Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
MORTALHA PARA UMA ENFERMEIRA
Primeira Parte
Aula Prática de Morte
Na manhã do primeiro assassínio, Miss Muriel Beale, inspetora de escolas de enfermagem pertencente ao Conselho Geral de Enfermagem, agitou-se, despertando pouco após as seis horas para a lenta percepção de que era segunda-feira, 12 de Janeiro, dia da inspeção ao Hospital John Carpendar. Tinha já registrado em parte os primeiros sons familiares de um novo dia: o despertador de Angela silenciado quase antes de ela se aperceber de que tocara; a própria Angela caminhando com passos abafados e fungadelas pelo apartamento como um animal desajeitado mas benévolo; os agradáveis tinidos antecipatórios do chá matinal a ser feito. Obrigou as pálpebras a descerrarem-se, resistindo a uma insidiosa ânsia de se contorcer no calor envolvente da cama e deixar o espírito voltar a mergulhar na abençoada inconsciência. Por que carga de água teria sido levada a dizer à superintendente Taylor que chegaria pouco depois das nove da manhã, a tempo de assistir à primeira aula das alunas do terceiro ano? Era disparatado, desnecessariamente cedo. O hospital ficava em Heatheringfield, na fronteira entre o Sussex e o Hampshire, um trajeto de cerca de noventa quilômetros, parte dos quais teria de ser feita antes do nascer do dia. E estava a chover, como tinha chovido com monótona insistência desde a semana anterior. Ouvia o débil sussurrar de pneus de automóvel na Cromwell Road e de quando em vez o chuviscar nas vidraças. Graças a Deus tinha-se dado ao trabalho de consultar o mapa de Heatheringfield para verificar exatamente onde se situava o hospital. Uma vila de feira em crescimento, particularmente quando se não estava familiarizado com ela, podia tornar-se um moroso labirinto para o condutor, no emaranhado do trânsito das pessoas que trabalhavam fora numa chuvosa manhã de segunda-feira. Sentiu instintivamente que ia ser um dia difícil e espreguiçou-se sob a roupa como que a ganhar forças para o enfrentar. Alongando os dedos dormentes, quase saboreou a penetrante dor momentânea das articulações retesadas. Havia ali um vestígio de artrite. Bem, era de esperar. No fim de contas, tinha quarenta e nove anos. Já era tempo de começar a levar a vida com mais vagar. Por que carga de água pensara poder chegar a Heatheringfield antes das nove e meia?
A porta abriu-se, deixando entrar uma réstia de luz pela passagem. Miss Angela Burrows afastou os cortinados para o lado e espreitou o negro céu de Janeiro e a janela salpicada de pingos de chuva, voltando a corrê-los.
- Está a chover - disse, com o lúgubre deleite de quem profetizou chuva e não pode ser responsabilizado pelo não atendimento do seu aviso. Miss Beale soergueu-se no cotovelo, acendeu o candeeiro da mesa-de-cabeceira e aguardou. Daí a poucos segundos a amiga regressou, pousando o tabuleiro da manhã. O pano de tabuleiro era de rijo linho bordado, as chávenas às flores estavam dispostas com as asas alinhadas, os quatro biscoitos no prato a condizer encontravam-se colocados com rigor, dois de cada qualidade, e o bule exalava um delicado odor de chá-da-índia acabado de fazer. As duas mulheres possuíam a paixão do conforto e tinham o vício da limpeza e da arrumação. Os padrões que outrora tinham estabelecido na enfermaria particular do seu hospital escolar eram aplicados ao seu próprio conforto, de tal forma que a vida no apartamento não deixava de assemelhar-se à de uma clínica dispendiosa e tolerante.
Miss Beale compartilhava o apartamento com a amiga desde que uma e outra tinham saído da mesma escola de enfermagem havia vinte e cinco anos. Miss Angela Burrows era monitora-chefe num hospital escolar de Londres. Miss Beale considerava-a o paradigma das professoras de enfermagem e, em todas as suas inspeções, subconscientemente, aferia a sua bitola pelas freqüentes afirmações da amiga acerca dos princípios do correto ensino da enfermagem. Miss Burrows, por seu turno, perguntava a si própria como se arranjaria o Conselho Geral de Enfermagem quando Miss Beale atingisse a reforma. Os casamentos mais felizes assentam em reconfortantes ilusões deste teor, e a relação entre Miss Beale e Miss Burrows, muito diferente mas essencialmente inocente, tinha alicerces similares. Afora a capacidade de uma e outra se admirarem mútua mas tacitamente, eram muito diferentes. Miss Burrows era forte, atarracada e imponente, ocultando uma vulnerável sensibilidade sob uma aparência de rude senso comum. Miss Beale era miúda e semelhante a um pássaro, rigorosa na linguagem e nos movimentos e ameaçada por uma antiquada delicadeza que por vezes a colocava próximo de ser tida por ridícula. Até os hábitos psicológicos de uma e outra eram diferentes. A pesada Miss Burrows acordava instantaneamente para a vida ao primeiro som do despertador, andava positivamente cheia de energia até à hora do chá e a seguir caía numa sonolenta letargia à medida que a tarde avançava. Miss Beale abria todos os dias com relutância as pálpebras coladas, tinha de fazer um esforço para entrar em atividade logo de manhã e, com o correr do dia, ia ficando cada vez mais vivamente alegre. Tinham logrado conciliar mesmo essa incompatibilidade. Miss Burrows sentia prazer em fazer o chá da manhã e Miss Beale lavava a louça depois do jantar e preparava o cacau da noite.
Miss Burrows encheu ambas as chávenas de chá, deixou cair dois cubos de açúcar na chávena da amiga e levou a sua para a cadeira junto à janela. O treino antigo impedia Miss Burrows de se sentar na cama.
- Tens de sair cedo - disse. - O melhor é pôr-te o banho a correr. A que horas começa?
Miss Beale murmurou debilmente que dissera à superintendente que chegaria o mais cedo que pudesse depois das nove horas. O chá estava abençoadamente doce e vivificante. A promessa de chegar tão cedo fora um erro, mas começou a pensar que no fim de contas talvez conseguisse chegar às nove e um quarto.
- É a Mary Taylor, não é? Tem uma fama notável, atendendo a que não passa de uma enfermeira superintendente de província. É espantoso como nunca veio para Londres. Nem sequer concorreu ao nosso lugar quando Miss Montrose se reformou.
Miss Beale murmurou qualquer coisa incompreensível que, por já terem tido aquela conversa antes, a amiga interpretou corretamente como um protesto segundo o qual Londres não era a opção de toda a gente e as pessoas se convenciam com demasiada facilidade de que nada de notável surgia alguma vez na província.
- Lá isso é verdade, não há dúvida - concedeu a amiga. - E o John Carpendar fica numa região do mundo muito agradável. Gosto daquela zona campestre na fronteira do Hampshire. É uma pena não ires lá no Verão. Mesmo assim, não é a mesma coisa do que ser enfermeira superintendente de um hospital escolar importante. com a sua competência, poderia facilmente sê-lo; podia ter-se tornado uma das superintendentes gerais.
No seu tempo de alunas de enfermagem, tanto ela como Miss Beale tinham padecido às mãos de uma das superintendentes gerais, mas nunca deixavam de lamentar o desaparecimento daquela aterrorizadora espécie.
- A propósito, o melhor é partires cedinho. A estrada está em reparação até se chegar quase ao desvio para Guildford.
Miss Beale não perguntou como sabia ela que a estrada estava em reparação. Tratava-se do gênero de coisas que Miss Burrows invariavelmente sabia mesmo. A voz cordial prosseguiu:
- Vi a Hilda Rolfe, a monitora-chefe de lá, esta semana, na Biblioteca de Westminster. Que mulher extraordinária! Inteligente, sem dúvida, e com fama de ser uma professora de primeira categoria, mas estou em crer que aterroriza as alunas.
Miss Burrows aterrorizava freqüentemente as suas próprias alunas, mas ficaria espantada se lho dissessem. Miss Beale perguntou:
- Ela disse alguma coisa acerca da inspeção?
- Referiu-se a ela, mais nada. Ia simplesmente devolver um livro e estava com pressa, de modo que não falamos muito tempo. Ao que parece, têm um grande surto de gripe na escola e metade do pessoal está retido em casa.
Miss Beale achou estranho que a monitora-chefe conseguisse arranjar tempo para ir a Londres devolver um livro à biblioteca, sendo os problemas com pessoal assim tão complicados, mas não o disse. Antes do pequeno-almoço, Miss Beale reservava as energias mais para pensar do que para falar. Miss Burrows contornou a cama para voltar a encher as chávenas.
- Bom, com este tempo e metade do pessoal docente em casa com gripe - disse -, acho que te podes preparar para um dia bastante aborrecido.
Conforme as amigas viriam a dizer uma à outra durante anos, com a cômoda predileção por reafirmar o óbvio que constitui um dos prazeres da longa intimidade, dificilmente podia estar mais enganada. Miss Beale, não esperando daquele dia nada pior do que uma viagem enfadonha, uma inspeção penosa e uma possível contenda com os membros da Comissão Pedagógica de Enfermagem do hospital que se dessem ao trabalho de estar presentes, pôs o roupão pelos ombros, enfiou os pés nas chinelas de quarto e afastou-se, arrastando os pés, até à casa de banho. Tinha dado os primeiros passos para presenciar um assassínio.
Apesar da chuva, a viagem foi menos difícil do que Miss Beale receara. Não demorou muito e entrou em Heatheringfield pouco antes das nove horas, a tempo de apanhar a última vaga do movimento matinal das pessoas para o trabalho. A larga rua principal jorgiana estava obstruída de veículos. As mulheres conduziam os maridos que trabalhavam fora à estação ou os filhos à escola, caminhões cobertos descarregavam mercadorias e autocarros largavam e embarcavam passageiros. Nas três séries de semáforos os peões jorravam, atravessando a rua, de guarda-chuvas em riste contra o leve chuviscar. Os jovens tinham o aspecto janota e superfardado das crianças de colégios particulares; os homens, na sua maioria, tinham chapéu de coco e pasta; as mulheres vestiam com simplicidade, de acordo com aquele agradável compromisso entre a elegância citadina e o à-vontade da província, típico do seu gênero. Vigiando os semáforos, a passagem de peões e o letreiro que indicava a direcção do hospital, Miss Beale teve apenas uma fugaz oportunidade de reparar na elegante câmara municipal oitocentista, na fiada de casas de fachada de madeira cuidadosamente conservadas e no esplêndido pináculo com florões da Igreja da Santíssima Trindade, mas reteve a impressão de uma comunidade próspera que cuidava de preservar o seu patrimônio arquitetônico apesar de a correnteza de modernas lojas de cadeias comerciais no extremo da rua principal sugerir que esse cuidado podia ter começado trinta anos antes.
Mas lá estava finalmente o letreiro. O caminho para o Hospital John Carpendar subia a seguir à rua principal por entre uma ampla avenida arborizada. À esquerda ficava um alto muro de pedra que delimitava os terrenos do hospital.
Miss Beale fizera o seu trabalho de casa. A pasta, de tampa abaulada, sobre o banco de trás do automóvel, continha um apontamento completo sobre a história do hospital, juntamente com uma cópia do último relatório da inspetora do Conselho Geral de Enfermagem e as observações da Comissão de Gestão do hospital quanto à medida em que fora possível dar cumprimento às otimistas recomendações da inspetora. Conforme era do seu conhecimento, através de pesquisas a que procedera, o hospital tinha uma longa história. Fora fundado em 1791 por um rico comerciante que nascera na vila, abandonando-a na penúria da juventude em busca de fortuna em Londres e regressado ao reformar-se para gozar o tratamento condescendente que dispensava aos seus conterrâneos e à impressão que neles provocava. Podia ter comprado a fama e assegurado a salvação amparando as viúvas e órfãos ou reconstruindo a igreja. Mas a era da ciência e da razão sucedia à da fé e estava na moda doar um hospital destinado aos doentes pobres. E assim, com a quase obrigatória reunião num café da vila, nascera o Hospital John Carpendar. O edifício primitivo, de certo interesse arquitetônico, tinha sido substituído havia muito, primeiro por um sólido monumento vitoriano à piedade ostentosa e a seguir pela desgraciosidade mais funcional do século XX.
O hospital tinha sempre florescido. A comunidade local era predominantemente constituída por gente da classe média e próspera, com um sentido de caridade bem desenvolvido e demasiadamente poucos objetos onde exercê-la. Pouco antes da Segunda Grande Guerra tinha sido acrescentada uma bem equipada ala para doentes particulares. Tanto antes como depois do Serviço Nacional de Saúde, tinha atraído doentes ricos, e conseqüentemente clínicos eminentes, quer de Londres, quer de mais longe. Miss Beale reflectiu que Angela podia muito bem falar do prestígio de um hospital escolar londrino, mas o John Carpendar tinha a sua própria reputação. Qualquer mulher podia muito bem pensar que havia empregos piores do que ser enfermeira-superintendente de um hospital distrital em progresso, gozando de boa fama no seio da comunidade que servia, agradavelmente situado e fortificado pelas suas próprias tradições locais.
Chegara já ao portão principal. Havia um casinhoto de porteiro à esquerda, uma enfeitada casa de bonecas de tijolos dispostos em xadrez, uma relíquia do hospital vitoriano, e - à direita o parque de estacionamento dos médicos. Um terço dos espaços assinalados estava já ocupado pelos Daimlers e Rolls. Parara de chover e a alvorada tinha dado lugar à cinzenta normalidade de um dia de Janeiro. O hospital tinha as luzes todas acesas. Erguia-se diante dela como um grande navio fundeado, fortemente iluminado, cheio de atividade e potência latentes. À esquerda estendiam-se os edifícios baixos e de fachada de vidro da nova secção de doentes externos. Um débil fluxo de doentes avançava já desalentadamente para a entrada.
Miss Beale parou junto da portinhola do casinhoto, baixou a janela do automóvel e declinou a identidade. O porteiro, grave e fardado, cheio de importância, dignou-se emergir e apresentar-se.
- A senhora deve ser do Conselho Geral de Enfermagem - declarou com grandiloqüência. - Foi uma pena ter decidido entrar por este portão. A Escola de Enfermagem fica na Nightingale House, a coisa de uns cem metros da entrada da Winchester Road. Utilizamos sempre a entrada das traseiras para a Nightingale House.
Falou com uma resignação recriminatória, como se deplorasse uma estranha ausência de discernimento que lhe custaria caro em termos de trabalho extra.
- Mas hei de poder ir dar à escola por aqui, não?
Miss Beale não estava na disposição de voltar à confusão da High Street nem tão-pouco fazia tenção de dar a volta ao terreno do hospital em busca de uma insondável entrada das traseiras.
- Lá poder, pode, minha senhora. - O tom do porteiro subentendia que só uma pessoa intencionalmente obstinada o tentaria, e encostou-se à porta do automóvel como quem fosse fornecer indicações confidenciais e complicadas. Não obstante, estas revelaram-se notavelmente simples. A Nightingale House situava-se nos terrenos do hospital, por detrás do serviço de doentes novos.
- É só meter por essa rua à esquerda, minha senhora, e seguir sempre em frente, passando a morgue, até chegar aos alojamentos dos internos. Depois, é virar à direita. Há um letreiro na bifurcação do caminho. Não tem que enganar.
Por uma vez, aquela afirmação notoriamente imprópria parecia justificada. Os terrenos do hospital eram extensos e muito arborizados, formando um misto de jardim convencional, relva e árvores amontoadas e hirsutas que fizeram lembrar a Miss Beale os terrenos de um velho hospício. Era raro encontrar-se um hospital geral tão bem fornecido de espaço. Porém, os vários caminhos estavam bem sinalizados e só um deles ia dar ao lado esquerdo do novo serviço de doentes externos. Foi fácil identificar a morgue, um pequeno edifício atarracado e feio diplomaticamente implantado entre as árvores e que o estratégico isolamento tornava ainda mais sinistro. A residência dos médicos era nova e inconfundível. Miss Beale teve tempo para alimentar o seu habitual ressentimento, freqüentemente bem injustificado, pelo fato de as comissões de gestão dos hospitais estarem sempre mais prontas para realojar os seus médicos do que para proporcionar acomodações apropriadas à escola de enfermagem, antes de reparar no prometido letreiro. Uma tabuleta pintada de branco apontava para a direita e dizia: ”Nightingale House, Escola de Enfermagem”.
Meteu Doutra velocidade e fez cuidadosamente a curva. A nova estrada era estreita e sinuosa marginada de ambos os lados por um monte alto de folhas empapadas, de tal maneira que mal havia espaço para aquele único automóvel. Tudo era umidade e abandono. As árvores erguiam-se perto da faixa de rodagem e entrelaçavam-se sobre ela, escorando o sombrio túnel com os seus fortes galhos negros. De quando em quando uma lufada de vento fazia tombar um borrifo de gotas de chuva no tejadilho do carro ou espalmava uma folha caída de encontro ao pára-brisas. A orla da relva era sulcada de canteiros, uniformes e rectangulares como túmulos e trespassados de arbustos atrofiados. A escuridão era tal sob as árvores que Miss Beale acendeu os faróis. A estrada brilhou diante dela como uma fita oleada. Tinha deixado a janela aberta e sentia, mesmo por sobre o inevitável odor de gasolina e vinilo quente do automóvel, uma desagradável exalação fungóide de decadência. Sentiu-se estranhamente isolada na obscura quietude e subitamente viu-se atingida por um irracional mal-estar, uma insólita sensação de viajar fora do tempo para qualquer nova dimensão, impelida para diante em direção a um horror incompreendido e inelutável. Foi apenas um devaneio de um segundo e rapidamente o afastou, recordando o alegre bulício da High Street a menos de dois quilômetros dali e a proximidade da vida e da atividade. Mas fora uma experiência singular e desconcertante. Irritada consigo própria devido àquela queda num devaneio mórbido, fechou a janela e pisou o acelerador. O pequeno automóvel saltou em frente.
Subitamente verificou que tinha contornado o último cotovelo do caminho e tinha a Nightingale House diante de si. A surpresa por pouco não a fez calcar o travão. Tratava-se de uma casa extraordinária, um imenso edifício vitoriano de tijolo vermelho, acastelado e provido de ornatos até à extravagância e coroado por quatro enormes torreões. Estava profusamente iluminado na escura manhã de Janeiro e, depois da obscuridade da estrada, cintilava aos seus olhos como um castelo de qualquer mitologia da infância. Havia uma enorme estufa enxertada no flanco direito da casa, afigurando-se, pensou Miss Beale,, mais própria para os jardins de Kew do que para aquilo que outrora fora com certeza uma residência particular. Estava menos profusamente iluminada do que a casa mas, por entre- o vidro debilmente luminoso, distinguia as esguias folhas verdes de aspidistras, o vermelho berrante das poinsétias e as manchas amarelas e cor de bronze dos crisântemos.
O recente instante de pânico que Miss Beale conhecera sob as árvores foi completamente esquecido no seu espanto perante a Nightingale House. Apesar da normal confiança no seu próprio gosto, não era completamente imune às excentricidades da moda e perguntou a si própria se em determinada companhia não seria apropriado admirá-la. No entanto tinha-se tornado um hábito seu olhar para qualquer edifício com o olho na sua adequabilidade como escola de enfermagem - certa vez, durante umas férias em Paris, dera horrorizadamente por si a rejeitar o Palácio do Eliseu como desmerecendo qualquer observação ulterior - e, como escola de enfermagem, a Nightingale House era evidentemente nada mais nada menos do que impossível. Bastava-lhe olhar para o edifício, que logo lhe vinham objeções ao espírito. A maioria dos quartos havia de ser excessivamente grande. Onde, por exemplo, poderiam descobrir-se gabinetes aconchegados para a monitora-chefe, orientadora clínica ou secretária escolar? Depois, o edifício seria decerto extremamente difícil de aquecer adequadamente e aquelas janelas de sacada fechadas, sem dúvida pitorescas para quem gostasse do género, roubariam muita luz. Pior ainda, havia qualquer coisa de repulsivo, até mesmo de assustador, na casa. Quando a Profissão (Miss Beale, a despeito de uma comparação infeliz, pensava sempre nela com um P maiúsculo) ascendia tão penosamente ao século XX, arredando a pontapé as pedras que eram as atitudes e métodos cediços. - Miss Beale era freqüentemente solicitada para fazer discursos e certas frases favoritas tendiam a não lhe sair da cabeça -, era realmente uma pena alojar alunas jovens naquele mamarracho vitoriano. Não faria mal nenhum incluir no relatório um vigoroso comentário acerca da necessidade de uma escola nova. A Nightingale House foi rejeitada mesmo antes de entrar lá.
No entanto, nada houve a criticar relativamente ao acolhimento que lhe dispensaram. Ao chegar ao último degrau, a pesada porta rodou nos gonzos deixando passar uma lufada de ar quente e o cheiro a café acabado de fazer. Uma criada uniformizada afastou-se deferentemente para o lado, perfilada, e atrás dela, ao fundo da larga escadaria de carvalho, sobressaindo contra os escuros lambrins como um retrato renascentista em cinzentos e doirados, emergiu a figura da superintendente Mary Taylor, de mão estendida. Miss Beale compôs o seu radioso sorriso profissional, constituído por alegre expectativa e confiança geral, e avançou ao encontro dela. Iniciara-se a infortunada inspecção à Escola de Enfermagem do John Carpendar.
Um quarto de hora mais tarde, quatro pessoas desceram a escadaria principal até à sala de aulas práticas situada no andar térreo, onde iriam assistir à primeira aula do dia. Tinha sido servido café na sala de estar da superintendente, numa das alas dos torreões, onde Miss Beale tinha sido apresentada à monitora, Miss Hilda Rolfe, e a um chefe clínico, Mr. Courtney-Briggs. Conhecia ambos de nome. A presença de Miss Rolfe era necessária e esperada, mas Miss Beale ficou um pouco surpreendida com o facto de Mr. Courtney-Briggs estar na disposição de dedicar tanto tempo da sua manhã à inspecção. Tinha sido apresentado como vice-presidente da Comissão Pedagógica de Enfermagem do hospital e ela esperaria conhecê-lo, juntamente com outros membros da comissão, durante a reunião para debater conclusões no final do dia. Não era habitual um chefe clínico assistir a uma aula e constituía motivo de satisfação o facto de ele dedicar um interesse tão pessoal à escola.
Os corredores de lambrins de madeira eram suficientemente largos para permitir a passagem de três pessoas lado a lado, e Miss Beale viu-se escoltada pelas figuras altas da superintendente e de Mr. Courtney-Briggs, sentindo-se um pouco como se fosse uma minúscula delinquente. Mr. Courtney-Briggs, solidamente impressionante com as cerimoniosas calças listadas de chefe clínico, seguia à sua esquerda. Cheirava a loção para depois da barba. Miss Beale conseguiu distingui-lo mesmo por sobre o odor saturado a desinfectante, café e cera dos móveis. Achou-o surpreendente, mas não desagradável. A superintendente, a mais alta dos três, caminhava em sereno silêncio. O seu vestido formal de tecido de gabardina cinzento era abotoado até ao pescoço e tinha uma estreita tira de linho branco na gola e nos punhos. O cabelo loiro de trigo, que mal se distinguia da pele na cor, estava penteado bem para trás da testa alta e solidamente seguro por um imenso triângulo de musselina, cujo vértice quase lhe chegava aos rins. A touca recordava a Miss Beale as usadas na última guerra pelas enfermeiras do Serviço de Enfermagem do Exército. Desde então, raramente as vira. No entanto, a sua simplicidade ficava bem a Miss Taylor. Aquele rosto, de malares altos e olhos grandes e salientes - que irreverentemente faziam lembrar a Miss Beale groselhas pálidas e raiadas -, bem poderia ter um ar grotesco sob os enfeites de uma cobertura de cabeça mais ortodoxa. Atrás dos três, Miss Beale sentia a presença perturbante da enfermeira-chefe Rolfe, desconfortavelmente colada atrás deles. Mr. Courtney-Briggs estava a falar:
- Esta epidemia de gripe tem sido um rematado aborrecimento. Tivemos de adiar a remoção do grupo seguinte das enfermarias e a certa altura chegámos a pensar que este grupo teria de voltar para lá. Esteve por pouco.
”Não me admira nada”, pensou Miss Beale. Sempre que havia qualquer crise no hospital, as primeiras pessoas a ser sacrificadas eram as enfermeiras-alunas. O seu programa de formação podia sempre ser interrompido. Isso constituía para ela uma pedra no sapato, mas não era aquela decerto a ocasião indicada para protestar. Produziu um ruído vagamente aquiescente. Começaram a descer o último lanço de escadas. Mr. Courtney-Briggs prosseguia no seu monólogo:
- Parte do pessoal docente também se foi abaixo com ela. A aula prática desta manhã vai ser dada pela nossa orientadora clínica, Mavis Gearing. Tivemos de chamá-la novamente à escola. Em condições normais, é evidente que não estaria a fazer qualquer outra coisa mais do que instrução nas enfermarias. A ideia de que deve haver uma instrutora qualificada para ensinar as raparigas nas enfermarias, utilizando os doentes como material clínico, é comparativamente nova. Hoje em dia, as chefes das enfermarias não têm pura e simplesmente tempo para isso. Claro que toda a concepção do sistema global de formação é relativamente nova. Quando eu era estudante de medicina, as aprendizas, como então lhes chamávamos, recebiam toda a instrução nas enfermarias, com uma ou outra palestra nos próprios tempos livres dada pelo pessoal médico. Havia pouco ensino formal e tirá-las todos os anos das enfermarias para um período na escola de enfermagem era coisa que não se fazia. Todo o conceito de formação das enfermeiras se modificou.
Miss Beale era a última pessoa a precisar de uma explicação sobre as funções e deveres das orientadoras clínicas ou a evolução dos métodos de formação de enfermeiras. Perguntou a si própria se Mr. Courtney-Briggs teria esquecido quem ela era. Aquela informação elementar estava mais indicada para novos membros de uma comissão de gestão hospitalar, os quais normalmente ignoravam tanto a formação das enfermeiras como o que quer que se relacionasse com hospitais. Experimentava o pressentimento de que o médico tinha qualquer coisa em mente. Ou tratar-se-ia apenas da conversa sem sentido, desprovida de toda e qualquer relação com o ouvinte, de um egotista que não era capaz de tolerar sequer um momento sem a confortante ressonância da própria voz? Se assim era, quanto mais depressa regressasse à sua consulta dos doentes externos ou à ronda das enfermarias, deixando a inspecção prosseguir sem o benefício da sua presença, tanto melhor para todos os interessados.
A pequena procissão atravessou o corredor axadrezado em direcção a um compartimento que ficava na parte da frente do edifício. Miss Rolfe passou discretamente adiante para abrir a porta e afastou-se para o lado enquanto os outros entravam. Mr. Courtney-Briggs fez Miss Beale entrar à sua frente. Esta sentiu-se imediatamente em casa. A despeito das anomalias do compartimento em si - as duas grandes janelas com o seu borrifo de vidraças coloridas, a enorme lareira de mármore lavrado com as suas figuras artísticas sustentando a prateleira da chaminé, o elevado tecto com ornatos profanado pelos três tubos de luz fluorescente -, era agradavelmente evocativo dos seus próprios tempos de estudante, um mundo absolutamente aceitável e familiar. Encontravam-se ali todos os apetrechos da sua profissão: as fiadas de armários de portas de vidro, com os instrumentos dispostos com cintilante precisão; os mapas de parede representando em lúgubres diagramas a circulação do sangue e os improváveis processos da digestão; o quadro de parede manchado do pó de apontamentos de lições anteriores mal apagados; os carrinhos de rodas de demonstração com os seus tabuleiros cobertos de panos brancos; as duas camas de demonstração, uma contendo um manequim de tamanho natural apoiado entre as almofadas; o inevitável esqueleto suspenso da sua forca em abandonada decrepitude. Impregnando tudo havia o cheiro adstringente e intenso de desinfectante. Miss Beale aspirou-o como uma viciada. Fossem quais fossem os defeitos que mais tarde pudesse detectar no compartimento em si, na justeza do equipamento de ensino, na iluminação ou no mobiliário, nunca deixava de se sentir em casa naquela atmosfera intimidativa.
Brindou as alunas e a professora com o seu fugaz sorriso de tranquilização e encorajamento e empoleirou-se numa das quatro cadeiras previamente alinhadas a um dos lados da sala. A superintendente Taylor e Miss Rolfe sentaram-se cada uma de seu lado, tão tranquila e discretamente quanto possível em face da determinação de Mr. Courtney-Briggs de ser espalhafatosamente galante no puxar as cadeiras para as senhoras se sentarem. A chegada do reduzido grupo, por mais diplomaticamente preparada que tivesse sido, pareceu temporariamente ter atrapalhado a enfermeira monitora. Uma inspecção dificilmente podia considerar-se uma situação pedagógica natural, mas era sempre interessante ver quanto tempo levava a monitora a restabelecer o rapport, com a classe. Uma instrutora de primeira categoria, como Miss Beale sabia por experiência própria, era capaz de manter o interesse da classe mesmo durante um bombardeamento cerrado, quanto mais durante a visita de uma inspectora do Conselho Geral de Enfermagem; não lhe parecia, porém, que Mavis Gearing tivesse probabilidades de se revelar um elemento desse raro e devotado grupo. A rapariga - ou melhor, a mulher - carecia de autoridade. Tinha um aspecto conciliador; dir-se-ia que era capaz de sorrir tolamente com facilidade. Além disso estava demasiado pintada para uma mulher que devia ter em mente artes menos efémeras. Porém, no fim de contas, era apenas a orientadora clínica, e não uma professora de enfermagem qualificada: Estava a dar a aula tendo sido prevenida com pouca antecedência e sob condições difíceis. Miss Beale tomou a resolução mental de não a julgar com demasiada severidade.
Conforme verificou, a classe ia praticar a alimentação de um doente por intubação gástrica. A aluna que devia fazer de doente encontrava-se já numa das camas de demonstração, de vestido de xadrez protegido por um babeiro de oleado e a cabeça amparada pelo apoio de cabeça e um monte de almofadas. Era uma rapariga simples, de rosto vigoroso, obstinado e estranhamente maduro, e cabelo baço impropriamente repuxado para trás da fronte alta e elegante. Encontrava-se ali imóvel sob a crua luz fluorescente, com um ar levemente ridículo mas estranhamente digna, como quem estivesse concentrado num mundo privativo e se dissociasse de todo o procedimento à custa de um esforço de vontade. Subitamente ocorreu a Miss Beale que a rapariga podia estar intimidada. A ideia era disparatada, mas persistia. De repente deu por si sem vontade de fitar aquele rosto resoluto. Irritada devido à própria sensibilidade despropositada, desviou a atenção para a enfermeira instrutora.
A enfermeira-chefe Gearing lançou um olhar apreensivo e inquiridor à superintendente, obteve um aceno confirmatório e retomou a lição.
- Esta manhã é a estagiária Pearce que faz as vezes da nossa
doente. Acabámos de passar em revista a sua história clínica. É Mrs. Stokes, de cinquenta anos de idade e mãe de quatro filhos, casada com um funcionário da recolha de lixo da câmara. Foi submetida a uma laringectomia para tratamento de um cancro.
Voltou-se para uma estagiária sentada do seu lado direito.
- Estagiária Dakers, é capaz de descrever o tratamento de Mrs. Stokes até agora?
A estagiária Dakers começou obedientemente. Era uma rapariga pálida e magra que corava despropositadamente ao falar. Era difícil ouvi-la, mas sabia os factos e apresentava-os bem. Uma coisinha conscienciosa, pensou Miss Beale, não extraordinariamente inteligente, mas trabalhadora e digna de confiança. É uma pena ninguém lhe ter tratado daquela acne. Manteve o ar de vivo interesse profissional enquanto a estagiária Dakers expôs a história clínica fictícia de Mrs. Stokes e aproveitou a oportunidade para observar detidamente as restantes alunas da aula, procedendo à habitual avaliação privada do carácter e dotes de cada uma.
Não havia dúvida de que a epidemia de gripe tinha feito os seus estragos. Na sala de aulas práticas encontrava-se apenas um total de sete raparigas. As duas que estavam de pé de um e outro lado da cama de demonstração causavam uma impressão imediata. Eram obviamente gémeas idênticas, fortes e de rosto corado, com o cabelo cor de cobre amontoado numa franja espessa sobre uns notáveis olhos azuis. As toucas, de copas engomadas que pareciam pratos, estavam encarrapitadas bem para a frente, com as duas enormes asas de linho branco protuberantes atrás. Miss Beale, que sabia dos seus tempos de estudante o que se podia fazer com um par de alfinetes de chapéu de cabeça branca, ficou mesmo assim intrigada com a arte que lograva prender daquele modo firme um edifício tão singular e imaterial num tufo de cabelo tão levantado. Impressionou-a o interessante carácter antiquado do uniforme do John Carpendar. Quase todos os hospitais que havia visitado tinham substituído aquelas desactualizadas toucas de asas pelo tipo americano, mais pequeno, que era mais simples de usar, mais rápido de armar e mais barato, quer na compra, quer no lavar e engomar. Alguns hospitais, para desgosto de Miss Beale, estavam mesmo a lançar toucas de papel de usar e deitar fora. No entanto, o uniforme de enfermeira de um hospital era sempre ciosamente defendido e alterado com relutância, e o John Carpendar era obviamente agarrado às tradições. Até os vestidos do uniforme eram levemente antiquados. Os roliços e sardentos braços das gémeas sobressaíam de mangas de guingão cor-de-rosa axadrezado que recordava a Miss Beale os seus próprios tempos de estudante de enfermagem. O comprimento das saias não fazia concessões à moda actual e os pés robustos assentavam em sapatos de salto baixo pretos, de atacadores.
Deitou um rápido olhar às restantes alunas. Havia uma rapariga tranquila, de óculos e rosto simples e inteligente. A reacção imediata de Miss Beale foi de que gostaria de tê-la em qualquer enfermaria. Junto dela sentava-se uma rapariga morena, de ar carrancudo, um tanto arranjada de mais e afectando um ar de Cuidadoso desinteresse pela demonstração. Bastante vulgar, pensou Miss Beale. Miss Beale, para ocasional embaraço dos seus superiores, gostava de adjectivos antiquados, utilizava-os sem vergonha e sabia exactamente o que queria dizer com eles. A sua máxima ”A superintendente recruta um tipo muito fino de raparigas” significava que elas provinham de respeitáveis famílias da classe média, tinham recebido o privilégio de uma educação liceal, usavam saias pelo joelho ou mais compridas ainda e tinham a devida consciência do privilégio e responsabilidade de serem estudantes de enfermagem. A última aluna da classe era uma rapariga muito bonita, de cabelos loiros penteados formando uma franja que lhe caía até às sobrancelhas sobre um rosto petulante e contemporâneo. Era suficientemente atraente para um cartaz de recrutamento, pensou Miss Beale, mas por qualquer razão era o último rosto que escolheria. Enquanto perguntava a si própria porquê, a estagiária Dakers chegou ao final do relato.
- Correcto, estagiária - disse a enfermeira Gearing. - Estamos, portanto, perante o problema de uma doente no pós-operatório, já gravemente subnutrida e agora impossibilitada de ingerir alimentos pela boca. Que quer isto dizer, estagiária?
- Alimentação por intubação gástrica ou por via rectal, senhora enfermeira.
Foi a rapariga morena de ar carrancudo quem respondeu, com uma voz que reprimia cuidadosamente qualquer nota de entusiasmo ou mesmo interesse. Estava longe de ser uma rapariga agradável, pensou Miss Beale.
Houve um murmúrio por parte da classe. A enfermeira Gearing ergueu interrogativamente o sobrolho. A aluna de óculos disse:
- Alimentação por via rectal não, senhora enfermeira. O recto não pode absorver alimento suficiente. Alimentação por intubação gástrica, quer pela boca, quer pelo nariz.
- Exacto, estagiária Goodale, e foi isso que o médico prescreveu para Mrs. Stokes. Pode continuar, por favor, estagiária? Vá explicando tudo à medida que actua.
Uma das gémeas empurrou o carrinho para diante e mostrou o tabuleiro do equipamento necessário: o frasco contendo a mistura de bicarbonato de sódio para a limpeza da boca e das narinas; o funil de polietileno e vinte centímetros de sonda para ser-lhe adaptado; o dispositivo de ligação; o lubrificante; a cuvette com o abaixa-língua, o fórceps para a língua e o abre-boca: Ergueu a sonda esofágica de Jacques, que lhe ficou a baloiçar, obscenamente suspensa da mão sardenta, como uma cobra amarela.
- Muito bem, estagiária - animou-a a enfermeira Gearing. Agora vamos ao alimento. Que está a dar-lhe?
- Na realidade, apenas leite morno, senhora enfermeira.
- Mas se estivesse a lidar com uma doente a sério?
A gémea hesitou. A aluna de óculos disse com calma autoridade:
- Podíamos adicionar proteínas solúveis, ovos, compostos vitaminados e açúcar.
- Exacto. No caso de ser necessário continuar a alimentação por intubação para além de quarenta e oito horas, devemos assegurar-nos de que a dieta seja adequada em termos de calorias, proteínas e vitaminas. A que temperatura está a administrar o alimento, estagiária?
- À temperatura do corpo, senhora enfermeira: 38 graus Centígrados.
- Correcto. E, como a nossa doente está consciente e capaz de engolir, estamos a alimentá-la pela boca. Não se esqueça de tranquilizar a sua doente, estagiária. Explique-lhe de forma simples o que vai fazer e porquê. Lembrem-se disto, meninas: nunca iniciem nenhum procedimento de enfermagem sem dizerem ao vosso doente o que se vai passar.
Eram alunas do terceiro ano, pensou Miss Beale. Já era altura de saberem aquilo. No entanto, a gémea, que sem dúvida se teria facilmente mostrado à altura com uma doente a sério, achava embaraçosamente difícil explicar o seu procedimento a uma colega. Abafando uma risadinha, murmurou umas palavras à figura rígida na cama e quase a trespassou com a sonda esofágica. A estagiária Pearce, continuando com o olhar fixo em frente, procurou a sonda com a mão esquerda e guiou-a pela boca dentro. A seguir, fechando os olhos, engoliu. Houve um espasmo convulsivo dos músculos da garganta. A rapariga fez uma pausa para retomar o fôlego, após o que engoliu de novo.
A sonda tornou-se mais curta. Na sala de aulas práticas reinava um grande silêncio. Miss Beale apercebeu-se de que não se sentia bem, mas não tinha a certeza da razão desse mal-estar. Talvez fosse um pouco invulgar praticar-se a alimentação por entubação daquela maneira numa aluna, mas não era inédito. Num hospital, podia ser mais comum o médico encarregar-se da introdução da sonda, mas era muito possível essa responsabilidade recair na enfermeira; era melhor praticarem umas nas outras do que num doente em estado grave, e o manequim de demonstração não era realmente um substituto satisfatório de um sujeito vivo. Já uma vez tinha feito o papel de doente na escola onde andara e verificara ser inesperadamente fácil engolir o tubo. Observando os movimentos convulsivos da garganta da estagiária Pearce e engolindo por inconsciente simpatia, conseguiu quase recordar, trinta anos volvidos, a repentina frialdade à medida que a sonda deslizava pelo macio palato e o leve sobressalto de surpresa perante a facilidade de tudo aquilo. Havia, porém, qualquer coisa de patético e perturbante naquela figura rígida de rosto pálido, na cama, de olhos cerrados com força, babeiro como os bebés e o delgado tubo arrastando-se e coleando como um verme pelo canto da boca. Miss Beale sentiu que estava a presenciar um sofrimento gratuito, que toda aquela demonstração era uma afronta. Por um segundo, teve de lutar contra um impulso de protestar.
Uma das gémeas estava agora a ligar uma seringa de 20 ml à extremidade da sonda, preparando-se para aspirar uma porção de suco gástrico a fim de verificar se a ponta tinha chegado ao estômago. As mãos da rapariga estavam bem firmes. Talvez fosse apenas produto da imaginação de Miss Beale a impressão de que a sala se encontrava sobrenaturalmente silenciosa. Deitou uma olhadela a Miss Taylor. A superintendente tinha os olhos pregados na estagiária Pearce. Franzia levemente o cenho. Mexia os lábios e agitava-se na cadeira. Miss Beale perguntou a si própria se não estaria à beira de emitir um protesto. Mas a superintendente não emitiu qualquer som. Mr. Courtney-Briggs curvava-se para diante na cadeira, com as mãos enclavinhadas nos joelhos. Fitava intensamente, não a estagiária Pearce, mas o conta-gotas, como que hipnotizado pela suave oscilação da tubagem. Miss Beale ouvia o forte som áspero da sua respiração. Miss Rolfe estava sentada muito direita, com as mãos frouxamente entrelaçadas no regaço e os olhos negros inexpressivos. Miss Beale, porém, notou que estavam poisados, não na rapariga deitada na cama, mas na aluna bastante bonita. E, durante um instante fugaz, a rapariga devolveu-lhe o olhar, com igual ausência de expressão.
A gémea que estava a administrar a alimentação, patentemente certificada de que a extremidade da sonda esofágica estava em segurança no estômago, ergueu o funil bem acima da cabeça da estagiária Pearce e começou lentamente a verter a mistura com leite pela sonda. A classe parecia estar a reter a respiração. E foi então que aconteceu. Ouviu-se um grito, agudo, horrivelmente inumano, e a estagiária Pearce precipitou-se da cama para fora como se impelida por uma força irresistível. Num segundo estava deitada, imóvel, apoiada no monte de almofadas, e no segundo imediato encontrava-se fora da cama, vacilando para diante sobre os pés arqueados numa imitação de bailarina clássica, e agarrando ineficazmente o ar como que procurando freneticamente a tubagem. E durante tudo isso gritava, gritava sem parar, como um apito encravado. Miss Beale, aterrada, mal teve tempo de registar o rosto contorcido, os lábios a espumar, antes de a rapariga cair no chão com um baque e ali ficar em contorções, dobrada sobre si como um arco, com a testa a tocar o chão e todo o corpo a estremecer num paroxismo.
Uma das alunas gritou. Por um instante ninguém se mexeu. A seguir houve uma precipitação para a frente. A enfermeira Gearing puxou pela sonda, arrancando-a da boca da rapariga. Mr. Courtney-Briggs, adiantou-se resolutamente para o meio do ajuntamento, de braços abertos. A superintendente e a enfermeira Rolfe curvaram-se sobre a figura que se contorcia, deixando-a fora de vista. A seguir, Miss Taylor ergueu-se e olhou em redor, fitando Miss Beale.
- As alunas... Será capaz de tomar conta delas, por favor? Há uma sala vazia aqui mesmo ao lado. Mantenha-as juntas.
Tentava manter a calma, mas a urgência tornava-lhe a voz cortante.
- Depressa, por favor.
Miss Beale acenou com a cabeça. A superintendente voltou a inclinar-se sobre a figura contorcida. Os gritos tinham já cessado. Seguiu-se-lhes um gemer lamentável e um aterrorizante martelar de saltos em staccato no soalho de madeira. Mr. CourtneyBriggs despiu o casaco, atirou-o para o lado e começou a arregaçar as mangas.
Murmurando suaves expressões de encorajamento, Miss Beale pastoreou o pequeno grupo de alunas pelo corredor fora. Uma ’delas, não percebeu bem qual, perguntou numa voz estridente: ”Que foi que lhe aconteceu? O que é que sucedeu? Que foi que correu mal?” Mas ninguém respondeu. Deslocaram-se, no meio ”’ da estupefacção de quem sofreu um abalo, até à sala contígua. Ficava nas traseiras da casa e tratava-se de uma sala pequena, de forma singular, que fora visivelmente dividida a partir da primitiva sala de visitas de tecto alto e que agora servia de gabinete da monitora-chefe. O primeiro relance de Miss Beale registou uma secretária de tipo comercial, uma fiada de armários de arquivo de aço pintado de verde, um quadro de parede sobrecarregado de avisos, uma pequena barra de madeira com perfurações provida de grampos dos quais pendia uma porção de chaves, e um mapa que ocupava toda uma parede representando o programa do curso e os progressos de cada uma das alunas. A divisória cortava a meio a janela de pinázios, de tal maneira que o gabinete, desagradável nas proporções, era também inconvenientemente escuro. Uma das alunas ligou o interruptor e o tubo fluorescente do meio começou a acender às piscadelas. Realmente, pensou Miss Beale, cujo espírito se agarrava desesperadamente ao conforto das suas preocupações normais, tratava-se de um compartimento perfeitamente inadequado para uma monitora-chefe, ou para qualquer monitora, aliás.
Aquela breve recordação do objectivo da sua visita suscitou um momentâneo bem-estar. Mas a terrível realidade da ocasião Voltou a afirmar-se quase de imediato. As alunas - um pequeno cacho patético e desorganizado - tinham-se apinhado no meio do compartimento como que incapazes de qualquer acção. Olhando rapidamente em redor, Miss Beale viu que havia apenas três cadeiras. Por um instante sentiu-se tão embaraçada e desorientada como uma anfitriã que não tem bem a certeza da maneira como vai sentar todos os convidados. A preocupação não era totalmente irrelevante. Tinha de conseguir proporcionar conforto e descontracção às raparigas, se é que havia alguma possibilidade de lograr que elas se distraíssem do que se passava na sala - contígua; e elas podiam permanecer encarceradas durante muito tempo.
- Venham cá - disse com vivacidade. - Vamos encostar à parede a secretária da enfermeira-chefe, para depois quatro de vocês poderem empoleirar-se nela. Eu sento-me na cadeira da secretária e duas de vocês podem ficar com as poltronas.
Pelo menos constituía uma actividade. Miss Beale viu que a estagiária loira e magra estava a tremer. Ajudou-a a sentar-se numa das poltronas, e a rapariga morena e carrancuda ocupou imediatamente a outra. Confia nela para cuidar da número um, pensou Miss Beale. Afadigou-se a ajudar as outras alunas a esvaziarem a secretária e encostá-la à parede. Se ao menos pudesse mandar uma delas fazer chá! Apesar da sua concordância com métodos mais modernos de combater traumatismos, Miss Beale ainda depositava a sua fé em chá forte, doce e quente. Mas não havia possibilidade de o obter. Não valia a pena incomodar e alertar o pessoal da cozinha.
- E que tal se nos apresentássemos? - sugeriu de modo encorajador. - Eu sou Miss Muriel Beale. Escusado será dizer-vos que sou inspectora do C. G. E. Sei alguns dos vossos nomes, mas não estou bem certa das pessoas a que correspondem.
Cinco pares de olhos fitaram-na com espantada incompreensão. Porém, a aluna eficiente - como Miss Beale ainda a considerava - identificou-as calmamente.
- As gémeas são a Maureen e a Shirley Burt. A Maureen é cerca de dois minutos mais velha e é a que tem mais sardas. Afora isso, não achamos fácil distingui-las. Ao lado da Maureen está a Julia Pardoe. A Christine Dakers está sentada numa das poltronas e a Diane Harper na outra. Eu sou a Madeleine Goodale.
Miss Beale, que nunca tinha facilidade em recordar nomes, fez a sua costumada recapitulação mental. As gémeas Burt. Bonitas e buliçosas. Seria bastante fácil recordar-lhes o nome, embora impossível estabelecer qual era uma e qual a outra. Julia Pardoe. Um nome atraente para uma rapariga atraente. Muito atraente, para quem gostasse daquela beleza loira, um tanto felina. Sorrindo para aqueles indiferentes olhos azul-arroxeados, Miss Beale concluiu que algumas pessoas, e nem todas elas do sexo masculino, poderiam gostar mesmo muito. Madeleine Goodale. Um bom nome sensato para uma boa rapariga sensata. Pensou que não teria dificuldade em lembrar-se de Goodale. Christine Dakers. Ali havia qualquer coisa que não estava nada bem. A rapariga parecera doente durante toda a breve aula prática e agora parecia a ponto de desmaiar. Tinha uma pele doentia, de uma maneira invulgar para uma enfermeira. Naquele momento achava-se desprovida de cores, de tal forma que em torno da boca e na testa as manchas sobressaíam numa assanhada brotoeja. Estava profundamente aninhada na poltrona, com as mãos delgadas àlternadamente a alisar e a plissar o avental. A estagiária Dakers era sem dúvida a mais afectada de todo o grupo. Talvez tivesse sido especialmente amiga da estagiária Pearce. Miss Beale procedeu supersticiosamente a uma rápida mudança de tempo do verbo. Talvez fosse especialmente amiga. Se ao menos pudessem dar à rapariga um revivificante chá quente! A estagiária Harper, de baton e sombra dos olhos igualmente berrantes no rosto empalidecido, comentou subitamente:
- Devia haver qualquer coisa no alimento.
As gémeas Burt viraram-se simultaneamente para ela. Mau- reen disse:
- Claro que havia! Leite.
- Refiro-me a qualquer coisa além do leite - hesitou. - Veneno.
- Mas não podia haver! A Shirley e eu fomos logo de manhã
buscar uma garrafa de leite recente ao frigorífico da cozinha.
Miss Collins estava lá e viu-nos. Deixámo-la na sala de aulas práticas e só o deitámos no copo de medida imediatamente antes da demonstração, não é verdade, Shirley?
- Exactamente. Era uma garrafa recente. Tirámo-la por volta das sete da manhã.
- E não lhe juntaram nada por engano?
- O quê, por exemplo? Claro que não.
As gémeas falavam em uníssono, parecendo tenazmente confiantes, quase imperturbadas. Sabiam com exactidão o que tinham feito e quando e, conforme Miss Beale verificou, ninguém tinha probabilidades de as fazer vacilar. Não eram o género de pessoas que se atormentassem com desnecessários sentimentos de culpa ou se ralassem com aquelas dúvidas irracionais que afligem personalidades menos fleumáticas e mais imaginativas. Miss Beale reflectiu que as compreendia muito bem.
- Talvez outra pessoa tenha misturado qualquer coisa no alimento - alvitrou Julia Pardoe.
Percorreu as colegas com um olhar sub-reptício através das pálpebras semicerradas, provocante e levemente divertida.
- Porque é que alguém faria semelhante coisa? - inquiriu calmamente Madeleine Goodale.
”’ A estagiária Pardoe encolheu os ombros e apertou os lábios num pequeno sorriso confidencial.
- Por acidente - disse. - Ou podia tratar-se de uma partida. Ou talvez fosse de propósito.
- Mas isso seria tentativa de homicídio! - Foi Diane Harper quem falou, num tom de incredulidade. Maureen Burt riu-se.
- Não sejas pateta, Julia. Quem é que havia de querer matar a Pearce?
Ninguém respondeu. A lógica era aparentemente inexpugnável. Era impossível imaginar alguém que quisesse matar a Pearce. Miss Beale apercebeu-se de que ou a Pearce pertencia ao grupo das pessoas naturalmente inofensivas, ou era uma personalidade demasiado negativa para inspirar o ódio atormentador que pode levar ao assassínio. Foi então que a estagiária Goodale observou secamente:
- A Pearce não era propriamente a menina bonita de toda a gente.
Miss Beale deitou um olhar à rapariga, surpreendida. Tratava-se de um estranho comentário, vindo da estagiária Goodale, um tanto insensível dadas as circunstâncias, desconcertantemente a despropósito. Reparou igualmente, na utilização do passado. Ali estava uma aluna que não tencionava voltar a ver a estagiária Pearce viva.
A estagiária Harper reafirmou resolutamente:
- É uma tolice falar de assassínio. Ninguém havia de querer matar a Pearce.
A estagiária Pardoe encolheu os ombros:
- Talvez não se destinasse à Pearce. Quem devia fazer de doente hoje era ajo Fallon, não era? O nome que vinha a seguir na lista era o da Fallon. Se ontem à noite não tivesse adoecido, quem estaria esta manhã naquela cama seria a Fallon.
Ficaram caladas. À estagiária Goodale voltou-se para Miss Beale.
- Ela tem razão. Desempenhamos todas rigorosamente à vez o papel de doente; realmente esta manhã não era à Pearce que competia. No entanto, a Josephine Fallon recolheu ontem à noite à enfermaria (já deve ter ouvido falar na epidemia de gripe) e quem estava logo a seguir na lista era a Pearce. A Pearce ocupou o lugar da Fallon.
Miss Beale sentiu-se momentaneamente desorientada. Achava que tinha de pôr termo àquela conversa, que lhe competia distraí-las do acidente, e decerto poderia não ter passado de um acidente. Mas não sabia como. Além disso, havia um tenebroso fascínio na pesquisa dos factos. Para ela, sempre o houvera. Por outro lado, talvez fosse melhor que as raparigas cedessem àquele interesse desprendido, investigador, em lugar de ficarem para ali a manter uma conversa artificial e sem objectivo. Verificava já que o abalo cedia lugar àquela excitação meio envergonhada que pode suceder à tragédia, desde que, evidentemente, se trate de uma tragédia alheia.
A voz calma, um tanto infantil, de Julia Pardoe prosseguiu:
- Portanto, se realmente a vítima em vista era a Fallon, não pode ter sido nenhuma de nós, pois não? Todas nós sabíamos que não era a Fallon que ia fazer de doente esta manhã.
- É de crer que toda a gente soubesse - disse Madeleine Goodale. - Pelo menos toda a gente na Nightingale House. Falou-se suficientemente disso ao pequeno-almoço.
Ficaram novamente caladas, ponderando sobre aquele novo aspecto. Miss Beale notou com interesse que não houve protestos de que ninguém quereria matar a Fallon. Nessa altura Maureen Burt disse:
- A Fallon não pode estar tão doente como tudo isso. Esta manhã regressou à Nightingale House, pouco depois das oito e meia. A Shirley e eu vimo-la escapulir-se pela porta lateral imediatamente antes de nos dirigirmos para a sala de aulas práticas, a seguir ao pequeno-almoço.
A estagiária Goodale perguntou bruscamente:
- Que levava ela vestido?
Maureen não mostrou surpresa ante aquela pergunta aparentemente irrelevante.
- Calças. E o casaco comprido. E aquele lenço de cabeça vermelho que costuma usar. Porquê?
A estagiária Goodale, visivelmente abalada e surpresa, fez uma tentativa de o.ocultar, e disse:
- Enfiou essa roupa antes de a levarmos para a enfermaria ontem à noite. Suponho que voltou para ir buscar ao quarto qualquer coisa que pretendia. Mas não devia ter saído da enfermaria. Foi uma estupidez. Quando baixou, estava com quarenta graus. Foi uma sorte para ela a enfermeira Brumfett não a ter visto.
A estagiária Pardoe observou maliciosamente:
- De qualquer maneira é esquisito, não é?
Ninguém respondeu. Era realmente esquisito, pensou Miss Beale. Recordou o longo e húmido trajecto entre o hospital e a escola de enfermagem. A estrada tinha muitas curvas; era evidente que devia haver um atalho pelo meio das árvores. Mas era um estranho passeio para uma rapariga doente em Janeiro, de manhã cedo. com certeza houvera qualquer razão de peso que a fizera regressar à Nightingale House. No fim de contas, se realmente queria alguma coisa do quarto, não havia nada que a proibisse de a pedir. Qualquer das alunas a teria levado de bom grado à enfermaria. E tratava-se da rapariga que devia ter feito o papel de doente nessa manhã, que devia, segundo a lógica, estar deitada no compartimento contíguo no meio do emaranhado de tubos e lençóis. A estagiária Pardoe disse:
- Bem, há uma pessoa que sabia que a Fallon não faria de doente esta manhã. A própria Fallon.
- Se estás disposta a ser estúpida e maliciosa, acho que não te posso impedir. No entanto, se fosse a ti, deixava-me de calúnias disse a estagiária Goodale, pálida, fitando-a.
A estagiária Pardoe pareceu despreocupada, mesmo levemente satisfeita. Surpreendendo-lhe o sorriso dissimulado e contente, Miss Beale decidiu que era tempo de fazer cessar aquela conversa. Estava à procura de uma maneira de mudar de assunto, quando a estagiária Dakers disse debilmente, das profundezas da poltrona:
- Sinto-me mal.
Registou-se imediata preocupação. A estagiária Harper foi a única que não fez qualquer menção de ajudar. As restantes agruparam-se em redor da rapariga, satisfeitas por terem a possibilidade de fazer alguma coisa.
- Vou levá-la ao lavabo do andar de baixo - disse a estagiária Goodale.
Levou a rapariga para fora da sala, amparando-a. Para surpresa de Miss Beale, a estagiária Pardoe foi com ela, esquecendo ambas aparentemente o antagonismo de pouco antes enquanto amparavam a estagiária Dakers, uma de cada lado. Miss Beale ficou sozinha com as gémeas Burt e a estagiária Harper. Caiu outro silêncio. Porém, Miss Beale tinha aprendido a lição. Fora imperdoavelmente irresponsável. Não haveria mais conversas de mortes ou assassínios. Já que ali estavam e à sua guarda, podiam muito bem trabalhar. Fitou asperamente a estagiária Harper e convidou-a a descrever os indícios, sintomas e tratamento da embolia pulmonar.
Dez minutos depois, as três ausentes estavam de volta. A estagiária Dakers vinha ainda pálida, mas recompusera-se. Quem parecia preocupada era a estagiária Goodale. Como se fosse incapaz de o guardar para si, disse:
- O frasco de desinfectante que devia estar na casa de banho desapareceu. Sabem a qual me refiro. Está sempre na prateleira pequena. Nem a Pardoe nem eu conseguimos encontrá-lo.
A estagiária Harper interrompeu a sua enfadada mas surpreendentemente competente narrativa e observou:
- Referes-te àquele frasco com uma mistura leitosa? Ontem à noite a seguir ao jantar estava lá.
- Isso já foi há muito tempo. Alguém foi àquela casa de banho esta manhã?
Aparentemente, ninguém lá fora. Olharam silenciosamente umas para as outras.
Foi então que a porta se abriu. A superintendente entrou tranquilamente e fechou a porta atrás de si. Ouviu-se um estalar de tecido engomado quando as gémeas se deixaram escorregar da secretária para baixo, perfilando-se. A estagiária Harper ergueu-se delicadamente da cadeira. Viraram-se todas para Miss Taylor.
- Minhas filhas - disse ela, e a suave e inesperada expressão deu-lhes a conhecer a verdade antes mesmo de ela falar.
- Minhas filhas, a estagiária Pearce morreu há minutos. Não sabemos como nem porquê, mas quando sucede qualquer coisa de inexplicável como esta há que chamar a Polícia. É o que o secretário do hospital está a fazer neste momento. Quero que sejam corajosas e sensatas como sei que serão. Até à chegada da Polícia, penso que o melhor é não falarmos do sucedido. Vão buscar os vossos livros e a estagiária Goodale conduzir-vos-á à minha sala de estar, onde aguardarão. vou mandar vir café forte e quente, que vos será servido dentro em pouco. Entendido?
Houve um submisso murmúrio: ”Sim, superintendente.” Miss Taylor voltou-se para Miss Beale.
- Lamento imenso, mas isto significa que vai ter de esperar também aqui.
- com certeza, superintendente, compreendo perfeitamente. Por sobre as cabeças das alunas, os olhares de uma e outra
cruzaram-se, em desorientada especulação e tácita compreensão.
Miss Beale, porém, ficou um tanto horrorizada ao recordar mais tarde a banalidade e irrelevância do seu primeiro pensamento consciente:
”Esta deve ser a inspecção mais curta de que há notícia. Que vou eu dizer ao Conselho Geral de Enfermagem?”
Poucos minutos antes, as quatro pessoas presentes na sala de aulas práticas tinham-se endireitado, olhando umas para as outras, pálidas e completamente exaustas. Heather Pearce estava morta. Estava morta segundo qualquer critério, quer legal, quer clínico. Sabiam-no desde os últimos cinco minutos, mas tinham continuado a trabalhar, obstinadamente e sem falar, como se ainda houvesse alguma hipótese de o flácido coração voltar a palpitar com vida. Mr. Courtney-Briggs tinha despido o casaco para tratar da rapariga e a parte da frente do colete estava coberta de manchas de sangue. Ele fitava a mancha que ia secando, de cenho e nariz enfadadamente franzidos, quase como se o sangue fosse uma substância estranha para si. A massagem cardíaca tinha sido tão suja como ineficaz. Surpreendentemente suja para Mr. Courtney-Briggs, pensou a superintendente. Mas a tentativa fora decerto justificada, não? Não houvera tempo de transportar a rapariga para o bloco operatório. Era uma pena a enfermeira-chefe Gearing ter arrancado a sonda esofágica. Fora porventura uma reacção natural, mas podia ter custado à Pearce a única hipótese de sobrevivência. Enquanto a sonda estava no lugar, podiam pelo menos ter tentado uma lavagem ao estômago imediata. No entanto, gorara-se uma tentativa de introduzir outra sonda pela narina devido aos espasmos agónicos da rapariga e, uma vez cessados estes, era demasiado tarde e Mr. Courtney-Briggs, vira-se obrigado a abrir a caixa torácica e tentar o único meio que lhe restava. Os esforços heróicos de Mr. Courtney-Briggs eram bem conhecidos. O único aspecto a lamentar era deixarem o corpo tão pateticamente retalhado e a sala de aulas práticas a cheirar a matadouro. Semelhantes coisas eram mais bem conduzidas num bloco operatório, ocultas e dignificadas pelos apetrechos da cirurgia ritual. Foi ele o primeiro a falar.
- Não foi uma morte natural. Havia qualquer coisa mais do que leite naquele nutriente. Bem, estou em crer que isso é evidente para todos nós. O melhor é chamarmos a Polícia. Vou entrar em contacto com a Yard. Por acaso conheço alguém de lá. Um dos comissários adjuntos.
Conhecia sempre alguém, pensou a superintendente. Sentiu uma ânsia de o contrariar. O abalo que sofrera tinha deixado uma esteira de irritação e, irracionalmente, esta concentrou-se nele. Calmamente, disse:
- Quem deve ser chamada é a Polícia local, e acho que a pessoa a fazê-lo é o secretário do hospital. Vou entrar em contacto com Mr. Hudson pelo telefone interno. Se acharem necessário, eles ligarão para a Yard. Mas a decisão cabe ao comissário, e não a nós.
Deslocou-se até ao telefone de parede, contornando cuidadosamente a figura dobrada de Miss Rolfe. A monitora-chefe estava ainda de joelhos. Mais parecia, pensou a superintendente, uma personagem de um melodrama vitoriano, com aqueles olhos sem chama no rosto pálido de morte, o cabelo preto um tanto despenteado sob a touca pregueada e aquelas mãos ensanguentadas. Virava-as muito lentamente e examinava a massa rubra com um interesse desprendido e especulativo como se também ela tivesse dificuldade em acreditar que o sangue fosse verdadeiro. - Se há suspeitas de qualquer tramóia, será que devíamos deslocar o corpo? - perguntou.
- Não tenciono deslocar o corpo - redarguiu Mr. CourtneyBriggs de modo cortante.
- Mas não podemos deixá-la aqui, no estado em que está! Miss Gearing quase chorava, ao protestar. O médico fulminou-a com o olhar:
- Ó minha santa, a rapariga está morta! Morta! Que diferença faz o sítio onde deixemos o corpo? Ela não sente nada. Nem sabe. Por amor de Deus, não comecem com sentimentalismos a propósito da morte. A afronta está em morrermos, só nisso, e não no que acontece aos nossos corpos.
Virou-se com brusquidão e dirigiu-se à janela. A enfermeira Gearing esboçou um movimento como se fosse segui-lo, mas logo se abateu na cadeira mais próxima, começando a chorar baixinho como um animal fungador. Ninguém lhe deu qualquer atenção. A enfermeira Rolfe pôs-se rigidamente de pé. De mãos estendidas diante do corpo na atitude ritual de enfermeira de sala de operações, encaminhou-se para um lavatório ao canto, actuou a torneira com o cotovelo e começou a lavar as mãos. No telefone instalado na parede, a superintendente marcava um número de cinco algarismos. Ouviu-se a sua voz calma:
- É do gabinete do secretário do hospital? Mr. Hudson está? Fala a superintendente. - Houve uma pausa. - bom dia, Mr. Hudson. Estou a falar da sala de aulas práticas do andar de baixo da Nightingale House. Poderá vir aqui imediatamente? Sim. Muito urgente. Lamento dizer que sucedeu qualquer coisa de trágico e horrível e vai ser necessário o senhor ligar para a Polícia. Não, preferia não o dizer pelo telefone. Obrigada. Voltou a colocar o aparelho no descanso e informou tranquilamente: - Vem imediatamente. Temos de pôr o vice-presidente também ao corrente... É uma maçada Sir Marcus estar em Israel... Mas a primeira coisa a fazer é comunicar com a Polícia. E agora o melhor é eu ir informar as outras alunas.
A enfermeira Gearing estava a tentar controlar-se. Assoou-se ruidosamente, voltou a meter o lenço no bolso da farda e levantou o rosto manchado.
- Desculpem. Acho que foi o choque. É que foi tudo tão horrível. É terrível ter acontecido uma coisa assim. E ainda por cima da primeira vez que eu dava uma aula! com toda a gente sentada a assistir a tudo. As outras alunas também. Que horroroso acidente!
- Acidente, enfermeira? - Mr. Courtney-Bríggs virou-se da janela. Avançou para ela e inclinou a cabeça taurina até ficar junto da sua. com voz cortante e desdenhosa, quase lhe atirou as palavras à cara. - Acidente? Estará a sugerir que um veneno corrosivo se introduziu naquele alimento por acidente? Ou que alguma rapariga no seu juízo perfeito optaria por se matar dessa maneira horrível? Ora vamos, enfermeira, que tal sermos honestos uma vez na vida? O que acabamos de presenciar chama-se assassínio!
Final ao soar da meia-noite
Naquele final de tarde de quarta-feira, dia 28 de Janeiro, dezasseis dias decorridos sobre a morte da estagiária Pearce, na sala de estar das alunas, situada no primeiro andar da Nightingale House, a estagiária Dakers estava a escrever a sua carta do meio da semana à mãe. Era seu costume acabá-la a tempo da tiragem do correio do fim da tarde, mas naquela semana tinha-lhe faltado energia e disposição para se dedicar à tarefa. O cesto de papéis aos seus pés continha já os exemplares amarrotados dos dois primeiros rascunhos rejeitados. E nesse momento estava a tentar de novo.
Encontrava-se sentada a uma das escrivaninhas gémeas defronte da janela, com o cotovelo esquerdo quase a roçar os pesados cortinados que isolavam a sala da fria e húmida escuridão da noite e o antebraço dobrado de modo protector sobre o bloco de papel de carta. Do lado oposto a ela, o candeeiro de mesa brilhava sobre a cabeça curvada de Madeleine Goodale, tão perto que a estagiária Dakers distinguia o crânio branco e limpo no sítio da risca e sentia o cheiro antisséptico do champô. A estagiária Goodale tinha dois livros de estudo na frente e tomava notas. Nada, pensava a estagiária Dakers com ressentida inveja, a preocupava; não havia coisa alguma, naquela sala ou para lá dela, que pudesse perturbar-lhe a tranquila concentração. A admirável e segura Goodale estava a garantir que a medalha de ouro John Carpendar para a aluna mais classificada no exame final acabaria por vir a ser-lhe posta no imaculado avental.
Assustada com a intensidade daquele súbito e aviltante antagonismo, que sentia não poder deixar de se transmitir à colega Goodale, a estagiária Dakers desviou os olhos da cabeça curvada tão desconcertantemente próxima e relanceou a vista pela sala. Esta era-lhe de tal modo familiar, no fim de quase três anos de estudos, que normalmente mal dava pelos pormenores da arquitectura ou do mobiliário. Nessa noite, porém, via-a com inesperada clareza, como se não tivesse qualquer relação consigo ou com a sua vida. Era demasiado ampla para ser aconchegadora e encontrava-se mobilada como se ao longo dos anos tivesse adquirido peças desirmanadas e as houvesse assimilado. Devia ter sido outrora uma elegante sala de visitas, mas as paredes haviam perdido o papel há muito e presentemente eram pintadas e achavam-se escalavradas, esperando - ao que se dizia - remodelação, assim que as disponibilidades financeiras o permitissem. A lareira, ornada de mármore lavrado e emoldurada de madeira de carvalho, estava equipada com um grande fogareiro a gás, velho e feio no estilo, mas ainda notoriamente eficaz, assoprando um intenso calor que atingia mesmo os mais sombrios recantos da sala. A elegante mesa de mogno encostada à parede do fundo, com a sua salgalhada de revistas, poderia ter sido legada pelo próprio John Carpendar. No entanto, hoje em dia encontrava-se riscada e baça, sendo limpa regularmente mas raras vezes encerada, com a superfície sulcada de mossas e manchas circulares. À esquerda da lareira, em incongruente contraste, via-se um grande e moderno televisor, oferta da Liga dos Amigos do Hospital. Defronte dele achava-se um enorme sofá forrado de cretone com as molas deprimidas e uma única poltrona condizente. As restantes cadeiras eram semelhantes às do serviço de doentes externos do hospital, mas estavam já demasiado velhas e coçadas para que se tolerasse a sua utilização pelos doentes. Os braços de madeira pálida estavam carunchosos e os assentos de vinilo colorido encontravam-se retesados e com mossas e naquele momento deitavam um cheiro desagradável sob o calor do fogo. Uma das cadeiras estava vaga. Era a cadeira de assento vermelho que a estagiária Pearce invariavelmente usara. Menosprezando a intimidade do sofá, costumava sentar-se ali, um pouco afastada da barafunda de alunas em redor do televisor, observando a tela com cuidado desinteresse, como tratando-se de um prazer que podia dispensar facilmente. De quando em quando baixava os olhos para um livro que tinha no regaço como se a fantasia apresentada para sua distracção se tivesse tornado demasiada, a ponto de não conseguir já suportá-la. A sua presença, pensava a estagiária Dakers, fora sempre um pouco importuna e opressiva. A atmosfera da sala de estar das alunas fora sempre mais leve e descontraída sem aquela figura aprumada e severa. No entanto, a cadeira vazia, o assento com mossas, eram quase piores. A estagiária Dakers desejou ter a coragem de avançar para ela, deslocá-la colocando-a em fila com as outras em redor do televisor e instalar-se desprendidamente nas suas curvas deprimidas, exorcizando de uma vez para sempre aquele espectro opressivo. Perguntou a si própria se as outras alunas sentiriam o mesmo. Era impossível perguntar-lho. Estariam as gémeas Burt, muito juntas e afundadas no sofá, realmente tão absortas como pareciam no velho filme de gangsters que estavam a ver? Estavam uma e outra a tricotar uma das grossas camisolas que invariavelmente vestiam de Inverno, com os dedos a avançarem com um ruído metálico pelo trabalho fora e sem nunca desviarem os olhos do televisor. Ao lado delas, a estagiária Fallon estava refastelada na poltrona, com uma perna envolvida pelas calças a baloiçar sem cerimónia por sobre o braço da cadeira. Era o seu primeiro dia de regresso à escola desde que faltara por doença e tinha ainda um ar pálido e fatigado. Estaria realmente o seu espírito concentrado no herói de cabelo liso e lustroso com o ridículo chapéu mole de fita larga e ombros enchumaçados, cuja voz roufenha, entrecortada por disparos de pistola, enchia a sala? Ou também ela estaria morbidamente consciente da cadeira vazia, do assento cheio de mossas, das extremidades arredondadas dos braços polidos pela mão da Pearce?
A estagiária Dakers estremeceu. O relógio de parede mostrava que passava já das nove e meia. Lá fora, o vento aumentava. Ia ser uma noite agreste. Nos raros intervalos de silêncio da televisão, ouvia o estalar e o suspiro das árvores e visualizava as últimas folhas caindo levemente na relva e no carreiro, isolando a Nightingale House num lamaçal de silêncio e decadência, Fez um esforço para voltar a pegar na caneta. Tinha mesmo de prosseguir! Não tardava que fossem horas de deitar e, uma a uma, as alunas dariam as boas-noites e desapareceriam, deixando-a a enfrentar sozinha a escadaria debilmente iluminada e o obscuro corredor que se lhe seguia. Claro que a Jo Fallon ainda ali ficaria. Nunca ia para a cama antes de o programa da televisão terminar. Nessa altura subiria sozinha as escadas para preparar o seu uísque quente com limão de todas as noites. Toda a gente conhecia o hábito invariável da Fallon. Mas a estagiária Dakers sentia que não seria capaz de enfrentar a ideia de ficar sozinha com a Fallon. A sua companhia seria a última que escolheria, até mesmo naquela solitária e assustadora caminhada entre a sala de estar e a cama.
Recomeçou a escrever:
Ora bem, mamã, agora vê lá se não te pões a empreender sobre o assassínio.
Mal viu as palavras no papel, deu-se conta da impossibilidade da frase. Fosse como fosse, tinha de evitar o emprego daquela palavra emotiva e manchada de sangue. Tornou a tentar.
Ora bem, mamã, agora vê se não ficas aí a ralar-te com o que vem nos jornais. Palavra que não vale a pena. Estou absolutamente segura e feliz e não há ninguém que acredite sinceramente que a Pearce tenha sido morta deliberadamente.
Claro que aquilo não era verdade. Alguém havia de pensar que a Pearce tinha sido morta deliberadamente; caso contrário, por que razão estaria a Polícia ali? E era disparate supor que o veneno pudesse ter entrado acidentalmente no alimento, ou que a Pearce, temente a Deus, conscienciosa e essencialmente desprovida de imaginação como era, tivesse resolvido matar-se daquela maneira angustiosa e espectacular. Continuou a escrever:
Ainda cá temos o pessoal do Departamento de Investigação Criminal da terra, mas agora já não vêm com tanta frequência. Têm sido muito simpáticos para com todas nós, as alunas, e não me parece que suspeitem de ninguém. A pobre da Pearce não era muito popular, mas não faz sentido pensar que alguém de cá quisesse fazer-lhe mal.
”Seria mesmo verdade que os polícias tinham sido simpáticos?”, pensou. Não havia dúvida de que haviam sido muito correctos, muito delicados. Tinham proferido todas as habituais banalidades acerca da importância de as pessoas colaborarem com eles na resolução daquela terrível tragédia, de dizerem sempre a verdade e de nunca omitirem coisa nenhuma, por mais trivial e insignificante que lhes parecesse. Nenhum deles havia levantado a voz; nenhum tinha sido agressivo ou intimidante. E todos haviam sido atemorizadores. A simples presença deles na Nightingale House, masculina e segura, fora, tal como a porta fechada da sala de aulas práticas, uma constante recordação de tragédia e medo. Para a estagiária Dakers, o mais atemorizador tinha sido o inspector Bailey. Tratava-se de um homem enorme, vermelhusco 39
e com cara de bolacha, cuja voz e modos encorajadores e paternais constituíam um enervante contraste com os frios olhos de porquinho. Os interrogatórios nunca mais paravam. Ela recordava ainda as sessões intermináveis e a força de vontade necessária para suportar aquele inquiridor olhar fixo.
- Ora bem, consta-me que a menina foi quem ficou mais perturbada quando a estagiária Pearce morreu. Porventura se tratava de uma amiga especial ?
- Não. A falar verdade, não. Não era uma amiga especial. Eu mal a conhecia.
- Bem, aí está o que se chama uma surpresa! Depois de cerca de três anos no mesmo curso com ela? Vivendo e trabalhando tão juntas, sempre pensei que todas vocês ficassem a conhecer-se bastante bem umas às outras.
Ela esforçava-se por explicar.
- Sob certos aspectos, ficamos. Conhecemos os hábitos umas das outras. Mas eu não sabia realmente como ela era; como pessoa, quero eu dizer.
Uma resposta disparatada. De que outra maneira se podia conhecer alguém, a não ser como pessoa? E não era verdade. Ela conhecia a Pearce. Conhecia-a muito bem.
- Mas davam-se bem uma com a outra? Não tinham tido nenhuma discussão, ou coisa que o valha? Nenhum desentendimento?
Uma palavra estranha. Desentendimento. Tinha visto novamente aquela figura grotesca, estendendo-se de modo vacilante para a frente, em sofrimento, com os dedos a esgaravatarem debalde no ar e a estreita sonda a alargar-lhe a boca como uma ferida. Não, não houvera desentendimentos.
- E as outras alunas? Também se davam bem com a estagiária Pearce? Tanto quanto sabe, não tinha havido nenhum amargo de boca?
Amargo de boca. Uma expressão idiota. Perguntou a si própria qual seria o antónimo. Doçura de boca? Só havia doçura de boca entre nós. Mas à Pearce não tinha ficado a boca doce. O que respondera fora:
- Tanto quanto sei, não tinha inimizades. E, se alguém não gostava dela, não seria a ponto de a matar.
- É o que todas vocês me dizem. Mas houve mesmo alguém que a matou, não houve? A menos que o veneno não se destinasse à estagiária Pearce. Ela só fez o papel de doente por acaso. Sabia que a estagiária Fallon tinha adoecido na noite anterior?
E assim por diante. Perguntas acerca de cada minuto daquela última e terrível aula prática. Perguntas acerca do desinfectante do lavabo. O frasco vazio, perfeitamente limpo de impressões digitais, fora encontrado pela Polícia caído entre os arbustos nas traseiras da casa. Qualquer pessoa o poderia ter atirado pela janela de um quarto ou casa de banho na obscuridade encobridora daquela manhã de Janeiro. Perguntas acerca dos seus movimentos desde o momento em que acordara. E a constante repetição, naquela voz ameaçadora, de que nada devia ser omitido, nada devia ser ocultado.
Perguntava a si própria se as outras alunas se teriam assustado como ela. As gémeas Burt tinham parecido meramente aborrecidas e resignadas, obedecendo às esporádicas convocações do inspector com um encolher de ombros e um fatigado: ”Oh, meu Deus, outra vez não!”
A estagiária Goodale nada havia dito ao ser chamada para o interrogatório, como nada dissera subsequentemente. A estagiária Fallon tinha sido igualmente reticente. Sabia-se que o inspector Bailey a tinha entrevistado na enfermaria mal ela ficara suficientemente boa para receber visitas. Ninguém sabia o que acontecera durante essa entrevista. Era voz corrente que a Fallon admitira ter regressado à Nightingale House ao começo da manhã do crime mas se recusara a dizer porquê. Isso seria mesmo coisa da Fallon. E agora tinha voltado para a Nightingale House, a juntar-se novamente ao grupo. Até ao momento, nem sequer se tinha referido ainda à morte da Pearce. A estagiária Dakers interrogava-se sobre se e quando o faria; e, morbidamente sensível ao significado oculto de cada palavra, prosseguiu penosamente a carta:
Não voltámos a utilizar a sala de aulas práticas depois da morte da estagiária Pearce, mas, afora isso, o grupo continua a trabalhar de acordo com o programa estabelecido. Só uma das alunas, a Diane Harper, abandonou a escola. O pai veio buscá-la dois dias depois da morte da estagiária Pearce e a Polícia não pareceu importar-se com o facto de ela partir. Todas nós achámos uma estupidez ela desistir tão perto dos exames finais, mas o pai nunca simpatizou grandemente com o facto de ela estudar enfermagem e, seja como for, está noiva, de modo que penso que ela tenha achado que não fazia mal. Ninguém mais pensa sair e não há realmente o menor perigo. Por isso, querida mãe, peço-te que não te preocupes mais por minha causa. Agora vou passar a falar-te do programa para amanhã.
Agora já não havia necessidade de continuar a fazer rascunho. O resto da carta seria fácil. Releu o que tinha escrito e concluiu que serviria. Tirando uma folha nova do bloco, começou a escrever a carta definitiva. Com um pouco de sorte terminá-la-ia antes de o filme acabar e as gémeas porem de lado a malha e reV colherem à cama.
Começou rapidamente a escrevinhar e, meia hora mais tarde, terminada a carta, viu com alívio que o filme atingira o holocausto final e o último abraço. Nesse preciso momento, a estagiária Goodale tirou os óculos de ler, ergueu a vista do trabalho e fechou o livro. A porta abriu-se e apareceu Julia Pardoe.
- Já cheguei - anunciou ela, bocejando. - O filme era uma porcaria. Alguém vai fazer chá?
Ninguém respondeu, mas as gémeas cravaram as agulhas de tricotar nos novelos de lã e foram ter com ela à porta, desligando o televisor de caminho. A Pardoe nunca se dava ao trabalho de fazer chá se arranjasse alguém que o fizesse, e normalmente as gémeas prestavam esse serviço. Saindo da sala de estar no encalço delas, a estagiária Dakers virou-se a observar a figura silenciosa e imóvel da Fallon agora sozinha com Madeleine Goodale. Sentiu um súbito impulso de falar com a Fallon, de lhe dar as boas-vindas de regresso à escola, de lhe perguntar pela saúde ou pura e simplesmente de lhe dirigir as boas-noites. Mas as palavras pareciam prender-se-lhe na garganta, o momento passou e a última coisa que viu ao fechar a porta atrás de si foi o rosto pálido e individual da Fallon, de olhos inexpressivos ainda presos no televisor, como se não se tivesse dado conta de que a tela estava muda e queda.
Num hospital, até o próprio tempo é documentado: os segundos medidos nas pulsações, no gotejar do sangue ou do plasma; os minutos na paragem de um coração; as horas na subida e descida de um gráfico de temperaturas, na duração de uma operação. Quando os acontecimentos da noite de 28 para 29 de Janeiro acabaram por ser documentados, havia poucos protagonistas no Hospital John Carpendar que não tivessem a noção do que haviam estado a fazer ou onde se encontravam a qualquer dado momento das horas em que se achavam acordados. Podiam não optar por dizer a verdade, mas pelo menos sabiam onde estava a verdade.
Fora uma noite de tempestade violenta mas errática, com o vento a variar de intensidade e mesmo de direcção de uma hora para outra. Às dez horas pouco mais era que um soluçante obbligato por entre os ulmeiros. Uma hora depois atingiu subitamente um crescente de fúria. Os grandes ulmeiros em redor da Nightingale House estalavam e gemiam sob a arremetida, enquanto o vento uivava por entre eles como a casquinada dos demónios. Pelos carreiros desertos, os montes de folhas mortas, ainda empapados da chuva, deslizavam arrastadamente, para a seguir se dividirem em correntes, levantando-se em furiosos remoinhos como insectos dementes e acabando por se colarem às cascas das árvores. No bloco operatório situado no último piso do hospital, Mr. Courtney-Briggs demonstrava a sua imperturbabilidade perante uma crise murmurando para o estagiário que o assistia que estava uma noite terrível, antes de voltar a inclinar a cabeça para a deleitosa contemplação do intrigante problema cirúrgico que palpitava entre os bordos retraídos da ferida. Por baixo dele, nas enfermarias silenciosas e debilmente iluminadas, os doentes murmuravam e viravam-se em pleno sono como se tivessem consciência do alvoroço do exterior. A radiologista, que fora chamada de casa para tirar uma radiografia urgente ao doente de Mr. Courtney-Briggs, voltou a colocar as capas no aparelho, apagou as luzes e perguntou de si para si como se aguentaria no caminho o seu pequeno automóvel. As enfermeiras de vela passavam silenciosamente entre os doentes verificando as janelas e correndo melhor os cortinados como que para isolar lá fora uma qualquer força estranha e ameaçadora. O porteiro de serviço no casinhoto do portão principal mexeu-se inquieto na cadeira, após o que se levantou entorpecido e meteu mais uns pedaços de carvão na lareira. No seu isolamento, sentia necessidade de calor e conforto. O casinhoto parecia estremecer a cada rajada de vento.
Pouco antes da meia-noite, porém, a tempestade amainou, como se pressentisse a proximidade da hora das bruxas, a calada da noite em que o pulso humano bate mais lento e os doentes moribundos deslizam mais facilmente para o derradeiro olvido. Houve um silêncio fantasmagórico durante cerca de cinco minutos, seguido de um leve gemer rítmico à medida que o vento se precipitava e zunia por entre as árvores como que exausto devido à sua própria fúria. Mr. Courtney-Briggs, terminada a operação, retirou as luvas e dirigiu-se ao vestiário dos cirurgiões. Mal se despiu, fez uma chamada pelo telefone de parede para o piso das enfermeiras da Nightingale House e pediu à enfermeira Brumfett, que era a encarregada da enfermaria particular, que voltasse à enfermaria a fim de superintender nos cuidados a dispensar ao seu doente durante a primeira hora crítica. Verificou com satisfação que o vento amainara. Ela podia fazer o trajecto atravessando os terrenos conforme já fizera a seu pedido vezes sem conta. Escusava de se sentir na obrigação de ir buscá-la no automóvel.
Decorridos menos de cinco minutos, a enfermeira Brumfett marchava resolutamente por entre as árvores, de capa enrolada no corpo como uma bandeira cingida ao respectivo mastro e capuz baixo sobre a pregueada touca de enfermeira. O tempo estava curiosamente calmo, naquele breve interlúdio da tempestade. A enfermeira progredia silenciosamente pela relva ensopada, sentindo a tracção do solo empapado através das grossas solas dos sapatos ao mesmo tempo que, de quando em quando, um galho delgado, quebrado pela tempestade, se soltava da última fibra de casca e se abatia surdamente aos seus pés com uma suave inadvertência. No momento em que alcançara a tranquilidade da enfermaria particular e estava a ajudar a estagiária do terceiro ano a fazer a cama pós-operatória e a preparar o suporte para o frasco de sangue, o vento aumentara de novo. A enfermeira Brumfett, porém, embrenhada na sua tarefa, já não deu por isso. Pouco após a meia-noite e meia hora, Albert Colgate, o porteiro da noite no casinhoto principal, que cabeceava sobre o jornal da tarde, foi sobressaltadamente chamado à realidade por um feixe de luz varrendo a janela do casinhoto e pelo ronronar de um automóvel que se aproximava. ”Deve ser o Daimler de Mr. Courtney-Briggs”, pensou. Portanto, a operação tinha terminado. Contava que o automóvel saísse rapidamente pelo portão principal, mas, inesperadamente, o carro deteve-se. Ouviram-se dois toques peremptórios de buzina. Resmungando, o porteiro enfiou os braços no sobretudo e atravessou a porta do casinhoto. Mr. Courtney-Briggs baixou o vidro da janela e gritou-lhe através da ventania:
- Tentei sair pelo portão de Winchester, mas há uma árvore caída que ficou atravessada no caminho. Achei melhor vir informá-lo. Mande tratar disso o mais depressa possível.
O porteiro enfiou a cabeça pela janela, deparando-se-lhe um imediato e requintado odor de fumo de charuto, loção para depois da barba e couro. Mr. Courtney-Briggs recuou ligeiramente daquela proximidade. O porteiro disse:
- Deve ser com certeza um daqueles ulmeiros antigos, senhor doutor, vou comunicá-lo logo de manhãzinha. Agora de noite não posso fazer nada, senhor doutor, no meio desta tempestade.
Mr. Courtney-Briggs começou a fechar a janela. A cabeça de Colgate fez uma retirada súbita.
- Não há necessidade de fazer nada agora de noite - disse o cirurgião. - Amarrei o meu lenço de pescoço branco a um dos galhos. Duvido que mais alguém passe por aquele caminho antes de amanhã de manhã. Se tal acontecer, hão-de ver o lenço. Mas o senhor pode avisar quem quer que siga nessa direcção. Boa noite, Colgate.
O grande automóvel afastou-se, ronronando, do portão da frente e Colgate retrocedeu pelo mesmo caminho até ao casinhoto. Meticulosamente, viu as horas no relógio de parede por sobre a lareira e registou no livro respectivo: ”00.32 - Mr. CourtneyBriggs informou haver uma árvore caída a obstruir o caminho da Winchester Road.”
Tinha voltado a instalar-se na cadeira e já retomara nas mãos o jornal quando o assaltou a ideia de que era estranho Mr. Courtney-Briggs ter tentado sair pelo portão de Winchester. Não era o caminho mais rápido para sua casa e tratava-se de um trajecto que raramente usava. Mr. Courtney-Briggs utilizava invariavelmente a entrada da frente. Provavelmente, pensou Colgate, Mr. Courtney-Briggs tinha uma chave do portão da Winchester Road. Mr. Courtney-Briggs tinha chaves da maioria dos locais do hospital. Mas, ainda assim, era estranho.
Momentos antes das duas da madrugada, no silencioso segundo piso da Nightingale House, Maureen Burt remexeu-se no sono, murmurou incoerentemente através dos húmidos lábios apertados e acordou para a desagradável consciência de que, em lugar das três chávenas de chá antes de dormir, se devia ter limitado a uma. Permaneceu imóvel por instantes, sonolentamente cônscia do gemer da borrasca, perguntou a si própria se no fim de contas não conseguiria voltar a pegar no sono, apercebeu-se de que o mal-estar era demasiado intenso para conseguir suportá-lo razoavelmente e tacteou em busca do interruptor do candeeiro da mesa-de-cabeceira. A luz acendeu-se instantaneamente, ofuscante, despertando-a por inteiro com um sobressalto. Enfiou os pés nos chinelos de quarto, pôs o roupão pelos ombros e arrastou-se até ao corredor. Ao fechar silenciosamente a porta do quarto atrás de si, uma súbita rajada de vento enfunou os cortinados na janela ao fundo do corredor. Atravessou-o para a fechar. Através do sacudido rendilhado de ramos e das suas sombras saltitantes na vidraça, viu o hospital galgando a tempestade como um grande navio fundeado, no qual se viam as janelas das enfermarias apenas debilmente luminosas em comparação com a linha vertical de olhos profusamente iluminados que revelava os gabinetes das enfermeiras e as cozinhas das enfermarias. Fechou cuidadosamente a janela e, cambaleando ligeiramente de sono, avançou às apalpadelas pela passagem até ao lavabo. Decorrido menos de um minuto voltou a sair para o corredor, fazendo uma momentânea pausa a fim de acostumar a vista à claridade. No meio da confusão de sombras no cimo das escadas, sobressaiu uma sombra mais carregada, que avançou e se revelou como uma figura de capa e capuz. Maureen não era uma rapariga nervosa e, no seu estado de sonolência, apenas teve consciência de um sentimento de surpresa pelo facto de outra pessoa estar acordada e andar por ali. Verificou de imediato que se tratava da enfermeira Brumfett. Dois penetrantes olhos munidos de óculos perscrutaram na sua direcção no meio da obscuridade. A voz da enfermeira era inesperadamente cortante: - É uma das gémeas Burt, não é verdade? Que faz aqui? Está alguém mais a pé?
- Não, senhora enfermeira. Pelo menos não me parece. Acabo de ir à casa de banho.
- Ah, compreendo. Bem, se estão todas bem, é o que interessa. Pensei que a tempestade as tivesse perturbado. Acabo de regressar da minha enfermaria. Um dos doentes de Mr. Courtney Briggs teve uma recaída e ele teve de o operar de urgência.
- Sim, senhora enfermeira - respondeu a estagiária Burt, não sabendo bem que mais se esperava dela. Surpreendia-a o facto de a enfermeira Brumfett se dar ao trabalho de explicar a sua presença a uma simples aluna de enfermagem, e ficou a observar um tanto insegura enquanto a enfermeira apertava melhor a capa ao corpo e percorria pesada e apressadamente o corredor em direcção às escadas mais distantes. O quarto dela ficava no piso de cima, imediatamente a seguir ao apartamento da superintendente. Quando atingiu o fundo das escadas, a enfermeira Brumfett voltou-se e pareceu prestes a dizer qualquer coisa. Foi nesse momento que a porta de Shirley Burt se abriu lentamente, surgindo uma cabeça ruiva desgrenhada.
- Que se passa? - inquiriu, sonolenta.
A enfermeira Brumfett avançou para elas.
- Nada, estagiária. vou pura e simplesmente voltar para a cama. Venho da minha enfermaria. E a Maureen teve de se levantar para ir à casa de banho. Não há motivo para preocupações. Shirley não dava a impressão de estar ou alguma vez ter estado preocupada. Naquele momento trotou até ao patamar, embrulhando-se no roupão. Resignada e um tanto complacente, disse:
- Quando a Maureen acorda, acordo também. Desde bebés que somos assim. A mamã que o diga!
Levemente vacilante de sono mas não descontente pelo facto de a teuria da família ainda funcionar, fechou a porta do quarto atrás de si com a determinação de quem, uma vez que está de pé, tenciona manter-se de pé.
- Não vale a pena tentar voltar a pegar no sono, com este vento. vou preparar cacau. Podemos levar-lhe uma caneca lá acima, senhora enfermeira? Sempre a ajudava a adormecer.
- Não, obrigada, estagiária. Não me parece que tenha qualquer dificuldade em adormecer. Façam o menos barulho que puderem. Não hão-de querer incomodar as outras, com certeza. E vejam lá, não apanhem frio.
Voltou-se uma vez mais para a escadaria. Maureen disse:
- A Fallon está acordada. Pelo menos o candeeiro da mesa-de-cabeceira dela ainda está aceso.
Olharam as três para o fundo do corredor, onde uma réstia de luz, coando-se pelo buraco da fechadura do quarto da estagiária Fallon, sulcava a escuridão e lançava uma pequena sombra luminosa no lambrim fronteiro da parede com ornatos.
- Nesse caso levamos-lhe uma caneca - disse Shirley. - Provavelmente está acordada e a ler. Vamos, Maureen! Boa noite, senhora enfermeira.
Cruzaram juntas o corredor, arrastando os pés, até à pequena sala comum que ficava ao fundo. Depois de uma pausa de um segundo, a enfermeira Brumfett, que tinha estado a olhá-las fixamente, de rosto fechado e inexpressivo, virou-se finalmente para as escadas e apressou-se a recolher à cama.
Precisamente uma hora mais tarde, mas sem que ninguém na Nightingale House o ouvisse ou registasse, uma vidraça enfraquecida da estufa, que durante toda a noite estremecera espasmodicamente, caiu para dentro, explodindo em estilhaços no pavimento de mosaicos. O vento precipitou-se por aquela brecha como um animal em perseguição. O seu hálito frio roçou as revistas nas mesas de verga, ergueu as frondes das palmeiras e agitou de leve as folhas dos fetos. Finalmente deu com o amplo armário centrado sob as prateleiras de plantas. Ao princípio da noite, a porta tinha sido deixada aberta de par em par pelo visitante desesperado e pressuroso que enfiara a mão nas profundezas do armário. Durante toda a noite a porta ficara aberta, imóvel nas dobradiças. Agora, porém, o vento obrigava-a a oscilar suavemente de um lado para outro e finalmente, como que cansado da brincadeira, fechou-a com um leve e decisivo baque.
Sob o tecto da Nightingale House tudo o que estava vivo dormia.
A estagiária Dakers foi acordada pelo zumbido do despertador da mesa-de-cabeceira. O mostrador debilmente luminoso marcava seis e um quarto. Mesmo com as cortinas arredadas para o lado, o quarto permanecia completamente envolto na escuridão. O quadrado de luz mortiça vinha, como sabia, não da porta, mas sim das luzes distantes do hospital, onde o pessoal de vela deveria estar já a servir as primeiras chávenas de chá da manhã. Manteve-se quieta por momentos, adaptando-se ao estado vigil e lançando antenas hesitantes para sondar o dia. Tinha dormido bem apesar da tempestade, da qual apenas momentaneamente se dera conta. Percebeu com um sobressalto de júbilo que podia realmente enfrentar o dia animada de confiança. A tristeza e apreensão da noite anterior, das semanas anteriores, parecia ter-se dissipado. Afigurava-se agora não ser mais que o efeito do cansaço e de uma depressão temporária. Tinha atravessado um túnel de tristeza e insegurança desde a morte da Pearce, mas nessa manhã, miraculosamente, voltara novamente à luz do dia. Assemelhava-se à manhã do dia de Natal na infância. Era o início de umas férias de Verão da escola. Era acordar fresca outra vez no final de uma doença febril, com a confortável noção de que a mamã estava ao pé e tinha diante de si todo o refrigério da convalescença. Era a vida familiar retomada.
O dia brilhava diante dela. Contabilizou as suas promessas e prazeres. De manhã haveria a palestra sobre farmacologia. Era importante. Fora sempre fraca em medicamentos e doses. Depois, a seguir ao intervalo para o café, Mr. Courtney-Briggs ministraria o seu seminário de cirurgia do terceiro ano. O facto de um cirurgião tão eminente se preocupar tanto com o ensino das estagiárias de enfermagem constituía um privilégio. Ela temia-o um pouco, em especial as suas cortantes perguntas em staccato. Nessa manhã, pórém, seria corajosa e falaria confiantemente em voz alta. Depois, à tarde, o autocarro do hospital conduziria o grupo à maternidade e à clínica pediátrica da terra a fim de assistirem ao trabalho do pessoal especializado. Também isso era importante para uma pessoa que alimentava a esperança de vir a ser enfermeira-visitadora. Deixou-se estar deitada por momentos a contemplar aquele animador programa e a seguir saiu da cama, enfiou os pés nos chinelos, envergou atabalhoadamente o roupão barato e percorreu a passagem até à sala de uso geral das estagiárias.
As estagiárias eram pontualmente acordadas todas as manhãs às sete horas por uma das criadas, mas a maioria das alunas, habituadas a levantarem-se cedo no serviço das enfermarias, punham os despertadores para as seis e meia a fim de terem tempo para fazer chá e tagarelar. As madrugadoras estavam já ali. A pequena sala encontrava-se fortemente iluminada, animadamente doméstica, cheirando, como sempre, a chá, leite fervido e detergente. A cena era tranquilizadoramente normal. As gémeas Burt estavam lá, de caras ainda inchadas do sono, cada uma delas solidamente embrulhada no seu roupão vermelho-vivo. Maureen trazia o rádio portátil sintonizado para a Rádio 2 e sacudia levemente as ancas e os ombros ao ritmo sincopado do programa do início da manhã da BBC. A outra gémea estava a colocar as enormes canecas de ambas num tabuleiro e vasculhava numa lata em busca de biscoitos. A única outra aluna presente era Madeleine Goodale, que, envergando um antigo roupão de escocês, vigiava, de bule na mão, o aparecimento do primeiro bafo de vapor da chaleira. Optimista e aliviada como estava, a estagiária Dakers seria muito capaz de as abraçar a todas.
- Onde pára esta manhã a Fallon? - perguntou Maureen Burt sem grande interesse.
A estagiária Fallon era bem conhecida por se levantar tarde, mas normalmente uma das primeiras a fazer chá. Era seu costu’me levá-lo de volta para o saborear ociosamente na cama, onde se deixava ficar até ao último momento possível de modo a poder chegar a tempo à mesa do pequeno-almoço. Nessa manhã, contudo, o seu bule pessoal e a chávena e o pires a condizer estavam ainda na prateleira do armário ao lado da lata de chá-da-china que a Fallon preferia à forte infusão castanha que o resto do grupo achava necessário para poder enfrentar o dia.
- Eu vou chamá-la - sugeriu a estagiária Dakers, satisfeita por ser útil e ansiando por festejar a sua libertação da tensão das últimas semanas através de uma benevolência geral.
- Espera um bocadinho, que podes levar-lhe uma chávena do meu bule - disse Maureen.
- Ela não há-de gostar de chá-da-índia. vou só ver se está acordada e dizer-lhe que a chaleira já ferve. Por um instante ocorreu à estagiária Dakers preparar o chá da Fallon. Mas o impulso desvaneceu-se. Não que a Fallon fosse particularmente temperamental ou imprevisível, mas em qualquer caso as pessoas não interferiam nas suas coisas pessoais nem esperavam que ela as compartilhasse. Tinha poucas coisas, mas as que tinha eram caras, elegantes, cuidadosamente escolhidas e faziam de tal modo parte da sua persona que pareciam sacrossantas.
A estagiária Dakers quase correu pela galeria até ao quarto da Fallon. A porta estava no trinco, o que não a surpreendeu. Desde a ocasião em que uma aluna tinha adoecido de noite, havia uns anos, e se sentira demasiado fraca para se arrastar ao longo do quarto a fim de abrir a porta, estabelecera-se uma norma que proibia as raparigas de se fecharem por dentro à noite. A partir da morte da Pearce, uma ou outra tinha começado a dar a volta à chave e, se as enfermeiras suspeitavam do facto, nada diziam. Talvez elas também dormissem mais profundamente com a porta fechada à chave. Mas a Fallon não se intimidara.
As cortinas estavam bem fechadas. O candeeiro da mesa-de-cabeceira estava aceso, mas com o quebra-luz ajustável inclinado de tal modo que lançava uma luz pálida na parede mais afastada e deixava a cama envolta na penumbra. Na almofada via-se um emaranhado de cabelos negros. A estagiária Dakers tacteou a parede em busca do interruptor e fez uma pausa antes de dar ao botão. Depois premiu-o muito ao de leve, como se fosse possível iluminar muito suave e gradualmente o quarto e poupar à Fallon aquele primeiro despertar violento. O quarto inundou-se de luz e a estagiária Dakers piscou os olhos sob o inesperado clarão. A seguir cruzou muito lentamente o quarto até à cama. Não gritou nem desmaiou. Ficou absolutamente imóvel por um instante, fitando o corpo da Fallon e sorrindo ligeiramente como que surpreendida. Não tinha dúvidas de que a Fallon estava morta. Os olhos estavam ainda arregalados, mas encontravam-se frios e opacos, como os dos peixes mortos. A estagiária Dakers baixou-se e fitou-os bem como se quisesse forçá-los a recuperar o brilho ou procurando em vão qualquer vestígio do seu reflexo. Seguidamente virou-se devagar e abandonou o quarto, apagando a luz e fechando a porta atrás de si. Cambaleava como uma sonâmbula pelo corredor, firmando as mãos contra a parede.
Inicialmente, as alunas não deram pelo seu regresso. A seguir, fixaram-se subitamente nela três pares de olhos e três figuras assumiram uma postura imóvel, num quadro de intrigada interrogação. A estagiária Dakers encostou-se à ombreira da porta e abriu a boca sem produzir qualquer som. As palavras recusavam-se a sair. Dir-se-ia que algo acontecera à garganta. Todo o maxilar tremia incontrolavelmente e a língua estava presa ao céu da boca. Os seus olhos endereçavam uma súplica às colegas. Pareceram decorrer minutos enquanto elas observavam a sua luta. Quando as palavras finalmente saíram, a voz dela era calma, suavemente surpreendida.
- É a Fallon. Está morta.
Sorriu como alguém que acordasse de um sonho, explicando pacientemente:
- Alguém assassinou a Fallon.
A sala esvaziou-se. Ela não se apercebeu da debandada concertada das outras pelo corredor fora. Viu-se sozinha. A chaleira apitava já, com a tampa a chocalhar sob a pressão do vapor. Cuidadosamente, fechou o gás, franzindo o sobrolho de concentração. Muito lentamente, como uma criança encarregada de uma missão preciosa, retirou para baixo a lata, o delicado bule e a chávena e o pires a condizer e, trauteando de leve para consigo, fez o chá matinal da Fallon.
Estranhos em casa
- Chegou o médico legista, senhor inspector.
Um agente enfiou a cabeça de cabelo rapado pela porta e ergueu o sobrolho interrogativamente.
O inspector-chefe Adam Dalgliesh virou-se, suspendendo o exame do vestuário da rapariga morta, com o seu metro e oitenta e sete desconfortavelmente encurralado entre os pés da cama e a porta do guarda-vestidos. Consultou o relógio. Passavam oito minutos das dez. Sir Miles Honeyman, como sempre, tinha vindo depressa.
- Muito bem, Penning. Peça-lhe que tenha a bondade de aguardar um momento, está bem? Dentro de um minuto acabamos o que temos de fazer aqui. Nessa altura alguns de nós podem sair e arranjar espaço para ele.
A cabeça desapareceu. Dalgliesh fechou a porta do guarda-vestidos e conseguiu apertar-se de modo a caber entre ele e os pés da cama. Não restavam dúvidas que, de momento, não havia espaço para uma quarta pessoa. O corpo volumoso do homem das impressões digitais ocupava o espaço entre a mesa-de-cabeceira e a janela enquanto, quase dobrado ao meio, espalhava carvão cuidadosamente com um pincel na superfície da garrafa de uísque, virando-a segura pela rolha. Junto da garrafa estava um copo de vidro com as impressões digitais da rapariga, notando-se perfeitamente as formas em espiral e em turbilhão.
- Alguma coisa por aí? - perguntou Dalgliesh.
O homem das impressões digitais fez uma pausa e perscrutou mais detidamente.
- Está a aparecer um belo conjunto de impressões; senhor inspector. Não há dúvida de que são dela. Mas mais nada. Parece que o tipo que a vendeu lhe fez a limpeza do costume antes de a embrulhar. Há-de ser interessante ver o que tiramos do copo.
Deitou um olhar ciosamente possessivo ao copo, que estava no lugar onde tinha tombado da mão da rapariga, levemente poisado numa curva da coberta. Só depois de tirada a última fotografia o levantariam para ser examinado.
Voltou a curvar-se sobre o seu trabalho na garrafa. Atrás dele, o fotógrafo da Yard manobrava o tripé e a máquina - uma nova cambo monocarril, notou Dalgliesh - para a extremidade inferior direita da cama. Houve um estalido, uma explosão de luz, e a imagem da rapariga morta saltou na direcção deles, ficando suspensa no ar, ardendo na retina de Dalgliesh. As cores e formas intensificaram-se e distorceram-se naquele cruel clarão momentâneo. O comprido cabelo negro era uma cabeleira emaranhada sobre o fundo alvo das almofadas; os olhos vidrados eram berlindes exoftálmicos, como se o rigor mortis os estivesse a expulsar das órbitas para fora; a pele era muito branca e macia, com um aspecto repulsivo ao tacto, uma membrana artificial, dura e impermeável como vinilo. Dalgliesh piscou os olhos, apagando a imagem de objecto de brinquedo de bruxa, uma grotesca boneca arremessada ao acaso para cima da almofada. Quando voltou a olhar para ela, era uma rapariga morta numa cama; nem mais, nem menos. Por duas outras vezes a imagem distorcida saltou ao seu encontro e ficou petrificada no ar quando o fotógrafo tirava duas fotografias com a máquina Polaroid Land a fim de fornecer a Dalgliesh as duas chapas imediatas que ele pedia sempre. Depois tudo terminou.
- Foi a última. Acabei, senhor inspector - disse o fotógrafo. Agora vou deixar entrar Sir Miles.
Meteu a cabeça pela porta enquanto o homem das impressões digitais, rosnando de satisfação, erguia amorosamente o copo da coberta com uma pinça e o poisava ao lado da garrafa de uísque.
Sir Miles devia estar à espera no umbral da porta, visto que entrou imediatamente num passo ligeiro, revelando a sua familiar figura rotunda com a enorme cabeça de cabelo negro encaracolado e ávidos olhos brilhantes como contas. Trazia consigo um ar de bonhommi de espectáculo musical e, como sempre, um leve odor de suor ressequido. A espera não o perturbara. Mas a verdade é que Sir Miles, presente de Deus à medicina legal ou charlatão amador, consoante se quisesse considerá-lo, não se ofendia facilmente. Tinha conquistado boa parte da fama e também, possivelmente, o recente grau de cavaleiro aderindo ao
princípio de que nunca se deve ofender deliberadamente ninguém, por mais humilde que seja. Saudou o fotógrafo e o funcionário das impressões digitais, ambos de partida, como se fossem velhos amigos, e Dalgliesh pelo nome próprio. No entanto, as cortesias não passavam de uma formalidade; ao insinuar-se até junto da cama, a sua preocupação precedia-o como um miasma.
Dalgliesh desprezava-o como vampiro; dificilmente aquilo podia considerar-se, reconhecia-o, motivo racional de antipatia. Num mundo perfeitamente organizado, os feiticistas dos pés tornar-se-iam pedicuros; os feiticistas de cabelos, cabeleireiros; e os vampiros, mórbidos anatomistas. Era surpreendente que tão poucos o fizessem. Porém, Sir Miles ficava a descoberto para a insinuação. Acercava-se de cada novo cadáver com avidez, quase com satisfação; as suas piadas macabras tinham sido ouvidas em metade dos restaurantes de Londres; era um especialista da morte que gostava visivelmente do seu trabalho. Dalgliesh sentia-se inibido na sua companhia devido à consciência da sua aversão pelo homem. Dir-se-ia que a antipatia crepitava do seu ser. Sir Miles, porém, não tinha noção desse facto. Gostava demasiado de si próprio para conceber que outros homens pudessem achá-lo menos cativante, e essa simpática ingenuidade conferia-lhe uma espécie de fascínio. Até os colegas que mais deploravam a sua presunção, a sua ânsia de publicidade e a irresponsabilidade da maioria das suas declarações públicas, tinham dificuldade em antipatizar tanto com ele como achavam que deviam. Dizia-se que as mulheres o consideravam atraente. Talvez exercesse sobre elas uma fascinação mórbida. Sem sombra de dúvida, a sua disposição era o bom humor contagiante de um homem que acha necessariamente o mundo um lugar agradável visto que o contém a ele.
Soltava sempre exclamações de censura diante dos cadáveres. Assim fazia agora, afastando o lençol com um curioso gesto petulante dos dedos sapudos. Dalgliesh avançou até à janela e contemplou o rendilhado de ramos através do qual o hospital distante, ainda cheio de luzes, cintilava como um palácio imaterial suspenso no ar, Ouviu o débil restolhar da roupa de cama. Sir Miles devia estar a fazer um simples exame preliminar, mas a simples ideia daqueles dedos sapudos insinuando-se nos moles orifícios do corpo bastava para uma pessoa desejar uma morte tranquila no seu próprio leito. O verdadeiro trabalho seria feito mais tarde na mesa do necrotério, aquela banca de alumínio com os seus lúgubres acessórios de drenos e pulverizadores na qual o corpo de Josephine Fallon seria sistematicamente desmembrado em nome da justiça, ou da ciência, ou da curiosidade, ou do que quer que fosse. E mais tarde, o assistente de Sir Miles na morgue ganharia o seu quinhão voltando a cosê-lo para lhe conferir um aspecto decente de humanidade de modo que a família pudesse observá-lo sem ficar traumatizada. Se é que havia família. Perguntou a si próprio quem seriam os componentes do cortejo fúnebre da Fallon, se os houvesse. À primeira vista, não havia nada no quarto dela - nem fotografias, nem cartas - que indicasse laços estreitos entre ela e qualquer ser vivo.
Enquanto Sir Miles suava e resmungava, Dalgliesh procedeu a uma segunda revista ao quarto, tomando o cuidado de não olhar para o médico legista. Sabia que essa susceptibilidade era irracional e sentia-se meio envergonhado dela. Os exames post mortem não o perturbavam. O que não conseguia suportar era aquele escrutínio impessoal do corpo da mulher ainda quente. Poucas horas antes, ela teria direito a um certo pudor, a escolher o seu próprio médico, possuiria a liberdade de rejeitar aqueles dedos sobrenaturalmente brancos e avidamente exploradores. Poucas horas antes era um ser humano. Agora não passava de carne morta.
Tratava-se do quarto de uma mulher que preferia não estar atravancada. Continha as necessárias comodidades básicas e um ou dois elementos decorativos cuidadosamente escolhidos. Era como se ela tivesse catalogado as suas necessidades e as satisfizesse dispendiosamente mas com rigor e sem extravagância. O espesso tapete junto da cama não era, pensou ele, do tipo fornecido pela Comissão de Gestão do hospital. Havia apenas um quadro, mas tratava-se de uma aguarela original, uma encantadora paisagem da autoria de Robert Hills, colocada no sítio em que a luz da janela a iluminava melhor. No parapeito da janela via-se o único ornamento, uma figura em cerâmica de Staffordshire representando John Wesley1 a pregar no púlpito. Dalgliesh fê-la rodar nas mãos. Era perfeita; uma peça de coleccionador. Mas não se via nenhum dos triviais pertences que as pessoas que vivem em instituições muitas vezes espalham para lhes proporcionar conforto ou segurança.
Avançou até à estante ao lado da cama e voltou a examinar os
livros. Também estes se diriam escolhidos de modo a contribuir para estados de espírito previsíveis. Uma colecção de poesia moderna, que incluía o último livro de Dalgliesh; um conjunto completo de Jane Austen, bastante usado mas com encadernações de pele e impresso em papel bíblia; alguns livros de filosofia que eram um harmonioso compromisso entre o erudito e obras de divulgação; cerca de duas dúzias de exemplares brochados de romances modernos: Greene, Waugh, Compton Burnett, Hartley, Powell, Gary. Mas a maior parte dos livros eram de poemas. ”A avaliar por eles”, pensou, ”tínhamos os mesmos gostos. Se nos tivéssemos conhecido, pelo menos teríamos alguma coisa a dizer um ao outro.” ”Não há morte de alguém que não me diminua.” Mas com certeza, doutor Donne1. Aquela máxima exploradíssima tinha-se convertido numa frase feita em voga num mundo superlotado em que o não envolvimento era praticamente uma necessidade social. Mas algumas mortes conservavam ainda o poder de diminuírem mais do que outras. Pela primeira vez em anos tinha consciência de uma sensação de desperdício, de ilógica perda pessoal.
Passou adiante. Aos pés da cama ficava um guarda-vestidos com cómoda acoplada, uma engenhoca bastarda de madeira clara, concebida, se é que alguém tinha concebido deliberadamente um objecto tão feio, para proporcionar o máximo de arrumação num mínimo de espaço. O tampo da cómoda destinava-se a servir de toucador e tinha poisados a escova e o pente da rapariga. Nada mais.
Abriu a pequena gaveta do lado esquerdo. Continha os acessórios de maquilhagem, com os frascos e bisnagas muito arrumados num pequeno tabuleiro de papier mâché. Havia bastantes mais coisas do que ele esperara encontrar: creme de limpeza, uma caixa de lenços de papel, creme de base, pó-de-arroz compacto, sombra para os olhos e rimmel. Era visível que a rapariga se pintava com esmero. No entanto havia apenas uma coisa de cada. Nada de experiências, de compras por entusiasmo de momento, nem de bisnagas meio utilizadas e postas de parte com o produto de maquilhagem coagulado em torno da carrapeta. O conjunto dizia: ”Isto é o que me fica bem. É disto que preciso. Nem de mais, nem de menos.”
Abriu a gaveta do lado direito. Não continha mais nada além
de um arquivo de tipo fole, com todos os compartimentos etiquetados com as letras do alfabeto. Passou em revista o conteúdo, dedilhando-o. Uma certidão de nascimento. Um atestado de baptismo. Um livro de cheques de uma conta-depósito a prazo. O nome e a morada do advogado. Não havia cartas particulares. Enfiou o arquivo debaixo do braço.
Prosseguiu até ao guarda-vestidos e voltou a examinar a colecção de roupas. Três pares de calças. Blusas de cachemira. Um casaco de Inverno de tecido escocês vermelho-vivo. Quatro vestidos de boa lã, de fino corte. Todos eles tinham um ar de qualidade. Tratava-se de um guarda-roupa caro para uma estagiária de enfermagem.
Ouviu um grunhido final de satisfação por parte de Sir Miles e fez meia volta. O médico legista estava a endireitar-se e retirava as luvas de borracha. Estas eram tão finas que se diria estar a descascar a epiderme.
- Morta, diria eu, há cerca de dez horas - disse. - Baseio-me fundamentalmente na temperatura rectal e no grau de rigidez dos membros inferiores. Mas não passa de uma estimativa, meu caro. Estas coisas estão sujeitas a risco, como sabe. Vamos dar uma olhadela ao conteúdo do estômago; pode ser que nos forneça alguma pista. De momento, e a julgar pelos sinais clínicos, diria que morreu por volta da meia-noite, mais hora, menos hora. Encarando as coisas do ponto de vista do bom senso, evidentemente, morreu quando tomou aquela última bebida antes de dormir.
O funcionário das impressões digitais tinha deixado a garrafa de uísque e o copo na mesa e ocupava-se agora da maçaneta da porta. Sir Miles deu a volta, trotando, até junto deles e, sem lhe tocar, curvou a cabeça e colocou o nariz junto da borda do copo.
- Uísque. Mas que mais? É sobre isso que nos interrogamos, meu caro. É sobre isso que nos interrogamos. Uma coisa é certa, não se tratava de nenhum corrosivo. Desta vez, não foi ácido fénico. A propósito, não fui eu que fiz a autópsia daquela outra rapariga. Quem se encarregou desse trabalhinho foi o Rikki Blake. Coisa feia. Presumo que procura uma ligação entre as duas mortes, não?
- É possível - retorquiu Dalgliesh.
- Pode ser. Pode ser. Não tem ar de ser morte natural. Mas teremos de esperar os resultados da toxicologia. Nessa altura talvez fiquemos a saber qualquer coisa. Não há indícios de estrangulamento ou sufocação. Nem marcas exteriores de violência, por falar nisso. A propósito, ela estava grávida. De uns três meses, 57
diria eu. Dei ali com um belíssimo ballottement1. Era indício que já não encontrava desde os meus tempos de estudante. Claro que a autópsia o confirmará. Os seus olhinhos brilhantes esquadrinharam o quarto.
- Aparentemente, não há recipiente do veneno. Se é que se tratou de veneno, claro. E nenhum bilhete de suicídio?
- Isso não é prova concludente - observou Dalgliesh.
- Eu sei. Eu sei. Mas a maioria delas deixa um pequeno billet doux2. Gostam de contar a história, meu caro. Gostam de contar a história. A propósito, já aí está a carrinha da morgue. Se já acabaram o que tinham a fazer nela, levo-a.
- Eu acabei - disse Dalgliesh.
Aguardou, observando os funcionários do necrotério a enfiarem a maca no quarto e, com desembaraçada eficiência, depositarem nela o peso morto. Sir Miles impacientava-se em redor deles ’’ com a nervosa ansiedade de um especialista que descobriu um espécime particularmente bom e tem de superintender cuidadosamente no seu transporte em segurança. Era estranho que a remoção daquela massa inerte de ossos e músculos retesados, perante a qual ambos, cada um à sua maneira distinta, tinham esta} do a oficiar, tivesse deixado o quarto tão vazio, tão abandonado.
Dalgliesh notara-o antes, quando o corpo estava a ser evacuado: aquela sensação de palco vazio, de adereços descuidadamente dispostos e destituídos de significado, de ar esvaziado. Os recém-falecidos possuíam o seu carisma; por alguma razão as pessoas falavam num sussurro na sua presença. Mas agora ela partira, e nada mais havia para ele fazer naquele quarto. Deixou o homem das impressões digitais a registar e a fotografar as suas conclusões e saiu para o corredor.
Passava já das onze da manhã mas o corredor encontrava-se ainda muito escuro, apenas se distinguindo, como uma névoa quadrada, por detrás das cortinas corridas, a única janela clara no extremo distante. A princípio, Dalgliesh só conseguiu divisar
a forma e cor dos três baldes de incêndio cheios de areia e o cone de um extintor cintilando contra os lambrins de carvalho trabalhado das paredes. Os grampos de aço, enfiados com brutalidade no madeiramento, do qual se encontravam suspensos, formavam um incongruente contraste com a fiada de elegantes candeeiros de latão enrolado que brotavam do centro dos quadrifólios esculpidos. Os candeeiros tinham sido obviamente concebidos de início para gás, mas haviam sido grosseiramente adaptados a electricidade, sem imaginação nem talento. O latão estava por polir e a maioria dos delicados quebra-luzes de vidro, recurvados à semelhança de pétalas de flor, encontravam-se partidos ou falhados. Em cada um dos cachos desflorados encontrava-se agora um único suporte monstruosamente enxertado de uma suja e fraca lâmpada cuja luz mortiça e difusa lançava sombras pelo pavimento e apenas servia para acentuar a obscuridade geral. À parte a única janelinha ao fim do corredor, pouca mais luz natural havia. A enorme janela por sobre o vão da escada, uma representação pré-rafaelita em vidro acobreado da expulsão do Paraíso, tinha pouco de funcional.
Perscrutou os quartos contíguos ao da rapariga. Um encontrava-se vago, com a cama despida de roupa, a porta do guarda-vestidos escancarada e as gavetas, forradas de papel de jornal novo, todas abertas como que para demonstrar o vazio essencial do quarto. O outro estava a uso mas tinha o ar de haver sido precipitadamente abandonado; a roupa da cama estava descuidadamente atirada para o fundo e o tapete junto do leito encontrava-se amarrotado. Na mesa-de-cabeceira havia uma rima de livros de estudo; abrindo a primeira folha em branco daquele que estava mais à mão leu a inscrição ”Christine Dakers”. Tratava-se, portanto, do quarto da rapariga que encontrara o corpo. Inspeccionou a parede entre os dois quartos. Era uma estreita e leve divisória de cartão prensado pintada, que estremeceu e produziu um ligeiro ressoar quando lhe bateu. Perguntou a si próprio se a estagiária Dakers teria ouvido alguma coisa durante a noite. A menos que Josephine Fallon tivesse morrido instantaneamente e quase silenciosamente, decerto algum indício da sua aflição havia de ter penetrado aquela imaterial divisória. Estava ansioso por interrogar a estagiária Christine Dakers. De momento ela encontrava-se na enfermaria das estagiárias, ao que constava sob o efeito de estado de choque. O estado de choque era provavelmente mais que genuíno mas, mesmo que o não fosse, nada podia fazer a esse respeito. A estagiária Dakers achava-se de momento eficazmente 59
protegida pelos médicos de qualquer interrogatório por parte da Polícia.
Prosseguiu um pouco mais a exploração. Defronte da correnteza de quartos das estagiárias ficava uma sucessão de cubículos de banho e sanitários, emergindo de um amplo vestiário quadrado provido de quatro lavatórios, cada um deles rodeado de um cortinado de chuveiro. Qualquer dos cubículos de banho dispunha de uma pequena janela de guilhotina de vidro opaco, incomodamente localizada mas não difícil de abrir. Cada uma delas proporcionava uma perspectiva das traseiras da casa e das duas pequenas alas, ambas erigidas sobre o seu claustro de tijolo, um e outro incongruentemente enxertados no corpo principal do edifício. Dir-se-ia que o arquitecto, esgotadas as possibilidades do gótico renascido e do barroco, decidira introduzir uma influência mais contemplativa e eclesiástica. O terreno entre os claustros era uma selva demasiado crescida de moitas de loureiro e árvores por podar, que se erguiam tão próximas da casa que certos ramos pareciam arranhar as janelas do piso inferior. Dalgliesh conseguia distinguir figuras esbatidas buscando entre as moitas e ouvir o débil sussurro de vozes. O frasco de desinfectante que tinha vitimado Heather Pearce, deitado fora, tinha ’sido encontrado entre aquelas moitas e era possível que um segundo recipiente, de conteúdo igualmente letal, tivesse também sido arremessado da mesma janela, pela calada da noite. Na prateleira da casa de banho estava uma escova de unhas; pegando nela, Dalgliesh atirou-a num arco amplo pela janela, na direcção das moitas. Não conseguiu ver nem ouvir a queda, mas surgiu um rosto jubiloso entre as folhas afastadas, uma mão acenou num cumprimento e os dois agentes que exploravam recuaram, internando-se mais no matagal.
A seguir, percorreu o corredor até à sala de uso geral das estagiárias, no extremo mais afastado. Estava lá o sargento Masterson com a enfermeira Rolfe. Encontravam-se ambos a inspeccionar um heterogéneo conjunto de objectos poisados na sua frente na superfície de trabalho, como se estivessem embrenhados num jogo de Kim. Havia dois limões espremidos, uma taça de açúcar granulado, um sortido de chávenas com chá frio, cuja superfície se apresentava furta-cores e encrespada, e um delicado bule Worcester com uma chávena, pires e leiteira a condizer. Havia também um quadrado amarrotado de fino papel de embrulho branco onde se liam as palavras ”Scunthorpe’s Wine Stores, 149, High Street, Heatheringfield” e um recibo com uns rabiscos, alisado e mantido na posição de esticado por meio de um par de latas de chá.
- Ela comprou o uísque ontem de manhã, senhor inspector disse Masterson. - Felizmente para nós, Mr. Scunthorpe é meticuloso com os recibos. Isto é a conta e isto é o papel de embrulho. Portanto, dá a ideia que a primeira vez que ela abriu a garrafa foi ontem ao ir para a cama.
- Onde estava ela guardada? - perguntou Dalgliesh. Foi a enfermeira Rolfe quem respondeu:
- A Fallon guardava sempre o uísque no quarto. Masterson riu-se.
- Não me admira nada, com uma marca a custar perto de três libras A garrafa.
A enfermeira Rolfe olhou-o com desprezo.
- Não me parece que a Fallon se preocupasse com isso. Não era do género de reparar no rótulo da garrafa.
- Era liberal? - perguntou Dalgliesh.
- Não, pura e simplesmente despreocupada. Guardava o uísque no quarto porque a superintendente lho pedia.
”Mas trouxe-o ontem para aqui a fim de preparar a bebida da noite”, pensou Dalgliesh, que mexeu levemente o açúcar com o dedo.
- Esse é inócuo - disse a enfermeira Rolfe. - As alunas disseram-me que todas o utilizaram ao prepararem o chá da manhã. E as gémeas Burt, pelo menos, beberam parte do delas.
- Seja como for, vamos enviá-lo para o laboratório, juntamente com o limão - observou Dalgliesh.
Levantou a tampa do pequeno bule e espreitou lá para dentro. Respondendo à pergunta por formular, a enfermeira Rolfe disse:
- Ao que parece, a estagiária Dakers fez o chá da manhã nele. O bule é da Fallon, evidentemente. Não há mais ninguém que faça o chá da manhã em loiça Worcester antiga.
- A estagiária Dakers fez chá para a estagiária Fallon antes de saber que a rapariga estava morta?
- Não, depois. Imagino que se tratou de uma reacção puramente automática. Deve ter ficado em estado de choque. No fim de contas, acabava de ver o corpo da Fallon. Decerto não estava à espera de curar a rigidez cadavérica com chá quente, mesmo tratando-se da melhor mistura da China. Suponho que há-de querer falar com a Dakers, mas terá de esperar. De momento encontra-se na enfermaria. Creio que foi informado. Faz parte da ala particular e quem está a tratar dela é a enfermeira Brumfett. É por isso que eu estou aqui neste momento. Tal como a Polícia, a nossa profissão é hierarquizada e, quando a superintendente não se encontra na Nightingale House, quem se lhe segue em antiguidade é a Brumfett. Em condições normais, quem estaria a assisti-lo seria ela, e não eu. com certeza já o informaram de que Miss Taylor se encontra de regresso de uma conferência em Amsterdão. Teve de seguir inesperadamente em substituição da presidente da Comissão Regional de Formação de Enfermeiras, felizmente para ela. Assim, há pelo menos um membro superior do pessoal com um álibi.
Dalgliesh tinha sido informado, e mais de uma vez. A ausência da superintendente parecia ser um facto que toda a gente com que deparara, por mais fugazmente que fosse, achava necessário referir, explicar ou lamentar. Mas a enfermeira Rolfe era a primeira a fazer uma referência cáustica ao facto de isso proporcionar um álibi a Miss Taylor, pelo menos relativamente ao momento da morte da Fallon.
- E o resto das alunas?
- Estão na pequena sala de aulas do andar de baixo. A enfermeira Gearing, a nossa orientadora clínica, está a tomar conta delas durante um período de estudo individual. Não me parece que estejam a ler grande coisa. Teria sido melhor arranjar-lhes algo mais activo, mas não é fácil, assim de um momento para o outro. Quer encontrar-se com elas lá?
- Não, mais tarde. E na sala de aulas práticas onde a estagiária Pearce morreu.
Ela endereçou-lhe um olhar e logo afastou rapidamente a vista, mas não tão rapidamente que ele deixasse passar o ar de surpresa e, pensou, reprovação. Ela esperara que ele mostrasse mais sensibilidade, mais consideração. A sala de aulas práticas não voltara a ser usada desde a morte da estagiária Pearce. Entrevistar lá as alunas decorrido tão pouco tempo sobre aquela segunda tragédia seria instalar novo horror na memória. Se alguma delas estivesse a ponto de se enervar, podia ser aquele o rastilho, e nem lhe passara pela cabeça utilizar outra sala. A enfermeira Rolfe, pensou, era como todos os outros. Queriam que os assassinos fossem apanhados, mas apenas pelos métodos mais cavalheirescos. Queriam vê-los castigados, mas só se o castigo não ofendesse a sua própria sensibilidade.
- Como fica a casa fechada de noite? - perguntou Dalgliesh.
- A enfermeira Brumfett, a enfermeira Gearing e eu ficamos responsáveis durante uma semana cada uma. Esta semana é a vez de Gearing. Somos as únicas enfermeiras-chef es que residem cá. Fechamos e trancamos a porta da frente e a da cozinha pontualmente às onze horas. Há uma pequena porta lateral com uma fechadura Yale e um ferrolho interior. Se alguma aluna ou membro do corpo docente tem licença para vir mais tarde, é-lhe confiada uma chave dessa porta e tranca-a depois de entrar. As enfermeiras-chefes estão permanentemente de posse de uma chave. Há apenas outra porta, e essa é de comunicação entre o apartamento da superintendente e o terceiro piso. Ela tem uma escada particular e, evidentemente, a sua própria chave. À parte estas, há as portas de saída em caso de incêndio, mas essas estão permanentemente fechadas por dentro. Não seria difícil assaltar a casa. Acho que é o que acontece com a maior parte das instituições de assistência. Mas até hoje, tanto quanto sei, nunca fomos assaltados por nenhum ladrão. A propósito, há uma vidraça em falta na estufa. Alderman Kealey, o vice-presidente, parece pensar que foi por aí que o assassino da Fallon entrou. É especialista em descobrir explicações cómodas para todos os problemas embaraçosos da vida. Cá a mim parece-me que a vidraça foi quebrada pelo vento, mas o senhor certamente tirará as suas próprias conclusões.
”Está a falar de mais”, pensou ele. A loquacidade era uma das mais comuns reacções ao choque ou aos nervos, que qualquer funcionário inquiridor explorava ao máximo. Amanhã ela desprezar-se-ia por tê-la tido e tornar-se-ia tanto mais difícil, tanto menos colaborante. Entretanto, estava a dizer-lhe mais do que julgava.
Claro que teria de se dar uma olhadela à vidraça partida e de se examinar a caixilharia de madeira em busca de indícios de entrada, mas parecia-lhe pouco provável que a morte da estagiária Fallon tivesse sido obra de qualquer intruso.
- Quantas pessoas dormiram cá a noite passada? - perguntou.
- A Brumfett, a Gearing e eu. A Brumfett esteve fora durante parte da noite. Constou-me que Mr. Courtney-Briggs voltou a chamá-la à enfermaria. Miss Collins esteve cá. É a governanta. E estavam cinco alunas de enfermagem: a estagiária Dakers, as gémeas Burt, a estagiária Goodale e a estagiária Pardoe. E a Fallon dormiu cá, evidentemente. Isto é, se a Fallon teve tempo de dormir! A propósito, a luz da mesa-de-cabeceira dela ficou toda a noite acesa. As gémeas Burt estiveram a fazer cacau pouco depois das duas da manhã e por pouco não levaram uma caneca à Fallon. Se o tivessem feito, o senhor poderia ter uma ideia mais precisa da hora da morte. Mas ocorreu-lhes que ela tivesse adormecido com a luz acesa e não lhe agradasse propriamente ser acordada, mesmo ante a visão e o cheiro do cacau. O alívio invariável das gémeas é a comida, mas pelo menos viveram o suficiente para se aperceberem de que nem toda a gente compartilha da sua preocupação e que a Fallon, em particular, poderia preferir o sono e a privacidade ao cacau e à sua companhia.
- Hei-de falar com as gémeas Burt. E quanto aos terrenos do hospital? Ficam abertos durante a noite?
- Há sempre um porteiro de serviço no casinhoto da frente.
O portão principal não é fechado por causa das ambulâncias de acidentes, mas ele vigia toda a gente que entra ou sai. A NightinH gale House fica muito mais perto da entrada das traseiras para o terreno, mas normalmente não fazemos esse caminho a pé porf que o trajecto é mal iluminado e um tanto ou quanto atemorizador. Além disso, vai dar à Winchester Road, que fica a quase três quilómetros e meio do centro da vila. O portão das traseiras é fechado ao anoitecer, quer de Verão, quer de Inverno, por um dos porteiros, mas todas as enfermeiras-chefes e a superintendente têm uma chave.
- E as estagiárias com licença para regressar mais tarde?
- É de esperar que usem o portão da frente e percorram o caminho principal que contorna o hospital. Há um atalho muito mais curto por entre o arvoredo que utilizamos de dia (são cerca de duzentos metros), mas não há muita gente que opte por segui-lo de noite. Creio bem que Mr. Hudson, que é o secretário do hospital, lhe poderá dar uma planta dos terrenos e da Nightingale House. A propósito, ele e o vice-presidente estão à sua espera neste momento na biblioteca. O presidente, Sir Marcus Cohen, está em Israel. Mesmo assim, é uma bela comissão de recepção. Até Mr. Courtney-Briggs adiou a consulta dos doentes externos para dar as boas-vindas à Yard a Nightingale House.
- Nesse caso - disse Dalgliesh -, talvez a senhora queira ter a bondade de lhes dizer que vou ter com eles dentro de pouco tempo.
Era uma despedida. O sargento Masterson, como que para a suavizar, disse subitamente e em voz alta:
- A enfermeira-chefe Rolfe foi muito prestável.
A mulher emitiu uma curta fungadela de escárnio.
- Ser prestável à Polícia! Não há nessa frase uma conotação sinistra? Seja como for, não me parece que possa ser particularmente prestável. Não matei nenhuma delas. E a noite passada fui ver um filme no novo cinema daqui. Estão a passar um ciclo de Antonioni. Esta semana vai L’Aventura. Quando cá cheguei já passava das onze e fui direita para a cama. Nem sequer vi a Fallon.
Dalgliesh anotou com fatigada resignação a primeira mentira e perguntou de si para si quantas mais, importantes e não importantes, seriam proferidas antes de a investigação estar concluída. Mas não era a ocasião própria para interrogar a enfermeira Rolfe. Não havia de ser uma testemunha fácil. Tinha respondido cabalmente às suas perguntas, mas com indisfarçado ressentimento. Não estava bem certo se era com ele ou com o seu trabalho que ela antipatizava, ou se qualquer homem teria suscitado aquele tom de irritado desprezo. O rosto dela condizia com a sua personalidade, rebarbativa e defensiva. Era vigoroso e inteligente mas desprovido de doçura ou feminilidade. Os olhos profundamente implantados e escuros poderiam ser atraentes, mas localizavam-se sob um par de sobrancelhas pretas absolutamente direitas, tão negras e hirsutas que conferiam ao rosto uma leve sugestão de deformidade. O nariz era grande e de poros abertos, os lábios uma estreita linha inflexível. Era o rosto de uma mulher que nunca aprendera a reconciliar-se com a vida, e tinha, porventura, desistido de o tentar. Pensou de repente que, caso viesse a revelar-se uma assassina e a sua fotografia fosse finalmente publicada, outras mulheres procurariam avidamente naquela máscara inflexível indícios de depravação e protestariam se não os surpreendessem. Subitamente teve pena dela, com um misto de irritação e compaixão como o que qualquer pessoa sente por uma pessoa desproporcionada ou fisicamente deformada. Voltou-se depressa a fim de que ela não surpreendesse aquele súbito espasmo de piedade. Sabia que, para ela, seria o último dos insultos. E, quando tornou a voltar-se para lhe agradecer formalmente o auxílio, viu que ela já saíra.
O sargento Charles Masterson tinha um metro e noventa de altura e ombros largos. Sustentava agilmente a estatura, e todos os seus movimentos eram surpreendentemente controlados e rigorosos para um homem tão peremptoriamente masculino e corpulento.
Era geralmente considerado bem-parecido, particularmente por ele próprio, e com aquele rosto vigoroso, os lábios sensuais e os olhos protegidos parecia-se notavelmente com um actor de cinema americano muito conhecido da escola dos duros e dos pistoleiros. De quando em vez, Dalgliesh desconfiava que o sargento, consciente como dificilmente poderia deixar de estar dessa semelhança, a acentuava por sua conta, assumindo um vestígio de sotaque americano.
- Muito bem, sargento. Teve ocasião de observar o local e falou com algumas das pessoas. Conte-me coisas.
Este convite tinha fama de inspirar terror no íntimo dos subordinados de Dalgliesh. Significava que o inspector-chefe esperava naquele momento ouvir um relato do crime breve, sucinto, rigoroso, elegantemente formulado, mas global, que fornecesse todos os factos mais relevantes até então conhecidos a uma pessoa que há pouco entrara em contacto com ele. O dom de saber o que se quer dizer e dizê-lo no mínimo de palavras adequadas é tão invulgar entre os polícias como no seio de outros membros da comunidade. Os subordinados de Dalgliesh tinham tendência para se queixar de não se terem apercebido de que a nova qualificação para integrar o Departamento de Investigação Criminal fosse uma licenciatura em Letras. Porém, o sargento Masterson ficava menos intimidado do que a maioria. Tinha as suas fraquezas, mas a falta de confiança não figurava entre elas. Sentia-se satisfeito por trabalhar naquele caso. Era bem sabido na Yard que o inspector-chefe Dalgliesh não era capaz de tolerar um pateta e que a sua definição de fantasia era individual e rigorosa. Masterson respeitava-o porque Dalgliesh era um dos investigadores com mais êxitos na Yard e, para Masterson, o êxito era o único verdadeiro critério. Considerava-o muito competente, o que não significava que o considerasse tão competente como Charles Masterson. A maior parte das vezes, e por razões que lhe parecia inútil explorar, antipatizava cordialmente com ele. Desconfiava que a antipatia era mútua, mas isso não o perturbava particularmente. Dalgliesh não era homem para prejudicar a carreira de um subordinado por não gostar dele e tinha fama de ser meticuloso, embora prudente, em atribuir louros quando eram devidos. Mas seria preciso vigiar a situação, e Masterson tencionava vigiá-la. Um homem ambicioso na escalada cuidadosamente planeada para o posto superior era tolo se não reconhecesse precocemente que era francamente idiota criar inimizade com um funcionário superior. Masterson não fazia tenção de cair nesse género de idiotice. Mas um pouco de colaboração da parte do inspector-chefe nessa campanha de mútua boa-vontade não deixaria de ser bem recebida. E não tinha a certeza de vir a recebê-la.
- vou tratar separadamente as duas mortes, senhor inspector - disse. - A primeira vítima...
- Para quê falar como um repórter criminal, sargento? Vamos certificar-nos de que temos uma vítima antes de utilizar a palavra.
Masterson principiou:
- A primeira falecida... a primeira rapariga a morrer era uma estagiária de enfermagem de vinte e um anos, Heather Pearce.
E prosseguiu o relato das circunstâncias da morte de ambas as raparigas, tanto quanto se conheciam, tendo a precaução de evitar os exemplos mais flagrantes de calão policial, aos quais sabia ser o inspector-chefe morbidamente sensível, e resistindo à tentação de evidenciar os seus recém-adquiridos conhecimentos de alimentação por entubação, acerca da qual tivera o trabalho de extrair da enfermeira Rolfe uma explicação global, dada embora de má vontade. E terminou:
- Temos, portanto, senhor inspector, as possibilidades de uma ou ambas as mortes terem sido suicídio, de uma ou ambas as mortes terem sido acidentais, de a primeira ter sido assassínio mas ter sido morta a vítima errada, ou de ter havido dois assassínios com duas vítimas premeditadas. Uma escolha intrigante, senhor inspector.
- Ou de a morte da Fallon ser devida a causas naturais - disse Dalgliesh. - Enquanto não recebermos o relatório da toxicologia, estamos a estabelecer teorias à frente dos factos. Mas de momento consideremos ambas as mortes como assassínios. Bem, vamos lá até à biblioteca, a ver o que tem para nos dizer o vice-presidente da Comissão de Gestão do hospital.
A biblioteca, facilmente identificada por uma grande tabuleta pintada por cima da porta, era uma agradável sala de tectos altos no primeiro piso, contígua à sala de estar das estagiárias. Uma das paredes era inteiramente ocupada por três janelas salientes com ornatos, mas as outras três continham fileiras de livros até ao tecto, deixando o centro da sala nu. Estava mobilada com quatro mesas dispostas em frente das janelas e dois sofás puídos, um a cada lado da lareira de pedra, onde naquele momento um antigo calorífero a gás sibilava as suas sinistras boas-vindas. Defronte dela, sob as duas calhas de luz fluorescente, um grupo de quatro homens, murmurando conspirativamente entre si, virou-se em uníssono à entrada de Dalgliesh e Masterson, observando-os com prudente curiosidade. Tratava-se de um momento familiar para Dalgliesh, composto como sempre de interesse, apreensão e esperança, aquela primeira confrontação dos protagonistas de um caso de assassínio com o forasteiro, o especialista exterior em morte violenta que se introduzira entre eles, hóspede indesejado, para mostrar os seus detestáveis talentos.
A seguir, o silêncio quebrou-se e as figuras rígidas descontraíram-se. Os dois homens que Dalgliesh já conhecia - Stephen Courtney-Briggs e Paul Hudson, o secretário do hospital adiantaram-se com formais sorrisos de acolhimento. Mr. Courtney-Briggs, que aparentemente se encarregava de toda e qualquer situação abrilhantada pela sua presença, fez as apresentações. O secretário de grupo, Raymond Grout, apertou molemente a mão. Tinha um rosto suavemente lúgubre, agora enrugado de angústia como o de uma criança prestes a chorar. O cabelo assentava em fios de seda prateada sobre uma fronte alta e abobadada. Era provavelmente mais novo do que parecia, pensou Dalgliesh, mas, mesmo assim, devia estar muito perto da idade da reforma.
Ao lado da figura alta e curvada de Grout, Alderman Kealy parecia tão vivo como um terrier. Era um homenzinho ruivo e arruçado, de pernas arqueadas como um cavaleiro de corridas e de fato de xadrez, no qual o horroroso do padrão era realçado pela excelência do corte. Dava-lhe um ar antropomórfico, como um animal numa história em quadradinhos para crianças, e Dalgliesh por pouco não esperou vê-lo agitar uma pata estendida.
- Foi muito amável em vir, senhor inspector, e tão rapidamente - disse.
Aparentemente, o disparatado da observação assaltou-o assim que a fez, pois lançou um olhar penetrante, por sob as eriçadas sobrancelhas ruivas, aos companheiros, como que desafiando-os a sorrir. Ninguém o fez, mas o secretário de grupo ficou com um ar tão humilhado como se o solecismo tivesse sido da sua autoria e Paul Hudson desviou o rosto para ocultar um esgar envergonhado. Era um jovem bem-parecido que, quando Dalgliesh chegara ao hospital da primeira vez, revelara simultaneamente eficiência e autoridade. Agora, porém, a presença do seu vice-presidente e do secretário de grupo parecia ter-lhe inibido a fala e assumia o ar de pedir desculpas de um homem cuja presença fosse apenas tolerada. Mr. Courtney-Briggs disse:
- Creio que seria esperar demasiado querer já novidades, não? Vimos a carrinha da morgue sair e troquei umas palavras com o Miles Honeyman. Nesta altura, claro que não se podia comprometer, mas ficará surpreendido caso se trate de morte natural. A rapariga matou-se. Bem, sempre pensei que isso era evidente para quem quer que fosse.
- Por enquanto, nada é evidente - objectou Dalgliesh. Houve um silêncio. O vice-presidente pareceu achá-lo embaraçoso, pois aclarou ruidosamente a garganta e disse:
- Decerto vai querer um gabinete de trabalho. O pessoal do Departamento de Investigação Criminal da terra trabalhou baseado na esquadra da Polícia. Na verdade, incomodaram-nos pouquíssimo. Mal nos apercebemos da presença deles.
Olhou com ténue optimismo para Dalgliesh, como se não alimentasse grandes esperanças de que a brigada móvel fosse igualmente acomodatícia. Dalgliesh respondeu secamente:
- Vamos querer uma sala. Será possível arranjarem-nos uma na Nightingale House? Seria o mais cómodo.
O pedido pareceu desconcertá-los. O secretário de grupo disse hesitantemente:
- Se a superintendente cá estivesse... É difícil para nós sabermos o que está vago. Ela já não deve tardar.
Alderman Kealey rosnou:
- Não podemos deixar tudo à espera da superintendente. O inspector quer uma sala. Arranjem-lhe uma.
- Bem, há o gabinete de Miss Rolfe no piso térreo, mesmo ao lado da sala de aulas práticas. - O secretário de grupo inclinou os olhos tristes para Dalgliesh. - com certeza já conhece Miss Rolfe, a nossa monitora-chefe. Ora bem, se Miss Rolfe puder mudar-se temporariamente para o gabinete da secretária dela... Miss Buckfield está ausente com gripe, de modo que se encontra vago. É bastante acanhado, na realidade não passa de um cubículo, mas se a superintendente...
- Diga a Miss Rolfe que transfira as coisas de que precise. Os serventes podem fazer a mudança dos ficheiros. - Alderman Kealey virou-se e latiu para Dalgliesh: - Serve assim?
- Se for reservado, razoavelmente à prova de som e tiver fechadura na porta, dispuser de espaço suficiente para comportar três homens e tiver telefone directo à rede, serve. Se além disso for dotado de água corrente, tanto melhor.
O vice-presidente, amansado por aquela tremenda lista de requisitos, disse hesitantemente:
- Há um pequeno lavabo e quarto de banho no piso térreo mesmo defronte do quarto de Miss Rolfe. Pode ser posto à sua disposição.
A infelicidade de Mr. Grout aprofundou-se. Lançou um olhar a Mr. Courtney-Briggs, como que procurando um aliado, mas o cirurgião mantivera-se misteriosamente calado durante os últimos minutos e parecia relutante em cruzar o olhar com o dele. Nessa altura soou o telefone. Mr. Hudson, aparentemente satisfeito pela oportunidade de se tornar activo, correu a atender. Voltou-se para o vice-presidente.
- É do Clarion, senhor. Perguntam por si em pessoa. Alderman Kealey agarrou resolutamente no auscultador.
Tendo resolvido afirmar-se, estava aparentemente pronto para assumir o comando de qualquer situação, e esta encontrava-se bem dentro das suas capacidades. O assassínio podia estar fora das suas preocupações habituais, mas lidar diplomaticamente com a imprensa era qualquer coisa que compreendia.
- Fala Alderman Kealey. O vice-presidente da Comissão de Gestão. Sim, tenho cá a Yard. A vítima? Ah, não me parece que se deva falar de vítima. Pelo menos para já. Fallon. Josephine Fallon. Idade? - Tapou o bocal com a mão e virou-se para o secretário de grupo. Bastante estranhamente, foi Mr. Courtney-Briggs quem respondeu:
- Tinha vinte e um anos e dez meses - disse. - Era precisamente vinte anos mais nova do que eu, nem mais um dia nem menos um dia.
Alderman Kealey, sem se surpreender com a informação gratuita, regressou ao interlocutor.
- Tinha vinte e um anos. Não, ainda não sabemos como morreu. Ninguém sabe. Estamos à espera do relatório da autópsia. Sim, é o inspector-chefe Dalgliesh. Encontra-se aqui de momento, mas está demasiadamente ocupado para falar. Espero emitir esta noite um comunicado à imprensa. Nessa altura já devemos estar de posse do relatório da autópsia. Não, não há motivo para suspeitar de homicídio. O comissário-chefe chamou a Yard como medida de precaução. Não, tanto quanto sabemos, não há qualquer ligação entre as duas mortes. Muito triste. Sim, imenso. Se quiser telefonar por volta das seis, pode ser que eu já tenha mais informações. Tudo o que sabemos até agora é que a estagiária Fallon foi encontrada morta na cama esta manhã pouco depois das sete horas. Pode muito bem ter sido um ataque cardíaco. Estava ainda em convalescença de uma gripe. Não, não havia qualquer mensagem. Nada que se parecesse.
Escutou por momentos e a seguir voltou a tapar o bocal com a mão e a virar-se para Grout.
- Perguntam por familiares. Que sabemos nós sobre eles?
- Não tinha nenhuns. A Fallon era órfã.
Foi novamente Mr. Courtney-Briggs quem respondeu.
Alderman Kealey transmitiu a informação e poisou o auscultador no descanso. Sorrindo torvamente, endereçou a Dalgliesh um olhar misto de presunção e alerta. Dalgliesh ficara interessado ao ouvir que a Yard tinha sido chamada como medida de precaução. Tratava-se de uma concepção nova das responsabilidades da brigada móvel, que ele considerava pouco susceptível de iludir os fulanos da imprensa da terra, e menos ainda os repórteres de Londres, que não tardariam a vir farejar. Perguntou a si próprio como iria o hospital haver-se com a publicidade. Alderman Kealey ia precisar de conselho, se é que se pretendia que a investigação não fosse prejudicada. Mas havia tempo de sobra para isso. De momento, tudo o que desejava era ver-se livre deles, iniciar a investigação. Aqueles preliminares sociais eram sempre um moroso incómodo. E não tardava que houvesse uma superintendente a apaziguar, a consultar, possivelmente mesmo a defrontar. A julgar pela relutância do secretário de grupo em dar um passo sem o seu consentimento, dir-se-ia que se tratava de uma mulher de personalidade forte. Não lhe agradava a perspectiva de a esclarecer, diplomaticamente, de que naquela investigação não haveria lugar para mais do que uma personalidade forte.
Mr. Courtney-Briggs, que tinha estado em pé junto da janela, observando o jardim maltratado pela borrasca, fez meia volta, sacudiu-se para espantar as preocupações e disse:
- Receio bem não’poder perder mais tempo. Tenho um doente para ver na ala particular e a seguir uma ronda pelas enfermarias. Devia fazer uma palestra às alunas lá para o fim da manhã, mas agora terei de a cancelar. Se houver alguma coisa que eu possa fazer, Kealey, informe-me.
Ignorou Dalgliesh. A impressão transmitida, e sem dúvida pretendida, era a de ser um homem atarefado que já desperdiçara demasiado tempo com uma banalidade. Dalgliesh resistiu à tentação de o retardar. Por mais agradável que fosse domar a arrogância de Mr. Courtney-Briggs, tratava-se de um prazer que presentemente não podia permitir-se. Havia questões mais prementes.
Foi nessa altura que ouviram o som de um automóvel. Mr. Courtney-Briggs voltou à janela e espreitou, mas nada disse. O resto do pequeno grupo assumiu uma atitude rígida e virou-se, como que puxado por uma força comum, para a porta. Uma porta de automóvel bateu. A seguir houve um silêncio que durou uns segundos, ao qual se sucedeu o som cadenciado de pés apressados num pavimento de mosaicos. A porta abriu-se e entrou a superintendente.
A primeira impressão de Dalgliesh foi a de uma elegância altamente individual mas não obstante descontraída e de uma confiança que era quase palpável. Viu uma mulher alta e esguia, sem chapéu, de pele clara cor de mel doirado e cabelo quase da mesma cor, puxado para trás de uma testa alta e colhido num intrincado rolo na nuca. Vestia um casaco de tecido escocês cinzento com um lenço verde-vivo atado ao pescoço e trazia uma carteira preta e uma pequena pasta de viagem. Entrou calmamente na sala e, poisando a pasta na mesa, descalçou as luvas e examinou silenciosamente o pequeno grupo. Quase instintivamente, como que observando uma testemunha, Dalgliesh reparou nas suas mãos. Os dedos eram muito brancos, compridos e afilados, mas de nós invulgarmente ossudos. As unhas estavam cortadas curtas. No terceiro dedo da mão direita um enorme anel com uma safira num engaste ornamentado cintilava em contraste com o nó do dedo. Dalgliesh perguntou irrelevantemente a si próprio se ela o tiraria quando estava em serviço e, se o fazia, como conseguiria fazê-lo deslizar sobre as nodosas articulações.
Mr. Courtney-Briggs, depois de um breve ”bom dia, superintendente”, encaminhou-se para a porta e ali ficou de pé como um hóspede aborrecido, demonstrando a sua ânsia por proceder a uma rápida retirada. Os outros, porém, apinharam-se em torno dela. Houve uma imediata sensação de alívio. Fizeram-se apresentações sussurradas.
- Bom dia, senhor inspector. - A voz dela era profunda, um pouco velada, uma voz tão individual como ela própria. Parecia mal dar por ele, e no entanto ele apercebeu-se de uma fugaz apreciação por parte dos verdes olhos exoftálmicos. O seu aperto de mão foi vigoroso e fresco, mas tão momentâneo que se assemelhou a um fugaz encontro das palmas das mãos, nada mais.
O vice-presidente disse:
- A Polícia vai querer uma sala. Pensámos que talvez pudesse ser o gabinete da Miss Rolfe.
- Demasiado pequeno, acho eu, e insuficientemente recatado, tão perto do átrio principal. Seria melhor Mr. Dalgliesh utilizar a sala de estar das visitas do primeiro andar e a casa de banho que fica logo a seguir a ela. A sala tem chave. Há uma secretária com gavetas que podem fechar-se na secretaria geral e pode ser mudada lá para cima. Assim a Polícia terá alguma privacidade e haverá um mínimo de interferência no funcionamento da escola.
Houve um murmúrio de assentimento. Os homens pareceram aliviados.
- Vai precisar de quarto? - perguntou a superintendente a Dalgliesh. - Quer dormir no hospital?
- Não será necessário. Ficamos na vila. No entanto, preferiria trabalhar daqui. Provavelmente estaremos cá até tarde todas as noites, de modo que seria útil podermos dispor de chaves.
- Durante quanto tempo? - perguntou subitamente o vice-presidente. À primeira vista, tratava-se de uma pergunta estúpida, mas Dalgliesh reparou que todos os rostos se voltaram para ele como se esperassem que ele pudesse dar uma resposta cabal. Sabia que tinha fama de ser rápido. Sabê-lo-iam eles também?
- Mais ou menos uma semana - respondeu. Mesmo que o caso se arrastasse por mais tempo, dentro de sete dias saberia tudo o que precisava sobre a Nightingale House e os seus ocupantes. Se a estagiária Fallon tinha sido assassinada - e pensava que o fora -, o círculo de suspeitos seria reduzido. Se o caso não se solucionasse dentro de uma semana, poderia nunca ter solução. Pensou ter havido um pequeno suspiro de alívio.
- Onde está ela? - perguntou a superintendente.
- Levaram o corpo para a morgue, superintendente.
- Não me referia à Fallon. Onde está a estagiária Dakers? Constou-me que foi ela quem encontrou o corpo.
Alderman Kealey respondeu:
- Está a ser assistida na enfermaria particular. Estava bastante abalada, de modo que pedimos ao doutor Snelling para lhe dar uma vista de olhos. Ele deu-lhe um sedativo e a enfermeira-chefe Brumfett está a tomar conta dela.
E acrescentou:
- A enfermeira-chefe Brumfett estava um bocado preocupada com ela. Ainda por cima tem uma data de pessoal doente. Se não fosse isso, teria ido esperá-la ao aeroporto. Todos nós ficámos aborrecidos por a senhora vir sem ninguém ir esperá-la, mas pareceu-nos que o melhor era telefonar deixando-lhe o recado de ligar para nós assim que aterrasse. A enfermeira-chefe foi de opinião de que o choque seria menor se recebesse a notícia dessa maneira. Por outro lado parecia mal não ter lá ninguém. Eu queria mandar o Grout, mas...
A voz roufenha interrompeu-o com uma calma admoestação.
- Sempre esperei que poupar-me o choque fosse a última das vossas preocupações,
Voltou-se para Dalgliesh:
- Daqui a cerca de três quartos de hora estarei na minha sala de estar aqui no terceiro piso. Se lhe convier, gostaria de ter uma conversa consigo nessa altura.
Dalgliesh, resistindo ao impulso de responder com um dócil ”sim, superintendente”, disse que lhe convinha. Miss Taylor voltou-se para Alderman Kealey.
- vou falar já com a estagiária Dakers. A seguir, o inspector há-de querer entrevistar-me e depois estarei no meu gabinete principal no hospital, se o senhor ou Mr. Grout precisarem de mim. Evidentemente que estarei à disposição todo o dia.
Sem mais uma palavra ou olhar, recolheu a pasta de viagem e a carteira e saiu da sala. Mr. Courtney-Briggs abriu cerimoniosamente a porta para ela passar e preparou-se depois para a seguir.
De pé no limiar da porta aberta, disse com jovial beligerância:
- Bom, agora que a superintendente está de volta e a importante questão do alojamento para a Polícia está resolvida, talvez possa permitir-se que o trabalho do hospital continue. Se eu fosse a si, Dalgliesh, não chegaria atrasado à entrevista. Miss Taylor não está habituada à insubordinação.
Fechou a porta atrás de si. Alderman Kealey pareceu momentaneamente perplexo, após o que disse:
- Está irritado, evidentemente. Bem, é natural. Não correram certos rumores...
Nessa altura, o seu olhar iluminou-se perante Dalgliesh.
Interrompeu-se de súbito e voltou-se para Paul Hudson:
- Bem, Mr. Hudson, ouviu o que a superintendente disse. A Polícia utilizará a sala de estar das visitas neste piso. Trate disso,
meu caro. Trate disso!
Miss Taylor fardou-se antes de se deslocar à enfermaria particular. Na altura pareceu-lhe uma atitude instintiva, mas, ao apertar firmemente a capa ao corpo enquanto atravessava a passo vivo o pequeno carreiro que conduzia da Nightingale House ao hospital, apercebeu-se de que o instinto fora instigado pela razão. Era importante para o hospital o facto de a superintendente estar de volta, e importante verificar-se que estava de volta.
O caminho mais rápido para a enfermaria particular era através do átrio dos doentes externos. O serviço estava já fremente de actividade. Os círculos de confortáveis poltronas, cuidadamente dispostas para dar uma ilusão de sem-cerimónia e descontraída comodidade, enchiam-se rapidamente. Voluntárias da Comissão Feminina da Liga dos Amigos presidiam já ao samovar fumegante, servindo chá aos doentes habituais, que preferiam esperar uma hora antes da consulta pelo prazer de estarem sentados no quente, a ler as revistas e a conversar com os seus parceiros regulares. A superintendente apercebeu-se de cabeças a voltarem-se à sua passagem para a observar. Houve um breve silêncio, seguido do costumado murmúrio de cumprimento deferente. Tomou consciência do pessoal médico estagiário vestido de branco a afastar-se momentaneamente para o lado quando passava, das estagiárias de enfermagem a encostarem-se à parede.
A enfermaria particular ficava no segundo piso daquilo a que se chamava ainda o edifício novo, conquanto houvesse sido terminado em 1945. Miss Taylor subiu de elevador, compartilhando-o com dois radiologistas e um jovem servente, que murmuraram o seu cerimonioso ”bom dia, superintendente” e permaneceram imóveis num silêncio pouco natural até o elevador parar, após o que recuaram enquanto ela passava adiante deles.
A enfermaria particular consistia numa sucessão de vinte quartos particulares, de um e outro lado de um corredor central. O gabinete da chefe de enfermaria, a cozinha e a sala de uso geral ficavam mesmo à entrada da porta. Mal Miss Taylor entrou, uma jovem estagiária do primeiro ano surgiu da cozinha. Corou ao ver a superintendente e murmurou qualquer coisa acerca de ir chamar a enfermeira-chefe.
- Onde está a enfermeira-chefe, estagiária?
- No quarto 7 com Mr. Courtney-Briggs, superintendente. O doente dele não está lá muito bem.
- Não os incomode; diga apenas à enfermeira-chefe, quando ela aparecer, que vim falar com a estagiária Dakers. Onde está ela?
- No quarto 3, superintendente - hesitou.
- Não há novidade, estagiária, eu mesma procuro. Continue o que estava a fazer.
O quarto 3 ficava no extremo mais afastado do corredor, sendo um de seis quartos particulares, normalmente reservados para estagiárias doentes. Só quando todos esses quartos estavam ocupados é que o pessoal do hospital ficava internado nos quartos laterais das enfermarias. Não se tratava, notou Miss Taylor, do quarto em que Josephine Fallon tinha ficado instalada. O quarto 3 era o mais ensolarado e agradável dos seis quartos reservados para estagiárias. Uma semana antes tinha sido ocupado por uma estagiária com pneumonia, resultante de complicações originadas por uma gripe. Miss Taylor, que visitava uma vez por dia todas as enfermarias do hospital e que recebia relatórios diários sobre o estado de todas as estagiárias doentes, achou pouco natural que a estagiária Wilkins já estivesse suficientemente boa para ter alta. A enfermeira Brumfett devia tê-la transferido a fim de deixar o quarto 3 livre para a estagiária Dakers. Miss Taylor não tinha dificuldade em imaginar a razão. A única janela proporcionava uma perspectiva dos relvados e dos canteiros lisamente gadanhados da frontaria do hospital; daquele lado da enfermaria era impossível divisar a Nightingale House, mesmo por entre as ramagens despidas de Inverno. A boa e querida Brumfett, tão pouco simpaticamente rígida nas suas opiniões, mas tão imaginativa quando se tratava do bem-estar e conforto dos seus doentes! A Brumfett, que falava embaraçadamente de dever, obediência e lealdade, mas que sabia exactamente o que queria dizer com esses impopulares termos e vivia de acordo com o que sabia. Era uma das melhores chefes de enfermaria que o John Carpendar tinha, ou alguma vez teria. Mas Miss Taylor sentia-se satisfeita com o facto de a dedicação ao serviço ter impedido a enfermeira Brumfett de ir esperar o avião a Heathrow. Já era suficientemente mau regressar deparando com aquela segunda tragédia, sem ter de suportar o fardo adicional da dedicação e preocupação caninas da Brumfett.
Puxou o banco de sob a cama e sentou-se ao lado da rapariga. Apesar do sedativo do doutor Snelling, a estagiária Dakers não dormia. Estava muito quieta na cama, de barriga para cima, fitando o tecto. Nessa altura desviou os olhos a fim de encarar a superintendente. Estavam inexpressivos de sofrimento. No armário ao lado da cama estava um exemplar de um livro de estudo, Farmacologia para Enfermeiras. A superintendente pegou nele.
- É muito consciencioso da sua parte, estagiária, mas, ao menos durante o pouco tempo que aqui está, que tal um romance da biblioteca itinerante da Cruz Vermelha ou uma revista mundana? Quer que lhe traga uma?
A resposta que obteve foi um mar de lágrimas. A figura esguia contorceu-se convulsivamente na cama, enterrou a cabeça na almofada e enclavinhou nela as mãos trémulas. O leito estremeceu sob aquele paroxismo de desgosto. A superintendente levantou-se, deslocou-se até à porta e correu a portinhola que tapava o postigo de observação das enfermeiras. Voltou rapidamente para o assento e aguardou sem falar, não fazendo qualquer movimento a não ser poisar a mão na cabeça da rapariga. Passados minutos, os terríveis estremecimentos cessaram e a estagiária Dakers sossegou. Começou a murmurar, com a voz entrecortada de soluços, meio abafada pela almofada:
- Sinto-me tão infeliz, tão envergonhada!
A superintendente curvou a cabeça para captar as palavras. Sentiu-se percorrida por um arrepio de horror. Não era possível que estivesse a ouvir uma confissão de assassínio, com certeza! Deu por si a rezar baixinho:
- Não, por favor, meu Deus. Esta criança, não! Não há-de ter sido certamente esta criança!
Aguardou, não ousando perguntar nada. A estagiária Dakers voltou-se e ergueu os olhos para ela, avermelhados e inchados como duas luas amorfas num rosto coberto de manchas e informe de tristeza.
- Sou perversa, superintendente, perversa. Fiquei satisfeita quando ela morreu.
- A estagiária Fallon ?
- Oh, não, a Fallon não! Da Fallon tive pena. A estagiária Pearce.
A superintendente colocou ambas as mãos nas espáduas da rapariga, obrigando-a a recostar-se na cama. Prendeu firmemente o corpo trémulo e olhou-a nos olhos rasos de água.
- Quero que me diga a verdade, estagiária. Matou a estagiária Pearce?
- Não, superintendente.
- Nem a estagiária Fallon?
- Não, superintendente.
Miss Taylor deixou o ar sair dos pulmões. Abrandou a pressão com que segurava a rapariga e endireitou-se no assento.
- Acho que o melhor é contar-me tudo.
E assim, agora calmamente, a história patética brotou. Na altura não tinha parecido roubar. Parecera um milagre. A mãezinha precisava imenso de um casaco quente de Inverno e a estagiária Dakers tinha estado a pôr de parte trinta xelins do seu ordenado todos os meses. Só que o dinheiro tinha levado imenso tempo a juntar e o tempo já estava a ficar frio; e a mãezinha, que nunca se queixava, e nunca lhe pedia fosse o que fosse, tinha de esperar quase um quarto de hora pelo autocarro certas manhãs e constipava-se com muita facilidade. E, se realmente apanhasse uma constipação, não podia faltar ao emprego, porque Miss Arkwright, a chefe de secção do armazém, só estava à espera de uma oportunidade para a despedir. Realmente, trabalhar numa loja não era o emprego adequado para a mãezinha, mas não era fácil arranjar emprego quando se tinha mais de cinquenta anos e não se possuíam habilitações especiais, e as jovens ajudantes da secção não eram lá muito simpáticas. Passavam a vida a dar a entender que a mãezinha não dava o que podia, o que não era verdade. A mãezinha podia não ser tão rápida como elas, mas realmente afadigava-se com os clientes.
Nessa altura, a estagiária Harper tinha deixado cair duas notas novinhas de cinco libras praticamente aos seus pés. A estagiária Harper, que tinha tanto dinheiro para gastos seus dado pelo pai que podia perder dez libras sem se ralar grandemente. Tinha sucedido havia cerca de quatro semanas. A estagiária Harper vinha com a estagiária Pearce do Lar das Enfermeiras para o refeitório do hospital a fim de irem tomar o pequeno-almoço, e a estagiária Dakers seguia uns passos atrás. As duas notas tinham caído do bolso da capa da estagiária Harper e ali tinham ficado a esvoaçar levemente. O seu primeiro instinto fora chamar as outras duas alunas, mas havia qualquer coisa que a detivera ao ver o dinheiro. As notas eram tão inesperadas, tão inacreditáveis, tão bonitas na sua rigidez primitiva! Não se imobilizara a olhar para elas por mais de um segundo, quando se apercebeu de que aquilo que olhava era na realidade o casaco novo da mãezinha. E, nessa altura, as outras duas alunas já estavam praticamente fora de vista, as notas encontravam-se dobradas na sua mão e era tarde demais.
- Como soube a estagiária Pearce que tinha as notas? - perguntou a superintendente.
- Disse que me tinha visto. Calhou deitar uma olhadela em redor quando eu estava a curvar-me para apanhar as notas. Na altura não significou nada para ela, mas, quando a estagiária Harper disse a toda a gente que tinha perdido o dinheiro e que as notas lhe deviam ter caído do bolso da capa quando ia para o pequeno-almoço, a estagiária Pearce imaginou o que tinha sucedido. Ela e as gémeas foram com a estagiária Harper procurar pelo caminho, a ver se conseguiam encontrar o dinheiro. Suponho que foi nessa altura que ela se lembrou de me ter visto a baixar-me.
- Quando foi que ela lhe falou disso pela primeira vez?
- Uma semana depois, superintendente, quinze dias antes de o nosso grupo ter vindo para a escola. Creio que antes disso não conseguiu acreditar. Deve ter andado a tentar resolver-se a falar comigo.
Portanto, a estagiária Pearce tinha esperado. A superintendente perguntava a si própria porquê. Não podia ter levado uma semana inteira a esclarecer as suspeitas. Devia ter-se recordado de ver a Dakers a baixar-se para apanhar as notas assim que ouvira dizer que elas tinham desaparecido. Sendo assim, por que razão não se dirigira logo à rapariga? Seria porventura mais gratificante para a sua retorcida personalidade esperar até o dinheiro estar gasto e a ré se encontrar seguramente à sua mercê?
- Ela andava a fazer chantagem consigo? - perguntou.
- Oh, não, superintendente! - protestou, escandalizada, a rapariga. - Limitou-se a recuperar cinco xelins por semana, e isso não foi chantagem. Mandava o dinheiro todas as semanas para uma obra destinada a ex-presidiários. Mostrou-me os recibos.
- E por acaso explicou por que motivo não o restituía à estagiária Harper?
- Pensava que seria difícil explicá-lo sem me envolver e eu implorei-lhe que não o fizesse. Seria o fim de tudo, superintendente. Quando acabar o curso, quero fazer um estágio para enfermeira-visitadora, para poder cuidar da mãezinha. Se conseguisse arranjar um sítio na província, poderíamos arranjar uma casa de campo a meias e talvez mesmo um automóvel. A mãezinha já poderia deixar a loja. Contei isso à estagiária Pearce. Além disso, observou que a Harper era tão descuidada com dinheiro que não lhe faria mal nenhum uma ensinadela. Enviou os pagamentos para a obra de ex-presidiários porque lhe parecia vir a propósito. No fim de contas, se ela não me tivesse protegido, eu poderia ter ido parar à prisão.
A superintendente retorquiu com secura:
- Isso é evidentemente um disparate, e a menina tinha obrigação de saber que era um disparate. Ao que parece, a estagiária Pearce era uma jovem muito estúpida e arrogante. Tem a certeza de que ela não lhe fez mais nenhuma exigência? Há mais do que uma forma de chantagem.
- Mas ela não faria tal coisa, superintendente! - A estagiária Dakers esforçou-se para erguer a cabeça da almofada. - A Pearce era... bem, era boa.
Pareceu achar a frase inadequada e franziu as sobrancelhas como se estivesse desesperadamente ansiosa por explicar.
- Costumava falar bastante comigo e deu-me um cartão com uma citação da Bíblia, que eu tinha de ler todos os dias. Uma vez por semana interrogava-me sobre ela.
A superintendente foi percorrida por uma sensação tão aguda de ofensa moral que se viu obrigada a buscar alívio na acção. Levantou-se do banco e avançou até à janela, refrescando a face afogueada de encontro à vidraça. Sentia o coração aos saltos e notou com interesse quase clínico que as mãos lhe tremiam. Passado um momento regressou novamente para junto do leito.
- Não diga que ela era boa. Obediente, conscienciosa e bem-intencionada, se quiser, mas boa, não. Se alguma vez encontrar a verdadeira bondade, há-de ver a diferença. E, se eu fosse a si, não me ralava com o facto de ter ficado satisfeita com a morte dela. Dadas as circunstâncias, não seria uma pessoa normal se sentisse outra coisa. com o tempo, pode ser que venha a lamentá-la e a perdoar-lhe.
- Mas, superintendente, quem tem de ser perdoada sou eu. Sou uma ladra.
Haveria um indício de masoquismo no tom lamuriento da voz, do perverso rebaixamento da vítima nata? Miss Taylor redarguiu vivamente:
- A menina não é nenhuma ladra. Roubou uma vez, o que é muito diferente. Todos nós temos na vida um incidente qualquer de que nos envergonhamos ou arrependemos. A menina descobriu recentemente uma coisa acerca da sua própria pessoa, do que é capaz de fazer, que lhe abalou a confiança. Agora terá de viver com essa descoberta. Só podemos começar a compreender e a perdoar os outros depois de termos aprendido a compreender-nos e a perdoar-nos. A menina não vai voltar a roubar. Eu sei que não voltará, e a menina também. Mas fê-lo uma vez. É capaz de roubar. Essa certeza impedi-la-á de se sentir demasiado satisfeita consigo própria, de ser excessivamente autocomplacente. Pode torná-la uma pessoa muito mais tolerante e compreensiva e uma melhor enfermeira. Mas não se continuar a entregar-se a sentimentos de culpa, ao remorso e à amargura. Essas emoções insidiosas podem ser muito agradáveis, mas não a vão auxiliar, nem a si, nem a ninguém.
A rapariga ergueu o olhar para ela.
- Será preciso a Polícia saber?
Era essa, evidentemente, a questão. E só poderia haver uma resposta.
- Sim. E vai ser a menina quem terá de lhes contar tudo, tal como me contou a mim. Mas primeiro darei eu uma palavrinha ao inspector. É um novo investigador, desta vez da Scotland Yard, e penso que se trata de um homem inteligente e compreensivo.
Tratar-se-ia realmente? Como podia saber? Aquele primeiro encontro fora brevíssimo, não tendo passado de um olhar e de um contacto de mãos. Estaria ela pura e simplesmente a consolar-se com a impressão fugaz de que tinha diante de si um homem dotado de autoridade e imaginação, que podia ser capaz de solucionar o mistério de ambas as mortes com um mínimo de dano, tanto para os inocentes como para o culpado? Sentira-o instintivamente. Mas seria a sensação racional? Acreditara na história da estagiária Dakers; a verdade, porém, é que estava predisposta para acreditar. Como soaria ela a um funcionário da Polícia confrontado com uma multiplicidade de suspeitos mas nenhum outro motivo discernível? E não havia dúvida de que o motivo lá estava. Era todo o futuro da estagiária Dakers, bem como o da mãe. E a Dakers tinha-se comportado de uma maneira bem estranha. É certo que fora uma das alunas mais abaladas com a morte da Pearce, mas tinha-se recomposto com uma rapidez notável. Mesmo submetida a apertado interrogatório por parte da Polícia, guardara o seu segredo. Que fora, então, que precipitara aquela desintegração na confissão e no remorso? Seria apenas o choque ao descobrir o corpo da Fallon? E por que razão havia a morte da Fallon de ser de tal modo cataclísmica, se ela nada tivera a ver com isso?
Miss Taylor voltou a pensar na Pearce. Como as pessoas sabiam pouco acerca de qualquer das alunas! A Pearce, se uma pessoa se pusesse sequer a pensar nela, era o protótipo da aluna apagada, conscienciosa e desengraçada, que estava provavelmente a utilizar a enfermagem como compensação para a falta de satisfações mais ortodoxas. Normalmente havia uma aluna assim em todas as escolas de enfermagem. Era difícil recusá-las quando concorriam, visto que forneciam habilitações literárias mais do que suficientes e referências impecáveis. E, regra geral, não davam más enfermeiras. Apenas raramente vinham a ser as melhores. Mas agora começava a interrogar-se. Se a Pearce possuía uma tal ânsia secreta de poder que era capaz de utilizar o sentimento de culpa e a desorientação daquela criança como alimento para o seu próprio eu, afinal estava longe de ter sido vulgar ou incapaz. Fora uma jovem perigosa.
E tinha engendrado tudo aquilo com grande esperteza. Deixando passar uma semana para poder ficar razoavelmente segura de que o dinheiro fora gasto, não deixara à Dakers por onde escolher. A criança dificilmente poderia argumentar que cedera a um súbito impulso mas tencionava devolver o dinheiro. E, mesmo que a Dakers tivesse resolvido confessar, porventura à superintendente, a estagiária Harper teria de ser informada: a Pearce ter-se-ia encarregado disso. E só a Harper podia decidir se levaria ou não a acusação por diante. Teria sido porventura possível influenciá-la, persuadi-la a compadecer-se. Mas supondo que não fora possível? A estagiária Harper teria quase seguramente contado ao pai, e a superintendente não conseguia imaginar Mr. Ronald Harper a mostrar compaixão para com alguém que se tivesse apoderado do seu dinheiro. O contacto que Miss Taylor tivera com ele fora breve mas revelador. Aparecera no hospital dois dias a seguir à morte da Pearce: era um homem encorpado, de ar opulento e agressivo, desproporcionado dentro do casacão de automobilista. Sem preliminares ou explicação, tinha-se lançado na tirada previamente ensaiada, tratando a superintendente como se fosse um dos seus garagistas. Não ia permitir que a filha passasse mais um minuto sequer numa casa onde havia um assassino à solta, estivesse lá a Polícia ou não. Antes do mais, aquela ideia do curso de enfermagem tinha sido uma perfeita tolice, e agora ia terminar. Aliás, a sua Diane não precisava de exercer nenhuma profissão. Estava noiva, não era verdade? E ainda por cima de um riquíssimo partido! O filho do seu sócio. Podiam antecipar o casamento em lugar de esperar até ao Verão e, entretanto, a Diane podia ficar em casa e dar-lhe uma ajuda no escritório. Ia levá-la com ele imediatamente, e gostava de ver alguém a tentar impedi-lo de o fazer.
Ninguém o impedira. A rapariga não pusera objecções. Tinha permanecido de pé, imóvel, no gabinete da superintendente, notoriamente grave, mas sorrindo levemente como que satisfeita com todo aquele espalhafato, com a peremptória masculinidade do pai. A Polícia não podia impedi-la de partir, nem pareceu preocupada em tentar. Era estranho, pensou a superintendente, ninguém ter suspeitado seriamente da Harper; e, se as duas mortes eram obra da mesma pessoa, a sua intuição revelara-se acertada. Vira a rapariga pela última vez entrando no enorme e feio automóvel do pai, de pernas esguias sob o novo casaco de peles que ele lhe tinha comprado para a compensar do desapontamento de lhe cortar o curso a meio e virando-se para um aceno de despedida ao resto do grupo, como uma estrela de cinema condescendente perante uma legião de admiradores. Não, não se tratava de uma família particularmente atraente. Miss Taylor teria pena de quem quer que lhes caísse nas garras. E, no entanto, tais eram os caprichos da personalidade. Diane Harper fora uma enfermeira eficiente, sob diversos aspectos uma enfermeira melhor do que a Pearce.
Mas havia mais uma pergunta a fazer, e precisou de um segundo para reunir a coragem necessária à sua formulação.
- A estagiária Fallon tinha conhecimento desse assunto?
A rapariga respondeu imediatamente, confiante, levemente surpreendida:
- Oh, não, superintendente! Pelo menos não me parece que tivesse. A Pearce jurou que não diria nada a ninguém, e não era propriamente uma amiga particular da Fallon. Tenho a certeza de que ela não iria contar à Fallon.
- Pois não - disse a superintendente -, acho que não contaria. Meigamente, levantou a cabeça da estagiária Dakers e alisou as almofadas.
- Agora quero que tente dormir um pouco. Sentir-se-á muito melhor quando acordar. E tente não se preocupar.
O rosto da rapariga descontraiu-se. Ergueu a cabeça, sorrindo para a superintendente e, estendendo a mão, tocou de leve o rosto de Miss Taylor. A seguir aninhou-se entre os lençóis como se estivesse decidida a dormir. Portanto, estava tudo bem. Mas com certeza que estava. Resultava sempre. Como era fácil e insidiosamente agradável aquela distribuição de conselho e conforto, em que cada porção era aromatizada individualmente ao gosto de cada um! Dir-se-ia a esposa de um vigário vitoriano presidindo a uma sopa dos pobres. A cada um consoante as suas necessidades. Acontecia todos os dias no hospital. A voz animadamente profissional de uma enfermeira do serviço das enfermarias: ”Está aqui a superintendente para a ver, Mrs. Cox. Quer-me parecer que Mrs. Cox não está a sentir-se lá muito bem esta manhã, superintendente.” Um fatigado rosto torturado pela dor sorrindo valorosamente da almofada, boca ávida da sua ração de afecto e tranquilização. As enfermeiras-chefes a levarem-lhe os seus problemas, os eternos problemas insolúveis referentes ao trabalho e a personalidades incompatíveis.
”Já se sente mais descansada acerca disso, enfermeira?”
”Sinto, obrigada, superintendente, muito mais descansada.”
O secretário de grupo, enfrentando desesperadamente as suas próprias limitações:
”Sentir-me-ia melhor se pudéssemos trocar uma palavrinha sobre a questão, superintendente.”
Claro que se sentiria melhor! Todos eles queriam trocar uma palavrinha sobre o problema. E todos eles saíam muito mais descansados. Ouvi as palavras de conforto que a nossa superintendente profere. Toda a sua vida de trabalho parecia uma blasfema liturgia de tranquilização e absolvição. E quão mais fácil, quer de dar, quer de receber, era aquele doce bálsamo de bondade humana, do que o ácido da verdade! Ela bem imaginava a vazia incompreensão, o ressentimento com que acolheriam o seu credo íntimo:
”Não tenho nada para dar. Não há qualquer auxílio. Estamos inteiramente sozinhos, todos nós, desde o momento em que nascemos até à hora da morte. O nosso passado é o nosso presente e o nosso futuro. Temos de viver conosco próprios até não haver mais tempo disponível. Se queres a salvação, olha para ti próprio. Não há mais nenhum sítio para onde olhar.”
Deixou-se ficar sentada por alguns minutos mais e depois abandonou calmamente o quarto. A estagiária Dakers fez um breve sorriso de despedida. Ao entrar no corredor viu a enfermeira Brumfett e Mr. Courtney-Briggs a saírem do quarto do doente deste. A enfermeira Brumfett adiantou-se pressurosamente.
- Desculpe, superintendente, não sabia que estava aqui na enfermaria.
Usava sempre o título formal. Podiam passar todo o tempo livre juntas passeando de automóvel ou jogando uma partida de golfe; podiam ir ver um espectáculo a Londres uma vez por mês com a aconchegada e enfadonha regularidade de um velho casal; podiam beber o seu chá da manhã e o leite quente da noite juntas num indissolúvel tédio. Apesar disso, no hospital, a Brumfett tratava-a sempre por superintendente. Os olhos astutos buscaram os seus.
-Já falou com o novo investigador, o homem da Yard?
- Apenas de fugida. Está previsto ter uma sessão com ele assim que regresse lá.
Mr. Courtney-Briggs disse:
- Por acaso conheço-o; não bem, mas já nos encontrámos. Há-de achá-lo compreensivo e inteligente. Claro que tem bastante fama. Dizem que trabalha muito rapidamente. Pela parte que me toca, é uma vantagem considerável. O hospital não suporta mais que um certo grau de desorganização. Suponho que ele há-de querer falar comigo, mas terá de esperar. Diga-lhe que dou um salto à Nightingale House assim que terminar a ronda das enfermarias, se faz favor, superintendente.
- Se ele perguntar, digo-lho - retorquiu calmamente Miss Taylor. Voltou-se para a enfermeira Brumfett.
- A estagiária Dakers já está mais calma, mas achava melhor ela não ser incomodada com visitas. Provavelmente conseguirá dormir qualquer coisa. vou mandar umas revistas e flores frescas para ela. Quando é que ficou o doutor Snelling de a ver?
- Disse que viria cá antes do almoço, superintendente.
- Talvez possa perguntar-lhe se ele não se importa de ter uma conversa comigo. vou estar todo o dia no hospital.
- Suponho que o investigador da Scotland Yard também há-de querer falar comigo - disse a enfermeira Brumfett. - Espero que isso não leve muito tempo. Tenho uma data de pessoal doente.
A superintendente fez votos para que a Brum não se mostrasse demasiado difícil. Seria lamentável que ela pensasse poder tratar um inspector-chefe da Polícia metropolitana como se fosse um interno recalcitrante. Mr. Courtney-Briggs, evidentemente, seria tão arrogante como nele era habitual, mas ela tinha um pressentimento de que o inspector Dalgliesh seria capaz de chegar para Mr. Courtney-Briggs.
Seguiram juntas até à porta da enfermaria. O espírito de Miss Taylor estava já ocupado por novos problemas. Tinha de se fazer qualquer coisa relativamente à mãe da estagiária Dakers. Ainda faltavam vários anos para a rapariga poder ser enfermeira-visitadora. Até lá, urgia libertá-la da constante ansiedade com a mãe. Talvez fosse útil ter uma conversa com Raymond Grout. Podia haver qualquer lugar administrativo no hospital que servisse para ela. Mas seria justo? Uma pessoa não podia satisfazer a sua ânsia de ajudar à custa de outrem. Por muitos problemas de recrutamento de pessoal que o serviço hospitalar pudesse ter em Londres, Grout não tinha dificuldade em preencher os lugares administrativos. Assistia-lhe o direito de esperar eficiência; e as Mrs. Dakers deste mundo, tão perseguidas pelas suas próprias insuficiências como pela pouca sorte, raramente podiam proporcioná-la. Imaginava que teria de telefonar à mulher e igualmente aos pais das outras alunas. O importante era tirar as raparigas da Nightingale House. O programa do curso não podia ser desmembrado; já assim era suficientemente apertado. O melhor que tinha a fazer era combinar com o ecónomo para elas passarem a dormir no Lar das Enfermeiras - decerto haveria espaço bastante, com tantas enfermeiras internadas por doença - e poderiam deslocar-se ali todos os dias para utilizarem a biblioteca e a sala de aulas. E depois seria preciso consultar o vice-presidente da Comissão de Gestão do hospital, enfrentar a imprensa, acompanhar a investigação e combinar os pormenores do funeral. Haveria pessoas querendo contactá-la a toda a hora. Mas primeiro e acima de tudo, tinha de se avistar com o inspector Dalgliesh.
Perguntas e respostas
A superintendente e as enfermeiras-chefes tinham os alojamentos no terceiro piso da Nightingale House. Quando atingiu o cimo das escadas, Dalgliesh viu que a ala sudoeste tinha sido separada do resto do patamar por uma divisória especialmente construída de madeira pintada de branco na qual uma porta, de proporções insignificantes e imaterial, em contraste com o tecto alto e as paredes forradas de madeira de carvalho, apresentava a legenda ”Apartamento da Superintendente”. Havia um botão de campainha, mas, antes de premi-lo, explorou rapidamente o corredor. Era semelhante ao do andar de baixo, mas tinha uma passadeira vermelha que, embora desbotada e coçada, dava uma ilusão de conforto à nudez daquele piso superior.
Dalgliesh passou silenciosamente de porta em porta. Cada uma delas tinha um nome escrito à mão num cartão enfiado no respectivo caixilho de latão. Reparou que a enfermeira Brumfett ocupava o quarto logo pegado ao apartamento da superintendente. A seguir ficava a casa de banho, funcionalmente dividida em três diminutos cubículos, cada um deles com a sua banheira e retrete. O caixilho da porta seguinte continha o nome da enfermeira-chefe Gearing; os dois seguintes estavam vagos. A enfermeira-chefe Rolfe ficava no extremo norte do corredor, imediatamente ao lado da cozinha e da sala de uso geral. Dalgliesh não tinha autoridade para entrar em nenhum dos quartos, mas rodou tentativamente as maçanetas de cada uma das portas. Conforme esperava, estavam fechadas à chave.
Foi a própria superintendente quem lhe abriu a porta do apartamento no espaço de segundos após ele ter tocado, e seguiu-a até à sala de estar. O tamanho e a magnificência desta deixavam uma pessoa sem fôlego. Ocupava todo o torreão sudoeste, constituindo uma enorme sala octogonal pintada de branco, de tecto ornamentado com motivos dourados e azul-pálido, e com duas imensas janelas que davam para o hospital. Uma das paredes encontrava-se forrada de alto a baixo de prateleiras brancas com livros. Dalgliesh resistiu à impertinência de avançar descontraidamente até lá na esperança de avaliar o temperamento de Miss Taylor pelos seus gostos literários. No entanto, do local onde estava podia ver que não havia livros de estudo, nem relatórios oficiais encadernados, nem inclinadas pilhas de pastas de arquivo. Tratava-se de uma sala de estar e não de um gabinete de trabalho.
Na lareira ardia um fogo vivo, com a madeira ainda a estalar de ter sido acesa havia pouco. Ainda não imprimira a sua marca no ar, que estava frio e muito parado. A superintendente vestia uma curta romeira escarlate por cima do vestido cinzento. Tinha tirado a touca e o grande rolo de cabelo loiro repousava como um fardo na nuca frágil e anémica.
Tinha a sorte, pensou ele, de ter nascido numa época capaz de apreciar a individualidade dos traços e da forma, devendo tudo à estrutura óssea e nada aos suaves matizes da feminilidade. Um século atrás ter-lhe-iam chamado feia, até mesmo grotesca. Hoje em dia, porém, a maioria dos homens achá-la-ia interessante e alguns poderiam mesmo defini-la como bonita. Para Dalgliesh era uma das mulheres mais bonitas que alguma vez encontrara.
Colocada rigorosamente a meio das três janelas estava uma robusta mesa de carvalho contendo um grande telescópio preto e branco. Dalgliesh notou que não se tratava de um brinquedo de amador, mas sim de um instrumento caro e sofisticado, dominando a sala. A superintendente apercebeu-se de que ele o fitava e perguntou:
- Interessa-se por astronomia?
- Nem por isso. Ela sorriu.
- Lê silence éternel de cês espaces infinis m’effraie1?
- Inquieta-me mais do que me amedronta. É provavelmente a minha vaidade. Não consigo interessar-me por aquilo que, além de não compreender, sei que não tenho perspectivas de alguma vez compreender.
- Para mim, é precisamente esse o atractivo. É uma forma de escapismo, até mesmo de voyeurismo, penso eu, esta absorção de
um universo impessoal que não posso fazer nada para influenciar ou controlar e, melhor ainda, ninguém espera que eu o faça. É uma abdicação da responsabilidade. Devolve os problemas pessoais à sua dimensão própria.
Indicou a Dalgliesh o sofá de couro preto diante da lareira. Defronte deste via-se uma mesinha com um termo de café, leite quente, açúcar cristalizado e duas chávenas.
Ao sentar-se, ele sorriu e disse:
- Se eu quiser entregar-me à humildade ou especular sobre o incompreensível, prefiro contemplar uma primavera. A despesa é nula, o prazer é mais imediato e a moral igualmente válida.
A boca plástica endereçou-lhe um trejeito trocista.
- E pelo menos restringe o entregar-se a essas perigosas especulações filosóficas a umas escassas semanas na Primavera.
”Esta conversa”, pensou ele, ”é uma pavana verbal. Se não tomo cuidado, começo a gostar. Pergunto a mim próprio quando passará ela aos factos. Ou estará à espera de que seja eu a dar o primeiro passo? E por que não? O requerente, o intruso, sou eu.”
Como se lhe lesse o pensamento, ela disse subitamente:
- É estranho tratar-se em ambos os casos de raparigas tão destituídas de amizades, uma e outra órfãs. Torna-me a tarefa menos pesada. Não há pais desolados a consolar, graças a Deus. A estagiária Pearce tinha apenas os avós que a criaram. Ele é mineiro reformado e vivem numa certa pobreza numa quinta dos arredores de Nottingham. Pertencem a uma seita religiosa muito puritana e a única reacção que tiveram à morte da pequena foi dizer: ”Seja feita a vontade de Deus.” Afigurou-se-me uma reacção estranha para uma tragédia que foi visivelmente obra da vontade humana.
- Nesse caso pensa que a morte da estagiária Pearce foi assassínio ?
- Não necessariamente. Mas não acuso Deus de adulterar o alimento usado na intubação.
- E quanto aos parentes da estagiária Fallon?
- Nem um, tanto quanto sei. Quando se matriculou, foi-lhe perguntado pela família mais chegada e disse-nos que era órfã e não tinha familiares consanguíneos vivos. Não havia motivo para o pôr em dúvida. Era provavelmente verdade. Mas amanhã os jornais hão-de publicar a sua morte e, se houver alguns parentes ou amigos, decerto teremos notícias deles. Presumo que tenha falado com as alunas.
- Acabo de ter uma conversa preliminar com elas em grupo. Falei com elas na sala de aulas práticas. Foi inútil para me proporcionar um pano de fundo neste caso. Todas concordaram em fornecer as impressões digitais e é isso que está a ser feito neste momento. vou precisar das impressões digitais de todas as pessoas que se encontravam na Nightingale House ontem à noite e hoje de manhã, quanto mais não seja para efeitos de eliminação. E claro que terei de entrevistar toda a gente em particular. Mas agradeço esta oportunidade de contactar primeiro com a senhora. No fim de contas, estava em Amsterdão quando a estagiária Fallon morreu. Isso significa que é menos um suspeito com que tenho de me preocupar.
Viu com surpresa os nós dos dedos dela tornarem-se brancos em redor da pega da cafeteira e o rosto ruborizar-se. Fechou os olhos e ele pensou ouvir um suspiro. Observou-a um tanto desconcertado. O que acabara de dizer teria certamente de ser evidente para uma mulher com a inteligência dela. Mal sabia mesmo porque se dera ao trabalho de o dizer. Se aquela segunda morte fosse assassínio, qualquer pessoa que dispusesse de um álibi abrangendo toda a tarde e noite do dia anterior devia estar livre de suspeitas. Como que pressentindo a surpresa dele, ela disse:
- Desculpe. Devo parecer obtusa. Bem sei que é uma tolice sentir tamanho alívio por saber que não se é suspeito quando de qualquer modo se sabe estar inocente. Talvez seja porque nenhum de nós é inocente em nenhum sentido propriamente dito. Tenho a certeza de que um psicólogo poderia explicá-lo. Mas deverá o senhor ser tão confiante? Não poderia o veneno (se é que de veneno se tratava) ter sido introduzido na garrafa de uísque da Fallon em qualquer altura antes de ela a ter comprado, ou outra garrafa envenenada, ter sido colocada em lugar da que ela comprou? Isso poderia ter sido feito antes de eu partir para Amsterdão, na tarde de terça-feira.
- Receio bem que tenha de resignar-se à inocência. Miss Fallon comprou aquela garrafa de uísque específica na loja de bebidas Scunthorpe, na High Street, ontem à tarde, e tomou a primeira e única bebida dessa garrafa na noite em que morreu. A garrafa está ainda praticamente cheia, o uísque que resta, tanto quantos sabemos, é absolutamente normal, e as únicas impressões digitais na garrafa são as da própria Miss Fallon.
- Trabalhou muito depressa. Portanto, o veneno ou foi posto no copo depois de ela ter vertido nele a bebida quente ou no açúcar.
- Se é que ela foi envenenada. Não podemos ter a certeza de nada enquanto não tivermos o relatório da autópsia, e talvez nem sequer nessa altura. O açúcar está a ser analisado, mas na realidade isso não passa de uma formalidade. A maior parte das estagiárias serviu-se daquele açucareiro quando tomou o chá da manhã e pelo menos duas das raparigas beberam o seu. Ficamos, portanto, reduzidos ao copo de uísque e limão quente. Miss Fallon facilitava imenso as coisas a qualquer assassino. Aparentemente, toda a Nightingale House sabia que, quando não saía à noite, ficava a ver televisão até ao final do programa. Dormia pouco e nunca ia para a cama cedo. Quando a televisão fechava, ia para o quarto e despia-se. Depois, de roupão e chinelos, dirigia-se à pequena copa do segundo piso e preparava aquela última bebida. Guardava o uísque no quarto mas não podia preparar lá a bebida porque não há lá água corrente nem maneira de a aquecer. Por isso, era seu costume levar o copo de vidro isolado com o uísque já servido e juntar-lhe o limão quente na copa. Havia lá uma provisão de limões, no guarda-loiças, juntamente com o cacau, o café, o chocolate e outras coisas que as estagiárias utilizam para preparar as suas bebidas antes de deitar. Depois voltava a levar o copo para o quarto e deixava-o no armário de cabeceira enquanto tomava banho. Tomava sempre um banho rápido e gostava de ir para a cama imediatamente enquanto ainda estava quente. Quero crer que era por isso que preparava a bebida antes de ir à casa de banho. Quando voltava ao quarto e se metia na cama, a bebida estava precisamente à temperatura ideal. E, aparentemente, esta rotina nunca se alterava.
- Chega a ser assustador a quantidade de coisas que uma pessoa fica a saber dos hábitos de cada uma numa pequena comunidade fechada como esta - disse a superintendente. - Mas claro que é inevitável. Não há verdadeira privacidade. Como pode haver? Evidentemente que eu sabia do uísque, mas não me pareceu que fosse da minha conta. A rapariga não era de modo nenhum uma alcoólica incipiente e não o passava às alunas mais novas. Na idade dela, tinha o direito de escolher a bebida que lhe apetecesse antes de dormir.
Dalgliesh perguntou como soubera a superintendente do uísque.
- Foi a estagiária Pearce que me contou. Pediu para falar comigo e deu-me a informação com a intenção de ”não quero andar a contar coisas mas acho que a senhora deve saber”. Para a estagiária Pearce, a bebida e o demónio eram uma e a mesma coisa. Mas não me parece que a Fallon fizesse algum segredo do facto de beber uísque. Como podia fazê-lo? Conforme disse, conhecemos os pequenos hábitos umas das outras. Mas claro que há certas coisas que não sabemos. A Josephine Fallon era uma pessoa muito reservada. Não posso fornecer-lhe qualquer informação sobre a vida dela fora do hospital e duvido que alguém possa.
- Quem era a amiga dela cá dentro? Decerto havia de ter alguém com quem se abrisse, não? Não é isso necessário para qualquer mulher neste género de comunidade fechada?
Ela fitou-o de maneira estranha.
- Sim. Todas nós precisamos de alguém. Mas acho que a Fallon precisava menos de uma amiga do que qualquer outra pessoa. Era notavelmente auto-suficiente. Se se abria com alguém, seria com a Madeleine Goodale.
- Aquela rapariga vulgar, de cara redonda e óculos grandes? Dalgliesh recordou-a. Não era um rosto desprovido de
atracção, principalmente devido à pele e à inteligência daqueles grandes olhos cinzentos por detrás dos grossos aros de chifre. No entanto, a estagiária Goodale nunca poderia ser senão vulgar. Pensou que era capaz de imaginar-lhe o futuro: os anos de curso suportados com determinação, o êxito nos exames, as responsabilidades gradualmente crescentes até, finalmente, chegar também ela a superintendente. Não era invulgar uma rapariga do género tornar-se amiga de uma mulher mais atraente. Era uma maneira de obter, ao menos por delegação, um quinhão de uma vida mais romântica, menos dedicada. Como se lhe lesse os pensamentos, Miss Taylor disse:
- A estagiária Goodale é uma das nossas enfermeiras mais eficientes. Sempre esperei que ela ficasse connosco terminado o curso, para ocupar um lugar de enfermeira do quadro. Mas isso é muito pouco provável. Está noiva do vigário da terra e querem casar na próxima Páscoa.
Deitou uma olhadela a Dalgliesh, um pouco maliciosamente.
- Consideram-no um jovem muito aceitável. Parece surpreendido, senhor inspector.
Dalgliesh riu-se:
- Com vinte e cinco anos de Polícia em cima, já devia ter aprendido a não fazer juízos superficiais. Acho que o melhor é falar em primeiro lugar com a estagiária Goodale. Consta-me que a sala que vão pôr à minha disposição ainda não está pronta. Suponho que posso continuar a utilizar a sala de aulas práticas. Ou há probabilidades de virem a precisar dela?
- Preferia que falasse com as raparigas noutro sítio qualquer, se não se importa. Essa sala encerra recordações tristes e dramáticas para elas. Nem sequer voltámos ainda a usá-la para aulas práticas. Enquanto a pequena sala de visitas do primeiro piso não estiver pronta, gostaria muito que entrevistasse as alunas aqui.
Dalgliesh agradeceu-lhe e voltou a colocar a chávena de café na mesinha. Ela hesitou e a seguir disse:
- Mr. Dalgliesh, há uma coisa que quero dizer-lhe. Sinto-me, sou, in loco parentis1 para as minhas alunas. Se em determinada ocasião algum problema... Se por acaso começasse a suspeitar de que alguma delas estava implicada, posso confiar que mo comunicaria? Nessa altura, precisariam de protecção. Pôr-se-ia certamente a questão de arranjar um advogado.
Voltou a hesitar.
- Peço que me desculpe se estou a ser ofensiva. É que uma pessoa tem tão pouca experiência destes assuntos... O que eu não gostaria é que elas...
- Fossem apanhadas numa armadilha?
- Fossem levadas a dizer coisas que pudessem erradamente incriminá-las, ou a outros membros do pessoal.
Dalgliesh deu por si ilogicamente irritado.
- Há regras estabelecidas, não sei se sabe - disse.
- Ora, regras! Bem sei que há regras. Mas tenho a certeza de que o senhor é simultaneamente experimentado e inteligente demais para deixar que elas o entravem por aí além. Estou simplesmente a recordar-lhe que estas raparigas são menos inteligentes e em certos assuntos não têm a mínima experiência.
Lutando contra a irritação, Dalgliesh redarguiu formalmente:
- Só lhe posso dizer que as regras existem e que é do nosso interesse mantê-las. Não está a ver o presente de bandeja que seria qualquer infracção para a defesa? Uma jovem desprotegida, uma aluna de enfermagem acossada por um funcionário superior da Polícia com anos de experiência de apanhar os incautos em armadilhas. Neste país já existem dificuldades suficientes colocadas no caminho da Polícia; não as acrescentemos voluntariamente.
Ela corou e ele seguiu interessadamente a vaga de cor alastrar pelo pescoço acima sobre a luzidia pele cor de mel-pálida que momentaneamente a fazia assumir o aspecto de quem tivesse fogo a correr nas veias. Mas logo, instantaneamente, aquilo passou.
A alteração foi tão súbita que ele não podia garantir que tivesse realmente visto a reveladora metamorfose. Ela disse com compostura:
- Ambos temos as nossas responsabilidades. Cabe-nos esperar que elas não colidam. Entretanto, deve contar que eu me preocupe tanto com as minhas como o senhor com as suas. E, a propósito, tenho uma informação a dar-lhe. Diz respeito à Christine Dakers, a estagiária que descobriu o corpo da estagiária Fallon.
Descreveu rápida e sucintamente o que sucedera durante a sua visita à enfermaria particular. Dalgliesh notou com interesse que ela não fez qualquer comentário, não avançou qualquer opinião e não ensaiou qualquer justificação da rapariga. Não lhe perguntou se ela acreditava na história. Era uma mulher altamente inteligente. Devia saber que aquilo que lhe proporcionara era o primeiro móbil. Perguntou-lhe quando poderia entrevistar a estagiária Dakers.
- De momento está a dormir. O doutor Snelling, que é o médico assistente das enfermeiras, ficou de vê-la lá para o fim da manhã. Nessa altura falará comigo. Se ele estiver de acordo, talvez o senhor possa falar com ela esta tarde. E agora vou mandar chamar a estagiária Goodale. Isto é, se não há mais nada que lhe possa dizer.
- vou precisar de muitas informações sobre a idade, o passado das pessoas e há quanto tempo se encontram no hospital. Isso não constará dos seus processos individuais? Seria útil se eu pudesse consultá-los.
A superintendente pensou. Dalgliesh notou que quando o fazia o rosto dela assumia uma expressão de repouso absoluto. Passado um momento, ela disse:
- Claro que todo o pessoal tem o seu processo individual. Legalmente, são propriedade da Comissão de Gestão do hospital. O presidente não voltará de Israel a não ser amanhã à noite, mas falarei com o vice-presidente. Suponho que ele me pedirá para consultar os processos e, caso eles não contenham nada de particular que seja irrelevante para a sua investigação, passar-lhos a si.
Dalgliesh resolveu que seria prudente não remexer para já na questão de quem deveria decidir do que era irrelevante para a sua investigação.
- Há perguntas pessoais que terei de fazer, evidentemente disse. - Mas seria muito mais cómodo e pouparia tempo se pudesse obter as informações de rotina através dos processos individuais.
Era estranho a voz dela ser tão desagradável e ao mesmo tempo tão obstinada.
- Compreendo que seria muito mais cómodo; seria igualmente uma maneira de conferir a veracidade do que lhe disserem. Mas os processos só podem ser-lhe passados nas condições que acabo de referir.
Portanto, ela estava confiante na aceitação e adesão do vice-presidente à sua opinião sobre o que estava certo. E assim seria, indubitavelmente. Eis uma mulher espantosa. Confrontada com um problema bicudo, meditara no assunto, tomara uma decisão e declarara-a firmemente, sem desculpas ou hesitações. Uma mulher admirável. Seria uma pessoa de trato fácil, desde que, evidentemente, todas as suas decisões fossem tão aceitáveis como aquela.
Perguntou se podia utilizar o telefone; chamou o sargento Masterson da inspecção que este fazia às diligências tomadas para adaptar a pequena sala de visitas para servir de gabinete e preparou-se para o longo tédio das entrevistas individuais.
A estagiária Goodale foi convocada telefonicamente e chegou daí a dois minutos com um aspecto pouco apressado e tranquilo. Miss Taylor pareceu pensar que qualquer explicação ou tranquilização era desnecessária para aquela jovem segura de si, limitando-se a dizer:
- Sente-se, estagiária. O inspector Dalgliesh quer falar consigo.
Depois tirou a romeira da poltrona, colocando-a pelos ombros, e saiu sem mais um olhar para qualquer deles. O sargento Masterson abriu o bloco de apontamentos. A estagiária Goodale sentou-se numa cadeira direita à mesa, mas, quando Dalgliesh lhe indicou uma poltrona junto da lareira, mudou de lugar sem hesitação. Sentou-se rigidamente mesmo à borda do assento, com as costas direitas e as pernas, surpreendentemente bem feitas e elegantes, recatadamente unidas. No entanto, as mãos poisadas no regaço estavam perfeitamente descontraídas e Dalgliesh, sentado diante dela, deu por si a enfrentar uns olhos desconcertantemente inteligentes.
- A menina tinha provavelmente mais intimidade com Miss Fallon do que qualquer outra pessoa no hospital. Fale-me dela.
Ela não revelou surpresa perante a formulação da primeira pergunta, mas fez uma pausa de segundos antes de responder, como que ordenando as ideias. A seguir disse:
- Gostava dela. Tolerava-me melhor a mim do que à maioria das colegas, mas não me parece que os sentimentos dela relativamente à minha pessoa fossem muito mais fortes do que isso. No fim de contas tinha vinte e um anos, e todas nós lhe devíamos parecer bastante imaturas. Tinha uma língua bastante sarcástica que não ajudava nada, e acho que algumas das raparigas tinham um certo receio dela.
”Raras vezes me falou do seu passado, mas disse-me que ambos os pais morreram em 1944 num bombardeamento aéreo de Londres. Foi criada por uma tia velha e educada num daqueles internatos que admitem crianças de muito tenra idade e as mantêm até estarem preparadas para sair. Desde que as propinas sejam pagas, evidentemente, mas tenho a impressão de que por esse lado não havia qualquer dificuldade. Ela sempre quis ser enfermeira, mas apanhou tuberculose logo a seguir ao colégio e teve de passar dois anos num sanatório. Não sei onde. Depois disso houve dois hospitais que a recusaram por motivos de saúde, de modo que teve uma série de empregos temporários. Disse-me pouco depois de iniciarmos o curso que já tinha estado noiva mas que não resultara.
- Nunca lhe perguntou porquê?
- Nunca lhe perguntei coisa nenhuma. Se ela mo quisesse contar, tê-lo-ia feito.
- Ela disse-lhe que estava grávida?
- Disse. Contou-me dois dias antes de adoecer. Deve ter tido suspeitas antes disso, mas o relatório de confirmação chegou nessa manhã. Perguntei-lhe o que tencionava fazer relativamente a isso e ela disse que ia desembaraçar-se da criança.
- Fez-lhe notar que isso era provavelmente ilegal?
- Não. Ela não queria saber de legalidades. Disse-lhe que achava mal.
- Mas mesmo assim ela tencionava ir por diante com o aborto?
- Sim, disse que conhecia um médico que o faria e que não haveria qualquer perigo propriamente dito. Perguntei-lhe se precisava de dinheiro e ela disse que não havia novidade; que o dinheiro era o último dos seus problemas. Nunca me disse a quem é que iria, e eu não lho perguntei.
- Mas estava pronta a avançar-lhe dinheiro se ela precisasse, mesmo estando em desacordo com o facto de ela querer desembaraçar-se da criança?
- O meu desacordo não era importante. O importante era que estava mal. Mas, quando soube que ela estava decidida, tive de resolver se a ajudaria ou não. Tinha receio que ela fosse a qualquer abortadeira de rua esconsa, sem habilitações, e arriscasse a vida e a saúde. Bem sei que a lei foi alterada, que hoje em dia é mais fácil obter uma recomendação médica, mas não me pareceu que ela reunisse condições para isso. Tive de tomar uma decisão moral. Se uma pessoa está disposta a cometer um pecado, então que o cometa com inteligência. Se assim não for, além de desafiar Deus, estará a insultá-lo, não lhe parece?
Dalgliesh redarguiu sisudamente:
- Trata-se de um interessante argumento teológico que não tenho competência para discutir. Ela disse-lhe quem era o pai da criança?
- Não directamente. Penso que possa ter sido um jovem escritor de quem ela era amiga. Não sei o nome dele nem onde possa encontrá-lo, mas sei que a Jo passou uma semana com ele na ilha de Wight em Outubro passado. Tinha uma semana de férias ainda por gozar e disse-me que decidira explorar a ilha a pé com um amigo. Presumo que fosse ele o amigo. O que é certo é que não era ninguém de cá. Foram lá durante a primeira semana e ela disse-me que tinham ficado numa pequena estalagem a uns oito quilómetros para sul de Ventnor. Foi tudo o que ela me contou. Creio que é possível que tenha ficado grávida durante essa semana, não?
- As datas conferem - respondeu Dalgliesh. - E ela nunca se abriu consigo quanto ao pai da criança?
- Não. Perguntei-lhe porque não casava com o pai e ela respondeu que seria injusto para a criança sobrecarregá-la com dois pais irresponsáveis. Lembro-me de ela dizer: ”Ele ficaria estarrecido com a ideia, fosse como fosse, a menos que tivesse uma ânsia repentina de experimentar a paternidade só para ver como era. E pode ser que gostasse de ver o bebé nascer para um dia ter a possibilidade de escrever uma descrição chocante de um parto. Mas realmente não se compromete com ninguém a não ser com ele próprio.”
- Mas ela gostava dele?
A rapariga fez uma pausa durante um bom minuto antes de responder. De seguida, disse:
- Acho que sim. Acho que pode ter sido por isso que se matou.
- O que é que a leva a pensar que ela o tenha feito?
- Creio que é por a alternativa ser ainda mais improvável. Nunca pensei que a Jo fosse o género de rapariga que se suicidasse... se é que existe um género. Mas na realidade eu não a conhecia. Nunca conhecemos realmente outro ser humano. Qualquer 1 coisa é possível para quem quer que seja. Sempre acreditei nisso. é com certeza mais provável que ela se tenha matado do que alguém tê-la assassinado. Isso parece absolutamente inacreditável. Porque havia alguém de o fazer?
- Contava que fosse capaz de mo dizer.
- Pois não sou. Tanto quanto sei, não tinha inimigos no John Carpendar. Não era popular. Era demasiado reservada, demasiado solitária. Mas as pessoas não antipatizavam com ela. E, mesmo que antipatizassem, decerto o assassínio sugere mais do que simples antipatia. Parece muito mais provável que ela tenha regressado ao serviço demasiado cedo depois da gripe, tenha sido subjugada por uma depressão psicológica, sentindo que não era capaz de fazer frente ao desembaraçar-se da criança mas ao mesmo tempo não conseguindo encarar a ideia de ter um filho ilegítimo, e resolvesse pôr termo à vida, obedecendo a um impulso.
- Quando a interroguei na sala de aulas práticas, disse-me que tinha sido provavelmente a última pessoa a vê-la com vida. O que foi exactamente que aconteceu quando estiveram juntas ontem à noite? Ela deu-lhe a impressão de poder estar a pensar em suicidar-se?
- Se tivesse dado, era pouco natural que eu a deixasse ir para a cama sozinha. Não disse nada. Não me parece que tenhamos trocado mais de uma dúzia de palavras. Perguntei-lhe como se sentia e ela disse-me que estava bem. Não estava visivelmente com disposição para conversar, de modo que eu não quis importuná-la. Passados cerca de vinte minutos fui para a cama. Nunca mais voltei a vê-la.
- E ela não se referiu à gravidez?
- Não se referiu a nada. Pareceu-me cansada e um tanto ou quanto pálida É angustiante para mim pensar que ela podia precisar de ajuda e que me fui embora sem pronunciar as palavras que podiam tê-la salvo. Mas ela não era pessoa que desse azo a confidências. Fiquei para trás quando as outras saíram porque pensei que ela poderia querer falar. Quando se tornou evidente que queria estar sozinha, fui-me embora.
Falava em ficar angustiada, pensou Dalgliesh, mas não parecia, nem pelo aspecto, nem pelo tom, que o estivesse. Não sentia remorsos. E por que havia de senti-los, de facto? Duvidava que ela sentisse algum desgosto especial. Fora mais íntima de Josephine Fallon do que qualquer das outras alunas. Mas não gostava realmente dela. E haveria alguém no mundo que tivesse gostado?
- E a morte da estagiária Pearce?
- Penso que se tratou fundamentalmente de acidente. Houve alguém que meteu veneno no alimento por brincadeira ou por maldade indefinida, sem se dar conta de que o resultado seria fatal.
- O que seria estranho numa estagiária do terceiro ano cujo programa de aulas incluía presumivelmente elementos básicos sobre venenos corrosivos.
- Não estava a insinuar que se tratasse de uma estagiária. Não sei quem foi. Não me parece que agora venha a descobrir. Mas não posso acreditar que se tratasse de homicídio voluntário.
Tudo aquilo era muito bonito, pensou Dalgliesh, mas era seguramente pouco franco numa rapariga tão inteligente como a estagiária Goodale. Era, evidentemente, a opinião geral, quase oficial. Isentava toda a gente do pior dos crimes e não acusava ninguém de qualquer coisa mais que maldade e descuido. Era uma teoria reconfortante e, a menos que tivesse sorte, podia nunca ser desmentida. Mas nem ele próprio acreditava nela, e não podia aceitar que a estagiária Goodale acreditasse. No entanto era ainda mais difícil aceitar que tinha na sua frente uma rapariga que se reconfortasse com teorias falsas ou fechasse deliberadamente os olhos a factos repulsivos.
Dalgliesh passou então a interrogá-la sobre os movimentos na manhã da morte da Pearce. Já os conhecia através das anotações do inspector Bailey e do depoimento anterior da rapariga, e ficou surpreendido quando a estagiária Goodale os confirmou sem hesitar. Tinha-se levantado às seis e quarenta e cinco e bebera o chá da manhã com o resto do grupo na sala de uso geral. Falara-lhes da gripe da Fallon porque era para o seu quarto que a estagiária Fallon tinha ido quando adoecera durante a noite. Nenhuma das alunas mostrara especial preocupação, mas tinham perguntado a si próprias como prosseguiria a aula prática agora que o grupo se encontrava tão desfalcado, e haviam especulado, não sem maldade, como se sairia a enfermeira Gearing perante uma inspecção do C. G. E. A estagiária Pearce bebera o chá com o resto do grupo e a estagiária Goodale pensava recordar-se de ela ter dito: ”Com a Fallon doente, creio bem que serei eu que terei de fazer de paciente.”
A estagiária Goodale não conseguia lembrar-se de qualquer comentário ou discussão acerca disso. Era ponto assente que fosse a estagiária seguinte na lista a substituir a que adoecesse.
Depois de tomar o chá, a estagiária Goodale vestira-se e dirigira-se à biblioteca para fazer uma revisão do tratamento da laringectomia a fim de estar preparada para a sessão dessa manhã. Para que o seminário fosse um êxito, era importante haver uma resposta rápida e viva às perguntas. Tinha principiado a trabalhar por volta das sete e um quarto e a estagiária Dakers juntara-se-lhe pouco depois, compartilhando uma devoção pelo estudo que, pensou Dalgliesh, fora pelo menos recompensada com um álibi para a maior parte do tempo antes do pequeno-almoço. Ela e a Dakers não tinham dito nada de interesse uma à outra enquanto trabalhavam e haviam saído ao mesmo tempo da biblioteca, seguindo juntas para o pequeno-almoço. Isso fora por volta das dez para as oito. Sentara-se à mesa com a Dakers e as gémeas Burt, mas saíra do refeitório antes delas. Fora às oito e um quarto. Tinha voltado ao quarto para fazer a cama, após o que se dirigira à biblioteca a fim de escrever umas cartas. Feito isto, tinha ido à casa de banho por momentos e encaminhara-se para a sala de aulas práticas um tudo-nada antes das nove menos um quarto. Apenas se encontravam já ali a enfermeira Gearing e as gémeas Burt, mas o resto do grupo tinha-se-lhes juntado pouco depois; não se lembrava por que ordem. Pensava que a Pearce tinha sido uma das últimas a chegar.
- Que aspecto tinha a estagiária Pearce? - perguntou Dalgliesh.
- Não lhe notei nada de especial, mas a verdade é que não contava notar. A Pearce era a Pearce. Quase não se dava por ela.
- Ela disse alguma coisa antes do começo da aula prática?
- Sim, efectivamente disse. É estranho o senhor fazer essa pergunta. Não o tinha dito ainda, porque o inspector Bailey não o perguntou, acho eu. Mas realmente ela falou. Percorreu-nos a todas com o olhar (nessa altura o grupo estava já todo reunido) e perguntou se alguém tinha tirado alguma coisa do quarto dela.
-E disse o quê?
- Não. Limitou-se a ficar ali imóvel com aquele ar acusador e um tanto beligerante que às vezes assumia e perguntou: ”Alguém esteve esta manhã no meu quarto ou tirou de lá alguma coisa?”
Ninguém respondeu. Acho que todas abanámos a cabeça. Não era uma pergunta que levássemos particularmente a sério. A Pearce tinha tendência para fazer um grande escarcéu por causa de ninharias. Fosse como fosse, as gémeas Burt estavam ocupadas a fazer os seus preparativos e o resto de nós conversava. A Pearce não suscitou lá muita atenção para a pergunta. Duvido mesmo que metade de nós a tenha realmente ouvido.
- Reparou em como ela reagiu? Estava irritada, ou zangada, ou aflita?
- Nem uma coisa nem outra. Realmente, é esquisito. Agora me lembro. Parecia satisfeita, quase triunfante, como se algo de que desconfiava se tivesse confirmado. Não sei por que razão reparei nisso, mas reparei. Depois a enfermeira Gearing chamou-nos à ordem e a aula prática começou.
Dalgliesh não falou logo a seguir ao final do relato da rapariga e, passado algum tempo, ela interpretou o seu silêncio como despedida, levantando-se para sair. Abandonou a cadeira com a mesma graciosidade controlada com que se sentara, alisou o avental com um gesto quase indiscernível, endereçou-lhe um último olhar inquiridor e encaminhou-se para a porta. Nessa altura fez meia volta, como que cedendo a um impulso.
- Perguntou-me se alguém tinha um motivo para matar a Jo, e eu disse que não sabia de ninguém. É verdade. Mas suponho que um motivo legal é algo diferente. Tenho de lhe dizer que há quem possa pensar que eu tinha um motivo.
- Tinha? - perguntou Dalgliesh.
- Suponho que vai pensar que sim. Sou a herdeira da Jo, ou pelo menos penso que o sou. Há cerca de três meses ela tinha-me dito que fizera testamento e que me ia deixar tudo o que tinha. Deu-me o nome e a morada do advogado. Posso passar-lhe esses dados. Ainda não me escreveram de lá, mas espero que o façam, isto se a Jo realmente fez testamento. Mas estou em crer que o fez. Não era pessoa para fazer promessas que não cumprisse. Talvez o senhor prefira entrar já em contacto com os advogados? Estas coisas levam o seu tempo, não levam?
- Ela disse-lhe por que razão a escolhia como legatária?
- Disse que tinha de deixar o dinheiro a alguém e que eu seria provavelmente quem melhor uso dele faria. Não levei o assunto muito a sério, e creio que ela também não. No fim de contas, tinha apenas trinta e um anos. Não esperava morrer. E avisou-me de que provavelmente mudaria de ideias muito antes de envelhecer o suficiente para transformar a herança numa perspectiva séria para mim. Vendo bem, provavelmente casaria. No entanto sentiu que tinha a obrigação de fazer testamento e na altura eu era a única pessoa que ela se dera ao trabalho de lembrar. Encarei-o apenas como uma formalidade. Nunca me passou pela cabeça que ela pudesse ter grande coisa para deixar. Só quando tivemos aquela conversa sobre o preço de um aborto é que ela me disse quanto tinha.
- E era... é... muito?
A rapariga respondeu, calmamente:
- A volta de 16 mil libras, creio eu. Provém dos seguros dos pais. - Sorriu um pouco forçadamente. - Não é coisa que não valha a pena ter, está a ver, senhor inspector? Penso que poderia contar-se como um motivo perfeitamente respeitável, não lhe parece? Assim já poderíamos instalar aquecimento central no vicariato. E, se visse o vicariato do meu noivo (doze divisões, todas elas viradas a norte ou a nascente), pensaria que eu tinha um belo motivo para a matar.
A enfermeira Rolfe e a enfermeira Gearing aguardavam com as alunas na biblioteca; tinham-se mudado da sala de estar das enfermeiras por forma a ocuparem o tempo de espera a ler e a fazer revisões. Quanto aproveitariam realmente as raparigas, era uma questão problemática, mas não havia dúvidas de que a cena tinha um ar tranquilo e de estudo. As estagiárias tinham-se sentado às mesas defronte da janela e encontravam-se aparentemente absorvidas, com os livros abertos na frente. A enfermeira Rolfe e a enfermeira Gearing, como que para realçarem a sua superioridade hierárquica e solidariedade, tinham-se retirado para o sofá defronte da lareira e estavam sentadas ao lado uma da outra. A enfermeira Rolfe marcava com uma esferográfica verde uma pilha de exercícios de alunas do primeiro ano, apanhando cada caderneta de uma rima que tinha no chão, aos pés, e juntando-a, depois de despachada, à rima que ia crescendo encostada ao espaldar do sofá. A enfermeira Gearing tomava ostensivamente apontamentos para a lição seguinte, mas parecia incapaz de tirar os olhos dos decisivos hieroglifos da colega.
A porta abriu-se e Madeleine Goodale regressou. Sem uma palavra, voltou à carteira, pegou na caneta e retomou o trabalho.
A enfermeira Gearing sussurrou:
- A Goodale está com um ar bastante calmo. É estranho, tendo em atenção que era considerada a melhor amiga da Fallon.
A enfermeira Rolfe não ergueu a vista, observando secamente:
- Ela não queria realmente saber da Fallon para nada. A Goodale tem apenas um capital de emoções limitado e imagino que o consome todo naquele indivíduo extremamente apagado com o qual resolveu casar.
- No entanto, ele é bem-parecido. Se queres que te diga, muita sorte tem a Goodale em o ter apanhado.
Mas o assunto tinha interesse secundário para a enfermeira Gearing, e não o levou mais além. Passado um minuto perguntou rabugentamente:
- Porque é que a Polícia não chamou mais ninguém?
- Hão-de chamar. - A enfermeira Rolfe acrescentou outro livro de exercícios, liberalmente embelezado de tinta verde, a uma rima inteira ao seu lado. - Provavelmente estão ainda a discutir a contribuição da Goodale.
- Tinham obrigação de falar primeiro connosco. No fim de contas, somos enfermeiras-chefes. A superintendente devia ter explicado. E porque é que a Brumfett não está aqui? Não vejo por que razão há-de ser tratada de uma maneira e nós de outra.
A enfermeira Rolfe:
- Demasiado atarefada. Ao que parece, agora houve um par de alunas do segundo ano lá da enfermaria que apanhou a gripe. Ela mandou um recado qualquer a Mr. Dalgliesh por um servente, naturalmente fornecendo informações sobre os seus movimentos ontem à noite. Encontrei-me com ele quando o vinha entregar. Perguntou-me onde podia encontrar o senhor da Scotland Yard.
A voz da enfermeira Gearing tornou-se petulante.
- Tudo isso é muito bonito, mas ela devia estar aqui. Deus sabe como andamos também atarefadas! A Brumfett vive na Nightingale House; teve as mesmas oportunidades de matar a Fallon que qualquer outra pessoa.
A enfermeira Rolfe disse de mansinho:
- Teve mais hipóteses.
- Que queres tu dizer com mais hipóteses?
A voz cortante da enfermeira Gearing cruzou o silêncio e uma das gémeas Burt levantou a cabeça.
- Teve a Fallon à sua mercê na enfermaria durante estes últimos dez dias.
- Mas com certeza não queres insinuar?... A Brumfett não faria tal coisa!
- Exactamente - redarguiu friamente a enfermeira Gearing.
- Portanto, para quê fazer observações estúpidas e irresponsáveis ?
Houve um silêncio, quebrado apenas pelo restolhar de papel e pelo sibilar do calorífero a gás. A enfermeira Gearing inquietou-se.
- Suponho que, se a Brumfett ficou sem outras duas enfermeiras, há-de estar a pressionar a superintendente para convocar algumas deste bloco. Tem os olhos postos nas gémeas Burt, eu bem sei.
- Nesse caso está com azar. Este grupo já teve o programa suficientemente alterado. No fim de contas, é o último período escolar antes dos exames finais. A superintendente não vai deixar que o interrompam.
- Não estou assim tão certa disso. Lembra-te de que é a Brumfett. A superintendente não costuma dizer-lhe que não. No entanto, é estranho: ouvi o boato de que este ano não vão de férias uma com a outra. Um dos assistentes de farmácia ouviu a secretária da superintendente dizer que a superintendente tenciona explorar a Irlanda de automóvel por conta própria.
”Meu Deus”, pensou a enfermeira Rolfe, ”não haverá qualquer privacidade nesta casa?” Mas não disse nada, limitando-se a afastar-se uns centímetros da irrequieta figura ao seu lado.
Foi então que o telefone da parede tocou. A enfermeira Gearing ergueu-se de um salto e atravessou a sala para ir atender. Voltou-se para o resto do grupo, o rosto vincado de desapontamento.
- Era o sargento Masterson. O inspector Dalgliesh pede o favor de falar agora com as gémeas Burt. Mudou-se para a sala de estar das visitas neste piso.
Sem uma palavra e sem indícios de nervos, as gémeas Burt fecharam os livros e dirigiram-se para a porta.
Era meia hora mais tarde e o sargento Masterson estava a fazer café. A sala de estar das visitas tinha sido provida de uma pequena cozinha, um amplo recesso equipado com um lava-loiças e um armário coberto de fórmica, em cima do qual se encontrava um pequeno fogão de duas bocas. O armário tinha sido libertado de todos os apetrechos, excepto de quatro grandes chávenas, uma caixa de açúcar e outra de chá, uma lata de biscoitos, um grande jarro de barro, um coador e três embalagens herméticas transparentes de café acabado de moer. Ao lado do lava-loiças estavam duas garrafas de leite. A linha da nata era facilmente discernível, mas o sargento Masterson premiu a tampa de uma das garrafas, retirando-a, e farejou desconfiadamente o leite antes de aquecer um pouco numa caçarola. Aqueceu o jarro de barro com água quente da torneira, limpou-o cuidadosamente com o pano de chá pendurado ao lado do lava-loiças, deitou umas generosas colheradas de café e ficou à espera do primeiro bafo de vapor da chaleira. Concordava com as disposições que haviam sido tomadas. Se a Polícia tinha de trabalhar na Nightingale House, aquela sala era tão cómoda e confortável como qualquer outra e o café era um bónus inesperado, que mentalmente atribuía aos bons ofícios de Paul Hudson. O secretário do hospital tinha-lhe dado a impressão de ser um homem eficiente e imaginativo. O seu trabalho não havia de ser fácil. Provavelmente, o desgraçado tinha uma vida infernal, ensanduichado entre aqueles dois velhos tontos, o Kealey e o Grout, e aquela megera tirânica da superintendente.
Coou o café com meticulosa cautela e levou uma chávena ao chefe. Sentaram-se a beber sociavelmente juntos, circunvagando o olhar pelo jardim arruinado devido à tempestade. Ambos detestavam comida mal confeccionada ou café sintético, e Masterson pensava que nunca estavam tão perto de gostar um do outro como quando comiam e bebiam juntos, deplorando as imperfeições da comida na estalagem, ou como naquele momento, regozijando-se com bom café. Dalgliesh reconfortou as mãos em torno da chávena e pensou que era típico da eficiência e imaginação de Mary Taylor certificar-se de que lhes era posto à disposição café genuíno. O trabalho dela não havia de ser fácil. Aquela parelha ineficiente, o Kealey e o Grout, não havia de ser grande ajuda para ninguém, e Paul era demasiado jovem para fornecer um apoio que se visse.
Passado um momento a beberricar apreciadoramente, Masterson disse:
- Foi uma entrevista decepcionante, senhor inspector.
- A das gémeas Burt? Pois foi, tenho de confessar que esperava qualquer coisa mais interessante. No fim de contas, elas estiveram no centro do mistério; administraram o alimento fatal; surpreenderam a estagiária Fallon a sair da Nightingale House; encontraram-se com a enfermeira-chefe Brumfett nas suas preambulações a horas mortas. Mas já sabíamos tudo isso. E agora não ficámos a saber mais nada.
Dalgliesh pensou nas duas raparigas. Masterson tinha puxado outra cadeira à entrada de ambas e as raparigas haviam-se sentado do ao lado uma da outra, de mãos sardentas ritualmente poisadas no regaço e pernas recatadamente traçadas, cada uma delas uma imagem no espelho da outra. As suas corteses respostas de antífona às perguntas dele, pronunciadas com os rr guturais da parte ocidental da Inglaterra, eram tão agradáveis ao ouvido como o seu resplandecente ar saudável à vista. Simpatizara bastante com as gémeas Burt. Claro que podia muito bem estar diante de uma parelha de experientes cúmplices no mal. Tudo era possível. Sem dúvida tinham tido a melhor oportunidade de envenenar o alimento e tão boas hipóteses como qualquer outra pessoa na Nightingale House de adulterar a última bebida da Fallon. Apesar disso tinham parecido perfeitamente à vontade com ele, porventura um pouco aborrecidas por terem de repetir a maior parte da história, mas nem amedrontadas nem particularmente preocupadas. De quando em quando tinham-no fitado com um leve interesse especulativo, como se ele fosse um paciente difícil cujo estado começasse a dar origem a alguma ansiedade. Ele notara esse olhar concentrado e compassivo nos rostos de outras enfermeiras durante o seu primeiro encontro na sala de aulas práticas e achara-o desconcertante.
- E não notaram nada de estranho no leite?
Elas haviam respondido quase em uníssono, repreendendo-o na voz tranquila do senso comum.
- Oh, não! Bem, se tivéssemos notado, com certeza não continuaríamos a verter o alimento, não acha?
- Lembram-se de ter tirado a cápsula da garrafa? Estava solta? Dois pares de olhos azuis olharam um para o outro, como que trocando um sinal. A seguir, Maureen respondeu:
- Não nos lembramos se estava. Mas, mesmo que estivesse, não teríamos suspeitado de que alguém tivesse mexido no leite. Havíamos de pensar pura e simplesmente que o leiteiro o tinha colocado assim.
Nessa altura Shirley falara por si:
- Acho que, fosse como fosse, não teríamos notado nada de mal no leite. Sabe, é que estávamos concentradas na administração do alimento, a certificar-nos de que tínhamos todos os instrumentos e aparelhagem de que precisávamos. Sabíamos que Miss Beale e a superintendente chegariam de um momento para o outro.
Era essa, evidentemente, a explicação. Tratavam-se de raparigas que tinham sido ensinadas a observar, mas a sua observação era específica e limitada. Se estivessem a vigiar um doente, não deixariam escapar nada dos seus sinais ou sintomas, fosse um bater de pálpebras, fosse uma alteração do pulso; qualquer outra coisa que acontecesse na sala, por mais dramática que fosse, passar-lhes-ia provavelmente despercebida. A atenção delas estivera concentrada na demonstração, na aparelhagem, no equipamento, no paciente. A garrafa de leite não apresentava problemas. Tinham-na tomado por garantida. E no entanto eram filhas de agricultor. Uma delas - fora Maureen - tinha mesmo vertido o líquido da garrafa. Poderiam realmente ter confundido a cor, a textura, o cheiro do leite?
Como se lhe lesse o pensamento, Maureen disse:
- Não é que nos tivesse sido possível detectar o cheiro do ácido fénico. Toda a sala de aulas práticas cheira a desinfectante que fede. Miss Collins encharca tudo dele como se fôssemos todas leprosas.
Shirley riu-se:
- O ácido fénico não é eficiente contra a lepra!
Olharam uma para a outra, sorrindo numa cumplicidade feliz.
E assim prosseguira a entrevista. Não tinham teorias a propor, nem tão-pouco sugestões a apresentar. Não sabiam de ninguém que pudesse querer a Fallon ou a Pearce mortas, e no entanto uma e outra morte - dado que tinham ocorrido - não pareciam provocar-lhes grande surpresa. Recordavam todas as palavras da conversa entre a enfermeira Brumfett e elas às primeiras horas dessa manhã, e contudo o encontro, aparentemente, não as impressionara grandemente. Quando Dalgliesh perguntou se a enfermeira tinha um ar invulgarmente preocupado ou aflito, fitaram-no simultaneamente, de sobrancelhas enrugadas de perplexidade, antes de responder que a enfermeira tinha o mesmíssimo ar de sempre.
Como se estivesse a seguir os pensamentos do chefe, Masterson disse:
- A não ser que lhes perguntasse de caras se a enfermeira Brumfett estava com cara de quem tivesse acabado de assassinar a Fallon, não podia ter posto as coisas de maneira mais clara. São uma parelha estranhamente pouco comunicativa.
- Pelo menos estão certas das horas. Foram buscar aquele leite pouco passava das sete horas e dirigiram-se imediatamente à sala de aulas práticas com ele. Poisaram a garrafa por abrir no carrinho de instrumentos enquanto se entregavam aos preparativos preliminares para a demonstração. Saíram da sala de aulas práticas às sete e vinte e cinco para irem tomar o pequeno-almoço e a garrafa estava ainda no carrinho quando regressaram, por volta das vinte para as nove, a fim de terminarem os preparativos. A seguir meteram-na, ainda por abrir, num jarro de água quente para a levar à temperatura do sangue, e ali ficou até verterem o leite da garrafa num copo de medida cerca de dois minutos antes da chegada de Miss Beale e da superintendente, com a respectiva comitiva. A maioria dos suspeitos estava reunida a tomar o pequeno-almoço entre as oito e as oito e vinte e cinco, de modo que a má acção ou foi cometida entre as sete e vinte e cinco e as oito horas, ou durante o curto espaço entre o final do pequeno-almoço e o regresso das gémeas à sala de aulas práticas.
- Continuo a achar estranho que elas não notassem nada de especial naquele leite - observou Masterson.
- Podem ter notado mais do que presentemente se dão conta. No fim de contas, é a enésima vez que contam a história. Ao longo das semanas desde a morte da Pearce, as suas primeiras declarações fixaram-se-lhes no espírito como sendo a verdade imutável. Foi por isso que não lhes fiz a pergunta crucial sobre a garrafa de leite. Se elas me fornecessem a resposta errada agora, nunca a modificariam. Há que lhes provocar um abalo que as faça recordar completamente. Não estão a ver nada do que sucedeu com um olhar novo. Não simpatizo nada com reconstituições do crime; fazem-me sempre sentir um detective de histórias. No entanto, acho que neste caso pode haver motivos para reconstituição. Tenho de estar amanhã cedo em Londres, mas você e o Greeson podem encarregar-se disso. Provavelmente, o Greeson vai-se divertir.
Disse sucintamente a Masterson o que pretendia e concluiu:
- Não vale a pena incluir as enfermeiras. Suponho que arranjará maneira de Miss Collins lhe fornecer uma provisão de desinfectante. Mas, por amor de Deus, mantenha o produto debaixo de olho e a seguir dê-lhe sumiço. Não queremos outra tragédia.
O sargento Masterson pegou nas duas chávenas e foi pô-las no lava-loiças, dizendo:
- A Nightingale House parece ter sido atingida pelo mau-olhado, mas não estou a ver o assassino a tentar mais alguma coisa enquanto estivermos por perto.
Esta observação havia de revelar-se singularmente má como profecia.
Desde o seu encontro com Dalgliesh na sala de uso geral das enfermeiras, ao princípio dessa manhã, a enfermeira Rolfe tivera tempo de se recompor do abalo e de ponderar a sua situação. Tal como Dalgliesh esperara, estava agora francamente menos acessível. Tinha já fornecido ao inspector Bailey um depoimento claro e sem ambiguidades acerca dos preparativos para a aula prática e a alimentação por entubação e sobre os seus próprios movimentos na manhã em que a estagiária Pearce morrera. Confirmou o depoimento com rigor e sem espalhafato. Concordou que tinha conhecimento prévio de que era a estagiária Pearce quem desempenharia o papel de paciente e observou sarcasticamente que de pouco valeria negar esse conhecimento, uma vez que fora ela quem Madeleine Goodale chamara quando a Fallon adoecera.
Dalgliesh perguntou:
- Teve alguma dúvida sobre a autenticidade da doença? -Na altura?
- Nessa ocasião ou agora.
- Creio que está a insinuar que a Fallon podia ter encenado uma gripe, a fim de se assegurar de que a Pearce tomava o seu lugar e regressar depois sub-repticiamente à Nightingale House antes do pequeno-almoço para adulterar o alimento, não? Não. sei por que razão ela realmente voltou, mas pode tirar da ideia qualquer suspeita de que estivesse a fingir-se doente. Nem a Fallon seria capaz de simular uma temperatura de quarenta graus, uma leve rigidez e o pulso acelerado. Nessa noite encontrava-se muito doente, e permaneceu doente durante perto de dez dias.
Dalgliesh observou que era mais estranho ela ter-se achado suficientemente bem para regressar à Nightingale House na manhã seguinte. A enfermeira Rolfe replicou que era tão estranho que apenas podia imaginar que a Fallon tivera uma necessidade imperiosa de lá voltar. Instigada a especular sobre que necessidade poderia ter sido essa, respondeu que não lhe competia apresentar teorias. Depois, como que submetida a uma compulsão, acrescentou:
- Mas não era para assassinar a Pearce. A Fallon era muito inteligente, de longe a mais inteligente do seu ano. Se a Fallon tivesse voltado atrás para introduzir o corrosivo no nutriente, dar-se-ia perfeitamente conta de que havia um risco considerável de ser vista na Nightingale House, mesmo que não dessem pela sua falta na enfermaria, e tomaria todas as precauções no sentido de ter uma história preparada. Não teria sido difícil inventar qualquer coisa. Tal como as coisas se passaram, consta-me que se recusou simplesmente a fornecer qualquer explicação ao inspector Bailey.
- Talvez fosse suficientemente esperta para se dar conta de que essa invulgar reticência despertaria a atenção de outra mulher inteligente exactamente nesse sentido.
- Uma espécie de duplo bluffi Não me parece. Seria apostar forte demais contra a inteligência da Polícia.
Admitiu calmamente que não dispunha de álibi para qualquer momento compreendido entre as sete da manhã, hora a que as gémeas tinham ido buscar a garrafa de leite à cozinha, até às nove, altura em que se tinha juntado à superintendente e a Mr. Courtney-Briggs na sala de estar de Miss Taylor aguardando a chegada de Miss Beale, a não ser para o período limitado entre as oito e as oito e vinte e cinco, durante o qual estivera a tomar o pequeno-almoço na mesma mesa com a enfermeira Brumfett e a enfermeira Gearing. A enfermeira Brumfett tinha-se levantado da mesa primeiro, e seguira-se-lhe ela, por volta das oito e vinte e cinco. Havia-se dirigido primeiramente ao seu gabinete, contíguo à sala de aulas práticas, mas, reparando que este se encontrava ocupado por Mr. Courtney-Briggs, regressara imediatamente ao seu quarto-sala de estar, no terceiro piso.
Quando Dalgliesh inquiriu se a enfermeira Gearing e a enfermeira Brumfett estavam com o seu ar habitual ao pequeno-almoço, ela retorquiu secamente que não exibiam sinais de mania homicida iminente, se era aí que ele pretendia chegar. A Gearing estava a ler o Daily Mirror e a Brumfett o Nursing Times, se isso tinha algum significado, e a conversa fora mínima. Lamentava não poder apresentar testemunhas dos seus próprios movimentos antes ou depois da refeição, mas isso era decerto compreensível: havia já alguns anos que preferia lavar-se e utilizar os sanitários em privado. Afora isso, apreciava o tempo livre antes do trabalho diário e preferia passá-lo sozinha.
Dalgliesh perguntou:
- Ficou admirada ao encontrar Mr. Courtney-Briggs no seu gabinete quando lá foi depois do pequeno-almoço?
- Nem por isso. Parti do princípio de que tinha passado a noite nos alojamentos dos médicos e viera cedo para a Nightingale House para esperar a inspectora do C. G. E. Provavelmente queria um sítio qualquer onde pudesse escrever uma carta. Mr. Courtney-Briggs arroga-se o direito de utilizar como gabinete particular qualquer compartimento do John Carpendar que lhe dê na cabeça.
Dalgliesh interrogou-a sobre os seus movimentos na noite anterior. Repetiu que tinha ido ao cinema sozinha mas desta vez aduziu que encontrara Julia Perdoe à saída e que haviam regressado juntas ao hospital. Haviam entrado pelo portão da Winchester Road, do qual tinha uma chave, e regressado à Nightingale House passava pouco das onze horas. Ela dirigira-se imediatamente para o seu quarto e não tinha falado com ninguém. Imaginava que a estagiária Pardoe ou tinha ido directa para a cama, ou se juntara ao resto do grupo na sala de estar das alunas de enfermagem.
- Portanto não tem nada para me dizer, senhora enfermeira? Nada que possa ajudar?
-Nada.
- Nem mesmo por que razão, por certo sem necessidade nenhuma, mentiu dizendo ter ido ao cinema sozinha?
- Nada. E não me parece que os meus assuntos particulares lhe digam minimamente respeito.
Dalgliesh tornou calmamente:
- Miss Rolf, morreram duas das suas alunas. Estou aqui para descobrir como e por que razão morreram. Se não quer colaborar, diga. Não é obrigada a responder às minhas perguntas. Mas não tente dizer-me quais são as perguntas que devo fazer. Quem está encarregado da investigação sou eu, e conduzo-a à minha maneira.
- Estou a ver. Estabelece as regras à medida que vai progredindo. A única coisa que podemos dizer é que não queremos jogar. Esse seu jogo é perigoso, Mr. Dalgliesh.
- Diga-me uma coisa sobre estas alunas. A senhora é a monitora-chefe; devem ter-lhe passado muitas raparigas pelas mãos. Penso que é uma boa avaliadora de pessoas. Vamos começar pela estagiária Goodale.
Se sentiu surpresa ou alívio ante a escolha dele, ocultou-o.
- Espera-se confiantemente que seja a Madeleine Goodale a conquistar a medalha de ouro para a melhor enfermeira do seu ano. É menos inteligente que a Fallon... do que a Fallon era, mas é trabalhadora e extremamente conscienciosa. É de cá. O pai é muito conhecido na vila: trata-se de um agente imobiliário extremamente bem sucedido que herdou uma empresa familiar fundada há muito. É membro do Conselho Municipal e fez parte da Comissão de Gestão do hospital durante uma série de anos. A Madeleine frequentou o liceu da terra e depois veio para cá. Não me parece que alguma vez tenha encarado a hipótese de qualquer outra escola de enfermagem. Toda a família tem uma grande lealdade à terra. Está noiva do jovem vigário da Santíssima Trindade e consta-me que projectam casar mal ela acabe o curso. Outra bela carreira perdida para a profissão, mas acho que ela lá sabe as suas prioridades.
- E as gémeas Burt?
- Boas raparigas, simpáticas e assisadas, com mais imaginação e sensibilidade do que normalmente lhes é reconhecido. Os pais são agricultores perto de Gloucester. Não sei bem por que razão escolheram este hospital. Tenho a impressão de que uma prima fez cá o curso e gostou. São o género de raparigas que escolheriam uma escola com esses fundamentos familiares. Não são particularmente inteligentes, mas também não são estúpidas. Graças a Deus, não somos obrigadas a ter cá raparigas estúpidas. Ambas têm namorado e a Maureen está noiva. Não me parece que qualquer delas encare a enfermagem como profissão permanente.
- Se este abandono automático com o casamento se tornar regra, vão começar a ter dificuldades em encontrar dirigentes para a profissão - observou Dalgliesh.
-Já agora temos dificuldades - redarguiu ela secamente. - Em quem mais está interessado?
- Na estagiária Dakers.
- Pobre pequena! Outra rapariga da terra, mas com antecedentes muito diferentes da Goodale. O pai era um modesto funcionário do governo aqui na terra que morreu com um cancro, tinha ela doze anos. A mãe tem vivido desde então com dificuldades, de uma magra pensão. A rapariga foi educada na mesma escola que a Goodale, mas nunca foram amigas, tanto quanto sei. A Dakers é uma aluna conscienciosa e trabalhadora, com muita ambição. Há-de ter resultados satisfatórios, mas nunca mais do que isso. Cansa-se com facilidade, não é propriamente robusta. As pessoas consideram-na tímida e altamente emotiva, seja lá o que for que esse eufemismo significa. Mas a Dakers é suficientemente rija. Não se esqueça de que é uma aluna do terceiro ano. Nenhuma rapariga chega tão longe no curso se for fundamentalmente fraca, quer mental, quer fisicamente.
- A JuliaPardoe?
A enfermeira Rolfe conseguira já atingir completo domínio sobre si própria e não se registou qualquer alteração na sua voz ao prosseguir.
- É filha única de pais divorciados. A mãe é uma daquelas mulheres bonitas mas egoístas que acham impossível permanecer muito tempo com o mesmo marido. Penso que já vai no terceiro. Não tenho a certeza se a rapariga sabe realmente quem é o pai. Não passou lá muito tempo em casa. A mãe pô-la numa escola pré-primária aos cinco anos. Teve uma vida escolar agitada e veio para cá directamente do sexto ano de um desses colégios internos independentes para raparigas, onde não lhes ensinam nada mas elas conseguem aprender uma porção de coisas. Começou por concorrer a um dos hospitais escolares de Londres. Não conseguiu corresponder às exigências de admissão de lá, quer social, quer academicamente, mas a superintendente encaminhou-a para aqui. As escolas do género da nossa tem este tipo de contrato com os hospitais escolares. Eles têm doze concorrentes para cada lugar. Trata-se essencialmente de snobismo e de esperanças de caçar marido. Nós ficamos bem felizes por admitir parte das que eles rejeitam; suspeito que muitas vezes dão melhores enfermeiras do que aquelas que eles admitem. A Pardoe foi uma delas. É um espírito inteligente mas por adestrar. Uma enfermeira meiga e atenciosa.
- Sabe muito sobre as suas alunas.
- Faço por isso. Mas espero não ter de expender opinião sobre as minhas colegas.
- A enfermeira Gearing e a enfermeira Brumfett? Não. Mas gostaria de saber a sua opinião sobre a estagiária Fallon e a estagiária Pearce.
- Sobre a Fallon, pouco lhe posso dizer. Era uma rapariga reservada, quase sigilosa. Inteligente, claro, e mais madura do que a maioria das alunas. Parece-me que só tive uma conversa pessoal com ela. Foi no final do primeiro ano, quando a convoquei para uma entrevista e lhe perguntei as suas impressões sobre a enfermagem. Estava interessada em saber que reacção provocavam os nossos métodos numa rapariga tão diferente do nosso love habitual de alunas acabadas de vir da escola. Respondeu-me que não era justo fazer um juízo enquanto não se passava de uma aprendiz e se era tratada como uma criada de cozinha atrasada mental, mas mesmo assim pensava que a enfermagem era a sua profissão. Perguntei-lhe o que lhe tinha despertado a atracção pela profissão e ela respondeu-me que queria adquirir habilitações que a tornassem independente em qualquer parte do mundo, uma qualificação da qual houvesse sempre procura. Não me parece que tivesse qualquer ambição específica a atingir na profissão. O curso limitava-se, para ela, a um meio de atingir um fim. Mas pode ser que me engane. Como disse, nunca a conheci propriamente.
- Portanto não pode dizer se ela tinha inimigos?
- Não posso dizer se alguém quereria matá-la, se é isso que quer dizer. Sempre me pareceu que a Pearce fosse uma vítima muito mais provável.
Dalgliesh perguntou-lhe porquê.
- Não simpatizava com a Pearce. Não a matei, mas a verdade é que não sou atreita a assassinar as pessoas pelo simples facto de antipatizar com elas. Mas era uma rapariga estranha, uma semeadora de discórdia e uma hipócrita. Não vale a pena perguntar-me como é que sei. Não tenho nenhuma prova autêntica e, se tivesse, duvido que lha fornecesse.
- Portanto não constituiu surpresa para si o facto de ela ter sido assassinada?
- Achei-o assombroso. Mas nem por um momento pensei que a morte dela fosse suicídio ou acidente.
- E quem é que acha que a matou?
A enfermeira Rolf e olhou para ele com uma espécie de lúgum bre satisfação.
- Diga-me o senhor, inspector. Diga-me o senhor!
- Portanto ontem à noite foi ao cinema, e sozinha?
- Sim, já lho disse.
- Para ver uma reposição de L’Avventura. Terá porventura pensado que era mais fácil apreender as subtilezas de Antonioni sem companhia? Ou não terá arranjado ninguém que estivesse na disposição de ir consigo?
É claro que ela não podia resistir àquilo.
- Se eu quiser, arranjo montes de pessoas para me levarem ao nimas.
Ao nimas. Quando Dalgliesh tinha a idade dela, era o cinema. Mas o fosso entre gerações era mais fundo do que uma questão de simples semântica, a alienação mais completa. Não tinha a mais leve ideia do que se passaria por detrás daquela testa lisa e infantil. Não a compreendia, pura e simplesmente. Os notáveis olhos azul-violeta, bem afastados um do outro sob as sobrancelhas curvas, fitavam-no, circunspectos mas imperturbados. O rosto felino, com o pequeno queixo arredondado e os malares largos, não exprimia nada a não ser uma vaga repugnância pela questão em apreço. Era difícil, pensou Dalgliesh, alguém idealizar a visão de uma figura mais bonita ou mais agradável do que Julia Pardoe junto do seu leito de doente; a menos, evidentemente, que estivesse realmente em sofrimento ou em aflição, ocasião em que o sólido bom senso das gémeas Burt ou a calma eficiência de Madeleine Goodale seriam bem mais aceitáveis. Podia ser um preconceito pessoal, mas não conseguia imaginar nenhum homem a expor voluntariamente a sua fraqueza ou miséria física àquela jovem insolente e egoísta. E que seria precisamente, perguntou de si para si, que ela obtinha da enfermagem? Se o John Carpendar fosse um hospital escolar, poderia compreendê-lo. Aquela habilidade de arregalar os olhos ao falar, de tal modo que o interlocutor era brindado com um súbito flamejar de azul, de lábios húmidos levemente descerrados por sobre os regulares dentes ebúrneos, iria muito bem num grupo de estudantes de medicina.
Não deixava, pensou, de produzir o seu efeito no sargento Masterson.
Mas o que fora que a enfermeira Rolf e dissera a respeito dela?
”Um espírito inteligente mas por adestrar; uma enfermeira meiga e atenciosa.”
Bom, podia ser. Mas Hilda Rolfe era preconceituosa. E Dalgliesh, à sua própria maneira, era-o também.
Continuou o interrogatório, resistindo ao impulso de ser sarcástico, de ceder às reles zombarias da antipatia.
- Gostou do filme ?
- Não era mau.
- E quando regressou à Nightingale House desse filme que não era mau?
- Não sei. Faltava pouco para as onze, acho eu. Encontrei Miss Rolfe à saída do cinema e regressámos juntas a pé. Presumo que ela lhe tenha contado.
Portanto, devem ter falado uma com a outra depois desta manhã. Era esta a história delas, e a rapariga estava a repeti-la, sem sequer fingir importar-lhe que acreditassem nela ou não. Claro que aquilo poderia ser verificado. A rapariga da bilheteira do cinema podia lembrar-se do facto de elas terem chegado juntas ou não. Mas quase não merecia a pena investigar. Que importância tinha, efectivamente, a menos que elas tivessem passado a noite a forjar o assassínio ao mesmo tempo que absorviam cultura? E, se assim tivesse sido, ali estava uma companheira na iniquidade que aparentemente não se preocupava.
- Que sucedeu quando regressaram? - perguntou Dalgliesh.
- Nada. Fui para a sala de estar das estagiárias e estavam todas a ver TV. Bem, para dizer a verdade, desligaram-na quando eu cheguei. As gémeas Burt vieram fazer chá à cozinha das estagiárias e levámo-lo para o quarto da Maureen a fim de o bebermos. A Madeleine Goodale ficou com a Fallon. Não sei a que horas subiram. Eu fui para a cama logo a seguir a tomar o chá. Adormeci antes da meia-noite.
Podia ser que sim. Mas tinha sido um assassínio muito simples. Não houvera nada que a impedisse de esperar, porventura num dos cubículos dos lavabos, até ouvir a Fallon pôr o banho a correr. Uma vez a Fallon na casa de banho, a estagiária Pardoe saberia o que todas as outras alunas sabiam: que na mesa-de-cabeceira da Fallon estaria uma caneca com uísque e limão à espera. Como era simples qualquer pessoa infiltrar-se no quarto e juntar qualquer coisa à bebida! Juntar o quê? Era de enlouquecer, aquele trabalhar no escuro com a sua inevitável tendência para teorizar em antecipação aos factos. Antes de terminada a autópsia e de se poder dispor dos resultados da toxicologia, nem sequer podia ter a certeza de estar a investigar um homicídio.
Subitamente mudou de rumo, retomando um curso anterior de inquirição.
- Lamenta a morte da estagiária Pearce?
De novo os olhos arregalados, a pequena moue1 de meditação, a sugestão de que se tratava de uma pergunta assaz disparatada.
- Claro que sim. - Uma ligeira pausa. - Ela nunca me tinha feito mal nenhum.
- E tinha feito mal a alguém?
- O melhor é perguntar às pessoas. - Outra pausa. Talvez achasse que tinha sido imprudentemente disparatada e desabrida.
- Que mal podia a Pearce fazer a quem quer que fosse?
Pronunciou a frase sem vestígios de desprezo, quase com desinteresse, a simples enunciação de um facto.
- Alguém a matou. Isso não dá a entender que ela fosse inócua. Alguém devia odiá-la o bastante para querer fazê-la desaparecer da circulação.
- Pode ter-se suicidado. Quando engoliu aquela sonda, sabia com certeza o que a esperava. Estava aterrorizada. Qualquer pessoa que a observasse podia verificá-lo.
Julia Pardoe era a primeira aluna a referir o medo da estagiária Pearce. A única outra pessoa presente que dera por tal fora a inspectora do Conselho Geral de Enfermagem, a qual, no seu depoimento, tinha sublinhado o ar de apreensão, quase de sofrimento, da rapariga. Era interessante e surpreendente a estagiária Pardoe ter sido tão observadora. Dalgliesh perguntou:
- Mas acredita realmente que tenha sido ela própria a introduzir um veneno corrosivo no alimento?
Os olhos azuis cruzaram-se com os dele, e a rapariga endereçou-lhe o seu sorrisinho secreto.
- Não. A Pearce ficava aterrorizada sempre que tinha de fazer as vezes de paciente. Detestava-o. Nunca dizia nada, mas qualquer pessoa era capaz de ver o que ela sentia. Engolir a sonda deve ter sido particularmente desagradável para ela. Disse-me uma vez que não era capaz de suportar a ideia de um exame ou uma operação à garganta. Em criança tinha tirado as amígdalas e o médico... ou talvez tenha sido uma enfermeira... foi duro com ela e magoou-a muito. Fosse como fosse, tinha sido uma experiência horrível, que lhe provocara aquela fobia relativamente à garganta. Claro que podia ter explicado isto à enfermeira Gearing e qualquer uma de nós tomaria o seu lugar. Não era obrigada a fazer o papel de paciente. Ninguém a forçava a isso. Mas acho que a Pearce pensou que era seu dever ir até ao fim. Tinha uma tremenda noção do dever.
Com que então, todas as presentes podiam ter visto o que a Pearce sentia. Efectivamente, porém, só duas o tinham visto. E uma delas fora aquela jovem aparentemente insensível.
Dalgliesh sentiu-se intrigado, mas não particularmente surpreendido, com o facto de a estagiária Pearce ter resolvido fazer confidências a Julia Pardoe. Já não era a primeira vez que se lhe deparava aquela perversa atracção que as pessoas possuidoras de beleza e popularidade experimentavam pelas desengraçadas e desprezadas. Por vezes era mesmo correspondida: uma estranha fascinação mútua que, suspeitava ele, constituía o fundamento de muitas amizades e casamentos que o mundo achava inexplicáveis. Porém, se Heather Pearce estivera a fazer uma patética tentativa de conquistar amizade ou simpatia por meio de um relato de infortúnios da infância, não tivera sorte. Julia Pardoe respeitava a força, e não a fraqueza. Seria insensível a rogos de piedade. E contudo - quem sabe? - talvez a Pearce tivesse obtido alguma coisa dela. Não amizade, nem simpatia, nem sequer piedade, mas um tudo-nada de compreensão.
Cedendo a um súbito impulso, ele disse:
- Acho que a menina provavelmente sabia mais da estagiária Pearce do que qualquer outra pessoa daqui, e provavelmente compreendia-a melhor. Não acredito que a morte dela fosse suicídio, e a menina tão-pouco. Quero que me conte tudo acerca dela que possa ajudar-me a descobrir um motivo.
Houve uma segunda pausa. Seria imaginação sua, ou ela estava realmente a resolver-se a dizer qualquer coisa? A seguir ela disse naquela voz aguda, pouco enérgica e infantil:
- Imagino que andava a exercer chantagem sobre alguém. Tentou-o relativamente a mim uma vez.
- Conte-me isso.
Ela ergueu especulativamente o olhar para ele, como que a avaliar se ele seria digno de confiança ou perguntando a si própria se a história tinha importância suficiente para que valesse a pena contá-la. Depois, os lábios arquearam-se-lhe num pequeno sorriso reminiscente, e disse calmamente:
- Há cerca de um ano, o meu namorado passou uma noite comigo. Não aqui; no lar principal das enfermeiras. Abri uma das portas de saída de incêndio e deixei-o entrar. Para dizer a verdade, fizemo-lo por pirraça.
- Tratava-se de alguém do John Carpendar?
- Hum, hum. Um dos cirurgiões internos.
- E como foi que a Heather Pearce descobriu?
- Foi na noite da véspera dos nossos preliminares: o primeiro exame para o registo oficial. A Pearce tinha sempre dores de estômago antes das provas. Creio que percorria o corredor para ir à casa de banho e viu-me a abrir a porta ao Nigel. Ou então podia estar de volta para a cama e ter-se posto a escutar à porta. Talvez nos ouvisse às risadinhas, ou coisa que o valha. Imagino que ficou a ouvir durante todo o tempo que pôde. Pergunto a mim própria o que pensou ela que fosse. Nunca ninguém quis fazer amor com a Pearce, de maneira que suponho que ficava toda entusiasmada só de ouvir alguém na cama com um homem. Seja como for, atacou-me acerca disso na manhã seguinte e depois ameaçou contar à superintendente e fazer com que me expulsassem da escola de enfermagem.
Falava sem ressentimento, quase com uma ponta de divertimento. Aquilo não a tinha incomodado na altura, nem a incomodava presentemente.
- E que preço pedia ela pelo silêncio?
Não tinha dúvidas de que, fosse qual fosse o preço, não fora pago.
- Disse que ainda não tinha decidido; teria de pensar nisso. Haveria de ser adequado. Só queria que visse a cara dela. Estava toda molhada e vermelha como um pavão enjoado. Não sei como consegui manter-me séria. Fingi estar terrivelmente ralada e contrita e perguntei-lhe se quereria conversar sobre isso nessa noite. Isto destinava-se apenas a proporcionar-me o tempo suficiente para entrar em contacto com o Nigel. Ele vivia com a mãe viúva mesmo à saída da vila. Ela adora-o e eu sabia que não poria qualquer entrave a jurar que ele passara a noite em casa. Nem sequer se importaria com o facto de termos estado juntos. Acha que o seu precioso Nigel tem o direito de se apropriar de tudo aquilo de que goste. Mas eu não queria que a Pearce falasse antes de poder combinar tudo isso. Quando me encontrei com ela nessa noite, disse-lhe que ambos desmentiríamos completamente a história e que o Nigel apoiaria esse desmentido com um álibi. Ela não se tinha lembrado da mãe. E havia outra coisa de que tão-pouco se tinha lembrado. O Nigel é sobrinho de Mr. Courtney-Briggs. Assim, se ela falasse, o mais que sucederia era Mr. Courtney-Briggs arranjar maneira de ela ser expulsa, e não eu. Realmente, a Pearce era tremendamente estúpida.
- A menina parece ter enfrentado a questão com admirável eficiência e compostura. Então nunca chegou a saber que castigo lhe reservava a Pearce?
- Ah, claro que cheguei! Deixei-a falar antes de lhe contar aquilo. Assim tinha mais graça. Não era uma questão de castigo; estava mais perto da chantagem. Queria juntar-se a nós, fazer parte da minha seita.
- A sua seita?
- Bem, eu, a Jennifer Blain e a Diane Harper, exactamente. Na altura eu andava com o Nigel, e a Diane e a Jennifer tinham os seus amigos. Não conhece a Blain: é uma das estagiárias que estão com a gripe. A Pearce queria que lhe arranjássemos um rapaz para poder ser o quarto par.
- Achou isso surpreendente? Pelo que tenho ouvido dela, Heather Pearce não era exactamente o tipo de rapariga que se interessasse pelo sexo.
- Toda a gente se interessa pelo sexo, cada pessoa à sua maneira. Mas a Pearce não colocou as coisas nesse pé. Partia do princípio de que nós as três não éramos de confiança e tínhamos de ter alguém em quem se pudesse confiar para nos vigiar. Escusado será dizer de quem se tratava! Mas o que ela queria realmente, sei eu. Queria o tom Mannix, que era na altura o interno de pediatria. Para dizer a verdade, era um fulano cheio de sinais e bastante papa-açorda, mas a Pearce tinha um fraquinho por ele. Pertenciam ambos à Sociedade Cristã e o tom ia ser missionário ou coisa assim, terminados os seus dois anos aqui. Estaria mesmo bem para a Pearce, e estou em crer que teria conseguido que ele saísse com ela uma ou duas vezes, se o pressionasse. Mas isso não lhe faria bem nenhum a ela. Ele não queria a Pearce; queria-me a mim. Bem, o senhor sabe como é.
Dalgliesh sabia, realmente. No fim de contas, tratava-se da mais vulgar, mais banal das tragédias pessoais. Uma pessoa gostava de alguém. Esse alguém não gostava da pessoa. Pior ainda, em detrimento dos seus melhores interesses e para destruição da paz da pessoa, amava outra. Que fariam metade dos poetas e romancistas do mundo sem esta tragicomédia universal? Mas Julia Pardoe não se deixava comover por ela. Se ao menos, pensou Dalgliesh, a voz dela contivesse um vestígio de piedade, ou sequer interesse! Mas a desesperada necessidade da Pearce, a sua ânsia de amor que a levara àquela patética tentativa de chantagem, não provocava qualquer efeito na sua vítima, nem ao menos um divertido desprezo. Nem sequer se incomodava a pedir-lhe a ele que mantivesse a história em sigilo. E então, como se lhe lesse os pensamentos, disse-lhe porquê.
- Agora não me importa que o senhor saiba. Por que me havia de importar? No fim de contas, a Pearce está morta. E a Fallon também. Quero eu dizer, com dois assassínios na casa, a superintendente e a Comissão de Gestão do hospital têm coisas mais importantes para se preocuparem do que com o facto de eu e o Nigel termos ido para a cama. Mas quando penso nessa noite!... Palavra que dava vontade de rir. A cama era estreitíssima e chiava imenso, e o Nigel e eu ríamos tanto que mal... E pensar na Pearce de olho colado ao buraco da fechadura!
Nessa altura, riu-se. Era uma gargalhada de alegria espontânea e reminiscente, inocente e contagiosa. Erguendo o olhar para ela, o rosto sisudo de Masterson coruscou num rasgado esgar indulgente e, por um segundo invulgar, ele e Dalgliesh tiveram de fazer um esforço para não se desatarem a rir em coro com ela.
Dalgliesh não tinha convocado os membros do pequeno grupo para a biblioteca por nenhuma ordem especial e não fora com maldade premeditada que deixara a enfermeira Gearing para o fim de tudo. Porém, a longa espera tinha sido cruel para ela. Era visível que arranjara tempo, de manhã cedo, para se pintar com extremo cuidado; sem dúvida como instintiva preparação para quaisquer encontros traumáticos que o dia pudesse proporcionar. No entanto a pintura tinha saído em grande parte. O rímel derretera e agora tinha-se fundido e esborratado com a sombra dos olhos, havia gotas de suor pela testa fora e um vestígio de baton na cova do queixo. Talvez tivesse estado inconscientemente a mexer na cara. Não havia dúvidas de que experimentava dificuldade em manter as mãos quietas. Sentada, retorcia o lenço entre os dedos e cruzava e voltava a cruzar as pernas num nervoso desassossego. Sem esperar que Dalgliesh falasse, prorrompeu numa frenética tagarelice em voz aguda:
- O senhor e o seu sargento estão hospedados na estalagem Falconer’s Arms, dos Maycrofts, não é verdade? Espero que eles estejam a proporcionar-lhes todo o conforto. A Sheila é um bocado chata, mas o Bob é boa pessoa, quando a gente o apanha sozinho.
Dalgliesh tomara todas as precauções para não apanhar Bob sozinho. Tinha escolhido a Falconer’s Arms por ser pequena, cómoda e tranquila e encontrar-se meio vazia; e não tardara a descobrir porquê. O comandante de agrupamento Robert Maycroft e a mulher preocupavam-se mais em impressionar os visitantes com a sua própria nobreza do que em velar pelo conforto dos hóspedes, e Dalgliesh esperava ardentemente ver-se livre da estalagem lá para o fim da semana. Entretanto não fazia tenção de comentar os Maycrofts perante a enfermeira Gearing e conduziu-a, cortês mas firmemente, para questões mais relevantes.
Ao contrário dos outros suspeitos, ela achou necessário consumir os primeiros cinco minutos a expressar o seu horror perante a morte das duas raparigas. Tudo aquilo tinha sido muitíssimo horrível, trágico, terrível, sinistro, brutal, inesquecível, inexplicável. A emoção, pensou Dalgliesh era bem genuína, conquanto a sua expressão não fosse original. A mulher encontrava-se autenticamente desolada. Suspeitava que devia estar também muito assustada.
Transportou-a aos acontecimentos de segunda-feira, 12 de Janeiro. Ela tinha pouca coisa de novo e com interesse para narrar, e o seu relato condizia com aquilo que estava já registado. Tinha acordado muito tarde, vestira-se à pressa e conseguira por pouco chegar lá abaixo à sala de jantar às oito horas. Aí, juntara-se à enfermeira Brumfett e à enfermeira Rolfe durante o pequeno-almoço e soubera pela boca daquelas que a estagiária Fallon tinha adoecido durante a noite. Dalgliesh perguntou-lhe se recordava qual das enfermeiras lhe tinha dado a notícia.
- Bem, não posso dizer que me recorde exactamente. Penso que foi a Rolfe, mas não tenho bem a certeza. Nessa manhã estava um bocadinho baralhada, sabe, por causa de umas tantas coisas. O facto de me ter deixado dormir não tinha contribuído para melhorar nada, e claro que estava um pouco nervosa com a inspecção do Conselho Geral de Enfermagem. No fim de contas, não sou enfermeira monitora habilitada. Estava simplesmente a substituir a enfermeira Manning. E já é suficientemente mau dar a primeira aula prática a um grupo, quanto mais ter a superintendente e a inspectora do C. G. E., Mr. Courtney-Briggs e a enfermeira Rolfe ali sentados com os olhos postos no menor dos nossos movimentos. Dei-me conta de que, com a falta da Fallon, apenas restariam cerca de sete estagiárias no grupo. Bem, isso para mim era óptimo; pela parte que me tocava, quantas menos fossem, melhor. Só esperava que os estafermozinhos soubessem responder e revelassem alguma inteligência.
Dalgliesh perguntou-lhe quem tinha saído primeiro da sala de jantar.
- Foi a Brumfett. Morta como de costume por voltar para a sua enfermaria, acho eu. A seguir saí eu. Levei os meus apontamentos para a estufa juntamente com uma chávena de café e sentei-me a dar-lhes uma leitura de dez minutos. Estavam lá a Christine Dakers, a Diane Harper e a Julia Pardoe. A Harper e a Pardoe estavam a conversar uma com a outra, e a Dakers estava sentada sozinha a ler uma revista. Não fiquei muito tempo e quando saí ainda lá estavam. Subi ao meu quarto por volta das oito e meia, recolhendo de caminho a minha correspondência, e a seguir voltei a descer e fui direita à sala de aulas práticas, era quase um quarto para as nove. As gémeas Burt estavam já na sala a ultimar os preparativos e a Goodale chegou quase de imediato. O resto do grupo entrou todo ao mesmo tempo por volta das dez para as nove, excepto a Pearce, que só chegou à última hora. Houve o costumado tagarelar das raparigas antes de nos lançarmos ao trabalho, mas não me recordo de nada do que se disse. O resto já o senhor sabe.
Dalgliesh sabia-o, de facto. Porém, achando embora pouco provável obter algo de novo do testemunho da enfermeira Gearing, voltou a remetê-la aos acontecimentos da traumatizante aula prática. No entanto, ela não tinha nada de inédito a revelar. Tudo aquilo fora muitíssimo horroroso, terrível, sinistro, pavoroso, inacreditável. Enquanto vivesse, nunca o esqueceria.
Nessa altura Dalgliesh passou à morte da Fallon. Aí, porém, a enfermeira Gearing tinha uma surpresa para ele. Era a primeira pessoa suspeita a fornecer um álibi, ou aquilo que visivelmente esperava que o fosse, e apresentou-o com compreensível satisfação. Das oito até depois da meia-noite tinha estado na companhia de um amigo no quarto. Forneceu o seu nome a Dalgliesh com tímida relutância. Era Leonard Morris, o farmacêutico-chefe do hospital. Convidara-o para jantar, confeccionara uma refeição simples de espaguete à bolonhesa na cozinha das enfermeiras, no terceiro piso, e servira-a na sua sala de estar às oito horas, pouco após a chegada dele. Tinham estado juntos durante essas quatro horas, descontando os escassos minutos em que ela fora buscar o prato à cozinha, um par de minutos por volta da meia-noite em que ele tinha ido à casa de banho e um período semelhante, a uma hora anterior, em que ela o deixara com o mesmo objectivo. Afora isso nunca tinham deixado de estar à vista um do outro. Aduziu avidamente que Len - queria dizer, Mr. Morris - teria o maior prazer em confirmar a sua história. Len havia de lembrar-se perfeitamente das horas. Como farmacêutico que era, anotava os pormenores com precisão e rigor. O único problema era que nessa manhã não se encontrava no hospital. Tinha telefonado para a farmácia momentos antes das nove dizendo estar doente. Mas havia de estar de volta ao trabalho amanhã, disso ela tinha a certeza. Len detestava faltar.
Dalgliesh perguntou a que horas tinha ele realmente abandonado a Nightingale House.
- bom, não havia de passar muito da meia-noite. Lembro-me de que, quando o relógio bateu a meia-noite, o Len disse que realmente eram horas de ir andando. Saiu cerca de cinco minutos depois, pela escadaria das traseiras, a que servia o apartamento da superintendente. Deixei a porta aberta: o Len recolheu a bicicleta do sítio onde a tinha deixado e eu acompanhei-o a pé até à primeira curva do caminho. Não estava propriamente noite para passeios, mas ainda tínhamos um ou dois assuntos do hospital a discutir (o Len dá aulas de farmacologia ao segundo ano) e eu pensei que me sabia bem apanhar um pouco de ar. O Len não queria que eu voltasse para trás sozinha, de modo que tornou comigo até à porta. Suponho que seria para aí meia-noite e um quarto quando finalmente nos separámos. Entrei pela porta da superintendente e fechei-a à chave depois de entrar. Fui direita ao meu quarto, levei a loiça do jantar para a cozinha para a lavar, fui à casa de banho e à uma menos um quarto estava deitada. Não vi a Fallon durante toda a noite. A seguir, a única coisa de que me lembro é da enfermeira Rolfe a acordar-me precipitadamente com a notícia de que a Dakers tinha encontrado a Fallon morta na cama.
- Portanto a senhora saiu e regressou pelo apartamento de
Miss Taylor. Nessa altura a porta dela tinha ficado por fechar?
- Ah, pois claro! Normalmente, a superintendente deixa-a aberta quando sai. Sabe que nós achamos cómodo e mais discreto utilizar a escadaria dela. No fim de contas, somos mulheres adultas. Não somos propriamente proibidas de receber amigos nos nossos aposentos, e não é lá muito agradável fazê-los sair pelo edifício principal, com todas as estagiariazinhas a deitar o olho. Assim, a superintendente é uma jóia. Penso que até deixa a sala de estar dela aberta quando não está na Nightingale House.
Creio que é para a enfermeira Brumfett a utilizar se lhe apetecer.
A Brumfett, se por acaso ainda não o sabem, é a cadelinha da superentendente.
A maioria das superintendentes tem um cãozinho, sabe? A Mary Taylor tem a Brumfett.
A nota de azedo cinismo era tão inesperada que a cabeça de Masterson se ergueu da tarefa de tirar apontamentos com um repelão e fitou a enfermeira Gearing como se ela fosse um candidato pouco promissor que de súbito houvesse revelado potencialidades inesperadas. Mas Dalgliesh deixou passar e perguntou:
- Ontem à noite, a enfermeira-chefe Brumfett estava a utilizar o apartamento da superintendente?
- À meia-noite? A Brumfett, nem pensar! Deita-se sempre cedo, a não ser quando anda na vila na gandaia com a superintendente. Normalmente prepara a última chávena de chá lá para as dez e um quarto. Seja como for, ontem à noite foi chamada. Mr. Courtney-Briggs telefonou a pedir-lhe que fosse à enfermaria particular receber um dos seus doentes acabado de sair do bloco operatório. Julguei que toda a gente sabia. Foi pouco antes da meia-noite.
Dalgliesh perguntou se a enfermeira Gearing a tinha visto.
- Não, mas o meu amigo sim. O Len, quero eu dizer. Deitou a cabeça de fora da porta a ver se o caminho estava livre para ir à casa de banho antes de saírmos e viu a Brumfett embrulhada na capa, com aquela velha saca, desaparecendo pela escada abaixo. Era evidente que ia a sair, e imaginei que tivesse sido chamada à enfermaria. Trata-se de algo que está sempre a acontecer à Brumfett. Repare que, em parte, é culpa dela. Há uma coisa que se chama ser demasiadamente conscienciosa.
Não era, pensou Dalgliesh, defeito a que a enfermeira Gearing devesse ser propensa. Era difícil imaginá-la palmilhando o terreno à meia-noite em plena invernia respondendo ao apelo fortuito de qualquer médico, por mais eminente que fosse. Mas sentia uma certa pena dela. Tinha-lhe fornecido um deprimente relance da neutralizante falta de privacidade e das pequenas mesquinharias e subterfúgios com os quais as pessoas que vivem numa proximidade indesejada tentam preservar a sua intimidade ou imiscuir-se na das outras. A ideia de um homem feito a espreitar sub-repticiamente pela porta antes de sair, de dois amantes adultos esgueirando-se furtivamente por umas escadas das traseiras para não serem detectados era grotesca e humilhante. Recordou as palavras da superintendente. ”Uma pessoa fica a saber coisas; não há verdadeira privacidade.” Até a bebida que a pobre Brumfett costumava tomar antes de se deitar e a hora a que habitualmente se recolhia eram do conhecimento geral. Não era de admirar que a Nightingale House gerasse a sua própria espécie de neurose, que a enfermeira Gearing achasse necessário justificar um passeio com o amante pelos terrenos, o seu óbvio e natural desejo de prolongar as derradeiras boas-noites com o pouco convincente palavrório sobre a necessidade de discutir assuntos do hospital. Achava tudo aquilo profundamente depressivo e não sentiu pena quando chegou a altura de a dispensar.
Dalgliesh gostou bastante da sua meia hora com a governanta, Miss Martha Collins. Era uma mulher magra, de tez acastanhada, frágil e nodosa como um ramo morto, com o ar de alguém a quem a seiva tivesse secado há muito nos ossos. Dava a impressão de ter encolhido gradualmente dentro da roupa sem de tal se ter apercebido. O fato de trabalho que envergava, de grosso algodão ruço, pingava-lhe em compridos vincos dos ombros estreitos até às barrigas das pernas e estava amarrado na cintura com um cinto de estudante às listas vermelhas e azuis apertado com uma fivela de serpente. As meias eram um harmónio à volta dos tornozelos e ou ela gostava de usar sapatos pelo menos dois números acima, ou tinha os pés curiosamente desproporcionados relativamente ao resto do corpo. Aparecera mal a tinham chamado, abatera-se pesadamente na cadeira defronte de Dalgliesh, com os enormes pés firmemente assentes e escarranchados, e fitara-o com antecipatória malevolência, como se se preparasse para entrevistar uma criada particularmente recalcitrante. Ao longo da entrevista, não sorriu uma única vez. Não havia reconhecidamente nada na situação susceptível de provocar divertimento, mas ela parecia incapaz de esboçar sequer o mais fugaz sorriso de reconhecimento formal. Apesar destes preliminares pouco auspiciosos, porém, a entrevista não correra mal. Dalgliesh perguntava a si próprio se o tom acidulado e a aparência perversamente desprovida de atractivos da mulher não fariam parte de uma personalidade calculada. Talvez quarenta anos atrás ela tivesse decidido tornar-se uma personagem do hospital, o adorado tirano da ficção, tratando toda a gente, da superintendente à mais humilde criada, com igual irreverência, e houvesse achado a caracterização tão bem-sucedida e satisfatória que nunca mais conseguisse libertar-se dela. Resmungava incessantemente mas era sem maldade, uma simples questão de forma. Dalgliesh suspeitava, na realidade, de que ela gostava do seu trabalho e não era tão infeliz nem tão insatisfeita como pretendia parecer. Dificilmente se teria mantido naquele lugar durante quarenta anos se ele fosse tão sofrível como o fazia passar por ser.
- Leite! Não me fale cá de leite! O leite nesta casa dá mais complicações do que todo o resto dos víveres juntos, e isto diz alguma coisa. Despachamos quinze quartilhos por dia cá na casa, mesmo com metade do pessoal doente com a gripe. Não me pergunte onde tudo isso vai parar. Deixei de ser responsável por ele e bem o disse à superintendente. Há um par de garrafas que vai logo de manhãzinha para o piso das enfermeiras, para elas poderem preparar o chá da manhã. Mando lá para cima entre duas e três garrafas. Seria de pensar que chegassem para toda a gente. Claro que a da superintendente é à parte. Ela recebe um quartilho e nem mais uma mísera gota. Mas as complicações que o leite provoca! Suponho que a primeira enfermeira ao recebê-lo retira toda a nata. Não é lá muito delicado, e eu bem o disse à superintendente. Muita sorte têm elas em receber uma ou duas garrafas de leite Channel Island; é coisa que não sucede a mais ninguém da casa. É só reclamações. A enfermeira Gearing a dar-lhe que o leite é demasiado aguado para ela, a enfermeira Brumfett que não é todo Channel Island e a enfermeira Rolfe a querer que lho mandem em garrafas de meio quartilho, coisa que sabe tão bem como eu que já não se encontra. Depois há o leite para o chá da manhã das estagiárias e aquele cacau e lá o que é que elas preparam à noite. Está previsto elas registarem as garrafas que tiram do frigorífico. A coisa não é restrita, mas a regra é essa. Pois bem, vá o senhor dar uma vista de olhos no livro de registo! Nove em cada dez vezes, não se dão ao trabalho de escrever nada. E depois há o vasilhame. Está previsto passarem-no por água e devolvê-lo à cozinha. Dá a ideia de que não seria uma maçada por aí além. Em vez disso, deixam as garrafas pela casa toda, nos quartos, nos armários, na sala de uso geral (ainda por cima mal passadas por água) até o sítio ficar a cheirar mal. As minhas moças já têm bastante que fazer mesmo sem andarem atrás das estagiárias do vasilhame, e eu bem o disse à superintendente.
”Que pergunta é essa, se eu estava na cozinha quando as gémeas Burt foram buscar o seu quartilho? Bem sabe que estava. Eu disse-o ao outro polícia. Onde havia eu de estar senão lá, àquela hora? Estou sempre na minha cozinha às sete menos um quarto e deviam passar perto de três minutos dessa hora quando as gémeas Burt lá entraram. Não, não fui eu que lhes entreguei a garrafa. Foram elas próprias que a tiraram do frigorífico. Não faz parte do meu serviço andar sempre à volta das estagiárias para as servir, e eu bem o disse à superintendente. Mas quando saiu da minha cozinha, aquele leite não tinha nada de especial. Só o foram entregar às seis e meia e eu tenho demasiado que fazer antes do pequeno-almoço para andar a meter desinfectante no leite. Além disso, tenho um álibi. Das seis e quarenta e cinco em diante estive com Mrs. Muncie. É a mulher-a-dias que vem da vila para dar uma ajuda quando eu estou com falta de pessoal. Pode falar com ela quando quiser, mas não me parece que lhe consiga arrancar grande coisa. A pobre coitada não tem muito que se veja dentro da cabeça. Pensando bem, duvido que ela reparasse se eu tivesse passado a manhã inteira a envenenar o leite. Mas, para o que der e vier, estava comigo. E eu estive todo o tempo com ela. Não sou dessas que, volta não volta, estão a correr para a casa de banho, não senhor. Faço tudo isso na ocasião própria.
”O desinfectante da casa de banho? Calculei que me havia de perguntar por isso. Sou eu própria que encho os frascos com a lata grande que eles mandam uma vez por semana do armazém principal do hospital. Não é propriamente incumbência minha, mas não gosto de o deixar para as criadas. São tão descuidadas!
Haviam de conseguir era deixar o pavimento das casas de banho todo ensopado do produto. Enchi o frasco do W.C. do andar de baixo na véspera da morte da estagiária Pearce, de modo que devia estar praticamente cheio. Algumas estagiárias lá se dão ao trabalho de deitar um bocadinho na retrete depois de se servirem dos sanitários, mas a maioria não o faz. Qualquer pessoa imaginaria que as estagiárias de enfermagem haviam de ser meticulosas relativamente a pequenas coisas como essa, mas não são melhores que o resto da gente nova. O produto é utilizado principalmente pelas criadas depois de terem feito a limpeza das retretes. Todas as casas de banho são limpas uma vez por dia. Sou muito meticulosa na limpeza dos sanitários. O do andar de baixo estava para ser limpo pela Morag Smith depois de almoço, mas a estagiária Goodale e a estagiária Pardoe repararam que o frasco tinha desaparecido antes disso. Constou-me que o outro polícia o tinha encontrado vazio entre os arbustos nas traseiras da casa. E quem foi que lá o pôs, gostaria eu de saber.
”Não, não pode falar com a Morag Smith. Não lhe disseram? Está a gozar um dia de licença. Saiu ontem a seguir ao chá, felizmente para ela. Não podem atingir a Morag com os borrifos desta última maçada. Não, não sei se ela foi para casa. Não perguntei. As criadas já são responsabilidade que chegue quando estão sob a minha vista na Nightingale House. Não cuido de saber do que fazem quando estão de folga. E é o melhor que faço, a julgar por certas coisas que oiço. O mais provável é regressar lá para a noitinha, e a superintendente deixou instruções no sentido de ela ser transferida para o lar do pessoal residente. Ao que parece, este sítio é de momento demasiado perigoso para nós. Bem, ninguém me vai mudar a mim. Não sei como é que esperam que eu me arranje de manhã se a Morag não põe cá os pés a não ser mesmo antes do pequeno-almoço. Não posso controlar o pessoal se não o tiver sob a minha vista, e bem o disse à superintendente. Não é que a Morag seja grande espingarda. É tão teimosa como todas agora são, mas não é má trabalhadora quando se consegue que comece. E se lhe vierem dizer que a Morag Smith mexeu no alimento, não lhes dê ouvidos. A rapariga pode ser um bocado estúpida, mas não é nenhuma doida furiosa. Não vou permitir que o meu pessoal seja caluniado sem razão.
”Já agora, deixe que lhe diga uma coisa, senhor investigador.
- Ergueu o magro traseiro da cadeira, inclinou-se para diante por sobre a secretária e fitou Dalgliesh com aqueles olhinhos brilhantes.
Ele fez um esforço para sustentar aquele olhar sem pestanejar, e ficaram a fixar-se um ao outro como um par de pugilistas antes de um assalto.
- Sim, Miss Collins?
Ela espetou um dedo esguio e nodoso e enfiou-lho secamente no peito. Dalgliesh estremeceu.
- Ninguém tinha o direito de tirar aquele frasco da casa de banho sem autorização minha nem de o usar para qualquer outro fim que não fosse a limpeza da retrete. Ninguém!
Era evidente onde residia, aos olhos de Miss Collins, toda a imensidade do crime.
À uma menos vinte, Mr. Courtney-Briggs apareceu. Bateu à porta com vivacidade, entrou sem esperar qualquer convite e disse secamente:
- Posso dispensar-lhe um quarto de hora neste momento, Dalgliesh, se lhe der jeito.
O seu tom dava a entender que daria. Dalgliesh assentiu e indicou-lhe a cadeira. O médico fitou o sargento Masterson, impassivelmente sentado do lado oposto com o bloco de apontamentos preparado, hesitou, e a seguir virou a cadeira de modo a ficar de costas para o sargento. Depois sentou-se e enfiou a mão no bolso do colete. A cigarreira de que puxou era de oiro finamente lavrado e tão chata que dificilmente parecia funcional. Ofereceu um cigarro a Dalgliesh mas não a Masterson e não pareceu surpreendido nem especialmente interessado ante a recusa do inspector-chefe. Acendeu o dele, e as mãos que colocou em concha ao redor do isqueiro eram grandes e de dedos quadrados; não as mãos sensíveis dos cirurgiões da ficção, mas mãos fortes de carpinteiro, elegantemente tratadas.
Dalgliesh, manifestamente embrenhado nos seus papéis; observou o homem. Era robusto mas sem chegar a ser gordo. O fato cerimonioso assentava-lhe quase bem demais, cingindo um corpo médio bem nutrido e realçando o efeito de poder latente apenas imperfeitamente controlado. Podia considerar-se atraente. O cabelo comprido, puxado completamente para trás a partir de uma testa alta, era forte e escuro, à parte uma única madeixa branca. Dalgliesh perguntou a si próprio se não seria pintada. Tinha uns olhos demasiado miúdos para o rosto largo, um tudo-nada corado, mas eram bem conformados e bastante afastados. Não denunciavam fosse o que fosse.
Dalgliesh sabia que fora Mr. Courtney-Briggs o principal responsável pelo facto de o comissário-chefe ter chamado a Yard. A julgar pelo relato um tanto ou quanto azedo do inspector Bailey durante a breve conversa tida quando Dalgliesh tomara conta do caso, era fácil compreender porquê. Desde o princípio que o médico se revelara importuno, e os seus motivos, se bem que susceptíveis de explicação racional, davam azo a interessantes especulações. Inicialmente afirmara com vigor que a estagiária Pearce tinha sido obviamente assassinada, sendo impensável que alguém ligado ao hospital pudesse ter qualquer relação com o crime, e que a Polícia local tinha o dever de partir desse pressuposto e descobrir e prender o assassino com um mínimo de delongas. Quando as investigações policiais não forneceram resultados imediatos, ficara irrequieto. Era um homem acostumado a exercer o poder e não restavam dúvidas de que o possuía. Havia pessoas importantes em Londres, que lhe deviam a vida, e algumas delas dispunham de considerável potencial para incomodar. Houvera telefonemas, uns diplomáticos e meio em tom de quem se desculpa, outros francamente críticos, tanto para o comissário-chefe como para a Yard. À medida que o inspector encarregado da investigação se convencia cada vez mais de que a morte da estagiária Pearce fora resultado de uma partida que acidentalmente redundara em trágicas consequências, tanto mais alto Mr. Courtney-Briggs e os seus parceiros agitadores proclamavam que ela tinha sido assassinada e mais fortes pressões exerciam no sentido de o caso ser confiado à Yard. A seguir a estagiária Fallon fora encontrada morta. Seria de esperar que o Departamento de Investigação Criminal da terra tivesse sido galvanizado no sentido de redobrar de actividade, que a luz difusa que tremulara sobre o primeiro crime se tornasse mais crua e se concentrasse nesta segunda morte. Fora nesse momento que Mr. Courtney-Briggs optara por telefonar ao comissário-chefe para anunciar que não valia a pena prosseguirem, que era evidente para ele que a estagiária Fallon se tinha suicidado, que isso só podia dever-se aos remorsos ante o trágico resultado da partida que vitimara a colega, e que agora o interesse do hospital era encerrar o caso com um mínimo de estardalhaço antes do recrutamento de enfermeiras, e na realidade todo o hospital estava em perigo. Não se pode dizer que falte à Polícia experiência destas súbitas reviravoltas de disposição, o que não significa que as acolha de bom grado. Dalgliesh pensou que devia ter sido com grande satisfação que o comissário-chefe decidira que, fossem quais fossem as circunstâncias, seria prudente chamar a Yard para investigar ambas as mortes.
Durante a semana subsequente à morte da estagiária Pearce, Courtney-Briggs tinha mesmo telefonado a Dalgliesh, que fora seu doente havia três anos. Tratara-se de um caso de apendicite isento de quaisquer complicações e, embora a vaidade de Dalgliesh tivesse ficado lisonjeada com a pequenez e elegância da cicatriz resultante, achava que a perícia do cirurgião tinha sido adequadamente recompensada na ocasião. Não estava de modo nenhum disposto a servir de instrumento para os fins particulares de Courtney-Briggs. O telefonema fora embaraçoso e ele ficara ressentido com isso. Verificou com interesse que o cirurgião decidira aparentemente tratar-se de um incidente que era aconselhável ambos esquecerem.
Sem levantar os olhos dos papéis, Dalgliesh inquiriu:
- Depreendo que o senhor é de opinião que Miss Fallon se matou?
- com certeza. É a explicação óbvia. Não está a insinuar que alguém lhe tenha deitado qualquer coisa no uísque, pois não? Porque havia alguém de o fazer?
- Há o problema do recipiente que não aparece, não é verdade? Isto é, caso se tenha tratado de veneno. Só o saberemos quando tivermos o relatório da autópsia.
- Qual problema? Não há problema nenhum. A caneca era opaca, com isolamento térmico. Ela podia ter deitado a coisa lá dentro mais cedo nessa mesma noite. Ninguém teria dado por nada. Ou podia ter levado o pó num pedaço de papel e depois deitá-lo na retrete. O recipiente não é problema. A propósito, desta vez não foi nenhum corrosivo. Até aí, era evidente quando vi o corpo.
- O senhor foi o primeiro médico a comparecer no local?
- Não. Eu não estava no hospital quando a encontraram. Quem a viu foi o doutor Snelling, que é o clínico geral assistente das estagiárias aqui. Percebeu imediatamente que não havia nada a fazer. Eu fui até lá dar uma vista de olhos ao corpo assim que soube. Cheguei ao hospital eram quase nove horas. Nessa altura, claro que a Polícia já tinha chegado. Refiro-me ao pessoal da terra. Não imagino por que razão não os deixaram continuar a investigação. Telefonei ao comissário-chefe para lhe dar conta da minha opinião. A propósito, o Miles Honeyman disse-me que ela morreu por volta da meia-noite. Encontrei-me com ele ia precisamente a sair.
- Bem vejo.
- Fez bem em chamá-lo. Consta-me que é geralmente considerado o melhor.
Falou complacentemente, como se fosse o êxito condescendendo em reconhecer o êxito. Os seus critérios tinham bem pouco de subtil. Dinheiro, prestígio, reconhecimento público, poder. Sim, Courtney-Briggs exigiria sempre o melhor para si, confiante na capacidade de o pagar.
- Ela estava grávida. Sabia? - perguntou Dalgliesh.
- O Honeyman disse-mo. Não, não sabia. São coisas que acontecem, mesmo hoje em dia, que o controlo de natalidade é seguro e fácil de obter. Mas sempre esperei que uma rapariga inteligente como ela tomasse a pílula.
Dalgliesh recordou o episódio daquela manhã na biblioteca, em que Mr. Courtney-Briggs mostrara saber a idade da rapariga com a aproximação ao dia. Fez a pergunta seguinte sem se desculpar.
- Conhecia-a bem?
A insinuação era clara e o cirurgião não respondeu de imediato. Dalgliesh não esperava que ele tivesse uma tirada de fanfarrão ou que prorrompesse em ameaças, e ele não fez uma coisa nem outra. Havia um respeito acrescido no olhar penetrante que lançou ao interrogador.
- Durante uns tempos, conheci. - Fez uma pausa. - Posso dizer que a conheci intimamente.
- Foi sua amante?
Courtney-Briggs olhou para ele, impassível, meditando. A seguir, disse:
- Isso é colocar as coisas de uma maneira bastante formal. Dormimos regularmente um com o outro durante os primeiros seis meses que ela cá passou. Tem alguma objecção?
- Não me parece que me compita a mim colocar objecções, se ela o não fez. Parto do princípio de que ela consentia, não?
- Pode dizê-lo, sim.
- Quando foi que acabou?
- Julgava que lho tinha dito. Durou até ao fim do primeiro ano dela. Há um ano e meio, portanto.
- Zangaram-se?
- Não. Ela resolveu que tinha, digamos, esgotado as possibilidades. Há mulheres que gostam de variar. Eu próprio sou assim.
Não teria começado a andar com ela se pensasse que ela era do género das que armam complicações. E não me interprete mal. Não é meu costume dormir com estagiárias. Sou razoavelmente exigente.
- Não foi difícil manter a ligação em segredo? Num hospital há muito pouca privacidade.
- O senhor tem noções românticas, inspector. Nós não trocávamos beijos e carícias na casa de banho. Quando disse que dormia com ela, queria dizer exactamente isso. Não uso eufemismos para o sexo. Ela ia ao meu apartamento da Wimpole Street quando tinha uma noite livre, e dormíamos lá. Não tenho lá criado residente e a minha casa fica perto de Selborne. O porteiro de Wimpole Street deve ter percebido, mas é capaz de manter o bico calado. Se assim não fosse, já não haveria muitos inquilinos no prédio. Não havia qualquer risco, desde que ela não falasse, e ela não era de falar. Não que eu me ralasse por aí além. Há certas áreas de comportamento privado nas quais eu faço o que entendo. com certeza o mesmo acontece consigo.
- Portanto a criança não era sua?
- Não. Não sou descuidado. Além disso, a ligação tinha terminado. Mas, mesmo que não tivesse, dificilmente eu a teria matado. Esse tipo de solução provoca mais embaraços do que aqueles que evita.
- Que teria feito? - perguntou Dalgliesh.
- Isso dependeria das circunstâncias. Teria de ter a certeza de que a criança era minha. Mas este problema específico está longe de ser invulgar e não é insolúvel, desde que a mulher seja razoável.
- Constou-me que Miss Fallon projectava abortar. Ela abordou-o?
-Não. -Podiafazê-lo?
- Claro que podia tê-lo feito. Mas não fez.
- Tê-la-ia ajudado, se fosse o caso? O médico fitou-o.
- Quer-me parecer que essa pergunta não se enquadra lá muito bem no âmbito das suas atribuições.
Dalgliesh respondeu:
- É a mim que me compete julgar disso. A rapariga estava grávida; aparentemente, projectava abortar; disse a uma amiga que conhecia alguém que a ajudaria. Estou naturalmente interessado em saber quem tinha ela na ideia.
- O senhor conhece a lei. Eu sou cirurgião, e não ginecologista.
Prefiro ater-me à minha especialidade e praticá-la legalmente.
- Mas há outros tipos de ajuda. Encaminhá-la para um médico apropriado, ajudá-la a pagar os honorários.
Era bem pouco provável que uma rapariga com 16 mil libras de herança quisesse ajuda para pagar os honorários de um aborto. Mas o legado de Miss Goodale não tinha sido tornado público e Dalgliesh estava interessado em saber se Courtney-Briggs tinha conhecimento do capital da Fallon. No entanto, o cirurgião não deu qualquer indicação.
- Bem, ela não veio ter comigo. Pode ser que estivesse a pensar em mim, mas não veio. E, se tivesse, eu não a teria ajudado. Faço por assumir as minhas próprias responsabilidades, mas não me encarrego das dos outros. Se ela tinha resolvido virar-se para outro lado a fim de obter satisfação, podia virar-se para outro lado a fim de obter ajuda. Eu não a engravidei. Alguém o fez. Ele que cuidasse dela.
- Teria sido essa a sua resposta?
- Certamente que sim. E com toda a razão.
A voz dele continha uma nota de cruel satisfação. Olhando para ele, Dalgliesh verificou que corara. O homem não conseguia controlar facilmente a sua emoção. E Dalgliesh tinha poucas dúvidas sobre a natureza de tal emoção. Era ódio. Prosseguiu o interrogatório.
- Ontem à noite encontrava-se no hospital?
- Sim. Fui chamado para uma operação de urgência. Um dos meus doentes teve uma recaída. Não foi totalmente inesperada, mas muito grave. Acabei de operar à meia-noite menos um quarto. A hora há-de estar assente nos registos do bloco operatório. Depois telefonei à enfermeira Brumfett, para a Nightingale House, pedindo-lhe que fizesse o favor de voltar à enfermaria dela por coisa de uma hora. O meu doente era um doente particular. A seguir telefonei para casa dizendo que voltava nessa mesma noite em lugar de ficar a dormir aqui nos alojamentos dos médicos, como faço de vez em quando se opero muito tarde. Abandonei o edifício principal pouco passava da meia-noite. Tencionava sair com o carro pelo portão da Winchester Road. Tenho uma chave de lá. No entanto, estava uma noite de tempestade, como provavelmente notou, e descobri que estava um ulmeiro tombado a impedir a passagem. Foi uma sorte não ter ido contra ele. Saí do carro e amarrei o meu lenço de pescoço branco a um dos ramos, para alertar quem quer que seguisse aquele caminho. Não era provável que isso acontecesse, mas a árvore era um perigo evidente e não havia possibilidades de removê-la antes do nascer do dia. Fiz inversão de marcha e saí pela entrada principal, informando de caminho o porteiro sobre a árvore caída.
- Reparou que horas eram nessa altura?
- Não. Pode ser que ele tenha reparado. Mas, por cálculo, devia ser para aí meia-noite e um quarto, talvez mais tarde. Perdi um certo tempo com a árvore.
- Teria de passar pela Nightingale House para alcançar o portão das traseiras. Não entrou lá?
- Não tinha motivo para lá entrar e não entrei, fosse para envenenar a estagiária Fallon ou por qualquer outra razão.
- E não viu ninguém nos terrenos ?
- Depois da meia-noite e no meio de uma tempestade? Não, não vi ninguém.
Dalgliesh alterou o curso do interrogatório.
- Claro que o senhor assistiu à morte da estagiária Pearce. Presumo que não tenha chegado a haver nenhuma hipótese séria de a salvar, não ?
- Eu diria que não. Tomei medidas bastante enérgicas, mas não é fácil quando a pessoa não sabe o que está a tratar.
- Mas sabia que se tratava de veneno ?
- Sim, não demorei muito a perceber. Mas não sabia qual. Não é que isso tivesse feito qualquer diferença. O senhor viu o relatório da autópsia. Sabe o que a droga lhe fez.
Dalgliesh inquiriu:
- A partir das oito horas da manhã em que ela morreu, esteve na Nightingale House?
- Sabe perfeitamente que estive, se, como suponho, se deu ao trabalho de ler o meu depoimento inicial. Cheguei à Nightingale House pouco depois das oito. O meu contrato aqui é de seis meios dias teóricos de trabalho por semana; segundas, quintas e sextasfeiras, passo o dia inteiro no hospital, mas não é invulgar ser chamado para operar de urgência, especialmente tratando-se de um doente particular, e de vez em quando faço uma sessão ao sábado de manhã no bloco operatório, se as listas são grandes. Tinha sido chamado pouco depois das onze da noite de domingo para uma apendicectomia urgente (um dos meus doentes particulares) e convinha-me ficar a pernoitar nos alojamentos do pessoal médico.
- Que ficam onde?
- Naquele novo edifício de traçado deplorável junto ao serviço dos doentes externos. Servem o pequeno-almoço a uma hora perfeitamente imprópria, sete e meia.
- Certamente chegou aqui bastante cedo. A aula prática estava prevista para começar só às nove.
- Não estive cá simplesmente para a aula prática, senhor inspector. Realmente o senhor percebe muito pouco de hospitais, não é verdade? O chefe de clínica não assiste normalmente a aulas de enfermagem, a não ser que seja ele a dá-las às estudantes. Só assisti à do dia 12 de Janeiro porque estava previsto encontrar-se lá a inspectora do C. G. E. e eu sou vice-presidente da Comissão Pedagógica de Enfermagem. O facto de estar cá para receber Miss Beale foi uma questão de delicadeza para com ela. Vim cedo porque queria trabalhar nuns apontamentos clínicos que tinha deixado no gabinete da enfermeira Rolfe depois de uma leitura prévia. Queria também ter uma conversa com a superintendente antes de a inspecção começar e certificar-me de que estava lá a tempo de receber Miss Beale. Subi ao apartamento da superintendente às oito e trinta e cinco, encontrando-a a terminar o pequeno-almoço. E, se está a pensar que eu podia ter adicionado o corrosivo ao leite da garrafa em qualquer ocasião entre as oito e as oito e meia, tem toda a razão. Acontece que não o fiz.
Consultou o relógio de pulso.
- E agora, se não precisa de me perguntar mais nada, tenho de ir almoçar. Tenho outra sessão de consultas de doentes externos à tarde e o tempo urge. Se for mesmo preciso, posso provavelmente dispensar-lhe mais uns minutos antes de me ir embora, mas espero que não seja. Já assinei um depoimento sobre a morte da Pearce e não tenho nada a acrescentar ou a alterar. Não vi a Fallon ontem. Nem sequer sabia que ela já tinha saído da enfermaria. A criança de que ela estava grávida não era minha e, mesmo que o fosse, não teria sido tão tolo que a matasse. A propósito, aquilo que lhe contei sobre a nossa antiga relação foi evidentemente a título confidencial.
Lançou um olhar significativo ao sargento Masterson.
- Não é que eu me importe muito que se saiba. Mas, no fim de contas, a rapariga está morta. Já agora, podemos-muito bem proteger a sua reputação.
Dalgliesh teve dificuldade em acreditar que Mr. CourtneyBriggs se interessasse pela reputação de alguém que não ele próprio. Mas, sisudamente, deu-lhe as necessárias garantias. Viu o cirurgião sair sem pena. Um filho da mãe egoísta que apetecia provocar, por infantil que isso fosse. Mas um assassino? Tinha a arrogância, o descaramento e o egoísmo de um assassino. Mais objectivamente, tinha tido a oportunidade. E o motivo? Não tinha sido um pouco calculado da sua parte ter confessado tão prontamente a sua ligação com Josephine Fallon? Havia que reconhecer que não podia esperar manter o segredo, por muito tempo: os hospitais estavam longe de ser as mais discretas das instituições. Estaria ele a fazer da necessidade uma virtude, certificando-se de que Dalgliesh tomava conhecimento da sua versão da ligação antes que o inevitável diz-que-diz-que lhe chegasse aos ouvidos? Ou teria sido simplesmente a franqueza da presunção, a vaidade sexual de um homem que não se daria ao trabalho de ocultar qualquer feito que proclamasse os seus atractivos e a sua virilidade?
Juntando os papéis, Dalgliesh deu-se conta de que tinha fome. Tinha começado o dia muito cedo e fora uma longa manhã. Era tempo de afastar Stephen Courtney-Briggs do pensamento e começarem ambos, tanto ele como Masterson, a pensar no almoço.
Conversa à mesa
As enfermeiras e estagiárias residentes em Nightingale House só tomavam o pequeno-almoço e o chá da tarde na sala de jantar da escola. Para as refeições principais do meio-dia e da noite, juntavam-se ao resto do pessoal do hospital na respectiva cafetaria, onde todos menos os chefes de clínica comiam numa proximidade institucionalizada e ruidosa. A comida era invariavelmente alimentícia, bem confeccionada, e tão variada quanto o compatível com a necessidade de satisfazer os gostos diferentes de várias centenas de pessoas, evitando ofender as suas susceptibilidades religiosas ou dietéticas e respeitando o orçamento do despenseiro. Os princípios que regulavam o planeamento das ementas eram invariáveis. Nunca havia fígado ou rim nos dias em que o cirurgião urologista operava e as enfermeiras nunca eram confrontadas com o mesmo prato que tinham acabado de servir aos doentes.
O sistema de cafetaria tinha sido introduzido no Hospital John Carpendar contra a vigorosa oposição de todos os escalões do pessoal. Oito anos atrás havia refeitórios separados para as enfermeiras e estagiárias, um para o pessoal administrativo e não especialista e uma cantina para os serventes e operários. Este sistema agradava a toda a gente, na medida em que estabelecia uma adequada distinção entre categorias e garantia que as pessoas gozavam de uma razoável tranquilidade e da companhia daqueles com quem preferiam passar o intervalo para almoço. Agora porém, apenas o pessoal clínico superior gozava da paz e privacidade de uma sala de jantar à parte. Este privilégio, ciosamente defendido, encontrava-se sob constante ataque de inspectores do Ministério, consultores de abastecimento do governo e peritos em estudos de trabalho, que, armados de estatísticas de custos, não tinham dificuldade em provar que o sistema era antieconómico.
Mas, até ver, os médicos tinham ganho. O seu mais forte argumento era a necessidade de falar sobre os doentes em particular. Esta insinuação de que nunca paravam de trabalhar, nem sequer durante as refeições, era acolhida com certo cepticismo, mas era difícil de refutar. A necessidade de manter o sigilo dos assuntos dos doentes tocava aquela área da relação médico-doente que os médicos se apressavam sempre a explorar. Ante essa mística, até os inspectores do Tesouro se revelavam impotentes para levar a sua avante. Além disso, tinham tido o apoio da superintendente. Miss Taylor fizera saber que considerava eminentemente razoável que o pessoal clínico superior continuasse a dispor da sua própria sala de jantar. E a influência de Miss Taylor junto do presidente da Comissão de Gestão do hospital era tão óbvia e estabelecera-se havia já tanto tempo que quase deixara de dar azo a comentários. Sir Marcus Cohen era um rico e atraente viúvo e hoje em dia a única surpresa residia em ele e a superintendente não terem casado. Isso devia-se, na opinião geral, ou ao facto de Sir Marcus, um reconhecido dirigente da comunidade judaica local, não querer casar-se com uma pessoa que não partilhava da mesma fé, ou à circunstância de Miss Taylor, casada com a sua vocação, ter optado por nunca contrair matrimónio com quem quer que fosse.
Não obstante, a dimensão da influência de Miss Taylor sobre o presidente e, consequentemente, sobre a Comissão de Gestão do hospital situava-se para além de qualquer especulação. Sabia-se que ela era particularmente irritante para Mr. CourtneyBriggs, uma vez que diminuía consideravelmente a sua. No tocante à sala de jantar dos clínicos, porém, tinha sido exercida em seu benefício e revelara-se decisiva.
Contudo, se o resto do pessoal tinha sido obrigado à proximidade, não fora forçado à intimidade. A hierarquia era ainda visível. A enorme sala de jantar tinha sido dividida em áreas de comer mais pequenas, separadas umas das outras por painéis de entrançado e recipientes de plantas, e em cada uma dessas alcovas era recriada a atmosfera de uma sala de jantar privativa.
A enfermeira Rolfe serviu-se de solha e batatas às rodelas, levou o tabuleiro para a mesa que, durante os últimos oito anos, compartilhava com a enfermeira Brumfett e a enfermeira Gearing, e relanceou o olhar pelos habitantes daquele estranho mundo. Na alcova mais próxima da porta encontravam-se os técnicos de laboratório com os seus fatos-macaco manchados, ruidosamente animados. Ao lado deles estava o velho Fleming, o farmacêutico dos doentes externos, fazendo bolinhas de miolo de pão como quem fizesse comprimidos com os dedos manchados de nicotina. Na mesa seguinte estavam quatro dos estenógrafos médicos, com os seus fatos-macaco azuis de trabalho. Miss Wright, a secretária-chefe, que estava há vinte anos no John Carpendar, comia com furtiva rapidez como sempre, ansiosa por regressar à máquina de escrever. Atrás do painel adjacente estava uma ninhada, do pessoal técnico não médico: a técnica radiologista principal, Miss Bunyon, a chefe das assistentes sociais clínicas, Mrs. Nethern, e duas das fisioterapeutas, mantendo cuidadosamente a sua posição por meio de um ar de eficiente calma e sem pressas, um desinteresse aparentemente total pela comida que iam ingerindo e a escolha de uma mesa tão afastada quanto possível da do pessoal administrativo de menor categoria.
E em que pensariam todos eles? Provavelmente na Fallon. Era impossível que houvesse alguém no hospital, dos assistentes até às serventes das enfermarias, que não soubesse já que uma segunda aluna da Nightingale morrera em circunstâncias misteriosas e que a Scotland Yard tinha sido chamada. Naquela manhã, a morte da Fallon era provavelmente o tema do falatório na maior parte das mesas. Isso, porém, não impedia as pessoas de comer o seu almoço ou de continuar a realizar o seu trabalho. Havia demasiado para fazer; havia demasiadas outras preocupações prementes; havia até demasiados outros motivos de falatório. Não era apenas o facto de a vida ter de continuar; num hospital, esse nariz-de-cera assumia particular relevância. A vida continuava efectivamente, impelida pela imperiosa energia do nascimento e da morte. Entravam novos doentes com admissão previamente marcada; as ambulâncias vomitavam diariamente as suas emergências; afixavam-se listas de operações; os mortos eram amortalhados e os curados recebiam alta. A morte, mesmo a morte súbita e inesperada, era mais corriqueira para aquelas jovens estagiárias de rosto fresco do que para o mais experiente dos investigadores principais. E havia um limite para a sua capacidade de impressionar. Ou uma pessoa se reconciliava com a morte no primeiro ano, ou desistia de ser enfermeira. Mas matar? Isso era diferente. Mesmo naquele mundo violento, o homicídio mantinha ainda a sua macabra e primitiva capacidade de impressionar. Mas quantas pessoas na Nightingale House acreditavam realmente que a Pearce e a Fallon tinham sido mortas? Seria preciso mais do que a presença do menino prodígio da Scotland Yard e do seu séquito para conferir credibilidade a uma ideia tão fora do vulgar. Havia muitíssimas outras explicações possíveis, qualquer delas mais simples e mais crível do que o homicídio. Dalgliesh podia acreditar no que lhe aprouvesse; prová-lo era uma coisa completamente diferente.
A enfermeira Rolfe baixou a cabeça e lançou-se sem entusiasmo à tarefa de dissecar a solha. Não tinha grande fome. O forte cheiro a comida impregnava pesadamente o ar, cortando o apetite. O barulho da cafetaria vibrava-lhe nos ouvidos. Era incessante e inelutável, um confuso contínuo de dissonância no qual os sons individuais mal se discerniam.
Ao seu lado, com a capa cuidadosamente dobrada nas costas da cadeira e a deformada saca de tapeçaria que a acompanhava para todo o lado caída aos pés, a enfermeira Brumfett comia bacalhau cozido e molho de salsa com beligerante vigor, como se levasse a mal a necessidade de comer e estivesse a desabafar a sua irritação na comida. A enfermeira-chefe Brumfett optava invariavelmente por peixe cozido e a enfermeira-chefe Rolfe sentiu subitamente que não era capaz de enfrentar outra hora de almoço a ver a Brumfett comer bacalhau.
Recordou a si própria que não havia nada que a tal a obrigasse. Nada a impedia de se sentar noutro sítio qualquer, a não ser a petrificação da vontade que conferia ao simples acto de levar o tabuleiro dois passos mais adiante para outra mesa um carácter impossivelmente cataclísmico e irrevogável. À sua esquerda, a enfermeira Gearing remexia na carne estufada e partia o molho de couves em quadrados certinhos. Quando começava realmente a comer, atirava-se avidamente à comida como uma colegial voraz. No entanto havia sempre aqueles preliminares miudinhos e salivatórios. A enfermeira-chefe Rolfe perguntou a si própria quantas vezes resistira à ânsia de dizer: ”Por amor de Deus, Gearing, deixa-te lá de remexer nisso e come!” Um dia, sem dúvida, dir-lho-ia. E mais uma enfermeira de meia-idade e antipática seria contemplada com o veredicto de ”está a tornar-se difícil; deve ser da idade”.
Tinha encarado a hipótese de viver fora do hospital. Era admissível e ela dispunha do dinheiro necessário. A compra de um apartamento ou de uma pequena vivenda seria o melhor investimento para a reforma. Mas Julia Pardoe tinha posto a ideia de lado com meia dúzia de comentários meio desinteressados e destrutivos que haviam caído como frias pedras no lago profundo das suas esperanças e projectos. Parecia ainda à enfermeira Rolfe ouvir aquela voz aguda e infantil:
- Viver fora! Para o que te havia de dar! Ver-nos-íamos muito menos.
- Isso é que não, Julia. E ver-nos-íamos com muito mais privacidade e sem todos estes riscos e embustes. Seria uma casinha confortável e simpática. Havias de gostar.
- Não seria tão fácil como dar uma saltada ao andar de cima para ir ter contigo quando me apetece.
Quando lhe apetecia? Quando lhe apetecia o quê? A enfermeira Rolfe tinha repelido desesperadamente a pergunta que nunca se atrevia a permitir-se fazer.
Conhecia a natureza do seu dilema. No fim de contas, não era específico dela. Em toda e qualquer relação havia uma pessoa que amava e outra que se deixava amar. Isto não era mais do que afirmar a brutal lei económica do desejo: de cada um conforme as suas capacidades, a cada um consoante as suas necessidades. Mas seria egoísta ou presunçoso esperar que quem recebia reconhecesse o valor da dádiva; que não estivesse a desperdiçar o amor numa vigaristazinha promíscua e pérfida que obtinha o seu prazer onde lhe apetecesse procurá-lo? Dissera:
- Poderias provavelmente ir lá duas ou três vezes por mês, talvez até com mais frequência. Eu não me mudaria para longe.
- Ah, não sei como conseguiria tal coisa. Não percebo para que queres tu o trabalho e as maçadas de uma casa. Estás aqui muito bem.
”Não estou nada bem aqui”, pensou a enfermeira Rolfe. ”Este lugar está a tornar-me azeda. Não são apenas os doentes que passam muito tempo cá a transformarem-se em internados. Está a acontecer-me a mim. Sinto antipatia e desprezo pela maioria das pessoas com as quais tenho de trabalhar. Até a profissão está a perder o seu ascendente. A cada nova fornada que entra, as alunas são mais estúpidas e menos educadas. Já nem sequer tenho a certeza do valor daquilo que presumivelmente faço.”
Ouviu-se um estrépito perto do balcão. Uma das serventes tinha deixado cair um tabuleiro de loiça de barro usada. Olhando instintivamente para o outro lado, a enfermeira Rolfe viu que o investigador acabara de entrar, e recolhera o seu tabuleiro no fim da bicha. Observou a figura, alta, ignorada pela tagarela fila de enfermeiras, começando a avançar lentamente entre um servente de casaco branco e uma parteira estagiária, servindo-se de pãozinho e manteiga e aguardando que a rapariga lhe desse o prato que escolhera. Surpreendeu-se ao vê-lo ali. Nunca lhe ocorrera que ele comesse no refeitório do hospital nem que andasse sozinho. Seguiu-o com o olhar enquanto ele chegava ao fim do balcão, entregava o talão da refeição e se voltava em busca de um lugar vago. Parecia inteiramente à vontade e quase alheado daquele mundo estranho em seu redor. Pensou que se tratava provavelmente de um homem ao qual não fosse possível imaginar-se em desvantagem fosse qual fosse a companhia, uma vez que se firmava no seu mundo particular; que estava possuído daquele âmago de amor-próprio íntimo que constitui a base da felicidade. Perguntou a si própria que espécie de mundo seria o dele, após o que baixou a cabeça para o prato ante aquele invulgar interesse que ele nela despertava. Provavelmente a maioria das mulheres considerá-lo-ia bem-parecido, com aquele rosto magro e ossudo, ao mesmo tempo arrogante e sensível. Constituía provavelmente um dos seus trunfos profissionais e, ou não fosse homem, ele havia de tirar o máximo partido do facto. Fora decerto essa uma das razões pelas quais lhe tinham entregue este caso. Se o tapado do Bill Bailey não é capaz de chegar a nada, o menino prodígio da Yard que tome conta do assunto. com um sem-número de mulheres e três solteironas de meia-idade como principais suspeitos, por certo ele imaginava ter as suas hipóteses. Pois bem, que fosse muito feliz!
Mas não foi ela a única pessoa da mesa a dar-se conta da chegada dele. Sentiu, mais do que viu, a enfermeira Gearing inteiriçar-se e, decorrido um momento, ouviu-a dizer:
- Olha, olha! O chui giro! O melhor é vir comer connosco, se não ainda se vê metido no meio de um montão de estagiárias. Alguém havia de ter explicado ao pobrezinho como funciona o sistema.
E agora, pensou a enfermeira Rolfe, vai deitar-lhe um daqueles olhares esquinados tipo anda cá e vamos ter de o suportar durante o resto da refeição. O olhar foi endereçado e o convite não foi recusado. Dalgliesh, transportando o tabuleiro com ar despreocupado e aparentemente com inteiro à-vontade, abriu caminho pelo refeitório fora e dirigiu-se à mesa delas. A enfermeira Gearing disse-lhe:
- Que fez o senhor àquele seu atraente sargento ? Pensava que os polícias andavam sempre aos pares, como as freiras.
- O meu atraente sargento está a analisar relatórios e a almoçar sandes e cerveja no gabinete enquanto eu colho os frutos da superioridade hierárquica convosco. Esta cadeira está ocupada?
A enfermeira Gearing puxou a dela para mais perto da enfermeira Brumfett e ergueu o rosto sorridente para ele:
- Passou a estar agora.
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