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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MISTÉRIO NO CARIBE / Agatha Chrstie
MISTÉRIO NO CARIBE / Agatha Chrstie

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

MISTÉRIO NO CARIBE

 

Os hóspedes do Goldem Palm Hotel, que passam as suas férias na ilha antilhana de Trinidad pensam que estão gozando das delícias de um verdadeiro paraíso, sem suspeitar que, de acordo com a tradição bíblica, nesse paraíso terrenal também se oculta uma serpente, na pessoa de um assassino que, depois de ter matado três vezes, já escolheu a sua quarta vítima entre os felizes veranistas. Porém o frio criminoso não podia imaginar era que seria descoberto graças à sagacidade extraordinária da mais inofensiva, pelo menos aparentemente, destes veranistas: uma velhinha solteirona, com um aspecto bondoso e tímido, Miss Marple, cuja vida passou no pequeno povoado de St. Mary Mead, onde aprendeu tudo o que era necessário sobre as virtudes, os vívios e as paixões que consituem o miolo da natureza humana. Para desmascarar o assassino e chegar a tempo para salvar a última das suas vítimas, a famosa Miss Marple conta, esta vez, com a mais inesperada das ajudas.

 

               O MAJOR PALGRAVE CONTA UMA HISTÓRIA

— Veja todas estas histórias sobre o Quênia – dizia o Major Palgrave. – Um bando de tagarelas que não sabem do que se trata! Agora eu, que passei quatorze anos de minha vida lá... Alguns dos melhores anos de minha vida...

A idosa Miss Marple balançou a cabeça.

Um gesto delicado de polidez. Enquanto o Major Palgrave continuava a desfiar as recordações um tanto insípidas de sua vida inteira, Miss Marple tranqüilamente seguia o próprio fio de seus pensamentos. Era uma rotina com a qual ela já estava habituada. O local variava. Antigamente era quase sempre a Índia. Majores, coronéis, generais – e uma série familiar de palavras: Simla, Carregadores, Tigres, Chota Hazri, Tiffin¹, Khitmagars² e muitas outras. Com o Major Palgrave os termos eram ligeiramente diferentes: Safári, Kikuyu³, Elefantes, Swahili. Mas os exemplos eram essencialmente os mesmos. Um homem já velho que necessitava de um auditório para que pudesse reviver os dias em que fora feliz. Dias em que suas costas eram retas, seu olhar aguçado e seus ouvidos sensíveis. A idade transformara alguns desses soldados em velhos bonitos, outros tornaram-se lamentavelmente feios; e o Major Palgrave, a cara muito vermelha, um olho de vidro, e a aparência geral de um sapo empalhado, pertencia a esta última categoria.

Miss Marple concedia a todos eles a mesma generosa caridade. Sentava-se muito atenta, inclinando a cabeça de tempos em tempos como se concordasse gentilmente, pensando os seus próprios pensamentos e gozando o que houvesse a gozar: neste caso, o azul profundo dos mares do Caribe.

Fora tão gentil o querido Raymond – estava pensando ela com gratidão, realmente fora tanta bondade... Por que teria ele tanta consideração por sua velha tia? Ela mesma não sabia. Consciência, talvez; sentimentos de família? Ou possivelmente porque gostava realmente dela...

        Achou que, acima de tudo, ele gostava mesmo dela – sempre o demonstrara – e de uma maneira irritante e insolente! Sempre tentando modernizá-la. Mandando livros para ler. Livros modernos. Tão difíceis – todos sobre pessoas desagradáveis, que faziam coisas estranhas, aparentemente sem gostar do que estavam fazendo. “Sexo” como palavra em si não podia ser pronunciada nos dias da juventude da Miss Marple. Mas existia e muito mais apreciado do que hoje em dia, pelo menos era o que parecia. Apesar

De estar rotulado como Pecado, ela não podia deixar de imaginar que isto era preferível a ser o que era hoje – uma espécie de Obrigação.

 

  1. do T. – Almoço leve na Índia.
  2. do T. – Criado que serve a mesa.
  3. do T. – Espécie de capim africano
  4. do T. – Dialeto nativo da África Oriental.

 

Seu olhar vagueou por um instante sobre o livro que estava em seu colo, aberto na página vinte e três, que fora até onde conseguira chegar (e ao que parece era até onde ela achou que valia a pena chegar!)

        “ — Você quer dizer que nunca teve nenhuma experiência sexual? – perguntou incrédulo o rapaz. – Aos dezenove? Mas é preciso ter. É vital.

— Eu sei – murmurou ela – eu sei.

Ele a olhou, a camisa de malha manchada, os pés descalços, as unhas dos pés sujas, o cheiro de manteiga rança... Pôs-se a pensar porque achava-a tão loucamente atraente”.

Miss Marple ficou pensando também! Realmente! Exigia-se uma experiência sexual exatamente como se obrigava a tomar um fortificante! Pobres dos jovens de hoje...

“— Minha querida tia Jane, porque a senhora precisa enterrar a cabeça na areia como uma avestruz satisfeita? Sempre presa a esta sua idílica vida rural. A vida verdadeira – é isto que interessa.”

E foi desta forma que Raymond venceu – e a sua tia Jane sentiu-se encabulada e disse “Sim”, e ficou com medo de estar mesmo muito fora de moda.

Se bem que a vida rural estivesse longe de ser idílica. Pessoas como Raymond eram tão ignorantes... Ao longo de seus deveres junto à paróquia da cidadezinha, Jane Marple adquirira um amplo conhecimento sobre os fatos da vida rural. Ela não sentia necessidade de falar sobre ela, menos ainda de escrever a respeito, mas a conhecia muito bem. Muito sexo, natural e anormal. Estupros, incestos, perversões de todas as formas. (E algumas destas, na verdade, nem os espertinhos de Oxford que escrevem livros pareciam ter jamais ouvido falar).

Jane Marple voltou outra vez ao Caribe e retomou o fio da narrativa do Major Palgrave...

— Uma experiência muito rara – disse ela animando-o. Muito interessante.

— Eu poderia contar-lhe muitas outras. Algumas coisas, é claro, não servem para os ouvidos de uma senhora...

Com a técnica de uma longa prática, a Miss Marple abaixou os olhos batendo levemente as pestanas. O Major Palgrave continuou sua mirabolante versão sobre os costumes tribais enquanto Miss Marple continuava seus pensamentos sobre seu querido sobrinho.

Raymond West era um novelista de sucesso e ganhava bastante bem, e consciente e bondosamente fazia o que estava a seu alcance para alegrar a vida de sua velha tia. No inverno anterior ela tivera uma forte pneumonia, e a opinião médica aconselhava o calor do sol. Galantemente, Raymond lhe sugerira uma viagem às Índias Ocidentais: ela pusera dificuldades – as despesas, a distância, as complicações da viagem, o abandono de sua casa em St. Mary Mead. Raymond cuidara de tudo. Um amigo que estava escrevendo um livro andava à procura de um lugar tranqüilo no campo.

— Ele tomará conta da casa muito bem. Adora cuidar de casas. É meio bicha. Isto é...

Fez uma pausa, levemente encabulado – bem, mesmo a velha tia Jane já deve ter ouvido falar de bichas.

Continuou a traçar os próximos planos. Viajar não era mais nada hoje em dia. Ela iria de avião – outra amiga, Diana Horrocks, estava de partida para Trinidad e levaria tia Jane até lá, e em Sto. Honório ela ficaria hospedada no Hotel da Palmeira Dourada que era dirigido pelos Sandersons. O casal mais simpático do mundo. Eles cuidariam muito bem dela. Ia escrever-lhes imediatamente.

Acontece que os Sandersons já tinham voltado para a Inglaterra: mas seus sucessores, os Kendals, tinham sido igualmente gentis e amigáveis e garantiram a Raymond que ele não precisava preocupar-se com a tia. Para um caso de emergência havia um médico muito bom na ilha e eles mesmos ficariam de olho nela e em seu conforto; e cumpriram a palavra.

Molly Kendal era uma loura de ar inocente, de pouco mais de vinte anos, sempre aparentando bom humor. Acolhera a idosa senhora com muita gentileza e tudo fizera para que se sentisse em casa. Tim Kendal, seu marido, magro, moreno, com uns trinta anos, também se mostrara a cortesia em pessoa.

E assim lá estava ela, pensou Jane Marple, longe dos rigores do clima inglês, com um lindo bangalô a sua disposição, e sorridentes empregadinhas nativas para servi-la. Tim Kendal sempre a esperava na sala de jantar com uma piada sobre a comida do dia. Havia um caminho agradável entre o bangalô e a praia, onde ficava sentada numa confortável cadeira de palha assistindo ao banho de mar. Havia mesmo alguns hospedes idosos que lhe faziam companhia. O velho Sr. Rafiel, o Dr. Graham, o Padre Prescott e a irmã, e no momento, o Major Palgrave.

O que mais poderia desejar uma senhora de idade?

Para seu grande pesar, Jane Marple sentia-se mesmo culpada em admiti-lo, mas ela não estava satisfeita como deveria.

Um local encantador e tépico, sim – e tão benéfico para seu reumatismo – um cenário tão lindo, talvez... um pouquinho monótono? Tantas palmeiras. Tudo a mesma coisa todos os dias – não acontecia nada. Não era como em St. Mary Mead, onde sempre acontecia alguma coisa. Seu sobrinho comparara uma vez a vida em St. Mary Mead com um poço de água estagnada, e ela indignada demonstrara-lhe que, se ele pusesse um pouco daquela água sob uma lâmina de microscópio, haveria muita vida a ser examinada. Sim, era verdade que em St. Mary Mead sempre estava acontecendo algo. Incidentes em cima de incidentes passaram pela memória de Miss Marple, o engano com o remédio de tosse da velha Sra. Linnett – o comportamento estranhíssimo do jovem Polegate – quando a mãe de Georgy Wood viera vê-lo (será que era sua mãe mesmo?); a verdadeira razão da briga entre Joe Arden e sua mulher, tantos problemas humanos tão interessantes – e que davam margem a intermináveis horas de agradável bisbilhotice. Se ao menos acontecesse alguma coisa por aqui... bem... onde ela pudesse dar os seus palpites...

Com um ligeiro espanto ela percebeu que o Major Palgrave abandonara o Quênia pelas fronteiras do Noroeste e estava contando suas experiências quando era ainda um suboficial. Por infelicidade ele estava formulando uma pergunta com grande entusiasmo:

— A senhora não concorda comigo?

A longa prática fizera de Jane Marple uma perita em casos desta espécie.

— Eu creio que não possuo a experiência suficiente para tais julgamentos. A minha vida foi muito caseira.

— E é assim que deve ser, minha cara senhora, é assim que deve ser – exclamou galantemente o Major Palgrave.

— O senhor teve uma vida tão variada – continuou Miss Marple, determinada a corrigir a sua pequena desatenção anterior.

— Não foi má – disse o Major Palgrave, complacente. – Não foi de todo má. – Deu uma olhada apreciativa em torno de si. – É um lugar adorável, este aqui...

— Sim, muito – disse Miss Marple, que incapaz de refrear-se continuou: -- Será que por aqui acontece alguma coisa?

O Major Palgrave encarou-a.

— Oh, acontecem muitas coisas... não sabia? Olhe, eu podia contar-lhe...

Mas não eram escândalos que Miss Marple gostava de saber. Não havia graça em se envolver em escândalos hoje em dia. Apenas homens e mulheres trocando de amantes, e chamando atenção para si próprios, ao invés de tentarem decentemente abafá-los e se envergonharem de suas próprias ações.

— Houve mesmo um crime há uns dois anos. Um homem chamado Harry Western. Houve muita onda pelos jornais. Garanto que a senhora se lembra.

Miss Marple concordou sem entusiasmo. Não fora o seu tipo de crime. Fizeram muito barulho apenas porque as pessoas envolvidas eram todas muito ricas. Ao que parece Harry Western atirara no Conde de Ferrari, amante de sua mulher, e arranjara um álibi muito bom, tendo pago muito bem por ele. Parece que todos estavam bêbados, e havia ainda uma boa quantidade de viciados em drogas. Realmente, não eram pessoas interessantes, pensou Miss Marple – se bem que bastante espetaculares e sedutoras de se olhar. Mas em definitivo, não eram seu gênero.

— E se me perguntassem, eu diria que não foi o único crime que houve naquele tempo – abanou a cabeça e piscou um olho. – Eu tinha as minhas suspeitas... oh!... bem...

Miss Marple deixou cair o seu novelo de lã, e o Major abaixou-se e apanhou-o.

— Falando sobre crimes – continuou ele, -- uma vez eu deparei com um caso muito curioso... se bem que não fosse pessoalmente...

Jane Marple sorriu-lhe encorajadoramente.

— Havia um grupo de amigos batendo papo no clube um dia, a senhora sabe como é, e um camarada começou a contar uma história. Ele era médico. Foi um de seus casos. Um rapaz viera acordá-lo no meio da noite. Sua esposa se enforcara. Eles não tinham telefone, e então, depois do camarada ter cortado a corda e feito o que pôde, saiu com o carro em busca de um médico. Bem, ela não morreu, mas estava muito mal. De qualquer forma, conseguiu recuperar-se. O rapaz parecia muito dedicado a ela. Chorava como uma criança. Mas reparou que ela ficava estranha de tempos em tempos, tinha crises de depressão e tudo o mais. Bem, ficou por isso mesmo. Tudo parecia correto. Mas, quase um mês depois, a mulher tomou uma dose exagerada de pílulas para dormir e morreu. Um caso triste.

O Major Palgrave fez uma pausa e abanou a cabeça diversas vezes. Como havia certamente mais alguma coisa. Miss Marple não disse nada e esperou.

— E ficou nisso, a senhora pode dizer. Nada mais. Uma mulher neurótica, nada fora do comum. Mas um ano depois, este camarada que era médico, trocando anotações com um outro colega, escutou uma história. Era sobre uma mulher que tentara afogar-se mas o marido conseguira salvá-la, chamou um médico, conseguiram fazê-la voltar a si – e então, algumas semanas depois, ela se envenenou com gás.

— Bem, era uma certa coincidência, não era? A mesma história. Meu amigo disse: - “Eu tive um caso parecido com este. O nome do homem era Jones (ou qualquer coisa parecida). Qual era o nome do homem do seu caso?” – “Não me lembro bem. Robinson, eu acho. Mas Jones eu tenho certeza de que não era”. Bem, os dois continuaram a conversar, mas achando que a coincidência era muito grande. Então, o meu amigo tirou uma foto do bolso. Mostrou-a ao seu colega. – “O camarada era este – disse ele. – Eu estive na casa dele no dia para saber de uns detalhes, e reparei numa magnífica espécie de hibiscos, bem junto à porta da frente, e que eu nunca vira antes nesta região. Minha máquina estava no carro e eu tirei a foto. Enquanto a batia, o marido saiu pela porta da frente e eu o fotografei também. Não creio que ele tenha percebido. Perguntei-lhe sobre os hibiscos mas ele não soube dizer-me o nome.” O segundo médico olhou para a fotografia e disse: -- “Está meio fora de foco... Mas eu posso jurar... de qualquer forma eu tenho certeza... é o mesmo homem!”.

— Não sei se eles iniciaram uma busca. Se iniciaram, não chegaram à conclusão alguma. Calculo que o Sr. Jones ou Robinson tenha apagado muito bem seus rastros. Mas é uma história estranha, não é? Eu não imaginava que coisas assim acontecessem.

— Oh, sim, acontecem – disse calmamente Miss Marple. – Praticamente todos os dias.

— Vamos, vamos. São fantasias.

— Se um homem emprega uma fórmula que funciona... não pára mais. Ele continua.

— Afoga as noivas na banheira, hein?

— Quase a mesma coisa, sim...

— O médico me deu a foto como uma curiosidade...

O Major Palgrave começou a remexer em sua carteira estufada de coisas, murmurando consigo mesmo:

— Tem coisa demais aqui... não sei por que eu guardo tanta coisa...

Miss Marple pôs-se a imaginar que ela sabia por quê; isto fazia parte do repertório do Major. Ilustravam as histórias que ele contava. A história que ele acabara de contar não fora originalmente assim – devia ter sido bastante modificada em suas repetidas versões.

O Major continuava remexendo em suas coisas e resmungando .

— Tinha-me esquecido completamente desta história. Era uma mulher muito bonita, ninguém iria suspeitar... agora onde será?... Ah!... isto me faz lembrar... estas presas de elefante! Eu preciso mostrar-lhe...

Parou... e tirou de dentro uma minúscula fotografia e olhou-a bem.

— Gostaria de ver a foto de um assassino?

Estava quase entregando-a para ela quando parou de repente. Parecendo mais do que nunca um sapo empalhado, o Major Palgrave pareceu concentrar o olhar fixamente sobre o seu ombro direito – de onde vinha o som de passos e vozes que se aproximavam.

— Bem, diabos me levem se... eu quero dizer... – enfiou tudo de volta dentro da carteira e empurrou-a para o bolso. Seu rosto tornou-se ainda mais rubro do que era normalmente. Deu uma exclamação em voz alta e artificial: -- Como eu ia dizendo... Eu preciso lhe mostrar aquelas presas de elefantes. O maior elefante que eu já matei!... Ah! Alô!...

Sua voz tomou um tom forçado e falso.

— Olhe quem está aqui! O grande quarteto... Flora e Fauna... O que foi que fizeram de bom hoje?

Os passos que se aproximavam materializaram-se em quatro dos hóspedes do hotel que Jane Marple já conhecia de vista. Eram dois casais e se bem que Miss Marple não soubesse seus sobrenomes, conhecia o mais alto de todos, com o cabvelo grisalho muito farto e que se chamava “Greg”; que a loura, sua mulher, era conhecida como “Lucky” – e que o outro casal, um homem moreno e magro e uma mulher muito bonita, mas estragada pela vida ao ar livre, eram Edward e Evelyn. Eram botânicos, ouvira dizer, e se interessavam igualmente por pássaros.

— Não fizemos nada de bom hoje – disse Greg. – Pelo menos não fizemos nada do que queríamos.

— Não sei se vocês já conhecem Miss Marple... Coronel e Sra. Hillingdon e Greg e Lucky Dyson.

Cumprimentaram-na alegremente e Lucky disse em voz alta que ela morreria se não bebesse alguma coisa imediatamente.

Greg chamou Tim Kendal, que estava sentado um pouco adiante com sua esposa, estudando atentamente o livro de contas.

— Oi, Tim! Nós queremos umas bebidas. – Virou-se para os outros: - Planters Punch?

Todos concordaram.

— A senhora também, Miss Marple?

Jane Marple agradeceu, mas ela preferiria uma limonada gelada.

— Pois será uma limonada – disse Tim Kendal – e cinco Planters Punches.

— Vai nos acompanhar, Tim?

— Bem que eu gostaria. Mas tenho de pôr em ordem estes livros da contabilidade. Não posso deixar Molly cuidar de tudo sozinha. Por falar nisso, hoje à noite temos orquestra.

— Ótimo – disse Lucky. – Diabos! – ela se encolheu. – Eu estou cheia de espinhos. Ai! Edward me empurrou de propósito em cima de um espinheiro!

— Aquelas flores rosadas eram maravilhosas – disse Hillingdon.

— E os espinhos eram maravilhosamente grandes. Bruto sádico que você é, hein, Edward?

— Diferente de mim – disse Greg, fazendo uma careta. – Sempre cheio de carinho para a mulher amada.

Evelyn Hillingdon sentou-se ao lado de Miss Marple e começou a conversar agradavelmente com ela.

Jane Marple deixou o tricô sobre os joelhos. Com lentidão e alguma dificuldade, devido ao reumatismo no pescoço, ela voltou a cabeça olhando por cima do ombro direito para olhar para trás. A uma curta distância ficava o bangalô grande, ocupado pelo rico Sr. Rafiel. Mas a cabana não demonstrava nenhum sinal de vida.

Respondeu adequadamente às perguntas de Evelyn (realmente, como as pessoas eram gentis com ela!), mas seus olhos examinavam pensativamente os rostos dos dois homens.

Edward Hillingdon parecia bastante simpático. Sossegado, mas bastante atraente... E Greg – grandalhão, agitado, com ar satisfeito... Ele e Lucky eram canadenses ou americanos, pensou ela.

Olhou para o Major Palgrave, que continuava fingindo uma cordialidade exagerada.

Interessante...

 

                         MISS MARPLE COMPARA

A noitada estava muito alegre no Hotel da Palmeira Dourada.

Sentada em sua mesinha de canto, Miss Marple olhava em torno de maneira interessada. A sala de jantar era um salão aberto de três lados para o ar morno e perfumado das Índias Ocidentais. Em cada mesa, pequenas lâmpadas suavemente coloridas. A maioria das mulheres estava com vestidos longos, e leves, estampados de algodão, que deixavam à mostra braços e ombros bronzeados. A própria Miss Marple fora obrigada pela mulher de seu sobrinho, Joan, da maneira mais gentil possível, a aceitar “um pequeno cheque”.

— Sabe, tia Jane, lá vai fazer muito calor, e eu creio que a senhora não deve ter roupas muito leves.

Jane Marple lhe agradecera e aceitara o cheque. Ela fazia parte do tempo em que os velhos sustentavam e financiavam os jovens, mas também os de meia-idade cuidavam dos mais velhos. Entretanto, ela não conseguira forçar-se e comprar roupas leves! Na sua idade raramente ela se sentia bem se não estivesse bem agasalhada mesmo nos dias mais quentes, e a temperatura em Sto. Honório não era realmente o que pudéssemos chamar de “calor tropical”. Nesta noite ela estava usando a melhor das tradições das senhoras provincianas da Inglaterra – renda cinzenta.

Mas ela não era a única pessoa idosa presente. Havia representantes de todas as idades no salão. Velhos magnatas de indústrias com jovens esposas números três ou quatro. Casais de meia-idade do norte da Inglaterra. Uma família bem-humorada de Caracas com todas as suas crianças. Vários países da América do Sul estavam representados, todos conversando animadamente em espanhol ou português. Dois ministros da Igreja Anglicana, britânicos até a raiz dos cabelos, um médico de um juiz aposentado. Havia até uma família de chineses. O serviço do jantar era feito quase que por mulheres somente; negras altas de porte orgulhoso, vestidas de um branco impecável; mas havia um experiente maitre italiano e um especialista francês em vinhos, e o olhar atento de Tim Kendal sobre todos eles, fazendo uma paradinha aqui e ali para trocar uma palavra social com os hóspedes em cada mesa. Sua mulher secundava-o com habilidade. Era uma moça muito bonita. Seus cabelos, de um louro dourado e natural, e a boca um pouco larga e que ria com facilidade. Raramente veríamos Molly Kendal mal-humorada. Seus criados trabalhavam para ela com entusiasmo e ela se adaptava cuidadosamente para agradar aos seus variados clientes. Com os homens mais velhos ria e namoricava; cumprimentava as mulheres mais jovens pelo bom gosto de seus vestidos.

— Oh, que vestido maravilhoso a senhora está usando hoje à noite, Sra. Dyson. Estou com tanta inveja que sou capaz de roubá-lo.

Mas ela também estava muito bem em seu próprio vestido, ou pelo menos assim pensava Miss Marple; branco e de corte reto, com um xale de seda verde-claro bordado sobre os ombros. Lucky estava passando a mão no xale.

— Que tom encantador! Eu gostaria de ter um igual.

—Você pode encontrar na loja do hotel – disse-lhe Molly e continuou seu caminho. Ela não parou perto de Miss Marple, Senhoras idosas ficavam geralmente por conta de seu marido. – Essas velhinhas gostam mais dos homens – costumava ela dizer.

Tim Kendal chegou e debruçou-se sobre Miss Marple.

— A senhora não quer nada de especial? – perguntou. – Basta que me diga o que deseja... e eu farei imediatamente preparar para a senhora. A comida do hotel é do gênero semitropical, não deve ser igual à de casa, não é?

Miss Marple sorriu e disse que este era um dos prazeres da viagem.

— Muito bem então. Mas se quisesse mesmo qualquer coisinha...

— De que tipo, por exemplo?

— Bem... – Tim Kendal pareceu meio em dúvida -- ... Pudim de pão e manteiga? – aventurou ele.

Miss Marple sorriu e disse que no momento ela estava passando muito bem sem pudim de pão e manteiga.

Pegou a colher e pôs-se a saborear com gosto o seu enorme sorvete de frutas.

A orquestra começou a tocar. Orquestras de instrumentos de sopro eram uma das atrações principais da ilha. Para dizer a verdade, Miss Marple não achava muita graça nelas. Faziam um barulho hediondo, desnecessariamente estridente. O prazer que todos os outros pareciam sentir ao ouvi-las era inegável, e Miss Marple, seguindo o verdadeiro espírito de sua juventude, decidiu que ela precisava dar um jeito de aprender a gostar disso. Infelizmente, ela não poderia pedir a Tim Kendal para num passe de mágica apresentar os suaves acordes do Danúbio Azul, (As valsas eram mais bonitas...).

Que maneira de dançar hoje em dia. Jogando-se para os lados contorcendo-se. Bem, os jovens deviam gostar disso... Seus pensamentos pararam de divagar. Pensando bem, calculou ela, muito poucas destas pessoas eram jovens. A dança, as luzes, a música da orquestra (mesmo a de uma orquestra de instrumentos de sopro?), tudo isto era para a juventude. Mas onde estava a juventude? Estudando, imaginou ela, nas universidades, ou trabalhando – com férias de quinze dias uma vez por ano. Um lugar como este ficava longe demais e era muito caro. Esta vida alegre e despreocupada só servia para as pessoas de trinta ou quarenta anos – ou os velhos que tentavam animar (ou fazer esquecer?) a vida de suas esposas. Parecia-lhe entretanto, um desperdício!

Miss Marple suspirou pensando na juventude. Havia a Sra. Kendal, é claro. Ela não deveria ter mais de vinte e dois ou vinte e três, provavelmente, e parecia gostar do que fazia – mas mesmo assim, era um trabalho o que ela estava fazendo.

Numa mesa próxima o Reverendo Prescott e sua irmã estavam sentados. Fizeram sinal a Miss Marple para acompanhá-los no café e ela aceitou. A Srta. Prescott era uma mulher magra e de ar severo; o Reverendo era redondo de gordo, transpirando cordialidade.

Trouxeram o café e eles afastaram um pouco as cadeiras da mesa. A Srta. Prescott abriu uma bolsa grande e tirou de dentro um jogo de toalhas de mesa horroroso, que ela estava embainhando. Contou a Jane Marple tudo o que fizera durante o dia. Pela manhã tinham visitado uma nova escola para moças. Depois do almoço e do descanso, foram passear em uma plantação de cana e tomaram chá em uma pensão com uns amigos que estavam hospedados lá.

Como os Prescotts já estavam no hotel há mais tempo que a Miss Marple, sabiam da vida de todos os outros hóspedes.

O Sr. Rafiel, o mais velho de todos. Vinha todos os anos. Fabulosamente rico! Era dono de uma imensa cadeia de supermercados no norte da Inglaterra. A mulher jovem que estava com ele era sua secretária, Esther Walters – uma viúva. (Mas muito direita, é claro. Nada de mal entre os dois. Imagine, ele tem quase oitenta anos!).

Miss Marple aceitou a pureza das relações entre os dois com um aceno de cabeça compreensivo e o padre continuou:

— Uma moça muito simpática; a mãe dela, creio eu, é também viúva e mora em Chichester.

— O Sr. Rafiel também trouxe um criado. Ou melhor, é quase um enfermeiro diplomado... é massagista profissional, eu acho. O nome dele é Jackson. O pobre Sr. Rafiel é praticamente paralítico. É tão triste sobretudo com todo aquele dinheiro, não é?

— Um mecenas alegre e generoso – disse o Reverendo Prescott, com ar de aprovação.

As pessoas começaram a formar grupinhos, alguns se aproximando da orquestra, outros se afastando. O Major Palgrave reuniu-se ao quarteto Hilligdon-Dyson.

— Aqueles lá... – disse a Srta. Prescott, baixando a voz sem necessidade pois a orquestra abafava tudo.

— É sim, eu ia perguntar-lhe se os conhecia bem.

— Estiveram aqui o ano passado. Passam três meses por ano nas Antilhas, indo a diversas ilhas. O homem alto e magro é o Coronel Hillingdon e a mulher morena é sua esposa... são botânicos. Os outros dois, o Sr. e Sra. Gregory Dyson... são americanos. Ele escreve sobre borboletas, eu creio. É todos se interessam por pássaros.

— É tão agradável pessoas que tem passatempos ao ar livre – disse o Reverendo Prescott cordialmente.

— Eu acho que não gostariam de ver você referir-se ao que fazem como um passatempo, Jeremy – disse sua irmã. – Eles tem artigos publicados no National Geographic Magazine e no Diário Real de Horticultura. Levam-se muito a sério.

Uma gargalhada muito alta veio da mesa para onde estavam olhando. Ela foi alta o bastante para ser ouvida apesar da orquestra. Gregory Dyson estava recostado em sua cadeira e dando socos na mesa; o Major Palgrave esvaziava um copo e os outros aplaudiam.

Dificilmente poderíamos classificá-los como pessoas que se levassem muito a sério.

— O Major Palgrave não devia beber tanto assim – disse a Srta. Prescott mordaz. – Ele tem pressão alta.

Uma nova rodada de coquetéis foi levada para a outra mesa.

— É agradável ver pessoas assim tão unidas – disse Miss Marple. – Quando eu fui apresentada a eles hoje de manhã não sabia quem era casado com quem.

Houve uma ligeira pausa. A Srta. Prescott tossiu ligeiramente e disse:

— Bem, quanto a isso...

— Joan – disse o Reverendo num tom repreensivo, - talvez seja melhor você não dizer mais nada.

— Realmente, Jeremy, eu não ia dizer mais nada. Imagine que até o ano passado, eu não sei porque razão... e nem sei mesmo por que... nós pensávamos que a Sra. Dyson fosse a Sra. Hillingdon, até que alguém nos disse que era o contrário.

— É estranho como a gente tem impressões erradas, às vezes, não é? – disse inocentemente Miss Marple.

Seus olhos encontraram-se com os da Srta. Prescott por um instante. Um raio de compreensão feminina passou entre elas.

Um homem com um pouco mais de sensibilidade do que o Reverendo Prescott teria achado que ele ali estava sendo de mais.

Outro sinal passou-se entre as duas mulheres. Era como se tivessem dito claramente: — Qualquer dia destes...

— O Sr. Dyson chama a mulher dele de “Lucky”¹. Será que é o nome dela mesmo ou é um apelido? – perguntou Miss Marple.

— Não posso acreditar que seja seu nome verdadeiro.

— Por coincidência, eu perguntei a ele – disse o Reverendo. – Disse-me que a chama de Lucky porque ela sempre lhe trouxe boa sorte. Se a perdesse, disse ele, perderia sua sorte. Eu achei que era simpático o apelido.

— Ele gosta muito de brincar – disse a Srta. Prescott.

O Padre olhou para a irmã com um olhar duvidoso.

A orquestra aumentou o barulho com uma violenta cacofonia de sons e um grupo de pessoas foi para a pista dançar.

Miss Marple e outros viraram as cadeiras para ver os que dançavam. Ela gostava mais de dança do que de músicas; gostava do arrastar de pés e dos meneios rítmicos dos corpos. Parecia, pensou ela, muito verdadeiro. Tinha um certo poder de compreensão.

Nesta noite, pela primeira vez, ela começava a se sentir em casa neste novo ambiente... Até agora, fazia-lhe o que geralmente ela encontrava com tanta facilidade: pontos de semelhanças entre as pessoas que conhecia, com outras várias pessoas que conhecia já há mais tempo. Provavelmente o que lhe acontecera fora o colorido exótico e as roupas extravagantes a confundiram, mas logo, sentiu ela, seria capaz de fazer comparações interessantes.

Molly Kendal, por exemplo, era igual àquela mocinha simpática mas de quem não conseguia lembrar o nome, mas que era trocadora no ônibus que ia para o mercado. Sempre ajudando, nunca dando o sinal de partida para o motorista antes que todos estivessem bem instalados. Tim Kendal era mais ou menos como o maître do restaurante Royal George em Medchester. Confiante, e ao mesmo tempo com ar preocupado (ele tinha uma úlcera, ela estava lembrada). Quanto ao Major Palgrave, era igualzinho ao General Leroy, ao Capitão Flemming, ao Almirante Wicklow e ao Comandante Richardson. Continuou com alguém mais interessante. Greg por

 

N.T. — Quem tem ou dá sorte...

 

exemplo? Greg era difícil porque era americano. Um ar de Sir George Trollops, talvez, sempre cheio de piadas nas reuniões da Comissão de Defesa Civil – ou talvez com o Sr. Murdoch, o açougueiro. O Sr. Murdoch tinha uma péssima reputação, mas algumas pessoas diziam que eram apenas boatos e que ele próprio encorajava tais boatos! E Lucky, então? Bem, esta era fácil... Marleen das Três Coroas. Evelyn Hillingdon? Não conseguiu enquadrar Evelyn facilmente. Sua aparência servia para diversos papéis – inglesas altas e magras que viviam ao ar livre havia às dúzias. Lady Caroline Wolfe, a primeira mulher de Peter Wolfe, que se suicidara? Ou quem sabe, Leslie James – aquela mulher sossegada que nunca demonstrava o que estava sentindo e que vendera a casa e fora-se embora sem dizer a ninguém para onde ia? Coronel Hillingdon? Nenhuma pista fresca neste aí. Ela precisaria conhecê-lo um pouco melhor. Um desses homens quietos e bem educados. A gente nunca sabe sobre o que eles estão pensando. Muitas vezes nos surpreendem. O Major Harper, lembrou-se ela, uma vez cortara calmamente a própria garganta. Ninguém nunca soube por quê. Miss Marple pensava que talvez ela soubesse a razão... mas mesmo assim não tinha certeza...

Seus olhos desviaram-se para a mesa do Sr. Rafiel. A principal coisa que sabia sobre ele era que era incrivelmente rico, vinha todos os anos às Antilhas, era semiparalítico e que parecia um velho gavião encarquilhado. As roupas dançavam livremente no corpo enrugado. Poderia ter setenta, oitenta ou mesmo noventa anos. Os olhos eram argutos e ele freqüentemente era grosseiro, mas raramente as pessoas se ofendiam, em parte porque ele era muito rico e em parte devido a sua irresistível personalidade, que hipnotizava a todos, fazendo-os sentir que o Sr. Rafiel tinha o direito de ser grosseiro se assim o quisesse.

Ao seu lado estava sentada sua secretária, Sra. Walters. Tinha os cabelos cor de milho e um rosto agradável. O Sr. Rafiel freqüentemente era muito grosseiro com ela, mas ao que parece ela não se incomodava com isso. Não era servil, nem desatenta. Procedia como uma enfermeira bem treinada. Provavelmente, pensou Miss Marple, ela tinha sido enfermeira de hospital.

Um rapaz moço, alto e bem apessoado, de paletó branco, chegou e ficou de pé ao lado da cadeira do Sr. Rafiel. O velho olhou-o, aquiesceu com um aceno e fez sinal para que se sentasse. O rapaz sentou-se como lhe fora indicado.

O Sr. Jackson, eu imagino, disse consigo mesma Miss Marple – seu criado de quarto.

Pôs-se a estudar o Sr. Jackson com atenção.

 

No bar, Molly Kendal esticou as costas, tirou fora seus sapatos de saltos muito altos. Tim se uniu a ela procedente da terraço. De momento se encontravam sozinhos em aquele lugar.

— Está cansada, querida? – perguntou ele.

— Só um pouquinho. Os pés estão doendo um pouco esta noite.

— Não está sendo demais para você? Isto tudo? Eu sei muito que o trabalho é muito duro. — olhou para ela ansioso.

Ela riu.

— Oh, Tim, não seja ridículo. Eu adoro isto aqui. É maravilhoso. O tipo de sonho que eu sempre sonhei tornou-se realidade.

— Sim, eu sei que é uma beleza... se somos apenas hóspedes. Mas dirigir o espetáculo... isto é trabalho.

— Bem, não se pode mesmo conseguir nada sem fazer força, não é empenho? — disse Molly Kendal sensatemente.

Tim franziu a testa.

— Você acha que está dando certo? É um sucesso? Estamos fazendo as coisas direito?

— É claro que estamos.

— Você não acha que as passoas estejam dizendo: “Não é comoi no tempo dos Sanderson...”

— É lógico que alguém deve estar dizendo isto... sempre dizem! Mas somente os cabeças-duras. Eu tenho certeza de que nós estamo-nos saindo melhor que eles. Temos mais charme. Você encanta as velhinhas e consegue convencer as desespeadas de quarenta e cinqüenta de que está ansioso para namorá-las, e eu dou olhares para os velhinhos, faço-os se sentirem grandes conquistadores... ou banco a filhinha inocente que os mais sentimentais gostariam de ter tido. Ora, nós estamos enrolando-os maravilhosamente.

— Bem, enquanto você pensa assim... Eu tenho um certo medo. Arriscamos tudo o que tínhamos nete trabalho. Eu dei o fora do emprego...

— E fez muito bem, já lhe disse isso — Molly acrescentou rapidamente. — Estava acabendo com você.

Ele riu e beijou-lhe a ponta do nariz.

— Eu lhe garanto que nós estamos fazendo sucesso — continuou ela. — Por que você está sempre preocupado?    

— Eu fui feito deste jeito, creio eu. Sempre pensando... sempre imaginando que as coisas não vão dar certo.

— Que coisas?

— Oh, eu nem sei! Talvez alguém se afogue.

— Essa não... É uma das praias mais seguras da ilha E nós temos aquele enorme sueco sempre de guarda.

— Eu sou um tolo — disse Tim Kendal. Hesitou e disse: — Você não teve mais nenhum daqueles sonhos, teve?

— Ora! Foram mariscos demais — disse Molly, e riu-se.

 

                               MORTE NO HOTEL

Miss Marple pediu que lhe levassem o café da manhã à cama, como de costume. Compunha-se de uma xícara de chá, um ovo cozido e uma fatia de mamão.

A fruta nativa da ilha, pensou Miss Marple. A desconcertava. Sempre mamão. Ah! Se houvesse podido comer uma boa maçã... Mas as maçãs pareciam ser desconhecidas ali.

Ao cabo de uma semana de permanência na ilha, Miss Marple se tinha habituado já a refrear um instintivo impulso: o de perguntar pelo tempo. Era sempre idêntico: bom. Não se registravam mudanças notáveis.

— OH! As múltiplas variações meteorológicas no transcurso de uma só jornada, dentro da Inglaterra... — murmurou para si. Ignorava se estas palavras constituíam uma entrevista, conseqüência de alguma leitura, ou eram invenção dela.

Certamente, aquela terra se via em ocasiões açoitada por furiosos furacões. Isso tinha ouvido contar. Mas Miss Marple não os relacionava com a palavra tempo, na ampla acepção do vocábulo. Julgava-os, mas bem, por sua natureza, um ato de Deus. Ali chovia, uma chuva curta e violenta que só durava cinco minutos, e tudo cessava bruscamente. As coisas e as pessoas, em sua totalidade, ficavam ensopadas, para secar-se outros cinco minutos mais tarde.

A moça negra nativa sorriu dizendo: “Bom dia”, enquanto colocava a bandeja de que era portadora sobre os joelhos de Miss Marple. Que dentes mais bonitos e tão brancos os dela! A moça, sempre sorridente, dava a impressão de ser feliz. As jovens indígenas possuíam um suave e agradável caráter. Lástima que se sentissem tão pouco inclinadas ao matrimônio! Isto preocupava não pouco ao Padre Prescott. Havia muitos batismos, e este fato supunha um consolo; mas nenhum casamento.

Miss Marple se tomou o café da manhã, dedicando-se de passagem a planejar seu dia. O que faria durante aquele que começava? Pouco era o que tinha que decidir. Levantaria-se sem pressas, com lentos movimento, porque estava muito quente e seus dedos não eram mais tão ágeis quanto antigamente. Logo descansaria por espaço de uns dez minutos aproximadamente. Depois de pegar suas agulhas e sua lã poria-se a andar pouco a pouco em direção ao hotel. Ali veria onde ficava mais bem acomodada. Do terraço se divisava uma ampla extensão de mar. Optaria por aproximar-se da praia para distrair-se contemplando aos banhistas e aos meninos, entretidos em seus jogos? Decidiria-se, certamente, pelo último. Pela tarde, depois do descanso, podia dar um passeio de carro. Na realidade lhe dava o mesmo fazer uma coisa ou outra.

Aquele seria um dia como qualquer outro, pensou.

Não ia ser assim, entretanto.

Miss Marple começou a por em prática seu programa. Quando avançava muito devagar pelo atalho que conduzia ao hotel se encontrou com o Molly Kendal. A jovem não sorria, coisa estranha nela. Seu ar confuso, era tão evidente que Miss Marple se apressou a lhe perguntar:

— Aconteceu algo errado, minha querida?

Molly assentiu. Vacilou um pouco antes de responder.

— Bem... Ao final acabará inteirando-se, igual a todo mundo. Se

trata do Major Palgrave. Ele morreu.

— Que morreu?

— Sim. Morreu esta noite.

— OH! Querida. Eu sinto muito!

— Sim, é horrível ter uma morte aqui! Todos se sentem

deprimidos. Certamente, era já muito velho.

— Eu lhe vi ontem muito animado. Parecia encontrar-se perfeitamente, — disse Miss Marple, levemente chateada com esta afirmação que: todas as pessoas de idade avançada estavam expostas a morrer de um momento a outro. — A julgar por seu aspecto exterior desfrutava de uma saúde excelente — adicionou.

— Tinha a pressão muito alta — manifestou Molly.

— Bom, mas certamente que estas coisas que se tomam hoje em dia... umas pílulas especiais conforme acredito. A ciência produz maravilhas atualmente.

— OH, sim! É possível, não obstante, que se esquecesse de tomar ou que ingerisse muitas. É algo semelhante, a senhora sabe, ao que pode ocorrer com a insulina.

Miss Marple não acreditava que a diabetes e a pressão alta tivessem tantos pontos em comum como supunha Molly.

— O que foi que o doutor disse?

— O doutor Graham, está praticamente aposentado agora, e vive no hotel, deu uma olhada no cadáver. Oportunamente se apresentaram aqui as autoridades da localidade, tendo sido dado o atestado de óbito; mas tudo está correu normalmente. A pessoa que sofre de pressão alta se acha exposta sempre a um sério percalço, especialmente se abusar do álcool. O Major Palgrave era muito despreocupado neste aspecto. Recorde sua conduta ontem à noite, por exemplo.

— Sim, já me dava conta — respondeu miss Marple.

— Provavelmente esqueceu-se de tomar suas pílulas. Que má sorte! Claro que nascemos para morrer, não? Naturalmente, isto vem a ser uma fonte de inquietações para o Tim e para mim. Não faltará alguém que se encarregue de dizer por aí que a comida do hotel não se achava em bom estado ou outra coisa deste estilo.

— Bom, terá que pensar que os sintomas de envenenamento por ingestão de mantimentos em más condições não guardam a menor relação com os referentes à hipertensão sangüínea...

— Sim, isso é certo, mas não o é menos que as pessoas que tem a língua muito solta. E se alguém chega à conclusão de que nossa comida não é como deve ser, e parte, informando a seus amizades...

— A verdade é que eu não vejo aqui graves motivos de preocupação nesse sentido — declarou Miss Marple, amavelmente. — Como você disse, um homem de idade, como o Major Palgrave, que devia estar com mais de sessenta... acha-se exposto a morrer, por lei natural. A todo mundo tem que lhe parecer isto uma ocorrência completamente normal... É de lamentar, sim, mas também terá que contar com ele.

— Se não tivesse sido uma coisa tão repentina... — murmurou Molly, tão

preocupada como ao princípio.

Sim, sim, tremendamente inesperada e repentina, pensou Miss Marple ao prosseguir seu interrompido passeio. Palgrave tinha estado à noite anterior rindo e falando sem cessar com os Hillingdons e os Dysons, de muito bom humor durante todo tempo.

Os Hillingdons e os Dysons... Miss Marple andava agora com mais lentidão ainda... Finalmente se deteve. Em lugar de dirigir-se à praia se instalou em um cantinho sombreado do terraço. Tirou da bolsa suas agulhas e seu novelo de lã e em poucos segundos aquelas tilintavam ritmicamente a toda velocidade, como se queriam alcançar a velocidade com que se produziam os pensamentos no cérebro de sua proprietária. Não... Não gostava daquilo. Vinha com excessiva oportunidade.

Começou a passar em revista os acontecimentos do dia anterior...

O Major Palgrave e suas histórias...

Suas palavras tinham sido as de sempre, por isso decidiu-se no momento do diálogo não escutar com atenção a história de seu acompanhante. Embora talvez houvesse lhe valido mais se tivesse prestado atenção.

Palgrave lhe tinha falado do Quênia. E também da Índia. E da Fronteira do Noroeste... Mais adiante, por uma razão que já não recordava, começaram a falar de crimes... E nem sequer em tais momentos ela tinha escutado suas palavras com verdadeiro interesse...

Deu-se um caso célebre, sobre o qual publicaram informações amplas nos jornais... depois de haver-se abaixado para apanhar do chão seu novelo de lã, o Major Palgrave tinha aludido à figura de um criminoso, a uma fotografia em que este aparecia.

Miss Marple fechou os olhos, tentando recordar a trama da história a que se referia Palgrave.

Tinha sido um relato bem confuso. Alguém lhe havia dito tudo em um clube, naquele a que pertencia ou em qualquer outro... Tinha falado de um médico, que ouvira de um colega... Um deles tinha tirado uma foto instantânea de alguém que saía pela porta principal de uma casa, alguém, certamente, que devia ser o assassino...

Sim, era isto... Os diversos detalhes foram voltando para sua memória...

E ele ofereceu a fotografia para ela olhar... Tinha tirado sua carteira, começando a remexer seu conteúdo, sem parar de falar um momento...

E logo, sempre falando, tinha levantado os olhos — e olhara... — Não tinha olhado para ela, mas para algo que se achava a suas costas, detrás de seu ombro direito, para precisar. Então calou, de repente, e sua face se tornou aindaa mais vermelho... A seguir começou rapidamente a guardar seus papéis, coisa que fez com mãos ligeiramente tremulas, falando sobre coisas de suas aventuras pela África, de quando ia depois das presas dos elefantes, que comprava ou caçava!

Uns segundos depois os Hillingdon e os Dyson se uniram a eles...

Foi então quando ela girou a cabeça lentamente, sobre o ombro direito, para olhar também à mesma direção... Não viu nada nem a ninguém. À esquerda, um pouco afastados, na direção do hotel, divisou as figuras do Tim Kendal e sua esposa; mais por detrás um grupo familiar dos venezuelanos. Mas o Major Palgrave não tinha olhado para ali...

Miss Marple esteve refletindo até a hora do almoço.

Depois de almoçar decidiu não dar nenhum passeio de carro.

Em lugar disto, enviou um recado ao hotel no que anunciava que não se encontrava muito bem, rogando ao doutor Graham que tivesse a bondade de ir vê-la.

 

           A MISS MARPLE PROCURA ASSISTÊNCIA MÉDICA

O doutor Graham era um homem muito atento, que contaria sessenta e cinco anos, aproximadamente. Tinha exercido sua profissão durante muito tempo nas Índias Ocidentais, mas se havia retirado quase por completo da vida ativa. Saudou Miss Marple afetuosamente, lhe perguntando o que se passava. Felizmente, à idade de Miss Marple sempre havia alguma doença que podia ser o tema de conversação com os inevitáveis exageros por parte da paciente. Ela vacilou entre “seu ombro” e “seu joelho”, decidindo-se finalmente pelo último.

O doutor Graham se absteve de lhe dizer com a cortesia nele peculiar que, a sua idade, eram absolutamente lógicas certas moléstias, as quais cabia esperar. A seguir receitou umas pílulas, pertencentes ao grupo dos remédios que formam a base das prescrições médicas. Como sabia por experiência que muitas pessoas de idade estavam acostumada sentir-se muito sós ao princípio de sua estadia no Sto. Honoré, ficou por uns momentos, a fim de entreter a Miss Marple com seu bate-papo.

“Que homem extremamente agradável” — pensou Miss Marple — A verdade é que agora me sinto envergonhada por lhe haver contado tantas mentiras. Bom, e o que outra coisa podia fazer?

Miss Marple se inclinou sempre, por temperamento, para verdade. Mas em determinadas ocasiões, quando ela estimava que seu dever era proceder assim, mentia com uma assombrosa facilidade, sabendo tornar verossímeis os maiores disparates.

Pigarreou, deu uma tossidela de desculpa, e disse, de maneira muito delicada e ligeiramente nervosa:

— Há algo, doutor Graham, que eu gostaria de lhe perguntar. Eu não queria falar sobre isto, mas... não sei como poderia ser de outra forma... se bem que não seja de muita importância realmente. Mas, se o senhor sabe, para mim é importante. E eu espero que o senhor vá compreender e não vá pensar que seja algo aborrecido que eu lhe esteja pedindo... ou que seja imperdoável sob qualquer ponto de vista.

Após esta abertura, o Dr. Graham respondeu gentilmente:

— Algo está lhe aborrecendo? Diga em que eu possa ajudá-la.

— Tem uma certa ligação com o Major Palgrave. Foi tão triste a sua morte. Foi um verdadeiro choque quando eu soube hoje de manhã.

— Sim — disse o Dr. Graham. — Foi de repente, eu creio. Ele estava tão bem-humorado ainda ontem.

Falava de maneira indulgente, porém convencional. Para ele, com certeza, a morte do Major Palgrave não tinha nada fora do comum. Miss Marple ficou imagindando se ela não estava mesmo vendo fantasmas onde não havia nada. Será que o hábito de suspeitar de tudo estava tomando conta dela? Talvez não pudesse mais confiar em seu próprio julgamento. E nem julgamento era, apenas a suspeita. De qualquer jeito, agora já era tarde! Precisava ir em frente.

— Nós estávamos sentados ontem à tarde, conversando — disse ela. — Ele estava me falando sobre a sua vida tão variada e interessante. Tantas partes estranhas da terra.

—Sim, é verdade — disse o Dr. Graham, que se aborecera diversas vezes com as reminiscências do Major.

— E então ele falou sobre a sua família, sua juventude, e eu lhe contei histórias sobre os meus sobrinhos e sobrinhas e ele as escutou com muita complacência. Então mostrei-lhe um instantâneo de um de meus sobrinhos. Um rapaz adorável... isto é, não seria mais um rapaz agora, mas sempre um menino para mim, o senhor compreende.

— Claro — disse o Dr. Graham, imaginando quanto tempo ainda levaria a velhinha para chegar ao ponto desejado.

— Eu lhe entreguei a fotografia e ele estava examinando-a quando chegaram de repente algumas pessoas... aquele grupo tão simpático... que colecionam flores e borboletas, o Coronel e a Sra. Hillingdon eu creio que se chamam...

— Oh, sim? Os Hillingdons e os Dysons.

— Sim, é isto mesmo. Chegaram de repente, rindo muito e conversando. Sentaram-se e pediram umas bebidas e todos nós ficamos conversando. Foi muito agradável. Mas sem prestar atenção, o Major Palgrave deve ter posto a minha fotografia em sua carteira e guardado no bolso. Eu não estava prestando muita atenção naquele momento, mas me lembrei um pouco depois e pensei comigo mesma: — eu não posso esquecer-me de pedir ao Major para me devolver a foto de Denzil. Eu pensei nisto ontem à noite, mas não quis interrompê-lo naquela hora, porque eles estavam muito alegres juntos e eu calculei que era melhor pedir-lhe hoje de manhã. Só que hoje de manhã... — Miss Marple fez uma pausa, com falta de fôlego.

— Sim, sim — disse o Dr. Graham — eu compreendo. E a senhora... bem, naturalmente gostaria de ter a sua foto de volta. Não é isto?

Miss Marple balançou a cabeça num gesto ansioso.

— Sim, é isto mesmo. O senhor sabe, é a única que eu tenho e não possuo o negativo. E não gostaria de perder aquela fotografia, porque meu pobre Denzil morreu há uns cinco ou seis anos e era o meu sobrinho predileto. Esta é a única foto que tenho dele. Fiquei pensando... eu espero... é muito penoso ter de lhe pedir isto... Será que o senhor poderia consegui-la para mim? Não sei mais a quem eu possapedir, sabe? Não sei quem é que vai cuidar dos pertences dele e destas coisas. É tudo tão difícil. Iriam pensar que era muito aborrecido de minha parte. O senhor sabe, as pessoas não compreendem essas coisas. Ninguém poderia calcular o que esta fotografia significa para mim.

— É claro, é claro — disse o Dr. Graham. — Eu compreendo muito bem. Um sentimento muito natural de sua parte. Na verdade, eu vou encontrar-me muito em breve com as autoridades locais... o enterro é amanhã, e um funcionário do escritório do Administrador virá dar uma olhada nos papéis e documentos antes de se comunicar com o parente mais próximo... todas essas formalidades... se a senhora pudesse descrever-me a fotografia...

— Era a parte da frente de uma casa — disse Miss Marple — e alguém, Denzil, eu quero dizer, estava saindo pela porta. Como foi tirada por um de meus outros sobrinhos que gosta muito de flores... — ele estava fotografando uns hibiscos, eu creio, ou uma destas flores muito lindas, lírios... Por coincidência Denzil estava saindo pela porta da frente naquela hora. Não era uma fotografia muito boa dele... um pouquinho desfocada... mas eu gostava dela assim mesmo e sempre a guardei comigo.

— Muito bem — disse o Dr. Graham, — assim será mais fácil. Eu penso que não haverá dificuldades em recuperá-la, Miss Marple.

Ele se levantou da cadeira e Miss Marple sorriu-lhe.

— O senhor é muito gentil, Dr. Graham, muito gentil mesmo. Eu seu que o senhor me compreendeu, não foi?

— Claro que compreendi, claro que compreendi — disse o Dr. Graham, apertando-lhe efusivamente a mão. — Não se preocupe. Exercite o seu joelho todos os dias, mas não o force muito e eu lhe mandarei uns comprimidos. Tome um, três vezes ao dia.

 

                   A MISS MARPLE TOMA UMA DECISÃO

O serviço fúnebre foi feito no dia seguinte, junto ao corpo do falecido Major Palgraver. Miss Marple foi acompanhada pela Srta. Prescott. O padre leu o ofício e depois disso a vida continuou como sempre.

A morte do Major Palgrave fora considerada apenas um incidente, um incidente ligeiramente desagradável, mas que logo seria esquecido. A vida aqui era a luz do sol, o mar e os prazeres sociais. Um visitante sinistro interrompera estas atividades, lançando uma sombra momentânea, mas agora esta sombra já se fora. Ninguém conhecia o falecido muito bem. Sobretudo porque havia sido um velho tagarela, deste tipo de “chatos de clube”, sempre lhe contando reminiscências pessoais que ninguém tinha interesse em escutar. Quase nada o prendia a um determinado lugar do globo. Sua mulher morrera há muitos anos. Tivera uma vida solitária e uma morte solitária. Mas fora um tipo de solidão que se leva ao viver entre muitas pessoas, e o passar do tempo desta forma não era de todo desagradável. O Major Palgrave pode ter sido um homem solitário, mas fora igualmente um homem jovial. Divertira-se de uma maneira particular. E agora, que estava morto, enterrado, que ninguém se importava muito com o que lhe acontecera, em mais uma semana de tempo ninguém nem mesmo se lembraria dele ou lhe dirigiria um pensamento distraído.

A única pessoa que poderíamos provavelmente dizer que sentia falta dele era Miss Marple. Não por nenhum sentimento pessoal de afeição, mas porque ele representava um tipo de vida que ela conhecia. Quando envelhecemos, refletia ela consigo mesma, mais a mais aprendemos o hábito de ouvir: ouvir as coisas mesmo sem um grande interesse, mas entre ela e o Major existia aquele tipo de compreensão que existe entre as pessoas idosas. Havia uma compreensão humana e cordial. Na realidade, ela não lamentava a morte do Major, mas sentia falta dele.

Na tarde do enterro, quando ela estava sentada em seu lugar favorito tricotando, o Dr. Graham aproximou-se. Ela baixou as agulhas e cumprimentou-o. Ele falou logo, como se pedisse desculpas:

— Eu sinto muito, mas vou-lhe dar uma má notícia, Miss Marple.

— Sim? Sobre a minha...

— Sim. Não encontramos a sua preciosa fotografia. Eu penso que a senhora vai ficar muito desapontada.

— Sim. É um desapontamento. Mas, é claro, que realmente não é tão importante assim. Era um sentimentalismo. Agora eu vejo melhor. Não estava na carteira do Major Palgrave?

—Não. E nem estava no meio de seus papéis. Havia algumas cartas e recortes de jornais, várias miudezas e algumas velhas fotos, mas nenhum sinal do instantâneo procurado.

— Oh, que perna! — disse Miss Marple. — Bem, já que não se pode fazer nada... Muito obrigada, Dr. Graham, pelo trabalho que teve.

— Ora, não foi trabalho nenhum, na vertdade. Mas eu sei por experiência própria como essas coisas de família significam tanto para a gente, especialmente quando vamos ficando velhos.

A velhinha estava aceitando tudo com muita calma, pensou ele. Provavelmente o Major Palgrave achara a fotografia quando estava tirando alguma coisa da carteira e, sem mesmo pensar como ela viera parar ali, rasgara-a como se não tivesse nenhuma importância. Mas era lógico que para esta velhinha ela era muito importante. Entretanto, parecia muito jovial e filosófica a respeito.

Por dentro, no entanto, Miss Marple estava longe de se sentir jovial ou filosófica. Precisava de um tempinho para coordenar seus pensamentos, mas estava igualmente determinada em aproveitar esta oportunidade ao máximo.

Começou a puxar conversa com o Dr. Graham com uma ansiedade que não fez questão de esconder. Aquele homem amável, atribuindo aquela avalancha de palavras à solidão natural de uma senhora idosa, empenhou-se em desviar sua atenção da perda da fotografia, falando animadamente sobre a vida em Sto. Honório e os vários locais interessantes que talvez Miss Marple gostasse de visitar. Ele nem soube explicar como a conversa recaiu outra vez sobre a morte do Major Palgrave.

— Foi tão triste — disse Miss Marple. — Imagine, pensar em alguém morrendo assim tão longe de casa. Se bem que eu me lembre que ele falou que não tinha nenhum parente próximo. Parece que vivia sozinho em Londres.

— Ele viajava um bocado, eu creio — disse o Dr. Graham. — Pelo menos durante o inverno. Não gostava muito de nossos invernos ingleses. E eu não diria que estivesse errado.

— De certo que não — disse Miss Marple. — E talvez por alguma razão de saúde como alguma fraqueza nos pulmões. Quem sabe se não seria necessário para ele passar o inverno longe da Inglaterra?

— Não, não creio que fosse por isto.

— Ele tinha pressão alta, eu acho. É triste hoje em dia. Ouve-se falar tanto a respeito.

— Ele falou com a senhora sobre isto?

— Oh, não! Não, ele nunca mencionou isso. Foi outra pessoa que me falou.

— Realmente?

— Eu creio — continuou Miss Marple — que a morte pode ser esperada nestas circunstâncias, não?

— Não forçosamente — disse o Dr. Graham. — Hoje em dia há métodos para se controlar a pressão sanguínea.

— A morte dele pareceu-me tão repentina... mas eu calculo que o senhor não ficou surpreso?

— Bem, eu não me surpreendi devido à idade dele. Mas certamente não esperava por isto. Para falar com franqueza, sempre me pareceu em muito boa saúde, mas nunca o examinara profissionalmente... Nunca lhe havia tirado a pressão ou qualquer coisa parecida.

— A gente pode saber... eu quero dizer, um médico pode saber se um homem tem pressão alta somente olhando para ele? — Miss Marple olhou para ele com inocência angelical.

— Olhando só não dá — disse o Dr. Graham, sorrindo. — É preciso fazer um pequeno exame.

— Oh, eu vejo... Aquela coisa horrorosa que aperta uma faixa de borracha em volta do braço da gente e que se bombeia... Eu tenho horror daquilo... Mas meu médico disse que a minha pressão arterial é realmente muito boa para a minha idade.

— Isto é muito bom de saber — disse o Dr. Graham.

— É lógico que o Major Palgrave gostava muito de coquetéis — disse Miss Marple pensativa.

— Sim. E não é das melhores coisas para a pressão alta... o álcool.

— As pessoas tomam pílulas, não é? Foi o que ouvi dizer.

— Sim. Há muitos tipos nas farmácias. Havia um vidro no quarto dele... Serenite.

— Como a ciência é maravilhosa hoje em dia — disse Miss Marple. — Os médicos podem fazer tanta coisas, não é?

— Nós temos um grande competidor — disse o Dr. Graham. — A Natureza, a senhora sabe. E muitos daqueles velhos remédios caseiros ajudam de tempos em tempos.

— Como botar teias de aranhas num corte? — perguntou Miss Marple. — Nós sempre fazíamos isto quando éramos crianças.

— E era muito sensato — concordou o Dr. Graham.

— E cataplasma de óleo de linhaça no peito e massagens de óleo canforado para uma tosse violenta.

— Eu vejo que a senhora conhece de tudo! — disse o Dr. Graham rindo muito. Ele se levantou. — Como vai esse joelho? Não tem dado muito trabalho?

— Não, parece que melhorou muito.

— Bem, eu não posso dizer se foi a Natureza ou as minhas pílulas. Desculpe se não pude ser-lhe mais útil.

— Mas o senhor foi muito gentil... eu estou mesmo encabulada por ter-lhe feito perder tempo... O senhor disse que não havia nenhuma fotografia na carteira do Major?

— Oh, sim... uma muito antiga do próprio Major montado num cavalo pólo... e uma de um tigre morto... Ele estava ao lado, com um pé em cima. Fotos desse gênero... lembranças de seus dias de mocidade... Mas olhei cuidadosamente, lhe garanto, e aquela que a senhora descreveu de seu sobrinho não estava absolutamente lá...

— Eu tenho certeza de que o senhor olhou com cuidado... não quis dizer isto... estava apenas interessada... Nós sempre temos uma tendência para guardar coisas velhas...

— São tesouros do passado — disse o médico sorrindo.

Deu-lhe até logo e retirou-se.

Miss Marple ficou olhando pensativa para o mar e os coqueiros. Durante alguns minutos não tornou a pegar em seu tricô. Agora tinha um fato. Precisava pensar sobre este fato e sobre o seu significado. A fotografia que o Major tirara da carteira e recolocara apressadamente não estava lá depois de sua morte. Não era o tipo de coisa que o Major tivesse jogado fora. Ele a recolocara na carteira e era lá que ela deveria estar depois de sua morte. O dinheiro podia ter sido roubado, mas ninguém iria roubar uma pequena foto. A menos que tivesse uma razão especial para isso...

O rosto de Miss Marple ficou sério. Ela precisava tomar uma decisão. Deixaria ou não o Major Palgrave repousar tranqüilamente em seu túmulo? Não seria melhor deixar tudo para trás? Recitou entre os dentes: — “Duncan está morto. Depois de febril inconstâncias da vida ele repousa em paz!” Nada mais poderia ferir o Major Palgrave agora. Ele fora para um lugar onde o perigo não poderia mais atingi-lo. Teria sido apenas uma coincidência o fato de ele ter morrido naquela mesma noite? Ou não fora exatamente uma coincidência? Os médicos aceitam a morte das pessoas idosas tão facilmente... Especialmente quando encontram em seus quartos um vidro de pílulas que as pessoas que têm pressão alta precisam tomar aa cada dia de suas vidas. Mas se alguém levara a fotografia que estava na carteira do Major, esta mesma pessoa poderia ter colocado o vidro no quarto dele. Ela própria não se lembrava de ter visto o Major tomando pílulas alguma vez; ele nunca lhe falara sobre pressão alta. A única coisa que mencionara a respeito de sua saúde, era a confissão: — “Já não sou tão moço quanto era!” Às vezes, ficava com um pouquinho de falta de ar, uma asminha à toa, nada mais. Mas alguém mencionara que o Major tinha pressão alta — Molly? A Srta. Prescott? Ela não se lembrava direito.

Jane Marple suspirou e depois recriminou-se com palavras, se bem que apenas as dissesse em pensamento:

“Vamos, Jane, o que é que você está imaginando? Será que já está inventando bobagens outra vez? Será que haverá mesmo alguma coisa?”

Repassou, palavra por palavra, com a maior exatidão possível, a conversa que tivera com o Major a respeito de crimes e de assassinatos.

— Oh, Deus! — disse Miss Marple, — Messmo se eu... realmente, eu não sei o que possa fazer sobre isso...

Mas ela sabia que pelo menos tentaria...

 

                         NA MADRUGADA

Miss Marple acordou cedo. Como a maior parte das pessoas de idade o seu sono era leve e passava por diversos períodos de insônia que ela utilizava para planejar o que iria fazer nos dias seguintes. Normalmente, é lógico, eram problemas de natureza doméstica, de pouco ou nenhum interesse para ninguém a não ser ela mesma. Mas nesta manhã Miss Marple estava deitada pensando seriamente sobre um crime, e que, se suas suspeitas fossem verdadeiras, o que fazer a respeito. Não ia ser fácil. Ela tinha uma arma, e uma arma apenas, e esta era a conversa.

Velhinhas são sempre dadas a bate-papos incoerentes. As pessoas acham isto maçante, mas certamente não suspeitariam de motivos ulteriores. Não seria o caso de formular perguntas diretas (Na verdade, ela teria achado muito difícil saber quais as perguntas a fazer!). Seria o caso de descobrir um pouco mais sobre certas pessoas. Pôs-se a considerá-las.

Provavelmente ela poderia ter mais informações sobre o Major Palgrave, mas isso lhe seria útil? Duvidava que fosse. Se o Major Palgrave fora assassinado não seria pelos segredos de sua vida ou porque tivesse recebido uma herança ou ainda por vingança. De fato, se bem que ele tivesse sido a vítima, era um desses casos em que um grande conhecimento sobre esta vítima não ajuda em nada, nem o levará mais perto do criminoso. O motivo pareceu-lhe, o único motivo, era que o Major Palgrave falava demais!

Ela soubera de um fato interessante através do Dr. Graham. Ele tinha na carteira diversas fotografias; uma dele montando num cavalo pólo, outra de um tigre morto, mais uma ou duas do mesmo tipo. Agora vejamos, por que o Major Palgrave trazia consigo essas fotos? Evidentemente, pensou Miss Marple baseada em sua longa experiência com velhos almirantes, brigadeiros, generais, e meros majores, porque ele tinha várias histórias que gostava de contar aos outros. Começando com “Uma coisa curiosa me aconteceu uma vez quando eu estava caçando tigres na Índia...” Ou uma lembrança de uma partida de pólo. Da mesma forma que aquela história sobre um suposto assassino deveria ser ilustrada com a apresentação do instantâneo que estava em sua carteira.

Ele seguia sempre o mesmo padrão de conversa. Quando o assunto passou para o crime, e para dar mais interesse ao que ia contar, fez o que devia fazer normalmente, mostrou a fotografia e disse algo assim: “Não acreditaria que este camarada fosse um assassino, não é?”

O problema é que isto se tornara um hábito para ele. A história deste crime fazia parte de seu repertório regular. Caso houvesse alguma referencia a um crime, logo o Major entraria em ação, a todo o vapor.

Neste caso, refletiu Miss Marple, talvez ele já houvesse contado esta história para outra pessoa. Ou talvez para mais de uma pessoa — e se fosse este o caso, então ela mesma poderia saber com esta outra pessoa de mais alguns detalhes ou possivelmente, com quem se parecia a pessoa da fotografia.

Ela balançou a cabeça satisfeita... Isto poderia ser um começo.

E, é claro, sempre havia as pessoas que ela chamava em seu íntimo os “Quatro Suspeitos”. Apesar de que na realidade, uma vez que o Major Palgrave estivesse falando sobre um homem — só houvesse mesmo dois. O Coronel Hillingdon ou o Sr. Dyson, nenhum dos dois tinha cara de assassino, mas assassinos muitas vezes não têm cara de assassinos. Poderia haver mais alguém? Ela não tinha visto ninguém quando virara a cabeça para espiar. É claro que havia o bangalô. O bangalô do Sr. Rafiel. Poderia alguém ter saído de dentro do bangalô e entrado novamente enquanto ela não tinha virado a cabeça? Se fosse assim, apenas podia ser o criado de quarto> Como era mesmo o nome dele? Ah, Jackson! Poderia ter sido Jackson quem aparecera na porta? Seria a mesma pose da fotografia. Um homem saindo por uma porta. Um reconhecimento repentino. Até aquele momento o Major Palgrave não tinha olhado para Jackson, um criado de quarto, sem nenhum interesse. Seu único traço marcante era o de ser essencialmente esnobe — Arthur Jackson não era um pukka sahib¹. O Major Palgrave não teria olhado duas vezes para ele.

Até o momento em que, estando com o instantâneo entre as mãos, e tendo olhado por cima do ombro direito de Miss Marple, vendo um homem sair por uma porta...?

Miss Marple virou-se no travesseiro — programa para amanhã, ou melhor, programa para hoje: investigações posteriores sobre os Hillingdons, os Dysons e Arthur Jackson, criado de quarto.

 

O Dr. Graham também acordou cedo. Normalmente virava-se para o outro lado e pegava no sono outra vez. Mas hoje estava preocupado e o sono não chegou. Esta ansiedade que o impedira de pegar no sono novamente era uma coisa que ele não sentia há muito tempo. O que será que lhe estava causando isso? Realmente, não podia imaginar o que fosse. Ficou deitado a pensar. Alguma coisa a respeiito de... sim, alguma coisa a respeito do... sim, do Major Palgrave! A morte do Major Palgrave? Não podia ver nela nada que o deixasse preocupado. Teria sido alguma coisa que aquela velhinha alvoroçada dissera? Pouca sorte a dela sobre afotografia. Ela aceitar a derrota muito bem. Mas agora, o que foi mesmo que ela dissera, qual fora a palavra que lhe deixara com aquela sensação de inquietude? Acima de tudo, não havia nada de estranho na morte do Major. Nada mesmo. Pelo menos, ele imaginava que não houvesse nada.

Era óbvio que o estado de saúde do Major — uma ligeira dúvida passou por sua cabeça — será que sabia mesmo alguma coisa sobre o estado de saúde do Major? Todos diziam que ele sofria de pressão alta. Mas ele mesmo nunca conversara com o Major a esse respeito. Bem, não gostava de conversar muito com o Major Palgrave.

 

N.T. – Um verdadeiro cavalheiro.

 

Palgrave era um chato e ele evitava os velhos chatos. Por que diabos estava agora na cabeça com esta idéia que talvez tudo não estivesse assim tão certo? Teria sido a velhinha? Mas afinal de contas ela não dissera nada. De qualquer forma, o problema não era dele. As autoridades locais estavam satisfeitas. E ainda havia o vidro de Serenite, e o garotão freqüentemente falava sobre a sua pressão arterial.

O Dr. Graham virou-se na cama e logo pegou no sono novamente

 

Fora das vizinhanças do hotel, em um dos barracos da favela ao lado de uma enseada, a jovem Victória Johnson virou-se e sentou na cama. A moça de Sto. Honório era uma bela criatura, com um corpo de mármore negro que qualquer escultor teria prazer em ver. Passou os dedos pelos cabelos pretos, muito crespos. Com um pé cutucou as costelas de seu companheiro adormecido.

— Acorde, homem.

O homem remungou e voltou-se.

— O que é que você quer? Ainda não é de manhã.

— Acorde homem. Eu quero falar com você.

O homem sentou-se, se espreguiçou, abriu a boca mostrando dentes muito bonitos.

— O que é que lhe está preocupando, mulher?

— Aquele Major que morreu. Há algo de que eu não gostei. Há algo errado.

— E por que é que você está se preocupando? Ele era velho. Morreu.

— Escute, homem. Foram as pílulas. As pílulas que o doutor me perguntou.

— E então? Vai ver que ele tomou demais.

— Não. Não é nada disso. Escute — debruçou-se sobre ele, falando com veemência. Ele bocejou e deitou-se outra vez.

— Não tem nada demais. O que é que você está inventando?

— De qualquer jeito, eu falarei amanhã com a Sra. Kendal a respeito. Eu acho que tem alguma coisa errada nalgum lugar.

— Nem devia se meter — disse o homem, que apesar da ausência de qualquer cerimônia, ela considerava como seu atual marido. — Não vá começar a procurar encrencas — disse ele e virou-se para o outro lado, bocejando.

 

                   MANHÃ NA PRAIA

Seriam ao redor das dez...

Evelyn Hillingdon saiu da água, deixou-se cair sobre a dourada e quente areia da praia. Logo tirou a toca de borracha e fez uns enérgicos movimentos de cabeça. A praia não era muito grande. A gente tendia a congregar-se ali pelas manhãs e ao redor das onze e meia se celebrava uma espécie de reunião social. À esquerda da Evelyn, em uma moderna poltrona de vime de exótico aspecto, descansava a senhora do Caspearo, uma formosa venezuelana. Perto dela se encontrava o velho Sr. Rafiel, que era agora o deão do do Hotel da Palmeira Dourada e que mantinha um domínio que apenas pode pesar a emanada de um homem em posse de uma grande fortuna, já ancião e inválido. Esther Walters cuidava dele. Levava sempre consigo um bloco de papel e lápis de taquigrafia, no caso do Sr. Rafiel se via forçado a adotar decisões rápidas com relação a qualquer negócio, a par dos quais se mantinha por telegrama. O Sr. Rafiel se mostrava incrivelmente seco em traje de banho. Suas escassas carnes cobriam um esqueleto deformado. Parecia, sim, encontrar-se à beira da morte, mas o mais curioso era que fazia oito anos que oferecia aquele aspecto. Pelo menos, isso era o que se afirmava nas ilhas. Por entre suas enrugados pálpebras apareciam uns olhos azuis, vivazes, penetrantes. Não havia nada que lhe produzia mais prazer do que negar o que qualquer outro homem houvesse dito.

Também Miss Marple se encontrava por ali. Como de costume estava sentada, fazendo tricô. Escutava tudo o que dizia-se e de vez em quando intervinha nas conversações. Estava acostumado a surpreender então aos que conversavam porque estes, habitualmente, chegavam a esquecer-se de sua presença! Evelyn Hillingdon a olhava indulgentemente, julgando-a uma anciã muito agradável.

A senhora De Caspearo esfregou em suas longas pernas com um pouco mais de óleo. Era uma mulher que não falava muito. Parecia aborrecida com seu vidro de óleo, que utilizava para bronzear-se.

— Este não é tão bom como o “Frangipanio” — murmurou entristecida. — Mas aqui não se consegue aquele. É uma lástima — acrescentou, baixando a vista.

— Não vai dar seu mergulgo agora, Sr. Rafiel? — perguntou-lhe seu secretária.

— Banharei-me quando estiver com vontade — replicou o Sr. Rafiel secamente.

— Já são onze e meia — assinalou a senhora Walters.

— E daí? Você acha que sou um desses tipos que vivem acorrentados aos ponteiros do relógio? Terá que fazer isto dentro de uma hora; terá que fazer aquilo vinte minutos depois... Ora!

Já tinha transcorrido algum tempo, desde o dia em que a senhora Walters tinha começado a trabalhar para o Sr. Rafiel. Naturalmente, havia tido que adotar uma linha de conduta. Ela sabia, por exemplo, que ao velho gostava de repousar uns momentos, depois do banho. Por conseguinte, tinha-lhe recordado a hora. Isto provocava uma instintiva rebeldia por sua parte. Embora, no final o Sr. Rafiel teria muito em conta a advertência da senhora Walters sem mostrar-se por isso submisso.

— Eu não gosto destas sandálias — manifestou o velho, levantando um pé. — Já o disse a esse estúpido do Jackson. Não me faz nunca o menor caso.

— Buscarei-lhe outras, o senhor quer ?

— Não. Não se mova daí. E procure estar ficar quieta. Chateia-me a gente que não cessa de correr de um lado para outro.

Evelyn se moveu ligeiramente sobre seu leito de areia, estirando os braços.

Miss Marple, absorta em seu trabalho no tricô — pelo menos e o que parecia, — estendeu uma perna, apressando-se a desculpar-se...

— Sinto muito... OH! Sinto-o muito, senhora Hillingdon. Imagino que eu lhe dei um pontapé.

— Ora! Não tem importância — replicou Evelyn— . Esta praia se encontra lotada de gente.

— Por favor, não se mova. Colocarei minha poltrona um pouco mais atrás, de modo que não possa incomodá-la de novo.

Havendo-se acomodado melhor, Miss Marple prosseguiu falando com seu peculiar estilo infantil e a loquacidade de que fazia ornamento em ocasiões.

— É muito maravilhoso estar aqui. Eu não havia estado nunca, antes de agora, nas Índias Ocidentais. Sempre pensei que ficaria sem ver estas ilhas... E, entretanto, aqui estou eu. Tenho que dizê-lo: graças à amabilidade de um de meus sobrinhos. Imagino que você conhece perfeitamente esta parte do mundo. É certo, senhora Hillingdon?

— Estive aqui umas duas vezes antes e conheço quase todas as ilhas restantes.

— Ah, claro! Você se interessa pelas borboletas desta região e também pelas flores silvestres. Você e seus... amigos, não? Ou bem são parentes?

— Amigos, nada mais.

— Suponho que tenham viajado juntos em muitíssimas ocasiões, devido à interesses em comum...

— Sim. Andamos juntos há vários anos.

— Imagino que tenham vivido emocionantes aventura.

— Eu creio que não — disse Evelyn, falando com uma entonação especial, levemente entediada. — As aventuras ficam reservadas a outros seres. Evelyn bocejou.

— Não teve nunca perigosos encontros com serpentes venenosas e outros animais da selva? Não tiveram encontros com indígenas revoltados?

“Nestes momentos devo lhe parecer com uma mulher tola!”, pensou Miss Marple.

— Só sofremos algumas vezes com picadas de insetos — afirmou Evelyn.

— Você sabia que o pobre Major Palgrave foi mordido em certa ocasião por uma serpente? — inquiriu Miss Marple.

— Certamente, aquilo era invenção dela...

— Seriamente? Não lhe referiu o Major alguma vez o episódio?

— Pode ser que sim. Não recordo.

— Você lhe conhecia muito bem, não?

— A quem? Ao Major Palgrave? Não, só ligeiramente.

— Sempre dispôs de um excelente repertório de histórias para contar.

— Era um indivíduo insuportável — opinou o Sr. Rafiel. — Não havia quem agüentasse àquele estúpido. Se tivesse cuidado de si mesmo, como era devido. não teria morrido.

— Vamos, vamos, Sr. Rafiel, não diga isso — interveio a senhora Walters.

— Sei muito bem o que eu digo. O melhor é preocupar-se com sua própria saúde. Note-se em mim. Os médicos me julgaram faz anos um caso perdido. “Perfeitamente”, pensei. “Como eu possuo minhas normas particulares para cuidar de um modo conveniente de minha pessoa, comecei a seguí-las estritamente.” Como conseqüência disto, aqui estou eu...

O Sr. Rafiel olhou a seu redor, orgulhoso de si mesmo.

Verdadeiramente, parecia um milagre que aquele homem pudesse seguir vivendo.

— O pobre Major Palgrave padecia de hipertensão sangüínea — declarou a senhora Walters.

— Ora! Tolices! — exclamou, depreciativo, o Sr. Rafiel.

— Ele mesmo o dizia — assegurou Evelyn Hillingdon.

Esta tinha falado com um ar de autoridade totalmente inesperado.

— Quem dizia isso? — inquiriu o Sr. Rafiel. — Ele disse a você por acaso?

— Alguém difundiu essa notícia.

Miss Marple, que tinha provocado aquela conversação, quis contribuir com algo dizendo:

— Palgrave tinha sempre o rosto muito vermelho — observou.

— As aparências enganam — manifestou Sr. Rafiel— . A verdade é que o Major Palgrave não padeceu nunca de hipertensão. Assim ele mesmo me disse.

— Como? — perguntou a senhora Walters. — Não lhe entendo. Não é possível que alguém vá por aí, assegurando que tem isto ou não se tem.

— Pois isso é algo que acontece às vezes, senhora Walters... Em certa ocasião, comentei que ele abusava do celebre “ponche dos colonos”, e que exagerava na comida, adverti-lhe: “Você deve vigiar sua dieta e administrar ou suprimir a bebida. Na sua idade é preciso pensar na pressão sangüínea.” Respondeu-me que não tinha motivo nenhum para preocupação desse tipo, já que sua pressão era correta, mesmo com sua idade.

— Mas é que, conforme acredito, tomava alguma remédio — aventurou com ar inocente Miss Marple entrando de novo na conversação. — Acredito que consumia um medicamento chamado “Serenite”, que é apresentado no mercado em forma de pílulas.

— Em minha opinião — declarou Evelyn Hillingdon, — o Major Palgrave não gostou nunca de admitir que podia padecer de algo, que podia estar doente. Devia ser um desses homens que temem cair no leito, afligidos de qualquer mal, e se dedicam a convencer a outros — e a si mesmos — de que não está doente, e de que não adoecerá nunca de nada...

Tratando-se da Evelyn, tinha sido um comprido discurso. Miss Marple ficou olhando pensativamente para a sua cabeça morena.

— O mau é que todo mundo anda empenhado em averiguar as doenças do próximo — declarou em tom ditatorial o Sr. Rafiel — pensa-se, geralmente, que todos os que ultrapassaram os cinqüenta anos vão morrer de hipertensão, de trombose coronária ou de algo assim... Bobagens. Se um homem me disser que está bem, por que tenho que imaginar eu o contrário? Que horas são? Quinze para o meio dia? Eu devia ter me banhado faz já um bom tempo. Mas, Esther, por que não me lembrou destas coisas a tempo?

A senhora Walters não formulou a menor resposta. Levantou-se ajudando ao Sr. Rafiel a fazer o mesmo. Os dois foram aproximando-se da água. Esther avançava amparando-o. Juntos entraram por último na água.

A senhora De Caspearo abriu os olhos, murmurando:

— Que feios são os velhos! OH, que feios! Os homens não deveriam chegar a essas idades a não ser morrer, por exemplo, aos quarenta anos. Ou, melhor ainda: ao cumprir os trinta e cinco.

Aproximando-se do grupo, Edward Hillingdon, ao qual havia acompanhado até ali Gregory Dyson, perguntou:

— Que tal está a água, Evelyn?

— Igual a sempre.

— Onde está a Lucky?

— Não sei.

De novo Miss Marple contemplou com atitude reflexiva a miúda e escura cabeça da Evelyn.

— Bom, agora vou imitar uma baleia por um momento — anunciou Gregory. Tirou sua bermuda de estampado muito vivo e pôs-se a correr praia abaixo e de uma vez se precipitou no mar, emergindo aos sopros começou a nadar rapidamente.

Edward Hillingdon ficou sentado na areia junto a sua esposa, a que perguntou logo:

— Vamos dar uma caída na água?

Ela sorriu, pôs a touca de banho novamente e entraram juntos na água, de uma maneira menos espetacular que Gregory.

A senhora De Caspearo voltou a abrir os olhos...

— Ao princípio acreditei que esse casal estava em sua lua de mel. Há que ver quão amável é ele com ela! Depois me inteirei de que são casados a oito ou nove anos. É incrível, não é?

— Onde andará a senhora Dyson? — perguntou Miss Marple.

— Essa que chamam Lucky? Deve estar em companhia de algum homem.

— A sério que você acredita que...?

— Eu tenho certeza! — exclamou a senhora De Caspearo— . É fácil descobrir a que grupo pertence essa mulher. O mau é que a juventude já lhe foi... e seu marido faz como que não vê nada. Na realidade já anda de olho nas outras... Anda bancando o D.Juan... fazendo alguma conquista aqui, ali, em todo momento.

— Sim — respondeu Miss Marple. — Você deve estar bem inteirada disso.

A senhora De Caspearo lhe correspondeu com um olhar de profunda surpresa. Não tinha esperado por tal comentário por aquela parte.

Miss Marple, não obstante, continuava contemplando as elevadas ondas com uma expressão de completa inocência na face.

 

— Poderia falar com você, senhora Kendal?

— Sim, naturalmente -respondeu Molly, que se encontrava no escritório, sentada frente a sua mesa de trabalho.

Vitória Johnson, alta, esbelta, em seu impecável uniforme branco e engomado, entrou no quarto, fechando a porta a seguir. Havia algo de misterioso em seu porte.

— Eu gostaria de dizer a você uma coisa, senhora Kendal.

— Do que se trata? Há alguma coisa errada?

— Não sei, não estou segura... Desejava lhe falar do senhor idoso que morreu aqui, do Major que faleceu enquanto dormia.

— Sim, sim. Fala.

— Havia um frasco de pílulas em seu dormitório. O médico me perguntou por elas.

— Segue.

— O doutor disse: “Vejamos o que ele guardava no armário do banheiro” E ele descobriu pasta de dentes, pílulas digestivas, um tubo de aspirinas e pílulas laxativas e encontrou um frasco de pílulas chamado “Serenite”.

— Que mais?

— O doutor as examinou. Parecia muito satisfeito e não cessava de fazer gestos de assentimento. Logo aquilo me deu o que pensar. As pílulas que ele viu não tinham estado ali antes. Eu nunca as tinha visto na prateleira. As outras coisas, sim. Refiro-me a pasta de dentes, as aspirinas, a loção para o barbeado... Mas esse frasco de pílulas de “Serenite” era a primeira vez que eu via-o.

— Em conseqüência, você pensa que... — seguiu Molly, confusa.

— Não sei o que pensar agora — disse Vitória— . Imaginando que aquilo não estava em ordem, decidi que o melhor era pôr o fato em seu conhecimento. Falou você com o doutor? Talvez isso possua algum significado especial. Possivelmente alguém colocou as pílulas ali, com objetivo do senhor Major tomar e morrer.

— OH! Não posso acreditar que tenha acontecido nada disso — opinou Molly.

Vitória balançou a cabeça.

— Nunca se sabe... Tem gente que faz verdadeiras loucuras.

Molly olhou para fora pela janela. O lugar devia ser, em pequeno, um cópia de paraíso terrestre. Brilhava o sol nas alturas; sobre um mar azul imenso, com seus recifes de coral... Por isso, pela música e o baile, quase contínuo ali, o hotel era um Éden. Mas até no Jardim do Éden tinha havido uma sombra, a sombra da Serpente. “Tem gente que faz verdadeiras loucuras.” OH, quão desagradável era ouvir estas palavras!

— Farei indagações, Vitória — explicou Molly, muito séria. — Não se preocupe. E sobre tudo não saia por aí inventando rumores estúpidos sem fundamento.

Entrou no escritório Tim Kendal. Vitória se despediu... um tanto ou quanto contra a vontade...

— Acontece algo, Molly?

Esta vacilou... Pensou logo que Vitória podia ir em busca de seu marido para contar-lhe tudo. Referiu-lhe o que a garota dissera.

— Não sei por que toda esta besteirada... onde estavam as pílulas finalmente?

— Em realidade não sei, Tim. O doutor Robertson disse, quando veio, que seriam para combater a hipertensão.

— A idéia é correta... Quero dizer que como Palgrave tinha a tensão alta, o lógico é que tomasse um remédio adequado. Há muita gente que toma como no seu caso. Pude-o ver eu mesmo.

— Sim, mas... Vitória parece pensar que o Major morreu em conseqüência de ter ingerido dessas pílulas.

— OH, querida! Não dramatizemos agora. Quer me dar a entender que alguém pôde substituir o medicamento por uma, substância envenenada que quanto a sua apresentação fosse igual?

— Expostas assim as coisas soam um absurdo — respondeu Molly em tom de desculpa. — Entretanto, é o que Vitória está pensando que aconteceu!

— Que estúpida! Poderíamos perguntar ao doutor Graham sobre isso. Suponho que estará bem informado. Mas é uma tolice. Não vale a pena lhe incomodar.

— Isso mesmo penso eu.

— Que diabos terá levado a essa garota pensar que alguém pôde substituir as pílulas por outras? Bom, aproveitariam o mesmo frasco, não?

— Não sei. Como quer que eu saiba, Tim? — disse Molly, desconcertada. — Vitória assegura que não tinha visto nunca na habitação do Palgrave um frasco de “Serenite” antes da morte de nossa hóspede.

— Tolices! — exclamou Tim Kendal. — O Major tinha que tomar suas pílulas para que sua tensão fosse mantida normal.

Depois de ter pronunciado estas palavras, Tim, muito animado, saiu em busca do Fernando, o maître d'hotel.

Mas Molly não conseguiu por de lado assim com tanta facilidade o aquele assunto. Depois das agitações da hora da comida disse a seu marido:

— Tim... estive pensando... É possível que Vitória fale por aí do que me contou. Talvez devêssemos consultar a alguém sobre o que fazer?

— Minha querida menina! Aqui estiveram Robertson e os seus. O olharam tudo, não ficou nada por ver e fizeram quantas perguntas consideraram oportunas sobre a questão.

— Sim, mas já sabe com que facilidade essas moças distorcem as coisas...

— Está bem, Molly, está bem! Direi-te o que vou fazer: veremos Graham agora. Ele estará perfeitamente informado.

Foram em busca do doutor, a quem encontraram em sua habitação, lendo. O jovem casal aproximou-se e Molly recitou sua história. Seus palavras soaram algo incoerentes e então foi Tim quem continuou.

— Parece uma tolice — disse; — mas, por isso eu pude compreender, a essa jovem lhe colocou na cabeça a idéia de que alguém trocou por outras venenosas as pílulas de Sera..., como se chama o medicamento?

— E por que tem que pensar assim? — inquiriu o doutor Graham. — Ela viu ou ouviu algo especial... por que é que ela pensa em tal hipótese?

— Não sei — murmurou Tim, desorientado. — Disse a moça alguma coisa sobre a provável existência de outro frasco diferente, foi isso, Molly?

— Não. Ela se referiu em todo momento a aquele rotulado com apenas a palavra Sebe..., Serei.... Como é, doutor?

— Serenite — replicou Graham. — Se trata de um medicamento muito conhecido. Palgrave, certamente, tomava com regularidade.

— Vitória afirmou não ter visto nunca no quarto do Major um medicamento como aquele.

— Seriamente? — perguntou Graham, surpreso. — E que deseja significar com isso?

— Vitória afirma haver visto muitas coisas no armário do banheiro. Já pode você imaginar-se quais: pastas dentifrícias, aspirinas, alguma loção para o barbeado... Eu acredito que a garota as enumerou todas. Suponho que estava habituada a limpar as coisas e que chegou por tal motivo a aprender os nomes de memória. Agora bem, o frasco do Serenite só o viu depois de a morte do Palgrave.

— Que estranho! — exclamou o doutor Graham. — Está segura disso?

O tom com que tinha feito esta pergunta os Kendal sentiram uma estranha aspereza. Não tinham esperado que o doutor adotasse aquela atitude...

— Vitória parecia estar muito segura de si mesmo ao formular sua observação — respondeu Molly falando lentamente.

— Estimo que o mais pertinente é que eu fale com essa garota — manifestou o doutor Graham.

Vitória se mostrou muito satisfeita ao lhe ser proporcionada aquela oportunidade de contar o que tinha visto. Entretanto, declarou:

— Não quero que me metam em nenhuma confusão, né? Eu não fui quem pôs o frasco na prateleira. Tampouco conheço a pessoa que colocou.

— Mas você está convencida de que alguém fez isso, verdade?

— É natural, doutor, não compreende? Alguém teve que colocar o frasco no lugar indicado se antes não se encontrava ali.

— Podia ter acontecido que o Major Palgrave o houvesse guardado sempre em uma das gavetas da cômoda, em um maleta...

Vitória moveu energicamente a cabeça, muito astuta.

— É improvável que procedesse assim, se tomava o remédio com regularidade.

Graham aceitou aquele raciocínio a contra gosto.

— Essas pílulas precisam ser tomadas pelos que sofrem de hipertensão várias vezes ao dia. Nunca lhe surpreendeu em um momento tomando algo assim?

— O frasco de que lhe falei não esteve nunca na prateleira que eu limpava diariamente. Pu-me a pensar... Possivelmente essas pílulas têm alguma relação com a morte do Major. Possivelmente estivessem envenenadas. Um inimigo seu podia tê-las posto a seu alcance para livrar-se dele.

O doutor, convencido, replicou:

— Tolices, moça, tolices.

Vitória parecia muito afetada.

— Você disseram que essas pílulas eram de um medicamento, que deviam ser um remédio... — A moça falava agora mostrando certas dúvidas.

— E um remédio excelente. O que é mais importante ainda: imprescindível — esclareceu o doutor Graham.— Você não precisa se preocupar, Vitória. Posso lhe assegurar que essa medicina não continha nada nocivo. Era precisamente o mais indicado para um homem que sofria de hipertensão.

— Puxa, você me tirou um peso de minha consciência — respondeu Vitória, mostrando seus branquíssimos dentes, em um sorriso alegre.

Em compensação, o doutor Graham tinha carregado com ele. A fraca inquietação que lhe tinha atormentado ao princípio se fazia agora quase tangível.

 

               UMA CONVERSA COM ESTHER WALTERS

— Este hotel já não é o que era antes — disse irritado o Sr. Rafiel, ao observar que Miss Marple se aproximava do lugar em que ele e seu secretária se tinham acomodado. — Não se pode dar um passo sem tropeçar com alguém. Que diabos terão que fazer estas velhas damas nas Índias Ocidentais?

— Aonde sugere você que poderiam ir? — perguntou-lhe Esther Walters.

— Ao Cheltenham — replicou o Sr. Rafiel sem vacilar. — Ou para Bournemouth. E se não ao Torquay, ou ao Llandudno Wells... Acredito que têm onde escolher, não? Em troca, gostam de vir aqui. Nestes lugares se sentem felizes, afinal das contas é isso que vejo.

— Visitar uma ilha como esta em que vivemos é um privilégio reservado a poucas pessoas. Terá que aproveitar a ocasião quando se apresenta — argüiu Esther. — Todo mundo não dispõe de uma situação financeira como a sua.

— Isso é verdade — confirmou o Sr. Rafiel. — Esqueça do que falei... Bom, aqui você me tem, com um montão de dores e males, todo desconjuntado. E não obstante, nega-me qualquer ajuda. Além de não trabalhar absolutamente nada... por que já não escreveu essas cartas a máquina?

— Não tive tempo.

— Muito bem, veja se arranja tempo então. Eu lhe trouxe foi para que trabalhasse, e não ficar tomando tranqüilamente o sol e exibir seu corpo para todo mundo.

Qualquer pessoa que tivesse ouvido o Sr. Rafiel teria julgado seus observações intoleráveis. Mas Esther Walters trabalhava a seus ordens já a vários anos e lhe conhecia bem. “Cão que ladra não morde”, reza um refrão, e a senhora Walters sabia que tal refrão era perfeitamente aplicável a seu chefe. O Sr. Rafiel se sentia afligido de contínuo por múltiplas dores e suas ásperas palavras deviam ser para ele uma válvula de escape. Dissesse o que dissesse, sua secretária permanecia imperturbável.

— Que linda tarde, não é? — comentou Miss Marple, detendo-se junto aos dois.

— E como não? — perguntou com sua brutalidade tão habitual o velho — . Não é isso o que todos viemos procurar aqui?

Miss Marple deixou ouvir uma leve risadinha.

— OH, Sr. Rafiel! Que severo você sempre se mostra! Não esqueça que o tempo para os ingleses é um dos temas preferidos de conversação... Oh, Deus!... eu trrouxe a cor de novelo errada.

Miss Marple depositou sua bolsa sobre uma mesinha próxima e caminhou com toda pressa em direção a seu bangalô.

— Jackson! — gritou o Sr.Rafiel.

O rapaz apareceu logo em seguida.

— Me leve para o bangalô — lhe ordenou o ancião. — Quero que me faça a massagem agora, antes que volte essa galinha cacarejante, para aqui. Claro que por isso não me vou sentir melhor... — acrescentou com sua secura de costume.

Jackson, com supremo cuidado e não pouca habilidade, ajudou ao Sr. Rafiel a ficar em pé. Uns minutos depois, eles se perdiam no interior da casinha.

Esther Walters ficou olhando-os. Logo voltou a cabeça. Miss Marple retornava, portadora de um novelo de lã de outra cor, sentando-se a seu lado.

— Espero não a incomodar — disse olhando à secretária do Sr. Rafiel.

— Não — respondeu Esther— . dentro de pouco terei que sair porque tenho que datilografar umas cartas, mas quero desfrutar ainda de uns minutos mais de sol.

Miss Marple começou a lhe falar, aproveitando o primeiro pretexto que lhe ocorreu. Enquanto isso, estudou atentamente a seu ouvinte. Não era esta uma mulher deslumbrante, mas poderia tornar-se atraente, se tentasse. Miss Marple se perguntou por que razão não o tentava. Talvez fora porque o Sr. Rafiel não gostasse disso. Agora bem, Miss Marple estava convencida de que o ancião era completamente indiferente com sua aparência. Terei que pensar em outra coisa... Com efeito, aquele velho vivia tão ocupado de si próprio, que se visse suas vontades atendidas não lhe importava nada, certamente, que sua secretária se embelezasse, por exemplo, como uma hurí do Paraíso maometano. Por outro lado, o Sr. Rafiel se deitava normalmente muito cedo. Durante as horas da noite, os dias em que havia baile, Esther Walters podia ter-se revelado a todos como uma mulher nada desdenhável... Miss Marple pensou em tudo isto, enquanto relatava à dama sua visita ao Jamestown.

Habilmente, logo, enfocou a conversação sobre o Jackson, em relação com o qual, Esther Walters se mostrou muito vaga.

— É muito competente — manifestou— . Se vê nele um massagista muito experiente.

— Imagino que já faz muito tempo que trabalha para o Sr. Rafiel...

— OH, não! Uns nove meses não mais, parece-me.

— É casado? — aventurou-se Miss Marple a perguntar.

— Que se é casado? Não acredito — respondeu Esther, ligeiramente surpreendida. — Nunca disse se...

A senhora Walters fez uma pausa, adicionando depois:

— É obvio que não. Não é casado, eu diria. — E pareceu achar graça.

Miss Marple deu a estas palavras a seguinte interpretação: “Seja o que seja, não se comporta como se fosse um homem casado.”

Mas... Tantos homens corriam pelo mundo conduzindo-se como se não fossem maridos! Miss Marple poderia dar uma dúzia de exemplos.

— É um homem de muito bonito — observou pensativa.

— Sim, sim... — declarou Esther com indiferença.

Miss Marple estudou a sua interlocutora com atenção. Haveriam deixado de lhe interessar os homens? Pertenceria Esther a esse tipo de mulheres que se interessam tão somente por um homem? Haviam-lhe dito que era viúva.

— Faz muito tempo que você trabalha para o Sr. Rafiel? – ela perguntou.

— Estou com ele há quatro ou cinco anos. Quando meu marido morreu, comecei a trabalhar de novo. Tenho uma filha interna em um colégio e a situação econômica de minha casa era bastante difícil.

— Deve ser difícil trabalhar para um homem como o Sr. Rafiel.

— Não é realmente. Terá que lhe conhecer, simplesmente. A ira domina-o as vezes e se contradiz em muitas ocasiões. O que lhe acontece é que se cansa da gente. Em dois anos teve cinco criados de quarto. Gosta de ver ao seu redor caras novas, outra pessoas com quem possa brigar. Mas nós dois sempre nos demosmuito bem.

— O senhor Jackson parece ser um jovem muito prestativo?

— É um homem com tato, em posse também de certos recursos — declarou Esther. — Naturalmente, de vez em quando se vê em...

Esther Walters se interrompeu ao chegar aqui.

— Em uma difícil posição, acaso? — sugeriu depois de meditar uns segundos miss Marple.

— Sim, sim, com efeito. Entretanto... — adicionou Esther, sorrindo, — acredito que ele consegue ajeitar as coisas muito bem.

Miss Marple considerou atentamente estas palavras. Não iam lhe servir muito. Esforçou-se por animar a conversação e em poucos minutos ouvia uma ampla informação sobre o quarteto amante da Natureza, os Dyson e os Hillingdon.

— Os Hillingdon têm vindo aqui nos últimos três ou quatro anos — manifestou Esther. — Mas Gregory Dyson já vem há mais tempo que eles na ilha. Conhece as Índias Ocidentais perfeitamente. Acredito que veio aqui com sua primeira esposa. Era uma mulher delicada e se via obrigada a passar em um país de clima temperado os invernos.

— E ela morreu? Ou acaso se divorciaram?

— Morreu. Em uma destas ilhas. produziu-se um conflito, conforme acredito. Houve certo escândalo... Gregory Dyson não fala nunca dela. Um conhecido me contou tudo isto. Pelo que ouvi comentar eu deduzi que não se davam muito bem.

—E mais tarde se casou com esta outra mulher, com a “ Lucky”. —Miss Marple pronunciou esta última palavra empregando um tom especial, como se pensasse: “Um nome incrivelmente ridículo, na verdade!”

— Parece-me que era parente da primeira esposa.

— Faz muitos anos que conhece os Hillingdon?

— Eu diria que se relacionam desde que seus amigos chegaram aqui, há três ou quatro anos, não mais.

— Os Hillingdon formam um casal muito agradável — comentou Miss Marple. — São muito calados, tranqüilos...

— Sim, em efeito.

— Todo mundo diz por aqui que são afetuosos um com o outro — acrescentou Miss Marple, falando com reserva.

Esther Walters se deu conta disto, levantando a vista.

— Mas você não acredita, não é verdade?

— E você mesma pensa assim, não é, querida?

— Bem... Às vezes eu fico imaginando...

— Os homens calados e tranqüilos como o coronel Hillingdon — opinou Miss Marple — se sentem atraídos normalmente pelos tipos femininos deslumbrantes — depois de uma significativa pausa adicionou: — Lucky... Que nome tão curioso! Você acredita que o senhor Dyson tem alguma idéia a respeito do que... possivelmente esteja se passando?

“Velha maldosa” — pensou Esther Walters. — “Estas velhas não sabem fazer nenhuma outra coisa.”

— Não tenho a menor idéia. — respondeu fríamente.

Miss Marple se apressou a trocar de tema.

— Que tristeza o que aconteceu ao pobre Major Palgrave, não foi?

Esther Walters fez um gesto de assentimento, de maneira negligente.

— Os Kendal são os que me dão mais pena — declarou.

— Sim, suponho que um acontecimento destes não beneficia em nada a um hotel.

— A gente vem aqui para se divertir da melhor maneira possível, não? — afirmou Esther. — Esquecendo-nos por completo das doenças, da morte, dos impostos sobre a renda, do frio e suas consequencias e demais coisas parecidas. Aos que passam longas temporadas nestes lugares — prosseguiu dizendo a secretária do Sr. Rafiel, com uma entonação totalmente diferente — não se agradam que lhes recordem que são mortais.

Miss Marple deixou de lado seu trabalho.

— Essa é uma grande verdade, querida, uma grande verdade. Certamente, ocorre como você diz...

— Vemos que os Kendal são muito jovens — declarou Esther. — Este hotel passou das mãos dos Sanderson às suas somente a seis meses. Andam terrivelmente preocupados. Não sabem se triunfarão ou não nesta aventura, porque nenhum dos dois possui muita experiência.

— E você acha que esse sucesso pode chegar a ser para eles um grande inconveniente ?

— Bem, francamente não. Em uma atmosfera como a do “Golden Palm Hotel” estas coisas não serão lembradas além de um par de dias. Aqui se deve desfrutar... Eu tenho dito isso à Molly. Não consegui convencê-la. É que essa moça vive sempre preocupada.

— A senhora Kendal? Mas se eu tinha um conceito completamente diferente dela!

— Somente aparência... Julgo-a uma criatura que vive em perpétua ansiedade — disse Esther falando lentamente. — É dessas pessoas que não estão tranqüilas nunca, que vivem sempre obcecadas pela idéia de que as coisas, fatalmente, tem que lhes sair mau.

— Eu pensava isso mesmo de seu marido, não sei por que, que ele se preocupava mais do que ela.

— No meu entender ele, se anda abatido alguma vez, é porque vive preocupado com ela se preocupar.

— É curioso — murmurou Miss Marple.

— Penso que Molly faz esforços inauditos por aparecer contente, satisfeita de estar aqui. Trabalha muito e acaba exausta. Por tal motivo passa por terríveis momentos de depressão. Não é... Bom, não é uma garota perfeitamente equilibrada.

— Pobre moça! — exclamou Miss Marple. — É verdade que há pessoas que são assim. Muito freqüentemente, os que as tratam levianamente não se dão conta de tais coisas.

— É, geralmente elas dissimula muito bem seu verdadeiro estado de ânimo, não lhe parece? — inquiriu Esther. — Em minha opinião, Molly não devia preocupar-se tanto. Nada tem de particular que um homem ou uma mulher, aqui ou fora daqui, morram em conseqüência de uma trombose coronária, uma hemorragia cerebral ou outras enfermidades semelhantes. Isso ocorre hoje todos os dias, em qualquer parte, e mais freqüentemente que nunca. Para que um estabelecimento como este se despovoasse teriam que dar-se casos, dentro dele, de envenenamento por causa das más condições da comida, de febres tifóides, e coisas parecidas.

— O Major Palgrave não me disse nunca que sofresse de pressão alta — manifestou abertamente Miss Marple. — E a você, sim?

— Sei que ele disse a alguém, ignoro quem... Talvez tivesse sido o Sr. Rafiel. Já sei que este afirma o contrário, mas, o que lhe vamos fazer! Ele é assim! Agora recordo, ter ouvido Jackson mencionar isso. Disse que o Major Palgrave devia ser mais cuidadoso com todo aquele álcool que bebia.

Miss Marple, pensativa, guardou silêncio. Logo manifestou:

— Eu imagino que você achava Palgrave um homem muito maçante? Não cessava de contar histórias e é muito possível que algumas delas as tivesse repetido até não poder mais.

— Isso era o pior dele — declarou Esther. — Sempre acabava contando algo que já sabíamos, e nesse momento era preciso ser ligeiro e escapulir-se.

— A mim isso não incomodava — assinalou Miss Marple. — Seria porque estou acostumada a essas coisas e também por minha má memória. Como esqueço facilmente o que me contam não me importa escutar um relato pela segunda vez.

— Tem graça! — exclamou Esther.

— O Major Palgrave tinha preferência por uma história — apontou Miss Marple. — Falava nela de um crime. Suponho que lhe contara em alguma ocasião...

Esther Walters abriu sua bolsa, começou a procurar alguma coisa em seu interior. Trou o batom dizendo:

— Pensei que o tivesse perdido. — disse. A seguir perguntou: — Perdoe, Miss Marple. O que dizia você?

—O Major Palgrave chegou a lhe contar sua história favorita sobre um crime?

— Parece-me que sim, agora se me lembro bem. Algo referente a alguém que se suicidou abrindo a chave do gás do forno, verdade? Mais adiantedescobriu-se que isso não tinha sido um suicídio, sendo a esposa da vítima a culpada de sua morte. Era disso do que desejava me falar?

— Não, não. Parece-me que o relato era outro... — respondeu Miss Marple, indecisa.

— Contava tantas histórias! — exclamou Esther Walters. — Bom, como disse, eu nem sempre estava atenta ao que ele dizia...

— Ele tinha uma fotografia que costumava mostrar a todo mundo — esclareceu Miss Marple.

— Pois sim que fazia isso... Não me lembro bem do que era, Miss Marple. Você viu essa foto?

— Não, não pude vê-la. Fomos interrompidos durante nossa conversação no mesmo instante em que se dispunha a pô-la em minhas mãos.

 

                     A MISS PRESCOTT E OS OUTROS

— Isto é o que eu sei... — começou a dizer a senhorita Prescott, baixando a voz e jogando, atemorizada, uma olhada a seu redor.

Miss Marple aproximou a cadeira que ocupava a de seu acompanhante. Já fazia algum tempo que ela tentava ter uma conversa a sós com a senhorita Prescott. Isto era em parte devido a que os clérigos fossem muito apegados aos familiares. A senhorita Prescott se achava acompanhada quase sempre de seu irmão. Naturalmente, para mexericar a gosto, as duas mulheres gostavam de encontrar-se a sós.

— Parece ser... Claro está, Miss Marple, eu não quero pôr em circulação desagradáveis rumores que pudessem lhes prejudicar... Em realidade eu não sei nada...

— Não se preocupe. Compreendo-a muito bem... — apressou-se a lhe responder Miss Marple para tranqüilizá-la.

— Parece que houve algum escândalo vivendo ainda sua primeira esposa. Esta mulher, Lucky (que nome esquisito, né?), acredito que era prima da primeira esposa. Juntou-se a eles aqui, começou a fazer pesquisas sobre as flores, as borboletas e não sei que mais coisas. A gente falou muito porque sempre se via os dois juntos... Já me entende, não?

— O povo repara tanto nos mais ínfimos detalhes — sublinhou Miss Marple.

— Logo, a esposa morreu quase repentinamente...

— Aqui? Nesta ilha?

— Não. Acredito que foi na Martinica ou Tobago, onde se encontravam então.

— Compreendo...

— Das palavras pronunciadas por algumas pessoas que os conheceram ali deduzi que o doutor não estava muito satisfeito.

Miss Marple se esforçou por demonstrar o interesse com que escutava a sua interlocutora. Queria animá-la a prosseguir.

— Foram apenas mexericos, é obvio. Mas, enfim, o caso é que o senhor Dyson voltou a contrair matrimônio com uma pressa excessiva. — A senhorita Prescott baixou de novo a baixar a voz. — Acredito que o fez ao cabo de um mês. Você vê o pouco tempo...

— Só deixou passar um mês?

As duas mulheres se entreolharam com um significativo olhar.

— Pareceu-me..., uma falta de consideração, e que o desaparecimento de sua primeira esposa não lhe impressionou muito — disse a senhorita Prescott.

— Efetivamente — disse Miss Marple, perguntando a continuação:- Havia... dinheiro pelo meio?

— Ignoro-o. Ele sempre faz a mesma piada... talvez a senhora já tenha ouvido... de que a sua mulher lhe traz sorte?

— Bom, talvez já tenha presenciado. Assegura que sua esposa vem ser para ele o “mascote da sorte”.

— Sim, já me dei conta.

— Algumas pessoas pensam que isso significa que ele foi afortunado ao unir-se a uma mulher rica. Embora, certamente — disse a senhorita Prescott com a expressão de quem se acha decidida a ser justa, — a ela não podemos negar certas qualidades físicas, tenho para mim, no entanto, que o dinheiro dele procede da primeira esposa.

— São os Hillingdon gente bem de vida?

— Acredito que sim. Não suponho que sejam fabulosamente ricos, nem muito menos. Têm dois filhos, atualmente internos em um colégio na Inglaterra, e lá possuem uma formosa casa. Sim, eu creio que passam viajando a maior parte do inverno.

Naquele momento apareceu ante as duas mulheres o Reverendo. A senhorita Prescott se uniu imediatamente a seu irmão. Miss Marple não se moveu de seu assento.

Alguns minutos depois passou por ali Gregory Dyson, dirigindo-se a toda pressa para o hotel. Agitou uma mão, em cordial saudação.

— No que estará você pensando, Miss Marple? — brincou ele.

Miss Marple correspondeu a estas palavras com um gentil sorriso. Como teria reagido aquele homem se ela teria respondido: “Estava-me perguntando se seria você ou não um assassino?”

O mais provável era que fosse. Tudo encaixava maravilhosamente. Aquela história relativa à morte da primeira senhora Dyson... porque o Major Palgrave tinha falado, certamente, de um indivíduo “assassino de sua esposa”...

A única objeção que cabia fazer a aquela colocação era que os diversos dados conhecidos se encaixavam com exagerada perfeição. Entretanto, Miss Marple se recriminou por este pensamento. Quem era ela para exigir “crímes feitos sob medida”?

Uma voz lhe fez sobressaltar-se, uma voz mas bem rouca.

— Será que a senhora viu o Greg por aí, Miss... ahn...?

“Lucky” — pensou Miss Marple — “e não está de bom humor precisamente.”

— Acaba de passar por aqui... Acredito que se dirigia ao hotel.

— Eu era capaz de apostar! —Lucky pronunciou uma exclamação que realçava ainda mais sua irritação, continuando seu caminho.

“Neste momento aparenta mais anos dos que na realidade tem”, pensou Miss Marple.

Uma lástima infinita lhe invadiu à vista daquela mulher... O inspiravam piedade todas as “Luckys” do mundo, tão vulneráveis, tão sensíveis ao passar do tempo...

Miss Marple ouviu um ruído a suas costas, fazendo girar então seu cadeira.

Sr. Rafiel, apoiado no Jackson, saía naquele instante de seu bangalô.

O rapaz acomodou ao ancião em sua cadeira de rodas, preparando depois várias coisas. Sr. Rafiel agitou uma mão, impacientemente, e Jackson se afastou caminho do hotel.

Miss Marple decidiu não perder um minuto. O Sr. Rafiel nunca o deixado sozinho por muito tempo. O mais provável era que Esther Walters se unisse a ele em seguida. Miss Marple desejava trocar umas palavras com aquele homem sem testemunhas e acabava de apresentar-se a oportunidade ansiada. Teria que comunicar-lhe com toda rapidez o eu queria dizer-lhe. O velho não iria facilitar o caminho. O Sr. Rafiel era uma pessoa que não gostava de conversa fiada de velhinhas. Provavelmente, acabaria retirando-se a seu bangalô, considerando-se a si mesmo vítima de uma perseguição. Miss Marple decidiu ao fim seguir a rota mais curta.

Dirigiu-se para onde ele estava sentado, e tomando uma cadeira se acomodou a seu lado.

— Queria lhe perguntar algo, Sr. Rafiel.

— De acordo, de acordo... Concedido. O que deseja você? Suponho que uma assinatura para as missões africanas ou as obras de restauração de uma igreja, ou qualquer coisa do gênero...

— Sim — replicou Miss Marple tranqüilamente. — Precisamente me interessam muito essas coisas e ficarei muito reconhecida se me conceder um donativo. Não obstante, nestes momentos pensava em outro assunto. Eu queria era lhe perguntar se o Major Palgrave contou a você alguma vez uma história relacionada com um crime.

— Ora, ora! — exclamou Sr. Rafiel. Também contou a você disso? E, claro está, você engoliu a isca direitinho?

— Não soube o que pensar então, realmente. O que é o que lhe disse exatamente?

— Esteve divagando um momento em torno de uma formosa criatura, uma espécie da Lucrecia Borgia, uma reencarnação mas bem da mesma. Pintou-me isso bela, de loiros cabelos e todo o resto...

— Oh! —fez Miss Marple, um tanto desconcertada ante aquela resposta. — E quem assassinou essa mulher? — inquiriu.

— O seu marido, é obvio. E quem iria assassina-la?

— Envenenou-lhe?

— Não. Administrou-lhe um sonífero e depois abriu a chave do gás. Se tratava, pelo visto, de uma mulher de grandes recursos. Logo, disse que se havia suicidado. Em seguida conseguiu escapar-se com uma pena leve mediante uma mutreta legal, dessas às que hoje em dia recorrem os advogados quando a acusada é uma mulher de grandes atrativos físicos ou quando no banquinho dos acusados se senta qualquer miserável jovem excessivamente mimada por sua mãe. Ora!

— O Major Palgrave mostrou-lhe alguma fotografia?

— O que? Uma fotografia da mulher? Não. Por que tinha que fazê-lo?

Miss Marple se recostou em uma cadeira, olhando a seu interlocutor com uma acentuada expressão de perplexidade. Sem dúvida, o Major Palgrave tinha passado a vida contando historia que não só tinham que ver com os tigres e os elefantes que tinha caçado, a não ser também criminosos que tinha conhecido, direta ou indiretamente, ao longo de sua existência. Devia contar com um grande repertório. Terei que reconhecer esse fato... Ela assustou-se com o súbito grito do Sr. Rafiel, que chamava a seu criado.

— Jackson!

Não lhe respondeu ninguém.

— Quer que eu vá procurá-lo? — propôs Miss Marple.

— Não vai encontrá-lo. Andará atrás de algumas saias. É no que concentra suas forças. Esse indivíduo não presta para nada. Desagrada-me sua forma de ser. E, contudo, me serve muito bem.

— Irei lhe buscar — insistiu Miss Marple.

Descobriu o Jackson no lado oposto da terraço do hotel, bebendo umas taças em companhia do Tim Kendal.

— O Sr. Rafiel lhe chama — disse-lhe.

Jackson fez uma expressiva careta, esvaziou o conteúdo de sua taça e levantou-se.

— Lá vou eu outra vez — disse. — Não há paz para os infelizes... Duas chamadas telefônicas e a petição de uma comida especial... Acreditei que isso me proporcionaria um quarto de hora de pausa. Nada disso! Obrigado, Miss Marple. Obrigado pela bebida, senhor Kendal.

Jackson partiu.

— Pobre moço! — exclamou Tim. — De vez em quando eu o convido a tomar alguma coisaa, embora só seja para que não perca os ânimos. Quer você tomar algo, Miss Marple?... Que tal iria um bom refresco de limão? Sei que gosta...

— Agora não, muito obrigado... Suponho que cuidar de um homem como o Sr Rafiel deve ser uma tarefa exaustiva. O trato com os inválidos é quase sempre difícil.

— Não me referia unicamente a isso... Ao Jackson pagam bem seus serviços e por tal motivo tem que lhe suportar com paciência; é lógico, e o velho não é dos piores que pode existir em sua classe. Eu ia mais longe...

Tim pareceu vacilar e Miss Marple lhe olhou inquisitiva.

— Bom... Como o explicaria eu? Socialmente, sua situação não é nada fácil. A gente tem tantos prejuízos! Aqui não há ninguém de sua categoria. É algo pouco mais que um simples criado. Em troca, fica abaixo da média da maioria dos hóspedes, pelo menos é o que pensam dele. Até a secretária, a senhora Walters, considera-se mais importante que esse jovem. Existem posições extremamente delicadas... — Tim fez uma pausa, adicionando: — É impressionante. Terá que ver a quantidade de problemas de caráter social que se apresentam em um lugar como este!

O doutor Graham passou não muito longe deles. Levava um livro na mão, acomodando-se frente a uma mesa que dava para o mar.

— O doutor Graham parece preocupado — observou Miss Marple.

— OH! Todos o estamos, realmente.

— Você também? Por causa da morte do Major Palgrave?

— Isso já não me ocasiona nenhuma inquietação. A gente vai esquecendo tão desagradável episódio... já retomaram o curso de suas vidas. A mim a que me preocupa é minha mulher, Molly... A senhora entende um pouco a respeito de sonhos?

— Se entendo de sonhos? — perguntou Miss Marple, surpreendida.

— Sim, de sonhos maus... de pesadelos... eu creio. Ora, nós todos temos pesadelos de vez em quando. Mas a Molly tem direto... É vítima dos pesadelos diariamente. E os sonhos a deixam assustada. Não se poderia fazer algo por ela, para lhe evitar tão desagradáveis experiências? Não poderia tomar algum medicamento especial, se é que existe no mercado? Atualmente toma umas pílulas para dormir, mas ela assegura que esse remédio a prejudica. Tem ocasiões que ela faz força para acordar e não consegue...

— Sobre o que são seus sonhos?

— OH! Sempre se trata de alguém que a persegue, que a vigia ou está espiando... Nem sequer depois de despertar consegue recuperar a tranqüilidade, voltar para seu estado normal.

— Um médico poderia, certamente...

— É uma mulher que detesta os médicos. Não quer nem ouvir falar deles. —Bom... Imagino que tudo isto passará. Mas é uma lástima. Sentíamo-nos muito felizes aqui. Estivemo-nos divertindo, inclusive, enquanto trabalhávamos. E agora, ultimamente... É possível que a morte do Palgrave a transtornasse. Depois disso, minha esposa parece outra pessoa...

Tim Kendal ficou em pé.

— Tenho que sair, Miss Marple. Me esperam as minhas obrigações de todos os dias. Tem certeza que não quer desse refresco de limão que lhe ofereci?

Miss Marple, sorridente, balançou a cabeça negativamente.

Ficou sentada ali mesmo. Meditava. A expressão de seu rosto era grave, preocupada.

Logo voltou a cabeça, olhando o doutor Graham.

Tomou uma decisão imediatamente, levantou-se, aproximando-se de sua mesa.

— Devo me desculpar ante você, doutor Graham — disse-lhe.

— Sim? — O doutor a olhou com certo assombro. Ele puxou uma cadeira, acomodando-a ao seu lado.

— Acredito ter feito uma coisa terrível com o senhor, Dr. Graham — manifestou miss Marple. — Menti a você deliberadamente, doutor.

Ela o olhou apreensiva.

Este não parecia escandalizado, só um pouco surpreso, nada mais...

— O que me diz? Bom, suponho que se tratará de algo desprovido por completo de importância.

Que fazia miss Marple ali, expressando-se naqueles términos?

O que seria que aquela velhinha encantadora estaria escondendo? A idade? Se bem que ele não se lembrasse de que ela lhe ouvesse falado de idade. — Bem, vejamos o que é, Miss Marple. Você fale com clareza — prosseguiu, posto que ela, evidentemente, queria confessar.

— Você recorda que lhe falei algo relativo à fotografia de um de meus sobrinhos? Falei-lhe que havia posto nas mãos do Major Palgrave e este me esqueceu de devolver ?

— Sim, sim, já me lembro. Quanto lamento não havê-la podido encontrar entre suas coisas pessoais!

— Você não pôde encontrá-la porque não se achava entre eles - declarou Miss Marple, baixando a voz, atemorizada.

— Como?

— Não. Essa fotografia não existiu nunca. Ao menos em poder desse homem. Tudo foi uma história de minha invenção.

— Inventou? Por que razão? — inquiriu o doutor Graham, ligeiramente zangado.

Miss Marple explicou tudo. Com toda clareza, sem rodeios. Contou a história de Palgrave e seu assassino; falou de como o Major tinha estado a ponto de lhe mostrar a foto instantânea que tirava de sua carteira; mencionou sua posterior e repentina confusão... Mais adiante, ela tinha decidido tentar o que fosse possível para que estivesse em sua mão a fotografia.

— E, realmente, eu não podia imaginar outro jeito de fazer aquilo sem lhe contar algo que não era absolutamente a verdade — acrescentou Miss Marple— . Confio que saberá me perdoar.

— De modo que você pensou que ele se dispunha a lhe mostrar a fotografia de um assassino?

— Isso foi o que disse Palgrave. E me falou que a fotografia tinha sido dada pelo conhecido que lhe contou a história daquele crime.

— Seja seja... E, perdoe, a senhora acreditou nele de verdade?

— Eu não sei se lhe dizer se acreditei ou não — disse Miss Marple. — Agora bem, você sabe que Palgrave morreu no dia seguinte...

— Sim — disse o doutor Graham, impressionado pela força reveladora daquela frase: Palgrave morreu ao dia seguinte...

— E a fotografia desapareceu... — comentou Miss Marple.

O doutor Graham guardou silêncio. Não sabia o que dizer. Por fim manifestou: — me perdoe, Miss Marple, mas isto que me conta agora, é verdade ou mentira?

— Eu sei que o senhor tem razão ao duvidar de mim — respondeu ela. — Em seu lugar eu agiria igual. Sim, é verdade o que agora estou lhe contando. Tem que me acreditar, doutor. Além disso, independentemente da atitude que for adotada, eu me vi na obrigação lhe contar isto.

— Por quê?

— Achei que você deveria estar sabendo de tudo... Se por acaso...

— Se por acaso... o que?

— Se por acaso decida tomar alguma providência a respeito.

 

                     UMA DECISÃO EM JAMESTOWN

O doutor Graham se encontrava no Jamestown, no escritório do administrador. Sentado frente a ele, atrás de uma mesa, estava seu amigo Daventry, homem de uns trinta e cinco anos de idade, de expressão grave.

— Por telefone me pareceram um tanto misteriosas suas palavras, Graham — disse Daventry. — Aconteceu algo especial?

— Não sei — respondeu o doutor, — mas a verdade é que estou preocupado.

Enquanto lhes serviam umas bebidas, Daventry passou a contar as incidências havidas na última expedição de pesca em que havia participado. Assim que o criado saiu, recostou-se em sua poltrona, fixando o olhar no rosto do visitante.

— Já pode você começar, Graham.

O médico enumerou os detalhes motivadores de suas reflexões.

Daventry acolheu os mesmos com um leve assobio.

— Já estou entendendo. Você acredita que há algo estranho na morte do Palgrave, não? Já não está seguro de que a mesma foi devida a causas naturais, né? Quem deu o atestado de óbito? Bom, Robertson, suponho. Tenho entendido que este não teve nenhuma dúvida...

— Não. Mas eu estimo que influiu nele uma circunstância: o achado das pílulas de Serenite na prateleira do banheiro. Perguntou-me se eu tinha ouvido o Major Palgrave dizer que padecia de hipertensão. Minha resposta foi negativa. Não sustentei nunca uma conversação de tipo médico com o Major, mas, aparentemente ele havia tratado deste assunto com diversas pessoas residentes no hotel. O frasco de pílulas e as declarações do Palgrave se encaixavam perfeitamente. Quem podia suspeitar que ali se escondia algo estranho? Entretanto, dou-me conta agora de que cabia a possibilidade de algo estranho. Tenho que reconhecer, não obstante, que se tivesse sido eu, diante das aparências claras que ele morrera de pressão alta, teria dado o atestado de óbito. Aparentemente não havia por que desconfiar. Eu não teria voltado para pensar nesse assunto se não tivesse sido surpreendido pelo desaparecimento da fotografia...

— Vejamos, Graham — disse Daventry, interrompendo a seu amigo. — me permita que me expresse assim... Você não teria dado uma atenção excessiva a essa história fantástica (pode sê-lo, não?) que lhe referiu uma dama, já de idade, de imaginação bastante viva? Já sabe como são as mulheres idosas acostumam exagerar o que vêem, ou o que acreditam ver, inventando coisas de passagem.

— Sim, sei... — respondeu o doutor Graham, com certo desassossego. — Não perdi de vista essa possibilidade. Mas não consegui me convencer. Miss Marple me falou com toda clareza e precisão.

— Eu, em troca, duvido — assegurou Daventry— . Deixemos a um lado a história que conta a velha dama da fotografia... Um bom ponto de partida para a investigação, o único, seria a declaração da faxineira indígena. Esta sustenta que um frasco de pílulas tido pelas autoridades como prova não se achava no bangalô do Major Palgrave no dia anterior a sua morte. Mas havia mil maneiras de explicar isto também. Existe a possibilidade de que a vítima acostumasse guardar em qualquer um de seus bolsos esse medicamento.

O doutor assentiu.

— Sim, certamente, seu raciocínio não é nada impossível.

— Pode tratar-se, do mesmo modo, de um engano da criada. Possivelmente não tivesse reparado nunca naquele frasco.

— Também isso é possível.

— Então, o que?

Graham baixou a voz, respondendo lentamente:

— A garota se mostrou muito segura de suas afirmações.

— Bom. Você tenha em conta que as pessoas de St. Honoré estão acostumadas a serem muito excitáveis e emotivas. Custa-lhes muito pouco trabalho inventar coisas. Acaso pensa que ela sabe... mais do que deu a entender?

— Pois..., sim.

— Em tal caso tente fazê-la falar. Não podemos provocar certa agitação desnecessariamente. Temos que dispor de dados concretos para proceder assim. Se o Major Palgrave não morreu em conseqüência de sua hipertensão, qual você acredita que foi a causa determinante de sua morte?

— Podem ser tantas realmente! — exclamou o doutor Graham. — Você se refere aos meios suscetíveis de não deixar rastro algum, verdade?

— Com efeito. Poderíamos considerar, por exemplo, o emprego do arsênico.

— Bom, vamos pensar claramente... O que é que você sugere? Que foi utilizado um frasco que continha falsos comprimidos? Que alguém se valeu desse meio para envenenar o Major Palgrave?

— Não... Não é isso. Isso é o que Vitória e não sei quem mais pensam isso. Mas a jovem enfocou mal a questão. Se alguém decidira eliminar ao Palgrave rapidamente, o assassino teria escolhido por um método rápido: uma bebida preparada, por exemplo.

Logo, para fazer aparecer sua morte como uma coisa natural teria colocado em seu quarto um frasco de comprimidos próprios para o tratamento da hipertensão. Seguidamente, o criminoso so teria que se preocupar em pôr em circulação o rumor referente a seu enfermidade.

— E quem foi o que levou a cabo essa tarefa no hotel?

— Fiz averiguações, sem êxito... Tudo foi inteligentemente planejado. “A”, interrogado, manifesta: “Acredito quem me disse isso foi "B"... “B”, interrogado por sua vez, declara: “Não, eu nunca falei isso, mas sim recordo-me ter ouvido ser mencionado por "C" tal detalhe.” “C” informa: “São várias pessoas que fizeram comentários a respeito disso... Uma delas me parece que foi "A".” Assim é como voltamos para ponto de inicio das indagações, sem ter obtido nenhum fruto delas.

Daventry apontou:

— Terá que pensar em que o autor da “mutreta” não tem nada de tolo.

— Certamente. Tão logo se soube da morte do Major Palgrave todo mundo pareceu ficar de acordo para falar da hipertensão sangüínea da vítima, com conceitos próprios ou valendo-se de outros, ouvidos de pessoas comentarem.

— Não teria sido mais fácil para o criminoso lhe envenenar e não preocupar-se com mais nada?

— De modo algum. Um envenenamento teria dado lugar às pesquisas conseguintes por parte da Polícia, a uma autópsia...

Por aquele procedimento se obtinha que um médico estendesse, sem mais complicações, se tratar de morte naturaal e assinaria o atestado de óbito.... Isto foi o que ocorreu em realidade.

— E o que quer que eu faça? Recorrer ao Departamento de Investigação Criminal? Sugerir que seja desenterrado o cadáver do Palgrave? Se armará um escândalo terrível...

— Poderia ser mantido tudo em segredo.

— Um segredo dentro de St. Honoré? O que diz você, Graham? — Daventry suspirou. Seja o que for, terá que tomar uma decisão... Agora bem, se deseja saber o que penso lhe direi que tudo isto é um confusão terrível.

— Estou absolutamente convencido disso — manifestou o doutor Graham.

 

           UMA NOITE NO HOTEL DA PALMEIRA DOURADA

Molly arrumou a decoração das mesas da sala de jantar. Tirava aqui um faca que sobrava, punha ali direito um garfo ou alinhava corretamente uns copos para, continuando, dar um passo atrás e contemplar o efeito do conjunto... Depois saiu ao terraço. Não viu ninguém e ela se encaminhou até o lado mais afastado, apoiando-se uns instantes na balaustrada. Logo se iniciaria outra noitada. Seus hóspedes se entregariam despreocupadamente ao bate-papo, às fofoca, à bebida... Era aquele tipo de vida que tinha ansiado levar e, na verdade, que até uns dias antes tinha desfrutado muito. Agora inclusive Tim dava a impressão de estar preocupado. Era natural que ela andasse igual. A aventura em que haviam embarcado tinha que terminar bem. Não podia medir esforços nesse sentido. Tim tinha investido tudo quanto possuía naquela empresa.

“Mas não é o negócio o que lhe preocupa”, pensou Molly. “Suas preocupações se centram em mim. E isto, por quê? Por quê?” Não consigo encontrar a explicação. E, entretanto, estava segura de isso... As perguntas que ele fazia, seus rápidos olhares. “Por quê? — perguntou-se mais uma vez Molly. — Eu tenho sido cuidadosa. — Fez um repasse levantamento mental dos últimos acontecimentos. Não conseguia recordar em que ponto ou momento tinha começado aquilo. Nem sequer estava segura da natureza do fato. Tinha começado por sentir-se atemorizada ante as pessoas. Por que causa? O que podiam lhe fazer os outros?

Molly baixou a cabeça. Experimentou um forte sobressalto ao notar que alguém lhe tocava no braço. Deu a volta rapidamente, encontrando-se então com o Gregory Dyson, levemente desconcertado, que se dirigia a ela falando em um tom de desculpa:

— Vejo-a sempre tão abatida! Assustei você, pequena?

Molly não gostou que Dyson a chamasse de “pequena”. Se apressou a lhe responder:

— Não o ouvi aproximar-se, senhor Dyson, e devido a isso chegou a me assustar.

— Senhor Dyson? Como estamos formais hoje à noite! Não formamos todos acaso, aqui dentro, uma espécie de família, uma família grande e feliz? O Ed e eu, Lucky, Evelyn e você mesma, Tim, Esther Walters e o velho Rafiel... Sim, somos como uma grande família.

“Já deve ter bebido muito esta noite”, pensou Molly, sorriu-lhe amavelmente.

— Oh! Às vezes eu me transformo numa dona de casa — respondeu Molly, subtraindo com o gesto a seriedade de suas palavras. — Tim e eu acreditamos que é mais cortês não chamar a nossas hóspedes por seus primeiros nomes.

— Ora, ora! Deixemos a cerimônia de lado... Agora, Molly, querida, vamos beber alguma coisa juntos.

— Me convide mais tarde, se quiser. Nestes momentos tenho muitos coisas que fazer ainda.

— Não fuja — Gregory Dyson agarrou a Molly pelo braço. — É muito encantadora, moça. Espero que Tim saiba dar-se conta de seu boa sorte.

— Já me encarrego eu de que seja assim! -exclamou ela, de muito bom humor.

— Eu te dedicaria todo meu tempo, querida. Sim. Não me custaria nenhum trabalho... Claro que não deixaria que minha mulher me ouvisse dizer isto.

— Vocês tiveram um bom passeio esta tarde?

— Parece-me que sim... Entre você e eu, Molly: às vezes me canso. Os pássaros e as borboletas chegam me aborrecer. O que te parece se você e eu, por nossa conta, fizéssemos um piquenique sozinhos qualquer dia destes?

— Ocuparemo-nos disso no seu devido tempo — declarou Molly alegremente. — Espero com ansiedade esse momento —acrescentou zombadora.

Escapou dali com umas leves risadas, retornando ao bar.

— Olá, Molly — disse Tim. — Você parece com pressa. Com quem estava aí fora?

— Com o Gregory Dyson.

— O que queria?

— Estava tentando me conquistar — respondeu Molly, simplesmente.

— Diabos o levem!...

— Não se preocupe, Tim. Sei muito bem o que tenho que fazer para que não se atreva a passar de umas quantas frases sem importância.

Quando Tim ia responder às últimas palavras de sua mulher quando viu Fernando, partindo então em direção a ele para lhe dar algumas instruções. Molly se foi à cozinha, cruzou esta e saiu pela porta dos fundos, descendeu os degraus que davam para a praia.

Gregory Dyson praguejou sob seu folego. Depois pôs-se a andar lentamente para seu bangalô. Já perto deste ouviu uma voz que falava-lhe das sombras de uns arbustos. Voltou a cabeça, sobressaltado. Pensou achar-se frente a um fantasma. Logo riu-se. A figura que apareceu a uns passos dele, não se descobria a primeira vista o rosto porque era negro, destacando, em troca, a brancura imaculada do traje.

Vitória abandonou o esconderijo dos arbustos, saindo para o caminho.

— Por favor... É você o senhor Dyson? — perguntou a jovem.

— Sim. O que é?

Envergonhado de seu espanto, Dyson falava com certo tom de impaciência.

— Trouxe-lhe isto, senhor — Vitória lhe estendia um frasco de pílulas. — É seu, não é verdade?

— OH! Meu frasco de pílulas de Serenite. Naturalmente que é meu. Onde o encontraste, moça?

— Encontrei-o onde alguém o colocou: no quarto do cavalheiro.

— No quarto do cavalheiro? E isso o que é o que quer dizer?

— Refiro-me ao cavalheiro que morreu — acrescentou a jovem gravemente. — Não acredito que o pobre senhor descanse muito bem em seu túmulo.

— E por que diabos pensa assim?

Vitória guardou silêncio, permanecendo com o olhar fixo no rosto do senhor Dyson.

— Ainda não compreendi bem o que você está me falando. Você assegura ter achado este frasco de pílulas no bangalô do Major Palgrave, não é assim?

— Sim, senhor. Quando o doutor e os homens do Jamestown foram embora, me encarregaram que recolhesse as coisas do Major para as jogar fora, isto é: os pós para os dentes, as loções... Tudo isso.

— E por que não jogou fora isto também?

— Porque isto não era dele. Você sentiu falta delas. Não recorda que perguntou-me pelo frasco?

— Sim... pois... sim, é verdade. Acreditei... pensei que tivesse deixado em algum lugar....

— Não; não o extraviou. Essas pílulas tiraram de você para as pôr entre as coisas do Major Palgrave.

— Como sabe você isso? — a voz dele era rouca.

— Sei, porque eu vi. — Vitória sorriu. Houve um branquíssimo cintilo em seus lábios. — Alguém as deixou no quarto do cavalheiro. Agora eu a devolvo.

— Um momento... Espera. O que você quis dizer? O que é... o que é o que você viu?

Vitória se afastou por onde tinha chegado, perdendo-se entre as sombras dos arbustos próximos. O primeiro impulso do Greg foi pôr-se a correr atrás dela. Deteve-se imediatamente. Ficou parado coçando o queixo.

-O que foi que houve, Greg? Viu algum duende? — perguntou-lhe sua mulher, avançando pelo caminho, procedente do bangalô que ocupavam.

— Durante uns segundos isso foi precisamente o que acreditei ter visto.

— Com quem estava falando?

— Com essa garota nativa que arruma o bangalô. Se chama Vitória, verdade?

— O que queria? Estava lhe passando uma cantada?

— Não seja tola, Lucky. Aquela moça tem na cabeça uma idéia estúpida.

— Que coisa idiota?

— Você se lembra de que outro dia não conseguia encontrar meu vidro do Serenite?

— Isso você me disse.

— O que quer me dar a entender com essa frase: “Isso você me disse!”

— OH, Greg! Agora você vai analisar cada uma das palavras que pronuncio?

— Sinto muito, Lucky — disse Greg. — Todos andamos nervosos nestes dias. — A seguir lhe mostrou o frasquinho. — Essa garota me trouxe o remédio de volta.

— Ela o tinha roubado?

— Não. Encontrou-o em não sei onde...

— Muito bem, e daí? Por que todo esse misterio?

— OH, nada! — declarou Greg. — É que a moça conseguiu me irritar.

— Bom, Greg. Esqueçamos isso... Vamos embora beber algo antes de nos sentar à mesa do jantar.

 

Molly tinha ido até a praia. Agarrou uma das velhas poltronas de vime, uma das mais danificadas, que quase ninguém mais a utilizava. Permaneceu sentada, imóvel, frente ao mar por uns minutos, de repente baixou a cabeça entre as mãos e desatou a chorar. Logo ouviu um rumor de passos e ao levantar as vistas se encontrou com a figura da senhora Hillingdon, que a olhava em silêncio.

— Olá, Evelyn. Perdoe. Não a ouvi chegar.

— O que aconteceu, minha filha? — perguntou-lhe Evelyn. — Há algo errado? — Tomando outra poltrona, sentou-se a seu lado. — Vamos, me conte.

— Não, não é nada...

— Claro que há algo, filha? Não se busca a solidão para chorar sem um motivo justificado. É que não me pode contar? Há algum problema entre você e Tim?

— OH, não!

— Me alegro de que assim seja. Vocês dão a impressão de ser uma casal perfeito, feliz.

— Igual a você e seu marido — disse Molly. — Tim e eu sempre comentamos como deve ser maravilhoso   parecer assim tão felizes depois de tantos anos de casados...

— OH, isto...! — Evelyn pronunciou esta exclamação quase involuntariamente. Molly não soube interpretar seu significado.

— São muito freqüentes as brigas e discussões entre marido e mulher, de modo especial os casados a mais tempo. Há casais que se querem muito e, entretanto, discutem por algo e, o que é mais lamentável, fazem-no em público.

— Há pessoas que gostam de viver assim, — manifestou Evelyn. — Isto não quer dizer nada.

— Eu acredito que isso é horrível. — disse Molly.

— É, tabém acho. — falou Evelyn.

— Agora, quando a gente vê você com o Edward...

— Olhe, Molly... Não adianta mais eu querer esconder de você uma coisa destas. Edward e eu... — Evelyn fez uma pausa. — Se você quer saber a verdade, nós raramente trocamos uma única palavra a sós nestes últimos três anos.

— O que? — Molly olhou-a estarrecida. — Não... não posso acreditá-lo.

— Claro. É que nós dois somos bons atores. Não. Não nos pode incluir entre esses casais que brigam em público, certamente. Além de que em realidade não temos por que chegar a discutirmos.

— Mas, o que é o que aconteceu a vocês?

— Em nosso caso aconteceu o de sempre.

— O que quer dizer com o de sempre? Outra...?

— Sim, outra mulher. E acredito que não lhe será muito difícil adivinhar quem é esta mulher...

— Você quer dizer a senhora Dyson? A Lucky?

Evelyn assentiu.

— Eu sempre achei, faz tempo, de que sempre andavam flertando — declarou Molly, — mas julguei que não se tratava de nada...

— De nada importante, verdade? Pensou que não haveria nada de censurável em sua atitude... Só amizade...

— Bem. E por quê...? — Molly fez uma pausa, tentando expressar seu pensamento com toda frieza. — E você não...? Parece-me que não deverei lhe fazer nenhuma pergunta.

— Pode perguntar o que quiser — disse Evelyn. — Estou cansada de calar sempre, de aparecer aos olhos de todos como o que não sou: uma esposa mimada e feliz. Lucky é a culpada de que Edward tenha perdido a cabeça. Foi tão estúpido para me contar o que acontecia. Imagino que pensava que isto faria com que eu me sentisse melhor. Um homem sincero, honorável. Sim. Tudo o que ele queria, mas nem por um momento lhe ocorreu pensar que essa revelação podia ser para mim um golpe tremendo.

— Quis deixá-la?

Evelyn moveu a cabeça negativamente.

— Temos dois filhos, sabe? Queremo-lhes muito. Estão, como internos, em um colégio da Inglaterra. Não quisemos desfazer nossa casa. Além disso, Lucky tampouco aceitava divorciar-se de seu marido. Greg é um homem muito rico. Sua primeira esposa lhe deixou uma grande quantidade de dinheiro. Então nós concordamos em viver e deixar viver... Edward e Lucky em sua feliz imoralidade, e Greg em sua cega ignorância. Edward e eu ficamos como amigos.

Estas últimas palavras foram pronunciadas pela Evelyn com um claro acento de amargura.

— Mas... você pode suportar uma vida semelhante?

— A gente se acostuma a tudo. Entretanto, às vezes...

— Sim... você fale, Evelyn.

— Às vezes sinto desejos de matar a essa mulher.

Molly se assustou ao observar a paixão com que Evelyn pronunciou aquela frase.

— Não falemos mais de mim — propôs Evelyn. — Vamos falar de você. Quero saber qual é a causa de suas preocupações.

Molly calou um momento antes de responder:

— Pois não se trata mais que de... Bom, acredito que não me encontro muito bem.

— Que não está bem? O que quer dizer?.

Molly fez um gesto de angústia.

— Estou assustada, terrivelmente assustada...

— Assustada... por quê?

— Não sei, — disse Molly. — A única coisa que sei é que tenho medo, um medo terrível, cada vez mais... Algo me produz um grande sobressalto, um rumor na arvoredo, uns passos... Inquietam-me algumas frases de pessoas que estão ao meu redor, me empenho em achar sentido nas mesmas, mas não têm. Experimento em algumas ocasiões a sensação de que alguém me vigia, de que sou observada... Eu penso que deve haver uma pessoa que me odeia. Nisto acabo me afirmando sempre.

— Pobre criatura! — exclamou Evelyn chocada. — Desde quando lhe ocorre tudo isso?

— Não recordo... foi uma coisa gradual. E passo por outras coisas também.

— Que tipo de coisas?

— Há ocasiões em que não me lembro de nada por uns momentos.

— Quer dizer, sofre algo assim como um período de esquecimento, verdade?

— Sim, deve ser isso. Em tais instantes não me é possível recordar o que fiz uma hora ou duas antes.

— Quando lhe acontece essas coisas?

— A qualquer hora do dia. Sinto como se tivesse estado em outros lugares, dizendo ou fazendo algo que não consigo recordar, em companhia de outras pessoas.

Evelyn estava verdadeiramente impressionada.

— Querida Molly: deve ir ver quanto antes a um médico.

— Não, não. Não quero ver nenhum médico. Nem pensar nisso, Evelyn!

Evelyn olhou-a vivamente, tomando afetuosamente uma de suas mãos entre as suas.

— É provável que tudo o que lhe assusta não sejam mais que representações suas, Molly. Já sabe que existem vários tipos de disturbios nervosos que não encerram gravidade alguma. O médico que fosse consultá-la daria um tratamento adequado e poderia te recuperar-se rapidamente.

— Podia ser que não. Ele podia dizer que há mesmo algo errado comigo.

— Mas, criatura, por que haveria algo errado com você?

Molly guardou silêncio de novo, respondendo, de uma maneira mais vacilante que nunca:

— Sim, já sei que não há em meu caso um motivo que justifique tal hipótese...

— Tem família? Vive sua mãe? Tem alguma irmã? Não poderiam vir aqui algém para lhe ajudar durante uma temporada?

— Não posso contar com minha mãe. Nunca me entendi bem com ela. Tenho irmãs, sim. Estão casadas, mas imagino que viriam aqui se eu as chamasse, se tivesse necessidade delas. Não é meu propósito, entretanto. Não quero saber nada de ninguém... de ninguém que não seja Tim.

Evelyn perguntou curiosa:

— Tim já sabe de tudo isto Tim? Você contou a ele?

— Devo confessar que não — respondeu Molly. — Mas ele anda inquieto sobre mim e fica me observando, É como se ele estivesse tentando... proteger-me ou ajudar-me. Mas se fizer isto é porque eu estou querendo ser protegida, não é?

— Me parece que a maior parte disso deve ser sua imaginação, desbocada. Continuo achando que o melhor seria, de todas maneiras, que consultasse a um doutor.

— Com o velho doutor Graham, por exemplo? Acredito que ele não iria servir para nada.

— Na ilha há outros médicos.

— Na realidade, já me encontro recuperada, — alegou Molly. — Não devo pensar mais nessas coisas. Suponho que você esteja certa: que só são coisas da minha imaginação. OH, Meu Deus! Como é tarde! Devia agora mesmo estar cuidando lá da sala de jantar. Me perdoe, Evelyn. Não tenho mais jeito, preciso voltar para o hotel.

Molly se despediu da Evelyn Hillingdon com um expressivo olhar, pondo-se a correr. Aquela observou como sua figura se desvanecia na crescente escuridão.

 

                 MARCAS PROFUNDAS DE ANTIGOS PECADOS

— Acredito ter dado com a pista certa, homem.

— O que foi que você disse, Vitória?

— Acredito ter dado com algo bom, que nos pode proporcionar dinheiro e em abundância.

— Tome cuidado, menina, não vá se meter em uma confusão. Melhor seria que me explicasse do que se trata.

Vitória se pôs-se a rir de boa vontade.

— Espere e verá. Eu sei muito bem como tenho que jogar esta cartada. Neste assunto há dinheiro, em quantidade, sim. Vi umas coisas e adivinho outras. E me parece que não me enganei.

De novo a garota voltou a dar suas risadas...

 

— Evelyn...

— O que quer?

Evelyn Hillingdon falava mecanicamente, sem demonstrar o mais leve interesse. Nem sequer olhou para seu marido.

— Evelyn, o que lhe parece se eu acabasse com tudo isto e retornássemos para casa na Inglaterra?

Ela estava penteando seus escuros cabelos. Agora deixou cair os braços abandonadamente ao longo de seu corpo. Voltou-se para seu marido.

— Mas... Se acabamos de chegar aqui? Não estamos aqui nas ilhas não faz nem três semanas...

— Já sei. Não obstante, o que lhe parece minha proposta?

Lhe olhou incrédula.

— Quer retornar seriamente a Inglaterra, para nossa casa?

— Sim...

— Pensa em separar-se da Lucky?

Seu marido estremeceu.

— Você sabia de tudo o tempo todo, eu suponho, que... sobre o que estava se passando?

— Naturalmente.

— Nunca disse nada.

— Para que? Deixamos resolvido esse assunto faz anos atrás, não recorda? Não quisemos romper de tudo. Decidimos seguir caminhos distintos... salvando as aparências. — antes de que seu marido pudesse responder, Evelyn lhe perguntou: — Mas por que você agora quer voltar para a Inglaterra?

— Não agüento prolongar mais tempo esta situação, Evelyn. Não, não posso. — o calmo Edward Hillingdon estava transtornado.

Evelyn observava que havia-se operado uma profunda transformação no Edward. Viu que as mãos dele tremiam, que engolia em seco, que seu rosto calmo refletia emoções com sofrimento e dor.

— Pelo amor de Deus, Edward, me diga: o que acontece?

— Não está acontecendo nada. Simplesmente, quero partir daqui...

— Você se apaixonou perdidamente pela Lucky. E agora tudo se acabou. É isto o que queria me dizer?

— Sim. Naturalmente, suponho que não voltará a ser a mesma de antes...

— OH! Por favor, deixemos essa questão de lado, agora. Eu só quero descobrir qual é a causa de seu transtorno, Edward.

— Não estou transtornado... — sustentou ele fracamente.

— Está sim. E, por quê?

— Não é evidente a causa? — inquiriu Edward traindo-se.

— Não é não — disse Evelyn. — Reflitamos a situação em termos concretos. Você teve um caso com uma mulher. É algo que acontece freqüentemente. E agora tudo terminou. Ou não terminou? Talvez não, por parte dela. É isto? Greg sabe de alguma coisa? Tenho me feito, em diversas ocasiões esta pergunta.

— Ignoro-o — respondeu Edward. — Ele nunca falou nada. Eu o vejo tão cordial como sempre.

— Que estúpidos os homens podem chegar a ser! — exclamou Evelyn, pensativa. — Vejamos... Possivelmente Greg tenha seu interesse voltado para outra mulher. Sim. Isto também pode ocorrer.

— Tentou conquistar você, não é verdade? — perguntou Edward. — Me responda... Eu sei o que ele há...

— OH, sim! Mas isso não tem nada de particular — disse Evelyn, despreocupadamente. — É o que faz sempre que encontra uma mulher, seja quem for. Greg é desse jeito. Não fala a sério em suas cantadas, conduz-se de uma maneira puramente instintiva.

— Ele lhe interessa, Evelyn? Preferiria saber a verdade.

— Fala do Greg? Tenho afeto pó ele... Me diverte. É um bom amigo.

— Não há mais? Queria acreditar em você.

— Eu não vejo no que isto realmente lhe possa interessar — manifestou Evelyn secamente.

— Suponho que eu mereço esta sua resposta.

Evelyn se aproximou da janela, deu uma olhada pela varanda e voltou novamente.

— Desejo muito seriamente, Edward, que me diga o que concretamente está motivando sua inquietação atual.

— Já lhe disse.

— É estranho...

— Você não compreende, certamente, até que ponto uma aventura como esta parece uma autêntica loucura quando ficou atrás.

— Posso tentar imaginar. Há uma coisa que me preocupa: Lucky irá reter você, provavelmente, com mão de ferro. Não a vejo no papel de amante abandonada. Será uma tigresa com suas garras. Tem que me dizer a verdade, Edward. Não há outro caminho se realmente deseja que eu permaneça a seu lado.

Edward baixou a voz para declarar:

— Se não me separar dela logo... matarei-a.

— Fala de matar a Lucky? Por quê?

— Por causa do que me obrigou a levar a cabo...

— O que foi?

— Ajudei-a a cometer um crime.

As últimas palavras ficaram como flutuando no ar da habitação... Houve um silêncio. Evelyn não perdia de vista a seu marido.

— Você se dá conta do que está dizendo?

— Sim. Eu não sabia o que fazia... Encarregou-me de conseguir certos produtos da farmácia, a respeito de cujo destino não tinha a mais leve idéia... Me mandou fazer uma cópia de uma receita que ela guardava.

— Quando aconteceu isto?

— Faz quatro anos. Estávamos na Martinica. Quando... quando a esposa do Greg...

— Você quer dizer à primeira esposa do Greg? A Gail? Quer dizer que Lucky a envenenou?

— Sim. Eu a ajudei. Ao compreender...

Evelyn interrompeu a seu marido.

— No momento em que compreendeu a situação, tal como se achava planejada, Lucky se apressou a lhe recordar que havia sido você quem escreveu a receita, você quem comprou as drogas... Lhe faria ver que nesse assunto andavam juntos e que não podiam separar-se. Não foi assim?

— Não. Lucky me assegurou que tinha feito daquele modo por compaixão, já que Gail sofria, lhe havendo rogado que encontrasse algum modo para acelerar seu fim.

— Matou-a por piedade! E você acreditou?

Edward Hillingdon meditou sua resposta:

— Não... Na realidade, não. Aceitei sua explicação porque necessitava acreditar nela. Lucky me dominava, estava apaixonado.

— E mais tarde, quando contraiu matrimônio com o Greg, continuou acreditando nela?

— Eu já me acostumara com a idéia, então...

— E o que é o que Greg sabe de tudo isto?

— Nada absolutamente.

— Vamos, Edward. Não quer que eu seja tão crédula como você, não é verdade?

Edward Hillingdon pareceu perder os estribos ao chegar aqui.

— Evelyn... Desejo com toda minha alma me separar dela. Essa mulher me recorda a cada passado o que eu me sujeitei a fazer. Sabe que já não tem influência sobre mim e se vale das ameaças para me obrigar a realizar seu desejo. Que influência vai ter se passei a odiá-la? Não obstante, aproveita quantas ocasiões lhe apresentam para que não esqueça que estou ligado a ela, pelo crime em que colaborei com ela...

Evelyn pôs-se a andar de um lado a outro do quarto. Depois se deteve, enfrentando-se com seu marido.

— Edward, o maior problema com você é que é ridiculamente sensível e incrivelmente apto para acolher as mais desatinadas sugestões. Essa endiabrada mulher te levou onde quis utilizando astutamente seu sentido pessoal da culpabilidade. Vou lhe explicar isto em claros e contundentes termos bíblicos: O pecado que pesa sobre você é o adultério e não o assassinato. Sentia-se culpado ao iniciar-se sua relação com a Lucky e esta se valeu de você como quis ao idear seu plano criminoso, obtendo que compartilhasse moralmente sua culpa. Não há dúvida disso.

Edward pôs-se a andar para sua esposa...

— Evelyn...

Esta retrocedeu. Olhou-o inquisitivamente.

— Edward... É verdade tudo o que me disse? Verdade mesmo? Ou trata-se de sua invenção?

— Evelyn! Por que tinha que te mentir? O que podia obter com isso?

— Não sei — respondeu ela. — Falo assim porque agora acho difícil acreditar em alguém... quem quer que seja, porque... OH, não sei! Suponho que já não sei distinguir a verdade quando esta se oferece a meus ouvidos ou a meus olhos.

— Deixemos esta ilha... Retornemos a Inglaterra.

— Sim. Isso é o que faremos. Mas não agora.

— Por quê não agora?

— De momento devemos seguir levando a mesma vida. É importante. Você compreende, Edward? Não deixe que Lucky desconfie a respeito desta conversação e o que nós vamos fazer...

 

               A SAÍDA DE UM PERSONAGEM IMPORTANTE

A noitada chegava a seu fim. Os membros da orquestra estavam finalmente descansando um pouco. Tim permanecia de pé, junto a uma das saídas que davam para o terraço. Apagou algumas luzes das várias mesas abandonadas já por seus ocupantes. de repente percebeu umas palavras pronunciadas por alguém a seu costas:

— Poderia falar com você um momento, Tim?

Este se voltou.

— Olá, Evelyn... No que posso servi-la?

Ela olhou a seu redor.

— Nos sentemos um instante nesta mesa...

Conduziu o jovem até aquela, situada no outro extremo da terraço. Não viram ninguém em torno deles.

— Perdoe-me por lhe falar sobre isto, Tim. Não quero lhe assustar, mas devo confessar que Molly me preocupa muito.

A expressão do rosto do jovem mudou em seguida.

— O que acontece com a Molly?

— Não acredito que se encontre muito bem. Vejo-a alterada, sob os efeitos de uma profunda depressão nervosa.

— Ultimamente não é ela a única pessoa que se acha em tais condições. Todos andamos desequilibrados por uma razão ou outra.

— Me parece que deveria consultar um médico.

— Sim, e eu penso igual, mas ela se nega a ir ver um médico.

— Por quê?

— Hein? O que é que você quer dizer?

— Perguntei-lhe por que sua esposa se nega a consultar com seu médico.

Tim deu uma resposta bastante imprecisa a estas palavras.

— Isso acontece com muita gente... Não sei exatamente por que motivo... Tais pacientes, péssimos doentes, olham ao doutor com aversão e temor.

— Você esteve preocupando com a Molly por estes dias, não é verdade, Tim?

— Sim, muito. E ainda continuo...

— Você não poderia fazer com que viesse aqui um de seus familiares para que cuidasse dela?

— Não. Isso agravaria a situação.

— O que acontece com a família de sua mulher?

— Nada que seja novo. Molly é muito nervosa, tem outro caráter, e não se dá muito bem com os seus, especialmente com sua mãe. Compõem uma família... estranha, mas bem, em certos aspectos. Molly decidiu finalmente, faz tempo, romper com todos. Foi uma medida acertada, sem lugar para dúvidas.

Evelyn falou um tanto hesitante:

— De vez em quando, Molly sofre ataques de amnésia, a julgar pelo que ela me contou. As pessoas lhe dão medo. Padece freqüentemente em certo modo de mania perseguição.

— Não diga isso! — exclamou Tim, zangado. — Mania de perseguição! São muitos os que falam assim respeito dos outros. Não ocorre mais que isto: Molly está nervosa... Nunca tinha vivido nestas terras, as fabulosas Índias Ocidentais. Vê muitos rostos escuros a seu redor. Já sabe você que se inventaram inumeráveis histórias sobre a gente destas ilhas e a terra em que vivem.

— Mas esse sobressalto contínuo em que agora vive Molly...

— A gente se assusta das coisas mais estranhas e sem sentido. Tem gente seria incapaz de viver em uma habitação cheia de gatos. E há quem se deprime quando lhe cai em cima uma insignificante sanguessuga.

— Me desagrada fazer esta proposta a você, mas... não acha conveniente levar ao Molly a um psiquiatra?

— Não! — respondeu Tim, violento. — Não consentirei que esse tipo de farsantes a convertam em um coelhinho de Índias. Essa gente agrava a situação de seus doentes. Se sua mãe tivesse abandonado os psiquiatras a tempo...

— Assim, sofreu a mãe de sua mulher transtornos mentais? Existem em sua família casos de... desequilíbrio?

Evelyn tinha escolhido com todo cuidado esta última palavra.

— Não quero falar disso. Separei a Molly de toda sua gente e sempre se encontrou bem. Ultimamente se deixou levar muito de seus nervos... Mas, bom, essas coisas, além disso, não são hereditárias. Isto sabe todo mundo hoje em dia. Molly é uma mulher perfeitamente normal. É que... OH! Eu acredito que foi a morte do Palgrave a origem de seus atuais transtornos.

— Já compreendi — respondeu Evelyn pensativamente. — Mas, a que preocupações podia conduzir a alguém o falecimento do Major?

— Tem você razão, Evelyn. Entretanto, não terá que negar que as mortes repentinas sempre causam algum tipo de choque.

Tim Kendal era a viva imagem do desalento. Evelyn se comoveu.

Deixou cair uma mão sobre seu braço.

— Vejo que você não necessita de ninguém que lhe sirva de guia... No entanto, se precisar de minha ajuda, para o que seja (por exemplo poderia acompanhar a Molly a Nova Iorque), estou ao seu dispor. Nessa cidade ou em Miami poderia ser atendida por médicos de reconhecida experiência.

— Você é muito amável, Evelyn, mas... Molly se encontra perfeitamente bem. Superará a esses transtornos de que estamos falando.

Evelyn fez um gesto de dúvida. Voltou-se lentamente e deu uma olhada no interior do salão. A maior parte dos hóspedes se tinham ido para seus bangalôs. Evelyn se encaminhava lentamente para sua mesa para ver se não tinha deixado algo nela quando ouviu Tim soltar uma exclamação. Voltou a cabeça rapidamente. O jovem olhava fixamente em direção dos degraus do fim do terraço. Então conteve o fôlego, assombrada...

Molly subia por ali, procedente da praia. Respirava angustiada, entre contínuos soluços. Seu corpo oscilava cada vez que dava um passo, como se andasse sem rumo fixo... Tim gritou:

— Molly! O que foi que aconteceu, Molly?

Kendal pôs-se a correr para ela e Evelyn lhe seguiu. A garota se encontrava já na parte superior da escada, onde ficou plantada assinalando ao longe. Com voz entrecortada disse:

— Encontrei-a aí... Está aí, entre os arbustos... entre os arbustos... Olhem minhas mãos. Sim. as olhem... — Estendeu os braços em direção a Evelyn e Tim...

Observaram em seguida umas manchas estranhas, escuras, em seus mãos. Evelyn sabia muito bem que à meia-luz tivessem aparecido vermelhas a seus olhos.

Tim perguntou a sua esposa, atropeladamente:

— O que aconteceu, Molly?

— Aí abaixo... — a moça vacilou. Por um instante pareceu que ia cair no chão, deprimida. — Nos arbustos...

Tim não sabia o que fazer. Olhou a Evelyn. Logo obrigou a Molly a que aproximasse-se dela. A seguir começou a descer a escada, com toda pressa.

Evelyn passou um braço em torno dos ombros da jovem.

— Vamos, Molly. Sente-se aqui, quer? Vou lhe dar algo de beber. Já verá como se sentirá melhor.

Molly desabou sobre uma cadeira, e inclinou-se sobre a mesa, afundando o rosto entre seus braços. Evelyn se absteve de lhe fazer pergunta alguma naqueles momentos. Pensou que era mais prudente deixar passar alguns minutos para que a pobre garota se recuperasse.

— Vamos, Molly, não se preocupe — lhe disse logo. — Isto não é nada.

— Não sei... não sei o que aconteceu — murmurou Molly. — Não sei nada. Não tenho lembrança de nada. Eu... — levantou a cabeça de repente. — O que acontece comigo? O que me passa?

— Fique tranqüila, moça. Vamos, se tranqüilize.

Tim subia lentamente pela escadinha do terraço. Uma careta horrível desfigurava seu rosto. Evelyn olhou-o, erguendo as sombrancelhas numa interrogação.

— Trata-se de uma de nossas faxineiras — manifestou— . Qual é seu nome...? Sim. Vitória. Alguém a apunhalou.

 

                         O INQUÉRITO

Molly estava estendida em seu leito. De um lado o doutor Graham e seu colega o doutor Robertson, médico da Polícia local, situou-se do outro lado. Tim se encontrava frente a eles. Robertson havia pego uma das mãos da jovem para tomar o pulso... Fez um gesto ao homem que vestido com o uniforme da Polícia se achava ao pé da cama, era o inspetor Weston, das força policiais de Sto. Honório.

— Que o interrogatório seja breve — disse o doutor.

— Compreendido — respondeu o outro.

Continuando, perguntou, olhando ao Molly:

— Quer nos dizer, senhora Kendal, como descobriu o corpo de essa moça?

Por um momento todos experimentaram a impressão de que a figura que jazia no leito não tinha ouvido as palavras do inspetor Weston. Logo perceberam uma voz débil, que parecia vir de muito longe...

— Nos arbustos... Branco...

— Sem dúvida você distinguiu algo branco nno meio da escuridão do lugar e se aproximou ali para ver o que era... Foi isso o que ocorreu?

— Sim... branco... estava estendida. Tentei... tentei levantá-la. Ela... sangue... sangue em minhas mãos...

Molly começou a tremer.

O doutor Graham olhou expressivamente para seu colega. Robertson sussurrou:

— Não está em condições de declarar nada.

— O que você estava fazendo no caminho da praia, senhora Kendal?

— O ar morno... agradável... eu gosto dali... junto ao mar.

— Identificou em seguida à garota?

— Sim... Era Vitória..., uma garota muito agradável..., sempre ria... OH! E agora... Não. Já não voltaremos a vê-la rir jamais... Não poderei esquecer isto nunca... nunca...

Molly levantou gradualmente a voz. Parecia ia ter um ataque de histeria.

— Sossegue... se tranqüilize, Molly... Vamos, querida...

Era Tim quem acabava de lhe falar assim.

— Não fale, não fale... — ordenou-lhe o doutor Robertson, impondo-se docemente. — Descanse um pouco. Já verá que ficará bem. Agora vai ser uma leve espetada...

O médico preparou uma seringa de injeção.

— Não se achará em condições de ser interrogada até que passem vinte e quatro horas, pelo menos — declarou. — Eu avisarei a você, inspetor Weston.

 

O atlético negro olhou, um por um, os rostos dos homens que sentaram-se depois da mesa.

— Juro que isso é tudo o que sei — disse.

Grossas gotas de suor brilhavam em sua testa. Daventry suspirou. O inspetor Weston, do Departamento de Investigações Criminais, que presidia a reunião, fez um gesto dando-lhe licença para se retirar. O enorme Jim Ellis saiu lentamente arrastando os pés.

— Certamente, não declarou tudo o que sabe — disse Weston, que falava com a suave entonação peculiar dos habitantes da ilha. — Claro que não conseguiremos lhe tirar mais, por muitos esforços que façamos.

— Você acha que ele está envolvido no crime? — inquiriu Daventry.

— Não. Parece que os dois se davam muito bem.

— Não estavam casados, verdade?

Os lábios do inspetor Weston se distenderam em uma leve sorriso.

— Não, não estavam casados. Pouca gente contrai matrimônio em nossa ilha. Entretanto, batizam aos filhos. Vitória deu dois a esse homem.

— Seja o que for ou o que haja atrás disto, você acredita que Jim Ellis estava de acordo com... com sua mulher?

— É provável que não. Certamente lhe dava medo meter-se em uma confusão. E me atreveria a afirmar que Vitória não tinha chegado a descobrir nenhum segredo importante.

— Possivelmente, o bastante para fazer chantagem?

— Eu não sei sequer se me atreveria a empregar essa palavra. Duvido de que a jovem conhecesse seu significado. Quando se recebe um pagamento para ser discreto não se pode falar de chantagem propriamente dito. Você sabe que algumas das pessoas que se hospedam aqui pertencem a uma categoria social definida, que não tem mais preocupação do que viver o melhor possível. Sua conduta, assim que à moral, geralmente, deixa bastante a desejar, e cujo passado não suportaria sem outro trabalho que o de realizar uma investigação superficial. Weston se expressava em tom muito severo.

— Sim. Está acostumado a fazer-se isso que você assinalou — manifestou Daventry. — Quando uma mulher, por exemplo, não quer que se divulguem suas aventuras dá algum presente algo à arrumadeira que a atende normalmente. Existe então um convênio tácito. Com tais cuidados compra a discrição da servidora.

— Exatamente.

— Agora bem — objetou Daventry, — aqui não houve nada disso. Nos achamos nada menos que ante um assassinato.

— Duvido que a vítima acreditasse que andava metida em algo sério. O mais seguro é que visse algo que excitasse sua curiosidade, que presenciasse algum chocante incidente. No mesmo, aquele frasco de pílulas desempenhava seu papel. Pertenciam ao senhor Dyson, tenho ouvido dizer. Será melhor que lhe vejamos.

Gregory apareceu no quarto com seu ar cordial de sempre.

— Aqui me têm — disse. — Posso lhes servir em algo? Que desgraça o dessa garota! Era muito simpática. A minha mulher e eu nos agradavamos muito dela. Suponho que tenha brigado com o homem com quem vive... mas ela parecia muito feliz e porque sempre a víamos contente e despreocupada. Ontem à noite mesmo eu fiz algumas brincadeiras com ela...

— Senhor Dyson: é certo que você toma com regularidade um medicamento denominado Serenite?

— Completamente certo. Vem preparado em forma de pílulas de uma ligeira cor rosada.

— Você tem das mesmas a prescrição médica?

— Naturalmente. Posso lhes mostrar receitas, se o desejarem. Como tanta gente hoje em dia, tenho a pressão alta.

— Poucas são as pessoas que sabem isso de você.

— Não estou acostumado a falar disso, fui sempre um homem muito forte, de excelente saúde. Jamais me foram simpáticos os indivíduos que passam o dia falando de suas doenças.

— Quantas pílulas costuma tomar por dia?

— Três.

— Está bem provido delas normalmente?

— Sim. Sempre levo em minhas malas meia dúzia de frascos. Os guardo sob chave. Só tenho ao alcance da mão o que estou usando.

— Esse frasco foi precisamente o que você sentiu falta não faz muito, conforme me disseram...

— Exato.

— É certo que perguntou a essa moça indígena, a Vitória Johnson, se o tinha visto?

— Sim.

— O que ela lhe respondeu?

— Respondeu-me que a última vez que o viu estavam em uma das prateleiras de nosso quarto de banho. Disse-me que o buscaria.

— O que ocorreu logo?

— Mais adiante foi em minha busca... Tinha encontrado as pílulas. “São as suas?”, perguntou-me.

— E você respondeu...

— “Certamente que sim. Onde estavam?” Declarou que no quarto do Major Palgrave. Inquiri: “Como diabos foram parar ali?”

— E o que respondeu a isso?

— Respondeu-me que não sabia. Mas...

Dyson, vacilante, interrompeu-se uns instantes ao chegar aqui.

— Diga, diga, senhor Dyson.

— Bem... Deu-me a impressão de que sabia algo mais do que estava dizendo. Entretanto, não emprestei muita atenção ao incidente. Afinal das contas não tinha muita importância. Como já disse, sempre disponho de alguns frascos de reserva. Pensei que podia ter deixado aquele no restaurante ou em outro lugar qualquer, de onde o velho Palgrave o pegou por um motivo ou outro. Talvez o jogasse no bolso com o propósito de devolver-me isso esquecendo-se mais adiante.

— E é isso que sabe a respeito deste assunto, senhor Dyson?

— Isso é tudo o que sei. Lamento não poder lhes ser de mais utilidade. Tem importância o que lhes comuniquei? Por quê?

Weston deu de ombros.

— Tal como estão as coisas qualquer detalhe pode ser da máxima importância.

— Ignoro que papel caberia atribuir a minhas pílulas. Eu pensei que vocês quereriam saber quais foram meus movimentos ao redor da hora em que essa pobre moça foi apunhalada. Tenho tudo por escrito com o maior cuidado possível.

Weston parecia pensativo.

— Seriamente? Terá que reconhecer que é você muito serviçal, senhor Dyson.

— Pensei que assim lhes economizava trabalho — alegou Greg, lhe estendendo um papel. Weston o estudou. Daventry aproximou sua cadeira a dele e se pôs a ler por cima de seu ombro.

— Isto está muito claro — manifestou Weston um minuto ou dois depois. — Até as dez para nove, você e sua esposa estiveram em seu bangalô vestindo-se. A seguir partiram para o terraço, onde em companhia da senhora Caspearo beberam algo. Às nove e quinze se uniram ao casal Hillingdon, entrando seguidamente todos ao restaurante. Até onde se lembra, deveriam ter se deitado pelas onze e meia. —Calou-se, esperando a resposta.

— Assim é — disse Greg. — Não sei em realidade a que horas foi assassinada essa jovem...

Pela entonação, as palavras daquele pareciam mais uma pergunta. O inspetor Weston, entretanto, fez como se não o tivesse persebido.

— Entendi que quem encontrou o cadáver foi a senhora Kendal. Que impressão terrível ela deve ter experimentado!

— Efetivamente. O doutor Robertson teve que lhe administrar um calmante.

— Isso ocorreu numa hora avançada, não? Quer dizer, quando a maior parte dos hóspedes já foram para cama...

— Sim.

— Tinham transcorrido muitas horas do momento de seu falecimento? Refiro-me ao espaço de tempo que passou entre o momento do assassinato e o macabro achado da senhora Kendal.

— Não sabemos exatamente a que hora aconteceu — declarou simplesmente o inspetor.

— Pobre Molly! Que experiência tão desagradável de se viver! A verdade é que ontem à noite senti sua falta entre nós. Pensei que ela tivesse alguma enxaqueca ou qualquer indisposição que a deixasse de cama.

— Quando viu você por última vez à senhora Kendal?

— OH! Muito cedo, antes de voltar para meu bangalô me trocar de roupa. Estava dando uma olhada nas mesas, lhes dando os toques decorativos. Arrumava os talheres, punha um faca em seu lugar, etc.

— Compreendo...

— Vi-a muito animada — assinalou Greg. — Brincou, inclusive... É uma grande moça Molly. Todos a queremos muito bem. Tim é um homem afortunado.

— Bom, muito obrigado, senhor Dyson. Não recorda nada novo referente à declaração de Vitória quando lhe devolveu suas pílulas?

— Não recordo mais do que lhe contei. Quando pergunti a essa garota onde tinha achado meu frasco do Serenite, me respondeu que na habitação do Palgrave.

— Quem o poria ali? Não tinha ela nenhuma idéia a respeito disso?

— Não acredito... Em realidade, não recordo.

— Muito obrigado, senhor Dyson.

Gregory saiu.

— Muito gentil da parte dele! — exclamou Weston, calmamente, dando tapinhas sobre o papel que tinha diante. — Esse homem demonstrou certamente um grande interesse por nos dar a conhecer com toda exatidão o que fez ontem à noite.

— Muito interesse, não lhe parece? — comentou Daventry.

— Não sei o que lhe dizer... Você sabe que há gente que vive em uma perpétua inquietação, temendo ver-se complicada em qualquer assunto sujo... E não é porque sejam culpados de algo quem assim sente.

— Bom, e não pôde dar uma oportunidade ideal, que o assassino aproveitasse? Aqui quase ninguém pode apresentar um álibi perfeito, impecável, se pensarmos na existência da ruidosa orquestra e as entradas e saídas constantes do salão efetuadas pelos que ali se encontram. A gente se levanta, abandona as mesas, retorna. Os homens saem a estirar as pernas. Dyson pôde haver-se escapulido um momento. Qualquer outra pessoa dispôs de uma ocasião semelhante. Aquele parece empenhado em provar de uma maneira contundente que não saiu — Daventry baixou a vista, fixando pensativamente no papel. — Temos à senhora Kendal organizando as facas nesta ou naquela mesa... Eu me pergunto se esse homem trouxe isto à tona de propósito determinado.

— Isso parece-lhe provável?

O outro considerou um momento a pergunta.

— Eu penso que é possível.

De repente se ouviu um grande alvoroço no outro lado da porta da sala em que se encontravam os dois homens. Alguém gritava, exigindo acaloradamente que lhe deixassem passar.

— Tenho algo para dizer. Tenho algo para contar. Me levem na presença desses senhores!

Um policial uniformizado abriu a porta.

— Trata-se de um dos cozinheiros do hotel, senhor — explicou dirigindo-se ao Weston. — Insiste em lhe ver. Diz que há algo que é necessário que se saiba.

Entrou um homem muito moreno, meio doido com um gorro branco. Era um dos ajudantes que trabalhavam na cozinha do estabelecimento. Não tinha nascido no Sto. Honorio, era um cubano.

— Tenho que lhe dizer algo, senhor... Ela cruzou a cozinha, quando eu me encontrava nela. Levava uma faca na mão. Uma faca, sim. Levava uma faca na mão... Da cozinha passou ao jardim. A vi...

— Acalme-se, amigo, acalme-se! — recomendou Daventry. — De quem nos está falando?

— Vou dizer lhes de quem eu falo... Falo-lhes da esposa do chefe. Da senhora Kendal. Falo-lhes dela, sim. Levava uma faca na mão e se perdeu na escuridão. Isto ocorreu antes do jantar... E a senhora Kendal não retornou.

 

                       O INQUÉRITO CONTINUA

— Poderíamos falar com você uns minutos, senhor Kendal?

— Por Deus, senhores! Claro!

Tim tinha levantado a vista. Estava sentado atrás de sua mesa de trabalho. Colocou de lado vários papéis e indicou a seus visitantes umas cadeiras. Tinha a face lívida. Parecia estar abatido.

— Como vão suas pesquisas? Deram algum passo adiante? — perguntou. Parece que alguém nos jogou uma maldição. Os hóspedes têm pressa por ir-se; não fazem outra coisa que pedindo para marcar as passagens aéreas. E isso vem acontecemos quando o êxito parecia estar assegurado. OH! Vocês não podem imaginar o que significa este negócio, este hotel, para mim e para o Molly. investimos nele tudo quanto possuíamos.

— Você está enfrentando uma dura prova, efetivamente, senhor Kendal — respondeu o inspetor Weston. — Lamentamos todo este alvoroço, esta verdadeira catástrofe.

— Se ao menos pudessem ser esclarecidos os fatos rapidamente... — manifestou Tim. — Essa pobre garota, Vitória Johnson... OH! Certamente, não devesse falar assim dela... Vitória era uma boa moça. Mas... Tem que existir detrás de tudo isto uma razão muito simples, uma justificantiva que convença a primeira vista... Eu penso em uma intriga, em um caso amoroso... Possivelmente o marido de Vitória...

— Jim Ellis não era seu marido. Por outro lado, o casal dava a impressão de entender-se perfeitamente.

— Se pudesse esclarecer tudo rapidamente... — insistiu Tim. — Perdoem. Vocês vieram aqui para falar de algo, ou me perguntar algo...

— Sim. Queríamos falar de ontem à noite. De acordo com as declarações do médico, Vitória foi assassinada entre as dez e meia da noite e as doze. Dadas as circunstâncias os alibis são difíceis de provar. As pessoas estiveram, como é lógico, indo de um lado para outro continuamente, umas vezes dançando e outras passeando pela terraço...

— Certo. Agora bem, pensam vocês acaso que Vitória fosse assassinada por um dos hóspedes do hotel?

— Temos que considerar tal possibilidade, senhor Kendal. Queria lhe falar da declaração feita por um de seus cozinheiros.

— O que? Qual?

— Este a quem desejo me referir é cubano, conforme acredito.

— Conosco trabalham atualmente dois cubanos e um porto-riquenho.

— Enrico, que assim se chama o homem em questão, afirma que seu esposa cruzou em determinado momento, ontem à noite, a cozinha, procedente do restaurante, para dirigir-se ao jardim. Assegura que levava, nas mãos, uma faca.

Tim ficou imóvel.

— Que Molly levava uma faca nas mãos? Bem... E por que não tinha que levá-lo? Quero dizer que... Como! Não pensarão vocês... O que tenta sugerir?

— Falo-lhe do espaço imediatamente anterior à chegada dos hóspedes ao restaurante. Seriam então as oito e meia, aproximadamente. Você conversava nesses momentos com o maître, Fernando.

— Sim, sim... Já recordo.

— Sua esposa entrou procedente da terraço, né?

— Sim — Tim concordou. — Molly se encarrega sempre de dar uma última olhada nas mesas. Tem ocasiões, em que os garçons colocam as coisas mau, esquecem peças, etc. Já sei o que aconteceu! Minha mulher deveria estar arrumando os talheres, é sua a tarefa de vigilância e supervisão como de costume. É possível que encontrasse em qualquer das mesas uma faca ou uma colher a mais, isto é, o objeto que o cozinheiro cubano viu em suas mãos.

— Ao entrar ela no restaurante, disse-lhe algo?

— Sim. Trocamos algumas palavras.

— Você as recorda?

— Acredito ter perguntado com quem tinha estado conversando na terraço. Tinha-me parecido ouvir uma voz fora, uma voz, certamente, que não era dela.

— O que lhe respondeu sua mulher?

— Que tinha estado falando com o Gregory Dyson.

— Ah, sim. Isso é o que ele declarou.

Tim prosseguiu, dizendo:

— Ele estava passando uma cantada nela, foi o que percebi... É homem muito dado a isso. Irritei-me por ouvir sua resposta e proferi uma exclamação. Molly se pôs-se a rir, apressando-se a me tranqüilizar. É muito esperta... você compreende. Nossa posição aqui é as vezes bastante delicada. Não se pode ofender a um hóspede assim... Uma mulher tão atrativa como Molly tem que acolher certos cumpridos com algum sorriso e um encolhimento de ombros. Por outro lado, ao Gregory Dyson custa muito trabalho deixar em paz às senhoras ou senhoritas bonitas.

— Tiveram alguma briga?

— Não, não acredito. Ela deve ter lhe tratado com a cortês indiferença de outras ocasiões.

— Você não pode nos dizer com certeza se ela era ou não portadora de uma faca então?

— Não recordo bem... Eu afirmaria que não. Não, não, seguro que não.

— Mas você acaba de afirmar...

— Um momento..., eu só insinuei que pelo fato de haver estado no restaurante ou na cozinha podia muito bem ter pego uma faca, por uma ou outra razão. Em realidade, e isto o recordo perfeitamente, Molly não levava nada na mão ao sair do restaurante. Nada absolutamente. Com toda segurança.

— Compreendo...

Tim olhou inquieto ao inspetor.

— Aonde está querendo chegar? O que é o que lhe contou esse cretino do Enrico... do Manuel, quem quer que seja seu informador?

— Seu cozinheiro nos disse que ao entrar no lugar em que ele se encontrava, sua esposa parecia achar-se muito nervosa e que levava uma faca nas mãos.

— Há gente que se empenha sempre em complicar as coisas que são normais, para lhes dar um forçado caráter dramático.

— Você voltou a falar com sua mulher durante ou depois do jantar?

— Não. Parece-me que não. A verdade é que eu andei bastante ocupado.

O inspetor indagou:

— Sua esposa permaneceu no restaurante enquanto os garçons serviam aos seus hóspedes?

— Eu... OH!, sim. Em tais ocasiões ambos estamos acostumados a ir de uma mesa a outra. Temos que comprovar pessoalmente como anda tudo.

— E não chegaram a trocar nenhuma palavra?

— Não, acredito que não... Habitualmente, nestes instantes estamos muito ocupados. Cada um ignora o que está fazendo o outro e, por suposto, não dispomos de tempo para conversar.

— Quer dizer, você não recorda ter falado com sua esposa até três horas depois, quando ela subia as escadas da terraço, depois do descobrimento do cadáver de Vitória...

— Isso foi um golpe terrível para o Molly.

— Como foi que sua mulher se encontrava naqueles momentos pelo caminho da praia?

— Era seu costume dar uma volta por ali todas as noites, quando se tinha servido o jantar. Isso lhe servia de sedativo depois das intermináveis horas de trabalho. Queria, simplesmente, permanecerm afastada dos hóspedes uns minutos, ter uma pausa...

— No momento de sua volta pelo que entendi você estava falando com a senhora Hillingdon.

— Sim. Quase todo mundo já tinha ido para a cama.

— Qual foi o tema de sua conversação com a senhora Hillingdon?

— Nada de particular... por que me pergunta isso? O que é que ela andou dizendo?

— Até agora ela não nos disse nada. Não a interrogamos ainda.

— Conversamos a respeito de muitas coisas. Falamos, por exemplo, de Molly e das dificuldades que apresentava a administração do hotel...

— Nesse momento foi quando apareceu sua esposa nos degraus do terraço e lhes contou o que tinha ocorrido, verdade?

— Assim é.

— Viram sangue em suas mãos?

— Imediatamente! A senhora Hillingdon se aproximou de Molly e tentou sustentá-la, evitar que caísse no chão, sem compreender o que estava acontecendo. É claro que sim que vimos sangue em suas mãos! Mas, um momento! Que diabos está você sugerindo? Porque você me está insinuando algo, verdade?

— Acalme-se, Kendal — mediu Daventry. — Sabemos que tudo é extremamente penoso para você, mas temos que fazer tudo quanto esteja em nossas mãos para esclarecer os fatos. Ultimamente, seu esposa, ao que parece, não esteve muito bem... É certo isso?

— Ora! Molly se encontra perfeitamente bem. A morte do Major Palgrave a transtornou um pouco. É natural. Minha mulher é muito sensível.

— Teremos que lhe fazer algumas perguntas tão logo se recupere — manifestou Weston.

— Sim, porque agora não pode ser. O doutor lhe administrou um sedativo, recomendando que não ninguém a incomodasse. Não tolerarei que intimidem-na com sua presença, atrasando desse modo sua volta a normalidade.

— Não pensamos nem um momento em intimidá-la, senhor Kendal — respondeu Weston. — Nos limitamos a fazer o possível para pôr as coisas em claro. Não a importunaremos de momento, mas quando o médico nos permite faremos isso: que conversar um momento com ela.

Weston se expressou em um tom cortês... e inflexível.

Tim ficou olhando. Logo abriu a boca. Mas não disse nada.

 

Evelyn Hillingdon, tão serena como sempre, tomou assento na cadeira que lhe tinham indicado. Logo considerou as perguntas que lhe tinham formulado, tomando tempo para refletir. Seus escuros olhos, denotadores de uma inteligência nada comum, pousaram-se por fim no Weston.

— Sim — respondeu. — Me encontrava falando com o senhor Kendal no terraço quando apareceu sua mulher, quem nos notificou o crime.

— Seu marido se achava presente?

— Não. Já tinha ido se deitar.

— Sua conversação com o senhor Kendal, foi motivada por algo especial?

Evelyn arqueou as sobrancelhas... Seu gesto era uma clara negativa.

Manifestou fríamente:

— Que pergunta tão estranha, inspetor! Não. Nossa conversação não foi motivada por nada especial.

— A senhora discutiu a respeito da saúde da senhora Kendal?

Evelyn refletiu de novo uns segundos.

— Na realidade não me lembro — disse friamente.

— Tem certeza de que não se lembra?

— Certeza de que não posso me lembrar? Sua insistência neste ponto é curiosa... A gente fala de tantas coisas ao final do dia em distintas ocasiões!

— Ouvi dizer que a senhora Kendal não desfrutava de muito boa saúde ultimamente.

— Não sei... Parecia estar bem. Um pouco cansada, possivelmente. Certamente, dirigir um estabelecimento como este supõe uma série grande de preocupações, você acrescente a isso que ela precisa de experiência. Naturalmente, tem ocasiões que se vê transbordando de problemas pequenos e grandes que surgem a cada passo. É fácil assim sentir-se a meio confusa, aturdida...

— Confusa, aturdida? — repetiu Weston. — Considera você estas palavras suficientemente expressivas para descrever seu estado?

— Que eu tenha empregado esses dois vocábulos antiquados? Pois eu acredito que são tão bons e exatos como os que se utilizam no jargão moderno para falar destas e outras coisas... Estamos acostumados a dizer “uma infecção de vírus” para nos referir a um ataque de bílis, chamamos “neurose de ansiedade” às preocupações menores da vida cotidiana...

O sorriso da Evelyn fez que Weston se sentisse um pouco ridículo. O inspetor pensou que lidava com uma mulher inteligente. Fixou o olhar no Daventry, cuja face permanecia inalterável, perguntando-se que idéias passariam por sua cabeça naqueles momentos.

— Obrigado, senhora Hillingdon — respondeu Weston.

 

— Não queríamos incomodá-la, senhora Kendal. Agora bem, precisamos contar também com sua declaração. Desejamos saber como você encontrou o cadáver dessa garota indígena, Vitória. O doutor Graham nos disse que já pode falar, posto que se encontra muito recuperada.

— Sim... sim — replicou Molly. — Me sinto muito bem... — A jovem sorriu nervosamente. — Foi a impressão... Algo terrível, verdadeiramente.

— Sim, eu creio que deve ter sido mesmo, senhora Kendal... Segundo nos disse, saiu para dar um passeio depois do jantar...

— Sim... Eu... É uma coisa que faço freqüentemente.

A jovem olhou para o outro lado. Daventry observou que ela não parava de retorcer as mãos.

— Que hora seria então, senhora? — perguntou-lhe Weston.

— Não sei.

— A orquestra ainda estava tocando?

— Sim... Bom, acredito que sim... A verdade é que não me lembro.

— Que direção você seguiu ao iniciar seu passeio?

— OH! Limitei-me a andar pelo caminho da praia.

— Para a esquerda ou para a direita?

— OH! Primeiro em um sentido e logo em outro... Eu... Não me dava conta...

— Por que você não se deu conta, senhora Kendal?

— Suponho que estava... Sim, isso: suponho que estava pensando em minhas coisas.

— Pensava em algo em particular?

— Não... não... Não se tratava de nada especial... Pensava nas coisas que tinha que fazer, que ver, no hotel. — Outra vez Molly começou a retorcer-se nervosamente as mãos. — E logo... reparei em algo branco... em um maciço de hibiscos... “O que será isso?”, me perguntei. Eu parei e... empurrei as folhas... — A moça engoliu em seco, angustiada. — Era ela... Vitória... Estava toda dobrada... Tentei lhe levantar a cabeça e então... enchi as mãos de sangue.

Molly olhou alternativamente aos dois homens, repetindo, como se ainda estivesse falando consigo mesma:

— Enchi as mãos de sangue...

— Sim, sim... A sua experiência foi verdadeiramente desagradável. Não é necessário que nos refira mais detalhes relativos a essa parte do episódio. Quanto tempo você levou passeando antes de encontrá-la...?

— Ignoro-o. Não tenho a menor idéia.

— Uma hora? Meia hora? mais de uma hora?

— Não sei.

Daventry inquiriu em um tom absolutamente normal:

— Você levava consigo uma faca?

— Uma faca? — Molly fez um gesto de surpresa. — Para que eu levaria uma faca naquele lugar?

— Eu pergunto porque um dos homens que trabalham na cozinha assegurou ter visto você com uma nas mãos no instante em que saiu ao jardim.

Molly franziu o cenho.

— Mas... se eu não saí pela cozinha! Ah, bom! Você quer dizer mais cedo, antes do jantar... Não, não acredito que isso pudesse ser...

— Você estava dando os últimos retoques nas mesas, não é assim?

— É uma coisa que faço com certa freqüência. Os garçons se enganam... Tem ocasiões que não põem todas as facas necessárias e outras se excedem quanto ao número. Isto acontece também com as colheres e os garfos...

— É isto o que você observou naquela noite?

— É possível... Talvez tenha acontecido algo semelhante. A correção de um engano de tal tipo se faz de um modo automático. A gente faz sem pensar no ato que realiza...

— Admite então que pôde ter abandonado a cozinha sendo portadora de uma faca?

— Não acredito... Estou segura de que não. — Molly se apressou a acrescentar: — Tim estava lá... Ele saberá, perguntem-lhe.

— Você gostava da garota indígena, Vitória? Ela era trabalhadeira?

— Sim. Tratava-se de uma moça excelente.

— Brigou alguma vez com ela?

— Quem eu...? Não, não.

— Alguma vez a ameaçou?

— Não lhe entendo. O que você quer dizer?

— Não tem importância... Você não tem alguma idéia sobre a possível identidade da pessoa que a assassinou?

— Não, não, absolutamente.

Molly falava agora com evidente segurança.

— Bem, muito obrigado, senhora Kendal. Não foi tão ruim assim, não é?

— É isso tudo?

— Isso é tudo, por agora.

Daventry ficou em pé, abrindo a porta da sala para que Molly saísse. Ficou parado por uns momentos na soleira, olhando-a.

— Tim deve saber — manifestou no instante de sentar-se novamente. — Em troca afirma categoricamente que sua mulher não estava com nenhuma faca.

Weston indicou gravemente:

— Acredito que isso é o que qualquer marido se sentiria obrigado a declarar.

— Uma faca de mesa me parece um instrumento muito pobre para cometer um crime.

— Tenha em conta, senhor Daventry, que dentro de sua classe era um tipo especial, são sempre mantidas afiadas. No jantar da noite em que se cometeu o assassinato foram servidos uns suculentos bifes. Sim, estavam no menu.

— O certo é que não posso acreditar que a garota com quem estavamos falando faz uns minutos seja a autora do crime, inspetor.

— Não é necessário acreditar nisso ainda, senhor Daventry. Pode ser que a senhora Kendal tenha saido para o jardim antes da janta com uma faca que tinha retirado de uma das mesas por ter sido posto a mais... É possível, inclusive, que não se desse conta de que a levava, deixando-a logo em qualquer parte. Outra pessoa pôde fazer uso dela... Penso como você. É muito improvável que ela seja a autora do crime.

— E, entretanto — acrescentou Daventry pensativamente, — estou convencido de que não nos disse tudo o que sabe. Sua imprecisão no que se refere a certas coisas é surpreendente... Esquece onde estava, que fazia ali... Naquela noite, ao que consta, ninguém parece tê-la visto na sala durante o jantar.

— O marido se encontrava em seu lugar de costume, certamente. Ela não...

— Você acredita que partiu em busca de alguém, da Vitória, por exemplo? Possivelmente marcaram uma entrevista. Existe tal possibilidade?

— Pois... sim. Também pode ser que a senhora Kendal surpreendeu uma pessoa que encontrou-se com Vitória.

— Está pensando no Gregory Dyson?

— Sabemos que este falou com a jovem com antecedência... Talvez ficassem de acordo para ver-se de novo mais tarde... Todo o mundo se movia livremente pela terraço, pelo salão. bebia-se, dançava-se, entrava-se e saía do bar a cada passo...

— Essas orquestras modernas podem proporcionar as vezes uns álibis excelentes — observou Daventry com uma careta.

 

                   A MISS MARPLE PROCURA AJUDA

Qualquer que tivesse visto aquela senhora idosa que se encontrava frente a seu bangalô de pé, em atitude meditativa, teria certamente pensado que ela tinha unicamente na cabeça o que programar para passar o seu dia hoje... O que fazer? Possivelmente não fosse má idéia visitar o Castelo do Cliff, ou ir ao Jamestown... Tampouco era mau plano comer até a Ponta do Pelicano, ou passar tranqüilamente a manhã na praia...

Mas a dama em questão pensava naqueles instantes em coisas muito diferentes. A verdade era que interiormente tinha adotado uma atitude militante, estava com o espírito muito belicoso.

— É preciso fazer algo, — disse Miss Marple a si mesma.

Além disso, estava convencida de que não havia tempo que perder.

Era indispensável atuar com toda urgência. Agora bem, a quem poderia convencer que não andava completamente equivocada? Com tempo de sobra ela acreditava ser capaz de decifrar o enigma por si mesmo. Já tinha averiguado muitos detalhes em relação aos acontecimentos. Mas não todos os que precisava. E o prazo de tempo de que dispunha era muito breve. Já tinha percebido, com amargura, que aqui dentro desta ilha paradisíaca não contava com nenhum de seus aliados habituais.

Pensou com tristeza em seus amigos da Inglaterra... Em sir Henry Clithering, eternamente disposto a escutá-la com a maior indulgência. No Dermot, seu afilhado, quem, apesar de sua alta qualificação no Scotland Yard, acreditava firmemente que quando Miss Marple emitia uma opinião esta era merecedora de uma detida análise porque, normalmente, continha algo substancial...

Em troca, que atenção podia esperar daquele policial indígena da voz melosa que ela conhecia, será que suas sugestões serão analisadas... vindas de uma anciã, dama estrangeira? Cabia pensar no doutor Graham? Não. Este não era o homem que ela necessitava. Muito educado em suas maneiras, muito vacilante... Não era homem de vivos reflexos, de rápidas decisões.

Miss Marple, sentindo uma humilde enviada do Todo-Poderoso, chegou quase a gritar em alta voz sua necessidade com frases bíblicas.

— Quem será por mim?-- A quem serei enviada?

O som que percebeu pouco depois não foi reconhecido instantaneamente por ela como uma resposta a sua prece... Não, não. Absolutamente. Mentalmente o registrou como a possível chamada de um homem, pendente de seu cão.

— Oi!

Miss Marple, perdida em suas reflexões, não prestou atenção aquela voz.

— Oi!

Agora o tom era mais rouco. Miss Marple olhou vagamente ao seu redor.

— Oi! — chamou o Sr. Rafiel impaciente, acrescentando: — Sim, você...!

A Miss Marple custou a compreender que aquela chamada era dirigida a ela. Não era uma maneira muito cavalheiresca para estabelecer comunicação. Certamente, o procedimento tinha bem pouco ou nada de cortês. Miss Marple não ofendeu-se porque ninguém se ofendia nunca com o Sr. Rafiel, quem fazia muitas coisas arbitrariamente. A gente lhe aceitava como era, ele dispunha de uma autorização especial. Miss Marple olhou para o bangalô vizinho. O velho lhe fez gestos.

— Você estava me chamando? — inquiriu Miss Marple.

— Naturalmente que a estava chamando — respondeu o Sr. Rafiel. — Quem você pensou que eu estivesse chamando? A algum gato? Vamos, aproxime-se.

Miss Marple voltou a cabeça, procurando sua bolsa, apanhou-a e cruzou o espaço que separava um bangalô de outro.

— A menos que alguém me ajude, não posso ir até você — replicou o Sr. Rafiel, — então você tem de vir até aqui.

— Compreendo-lhe perfeitamente, Sr. Rafiel.

Este lhe mostrou uma cadeira.

— Sente-se. Quero conversar com você. Algo muito estranho está ocorrendo em nossa ilha.

— Sim, de fato — respondeu ela, apanhando a cadeira que ele indicara. Por puro hábito Miss Marple tirou da bolsa suas agulhas e sua lã.

— Você deixe seu trabalho de lado — disse o Sr. Rafiel. — Não posso suportar isso. Detesto as mulheres que passam o tempo entretidas com essas tarefas. Irrita-me.

Miss Marple voltou a guardar docilmente suas coisas na bolsa. Em seu gesto não houve a menor ameaça de rebeldia. Antes bem, adotou o ar da enfermeira disposta a tolerar as extravagâncias de um doente rebelde.

— Há um monte de boatos por aí e garanto que você está à frente deles todos — declarou o ancião. — E o que digo agora de você faça-o extensivo ao padre e a sua irmã.

— Em vista do acontecido no hotel recentemente parece muito natural que haja tantos boatos — alegou Miss Marple.

— Vejamos... Essa garota nativa é achada entre uns arbustos, assassinada. Esse incidente possivelmente não ofereça nada de particular. É possível que o homem que vivia com ela fosse ciumento e... Também pode ser que andasse com outra mulher, e a moça provocasse uma rixa. Você já sabe o que são estas coisas no trópico. Algo por este estilo deve ter ocorrido. Você o que acha?

— Não — disse Miss Marple balançando negativamente a cabeça.

— As autoridades adotam idêntica posição...

— Eles informariam a você melhor que a mim sempre — assinalou Miss Marple.

— Entretanto, estou seguro de que você sabe mais do que eu. Sempre dá ouvidos a esses mexericos.

— Isso é certo.

— Você, além disso, não tem mais nada a fazer do que ouvir mexericos, né?

— Geralmente é muito útil e informativo.

— Devo lhe confessar uma coisa... — declarou o Sr. Rafiel, estudando atentamente a Miss Marple. — Eu me enganei com respeito a você. Eu não estou acostumado a me equivocar com as pessoas. Você não é como eu a imaginei no princípio... Estava pensando em todos os rumores postos em circulação pelo motivo da morte do Major Palgrave. Você acredita que foi assassinado, verdade?

— Eu sinto dizer que acho sim — respondeu Miss Marple.

— Eu estou absolutamente convencido disso.

Miss Marple conteve o fôlego.

— É uma resposta categórica a sua, não lhe parece?

— Sim, já é definitivo — reconheceu o velho. — Eu soube por Daventry. Não estou traindo nenhuma confidência porque ao final terá que ser conhecido o resultado da autópsia. Você disse ao Graham algo; este foi falar com Daventry; Daventry visitou o administrador; o Deparatamento de Investigações Criminais foi informada oportunamente... Logo todos acharam que existiam algumas coisas nada claras com a morte do pobre Palgrave. Optaram por desenterrar o cadáver deste e lhe dar uma olhada, a fim de averiguar a que causas se deu a morte.

— E o que é que encontraram? — perguntou Miss Marple.

— Descobriram que lhe tinha sido administrada uma dose mortal de um produto cujo nome só é capaz de pronunciá-lo bem um médico. Por isso eu recordo que soava como diflor-exagonaletilcarbenzol. É obvio, essa não é sua denominação. Posso dizer que aprendi a música, mas não a letra. O médico do serviço policial utilizou essa palavra, ou outra semelhante, para que ninguém soubesse o que foi na realidade. O mais provável é que a droga leve um nome muito mais simples, que se chame Evipan, Veronal ou Xarope de Easton... Algo assim, enfim. Com a denominação oficial intriga nós os leigos e só os homens de leis é que entendem. Bom, o caso é que uma pequena dose do produto é capaz de causar a morte. Os sintomas que se apresentam são iguais aos que sofrem quem tem hipertensão... agravada pelo exagero do álcool em noitadas alegres. Por isso, ao começar toda a história da morte do Palgrave a gente acolheu esta como algo natural, sem receios. Todos exclamaram: “Pobre coitado!” e o enterraram rapidamente. Agora os investigadores duvidam de que tivesse o menor indício de pressão alta. Confessou a você algo em tal sentido o Major?

— Não.

— Exato! E, não obstante, todo mundo deu isso por um fato consumado.

— Parece-me que o Major Palgrave falou com algumas pessoas disso.

— Ora! É como quando a gente vê fantasmas — manifestou o Sr. Rafiel. — Jamais dá um com o tipo que afirme haver-se encontrado frente ao duende de volta. Sempre acaba por ser um primo, em segundo grau, de uma tia, um amigo desta ou um amigo de outro amigo. Todo mundo pensou na hipertensão porque no dormitório da vítima foi achado um frasco de pílulas, um preparado que costumam receitar os médicos aos pacientes afligidos dessa enfermidade. Agora chegamos ao ponto mais interessante da questão... Eu acredito que a moça indígena foi assassinada por haver dito que as pílulas podiam ter sido colocadas na prateleira do banheiro do Palgrave não por este, mas sim por outra pessoa. O frasco de pílulas tinha visto antes, no bangalô de um indivíduo chamado Greg...

— O senhor Dyson padece de hipertensão. Sua esposa o declarou assim —disse Miss Marple.

— Repito: seu frasco foi deixado no bangalô do Palgrave para sugerir sua enfermidade e fazer sua morte parecer como natural.

— Exato. Logo ficou em circulação, habilmente, um conto: Palgrave disse ali que sofria de pressão arterial... Bom, você já sabe, é bastante fácil difundir um rumor. Sim, muito fácil. Eu tive ocasião de comprová-lo mais de uma vez virtualmente.

— Não o duvido, Miss Marple.

— Só se requer uma leve falação em um par de pontos estratégicos. Nunca se afirma que a informação foi obtida pessoalmente. Terá que dizer, por exemplo, que a senhora B lhe disse ao coronel C, que segundo a opinião de X, etc. As notícias são, invariavelmente, de segunda, de terceira, até de quarta mão, por isso é impossível averiguar de quem partiu o rumor. OH, sim! É claro que sim que isso pode ser feito! Depois a gente repete para novas pessoas o falatório, que se propaga, que se amplia inclusive, que corre com a velocidade de um rastilho de pólvora.

— Aqui, entre nós, deve haver alguém de cuja inteligência não se deve duvidar — declarou o Sr. Rafiel, pensativo.

— Sim, tem você razão.

— Vitória Johnson deve ter visto algo, deve ter descobrerto algum segredo importante. Suponho que logo pensava em fazer chantagem.

— Talvez não chegasse sequer a isso. Nestes hotéis grandes as empregadas sabem de coisas que determinados hóspedes não gostariam que se divulguem. Com tal motivo, elas dão umas gorjetas esplêndidas e até os presentes em dinheiro. É possível que a garota não percebeu na hora a importância de seu achado ou descobrimento.

— O caso é que deste assunto recebeu somente foi uma punhalada nas costas — assinalou o Sr. Rafiel brutalmente.

— Sim. Evidentemente existe alguém interessado em que ela não falasse.

— De acordo. Agora vejamos o que você pensa de tudo isto.

Miss Marple olhou com um gesto de estranheza a seu interlocutor.

— Por que o senhor está empenhado em acreditar que eu possuo mais informação que você?

— Bom. É provável que não sabe mesmo... — disse o Sr. Rafiel — De todos os modos, o que me interessa é apreciar suas idéias a respeito do que você conhece.

— Mas... com que fim?

— Aqui não pode se fazer muitas coisas... além de dedicar-se a ganhar dinheiro.

Miss Marple não pôde dissimular sua surpresa.

— Você fala de dedicar-se a ganhar dinheiro... Aqui?

— Se você quiser, desse mesmo hotel é possível enviar diariamente meia dúzia de telegramas em códigos. Assim é como eu me divirto.

— Jogar na Bolsa? — inquiriu Miss Marple duvidosa, no tom de quem se expressa em um idioma estranho.

—Esse tipo de coisas — manifestou o Sr. Rafiel. — Impor a sua esperteza à esperteza de outros homens. O problema é que isto não me ocupa muito tempo. Esta é a razão que me levou a interessar-me pelo acontecido neste mundinho do hotel. Conseguiu aguçar minha curiosidade. Palgrave passava boa parte de seu tempo falando com você. Nem todo mundo tem a mesma disposição para agüenta-lo, Miss Marple. O que é que ele contava normalmente?

— Contou-me coisas de sua juventude, de suas viagens...

— Eu sei que contou. Muito chatas, a maior parte delas. E a gente não as ouvia apenas uma vez... Se ficasse ao alcance dele, ouvia a mesma história três ou quatro vezes.

— Eu penso que isto acontece muito com os homens, quando envelhecem.

O Sr. Rafiel se irritou.

— Eu não vou por aí contando contos a ninguém, Miss Marple... Continue. Tudo começou com uma das histórias do Palgrave, não?

— Disse-me que conhecia um assassino. Em realidade, nada tem de especial nisto... Imagino que quase todo mundo passou por uma coisa semelhante.

— Não compreendo o que quer dizer.

— Eu explicarei. Se você olha para trás, Sr. Rafiel, fixando a atenção em determinados acontecimentos de sua vida, recordará ocasiões em que alguém, sem razão, pronunciou descuidadamente umas frases como estas: “OH, sim! Conhecia muito bem a Fulano de Tal... Morreu de repente e sempre falaram que foi envenenado por sua esposa, mas eu asseguro que só foi conversa fiada...” O senhor deve ter ouvido alguém expressar-se dessa maneira?

— É possível, não sei... Claro que nunca falando a sério, naturalmente.

— O Major Palgrave era um homem que levava tudo a sério. Eu penso que gostava de contar aquela história. Isso é o que eu penso. Afirmava possuir uma fotografia em que se via a figura de um assassino. Ele ia mostrar-me quando... na verdade ele foi interrompido.

— Por quê?

— Porque no instante preciso viu algo, ou alguém, melhor dizendo. Seu rosto ficou muito vermelho e voltou a guardar a fotografia em sua carteira de bolso, passando a falar de outro assunto.

— A quem viu?

— Eu pensei muito a este respeito — declarou Miss Marple. — Eu me achava sentada junto a meu bangalô e ele se acomodou quase em frente de mim. Seja o que for que ele viu teve que distingui-lo olhando por cima de meu ombro.

— Alguém avançava então pelo caminho da praia por detrás de você, para a direita, procedente do dique e o estacionamento de carros...

— Sim.

— Você viu alguém vindo por esse caminho?

— Por ele vinham a senhora Dyson com seu marido e também o casal Hillingdon.

— Não viu ninguém mais?

— Não... Certamente, seu bangalô poderia estar dentro de seu campo visual...

— Ah! Então nos vemos obrigados a incluir outro casal no grupo: Esther Walters e Jackson, meu camarada. Parece-lhe bem? Qualquer dos dois, suponho, pôde sair do bangalô e voltar a entrar imediatamente sem que você o visse.

— Possivelmente... Eu não olhei em seguida.

— Temos os Dyson, os Hillingdon, Esther e Jackson... Um deles é o criminoso. Também poderia ser agregado eu a essa lista — disse o Sr. Rafiel.

Miss Marple sorriu levemente para ouvir suas últimas palavras.

— Palgrave se referiu a um assassino, concretamente, não? A um homem, verdade?

— Sim.

— Perfeitamente. Isso nos obriga a eliminar a Evelyn Hillingdon, a Lucky e a Esther Walters. Assim, pois, o criminoso, de acordo com toda esta bobagem forçada deve estar entre o Dyson, Hillingdon e meu querido Jackson, o indivíduo da fala mansa...

— Esqueceu-se de você mesmo — assinalou Miss Marple.

O Sr. Rafiel não fez o menor caso de sua mal intencionada observação.

— Não diga coisas que podem me irritar... — limitou-se a indicar a Miss Marple. — Confesso que algo me produz uma grande estranheza e na qual você não reparou, acredito. Se o assassino era um desses três homens, por que diabos Palgrave não o reconheceu antes? Todos se teriam visto inumeras vezes ao longo das duas semanas precedentes. Não lhe parece que isso não tem sentido?

— Sim, acho que faz — opinou Miss Marple.

— Bem, então me explique isso.

— O senhor sabe que na história referida pelo Palgrave temos que ter em conta que ele jamais tinha visto ao homem da fotografia. O relato foi feito ao Major por um médico. Este lhe deu de presente a fotografia a título de curiosidade. É possível que Palgrave a olhasse com atenção quando foi posta em suas mãos, mas logo a guardou na carteira, entre outros papéis, convertida em mais uma lembrança. Ocasionalmente, possivelmente, mostraria a foto para quem escutasse sua história... Outra coisa, Sr. Rafiel: não sabemos de quando data. Não me deu nenhuma indicação neste aspecto. Quero dizer que é possível que levasse anos contando sua história. Alguns de seus relatos referentes à caça de tigres são de vinte anos atrás.

— Garanto, dada sua avançada idade — comentou o Sr. Rafiel.

— Em conseqüência, eu não acredito nem por um momento que o Major Palgrave identificasse o rosto do homem da fotografia com o de outro que se enfrentasse com ele casualmente. O que me parece que ocorreu, estou quase completamente segura disso, é que ao tirar a fotografia de sua carteira estudou a face do personagem instintivamente, encontrando-se ao levantar a vista com outra igual, ou muito semelhante, cujo dono se aproximava dele, achando-se em tal momento o desconhecido a uma distância de três ou quatro metros...

— Efetivamente. Seu raciocínio é muito oportuno.

— Palgrave ficou desconcertado — prosseguiu dizendo Miss Marple. — Então guardou com toda pressa a foto na carteira, começando a falar em voz alta de outra coisa.

— É obvio, aquela primeira impressão não podia lhe dar seguranças de nenhum gênero — aventurou o Sr. Rafiel.

— Não. Mas mais adiante, assim que se encontrou a sós, se poria a examinar atentamente a fotografia, tratando de chegar a uma conclusão: tinha dado com uma face semelhante ou o homem de carne e osso que acabava de ver era o indivíduo da fotografia?

O Sr. Rafiel refletiu uns segundos. Logo moveu a cabeça expresivamente.

— Aqui há algum engano. O motivo não é adequado, absolutamente inadequado. Ele estava falando com você em voz alta, não?

— Sim — respondeu Miss Marple. — Acostumava sempre levantar a voz.

— É certo. Por conseguinte, qualquer que se aproximou de vocês teria podido ouvi-lo.

— Imagino que seu vozeirão era audível em muitos metros ao redor.

O Sr. Rafiel balançou a cabeça outra vez e disse:

— É fantástico, muito fantástico — manifestou aquele. — Quem não se poria a rir ao conhecer tal história? Aqui temos a um velho gagá contando uma bobagem sobre uma história que alguém lhe contou, mostrando a seguir uma fotografia em que aparece um indivíduo que teve que ver com um crime cometido anos atrás. Um ano ou dois, ponhamos. Como diabos vai preocupar isso ao sujeito em questão? Não existem provas... Há, todo o mais, falatórios, circulando por diversos lugares, uma história de terceira mão. Inclusive tivesse podido admitir a semelhança, comentando despreocupadamente: Pois é verdade que me pareço com esse da fotografia, tem graça. Que coincidência, né? Ninguém ia levar a sério a sugestão do Palgrave. O homem não tem por que temer nada, absolutamente nada. É uma acusação que se pode rir dela tranqüilamente. Por que demônios decidiu assassinar ao Palgrave? Parece-me um crime desnecessário. Pense nisso...

— Já pensei nisto, — replicou Miss Marple. — E por tal motivo não posso estar de acordo com você. E é isto que me faz ficar tão nervosa, tão desassossegada, que ontem à noite não cheguei a pregar um olho.

O Sr. Rafiel olhou para seu rosto.

— Vejamos o que é o que está passando por sua cabeça nestes momentos...

— É possível que eu esteja enganada — manifestou Miss Marple, vacilando.

— É o mais provável — confirmou o Sr. Rafiel, com sua habitual falta de cortesia. — Mas de qualquer modos, me deixe ouvir o que esteve pensando ao longo das horas da madrugada.

— Existiria um motivo imperioso se...

— Se... o que?

— Se dentro de pouco, dentro de muito pouco tempo, tinha que haver outro assassinato.

O Sr. Rafiel refletiu. Logo tentou ficar mais cômodo em seu cadeira. — me esclareça isso.

— OH! Eu não sei dar explicações muito bem! — Miss Marple falava atropeladamente e com alguma incoerência. Tinha as bochechas avermelhadas. — Suponhamos que alguém tinha planejado cometer um crime. Você recordará que em sua história o Major Palgrave se referiu a um homem cuja esposa morreu em misteriosas circunstâncias. Mais adiante, transcorrido certo tempo houve outro crime que apresentava idênticas características. Um homem que levava outro sobrenome estava casado com uma mulher que faleceu em condições parecidas e o doutor que contava isto o identificou como o mesmo sujeito embora tenha trocado de nome. Bem, ao que parece o criminoso já transformou o crime num hábito...

— Sim. Encontram-se antecedentes daquele, tanto na literatura como na realidade. Continue.

— Eu entendo — prosseguiu Miss Marple, — de acordo com o que tenho lido e ouvido a respeito, que quando um homem comete uma ação desta e tudo sai bem pela primeira vez se sente inclinado a repetir. Vê por todos lados facilidades; se considera um ser inteligente. Assim é como chega à segunda edição de sua façanha. Ao final aquilo se converte em um hábito. Escolhe em cada ocasião cenários diferentes, adotando outros nomes. Mas seus crimes apresentam muitos dados semelhantes. Assim é como eu acho, embora muito bem pudesse estar enganada...

— Por um lado admite tal possibilidade e por outro não acredita nela — sublinhou com brutalidade o ardiloso Sr. Rafiel.

Miss Marple continuou falando, sem comentar as anteriores palavras.

— Pois então, se for mesmo assim e esse indivíduo tivesse feito todos seus preparativos com o fim de cometer um crime aqui, para se livrar de outra esposa, sendo que esse crime já seria o seu terceiro ou quarto, deve ter pensado que a história referida pelo Major prejudicaria porque o criminoso não ousaria que alguma similariadade fosse descoberta. Assim foram capturados alguns delinqüentes. As circunstâncias em que se cometeu um crime chamam, por exemplo, a atenção de alguém que apressa-se a comparar aquelas com as de outro caso sobre o qual existem abundantes informações, contidos em uma série de recortes jornalísticos. Compreende já por que o desconhecido criminoso não pode consentir que, tendo sua ação minuciosamente planejada e a ponto de ser levada a prática, vá o Major Palgrave por aí, contando despreocupadamente sua história e mostrando a pequena fotografia?

Miss Marple fez uma pausa ao chegar aqui, dirigindo um olhar suplicante ao Sr. Rafiel, que seguia escutando com atenção, antes de adicionar:

— Nessas condições você compreende que foi preciso que atuasse com rapidez, com a maior rapidez possível.

— De fato... — respondeu o ancião. — Aquela mesma noite, né?

— Isso.

— Um trabalho um pouco precipitado, mas que poderia ser feito — manifestou o Sr. Rafiel. — Nada mais que pôr as pílulas no bangalô de Palgrave, espalhar o boato a respeito de sua enfermidade e acrescentar uma leve quantidade dessa endiabrada droga cujo nome tem, mais ou menos, uma dúzia de sílabas, ao famoso “ponche dos colonos”...

— Sim... Mas isso já aconteceu. Não temos porque nos preocupar com isso. É o futuro o que conta agora. Eliminado o Major Palgrave, destruída a fotografia, esse homem seguirá adiante com seu plano, levando a cabo o assassinato projetado.

Dos lábios do Sr. Rafiel escapou um assobio.

— Você pensou atentamente nisto, né?

Miss Marple assentiu. Com voz firme, quase ditatorial, nada acostumada nela, disse:

— Temos que impedir que aconteça isso, Sr. Rafiel. Você tem que impedi-lo.

— Eu? — inquiriu o velho, atônito. — Por quê eu?

— Porque você é um homem rico e importante — disse Miss Marple. — As pessoas ouvirão o que disser ou sugerir. De mim não fariam o menor caso. Todos afirmariam que sou uma velha dada a imaginar coisas.

— E pode ser que tivessem razão — manifestou o Sr. Rafiel com seu brutalidade de sempre. — Claro que neste caso demonstrariam ser uns néscios. Eu me inclinaria a pensar que nenhuma pessoa sozinha pessoa tivesse cérebro suficiente para discorrer como o fez. Você raciocina, na verdade, de uma maneira muito lógica. São poucas as mulheres capazes de atacar com êxito tal empresa — o Sr. Rafiel, incômodo, agitou-se penosamente em sua cadeira. — Onde diabos se encontrarão Esther e Jackson? Necessito trocar de posição. Não. Nem adianta tentar ajudar. Você não tem força para isso. Não sei aonde eles querem chegar me deixando aqui sozinho.

— Eu irei procurá-los.

— Você não vai a nenhuma parte. ficará aqui, comigo. Trataremos os dois de decifrar o enigma. Quem é o assassino? O brilhante Greg? O silencioso Edward Hillingdon? Jackson, meu querido servidor? Um dos três tem que ser, não?

 

                     O SENHOR RAFIEL ENTRA EM AÇÃO

— Eu não sei — replicou Miss Marple.

— Agora você sai com essas! Do que foi que estivemos falando por espaço de vinte minutos?

— Ocorreu-me que posso estar equivocada.

O Sr. Rafiel olhou a Miss Marple com certa expressão de desgosto.

— Eram divagações então! Tão segura como parecia estar de suas afirmações!

— OH! Tenho segurança em tudo o se refere ao crime... Duvido, em troca, nas coisas que correspondem ao criminoso. Repare nisto: o Major Palgrave, conforme averigüei, estava acostumado a contar mais de uma história sobre crimes... Você mesmo me disse que lhe tinha relatado outra que fazia pensar em uma espécie da Lucrecia Borgia reencarnada...

— É verdade. Mas não se parecia em nada à outra.

— Já sei. Por sua parte, a senhora Walters me falou de uma terceira em que o criminoso empregava o gás para seus tenebrosos fins...

— Mas a história que ele contou a você...

Miss Marple se permitiu interromper a seu interlocutor. Para o ancião Rafiel constituía uma experiência inédita.

Ela falou com uma inesperada angústia e apenas uma incoerência moderada.

— O senhor não está percebendo? É muito difícil me mostrar segura a respeito de certos pontos. O ponto principal é que, freqüentemente, alguém se distrai, não escuta. Pergunte à senhora Walters... Aconteceu lhe o mesmo... A pessoa começa escutando atentamente ao que se conta. Logo a mente se fixa em outras coisas e de repente se percebe que nos perdemos parte da história, de que fingimos estar atentos. Pergunto-me se não houve uma lacuna, mesmo pequena, entre a história contada por Palgrave e o momento em que este tirou a foto de sua carteira para me perguntar: “O gostaria de ver a fotografia de um assassino?”

— Entretanto, você pensou que em todo o relato o Major esteve falando de um homem, não?

— Assim é. Nunca me ocorreu pensar o contrário. Não obstante, como posso estar agora absolutamente segura disso?

O Sr. Rafiel ficou muito pensativo...

— Sabe qual é o problema? — disse por fim. — Você é conscienciosa de mais. É um grande erro. Resoulva-se e deixe de indecisões. Quando começou não estava indecisa. Se me perguntasse, eu diria que toda esta tagarelice com a irmã do padre, e com o resto do povo, lhe mostrou algo que não agradou.

— Talvez você esteja no certo.

— Bem, no momento esqueça disso. Siga a linha de suas reflexões iniciais. Sim, porque nove vezes de cada dez o julgamento original resulta acertado. Aqui fala a experiência, Miss Marple. Temos três suspeitos. Examinemos sua respectiva situação. Tem preferência por algum?

— Não.

— Começaremos pelo Greg, então. Não suporto esse indivíduo. Claro que não é por isso vou achar que é um assassino. Não obstante, há uma ou duas coisas contra dele. As pílulas para a hipertensão procedem de seu estojo de primeiro socorros pessoal. O medicamento, pelo visto, sempre o tinha a mão...

— Isto parece uma coisa natural, não? — objetou Miss Marple.

— Não sei... Antes de tudo, o principal era fazer algo rapidamente, e ele dispunha de suas pílulas. Não precisava sair por aí procurando por pílulas, coisa que uma outra pessoa precisaria. Digamos que Greg é nosso homem. Muito bem. Se ele quisesse dar cabo de sua querida esposa, Lucky... (uma tarefa elogiável, afirmaria eu, e por isso aprovo seu propósito), não consigo ver qual seria o propósito. Ele é homem rico. O dinheiro procede de seu primeira esposa, que o deixou em abundância. Com respeito a ela encaixa como assassino provável. Mas isto é coisa do passado. O caso de Lucky é distinto. Lucky era a prima pobre de sua primeira mulher. Era uma parente pobre. Aqui não há dinheiro, de modo que se Greg quer desfazer-se dela é porque pretende casar-se com outra. Circulam rumores neste sentido?

Miss Marple moveu a cabeça de um lado a outro.

— Não ouvi dizer nada... Esse homem..., bem... ele banca o galã sempre com as mulheres.

— Essa é uma maneira muito delicada de lhe assinalar — manifestou o Sr. Rafiel. — Nos encontramos ante um Dom Juan, um conquistador. Não é suficiente! Queremos achar algo mais. Passemos ao Edward Hillingdon, um tipo do mais corrente...

— Eu não creio que ele seja um homem feliz — opinou Miss Marple.

— Você acha que um criminoso deve ser um homem feliz?

Miss Marple tossiu.

— Em minhas experiências, geralmente eles são.

— Não acredito que sua experiência seja tão grande — disse o Sr. Rafiel, convencido.

Esta hipótese, como Miss Marple poderia dizer, ele estava errado. Mas ela absteve-se de contestar esta declaração. Sabia muito bem que os homens não gostavam de ter as suas declarações contestadas.

— Este Hillingdon... — começou a dizer o Sr. Rafiel. — Suspeito que algo estranho está acontecendo entre ele e sua esposa. Não notou nada de estranho em suas relações?

— OH, sim! Sim eu o notei. O comportamento desse casal em público, contudo, é impecável. Não caberia esperar menos deles.

— Provavelmente você sabe mais que eu a respeito dessa gente. Tudo anda bem, pois... Mas estimo que existe a probabilidade de que de um modo cavalheiresco Edward tenha pensado em desfazer-se de Evelyn. Você está de acordo comigo?

— Se for assim... deve haver uma outra mulher...

— Sim, mas qual?

Miss Marple moveu a cabeça, contrariada.

— Terá que reconhecer que não é fácil dar com a solução do problema... — confessou.

—A quem vamos estudar agora? Ao Jackson? Eu ficarei fora de tudo isto.

Miss Marple sorriu por primeira vez.

— E por que você se exclui da lista de suspeitos, Sr. Rafiel?

— Se você quiser discutir as possibilidades de que eu seja um criminoso terá que buscar outra pessoa para conversar. Falando de mim não faríamos outra coisa que perder o tempo. Bem, mas, é que eu lhe pergunto como é que eu ia desempenhar semelhante papel? Não me posso valer por mim mesmo, alguém têm que me vestir, tenho que ir de um lado para outro nesta cadeira, preciso contar com outra pessoa para dar um simples passeio... Qual seria a minha oportunidade de sair por aí assassinando os outros?

— Provavelmente, uma oportunidade tão boa como a de qualquer outro homem — respondeu Miss Marple sem a menor vacilação.

— E como é que acha que eu faria?

— Não irá me negar que você é um homem inteligente, verdade?

— Certamente que sou inteligente. Eu diria que sou o mais inteligente desta comunidade e que provavelmente lhe deixo atrás — declarou o Sr. Rafiel.

— E sendo inteligente — continuou Miss Marple — se podem vencer os inconvenientes e dificuldades físicas de ser um criminoso.

— Acredito que isso me custaria bastante trabalho!

— Sim, sei que lhe custaria muito trabalho — disse Miss Marple. — Mas logo, a satisfação por ter conseguido, compensaria-lhe os esforços realizados.

O Sr. Rafiel olhou longamente para Miss Marple e depois, inesperadamente, pôs-se a rir.

— Você é uma mulher atrevida. — disse o senhorRafiel. — Não tem nada desta aparência de velhinhas simpáticas, Miss Marple. Por conseguinte, você está pensando que seja um assassino, não?

— Não. Não acredito que você seja um assassino.

— E..., por quê?

— Pois, porque você é um homem inteligente. Utilizando seu cérebro pôde conseguir mais coisas sem se recorrer ao crime. O crime é sempre uma estupidez.

— Além disso, a quem diabos ia eu querer assassinar?

— Eis aí uma pergunta muito interessante — assinalou Miss Marple. — Precisaria falar com você muito mais tempo do que tenho falado para poder elaborar uma teoria relacionada com esse tema... Quer dizer, não lhe conheço ainda o suficiente para isso.

O sorriso do Sr. Rafiel se acentuou.

— Conversar com você pode ser algo perigoso — declarou.

— As conversações são sempre perigosas... quando se tenta ocultar isto ou aquilo — repôs simplesmente Miss Marple.

— Possivelmente você tenha razão. Continuemos com o Jackson. O que pensa do Jackson?

— Para mim é muito difícil responder a sua pergunta. Não tive nenhuma conversa com esse homem.

— Portanto, você não pode formar nenhuma impressão sobre ele...

— Direi-lhe apenas que me recorda de certo modo — respondeu Miss Marple, depois de ter refletido uns segundos — a um jovem que trabalhava em um escritório da Prefeitura situada nas proximidades de minha casa. O jovem em questão se chama Jonas Parry.

— E que tal era ele?

— Esse moço deixava o que desejar, não era muito satisfatório.

— Ao Jackson acontece o mesmo. Claro, que ele me serve bem. Em seu trabalho desempenha como o melhor e não se importa que lhe xingue. Sabe que é pago esplendidamente e está disposto a aceitar o que vier. Nunca lhe daria um cargo de confiança, mas não preciso confiar nele. Provavelmente, seu passado é limpo, embora também pode ocorrer que não seja assim. As referências que recebi foram muito boas, mas eu guardei... como diria?... uma certa reserva. Felizmente não sou homem de segredos censuráveis, de modo que não tenho por que temer aos chantagistas.

— Você terá também seus segredos; os relativos a suas atividades de homem de negócios — observou Miss Marple.

— Jackson não poderá nunca surpreendê-los. Estão fora de seu alcance. Não. Ao Jackson é um sujeito maleável, mas a verdade, não considero-o um provável criminoso. Eu diria, inclusive, que tal atividade não coincide com seu caráter.

O Sr. Rafiel fez uma pausa. Logo, de repente, começou a falar:

— Quer que lhe diga uma coisa? Se a gente der um passo atrás e olhar para toda esta história fantástica, para o Major Palgrave e suas histórias ridículas e todo o resto, o ponto central está completamente errado. Eu é que deveria ser assassinado.

Miss Marple olhou ao ancião, fortemente surpreendida.

— Uma vítima sob medida — lhe explicou o Sr. Rafiel. — Quem é invariavelmente a vítima nas novelas policiais? O homem de idade carregado de dinheiro...

— E um monte gente com boa razão para querê-lo fora do caminho, para assim conseguir o dinheiro, — terminou Miss Marple. — Não é certo isso também?

— Certamente. Bem... — considerou o Sr. Rafiel. — Eu poderia contar até cinco ou seis homens em Londres que não iam se desmanchar em lágrimas se lessem no jornal a notícia de minha morte. Mas terá que dizer também que são incapazes de fazer algo com vistas a minha eliminação definitiva. Apesar de tudo, para quê? Eu vou morrer mesmo qualquer dia destes. Para falar com franqueza até os micróbios andam espantados que eu tenha durado tanto. E os médicos compartilham também dessa surpresa.

— É obvio, é fácil apreciar em você uma grande vontade, uns enormes desejos de viver — declarou Miss Marple.

— Produz-lhe estranheza esse fenômeno?

Miss Marple moveu a cabeça, negativamente.

— OH, não! Parece-me muito natural. A vida tem muito mais valor, tem mais interesse quando estamos a ponto de perdê-la. Não devia ser assim, mas... Quando se é jovem, quando se possui uma saúde esplêndida e se tem por diante toda uma existência, não está acostumado a dar-se muita importância. São os jovens que se suicidam mais facilmente, desesperando-se por efeito de algum fracasso amoroso, arrastados a vezes pelas desilusões e as preocupações. Só os velhos sabem quão valiosa é a vida, quão interessante resulta...

— Ah! — exclamou o Sr Rafiel, dando outra risada — olhem só a conversa dos dois velhos gagás!

— É que você não considera certo o que acabo de dizer? — perguntou Miss Marple.

— OH, sim! É obvio que sim. Agora bem, você não acha que tenho razão quando afirmo que conforme às normas clássicas neste gênero de assuntos, eu devesse ser uma das vítimas?

— Isso depende dos benefícios que traria sua morte ao assassino.

— Ninguém se beneficiaria realmente com meu desaparecimento. À parte, como já disse, de meus competidores dentro do mundo dos negócios, quem, por outro lado, sabem que não durarei por muito tempo. Não sou tão estúpido para deixar uma grande quantidade de dinheiro dividida entre meus parentes. Muito pouco tocarão para eles quando o Governo passar a mão praticamente na minha fortuna. OH, sim! Faz anos que arrumei essa questão. Certas instituições a levarão quase em sua totalidade.

— Jackson, por exemplo, não se beneficiaria com sua morte?

— Não obteria nem um centavo — disse o Sr. Rafiel. — A esse jovem estou pagando um salário que representa o dobro do que perceberia em qualquer outro trabalho. Por tal motivo suporta com paciência meu mau gênio e se dá conta perfeitamente de que quando eu morrer ele experimentará uma grande perda.

— O que me diz você da senhora Walters?

— O que declarei anteriormente é válido para a Esther. Pessoalmente, considero-a uma boa moça. É uma secretária de primeira classe, inteligente, de bom caráter, se amoldou as minhas maneiras e não se afeta nem mesmo no caso de que chegue a insultá-la. Se conduz igual a uma enfermeira de crianças encarregada de cuidar de um menino rebelde e extravagante. Me irrita em algumas ocasiões, mas não há modo de evitar isto. Não há nada que a faça sobressair muito. Vejo-a como uma mulher jovem, de tipo bastante comum. Me parece que teria sido difícil achar outra pessoa mais idônea para tratar comigo. Esther já teve uma porção de problemas ao longo de sua vida. Casou-se com um homem que não merecia-a. Eu asseguraria que tal união foi fruto de sua inexperiência com o sexo oposto. É freqüente isto entre as mulheres. Se apaixonam pelo primeiro que lhes conta uma história infeliz. Acham-se convencidas de que tudo o que o homem precisa é a compreensão feminina. Uma vez casados, ele se decide a viver sua vida... Por sorte, seu marido desastroso faleceu. Uma noite bebeu mais da conta em uma reunião e na rua foi atropelado por um ônibus, sobre cujas rodas dianteiras se precipitou. Esther tinha uma filha para manter e voltou a trabalhar como secretária. Faz cinco anos que está comigo. Disse-lhe com toda claridade desde o começo que não abrigasse esperança de obter algum beneficio no caso de que eu falecesse. Comecei lhe pagando um salário alto, muito alto, no qual fui aumentando ano após ano, a razão de uma quarta parte mais por cada período de tempo. Por mais honrada que seja a gente não pode confiar jamais em ninguém... Foi por isso que disse a Esther que não devia esperar nada de minha morte. Assim, quantos mais anos eu viva, ela mais ganhará. Se economizar quase todo o salário (e isso acredito que vem fazendo), quando eu desaparecer deste mundo será uma mulher bem de vida. Tornei-me responsável pela educação de sua filha, tendo depositado uma soma em um Banco para que lhe seja entregue assim que alcance a maioridade. Você já vê que Esther Walters é uma mulher vantajosamente situada na vida hoje em dia. Minha morte, me permita que o diga assim, significaria para ela uma grave quebra financeira. Esther sabe tudo isto... Esther é uma jovem extraordinariamente sensata.

— Há algo entre ela e Jackson?

Mister Rafiel pareceu experimentar agora um pequeno sobressalto.

— Você observou alguma coisa entre eles que lhe tenha chamado a atenção? Bom, acredito que, sobre tudo ultimamente, Jackson anda dando em cima dela. É um jovem bem apessoado, certamente, mas, em minha opinião, perdeu o tempo. Por um lado, há uma diferença de classes, dentro da escala social, Esther fica por cima dele, embora não a muita distância. Você já sabe o que acontece: os indivíduos da classe média baixa são gente muito especial. A mãe do Esther era professora de teatro e seu pai empregado de Banco. Não. Não acredito que ela chegue a fazer muito caso do Jackson. Atreveria-me a dizer que este pretende assegurar o seu futuro. Inclino-me a pensar, não obstante, que não vai obter seu propósito.

— Psiuuu!... ela se aproxima! — murmurou Miss Marple.

Ambos olharam na direção de Esther Walters que se aproximava dos dois, procedente do hotel.

— Note-se em que é uma mulher muito bonita — disse o Sr. Rafiel. —Entretanto, não brilha. Não sei por que, mas não tem charme embora seja jeitosinha...

Miss Marple suspirou. Seu suspiro podia ter saído do peito de qualquer mulher de idade dedicada a considerar por uns minutos a série de oportunidades perdidas ao longo de sua existência. Miss Marple tinha ouvido muitas vezes comentários referentes a aquilo, quase indefinível, de que carecia Esther. — “Não é realmente atraente para mim”, dizia-se em tais casos. E também: “Falta-lhe sex-appeal”, ou “não diz nada aos homens... falta-lhe um pouco de sal” Tratava-se, em resumo, de uma mulher em posse de uns bonitos cabelos louros e um corpo bem feito, uns olhos amendoados cor-de-avelã pouco comuns e um agradável sorriso... E apesar de tudo faltava aquele algo misterioso que obriga aos homens instintivamente a voltar a cabeça na rua quando se cruzam com determinadas mulheres.

Ambos se observavam enquanto se aproximava.

— Devia casar-se de novo — sussurrou Miss Marple.

— Sim. Esther seria uma esposa excelente.

Esther Walters, por fim, uniu-se a eles. O Sr. Rafiel, com voz ligeiramente afetada, disse:

— Até que enfim você apareceu! O que é que a reteu tanto tempo por aí?

— Parece que todo mundo resolveu mandar telegramas hoje de manhã... — Disse Esther. — Com isto, mais as pessoas que estão pedindo as contas para irem embora...

— Seriamente? Como conseqüência do assassinato dessa garota indígena?

— Eu acho que sim. Tim Kendal anda muito preocupado.

— É lógico. Tudo isto vai ser um duro golpe para o jovem casal.

— Eu sei. Calculo que foi um emprendimento muito grande para eles, tomar conta de um lugar destes. Têm-se preocupado em fazer sucesso. E estão dando conta do recado muito bem...

— Têm feito mesmo um bom trabalho. Ele é um homem muito capaz e um infatigável trabalhador. Ela é uma garota muito agradável, extremamente atrativa — manifestou o Sr. Rafiel. — Os dois trabalharam como escravos... Bom, aqui esta expressão soa de um modo muito estranho, pois tenho visto na ilha, os camaradas subir num coqueiro para ganhar o almoço e depois ficar descansando o resto do dia. Eh, vidinha boa...

Depois de uns segundos de silêncio, o Sr. Rafiel acrescentou:

— Miss Marple e eu estivemos nos ocupando do assassinato de Vitória Johnson.

Esther Walters pareceu naqueles momentos levemente sobressaltada. A jovem voltou a cabeça para Miss Marple.

— Tinha-me enganado com ela — declarou o Sr. Rafiel, com sua característica franqueza. — Nunca gostei muito das mulheres do tipo de Miss Marple, que passam o dia fazendo tricô e conversando fiado. Esta Miss Marple é outra coisa. Tem olhos e ouvidos e sabe muito bem usá-los.

Esther Walters dirigiu um olhar de desculpa a Miss Marple, quem nem sequer se deu por ofendida pelo comentário.

— Isto é um elogio muito grande, a senhora sabe? — explicou Esther.

— Eu calculo que seja — declarou Miss Marple. — Também me dei conta de que o Sr. Rafiel é um ser que desfruta de certos privilégios.

— O que quer dar a entender com isso? — quis saber o ancião.

— Que pode mostrar-se rude quando assim quizer, sem mais — respondeu Miss Marple.

— Eu fui rude? — inquiriu o Sr. Rafiel, surpreso. — Se for assim, rogo-lhe que me perdoe. Não quis ofendê-la.

— Você não me ofendeu. Eu lhe dei a permissão.

— Bom, Esther, por que não pega uma cadeira e se senta aqui. Talvez possa nos ajudar.

Esther se foi para o bangalô, retornando com uma poltrona de vime.

— Tínhamos começado falando do velho Palgrave, de sua morte e de suas intermináveis histórias — manifestou o ancião.

— OH, Deus! — exclamou Esther. — Tenho que reconhecer que sempre que pude fugi do Major, temendo que me “colocasse” um de seus “discos”.

— Miss Marple demonstrou ter mais paciência — assinalou o Sr. Rafiel. —Diga-me Esther: o Major contou a você alguma vez certa historia relacionada com um crime?

— Pois, sim — repôs Esther. — Em várias ocasiões...

— Como era exatamente? Vamos ver a sua versão.

— Vejamos... — Esther fez uma pausa, refletindo. — O problema é... — disse em tom de desculpa — que nunca escutei as palavras daquele homem com muita atenção... Tinha eu presente em tais momentos o conto do leão da Rodesia, que Palgrave havia repetido até cansar a todos. Eu, como outras pessoas, fingia estar lhe escutando cortesmente, mas na verdade era que, enquanto ele falava, dedicava-me a pensar em minhas coisas.

— Bem diga-nos então, simplesmente, o que você se lembra.

— Parece-me que começava com um certo crime que saíra nos jornais. O Major Palgrave dizia que tinha passado por uma experiência que poucas pessoas já tinham vivido. Na realidade, ele se encontrara cara a cara com um autêntico assassino.

— Se encontrara? Ele se expressou assim realmente? — perguntou o Sr. Rafiel.

Esther olhou-o confusa.

— Acredito que sim — disse vacilando. — Ou talvez ele tenha dito: “Estou em condições de lhe mostrar um assassino.”

— São duas coisas muito distintas. Qual das duas fórmulas ele usou?

— Não estou segura... Acredito que me disse que pensava me mostrar uma fotografia de alguém.

— Isso já está melhor.

— Logo me falou um bocado sobre a Lucrecia Borgia.

— Esqueça o que se referente a ela. Sabemos tudo a respeito da Lucrecia.

— Palgrave falou acerca de envenenadores e de que Lucrecia era muito bela e que tinha uns formosos cabelos ruivos. Acrescentou a isto uma afirmação: “É provável que disseminadas pelo mundo, haja muitas mais envenenadoras do que nos possamos imaginar.”

— Nisto eu creio que ele tinha razão — manifestou Miss Marple.

— E qualificou o veneno de “arma feminina”.

— Ao que parece ele se afastou um pouco do assunto— declarou o Sr. Rafiel.

— Bem, geralmente ele sempre fazia isto em suas histórias. E então a gente parava de prestar atenção e só dizia: “Sim, sim”, “Seriamente, Major?” e “Não me diga...!”.

— E sobre essa fotografia que disse que ia lhe mostrar?

— Não me lembro... Deve ter sido algo sobre o que ele tinha visto no jornal...

— Não lhe mostrou nenhuma foto instantânea?

— Uma foto instantânea? Não — Esther moveu a cabeça. — Disso sim que estou segura. Disse que ela era uma mulher muito bonita e que olhando sua cara ninguém a julgaria capaz de cometer um crime.

— Ela?

— Está vendo só? — apontou Miss Marple. — Agora tudo se faz mais confuso ainda.

— Falou-lhe de uma mulher? — perguntou o Sr. Rafiel.

— OH, sim!

— Era o personagem da fotografia uma mulher?

— Sim.

— Não pode ser!

— Pois o era — insistiu Esther. — Palgrave me disse: “Ela se encontra nesta ilha. Já lhe direi quem é. Logo lhe contarei a história completa.”

O Sr. Rafiel praguejou. Na hora de dizer o que pensava do Major Palgrave não mediu as palavras.

— É muito provável que não seja verdade nada do que esse louco contou.

— A gente começa a duvidar — murmurou Miss Marple.

— Queiramos ou não, temos que chegar a essa conclusão — disse o Sr. Rafiel. — O velho gagá começava contando aquelas baboseiras. Caçadas de javalis com lanças, caçadas de espingardas com tigres, caçadas de elefantes, escapadas difíceis de leões. Uma ou duas podem ter mesmo acontecido. A maior parte delas era inventada e outras devem ter acontecido com outras pessoas! Então ele muda de assunto para os crimes e conta uma história de assassinato para coroar outra história de assassinato! E o pior é que contava como se elas tivessem acontecido com ele. Nove em cada dez eram um apanhado do que lera nos jornais ou vira na televisão.

O Sr. Rafiel voltou-se acusadoramente para sua secretária.

— Você admite que escutou mais de uma vez sem prestar quase atenção ao que esse homem dizia. Existe a possibilidade de que tenha compreendido mal o sentido de suas declarações, não?

— Posso lhe assegurar que Palgrave se referiu a uma mulher — respondeu Esther, obstinadamente. — E posso assegurar-lhe porque, naturalmente, que eu fiquei tentando imaginar quem seria.

— Pensou em alguém naqueles momentos? — inquiriu Miss Marple.

Esther se ruborizou, dando amostras de algum nervosismo.

— OH! Em realidade, não... Quero dizer que eu não gostaria...

Miss Marple não insistiu. A presença do Sr. Rafiel, pensou ela, era inconveniente para saber com precisão quais tinham sido as hipóteses da Esther Walters no transcurso da conversação que mantivera com o Major. Isto só podia ser trazido à tona em um tête-a-tête entre as duas. Existia, por outro lado, a possibilidade de que a jovem estivesse mentindo. Certamente, Miss Marple não fez a menor sugestão em tal aspecto. Considerou isso um risco remoto, que se inclinava a desprezar. Não. Não acreditava que a secretária do Sr. Rafiel estivesse vertendo uma fileira de embustes em seus ouvidos. E, no caso contrário, que vantagens podia conseguir com seus mentiras?

— Mas você falou — o Sr. Rafiel virou dirigindo-se a Miss Marple. — Você disse que ele contou uma história relativa a um criminoso e que comunicou-lhe que possuía uma fotografia dele, que se propunha lhe mostrar, não é certo?

— Isso é o que imaginei, sim.

— Que você imaginou isso? Mas se ao princípio deu a entender que estava absolutamente segura disso!

Miss Marple replicou, sem intimidar-se:

— Não é nada fácil repetir uma conversação. Sim. É extremamente difícil repetir com precisão tudo que outra pessoa disse. A pessoa se sente sempre inclinada a referir o que acredita que eles quiseram dizer. Freqüentemente lhes atribuem palavras que não pronunciaram. O Major Palgrave me contou essa história de que falei, sim. Comunicou-me que o homem que lhe contara, o médico, lhe mostrara uma fotografia do assassino. Mas se tiver que ser sincera tenho que admitir que o que ele realmente me disse foi: “Gostaria de ver a foto de um criminoso?” Naturalmente, supus que se tratava da mesma foto instantânea de que tinha falado, a daquele particular criminoso. Agora bem, terá que reconhecer que é possível — embora exista uma possibilidade contra cem — que em virtude de uma associação de idéias saltasse da foto instantânea da que tinha falado com outra, tomada recentemente, em que aparecia alguém daqui, a quem olhava, convencido, como um assassino.

— Mulheres! — exclamou o Sr. Rafiel com desespero. — Todas são iguais! Não saberam falar jamais com precisão. Nunca estão seguras de se uma coisa foi desta maneira ou desta outra. Agora... — acrescentou irritadíssimo, — onde estamos? Onde nós ficamos com isso? — com um resmungo, perguntou. — Pensaremos na Evelyn Hillingdon, ou na Lucky, a esposa de Greg? Isto é uma verdadeira confusão!

Naquele instante os três ouviram uma discreta tosse. Arthur Jackson se encontrava junto ao Sr. Rafiel. Aproximou-se deles tão silenciosamente que ninguém tinha percebido sua presença.

Inclinando-se para o ancião, disse:

— É a hora de sua massagem, senhor.

O Sr. Rafiel demonstrou imediatamente o seu mau gênio, lhe gritando:

— Por que é que você anda chegando devagarinho até aqui deste modo, me produzindo um sobressalto? Eu nunca o escuto chegar?

— Sinto muito, senhor.

— Hoje não quero nem ouvir falar de massagens. Além disso, elas nunca adiantam de nada!

— Oh! Não devias dizer isso, senhor — Jackson atendia o Sr. Rafiel com uma amabilidade de profissional. — Logo você iria lamentar se suspendesse essas sessões.

Habilmente, o jovem fez girar a cadeira de rodas, orientando-a para o bangalô.

Miss Marple ficou em pé, sorriu para Esther e encaminhou-se à praia.

 

                 UM CRIME SEM JULGAMENTO

A praia estava bem deserta aquela manhã. Greg estaca dentro d’água, esparramando-se como sempre. Lucky estava deitada de bruços na areia, com as suas costas bronzeadas e seus cabelos loiros sobre os ombros. Os Hillingdon não se encontravam ali. A senhora De Caspearo, com um bando de homens ao seu redor, deitada de costas e falando um espanhol gutural e satisfeito. À beira d’água riam e jogavam vários meninos italianos e franceses. O reverendo e sua irmã, a senhorita Prescott estavam sentados em cadeiras de praia, dedicando-se tranqüilamente a observar as cenas. O padre estava com o chapéu puxado sobre os olhos e parecia meio adormecido. Não muito longe da senhorita Prescott havia uma cadeira desocupada perto deles bastante conveniente e Miss Marple sentou-se nela.

— Oh, Deus! — disse ela, com um profundo suspiro.

— Estou inteirada de tudo — manifestou a senhorita Prescott.

As duas tinham aludido ao mesmo feito: o assassinato de Vitória Johnson.

— Pobre moça! — exclamou Miss Marple.

— Um episódio muito triste, sim, senhor — comentou o reverendo. — Um episódio verdadeiramente lamentável.

— Por um momento nos passou pela cabeça, ao Jeremy e a mim, a idéia de partir do hotel. Logo decidimos o contrário porque tal coisa não seria correto para com os Kendal. Apesar de tudo, eles não têm a culpa do ocorrido... Podia ter acontecido em qualquer outro lugar.

— Em meio à vida nós encontramos a morte — disse o padre.

— É muito importante, a senhora sabe — disse a Srta. Prescott — que eles façam isto aqui ir para a frente. Investiram todo o dinheiro que possuíam neste hotel.

— Molly é uma jovem muito doce — manifestou miss Marple. — Ultimamente não parece encontrar-se muito bem.

— É muito nervosa. É obvio, sua família... — A senhorita Prescott balançou a cabeça.

— Eu acredito, Joan, que há coisas que é melhor... — O reverendo pronunciou as palavras anteriores com um suave tom de recriminação.

— Isso sabe todo mundo — respondeu sua irmã — Seus familiares vivem na mesma cidade que nós. Um de seus tios, em certa ocasião, tirou todas suas roupas em uma estação do Metro. No Green Park, acredito que foi onde aconteceu esse incidente.

— Joan: isso é algo que nem sequer devesse mencionar.

— É terrível — comentou Miss Marple. — Entretanto, parece-me que essa forma de loucura não é bastante comum. Eu sei que quando nós estávamos trabalhando em socorro da Armênia, um pastor idoso, homem extraordinariamente sóbrio e respeitável, foi afligido pelo mesmo transtorno. Telefonaram para a sua esposa, que foi em seguida, levando-o para casa de táxi envolto em um lençol.

— Certamente, aos familiares mais próximos da Molly não os ocorre nada de particular — disse a senhorita Prescott. — Ela não se dava bem com sua mãe... Claro que hoje em dia isto não é estranho.

— Uma lástima — murmurou Miss Marple. — Sim, porque as garotas deveriam aproveitar a experiência, o conhecimento do mundo que têm suas mães.

— Exatamente — disse a senhorita Prescott. — Molly foi apaixonar-se por um homem pouco ou nada adequado para ela, conforme eu ouvi dizer.

— É algo que ocorre freqüentemente.

— Seus familiares, naturalmente, foram contra. Ela nem lhes falara nada e tiveram que inteirar-se do que estava acontecendo por pessoas estranhas. Imediatamente, sua mãe lhe indicou a conveniência de que apresentasse aos seus o pretendente. Acredito que a garota se negou a proceder assim. Disse que isso era humilhante para o moço. Que seria um insulto para o jovem ver-se submetido a um minucioso exame por parte da família da noiva, igual a se tivesse sido um cavalo de corridas. Isto foi o que Molly disse.

Miss Marple suspirou.

— A gente precisa de muito tato na hora de tratar com os jovens — declarou.

— Bom, o caso é que proibiram a Molly que voltasse a ver seu amigo.

— Mas, isso não se pode fazer em nossos dias! Atualmente as moças tem empregos e se encontram com quem querem, mesmo se são proibidas de fazê-lo.

— Mais tarde, felizmente, Molly conheceu o Tim Kendal — prosseguiu dizendo a senhorita Prescott. — Eu não poderia lhe dizer como a família dela ficou aliviada.

— Em minha opinião, eles não procederam como deviam — declarou Miss Marple. — Com semelhante conduta o único que se consegue é que as garotas não se relacionem com os moços mais indicados para elas.

— Sim, isso é o que acontece.

— Eu mesma tenho lembrança que em certa ocasião... — Miss Marple lembrou certo episódio de sua juventude. Em uma reunião tinha conhecido a um menino... que lhe parecera muito simpático... muito alegre, quase um boêmio em seus pontos de vista. E então, inesperadamente, fora acolhido calorosamente por seu pai. Era conveniente, apropriado; fora convidado livremente para vir em casa mais de uma vez, e Miss Marple achou que, apesar de tudo tinha descoberto que era um homem aborrecido, muito chato.

O Reverendo parecia estar confortavelmente adormecido de novo e Miss Marple abordou o tema que estava ansiosa em tratar ao longo daquela conversação.

— Certamente, você parece saber muito a respeito deste lugar — murmurou. — Já esteve aqui durante vários anos, não esteve?

— Bem, no ano passado, e mais dois anos antes. Nós gostamos muito de Sto. Honório. Sempre há pessoas muito agradáveis aqui. Não são esses grã-finos e ricaços, que alguém encontra em qualquer outra parte.

— Assim, pois, eu imagino que conhecem bem aos Hillingdons e aos Dysons?

— Sim, sim. Bastante bem.

Miss Marple tossiu discretamente, baixando a voz.

— O Major Palgrave me contou uma história muito interessante — disse ela.

— Contava com um verdadeiro repertório delas, verdade que sim? Claro, tinha viajado tanto! Conhecia a África, Índia, China, inclusive, eu acredito.

— Sim, de fato — confirmou Miss Marple. — Mas eu não quis dizer uma destas histórias. Esta outra era a respeito de... bem, de uma das pessoas que acabo de mencionar.

— OH! — exclamou a senhorita Prescott, simplesmente. A voz dela saiu cheia de significado.

— Sim. Eu me pergunto agora... — Miss Marple deixou seus olhos dirigirem-se mansamente para o local onde Lucky estava deitada queimando as costas. — Ela está com um bronzeado lindo, não está? — ela observou. — Quanto a seus cabelos... São verdadeiramente lindos. Têm o mesmo tom que os de Molly Kendal, não acha?

— A única diferença que há entre as duas cabeleiras é que os de Molly são naturais, mas a outra tem que recorrer à química para obter uma cor semelhante — se apressou em dizer a senhorita Prescott.

— Mas... Joan! — protestou o reverendo, despertando quando menos o esperavam as duas mulheres. Você não acha que isto não é uma coisa muito caridosa para se dizer?

— Não é falta de caridade — retrucou azeda a sua irmã. É apenas um fato.

— A mim os cabelos dessa senhora me parecem muito bonitos.

— Naturalmente. Para isso é que ela os tinta. Mas tenho que te dizer com toda segurança, meu querido Jeremy, que essa mulher não poderá nunca enganar a outra nesse terreno. Não é assim, miss Marple?

— Bem, eu creio que... — disse Miss Marple — bem, é lógico que eu não tenho a experiência que você tem... mas, eu penso que... sim... eu diria que o tom não é definitivamente natural. A aparência das raízes no fim de cada cinco ou seis dias...

Miss Marple não acabou a frase. Fixou o olhar na senhorita Prescott e as duas mulheres fizeram um gesto de afirmação. Já se entendiam.

O Reverendo pareceu que pegara no sono outra vez.

— O Major Palgrave me contou uma história verdadeiramente extraordinária — murmurou Miss Marple, a respeito de... Bem. O certo é que não cheguei a entender em sua totalidade. Tem ocasiões que fico um pouquinho surda. Parece que ele estava querendo dizer... ou sugerindo...

Miss Marple fez uma estudada pausa.

— Já sei a que quer dizer. Circularam muitos boatos naquela época...

— Você está pensando naquela época em que...?

— Falo de quando morreu a senhora Dyson. Sua morte surpreendeu a todo mundo. Na verdade, todos a tinham por uma malade imaginaire... uma hipocondríaca. Então, quando sofreu o ataque e morreu tão inesperadamente... Bem. O caso é que as pessoas falaram muito...

— Não houve... nenhum... problema, na época?

— O médico se mostrou espantado. Era muito jovem e não possuía muita experiência. Era um desses doutores que confiam em curar tudo mediante os antibióticos. Suponho que saberá a que tipo de médicos me refiro: a esses que não se incomodam em estudar a fundo ao paciente, que não estudam nunca a causa da enfermidade. Esses médicos se limitam sempre a receitar umas pílulas e quando vêem que as mesmas não vão bem, recorrem a qualquer outro preparado. Eu acredito que o homem se mostrou algo confuso ante aquele caso... Pelo visto a senhora Dyson sofreu anteriormente uma complicação de tipo gástrico. Isto, ao menos, disse seu marido. E então não parecia existir razão alguma para acreditar que ali existisse algo errado.

— Mas você pensou que...

— Bem, eu sempre mantive uma mentalidade aberta, mas sempre se fica pensando, você sabe como é. E com todas as coisas que as pessoas falavam...

— Joan! — o Reverendo sentou-se. Parecia em pé de guerra. — Eu não gosto... Decididamente eu não gosto deste tipo de mexerico malsão... Não gosto de ver repetido! Nós sempre nos mantivemos contra este tipo de coisas! Não olhe as maldades, não ouça maldades, não diga maldades... e o que é mais importante, não pense maldades! Este deve ser o lema de todos os cristãos, homens e mulheres.

As duas mulheres guardaram silêncio. Acabavam de ser admoestadas e agüentaram e compartilharam a reprimenda em sinal de respeito ao sacerdote. Mas interiormente se achavam irritadas e nada arrependidas. A senhorita Prescott olhou a seu irmão com animosidade. Miss Marple voltou para seu interminável trabalho de agulha. Felizmente para elas a chance estava a seu lado.

— Mon pére — disse alguém com uma vozinha aguda. Era um dos meninos franceses que estavam brincando junto à água. Ele tinha se aproximado do grupo sem que ninguém se desse conta, ficando ao lado do Reverendo Prescott.

— Mon pére — repetiu a vozinha.

— Olá! O que há, pequeno? Oui, qu' est-ce qu'il y a, mon petite?

O menino lhe explicou o que ocorria. Tham brigado para saber quem é que usaria a bóia em seguida e também sobre outras matérias de etiqueta à beira d’água. O Reverendo Prescott gostava muitíssimo de crianças, especialmente de menininhas. Sempre ficava satisfeito quando era chamado para atuar como árbitro em suas disputas.Levantou-se de boa vontade e acompanhou a criança até a água. Miss Marple e a senhorita Prescott suspiraram sem a menor dissimulação, voltando-se avidamente a uma para a outra.

— É lógico que Jeremy não gosta de mexericos — manifestou a irmã do Reverendo. — Mas ninguém por muito que o queira, não se pode ignorar o que afirmam as pessoas. E, como já lhe disse, nos dias em que ocorreu a morte da senhora Dyson, houve um bocado de comentários.

— Seriamente? — Estas palavras de Miss Marple não tinham outro objeto que o de acelerar as declarações de seu amiga.

— Essa jovem, então a senhorita Greatorex, conforme acredito (não sei com segurança), era prima, ou algo parecido e cuidava da senhora Dyson. Dava-lhe os medicamentos e outras coisas semelhantes. — a senhorita Prescott fez aqui uma breve e significativa pausa. — E, eu ouvi dizer — a Srta. Prescott baixou a voz — que havia uma certos avanços entre a senhorita Greatorex e o senhor Dyson, passeavam juntos em algumas ocasiões. Eram muitos os que lhes tinham visto juntos. Nos lugares pequenos é muito difícil que estas coisas escapem à observação dos outros. Por outro lado circulou uma curiosa história a respeito de um produto que Edward Hillingdon tinha adquirido para ela em uma drogaria...

— OH! Entra Edward Hillingdon nesta história?

— É claro que sim! E que dava amostras de estar deslumbrado. A gente deu-se conta disso. Lucky, a senhorita Greatorex, fazia seu jogo deixando um contra o outro, enfrentando-os: Gregory Dyson e Edward Hillingdon... Ninguém pode negar que ela sempre foi uma mulher muito atraente e ainda o é.

— Embora, naturalmente, agora já não seja tão jovem como antes. Compreende o que quero dizer? — inquiriu Miss Marple.

— Perfeitamente. Mas ela sempre andou muito arrumada e muito bem pintada... É obvio, que não demonstrava tanto quando era a prima pobre da família, embora não a olhasse como tal. Sempre demonstrou um grande afeto pela inválida. Mas a senhora sabe como é...

— Como é que foi a história da farmácia... como foi que souberam?

— Acredito que isso não ocorreu em Jamestown; eu acho que foi quando eles estavam na Martinica. Os franceses, creio eu, são menos rigorosos no referente a venda de drogas... O dono do estabelecimento falou um dia com um amigo e o relato começou a circular... Já sabe você como se propagam esses comentários.

Miss Marple sabia bem. Ninguém melhor informada que ela em tal aspecto.

— O homem disse que o coronel Hillingdon lhe tinha pedido uma coisa que não conhecia... Olhou o nome da mesma que tinha sido escrito em um pedacinho de papel, De qualquer forma, pelo que sei, houve muita conversa.

— Mas não entendo por que o coronel Hillingdon... — Miss Marple franziu a testa, sem entender.

— Eu imagino que foi utilizado como testa-de-ferro. Mesmo assim, a verdade é que Gregory Dyson se casou muito pouco tempo depois da morte de sua primeira mulher. Um mês mais tarde, talvez... Aquilo foi uma vergonha.

As duas mulheres se olharam.

— Mas, ninguém chegou a ter realmente suspeitas? — perguntou Miss Marple.

— Não, não. Tudo ficou nisso: em falatórios, em simples falações. Mulher! Sempre existia a possibilidade de que não houvesse absolutamente nada de estranho naquilo.

— O Major Palgrave não pensava assim.

— Ah! O que disse a você?

— A verdade é que eu não estava prestando muita atenção — confessou Miss Marple. — Eu fiquei pensando que... bem...! Se chegou a lhe contar as mesmas coisas?

— Ele a apontou para mim outro dia... — disse a Srta. Prescott.

— Sim? Ele chegou mesmo a apontá-la a você?

— Na realidade, eu pensei a princípio que fosse para a senhora Hillingdon que estava apontando. Vaiou um pouco, soltou uma risadinha e me disse: “Note essa mulher. Em minha opinião é autora de um grave crime, e conseguiu burlar à Justiça.” Eu fiquei muito impressionada, certamente. Respondi: “O senhor com certeza está brincando, Major Palgrave.” Ele me respondeu então: “Sim, sim, querida senhorita Prescott, vamos chamar isto de brincadeira.” Os Dysons e os Hillingdons se tinham sentado em uma mesa próxima à nossa e fiquei com medo de que o tivessem ouvido. Palgrave voltou a rir, manifestando: “Não gostaria de ir a uma festa onde uma certa pessoa me serviria umas bebidas! Isso seria algo assim como um jantar com os Borgia.”

— Que interessante! — exclamou Miss Marple. — Não mencionou em nenhum momento de sua conversação certa... certa fotografia?

— Eu não me lembro... Foi algum recorte de jornal?

Miss Marple, a ponto de falar, fechou a boca. Uma sombra se interpôs entre seus olhos e o sol... Evelyn Hillingdon parou junto às duas mulheres.

— Bom dia — disse a recém chegada.

— Eu estava imaginando onde você teria ido — declarou a senhorita Prescott, levantando a vista.

— Fui ao Jamestown, fazer algumas compras.

— Ah, sim!

A senhorita Prescott olhou a seu redor, em um involuntário movimento, e Evelyn Hillingdon se apressou a dizer:

— Edward não me acompanhou. Aos homens detestam ir nas lojas.

— Achou alguma coisa interessante?

— Não estava procurando nada de particular. O que precisava podia encontrá-lo em qualquer farmácia.

Evelyn Hillingdon se despediu de Miss Marple e da senhorita Prescott com um sorriso, continuando devagar seu caminho.

— Os Hillingdon são gente muito agradável — manifestou a irmã do Reverendo. — Ela, entretanto, não é muito comunicativa... Tem um caráter um pouco intrincado. É uma pessoa simpática, gentil e tudo o que você queira, mas dá a impressão de que ninguém consegue aproximar-se muito.

Miss Marple, pensativa, fez um gesto de assentimento.

— Nunca ninguém sabe o que pensa realmente — declarou logo a senhorita Prescott.

— Possivelmente seja até melhor — comentou Miss Marple.

— Como?

— OH! Nada realmente, apenas que eu tive a sensação de que talvez os pensamentos dela sejam bastante embaraçosos.

— Acredito compreendê-la perfeitamente — murmurou a senhorita Prescott, um tanto confusa, abordando seguidamente outro tema. — Eu acho que eles possuem uma casa encantadora no Hampshire. Têm um filho... ou são dois?... que acabaram de entrar... ou foi um só?... para Winchester...

— Conhece Hampshire bem?

— Nem bem nem mau. Creio que a casa deles fique perto de Alton.

— Eu sei — Miss Marple guardou silêncio um instante antes de perguntar à senhorita Prescott: — E onde vivem os Dyson?

— Na Califórnia. Quer dizer, ali têm sua casa. Os dois gostam muito viajar.

— A gente sabe tão poucas coisas sobre as pessoas que encontra nestas viagens. Não é? — exclamou Miss Marple. — Bom... Quero dizer que... Como explicaria isto?... A gente só fica sabendo o que eles desejam nos contar. Por exemplo: você não sabe realmente se os Dysons moram mesmo na Califórnia ou não.

A senhorita Prescott pareceu surpresa.

— Eu tenho certeza de que o senhor Dyson disse que moravam.

— Sim. Sim, exatamente isto. É o que eu quis dizer. E talvez seja a mesma coisa com os Hillingdon, possivelmente. Isto é, quando a senhora diz que eles vivem em Hampshire não faz outra coisa que repetir tudo o que esse casal lhe disseram, é verdade ou não?

A senhorita Prescott pareceu agora um pouco alarmada.

— Está querendo dizer que eles não vivem em Hampshire? - perguntou.

— Não, não, absolutamente — se apressou a responder Miss Marple. — Eu os utilizava unicamente como exemplo, para lhe demonstrar de um modo prático que a gente sabe ou não sobre certas pessoas... — acrescentou: — Sigamos com outro exemplo. Eu lhe contei que vivo em St. Mary Mead, que é um lugar de que provavelmente a senhora nunca ouviu falar. Mas a senhora não sabe, se eu posso expressar-me assim, por seu próprio conhecimento, que eu moro lá mesmo, não é?

A senhorita Prescott não quis responder que a ela, realmente, não estava ligando a mínima para onde a Miss Marple morava na verdade. Era em algum lugar no campo e ao sul da Inglaterra, e isto era tudo que ela sabia.

— Oh, eu percebo aonde quer chegar — declarou. — Sei muito bem que quando se vai pelo mundo todas as precauções são poucas.

— Não é isso exatamente o que eu quis dizer — respondeu Miss Marple.

Naqueles instantes estranhos pensamentos estavam passando pela mente de Jane Marple. Bom, sabia ela mesma na realidade se o Reverendo Prescott e sua irmã eram de verdade o que aparentavam ser? Isso afirmavam os dois. Não havia nenhuma evidência que os contradissesse. Mas seria fácil, não seria?... colocar um colarinho de padre no pescoço, junto com as roupas adequadas, falando sempre no tom conveniente. Se houvesse um motivo...

Miss Marple conhecia a fundo o caráter e os maneiras dos sacerdotes que viviam em sua região. Agora bem, os Prescott procediam do norte de seu país. Durham, não era? Ela não tinha duvidas de se tratava dos irmãos Prescott... E, entretanto, voltou ao mesmo pensamento de antes... a gente acredita no que as pessoas nos contam.

Talvez o prudente fora manter-se em guarda contra isso.

Possivelmente... Miss Marple moveu a cabeça pensativamente.

 

                     AS UTILIDADES DE UM SAPATO

O Reverendo Prescott retornou da borda da praia bastante fatigado. (as brincadeiras com as crianças é sempre extenuantes.) Saíram logo dali, começava a fazer muito calor, ele e sua irmã voltaram para hotel.

A senhora De Caspearo fez um desdenhoso comentário quando eles se afastaram:

— Não entendo isso... Como alguém pode achar que a praia está quente demais? Isso é uma tolice... E veja como ela está vestida... os braços e o pescoço cobertos! Possivelmente seja melhor que proceda assim. A pele dela é horrorosa, parece uma galinha depenada!

Miss Marple suspirou profundamente. É agora ou nunca... o momento para uma conversa com a senhora De Caspearo. Desgraçadamente, não sabia bem o que dizer. Parecia não existir nenhum ponto em comum entre as duas.

— Você tem filhos, senhora? — perguntou-lhe.

— Tenho três anjinhos — respondeu a outra, beijando a ponta dos dedos.

Miss Marple ficou na mesma, sem saber se a senhora De Caspearo estava querendo dizer que seus filhos estavam no céu ou se meramente estava-se referindo à doçura do caráter de seus filhos...

Um dos homens que a cercavam fez um comentário em espanhol e a senhora De Caspearo voltou a cabeça para ele com um gesto de desprezo, tornando a rir alto e melodiosamente.

— Entendeu o que ele disse? — perguntou logo a Miss Marple.

— Pois, para falar a verdade, não. Nenhuma palavra — respondeu Miss Marple.

— Foi muito melhor. Ele é um homem maldoso.

A estas palavras seguiu um breve diálogo espirituoso em espanhol, entre eles.

— É uma infâmia... uma infâmia... — manifestou a senhora De Caspearo, voltando para inglês com uma repentina seriedade — isto de que a polícia não nos deixa sair desta ilha. Eu fiz um escândalo, gritei, bati o pé... mas tudo que eles dizem é não.... Não, não e não. A senhora quer que lhe diga como vai a terminar isto? Nós todos vamos ser assassinados... Sim. Aqui não ficará nem um para contá-lo.

Seu guarda tentou tranqüilizá-la.

— Mas, sim... eu lhe digo que o lugar aqui é azarado. Eu sabia desde o início... Aquele Major velho, aquele homem feio... Ele tinha um olho mau... a senhora se lembra? Os olhos dele eram vesgos... Isto é muito ruim! Eu fazia uma figa todas as vezes que ele olhava para mim — fez uma à guisa de ilustração. — Apesar de que, como ele tinha os olhos tortos eu não sabia se ele estava mesmo olhando na minha direção...

— Ele tinha um olho de cristal — disse Miss Marple, interessada em dar uma explicação. — Perdeu o seu como conseqüência de um acidente, sendo o pobre Palgrave muito jovem ainda, conforme me informaram. Não era culpa dele.

— Eu lhe digo que o Major trouxe aqui a desgraça... Sim. Levava consigo esse poder pernicioso do mau-olhado!

A senhora De Caspearo fez outra vez o conhecido gesto da figa...

— Bem — acrescentou a supersticiosa mulher animadamente. — Ele já morreu. E eu não preciso mais olhar para ele. Não gosto de olhar para coisas feias.

Miss Marple pensou que era um epitáfio bastante cruel para o Major Palgrave.

Um pouco mais longe, à beira do mar, Gregory Dyson acabava de sair da água. Lucky virara de posição na areia. Evelyn Hillingdon estava olhando para ela e a expressão de seu rosto, por uma razão desconhecida, provocou em Miss Marple um estremecimento.

“Certamente não pode ser de frio”, — pensou ela. — com todo este sol quente... — Como era mesmo a velha frase: — “Um ganso andando por cima de seu túmulo...”

Levantou-se e caminhou com lentos passos de volta para seu bangalô.

Viu o Sr. Rafiel e a Esther Walters que iam para a praia. O velho piscou um olho para ela. Miss Marple não correspondeu a seu gesto. Ela parecia ter um ar de censura.

Miss Marple entrou em seu bangalô e deitou-se na cama. Sentia-se velha, cansada e atormentada por uma grande preocupação.

Estava absolutamente segura de que não havia tempo a perder... não havia... tempo a perder... O sol não demoraria para se esconder... O sol... para se olhar o sol é preciso sempre se usar óculos esfumaçados... Onde foi parar aquele pedaço de vidro esfumaçado que alguém lhe deu de presente?

Não, afinal ela já não teria necessidade dele. Não. Absolutamente. Porque uma sombra tinha atenuado os raios do sol, eliminando-o. Uma sombra... a da Evelyn Hillingdon... Não. Não era a da Evelyn... A Sombra... (quais eram mesmo as palavras?) — As Sombras do Vale da Morte. Era isto mesmo. Ela precisava... o que era mesmo? Fazer uma figa... para se defender do mau-olhado. O Olho Mau do Major Palgrave exercia sobre todas as pessoas que estavam ou tinham estado anteriormente a seu redor. Entreabriu as pálpebras... Tinha cochilado. Mas havia notado uma sombra... a de alguém espionando em sua janela.

A sombra se afastou... E então Miss Marple pôde distingui-la perfeitamente. E descobriu que era Jackson.

Que impertinência, me espiar com esse descaramento! — pensou ela e continuou como em um “entre parênteses” mental: — Exatamente igual a Jonas Parry.

Esta comparação não implicava nenhum elogio para o Jackson.

Mas depois ela ficou pensando — E por que Jackson estava espionando o seu quarto? Para ver se ela estava lá? Ou para ver se ela estava lá, porém adormecida?

Levantou-se, entrando no banheiro e espiou cautelosamente pela janela.

Arthur Jackson estava de pé junto à porta do bangalô vizinho, o do Sr. Rafiel. Miss Marple viu quando ele deu uma olhada rápida em torno e introduziu-se com rapidez. — Muito interessante, — pensou ela — Por quê ele teria que adotar uma atitude tão furtiva? Nada no mundo podia parecer mais natural que sua entrada no bangalô do ancião milionário, onde Jackson tinha um quarto nos fundos. Estava sempre entrando e saindo deste por um motivo ou outro! Por que então aquele olhar furtivo e culpado em torno?

— Isto só tem uma resposta, — disse Miss Marple respondendo a sua própria pergunta. — Ele queria ter certerza de que ninguém o estava vendo nesse momento especial, porque iria fazer algo também de ordem completamente particular no interior do bangalô.

Certamente, todo mundo, naquela hora, estavam na praia, excetuando aqueles que tinham saído para os passeios. Jackson não demoraria mais de vinte minutos em voltar para a praia, com objeto de ajudar ao Sr. Rafiel a dar seu mergulho no mar. Se queria fazer algo ali dentro sem que ninguém lhe observasse, havia escolhido um bom momento. Já se tinha certificado de que Miss Marple estava dormindo em seu leito tranqüilamente, comprovando a seguir que pelos arredores não havia ninguém por perto para vê-lo. De acordo... Miss Marple, depois de repassar mentalmente os fatos, chegou à conclusão de que ela devia imitar até certo ponto a atitude do Jackson.

Sentando-se na cama, Miss Marple tirou suas sandálias brancas, calçando uns sapatos de lona com sola de borracha. Logo moveu a cabeça, vacilando, voltou a ficar descalça e remexeu em uma de suas malas, e tirou da mesma um par de sapatos de salto alto, com um dos quais torpeçara há pouco tempo na soleira da porta. O sapato estava agora num estado um tanto precário e ela com a ajuda de uma navalha quase acabou de soltá-lo. Depois saiu do bangalô com a devida precaução pela porta, apenas de meias. Com toda a cautela de um grande caçador que se aproxima, contra o vento, de uma manada de antílopes, ela deslizava o mais cautelosamente que pôde, ao redor do bangalô do Sr. Rafiel. Cuidadosamente ela se pôs a andar em volta da casa. Pôs num pé um dos sapatos que tinha pego, dando um último puxão ao salto desprendido, ajoelhou-se devagarinho junto a uma das janelas do bangalô. Se Jackson ouvisse algum ruído, e se aproximasse da janela para olhar para fora só poderia ver uma dama idosa teria levado um tombo devido ao salto que tinha quebrado. Mas, evidentemente, Jackson não tinha ouvido nada.

Muito, muito, muito lentamente, Miss Marple foi levantando a cabeça. As janelas do bangalô ficavam muito baixas. Ocultando-se ligeiramente por detrás do parapeito de cimento ela olhou para dentro...

Jackson se tinha ajoelhado em frente de uma mala. A tampa desta se achava levantada. Miss Marple pôde ver que era uma valise especial, cheia de compartimentos ocupados por vários tipos de papéis. Jackson estava olhando entre os papéis, ocasionalmente retirando documentos de dentro de envelopes compridos. Miss Marple não permaneceu muito tempo no seu posto de observação. Tudo que ela queria saber era o que fazia Jackson dentro do bangalô. Agora já sabia. Jackson estava bisbilhotando. Se estava procurando algo especial ou se estava apenas satisfazendo seus instintos naturais, ela não tinha meios de julgar. Mas agora ficava confirmada sua crença de que Arthur Jackson e Jonas Parry possuíam fortes afinidades em outras coisas além da semelhança física.

O problema dela agora era a retirada. Lentamente, agachou-se de novo, arrastando-se pela grama, até situar-se a uma distância prudente da janela. Então encaminhandou-se a seu bangalô. Guardou os sapatos com o salto desprendido de um deles. Antes olhou para eles com afeto. Um bom estratagema que ela poderia usar qualquer outro dia se fosse necessário. Calçou novamente as sandálias, e foi para a praia, muito pensativa.

Aproveitando uns instantes em que Esther Walters se encontrava na água, Miss Marple se acomodou na cadeira que ela desocupara.

Gregory e Lucky riam e conversavam com a senhora De Caspearo, e faziam um bocado de barulho.

Miss Marple falou em voz baixa, quase num sussurro, sem olhar o Sr. Rafiel, junto ao qual tão oportunamente se instalou.

— Você sabia que Jackson costuma bisbilhotar os seus papéis?

— Não me surpreende — disse o Sr. Rafiel. — Pegou-o em flagrante?

— Fiz o possível para lhe observar de uma das janelas do bangalô. Tinha aberto uma de suas malas, estava lendo alguns de seus documentos.

— Deve ter conseguido arranjar uma chave para ela. Camarada cheio de truques... Mas deve ter ficado desapontado. Nada do que ele conseguiu saber desta maneira vai trazer-lhe benefício algum.

— Ele já está voltando... — indicou Miss Marple, olhando na direção do hotel.

— Chegou a hora desse estúpido mergulho cotidiano.

O Sr. Rafiel adicionou em um suave murmúrio:

— Tenho que lhe dar um conselho... Não queira ser muito audaciosa. Não quero que o próximo funeral seja o seu. Lembre-se dos anos que tem e seja cuidadosa. Há alguém por aqui que não é muito escrupuloso, lembre-se, viu?

 

                     ALARME NOTURNO

Chegou a noite... As luzes da terraço do hotel se acenderam... As pessoas enquanto jantavam, riam e conversavam, embora com menos barulho e alegria que um ou dois dias atrás... A orquesta tocava.

O baile, não obstante, terminou cedo. As pessoas não paravam de bocejar... foram para a cama. As luzes se apagaram... Reinava uma grande escuridão na terraço, uma calma absoluta. O Hotel da Palmeira Dourada estava adormecido...

— Evelyn, Evelyn! — O som veio agudo e denotava uma grande urgência...

Evelyn Hillingdon mexeu-se e virou-se em seu travesseiro.

— Evelyn... Desperte, por favor.

Evelyn Hillingdon sentou-se bruscamente na cama. Tim Kendal parado na porta. Ela olhou para ele surpresa.

— Por favor, Evelyn, você poderia me acompanhar? É... Molly... Está doente. Não sei o que há com ela. Acredito que tenha tomado alguma coisa.

Evelyn foi rapidamente, decidida.

— Muito bem, Tim. Irei com você... Agora volte para seu lado, não se separe um instante dela. Eu não demorarei mais de uns segundos.

Tim Kendal desapareceu. Evelyn saiu da cama, vestiu um robe e olhou para a outra cama. Seu marido, ao que parecia, não havia despertado. Ele estava deitado, a cabeça virada para o outro lado, respirando calmamente. Evelyn hesitou um momento... Logo pensou que o melhor era não lhe dizer nada. Abandonou a habitação, dirigindo-se rapidamente para o edifício principal e mais à frente, ao bangalô dos Kendal. Encontrou com Tim na entrada.

Molly estava deitada na cama. Tinha os olhos fechados e sua respiração não era normal. Evelyn se inclinou sobre ela, levantou uma de suas pálpebras, tomou-lhe o pulso e olhou para a mesa de cabeceira. Havia um copo em que se bebera água. A seu lado estava um frasco de pílulas vazio. Ela o pegou.

— É um sonífero — explicou Tim. Ontem ou anteontem o frasco estava quase cheio de pílulas. pensei que... acho que Molly tomou o resto todo.

— Vá buscar o doutor Graham. Pelo caminho desperte ao cozinheiro e diga-lhe que prepare um café muito forte, quanto mais forte melhor. Vamos, corra, Tim! Não pode perder um minuto!

Kendal obedeceu e saiu correndo. Do lado de fora da porta ele esbarrou em Edward Hillingdon.

— Sinto muito, Edward.

— O que está acontecendo aqui? — inquiriu Hillingdon. — O que foi que houve?

— Foi Molly... Evelyn se encontra com ela. Tenho que ir procurar ao doutor. Suponho que devia ter ido buscá-lo em primeiro lugar, mas eu... eu não tinha certeza e pensei que Evelyn poderia me tirar do apuro. Além disso, Molly teria ficado muito zangada se eu fosse chamar o médico para uma coisa sem importância.

Tim saiu correndo. Edward Hillingdon ficou olhando para ele um instante e depois entrou no quarto.

— O que foi que aconteceu? — perguntou Edward, preocupado. — É grave isto?

— Ah, é você, Edward! Eu imaginei se você tinha acordado. Esta menina estúpida ingeriu grande parte do conteúdo de um frasco de pílulas contra a insônia.

— É muito sério?

— Depende da quantidade que ela tomou. Acho que não será grave se nós agirmos em tempo. Já mandei fazer café. Se conseguirmos que ela beba ao menos um pouco...

— Mas, por que razão ela fez isso? Você não está pensando que...? — Edward guardou silêncio.

— Não pensarei, o que? — perguntou Evelyn.

— Você não acha que é por causa do inquérito... da polícia... disto tudo?

— Sempre existe essa possibilidade, é obvio. Uma pessoa nervosa pode sentir-se pressionada ante os acontecimentos que estamos vivendo.

— Molly nunca me pareceu uma pessoa nervosa.

— Não se pode saber realmente — afirmou Evelyn. — Geralmente são as pessoas que menos se espera que perdem a calma.

— Sim, eu me lembro, precisamente, de que... — Edward voltou a calar.

— A verdade é — sustentou Evelyn, — que ninguém sabe mesmo de nada a respeito de ninguém. — Acrescentou a seguir: — Nem mesmo das pessoas que estão mais perto da gente...

—No meu entender, Evelyn, isto nos leva muito longe... Não estaremos exagerando?

— Não acredito. Quando se pensa em alguém, pensa-se de acordo com a imagem que se fez deste alguém.

— Eu conheço você muito bem — disse Edward Hillingdon calmamente.

— Isso é o que você imagina.

— Não. Eu tenho certeza — disse ele e acrescentou: — E você também tem certeza que me conhece.

Evelyn olhou o rosto de seu marido uns segundos. Depois se voltou para a cama. Pegou a Molly pelos ombros e sacudiu-a levemente.

— Nós precisamos fazer alguma coisa, mas eu acho que é melhor esperar o Dr. Graham chegar... Oh, eu acho que já os escuto.

 

— Ela vai reagir agora — o doutor Graham deu um passo atrás, secou a testa com um lenço e suspirou aliviado.

— O senhor acha que ela já está bem, doutor? — perguntou Tim ansiosamente.

— Sim, sim. Nós chegamos a tempo. De todos os modos, o mais provável é que não ingerisse uma quantidade excessiva de pílulas. Dois dias de repouso e se encontrará completamente recuperada. Naturalmente, vai passar mal durante um ou dois dias. — O doutor Graham examinou agora o frasco do sonífero. — Quem o aconselhou que tomasse esse medicamento? — quis saber.

— Um médico de Nova Iorque. A Molly não andava dormindo muito bem.

— Bem, bem. Atualmente os médicos recorrem com excessiva freqüência a estes remédios. Ninguém mais diz a uma jovem paciente que quando não puder dormir para contar carneirinhos ou levantar-se e comer um biscoito, ou que escreva um par de cartas e volte a deitar-se. Remédios instantâneos, isso é o que as pessoas exigem do doutor na atualidade. Tem ocasiões que acredito ser uma lástima cedermos aos desejos de nossos clientes. Ele terá que aprender a confrontar-se com as contrariedades que oferece a vida e a tentar vence-las. É muito fácil enfiar uma chupeta na boca de um bebê que está chorando. Não se pode continuar assim pela vida a fora... — O doutor Graham deu uma risadinha. — Eu aposto que se vocês perguntarem a Miss Marple o que é o que faz quando não pode dormir, nossa boa amiga nos responderia que conta carneirinhos passando debaixo de um portão.

O doutor se aproximou novamente da cama. Molly se movia. Havia aberto os olhos. Olhou para todos sem demonstrar o menor interesse. Pareceu não ter reconhecido ninguém. O médico tomou-lhe a mão.

— Quer nos explicar, estimada Molly, o que foi que andou fazendo com você mesma?

Molly piscou durante uns momentos, sem responder nada.

— Por quê fez isso, Molly? Por quê? — Tim, um tanto emocionado, pegou-lhe a outra mão.

Os olhos da jovem ficaram imóveis. Logo todos experimentaram a impressão de que se fixaram na Evelyn Hillingdon. Possivelmente sua expressão tivesse podido traduzir-se como uma pergunta, mas era difícil dizer. Entretanto, Evelyn falou igual a se tivesse ouvido a voz da garota.

— Tim foi me buscar e me pediu que viesse — disse simplesmente.

Molly posou seu olhar no Tim e logo no doutor Graham.

— Você ficará boa logo, Molly... — disse o médico. — E, por favor, não volte a fazer mais isto.

— Ela não fez por querer — disse Tim calmamente. — Eu tenho certeza de que não fez de propósito. Só queria ter uma boa noite de descanso. Talvez as pílulas não tenham feito logo efeito e ela então repetiu a dose. Não foi assim, Molly?

A cabeça dela moveu-se levemente confirmando a negativa.

— Você quer dizer... que as tomou de propósito? — perguntou Tim.

Foi então que Molly falou.

— Sim — respondeu.

— Mas, por quê, Molly? Por quê?

A jovem fechou os olhos.

— Medo... — apenas ouviu-se a palavra.

— Medo? De quê?

Molly guardou silêncio e seus olhos tornaram a se fechar.

— É melhor deixá-la em paz — sugeriu o doutor Graham ao Kendal.

Mas este prosseguiu. E agora de uma maneira impetuosa.

— Medo de quê? Da Polícia? Por que razão? Porque eles andaram acuando-a, fazendo perguntas e mais pergunta? Eu não sei por quê... Qualquer pessoa teria ficado assustada. Mas é o jeito deles, não quer dizer nada. Ninguém pensou nem por um instante que... — Kendal se interrompeu bruscamente.

O doutor Graham fez um gesto significativo.

— Quero dormir — disse Molly.

— É o melhor para você — manifestou o doutor.

Dirigiu-se para a porta e outros lhe seguiram.

— Ela vai dormir profundamente durante várias horas.

— Há alguma coisa que eu possa fazer, doutor Graham? — perguntou Tim. Mantinha o jeito natural, ligeiramente apreensivo de um homem que se sente culpado.

— Eu ficarei aqui se você quiser — replicou Evelyn amavelmente.

— OH, não! Já está tudo bem... — disse Tim.

Evelyn se aproximou do leito.

— Deseja que fique um momento a lhe fazer companhia, Molly?

Molly abriu os olhos de novo.

— Não — repôs e depois de uma breve pausa adicionou: — Tim... Só Tim...

Este voltou-se e sentou-se junto à cama.

— Eu estou aqui, Molly — disse seu marido tomando uma de suas mãos. — Vamos, durma. Não a deixarei sozinha.

Molly suspirou fracamente e fechou os olhos.

O médico estava parado do lado de fora do bangalô e os Hillingdons o tinham seguido até a entrada.

— O senhor tem certeza de que não há nada que eu possa fazer? — perguntou Evelyn ao médico.

— Não, não, obrigado, senhora. A companhia de seu marido lhe fará bem. De momento, isso é o melhor. Amanhã, possivelmente... apesar de tudo, ele tem que dirigir o hotel... Acho que alguém devia ficar ao lado dela, não devemos deixá-la sozinha.

— O senhor acha que ela pode... tentar outra vez? — perguntou Hillingdon.

Graham se esfregou a testa, irritado.

— Nunca se sabe nestes casos. Geralmente não acontece. Como vocês viram o tratamento de recuperação é extremamente desagradável. Mas claro que ninguém pode ter certeza. Ela pode ter mais destas drogas escondidas nalgum lugar.

— Eu nunca pensaria em suicídio em relação a uma pessoa como Molly — declarou Hillingdon.

Graham respondeu secamente:

— Não são as pessoas que falam constantemente de acabar com sua vida, que chegam ao suicídio. Quem procede assim acham normalmente nisso uma válvula de escape e não passam daí.

— Molly sempre me pareceu uma jovem muito feliz. Possivelmente seria preferível... — Evelyn vacilou. — Eu preciso contar-lhe uma coisa, doutor.

Evelyn Hillingdon contou ao doutor Graham tudo a respeito da conversa com Molly na praia, na noite em que Vitória Johnson morrera assassinada. A expressão do Graham era bastante sério quando ela acabou de falar.

— Eu fico satisfeito por ter-me contado isto, senhora Hillingdon. Há indicações claras em suas palavras de que existe uma perturbação íntima, profunda, bem arraigada. Sim. Pela manhã falarei com o marido da Molly.

 

— Eu preciso falar seriamente com você sobre sua mulher, Kendal.

Estavam sentados no escritório de Tim. Evelyn Hillingdon revezara-o à cabeceira de Molly e Lucky prometera ficar depois, para “distraí-la”, explicou. A Miss Marple, do mesmo modo, ofereceu sua colaboração. O pobre Tim estava dividido entre as incumbências do hotel e as condições de saúde da esposa.

— Não posso compreendê-lo — disse Tim. — Não entendo a Molly. Ela está mudada. Mudada completamente. Não, não é a mesma de antes.

— Eu ouvi dizer que ela tem tido pesadelos... É certo isto?

— Sim. Ela tem se queixado constantemente de seus sonhos.

— Há quanto tempo?

— OH! Não sei... Não sei com exatidão. Suponho que um mês... Possivelmente seis ou sete semanas... Nem ela nem eu demos nunca importância a esses pesadelos. Achávamos que fosse uma coisa passageira.

— Sim, sim, eu compreendo. Mas o pior é que Molly parece temer a alguém. Ela fez alguma queixa nesse sentido a você?

— Pois... sim. Disse-me em uma ou duas ocasiões que... OH!... que alguém a seguia.

— Ah! Que estava sendo espionada?

— Sim. Tal foi a palavra que empregou. Disse que eram seus inimigos e que eles a haviam seguido até aqui.

— Tinha inimigos sua esposa, senhor Kendal?

— Não. É obvio que não.

— Não houve nenhum incidente especial em Inglaterra? Nada que o senhor chegasse a saber, antes de seu casamento?

— OH, não! Nada de mais. Molly não se dava muito bem com seus familiares, isso é tudo. Sua mãe era uma mulher excêntrica, difícil de se viver junto talvez, mas...

— Há sinais de instabilidade mental na família dela?

Tim abriu a boca impulsivamente, tornando a fechar sem dizer nada. Mecanicamente, brincou com uma caneta que estava sobre a mesa.

O doutor Graham apontou:

— Eu preciso salientar o fato de que é melhor você me contar o que sabe, Tim, se é este o caso.

— De acordo, doutor Graham. Existe sim, eu acho que existe. Não é nada sériomas acho que há uma tia de minha mulher esteve um pouco transtornada da cabeça. Nada grave, isso sim. Quero dizer que é estranha a família dentro da qual não encontra-se um caso semelhante.

— Você tem razão. Eu não estou tentando alarmá-lo com isto, mas pode nos mostrar uma tendência para... bem, para uma crise de nervos ou para imaginar coisas quando se está sob pressão.

— Eu não sei de muita coisa sobre ela — declarou Tim. — Afinal de contas as pessoas nem sempre vivem contando histórias da família para a gente, não é?

— Não, não. É certo. Ela não teve algum amigo anterior... não esteve noiva de ninguém, de alguém que pudesse fazer-lhe ameaças ou aborrecê-la com ciúmes? Qualquer coisa deste tipo?

— Eu não sei. Mas creio que não... Molly foi noiva de um outro rapaz antes que eu a conhecesse. Seus pais eram contra, eu ouvi dizer, e penso que ela namorou o sujeito mais para contrariar a família que por qualquer outra coisa. — Kendal sorriu. — O senhor sabe como são essas moças. Se alguém as contraria elas ficam muito mais entusiasmadas do que na realidade...

O doutor Graham esboçou também um sorriso.

— É verdade — comentou. — Os pais devem atuar com muito tato ao fazer uso de seus direitosNunca se deve fazer exceção aos amigos indesejáveis de uma criança. Normalmente, elas se afastam naturalmente. Esse homem de que me falou, não ameaçou alguma vez a Molly?

— Estou seguro de que não fez nada disso. Molly teria me dito. Ela própria me falou que fora um capricho tolo de adolescente, principalmente porque ele tinha uma tão má reputação.

— Sim, sim, claro. Bem, isto não me parece ser sério. Há ainda outra coisa. Aparentemente sua esposa tem tido certos períodos em que ela não se lembra de nada. Períodos curtos de tempo, durante os quais ela não sabe dar conta de suas ações. Você sabia disso, Kendal?

— Não, — disse Tim lentamente. — Não, eu não sabia. Molly não mencionou isso para mim. Mas eu reparei, agora que o senhor me falou nisso, que ela me parecia meio estranha de vez em quando e que... — Tim guardou silêncio uns segundos. Refletia. Seguidamente acrescentou: — Sim. Isso esclarece algumas coisas estranhas. Eu não podia entender por que ela parecia esquecer-se dascoisas mais corriqueiras, ou às vezes sem saber que horas eram. Eu pensei apenas que ela fosse distraída, eu acho.

— Resumindo, Tim: eu lhe aconselho que você leve a sua esposa a um bom especialista.

Tim encontrou estranho o conselho do doutor e pareceu irritar-se. Seu rosto avermelhou...

— O senhor quer dizer um especialista em doenças mentais, eu suponho?

— Vamos, vamos, Kendal. Não precisa ficar contrariado por rótulos. Veja um neurologista ou um psicólogo, a alguém, enfim, especializado no que os leigos denominam de crises nervosas. No Kingston trabalha um profissional de grande renome. Ou em Nova Iorque é claro. Há algo que está causando esses terrores mórbidos que atormentam a sua esposa. Algo que talvez que nem ela própria saiba a razão. Aconselhe-se sobre ela, Tim. Ah! Procure ajuda o mais cedo possível.

O doutor Graham deu uma palmada no ombro de Tim e levantou-se.

— De momento, você não tem porque preocupar-se. Sua esposa está rodeada de bons amigos aqui e todos faremos o que pudermos para cuidá-la.

— Molly não... você acha que tentará de novo... o de antes?

— Considero-o muito pouco provável — manifestou o doutor Graham.

— Não se pode ter certeza... — disse Tim.

— Não se pode estar nunca seguro de nada dentro do campo da Medicina. Esta é uma das primeiras coisas que se aprendem em nossa profissão. — Com a mão ainda sobre um dos ombros do Tim, Graham adicionou: — Tudo se arrumará. Não se preocupe, Kendal.

— É fácil falar assim — disse Tim, enquanto o médico se retirava. — Imagine, não se preocupe! Do que é que ele pensa que eu sou feito?

 

                     JACKSON OS E COSMÉTICOS

— A senhora tem certeza mesmo de que não é nenhum incômodo, Miss Marple? — perguntou Evelyn Hillingdon.

— Não, não, seriamente, querida — respondeu Miss Marple. — Eu adoro ser útil a outros de uma forma ou outra. Na minha idade, você sabe, tem-se às vezes a impressão de que não serve para nada. Tal impressão é mais forte em lugares como este, apenas para se divertir. Nenhum dever de espécie alguma ... Não, eu adorarei fazer companhia ao Molly. Você não se preocupe: pode sair para o seu passeio. Vocês vãp à Ponta do Pelicano, não é?

— Sim. — disse Evelyn. — Eu e Edward adoramos esse lugar. Não nos cansamos de observar às aves mergulhando para apanhar peixe. Tim está com o Molly agora. Mas ele tem obrigações urgentes, coisas que reclamam sua imediata atenção... Por outro lado, não quer que sua mulher fique sozinha.

— Ele está certo — manifestou Miss Marple. — Eu não gostaria também, no lugar dele. A gente nunca sabe, não é? Quando já se tentou uma coisa daquelas... Bem, pode ir, minha filha.

Evelyn, efetivamente, partiu para reunir-se com o pequeno grupo que a estava esperando. Faziam parte do grupo: os Dysons, seu marido e três ou quatro pessoas mais. Miss Marple apanhou o seu equipamento de tricô, viu se tinha tudo que ia precisar e encaminhou-se para o bangalô dos Kendals.

Quando se encontrava junto ao mesmo ouviu a voz do Tim. Uma das janelas da pequena construção estava entreaberta...

— Se ao menos você dissesse por que foi que fez isto, Molly! O que é o que te impulsionou a dar esse passo? Ofendi-a em algo? Tem que existir alguma causa que explique sua decisão. Se ao menos você me contasse, Molly!

Miss Marple se deteve. Houve uma breve pausa antes de que Molly falasse. Pronunciava as palavras com um tom que revelava seu cansaço.

— Não posso lhe explicar nada, Tim. O que quer que lhe diga? Suponho que... que foi uma idéia que me ocorreu de repente.

Miss Marple bateu levemente na janela e entrou.

— Oh, a senhora está aqui, Miss Marple! Não sabe quanto agradeço sua atenção.

— Não tem que me agradecer nada. — disse Miss Marple. — Eu estou encantada em poder servir para alguma coisa. Posso me sentar aqui nesta cadeira? Você está com aspecto muito melhor, Molly, o que me deixa mais sossegada.

— Sim. Estou bem, muito bem — repôs Molly. — Apenas... um pouco sonolenta.

— Eu vou ficar calada — disse Miss Marple. — Molly, fique quietinha e durma. Eu me entreterei fazendo meu tricô.

Tim Kendal saiu da habitação não sem antes dirigir a Miss Marple um olhar que mostrava seu agradecimento.

Molly estava deitada do lado esquerdo. Estava com olhar cansado, um pouco entorpecido. Com uma voz que era quase um sussurro disse:

— É você muito amável, miss Marple. Acredito... acredito que vou dormir um pouco.

Ela se virou nos travesseiros e fechou os olhos.

Sua respiração era mais regular agora, embora ainda estava longe de ser normal. Uma longa experiência como enfermeira levou a Miss Marple, quase automaticamente endireitar o lençol e enfiá-lo por baixo do colchão do lado de cá da cama. Ao fazer isto ela encontrou algo duro e retangular embaixo do colchão. Surpreendida, pegou a coisa e puxou-a para fora. Era um livro... Os olhos de Miss Marple se fixaram em um rápido olhar no rosto da jovem. Não se movia. Evidentemente tinha adormecido. Miss Marple abriu o livro. Era, ela viu, um livro comum sobre doenças nervosas. Abriu-se naturalmente num certo lugar em que dava a descrição sobre os inícios das manias de perseguição e de várias outras manifestações esquizofrênicas e sintomas afins.

Não era aquela uma obra de caráter técnico mas sim de divulgação, que, portanto, podia ser em seus detalhes compreendida pelo público leigo. A grave expressão que se desenhou no rosto de miss Marple se acentuou à medida que lia... Uns minutos depois fechou o livro, ficando pensativa. Depois, debruçou-se sobre a cama e cuidadosamente recolocou-o onde o encontrara, por baixo do colchão.

Moveu a cabeça, perplexa. Procurando não fazer o menor ruído, abandonou sua cadeira. Deu alguns passos na direção da janela mais próxima e então, repentinamente, voltou a cabeça. Por uma fração de segundo viu os olhos do Molly abertos... Miss Marple ficou imaginando se ela imaginara ou se realmente vira aquele olhar furtivo... Estava Molly fingindo que dormia? Aquilo podia ser, entretanto, algo natural. Ela podia ter pensado que Miss Marple ia ficar tagarelando se mostrasse que estava acordada. Sim. Isso era o que tinha ocorrido.

Teria ela sentido naquele olhar breve de Molly uma espécie de dissimulação que era extremamente desagradável, além de intrigante. “Nunca sabemos nada de nada”, pensou Miss Marple.

Decidiu que assim que lhe apresentasse a ocasião conversaria com o doutor Graham. Voltou a sua cadeira, junto ao leito. Percebeu depois de uns cinco minutos que Molly dormia realmente. Ninguém poderia ficar imóvel assim por tanto tempo, nem respirar tão tranqüilamente. Miss Marple voltou a ficar em pé. Estava usando os seus sapatos de lona com sola de borracha. Não eram talvez muito elegante, mas combinavam perfeitamente ao clima do lugar e eram confortáveis e agradáveis para seus pés.

Percorreu silenciosamente todo o quarto, fazendo uma pequena pausa em frente a cada uma das janelas, que davam para duas direções diferentes.

Reinava ali a mais absoluta tranqüilidade. Não se via ninguém pelas imediações. Miss Marple voltou e estava de pé, sem ter muita certeza se ia tornar a sentar-se, quando imaginou ouvir um leve ruído do lado de fora. Como se fosse um rumor de sapato sobre o terraço? Ela hesitou um instante e foi até a porta, empurrou-a ligeiramente, pôs um pé para fora e voltou a cabeça para dentro do quarto ao falar: — Eu vou sair só um instantinho, querida — disse ela. — Vou só até o meu bangalô, para ver onde deixei o molde. Estava certa de que tinha trazido comigosegura de me haver isso gasto. Você ficará bem até eu voltar? — Voltou então a cabeça outra vez e pensou consigo mesma: Está dormindo, coitadinha. É o melhor que podia lhe acontecer.

Saiu de mansinho pelo terraço, desceu os degraus e virou bruscamente pelo caminho ao lado. Se alguém estivesse escondido por detrás de umas moitas de hibiscos teria ficado curioso em ver Miss Marple mudar rapidamente de direção através do canteiro de flores, dar a volta por trás do bangalô e entrar novamente pela porta dos fundos. Esta porta dava diretamente para um pequeno quarto que Tim utilizava em ocasiões como escritório auxiliar, e de lá para uma sala de estar.

Ali havia umas grandes cortinas, meio corridas para que mantivesse a peça fresca. Miss Marple se escondeu atrás delas. Esperou pacientemente... Da janela desta parte da casa poderia divisar facilmente a qualquer pessoa que se dirigisse ao quarto de Molly. Passaram-se alguns minutos, quatro ou cinco, antes de que visse algo...

Jackson, em seu uniforme branco, subia pela escada do terraço. Ele parou um minuto no alpendre e depois pareceu dar uma tímida batida na porta que estava entreaberta. Miss Marple não ouviu nenhuma resposta. Jackson olhou a seu ao redor, furtivamente, decidindo-se por fim a entrar na casa. Miss Marple chegou-se para perto da porta que dava para os banheiros adjacentes. Suas sobrancelhas se levantaram com ligeira surpresa. Ela se pôs a refletir um ou dois minutos, passou pelo corredor e entrou no banheiro pela outra porta.

Jackson virou-se da prateleira que estava examinando porcima da pia. Ele tinha um ar espantado, o que não era surpresa para ninguém...

— OH!... — exclamou. — Não... eu não queria...

— Senhor Jackson... — disse Miss Marple, muito surpresa.

— Acreditei poder encontrá-la por aqui nesta casa...

— Você desejava algo? — perguntou, intrigada, Miss Marple.

— Para falar com franqueza — respondeu Jackson, — eu estava examinando o creme facial que usa a senhora Kendal.

Miss Marple considerou o fato de que Jackson estava com um pote de creme nas nas mãos, e que fora astuto em mencionar imediatamente este fato.

— É muito perfumado — disse ele, franzindo o nariz. — Todos os cosméticos desta casa são de boa qualidade e magnificamente preparados. As marcas mais baratas não fazem bem a todas as peles. Às vezes produzem erupções de pele. O mesmo que acontece com certos tipos de pós faciais...

— O senhor parece entender muito do assunto, você? — manifestou Miss Marple, com certa ironia.

— Trabalhei por algum tempo no ramo de drogas — declarou Jackson. — Lá aprende-se muitas coisas em relação aos cosméticos. São muitos os fabricantes que não fazem outra coisa que lançar no mercado potes de fantasia, cujo conteúdo deixa muito que desejar... Atraídas pela luxuosa embalagens as mulheres os adquirem e os comerciantes são os únicos beneficiados.

— Foi isto que o senhor veio...? — inquiriu Miss Marple, sem terminar deliberadamente sua frase, convencida de que Jackson a entenderia só ouvindo aquelas palavras.

— Não, não vim aqui para falar de cosméticos — respondeu Jackson, docilmente.

Você não tem muito tempo para arquitetar uma mentira — pensou Miss Marple. — Vamos ver o que vai dizer.

— Para dizer a verdade — disse Jackson, — a senhora Walters emprestou à senhora Kendal um batom outro dia. Eu vim aqui buscá-lo. Bati na porta e depois vi que a senhora Kendal se achava profundamente adormecida; então pensei que não haveria nada de mal se eu entrasse no banheiro e procurasse o batom da secretária do Sr. Rafiel.

— Compreendo — disse Miss Marple. — E o encontrou?

Jackson balançou negativamente a cabeça.

— A senhora Kendal deve ter guardado em uma de suas bolsas — disse despreocupadamente. — Bom..., não tem importância. A senhora Walters não faz mesmo muita questão. Ela apenas mencionou casualmente o fato. — Jackson examinou os frascos restantes, que ocupavam quase todo o espaço da prateleira do banheiro. — Ela não usa muitas coisas, não acha? Ah, claro! Na idade dela não se precisa muito destes preparados. Tem uma pele, como é natural, fresca, suave, fina...

— Você deve olhar para as mulheres com uma intenção bem diferente da dos outros homens comuns — sublinhou Miss Marple, sorrindo agradavelmente.

— Você tem razão. Os diversos ofícios que tive que exercer alteraram em mim o ponto de vista comum.

— Você sabe bastante sobre drogas, verdade?

— OH, sim! Foi trabalhando que me familiarizei com elas. Quer que lhe seja sincero? Eu acredito que atualmente se abusa delas. Existem no mercado muitos tranqüilizantes demais, excessivas pílulas estimulantes, infinitos medicamentos milagrosos. É certo usá-las se lhe são receitadas, mas a maior parte delas pode ser comprada sem receita. Algumas podem ser muito perigosas.

— Estou de acordo com você, — murmurou miss Marple — eu calculo que sim.

— As drogas influem poderosamente na conduta humana. — continuou ele —Uma boa parte da histeria da adolescência que acontece de vez em quando não tem causas naturais... Estas crianças vivem tomando drogas. Certo, não é novo. Há séculos que se conhece isto. Lá no Oriente... não que eu tenha estado por lá... acontecem muitas coisas estranhas... A senhora ficaria surpresa de ver as coisas que certas mulheres índias administram a seus maridos. Na Índia, por exemplo, nos velhos tempos, o caso de uma mulher jovem casada com um homem velho... Ela não poderia livrar-se dele, pois eu creio que a viúva era cremada durante o funeral do marido ou, se não o fosse, seria tratada pela família como uma proscrita. Não era fácil ser viúva na Índia naquela época. Mas ela podia manter o seu marido velho sob o efeito de certas drogas que mantêm ao homem semi-imbecil, provocar-lhe alucinações, que o deixariam como um doente mental. — Jackson, reflexivo, moveu a cabeça. — Sim, já sei o que é o que vai me dizer: que é um trabalho sujo o que essas mulheres fazem...

Depois de uma breve pausa, ele prosseguiu dizendo:

— Falemos agora das bruxas? Há muitas coisas interessantes sobre feiticeiras que se sabe hoje em dia. Porque elas sempre confessavam, porque admitiam tão prontamente que eram mesmo feiticeiras e que tinham vindo voando numa vassoura desde a Assembléia das Bruxas.

— Suponho que isso foi obtido mediante a tortura — manifestou miss Marple.

— Não em todos os casos — declarou Jackson. — OH, sim! É obvio que a tortura influiu muito nesse sentido. Mas elas faziam confissões mesmo antes que se mencionassem as torturas. Não só confessavam como vangloriavam-se disso. Bem, elas se esfregavam com ungüentos, a senhora sabe. Ungições, elas chamavam isto. Alguns desses preparados, a base de beladona, atropina e outras coisas semelhantes, em contato com a pele lhe dão alucinações de levitação, de voar pelo ar. Chegavam a pensar que flutuavam no ar! Pobres criaturas! E veja os “fanáticos muçulmanos”, — na época medieval, medievo, na Síria ou no Líbano, num ludar desses... eram saturados de maconha que lhes dava visões do Paraíso artificial, cheio de hurís, onde desfrutava-se sem limitação de tempo... Diziam-lhes que era isto que viria depois da morte, embora para alcançar tal meta era preciso também cometer o crime de ritual. OH! Não, eu não estou enfeitando a história, era assim mesmo.

— O que vem provar — disse Miss Marple — é que em essência as pessoas são altamente crédulas.

— Pois... sim, parece-me que tem muita razão, Miss Marple.

— Elas acreditam no que lhes dizem — disse Miss Marple. — Sim, na verdade, todos nós somos inclinados a isto — acrescentou ela.

Depois disse vivamente:

— Quem foi que lhe contou estas histórias sobre a Índia, sobre os maridos dopados que tomam datura... — e ela acrescentou rapidamente, antes que ele pudesse responder: — Foi o Major Palgrave?

Jackson ficou ligeiramente surpreso.

— Sim, sim... Em realidade foi ele. Ouvi de seus lábios muitos relatos semelhantes. É obvio, estes datavam de uma época muito anterior a sua juventude. Não obstante, dava a impressão de achar-se bem informado.

— O Major Palgrave pensava que sabia de tudo sobre todas as coisas — disse Miss Marple. — Era muitas vezes impreciso no que contava às pessoas. — Ela balançou a cabeça pensativa. — O Major Palgrave — disse ela — tinha muito o que explicar.

Houve um pequeno ruído no quarto ao lado. Miss Marple voltou a cabeça rapidamente. Saiu do banheiro e foi para o quarto. Lucky Dyson estava diante da porta.

— Eu... OH! Não esperava encontrá-la a você aqui, Miss Marple.

— Eu fui um instante no banheiro — explicou Miss Marple, com certa reserva.

No banheiro, Jackson riu-se abertamente. Achava divertida a atitude daquela dama.

— Eu fiquei pensando se a senhora queria que eu ficasse um pouquinho com Molly — manifestou Lucky, olhando em direção ao leito. — Ela está dormindo, não?

— Acredito que sim — disse Miss Marple. — Mas não precisa preocupar-se. Vá, vá divertir se um pouco, querida. Eu pensei que você tivesse ido passear.

— Esse foi meu propósito no princípio — explicou Lucky. — Mas tive uma uma terrível dor de cabeça que no último momento desisti. Depois pensei que possivelmente pudesse ser de alguma utilidade à doente.

— Foi muito gentil de sua parte — sublinhou Miss Marple. Voltou, logo, a ocupar sua cadeira junto à cama do Molly, e começou a tricotar, adicionando: — Não se preocupe comigo. Estou muito bem aqui.

Lucky pareceu vacilar um momento... Logo deu a volta, saindo do quarto. Miss Marple aguardou uns instantes, depois foi nas pontas dos pés ao banheiro. Mas Jackson já tinha ido embora, sem dúvida pela outra porta. Miss Marple apanhou o pote de creme facial que ele tivera nas mãos e colocou-o dentro do bolso de seu vestido.

 

                     UM HOMEM EM SUA VIDA?

Bater um papo informal com o doutor Graham não era assim tão fácil como Miss Marple esperava. Ela estava particularmente ansiosa em não abordá-lo diretamente uma vez que não queria levantar suspeitas sobre as perguntas que queria fazer.

Tim estava de volta, tomando conta de Molly agora e Miss Marple combinara que ela deveria substituí-lo durante a hora do jantar, em que ele estaria ocupado com o serviço na sala de jantar. Kendal assegurara que a senhora Dyson estava pronta a ficar de companhia a sua mulher, ou mesmo a senhora Hillingdon, mas Miss Marple disse com firmeza que ambas eram jovens que gostavam de se divertir e que ela própria preferia um jantar leve mais cedo e assim tudo estaria bem para todos. Tim uma vez mais agradeceu-lhe efusivamente. Passeando sem destino certo em volta do hotel e pelo caminho que unia vários bangalôs, entre os quais se achava o do doutor Graham, Miss Marple tentou planejar o que iria fazer em seguida.

Tinha na cabeça um montão de idéias confusas e contraditórias e se havia uma coisa que não gostava, era ter idéias confusas e contraditórias. Este negócio todo começara tão claramente... O Major Palgrave com sua capacidade lamentável de contar histórias, sua indiscrição que fora obviamente ouvida e o corolário: sua morte vinte e quatro horas depois. Não havia nenhuma dificuldade nisto — pensou Miss Marple.

Mas depois ela era obrigada a admitir, não havia nada a não ser dificuldades. Tudo apontava em diferentes direções a uma só vez. Desde que se admitisse não acreditar em uma só palavra do que os outros lhe diziam, de que não se podia confiar em ninguém, e que a maioria das pessoas com as quais ela conversara aqui tinham lamentáveis semelhanças com certas pessoas em St. Mary Mead, aonde isto a levaria?

Pensava constantemente na próxima vítima... Alguém ia ser assassinado em breve e ela tinha a crescente impressão de que precisava saber quem seria este alguém. Ali havia algo estranho... Algo que ouvisse, que observasse indiretamente, que visse com seus próprios olhos?

Uma daquelas pessoas que a rodeavam durante o dia lhe havia dito uma palavra ou uma frase que davam sentido ao caso. Teria sido Joan Prescott? Joan Prescott tinha falado uma infinidade de coisas sobre uma porção de gente. Mexericos ou boatos? Escândalos? O que foi exatamente que Joan Prescott dissera?

Gregory Dyson, Lucky... — o pensamento de Miss Marple recaiu sobre Lucky. Lucky, ela estava convencida por uma certeza nascida de sua suspeita natural, estava ativamente ligada à morte da primeira esposa do Gregory. Tudo apontava para ela. Será que a vítima predestinada sobre a qual ela tanto se preocupava era Gregory Dyson? Quem sabe se aquela Lucky não estava tentando outra vez a sorte com outro marido? E por esta razão ela herdaria não só a liberdade mas uma grande herança que receberia como viúva de Gregory Dyson?

— Realmente — pensou Miss Marple, — tudo isto é pura conjetura. Eu estou sendo uma estúpida. Sei perfeitamente. A verdade é clara como o dia, se ao menos eu pudesse vê-la. São as nuvens que estão atrapalhando...

— Falando sozinha? — inquiriu o Sr. Rafiel.

Miss Marple se sobressaltou. Não se tinha dado conta que ele estivesse se aproximando. Apoiado na Esther Walters, o velho se encaminhava lentamente ao terraço do hotel.

— Não lhe tinha visto, Sr. Rafiel.

— Observei que seus lábios se moviam... Que fim levou a sua urgência?

— A urgência subsiste. Só que eu ainda não estou vendo tudo às claras...

— Eu me alegro que seja assim tão simples.... Bem, já sabe que se precisar de alguma ajuda pode contar comigo.

O Sr. Rafiel voltou a cabeça quando Jackson se aproximava do grupo.

— Até que enfim apareceu, Jackson. Onde diabos se meteu? Nunca conseguimos lhe encontrar quando é mais necessário?

— Lamento o ocorrido, Sr. Rafiel.

Movendo-se com destreza, o jovem substituiu a Esther Walters. O Sr. Rafiel se sentiu, a partir daquele momento, mais seguro.

— Deseja ir ao terraço, senhor?

— Pode levar-me para o bar. — disse o Sr. Rafiel. — Muito bem, Esther, você pode ir agora e trocar de roupa para o jantar. Encontre-se comigo no terraço daqui a meia hora.

Jackson e o Sr. Rafiel partiram. A senhora Walters se deixou cair na cadeira que havia junto a Miss Marple, esfregou o braço várias vezes em que tinha estado apoiado o ancião.

— O Sr. Rafiel parece pesar pouco, — observou ela — mas pouco a pouco meu braço fai ficando entorpecido. Não a vi em toda a tarde, Miss Marple.

— Estive fazendo companhia a Molly Kendal — explicou Miss Marple. — Ela dá a impressão de encontrar-se muitíssimo melhor.

— Se você quiser saber minha opinião, eu diria que nunca houve nada muito sério com ela — declarou Esther Walters.

Miss Marple ergueu as sobrancelhas. Esther tinha falado em um tom decididamente seco.

— Quer dizer que... acha que a tentativa de suicídio...

— Eu não acredito que tenha havido nenhuma tentativa de suicídio, — repôs Esther Walters. — Não acredito nem por um momento que ela tenha tomado uma dose excessiva de sonífero e penso que o doutor Graham sabe perfeitamente disto.

— Agora eu fiquei interessada — disse Miss Marple. — Por quê é que você diz isto?

— Porque eu tenho quase certeza de que é o caso dela. Ora, é uma coisa que acontece muito freqüentemente. É um procedimento tão eficaz como qualquer outro de chamar a atenção para si mesma — continuou Esther Walters.

— “Você ficará triste se eu morrer?” — citou Miss Marple.

— Uma coisa pelo estilo — replicou Esther Walters imediatamente. — Entretanto, inclino-me a pensar que neste caso particular se tratava de algo distinto. O que insinuou você é o que acontece em um matrimônio quando o marido anda comportando-se bem e a esposa está muito apaixonada por ele.

— Você não acha que Molly esteja apaixonada pelo Tim?

— Bem — inquiriu Esther Walters, — a senhora acha?

Miss Marple considerou atentamente aquelas duas palavras e o tom com que tinha sido formulada a pergunta.

— Eu tinha — disse ela, — mais ou menos, presumido isto. — Ela fez uma pausa antes de completar: — Talvez erradamente.

Esther esboçou um sonrisinho irônico.

— Eu ouvi algumas coisas a respeito dela... Sobre a história toda. — disse.

— Graças à senhorita Prescott?

— Bem — disse Esther, — de uma ou duas pessoas. Há outro homem no caso... Alguém de quem Molly gostava muito. A família dela era terrivelmente contra.

— Sim — disse Miss Marple, — isto eu ouvi falar.

— E então ela se casou com o Tim. Talvez até que ela gostasse dele. Mas o outro camarada não a deixou em paz. Eu até me perguntei: Terá sido capaz de segui-la até aqui?

— De verdade? Mas quem é esse homem?

— Não tenho a menor idéia de quem sejas — manifestou Esther. — Imagino que esse casal deve ter adotado algumas precauções...

— Você acha que Molly ainda gosta deste outro homem?

Esther deu de ombros.

— Eu diria que ele não presta — declarou. — mas muitas vezes é o tipo de homem que faz uma mulher ficar caída para o resto da vida.

— Você nunca soube que tipo de homem ele é... o que faz... sabe qualquer outra coisa sobre ele?

Esther balançou a cabeça.

— Não. As pessoas inventam muita coisa, mas não se pode acreditar no que dizem... É possível que esse homem fosse casado. Talvez seja por isto que a família dela tenha sido tão contra, ou talvez ele não preste mesmo. Talvez beba... Talvez tenha complicações com a polícia... Eu não sei. Mas Molly ainda gosta dele. Isto eu sei com toda certeza.

— Você viu ou ouviu alguma coisa? — aventurou Miss Marple.

— Eu sei do que estou falando — disse Esther. — A voz dela era áspera e pouco amigável.

— Esses crimes... — começou a dizer Miss Marple.

— Não pode você esquecer-se deles um momento? — perguntou Esther Walters. — Já fez com que o Sr. Rafiel se intrometesse também. Será que não pode apenas... deixar isto de lado? Não vai descobrir mais nada, eu tenho certeza.

Jane Marple olhou para ela.

— Você acha que sabe de tudo, não acha? —inquiriu falando muito devagar.

— Eu acho que sei, sim. Estou quase certa.

— Então por que não conta o que sabe... não faz alguma coisa?

— Por que deveria fazer? De que adiantaria? Eu não posso provar nada. E o que aconteceria? As pessoas são absolvidas com tanta facilidade hoje em dia. Chamam isto de falta de responsabilidade e de outras coisas assim. Uns poucos anos na prisão e cá estão outra vez do lado de fora, livres como o vento.

— Suponhamos, que talvez por causa desta sua recusa, uma outra pessoa venha a morrer... uma outra vítima?

Esther abanou a cabeça cheia de confiança.

— Isso não acontecerá, Miss Marple.

— Você não pode ter certeza.

— Eu tenho. E de qualquer forma, não vejo quem seria... — a senhora Walters franziu a testa. — De qualquer maneira — acrescentou, quase inconseqüentemente, — talvez seja mesmo... uma falta de responsabilidade. Talvez a gente não saiba evitar... se na realidade se é verdadeiramente desequilibrado. OH! Eu não sei. A melhor coisa seria se ela, seja quem for, fosse embora para que todos nós pudéssemos esquecer o que se passou.

Esther consultou seu relógio de pulso, fez uma exclamação de espanto e levantou-se.

— Tenho que ir trocar me de roupa ainda.

E se dirigiu para a casa.

Miss Marple permaneceu sentada olhando-a afastar-se. Pronomes, pensou ela, eram sempre embaraçosos e mulheres como Esther Walters eram particularmente inclinadas a espalhá-los por aí indiscriminadamente. Será que Esther Walters estaria convencida, por qualquer razão, de que seria uma mulher a responsável pelas mortes do Major Palgrave e de Vitória Johnson? Pelo que tinha dito era isto. Miss Marple continuou refletindo...

— Ah! Aqui temos a miss Marple, sentada tranqüilamente, sozinha... e sem fazer seu habitual trabalho de tricô.

Era o doutor Graham, por quem ela procurara durante tanto tempo com tão pouco êxito. E ei-lo aqui por sua própria vontade, preparando-se para sentar-se para bater um papinho de alguns minutos. Ele não ficaria muito tempo, pensou Miss Marple, pois igualmente deveria ir vestir-se para o jantar e geralmente ele jantava bem cedo. Ela lhe explicou que estivera cuidando de Molly durante toda a tarde.

— É difícil de se acreditar que ela tenha-se recuperado tão rapidamente — declarou logo.

— Bem... — falou o Dr. Graham. — Não é para surpreender. Na realidade, ela não tomou uma dose exagerada de sonífero, como a senhora sabe.

— Oh, eu ouvi dizer que ela tinha tomado meio vídro de pílulas.

No rosto do doutor Graham apareceu um sorriso de indulgência.

— Não — disse ele. — Eu não creio que ela tenha tomado assim tanta quantidade. Eu diria que pensou tomá-las, mas que provavelmenteno último instante jogou fora a metade. As pessoas, mesmo quando pensam em suicidar-se, não querem realmente fazê-lo. Sempre procuram não tomar uma dose fatal. Não que isto seja feito deliberadamente, apenas por uma questão subconsciente de sobrevivência.

-OH! Pensei que fosse feito de propósito. Eu quero dizer, tentando parecer que... — Miss Marple guardou silêncio de repente.

— É possível — confirmou o doutor Graham.

— Talvez ela e Tim tivessem brigado, por exemplo?...

— Tim e Molly não discutem nunca. Parecem querer-se muito bem. Ainda assim, eu calculo que pode acontecer ao menos uma vez. Não, não acho que haja mais nada com ela hoje. Poderia até levantar-se e levar a sua vida normal. Mas é mais seguro mantê-la onde está por mais um dia ou dois, descansando...

O doutor Graham ficou em pé, saudou Miss Marple com uma leve reverencia e pôs-se a andar para o hotel. Ela continuou sentada durante uns minutos mais no mesmo lugar.

Vários pensamentos passaram por sua cabeça... Pensou no livro que havia achado sob o colchão do leito de Molly; no momento em que esta fingira estar dormindo... Recordou as coisas que lhe havia dito Joan Prescott e, mais adiante, Esther Walters...

E então ela voltou ao início de tudo: ao Major Palgrave.

Algo debateu-se em sua mente. Algo a respeito do Major Palgrave...

Algo que ela não conseguia lembrar-se...

 

                               O ÚLTIMO DIA

... E a tarde e a manhã tornaram-se o último dia... — disse Miss Marple consigo mesma.

Então, um tanto confusa, ergueu-se em sua cadeira. Tirara um cochilo, coisa incrível de acontecer, pois a orquestra do hotel não tinha deixado de tocar um momento e qualquer um que conseguisse cochilar perto de uma orquestra de instrumentos de sopro... Bem, isto vinha demonstrar, pensou Miss Marple, que ela já estava se acostumando com o lugar! O que foi mesmo que ela estava dizendo? Uma citação que ela entendera errado. O último dia? O primeiro dia. Era assim que devia ser. Não... não era aquele o primeiro dia... E possivelmente tampouco o último.

Ergueu um pouco mais. A verdade era que se sentia extraordinariamente fatigada. Toda esta ansiedade, este sentimento vergonhoso de ter sido vergonhosamente insuficiente de alguma forma... Ela se lembrava com desagrado uma vez mais, daquele olhar estranho e esquisito que Molly lhe dirigira por baixo de suas pálpebras semicerradas. O que estaria se passado na cabeça daquela garota? Como tudo parecera diferente no principio, pensou Miss Marple: Tim Kendal e Molly, um casal tão simples, tão jovem e tão feliz. Os Hillingdons, tão amáveis, tão bem educados, o que se chama de gente “simpática”. O caloroso e extrovertido Greg Dyson e a mulher, Lucky, sempre alegre e barulhenta, falavando pelos cotovelos, satisfeita consigo mesma e com todo mundo... Um quarteto de pessoas que se davam tão bem juntas. O Reverendo Prescott, aquele homem tão gentil e genial! Joan Prescott, um leve toque de azedume, mas uma mulher agradável, e mesmo mulheres agradáveis gostam de tagarelar para divertir-se. Eles precisavam saber o que estava acontecendo, saber quando dois e dois somam quatro, e quando era possível esticá-los até cinco! Não havia maldade naquelas mulheres. As línguas delas tesouravam os outros, mas quando chegou a hora do infortúnio todas mostraram-se caridosas, O Sr. Rafiel, uma personalidade, um homem de caráter, um homem que ninguém poderia jamais esquecer. Entretanto, a Miss Marple pensava que sabia de mais alguma coisa a respeito dele.

Diversas vezes os médicos lhe haviam dado pouco tempo de vida, pelo menos é o que ele lhe dissera, mas desta vez ela imaginou que eles tinham sido mais determinados em seus pronunciamentos. O Sr. Rafiel sabia que seus dias estavam contados.

Sabendo disto com toda a certeza, haveria alguma atitude que ele seria capaz de tomar?

Miss Marple considerou atentamente a pergunta que acabava de formular-se.

Possivelmente, pensou ela, isto fosse muito importante.

O que foi mesmo que ele dissera, com a voz um pouquinho mais alta, um pouquinho mais segura de si? Ela era uma perita em conhecer os tons de voz. Ouvira tanta coisa durante toda a sua vida.

O Sr. Rafiel andara lhe contando algo que não era verdade.

Miss Marple olhou a seu redor. A suave brisa noturna alagou seus pulmões, refrescando-os. Percebeu o perfume misturado das flores. Contemplou as mesas com suas pequenas luzes. Estudou as figuras das mulheres, cobertas com seus lindos vestidos de noite o da Evelyn, muito ajustado a seu corpo, era estampado azul-marinho e branco. Lucky com um vestido liso e branco; seus dourados cabelos brilhavam. Todo mundo parecia contente e cheio de vida. Até o Tim Kendal sorria quando se aproximou de sua mesa para lhe dizer:

— Não sei como lhe agradecer quanto tem feito por nós. Molly volta a ser virtualmente a de antes. O doutor disse que ela já pode levantar-se amanhã.

Miss Marple sorriu para ele e disse que a alegravam muito aquelas notícias. Mas sentiu um grande esforço em sorrir. Decididamente, estava muito fatigada...

Levantou-se, encaminhando-se lentamente a seu bangalô. Gostaria de ter continuado a pensar, a tentar decifrar, a tentar lembrar-se, reunir todos os vários fatos e palavras e vislumbres. Mas não se sentia capaz de fazê-lo. Sua mente cansada rebelara-se. Ela lhe dizia: “Vá dormir! Você precisa dormir!”

Miss Marple despiu-se, deitou-se na cama, leu alguns versos de Thomas à Kempis, que sempre guardava junto à cabeceira e depois apagou a luz. Na escuridão fez uma oração. Ninguém pode fazer nada sozinho. As pessoas precisam de ajuda.

— Nada irá acontecer hoje à noite — murmurou ela cheia de esperança.

 

Miss Marple despertou de repente, sentando-se imediatamente na cama. Os batimentos de seu coração tinham sofrido uma brusca aceleração. Acendeu a luz e consultou o pequeno relógio que tinha junto à cama. As duas da madrugada. Eram duas horas da manhã e do lado de fora se notava certa atividade. Miss Marple abandonou a cama vestiu um robe e calçou os chinelos, enrolou um cachecol de lã na cabeça e saiu do quarto para um reconhecimento do terreno... Distinguiu a várias pessoas que se moviam pelos arredores, providas de lanternas. Entre elas descobriu ao Reverendo Prescott, ao qual se aproximou para lhe perguntar:

— O que está acontecendo?

— OH! É você, Miss Marple? Procuramos à senhora Kendal. Seu marido despertou, então viu que ela tinha saído da cama e desaparecendo... Estamos à procura dela.

O Reverendo Prescott saiu apressado. Miss Marple acompanhou-o andando mais devagar atrás dele. Onde teria ido Molly? Por quê? Será que ela planejara isto deliberadamente, planejara escapulir assim que a guarda afrouxasse e enquanto o marido estava profundamente adormecido? Jane Marple pensou que podia ser isto. Mas por quê? Qual seria a razão? Será que havia mesmo, como sugerira tão deliberadamente Esther Walters, um outro homem? E se fosse assim, quem seria este homem? Ou haveria alguma razão ainda mais sinistra?

Miss Marple continuou andando, esquadrinhando entre os arbustos que achavam ao passo. Inesperadamente, ouviu uma débil chamada:

— Aqui... por aqui...

A voz, pensou Miss Marple, procedia de um ponto situado nas imediações da pequena cascata que ficava depois do hotel. A correnteza se encaminhava de ali ao mar, diretamente. Miss Marple começou a correr com toda a celeridade que o permitiam suas torpes pernas.

Não havia assim tantas pessoas procurando como ela pensara no início. A maior parte dos hóspedes do hotel deviam estar dormindo em seus bangalôs. Miss Marple viu um ponto da praia onde várias pessoas estavam de pé. Alguém a empurrou, quase derrubando-a no chão, passou correndo para aquela direção. Era Tim Kendal. Um minuto depois ouviu seu grito:

— Molly! Meu Deus, Molly!

Finalmente, Miss Marple conseguiu incorporar-se ao pequeno grupo. Faziam parte deste um dos garçons cubanos, Evelyn Hillingdon e duas arrumadeiras indígenas. Eles se haviam afastado um pouco para deixar Tim passar. Miss Marple chegou ali no instante em que Kendal se agachava para olhar...

— Molly... — lentamente ele caiu de joelhos no chão. Miss Marple viu então com toda clareza o corpo da moça, debruçado sobre a praia, o rosto abaixo da superfície da água. Seus loiros cabelos tinham ficado espalhados sobre o xale verde claro que lhe cobria os ombros... Em conjunto, com as folhas e as pequenas ondas da enseada, a cena parecia-se quase a uma de Hamlet, em que Molly fosse Ofelia, já morta...

Quando Tim ia estender uma mão para tocar seu corpo, a calma e prática Miss Marple tomou conta da situação e falou-lhe rápida e autoritariamente.

— Não a mova, senhor Kendal — disse. — Ela não deve ser removida.

Tim voltou um rosto espantado para ela.

— Mas... eu preciso... é Molly... Tenho que...

Evelyn Hillingdon lhe pôs uma mão no ombro.

— Está morta, Tim. Eu não a movi do lugar, mas já senti-lhe o pulso.

— Morta? — perguntou Tim, incrédulo. — Morta? Você quer dizer que ela... se afogou?

— Acredito que sim. Parece que sim...

— Mas, por que? — Um grito imenso partiu do rapaz. — Por quê? Molly estava feliz hoje de manhã... Falando sobre o que iríamos fazer amanhã. Por que este desejo terrível de morrer tomou conta dela outra vez? Por que fugiu de meu lado, abandonando nosso bangalô, para morrer afogada aqui? O que era o que lhe inquietava? Por quê não me contou nada?

— Sinto muito, Tim. — disse Evelyn gentilmente. — Não sou capaz de responder suas perguntas...

Interveio Miss Marple.

— Alguém terá que avisar ao doutor Graham. Sim, quanto antes. E outra pessoa terá que encarregar-se de telefonar à Polícia.

— Fala você de telefonar à Polícia? — inquiriu Tim com uma amargo sorriso. — Para que eles vão servir?

— A polícia precisa ser notificada em casos de suicídio — sublinhou Miss Marple.

Tim ficou lentamente em pé.

— Eu irei procurar ao Graham — disse com voz rouca. — Possivelmente... ainda agora... possa fazer alguma coisa.

Encaminhou-se para o hotel.

Evelyn Hillingdon e Miss Marple, uma ao lado da outra naqueles instantes, fixaram os olhos no cadáver da garota.

Evelyn balançou a cabeça, entristecida.

— É tarde demais. Seu corpo está frio. Deve ter morrido faz uma hora, pelo menos. É possível, inclusive, que haja transcorrido mais tempo. Que tragédia! Tão feliz como parecia essa casal! Suponho que ela foi sempre uma moça desequilibrada.

— Não — manifestou Miss Marple. — Ela nunca foi desequilibrada.

Evelyn olhoiu-a com curiosidade.

— O que quer dizer com isso?

A lua tinha desaparecido fazia uns segundos detrás de uma nuvem, apareceu novamente no céu. Brilhou como um raio prateado entre os cabelos esparramados de Molly...

Miss Marple fez uma exclamação de repente. Ela se abaixou, olhando mais de perto, estendeu a mão e tocou a cabeça dourada.. Ao falar com a Evelyn sua voz tinha um tom diferente.

— Eu creio — disse ela — que é melhor nós nos certificarmos...

Evelyn olhou para ela com espanto.

— Mas... a senhora não disse a Tim que não devia tocar em nada...

— Já sei. Agora bem, naqueles instantes a lua não brilhava tanto. Eu não tinha visto...

O dedo dela apontou. Então, com muita delicadeza, tocou os cabelos louros e abriu-os para que as raízes ficassem expostas...

Evelyn, assombrada, lançou uma exclamação:

— Lucky!

Uns segundos depois murmurou como se queria convencer-se a si mesma:

— Não é Molly... a não ser... É Lucky.

Miss Marple fez que sim com a cabeça.

— As duas têm os cabelos loiros, de um matiz dourado quase idêntico; mas, naturalmente, nas raízes dos de Lucky se observava uma zona escura, conseqüência inevitável do... tintura.

— E como é que levava o xale do Molly?

— Gostou desde a primeira vez que o viu. Ouvi-lhe dizer que pensava comprar um igual. Isso é o que fez, provavelmente.

— Assim é, pois, como nos enganamos...

Evelyn calou ao olhar a Miss Marple aos olhos.

— Alguém — sugeriu a última— terá que dizer a seu marido.

Houve uma pausa e Evelyn falou:

— Está certo. Eu irei.

Dando meia volta, pôs-se a andar por entre as palmeiras. Miss Marple permaneceu imóvel uns momentos. Logo voltou a cabeça a um lado repentinamente, inquirindo:

— O que há, coronel Hillingdon?

Edward Hillingdon abandonou o refúgio de umas árvores próximas para colocar-se junto a ela.

— A senhora sabia que eu estava aquí?

— Vi sua sombra projetada no chão — explicou Miss Marple com simplicidade.

Os dois guardaram silêncio.

Logo, ele, mas bem como se falasse consigo mesmo, murmurou:

— Assim, pois, Lucky foi muito longe tentando sua sorte...

— Você, por isso vejo, alegra-se de sua morte, né?

— E lhe surpreende isso? Pois bem, não posso negá-lo. Sim, me alegro de que Lucky tenha morrido.

— A morte é, freqüentemente, uma solução para muitos problemas.

Edward Hillingdon voltou a cabeça lentamente. Miss Marple procurou seus olhos.

— Se está pensando que... — ele deu um passo em direção a ela.

A frase, incompleta, foi pronunciada com o tom de uma ameaça.

Esta respondeu serenamente:

— Dentro de uns segundos sua esposa estará de volta, em companhia do senhor Dyson. O senhor Kendal retornará com o doutor Graham, provavelmente.

Edward Hillingdon pareceu tranqüilizar-se, fixando o olhar no cadáver.

Miss Marple se separou dele sem fazer o menor ruído. Depois acelerou o passo.

Pouco antes de chegar a seu bangalô se deteve. Encontrava-se no mesmo lugar em que dias atrás tinha estado falando com o Major Palgrave, o princípio de todo aquele assunto. Miss Marple lembrou que fora ali que ele procurou em sua carteira, desejoso de lhe mostrar a fotografia de um autêntico assassino...

Recordou que ao levantar a vista tinha observado que a face de Palgrave se tornava vermelha e tensa... “Que feio é!”, tinha chegado a dizer a senhora Caspearo. “Traz consigo o "mau de olho".

O “mau olhado”... Olho... Olho...

 

                       NÉMESIS

Apesar de todos os alarmes e expediçõesda noite anterior, o Sr. Rafiel não se escutara nada...

Continuava profundamente adormecido em sua cama, um ronco fino saindo pelas narinas, quando foi violentamente sacudido pelos ombros.

— Hein?... O quê?... Que diabos está acontecendo?

— Sou eu — disse Miss Marple, pelo menos uma vez saindo da linha. — Eu acho que devia ter sacudido ainda mais forte... Acredito que os gregos possuíam uma palavra reveladora nestas ou parecidas circunstâncias. Era esta: “Némesis”, se não estou enganada.

O Sr. Rafiel ergueu-se nos travesseiros o mais alto que pôde. Olhou para o rosto de Miss Marple parada em frente a ele, ficando sua figura banhada na luz do luar. Com a cabeça coberta com um cachecol muito fofo de lã rosa claro, não se parecia muito com a figura de Nemesis que alguém pudesse imaginar.

— Então você é Némesis? — inquiriu o Sr. Rafiel depois de um curto silêncio.

— Espero sê-lo... com a sua ajuda...

— Será que você se importar de me explicar exatamente por que está dizendo isto assim no meio da noite?

— Penso que é possível que tenhamos que agir rapidamente. Com muita rapidez. Eu fui uma estúpida. Extremamente tola. Devia ter calculado desde o início o que se passou. Era tão simples...

— O que é o que era simples e sobre que você está falando?

— O senhor dormiu demais — respondeu Miss Marple. — Foi achado um cadáver. Primeiro acreditei que era o do Molly Kendal... Enganei-me... Era a Lucky Dyson, afogada na praia.

— Lucky, hein? — disse o Sr. Rafiel. —E afogada? Na praia? Ela se afogou sozinha ou foi alguém que a afogou?

— Alguém a afogou — disse Miss Marple.

— Já entendi. Bom, isso acredito eu. Foi isto que quis dizer que era simples, não é? Greg Dyson foi sempre a nossa primeira possibilidade e era ele mesmo. É isto? É isto o que está pensando ? E o que você teme agora é que escape ao castigo?

Miss Marple suspirou.

— Terá que confiar em mim, Sr. Rafiel. Temos que impedir que seja cometido outro crime.

— Eu pensei que tivesse dito que outro crime foi cometido.

— Este crime foi cometido por engano. Outro crime vai ser cometido a qualquer instante. Não há tempo que perder. Precisamos evitar que isto aconteça. Precisamos ir imediatamente.

— É muito fácil falar assim — respondeu o Sr. Rafiel. — Nós, você disse? E o que acha que eu posso fazer? Não sou nem capaz de andar por mim mesmo! O que você acredita que poderíamos tentar os dois? Você está perto dos cem anos e eu sou uma ruína estropiada!

— Pensava no Jackson — explicou Miss Marple . — Jackson fará o que você mandar, não?

— É claro que fará. — disse o Sr. Rafiel, — especialmente se eu sugirir que não vai perder seu tempo. É isso o que você deseja?

— Sim. Diga-lhe que me acompanhe e diga-lhe que terá que me obedecer cegamente.

O Sr. Rafiel refletiu uns instantes. Logo, respondeu:

— Concedido. Parece-me que me exponho a correr certos riscos. Bem. Não será a primeira vez... — o Sr. Rafiel levantou a voz: — Jackson! — ao mesmo tempo apertou a campainha que tinha junto a suas mãos.

Em poucos segundos Jackson abriu a porta de comunicação do quarto ao lado.

— O senhor tocou a campainha? Há algo errado?

O jovem parou ao ver Miss Marple, com um gesto inquisitivo.

— Agora ouça, Jackson, você vai fazer o que eu mandar. Terá que acompanhar a Miss Marple, esta dama aqui presente. Vá aonde lhe mandar e fará exatamente o que ela disser. Terá que obedecê-la em tudo, compreendido?

— Eu...

— Compreendeu ?

— Sim, senhor.

— E fazendo isto — disse o Sr. Rafiel — você não sairá perdendo. Saberei recompensá-lo.

— Obrigado, senhor.

— Venha, senhor Jackson — disse Miss Marple. Esta se voltou para o Sr. Rafiel. — Avisaremos à senhora Walters pelo caminho que venha aqui. Ela tirará o senhor da cama para ir lá.

— Que me leve..., aonde?

— Para o bangalô dos Kendals — respondeu Miss Marple. — Eu acho que Molly logo estará de volta.

 

Molly veio caminhando pela alameda que vinha da praia. Seus olhos estavam fixos à frente. Ocasionalmente, sob sua respiração, ela dava um pequeno soluço...

Subiu os degraus do terraço do seu bangalô, detendo uns instantes. Logo abriu uma porta e entrou para o quarto. As luzes estavam acesas no quarto, mas ali dentro não viu ninguém. Molly se aproximou da cama, sentando-se. Assim permaneceu vários minutos. Às vezes passava uma das mão pela testa e franzindo-a.

Então depois de olhar cautelosamente a seu redor, enfiou a mão sob o colchão, tirou de lá o livro que estava escondido. Abriu-o, passando umas páginas, até dar com o que ela queria.

Neste instante voltou a cabeça ao ouvir o ruído de passos de alguém que se aproximava correndo. Com um rápido movimento ocultou o livro atrás dela.

Tim Kendal, ofegante, entrou, dando um profundo suspiro de alívio ao vê-la.

— Graças a Deus, Molly! Onde estava? Procurei-te por todas partes.

— Fui até a enseada.

— Você foi... ? — ele parou.

— Sim. Eu fui até a enseada. Mas eu não pude ficar ali... Era-me impossível. Havia alguém dentro dágua... e ela estava morta.

— Quer dizer que... Sabe? Pensei no primeiro momento que foi você. Acabei de saber que aquele era o cadáver do Lucky.

— Eu não a matei. Seriamente, Tim. Estou segura de não havê-la matado. Eu quero dizer... eu me lembraria se houvesse matado, não é?

Tim se sentou lentamente na parte inferior do leito.

— Você não a matou?... Está segura de que...? Não, não, é claro que não a matou! — Kendal tinha levantado a voz levemente. — Pare de pensar essas coisas, Molly. Lucky se afogou sozinha. Ninguém é culpado disso. Hillingdon não queria mais saber dela, ela foi para a praia e enfiou a cabeça dentro d’água...

— Lucky não faria isto nunca, jamais! Ela nunca faria uma coisa destas. Mas... é certo que eu não a matei. Juro que não a matei.

— Mas, querida, naturalmente que não a matou!

Tim tentou abraçar ao Molly, mas esta se afastou dele.

— Eu odeio este lugar. Devia ser apenas como a luz do sol. Parecia tão ensolarado. Entretanto... Não é. Pelo contrário, parece haver uma sombra... uma imensa sombra negra... E eu me encontro dentro dela... Não consigo sair...

A voz dela alteara-se histericamente.

— Cale-se, Molly! Silêncio, pelo amor de Deus, cale-se!

Ele foi até o banheiro e voltou com um copo na mão.

— Vamos, beba isto. Vai acalmá-la.

— Não... Não posso beber nada. Meus dentes estão batendo...

— Pode sim, minha querida. Sente-se. Aqui, na cama — Tim passou um braço ao redor de os ombros do Molly, lhe aproximando o copo aos lábios. — Vamos, já está melhor. Agora... beba isso.

Alguém falou junto à porta.

— Entre já, Jackson — disse miss Marple. — Pegue aquele copo que ele tem na mão e segure-o com firmeza. Tenha cuidado. Ele é um homem muito forte e é possível que se sinta desesperado.

Havia certos pontos a favor de Jackson. Era um homem treinado, acostumado a obedecer ordens. E logo... era um homem que gostava muito de dinheiro e seu senhor lhe tinha prometido uma esplêndida recompensa. O Sr. Rafiel era um homem de grande posição, que podia permitir-se certos luxos. De outro lado, Jackson era um tipo musculoso, que se mantinha em forma graças à freqüente exercício.

Rápido como um relâmpago atravessou o quarto. Com uma das mãos segurou o copo que Tim tinha aproximado dos lábios do Molly e com o braço livre apertou fortemente ao marido desta. Um rápido torcer de pulso e o copo ficou definitivamente em seu poder. Tim se voltou-se selvagemente para ele, mas Jackson não se arredou por isso, segurou-o com firmeza.

— Que diabos... solte-me? Largue-me! Você ficou louco? O que está fazendo?

Tim, retido agora pelo Jackson, debateu-se violentamente entre os braços dele.

— Não lhe solte, Jackson — disse Miss Marple.

— O que está acontecendo? O que está ocorrendo aqui?

O Sr. Rafiel entrou no quarto, apoiando-se na Esther Walters.

— O senhor ainda pergunta o que está acontecendo? — gritou Tim. — O seu empregado ficou louco, maluco, doido varrido, é isto que aconteceu. Diga-lhe que me solte.

— Não, não, nada disso — disse Miss Marple.

O Sr. Rafiel se voltou para ela.

— Fale, Némesis — disse-lhe. — Vamos, por amor de Deus, explique-se.

— Eu fui uma estúpida, uma tola — manifestou Miss Marple. — Mas agora não mais o serei. Quando o conteúdo deste copo que ele estava tentando fazer sua esposa beber for analisado, eu aposto... sim, a minha alma imortal, que encontrarão dentro uma dose mortal de narcótico. Foi a mesma seqüência, lembre-se, a mesma seqüência da história do Major Palgrave. Uma esposa, profundamente deprimida, que tenta suicidar-se, sendo salva a tempo por seu marido. Mas na segunda vez ela consegue... Sim, é a mesma história, não falha... O Major Palgrave me contou sua história e a seguir tirou de sua carteira uma fotografia... Então levantou a vista, descobrindo...

— Ao olhar por cima de seu ombro direito... — apontou o Sr. Rafiel.

— Não — disse Miss Marple, movendo a cabeça-. Ao olhar por em cima de meu ombro direito não viu nada.

— O que está você dizendo? Não me contou que...?

— O que eu lhe contei estava totalmente errado. É inacreditável como fui uma estúpida! O Major Palgrave parecia estar olhando fixamente algo por cima de meu ombro direito, reparando mesmo em qualquer coisa... Agora bem, não pôde ver nada porque olhava em tal direção com seu olho esquerdo e seu olho esquerdo era de vidro.

— Eu me lembro agora... Sim. O Major Palgrave tinha um olho de vidro — declarou o Sr. Rafiel. — Me tinha esquecido desse detalhe... Você quer dizer que ele não podia ter visto nada?...

— Com seu olho de vidro, não, naturalmente. Com o outro, com o direito, sim, certamente, que podia ver. E desta forma, o senhor está vendo, ele devia estar olhando algo ou para alguém que estivesse não a minha direita, mas a minha esquerda.

— Você tinha visto alguém a sua esquerda?

— Sim — respondeu Miss Marple. — Tim Kendal e sua esposa se achavam sentados não muito longe de nós, frente a uma mesinha que ficava junto a um grande hibisco. Estavam concentrado em seu trabalho, repassando conforme acredito umas contas. No momento em que o Major Palgrave levantou a vista, seu olho esquerdo, o de cristal, olhava por cima de meu ombro, inutilmente, claro está. Em mudança, com o outro olho Palgrave viu foi um homem sentado ao lado de uma moita de hibisco. Sua face era a mesma, com a variação lógica, imposta pelos anos, que a de sua fotografia, na vizinhança de um hibisco, também, por certo. Tim Kendal tinha ouvido a história contada pelo Major Palgrave, dando-se conta de que este tinha-lhe reconhecido. É obvio, tinha que lhe matar. Mais tarde se viu obrigado a assassinar a Vitória Johnson porque esta lhe havia visto colocar um vidro de pílulas no bangalô do Palgrave. A moça, de momento, não fez caso daquilo. Em determinadas circunstâncias nada de particular havia em que Tim Kendal entrasse nos bangalôs cedidos a suas hóspedes. Podia ter entrado para deixar algo que o ocupante do bangalô tivesse esquecido no restaurante. Não obstante, Vitória Johnson pensou mais adiante naquilo, decidiu-se fazer algumas perguntas ao Kendal. Este compreendeu então que não tinha mais remédio que desfazer-se dela. Mas o crime principal, que tinha planejado, não era este... Achamo-nos ante um assassino de suas sucessivas esposas... como o senhor está vendo.

— Que cretinice é esta que está dizendo...? — gritou Tim Kendal, sem chegar a terminar a frase.

De repente se ouviu um grito, um grito selvagem de raiva. Esther Walters se desprendeu inesperadamente do Sr. Rafiel, quase jogando-o ao chão e atravessou o quarto correndo. Esther deu vários puxões inutilmente em Jackson.

— Largue-o... Largue-o! Isso não é verdade. Nada do que se disse aqui é verdade. Tim... Tim, querido, me diga, diga-lhes que não é certo. Você não é capaz de matar a ninguém. Sei muito bem. Essa horrível mulher com quem se casou tem a culpa de tudo. Ela andou contando mentiras a seu respeito. Ela mentiu, sim... Nada do que foi dito é verdade. Eu acredito em você. Eu o amo e confio em você. Jamais poderei acreditar em nenhuma das mentiras que contaram. Eu vou...

Tim Kendal acabou perdendo o controle de si mesmo...

— Pelo amor de Deus, maldita cadela ordinária! — gritou ele. —Quer calar de uma vez? Está ouvindo... não pode fechar o bico? Quer por acaso que me enforquem? Fecha o bico, eu já lhe disse! Fecha esta boca imunda, sua cadela!

— Pobre criatura tola! — exclamou o Sr. Rafiel, em voz baixa. — Então era isto o que andava ocultando, né?

 

               A MISS MARPLE USA A SUA IMAGINAÇÃO

— Então foi isto que aconteceu? — prguntou o Sr. Rafiel.

Miss Marple e ele tinham começado a conversar em tom confidencial.

— Esther Walters, portanto, tinha um caso com o Tim Kendal...

— Dificilmente poder-se-ia chamar de caso. — disse Miss Marple, muito formal. — Eu acredito que tal relação era de tipo romântico, com a perspectiva do futuro casamento.

— O quê?... Depois que a mulher dele morresse?

— Eu não creio que a pobre Esther Walters soubesse que Molly estivesse condenada a morrer — manifestou Miss Marple. — Eu imagino que ela tenha acreditado na história que Tim Kendal lhe contou de que Molly estava apaixonada por outro homem e que este homem a seguira até aqui, e que ela pensasse que Tim Kendal ia requerer um divórcio. Tudo seria muito direito e respeitável, na aparência. Mas ela estava mesmo profundamente apaixonada por ele.

— Bem, isto eu entendo facilmente. Ele era um camarada atraente. Mas por que ele se interessou por ela.. será que voce também sabe como foi?

— O senhor sabe, não é? — manifestou Miss Marple.

— Eu me atreveria a afirmar que tenho uma ligeira idéia com respeito a esse ponto. Mas não sei como foi que você pôde saber. Até onde eu saiba, não vejo como Tim Kendal descobriu a verdade.

— Bem, eu acho que com um pouquinho de imaginação eu poderia explicar tudo, mas acho mais fácil se o senhor me contar.

— Eu não vou contar-lhe nada — declarou o Sr. Rafiel. — Você é que vai me contar, já que é tão esperta.

— Bem, parece-me muito possível — disse Miss Marple, — e para isto eu já lhe chamara a atenção, que o seu Jackson tivesse o hábito de dar umas boas olhada em seus papéis de tempos em tempos.

— Perfeitamente possível. — disse o Sr. Rafiel — mas eu sempre cuidei de que nada do que ele espionasse fosse de alguma serventia. Eu sempre cuidei disto.

— Imagino — disse Miss Marple — que esse homem chegou a ler seu testamento.

— Pois, eu entendo... Sim. Levo comigo sempre uma cópia dele entre os papéis.

— O senhor me disse — disse Miss Marple, — o senhor me falou... (como eu diria com todos os ffs e rrs) que não deixava nada para Esther Walters em seu testamento. O senhor comunicara isto a ela e ao Jackson. Era verdade no caso de Jackson, eu imagino. O senhor não deixaria nada para ele, mas deixaria dinheiro para Esther Walters, se bem que não quisesse que ela tivesse a menor indicação deste fato. Estou certa?

— Sim, você está certa, mas eu ainda não sei como foi que descobriu.

— Bem, foi pela maneira com que o senhor insistiu muito nesse fato — disse Miss Marple. — Eu tenho uma certa experiência em descobrir quando as pessoas contam mentiras.

— Eu dou a mão à palmatória — disse o Sr. Rafiel. — Muito bem. Eu deixei cinqüenta mil libras esterlinas para Esther. Chegaria como uma agradável surpresa para ela depois da minha morte. Calculo que, sabendo disto, Tim Kendal resolveu eliminar a sua esposa atual com uma forte dose de qualquer coisa para casar-se logo com o Esther Walters e seu dinheiro. Provavelmente, planejava desfazer-se dela também ao seu devido tempo. Bom, mas, como foi que ele soube que ela ia herdar 50.000 libras?

— Jackson contou a ele, é obvio — respondeu Miss Marple. — Eles eram muito amigos, lembre-se. Tim Kendal agradava muito Jackson, eu imagino, no início sem nenhum outro motivo. Mas entre os mexericos que Jackson deixava escapar, eu creio que ele deve ter dito que, sem que ela própria soubesse do fato, que Esther Walters ia herdar uma forte soma de dinheiro. Talvez ele próprio tenha dito que gostaria de namorá-la para comvencê-la a casar-se com ele, mas que não tinha conseguido nada. Sim, eu acho que foi isto que aconteceu.

— As coisas que você imagina são sempre verdadeiramente plausíveis — declarou o Sr. Rafiel.

— Mas eu fui uma estúpida — objetou Miss Marple. — Todas as peças encaixavam perfeitamente em nosso quebra-cabeças. Tim Kendal era um homem tão inteligente como perverso. Foi muito vivo ao espalhar aqueles boatos. Mais da metade das coisas que eu soube vieram por intermédio dele originalmente. Havia as histórias circulando a respeito de Molly ter querido casar com um jovem indesejável, mas eu sou capaz de jurar que o tal rapaz indesejável era na verdade o próprio Tim Kendal, com outro nome, naturalmente. A familia dela ouvira alguma coisa sobre o passado obscuro deles. Então representou aquela cena de indignação, recusando-se a ser “mostrado” aos dela e planejou... junto com ela... um pequeno esquema, que ambos acharam muito engraçado. Ela fingiria ficar muito emburrada econtinuar com ele. Neste momento, Tim Kendal apareceria, recomendado pelos nomes de vários amigos velhos da família de Molly e seria acolhido de braços abertos por ter sido o homem que pusera de lado de seu coração o delinqüente por quem ela estava apaixonada anteriormente. Eu imagino que ele e Molly devem ter rido um bocado deste plano. De qualquer jeito, casou-se com ela e com o dinheiro dela compraram os direitos do casal que cuidava deste hotel e vieram para cá. Eu penso que ele deve ter acabado com o dinheiro muito depressa. Então apareceu Esther Walters e ele viu a excelente oportunidade de ganhar mais dinheiro.

— E por que foi que não acabou logo comigo? — perguntou o Sr. Rafiel.

Miss Marple tossiu levemente.

— Sem dúvida queria em primeiro lugar estar seguro dos sentimento da senhora Walters. Além disso... Bom, quero dizer que...

Miss Marple, sobressaltada, guardou silêncio.

— Além disso... compreendeu que não teria que esperar muito tempo, não é isso? — inquiriu o Sr. Rafiel. — E, claro, sempre seria melhor que eu morresse de morte natural. Minha fortuna era um grave inconveniente. Muito freqüentemente, quando falece um milionário, se levam a cabo investigações especiais...

— É verdade, o senhor está certo — disse Miss Marple. — Veja a quantidade de mentiras que esse homem andou espalhando. Veja as mentiras em que obrigou a propria Molly a acreditar... pondo aquele livro sobre distúrbios mentais ao alcance dela. Dando-lhe, por outro lado, drogas que produziram na jovem alucinações e pesadelos. Você tem que saber que Jackson entendia disso. Acredito que, tendo estudado os sintomas do Molly, chegou à conclusão de que eram provocados pelo uso de determinadas drogas. Por este motivo entrou no bangalô, para dar uma espiada nos potes que haviam banheiro. Examinou o creme facial. Pensou em certos contos, nos que aludia-se às bruxas que acostumavam untavam-se com substâncias do tipo da beladona. A beladona, formando parte de um creme para o rosto, pôde ter produzido alguns dos estranhos efeitos sofridos pelo Molly, pois esta esquecia facilmente as coisas. Em ocasiões sonhava que flutuava no ar. Não é de admirar que a pobre moça chegasse a ficar com terríveis temores. Apresentava todos os sinais exteriores de uma doente mental. Jackson seguia uma pista segura. Talvez ele tenha-se lembrado ao ouvir as histórias do Major Palgrave sobre as mulheres indianas que davam datura para governar a seus maridos.

— O Major Palgrave! — perguntou o Sr. Rafiel. — A verdade é que...

— Ele causou o seu próprio assassinato, — disse Miss Marple. — E assim como a da pobre Vitória Johnson... E faltou bem pouco para que Molly desaparecesse também, envenenada. Tudo porque tinha identificado a um assassino.

— O que foi que a fez lembrar-se inesperadamente de seu olho de vidro? — quis saber o Sr. Rafiel, curioso.

— Algo que a senhora De Caspearo dissera. Ela falou umas bobagens sobre a feiúra dele e disse que ele tinha um mau olhado. Eu disse a ela que Palgrave não tinha a culpa de ter um olho de vidro, e ela manifestou então que seus olhos olhavam em direções diferentes, que eram vesgos... o que, é lógico, eram mesmo. Acrescentou que isso atraía a má sorte. Eu estava... eu estava convencida de ter ouvido algo aquele dia de grande importância. Ontem à noite, pouco depois de ter sido descoberto o cadáver do Lucky, eu me lembrei do que era! Então compreendi que não havia tempo a perder...

— Por que Tim Kendal se enganou, matando a Lucky?

— Isso foi obra da casualidade. Eu penso que o plano dele era este: tendo convencido a todos... e ele calculava que até à prórpria Molly... de que sua mulher era uma desequilibrada, e após ter-lhe feito tomar uma forte dose da droga que ele vinha usando, disse a ela que ia resolver todos estes crimes que tinham acontecido. Mas ela precisaria ajudá-lo. Depois que todos tivessem ido dormir, eles sairiam separadamente, e se encontrariam num lugar marcado à beira da praia.

— Ele disse que tinha uma boa idéia de quem era o assassino, e que eles iriam fazê-lo cair numa cilada. Molly foi para lá obedientemente... mas ela estava confusa e entorpecida pela droga que tomara, o que a fez andar muito devagar. Tim foi o primeiro em chegar ao ponto marcado, no que viu uma mulher que tomou pela Molly. Seus cabelos eram também loiros e usava, do mesmo modo, um xale verde claro jogado sobre os ombros... Chegou cautelosamente pelas costas, tampou-lhe a boca com uma mão e empurrou a sua cabeça para dentro d’água, mantendo assim a sua vítima durante um bom momento...

— É terrível, né? Mas não teria sido mais rápido e seguro para ter dado para sua esposa outra dose elevada de narcótico?

— Muito mais fácil, é claro. Mas isto talvez levantasse uma certa suspeita. Todos os narcóticos e sedativostinham sido cuidadosamente postos fora do alcance de Molly, lembre-se. E se tivesse conseguido pôr as mãos num suprimento novo, quem senão o marido poderia haver-lhe fornecido? Mas, se ela num momento de desespero, saísse e se afogasse, enquanto seu inocente marido dormia, tudo teria parecido uma tragédia romântica. Ninguém iria sugerir que ela fora deliberadamente afogada e que sua morte tinha sido obra do Tim Kendal. Além disso — acrescentou Miss Marple —os assassinos sempre acham difícil fazer as coisas pelo lado mais simples. Freqüentemente estes sentem prazer em seguir complicados roteiros, os quais são, freqüentemente também, sua perdição.

— Você, Miss Marple, parece estar convencida de que sabe de tudo acerca de assassinos! Então você acredita que Tim Kendal não se deu conta de seu engano ao matar ao Lucky, verdade?

Miss Marple moveu a cabeça.

— Nem sequer se incomodou em dar uma olhada no seu rosto. Afastou-se dela imediatamente... Deixou passar uma hora e começou a organizar as buscas de sua esposa, representando o papel de um homem atormentado pela dor.

— Mas, que diabos fazia Lucky na praia assim a altas horas da noite?

Miss Marple deixou ouvir uma discreta tossinha.

— É possível, a meu entender, que ela estivesse... bem... que estivesse esperando encontrar-se com alguém...

— Ao Edward Hillingdon?

— OH, não! — disse Miss Marple — Sua relação com ele já era uma coisa do passado. Eu estimo... eu admito a possibilidade de que estivesse esperando por Jackson.

— Ao Jackson?

— Eu prestei atenção a ela quando... mais de uma ocasião vi Lucky lhe observando atentamente... olhou para ele uma ou duas vezes... — murmurou ela, desviando os olhos.

Dos lábios do Sr. Rafiel escapou um assobio.

— Meu conquistador Jackson! Eu não me admiro! Bom, Miss Marple. Tim deve ter experimentado um tremendo choque ao descobrir seu engano.

— Sim, é claro.... Deve ter-se sentido quase desesperado. Eis Molly viva e andando por aí... E a história que ele tinha posto em circulação cuidadosamente sobre as condições mentais dela não se confirmariam nem por um segundo, quando caísse nas mãos de especialistas competentes. E uma vez que ela contasse a história de ele ter pedido que se juntasse com ele de noite, a hora tão avançada, à beira do rio, em que situação ficaria Tim Kendal? Só cabia uma solução: terminar com o Molly o mais rapidamente possível. Havia muitas probabilidades de que as pessoas acreditassem que Molly, em um arrebatamento de loucura, tinha matado a Lucky, e que então horrorizada pelo que fizera, acabasse com a própria vida.

— E foi por isto, então que você decidiu representar o papel de Némesis, né? — perguntou o Sr. Rafiel.

De repente, ele se recostou para trás e desatou uma gargalhada ruidosa.

— Foi uma bela piada! — disse ele. — Se você soubesse como estava naquela noite, de pé, muito erguida, com a cabeça toda enrolada num cachecol de lã cor-de-rosa todo fofinho, assegurando formalmente que era você a própria Némesis... Eu não vou esquecer-me nunca!

 

Tinha chegado o momento de partir. No aeroporto Miss Marple aguardava o instante de subir a seu avião. Uma porção de pessoas foram acompanhá-la. Os Hillingdon já tinham ido embora. Gregory Dyson saíra de avião para uma das outra ilhas e já corria boatos de que ele já estava-se dedicando quase todo seu tempo a cortejar a uma viúva argentina. A senhora De Caspearo já retornara à América do Sul.

Molly tinha ido ao aeroporto despedir-se de Miss Marple. A jovem parecia mais magra e pálida mas já se recompusera do choque e das descobertas com bravura e com auxílio de um dos encarregados dos negócios do Sr. Rafiel — ao qual ele telegrafara para vir de Londres — e continuava cuidando do funcionamento do hotel.

— Procure manter-se em todo momento ocupada — havia aconselhado o Sr. Rafiel a jovem. — Não pense em nada. Aqui você tem um bom negócio em perspectiva.

— O senhor não acha que esses crimes...?

— As pessoas adoram crimes quando eles já estão solucionados — assegurou-lhe o Sr. Rafiel. — Continue, menina, e não desanime. Não vá desconfiar de todos os homens só porque encontrou um que não prestava.

— O senhor fala como miss Marple, — disse Molly; — ela está sempre dizendo que o Príncipe Encantado chegará qualquer dia destes.

O Sr. Rafiel riu-se com aquela observação. Assim Molly estava lá, os dois Prescott e o Sr. Rafiel, é lógico, e Esther — uma Esther que parecia muito mais velha e entristecida e para quem o Sr. Rafiel era muitas vezes inesperadamente gentil. Jackson também estava presente, fingindo que cuidava das bagagens de Miss Marple. Ele era todo sorrisos estes dias o que deixava todos sabendo que recebera uma bonita soma de dinheiro.

Surgiu um zumbido no céu. Chegava o avião de Miss Marple. Aquele não era o aeroporto londrino. No momento de separar-se de seus amigos, Miss Marple não teria mais que abandonar o pavilhão coberto de pequenas flores em que se encontrava para dirigir-se à pista...

— Adeus, querida Miss Marple — disse Molly, beijando-a.

— Adeus. Aguardamos sua visita — murmurou emocionada a senhorita Prescott, estreitando carinhosamente as mãos de Miss Marple.

— Foi um prazer para nós conhecê-la — manifestou o Reverendo. — .Repito o convite de minha irmã, de todo coração.

— Que você tenha boa viagem — desejou-lhe Jackson. — E, lembre-se de que, se algum dia precisar sessão de massagem, basta mandar um recado e eu marcarei uma hora e as farei de graça.

Somente Esther Walters ficou um pouco de lado quando chegou a hora das despedidas. Miss Marple não quis forçá-la. Por último, veio o Sr. Rafiel e tomou-lhe as mãos.

 

— Ave Caesar, nos morituri te salutamos — lhe disse.¹

— Meus conhecimentos de latim são muito superficiais — respondeu Miss Marple.

— Mas entendeu o que eu disse, verdade?

— Sim.

Miss Marple guardou silêncio um momento. Sabia perfeitamente o que ele tinha querido significar com aquelas palavras.

— Foi para mim um grande prazer lhe conhecer — murmurou depois.

A seguir pôs-se a andar. Uns segundos atravessou o pátio até a pista e entrou no interior do avião.

 

N.T. – Salve César, os que vão morrer te saúdam – Era a saudação feita pelos gladiadores romanos a César, quando entravam na arena.

 

                                                                                Agatha Chrstie  

 

                      

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