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MITOS & LENDAS AFRICANAS
MITOS & LENDAS AFRICANAS

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

MITOS & LENDAS AFRICANAS

 

O DESAFIO E O MENSAGEIRO

Segundo os mitos de alguns povos nigerianos, Olodumare é o deus supremo. O seu nome significa «majestade poderosa e eterna». Mas, segundo reza um mito dos lorubas, houve tempos em que Olokum, o deus da água, quis esse título para si.

 

- Estou farto de fazer a vontade a Olodumare - queixou-se

 

 Olokum um dia, enquanto passeava ao longo das margens do rio que tinha o seu nome, na companhia do seu servo humano. - Não serei eu um dos deuses mais amados e venerados? Não é o meu rio que enche os oceanos do mundo e mata a sede a todas as plantas, animais e humanos?

 

- Oh, sem dúvida, poderoso Olokum - respondeu o servo.

 

O deus e o seu servo detiveram-se e olharam para o outro lado do rio

 

- também conhecido por Etíope - onde ficava a terra das almas. Era ali que as almas dos mortos iam repousar e as dos bebés por nascer iniciavam a sua jornada até ao mundo.

 

- Não serei eu o dador da vida? - perguntou Olokum.

 

Nesse momento, a alma de uma criança prestes a nascer numa aldeia próxima atravessou o rio e parou em frente do deus da água. Este abençoou a alma com palavras secretas e sagradas e fê-la seguir viagem cheia de esperança pela nova vida que estava prestes a iniciar.

 

- Vós sois o deus mais amado e respeitado de todos - declarou o servo, fazendo-lhe uma vénia. - Os vossos templos são os mais coloridos. Enchem-nos os tecidos mais ricos e as estátuas mais belas. Muitas casas têm santuários dedicados a vós e todos os dias vos rezam.

 

- Basta! - exclamou Olokum. - Tudo o que dizes é verdade, mas

Olodumare é o mais venerado. Continua a ser o deus supremo... dono e senhor de todos nós!

 

Olokum regressou ao seu palácio sob as águas, pensando numa maneira de retirar a supremacia a Olodumare. Olokum era um deus bom e compreensivo. Normalmente mostrava-se sábio e generoso e recorria aos seus poderes sem prejudicar os humanos, mas a única coisa que alterava o seu belo rosto com uma expressão de raiva era a posição respeitada que Olodumare ocupava.

 

O palácio submerso em que Olokum vivia era verdadeiramente espectacular: enchiam-no objectos de regalar a vista e que proporcionavam muito prazer. Era um lugar mágico e tinha no seu interior um cofre de tesouros cheio de oferendas para dar à humanidade. O cofre já não estava tão cheio como em tempos, pois Olokum já dera muitos presentes às pessoas.

 

- O que foi que Olodumare alguma vez fez pela humanidade além de controlar a vida das pessoas? - perguntou Olokum com um suspiro. Vidas que eu ajudo a tornar suportáveis e até bonitas. Não sou eu quem torna as mulheres belas? Não sou eu quem dá aos humanos os filhos por que anseiam e a boa sorte que merecem?

 

Nesse instante, o som de belos cânticos encheu os corredores e uma fila de bailarinas apareceu diante do deus.

 

- O que é que Olodumare pode oferecer e eu não?

 

- Que eu me lembre, pouca coisa - retorquiu o servo.

 

- Pouca coisa? - admirou-se Olokum.

 

- Quero dizer, nada - apressou-se o servo a acrescentar. - Não me lembro de nada.

 

- Nesse caso, desafiarei Olodumare a provar a sua supremacia perante mim. Veremos quem tem mais direito a ser o deus dos deuses! - exclamou Olokum que, tomada a decisão, se recostou, para desfrutar do resto da dança.

 

Assim, Olokum mandou o seu servo entregar uma mensagem ao deus supremo Olodumare, ordem à qual ele obedeceu, temeroso. Ao chegar diante do deus, o servo de Olokum tremeu.

 

- O que te fez vir até aqui? - perguntou Olodumare. - Porque mostras tanto medo de mim?

 

- Sabeis porquê, poderoso Senhor dos Céus - respondeu o servo.

 

- Sei? - admirou-se Olodumare, inclinando-se no seu enorme trono.

 

- Vós tudo sabeis e tudo escutais - adiantou o servo.

 

- Mesmo assim, diz-me ao que vieste - disse o deus supremo.

 

- Olokum, meu senhor, desafia-vos a disputar o lugar de majestade poderosa e eterna - respondeu o servo, sentindo a boca secar-se-lhe de pavor.

 

- Achas que ele será bem sucedido no seu repto? - quis saber Olodumare, sorrindo.

 

- Não me compete dizer - respondeu o servo, de olhos fixos no chão.

 

- Aí está uma resposta sábia - observou o deus. - Admiro a tua lealdade a Olokum, mas será que não vês que o teu senhor está condenado ao fracasso?

 

- Deve achar que não será assim - retorquiu o servo.

 

- Quanta falta de modéstia da parte dele - riu-se Olodumare. Normalmente, Olokum é um deus ponderado. Deve realmente desejar o meu lugar... Diz-lhe que aceito o seu desafio.

 

- Aceitais, Criador? - gaguejou o servo de Olokum, espantado. Olokum pode vir aqui desafiar-vos?

 

Olodumare pôs-se, lentamente, de pé.

 

- Será que foi isso o que eu disse? - Sorriu. - Apenas respondi que aceitava o seu desafio, nada mais. Como é evidente, ando demasiado ocupado para aceitar o desafio de Olokum pessoalmente. Tenho assuntos mais importantes com que ocupar o tempo do que meter deuses invejosos no seu devido lugar... Diz ao teu senhor que mandarei um emissário responder ao seu desafio. - «Não lhe vai agradar nada», pensou o servo. - Terá de se contentar com isso - observou o deus supremo, lendo os pensamentos do servo. - Olokum deverá tratar o emissário com o mesmo respeito que eu próprio receberia. Agora vai e diz ao teu senhor que se prepare para receber a chegada do meu emissário.

 

- Um emissário! - indignou-se Olokum ao saber da resposta. - Então eu desafio Olodumare pelo direito a ocupar o seu lugar, e ele, em vez de vir pessoalmente, manda um emissário?

 

- Um emissário importante - esclareceu o servo. - Tão importante que vos pede que o trateis com o mesmo respeito como se fosse ele.

 

- Muito bem - declarou Olokum. - Olodumare envelheceu. Como

sabe que o venceria em qualquer desafio, não tem coragem de me enfrentar. O servo achou mais cauteloso não fazer qualquer observação.

 

- Só me resta aguardar - disse Olokum. Bateu as palmas. - Quero música e dança! - ordenou.

 

De repente, gerou-se grande movimentação no palácio subaquático e foram informar Olokum de que o emissário chegara.

 

- Já cá está? - admirou-se Olokum perante o seu servo. - Primeiro vou mudar de roupa e depois recebê-lo-ei.

 

O servo pediu então ao emissário que se sentasse e esperasse por Olokum.

 

O seu senhor fez uma entrada triunfal, com as suas vestes a rodopiarem e a rasgarem o ar em seu torno como se fossem ondas do mar que ficava por cima. Quem poderia ficar indiferente a vestimentas tão sumptuosas?

 

Ao ver o emissário que, delicadamente, se levantara aquando da sua entrada, Olokum ficou de boca aberta. Então não era que ele envergava as mesmas vestes que ele próprio! E Olokum, que pusera vestes sumptuosas para mostrar como era importante, reparava que, afinal, aquele humilde emissário trajava da mesma maneira!

 

- Perdoai-me, pois devo ir tirar estes andrajos miseráveis - disse Olokum. Saiu da sala e correu ao seu quarto em busca de roupa ainda mais rica.

 

Trajando vestes de tecidos requintados e coloridos, Olokum voltou para junto do emissário. Ao caminhar, garboso, pelo palácio, não houve servo, dançarino ou cantor que não ficasse pasmado diante da beleza do seu vestuário. Nunca tinham visto o seu senhor tão magnífico... Mas, ainda outra vez, a roupa do emissário era igual à dele!

 

Olokum, a espumar de raiva mas sem querer dar o braço a torcer, dirigiu-se ao emissário de Olodumare pela segunda vez.

 

- Perdoai-me - disse. - Pareceu-me detectar uma nódoa nesta minha

modesta veste. Irei mudar-me mais uma vez, para depois vir para junto de vós.

 

Mal controlando a sua cólera, regressou apressadamente aos seus aposentos, onde envergou os trajos mais belos que possuía, os mesmos que tencionara vestir quando derrotasse Olodumare e assumisse o título de deus supremo.

 

Emissário algum poderia, sequer, sonhar com a existência de trajos tão belos. O de Olodumare ficaria, sem dúvida, assombrado...

 

Olokum, porém, enganava-se. Quando voltou à sala, as roupas do emissário igualavam a sumptuosidade das de Olokum. Este sentiu-se desanimado e derrotado. Que esperança poderia ter em derrotar o próprio Olodumare quando o seu emissário era capaz de se antecipar a qualquer jogada sua?

 

De repente, Olokum deu-se conta de quão tolo fora. Porque não contentar-se em ser o mais amado e respeitado dos deuses? Ele trazia crianças e beleza ao mundo. Não precisava de ser o deus mais venerado, nem o mais poderoso.

 

Pousou a sua mão sobre o ombro do emissário.

 

- Ide e dizei a Olodumare que aprendi a lição - declarou calmamente. Contai-lhe que me haveis derrotado ainda antes de o desafio ser iniciado.

 

O emissário de Olodumare, sem proferir uma palavra sequer, abandonou o palácio debaixo do mar e regressou aos céus.

 

Olokum nunca o soube, mas foi enganado pela própria Natureza. O emissário era um camaleão - um animal capaz de mudar a cor e a aparência da sua pele de acordo com o que o rodeia. Matizara-se de acordo com as vestes de Olokum, igualando cada um dos trajos com que este aparecia.

 

A BATALHA CONTRA A MORTE

No Sul da África, a chuva pode significar a vida ou a morte. Sem ela, as plantações secam e morrem, deixando as pessoas com pouca ou nenhuma comida. Esta história, que se baseia num mito do povo Kói, fala da luta que um homem travou para salvar a sua tribo de morrer à fome.

 

Em tempos idos, quando a terra foi dominada por uma fome terrível, viveu um homem cujo nome já foi, há muito, esquecido. Tornou-se conhecido por Tsui’goab, mas não era assim que se chamava quando a história começou.

 

Tsui’goab andava preocupado com o futuro da sua aldeia.

 

- Quando é que a chuva virá? - interrogava-se, preocupado, protegendo os olhos do sol enquanto procurava, desesperado, uma nuvem no céu límpido. - A maior parte do nosso gado já morreu, as nossas plantações não vingam e, a cada dia que passa, mais pessoas morrem de sede. Quando é que este pesadelo chegará ao fim?

 

De todos os poços das redondezas, somente um ainda não secara, mas não se sabia até quando esse ficaria sem água. A cada dia que passava, o balde tinha de descer mais fundo até encontrar água.

 

Mas como deveriam os aldeões utilizar aquela porção preciosa? Se fossem eles mesmos a bebê-la, o pouco gado que restava morreria. Se a dessem a este, não poderiam regar as plantações. Sem gado nem colheitas não haveria comida, e eles próprios, sem água, morreriam numa questão de dias.

 

Tsui’goab, ao olhar para o céu, perguntava a si mesmo como era possível algo tão belo ser tão mortífero...

 

O Sol era um amigo que trazia calor e luz, fornecendo às plantas energia para crescer. No entanto, também podia transformar-se num inimigo, espalhando a morte sobre a terra. Sem nenhuma chuva, podia queimar o solo, transformando uma zona de terra arável num torrão seco.

 

Até que, um dia, apareceu um desconhecido na aldeia. Recebeu guarida na casa dos mais velhos. Com ou sem seca, todo o forasteiro ainda era bem recebido. Apesar de ter a cabeça oculta por um capuz e o corpo disfarçado por uma capa, Tsui’goab - que, recorde-se, nesse tempo ainda não era tratado por esse nome - não teve dificuldade em reparar que era uma criatura saudável. Tinha os braços e as pernas musculosos, não se lhe viam ossos sob a pele, e esta, ao contrário do que acontecia com Tsui’goab e os outros aldeões, não tinha um aspecto encarquilhado e ressequido.

 

- Vieste de muito longe? - perguntou-lhe Tsui’goab.

 

- De perto e de longe - respondeu o viajante.

 

- A seca está muito espalhada? Viste muita morte ao longo do caminho?

 

- quis saber Tsui’goab.

 

- Deparei com a morte por todo o lado em que passei - retorquiu o viajante.

 

- Mas pelo pouco que vejo em ti, pareces bastante saudável - observou Tsui’goab. - Qual é o teu segredo?

 

- Segredo? - admirou-se o viajante. - Que queres dizer?

 

- Creio que sabes do que falo - disse Tsui’goab, olhando-o atentamente.

 

- Já alguma vez estiveste nesta aldeia?

 

- Sim e não - respondeu o viajante num sussurro que mal se ouvia.

 

- Tira o capuz - ordenou Tsui’goab. - Não vale a pena ocultares o rosto. Não admira que digas que és de perto e de longe, pois a morte está em todo o lado. Assim como não surpreende que a tenhas visto por onde quer que tenhas passado, pois tu és a Morte.

 

O viajante tirou então a capa e o capuz.

 

- Sim, sou Gaunab - admitiu. - Há quem me chame Morte.

 

- Fico satisfeito por estares aqui em forma humana - disse Tsui’goab, vendo, finalmente, que talvez houvesse alguma possibilidade de tentar salvar o seu povo.

 

- Satisfeito? - surpreendeu-se Gaunab. - Parece-me que a falta de água e alimento já começou a afectar a tua mente.
- Enganas-te - declarou Tsui’goab. - O meu povo é orgulhoso. Não temos medo de enfrentar a Morte cara a cara. No entanto, é a primeira vez que nos mostras um rosto humano.

 

- Achas o meu rosto belo? - quis saber Gaunab.

 

- O teu rosto tem a aparência de ventres vazios e inchados, de lábios ressequidos e de grande aglomeração de moscas - respondeu Tsui’goab. - É um rosto de sol ardente e poças de água secas. Como poderá semelhante rosto ser belo?

 

- Não tens medo de mim, pois não? - perguntou Gaunab.

 

- Não - respondeu Tsui’goab. - Se não tivesses vindo até aqui em forma humana, teria ido à tua procura.

 

- Desejas morrer? - admirou-se Gaunab. - Não acredito. Preocupas-te demasiado com aqueles que te cercam para desejares tal.

 

- O que eu quero é desafiar-te para um duelo - disse Tsui’goab. - Um duelo justo e leal que, se eu ganhar, fará com que prometas partir daqui para sempre e deixar o meu povo em paz.

 

- Pretendes banir-me? Queres banir a Morte?

 

- Quero - respondeu Tsui’goab.

 

- E se perderes? - perguntou Gaunab, depois de reflectir um pouco.

 

- Nesse caso, levarás contigo a minha vida e a daqueles que nos rodeiam

- retorquiu Tsui’goab.

 

- Não é grande prémio, já que em breve ficarei com as vidas de todos vós - observou Gaunab.

 

- Queres dizer que não aceitas o desafio que te lancei? - perguntou Tsui’goab.

 

- Confias que lutarei com lealdade? - perguntou Gaunab.

 

- Confio - assegurou Tsui’goab.

 

- Porquê? - quis saber Gaunab.

 

- Porque tu és a Morte, e o único adversário que tens é a Vida. És o que és - observou Tsui’goab. - Não existe aí nenhuma deslealdade. Não podes ser diferente.

 

- Então, aceito o teu desafio! - acedeu Gaunab.

 

Antes que Tsui’goab tivesse possibilidade de se preparar, Gaunab atirou-se a ele e os dois rolaram por terra, sob o sol abrasador.

Não tardou que a notícia se espalhasse pela aldeia.

 

- Tsui’goab está a lutar pessoalmente com a Morte! - gritaram os aldeões, embora, convém não esquecer, não o tratassem por esse nome na altura.

 

Os doentes e os moribundos foram tirados das suas cabanas pelos mais saudáveis, embora ninguém estivesse muito bem devido à seca terrível. Não houve aldeão, com força para tal, que não viesse lançar gritos e vivas de encorajamento a Tsui’goab, enquanto este media forças com a Morte. Sabiam que se batia pelas vidas deles, além da sua.

 

Gaunab e Tsui’goab parecia igualarem-se em força. Gaunab estava mais bem preparado fisicamente, mas Tsui’goab era mais rápido nos seus golpes e parecia conhecer mais truques. A luta ora parecia pender para um lado, ora para o outro...

 

Tsui’goab, no entanto, tinha razões mais fortes para lutar. Enquanto se debatia com Gaunab, recordou os seres amados que a morte já lhe levara no decorrer da vida e pensou naqueles que morreriam se perdesse, o que lhe deu forças para continuar, caso contrário seria derrotado.

 

Ninguém se recorda do tempo que a luta durou. Uns dizem que levou muitas horas, outros, que foram muitos dias. Houve, ainda, quem afirmasse que se arrastou por semanas. No entanto, uma coisa é certa, ou seja, o desfecho final. Depois de uma luta acesa e violenta, Gaunab acabou por cair sobre a terra poeirenta e não se levantou.

 

- Estou a morrer - disse, com uma expressão de espanto estampada no rosto. - Tu derrotaste a Morte.

 

Tsui’goab, exausto e coberto de pó e sangue, cambaleou até junto do seu adversário.

 

- Isso só foi possível porque foste honesto e lutaste com lealdade disse. - Eu...

 

Porém, Gaunab ainda não se considerava derrotado. Num golpe derradeiro, atirou um pontapé contra o joelho de Tsui’goab, partindo-lhe a rótula com um som terrível. Tsui’goab gritou com a dor e caiu por terra. Depois, desmaiou.

 

Quando Tsui’goab voltou a si, ouviu vozes mas deixou-se ficar mais um pouco de olhos fechados. Sentia-se muito esquisito.
- Tsui’goab pode ter derrotado Gaunab - disse uma voz -, mas o certo é que a morte tem muitas formas e ainda anda por aí a percorrer a Terra.

 

- Mas desta vez Tsui’goab salvou o seu povo - disse uma outra. Tsui’goab sentiu curiosidade em saber quem seria aquele «Tsui’goab» de quem falavam, pois ainda não sabia que passara a ser conhecido por outro nome.

 

- Mas nunca nenhum ser humano lutou com a Morte daquela maneira disse a primeira voz. - Mostrou a sua bravura, e as prendas que lhe daremos irão permitir-lhe salvar o seu povo.

 

Tsui’goab abriu os olhos. Estava sozinho, mas percebeu o que ouvira, pois não se encontrava deitado numa cama ou em chão firme, mas sim no céu. Ao longe, bem abaixo dele, via a sua aldeia. Estendeu os braços com energia renovada e, ao aproximar as mãos do corpo, dos dedos saiu-lhe água.

 

Viu, maravilhado e cheio de alegria, a cor do solo, lá em baixo, ficar cada vez mais escura, à medida que ia ensopando a terra com a chuva - chuva que ele próprio criara. Viu os aldeões - os seus aldeões - correrem para fora de suas casas e erguerem o rosto para o céu. O seu povo estava salvo!

 

Tsui’goab transformara-se num deus da chuva, passando a morar no céu. Como os deuses novos precisam de nomes novos, ele ficou a ser conhecido por Tsui’goab, o que significa «joelho ferido».

 

COMO APARECERAM OS ANIMAIS

De acordo com um velho mito dos Dogones, do Mali, o mundo foi criado pelo deus Amma. Foi este quem colocou as pessoas na Terra... Mas como é que os animais lá chegaram primeiro?

 

Amma, o Criador fez o mundo. Primeiro, pegou num gigantesco pote de barro e cozeu-o num forno até ficar incandescente. Depois, envolveu-o em cobre vermelho e atirou-o para o céu, fazendo aparecer a luz.

 

- Tu és o meu Sol - declarou.

 

A seguir, agarrou num pote mais pequeno que, depois de pôr ao rubro no seu forno, cobriu de cobre branco - hoje conhecido por latão

- e atirou-o para a outra ponta do céu.

 

- Tu és a minha Lua - disse.

 

Depois, arrancou um pedaço ao Sol, partiu-o em mil pedacinhos que espalhou por todo o céu.

 

- Vós sois as minhas Estrelas - acrescentou.

 

Depois disto, agarrou num bocado de barro e criou a Terra.

 

- Tu és a Terra Mãe, minha esposa - declarou.

 

Posto isto, fez cair a primeira chuvada na Terra, de onde nasceram gémeos.

 

Os gémeos pareciam-se muito com os humanos que Amma viria a criar mais tarde, mas tinham língua de lagarto e cauda de serpente. Foram os primeiros filhos de Amma: Água e Luz.

 

Água e Luz foram ter com o pai ao céu e olharam, lá de cima, para a esplendorosa mãe, a Terra.

 

- Ela não tem roupa! - exclamou Luz.

 

- Nesse caso, temos de a vestir - retorquiu Água.

 

Juntos, Água e Luz fizeram crescer erva e as plantas brotaram, cobrindo assim a nudez da mãe. Ainda hoje é assim: as plantas precisam de água e luz para crescer.

 

A seguir, o Criador moldou o Primeiro Homem e a Primeira Mulher em barro, colocou-os na Terra e insuflou-lhes vida. Os dois, por sua vez, tiveram oito filhos - dois pares de gémeos e dois pares de gémeas - que formaram o primeiro povo dos Dogones.

 

Uma vez mais, Água e Luz olharam para a mãe, agora coberta de verdura, e acharam que precisava de mais roupa.

 

- Que estão a fazer? - perguntou Anima, o pai.

 

- Estamos a tecer uma saia de caniços e arbustos para a mãe vestir explicaram, enquanto o pai se sentava ao seu lado no céu. Os três foram conversando, enquanto Água e Luz trabalhavam.

 

Nenhum deles se apercebeu, no entanto, que o entretecer dos caniços e a inserção das folhas criara um vento que levou as suas palavras até à superfície da Terra. Aí, as pessoas escutaram-nas e, como vinham dos deuses, compreenderam-nas. Começaram então a falar uns com os outros, nascendo, assim, a linguagem humana.

 

Anima, Água e Luz olharam, satisfeitos, para o novo mundo que tinham acabado de criar.

 

- Está pronto - declarou Amma. - O meu povo vive feliz.

 

- Mas a Terra é tão grande - comentou Luz. - Não poderia ter mais gente a habitá-la?

 

O pai retirou então um pouco de luz reluzente ao Sol e criou as pessoas de pele negra reluzente que andam pelo mundo. Para arranjar as pessoas de pele mais clara, pegou num pouco de luar e, por fim, colocou todas na Terra Mãe.

 

- Agora o vosso trabalho terminou, pai - disse Água. - Podeis orgulhar-vos do mundo lindo que criastes.

 

Os três retiraram-se então para descansar no céu.

 

As primeiras pessoas adoraram o seu lar. E adoravam o Sol, que brilhava durante o dia, e a Lua que os banhava com o seu luar, à noite.

 

Adoravam as plantas e as árvores, assim como a terra que pisavam.

 

Apreciavam imensamente a chuva que caía do céu e a linguagem que lhes chegava através da brisa e que aprenderam a utilizar para comunicar entre si.

 

- O nosso Criador é um deus sábio e generoso - disse um jovem -, mas na nossa linguagem há palavras para coisas que nunca vi. De que animais fala Ele? Têm nomes tão variados... Se ao menos pudéssemos ver essas criaturas selvagens fantásticas!!

 

- Mas, se esses animais não se encontram na Terra, onde poderão estar?

- quis saber a mulher.

 

- Ora, na própria casa de Amma, claro - respondeu o homem. - Esses animais devem viver no céu. Temos de Lhe pedir que nos mande alguns.

 

A jovem riu.

 

- Se o Criador quisesse que partilhássemos a Terra com eles, já os teria aqui posto ao nosso lado.

 

O jovem concordou.

 

- Nesse caso, só nos resta ir até ao céu e roubá-los! - declarou, triunfantemente.

 

Ficou combinado que um grupo deles subiria até ao céu e escolheria um macho e uma fêmea de cada animal.

 

- Como é que iremos levá-los para baixo? - perguntou um.

 

- Construiremos uma pirâmide gigantesca de madeira - sugeriu o jovem. - Não sabemos que tamanho têm esses animais, mas podemos colocar os maiores no fundo e os mais pequenos no topo.

 

- Mas como é que traremos a pirâmide de volta à Terra quando estiver cheia? - perguntou outro.

 

- Baixá-la-emos com uma corda grossa - respondeu a jovem.

 

- Pensaste em todos os pormenores! - elogiou um.

 

- Então, mãos à obra! - exclamou um outro.

 

Assim que a pirâmide ficou pronta, o grupo de pessoas trepou por ela, do alto de uma colina e, chegadas ao céu, maravilharam-se com o reino que lá havia. Havia girafas, hipopótamos, leões, antílopes, besouros, aves, peixes e todo o tipo de animais que podemos imaginar - todos a pastar, correr, voar e nadar por cima das nuvens.

 

- Que lindos! - exclamou o jovem, boquiaberto.


- Cala-te - ordenou a jovem -, pois o Criador pode estar por perto e se souber que viemos aqui roubar-lhe os animais, não ficará nada satisfeito.

 

- Não são todos os animais - corrigiu o jovem. - Apenas um macho e uma fêmea de cada.

 

Foi assim que, rápida e sorrateiramente, o primeiro povo dos Dogones conduziu os animais, dois a dois, para a pirâmide de madeira que construíra

- ficando os maiores em baixo e os mais pequenos em cima - até esta ficar cheia e muito pesada.

 

- Encontrámos muito mais animais do que alguma vez imaginei confessou o jovem. - Não podemos fazer baixar a pirâmide com uma corda, pois é demasiado pesada. A corda partir-se-ia e ela cairia na Terra...

 

- Podíamos puxá-la até aqui abaixo - sugeriu um, apontando para o magnífico arco-íris que unia o céu e a Terra.

 

- Mas ganharia velocidade e tombaria violentamente sobre a Terra lembrou a jovem com um suspiro.

 

As pessoas já começavam a impacientar-se, receosas de que Amma, Água e Luz pudessem aparecer a qualquer momento, apanhando-os a meio daquele roubo atrevido.

 

- Já sei! - exclamou o jovem. - Com a ajuda da corda, desceremos a pirâmide pela ponte do arco-íris. Tanto uma como o outro devem ser suficientes para suportar o peso. Iremos à frente da pirâmide para abrandar a descida!

 

Todos concordaram, mas, a certa altura, alguém perguntou:

 

- A que é que ataremos a outra ponta da corda?

 

O jovem, sem proferir palavra, agarrou na extremidade livre da corda e atou-a ao Sol.

 

- E agora, levemos os animais para a Terra ! - declarou.

 

Deve ter sido uma visão fantástica e inacreditável: um grupo de pessoas a arrastarem, lentamente, arco-íris abaixo, uma pirâmide gigantesca, em direcção à Terra. Imagine-se o que deve ter sido para aqueles que observavam e aguardavam que regressassem sãos e salvos. Calcule-se o horror que sentiram quando, mal a pirâmide pousou, intacta, no chão, se ouviu um retumbante CRAC!

 

A corda arrancara um pedaço ao Sol... e tanto a corda como o fragmento rodopiavam pelo céu, em direcção a eles.

 

Quando o fragmento de Sol atingiu um arbusto, que se incendiou violentamente, lançando labaredas cor de laranja para o ar, as pessoas fugiram a bom fugir. Nunca tinham visto chamas e estavam assustadas.

 

- Amma fez isto para nos castigar! - gritou um homem que tivera demasiado medo para ir com os outros.

 

- Que tolice - declarou o jovem. - Hoje, além dos animais, recebemos um presente extra. Vejam como este fogo liberta calor e luz... Pode ser um instrumento para a humanidade!

 

Dito isto, abriu a porta da pirâmide e os casais de animais começaram a sair.

 

As aves levantaram voo, os mamíferos, os insectos e os répteis partiram para as florestas e planícies, e os peixes foram para a água... e a Terra Mãe acolheu-os de bom grado pois tinha muito para lhes oferecer.

 

Lá em cima, no céu, Amma, Luz e Água olharam para a Terra.

- As pessoas que eu criei são criaturas muito ardilosas - comentou Amma. - Mas os animais parecem felizes no seu novo mundo e a vossa mãe cuida muito bem deles. A partir de agora, só têm de se respeitar uns aos outros. Deixá-los-ei ficar... pelo menos por enquanto.

 

A CORRIDA PARA SER REI

Existem muitos mitos africanos acerca de animais. Nalguns, eles têm um comportamento animal. Noutros, parecem pessoas. Em certos mitos, até, são meio animais, meio gente. Neste mito alur, há um sapo e um lagarto que são príncipes irmãos.

 

Lagarto e Sapo, seu irmão, estavam sentados a olhar um para o outro. Lagarto deleitava-se ao sol do meio-dia, absorvendo os raios solares. Sorria de contentamento. A pedra macia e negra sobre a qual se encontrava era tão bonita e estava tão quente que ele era obrigado a levantar uma pata de cada vez. Deste modo, as quatro patas podiam esfriar um pouco antes de voltarem a ficar deliciosamente aquecidas sobre a sua pedra preferida.

 

Sapo mantinha-se à sombra, meio dentro, meio fora da água. Gostava de humidade, de se manter fresco. Se permanecesse ao sol demasiado tempo, ficaria esturricado.

 

Sapo tinha os enormes olhos redondos fixos em Lagarto.

 

- Em que pensas, irmão? - perguntou-lhe. - Pareces muito satisfeito contigo mesmo.

 

- Estava a pensar que, quando o rei, nosso pai, morrer, eu assumirei o seu lugar - respondeu Lagarto.

 

- Quem o decide é o nosso pai - retorquiu Sapo, fazendo tremular a superfície da água da poça com o sopro da sua voz roufenha.

 

- Certamente não te passa pela cabeça ser o escolhido para ocupar o trono, pois não? - perguntou Lagarto, levantando uma das patas traseiras da pedra escaldante.

 

- É a ele que cabe a escolha - lembrou-lhe Sapo. - Mas está a ficar velho e já não deve tardar a fazer essa comunicação.

 

- Eu sou belo, rápido e forte - declarou Lagarto, agitando a língua. A minha voz é calma mas firme. Tu, no entanto, não possuis nenhuma destas qualidades.

 

- Tanto tu como eu somos filhos do mesmo pai - lembrou Sapo -, e, escolha ele quem escolher para o substituir, eu respeitarei a sua decisão.

 

- Mas tu és feio, peganhento e andas aos pulos! - protestou Lagarto. A tua voz de cana rachada é feia e irritante. Nunca poderias ser rei.

 

Nesse momento chegou um mensageiro.

 

- Príncipe Lagarto - cumprimentou, fazendo uma vénia e pestanejando para o lagarto que se encontrava sob o sol brilhante. - Príncipe Sapo acrescentou, com nova mesura, franzindo os olhos para a zona sombreada. Vosso pai convoca-vos para vos deslocardes ao palácio real.

 

- Para me proclamar seu sucessor, sem dúvida - observou Lagarto, sorrindo.

 

- A sua mensagem diz que o primeiro a chegar ao palácio será o rei sucessor - acrescentou o mensageiro, retirando-se em seguida.

 

- Ora aí está! - exclamou Lagarto saltando da pedra ensolarada com a rapidez fantástica que era comum à sua espécie. - Bem te disse, Sapo, que é a mim que o pai quer para lhe suceder. Eu serei o próximo rei desta terra!

 

Sapo mergulhou dentro de água, a fim de molhar a pele, vindo ao de cima logo a seguir.

 

- O que te leva a fazer essa suposição, irmão? - perguntou.

 

- Porque sou capaz de correr muito mais depressa do que tu, com essas pernas bamboleantes e esse corpanzil gorducho - troçou Lagarto.

 

Dito isto, correu a enfiar-se mato adentro, de modo a preparar algumas coisas para levar consigo na viagem para o palácio real.

 

Sapo mirou-se na superfície do lago. Seu irmão, Lagarto, tinha razão. Ele, que era um sapo, levaria muito mais tempo a chegar ao palácio real. Lagarto estava tão determinado em ser o primeiro que nada o desviaria desse objectivo.

 

Nada, excepto um pouco de chuva, reflectiu Sapo.

 

Sapo, como era um animal que vivia tanto na terra como na água, sabia  dobro sobre o mundo, ao contrário de Lagarto, seu irmão. O que também significava que Sapo conhecia duas vezes mais tudo o que se relacionava com magia.

 

Sapo, em vez de se lançar na corrida para o palácio real - a qual, à partida, sabia que perderia -, foi à procura de uma árvore chamada yatkot.

 

Assim que encontrou a árvore, partiu-lhe um ramo e enterrou-o num pó mágico que depois regou com água. Enquanto isso, o príncipe Sapo foi murmurando umas palavras secretas e o feitiço começou imediatamente a fazer efeito.

 

Primeiro caiu um pingo de água numa folha em forma de coração, que tinha ao lado... depois outro... e outro... e mais outro. Não tardou que o tamborilar da chuva a cair enchesse o ar e começasse a cheirar a terra molhada. A seguir, o céu abriu-se e começou a chover torrencialmente.

 

- O tempo ideal para sapos - observou Sapo alegremente, iniciando a sua jornada, aos saltos, para o palácio real.

 

Entretanto, Lagarto sentia-se todo orgulhoso de si mesmo. Já ia bem adiantado no seu caminho para o palácio.

 

- Só não percebo por que razão meu pai não anunciou, simplesmente, o meu nome como seu sucessor - disse de si para si. - Para quê propor esta corrida para decidir a sua escolha? Todos sabem que o verde e repugnante do meu irmão Sapo jamais conseguirá competir comigo... além disso, morrerá esturricado com este calor infernal.

 

Nesse instante, uma enorme nuvem escura tapou o Sol, e a chuva começou a cair abundantemente. Lagarto correu a abrigar-se sob uma pedra alta.

 

«Esperarei aqui até a chuva parar», pensou. «Nesta altura do ano não durará muito e como estou muito mais adiantado do que Sapo, ele nunca será capaz de me alcançar.»

 

Lagarto, porém, enganava-se, pois Sapo alcançou-o e até o ultrapassou. Claro que Lagarto não se apercebeu do facto, porque Sapo tomara outro caminho.

 

A certa altura, a chuva parou e o Sol voltou a brilhar, quente, outra vez, pois o feitiço de um ramo de yatkot enterrado no chão dura pouco.

 

Lagarto apressou-se a sair debaixo da sua pedra e lançou-se, de novo, ao caminho.

 

- Em breve chegarei ao palácio real - disse, reparando na sua imagem reflectida numa poça de água. - Que rei esplêndido darei com as minhas magníficas escamas de lindas cores.

 

Mais à frente, o príncipe Sapo chegara já ao portão que dava acesso ao palácio real. À esquerda, sob o sol escaldante, via-se uma fila de lagartos de cores garridas. Eram os arautos de seu irmão, prontos para saudar a chegada de Lagarto com um toque de trombetas. À direita, na sombra fresca, estava uma fila de sapos, que eram os arautos de Sapo. Não precisavam de trombetas porque eram senhores de vozes fortes e coaxantes.

 

Ao verem o seu senhor, ergueram a cabeça e anunciaram sonoramente a chegada do seu príncipe e o seu triunfo como vencedor da corrida.

 

O velho rei aproximou-se rapidamente do portão para saudar o filho.

 

- Muito bem, Sapo - elogiou. - Vejo que deves ter usado a inteligência para ganhar esta corrida, e um bom rei está sempre a precisar de recorrer a ela. Quando eu morrer, ocuparás o meu lugar com brio.

 

As palavras do rei foram abafadas pelas trombetas dos arautos lagartos a anunciar a chegada do seu senhor. Lagarto entrou no palácio com ar pomposo e de cabeça erguida.

 

- Viestes saudar-me, senhor meu pai? - perguntou Lagarto, com ar vagamente convencido. - Estou certo de que ireis dar uma festa especial para celebrar a minha vitória. Além disso, acho que nem valerá a pena esperarmos pelo feioso daquele meu irmão. Nesta altura ainda só deve vir...

 

Lagarto não pôde continuar a falar. Olhou, pestanejou e olhou de novo. Não, os seus olhos não o enganavam. Ali, na sombra refrescante do palácio real, estava o peganhento e feio do seu irmão saltitante. Tal só poderia ter um significado: o de que o peganhento e feio do seu irmão saltitante o vencera na corrida, o que queria dizer que... que o príncipe Sapo um dia seria o rei Sapo.

 

- Ora viva - cumprimentou-o Sapo. - Por onde tens andado?

 

E por essa razão que, sempre que ouvires sapos a coaxar, deves preparar-te para a chuva. Significará que Sapo saiu para fora dos portões do palácio real e anda a fazer a sua magia com os ramos de yatkot... Porque sabes bem como ele aprecia o tempo húmido!

 

KIGBO E O ESPÍRITO DO MATO

Kigbo, que quer dizer «homem teimoso», tinha um nome que lhe assentava às mil maravilhas, pois um homem teimoso é aquele que não descansa enquanto não leva a sua avante. Segundo um mito dos lorubas, a teimosia de Kigbo é que foi a fonte de todos os seus males.

 

Kigbo e sua mulher, Dolapo, eram ambos jovens e tinham vivido com os pais até casarem. Isso significava que não possuíam terras próprias. Quando chegou a altura de os aldeões prepararem os campos para o plantio, o pai de Kigbo foi a casa do filho para falar com ele.

 

- Tens uma mulher bonita e um filho esplêndido, chegou pois a altura de cuidares deles - disse. - Procuraremos um lugar fora da aldeia, limparemos o terreno e faremos dele a tua plantação particular.

 

- Não quero - respondeu Kigbo.

 

- Não queres? - admirou-se o pai. - Mas tu precisas de cultivar alimentos para ti e para a tua família. Agora és independente, Kigbo. Nem os teus pais nem os da Dolapo têm obrigação de sustentar-vos.

 

- O que eu quis dizer é que não quero arranjar um terreno nos arredores da aldeia, pois já está quase tudo tomado e, portanto, só conseguiríamos dispor de terra suficiente para um campo pequeno.

 

- Mas tu só precisas de um campo pequeno - advertiu-o o pai. Há terra suficiente para todos.

 

- Quero fazer uma plantação no mato - disse Kigbo.

 

- No mato? - exclamou o pai, ficando de boca aberta. - Que perfeita loucura! Ninguém cultiva aí. O mato fica longe de casa e é perigoso!

 

- Não ligo à distância e é exactamente porque ninguém cultiva lá que poderei desbravar um campo do tamanho que quiser - explicou Kigbo, sorrindo.

 

- E o perigo... - lembrou-lhe o pai. Kigbo fitou o pai e respondeu:

 

- Tu mesmo me puseste o nome de teimoso. Nada me fará mudar de ideias.

 

Foi assim que Kigbo se pôs a caminho do mato por sua conta e risco. Começava a desbravar a terra quando um grupo de espíritos apareceu.

 

- Nós somos os espíritos do mato - disseram. - Esta terra pertence-nos. Que fazes aqui?

 

- Preparo um bocado de terra para plantar o meu milho - respondeu Kigbo teimosamente.

 

Não queria permitir que um grupo de espíritos alterasse os seus planos.

 

- Nós somos os espíritos do mato - repetiu o grupo. - Esta terra pertence-nos. Fazemos o mesmo que tu.

 

Então os espíritos, em vez de expulsarem Kigbo, começaram a ajudá-lo na sua tarefa, daí que, passado pouco tempo, uma ampla clareira estava desbravada.

 

Satisfeito, Kigbo parou e os espíritos imitaram-no. A seguir, sem ao menos um «obrigado», voltou de novo para a aldeia.

 

Ao chegar a casa, encontrou o pai à sua espera, tendo a seu lado Dolapo.

 

- Estava muito preocupado contigo - disse-lhe o pai. - Receei que os espíritos te tivessem apanhado e feito coisas terríveis.

 

- Coisas terríveis? - riu-se Kigbo. - Quando comecei a dar conta de uns arbustos, eles apareceram e até ajudaram. O trabalho ficou feito num instante... Amanhã voltarei lá para revolver a terra.

 

- Será que não aprendeste nada comigo, grande teimoso? Já te avisei de que o mato é um sítio terrível, e que os espíritos não são para brincadeiras.

 

Quando, na manhã seguinte, Kigbo voltou, levando consigo um saco de milho, o grupo de espíritos do mato apareceu de novo.

 

- Nós somos os espíritos do mato. Esta terra pertence-nos. Que fazes aqui?

 

- Remexo o solo para plantar as minhas sementes - respondeu Kigbo.

 

- Nós somos os espíritos do mato - repetiram. - Esta terra pertence-nos. Fazemos o mesmo que tu.

 

Kigbo começou então a lavrar a terra, antes coberta de mato, e os espíritos ajudaram. Num instante, o solo ficou preparado para ser semeado. A seguir, Kigbo tirou do saco uma mão-cheia de grãos, que começou a espalhar.

 

- Nós somos os espíritos do mato - disse o coro. - Esta terra pertence-nos. Fazemos o mesmo que tu.

 

E começaram a semear. Depressa o trabalho estava terminado.

 

Satisfeito, Kigbo parou e os espíritos imitaram-no. Depois, uma vez mais sem agradecer, voltou para a aldeia.

 

O tempo passou e as estações mudaram. Depois do tempo de semear veio o de colher e Kigbo continuou a viver, à sua maneira egoísta e teimosa, sem se preocupar minimamente com os outros.

 

Todos os outros aldeões podiam vigiar facilmente as suas pequenas plantações, mesmo na orla da aldeia, para acompanhar o crescimento do milho. Kigbo, no entanto, era obrigado a percorrer uma grande distância até à beira do mato onde desbravara o seu campo de cultivo. Mas achava que valera a pena. Via-se, a perder de vista, um mar de milho a brilhar ao sol.

 

Kigbo pensava: «As pessoas acham que sou teimoso, mas vejam o que eu consegui com a minha esperteza. Todos têm plantações pequenas e precisam de trabalhar duramente nelas. Eu tenho este campo enorme e aqueles espíritos tolos fizeram a maior parte do trabalho duro por mim. Espero que me ajudem quando o milho estiver maduro e pronto a colher!»

 

O orgulho que Kigbo sentia no seu milho dourado era tão grande que resolveu ir buscar a mulher e o filho para o verem. Voltou então à aldeia.

 

Dolapo, entretanto, sentia remorsos.

 

«Kigbo pode ser teimoso», pensou, «mas é meu marido e eu amo-o... e, quando trabalha, fá-lo com grande empenho.»

 

Resolveu então ir até lá para ver com os seus próprios olhos. Devem ter tomado caminhos diferentes, pois não se cruzaram. Quando, por fim, Dolapo chegou à plantação, não viu Kigbo em lado nenhum.

 

Fora uma grande caminhada e Dolapo aborreceu-se com a teimosia dele. Porque não desbravara ele um campo mais pequeno perto da aldeia?

 

O filho de Dolapo começou a chorar.

 

- Tens fome, pequenino? - perguntou-lhe ela. - Não posso dar-te este milho, pois ainda não amadureceu.

 

Porém, como o filho não se calava, Dolapo arrancou uma maçaroca de milho - apesar de ainda não estar madura - e deu-lha a comer.

 

Nesse preciso momento, o grupo de espíritos apareceu e disse:

 

- Nós somos os espíritos do mato. Esta terra pertence-nos. Fazemos o mesmo que tu.

 

E, antes de Dolapo perceber o que estava a acontecer, os espíritos do mato cortaram as maçarocas de todo o milho. Não tardou que o solo ficasse juncado de maçarocas de milho verdes, estando assim irremediavelmente perdida toda a safra!

 

- Que foi que fizemos?! - exclamou Dolapo.

 

Sentou-se a chorar, e os seus queixumes, junto com os do bebé que também começara a fazer o mesmo, soaram tão alto que chegaram aos ouvidos de Kigbo, que ia a caminho de casa. Este ficou com uma cara preocupada.

 

- Este choro parece-me da Dolapo e do bebé - disse, cada vez mais receoso. - E vem do mato!

 

Voltou para trás e correu o mais depressa que pôde para a sua plantação. Que estaria Dolapo a fazer ali com o seu filho? O mato era um sítio muito perigoso. Quando lá chegou, ficou horrorizado perante o panorama com que deparou. Não havia uma única maçaroca de pé. A plantação ficara reduzida a um mar de hastes secas, sem qualquer préstimo!

 

- Que aconteceu? - perguntou Kigbo, embasbacado.

 

- O nosso filho chorava com fome, de modo que eu arranquei uma maçaroca e dei-lha - explicou-lhe a mulher.

 

- Criança estúpida! - gritou Kigbo, fazendo, em seguida, algo de terrível. Enraivecido, agarrou no menino e sacudiu-o.

 

Antes de ter tempo para se aperceber das consequências do seu acto, o grupo de espíritos apareceu e disse:

 

- Nós somos os espíritos do mato. Esta terra pertence-nos. Fazemos o mesmo que tu.

 

Então, antes de Kigbo poder detê-los, começaram todos a sacudir a pobre criança da mesma maneira.

 

Kigbo sentiu-se culpado e furioso com o que acontecera. Era horrível tratar alguém - sobretudo uma criança - daquela maneira, porém tentou convencer-se de que a culpa fora de Dolapo.

 

- Olha o que me obrigaste a fazer! - exclamou, cometendo novo erro, pois esbofeteou a mulher.

 

- Nós somos os espíritos do mato - disse o grupo, mais uma vez. Esta terra pertence-nos. Fazemos o mesmo que tu.

 

Depois começaram todos a dar bofetadas em Dolapo. Kigbo, dando-se conta de quão teimoso e louco fora, bateu com os punhos na cabeça.

 

- Que estúpido fui! - queixou-se. - Porque não ouvi o meu pai?

 

- Nós somos os espíritos do mato - repetiu o grupo, virando-se para ele. - Esta terra pertence-nos. Fazemos o mesmo que tu.

 

Começaram então a bater em Kigbo.

 

- Esta terra pertence-nos - repetiam, sem que ele percebesse uma palavra por causa das pancadas.

 

Esta lenda tem muitos fins. Um deles conta que Kigbo e Dolapo fugiram do mato levando o filho com eles e que o grande teimoso aprendeu a lição. Outro diz que os três foram mortos pelos espíritos. Um terceiro relata que Kigbo morreu às mãos dos espíritos, mas Dolapo e o filho escaparam com vida.

 

Seja qual for o fim que tiveram, o certo é que o pai de Kigbo tinha razão. O mato é um lugar perigoso e não se pode brincar com os espíritos... por muito prestáveis que estes se possam mostrar ao princípio.

 

OS FILHOS DAS CABAÇAS

Bem no alto da montanha morava um espírito poderoso que velava pelo dia-a-dia do povo Chaga, que vivia no vale que se estendia em baixo. Uma das pessoas de quem gostava especialmente era da Viúva Velha, que vivia sozinha.

 

Na aldeia, o som que predominava era o do riso das crianças; no entanto, na casa da Viúva Velha, que não tinha filhos nem netos, reinava um silêncio triste.

 

Quando era preciso ir buscar alguma coisa, ela tinha de ir buscá-la. Quando era preciso carregar, ela tinha de carregar. Quer se tratasse de água, alimentos ou outra coisa qualquer, ela mesma precisava de fazer tudo. Para dizer a verdade, a Viúva Velha só se tinha a si própria como companhia, levando a sua vida por diante o melhor que podia.

 

Nos seus tempos de jovem, aquela que era agora a Viúva Velha, casara com um bom homem e os dois tinham sido muito felizes juntos. Mas, como acontecia com muitos homens bons, também o seu morrera, ainda por cima antes de terem filhos, e ela jurara nunca mais voltar a casar.

 

Havia muito pouca mobília na sua casa minúscula. Poucos eram os seus pertences, e tudo o que se encontrava dentro da habitação andava empoeirado e muito descuidado. O mesmo já não se podia dizer em relação à pequena machamba onde cultivava frutos e legumes. Adorava aquele cantinho e não se passava um dia sem que, protegida pela sombra das bananeiras do vizinho, não cuidasse das suas plantas. Arrancava as ervas daninhas, regava, tirava as pedrinhas e espantava os animais nocivos. Mas as suas plantas preferidas eram as cabaças.

 

Os aldeões troçavam dela por causa desse gosto. Costumavam dizer que ela amava aquelas cabaças como se fossem seus filhos.

 

O espírito da montanha não perdia pitada do que diziam. Olhava para a Viúva Velha, como sempre fizera no decorrer da vida desta. Vira-a envelhecer, mas lembrava-se da jovem linda que ela fora no dia do seu casamento, com as costas direitas e os olhos brilhantes. Agora via-a encurvada pelos anos, com os olhos enevoados e os dedos encarquilhados.

 

A Viúva Velha cultivava as suas cabaças para fazer delas vasos. Deixava-as secar até a casca endurecer, depois transformava-as em vasos de cabaça que vendia no mercado local, arranjando assim o pouco dinheiro de que dispunha.

 

O espírito que vivia na montanha, ao reflectir sobre as piadas dos outros aldeões acerca da Viúva Velha que tratava das cabaças como se fossem seus filhos, resolveu ajudá-la. Dar-lhe-ia filhos a sério - filhos mágicos - que lhe trariam felicidade.

 

No dia seguinte, estava a Viúva Velha na machamba, a cuidar, como de costume, dos seus frutos e legumes, quando um mensageiro do espírito lhe apareceu por trás. Voltou-se para olhar para ele, mas como o sol lhe dava nas costas, não conseguiu distinguir-lhe o rosto. A sua cabeça desenhava-se como uma silhueta negra contra um sol ofuscante.

 

- Que deseja? - perguntou-lhe.

 

- Cuida das próximas quatro cabaças que apanhares com um cuidado especial - disse o mensageiro -, pois elas serão como quatro filhos para ti.

 

- Que quer dizer? - perguntou a velha. - Como poderei cantar uma canção de ninar a uma cabaça ou dar-lhe amor? Como será ela capaz de me ajudar nas minhas tarefas diárias?

 

- Confia em mim - disse o mensageiro -, pois fui enviado pelo espírito da montanha.

 

A Viúva Velha pestanejou e o mensageiro desapareceu. Ela acreditava piamente no espírito e todos os dias lhe rezava... mas que quereria o mensageiro dizer?

 

Foi então colher as suas quatro cabaças seguintes. Uma delas era a maior e mais gorda que já lhe aparecera em muitos anos.

 

A Viúva Velha recordou as palavras do mensageiro, no entanto elascontinuavam a fazer pouco sentido para si. As cabaças eram de origem vegetal... como poderia ela cultivar vegetais como se fossem seus filhos? Começou a desconfiar que, se calhar, não passava tudo de mais uma das brincadeiras maldosas de algum aldeão.

 

O melhor lugar para secar as suas cabaças recém-colhidas era nas vigas que tinha na sua casa minúscula. Pendurar as quatro cabaças mais pequenas nas vigas não custou muito, mas quando chegou a vez da quarta - a que era enorme, bem cheia - o caso mudou de figura, pois o seu tamanho e peso não permitiram que levasse o mesmo caminho. Ficou, portanto, ao pé do canto onde acendia a lareira.

 

No dia seguinte, estava a Viúva Velha no mercado, o mensageiro misterioso entrou-lhe em casa e tocou nas três cabaças que estavam nas vigas, depois de o ter feito à que ficara ao pé do lume. Mal isso aconteceu, elas transformaram-se em crianças. A seguir, o mensageiro retirou-se.

 

As três crianças que se encontravam no cimo das vigas, olharam para baixo e acharam que era demasiado alto para saltarem.

 

- Ajuda-nos a descer, irmão mais velho - pediram à criança maior, a que saíra da cabaça que ficara junto da lareira. Chamaram-lhe «mais velho» porque sabiam que o mensageiro tocara nele em primeiro lugar.

 

O irmão mais velho ajudou os outros três a descer e não tardou que se pusessem todos a correr pela casinha da Viúva Velha, rindo e gritando de tanta alegria e brincadeira.

 

A certa altura, resolveram que era tempo de tratar um pouco da casa. Foram buscar coisas, carregaram-nas, arrumaram e limparam. O irmão mais velho ficou sentado a observá-los, sorridente. Era diferente dos outros. Faltava-lhe esperteza, mas tinha um papel importante a desempenhar: depois do trabalho feito, levantou-os de novo até os instalar nas suas vigas e a seguir foi para o mesmo sítio, junto da lareira.

 

Quando a Viúva Velha chegou do mercado, encontrou a casa limpa e arrumada como já não acontecia há muitos anos e uma carrada de lenha à porta. Não conseguiu compreender o que se passava. Olhou de relance para as quatro cabaças, mas não lhe passou pela cabeça outra ideia além dos esplêndidos vasos que dariam.

 

No dia seguinte, encontrava-se a Viúva Velha na sua pequena machamba quando uma das aldeãs mais amigáveis foi ter com ela.

 

- Quem eram aquelas crianças que ontem andavam a rir, correr, trabalhar e brincar pela tua casa? - perguntou-lhe.

 

- Crianças? - admirou-se a Viúva Velha. - Não sei de que crianças falas. Quantas eram?

 

- Que eu visse, umas três - replicou a aldeã -, mas mexiam-se a tal velocidade que pareciam uma vintena delas.

 

A Viúva Velha começou a dar voltas à cabeça, interrogando-se se recebera, de facto, a visita de um mensageiro do espírito da montanha... Afinal de contas, ela rezava-lhe todos os dias... De modo que resolveu voltar sorrateiramente a casa, a fim de investigar. Ali chegada, deparou, realmente, com três crianças a limpar e a arrumar, perante o olhar do irmão mais velho.

 

Ao entrar em casa, o irmão mais velho agarrou rapidamente nos mais novos e pendurou-os nas vigas, antes de, também ele, se transformar de novo numa cabaça.

 

- Não, esperem! - exclamou ela. - São meus filhos, não meus servos. Quero ajudar-vos, mas também desejo amar e cuidar de vocês. Não voltem a transformar-se em cabaças. Deixem-me alimentar-vos e vestir-vos em troca da vossa ajuda.

 

Então, as cabaças que estavam nas vigas voltaram à sua forma de criança, assim como o irmão mais velho, que depois os colocou novamente no chão da cabana.

 

Dali em diante nunca mais deixou de se ouvir o som alegre de risos a sair da casa da Viúva Velha e da machamba de frutos e legumes onde as crianças trabalhavam. Eram tão esforçadas e dedicadas que conseguiram cultivar mais frutos, legumes e cabaças do que a Viúva Velha poderia algum dia conseguir sozinha. Não tardou que ela dispusesse de dinheiro para comprar mais terras, chegando mesmo a ficar com as bananeiras do vizinho. A seguir, poupou o suficiente para arranjar algumas cabras... Depois, o bastante para um rebanho inteiro!

 

Depressa se tornou uma fazendeira rica e não precisou mais de trabalhar nos dias da sua vida.

 

Nunca mais voltou à velha machamba, mas continuou a cozinhar para ela própria e para os filhos... até que, um dia, tropeçou no rapaz mais velho que, sentado no sítio do costume, junto da lareira, sorria beatificamente.

 

A Viúva Velha trazia uma panela de guisado nas mãos, guisado esse que se espalhou por tudo quanto era sítio, o que a deixou furiosa.

 

- Quantas vezes te disse já para não ficares aí sentado que nem um... que nem um... que nem o vegetal inútil que és! - gritou. - Não sei porque hei-de dar-me ao trabalho de cozinhar para ti e para os outros três. Afinal de contas, vocês não passam de... de uns vegetais!

 

Mal acabou de proferir a última palavra, o irmão mais velho transformou-se de novo numa cabaça e as risadas alegres deixaram de se ouvir. A Viúva Velha correu até fora de casa e onde, momentos antes, tinham estado crianças felizes, viam-se agora três cabaças pequenas.

 

Apercebendo-se do erro que cometera, a Viúva Velha voltou para dentro de casa lavada em lágrimas.

 

Viveu ainda durante muitos anos, sentindo-se ainda mais solitária do que antes, pois ter tido filhos e depois perdê-los era bem pior do que nunca os ter tido. Morreu pobre, infeliz... e sozinha.

 

O HOMEM-LEÃO E O GADO

Em toda a África existem mitos acerca de leões que se transformam em humanos, e humanos - normalmente feiticeiros - que assumem a forma de leões. Este mito do Mali conta a história de um leão dentro da pele de um homem.

 

Os pastores já não suportavam mais a situação. Em poucos dias, três das suas vacas tinham sido mortas por um leão.

 

- Se isto continua, qualquer dia ficamos sem rebanho - queixou-se um. - Que havemos de fazer? Não podemos tirá-las do vale. Talvez devêssemos arranjar mais homens para ajudar, não?

 

- De nada serve estarmos de guarda - observou outro. - Não conheço muita gente disposta a colocar-se entre um leão esfomeado e a sua presa.

 

- Eu tenho a minha lança - lembrou o pastor mais velho.

 

- Se te aparece um leão pela frente, tremerás tanto que se não espetares a lança num pé ja será uma sorte! - observou o mais novo.

 

Todos riram ao ouvir a piada, porém, a preocupação que sentiam relativamente ao leão estava bem patente nos seus rostos.

 

Resolveram ir consultar o feiticeiro que vivia na aldeia do lado, a fim de lhe perguntar se conhecia algum feitiço ou tinha qualquer amuleto que eles pudessem usar para se protegerem do leão.

 

O feiticeiro veio até às pastagens do vale para ver o gado.

 

- Conseguirei protegê-los durante um mês - declarou -, mas esta magia é cara e terá um preço muito alto para todos vós.

 

- Quanto é? - perguntou um dos pastores.

 

O feiticeiro apontou para a vaca maior e mais gorda do rebanho. - Aquela vaca - respondeu.

 

- Mas é a vaca mais valiosa que temos! - exclamou o pastor.

 

- Mas amanhã o leão pode matá-la e a muitas outras - lembrou o feiticeiro.

 

Os pastores reuniram-se num pequeno grupo e discutiram as condições apresentadas pelo feiticeiro.

 

- Muito bem - acedeu, por fim, o pastor mais velho -, dar-te-emos a nossa vaca maior e mais gorda se utilizares a tua magia para proteger o nosso rebanho do leão durante um mês.

 

Após isto, o feiticeiro pegou nos seus amuletos e disse umas palavras mágicas em redor do rebanho. Terminado o seu trabalho, recebeu o pagamento combinado - a vaca maior e mais gorda - e levou o animal para a sua aldeia.

 

Os pastores ficaram a vê-lo afastar-se.

 

- Que leão tão estranho esse, que caça e mata três dias seguidos observou um deles.

 

- Talvez tenha alguma ninhada numerosa para alimentar - sugeriu outro.

 

- Se calhar não é um leão como os outros - disse o mais velho, sem desviar o olhar das costas do feiticeiro.

 

Nessa noite, o feiticeiro levou a vaca para sua casa e fez um grande banquete. Os aldeões ouviram o rasgar da carne e o estalar de ossos, mas não tinham ideia de onde aqueles sons vinham.

 

Fosse qual fosse a magia feita pelo feiticeiro, o certo é que resultou. Durante um mês, o gado pastou em paz e sossego no vale... até o leão voltar a atacar.

 

Dessa vez, o pastor mais velho viu o imponente animal selvagem - com as suas garras enormes e juba dourada - escolher uma vaca, deitá-la ao chão e rasgar a carne do animal aterrorizado com as garras enormes.

 

O pastor correu encosta abaixo em direcção ao leão, gritando e agitando a sua lança, na esperança de o espantar. O leão, porém, não lhe ligou nenhuma. Não largou o pescoço da vaca até o pobre animal deixar de se debater e, em seguida, arrastou-a para longe da vista.

 

Os outros pastores vieram a correr ao som dos gritos do mais velho mas, quando chegaram, não viram o leão nem a sua presa em lado nenhum.

 

- Acho que devíamos pagar ao feiticeiro para fazer mais algumas das suas mágicas - disse o pastor mais novo. - Nós não conseguimos fazer frente a este leão. Não sei mesmo se uma arma o assustaria, e ainda por cima não temos nenhuma.

 

Portanto, o feiticeiro veio, mais uma vez, até ao acampamento dos pastores e estes levaram-no a ver o rebanho.

 

- Quer dizer que a minha magia resultou da outra vez, não é?

 

- Oh, sim, sem dúvida - responderam-lhe. - Não poderias proteger o nosso rebanho por mais um mês ou, talvez, durante mais tempo?

 

- Só tenho poderes para proteger o vosso gado durante três meses, não mais - respondeu o feiticeiro. - Preciso de recorrer a magias muito fortes e dispendiosas para defender o vosso rebanho de semelhante animal selvagem.

 

- Nesse caso, teremos muito gosto em te pagar com três vacas...

 

- Três das vossas vacas maiores e mais gordas - emendou o feiticeiro.

 

- De acordo - disse um dos pastores -, mas não podemos dar-tas hoje. Depois levamo-las à tua aldeia. Tens a nossa palavra.

 

- Muito bem - concordou o feiticeiro, procedendo ao ritual mágico antes de voltar para casa.

 

O tempo passou e, mais uma vez, o gado não foi incomodado pelo leão, mas os pastores, em vez de cumprirem a promessa feita ao feiticeiro, agiram de modo insensato.

 

- Talvez o leão não tenha voltado por coincidência - disse um deles. Ouvi dizer que, a semana passada, mataram um leão a tiro ao pé do rio. Talvez tenha sido por isso que o nosso gado não tem sido atacado ultimamente.

 

- Exactamente - concordou outro. - Não vejo razão para darmos ao feiticeiro três das nossas vacas maiores e mais gordas se não foi a sua magia que protegeu o nosso rebanho!

 

Portanto, não cumpriram a promessa e recusaram-se a dar ao feiticeiro as três vacas prometidas.

 

O feiticeiro, assim que soube que os pastores tinham voltado com a palavra atrás, foi acometido de uma raiva terrível... uma raiva tamanha que até chegou aos ouvidos dos pastores.

 

- Acho que, afinal de contas, será melhor pagarmos ao homem alvitrou o pastor mais velho.

 

- Parece-me que é demasiado tarde para isso - disse outro. - Penso que

era melhor mudarmos o nosso acampamento para o outro lado do rio, não vá ele aparecer por aqui à nossa procura.

 

Assim fizeram.

 

O feiticeiro, furibundo, chegou à margem do rio Níger no momento preciso em que o resto do rebanho ia a passar o rio para o outro lado, incitado por um pastor muito apressado.

 

- Ali está ele! - gritou um dos pastores, apontando para a outra margem.

 

- Porque é que ele não atravessa a água para vir ter connosco? gaguejou outro, cheio de medo.

 

- Porque alguns feiticeiros perdem os seus poderes nos rios. São-lhes retirados pelas águas.

 

- Então estamos salvos! - riu-se um outro.

 

- Não será por muito tempo - observou o pastor mais velho. - Não se esqueçam de que há barcaças!

 

Como é evidente, ainda mal tinha acabado de falar já o feiticeiro entrava numa barcaça. O barqueiro olhou com particular interesse para o último passageiro a entrar.

 

- Qual o motivo de tanta pressa? - perguntou-lhe o barqueiro.

 

- Aqueles homens além têm três vacas que me pertencem - rosnou o feiticeiro.

 

- Tens a certeza? - perguntou o barqueiro, fazendo a embarcação sulcar as águas do rio Níger. - Estás certo de que te ficaram a dever três vacas às quais tinhas direito?

 

- Não sei do que falas - disse o feiticeiro.

 

- Claro que sabes - insistiu o barqueiro, fitando o feiticeiro com olhar penetrante, pois ele próprio não era bem quem parecia e era capaz de ver para além do que as pessoas normais percebiam...

 

Não lhe escapara que o feiticeiro possuía olhos estranhamente dourados e que os seus dentes eram aguçados. Também reparou que a sua pele nunca estava quieta... como se, por baixo dela houvesse pêlo. Além disso, o cabelo do homem fazia lembrar uma juba desgrenhada.

 

Ao aproximar-se da margem, o cheiro do gado chegou às narinas do feiticeiro, levando-o a deixar escapar um rugido de satisfação.

 

Não se tratava, contudo, de um rugido qualquer, lembrava, antes, o de um leão. O feiticeiro transformou-se num leão enorme ao lançar-se para terra.

 

- Foi o que eu pensei - disse o barqueiro. - Terei de tomar medidas em relação a ti.

 

Além de barqueiro, ele era o patrono do rio. Tratava-se de um homem dotado de fortes poderes mágicos que zelava pela sorte dos pescadores, assegurava travessias seguras por águas agitadas e cuidava dos que viviam ao longo das margens. Sabia que o leão não poderia ser morto por uma arma vulgar. Só duas eram capazes de o fazer: ou uma bala de metal, disparada por uma arma, ou uma seta mágica especial.

 

Depois de caçar e comer mais outra vaca, o leão reassumiu a sua forma humana e deitou-se à sombra de uma árvore a dormir a sesta. Como se divertira com os pastores daquele vale! Tinham-lhe dado a vaca maior e mais gorda em paga da sua protecção! Sorriu de si para si, depois bocejou ruidosamente e deitou-se a dormir.

 

Mas o homem-leão não estava sozinho. Um caçador perseguira-o até à clareira e, depois de enfiar uma seta no seu arco, disparou-a. O homem-leão nunca mais voltaria a incomodar o gado. A seta era mágica e pôs fim aos seus dias.

 

                                                                                           

                      

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