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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MONÇÃO - P.3 / Wilbur Smith
MONÇÃO - P.3 / Wilbur Smith

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Três dias depois, Dorian se encontrou com Zayn ao passar pelos portões, de volta de suas aulas com al-Allama. Zayn estava sentado com Abubaker e três outros moleques servis a ele. Refestelavam-se com uma travessa de doces, mas caíram em silêncio quando Dorian atravessou o harém naquela direção.

O nariz de Zayn continuava inchado e havia uma casca preta em seu lábio superior. Ambos os olhos tinham manchas ainda mais escuras que sua cor natural. Seu pé direito estava enrolado em ataduras - talvez fosse verdade que poderia ficar manco pelo resto da vida, Dorian pensou, mas não fraquejou e encarou Zayn direto nos olhos. O menino maior não conseguiu lhe sustentar o olhar e virou a cabeça. Disse alguma coisa a Abubaker e os dois soltaram risadinhas nervosas. Dorian passou por eles, e Zayn ganhou ousadia ao ver que ele se afastava.

- Pele branca da cor do pus - disse, e sua voz assobiou pela falha do dente da frente.

 

 

 

 

- Olhos verdes de urina de porco - Abubaker emendou.

- Só quem a bebe pode saber sua cor tão bem - Dorian retrucou, bem alto, e seguiu o caminho sem olhar para trás.

Pelas semanas que se seguiram, a sensação de perigosa hostilidade persistiu. Embora Dorian tivesse se tornado um excluído no harém, a estratégia parecia ter mudado e agora os outros simplesmente o ignoravam. Mesmo Zayn e Abubaker não reagiam mais à sua presença, porém se comportavam com exagerada indiferença sempre que se encontravam. Zayn ainda mancava e, com o tempo, tornou-se evidente que o dano a seu pé direito poderia na verdade ser permanente.

Entretanto, Tahi não se acalmara com a trégua hostil entre os dois meninos, e não perdia a oportunidade para fazer preleções a Dorian sobre os perigos de se expor ao veneno ou a outros métodos macabros de encomendar a morte a distância.

- Sempre agite seu kanzu antes de colocá-lo. Vire as sandálias para baixo e as bata no chão. Existe um pequeno escorpião verde que mata tão depressa que a vítima não tem tempo de gritar depois da picada. Kush conhece bem os escorpiões e todas as outras coisas ruins.

Nada daquilo, porém, poderia obscurecer por muito tempo o ânimo naturalmente efervescente de Dorian. Permanecia cada vez menos dentro dos muros do harém. Quando estava lá, Yasmini era uma companhia constante.

Como crédito para as habilidades de Ben Abram, Jinni recuperou-se com rapidez, e embora favorecesse o braço não machucado, logo estava a trotar ao longo do topo do muro externo ou a escalar os galhos mais altos das figueiras.

O longo mês de Ramadã chegou e, depois, a lua nova encerrou o período de jejum. Em questão de dias, Zayn al-Din sumiu do harém. Chegara à puberdade e atingira a fase viril de sua vida adulta, e, ainda mancando do ferimento que Dorian lhe infligira, teve acesso ao mundo do lado de fora dos muros. Dorian e Yasmini rejubilaram-se com sua partida. Ouviram contar que fora mandado a Mascate para se juntar à Corte de seu tio, o califa.

Tahi fungou quando lhe contaram.

- Foi mandado como um refém do califa para assegurar a obediência do príncipe.

Nota de Rodapé: Nono mês, de 30 dias, do calendário islâmico, durante o qual os muçulmanos devem jejuar desde o nascer até o pôr-do-sol.

Fim da Nota.

Aquela não era a primeira vez que Dorian ouvia falar das intrigas dentro da família real de Omã. Tahi, no entanto, repetia o que ele já sabia.

- O califa executou seis de seus irmãos por traição, e não confia naqueles que poupou. - Deixou cair a voz para um murmúrio: - O califa é um homem cruel, mau como o demônio. Alá não permita que você algum dia venha a ser reconhecido por ele como a criança da profecia. - Ela estremeceu ao pensamento.

Umas poucas semanas depois da partida repentina de Zayn al-Din, Yasmini chegou aos aposentos de Dorian antes que este acordasse e sacudiu-o pelo braço, aflita.

- Jinni não veio comer a noite passada e nem à minha cama esta manhã. - Estava abatida e trêmula de tristeza e preocupação.

Dorian levantou-se num salto e se enfiou em seu kanzu enquanto a garota se lamentava:

- Acho que alguma coisa horrível aconteceu ao meu Jinni.

- Nós o encontraremos - Dorian lhe prometeu. - Vamos!

Começaram por todos os lugares mais prováveis, os refúgios preferidos de Jinni. O principal deles era a tumba do santo Abn Allah Muhammad Ali. Procuraram em cada centímetro da antiga estrutura, a chamar pelo nome de Jinni e a oferecer bolinhos de canela. Sabiam que o aroma, mais do que qualquer outra coisa, o atrairia de seu esconderijo. Quando não resultou em nada, percorreram sistematicamente os jardins, porém com a mesma falta de sucesso. Já então Yasmini se mostrava pesarosa ao extremo.

- Você o salvou uma vez, Dowie. Agora Satã veio buscá-lo de novo. Pode tê-lo levado embora como punição.

- Não seja criança, Yassie. - Inconscientemente, usava as mesmas palavras com que Tom o reprovava. - Satã não se preocupa com macacos e menininhas.

- O que vamos fazer? - Yasmini voltou aqueles olhos cor de mel para ele, cheios de absoluta confiança.

- Começaremos a procurar de novo na tumba. Jinni deve estar em algum lugar.

A entrada da tumba fora lacrada com tijolos e argamassa séculos antes, e embora Dorian examinasse minuciosamente cada canto, não havia nenhum buraco pelo qual um macaco pudesse passar. Subiram ao terraço e rebuscaram tudo. Embora chamassem até ficarem roucos, não havia sinal de Jinni.

Por fim se sentaram, já em desespero, na borda da cisterna, e evitaram se olhar, exaustos e desanimados. Se não estivessem em absoluto silêncio, não teriam ouvido os guinchos abafados. Ouviram-nos ao mesmo tempo, e Yasmini segurou o braço de Dorian, enterrando as unhas afiadas em sua pele.

- Jinni! - murmurou.

Saltaram da cisterna e correram os olhos ao redor, ansiosos, o cansaço esquecido. O som parecia pairar no ar, sem nenhum ponto focal.

- De onde vem, Dowie? - Yasmini perguntou, mas Dorian mandou que se calasse com um gesto imperioso. Com a mão erguida a pedir silêncio, ouvidos atentos, ele rastreou o débil som pelo terraço. Quando o ruído parava, Dorian assobiava, e imediatamente Jinni guinchava outra vez. O lamento o conduziu ao ponto mais distante.

Ali, tiveram a impressão de chegar a um beco sem saída, até que Dorian ajoelhou-se e engatinhou ao longo da junção da parede do domo com a beirada do terraço, onde os gritos de Jinni eram perceptivelmente mais altos. Ervas daninhas e trepadeiras cobriam a área, porém ele avistou uma trilha pisada que indicava que alguém ou alguma coisa passara recentemente por ali. Esticou o braço e afastou o mato para o lado e levantou as trepadeiras pendentes para inspecionar a base da parede de sustentação do domo.

Viu de imediato que um pedaço de coral se partira em um ponto e que havia uma abertura larga o suficiente para Jinni ter se esgueirado para dentro. Quando colocou o ouvido na abertura, suas últimas dúvidas desapareceram. Os gritos de Jinni eram ampliados como se por um tubo de intercomunicação.

- Ele está lá embaixo! - disse a Yasmini.

Ela bateu palmas de alegria.

- Pode tirá-lo de lá, Dowie? - Então, colocou a boca no buraco e gritou: - Jinni, meu bebê! Pode me ouvir? - Foi respondida por guinchos fracos porém excitados que vinham das profundezas do orifício.

- Saia do caminho.

Dorian a empurrou de lado e começou a trabalhar para alargar o buraco com as mãos nuas. O bloco de coral não tinha argamassa, e pedaços dele se partiam em suas mãos. Mandou que Yasmini lhe trouxesse uma das varas de bambu da pilha ao pé da escada e usou a ponta da vara para arrancar as porções mais resistentes do tijolo.

Em questão de meia hora, tinha alargado a abertura o suficiente para poder se enfiar por ela. No entanto, ao espiar dentro do buraco, tudo que pôde ver foi a poeira suspensa no ar e a escuridão.

- Espere aqui, Yassie - ordenou e enfiou as pernas pela abertura.

Embora chutasse o ar em torno, não conseguiu tocar o fundo ou encontrar um apoio. Agarrou-se à borda com ambas as mãos e deixou o corpo baixar alguns centímetros de cada vez. De repente, a seção da parede desabou e, com um grito de susto, Dorian caiu pela escuridão. Esperava se esborrachar a centenas de metros e morrer, mas caiu apenas por poucos centímetros até chegar ao chão. O impacto foi tão inesperado que suas pernas cederam e ele caiu amontoado. Levantou-se.

Yasmini chamou, a voz aflita:

- Você está bem, Dowie?

- Sim.

- Posso descer?

- Não! Fique aí. Tire a cabeça do caminho para a luz entrar.

Quando a poeira assentou e seus olhos se acostumaram à penumbra, Dorian inspecionou as imediações. Um débil raio de sol vinha da abertura acima dele e, com sua luz, Dorian descobriu uma estreita passagem que parecia ter sido construída no centro da maciça parede externa da tumba. Era da largura de seus ombros e de altura suficiente para que ele pudesse andar ereto.

Os guinchos de Jinni vinham de mais perto, e Dorian se dirigiu ao ponto de onde partiam. Espirrou com a poeira. Encontrou uma porta de madeira que fechava a passagem. Estava carcomida pelos anos e pela umidade, e se soltara dos gonzos de couro. Jinni devia ter se pendurado nela e mesmo o peso de seu corpo leve fora o bastante para fazê-la desabar. Agora, encontrava-se preso debaixo dela.

Quebrara as unhas na madeira na tentativa de se livrar, e seu pêlo estava coberto de poeira e das lascas arrancadas. Dorian empurrou e ergueu a pesada porta, o suficiente para que o macaco se arrastasse para fora. Jinni não estava machucado, pulou para o dorso de Dorian e em seguida para seu ombro, e se agarrou ao pescoço do menino com ambas as mãos, aos guinchos de alívio.

- Seu animal estúpido - Dorian o repreendeu, em inglês, enquanto afagava a cabeça de Jinni para acalmá-lo. - Isso vai ensiná-lo a não perambular por onde não deve ir, seu macaco idiota.

Carregou-o de volta e estendeu-o a Yasmini, que enfiara a cabeça e os ombros pelo buraco. Em seguida, recuou, pegou a porta por uma das pontas e arrastou-a até o facho de luz. Encostou-a contra a parede da passagem e usou-a como escada para subir e passar pela abertura, de volta ao ar livre.

Estava coberto de poeira e sujeira, e enquanto Yasmini acarinhava Jinni num abraço afetuoso, Dorian lavou-se na água da cisterna.

Yasmini desceu os degraus com Jinni no colo, porém Dorian, antes de segui-los, correu num impulso e ajeitou o mato e as trepadeiras floridas para esconder o buraco na base do domo.

Somente alguns dias mais tarde, Dorian voltou a explorar a extensão da passagem secreta. Não deveria ter contado a Yasmini aquilo que planejava, pois ela insistiu em acompanhá-lo e levar Jinni. Sem que Tahi soubesse, ele pegou uma das lamparinas, uma pederneira e o bastão de ferro para acendê-la.

Tomaram precauções até excessivas para ter certeza de não serem seguidos por nenhum dos espiões de Kush ou algum comparsa, e seguiram por caminhos separados para a velha tumba. Marcaram encontro ao lado da cisterna.

- Ninguém a seguiu? - Dorian indagou quando Yasmini subiu os degraus com Jinni montado em seu ombro.

- Ninguém! - ela confirmou, quase a dançar de excitação. - O que acha que vai encontrar, Dowie? Um grande tesouro de ouro e jóias?

- Uma sala secreta cheia de crânios e ossos velhos - ele disse para provocá-la.

Ela pareceu apreensiva.

- Irá primeiro? - perguntou e tomou-lhe a mão.

Entraram pelo mato e o ajeitaram ao passarem, e, em seguida, Dorian ergueu as trepadeiras que tampavam a entrada da passagem. Espiou pela escuridão.

- Está em ordem. Ninguém a descobriu. - Agachou-se e bateu com o bastão de ferro na pederneira. Quando a lamparina acendeu e a chama firmou-se, ele disse: - Passe a luz para mim quando eu pedir. - Enfiou-se pela abertura e, uma vez lá embaixo, ergueu os olhos. - Dê-me a lamparina. - Pegou-a das mãos de Yasmini e colocou-a de lado. - Agora, venha.

Guiou-lhe o pé pendurado para que a menina se apoiasse na velha porta.

- Está quase lá. Pule!

Ela saltou para o chão e olhou ao redor. Jinni veio atrás e agarrou-se às pernas de Yasmini. Não havia espaço para que se acavalasse nos ombros da garota, portanto ele pulou para seu quadril.

- É tudo tão excitante! Nunca fiz algo assim em toda a minha vida.

- Não faça muito barulho. - Dorian pegou a lamparina. - Agora, fique atrás de mim, mas não me atrapalhe.

Moveu-se cautelosamente até onde ficava a velha porta, porém sentiu uma ponta de decepção ao ver que a passagem fora bloqueada com tijolos pouco adiante. Era um beco sem saída.

- O que será que existe além dos tijolos? - Yasmini perguntou num sussurro.

- Parece que algum dia esta passagem levava até o túmulo propriamente dito, mas alguém a fechou. De qualquer maneira, fico a imaginar por que construíram tudo isto.

- Para que o arcanjo Gabriel pudesse chegar ao túmulo para levar a alma do santo ao paraíso - Yasmini lhe disse com autoridade. - Gabriel sempre desce à Terra para recolher as almas dos homens probos.

Dorian estava prestes a ridicularizá-la, quando viu como eram grandes e transparentes aqueles olhos que o fitavam sob a luz da lamparina.

- Talvez tenha razão - concordou. - Porém vamos ver para onde a outra extremidade da passagem conduz.

Voltaram, passando sob a abertura por onde haviam entrado, e avançaram lentamente em meio à poeira que cheirava a fungo e mofo. À débil luminosidade amarelada da lamparina, o chão sob seus pés começou a declinar e, a cada poucos passos, havia degraus de pedra que desciam. O teto estava apenas a poucos centímetros da cabeça de Dorian.

- Estou com medo - Yasmini murmurou, a respiração contida. - Talvez o arcanjo fique zangado conosco por usar a sua estrada. Abraçou Jinni com força contra o peito. Com a outra mão, agarrou o kanzu de Dorian pelas costas.

Avançaram em silêncio. A passagem continuava em ângulos descendentes, até que Dorian percebeu que se encontravam bem abaixo do nível do solo. À frente, o trecho se nivelava e seguia em linha reta. Ele contou os passos.

- O que acontece se o teto desabar? - perguntou Yasmini.

- Está aqui faz centenas de anos! - Dorian exclamou, confiante. - Por que haveria de cair de repente logo agora? - Seguiu em frente, a contar os passos em voz alta.

- Trezentos e vinte dois - anunciou e, em seguida, disse, quase de imediato: - Olhe, há degraus que sobem de novo!

Subiram por eles devagar. Dorian parava a cada lance e erguia a lamparina ao alto para inspecionar o caminho adiante. De súbito, estacou outra vez.

- Está bloqueado - disse com profundo desapontamento.

Sob a luz da lamparina, viram que o teto e uma das paredes laterais tinham desabado. Ficaram imóveis, hesitantes, a fitar os tijolos amontoados.

De repente, Jinni saltou do colo de Yasmini e saiu correndo. Antes que Dorian pudesse agarrá-lo pelo rabo, o macaco desapareceu por uma pequena fresta entre a parte intacta do teto e a pilha de tijolos.

- Jinni! - Yasmini passou por Dorian e enfiou o braço pela abertura. - Ele vai ficar preso de novo. Salve-o, Dowie.

- Macaco estúpido!

Dorian começou a remover os tijolos desabados e a tentar alcançar o macaco. A todo instante, os dois ouviam os guinchos de Jinni, mas ele não voltou, embora Yasmini o chamasse, aflita. Dorian continuou a trabalhar com determinação, retirando o entulho do túnel adiante. Então, parou e subiu na pilha de tijolos.

- Estou vendo luz à frente. - Estava alvoroçado. Saltou para baixo e redobrou os esforços para remover os tijolos que ainda bloqueavam a passagem.

Uma hora depois, enxugou o rosto na barra de seu kanzu. O suor misturado à poeira era uma pasta de lama.

- Acho que agora posso rastejar pelo buraco. - Deitou-se de barriga para baixo e avançou pela abertura que abrira.

Yasmini, apreensiva, viu-lhe o tronco, depois as pernas e, por fim, os pés desaparecerem de vista. Momentos depois, Dorian chamou:

- Yassie! Está tudo bem. Pode vir.

Ela era muito menor que ele e pôde engatinhar de joelhos. Depois de uma curta distância, a luminosidade ficou mais forte, e Yasmini encontrou Dorian agachado na saída do túnel. Um véu de vegetação pendia pela boca do buraco, porém, adiante, brilhava o sol forte.

- Onde estamos? - ela perguntou, agachando-se ao lado dele.

- Não sei.

Cautelosamente, abriram a vegetação viçosa. Descortinaram um trecho de terreno rodeado por paredes caídas de blocos de coral desintegrados pelos anos e pelo tempo. A área era coberta de vegetação fechada.

- Fique aqui - Dorian disse à menina e saiu para o sol. Viu palmeiras e a verdejante floresta do mangue e, bem adiante, um vislumbre de praia branca e o oceano de um vívido azul. Reconheceu o lugar de suas explorações além dos muros. - Estamos fora do harém - disse, espantado. - O túnel passa debaixo da muralha.

- Eu nunca saí lá de dentro em toda a minha vida! - Yasmini arrastou-se até o lado dele. - Olhe, aquilo é a praia? Não podemos descer até lá, Dowie?

Ouviram vozes e se abaixaram. Um grupo de mulheres passou logo abaixo de seu esconderijo, sem olhar para o alto. Eram escravas suaílis, negras e sem véus, com grandes fardos de lenha equilibrados nas cabeças. Afastaram-se, e suas vozes foram se perdendo a distância.

- Podemos descer até a praia, Dowie? - Yasmini pediu. - Só um pouquinho. Assim, ó, um tiquinho de nada. - Quase juntou o polegar e o indicador.

- Não! Você é muito burra! - Dorian exclamou com severidade. - Os pescadores nos verão e contarão a Kush. E então, haverá outro túmulo no cemitério. Você sabe o que acontece com garotinhas que o desafiam. - Arrastou-se de volta para a boca do túnel. - Venha.

- Talvez seja a vontade de Deus que eu nunca nade no oceano com você - ela murmurou, tristonha, ainda a olhar por entre as árvores.

- Venha, Yassie. Precisamos voltar.

As palavras da menina o deixaram perturbado. Toda vez que descia para a praia e nadava até o recife, Dorian sentia uma ponta de culpa, e embora ela não tivesse voltado a falar no assunto, seu pedido se lhe imprimira na mente.

Pelas semanas que se seguiram, ele esquadrinhou a área do lado de fora da parede leste do harém e descobriu que havia muitas ruínas cobertas de mato entre as árvores. A maioria estava tomada pela vegetação rasteira ou pelas dunas de areia sopradas da praia pela monção. Levou alguns dias até que Dorian encontrasse a moita exata e os restos de coral que escondiam a boca do túnel. Quando teve certeza de que não fora observado, escalou o terreno e desceu pela abertura do buraco.

Passou várias horas a limpar a entrada para que o acesso fosse mais fácil e mais seguro e, depois, recobriu-o outra vez com frondes caídas de palmeira e galhos secos, a fim de esconder o buraco e impedir que fosse casualmente descoberto pelas suaílis catadoras de lenha.

Pediu a seu amigo Mustafá, o cavalariço, um kanzu sujo e esfarrapado, com mais remendos que o pano original, e um keffiya igualmente em trapos que até mesmo o cavalariço não usaria mais. Enrolou-os numa trouxa e escondeu-a na saída do túnel. Esperou até que a lua ficasse cheia e, depois, quando tudo estava pronto, perguntou a Yasmini:

- Quer mesmo nadar no oceano?

Ela o fitou com espanto, e então seu rostinho se franziu.

- Não caçoe de mim, Dowie - pediu.

- Esta noite, você virá jantar com Tahi e comigo. Depois das preces do Maghrib, agradecerá a Tahi e lhe dirá que precisa voltar para sua mãe. Em vez disso, irá até o terraço e se esconderá atrás da cisterna.

Aos poucos, o rosto da menina iluminou-se e seus olhos faiscaram.

- Sua mãe pensará que você está com Tahi, e Tahi pensará que você está com sua mãe. Eu a seguirei logo depois e a encontrarei lá.

- Sim, Dowie - ela concordou com veemência.

- Não vai ficar com medo de ir até lá no escuro, sozinha?

- Não, Dowie. - Yasmini meneou a cabeça com tamanha força que parecia que a soltaria dos ombros.

- Não pode levar Jinni. Ele deve ficar na sua gaiola. Promete?

- Prometo de todo o meu coração, Dowie.

Ao jantar, Yasmini estava tão inquieta e falante que Tahi a examinou com olhos suspeitosos.

- O que deu em você, menina? Está tagarelando como um bando de periquitos e se remexendo como se tivesse um carvão em brasa por dentro da calça. Tomou sol de novo sem cobrir a cabeça?

Yasmini engoliu o resto da comida que empurrara da tigela para a boca com os dedos da mão direita. Então, saltou de pé.

- Preciso ir, Tahi. Minha mãe recomendou que eu voltasse logo.

- Não terminou sua comida. Eu fiz os seus bolinhos prediletos de coco ralado com açafrão.

- Não estou com fome hoje. Preciso ir. Voltarei amanhã.

- Suas preces primeiro - Tahi a segurou na cadeira.

- Louvo e agradeço a Alá Todo-Poderoso por nos ter dado de comer e de beber, e por nos ter feito muçulmanos - Yasmini balbuciou e se levantou. Estava lá fora antes que Tahi pudesse impedi-la novamente.

Dorian esperou por um curto tempo e, então, se levantou. Espreguiçou-se todo com ar indolente.

- Vou dar uma volta pelos jardins.

Imediatamente, Tahi mostrou-se preocupada.

- Lembre-se de ser muito cauteloso, al-Amhara. Não pense que Kush o perdoou.

Dorian saiu depressa para não ter de escutar mais algum conselho.

- Yassie? - chamou baixinho ao subir a escada do terraço. Sua voz se esganiçou e desafinou: andava a lhe pregar peças ultimamente, em momentos de nervosismo ou emoção, ora a subir uma escala, ora a soar profunda. - Yassie? - Dessa vez saiu rouquenha.

- Dowie! Estou aqui. - A garota saiu agachada de detrás da cisterna e correu para encontrá-lo.

A lua começava a se erguer acima do muro externo do harém e, à sua luminosidade, Dorian levou a menina até a Estrada do Arcanjo, como tinham denominado sua passagem secreta. Enfiou-se pela abertura e encontrou a lamparina, a pederneira e o bastão de ferro onde os tinha deixado. Quando a chama queimava uniforme, ele pediu a Yasmini que descesse, e lhe amparou o corpo franzino quando ela escorregou da velha porta. A menina se apertou contra Dorian e segurou-se às suas costas pela túnica quando ele a conduziu pelo túnel.

Ao chegarem ao setor desmoronado que Dorian desobstruíra, ele apagou a chama da lamparina.

- Não podemos usar nenhuma luz - avisou.

Arrastaram-se ao longo da parede por alguns poucos metros e, por fim, puderam ver o brilho prateado da lua através das trepadeiras que ocultavam a saída do túnel. Dorian procurou o embrulho de roupas usadas que escondera num nicho na parede.

- Aqui está! Vista-os - ordenou.

- Estão fedidos - Yasmini protestou.

- Que ir comigo ou não?

Ela não discutiu mais, e houve um farfalhar de tecido quando tirou as próprias roupas e enfiou o kanzu pela cabeça.

- Estou pronta - disse, ansiosa.

Ele a levou para o luar. A túnica era muito grande para a menina, que tropeçou nos panos. Dorian ajoelhou-se diante dela e rasgou o tecido na altura dos tornozelos e depois a ajudou a arrumar o keffiya sobre a cabeça para lhe ocultar os longos cabelos.

 

- Isso é o bastante! - exclamou ao examiná-la de cima a baixo. Yasmini se parecia com um dos mendigos maltrapilhos que andavam pelas ruas da cidade ou pelas praias. O filho de um pescador, talvez, ou uma das catadoras de lenha ou de cascas de árvores do manguezal. - Vamos!

Arrastaram-se para fora das ruínas e, depois, com exagerada cautela, desceram pelos palmeirais até a beira da praia. Dorian conhecia aquele trecho da costa com intimidade. Escolhera um local onde os recifes e pedras formavam uma piscina com a maré cheia.

De frente ao trecho rochoso, havia uma enseada rasa permeada de sombras das pedras mais altas que os ocultaram ao se sentar, lado a lado, na areia dura e úmida. Olharam ao redor, para a enseada banhada pelo luar. A maré era vazante, e a areia de coral estava exposta. Era do mais puro branco, e as sombras dos pilares esculpidos de pedra pareciam desenhar listras escuras azuladas sobre a areia lisa, sem marcas. As ondas mansas que escorriam pelo recife exterior luziam, fosforescentes, e lhe iluminavam as faces intermitentemente.

- É lindo! - Yasmini murmurou. - Eu jamais acreditaria que fosse tão lindo.

- Vou nadar - disse Dorian e levantou-se. Tirou seu kanzu e chutou as sandálias para o lado. - Vem comigo?

Sem esperar por uma resposta, seguiu para a água. Na beira da piscina, voltou-se e olhou para trás.

Yasmini vinha da enseada caminhando como uma corça a tremer nas pernas que pareciam longas demais para seu corpo infantil. Tirara a túnica rasgada e estava tão nua como ele. Dorian já vira escravas meninas nos mercados, mas nenhuma possuía aquela graça delicada. Os cabelos lhe caíam pelas costas até as nádegas pequenas e roliças, a trança entre o manto de zibelina luzia em fios prateados com o luar.

Quando se aproximou, Yasmini estendeu a mão num gesto inocente e pegou a dele. Seus botões dos seios cremosos eram mal definidos, delicados outeiros, porém os mamilos pequeninos apontavam orgulhosos, eriçados pelos ares frios da monção. Dorian os fitou, e o fizeram sentir-se estranho, com uma sensação de desacostumado aperto na boca do estômago.

De mãos dadas, entraram na piscina. A água estava mais quente que o ar da noite, morna como o próprio sangue dos dois. Yasmini afundou-se nela, até que seus longos cabelos flutuavam a seu redor como as folhas do lótus aquático, e ela soltou uma risada cheia de alegria.

A lua ia pela metade de seu zénite quando, por fim, Dorian disse à menina:

- Não podemos ficar aqui por mais tempo. É tarde, precisamos voltar.

- Nunca me senti assim tão feliz - ela murmurou. - Jamais na minha vida. Gostaria que pudéssemos ficar assim para sempre. - Levantou-se, porém, obediente, e a água prateada banhou de beleza seus longos membros esguios.

Caminharam de volta à praia e deixaram pegadas como um duplo colar de pérolas sobre a areia pálida.

Diante da boca da caverna, Yasmini virou-se para Dorian.

- Obrigada, Dowie. - Então, de repente, lançou os dois braços em torno dele e o abraçou com força. - Eu o adoro, meu irmão.

Dorian ficou tenso com o abraço. A sensação daquele corpo miúdo contra o seu, o calor da pele da menina entre as gotas frias de água do mar, provocaram novamente nele aquela estranha sensação na boca do estômago.

Ela deu um passo atrás e riu.

- Estou toda molhada. - Pegou um punhado dos fartos cabelos negros e torceu-o. A água escorreu para a areia.

Dorian apanhou seu kanzu do lugar onde o tinha deixado.

- Vire-se! - disse, e, obediente, Yasmini lhe ofereceu a curva esguia das costas. Ele a enxugou com gestos bruscos nas dobras da túnica. - Do outro lado agora.

Ela voltou-se para encará-lo, e Dorian passou o pano por aqueles montes suaves e mornos do peito da menina e, depois, embaixo, no ventre.

- Faz cócegas!

Sua linha do estômago era suave e côncava, a única mancha visível sendo a cavidade do umbigo, e, em sua base, a pequena protuberância vertical de pele sem pêlos entre as coxas.

- Agora, ponha o seu kanzu - ele ordenou, e ela se virou e pegou a roupa da areia.

Dorian viu que suas nádegas eram pequenas e perfeitamente redondas. Sentiu uma constrição no peito, e puxou a respiração com dificuldade.

Yasmini se endireitou e enfiou o sujo kanzu pela cabeça e, ao passar o rosto pela abertura, viu que ele ainda continuava parado a observá-la. Yasmini esboçou um sorriso enviesado. Depois, enquanto torcia os cabelos numa corda grossa e os enfiava debaixo do keffiya, examinou o corpo de Dorian abertamente, sem nenhum senso de culpa ou pecado.

- Você é tão branco onde o sol não o tocou... e... olhe! Tem pêlos aqui embaixo. - apontou, surpresa. - Da mesma cor dos seus cabelos. Brilham como seda ao luar. É lindo - maravilhou-se.

Ele se esquecera da suave penugem que se espalhara por sua virilha nos últimos meses. Pela primeira vez, sentiu-se envergonhado, quase culpado, na frente dela, e cobriu-se mais que depressa com sua própria túnica úmida.

- Precisamos ir embora! - disse, e Yasmini teve de correr para alcançá-lo quando Dorian rumou para o túnel que levava ao harém.

Na segurança do esconderijo, ela tirou a túnica imunda e vestiu as próprias roupas.

- Está pronta? - Dorian perguntou.

- Sim, Dowie. - Mas antes que ele pudesse seguir em frente, ela agarrou-lhe a mão com ambas as suas. - Obrigada, meu irmão - murmurou. - Nunca me esquecerei do que fizemos esta noite, nunca, nunca!

Dorian tentou livrar-se das mãos da menina. Suas emoções o confundiam, e ficou quase zangado com ela por fazê-lo sentir-se daquele jeito.

- Podemos voltar outra vez, Dowie? - Yasmini implorou.

- Não sei. - Puxou a mão para se libertar. - Talvez.

- Por favor, Dowie. Foi muito divertido.

- Bem... então, veremos.

- Serei muito boazinha. Farei tudo que disser. Não vou aborrecê- lo ou me mostrar petulante com você nunca mais. Diga que sim. Por favor, Dowie.

- Tudo bem, Yassie. Voltaremos outra vez.

Uns poucos dias depois daquela incursão pela Estrada do Arcanjo e antes que Dorian pudesse honrar sua promessa a Yasmini, Kush veio aos aposentos do menino. Apareceu de manhã cedinho, antes que o sol tivesse nascido, e com ele estavam dois de seus escravos eunucos. Tahi o recebeu à porta e tentou impedir que entrassem.

- O que quer com al-Amhara? - perguntou.

- Ponha-se de lado, sua velha porca - ordenou Kush. - O menino não está mais sob os seus cuidados.

- Você veio tirá-lo de mim. - Sua voz tremeu, e Tahi agarrou-o pelo colete bordado quando Kush tentou passar por ela.

- Afaste-se, eu lhe avisei! - Enterrou o cabo de seu cajado na barriga de Tahi, e ela dobrou-se ao meio de dor.

- Traga o infiel! - Kush ordenou a seus dois escravos, e eles correram para o pequeno quarto de Dorian.

Ele já se sentava na cama, acordado em sobressalto pela voz aguda e penetrante de Kush que vinha da porta vizinha, e esfregava os olhos. Os eunucos o agarraram pelos braços e o arrastaram até onde Kush se encontrava.

- Tirem isso fora. - Kush apontou com o cajado para o kikoi amarrado em torno dos quadris de Dorian. Eles o puxavam, e Kush sorriu com lascívia. - Eu sabia. Um belo jardim você está cultivando aí. - Com a ponta do cajado, revolveu o ninho de cachos de um vermelho dourado que agora recobriam o monte pubiano de Dorian.

Dorian tentou cobrir-se, mas eles o forçaram a se endireitar.

- Chegou a hora de se livrar dessa coisa. - Apontou um dedo gordo para o menino, com ar de nojo. - Vamos tirar esse pedaço de pele malcheirosa.

- Não me toque! - Dorian gritou, furioso, sua voz esganiçada, as faces a requeimar de rubro escarlate de raiva e humilhação. - Tire suas mãos gordas de mim, sua coisa sem bolas.

O trejeito de escárnio sumiu dos lábios de Kush, e ele afastou a mão.

- Diga seus salaams para aquela velha porca. - Olhou com ódio para Tahi. - Não a verá mais. Meus rapazes aguardarão com você enquanto arruma seus pertences. Está deixando o harém. A faca o espera, e uma nova vida depois disso.

À porta, Tahi agarrou-se a Dorian.

- Você é o filho que eu nunca tive - murmurou. - Eu o amarei por toda a minha vida.

- E eu a amarei também, Tahi. Não consigo me lembrar de minha própria mãe, mas ela deve ter sido como você.

- Seja um homem e um guerreiro, al-Amhara. Faça-me orgulhosa.

- Diga a Yasmini... - Calou-se. Que recado poderia deixar para a pequenina? Enquanto pensava, os escravos o puxaram para fora da porta. Desesperado, ele gritou para Tahi: - Diga a Yasmini que nunca me esquecerei dela. Diga que sempre será minha irmãzinha.

Os escravos o levaram até onde o carro de bois esperava, no pátio da frente do harém. Um pequeno ajuntamento de crianças e mulheres da criadagem se reunira para vê-lo ir embora, mas Yasmini não se encontrava entre elas, embora Dorian a procurasse enquanto rodavam para fora dos portões.

- É sempre difícil e perigoso quando o rapazinho é mais velho - Ben Abram observou. - Isso deveria ter sido feito bem antes, não agora aos treze anos, com ele no limiar da puberdade.

- O menino vem do mundo infiel e permanecerá num estado de abominação até que o ritual seja realizado. Isso deve ser feito antes que o príncipe regresse de Mascate - al-Allama retrucou. - Se ele é verdadeiramente o menino da profecia, então Alá o protegerá.

Dorian estava de pé, completamente nu, diante deles. Encontravam-se no terraço do palácio que dominava o porto. Além do médico e do santo mulá, havia uma jovem escrava negra com eles, uma pagã que não teria a reputação prejudicada em ajudar Ben Abram.

Ben Abram distribuiu seus instrumentos por sobre a mesa baixa e depois fitou Dorian bem dentro dos olhos.

- A dor é nada para um homem. A honra é tudo. Lembre-se disso por toda a sua vida, meu filho.

- Não fraquejarei, velho pai - Dorian respondeu. Tinham conversado sobre aquilo muitas vezes antes.

- Bismilla-hi Allahu akbar! - Ben Abram disse baixinho. - Dou início ao ritual em nome de Deus Todo-Poderoso. Alá é grande!

Ao mesmo tempo, o mulá começou a recitar uma sura do Alcorão numa entonação lenta e sonora.

- Damos início às preces, em nome de Alá, que é muito gentil e misericordioso. Ó Alá, conceda-lhe a fé plena, eterna segurança, abundância de provisões, maturidade da mente, conhecimento benéfico, orientação para realizar ações probas, caráter nobre, honra e riqueza sonora.

Ben Abram fez um gesto para a escrava, que se ajoelhou em frente a Dorian e lhe segurou o pênis. Começou a manipulá-lo com um suave movimento. Com rapidez, o membro se intumesceu e ficou rijo, e a garota desviou os olhos com modéstia, mas continuou a acariciá-lo até que estava totalmente ereto. Então, Ben Abram escolheu da bandeja uma pequena faca afiada como navalha e se aproximou. Murmurou suavemente para a escrava:

- Basta! - E ela se afastou.

- Em nome de Alá! - Ben Abram exclamou, e fez a primeira incisão rápida com a lâmina.

Dorian inteiriçou o corpo com a sensação ardente, mas cerrou os dentes e calou o grito de dor antes que Lhe chegasse aos lábios. Em seguida veio o próximo corte e o outro, mas ele ainda continuou a sufocar qualquer lamento, e sentiu o sangue correr morno por suas coxas.

Por fim, Ben Abram pôs a faca de lado.

- Em nome de Deus, está feito! - E envolveu o ferimento em ataduras.

Dorian sentiu suas pernas fraquejarem, porém manteve a expressão contida na face e os olhos abertos. Mesmo al-Allama deu voz à sua aprovação:

- Agora, você é um homem. - Tocou a testa de Dorian numa bênção. - E se portou como um homem de verdade.

Ben Abram tomou-lhe o braço e conduziu-o a um quarto nos fundos do palácio onde uma esteira de dormir estava estendida para recebê-lo.

- Voltarei pela manhã para trocar as ataduras - prometeu.

Ao amanhecer, Dorian estava corado e quente, e a ferida, feia e inflamada. Bèn Abram trocou as bandagens e aplicou um ungiiento calmante. Depois, administrou-lhe uma poção de gosto amargo. Em questão de dias, a febre diminuiu e a cicatrização começou. Não demorou muito e as crostas haviam sumido, e Ben Abram deixou que Dorian fosse sozinho até a beira do mar, para nadar nas mornas águas claras, e ao estábulo real, para ajudar os cavalariços a exercitar os cavalos do príncipe. Também permitiu que galopasse pela macia areia branca das praias e se juntasse aos amigos nos violentos jogos de pulu.

Pouco depois disso, uma vela foi avistada a chegar pelo canal, e as sentinelas nas muralhas do palácio divisaram o pendão real no mastro principal. A população inteira da ilha afluiu às praias para saudar o retorno do príncipe Abd Muhammad al-Malik de Mascate, a capital omaniana.

O príncipe pisou em terra sob o ribombar dos canhões das ameias do forte, as ululações das mulheres e os gritos de adoração dos homens. A guarda disparou seus longos arcabuzes de cano longo para o ar, enquanto os tambores rufavam e as flautas trinavam.

 

Dorian estava com os cavalariços, que seguravam os cavalos na beira da praia. Ajudara a polir os arreios e a dar brilho às turquesas que adornavam a sela do príncipe e as correias da brida. Como Dorian era um filho adotivo, o cavalariço-chefe tinha concordado em lhe conceder a honra de conduzir o corcel de al-Malik à frente e segurá-lo para que o príncipe o montasse.

Dorian viu o príncipe deixar a praia, a multidão a se abrir perante ele, e seus súditos se prostrarem no chão na tentativa de lhe beijar a barra da túnica quando ele passava. Fazia cerca de um ano desde que o vira pela última vez, e Dorian tinha se esquecido de como era alto e de aparência régia, em seus mantos brancos como a neve, com a grande adaga na bainha incrustada de pedras preciosas, seu cabo polido de chifre de rinoceronte a brilhar com um suave lustro de âmbar. A tiara que prendia seu keffiya no lugar era de fios trançados de ouro. Caminhava diretamente para onde Dorian esperava por ele, a sorrir e a retribuir as saudações de seus súditos com a gesticulação elegante da bênção, tocando o coração e os lábios.

- Salaam aliekum, grande senhor! - Dorian inclinou-se em reverência.

Mesmo que sua voz se perdesse no tumulto da multidão, o príncipe o olhou diretamente na face, e Dorian percebeu, pela expressão feliz em seus olhos escuros, que ele o reconhecera. Inclinou ligeiramente a cabeça real e, em seguida, saltou para a sela com a graça de um exímio cavaleiro. Rumou para o forte.

O príncipe estava sentado com seus cortesãos mais íntimos no terraço do palácio, a beber café, atento ao relato dos homens que, em sua ausência, haviam sido encarregados da administração da ilha e das colônias.

- Tem havido muitos navios europeus que buscam o porto em Zanzibar - seu vizir lhe disse - Mais a cada mês, agora que o kusi os traz do sul. Todos interessados em comerciar marfim e escravos.

O Sultanato de Zanzibar fazia parte dos domínios do príncipe, e uma parcela dos lucros de seus mercados seguia para seus tesouros. Ele poderia ter certeza de que seu subserviente sultão espoliaria o infiel de cada rupia que o comércio pudesse proporcionar.

- Ali Muhammad deve alertar os capitães infiéis de que eu não tolerarei a presença de seus navios ao norte de Zanzibar. Proíbo terminantemente isso. - O ouro e as mercadorias que os infiéis traziam eram bem-vindos, mas al-Malik sabia muito bem da avareza e falta de idoneidade dos europeus. Já tinham estabelecido feitorias e bases no Império do Grão-Mogol. Assim que tivessem uma soleira para entrar, seria impossível fazê-los arredar pé. Não deveriam ter permissão para chegar tão ao norte, como em Lamu.

- Ali Muhammad está plenamente ciente de suas ordens. Se qualquer navio infiel se aventurar por aquelas águas, Vossa Excelência receberá um relatório por um caíque veloz.

O príncipe fez um gesto de concordância.

- Se a demanda por marfim é tão grande, como estão as nossas fontes no continente?

- O marfim é a cada ano mais escasso, e a demanda dos infiéis é cada vez maior.

Em grande parte, os mercados de Zanzibar e Lamu dependiam das tribos negras pagãs do interior da África para suprir suas necessidades. As tribos não dispunham de mosquetes com que caçar os enormes paquidermes. Seus métodos consistiam em armar primitivas armadilhas

Nota de Rodapé: Ajudante ou assessor; ministro.

Fim da nota.

alinhadas com estacas pontiagudas para dentro das quais tentavam impelir os elefantes. Havia uns poucos e intrépidos caçadores dentre eles que eram capazes de derrubar um elefante com arco e flecha, mas o resultado desse método era magro.

- Talvez devêssemos vender mosquetes aos chefes para ajudá-los a conseguir maiores quantidades, não acha? - um cortesão sugeriu com cautela, porém o príncipe meneou a cabeça com veemência.

- É muito perigoso - disse. - Isso pode encorajá-los a se revoltar contra a nossa autoridade. Estaríamos abrindo a porta da jaula do leão.

Discutiram a questão à larga e, depois, o príncipe voltou sua atenção para o comércio de escravos.

- Como recolhemos os escravos nas áreas costeiras, eles têm se embrenhado para o interior. Como os elefantes, tornam-se mais selvagens e mais cautelosos. A cada estação, o número dos que conseguimos capturar decai.

Da mesma maneira que com o marfim, os árabes dependiam dos chefes do interior, mais aguerridos, que viviam em constantes confrontos com seus vizinhos, para capturar escravos entre seus tradicionais inimigos tribais e depois levá-los aos pontos de reunião nas praias dos grandes lagos.

- Podemos considerar em enviar nossos próprios guerreiros às florestas para capturar escravos - um dos conselheiros propôs.

O príncipe coçou a barba, pensativo.

- Teríamos de mandar homens bons e ousados. Não podemos adivinhar o que encontrarão nas selvas. Só temos a certeza de que será perigoso e difícil. - Fez uma pausa para considerar a sugestão mais a fundo. - Eu lhe comunicarei minha decisão sobre isso mais tarde. Nesse ínterim, porém, faça uma lista dos nomes de cinqüenta homens a quem poderia ser confiada a liderança de uma tal expedição.

Trataram de cada um dos assuntos concernentes ao comércio, mas antes de abordar outros tópicos mais sérios, al-Malik dispensou os membros de menor importância de seu conselho e manteve a seu lado apenas cinco dos homens mais antigos e confiáveis para falar da avaliação de sua visita a Mascate. Aquele era um terreno perigoso, que recendia a conspiração e traição. O califa, al-Uzar ibn Yaqub, era quarenta anos mais velho que o príncipe, nascido de uma das esposas de seu pai quando este era muito jovem. Al-Malik era filho da senilidade de seu pai e da sua jovem favorita, mas como todo tratador de cavalos sabia, "um velho garanhão e uma égua nova geram os melhores potros".

O minúsculo império omaniano estava sob grave ameaça dos otomanos conquistadores, aquele poderoso império com capitais em Istambul e Bagdá, e que se espalhava pela maior parte do mundo árabe. Os únicos Estados que até então haviam resistido a eles eram uns poucos pequenos principados sob a proteção dos califas turcos ao norte, ou aqueles bem-sucedidos em se defender das depredações dos otomanos.

Omã era protegido por sua poderosa frota contra ataques vindos do mar. Qualquer agressor que tentasse chegar por terra pelo norte se veria confrontado pelas terríveis areias de Rub al Khali, o Quadrante Vazio, e pelos guerreiros do deserto, que compunham o pequeno exército omaniano, e para quem o deserto era o lar.

Por mais de cem anos Omã desafiava os conquistadores otomanos e poderia continuar assim por outros cem se fosse liderado por um homem forte e habilidoso. Ibn Yaqub não era tal homem. Passava dos setenta anos de idade e preferia as intrigas e as conspirações políticas aos rigores e às vicissitudes da guerra. Sua preocupação principal era sempre salvaguardar sua própria posição de poder em vez de proteger e manter unida sua pequena nação. No processo, perdera o respeito de suas tribos, pois os omanianos eram constituídos de muitas, cada qual sob seu próprio xeque. Sem direção firme, aqueles duros homens do deserto estavam perdendo seu senso de finalidade e determinação, começavam a discutir entre si e a ressuscitar antigos feudos tribais de sangue, rejeitando o domínio do velho vacilante, cruel e ardiloso em Mascate.

A autoridade de ibn Yaqub ainda se mantinha apenas perto de sua cidadela, mas seu alcance naqueles desertos causticantes e através das águas infinitas do oceano das índias era cada vez mais diluído e insubstancial. Os xeques do deserto e os comandantes de caíque seguiriam apenas um homem a quem respeitassem.

Alguns já haviam enviado emissários secretos a al-Malik, que dera mostras de ser um homem poderoso e um guerreiro sem par. Todos sabiam que o califa o banira para o posto avançado do império em Lamu porque temia a influência e a popularidade de seu meio-irmão. Os mensageiros prometiam que, se ele retornasse à Arábia, para Omã, e encabeçasse uma revolta contra o irmão, os xeques se rebelariam atrás dele. Com al-Malik ao leme do Estado, mais uma vez se uniriam contra os otomanos.

- É seu dever e seu direito dado por Deus. Se vier a nós, então os mulás declararão a jihad, a guerra santa, e nós nos ergueremos em levante com Vossa Excelência para destronar o tirano - prometiam.

Aquelas eram questões terríveis e repletas de perigos medonhos. Se falhassem, nenhum dos seis homens sentados no terraço tinha dúvidas das conseqüências que recairiam sobre si pessoalmente. Permaneceram ali por longo tempo a debater as chances de sucesso e a justiça de sua causa.

Quando o conselho começara os debates, os caíques na praia abaixo estavam presos pela maré, no alto e em seco, e adernados. Longas filas de escravos iam e vinham pela areia exposta para descarregar suas cargas. Enquanto os conselheiros falavam, a maré começou a subir e, gradualmente, os navios se endireitaram e flutuaram livres. Içaram suas velas e seguiram para o canal. Recém-chegadas do continente, naus pesadamente carregadas de mercadorias atracaram na praia. Os seis homens ainda falavam e debatiam, e a maré atingiu a cheia e, em seguida, começou seu fluxo vazante.

Durante todo aquele tempo, al-Malik ficou a escutar, falando pouco, e permitiu que cada um dos outros dissesse o que se passava em seu coração, sem interromper ou opor restrições. Com todo o cuidado, fez um crivo das jóias de sabedoria e da escória, separou o joio do trigo.

Revisaram o ordenamento de batalha das forças nas quais poderiam confiar, e fizeram listas dos xeques que não estavam comprometidos e ainda tinham dúvidas. Compararam com as forças que ibn Yaqub comandava.

Somente quando ouvira tudo que eles tinham a dizer, al-Malik tomou sua decisão.

- Dependerá das tribos do deserto profundo, do Saara, do Dahna e do Karab. São os maiores guerreiros de todos os omanianos. Sem eles, nossa causa não pode prosperar. Nós, entretanto, não temos suas posições. Não sabemos em que direção apontarão a lança de guerra.

Seus conselheiros resmungaram sua concordância, e al-Malik disse suavemente:

- Devo ir até eles.

Todos se calaram por um momento, a considerar aquele ousado curso de ação, e, então, al-Allama argumentou:

- Seu irmão, o califa, não permitirá. Se insistir, ele irá farejar perigo ao vento.

- Farei a haj, a peregrinação a Meca, e tomarei a antiga rota do deserto para os Lugares Sagrados, a estrada que passa pelo território das tribos. O califa não pode proibir uma peregrinação, sob pena da condenação eterna.

- Há um risco muito grande - al-Allama ponderou.

- Jamais há grande ganho sem grande risco - al-Malik retrucou -, e Alá é grande.

- Allah akbar! - todos entoaram. - Certamente, Deus é grande.

Al-Malik fez um gesto gentil de despedida e, um a um, todos vieram abraçá-lo, beijar sua mão, e saíram. Al-Allama foi o último, e al-Malik lhe disse:

- Fique comigo. É a hora do Maghrib, das preces ao pôr-do-sol. Rezaremos juntos.

Duas escravas trouxeram jarros de água pura da fonte, e os dois homens se entregaram à purificação ritual: lavaram as mãos na água que as moças verteram das jarras de prata, enxaguaram a boca por três vezes, sorvendo três vezes a água da mão direita em concha e assoprando-a pelas narinas, ajudando-se com os dedos da mão esquerda, e, em seguida, lavaram o rosto, braços e pés.

As escravas saíram do terraço e al-Allama postou-se de face para a Caaba, em Meca, a milhares de quilômetros ao norte. Ergueu as mãos em concha atrás das orelhas e começou a entoar o chamado da prece em voz altissonante:

- Deus é grande. Presto testemunho de que Maomé é o mensageiro de Deus. Venham rezar! Venham para seu próprio bem!

Abaixo deles, no pátio e sob as palmeiras ao longo da beira da praia, centenas de figuras em tónica reuniram-se em silêncio e tomaram a postura de reverência, todas voltadas na mesma direção.

- A prece começou! - cantou al-Allama.

Quando as orações terminaram, al-Malik fez um gesto para o mulá para que se sentasse na almofada à sua direita.

- Vi o menino, al-Amhara, na praia, quando cheguei. Diga-me como ele tem passado em minha ausência.

- Cresce como um tamarindeiro, forte e alto. Já é um excelente cavaleiro. Tem a mente ágil e uma língua rápida, às vezes rápida demais. Com freqüência é inclinado à falta de respeito para com os mais velhos e superiores. Não aceita com presteza crítica ou restrição. E quando está zangado ou frustrado, sua escolha de impropérios faria um capitão do mar empalidecer - al-Allama disse, empertigado.

Al-Malik ocultou o sorriso atrás da borda de sua xícara de café. O que ouvia só o fazia gostar mais de seu filho infiel. Al-Amhara seria um líder.

Al-Allama prosseguiu:

- Chegou à puberdade, e foi adequadamente circuncidado por Ben Abram. Quando chegar a hora de aceitar o islã, ele estará pronto.

- Isso é ótimo! - exclamou o príncipe. - E, diga-me, santo pai, seus ensinamentos frutificaram nessa direção?

- Ele agora fala nossa língua como se nascido para isso, e pode recitar longos trechos do Sagrado Alcorão de memória. - Al-Allama parecia incomodado e evasivo.

- Fez algum progresso rumo a se submeter a Deus? - al-Malik insistiu. - Sem isso, a profecia não pode se realizar.

- O próprio Profeta disse que nenhum homem pode ser forçado a se converter ao islã. Ele deve chegar a isso de sua própria maneira e em seu próprio tempo.

- Quer dizer que sua resposta é não?

- Ele se empenha em discutir e extrai enorme prazer nisso. Algumas vezes creio que a única razão para que memorize o Alcorão seja para argumentar comigo. Glorifica a religião de seu próprio povo e se vangloria de que um dia será admitido em uma ordem religiosa cristã, que ele chama de Cavaleiros da Ordem de São Jorge e do Santo Graal, como seu avô e seu pai, antes dele.

- Não nos cabe questionar os caminhos de Alá - disse al-Malik.

- Deus é grande! - Al-Allama endossou a assertiva. - Porém há mais a dizer com relação ao menino. Recebemos um pedido de informação, solicitado pelo cônsul inglês em Zanzibar, concernente a ele.

Al-Malik inclinou-se para a frente, ansioso.

- Pensei que o cônsul em Zanzibar tivesse sido assassinado há um ano, não foi?

- Esse era o homem chamado Grey. Desde sua morte, os ingleses mandaram outro para assumir seu lugar.

- Entendo. O que diz o pedido?

- Descreve o menino com exatidão, sua idade e cor. Sabem que al-Amhara foi capturado por al-Auf e que foi vendido como escravo. Sabem também que foi comprado por Vossa Excelência. Sabem o nome que nós lhe demos, al-Amhara.

- Como tiveram conhecimento de tudo isso? - Linhas de preocupação vincaram a testa de al-Malik.

- Não sei. Ben Abram me contou muita coisa a respeito da linhagem do menino. Conheceu e falou com o irmão mais velho de al-Amhara quando os infiéis o capturaram na base de al-Auf.

O príncipe meneou a cabeça.

- O que o doutor sabe acerca do menino?

- Sua família é nobre, próxima ao rei inglês. A despeito de sua juventude, o irmão de al-Amhara é um excepcional marinheiro de combate, e fez um juramento solene de encontrar e resgatar seu irmão mais novo. Talvez seja sua família que esteja por trás desse pedido de informação de Zanzibar. Não temos certeza, mas seria prudente não ignorar as perguntas que nos foram feitas.

Al-Malik ponderou sobre aquilo e, em seguida, perguntou:

- Os ingleses são compradores e proprietários de escravos. Como podem objetar quanto à mesma prática nos outros? O que podem fazer para nos dobrar à sua vontade? Sua terra é distante, nos confins do mundo. Não podem enviar um exército contra nós.

- Ben Abram diz que os ingleses usam de maneiras pérfidas de fazer guerras. Conferem licenças aos capitães de seus navios mercantes armados para que ataquem seus inimigos. Esses homens são como tubarões ou barracudas. Vêm em busca de pilhagem.

- O rei inglês declararia guerra contra nós por causa de xamã criança?

- Ben Abram receia que ele possa declarar. Não apenas pelo menino, mas também como desculpa para enviar seus navios até nossas águas e se apoderar do território e das riquezas dos omanianos.

- Refletirei sobre tudo isso que me contou. - Al-Malik dispensou o mulá. - Mande Ben Abram e o menino a mim, amanhã, aqui, depois das preces do Zuhr.

Para a sua audiência com o príncipe, Dorian chegou consumido de ansiedade e excitação diante da perspectiva. Quando vira o príncipe pela primeira vez, não alimentara nenhuma dúvida: al-Malik era apenas outro muçulmano, um inimigo e um chefe pagão. Contudo, aprendera muito desde que fora colocado sob a instrução de al-Allama e Ben Abram. Sabia agora que o direito do príncipe à realeza remontava a tão longe quanto o do rei inglês, sabia de seus feitos como marinheiro e guerreiro, da reverência de seus súditos com relação a ele. Além disso, o cordão umbilical espiritual que ligava Dorian à Inglaterra e ao cristianismo ia se esfiapando e rompendo com o tempo e a enorme distância.

Atualmente, nunca tinha oportunidade de falar seu próprio idioma, pensava em árabe e encontrava dificuldade em se recordar de palavras inglesas até nas conotações mais simples. Mesmo suas recordações da família estavam esmaecendo. Pensava em seu irmão Tom apenas ocasionalmente, e todas as suas idéias de fuga de Lamu tinham sido abandonadas. Não mais julgava seu estado ali na ilha como de alguém no cativeiro. Lentamente, deixara-se absorver pelo mundo árabe e pela maneira de pensar dos árabes. Agora, mais uma vez diante do príncipe, sentia-se dominado de admiração e respeito.

Ao se ajoelhar em frente a al-Malik, sobre as pedras de coral do terraço, e a lhe pedir a bênção, seu coração disparou mais rápido de surpresa e prazer pela forma com a qual o príncipe respondeu à saudação:

- Venha e sente-se a meu lado, meu filho. Temos muito a discutir.

Aquele homem impressionante e régio o reafirmava como seu filho na frente daquelas testemunhas. Dorian encheu-se de orgulho e, depois, experimentou uma aguda ponta de culpa. Teve uma fugidia visão da imagem de seu verdadeiro pai, mas o retrato em sua mente da face de Hal tornara-se borrado.

Sempre serei fiel a meu pai de verdade, prometeu a si mesmo, com entusiasmo, mas, de pronto e feliz, obedeceu ao convite de al-Malik.

- Em minha ausência, você se tornou um homem. - Al-Malik examinou-o com atenção.

- Sim, meu senhor - respondeu Dorian, e se interrompeu para acrescentar automaticamente: - Pela graça de Alá.

- Posso ver que assim é. - Al-Malik percebeu os contornos da musculatura firme e jovem e a postura forte dos ombros debaixo do kanzu que Dorian usava com naturalidade. - E é, por conseqüência, adequado que você se liberte do nome de criança e assuma em seu lugar o nome de um homem. Doravante, será chamado de al-Salil.

- É a vontade de Alá - al-Allama e Ben Abram entoaram juntos. Ambos pareciam orgulhosos e felizes com a honra que o príncipe concedia a seu protegido. Redundava em crédito a eles, pois o nome que o príncipe escolhera era propício: significava Espada em Riste.

- Sua benevolência é como o nascer do sol depois da noite escura - Dorian retrucou, e al-Allama fez um gesto de aprovação diante da escolha das palavras e sua inflexão.

- É também adequado que você tenha seu próprio lanceiro. - Al-Malik bateu palmas, e um jovem entrou no terraço com passadas longas e arrastadas como as de um camelo numa corrida. Era provavelmente quinze anos mais velho que Dorian, no final dos vinte, e um guerreiro, pelas vestes e aparência. Usava uma cimitarra curva na cintura e carregava um escudo redondo de bronze no ombro.

- Este é Batula - o príncipe o apresentou a Dorian. - Fará seu juramento a você.

Batula aproximou-se de Dorian e ajoelhou-se diante dele.

- Deste dia em diante, sois meu senhor feudal - declarou com voz clara e forte. - Vossos inimigos são meus inimigos. Aonde quer que fores, eu portarei vossa lança e vosso escudo à vossa direita.

Dorian pousou a mão sobre o ombro de Batula em aceitação de seu juramento, e Batula levantou-se. Os dois se encararam e, instintivamente, Dorian gostou do que viu ali. Batula não era bonito de feições, mas seu semblante era honesto e franco, e seu nariz, largo e aquilino. Quando sorriu, seus dentes eram perfeitos e brancos. Seus fartos cabelos negros eram untados de manteiga derretida e presos numa trança sobre um dos ombros largos.

- Batula é um expoente da lança - al-Malik disse - e um guerreiro treinado em batalha. Tem muito a lhe ensinar, al-Salil.

A lança era a arma do verdadeiro cavaleiro árabe. Dorian observara os aprendizes na prática no campo de armas, e se empolgara com a carga das patas velozes dos magníficos cavalos, com o lampejo metálico das pontas das lanças quando apanhavam um anel de bronze suspenso no ar, em pleno ataque.

- Serei um aluno dedicado - prometeu Dorian.

Al-Malik dispensou Batula. Quando este deixou o terraço, o príncipe prosseguiu:

- Muito em breve enfrentarei outra longa jornada ao norte, a peregrinação a Meca pelas areias e a imensidão dos desertos. Você me acompanhará, meu filho.

- Meu coração se enche de júbilo por me escolher, grande senhor.

Al-Malik fez o gesto de despedida e, quando Dorian se foi, voltou-se para al-Allama e Ben Abram.

- Vocês mandarão uma mensagem ao sultão em Zanzibar para que ele a transmita ao cônsul inglês de lá. - Fez uma pausa para escolher as palavras, depois continuou: - Digam-lhe que, realmente, o príncipe al-Malik comprou al-Amhara de al-Auf. Fez isso para tomar o menino sob sua proteção e para resguardá-lo do mal. Digam-lhe que, a despeito de tudo que al-Malik fez para protegê-lo, al-Amhara caiu doente de uma peste e que morreu faz um ano. Está enterrado aqui na ilha de Lamu. Digam-lhe que al-Malik assim se pronunciou.

Al-Allama fez uma reverência.

- Será como Vossa Excelência ordena. - Estava impressionado com a engenhosa solução.

- Al-Amhara está morto - prosseguiu al-Malik. - Vocês mandarão erigir uma lápide no cemitério com esse nome gravado nela. Al-Amhara está morto. Al-Salil vive.

- Pela graça de Deus - al-Allama acatou a ordem.

- Levarei o menino comigo para o deserto e o deixarei com a tribo do Saara para escondê-lo. Lá, nas areias, aprenderá a vida de um guerreiro. Com o tempo, os infiéis esquecerão que ele algum dia existiu.

- Essa é uma sábia decisão.

- Al-Salil é mais que filho para mim, é meu talismã vivo. Jamais desistirei dele para as demandas dos infiéis - disse, num tom suave porém firme.

A Andorinha entrou pelo canal e depois seguiu para o atracadouro de Zanzibar. Adiante, havia dez navios de velas redondas a balançar na ancoragem, além de uma confusão de caíques árabes. Tom Courtney examinou-os cuidadosamente. Ostentavam as bandeiras de algumas das maiores nações mercantes do hemisfério norte, com a preponderância das portuguesas e espanholas.

- Nenhum francês à vista, sr. Tyler - Tom anunciou, com alívio. Não tinha interesse nas complicações de partilhar um porto neutro com naus do inimigo.

- Não - concordou Ned. - Mas há pelo menos um mercante anglo-indiano. - Apontou para a nau avantajada, uma princesa do oceano, a exibir a majestade da Companhia. - Eles nos darão boas-vindas ainda mais frias do que os franceses dariam.

Tom sorriu, despreocupado.

- Não dou nem um figo podre por eles - disse. - Não podem nos fazer nada fora das Cortes da Inglaterra, e não voltaremos lá por algum tempo. - E emendou, de dentes cerrados: - Não até que me arrastem para lá acorrentado. - Ergueu os olhos para seu próprio mastro desprovido de qualquer bandeira. Não queria anunciar sua nacionalidade. - Tão logo ancoremos, irei a terra para fazer uma visita ao novo cônsul - disse a Ned.

Na baía da Mesa, haviam conversado com o capitão de outro navio inglês ao aportarem da longa viagem em Boa Esperança. O capitão lhe contara que Grey tinha um sucessor no escritório consular em Zanzibar.

- É um jovem enviado de Bombaim, depois que Grey foi assassinado, para assumir os deveres consulares na Costa da Febre e, claro, mais importante, para zelar pelos interesses da Companhia John naqueles mares.

- Qual é o nome dele? - Tom quisera saber.

- Não me lembro. Não o conheci, mas, por todos os relatos, é rude e difícil, encantado por sua própria importância.

Tom ficou a observar enquanto Ned levava a Andorinha para a baía, e lançaram a âncora na água tão clara que podiam ver os peixes multicoloridos que formavam uma massa compacta sobre as pontas do coral, a quatro braças sob a quilha.

- Levarei Aboli em terra comigo - disse Tom, tão logo o escaler foi baixado.

Os dois desembarcaram na doca de pedra abaixo das muralhas do antigo forte português e seguiram pelas ruas estreitas.

O calor e a atividade efervescente eram tão familiares que Tom mal podia acreditar que lá se fossem quase dois anos desde a última vez que estivera ali. Pediram informações a um mestre-portuário árabe.

- Não, não - ele lhes disse. - O novo consulado não é mais na velha casa do efêndi Grey, na cidade. Mandarei um menino para mostrar-lhes o caminho. - E chamou um dos diabretes maltrapilhos do grupo assanhado que atormentava os ferenghi por esmolas. - Este filho de Satã os guiará. Não lhe dêem gorjeta de mais de um aná.

O menino saiu saltitando à frente e os conduziu, para longe da selva de ruelas e prédios arruinados, em direção aos palmeirais. Pela estrada arenosa, uma milha ou mais além do último casebre, chegaram a uma grande mansão situada atrás de altos muros. Embora a casa parecesse antiga, o muro externo fora reparado recentemente e pintado com água de cal queimada. O teto da casa principal, que aparecia acima do topo do muro, fora recentemente coberto com folhas de palmeiras. Havia duas placas de bronze no portão. Numa estava gravado: Consulado de Sua Majestade. Abaixo, havia o emblema da Companhia com os leões de patas dianteiras levantadas e a inscrição: Escritório da Companhia Mercantil Unida de Transações Comerciais da Inglaterra para as índias Orientais.

Um criado atendeu ao sino tocado por Tom nos portões da frente, e este lhe pediu que entregasse um bilhete ao seu patrão. Depois de uns poucos minutos, o homem retornou. Tom deixou Aboli a esperar no pátio e seguiu o criado.

A casa principal era cercada de jardins e fontes no estilo oriental de arquitetura. Os tetos eram altos, e os aposentos, esparsamente mobiliados. Havia, contudo, vasos com flores tropicais nas salas pelas quais o criado conduziu Tom, e aquela decoração floral e a disposição das almofadas em meio à austera mobília entalhada em madeira sugeriam uma mão feminina. Por fim, o criado introduziu Tom num aposento amplo com chão de pedra e estantes alinhadas nas paredes.

- Por favor, aguarde aqui, efêndi. O mestre logo virá.

Deixado a sós, Tom olhou para o ventilador que girava lentamente no teto e para a disposição de linhas e polias que passavam por um buraco na parede, de onde um escravo puxava o cabo de forma ritmada para manter as pás em movimento.

Tom caminhou até a escrivaninha no centro da sala e olhou para a pena de escrever e o tinteiro, colocados lado a lado no meio da mesa, e para as pilhas de documentos atados com fita vermelha e arrumados com precisão militar. Então, afastou-se e percorreu as estantes, tentando adivinhar, por seu conteúdo, o caráter do homem que viera encontrar. As estantes estavam repletas de pesados livros de registros financeiros e relatórios, todos fechados com fitas, com o emblema da Companhia gravado nas lombadas. Não havia nada de natureza pessoal à mostra e a sala dava uma sensação de não ter alma.

Foi alertado pelo som de passos nas lajes do terraço do lado de fora da entrada do pátio interno, e voltou-se quando uma figura esguia e alta apareceu na soleira. O radiante sol dos trópicos estava por trás dela e, assim, Tom não reconheceu a pessoa de imediato. O cônsul parou e deixou seus olhos se ajustarem à penumbra da sala depois da luminosidade de fora. Vestia um traje sóbrio de sarja preta com uma gravata branca no colarinho.

Entrou na sala e tirou o chapéu preto de abas largas da cabeça. Tom viu-lhe a face" claramente pela primeira vez. Por um longo momento, seu espanto foi tão intenso que não conseguiu nem se mexer ou falar. Então, riu e adiantou-se.

- Guy! É você mesmo? - Impulsivamente, abriu os braços para abraçar o irmão gêmeo.

Era evidente que a surpresa de Guy Courtney era tão grande quanto a de Tom. Uma onda de diferentes emoções perpassou rapidamente por sua face e, em seguida, se foi. Suas feições tornaram-se frias e rígidas, e ele deu um passo atrás para evitar o abraço de Tom.

- Thomas - disse. - Não tinha idéia de que fosse você. Assinou um nome falso no seu bilhete.

- Nem eu tinha idéia de que era você! - exclamou Tom, e deixou seus braços acolhedores caírem dos lados. Evitou a acusação de usar um falso nome. Julgara que seria prudente não usar o verdadeiro nome ali, caso, por azar, uma ordem de prisão pelo assassinato de William tivesse chegado a Zanzibar à sua frente. Observou a expressão de Guy em busca de algum sinal de que isso acontecera, e considerou que não poderia confiar em seu gêmeo para escondê-lo da Justiça.

Fitaram-se em silêncio por um minuto que pareceu a Tom uma eternidade. Guy, então, estendeu sua mão direita. Com alívio, Tom a tomou.

O aperto de Guy foi flácido, e sua pele era tão fria como sua expressão. Deixou cair a mão de Tom depois de apenas um breve contato e, em seguida, dirigiu-se à sua mesa.

- Por favor, sente-se, Thomas. - Indicou a cadeira de espaldar alto do outro lado, sem olhar diretamente para o irmão. - Quero crer que não tenha retornado para estas águas para levar a efeito qualquer forma de comércio. O fato de se utilizar de um nome falso me leva a pensar que esse pode ser o caso. - Tom não respondeu de imediato, então Guy prosseguiu: - Devo avisá-lo que a minha lealdade primeira é para com a Companhia - fez aquilo soar como se invocasse o nome de Deus -, e enviarei um relatório a Londres imediatamente.

Tom o encarou, sentindo a raiva borbulhar dentro de si.

- Pelos céus misericordiosos, Guy, é essa a sua primeira preocupação? Não somos irmãos? Não quer saber de papai e de Dorian?

- Já estou ciente da morte de papai. O navio da Companhia que aportou por esses dias trouxe-me uma carta de lorde Childs e de nosso irmão William, da Inglaterra. - Tom sentiu uma onda de alívio com aquela confirmação de que Guy ainda não soubera da morte de William.

Guy recolocou a pena de escrever em seu suporte e continuou:

- Guardo luto à minha maneira pelo passamento de papai, e, portanto, não há mais nada a dizer sobre esse assunto. - Sua boca endureceu. - Além disso, você sempre foi o seu predileto. Eu significava pouco para ele.

- Isso não é verdade, Guy. Papai nos amava a todos igualmente - Tom esbravejou.

- Assim diz você. - Guy deu de ombros. - Quanto a Dorian, ouvi dizer que se perdeu no mar, morto afogado.

- Não, ele não morreu. - Tom não se esforçou para manter a voz baixa. - Foi capturado pelos muçulmanos e vendido como escravo.

Guy riu sem nenhuma alegria.

- Você sempre gostou de inventar histórias malucas. Asseguro-lhe, como cônsul de Sua Majestade nestes territórios, que tenho acesso às mais confiáveis fontes de informação.

A despeito de tudo, Tom julgou detectar uma mudança na expressão de Guy.

- Eu estava lá, Guy, que droga. Vi com os meus próprios olhos.

Guy sentou-se na poltrona atrás da mesa e brincou com a pena, roçando a pluma no rosto.

- Ah, você o viu ser vendido como escravo? Realmente? É surpreendente que não tenha feito nada para impedir uma coisa dessas.

- Não, seu macaco pedante! - Tom berrou. - Eu sei que ele estava em poder dos piratas muçulmanos, capturado, e não morto afogado. Também sei com certeza que foi vendido como escravo.

- Que prova tem... - Guy começou, mas Tom levantou-se, caminhou até a escrivaninha e bateu com as mãos no tampo, fazendo a tinta espirrar e se espalhar na pilha de documentos.

- O testemunho dos árabes que capturamos em Flor do Mar, e a prova dos meus próprios olhos e sentidos. Dorian está vivo, eu lhe afirmo, e é seu dever, como irmão de um inglês, ajudar-me a encontrá-lo.

Guy saltou de pé. Seu rosto era uma máscara pálida e glacial, seus olhos faiscavam.

- Como ousa vir aqui na minha casa, no meu território, com esse seu arrogante estilo de querer se impor aos berros e me ditar o que eu devo fazer? - gritou para Tom, os perdigotos a voarem de seus lábios.

- Pelo doce Jesus, Guy, não me deixe mais tentado. Arrancarei a chicote o couro das suas costas covardes se não assumir seu dever para com nosso irmãozinho.

- Esses dias ficaram longe, no passado, Thomas Courtney. Sou o chefe aqui, o representante escolhido de Sua Majestade e da Companhia. Você se verá lançado na prisão, seu belo navio apreendido e confiscado se erguer a mão para mim. - Tremia de raiva. - Não se atreva a me fazer sermões, não depois do que fez a Caroline! - Sua voz se ergueu num guincho ao proferir o nome dela, e Tom encolheu-se como se atingido no peito por uma bala de mosquete.

Ao mesmo tempo, Guy recuou, claramente abalado pelo que permitira escapar de sua língua com a raiva. Tom se viu perturbado diante daquela acusação que atingira o alvo. Os dois se encararam, mudos, e, no silêncio, um ligeiro som os fez se voltarem para a porta que conduzia ao jardim.

Uma mulher encontrava-se parada ali. Trajava um vestido verde pálido de seda chinesa, de mangas recortadas e decote alto. Suas saias compridas cobriam-lhe os tornozelos, e apenas as pontas de seus sapatos apareciam. Olhava para Tom como se fosse o seu próprio fantasma. Uma das mãos apertava-se em sua garganta, a outra segurava a mão de uma criança que caminhava com passos inseguros a seu lado.

- O que está fazendo aqui, Caroline? - Guy berrou. - Sabe muito bem que não pode vir aqui quando tenho visitantes.

- Ouvi vozes... - Caroline murmurou, balbuciante. Seus cabelos estavam recolhidos ao alto em cachos sobre sua cabeça, e anéis encaracolados pendiam até suas faces, mas Tom viu que ela ostentava uma palidez mórbida, como se recentemente saída de uma cama de doente.

- Ouvi meu nome ser pronunciado... - Ainda olhava para Tom.

A criança estava de camisola. Sua cabeça era coberta de cachos louros, e Tom impressionou-se com a pequenina face angelical e os perfeitos lábios rosados.

- Quem é? - perguntou a criança e apontou para Tom com uma risadinha.

- Leve Christopher para longe daqui - Guy gritou para Caroline.

- Imediatamente!

Ela pareceu não escutá-lo.

- Tom? - murmurou com voz hesitante, confusa. - Nunca pensei em ver você de novo. - Christopher pendurou-se em sua mão e tentou dar um passo desequilibrado em direção a ele, mas Caroline o puxou para trás com delicadeza. - Como está, Tom?

- Com boa saúde - ele respondeu, desconcertado -, como espero que você esteja.

- Estive doente - Caroline murmurou, sem tirar os olhos dele. Umedeceu os lábios. - Desde o nascimento de nosso... - fez uma pausa e corou, tomada de confusão - o nascimento de Christopher.

- Sinto muito. - Uma sombra de pesar passou pela face de Tom.

- E a sua família? Como estão seus pais e irmãs? - Teve de pensar para se lembrar dos nomes. - Agnes e Sarah?

- Meu pai foi nomeado governador de Bombaim. Arranjou o posto de cônsul, aqui em Zanzibar, para Guy. - Ela relanceou os olhos nervosamente para o marido, que ainda a encarava enfezado. - Minha mãe morreu de cólera um ano atrás.

- Fico penalizado! - Tom exclamou. - Era uma dama encantadora.

- Obrigada. - Caroline inclinou a cabeça de um jeito triste. - Minha irmã Agnes casou-se em Bombaim.

- Mas era tão jovem! - Tom se espantou ao se lembrar daquelas duas irmãs travessas no Seraph.

- Não é mais uma criança. Tem dezessete anos - Caroline o corrigiu. Ficaram em silêncio de novo, e Guy afundou-se na cadeira, não mais insistindo em exercer sua autoridade sobre a esposa.

Involuntariamente, Tom olhou para a criança que se agarrava às saias de Caroline.

- É uma bela criança - voltou o olhar de novo para Caroline. Ela concordou, como se respondesse a uma pergunta que não fora formulada.

- Sim - disse. - Ele é igual ao pai.

Tom sentiu um impulso quase irresistível de ir até a criaturinha risonha e pegá-la no colo. Em vez disso, recuou um passo para impedir-se de agir assim.

- Caroline! - Guy interveio outra vez, ainda mais autoritário. - Tenho negócios a tratar. Por favor, leve Christopher daqui.

Caroline pareceu cambalear, e um olhar desesperado obscureceu-lhe o semblante quando se demorou em fitar a face de Tom.

- Foi bom vê-lo de novo, Tom. Talvez possa nos visitar enquanto estiver em Zanzibar. Poderia vir jantar conosco aqui no consulado uma noite dessas? - Havia uma nota de esperança na pergunta.

- Não creio que Thomas fique aqui o tempo suficiente para compromissos sociais. - Guy pôs-se pé novamente e franziu a testa para ela, como se para silenciá-la.

- Que pena - disse Caroline. - Então, eu me despedirei agora. - Pegou o garotinho no colo. - Adeus, Tom.

- Adeus, Caroline.

Carregando Christopher, ela passou pela porta com um farfalhar de sedas. A criança olhou para trás com um ar solene, para Tom, por sobre o ombro da mãe.

Depois que ela se foi, os dois irmãos permaneceram por um longo momento calados. Então, Guy disse, com uma voz fria e controlada:

- Mantenha-se longe da minha família. Não tolerarei que fale com minha mulher de novo. Eu o desafiei para um duelo certa vez, antes. E o farei de novo se me provocar.

- Seria um pequeno prazer ter de matá-lo. Você nunca foi um espadachim, Guy - disse Tom e pensou em William. A culpa era ainda uma sensação doentia na boca de seu estômago. - Não tenho vontade alguma de me intrometer na sua vida privada. De agora em diante, falaremos apenas de assuntos de negócios. Pode concordar com isso?

- Por mais detestável que eu ache qualquer contato com você, concordo - respondeu Guy. - E a primeira questão de negócios é, para mim, voltar à minha pergunta. Pretende se beneficiar de alguma forma de comércio nestas águas? Tenho relatórios do porto de que o seu navio está pesadamente carregado. Possui uma licença mercantil da Companhia? Transporta bens de comércio?

- Estamos a 8 mil milhas marítimas de Londres. Estamos além da linha, senhor, e não reconheço sua autoridade sob a lei inglesa para interferir em assuntos que são meus ou em questionar minhas intenções. - Tom manteve o temperamento sob controle com esforço.

Minha primeira preocupação é apenas para com Dorian. Você solicitou um inquérito ao sultão de Zanzibar com relação a ele?

Guy tornou-se agitado.

- Não vejo razão para inteirar o sultão do assunto, e eu o proíbo de fazer isso. Tenho procurado manter relações cordiais com ele. O sultão está agora favoravelmente inclinado em direção à Inglaterra e à Companhia. Não quero que esse estado de coisas seja perturbado por alguém fazendo acusações ao seu senhor soberano, o príncipe al-Malik.

A expressão de Tom alterou-se abruptamente.

- Como soube que al-Malik foi a pessoa que comprou Dorian como escravo? Eu nunca mencionei esse nome.

Guy pareceu confuso e ficou calado por alguns segundos enquanto buscava uma resposta.

- Al-Malik é o todo-poderoso soberano desta costa. Era natural que eu presumisse...

- Por Deus, Guy! Não era natural que você presumisse nada! Você sabe de alguma coisa sobre o que aconteceu a Dorian. Se não me contar, falarei eu mesmo com o sultão.

- Não fará isso! - Guy saltou de pé. - Não deixarei que destrua todo o meu trabalho aqui!

- Você não pode me impedir.

- Escute-me. - Guy mudou de entonação. - Muito bem, eu lhe contarei a verdade. Também ouvi tais rumores sobre um menino branco com os cabelos vermelhos nas mãos dos árabes. Naturalmente pensei em Dorian, portanto fiz um pedido de informação ao sultão. Ele prometeu enviar um mensageiro ao príncipe al-Malik para descobrir a verdade. Estou à espera da resposta do príncipe.

- Por que mentiu para mim? Por que não me contou isso de uma vez? - Tom perguntou. - Por que me forçou a arrancar a verdade de você?

- Porque eu o conheço bem. Não queria que se apressasse a antagonizar o sultão. Minhas tratativas com ele são muito sensíveis.

- Há quanto tempo pediu essas informações? - Tom indagou.

- Quero você fora disso. - Guy esquivou-se à pergunta, a despeito da insistência de Tom. - Tenho o assunto todo em minhas próprias mãos.

- Há quanto tempo?

- Algum tempo atrás. - Guy baixou os olhos para a escrivaninha. - Negociações com os árabes demandam tempo.

- Quando? - Tom aproximou-se e avançou o rosto contra o de Guy.

- Quando cheguei aqui à ilha - Guy admitiu. - Um ano atrás.

- Um ano atrás? - Tom berrou. - Um ano atrás! Bem, creia-me, não vou esperar tanto tempo. Irei falar com o sultão hoje mesmo e exigirei uma resposta.

- Eu o proíbo! - Guy gritou. - Eu sou o cônsul!

- Proíba tudo à sua vontade, Guy - Tom lhe disse com tristeza. - Estou a caminho do forte. Agora.

- Mandarei um relatório completo do seu comportamento a lorde Childs em Londres - Guy ameaçou, em desespero. - O navio da Companhia no porto zarpará dentro de dias para a Inglaterra. Lorde Childs fará desabar a ira plena da Companhia sobre você.

- Não há ameaça que você possa fazer que me impeça de procurar por Dorian. Mande todos os relatórios que quiser, Guy. Mas levará um ano ou mais antes que receba uma resposta. Até então, estarei a mil milhas daqui, com Dorian sob os meus cuidados.

- Saia desta casa imediatamente, senhor! - Guy berrou. - E não se atreva a pôr os pés na soleira da minha porta outra vez.

- Eis um convite muito a meu gosto, senhor. - Tom enterrou seu chapéu na cabeça. - Desejo-lhe um bom dia.

Dirigiu-se à porta sem olhar para trás, e sorriu quando Guy esbravejou atrás dele:

- Eu o proíbo de chegar perto do palácio do sultão. Mandarei avisá-lo agora mesmo de que você é um comerciante sem licença, um atravessador que não tem a proteção de Sua Majestade, da Companhia ou deste escritório.

Tom seguia pela trilha arenosa em direção ao porto, e Aboli teve de se apressar para manter o passo com ele. Aboli não obtivera nenhuma resposta para as suas perguntas iniciais e, assim, seguia calado ao lado de Tom.

Tom fervilhava de raiva. Sua vontade era invadir as dependências do forte do sultão acima do porto, pegar o porco pagão pela garganta e arrancar aos safanões as respostas dele. Porém pelo menos tinha a sensatez de reconhecer que suas emoções estavam fora de controle, que mais uma vez se via à beira de cometer algum ato violento que poderia trazer o desastre à sua empreitada. Preciso voltar a bordo da Andorinha, onde não poderei fazer mal a mim mesmo, e falar com Aboli e Ned antes de agir, disse a si próprio, mas suas mãos deslizaram para o punho da espada de Netuno, e sua ira desviou-se para outra direção. Por Deus! Se, para salvar Dorian, eu tiver de levar a pequena Andorinha a um confronto com toda a frota muçulmana, não vacilarei.

Ouviu um grito atrás de si, tão abafado que a princípio não penetrou por sua raiva. Então, seguiu-se o som de patas em galope, e o grito ergueu-se de novo.

- Tom! Espere! Espere por mim! Preciso falar com você.

Tom girou nos calcanhares e olhou para trás. O cavalo vinha em disparada na sua direção, o cavaleiro inclinado ao pescoço do animal, a areia branca espirrando dos cascos velozes.

- Tom!

Dessa vez ele percebeu que era uma voz feminina. Quando o cavalo chegou mais perto, Tom viu as saias esvoaçando atrás e os longos cabelos da mulher soprados ao vento. Sua raiva foi esquecida por um instante, e ele a fitou com espanto.

Ela cavalgava com as pernas a rodear o lombo nu do animal, e Tom teve um vislumbre da pele clara apertada contra o flanco do cavalo, nua até os joelhos, onde as saias haviam sido recolhidas. A mulher ergueu um braço esguio e acenou.

- Tom!

Embora ela o chamasse pelo nome de batismo, ele não a reconheceu. A mulher trouxe a égua baia até onde ele havia parado, e, num farfalhar de saias, pulou para o chão. jogou as rédeas para Aboli.

- Segure-a, por favor, Aboli - disse.

O homenzarrão despertou do choque e segurou as rédeas.

- Tom! Oh, Tom! - A estranha correu para ele e jogou os braços em torno de seu pescoço. - Pensei que nunca mais o veria de novo. - Abraçou-o com força e depois deu um passo para trás e lhe segurou ambas as mãos. - Deixe-me olhar para você. - Fitou-o na face, e Tom a encarou de volta.

Seus longos cabelos eram de um suave castanho, mas suas feições não eram bonitas: o queixo bastante pronunciado, a boca muito larga, sobretudo quando sorria, como fazia agora. Seus olhos tinham o azul brilhante dos ingleses, que faiscavam para ele atrás dos cílios compridos. Tom viu, de imediato, que sua pele era seu principal ornamento. Sem manchas, mas ligeiramente colorida pelo sol tropical de um dourado não aprovado pelos círculos sociais. Era quase tão alta quanto ele, tinha um jeito descontraído e confiante, os quadris e a postura dos ombros de um menino.

- Você não me reconhece, não é, Tom? - Ela riu, uma risada gostosa.

Ele meneou a cabeça, temporariamente mudo. Estava fascinado com aquele rosto, com o olhar cheio de vivacidade e de inteligência.

- Perdoe-me, madame - gaguejou. - A senhora me tem em desvantagem.

- Madame, realmente! - ela brincou com ele. - Sou Sarah, Tom. - Apertou-lhe a mão. - Sarah Beatty, a irmãzinha de Caroline. Você costumava me chamar de mutuca. "Por que está sempre zumbindo em torno da minha cabeça como uma mutuca, Sarah?" - imitou-o. - Agora você se lembra?

- Céus, como você mudou! - ele exclamou, com espanto, e, sem querer, baixou o olhar para o volume dos seios fartos sob seu corpete.

- Como você, Tom. O que aconteceu ao seu nariz?

Ele afundou em embaraço.

- Foi quebrado.

- Pobre Tom! - Ela fez uma careta de fingida compaixão. - MaS lhe assenta muito bem. Oh, Tom, é tão bom revê-lo. - Enfiou o braço no dele e o conduziu pela trilha em direção à cidade. Aboli ficou atrás a uma respeitosa distância.

- Ouvi sua voz quando estava aos gritos com Guy. Não pude acreditar que era sua, embora a reconhecesse imediatamente. - Endereçou-lhe um atrevido olhar de esguelha. - Portanto eu estava ouvindo atrás da porta. Guy me bateria se me pegasse ali.

- Ele bate em você?! - Tom exclamou com um instinto protetor.

- Veremos isso.

- Oh, fique quieto, não seja bobo. Posso cuidar de mim mesma. Mas não vamos perder tempo falando de Guy. Eu só posso ficar por pouco tempo. Eles vão sentir a minha falta e mandar os criados atrás de mim.

- Sarah, há tanta coisa que temos a conversar. - Tom sentiu-se estranhamente desolado com a idéia de se separar dela tão depressa. Aquele braço no seu era forte e caloroso. Pairava um ligeiro perfume em torno dela, como uma aura, que despertava alguma coisa em seu íntimo.

- Eu sei. Eu o ouvi falando a Guy sobre o pequeno Dorian. Todos nós amávamos Dorian. Quero ajudá-lo. - Pensou depressa. - Há um velho mosteiro jesuíta em ruínas perto da ponta sul da ilha. Eu o encontrarei lá amanhã, às duas badaladas do relógio, à tarde. - Riu para ele.

- Viu? Eu me lembro de todas as coisas de marujo que você me ensinou. Estará lá?

- Claro!

Ela soltou-lhe o braço, voltou-se para Aboli e o abraçou.

- Lembra-se de como costumávamos brincar de cavalo, Aboli? Você me carregava nas suas costas.

Um sorriso iluminou o rosto de Aboli, transformando-o.

- Srta. Sarah, tornou-se uma moça muito bonita!

Ela pegou as rédeas da mão dele.

- Ajude-me a subir.

Aboli entrelaçou os dedos e voltou as palmas para cima, e, quando ela pisou, ergueu-a com facilidade para que montasse no lombo da égua. Sarah endereçou um último e resplandecente sorriso para Tom.

- Não se esqueça! - advertiu-o. Puxou as rédeas e comprimiu os tornozelos nos flancos do animal.

Tom ficou observando-a afastar-se a galope.

- Não - murmurou, ainda perturbado. - Não me esquecerei.

- Efêndi, o sultão, meu senhor, está indisposto. Não pode receber quaisquer visitantes, nem mesmo aqueles tão importantes como o senhor alega ser. - O vizir fez uma cara de escárnio para Tom. O porto estava cheio de navios europeus, todos os seus capitães a clamar por uma audiência com o seu mestre, todos a implorar favores, licenças para comerciar, permissão para visitar os territórios proibidos ao norte.

- Quando poderá me receber? - Tom perguntou.

O vizir apertou a boca com desaprovação diante de uma pergunta tão pouco sutil. Sabia que aquele jovem infiel comandava um navio pequeno que poderia transportar pouca coisa em mercadorias de comércio, e não sentira o cheiro de ouro em torno dele. Dificilmente valeria a pena dedicar-lhe uma séria atenção. Era, contudo, uma pessoa incomum: falava um bom e inteligível árabe e entendia a etiqueta dos negócios: oferecera presentes adequados para abrir caminho até o sultão.

- Isso está nas mãos de Alá. - O vizir deu de ombros com um gesto gracioso. - Talvez numa semana, quem sabe num mês, não sei.

- Voltarei aqui amanhã de manhã, e todo dia depois disso até que o sultão concorde em me ver - Tom lhe assegurou.

- E eu esperarei por seu retorno todos os dias, como a terra ressecada espera pelas chuvas - disse o vizir com voz neutra.

Aboli esperava por Tom nos portões do forte, e Tom ergueu uma sobrancelha em resposta à pergunta não formulada. Estava zangado e frustrado demais para falar. Retraçaram os passos pelo mercado de especiarias, cujo ar era impregnado do aroma de cravo e pimenta. Passaram pelo pelourinho no mercado de escravos, onde algumas mulheres incorrigíveis estavam acorrentadas, suas costas sangrando; desceram a rua dos mercadores de ouro, em direção ao cais de pedra do porto e ao escaler que os aguardava.

Ao tomar seu assento nas pranchas de popa, Tom relanceou o olhar para o céu para avaliar o ângulo do sol e, em seguida, puxou o relógio Tompion de prata do bolso e abriu a tampa.

- Remem até a ponta sul da ilha - ordenou. Verificara seu mapa na noite anterior e descobrira que as ruínas do velho mosteiro dos jesuítas estavam marcadas nele. Uma pequena enseada fechada possibilitaria o desembarque.

Enquanto os remadores desciam o canal, perto do recife de coral que mostrava seus dentes através das ondas mansas, Tom sentiu seu mau humor evaporar ao sol alegre diante da perspectiva de seu encontro com Sarah.

À frente do escaler, viu as vagas do mar aberto que batiam com mais força na extremidade sul da ilha. Quando se levantou e estudou a terra a vante, pôde divisar o curso do riacho marcado pela luxuriosa vegetação e que ia desaguar na piscina formada pelo recife. Havia sempre uma passagem pelo recife onde a água doce inibia o crescimento do coral. Ao se nivelarem com a corrente, Tom descobriu a água mais funda da passagem e mandou que os remadores seguissem por ela. A praia estava deserta e não havia sinal de nenhuma quilha nela. Tom saltou da proa para a dura areia branca sem molhar as botas.

- Estarei de volta em uma hora ou pouco mais - disse a Aboli. - Espere por mim.

Encontrou uma trilha coberta de mato que corria ao lado do riacho, e seguiu caminho por ela, em direção ao interior, até que chegou a um bosque aberto de palmeiras. Viu as ruínas do mosteiro adiante. Acelerou o passo e, ao se aproximar das paredes desmoronadas, gritou com voz aguda:

- Sarah? Onde está você?

Houve um ruído estridente quando um bando de periquitos voou, numa explosão de grasnidos, dos galhos do alto de uma figueira cujas raízes se incrustavam nos blocos de pedra tombados, mas nenhum outro som.

Tom continuou a circundar a base das paredes, e então ouviu um cavalo relinchar logo acima dele. Correu, incapaz de refrear a própria ansiedade, e encontrou a égua amarrada a um portão caído. Sua sela estava encostada na base da parede, porém não havia sinal de seu cavaleiro.

Estava prestes a chamar de novo, mas pensou melhor e entrou cautelosamente pelo portão. A edificação não tinha mais teto, os espaços dominados pelo mato e por brotos recentes dos cocos caídos. Lagartos de cabeça azulada corriam em fuga entre as pedras, e borboletas de asas brilhantes flutuavam sobre os buquês de flores silvestres.

Tom parou no centro do antigo pátio e levou as mãos aos quadris. Recordou-se das artimanhas de Sarah de tempos passados. Era óbvio que não mudara, que ela estava se escondendo dele.

- Vou contar até dez - gritou, como fizera quando Sarah não passava de uma garotinha - e, depois, vou pegá-la. - Certa vez, aquela ameaça fora o bastante para tirar a ela e à irmã, aos gritos, do esconderijo. - Um! - Tom contou, e a voz de Sarah veio do alto, acima dele.

- Guy diz que você estupra moças virgens.

Tom girou ao redor e a avistou empoleirada no arco do portão, as longas pernas penduradas pela borda, as canelas expostas debaixo da barra das saias e os pés descalços. Passara bem debaixo dela.

- Ele diz que nenhuma moça cristã decente está segura quando você estiver à espreita de uma presa. - Pendeu a cabeça de um lado. - É verdade?

- Guy é um tolo. - Tom sorriu para ela.

- Guy não gosta nem um pouco de você. Não tem nenhum calor fraterno em seu coração. - Sarah começou a balançar as pernas, e ele as fitou. Tinham uma linha suave e bem conformada. - Christopher é seu filho mesmo?

Tom quase cambaleou com a franqueza da pergunta.

- Quem lhe disse isso? - Tentou recobrar a compostura.

- Caroline - ela respondeu. - Não pára de chorar desde que o viu ontem.

Tom a encarou, e tudo que Sarah acabara de expor naquelas poucas sentenças o deixou confuso. Não conseguiu pensar em nada para dizer.

- Se eu descer, vai me prometer não se aproveitar de mim e me dar um bebê também? - ela perguntou docemente e se levantou.

Ele sentiu um tremor de preocupação enquanto Sarah se equilibrava com facilidade sobre o topo da parede instável, e enfim recuperou a voz:

- Cuidado. Vai cair.

Como se não tivesse escutado, ela correu pelo topo estreito da parede e saltou de fiada em fiada de tijolos até poder pular os últimos poucos centímetros até o chão. Era tão ágil como um acrobata.

- Trouxe uma cesta de piquenique para nós dividirmos.

Seguiu para o interior das ruínas, e Tom a acompanhou até uma das antigas celas dos monges, que, embora sem teto e aberta para o céu, estava ao reparo do sol escaldante. Sarah tirou a cesta de onde a escondera, sob uma pilha de folhas de palmeira. Sentou-se, torcendo as pernas debaixo do corpo, naquela atitude feminina que ele achava tão atraente. Arranjou as saias sem muito esmero, proporcionando a Tom outro vislumbre de parar o coração daquelas adoráveis canelas.

Abriu a cesta e, ao começar a tirar o conteúdo, perguntou:

- Viu o sultão?

- Ele se recusou a me receber.

Tom sentou-se de frente a ela e recostou-se contra um dos blocos de tijolos. Cruzou as pernas.

- Claro! Guy mandou avisá-lo de que você iria procurá-lo. - Mudou de assunto com uma rapidez impressionante: - Eu me permiti pegar uma garrafa de vinho da adega dele. - Ergueu-a como um troféu. - É francês e veio no último navio de casa. - Leu o rótulo. - Corton Charlemagne. É bom?

- Não sei - Tom admitiu -, mas o nome impressiona.

- Guy diz que é soberbo. Meu cunhado se julga um grande connaisseur. Tem um orgulho incrível disso. Ficaria furioso se soubesse que estamos bebendo o vinho do seu estoque. Tenho permissão para tomar apenas meio copo ao jantar. Pode abrir? - Ela passou-lhe a garrafa e arrumou os pratos de torta e carne fria sobre as folhas de palmeira. - Senti muito, verdadeiramente, ao saber da morte de seu pai - disse, e sua face tornou-se triste de repente. - Ele foi por demais gentil comigo e com a minha família na viagem para Boa Esperança.

- Obrigado - Tom murmurou ao arrancar a rolha da garrafa. Virou o rosto para o lado para esconder a sombra que lhe perpassava o semblante.

Sarah sentiu-lhe a tristeza e sorriu para animá-lo outra vez.

- Se meu próprio pai não tivesse arranjado o posto de cônsul para Guy, ele ainda seria um escriturário em Bombaim. Guy não é um Senhor Eminente e Poderoso como se imagina. - Fez uma expressão solene que era uma imitação fiel de seu irmão, e o estado de espírito de Tom mudou. Sorriu quando ela continuou a imitar a entonação pomposa e a inflexão de Guy: - Sou o mais jovem cônsul a serviço de Sua Majestade. Serei um par do reino antes dos trinta anos.

Tom soltou uma gargalhada. Era uma delícia estar com Sarah.

Então, de súbito, ela mudou de expressão e se tornou muito séria.

- Oh, Tom, o que vamos fazer com relação ao pobre Dorian? Guy não se importa realmente. Tudo com o que ele se preocupa é com o comércio da Companhia com os árabes, e com lorde Childs, em Londres. Não fará nada para ofender o sultão e o príncipe.

A expressão de Tom de novo tornou-se sombria.

- Não permitirei que Guy ou os omanianos me afastem de meu caminho. Tenho um excelente navio, veloz, e se me forçarem a isso, eu o usarei.

- Sei exatamente como está sofrendo, Tom. Sinto como se Dorian fosse meu próprio irmão. Farei tudo que puder para ajudá-lo. Você, porém, deve ser cauteloso. Guy diz que o príncipe proibiu qualquer navio cristão de ir mais ao norte, além de Zanzibar, sob pena de confisco. Diz que os árabes venderão os tripulantes como escravos se transgredirem esse decreto. - Inclinou-se para a frente e pousou a mão sobre o braço dele. Seus dedos eram longos e esguios. Estavam frios contra a pele de Tom. - Será terrivelmente perigoso. Eu não suportaria se algo acontecesse a você, caro Tom.

- Posso cuidar do meu navio e da minha tripulação - ele assegurou, mas aquele toque o distraía.

- Sei que pode. - Sarah retirou a mão e o fitou com olhos faiscantes. - Sirva o vinho de Guy. - Tirou duas taças de hastes compridas da cesta. - Vamos ver se é tão bom como ele se gaba.

Tomou um gole.

- Hum! - ela murmurou. - É melhor guardar a garrafa ao seu lado. Caroline diz que os estupradores embriagam suas vítimas inocentes com bebida forte antes de se divertirem com elas. - Arregalou os olhos. - E eu não quero um filho como Caroline. Não hoje, pelo menos.

Sarah se comportava de uma tal maneira que o mantinha em suspenso. A blusa que usava escorregara para lhe expor um ombro, mas ela não pareceu notar.

- Agnes tem um bebê também. Casou-se com o capitão Hicks, da Companhia, em Bombaim. Parece que minhas duas irmãs são éguas parideiras. Pode ser de família e, assim, preciso ser muito cuidadosa. Não está casado, está, Tom?

- Não - sua voz saiu rouca. A pele do ombro e do braço de Sarah era macia e dourada, e uma penugem descolorida recobria o antebraço, fina como seda, que reluzia ao sol.

- Isso é ótimo. Então, o que vamos fazer quanto a Dorian? Quer que eu espione Guy e descubra tudo que puder? Não creio que ele lhe contará muita coisa por vontade própria.

- Ficaria muito grato por sua ajuda.

- Posso vasculhar toda a correspondência e escutar, escondida, as conversas de Guy com os seus visitantes. Há um buraco na parede por onde corre a corda do ventilador. Dá um belo confessionário. - Pareceu altamente satisfeita consigo mesma. - Mas, é claro, teremos de nos encontrar aqui regularmente para que eu possa passar as informações a você.

Tom julgou a perspectiva muito distante de ser detestável.

- Lembra os concertos que costumávamos ter às noites, a bordo do Seraph? - ela perguntou, e desatou a cantar o coro de Espanholas. Sua voz era clara e sem afetação, e Tom, desafinado como era, se viu empolgado. Os cabelos em sua nuca se eriçaram e ele ficou triste quando ela parou.

- O que aconteceu a mestre Walsh, nosso professor? - indagou Sarah. - Era um homenzinho bem divertido.

- Está comigo na Andorinha. - E lhe falou sobre toda a tripulação da qual ela se recordava do Seraph.

Sarah chorou quando ele lhe contou como Daniel Grande Pescador tinha morrido, e Tom sentiu vontade de tomá-la nos braços para confortá-la. Em vez disso, mudou de assunto e relatou como haviam capturado a Andorinha, e sobre a longa viagem até ali.

Ela o escutou, enlevada, as lágrimas enxutas, e aplaudiu-lhe a coragem e a ingenuidade. Logo depois, já tagarelava animadamente, a pular de assunto em assunto, como se tivesse armazenado uma centena de perguntas para ele nos anos em que haviam ficado separados.

Tom estava intrigado. Quanto mais lhe estudava as feições, mais concluía que sua primeira impressão fora um erro. Talvez não fossem bonitas, o nariz e a boca muito largos, a linha do queixo muito quadrada, mas, em conjunto, com a animação e o espírito que luzia nelas, ele concluiu que Sarah era quase uma bela mulher. Quando ria, formavam-se ruguinhas em torno de seus olhos, e havia aquele pequeno trejeito de erguer o queixo ao fazer uma pergunta, do qual ele gostava.

As sombras se moveram pelo pátio enquanto conversavam. De súbito, Sarah se interrompeu no meio de uma hilariante descrição da chegada de sua família a Bombaim e da sua reação ao novo mundo exótico e em nada familiar.

- Oh, Tom, é tarde. As horas passaram bem depressa. Fiquei aqui por muito tempo. - Reuniu os pratos e taças vazias de vinho, apressada. - Preciso ir. Guy ficará furioso se nem sequer suspeitar de aonde eu estive.

- Guy não é seu senhor! - Tom exclamou, de cara fechada.

- Ele é o senhor da nossa casa. Meu pai me colocou a seus cuidados quando mamãe morreu. Para o bem de Caroline, tenho de deixá-lo de bom humor. Ele descarrega o temperamento azedo sobre ela.

- E feliz vivendo com Guy e Caroline, Sarah? - Tom sentiu que, mesmo no curto espaço de tempo que haviam passado juntos, ele a conhecia bem o bastante para fazer uma pergunta tão delicada.

- Posso pensar em outras circunstâncias que me agradariam mais - ela respondeu, numa voz quase inaudível, sem tirar os olhos da cesta de piquenique. Então, calçou os sapatos e levantou-se.

Tom pegou a cesta, e Sarah pousou a mão esguia em seu braço como se precisasse firmar-se sobre o solo irregular. Fazia apenas pouco tempo que ele a vira dançar pelo topo da alta parede.

- Quando voltará para me dar informações sobre o que Guy está fazendo? - Tom perguntou ao erguer a cesta de piquenique sobre o lombo da égua.

- Amanhã não posso. Prometi ajudar Caroline com Christopher, mas depois de amanhã, à mesma hora.

Ele colocou as mãos na cintura de Sarah e ergueu-a para a sela. Ela passou uma perna pelo gancho da sela, e Tom a ajudou a arrumar as longas saias. Então, Sarah o fitou enquanto ele continuava parado perto do estribo.

- Oh, Tom - disse impulsivamente -, foi tão divertido! A vida na ilha é tão restrita e chata... Guy não me deixa nem ir à cidade sozinha. Não consigo me lembrar da última vez que me diverti tanto assim.

- Em seguida pareceu tomada de embaraço pela falta de compostura. Sem esperar por resposta, incitou a égua para a frente e desceu a trilha arenosa entre os palmeirais. Sentava-se ereta e imponente na sela.

Quando Tom tomou a rua lateral do porto e passou debaixo das grades levadiças do forte, avistou dois homens que vinham em sua direção, conversando absortos. Captou um retalho de suas palavras ao passarem por ele, o bastante para ter certeza de que falavam em inglês. Parou e voltou-se.

- Deus os ama, cavalheiros - gritou -, é bom ouvir a língua cristã falada nesta terra de pagãos. Posso me apresentar? Robert Davenport. - Usou o pseudônimo que escolhera para se proteger do mandado de prisão que sabia persegui-lo.

Os dois ingleses viraram-se para encará-lo, as expressões contidas. Só então Tom os reconheceu como o capitão e um dos oficiais do mercante anglo-indiano no porto. Vira-os a remar para terra, saídos do navio, naquele dia.

- Espero que tenham feito uma boa viagem até tão longe, não? - perguntou quando eles se apresentaram com alguma relutância e trocaram um aperto de mão, ainda retraídos e reservados. - Presumo que estejam vindo de uma audiência com o sultão...

- Sim - o capitão concordou secamente. Não se alongou em informações, e Tom teve de lançar o anzol de novo.

- Como é o camarada? Este será o meu primeiro encontro com ele. Fala inglês?

- Fala apenas sua língua esquecida por Deus - o homem respondeu. - Espero que tenha sucesso nos seus negócios com o sultão. O homem é um demônio ardiloso, e o senhor precisará de toda a sorte que puder reunir. - Curvou-se numa ligeira reverência. - E agora, se puder me desculpar, senhor...

Tom entrou no forte, sua raiva borbulhando. Tinha agora a prova do que Sarah lhe contara. Sob a instigação de Guy, seu próprio irmão, o vizir o lograra.

Um criado do vizir tentou retardá-lo na antecâmara, mas Tom o empurrou de lado e passou por ele: sabia o caminho para o gabinete. Puxou as cortinas de seda pesada que cobriam a passagem e entrou.

O vizir estava sentado numa plataforma baixa no fundo do aposento. O ambiente recendia a incenso e haxixe. Havia uma prancheta de escrever à sua frente e um secretário a seu lado, que lhe apresentava documentos, um de cada vez, para assinatura. O vizir ergueu os olhos, assustado pela entrada rompente de Tom.

- Um minuto atrás falei com o capitão inglês que havia acabado de sair de uma audiência com Sua Excelência - Tom anunciou. - Fiquei encantado em saber que o sultão se recuperou tão depressa de sua indisposição - prosseguiu, em árabe -, pois isso significa que pode agora me receber e responder à minha petição.

O vizir ergueu-se, mas Tom passou por ele, rumo às portas em frente.

- Não pode entrar aí! - ele gritou, apavorado, porém Tom o ignorou.

- Guarda! - o vizir berrou. - Pare esse homem!

Um homenzarrão numa longa túnica e em meia cota de malhas surgiu na soleira da porta e barrou o caminho de Tom. Tinha a mão no punho da cimitarra embainhada no cinto. Tom parou diante dele e segurou-lhe o braço da espada pelo pulso. O guarda tentou sacar a arma, mas Tom forçou-lhe o braço e torceu-lhe o pulso num aperto poderoso que o fez mostrar uma careta de dor. Olhou, por sobre o ombro do guarda, para dentro do aposento adiante.

- Saudações, poderoso senhor! - exclamou para o homem que se reclinava sobre uma montanha de almofadas. - Chamo todas as bênçãos de Alá sobre a sua pessoa e lhe ofereço os meus humildes e fervorosos respeitos. Imploro por lhe falar a respeito de uma questão de misericórdia. Como o próprio Profeta disse, a criança e a viúva são merecedoras da nossa compaixão.

O sultão pestanejou e sentou-se ereto. Usava um colete duro de pesado brocado de seda sobre pantalonas escarlates, presas na cintura por uma faixa de filigrana de ouro. Seu turbante era do mesmo vermelho vivo para combinar com as calças, e sua barba, alvoroçada e espessa. Torceu-a nervosamente. Não esperava se confrontar com aquele bárbaro infiel a citar as palavras sagradas do Alcorão perante ele.

O vizir correra atrás de Tom. Agora, lançava-se entre os dois.

- Perdoe-me, senhor, tentei impedi-lo. Este é o desprezível e indigno infiel de quem lhe falei. Chamarei o guarda para retirá-lo daqui.

- Deixe estar - disse o sultão. - Ouvirei o que ele tem a dizer.

Tom soltou o pulso do guarda e o empurrou de lado.

- Este desprezível e indigno infiel agradece ao poderoso sultão Ali Muhammad e lhe apresenta seus humildes respeitos.

Suas palavras eram tão bizarras diante de seu comportamento que o sultão sorriu.

- Fale-me sobre essa questão de compaixão - pediu.

- Procuro uma criança, meu próprio irmão. Está perdido há faz dois anos. Tenho boas razões para suspeitar de que é mantido cativo nos territórios dos omanianos.

A expressão do sultão tornou-se contida.

- Meu irmão é um súdito de Sua Majestade o rei Guilherme III. Existem tratados entre seu califa e nosso rei que proíbem a escravidão de seus súditos...

- Sei quem você é. - O sultão ergueu a mão para silenciar Tom.

- O cônsul inglês me falou a seu respeito. Já recebi pedidos de informação do cônsul sobre essa criança. Esse assunto está sendo investigado. Não há nada mais que eu possa lhe dizer até que receba uma resposta da Corte do califa em Mascate.

- Faz um ano ou mais desde que... - Tom começou, furioso, mas o sultão o impediu de prosseguir.

- Tenho certeza de que deve perceber a tolice em causar desagrado ao califa ao importuná-lo com uma questão trivial como essa.

- Não é uma questão trivial - protestou Tom. - Minha família é nobre e tem muita influência.

- Para o califa, é um assunto trivial. Contudo, Sua Majestade é um homem de grande compaixão. Podemos assegurar com sossego que teremos notícias se ele puder nos contar alguma coisa sobre o menino. Eu responderei a essas perguntas quando ele nos disser algo. Nesse ínterim, devemos aguardar sua benevolência.

- Quanto tempo? - Tom perguntou. - Por quanto tempo devemos esperar?

- Tanto quanto necessário. - O sultão fez um gesto de despedida.

- Da próxima vez que irromper como um inimigo sobre mim, eu o tratarei como um deles, inglês - advertiu-o friamente.

Quando Tom foi conduzido para fora, o sultão chamou seu vizir, e o homem prostrou-se diante dele.

- Perdoe-me, poderoso senhor. Sou pó diante de sua presença. Tentei impedir que o infiel maluco...

O sultão silenciou-o com um gesto da mão.

- Mande avisar o cônsul inglês de que desejo falar com ele imediatamente.

- Guy foi ao forte ontem. O sultão o mandou chamar - Sarah disse a Tom. - Quando voltou, parecia um cachorro louco. Bateu num dos cavalariços sem motivo e gritou com Caroline e comigo.

- Bateu em você? - Tom perguntou. - Juro que o transformo em poeira se ele erguer a mão para você.

- Ele tentou uma vez. - Sarah riu e afastou os cabelos que dançavam com o vento da monção. - Duvido que tente de novo. Quebrei um dos seus preciosos vasos chineses na cabeça dele. Guy não sangrou muito, porém se comportou como se estivesse morrendo. Mas, chega desse assunto! Eu lhe fazia o meu relatório...

- A postos! - Tom a interrompeu, e ela saltou para a adriça da mezena da pequena embarcação de vela latina. Aprendera a lidar com as cordas bem depressa e já era uma tripulante útil. Tom alugara o barco no porto de Zanzibar por umas poucas rupias por dia, e os dois o tinham levado para uma volta em torno da ponta sul da ilha. Manobra feita, Sarah voltou a sentar-se ao lado dele.

- Então, depois de lançar a casa inteira em pandemônio, Guy passou o resto da tarde na sua sala. Ao jantar, mal falou uma palavra, mas bebeu duas garrafas de Porto e outra de Madeira. Foram precisos dois criados para ajudar a Caroline e a mim a carregá-lo para a cama.

- Ora, ora, meu gêmeo se tornou um beberrão?

- Não, não foi uma coisa usual. Pela primeira vez eu o vi beber até ter um estupor. Você parece exercer um efeito estranho sobre as pessoas. - Ela fez o comentário dúbio com tal despreocupação que Tom não teve certeza de como interpretá-lo. E continuou, descontraída: - Depois que o levamos para cima, e Caroline deitou-se ao lado dele na cama, fui ao escritório e descobri que Guy tinha escrito uma porção de cartas. Fiz cópias daquelas que nos interessam.

Puxou as páginas dobradas do bolso da saia.

- Esta é para lorde Childs, e esta para seu irmão William. - Estendeu-as a Tom, as folhas tremendo em sua mão.

- Pegue o leme. - Entregou o leme a ela, e Sarah empoleirou-se na travessa de popa, as saias puxadas até os joelhos para deixar o sol e o vento brincarem em sua pele.

Com esforço, Tom desviou os olhos daquelas pernas longas e fortes e focou sua atenção nos papéis. Franziu a testa ao ler a primeira carta, e, ao continuar, as rugas se transformaram numa careta sombria.

- O bastardo traiçoeiro! - exclamou, e, em seguida, desculpou-se de imediato. - Perdoe-me. Não era minha intenção usar essa linguagem.

Ela riu, e as ruguinhas lhe enfeitaram os olhos.

- Se Guy é um bastardo, isso o torna um também. Melhor escolhermos outra descrição. Que tal sapo desprezível ou boca de latrina?

Tom sentiu-se corar, não esperava ser superado no uso de impropérios. Voltou a atenção depressa para a carta endereçada a William. Dava uma sensação lúgubre ler palavras escritas a um homem que ele matara.

Ao terminar de ler, rasgou ambas as cartas em pedaços e lançou-os no ar. Ficaram a vê-los voar como gaivotas brancas ao vento.

- Conte-me sobre sua audiência com o sultão. Cada detalhe - Sarah pediu.

Antes de responder, Tom levantou-se e foi até o pé do mastro. Baixou a vela latina e, no mesmo instante, o movimento do barco se alterou: não mais avançava e lutava com o vento, mas cedeu a ele como a um amante, com um suave subir e descer. Tom voltou e sentou-se perto de Sarah, tão perto que poderia tocá-la.

- Tive de forçar minha entrada no seu gabinete privativo - disse -, mas fui armado com uma citação do Alcorão.

Descreveu o encontro, repetindo a troca de palavras, e ela o escutou com ar solene, sem interrompê-lo nem uma vez sequer, o que ele considerou, embora a conhecesse pouco, inusitado.

Uma ou duas vezes durante o relato, Tom perdeu o rumo e se repetiu. Os olhos de Sarah o fitavam, grandes, muito abertos, e o branco era límpido e tão alvo que parecia ser tingido de uma suave radiância azulada, como a de um bebê saudável. Seus rostos estavam agora tão próximos que ele podia lhe sentir aquela fragrância sutil do hálito fresco. Quando terminou de falar, ficaram ambos calados, mas nenhum fez movimento algum para se afastar.

Sarah rompeu o silêncio:

- Está planejando me beijar, Tom? - Correu os dedos pelos longos cabelos e afastou-os da face. - Porque, se estiver, é um bom momento para isso. Não tem ninguém a nos espionar.

Ele moveu a face em direção à dela e, então, parou a apenas um centímetro de seus lábios, tomado por uma sensação quase religiosa de respeito e sacrilégio.

- Não quero fazer nada que possa ofendê-la - gaguejou.

- Não seja bobo, Tom Courtney. - A despeito do insulto, sua voz soou rouca, e os olhos se fecharam lentamente, os longos cílios escuros a se entrelaçarem. Correu a ponta da língua por sobre os lábios e depois os recolheu num botão, em expectativa.

Tom sentiu um ímpeto quase irresistível de agarrá-la e de lhe comprimir o corpo contra o seu. Em vez disso, tocou os lábios nos dela tão suavemente como uma borboleta a pousar numa flor. A umidade daquela boca tinha um gosto adocicado, e ele sentiu que poderia sufocar com a pressão em seu peito. Depois de um momento, afastou-se.

Sarah abriu os olhos. Faiscavam de um verde vibrante.

- Que droga, Tom Courtney! - exclamou. - Esperei tanto tempo, e isso foi o melhor que você pôde fazer?

- Você é tão gentil e tão bonita - ele gaguejou. - Não quero magoá-la ou fazer com que me despreze.

- Se não quiser que eu o despreze, então precisa fazer melhor do que isso. - Fechou os olhos de novo e debruçou-se sobre ele.

Tom hesitou apenas por uma batida do coração para agarrá-la, envolvê-la nos braços e esmagar-lhe a boca com a sua.

Ela deixou escapar um pequeno gemido de surpresa e retesou o corpo de susto com a força inesperada daquele abraço. Então, inclinou-se mais ainda, correspondendo ao beijo com um tal abandono que os lábios de ambos se abriram, seus dentes se chocaram, a suavidade e umidade de suas bocas se mesclaram e suas línguas se enroscaram, ávidas.

Uma onda mais alta atingiu o lado do barco à deriva e jogou-os de seu poleiro na travessa de popa. Não lhes rompeu o abraço, e os dois caíram sobre o convés, esquecidos do cheiro da água parada no fundo do barco e das escamas secas de peixe que cobriam as pranchas duras debaixo deles.

- Tom! Tom! - Sarah murmurou, tentando falar sem descolar a boca da dele. - Sim! Ah, quanto tempo! Nunca pensei... Oh, sim, voce é tão forte. Não pare agora.

Ele queria devorá-la, consumi-la toda. A linha daquela boca era escorregadia, e a língua, um aguilhão enlouquecedor. Os sentidos alterados, o universo fechado sobre ele, Tom sentiu que aquele corpo de suave perfume em seus braços era toda a sua existência.

Por fim, tiveram de quebrar o beijo para respirar. Foi apenas por um momento, o bastante para que ela ofegasse:

- Tom... Oh, Tom! Eu o amei desde o primeiro instante que o vi. Todos esses anos pensei que o tinha perdido.

Então se arrojaram de novo nos braços um do outro, a gemer e a se agarrar, os braços dela enlaçados no pescoço dele, lábios a se roçarem, línguas e dentes a se chocarem. Às cegas, Tom buscou-lhe os seios e, quando os encontrou, seu formato e volume elástico o fizeram soltar um grito alto semelhante ao de dor. Os dedos se apressaram em abrir-lhe o corpete, mas ele era desajeitado e inexperiente. Impaciente, Sarah afastou-lhe as mãos e desatou as fitas. Enfiou a mão dentro, abarcou um dos seios e o empurrou para a mão dele, fechando-lhe os dedos em torno.

- Tome - disse, lábios nos lábios -, é seu. Tudo é seu.

Tom apertou-lhe as carnes, dominado pela luxúria e, embora ela choramingasse, pareceu exultar com a dor.

- Oh, eu a machuquei - Tom murmurou e afastou-se. - Sinto muito. De verdade, sinto muito.

- Não, não! - Sarah puxou-lhe as mãos e as devolveu ao seio. - Continue. Faça o que quiser.

Ele fitou aquele seio farto em suas mãos. Era tão branco como se tivesse sido esculpido em marfim, mas com as marcas rosadas de seus dedos rudes sobre a pele. Enchia-lhe a palma da mão. O mamilo estava intumescido e duro, rubro de sangue.

- Tão lindo... Eu nunca vi nada tão lindo.

Inclinou a cabeça e tomou-o nos lábios. Sarah arqueou as costas e ergueu o peito para ir-lhe ao encontro. Estendeu as mãos, enroscou e entrelaçou os dedos nos cabelos fartos e encaracolados da nuca de Tom e guiou-lhe a boca. Quando, por fim, ele se ergueu para fitá-la, Sarah colou a boca na dele mais uma vez.

Tom estava sobre ela agora e, de súbito, Sarah percebeu o que era aquela parte dura que ele investia contra suas coxas e ventre. Nunca se vira numa situação como aquela, mas muitas vezes ela e Caroline tinham conversado sobre isso, e Sarah conseguira extrair cada detalhe de sua irmã mais velha. Ao se dar conta do que era, conteve a respiração e ficou rígida de surpresa. Imediatamente, Tom procurou se afastar.

- Não queria assustá-la. Precisamos parar com isso agora.

A idéia a amedrontou. Desesperou-se ao pensar em ser privada das carícias de Tom e da rigidez daquele corpo. Agarrou-se a ele.

- Por favor, Tom, não se afaste.

Quase timidamente, ele a abraçou de novo, mas arqueou o ventre para longe dela. Sarah queria senti-lo outra vez, aquela maravilhosa coisa máscula e dura contra suas coxas. Deslizou as mãos pelas costas de Tom e lhe agarrou as nádegas, empurrando-as. Ergueu os quadris num movimento ondulante.

- Sim!

Estava em um transporte de paixão, as emoções em turbilhão e as sensações a volutearem como um rebento pego num redemoinho. Sentiu que Tom lhe repuxava as roupas e enfiava as mãos debaixo delas, e percebeu o que ele tentava fazer.

Apoiou-se sobre os ombros e os calcanhares e ergueu as nádegas do convés. Puxou as saias pelas coxas e depois até o umbigo. O vento da monção soprava frio em seu ventre nu, e Tom agora se ajoelhava sobre ela, as mãos a puxarem freneticamente os fechos da calça.

Sarah ergueu-se nos cotovelos. Queria vê-lo. As descrições de Caroline tinham sido quase gráficas, mas ela queria ver por si mesma. Tom demorava tanto que Sarah sentiu que não poderia esperar mais. Iria ajudá-lo. Estendeu a mão.

Então, com um gesto brusco, ele desceu a calça até os joelhos. Sarah ofegou e deixou escapar um gemido alto. Nada do que sua irmã lhe dissera a havia preparado para aquilo. Sem tirar os olhos dele, deitou-se de costas e suas pernas se abriram trêmulas como se ela não tivesse domínio sobre os membros.

Muito depois, Tom desabou sobre ela, o corpo pesado e inerte. Respirava aos haustos, como um homem que estivera perto de morrer afogado. Gotas de seu suor pingavam sobre Sarah como chuva e lhe molhavam a frente do corpo, o rosto e o seio nu. Ela trançou as pernas em torno dele e o sustentou imóvel. O barco os embalava como bebês num berço.

Tom retesou os músculos e tentou se levantar, mas Sarah aumentou o aperto das pernas e braços para impedir que ele se afastasse. E sentiu uma estranha sensação de triunfo e possessão, como se tivesse alcançado alguma coisa de suma importância mística, algo além da mera carne. Não conseguia encontrar palavras para descrever a sensação a si mesma, então afagou a cabeça de Tom e murmurou coisas gentis e incoerentes em seu ouvido.

Com infinito pesar e uma sensação dolorosa de perda, Sarah o sentiu deslizar de dentro de si e, embora uma dor latejante se espalhasse de onde ele forçara caminho para possuí-la, contraiu os músculos e tentou retê-lo. Tom, porém, escorregou para fora, e ela teve de deixá-lo sentar-se. Ele olhou ao redor com uma expressão de espanto.

- Fomos arrastados por uma légua para o alto-mar.

Sarah sentou-se ao lado dele e puxou as saias para baixo. Viu que a ilha era uma linha azul no horizonte. Tom levantou-se de joelhos, puxou a calça, e Sarah ficou a observá-lo. Percebeu-se dominada por uma sensação maternal e protetora, como se, miraculosamente, houvesse se transformado numa mulher completa, como se tivesse deixado a meninice para trás e fosse agora ela a forte e ele a criança frágil que devia ser nutrida e acarinhada.

Instável nas pernas, Tom cambaleou até a adriça, ergueu a vela e levou o barco ao vento. Sarah alisou as roupas, amarrou outra vez os laços do corpete e, depois, levantou-se do convés e foi sentar-se com ele ao leme. Tom a abraçou pelos ombros, e ela se aconchegou a seu peito. Já estavam a meio caminho de volta à ilha e nenhum dos dois dissera uma palavra.

- Eu a amo, Sarah Beatty - Tom murmurou, por fim.

Ela rejubilou-se ao ouvi-lo dizer aquelas palavras e o abraçou com mais força.

- Como já lhe falei antes, eu o amei desde o primeiro dia que pus os olhos em você, Tom Courtney. Embora fosse uma criança, jurei naquele dia que seria sua mulher.

- Esse dia chegou - disse ele e beijou-a de novo.

Passaram a se encontrar com a freqüência com que Sarah conseguia escapar da vigilância de Caroline e Guy. As vezes os intervalos entre seus encontros eram de dois ou três dias, quando a paixão entre ambos parecia inflamada pela demora.

Aquelas escapadas românticas aconteciam sempre às tardes, pois nas manhãs Sarah ajudava Caroline nos serviços domésticos ou cuidava do pequeno Christopher. Nem Tom poderia abandonar a Andorinha e sua tripulação: o navio sofrera grandes danos no casco e cordame numa tempestade, depois de zarparem de Boa Esperança, e aquilo precisava ser consertado para que tivesse plenas condições de navegabilidade outra vez.

Na maioria das manhãs, Tom seguia até o forte, desesperado por ter notícias de Dorian vindas de Mascate, e ainda à espera de sua licença de comércio. Embora enchesse o vizir de elogios e gorjetas, continuava em desgraça, e o alto funcionário o punia com evasivas floreadas e pedidos de desculpas pelo atraso. Sem a licença do sultão nas mãos, Tom não poderia negociar nos mercados da ilha.

Aquelas horas preciosas em que Tom e Sarah podiam estar juntos passavam depressa demais para ambos. Por vezes ficavam nos braços um do outro, sem se importar em tocar as iguarias que Sarah trouxera, e faziam amor como se fosse pela última vez. Nos intervalos entre os arroubos apaixonados, conversavam, ofegantes, levados pela necessidade de dizer tudo que sentiam um pelo outro, e faziam planos fantásticos para o futuro, para a hora em que juntos escapariam da ilha e, com Dorian, partiriam na Andorinha.

Em outros dias, tomavam o barco e navegavam até os recifes exteriores, ancoravam e pescavam com varas, entre risos e gritos de excitação ao trazerem das profundezas as lindas criaturas marinhas que se debatiam nas linhas, reluzentes como grandes pedras preciosas à luz do sol.

Certa tarde, Sarah apareceu com a caixa de pistolas de duelo que seu pai lhe dera ao se separarem, em Bombaim, para que ela se protegesse naquela terra de animais selvagens e de homens ainda mais perigosos.

- Papai prometeu me ensinar a atirar, mas nunca achou tempo - ela disse a Tom. - Você pode me ensinar agora?

Tratava-se de armas magníficas. Os cabos eram de nogueira lustrosa, e o mecanismo de disparo e os canos longos, engastados em ouro e prata. No estojo, havia varetas de chifre e frascos de prata de pólvora. Encaixado dentro da caixa, um recipiente de tampa roscada que continha cinqüenta balas de chumbo selecionadas para assegurar que fossem perfeitamente redondas e simétricas. As tiras que prendiam as armas eram de couro untado.

Tom carregou as pistolas com meia porção de pólvora para reduzir o coice. Em seguida mostrou a Sarah como posicionar o pé e olhar para o alvo, voltada de lado e com o ombro direito à frente. Depois, com o punho esquerdo no quadril, erguer a arma com o braço direito estendido, alinhar a alça de mira ao nódulo perto do cabo e disparar ao colocar o alvo no ponto, em vez de tentar fazer a mira até que o braço doesse e balançasse.

Colocou um coco no topo de um dos muros baixos do mosteiro, a quinze passos de distância.

- Arrebente-o! - disse e lhe apontou as falhas. - Baixo! Ainda baixo! À direita! - Recarregou a arma depressa, e Sarah trocou de pistolas.

No quarto tiro, ela mandou o coco a rodopiar para o alto, espirrando água. Sarah gritou de alegria e, logo, acertava mais vezes do que errava.

- Eu deveria receber um prêmio a cada acerto - ela sugeriu.

- Que tipo de prêmio tem em mente?

- Um beijo seria apropriado.

Com tal incentivo, Sarah acertou cinco tiros em sucessão, e Tom lhe disse:

- Menina esperta, ganhou o grande prêmio. - Pegou-a nos braços e carregou-a, sob protestos em nada sinceros, até o lugar secreto que haviam escolhido nas ruínas.

Uns poucos dias depois, ele levou consigo, no barco, um dos melhores mosquetes de Londres e mostrou a ela como carregá-lo e atirar. Tom comprara quatro daquelas armas extraordinárias antes de zarpar da Inglaterra. Não tivera condições de comprar mais, pois seu preço era absurdamente alto.

Os mosquetes militares baratos não tinham esfriamento, e a bala não se ajustava perfeitamente ao cano e, portanto, não era conferido a ela o giro necessário quando disparada. Por não ser estabilizada, voava aleatoriamente.

Naquela arma, entretanto, a precisão era espantosa. Tom poderia ter certeza de atingir um coco a cada tiro a uns 150 passos. Sarah era alta e forte o bastante para ser capaz de nivelar o pesado mosquete ao ombro sem dificuldade e, mais uma vez, provou que possuía rapidez na mão e no olho para se tornar uma atiradora excepcional. Com uma hora de prática, reclamara seu prêmio em quase todos os disparos.

- Acho que a próxima coisa que terei de lhe ensinar é esgrima - comentou Tom enquanto estavam deitados sobre a cama de palha trançada com que haviam mobiliado a cela secreta sem teto, no mosteiro.

- Já fez um belo trabalho com a espada. - Ela sorriu com ar malicioso e levou a mão para a virilha de Tom. - Eis aqui minha arma de confiança e, meu caro senhor, já sei muito bem como brincar com ela.

Depois, com seriedade, discutiram seus planos para quando Tom tivesse sucesso em resgatar Dorian.

- Voltarei para buscá-la - disse ele - e a levarei comigo para longe de Zanzibar e de Guy.

- Sim - Sarah concordou como se jamais pudesse duvidar disso.

- E depois voltaremos juntos para a Inglaterra, não é, Tom? - Viu que a expressão dele se alterava. - O que foi, meu querido? - perguntou, ansiosa.

- Jamais regressarei à Inglaterra - ele murmurou.

Ela ergueu-se de joelhos e o encarou, aflita.

- O que quer dizer que nunca vai voltar para casa?

- Ouça-me, Sarah. - Tom sentou-se e lhe tomou as mãos. - Algo terrível aconteceu antes que eu partisse da Inglaterra, algo que eu jamais pretendi fazer.

- Conte-me - ela implorou. - Qualquer coisa que o afeta, afeta a mim também.

E, assim, Tom lhe contou sobre William. Começou do princípio e descreveu a Sarah a sua infância e a crescente tirania que o irmão mais velho exercia sobre os mais novos. Falou dos muitos pequenos incidentes de crueldade desalmada que William lhes infligira.

- Acho que as únicas ocasiões em que Dorian, Guy e eu fomos felizes era quando estávamos livres de William, nas vezes em que ele estava fora, na universidade - disse.

A expressão de Sarah era cheia de compaixão.

- Não gostei dele quando o conheci em High Weald - comentou.

- Lembrou-me uma serpente fria e venenosa.

Tom concordou.

- Ao ficar longe de casa, na viagem com o Seraph, eu quase havia me esquecido de quanto William podia ser vingativo. Porém quando levamos papai para casa, depois de Flor do Mar, tudo aquilo me voltou da pior maneira.

Contou-lhe como William tinha tratado seu pai agonizante, e como repudiara seu juramento em ajudar a encontrar Dorian, depois da morte de Hal.

- Brigamos - disse. - Tínhamos brigado antes, muitas vezes, porém jamais daquele jeito. - Calou-se, e a dor diante da lembrança era tão evidente que Sarah tentou abraçá-lo para impedi-lo de continuar o relato. - Não, Sarah, tenho de lhe contar tudo. Você precisa ouvir para que possa entender como aconteceu. - Algumas vezes aos solavancos, outras num impetuoso fluxo de palavras, Tom contou a ela sobre aquela briga em sua última noite em High Weald. - Você me perguntou como eu quebrei meu nariz, e não pude lhe dizer então. - Tocou o calombo. - Billy fez isto.

- Tem mais? - Sarah perguntou com uma vozinha assustada. - Não creio que eu possa agüentar ouvir mais.

- Devo lhe contar tudo, e você precisa ouvir para entender.

Chegou por fim ao encontro fatal no atracadouro do rio, abaixo da Torre de Londres. Tom descreveu a luta com o bando de degoladores de aluguel. Sua voz foi ficando cada vez mais baixa, e houve longas pausas enquanto ele procurava por palavras para descrever o terrível clímax.

- Eu ainda não sabia que era Billy. Estava escuro. Ele usava um chapéu de aba larga, e seu rosto estava encoberto. Pensei que fosse um barqueiro, e corri até ele, pedi que nos levasse dali. Fiquei paralisado quando sacou a pistola. Disparou, e a bala me atingiu. - Ergueu a camisa e mostrou a longa cicatriz rosada pelas suas costelas, debaixo do braço.

Sarah olhou para a marca e então estendeu a mão para tocar a cicatriz com a ponta dos dedos. Já a notara antes, mas quando o questionara, Tom se mostrara evasivo. Agora ela sabia por quê.

- Ele poderia tê-lo matado - murmurou com pavor.

- Sim, pensei que estivesse ferido de morte. Felizmente, porém, a bala atingiu minhas costelas e se desviou. Eu caí de costas, e Billy se postou sobre mim e apontou o segundo cano. Aquele disparo teria encerrado o assunto. A espada estava na minha mão, e eu, apavorado, terrificado. Não sei como consegui, mas usei de toda a minha força e o atingi em cheio no peito. A lâmina lhe trespassou o coração.

- Oh, Deus misericordioso! - Sarah o encarou. - Você matou seu próprio irmão.

- Não sabia que era Billy, não naquele momento. Não até que lhe tirei o chapéu da cabeça e lhe vi o rosto.

Ficaram mudos por algum tempo.

Sarah parecia horrorizada. Mas, então, recobrou-se.

- Ele tentou matá-lo - disse com firmeza. - Você teve de se defender, Tom, para salvar a própria vida. - Viu a desolação nos olhos dele. Estendeu a mão, afagou-lhe os cabelos e lhe puxou a cabeça para o colo. Segurou-o ali, acalentando-o. - Não há do que se culpar. Você foi obrigado a fazer o que fez.

- Eu disse isso a mim mesmo mil vezes - a voz de Tom saiu abafada. - Mas ele era meu irmão.

- Deus é justo. Sei que Ele o perdoa, meu querido. Deve esquecer, deixar no passado.

Tom ergueu a face, e Sarah percebeu que não havia nada que pudesse dizer para lhe aliviar a dor. Aquilo o assombraria pelo resto da vida. Beijou-o.

- Nada disso faz qualquer diferença para nós, Tom. Sou sua mulher para sempre. Se não pudermos voltar para a Inglaterra, então, que assim seja. Eu o seguirei aos confins da Terra. Nada importa a não ser você e eu, e o nosso amor.

Puxou-o para a cama de palha e lhe ofereceu o conforto de seu corpo.

Inquieta, a Andorinha esperava no porto. Tinham completado os reparos fazia tempo e, mais uma vez, a nau se mostrava atraente e adorável. Seu casco luzia com a nova pintura, mas seus panos permaneciam enrolados e ela se remexia, intranqüila, nos cabos da âncora como um falcão aprisionado.

A tripulação começava a ficar agitada. Inúmeras brigas feias aconteciam entre os homens, os nervos à flor da pele pela inatividade, e Tom sabia que não poderia mantê-los por muito mais tempo naquele ócio como prisioneiros em seu próprio navio. Mais e mais, ele se via tentado a desafiar o decreto do sultão e navegar para o norte, para dentro daqueles mares proibidos onde, sabia, Dorian era mantido cativo, ou levar a Andorinha rumo ao continente e procurar pelos lugares ocultos no interior misterioso onde o marfim, o ouro e a goma-arábica eram colhidos.

Aboli e Ned Tyler aconselharam paciência, mas Tom os confrontou, zangado.

- Paciência é para velhos. A fortuna nunca sorri à paciência.

A monção declinou para o período sem vento das calmarias e depois girou em torno do compasso e soprou quase inaudível do nordeste, aquelas primeiras brisas gentis que anunciam a mudança de estação, os arautos das grandes chuvas do kaskazi.

O kaskazi reuniu forças e, no porto, os navios mercantes abarrotados de carga recolheram as âncoras, içaram as velas ao vento recém-chegado e tomaram o rumo sul, para contornar o cabo da Boa Esperança.

A Andorinha esperava no porto quase vazio. Então, em uma das visitas regulares de Tom ao forte, o vizir o saudou como se tivesse chegado recentemente ao atracadouro, e lhe ofereceu um assento numa almofada de brocado e uma xícara do tamanho de um dedal de doce café preto.

- Todos os meus esforços em seu favor frutificaram. Sua Excelência, o sultão, julgou favoravelmente sua petição para uma licença de comércio. - Sorriu, apaziguador, e tirou o documento da manga de sua túnica. - Eis aqui sua licença.

Tom estendeu a mão para pegá-lo, ansioso, mas o vizir o enfiou dentro da manga.

- A licença é restrita apenas à ilha de Zanzibar. Não lhe dá direito de navegar mais ao norte ou de atracar em qualquer porto do continente. Se o fizer, seu navio será confiscado e a tripulação com ele.

Tom tentou ocultar sua irritação.

- Compreendo, e fico grato pela generosidade do sultão.

- Será cobrada uma taxa sobre quaisquer mercadorias que adquirir nos mercados, que deve ser paga em ouro antes que sejam carregadas a bordo do seu navio. A taxa é uma quinta parte do valor de todas as mercadorias.

Tom engoliu em seco, porém manteve o sorriso polido.

- Sua Excelência é generoso.

O vizir estendeu o documento, mas quando Tom ia pegá-lo, de novo o recolheu e soltou uma exclamação de quem se aborrece com o próprio esquecimento.

- Ah! Perdoe-me, efêndi. Escapou-me um detalhe sobre a taxa de licença. Mil rupias em ouro e, é claro, outras quinhentas rupias por minha própria intercessão junto a Sua Excelência.

Com a licença real enfim nas mãos, Tom pôde visitar os mercados. Todo dia desembarcava em terra ao amanhecer, com mestre Walsh e Aboli a acompanhá-lo, e voltava ao navio apenas na hora do Zuhr, a prece do início do entardecer, quando os mercadores fechavam seus bazares para atender ao chamado do muezim para as suas devoções.

Pelas primeiras semanas, ele não fez compras, mas se sentou por horas com um ou outro dos mercadores, entre xícaras de café e trocas de gentilezas, e examinou-lhes as mercadorias sem nenhuma demonstração de entusiasmo e sem entabular negociações, mas comparando preços e qualidade. Tom acreditara a princípio que seu poder de barganha seria fortalecido, já que a maioria dos outros mercadores europeus tinha zarpado com o kaskazi, e que, portanto, a competição seria pequena pelos bens em oferta.

Logo descobriu que aquele estava muito longe de ser o caso. Os outros mercadores haviam escolhido as mercadorias e selecionado as melhores. As presas de marfim que permaneciam no mercado eram na maioria imaturas, pouco maiores que seu braço, muitas deformadas e desbotadas. Não havia nada que se aproximasse daquele formidável par que seu pai comprara do cônsul Grey naquela primeira visita à ilha. A despeito da baixa qualidade, os mercadores já tinham auferido gordos lucros e mantinham seus preços com um indiferente dar de ombros quando ele reclamava.

- Efêndi, existem poucos homens que caçam os animais. É trabalho perigoso, e a cada estação precisam viajar mais para o interior para encontrar as manadas. A estação agora está no fim. O estoque de marfim foi levado pelos outros comerciantes europeus - um dos mercadores lhe explicou suavemente. - Contudo, tenho uns poucos escravos de qualidade para a sua consideração.

Com toda a gentileza que pôde demonstrar, Tom recusou a oferta de examinar aquele plantel humano. Aboli fora capturado como escravo na infância, porém cada detalhe dos horrores infligidos a ele permanecia profundamente marcado em sua memória. Antes de algum dia partir das praias da Inglaterra, Tom crescera ouvindo as suas descrições daquele comércio hediondo. Durante as muitas viagens, o pai de Tom acumulara conhecimento de primeira mão sobre o comércio, e instilara no jovem Tom o horror por aquelas práticas desumanas.

Desde a primeira vez que contornara o cabo da Boa Esperança, Tom entrara em contato regular com os traficantes negreiros e suas vítimas. Durante sua longa espera nos atracadouros de Zanzibar, sempre havia navios negreiros ancorados por perto, próximos o suficiente para que o fedor e os sons horripilantes de seus porões fossem levados com clareza até onde se encontrava a Andorinha.

A cada dia, agora, Tom caminhava com Aboli pelos recintos de escravos, e era mais difícil ignorar a miséria em torno deles: o choro das crianças arrancadas dos braços dos pais, o pranto das mães destituídas dos entes queridos, e o profundo sofrimento nos olhos escuros de jovens homens e mulheres, privados de sua existência livre e selvagem, acorrentados como animais, tratados com abusos numa língua que não compreendiam, presos no pelourinho, chicoteados com o horripilante kiboko de pele de hipopótamo até que suas costelas aflorassem brancas em meio às feridas. A simples idéia de lucrar com o tormento daquelas almas perdidas fazia a bile subir pelo fundo da garganta de Tom.

De volta à Andorinha, discutiu a difícil situação com os oficiais do navio. Embora a meta primordial da viagem fosse encontrar Dorian, e Tom nunca se desviava desse objetivo, ele tinha um dever para com sua tripulação e arrebanhara muitos a bordo com a promessa de recompensa. Até então, não houvera recompensa alguma, e uma perspectiva muito pequena de qualquer lucro a partilhar com eles.

- Há pouca coisa a barganhar por estas redondezas - Mestre Walsh confirmou com voz lúgubre. Abriu seu caderno de anotações, ajustou os óculos de aro dourado no nariz e relacionou os preços do marfim e da goma-arábica que compilara antes de deixarem a Inglaterra. - O preço das especiarias está mais favorável, mas permite um lucro pequeno se levarmos em conta as vicissitudes e despesas da viagem. O cravo e a pimenta sempre têm mercado, e, em menor extensão, a canela e, claro, a casca de quina estão com demanda alta na América e no Mediterrâneo, em países assolados pela malária.

- Devemos ter umas poucas centenas de quilos de quina para o nosso próprio uso - Tom o interrompeu. - Agora que as grandes chuvas começaram, a febre vai se espalhar.

O extrato fervido da casca era mais amargo que o fel, porém, um século antes, os monges jesuítas tinham descoberto que era um santo remédio para a febre da malária. Foram os padres que introduziram as árvores de quina naquela ilha. Agora, cresciam por ali em profusão.

- Sim - concordou Aboli. - Precisaremos da quina. Principalmente se formos para o interior para procurarmos nosso próprio marfim.

Tom o olhou com espanto.

- O que o faz pensar que eu seria tolo o bastante para infringir os decretos do sultão e da Companhia John, Aboli? Mesmo você me aconselhou com veemência contra tal atitude.

- Eu o tenho observado sentado à proa toda noite, e a olhar para o canal que separa a ilha do continente africano. Seus pensamentos são tão altos que quase me deixam surdo.

Tom não refutou a constatação, e sua cabeça voltou-se instintivamente em direção ao ocidente, e lhe veio um olhar sonhador ao fitar o contorno enevoado da terra que se escondia nas sombras do crepúsculo.

- Seria perigoso.

- Isso nunca o impediu antes - Aboli ponderou.

- Eu não saberia por onde começar. É uma terra desconhecida, terra incógnita. - Usava o termo da legenda dos mapas que ele estudara tão avidamente. - Nem mesmo você viajou por lá, Aboli. Seria tolice ir sem um guia para nos conduzir.

- Não, não conheço essa terra mais ao norte - concordou Aboli. - Nasci muito mais ao sul, perto do grande rio Zambezi, e faz muitos anos desde que estive lá. - Fez uma pausa. - Mas sei onde encontrar alguém que poderia nos levar para o interior.

- Quem? - perguntou Tom, incapaz de ocultar sua excitação. - Onde encontraremos esse homem? Qual é o seu nome?

- Não sei ainda seu nome ou como é seu rosto, mas o reconhecerei quando o vir.

Quando foram em terra na manhã seguinte, as primeiras fileiras de escravos acorrentados estavam sendo levadas para o mercado dos barracões, onde ficavam encarcerados durante a noite.

Como todas as outras mercadorias naquele fim de estação, suas filas eram menores, com menos de duzentos escravos em oferta. Quando a Andorinha chegara, logo nos primeiros dias, havia vários milhares à venda. A maior parte dos que restavam eram velhos ou fracos, magros com as doenças e cheios de cicatrizes causadas pelo kiboko. Os compradores se mostravam sempre cautelosos diante de um escravo marcado de chicote, pois isso normalmente significava que ele ou ela era incorrigível, arredio ao treinamento.

Antes, quando passavam pelo mercado, Tom desviava o olhar, tentava evitar examiná-los, sua repugnância e piedade por demais perturbadoras. Agora, porém, ele e Aboli tomaram posição no portão principal do mercado negreiro, de onde podiam observar as tristes colunas que eram levadas como rebanhos para lá. Esquadrinharam cada indivíduo quando se aproximava deles.

Dois ou três negros nas fileiras pareceram a Tom ser do tipo que estavam procurando, altos, fortes e altivos, a despeito de seus grilhões. Quando, porém, tocou o braço de Aboli e o fitou, numa pergunta muda, Aboli meneou a cabeça, impaciente.

- Nada? - Tom perguntou baixinho, desapontado. O último dos escravos passava, e Aboli não mostrara interesse por nenhum deles.

- Nosso homem está lá - Aboli o contradisse -, mas o mestre negreiro nos observa. Eu não poderia apontá-lo para você.

Os escravos foram conduzidos às suas baias ao redor do pátio e cada um acorrentado a seu poste. Os senhores tomaram seus lugares a sombra, homens ricos, de ar complacente, elegantemente vestidos, atendidos por seus escravos pessoais, que lhes serviam café e acendiam seus narguilés. Olhos dissimulados e evasivos observavam Tom e Aboli, que faziam um lento circuito pelo mercado.

Aboli parou na primeira baia e examinou um dos escravos, um homem forte e guerreiro, pela aparência. O mestre abriu-lhe a boca para mostrar os dentes, como se fosse um cavalo, e lhe apalpou os músculos.

- Não mais de vinte anos de idade, efêndi - disse o árabe. - Olhe para estes braços fortes. Ele tem outros trinta anos de trabalho duro pela frente.

Aboli falou com o pobre infeliz num dos dialetos das florestas, mas o homem o fitou como um animal mudo. Aboli meneou a cabeça, passou para a próxima baia e repetiu a rotina.

Tom se deu conta de que ele, aos poucos, abria caminho para o homem que já escolhera. Olhou adiante, tentando adivinhar quem era, e, então, com súbita certeza, o reconheceu.

Estava nu a não ser por uma tanga sumária, um homem miúdo de compleição esguia porém forte. Não tinha gordura ou carne flácida. Seus cabelos eram uma moita espessa e desgrenhada, como a de um animal selvagem, mas seus olhos eram brilhantes e perspicazes.

Gradualmente, Tom e Aboli se aproximaram do grupo em que ele se incluía, e Tom foi cauteloso em fingir desinteresse por aquele que já haviam escolhido. Inspecionaram outro homem e uma jovem, e, depois, para frustração do mestre, fingiram se afastar. Como se refletisse de novo, Aboli voltou até o homenzinho.

- Mostre-me as mãos dele - disse ao mestre negreiro, que fez um sinal a seu assistente. Os dois agarraram os pulsos do escravo, e os grilhões tiniram quando o forçaram a esticar as mãos para o escrutínio de Aboli. - Vire-as para cima - Aboli ordenou, e eles lhe viraram as mãos com as palmas para cima. Aboli escondeu sua satisfação. Os primeiros dois dedos de ambas as mãos eram calejados a tal ponto de serem quase deformados. - Este é o nosso homem - disse a Tom, em inglês, mas numa inflexão que fez a frase soar como uma rejeição.

Tom meneou a cabeça como se para confirmar o fato. Afastaram-se, deixando o mestre negreiro desapontado a fitá-los.

- O que há com as mãos dele? - Tom perguntou, sem olhar para trás. - O que as marcou daquele jeito?

- As cordas do arco - Aboli respondeu secamente.

- Ambas? - Tom estacou, de surpresa.

- Ele é um caçador de elefantes - explicou Aboli -, mas continuemos a caminhar e eu lhe explicarei. O arco de elefante é tão rijo que nenhum homem pode puxá-lo na direção do ombro. O caçador se esgueira para perto... perto assim. - Apontou para uma parede a dez Passos de distância. - Então, deita-se de costas, ambos os pés na curvatura do arco. Coloca a ponta da flecha entre os dedões do pé e puxa a corda com as duas mãos. Pelos anos de caçada, a corda do arco marca Seus dedos daquele jeito.

Tom teve dificuldade em visualizar um arco de tal poder.

- Deve ser uma arma formidável, esse arco.

- Pode lançar uma flecha através do corpo de um touro, de ombro a ombro, e matar um homem parado do outro lado - disse Aboli. - Aquele é um dos homens da pequena e intrépida fraternidade que vive de caçar os grandes animais.

Completaram sua preguiçosa ronda do mercado e, em seguida, com displicência, retornaram até onde se encontrava o homenzinho.

- Está acorrentado duplamente, nos tornozelos e punhos - Aboli comentou em inglês. - E olhe para as suas costas. - Tom viu as cicatrizes mal saradas que riscavam sua pele escura. - Bateram nele com selvageria, na tentativa de dobrá-lo à vontade dos mestres, mas você pode ver por seus olhos que não foram bem-sucedidos.

Aboli rodeou o homenzinho em passos lentos e lhe examinou a compleição muscular. Murmurou alguma coisa para ele numa língua que Tom não conhecia. Não houve reação do escravo. Tom fitou-o dentro dos olhos e viu que continuavam sombrios e sem mostras de compreensão. Aboli falou duas palavras em outro dos dialetos da floresta. Ainda não houve sinal do homenzinho de que compreendia.

Tom sabia que, além de sua língua-mãe, o idioma que Aboli lhe ensinara quando era criança, Aboli falava pelos menos uma dúzia de outros dialetos menores do interior distante. Agora, mudava de idioma novamente. Dessa vez, o homem pareceu despertar e, confuso e intrigado, virou a cabeça a fim de olhar para Aboli. Este repetiu uma única palavra.

- Fundi!

- Esse é o nome dele - Aboli explicou a Tom, ainda em inglês. - E dos lozi. Uma poderosa tribo guerreira. Seu nome significa o Adepto. - Aboli sorriu. - Ele provavelmente o merece.

Tom aceitou o convite do mestre negreiro para tomar uma xícara de café, acompanhamento essencial para qualquer transação comercial civilizada. Em curto espaço de tempo, Tom percebeu que o mestre negreiro estava ansioso para se livrar de sua pequena porém truculenta mercadoria, e explorou a vantagem. Depois de uma hora de regateios, o mestre lançou as mãos ao alto, em desespero.

- Meus filhos morrerão de fome. Você me arruinou com a sua intransigência. Vai me deixar mais pobre, mas leve-o! Leve-o, e meu próprio sangue e ossos com ele.

Quando embarcaram Fundi, o Adepto, na Andorinha, Tom chamou o ferreiro e mandou que lhe cortassem os grilhões dos tornozelos e pulsos. O homenzinho esfregou a carne esfolada e os fitou, espantado. Então, seus olhos se voltaram para oeste, para o enevoado contorno da terra de onde fora arrancado com tanta crueldade.

- Sim. - Aboli leu-lhe os pensamentos. - Você pode tentar fugir e voltar para o seu lar. Mas conseguirá nadar toda essa distância? - Apontou para a ameaçadora extensão de água. - Lá, os tubarões o esperam para lhe dar as boas-vindas, maiores que o maior dos crocodilos que você já viu, com dentes mais longos e mais agudos do que a ponta das suas flechas. Se não o comerem, então eu o pegarei e vou surrá-lo tanto que você vai pensar que os socos dos árabes eram apenas um tímido toque de uma virgem. Depois, eu o acorrentarei de novo como um animal.

Fundi o encarou, desafiador, mas Aboli continuou:

- Ou, se for sábio, nos falará sobre a terra de onde veio e, depois, nos levará até lá sem correntes, caminhando à frente de nós de novo como um guerreiro, um matador dos grandes elefantes, livre e orgulhoso.

Fundi continuou a encará-lo, mas, involuntariamente, sua expressão mudou e seus olhos sombrios se arregalaram.

- Como sabe que sou um matador de elefantes? Como fala a língua dos lozi? Por que me oferece a liberdade? Por que quer viajar para a terra de meus pais?

- Todas essas coisas eu lhe explicarei - prometeu Aboli. - Por enquanto, porém, pense apenas que não somos seus inimigos. Tome, comida para você.

Fundi estava esfaimado e devorou com apetite voraz a tigela de arroz e cabrito cozido que Aboli colocou diante dele. Gradualmente, a comida em sua barriga e as perguntas gentis de Aboli o acalmaram, e ele as respondeu entre os bocados que mastigava.

Aboli traduziu para Tom:

- Ele não sabe qual a distância, pois não a calcula como nós. Mas a sua terra é distante, muitos meses de viagem. Diz que vive ao lado do grande rio.

Levou tempo para que Fundi lhes contasse toda a sua história; porém, pelos dias que se seguiram, ele lhes revelou todos os detalhes e os intrigou com sua descrição de lagos e enormes planícies, de montanhas coroadas de um branco brilhante como a cabeça dos velhos.

- Montanhas de cume nevado? - Tom estava perplexo. - Certamente não é possível nesses climas tropicais.

Contou-lhes das imensas manadas de animais estranhos, algumas maiores que a de gado zebu de corcova no dorso, negros e monstruosos com chifres agudos em forma de foice que podiam arrancar as entranhas de um leão de juba preta com uma única investida.

- Elefantes? - Tom perguntou. - Marfim?

Os olhos de Fundi brilharam quando falou dos poderosos paquidermes.

- São minhas cabras - gabou-se para Aboli e lhe mostrou as calosidades dos dedos. - Meu nome é Fundi, o grande matador de elefantes. - Esticou ambas as mãos com os dedos abertos e por dez vezes os fechou nos punhos dobrados e os abriu depressa de novo. - Eis como muitos elefantes caíram sob o meu arco, abatidos no coração pelas minhas flechas, cada um deles um touro poderoso com presas maiores do que isto. - Levantou-se na ponta dos pés e estendeu os braços para cima tão alto quanto conseguiu alcançar.

- Ainda existem muitos elefantes na sua terra? - Tom perguntou. - Ou o poderoso caçador Fundi abateu todos eles?

Quando Aboli fez a pergunta a ele, Fundi riu, e sua fisionomia tornou-se maliciosa.

- Pode você contar os talos de grama das grandes planícies? Quantos peixes há nos lagos? Qual é o número de patos nos bandos que escurecem o céu na estação das grandes chuvas? Eis quantos elefantes existem na terra dos Lozi.

A excitação de Tom viu-se alimentada por aquelas narrativas intrigantes, e ele ficou acordado, à noite, em seu duro e estreito catre, a sonhar com a terra selvagem que o homenzinho lhes descrevera. Não era apenas a promessa de riqueza e lucro; queria ver aquelas maravilhas com seus próprios olhos e caçar as poderosas bestas, ver as montanhas recobertas de branco e percorrer as águas imensas e doces dos lagos.

Então, os loucos vôos de sua imaginação foram confrontados pelos pensamentos de Dorian e Sarah e seu compromisso para com eles: Sarah já prometera que o seguiria para onde quer que ele fosse. Ela não é como as outras moças. É como eu. Tem a aventura no sangue. Mas, e Dorian?

Pensou em Dorian como não pensara em todos os anos desde que tinham se separado. Com a visão mental, enxergou-o como naquela noite fatídica quando subira na janela de sua cela em Flor do Mar: uma criança indefesa.

Custou-lhe esforço afastar os pensamentos da rota a que se apegara por tanto tempo. Como seria ele agora? Teria mudado pelas vicissitudes a que fora forçado a se submeter? É ainda meu irmãozinho ou um homem diferente do menino que eu conheci?, imaginou, alarmado com a idéia de um estranho ter se apossado do lugar de Dorian. De uma coisa eu tenho certeza: ele nunca mudará como Guy mudou. Ainda haverá uma chama dentro dele. Ainda há de querer vir comigo nessa nova aventura. O vínculo entre nós ainda deve ser forte. Tenho certeza disso.

Teve a impressão de ter sido lançado nas garras e aos pés dos deuses da sorte, pois a resposta que buscava lhe veio mais cedo do que esperava. À luz da aurora da manhã seguinte, um barquinho sujo partiu do cais de pedra do porto para onde a Andorinha jazia em sua ancoragem. Quando o barqueiro ainda estava a meia distância de um tiro de pistola do costado do navio, levantou-se nas pranchas e gritou:

- Efêndi, tenho um papel para o senhor, enviado pelo cônsul inglês! - Ergueu o documento e o sacudiu.

- Encoste! - Ned Tyler lhe deu a permissão.

Em sua cabina, Tom ouviu os gritos e sentiu uma estranha premonição de que alguma coisa portentosa estava prestes a desabar sobre si. De mangas de camisa, correu para o convés, a tempo de arrancar a carta das mãos do barqueiro.

Viu que a letra na folha dobrada era de Guy. Mudara muito pouco desde as aulas conjuntas com mestre Walsh. A missiva era endereçada ao capitão Thomas Courtney, a bordo da Andorinha, atracadouros de Zanzibar.

Tom a abriu, apressado, e leu a concisa mensagem:

O sultão nos convocou a ambos para uma audiência ao meio-dia, neste dia de hoje. Eu o encontrarei no portão do forte, dez minutos antes da hora.

G.C.

Com era de prever, Guy foi pontual. Ao se aproximar, em companhia de seu atendente, seus cumprimentos foram frios. Limitou-se a inclinar ligeiramente a cabeça numa saudação, desmontou e jogou as rédeas para o criado. Em seguida olhou na direção de Tom.

 

- Eu não o incomodaria, senhor - disse com ar distante, sem procurar os olhos do irmão -, mas Sua Excelência insistiu que estivesse presente a essa audiência. - Puxou o relógio do bolso do colete, consultou-o e, em seguida, passou pelos portões sem olhar para trás.

O vizir cumprimentou-os com expressões de enorme respeito, a se inclinar e sorrir com gentileza, e recuou de costas até onde se encontrava o sultão, diante de quem se prostrou.

Guy fez uma reverência não muito profunda, consciente de sua dignidade como representante de Sua Majestade, e formalizou suas polidas saudações. Tom seguiu-lhe o exemplo. Depois, seu olhar foi para o homem que se sentava à direita do sultão: parecia bem alimentado e sua túnica era da melhor qualidade. O punho de sua adaga era de ouro e chifre de rinoceronte. Tratava-se de uma pessoa de alta hierarquia e dignidade, de óbvia importância, pois mesmo o sultão lhe mostrava deferência. Examinava Tom com mais que um interesse comum, como se soubesse quem era e tivesse informações sobre ele.

- Clamo pelas bênçãos de Alá sobre ambos - disse o sultão e fez um gesto a indicar as almofadas colocadas ali perto e prontas para recebê-los.

Guy sentou-se, desajeitado, com dificuldade em arrumar a espada ao se acomodar. Tom passara muitas horas com os mercadores nos bazares e estava acostumado com aquela posição. Colocou a bainha da espada de Netuno no colo.

- Sinto-me honrado por receber em minha corte o santo mulá da mesquita do príncipe Abd Muhammad al-Malik, o irmão do califa de Omã. - O sultão inclinou sua cabeça na direção do homem que se sentava a seu lado. Tom empertigou-se e sentiu sua respiração acelerar-se ao ouvir o nome do príncipe, o homem que comprara Dorian do corsário. Encarou o mulá enquanto o sultão continuava: - Este é o santo al-Allama. Veio enviado pelo príncipe.

Tanto Tom como Guy o encararam. Al-Allama fez um gesto gracioso. Suas mãos eram pequenas e delicadas, como as de uma moça.

- Possam vocês ter uma boa acolhida aos olhos de Deus e seu Profeta - disse e inclinou-se numa saudação.

- Espero que tenha feito uma viagem agradável e que, quando partiu de sua casa, tudo tenha corrido bem em seu lar - disse Tom.

O mulá respondeu:

- Agradeço por sua preocupação. O kaskazi nos tratou gentilmente, e Alá sorriu à nossa missão. - Al-Allama esboçou um sorriso. - Devo congratulá-lo pela excelência de seu árabe. Fala a língua sagrada como se nascido para isso.

Os cumprimentos se sucederam de ambas as partes, mas Tom julgou o longo e complicado ritual difícil de suportar. Aquele homem trouxera notícias de Dorian: não podia haver outra razão para aquela audiência. Estudou a face de al-Allama, tentando adivinhar a natureza de suas novidades por pequenos sinais, o torcer dos lábios, a inflexão da voz e a expressão em seus olhos, mas a fisionomia do mulá era neutra, e suas maneiras, urbanas.

- Seu passeio nos mercados de Zanzibar foi proveitoso? - perguntou o mulá. - O Profeta aprova os comerciantes honestos.

- Minha principal razão para visitar os domínios de seu califa não foi para fazer negócios - Tom lhe disse, aliviado de ter uma abertura para mostrar suas reais preocupações. - Vim numa missão de compaixão. Procuro um ente querido, um que está perdido para mim e minha família.

- Meu senhor, o príncipe al-Malik, ouviu falar de sua busca e recebeu a petição que foi endereçada a ele - respondeu al-Allama. Sua entonação ainda era inexpressiva, e sua fisionomia, imperscrutável.

- Ouvi dizer que o seu senhor é um homem poderoso, mas cheio de compaixão pelos fracos e severo com relação à justiça e a lei.

- O príncipe Abd Muhammad al-Malik é todas essas coisas. Esta é a razão pela qual me mandou em pessoa para tratar de suas preocupações, em vez de enviar uma mensagem que poderia não expressar a extensão de seus sentimentos para com essa perda.

Tom sentiu um calafrio na pele, mesmo na sala fechada e com o ar quente e pesado devido ao incenso. A escolha de palavras do mulá era insidiosa. Sentiu que Guy se empertigava a seu lado, mas não se voltou para olhar. Esperou que o mulá continuasse, receoso do que ele tinha a dizer. Porém al-Allama tomou um gole delicado de seu café e baixou os olhos para o colo.

Por fim, Tom se viu forçado a pressioná-lo.

- Esperei três anos para ter notícia de meu irmão. Imploro que não prolongue meu sofrimento.

O mulá colocou a xícara de lado e enxugou os lábios nas dobras de um pano que um escravo lhe estendeu.

- O senhor meu príncipe ordena-me que lhe diga o seguinte: "É verdade que, alguns anos atrás, eu, Abd Muhammad al-Malik, comprei um rapaz europeu. Ele recebeu o nome de al-Amhara por seus cabelos que eram de uma maravilhosa tonalidade de vermelho".

Tom soltou um longo e sibilante suspiro de alívio. Finalmente aquela gente admitia o fato. Não havia negativa ou subterfúgio contra os quais batalhar. Dorian se encontrava nas mãos do príncipe muçulmano.

- Suas palavras removeram uma enorme pedra de minha alma, uma pedra que ameaçava arrancar a vida de mim - disse, e sua voz estava entrecortada. Julgou que poderia perder o controle e fraquejar. E uma tal franqueza seria uma terrível perda de prestígio, um convite ao escárnio de todos os presentes. Respirou fundo e ergueu o queixo Para encontrar os olhos do mulá. - Que termos seu príncipe estabeleceu para o retorno de meu irmão ao seio de sua família?

O mulá não respondeu de pronto, mas coçou e alisou sua barba, arrumando as tranças perfumadas sobre o peito.

- Meu senhor me ordenou que lhe falasse assim: "Eu, Abd Muhammad al-Malik, tomei o menino al-Amhara sob minha proteção, depois de pagar um resgate principesco por ele, para protegê-lo dos homens que o capturaram e para assegurar que nenhuma vicissitude a mais lhe fosse infligida".

- Seu príncipe é um homem poderoso e de grande misericórdia - disse Tom, mas gostaria de gritar: Onde está ele? Onde está meu irmão? Que preço quer para a sua soltura?

- Meu senhor, o príncipe, julgou o menino gracioso e bem favorecido. Tocou-lhe o coração e, para mostrar seu apreço e para protegê-lo de todo mal, declarou al-Amhara seu filho adotivo.

Tom começou a se levantar da almofada, sua face exibindo um evidente alarme.

- Seu filho? - perguntou, e anteviu o terrível obstáculo que se interpusera em seu caminho.

- Sim, seu próprio filho. Tratou-o como um príncipe. Foi me dada a tarefa de educar o menino, e eu também o julguei merecedor de amor.

- Al-Allama baixou o olhar e, pela primeira vez, mostrou emoção.

- Rejubilo-me que meu irmão tenta encontrado tal apreço em classes assim elevadas - disse Tom. - Porém é meu irmão. Tenho o direito de sangue. O Profeta de Deus disse que o laço de sangue é como aço e não pode ser fendido.

- Seu conhecimento das Sagradas Palavras do Islã lhe dá crédito - disse o mulá. - Meu senhor, o príncipe, reconhece seu direito de sangue e lhe oferece um pagamento por sua perda. - Al-Allama chamou um criado, que se adiantou carregando um pequeno baú de ébano entalhado com marfim e madrepérola. Ajoelhou-se defronte aos dois homens brancos, colocou o baú sobre os tapetes e abriu a tampa.

Tom não se mexeu e nem mesmo olhou o conteúdo do baú. Guy, entretanto, inclinou-se e olhou para as moedas de ouro que enchiam o baú a ponto de caírem para fora.

- Cinqüenta mil rupias - disse al-Allama. - Mil de suas libras inglesas. Uma soma que leva em conta que al-Amhara era um príncipe da casa real de Omã.

Tom, finalmente, encontrou sua voz de novo e o poder de se movimentar. Ele se enrijeceu, a mão no cabo da espada de Netuno.

- Não há ouro suficiente na Arábia que me compre! - esbravejou.

- Eu vim aqui para encontrar meu irmão e não partirei até que ele seja entregue a mim.

- Isso não é possível - disse al-Allama, e sua voz soou baixa e pesada de aflição. - Seu irmão está morto. Morreu há dois anos de malária. Não houve nada que alguém pudesse fazer para salvá-lo, Alá sabe, nós que o amávamos tentamos de tudo. Al-Amhara está morto.

Tom desabou nas almofadas, sua face pálida com o choque, os olhos sombrios ao encarar al-Allama. Não falou por um longo tempo, e o único som no ambiente era o zumbido de uma gorda mosca azul que esvoaçava no teto.

- Não acredito no que me diz - murmurou, por fim, mas sua voz era desesperançada, e sua expressão, desolada.

- Juro a você, como amo a Deus e rezo por sua salvação, que eu vi o nome de al-Amhara em sua tumba no cemitério real, em Lamu - disse al-Allama, com infinita tristeza na voz, tanta que Tom não conseguiu mâis duvidar dele.

- Dorian - murmurou. - Era tão jovem, tão cheio de vida.

- Alá é generoso. Podemos estar certos de que há um lugar para ele no paraíso. Meu senhor, o príncipe, lhe oferece o seu consolo. Ele partilha profundamente sua sensação de perda - o mulá murmurou.

Tom levantou-se. Pareceu lhe requerer um grande esforço fazer um movimento tão simples.

- Agradeço a seu senhor - respondeu. - Peço sua compreensão, mas devo deixá-lo agora para ficar sozinho e prantear meu irmão. - Voltou-se e se dirigiu à porta.

Guy se levantou e inclinou a cabeça diante dos dois árabes.

- Agradecemos a seu senhor, o príncipe, por sua compaixão. Aceitamos sua oferta pelo direito de sangue. - Abaixou-se, fechou a tampa do baú e o pegou. - Todos os débitos entre o príncipe Abd Muhammad al-Malik e nossa família estão quitados por completo.

Seguiu Tom para a porta, curvado pelo peso do baú.

Sarah estava em seu poleiro usual, no alto dos muros do velho mosteiro, de onde podia avistar Tom assim que ele surgisse na trilha que subia da praia.

- Tom! - chamou e acenou feliz ao se erguer e correr pelos muros em ruína, com os braços abertos para se equilibrar. - Está atrasado! Faz horas que o espero. Quase desisti. - Saltou para o chão e correu, os pés descalços, pela trilha arenosa. A dez passos de onde ele se encontrava, parou e o fitou no rosto. Nunca o vira daquele jeito antes. - Tom. O que foi? - murmurou. As feições de seu amado estavam abatidas, e os olhos, cheios de uma tristeza terrível. - Tom, o que aconteceu a você?

Tom deu um passo inseguro em direção a ela e estendeu os braços como um homem a se afogar. Sarah correu para ele.

- Tom! Oh, Tom! O que foi? - Abraçou-o com toda a sua força. - Diga-me, meu querido. Eu quero ajudar.

Ele se pôs a tremer, e Sarah pensou que estava doente, acometido de alguma febre terrível. Deixou escapar um soluço, e lágrimas lhe escorreram pela face.

- Precisa me contar! - implorou. Jamais imaginara que ele pudesse sucumbir daquele jeito. Sempre o julgara forte e indómito, mas eis que estava em seus braços, quebrantado, deprimido. - Por favor, Tom, fale comigo.

- Dorian está morto.

Ela se enregelou, imóvel.

- Não pode ser - murmurou -, não pode ser. Tem certeza, não há dúvida?

- O homem que trouxe a notícia é um mulá, um homem santo. Ele jura por sua fé - disse Tom. - Não pode haver dúvida.

Ainda abraçados, caíram de joelhos, e ela chorou com ele.

- Era como meu próprio irmão - disse, comprimindo a face contra a dele enquanto suas lágrimas se misturavam. Depois de algum tempo, Sarah fungou e enxugou o rosto com a manga da blusa. - Como aconteceu? - Tom não conseguiu falar. - Conte-me - ela insistiu.

Sabia, instintivamente, que devia fazê-lo falar: como um médico, tinha de lancetar a ferida, deixar que o pus e o veneno se esvaíssem.

Por fim, Tom começou a narrativa, as palavras a lhe saírem com dificuldade, parecendo rasgar-lhe a garganta enquanto ele as forçava para fora. Sarah precisou impedi-lo de se entregar às ondas sombrias de tristeza nas quais mergulhava.

- Não sei - disse Tom. - Sei apenas que Dorian está morto, que não pude salvá-lo. Foi minha culpa. Se pelo menos eu o tivesse procurado antes!

- Não é sua culpa - ela retrucou, zangada. - Não permitirei que pense assim. Você fez tudo que podia. Ninguém teria feito mais.

- Não me importo com mais nada - disse Tom.

- Eu me importo, sim. Você deve isso a si próprio, a mim e à memória de Dorian. Ele sempre se espelhou em você. Sabia quanto você era forte. Não gostaria de vê-lo deste jeito.

- Por favor, não me atormente, Sarah. Estou exausto de dor. Nada mais interessa.

- Não vou deixar você desistir. Temos planos juntos. - Perguntou: - O que vamos fazer agora?

- Não sei - ele repetiu, porém endireitou os ombros e secou as lágrimas.

- Para onde vamos? - ela insistiu. - Não podemos ficar aqui e não podemos voltar para a Inglaterra. Para onde, Tom?

- África - ele murmurou. - Aboli encontrou um homem para guiar-nos para o interior.

- Quando partiremos? - Sarah indagou, simplesmente, sem questionar a decisão.

- Em breve. Daqui a poucos dias. - Acalmou-se, por um momento liberto da tristeza debilitante. - Vai demorar esse tempo para reabastecer os barris de água, comprar provisões frescas e fazer os arranjos finais.

- Estarei pronta - disse ela.

- Será difícil. Uma jornada perigosa sem fim. Tem certeza de que é isso que quer? Precisa me dizer agora se tiver quaisquer dúvidas.

- Não seja um bobalhão, Tom Courtney - Sarah retrucou. - Claro que irei com você.

Quando deixou o mosteiro, Sarah tomou um caminho indireto de volta ao consulado e seguiu a princípio pela trilha que, descobrira, levava para um dos pequenos vilarejos voltados para o mar aberto. Percorrera apenas meia milha quando se viu dominada pela certeza de que alguém a seguia. Pensou ouvir passadas de cavalo na trilha atrás de si e então puxou as rédeas e virou-se na sela a fim de olhar para trás.

A trilha era fechada de ambos os lados pela vegetação espessa. Não conseguiu enxergar mais além do que a última curva na trilha, apenas alguns passos atrás.

- Tom? - chamou. - É você?

Não houve resposta e, diante do silêncio, Sarah concluiu que se assustara com fantasmas e sombras.

- Você está sendo tola - disse a si mesma e prosseguiu.

Ao chegar ao vilarejo, comprou uma cesta de verduras de uma das velhas dali, sua desculpa para a longa ausência, e em seguida dirigiu-se ao porto para poder voltar ao consulado pela estrada principal.

Tinha muito com que ocupar seus pensamentos. Seu ânimo alternava-se entre o entusiasmo excitado, diante da perspectiva da aventura à frente, e a profunda tristeza quando se defrontava com a necessidade de deixar Caroline e o pequeno Christopher. Amava os dois ternamente. Caroline confiava nela para extrair força e coragem para suportar a imensa infelicidade de seu casamento com Guy, e Sarah encarava o pequeno Christopher como se fosse seu próprio filho.

Não poderiam ir conosco?, imaginou, e quase de imediato deu-se conta de que estava sendo estúpida de cogitar nisso.

Tenho de deixá-los, decidiu, determinada. Amo a ambos, mas Tom é o meu homem, e eu o amo mais que a minha própria vida. Devo ir com ele.

Estava tão preocupada com tais pensamentos que entrou no estábulo sem dar pela presença de Guy, até que ele a chamou com voz severa da sombra da longa varanda:

- Onde esteve, Sarah?

Ela ergueu os olhos, confusa.

- Você me assustou, Guy.

- Consciência culpada?

- Fui comprar verduras. - Apontou a cesta amarrada atrás da sela. - Quase fugi com um repolho - riu, feliz, mas Guy nem sequer sorriu.

- Venha até o meu escritório! - ordenou, e Sarah percebeu seu atendente apontar no limiar da porta do estábulo. O menino era cria de Guy, um sujeitinho matreiro, marcado de pústulas. Seu nome era Assam. Ela jamais confiara nele, e mesmo agora podia ver a maldade em seu sorriso astuto e ameaçador. Com uma sensação desagradável, Sarah desejou ter tomado mais cuidado em encobrir suas pistas quando ia a seus encontros com Tom, e pensou que deveria ter dado mais valor às suas sensações de que fora seguida naquela tarde.

- Quero me banhar e trocar de roupa para o jantar - disse a Guy, numa tentativa de enfrentá-lo, mas ele franziu o cenho e bateu com o chicote nas botas.

- Isso não vai demorar - disse. - Como seu guardião, devo insistir que me obedeça. Assam levará sua égua.

Resignada, ela o seguiu pela varanda e para dentro da penumbra fria de seu escritório. Ele fechou as portas atrás dos dois e deixou-a de pé no centro da sala, enquanto tomava assento atrás da escrivaninha.

- Você tem se encontrado com ele no velho mosteiro - afirmou categoricamente.

- Com quem? Do que está falando?

- Não se dê ao trabalho de negar. Obedecendo às minhas instruções, Assam a seguiu.

- Você tem me espionado - ela o encarou, furiosa. - Como se atreve? - Tentou exagerar a indignação, mas não foi convincente.

- Fico feliz que não insulte minha inteligência tentando negar.

- Por que negaria meus encontros com o homem que eu amo? - Sarah se empertigou, altaneira e verdadeiramente furiosa agora.

- Você se transformou numa prostituta de marujo - Guy gritou. - Assim que ele conseguir tudo que quer por entre as suas pernas, vai rir e partir, do jeito que fez com sua irmã.

- Quando ele partir, eu irei com ele.

- Sou seu guardião, e você tem apenas dezoito anos. Não irá a lugar algum sem o meu consentimento.

- Vou embora com Tom - ela gritou -, e nada do que possa dizer ou fazer irá me impedir.

- Veremos. - Guy levantou-se. - Está confinada aos seus aposentos e só sairá de novo depois que a Andorinha tiver zarpado de Zanzibar.

- Você não pode me tratar como uma prisioneira.

- Sim, eu posso. Haverá um guarda na porta das suas acomodações, e outros nos portões. Eu lhes dei minhas ordens. Agora, vá para o seu quarto. O jantar será mandado aos seus aposentos.

Tom estava tão ocupado em aprontar a Andorinha para o mar que prestou pouca atenção ao navio de velas redondas que entrou no porto depois do pôr-do-sol. Mesmo com a parca luminosidade, viu que estava danificado pelas tempestades. Era a estação, quando os ciclones varriam o oceano Índico, e a nau devia ter encontrado um daqueles vendavais do demônio. O nome na trave de popa era Apóstolo. Navegava sob a bandeira rasgada da Companhia das índias Orientais em seu mastro, e, assim que ancorou, Tom mandou que Luke Jervis tomasse o escaler para saber das novas.

Luke voltou depois de uma hora e foi até a cabina de Tom, onde ele redigia o diário de bordo.

- O navio vem de Bombaim com uma carga mista de tecido e chá - informou Luke. - Enfrentou uma tempestade ao norte das Mascarenhas. Pretendem fazer seus reparos aqui antes de retomar a viagem.

- Quais as novidades?

- A maioria é coisa velha, pois o Apóstolo partiu da doca da Companhia meses atrás, mas a guerra contra a França vai bem. Guilherme está batendo em seus costados. É um bom guerreiro, nosso Guilherme.

- Grandes notícias! - Tom saltou de pé. - Conte à tripulação e distribua um bom gole de aguardente a cada homem para brindar à saúde do rei Guilherme.

O que Tom não poderia saber era que, além das notícias da guerra, o Apóstolo carregava um pacote de cartas e documentos, do governador de Bombaim, lacrados num saco alcatroado de lona e endereçados ao cônsul de Sua Majestade, em Zanzibar. O capitão enviou o pacote para terra na manhã seguinte, e Guy Courtney abriu-o sobre a mesa do desjejum na longa varanda do consulado. Caroline sentava-se do lado oposto, mas Sarah ainda estava trancada em seus aposentos.

- Há uma carta pessoal de seu pai - Guy disse a Caroline ao espalhar os diversos informativos e papéis lacrados pela mesa.

- E endereçado a mim - Caroline protestou quando ele rompeu o lacre de cera e começou a lê-la.

- Sou seu marido - Guy retrucou com displicência.

De repente, sua expressão alterou-se e a folha tremeu-lhe nas mãos.

- Por Deus! Isso ultrapassa tudo que se possa imaginar!

- O que é? - Caroline largou a colher de prata que estava em sua mão. Por certo, deviam ser notícias incríveis para provocar um tamanho efeito em seu marido. Guy orgulhava-se de sua fria compostura diante das mais difíceis circunstâncias.

Ele continuava a olhar para a carta e, lentamente, sua expressão mudou da consternação para o júbilo.

- Ah, eu o tenho nas mãos agora!

- Quem? O que aconteceu?

- Tom! É um assassino. Por Deus! Agora pagará o preço na forca. Ele matou nosso querido irmão, William, e há um mandado para a sua captura. Pretendo cumprir o meu dever, e isso me dará o prazer enorme de vê-lo preso e liquidado. - Guy levantou-se num salto, derrubando o bule de chá, que se espatifou no chão. Ele mal olhou.

- Aonde vai, Guy? - Caroline levantou-se, o rosto pálido de espanto, mal se equilibrando nas pernas.

- Ao sultão - ele respondeu e chamou um dos criados. - Diga a Assam para selar o mouro, e depressa. - Voltou-se para Caroline e socou o punho na palma da outra mão. - Finalmente! Esperei por isso por tempo demais. Pedirei ao sultão que me ceda homens da sua guarda. Depois do problema que Tom lhe causou, ele não se mostrará relutante. Vamos prender Thomas e confiscar a Andorinha. Quando vendermos o navio, ele vai nos render 2 mil libras pelo menos. Mereço uma recompensa por levar um perigoso criminoso às barras da Justiça. - Riu, triunfante. - Tom terá um lugar de graça no Apóstolo, de volta a Londres, acorrentado.

- Guy, Tom é seu irmão! Não pode fazer isso com ele! - Caroline estava apavorada.

- Billy também era irmão de Tom, e o porco o matou a sangue frio. Agora pagará um alto preço por toda a sua arrogância.

Caroline correu para ele e agarrou-se à sua manga.

- Não, Guy, não pode fazer isso!

- Ora essa! - Virou-se para ela, o rosto transtornado e escuro de sangue e parecendo inchar de raiva. - Implora por Tom. Ainda o ama, não é? Num minuto levantaria as saias e abriria as pernas para ele como a vagabunda que você é.

- Isso não é verdade.

- Você adoraria que ele plantasse um outro bastardo na sua barriga. - Esbofeteou-a na face, fazendo com que ela cambaleasse e caísse de costas contra a mureta da varanda. - Bem, o seu amante não vai mais fazer bastardos. - Seguiu pelo terraço aos berros, pedindo o cavalo.

Caroline recostou-se contra a mureta e ficou sentada no chão, comprimindo o ponto avermelhado em seu rosto até que ouviu o galope do cavalo sair pelos portões e descer a trilha rumo ao porto e ao forte. Então, arrastou-se e, apoiando-se no muro, ficou de pé.

Quando Guy lhe falara da ligação entre Tom e sua irmã mais nova, ela ficara horrorizada e transtornada de ciúmes. Então, na noite anterior, fora ao quarto de Sarah e passara quase duas horas com ela. Aos poucos, se dera conta de quanto sua irmã estava apaixonada. Caroline tinha consciência de que seus próprios sentimentos para com Tom eram sem esperança, e assim os pusera de lado e, embora a dor do sacrifício fosse intensa, beijara Sarah e prometera ajudar a irmã e Tom a fugir.

- Preciso avisá-los - murmurou -, mas há tão pouco tempo...

Pegou uma bandeja do aparador, encheu com pratos de comida para Sarah e levou-a pela varanda; passou pelo quarto onde Christopher ainda dormia e seguiu até a última porta. Um dos guardas de Guy estava agachado ali, com o mosquete sobre o colo, meio adormecido pelo calor debilitante. Despertou quando Caroline se aproximou, e então se pôs de pé.

- Salaam aliekum, senhora. - Inclinou-se numa reverência. - O sr. cônsul deu ordens estritas de que ninguém deveria passar por esta porta, para entrar ou sair.

- Eu trouxe comida para minha irmã - ela retrucou com voz imperiosa. - Afaste-se.

O homem hesitou; suas ordens não cobriam aquela eventualidade. Então, inclinou-se de novo.

- Sou pó sob seus pés - disse, puxou a grande chave de ferro das dobras de sua túnica e girou-a na fechadura.

Caroline passou por ele, mas, quando a porta se fechou, ela deixou a bandeja sobre a primeira mesa e correu para o quarto de dormir de Sarah.

- Sarah, onde está você?

Sua irmã estava deitada na cama sob o mosquiteiro. Um lençol leve a cobria, e ela parecia estar dormindo. Porém, assim que ouviu a voz de Caroline, jogou o lençol de lado e saltou da cama, completamente vestida e com botas de montaria sob as saias compridas.

- Caroline! Estou tão contente que tenha vindo! Eu não queria partir sem lhe dizer adeus.

Caroline a encarou, aturdida, e Sarah correu para abraçá-la.

- Vou partir com Tom. Ele está à minha espera na praia abaixo do velho mosteiro, mas já estou atrasada.

- Como vai passar pelos guardas de Guy? - Caroline perguntou.

Sarah enfiou a mão no bolso da saia e puxou as pistolas de duelo.

- Atirarei em qualquer um que tente me impedir.

- Escute-me, Sarah. Chegou uma carta de papai, de Bombaim. Tom é acusado do assassinato de seu irmão mais velho, e há um mandado para a sua prisão.

- Sei disso. Tom me contou. - Ela se afastou. - Você não pode me impedir, Caroline. Isso não faz diferença, sei que Tom é inocente e vou embora com ele.

- Você não compreende. - Caroline agarrou-a pelo braço outra vez. - Já prometi que eu a ajudaria e a Tom. Não vou voltar atrás na minha palavra. Vim lhe contar que Guy está rumando para o forte a fim de informar o sultão. Vão prender Tom e mandá-lo de volta para a Inglaterra, acorrentado, para julgamento e execução.

- Não! - Apavorada, Sarah encarou a irmã.

- Você precisa avisá-lo, mas não poderá sair a menos que eu a ajude. - Pensou rapidamente. - Eis o que faremos. - Falou depressa e delineou um plano. - Entendeu? - perguntou quando terminou.

Sarah aquiesceu.

- Estou pronta. Fiz todos os meus preparativos, mas depressa, Caroline. Tom vai acreditar que eu não irei. Vai se cansar de esperar e partir.

Caroline foi até a porta e gritou ao guarda para que a abrisse. Depois que ela saiu, ele trancou a porta. Caroline seguiu diretamente para os estábulos e gritou para Assam:

- Sele a minha égua.

Quando o cavalariço hesitou, ela bateu o pé.

- Agora mesmo! Ou terei de lhe bater! - esbravejou. - Estou com pressa. Prometi encontrar-me com meu marido no forte.

Em questão de minutos, Assam trouxe o cavalo, e Caroline tomou as rédeas da mão dele.

- Vá até os portões e diga aos guardas para abri-los. Já vou sair.

Profundamente intimidado agora, Assam correu para obedecer.

Tentando não dar mostras de pressa e de agitação, Caroline levou a égua selada pelo gramado até a ponta da varanda. O guarda diante da porta de Sarah levantou-se para saudá-la, e ela lhe estendeu a carta que recebera do pai.

- Entregue isto a minha irmã imediatamente - ordenou.

O homem colocou o mosquete sobre o ombro e pegou a carta. Foi até a porta e bateu.

Um momento depois, Sarah gritou lá de dentro:

- O que é?

- Uma carta, senhora.

- Dê-me.

Ele destrancou a porta e a abriu. Ela saiu e apontou o par de pistolas no meio de seu rosto espantado. Os percussores estavam alçados, e os dedos de Sarah, curvados em torno dos gatilhos.

- Deite-se de cara no chão - ela ordenou, mas em vez de obedecer, o guarda pegou o mosquete do ombro e tentou armar o percussor. Calmamente, Sarah baixou o cano da pistola em sua mão direita e deu-lhe um tiro no joelho.

O homem soltou um berro e caiu sobre os tijolos da varanda, a perna torcida sobre o corpo. Sarah chutou o mosquete caído para longe.

- Idiota, deveria ter feito o que ordenei - disse-lhe secamente. - A próxima bala será na sua cabeça. - Encostou o cano da outra pistola na testa do guarda.

Ele cobriu a face e jogou-se, acovardado, aos pés dela. Sarah enfiou a pistola disparada no cinto e, em seguida, voltou ao quarto. Pegou a sacola de couro na qual empacotara suas posses mais preciosas e arrastou-a para a varanda.

Entrementes, Caroline já se adiantara para ajudá-la a colocar a sacola sobre a sela. Então as duas irmãs se abraçaram depressa, porém com profunda comoção.

- Vá com Deus, minha querida Sarah. Desejo a você e a Tom toda a alegria do mundo.

- Sei que você também o ama, Caroline.

- Sim, mas ele é seu agora. Trate-o com carinho.

- Beije Christopher por mim.

- Ambos sentiremos sua falta, mas agora vá! Depressa! - Caroline deu um passo à frente com as mãos entrelaçadas e deu apoio a Sarah para que se erguesse na sela. - Adeus, minha irmã - gritou quando Sarah incitou a égua a um galope e atravessou o gramado.

Assam viu-a se aproximar e gritou para os outros guardas que fechassem os portões, porém Sarah avançou direto sobre o garoto e ele teve de saltar de lado para não ser atropelado. A égua passou como uma flecha pelos portões abertos e seguiu para a floresta. Sarah conduziu-a pela trilha rumo ao sul, através dos palmeirais, até o mosteiro arruinado.

- Por favor, espere, Tom - murmurou, e o vento levou-lhe as palavras e fez seus longos cabelos esvoaçarem às suas costas como uma bandeira. - Por favor, espere por mim, meu querido, estou chegando. - Forçou a égua ao máximo da velocidade e os troncos das palmeiras desfilaram diante dela num borrão.

Nos portões do mosteiro, obrigou a égua em pleno galope a uma parada súbita. O animal estacou e jogou a cabeça para o alto, suando nervosamente, desacostumado a um tratamento tão rude.

- Tom! - Sarah gritou, e os ecos dos muros antigos caçoaram dela, repetindo: Tom!

Ele se foi, ela pensou. Embora a égua refugasse e andasse em círculos, Sarah inclinou-se na sela e examinou o solo macio. Avistou as pegadas frescas de Tom que vinham da praia, e na área cercada em frente ao portão, onde ele andara de um lado para outro esperando por ela. Então, com a paciência evidentemente esgotada, voltara à praia, conforme suas pegadas evidenciavam.

- Tom! - Sarah gritou, desesperada, e fez a égua rumar para a trilha estreita através da vegetação. Na beira do riacho, os galhos chicoteavam-lhe as pernas; por fim, ela irrompeu nas areias brancas de coral com a límpida lagoa à frente.

Viu a marca que a quilha do barco tinha deixado na beira da água, em seguida ergueu os olhos e avistou a pequena embarcação. Movia-se lentamente em direção à abertura no recife, a meia milha de distância. Tom estava na popa com o longo remo de bambu nas mãos, a empurrar o barquinho pelas águas rasas.

- Tom! - Sarah gritou e acenou. - Tom!

Mas o vento sacudia as palmeiras e as ondas roncavam e explodiam no recife exterior, abafando-lhe os gritos. O barquinho se afastava aos ziguezagues, e Tom não olhava para trás.

Ela levou a égua para a água e, embora a princípio o animal refugasse, era um cavalo de caça e se lançou à frente, aos saltos, evitando os buracos mais fundos, até que a água chegou à altura da cintura de Sarah. Suas botas e saias estavam ensopadas. O barquinho, contudo, começava a ganhar velocidade e a se afastar cada vez mais.

- Tom! - Sarah berrou, agoniada. Então, puxou a segunda pistola do cinto, apontou-a para o céu e disparou. O resultado foi um som oco e insignificante na imensidade de mar e vento. - Ele não ouviu!

Levou um longo momento até que o som fosse carregado pelo ar e, então, ela percebeu que a figura distante de Tom deu um salto, e ele olhou para trás.

- Oh, graças a Deus! - Sarah quase chorou de alívio.

Com um impulso no remo, Tom girou o barquinho e rumou de volta pela lagoa reluzente.

- Onde você estava? O que aconteceu? - gritou ao se aproximar.

- Guy descobriu sobre você e William - ela berrou de volta. - Foi ao forte para recrutar a guarda. Vão prendê-lo e ao seu navio.

Viu que a expressão de Tom se endurecia, porém ele não disse nada ao levar o barco e emparelhá-lo à égua. Então, jogou o remo no fundo do convés, estendeu a mão para segurar Sarah pela cintura e tirou-a da sela. Puxou-a para dentro do barco.

- Minha sacola! - ela gemeu.

Ele puxou a faca da bainha do cinto e cortou a corda que atava a sacola no ressalto da sela. Arrastou-a para bordo, deu um tapa na égua, e o animal se voltou e seguiu rumo à praia. Tom pegou o remo de bambu e, mais uma vez, aprumou o barquinho para a passagem.

- Há quanto tempo Guy foi para o forte? - perguntou. - Quanto tempo temos?

- Não muito. Ele deixou o consultado cerca de duas horas atrás.

- Fique na adriça - Tom ordenou, muito sério. - Teremos de içar a vela e tentar a sorte no recife de coral.

A vela latina bateu, sacudiu e, em seguida, inflou com o vento. O barquinho ergueu a proa e correu em direção à abertura no recife. Passou pela fenda e, tão logo a água se tornou azul sob a quilha, Tom assumiu o leme e fez a volta a fim de rumar para o porto, onde a Andorinha estava ancorada.

- Conte-me tudo - pediu. - Como Guy descobriu?

Sarah se aproximou e o abraçou pela cintura.

- Chegou um navio a noite passada.

- O Apóstolo! - ele exclamou. - Eu deveria ter esperado por isso. - Ouviu atentamente Sarah lhe relatar os detalhes. Quando ela terminou, Tom murmurou: - Deus nos permita que cheguemos a tempo. - Olhou para o porto de Zanzibar aberto diante deles e viu a pequena Andorinha a balançar tranqüilamente na ancoragem.

- Graças a Deus, ainda não a apreenderam! - disse com voz embargada. Naquele instante, porém, ambos viram uma flotilha de uns doze pequenos botes que partia do cais de pedra em direção à chalupa. Tom aguçou os olhos e os fixou, pela milha de água que os separava, no bote que os liderava. Reconheceu a figura alta e magra com o chapéu de plumas na proa.

- Guy é atraído como um cão de caça pelo cheiro da raposa em suas narinas.

A barcaça seguia com o costado afundado na água, sob o peso dos homens armados que se amontoavam dentro dela. Todas as outras embarcações estavam da mesma forma carregadas.

- Há pelo menos uma centena dos sequazes do sultão com ele - Tom calculou. - Não quer desperdiçar nenhuma chance.

Ergueu os olhos para o mastro e avaliou a força e a direção do vento em seu rosto. Navegara naquele barco o bastante até então para lhe conhecer todas as manhas e saber como arrancar-lhe cada nó de velocidade.

- Suba a vela um pouco mais - disse a Sarah, que correu para o pano de retranca. O barquinho gostou do toque e saltou para a frente.

- Será uma corrida. - Tom olhou para o bote líder e calculou a diferença em velocidade e curso. Tinham a vantagem do vento, num largo alcance. Guy estava com a proa bem cingida à linha do vento, e isso dificultava o avanço com o casco sobrecarregado afundado na água. Tom duvidava de que o outro bote pudesse alcançar a Andorinha ancorada com uma única virada de bordo. Por outro lado, o barquinho poderia cortar direto pela proa do caíque de Guy. Tom estreitou os olhos para julgar a convergência de curso.

- Vamos passar dentro do alcance dos tiros de mosquete do barco líder - disse a Sarah. - Empilhe aquelas redes e caixas de peixes ao longo da amurada de bombordo e deite-se atrás delas.

- E você? - ela perguntou, ansiosa.

- Não lhe contei? Sou imune a balas de mosquete. - Abriu um largo sorriso. - Além disso, os árabes são péssimos atiradores.

Se Sarah não o amasse tanto, poderia ficar impressionada com aquela negligência diante do perigo.

- Meu lugar é ao seu lado - disse, teimosa, tentando dar idêntica demonstração de coragem.

- Seu lugar é onde eu lhe disse que é - A expressão de Tom tornou-se desagradável e fria. - Abaixe-se, mulher!

Ela nunca o vira assim antes, e aquilo a deixou perturbada. Descobriu-se a obedecer com humildade, e apenas quando se deitou de barriga no convés fedido, protegida pelas redes e pelas pesadas caixas de madeira, começou a recobrar seu senso de independência.

Não devo permitir que ele assuma o controle tão cedo, advertiu a si mesma, porém seus pensamentos foram interrompidos por um grito abafado. Os árabes no caíque de liderança tinham avistado o barquinho que corria em seu quadrante. A nau adernou perigosamente quando eles se amontoaram na amurada para olhar, todos a falar e a gesticular, armando e, em seguida, brandindo seus longos mosquetes.

- Pare! - A voz de Guy soou fraca ao vento, mas eles estavam perto o bastante agora para que Tom visse claramente sua expressão sinistra e furiosa. - Pare imediatamente, Tom Courtney, ou ordenarei a meus homens que disparem.

Tom riu e acenou com alegria.

- Mije no vento, caro irmão, e a urina voltará na sua cara.

Estavam a menos de cem metros de distância, a um tiro de pistola, e Guy chamou os mosqueteiros árabes que se amontoavam no convés aberto do caíque, e, com sua espada em riste, apontou para o barquinho. Em resposta, eles nivelaram seus mosquetes ao ombro e, a despeito de suas fanfarronadas, Tom sentiu uma ponta de medo ao olhar para a fila de armas apontadas em sua direção.

- Fogo! - berrou Guy. Houve um estouro, e uma nuvem de fumaça espessa de pólvora obscureceu por algum tempo o caíque.

O ar em torno da cabeça de Tom encheu-se do zumbido e da vibração dos tiros que passavam, as balas pesadas de chumbo a arrancar borrifos de espuma da superfície da água em torno do casco do barquinho e a se chocar em seu casco, tirando lascas da madeira.

Tom sentiu algo bater na manga de sua camisa e, quando olhou para baixo, havia um rasgo no tecido e um fino traço de sangue no ferimento raso que lhe atravessava o bíceps.

- Está tudo bem, Tom? - Sarah perguntou, ansiosa, de onde se deitava, aos pés dele.

Tom riu de novo e virou-se de lado para que ela não pudesse ver o sangue em sua manga.

- Eu lhe disse que eram péssimos atiradores. - Ergueu o chapéu e, com ele, enviou a Guy uma saudação sarcástica. Mas, ao fazer o movimento, umas poucas gotas de puro escarlate pingaram no convés imundo. Sarah viu o sangue e empalideceu. Então, sem hesitação, levantou-se e correu para a popa.

- Volte! - Tom esbravejou. - São balas de mosquete de verdade. Você pode ser morta!

Sarah o ignorou e se colocou diante dele, a protegê-lo com o próprio corpo. Tirou o xale dos ombros e soltou os cabelos para que esvoaçassem como uma bandeira ao vento.

- Atire! - ela gritou para a barcaça. - Atire em mim, se tiver coragem, Guy Courtney! - Estavam próximos o bastante para ver a frustração e a fúria no semblante de Guy.

- Abaixe-se, Sarah! - Guy gritou. - Se for ferida, será por sua própria culpa.

Tom tentou puxá-la para baixo, mas ela enroscou os dois braços em torno de seu pescoço e se agarrou a ele. A ira iluminou-lhe a face ao olhar para a barcaça.

- Se quiser seu irmão, terá de me matar primeiro - berrou para Guy.

A expressão de Guy se alterou do triunfo para a hesitação. Olhou para seus homens. Os mosqueteiros recarregavam as armas freneticamente. Tom viu as pontas das varas a subir e a descer enquanto eles empurravam novas balas pelos longos canos. Recarregar tomava cerca de dois minutos, mesmo para um exímio atirador, e quando a próxima carga estivesse pronta, os dois barcos estariam muito próximos, no momento em que o barquinho passaria na frente da proa da barcaça.

Os mais rápidos e mais experientes dos mosqueteiros terminaram de carregar as armas. Quatro deles puxaram os percussores e ergueram seus mosquetes ao mesmo tempo, a mira dos longos canos sobre o casal na popa do barquinho. Guy ainda hesitava, mas então sua expressão fechada desmontou-se e, com um golpe de sua espada, ele derrubou a arma do homem a seu lado e gritou, em árabe:

- Parem! Não atirem! Vão atingir a mulher!

Um homem ignorou a ordem e disparou. Uma baforada de fumaça azul subiu do cano de seu mosquete, e a bala cravou-se na barra do leme que Tom segurava.

- Parem! - Guy esbravejou, furioso, e desceu a lâmina sobre o pulso do homem. Houve um lampejo de sangue vivo, e o árabe agarrou o braço ferido e cambaleou pelo convés.

- Parem! - Guy voltou-se para os outros e, com relutância, um de cada vez, todos baixaram seus mosquetes. O barquinho passou pela proa da barcaça e se afastou.

- Você não venceu ainda, Tom Courtney! - Guy berrou lá atrás.

- De agora em diante, todos estarão contra você. Um dia desses, pagará pelo que deve. Eu providenciarei que assim seja. Juro!

Tom ignorou os gritos de ódio de seu irmão, já agora abafados, e olhou para a frente. A Andorinha estava a apenas uma amarra de distância, e o tiroteio alertara sua tripulação. Os homens corriam pelo convés e subiam os cordames. Ned Tyler não esperara pelas ordens de colocar o navio a panos.

Sarah abraçou Tom pela cintura e olhou para trás, para o grupo de barcos que se distanciava.

- Foi empolgante - disse, e seus olhos faiscaram.

- Não se atreva a parecer tão feliz consigo mesma, sua doidivanas.

- Tom a abraçou. - Você desobedeceu às minhas ordens expressas.

- É melhor se acostumar com isso. - Ela abriu um largo sorriso.

- Pois pode acontecer de novo, algum dia.

Em seguida entrou em ação e, com a adaga de Tom, cortou-lhe a manga rasgada da camisa. Usou o pano para lhe amarrar a ferida do braço e estancar o sangue. Enquanto isso, aproximavam-se com rapidez da Andorinha, e Tom lhe disse:

- Deixe isso para depois e se prepare para saltar.

O cabrestante estalava no convés de proa da chalupa enquanto Ned Tyler içava a âncora, e assim que os ganchos se livraram do fundo, a nau se soltou e começou a girar para a popa. Sarah recolheu as saias e enfiou-as no cinto para que as pernas ficassem desimpedidas, e agachou-se ao lado da borda do barquinho.

Tom viu a cabeça de Aboli apontar na amurada do outro barco. Quando os cascos das embarcações se tocaram e Tom derriçou a vela, Aboli saltou como uma enorme pantera negra em emboscada a uma gazela do galho de uma árvore. Seus pés descalços bateram no convés ao aterrissar ao lado de Sarah. Ergueu-a nos braços. Ela gritou em protesto, mas no mesmo movimento, ele esticou-se, agarrou a escada de bordo que pendia do lado da chalupa e carregou-a para o convés da Andorinha.

Tom pegou a sacola de Sarah do fundo do barquinho e saltou pela estreita abertura de água que separava os cascos, permitindo que o bote derivasse, livre, e seguiu Aboli para cima. Ned o saudou solenemente do leme:

- Bem-vindo a bordo, capitão.

- Obrigado, sr. Tyler. Penso que não há razão para nos demorarmos mais aqui. Ponha o navio ao vento, por favor.

Depositou a sacola de Sarah sobre o convés e foi para a popa. Enquanto a Andorinha fazia a volta, o caíque com Guy à proa se encontrava a duzentos metros de bombordo. A chalupa, porém, começou a ganhar velocidade, e o caíque parecia ancorado.

A espada de Guy pendia na lateral de seu corpo; seus ombros estavam caídos, e seu rosto, contorcido de frustração e ódio. Ao verem Tom, seus homens não puderam mais se refrear, e abriram uma furiosa fuzilaria, disparando todos os mosquetes, porém Guy pareceu esquecido deles. Toda a sua atenção se concentrava em seu irmão gêmeo.

Fitaram um ao outro, enquanto as duas naus se afastavam cada vez mais. Sarah veio postar-se ao lado de Tom. De mãos dadas, ficaram a observar o caíque ficar cada vez menor, até que não puderam mais enxergar a figura alta de Guy na proa. Logo depois, a Andorinha contornou o promontório, e o porto de Zanzibar fechou-se atrás deles. O caíque sumiu de vista.

Dorian Courtney levantou-se. Estivera ajoelhado a rezar para o Deus de seus pais. Caminhou ao longo da beira do penhasco e então parou para apanhar um pedregulho que lhe atraiu o olhar. Umedeceu-o com a língua e, em seguida, segurou-o contra o sol. Era de ágata rosada com suaves estrias de camadas azuladas, e coroado com cristais de claridade diamantina. Lindo.

Inclinou-se para a frente e deixou-o cair de seus dedos, para depois observá-lo descer verticalmente por 150 metros pelo penhasco. Diminuiu em tamanho e desapareceu antes de atingir a superfície do mar, lá embaixo. Não provocou borrifos nem ondulações na água, nenhum sinal de que algo tão bonito tivesse existido. De súbito, pela primeira vez em quase sete anos, ele pensou na pequena Yasmini, que se desvanecera de sua vida da mesma maneira.

O vento soprou mais forte, e a túnica enfunou-se atrás dele, mas Dorian estava bem plantado e não sentiu medo da altura que se abria a seus pés. A sua direita, o lúgubre penhasco de rocha vermelha que se erguia altaneiro acima do mar era cortado por um estreito vale. Lá embaixo, dependurados precariamente, estavam os palmeirais, os telhados e os domos brancos da vila de Shihr. Os homens de Dorian tinham acampado entre as árvores baixas e retorcidas das acácias e palmeiras, mais acima do vale. A fumaça azulada das fogueiras do acampamento subia em untuosas espirais pelo ar até alcançar a corrente de vento sobre o cume dos penhascos para se espalhar em direção às colinas e dunas proibidas do deserto.

Dorian sombreou os olhos e fitou o mar. Os navios se encontravam mais perto agora. Quatro imponentes caíques com popas altas, a flotilha do príncipe al-Malik. Estavam à vista desde a alvorada, mas o vento soprava contra eles, forçando-os a mudar de curso várias vezes. Dorian estreitou os olhos para lhes avaliar o progresso, e viu que levaria muitas horas ainda, antes que pudessem adentrar a baía e ancorar ao largo da praia.

Estava impaciente e inquieto. Fazia muito tempo desde a última vez que vira o príncipe, seu pai adotivo. Afastou-se da beira do penhasco e voltou pela trilha que conduzia à antiga tumba erguida na crista daquele promontório rochoso, seu domo desbotado pelo sol do deserto por centenas de anos.

Al-Allama e os xeques do Saara ainda estavam em preces, seus tapetes estendidos sob a sombra da tumba, voltados na direção da cidade sagrada, a centenas de quilômetros ao norte, através daquela terra escaldante. Dorian diminuiu o passo, não querendo se aproximar enquanto estivessem em meio às suas devoções.

A tribo do Saara não sabia que ele não era do islã. Por instrução do príncipe, ocultara tal fato deles durante todo o tempo em que ali vivera. Sabia que não o aceitariam tão prontamente na tribo se adivinhassem a verdade, que ele era um infiel. Acreditavam que estava sob um voto de penitência para não rezar na comunidade dos crentes, mas que fazia suas devoções a Alá sozinho. Na hora da prece, Dorian sempre os deixava e se afastava para o deserto.

Sozinho, rezava para o Deus de seus pais, ajoelhado na solidão da terra erma, porém as palavras lhe vinham com crescente dificuldade quanto mais o tempo passava e mais suas devoções se tornavam superficiais. Gradualmente, aquela estranha sensação de ter sido desertado pelo seu próprio Deus o dominava. Sentia-se perdendo sua fé de infância, e aquilo o deixava aturdido e confuso.

Parou no cume da colina e observou os homens que se ajoelhavam e se prostravam à sombra da mesquita. Não pela primeira vez, invejou-lhes a fé imutável. Esperou a distância até que tivessem terminado e começassem a se dispersar. A maioria tomou suas montarias e seguiu a trote pela trilha do penhasco para a vila abaixo. Logo, havia apenas dois homens perto da tumba.

Batula, seu lanceiro, agachado junto de dois camelos, esperava com infinita paciência no retalho de sombra que os animais lançavam. O escudo de guerra de bronze estava amarrado à sela do camelo de Dorian e, ao lado das botas de couro, o arcabuz e a longa lança, a ponta a reluzir ao sol e o penacho verde a esvoaçar. Aqueles eram todos os apetrechos do guerreiro do deserto.

Al-Allama também o esperava, sentado num cocuruto de rocha vermelha. Dorian voltou-se em sua direção e subiu a trilha. As primeiras estrias grisalhas já se mostravam na barba do mulá, porém sua pele ainda era lisa, sem rugas, e a despeito dos meses de duras jornadas e rações parcas, sua cintura não se afinara. Ele pendeu a cabeça para um lado ao ver que al-Salil, a Espada em Riste, seguia em sua direção.

Al-Salil era um homem alto agora e, sob a longa túnica esvoaçante, magro e rijo, suas carnes firmes temperadas pelo deserto. Caminhava com um andar ritmado como o passo de um camelo de corrida, e havia uma aura de autoridade e comando no conjunto de seus ombros e na maneira de sustentar a cabeça velada.

- Seu nome foi bem escolhido - al-Allama murmurou para si mesmo.

Quando Dorian o alcançou, o mulá fez um gesto de convite, e o jovem deixou-se cair a seu lado, na rocha. Com as pernas curvadas sob o corpo, sentou-se como um saariano, com uma graciosidade fácil, a espada recurva na bainha de prata e couro atravessada sobre os joelhos. Apenas os olhos de Dorian eram visíveis, o resto da face coberto pelas abas do alfalema que se enrolava, frouxo, sobre o nariz, a boca e o queixo. Os olhos eram inquisitivos, verdes e brilhantes, e a despeito da areia do deserto e da luminosidade ofuscante do sol, não eram raiados de sangue. Com gestos lentos, Dorian desenrolou o pano que lhe cobria o rosto e sorriu para o mulá.

- Senti saudades suas, santo pai - disse. - Na verdade, sem ninguém para discutir comigo, minha vida tem sido bastante aborrecida.

- Aborrecida? - Al-Allama escondeu o sorriso. - Não é o que os xeques disseram de sua estada com eles. Dezesseis dos inimigos abatidos com sua própria lança.

Dorian coçou a barba, que se espalhava em cachos sob seus dedos, esturricada pelo ar seco do deserto e brilhante como cobre recém-forjado.

- Os otomanos são fáceis de matar - disse, num tom depreciativo, porém o sorriso permaneceu em seus lábios.

Ele ainda é tão encantador como a criança que conheci na ilha de Daar al Shaitan. Al-Allama estudou-lhe a face: a testa alta, pensativa, de estudioso, compensada pelas linhas duras da boca e do queixo, que indicavam o guerreiro e o líder.

- Por que me trouxe aqui, velho pai? - Dorian perguntou, inclinando-se para a frente. - Sempre tem uma razão para o que faz.

Al-Allama sorriu e fez uma outra pergunta, em resposta:

- Sabe de quem é essa tumba?

Dorian ergueu os olhos para o domo arruinado pelo tempo e para os muros caídos.

- A de um homem santo - disse. Havia muitas daquelas tumbas antigas, algumas nos oásis esparsos do interior, outras nos penhascos e nas íngremes colinas ao longo da costa omaniana do sul da Arábia.

- Sim - concordou al-Allama. - De um homem santo.

- Não consigo ler o nome - disse Dorian, pois a maioria das inscrições no muro tinha sido erodida pelas tempestades de areia. Havia muitas, algumas citações do Alcorão, porém outras Dorian não reconheceu. Talvez fossem palavras do próprio morto.

Al-Allama levantou-se e circundou a tumba, parando para ler algumas das inscrições que ainda eram legíveis. Depois de um momento, Dorian o seguiu.

- Há uma citação do santo que jaz aqui. Talvez seja de seu interesse. - Al-Allama apontou para o alto do muro.

Dorian decifrou alguma coisa com dificuldade.

- O órfão que vem do mar - leu em voz alta, e al-Allama fez um gesto de concordância e encorajamento - com a língua e a coroa do Profeta... - Dorian interrompeu-se. - Não consigo ler a linha seguinte. Está muito apagada.

- Com a língua e a coroa do Profeta, mas com a escuridão num coração pagão - al-Allama o ajudou.

Dorian aproximou-se mais da parede e a examinou.

- Quando a luz preencher seu coração pagão, ele reunirá as areias do deserto que estão divididas, e seu justo e pio pai cavalgará sobre o dorso do elefante.

Dorian voltou para o lado de al-Allama.

- O que é isso? Não reconheço esse trecho do Alcorão. Como poema, tem sonoridade rítmica, porém não faz sentido - comentou. - O que são a língua e a coroa do Profeta? Como pode um órfão ter um pai? Por que o dorso de um elefante?

- O Profeta era coroado com cabelos vermelhos e, claro, sua língua era o árabe, o idioma sagrado - al-Allama esclareceu e levantou-se. - No palácio de Mascate, ergue-se o Trono do Elefante de Omã, esculpido em poderosas presas de marfim. Eu o deixarei pensar sobre o resto da profecia. Se conseguir dedicar-se a isso, mesmo um aluno burro tal como al-Salil pode ser capaz de encontrar uma solução para o enigma do santo Taimtaim.

- Taimtaim! - exclamou Dorian. - Esta é a tumba do santo? Olhou para a inscrição erodida, e agora o nome do santo aparecia como uma figura vista através de uma névoa escura. - Esta é a profecia. Estas são as palavras que modelaram minha vida. - Viu-se tomado por uma sensação de admiração e respeito, porém mesclada de raiva e ressentimento, de ter sido privado de tanto, e de ter sofrido por aquelas poucas palavras místicas, escritas tempos antes e agora apenas mal legíveis. Gostaria de desafiá-las, protestar e refutá-las, mas al-Allama já estava a meio caminho trilha abaixo para o vale, e o deixara naquele ermo desolado para se confrontar com seu destino.

Dorian permaneceu ali por muitas horas. Por vezes se pôs a caminhar de um lado para outro, raivoso, ao longo das paredes da tumba, em busca de outras inscrições com quaisquer fragmentos a mais de informação. Leu-as em voz alta, mais atento ao som das palavras do que ao sentido, e tentou adivinhar os significados ocultos que poderiam existir por trás delas. Algumas vezes agachou-se e estudou uma única palavra ou frase, e depois se ergueu de novo e retornou para a inscrição que al-Allama lhe apontara.

- Se sou de verdade o órfão de quem fala, então está enganado, velho. Isso jamais irá acontecer. Sou um cristão. Nunca aceitarei o islã. - Desafiou o antigo santo. - Jamais reunirei as areias do deserto, seja lá qual for o significado disso.

- Senhor! - A voz de Batula penetrou sua meditação, e Dorian levantou-se. - Os navios. - Batula gesticulou e apontou para o sopé do penhasco. - Estão entrando na baía.

Batula fez os camelos se levantarem e os conduziu ao início da trilha. Dorian deu uma corrida e alcançou-os facilmente antes que começassem a descer. Chamou seu próprio animal.

- Ibrisam! Vento Sedoso!

Ao som de sua voz, o animal voltou a cabeça e o encarou com aqueles grandes olhos escuros com sua pesada fímbria dupla de cílios, e bufou baixinho, amorosamente, para saudá-lo. Era um exemplar nobre de Sherari. Dorian pulou para a sela, a dois metros acima do chão, com um único movimento, sem esforço. Tocou a cabeça da camela com a ponta da longa vara e distribuiu seu peso para a frente, na sela, que era acolchoada com o mais fino couro Nejd e presa por arreios luxuosos, borlas e tiras tingidas com nuanças de vermelho, amarelo e azul, redes de urdidura bordada com estrelas de prata e tecido metálico.

Ibrisam respondeu a seu toque e movimento, e esticou-se naquele passo elegante e confortável que certa vez carregara seu amado mestre a quinze quilômetros por hora, por dezoito horas consecutivas, da península de Wadi Taub, através da terrível planície de Mudhail, pela qual se espalhavam os ossos brancos de caravanas perdidas, até as águas salobras do oásis de Ma Shadid.

A camela amava Dorian como um cão fiel. Depois de um dia inteiro de jornada pelas terríveis areias, não dormiria na noite do deserto a menos que ele se deitasse a seu lado. Não importava quão forte fosse sua sede ou fome, deixaria de beber ou de pastar para se aproximar dele e afagá-lo com o focinho, a lhe pedir o carinho e o conforto de uma palavra.

Voaram, trilha abaixo, ultrapassando Batula antes que ele alcançasse o plano do vale. O acampamento inteiro estava em rebuliço, camelos a blaterar, os homens aos gritos ou ululando, a disparar tiros de alegria para o alto enquanto se embrenhavam pelos bosques em direção à praia. Ibrisam carregou Dorian ao início daquela selvagem procissão e, pelas areias douradas, até a beira da água.

Quando o príncipe al-Malik pisou em terra, Dorian foi o primeiro a se adiantar para saudá-lo. Sua face estava desvelada e ele caiu de joelhos e beijou a barra da túnica do príncipe.

- Possam todos os seus dias ser dourados de glória, senhor. Há muito meus olhos estão famintos pela vista de sua face.

O príncipe ergueu-o e examinou-lhe o rosto.

- Al-Salil! Não o teria reconhecido se não fosse pela cor de seus cabelos, meu filho. - Abraçou Dorian, apertando-o contra o peito. - Posso ver que todos os relatórios que recebi sobre você são verdadeiros. Realmente, tornou-se um homem.

Em seguida o príncipe virou-se para cumprimentar os xeques do Saara, que também se adiantavam e o rodeavam. Depois de abraçá-los, seguiu em passos lentos pelo vale, numa procissão triunfal. Os guerreiros do deserto estenderam folhas de palmeiras a seus pés, clamaram por bênçãos sobre ele, beijaram-lhe a barra da túnica e dispararam seus mosquetes para o alto.

Uma tenda de couro, grande o bastante para cobrir uma centena de homens, fora armada ao lado do poço, à sombra das palmeiras. As laterais eram abertas para permitir que a brisa noturna do mar passasse, e tapetes e almofadas cobriam a terra arenosa. O príncipe tomou assento no centro, e os xeques se reuniram em torno dele. Escravos trouxeram jarras de água do poço para que lavassem as mãos. Em seguida apresentaram enormes pratos de bronze com comida, altos montes de arroz amarelo a nadar em manteiga derretida feita do leite de camela, e cheirosos espetos de carneiro e especiarias.

Al-Malik serviu-se delicadamente de uma porção de cada prato com a mão direita. Alguns ele próprio provou, outros bocados ofereceu aos homens em torno. Era uma honra um tal gesto, um sinal de favorecimento, e aqueles guerreiros enrijecidos na amargura e com feições de falcão, que não poderiam contar as feridas de guerra que marcavam com cicatrizes suas faces e corpos, o tratavam com o respeito e a afeição de crianças apaixonadas por um pai.

Quando todos tinham comido, o príncipe gesticulou para que os pratos restantes, ainda repletos de comida, fossem retirados e levados para as fileiras de guerreiros comuns que se agachavam no campo aberto, para que pudessem partilhar o banquete.

O sol avermelhado escondeu-se atrás das colinas, e as estrelas apontaram no céu escuro do deserto. Todos lavaram novamente as mãos, e os escravos acenderam as tochas. As laterais da tenda de couro foram baixadas. Os xeques se amontoaram mais perto do príncipe e passaram o bocal de marfim de mão em mão, e logo as nuvens espessas e sinuosas da fumaça do tabaco turco flutuavam em torno de suas cabeças. À luz amarelada das tochas, começaram a falar.

O primeiro a se pronunciar disse:

- A Porta mandou um exército de 15 mil homens para tomar Mascate. Yaqub abriu os portões da cidade para eles.

A Sublime Porta, ou apenas Porta, era o poder e a autoridade do Império Turco-Otomano, seu assento na distante Istambul. O irmão mais velho de al-Malik, al-Uzar ibn Yaqub, o fraco e dissoluto califa de Omã, em Mascate, tinha finalmente capitulado diante dos otomanos sem oferecer resistência. Só Alá saberia que suborno e garantias ele recebera, mas saudara o exército invasor da Porta em sua cidade e, agora, a liberdade e independência de todas as tribos do deserto corriam o mais terrível perigo.

- Ele é um traidor. Alá é minha testemunha! Ele nos vendeu como escravos! - um dos outros xeques exclamou. Todos rosnaram feito orgulhosos leões e olharam para al-Malik.

- E meu irmão e meu califa - disse o príncipe. - Estou vinculado a ele por juramento.

- Por Deus, ele não é mais um governante de Omã - um xeque protestou. - Tornou-se o fantoche da Porta.

- Ele, que sodomizou milhares de garotos, tornou-se a prostituta dos turcos - concordou outro. - Por sua traição, vós e todos nós estamos liberados dos nossos votos de lealdade.

- Liderai-nos, poderoso senhor - urgiu outro. - Somos vossos homens. Conduzi-nos aos portões de Mascate e vos ajudaremos a derrotar os otomanos e a vos colocar no Trono do Elefante de Omã.

Um após o outro se pronunciaram, e todos disseram a mesma coisa:

- Ficamos felizes que tenhais vindo a nós. Agora, imploramos por vossa liderança.

- Nós, do Saara, somos vossos homens por juramento. Podemos erguer 3 mil lanças na vossa retaguarda.

- O que me dizem das outras tribos? - perguntou o príncipe, sem se apressar a uma tão séria decisão. - Dos awamir e dos bait imani? E dos bait kathir e dos harasis?

- Nós, do Saara, não podemos falar por eles - responderam -, pois há inimizades sangrentas de família entre nós e muitos deles. Porém seus xeques aguardam por vós nas areias. Ide até eles e, pela vontade de Deus, erguerão a lança de guerra e seguirão conosco para Mascate.

- Dizei-nos de vossa decisão - imploraram. - Dizei-nos de vossa decisão e vos faremos nosso juramento.

- Eu os liderarei - declarou o príncipe, suave e simplesmente, e aquelas faces bronzeadas pelas intempéries iluminaram-se de alegria.

Um a um, ajoelharam-se diante dele e lhe beijaram os pés. Quando al-Malik estendeu sua adaga recurva, todos tocaram o aço com seus lábios. Em seguida, tomaram-lhe as mãos, ergueram o príncipe e o conduziram para fora da tenda até onde os guerreiros aguardavam sob a luz das estrelas.

- Nós lhes apresentamos o novo califa de Omã - disseram a seus homens, que irromperam em gritos de lealdade e dispararam seus mosquetes para o alto.

Logo, os tambores de guerra começaram a rufar, e o sopro lúgubre dos chifres de carneiro ecoou dos penhascos escuros acima do bosque.

Em vibrante comoção, Dorian aproximou-se de seu pai e o abraçou.

- Eu e meus homens estamos prontos para levá-lo para encontrar os xeques awamir, nos poços de Muhaid.

- Então, vamos partir, meu filho - o príncipe concordou.

Dorian deixou-o e atravessou o bosque, chamando por seus homens.

- Selem os animais! Vamos partir agora!

Todos correram para seus camelos, a chamá-los pelos nomes, e logo o vale inteiro fervilhava ao começarem a levantar acampamento. Os camelos blateravam e bufavam ao serem carregados com os odres de água, e as tendas foram desmontadas e empacotadas.

Antes do nascer da lua, no frio da noite, todos estavam prontos para seguir viagem, uma longa coluna de homens vestidos com túnicas sobre suas altas montarias. O camelo do príncipe era uma fêmea amarela cor de creme. Quando ele se sentou na sela, Dorian mandou-a se erguer. Com um gemido, o animal se ergueu. Al-Malik estava à vontade: nascido no deserto e um guerreiro desde menino, tinha sua nobre figura recortada contra o céu aos primeiros raios da lua nascente.

Dorian enviou uma vanguarda de vinte homens à frente e um grupo de retaguarda para seguir atrás. Trotou para o lado do príncipe quando a coluna começou a enveredar vale acima e rumar para o deserto.

Avançaram rapidamente, todos camelos de corrida e, a não ser pelos odres de água, levando cargas leves. Escalaram e desceram os vales, e o deserto estendeu-se adiante, infinito e plácido, as sombrias colinas arroxeadas e as cintilantes dunas de areia prateada a se espalharem para o norte. Acima da serpente sinuosa de homens e animais, as estrelas eram um campo fulgurante, como canteiros de margaridas brancas depois da chuva. A areia emudecia o baque das patas largas dos camelos, e o único som era o crepitar de couro e o ocasional murmúrio suave de uma voz a alertar:

- Atenção! Buraco!

Dorian montava à vontade, acalentado pelo passo ritmado de Ibrisam, e os inóspitos quilômetros de deserto se desenrolavam sob sua vista. As colinas escuras delineavam estranhas e fantásticas formas em torno deles, cheias de sombras e mistério, e as estrelas e a lua crescente do islã iluminavam-lhes o caminho pela noite. Ele fitou o céu, não simplesmente para navegar pela imensidão desértica, mas para absorver o escravizador fascínio dos padrões ancestrais de luz e sua inexorável marcha através do firmamento.

Estranhamente, aquele foi o momento em que Dorian se sentiu mais próximo de seu passado, parecendo acusar a presença de Tom ainda a seu lado. Juntos, quando eram meninos, tinham passado muitas noites sob o céu estrelado, a bordo do velho Seraph, empoleirados nos cordames. Aboli, Daniel Grande e Ned Tyler haviam lhes mostrado quais as estrelas da navegação, e ele murmurou seus nomes. Muitas tinham denominações árabes: Al Nilam, Al Nitak, Mintaka, Saif...

Agora, na companhia do homem que se tornara seu pai e daqueles guerreiros ferozes como falcões selvagens a quem comandava, Dorian pensou na antiga profecia de são Taimtaim que vira escrita nas paredes destroçadas da velha tumba. Lentamente, foi dominado por uma sensação quase religiosa de que algum imutável destino o esperava ali, sob aquele céu do deserto.

Pararam depois da meia-noite, quando o grande Escorpião desceu sobre as colinas rochosas. Um dos xeques do Saara aproximou-se do príncipe para fazer suas despedidas e reiterar seu juramento.

- Vou levantar meu exército - disse a al-Malik. - Antes da lua cheia, eu vos encontrarei nos poços de Ma Shadid com quinhentas lanças em minha retaguarda - prometeu.

Viram o seu camelo afastar-se rapidamente em direção ao leste até que se perdeu nas sombras arroxeadas. Então, prosseguiram. Por duas vezes mais, pela noite, outros xeques separaram-se da coluna principal e, depois de buscar as bênçãos do príncipe, desapareceram nas areias, deixando a promessa de encontrá-lo de novo nos poços de Ma Shadid com a lua cheia.

Seguiram em frente até que divisaram um campo de luxuriante zahra, que se espalhava por onde, meses antes, uma tempestade inundara uma pequena parte do deserto. Pararam e deixaram os camelos pastar, enquanto cortavam feixes de "a flor", pois essa era a melhor de todas as rações de camelo e altamente valorizada. Depois de carregarem os feixes em suas montarias, prosseguiram viagem até que a alvorada tingiu o horizonte oriental de laranja e rosa.

Pararam de novo, dessa vez para acampar, descansar os animais e alimentá-los com a zahra colhida. Então, prepararam o café e bolos de carne sobre as fogueiras fumacentas de bosta seca de camelo. Depois de comer, deitaram-se, enrolados em suas túnicas. Dormiram pelas horas de calor estonteante, com as rochas dançando numa miragem. Dorian deitou-se perto de Ibrisam, em sua sombra, e o som de suas fungadas e o rilhar das mandíbulas enquanto ela ruminava o bolo alimentar eram familiares e um acalanto. Dormiu bem e acordou ao entardecer, quando o ar esfriou.

Enquanto a coluna se levantava e se preparava para a longa marcha noturna, Dorian enviou uma pequena patrulha sob as ordens de Batula para fazer o reconhecimento da linha pretendida da marcha. Em seguida montou Ibrisam e voltou para inspecionar os rastros deixados para trás, certificando-se de que não eram seguidos.

Aqueles eram os costumes daquela terra dura, hostil, onde as tribos viviam em perpétuo estado de inimizade sangrenta entre famílias. A guerra, em que os ataques em busca de camelos e mulheres faziam parte da vida do deserto, e a vigilância constituíam o centro da existência de todo homem.

Dorian descobriu que os rastros estavam limpos. Voltou e incitou Ibrisam a um trote cadenciado. Logo, emparelhou com a coluna principal. Depois da meia-noite, chegaram aos poços amargos em Ghail ya Yamin. Um pequeno acampamento de saarianos já se encontrava ali, e todos saíram de suas tendas e rodearam o camelo do príncipe, ululando e disparando tiros de alegria para o alto.

Ficaram acampados por dois dias sob as tamareiras esparsas em Ghail ya Yamin, onde a água nos poços era tão salobra que poderia ser bebida apenas quando misturada com o leite de camela. Os homens tiveram de descer fundo na terra para alcançá-la, e a levaram para a superfície em odres de couro para dar de beber aos animais. Depois da longa jornada sem água, os camelos beberam com alívio. Ibrisam secou 200 litros para as próximas poucas horas.

O último dos xeques do Saara deixou a coluna ali e meteu-se no deserto para encontrar seu povo, deixando o príncipe al-Malik com apenas o pequeno contingente de Dorian para guiá-lo e protegê-lo pela última etapa da jornada, para encontrar os awamir nos poços de Muhaid.

Tomou-lhes três noites de viagem cruzar as planícies salgadas, antes das colinas de Shiya. Mesmo ao luar, as planícies eram brancas como um campo nevado, e as patas dos camelos deixavam uma marca escura sobre a superfície brilhante. Na terceira manhã, avistaram as colinas que se erguiam a distância, à frente deles, uma pálida linha azulada, serrilhada como as fauces de um tubarão-tigre contra a luz do alvorecer. Acamparam durante o dia num vádi1 raso, onde a vegetação de árvores retorcidas lhes dava algum abrigo do sol. Antes de se deitar para dormir, Dorian subiu até o rebordo do riacho temporário e agachou-se para estudar a linha de colinas que havia adiante. A rocha avermelhada e nua estava banhada pelo sol nascente.

As colinas de Shiya marcavam a fronteira entre os territórios do Saara e o dos awamir. Dorian avistou um pico com formato de uma torre de castelo. Os saarianos o chamavam de Torre da Bruxa. Assinalava a passagem pela faixa que os levaria aos domínios dos awamir. Dorian sorriu com satisfação por ter conduzido a coluna pelas planícies sem trilhas diretamente até a passagem, e então se levantou e desceu pelo riacho para procurar sombra e nela descansar pelo resto do dia.

Naquela noite, quando a coluna estava pronta para continuar a marcha, Dorian voltou, como sempre, para varrer os rastros da caravana. A uns oitocentos metros do acampamento, avistou a pegada de um camelo estranho. Tornara-se tão habituado por essa época com os costumes do deserto que podia reconhecer as pegadas de cada animal de seus contingentes. Aqueles rastros mostravam que o desconhecido viera do oeste e cruzara a trilha da coluna. Dorian podia ler nas marcas que o homem desmontara para examinar os rastros e, em seguida, montara outra vez e os seguira por quase três quilômetros, antes de se afastar

Nota de Rodapé: Leito ou vale de um rio intermitente que é usualmente seco, exceto na estação chuvosa, e que com freqüência forma um oásis.

Fim da Nota.

e rumar para uma formação baixa de rocha sedimentar que se erguia como a espinha de um elefante e se destacava na planície branca de sal. Por trás daquela cobertura, deixara seu camelo e se arrastara até o topo da elevação. Suas marcas sinuosas de serpente eram claras.

Quando Dorian as seguiu até o cume da elevação, descobriu que ele tivera dali uma visão privilegiada do acampamento entre as árvores em que a coluna passara o dia. Dorian viu que o estranho permanecera na beirada por algum tempo e depois se arrastara de volta e correra até onde amarrara seu camelo. A partir dali, deixara um círculo largo em torno do acampamento e, em seguida, rumara diretamente para as colinas de Shiya e para a Torre da Bruxa, acima da passagem. O espião tinha pelo menos oito horas de vantagem sobre a coluna e já teria, então, alcançado a passagem.

As implicações eram sinistras. As notícias da chegada de al-Malik e de sua jornada pelo deserto para encontrar com os líderes tribais certamente chegariam ao califa em Mascate e a seus aliados otomanos. Poderiam ter mandado uma força a fim de interceptá-lo, e o local estratégico para armar uma emboscada seria na passagem da Torre da Bruxa.

Dorian demorou apenas alguns minutos para decidir sua próxima ação. Saltou para a sela de Ibrisam e incitou-a a uma corrida. Atravessou as brancas planícies e, em curto espaço de tempo, divisou a colima adiante, sombras escuras sobre a terra cintilante. Os homens da retaguarda postaram-se em formação defensiva, mas logo reconheceram Ibrisam.

- Por Deus, é al-Salil.

- Onde está Batula? - Dorian gritou, chegando ao alcance de ser ouvido.

Seu lanceiro saiu em galope para encontrá-lo. Ao emparelhar com Dorian, jogou o véu para trás e descobriu o rosto.

- Está apressado, mestre. Há perigo?

- Um estranho segue em nossa sombra - Dorian lhe disse. - Observou-nos de longe enquanto acampávamos, depois seguiu na direção do passo, talvez para avisar os homens que o esperavam lá. Explicou rapidamente a Batula o que descobrira, em seguida o mandou com dois companheiros para rastrear as pegadas do estranho. Viu-os se afastarem e incitou Ibrisam para alcançar o príncipe.

Al-Malik escutou atentamente quando Dorian lhe fez seu relatório.

- Existem muitos inimigos - disse o príncipe. - Quase certamente, esses são servos dos otomanos ou de meu irmão, o califa. Ala sabe, há muitos que fariam tudo para me impedir de chegar às tribos do interior. O que planeja, meu filho?

Dorian apontou para a frente. As escuras colinas de Shiya eram uma barreira insuperável a se erguer por 160 metros acima das planícies salgadas.

- Tenho trinta homens, e com eles posso expor ao ridículo duas ou três vezes esse número de inimigos. Contudo, se os otomanos descobriram sobre a sua viagem, podem ter mandado um exército para encontrá-lo.

- É provável.

- O passo na Torre da Bruxa é a principal e mais rápida rota pelas colinas para chegar aos awamir, mas há outra passagem menor adiante, a oeste. - Dorian apontou pela planície prateada. - É conhecida como o Passo da Gazela Astuta, e, para alcançá-lo, teremos de nos afastar por muitas léguas do nosso caminho. Porém não posso me arriscar a levá-los pela Torre da Bruxa e a ficarmos aprisionados em suas entranhas por uma grande força dos otomanos.

Al-Malik concordou.

- A que distância fica essa outra passagem? Poderemos alcançá-la antes do raiar do dia?

- Não - respondeu Dorian. - Mesmo se forçarmos os camelos a um galope, não estaremos lá antes do meio da manhã.

- Então, leve-nos - disse al-Malik.

Dorian chamou seus homens da vanguarda e ordenou que mudassem de direção rumo ao oeste. Eles fecharam a coluna e, com o príncipe no centro da fila, cada homem em alerta para uma emboscada, incitaram os camelos a um passo mais rápido. Os animais ainda estavam descansados e fortes, e os cristais de sal crepitavam sob suas patas. Uma suave nuvem branca levantou-se sob o impacto dos cascos pesados e faiscou atrás deles no ar calmo da noite, enquanto avançavam.

Pararam por um curto espaço de tempo depois da meia-noite, a fim de deixar os camelos tomar fôlego; beberam um copo de água misturada com leite e, depois, prosseguiram.

Naquele momento mais escuro da noite, quatro horas antes do amanhecer, houve um grito de alerta dos cavaleiros na retaguarda da coluna. Dorian virou seu camelo e voltou correndo.

- O que é? - começou, mas calou-se ao avistar a escura massa de camelos que avançava em direção a eles pela noite. Eram poucos, mas poderiam constituir a guarda avançada de um exército.

- Cerrem as fileiras! - ordenou e soltou o fecho de sua lança na bota de couro.

A coluna rapidamente evolveu para uma formação defensiva, com o príncipe no centro, onde poderiam protegê-lo. Em seguida Dorian impeliu Ibrisam à frente e desafiou os homens que se aproximavam com uma pergunta que lhes foi berrada:

- Al-Salil! - a resposta foi imediata, e ele reconheceu a voz de Batula.

- Batula! - Foi ao encontro de seu lanceiro. Aproximaram-se num galope, e então Dorian emparelhou Ibrisam à montaria de Batula, para que pudessem conversar.

- Quais as novas?

- Um grupo guerreiro, muitos homens - informou Batula. - Estavam à espera na Torre da Bruxa.

- Quantos?

- Quinhentos, talvez mais.

- Quem são?

- Turcos e masakaras.

Os masakaras eram a tribo das terras costeiras em torno de Mascate e Sur. Dorian não teve dúvidas de que se tratava dos homens do califa, especialmente se os turcos estavam com eles.

- Acampados?

- Não, estão em cavalgada em nossa perseguição.

- Como sabem que mudamos de direção?

- Só posso imaginar que tenham muitos batedores a nos observar, e nós mesmos vimos a nuvem de poeira que deixam a muitos quilômetros. Brilha como um fogo de sinalização ao luar.

Dorian ergueu os olhos e viu que a poeira obscurecia metade do céu acima deles.

- A que distância estão, atrás de vocês?

Batula jogou o pano da cabeça para trás e sorriu.

- Se houvesse luz do dia, o mestre poderia ser capaz de lhes ver a nuvem de poeira claramente. Solte sua lança, al-Salil. Haverá uma boa luta antes que o sol se ponha, amanhã.

Galoparam em frente durante toda a noite, até que a alvorada coloriu o céu oriental e a luz se tornou mais forte.

- Avante! - Dorian gritou para o príncipe. Virou Ibrisam para o lado e rumou para um outeiro de lava escura que se erguia abruptamente por uns quinze metros da lisa planície branca, à esquerda. Quando chegou lá, saltou da sela e arrastou-se até o topo.

 

A aurora flamejava diante de seus olhos, e a luz surgiu rapidamente naquele miraculoso nascer do dia do deserto. As colinas selvagens de Shiya elevavam-se majestosas e serrilhadas adiante dele; suas cores eram tão fascinantes como as de alguma ave tropical, dourado e vermelho brilhantes com barras de púrpura e matizes de carmim. Dorian podia avistar claramente o Passo da Gazela Astuta, uma fenda azul-escura que dividia os penhascos verticais do cume ao sopé. As areias brancas se empilhavam na base das colinas numa rampa ascendente, e o vento esculpira, com estranhas e fantásticas formas, as dunas suaves abaixo da face rochosa e colorida.

Dorian voltou o olhar pelo caminho que haviam percorrido e viu a nuvem de poeira dos turcos a subir da planície reluzente logo à retaguarda. Naquele momento, o sol nascente lançou sua primeira flecha de luz por um vão no pico das colinas. Embora Dorian ainda estivesse na sombra, a planície atrás de si se iluminou, e ele viu o raio de sol reluzir nas pontas das lanças dos cavaleiros que se aproximavam.

- Batula estava enganado - ele murmurou ao ver aquela multidão. - São muito mais do que ele contou. Uns mil, talvez.

Espalhavam-se sobre um largo espectro, muitos esquadrões, alguns ocultos pela poeira daqueles adiante.

- Deve haver um traidor - Dorian resmungou. - Não teriam enviado esse enorme contingente se não soubessem com certeza que o príncipe havia tomado este caminho.

O esquadrão inimigo mais próximo encontrava-se perto do centro da linha, um pequeno grupo que se destacava do corpo principal e deixava os demais desordenados, atrás. Tão perto que Dorian podia enxergar as formas dos camelos e os cavaleiros em seus lombos através do véu enovelado de poeira. Não conseguiu contá-los, porém imaginou que havia uns duzentos naquele grupo e, a julgar pela maneira que cavalgavam, eram homens duros na luta.

Estreitou os olhos ao tentar estimar sua velocidade e compará-la ao passo da coluna em fuga de seus próprios homens. Aqueles camelos estavam descansados e voavam, enquanto os animais de seu contingente tinham corrido durante toda a noite. O inimigo avançava mais rápido e seria uma corrida acirrada até alcançar o Passo da Gazela Astuta.

Desceu correndo até onde Ibrisam estava e saltou em suas costas. Ela se lançou para a frente ao toque da vara e voou no encalço da coluna. Quando Dorian emergiu de trás da cobertura das rochas, os perseguidores o avistaram, e ele ouviu seus gritos abafados, porém de guerra, transportados pelo ar frio da manhã. Dorian revirou-se na sela e olhou para trás em tempo de ver as baforadas de fumaça das armas quando os cavaleiros das fileiras da frente dispararam contra ele.

A distância era grande, e Dorian nem mesmo ouviu o zunir das balas de mosquete. Ibrisam, o Vento Sedoso, prosseguiu incólume e alcançou seu próprio bando no começo da rampa de areia que levava ao sopé dos penhascos. Aquela era uma ladeira escorregadia de partículas soltas, cristalinas, que cediam sob o peso dos camelos e escorriam como água debaixo de suas patas.

A coluna iniciou a subida, e escorregava de volta pela metade do passo a cada um que ganhava. Os camelos gemiam de medo diante do terreno perigoso. Um dos animais de liderança caiu nos traseiros e fungou, exausto, para se pôr de pé, mas, em seguida, rolou de costas, prensando seu condutor sob a sela. Dorian estava perto o bastante para ouvir os gritos e o estalar dos ossos quando ambas as pernas do homem foram esmagadas. Então, o pesado animal escorregou numa confusão de membros até o pé da rampa, deixando a lareira atrás de si coberta de pedaços dos odres de água e de equipamentos quebrados, e a arrastar seu condutor para baixo, preso nos arreios.

Dorian saltou da sela e, com sua espada, libertou o homem ferido das amarras. Batula viu o que ele fazia e voltou para ajudá-lo. Sua montaria deslizou pela lareira em ondas de areia fugidia, e, no fundo, ele saltou ao lado de Dorian. Juntos, ergueram o ferido, suas pernas quebradas a balançar, e o colocaram no lombo de Ibrisam.

A ponta final da coluna já se encontrava a meio caminho, ladeira acima. O príncipe e a vanguarda tinham alcançado o sopé das rochas e desapareciam agora na escura fenda do passo através dos penhascos.

Dorian agarrou a brida de Ibrisam, puxou-lhe a cabeça para o lado e incitou-a para cima da duna. Relanceou os olhos para trás, pela planície, e viu os perseguidores avançarem, cada vez mais próximos. Suas montarias esticavam-se em plena corrida, a poeira fervilhava em seu rastro; os cavaleiros em seus lombos brandiam as armas, aos gritos de guerra ao vento, as túnicas esvoaçantes, num avanço acelerado para interceptá-los enquanto lutavam para subir o traiçoeiro declive.

Abruptamente, lá do alto, veio a explosão da fuzilaria. O príncipe reagrupara os homens ao chegar à boca do passo, e o estouro do tiroteio ecoou e ribombou ao longo da face do penhasco. Dorian viu pelo menos três dos cavaleiros avançados caírem das selas, atingidos pelas pesadas balas de chumbo, e um dos camelos devia ter sido acertado no crânio, pois caiu tão de repente que rodopiou, traseiro sobre a cabeça, jogando seu condutor para o alto ao se esparramar sobre a terra batida. A carga perdeu velocidade e ímpeto, e assim que Dorian e Batula retomaram com esforço sua subida pela ladeira, outra rodada de fogo de mosquete passou voando por sobre suas cabeças.

Foi respondida por um matraquear de disparos em série do sopé das dunas, onde o inimigo desmontava e voltava seus mosquetes para o par exposto na rampa acima. Balas de chumbo arrancavam porções de areia em torno dos pés de Dorian, mas parecia haver um encantamento de proteção sobre ele, pois, a despeito da chuva de tiros, ele e Batula prosseguiram incólumes.

Com o suor a escorrer e a respiração alterada, arrastaram os camelos até o topo da rampa de areia e para a borda rochosa da boca da passagem. Dorian olhou ao redor rapidamente, ao parar e respirar em curtos haustos.

Os outros camelos tinham sido levados a um abrigo atrás da primeira curva das altas muralhas de pedra, e seus homens haviam desmontado ali para depois correr a tomar posições entre as rochas, de onde poderiam disparar contra o inimigo.

Dorian percorreu a planície com o olhar e constatou que os esquadrões otomanos se espalhavam por quilômetros do solo pálido, mas todos voltados em sua direção. Fez um rápido levantamento de seu número.

- Com certeza perto de mil - avaliou e enxugou o suor picante dos olhos com o alfalema. Em seguida examinou Ibrisam com gestos rápidos, correndo as mãos por seus flancos e traseiro, preocupado em encontrar sangue de um ferimento de bala. Ela, porém, não fora atingida. Dorian jogou a rédea para Batula. - Leve os camelos para um local seguro - ordenou -, e cuidem dos feridos.

Enquanto Batula conduzia os animais mais para o fundo da garganta do passo, Dorian foi procurar o príncipe. Al-Malik estava agachado, mosquete na mão, ileso e composto, e orientava os mosqueteiros entre as rochas. Dorian abaixou-se ao lado dele.

- Senhor, esta não é sua função. É minha.

O príncipe sorriu para ele, mas com expressão muito séria. O confronto era de vinte contra mil e, embora sua posição fosse privilegiada, poderiam esperar um inimigo determinado e habilidoso. Al-Malik sabia o sacrifício a que Dorian se oferecia.

- Leve Batula daqui - disse - e venha comigo a Muhaid. - A entonação de sua voz era de quem pergunta, não de quem dá uma ordem.

- Não, meu senhor - Dorian recusou. - Não posso fazer isso. Meu lugar é aqui com os meus homens.

- Tem razão. - O príncipe ficou de pé. - Não posso forçá-lo a negligenciar seu dever, mas posso ordenar que não lute aqui até a morte.

Dorian deu de ombros.

- A morte faz suas próprias escolhas. Não aceita nenhum argumento de nossa parte.

- Segure-os aqui pelo resto do dia e da noite - disse al-Malik. - Isso me dará tempo para chegar a Muhaid e convocar os awamir. Voltarei com um exército.

- Como meu senhor mandar - declarou Dorian, porém o príncipe viu a excitação da batalha em seus olhos, e isso o deixou inquieto.

- Al-Salil - disse, com firmeza, e agarrou Dorian pelo ombro para reforçar as palavras. - Não posso dizer quanto tempo demorará até que eu volte com os awamir. Mantenha os inimigos aqui até a alvorada de amanhã, não mais que isso. Depois, corra para juntar-se a mim tão depressa quanto Ibrisam o possa levar. Você é meu talismã, não posso me permitir perdê-lo.

- Senhor, precisa partir agora. Cada minuto é precioso.

Voltaram até os camelos, e Dorian distribuiu ordens rápidas e dividiu os homens em dois grupos: aqueles que ficariam para manter a posição no passo e os que seguiriam com o príncipe. Repartiram o que restava de água e comida, uma quarta parte para o príncipe e o restante para o grupo de Dorian.

- Deixaremos todos os nossos mosquetes com você, os cinco barris de pólvora negra e os sacos de balas de chumbo - o príncipe disse a Dorian.

- Daremos a eles um bom emprego - Dorian prometeu.

Em questão de minutos, tudo estava pronto, e o príncipe e Batula montaram seus camelos à frente do grupo de partida. Do alto da sela, al-Malik olhou para Dorian.

- Alá seja seu escudo, meu filho - disse.

- Vá com Deus, meu pai - Dorian respondeu.

- E a primeira vez que me chama assim.

- E a primeira vez que sinto que é verdade.

- Você me honra com isso - disse gravemente al-Malik e tocou o pescoço do camelo com a vara.

Dorian observou-os descer pela estreita passagem entre as altas muralhas de pedra e desaparecer na primeira curva. Caminhou de volta para a entrada a fim de inspecionar a planície e os penhascos com um olhar de soldado. Considerou a altura do sol. Passava pouco do meio-dia. Seria um longo dia, e a noite, mais longa ainda.

Avaliou os pontos fracos em sua defesa que o inimigo poderia explorar e fez seus planos de como conter cada movimento que fizessem. Primeiro, eles tentariam um ataque direto, pela ladeira, considerou ao olhar para a massa hostil na borda da planície. Caminhou por entre seus homens, riu, brincou com eles e os distribuiu nas melhores posições defensivas entre as rochas, certificando-se de que cada qual tivesse frascos cheios de pólvora e sacos de balas.

Não terminara de alocar o último de seus soldados quando ouviu o som distante de uma corneta que vinha do fundo do declive, seguido imediatamente pelo rufar dos tambores de guerra e dos gritos ululantes da primeira onda de atacantes, que avançou e começou a escalada da ladeira.

- Calma! - Dorian gritou a seus homens. - Não atirem já, irmãos de sangue guerreiro. - Bateu no ombro de um homem com longos cachos escuros de cabelos emaranhados a lhe caírem pelas costas. Sorriram um para o outro. - O primeiro tiro será o mais doce, Ahmed. Faça-o contar a história.

Percorreu a linha.

- Espere até que olhem para o cano da sua arma, Hassan.

- Quero uma morte efetiva da sua primeira bala, Mustafá.

- Deixe-os se aproximar até que não possa errar, Salim.

Enquanto ria e brincava, observava os atacantes que subiam o declive. Eram turcos, homens mais pesados que os árabes do deserto - estes leves como pássaros -, com longos bigodes e elmos de bronze com proteção do nariz, e armaduras de cota de malha sobre os alquicés de lã listrados.

Equipamento pesado para o deserto, Dorian julgou, ao vê-los lutar para subir a rampa de areia solta, a primeira investida furiosa a se transformar lentamente numa escalada árdua. Dorian chegou até a borda da ladeira como se fosse saudá-los e se postou ali, de mãos nos quadris, com um sorriso nos lábios. Não apenas desejava inspirar seus homens pelo exemplo, mas queria certificar-se de que ninguém desobedeceria às suas ordens de abrir fogo enquanto estivesse de pé, defronte a eles.

Um dos turcos parou e ergueu seu mosquete. Sua face brilhava de suor e as mãos lhe tremiam com o esforço da escalada. Dorian enrijeceu-se, e o turco disparou. A bala passou assobiando por sua cabeça, e o vento lançou uma mecha de seus cabelos ruivos por sobre seus lábios.

Nota de Rodapé: Alquicé: variedade de capa mourisca.

Fim da Nota.

- Isso é o melhor que vocês, adoradores de cabras, podem fazer? - Soltou uma gargalhada. - Subam aqui. Venham e provem a hospitalidade do Saara.

Suas provocações renovaram as forças dos líderes, e eles irromperam numa corrida desajeitada e instável pelos últimos poucos metros da rampa. Dorian recuou até as fileiras de seus próprios homens.

- Em prontidão agora, irmandade - disse, baixinho, e puxou o percussor de seu mosquete.

Uma linha de turcos surgiu, ombro a ombro, na borda da lareira. Tinham as faces arroxeadas pelo esforço, banhadas de suor, ao deparar com os mosquetes nivelados dos saarianos. A maioria deixara cair os próprios mosquetes durante a subida. Agora, brandiam as cimitarras e, com horríveis berros, lançaram-se contra os defensores.

- Agora! - gritou Dorian, e os saarianos dispararam juntos, vinte mosquetes num único estrondo prolongado de fumaça e bala.

A fuzilaria varreu a linha de turcos. Dorian viu seu próprio tiro abrir uma fenda nos dentes amarelados de um turco forte, de bigodes, à sua frente. A cabeça do homem tombou para trás. Sangue e tecido cerebral escorriam do verso do crânio e a espada fugiu-lhe da mão. Caiu de costas sobre o homem que apontava na crista da ladeira, atrás dele, tirando-lhe o equilíbrio, e os dois despencaram juntos e rolaram pela rampa de areia, em cambalhotas, arrastando outros três homens que subiam, numa confusão de corpos, até bater no fundo.

- Peguem as espadas agora - Dorian berrou, e todos se espalharam de suas posições atrás das rochas e investiram contra o grupo hostil de turcos à beira da rampa. Não sobrou nenhum na saliência, e os saarianos foram de encontro aos que ainda lutavam para subir. Os turcos tinham a desvantagem do peso e estavam quase exauridos no instante do enfrentamento com armas brancas.

O confronto foi rápido, e os atacantes rechaçados, mortos e feridos. Aqueles ainda em condições de lutar escorregaram e deslizaram para baixo, ignorando os gritos zangados de seus comandantes. Ao pé da ladeira, saíram correndo, arrastando os chefes na fuga.

Os saarianos puseram-se a dançar na borda da saliência, barbas e túnicas a ondular, berrando insultos obscenos e provocando o inimigo. Dorian viu, de relance, que não tinham perdido um único homem, seja morto ou ferido, enquanto pelo menos uma dúzia de cadáveres turcos jazia semi-enterrada na fina areia da duna, abaixo.

- Foi a primeira parte do banquete. - Controlou seu próprio júbilo. Não mais que cem turcos tinham investido naquela impulsiva carga. - Não tentarão essa estratégia de novo.

Caminhou por entre seus homens a lhes gritar que recarregassem suas armas, mas levou algum tempo para colocá-los outra vez sob controle.

- Quero dez homens nos penhascos. - Chamou-os pelos nomes e mandou que subissem para as muralhas rochosas de onde poderiam observar a testeira das colinas e qualquer movimento do inimigo. Dorian imaginou que mandariam homens para escalar as dunas de areia de cada lado da boca do passo, fora do alcance dos mosquetes dos seus soldados, e que em seguida se reagrupariam na saliência e fechariam os dois lados. Combinado com outro ataque frontal, aquilo seria mais difícil de resistir.

Dorian sabia que seus homens deveriam ser levados para a garganta do passo e, ali, na estreita passagem, forçados à resistência final. Confiante nos soldados que postara no alto dos penhascos para dar o alerta do próximo ataque, ele levou seis deles para o passo com o objetivo de escolher a melhor posição defensiva.

Fazia quase três anos desde que percorrera pela última vez aquele caminho, mas recordava-se de que existia um local onde as rochas se estreitavam. Ao descobri-lo de novo, a abertura mal permitia a passagem de um camelo carregado. Adiante, havia um amontoado de pedras resultante de uma avalanche. A uma ordem sua, os seis saarianos depuseram as armas e usaram as pedras soltas para fortificar a fenda, construindo um sangar por ela, atrás do qual poderiam se abrigar.

Os camelos foram levados mais para o fundo do desfiladeiro, além da próxima curva da passagem, e Dorian voltou para verificar se estavam selados e prontos para uma rápida escapada quando os inimigos irrompessem pelo sangar. Ibrisam bufou de felicidade quando o viu, e ele lhe acariciou a cabeça antes de mandá-la recuar para a boca do passo.

Os homens que mandara escalar as muralhas estavam agora em posição acima dele, e os outros se espalhavam ao longo da saliência de borda. Carregavam os mosquetes que o príncipe deixara com eles e os deixavam à mão. Aquilo lhes daria um disparo extra quando a batalha se acirrasse.

Dorian rastejou pela saliência e olhou para o inimigo. Embora o sol estivesse alto agora e o calor se tornasse insuportável, as brancas planícies de sal fervilhavam de atividade. Tropas de soldados montados ainda se aproximavam para integrar as fileiras do inimigo, e os oficiais turcos iam e vinham ao longo do sopé das dunas de areia, estudando as condições do terreno. Seus escudos e armas faiscavam, e a poeira branca dependurava-se numa cortina brilhante sobre eles.

De súbito, houve uma movimentação ainda mais agitada entre as tropas bem abaixo de onde Dorian se postara, e uma trompa soou num toque solene. Um pequeno grupo se aproximava, os batedores carregando bandeiras verdes e escarlates, as cores da Sublime Porta. Indubitavelmente, aquele era o grupo de comando da força inimiga. Quando eles chegaram mais perto, Dorian examinou-os com interesse. Distinguiu duas figuras no centro do grupo que, a julgar pelos trajes esplêndidos e a rica equipagem de seus camelos, eram os oficiais da mais alta patente. Um era turco, pois carregava o escudo redondo de bronze e usava o elmo com proteção de aço no nariz. O general otomano, Dorian imaginou, e voltou sua atenção para o segundo homem, um árabe. Mesmo àquela distância, havia algo vagamente familiar nele, e Dorian remexeu-se, inquieto. Estava envolto em finos alquicés, mas Dorian podia ver que era um homem robusto. A tiara de seu alfalema era de filigrana de ouro, e a bainha da adaga recurva em sua cintura brilhava com o mesmo metal lustroso. Tinha até mesmo sandálias de ouro nos pés. O homem era um dandy. Maldição, eu o conheço. A sensação de familiaridade aumentou, e Dorian rebuscou a memória para tentar dar um nome à lembrança fugidia.

O grupo de comando parou ao sopé das dunas, bem longe do alcance dos tiros de mosquete dos homens de Dorian, postados na saliência, e o comandante turco levou uma luneta ao olho e examinou a boca do passo. Completou a inspeção minuciosa da face do penhasco e, em seguida, baixou o instrumento e falou com seus oficiais, que estavam agrupados atrás dele. Imediatamente, eles se dispersaram e começaram a distribuir ordens aos esquadrões das tropas à espera.

Houve outra explosão de atividade. Faziam exatamente aquilo que Dorian tinha antecipado: em questão de minutos, centenas de soldados pesadamente armados subiam o declive de ambos os lados da boca da passagem. Mantinham-se fora do alcance dos disparos do pequeno grupo de defensores, mas Dorian sabia que quando chegassem à saliência, iriam rastejar por ela e depois tentar invadir a entrada do passo.

- Al-Salil! Os turcos comedores de bosta estão se aproximando de nós de novo. - As sentinelas nos penhascos gritaram, passando as observações a Dorian. De seus pontos avançados, podiam ver melhor do que ele, e o avisaram quando o primeiro inimigo chegou à saliência e começou a se esgueirar em direção ao centro.

- Atire em qualquer um que fique dentro de alcance - Dorian berrou em resposta, e imediatamente uma fuzilaria de mosquetes ecoou pelos penhascos.

Os saarianos disparavam contra a saliência da borda, e os turcos respondiam ao fogo. Ocasionalmente, ouvia-se um grito quando um homem era atingido, porém os alertas das sentinelas indicavam que o inimigo se posicionava gradualmente numa posição na qual poderia desferir seu primeiro ataque à boca da passagem.

Embora preocupado com a ação que se desenrolava a seu lado, Dorian continuou a observar o árabe enfeitado de ouro que seguia ao lado do general turco. Por fim, um comboio de camelos de carga surgiu na retaguarda, e deles foi descarregada uma tenda de couro pintada. Vinte homens a desenrolaram, armaram-na sobre a branca planície e espalharam tapetes e almofadas em sua sombra. O general turco desmontou e tomou um lugar sobre os tapetes. O dandy árabe também escorregou de seu camelo e desceu desajeitado da sela. Seguiu para a tenda, e então Dorian pôde ver a largura de seus ombros e o volume de sua barriga sob o alquicé. Não dera mais que poucos passos quando Dorian percebeu que mancava: poupava o pé direito. Foi o bastante para lhe acordar a memória. Lembrou-se de sua briga nos degraus da velha tumba no jardim do harém, em Lamu, e a queda que quebrara aquele pé.

- Zayn! - murmurou. - Zayn al-Din! - Era o seu velho inimigo de infância, agora vestido como um príncipe de Omã e à frente de um exército.

Dorian sentiu todo o antigo ódio e antagonismo retornarem em pleno influxo. Zayn era o inimigo mais uma vez. Mas o que ele fazia ali, à caça de seu próprio pai? Dorian ficou intrigado. Será que sabe que estou aqui também?

Tentou extrair sentido daquela estranha e inesperada circunstância. Zayn estava na Corte de Mascate fazia tanto tempo que devia ter sido sugado pelo convulsivo turbilhão das intrigas palacianas, treinado e encorajado provavelmente por seu tio, o califa. A menos que Zayn tivesse mudado muito do menino que Dorian conhecera, devia ter participado prontamente das conspirações da Corte. Era evidente que se tornara outro fantoche da Sublime Porta. Talvez estivesse no centro da capitulação de Omã ante os otomanos.

- Seu porco traidor! - Dorian resmungou com repulsa. - Você venderia seu país e sua gente, mesmo seu próprio pai. Qual foi o preço? Que recompensa a Porta lhe ofereceu, Zayn? O próprio trono, como sua marionete em Mascate?

Zayn al-Din tomou assento ao lado do general turco à sombra da aba da tenda, e um escravo colocou uma xícara em sua mão. Ele bebeu dela, e Dorian viu que deixara crescer uma barba fina e rala, mas que suas faces eram roliças e gordas. Ergueu o olhar e divisou a figura de Dorian, que puxou o alfalema e escondeu seus cabelos brilhantes como cobre. A xícara escapou dos dedos de Zayn quando o reconheceu.

Dorian acenou para ele num gesto gaiato. Zayn não respondeu, mas pareceu se encolher um pouco mais, dobrando-se como um sapo inchado. Naquele mesmo instante ouviu-se a explosão de uma súbita fuzilaria ao longo dos penhascos, à direita, e Dorian voltou-se para encorajar a defesa daquele lado do passo.

- Atenção, al-Salil! - uma das sentinelas berrou. - Estão chegando!

- Quantos? - Dorian berrou de volta e escorregou para trás da rocha com Ahmed.

- Muitos! - veio a resposta. - Muitos mesmo!

Naquele lado, os penhascos formavam uma aguda projeção que se voltava sobre si mesma, de maneira que não conseguiam enxergar mais do que a vinte passos da saliência aberta, mas podiam ouvir as vozes dos homens além do canto do penhasco e seus passos ao avançarem, o crepitar das tiras de couro nas placas do peito e do cinto das bainhas das cimitarras.

- Calma! - Dorian disse, baixinho, a seus homens. - Esperem. Deixem que cheguem mais perto.

De repente, uma fileira de turcos irrompeu pelo canto do penhasco, diretamente sobre eles. A saliência era larga apenas o bastante para permitir a passagem de três de cada vez, mas outros se comprimiam atrás, em seus calcanhares.

- Allah akbar! - urravam. - Deus é grande!

Havia um homem alto e marcado de pústulas na fileira da frente, com um elmo sarraceno de aço na cabeça, a cota de malha a lhe cobrir o torso e um machado de guerra de gume duplo nas mãos. Saltou adiante de seus comparsas e escolheu Dorian, cravando os olhos nos dele e desfechando o ataque com o machado erguido em ambas as mãos sobre a cabeça.

Estava à distância de um braço. O cano do longo mosquete tocou-lhe a face quando Dorian disparou. A bala atingiu o turco na garganta, e ele caiu de joelhos a comprimir o ferimento. Uma artéria seccionada bombeava sangue entre seus dedos em espessos jatos aglutinados, e ele desabou para a frente de cara no chão.

Dorian jogou o mosquete vazio e pegou o carregado que estava à mão e armou o percussor. Outro homem saltou por sobre o turco agonizante, e Dorian atingiu-o no peito. Ele despencou pela beirada da rocha, a se retorcer no ar e agitando as pernas.

Dorian descartou a arma vazia e sacou sua espada. Deu um passo à frente para bloquear a saliência. Ahmed estava à sua direita, e Salim, à esquerda, seus ombros se tocando. O inimigo investiu sobre eles em grupo, três de cada vez, mas outros próximos se postavam atrás, prontos para preencher os vãos deixados por aqueles que caíam. Dorian adorava a sensação de uma boa lâmina em sua mão. Aquela arma que empunhava agora fora um presente de despedida do príncipe quando partira de Lamu. Era de aço de Damasco, flexível como uma vara de salgueiro e afiada como o dente de uma serpente.

Matou com facilidade o primeiro que investiu, com um golpe certeiro sob a borda do elmo, no olho escuro, e espetou-lhe a órbita como o rim de um cordeiro num kebab enterrando a lâmina dentro do cérebro. Numa recuperação rápida, Dorian desprendeu a espada e deixou sua vítima cair. Então, os outros avançaram de trás de seus escudos de bronze e não houve mais espaço nem pausa para uma bela luta de espadas. Ombro a ombro, em grupo e em ondas, eles vinham aos pontapés e socos e gritos, em recuos e avanços, lado a lado pela estreita saliência.

Os gritos de alerta das sentinelas saarianas na face do penhasco foram quase sufocados pelos berros, pelo clamor de aço contra aço, pelo tropel e empurrões.

- Do lado esquerdo e de frente!

Dorian ouviu e abateu outro homem antes que ele fugisse da luta, e deixou que Mustafá, que se encontrava atrás, se adiantasse em seu lugar na linha.

Olhou ao redor e viu que, embora ele lutasse à direita, os turcos tinham desferido uma série de ataques de cada outro ponto. Cinco de seus homens lutavam desesperadamente para manter o fundo da entrada, onde o inimigo forçava a passagem para a saliência. Ao mesmo tempo, uns duzentos turcos se aproximavam diretamente pela rampa de areia, em frente. Nos poucos momentos em que levou para fazer essa avaliação, dois de seus homens estavam mortos. Salim tivera a cabeça decepada pelo golpe de um machado, e Mustafá fora trespassado por uma espada nos pulmões e caíra de joelhos a vomitar golfadas de sangue.

Nota de Rodapé: Prato oriental de carne (carneiro ou vaca) marinada, servida em forma de espetinhos em cubos.

Fim da Nota.

Dorian sabia que aquelas perdas eram terríveis nas condições em que se encontravam, já que os turcos que subiam pela ladeira tinham quase alcançado a saliência. Os homens que ele postara nos penhascos não esperaram por suas ordens e escorregavam para baixo para se juntar à luta. Sentiu-se grato quando saltaram os últimos metros sobre a rocha, a seu lado. Já então, ambos os flancos cediam à pressão, e a qualquer momento uma onda do inimigo irromperia por sobre a beirada da saliência.

- Costas com costas! - gritou Dorian. - Cubram um ao outro! Recuem para a passagem!

Formaram um anel teso, defensivo, e os turcos urravam em torno deles enquanto recuavam rapidamente para dentro da boca do passo, mas perderam mais homens diante das lâminas faiscantes e das balas de mosquetes disparadas à queima-roupa.

- Agora! - Dorian deu a ordem. - Corram!

Fizeram a volta e recuaram para o interior da passagem, arrastando os feridos consigo, enquanto o inimigo se amontoava na entrada, um a obstruir "o outro pelo número dos que tentavam continuar a perseguição.

Dorian ia na liderança ao contornarem a curva da passagem na rocha e gritou aos seis homens atrás das paredes do sangar.

- Não atirem! Somos nós!

O sangar tinha paredes até a altura do peito de um homem, e eles as escalaram. Os homens à espera ajudaram a arrastar os feridos por sobre o topo.

Quando o último dos saarianos passou pelo topo, o inimigo surgiu aos berros pela passagem, logo atrás deles. Os seis homens que não tinham tomado nenhuma parte na luta até então estavam desesperados para se juntar ao combate: tinham carregado todos os mosquetes restantes, agora enfileirados ao longo do penhasco, e plantado as longas lanças na terra, à mão para quando os turcos ultrapassassem o sangar.

A primeira investida da fileira de vanguarda dos turcos os trouxe para mais perto, e, recebidos com uma fuzilaria, instalou-se entre eles a confusão e o tumulto quando tentaram recuar e seus comparsas que vinham de trás os empurraram para a frente. Outra saraivada com a segunda bateria de mosquetes recarregados desequilibrou a situação, e os turcos restantes fugiram de volta pela passagem e desapareceram na curva da rocha. Embora escondidos pela muralha de pedra, suas vozes eram ampliadas pelas paredes rochosas, e Dorian pôde ouvir cada palavra com que xingavam os saarianos e incitavam um ao outro a atacar novamente. Sabia que haveria apenas um breve intervalo antes do próximo assalto.

- Água! - ordenou. - Tragam um odre de água.

O calor no passo era o de um forno de pão, e o combate fora pesado e violento. Engoliram a água horrível e salobra dos poços amargos de Ghail ya Yamin como se fosse a mais doce das bebidas.

- Onde está Hassan? - Dorian perguntou ao contar as cabeças.

- Eu o vi cair - um dos homens respondeu -, mas eu estava carregando Zayud e não pude voltar para buscá-lo.

Dorian sentiu a perda, pois Hassan era um de seus guerreiros favoritos. Agora, tinham apenas doze homens ainda em condições de lutar. Haviam resgatado cinco dos feridos, mas outros tiveram de ser deixados à mercê dos turcos. Carregavam os feridos até onde os camelos estavam agachados e, em seguida, Dorian dividiu os sobreviventes em quatro grupos iguais.

A parede do sangar era larga apenas para três homens de cada vez. Dorian posicionou os três outros grupos por trás da fileira de vanguarda. Depois de cada saraivada, recuariam para recarregar, e as outras fileiras avançariam para tomar seu lugar. Dessa maneira, esperava manter um fogo constante sobre os turcos assim que estes investissem. Poderia contê-los até o escurecer, porém duvidava de que sobrevivessem à noite.

Muito poucos dos saarianos ainda estavam de pé, e os turcos tinham uma reputação terrível de combatentes corajosos. Dorian sabia que seriam habilidosos em encontrar alguma estratégia para minar seus melhores esforços de defesa. Tudo que poderia esperar era ganhar tempo para al-Malik, e, no final, teriam de abrir caminho com lanças e espadas.

Acomodaram-se por trás do sangar, sob o ar tumultuado e quente do passo, procurando recuperar as forças.

- Eu trocaria meu lugar no paraíso por um cachimbo de kheef agora. - Misqha sorriu ao enrolar uma tira de pano suja e ensopada de suor em torno do ferimento de espada em seu braço. A pesada fumaça da erva tornava o fumante destemido e esquecido da dor de seus ferimentos.

- Farei um a você e o acenderei com as minhas próprias mãos quando nos sentarmos nos salões em Mascate - prometeu Dorian. Em seguida calou-se ao ser chamado por alguém.

- Al-Salil, meu irmão! - a voz ecoou e repercutiu nas rochas.

- Meu coração se alegra em vê-lo novamente. - Era aguda, quase feminina.

Embora o timbre tivesse mudado, Dorian reconheceu aquela voz.

- Como está seu pé, Zayn al-Din? - gritou em resposta. - Venha, deixe-me quebrar o outro, para equilibrar o seu gingar de pato.

Fora da vista, atrás da curva da passagem, Zayn soltou uma risadinha.

- Iremos, meu irmão, creia-me, iremos, e quando o fizermos, serei eu a rir ao ver meus aliados turcos erguerem as saias da sua túnica e o curvar sobre a sela do seu camelo.

- Acho que você, bonequinha, gostaria disso mais do que eu, Zayn.

- Dorian usou a forma feminina de tratamento, como se falasse com uma mulher, e Zayn calou-se por um momento.

- Ouça, al-Salil - gritou outra vez. - Este é seu irmão de sangue, Hassan. Você o deixou para trás quando fugiu como um chacal covarde. Ele ainda está vivo.

Dorian sentiu um calafrio de pavor lhe correr pela espinha.

- Ele é um bravo, Zayn al-Din. Deixe-o morrer com dignidade - respondeu. Hassan se tornara seu amigo desde o primeiro dia em que fora viver entre os saarianos. Tinha duas jovens esposas e quatro filhos pequenos, o mais velho com apenas cinco anos de idade.

Um grito terrível ecoou pela passagem, um berro de agonia mortal e humilhação, que sucumbiu num gemido soluçado.

- Aqui está um presente para você, de seu amigo. - Alguma coisa pequena, mole e sangrenta foi lançada pelo canto da passagem. Rolou pela terra arenosa e parou na frente da parede do sangar. - Você estava precisando de outro par de bolas, al-Salil, meu irmão - berrou Zayn al-Din. - Aí estão. Hassan não precisará delas quando se for.

Os saarianos rosnaram e praguejaram, e Dorian sentiu as lágrimas lhe queimarem as pálpebras. Sua voz entrecortou-se ao berrar em resposta:

- Juro, em nome de Deus, que farei o mesmo a você algum dia.

- Oh, meu irmão! - Zayn exclamou. - Se este cão do Saara é tão querido por você, eu o devolverei. Mas, antes, quero dar uma olhada no fígado dele.

Houve outro grito pavoroso, e então Hassan foi lançado pela abertura e rolou pela passagem até o sangar. Estava nu, e entre suas pernas havia um buraco escuro, ensopado de sangue. Tinham lhe aberto a barriga, e as entranhas lhe caíam em torno dos joelhos, escorregadias e roxas. Ainda estava vivo e rastejou na direção de Dorian, a boca escancarada. Soltou um guincho agudo, animalesco, a boca uma cavidade cheia de sangue. Zayn lhe cortara a língua.

Antes que pudesse alcançar o sangar, fraquejou e ficou estendido a se torcer debilmente na poeira. Dorian saltou por sobre a parede com o mosquete na mão. Colocou o cano na nuca de Hassan e atirou. Seu crânio explodiu como um melão maduro. Ao som do disparo, os turcos avançaram pela passagem como uma onda furiosa de uma tempestade. Dorian saltou de volta por sobre a parede.

- Fogo! - gritou a seus homens, e a primeira saraivada de tiros de mosquete varreu como uma avalanche a fileira de vanguarda dos atacantes.

O combate prosseguiu em recuos e avanços pelas poucas horas do dia que restavam. Gradualmente, a passagem foi sendo bloqueada pelos mortos inimigos, empilhados quase tão alto como a parede de pedra, e uma espessa névoa da fumaça da fuzilaria encheu as profundezas do passo. O ar se tornou quase tão irrespirável que todos tossiam e ofegavam enquanto disparavam e recarregavam as armas. À fumaça, mesclou-se o cheiro metálico de sangue e os gases dos intestinos rasgados, e, no calor, o suor porejava por seus corpos e lhes queimava os olhos com o sal.

Usando seus próprios mortos como escada de assalto, os turcos conseguiram subir pelo topo da parede por três vezes, e por três vezes Dorian e seus saarianos os rechaçaram. Quando a escuridão caiu, havia apenas sete árabes ainda em condições de se postar ao lado dele, e todos estavam feridos. Na calmaria entre cada ataque, arrastavam seus mortos e feridos de volta até onde os camelos estavam agachados. Não havia ninguém para cuidar deles, e Dorian colocou um odre de água ao lado daqueles que ainda tinham força para bebê-la.

Jaub, cujo apelido era Gato, tivera seu ombro direito arrebentado pelo golpe de um machado, e Dorian não conseguira estancar a hemorragia da artéria pulsante.

- É minha hora de deixá-lo, al-Salil - Jaub murmurou ao lutar para se pôr de joelhos. - Segure minha espada para mim.

Dorian não podia recusar aquele último pedido: não podia deixar seu companheiro de uma dúzia de batalhas à mercê dos turcos. Com frio no coração, colocou o punho da espada firmemente enterrado na areia e posicionou a ponta curvada logo abaixo do esterno, mirada para o coração.

- As bênçãos de Alá e de seu Profeta sobre você, meu amigo - Jaub lhe agradeceu. E desabou para a frente. A lâmina enterrou-se em toda a sua extensão, e a ponta, manchada de sangue, saiu por entre as omoplatas.

Dorian levantou-se e correu de volta ao sangar justamente quando outra leva de turcos investia ululando pela garganta do passo. Conseguiram fazê-los bater em retirada, por fim, mas dois outros dos saarianos se foram. Esperava poder contê-los por mais tempo, pensou Dorian, ao se recostar, exausto, contra a parede encharcada de sangue.

Esperava poder dar a meu pai mais tempo de alcançar os awamir, mas restam poucos de nós e está tudo quase acabado, agora.

A passagem se tornava cada vez mais escura. Logo, os turcos poderiam se esgueirar até a base da parede sem serem vistos.

- Bin-Shibam - ele resmungou ao homem a seu lado, pois sua garganta estava inchada de sede e dolorida de tanto gritar -, traga o último odre de água e os feixes de lenha das cargas dos camelos. - Vamos beber e iluminar a noite com nossa última fogueira.

As labaredas iluminaram as paredes rochosas do passo com uma bruxuleante luminosidade avermelhada. A intervalos, um dos saarianos lançava uma acha em chamas por sobre a parede para dispersar as sombras pelas quais os turcos poderiam se esgueirar.

Houvera uma calmaria momentânea. Podiam ouvir os turcos conversando além da curva, e os pavorosos gemidos dos feridos e agonizantes. Dorian e seus últimos guerreiros sentaram-se num pequeno e solitário grupo contra a parede e beberam o que restava da água, enquanto se ajudavam mutuamente a atar os ferimentos. Todos estavam feridos, mas embora Dorian tivesse participado do grosso do combate durante todo aquele dia, seus ferimentos eram os de menor gravidade. Havia um corte profundo no verso de seu braço esquerdo e um rasgo de espada que atravessara o mesmo ombro.

- Ainda tenho meu braço direito para empunhar uma espada disse ao homem que confeccionara uma tipóia para ele com um pedaço de corda dos arreios de camelo. - Acho que fizemos tudo que podíamos aqui. Se algum de vocês quiser partir, tome um camelo e se va, com os meus agradecimentos e bênçãos.

- Este é um bom dia para morrer - disse o homem a seu lado.

- As huris do paraíso ficarão tristes se ignorarmos o seu chamado - outro recusou a oferta de Dorian.

Nota de Rodapé: Huri: moça de grande beleza que, segundo o Alcorão, desposará no paraíso o cren e muçulmano.

Fim da Nota.

Então, ergueram o olhar em grande alarme quando um pedregulho rolou do alto, batendo de parede em parede, arrancando pequenas fagulhas da rocha.

- Escalaram os penhascos e estão sobre as nossas cabeças. - Dorian saltou de pé. - Apague a fogueira. - As chamas os iluminariam para os homens lá no alto, que lhes veriam a posição. Seu aviso chegou tarde.

De súbito, o ar em torno encheu-se de um rugido estrondoso, como de uma grande queda-d'água, e um bombardeio de rochas veio abaixo sobre eles. Algumas das pedras eram do tamanho de barricas de pólvora, outras somente da largura da cabeça de um homem, mas não havia abrigo daquela chuva letal na garganta do passo.

Três homens mais foram esmagados nos primeiros momentos, e outros, abatidos ao correrem pela passagem até os camelos. Dorian foi o único a passar. Chegou ao lado de Ibrisam e jogou-se em sua sela.

- Hut! Hut! - incitou-a a se levantar, mas quando o animal se erguia, o bombardeio de pedras cessou abruptamente e os turcos irromperam pela parede, atrás dele. Esfaquearam os árabes feridos e depois correram para rodear Ibrisam.

Dorian atingiu um deles no peito com a lança, enterrando a ponta de aço profundamente contra a pouca resistência da carne, mas o cabo quebrou-se em sua mão, e ele golpeou com o toco o rosto de outro turco e sacou a espada. Retalhou as cabeças dos homens que tentavam puxá-lo da sela e fez Ibrisam recuar pela passagem. A camela investiu contra os homens que se postavam em seu caminho. Batendo os enormes dentes amarelos, arrancou fora os dedos da mão de um deles, e, com um único golpe de suas patas dianteiras, quebrou as costas de outro. Então, arrojou-se para a frente e rompeu as fileiras do inimigo.

Dorian agarrou-se ao ressalto da sela com a mão boa enquanto Ibrisam galopava livre e contornava as curvas e ondulações do passo. Os berros sedentos de sangue dos turcos ficaram para trás.

O passo percorria uns dois quilômetros pelas colinas, um curso d'água seco formado quando um estrato mais macio de rocha fora escavado pela água da chuva ao longo dos milênios. Assim que estavam livres de seus perseguidores, Ibrisam mudou para aquele trote compassado que ganhava terreno rapidamente e pelo qual recebera o nome de Vento Sedoso.

Dorian caiu em transe de sede, exaustão e pela pungente dor de seus ferimentos. As paredes do passo estendiam-se a passar por ele infinitamente, em hipnóticas ondulações que mais e mais o induziam a um estado alterado de consciência. Quase tombou da sela, num momento, mas Ibrisam o sentiu deslizar e parou abruptamente. O movimento despertou Dorian e ele sentou-se com mais firmeza na sela quando a camela continuou.

Somente então, ele tomou consciência de que o passo do animal parecia tolhido. Porém confuso como estava e atordoado, mal podia se manter no assento. O esforço requerido para desmontar e verificar as condições de Ibrisam eram demais para Dorian.

Mais uma vez cochilou e, quando despertou, em sobressalto, descobriu que haviam emergido pela extremidade do passo e entravam em campo aberto, no território dos awamir. Podia dizer, pela altura da lua e a posição das estrelas, que passava da meia-noite.

O ar noturno era gelado, um contraste cruel com o calor escaldante do dia. O sangue e o suor que ensopavam sua túnica o enregelavam mais ainda, e Dorian tremia e tinha a cabeça anuviada. Ibrisam movia-se de forma estranha debaixo dele, seu passo curto e o traseiro curvado. Por fim, Dorian reuniu forças e resolveu ordenar que ela parasse e se agachasse.

Examinou o odre pendurado em seu lombo e descobriu que continha menos de um galão da água salobra de Ghail ya Yamin. Tirou o grosso xale de lã da rede de carga e abriu-o sobre os ombros. Ainda tremendo, examinou Ibrisam para descobrir a causa de seu desconforto.

Viu de imediato que seu quarto traseiro estava úmido e brilhava ao luar, e descobriu que purgava gravemente. O excremento líquido que escorria era vermelho de sangue. Dorian sentiu uma ponta de aflição. Seus próprios ferimentos e agonia esquecidos, apalpou-lhe os flancos escorregadios e sedosos, mas ao lhe tocar a barriga, logo depois das pernas traseiras, a camela gemeu baixinho, e a mão de Dorian veio molhada de sangue.

Um golpe de uma lança turca se afundara em sua barriga e lhe rompera os intestinos. Ibrisam estava mortalmente ferida e era um milagre de amor e determinação que o carregasse até tão longe. Dorian se sentia tão fraco e triste que suas lágrimas escorreram sem peias pelas faces. Desatou o saco de couro da carga e encheu-o com o resto da água do odre. Bebeu metade de uma caneca do líquido desagradável e, em seguida, se ajoelhou junto da cabeça de Ibrisam.

- Minha adorada e tão corajosa - disse, e deu-lhe de beber do que restava do saco. Ela sugou a água avidamente e, quando terminou, lambeu o fundo. - Não há mais nada que eu possa fazer por você - disse à camela ao lhe acariciar as orelhas. Ibrisam adorava quando ele fazia aquilo. - Você estará morta pela manhã - disse -, e eu com você, a menos que possa me carregar um pouco mais adiante, pois os turcos virão no nosso encalço. Pode me carregar pela última vez? - Levantou-se e pediu a ela, suavemente: - Hut! Hut!

A camela balançou a cabeça e o fitou com aqueles grandes olhos escuros a girar de agonia.

- Hut! Hut! - Dorian insistiu, e ela gemeu, bufou e ergueu-se pesadamente. Ele arrastou-se para a sela.

Ibrisam prosseguiu naquele passo truncado e doloroso e acompanhou os rastros que o príncipe e Batula haviam deixado ao longo das fendas das colinas e pelos vádis profundos. Dorian quase caiu outra vez, mas conseguiu reunir forças e usou a rede de carga vazia para se amarrar na sela. Cochilou, acordou sobressaltado e cochilou de novo, a afundar lentamente na inconsciência. Perdeu toda noção de tempo, velocidade, direção e, animal agonizante e homem, vagaram pelo terreno inóspito num lento avanço.

Uma hora antes do alvorecer, logo quando o flagelo cruel do sol os ameaçava de novo, Ibrisam estacou pela última vez. Morreu de pé, ainda tentando seguir em frente. Com um último gemido baixo, caiu pesadamente, arremessando Dorian da sela para se esparramar sobre o terreno rochoso.

Dorian rastejou de joelhos e conseguiu chegar até a sombra da carcaça de Ibrisam. Forçou-se a não pensar na morte de seu adorado animal, ou na perda de tantos de seus homens. Concentrou toda força e vontade em permanecer vivo até que Batula pudesse trazer os awamir Para resgatá-lo.

Viu os rastros pesados de muitos camelos no terreno adiante, e percebeu que mesmo nos estertores da morte Ibrisam ainda seguira fielmente a rota que Batula e o príncipe tinham tomado em direção ao oásis em Muhaid. Aquilo poderia salvar a vida de Dorian, pois, quando os guerreiros voltassem, viriam pelo mesmo caminho.

Era regra de sobrevivência no deserto não abandonar um lugar seguro para vagar pela imensidão, mas Dorian sabia que os turcos vinham em seu encalço. Zayn al-Din não o deixaria escapar tão facilmente. O inimigo já devia estar perto, e se o encontrassem antes que Batula retornasse, ele poderia esperar o mesmo tratamento que Zayn reservara aos feridos que capturara no Passo da Gazela Astuta.

Precisava encontrar Batula e também tentar manter-se adiante dos turcos perseguidores enquanto tivesse força de permanecer de pé. Levantou-se, trêmulo, e olhou para a carga que Ibrisam carregara. Haveria alguma coisa que lhe pudesse ser útil? Desenganchou o odre, balançou-o, e então o ergueu com ambas as mãos para colocá-lo nos lábios. Umas poucas gotas amargas escorreram para a sua boca, e ele engoliu penosamente, a garganta já inchada. Então, deixou cair o recipiente vazio.

Armas. Olhou as que possuía. Havia seu mosquete no talabarte de couro, o frasco de pólvora e as balas de chumbo. O cabo do mosquete era incrustado de marfim e madrepérola, e os mecanismos de disparo, banhados de prata. Quase quatro quilos, pesados demais para carregar. Livrou-se dele.

Sua lança quebrada ficara no passo, e a espada o faria vergar - seu peso pareceria dobrar a cada quilômetro que caminhasse. Com tristeza, soltou o cinto e deixou-a cair. Conservou a adaga - precisaria dela no final. A ponta era aguçada. Ele a amolara até poder rapar os pêlos avermelhados do próprio antebraço. Quando os turcos fechassem o cerco, cairia sobre a faca, e escolheria uma morte limpa, em lugar de ser emasculado e desviscerado.

Olhou para Ibrisam e disse:

- Há uma última coisa que lhe peço, minha querida. - Ajoelhou-se ao lado dela e abriu-lhe a barriga com a adaga. De seu estômago, encheu as conchas da mão com o conteúdo líquido. Era amargo como fel, e Dorian teve de controlar a ânsia de vomitar, mas sabia que aquilo íhe daria a força para sobreviver umas poucas horas a mais sob o sol inclemente.

Amarrou de novo os ferimentos e percebeu que o sangramento parara, e que crostas escuras haviam se formado. Em seguida amarrou as tiras das sandálias e jogou o xale sobre a cabeça para proteger-se dos raios brutais do sol. Sem olhar para trás, para Ibrisam, seguiu cambaleante os rastros da comitiva do príncipe, em direção ao horizonte que já se ondulava com a miragem azulada do calor.

Uma hora ou mais depois, caiu pela primeira vez. Suas pernas pareciam derreter-se sob seu peso, e Dorian desabou de rosto no chão. Sua boca aberta encheu-se de terra calcária seca, e ele quase se afogou ao tentar cuspi-la. Não havia saliva em sua boca, e a poeira foi sugada para os pulmões quando buscou o ar, sufocado. Lutou para sentar-se, tossindo convulsivamente. O esforço o salvou de perder a consciência. Limpou o rosto com a ponta do alfalema, e não havia umidade em seus lábios nem suor em sua face. Embora perdesse o equilíbrio e oscilasse, quase caindo de novo, conseguiu pôr-se de pé e alguma energia voltou-lhe às pernas.

Saiu caminhando em passos trôpegos. O sol queimava-lhe os olhos, parecendo cozinhar-lhe o cérebro dentro do crânio. Sentiu os lábios secos se rasgarem como papiro ao tentar engolir, e havia um gosto metálico de sangue em sua boca.

A dor e a sede lentamente deixaram de atormentá-lo, e ele entrou naquele estado delirante em que as sensações se confundem. Ouviu música suave e melodiosa. Parou e olhou ao redor, às cegas, e viu Tom e Yasmini parados juntos no cume da colina que agora subia. Ambos acenavam e riam.

- Não seja criança, Dorry! - Tom gritou.

- Vamos, Dowie. - Yasmini dançava como um elfo etéreo ao lado de seu irmão, balançando as saias. Ele se esquecera de como ela era linda. - Venha comigo, Dowie, eu o levarei pela Estrada do Arcanjo de novo.

Dorian irrompeu numa corrida de passos incertos e arrastados, e o casal na colina voltou-se e acenou para ele antes de desaparecer ladeira abaixo. Cada passo que Dorian dava parecia afundar ainda mais na areia solta. Tropeçou numa pedra. Teve de girar os braços como as pás de um moinho para evitar a queda, e chegou ao cume. Olhou para o vale à sua frente.

Foi tomado pelo espanto. O vale era coberto de verdejante vegetação e frondosas árvores carregadas de frutos rubros e maduros, e havia gramados ingleses a se estender até um lago de águas faiscantes. Tom se fora, mas Yasmini estava de pé, nua, à beira do lago. Seu corpo era esguio e miúdo; a pele, de uma encantadora tonalidade dourada, e os cabelos, com aquela trança prateada, caíam-lhe até a cintura. Seus seios pequeninos de formato de maçã apontavam envergonhados através da reluzente cortina da basta cabeleira.

- Dowie! - ela gritou, e sua voz era tão doce como o chamado do alvorecer de um tordo do deserto. - Dowie! Há tanto tempo espero por você.

Dorian tentou correr até onde ela se encontrava, mas suas pernas fraquejaram outra vez e ele caiu. Estava fraco demais até para erguer a cabeça.

- Só me deixe dormir um pouco, Yassie - implorou, porém nenhum som saiu de sua garganta inchada, e sua língua parecia lhe encher a boca e grudar-se ao palato.

Fazendo outro imenso esforço, Dorian abriu os olhos e, com uma terrível sensação de perda, percebeu que Yasmini e o lago haviam desaparecido. Restava apenas a áspera e abrasadora imensidão diante dele, rocha, espinheiros e areia. Rolou sobre si para olhar pela colina e viu a patrulha da cavalaria otomana. Seguiam pelos rastros que ele deixara para trás, cinqüenta homens em camelos de corrida, ainda a duas milhas marítimas ao longe, mas ganhando terreno. Sabia que eles, pelo menos, não eram miragens.

Arrastou-se e conseguiu se erguer nas mãos e joelhos e, em seguida, sobre os pés. Seus joelhos dobraram, mas Dorian lutou contra a fraqueza e cambaleou pelo cume da colina. A inclinação ajudou-o a descer.

Ouviu música de novo, porém agora ela enchia os céus: centenas de vozes cantavam. Ele ergueu os olhos e viu o coro celestial, uma legião de anjos congregados em torno do sol, tão gloriosos que lhe ofuscaram a vista como os reflexos das facetas de um enorme diamante.

- Venha para Deus! - cantavam. - Renda-se à vontade de Deus!

- Sim! - ele respondeu, e o som da própria voz lhe foi estranho aos ouvidos, como se vindo de uma grande distância. - Sim, estou pronto.

Quando disse aquilo, operou-se um milagre. Deus lhe apareceu. Era alto, usava uma túnica de um branco cegante, e os raios do sol por trás de sua cabeça formavam um nimbo dourado. Suas feições eram belas, nobres, majestosas e impregnadas de uma enorme compaixão. Deus ergueu a mão direita num gesto de bênção, e seus olhos estavam repletos de amor ao fitarem Dorian. Dorian sentiu-se como se a força de Sua Divina Presença lhe fluísse para dentro do corpo e lhe inundasse a alma de uma infinita sensação de santidade e reverência. Caiu de joelhos e usou a nova energia para exclamar em voz alta:

- Presto testemunho de que há apenas um Deus, e Maomé é Seu Profeta!

A bela face de Deus brilhou de benevolência. A figura majestosa deu um passo adiante, levantou Dorian, abraçou-o e lhe beijou os lábios sangrentos e enegrecidos.

- Meu filho! - Deus disse, mas falava com a voz do príncipe Abd Muhammad al-Malik. - Sua aceitação da verdadeira fé enche meu coração de alegria. Agora a profecia se completa, e dou graças a Deus que o tenhamos encontrado em tempo.

Dorian desmaiou nos braços do príncipe, e al-Malik gritou aos homens que o seguiam de perto:

- Água! Batula, traga água!

Batula espremeu a água fria e doce de uma esponja entre os lábios de Dorian e o carregou para uma maca de palhas trançadas que haviam preparado para aquele momento. Uma dúzia de homens dos awamir ergueu-a para o lombo de um dos camelos de carga.

Do alto da maca oscilante, Dorian virou a cabeça e, pelos olhos raiados de sangue, por entre as pálpebras inchadas, viu as hordas dos awamir se aproximar pela planície.

Então, da linha das colinas acima, a patrulha turca surgiu e puxou as rédeas de seus camelos em meio a uma nuvem de poeira. Olharam para baixo, atônitos e com súbito receio, para o exército dos awamir.

Um brado forte de Allah akbar! ressoou das fileiras dos awamir e eles empunharam suas longas lanças. Aos gritos de guerra, avançavam para o combate. Os turcos fizeram a volta e fugiram diante daquela carga.

Dorian desabou na maca, fechou os olhos e deixou que a escuridão o dominasse.

Havia quase 6 mil guerreiros na coluna dos awamir que se infiltrou pelo Passo da Gazela Astuta. As planícies de sal além da passagem estavam livres dos inimigos. Seus batedores os tinham informado da aproximação do exército do príncipe, e eles fugiram de volta para o norte, em direção a Mascate.

Al-Malik fez uma pausa para proporcionar um enterro decente aos corpos dos saarianos que ali tinham morrido. Dorian ainda estava fraco e doente demais para se erguer de sua maca, mas pediu que Batula e quatro outros o carregassem até os túmulos e, pela primeira vez, rezou como um muçulmano em companhia dos outros crentes enquanto recitavam a prece aos mortos.

Em seguida, o exército cruzou as planícies de sal rumo aos poços amargos de Ghail ya Yamin, onde os guerreiros do Saara já se reuniam, a somar outras 3 mil lanças ao contingente do príncipe.

Os xeques do Saara foram até a tenda onde Dorian se deitara naquela noite, rodearam sua maca e pediram que lhes contasse cada detalhe da luta no Passo da Gazela Astuta. Interromperam a narrativa com exclamações de espanto quando ele lhes disse como cada um dos saarianos morrera, pais e irmãos do morto a chorar de orgulho.

- Por Alá, um combate no qual Hassan ficaria feliz em morrer!

- Em nome de Deus, Salim mostrou ser um homem.

- Alá designará um lugar no paraíso para meu filho Mustafá.

Estavam furiosos, sedentos de guerra e vingança, pois o sangue só se pagaria com o sangue, e cuspiam na areia e juravam seus votos de retribuição contra Zayn al-Din e os turcos. Em seu coração, Dorian fez a mesma jura com eles.

Depois, nos dias subseqüentes, todo meio-dia e início da noite em que o exército permaneceu acampado em Ghail ya Yamin, voltaram a sua tenda para ouvir a história repetida, e corrigiam Dorian, se deixasse escapar um único detalhe, a implorar que se recordasse de cada golpe e tiro e daquilo que os saarianos haviam feito e dito exatamente antes de morrerem.

De Ghail ya Yamin, o exército deslocou-se para o norte, na próxima etapa da longa jornada para Mascate. Em cada poço e passo através das montanhas, as outras tribos vieram juntar-se a ele, dos balhaf e dos afar, dos bait kathir e dos harasis, de maneira que na ocasião em que alcançaram Muqaibara, eram 15 mil lanças reunidas, uma hoste poderosa que se espalhava por quinze quilômetros pelo deserto.

Batula confidenciou a história da conversão de Dorian a um de seus companheiros. Nenhum árabe conseguiria manter tal segredo, certamente não um tão comovente como aquele, e a história se espalhou pelas fogueiras dos acampamentos, e os guerreiros repetiam a profecia do antigo são Taimtaim, pois muitos haviam lido o texto nas paredes de sua tumba. Discutiam o texto vezes sem fim e juravam em nome de Deus que al-Salil era em verdade o órfão da profecia, e que, com ele em sua companhia, a vitória estava assegurada. Antes que o Ramadã chegasse novamente, instalariam o príncipe Abd Muhammad al-Malik no Trono do Elefante, nos salões de Mascate.

Pelas semanas que levou o exército para viajar de Ghail ya Yamin até Muqaibara, os ferimentos de Dorian sararam completamente, já que no deserto não havia humores malignos para infeccionar e apodrecer as feridas. Quando ele se sentiu pronto para tomar de novo seu lugar nas fileiras, o príncipe o mandou chamar. Ao cruzar o acampamento, cada tribo o saudou e o seguiu até a tenda do príncipe. Ajuntaram-se diante da fenda aberta quando Dorian ajoelhou-se diante de al-Malik e lhe pediu:

- Dê-me sua bênção, pai.

- Tem minha gratidão e minha bênção, filho, e muito mais, além disso. - Al-Malik bateu palmas, e Batula conduziu à frente quatro belos camelos de corrida de linhagem pura. Cada um estava ricamente equipado e carregava lança, espada e arcabuz nos talabartes em seus lombos. - Este é meu presente a você, para reparar em pequena conta o que perdeu no Passo da Gazela Astuta.

- Agradeço por sua generosidade, pai, embora eu não deseje nenhuma recompensa para o que foi apenas meu dever.

Al-Malik bateu palmas outra vez, e duas velhas mulheres saarianas, pesadamente veladas, aproximaram-se de Dorian e depositaram um embrulho de seda dobrada a seus pés.

- São as mães de Hassan e Salim, que morreram no passo - explicou o príncipe. - Pediram-me a honra de costurar e bordar sua bandeira de batalha.

As mulheres abriram a bandeira sobre o chão da tenda. Tinha um metro e oitenta de comprimento, de seda azul, e bordada sobre ela, em fios metálicos de prata, estava a profecia de são Taimtaim. Os caracteres elegantes fluíam e ondulavam sobre o tecido sedoso como as correntezas e redemoinhos na superfície de um rio veloz de águas de azul profundo.

- Pai, esta é uma bandeira de um xeque - estranhou Dorian.

- O que você é agora. - Al-Malik sorriu-lhe com ternura. - Elevou-se por seus méritos a tal posição. Sei que a empunhará com honra.

Dorian levantou-se e ergueu a bandeira ao alto, acima da cabeça, em seguida correu para fora, para o sol. A multidão abriu-se diante dele, saudou-o com aclamações e disparou seus mosquetes para o alto. A bandeira abriu-se por trás de Dorian como uma serpente azul ao vento. Ele voltou à tenda do príncipe e se prostrou.

- O senhor me concede uma imensa honra, pai.

- Na batalha vindoura, você comandará o flanco esquerdo, xeque al-Salil - o príncipe lhe disse. - Colocarei 4 mil lanceiros sob a sua bandeira.

Dorian sentou-se e encarou o príncipe com a fisionomia grave.

- Pai, posso lhe falar em segredo?

Al-Malik gesticulou para que as laterais da tenda fossem baixadas, pediu a al-Allama e sua comitiva que se retirassem e deixassem os dois sozinhos.

- O que mais quer de mim, meu filho? - Al-Malik reclinou-se para mais perto. - Fale, e eu farei.

Em resposta, Dorian abriu a bandeira azul e correu os dedos pelas palavras da profecia.

- "Ele reunirá as areias do deserto que estão divididas" - leu em voz alta.

- Continue - o príncipe pediu franzindo a testa. - Não compreendo o que quer dizer.

- Parece que o santo me encarregou de um dever a mais. Tenho por mim que quando fala das areias do deserto, o santo se refere às tribos que estão divididas e em guerra umas com as outras.

O príncipe agora concordou.

- Isso pode bem ser verdade - admitiu. - Embora a maioria das tribos tenha se juntado a nós, os masakara, os harth e os bani bu hasan ainda fazem soar os tambores de guerra para Yaqub e a Sublime Porta.

- Deixe-me ir até eles sob esta bandeira - Dorian pediu. - Que vejam a cor dos meus cabelos, e discutirei com eles a profecia. Então, se Alá for generoso, trarei outras 10 mil lanças para o nosso lado.

- Não! - Al-Malik exclamou, em sobressalto. - Os masakara são traiçoeiros. Eles o estriparão e o deixarão pendurado ao sol. Não posso permitir que assuma um risco tão grande.

- Lutei contra eles - Dorian disse com suavidade. - Hão de me conferir o respeito de um guerreiro honrado. Se chegar sozinho até eles e me colocar sob o seu poder como um viajante, então não ousarão ir contra os ensinamentos do Profeta. Afinal, precisam ouvir o que tenho a lhes dizer.

O príncipe pareceu infeliz e coçou a barba com aflição, mas aquilo que Dorian dissera era verdade. O Profeta enfatizara como um dever a hospitalidade em seus devotos. Eram obrigados a proteger o viajante em seu meio.

- Mesmo assim, não posso permitir que se coloque em tal perigo - disse por fim.

Dorian argumentou:

- Uma vida em perigo, mas 10 mil lanças em jogo. Pai, não pode me negar a chance de cumprir meu destino como está escrito.

Finalmente o príncipe suspirou.

- Como poderão os masakara resistir à sua eloqüência? Eu não posso. Consinto que vá até eles, al-Salil, como meu emissário. Mas juro pela barba vermelha do Profeta que, se lhe causarem mal de alguma forma, haverá um tal rolar de cabeças que os abutres da Arábia se banquetearão a ponto de não poderem sequer voar.

Ao pôr-do-sol do dia seguinte, o príncipe foi sentar-se sozinho numa rocha do pico de uma colina, além do oásis. Quatro camelos haviam se separado do acampamento do exército e passaram agora pelo topo da colina, rumo ao norte, para as sombras arroxeadas. Dorian montava o primeiro e puxava o segundo camelo pela longa rédea. Batula o seguia, também a puxar um segundo animal. Os dois homens estavam velados. Ao erguer os olhos para o príncipe, Dorian baixou sua lança em saudação, e al-Malik ergueu a mão direita numa bênção.

Abd Muhammad al-Malik ficou a observá-los se afastar para a imensidão do deserto, sua expressão triste e acabrunhada. Estava escuro e as estrelas eram um resplendor de glória no firmamento quando, por fim, ele se levantou da rocha na qual estivera sentado e desceu rumo ao brilho das fogueiras que enchiam o grande vale de Muqaibara.

Na estação fria, quando os ventos vêm do mar, no mês anterior à festa do Ramadã, o exército de al-Malik posicionou-se diante de Mascate e observou os otomanos e a hoste de tribos leais ao califa se aproximarem em formação de combate para defrontá-los.

Al-Malik sentou-se com seus comandantes sob um teto de couro num promontório que se intrometia pela planície, seu próprio exército alinhado lá embaixo. Ergueu a longa luneta ao olho e estudou as formações do inimigo. Os turcos estavam no centro, os esquadrões de cavalaria na vanguarda, e seus homens montados em camelos, atrás.

- Quantos? - perguntou aos comandantes que o rodeavam e discutiam como se estivessem contando cabras num mercado.

- Doze mil turcos - concluíram por fim.

O centro do exército inimigo luzia com o bronze e o aço, as bandeiras verdes da Sublime Porta ondulavam com a brisa. Os esquadrões de cavalaria se moveram à frente e, em seguida, se juntaram numa sólida falange pronta a avançar em ataque.

- E os masakara? - o príncipe perguntou. - Quantos são? - Estavam no flanco direito, uma multidão sinuosa de camelos, inquietos como um bando de estorninhos.

- Seis, sete mil - disse um xeque dos harasis.

- Pelo menos esse tanto - falou outro. - Talvez mais.

Al-Malik olhou para o outro flanco do inimigo, em que os véus negros e as cabeças cobertas os distinguiam como os bani bu hasan e os harth. Eram os lobos do deserto, e havia tantos deles quanto dos masakara.

Al-Malik sentiu mais uma vez o fel amargo do desapontamento no fundo de sua garganta. Estavam em menor número em quase dois para um. Al-Salil fracassara em sua tentativa de reunir as tribos do norte: al-Malik não recebera quaisquer notícias dele desde que desaparecera no deserto, fazia quase duas luas. Sentia em seu coração que fora um erro de cálculo, que jamais deveria ter mandado al-Salil procurá-los. Todos os dias, receara receber um presente dos masakara: a cabeça decepada de seu filho de cabelos vermelhos num saco de couro. Embora aquele repugnante troféu não tivesse chegado, a prova de seu fracasso estava lá, na planície: quase 15 mil lanças rebeldes prontas para investir contra ele.

De súbito, correu uma comoção ao longo do centro da linha turca. Estafetas galopavam para a frente com ordens do comando otomano, e as trompas soaram para anunciar o avanço. A cavalaria turca adiantou-se, fileira após fileira, em ondas sucessivas, mas os contingentes árabes nos flancos mantiveram suas posições e permitiram que brechas se abrissem na vanguarda. Aquilo era incomum e, pela luneta, o príncipe os estudou mais detidamente, com um interesse repentino.

Houve outra comoção entre o inimigo e, dessa vez, os cavaleiros com as ordens partiam do comando turco, no centro, a acenar suas armas, e evidentemente instavam os aliados árabes a se juntar ao avanço geral e a fechar as perigosas brechas na vanguarda.

 

Então, finalmente, as formações árabes começaram a se mover, mas se fechavam à direita e à esquerda, em direção ao centro, onde os turcos estacaram, incertos, confusos por aquela inesperada evolução.

- Pelo doce nome de Deus - murmurou al-Malik, e sentiu seu coração acelerar-se tanto que perdeu o fôlego.

No centro da fileira, à frente dos masakara, ele avistou uma nova bandeira, desconhecida, não desfraldada, carregada por um cavaleiro alto num camelo puro-sangue da cor do mel. Dirigiu a luneta para aquele guerreiro e descobriu que sua bandeira era azul, listrada com caracteres reluzentes em prata, e, sob seu olhar maravilhado, o cavaleiro arrancou o alfalema e ergueu a lança. Tinha cabelos de um vermelho dourado e a lança apontada para o flanco turco.

- Alá! Todo louvor a Alá! Al-Salil conseguiu! Ele converteu as tribos rebeldes à nossa causa!

Enquanto o príncipe olhava, tomado de admiração, as formações árabes de cada flanco dos turcos avançaram, prendendo os otomanos em posição vulnerável, e se fecharam sobre eles como uma manopla de aço.

O príncipe alvoroçou-se e deu a ordem:

- Avançar! Ao ataque!

Os tambores de guerra rufaram e as trompas soaram, numa nota urgente e aguda.

Com os saarianos e os awamir ao centro, o exército do sul investiu em frente, erguendo uma nuvem imensa de poeira que escureceu o céu azul.

Dorian cavalgava no centro da linha, e seu coração cantava. Até aquele derradeiro instante, não tinha certeza de que os xeques dos masakara manteriam firme seu compromisso de se voltar contra os otomanos. O veloz animal sob seu corpo ultrapassou os cavaleiros de ambos os lados, e apenas Batula conseguia acompanhá-lo, a galopar atrás, à distância de uma lança.

A frente, os turcos estavam em confusão, a maioria ainda olhando para o vale de onde o exército do príncipe al-Malik irrompia em formação; apenas aqueles mais próximos do flanco direito tinham se dado conta do perigo e voltaram-se para enfrentar a carga.

Com um baque e um choque, corpo-a-corpo e escudo contra escudo, confrontaram-se com o flanco otomano e o romperam. Dorian escolheu um homem das fileiras, feroz em sua cota de malhas e o elmo de bronze, a face escura contorcida de raiva e consternação, que se esforçava para controlar seu inquieto animal. Dorian baixou a ponta de sua lança e inclinou-se na sela. Sob o treinamento de Batula, aprendera a trespassar um melão do deserto jogado para cima, no ar, em pleno galope. Agora, mirava a abertura da cota de malha do turco, sob a axila esquerda.

A lança vibrou em sua mão quando a ponta encontrou a abertura desprotegida e se enterrou pelo peito do homem até atingir a cota de malha do outro lado, e, em seguida, com o impacto, arrancou o turco fora da sela. O homem ficou pendurado na lança flexível, chutando o ar.

Dorian abaixou a ponta e o deixou escorregar pelo aço e rolar na poeira. Então, ergueu a arma novamente e transpassou a próxima vítima. Dessa vez, a lança partiu-se em sua mão com a força do baque, mas a ponta de aço estava firmemente alojada na garganta do inimigo que ele atingira. O turco agarrou o toco com ambas as mãos e tentou arrancá-lo de sua carne, mas morreu antes que pudesse fazê-lo. Escorregou da sela e foi arrastado para longe pelo cavalo enlouquecido de pavor.

Batula jogou a lança sobressalente para Dorian, que a apanhou no ar e, no mesmo movimento, aprumou o longo eixo e enterrou a ponta brilhante na barriga do próximo adversário.

Nos primeiros poucos minutos da carga, as fileiras dos otomanos já se desestruturavam, abertas, desafiadas de ambos os flancos, e embora ainda tentassem se reorganizar, o exército principal do sul chocou-se contra sua vanguarda em desordem.

Travados, ambos os exércitos revolveram-se como uma massa de fragmentos capturada pelo vórtice de um redemoinho. O tumulto era ensurdecedor. Homens desferiam machadadas e se empurravam, gritavam e morriam. Não poderia durar por muito tempo, pois o conflito era unilateral, e a fúria dos atacantes, por demais violenta. Preso pelos flancos e na vanguarda, inferior em número em cada ponto, o exército otomano juntou-se e começou a recuar. Os árabes sentiram a vitória e pressionaram, como lobos em torno de um camelo agonizante, provocando, urrando, investindo até que, por fim, os turcos fraquejaram, e a batalha transformou-se numa sangrenta desordem.

A primeira investida de Dorian o arrastara para dentro da massa inimiga e, por um desesperado momento, ele e Batula se viram rodeados. A segunda lança quebrou-se em sua mão, e ele sacou a espada e lutou até que seu braço direito estava encharcado do sangue turco até o ombro.

Então, abruptamente, a fúria do inimigo a seu redor se abateu, e eles recuaram. Voltaram as cabeças das montarias para a retaguarda. Dorian viu homens lançarem as armas ao chão quando os árabes irromperam pelas brechas entre as fileiras. Os turcos chicotearam suas montarias a pleno galope e fugiram.

- Atrás deles! - Dorian berrou. - Cacem-nos! Abatam-nos!

Mesclados como óleo e água, os dois exércitos espalhavam-se pela planície, unidos no movimento ondulante. Os árabes ululavam, as espadas ensangüentadas a girar em golpes incessantes, e berraram seus gritos de guerra quando a batalha se transformou numa debandada, e os turcos em fuga pouco esforço faziam para se defender. Alguns se jogavam de seus cavalos e se ajoelhavam no caminho dos atacantes, implorando por piedade, mas os árabes os trespassavam com a lança ao passarem, em seguida saltavam da sela para saquear os cadáveres de ouro e qualquer outro butim.

Dorian abriu caminho até a retaguarda. Adiante, viu que o comando otomano havia tempo abandonara o combate, e estava também em fuga desesperada pela planície. O general e cada um de seus oficiais se agarravam aos cavalos ou aos camelos e fugiam em direção à cidade. Em toda aquela multidão, havia um único homem que Dorian queria.

- Onde está Zayn al-Din? - gritou para Batula.

Dorian o vira antes, naquela manhã, quando o exército emergira pelos portões de Mascate. Zayn al-Din estava com o comando turco e cavalgava atrás do general otomano. Usava meia armadura e carregava uma lança como se estivesse ansioso para lutar. Com ele, encontrava-se Abubaker, seu velho amigo e fiel comparsa do harém, em Lamu. Abubaker se tornara um homem alto e esguio, com longos bigodes, e também envergava as vestes de um guerreiro. Embora seus dois velhos inimigos tivessem passado à distância de duas lanças de Dorian, nenhum o reconhecera entre as fileiras dos masakara, pois Dorian montava um camelo estranho, e sua face e cabeleira vermelha estavam ocultas nas dobras de um turbante negro.

- Onde está ele? - ele gritou para Batula. - Pode vê-lo? - Ergueu-se e ficou de pé sobre a moldura de madeira da sela do camelo a galope, um ato descuidado de perícia, e, do alto, esquadrinhou o campo aberto à frente, que se cobria não apenas do inimigo em fuga, mas também dos cavalos soltos e camelos desmontados, em desvairada correria, cujos condutores tinham sido abatidos.

- Lá está ele! - Dorian gritou. Deixou-se cair com facilidade na sela e incitou a montaria à frente.

Zayn al-Din encontrava-se a uns oitocentos metros de distância, montado no mesmo garanhão baio em que Dorian o vira naquela manhã. Seu corpo balofo era inconfundível, como era a tiara de ouro em torno de seu pano azul de cabeça. Dorian forçou seu camelo ao máximo de sua velocidade. O animal deu tudo de si e ultrapassou muitos outros turcos, alguns oficiais de alta patente, mas Dorian os ignorou e, como um guepardo a perseguir a gazela de sua escolha, chegou rapidamente até o lado de Zayn al-Din.

- Irmão! - berrou ao emparelhar com o garanhão baio. - Espere um pouco! Tenho algo para você.

Zayn olhou por sobre o ombro. O vento arrancou-lhe o alfalema, e seus longos cabelos escuros e a barba negra esvoaçaram em torno de seu rosto. O terror tingiu-lhe a face de uma cor de manteiga rançosa ao ver Dorian se aproximar, a longa espada recurva na mão, o rosto todo manchado de sangue das vítimas, o sorriso cruel e impiedoso.

Zayn al-Din pareceu paralisado de pavor, agarrado ao ressalto da sela, os olhos fixos em Dorian quando este ergueu a cimitarra para o alto. Então, com um guincho estridente, Zayn soltou as mãos e caiu da sela. Chocou-se contra o solo duro e rolou como uma barrica, colina abaixo, até se estender por fim numa encosta empoeirada como uma pilha de roupas velhas.

Dorian avançou para onde Zayn se agachava, dobrado nos joelhos. Tinha a face branca de poeira e um profundo corte numa das faces. Ergueu os olhos para Dorian e começou a balbuciar:

- Poupe-me, al-Salil. Eu lhe darei qualquer coisa que quiser.

- Jogue-me a sua lança - Dorian gritou a Batula, que o seguira, sem tirar os olhos da face abjeta de Zayn.

Batula jogou-lhe a lança. Dorian pegou-a no ar, baixou a ponta e colocou-a sobre o peito de Zayn, que começou a chorar, as lágrimas traçando listras pela poeira grudada em sua face.

- Tenho um lakh de rupias de ouro, meu irmão. São todas suas, se me poupar, eu juro. - Sua boca tremia, frouxa, os lábios brancos de pavor.

- Lembra de Hassan, no Passo da Gazela Astuta? - Dorian perguntou, com o rosto crispado de ódio, e inclinou-se na sela para encará-lo na face.

- Deus me perdoe - Zayn gritou. - Foi o calor da batalha. Eu não estava em mim. Perdoe-me, meu irmão.

- Eu gostaria apenas de poder ter estômago para tocá-lo, e então, certamente, cortaria fora seus testículos como você fez ao meu amigo. Prefiro, entretanto, tocar uma serpente venenosa - Dorian retrucou asperamente. - Você não merece a morte de um guerreiro pelo aço da minha lança, porém como sou um homem compassivo, eu a concederei a você. - Pressionou o longo cabo, e a ponta brilhante espetou-se no peito gordo de Zayn al-Din.

Na tentativa de salvar a própria vida, Zayn encontrou as únicas palavras que poderiam impedir a implacável vingança de Dorian.

- Em nome do homem que é nosso pai. Pelo amor de al-Malik, peço piedade.

A expressão de Dorian se alterou, seu olhar desviou-se e ele recuou a ponta alguns centímetros.

- Clama pelo nome do pai que você traiu. Ambos sabemos que isso pede o garrote do carrasco. Se for essa a morte que escolhe, em vez do fim digno que lhe ofereço, então que seja. Eu a concedo a você.

Dorian ergueu a lança e a enfiou no suporte de couro atrás de seu calcanhar.

- Batula! - gritou, e quando seu lanceiro se aproximou, ordenou: - Amarre os braços desse comedor de porco fresco atrás das costas e passe um laço em seu pescoço.

Batula saltou da sela e rapidamente prendeu os braços de Zayn, em seguida passou uma corda de laço corrediço por sua cabeça. Deu a ponta da corda a Dorian, que a amarrou num dos ganchos da sela.

- De pé! - Dorian berrou, e deu um safanão na corda. - Eu o levarei até o príncipe.

Zayn ergueu-se desequilibrado e saiu a caminhar aos tropeções atrás do camelo de Dorian. Perdeu o passo uma vez e rolou pelo chão, porém Dorian não diminuiu o trote do animal e nem mesmo olhou para trás, e Zayn conseguiu levantar-se de novo, a túnica rasgada e os joelhos sangrando. Antes de terem coberto dois quilômetros daquela planície ensangüentada, em que os cadáveres dos turcos jaziam como sargaços numa praia varrida pela tempestade, as sandálias de ouro de Zayn já tinham se rompido e as solas de seus pés estavam em carne viva. Tinha a face inchada e lívida pela corda que quase o sufocava, e estava tão fraco que não conseguia mais clamar por piedade.

Quando o príncipe Abd Muhammad al-Malik entrou pelos portões de Mascate à frente de sua comitiva, os habitantes da cidade e os cortesãos do califa al-Uzar ibn Yaqub saíram às ruas para saudá-lo. Tinham as vestes rasgadas e as cabeças cobertas de cinza e poeira como sinal de penitência, ajoelhavam-se em frente a seu cavalo a implorar pelas próprias vidas, juravam lealdade a ele e o proclamavam o novo califa de Omã.

O príncipe seguiu impassível em seu cavalo, uma figura nobre, majestosa. Mas quando o vizir de seu irmão adiantou-se, trazendo um saco manchado sobre o ombro, a expressão de al-Malik tornou-se rígida. Sabia o que o saco continha.

O vizir virou o conteúdo do saco na poeira da rua, e a cabeça decepada de Yaqub rolou até as patas da montaria do príncipe. Os olhos o fitaram, vagos, vidrados. A barba grisalha estava desgrenhada e imunda como a de um pedinte de rua, e as moscas esvoaçavam numa nuvem de zumbidos sobre as órbitas vazias e os lábios ensangüentados.

Al-Malik olhou para baixo com tristeza e, em seguida, encarou o vizir. Em voz baixa e firme, disse:

- Você busca ganhar minha aprovação matando meu irmão e me trazendo essa coisa triste? - perguntou.

- Poderoso senhor, fiz apenas o que julguei fosse lhe agradar. - O vizir tremia, muito pálido.

O príncipe fez um gesto ao xeque dos awamir a seu lado.

- Mate-o!

O xeque inclinou-se na sela e, com sua espada, partiu o crânio do vizir até o queixo.

- Trate os restos de meu irmão com todo o respeito e prepare o funeral antes do pôr-do-sol. Eu conduzirei pessoalmente as preces por sua alma - disse al-Malik. Depois olhou para os cidadãos aterrorizados de Mascate, encolhidos de horror. - Sua cidade é agora minha cidade. Seu povo é agora meu povo - disse-lhes. - Por meu decreto real, Mascate está livre de qualquer tentativa de saque. Por minha palavra de honra, suas mulheres estão protegidas de estupro, e seus tesouros, de pilhagem. - Ergueu a mão direita em bênção e prosseguiu: •- Depois que fizerem seu juramento de lealdade, todas as transgressões e crimes contra mim serão perdoados e esquecidos.

E seguiu pela cidade até o palácio de Mascate, onde tomou seu lugar no Trono do Elefante de Omã, esculpido nas imensas presas de marfim.

Uma centena de nobres aturdiu com seus clamores os ouvidos do novo califa, com pedidos de audiência, e uma dezena de assuntos prementes de Estado aguardavam-lhe a atenção, porém um dos primeiros homens a quem ele mandou chamar foi o xeque al-Salil. Dorian prostrou-se diante do trono. Al-Malik desceu, ergueu-o e o abraçou.

- Julguei que estava morto, meu filho. Então, quando vi sua bandeira flutuando nas fileiras dos masakara, meu coração gritou de alegria. Eu lhe devo muito, jamais saberei quanto, pois se não tivesse reunido as tribos do norte sob o meu pendão, a batalha poderia ser árdua para nós. Talvez eu não estivesse sentado no Trono do Elefante no dia de hoje.

- Pai, durante o combate, fiz um prisioneiro entre o exército dos otomanos - Dorian lhe disse e fez um sinal para Batula, que esperava entre os nobres no fundo da sala do trono. O lanceiro adiantou-se, conduzindo Zayn al-Din pela corda.

Os trajes de Zayn estavam em tiras e imundos de sujeira e sangue seco; os cabelos e a barba brancos, cobertos de pó, e os pés descalços em carne viva e ensangüentados como os de um peregrino. A princípio, al-Malik não o reconheceu. Então Zayn cambaleou para a frente e se arrojou aos pés do pai. Chorava e se retorcia todo com um cão chicoteado.

- Pai, perdoe-me. Perdoe minha estupidez. Sou culpado de traição e desrespeito. Sou culpado de ganância. Deixei-me corromper por homens maus.

- Como? - o califa perguntou com voz glacial.

- A Sublime Porta me ofereceu o Trono do Elefante se eu me voltasse contra o senhor, e fui fraco e estúpido. Arrependo-me disso de todo o meu coração, e se o senhor ordenar que eu seja morto, eu lhe gritarei meu amor até que a vida se esvaia de meu corpo.

- Você bem merece uma tal morte - disse o califa. - Não recebeu nada além de amor e gentilezas de mim durante toda a sua vida e me retribuiu com traição e desonra.

- Dê-me outra oportunidade de lhe provar meu amor - Zayn soluçou aos pés do pai. O muco escorria de seu nariz enquanto as lágri" mas saltavam de seus olhos.

- Este dia feliz já foi conspurcado pela morte de Yaqub, meu irmão. Sangue suficiente já foi derramado - disse al-Malik com tristeza. - Levante-se, Zayn al-Din. Eu lhe concedo o perdão. Porém, em penitência, você deve fazer a peregrinação aos lugares sagrados em Meca e lá pedir perdão também. Não me mostre a face novamente até que retorne de alma limpa.

Zayn levantou-se.

- Todas as bênçãos de Alá sobre sua augusta pessoa, Majestade, por sua benevolência e compaixão. Verá que meu amor será como um rio poderoso que há de fluir eternamente. - Ainda com exibições de exagerada humildade, curvando-se e resmungando protestos de lealdade e respeito, Zayn recuou até o fundo da sala do trono, então se voltou e abriu caminho entre a multidão e para fora das portas esculpidas em marfim.

Dez dias depois da entrada triunfal em Mascate, e uma semana antes do início do Ramadã, a coroação do califa foi celebrada no palácio e pelas ruas da cidade. A maioria dos guerreiros tribais havia voltado para a imensidão do deserto, para suas vilas em torno dos minúsculos oásis dispersos por toda a extensão de Omã, pois eram nômades e se sentiam infelizes dentro das muralhas de uma cidade. Fizeram seus votos de fidelidade a al-Malik e, em seguida, partiram em seus camelos, carregados do espólio do exército dos otomanos que haviam derrotado.

Aqueles que ficaram juntaram-se às celebrações nas ruas da cidade, onde carcaças inteiras de camelos e ovelhas eram assadas em fogueiras em cada bazar e praça. As trompas de chifre de carneiro soavam, os tambores rufavam, e homens dançavam pelas ruas enquanto mulheres veladas a tudo observavam dos andares superiores dos prédios.

O novo califa desfilou em procissão pelas ruas repletas de gente, parando a cada passo para abraçar um dos guerreiros que lutara em seu exército. A multidão ululava, disparava tiros de alegria para o alto e caía de joelhos a seus pés.

Passava da meia-noite quando o califa retornou ao palácio, e o xeque al-Salil ainda se encontrava a seu lado, onde estivera durante todo aquele dia.

- Fique comigo um pouco mais - o califa ordenou ao chegarem à porta de seus aposentos. Tomou o braço de Dorian e o levou para dentro do quarto e até a alta sacada que dominava o mar e as ruas da cidade. A música e os gritos dos foliões chegavam abafados até eles, e as chamas das fogueiras refletiam-se nas muralhas e iluminavam os dançarinos. - Devo-lhe uma explicação por perdoar Zayn al-Din - disse por fim o califa.

- Não me deve nada, Majestade - protestou Dorian. - Sou eu quem lhe deve tudo.

- Zayn merecia uma punição mais dura. Era um traidor, e sei como ele tratou seus companheiros no Passo da Gazela Astuta.

- Minhas preocupações de nada valem - Dorian retrucou. O que ele fez ao senhor e o que fará um dia outra vez, isso me enraivece.

- Acha que seu arrependimento foi uma farsa?

- Ele anseia pelo Trono do Elefante - respondeu Dorian. - Eu ficaria mais feliz se o senhor tivesse colocado um escorpião no peito e uma cobra em sua cama.

O califa suspirou profundamente.

- Ele é meu filho mais velho. Eu não poderia começar meu reinado com sua morte. Porém o coloquei em grande perigo, pois o ódio de Zayn por você é implacável.

- Sou capaz de me defender, pai.

- Isso você já provou. - O califa riu baixinho. - Agora, porém, tratemos de outros assuntos. Tenho outra tarefa para você, uma difícil e perigosa.

- Tem apenas de me ordenar, Majestade.

- Nosso comércio com o interior da África é muito importante para a prosperidade do nosso povo. Nós, que certa vez fomos apenas pobres nômades do deserto, nos tornamos uma nação de marinheiros e mercadores.

- Sei disso, pai.

- Hoje, recebi um mensageiro do sultão de Zanzibar. Nosso comércio com a África está sob uma nova e gravíssima ameaça, a própria existência de nossas bases em Zanzibar e Lamu, comprometida.

- Como é possível isso?

- Um bando de malfeitores está atacando nossas rotas de caravanas entre a Costa da Febre e os Grandes Lagos. O comércio africano corre riscos de entrar em colapso.

- As tribos negras então em rebelião? - perguntou Dorian.

- Talvez seja o caso. Sabemos que há homens das tribos negras entre os saqueadores, mas há também rumores de que são liderados por infiéis europeus.

- De que país? - perguntou Dorian.

O califa deu de ombros.

- Não se sabe. Tudo que é certo é que são impiedosos em seus ataques às nossas caravanas de escravos. Perdemos quase o lucro de um ano inteiro da venda de escravos, junto com imensas quantidades de marfim e ouro extraídos do interior.

- O que quer que eu faça? - perguntou Dorian.

- Eu lhe darei uma licença de autoridade, uma delegação como general dos meus exércitos e tantos combatentes quantos precisar. Mil, dois mil? Quero que parta para o sul, para Lamu, em seguida cruze o canal e Marche para o interior do continente para pôr fim a essas depredações.

- Quando quer que eu parta?

- Deve viajar com a lua nova que encerra o jejum do Ramadã.

A flotílha do xeque al-Salil, a Espada em Riste, ancorou, na lua cheia ao largo da praia da ilha de Lamu. Compreendia sete grandes caíques de alto-mar que carregavam as tropas do califado: 1.200 combatentes.

Dorian desembarcou de madrugada para falar com o governador, apresentar sua licença e fazer os acertos para a recepção e reabastecimento de seu exército. Precisava de alojamentos para seus homens em terra, a fim de que se recuperassem da longa viagem descendo a costa, e de suprimentos de comida fresca, cavalos e animais de carga.

Os camelos do deserto não sobreviveriam por muito tempo na costa úmida e pestilenta, e nem os cavalos árabes do norte. Dorian precisava de animais criados na costa e que houvessem desenvolvido imunidade contra as doenças africanas.

Demandou três dias para desembarcar todos os seus homens e bagagens, e Dorian passou a maior parte desse tempo em terra ou no recém-construído acampamento nos limites da praia. Na noite do terceiro dia, ele caminhava pelas ruas da cidade, acompanhado por Batula e três de seus capitães. Estavam quase nos portões do forte quando ouviu seu nome de infância ser gritado:

- Al-Amhara!

Voltou-se, pois reconhecera a voz, embora não a ouvisse fazia muitos anos, e olhou para a mulher pesadamente velada que se agachava na soleira da velha mesquita do outro lado da ruela.

- Tahi? É você, velha mãe?

- Louvado seja Deus, minha criança! Pensei que não se lembraria de mim.

Dorian quis correr para ela e abraçá-la, mas seria uma grave falta de decoro e etiqueta agir assim num lugar público.

- Fique aqui, e mandarei alguém levá-la aos meus alojamentos disse a ela e seguiu em frente. Mandou Batula de volta para fazer passar Tahi pelos portões do forte e conduzi-la até a ala que o governador colocara à sua disposição.

Assim que Tahi cruzou o limiar da porta, jogou o véu para tras e correu ao encontro dele. Chorava e dizia coisas incoerentes:

- Meu menininho, meu nenê, como ficou alto! A barba... os olhos ferozes como os de um falcão... Mas eu o reconheceria em qualquer lugar. Que poderoso homem se tornou, e um xeque também!

Dorian riu, abraçou-a e lhe afagou os cabelos.

- O que são esses fios prateados que vejo aqui, velha mãe? Você, contudo, ainda é bonita.

- Sou uma velha, mas o seu abraço me torna jovem de novo.

- Vamos nos sentar. - Levou-a até a pilha de tapetes no terraço e, em seguida, mandou um escravo trazer refrescos e um prato de tâmaras cristalizadas.

- Faz tanto tempo que quero notícias suas... - Tahi estendeu a mão para acariciar-lhe a barba e o rosto. - Meu lindo bebê que se tornou um belo homem! Conte-me tudo que tem feito desde que deixou Lamu.

- Tomaria um dia e uma noite - ele protestou, sorrindo afetuosamente para a idosa mulher.

- Tenho o resto da minha vida para ouvir - disse Tahi, e Dorian respondeu às suas perguntas ao mesmo tempo que refreava as suas próprias, embora isso lhe custasse todo o esforço.

Por fim, chegou ao término da narrativa:

- E assim o califa me mandou de volta a Lamu e para a Costa da Febre, e agradeço a Deus que ele tenha feito isso, pois pude ver sua face adorada novamente, Tahi. - O rosto de Tahi tinha rugas profundas de preocupação, e seus cabelos eram de um cinza de aço agora, mas ele sentiu que a amava tanto como antes. - Conte-me como tem passado desde que eu parti.

Ela lhe contou como ficara no harém, prestando serviços domésticos para o eunuco-chefe, Kush.

- Pelo menos tive abrigo e comida, o que agradeço em nome de Deus.

- Virá morar comigo agora - ele prometeu -, e poderei retribuir todo o amor e gentileza que me dedicou. - Ela se pôs a chorar de novo, de felicidade. Então, procurando dar um tom casual à conversa, Dorian resolveu fazer a pergunta que o afligia, à espera da resposta que temia: - E a pequena Yasmini? Deve ser uma mulher agora... e ter sido mandada há tempos para a índia para desposar seu príncipe mongol.

- Ele morreu de cólera antes que ela partisse - disse Tahi, e observou-lhe a face atentamente.

Dorian tentou disfarçar os sentimentos, e bebeu um gole do refresco.

- Então... encontraram um outro marido nobre e importante para ela? - perguntou baixinho.

- Sim - Tahi concordou. - O emir de al-Bil Khail, em Abu Dhabi um velho rico com cinqüenta concubinas, mas apenas três esposas. A mais velha morreu dois anos atrás. - Ela percebeu a mágoa e a resignação nos olhos de Dorian.

- Quando ela se casou? - ele indagou.

Tahi teve piedade de Dorian.

- Está noiva, mas ainda não casada. Partirá para encontrar seu noivo quando os ventos mudarem e o kusi soprar de novo. Enquanto isso, ela espera com tristeza no harém aqui em Lamu.

- Yasmini ainda está aqui em Lamu? - Ele a encarou. - Eu não imaginava.

- Fui com ela ao jardim ao lado da fonte esta manhã. Yasmini sabe que você está aqui. Todos no harém sabem disso. Devia ter visto os olhos de Yasmini quando falou seu nome. Luziam como as estrelas do Cruzeiro do Sul. Ela disse: "Amo al-Amhara como a um irmão e mais ainda. Preciso vê-lo pela última vez antes de me tornar esposa de um velho e desaparecer do mundo para sempre".

Dorian levantou-se do tapete e caminhou até o fim do terraço. Ficou ali, a olhar para a baía onde seus caíques ancorados balançavam. Sentia uma estranha sensação de felicidade e excitação, como se as rodas do destino tivessem dado um outro giro. Durante os duros anos no deserto, suas lembranças de Yasmini haviam se obscurecido, mesmo assim ele recusara as ofertas dos xeques do Saara de lhe encontrar uma esposa entre suas próprias filhas. Não soubera até o presente momento que esperava por algo ou alguém, até lhe voltar à memória a garota de carinha de macaco com seu misterioso sorriso.

Então, sentiu uma ponta de aflição. Havia tanta coisa a se interpor em seu caminho. Yasmini estava aprisionada no harém e noiva de outro homem. Aos olhos de Alá, era sua irmã, e ele sabia que o castigo para o incesto era uma morte hedionda. Se ele violasse uma virgem real e maculasse a santidade do harém, nem mesmo o califa poderia salvá-lo da morte por lapidação ou decapitação. E o que fariam a Yasmini? Dorian estremeceu ao se recordar das histórias, repetidas aos cochichos, sobre o tratamento de Kush a qualquer uma das mulheres sob sua guarda que se extraviasse. Tinham contado que uma delas levara quatro dias para morrer e que seus gritos não haviam deixado ninguém dormir no harém durante todo aquele tenebroso tormento.

- Não posso permitir que ela assuma o risco - disse em voz alta e sentiu os ombros pesarem, agitado pelas emoções que o empurravam de um lado e de outro. - No entanto, eu não consigo resistir aos impulsos do meu coração. - Voltou-se e esmurrou a parede de áspero coral, assolado e devastado pela dor. - O que farei?

Voltou para onde Tahi se postava pacientemente sobre o tapete.

- Levará um recado a ela?

- Sabe que sim. O que lhe direi, meu filho?

- Diga-lhe que ao nascer da lua na noite de hoje, eu a estarei esperando no fim da Estrada do Arcanjo.

Dorian não poderia deixar que Batula o acompanhasse. Ao cair da noite, montou um cavalo e, coberto pelas túnicas e com o alfalema a lhe ocultar o rosto, saiu da cidade em direção ao norte. Lembrava-se de cada trilha, riacho, porção de floresta e trecho de mangue.

Contornou os palmeirais e avistou os muros do harém, altos, compactos e escuros ao luar. Encontrou as antigas ruínas e amarrou o cavalo num galho de arbusto perto dali, onde ficaria oculto de quem quer que passasse pela trilha dos lenhadores. Não julgava que ilhéu algum se aventurasse por ali naquelas horas de sombras, pois eram supersticiosos e temiam os djinns da floresta.

Escalou o monte de pedras caídas e atravessou o matagal até pisar o pequeno disco plano do local do esconderijo, ao centro. A entrada do túnel estava encoberta pela vegetação e Dorian pôde ver que ninguém a usara nos anos que haviam se passado.

Sentou-se num bloco de coral de onde poderia observar a entrada do túnel e avistar qualquer intruso. Não esperou muito tempo, pois logo o brilho da lua encheu o céu oriental e, em seguida, ao se erguer acima da copa das palmeiras, banhou o local com sua luz prateada.

Ele ouviu um ruído suave, passos ligeiros e um sussurro que vinha da entrada do túnel.

- Dowie? Você está aí?

A voz era mais rouca do que Dorian se recordava, e ele sentiu a pele arrepiar-se em seus braços, os pêlos em sua nuca se eriçarem.

- Estou aqui, Yassie.

Os galhos que tampavam a entrada partiram-se e Yasmini saiu para a luz do luar. Usava uma túnica branca simples e um pano sobre a cabeça. Dorian percebeu de imediato que ela estava mais alta, mas que seu corpo ainda era esguio e flexível, seu passo rápido e cauteloso como a de uma gazela assustada. Yasmini o viu e parou, e então, lentamente, ergueu a mão e afastou o véu que lhe cobria o rosto.

Dorian conteve a respiração. Ao luar, ela era maravilhosa. Embora não fosse mais uma criança, sua face era delicada e tinha um encanto mágico, com as maçãs do rosto altas e os enormes olhos escuros. Quando sorriu, seus lábios eram cheios, os dentes, brancos e perfeitos.

Ele se levantou e jogou para trás o próprio véu. Ela o fitou.

- Está tão alto... E a barba... - Calou-se e ficou imóvel, indecisa.

- E você se transformou numa adorável mulher.

- Oh, senti tanto a sua falta - ela murmurou. - Todos os dias...

De repente, correu para ele, e Dorian a envolveu nos braços. Yasmini tremia e soluçava baixinho, agarrada a seu peito.

- Não chore, Yassie. Por favor, não chore.

- Estou tão feliz! - ela soluçou. - Nunca fui tão feliz em toda a minha vida.

Dorian a sentou no bloco de coral, e ela enxugou as lágrimas e afastou-se a uma distância de um braço para fitá-lo.

- Tive notícias suas, mesmo no harém, e soube que se tornou um poderoso guerreiro, venceu uma grande batalha no deserto, entrou com nosso pai em Mascate e se saiu vitorioso de outro feroz combate por lá.

- Não sem ajuda. - Ele sorriu e traçou o contorno de seus lábios com a ponta do dedo.

Puseram-se a conversar com frases apressadas, cheios de ansiedade, interrompendo um a outro e deixando assuntos pela metade antes de passar para outro.

- O que aconteceu ao seu macaco de estimação, Jinni? - Dorian perguntou.

Lágrimas marejaram os olhos de Yasmini, que faiscaram ao luar.

- Jinni está morto. Kush o encontrou em seu precioso jardim e o espancou com uma pá até a morte. Mandou o corpinho dele para mim como presente.

Dorian procurou mudar de assunto, para distraí-la com outras lembranças mais agradáveis da infância, e logo ela ria de novo. Então, ambos caíram em silêncio, e Yasmini baixou os olhos, tímida. Sem encará-lo, murmurou:

- Lembra-se de como me levou para nadar no mar quando éramos crianças? Foi a primeira vez que eu me recordo de ter deixado o harém.

- Eu me lembro. - Sua voz saiu rouca.

- Vai me levar de novo esta noite? - Ela ergueu os olhos para ele. - Por favor, Dowie.

Desceram pelo arvoredo de mãos dadas e encontraram a praia deserta e reluzente ao luar. As sombras das palmeiras desenhavam-se arroxeadas nas areias e a água luzia com a untuosa luminescência de uma pérola negra.

Desde aquela vez em que haviam estado ali, a enseada entre as pedras se aprofundara pela ação das ondas das marés altas. Pararam na entrada e se viraram um para o outro.

- O que estamos fazendo é pecado? - Yasmini perguntou.

- Se for, eu não me importo - Dorian retrucou. - Sei apenas que eu a amo e que estar com você não me faz sentir um pecador.

- Eu o amo também - Yasmini murmurou. - Não poderei amar mais ninguém, mesmo que eu viva cem anos. - Desamarrou a fita no pescoço e deixou a túnica cair sobre a areia. Usava apenas pantalonas de seda.

Dorian não conseguiu respirar ao correr os olhos sobre ela. Seus seios tinham ganhado volume, e os bicos eram escuros e pontudos. A pele suave reluzia como a camada perolada de uma ostra.

- Você costumava me provocar dizendo que eu parecia um macaco - Yasmini murmurou, meio desafiante e meio tímida, com receio da reação de Dorian.

- Não mais. - Ele conteve o fôlego. - Nunca vi nada mais belo.

- Eu estava com tanto medo de não lhe agradar. Quero que goste de mim, Dowie. Diga que gosta de mim, por favor.

- Eu a amo - ele murmurou. - Quero que seja minha mulher e minha esposa.

Ela riu de alegria, tomou-lhe as mãos e colocou-as sobre os seios. Eram quentes e maleáveis, e os mamilos endureceram quando ele os rolou gentilmente entre os dedos.

- Sou sua mulher. Acho que sempre fui sua mulher. Não sei como acontece, mas quero ser sua esposa aqui, esta noite.

- Tem certeza, minha querida? Se os outros souberem disso, pode significar a desgraça e uma morte terrível.

- Ficar sem você seria uma morte muito pior que qualquer coisa que até mesmo Kush possa conceber. Sei que não pode ser para sempre, mas dê-me esta única noite para ser sua esposa. Mostre-me como, Dowie, por favor, mostre-me como.

Dorian tirou suas túnicas e as estendeu na areia. Deitou Yasmim sobre elas e, lentamente, com infinita gentileza, pequenas frases de amor e murmúrios de enlevo, gemidos de surpresa e, por fim, um longo e pungente espasmo de dor que em breve se perdeu no transporte de alegria que se seguiu, os dois se tornaram amantes.

Durante os dias que se seguiram, Dorian viu-se preso nos preparativos de sua campanha vindoura no continente além do canal. Comprou a maior parte dos animais de carga e caválos que estavam disponíveis em Lamu, e enviou um de seus capitães com três caíques ao sul, para Zanzibar, para fazer a mesma coisa lá. Também comprou grandes quantidades dos estoques de cereais e mercadorias nos bazares.

Depois, passou horas a cada dia a conversar com os mestres de caravana e com os mercadores árabes que haviam participado das caravanas atacadas e roubadas pelos salteadores. Tentou descobrir a identidade dos bandidos, seu número, como estavam armados e os métodos que usavam para realizar os ataques. Contabilizou as perdas que aqueles homens tinham sofrido, e os totais o deixaram boquiaberto. Mais de três lakhs de ouro tinham sido roubados, 27 toneladas de marfim e quase 15 mil escravos recém-capturados. O califa tinha toda razão em estar preocupado.

Quanto aos assaltantes em si, as informações eram vagas e contraditórias. Alguns diziam que eram homens brancos, com arqueiros e lanceiros negros. Outros diziam que não passavam de selvagens que lutavam com arco-e-flecha. Um afirmou que desencadeavam seus ataques somente durante a noite, quando as caravanas acampavam. Outro contou como tinham emboscado suas longas filas de escravos e carregadores durante o dia, e assassinado todos os batedores árabes, e que somente ele escapara. Um outro mercador contou que haviam poupado a ele e a todos os seus homens, libertados depois de serem despojados de todas as posses. Dorian se deu conta de que não havia concordância em sobre quem eram, e nenhum padrão evidente em seus métodos. Apenas uma coisa era clara: os assaltantes surgiam como djinns da floresta das terras selvagens do sul e desapareciam da mesma maneira.

- O que fazem com os escravos que capturam? - perguntou, e os árabes deram de ombros. - Devem vendê-los em algum lugar, não? - insistiu. - Precisariam de uma frota de grandes navios para transportar um tal número.

- Não há sinal de uma frota assim ao longo da Costa da Febre eles lhe contaram, e o espanto de Dorian aumentou.

Contava com pouquíssimas informações concretas nas quais basear seus planos. Tudo que poderia fazer era concentrar-se em proteger as caravanas e fazer com que se movimentassem de novo, pois o comércio quase se extinguira. Defrontados com perdas tão enormes, poucos mercadores árabes de Lamu e Zanzibar iriam se arriscar a financiar mais expedições.

Seu outro planejamento envolvia entrar em combate com os bandidos, persegui-los até suas cidadelas, rastreá-los como animais selvagens que eram e destruí-los. Para esse propósito, recrutou todos os batedores e guias de caravana que haviam ficado ociosos pela cessação do comércio.

Não poderia iniciar a campanha até que o tempo no continente mudasse, pois aquela era a estação da Grande Umidade, quando as terras baixas litorâneas eram inundadas pelas chuvas e a Costa da Febre fazia jus à sua temível reputação. Entretanto, deveria estar pronto para zarpar tão logo as chuvas cessassem e o kusi começasse a soprar novamente.

Pensar no início do kusi sempre o induzia a refletir sobre o destino de Yasmini. Q mesmo vento carregaria seu navio para o norte do golfo e para seu casamento. A idéia retorcia-lhe as entranhas de raiva e frustração. Pensou em escrever ao califa em Mascate e pedir a ele que cancelasse os planos de casamento. Até mesmo considerou a idéia de confessar ao pai adotivo o amor que nutria por Yasmini e lhe pedir licença para desposá-la.

Encontravam-se toda noite depois do escurecer. Mas quando expôs a ela aquela idéia, Yasmini ficou apavorada e a tremer de medo.

- Não penso em mim, Dowie, mas se nosso pai nem sequer suspeitar que existe amor de um homem e uma mulher entre nós, não importa quanto ele o ame, será obrigado por vínculos de honra a entregar seu caso aos mulás para ser julgado pelas leis da Shariah. Só poderia haver um veredicto para nós. Não, Dowie, não há escapatória desse jeito. Nosso destino está nas mãos de Deus, e Ele nem sempre é misericordioso.

- Eu a levarei embora - Dorian declarou. - Tomaremos um dos caíques e uns poucos dos meus melhores homens, zarparemos para longe e encontraremos algum lugar onde possamos viver o nosso amor.

- Não existe nenhum lugar assim - Yasmini lhe disse com tristeza. - Somos ambos do islã, e não haveria nenhum lugar no islã para nós. Aqui, você é um homem poderoso, logo será ainda mais. Tem o amor e o respeito de nosso pai e de todos os homens. Não deixarei que jogue tudo isso fora por mim.

Passavam muito de seu precioso tempo juntos, discutindo a terrível situação. Deitavam-se nos braços um do outro ao luar e conversavam durante horas. Quando viam que não havia escapatória ou uma forma de libertação para eles, faziam amor com uma paixão quase selvagem, como se para dissipar o fado que pairava diante dos dois.

Antes do alvorecer de cada manhã, Dorian a levava de volta à entrada do túnel, onde Yasmini o beijava como se fosse a última vez e tomava a Estrada do Arcanjo de volta para o harém. Durante o dia, a garota que certa vez fora cheia de vivacidade e alegria, amada por todos no harém, mostrava-se agora pálida, silenciosa e letárgica. Suas amigas e todos os criados tornaram-se extremamente preocupados. E não havia o que acontecesse naquele pequeno mundo enclausurado que não chegasse por fim aos ouvidos de Kush.

Aquele inflamado idílio de amor e desespero arrastou-se pelos meses que culminaram com a mudança dos ventos da monção. A força expedicionária para o continente estava quase pronta, e os preparativos finais para o casamento de Yasmini, completos. Seu dote fora enviado de Mascate a seu noivo, em Abu Dhabi, seu enxoval empacotado e pronto para ser transportado a bordo do caíque que a levaria embora, para seu novo lar, milhares de quilômetros ao norte, e para o confinamento de outro harém real, no qual ela passaria o resto de seus dias.

- Não posso deixar que isso aconteça - Dorian lhe disse. - Eu a resgatarei de lá, mesmo que tenha de abrir mão de tudo nesta vida.

- Não, Dowie, não permitirei que faça isso. Você terá muitas outras esposas nos anos vindouros, e conquistará glória e felicidade sem mim.

- Não! - ele exclamou. - Não me importa o resto. Só me importa você.

- Então, nunca mais virei encontrá-lo pela Estrada do Arcanjo. A menos que me prometa tirar essa loucura da sua mente, esta será a última vez que nos encontramos, Dowie. Precisa jurar para mim.

- Eu não posso fazer isso.

- Então, eu nunca mais o verei de novo.

Ele percebeu que ela estava determinada.

- Por favor, Yassie, não pode ser tão cruel com nós dois.

- Faça amor comigo pela última vez.

- Yassie, eu não posso partir sem você.

- Você é forte. Vai superar. Faça amor comigo. Dê-me alguma coisa a que me agarrar, para lembrar pelos anos vindouros.

Então, separaram-se à entrada do túnel, e Yasmini correu de volta pela passagem estreita, cega de tantas lágrimas. Ao subir pela abertura acima da tumba do santo, uma mão rude fechou-se em seu braço e a ergueu.

Enquanto ela se debatia e chutava, Kush gargalhava, mantendo-a com facilidade no ar.

- Esperei muitos anos por isso, minha pequena rameira. Sabia que um dia você se colocaria sob o meu poder. Sempre foi tão atrevida e cabeça-dura.

- Solte-me! - Yasmini gritou. - Ponha-me no chão.

- Não - retrucou Kush. - Agora você é minha. Nunca mais irá infringir minhas regras. As outras mulheres ouvirão seus gritos e vão tremer de medo em suas camas e pensar sobre o preço do pecado.

- Meu pai - ela gritou. - Meu futuro marido. Eles o farão pagar caro se me machucar.

- Seu pai mal sabe o seu nome. Ele tem muitas outras filhas e nenhuma delas é uma vagabunda. Seu futuro marido jamais aceitaria uma fruta meio mastigada e podre no seu harém. Não, minha pequena, de agora em diante você pertence apenas a Kush.

Kush carregou-a para a pequena cela ao lado do cemitério, no fundo dos jardins, separada do resto do harém por uma cerca de espinheiros floridos. Dois de seus assistentes aguardavam ali, eunucos também, homens enormes, roliços de gordura, porém fortes. Tinham executado antes aquela punição muitas vezes, e todos os preparativos estavam feitos.

Kush depositou Yasmini sobre um duro painel de madeira e começou a despi-la com vagar. Todos os três sorriam de antecipação, nus a não ser pelas tangas nas virilhas, mas já suados com o calor reinante na pequena cela. Tocavam-lhe o corpo como se o desvelassem, acariciavam-lhe os membros macios, cheiravam-lhe os cabelos, apertavam-lhe os seios de textura suave. Então, quando Yasmini estava completamente despida, eles a amarraram pelos pulsos e tornozelos com tiras de couro até que ela jazia de braços e pernas abertos. Kush, então, postou-se entre as pernas de Yasmini e lhe sorriu de uma forma quase amistosa.

- Você foi pega em ato de prostituição. Conhecemos o homem, mas suspeito que ele se tornou muito poderoso para ser levado à Justiça. A punição dele será saber de seu destino. O resto do mundo além dessas muralhas saberá que você morreu de uma febre. Muitos morrem nesta estação do ano. Contudo, eu me certificarei de que o seu amante tenha a verdade murmurada nos ouvidos. Pelo resto da vida, ele viverá com o conhecimento de que foi responsável por sua estranha e particular forma de morrer.

Ainda a sorrir, inclinou-se para a frente e colocou a mão gorducha nas partes íntimas de Yasmini e lhe acariciou delicadamente o ninho macio de pêlos escuros entre as coxas.

- Estou certo de que você já ouviu falar do que acontece com todas as moças más que vieram a este quarto. Porém, caso não tenha certeza, eu lhe explicarei o que vamos fazer.

Fez um sinal a um dos outros eunucos, que veio se postar ao lado de Kush. Segurava uma bandeja de madeira. Sobre ela, havia dois pequenos bastões. Eram feitos de fino papel de arroz, roliços, compridos como um dedo e fechados em ambas as pontas. Brilhavam à luz do lampião, pois tinham sido engraxados com gordura de carneiro.

- Cada um contém 150 gramas de pó de pimenta chili. Cuidei das mudas eu mesmo no meu pequeno jardim. São da variedade mais forte. O suco dos meus frutos queimaria a pele e a carne da boca de um mongol, alimentado durante toda a sua vida com o curry mais forte. Tive de usar luvas de pele de cão para proteger minhas mãos quando moí as sementes até virarem pó.

De repente, enterrou fundo o dedo indicador dentro de Yasmini.

- Um para este belo buraquinho perfumado na frente. - Sorriu quando ela gritou de espanto, dor e humilhação. Então, retirou o dedo e o enterrou de novo um pouco mais atrás. - E o segundo para este outro, a caverna mais escura de trás. - Retirou o dedo, cheirou-o, torceu o nariz e fez uma careta para os outros dois eunucos. Eles soltaram uma risadinha de prazer.

Kush pegou um dos bastões da bandeja. Yasmini olhou para aquilo com horror e debateu-se em suas amarras.

- Segurem-lhe as pernas - Kush resmungou para os outros dois.

Um deles forçou-lhe os joelhos para separá-los ao máximo. Kush afastou os pêlos sedosos e abriu os lábios macios. Depois, com a perícia nascida da prática, deslizou o bastão untado para dentro do corpo de Yasmini.

- Veja como al-Amhara abriu o caminho para mim e tornou minha tarefa mais fácil - disse, em seguida recuou e limpou os dedos na tanga. - A parte da frente está feita. Agora, o traseiro. - E pegou o outro bastão.

Seu assistente levou as mãos sob o corpo de Yasmini, segurou-lhe cada nádega roliça e separou-as com violência.

Ela mordia o lábio, e seus dentes estavam manchados de rosado com seu próprio sangue. Debatia o corpo dourado para trás e para a frente tanto quanto as presilhas permitiam, e lágrimas escorriam pelos cabelos.

Com a mão livre, Kush tateou entre as nádegas.

- Abra mais! - disse ao outro. - Isso... assim está melhor. Tão delicioso e apertado.

Os soluços de Yasmini culminaram com um grito agudo e doloroso.

- Ah, sim - vangloriou-se Kush. - É isso. Todinho. Tão fundo quanto posso alcançar.

Deu um passo para trás.

- Shabash! Está feito. Amarre-lhe os tornozelos e os joelhos juntos para que não possa expelir os docinhos.

Os dois trabalharam com rapidez e, em seguida, recuaram e inspecionaram o serviço com satisfação.

- Agora, saiam e terminem de cavar o túmulo da rameira.

Os dois eunucos seguiram para o cemitério, e logo se ouviu o ruído de suas pás na terra arenosa e das conversas joviais enquanto trabalhavam.

Kush aproximou-se do lado de Yasmini.

- Seu esquife está pronto, e o lençol para cobri-la quando baixar dentro da terra. - Indicou-os a ela contra a parede do fundo. - E, veja, entalhei seu epitáfio com minhas próprias mãos amorosas. - Ergueu-o para que ela pudesse ler. - Tem a data da sua morte, e conta ao mundo que você morreu de febre.

Yasmini emudecera, seu corpo rígido. Os olhos, arregalados e marejados de lágrimas, estavam fixos no rosto de Kush quando ele se debruçou sobre ela.

- Sabe, o pó de pimenta chili é tão violento que pode corroer o papel de arroz, enquanto do lado de fora as secreções do seu próprio corpo umedecem o papel e o enfraquecem. Logo o bastão vai se dissolver e o pó será solto em seus lugares secretos.

Afastou-lhe os cabelos da testa e, com o polegar, enxugou-lhe as lágrimas das pálpebras com ternura feminina.

- A princípio você sentirá um ligeiro formigamento, que crescerá como um fogo, um fogo devorador que a fará ansiar pelo calor mais brando do inferno. Observei muitas prostitutas morrerem sobre esta cama de madeira, mas não creio que haja palavras para descrever seu sofrimento. Ele comerá seu útero e seus intestinos como centenas de ratos a cravarem os dentes em sua suavidade, e seus gritos serão levados a cada mulher no harém. Elas se lembrarão de você quando forem tentadas a pecar.

Kush respirava pesadamente agora, e sua expressão era de enlevo e de profunda excitação pela imagem de sofrimento que ele enxergava com os olhos da mente.

- Quando vai começar? - disse, numa pergunta de retórica. - Não podemos ter certeza. Em uma hora ou duas, talvez mais, não há como dizer. Quanto tempo vai durar? Não posso lhe afirmar. Vi as mais fracas morrerem num dia, e as mais fortes durarem quatro dias, gritando até o fim. Acho que você será uma das mais fortes, mas veremos.

Foi até o limiar da porta e gritou aos homens que cavavam o túmulo:

- Não terminaram ainda? Não podem voltar e apreciar o espetáculo e se divertir até que tenham terminado.

- Falta pouco. - Um deles parou e debruçou-se sobre a pá. Apenas o topo de sua cabeça rapada era visível acima da beirada do buraco. - Terminaremos antes que o primeiro bastão se rompa.

Kush voltou ao cubículo e acomodou o corpanzil confortavelmente no banco contra a parede dos fundos.

- A espera é a parte interessante - disse para Yasmini. - Algumas imploram por misericórdia, mas eu sei que você é muito orgulhosa para isso. Às vezes as corajosas tentam esconder de mim o momento em que o papel se rompe. Tentam negar-me a diversão, porém não por muito tempo. - Soltou uma risadinha. - Não por muito tempo.

Cruzou os braços pelos seios macios de mulher e recostou-se contra a parede.

- Estarei a seu lado até o fim, Yasmini, para partilhar cada delicioso momento com você. E derramarei uma lágrima em seu túmulo, pois sou um homem de sentimentos, de coração mole.

A notícia de que Kush tinha levado outra moça para o pequeno cômodo ao lado do cemitério espalhou-se rapidamente pelo harém e, no instante em que Tahi ouviu o rumor, soube, com terrível certeza, quem era a moça. Também soube exatamente o que precisava fazer. Não hesitou, jogou um xale nos ombros, cobriu-se com o véu e pegou a cesta com a qual sempre voltava das compras da cidade, quando era enviada por uma das esposas reais ou concubinas. Como uma mulher de idade e livre, tinha livre trânsito do harém para o mundo além dos muros e, entre seus deveres, estava o passeio diário pelos mercados. Deixou o quartinho pobre no fundo da cozinha e apressou-se a sair do serralho. Temia que um dos eunucos a parasse antes de chegar aos portões.

Um silêncio profundo, incomum, pairava como um pálio sobre o harém e os jardins, e o serralho parecia deserto. Nenhuma criança ria, nenhuma mulher cantava, e os fogões nas cozinhas estavam apagados e frios. Cada habitante daquele mundo de mulheres havia se trancado em si mesmo, e se recolhera a seus próprios aposentos. Estava tão quieto que, quando Tahi parou para escutar, tudo que conseguiu ouvir foi o próprio sangue a pulsar em seus ouvidos.

Apenas um dos guardas eunucos estava no portão, porém ele a conhecia bem. E também se mostrava tão perturbado pela atmosfera pesada de drama que mal relanceou os olhos para Tahi quando ela puxou o véu do rosto para se identificar. Dispensou-a com um gesto breve, descuidado.

No instante em que estava fora da vista do portão, Tahi se livrou da cesta e disparou numa louca corrida. Um quilômetro e meio à frente, seu coração parecia tão inchado de fadiga que ela mal conseguia respirar. Caiu na beira da trilha e não conseguiu obrigar as pernas a dar um outro passo.

Um menino escravo saiu dos campos, conduzindo dois burros carregados de lenha do mangue para o curtume. Tahi ergueu-se e procurou pela bolsa entre as dobras da túnica.

- Minha filha está morrendo - gritou ao menino. - Preciso chamar o doutor para ela. - Estendeu uma rupia de prata. - Leve-me a ele e terá outra moeda quando chegarmos ao forte.

O rapaz olhou com olhos cobiçosos para a moeda e, em seguida, concordou com uma sacudidela vigorosa de cabeça. Desamarrou um dos fardos de lenha e deixou-o cair na beira da trilha. Empurrou Tahi para o lombo do burrico e depois bateu com uma vara na pequena montaria, obrigando-a a um trote. Saiu correndo atrás, rindo e gritando para Tahi:

- Segure firme, velha mãe. Rabat é rápido como uma flecha. Levaremos a senhora ao forte antes que tenha tempo de piscar duas vezes.

Dorian estava sentado no terraço com Ben Abram a seu lado. Entre xícaras de café preto, dedicavam toda a atenção a compilar uma relação dos suprimentos médicos que seriam necessários para a expedição ao continente. Os dois haviam reatado com alegria a duradoura amizade quase no mesmo instante em que Dorian pisara em terra, em Lamu. Todos os dias, Ben Abram vinha se juntar a eles nas preces da manhã, e depois se sentavam por longo tempo juntos, numa conversa agradável e tranqüila de velhos amigos.

- Estou muito velho para deixar a ilha - Ben Abram protestou diante da insistência de Dorian para que se juntasse à expedição, com o objetivo de cuidar da saúde dos soldados.

- Ambos sabemos que está tão forte e tão ágil como no primeiro dia em que o conheci - Dorian lhe disse. - Vai deixar que eu morra de alguma doença horrível no interior? Preciso do senhor, Ben Abram.

Dorian interrompeu-se ao ouvir um tumulto na ponta do terraço. Levantou-se e gritou, irritado, para os guardas:

- O que é essa confusão? Vocês têm ordens estritas de que não devo ser perturbado.

- Sou poeira a seus pés, poderoso xeque. Mas está aqui uma velha bruxa que chuta e arranha como um gato selvagem com raiva.

Dorian soltou uma exclamação de desgosto e estava prestes a ordenar que expulsassem a mulher com uma vergastada no traseiro quando ela gritou:

- Al-Amhara! Sou eu, Tahi! Em nome de Alá, deixe-me falar com você sobre alguém que ambos amamos.

Dorian ficou gelado de pavor. Tahi jamais teria sido tão indiscreta a menos que algum terrível desastre tivesse desabado sobre Yasmini.

- Deixem-na passar - gritou aos guardas e correu ao encontro da velha mulher quando ela surgiu no terraço, num estado deplorável de fadiga e preocupação.

Ela desabou aos pés dele e agarrou-o pelos joelhos.

- Kush sabe sobre você e a menina. Esperava por Yasmini quando ela voltou ao harém e a levou para o quartinho atrás do cemitério - falou num só fôlego.

De sua própria vivência por trás dos muros do serralho, Dorian conhecia aquele quartinho. Embora fosse estritamente proibido, os meninos do harém desafiavam-se um ao outro a ultrapassar a cerca de espinhos e entrar para tocar aquele pavoroso painel de madeira. Assustavam-se mutuamente com as histórias de horror sobre o que Kush fazia com as mulheres que levava para lá. Uma das lembranças mais tenebrosas de todos os dias de Dorian dentro do harém era dos gritos de uma moça de nome Salima que fora levada até lá, depois que Kush descobrira seu amor por um jovem oficial da guarda do governador. Aqueles gritos duraram quatro dias e três noites, cada vez mais fracos, conforme as horas iam passando, e o silêncio no final foi mais aterrador do que haviam sido os berros estridentes.

Por um longo momento, ele se viu desorientado pelo aviso de Tahi. Sentiu as pernas fraquejarem, e não conseguia se mover, sua mente ficou vazia, como se tentasse protegê-lo daquele horror. Então, com um tremor violento, expulsou a fraqueza e voltou-se para Ben Abram. O velho médico estava de pé. Sua expressão tinha um traço de alarme temperado com compaixão.

- Eu não deveria ter ouvido essas palavras, meu filho. Você deve estar maluco, louco, além da razão. Mas o meu coração se confrange por você.

- Ajude-me, velho amigo - Dorian implorou. - Sim, tenho agido como um tolo e cometi um terrível pecado, mas foi o pecado do amor. O senhor sabe o que Kush fará a ela.

Ben Abram concordou.

- Tenho visto os resultados da sua monstruosa crueldade.

- Ben Abram, preciso da sua ajuda. - Pela transparente intensidade de seu olhar, Dorian tentou convencê-lo.

- Eu não posso entrar no harém - disse o velho.

- Se eu a trouxer ao senhor, nos ajudará?

- Sim, meu filho. Se puder trazê-la até a mim, eu o ajudarei, se não for muito tarde. - Ben Abram voltou-se para Tahi: - Quando ele a levou ao cubículo?

- Não sei. Duas horas atrás, talvez - Tahi soluçou.

- Então, temos muito pouco tempo - disse Ben Abram, secamente. - Tenho comigo os instrumentos de que preciso. Podemos partir imediatamente.

- O senhor jamais poderia acompanhar meus passos, velho pai. Dorian amarrou o cinto de sua espada. - Venha atrás de mim tão depressa quanto puder. Há um caminho secreto sob as paredes no lado leste. - Descreveu rapidamente como encontrar a entrada do túnel.

- Passei por lá e me lembro das velhas ruínas - Ben Abram murmurou.

- Espere por mim lá - disse Dorian, e então desceu correndo a escadaria, três degraus de cada vez, e saiu para o pátio.

Ao correr para os estábulos, viu que um dos cavalariços conduzia seu corcel negro para escová-lo no pátio. O cavalo estava com a brida passada por sua esbelta cabeça árabe, e era um dos mais rápidos do plantel de excelentes animais que o califa dera a Dorian como presente de despedida quando este deixara Mascate.

Dorian arrancou a rédea das mãos do cavalariço assustado e saltou para o lombo nu do animal. Ao enterrar os calcanhares nos flancos do cavalo, o garanhão saltou para a frente e, antes que chegassem aos portões do forte, já estava em pleno galope.

Atravessaram as ruas estreitas em louca correria, a expulsar galinhas, cães e gente apavorada de seu caminho. Ao irromper das ruelas para campo aberto, Dorian nivelou-se ao pescoço do animal e o incitou ao máximo de sua velocidade.

- Vai! - murmurou-lhe no ouvido, e o garanhão dobrou a orelha para trás para ouvir. - Corra pela própria vida do meu amor.

Havia um atalho pelo mangue. Dorian tirou o cavalo da estrada principal, e o animal se enterrou na lama por uns cem metros até pisar em terreno firme de novo e galopar pelos palmeirais do lado oposto, ganhando quase um quilômetro.

Os altos muros do harém destacaram-se alvas através dos renques de palmeiras, e Dorian desviou-se para a praia a fim de se manter fora da vista dos portões. Assim que alcançou um ponto seguro, voltou de novo e galopou rente aos muros. Viu o monte de ruínas logo adiante e saltou com um braço em torno do pescoço do animal, seus pés mal tocando a terra. Soltou-o antes que o cavalo parasse e usou do impulso para se lançar pela lateral das ruínas e cair no terreno adiante.

Arrastou-se pelos galhos e enfiou-se na abertura escura. O interior era mais estreito e mais baixo do que se lembrava, e negro como breu. Quando o solo inclinado começou a subir sob seus pés, ele quase caiu. Por fim, viu adiante a luz tênue da saída do buraco e conseguiu seguir mais depressa. Deu um salto, segurou-se na borda da abertura e com um único movimento ergueu-se por ela e para fora do terraço onde, tempos atrás, Yasmini e suas amiguinhas brincavam com suas bonecas. Estava deserto. Atravessou-o com longas passadas e saltou a escada onde Zayn al-Din quebrara o tornozelo ao cair para o jardim abaixo.

Ao pé da escada, parou para achar seu rumo. Uma atmosfera de silêncio pairava sobre o harém e os jardins. Nenhuma das escravas cuidava dos canteiros de flores e das fontes, nenhuma pessoa se movia, e não se ouviam os cantos dos passarinhos. Naquela quietude, a própria brisa deixara de soprar, como se toda a natureza contivesse o fôlego. As frondes das palmeiras pendiam silenciosas e nem uma única folha farfalhava nas copas das casuarinas.

Dorian sacou a espada. Sabia que teria de matar sem hesitação qualquer dos eunucos que tentasse impedi-lo, e correu para a extremidade norte do harém, em direção à mesquita e ao cemitério.

Desceu pela estreita alameda entre o muro exterior e atrás da mesquita. Adiante, ficava a cerca de espinhos que rodeava o cemitério. Passou pela fenda da qual bem se lembrava e olhou pelo terreno. Cada tumba tinha uma lápide inscrita em cima e algumas das mais novas ainda estavam decoradas com fitas desbotadas e pendões.

O cômodo ficava nos fundos, e a cerca de espinhos se expandira e aumentara desde os tempos em que a vira pela última vez. A porta estava aberta, e Dorian conteve o fôlego ao procurar escutar algum som de sofrimento que viesse do interior. A quietude era sufocante e agourenta, parecendo carregada de maldade.

Então ouviu vozes, a entonação aguda e feminina de um homem castrado. Escondeu a espada numa dobra do manto e esgueirou-se silenciosamente para a frente. Houve um espocar de risadinhas, e ele viu um dos eunucos sentado à beira de uma cova recém-aberta, os pés a balançarem na borda, os rolos de sua barriga rotunda pendurados em seu colo. Dorian postou-se atrás dele. Pôde ver os nós de sua coluna através da gordura, quando o homem se inclinou para falar com alguém no buraco abaixo dele. Dorian enterrou a ponta aguda da longa lâmina curva de sua cimitarra através da junção entre duas vértebras, separando a medula espinhal com um golpe cirúrgico. O eunuco morreu sem um murmúrio, caiu e deslizou para dentro do buraco, seu peso liberando a espada. Desabou como um saco de banha sobre o homem que se encontrava embaixo.

Preso sob aquele fardo, o outro eunuco gritou de raiva e lutou para safar-se.

- O que está fazendo, Sharif? Ficou maluco? Saia de cima de mim! - Livrou-se do cadáver e ficou de pé. O topo de sua cabeça estava em posição inferior ao nível do chão, e ele ainda olhava para baixo, para o morto amontoado a seus pés. - Levante-se, Sharif. Que brincadeira é essa?

A parte arredondada da cabeça rapada parecia uma casca de ovo. Dorian ergueu a espada e a desferiu para baixo, abrindo-lhe o crânio até a metade da arcada dentária superior. Com um giro do pulso, arrancou a lâmina do osso rachado e voltou-se para a porta da cabana.

Saiu correndo e, ao chegar à porta, Kush apareceu diante dele, a lhe bloquear a passagem com seu corpanzil. Encararam-se com olhar duro por um momento fugidio, mas Kush o reconheceu. Estivera entre a multidão na praia quando Dorian pisara em terra em sua chegada com a flotilha de Mascate.

Com uma velocidade e agilidade espantosa para criatura tão pesada, o eunuco saltou de volta ao quarto e agarrou a pá que estava encostada à parede. Com outro salto, interpôs entre si e Dorian o pesado painel de madeira no qual Yasmini estava presa, e ergueu a pá sobre a garota.

- Para trás! - gritou. - Com uma única pancada, posso estourar os sacos dentro dela e liberar o veneno.

Yasmini jazia nua, sob aquela ameaça, as longas pernas amarradas fortemente e unidas pelos tornozelos e joelhos, e os braços esticados sobre a cabeça numa posição que lhe desalinhava os seios dourados. Olhou para Dorian, e mesmo seus grandes olhos não podiam conter a extensão e a profundidade de seu terror.

Dorian avançou pelo quarto no mesmo instante em que Kush começou a descer a pá com toda a força, desde o alto da cabeça. Dorian conseguiu bloquear o golpe antes que atingisse Yasmini no ventre, e interpôs seu corpo ao dela, protegendo-a. A pá o pegou nas costas e ele sentiu as costelas estalarem. A dor espalhou-se por seu peito.

Jogou-se sobre o painel, forçando-se a ignorar a dor e com cuidado para não lançar seu peso sobre o corpo de Yasmini e, assim, romper os frágeis bastões. Kush ergueu a pá de novo e dessa vez mirou a cabeça de Dorian. O rosto gordo do eunuco era uma máscara de fúria, e a enorme barriga saltava sobre a tanga.

Todo o lado esquerdo de Dorian estava adormecido pela pancada, e ele se agachou sobre um joelho, impossibilitado de se erguer a tempo de evitar o golpe. Porém ainda tinha a espada na mão direita. Esticou o braço da lâmina e cravou a ponta na barriga de Kush e o transpassou de lado a lado, na altura do umbigo. Abriu-o com um peixeiro rasga o ventre de uma garoupa. Kush largou a pá, que caiu a retinir sobre as pedras do chão. Cambaleou para trás contra a parede do fundo e, com ambas as mãos, tentou manter fechadas as bordas do extenso ferimento. Tinha os olhos arregalados, um ar de espanto, ao fitar as entranhas que saltavam para fora por entre seus dedos, em cordões viscosos. O cheiro fétido quente, de seu intestino rompido encheu o pequeno quarto.

Dorian ajoelhou-se para tentar ficar de pé. O braço esquerdo pendia do lado do corpo, insensível e inútil, e ele se debruçou sobre Yasmini.

- Rezei para que você viesse - ela murmurou. - Não julguei que fosse possível, e agora é muito tarde. Kush colocou coisas terríveis dentro de mim.

- Eu sei o que ele fez - Dorian lhe disse. - Não fale. Fique imóvel.

Kush soltou um berro estridente, lancinante, mas Dorian mal virou os olhos para ele quando o eunuco desabou de cara no chão e ficou a estrebuchar e a se debater entre a massa confusa das próprias entranhas.

Dorian introduziu a borda da cimitarra entre os tornozelos de Yasmini e cortou as tiras de couro. Em seguida fez o mesmo com as amarras dos joelhos.

- Não tente sentar-se. Qualquer contração pode estourar os sacos.

Com um toque da lâmina, rompeu os liames que a prendiam pelos pulsos e depois deixou cair a espada e massageou o braço esquerdo paralisado. Com uma onda de alívio, percebeu que o membro começava a formigar e a força fluía de novo a seus dedos. Passou o braço direito sob os ombros de Yasmini, ergueu-a com cuidado do painel de madeira e colocou-a de pé no chão.

- Agache-se - disse -, bem devagar. Não faça movimentos bruscos. - Ajudou-a a se abaixar. - Agora, abra seus joelhos bem separados e faça força como se estivesse na latrina. - Ajoelhou-se ao lado dela e segurou-a pelos ombros. - No começo, bem suavemente e depois com mais força.

Yasmini respirou fundo e contraiu o corpo, o rosto contorcido e escuro de sangue. Houve um som intermitente e crepitante, e um dos bastões foi expelido de seu corpo com tanta força que bateu no chão entre seus pés e se abriu, espalhando o pó vermelho pelas pedras. O cheiro ácido do chili misturou-se ao fedor das fezes de Kush e lhes ardeu nas narinas.

- Ótimo! Muito bem, Yassie. - Segurou-a com mais força. - Pode fazer o mesmo com o outro saco?

- Vou tentar. - Ela respirou fundo outra vez e retesou-se. Porém, depois de um minuto, deixou escapar um suspiro e meneou a cabeça. - Não adianta, não vai se mover. Eu não consigo fazer isso.

- Ben Abram está esperando no fim da Estrada do Arcanjo - disse Dorian. - Eu a levarei a ele. Como médico, saberá o que fazer.

Gentilmente, ajudou-a a se levantar.

- Não tente andar. O menor movimento pode romper o saco. Devagar agora, coloque um braço em torno do meu pescoço. Calma.

Enfiou o braço bom sobre os joelhos de Yasmini e ergueu-a com facilidade. Ao caminhar para a porta, Kush gemeu e balbuciou:

- Ajude-me... Não me deixe aqui... Estou morrendo...

Dorian não olhou para trás.

Contornou o túmulo aberto no fundo do qual jaziam os dois eunucos mortos. Caminhava depressa, temeroso de encontrar outro, pois deixara a cimitarra no chão do cubículo e ainda não tinha domínio pleno do braço ferido. Mais do que isso, receava sacudir ou apertar o corpo de Yasmini. Tinha de contrabalançar rapidez com precaução, e ficou a murmurar frases de convencimento a ela, enquanto seguia em frente, na tentativa de acalmá-la e confortá-la.

- Tudo vai dar certo, minha pequenina. Ben Abram vai livrá-la dessa coisa. Logo, tudo estará acabado.

Atravessou as alamedas com passos leves que embalavam seu precioso fardo e subiu a escada do terraço da tumba do santo, um degrau de cada vez, com cuidado redobrado. Baixou-a lentamente pela abertura do túnel e, quando pulou para dentro, ao lado dela, perscrutou-lhe a face, ansioso, em busca de algum sinal de que o movimento desencadeara alguma coisa inenarrável dentro daquele ventre macio.

- Você está bem? - perguntou. Yasmini tentou sorrir. - Estamos quase lá agora. Ben Abram está esperando. - Ergueu-a no colo de novo, e teve de se encolher, quase dobrado em dois, para passar pelo teto baixo e descer o túnel.

Viu a luz adiante e, quase involuntariamente, deu uma passada mais longa. Um fragmento de coral solto rolou sob seu pé, e Dorian cambaleou e quase caiu, batendo com o corpo de Yasmini contra a parede.

- Ai! - Yasmini gemeu com o tranco, e Dorian sentiu o coração confranger-se.

- O que foi, minha querida?

- Um formigamento dentro de mim - ela balbuciou. - Oh, Alá, como queima!

Ele correu pelos últimos poucos passos e carregou-a para fora até a clareira entre as ruínas.

- Ben Abram! - Dorian berrou. - Em nome de Deus, onde está?

- Aqui, meu filho. - Ben Abram levantou-se de onde estivera esperando à sombra e correu até eles, maleta na mão.

- Começou, velho pai. Depressa!

Deitaram-na no chão, e Dorian se pôs a explicar, ofegante, em frases quase incoerentes, como Yasmini se livrara de um dos bastões.

- Mas o outro ainda está dentro dela e começou a vazar.

- Segure-lhe os joelhos para cima, assim - Ben Abram disse, em seguida dirigiu-se a Yasmini: - Isso vai machucá-la. São os instrumentos que eu uso no parto. - Os objetos estranhos brilhavam em suas mãos.

Ela fechou os olhos.

- Submeto-me à vontade de Deus - murmurou e enterrou as unhas no antebraço de Dorian quando Ben Abram deu início ao trabalho.

A evidência de um intenso sofrimento espelhava-se em sua face adorável e nos lábios apertados e retorcidos. Yasmini deixou escapar um gemido sufocado, e Dorian murmurou, desesperado:

- Eu a amo, flor do meu coração.

- Eu o amo, Dowie - ela balbuciou -, mas... ai! Há um fogo terrível queimando dentro de mim.

- Vou ter de cortá-la agora - Ben Abram disse.

Um momento depois, Yasmini soltou um grito agudo e seu corpo inteiro se retesou. Dorian olhou para baixo e viu sangue nas mãos de Ben Abram quando ele pegou um instrumento prateado com o formato de uma colher dupla. Mais um minuto e ele sentou-se nos calcanhares, com o pacote manchado de sangue, encharcado, meio desintegrado, preso entre as colheres.

- Eu o peguei! - exclamou. - Mas a pimenta vazou dentro dela. Precisamos levá-la para a água o mais rápido possível.

Dorian ergueu-a no colo, o braço ferido e a dor nas costelas fraturadas esquecidos. Saiu numa corrida desenfreada com o corpo nu de Yasmini comprimido contra o peito. Ben Abram os seguiu, aos tropeções, e logo se distanciou deles, enquanto Dorian se arrojava como um louco por entre os palmeirais. Correu para a praia, jogou-se no oceano e afundou o corpo de Yasmini na água fria. Ben Abram chegou alguns minutos depois, com uma seringa de bronze para clister na mão. Dorian manteve a parte inferior do corpo de Yasmim submerso, enquanto Ben Abram enchia repetidas vezes o tubo da seringa com a água do mar e injetava o líquido dentro dela. Demorou quase meia hora até que se desse por satisfeito e permitisse que Dorian a carregasse para a praia.

Yasmini tremia de choque e de dor. Dorian enrolou-a no xale de lã ensopado, e os dois a deitaram num lugar à sombra das árvores. Ben Abram pegou de sua maleta um frasco bojudo de ungüento e untou os ferimentos. Depois de alguns instantes, o tremor diminuiu, e ela murmurou com voz débil:

- A dor está começando a passar. Ainda queima, porém não tanto.

- Consegui tirar a maior parte do veneno com as colheres. Acho que pude expulsar o resto para fora do útero antes que causasse mais dano. Tive de cortá-la para alcançar o saco, mas é um corte pequeno e vou costurá-lo agora. O ungüento vai curar a ferida rapidamente. - Sorriu para encorajá-la enquanto preparava a agulha e o categute. - Teve sorte e deve agradecer a Tahi e a al-Salil por isso.

- O que faremos agora, Dowie? - Yasmini estendeu a mão para Dorian. Ele tomou-a entre as suas e afagou-a. - Não posso voltar para o harém. - Parecia-se outra vez com a menina de carinha de macaco, pálida e encolhida no xale, os cabelos desgrenhados, pingando água, grudados nos ombros, os olhos afundados em olheiras arroxeadas de dor.

- Você nunca mais voltará para o harém, eu lhe juro. - Dorian debruçou-se e beijou-a nos lábios inchados. Então, levantou-se e sua expressão tornou-se pesarosa. - Preciso deixá-la aqui com Ben Abram enquanto ele termina o trabalho - disse. - Também tenho uma tarefa a fazer, mas voltarei em breve, antes que Ben Abram acabe. Seja corajosa, meu amor.

Refez o caminho por entre as árvores, saltou para a clareira e entrou pelo túnel sob as muralhas do serralho. Ergueu-se cautelosamente para o terraço da tumba do santo e ficou imóvel por um instante, a escutar e observar. Tudo ainda estava mortalmente quieto, e então ele desceu os degraus e cruzou as alamedas. Parou atrás da cerca de espinhos do cemitério e ficou satisfeito ao perceber que os cadáveres dos eunucos não haviam sido descobertos e que nenhum alarme fora dado. Em seguida, com passos cautelosos, avançou.

Diante da porta do cubículo, parou para deixar que os olhos se acostumassem à penumbra depois do sol forte. Kush estava curvado no chão na posição de um feto no útero. Suas mãos ensangüentadas ainda agarravam a barriga aberta, e seus olhos estavam fechados. Dorian julgou que estava morto, mas, ao passar por ele, o eunuco abriu os olhos. Sua expressão se contorceu.

- Por favor... ajude o velho Kush - balbuciou. - Você sempre foi um bom menino... al-Amhara. Não me deixaria morrer assim.

Dorian inclinou-se e pegou a espada do chão. Kush encolheu-se mais ainda.

- Não, não me mate. Em nome de Alá, imploro a sua piedade.

Dorian enfiou a lâmina dentro da bainha de seu cinto, e Kush gemeu de alívio.

- Eu disse que você era um bom menino. Ajude-me a deitar na esteira. - Tentou rastejar em direção ao esquife que usaria para levar Yasmini ao túmulo, mas o movimento reabriu a grande ferida em sua barriga. Sangue fresco escorreu, e ele contorceu-se e agarrou o ventre. - Ajude-me... al-Amhara. Chame alguém para me levar a um médico.

A expressão de Dorian era impiedosa ao se abaixar, segurar os tornozelos de Kush e arrastá-lo pelo chão em direção à porta.

- Não! Não faça isso! Vai abrir ainda mais a ferida - Kush esgoelou, mas Dorian ignorou-lhe os protestos.

Formou-se uma longa marca escorregadia de sangue e suco gástrico nas lajes de pedra atrás de Kush. Dorian puxou-o pelos pés primeiro pelo limiar da porta e depois para o sol. Kush gemeu e agarrou-se ao batente da porta, com toda a força possível a um homem em agonia.

Dorian soltou-lhe as pernas e, num movimento quase tão rápido que a vista mal poderia acompanhar, sacou a cimitarra e, com um golpe, arrancou fora os três dedos da mão direita de Kush que estavam cravados na madeira da porta. O eunuco soltou um uivo de dor e ergueu a mão mutilada para o alto. Fitou-a com um espanto horrorizado.

- Você me aleijou! - murmurou, estupefato.

Dorian embainhou a espada, segurou os tornozelos do eunuco de novo e arrastou-o pela terra do cemitério em direção à cova aberta. Tinha percorrido metade da curta distância quando Kush percebeu o que al-Amhara pretendia. Seus gritos então se tornaram mais altos e afeminados, e ele começou a se debater e lutar de tal forma que as vísceras pendentes se desenrolaram e se arrastaram pela areia.

- As mulheres que ouvirem seus uivos vão pensar que os pacotes se romperam dentro do ventre de Yasmini - Dorian resmungou. - Cante alto, seu grande saco de banha de porco. Não há ninguém para ajudá-lo agora deste lado do inferno.

Com um último puxão, jogou Kush para dentro da cova, sobre os outros dois corpos. E o encarou, parado com as mãos nos quadris, enquanto recuperava o fôlego e esperava que a dor em suas costelas quebradas amainasse um pouco.

Kush leu sua própria sentença de morte naqueles olhos verdes.

- Piedade!

Tentou se levantar, mas a dor lancinante em suas entranhas era demasiada e ele puxou os joelhos para o peito e rolou contra a parede lateral da terra recém-escavada.

Dorian afastou-se e foi pegar a pá no pequeno cômodo. Voltou e jogou a primeira porção de terra dentro da cova. Kush gritou:

- Não, não! Como pode fazer isso comigo?

- Com a mesma facilidade com que você perpetrou suas inenarráveis crueldades contra as mulheres indefesas sob os seus cuidados - Dorian retrucou.

Kush berrou e gemeu e implorou piedade até que a terra abafou-lhe os gritos. Dorian trabalhava depressa e logo a cova estava fechada sobre os três corpos. Em seguida ele bateu a terra e modelou o monte ao nível do terreno.

Do cubículo, pegou a lápide com o nome de Yasmini gravado e plantou-a sobre a sepultura. Amarrou em torno dela uma fita funerária com a prece para os mortos bordada. Depois, recolocou a pá no cômodo atrás do cemitério, recolheu os pedaços das tiras de couro e as roupas de Kush de onde as pendurara num gancho na parede. Enrolou-as num embrulho e atou-as com um pedaço das tiras de couro. Pegou também a túnica e os véus de Yasmini que se encontravam a um canto.

Antes de sair do quarto, correu os olhos ao redor para certificar-se de que tudo estava em ordem, e sorriu com tristeza.

- Pelos próximos cem anos, os poetas cantarão o desaparecimento dos três eunucos, depois de matarem e enterrarem a adorável princesa Yasmini. Talvez o próprio demônio tenha vindo escoltá-los ao inferno. Ninguém jamais saberá. Mas que bela lenda se tornará para a posteridade!

Em seguida deixou o harém pela última vez, pela Estrada do Arcanjo.

Quando Dorian retornou até onde os deixara, Ben Abram terminara de dar os pontos no corte de Yasmini, e o enfaixava com um pedaço de algodão.

- Está feito e bem-feito, al-Salil - assegurou a Dorian. - Daqui a sete dias, tirarei os pontos e, dentro de um mês, ela estará completamente curada, como se nada disso tivesse acontecido.

Dorian envolveu Yasmini nos mantos macios de Kush, da mais fina lã, e ajudou-a gentilmente a se sentar no lombo do cavalo. Montou e segurou-a de lado no colo, para que não houvesse compressão em seus ferimentos. Voltaram em passo lento para o forte. Ela estava tão completamente enrolada pelos volumosos panos que nenhuma pessoa, mesmo a mais curiosa, por quem passavam na estrada poderia dizer se era homem ou mulher.

- Ninguém fora do harém jamais viu seu rosto antes. Nunca a reconhecerão como a princesa Yasmini, pois esta jaz morta sob a lápide no cemitério do serralho.

- Estou livre de verdade, Dowie? - ela murmurou com dificuldade, pois, a despeito de todo o cuidado, os pontos doíam terrivelmente.

- Não, seu embrulhinho tolo. Você é agora o menino-escravo que pertence ao grande xeque al-Salil. Nunca será livre.

- Nunca? - Yasmini perguntou. - Prometa-me que serei sua escrava para sempre. Que nunca me deixará ir embora.

- Eu lhe juro.

- Então, estou feliz. - Recostou a cabeça no ombro dele.

Por muitas semanas depois disso, pelos bazares de Lamu, correram estranhos rumores sobre o desaparecimento de Kush, o eunuco. Ele era bem conhecido nas ilhas, temido e odiado mesmo fora das muralhas do serralho. Alguns diziam que enquanto caminhava pela estrada, à noite, fora levado pelos djinns da floresta. Em outra versão da mesma história, o seqüestrador era o próprio Satã. Os mais pragmáticos acreditavam que Kush tinha roubado seu mestre, o califa al-Malik, e que, receoso de ser descoberto e castigado, o eunuco alugara um caíque para levá-lo pelo canal e fugira para o interior da África. Para consubstanciar essa teoria, o xeque al-Salil expediu um mandado de prisão contra Kush e ofereceu uma recompensa de 10 mil rupias por sua captura. Depois de um mês ou pouco mais, quando nada mais se ouvia falar sobre o eunuco, os ociosos nos bazares perderam o interesse no caso.

O novo assunto das conversas na ilha tornou-se o término dos ventos kaskazi, o começo do kusi e a abertura de uma nova estação de comércio. E também a iminente partida do exército expedicionário do xeque al-Salil para o continente desviou os interesses de todos dos três eunucos desaparecidos.

Entre a grande comitiva do xeque, poucos prestaram uma atenção maior ao novo menino-escravo, Yassie. Embora o rapazinho fosse notavelmente belo e gracioso de corpo, mesmo com as túnicas até os tornozelos, a princípio pareceu doentio, tímido e hesitante. Contudo, a criada Tahi, a babá de infância do xeque e agora a nova governanta da casa, tomou o menino sob sua proteção. Yassie compartilhava seus aposentos, e logo sua beleza e modos agradáveis conquistaram os outros servos e escravos.

Yassie tinha uma voz de timbre cristalino e tocava o sistro com rara perícia. O xeque al-Salil mandava chamá-lo todas as noites, para que cantasse para ele em seus aposentos privativos e amenizasse as preocupações e o cansaço do dia. Ninguém na casa julgava isso estranho.

Nota de Rodapé: sistro Espécie de marimba com lâminas metálicas.

Fim da Nota.

Em questão de semanas, Yassie conquistara obviamente os favores especiais de seu senhor e se tornara um dos meninos criados do xeque. Depois, quando o senhor ordenou que a esteira de dormir do rapazinho fosse colocada na pequena alcova separada por cortinas de seu quarto de dormir, dentro de fácil alcance da própria cama de al-Salil, para que pudesse ministrar todos os cuidados ao mestre durante a noite, o fato foi encarado com naturalidade.

Na primeira noite daquele novo arranjo, al-Salil voltou tarde do conselho de guerra com seus capitães de caíque. Yassie cochilara enquanto esperava por ele. Ao ruído de passos, prostrou-se a seus pés quando al-Salil entrou no quarto, acompanhado por Batula. Yassie tinha jarros de água quente prontos sobre o braseiro e, depois que Batula ajudou o xeque a tirar suas vestes íntimas, Yassie derramou água sobre a cabeça e o corpo de al-Salil, para que ele pudesse se banhar. Nesse ínterim, Batula pendurou as armas de seu mestre nos ganchos ao lado da cama, espada e adaga besuntados, escudo polido, e, em seguida, voltou a ajoelhar-se para aguardar as ordens de seu senhor.

- Pode me deixar agora, Batula, porém me acorde uma hora antes da alvorada, pois há coisas que ainda precisam ser feitas antes de partirmos. - Enquanto falava, al-Salil enxugou-se nos panos que Yassie lhe estendeu. - Durma bem, Batula, e possam os olhos de Deus velar por seu sono.

No momento em que as cortinas caíram sobre o limiar da porta, por trás de Batula, Dorian e Yasmini sorriram um para o outro, e ele estendeu a mão para ela.

- Esperei tanto - disse, mas ela esquivou-se num passo de dança para longe de seu alcance.

- Tenho meus deveres para completar, nobre senhor. Devo pentear-lhe os cabelos e untar-lhe o corpo.

Ajoelhou-se ao lado de Dorian, que se sentou sobre um tapete de seda, e, com um pano de linho, esfregou-lhe os cabelos até estarem quase enxutos, e depois os penteou e fez uma única trança grossa atrás das costas nuas. Enquanto trabalhava, deixava escapar ligeiros murmúrios de admiração e assombro.

- Tão fartos e belos, da cor de ouro e açafrão...

Em seguida massageou-lhe os ombros com óleo de coco perfumado, e tocou as cicatrizes que lhe marcavam o corpo.

- Quando isso aconteceu?

- Num lugar chamado Passo da Gazela Astuta.

Os olhos de Dorian estavam fechados e ele se submetia ao toque habilidoso dos dedos de Yasmini, pois no harém lhe fora ensinada a arte de agradar a um futuro marido. A massagem era tão deliciosa e relaxante que ele se deixou cair num estado de torpor. Quando estava quase adormecido, Yasmini se inclinou para a frente.

- Ainda está muito sensível aqui? - E enfiou a língua dentro do orifício do ouvido de Dorian.

Aquilo o despertou, e ele bufou num protesto. Um arrepio eriçou-lhe os antebraços musculosos, e Dorian estendeu a mão e agarrou-a pela cintura.

- Você precisa ser ensinada a ter mais respeito, escrava.

Carregou-a para a cama, jogou-a sobre as cobertas e se ajoelhou de pernas abertas sobre ela, prendendo-lhe os braços acima da cabeça. Por um instante, riram, a se encararem, mas em seguida as risadas cessaram. Ele inclinou a cabeça e pousou a boca na de Yasmini.

Os lábios de Yasmini se abriram, cálidos e úmidos para recebê-lo, e ela murmurou em sua boca:

- Eu não sabia que o meu coração poderia conter tanto amor!

- Você é linda além de qualquer palavra - disse ele, ao correr os olhos pela extensão sedosa daquela pele dourada -, mas este seu corpo está curado?

- Completamente. Porém não tome a minha palavra como certa, mestre; prove-o para a sua própria satisfação, e a minha.

Quando o vento kusi soprou constante e forte pelo canal e os céus reluziram azuis, desprovidos dos cúmulos tempestuosos, a flotilha do xeque al-Salil zarpou de Lamu, e três dias depois fez a aproximação de terra no continente africano.

Sob a seda ondulante da bandeira azul, desembarcaram, e longas fileiras de homens armados e animais carregados seguiram caminho pela Costa da Febre, em marcha para o interior pela estrada dos escravos.

O xeque ia na vanguarda, e logo atrás dele estava o menino-escravo, Yassie. Alguns dos homens comentaram a adoração e o culto excessivo de herói que luzia no olhar do rapaz para seu senhor. E sorriram, indulgentes.

Pelos longos meses depois da fuga de Zanzibar, Tom Courtney explorou a costa do continente. Manteve-se bem ao sul das rotas de comércio árabes e evitou qualquer encontro com os omanianos, seja em terra ou no mar. Procuravam a foz do rio que Fundi, o caçador de elefantes, chamava de Lunga.

Sem o homenzinho a ajudá-los, poderiam nunca ter encontrado a entrada, pois o canal dobrava-se em si mesmo e ocasionava uma ilusão de ótica, de modo que, do mar, a terra parecia ininterrupta, e um navio poderia passar ao largo sem suspeitar da existência do desaguadouro do rio.

Assim que a pequena embarcação estava em segurança dentro do canal da foz, Tom lançou os dois escaleres à água. Neles, mandou Luke Jervis e Alf Wilson para que seguissem o canal principal e guiassem a Andorinha no trajeto. Havia muitos falsos igarapés e estreitos sem saída entre os canteiros de papiro, mas conseguiram abrir caminho em ziguezague no meio deles. Muitas vezes foram forçados a voltar quando o canal que seguiam se fechava. Custou-lhes dias de sacrifício e trabalho incessante virar a Andorinha, e Tom deu graças por ter a chalupa o calado raso. Sem isso, nunca teriam condições de cruzar os numerosos bancos de areia e vaus. Por fim, chegaram ao curso principal do rio.

Os canteiros de papiros eram infestados de crocodilos de aparência assustadora e de hipopótamos de bocas imensas, que pareciam ruminar e berrar incessantemente. Sobre eles, zunia uma nuvem de insetos em massa compacta. Imensos bandos de pássaros estridentes e barulhentos alçavam vôo dos juncos quando eles passavam.

Abruptamente, os canteiros de juncos ficaram para trás, e eles passaram a navegar por entre trechos de planícies aluviais semelhantes a campinas e porções de floresta aberta de cada lado das margens. Ali, hordas de animais estranhos interrompiam a pastagem e erguiam as cabeças, a observarem as pequenas embarcações passarem, em seguida bufavam de susto e disparavam para o interior da floresta. Sua quantidade e variedade eram impressionantes, e os marinheiros se amontoavam na amurada do navio para olhar e se maravilhar com eles.

Havia graciosos antílopes, alguns do tamanho do veado-vermelho inglês, outros muito maiores, com chifres estranhos, fantásticos, em forma de cimitarra ou de lua crescente ou retorcidos como saca-rolhas, nenhuma galhada como a dos cervos que eles conheciam de casa. Todos os dias, desembarcavam para caçar aqueles animais. Obviamente, aqueles animais nunca tinham visto homens brancos com armas de fogo, de maneira que os caçadores conseguiam se aproximar dentro de uma distância fácil de um tiro de mosquete e derrubá-los com uma bala de chumbo bem colocada. Jamais lhes faltava comida, e salgavam e secavam aquilo que não podiam consumir de imediato.

Assim que abatiam a presa e depois a estripavam e esquartejavam, criaturas ainda mais estranhas vinham escarafunchar os ossos e as vísceras que eles deixavam nas margens do rio. As primeiras a chegar eram as aves de rapina, cegonhas carniceiras e abutres de meia dúzia de espécies, que enchiam o céu com uma nuvem escura e revolta e, em seguida, desciam e pousavam. Graciosos e imponentes em vôo, eram grotescos e horripilantes no chão.

Depois da chegada das aves, apontavam criaturas com feições de cão, que ganiam e ululavam como banshees, os espíritos femininos das lendas gaélicas que prenunciam a morte, e pequenas raposas vermelhas com as costas listradas de preto e os flancos prateados.

Depois, viram os primeiros leões. Tom não precisou que Aboli lhe dissesse o que eram aqueles enormes gatos com jubas revoltas: reconhecia-os dos brasões heráldicos de reis e nobres da Inglaterra e das ilustrações em centenas de livros da biblioteca de High Weald. O rugido e o monstruoso rosnar daqueles animais ferozes à noite impressionavam os homens em suas redes, e Sarah aconchegava-se nos braços de Tom, no estreito catre de sua pequena cabina.

Nas florestas e sendas, procuravam por sinais de elefantes, a caça que desejavam, cujas presas os reembolsariam de todos os esforços e despesas. Fundi e Aboli descobriram grandes marcas de patas sobre a argila queimada pelo sol.

- Estas foram feitas na última estação da Grande Umidade - disseram a Tom.

Então, avançaram por entre as árvores da floresta, devastadas como se por um vento poderoso, desprovidas de seus galhos da copa e da casca. As árvores estavam secas, e suas feridas havia tempo esturricadas.

- Um ano atrás - disse Fundi. - As manadas se foram e podem não retornar por muitas estações.

O terreno tornou-se ondulado e o rio Lunga retorcia-se pelos vales, cada vez mais veloz, cheio de corredeiras. Logo, abriam caminho apenas com muita dificuldade, pois fragmentos rochosos e agudas pedras negras guardavam o canal e, a cada quilômetro que seguiam, colocavam a pequena Andorinha em grande perigo.

Por fim, chegaram a um lugar onde o rio formava um cotovelo ao redor de uma colina suave, de mata fechada. Tom e Sarah desembarcaram e subiram até o cume. Sentaram-se juntos no pico, e Tom, com a luneta, inspecionou a terra abaixo.

- É uma fortaleza natural - disse, depois de um longo exame. - Estamos rodeados em três lados pelo rio. Precisamos apenas construir uma paliçada através daquela língua de terra e estaremos protegidos de homens e animais. - Em seguida apontou para a pequena baía com as laterais rochosas de inclinação suave. - Lá está um perfeito atracadouro para a Andorinha.

- O que faremos aqui? - perguntou Sarah. - Pois ainda não há sinal de elefantes.

- Será nosso acampamento de base - ele explicou. - Daqui, poderemos adentrar a floresta com escaleres ou a pé, até encontrarmos as manadas que Fundi nos prometeu.

Construíram uma paliçada de pesados troncos pelo estreito do cotovelo do rio. Desembarcaram os canhões da Andorinha e os montaram em plataformas a leste, para cobrir o declive defensivo em frente à fortificação. Depois, construíram cabanas de madeira e revestiram as paredes de barro, e fizeram os telhados com juncos trançados da margem do rio.

O dr. Reynolds montou sua clínica numa das cabanas e arrumou seus instrumentos cirúrgicos e medicamentos. Todos os dias forçava cada um dos membros do grupo a engolir uma colherada do pó verde e amargo de quinino que ele comprara nos mercados de Zanzibar, e embora o remédio fizesse seus ouvidos zunirem, e eles protestassem e xingassem para ingeri-lo, não houve ocorrência de febre no acampamento. Sarah tornou-se habilidosa aprendiz do médico, e logo conseguia costurar um talho fundo em um pé, causado por um golpe descuidado de machado, ou administrar um purgativo ou sangria a um doente, com tanta pose quanto a de seu professor.

Sarah escolhera o local de sua cabana a uma discreta distância das outras. Tinha uma bela vista sobre o vale do rio até as montanhas azuis, ao longe. Usou os tecidos de algodão dos fardos de mercadorias para costurar cortinas e roupas de cama. Depois, desenhou a mobília e pediu aos carpinteiros do navio que a fabricassem para ela.

Ned Tyler tinha um instinto nato de fazendeiro e, para aumentar a dieta de carne e bolachas, iniciou uma horta com sementes que trouxera da Inglaterra. Irrigou-as por meio de canaletes que ele cavou na margem do rio. Depois, travou uma guerra sem fim com os macacos e micos que vinham atacar os brotos verdes quando irrompiam no solo.

Em questão de poucos meses, o acampamento estava completo, e Sar ah deu-lhe o nome de Forte Providência. Na semana seguinte, Tom carregou os escaleres com mercadorias, pólvora, mosquete e balas. Com Fundi para guiá-los, deram início a uma expedição de caça e exploração rio acima, em busca das esquivas manadas de elefantes e das tribos nativas com quem pretendiam estabelecer comércio.

Ned Tyler foi deixado, com cinco homens, como responsável pelo Forte Providência. Também Sarah ficou com Ned, pois Tom não permitiria que ela fizesse a viagem rio acima até que soubesse que perigos encontrariam adiante. Sarah assumiria os deveres do dr. Reynolds na ausência deste, e tinha planos de continuar o trabalho de decoração do novo lar. Ficou em terra, e acenou para Tom até que os escaleres desapareceram na curva do rio.

Três dias de viagem além do forte, os escaleres atracaram para a noite numa confluência com um afluente. Enquanto recolhiam lenha e faziam abrigos com galhos de espinhos para se proteger de predadores noturnos, Fundi e Aboli esquadrinharam as margens do riozinho. Tinham se afastado fazia pouco tempo, e Fundi voltou correndo pelas árvores. Seus olhos dançavam de excitação ao explodir numa enxurrada de explicações confusas. Quando Fundi terminou, Tom entendera apenas umas poucas palavras. Teve de esperar Aboli chegar ao acampamento para obter o relatório completo.

- Sinais frescos - Aboli lhe disse. - De um dia. Uma grande manada, talvez de uns cem, e uns poucos machos mais velhos com eles.

- Precisamos segui-los de imediato.

Tom estava mais excitado que o pequeno caçador, mas Aboli apontou para o sol, que brilhava apenas da largura de um dedo acima da copa das árvores.

- Estará escuro antes que tenhamos caminhado um quilômetro. Partiremos às primeiras luzes da manhã. Uma tal manada será fácil de seguir. Movem-se lentamente, alimentando-se enquanto caminham, e deixam uma estrada pela floresta.

Antes que a escuridão caísse, Tom já planejara a expedição. Seriam quatro mosqueteiros a atacar os enormes paquidermes: ele e Aboli, Alf Wilson e Luke Jervis. Cada caçador teria dois homens para levar as armas sobressalentes, para recarregar e estender-lhes um mosquete com nova munição depois de cada disparo. Tom verificou as armas pessoalmente. Eram os mosquetes de cano estriado que comprara em Londres. Certificou-se de que havia pederneiras sobressalentes para os mecanismos de disparo, que os frascos de pólvora estivessem cheios, e os sacos de balas, recheados de projéteis de chumbo, reforçados com antimônio, para as armas de fogo de calibre dez. Calibre dez significava o diâmetro dos canos para balas iguais a dez das balas de chumbo comuns, e que pesavam 28 gramas. Enquanto trabalhava com as armas, Aboli encheu os odres e assegurou-se de que tinham bolachas e carne-seca para a jornada de três dias.

Mesmo depois do longo dia, a remar e a arrastar os botes pelos baixios, todos no grupo estavam por demais excitados para dormir. Sentaram-se ao redor da fogueira, ouvindo os sons estranhos da noite africana, o trinado e o pio das aves noturnas, o gargalhar pavoroso da hiena e os rugidos retumbantes de um grupo de leões nas longínquas colinas.

Muitas vezes, no curto tempo em que Fundi estava entre eles, Tom ouvira-lhe as histórias de suas caçadas aos poderosos animais cinzentos, mas pediu ao homenzinho que as repetisse então. Aboli traduzia quando Tom não conseguia acompanhar, porém o seu conhecimento da língua dos lozi melhorava a cada dia, e ele pôde entender muito do que Fundi dizia.

Fundi explicou de novo como o elefante tinha a visão muito fraca, mas que possuía um olfato que poderia alertá-lo da presença de um caçador a dois quilômetros de distância na direção do vento.

- Ele pode sugar seu cheiro no ar e mantê-lo nas cavidades dos ossos da cabeça, correr com ele por uma grande distância e soprá-lo pela tromba para dentro da boca dos companheiros.

- Dentro da boca? - indagou Tom com a curiosidade exacerbada. - Não nas narinas?

- O olfato de Nzou fica na ponta da língua - Fundi explicou. Sua denominação para o elefante denotava um velho sábio, não um animal, e ele a usava com respeito e afeição, expressando o sentimento do verdadeiro caçador para com sua presa. - Existem botões cor-de-rosa em sua boca, como as flores da ginjeira. Com isso, ele prova o ar.

Com uma vara, Fundi desenhou o contorno do animal no chão, e eles se inclinaram para a frente, à luz da fogueira, a observar, atentos, enquanto ele explicava onde um homem deveria colocar sua flecha para derrubar um daqueles gigantes.

- Aqui! - Tocou um ponto atrás da espádua de seu desenho. - Com bastante cuidado para não acertar os ossos da perna, que são como troncos de árvore. Fundo! Enterre o ferro bem fundo, pois o coração e os pulmões estão escondidos atrás da pele, grossa assim. - Mostrou o comprimento de seu polegar. - E músculos e costelas. - Estendeu os braços. - Deve penetrar fundo desse jeito, para matar Nzou, o velho sábio cinzento da floresta.

Quando Fundi finalmente encerrou a narrativa, Tom implorou que continuasse. Ele, porém, se levantou com dignidade.

- Será uma longa e cansativa jornada amanhã, e é hora de descansar agora. Eu lhe ensinarei, mas quando estivermos em seus rastros.

Tom deitou-se, insone, a excitação a fervilhar em seu sangue, até que a lua quase completara o circuito pelo firmamento. Quando fechava os olhos, a imagem da caça aparecia em sua imaginação. Nunca pusera o olhar sobre o animal vivo, porém vira centenas de suas presas empilhadas nos mercados das ilhas das Especiarias, e ele se lembrou de novo do poderoso par que seu pai comprara do cônsul Grey, em Zanzibar, e que agora se encontrava na biblioteca em High Weald.

- Matarei outro animal como aquele - prometeu a si mesmo, e, uma hora antes da alvorada, caiu finalmente num sono tão profundo e pesado que Aboli teve de sacudi-lo para o acordar.

Tom deixou dois homens de guarda nos escaleres e, aos primeiros lampejos da fria aurora, partiram nos rastros que a manada de elefantes deixara pela margem do rio.

Como Aboli lhe dissera, o sinal era fácil de ler, e avançaram com presteza. Quando a luz aumentou, seguiram mais depressa, e as árvores contavam a história da passagem da manada, esmagadas e desprovidas de casca e galhos. Montes enormes de excrementos amarelos forravam o chão da floresta, e bandos de macacos e de aves marrons como perdizes escarafunchavam os resíduos em busca de sementes e frutos não-digeridos.

- Este é o excremento de um macho muito velho, um que pode ter presas enormes - explicou Aboli. - O marfim nunca pára de crescer até que o animal morre.

- Como pode distinguir esse monte de bosta daquele de um animal jovem? - Tom quis saber.

- O velho não consegue digerir sua comida adequadamente. -? Aboli enterrou o dedo do pé no monte. - Veja, os rebentos ainda estão inteiros, e as folhas, intactas. Aqui, as castanhas da palmeira, com metade da polpa ainda grudada à semente.

Tom examinou com atenção aquele primeiro monte de excremento. Um livro aberto que lançava a luz do ensinamento prático sobre a caçada.

No fim da manhã, chegaram ao ponto em que a manada deixara o riacho e mudara de rumo em direção oeste, para as colinas. Ali, tinha atravessado uma área onde a superfície era de fino pó de talco. Naquele meio, a impressão das patas dos elefantes era tão detalhada que cada dobra e vinco estava fielmente preservado.

- Aqui! - apontou Aboli para uma sucessão de marcas. - Este é o rastro do grande macho. Veja o tamanho de cada impressão: a pata da frente redonda, e a de trás, mais oval. - Aboli colocou seu braço ao lado de um dos rastros, usando como medida a extensão da ponta do dedo até o cotovelo. - Tal distância significa que é um macho enorme, e veja como as almofadas dos pés são macias e raladas! Ele é muito velho. A menos que suas presas estejam desgastadas ou quebradas, esse será verdadeiramente um animal que vale a pena caçar.

Atravessaram a primeira fileira de colinas e, no vale luxuriante à frente, Fundi e Aboli descobriram os sinais de que a manada se alimentara e descansara ali na noite anterior.

- Ganhamos muitas horas sobre eles! - exultou Fundi. - Não estão muito longe.

Tom, porém, iria aprender naquele dia que a concepção de distância de Fundi não coincidia com a sua própria. Ao cair da noite, ainda prosseguiam nos rastros da manada, e Fundi continuava a afirmar que os grandes paquidermes não estavam muito distantes.

 

Todos os homens brancos no grupo beiravam a exaustão, marinheiros que eram, desacostumados de cobrir tais distâncias a pé. Mal tiveram força para comer uma bolacha e um pedaço de carne-seca, para engolir um gole de água dos odres, antes de cair adormecidos no chão duro.

Na manhã seguinte, enquanto ainda era escuro, estavam de novo atrás da manada. Em breve tornou-se evidente, pelos sinais, que haviam perdido muito do ganho do dia anterior, pois a manada se mantivera em movimento para oeste, ao luar, enquanto eles dormiam. Para grande parte dos brancos, a marcha transformou-se um tormento interminável de sede, músculos doloridos e bolhas nos pés. Tom era jovem, forte e ansioso o bastante para arrostar as adversidades, e seguia firme atrás dos batedores, com o pesado mosquete sobre o ombro.

- Estamos perto. Estamos muito próximos agora. - Fundi sorriu com um brilho malicioso no olhar, e os quilômetros de sofrimento ficaram para trás.

Já então os odres estavam quase vazios, e Tom teve de advertir os homens com duras ameaças que não bebessem sem permissão. Minúsculas moscas pretas zuniam em nuvens em torno de suas cabeças e se infiltravam em suas orelhas, olhos e narinas. O sol batia como um martelo numa bigorna e se refletia no solo pedregoso. Os espinhos em gancho cravavam-se em suas pernas, rasgando-lhes as roupas e deixando vergões sangrentos na pele.

Por fim, descobriram onde a manada parara, num trecho de floresta densa; passara horas ali descansando, envolvendo-se no pó e derrubando galhos, antes de se pôr a caminho de novo. Os caçadores finalmente tinham feito um progresso real sobre os animais.

 

Aboli mostrou a Tom que os excrementos que a manada deixara ainda não tinham tido tempo de secar. Ao enfiar o dedo num monte, pôde sentir o calor residual do corpo do grande paquiderme. Nuvens de borboletas de cores vibrantes esvoaçavam sobre os resíduos mornos para lhes sugar a umidade. Com vigor renovado nas pernas, todos aumentaram os passos e subiram outra fiada de colinas.

Sobre os declives rochosos, cresciam árvores estranhas com troncos inchados e coroas de galhos sem folhas nas copas, a uns quinze metros acima do solo. Na base de uma delas, enormes castanhas peludas se espalhavam. Aboli quebrou uma: dentro, as sementes pretas eram cobertas por uma polpa amarelada.

- Chupe as sementes - disse.

O gosto azedo agradável encheu outra vez de saliva a boca de Tom e aliviou a sede provocada pela marcha.

A fila de caçadores, curvados com o peso das armas e odres de água, escalou com sacrifício o declive da colina. A pouca distância do cume, suas cabeças se ergueram. Um som impressionante chegara até eles, trazido pelo ar abafado, longínquo, porém sonoro como o sopro de uma trompa de guerra. Embora Tom jamais tivesse ouvido algo assim em sua vida, soube instintivamente o que era.

Ordenou que a coluna parasse abaixo do cume da colina. A maior parte dos homens desabou, agradecida, à sombra. Ele, Aboli e Fundi subiram até o topo da elevação. Usaram um tronco de árvore para disfarçar suas silhuetas ao esquadrinhar o vale que se abria adiante, e o coração de Tom saltou contra suas costelas como um animal enjaulado.

Pela extensão do vale, lá embaixo, havia uma sucessão de reluzentes lagoas esverdeadas, cada uma rodeada de canteiros verdejantes de juncos e árvores de galhos esparramados. A manada de elefantes estava reunida em torno das lagoas, alguns dos maiores animais parados a sombra, abanando-se com as orelhas que pareceram a Tom tão grandes como a vela mestra da Andorinha. Outros se postavam nas margens barrentas que circundavam os poços e mergulhavam as trombas na água esverdeada, sugando-a em goles pantagruélicos, para depois curvar aqueles enormes canos de carne para dentro das bocas e impulsionarem o líquido em jato pelas gargantas com a força de uma bomba de esgotamento do porão de um navio. Animais mais jovens amontoavam-se dentro das lagoas. Como crianças travessas, brincavam e espadanavam, a bater na água com as trombas, e sacudiam as enormes cabeças e orelhas. Seus corpos molhados eram negros e reluzentes. Alguns se deitavam e então rolavam dos lados, e desapareciam completamente da superfície, deixando apenas as trombas a apontar na linha da água como serpentes marinhas.

Tom abaixou-se sobre um joelho e levou a luneta ao olho. A primeira visão dos animais lendários era tão diferente de qualquer coisa que ele pudesse ter imaginado que ficou deslumbrado. Deliciou-se com cada detalhe. Uma das crias mais novas, não maior que um porco adulto, porém traquinas e briguenta, arrojou-se para fora da água e, agitando a tromba e com um brado tonitruante, atacou as garças brancas que se empoleiravam na beira da lagoa. As aves alçaram vôo numa elegante nuvem alva, e o pequeno elefante recuou de novo para a água; suas patas escorregaram pela lama, e ele se viu preso sob uma tora submersa.

Seus brados, agora de pavor, levaram cada fêmea protetora dentro do alcance do aulido a correr para resgatá-lo, convencida de que a cria fora atacada por um crocodilo. O elefantinho foi arrastado para fora da água, sua dignidade destruída, e fugiu, envergonhado, a se esconder entre as pernas da mãe, buscando conforto no úbere inchado de leite entre as pernas maternas. Tom soltou uma gargalhada sonora. Aboli então lhe tocou o ombro e apontou para um grupo de três enormes animais que se mantinham alheios ao comportamento tumultuado das crias de pouca idade.

Estavam num trecho de vegetação densa, do lado mais distante da água, parados ombro a ombro, orelhas a sacudirem com preguiça. Ocasionalmente, um deles apanhava um punhado de pó com a tromba e o jogava sobre a cabeça e a cernelha. Não fosse isso, pareceriam adormecidos de pé.

Com a luneta, Tom estudou aquele trio portentoso que ananicava qualquer outro animal da manada. Examinou as longas presas de marfim que ostentavam e viu de imediato que, embora fossem todas imensas, as do macho no centro protendiam de seus lábios até quase a extensão de um remo de bote, e que eram da grossura da cintura delgada de Sarah. Sentiu a pulsação de seu sangue de caçador latejar nos ouvidos a cada batida de seu coração. Aquele era o macho com que sonhara, e seu instinto foi pegar o mosquete que deixara encostado no tronco da árvore ao lado e descer correndo para travar batalha com o gigante. Aboli, porém, sentiu-lhe o ímpeto e pousou uma mão em seu ombro.

- Aquelas são criaturas sábias e prudentes - advertiu a Tom. - Não será fácil enfrentar aquele macho. Suas fêmeas o guardarão e o protegerão. Será necessária toda a nossa habilidade e precaução para despistá-las.

- Explique-me o que devemos fazer - pediu Tom, e Aboli e Fundi postaram-se de cada lado dele e detalharam a caçada.

- O vento é a chave - Aboli lhe disse. - Devemos sempre nos manter contra o vento.

- Não há vento! - exclamou Tom, e apontou para as folhas que pendiam imóveis dos galhos da copa das árvores ao causticante sol do meio-dia.

- Sempre há vento - Aboli o contradisse e deixou um punhado de pó escorrer por entre seus dedos. As finas partículas douradas flutuaram ao sol e lentamente esvoaçaram para longe. Aboli fez um gesto delicado, descrevendo-lhes o movimento descendente até o vale.

- Se estão alarmados, os elefantes sempre correm com o vento em suas caras e depois farão a volta contra o vento e farejarão o ar. - Fez outro gesto para ilustrar a manobra. - Postaremos Alf e Luke lá e acolá. - Apontou para as posições. - Com eles a postos, você e eu desceremos por ali. - Indicou a trilha de perseguição. - Chegaremos bem perto. Quando atirarmos, os machos se verão impelidos a se reunir aos outros.

Tom acenou para Alf e Luke para que subissem e se juntassem ao grupo no topo da colina. Assim que se recobraram do espanto inicial à primeira visão da portentosa caça, Tom lhes passou as ordens e mandou que contornassem a elevação por trás e atravessassem o terreno um quilômetro e meio adiante, descendo para o vale, onde estariam fora da vista da manada e contra o vento.

Apenas cerca de uma hora depois, por meio da luneta, Tom descobriu os dois grupos de caçadores que se moviam pelo vale nas posições que lhes assinalara. Era bom ter homens que conheciam seu modo de pensar e podiam executar ordens tão fielmente.

Com Aboli na liderança, esgueiraram-se sem ruído pelo topo da colina, usando as árvores e arbustos como anteparo para a travessia. Os imensos animais não estavam de pálpebras tão pesadas que não pudessem divisar um movimento estranho. O grupo desceu em direção às lagoas, furtivo e cauteloso para não deparar com uma das fêmeas dispersas entre as árvores. Tom mal podia acreditar que um animal tão grande conseguisse tornar-se virtualmente invisível quando se embrenhava na vegetação densa, cinza no cinza, as pernas semelhantes a troncos. Lentamente, fecharam-se sobre o trio de machos. Embora ainda lhes fossem invisíveis, os caçadores guiavam-se por seus profundos bufos.

Tom murmurou para Aboli:

- É o som de suas barrigas?

Aboli meneou a cabeça.

- Os velhos estão conversando.

Ocasionalmente, avistavam uma nuvem de poeira acima do topo dos arbustos quando um dos machos espargia terra em seu corpo. Aquilo os guiou pelo mato grosso. Passo após passo cauteloso, avançaram, e uma vez tiveram de recuar e contornar uma jovem fêmea e sua cria nos arbustos, que se postavam entre eles e a presa pretendida.

Por fim, Fundi fez um gesto e os parou. Apontou à frente. Tom abaixou-se sobre um joelho e, ao olhar por baixo das trepadeiras e galhos pendentes, divisou as enormes patas dianteiras acinzentadas do macho mais próximo. O suor da excitação lhe ardia nos olhos e picava como água salgada. Enxugou-o com o lenço amarrado em torno do pescoço, e verificou a pederneira de seu mosquete. Aboli fez um gesto de cabeça, e Tom puxou o percussor em meio percurso. Começaram a rastejar para a frente.

Lentamente, as partes do animal mais próximo surgiram à vista: a curva da barriga, a pele cinzenta pendurada em dobras em torno dos joelhos, e depois o contorno curvo de uma presa grossa, amarelada.

Rastejaram para mais perto ainda, e Tom viu que a presa estava manchada do sumo da casca que o macho arrancara das árvores da floresta. Ainda mais próximos, e ele conseguiu enxergar cada vinco e ruga na pele, cada pêlo espetado no rabo fino e curto. Tom olhou para Aboli e fez um gesto de disparo, mas Aboli sacudiu a cabeça com veemência e fez sinal para que avançassem ainda mais.

O macho se embalava suavemente nos pés, e então, para surpresa de Tom, algo extraordinário começou a se distender por entre suas pernas traseiras. Era mais grosso que a coxa de um homem e esticou-se quase até o chão. Tom fez um esforço para impedir-se de cair na risada. Sonolento e feliz, o velho macho deixara seu membro pender solto e intumescido.

De novo, Tom relanceou os olhos para Aboli em busca de instruções, e outra vez Aboli franziu a testa e o mandou avançar com um gesto do queixo. Naquele momento, porém, o animal deu alguns passos para trás e apanhou com a tromba um punhado de folhas dos galhos acima. O movimento revelou o outro macho, que estivera oculto atrás de seu corpanzil.

Tom buscou fôlego com um suave assobio ao ver quanto era maior o velho patriarca se comparado a seu acompanhante. Sua cabeça enorme estava curvada e suas orelhas se abanavam suavemente. Eram rotas e desgastadas como as velas de um navio batido pela tempestade. Os olhos miúdos estavam fechados, e uma secreção escorria pela face numa longa nódoa melada.

A cabeça do macho era um suporte proporcional às suas presas. Tom maravilhou-se com o comprimento e a grossura daquelas curvas de marfim que chegavam até o chão. Devia ser um fardo oneroso, mesmo para um animal tão potente, carregar aquilo durante todos os dias de sua vida, pensou.

Tom estava tão próximo agora que conseguiu ver claramente uma mosca azul metálico sentar-se nos cílios do macho. O elefante pestanejou para afastá-la. Naquele momento, Tom sentiu um ligeiro toque no braço, e virou a cabeça lentamente para ver que Aboli lhe fazia um sinal. Voltou-se de novo e focalizou o olhar sobre o contorno dos ossos da espádua do macho, sob a pele vincada e erodida. Divisou o ponto exato que Fundi lhe descrevera, logo atrás do ombro e a dois terços do caminho do volume arredondado e poderoso do peito.

Ergueu o mosquete e lentamente puxou o percussor para armá-lo por completo, e abafou o clique do mecanismo com a palma da mão. Ao olhar pelo cano longo, viu que a boca quase tocava o flanco do macho. Não havia necessidade de usar a ponta da mira. Fez pressão no gatilho, e o percussor caiu num estouro de fagulhas branco-azuladas sobre a caçoleta de escorva. Houve um instante de retardo que pareceu tão longo como o infinito, mas que demorou uma fração de segundo, e então a pesada arma berrou e deu um coice em seu ombro, e o cegou com uma nuvem de fumaça branca de pólvora que obscureceu o corpo do elefante.

Um momento depois de seu tiro, Tom ouviu o disparo de Aboli. Por todo o derredor, a tranqüila floresta entrou em erupção num atropelo de corpos imensos. A trombetear e guinchar, a manada disparou pelo mato, e árvores se dobravam e se arrebentavam sob aquela investida violenta.

Tom deixou cair a arma vazia, levou a mão para trás, pegou o segundo mosquete do homem às suas costas e saltou de pé. Correu em meio à espessa nuvem de fumaça e, ao emergir do outro lado, viu os quartos traseiros do macho desaparecerem quando a moita se fechou por trás dele.

- Cace-o! - Aboli gritou, e correram atrás do animal fugitivo.

Por toda volta, ouviam as fêmeas e as crias em disparada, aos urros e gritos, o baque de tantas patas juntas ensurdecedor. Espinhos e galhos enroscavam-se em Tom, mas ele ignorou os rasgos nas roupas e os talhos na pele, e correu pela trilha que o macho deixara pelo mato.

Irrompeu na margem aberta de uma das lagoas, e o elefante se encontrava a uns quinze metros adiante dele, suas orelhas abertas e as curvas das presas a se mostrarem, amarelas, de cada lado de seu enorme quarto traseiro, enquanto ele seguia em disparada para longe de Tom. Os tufos de pêlos do rabo curto estavam empinados, e Tom pôde ver os nós da coluna vertebral que corria pela curva do dorso até se juntar à cauda.

Ergueu o mosquete e disparou na espinha; o macho caiu numa posição sentada em seu traseiro e escorregou pela margem. Mas a bala devia apenas ter machucado a espinha em vez de quebrá-la. Ao chegar ao fundo da margem, o elefante levantou-se nas quatro patas de novo e atirou-se na água da lagoa e para cima da margem do outro lado.

Aboli corria ao lado de Tom e ergueu o mosquete. Disparou através da lagoa. Ambos viram a bala arrancar um tufo de lama seca da traseira do crânio do elefante, mas o animal sacudiu a cabeça, fazendo as orelhas baterem contra os flancos, e desapareceu no matagal fechado do lado oposto. Tom agarrou seu terceiro mosquete do marinheiro ofegante que o seguira e desceu escorregando pela margem em perseguição do macho.

Atrás dele estava Aboli, e puderam ver o trajeto que o elefante rasgava pela floresta - as copas das árvores tremiam, e havia uma onda de farfalhar crepitante pelos arbustos, como aquela de uma baleia a respirar sob a superfície do mar.

De repente, ouviu-se um estouro ribombante de disparos de mosquetes ao longe, no flanco direito, onde os outros caçadores estavam escondidos, e Aboli resmungou:

- Os outros machos correram para Alf e Luke.

Numa corrida emparelhada, contornaram a beira da lagoa e se embrenharam no mato do lado oposto. A trilha que o macho abrira estava se fechando por trás dele, e Tom e Aboli lutaram com dificuldade para passar, perdendo roupa e pele para os espinhos.

- Nunca o pegaremos - Tom murmurou, ofegante. - Vai fugir para longe de nós.

Porém, quando chegaram por fim a uma clareira, ambos soltaram um grito de triunfo ao ver o grande macho a apenas um tiro de pistola adiante. Estava gravemente ferido. Sua velocidade fora reduzida para um passo trôpego, a cabeça pendia, as presas escavavam longas valas na terra fofa, e sangue claro e espumoso borbulhava na ponta de sua tromba.

- Seu primeiro tiro acertou-o no pulmão! - Aboli berrou. Correram para a frente com renovado vigor e alcançaram rapidamente o animal ferido.

A dez passos atrás dele, Tom caiu sobre um joelho. Ofegava, necessitando de ar, o coração acelerado e as mãos trêmulas ao tentar fazer a mira para o traseiro oscilante, mais uma vez para a espinha.

Atirou, e a bala percorreu o cano estriado. Um instante antes que a fumaça lhe toldasse a visão, Tom viu que o projétil se enterrava no largo dorso acinzentado, arrebentando as vértebras acima da cauda. O macho caiu nos quartos outra vez. Tom deu um impulso para a frente e se ergueu nos pés. Correu para o lado para poder enxergar através da nuvem de fumaça.

O elefante estava sentado diante dele, e sacudia a cabeça com fúria e dor, as grandes presas erguidas bem ao alto, e soprava uma nuvem carmim de sangue pela ponta da tromba. Seus berros de agonia pareciam altissonantes o suficiente para partir o crânio de Tom e lhe estourar os tímpanos.

Aboli disparou na cabeça do animal, e embora vissem a bala atingir a testa arredondada, ela não conseguiu penetrar a fortaleza do osso no qual o cérebro estava encerrado. Acuado, o macho tentou arrastar suas patas traseiras insensíveis e alcançar seus perseguidores.

Os dois homens recuaram para bem longe do alcance da tromba oscilante e, com mãos pouco firmes, derramaram pólvora dentro da boca dos mosquetes, socaram a bucha e as balas, em seguida avançaram em círculo para encontrar uma abertura e chegar mais perto, antes de disparar no arco do peito do animal.

Mais uma vez, correram para trás a fim de recarregar a arma, e depois avançaram de novo para disparar. Gradualmente, a força do elefantes escoou-se pelas bocas de vinte ferimentos por onde o sangue vertia aos borbotões e, com um último gemido de agonia, ele caiu de lado, esticou aquelas fabulosas presas e ficou imóvel.

Tom adiantou-se com cautela. Estendeu o braço e, com o cano do mosquete, tocou o olho miúdo, debruado de cílios claros e marejado de lágrimas quase humanas. Não piscou. Finalmente o macho estava morto. Ele quis gritar seu triunfo, mas se viu de súbito dominado por uma estranha e quase piedosa melancolia. Aboli veio se postar ao seu lado e, quando seus olhos se encontraram, Aboli meneou compreensivo a cabeça.

- Sim - disse baixinho. - Você aprendeu o que significa ser um verdadeiro caçador, pois compreendeu a beleza e a tragédia do que fazemos.

Alf e Luke tinham abatido um dos outros machos, mas o terceiro escapara da emboscada e correra para longe, incólume, com o resto da manada, para dentro da floresta. Tom queria segui-lo, porém tanto Fundi como Aboli riram dele.

- Nunca mais o verá outra vez. Ele correrá por trinta quilômetros sem parar e, depois, andará por outros oitenta quilômetros mais rápido do que você poderia correr.

Naquela noite, banquetearam-se como príncipes com a carne dura e rançosa do elefante, assada em varas verdes sobre as brasas, e beberam da água lamacenta da lagoa, tingida da urina dos animais, como se provassem o mais fino clarete. Dormiram como mortos ao lado da fogueira.

Pelos próximos dois dias, arrancaram as presas dos dois machos, cortando-as do crânio com infinito cuidado para não marcar ou estragar o marfim. Fundi mostrou-lhes como remover o longo nervo cónico da cavidade do interior de cada presa e encher o orifício com mato verde. Em seguida, usaram tiras trançadas de casca de árvore como cordas para amarrar as quatro enormes presas aos varais de transporte. Quando encetaram a longa marcha de volta até onde haviam deixado os botes, foram precisos quatro homens para carregar cada presa.

Ao alcançarem o rio de novo, descarregaram as presas na margem. Em seguida cavaram um fosso e enterraram o tesouro tão fundo que nem mesmo uma hiena poderia desenterrar e triturar o marfim. Depois, seguiram rio acima nos escaleres. A cada dia, encontravam mais e mais sinais recentes de elefantes, e os seguiam a pé, algumas vezes os matando dentro de uns poucos quilômetros. Outras vezes eram forçados a caminhar dias e dias para alcançar as manadas.

Em questão de um mês, tinham colhido marfim suficiente para lotar os dois escaleres. Os homens brancos do grupo estavam exaustos, acabados. A gordura se queimara em seus corpos, suas faces barbadas eram pele e osso, e os corpos, esqueléticos. Apenas Aboli e Fundi pareciam incólumes às agruras da caçada. Houve um regozijo geral quando Tom anunciou sua decisão de voltar ao Forte Providência.

Naquela noite, no acampamento, Aboli e Fundi se aproximaram de onde Tom se sentava a fitar as chamas da fogueira agonizante, pensando em Sarah e antecipando o reencontro dos dois. Aboli e Fundi se agacharam de cada lado dele, e Tom examinou as faces escuras, pensativo, antes de dizer alguma coisa.

- Esse é um assunto muito sério, pelo visto - disse. - Posso ver que pretendem estragar a minha alegria e o meu prazer de voltar ao Forte Providência. - Suspirou com resignação. - Muito bem, o que é?

- Fundi diz que estamos muito perto das terras do povo dele, os lozi.

- Perto quanto? - Tom indagou, com suspeita. Já então falava a língua dos lozi com confiança e aprendera a dimensionar o que Fundi considerava "muito perto".

- Dez dias de viagem - Fundi respondeu, confiante, mas quando Tom o fitou acusadoramente, baixou os olhos. - Ou talvez um pouquinho mais - admitiu.

- Então Fundi quer retornar ao seu próprio povo? - indagou Tom.

- E eu irei com ele - disse Aboli, baixinho.

Tom sentiu um sobressalto. Levantou-se e levou Aboli para longe da fogueira e depois o encarou, quase enfurecido.

- O que é isso? - perguntou. - Quer me deixar e voltar para a África?

Aboli sorriu.

- Só por algum tempo. Você e eu nos tornamos galho e rebento da mesma árvore. Não podemos nos separar.

- Então, por que vai sem mim?

- Por muitos anos, os lozi têm sido caçados pelos mercadores de escravos. Se eles puserem os olhos na sua cara branca... - Deu de ombros significativamente. - Não, eu irei com Fundi. Trocaremos mercadorias com eles, tantas quantas pudermos carregar. Fundi diz que a sua tribo tem uma reserva de marfim, dos elefantes que pegam nas armadilhas e das carcaças de animais velhos que encontram mortos na floresta. Com Fundi para lhes acalmar os receios e com as amostras das nossas mercadorias, talvez possamos abrir uma via de comércio com os lozi.

- Quando o encontrarei de novo?

- Eu voltarei ao Forte Providência. Fundi diz que posso comprar uma canoa da sua tribo. Talvez ela chegue carregada com riquezas quando nos encontrarmos outra vez. - Aboli pousou a mão no ombro de Tom, num gesto amistoso. - Nestes últimos dias, você mostrou que é um poderoso caçador, mas agora é hora de descansar. Volte para a mulher que o espera e a faça feliz. Retornarei antes que a estação mude e a Grande Umidade comece.

Na manhã seguinte, Aboli e Fundi ergueram e equilibraram facilmente os pesados fardos de mercadorias (fios de cobre e tecidos) em suas cabeças, para que as mãos ficassem livres para segurar as armas, e seguiram para oeste, ao longo da margem do rio. Tom caminhou por um pequeno trecho ao lado de Aboli e então parou e ficou a observar seu velho companheiro desaparecer entre as altas árvores ribeirinhas, antes de se virar com tristeza e seguir até onde os escaleres estavam carregados e atracados à margem do rio.

- Vamos embora - ordenou sentando-se ao leme do barco líder. - Vamos voltar ao Forte Providência.

E todos soltaram um brado de alegria ao se curvar nos remos e descer a correnteza em direção ao leste.

As sentinelas na colina acima do Forte Providência tinham avistado os escaleres assim que contornaram a última curva, rio acima, e Sarah pulava de ansiedade, na praia, quando Tom pisou em terra. Correu para os braços dele, mas, depois do primeiro abraço, recuou e fitou-o na face, assustada com o que via.

- Você definhou! - exclamou. - E parece um espantalho, todo rasgado! - Depois, torceu o nariz. - Quando foi a última vez que tomou banho?

Ela o levou para a colina, porém não o deixou entrar na pequena cabana.

- Vai estragar todo o meu árduo trabalho.

Primeiro, encheu de água quente a banheira de ferro galvanizado que ficava sob a figueira-brava no quintal dos fundos. Em seguida despiu-o, jogou os trapos de lado para lavar e remendar mais tarde, e o fez sentar-se na banheira como se fosse um garotinho. Esfregou a poeira e a sujeira acumuladas nas semanas de penosa caçada, penteou-lhe os fartos cabelos negros e trançou-os no rabo-de-cavalo dos marinheiros. Com tesouras, cortou o emaranhado de sua barba no estilo pontiagudo que o rei Guilherme havia instituído como moda. Untou os arranhões e cortes que lhe cobriam as pernas e braços com um ungüento que apanhara da cabana do dr. Reynolds. Tom deliciou-se com toda aquela atenção.

Por fim, ajudou-o a se vestir com camisa e calça limpas, passadas a ferro com carinho. Só então o tomou pela mão e levou-o até a cabana. Orgulhosa, mostrou tudo que fizera na ausência dele, da poltrona de braços que os carpinteiros tinham feito especialmente para ele, à larga cama de casal no quarto dos fundos e o acolchoado que ela costurara e enchera com paina das paineiras que cresciam ao longo da margem do rio.

Tom olhou para a cama com um sorriso malicioso.

- Parece um belo trabalho, mas acho melhor testá-la antes de dar uma opinião definitiva - disse.

Tentou agarrá-la, porém Sarah correu, aos gritinhos, em torno da cama, provocando-o, até se deixar capturar. Caíram abraçados sobre as cobertas bordadas.

Saciado o desejo, ficaram deitados e conversaram enquanto o sol se punha e, depois, pela noite. Tom contou-lhe tudo que fizera e vira. Descreveu a caçada e as novas terras estranhas que encontrara, as florestas e as longínquas montanhas azuis, e os animais e aves maravilhosos que haviam descoberto.

- É tão grande e infindável, belo e selvagem - disse a ela, e abraçou-a. - Não vimos homem algum nem qualquer sinal deles em toda a nossa jornada. É tudo nosso, Sarah. Nosso para nos apossarmos.

- Vai me levar com você da próxima vez? - ela perguntou, ciumenta de sua atenção, querendo compartilhar as maravilhas de tudo aquilo com ele.

De alguma forma, jamais duvidara que haveria uma próxima vez. Percebera que Tom se apaixonara por aquela terra com tanta intensidade como tinha se apaixonado por ela. Sabia que de agora em diante eram parte de tudo aquilo.

- Sim - ele concordou. - Da próxima vez, você estará comigo para ver tudo aquilo.

Havia tanto a dizer e conversar que demorou mais de uma longa noite. Pelas semanas de ócio que se seguiram, enquanto os homens descansavam e se recuperavam da caçada, Tom e Sarah passaram horas a sós. Ele leu para ela o diário que escrevera durante a expedição para não deixar passar nenhum detalhe, e quando já tinha lhe contado tudo, puseram-se a discutir e planejar o futuro.

- Tivemos sorte em descobrir esse rio Lunga, ou melhor, que Fundi nos tivesse trazido até ele - disse-lhe Tom. - Deve ter passado despercebido dos antigos exploradores portugueses e dos árabes também. Fundi contou que a rota de comércio dos árabes, a estrada dos escravos, é bem mais ao norte. - Sorriu, malicioso. - Se Fundi diz que é longe, pode crer que fica a duzentos quilômetros ou mais de distância. Com sorte, nem os omanianos nem a Companhia John vão nos encontrar aqui. O Forte Providência é um entreposto perfeito para o interior. As manadas de elefantes das redondezas nunca foram caçadas, e Aboli e Fundi podem fazer contato com as tribos e, assim, teremos condições de estabelecer comércio com eles e ter tudo isso para nós.

- Mas, onde venderá o marfim? - Sarah perguntou. - Não em Zanzibar ou em algum outro porto árabe nem em qualquer lugar onde a Companhia tenha uma feitoria. Seu irmão Guy nunca o deixará sossegado se descobrir onde você está. Jamais poderemos voltar à Inglaterra. - Ela tentou não parecer triste e emendou depressa: - Onde poderemos vender nossas mercadorias e suprir nossas necessidades, pólvora e balas, remédios e farinha, velas e óleo, cordas e panos e piche?

- Existe um lugar assim por perto - Tom lhe assegurou. - Tão logo as chuvas comecem, a Grande Umidade, partiremos daqui e navegaremos até Boa Esperança. Os holandeses no Cabo ficarão loucos pelo nosso marfim e ainda mais ansiosos para nos vender todas as mercadorias que possamos pagar. Melhor ainda, não darão um guinéu de latão ou um vintém do seu queijo fedido pelo mandado de prisão expedido contra mim pelo lorde-chanceler da Inglaterra.

Havia muito com que ocupar cada homem no forte durante as semanas em que aguardaram pelo retorno de Aboli. Todo o marfim precisava ser limpo, pesado e empacotado com mato seco para evitar que fosse danificado durante a viagem. Depois, a pequena Andorinha foi levada para reparos à praia abaixo do forte, e seu casco raspado e limpo das crostas. Os teredos que se instalaram em seu entabuamento tiveram de ser queimados com piche fervente. Assim que a chalupa foi posta a flutuar novamente, eles a pintaram outra vez, costuraram os rasgos em suas velas e fizeram pequenas mudanças nos cordames para que não fosse reconhecida como o navio em que haviam fugido da Inglaterra. Era superstição de marinheiro dizer que dava má sorte mudar o nome de um navio, porém não havia como evitar. Rasparam a antiga denominação da prancha de popa e pintaram a nova sobre ela.

Quando do novo batismo de água, Sarah pegou uma garrafa de conhaque dos estoques e a quebrou na proa.

- Eu batizo esta embarcação de Centauro - entoou. - Possa Deus abençoá-la e a todos que velejarem nela.

Em seguida, o marfim foi carregado a bordo do Centauro e cuidadosamente armazenado em seus porões. Encheram os barris de água doce e deixaram tudo pronto para a viagem ao sul.

Já então, a cada tarde, os cúmulos se avolumavam pelo horizonte norte, montanhas que invadiam os céus. O pôr-do-sol tingia as nuvens de nuanças arroxeadas e de um escuro escarlate. Relâmpagos corriam por seus ventres e longínquos trovões resmungavam a ameaça da úmida estação vindoura.

As primeiras chuvas derramaram-se sobre eles, a escorrerem pelas colinas em mantos espessos de cinza. Por três dias e três noites, os trovões os bombardearam e tudo ao redor era uma água só, como se estivessem debaixo de uma imensa cachoeira. Depois, as nuvens se abriram e, naquele breve intervalo de calma, uma dúzia de longas canoas de troncos inteiros desceu as águas do rio Lunga. Na canoa líder estava Aboli, de pé, alto e de cara marcada de cicatrizes. Tom gritou de alegria e desceu correndo para a praia a fim de lhe dar as boas-vindas.

Fundi vinha na última canoa, mas os remadores eram todos estranhos. O fundo de cada embarcação estava lotado de presas de elefante, nenhuma tão grande como aquelas que a expedição de Tom conseguira, porém não menos valiosas.

Os remadores eram todos da tribo dos lozi, parentes de Fundi. A despeito das promessas, estavam todos apavorados com os estranhos homens brancos do Forte Providência. Receavam ser tomados como escravos, acorrentados e levados para longe como acontecera com tantos de sua tribo. Desaparecidos, nunca mais tinham sido vistos ou se soubera deles de novo.

Eram na maioria velhos, grisalhos e curvados, ou meninos imaturos. Amontoaram-se juntos na praia, não parecendo convencidos ou confortados por qualquer das promessas de Tom.

- Vieram conosco apenas porque Bongola, seu chefe, ordenou que assim fizessem - explicou Aboli. - Quando viu as mercadorias que levamos conosco, sua cobiça superou o medo dos mercadores de escravos. Mesmo assim, não viria pessoalmente negociar, mas mandou os membros menos importantes da tribo em seu lugar.

Retiraram o marfim das canoas e o pesaram, e depois, com Fundi, discutiram um preço justo por ele.

- Não quero estragar o negócio pagando demais a eles - Tom explicou a Sarah -, mas também não quero enganá-los e matar a negociação antes que comece.

No final, os sacos de contas venezianas, fardos de tecido, engradados de espelhos de mão e cabeças de machado, e rolos de fio de cobre foram carregados nas canoas, e os remadores seguiram para a sua terra. Sua pequena flotilha subiu o rio contra a correnteza, impelida por homens tão agradecidos por terem escapado com vida que remavam com a força de demônios, cantando histericamente sua gratidão a seus deuses tribais e aos ancestrais, até desaparecerem na primeira curva.

- Voltarão na próxima estação - Aboli profetizou. - Bongola fará que assim seja.

Fundi e três dos lozi mais corajosos, que haviam permanecido com ele, concordaram em ficar no Forte Providência durante a Grande Umidade para proteger as construções e as hortas contra os danos do tempo e dos animais selvagens. O resto do grupo carregou a última leva de marfim e embarcou no Centauro. Quando a chuvarada constante desabou sobre eles, deixaram que o rio em plena cheia e o vento da monção carregassem o pequeno Centauro correnteza abaixo para o oceano das índias.

- O curso para passar ao largo de Madagascar e seguir para Boa Esperança é sueste-sul. Marque na travessa do leme, por favor, sr. Tyler - ordenou Tom.

- Sueste-sul, está certo, capitão.

- A todo pano, sr. Tyler - disse Tom, que pegou Sarah pela mão e levou-a para a proa.

Ficaram de pé, juntos, a observar os peixes-voadores que saltavam da superfície do canal de Moçambique e giravam no ar em borrões prateados como moedas recém-cunhadas lançadas na corrente azul.

- Se eu puder encontrar um padre em Boa Esperança, casará comigo, Sarah Beatty? - ele perguntou.

- Pode ter certeza, Thomas Courtney. - Ela riu e o abraçou com mais força. - Casarei.

O pequeno Centauro ancorou na baía da Mesa numa manhã ensolarada em que o sudoeste arrancava borrifos de espuma branca do topo das ondas. Desembarcaram sob a montanha altaneira cujo topo plano era coberto pela famosa "toalha de mesa", um banco imóvel de revolutas nuvens brancas.

A povoação crescera em tamanho desde a última vez que eles tinham visitado a Cidade do Cabo. As restrições da Companhia Holandesa das índias Orientais contra estrangeiros de possuir terra ou assentar residência em seu território eram em cada aspecto tão draconianas como as correspondentes inglesas. Contudo, Tom logo descobriu que, por uns poucos guinéus de ouro colocados nas mãos do oficial certo, tais leis poderiam ser dispensadas. Assim que pagaram aquelas propinas, as boas-vindas que receberam dos burgueses foram calorosas, sobretudo porque o Centauro estava bem carregado, e os comerciantes holandeses sentiram o cheiro de lucro naquela visita.

Tinham planos de ficar na Cidade do Cabo até que as chuvas na Costa da Febre cessassem. Como as acomodações a bordo do Centauro eram apertadas, e o balanço do navio ancorado, desconfortável, Tom encontrou alojamentos para ele e Sarah em uma das pequenas hospedarias abaixo dos jardins da Companhia, dirigida por uma mulher malaia alforriada que era uma cozinheira e anfitriã maravilhosa.

Na primeira semana, Tom visitou todos os comerciantes cujos armazéns se enfileiravam no cais, e ficou encantado ao descobrir que a procura por marfim era enorme. Fechou diversos bons negócios para a venda de sua carga. A tripulação recebeu seu primeiro pagamento e cota dos lucros desde que haviam partido da Inglaterra. Pelos poucos meses seguintes, a maioria gastou tudo que ganhara nas cervejarias e prostíbulos da cidade, porém Ned Tyler e o dr. Reynolds usaram sua parte para comprar pequenos sítios no vale de Constância, no lado mais distante da montanha.

Tom e Aboli gastaram praticamente toda a cota para comprar os estoques necessários para a outra estação em Forte Providência e um lote considerável de mercadorias em oferta nos armazéns da colônia.

Tom deu a Sarah cinqüenta libras do lucro, que ela usou para fazer o enxoval. Incluía um pequeno clavecino e um berço sobre sanefas de balanço, que ela pintou com guirlandas florais e coro de querubins.

A tripulação inteira estava reunida na pequena igreja nos jardins quando Tom e Sarah se casaram. Depois da cerimônia, os homens carregaram os recém-casados nos ombros pela rua até seu alojamento, cantando por todo o caminho e jogando sobre eles punhados de pétalas de rosa.

Numa das tavernas à beira da água, Aboli encontrou um pequeno holandês enrugado de sol de nome Andries van Houten, que fora trazido de Amsterdã pela Companhia Holandesa das índias Orientais como descobridor de ouro.

- Esquadrinhei as montanhas até tão longe como Stellenbosch - Van Houten disse a Aboli depois que a terceira caneca de cerveja deslizara sem esforço por sua garganta, o pomo-de-adão a subir e descer em seu pescoço enrugado e vermelho. - Não existe ouro nesta colônia maldita do demônio, mas posso farejá-lo ao norte. - Cheirou o ar. - Se eu pudesse encontrar um navio para me levar costa acima... - E olhou para Aboli, esperançoso. - Mas não tenho um vintém no meu bolso para pagar a passagem.

Aboli levou-o para se encontrar com Tom, e conversaram toda noite durante uma semana. Ao final, Tom concordou em comprar todo o equipamento de prospecção de que Van Houten precisava e em levá-lo para o Forte Providência quando partissem.

Aqueles dias agradáveis em Boa Esperança passaram bem depressa e logo estavam recarregando o Centauro, tomando cuidado especial com o clavecino e o berço de Sarah. Assim que a estação mudou, e os carvalhos que se enfileiravam nas ruas derrubaram suas folhas, içaram âncora e zarparam para o norte, contornando a ponta do cabo, e, em seguida, rumaram de novo para o canal de Moçambique.

Ao entrarem na foz do rio Lunga e abrirem caminho rio acima, viram a marca da água nas margens e os fragmentos de cascalho pendurados nos galhos das árvores, que mostravam como fora forte a cheia durante os meses da Grande Umidade. Quando alcançaram o terreno ondulado das colinas, a floresta estava verdejante e viçosa de brotos novos.

Fiel à confiança que haviam depositado nele, Fundi encontrou-os em terra, abaixo do Forte Providência, e mostrou, orgulhoso, a Tom como cuidara bem de tudo em sua ausência.

Nota de Rodapé: clavecino Instrumento de cordas e teclado, predecessor do piano; cravo.

Fim da Nota.

Tinham trançado de novo os juncos dos telhados das cabanas e reparado os pontos fracos da paliçada. Sarah viu seu novo clavecino instalado na sala da frente de sua cabana, e ela tocava e cantava para Tom todas as noites após o jantar.

Colocou o berço pintado ao lado da cama de casal, no quarto do fundo. Na primeira noite, Tom olhou para ele, ao se sentar na cama e tirar as botas.

- Tomo isso como um desafio, sra. Courtney - disse. - Vamos ver o que podemos fazer para recheá-lo?

Não tiveram muito tempo para se devotar àquela tarefa, pois em algumas semanas Tom estava pronto para levar o primeiro grupo de caça rio acima.

Van Houten encontrava-se no bote líder, sentado sobre sua caixa de madeira de produtos químicos, com as gamelas à mão. Prospectou cada leito de cascalho e banco de areia por que passaram. Quando desembarcaram para caçar as manadas de elefantes, Van Houten não os acompanhou, mas saiu a perambular com seus dois ajudantes lozi em busca de traços do metal precioso nas colinas e riachos.

A caçada foi boa naquela estação. Em questão de um mês, tinham enchido os botes com marfim, e iniciaram o retorno ao Forte Providência.

Sarah acompanhara Tom naquela segunda expedição e trouxera consigo a caixa de pintura que comprara em Boa Esperança. Encheu páginas de seus blocos de papel de linho com imagens da jornada.

Seguiram o rio para além do que haviam feito antes, e por fim chegaram à Terra dos Lozi. No primeiro vilarejo, a população inteira fugiu para a floresta, e demorou vários dias antes que seus habitantes voltassem, a espiar timidamente por entre as árvores. Depois que Fundi e Aboli conseguiram vencer aquele medo e suspeitas iniciais, começaram uma relação amistosa com a tribo.

Descobriram que os lozi eram um povo agradável e alegre. Embora pequenos em estatura, eram bem formados e bonitos. Algumas das mulheres tinham feições belíssimas de origem nilótica. Andavam de seios nus, caminhando com orgulho e graça.

Aboli teve uma longa e séria conversa com os anciãos do vilarejo, e o resultado foi que, por uns poucos rolos de fio de cobre e um pequeno saco de contas de vidro, comprou duas das mais belas e robustas virgens como esposas. As moças se chamavam Falia e Zete. Era difícil dizer quem estava mais feliz com a barganha, o noivo ou as noivas, estas a se exibir nas roupas novas que Aboli lhes dera como parte do dote de casamento e a olhar para o marido com respeito e admiração.

O dr. Reynolds, com Sarah para assisti-lo, tratou com sucesso muitos dos lozi doentes, o que selou o bom relacionamento com a tribo. Quando a expedição partiu rio acima para a mais importante kraal dos lozi, os tambores enviaram à frente deles as notícias de sua chegada. Seu majestoso chefe, Bongola, veio saudá-los no desembarque e os conduziu às novas cabanas, que haviam sido construídas especialmente em honra dos visitantes.

A vila de Bongola era um amontoado de várias centenas de cabanas de teto de palha construídas ao longo da margem do rio e nas encostas das colinas. Cada cabana era cercada com uma shamba de mangueiras e pés de banana-da-terra e mandioca. Kraals de troncos abrigavam o gado raquítico e as cabras da tribo, e os mantinham em segurança contra os ataques noturnos de leopardos e hienas.

Por essa época, Tom e Aboli já eram fluentes no idioma, e mantiveram longos indabas com Bongola todos os dias durante a sua estada. Bongola era um homenzinho naturalmente falante e contou a história recente da tribo para Tom. Os lozi tinham sido donos de terras muito ricas às margens do grande lago de águas frescas ao norte, mas então os mercadores de escravos chegaram e caíram sobre o povo, como o leopardo sobre os rebanhos de gazelas nas planícies. Os sobreviventes fugiram para o sul e, por quase duas décadas até o presente momento, tinham conseguido evitar mais depredações. Viviam, porém, aterrorizados, com medo de que os infames mercadores a quem conheciam desviassem lentamente suas colunas de ataque para as profundezas do interior.

- Sabemos que um dia teremos de fugir de novo - Bongola disse a Tom. - Foi por isso que ficamos alarmados quando soubemos da sua chegada.

Tom recordou-se das histórias de Aboli, de como fora capturado pelos negreiros quando era criança. Relembrou-se dos infelizes que vira nos mercados de escravos em Zanzibar, e sentiu de novo aquela profunda repugnância por aquele comércio, e raiva de sua própria incapacidade em aliviar a desesperada situação daquele povo.

As transações foram lucrativas com Bongola, que levou muitas presas de marfim de suas reservas para vender. Foi então que Van Houten chegou de uma de suas incursões pela selva e mostrou a Tom, com orgulho, cinco agulhas de porco-espinho, cada uma fechada na ponta. Quando tirou a rolha de uma e despejou o conteúdo no prato de sua balança de ouro, Tom olhou com espanto para o montículo de flocos e grânulos metálicos que reluziam, dourados, à luz do sol.

- Ouro em pó? - perguntou. - Ouvi falar do ouro dos trouxas. Tem certeza de que não é isso?

Van Houten indignou-se com o insulto à sua integridade profissional e mostrou a Tom como testar os flocos com ácido de sua caixa de produtos químicos.

- O ácido comerá qualquer dos metais de base, porém não o metal nobre - explicou.

Observaram o ácido borbulhar e efervescer quando ele mergulhou o floco dentro dele; porém, ao retirá-lo, o fragmento de metal brilhava e não apresentava desgaste.

O holandês levou Tom ao lugar onde bateara o pó, e mostrou-lhe a sucessão de leitos de cascalho e bancos de areia ao longo do curso de um riacho abaixo de um dos vales. A pedido de Tom, Bongola mandou a eles cinqüenta mulheres da tribo: tradicionalmente, os homens não se empenhavam numa tal tarefa menor como a de trabalhar no campo ou cavar buracos no leito de riachos.

Van Houten deu a cada uma das mulheres uma bateia e mostrou-lhes como usá-la: recolher, virar e girar o cascalho na bateia, deixando a escória ser levada embora pela borda, até que apenas o resíduo brilhante restasse. Rapidamente, as mulheres aprenderam a técnica, e Tom prometeu a elas uma medida de contas de vidro para cada agulha de porco-espinho do pó nobre que lhe trouxessem.

O campo aurífico aluvial de Van Houten provou ser tão rico que uma mulher dedicada poderia encher uma agulha em menos de um dia, e logo o trabalho de batear tornou-se a atividade preferida da tribo. Quando alguns dos homens quiseram se juntar a elas num passatempo tão lucrativo, as mulheres os expulsaram, indignadas.

As chuvas amainaram, e era hora de rumar rio abaixo de novo. Os escaleres estavam de quilha baixa na água sob as cargas de marfim, e Tom possuía quase três quilos de ouro em pó trancados no cofre do navio.

Quando Aboli disse a Falia e Zete que as deixaria com suas famílias até que retornassem na próxima estação, elas irromperam em uivos de desespero e cachoeiras de lágrimas. Sarah revoltou-se com ele diante de tal tratamento.

- Como pode ser tão cruel, Aboli? Você fez com que elas o amassem, e agora está lhes partindo os corações.

- Elas morreriam de terror e doenças na viagem para Boa Esperança. E mesmo que sobrevivessem, iriam chorar de saudade de suas mães todos os dias em que estivessem longe. Tornariam minha vida tão miserável quanto a delas. Não, devem ficar aqui; e me esperar, como boas esposas.

A desolação das moças foi miraculosamente aliviada pelos presentes de despedida, de contas de vidro, tecidos e espelhos de mão que Aboli deu a elas, o bastante para transformá-las nas esposas mais ricas da vila. As duas estavam borbulhantes de risadinhas e sorrisos ao acenar para a imponente figura do marido ao leme do escaler de vanguarda.

Quando Tom e seus homens retornaram à Terra dos Lozi no início da seguinte estação seca, tanto Falia como Zete estavam enormes em sua gravidez, as barrigas negras lustrosas a se destacar das tangas, e os seios grandes como melões maduros. Deram à luz com diferença de dias uma da outra. Sarah atuou como parteira e ajudou no nascimento dos dois meninos.

- Valha-me Deus! - exclamou Tom ao olhar os bebês. - Não há dúvida de que são seus, Aboli. Só falta aos pobres diabinhos uma tatuagem para serem tão feios como o pai.

Aboli era um homem mudado. Desapareceu aquela sua digna reserva e compostura régia ao segurar um filho gorducho e cheio de baba em cada joelho. A fisionomia marcada de cicatrizes que despertava terror em milhares de inimigos tornou-se benigna e próxima da beleza.

- Este é Zama - disse a Tom e Sarah -, pois será um valente guerreiro. E este é Tula, pois será um poeta e um sábio.

Naquela noite, na escuridão de sua cabana, Sarah encostou a face na de Tom e lhe murmurou no ouvido:

- Quero um filho também. Por favor, Tom. Por favor, meu querido, dê-me um bebê para segurar e amar.

- Tentarei - ele prometeu. - De todo o meu coração, tentarei.

Porém, conforme os anos foram passando, parte dos quais no Forte Providência ou em viagens pela imensidão da Terra dos Lozi, Sarah continuava esguia e alta e de barriga lisa, sem nada a lhe inchar o útero ou encher o colo bem formado.

Tanto Zama quanto Tula cresceram depressa e logo eram garotinhos fortes, puxados ao pai, altos para sua idade e líderes naturais dos outros meninos. Passavam os dias na floresta e nas planícies de vegetação rasteira ao longo do rio, a cuidar dos rebanhos do gado comunitário da tribo e a aprender a manejar o arco-e-flecha. Em breve, conheciam os caminhos das criaturas selvagens das florestas. A noite, sentavam-se aos pés de Aboli diante da fogueira e ouviam, de olhos arregalados, suas histórias do mar, de batalhas e de aventuras em lugares distantes.

- Leve-nos com o senhor, papai - Zama implorava.

Como Aboli predissera, o menino era mais alto e mais forte que o irmão.

- Por favor, honorável pai - pedia Tula. - Leve-nos e nos mostre essas maravilhas.

- Devem ficar com suas mães e cuidar de seus deveres aqui até que sejam circuncidados e iniciados na vida adulta - Aboli lhes prometeu. - Então, lorde Klebe e eu os levaremos conosco para o mundo além da Terra dos Lozi.

A caçada de elefante era boa na Terra dos Lozi, e Van Houten descobriu um novo campo aurífico aluvial a três dias de marcha ao norte do primeiro, que proporcionou um fluxo constante de ouro em pó para Forte Providência. Tanto a tribo como Tom prosperaram, e, a cada estação das grandes chuvas, o Centauro levava uma carga completa para a Cidade do Cabo.

Um banco de Amsterdã, de boa reputação, instalara um escritório no Heerengracht, acima do quebra-mar. Tom já tinha 2 mil libras depositadas com eles e, depois daquela estação, a quantia duplicou. Finalmente, era um homem rico.

Defrontou-se, porém, com um desapontamento mais amargo. Ao chegar a época de zarpar novamente para o norte, Ned Tyler declarou-se velho demais para assumir outra viagem. Já então seus cabelos eram tão finos e brancos como algodão recém-colhido, as costas curvadas, e seus olhos claros de um dia pareciam nublados e congestionados.

- Deixe-me na minha fazendinha aqui no vale de Constância - implorou. - Deixe-me cuidar das minhas galinhas e verduras.

- Vou ficar com Ned - o dr. Reynolds decidiu -, pois já vivi aventuras suficientes pelo resto da minha vida. - Somente quando olhou com cuidado para a face vermelha e enrugada do médico, Tom se deu conta de como ele envelhecera, junto com Ned. - Tive tudo que quis de enfaixar e costurar seus bandidos. Agora quero plantar umas poucas videiras, talvez fazer um bom vinho antes de morrer.

- Mas quem cuidará de nós? - Tom protestou. - Não pode nos deixar morrer de malária na selva.

- Você tem uma bela médica - o velho doutor retrucou. - Ensinei a sra. Sarah a consertar uma perna quebrada ou a misturar uma poção. Eu o deixo nas boas mãos dela e, com toda a certeza, você estará mais bem servido. Deus sabe, ela é mais bonita que eu e tem o coração mais terno.

Alf Wilson assumiu o posto de primeiro-oficial do Centauro, e estava ao leme quando entraram pela foz do rio Lunga, no início da nova temporada de caça. Cada homem e mulher a bordo se deixava consumir de ansiedade naqueles retornos anuais ao Forte Providência. Estavam todos ansiosos para ver como Fundi cuidara da povoação durante as chuvas, para saber se os elefantes abundavam nas colinas da Terra dos Lozi, e para descobrir quanto ouro em pó as mulheres haviam coletado em sua ausência.

Aboli tentava sem sucesso ocultar a emoção de se reunir com suas esposas e filhos de novo: a essa época, Falia e Zete tinham aumentado generosamente a prole. Eram mais duas meninas e outros dois meninos.

Como sempre, Fundi os encontrou no atracadouro abaixo do forte, e deu as boas-vindas a Tom e Sarah em terra. Tudo estava em ordem, e havia poucos danos da chuva a serem reparados. Sarah desenrolou a coberta de pano de seu clavecino, tocou um acorde e depois sorriu quando viu que as notas continuavam afinadas. Dedilhou o coro de Espanholas.

Aboli pediu a Fundi que lhe contasse as novidades da tribo e de sua família, porém não havia nenhuma, pois as chuvas haviam sido pesadas naquela estação e o rio ficara inavegável. Nenhuma canoa da vila de Bongola chegara ao forte. Aboli tornou-se cada dia mais aflito durante o tempo que demorou em retirar a carga do Centauro, reparar o forte e fazer os preparativos finais para a expedição rio acima, para a Terra dos Lozi. Estava ao leme do escaler da frente na ocasião em que, por fim, partiram de Forte Providência.

O primeiro indício de algo muito sério veio quando chegaram aos vilarejos limítrofes e descobriram que estavam todos desertos. Embora revistassem a área em torno de cada agrupamento de cabanas, não encontraram vivalma, nenhuma pista do que acontecera aos habitantes.

Receoso do que pudessem encontrar adiante, partiram para a vila de Bongola tão depressa quanto puderam remar, e arrastaram os botes pelas vaus e se mantiveram em curso enquanto houvesse luz para enxergarem as margens de ambos os lados e contornar as rochas no canal.

Chegaram no início da manhã. Um pavoroso silêncio estendia-se sobre as colinas, nenhum som de tambor ou tromba ou gritos de boas-vindas. Viram de imediato que as hortas haviam sido tomadas pelo mato. Em seguida passaram pela primeira cabana na margem. O teto de palha estava queimado, e as paredes se erguiam finas e nuas, o revestimento de barro arrancado pelas chuvas.

Ninguém nos botes falava, mas ao puxar com toda força os longos remos, a face de Aboli era uma máscara terrível de desespero. Mudos, fitaram as ruínas da vila por onde passavam: as cabanas queimadas, as hortas negligenciadas e os currais vazios. Os galhos da copa das árvores estavam repletos de filas de abutres empoleirados, sinistras silhuetas, costas corcundas, bicos recurvos. O fedor adocicado e doentio de morte e putrefação pairava no ar.

Uma única canoa jazia na praia do atracadouro, mas seu fundo estava perfurado. Os engradados de peixe nos quais os homens secavam o produto da coleta encontravam-se caídos e as redes, abandonadas em pilhas confusas. Aboli saltou pela beirada do bote quando a água estava pela cintura, vadeou até a margem e correu para a praia, rumo à trilha que levava às cabanas de Falia e Zete.

Tom o seguiu, porém não pôde alcançar Aboli até que chegou ao pequeno ajuntamento de cabanas rodeadas por uma boma de galhos espinhentos. Aboli estava parado no portão aberto, olhando para as cabanas queimadas de suas esposas e filhos. Tom parou ao lado dele, porém nenhum dos dois disse palavra. Então, Aboli adiantou-se e se ajoelhou. Das cinzas azuladas, pegou um pequenino crânio humano e o ergueu nas palmas das mãos como se fosse um cálice sagrado. O osso fora esmagado por um pesado golpe. Ele olhou para as órbitas vazias, e as lágrimas lavaram sua face marcada de cicatrizes. Mesmo assim, sua voz saiu firme ao olhar para Tom e dizer:

- Os negreiros sempre matam os bebês, que são muito pequenos para sobreviver à marcha para a costa. Seu peso apenas enfraquece as mães, que são forçadas a carregá-los.

Tocou a profunda depressão no cimo do pequeno crânio.

- Vê como seguraram minha filhinha pelos tornozelos e arrebentaram sua cabeça na porta da cabana? Este era meu lindo bebezinho, Kassa - disse; levou o crânio aos lábios e beijou a terrível ferida.

Tom não conseguiu suportar aquele sofrimento. Desviou os olhos e viu que alguém escrevera nas paredes da cabana sem teto, com um pedaço de carvão, em caracteres árabes: Deus é grande. Não há outro Deus a não ser Alá. Aquilo revelava com certeza a identidade dos perpetradores de tamanha atrocidade. Continuou a olhar para a inscrição enquanto tentava se recompor. Ao conseguir finalmente falar, sua voz estava toldada de horror.

- Quando isso aconteceu? - perguntou.

- Talvez um mês atrás. - Aboli levantou-se. - Quem sabe um pouco mais.

- As colunas de escravos devem se mover lentamente, não? - Tom indagou. - Com as correntes e mulheres e crianças?

- Sim - concordou Aboli. - Caminham devagar, e é uma longa e cansativa jornada até a costa.

- Podemos alcançá-los - a voz de Tom tornou-se mais firme e forte - se partirmos imediatamente e seguirmos com vontade.

- Sim - disse Aboli -, nós os alcançaremos. Mas, primeiro, devo enterrar meus mortos. Faça os preparativos para a marcha, Klebe, e eu estarei pronto para partir antes do meio-dia.

Aboli descobriu mais dois pequenos esqueletos entre as ruínas e o mato. Os ossos estavam partidos e mastigados pelos comedores de carniça, porém ele identificou seus bebês pelos braceletes de contas que lhes dera, que ainda se entrelaçavam aos pequenos ossos. Eram de seus filhos mais novos, com menos de dois anos de idade. Recolheu os restos e os colocou sobre um manto de couro curtido.

Cavou sua sepultura do chão da cabana em que haviam sido concebidos, e enterrou-os juntos. Depois, abriu uma veia de seu próprio pulso, deixou o sangue pingar sobre a sepultura e rezou a seus ancestrais para que recebessem com ternura as almas de seus filhos.

Quando desceu para o atracadouro, descobriu que Tom quase completara o ordenamento da marcha. Dos anos de experiência na caçadas às manadas de elefantes, cada homem sabia o seu dever. Eram três grupos de cinco homens cada, comandados por Tom, Alf Wilson e Luke Jervis. Três marinheiros seriam deixados para guardar os botes.

Cada homem da expedição carregava suas armas, pólvora e balas, seu cantil e manta, e comida suficiente para uma semana, perfazendo um total de trinta quilos. Assim que fosse a hora, partiriam.

- Você deve ficar aqui com os barcos - Tom disse a Sarah ao desenrolar a espada azul do pano no qual a guardava. Não carregava a longa arma nas caçadas aos elefantes, pois impediria seus movimentos. Agora, porém, precisaria dela. - Haverá luta e perigo - explicou enquanto prendia o cinto da bainha na cintura.

- Eis por que devo ir com vocês. Haverá muitos feridos e ninguém para cuidar deles. Eu não posso ficar aqui - ela retrucou, e ele percebeu a determinação naquela expressão firme, na luz fria em seus olhos.

Sarah já empacotara a caixa de remédios e a manta. Tom sabia de longa experiência que não adiantava discutir com ela. Desistiu.

- Fique perto de mim. Se nos defrontarmos com o perigo, faça o que eu lhe disser, mulher, e por uma vez não comece a discutir.

Conduzidos por Aboli e Fundi, seguiram em fila indiana pelos remanescentes da vila. Passaram por mais esqueletos pelo caminho, de velhos, mulheres e crianças, todos julgados muito frágeis pelos negreiros para sobreviver à marcha até a costa. Foi um alívio deixar para trás aquele cenário de morte e desolação, e seguir a trilha formada pelos pés arrastados dos prisioneiros lozi enquanto eram levados ao norte pelas colinas.

Aboli e Fundi mantinham um passo extenuante. Fundi carregava seu grande arco de elefante em um ombro e uma aljava de setas envenenadas sobre o outro. Ele também tinha perdido sua família no massacre e na pilhagem.

Pelos cálculos de Tom, cobriram quinze quilômetros naquela primeira marcha, e ele ordenou uma parada só depois que a noite sem lua tornou-se escura demais para permitir que enxergassem o chão a seus pés. Dormiram aos sobressaltos, com Sarah ao lado de Tom sob as mantas. Logo depois da meia-noite, Tom saltou em pé quando um grito lúgubre ecoou pelo cume da colina acima deles. Era uma voz humana, e falava com eles na língua dos lozi.

- Quem são vocês?

- Sou Klebe, seu amigo - Tom gritou de volta.

- Sou Aboli, marido de Falia e Zete. - Aboli lançou mais lenha na fogueira, que crepitou com mais brilho.

- Sou Fundi, o caçador de elefantes. Venham até nós, homens dos lozi.

Apareceram por entre as árvores, lançando sombras à luz do fogo, que se materializaram em silhuetas humanas. Havia menos que uma centena de sobreviventes do ataque, muitos deles mulheres, porém acima de cinqüenta guerreiros que ainda empunhavam suas armas, dardos, pesados arcos de elefante e aljavas com flechas envenenadas.

Agacharam-se numa densa massa em torno do fogo e, um por vez, os mais velhos descreveram o ataque que pegara a vila de surpresa, o massacre e a feitura de escravos que se seguira.

- Alguns de nós pudemos fugir para a floresta, e outros estavam fora, caçando ou recolhendo raízes e mel silvestre, e assim escapamos - explicaram.

- E a minha família? - perguntou Aboli.

- Levaram Falia, Zete e seus filhos Zama e Tula - contaram. - Nós os vimos acorrentados quando espiamos a caravana dos negreiros de longe.

Durante o resto daquela noite, ficaram todos reunidos em torno da fogueira e fizeram a longa lista daqueles que tinham perecido e daqueles capturados. Ao alvorecer, quando era hora de reiniciar a marcha, Tom ordenou que os velhos e mulheres voltassem à vila arruinada para enterrar os mortos e cuidar da lavoura para afastar o risco da fome que se seguiria inevitavelmente após aquele desastre.

- Alguns dos meus homens estão lá. Caçarão para alimentar todos até chegar a hora da colheita.

Voltaram, obedientes, e Tom reuniu os guerreiros lozi restantes. Conhecia a maioria deles pelo nome e caçara com alguns.

- Vamos atrás da caravana. Lutaremos para libertar os cativos - disse-lhes. - Vão se juntar a nós?

- Quisemos segui-los, mas os árabes têm paus-de-fogo, e ficamos com medo - disseram. Você, porém, também tem os terríveis paus-de-fogo, e assim iremos acompanhá-los.

Fundi escolheu os caçadores mais intrépidos e habilidosos dentre eles e mandou-os como batedores à frente, para descobrir qualquer emboscada ou armadilha que os negreiros pudessem ter armado. Quando iniciaram a marcha outra vez, ele manteve o resto dos lozi com seu grupo e seguiram pela estrada dos escravos para o norte.

Marcharam duro, da primeira luz da manhã até o escurecer, e embora os sinais da caravana fossem muito antigos e desgastados mesmo para Fundi e Aboli lerem com precisão, sabiam que haviam coberto em um dia a mesma distância que custara à longa fila de escravos acorrentados seis dias de viagem. Durante o dia, tinham passado pelas taperas de teto de palha e fogueiras mortas de igual número dos acampamentos de pernoite.

No dia seguinte, partiram outra vez ao alvorecer e, antes do meio-dia, estavam sobre os restos das primeiras fatalidades entre os escravos. Eram apenas umas poucas lascas de osso e pedaços de tangas encharcadas de sangue a jazer ao lado da trilha, pois os árabes haviam retirado os grilhões dos cadáveres, e os carniceiros das florestas tinham devorado o resto.

- Foram os fracos - disse Fundi. - Morreram de fraqueza e dos corações partidos. Encontraremos muitos mais antes que alcancemos a caravana.

A cada dia de marcha, agora, os sinais se tornavam mais frescos e mais fáceis de ler. A estrada era sempre marcada pelos antigos acampamentos onde a caravana passara as noites e pelos restos daqueles que não tinham sobrevivido aos rigores da jornada.

Dez dias mais tarde, chegaram à junção das estradas, onde a coluna de escravos da Terra dos Lozi, ao sul, se reuniu a outra coluna, mais numerosa, que vinha do país dos grandes lagos de água fresca, a oeste.

Fundi e Aboli examinaram o local abandonado em que as duas caravanas tinham acampado na primeira noite depois de se encontrar.

- Há mais de 2 mil escravos na coluna. Contei os lugares onde dormiram. - Aboli mostrou a Tom os locais em que os escravos tinham amassado o mato ao se deitar para passar a noite. - A maioria carrega fardos pesados, alguns de mantimentos, grãos e carne-seca.

- Como sabe disso? - perguntou Tom.

- As marcas fundas dos calcanhares na terra mostram que estavam carregados. Depois, depositaram algumas das cestas vazias de comida ao lado das fogueiras e deixaram farelos de grão e restos de alimento ali - explicou Aboli. - Mas também são forçados pelos árabes a carregar muitas presas de marfim.

- Marfim? - O interesse de Tom foi espicaçado. - Onde encontrariam marfim?

- Os árabes os saqueiam das vilas que atacam, e os omanianos são também caçadores como você. - Fundi juntara-se à conversa.

- Como pode afirmar isso sobre o marfim?

Aboli o levou ao lado mais distante do acampamento e apontou as marcas na terra.

- Eis onde empilharam as presas enquanto descansavam durante a noite.

As longas impressões curvas no solo eram claras até mesmo para Tom adivinhar.

- Há cerca de 160 guardas árabes e mercadores com a caravana.

- Aboli levou-o até as boinas trançadas de galhos de espinho que haviam alojado os guardas durante a noite, e apontou para os leitos de mato cortado nos quais tinham dormido. - Um para cada homem, e também contei as pegadas.

- Como pode diferenciar as pegadas dos árabes das dos escravos?

- Tom quis saber.

- Os árabes usam sandálias. Muitos têm cães enormes presos com coleiras, você pode ver as marcas das patas. Eles os usam para assustar os escravos e para pegar os fugitivos.

- Perdemos quase uma hora aqui - Tom o interrompeu. - Sabemos quantos inimigos precisamos enfrentar. Vamos atrás deles.

Aquela imensa aglomeração de homens e mulheres pesadamente carregados movia-se ainda com mais vagar do que antes, e a fila muito menor dos perseguidores, endurecida por anos de caçada às manadas de elefantes, ganhou terreno sobre eles bem depressa.

No meio da manhã do 17º dia desde que haviam partido da vila de Bongola, dois dos batedores voltaram correndo para a vanguarda da coluna de perseguição, onde Sarah marchava ao lado de Tom, os passos cadenciados.

- Vimos lá adiante a fumaça das fogueiras do acampamento - gritaram, antes de chegarem à cabeça da coluna.

- Fique com Luke e Alf - Tom ordenou a Sarah, e fez um gesto chamando Aboli.

Os dois seguiram em frente, no passo firme que usavam para se aproximar das manadas de elefantes no estágio final da caçada. Os batedores lozi os guiaram até o topo de uma pequena colina de granito, de onde tinham uma boa visão sobre quilômetros do terreno à frente.

A fumaça de centenas de pequenas fogueiras se destacava contra o azul do céu sem nuvens a não mais que uns poucos quilômetros dali.

- Nós os pegamos agora - Tom exultou e levou os outros, colina abaixo, no mesmo passo de trote.

Em questão de uma hora tinham chegado ao acampamento deserto, e as fogueiras ainda queimavam. A larga trilha batida por milhares de pés descalços serpeava entre as árvores, e eles a seguiram.

Pararam ao ouvir um som distante: uma canção de lamento fúnebre cantada por milhares de vozes, suave ao sol causticante do meio-dia, mas bela de partir o coração. Os escravos cantavam um lamento pela terra perdida, pelo lar e os seres amados que nunca mais veriam.

Tom inspecionou o terreno adiante.

- Iremos contornar pela direita - apontou. - Precisamos nos colocar à frente da coluna e observá-la ao passar, para que saibamos seu número exato e a formação que mantém.

Deixaram a fímbria das árvores e, diante deles, expandia-se uma planície aberta que chegava ao horizonte, a vegetação de um pálido amarelo a brilhar como uma miragem ao sol. Kopjes isolados jaziam como pequenas ilhas na imensidão plana e, lá e acolá, se erguia uma acácia de copa achatada. Girafas esticavam seus pescoços imponentes para se alimentar das folhas do alto das acácias e, num e noutro ponto, um rinoceronte se destacava, compacto, escuro, chifrudo, contra o mato claro.

A três ou quatro quilômetros de seu flanco esquerdo, uma névoa tênue de poeira marcava a posição da caravana de escravos, e Tom e Aboli concordaram rapidamente em qual seria o próximo movimento. Uma das colinas cónicas de granito se erguia bem na trilha da coluna distante. Seu cume poderia servir como um posto avançado ideal, mas teriam de chegar lá com a máxima presteza. Deixaram os batedores lozi escondidos nas árvores e os dois se lançaram em plena corrida pela planície.

Estavam extenuados quando alcançaram o sopé da pequena colina do lado oposto ao da caravana que se aproximava, e se jogaram no chão, ofegantes, respirando com dificuldade. Assim que se recobraram o suficiente para se sentar, beberam uns poucos goles de água do cantil. Em seguida ergueram-se e escalaram o lado rochoso da elevação.

Pouco antes do cume, deitaram-se de barriga para baixo mais uma vez e rastejaram até o topo para espiar. A vanguarda da caravana de escravos encontrava-se a um quilômetro e meio de distância pela vegetação rasteira, e passaria perto do sopé daquela colina.

Milhares de minúsculas figuras avançavam numa fila sinuosa que se estendia para trás por cerca de cinco quilômetros até a orla da floresta. Era exatamente como Tom havia imaginado pela leitura de Aboli dos sinais. A vanguarda da coluna cavalgava uma silhueta imponente sobre um cavalo árabe. Trajava longas túnicas verdes, e sua cabeça e face estavam ocultas por um turbante esvoaçante da mesma cor. Apenas os olhos eram visíveis. Duas escravas negras completamente nuas corriam ao lado do cavalo e seguravam um largo pára-sol de tecido sobre o cavaleiro.

Os outros árabes marchavam nos flancos da coluna. Pela luneta, Tom contou 154 ao todo. Cerca de 136 eram soldados a pé, e os outros estavam montados. Todos de túnicas e pesadamente armados. Os homens montados cavalgavam para trás e para a frente ao longo da coluna, urgindo-a a prosseguir.

Os escravos eram por demais numerosos para uma contagem precisa, mas Tom viu que a estimativa inicial de Aboli de 2 mil devia estar próxima da realidade. Muitos, tanto homens como mulheres, estavam nus. Uns poucos usavam tiras de couro ou panos rasgados de sacos de comércio em torno das cinturas. Todos acorrentados. As crianças haviam sido amarradas juntas em grupos de cinco ou seis, com cordas de tiras trançadas de casca de árvore ou couro cru em torno dos pescoços. Os negreiros não usavam nelas seu suprimento de correntes.

As cabeças e corpos dos escravos estavam cobertos de poeira, através da qual o suor escorria, dando-lhes uma aparência sobrenatural. Todos carregavam alguma coisa; mesmo as crianças tinham morangas ou cestas de grãos equilibradas nas cabeças. As mulheres levavam os colchões enrolados e os pertences dos mestres dos escravos, ou cestas e odres de água. Os homens transportavam o marfim. Pelas lentes da luneta, Tom viu que havia centenas de presas de elefante entre eles. Algumas eram tão grandes que se faziam necessários quatro homens para carregar uma.

Cada vez mais, a coluna aproximava-se do sopé da colina onde Tom e Aboli se encontravam, e eles puderam divisar mais detalhes e ouvir a cantiga de lamento. Uma das mulheres perto da extremidade da linha deixou cair a cesta de sua cabeça e também caiu no chão, derrubando outras três que estavam acorrentadas a ela. Aqueles à sua volta tentaram erguê-la, porém a mulher estava fraca demais para se sustentar de pé.

O distúrbio levou quatro dos mestres de escravos a se dirigirem depressa até lá. Juntaram-se em torno da mulher caída, e Tom podia ouvir seus gritos zangados ao tentarem fazê-la se levantar. Então, um deles chicoteou-a com um kiboko. O açoite despencou do alto e a atingiu primeiro no verso das pernas, e, não tendo produzido efeito, desceu em golpes cortantes por suas costas e nádegas. Os estalos agudos do látego na carne nua se espalhou claramente pelo ar abafado.

Por fim, os guardas se resignaram com a perda de outra peça das mercadorias de comércio. Um ajoelhou-se e soltou os grilhões do punho da mulher, depois a segurou pelos tornozelos e arrastou seu corpo para fora da trilha. Seus comparsas urgiram que a coluna parada seguisse adiante, e deixaram o corpo da mulher nua, coberta de poeira, onde jazia.

Agora, a coluna passava tão perto do kopje que Tom e Aboli podiam enxergar as faces dos escravos a olho nu. De repente, Aboli se enrijeceu e agarrou o braço de Tom. Apontou para o centro da fila. Custou um momento até que Tom visse o que deixara seu companheiro aflito. Lá, outra fila de crianças marchava, meninos e meninas misturados indiscriminadamente, presos entre si por uma longa corda em torno de suas cinturas. Cada uma delas carregava um embrulho ou cesta equilibrado na cabeça, o tamanho e peso de cada carga de acordo com a idade e força daquele que a levava. O menino na cabeça da fila era o mais alto. Caminhava orgulhoso e com passos flexíveis enquanto os outros tropeçavam de fraqueza e desespero.

- Zama - disse Aboli. - Meu filho mais velho. - E lá está Tula, atrás dele. - Sua voz era controlada, porém seus olhos luziam com uma imensa e incandescente fúria. - Lá estão Zete e Falia também, na fileira de trás.

As duas mulheres estavam nuas, acorrentadas pelo pescoço, os seios pesados e cheios do leite não sugado por seus bebês massacrados.

Tom não tinha palavras a dizer para o conforto de seu velho amigo e, assim, ficaram os dois imóveis, calados, a observar a triste procissão serpear, passando por eles. Tão lento era o passo que levou quase duas horas, sob os gritos dos mestres dos escravos que os empurravam para a frente aos berros e chicotadas.

Na retaguarda da coluna, seguia um bando de hienas e chacais. Banqueteavam-se nos excrementos deixados sobre o mato rasteiro pelos escravos acometidos de disenteria, e em qualquer outro resto descartado. Tom pensou que a escrava abandonada tinha morrido, mas estava enganado. Quando as hienas se agruparam em torno dela, num círculo, a gargalhar e uivar de ávida excitação, a mulher ergueu-se num dos cotovelos e tentou levantar-se, mas o esforço foi demais. Caiu e encolheu os joelhos no peito, cobrindo a cabeça empoeirada com os braços nus.

O bando de hienas recuou um pouco, mas depois avançou de novo e a rodeou. Uma esticou o pescoço e tentou lhe cheirar o pé. A moça pegou uma pedra, jogou-a, e o animal correu para trás. Em seguida outro dos horríveis animais parecidos com cachorros arrojou-se por trás e enterrou os dentes nos ombros da infeliz criatura. Embora ela rolasse e chutasse no meio da poeira, ele a mordeu repetidas vezes, sacudindo a cabeça, até que arrancou um bocado de carne, que engoliu, enquanto a moça estrebuchava, aos gritos, na terra poeirenta. O cheiro de sangue fresco era algo poderoso demais para que os outros animais resistissem. Outra hiena avançou e lhe agarrou o pé. Correu para longe, arrastando a moça como um trenó pelas costas. Tom saltou de pé, pronto para descer a colina e salvar a pobre criatura, mas Aboli o empurrou para baixo.

- Os árabes estão ainda muito perto. - Apontou para o final da coluna, uns oitocentos metros além. - Eles nos verão. Não há nada que possamos fazer por ela.

Aboli tinha razão, é claro. Tom deitou-se no chão de novo e viu outra hiena avançar e morder o ventre da moça, deitada de costas pelo arrasto do primeiro animal. Disputaram a presa entre as duas, e os gritos horríveis da infeliz chegavam aos homens no cume da coluna. Logo, doze outros animais se juntaram sobre ela, e a rasgaram em pedaços, a mastigar os ossos entre as mandíbulas enormes, e lhe devoraram a carne enquanto seus estertores enfraqueciam e então se extinguiram. Em questão de minutos nada sobrara da mulher a não ser aquele pedaço de terra molhado e ensangüentado. O bando de hienas partiu atrás da caravana de escravos que desaparecia ao longe.

Tom e Aboli desceram de seu posto avançado e seguiram atrás deles, no rastro da caravana, enquanto o dia se esvaía e o sol descia em direção ao horizonte. Quando os mestres de escravos deram ordens para a parada da noite e a coluna assentou acampamento, os dois se aproximaram ainda mais. Usando a cobertura de um bosquete de acácias, tiveram acesso ao plano geral do acampamento, e anotaram mentalmente e com cuidado o local das filas de cavalos e das bomas dos árabes.

Quando o sol se pôs e a escuridão caiu, deixaram o acampamento e correram de volta. Dentro de uma hora encontraram-se com o resto de seu grupo, que seguia atrás deles. Fizeram uma fogueira fechada para preparar a refeição da noite e, enquanto comiam apressados, Tom convocou seu conselho de guerra e deu a cada um de seus comandados as ordens para o ataque noturno ao acampamento árabe. Assim que terminaram de comer, partiram em frente.

Podiam ver o brilho das fogueiras a três quilômetros de distância pela planície, e avançaram. Tom e Aboli posicionaram cada um dos arqueiros lozi em seu posto determinado e repetiram suas ordens para que não houvesse mal-entendidos. Em seguida correram para suas próprias posições e começaram a longa espera. Tom queria atacar naquela hora mais escura entre a meia-noite e a alvorada, quando os ânimos e o vigor dos árabes estariam em seu nível mais baixo.

Lentamente, as fogueiras da caravana foram diminuindo até se transformar em montes de cinza avermelhada. O grande Escorpião das estrelas, a cauda erguida ao alto, desceu pelo céu acima deles, e, em seguida, mergulhou em direção ao horizonte. As vozes e os cânticos dos escravos morreram, e um profundo silêncio caiu sobre o acampamento.

- Chegou a hora - Tom disse, por fim, e se levantou.

Aproximaram-se ainda mais e fizeram a última inspeção do local, para ter certeza de que nada se alterara. A única fogueira que ainda queimava em chamas vivas era aquela perto da fila de cavalos, entre um bosquete de acácias, perto da lateral do acampamento.

Em contraste com as chamas, viram três dos guardas árabes sentados juntos, bebendo café e conversando baixinho. Fitavam o fogo. Isso vai cegá-los, pensou Tom, e então murmurou a Aboli:

- Pegue o mais próximo de você.

Esgueiraram-se para a frente, curvados, até que estavam no halo de luz. Ambos mantinham as espadas cobertas para que não refletissem as chamas e alertassem uma sentinela.

- À carga!

Tom tirou a espada da bainha e correu com pés leves por detrás dos árabes sentados. Matou o primeiro sem ruído, com um golpe na nuca. Do outro lado do fogo, Aboli matou outro. O morto caiu de cara para a frente, dentro do fogo, e seu turbante e os longos cabelos emaranhados incendiaram-se em novas chamas e brilharam como uma tocha.

O terceiro árabe soltou um grito assustado e começou a se levantar, porém Tom o atingiu na garganta. A espada azul deslizou suavemente, e o grito seguinte afogou-se e gargarejou no próprio sangue do homem.

Tom e Aboli agacharam-se sobre os corpos de suas vítimas e apuraram os ouvidos, em busca de sinais de alarme, mas as filas de cavalos eram separadas do acampamento principal, e os árabes agonizantes não tinham feito mais ruído que um homem adormecido a ressonar. Tudo estava tranqüilo. Adiantaram-se até onde os cavalos estavam amarrados. Outra sombra escura veio encontrá-los entre as árvores. Tom a chamou com um assobio baixo em dois timbres, o pio de uma ave noturna. O sinal de reconhecimento veio de imediato, e Luke Jerkis deu um passo à frente.

- Tudo seguro! - murmurou, e Tom teve certeza de que os outros árabes nas fileiras de cavalos tinham sido abatidos.

Tom correu para um dos cavalos. Escolhera antes o garanhão que o líder árabe cavalgara naquele dia, e marcara sua posição nas fileiras. Agora, soltava-lhe a brida e falava com ele baixinho, enquanto lhe afagava a cabeça e o acalmava com a voz e com a mão. Em seguida saltou para seu lombo em pêlo. Aboli escolheu outro cavalo. Tom assobiou baixinho para Luke.

Luke correu de volta até onde seus homens rodeavam uma das bomas de dormir dos guardas árabes. Quase imediatamente, explodiu uma saraivada de tiros de mosquete ao redor de toda a periferia do acampamento, e as fagulhas expulsas dos canos luziam na escuridão enquanto os marinheiros disparavam à queima-roupa nos árabes adormecidos. Um bulício baixo correu pelo acampamento que acordava e rapidamente cresceu para um tumulto de berros e gritos agudos. Os mestres de escravos árabes surgiram aos trambolhões das bomas, meio adormecidos e com mãos hesitantes nas armas, deparando com saraivada após saraivada de balas de mosquete e com as sibilantes flechas dos lozi.

Os escravos estavam impossibilitados de se mover, pois tinham sido acorrentados nas estacas de ferro que os mestres haviam enterrado fundo. Amontoavam-se e uivavam e gemiam de pavor, aumentando a confusão.

Alguns dos árabes estavam atirando em resposta, e se estabeleceu uma certa resistência. Tom galopou pela linha em direção à boma de galhos de espinhos onde, ao pôr-do-sol, vira o líder da caravana abrigar-se. Apanhara um pedaço de lenha em chamas da fogueira dos guardas e agora a jogava sobre o teto de palhas da cabana. O fogo se espalhou com rapidez e as chamas subiram, as fagulhas estalando e iluminando a noite num raio de cem metros. Expulso pelo fogo e o calor, o líder saiu correndo da cabana com um mosquete na mão. Estava sem turbante e seus cabelos grisalhos lhe caíam pelos ombros. Sua barba era um emaranhado. Tom esporeou o cavalo com os calcanhares e avançou diretamente sobre ele. O árabe parou para confrontá-lo e ergueu a arma. Tom deitou-se sobre o pescoço do animal e o arrojou na direção do cano do mosquete.

O árabe atirou e, na bruma da fumaça de pólvora, Tom ouviu a bala passar assobiando por sua cabeça. Esperava que o velho se virasse e corresse depois que a arma disparara. Ao contrário, ele se postou altivo, orgulhoso, indefeso e desarmado, mas de cabeça erguida e o olhar feroz para encarar a morte. Tom sentiu uma ponta de admiração e respeito ao se inclinar e trespassar a lâmina faiscante de sua espada azul pelo coração do homem, com tanta força que o árabe foi erguido no ar e morreu antes de bater no chão de novo.

Tom fez a volta e olhou para baixo. Agitada pela brisa da noite, a barba grisalha esvoaçava como penas pelo peito do velho. Uma sensação de remorso o tocou, mas então se lembrou dos filhos massacrados de Aboli, da moça que fora comida viva pelo bando de hienas, e sua culpa esvaiu-se, natimorta.

Puxou as rédeas e afastou-se a galope e, do lombo do garanhão, relanceou os olhos pelas fileiras. Os mestres de escravos tinham buscado cobertura em duas posições e se agrupavam em pequenos bolsões de resistência. Tom berrou para Aboli:

- Precisamos liquidá-los. Venha comigo.

Partiram com fúria sobre eles, espadas nuas, e, aos gritos de êxtase no calor da batalha, os mataram de um só golpe. Os árabes que sobreviveram renderam-se diante daquela terrível investida. Jogaram fora seus mosquetes vazios e correram para a escuridão.

- Deixem que se vão! - Tom impediu seus homens de persegui-los e disse, à guisa de consolo: - Não irão muito longe, e mandarei Fundi e seus arqueiros atrás deles assim que esteja claro.

No combate, tinha se separado de Aboli. Impeliu o cavalo e galopou pelas filas de escravos à procura dele. A luta acabara, mas o acampamento era um caos. Muitos dos escravos tinham arrancado suas estacas e cambaleavam ao redor das fogueiras aos gritos e uivos. O barulho era ensurdecedor, e Tom não conseguiu que suas ordens fossem ouvidas. Ao tentar, com a bainha da espada, acalmar alguns dos escravos, deixou-os ainda mais desvairados de pavor. Desistiu de qualquer esforço para aquietá-los e seguiu à procura de Aboli. Viu seu cavalo, mas sem cavaleiro. Sentiu uma pontada funda de preocupação de que Aboli tivesse sido derrubado com um tiro. Urgiu o animal à frente; porém, então, em meio ao tumulto, viu Aboli a pé, carregando dois meninos, os corpos nus e empoeirados abraçados nele.

- Estão ilesos, Klebe, ambos - Aboli gritou para Tom, e este acenou e esporeou seu cavalo de volta. Precisava encontrar Sarah. Sabia que ela estava em algum lugar naquele mar de corpos negros, tentando ministrar lenitivo àqueles que precisassem de ajuda, e ele sentiu uma profunda e verdadeira preocupação por ela, naquela atmosfera perigosa, mutável: Sarah poderia ser facilmente presa pela multidão conturbada ou se encontrar na rota de um árabe em fuga que carregasse um punhal recurvo no cinto.

Viu seus cabelos dourados como uma lanterna de sinalização de navio à luz da fogueira, e forçou o garanhão pela turba até chegar a ela. Inclinou-se, passou um braço em torno de sua cintura, ergueu-a para o lombo do cavalo, à frente de si, e abraçou-a com tanta força que doeu.

- Você conseguiu, meu querido. Eles estão livres.

- E há uma bela carga de marfim árabe para recolher - ele sorriu.

- Ó criatura mesquinha! - Ela lhe sorriu de volta. - É tudo em que consegue pensar neste momento de glória?

- Meu pai me ensinou: "Faça o bem a todos os homens, mas, no final, lembre-se de recolher sua gratificação".

Levou o restante da noite a restaurar a ordem entre a multidão de escravos. A maioria estava ainda acorrentada, porém assim que as luzes da manhã clarearam o horizonte, começaram o trabalho de libertá-los. Tom encontrou um enorme molho de chaves no cinto do velho líder árabe que ele matara. As chaves serviram nas fechaduras, e tão logo os escravos foram soltos, Tom ordenou que fossem colocados em grupos separados, divididos por tribos e vilas. Em seguida passou a responsabilidade aos próprios chefes tribais e líderes.

Sarah cuidou primeiro da família de Aboli. Os dois meninos estavam ilesos e ainda saudáveis. Zete e Falia pareciam alheadas, dominadas pelo terror, mas Aboli se pôs a falar com elas com firmeza, e logo se mostravam mais tranqüilas. Quando Sarah teve certeza de que não precisavam mais de sua ajuda ali, caminhou por entre os outros. Primeiro, escolheu uma criança que necessitava de cuidados médicos. Muitos estavam acometidos de disenteria, e ela lhes ministrou uma dose de poção antiespasmódica e tratou as esfoladuras dos grilhões e cordas com ungüento. Embora trabalhasse sem descanso pela noite e no dia seguinte, não pôde fazer o bastante com seu pequeno baú de remédios pelas centenas de pessoas que lhe pediam ajuda.

Nesse ínterim, Tom mandara Fundi e seu bando de arqueiros atrás dos fugitivos árabes que haviam escapado durante a noite. Não tinham conseguido ir para muito longe e a maioria estava desarmada. Os homens de Fundi os caçaram bem depressa e os liquidaram com as letais flechas de pontas em farpa. O veneno tornava a carne em torno das feridas de entrada de uma coloração arroxeada e depois penetrava na circulação sangüínea como fogo líquido. Não era uma morte suave, porém quando os caçadores trouxeram as cabeças decepadas de suas vítimas como prova do feito, Tom olhou para elas sem emoção alguma. Os atos daqueles mortos estavam frescos em sua mente, e sua raiva não se aplacara ainda.

Sob o comando de seus superiores, os marinheiros saquearam o acampamento e empilharam o butim num monte para que Tom contasse e o registrasse no diário de bordo. A parte a montanha de marfim, encontraram um pequeno baú de ferro nas cinzas da cabana do mestre da caravana. Resistira ao calor das chamas e, ao ser aberto, encontraram dentro moedas de dinares de ouro no valor de quase 3 mil libras.

- Isso acrescenta um lucro justo a um dia repleto de boas ações - disse Tom para Sarah, com satisfação.

Recolheram os cestos de comida e os mosquetes, as barricas de pólvora e as barras de chumbo para fundir balas, fardos de tecidos, sacos de contas e grande quantidade de outros equipamentos valiosos.

- Como vamos carregar tudo isso de volta ao Forte Providência? - Sarah quis saber. - Você pode se ver forçado a deixar grande parte aqui.

- Veremos - Tom prometeu, com expressão fechada, e pediu a Fundi e Aboli que trouxessem os líderes dos escravos libertos até ele.

Explicou-lhes que dividiriam os estoques de comida entre o povo das diferentes tribos, e que as mulheres e as crianças estavam liberadas para retornar às suas vilas. Contudo, em troca da liberdade, cada homem deveria servir como carregador para transportar os despojos até a Terra dos Lozi. Depois disso, estariam livres para seguir as mulheres de volta a seus lares. Disse também que seriam recompensados com mercadorias por seu trabalho. Os chefes tribais ficaram felizes com aquele arranjo, pois, naturalmente, todos os ganhos de seus súditos voltariam às suas mãos. Até aquele momento não tinham se dado conta de que estavam livres, e acreditavam que haviam apenas trocado de mercadores negreiros.

Foram necessários dias até distribuir a comida e montar as caravanas de grupos separados antes que Tom pudesse mandar as mulheres para casa. Elas partiram entoando seus agradecimentos e preces aos homens brancos que as tinham salvado. Depois, a caravana de homens pesadamente carregados iniciou a marcha para o sul, com Tom e Sarah, montados nos cavalos árabes capturados, na vanguarda da coluna.

Tom deixou Fundi e vinte de seus mais intrépidos caçadores para patrulhar a estrada dos escravos durante o resto da estação seca. Fundi tinha ordens para assim que avistasse a aproximação de outra caravana árabe, mandar mensageiros ao Forte Providência e avisar Tom.

Quando chegaram ao Forte Providência, Tom se deu conta de que trouxera mais do que uma carga completa de marfim para o pequeno Centauro.

- Ao menos não seremos forçados a caçar de novo por esta estação - disse a Sarah. - Poderei concentrar todos os meus esforços em libertar mais daqueles miseráveis escravos das garras dos perigosos muçulmanos.

Sua expressão era caridosa e benevolente, mas Sarah viu o brilho em seus olhos e não se deixou enganar.

- Gostaria que esses fossem sentimentos honestos, Thomas Courtney, porém eu o conheço muito bem. Você vai se meter nisso pelo marfim e pelo prazer de uma boa luta.

- Você é um juiz muito severo, minha linda - ele protestou, com um sorriso -, mas por que deveria objetar? É com aqueles pirralhos que você se preocupa, e eu os estou colocando sob os seus cuidados. Dessa maneira, ambos temos os desejos de nossos corações satisfeitos.

- Não será tão fácil da próxima vez - ela o advertiu. - Os mercadores árabes estarão esperando por você.

- Ah! Eu, porém, também tenho algumas idéias a esse respeito.

Tinham capturado quase duzentos mosquetes árabes e um estoque excelente de pólvora e chumbo. Em vez de mandá-los à caça de elefantes, Tom e sua tripulação treinaram cinqüenta guerreiros lozi como mosqueteiros. Escolheram os homens mais promissores, mas mesmo esses tinham dificuldade em manejar uma arma tão estranha à sua cultura. Na verdade, jamais conseguiriam dominar o seu medo e admiração pelo pau-de-fogo, ou o instinto de fechar os olhos bem apertados em antecipação à descarga. Tom logo se deu conta de que nunca seriam atiradores. Aceitou o fato e estabeleceu uma série de exercícios práticos, ensinando-os a fazer constantes disparos a curta distância, carregando os arcabuzes com um punhado de chumbo grosso especialmente fundido para que se dispersasse em largo alcance, em vez de usarem uma única bala.

Em questão de semanas, um dos mensageiros de Fundi chegou ao Forte Providência, vindo do norte, com notícias de outra caravana de escravos que descia da terra dos lagos.

- E hora de ver se a minha nova estratégia funciona - Tom disse a Sarah. - Não creio que eu possa convencê-la a ficar aqui em Forte Providência, longe do perigo, não é?

Como resposta, ela se limitou a sorrir e foi empacotar seu suprimento de remédios.

Quando, por fim, alcançaram a caravana, descobriram que era ainda maior e mais rica que a primeira, porém mais fortemente guardada pela infantaria árabe e homens montados. O exército de Tom estava em inferioridade de dois para um. Ele e Aboli vigiaram os árabes durante dias enquanto arquitetavam um plano para atacá-los.

Muito em breve tornou-se evidente que os mestres de escravos árabes tinham ciência da sorte da primeira caravana. Estavam muito mais alertas. Durante a marcha, mantinham uma escolta de batedores e, ao primeiro sinal de problemas, recuavam em formações defensivas num movimento metódico. Quando paravam à noite, ocupavam bomas defensivas construídas com cuidado e mantinham um cordão vigilante de sentinelas em torno do acampamento para guardá-lo de ataques noturnos.

Tom e Aboli bateram à frente da coluna e descobriram um vau de um rio largo que a caravana de escravos seria forçada a atravessar. Deslocaram suas próprias forças para o local e concentraram todos os homens na densa selva ribeirinha da margem oposta.

Quando a caravana de escravos chegou ao rio, a longa coluna, difícil de manejar, começou a travessia. Tom deixou que a vanguarda cruzasse sem ser molestada. Então, no momento em que metade dos escravos e seus batedores tinham passado, cortou-lhes o avanço e caiu sobre o início da coluna.

De suas posições cuidadosamente escondidas, os mosqueteiros lozi dispararam seguidas vezes à queima-roupa contra a infantaria árabe. Usando o chumbo grosso que se dispersava em largo alcance, mesmo eles não poderiam errar, e o efeito foi devastador. Por um momento, o combate foi feroz, porém a guarda avançada dos árabes era inferior em número e foi destroçada por aqueles primeiros disparos. Quando seus companheiros da outra margem tentaram atravessar o rio para ajudá-los, foram forçados a seguir com água pelo peito pela correnteza, e rechaçados em confusão pela artilharia precisa dos marinheiros de Tom.

Ao cair da noite, o combate naquela margem estava encerrado. Os homens de Tom capturaram a vanguarda da caravana e liquidaram todos os guardas árabes. Apoderaram-se também do estoque completo de pólvora negra. Tom agora tinha vantagem em número, e os árabes restantes, na margem oposta, encontravam-se numa situação desesperada de falta de munição.

Tom deslocou seus homens através do rio e desencadeou uma série de ataques fulminantes sobre as posições árabes, forçando os mestres de escravos a se defender e usar o resto de sua pólvora. E assim que seus mosquetes estavam vazios, atacou com força total e desbaratou a linha defensiva. Com sua pólvora esgotada, aos árabes não restou alternativa a não ser um desesperado combate corpo a corpo, no qual os lozi usaram suas lanças de efeito letal. Os últimos sobreviventes foram compelidos a entrar no rio onde, alvoroçados pelo cheiro de sangue na água, os crocodilos se reuniram.

Como saldo do combate, Tom libertou mais de 3 mil escravos, e marchou para o sul, para o Forte Providência, com uma longa fila de carregadores a transportar um vasto butim.

Embora os batedores de Fundi mantivessem a vigilância sobre as estradas dos escravos, aquela foi a última caravana a tentar cruzar a Costa da Febre durante a estação seca.

- Precisamos rezar por melhores negócios da próxima vez - Tom disse a Sarah, quando conversavam no convés de popa do pequeno Centauro, que agora descia o rio em direção ao oceano, no começo da Grande Umidade.

- Se o negócio ficar melhor, você afundará o navio de tanto peso - ela retrucou. - Não posso nem usar a minha cabina porque está abarrotada de presas de elefantes.

- São todas essas suas crianças que nos sobrecarregam - Tom respondeu, acusador.

Sarah não conseguira resistir em tomar sob seus cuidados quatro dos mais encantadores órfãos dentre os escravos libertos das caravanas. Derramara seus instintos maternais sobre eles, e agora as crianças se amontoavam em torno dela, vestidas com as roupas que Sarah lhes cosera, a chupar os dedos, agarradas em suas saias.

- Thomas Courtney, você está com ciúmes dessas criaturinhas!

- Quando chegarmos a Boa Esperança, vou lhe comprar um lindo chapéu para ganhar de volta o seu amor - ele prometeu.

Ela abriu a boca para lhe dizer que preferiria um filho, mas aquele era um assunto doloroso para ambos. Limitou-se a sorrir.

- E um belo vestido para combinar. Tenho vivido em trapos nos últimos meses. - Abraçou-o com força. - Oh, Tom, será tão bom reencontrar a civilização de novo. Mesmo que por um curto espaço de tempo.

O califa de Omã, Abd Muhammad al-Malik, estava agonizante em seu palácio de Mascate, e nem mesmo o mais sábio de seus médicos conseguia imaginar a causa da misteriosa doença que o acometera. Tinham lhe dado purgativos até que o sangue lhe brotava do ânus. Haviam lancetado as veias de seus braços e feito sangrias até que sua face macilenta se tornou pálida como cera, com as órbitas arroxeadas. Aplicaram ventosas em seu peito e costas, e o queimaram com ferros quentes para expulsar a enfermidade. Tudo em vão.

A doença começara a se manifestar logo depois que o príncipe Zayn al-Din retornara de sua longa peregrinação a Meca e aos lugares sagrados do islã, penitência que seu pai lhe aplicara por sua traição. Em seu retorno a Mascate, Zayn al-Din mais uma vez fizera as mais abjetas súplicas a seu pai. Rasgara as vestes finas e cortara as faces e o peito com um punhal. Jogara cinza e poeira sobre a cabeça e rastejara de quatro até a presença do pai, gemendo e chorando por perdão.

Al-Malik descera de seu trono de marfim, erguera-o e, com a barra de sua própria túnica, limpara o sangue e a sujeira da face do filho. Em seguida o beijara nos lábios.

- Você é meu filho, e embora uma vez eu o tenha perdido, agora me foi devolvido - disse. - Vá e se banhe, troque de roupas. Ponha as túnicas azuis de um omaniano da realeza e tome seu assento na almofada à minha direita.

Logo depois disso, as terríveis dores de cabeça começaram, deixando o califa confuso e apalermado. Em seguida foi acometido por convulsões e vômito. Seu estômago ardia e suas fezes eram negras e empedradas, a urina de um vermelho escuro com sangue.

Embora os médicos o tratassem e buscassem algum tipo de melhora, a enfermidade só piorava. Suas unhas tornaram-se azuladas. Os cabelos e a barba caíam aos tufos. Ele mergulhava e saía do coma e sua carnadura se consumiu de tal forma que a cabeça calva parecia a de um cadáver.

Sabendo que o fim estava próximo, trinta de seus filhos se reuniram em torno de sua cama no quarto escuro, fechado, sem ar. O mais velho, Zayn al-Din, sentou-se o mais próximo possível e conduziu as preces cantadas, pedindo a intervenção de Alá para aliviar o sofrimento do pai.

Certa vez, na pausa entre as preces, Zayn al-Din ergueu seus olhos marejados de lágrimas e olhou com tristeza pelo quarto, para seu meio-irmão. Ibn al-Malik Abubaker era filho de uma das concubinas menos importantes. Fora sempre o companheiro inseparável de Zayn al-Din desde os dias de infância no harém da ilha de Lamu. Por causa de seu status inferior na casa real, Abubaker poderia ter caído na obscuridade. Contudo, havia um ditado do deserto de que todo homem precisa de um camelo para carregá-lo pelas areias. Zayn al-Din era o camelo de Abubaker. Nas costas de seu meio-irmão mais velho, Abubaker estava determinado a chegar um dia ao poder. Sabia também que Zayn al-Din precisava dele, pois Abubaker era o criado fiel, perspicaz e habilidoso, comprometido com seu irmão. Estivera ao lado de Zayn al-Din na batalha de Mascate, e tentara protegê-lo quando os turcos otomanos tinham fugido, mas, na confusão, fora ferido de lança no peito e derrubado de seu cavalo.

Depois da batalha, tinha se recuperado de seu ferimento, e recebera o perdão do novo califa; al-Malik sempre fora benevolente e generoso com os filhos. Em vez de ser grato por essa misericórdia, contudo, Abubaker sentia-se ferozmente ressentido. Como Zayn al-Din, era ambicioso e traiçoeiro, um conspirador nato, e ávido de poder. Sabia que, a despeito da declaração de perdão de seu pai, sua traição seria lembrada pelo resto da vida do califa. Que poderia ser curta, pensou, ao relancear os olhos pelo quarto cheio de gente, nublado de fumaça de incenso, e encontrar o olhar de Zayn al-Din. Seu irmão lhe fez um sinal quase imperceptível, e Abubaker baixou os olhos e, em seguida, alisou o bigode como uma senha de que havia entendido.

Fora Abubaker que providenciara o amargo pó branco que estava fazendo o trabalho para eles. Um dos médicos que tratavam do enfermo califa era homem de Abubaker. Administrado em minúsculas doses, o veneno se acumulava no corpo da vítima de maneira que os sintomas se tornavam gradualmente mais agudos. Em silêncio, Abubaker concordou com seu irmão que chegara o momento de dar ao califa a dose letal que poria um fim a tudo. Abubaker cobriu a face com o alfalema preto, como se para esconder a tristeza, e sorriu. Por aquela hora no dia seguinte, seu irmão mais velho, Zayn al-Din, estaria sentado no Trono do Elefante. Ele, ibn al-Malik Abubaker, seria o comandante do Exército e da Marinha de Omã. Zayn al-Din lhe prometera isso, mais o título de imame e dois lakhs de rupias do tesouro real. Abubaker sempre se vira como um poderoso guerreiro, e sabia que sua estrela estava em ascensão e começando a brilhar intensamente.

- Todos os agradecimentos a meu santo irmão Zayn al-Din. Possa Alá derramar 10 mil bênçãos sobre sua cabeça - murmurou.

Ao crepúsculo, os médicos deram ao califa uma poção para ajudá-lo a dormir e fortalecê-lo contra os assaltos dos demônios da noite. Embora al-Malik tossisse, cuspisse o remédio e desviasse a cabeça, os médicos o seguraram com delicada firmeza e o fizeram cada colherada, até a última gota, descer por sua garganta.

Ele jazia tão quieto e pálido sobre as almofadas que por duas vezes, durante a longa e sufocante noite, os médicos lhe abriram as pálpebras, ergueram uma lamparina diante de seu rosto e observaram os reflexos de suas pupilas.

- Pelo amor e bondade de Alá, o califa ainda vive - entoaram a cada vez.

Depois, quando os primeiros raios cor de cobre da luz da alvorada se infiltraram pelas frestas das venezianas da janela leste, o califa despertou de repente e deu um grito forte e claro.

- Deus é grande!

Então, caiu de costas nos acolchoados encharcados de suor de sua cama e um lento fio de sangue escorreu de suas narinas e por suas faces até os lençóis de linho.

Os médicos acorreram, formando um círculo em torno do corpo, e, embora todos os seus filhos esticassem os pescoços para ver de relance o pai, não conseguiam enxergá-lo. O médico-chefe se pôs a conversar aos sussurros com o vizir da Corte numa entonação lúgubre. Logo depois, o vizir encarou as filas de príncipes sentados e entoou, numa voz de grave significação:

- Abd Muhammad al-Malik, califa de Omã, está morto. Alá receba seu espírito.

- Em nome de Deus - todos responderam em coro solene, muitas faces devastadas de tristeza.

- De acordo com o desejo de seu pai, Zayn al-Din é o sucessor ao Trono do Elefante de Omã. Possa Alá abençoá-lo e lhe conceder um longo e glorioso reinado.

- Em nome de Deus! - repetiram, mas ninguém mostrou qualquer alegria com o anúncio. Sabiam que dias sombrios aguardavam adiante.

Fora das muralhas da cidade, a se lançar para dentro do mar, havia um promontório rochoso. Os penhascos de face para o oceano caíam verticais até as águas profundas, tão claras que cada detalhe do coral abaixo era visível como um mosaico de mármore. O novo califa mandara erigir um pavilhão de blocos de granito rosa polido sobre a boca do precipício. Dera-lhe o nome de Palácio da Retribuição. De seu assento sob as colunatas, à sombra do sobrecéu de seda, ele podia ver a superfície do mar e observar as longas manchas escuras dos tubarões a se moverem suavemente entre os recifes, lá embaixo, ao longe. Não havia nenhum tubarão quando o palácio fora construído, porém agora eram muitos e bem alimentados.

Zayn al-Din comia uma romã madura quando lhe trouxeram outro dos oficiais de seu pai, descalço, à sua presença. Tinham lhe rapado a cabeça e a barba, e lhe colocado uma corrente em torno do pescoço, como símbolo de condenação.

- Foi indelicado comigo, bin-Nabula - disse o califa -, quando eu estava em desgraça e longe dos favores de meu pai, possa Alá abençoar sua santa alma!

Cuspiu uma das sementes da romã, que atingiu o velho orgulhoso na face. Ele nem mesmo pestanejou, mas devolveu o olhar glacial a seu carrasco. Bin-Nabula tinha comandado a antiga Marinha e Exército do califa: era um soldado de brios.

- Você me chamou de animalzinho gordo - declarou Zayn al-Din, sacudindo a cabeça com tristeza. - Isso foi muito cruel de sua parte.

- Era um nome que lhe caía bem - o condenado retrucou. - E, desde então, tornou-se mais gordo em cobiça e mais repulsivo em aparência. Dou graças a Alá que seu nobre pai não saiba qual a praga que ele infligiu a seu povo.

- Velho, você sempre foi muito falante, mas eu tenho a cura certa para esse vício. - Zayn al-Din fez um gesto ao novo general do Exército. - Meus amiguinhos lá embaixo estão com fome. Não os deixe esperando.

Abubaker inclinou-se numa reverência. Usava meia armadura polida com um elmo pontudo e abas de pescoço de seda bordada. Quando se endireitou, estava sorrindo. O sorriso naquela face estreita com os dentes tortos de uma barracuda era pavoroso de se olhar, mas bin-Nabula não fraquejou.

- Muitos homens bons se foram por essa estrada à frente de mim - disse bin-Nabula. - Prefiro a companhia deles à sua.

As execuções eram realizadas diariamente nos últimos meses, desde a ascensão do novo califa. Centenas de homens uma vez poderosos e importantes haviam sido lançados dos penhascos para o bando de tubarões à espera. Zayn al-Din tinha uma memória impressionante para o menor deslize ou insulto e nem ele nem o general Abubaker cansavam-se daquele esporte.

- Tire a corrente - Abubaker ordenou a seus homens.

Não queriam que bin-Nabula afundasse muito depressa. Removeram as pesadas cadeias de seu pescoço e o conduziram para um bloco de madeira perto da borda do precipício.

- Ambos os pés - Abubaker comandou, e eles o colocaram com as pernas sobre o-bloco.

Abubaker refinara a punição: sem os dois pés, o condenado poderia se debater na superfície, mas não nadar para a praia, e o sangue na água deixaria os tubarões alvoroçados e os levaria até a comida em louco frenesi.

Sacou a espada e ergueu a lâmina sobre as pernas de bin-Nabula, sorrindo para o condenado com aqueles dentes desnivelados. O velho general o encarou com firmeza, sem nenhuma demonstração de medo. Abubaker poderia ter delegado aquela tarefa a qualquer um de seus homens, mas extraía prazer em cumprir ele próprio as determinações de seu irmão. Pousou a borda da lâmina recurva nos tornozelos do velho, avaliando o golpe com olhos estreitados.

- Um único golpe certeiro - Zayn al-Din o encorajou -, ou serei obrigado a penalizá-lo, meu irmão.

Abubaker ergueu a lâmina, parou-a no alto e, em seguida, desceu-a. O aço sibilou no ar, deslizou pela carne e ossos e bateu contra o bloco de madeira. O pé branco com suas veias azuladas caiu sobre o chão de granito polido, e Zayn al-Din bateu palmas.

 

- Um belo golpe, realmente. Mas pode fazer o mesmo de novo?

Abubaker enxugou a espada num pedaço de seda que uma escrava lhe estendeu e, em seguida, a alinhou ao outro tornozelo. Assobio e um baque, o aço enterrou-se na madeira do bloco. Zayn al-Din explodiu em gargalhadas.

Os soldados carregaram bin-Nabula até a beira do penhasco, deixando um rastro úmido e vermelho pelas lajes de granito polido. Zayn al-Din escorregou das almofadas e dirigiu-se mancando até o parapeito baixo que o protegia de uma queda. Debruçou-se na amurada e olhou para baixo.

- Meus peixinhos estão esperando por você, bin-Nabula. Vá com Deus.

Os soldados lançavam o velho sobre a beirada, e suas túnicas se enfunaram em torno dele quando caiu, mas o orgulhoso soldado não deixou escapar nenhum som. Alguns gritavam durante toda a queda, e Zayn al-Din se deliciava com aquilo. Bin-Nabula atingiu a superfície e afundou com o ímpeto da queda. Então, as águas perturbadas se clarearam de novo e eles o viram emergir. Flutuou, tentando manter a cabeça acima da água, que se tingia de vermelho à sua volta.

- Lá! - Zayn al-Din apontou com um dedo trêmulo, e um grito esganiçado de excitação escapou-lhe da garganta. - Olhem meus peixes adorados.

As sombras escuras moveram-se com agitação, cada vez mais velozes ao subir para a superfície, e logo circulavam o velho que se debatia.

- Sim, meus pequenos, venham! Venham!

Então, houve o primeiro ataque, e bin-Nabula foi arrastado para o fundo. Porém as águas eram tão claras que Zayn al-Din podia seguir cada detalhe do banquete que preparara.

Quando o espetáculo terminou e não havia mais nada para ver, ele voltou para a pilha de almofadas sob o pavilhão de seda e pediu um refresco para beber. Em seguida fez um gesto para o irmão, pedindo-lhe que se aproximasse.

- Foi tudo bem-feito, Abubaker, porém é mais prazeroso quando eles gritam. Creio que o velho demônio permaneceu em silêncio simplesmente para estragar o meu divertimento.

- Bin-Nabula sempre foi um velho bode obstinado - Abubaker concordou. - Havia 612 nomes na lista que você me deu. É triste, Majestade, mas bin-Nabula foi o número seiscentos. Estamos quase no fim da relação.

- Não. Não, meu caro irmão, não estamos nem perto do fim. Um dos chefes principais de todos os nossos inimigos não está incluído nela ainda.

- Dê-me o nome do patife. - Abubaker mostrou seus dentes tortos num sorriso que era selvagem demais para ser um sorriso. - Diga-me onde encontrá-lo, e eu o trarei às suas mãos.

- Ora, meu irmão, você o conhece muito bem. Também tem um ajuste de contas a fazer com ele. - Zayn al-Din inclinou-se para a frente, sua barriga a pendurar-se sobre as pernas, e puxou a barra da túnica. Suavemente, massageou a articulação deformada de seu tornozelo. - Mesmo depois de todos esses anos, meu pé ainda dói quando há chuva no ar. - A compreensão escureceu ainda mais os olhos negros de Abubaker, e Zayn al-Din continuou, baixinho: - Não gostei de ser arrastado na ponta de uma corda pelos portões de Mascate.

- Al-Salil - Abubaker concordou. - O demônio de cabelos vermelhos e olhos verdes. Nosso santo pai, Alá abençoe sua memória, o mandou à África para reabrir as rotas de comércio para as nossas caravanas.

- Leve quantos navios e homens precisar, Abubaker. Vá para a África. Encontre-o e traga-o de volta a mim, destroçado, se desejar, mas não morto. Compreende?

- Destroçado, mas não morto. Compreendo perfeitamente, Majestade.

Yasmini deixou a praia e caminhou para a água. Encolheu o ventre liso com o frio, e espreguiçou-se, esticando as mãos acima da cabeça. Dorian estava deitado na areia branca e a observava. Embora tivessem feito amor minutos antes, ele nunca se cansava de olhar para aquele corpo suave da cor de marfim. Ela desabrochara desde a libertação da prisão dos muros sufocantes do harém. Agora, borbulhava de interesse e excitação com todas as maravilhas à sua volta, e, quando estavam sozinhos, seu espírito alegre e travesso o encantava.

Com água pela cintura, no lago, Yasmini recolheu uma concha do líquido doce nas palmas e levou-a aos lábios. Ao engolir, umas poucas gotas escorreram por entre seus dedos e pingaram em seu peito. Captaram os raios de sol e reluziram como um colar de diamantes em sua pele macia. Seus mamilos encolheram com o frio e apontaram, encrespados.

Ela voltou-se e acenou para Dorian. Então, com um calafrio de protesto pela água fria, mergulhou até que apenas a cabeça aparecia para fora. Seus cabelos, dispersos e com aquela trança prateada, flutuavam como uma nuvem escura em torno de sua face de lótus.

- Coragem, mestre! Venha! - convidou, mas ele fez um gesto preguiçoso de recusa. Aquela tranqüilidade era por demais deliciosa, depois de meses de dura marcha desde a costa.

- O grande xeque, o poderoso guerreiro e o vitorioso de Mascate está com medo de um pouco de água fria? - Yasmini caçoou.

Dorian lhe sorriu e meneou a cabeça.

- Não tenho medo da água, mas você exauriu toda a minha força, ó criatura insaciável.

- Era esse o meu propósito! - Ela caiu na risada e, de repente, se levantou e jogou uma cortina de água fria sobre ele.

- Mulherzinha danada! - Dorian saltou de pé. - Acabou com minha paciência também. - Arrojou-se no lago numa tempestade de borrifos e, embora Yasmini tentasse escapar, agarrou-a e mergulhou-a até o fundo. Subiram abraçados à superfície, e a cuspir entre risadas. Depois de um instante, a expressão de Yasmini tornou-se solene.

- Receio que não tenha sido sincero comigo, senhor - disse. - Estou segurando com a minha mão direita aquilo que prova que sua força está longe de lhe faltar.

- Basta que eu peça desculpas por decepcioná-la?

- Não, não basta. - Enlaçou os dois braços pelo pescoço de Dorian. - Eis como os peixes e crocodilos punem seus pares quando se comportam mal. - Saltou e, abaixo da superfície, prendeu-o pelos quadris nas tesouras de suas pernas.

Algum tempo depois, voltaram para a praia, ainda abraçados, e às risadas. Deixaram-se cair na beira da água, e Dorian ergueu os olhos para medir a altura do sol. Murmurou com tristeza:

- A manhã está quase no fim. Precisamos voltar, Yassie.

- Só um pouquinho mais - ela implorou. - As vezes fico cansada de me fingir de escravo.

- Venha! - ele ordenou e puxou-a para que se levantasse.

Caminharam até onde haviam deixado as roupas num monte desordenado e se vestiram depressa. O pequeno caíque estava encalhado na areia, mas antes de entrar no barco, Yasmini parou e olhou ao redor, devagar, para se despedir daquele local maravilhoso onde, por uma hora, haviam sido felizes e livres.

Na copa da árvore mais alta da ilha empoleirava-se um casal de águias-pesqueiras, de cabeças nevadas, os esguios corpos negros pincelados de canela. Uma das aves jogou a cabeça para o alto e emitiu um pio agudo.

- Jamais esquecerei esse grito - disse Yasmini. - É a própria voz desta terra selvagem.

As colinas no outro lado do lago eram apenas uma silhueta, de um azul mais pálido que a água. Uma longa fila de flamingos rosados levantou vôo da margem oposta. O líder da formação subiu numa corrente térmica de ar e, em seguida, mergulhou de novo. Cada ave do grupo subiu ao alcançar o mesmo ponto e depois mergulhou exatamente como o líder fizera. O efeito era extraordinário, como se uma longa serpente cor-de-rosa ondulasse acima das águas azuis.

- Nem jamais esquecerei tanta beleza - Yasmini murmurou. - Gostaria de ficar aqui para sempre com você.

- Esta é a morada de Deus, onde o homem não conta para nada - disse Dorian. - Vamos embora. Não podemos nos permitir sonhar assim. O dever me tem em suas garras de ferro. Amanhã, devemos deixar este lugar e começar a marcha de volta à Costa da Febre.

- Só um momento a mais, senhor - ela implorou e apontou para uma estranha nuvem escura, cerca de um quilômetro e meio além de onde se encontravam, que subia da superfície do lago até uns duzentos metros de altura, diretamente para o azul imaculado do céu africano.

- O que é aquilo? É como se a água estivesse em chamas e mandasse fumaça para o céu.

- Insetos minúsculos - Dorian explicou. - Criam-se no fundo do lago aos milhões e depois sobem à superfície e constroem delicadas velas de teias. Nessas velas, flutuam no ar e são carregados para longe.

- Os caminhos de Alá são maravilhosos - Yasmini murmurou, os olhos cintilando.

- Venha - ele a apressou de novo -, e lembre-se de que é, mais uma vez, Yassie, o escravo, e que deve me mostrar respeito e submissão.

- Sim, mestre.

Ela curvou-se numa leve reverência com as palmas juntas a tocar os lábios, e seu comportamento mudou por completo. Era uma atriz consumada e, quando se endireitou, agia como uma criada, não uma princesa, e caminhava como um garoto ao empurrar o caíque para dentro do lago e se escarrapachar sobre a proa.

Sentaram-se distantes um do outro enquanto o minúsculo barco fazia a volta no fim da ilha e seguia em direção à vila, no continente, a uma légua de distância pela água. Mesmo ali, muitos olhos poderiam observá-los.

Embora aquelas águas fossem tão extensas que mais pareciam o próprio oceano, estavam a meses de viagem da Costa da Febre, e o clima era mais seco e saudável ali, no alto platô do continente. A vila de Ghandu espalhava-se por vários quilômetros desde a margem do lago, pois era o centro de todo o comércio omaniano com o interior. Dali, a longa estrada dos escravos serpeava até a costa.

À vista, agora, surgiam uma dúzia ou mais de canoas e caíques a vela, que rumavam para o porto de Ghandu. Tinham viajado centenas de milhas desde a margem sul do lago, e levavam cargas de peixe seco, marfim, escravos, peles e goma-arábica que haviam recolhido no vasto interior.

Assim que Dorian e Yasmini se aproximaram da vila, ela torceu o nariz com desgosto. O ar ameno começava a impregnar-se com o fedor dos engradados de peixe e dos barracões dos escravos. Quando Dorian pisou em terra, Bashir al-Sind, seu primeiro-tenente, estava lá para encontrá-lo com o resto do comando do exército. Yassie viu-se deixada para trás, com ar humilde, enquanto Dorian era chamado imediatamente ao dever e responsabilidade de seu posto, um dever do qual se furtara por aqueles poucos e preciosos momentos na ilha com Yasmini.

- As mulheres chegaram, senhor - Bashir lhe disse -, e os mercadores estão reunidos à espera de suas ordens para a marcha.

Dorian caminhou pela vila, entre os movimentados barracões onde os escravos eram registrados, embora a sujeira e a miséria daquilo fossem um amargo contraste com a beleza e a serenidade que ele e Yasmini tinham usufruído pouco tempo antes. No bazar principal, sentado em seus bancos estofados sob os pára-sóis de seda vivamente coloridos, cada um rodeado por sua própria comitiva de guardas em túnicas e escravos domésticos, os cinco mercadores o aguardavam. Eles controlavam todo o comércio que passava por Ghandu. Tratava-se de homens religiosos, letrados; sua fala era educada, e os cumprimentos dirigidos a Dorian, muito floreados. De postura digna e nobre, eram excepcionalmente ricos. Dorian, contudo, logo passara a desprezá-los no curto tempo em que estava em Ghandu, ao defrontar-se com a selvageria do comércio que eles praticavam.

Dorian fora um escravo certa vez, mas al-Malik jamais o tratara como tal. A escravidão era um fato constante em sua vida adulta e, por essa razão, dedicara poucos pensamentos a isso. A maioria dos escravos que conhecera era domesticada ou nascida no cativeiro, resignada com sua sina e, em quase todos os casos, tratada gentilmente como bens móveis valiosos. Mas desde que chegara ali, a Ghandu, ele se vira defrontado pela realidade crua e brutal. Fora forçado a testemunhar a chegada de pessoas recém-capturadas, e não tinha sido uma experiência agradável.

Descobrira-se dividido entre seu próprio senso humanitário e o amor e dever para com seu pai adotivo, o califa. Compreendia como a prosperidade e o bem-estar da nação dependiam daquele comércio. Não se furtaria ao dever de protegê-lo, porém não extraía nenhum prazer naquilo que fazia.

Era a hora das preces do meio-dia, portanto todos fizeram suas abluções. Yassie verteu a água de um jarro para Dorian se lavar, e ele rezou com os mercadores quando se ajoelharam em fila sobre os tapetes de seda, de face para os locais sagrados ao norte. Quando voltaram aos assentos debaixo dos pára-sóis, Dorian sentiu um desejo intenso de abreviar os discursos floreados dos mercadores, a posterior troca de cumprimentos, e ir direto ao assunto que eles tinham para discutir. Entretanto, era agora tão árabe em seus costumes que não se permitiria uma tal descortesia. O sol já passara bem além de seu zénite quando um dos mercadores mencionou, quase de passagem, que possuíam duzentas escravas prontas para ele, quando quisesse.

- Traga-as - Dorian pediu, e à ordem dos mercadores, as mulheres desfilaram diante dele.

Dorian viu de imediato que lhe impingiam as mais velhas e mais doentes. Muitas jamais sobreviveriam à marcha exaustiva até a costa. Sentiu a raiva o espicaçar. Estava ali para salvar aqueles homens da ruína. Ele tinha uma licença do califa que os obrigava à obediência, e agora se mostravam mesquinhos e obstrutivos. Controlou os sentimentos. A condição das mulheres não era vital para o sucesso de seus planos. Pretendia colocá-las na caravana simplesmente para atrair os salteadores ao ataque. Uma coluna de escravos composta inteiramente de mulheres poderia levantar suspeitas.

De imediato e sem grandes considerações, Dorian rejeitou cinqüenta das mulheres, as velhas debilitadas e as em gravidez adiantada. Os rigores da marcha matariam as velhas e propiciariam um parto antes do tempo, e Dorian não poderia ter na consciência a culpa pela morte inevitável daqueles bebês. Pela mesma razão, recusou a oferta de crianças que os mercadores lhe fizeram.

- Quando partirmos de Ghandu, quero os grilhões mais leves nessas infelizes - avisou aos mercadores. Levantou-se como um sinal de que a reunião terminara.

Era um alívio sair da povoação horrível e subir até as colinas acima do lago, onde o ar era mais frio, e o panorama, glorioso. Dorian montara seu acampamento na encosta. Aprendera por experiência própria que seus homens permaneciam mais saudáveis se fossem mantidos afastados das vilas populosas, se os dejetos das latrinas fossem lançados longe das fontes de água e se as leis muçulmanas sobre o preparo da comida fossem estritamente observadas. Muitas vezes ficara a pensar se as abluções rituais antes das preces também contribuíam para tropas mais saudáveis. Certamente havia menos doenças em seus acampamentos do que seu pai experimentara nos lotados navios ingleses em que Dorian viajara quando criança.

Embora já fosse fim de tarde àquela hora, seu trabalho não estava terminado. O dia seguinte começaria de madrugada, para a primeira etapa da viagem, e ele precisava revisar as ordens de sua caravana.

Quinhentos de seus próprios homens, junto com as escravas, estavam sendo disfarçados. A cor dos escravos capturados era quase de um negro púrpura. Nem mesmo o mais escuro de seus árabes tinha aquele tom de pele, e assim Dorian ordenara que fizessem uso da infusão da casca de tanino, na qual os pescadores do lago ensopavam suas redes, para tingir seus corpos para uma tonalidade africana mais natural. Ainda não estava perfeito, e ele dependia da poeira e da sujeira acumulada na marcha para tornar o disfarce mais efetivo.

Defrontara-se com mais dificuldades: nenhum de seus soldados se desnudaria em público - a modéstia religiosa impedia isso -, de maneira que fora forçado a permitir que usassem tangas, embora se certificasse de que fossem sujas e rasgadas. Eles também tinham se recusado a rapar as cabeças, porém nenhum escravo africano tinha cabelos esvoaçantes, e Dorian insistiu naquilo com firmeza. Usariam grilhões, e não estariam trancados, e poderiam ser arrancados num instante. Com muita relutância, os mercadores de Ghandu haviam contribuído com uma centena de presas de elefante para "adoçar" a isca. Eram pequenas e leves, de maneira que os homens poderiam carregar suas armas em embrulhos sobre suas cabeças junto com o marfim.

Dorian lideraria a coluna, a cavalo, de túnica e velado, tal como os assaltantes haveriam de esperar. Manteria Yassie perto, ao alcance da mão. Ela aprendera a montar com as pernas escarranchadas durante a marcha desde a costa. Haveria um pequeno destacamento de guardas árabes a flanquear a coluna, não tão frágil para levantar suspeitas nem tão forte para impedir um ataque.

Bashir al-Sind seguiria na retaguarda com outros mil combatentes, e se manteria a duas ou três léguas de distância atrás, para que sua poeira não fosse visível aos batedores inimigos. O sinal de que a vanguarda estava sob ataque seria um rojão chinês vermelho. Ao sinal, Bashir avançaria e cercaria os atacantes, enquanto Dorian e seus homens os confrontariam até que Bashir pudesse colocar suas forças em posição.

- É um plano simples - concluiu Dorian, depois que ele e Bashir o revisaram pela décima vez. - Haverá muitas coisas que não podemos prever, porém são os azares da guerra, e nós as resolveremos quando surgirem. Talvez os fisi não apareçam, afinal. - Fisi era a palavra suaíli para hiena, e era como chamavam os assaltantes.

- Eles virão, al-Salil - Bashir predisse. - Tomaram gosto pelo sangue omaniano e estão sedentos dele.

- Rezo a Alá para que você esteja com a razão - disse Dorian, e foi para a sua própria tenda onde o escravo, Yassie, tinha o jantar preparado para ele.

- Há alguma coisa lá que me preocupa - disse Aboli ao estudar a distante caravana pelas lentes.

- Partilhe a sua ansiedade comigo - Tom sugeriu com um mal disfarçado sarcasmo.

Aboli deu de ombros.

- Aqueles homens são de ossatura leve, de compleição delicada. Caminham com uma estranha graça, de pés leves como gatos. Nunca vi escravos marcharem assim.

A quase cinco quilômetros de onde estavam à espera, a caravana árabe descia a escarpa das colinas, ondulando como uma serpente.

- Estão caminhando faz apenas umas poucas semanas desde que partiram da terra dos lagos - Tom explicou, mais para si próprio do que para Aboli. - Ainda estão descansados e fortes.

Não queria aceitar qualquer evidência que pudesse resultar em não desfechar o ataque. Aquela era a primeira caravana da estação seca que eles tinham condições de interceptar, e Tom receava que a fonte e o fluxo de suas fortunas secassem. Estava determinado a não permitir que aquele prêmio escapasse de sua rede.

- Sim, os homens são jovens e fortes, mas olhe para as mulheres.

Tom pegou de volta a luneta e estudou-as. Sentiu uma pequena ponta de desconforto nas entranhas. As mulheres eram diferentes dos homens no tom da pele, idade e estrutura corpórea. - São de uma tribo diferente - disse Tom, com mais confiança na voz do que sentia.

- Não há crianças - acrescentou Aboli. - Onde estão as crianças?

- Deus o ama, Aboli! - Tom estava exasperado. - As vezes você consegue fazer uma rosa recém-colhida cheirar como um peido molhado.

Ficaram ambos em silêncio por algum tempo. Tom mudou o foco das lentes para o líder da caravana. O árabe montava uma égua malhada de cinza com ricos apetrechos. A um olhar, Tom percebeu que era um excelente cavaleiro, provavelmente jovem. Cavalgava ereto e à vontade na sela. Carregava um longo mosquete sobre as costas, e um escudo, no ombro. Um lanceiro cavalgava à sua direita, pronto para lhe passar a arma, e um jovem montava um belo animal à sua esquerda.

Um escravo doméstico ou um amante favorito, Tom opinou. O árabe usava o turbante azul da casa real de Omã, e com a ponta do pano enrolada sobre seu rosto, apenas seus olhos estavam expostos.

- Gostaria de provar sua fibra. - Tom forçou-se a ignorar os próprios maus pressentimentos. - Por Deus, me parece que ele poderá dar trabalho.

- O marfim é pequeno e, pela facilidade com que o carregam, leve - Aboli disse, baixinho.

Tom o encarou com raiva.

- Andei uns 150 quilômetros por causa daquele marfim, leve ou pesado, e pretendo pegá-lo. Não voltarei com o rabo entre as pernas para casa porque você teve um sonho ruim, Aboli.

Eu nunca deveria ter lhe contado sobre o sonho, Aboli censurou-se e, depois, disse em voz alta:

- Eu o acompanhei em cada louca e insensata aventura que concebeu, Klebe. Talvez seja tolice de um velho, mas pretendo morrer a seu lado. Portanto, já que insiste, vamos descer e nos apossar daquela rica e fácil pilhagem.

Tom fechou a luneta com um baque e sorriu para ele.

- Não vamos falar em morte num dia tão glorioso como este, velho amigo. - Levantou-se. - Primeiro, vamos dar uma boa olhada na retaguarda, e depois passar à frente da coluna para encontrar um bom lugar para liquidar o negócio principal.

Desceram até onde Fundi mantinha os cavalos, no sopé da colina.

Batula galopou até a vanguarda da longa coluna que serpeava pela floresta e fez seus salamaleques a al-Salil.

- Os fisi estão farejando atrás da nossa retaguarda - informou.

Dorian desviou seu cavalo para fora da fila. O animal refugou e jogou a cabeça para o alto.

- Desde quando?

- Depois que montamos acampamento ontem de noite. Dois cavaleiros vieram do sul, seguidos por dois outros a pé.

- O que mais descobriu?

- Quando desmontaram para estudar a nossa posição, os dois cavaleiros estavam de botas. Embora tenham selvagens com eles, creio que são europeus. Andaram de um lado e de outro e depois montaram de novo e nos seguiram. Inspecionaram nosso acampamento do cume de uma colina e, em seguida, voltaram para o sul.

- Pareceu que soubessem que Bashir al-Sind está seguindo atrás de nós?

- Não, senhor, me parece que estão alheios a isso.

- Em nome de Alá, chegou a hora - disse Dorian com satisfação.

- Faça o sinal para avisar Bashir al-Sind de que os fisi estão perto, e que eles podem se aproximar. Três marcos de pedras empilhadas, de aspecto inocente, colocados num certo padrão na estrada atrás deles nada significariam a ninguém, exceto a al-Sind. Batula galopou de volta à retaguarda da caravana. Quando retornou, disse a Dorian:

- Está feito como ordenou, senhor.

- Agora, leve três homens com você e siga à frente para encontrar o lugar onde provavelmente eles cairão sobre nós - ordenou Dorian.

- Avance com desenvoltura e não faça nenhum movimento suspeito.

Era fim de tarde quando Dorian viu a patrulha retornar. Batula cavalgava calmamente.

- Senhor, adiante de nós há um local bastante favorável aos objetivos dos nossos inimigos. - Dorian esperou que ele prosseguisse. - Nossa vanguarda alcançará o lugar dentro de uma hora. A estrada desce por outra escarpa, serpenteia por um local estreito num terreno irregular. Arqueiros podem ficar escondidos por perto, de cada lado. Na metade da descida, há um lugar ainda mais íngreme. Ali, a trilha desce como por uma escada natural de pedras. É um lugar onde eles podem cortar nossa coluna ao meio.

- Sim - concordou Dorian. - Lembro-me desse ponto quando vim da costa. Há um rio no vale abaixo, com uma lagoa, onde descansamos por quatro dias.

- É o mesmo lugar - confirmou Batula.

- Eis onde farão a sua investida - afirmou Dorian, com certeza -, pois, além do rio, há uma extensa planície cuja travessia demora muitos dias de marcha e que não se encaixa muito bem nos propósitos deles.

Acima da escada natural de pedras, pendurava-se um contraforte de rocha vermelha coberta de líquen, a uns trinta metros de altura e de aparência frágil. Era dividido por profundas fendas verticais e dominava o estreito passo, abaixo. Tom sentou-se na beirada, os pés a balançar sobre o abismo, e olhou para a passagem afunilada. Descobrira e tomara nota daquele lugar fazia dois anos, depois de seu primeiro sucesso contra os negreiros.

Não mais que cinco cavalos podiam passar lado a lado, ele estimava, e era bastante difícil levá-los para cima ou para baixo. Teriam de desmontar e puxá-los pelas rédeas. Isso era ótimo, pois os arqueiros lozi tinham provado ser pouco confiáveis em face de uma carga de cavalaria. Contudo, eram combatentes formidáveis em embates confinados corpo a corpo. Não havia outro local ao longo de todas as centenas de quilômetros na extensão total da estrada dos escravos que se adequasse tão perfeitamente a uma emboscada e ao tipo de combate em que seus homens eram peritos.

Sob a supervisão de Luke Jervis, dez homens escalavam com dificuldade o terreno irregular na parte posterior de onde Tom se sentava. Cada um carregava uma barrica de 25 quilos de pólvora negra nas costas. Tom levantou-se e levou-os para a boca da fenda no contraforte rochoso. Eles descarregaram as barricas e depois se jogaram no chão para descansar.

Aboli montou rapidamente uma improvisada cadeira de guindar com uma prancha e um rolo de corda. Com três dos homens a segurarem a ponta da corda, foi baixado para dentro da fenda. Ao chegar ao fundo, os outros mandaram as barricas de pólvora pela corda até ele. Tom sabia que Aboli podia fazer esse tipo de trabalho melhor que ninguém, portanto o deixou ali e fez outro circuito pela borda do penhasco para verificar sua configuração e assegurar-se de contar com uma rota de fuga caso o ataque falhasse. Sarah esperaria com os cavalos numa ravina cercada de arbustos bem afastada da luta, mas perto o bastante se algo se voltasse contra eles e fossem forçados a bater em retirada para lá.

Quando retornou à boca da fenda, percebeu que Aboli terminara de colocar o explosivo e estava sendo içado para a borda.

- Deixei três rastilhos separados - disse a Tom e apontou para as longas cobras brancas que corriam pela face da rocha -, em caso de alguma falhar.

Voltaram e subiram pelo terreno acidentado até um ponto avançado do qual poderiam supervisionar a aproximação da caravana de escravos. Avistaram a nuvem de poeira ao longe, antes que a coluna surgisse à vista por entre as árvores da floresta rala. Tom examinou a vanguarda pela luneta, mas não percebeu nenhuma alteração no andamento ou na composição da coluna. Os escravos ainda caminhavam em três ou quatro, lado a lado, os grilhões a balançar e retinir. Os guardas árabes os flanqueavam, e o cavaleiro de turbante azul ainda cavalgava na ponta.

- Não estão cantando - comentou Aboli com expressão preocupada.

Era verdade, Tom se deu conta. Antes, ao se aproximarem das colunas de escravos, sempre ouviam os cânticos.

- Deve ser um grupo triste.

- Os mestres de escravos não usam o açoite neles - Aboli continuou. - Pense em alguma boa razão para isso, Klebe.

Tom esfregou o ressalto do nariz quebrado.

- Encontramos os únicos muçulmanos de coração mole em toda a Arábia. Você gasta seu fôlego, Aboli, e esgota a minha paciência. Aqueles lá são meus e eu os terei.

Aboli deu de ombros.

- Não é culpa sua, Klebe. Seu pai foi um homem teimoso, e seu avô, antes dele. Está no sangue.

Tom mudou de assunto.

- Acha que acamparão à noite na boca da passagem ou seguirão em frente?

Aboli observou a altura do sol.

- Se tentarem fazer a passagem no dia de hoje, estará escuro antes que prossigam.

- A escuridão se ajustará muito bem aos nossos planos.

- Abaixe suas lentes espiãs agora, Klebe. Eles estão perto. O ângulo do sol pode refletir um raio de luz para baixo e assustar a caça.

Dorian puxou as rédeas de seu cavalo e soergueu-se na sela para inspecionar a boca da passagem. Ela se abria gradualmente, as laterais a se tornarem mais profundas e íngremes conforme o terreno descendia. Lembrava-se com clareza da conformação do terreno: era o lugar perfeito para uma emboscada. Sentiu a pele se eriçar na curva da nuca, a premonição do perigo em que confiava de longa experiência.

- Batula, leve dois homens com você e desça pela passagem para fazer uma batida. - Era o que qualquer mestre prudente faria. - Dê mostras de que procura por sinais, porém se descobrir algo, não faça alarde. Volte aqui. Antes de se aproximar de mim, grite alto que a estrada está livre e tudo está seguro.

Batula abaixou a ponta da lança, cavalgou para a passagem e desapareceu depois da primeira curva. Dorian desmontou com modos formais e, atrás dele, a longa coluna que se arrastava nos pés parou, os escravos a caírem por terra, sentados ao lado de suas cargas. O escravo Yassie armou um pára-sol para o xeque e, em seguida, soprou os carvões no braseiro de cobre que carregava na garupa de sua sela. Quando se acenderam em chama viva, colocou a vasilha de café em cima. O café esquentou, e Yassie mergulhou uma xícara do tamanho de um dedal dentro e depois se ajoelhou para oferecê-lo a seu senhor.

- Fique perto de mim quando a luta começar - Dorian murmurou a Yasmini. - Em nenhuma circunstância pegue uma arma ou faça qualquer gesto belicoso. Se for ameaçada por algum inimigo, ajoelhe-se e implore por misericórdia. Se for capturada, não deixem que saibam que é mulher, muito menos que a usem como uma.

- Como ordenar, mestre. Porém com você a meu lado, não tenho medo de nada.

- Saiba que eu a amo, pequenina, e que sempre a amarei.

- Como eu o amo, mestre.

Um grito da boca da passagem os interrompeu.

- A estrada está livre e tudo está seguro.

Dorian ergueu os olhos e viu Batula acenando sua lança para trás e para a frente, a bandeira azul a flutuar em seu topo.

Dorian montou e ergueu-se nos estribos para dar o comando de avanço. Era tudo que era preciso fazer, pois cada homem sabia seu dever. Em passos pesados, a caravana seguiu para dentro do bucho de rocha vermelha.

As paredes de pedra fecharam-se sobre eles. Aquela era uma das antigas rotas dos elefantes e, com o passar dos anos, as patas dos grandes paquidermes tinham desgastado o solo rochoso. Dorian enrolou o pano azul de cabeça mais apertado sobre a boca e o nariz e, sem inclinar-se para a frente e tornar o gesto óbvio, examinou o chão em busca de sinais recentes dos assaltantes. A pedra estava limpa, o que não significava nada: aqueles eram homens perigosos e não seriam tão descuidados de marcar a trilha.

Conforme a passagem se estreitava, as fileiras de escravos e guardas eram comprimidas até que marchavam com os ombros se tocando. Não se ouviam conversas pela coluna, nenhuma cantiga, pois nenhum dos árabes poderia imitar a cadência e o ritmo da África selvagem.

No alto da muralha do passo, Dorian avistou um movimento de relance, um tênue lampejo acinzentado. Seu coração deu um salto e bateu mais depressa. Depois percebeu que era apenas um pequeno e ágil antílope africano, do tamanho de um coelho, que vivia entre as rochas. Parou na crista de uma lasca de pedra, todas as quatro diminutas patas juntas, seus chifres retos e orelhas espetadas, a observar, com grandes olhos assustados, os homens lá embaixo.

Na metade da descida da escarpa, começou um declive mais acentuado, conforme o passo se espremia entre os altos portais de rocha erodida pela ação do tempo, e, em seguida, declinava para um lance de escadas de degraus naturais de pedra. Dorian saltou da sela da égua e puxou-a pelas rédeas pelo terreno perigoso. Do chão, olhou para trás, para o declive. Seus instintos de soldado ficaram em alerta ao ver seus homens numa tal situação de risco, tolhidos: estavam confinados nas estreitas entranhas do desfiladeiro, tão entalados que poderiam apenas manejar uma arma branca ou mirar um mosquete com dificuldade.

Arrastou o cavalo para fora da trilha e ambos se espremeram contra o paredão para deixar passar as filas de escravos e guardas. Agora, inspecionava a muralha de ambos os lados, procurando por um lampejo de metal, por um movimento de um vulto humano contra o céu. Não havia nada, e metade da coluna já descera a escada de pedra. A segunda metade da caravana se infiltrava através do desfiladeiro rochoso. Devia ter chegado a hora. Avaliou o momento: estavam presos na armadilha. Relanceou os olhos para Yassie. Esta estava parada logo atrás dele, e puxara o cavalo para fora da trilha. Apoiara-se contra uma larga reentrância para deixar as filas de homens passarem.

Dorian ergueu os olhos de novo para o céu. Um único abutre navegava no azul em largos volteios. Era de um negro funéreo com uma cabeça calva vermelha e o bico recurvo. A ave virou o pescoço e olhou para baixo, para a massa de gente, enquanto circulava.

 

Tenha paciência, ave idiota, pensou Dorian com tristeza. Vai haver uma tal festança no dia de hoje que há de saciar até mesmo sua enorme avidez por carne.

Antes que pudesse concluir o pensamento, o ar foi empurrado para dentro de seu tímpano com tamanha força que ele cambaleou para trás. Foi como se um torno poderoso tivesse se fechado sobre seu peito, e a rocha sólida saltou e tremeu sob seus pés.

Viu uma torre de fumaça, poeira e fragmentos vermelhos subirem ao céu tão alto como o abutre circulante. Em seguida o chão se rasgou, o contraforte partiu-se e se separou. O penhasco estremeceu e depois inclinou-se para a frente. Deslocava-se tão lentamente que Dorian teve tempo de raciocinar enquanto o olhava. Pólvora negra! Eu deveria ter adivinhado. Eles explodiram o contraforte.

O rochedo fendido começou a despencar com mais velocidade, rugindo, esfacelando-se, estourando. Abaixo, os berros dos homens se erguiam, débeis e abafados. Caiu sobre eles e lhes sufocou os infrutíferos chamados por Deus. O passo estava bloqueado, e a longa caravana cortada pela metade como o corpo de um píton dividido por um único golpe de espada.

Embora Dorian ainda se agarrasse ao pescoço de seu cavalo, ouvidos a tinir e sentidos alterados, viu os primeiros vôos das flechas a se abater sobre seus homens como nuvens de gafanhotos, e saraivadas de tiros de mosquete a irromper das paredes do desfiladeiro. As golfadas de fumaça de pólvora enevoaram o ar quente, abafado, e ele ouviu as balas de chumbo martelarem como granizo em pedra e igualmente na carne viva.

Uma centena ou mais de seus homens fora esmagada pela avalanche. Menos de cinqüenta de seus guerreiros escapara para além das ruínas ainda fumegantes. O restante de sua força de combate estava bloqueado no fim do passo. Num instante, ele viu que os atacantes tinham ganhado vantagem, e sabia que no próximo momento investiriam para terminar o trabalho sangrento que haviam começado tão bem. Saltou para a sela e puxou a cimitarra.

Ele e Batula estavam separados, mas isso de nada importava, pois o espaço era por demais apertado para um combate de lança. Seria com espada e adaga quando os fisi aparecessem. Os escravos tinham se jogado no chão, como ele ordenara. Ao se agacharem contra o solo de pedra em simulado pavor, estavam se livrando de seus grilhões e desenrolando as armas dos embrulhos que haviam carregado na cabeça.

Da sela, Dorian viu os fisi saltarem do local da emboscada e irromper pelas escarpas laterais - negros com penachos de guerra, brandindo escudos leves de couro cru. Saltavam de pedra em pedra, aos uivos, num brado selvagem de guerra. Portavam lanças curtas e macetes pesados. Então, atônito, Dorian viu um homem branco na vanguarda, depois outro e um terceiro.

- Deus é grande! - Dorian rugiu.

Os árabes seminus e agachados saltaram de pé para enfrentar a carga, cimitarras nas mãos, e responderam a seu brado:

- Deus é grande! Allah akbar!

Dorian projetou-se para a frente a fim de alcançar uma posição da qual pudesse comandar a batalha, porém uma pesada bala de mosquete acertou seu cavalo na espádua, com um baque surdo, e o animal tombou numa confusão de patas e apetrechos e ficou a estrebuchar. Frações de segundo antes, Dorian livrou-se dos estribos, saltou da sela e aterrissou como um gato nos pés. Tudo ao redor era tumulto, mesmo assim ele ouviu uma única voz gritar:

- A eles, camaradas! Cortem fora suas bocas de barris pagãs!

Era uma voz inglesa, vibrante do sotaque regional de Devon, e aquilo chocou Dorian mais do que a explosão dos barris de pólvora.

- Ingleses!

Ele não ouvia seu idioma desde muitos longos anos. De súbito, todo aquele tempo foi varrido para longe. Eram seus conterrâneos. Descobriu-se capturado num redemoinho de emoções conflituosas. Rebuscou dentro de si por um jeito de parar a batalha, salvar as vidas de suas próprias tropas e de seus compatriotas, que logo se defrontariam.

O dardo de guerra, porém, era veloz, e era muito tarde para mudar seu vôo. Olhou para Yassie - ainda estava protegida sob o abrigo da depressão na rocha. Porém ela gritou, um grito agudo de alerta, e apontou atrás dele.

- Às suas costas, senhor!

Dorian girou nos calcanhares para se defrontar com o homem que avançava para ele. Era um bandido forte, de ombros largos, com um nariz torcido e uma moita crespa de barba negra. Sua face era requeimada de sol e vento, mas havia algo naqueles olhos, naquele verde faiscante, que tocou um acorde profundo na memória de Dorian. Não lhe restou um momento para se demorar na lembrança, pois o inimigo avançava com uma velocidade e uma postura que contradiziam sua compleição.

Dorian aparou o primeiro golpe, mas foi tão poderoso que repercutiu por seu braço direito até o ombro. Atacou em resposta, fluido e gracioso, e o inglês o bloqueou, prendeu-lhe a espada ao alto na linha natural e enroscou-a no clássico engate prolongado, a girar as duas lâminas juntas e fazendo o aço guinchar e cantar.

Naquele instante, Dorian se deu conta de três coisas: que o inglês era o melhor espadachim com quem jamais se defrontara; que se tentasse romper o contato, seria um homem morto; e que reconhecia aquela espada que lhe aprisionara a própria lâmina. Ele a vira pela última vez pendurada ao lado da perna de seu pai quando este se postava no convés de popa do velho Seraph. O aço azul e o entalhe de ouro reluziam e ofuscavam a vista. Era inconfundível.

Então, seu opositor falou pela primeira vez, sua voz distorcida pelo esforço que exercia ao manter a espada de Dorian travada.

- Vamos, Abdula, deixe-me fatiar outro pedaço desse pênis sem prepúcio para você.

Tom! Dorian quis gritar, mas o choque foi tão intenso que sua voz travou-se na garganta e nenhum som chegou a seus lábios. Os músculos de seu braço direito se relaxaram por um instante, e ele perdeu o ponto de contato.

Nenhum homem vivo poderia se permitir perder o ponto de contato quando Tom Courtney o tivesse com a lâmina travada em engate prolongado, e o golpe fatal veio como o faiscar de um relâmpago em ensolarado céu azul de verão. No último instante, Dorian desviou-se para o lado, atrapalhando a mira de seu irmão por questão de um dedo, mas, em seguida, sentiu o impacto no alto, à direita do peito, e o longo deslizar do aço em sua carne. A cimitarra caiu de seus dedos insensíveis e ele desabou de joelhos com a lâmina ainda enterrada.

Tom! Tentou chamar de novo, mas nenhum som saiu. Tom recuou, arrancando o aço de seu peito com um ruído suave, de sucção, tal com um bebê que solta o seio. Dorian tombou para a frente, de cara no chão. Tom saltou sobre ele e ergueu a lâmina para terminar o trabalho. Antes que pudesse desferir o golpe fatal, uma figura miúda arrojou-se entre eles, e cobriu o corpo de Dorian, protegendo-o com o próprio corpo.

- Maldição! - Tom berrou, porém conteve o golpe. - Suma daqui!

O menino, que se punha como escudo vivo era uma simples criança, e o ato de sacrifício comoveu Tom, mesmo no êxtase raivoso do combate. Poderia matar os dois com um único golpe, atravessá-los. Porém não conseguiu. Recuou e tentou chutar o jovem de sobre o corpo do líder árabe, mas o pequeno agarrou-se a seu senhor como uma ostra numa rocha.

Gritava sem cessar, dolorosamente, em árabe:

- Piedade! Em nome de Alá, piedade!

Naquele momento, Aboli berrou, a voz alterada, um alerta:

- As suas costas, Klebe!

Tom rodopiou, a espada em riste, para defender-se do ataque de dois homens seminus. Por um instante julgou que eram escravos que tinham se libertado miraculosamente de seus grilhões e o atacavam agora com cimitarras que haviam arranjado sabe-se lá onde. Então, viu-lhes as feições, e não eram negróides, mas arábicas. Por Deus, pensou, não são escravos coisa nenhuma, mas combatentes muçulmanos. Contra-atacou à direita e à esquerda e os manteve a distância. Em seguida matou um e mandou o outro cambaleando para trás com um talho em seu ombro nu.

- Klebe, é uma armadilha! - Aboli berrou de novo, e Tom teve um momento para olhar ao redor.

Cada um dos ex-escravos estava livre de suas correntes, todos armados. Eram rápidos e determinados em seu contra-ataque. Os lanceiros lozi já recuavam ante suas investidas e a maioria estava em fuga, a escalar os lados do desfiladeiro em selvagem desordem.

Da frente da coluna, Tom viu um rojão chinês vermelho subir e explodir no céu num longo rastro de fumaça branca, e soube que devia ser um sinal para levar os reforços a investir contra eles.

Sobre a muralha de destroços de rocha vermelha que bloqueavam o setor do fundo do passo, vinha uma onda de mais muçulmanos, alguns de túnicas, os outros de tanga, e corriam para se juntar à luta. Aboli e o pequeno bando de marujos ingleses se viram inferiorizados em número. Em questão de minutos seriam defrontados e dominados por aquela maré de novos guerreiros.

- Vá embora, Klebe! Está perdido. Vá embora!

- A mim! - Tom bradou. - A mim, o Centauro.

Chamou os outros para o seu lado. Alf Wilson e Luke Jervis irromperam pelas linhas inimigas e correram para ele. Com Aboli e todos os marujos restantes, formaram um círculo de aço, e recuaram na formação que haviam praticado tantas vezes. Ao deparar com seu líder abatido e fora de combate, os árabes pareceram de súbito indecisos e relutantes em se lançar contra a ponta das espadas. Tom chegou ao local no sopé do rochedo de onde poderiam começar a fazer a escalada de volta, e gritou:

- Fora daqui, camaradas! Cada um por si, e que o demônio tome a retaguarda.

Subiram, agarrando-se às pedras, suando e praguejando, ofegantes. Antes que alcançassem o topo, os árabes embaixo tinham se reorganizado e disparavam as primeiras saraivadas de tiros, que arrancavam lascas das pedras ao redor, o cascalho solto a lhes chover nas cabeças e os ricochetes a sibilar para todo lado. Um dos marujos foi atingido: a bala pegou-o nas costas. Ele se arqueou para trás e soltou as mãos, em seguida caiu escorregando e rolando pela ribanceira. Tom relanceou os olhos para trás e, no momento em que seu homem chegou ao fundo, viu os árabes avançarem sobre o corpo e o retalharem.

- Não há nada que possamos fazer pelo pobre Davie. Continuem a subir - resmungou.

Tom e Aboli rastejaram para cima do penhasco, juntos, e ficaram protegidos do fogo inimigo que vinha de baixo. Pararam para recuperar o fôlego e reuniram os demais em torno de si.

O suor corria pela face marcada de cicatrizes de Aboli e, quando ele olhou para Tom, meneou a cabeça calva sem precisar de palavras para expressar seus sentimentos com mais eloqüência.

- Não diga nada, Aboli. Você comprovou mais uma vez que é tão sábio como Deus, embora de certa forma um pouco mais velho e não tão bonito. Tom riu asperamente, ainda sem fôlego. - Vamos lá, camaradas. De volta aos cavalos.

Sarah segurava os animais nos densos arbustos da ravina. Mediu com um único olhar as faces do grupo que chegava aos tropeções, arrastando dois homens feridos consigo, e não fez perguntas. A maioria deles tinha talhos profundos e sangrava, e todos estavam encharcados de suor. Não havia montaria suficiente, de maneira que Tom colocou Sarah na garupa de sua sela. Luke levou um dos feridos com ele, Alf Wilson, o outro, e cada marujo agarrava um estribo e se deixava arrastar, enquanto rumavam para o sul. Os guerreiros lozi já haviam se dispersado antes, pelo meio da selva.

- Trouxemos o remoinho sobre nós - disse Aboli. - Vão mandar um exército para nos caçar.

- Nossos dias em Forte Providência chegaram ao fim - concordou Tom, galopando firme ao lado dele. - Graças a Deus o Centauro não tem carga para levar. O rio está baixo, mas a embarcação zarpará leve, e poderemos descer a correnteza antes que os muçulmanos possam nos alcançar.

Dorian jazia onde havia caído, na garganta do passo. Ben Abram, o médico, curvado pelos anos, não permitira que o movessem até terminar de colocar uma compressa sobre o ferimento e enfaixá-lo firmemente para estancar o sangramento.

- Não atingiu o coração e o pulmão - disse -, mas ele ainda corre perigo de vida.

Fizeram uma maca com varas de lança e um toldo de couro, e oito homens carregaram Dorian suavemente pelos escombros do campo de batalha, onde os outros feridos gemiam e suplicavam por água. Yasmini caminhava ao lado da maca. Enrolara o alfalema sobre a face para abafar os soluços e esconder as lágrimas.

Quando chegaram ao bosque ao lado da lagoa do rio, no sopé da escarpa, os criados do acampamento já tinham recuperado a tenda do xeque dentre a bagagem dispersa e a haviam montado. Deitaram al-Salil na cama de campanha e o acomodaram sobre almofadas de seda. Ben Abram deu-lhe uma dose de ópio, e Dorian mergulhou num sono inquieto.

- Ele vai morrer? - Yasmini perguntou, aflita, a Ben Abram. - Por favor, diga-me que ele não vai morrer, velho pai.

- Ele é jovem e forte. Com a graça de Deus, viverá, mas levará tempo para se recuperar e para reaver o uso do braço direito.

- Ficarei ao lado dele e não descansarei enquanto não estiver bom.

- Sei que fará isso, criança.

Pouco depois, ouviram-se vozes nervosas do lado de fora da tenda. Yassie voou para a entrada, a fim de proteger seu senhor e afastar as pessoas dali. Porém, mesmo em seu estado anestesiado, Dorian reconheceu as vozes de Bashir al-Sind e Batula.

- Deixe-os entrar! - pediu, baixinho, e Yassie teve de se afastar de lado.

Bashir curvou-se numa reverência ao entrar.

- Sr. xeque, clamo pela proteção de Alá sobre a sua pessoa.

- E o inimigo?

- Escapou. Viemos tão logo vimos o rojão, mas era tarde. Todos já tinham fugido.

- Quantos deles foram mortos?

- Muitos cafres1 negros e três europeus.

- Um dos europeus era um homem forte com uma barba negra?

Bashir meneou a cabeça.

- Nenhum deles. Dois eram pequenos e magros, um dos infiéis, o maior, tinha barba grisalha.

Dorian sentiu uma onda de alívio. Tom escapara. Mas então Batula se pôs a falar atropeladamente, sua voz estridente e ansiosa:

- Senhor, segui as pegadas daqueles fisi que fugiram do campo de batalha. Tinham cavalos escondidos perto daqui, e rumaram para o sul a toda pressa. Dê a ordem e nós os perseguiremos.

Bashir interrompeu-o, ainda mais nervoso:

- Al-Salil, tenho mil homens prontos e montados, ávidos para caçá-los. Aguardo apenas sua ordem e, depois, por Alá, nenhum há de sobreviver.

- Não! - A exclamação dilacerou Dorian de dor, e Bashir pestanejou com a veemência daquela negativa.

- Perdoe minha impertinência, poderoso senhor, mas não compreendo. Era peça central dos nossos planos que liquidássemos os bandidos infiéis.

- Você não vai persegui-los. Eu proíbo - Dorian esbravejou com toda a força que lhe restava, para enfatizar a ordem.

- Se não os perseguirmos de imediato, eles vão se safar! - Bashir via a chance de atingir os píncaros da glória esvair-se e relanceou os olhos para Ben Abram. - Talvez a gravidade de seu ferimento tenha toldado seu julgamento, poderoso senhor.

Dorian lutou para soerguer-se sobre um cotovelo.

- Em nome de Alá, eu lhe juro! Se contrariar as minhas ordens, carregarei sua cabeça na ponta da minha lança e enterrarei seu corpo numa pele de porco.

Houve um longo silêncio e, então, por fim, Bashir falou baixinho:

- Poderá o grande senhor al-Salil repetir tais ordens na frente dos oficiais superiores do comando para que possam testemunhar que não foi covardia de minha parte que me reteve enquanto o inimigo batido escapava?

Nota de Rodapé: Cafre: indivíduo de uma população africana banta, afim dos zulus, não muçulmana, do sudeste da África.

Fim da Nota.

Os quatro oficiais maiores entraram na tenda e Dorian repetiu sua ordem de comando a eles e depois os mandou embora. Quando Bashir fez menção de segui-los, Dorian o impediu.

- Há questões aqui por demais secretas que não posso lhe explicar, Bashir. Perdoe-me se pareço impedi-lo de cumprir com o seu dever. Saiba apenas que o tenho em alto conceito.

Bashir fez um salamaleque, tocando o coração e os lábios, mas sua expressão era fria e aborrecida ao recuar para fora da tenda. Em campo aberto, ouviram-no gritar ordens zangadas às suas tropas, para que desmontassem.

Dorian parecia ter mergulhado num sono profundo. O silêncio na tenda era pesado, e Yasmini enxugou-lhe o suor da testa com um pano úmido. Depois de um longo momento, Dorian enrijeceu o corpo e abriu os olhos. Olhou primeiro para ela e depois para Ben Abram.

- Estamos sozinhos? - perguntou, e ambos aquiesceram.

- Aproxime-se, velho pai. Há algo que preciso lhe contar. - Quando Yasmini fez menção de se levantar e sair da tenda, ele pousou a mão em seu braço para impedi-la. Assim que os dois se debruçaram sobre ele, Dorian disse num murmúrio: - O homem que me feriu é meu irmão. Eis por que não pude mandar Bashir atrás dele.

- Como isso é possível, Dowie? - Yasmini o encarou, surpresa.

- É possível - Ben Abram respondeu por ele. - Conheço esse irmão e sei que pode ser ele.

- Conte-lhe, por favor, velho pai. É muito cansativo para eu falar. Explique tudo a ela.

Ben Abram levou um instante para reunir palavras e, em seguida, começou a falar baixinho para que ninguém do lado de fora da tenda pudesse ouvi-lo. Contou a Yasmini como Dorian fora capturado quando criança pelos piratas e vendido como escravo; como al-Malik o comprara de al-Auf e o adotara.

- Eu o encontrei face a face, esse irmão de al-Salil. Cheguei a conhecê-lo bem na ilha, depois que ele destruiu o covil dos piratas. O nome dele é Tom. Fui seu cativo, porém ele me libertou e me deixou ir embora para Lamu com uma mensagem para Al-Salil. Prometeu que nunca desistiria de procurar por ele, e que um dia o encontraria e o resgataria.

Yasmini olhou para Dorian em busca de confirmação, e ele fez um gesto de concordância.

- Então, por que não cumpriu seu juramento de libertá-lo, esse seu leal irmão? - ela perguntou.

Dorian pareceu abatido.

- Não sei responder a isso - admitiu. - Meu irmão Tom jamais foi pessoa de jurar em vão. Creio que depois de todos esses anos, ele simplesmente se esqueceu de mim.

- Não! - exclamou Ben Abram. - Houve uma coisa que você nunca soube e que eu não podia lhe contar. Seu irmão voltou a Zanzibar à sua procura. O príncipe al-Malik jamais admitiria a hipótese de libertá-lo, Dorian. Mandou o mulá al-Allama com uma mensagem para seu irmão. Foi encarregado de dizer a ele que al-Amhara havia morrido de febre e que estava enterrado num túmulo do cemitério sob a lápide com seu nome, em Lamu.

- Então, isso foi quando meu pai mudou meu nome para al-Salil... - A voz de Dorian tornou-se mais forte e mais aguda ao compreender o artifício. - Foi para ocultar a verdade de Tom. Não é de admirar que ele tenha desistido de procurar por mim.

Fechou os olhos e ficou em silêncio. Yasmini julgou que ele mergulhara na inconsciência, mas então viu uma única lágrima lhe escorrer por entre as pálpebras cerradas. Seu coração confrangeu-se de piedade.

- O que fará, meu amor? - Afagou-lhe os cabelos de um ruivo intenso.

- Não sei - ele murmurou. - Isso tudo é tão cruel... Sinto uma espada a me dividir a alma.

- Você é do islã agora - Ben Abram disse. - Poderá voltar às suas origens?

- Seu irmão acreditaria que você está vivo, depois de ter estado morto para ele durante todos esses anos? - indagou Yasmini.

- E você poderia abraçá-lo agora, sendo ele inimigo jurado de seu pai, o califa al-Malik, e de seu Deus e de seu povo? - Ben Abram retorceu o punhal no coração de Dorian.

Dorian não tinha nenhuma resposta para qualquer das perguntas. Virou o rosto para a parede de couro da tenda e buscou refúgio na fragilidade que seu ferimento lhe impunha. Yasmini não saiu de seu lado enquanto ele mergulhava na inconsciência e emergia dela, atormentado pela dor física e pelas forças emocionais que lhe dilaceravam o coração e ameaçavam parti-lo ao meio.

O exército permaneceu estacionado durante dias no acampamento abaixo da escarpa, enquanto seu xeque jazia confinado na tenda pelo ferimento de combate.

Sob o comando de Bashir, os soldados recolheram os feridos e construíram abrigos de teto de palha para eles, à sombra das árvores. Ben Abram os tratou. Enterraram os mortos, porém deixaram imperturbados aqueles que já estavam soterrados pelas rochas da avalanche. Repararam os equipamentos danificados e afiaram de novo as armas. Depois, ficaram à espera de novas ordens. Nenhuma veio. Bashir al-Sind caminhava com passos zangados pelo acampamento, a empurrar para o lado qualquer um que lhe interceptasse o caminho, e seus homens compartilhavam sua frustração. Queimavam de ansiedade por uma chance de vingar os companheiros que haviam morrido na garganta do passo, porém não podiam desencadear qualquer ação sem as ordens de al-Salil.

Terríveis rumores corriam pelo acampamento, de que Bashir se rebelaria e assumiria o comando em lugar do xeque enfermo. De que o xeque morrera, de que se recuperara, de que fugira às escondidas durante a noite e os deixara entregues à própria sorte.

Então, outro boato mais estranho espalhou-se pelas fileiras, de que uma segunda grande força expedicionária sob o comando de um príncipe da casa real de Omã estava marchando da costa para se reunir a eles. Com tal força combinada, poderiam por fim perseguir os infiéis até seu covil. Aquele rumor se difundira fazia apenas poucas horas, quando ouviram o grave rufar de distantes tambores de guerra, a princípio tão baixo que pareceu ser a batida de seus próprios corações. Os soldados árabes se reuniram em terreno alto para olhar pela planície, e estremeceram de emoção ao ouvir o som de uma tromba de chifre de carneiro. Viram uma esplêndida hoste se aproximando, com um grupo de altos oficiais a cavalgar na vanguarda.

Admirados, amontoaram-se num ajuntamento quando aqueles estranhos entraram no acampamento. O oficial que comandava as forças usava meia armadura em estilo turco, com um elmo em forma de capacete, pontudo no topo da cabeça e com uma aba que descia pelo nariz. Do lombo do cavalo, aquela esplêndida figura dirigiu-se a eles em tom enérgico:

- Sou o príncipe ibn al-Malik Abubaker. Homens de Omã, soldados leais e fiéis, trago-lhes tristes novas. Abd Muhammad al-Malik, meu pai e seu califa, está morto no palácio de Mascate, atingido em sua plenitude pela espada do anjo negro.

Um murmúrio correu pelas fileiras, pois a maioria dos soldados lutara em Mascate para colocar al-Malik no Trono do Elefante, e todos amavam o seu califa. Prostraram-se de joelhos a clamar:

- Possa Deus ter piedade de sua alma.

Abubaker deixou que expressassem seu pesar e depois ergueu a mão calçada com manopla para pedir silêncio.

- Soldados do califa, trago-lhes as saudações de seu novo governante, Zayn al-Din, amado primogênito de al-Malik, que é agora o califa. Ele me encarregou de chamá-los a jurar lealdade e obediência ao seu reinado.

Todos se ajoelharam em filas, com Bashir al-Sind na vanguarda do exército, e prestaram o voto de lealdade, clamando a Deus por testemunha. Quando a cerimônia se encerrou, o sol se punha. Então, Abubaker os dispensou e chamou Bashir à sua presença.

- Onde está aquele covarde e traidor al-Salil? - perguntou. - Em nome do califa, tenho assuntos urgentes a tratar com ele.

De seu leito, Dorian ouviu o pronunciamento sobre a morte de seu pai adotivo, pois a voz de Abubaker transpusera facilmente as paredes de couro da tenda. E, de súbito, lhe pareceu que todas as fundações de sua vida haviam sido destroçadas de uma só vez. Sentia-se fraco e doente demais para superar tantos choques e vicissitudes.

Em seguida ouviu o nome de Zayn al-Din, e a notícia de sua ascensão ao Trono do Elefante, e se deu conta de que a situação era ainda pior do que havia imaginado. Com um imenso esforço, pôs de lado a tristeza por seu pai e seu próprio sofrimento físico debilitante, pegou a mão de Yasmini e puxou-a para mais perto do leito. Ela também ficara chocada com a notícia da morte de al-Malik, porém nem tanto quanto Dorian, pois mal conhecera o pai. Recobrou-se quando ele a puxou.

- Nós corremos grande perigo, Yassie. Ambos estamos agora completamente sob o poder de Zayn. Não preciso lhe dizer o que isso significa, pois Kush era um santo em comparação a nosso irmão.

- Como poderemos escapar dele se não pode se mover, Dowie? O que faremos?

Ele disse a ela o que deveria fazer, falando em voz baixa e apressada, obrigando-a a repetir cada detalhe.

- Eu lhe daria uma mensagem escrita, mas não consigo escrever com este braço. Você precisa levar meu recado de boca, mas saber muito bem os dizeres, caso contrário não será digna de crédito.

Yasmini era esperta e, mesmo em seu estado de confusão, memorizou tudo perfeitamente na primeira tentativa, embora tivesse dificuldade em proferir algumas das palavras que ele lhe ensinava. Não havia tempo para aperfeiçoamentos.

- É isso. Ele compreenderá. Agora, vá! - Dorian ordenou.

- Não posso deixá-lo, senhor - ela gemeu.

- Abubaker irá reconhecê-la se ficar comigo. Em suas garras, você não será de valia para nenhum de nós.

Yasmini beijou-o uma vez, com amor e ternura, em seguida levantou-se para sair. Naquele instante, porém, houve um tropel pesado do lado de fora da tenda, e ela recuou para um canto, agachou-se e cobriu a cabeça e os ombros com o xale. A aba da tenda foi aberta num repente e Bashir al-Sind entrou. Ben Abram tentou intervir e evitar que se aproximasse da cama onde Dorian jazia.

- Al-Salil está gravemente enfermo e não deve ser perturbado.

Bashir empurrou-o de lado com enorme falta de respeito.

- O general Abubaker, o emissário do califa, se aproxima! - avisou Bashir, e sua expressão era fria e maliciosa.

Dorian percebeu que ele mudara de lado e não mais era seu amigo leal e aliado.

Atrás dele, Abubaker entrou na tenda e parou com as mãos nos quadris.

- Ora, ora, o traidor ainda vive. Isso é ótimo. Al-Salil, que foi um dia al-Amhara no harém em Lamu, onde éramos companheiros de brincadeiras. - Fungou com sarcasmo. - Eu vim para levá-lo ao califa, a fim de responder por acusações gravíssimas de traição. Marcharemos para a costa amanhã ao alvorecer.

Ben Abram interveio de novo, agitando as mãos trêmulas.

- Nobre príncipe, ele não pode ser movido. Seu ferimento é muito grave. Isso lhe porá em perigo a própria vida.

Abubaker aproximou-se da cama e olhou para Dorian.

- Um ferimento, você diz. Como pode ter certeza de que ele não está se esquivando de suas responsabilidades?

De repente, estendeu a mão e agarrou o pano que cobria o peito de Dorian. Com um gesto brutal, arrancou-o. A crosta recém-formada estava grudada às ataduras e, ao ser arrancada fora, Dorian se enrijeceu e gemeu de agonia. O sangue fresco escorreu do ferimento e desceu pelo peito. No canto da tenda, Yasmini sufocou um soluço, porém ninguém tomou conhecimento dela.

- E um mero arranhão - Abubaker opinou ao fingir examinar a ferida aberta. - Nada suficiente para afastar um traidor da Justiça. - Pegou um punhado dos fartos cabelos vermelhos de Dorian e arrastou-o para fora da cama. - De pé, porco traidor!

Puxou Dorian para obrigá-lo a ficar de pé.

- Veja, doutor, como está forte o seu paciente. Estava com manha para ludibriá-lo. É uma coisa de nada o que ele tem.

- Nobre príncipe, ele não sobreviverá a um tal tratamento ou à longa marcha até a costa.

- Ben Abram, seu velho bode trôpego, se ele morrer antes de chegarmos à costa, eu terei a sua cabeça. Que isso seja uma contenda entre mim e você. - Sorriu e mostrou todos os dentes tortos. - Deve fazer seu melhor para manter al-Salil vivo. De minha parte, farei meu melhor para matá-lo aos poucos. Veremos quem vencerá.

Jogou Dorian de volta ao catre, virou-se e saiu da tenda. Bashir o seguiu.

Yasmini levantou-se e correu para Dorian. Embora sua face estivesse contorcida de agonia e dor, ele balbuciou, aflito:

- Vá, mulher. Não perca um minuto a mais. Encontre Batula e parta.

Tom e seu bando chegaram ao Forte Providência em três dias de dura cavalgada e iniciaram imediatamente os preparativos para abandonar a povoação. Aboli mandou Fundi e três de seus homens rio acima para pegar sua família.

- Não posso partir sem eles - disse a Tom, simplesmente.

- Eu não haveria de esperar que fosse diferente - Tom respondeu. - Porém devem se apressar. Podemos ter certeza de que os muçulmanos estão firmes em nossos rastros.

Tom enviou sentinelas para guardar todas as aproximações do forte, para que dessem aviso de quando as forças árabes aparecessem. Depois, às pressas, começou a carregar o Centauro para a partida pelo curso descendente do rio Lunga. Desmontaram o leve canhão de balas de 4,5 quilos de seu lugar, na parede da paliçada, e o colocaram em suas carretas sobre o convés superior. Não havia marfim para levar, mas recarregaram todas as mercadorias que haviam trazido de Boa Esperança no início da estação. Sarah recolheu todos os seus tesouros e os levou a bordo: linho e utensílios de cozinha, caçarolas e panelas, estoque de medicamentos e livros que quase lotaram sua minúscula cabina. Tom tentou discutir o destino do clavecino.

- Eu lhe comprarei outro - prometeu, mas quando viu aquela expressão peculiar no rosto dela, percebeu que desperdiçava o fôlego. Sem graça, permitiu que dois marujos o carregassem pela prancha de embarque e o arrastassem para o porão.

Era estranho, porém ainda não havia nenhum sinal de perseguição vinda do norte, e Tom mandou Aboli certificar-se de que as sentinelas que cobriam as trilhas estavam atentas e em seus postos. Aquela calma não era natural. Certamente o revide logo viria.

 

Os dias passaram. Por fim, Fundi retornou da Terra dos Lozi com duas canoas de troncos, trazendo Zete e Falia, os dois meninos Zama e Tula, e os novos bebês. Sarah tomou-os sob suas asas. Tom enviou um mensageiro urgente atrás de Aboli, para avisá-lo que voltasse, pois tudo estava pronto para a partida.

Dois dias mais tarde, ouviu-se um grito da sentinela na torre de vigia acima do forte.

- Cavaleiros vindos do norte!

Tom subiu a escada, luneta na mão.

- Onde? - perguntou, e, quando a sentinela indicou, focou a luneta.

Sarah subiu até o topo da torre e postou-se ao lado dele.

- Quem é? - perguntou, ansiosa.

- É Aboli, trazendo as sentinelas. - Assobiou baixinho, com alívio e satisfação. - E nenhum sinal de perseguição. Parece que poderemos dar o fora sem combate. Não julguei que fosse possível. Não consigo entender por que os muçulmanos nos deixaram escapar tão facilmente. Leve todos os seus pirralhos a bordo. Zarparemos rio abaixo assim que Aboli pisar no convés.

Ela começou a descer a escada, porém ele a reteve com outro assobio.

- Aboli está trazendo dois estranhos. Árabes, por Deus. Prisioneiros, pelo jeito, pois Aboli os tem bem amarrados. Deve ter surpreendido um par de batedores inimigos. Ao menos poderão nos dizer onde se encontra a sua força principal.

Tom e Sarah esperavam por eles quando Aboli subiu com seus cativos a bordo do Centauro.

- Que belos peixes são esses que caíram na sua rede, Aboli? - perguntou Tom, ao medi-los com os olhos. Pela aparência, eram árabes, um deles um guerreiro, e perigoso, pelo jeito. O outro era um menino mirrado, bonito, com grandes olhos escuros, que parecia tímido e nervoso. - Um casal improvável - disse Tom.

O rapazinho pareceu encorajado por aquela recepção tranqüila.

- Efêndi, fala minha língua? - ele perguntou, baixinho, e sua voz era doce e firme.

- Sim, menino. Eu falo árabe.

- Seu nome é Tom?

- Maldito seja, seu pequeno patife! - Tom fez uma carranca e avançou para ele com jeito ameaçador. - Como sabe disso?

- Tom, espere! - Sarah o impediu. - É uma moça.

Tom encarou a face de Yasmini e então caiu na risada. Arrancou-lhe o alfalema, e os longos cabelos escuros se lhe espalharam pelos ombros.

- Ora, é mesmo, e muito linda também. Quem é você?

- Sou a princesa Yasmini, e lhe trago uma mensagem de Dowie.

- De quem?

- De Dowie. - Ela parecia desesperada. - Dowie! Dowie! - repetiu, com diferentes inflexões, mas Tom meneava a cabeça, intrigado.

- Acho que ela está tentando dizer Dorry - Sarah interveio, e o alívio espalhou-se pela expressão de Yasmini.

- Sim! Sim! Dowie! Dowie! Seu irmão!

O rosto de Tom ficou vermelho escuro.

- Você vem aqui para caçoar de mim? Meu irmão Dorry morreu faz muitos anos. O que está planejando, sua cadelinha? É uma armadilha? - berrou-lhe na face.

Os olhos de Yasmini encheram-se de lágrimas, porém ela reuniu forças e começou a cantar. A princípio a voz saiu hesitante, pois cantava nas semicolcheias trêmulas do Oriente, estranhas aos ouvidos europeus. A melodia era distorcida, e as palavras, uma paródia do idioma inglês. Todos a fitaram em total incompreensão.

Sarah, de repente, ofegou.

- Tom, é Espanholas. Ela está tentando cantar Espanholas! - Correu e abraçou Yasmini. - Deve ser verdade. Dorian está vivo, e a canção é o seu sinal de que a moça vem por parte dele.

- Dorian! Como é possível? Onde está ele? - Tom agarrou Yasmini pelos braços e a sacudiu com violência. - Onde está meu irmão?

Seguiu-se uma saraivada engrolada de palavras. Yasmini começava outra frase antes de terminar a que a precedera, tropeçando na língua, na pressa de contar tudo, e deixando muito sem dizer, de maneira que voltava e começava tudo de novo.

- Dorry precisa de ajuda! - Tom compreendera o essencial, e virou-se para Aboli: - Dorry está vivo, e em situação terrível, e nos mandou os mensageiros para nos chamar.

- Os cavalos ainda estão selados - respondeu Aboli, calmamente. - Podemos partir agora mesmo.

Tom voltou-se de novo para Yasmini, que ainda contava sua história para Sarah.

- Basta, menina! - interrompeu-a. - Haverá tempo mais tarde para contar o resto. Pode nos levar até Dorry?

- Sim! - ela exclamou com veemência. - Batula e eu podemos levá-lo até ele.

Tom inclinou-se na sela para dar em Sarah um último beijo apressado. Pela primeira vez, ela não insistira em acompanhá-lo naquela expedição. Tom deveria ter percebido, por aquele comportamento incomum e pelas recentes atitudes reticentes, que alguma coisa estava errada, porém, tenso como estava, não destinou ao fato um pensamento.

- Certifique-se de que Alf Wilson mantenha todos a bordo e em segurança. Quando voltarmos, estaremos com muita pressa, provavelmente com metade da Arábia em nossos calcanhares. - Puxou as rédeas, ergueu a cabeça do cavalo e olhou ao redor.

Yasmini e Batula já tinham partido e se encontravam a meio caminho da primeira colina acima do rio Lunga. Luke e Aboli estavam um pouco mais atrás, esperando que Tom se juntasse a eles. Todos vestiam túnicas árabes e puxavam uma montaria de reserva pela rédea. Tom fincou os calcanhares nos flancos de seu cavalo e acenou para Sarah ao sair a galope.

- Volte logo, e são e salvo! - Sarah gritou, atrás dele, com a mão pressionada levemente sobre o ventre.

Custou a eles quatro dias de árdua cavalgada, trocando de cavalos a cada hora, usando de cada resquício de luz da alvorada ao breve crepúsculo africano, para alcançar a coluna árabe.

Tom cavalgou ao lado de Yasmini durante todo o tempo, e conversaram até suas gargantas ficarem secas da poeira e do calor. Ela lhe contou tudo que acontecera a Dorian, desde que o conhecera no harém até sua prisão por Abubaker, dias antes apenas. Dessa vez sua história era coerente e lúcida, com toques de humor e de tristeza, tanto que às vezes Tom ria com prazer e em outras comovia-se até a beira das lágrimas. Ela o fez compreender que tipo de homem Dorian se tornara, e aquilo deixou Tom orgulhoso. Contou-lhe do amor recíproco que nutriam um pelo outro, e, no decorrer do caminho, ganhou a afeição e o apreço de Tom. Ele" estava encantado pela vivacidade de Yasmini e por sua natureza calorosa e compassiva.

- Então, agora você será minha irmãzinha. - Sorriu-lhe com grande afeto.

- Gosto disso, efêndi. - Ela retribuiu-lhe o sorriso. - Me deixa muito feliz.

- Se vou ser seu irmão, pode me chamar de Tom.

Quando Yasmini o lembrou da luta no desfiladeiro e explicou como ele derrotara seu próprio irmão, e quase a matara também, ele sentiu-se corroído pelo remorso.

- Dorian não se deu a conhecer, não mostrou o rosto! Como eu poderia saber?

- Ele compreende, Tom. E ainda o ama.

- Eu poderia ter matado vocês dois. Foi como se algo exterior a mim segurasse a minha mão.

- Os caminhos de Deus são maravilhosos e não nos cabe questioná-los.

Ela o conduziu pelos complicados labirintos da política real omaniana. Explicou como tinham sido capturados naquela teia intricada, e as conseqüências, para Dorian, da ascensão de Zayn al-Din ao califado.

- Portanto agora Abubaker o está levando a Mascate para enfrentar a humilhação e a vingança de Zayn - disse, e as lágrimas escorreram por suas faces empoeiradas.

Tom inclinou-se e afagou-lhe o braço como um irmão.

- Isso nós veremos, Yasmini. Por favor, não chore.

Chegaram ao extenso rastro do exército árabe em marcha e o seguiram até que puderam divisar a nuvem de poeira acima da floresta. Batula, então, avançou enquanto o resto se demorava atrás e esperava até a noite cair. O lanceiro poderia se infiltrar naquela massa confusa de cavaleiros velados sem despertar suspeita.

Logo quando o sol se punha, ele retornou nos passos.

- Graças a Deus, al-Salil ainda está vivo - foram suas primeiras palavras. Para Tom, o nome árabe de Dorian ainda soava estranho. - Eu o vi de longe, mas não tentei me aproximar dele. Eles o arrastam numa maca puxada por um cavalo.

- Como estão as suas forças? - Tom indagou.

- Ele pode caminhar um pouco - Batula respondeu. - Vi Ben Abram ajudá-lo a sair da maca e conduzi-lo a uma tenda onde é mantido sob vigilância. Seu braço direito ainda está numa tipóia. Anda devagar, em passos trôpegos, como um velho, mas mantém a cabeça erguida. Está mais forte do que quando nós o deixamos.

- Graças em Nome de Deus - balbuciou Yasmini.

- Pode nos levar até a sua tenda, Batula? - perguntou Tom.

Batula aquiesceu.

- Sim, porém é muito bem guardada.

- Ele está acorrentado?

- Não, efêndi. Devem julgar que o ferimento o restringe o suficiente.

- Nós os resgataremos esta noite mesmo - decidiu Tom. - Eis como faremos.

Aproximaram-se do acampamento contra o vento, para que seus cavalos não farejassem os dos árabes e relinchassem. Deixaram Yasmini para guardar os animais e avançaram a pé em direção à fímbria da floresta. O acampamento estava em burburinho como uma colméia, e a atmosfera azulada e espessa com a fumaça de centenas de fogueiras de cozinha. Havia um movimento constante, cavalariços e escravos num vai-e-vem por entre as alas dos cavalos, homens a se meter pelos arbustos das redondezas para satisfazer as necessidades e que logo voltavam às enxergas de dormir, cozinheiros a carregar panelas de arroz fumegante pelo acampamento e a distribuir a refeição noturna. Poucas sentinelas estavam assentadas, e reinava pouca ordem.

- Abubaker não é um soldado de verdade - Batula disse, numa entonação de desprezo. - Al-Salil jamais permitiria tanta falta de disciplina.

Tom mandou que Batula entrasse no acampamento primeiro, e o resto do grupo o seguiu, um por vez, a intervalos, caminhando despreocupadamente, velados e com túnicas, com as armas escondidas. Batula dirigiu-se a uma depressão no centro do acampamento onde uma tenda de couro fora armada, em total isolamento das outras. À luz da fogueira, Tom viu que a sujeira ao redor não fora removida, mas que pelo menos três guardas estavam postados em torno dela. Encontravam-se agachados com as armas sobre o colo.

Batula acomodou-se sob uma árvore de galhos retorcidos, a uns cem metros da tenda do prisioneiro. Os outros se aproximaram casualmente e se juntaram a ele. Agacharam-se num círculo e espalharam as túnicas ao redor de si até que, na semi-obscuridade, pareciam-se com qualquer dos outros pequenos grupos de soldados omanianos dispersos pelo acampamento, a conversar baixinho, bebendo café e compartilhando um cachimbo.

De repente, houve um burburinho quando um grupo de três árabes vestidos em trajes esplêndidos aproximou-se com passadas largas. Caminhavam em direção a eles, seguidos de perto por seus guarda-costas. Tom sentiu um calafrio de pânico, certo de que, de alguma forma, a presença deles fora descoberta. Os homens, porém, passaram bem perto e seguiram para a tenda.

- Aquele com o pano azul de cabeça e a tiara de ouro é o príncipe Abubaker, de quem lhe falei - murmurou Batula. - Os outros dois são al-Sind e bin Tati, ambos soldados corajosos e agora aliados de Abubaker.

Tom viu os três entrarem na tenda em que Dorian jazia prisioneiro. Estavam próximos o bastante para ouvir o murmúrio de vozes por trás das paredes de couro. Então, veio o som de um soco e um grito de dor. Tom soergueu-se, mas Aboli estendeu a mão e o empurrou para baixo. Houve mais conversas dentro da tenda e depois Abubaker passou pela abertura e parou a fim de olhar para trás.

- Mantenha-o vivo, Ben Abram, para que ele possa morrer com mais paixão. - Abubaker soltou uma risada e se afastou, passando tão perto de Tom que este poderia lhe tocar a barra da túnica.

- Salaam aliekum, poderoso senhor - Tom murmurou, mas Abubaker não se dignou a relancear um olhar em sua direção e foi para a própria tenda, que se erguia no centro do acampamento.

Aos poucos, o silêncio tomou conta de tudo. As vozes morreram, e os homens se encolheram envoltos em seus xales em torno das fogueiras. As chamas se reduziram a cinzas. Tom e seu grupo tinham se deitado em torno do pequeno fogo que Batula acendera, cabeças cobertas, mas não dormiam. Quando as fogueiras se extinguiram, a escuridão reinou. Tom ergueu o olhar para as estrelas a fim de avaliar a passagem das horas. Passavam com lentidão infinita. Por fim, esticou a mão e tocou o braço de Aboli.

- É hora.

Levantou-se e moveu-se sorrateiramente em direção à tenda de Dorian. Estivera observando a sentinela que se sentava na parte de trás. Vira sua cabeça pender, depois se erguer com um sobressalto, apenas para cair de novo sobre o peito.

Tom avançou suavemente por trás dele, debruçou-se sobre o homem e o atingiu na têmpora com o cano da pistola. Sentiu o osso estalar e o guarda amontoar-se sem um gemido. Tom agachou-se em seu lugar e assumiu a mesma posição, com o mosquete da sentinela atravessado no colo. Esperou por um longo minuto para certificar-se de que não houvera alarme. Em seguida arrastou-se de traseiro até perto da parede dos fundos da tenda.

Não tinha como saber se haviam postado um guarda lá dentro, ao lado de Dorian. Então, umedeceu os lábios, respirou fundo e depois, baixinho, assobiou a abertura de Espanholas.

Alguém se alvoroçou por trás da parede de couro e, em seguida, veio uma voz da qual não se lembrava. Não era a voz infantil de Dorian, de quando tinham se separado. Era a voz de um homem.

- Tom?

- Sim, rapaz. Está seguro aí dentro?

- Sim, somos só eu e Ben Abram.

Tom deslizou seu canivete pela tenda, e a parede de couro separou-se sob a lâmina. Um braço estendeu-se para ele através da fenda, pálido à luz das estrelas. Tom segurou a mão, apertou-a com força, e Dorian o puxou pela abertura para dentro, onde se abraçaram, ajoelhados, peito a peito.

Tom quis falar, mas sua voz estava estrangulada. Abraçou Dorian mais uma vez com toda a força e respirou fundo.

- Deus o ama, Dorian Courtney. Não sei o que dizer.

- Tom! - Dorian estendeu a mão boa e pegou um punhado dos fartos cachos duros de poeira da nuca do irmão. - É tão bom vê-lo. - As palavras em inglês lhe soaram estranhas, e ele começou a chorar, dominado pela fraqueza de seu ferimento e pela intensa alegria.

- Não faça isso, Dorry, ou vai me deixar arrasado - Tom protestou e se afastou para enxugar as lágrimas do irmão com as costas do braço. - Vamos dar o fora daqui, rapaz. Quais as condições do seu ferimento? Pode caminhar, se Aboli e eu o ajudarmos?

- Aboli! Está aqui com você? - A voz de Dorian tremia.

- Estou aqui, Bomvu - Aboli murmurou em seu ouvido -, mas haverá tempo para tudo isso mais tarde. - Arrastou a sentinela caída pelo corte na parede da tenda.

Tom e ele rolaram o árabe para a esteira de dormir e o cobriram com a manta de Dorian. Enquanto isso, Ben Abram ajudava Dorian a vestir sua túnica e a ocultar aqueles brilhantes cachos vermelhos com um turbante.

- Vá com Deus, al-Salil - murmurou e voltou-se para Tom. - Sou Ben Abram. Lembra-se de mim?

- Nunca o esquecerei e à sua bondade para com meu irmão, velho amigo. - Tom apertou-lhe o braço. - Todas as bênçãos de Deus sobre a sua cabeça.

- Você manteve seu juramento - Ben Abram disse, baixinho. - Agora, precisa me amarrar e me amordaçar, ou Abubaker me tratará cruelmente quando descobrir que al-Salil desapareceu.

Deixaram Ben Abram todo amarrado e amordaçado, e levaram Dorian pelos fundos. Lá fora, ergueram-no dos pés e o ampararam pelos braços. Depois, seguiram lentamente pelo acampamento adormecido. Batula e Luke Jerkis iam à frente, caminhando como fantasmas escuros a se desviar das fogueiras. Um árabe adormecido sobressaltou-se, sentou-se e os encarou quando passaram perto dele, mas os deixou seguir sem perguntas, acomodou-se no chão de novo e cobriu a cabeça.

- Agüente, Dorry - Tom murmurou no ouvido do irmão. - Estamos quase fora daqui.

Rumavam para a fímbria da floresta e, quando as árvores já se fechavam em torno deles, Tom quase berrou de alívio, porém naquele instante uma voz áspera os interpelou, em árabe, de bem perto:

- Quem são vocês? Parem, em nome de Deus, e se identifiquem.

Tom levou a mão à espada sob a túnica, mas Dorian o conteve e respondeu, no mesmo idioma:

- Que a paz de Alá esteja sobre você, amigo. Sou Mustafá de Muhaid, e mal consigo parar em pé por causa da disenteria. Meus amigos estão me levando a um lugar isolado no meio dos arbustos.

- Não estás sozinho no seu sofrimento, Mustafá. Essa enfermidade grassa pelo acampamento - a sentinela respondeu, solidária. - Que a paz se derrame sobre você e sobre seus intestinos também.

Seguiram adiante com vagar cauteloso. De repente, Batula surgiu da escuridão.

- Por aqui, efêndi - sussurrou. - Os cavalos estão perto.

Ouviram o baque de patas e, logo em seguida, a pequena figura de Yasmini destacou-se das sombras e correu para Dorian. Caíram nos braços um do outro, a trocar carinhos e suaves murmúrios de amor, até que Tom separou-os com delicadeza e conduziu o irmão para o cavalo mais forte. Juntos, Aboli e Tom o ajudaram a se acomodar na sela, em que ele se equilibrou precariamente. Tom amarrou-lhe os tornozelos juntos com uma tira de couro que correu por baixo da barriga do animal e, em seguida, ergueram Yasmini para a garupa.

- Segure-o firme, irmãzinha - Tom lhe disse. - Não o deixe escorregar.

Montou em seu cavalo e pegou a rédea da montaria de Dorian.

- Leve-nos para casa, Aboli - disse e olhou para trás, pelas árvores, em direção ao acampamento adormecido. - Teremos apenas mais umas poucas horas de dianteira, quando muito. Depois, partirão atrás de nós como um enxame de vespas.

Usaram os cavalos cruelmente. Os animais já tinham sido exigidos ao extremo na jornada desde o Forte Providência, quase sem tempo para descansar e pastar, a não ser durante as breves paradas noturnas. Agora, o tratamento era o mesmo, na viagem de volta. O sol do meio-dia era causticante e os trechos entre fontes de água, longos. O solo duro e as pedras soltas agrediam os cascos dos animais.

Perderam o primeiro cavalo antes que tivessem percorrido trinta quilômetros. Era a montaria que levava Dorian e Yasmini. Ficou manco de todas as quatro patas e mal podia dar um passo sem coxear. Tom soltou-o, sabendo, no íntimo, que leões e hienas liquidariam o bravo animal naquela mesma noite. Colocaram Dorian sobre um dos cavalos de reserva e prosseguiram no mesmo passo. Lá pelo terceiro dia, tinham desgastado todos os animais de reserva e só contavam com aqueles que montavam. Quando estavam prestes a retomar a viagem, depois de uma breve parada ao meio-dia num poço lamacento, Aboli disse, baixinho:

- Os mosquetes não serão de utilidade para nós contra um exército, e seu peso está acabando com os cavalos.

Abandonaram as armas de fogo e os frascos de pólvora, sacos de bala e todas as varetas de atocho da bagagem, conservando apenas as armas brancas e os odres de água. Tom virou-se de costas para que ninguém visse o que fazia e enfiou uma das pistolas carregadas no cinto, debaixo da camisa.

Era uma arma de cano duplo. Sabia, pelo que Yasmini lhe contara, da sorte que a esperava, e a Dorian, se os árabes os capturassem. A pistola era para eles, um disparo para cada um.

Deus me dê forças para fazê-lo quando a hora chegar, rezou em silêncio.

Embora tivessem aliviado drasticamente a carga, perderam outros dois cavalos naquele dia. Luke, Aboli e Tom, em turnos, corriam ao lado dos homens montados, pendurando-se nas tiras dos arreios para manter o passo da marcha.

Naquela noite, pela primeira vez, avistaram a coluna hostil de árabes. Cruzavam outra linha daquelas colinas que corriam ao longo das planícies do interior inóspito. Quando olharam para trás, viram a nuvem de poeira que subia ao céu, a um quilômetro e meio, na retaguarda.

Durante a noite, pararam apenas por uma hora e, em seguida, prosseguiram à luz das estrelas, seguindo o sinaleiro do Cruzeiro do Sul, na constelação do Centauro. A despeito da longa marcha noturna e da certeza de que os árabes desgastavam suas montarias da mesma forma que eles faziam, descobriram, ao irromper da alvorada, que não tinham ganhado terreno. Ao sol nascente, a nuvem de poeira se erguia no horizonte, vermelha como sangue, ainda um quilômetro e meio atrás.

Durante as jornadas noturnas, até mesmo Aboli perdera todo o senso de distância percorrida e sua exata posição naquela imensidão de florestas e de terreno ondulado. No fim da tarde, cruzaram outra série de colinas, na esperança de ver as águas cintilantes do rio Lunga, abaixo, mas a decepção se derramou sobre eles quando ultrapassaram outra elevação verdejante. Nada do rio, apenas mais uma planície. Lançaram-se pelo vale intermédio, os cavalos quase acabados, e todos eles a beirar os limites de sua resistência. Mesmo Aboli sofria, tentando ocultar o coxeio causado por um ligamento estirado em seu joelho. Sua face estava seca e coberta de poeira acinzentada, as reservas de suor havia muito esgotadas. Dorian parecia um esqueleto vestido, o corpo ossudo debaixo da túnica a gingar na sela, o ferimento vertendo sangue fresco debaixo das vestes imundas. Yasmini quase exaurira o restante de suas energias na tentativa de mantê-lo na sela. O último cavalo cambaleava sob os pesos somados dos dois.

Caiu logo abaixo do cume das colinas, desabando como se tivesse recebido uma bala de mosquete no cérebro. Tom cortou a tira que prendia juntos os tornozelos de Dorian e retirou-o de sob o corpo do animal.

- Daqui para a frente, é a pé, rapaz. Pode prosseguir? - perguntou a ele.

Dorian tentou sorrir.

- Posso ir tão longe quanto você, Tom. - Mas quando Tom tentou erguê-lo, seus joelhos fraquejaram e ele se amontoou no chão pedregoso.

Logo atrás deles, a nuvem vermelha de poeira subia pelo vale que haviam acabado de atravessar. Cortaram um galho em dois pedaços curtos, e Aboli e Tom pegaram as pontas. Sentaram Dorian no meio, colocaram seus braços em torno dos ombros e o carregaram, aos tropeções, colina abaixo até o vale.

Pararam durante a noite por uns poucos minutos, e depois colocaram Dorian na liteira improvisada e o carregaram até que não puderam mais dar sequer um passo. Desabaram no chão para descansar.

Custou-lhes toda aquela noite atravessar a extensa planície. E só podiam contar com a esperança de que a perseguição sofresse uma trégua por causa da escuridão e da impossibilidade de seguir com a caçada.

O alvorecer surpreendeu-os no esforço extenuante de escalar a encosta do lado oposto ao vale. Quando olharam para trás, os árabes estavam tão perto que as pontas de suas lanças captavam a luz matutina e reluziam, ameaçadoras.

- Reduziram a distância pela metade - Tom balbuciou ao baixar Dorian ao chão para outro momento de repouso. - Com a velocidade com que estão se aproximando, vão nos pegar em uma hora.

- Deixe-me aqui, Tom - Dorian murmurou. - Salvem-se.

- Está louco?! - Tom esbravejou. - Da última vez que lhe dei as costas, você desapareceu por anos. Não assumirei esse risco de novo.

Eles o acomodaram na liteira e encetaram a marcha outra vez. Yasmini caminhava a poucos passos adiante. Suas sandálias de couro estavam rasgadas, quase destruídas, e seus calcanhares sangravam onde as bolhas tinham se aberto. Caiu antes que chegassem ao cume e, embora rastejasse até a árvore mais próxima e tentasse usar o tronco para soerguer-se, estava fraca demais para se sustentar nas pernas.

- Luke, assuma meu lugar aqui! Você, Batula, ajude-o. - Tom entregou a ponta da liteira a eles e foi até onde Yasmini se amontoara, a soluçar baixinho contra a árvore.

- Sou uma mulher estúpida, fraca - lamentou-se quando ele se debruçou sobre ela.

- Sim - Tom concordou -, mas bonita demais para ser deixada para trás.

Ergueu-a no colo e, embora Yasmini fosse frágil e leve como um passarinho, o esforço estirou-lhe cada tendão e músculo nas costas e ombros doloridos. Segurou-a contra o peito e reuniu forças para dar outro passo colina acima.

Um grito abafado e distante ecoou, e Tom virou a cabeça, olhando por sobre o ombro. Os batedores da coluna de perseguição tinham chegado ao sopé da colina, logo abaixo. Um ergueu seu mosquete, e a fumaça de pólvora explodiu numa baforada branca pelo cano longo. Segundos depois, ouviram o baque da bala. Mas a distância era ainda muito grande, e o tiro atingiu algum ponto perto deles.

- Quase no topo - Tom cantarolou, numa tentativa de parecer alegre e feliz. - Um obstáculo a menos, camaradas.

Pisou o cume da elevação, cego pelo suor. Sabia que não conseguiria seguir adiante. Baixou Yasmini para o chão e enxugou os olhos, mas a sua vista ainda estava turva e o campo de visão, cheio de estrelinhas faiscantes. Cambaleou nos pés, olhou para os outros e viu que eles também estavam acabados. Mesmo Aboli havia usado o que restara de sua gigantesca força. Mal conseguia dar os últimos poucos passos até o cume.

Eis onde morreremos, pensou Tom. Ainda tenho a espada azul para lutar com decência, e, no final, usarei a pistola para Yasmini e Dorian. Enfiou a mão debaixo da camisa e tocou o cabo da arma.

Então, de repente, Aboli estava a seu lado e lhe sacudia o braço, incapaz de falar. Apontava para o vale adiante. Por um momento, Tom julgou que fosse uma miragem, mas então se deu conta de que o ofuscamento que lhe ferira os olhos semicerrados era a luz do sol sobre a vasta superfície do rio Lunga, e que o pequeno Centauro estava atracado contra a margem. Encontravam-se tão perto que podiam ver as pequenas silhuetas humanas no convés aberto.

Tom sentiu novas forças fluírem para suas pernas. Tirou a pistola de sob a camisa e disparou ambos os canos para o ar. Houve um repentino alvoroço no navio, e Tom viu o lampejo das lentes de uma luneta a refletir os raios do sol quando foi apontada para eles. Acenou feito louco, e a imponente figura de Alf Wilson acenou de volta.

Tom virou-se e olhou para trás. Os batedores árabes aproximavam-se num galope, já na metade da colina. Sem dizer palavra, ele ergueu Yasmini no colo e arrojou-se colina abaixo, em direção ao rio. A gravidade embalava-lhe as pernas e ele mal conseguia controlar os passos. Cada passada reverberava por sua coluna enquanto o chão desfilava ligeiro sob seus pés. Ouvia Aboli e os outros. Vinham logo atrás, mas não podia olhar. Precisava de toda a concentração e força para continuar correndo. Yasmini fechou os olhos de medo e o enlaçou com ambos os braços pelo pescoço.

De súbito, ecoou um berro atrás deles, e uma saraivada de tiros de mosquete. Os árabes tinham alcançado o cume da colina. Uma bala arrancou uma lasca de árvore, e uma chuva de fragmentos brancos do cerne de um tronco caiu ao lado de Tom. Ele não conseguiu manter o embalo e, com o peso de Yasmini, também não podia parar. Ambos rolaram numa confusão de corpos unidos até que deslizaram para uma depressão e pararam, atordoados.

Aboli descia, logo atrás, aos trambolhões, com Dorian em suas costas, e Batula e Luke Jervis tentavam se emparelhar com ele. As pernas de Aboli estavam fora de seu controle. Não conseguiu parar para ajudar Tom, mas Luke agarrou seu capitão pelo braço e o arrastou, enquanto Batula erguia Yasmini em seus braços e dava alguns passos trôpegos colina abaixo.

Um tropel elevou-se quando os árabes lançaram suas montarias sobre eles. Já tinham as lanças em riste, e Tom pôde ver as expressões de triunfo em suas faces escuras. Então, ouviu um brado. Sarah lhe gritava o nome.

- Tom! Estamos chegando!

Girou nos calcanhares e viu que ela cavalgava uma égua e arrastava dois cavalos pelas rédeas, subindo a colina em pleno galope. Alf Wilson se encontrava logo atrás, numa égua preta. Também trazia animais de reserva. Sarah puxou as rédeas ao se aproximar, e Tom agarrou Yasmini dos braços de Batula e quase a jogou sobre o pescoço da montaria de Sarah. Esta a segurou e impediu-a de cair do lado do cavalo.

- Vá! - Tom bufou. - Dê o fora daqui!

Sarah não disse uma palavra, porém jogou as rédeas dos cavalos de reserva para ele, fez a volta e desceu a colina com Yasmini a pular como um saco à sua frente.

Tom deixou um cavalo para Luke e Batula e se jogou no lombo do outro. Conseguiu se emparelhar com Aboli logo adiante e tirou o corpo ensangüentado e frouxo de Dorian de suas costas.

- Pegue a garupa de Alf! - gritou para Aboli ao apertar os calcanhares nos flancos do animal e arrojar-se pelo declive atrás de Sarah.

Ouvia berros em árabe e o tropel pesado atrás de si, e esperou que uma lança se cravasse em suas costas a qualquer instante. Porém não poderia perder tempo olhando de relance para trás, precisava concentrar-se em não deixar Dorian cair. Em desespero, sentiu que ele escapava de sua mão e não conseguia mais segurá-lo. Então, de repente, Aboli estava a seu lado. Inclinou-se e ergueu o corpo lasso de Dorian para que Tom pudesse agarrá-lo pelos ombros.

Quando chegaram ao terreno plano, à margem do rio Lunga, Tom e Aboli cavalgavam joelho a joelho, logo atrás de Sarah, que ainda segurava Yasmini. Logo atrás vinham Alf, Batula e Luke, num grupo. Muito de perto, os cavaleiros árabes lhes davam carga. Estavam ganhando terreno, aproximando-se metro a metro, as longas lanças em riste.

Sarah não hesitou quando chegou ao rio. Impeliu a montaria para a frente. O cavalo saltou da margem e atingiu a água numa explosão de borrifos. Saiu nadando. Tom e Aboli a seguiram sem diminuir o galope e, em seguida, os outros saltaram quase sobre os dois. Puseram-se a nadar ao lado das montarias, rumando com a correnteza para onde o Centauro estava atracado.

Atrás deles, os árabes puxaram as rédeas, à margem do rio, e tentaram sacar os mosquetes das botas enquanto os cavalos refugavam e empinavam. A primeira rajada de metralha de chumbo de um dos canhões de 4,5 quilos do Centauro atingiu e derrubou metade deles, numa confusão sangrenta de homens e animais. Os restantes afastaram as montarias para longe, em pânico, e bateram em retirada colina acima quando outra rajada do Centauro varreu as árvores em torno deles.

Nadando, os cavalos aproximaram-se do costado da embarcação, e os marujos arrastaram os cavaleiros para bordo. Assim que chegou ao convés, Tom correu direto para Sarah, e os dois se abraçaram, a água a escorrer dos cabelos e roupas encharcados.

- Numa situação crítica, você vale dez homens para mim, minha beleza. - Então, se afastou dela. - Dorian está gravemente ferido. Vai precisar de todos os seus cuidados. Yasmini está acabada também. Olhe por eles enquanto eu ponho o navio a caminho.

Correu para o leme e relanceou os olhos pelo cordame. Alf Wilson tinha tudo pronto para zarpar.

- Se me fizer o favor, sr. Wilson, pode nos levar rio abaixo? - Tom pediu e, em seguida, procurou por Aboli. - Vamos precisar dos cavalos para arrastar o Centauro pelos baixios. Leve-os para a margem sul, do lado oposto dos muçulmanos. Vai precisar manter o passo com o navio.

Aboli chamou seus filhos, Zama e Tula.

- Tenho um trabalho de homem para vocês. Venham comigo.

Eles o seguiram e pularam pela amurada do navio para ajudá-lo a reunir os animais.

Tom sentiu que o barco ganhava vida sob seus pés e sacudia com a correnteza. As margens começaram a desfilar de cada lado. Olhou para o sul e viu que Aboli e seus meninos tinham os cavalos reunidos numa tropa compacta e os levavam pela margem num meio galope.

Virou-se e olhou para o norte, a tempo de ver a vanguarda do exército principal dos árabes chegar ao cume e começar a descer em direção ao rio, num sólido fluxo de armaduras reluzentes, lanças e mosquetes. Tom pegou a luneta da mão de Alf Wilson e a focalizou na frente da coluna avançada. Distinguiu o elmo turco de Abubaker e o turbante amarelo de al-Sind, que cavalgava a seu lado.

- Creio que teremos uma guarda de honra durante todo o caminho rio abaixo - disse a Alf, com um sorriso triste. - Não vão nos dar muito trabalho até que cheguemos aos baixios.

Antes de alcançarem o mar, teriam de enfrentar águas rasas, nos pontos em que o rio se espraiava e diminuía seu avanço para o oceano. Ali, os bancos de areia estavam sempre mudando de profundidade e posição. Com a altura atual da água, mal haveria calado suficiente para conduzir o Centauro através das vaus. E Tom sabia que Abubaker e al-Sind os seguiriam das margens e atacariam durante todo o trajeto.

Tom dispunha apenas de horas antes que alcançassem aquele trecho perigoso, e usou de todas as mãos livres nos preparativos para arrastar o navio pelos bancos e para defender a embarcação do inimigo quando estivesse mais vulnerável.

Reservou um momento para visitar a cabina para onde Sarah levara Dorian e Yasmini. Com alívio, encontrou o irmão a descansar no pequeno catre. Sarah trocara as ataduras de seu ferimento, e fez um gesto de cabeça para Tom, indicando que tudo estava bem. Yasmini recobrara-se o bastante para ajudá-la, e dava a Dorian colheradas de uma tigela de sopa. Tom ficou ali apenas um minuto antes de correr de volta para o convés.

A primeira coisa que viu ao pisar no tombadilho foi a longa coluna da cavalaria omaniana a descer pela margem norte, atrás deles.

- Quinhentos ou mais - estimou, e Alf Wilson concordou.

- O bastante para nos fazer algum estrago num confronto direto, capitão.

- Melhor não deixar que isso aconteça. - Tom sorriu com mais confiança do que sentia. - Quanto tempo antes de alcançarmos os baixios?

- Duas horas nesta velocidade.

- Certo, então. Vamos aliviar o peso do navio. Jogue pela amurada tudo que não seja essencial à nossa viagem - ordenou. - Em seguida baixou a voz para que não fosse levada até a cabina de Sarah, logo abaixo. - Pode começar com aquele clavecino.

Com baques seguidos de altos borrifos, jogaram a carga. Depois do clavecino, foi a vez dos fardos de mercadorias que ficaram para trás, boiando na esteira do navio, enquanto a nau ganhava velocidade rumo aos bancos de areia. A maioria das barricas de pólvora se foi pelo costado e todas as balas de ferro do canhão; Tom conservou apenas pólvora e metralha de chumbo suficiente para lutar durante uma hora de enfrentamento pesado.

- Esvazie os barris de água pela metade. Deixe o bastante para permitir que cheguemos a Boa Esperança com rações contadas - gritou. Seria um terrível problema para as mulheres e crianças, porém a captura pelos omanianos seria muito pior, consolou-se.

Enquanto a tripulação executava as ordens, Tom mantinha o olho na cavalaria que os seguia pela margem. Onde a correnteza corria veloz pelos estreitos, o Centauro se pôs adiante da coluna omaniana; mas quando o rio perdeu vazão e o vento arrefeceu lá pela metade do dia, as velas penderam frouxas, e os árabes recuperaram todo o terreno perdido.

Tom carregou um dos canhões de popa com uma carga dupla de pólvora e de metralha. Quando a vanguarda da coluna ficou dentro de alcance, ele disparou. Causou pouco estrago, mas as montarias refugaram e dançaram, e os árabes se viram obrigados a recuar.

Aboli e os dois meninos que conduziam os cavalos pela margem sul avançavam num passo de boa cadência. O plantel estava descansado e forte, enquanto as montarias árabes mostravam os sinais de desgaste da longa perseguição e não conseguiam manter o ritmo.

Chegaram à última corredeira de águas fundas, e foi preciso habilidade para embicar o casco por entre as saliências de feias pedras negras. Logo em seguida avançaram em plena velocidade para além da correnteza. Depois, porém, deslizaram para onde os bancos de areia quase seccionavam o rio com seus leitos amarelos de cascalho.

- Leve as mulheres e as crianças para os escaleres - Tom ordenou. - Cada quilo fará diferença no nosso arrasto.

Dorian estava fraco demais para desembarcar, e Yasmini ficou para cuidar dele. Sarah assumiu o leme para liberar um dos homens para a pesada tarefa de rebocar o navio por cabos. Todos os outros passageiros foram levados até a margem sul e deixados aos cuidados de Aboli. Em seguida o escaler voltou e posicionou-se de prontidão para arrastar a nau caso esta encalhasse.

Tom ficou no leme, e um silêncio ansioso caiu sobre o pequeno Centauro, que descia a correnteza rumo à primeira curva sinuosa, onde já podiam enxergar os contornos do leito através das águas de um verde transparente. A coluna da cavalaria árabe pareceu sentir a oportunidade, e rapidamente cerrou fileiras sobre eles. Tom relanceou um olhar para a margem, mas, embora estivessem agora ao alcance fácil de tiro, estava muito ocupado para usar o pequeno canhão. Teve de deixá-los prosseguir.

O Centauro esgueirou-se com facilidade pela curva, e Tom bufou de alívio. Porém era prematuro. De repente, a embarcação rangeu e estremeceu sob seus pés ao tocar o fundo, e, em seguida, o casco vibrou e se libertou, continuando a singrar as águas.

- Escapamos por pouco - Tom balbuciou, e gritou para Sarah ao leme:

- Mantenha a quilha nas águas verdes do canal.

A próxima curva se aproximava e o navio perdia velocidade agora. Os árabes estavam à distância de um tiro, logo atrás, trotando em formação pela margem norte, lisa e arenosa, as lanças a luzir e os alfalemas esvoaçando ao vento.

O Centauro atingiu a areia com a quilha e deslizou até estacar, tão repentinamente que quase foram jogados no convés. Tom agarrou-se à caixa da bússola para se firmar. A nau estava presa firmemente pelo casco.

- Aos botes! - Tom berrou, e cada homem a bordo saltou nos escaleres. Tom gritou para Sarah: - Mantenha o leme centrado! - Em seguida deixou-a com o encargo e pulou para o bote.

Os cabrestantes na popa de cada escaler recolheram as pontas dos cabos de arraste, que já pendiam soltos, e as prenderam às catracas. Logo depois, os remadores usaram de todas as forças, e os dois botes avançaram à frente do Centauro até que os cabos se esticaram, tesos. Envidaram todos os esforços nos longos remos e tentaram rebocar a chalupa para fora da armadilha da areia.

Da margem sul, Aboli lançou seu cavalo na água e pegou a ponta do longo cabo que Sarah lhe jogou. Fez o animal nadar de volta e, quando este subiu para a margem, prendeu a ponta do cabo à junta de cavalos já prontos e à espera.

- Arre! Arre! Arrastem! - Estalou seu chicote nos lombos dos animais, e estes forcejaram e, em seguida, avançaram com o peso todo contra os tirantes.

O Centauro escorregou pelo cascalho e depois encalhou de novo. Na margem do rio, os cavaleiros árabes dispararam num galope e avançaram em posição de combate. Ao se emparelhar com o navio encalhado, a primeira fileira estacou e empunhou suas lanças. Lançou-se ao rio numa muralha de borrifos brancos e seguiu direto para os homens nos escaleres.

A água chegava às barrigas dos cavalos e logo subiu até as espáduas. Logo depois, os cavalos da frente já nadavam, e seus cavaleiros tinham as lanças em riste ao se aproximar do escaler à dianteira, e o rodearam como um bando de tubarões em torno de uma baleia moribunda.

Os marujos dispararam suas pistolas contra o inimigo quase à queima-roupa e depois se levantaram para enfrentá-los com os longos remos. O bote, porém, sacudia violentamente e logo emborcaria sob o peso em um dos costados.

Na margem norte, a próxima fileira de cavalaria estacou, em posição de ataque, alinhada à beira do banco de areia, numa massa compacta. Abubaker se encontrava no centro da linha, sua armadura e o elmo pontudo a reluzir. Brandiu a cimitarra e incitou seus homens à frente, num trote que se transformou em meio galope e depois numa louca investida.

Sarah não podia abandonar o leme. Por sobre a proa, viu os escaleres rodeados pela massa em luta de cavalos e homens. Tom estava de pé na popa com a espada azul na mão, e golpeava as cabeças dos árabes na água. Alguns deles tentavam cortar o cabo na popa, serrando-o com suas cimitarras. Outros se lançavam com todo o peso e o de seus cavalos sobre o costado. O bote emborcava e fazia água. Em breve, afundaria.

O esquadrão de Abubaker investiu em direção ao leito do rio, e mesmo Sarah podia perceber que logo tudo estaria terminado. Sentiu-se impotente para intervir. Até então não vira que Dorian havia subido da cabina, amparado nos ombros de Yasmini. Usando-a como muleta, arrastou-se penosamente até o canhão mais próximo. Serviu-se da lança de desfiar cordas para perfurar a barrica de pólvora negra. Em seguida pegou a mecha de combustão lenta do tubo de areia e a enfiou na ponta do ouvido do canhão.

A arma recuou num coice em sua carreta, e uma tempestade de metralha varreu a fileira da frente dos cavaleiros árabes, logo quando chegavam à água. Agarrada à amurada do navio, Yasmini olhou pelo canal. Viu uma bala de chumbo de 55 gramas atingir Abubaker em cheio na boca. Seus dentes explodiram entre os lábios em lascas faiscantes e depois a bala penetrou por seu maxilar e saiu pelo verso do crânio. O elmo pontudo foi arrancado de sua cabeça e girou no ar.

Os homens em torno dele haviam sido lançados fora das selas, e a formação atrás recuou e voltou para a margem. Dorian cambaleou até o próximo canhão e acertou a mira. Os cavaleiros viram o cano do canhão girar em direção a eles e se dispersaram, em pânico. A sibilante nuvem de metralha os alcançou em renque e uma dúzia de cavalos foi abatida. Em segundos, a cavalaria estava reduzida ao caos. Todos tinham visto a cabeça do general Abubaker ser arrancada do pescoço, e agora Bashir al-Sind estava caído também, o cavalo morto sobre seu corpo. A luta terminara para eles. Bateram em retirada a galope, para evitar a próxima e devastadora varredura da metralha.

Yasmini agarrou o braço de Dorian quando ele cambaleou e quase caiu e, em seguida, o ajudou a chegar ao próximo canhão. Com os disparos, o Centauro adernara ligeiramente para o lado oposto e deslizara alguns metros pela areia. Os árabes em torno dos escaleres, em alerta por causa do contra-ataque, viram os companheiros na margem bater em retirada, deixando-os entregues à própria sorte. Desistiram do enfrentamento e levaram os cavalos de volta à praia a toda pressa.

- Força! Puxem! Puxem até estourar as entranhas! - Tom berrou para seus tripulantes, e eles se deitaram sobre os remos de novo.

O Centauro escorregou para a frente e encalhou logo depois. Dorian disparou outro tiro de canhão e, conforme o navio jogava, Aboli chicoteou a junta de cavalos nos tirantes. Lentamente, o Centauro deslizou sobre o cascalho e flutuou livre pelo canal profundo, à frente.

- De volta a bordo! - Tom rugiu, triunfante. - Levem as mulheres e crianças de volta a bordo.

Aboli empurrou suas esposas e todos os seus pertences para dentro do escaler quando a quilha tocou a praia. Em seguida cortou os tirantes dos cavalos e açoitou seus traseiros para mandá-los num galope para a selva. Então, saiu numa corrida e saltou sobre o costado do bote enquanto os remadores puxavam os remos atrás do Centauro. O navio já flutuava para longe, com a correnteza, e ganhava velocidade rapidamente, e eles tiveram de dar tudo de si para alcançá-lo.

- É uma estirada só, sem problemas, daqui até a foz - Aboli disse a Tom ao se aproximar de onde este se encontrava, ao lado do leme. Ambos olharam para trás, para a destroçada força árabe na margem norte. Não faziam nenhum esforço para se reagrupar e continuar a perseguição.

- Libere os homens, sr. Wilson - disse Tom. - E dê a todos uma dose dupla de rum pelo trabalho.

Alf Wilson tocou o quepe.

- Peço perdão, capitão, mas o senhor lançou o barril de rum pela amurada. Quer fazer o navio voltar para pegá-lo? - Sua entonação era séria, porém seus lábios se retorciam com malícia.

- Acho que os homens terão de esperar por isso até chegarmos a Boa Esperança - Tom retrucou na mesma impostação solene.

Tom estava de pé na amurada de popa quando o Centauro se fez ao largo, e a massa escura do continente africano lentamente mesclou-se às sombras da noite que se reuniam a distância. Ouviu passos leves a seu lado, no convés; estendeu a mão e puxou Sarah contra o próprio corpo. Abraçou-a com força e esticou o pescoço para beijá-la na orelha. Ela estremeceu de prazer quando a barba de Tom roçou-lhe a nuca.

- Dorry está chamando por você - disse Sarah.

- Irei vê-lo em seguida - ele murmurou, mas não fez menção de deixá-la.

Depois de um longo silêncio, ela indagou:

- O que vai acontecer agora, Tom?

- Não sei, mocinha. Boa Esperança primeiro, e, depois, seja o que a sorte nos mandar.

- Bem, uma coisa é certa. Terei uma pequena surpresa para você assim que chegarmos a Boa Esperança.

- Ah! - Tom pareceu interessado. - O que é?

- Se eu contar, não será nenhuma surpresa.

Sarah levou as mãos às costas, tomou as dele e colocou-as firmemente sobre seu ventre. Custou um instante até que Tom entendesse. Então, soltou um berro e uma gargalhada eufórica.

- Jesus a ama, Sarah Courtney! Não sei o que dizer.

Ela sabia que aquela era a mais extravagante e plena expressão de alegria do marido.

- Então, acalme-se, seu grande bobo, e me dê um beijo.

 

 

                                                                  Wilbur Smith

 

 

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