço-lhe perdão por o ter desiludido. Trago sempre no pulso o relógio que me ofereceu. Espero que conserve com cuidado a tábua votiva que lhe mandei por Tony Rapello, que para mim é preciosa por estar ligada a uma parte importante da minha vida. Fui colocado na Marinha com funções de telefonista. Um trabalho muito tranquilo. O meu serviço militar acaba no outono. Cabe-lhe a si dizer-me se poderei regressar ou não. Entretanto, posso dizer-lhe que a sua filha goza de boa saúde, está com um ótimo aspeto, tranquila, e diz que está contente naquele colégio.
A resposta de don Salvatore chegou-lhe ao fim de uma dezena de dias. Dizia apenas: "Estou à tua espera no outono."
Quando foi dispensado da Marinha, Gregorio esgotara todas as suas poupanças. Felizmente, tinha posto de lado o dinheiro suficiente para o regresso aos Estados Unidos. Incomodava-o ter de deixar mais uma vez a avó Lena e o avô Pietro.
- Então vais-te embora outra vez? - lamentou-se ela.
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- Que mais posso eu fazer? - perguntou-lhe.
- Esta é uma terra de miséria, mas é a tua terra. Criou-te e alimentou-te... mas, como muitos antes de ti, foges. Eu ainda estou para conhecer aqueles que fizeram fortuna lá fora. O que é que esperas encontrar indo tão longe?
- Alguma coisa melhor que um punhado de arroz ou uma fatia de polenta.
A avó abanou a cabeça, desconsolada, e acariciou-lhe os cabelos com a mão áspera e calosa. Depois disse: - Tens razão, meu rapaz. vou continuar a rezar por ti, como sempre fiz. vou recomendar ao Senhor que te conserve longe dos perigos.
Gregorio abraçou-a e partiu, sabendo que nunca mais iam voltar a ver-se.
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Não avisara don Salvatore da sua chegada a Nova Iorque.
Após quase um ano de afastamento, sentia-se seguro pelo facto de a sua paixão por Florencia se ter extinguido, embora não soubesse como ia reagir se voltasse a vê-la.
Tinha escrito a Franco Fantuzzi para lhe comunicar o dia da sua chegada, porque ia ocupar novamente o quatro no apartamento, e em seguida tentaria encontrar Tony Rapello para obter alguma informação sobre a família Matranga.
Viajou mais uma vez num camarote de primeira classe e usufruiu dos prazeres que se tinha negado no regresso a Itália, quando sofria por amor e tinha cuidadosamente evitado a companhia de outros passageiros.
Fez as refeições na sala de jantar, e não no camarote, participou nos bailes de bordo e nos jogos de sociedade, sentiu-se mal como os outros durante uma tempestade que parecia não ter fim, e conviveu sobretudo com Mr. e Mrs. Patterson, um casal de meia-idade com uma conversa agradável e muito interessante.
Desde a primeira noite, fora-lhe destinado um lugar na sua mesa, com mais três americanos, uma mulher idosa com o filho e a nora, que regressavam ao Texas onde detinham alguns poços de petróleo.
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Os três, muito expansivos, denunciavam nos modos e na linguagem a sua condição de novos-ricos. Todos eles, em qualquer caso, observavam com curiosidade aquele belo rapaz que se vestia com uma elegância sóbria, gostava de ouvir, intervinha raramente e nunca falava de si, como de resto faziam os Patterson, ao contrário dos texanos, que gabavam continuamente a sua mansion, os cavalos, os criados, e formulavam por vezes perguntas indiscretas que tanto os Patterson como Gregorio eram extremamente hábeis a contornar.
Numa manhã de navegação tranquila, Gregorio subiu ao convés e instalou-se numa espreguiçadeira para apanhar sol. Pouco depois, Mr. Howard Patterson sentou-se ao lado dele.
- Meu silencioso amigo - começou, depois de se terem cumprimentado, - o senhor está consciente de que não passa despercebido, e a sua reserva joga a favor do seu fascínio. Ando a estudá-lo há vários dias e, uma vez que me gabo de conhecer os meus semelhantes e de me enganar raramente, no seu caso rendo-me. Não consigo atribuir-lhe uma condição social, nem uma profissão.
Gregorio sorriu e disse com simplicidade: - A condição social é de pelintra, no sentido em que tenho duzentos dólares no bolso. Quanto à profissão, sirvo os clientes à mesa de um restaurante. Voltei a Itália no ano passado para cumprir o serviço militar, e agora regresso a Nova Iorque como desempregado.
Seguiram-se alguns instantes de silêncio. E foi de novo Gregorio quem falou.
- Permita-me que lhe diga que também o senhor é muito discreto. No entanto, creio não errar ao colocar-lhe uma etiqueta, se é que um homem se pode etiquetar: o senhor é um boss de Wall Street.
Mr. Patterson sorriu, satisfeito.
- Parabéns, jovem. Você associou o meu nome ao da Gedford Patterson Bank. Gedford era o nome de casada da minha tia, a irmã do meu pai. Foi ele quem fundou o nosso banco, há cinquenta anos. Eu geri-o com a minha irmã, enquanto ela foi viva. Agora faço-o sozinho - explicou.
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- É um trabalho difícil? - perguntou Gregorio.
- Como todas as empresas, também a banca requer uma atitude específica para a gestão do dinheiro que nunca é o nosso, mas o dos clientes. Ao banqueiro cabe a tarefa, tudo menos simples, de uma aplicação honesta e inteligente das poupanças.
- Eu gosto do dinheiro que posso gastar, não aquele que poderia acumular. Nunca serei um bom cliente para nenhum banco admitiu Gregorio.
- Pela maneira como se veste e pelo relógio que traz ao pulso, reparei que sabe gastar bem o dinheiro. Mas, se fosse banqueiro, podia dar-se a muitos outros luxos. Podia adquirir obras de arte, por exemplo.
Gregorio afagou o mostrador do seu relógio e disse: - Isto foi um presente da pessoa que me deu trabalho, que chegou a oferecer-me a gerência de um restaurante em Filadélfia. Teria sido o maitre mais jovem dos Estados Unidos... A profissão de receber pessoas agrada-me, faço-o com paixão, porque é um trabalho que me diverte. Mas o dinheiro é uma coisa demasiado complicada para mim. Na minha família, o banco era a lata do açúcar que a minha avó escondia na cozinha, atrás do da farinha.
Mr. Patterson tinha ar de se estar a divertir imenso ao ouvir as palavras de Gregorio, e explicou-lhe: - A lata do açúcar era, justamente, um esconderijo infrutífero e com risco de rapina. A banca é uma coisa totalmente diferente.
- O que é exatamente um banco, Mr. Patterson? - perguntou Gregorio.
O banqueiro abriu os lábios num sorriso luminoso.
- vou responder-lhe com as palavras do meu pai, quando lhe fiz a mesma pergunta e andava na escola primária. A banca é um instrumento de progresso social e civil. Quando deixa de o ser, como aconteceu connosco em 1929, a humanidade precipita-se no abismo. O banqueiro não é alguém que conta o dinheiro e calcula os juros, mas alguém que ama a música, a filosofia, a história. Alguém que conhece as pessoas e sabe que deve ajudar quem precisa. Está a ver, meu filho, houve alguém que disse que no dia em
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que as abelhas enlouquecerem e morrerem, a vida no nosso planeta acaba. No dia em que o dinheiro deixar de ser um instrumento de progresso social, civil e moral, o homem perderá a sua dignidade e, com ela, a vida.
- O seu pai disse-lhe isso?
- Exatamente.
- E o senhor entendeu?
- Tal como você agora, não percebi uma única palavra. Mas gostei muito daquele discurso. Levei anos até entender o seu significado mais profundo.
Desde aquele dia, Gregorio e o banqueiro ganharam o hábito de se encontrarem no convés de manhã, quando o tempo o permitia, ou a um canto do bar, quando estava vento lá fora.
Gregorio falava-lhe dos livros que tinha lido ou que estava a ler, e Mr. Patterson expunha-lhe as suas considerações sobre a guerra na Europa. Gregorio escutava os raciocínios lúcidos sobre a devastação que o nazismo estava a causar e que, dentro de pouquíssimos anos, se revelaria catastrófica para o desenvolvimento económico e social de nações inteiras. E o banqueiro escutava com interesse as histórias do mundo camponês italiano e as etapas da vida intensa de Gregorio.
Na véspera do desembarque no porto de Nova Iorque, o banqueiro disse-lhe: - É altamente provável que você tenha de voltar a Itália e que seja mandado para qualquer frente de guerra. Agora que a França e a Inglaterra se aliaram contra os alemães, Mussolini não vai tardar a unir-se a Hitler. É realmente muita pena, porque nós, americanos, víamos o vosso Duce como uma pessoa inteligente. Enganámo-nos. Naquilo que lhe diz respeito a si, não há fuga possível: vai ter de regressar à pátria e combater. E isso é uma pena, mesmo para mim.
Gregorio olhou para ele, perplexo.
- Estou prestes a fazer-lhe uma proposta. Gostava de o ter no meu escritório, como secretário - explicou Mr. Patterson.
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- Mas o senhor sabe perfeitamente que entre mim e o dinheiro existe um abismo.
- Eu sei escolher as pessoas. Você ia aprender muito e poderia libertar-me de muitas incumbências melhor do que uma pessoa licenciada em Yale. O meu endereço é este. Venha ter comigo daqui por uns dias. E espere que o exército italiano se esqueça de si. Sabe... são coisas que, às vezes, acontecem.
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Franco Fantuzzi esperava-o no cais. Gregorio foi ao encontro dele e abraçou-o. Respirou o ar de Nova Iorque e sentiu-se em casa.
- Diz-me que esta cidade andou vestida de luto durante a minha ausência - disse, sentindo o coração pulsar de alegria.
- Não a cidade toda, mas uma parte sim, a parte feminina. Havia por todo o lado mulheres vestidas de luto a invocar o teu nome - brincou o amigo, enquanto metiam na mala do carro a bagagem de Gregorio.
Franco conduzia agora um Pontiac cor de amaranto, com estofos de pele a condizer; no banco de trás estava sentada uma loira insignificante e tranquila que se agarrou ao pescoço de Gregorio e o beijou em ambas as faces.
- É a Priscilla Plummers - exclamou Franco, enquanto se sentava ao volante.
- Plummers como os feijões de lata? - perguntou Gregorio.
- Eu sou a Plummers dos feijões de lata - respondeu ela. E acrescentou: - Sou a namorada do Franco e vamos casar-nos muito em breve.
Gregorio pensou que o amigo não perdera tempo, aliás, empregara-o muito bem, porque aquela loira deslavada e sorridente valia milhões de dólares.
- Então já te arrumaste - disse a Franco, em italiano.
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- Podes crer. E quem é que ia largar esta mina de dinheiro disse o amigo. - Mas também pensei em ti. Tem uma prima quase tão bem como ela, que está ansiosa por te conhecer.
- Veremos - rematou Gregorio. - Onde vamos agora?
- Vocês os dois, parem de falar italiano - disse Priscilla, incomodada.
- Tens razão, doçura. Agora vamos a casa descarregar a bagagem, e depois vamos jantar e dançar - sugeriu Franco.
Gregorio perguntou a si mesmo por que razão aquela euforia do regresso a Nova Iorque se estava a diluir numa espécie de mal-estar, que aumentou quando chegaram ao apartamento lúgubre onde a jovem milionária parecia sentir-se à vontade e se esforçava por tornar-se útil a arrumar a bagagem, sem parar de falar e de abraçar ora Franco, ora a ele, e de achar tudo fantástico.
- Mas tu estás mesmo apaixonado por esta rapariga? - perguntou ao amigo, em voz baixa.
- Estou apaixonado pelo dinheiro dela, como é óbvio. E espera até conheceres a prima. Essa é ainda mais maluca mas, se a agarrares, estás aviado para toda a vida - declarou.
Gregorio pensou em Nostalgia. Não era uma beleza deslumbrante, mas era graciosa, inteligente e imprevisível e, sobretudo, ele gostava dela. Não sabia realmente se, um dia, acabaria por se casar com ela, mas tinha a certeza de que o dinheiro de don Salvatore nunca iria influenciar aquela decisão.
Gregorio tinha-se afeiçoado a Franco, mas havia alguns aspetos do seu carácter que o incomodavam. E, naquele momento, estava muito irritado com ele.
Fechou-se no quarto, olhou em volta e constatou como era esquálido e nada acolhedor. Como pudera ele preferi-lo ao alojamento confortável na propriedade dos Matranga? No entanto, dentro daquelas quatro paredes vivera instantes tão longos como uma vida inteira, abraçando uma mulher fantástica que tinha amado tanto mais quanto sabia que a ia perder. O tempo que passara em Itália não bastara para a apagar dos seus pensamentos, mas o
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sofrimento que sentira em relação a ela tinha-se diluído num doce quebranto.
- Florencia - sussurrou, e parecia-lhe sentir ainda o seu perfume e o calor do seu corpo.
Quando era criança, um dia, depois de um temporal, tinha começado a correr em direção ao horizonte.
- Aonde vais? - perguntou-lhe a mãe.
- Quero abraçar o arco-íris - respondeu ele. Aquele arco-íris, tão silencioso, tão majestoso e imenso, estava estreitamente relacionado com a felicidade.
- O arco-íris é inatingível - disse-lhe Isola.
Florencia era o seu arco-íris. Por muito que corresse, nunca mais poderia abraçá-la. No entanto, tinha acontecido uma vez, e tinha de se contentar com isso.
- Eh, Gregorio, despacha-te. Queremos sair - exclamou Franco, atrás da porta.
Gregorio abriu e disse: - Desculpem-me, mas estou cansado. Acho que vou dormir.
Tinha o olhar carregado dos seus piores momentos. Franco conhecia-o o suficiente para saber que era melhor deixá-lo em paz.
No dia seguinte, telefonou a Tony Rapello.
- Estou cá. Regressei - anunciou-lhe.
- Vem já ter comigo à rua 42. Don Salvatore está à tua espera disse Tony.
Pareceu-lhe ter recuado alguns anos. O velho Matranga fez a pantomina do costume, com a ponta do charuto nos lábios, e ofereceu-lhe o seu preciosíssimo café napolitano em sinal de boas-vindas. Depois foi até ao corredor e gritou: - Salvatore! O rapaz voltou.
Sal Matranga interrompeu a partida de bilhar para ir ao encontro dele, ostentando o seu sorriso de dezoito quilates. Abraçou-o, dando-lhe umas vigorosas pancadas nos ombros, e depois disse:
- Estás com bom aspeto. Vai lá acima ter com o Tony, que precisa de falar contigo, e esta noite regressamos juntos a Brooklyn.
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- Também o acho muito bem, don Salvatore - respondeu Gregorio.
- Como estás de dinheiro? - perguntou-lhe, com a preocupação de um pai.
- Vou-me arranjando - respondeu ele, apesar de o seu capital ser de apenas dez dólares.
- Pede ao Tony para te dar alguma coisa - disse o boss, com um sorriso, porque já tinha percebido a situação.
Uma semana depois, Gregorio voltou ao velho apartamento para organizar a sua bagagem.
- Bons olhos te vejam - disse-lhe Franco.
- Desta vez vou mesmo para Filadélfia - comunicou Gregorio. Depois reparou na expressão lúgubre do amigo. - Não estás bem?
- perguntou.
- Tinha a fortuna na mão e desapareceu. Os Plummers deixaram um vazio à minha volta.
- Explica-te - disse Gregorio, apesar de já ter intuído o fim da história.
- A Priscilla veio aqui, dois dias depois de tu teres chegado e, tonta como é, disse-me: "Podemos coroar o nosso sonho de amor. Falei com o meu pai e ele deixou-me livre para casar contigo. Não me dá nem um dólar, mas o que é que isso importa? Estás cá tu para tratares de mim. Também lhe deixei o Pontiac. Não quero absolutamente nada dos meus pais." Mais tonta do que isto não há - explicou.
- E tu mandaste-a dar uma volta - concluiu Gregorio.
- Nem te conto as cenas que me fez! Pois bem, a caça recomeça! Gregorio riu com gosto.
- Tu não desistes mesmo! Olha que se estás a pensar enriquecer casando com uma mulher abastada, vais sempre dar tiros na água. Procura outro caminho.
- Tu achas?
- Tenho a certeza.
- Parece-me que tens razão. E se eu fosse contigo para Filadélfia?
- Nem penses nisso. Acho que vou trabalhar no duro, lá em baixo.
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Tony Rapello informara-o sobre a situação. O segundo Piccolo Club não conseguia arrancar, e don Salvatore estava a pensar fechá-lo porque se revelava um fracasso: os prejuízos eram muito superiores aos lucros. com Gregorio, jogava a última carta.
Gregorio partiu e regressou ao fim de um mês para informar don Salvatore de que era preciso mudar todo o pessoal, incluindo o gerente que lhe tinha sido recomendado.
- Roubam a torto e a direito - concluiu.
Salvatore Matranga deu-lhe carta branca, mas Gregorio pôs uma condição.
- Don Salvatore, eu também quero entrar no negócio: cinquenta, cinquenta, ao valor atual.
- Queres fazer uma sociedade comigo?
- Só se achar justo.
Matranga achou justo. E disse: - Assim mantenho-te seguro, porque tenho em mente um ótimo projeto para ti.
- Eu já tenho um projeto. Mr Howard Patterson ofereceu-me
um emprego.
- Patterson, o banqueiro? Esse Patterson? - perguntou o boss, incrédulo.
Gregorio anuiu. O homem dos dentes de ouro abanou a cabeça, desconsolado.
- Eu já devia estar à espera de que, mais dia menos dia, batesses as asas. Estou orgulhoso de ti, meu filho.
- Devo-lhe tudo a si, don Salvatore. E, de qualquer maneira, antes disso tenho de conseguir relançar o estabelecimento de Filadélfia. Dou-lhe a minha palavra - garantiu Gregorio.
Conseguiu. Regressou a Nova Iorque. O banqueiro contratou-o, garantindo-lhe um salário de ouro. Em 1942, a pátria chamou-o para combater. Em Itália a guerra manifestava-se com violência, e Gregorio cumpriu o seu papel. Entretanto, os americanos e os ingleses decidiram intervir para pôr fim ao banho de sangue causado pelos nazis.
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Em 1943 estava a bordo do navio Saturnia, que partira de Veneza em direção a Brindisi, onde o rei de Itália se tinha refugiado depois da fuga de Roma e onde o navio e a sua tripulação se entregaram aos Aliados.
No Castello Svevo de Brindisi, Gregorio reencontrou Franco Fantuzzi, que estava nas fileiras dos americanos e usava uma farda de sargento.
Naquele período escreveu a Nostalgia, que tinha regressado aos Estados Unidos na véspera da entrada da Itália na guerra, ao lado de Hitler, e disse-lhe: - Quando estiver tudo terminado, caso-me contigo.
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MILÃO
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Era uma manhã gélida de fins de dezembro. Gregorio chegou à estação central de Milão e desceu da carruagem-cama em que tinha partido de Roma na noite anterior. Pôs ao ombro o saco de viagem, dirigiu-se à saída e olhou em volta.
No ar húmido pairava a poeira das locomotivas a carvão. Não havia a multidão de passageiros apressados que animavam as estações americanas, mas apenas algumas pessoas magras e pálidas que desciam lentamente as escadas de pedra com malas pesadas de cartão amarradas com tiras e cordas. As luzes débeis, a respiração que se condensava em pequenas nuvens de vapor, os rostos pálidos e ensonados dos homens, os casacos de lã amarrotados e deformados, os patéticos chapelinhos das senhoras, tudo denunciava a miséria daqueles anos.
Ele levantou a gola do seu blusão americano forrado de pele, enterrou as mãos nos bolsos e chegou à praceta onde viu uma fila de táxis pretos parados. Esteve quase a meter-se num deles para ir até à via Manzoni, mas depois reconsiderou e dirigiu-se a pé ao centro da cidade.
Nunca tinha estado em Milão e decidiu percorrer a cidade durante algum tempo, até para se aperceber de como era aquela ativa capital do Norte após três anos do fim do conflito mundial. O que viu não foi nada animador. Edifícios esventrados pelas bombas,
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libertados apenas em parte dos escombros, escorados, rodeados de tapumes, estavam à espera de ser demolidos e reconstruídos. Raras lojas com poucos clientes, ruas com buracos profundos remendados o melhor possível, polícias nos cruzamentos, cheios de frio, a orientar o trânsito de automóveis desconchavados. Uma mole humana apressada que se dirigia às paragens dos elétricos para ir para o escritório ou para a fábrica. Aqui e ali, escavadoras e andaimes denunciavam que os trabalhos de reconstrução avançavam entre mil e uma dificuldades.
A grande Milão que o seu amigo Franco lhe descrevera pareceu-lhe uma cidade esquálida e triste.
Tinha no bolso o endereço de Franco e perguntou a um guarda qual a direção a seguir. O homem sugeriu-lhe que apanhasse o elétrico.
- Chega à via Manzoni em poucos minutos, e o revisor indica-lhe a paragem na esquina com a via Bigli - disse-lhe.
Já dentro do elétrico, que avançava entre sacões e toques de campainha, Gregorio espantou-se ao ler nos rostos dos passageiros uma luz quase alegre e vagamente espantada, que Franco Fantuzzi lhe explicara assim: "Os italianos ainda não conseguem acreditar que se libertaram do jugo do fascismo e da monarquia. A Itália é uma república, para todos os efeitos, com uma constituição à prova de bomba e um presidente, Luigi Einaudi, que garante o seu respeito."
Quando saiu, na via Manzoni, encontrou logo o prédio onde vivia o amigo e admirou os edifícios oitocentistas de ar senhorial e discreto que sobreviviam gloriosamente, de olhos postos no futuro.
Um porteiro cortês acompanhou-o até ao terceiro andar e anunciou-o a Franco, que estava ainda em pijama, a tomar o pequeno-almoço.
- Entra, põe-te à vontade e toma o pequeno-almoço comigo
- disse-lhe.
Uma empregada silenciosa tomou-lhe conta do saco e do blusão e Gregorio pôde observar um apartamento espaçoso mas
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escassamente mobilado, cheio de caixotes que esperavam para serem abertos.
- Ontem à noite houve uma sessão muito animada no conselho municipal. Voltei para casa muito tarde, e agora ainda tenho de esclarecer umas ideias - contou-lhe Franco, enquanto Gregorio comia uma fatia de pão torrado barrada com mel e manteiga.
- Porque não trouxeste a Nostalgia contigo? - perguntou Franco.
- Porque ela não quis vir. Acho que não vê este negócio com bons olhos, partindo do princípio de que o negócio se vai realizar explicou Gregorio.
- Se não agarras esta oportunidade, és um idiota. Garanto-te que há muita gente a querer apanhar o hotel. De qualquer modo, vais ver e depois decides. Eu não te quero influenciar de maneira nenhuma, mas tenho curiosidade em visitá-lo, e por isso vou contigo. Daqui a pouco deve vir ter connosco o mediador dos Candiani para to mostrar - anunciou. - Se te chegares a esta janela, consegues vê-lo. Ali em frente temos o Grand Hotel et de Milan; mais à esquerda, na direção da piazza delia Scala, fica o Continental.
Gregorio continuou sentado à mesa.
- Quero vê-lo da rua, da mesma maneira que o vê qualquer pessoa que passe por ali. E para já gostava de tomar um duche, se puder - disse ele.
Por baixo do jato de água quente, Gregorio esqueceu o cansaço da viagem e os dissabores com a jovem esposa, que tinha desencadeado contra ele uma luta feita de alusões e de ameaças, a propósito da decisão que Gregorio tomara de querer estabelecer-se em Itália.
O mediador apresentou-se pouco depois, e dirigiram-se os três ao prestigiado hotel, que fechara as suas portas depois de os alemães o terem abandonado e de os americanos que se encontravam na cidade o terem tornado definitivamente inabitável.
Franco, que se tinha dedicado à política logo a seguir à libertação, depois de ter percorrido a Itália com o exército americano,
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começara imediatamente a encaixar-se entre a administração pública e os interesses privados. Fora eleito vereador para as Obras Públicas e deitara o olho às melhores oportunidades. Entre estas descobrira o negócio daquele grande hotel e referira-o a Gregorio, que se dirigiu rapidamente a Itália com a mulher.
Agora, com as linhas aéreas Pan Am, atravessar o Atlântico era um passeio. Gregorio chegou a Roma com Nostalgia e instalou-se no Excelsior para se encontrar com alguns homens ricos que gravitavam em volta do mundo da restauração e do turismo, porque sentia que tinha chegado o momento de se estabelecer no seu país para iniciar uma atividade apenas sua. Enquanto visitava aquela espécie de monumento, que entre os séculos dezanove e vinte albergara os personagens mais ilustres da arte, da política e da economia, o mediador da família Candiani, fundadora e proprietária do hotel havia três gerações, contou a Gregorio aquilo que ele já sabia por Franco.
Os últimos representantes daquela ilustre dinastia eram dois irmãos e um primo, todos de idade avançada. Não tinham herdeiros, e desejavam concluir em paz os seus dias com uma boa quantia em dinheiro. Ao comprador pediam a garantia de que o imóvel não seria demolido, mas apenas restaurado, e que não teria outro destino que não fosse a hotelaria ao mais alto nível. Tinham já tido contactos com dois compradores. Gregorio era o terceiro da lista. Iam examinar a sua proposta e, finalmente, decidir a quem o entregar. As grandes portas de madeira maciça mantinham ainda vestígios de uma preciosa pintura verde pântano, e nos dois batentes sobressaíam umas cabeças de leão em bronze dourado, com pesados anéis enfiados nas fauces. Milagrosamente, ninguém as tinha arrancado.
Subiram uma escadaria e encontraram-se num hall que em tempos recebera luz através de uma clarabóia em cúpula. Agora os vidros estavam partidos e lá de cima tinha entrado neve, chuva e pó. Os balcões da portaria e da receção estavam praticamente destruídos. Para lá de uma divisória da qual sobrevivia uma estrutura em madeira, sem nenhum vidro, abria-se um espaço majestoso,
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dominado por uma segunda clarabóia, imponente, quase intacta,
mas de tal maneira suja que não permitia a passagem da luz. O chão de mármore de várias cores tinha sido parcialmente arrancado. As paredes, recobertas com um papel sedoso, apresentavam ainda marcas de quadros e espelhos que já lá não estavam.
- Como é evidente, os proprietários conservam ainda os desenhos e as fotografias detalhadas de como era o edifício antes da ocupação nazi - disse o acompanhante. Trazia uma lanterna e ia iluminando o percurso pelo meio do entulho de traves soltas, grandes cache-pots partidos e restos de móveis, certamente valiosos, destruídos a golpes de machado. Avançaram com cautela ao longo de uma sequência de salões e salas que agora apenas existiam na imaginação de Gregorio e de quem tinha frequentado aquele espaço antes do desastre. Subiram e desceram escadas, abriram janelas, visitaram quartos que se tinham transformado em ninhos de insetos. Aqui e ali, por mero acaso, sobreviviam intactas algumas peças de decoração valiosas. Em alguns quartos, as paredes apresentavam as marcas de balas disparadas sabe-se lá por quem e porquê.
- Acho que já vi que chegasse - disse Gregorio.
- Não é uma coisa muito bonita de se ver, pois não? - perguntou o intermediário.
- Horrível - concordou Franco.
- Imaginem que os senhores Candiani sempre se recusaram a ver esta ruína. Só sabem o que lhes contaram - explicou o homem.
- Porque esperaram até agora para o pôr à venda? - perguntou Gregorio.
- Por causa de uns parentes afastados, que reclamavam alguns direitos. Obviamente, chegaram a um acordo, até porque se trata de uns sobrinhos netos que os dois irmãos e o primo detestam.
Enquanto iam a sair, Gregorio murmurou ao amigo: - Eu quero este hotel. Arranja-te, porque vai ter de ser meu. vou chamar-lhe Delta Continental.
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Assim como em jovem fora muito hábil a apanhar viúvas ricas e americanas divorciadas, agora, como político, Franco Fantuzzi conseguia contornar os obstáculos e obter consensos mesmo para os projetos de carácter pessoal. Este dom inato estava a fazer dele uma personalidade emergente.
Não foi por acaso que Gregorio decidiu dirigir-se a ele e pedir ajuda para comprar o hotel de Milão. Naquele mesmo dia, Franco telefonou aos irmãos Candiani, os quais, porém, pertenciam à velha burguesia de antes da guerra e não se entusiasmavam demasiado perante um telefonema de um político. Por isso, mandaram-lhe dizer pelo criado que se encontrariam com a pessoa interessada na compra em casa deles, para um café depois do almoço.
Os irmãos Candiani e o primo, Candiani também, moravam num apartamento, num primeiro andar na via Santo Spirito. O irmão mais velho nunca se tinha casado e tivera como amante uma célebre cantora lírica. O mais novo era viúvo e não tinha filhos. O primo, de oitenta anos, lutara durante toda a vida para esconder a sua homossexualidade e agora, com a sua obesidade, tinha o aspeto de uma matrona pachorrenta, apesar de vestir roupa masculina. O mordomo acompanhou Gregorio à sala de estar, onde os três anciãos, comodamente instalados em sofás acolhedores, observaram-no em silêncio, como se quisessem radiografá-lo. Gregorio não se deixou intimidar.
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O primo Candiani, enquanto afagava o pelo fulvo de um cachorrinho que tinha sobre os joelhos, sussurrou: - Que rapaz bonito. E estendeu-lhe molemente a mão para que Gregorio a apertasse.
Também os outros dois lhe estenderam a mão, e o irmão solteiro convidou-o a sentar-se, enquanto uma empregada de crista engomada entrava na sala a empurrar um carrinho para servir o café. Gregorio deixou-se examinar impiedosamente, sem se perturbar. Gostou daqueles três idosos de ar aristocrático, que pareciam saídos de um velho conto inglês. Aceitou então o café com um sorriso, e manifestou a sua satisfação.
- É uma mistura excelente - observou, após o primeiro gole.
- É um prazer encontrar um jovem que sabe apreciar um bom café - disse o viúvo.
- Um café de má qualidade pode arruinar uma boa refeição. Eu fui maítre de um restaurante em Filadélfia - explicou com simplicidade.
- Interessante - comentou o irmão solteiro.
- Agora gostava de deixar os Estados Unidos e tornar-me num bom profissional de hotelaria - explicou, para ir direto ao assunto.
Mas os três anciãos pareciam não ter pressa nenhuma.
- Então por isso é que é amigo daquele político socialista... como se chama...? com um passado de emigrante - observou o primo.
- O vereador Fantuzzi sabia do meu desejo de regressar a Itália e adquirir um hotel de prestígio. Na América diz-se que os requisitos fundamentais para um hotel são três: a localização, a localização e a localização. O vosso Continental possui os três - continuou ele, para os trazer de volta ao assunto. - Quando o Fantuzzi soube que o imóvel estava à venda, telegrafou-me, e aqui estou eu. Sei que há outros potenciais clientes. Não sei que garantias oferecem; a minha vem diretamente do Gedford & Patterson Bank de Wall Street - atirou.
- Olha, olha... - sussurrou o primo, que continuava a devorá-lo com os olhos, enquanto acariciava o cachorro.
- Obviamente, tem de ser tudo verificado... percebe... - interveio o irmão viúvo, e acrescentou: - Dá-se o caso de Mr. Howard
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Patterson ser um grande amigo nosso. Podemos gabar-nos de o ter tido entre os nossos hóspedes... antes de toda esta desgraça.
- Eu sei, ele falou-me nisso, quando lhe disse que ia apanhar um avião para...
- Veio de avião? - perguntou o primo, entusiasmado.
- Imagine que nós nunca entrámos num avião. Temos horror, os três, dessas engenhocas modernas que desafiam a lei da gravidade - comentou o viúvo.
Gregorio teve a impressão de que os três velhotes o tinham convocado só para animar uma tarde aborrecida, e não escondeu um gesto de impaciência que eles captaram imediatamente, de tal maneira que o mais velho disse: - Porque não falou logo do amigo Patterson? Para quê meter pelo meio aquele político... como se chama...? sabe, nós não vemos com bons olhos estes políticos improvisados... gente de última hora, que tenta tirar partido das contingências...
- Eu não sei nada de política e, sinceramente, prefiro ficar de fora. Mas posso afirmar que o Franco Fantuzzi e eu vivemos juntos aquele período difícil em que a América recuperou da Depressão, embora neste momento ostente uma opulência que a enche de glória. Se está a fazer um nome graças à política, eu apoio-o, se chegar a decidir estabelecer-me aqui.
- A lealdade não deve ser subvalorizada - decretou o ancião, ao mesmo tempo que se erguia com alguma dificuldade da sua poltrona. Gregorio imitou-o. O encontro estava terminado. Despediram-se com sorrisos bem-intencionados e apertos de mão vigorosos que, no entanto, não o deixaram otimista, a partir do momento em que não chegara a ser pronunciada a palavra dinheiro.
Miseráveis!, disse para si mesmo, e dirigiu-se rapidamente a casa de Franco.
Evitou cuidadosamente revelar-lhe a opinião depreciativa que tinham sobre ele. Mas afirmou: - São três miseráveis. Já sabem a quem o vão vender, e não mo vão dar a mim. Tenho a certeza.
- Impulsivo e pouco razoável, como sempre - comentou Franco.
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- vou arrumar as minhas coisas e regressar a Roma - concluiu
Gregorio.
- Tu não conheces esta geração de velhos milaneses. Estes burgueses aristocratas andam com pés de chumbo e são de um snobismo exasperante. Generosos quando lhes apetece, mas agarrados ao dinheiro como moluscos à rocha e prontos para desconfiar do estrangeiro mesmo que, em vez de vir da América, venha de um outro bairro da cidade. Gabam-se de não ser racistas, mas até eu, que sou da Emilia, para eles sou "do Sul". Tu não os conheces... Eu sim.
- Imagino - disse Gregorio, irónico.
- Sujeitos como estes encontro-os eu na junta todos os dias. Tu não te vais embora. Ficas em Milão e esperas durante todo o tempo que for preciso. Vão dar sinais de vida mais cedo do que imaginas.
Gregorio passou aquela tarde a caminhar pelas ruas do centro. Aquela cidade, que ao princípio da manhã lhe parecera desoladamente estranha e atormentada, estava a entrar-lhe no coração. As lojas, pequenas, escassamente iluminadas, tão diferentes daquelas tão vistosas das cidades americanas, cativavam-no pelo seu fascínio discreto e pela sua elegância. Por muitas ruas que percorresse, os seus passos voltavam sempre a levá-lo diante do Hotel Continental, que parecia um velho gigante adormecido à espera que alguém o trouxesse de volta à vida. De cada vez que parava do outro lado da rua a olhar para as portadas fechadas, imaginava como devia ter sido quando a família Candiani o orientava com um carácter autoritário.
Aqueles três não me vão facilitar as coisas, pensou. Deviam ser pessoas teimosas e, pela primeira vez, considerou que, por trás daquele ar desconfiado, escondiam a dor de terem de se privar de um bem que tinha sido o orgulho da família e que um inimigo rude, vulgar e feroz, assim como uma guerra insensata, tinham profanado. Quando regressou a casa, já era noite e Franco não estava. Entrou no quarto e encontrou um envelope endereçado a Gregorio Caccialupi. Abriu-o. Continha um cartão dos irmãos
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Candiani: "Se mantém a sua intenção de compra, diga ao seu advogado para entrar em contacto com o nosso."
Gregorio agarrou no telefone e pediu uma chamada para o Hotel Excelsior, em Roma. Ao fim de alguns minutos falou com a mulher.
- Tenho saudades tuas - disse-lhe.
- Foi por isso que me acordaste? - perguntou ela.
- Para que mais havia de ser?
- Para me dizeres que fechaste o negócio da tua vida.
- Ainda não. Logo à noite vou ligar para Nova Iorque e pedir ao Tony Rapello para vir a Milão.
- Oh, que alegria - disse Nostalgia, com uma voz lúgubre.
Ele não captou o desapontamento dela e continuou: - Amanhã de manhã, apanha um avião e vem ter comigo. O Franco tem um apartamento enorme, e também há lugar para ti.
- E se eu não quiser ir?
- Eu peço o divórcio.
- Detesto-te - sibilou ela.
- Mas não podes viver sem mim! - respondeu ele, com alegria.
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Entre Gregorio Caccialupi e os Candiani criou-se uma corrente de simpatia. Aqueles três anciãos, um pouco arrogantes e
caprichosos, decidiram adotar o americano, como lhe chamavam
entre eles, porque tinham intuído as suas capacidades empresariais e o respeito pela tradição. O seu hotel tinha "beaucoup de tradition" como eles gostavam de repetir, e Gregorio ia conservá-la intacta.
O café a seguir ao almoço tornou-se quase num ritual diário.
Enquanto os advogados acertavam os contratos para a transferência da propriedade, eles, de plantas e desenhos na mão, discutiam sobre a remodelação e sobre as modernizações a introduzir de acordo com os novos critérios da hotelaria.
- Um pouco por causa dos bombardeamentos, e também com
receio de vandalismos, pusemos a salvo os móveis e as peças
melhores - revelou o primo, que agora já não se preocupava em
esconder o seu lado feminino.
- E, obviamente, tudo isso lhe vai ser entregue como parte da
venda - acrescentou o Candiani viúvo.
No início de fevereiro, com os primeiros raios de sol que alongavam timidamente os dias, o motorista levou-os à villa da família, a meio de uma encosta sobre o lago de Como. Numa espécie de armazém no limite da propriedade, cuidadosamente
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embalados e protegidos, estavam móveis preciosos, utensílios de cozinha, porcelanas de Herend e Richard Ginori, pratas e quadros valiosos da Lombardia do século XIX. com a ajuda de um criado foram abertas algumas caixas, e Gregorio pôde admirar objetos de fabrico requintado que já não se encontravam no mercado. Mais uma vez apreciou a correção daqueles velhos senhores de Milão, que poderiam ter leiloado toda aquela riqueza e que, pelo contrário, a consideravam parte integrante da venda.
Pela primeira vez, convidaram-no para almoçar. O criado e a mulher, que tomavam conta da villa, puseram a mesa na marquise aquecida que dava para o lago.
Os Candiani abandonaram-se a confidências, até então cuidadosamente escondidas, sobre os hóspedes famosos do seu hotel, contando-lhe episódios cómicos ou dramáticos, hábitos e manias, escândalos rapidamente abafados, gestos teatrais ou clamorosas faltas de educação, por vezes revelando os nomes dos protagonistas, outras vezes calando-os.
- Um grande hotel é sempre cenário de um drama ou de uma comédia - disse o Candiani solteiro. - Quando o hóspede não cria problemas, deixa de ser interessante - acrescentou.
- O dono de um grande hotel deve possuir três qualidades: dedicação, discrição e dignidade. Nós servimos os hóspedes, mas não somos servos deles. E isto aplica-se também ao pessoal. Cozinheiros, empregados e governantas são um pouco como o dono do cavalo: escovam-no para ele ficar bonito e se sentir bem, não para o servir - explicou o primo.
Quando, finalmente, o hotel passou de mão e, com uma cerimónia quase solene, Gregorio recebeu as chaves, os três homens disponibilizaram-se para lhe sugerir os melhores arquitetos e as empresas mais fiáveis para a remodelação.
Seguiram-se meses de trabalho extenuante, que Gregorio enfrentou com a energia dos seus vinte e oito anos e o entusiasmo do homem que realiza um sonho. Chegava ao local de madrugada e só saía de lá quando já toda a gente tinha ido embora. Controlava o trabalho dos operários e debatia com os arquitetos, aprendia de
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cor as leis sobre a construção civil, discutia com os funcionários da Câmara e com os do Património, que insistiam em impor-lhe limitações de todo o tipo, com os bombeiros, que pretendiam certas garantias, e com os diretores do Saneamento, que exigiam outras. Havia dias em que lhe parecia que toda aquela burocracia conspirava contra ele.
Quando tinha a sensação de estar atado e amordaçado, dirigia-se a Franco Fantuzzi.
- Todos os dias me tentam levantar algum entrave. Não posso fazer isto, não posso fazer aquilo, esta parte tem de ser demolida e reconstruída segundo as novas leis do ministério. Não há dia em que não me apareçam inspetores a espiar por todo o lado com uma lupa. Porque é que não me disseram logo que não querem que o Continental seja reaberto? - gritava ao telefone.
com a ajuda de Franco, que se mexia pela cidade como se Milão fosse um feudo seu, Gregorio tinha alugado um apartamento minúsculo na via Croce Rossa para ele e para a mulher.
Agora, enquanto desabafava, desesperado, Nostalgia fazia o contraponto.
- Porque são italianos, meu caro. Porque gostam de enrolar e inventam complicações. Porque o nosso futuro não é aqui, mas em Nova Iorque - resmungava em voz baixa, mas não demasiado, para que Franco a ouvisse.
- A verdade é outra. Estão todos muito interessados na abertura do hotel, mas fazem-te penar porque querem meter a unha disse o amigo.
- Explica-te, não percebo - disse Gregorio, impaciente.
- Vá lá, percebeste perfeitamente. Trabalhaste durante anos e anos com o Sal Matranga e certamente não és nenhum inocente. Sabes perfeitamente como funcionam estes mecanismos. Tu dás-me uma coisa a mim, e eu dou-te uma coisa a ti - declarou o vereador.
- Tenho de untar algumas mãos, é isso? - perguntou Gregorio.
- O que é que achas? Claro, estamos em Itália. Informa o teu amigo de que na América o método de que ele fala se chama corrupção, e que na América os corruptos acabam atrás das grades -
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comentou Nostalgia.
- Pois é, mas o teu pai nunca foi parar à cadeia - sibilou Gregorio, tapando o bocal e, logo a seguir, perguntou ao amigo: - Porque é que até agora ninguém me disse nada?
- Greg, acorda! Estas coisas não se dizem, fazem-se. Ponto final - respondeu Franco, impaciente. E desligou a chamada.
Gregorio já não aguentava mais e, voltando-se para a mulher, explodiu:
- Porque é que continuas a remar contra mim? O que queres de mim? O que foi que eu te fiz?
Quando Gregorio atingia o máximo da exasperação, Nostalgia acalmava e tornava-se dócil e evasiva.
- Tu és fantástico, meu querido, e tudo aquilo que eu quero de ti é que continues a ser como és: irresistível. Achas que não reparo nos olhos com que te observam todas as mulheres? Mas estou tranquila, porque sei que és só meu, que só me amas a mim...
- Não mudes de conversa, minha menina.
- Estou a falar a sério, Greg. A minha vida só começou a ter sentido quando surgiste no meu horizonte.
- Porque é que não consegues ser sincera, por uma vez? Tu não queres viver em Itália, eu quero. Este é o meu país, e é aqui que está o meu futuro. Seja qual for o expediente que inventes para me fazeres mudar de ideias, fica desde já sabendo que é inútil. Eu não volto para a América.
Então ela mudou de atitude.
- Pois é, chegaste lá esfomeado, apanhaste tudo o que pudeste e vieste-te embora - gritou.
As palavras de Nostalgia eram injustas e feriram Gregorio, que lhe dirigiu um olhar feroz. Ela ficou aterrada e olhou com um ar assustado para o marido, que acalmou imediatamente.
- Não passas de uma criança - sussurrou.
Enfiou o casaco e saiu. Jantou sozinho no Don Lisander, onde era esperado também com a mulher e onde os empregados lhe reservavam sempre o melhor, não tanto pelas gorjetas generosas, mas sobretudo pelo fascínio que o americano exercia sobre eles.
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Sabiam que tivera a mesma profissão que eles, que agora era o dono do Continental, e por isso consideravam-no um modelo de referência.
Deixou o restaurante, saiu para a rua e olhou em volta. Estava uma noite tépida de junho. Gostava daquela rua antiga e nobre de Milão, percorrida por alguns elétricos ruidosos, que permitia a visão de uma longa faixa de céu. Gostava dos edifícios com a patina escura do tempo, dos raros transeuntes que aos pares, em grupo ou sozinhos a percorriam, dos homens com os seus passos pesados, das mulheres a menear as ancas em cima dos saltos, das saias largas e compridas que ondeavam entre rumores de sedas e tafetás, difundindo em volta perfumes que cheiravam a íris, a jasmim, a rosa e a narciso. Sentia que pertencia muito mais àquele mundo do que à sua terra de origem ou à América, a que devia a sua atual e fantástica situação.
Acendeu um cigarro e avançou em direção ao Continental, que considerava uma criatura prestes a regressar à vida. Deixou passar um elétrico e atravessou a rua.
Não soube o que aconteceu daquele instante em diante, porque acordou sob a luz ofuscante de uma lâmpada, num gabinete médico da Urgência de um hospital.
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Estava um médico ao lado dele, a apontar-lhe uma luz a um olho, enquanto uma mulher de bata branca lhe media a tensão.
- O que é que eu estou aqui a fazer? - perguntou. Doía-lhe um dos lados do corpo e a cabeça martelava-lhe como se estivesse a ser atingida por repetidos golpes de malho.
- O senhor foi atropelado por um automóvel, e pode dar graças à sorte e à sua extraordinária musculatura por não ter ficado muito pior - disse o médico, enquanto a enfermeira constatava que a tensão estava perfeita.
Gregorio tentou levantar-se da maca mas voltou a cair e continuou estendido, sufocando um lamento, cheio de dores e de tonturas.
- Aonde é que queria ir? - perguntou o médico.
- Para casa, evidentemente.
- Lembra-se onde vive?
- Na via Croce Rossa, e agora recordo que ia a atravessar a via Manzoni e que senti uma pancada. Não sei mais nada.
- Duplamente afortunado, porque a senhora que o atropelou com um Topolino pediu ajuda a uma pessoa que ia a passar, meteu-o no carro e trouxe-o até aqui em poucos minutos - explicou. Depois fez um sinal de assentimento a uma enfermeira que lhe anunciava: - Trouxeram agora uma pessoa que apanhou um tiro. Está aqui a polícia e...
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- Eu devia mantê-lo em observação durante pelo menos doze horas - disse rapidamente o médico a Gregorio -, mas, uma vez que as radiografias não revelaram danos para além de uma contusão ligeira no crânio e na anca, vou deixá-lo ir embora daqui por duas horas - decidiu.
Alguém empurrou a maca para um quarto pequeno e acanhado e lhe colocou um saco com gelo na cabeça. Veio um homem em mangas de camisa pedir-lhe a confirmação dos dados que tinha retirado dos seus documentos.
- Aqui diz que o senhor tem nacionalidade italiana e americana. Num sítio chama-se Gregorio Caccialupi e no outro Gregory Cacchialupi. Quer dizer-me como se chama realmente? É por causa da participação ao seguro.
- Sou Gregorio Caccialupi... mas de que seguro é que está a falar?
- O da pessoa que o atropelou. Está ali fora, impaciente por ter notícias suas. Devemos avisar alguma pessoa de família?
- A minha mulher - disse. Depois reconsiderou: - É melhor não, ela ia ficar assustada. vou dar-lhe o número de casa de um amigo, Franco Fantuzzi.
O gelo e os analgésicos deram-lhe algum alívio, de tal maneira que lhe pareceu acordar de um longo sono quando uma mão lhe tocou no ombro e uma voz conhecida perguntou: - Olha lá, estavas bêbedo quando te deixaste atropelar?
- Não tens mais nada para me dizer? - replicou ele, enquanto tentava levantar-se novamente. Desta vez correu melhor, e conseguiu sentar-se na maca.
- Tens um rico papo numa têmpora, um arranhão no nariz e um pequeno corte na sobrancelha. Para além disso, estás com a barba um bocado grande e a cara um bocado deslavada - brincou Franco.
- Diz-me que meto nojo, que é para eu enfiar um saco na cabeça.
- Veste-te. Eu levo-te a casa.
- Discuti com a Nostalgia e prefiro ir para o teu apartamento.
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- Lá estamos nós outra vez. Mas porque foi que casaste com ela, se já sabias que é doida?
- Para com isso! Dói-me a cabeça - resmungou Gregorio, enquanto vestia as calças.
Um médico entregou-lhe o papel da autorização de saída da Urgência, a prescrição de um medicamento e a recomendação para se apresentar imediatamente no hospital aos primeiros sintomas de náusea ou de vómito.
Percorreram o corredor e dirigiram-se à saída. Alguém se pôs ao lado deles a dizer: - Não imagina o meu alívio ao vê-lo caminhar assim. - Franco e Gregorio encontraram pela frente uma rapariga pálida e ansiosa. Vestia um tailleur de seda azul e, na gola, uma rosa de tecido branco apresentava duas pequenas manchas de sangue. Tinha cabelo escuro, curto e liso, lábios grandes e cheios, um nariz petulante e uns fantásticos olhos amendoados.
- O meu nome é Gianna Salvini. Sou a responsável por aquilo que aconteceu - declarou.
- E ainda aqui está? - perguntou Gregorio, que começou outra vez a andar, amparado por Franco.
- Claro que ainda aqui estou. Queria vê-lo sair pelo seu próprio pé, apesar de a culpa ter sido completamente sua, sabe? Apareceu-me à frente de repente. Felizmente eu ia a trinta à hora e só tenho um Topolino muito velho.
Franco tinha estacionado o carro nos Bastioni, mesmo em frente à entrada do hospital, e Gregorio sentou-se lá dentro, dizendo-lhe: - Olhe, menina, preciso urgentemente de uma cama, e por isso despeço-me - rematou.
- Ouviu, menina? - reforçou Franco, e ligou o motor.
- Mas eu nem fui trabalhar para ficar aqui, de coração apertado, à espera de notícias dos médicos - gritou, enquanto o Alfa de Franco se punha em movimento.
- Não me leves para tua casa, quero descansar no meu hotel.
- Mas se aquilo é só um estaleiro! - objetou Franco.
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- Era para lá que eu estava a ir, antes de aquela palerma... Preciso de estar só. Aliás, convido-te para uma bebida - propôs Gregorio.
Estava um guarda a descansar num catre, a um canto do ia, que ficou espantado por ver o patrão àquela hora.
Gregorio meteu-lhe dinheiro na mão e pediu-lhe para ir a qualquer lado arranjar uma garrafa de whisky e gelo. Depois virou-se para Franco: - Segue-me.
Avançaram ao longo de corredores iluminados com lâmpadas que pendiam tristemente dos tetos estucados e mostravam os espaços nus que recomeçavam a ganhar vida. No ar sentiam-se os aromas da madeira nova, dos vernizes e das sedas que revestiam as paredes.
- Caramba, em poucos meses fez-se um trabalho imenso aqui dentro - comentou Franco, admirado.
- Ando numa azáfama, às voltas com as obras, de manhã à noite. Quero inaugurar o hotel em setembro. Estou demasiado cansado para to mostrar todo, mas podes dar uma volta de reconhecimento. Está a ficar uma maravilha. Mandei fazer lençóis e toalhas de banho e de mesa com o monograma do hotel. Depois será a vez das porcelanas. Anda atrás de mim - disse Gregorio, ao mesmo tempo que começava a subir um lanço de escadas. No mezanino abriu uma porta que tinha um letreiro em latão dourado: DIREÇÃO.
Entraram numa espécie de hall revestido a madeira clara, e logo a seguir havia uma sala com sofás de pele branca e uma mesa baixa de mármore com incrustações de várias cores, paredes forradas de livros e uma passagem que dava acesso a um escritório austero.
- Ali há uma casa de banho e um pequeno gabinete - explicou Gregorio, deixando-se cair em cima de um sofá.
- Estou a ver que o setor de comando está praticamente acabado - constatou Franco.
O guarda regressou com uma garrafa de whisky e um balde cheio de gelo.
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- No armário dos medicamentos há um saco de gelo. Enche-a e dá-ma, por favor - pediu Gregorio.
- É para já, Mister Gregory - respondeu o homem.
Pouco depois, os dois amigos bebericavam um whisky em silêncio. Gregorio estava estendido com o saco de gelo na cabeça e um cobertor leve por cima.
- Dói-te muito? - perguntou Franco, a certa altura.
- O normal - replicou.
- E o resto?
- Sentir-me-ia melhor se a Nostalgia estivesse contente, mas não está.
- Ao fim e ao cabo, o que é que ela quer?
- Os teus funcionários querem luvas, ela quer regressar aos Estados Unidos. Não vou fazer a vontade nem a ela, nem a eles. A ela digo eu, a eles dirás tu. Se começarmos assim, onde é que vai parar o nosso país, que neste momento está ainda a tentar levantar-se da catástrofe de uma guerra?
O amigo não fez comentários.
- A gente vê-se - disse simplesmente, enquanto pousava o copo vazio em cima da mesa de mármore. E deixou-o sozinho.
Gregorio, que o conhecia bem, sabia que Franco Fantuzzi não era alheio àquelas manobras. Mas era um amigo, tinha-o levado a dar o passo decisivo para o seu futuro, pedir-lhe-ia favores de outro género, mas por agora não ia haver mais fiscalizações.
Estava cansado, a cabeça continuava a martelar-lhe e não conseguia conciliar o sono. Em vez disso, vinha-lhe à ideia a consciência do risco que correra algumas horas antes, quando tinha sido atropelado por um Topolino. Aquele carro, um pouco ridículo mas encantador, lembrou-lhe Brooklyn, a propriedade dos Matranga, uma Nostalgia irrequieta de quinze anos, as voltas para a ir buscar a um sítio qualquer e levá-la para casa. Depois, ligados ao Topolino, surgiram-lhe um rosto encantador e o nome de Gianna Salvini. Percebeu que tinha sido muito indelicado com ela, que ficara várias horas na Urgência, à espera de o ver sair são e salvo.
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Tinha de lhe pedir desculpa, mas não sabia como a podia encontrar. Talvez através da lista telefónica, pensou. Levantou-se para a ir buscar a uma gaveta da secretária. A porta da casa de banho estava aberta e ele quis olhar-se ao espelho.
- Que desastre - resmungou. Um hematoma vistoso estendia-se da testa em direção à têmpora e ao contorno externo do olho. A anca provocava-lhe pontadas dolorosas. Achou que, primeiro, era melhor tomar um banho.
Enquanto se despia, encontrou no bolso das calças um papel dobrado e amarrotado. Era a cópia da participação feita pelo polícia de turno na entrada da Urgência, quando lá tinha chegado. Leu-a. Explicava o acidente e dizia de que forma a condutora do pequeno veículo utilitário tinha encontrado pela frente, de repente, um homem que surgira atrás do elétrico. com uma prontidão de reflexos surpreendente, ela conseguiu reduzir a velocidade e mudar a trajetória, evitando assim o choque frontal; por isso o atingiu apenas de lado, fazendo depois com que ele rolasse no pavimento.
Estavam registados os seus dados e os de Gianna Salvini, jornalista de profissão, de vinte e três anos, residente na via Venini. Estava também registado o contacto telefónico de casa e do jornal. Era óbvio que alguém, talvez o próprio Franco, lhe tinha metido aquilo no bolso. Mas o choque apagara esse pormenor. Sentou-se então à secretária e marcou o número da jornalista.
Uma voz ensonada atendeu ao fim de alguns toques.
- Quem é? O que foi que aconteceu? - perguntou Gianna.
- Sou o homem que atropelou, e queria pedir-lhe desculpa por ter sido tão desagradável consigo - disse, de um só fôlego.
- Vá para o diabo! - respondeu a rapariga, furiosa, e desligou a chamada.
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Na manhã seguinte, Gregorio sentia-se muito melhor. Voltou a olhar-se ao espelho e decidiu que não valia a pena aparecer naquele estado aos operários, que o iam encher de perguntas. Cumprimentou o guarda-noturno, que se-preparava para ir embora, e saiu do hotel.
Diante da florista da via Manzoni, dois empregados do estabelecimento descarregavam de um camião grandes caixas cheias de flores. Conheciam-no, porque Gregorio tinha entrado em contacto com eles, estabelecendo um acordo para os fornecimentos ao hotel, quando abrisse as portas.
Viram-no, cumprimentaram-no e um dos dois perguntou:
- O que foi que lhe aconteceu, Mister Gregory?
- Nada de grave, como vê - respondeu ele. - Queria mandar um ramo de flores a uma senhora. Não sei quais. Decidam vocês, desde que sejam bonitas.
Entrou na loja, tirou do balcão um pequeno cartão e escreveu: "Espero que me possa perdoar." Acrescentou a assinatura e a data. No envelope indicou o endereço de Gianna Salvini, e preparava-se para o entregar ao empregado quando viu, numa jarra, umas peónias brancas levemente raiadas de cor-de-rosa.
- Mande estas, gosto muito delas - decidiu, apontando para a jarra.
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- Quantas? - perguntou o homem.
Recordou a idade da rapariga e decidiu: - Vinte e três. Quando chegou a casa, encontrou a mulher da limpeza a arrumar a cozinha. Assim que o viu, soltou um grito.
- Virgem Santíssima, o que aconteceu, Mister Gregory?
- Tive um pequeno acidente - replicou ele, que não estava com vontade de se alongar em explicações e apenas lhe perguntou:
- A senhora?
- Ainda está a dormir. Estava mesmo a pensar se não seriam horas de a acordar.
- Prepare o café. Eu acordo-a. - E dirigiu-se ao quarto da mulher.
Nostalgia dormia num emaranhado de lençóis de seda que ela quisera porque os considerava o máximo do requinte. Na penumbra do quarto, viu o seu rosto gracioso e sussurrou-lhe: - Será que alguma vez vais conseguir ser feliz, minha menina?
Inclinou-se para lhe dar um beijo e deixou escapar um queixume, porque a cabeça recomeçou a martelar impiedosamente.
Nostalgia arregalou os olhos, acendeu a luz da mesa de cabeceira e olhou para ele, atarantada.
- Oh, meu Deus! Greg! Como é que ficaste nesse estado?
Ele sentou-se ao lado dela, mas ela levantou-se de um salto, segurou-lhe o rosto entre as mãos e começou a beijá-lo, sem parar de falar.
- Nem imaginas como eu fiquei em cuidado por tua causa. Estava preocupada, percebes? E olha como tu me apareces. Tens de me dizer tudo, tudo, tudo. Foste agredido, não foste? Porquê? Ah, estes italianos! vou abrir a janela porque quero ver bem como ficaste. Ora... mas olha para este papo negro! Puseste uma pomada para contusões? Não, como é evidente. Eu trouxe da América um bálsamo milagroso. vou pôr-to agora. Tu, entretanto, vais deitar-te. E o teu fato? Olha o estado em que ficou! O casaco até está rasgado de lado. Então, primeiro tiro-te o casaco e depois ponho-te o bálsamo. Entretanto, tens de me contar tudo. Apetece-te tomar o pequeno-almoço? Rosinaaa! O café.
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- Não grites, por favor - suplicou ele, enquanto despia o casaco e as calças.
- Desculpa, desculpa, querido. Mas porque não me dizes, porque não contas?
- Talvez se te decidires a ficar calada - suspirou Gregorio, em parte divertido, em parte irritado.
- Tens razão! Sabes que quando estou nervosa não consigo parar de falar. Não há hipótese. Rosinaaa!
Gregorio tapou as orelhas e lamentou não ter ficado no hotel. A empregada trouxe o tabuleiro com o pequeno-almoço para os dois.
- Agora não. Não vês que estou a tratar do senhor? - censurou-a.
- Eu vejo e ouço. Ouvi-a gritar duas vezes a pedir o café - resmungou a mulher.
- Olha, estás a ver como são estas empregadas italianas? Não têm um mínimo de nível - comentou Nostalgia.
- Olhe que, mesmo a falar inglês, eu percebi muito bem que me está a chamar estúpida - sibilou a mulher. Pousou o tabuleiro em cima da mesa aos pés da cama e saiu.
Efetivamente, aquela pomada que cheirava a resina e menta proporcionou-lhe um alívio imediato e Gregorio, entre um gole de café e uma dentada de pão torrado, contou-lhe o acidente.
- Chamaste o Franco e não a tua mulher - queixou-se Nostalgia.
- Não queria que ficasses assustada. Depois dormi no único sítio habitável do hotel, o meu escritório.
- Não achas que devíamos chamar um médico?
- Eu só preciso de sono e de silêncio - respondeu ele.
- E vais ter sono e silêncio - prometeu a mulher. Ajudou-o a estender-se na cama, arranjou-lhe as almofadas atrás da cabeça, voltou a fechar as portadas das janelas, apagou a luz e saiu do quarto.
Quando Gregorio acordou, já a tarde ia a meio, sentiu-se renascido.
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O hematoma persistia, mas o inchaço estava a diminuir. A dor de cabeça era suportável. Tomou outro banho, vestiu-se e, na sala, encontrou Nostalgia a pôr a mesa para o jantar. Tinha o ar de uma senhorinha diligente e afetuosa. Gregorio ficou comovido. Nostalgia era muito graciosa quando brincava a desempenhar o papel de esposa.
- Acho-te melhor do que de manhã - disse-lhe, enquanto o abraçava.
- Tu também estás bem, agora que deixaste de estar agitada observou ele, pousando-lhe um beijo nos lábios.
- Hoje, enquanto estavas a dormir, fui às compras, e depois estive ali na cozinha a inventar; senti-me muito importante - confessou-lhe.
- Pelo contrário, quando eu estou fora e tu não sabes o que fazer, sentes-te muito frustrada - replicou ele.
- Ora, disseste muito bem.
- Então, para tu te sentires importante, eu devia deixar que um carro me atropelasse todos os dias, porque assim tu podias vestir a farda da Cruz Vermelha.
- Eu não disse isso, Greg.
- Mas quase.
- O facto é que, se estivéssemos em Nova Iorque, eu sabia como empregar o meu tempo. Mas aqui... neste burgo a que chamam cidade, sinto-me paralisada - lamentou-se, ao mesmo tempo que lhe estendia um copo de vinho. E prosseguiu: - Lá é que estão os meus amigos, os cavalos, os espetáculos...
- Aqui também tens amigos, cavalos, espetáculos...
- Mas não é a mesma coisa. Eu aqui aborreço-me. Gregorio conhecia as virtudes e os defeitos de Nostalgia, que
era capaz de grandes entusiasmos e de egoísmos mesquinhos, mas sabia também como era obstinada e caprichosa. No fim de contas, fora quase sempre ela quem ganhara as batalhas em casa. Pensando bem, também tinha levado a melhor com ele, que acabara por aceitar casar-se com ela porque aquela infantilidade o divertia. Era tão sedenta de afeto que não suportava sequer que o marido
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trabalhasse. Como se aquela ocupação lhe retirasse uma parte do seu afeto. E era esse o verdadeiro motivo das suas discussões. Gregorio agarrou-a pela cintura e sentou-a no colo.
- Ouve, querida. Se eu deixasse tudo e regressássemos aos Estados Unidos, tu ficavas feliz?
- Cantava vitória.
- Até quando?
- Até ao dia em que tu inventasses outro trabalho - confessou, com uma sinceridade desarmante.
- Sou o teu marido, não a tua ama. Por isso vai fazer-se como eu disser - esclareceu ele, num tom que não admitia réplicas.
Quando acabaram de jantar, Gregorio propôs: - Quero ir ao hotel ver se montaram os apliques. Depois, se te apetecer, vamos ao cinema.
- Então vou ter contigo daqui a uma hora. Assim não tenho que assistir aos teus ralhetes por não terem feito exatamente aquilo que tu querias - decidiu Nostalgia.
Um dia afastado do seu projeto era realmente demasiado, e por isso Gregorio apressou-se a chegar ao hotel.
À porta encontrou o guarda-noturno a conversar com uma mulher. Viram-no e ela sorriu-lhe. Era Gianna Salvini.
- Ia a passar por aqui e parei para lhe agradecer as flores. Eu também fui indelicada, a noite passada. Por isso estamos quites. Como se sente? - perguntou-lhe, observando-o com atenção.
- Muito melhor - respondeu, e sorriu-lhe, ao mesmo tempo que se apercebia de que lhe estava a acontecer qualquer coisa de estranho. Era como se no mundo existissem apenas ele e aquela rapariga estranha de olhos imensos, nariz petulante, voz de sereia e um discreto perfume de limão e jasmim.
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Gianna Salvini disse: - Agora tenho de ir.
- Eu acompanho-a - ofereceu-se Gregorio.
O guarda-noturno, parado à porta, perguntou: - Deixo aberto, Mister Gregory?
- Não... sim... não sei - balbuciou, lembrando-se de repente de que Nostalgia ia ter com ele dali a pouco. - Eu venho já - concluiu.
Depois voltou-se para a jornalista: - Onde está o seu Topomo?
- Ali em baixo - respondeu ela, apontando para o passeio do lado oposto.
Gregorio pousou uma mão no braço dela, com a intenção de a ajudar a atravessar a rua, e depois perguntou-lhe: - Onde descobriu o endereço do meu hotel?
- Na participação que foi feita no hospital quando o internaram. Fala-se muito de si, em alguns meios... O americano que reabre a residência histórica dos Candiani. Sabe, no fundo, Milão é apenas uma grande aldeia. Toda a gente conhece toda a gente e se mete nos assuntos de toda a gente. Há uma grande expectativa relativamente a esta reabertura após a guerra. Os Candiani, que ainda são importantes num círculo restrito, falam bem de si. E não é coisa pouca, para aquele trio de velhos excêntricos.
- Gostava de conversar consigo durante mais algum tempo - propôs Gregorio.
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- E eu gostava de visitar o hotel, apesar de saber que as obras ainda não acabaram - disse Gianna.
- Pode ser. Um destes dias telefono-lhe e combinamos - prometeu, enquanto ela se sentava ao volante do carro.
O Topolino arrancou e Nostalgia apareceu ao lado de Gregorio.
- Quem é aquela mulher com quem estavas a armar em irresistível? - perguntou, com um tom levemente acusatório.
- O papel do belo e irresistível não tem nada a ver comigo, e tu sabes. A mulher em questão é a que me atropelou ontem à noite. Queria saber como é que eu estou. Devo esperar uma cena de ciúmes?
- Ainda está para nascer a mulher que me vai fazer ciúmes. Então, o que é que fazemos? - perguntou Nostalgia, dando o assunto encerrado.
- No Odeon está um filme do De Sica, Ladrões de bicicletas...
- sugeriu Gregorio.
- Eu vi os cartazes, não sei...
- E um espetáculo de revista, apetece-te? Está a Wanda Osiris no Nuovo.
- Meu Deus, não! A revista é coisa de velhos.
- Então o que queres fazer, querida? - perguntou-lhe, ao mesmo tempo que lhe punha paternalmente um braço à volta dos ombros.
Nostalgia começou a chorar.
- Aconteceu alguma coisa que eu deva saber? - indagou ele.
O pranto suave transformou-se em soluços. Gregorio abraçou-a.
Estavam na via Manzoni, e os transeuntes observavam aquela mulher lavada em lágrimas nos braços de um homem. Gregorio sentia alguma vergonha do espetáculo que a mulher estava a dar.
Ela balbuciou: - Quero o meu pai.
Gregorio sentiu o sangue subir-lhe à cabeça. Uma vez que as saudades dos Estados Unidos não o tinham movido, agora ela jogava a cartada do pai. Mais uma vez, exatamente como quando era pequena, tentava obter aquilo que queria. Ele levou-a para casa sem dizer uma palavra. Por fim, quando já estavam no quarto e ele se preparava para pôr na cabeça o saco de gelo, ela disse-lhe: - Tu tens alguma coisa contra mim.
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Não lhe respondeu. A cabeça doía-lhe outra vez.
- A verdade é que tu não me amas - insistiu Nostalgia. Naquele momento, Gregorio agarrou no saco do gelo e atirou-a contra a parede.
- E agora estás a tentar matar-me - gritou a mulher.
Ele dirigiu-se à sala, pegou no telefone e pediu uma ligação para Nova Iorque. Foi à cozinha e pôs ao lume a água para o café, enquanto esperava pela ligação. Estava a filtrar o café quando, do outro lado do oceano, ouviu a voz de Sal Matranga.
- Don Salvatore - começou, com o tom reverente do costume.
- Desculpe se o incomodo, mas já não aguento a sua filha - disse-lhe em italiano.
De Brooklyn chegou até ele o som de uma gargalhada.
- Tu já sabias, quando te casaste com ela, que a Gia é um osso duro de roer - observou don Salvatore.
- Agora quer voltar para aí. "Quero o meu pai", disse ela.
- Se me estás a ligar, quer dizer que atingiste o ponto de saturação. Mas eu aqui não a quero. Agora é tua mulher.
- E também é sua filha.
- Passa-ma.
Gregorio chamou por ela e Nostalgia não respondeu. Tentou abrir a porta do quarto, mas ela tinha-se fechado à chave.
- Não lha posso passar, porque se fechou à chave no quarto explicou.
- É melhor assim. Se não conseguires segurá-la, faz uma coisa: mata-a. Eu vou testemunhar a teu favor - brincou don Salvatore.
Mas, logo a seguir, a sua voz ficou mais suave, e disse: - Estás metido numa alhada, rapaz. Eu entendo-te, mas garanto-te que, se ma trouxeres de volta, daqui a pouco vai inventar outro drama. Faz uma coisa, engravida-a. Parece que as mulheres histéricas acalmam quando têm um filho. Porta-te bem, rapaz.
À mesa da cozinha, Gregorio começou a tomar o café, tentando acalmar-se e aclarar as ideias, mas sem conseguir. Estava muito irritado e a cabeça continuava a doer-lhe.
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Ouviu uma porta abrir-se, e pouco depois Nostalgia apareceu à entrada da cozinha.
- Desculpa - sussurrou.
Estava encantadora, com a sua camisa de noite virginal, a cascata negra dos cabelos um pouco desalinhados e os olhos vermelhos. Mas isso não bastou para dissipar a sua fúria.
- O teu pai não quer saber de ti - comunicou-lhe com brutalidade.
Ela não replicou e ele acrescentou: - E, neste momento, eu também atingi a saturação. Não te peço que mudes, porque é evidente que, se pudesses, já o tinhas feito. Só te peço para não me arruinares a vida.
- Já não me amas. É isso? - perguntou, com um ar de menina aflita.
Gregorio olhou para ela e recordou o encontro a seguir ao de Roma.
Nostalgia estava outra vez em Avellino, mas já não no colégio. Tinha regressado aos Estados Unidos na véspera da entrada da Itália na guerra, ao lado da Alemanha, e no fim do conflito Salvatore Matranga tinha ido com ela àquela cidade resolver uns assuntos.
Nostalgia e Gregorio tinham-se encontrado na villa dos Matranga, na província de Avellino e, uma noite, beijaram-se ao luar, sob os ramos generosos de uma velha oliveira.
Efetivamente, fora ela a beijá-lo, e ele disse-lhe: - Onde aprendeste a beijar tão bem?
- Pratiquei para me preparar para este nosso encontro - respondeu ela.
- A prática ficou pelo beijo, ou foi mais longe? - perguntou, curioso.
- Não te armes em parvo! Eu sou uma rapariga séria - replicou Nostalgia, ofendida.
- Eu sempre soube isso - rebateu Gregorio, a sorrir.
- Então porque me fizeste uma pergunta tão estúpida?
- Por estupidez.
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- Percebo e acho normal, porque, por muito desejável e fascinante que sejas, és um homem, e os homens não brilham pela sensibilidade - comentou Nostalgia.
- Foi isso que as freiras te ensinaram? - quis saber Gregorio,
que se divertia a ouvi-la.
- Estás a brincar? Elas ensinaram-me que o homem é o nosso
dono, e que quando lhe dirigimos a palavra devemos baixar os
olhos. Pobres freiras! Se encontrassem homens como tu, todas

aquelas certezas iam por água abaixo.
- Elas não sabem como estimular o amor próprio de um
homem, tu sim - disse ele a rir.
Agora perguntava a si mesmo onde teria ido parar aquela
rapariguinha ingénua e impertinente.
- Minha pequena Nostalgia, eu gosto muito de ti - sussurrou-lhe, enquanto a abraçava. E prosseguiu: - Mas sou um marido, não um pai, e tu tens de te deixar de birras.
- É só uma questão de meses, Greg, e tu também vais ser pai -
disse Nostalgia.
Gregorio empalideceu e o seu sorriso extinguiu-se.
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- Preciso de um whisky - disse.
Gregorio tinha sido explícito com Nostalgia, quando esta lhe pedira para casar com ele. Declarara: "Não quero filhos." E ela respondera: "Está bem." Fora sempre muito cauteloso na intimidade.
Agora tinha a certeza de que a mulher estava a mentir.
Bebeu um grande trago de whisky com gelo e depois pôs-se diante dela. Segurou-lhe o rosto entre as mãos e, olhando-a bem nos olhos, enquanto o pavor que lhe causava aquela notícia ia diminuindo e o sangue voltava a fluir, sorriu novamente e disse-lhe: - Sinto um perfume delicioso de mentira.
As faces de Nostalgia tingiram-se de um rosa suave, ostentou um ar amuado e murmurou: - Em parte sim, em parte não.
- Minha querida, queres ajudar este marido, que como todos os homens é um estúpido, a perceber o que se passa? - perguntou-lhe com paciência.
Ela não respondeu e começou a chorar.
Gregorio não se perturbou. Abraçou-a de novo e disse: - Vamos fazer assim: eu agora vou dormir ao hotel. Quando decidires dizer-me a verdade, chamas-me e eu ouço o que tiveres para me dizer.
Nostalgia anuiu, lavada em lágrimas.
Gregorio saiu de casa e, assim que chegou ao patamar, deu um murro na parede. A dor na mão atenuou a raiva que o consumia.
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O guarda-noturno estava sentado à entrada do hotel, na companhia do porteiro de um edifício vizinho.
Viu o patrão, levantou-se de um salto e pôs-se muito direito.
- vou para o meu escritório - anunciou Gregorio.
- com certeza, Mister Gregory.
Gregorio deu-lhe dinheiro e ordenou: - Por favor, arranja-me uma garrafa de champanhe e traz-ma num balde com gelo.
- com certeza - replicou o guarda.
Gregorio foi para o escritório. Encontrou o número do telefone de Gianna Salvini, ligou-lhe e ela atendeu ao primeiro toque.
- Há pouco dizia-me que gostava de visitar o meu hotel. Podemos fazer isso já, se lhe der jeito.
- Ótimo. Onde nos encontramos?
- Estou no hotel à sua espera.
O guarda chegou pouco depois e pousou em cima da mesa o balde onde tilintava uma garrafa de Dom Pérignon e uma grande quantidade de cubos de gelo. Do Don Lisander tinham-lhe mandado também os copos, alguns guardanapos e uma caixa de cascas de limão e de laranja caramelizadas.
- Oferta do restaurante - explicou o guarda, enquanto lhe devolvia o dinheiro. - Viram-no passar com a sua esposa e pensam que têm alguma coisa para festejar - acrescentou.
Gregorio deixou escapar um sorriso amargo.
- Daqui a nada vai chegar aquela jornalista que viste há pouco. Trá-la até aqui - disse-lhe.
O guarda não pestanejou, limitando-se a responder: - O senhor manda. - Tinha sido militar nos Carabinieri e fizera seu o mote que consagrava a obediência e o silêncio. Por Mister Gregory, seria capaz de se atirar ao fogo.
Quando Gianna Salvini entrou no escritório, inclinou ligeiramente a cabeça e observou Gregorio com atenção.
- De há umas hora a esta parte, a situação do hematoma não melhorou. Não sei se, uma vez recuperadas as tuas feições, vou continuar a achar-te graça - afirmou, passando ao tratamento por
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"tu" com desenvoltura. Depois, enquanto se sentava com à vontade num sofá, ele replicou: - Espero bem que assim seja.
- Cena de sedução no Delta Continental em processo de restauro. Parece o título de um folhetim, mas também podia ser o título de uma crónica picante - brincou a jornalista.
- Mas foste tu que saltaste para cima de mim com o teu carro
- observou Gregorio, abrindo o champanhe e sentando-se no sofá à frente dela.
- Sabes como é... são sempre as mulheres a tomar a iniciativa. Ele serviu o champanhe e abriu a caixa dos doces.
- Então, onde tínhamos ficado? - perguntou Gregorio.
- Ias mostrar-me o hotel. Mas para já estou bem aqui. Se calhar achas que eu sou estúpida, mas garanto-te que não sou. Nem sequer sou o tipo de rapariga que se atira para os braços do primeiro que encontra. Mas talvez isto seja o início de um espetáculo teatral. A cortina subiu e os espectadores estão com a respiração suspensa porque querem saber o que vai acontecer.
- É certo e seguro que os dois se vão beijar.
- Pois é. Mas considerando que ele é casado e que ela tem um namorado há séculos, os dois protagonistas, antes de mais, estão curiosos para ver como vai evoluir a situação.
Gregorio esticou-se do outro lado da mesa que os separava e foi atingido por duas pontadas ardentes na cabeça e na anca. Soltou um gemido, desequilibrou-se e deixou-se cair em cima do sofá.
Gianna foi imediatamente junto dele. Ajudou-o a estender-se e pôs-lhe uma almofada debaixo da cabeça. Viu em cima da secretária o saco do gelo, pescou alguns cubos do balde do champanhe e pousou-lha na têmpora.
- Como é que isso vai? - perguntou, preocupada.
- Um desastre - sussurrou ele. - No armário da casa de banho há analgésicos. Dá-me um, por favor.
Demorou algum tempo até que o medicamento fizesse efeito. Deitado, de olhos fechados, Gregorio sentia uma dor que se dilatava lentamente em ondas cada vez mais amplas e débeis até que, finalmente, diminuiu.
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- Acho que devias estar em tua casa, na tua cama, ao lado da tua mulher. As mulheres servem precisamente para tratar dos maridos quando estão doentes - disse Gianna.
Gregorio agarrou-a e puxou-a para si. Fechou os olhos e murmurou: - Agora já podemos beijar-nos.
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- Estás curado! - afirmou Gianna, com uma voz ainda ensonada mas exultante.
Gregorio e ela tinham sido acordados pelo barulho provocado pelos operários que, às sete horas da- manhã, retomaram o trabalho.
Gregorio tocou na testa e constatou que o inchaço tinha diminuído.
- Tens uma capacidade de recuperação verdadeiramente excecional - constatou a jornalista. - Em contrapartida, vejo uma horrível nódoa negra.
- Então não olhes para mim - disse ele, que se preparava para se levantar.
- Onde pensas que vais, meu belo cavaleiro?
- Para o duche, contigo.
- Não antes de me teres desejado um bom dia - disse ela a rir. Quando saíram dos aposentos da direção, eram já nove horas.
Desceram até ao hall, onde os eletricistas esticavam os fios dos telefones, os marceneiros montavam os balcões, os carregadores transportavam para o interior grandes caixas embaladas e o porteiro assinava talões de entrega.
Quando passaram houve uma sequência de "Bom-dia, Mister Gregory". Alguém tentou colocar-lhe um problema, alguém queria uma opinião sua.
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- Mais tarde falamos - disse Gregorio, e saiu com Gianna para a via Manzoni, inundada de sol.
O carro da jornalista estava estacionado na piazza delia Scala.
- Ainda tens uns minutos? - perguntou Gregorio.
- Para um café? - sugeriu ela.
- Era exatamente isso que eu te queria propor - respondeu ele. Avançaram lado a lado, como dois amigos que se encontram
por acaso, em direção à Galleria.
Sentaram-se a uma mesa do Bar Zucca, em frente à piazza dei Duomo.
- Cappuccino e brioche - pediu Gianna.
- Para os dois - acrescentou Gregorio. Quando o empregado se afastou, disse: - Não quero que te vás embora.
- Está bem assim, acredita - respondeu ela.
- Mas eu não acho bem.
- Tu tens que fazer e eu também... De qualquer maneira, vamos voltar a ver-nos.
- Espero bem. Pareces muito independente.
- Mas não é verdade, infelizmente. Dependo de toda a gente: do meu pai, com quem vivo, do chefe de redação, que aprova ou chumba os meus artigos, conforme o humor e, aqui para nós, é de uma arrogância insuportável, do meu namorado que, sendo um militante do PCI, se acha depositário do Verbo, mas de quem eu gosto. Toda a gente acha que sabe aquilo que é melhor para mim. Mas, como mulher, afinei a arte da diplomacia. Digo-lhes que sim a todos e faço o que quero.
- E agora, o que queres fazer?
- Desejo-te loucamente, mas receio que, se não me for já embora, tu deixes de me desejar.
Gregorio observou-a enquanto se afastava no seu automóvel, e depois dirigiu-se ao hotel com um ar cansado.
Era a primeira vez que traía a mulher. Experimentou um ligeiro sentimento de culpa, mas apressou-se a afastá-lo pensando que, ao fim e ao cabo, se Nostalgia tivesse sido menos infantil, nada daquilo teria acontecido, porque não era sua intenção fazer amor
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com Gianna Salvini. Naquela noite ele só queria ter ido ao cinema com a mulher que, por seu lado, depois de ter feito as birras do costume, lhe dissera que estava grávida, mas "só em parte".
- Mas que raio de história é que ela me contou! - resmungou em voz alta, enquanto entrava no hotel.
No hall, em cima de uma mesa de tábuas improvisada, o arquiteto e o seu assistente tinham desenrolado uma série de desenhos e estavam a examiná-los.
- Passa-se alguma coisa? - perguntou Gregorio, aproximando-se deles.
- Temos um problema... mais um problema com a Câmara. Veio aí um fiscal, pediu para ver os espaços subterrâneos e diz que a zona dos balneários do pessoal não está legal. Diz que, considerando que o hotel vai ter cerca de duzentos funcionários, são precisos dezoito metros quadrados a mais e, francamente, eu não sei onde os vou buscar.
- O espaço projetado não é suficiente para o pessoal? - perguntou Gregorio, sem perder a calma.
- Mas claro que é! O pessoal alterna em três turnos ao longo de vinte e quatro horas. É mais do que suficiente! Chega e sobra. Mas eu conheço esta corja - deixou escapar o arquiteto.
- Também eu - anuiu Gregorio. E continuou: - É aquele, o fiscal?
Tinha visto um homem fardado a conversar com um dos carpinteiros. Perante o sinal de assentimento do seu colaborador, foi ao encontro do fiscal que, ao reconhecê-lo, em vez de o cumprimentar se pôs em sentido.
- Venha comigo - disse Gregorio, avançando à frente dele até ao exterior do hotel.
O fiscal seguiu-o, dizendo-lhe: - Sabe... há algumas coisas que ainda não estão em ordem... O senhor tem de me desculpar, mister Caccialupi... eu cumpro ordens.
Quando chegaram à rua, Gregorio replicou: - Pegue na bicicleta e vá a correr ter com o seu chefe, o Dr. Pollastrini. Diga que eu estou à espera dele daqui a um quarto de hora, nem mais um minuto.
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O homem olhou para ele, perplexo, e balbuciou: - Mas realmente.. o doutor... não sei se eu... se ele...
- Isto é uma ordem. Cumpra-a.
O fiscal partiu a voar e Gregorio tranquilizou o arquiteto.
- Vamos continuar assim. Está tudo em ordem - afirmou. Depois subiu até ao escritório, fazendo sinal ao porteiro para que o acompanhasse. Quando entraram na sala, Gregorio comunicou-lhe que dentro de alguns minutos ia chegar o Dr. Pollastrini.
- Devo servir um café... ou qualquer outra coisa? - perguntou o homem.
- Absolutamente nada. Mas faz-me um favor, entrega no restaurante estes copos e o balde e manda-me alguém para dar uma arrumadela aqui dentro.
O porteiro saiu. Ele sentou-se à secretária e viu as horas no relógio que lhe oferecera Sal Matranga.
O quarto de hora ainda não tinha passado quando o Dr. Pollastrini entrou no escritório.
Gregorio levantou-se, foi ao encontro dele, estendeu-lhe a mão mas não o convidou a sentar-se. Deixou-o ficar propositadamente em pé, enquanto o outro dizia: - É uma honra conhecê-lo, Sr. Caccialupi.
- Não exagere, por favor.
- O senhor acaba de chegar à nossa cidade e já é famoso.
- Espero que seja uma fama boa, porque estou a fazer os possíveis por me comportar corretamente. E assim, na linha da correção, gostaria de esclarecer uma coisa: conheço as leis e os seus regulamentos, e respeito-os. Se, para além disso, há regras não escritas, essas não me dizem respeito, nem agora, nem no futuro. Ouça, doutor, eu faço questão de que saiba isto porque desde que começaram as obras tem sido uma procissão de funcionários a meter o nariz por todo o lado e a arranjar desculpas para atrapalhar o trabalho. Tenho a certeza de que tanto zelo é motivado pelo desejo de não me permitir cometer erros. Por isso estava a pensar que, se a Câmara quisesse colocar ao lado das obras um controlador
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oficial, todos nós ficaríamos mais tranquilos. Consegui exprimir-me com clareza? - perguntou Gregorio.
- E o senhor chamou-me aqui para me dizer isto? - perguntou o Dr. Pollastrini, corando.
Gregorio lançou-lhe um dos seus sorrisos mais encantadores.
- Sim, e também para lhe dizer que, em setembro, quando o hotel for inaugurado, considerarei uma honra se quiser ser meu convidado, no meio das personalidades de destaque que tenciono aqui reunir.
O homem sorriu e disse: - com certeza que cá estarei. Obrigado. Quanto ao resto, continue a trabalhar, porque não vai haver qualquer problema.
Gregorio dirigiu-se a casa quando era já meio-dia, e encontrou a mulher ocupada a empilhar malas à entrada.
- Vais embora?
- Não, tu é que vais partir. Hoje de manhã vi-te sair do hotel com aquela mulher. Acabou tudo entre nós.
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- Qual mulher? - perguntou Gregorio.
- Aquela que estiveste a entreter toda a noite, depois de me deixares aqui sozinha - gritou Nostalgia.
Ele sentou-se no banco da entrada. À porta da cozinha apareceu a empregada que, com uma expressão impassível, lhe perguntou: - Deseja um copo de vinho, ou faço-lhe um café, como o senhor gosta?
No meio de toda aquela tensão, ele pensou que uma empregada tão perfeita merecia um prémio. Por isso, disse-lhe: - Quando abrir o hotel, contrato-te como governanta. Venha lá esse café americano.
- É para já, senhor - respondeu ela, e desapareceu.
- Tu vais ter de ir embora - repetiu Nostalgia, e avançou à frente dele em direção à sala.
Gregorio fez os possíveis para arvorar uma expressão de circunstância, enquanto perguntava a si mesmo se aquela não seria uma oportunidade, pois o apartamento era demasiado acanhado para ele e preferia de longe viver no hotel. Sentiu-se satisfeito por ter sido previdente ao ponto de tornar habitável os aposentos da direção, e naquele momento apercebeu-se de que só quando ali estava se sentia realmente à vontade. Perguntou à mulher: - Estás a falar a sério... eu tenho de ir embora?
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O hotel era uma atração ainda mais fascinante agora que tinha uma mulher que desejava e com quem podia estar. Era como se aquela noite que passara com Gianna tivesse marcado com um sinal favorável a sua empresa.
Mas tinha de saldar as contas com Nostalgia e com a sua fúria mais do que justificada. Gregorio gostava dela e, ao vê-la, sentiu por ela uma ternura infinita. No entanto, na sua expressão furiosa e desconsolada havia algo mais do que a amargura por se ter sentido traída.
Nostalgia, sentada no sofá, cobriu o rosto com as mãos e começou a chorar.
Gregorio sentou-se ao lado dela, afagou-lhe os cabelos e perguntou-lhe: - O que é que eu hei de fazer contigo?
- Não sei, porque nem eu sei o que fazer comigo mesma soluçou. E prosseguiu: - De resto, se tivéssemos ficado nos Estados Unidos, nada disto teria acontecido.
Pensou que se referia à sua traição e sossegou-a: - Fica tranquila. Não aconteceu nada.
- A sério? - perguntou ela, ao mesmo tempo que limpava as lágrimas e olhava para ele com um ar de desafio. - Para ti uma gravidez não é nada?
- Cá estamos outra vez! Estás grávida ou não?
- Claro que estou... só que...
- Só que?
- O filho não é teu - confessou a meia voz.
Fez-se silêncio. O choque de uma paternidade que não desejava deu lugar ao alívio causado por aquela revelação, e também a alguma incredulidade, porque não conseguia acreditar que Nostalgia pudesse traí-lo.
- Pronto, agora já sabes - gemeu finalmente a mulher, enxugando as lágrimas. Gregorio olhava para ela, ansioso, incapaz de proferir uma palavra.
- Já sei há alguns dias... estive quase a mentir e a dizer que o filho é teu. Tinha sido tudo mais simples, mas não consegui. Conheces-me, e sabes que não sou capaz de dizer mentiras.
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De repente, Gregorio percebeu que a mulher lhe oferecia uma via de fuga de uma união que estava a tornar-se impossível.
Irritou-se consigo mesmo pelo seu cinismo, e pensou que deveria fazer uma cena. Mas não podia, não conseguiria mentir.
- Felizmente, casámo-nos em Nova Iorque, e o nosso casamento ainda não foi registado em Itália. Podemos divorciar-nos quando quiseres... Entra! - disse Gregorio, deixando em suspenso as últimas palavras, porque a empregada estava a bater à porta.
- Está o senhor vereador Fantuzzi ao telefone - anunciou a mulher.
- Diz-lhe que agora não posso. Ligo-lhe mais tarde - respondeu Gregorio.
- Não queres saber quem é o pá... o homem com quem...? perguntou Nostalgia.
Naquele momento Gregorio mediu a distância, já inultrapassável, que o separava dela. Por muita ternura que nutrisse por Nostalgia, agora sabia que nunca estivera apaixonado por ela.
O papel de marido assentava-lhe mal. Tinha casado com Nostalgia porque gostava dela, porque ela o amava, e também pela gratidão que sentia em relação a Salvatore Matranga.
- Não, não quero saber - rebateu.
- Mas devias, porque é um amigo teu... ou, pelo menos, devia ser.
- A sério? Isso não será tudo imaginação?
- Estou a falar muito a sério, Greg. Aconteceu há dois meses, quando estávamos ainda hospedados em casa do Franco Fantuzzi. É ele o amigo em questão.
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Olhou para a mulher diretamente nos olhos e percebeu que ela estava a dizer a verdade. Então saiu de casa e dirigiu-se novamente ao hotel, ignorou os operários e os seus problemas, foi para o escritório, desligou o telefone, sentou-se à secretária e fechou os olhos.
Precisava de silêncio. Ficou assim durante muito tempo.
Saiu daquela espécie de torpor quando ouviu o toque dos sinos da igreja de San Fedele. Era uma da tarde. Então, com calma, dirigiu-se ao Palazzo Marino, a sede da Câmara.
O porteiro, que o conhecia, saudou-o, obsequioso. Gregorio não respondeu e começou a subir a grande escadaria que dava acesso aos gabinetes dos dirigentes. Parou em frente à porta de Franco Fantuzzi.
Pousou uma mão pesada no puxador, baixou-o e abriu a porta. Uma secretária levantou a cabeça, um pouco surpreendida mas já pronta para lhe sorrir, depois de o ter reconhecido. Ignorou-a também a ela, e escancarou a porta do gabinete de Franco.
O vereador estava ao telefone. Levantou-se para lhe fazer um gesto de boas-vindas, enquanto continuava a falar. Gregorio, impassível, foi até junto dele e pespegou-lhe um murro potente no queixo. Franco foi parar ao chão, mas estava demasiado aturdido para tentar qualquer reação. Gregorio inclinou-se sobre ele, agarrou-o pelas lapelas do casaco, pô-lo de pé e assestou-lhe mais um murro poderoso. Sentou o baque de alguma coisa que se partia.
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Franco caiu pesadamente ao chão. Então Gregorio passou outra vez pelo gabinete da secretária e anunciou: - Devia chamar um médico, porque eu acho que o seu chefe não está muito bem.
Saiu tranquilamente do edifício e foi instalar-se a uma mesa do Biffi, porque eram horas de almoço.
Devorou com raiva uma dose de risotto amarelo, duas costeletas à milanesa com batatas assadas e duas doses de salada de frutas. No fim estava ainda tão esfomeado que se sentia capaz de abocanhar o mundo. Enquanto bebia um café e fumava um cigarro, considerou o seu rancor em relação a Franco Fantuzzi. Provavelmente tinha-lhe partido a cara, mas não se importava nada. Um homem honesto não leva para a cama a mulher de um amigo, nem mesmo se ela o provocar para além do razoável, e tinha a certeza de que Nostalgia não o tinha provocado. Mas Franco alguma vez tinha sido honesto? Na América tinha casos com mulheres de meia-idade para se aproveitar do dinheiro delas. Nunca o tinha julgado mas, pensando bem, aquilo devia ter sido uma campainha de alarme para o fazer duvidar da sua correção.
Examinando a situação com frieza, tinha de admitir que a gravidez de Nostalgia lhe permitia libertar-se de um casamento que começava a pesar-lhe. No fim de contas, tinha uma razão válida para estar grato a Franco. Mas uma coisa é a mulher e outra é a amizade, tanto mais sagrada quando não é estabelecida em nenhum contrato. E Franco tinha-a conspurcado.
Havia ainda outro elemento que o perturbava, e que era representado pelos incessantes controlos técnicos absolutamente insidiosos que Franco justificara como o hábito não escrito de "untar as mãos" para trabalhar com tranquilidade.
Quando Gregorio se tinha encontrado com outros vereadores, tinha ficado com a impressão positiva de estar a estabelecer contactos com profissionais corretos. O pelouro da Construção Civil, essencial num período em que a cidade inteira tinha de ser reconstruída depois do desastre da guerra, era um dos setores mais vitais. Franco tinha-o garantido para si quando, depois de percorrer a
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Itália de sul para norte com o exército americano na qualidade de intérprete e de intermediário entre este e as instituições locais, tinha entrado na Câmara com as credenciais certas. Gregorio estava convencido de que Franco geria os assuntos públicos como uma oportunidade para enriquecer.
Pagou a conta e dirigiu-se ao hotel com um passo cansado. Chegou no preciso momento em que um dos operários descarregava a sua bagagem.
- Ligou a sua empregada - explicou o homem - a dizer-me para ir buscar estas malas a sua casa e para as trazer para aqui.
- Muito bem. Leva-as para o meu escritório.
Não lhe apetecia entrar, nem ir para casa, mas tinha de fazer alguma coisa. E se telefonasse a Gianna?, pensou. Mas descartou imediatamente aquela ideia, porque não queria estragar uma bonita história que ainda agora estava a começar.
Por isso, foi para casa. A empregada não estava. A mulher, aninhada no sofá, estava a ler uma revista feminina.
- Ligou a secretária do Franco. Diz que tu o deixaste num estado miserável e que agora está na Urgência - comunicou-lhe.
- Os murros não apagam um problema, partindo do princípio de que existe um problema - replicou ele, às voltas pela sala, irrequieto.
- De qualquer maneira, ele precisava de uma lição - afirmou ela, com um ar angelical.
- A sério? Para fazer um filho são precisas duas pessoas, e não me parece nada que ele tenha usado de violência contigo - comentou, enquanto observava o pequeno rosto gracioso de Nostalgia que, agora, já não chorava. Tinha-se vestido e pintado cuidadosamente e estava com um aspeto adulto e responsável.
- Estávamos bêbedos, muito bêbedos. Tu tinhas ido a Adria, visitar os teus parentes e encomendar uns móveis a uns artesãos. Estavas fora há mais de uma semana. Eu sentia-me sozinha. Estávamos hospedados em casa do Franco e ele levava-me a jantar fora com outras pessoas, para me distrair. Uma noite regressámos a casa depois do cinema e começámos a conversar e a beber. Não sei
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como foi, só sei que de manhã acordei na cama dele, com uma dor de cabeça que me matava. Levantei-me e enfiei-me no nosso quarto. Nunca me referi àquela noite com o Franco. Quando regressaste, evitei estar contigo, porque sentia vergonha. Passei uns dias infernais. De resto, andavas tão absorvido com o teu trabalho que eu duvido que reparasses em mim, mesmo quando falavas comigo. Desde então, só fizemos amor uma vez, há duas semanas. E eu estou grávida há dois meses. Sabes que eu nunca gostei do Franco, mas não o posso culpar de violência - confessou ela, com uma voz sumida.
Era uma explicação, mas não uma justificação. Por isso perguntou-lhe: - com que direito me fizeste uma cena de ciúmes?
- Não confundas direitos com sentimentos. Sou ciumenta e admito-o.
- E eu digo-te que me puseste fora de casa porque o sentimento de culpa te persegue e te apercebes de que não podemos continuar a viver juntos. Não sei se ainda estás apaixonada por mim, mas eu já não estou, apesar de gostar muito de ti, mesmo muito. Agora vais fazer as malas e eu vou levar-te a Brooklyn. Decides tu a quem atribuir a paternidade do filho que esperas. Se quiseres que seja eu, tudo bem. Se tencionas chamar o Franco às suas responsabilidades, fica sabendo que ele vai querer pôr-se de fora.
- Não tenho a mínima intenção de envolver o teu amigo. Fizeste bem em dar-lhe um murro. Quanto ao resto... Não sei o que hei de fazer, mas acho que voltar para casa dos meus pais será a melhor solução - admitiu Nostalgia.
Naquele mesmo dia, Gregorio foi ter com os Candiani.
- vou ter de acompanhar a minha mulher à América - anunciou. - Na minha ausência, tenho uma necessidade extrema da vossa ajuda. Agora o hotel é meu mas, apesar disso, não sei porquê, continuo a considerá-lo ainda vosso. Quem melhor do que os senhores será capaz de dirigir as equipas dos operários?
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Os três anciãos receberam aquele apelo quase comovidos e prometeram-lhe: - Demore o tempo que precisar. Faremos o melhor que pudermos.
Dois dias depois, Gregorio e Nostalgia partiram para os Estados Unidos.
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ADRIA
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Gregorio não se metia numa banheira há um tempo imemoriável. Sempre preferira o duche, por ser mais rápido e menos complicado, e porque lhe fustigava a pele e lhe parecia mais higiénico.
No entanto, no apartamento de Adria, as casas de banho eram apenas dotadas de amplas banheiras em ferro esmaltado, com os pés de garra de leão em bronze dourado e tubos de cobre à vista.
Assim, após dois dias de abluções sumárias, resignou-se e pediu à empregada que lhe enchesse a banheira. Quando entrou na água, voltaram-lhe à memória os primeiros anos da sua vida, quando a mãe o mantinha apertado contra ela dentro de uma grande tina. Só naquele momento recordou a sensação de um prazer que o envolvia e lhe dava segurança. Pensou: se a minha mãe me visse agora, que sou um velho ressequido, que perdeu força e vigor... quanta tristeza, na decadência dos nossos corpos. Alguém lhe dissera que, segundo os antigos Gregos, só morre jovem quem os deuses amam. Havia uma verdade profunda naquelas palavras, só aparentemente cruéis. Hoje, pensou ainda, já não conseguiria dar uns murros àquele desgraçado do Franco Fantuzzi, nem fazer amor com a Gianna ou com todas as outras mulheres que vieram em seguida.
Aquela história com Gianna tinha começado quase por brincadeira, mas depois acabou por se tornar importante, perturbadora.
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Tinha durado pouco, menos de um ano, mas quando recordava aquele período, que coincidira com o fim das obras, com a reabertura do Grand Hotel Delta Continental e com a sumptuosa inauguração, não podia deixar de a recordar com um sentimento de gratidão. Gianna Salvini tinha sido uma espécie de musa inspiradora. A certa altura separaram-se. Foi ela que lhe disse: - A nossa relação acaba aqui. - Durante algum tempo, sentiu a falta dela.
A água estava a arrefecer, sentiu um arrepio e saiu da banheira. Envolveu-se numa toalha de felpo, secou-se, friccionou o corpo com um óleo de essências do Floris que cheirava a citrinos, depois vestiu um pijama de algodão e um robe de uma pesada seda adamascada e, finalmente, entrou na sala de jantar.
Na mesa posta só para ele, a empregada serviu um risotto de peixe que espalhava em volta um aroma convidativo.
- Como segundo prato, preparei uma dourada em papillote com um acompanhamento de alcachofras e batatas - anunciou.
- Obrigado, mas basta-me o primeiro - disse ele.
Ela observou-o com severidade e replicou: - com sua licença, senhor, deixe-me que lhe diga que está demasiado magro. Precisa de comer e, portanto, eu também lhe vou servir o segundo.
Gregorio tinha percebido que Amélia pertencia àquele género de empregadas um pouco autoritárias e apaixonadas pelo seu próprio trabalho, mas que também era suficientemente inteligente para respeitar os limites além dos quais não podia estender-se. Amélia estava certa. Estava demasiado magro e, agora que tinha um novo projeto em mãos, sabia que precisava de se alimentar melhor.
- Traga lá essa dourada - consentiu.
Depois, chegou ainda à mesa um pudim de chocolate.
- O chocolate favorece o sono. Foi o meu médico que me disse.
- O meu bom senso, pelo contrário, sugere-me que tu me queres transformar num frango de engorda - respondeu Gregorio, ao mesmo tempo que enterrava a colher no doce.
Quando passou para a sala e Amélia lhe serviu o café americano, com um fio de leite magro, prometeu a si mesmo mandar vir
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da Suíça a preciosa mistura que os Candiani, antes de todos os outros, tinham recuperado e importado depois da guerra, através de um distribuidor de Zurique.
- Agora dá-me um cigarro - pediu-lhe.
- Não há cigarros cá em casa - respondeu a empregada.
- Há os que tu fumas, no teu quarto. Julgas que eu não dei conta?
- É verdade que o senhor sabe coisas do arco da velha - respondeu Amélia, imperturbável e tirou o maço do bolso da bata. Depois acrescentou: - Sabia que fumar faz mal à saúde?
- Mas faz muito bem ao humor - reagiu ele, aspirando com satisfação a primeira fumaça.
- Trago-lhe o seu livro?
Por aqueles dias, Gregorio andava a ler um romance americano de John Irving que contava a história de um jovem que só se apaixonava por mulheres velhas. Era muitíssimo interessante. Tinha-o comprado muitos anos atrás, em Nova Iorque, durante a sua última viagem ao outro lado do oceano, para o funeral da mulher. Nunca se tinha divorciado de Nostalgia e fora um pai para aquele filho que não era seu mas que, no entanto, usava o seu apelido. com o passar do tempo, Nostalgia tornara-se na sua maior amiga.
Recostou-se no sofá, depois de ter apagado o cigarro, e recordou aquela viagem a Nova Iorque, muito distante no tempo, quando ele e a mulher tinham decidido separar-se.
Para a consolar, tinha-lhe dito: - Depois de a criança nascer, se quiseres, podes regressar a Milão.
- Não estás a pensar pedir o divórcio? - perguntou ela.
- Não tenho outra mulher com quem me casar.
- Mas tens muitas para amar. Conheço-te bem, Greg. Eu, pelo contrário, só te amei a ti.
- A tua vida está agora a começar. Vais encontrar o homem certo.
Mais do que um casal à beira da separação, pareciam dois amigos que falavam de coração aberto.
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- Achas mesmo que eu me podia apaixonar por outro homem?
- Tenho a certeza.
- Para já, só precisava de arranjar coragem para falar com o meu pai. Ele tem o direito de saber em que pé estão as coisas entre nós. Já o conheces: nas relações de negócios é uma raposa, mas nas afetivas é um asno.
- Quanto a mim, devias deixá-lo fora desta história. O que é que lhe adianta saber que o filho não é meu? Só vai sofrer.
- Eras capaz de lhe dar o teu nome?
- Porque não? Ainda que seja criado por ti, há de ter um pai, em qualquer lugar.
- Não é justo.
- Então faz o que quiseres. Eu apoiar-te-ei sempre e em qualquer situação.
Agora havia um Sal Caccialupi, proprietário de uma cadeia de ginásios bem frequentados em muitos estados americanos. Em rapaz tinha sido campeão olímpico de natação. A mãe revelara-lhe o nome do seu verdadeiro pai, mas ele não manifestara qualquer vontade de conhecer Franco Fantuzzi, afirmando que o "pai Greg" lhe bastava. Franco nunca chegara a saber que tinha aquele filho, e Nostalgia não voltara a casar.
Enquanto saboreava o café, Gregorio pensou que poderia envolvê-lo na sua nova aventura. O edifício de Pádua era suficientemente amplo para conter também um spa e um ginásio na cave.
No dia anterior tinha-o visitado desde as caves, belíssimas, com tetos abobadados de tijolo à vista e colunas encimadas por capitéis de pedra, até aos sótãos, onde sobreviviam intactos os travejamentos maciços do século XVI. Tinha sido precisamente Sal Caccialupi quem lhe explicara que o melhor sítio para os tratamentos estéticos deve ser em cima, mais perto do céu, embora se tivesse criado o hábito de o praticar na cave.
Prometeu a si mesmo telefonar também a Sandro, o barman do Delta Continental, e a Santini, o chefe da portaria, ambos próximos da reforma. Gregorio estava convencido de que a vida de reformado era um direito de homens e mulheres que tinham aguentado
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durante anos trabalhos pesados, de cirurgiões, quando perdiam a agilidade dos dedos, ou de condutores de meios de transporte, quando sentiam diminuir a prontidão dos reflexos. Mas um grande chefe não deixa de o ser por envelhecer, um escritor não deixa de escrever porque atingiu a idade da reforma, um funcionário hoteleiro que conhece todos os segredos de um hotel não deixa de o ser só porque tem oitenta e cinco anos.
Nesse momento pensou em Erminia, a rainha das governantas. Ela tinha ameaçado que o procurava se ele não comparecesse ao aniversário seguinte. Ia voltar a vê-lo muito em breve.
Agora deslocava-se a Pádua quase todos os dias. Os advogados que lhe geriam o património tinham inicialmente ouvido as suas ideias com suspeição, quase com relutância. Mas à medida que Gregorio expunha os seus planos, escrevia os números num papel e explicava as estratégias, o comportamento deles mudou. Agora sentiam-se envolvidos e ajudavam-no a selecionar arquitetos e empresas, a fazer pedidos de autorizações ao Instituto do Património e às empresas de construção.
Depois de cinco anos de letargia na casa de repouso Stella Mundi, Gregorio despertara e era como um vulcão que entra de novo em atividade. Precisava de um cigarro.
Levantou-se de repente do sofá e foi à cozinha procurar a empregada. As luzes estavam apagadas. Amélia já tinha ido para a cama. Então abriu devagarinho a porta do quarto dela. Sabia onde os encontrar: no bolso da bata que ela pendurava atrás da porta. Não tinha previsto a reação de Amélia que, ao vê-lo surgir à entrada da porta, lançou um grito de medo e depois, com uma voz indignada, o intimou: - Fora! Imediatamente.
Gregorio, mais assustado do que ela por ter sido apanhado com a boca na botija, balbuciou umas desculpas e retirou-se para o corredor. Mas bastaram-lhe alguns segundos para se recompor. Escancarou a porta do quarto, acendeu a luz e gritou: - Pare com isso! Eu só quero um cigarro.
Pouco depois estavam os dois na cozinha, a bebericar aquilo a que ele chamava "o café da meia-noite" e a fumar como umas
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chaminés, enquanto Amélia repetia pela enésima vez: - Desculpe-me, senhor. É que eu parto do princípio de que os homens são todos perigosos. No entanto, a partir de amanhã será melhor comprar cigarros, porque não tenciono sustentá-lo.
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Aquela empregada a tempo inteiro que Stella tinha escolhido para ele estava a revelar-se uma colaboradora ideal. Mantinha o apartamento limpo, tratava-lhe da roupa com cuidado, cozinhava primorosamente, sabia quando devia falar e quando devia estar calada, servia-o sem ser servil. E isto não era pouco para uma pessoa difícil como Gregorio.
Sendo mais nova do que ele quase trinta anos, Amélia tratava Gregorio como um filho que precisava de cuidados maternos, e esta atitude dava-lhe segurança. Às vezes punha-se ao mesmo nível que ele e falava-lhe como amiga. Também isso não lhe desagradava. E também era simpático possuir uma casa e habitá-la, depois de uma vida passada em quartos de hotéis. O facto de não possuir uma residência tinha sido uma escolha pensada, sabendo como era importante ter sempre a situação sob controlo, mas nesta fase pareceu-lhe mais adequado viver num apartamento só para si.
Agora, de noite, sentado diante de Amélia na cozinha silenciosa de Adria, a empregada perguntou-lhe: - Tenciona mesmo abrir um hotel em Pádua?
- Sim - respondeu.
- Mas quem é que o manda meter-se nisso? Perdoe a minha ignorância, mas pergunto-me porque é que, na sua idade, não goza em paz aquilo que tem, em vez de andar a correr para aqui
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e para ali e de pôr em cima dos ombros uma responsabilidade tão pesada.
- Tentei fazer a vida do velho que espera pacientemente o dia em que tudo vai acabar. Resignei-me a isso, na companhia de outros velhos como eu. Não era assim tão mau. Só que a certa altura, não eu, mas o destino decidiu que não devia ser assim. O bom Deus até pode chamar-me a si amanhã, mas se não o fizer eu vou continuar a trabalhar, porque gosto de trabalhar e porque gerir um hotel é uma das profissões mais gratificantes que existem. Só em criança tive à minha volta o afeto de uma família. Depois perdi-o, e a minha família passou a ser o hotel, com todo o pessoal que gira em volta dele, e os hóspedes, que sempre me fizeram sentir um excelente anfitrião.
- Sabe que eu nunca entrei num hotel? Quando vou a Veneza, vejo as gôndolas e os barcos a motor a descarregar gente elegante diante dos hotéis de luxo e penso: Gostava de ser uma mulher rica que chega, entra e é logo venerada e servida. Nunca hei de ter essa satisfação.
- Dá tempo ao tempo, Amélia. Pode ser que chegue o dia em que ponhas o pé num hotel de luxo e me encontres a mim a receber-te e escoltar-te até ao melhor quarto.
O rosto da empregada iluminou-se com um sorriso entre a incredulidade, a esperança e a preocupação.
- Isso significa que, nesse dia, o senhor já se foi embora e eu não vou poder continuar a servi-lo? Não vou ficar nada contente, porque gosto de trabalhar para si e até me dá jeito. Em suma, vou ter de voltar a dar umas horas aqui, outras ali. Dá muito trabalho, pode crer.
- Já te disse, tudo é destino. Por isso, não te preocupes com a maneira como vão correr as coisas, porque o nosso futuro já está escrito lá em cima.
- com sua licença, senhor, estou a fazer figas, porque prefiro uma vida infeliz na terra do que o Paraíso.
- Agora vou dormir - disse Gregorio.
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- Obrigada, senhor. Gostei muito de falar consigo. Boa-noite.
No dia seguinte, Gregorio acordou tarde e sentiu imediatamente no ar o aroma do café. Abriu as janelas do quarto sobre um dia cinzento, frio e húmido.
Vestiu um fato de treino por cima do pijama e, em frente ao espelho, começou os exercícios de ginástica, uma rotina aborrecida a que se submetia em respeito ao seu bem-estar físico. Sentia pena da imagem que o espelho lhe devolvia: um velho hirto, com dificuldade em curvar-se e em fazer flexões. Nem sequer estava convencido de que tanto esforço tivesse alguma utilidade, mas aguentava-o por se lembrar dos conselhos dos médicos.
Depois fechou os vidros, foi à casa de banho e encontrou a banheira já cheia de água fumegante; mergulhou e apreciou aquela tepidez envolvente. Na sala de jantar, Amélia tinha posto a mesa para o pequeno-almoço. com o café e o leite quente, havia rolinhos de manteiga, tacinhas de mel e compotas, torta de maçã, pão torrado e iogurte de fruta. Da cozinha chegava até ele o aroma de um estufado de legumes. Na sala encontrou a lareira acesa e os jornais em cima de uma mesinha ao lado do sofá.
Por um hábito antigo, antes de folhear os jornais Gregorio lia os títulos da primeira página e, logo a seguir, ia à procura da necrologia.
Naquela manhã viu que Franco Fantuzzi figurava entre os anúncios dos defuntos. O seu nome ocupava as colunas de uma página inteira do jornal. Deteve-se a ler os nomes de todos aqueles que o choravam, louvavam e "confiavam à glória do Senhor".
No mesmo jornal de Milão, na página de política, havia uma fotografia de Franco a acompanhar um artigo em duas colunas onde era recordada a figura um pouco controversa do conhecido parlamentar que conseguira transferir-se da Primeira para a Segunda República, sempre envolto em insinuações de corrupção de que, porém, nunca chegou a ser acusado oficialmente. Recordavam-se dele as alianças astutas, a extraordinária capacidade de jogar com as partes opostas, as suas artes de conquistador e de provecto bailarino
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e o passado glorioso nas fileiras do exército americano durante o desembarque dos Aliados na Sicília em 1943.
Gregorio voltou a fechar o jornal, foi até ao quarto, abriu a gaveta da cómoda e pegou num envelope ainda fechado, endereçado a ele. O carimbo era de cinco anos atrás, quando Gregorio tinha vendido aos americanos as suas propriedades para pagar as dívidas aos bancos. Nunca o tinha aberto, sabendo que vinha de Franco, mas também nunca o tinha deitado fora. Chegara o momento de ler aquela carta.
Regressou à sala, sentou-se no sofá, rasgou o envelope, tirou de lá uma folha de papel e viu a letra nervosa e um pouco incerta do homem que fora o responsável pelo seu declínio.
Começou a ler.
Caro Gregorio, ;
Tivemos anos fantásticos, tu e eu. Sempre te admirei e gostei de ti. Não consegui odiar-te nem mesmo quando me deste uns murros que me mudaram as feições para o resto da vida. Tu , tinhas razão, eu não tinha, depois conversámos e a amizade, dentro do possível, cicatrizou. Tivemos muitas mulheres e muitos amores. Fizemos juntos negócios extraordinários e, para mim, difíceis, porque tu procuravas sempre o caminho mais direto, enquanto que eu sabia que, para chegar à meta, é preciso quase sempre enveredar por percursos tortuosos e nublados. O último negócio que te propus levou-te à ruína, mas podia ter sido o maior da nossa vida. Tu, porém, não foste suficientemente duro. Eras um puro, gabavas-te dessa pureza e os políticos fizeram-te pagar por isso. É verdade: eu sempre tirei enormes vantagens dos teus negócios e tu não sabias, ou fingias não saber. Diante do desastre deixei-te sozinho, para me salvar. Perdoa-me, Greg. Agora somos apenas dois velhos a caminho do pôr do sol. Não me queres estender a mão?
Não lha estenderia, nem mesmo agora que Franco estava morto. Limitou-se a sussurrar: - No final, todos os jogos se equilibram.
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E considerou imediatamente que o velho companheiro de tantas aventuras não tinha sequer tido a alegria de um filho que o chorasse, porque Sal Caccialupi nunca tinha querido saber dele. As contas dão sempre certas: Sal ia chorá-lo a ele, quando ele partisse.
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NOVA IORQUE
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Gregorio estava no escritório de Mr. Howard Patterson, na sua grande mansão de Long Island.
Nos três anos em que tinham trabalhado juntos, ele e o banqueiro haviam passado muitos serões naquela sala tão acolhedora. Falavam sobretudo de livros, de artistas a patrocinar, de setores onde investir. Na verdade, era Howard Patterson quem falava, e Gregorio escutava e tomava mentalmente nota dos temas que deveria aprofundar, quando tivesse tempo. Mas, entretanto, aprendia com o seu mentor coisas que lhe abriam horizontes novos e muito estimulantes.
Agora, o regresso repentino aos Estados Unidos para acompanhar Nostalgia era uma ocasião para se encontrar com o homem de Wall Street, que tinha interesses muito mais vastos e importantes do que os de Sal Matranga. O banqueiro dizia: - Prevejo tempos duros para os nossos amigos israelitas, apesar de o armistício entre o Egito e Israel ter posto fim, pelo menos de momento, a uma guerra entre irmãos. O nascimento do Estado de Israel era inevitável, mas Ben-Gurion não agiu de luva branca ao obrigar os árabes palestinianos a sair das suas terras. Tivemos e continuaremos a ter repercussões negativas também na Bolsa americana.
- Eu não percebo nada de política. Nem sequer tenho bem claro o panorama italiano. Houve grandes greves de camponeses
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nas terras do Norte, e a razão é a mesma de sempre: a fome. A guerra acabou há quatro anos e a miséria continua. Eu pergunto-me porquê. Este é um momento rico de oportunidades, mas sobrevivem a praga do analfabetismo e a da exploração intensiva do pobre por parte do rico...
A senhora Patterson apareceu à porta do escritório.
- Está tudo bem? Posso mandar servir-vos mais café? - perguntou com o ar doce e protetor de sempre. Quando o marido anuiu, agradecendo-lhe, acrescentou: - Depois de terem terminado as vossas confissões, gostava de mostrar ao Greg um novo tipo de orquídeas muito resistente que daria muito bem para o hotel.
- As mulheres, como sempre, têm o dom de nos trazer de volta à realidade - comentou o marido. - Espero que não fiques por aqui muito tempo, porque tens de acudir à tua criatura em Milão. Quem é que trata dela na tua ausência? :
- Três amas: os Candiani - respondeu Gregorio.
Percebia a curiosidade de Howard Patterson relativamente àquela viagem imprevista, mas também uma censura velada pelo facto de ter abandonado as obras num momento tão importante. Por isso, explicou-lhe: - A minha mulher está à espera de um filho e quis regressar a casa dos pais. Ela não consegue entender o meu empenhamento naquele hotel, e eu não consegui envolvê-la. Sentia-se só e, pelo menos enquanto a criança não nascer, ficará viver em Brooklyn com a família.
- Mas está tudo bem? - perguntou o banqueiro que, nas palavras de Gregorio, tinha sentido uma ligeira quebra.
- Não - admitiu. - Acho que foi um erro termo-nos casado. Somos ótimos amigos, mas não podemos ser mais do que isso. Ela ainda é uma criança que não sabe bem o que quer e eu... eu não sei bem o que dizer de mim... o casamento limita-me - confessou.
O banqueiro abanou a cabeça e suspirou: - Mas agora há um filho pelo meio.
- Que não é meu - deixou escapar, e arrependeu-se imediatamente daquela afirmação. A partir dali, porém, só podia contar a verdade.
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- O Sal Matranga vai aceitar muito mal essa história - comentou Patterson.
- Duvido que a Nostalgia lhe diga a verdade.
O banqueiro abanou mais uma vez a cabeça. Quando não achava bem alguma coisa, não fazia comentários, mas Gregorio, conhecendo-o, sabia que aquele gesto expressava contrariedade.
- O senhor acha que eu devia esclarecer a situação? - perguntou, hesitante.
- Não importa aquilo que eu acho, mas a forma como tu vais agir, depois de teres avaliado todas as implicações que o silêncio comporta.
Gregorio deixou escapar um sorriso. Mr. Patterson tinha-lhe dirigido as mesmas palavras muitos anos atrás, quando, em 1945, regressara à América depois de ter combatido em Itália.
Naquela ocasião os Patterson convidaram-no para jantar, e Gregorio expressou o propósito de se dirigir a Filadélfia para retomar as rédeas do restaurante que a chamada às armas o tinha obrigado a abandonar.
- Ofereço-te uma possibilidade semelhante, mas muito mais complexa - propôs o banqueiro. - Em Chicago relançámos um grande hotel que não funciona. Para dizer tudo, está a dar prejuízo, e eu não gosto de perder dinheiro, se não for por uma causa justa. Gostava que fosses lá ver o que se passa.
Gregorio hesitou em aceitar aquela oferta. Apesar de, a seu tempo, ter informado don Salvatore de que, depois de relançar o restaurante de Filadélfia, ia trabalhar com Patterson. E já tinha atingido aquele objetivo quando foi chamado para o exército em
1942. Perante a hesitação de Gregorio, Mr. Patterson avisou: - Antes de recusares a minha oferta, avalia todas as implicações que essa recusa comporta.
Ele avaliou-as e decidiu que o seu futuro era ao lado do banqueiro. Falou com Sal Matranga e partiu para Chicago. Recuperou o hotel, transformando-o de empresa à beira da falência num investimento muito rentável, e nessa altura percebeu que o seu futuro estava na gestão hoteleira.
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Agora reconsiderou as implicações que o silêncio sobre o nascimento de um filho que não era seu poderia comportar e disse: Acho que vou deixar esta decisão ao acaso.
E o acaso decidiu na véspera do seu regresso a Itália.
Desde que tinha regressado a Brooklyn, Gregorio tentava superar o mal-estar relativo à sua situação familiar com uma atividade frenética. Levantava-se de madrugada e corria até à estrebaria para montar um soberbo cavalo de raça irlandesa. Ao domingo de manhã estava no campo de golfe com Tony Rapello, todas as tardes saía exausto do ginásio e à noite, em Manhattan, jantava com os diretores do Plaza, do Pierre ou do Waldorf, recolhendo informações, novidades e estratégias. Regressava a casa já de noite, depois de ter dado uma volta na Broadway ou de ter assistido a algum espetáculo, e caía na cama, num sono sem sonhos.
Na manhã anterior ao seu regresso a Itália, voltou da cavalgada e encontrou don Salvatore à mesa do pequeno-almoço.
- O que é que te aflige? - perguntou-lhe o sogro.
Gregorio trincou um croissant com compota e resmungou:
- A mania de ir ver o que aconteceu em Milão.
- A mentira não te fica nada bem. Porque queres humilhar-te com essas patranhas?
- Então sou eu que lhe pergunto, respeitosamente, o que o aflige a si.
- Aflige-me o facto de ter dois netos, um já crescidinho e outro que ainda está para nascer, e nenhum ser legítimo. O primeiro não tem uma onça do meu sangue e o segundo... é filho de quem?
Por pouco Gregorio não se engasgou com o pedaço que tinha na boca, empalideceu, tossiu, bebeu um copo de água de um só fôlego.
- Como é isso... de o primeiro não ter uma onça do seu sangue? - murmurou.
- Não insultes a minha inteligência ao negar aquilo que sabes. Sal Matranga mostrava uma calma verdadeira, profunda, autêntica, envolvida por uma grande amargura. Gregorio pensou em
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Bob Matranga e na mulher, Florencia, e foi invadido por uma onda de recordações.
- Não sei mesmo... - murmurou, aflito.
- O meu filho Bob é estéril. De quem será o filho da Florencia?
Houve um longo silêncio.
- Eu não voltei a vê-la desde que... sabe bem desde quando
- balbuciou.
- Desde que ela ficou grávida, precisamente. Por mim, está bem assim. Corre-lhe nas veias um sangue bom, o teu. Qual é o sangue que vai correr nas veias do filho da Nostalgia? - desabafou.
Gregorio já não o ouvia. Pensava numa criança que nunca vira, que não sabia que tinha, que nunca desejaria ter tido, mas que lhe pertencia. Estava dividido entre a necessidade de saber e a vontade de fugir.
- Então, com quem foi que a Nostalgia concebeu este filho? insistiu don Salvatore.
- Pergunte-lhe a ela - sibilou Gregorio.
- Mas prefiro perguntar-te a ti. Sabes, rapaz, ainda está para nascer quem consiga dar-me a volta - afirmou, decidido.
Gregorio estava tão perturbado que declarou, por sua vez:
- Enquanto a Nostalgia não lhe disser nada, aquele filho é meu.
Atirou o guardanapo para cima da mesa, levantou-se e preparava-se para sair quando o sogro, com um salto impensável para um homem com a sua compleição e idade, se pôs ao lado dele, lhe fez frente e, com lágrimas nos olhos, lhe disse: - És um homem de honra, Gregory. Tens a honestidade no sangue, e eu não gostava que este neto fosse filho de um malandro. Anda cá, deixa-me abraçar-te. Tu e eu não temos parentesco nenhum, mas eu quero-te como se fosses meu filho.
- Eu sei, don Salvatore.
- E tu sempre me respeitaste como um pai.
- Mas o filho da Florencia... eu... eu...
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- É um teimoso, como tu. Eu estou a envelhecer e tenho momentos de fraqueza. Não perturbes a tranquilidade do Bob e da minha nora. Agora são felizes. Vês como tudo acaba por bater certo, na vida? Tu e o Bob estão destinados a fazer de pais de filhos que não são vossos. Está tudo bem, Greg.
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MILÃO
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Gregorio regressou a Milão no dia em que os Candiani se preparavam para partir para a sua casa no lago.
Era julho, e tinha explodido o verão. Quiseram que ele constatasse o avanço dos trabalhos que tinham acompanhado com profissionalismo e empenhamento. Gregorio passara os últimos dias a refletir, concluindo que, ao fim e ao cabo, Franco Fantuzzi se tinha comportado com Nostalgia como ele se comportara com Florencia. Ambos se tinham aproveitado de mulheres em dificuldades. O facto de Florencia o amar a ele, enquanto que Nostalgia detestava Franco, não mudava a situação, nem o absolvia de ter seduzido uma mulher casada.
Agora disse aos Candiani: - Sinto-me como se lhes tivesse dado as últimas semanas da minha criatura em gestação.
- Um filho soberbo - afirmaram eles.
O estaleiro de obras já tinha sido desmontado e entrara em funções a equipa da limpeza, enquanto alguns artífices davam os últimos retoques. Todos os dias chegavam camiões que descarregavam colchões caixotes de roupas, talheres, baixelas, baterias de cozinha e fardas para o pessoal.
Na roupa dos quartos, tal como na do restaurante, tinham sido bordados um D e um C, de Delta Continental. O mesmo monograma, na mesma cor, fora impresso nas porcelanas, nos copos de cristal e nos talheres em liga de prata.
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Agora tinham de enfrentar outra tarefa difícil: a escolha do pessoal.
Os Candiani indicaram-lhe um jovem diretor muito promissor que trabalhava no Excelsior de Roma.
Gregorio telefonou-lhe do dia a seguir à sua chegada a Milão, para marcar um encontro.
Era um homem de quarenta anos, de origem austríaca. Chamava-se Werner Mayer e, aos trinta e cinco anos, era já subdiretor do Ritz em Paris. Optara por se transferir para Roma para ser promovido a diretor. A sua meta era o Connaught de Londres.
Encontraram-se no escritório de Gregorio, depois de este lhe ter mostrado todo o hotel. Gregorio sabia exatamente qual era o seu salário no Excelsior. Por isso pôs-lhe à frente um papel onde escrevera uma quantia ligeiramente inferior, dizendo-lhe: - Esta é a minha primeira empresa, pronta para arrancar. O sucesso depende de quem a dirigir. Se daqui a um ano se revelar um fracasso, a responsabilidade será apenas minha; se for um sucesso, o mérito também será seu, e nesse momento poderemos rever a sua retribuição. Dou-lhe um dia para refletir e dar a sua resposta.
- Gosto de si, Mister Gregory. Ao aceitar, perco algum dinheiro, mas adoro desafios. Se daqui a um ano o hotel estiver em atividade, a minha retribuição será esta - disse Mayer, ao mesmo tempo que lhe estendia a mesma folha, na qual tinha escrito uma cifra muito consistente.
Gregorio sorriu e replicou: - De acordo.
- Então a minha resposta é sim. Estou cá daqui a uma semana. Deram um aperto de mão. Gregorio tinha contratado um diretor fantástico.
Mayer ia apanhar o avião para Roma nessa tarde e Gregorio convidou-o para almoçar no Don Lisander.
- Enquanto não abrirmos o Delta, esta será a nossa sala de jantar: cozinha milanesa, serviço ótimo, acolhimento excelente. O maitre sabe o que faz e eu levava-o de boa vontade para o nosso restaurante, mas tenho muito boas relações com os proprietários e não
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gostaria de lhes causar problemas. Acho que as relações de boa vizinhança são importantes - explicou Gregorio, enquanto se sentavam à mesa.
Mayer perguntou: - Já escolheu um nome para o restaurante do hotel?
- O nome e os caracteres também: "Isola1", cursivo inglês respondeu Gregorio.
- Lindo! Na mesma linha de Delta. No nosso meio fala-se muito de si, que se formou nos Estados Unidos e que tem ascendentes no Polesine. Imagino que se refira a uma pequena ilha ainda selvagem na confluência do Pó com o Adriático.
- Não exatamente. Isola é o nome da minha mãe, e escolhi-o para lhe prestar uma homenagem. O bar vai ser o Manhattan, que é o lugar onde desembarquei aos dezasseis anos como clandestino, tendo trabalhado como moço de fretes no transatlântico que me levou até lá.
Levantou os olhos e viu uma mulher, cingida num vestido de cetim de algodão às flores vermelhas e brancas. Do decote generoso emergiam uns ombros perfeitos que confluíam para um pescoço harmonioso, e deste nascia um rosto encantador emoldurado por uma farta cabeleira castanha. Estava acompanhada por um homem pequeno, gordo, de olhar vivo.
Levantou-se de repente, sorriu e foi ao encontro dela.
- Olá, Gianna.
Ela estendeu-lhe a mão, Gregorio inclinou a cabeça e beijou-lha levemente.
- Finalmente voltaste a aparecer! - exclamou ela. Depois dirigiu-se ao homem que estava ao seu lado e fez as apresentações:
- Paolo Rossi, Gregorio Caccialupi.
Os dois homens cumprimentaram-se com um aperto de mão. Gregorio disse: - Regressei ontem dos Estados Unidos. Posso ligar-te logo à noite?
1 "A Ilha". (N. da T.)
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- Claro que podes. Espero estar em casa para te atender rematou ela, enquanto o maítre ia ao encontro da bonita jornalista e do homem que a acompanhava.
Gregorio voltou para a mesa onde Mayer continuava sentado:
- Acho que vamos ter o prazer de receber várias vezes a Gianna Salvini para jantar. Escreve a crónica mundana sobre o quotidiano da cidade - confidenciou, ao mesmo tempo que a observava.
Depois de ter acompanhado Mayer ao aeroporto, foi à florista da via Manzoni para mandar entregar a Gianna um ramo de peónias brancas raiadas de cor-de-rosa e uma mensagem: "Depois da última vez que estivemos juntos, passei um mês em Nova Iorque. Atravessei um período muito difícil. Senti a tua falta."
Na realidade, quase a esquecera, ocupado como estava com aquela sua complicada história familiar. Mas, no momento em que voltou a vê-la, a atração que sentia por Gianna reacendeu-se.
Depois regressou ao hotel, onde se tinha instalado, tendo escolhido para si uma pequena suíte no primeiro andar. Rosina, a mulher que tinha trabalhado no apartamento da via Santa Croce, tratava agora dele.
- Parece-me que estou a tocar o céu com um dedo - confessou-lhe ela no dia em que a chamou ao hotel para lhe oferecer aquele emprego. - Nasci e vivi numa casa de operários. Quem havia de dizer que um dia ainda vinha parar a um grande hotel?
Assim que Gregorio entrou na suíte, Rosina anunciou-lhe:
- Mandei instalar no seu escritório uma senhora que veio perguntar por si.
- Quem é? - perguntou Gregorio.
- É uma pessoa que vai gostar muito de encontrar, porque é muito bonita.
Gianna Salvini estava sentada à secretária e, munida de papel e caneta, escrevia apressadamente qualquer coisa.
- Estás a trabalhar? - perguntou, assim que chegou à porta.
- Acabei de fazer uma entrevista e estou a escrever a peça que tenho de entregar até ao fim da tarde - respondeu ela. - Já estou adiantada. Mas posso fazer uma pausa - explicou.
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Pousou a caneta, levantou-se e foi ao encontro dele.
- Mandei-te umas flores - disse ele.
- Encontro-as quando chegar a casa. Para já encontrei-te a ti, e considero-me satisfeita.
- Em que ponto tínhamos ficado?
- Num "até breve". Mas não te vejo desde junho.
- Então temos de recuperar o tempo perdido.
- De que é que estás à espera?
- De me recompor da emoção. Anda comigo, vou levar-te à minha suíte.
Deu-lhe a mão e, juntos, subiram rapidamente as escadas.
Saíram da suíte era já de noite. Meteram-se no Topolino de Gianna e foram à procura de uma barraquinha que vendesse melancia.
Depois Gregorio apanhou um táxi para voltar ao hotel, enquanto Gianna regressava a casa para acabar o artigo que tinha de entregar no jornal.
No escritório Gregorio encontrou uma mensagem de Rosina: "Telefonou o vereador Fantuzzi. Pede para lhe ligar a qualquer hora."
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Não estava com vontade nenhuma de telefonar a Franco, até porque não tinha nada para lhe dizer e desejava ainda menos ouvi-lo. com este acabou, pensou, enquanto se preparava para ir para a cama. Deitou num copo dois dedos de whisky e levantou os olhos para a parede onde, sobre uma bonita consola veneziana do século XVIII, se destacava a tábua votiva que Sal Matranga fizera questão em lhe devolver para que lhe desse sorte na nova empresa de Milão.
Pareceu-lhe ouvir a voz da avó dizer: Cá se fazem, cá se pagam. com os ditados populares, Lena explicava todos os casos da vida. Mas... mas eu, pensou, eu não me aproveitei da mulher de um amigo... nunca vi a cara do Bob Matranga. Eu estava perdidamente apaixonado pela Florencia, conhecia-a e amava-a antes ainda de o marido ter aparecido em cena. Ela também me amava, mas era casada... e teve um filho... meu. No fim de contas, invertendo a ordem dos fatores, o resultado não ia mudar. Não sou uma alma imaculada e, como se isso não bastasse, ainda dei uns murros ao Franco. Será que aquela raiva não era toda contra mim mesmo? Será que o agredi porque via nele um outro eu de que não gosto? Num impulso, agarrou no auscultador do telefone, marcou o número de Franco e o amigo atendeu ao primeiro toque.
- Sou eu - disse Gregorio.
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- Finalmente - replicou o amigo.
- Como estás?
- Tudo ok. E tu?
- Bastante bem.
Era o diálogo atabalhoado entre dois amigos que procuravam perdoar-se um ao outro.
- Sinto muito - murmurou Gregorio.
- Culpa minha... sou um miserável - acusou-se Franco.
- O que é que estás a fazer?
- Estou à janela a contar as estrelas.
- Então anda ao hotel e bebemos um copo os dois.
- Faz de conta que já aí estou.
Gregorio desceu ao escritório e, pouco depois, o guarda-noturno apareceu com Franco.
- Jesus! O que aconteceu ao teu nariz? - perguntou Gregorio, quando o viu aparecer. Franco tinha um penso no nariz e duas manchas azuis por baixo dos olhos.
- Mandei arranjá-lo. Aproveitei os teus murros para tirar aquela bossa horrível que eu detestava. vou ficar lindíssimo.
- Se assim for, o mérito será todo meu.
- Muito obrigado e... quando eu puder retribuo - respondeu Franco. Sentaram-se em dois sofás, um em frente ao outro, e serviram-se de uma bebida. Depois Franco anunciou: - Mudei de casa. Aquela era alugada. Comprei um apartamento na via Bagutta. Uma casa popular, num prédio de varandas corridas. Valia a pena comprar o edifício inteiro, um grande negócio, se pensarmos que daqui a uns anos aquela rua vai ser muito valorizada. Se tivesse dinheiro, comprava-o eu... Mas tu...
- Eu estou mais teso que um carapau. Gastei tudo o que tinha dentro desta chafarica sem contrair uma dívida. Se isto for ao ar, não sei literalmente como é que me vou safar.
- Isto não vai ao ar, e tu bem sabes. Há imóveis, aqui à volta, a gritar com vontade de irem parar a mãos inteligentes. E temos os bancos e as companhias de seguros com vontade de investir. Tens
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este hotel por trás, e ninguém te recusaria um empréstimo. compra aquele edifício, Gregorio - encorajou-o.
Os poucos anos que passara a dialogar com Mr. Patterson tinham sido fundamentais para ele, que gostava apenas do dinheiro que podia gastar. E quando todo o seu capital se transformara num grande hotel, ou seja, em algo de tangível e bonito de se ver, compreendera a fundo o valor do dinheiro, que mais não era do que matéria bruta que era preciso trabalhar e transformar numa empresa ou numa obra de arte.
Dava-lhe prazer ser o dono do Delta Continental e gostaria também de possuir um prédio no centro de Milão. Era um negócio para agarrar, e ele já não tinha dinheiro. Mas tinha alguns amigos, e Howard Patterson era um deles.
Olhou para o relógio. Em Itália a noite ia avançada, mas na América os Patterson, quase de certeza, estavam a jantar na sua casa de Long Island. Se telefonasse a Howard, o banqueiro ia interromper o jantar para falar com ele, e Gregorio imaginou-se a pedir-lhe uma opinião, uma resposta a uma pergunta que naquele momento o afligia.
- Será que isto me está a subir à cabeça? Será normal endividar-me por causa da mania dos negócios? Eu lembro-me daquilo que me ensinou: o dinheiro não vale nada se não servir para ajudar os outros. E eu, quem é que eu posso ajudar? O banqueiro não é uma pessoa que conta o dinheiro e calcula os juros, mas alguém que sabe de música, de história, de filosofia. Eu não sei nada de nada... - disse, a olhar para Franco.
- Então, o que queres fazer? - perguntou o amigo. Gregorio pousou o copo, foi à janela e olhou para o céu. Depois voltou-se outra vez para Franco.
- Lembras-te dos nossos primeiros tempos em Nova Iorque? Tu seduzias as mulheres de meia-idade para lhes sacares uns trocos, e eu trabalhava na pizaria. Dava umas voltas pela cidade e observava, com espanto e com inveja, as pessoas da minha idade que frequentavam a universidade, vestiam com requinte e sorriam como sorriem os ricos, como sorri a gente que tem um status, que
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tem como garantida a existência de pessoas como eu para a servir. Observava-os, invejava-os e admirava-os. Eles nem me viam. Eu era transparente como o ar. E pensava: Não é justo! Eu e eles pertencemos à mesma raça, a raça humana. E então, porquê estas disparidades? Depois olhava melhor para aqueles rapazes e via nos olhos deles uma luz que eu não possuía e que provinha das longas horas de estudo. A cultura, mais do que o dinheiro, é que faz a diferença. O que é que eu sabia de música, de filosofia, de história? Era um ignorante. Então dava-me uma vontade desenfreada de ler, de aprender. Sabes quantas das minhas horas livres passei na National Library? Não, não sabes, porque eu não contava isto a ninguém. Levava livros emprestados e, quando podia, comprava outros. Naquele período aprendi de cor passagens inteiras da Divina Comédia e dos textos de Ariosto, cenas inteiras do Rei Lear e do Hamlet, excertos inteiros de Os Miseráveis e Os Malavoglia. Li e reli Tolstói e Samuel Johnson, Hemingway, Dos Passos e Fitzgerald e depois Proust e Melville. Também li os filósofos, os dramaturgos gregos e a Bíblia. E perguntava a mim mesmo: Porque é que foi inventada a escrita? Não era mais simples quando todo o conhecimento era pura e simplesmente contado? Um contava e o outro ouvia, memorizava e aprendia. Ninguém precisava de frequentar a universidade para fazer sentir a sua superioridade a um palerma como eu. E depois...
- Para, Greg! Onde é que me queres levar com estas reflexões?
Gregorio sentou-se outra vez à frente do amigo, esvaziou devagar o copo de whisky e disse: - Não sei. Mas digo-te que tu és um homem feliz, capaz de perdoar a quem te deu uns murros. Mas eu sou rancoroso e insatisfeito.
- Cá para mim, bebeste de mais - observou Franco. - A sério que ias à biblioteca? - perguntou, após um instante de silêncio.
- Ainda vou, de vez em quando. Tu não sabes como eu gostava de passar um serão com um filósofo, um escritor, um pintor. Não sabes como me sentiria feliz em apertar a mão a Sartre, a Quasímodo ou a Toscanini.
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- E eu venho falar-te de negócios. Tu não estás bom da cabeça
- resmungou Franco, ao mesmo tempo que se levantava e se dirigia à porta. ?:.-
- Mas onde é que tu vais?
- São duas horas, e amanhã há uma sessão na junta. Boa-noite.
- Estou mesmo com os copos - constatou Gregorio, quando o amigo se foi embora. Pensou que a sua vida estava muito complicada, que tinha em qualquer parte um filho que não conhecia, que gostava imenso de Gianna Salvini, e que no dia seguinte ia telefonar a Mr. Patterson e também a Nostalgia para pedir um conselho.
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Parecia mesmo que o verão não queria acabar. De vez em quando, um aguaceiro anunciava que o outono estava a chegar, mas depois regressava a calma e o sol ainda queimava a pele. No jardim do Delta Continental, os empregados punham as mesas para um jantar de gala em honra de um herdeiro rico que se ia casar com a sucessora de uma dinastia de industriais.
No quarto onde tinha dormido, Gregorio ouviu as vozes, os passos, o ruído das mesas a serem montadas. Tinha começado um dia que nunca mais ia esquecer. Ligou para o restaurante e pediu que lhe levassem o pequeno-almoço.
- O número do quarto, por favor - perguntou o empregado que atendeu.
Gregorio disse-o e o funcionário perguntou ainda: - Para quantas pessoas?
- Uma.
- O que devo servir?
- Um continental breakfast. Quanto tempo vai demorar?
- O tempo de preparar o carrinho, senhor.
Gregorio reconhecera a voz de Sandro, um jovem do Polesine que ele mesmo contratara, quando tinha quinze anos, como moço de fretes e que, passo a passo, tinha chegado primeiro a ajudante e depois a empregado de mesa.
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- Perguntei quanto tempo - insistiu Gregorio.
Houve uma ligeira hesitação. Provavelmente, ainda que alterada, Sandro tinha reconhecido a sua voz, ou talvez estivesse a calcular o tempo necessário. Sabia que, naquele momento, metade do pessoal da cozinha estava ocupado no jardim, e que havia mais hóspedes para servir.
- Seis minutos, senhor - respondeu Sandro, por fim.
Desde sempre, Gregorio tinha o hábito de passar algumas noites nos quartos dos seus hotéis, quer em Milão, quer em Roma, Veneza ou Nápoles. Era uma das melhores estratégias para se avaliar o acolhimento, a limpeza e a qualidade do serviço. À noite escolhia uma suíte ao acaso, ocupava-a e depois comportava-se como um hóspede normal. Assim que entrava no quarto, olhava em volta e cheirava o ar, acendia as luzes, abria os armários e arrumava a roupa, e entretanto ia verificando se as condições eram aceitáveis. Escutava o ruído do ar condicionado e tomava nota se lhe parecia incomodativo. Entrava na casa de banho e verificava se ali se encontravam as "cortesias", isto é, os sabonetes, as espumas de banho e duche, os champôs. As "cortesias" contemplavam tanv bem os cremes para o corpo e os produtos para as senhoras. A seguir, Gregorio tomava um banho ou um duche e verificava se as torneiras e o autoclismo funcionavam normalmente. Enquanto enfiava um roupão de felpo, apreciava o perfume que dele emanava e que era o mesmo que impregnava os lençóis acabados de lavar e todos os espaços do hotel. Depois ligava a televisão, enquanto examinava as "atenções" colocadas em cima de uma mesinha: a taça de pé com fruta fresca, o pequeno tabuleiro de porcelana com pequenos pastéis fragrantes, uma lembrança que variava em função da importância do quarto e que podia ser um pingente em prata para dar sorte, uma pasta com excelentes reproduções de gravuras antigas com imagens da cidade, um cinzeiro decorado à mão pelas manufaturas de Sèvres. Quando se estendia na cama verificava se o colchão era demasiado compacto ou mole. Dali observava todo o quarto, começando pelo teto. Se houvesse uma pequena teia de aranha ou um grãozinho de pó,
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descobria-os logo e tomava nota. Em suma, fazia aquilo que as governantas dos vários pisos executavam por sistema, mas que ele gostava de verificar pessoalmente.
O pequeno-almoço foi-lhe servido ligeiramente antes do tempo declarado, e Gregorio divertiu-se ao ler a surpresa nos olhos de Sandro, que lhe sorriu e disse: - O senhor consegue sempre enganar-me, Mister Gregory.
- Como é que estão a correr as coisas no jardim? - perguntou, enquanto o empregado preparava o serviço na mesa da sala.
- Tudo normal. O maítre mandou de volta para a lavandaria duas toalhas amarrotadas, o chefe aborreceu-se com o fornecedor do peixe porque nos entregou camarão-tigre em vez de lagostins, o diretor zangou-se com a florista por causa de umas hortênsias, partiram-se alguns pratos... tudo normal.
- Obrigado, Sandro. Mais tarde desço para ver o que se passa. Gerir um hotel com duzentos empregados não era tarefa fácil.
Gregorio possuía uma empresa com mil funcionários e, para que todos tivessem o salário assegurado e os hotéis produzissem um bom lucro, era necessário que aquela grande máquina de guerra funcionasse na perfeição.
Tomou o pequeno-almoço em frente ao televisor, acompanhando um telejornal que transmitia as notícias da política.
No meio das outras notícias, interessou-lhe uma reportagem sobre um médico americano que lançara um método de ginástica aeróbica para conservar uma excelente forma física.
No último andar do Delta Continental existia, havia já algum tempo, um ginásio ultramoderno com instrutores treinados por Sal Caccialupi, apreciado sobretudo pelas senhoras.
Subiu ao ginásio, vestiu o fato de treino, dedicou dez minutos ao aquecimento com a bicicleta, outros dez aos exercícios respiratórios, depois começou os exercícios no chão para os abdominais e os glúteos, os pesos para os músculos peitorais e dorsais, tudo executado com um instrutor que o acompanhava constantemente e o encorajava de cada vez que ele, queixando-se, exclamava: - Mas quem me manda a mim fazer estas coisas!
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- Olhe para o espelho e vai ver a resposta. Tem cinquenta anos e está mais em forma do que um homem de trinta, Mister Gregory.
- vou fazer cinquenta e cinco, como tu bem sabes, e só me lisonjeias porque eu sou o patrão.
- E porque recebo umas gratificações quando os clientes ficam satisfeitos - brincou o instrutor.
Quando terminou o programa de exercícios, entrou na zona de relaxamento e entregou-se às mãos sábias de um massagista experiente. Foi então que tocou o aparelho que tinha no bolso do roupão.
- Não atenda, Mister Gregory - sugeriu o massagista.
- Passa-mo - pediu ele, sentando-se.
Era Mayer, o diretor, que lhe disse: - Mister Gregory, acho que tem de ir rapidamente ao duzentos e um.
Numa cama encharcada de sangue, uma mulher de feições irreconhecíveis arquejava.
Ao lado da cama, o diretor, a empregada do piso, a governanta e o boy olhavam para ela, mudos e assustados.
- Chamaram uma ambulância? - perguntou Gregorio, enquanto observava aquele corpo martirizado de uma jovem de cabelos negros, fluentes e sedosos.
- Chamei o médico do hotel... para não causar alarme... o nosso bom nome... - balbuciou Mayer.
- Chamem imediatamente uma ambulância - ordenou, ao mesmo tempo que se debruçava sobre a jovem e lhe tomava o pulso fino para controlar a pulsação. Estava muito fraca.
O quarto encontrava-se num desalinho absoluto. Abat-jours e poltronas virados ao contrário, copos partidos e roupas espalhadas por todo o lado indicavam que tinha havido uma luta tremenda.
- Só nos faltava isto, com tudo o que há para fazer para a festa desta noite - resmungou Mayer.
Em tantos anos, nunca acontecera um episódio semelhante. Num grande hotel, todos os dias acontece alguma coisa, todos os
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dias há um hóspede difícil que por vezes cria problemas. Mas um espetáculo como aquele era realmente perturbante.
- Sabem quem é? - perguntou Gregorio.
- É uma tal Erminia Rovelli. Chegou ontem à noite, com um suíço de Berna, um tal Joseph Hutter. Já no bar não tinham passado despercebidos. Depois ele pediu a chave ao Santini e subiram até ao quarto. Mandaram vir champanhe e canapés... - começou Mayer a contar.
- Ela é lindíssima - sussurrou o boy, que na noite anterior os tinha levado de elevador até ao primeiro andar.
Chegaram quatro voluntários da Cruz Vermelha, que transferiram a mulher para uma maca, enquanto um quinto preenchia um formulário que o diretor assinou.
- vou vestir-me e encontro-me convosco no hospital. Tu e tu disse, indicando a governanta e a empregada de quartos - metam-se na ambulância e vão com ela.
A maca foi transportada pelo corredor de serviço e dentro do monta-cargas, enquanto Gregorio se vestia e pensava nas complicações que ia ter de enfrentar no caso de a rapariga estar morta.
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No meio dos médicos que andavam às voltas pela Urgência, Gregorio descobriu o Dr. Giorgio Zanetto, que era seu conterrâneo e que ele conhecera uns anos antes no aeroporto de Varsóvia, enquanto esperavam o embarque num voo para Itália. Depois disso, o médico adquirira o hábito de almoçar com a mulher no Ulsola, o restaurante do hotel de Gregorio, todos os primeiros domingos de cada mês, se não estivesse de urgência no hospital.
Conhecendo o salário dos médicos que trabalhavam nos hospitais, Gregorio dera instruções ao maítre no sentido de lhe fazer um "preço especial", que reduzia a conta a uma soma simbólica.
Às vezes, quando tinha tempo, sentava-se à mesa deles e conversavam.
O médico também o viu e foi ao encontro dele.
- O que foi que lhe aconteceu? - perguntou. Gregorio contou-lhe.
- vou já saber. Espere aqui por mim.
Regressou ao fim de uma hora e explicou-lhe que a mulher tinha um traumatismo craniano e escoriações em todo o corpo.
- Estão a considerar a hipótese de uma intervenção cirúrgica se a hemorragia não parar.
- O polícia de turno diz que a rapariga tem cadastro como prostituta. Tem muitos clientes ricos e uma quantidade de parentes ; para sustentar - sintetizou o médico.
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- O que é que eu posso fazer por esta desgraçada? - perguntou Gregorio.
- Neste momento, nada. Volte ao seu trabalho e, se houver novidades, eu informo-o.
Gregorio não se decidia a ir embora.
- Não é só pelo bom nome do hotel. O facto é que estas histórias horríveis me deprimem - confessou.
- Ao fim e ao cabo, estas desgraçadas são as vítimas dos nossos vícios - observou o médico.
- Fale por si, doutor. Eu só estive com uma prostituta uma vez, aos quinze anos, e foi uma experiência assustadora. E, em qualquer caso, nunca seria capaz de levantar a mão a uma mulher - retorquiu ele.
- A violência não é só a física. Há maridos irrepreensíveis e pais exemplares que destroem mulheres ou filhos com a sua crueldade psicológica. Basta dar aqui uma volta pela psiquiatria para se dar conta disso. Só sobrevivem as mulheres dotadas de um equilíbrio à prova de bomba.
- Posso fazer alguma coisa por esta... - Tentou lembrar-se do nome, e prosseguiu: - Erminia Rovelli? Será que posso vê-la?
- Venha comigo.
Levou-o para fora da Urgência, depois subiram umas escadas e percorreram um labirinto de corredores até um pequeno quarto de uma só cama onde a rapariga estava deitada, imóvel, com o rosto parcialmente tapado por uma máscara de oxigénio e uma agulha enfiada num braço. Parecia uma boneca de trapos.
- Está em coma induzido. Daqui por umas horas vamos ver como evolui - explicou o Dr. Zanetto.
- Posso ficar aqui uns minutos? - perguntou Gregorio.
- Esteja à vontade - disse o médico, indicando-lhe uma cadeira aos pés da cama. Depois despediu-se dele e saiu.
Gregorio ficou ali a olhar para a rapariga e relembrou as palavras do rapaz que trabalhava nos elevadores: "Ela é lindíssima."
Recordou muitas mulheres da sua terra, jovens e bonitas, que os maridos maltratavam. Quantas delas tinham morrido consumidas
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por gravidezes consecutivas ou mortificadas por murros e pontapés? Ninguém achava que as devia levar ao hospital.
Esta, então, tinha ido parar a um daqueles circuitos de prostituição que cada vez com mais frequência andavam nas primeiras páginas dos jornais. Havia sempre uma intermediária, com o aspeto de mulher com classe, que pagava a raparigas bonitas para as mandar às festas de industriais famosos, de nobres ricos, de homens da alta finança, nas suas coutadas, nas casas de campo ou de praia, nos barcos ancorados na Sardenha ou na Ligúria. Aí acontecia de tudo. Rios de champanhe e linhas de cocaína propiciavam orgias trágicas. Por vezes uma dessas raparigas morria. Então abria-se um inquérito policial que, no entanto, era rapidamente arquivado. E a dança recomeçava, porque no fim os investigadores e as pessoas de bem diziam: - No fundo, era uma prostituta.
- Antes de mais, era uma mulher - murmurou Gregorio, e acariciou-lhe uma mão.
Esperou que vivesse e, se assim-fosse e ela lho permitisse, ia tomar conta dela.
Saiu do quarto e, vencido por uma tristeza infinita, regressou ao hotel.
O diretor tranquilizou-o: ninguém tivera conhecimento daquele episódio terrível e o pessoal sabia manter a boca fechada. Agora havia um monte de trabalho à espera dele.
- Temos um problema com um bagageiro - disse-lhe Mayer.
- Qual? O Ruço de Maupelo ou o mister Tartamudo? Acontecia por vezes o pessoal, sobretudo o mais recente, ser
conhecido por uma alcunha que tornava imediatamente identificável a pessoa em questão.
- O Ruço. Desapareceu uma pasta no trajeto da entrada até ao quarto. O porteiro lembra-se de a ter visto quando o Ruço a pôs no carrinho, juntamente com o resto da bagagem. Mas nunca chegou ao quarto - explicou Mayer.
- De quem é a bagagem?
- De Rosa Manfredi, a deputada socialista.
- E o que é que diz o Ruço?
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- Procedeu-se como é habitual. Primeiro interrogou-o o porteiro, depois foi o Santini que falou com ele e por fim a secretária da direção. Nega. Diz que nunca viu aquela pasta. No armário dele não está. Se pegou nela e a meteu em algum sítio, nunca mais a encontramos. Se o despeço sem provas, os sindicatos caem-nos em cima. A Manfredi está a fazer um escândalo, porque afirma que lá dentro tinha documentos importantes e uma soma razoável em dinheiro. O que é que fazemos? - perguntou o diretor.
- Uma denúncia conjunta, nossa e dela, à polícia. O seguro trata da indemnização. Entretanto, vou ter com a deputada Rosa Manfredi e apresento-lhe as nossas desculpas - disse Gregorio.
- Mister Gregory, eu não acredito nela - confessou o diretor, quando Gregorio se preparava para sair do gabinete.
- Porquê?
- Já fez esta brincadeira em Capri e, há uns anos, no Gritti de Veneza. Eu soube pelos diretores dos respetivos hotéis.
- Mas há o testemunho do porteiro.
- Que é cego como uma toupeira e insiste em não usar óculos.
- De qualquer maneira, vou pedir desculpa e dizer ao Santini para lhe mandar flores.
- E uma marcação para uma consulta psiquiátrica - resmungou Mayer.
Por muito selecionados que fossem os hóspedes, nunca faltavam personalidade insuspeitas que inventavam pretextos para não pagar, para roubar roupa dos quartos ou pequenos objetos valiosos. Os furtos eram contemplados na gestão e representavam uma parte que não podia de forma alguma ser descurada. Gregorio teve um dia cansativo que terminou de noite, já tarde, quando a festa no jardim terminou de forma feliz. Às seis da manhã já estava no aeroporto para se dirigir a Palermo, onde tinham surgido pequenos problemas que deviam ser solucionados com mil e uma cautelas, porque ali também era preciso gerir o aspeto político. A imagem da rapariga torturada esfumou-se. Ao fim de alguns dias, quando se preparava para partir para Roma, telefonou-lhe a secretária de Mayer.
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- Ligou o Dr. Zanetto. A Erminia Rovelli foi operada à cabeça e está bem. Pediu-me para o avisar - comunicou-lhe a funcionária.
Gregorio alterou a reserva do voo e regressou a Milão. Um táxi levou-o de Linate até ao hospital onde a rapariga estava internada.
Erminia Rovelli estava sentada na cama a comer uma sopa de legumes.
Levantou os olhos para o cavalheiro que tinha aparecido à porta e lhe dirigiu um sorriso radioso e perguntou: - Desculpe, o senhor quem é?
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Gregorio deu dois passos dentro do quarto, pousou o saco de viagem aos pés da cama, sem afastar os olhos daquele rosto doce, iluminado por uns grandes olhos escuros. Apresentou-se.
- Há aqui um médico que vem ter comigo todos os dias. Diz que é seu amigo.
- É o Dr. Zanetto.
- Esse mesmo. Mas sente-se. Uma visita aqui, a primeira e certamente a última, merece alguma cerimónia, e sempre é um pretexto para deixar de lado esta porcaria que o hospital me serve
- disse, enquanto afastava o tabuleiro do almoço.
- Está mesmo bem! - disse Gregorio, satisfeito.
- Peço-lhe desculpa pela confusão toda que causei no seu hotel.
- Nada de especial.
- Espero que isso seja uma mentira.
- E é. Nos hotéis acontece de tudo, mas uma violência como aquela de que foi vítima eu nunca tinha visto.
- Nem eu - disse ela, ao mesmo tempo que passava uma mão pelo crânio rapado, marcado por algumas cicatrizes. - Parece que me safei por uma unha negra. Não que esta vida me interesse assim tanto... mas, enfim... se conseguir pôr as mãos naquele desgraçado que me bateu, juro que lhe espeto uma faca na garganta.
- Já foi denunciado, tem em cima um mandado de captura.
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- Vai safar-se. Os psicopatas safam-se sempre.
- Posso fazer alguma coisa, entretanto?
- Já fez muito ao vir visitar-me.
- Logo à noite vou mandar-lhe um jantar mais aceitável.
- Agradeço-lhe muito, mas o senhor não tem nenhuma obrigação em relação a mim.
- Olhe que tenho. Arriscou-se a morrer na minha casa.
- A erva daninha nunca morre... Obrigada pela visita e fiquemos por aqui - concluiu, estendendo-lhe a mão.
Gregorio levantou-se. Pegou no saco e disse: - Voltaremos a ver-nos, erva daninha.
Conforme o prometido, mandou-lhe um jantar leve e requintado. No dia seguinte mandou-lhe um bouquet de pequenas rosas brancas, um cesto de fruta fresca e uma caixa de biscoitos. E no outro dia a seguir mandou entregar-lhe mais flores, água de colónia e um roupão de chenille branco. Voltou a Roma, onde deveria ficar uma semana, mas deixou ordens aos seus funcionários para lhe levarem o jantar todas as noites.
Ao escritório de Roma, enquanto decorria uma reunião com o pessoal da cozinha, chegou uma chamada interurbana de Milão.
- Será que não quer deixar de me importunar? - começou uma voz que reconheceu imediatamente.
- Fique tranquila, eu só desejo ajudá-la. Agora tenho que fazer. Desligou a chamada, a sorrir.
Quando Gregorio regressou a Milão, encontrou em cima da mesa da sua sala todos os presentes que lhe tinha mandado, menos a comida e as flores.
Ligou então ao Dr. Zanetto.
Soube que Erminia tinha tido alta e que tinha regressado a casa. Conseguiu o endereço no registo dos clientes e descobriu que ela morava numa viela nas imediações do Foro Bonaparte.
Uma noite, quando estava a jantar no seu escritório na companhia de Franco Fantuzzi, que naquela altura era subsecretário do partido, contou-lhe a história de Erminia.
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- Não posso oferecer-lhe nada, porque me manda tudo para trás. Estou a pensar ir ter com ela. O que é que tu dizes?
- Digo que no limiar dos cinquenta anos te deu uma pancada tremenda - replicou Franco.
- Por favor! A rapariga tem vinte anos... podia ser minha filha! - disse, escandalizado.
- Só que não é. Mas está atento, porque é uma galdéria muito inteligente, e se rejeita os perfumes e a roupa, isso significa que quer mais alguma coisa.
Gregorio pareceu surpreendido com aquela consideração.
- Tu achas? Nããão... ei vi-a, falei com ela... é uma revoltada contra o mundo inteiro.
- Oferece-lhe um brilhante e vais ver como ela amansa - insistiu Franco.
No dia seguinte Gregorio entrou no estabelecimento do seu joalheiro de confiança.
- Preciso de uma jóia pequena mas importante, e que não se veja que é muito cara.
Gregorio era um ótimo cliente, e o comerciante considerou com atenção aquele pedido. Finalmente, tirou do cofre um estojo com um pequeno alfinete em forma de mosca.
- Como pode ver, o corpo é um diamante amarelo, as asas são diamantes azuis e a cabeça um pequeno e puríssimo diamante azul-escuro. É um alfinete criado pela Tiffany nos anos vinte. É de uma cliente que se quer desfazer dele - explicou.
- Agora é meu - afirmou Gregorio, enquanto preenchia um cheque.
Quando tocou à porta de Erminia, tinha no bolso do casaco o pequeno estojo com o alfinete.
- Não encontrei o seu nome na lista telefónica. Por isso, peço desculpa por estar aqui sem aviso prévio - disse, a balbuciar um pouco, porque a rapariga que um mês atrás tinha o crânio rapado ostentava agora uma farta cabeleira. E era muito bonita, apesar de usar uns jeans gastos e uma T-shirt deformada.
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- Entre. - O tom da sua voz era brusco e, tendo reparado na surpresa de Gregorio por causa do cabelo comprido, acrescentou:
- É uma peruca.
Gregorio entrou num aposento que era cozinha, sala de estar e quarto de dormir. O conjunto refletia um sentido de ordem quase maníaco. Através de uma porta envidraçada, que dava para um pequeno terraço, viam-se plantas em vasos e um gatinho preto e branco que dormitava na soleira.
- Pois bem, este é o meu reino - exclamou. - Agora diga-me o que quer de mim. Eu sei que pareço agressiva, mas ponha-se no meu lugar. O senhor sabe quem eu sou e, por muito estranho que isso possa parecer, sinto-me embaraçada.
Gregorio estava ali, em pé, no meio da sala, e não ousava dar um passo, uma vez que ela lhe fazia frente, severa.
- Tudo aquilo que eu lhe queria transmitir era um sentimento de solidariedade, uma maneira de lhe comunicar que nem todos os homens são depravados. Se fosse minha filha, e podia muito bem ser, dizia-lhe: "Deixa que te ajudem a recomeçar uma vida melhor" - afirmou Gregorio.
- Mas o senhor não é meu pai, e os meus problemas não lhe dizem respeito. A propósito, se por acaso um dia tiver alguma fantasia... dirija-se a outro sítio, porque eu fechei a loja. Refleti muito e acho que fiz tudo de errado na minha vida. Portanto, se não se importa, obrigada e passe muito bem - disse, dando o assunto por encerrado, ao mesmo tempo que lhe indicava a porta de casa.
- Não voltarei a importuná-la - garantiu-lhe, enquanto abria a porta. Mas antes de sair tirou do bolso a caixa do joalheiro e entregou-lha, avisando-a: - Isto é só para lhe desejar boa sorte. - Ia fechar a porta atrás de si quando ela o deteve.
- Espere, quero ver o que é este presente.
Abriu a caixa, viu aquele alfinete minúsculo e comentou: - com certeza o senhor tem dinheiro a sair-lhe pelas orelhas, mas não sou eu quem lho vai apanhar. Esta jóia minúscula, de muito bom gosto, não é para mim. - Entregou-lha e acrescentou: - Como lhe disse, já não sou uma cotovia, nem me deixo encantar pelos espelhos.
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Gregorio foi-se embora com a consciência de que Erminia nunca tinha sido uma prostituta, nem mesmo quando o era por profissão.
Ia a entrar no elevador quando ela abriu a porta de repente e lhe disse: - Eh, grande patrão, ajuda-me a arranjar um trabalho honesto?
Gregorio conseguira conquistar a confiança daquela rapariga. E ia ajudá-la.
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- Diz ao Mayer para vir ao meu gabinete - ordenou Gregorio a Santini, assim que chegou ao hotel.
- Já foi embora. Sabe que ele ia àquele congresso em Atlanta lembrou-lhe o chefe da receção.
- Então manda-me "sua excelência" o general manager - concluiu. Referia-se a um jovem licenciado em Economia que Mayer lhe tinha quase imposto, explicando-lhe que a gestão dos hotéis se tornara muito complexa e que devia ser confiada a uma pessoa competente. Gregorio não o suportava porque enrolava os erres, olhava para toda a gente de cima e punha-lhe entraves sempre que ele decidia meter-se em despesas extraordinárias. Por isso lhe chamava "sua excelência" e o mantinha à distância, apesar de perceber a utilidade do seu papel num momento em que a concorrência entre hotéis se tornara impiedosa.
- Está na Bocconi, num curso de atualização - respondeu Santini, impassível.
- Então queres dizer-me quem é que manda nesta chafarica? sibilou, furioso, porque havia hóspedes no hall. E começou a subir as escadas, blasfemando em silêncio contra todos os seus colaboradores mais chegados. Entrou no escritório. O telefone estava a tocar, levantou o auscultador e berrou um "Estou" que deixou o interlocutor perplexo.
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- Mister Gregory, vou mandar-lhe o Dr. Pancaldi - avisou Santini.
Pancaldi era o executive manager do hotel. Também ele tinha formação superior, mas não se dava ares disso e trabalhava aplicadamente.
- Manda-me também café - disse a Santini. - Para dois acrescentou.
Deixou-se cair no sofá e tentou descontrair, ao mesmo tempo que perguntava a si mesmo por que razão tinha perdido as estribeiras e estava com aquele mau humor cuja razão não conhecia.
Ou talvez sim. Aquela Erminia Rovelli estava a tornar-se numa obsessão1, uma irritação, mesmo. E murmurou: - Um nome, um destino. - Recordou-a altiva como uma rainha, linda de cortar a respiração, amarga como o café sem açúcar e depois, subitamente, lhe pedira para a ajudar a arranjar um trabalho honesto. E ele que tinha feito aquela triste figura ao meter-lhe uma jóia na mão! Porque tinha sido tão estúpido a ponto de dar ouvidos à sugestão de Franco? Franco Fantuzzi nunca tinha percebido nada em relação a mulheres, e a sua vida sentimental, se é que tinha tido alguma, era um verdadeiro desastre. A última amante, uma famosa cantora napolitana, tinha divulgado a notícia daquela relação através dos jornais mais sensacionalistas, e processara-o por prejuízos.
Erminia era um outro tipo de mulher. Era inteligente e orgulhosa, e ele estava a apaixonar-se por ela. Pelo menos quanto a isso, Franco tinha razão. Há quanto tempo não perdia a cabeça por uma mulher? Bem, só há dois ou três anos, pensou. A última paixão tinha sido Luciana, uma estrela do Lido de Paris. Tinha quarenta anos, mas dizia que tinha trinta, e apresentava um corpo de vinte. Era mais inconstante do que uma estação caprichosa e, por fim, ele despachara-a com um carro de luxo cor de rebuçado. Ela nem sequer lhe agradeceu. Substituiu-o imediatamente por um barão inglês, mas, numa entrevista ao Sunday Mirror, declarou: "O único
1 Rovello, em italiano. (N. da T.)
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homem digno desse nome foi um ítalo-americano que eu nunca esquecerei. Deixou-me com um gesto muito elegante. Foi pena." O seu orgulho de homem tinha exultado.
- Posso entrar? - perguntou Pancaldi, ao mesmo tempo que entreabria a porta do escritório. Atrás dele vinha Sandro com o tabuleiro do café.
- Sente-se - disse Gregorio.
Esperou que o empregado saísse, serviu o café para ele e para o executive manager e depois começou, com um sorriso: - Como é que vai, meu caro?
- Como sempre, Mister Gregory. Se puder ser-lhe útil... - respondeu Pancaldi, sem se alterar.
- Lembra-se daquela desgraçada que foi agredida aqui no hotel?
- Continua a ser um pesadelo! De vez em quando chega a polícia à procura de informações que nós não temos. Aquele suíço parece ter-se evaporado...
- Muito bem. A mulher ficou curada e anda à procura de um trabalho honesto. O que é que lhe podemos oferecer?
- Queria que fossemos nós a contratá-la?
- E quem mais poderia ser?
- O que é que ela sabe fazer?
Gregorio não fazia a mínima ideia. Lembrou-se do esmero da sua casa minúscula. - Acho que podia ser contratada como empregada de quartos - disse.
- Não precisamos de empregadas de quartos.
- No caso da Erminia Rovelli, sim, precisamos. Está aqui a direção dela - continuou, tirando do bolso do casaco um papel que entregou a Pancaldi.
Era uma ordem, e Pancaldi guardou para si a perplexidade e as complicações que esta nova e extravagante contratação iria desencadear.
- Como queira, Mister Gregory - respondeu. Pousou a chávena em cima da mesa e levantou-se para se ir embora.
- Só mais uma coisa: vamos evitar colocá-la no andar em que ocorreu aquele episódio dramático.
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- com certeza, senhor.
Gregorio deu um grande suspiro de alívio. Foi até à janela para respirar o ar ainda tépido daquele outubro fantástico em Milão e depois sentou-se à secretária a ver o correio. No meio das cartas, havia uma da mãe. Reconheceu-a pela caligrafia infantil e decidida. Há muitos anos que Isola lhe escrevia em ocasiões festivas. Também ele, naquelas ocasiões, lhe mandava entregar cestos de flores, acompanhados de um bilhete que continha sempre a mesma frase: "Para a única mulher da minha vida." Agora Isola vinha desejar-lhe bom aniversário. Ele olhou para o calendário. Era o dia três de outubro. No dia seguinte fazia cinquenta e cinco anos e a mãe, que andava pelos setenta e dois, não deixava de pensar nele. Tinha uma vontade louca de voltar a vê-la, de a abraçar, mas limitava-se a querer-lhe bem sem nunca se encontrar com ela pessoalmente.
Um destes dias vou visitá-la, pensou, enquanto pegava no auscultador para lhe ligar.
Atendeu um empregado que lhe disse que a senhora tinha ido ao cabeleireiro. Recebeu a informação com uma sensação de alívio, porque entre os dois continuava a existir um mal-estar que nunca fora resolvido. - Por minha culpa - disse, enquanto desligava a chamada. O telefone tocou e a telefonista passou-lhe Franco Fantuzzi.
- Tens alguma hipótese de voltar a Roma por estes dias? perguntou-lhe o amigo.
- Acabei de vir daí... - respondeu, perplexo.
- Há um assunto muito importante de que te queria falar.
- Se é assim tão importante, porque não vens tu a Milão?
- Acho que é melhor.
Dois dias depois o deputado Fantuzzi chegou ao Delta Continental de Milão, onde havia sempre uma suíte ao seu dispor.
Os dois amigos fecharam-se no escritório de Gregorio e Franco começou: - Venho propor-te o negócio da tua vida.
Gregorio sabia que lhe devia a excelente aquisição daquele hotel de Milão e do de Roma. Por isso, preparou-se para o ouvir.
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- Manda - disse-lhe.
- Gostavas de construir um aldeamento turístico na Calábria?
- É uma região que não conheço... acho que lá por baixo anda muita Ndrangheta2. Ou será que estou enganado?
- Como na Puglia há a Sacra Coroa Unida e na Sicília a Máfia. Mas o teu hotel de Palermo vai de vento em popa e nunca ninguém te incomodou.
- Isso ainda está para se ver - resmungou Gregorio, a pensar nos inúmeros aborrecimentos que lhe dava aquele hotel, onde era obrigado a admitir pessoal recomendado, a hospedar gratuitamente alguns políticos locais particularmente invasivos, a fazer ofertas generosas para a Santa Rosália. Obviamente, guardava para si esses aborrecimentos e não falava sobre isso com ninguém.
- Na costa jónica, não muito longe de Gerace, um lugar de sonho. Tens de lá ir e, quando vires, vais perceber.
- Se me falasses da Sardenha, eu até podia pensar nisso. Mas a Calábria...
- Não digas nem mais uma palavra e ouve o que eu te digo. Cem hectares que sobem da praia em direção à montanha, uma paisagem que te vai deixar sem fôlego, as ruínas da Magna Grécia a dois passos, duas casas de Bourbons que remontam ao reino das duas Sicílias, e umas instalações colossais da Esso que os americanos abandonaram há muito tempo e agora vão ser desmanteladas. Eu vi em Roma os projetos para a construção de um aldeamento de cinco estrelas. É um negócio de perder a cabeça. É o negócio da tua vida.
1 Associação criminosa da Calábria. (N. da T.)
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Poucos dias depois, Gregorio viajou até à Calábria com Franco. Não quis a companhia de uma equipa de técnicos, como o amigo lhe propusera.
- Quero ver sozinho, em santa paz, este negócio colossal
- disse.
Foi com Franco e, juntos, subiram a encosta arenosa de onde se via Gerace. De lá de cima observou a planície entre as Serre e o Aspromonte onde soprava, por entre as oliveiras, o vento do mar. Viu à distância a infinita extensão de um território posto à venda e que ele poderia adquirir. Visitou o burgo medieval e a antiga catedral da Assunta, sentiu os ecos de batalhas inglórias com os sarracenos, os aragoneses, ouviu os gritos vitoriosos de Roberto, o Guiscardo, e os dos soldados do papa Sisto IV, pensou em Fernando, o Católico, e na tirania feroz do duque de Terranova e sentiu-se num universo rarefeito. Teve quase uma tontura, um nó de comoção apertou-lhe a garganta e percebeu que estava a sonhar de olhos abertos.
- Estou comovido - sussurrou.
- É esta a magia da Calábria, e não há criminalidade que resista. Acontece que os selvagens da indústria estão a tentar destruir esta maravilha. Chegam como vândalos, ocupam, saqueiam, erguem edifícios medonhos, depois põem-se a andar porque vêem
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que aqui não dá. Não são os criminosos, é antes a magia desta terra que os manda de volta para o sítio de onde vieram - disse Franco, entusiasmado.
Regressaram ao automóvel com que tinham chegado e percorreram a costa. Gregorio olhava em volta e já via o seu aldeamento de cinco estrelas, com a possibilidade de chegada por mar ou através de um helicóptero. Imaginava um burgo com as ruas calcetadas de pedra clara, pequenas lojas onde os hóspedes selecionados poderiam adquirir o azeite e o vinho daquela terra que cheirava a orégãos e a malagueta, a agave e a mimosa, e os produtos artesanais, fruto de uma sabedoria consolidada ao longo dos séculos. Via representações teatrais, concertos de grandes orquestras, colóquios literários, récitas de poesia. Ali poderia erguer-se a sua "cidade do sol".
- Então, queres fazer este negócio? - perguntou Franco.
- Preciso de refletir - disse ele, lacónico.
Separaram-se no aeroporto de Reggio Calábria. Franco apanhou um voo para Roma e Gregorio um para Milão.
Assim que chegou, fechou-se na suíte do Delta Continental e dormiu até à hora de almoço do dia seguinte. Quando acordou, pediu o pequeno-almoço e mandou chamar Mayer, que acabara de chegar do congresso em Atlanta.
Enquanto barrava de manteiga uma fatia de pão torrado, o diretor fez-lhe o resumo do congresso. Gregorio ouviu-o, sem prestar demasiada atenção. Mayer conhecia-o o suficiente para saber que o patrão tinha em mente alguma coisa que o absorvia por completo. Por isso calou-se e serviu-se de café, apesar de ter preferido, dado o adiantado da hora, um prato de esparguete.
Gregorio bebeu um último gole de café, levantou-se, apertou o cinto do roupão de seda azul, pousou as mãos em cima da consola e ficou ali algum tempo, a olhar para o ex-voto da sua infância que se destacava sobre a parede nua.
Depois virou-se e perguntou: - Você sabe o que representa esta tábua?
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- Alguém me disse qualquer coisa... sobre uma cura milagrosa...
- Este menino - explicou, apontando com o indicador para a figura mais pequena - sou eu. O homem que está ao lado é o meu pai. Morreu há vinte anos, no Brasil. A mulher deitada na cama é a minha mãe. Aquela criança soube inventar uma vida. Agora possui seis grandes hotéis e, uma vez que começa a envelhecer, ainda podia decidir-se a gozar o fruto de tantas canseiras. Se o fizesse, o que é que você diria? - perguntou, ao mesmo tempo que voltava a sentar-se. Acendeu um cigarro, aspirou com prazer a primeira fumaça e descontraiu-se contra as costas da poltrona.
- Diria que tinha tomado uma decisão muito sensata - respondeu Mayer.
- Mas a sensatez é o para-vento dos velhos quando já não têm vontade de dizer, fazer, pensar, e começam a cuspir sentenças. com essa tal sensatez, Colombo nunca teria descoberto a América, Jesus não teria andado pelo mundo a pregar o Evangelho, e eu agora seria um velho camponês do Delta, cheio de reumatismo e com as costas desfeitas.
Mayer sorriu, observando aquele homem extraordinário, com um físico de atleta e o rosto ligeiramente marcado por minúsculas rugas que lhe acentuavam o fascínio. Era um orador excecional e conseguia atrair sobre ele não só a atenção das mulheres, como também a dos homens. Os seus colaboradores, e ele também, adoravam-no.
- Não estará a confundir sensatez com prudência, Mister Gregory?
- A prudência é filha dela e caminha em bicos de pés, tal como o medo.
- Onde quer chegar? Ainda não me disse.
- Quero comprar um sonho. vou explicar-lhe. E contou-lhe a sua viagem à Calábria
- Espero que continue a ser um sonho. É uma coisa demasiado grande e complicada para mim - observou Mayer.
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- Também o é para mim. Não fui a Scilla, mas ouvi igualmente o canto das sereias.
- Então precisa de arranjar alguém que o amarre ao mastro do barco, como os marinheiros fizeram com Ulisses.
- O que é que o assusta?
- As conivências políticas e os bancos. com os políticos é preciso estar-se sempre atento; com os bancos... esses querem garantias. O senhor hoje possui um património imenso, representado pelos seus hotéis. Os bancos vão querê-lo como garantia. Se a operação correr mal, perde tudo.
- No meu sonho, a operação é um sucesso.
- Espero reformar-me antes de o senhor embarcar nessa aventura. Eu sou velho e prudente, o senhor é jovem e corajoso.
- Obrigado, Mayer. Você disse-me aquilo que eu queria ouvir.
- Não vai fazer o negócio?
- Sou jovem e corajoso - decretou.
Quando estava prestes a despedir-se, o diretor abordou um
novo assunto.
- O Pancaldi disse-me que tinha contratado aquela rapariga...
- A Erminia. Quando começa?
- Já está ao serviço.
- E... funciona?
- Ainda não tive tempo para perguntar. Em qualquer caso... isso é importante?
- Sim - afirmou Gregorio, num tom áspero. Encontrou-a, por acaso, duas semanas mais tarde, enquanto
percorria o corredor do quarto andar para controlar o trabalho dos operários que estavam a substituir o papel de parede de alguns quartos.
A porta de uma suíte de onde acabara de sair um hóspede estava escancarada, e do corredor via-se o quarto já arrumado. Erminia, com a sua bata bege de bolinhas brancas, estava deitada na cama, imóvel e rígida, a olhar para o teto. Ele entrou no quarto, ela viu-o, pôs-se em pé de um salto, como uma mola e, corando, ficou quase em sentido.
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- Passa-se alguma coisa? - perguntou ele.
- Há uma mancha negra no teto e eu não percebo como foi feita - respondeu.
Gregorio levantou os olhos para o teto e reparou num pequeno ponto negro.
- Parece que alguém atirou um sapato ao ar - refletiu Erminia.
- Aquele risco tem de ser retirado imediatamente. vou dizer aos homens do papel - disse Gregorio. E, logo a seguir, constatou:
- Normalmente, as empregadas de quartos não olham para os tetos.
- Eu vi a governanta fazer isto. É um ótimo sistema para descobrir pequenos defeitos na parte alta dos quartos - explicou ela, e passou uma mão pela cabeça, onde cresciam fartos caracóis negros.
- Ficas muito melhor sem a peruca - observou ele. Erminia encolheu os ombros, como se aquele cumprimento não lhe dissesse respeito.
- Como é que te sentes aqui? - perguntou-lhe.
- Bem - respondeu, num sussurro.
Ele deu meia-volta e dirigiu-se à porta. Então ela murmurou:
- Obrigada.
Gregorio sorriu. Erminia tinha um temperamento brusco, e ele apreciava isso.
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No Natal, Nostalgia e o filho, Sal, chegaram de Nova Iorque.
Nostalgia, que continuava a ser sua mulher, era uma senhora tranquila de cinquenta anos que se interessava pelas compras, pelos mexericos, pelas namoradas do filho e pela vida sentimental de Gregorio.
Ele gostaria de passar o Natal em Milão, mas ela mostrou-lhe a reserva para o Negresco de Nice. Por isso partiram para França.
A ela, Gregorio ofereceu uma jóia, e a Sal uma assinatura para o Metropolitan de Nova Iorque. Recebeu deles um desenho de autor e um valioso livro de arte.
A seguir ao Natal, o filho partiu para Paris, onde ia encontrar-se com um grupo de amigos, e Nostalgia preparou-se para ir a Cap Ferrat ter com o irmão, que se tinha divorciado de Florencia e andava agora com uma jovem administradora de uma empresa de cosméticos.
Antes de se separarem, almoçaram num pequeno restaurante à beira-mar, como um velho casal em sintonia.
- A verdade é que tu és como um bom vinho, melhoras com o passar do tempo - constatou ela.
- Posso dizer a mesma coisa de ti. Tornaste-te numa mulher doce e tranquila - replicou ele, recordando as birras e as cabeçadas de quando ela era jovem.
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Se calhar, sempre fui doce e tranquila. Não acreditas? Gregorio dirigiu-lhe um olhar perplexo e ela sorriu. Depois continuou: - Encontrei um homem de quem gosto bastante. É um realizador pelintra que cria espetáculos retorcidos para um círculo muito restrito de intelectuais. É mais novo do que eu e desconfio que gosta de mim porque sou rica.
- Não te subvalorizes. Até eu gostava de ti, se te considerasse como mulher e não como irmã.
- Obrigada, Greg. És um querido - disse ela, acariciando-lhe
uma mão.
- Atira-te ao teu realizador e goza essa história enquanto puderes - sugeriu-lhe.
- com a minha idade, sinto-me um bocado ridícula. Para um
homem é diferente, percebes? A propósito, li em qualquer parte
que deixaste aquela bailarina do Lido. Quem foi que a substituiu?
- Se te disser, não vais acreditar. Ninguém.
- Ninguém? Mas isso nem parece teu! Estás com algum problema de saúde e não me disseste nada.
Gregorio pensou em Erminia. Não lhe tinha sido difícil evitá-la, ocupado como andava a acompanhar a empresa e a sondar, com os seus advogados, a situação daquele terreno na costa calabresa, sujeito em parte a várias serventias, em parte a vínculos ambientais. Ainda não tinha decidido comprá-lo e, de resto, tinham surgido mais dois possíveis compradores que, como ele, estavam à espera de ver como evoluía a situação.
Na antevéspera de Natal, porém, quando Mayer reunira o pessoal para as Boas-Festas e a entrega dos presentes, enquanto proferia o habitual discurso de votos de felicidade e agradecimentos
pelo trabalho prestado, reparara em Erminia no grupo das empregadas. Destacava-se pela beleza e pelo olhar sempre carregado. Ele
sorrira-lhe, ela retribuíra inesperadamente o sorriso, e ele sentira-se feliz.
Disse então a Nostalgia: - Nunca estive tão bem como agora. Tenho um projeto de trabalho que me dá bastante que pensar. O Franco insiste, defendendo que é um grande negócio...
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- Ainda confias nele? - perguntou a mulher, com um gesto de desapontamento.
- Confio. A propósito, agora que o Sal está um homem, tenho de lhe dizer que se parece de uma forma surpreendente com o pai.
- Eu sei, e não acho graça. Mas consola-me saber que a semelhança com esse teu amigo acaba aí, porque o Sal é um homem intelectualmente honesto e nisso parece-se muito contigo, apesar de não seres pai dele - afirmou Nostalgia.
Gregorio sorriu-lhe com ternura. Depois pôs um ar sério e perguntou-lhe: - Porque foi que quiseste casar-te comigo?
- Alguma vez te disse que, durante anos, andei num psicanalista? Não, não te disse. Queria perceber alguma coisa sobre mim. Ao fim de cinco anos de análise, a conclusão foi que eu estava apaixonada pelo meu pai. Pobre pai! Percebes que nesse momento mandei aquele génio da psique para o diabo!
- Não me respondeste - insistiu ele.
- Estava perdidamente apaixonada por ti, Gregorio. Mas percebi logo que se vivesse ao teu lado ia sofrer demasiado com as tuas infidelidades, e não queria tornar-me numa espécie de mulher-mãe que perdoa as escapadelas do marido e volta sempre a recebê-lo de braços abertos. Conheço-te bem, meu amigo. Tu precisas constantemente de te apaixonar e, fascinante como és, nenhuma mulher te resiste. Mas só percebi isso depois de me ter casado contigo. Gosto muito de ti, há muitos anos. E como te conheço, estou a morrer de curiosidade por saber quem suplantou a bailarina. Tenho a certeza de que estás outra vez apaixonado. Mas ela... quem é?
- Uma empregada de quartos - confessou Gregorio. Nostalgia empurrou para um lado o prato com a santola que
estava a depenicar, pousou os cotovelos na mesa, juntou as mãos e disse: - Agora quero saber tudo.
- Há pouco para dizer, porque eu me mantenho distante dela e ela de mim - explicou ele.
- Então é amor! - constatou Nostalgia. Logo a seguir levou uma mão ao peito e empalideceu.
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- Não estás bem? - perguntou Gregorio, alarmado.
- Está tudo em ordem... fica sossegado... Ainda te queria dizer outra coisa... Aquele projeto de que me falavas... Não confies no Fran... - Não acabou a frase e caiu em cima da mesa.
Mais tarde, no hospital de Nice, o diagnóstico foi de enfarte fulminante.
Posteriormente, Gregorio soube por Sal que Nostalgia sofria há algum tempo de uma grave perturbação cardíaca que se obstinava a negar e da qual nunca tinha querido tratar-se.
O corpo de Nostalgia foi transportado num avião para Nova Iorque. A câmara-ardente foi instalada na propriedade dos Matranga, em Brooklyn. Meia cidade veio prestar homenagem à filha do defunto Salvatore Matranga. De todos os parentes que viveram em tempos no anexo, restavam apenas os sobrinhos. Na casa principal vivia apenas Sal que, depois do funeral, lhe perguntou: - O que é que eu hei de fazer desta propriedade? Enquanto a mãe cá estava, fazia algum sentido. Mas agora?
- Agora há o teu tio Bob. Ele é que tem de decidir, antes de ti. Não achas? - Estavam na biblioteca do velho don Salvatore, o local em que aquele enigmático homem de dentes de ouro, em anos longínquos, lhe revelara o seu amor pela literatura. Agora Gregorio estava sentado na poltrona do velho don Salvatore e Sal, tal como ele em tempos, estava sentado ao lado dele e servia-lhe café.
- A mãe dividiu esta propriedade em partes iguais entre nós os dois - disse Sal. E acrescentou: - Vais ver quando for aberto o testamento.
- O que mais me deixou? - perguntou-lhe.
- As jóias dela. Disse que tu adoras jóias e que gostas de as oferecer às tuas mulheres. Uma vez pegou num colar de safiras e disse: "Este ainda vai acabar no pescoço de alguma datilógrafa, ou de uma bailarina." Parecia que essa ideia a divertia.
- A tua mãe e eu entendíamo-nos muito bem, mas isso não significa que eu aceite a sua herança. É tudo teu, meu filho - esclareceu Gregorio, enquanto olhava com uma ternura infinita para aquele rapaz que o amava como se ele fosse seu pai, mas que era
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idêntico a Franco Fantuzzi. Naquele momento, lembrou-se da última recomendação de Nostalgia: "Não confies no Fran...", e atribuiu-a a um rancor nunca aplacado em relação ao seu amigo.
Gregorio e Sal saíram para dar uma volta no parque coberto de neve. Tinha mudado muita coisa depois da morte de don Salvatore. Já não havia guardas armados a tutelar a segurança dos Matranga. Os membros mais idosos da família tinham morrido, os outros tinham-se ido embora. Para além dos sobrinhos Matranga, o anexo albergava dois jardineiros, o pessoal da casa senhorial e os moços de estrebaria. Enquanto os dois caminhavam lado a lado, crescia em volta deles um silêncio de cristal. Gregorio sentia-se sobrevivente a um mundo que o boss dos dentes de ouro mantivera unido e protegido.
- Vou-me embora hoje - anunciou a Sal.
- Amanhã é a leitura do testamento da mãe - lembrou-lhe ele.
- Eu não quero nada, já sabes. Se houver documentos para assinar, manda-mos para Itália.
Tinha acabado mais uma época da sua vida.
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- Não é preciso muito para acabar como prostituta - começou Erminia, e corou. Depois prosseguiu: - A mim bastou-me ter uma família que, aos catorze anos, me mandou servir para a cidade e um patrão que me violou. Em casa estavam à espera do meu dinheiro. Então eu pensei: com estes patrões não continuo, até porque mais cedo ou mais tarde me despedem. Arrumei a minha roupa, fugi, fui ter com uma amiga e chorei. A minha amiga disse-me: "Há gente que paga bem a uma rapariga bonita." Então apresentei-me a uma senhora rica, que vivia num apartamento de sonho e deu uma festa. Ali, um homem casado, gente de bem, fez-me a corte. Sussurrou qualquer coisa à dona da casa e ela, no dia seguinte, marcou-me um encontro com o tal senhor numa residência discreta. Não precisei sequer de sofrer a humilhação de receber dinheiro, porque ele já tinha deixado o que devia à senhora rica que, no fim do trabalho, me deu a minha parte. Ele, porém, antes de se ir embora deu-me um presente. Eu conheço o valor das jóias, porque me ofereceram mais do que uma. com o dinheiro que fui ganhando, comprei uma casa e comecei a trabalhar por conta própria. Porque é de trabalho que se trata. Não é dos mais agradáveis, mas há pior. Às vezes não dormia de noite, porque a minha consciência se revoltava. Então tomava um sonífero e, no dia seguinte, recomeçava. Tinha clientes certos, o número foi crescendo, todos os meses mandava dinheiro para casa e a minha família ficava feliz, contava umas mentiras e eles ficavam
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ainda mais felizes. Um dia senti-me enjoada. Estava grávida. Olha que sorte, tinha um cliente que era ginecologista. Ele tratou de me resolver o problema. E recomecei. Pensava: um dia destes vou parar. Tenho vinte anos e a vida toda pela frente. Tinha umas poupanças razoáveis no banco que de vez em quando cresciam, porque havia outro cliente que trabalhava na Bolsa e fazia os investimentos certos. Todos os dias dizia: vou parar com isto. Mas não sabia fazer nada, para além de limpar a casa. Só que não queria voltar a ser criada. No dia seguinte recomeçava. E foi assim que encontrei um louco que até parecia normal mas que, uma vez fechada a porta do Grand Hotel Delta Continental, quis fazer coisas esquisitas que me assustaram. Cuspi-lhe na cara, ele encheu-me de pancada e depois fugiu. Salvei-me por milagre e, nesse momento, decidi que nunca mais ia ter nada a ver com homem nenhum. E é tudo, grande patrão.
Tinha regressado a primavera. Gregorio foi ao cinema ao princípio da tarde. Às cinco, quando acabou o filme, meteu-se na fila dos espectadores que saíam do Manzoni e, no meio deles, descobriu Erminia. Também ela o viu e, inesperadamente, sorriu-lhe. Depois disse: - Estou no meu turno de descanso. Retomo o serviço logo à noite, às oito.
- Então convido-te para tomar alguma coisa - propôs ele, ao mesmo tempo que lhe dava o braço e a levava em direção à mesa de um bar.
Estava à espera de uma recusa, mas ela respondeu: - Para os ingleses, esta é a hora do chá. É pena eu não gostar daquela aguinha colorida.
Gregorio sorriu.
- Não é aguinha colorida. O chá fez a fortuna do império britânico. Em qualquer caso, eu também não gosto. Que dizes a um chocolate quente?
- Engorda?
- Algumas calorias a mais não te vão estragar a linha - garantiu ele, que sempre preferira as mulheres magras às de formas avantajadas.
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- Sabe uma coisa, grande patrão? Eu olho com mais interesse para as mulheres do que para os homens. Não me entenda mal... quando são bonitas, olho para elas para ver o que elas têm e eu não tenho... observo os rostos, as mãos, o porte... Chegam algumas fantásticas ao hotel. Quando arrumo os quartos observo as roupas e, pela maneira como se vestem, percebo muitas coisas sobre elas, se são dissimuladas ou sinceras, se são satisfeitas ou insatisfeitas. Também se percebe isso pelos perfumes e pelos cremes que encontro na casa de banho, pela desordem que semeiam ou pela precisão com que arrumam as suas coisas. Também os sapatos dizem alguma coisa sobre elas. Para as mulheres altas que usam saltos vertiginosos não há qualquer esperança, são um verdadeiro desastre. O mesmo vale para as baixas que insistem em usar sapatos rasos.
- Desde quando ficaste assim tão faladora? - perguntou Gregorio, que se estava a divertir imenso e esperava que Erminia não parasse de falar.
- Sempre fui. Falo comigo mesma e, raramente, com os outros.
- Estás a fazê-lo comigo.
- Pois é... Sabe, durante estes meses todos aprendi a conhecê-lo. Não lhe revelo nenhum segredo se lhe disser que todo o pessoal feminino do hotel o adora. Falam de si como se fosse um deus, coram quando o senhor lhes dirige a palavra... As mais jovens entretecem esperanças...
-E tu? -Eu?
- Sim, tu.
- O que é que eu tenho a ver com isso?
- Olha, estás a ver, coraste.
Erminia inclinou o rosto sobre a chávena de chocolate, bebeu um gole e murmurou: - Eu estou fora de questão. Até ao ano passado era prostituta... quem melhor do que o senhor...
- Tu és uma boa rapariga.
- Eu sei. Mas há coisas que nos ficam coladas à pele para o resto da vida.
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As palavras ásperas e o ar brusco eram uma couraça que não conseguia esconder a amargura dos seus pensamentos. Gregorio gostaria de a poder abraçar como se abraça uma filha.
- Mas porque é que eu lhe estou a contar estes disparates todos? - perguntou Erminia, agitando-se no cadeirão de vime.
- Talvez porque sabes que eu te estou a ouvir a sério - respondeu ele.
- Obrigada, grande chefe, também pelo chocolate.
Iam a sair do bar e Gregorio perguntou-lhe: - Onde queres que te leve?
- vou para casa, mas sei o caminho e não preciso de acompanhante.
Saíram da Galleria e chegaram à via Manzoni.
- Deixa de te armar em dura.
- Vendi aquele buraco onde vivia antes... havia sempre alguém a telefonar... a tocar à porta... Agora vivo em San Giovanni sul Muro, um quarto no apartamento de uma amiga.
- O que é que faz essa amiga?
- Sossegue, grande patrão. É uma rapariga que pinta e faz bonecas de porcelana, decora copos e pratos... Em suma, é uma pessoa em condições.
Foi com ela, a pé, até à piazza Cordusio, ofereceu-lhe um raminho de violetas que comprou a uma vendedora ambulante e, quando estavam para se despedir, inesperadamente, Erminia colou o seu rosto ao dele e deu-lhe um beijo ligeiro na face. Tinha nos olhos uma luz alegre, serena. Quase sem se dar conta, Gregorio segurou-lhe o rosto entre as mãos e beijou-a nos lábios.
Poucos dias depois, o diretor do hotel propôs a sua nomeação para governanta em substituição de uma que se tinha reformado.
Franco Fantuzzi voltou a solicitar uma decisão sobre a aquisição do terreno na Calábria e Gregorio decidiu-se a dar aquele grande passo, ignorando a última advertência da pobre Nostalgia e a grande perplexidade dos administradores.
E perdeu todo o seu património.
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Era a véspera de Natal de 2005. A limusina parou em frente ao portão de um bonito edifício na via Pergolesi. O motorista apressou-se a abrir a porta traseira e Gregorio saiu do automóvel, dizendo: - Obrigado, meu caro. Tens todo o tempo para ir comer a qualquer lado. Regressa por volta das duas, porque temos de estar em casa à hora do jantar.
- Cá estarei, senhor - respondeu o motorista, que estava agora totalmente ao seu serviço e andava com ele quase todos os dias entre Pádua, Veneza e Adria. Agora tinha-o levado a Milão, desafiando o trânsito pré-natalício.
Gregorio ergueu o rosto para um céu de chumbo que ameaçava neve. Levantou a gola do sobretudo de cachemira azul-escuro, segurou no ramo de peónias brancas que o motorista tinha tirado da mala e entrou no átrio do edifício.
O porteiro viu-o da sua guarita e precipitou-se para o receber.
- Mister Gregory! Mas é mesmo o senhor? - Avançou imediatamente à frente dele em direção ao ascensor e carregou no botão de chamada.
- Feliz Natal, Pierino - disse Gregorio.
- Obrigado, para si também... Nem posso acreditar. É um prazer voltar a vê-lo, senhor. vou já avisar a senhora... - Abriu a grade de ferro forjado e as duas portas de vidro da cabina Liberty.
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Gregorio entrou no elevador a pensar que há cinco anos não entrava naquele edifício onde nada mudara, felizmente.
Quando Gregorio, muitos anos antes, oferecera a Erminia o apartamento que ocupava todo o último andar, ela não quisera aceitá-lo. Para a convencer, disse-lhe: - Não podemos encontrarmos no hotel, onde trabalhamos. Tu tens finalmente o direito de viver numa boa casa...
- Mas não num castelo! - objetou ela, enquanto passava de divisão em divisão naquele apartamento apenas parcialmente decorado.
Gregorio riu-se.
- Tu não conheces as casas mesmo imponentes. Isto é só um alojamento digno, onde poderemos estar juntos em paz. E depois, nunca se sabe o que pode acontecer nesta vida... o tijolo nunca traiu ninguém.
- Mas porquê pô-lo em meu nome?
Foram decorando juntos aquele apartamento, circundado por um grande terraço, mês após mês, e foi ali que Gregorio passou os anos mais tranquilos da sua vida, com uma mulher por quem estava apaixonado e que o amava profundamente. O tempo não tinha alterado os sentimentos de ambos.
Agora saiu do elevador com aquele lindo ramo de peónias na mão e encontrou Erminia à espera dele.
- Tu és sempre o mesmo. Vê lá se era preciso esvaziar uma loja de flores, com o preço a que estão - resmungou ao acolhê-lo. Mas entretanto sorria, sem esconder a sua felicidade.
Ajudou-o a libertar-se das flores e do sobretudo e levou-o para a sala onde se destacava uma grande árvore de Natal enfeitada de luzinhas de todas as cores. Ofereceu-lhe um Brut rose de Conti dArco, sentou-se ao lado dele no sofá e disse: - Agora quero saber tudo.
Gregorio bebeu um gole de vinho e afagou o pelo sedoso de um gatinho que lhe tinha saltado para os joelhos. Erminia podia passar sem a companhia de um homem, mas nunca renunciaria à de um gato.
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- Já te expliquei tudo pelo telefone. Vamos começar de novo, rapariga - respondeu ele, gozando aquela atmosfera serena. Entretanto, observava aquela mulher de cinquenta anos que conservava ainda as feições de uma jovem e o porte de uma senhora: vestia um fato de malha cor de marfim, de calças flutuantes e pulôver de decote em bico, que deixava a descoberto o diamante talhado em forma de coração que ele lhe oferecera em outubro. Por entre a massa compacta dos cabelos escuros brilhavam já alguns fios de prata.
Erminia observava-o com uma ternura cheia de amor.
- Não me venhas dizer que sou demasiado velho para recomeçar - antecipou-se.
- Tu eras um rapaz lindíssimo quando eu te conheci e, pelo menos aos meus olhos, ainda continuas a ser. Aliás, pareces-me menos seco do que há dois meses.
- Tenho uma empregada, em Adria, que me confundiu com um peru e me pôs na engorda.
- Faz ela bem, uma vez que te queres meter outra vez nos negócios.
- Vais ver... vai ser uma aventura fantástica. O Santini, o Sandro e mais alguns dos meus rapazes já aceitaram fazer parte da equipa. E depois tenho-te a ti.
- Tens mesmo a certeza de que eu devo ir viver contigo?
- Eu tenho. E tu?
- Nunca vivi com um homem... Sabes, houve um tempo em que eu tive pena de muitas coisas... coisas que me faltaram... Um casamento de vestido branco, um marido por quem esperar à noite com o jantar na mesa, a travessa de massa ao domingo, alguns filhos a correr pela casa, as férias na praia, no verão... O mundo muda, mas as mulheres continuam sempre iguais. Pronto, houve um tempo em que senti a falta de tudo isto e esperei que tu quisesses casar comigo. Depois percebi que não precisavas de uma mulher, porque estavas casado com os teus hotéis e já me davas mais do que aquilo que eu poderia desejar. Por isso deixei de ter esperanças no casamento e, devo dizer-te, dei-me muito bem a
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viver sozinha. Afeiçoei-me de tal maneira à minha liberdade que agora tenho alguma dificuldade em aceitar a tua oferta - confessou.
Gregorio levantou-se de repente, deu alguns passos, depois regressou diante dela, levantou-a nos braços e disse: - Queres mesmo que me case contigo? vou sentir-me um bocado ridículo, com a minha idade, mas, se isso te dá prazer, fá-lo-ei. E agora para com essa conversa, porque de qualquer maneira sabes que ias atrás de mim até ao fim do mundo.
Erminia ficou comovida. Gregorio tirou do bolso do casaco um lenço que cheirava a alfazema e estendeu-lho. Ela limpou os olhos e sorriu-lhe: - Já fiz a mala. Há um bolo de chocolate no frigorífico e uma dourada no forno que, se calhar, está a ficar fria.
Ele segurou-lhe o rosto entre as mãos e deu-lhe um beijo na testa.
- Então vamos lá despachar-nos, porque estou esfomeado e daqui a pouco o motorista vem buscar-nos para irmos para Adria.
Almoçaram na mesa da cozinha, ao som dos cânticos de Natal transmitidos pela rádio.
- Se eu quisesse, tu casavas-te mesmo comigo? - perguntou Erminia.
- Claro - respondeu ele, seguro.
- Tenho de pensar nisso. O casamento é um passo muito importante. Talvez... se me voltares a pedir daqui por uns dez anos.

 

 

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