Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MORTE DE UM PERITO / P. D. James
MORTE DE UM PERITO / P. D. James

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

A chamada veio às 6h12 em ponto. Agora, para ele, era uma segunda natureza olhar a hora no mostrador luminoso do relógio da mesa-de-cabeceira antes de acender o abajur, um segundo antes de estender a mão e silenciar a insistência do telefone. Raramente deixava tocar mais de uma vez, mas sempre se horrorizava com a possibilidade de Nell acordar com aquele som. Quem chamava era conhecido, a chamada esperada. O inspetor-detetive Doyle. A voz, com a suave e intimidante sugestão dos ásperos erres irlandeses, soou forte e confiante, como se o grande vulto do próprio Doyle pairasse sobre a cama. “Doc Kerrison?” A pergunta sem dúvida era desnecessária. Naquela casa semivazia e cheia de ecos, quem mais atenderia o telefone aquela hora da manhã? Não respondeu e a voz continuou. “Achamos um corpo. Num descampado, um campo de tufo, uns dois quilômetros a nordeste de Muddington. Uma moça. Parece estrangulamento. Deve ser coisa simples, mas como fica perto...”

#
#
#

#
#
#

 “Tudo bem. Eu vou.” A voz não expressou nem alívio nem gratidão. Por que deveria? Não atendia sempre quando chamado? Era bem pago por essa disponibilidade, mas não era a única razão para ser tão obsessivamente consciencioso. Desconfiava que Doyle o respeitaria mais se às vezes fosse menos cordato. Ele próprio se respeitaria mais. “É a primeira saída da A142, depois de passar Gibbet’s Cross. Vou deixar um homem a postos.” Desligou o telefone, girou as pernas para fora da cama e, pegando lápis e bloco, anotou os detalhes enquanto ainda estavam frescos na cabeça. Campo de tufo. Isso provavelmente queria dizer barro, principalmente depois da chuva do dia anterior. A janela estava ligeiramente aberta embaixo. Ele abriu mais, arrepiando-se com o ranger da madeira, e pôs a cabeça para fora. O cheiro intenso do barro naquela noite de outono impregnou seu rosto, um cheiro forte mas fresco. A chuva havia parado e o céu era um tumulto de nuvens cinzentas em meio às quais a lua, agora quase cheia, rolava como um fantasma pálido e demente. Percorreu mentalmente os campos desertos e diques desolados até as vastas areias do Wash, alvejadas pelo luar, e as encostas do mar do Norte. Pensou sentir seu aroma medicinal no ar lavado pela chuva. Em algum lugar lá fora, na escuridão, cercado por toda a parafernália da morte violenta, havia um corpo. Repassou na cabeça o ambiente natural de seu trabalho: homens se deslocando como sombras negras por trás do brilho das luzes, viaturas policiais meticulosamente estacionadas, o tatalar dos painéis de isolamento, as vozes eventuais comentando enquanto esperavam os faróis de seu carro. Já estariam olhando os relógios, calculando quanto tempo levaria para aparecer. Fechando a janela com gestos cuidadosos, enfiou a calça por cima do pijama e vestiu um suéter de gola pólo. Depois pegou a lanterna, apagou a luz de cabeceira e desceu a escada pisando com cuidado, rente à parede para evitar os pontos que rangiam. Mas não havia nenhum som no quarto de Eleanor. Percorreu mentalmente os vinte metros de patamar e os três degraus que davam para o quarto dos fundos, onde dormia sua filha de dezesseis anos. Ela tinha o sono leve, incrivelmente sensível ao toque do telefone, mesmo adormecida. Mas não era possível que tivesse ouvido. Já com o pequeno William, de três anos, não precisava se preocupar. Uma vez que pegasse no sono, jamais acordaria antes da manhã. Os atos, assim como os pensamentos, seguiam um padrão. Sua rotina não variava. Foi primeiro ao pequeno banheiro perto da porta dos fundos, onde suas botas de borracha estavam prontas junto à porta, com as grossas meias vermelhas penduradas para fora como um par de pés amputados. Levantando as mangas acima dos cotovelos, jogou água fria nas mãos e nos braços, depois se inclinou e molhou a cabeça inteira. Celebrava esse ato de limpeza quase cerimonial antes e depois de cada caso. Havia muito deixara de se perguntar por quê. A breve lavagem preliminar, uma espécie de dedicatória, tornara-se tão reconfortante e necessária quanto um ritual religioso. E a ablução final era ao mesmo tempo uma higiene indispensável e uma absolvição, como se ao tirar do corpo o cheiro do trabalho pudesse limpar também a mente. A água espirrou pesada no espelho e, ao levantar-se para buscar uma toalha, viu seu rosto distorcido, a boca pendente, os olhos de pálpebras pesadas meio escondidos pelas mechas brilhantes de cabelo negro, como o rosto de um afogado que vem à tona. A melancolia da hora tomou conta dele. Pensou: “Faço quarenta e cinco anos semana que vem e onde foi que cheguei? Tenho esta casa, dois filhos, um casamento fracassado e um trabalho que tenho medo de perder porque é a única coisa que deu certo para mim.” A Velha Reitoria, herdada do pai, não estava penhorada, não tinha problemas. Mas não podia dizer o mesmo sobre qualquer outra coisa de sua vida, assolada pela ansiedade. O amor, a falta dele, a carência cada vez maior, a súbita e apavorante esperança de amor era apenas um fardo. Até seu trabalho, território em que se movia com maior segurança, era rodeado de ansiedade. Ao enxugar as mãos com cuidado, dedo por dedo, a velha e conhecida angústia voltou, pesada como um tumor. Ainda não fora nomeado patologista do Departamento do Interior, como sucessor do velho dr. Stoddard, e isso era uma
coisa que queria muito. A nomeação oficial não lhe traria mais dinheiro. A polícia o empregava como autônomo e pagava bem generosamente cada caso. Aqueles serviços, mais a remuneração pelas autópsias como legista, davam-lhe um bom rendimento. Uma das razões por que seus colegas do Departamento de Patologia do Hospital Geral Distrital invejavam suas imprevisíveis ausências a serviço da polícia, os longos dias no tribunal e a inevitável notoriedade. Sim, a nomeação era importante para ele. Se o Departamento do Interior resolvesse procurar outra pessoa seria difícil explicar às autoridades de Saúde aquele arranjo particular permanente com a polícia local. Não tinha certeza nem de que o queriam. Sabia que era um bom patologista forense, confiável, mais que competente, quase obsessivamente minucioso, perfeccionista mesmo, uma testemunha convincente e imperturbável. A polícia sabia que os edifícios de provas que ele erigia meticulosamente não ruiriam sob um interrogatório quando estava no banco das testemunhas, embora às vezes desconfiasse que o consideravam escrupuloso demais para ser inteiramente confortável. Mas não tinha aquela fácil camaradagem masculina, aquela mistura de cinismo e machismo que vinculava com tanta força o velho doc Stoddard à polícia. Se tivessem de se virar sem ele, não sentiriam muito a sua falta, e duvidava de que fossem fazer qualquer esforço para conservá-lo. A luz da garagem quase o cegou. A porta de subir oscilou suavemente ao seu toque e a claridade espalhou-se pelo cascalho da entrada e pelas touceiras descuidadas de grama cinzenta. Pelo menos a luz não acordaria Nell. O quarto dela ficava nos fundos da casa. Antes de ligar o motor, consultou o mapa. Muddington. Era uma cidade na divisa daquela área, uns vinte e cinco quilômetros a noroeste, menos de meia hora para ir e voltar, com sorte. Se os cientistas do laboratório já estivessem lá, e Lorrimer, o biólogo-chefe, fazia de tudo para nunca perder um homicídio, talvez não houvesse muito a fazer. Calculava uma hora na cena do crime; com sorte estaria de volta antes de Nell acordar e ela nem precisaria saber que havia saído. Apagou a luz da garagem. Cuidadosamente, como se a leveza do toque pudesse de alguma forma silenciar o motor, ligou a ignição. O Rover avançou lentamente para dentro da noite.
2
Imóvel atrás da cortina do andar de cima, a mão direita protegendo o pálido tremular da vela, Eleanor Kerrison ficou olhando o súbito fulgor vermelho das luzes traseiras do Rover quando o carro parou no portão, antes de virar à esquerda e acelerar até sumir. Ficou esperando o clarão dos faróis sumir de vista. Depois virou-se e seguiu o corredor na direção do quarto de William. Sabia que não teria acordado. Seu sono era uma sensual gula de abandono. E, enquanto o irmão dormia, sabia que ele estava a salvo, que ela estaria livre da ansiedade. Observar William trazia-lhe uma tal mistura de afeto e piedade que às vezes, assustada com seus pensamentos, mas com mais medo dos pesadelos do sono, ia com uma vela até o quarto do menino e se agachava ao lado do berço por uma hora ou mais, os olhos fixos em seu rosto adormecido, a própria inquietação aplacada por aquela paz. Embora soubesse que ele não acordaria, virou a maçaneta da porta com o cuidado de quem espera uma explosão. A vela, queimando firme no pires, era desnecessária, a luminosidade amarela se abatia diante do luar, que jorrava das janelas sem cortina. William, de pijama imundo, dormia de bruços, como sempre: os dois braços abertos acima da cabeça, que se inclinava para o lado. O pescoço fino, esticado, tão imóvel que dava para ver a pulsação do sangue, parecia frágil demais para sustentar o peso da cabeça. Os lábios estavam ligeiramente abertos, e ela não conseguia ver nem ouvir o fino sussurro da respiração. Percebeu quando ele abriu as pálpebras e rolou os olhos que nada viam, tornando a fechálos com um suspiro e voltando a cair naquela pequena morte aparente. Fechou a porta suavemente e seguiu para seu quarto, ao lado. Puxou o edredom da cama, enrolou-o nos ombros e foi arrastando os pés pelo patamar até a escada. A sólida balaustrada de carvalho fazia uma curva para a escuridão do hall, onde o tique-taque do relógio de carrilhão soava alto e agourento como uma bomba-relógio. A atmosfera da casa subiu a suas narinas, ácida como uma garrafa térmica amanhecida, rescendendo aos tristes aromas de indigestos jantares clericais. Colocou a vela junto à parede, sentou-se no degrau, amontoou o edredom bem acima dos ombros e ficou olhando o escuro. Sentiu o tapete da escada arenoso debaixo dos pés descalços. A srta. Willard nunca passava o aspirador, dizia que seu coração não agüentava o esforço de levar o aparelho de degrau em degrau, e seu pai parecia nunca notar o desleixo e a sujeira da casa. Afinal, ficava tão pouco ali. Sentada ali, rígida no escuro, pensou no pai. Talvez já estivesse na cena do crime. Dependia do quanto teria de dirigir. Se fosse no limite
de sua área, talvez não voltasse até a hora do almoço. Mas o que ela queria era que não voltasse antes do café-da-manhã para não encontrá-la ali, agachada no topo da escada, esperando exausta por ele, com medo porque a deixara sozinha. Ele estacionaria o carro silenciosamente, deixando a garagem aberta para ela não acordar com a batida da porta, se esgueirando depois como um ladrão pelos fundos. Eleanor ouviria o correr da água no banheiro de baixo, seus passos no chão quadriculado do hall. Então ele olharia para cima e a veria. Subiria correndo a escada, dividido entre a apreensão por ela e o medo de incomodar a srta. Willard, o rosto de repente envelhecido de preocupação e cansaço ao passar os braços pelos ombros trêmulos da menina. “Nell, querida, quanto tempo faz que está aqui? Não devia ter saído da cama. Vai ficar resfriada. Vamos, filha, não tem do que ter medo. Já voltei. Olhe, vamos voltar para a cama e você tenta dormir. Vou cuidar do café-da-manhã. E se eu levar uma bandeja para você daqui meia hora? Não seria bom?” E a levava de volta para o quarto, sedutor, murmurando palavras de conforto, tentando fingir que não estava com medo. Medo de que ela começasse a chorar pela mãe, de que a srta. Willard aparecesse, censurando, resmungona, reclamando que precisava dormir, que aquela família precária ia cair aos pedaços e que ele se veria separado de William. Era William que ele amava, William que ele não agüentaria perder. E ele só poderia ficar com o filho e impedir que o tribunal desse a custódia para mamãe se ela estivesse em casa para ajudar a cuidar de seu irmão. Pensou no dia que tinha pela frente. Era quarta-feira, o dia cinzento. Não um dia negro em que não veria o pai, nem um dia amarelo como domingo, quando, a menos que estivesse de serviço, ele passaria a maior parte do tempo em casa. De manhã, imediatamente depois do café, estaria no necrotério público, fazendo autópsia. Haveria também outras autópsias, pacientes mortos no hospital, velhos, suicidas, vítimas de acidentes. Mas o corpo que ele provavelmente estava examinando agora seria o primeiro na mesa mortuária. Assassinato tinha prioridade. Não era isso que sempre diziam no laboratório? Pensou, mas sem real curiosidade, no que ele estaria fazendo naquele exato instante com aquele cadáver desconhecido, jovem ou velho, homem ou mulher. Não importa o que fosse, o corpo não estaria sentindo nada, nem saberia de nada. Os mortos não tinham mais nada a temer, e não havia por que ter medo deles. Eram os vivos que tinham o poder de ferir. De repente, duas sombras se mexeram no escuro do hall, e ela ouviu a voz da mãe, aguda, assustadoramente desconhecida, uma voz tensa, rachada, estranha. “Sempre o trabalho! Seu maldito trabalho! Meu Deus, claro que você é bom nisso. Não tem coragem de ser médico de verdade. Fez um diagnóstico errado no
começo da carreira e acabou, não foi? Nunca mais conseguiu assumir a responsabilidade por um corpo vivo, com sangue que pode correr, com nervos que podem sentir de verdade. Você só presta para mexer com morto. Faz você se sentir bem o jeito como eles se entregam para você, não é? O telefone tocando a qualquer hora do dia e da noite, a polícia escoltando. Não tem importância eu estar aqui, enterrada viva neste maldito charco, com seus filhos. Você nem me enxerga mais. Ia me achar mais interessante se eu estivesse morta, deitada na sua mesa. Aí, pelo menos, seria obrigado a prestar atenção em mim.” Em seguida, o baixo resmungo defensivo do pai, abatido, abjeto. Tinha ouvido tudo no escuro e sentira vontade de gritar para ele: “Não responda assim para ela! Não seja tão derrotado! Não entende que isso só faz ela desprezar você ainda mais?” As palavras dele lhe chegavam aos pedaços, quase inaudíveis. “É o meu trabalho. É o que eu faço melhor. Só isso que eu sei fazer.” E depois, mais alto: “É isso que nos sustenta”. “Não a mim. Não mais.” Então, a porta batendo. A lembrança era tão vívida que por um segundo pensou estar ouvindo a porta bater. Pôs-se de pé cambaleante, agarrando o edredom em torno de si, e abriu a boca para chamar os dois. Mas viu que o hall estava vazio. Não havia nada além da vaga imagem do vitral da porta da frente por onde entrava o luar, o tiquetaque do relógio, o monte de casacos pendurados no cabide do hall. Tornou a afundar no degrau. De repente lembrou. Tinha uma coisa a fazer. Enfiou a mão no bolso da camisola e sentiu a massinha fria e escorregadia da escultura que fizera do dr. Lorrimer. Com todo o cuidado tirou-a das dobras do edredom e segurou-a perto da chama da vela. A figura era um pouco distorcida, a cara coberta das felpas do bolso, mas ainda estava intacta. Endireitou os membros compridos e firmou melhor os fiapos de algodão preto que usara para o cabelo. O casaco branco, feito com um pedaço de lenço velho, era o que estava mais bem-feito, pensou. Pena que não pudera usar um dos lenços dele, uma mecha de seu cabelo de verdade. A figura representava mais que o dr. Lorrimer, que fora rude com ela e William, que praticamente atirara os dois para fora do laboratório. Representava todo o Laboratório Hoggatt. Agora era só matar. Delicadamente apertou a cabeça dele contra o balaústre. Mas a massinha simplesmente se achatou, a cabeça perdeu a identidade. Remodelou-a com dedos cuidadosos, e segurou-a perto da chama. Mas o cheiro era desagradável e ficou com medo de que o pano branco pegasse fogo. Enfiou a unha do dedinho com força atrás da orelha esquerda. Um corte limpo e claro, até
o cérebro. Isso era melhor. Suspirou, satisfeita. Colocou a criatura morta na palma da mão direita e apertou a massinha cor-de-rosa, o casaco branco, o cabelo de algodão, até tudo virar uma bolota amorfa. Então, encolheu-se no edredom, e ficou esperando amanhecer.
3
O carro, um Morris Minor verde, despencara da beirada de uma vala rasa no campo ermo e capotara no platô de relva a uns três metros da margem, como um bicho desajeitado tombado na terra. Devia estar ali há anos, abandonado ao saque, brinquedo ilícito para as crianças das redondezas, abrigo bem-vindo para um vagabundo ocasional, como o bêbado de setenta anos que tropeçou no corpo. As rodas da frente haviam sido removidas, e as de trás, enferrujadas, com os pneus podres, estavam fortemente cravadas no chão de calcário. A pintura estava gasta e riscada, o interior despido de instrumentos e da direção. Dois refletores em arco, um montado em cima da encosta voltado diretamente para baixo, o outro plantado precariamente na borda do platô, iluminavam sua severa decrepitude. Assim tão iluminado, Kerrison pensou, parecia uma escultura moderna, grotesca e pretensiosa, simbolicamente colocada à beira do caos. O banco traseiro, com o estofamento saindo para fora do plástico cortado, havia sido removido e jogado de lado. No banco da frente estava o corpo da moça. As pernas juntas com todo decoro, os olhos vidrados furtivamente semi-abertos, a boca, sem batom, imobilizada num esgar prolongado por dois fios de sangue escorrido. A face que devia ter sido bonita, ou pelo menos infantilmente vulnerável, tinha o ar vazio de um palhaço adulto. O casaco leve, sem dúvida leve demais para a noite de começo de novembro, estava levantado até a cintura. Ela usava meias, presas à cinta-liga cravada nas coxas grossas. Ao chegar mais perto do corpo, sob os olhares atentos de Lorrimer e Doyle, pensou, como sempre fazia diante de uma cena daquelas, que parecia irreal, uma anomalia, tão incrível e ridiculamente fora de lugar que teve de controlar um impulso de riso nervoso. Não sentia isso com tanta força quando o corpo estava em avançado estado de decomposição. Era como se a carne apodrecida, cheia de vermes, ou os fiapos de pano emaranhados, já fizessem parte da terra que os cobria e encerrava, não mais antinatural ou assustadora que um monte de adubo ou de folhas apodrecendo. Mas ali, com suas cores e linhas intensificadas pela luz, o corpo, externamente ainda tão humano, parecia de um burlesco absurdo, a pele do rosto pálido tão artificial quanto o plástico manchado do carro sobre o qual repousava. Como sempre, teve de lutar contra o impulso de colar os lábios aos dela e começar a ressuscitação, o impulso de enfiar uma agulha no coração ainda quente. Ficou surpreso de encontrar ali Maxim Howarth, recém-nomeado diretor do
Laboratório de Ciência Forense, até que se lembrou que Howarth havia dito algo sobre acompanhar até o fim o próximo caso de assassinato. Achou que estavam esperando que desse informações. Passou a cabeça pela porta aberta e disse: “É quase com certeza um caso de estrangulamento manual. O ligeiro sangramento pela boca foi causado pela língua presa entre os dentes. Estrangulamento manual é invariavelmente homicida. Ela não podia ter feito isso a si mesma.” A voz de Howarth soou cuidadosamente controlada. “Era de esperar que tivesse mais marcas no pescoço.” “Normalmente, sim, sem dúvida. Sempre acontece algum dano aos tecidos, embora a extensão da área ferida dependa da posição do assassino e da vítima, do jeito de pegar no pescoço e do grau de pressão. Acredito que deve haver ferimentos profundos, mas é possível chegar a esse ponto sem muitos sinais externos. Isso acontece quando o assassino mantém a pressão até a morte; os vasos ficam vazios, sem sangue, e o coração pára de bater antes de ele retirar as mãos. A causa da morte é asfixia e é de esperar que se encontrem os sinais de sempre. O mais interessante aqui é o espasmo cadavérico. Pode ver que ela está apertando a alça de bambu da bolsa. Os músculos estão absolutamente rígidos, prova de que ela agarrou a alça no momento da morte ou um pouco antes. Nunca vi antes um espasmo cadavérico desses num caso de estrangulamento manual. É interessante. Deve ter morrido excepcionalmente depressa. Você vai ter uma idéia melhor do que aconteceu de fato quando receber a necropsia.” Claro, pensou Howarth, a necropsia. Imaginou quanto Kerrison demoraria para começar o trabalho. Não tinha medo de perder a coragem, tinha medo era de vomitar, mas desejou não ter prometido que estaria presente. Não havia nenhuma privacidade para os mortos; o máximo que podia esperar era um certo respeito. Agora, parecia-lhe monstruoso que amanhã ele, um estranho, fosse olhar sem censura a nudez daquela moça. Mas de momento tinha visto o suficiente. Podia se afastar sem perder prestígio. Levantou a gola do casaco contra o ar frio da manhã, subiu a encosta do buraco e ficou olhando o carro caído lá embaixo. Uma filmagem devia ser assim: a cena fortemente iluminada, o tédio de esperar os atores principais aparecerem, os breves momentos de atividade, a atenção concentrada nos detalhes. O corpo podia muito bem ser o de uma atriz fingindo de morta. Ele meio esperou que um dos policiais fosse correr e arranjar seu cabelo. A noite estava quase no fim. Estava quase amanhecendo. O céu a leste começava a clarear, e o campo deserto, que parecia um vazio sem forma acima da terra empelotada, assumia uma identidade. Na direção oeste, via a silhueta de casas, provavelmente uma propriedade do governo, uma fileira de telhados
idênticos e um padrão de quadrados escuros quebrado por quadrados amarelos, à medida que os madrugadores acendiam suas luzes. A trilha pela qual viera sacudindo no carro, cheia de rochas, prateada, estranha como uma paisagem lunar à luz dos faróis, agora assumia forma e direção, ia ficando comum. Nada guardava o mistério. O lugar era um campo árido entre duas extremidades da cidade, juncado de lixo e circundado por árvores esparsas acima de um fosso. Sabia que o fosso devia ser úmido, cheio de urtigas e de lixo apodrecendo, as árvores machucadas por vândalos, os troncos cheios de iniciais, os ramos baixos arrancados dos galhos. Era uma terra-de-ninguém urbana, território perfeito para um assassinato. Claro que era um erro ter vindo; devia ter entendido que o papel de voyeur é sempre ignóbil. Poucas coisas eram mais desmoralizadoras do que ficar parado, inútil, enquanto outros homens demonstravam sua competência profissional. Kerrison, o connaisseur da morte, literalmente farejando o corpo. Os fotógrafos, taciturnos, preocupados com os ângulos e com a iluminação. O inspetor Doyle, finalmente encarregado de um caso de assassinato, empresário da morte, tenso com a excitação contida de uma criança se exibindo com um brinquedo novo no Natal. Enquanto esperava a vinda de Kerrison, Doyle chegara a rir, uma gargalhada gostosa enchendo o fosso. E Lorrimer? Antes de tocar o corpo, havia feito um breve sinal-da-cruz. Um gesto tão pequeno e preciso que podia ter escapado a Howarth, a não ser pelo fato de ele não deixar escapar nada do que Lorrimer fazia. Os outros não pareceram surpresos com aquela excentricidade. Talvez estivessem acostumados. Domenica não lhe contara que Lorrimer era religioso. Porém sua irmã não lhe comentara nada sobre o amante. Não tinha dito nem que o caso havia acabado. Mas durante o último mês bastava olhar para Lorrimer para entender. A cara de Lorrimer, as mãos de Lorrimer. Estranho não ter notado antes como ele tinha os dedos compridos. Com que aparente suavidade havia fechado com fita colante os sacos plásticos em torno das mãos da moça para preservar, explicou, neutro, cônscio de sua função de instrutor, uma eventual prova debaixo das unhas dela. Havia retirado uma amostra de sangue do braço roliço, flácido, procurando a veia com cuidado, como se ela ainda pudesse reagir à picada da agulha. As mãos de Lorrimer. Howarth afastou da cabeça as imagens atormentadoras, explícitas. Nunca antes havia se importado com os amantes de Domenica. Não tivera ciúme nem de seu falecido marido. Parecera-lhe perfeitamente razoável que ela acabasse querendo casar, do mesmo jeito que podia, num ataque de tédio ou de consumismo, comprar um casaco de peles ou uma jóia nova. Até gostava de Charles Schofield. Por que então, desde o primeiro momento, a idéia de Lorrimer na cama de sua irmã lhe fora intolerável? Não que ele jamais pudesse
ter ido para a cama dela, pelo menos não em Leamings. Mais uma vez, imaginou onde conseguiam se encontrar, como Domenica tinha arrumado um novo amante sem que todo o laboratório, que toda a aldeia ficasse sabendo. Como podiam ter se conhecido e onde? Começou, claro, naquele jantar desastroso doze meses antes. Na época, pareceu natural e civilizado comemorar a sua posse na diretoria com uma pequena festa particular em sua casa, para a equipe principal. Lembrava-se que comeram melão, seguido de boeuf stroganoff e salada. Ele e Domenica gostavam de comer bem e ela, de vez em quando, gostava de cozinhar. Abrira para os colegas um clarete de 1961 porque era o vinho que ele e Dom teriam escolhido e não lhe ocorreu oferecer menos a seus convidados. Ele e Dom se vestiram bem porque era seu costume. Achavam divertido jantar com algum estilo, separando formalmente os dias de trabalho das noites conjuntas. Não era problema seu o fato de Bill Morgan, o examinador de veículos, ter preferido ir de camisa esporte e calça de veludo cotelê; nem ele nem Dom davam a menor importância ao que os convidados escolhiam usar. Se Bill Morgan ficou incomodado por essas insignificantes pedras de toque do bom gosto, devia aprender ou a trocar de roupa ou a desenvolver maior confiança social em suas excentricidades de elegância. Howarth nunca imaginou que, sentados em torno da mesa iluminada a velas, os seis chefes de departamento, tão pouco à vontade que nem o vinho conseguiu amolecê-los, pudessem considerar aquela ocasião uma complicada charada gastronômica, destinada apenas a exibir sua superioridade social e intelectual. Pelo menos Paul Middlemass, chefe científico do Exame de Documentos, apreciou o vinho, puxando a garrafa para si e enchendo o copo, os olhos preguiçosos, irônicos, observando o dono da casa. E Lorrimer? Lorrimer não comeu praticamente nada, bebeu ainda menos, empurrando o copo quase petulante e pregando os grandes olhos ardentes em Domenica, como se nunca tivesse visto antes uma mulher. Provavelmente, assim é que havia começado. Como progrediu, quando e como os dois continuaram a se encontrar, como terminou, isso Domenica não revelou. A festa foi um fiasco público e privado. Mas o que os chefes de departamento esperavam?, pensou. Uma noite de bebedeira no reservado do Moonraker? Uma boca-livre no salão da aldeia para o laboratório inteiro, inclusive a faxineira, sra. Bidwell, e o velho Scobie, servente do laboratório? Cantar e dançar no pub local? Talvez achassem que a iniciativa deveria ter partido do lado deles. Mas isso seria admitir que havia dois lados. O sofisma convencional é que o laboratório funcionava como uma equipe atrelada a um propósito comum, as rédeas conduzidas com suavidade, mas com firmeza pelas mãos do diretor. No Bruche
tinham trabalhado bem. Mas lá ele havia dirigido o laboratório com disciplina comum. Como comandar uma equipe quando ela praticava meia dúzia de diferentes disciplinas científicas, usava seus próprios métodos, era responsável por seus resultados, e comparecia sozinha para justificar e defender esses resultados no único lugar onde a qualidade do trabalho do cientista forense podia ser adequadamente avaliada, o banco das testemunhas num tribunal? Sabia que o velho dr. Mac, seu antecessor, havia assumido algum caso eventualmente, para não perder a mão, como dizia, trotando para a cena do crime como um velho sabujo alegremente fareja aromas semi-esquecidos, fazendo ele próprio as análises e aparecendo afinal, como um profeta ressuscitado do Velho Testamento, no banco das testemunhas, saudado pelo juiz com secos cumprimentos judiciais, ruidosamente recebido pelos advogados como um saudoso e réprobo velho companheiro de bebedeira alegremente devolvido ao seu convívio. Mas Howarth nunca seria desse jeito. Tinha sido nomeado para administrar o laboratório e faria isso à sua própria maneira. Morbidamente introspectivo à luz fria do amanhecer, imaginou se a sua decisão de acompanhar o próximo caso de assassinato, do telefonema ao julgamento, havia surgido de um desejo de aprender ou simplesmente da vontade de impressionar ou, ainda pior, de acalmar sua equipe, de lhe mostrar que valorizava suas capacidades, que queria fazer parte da turma. Se assim fosse, o seu comparecimento seria mais um erro de julgamento a acrescentar à aritmética sombria do fracasso vigente desde que assumira o novo cargo. Parecia que haviam quase acabado. Os dedos rígidos da moça tinham sido abertos à força para liberar a bolsa, e as mãos enluvadas de Doyle estavam espalhando seu parco conteúdo sobre uma folha de plástico em cima do capô do carro. Howarth conseguiu vislumbrar o que parecia uma bolsinha, um batom, uma folha de papel dobrada. Provavelmente uma carta de amor, coitadinha. Será que Lorrimer teria escrito cartas de amor para Domenica?, imaginou. Era sempre o primeiro a chegar à porta quando entregavam a correspondência e geralmente era ele quem levava as cartas para a irmã. Talvez Lorrimer soubesse disso. Mas devia ter escrito, sim. Devia haver combinações. Lorrimer dificilmente teria arriscado telefonar do laboratório e de casa nas noites em que ele, Howarth, podia atender ao telefonema. Estavam agora removendo o corpo. O carro funerário aproximou-se da beirada do barranco para que a maca pudesse entrar. Os policiais retiravam os painéis do veículo para cercar a cena do crime. Logo se formaria aquele grupinho de espectadores, aquelas crianças curiosas espantadas pelos adultos, os fotógrafos da imprensa. Viu Lorrimer e Kerrison conferenciando um pouco afastados, de costas para ele, as cabeças de cabelos escuros muito próximas. Doyle estava
fechando seu caderno e supervisionando a remoção do corpo como se fosse alguma peça preciosa que temesse que alguém pudesse quebrar. A luz estava ficando mais forte. Esperou Kerrison subir até ele e juntos caminharam para os carros estacionados. O pé de Howarth topou com uma lata de cerveja. Ela foi batendo pelo caminho e parou junto ao que parecia a estrutura de um velho carrinho de bebê, produzindo um ruído que lembrava um tiro. Sobressaltou-se com o barulho. Disse, irritado: “Que lugar para morrer! Pelo amor de Deus, onde é que estamos exatamente? Eu só segui as viaturas da polícia.” “Chamam isto aqui de campo de tufo. É o nome local para o calcário mole que é minerado aqui desde a Idade Média. Como não tem nenhuma pedra dura para construção por aqui, usaram calcário na maioria dos edifícios de moradia e até no interior de algumas igrejas. Exemplo disso é a Capela de Nossa Senhora, em Ely. A maioria das aldeias tinha a sua mina de tufo. Tudo mato agora. Algumas ficam bem bonitas na primavera e no verão, uns oásis de flores silvestres.” Deu a informação quase sem inflexão, como um guia dedicado repetindo por hábito o texto oficial. De repente, perdeu o equilíbrio e apoiou-se na porta do carro. Howarth imaginou se estaria doente ou se aquilo era um extremo de cansaço. Então o patologista endireitou o corpo e disse, tentando ser seco: “Vou fazer a necropsia amanhã de manhã, às nove horas, no St. Luke. O porteiro lhe indica o caminho. Deixo um recado.” Acenou uma despedida, forçou um sorriso, depois acomodou-se no carro e bateu a porta. O Rover foi sacudindo devagar até a estrada. Howarth sentiu que Doyle e Lorrimer estavam ao seu lado. A excitação de Doyle era quase palpável. Virou-se para olhar as fileiras de casas distantes, do outro lado do campo de tufo, as paredes amarelas de tijolos e as janelas quadradas agora plenamente visíveis. “Ele está lá, em algum lugar. Na cama, provavelmente. Quer dizer, se não morar sozinho. Não pode levantar e sair cedo demais, não é? Não, deve estar deitado lá, pensando como parecer normal, esperando o carro anônimo, o toque na porta. Se estiver sozinho, é diferente, claro. Vai estar andando pra lá e pra cá na penumbra, pensando se devia queimar o terno, raspar a lama do sapato. Só que não vai conseguir tirar tudo. Não tudo. E o terno não vai caber na caldeira. E mesmo que coubesse, o que ele iria dizer quando a gente perguntar onde está? Pode ser também que não esteja fazendo nada. Só deitado lá, esperando. Dormindo não vai estar. Não dormiu a noite passada. E não vai dormir por um bom tempo.” Howarth sentiu-se ligeiramente mal. Havia jantado cedo e pouco, e sabia que
estava com fome. A sensação de náusea com o estômago vazio era especialmente desagradável. Controlou a voz, não revelando nada além de interesse casual. “Então acha que é um caso relativamente simples?” “Crimes familiares geralmente são. E calculo que este aqui seja um deles. Menina casada, canhoto do ingresso para o baile da associação beneficente local, uma carta na bolsa ameaçando, se ela não parasse de procurar outro sujeito. Um estranho não saberia deste lugar. E ela não teria ido com ele, nem que soubesse. Pelo jeito, os dois deviam estar sentados ali bem quietinhos até ele botar a mão no pescoço dela. A questão é só saber se os dois saíram juntos ou se ele veio antes e ficou esperando por ela.” “Ainda não sabe quem é?” “Ainda não. Não tinha agenda na bolsa. Esse tipo não usa agenda. Mas vou saber em meia hora.” Virou-se para Lorrimer. “O material das provas vai estar no laboratório aí pelas nove. Vai dar prioridade para isto aqui?” A voz de Lorrimer era áspera. “Assassinato tem sempre prioridade. Você sabe disso.” O berro exultante, satisfeito de Doyle, sacudiu os nervos de Howarth. “Graças a Deus alguma coisa tem prioridade! Você está demorando muito com o caso Gutteridge. Estive no Departamento de Biologia ontem e Bradley disse que o relatório ainda não está pronto; ele estava trabalhando num outro caso para a defesa. Todo mundo sabe que é uma grande mentira essa história que o laboratório é independente da polícia. Algumas vezes eu até concordo. Mas o velho Hoggatt fundou esse lugar como laboratório da polícia, e no fim das contas é isso que é. Então me faça um favor. Ande logo com este aqui. Eu quero o culpado e quero logo.” Ele se balançava suavemente nos calcanhares, o rosto sorridente levantado para o amanhecer, como um cachorro farejando o ar, eufórico com a agitação da caça. Estranho, pensou Howarth, que não tivesse percebido a fria ameaça na voz de Lorrimer. “Hoggatt faz um ou outro exame para a defesa quando nos pedem e quando a prova está embalada e apresentada do jeito certo. É a política do departamento. Nós ainda não somos um laboratório da polícia, mesmo que você possa entrar e sair como se fosse a cozinha da sua casa. E eu decido o que é prioridade no meu laboratório. Vai receber seu relatório assim que estiver pronto. Enquanto isso, se quiser fazer alguma pergunta, fale comigo, não com os funcionários subalternos. E se não for convidado, não apareça no meu laboratório.” Sem esperar resposta, encaminhou-se para seu carro. Doyle ficou olhando com
uma espécie de furiosa perplexidade. “Desgraçado dos infernos! Meu laboratório? O que é que ele tem? Anda mais nervoso que cadela no cio. Vai acabar no divã do psicanalista ou no hospício, se não se controlar.” Howarth disse friamente: “Ele está certo, claro. Qualquer consulta sobre o trabalho tem de ser feita a ele, e não a um membro da equipe. E também é costume pedir licença antes de entrar em um laboratório.” A censura feriu. Doyle franziu a testa. Seu rosto endureceu. Howarth teve um desconcertante relance da agressividade apenas controlada por baixo da máscara de bom humor. Doyle disse: “O velho doutor Mac costumava receber bem a polícia no laboratório dele. Ele achava, sabe?, que ajudar a polícia era o mais importante. Mas se a gente não é querido, melhor falar com o chefe. Claro que ele vai dar as ordens.” Girou nos calcanhares e partiu para o seu carro sem esperar resposta. Howarth pensou: “Maldito Lorrimer! Tudo o que ele toca sai errado para mim.” Sentiu um espasmo de ódio tão intenso, tão físico, que quase vomitou. Se fosse o corpo de Lorrimer esticado ali no fundo do buraco. Se fosse o cadáver dele aninhado na louça da mesa de necropsia no dia seguinte, pronto para a evisceração ritual. Sabia o que havia de errado consigo mesmo. O diagnóstico era simples e humilhante: aquela febre auto-infecciosa do sangue que pode ficar enganosamente dormente, e de repente se acender, como agora, num tormento. O ciúme, pensou, é tão físico quanto o medo; a mesma secura na boca, o coração batendo, a inquietação que acaba com o apetite e com a paz. E ele sabia agora que dessa vez a doença era incurável. Não importava o caso já ter acabado, que Lorrimer também estivesse sofrendo. A razão não podia curar aquilo, e desconfiava que nem a distância nem o tempo. Só podia terminar com a morte; a de Lorrimer ou a dele.
4
Às seis e meia, no quarto da frente do número 2 de Acácia Close, em Chevisham, Susan Bradley, esposa do analista científico do Departamento de Biologia do Laboratório Hoggarth, foi saudada pelo chorinho exigente de seu bebê de dois meses, faminto pela primeira mamada do dia. Susan acendeu o abajur de cabeceira, um refulgir rosado debaixo da cúpula de babados, pegou o penhoar e, sonolenta, foi arrastando os pés até o banheiro ao lado e depois para o quarto do bebê. Era um cômodo pequeno, nos fundos da casa, pouco mais que uma caixa, mas quando apertou o interruptor da luzinha noturna sentiu de novo um fulgor de orgulho materno, possessivo. Mesmo em sua sonolência matinal, o primeiro olhar ao quarto do bebê animou seu coração: a cadeira de balanço com o encosto todo decorado com coelhinhos; o trocador combinando, cheio de gavetas para as coisas; o berço de vime em seu suporte, que ela havia forrado de algodão florido em rosa, azul e branco para combinar com a cortina; a faixa brilhante de personagens de historinhas infantis que Clifford havia aplicado nas paredes. Com o som de seus passos, os gritos ficaram mais fortes. Ela pegou o casulo quentinho, cheirando a leite, e murmurou um carinho. Imediatamente os gritos cessaram e a boca úmida de Debbie, abrindo e fechando como a de um peixe, buscou o seu seio, as mãozinhas enrugadas, libertas do lençol, se abrindo para agarrar sua camisola amassada. Os livros recomendavam trocar o bebê antes da mamada, mas ela não agüentava deixar Debbie esperando. E havia uma outra razão. As paredes da casa moderna eram finas e o choro poderia acordar Cliff. De repente, porém, ele estava na porta, oscilando ligeiramente, o paletó do pijama aberto no peito. Sentiu o coração pesar. Fez a voz soar clara, direta. “Tentei não deixar que ela acordasse você, meu bem. Mas já passa de seis e meia. Ela dormiu mais de sete horas. Está melhorando.” “Eu já estava acordado.” “Volte para a cama, Cliff. Pode dormir mais uma hora.” “Não consigo pegar no sono.” Ele olhou em torno do quarto com a testa franzida numa interrogação, desconcertado de não ver uma cadeira. Susan disse: “Traga o banquinho do banheiro. E vista o seu robe. Vai ficar resfriado.” Ele encostou o banquinho na parede e se encolheu ali, emburrado. Susan levantou o rosto da macia pelugem da cabeça do bebê. A pequena sanguessuga de nariz arrebitado agarrou-lhe o seio, os dedos esticados num êxtase de
satisfação. Disse a si mesma que tinha de manter a calma, não deixar que seus nervos e músculos endurecessem naquele doloroso nó de preocupação. Todo mundo comentava que isso era mau para o leite. Falou baixinho: “Qual é o problema, meu bem?” Mas sabia qual era o problema. Sabia também o que ele ia dizer. Sentiu um ressentimento novo, assustador, por não poder nem alimentar Debbie em paz. E desejou que ele abotoasse o pijama. Sentado assim, curvado e seminu, parecia quase indecente. Imaginou o que estava acontecendo consigo mesma. Nunca havia sentido isso por Cliff antes de Debbie nascer. “Não posso ir. Não posso ir ao laboratório hoje.” “Está doente?” Sabia que não era isso, pelo menos não ainda. Sabia, porém, que ele ia ficar doente se não fizessem alguma coisa a respeito de Edwin Lorrimer. O velho desespero baixou sobre ela. As pessoas escreviam livros sobre o negro peso da angústia, e tinham razão. A sensação era essa mesmo, um fardo físico permanente pesando sobre os ombros e sobre o coração, abafando a alegria, destruindo até, pensou, amargurada, o prazer que sentiam com Debbie. Talvez no fim destruísse até o amor. Não disse nada, mas acomodou melhor o seu pequeno e cálido fardo na dobra do braço. “Tenho que sair desse emprego. Não adianta, Sue. Não consigo continuar. Ele me botou num tal estado que acabo me achando tão inútil quanto ele diz que eu sou.” “Mas Cliff, você sabe que não é verdade. É um bom funcionário. Nunca houve nenhuma reclamação contra o seu trabalho no outro laboratório.” “Só que eu ainda não tinha esse cargo. Lorrimer acha que eu nunca devia ter sido promovido. Tem razão.” “Não tem razão, não. Meu bem, não pode deixar que ele mine a sua segurança. Você é um biólogo consciencioso, digno de confiança. Não deve se preocupar de não ser tão rápido quanto os outros. Isso não importa. O doutor Mac sempre disse que o que conta é a exatidão. Que importância tem se você leva mais tempo? No fim, chega na resposta certa.” “Não mais. Não consigo mais fazer nem um simples teste de peroxidase sem me atrapalhar. Se ele chega a meio metro de mim, eu começo a tremer. E ele agora confere todos os meus resultados. Acabei de examinar as manchas na marreta do suspeito do caso Pascoe. Mas ele vai passar a noite fazendo tudo de novo. E vai cuidar para o Departamento de Biologia inteiro saber por quê.” Ela sabia que Cliff não conseguia agüentar intimidação nem sarcasmo. Provavelmente por causa do pai. O velho estava paralisado depois de um derrame, e talvez devesse sentir pena dele naquela cama de hospital, inútil como
uma árvore tombada, babando, apenas os olhos raivosos passando, com sua fúria impotente, da cara de um para o outro. Pelo que Cliff tinha deixado escapar, foi um mau pai, um diretor de escola fracassado e impopular, desmedidamente ambicioso quanto ao único filho. Cliff tinha horror dele. O que precisava era de estímulo e de afeto. Que importava se nunca fosse subir além do cargo que ocupava? Era gentil, amoroso. Cuidava bem dela e de Debbie. Era seu marido e o amava. Mas ele não podia se conformar. Que outro emprego poderia arranjar? Para que mais serviria? O desemprego em East Anglia era tão grave quanto no resto do país. Havia uma hipoteca a ser paga, a conta de energia do aquecimento, que não podiam economizar porque Debbie precisava de calor, e as prestações dos móveis do dormitório. Nem a mobília do bebê ainda estava quitada. Ela quis tudo novo e bonito para Debbie, mas isso havia consumido o resto das economias. Disse: “Não dá para você pedir transferência para o Departamento de Administração?” “Ninguém vai me querer se Lorrimer disser que eu não presto. Ele talvez seja o melhor biólogo forense na ativa. Se achar que eu sou inútil, eu sou inútil.” Era isso também que ela estava começando a achar irritante: o respeito obsequioso da vítima pelo opressor. Às vezes, horrorizada com a própria deslealdade, era capaz de entender um pouco o desprezo do dr. Lorrimer. Perguntou: “Por que não troca uma palavra com o diretor?” “Até podia, se o doutor Mac ainda estivesse lá. Mas Howarth não vai ligar a mínima. Está chegando agora. Não quer nenhum problema com a equipe principal, ainda mais agora que está se preparando para mudar para o laboratório novo.” Ela então pensou no sr. Middlemass. Era o chefe científico do Exame de Documentos e tinha sido assistente dele, antes de casar. Foi no Laboratório Hoggatt que conheceu Cliff. Talvez o sr. Middlemass pudesse falar com Howarth por eles, usar sua influência com o Departamento de Administração. Não sabia bem o que esperar dele, mas era imperiosa a necessidade de confiar em alguém. Não podiam continuar assim. Cliff ia ter um colapso. E como ela ia fazer com o bebê e com o marido doente e o futuro incerto? Era bem provável que o sr. Middlemass pudesse ajudar. Acreditava nele porque precisava acreditar em alguém. Olhou para Cliff. “Não se preocupe, meu bem, vai dar tudo certo. Vamos pensar em alguma coisa. Vá trabalhar agora e a gente conversa de noite.” “Como? Sua mãe vem jantar aqui.” “Então depois do jantar. Ela vai pegar o ônibus de quinze para as oito. A gente
conversa essa hora.” “Não posso continuar assim, Sue.” “E não vai, não. Vou pensar em alguma coisa. Tudo vai se resolver. Prometo para você, meu bem. Vai dar tudo certo.”
5
“Mãe, sabia que cada ser humano é único?” “Claro que sim. Faz sentido, não faz? Só existe uma pessoa de cada. Você é você. Eu sou eu. Passe a geléia para seu pai e não encoste a manga na manteiga.” Brenda Pridmore, recém-nomeada escriturária-recepcionista do Laboratório Hoggatt, empurrou o pote de geléia sobre a mesa do café-da-manhã e começou a cortar metodicamente a clara do ovo frito em tiras fininhas, protelando, como fazia desde a mais tenra infância, aquele momento de cataclismo em que enfiava o garfo na brilhante cúpula amarela. Entregava-se a esse ritualzinho pessoal quase automaticamente. Dentro de sua cabeça, estava preocupada com os estímulos e as descobertas de seu maravilhoso primeiro emprego. “Estou dizendo biologicamente único. O inspetor Blakelock, assistente de comunicação com a polícia, me disse que cada ser humano tem uma impressão digital única e que dois tipos de sangue nunca são exatamente iguais. Se os cientistas tivessem sistemas suficientes, dava para distinguir todos, os tipos de sangue eu quero dizer. Ele acha que um dia vai ser assim. O sorologista forense vai ser capaz de dizer com certeza de quem veio o sangue, nem que seja de uma mancha seca. Sangue seco é mais difícil. Quando está fresco dá para trabalhar melhor.” “Emprego esquisito você arrumou.” A sra. Pridmore completou o bule de chá com a chaleira que tirou da aba do fogão e se acomodou na cadeira. A cozinha da casa de fazenda, com a cortina florida de cretone ainda fechada, era cálida e gostosamente familiar, cheirando a torrada, bacon frito e chá quente e forte. “Não sei se gosto da idéia de você examinando pedaços de corpos e roupas manchadas de sangue. Espero que lave bem as mãos antes de voltar para casa.” “Ah, mãe, não é nada disso! Todas as provas chegam dentro de um saco plástico com etiqueta de identificação. A gente tem que tomar cuidado para elas estarem todas etiquetadas e devidamente registradas no livro. Trata-se de continuidade de prova, que o inspetor Blakelock chama de integridade da amostra. E a gente não mexe com pedaço de corpo.” Lembrando de repente dos frascos vedados com conteúdo de estômago, os pedaços cuidadosamente dissecados de fígado e intestinos, que, pensando bem, não eram nada mais assustadores que as amostras do laboratório de ciências da escola, disse depressa: “Bom, não do jeito que você está falando. O doutor Kerrison é que faz os cortes. É o patologista forense que trabalha com o laboratório. Claro que alguns
órgãos vêm para a gente analisar.” Lembrou do inspetor Blakelock contando que na geladeira do laboratório tinham guardado uma cabeça inteira uma vez. Mas não era coisa para contar à mãe. Preferia que o inspetor nem tivesse comentado. A geladeira, atarracada e brilhante como um sarcófago cirúrgico, passara a ter para ela um sinistro fascínio. Mas a sra. Pridmore havia agradecidamente se agarrado a um nome conhecido. “Sei quem é o doutor Kerrison, acho. Mora na Velha Reitoria, em Chevisham, perto da igreja, não é? A mulher dele fugiu com um dos médicos do hospital, deixando com ele os dois filhos, aquela garota esquisita e o menino pequeno, coitadinho. Lembra como comentaram na época, Arthur?” O marido não respondeu, nem ela contava com isso. Era uma convenção tácita que Arthur Pridmore deixasse para as mulheres a conversa do café-da-manhã. Brenda continuou, contente: “A ciência forense não serve só para ajudar a polícia a descobrir os culpados. A gente ajuda a livrar os inocentes também. As pessoas às vezes esquecem disso. Mês passado tivemos um caso, claro que não posso citar nomes, de uma menina de dezesseis anos, do coral, que acusou o vigário de estupro. Bom, ele era inocente.” “Não é de estranhar. Estupro, imagine!” “Mas a coisa estava preta para o lado dele. Só que ele teve sorte de ser secretor.” “De ser o quê?, pelo amor de Deus!” “Ele secreta o próprio tipo sanguíneo em todos os líquidos corporais. Nem todo mundo é assim. Então, o biólogo teve condições de estudar a saliva dele e comparar com o grupo sanguíneo das manchas da roupa da vítima...” “Não na mesa de café, filha, se você não se importa.” Os olhos de Brenda pousaram de repente em uma mancha de leite redonda na toalha da mesa, e ela pensou que o café-da-manhã talvez não fosse mesmo o melhor momento para revelar as informações recém-adquiridas sobre a investigação de estupro. Puxou um assunto mais seguro. “O doutor Lorrimer, chefe do Serviço Científico, encarregado do Departamento de Biologia, disse que eu devia me esforçar para conseguir grau A e tentar um emprego de assistente científico. Ele acha que eu poderia me sair melhor do que num trabalho de escriturária. E na hora que eu tiver essa nova função, vou estar num cargo científico e posso ir subindo de posto. Alguns dos cientistas forenses mais famosos começaram assim, ele contou. Se ofereceu para me dar uma bibliografia, e disse que não vê por que eu não possa usar parte do equipamento do laboratório para o meu trabalho prático.” “Não sabia que você trabalhava no Departamento de Biologia.”
“Não trabalho. Fico mais é na recepção com o inspetor Blakelock, e às vezes ajudo no escritório geral. Mas a gente começou a conversar quando eu passei uma tarde no laboratório, conferindo o relatório para o tribunal com a equipe do doutor Lorrimer. Ele foi muito legal. Uma porção de gente não gosta dele. Dizem que é exigente demais, mas acho que é timidez, só isso. Podia ter sido diretor se o Departamento do Interior não tivesse passado por cima dele e nomeado o doutor Howarth.” “Ele parece estar bem interessado em você, esse senhor Lorrimer.” “Doutor Lorrimer, mãe.” “Doutor Lorrimer, tá bom. Se bem que eu não sei por que ele faz questão que o chamem de doutor, se ninguém atende paciente nenhum no laboratório.” “Ele é Ph.D., mãe. Doutor em filosofia.” “Ah, é, é? Achei que fosse cientista. Seja como for, é melhor você olhar bem onde pisa.” “Ah, mãe, não seja boba. Ele é velho. Deve ter quarenta anos ou mais. Sabia que o nosso laboratório é o laboratório judicial mais antigo do país? Tem laboratórios regionais cobrindo o país inteiro, mas o nosso foi o primeiro. O coronel Hoggatt foi o seu fundador no Solar Chevisham, quando era chefe de polícia, em 1898, e depois deixou o solar para a força policial quando morreu. Segundo o inspetor Blakelock, a ciência forense ainda estava engatinhando na época. E o coronel Hoggatt foi um dos primeiros chefes de polícia a ver as possibilidades que tinha. Tem o retrato dele lá na parede. Nosso laboratório é o único que traz o nome do fundador. Por isso é que o Departamento de Interior concordou que o prédio novo continue chamando Hoggatt. Outras polícias mandam as provas para os laboratórios regionais, o do Nordeste ou o Metropolitano, coisas assim. Mas em East Anglia dizem ‘Melhor mandar para o Hoggatt’.” “Melhor é você ir se mandando para o Hoggatt se quer chegar lá às oito e meia. Não quero você pegando nenhum atalho por dentro do prédio novo. Não é seguro, ainda em construção, principalmente nessas manhãs escuras. Você pode cair dentro do alicerce ou um tijolo despencar na sua cabeça. Construção nunca tem segurança. Olhe o que aconteceu com seu tio Will.” “Tudo bem, mãe. A gente não pode mesmo passar por dentro do prédio novo. Além disso, vou de bicicleta. Esses sanduíches são meus ou do papai?” “Seus, claro. Sabe que seu pai volta pra almoçar em casa às quartas-feiras. O lanche de hoje é queijo com tomate, e coloquei também um ovo cozido.” Depois que Brenda acenou adeus, a sra. Pridmore sentou-se para tomar sua segunda xícara de chá e olhou para o marido. “Espero que seja bom esse emprego que ela arrumou.”
Quando se dignava a falar no café-da-manhã, Arthur Pridmore o fazia com a autoridade magisterial de chefe de família, oficial de justiça do sr. Bowlem e sacristão na igreja da aldeia. Pousou o garfo. “É um bom emprego, sorte dela ter arranjado isso. Tinha uma porção de moças formadas querendo, não tinha? Funcionária pública contratada, não é? E olhe o que estão pagando. É mais do que ganha o tratador de porcos. E tem aposentadoria também. É uma menina sensata e vai se dar bem. Por aqui não existe mais muitas oportunidades para jovens formadas. E você não queria que ela arrumasse emprego em Londres.” Não mesmo, a sra. Pridmore não queria que Brenda fosse para Londres, presa de assaltantes, terroristas do IRA e aquilo que a imprensa chamava misteriosamente de “panorama das drogas”. Nenhuma de suas raras mas tranqüilas e agradáveis visitas à capital em excursões teatrais do Clube de Mulheres ou nas poucas viagens de compras chegaram a abalar sua convicção de que a Estação de Liverpool Street era a entrada cavernosa para uma selva urbana, onde predadores armados de bombas e seringas se escondiam em cada estação de metrô, e sedutores jogavam suas teias para inocentes provincianas em todos os escritórios. Brenda, pensava a mãe, era uma moça muito bonita. Não havia como negar, tinha puxado a aparência do lado da mãe, mesmo tendo a cabeça do pai, e a sra. Pridmore não tinha a intenção de expô-la às tentações de Londres. Brenda estava namorando Gerald Bowlem, filho mais novo do patrão do pai, e se desse certo não havia como negar que seria um casamento bem satisfatório. Claro que ele não ia herdar a fazenda principal, mas havia uma bonita propriedadezinha em Wisbech que seria dele. A sra. Pridmore não via sentido em continuar com tanta análise e toda essa conversa sobre carreira. Esse emprego no laboratório ia servir muito bem para Brenda até ela casar. Mas era uma pena haver toda essa ênfase em sangue. Como se tivesse lido seus pensamentos, o marido comentou: “Claro que é estimulante para ela. É tudo novo. Mas na minha opinião não é diferente de outros empregos, bem sem graça a maior parte do tempo. Não acho que vá acontecer nada muito assustador com a nossa Brenda no Laboratório Hoggatt.” Essa conversa sobre o primeiro emprego de sua única filha eles já haviam tido antes, uma reconfortante reiteração de mútua tranqüilidade. Em imaginação, a sra. Pridmore seguiu a filha enquanto ela pedalava vigorosamente, sacudindo pela trilha esburacada entre os campos planos do sr. Bowlem até Tenpenny Road, passando pelo chalé da sra. Button onde, em criança, ela ganhava bolo de arroz e limonada feita em casa. Depois por Tenpenny Dike. Ali, ela ainda colhia flores no verão, após uma curva à direita na Chevisham Road e três quilômetros
em linha reta contornando as terras do capitão Massey e entrando na aldeia de Chevisham. Cada centímetro do caminho era conhecido, garantido, seguro. E até o Laboratório Hoggatt, com sangue ou sem sangue, fazia parte da aldeia havia mais de setenta anos, instalado no Solar Chevisham, que estava ali fazia três vezes mais tempo do que isso. Arthur tinha razão. Nada de assustador poderia acontecer com Brenda em Hoggatt. Consolada, a sra. Pridmore abriu as cortinas e se acomodou para tomar sua terceira xícara de chá.
6
Às dez para as nove, o furgão do correio parou na frente do Chalé Sprogg’s, na divisa de Chevisham, para entregar uma única carta. Era endereçada à srta. Stella Mawson, Chalé Lavender, Chevisham, mas o carteiro era nativo dali e não se deixou confundir com a diferença de nome. Alguém da família Sprogg morava no chalé havia quatro gerações, e por todo aquele período o pequeno triângulo verde na frente do portão chamava-se Sprogg’s Green. O atual proprietário, depois de melhorar o chalé construindo uma pequena garagem de tijolos, um banheiro e uma cozinha modernos, resolvera comemorar a metamorfose plantando uma cerca de lavanda e rebatizando a propriedade. Mas os moradores locais viam o novo nome como nada mais que um capricho de forasteiro, que não tinham nenhuma obrigação nem de usar nem de aceitar. Como se simpatizasse com aquela atitude, a cerca de lavanda não sobreviveu ao primeiro inverno no pântano e o Chalé Sprogg’s continuou com esse nome. Angela Foley, vinte e sete anos, secretária pessoal do diretor do Laboratório Hoggatt, pegou o envelope e, pela qualidade do papel, pela excelência do endereço datilografado, e pelo carimbo de Londres, adivinhou imediatamente o que devia ser. Era a carta que estava esperando. Levou para a cozinha onde ela e a amiga estavam tomando café-da-manhã e entregou sem dizer nada, observando o rosto de Stella enquanto lia. Depois de um minuto, perguntou: “Então?” “É o que a gente temia. Ele não pode esperar mais. Quer vender logo e tem um amigo interessado em comprar para chalé de fim de semana. Como inquilinas, temos preferência, mas até segunda-feira que vem ele tem que saber se estamos interessadas.” Jogou a carta na mesa. Angela disse, amargurada: “Interessadas! Claro que estamos interessadas! Ele sabe disso. Já faz semanas que dissemos que a gente está tentando arrumar uma hipoteca.” “Isso é só conversa legal. O que o advogado dele quer saber é se vamos seguir em frente. E a resposta é que não podemos.” As contas eram simples. Não havia necessidade de discutir o assunto. O dono queria dezesseis mil libras. Nenhuma das associações de hipotecas que elas procuraram adiantaria mais do que dez. Juntas tinham pouco mais de duas mil guardadas. Faltavam quatro mil libras. E como não havia mais tempo, podiam ser até quarenta. Angela arriscou:
“Será que ele não aceitava menos?” “Não. Já tentamos. E por que aceitaria? Um chalé do século XVII, com cobertura de sapé, perfeitamente modernizado. E nós ainda reformamos. Fizemos o jardim. Ele seria bobo de vender por menos de dezesseis, mesmo para inquilinos preferenciais.” “Mas, Star, nós somos os inquilinos preferenciais. Ele vai ter que expulsar a gente primeiro.” “Foi só por isso que permitiu que a gente ficasse até agora. Ele sabe que podemos tornar as coisas difíceis. Só que eu não estou preparada para ficar aqui debaixo de pressão, sabendo que no fim vamos ter de mudar. Não conseguiria escrever nessas condições.” “Mas não vamos conseguir achar quatro mil em uma semana! E do jeito que estão as coisas, não adianta esperar um empréstimo do banco nem se...” “Nem se eu tivesse um livro sendo lançado este ano, coisa que não tenho. E o que eu ganho escrevendo mal paga a minha parte das despesas da casa. Foi gentileza sua não dizer isso.” Ela não ia mesmo dizer isso. Stella não era uma escritora tipo linha de montagem. Não era de esperar que seus romances rendessem dinheiro. O que mesmo havia dito o último crítico? “Minuciosa observação casada com uma prosa elegantemente sensível e indireta.” Não era de surpreender que Angela fosse capaz de citar todas as críticas, mesmo quando algumas vezes não soubesse exatamente o que queriam dizer. Não era ela quem colava com meticuloso cuidado os recortes no álbum que Stella tanto desprezava? Ficou olhando enquanto a amiga começava aquilo que ambas chamavam de tigre enjaulado, aquele andar compulsivo para lá e para cá, de cabeça baixa e mãos afundadas nos bolsos do penhoar. Stella disse então: “Pena aquele seu primo ser tão desagradável. Senão nós podíamos até pedir um empréstimo. Não ia fazer nenhuma falta para ele.” “Mas eu já pedi. Não para o chalé, claro. Mas já pedi para ele me emprestar algum dinheiro.” Era ridículo que fosse tão difícil dizer isso. Afinal, Edwin era seu primo. Tinha o direito de pedir a ele. E afinal de contas era dinheiro de sua avó. Não havia realmente nenhuma razão para Star ficar zangada. Às vezes, ela não ligava para a raiva de Star, às vezes até a provocava deliberadamente, esperando, com uma excitação meio envergonhada, a excepcional explosão de amargura e desespero da qual era menos a vítima do que o espectador privilegiado, gozando ainda mais o inevitável remorso e a auto-acusação, a doçura da reconciliação. Mas agora, pela primeira vez, admitiu o arrepio de medo. “Quando?”
Agora tinha de ir em frente. “Terça-feira à noite. Foi depois que você resolveu cancelar nossas reservas para Veneza em março do ano que vem, por causa da taxa de câmbio. Queria te dar de presente de aniversário, a viagem.” Tinha visualizado a cena. Ela entregando as passagens e as reservas de hotel enfiadas em um daqueles cartões de aniversário extragrandes. Star tentando esconder a surpresa e a satisfação. Ambas debruçadas em cima de mapas e guias, planejando o itinerário de cada dia maravilhoso. Apreciar pela primeira vez, e juntas, a incomparável vista de San Marco do lado oeste da Piazza. Star havia lido para ela a descrição de Ruskin: “Uma multidão de pilares e cúpulas brancas, aglomeradas em uma longa pirâmide baixa de luz colorida”. As duas juntas na Piazzeta de manhã cedinho, olhando a San Giorgio Maggiore por cima da água cintilante. Era um sonho, tão incorpóreo quanto a cidade a se desmanchar. Mas a esperança desse sonho valera a pena do esforço de pedir o empréstimo a Edwin. “E o que ele respondeu?” Não havia chance agora de abrandar a brutal negativa, de apagar de sua memória todo o humilhante episódio. “Ele disse não.” “Deve ter contado para que queria o dinheiro. Não te ocorreu que nós duas íamos embora daqui para ficar a sós, que nossas férias são assunto nosso, que podia ser humilhante para mim Edwin Lorrimer saber que não tenho dinheiro para levar você a Veneza, nem em um pacote de dez dias?” “Não contei nada”, gritou ela, em veemente protesto, horrorizada com a própria voz rachada e a sensação das primeiras lágrimas quentes e amargas. Pensou que era estranho ser ela quem chorava. Star é que era a emocional, a veemente. E Star não chorava nunca. “Não contei nada para ele, a não ser que precisava do dinheiro.” “Quanto?” Hesitou, imaginando se devia mentir. Mas nunca mentia para Star. “Quinhentas libras. Achei que devíamos viajar bem. Só disse a ele que precisava muito de quinhentas libras.” “Então, como era de esperar, diante desse irrefutável argumento, ele se recusou a dar. O que foi que disse exatamente?” “Que a vovó deixou suas intenções perfeitamente claras no testamento e que não tinha a intenção de desobedecer. Aí, eu disse que a maior parte do dinheiro ia voltar para mim de qualquer jeito depois da morte dele, quer dizer, foi isso que ele me contou quando o testamento foi aberto, e que aí seria tarde demais. Eu já seria uma velha, podia até morrer antes. Que agora é que o dinheiro era importante. Mas não contei para que queria o dinheiro. Juro.”
“Jura? Não seja dramática. Não está no tribunal. E aí, qual foi a resposta?” Se pelo menos Star parasse de andar, tão agitada, virasse e olhasse para ela em vez de ficar interrogando com aquela voz fria e inquisitorial. O resto é que era ainda mais difícil de contar. Não conseguia explicar a si mesma por que, mas era uma coisa que havia tentado afastar da cabeça, de momento pelo menos. Um dia contaria a Star, no momento certo. Jamais imaginara ser forçada à confidência tão súbita e brutalmente. “Ele disse que eu não devia confiar que fosse receber qualquer coisa no seu testamento. Disse que podia arranjar novas obrigações. Obrigações foi a palavra que ele usou. E que se fizesse isso, o testamento não valeria mais.” Só então Star se virou e olhou para ela. “Novas obrigações. Casamento! Não, é ridículo demais. Casamento, aquele santarrão ressecado, pedante, convencido. Duvido que seja capaz de encostar de propósito em um corpo humano que não o dele mesmo. Vício solitário, masoquista, sub-reptício, é só isso que ele entende. Não, vício não, é muito forte essa palavra. Mas casamento! Você não achou que...” Ela se calou. Angela esclareceu: “Ele não falou nada de casamento.” “E por que falaria? Mas que outra coisa poderia automaticamente colocar de lado um testamento já existente, a menos que ele faça um novo? O casamento anula um testamento. Você não sabia?” “Quer dizer que assim que ele casar eu sou deserdada?” “É.” “Mas não é justo!” “Desde quando a vida é justa? Não foi justo a sua avó deixar a fortuna para ele em vez de repartir com você, só porque ele era homem e ela tinha o preconceito antiquado de que mulher não pode ter seu próprio dinheiro. Não é justo você ser só uma secretária no Hoggatt porque ninguém se deu ao trabalho de educar você para outra coisa. Não é justo, vamos e venhamos, que você tenha de me sustentar.” “Eu não sustento você. Sob todos os aspectos, a não ser no menos importante, é você que me sustenta.” “É humilhante valer mais morto do que vivo. Se meu coração parasse esta noite, aí você ficaria bem. Poderia usar o dinheiro do seguro para comprar esta casa e continuar aqui. O banco adiantaria o dinheiro se soubesse que você é minha beneficiária.” “Sem você eu não ia querer ficar.” “Bom, se você quiser ir embora daqui, isso pelo menos serviria de desculpa para viver sozinha, se é o que quer.”
Angela gritou em veemente protesto: “Não vou viver nunca mais com ninguém, a não ser com você. Não quero morar em lugar nenhum, a não ser aqui, neste chalé. Você sabe disso. É a nossa casa.” Era a casa delas. O único lar de verdade que conhecera. Não precisava nem olhar em torno para determinar com incrível clareza cada objeto familiar e querido. Ficava acordada na cama de noite, e na imaginação se deslocava com segurança pelo chalé, tocando cada peça numa alegre expedição de memórias comuns, reconfortantes. Os dois cachepôs vitorianos de esmalte com seus pedestais combinando que encontraram no The Lanes de Brighton num fim de semana de verão. A paisagem a óleo de Wicken Fen, do século XVIII, feita por um artista cuja assinatura indecifrável, examinada a microscópio, forneceu tantos momentos de alegres conjecturas. A espada francesa com sua bainha decorada, encontrada em uma liquidação campestre e agora pendurada em cima da lareira. Não era só o fato de suas posses, madeira e porcelana, tinta e tecido, simbolizarem a sua vida em comum. O chalé, com seus pertences, era a sua vida conjunta, adornava e dava realidade a isso do mesmo jeito que os arbustos e flores que plantaram no jardim demarcavam o seu território de confiança. Teve uma súbita e aterrorizante lembrança de um pesadelo recorrente. Estavam paradas face a face em um sótão vazio, paredes nuas marcadas com os quadrados mais pálidos de quadros removidos, tábuas do soalho ásperas aos pés, duas estranhas nuas em um vazio, ela própria estendendo as mãos para tocar os dedos de Stella, mas incapaz de levantar as pesadas almofadas de carne em que os seus braços haviam se transformado. Estremeceu e foi chamada de volta à realidade da fria manhã de outono pelo som da voz da amiga. “Quanto sua avó deixou? Você já me contou, mas eu esqueci.” “Umas trinta mil libras, acho.” “E ele não pode ter gastado tudo, morando com o velho pai naquele chalé apertado. Não reformou nem o moinho. Só o salário dele já deve ser mais do que suficiente para os dois, sem falar na pensão do velho. Lorrimer é um cientista graduado, não é? Quanto é que ele ganha?” “É chefe do Setor Científico. Pode chegar a oito mil libras.” “Meu Deus! Ganha mais em um ano do que eu consigo ganhar com quatro romances. Claro que se ele negou quinhentas libras, não vai querer emprestar quatro mil, não pagando os juros que nós poderíamos pagar. Mas não ia lhe fazer nenhum mal. Estou pensando em pedir para ele, afinal.” Stella estava só brincando, claro, mas percebeu isso tarde demais para controlar o pânico da voz. “Não, por favor, Star! Não, não pode fazer isso!”
“Você tem mesmo ódio dele, não é?” “Ódio não. Indiferença. Eu só não quero é ficar devendo nada para ele.” “Nem eu. E você não vai lhe dever nada.” Angela foi até a sala e voltou vestindo o casaco. Disse: “Vou chegar atrasada no laboratório se não correr. A comida está no forno. Tente lembrar de ligá-lo às cinco e meia. E não toque no regulador. Eu diminuo o fogo quando chegar.” “Acho que consigo fazer isso.” “Estou levando sanduíches de almoço, então não devo voltar. Tem presunto e salada na geladeira. É suficiente, Star?” “Pode deixar que eu sobrevivo.” “O texto de ontem à noite está na pasta, mas eu não li.” “Que desinteresse.” Stella acompanhou a amiga até o hall. Na porta, disse: “Acho que no laboratório devem pensar que eu exploro você.” “Eles não sabem nada a seu respeito. E não me importa o que pensem.” “É isso que Edwin Lorrimer acha também, que eu exploro você? O que é que ele pensa?” “Não quero falar dele.” Colocou a echarpe sobre o cabelo loiro. No espelho antigo com sua moldura de conchas entalhadas, viu os rostos das duas distorcidos pelo defeito do vidro: o verde e o castanho dos imensos olhos luminosos de Stella borrados como tinta molhada na forma de duas fendas profundas entre as narinas e a boca; sua própria testa larga, inchada, como a de uma criança hidrocéfala. Disse: “Não sei o que eu sentiria se Edwin morresse esta semana. Um ataque do coração, um acidente de carro, uma hemorragia cerebral.” “A vida nunca é assim tão conveniente.” “A morte é que não é. Star, você vai telefonar hoje para aquele advogado?” “Ele só está esperando a resposta na segunda-feira. Aí eu ligo para o escritório de Londres. Mas só daqui a cinco dias. Pode acontecer muita coisa em cinco dias.”
7
“Mas é igualzinha à minha! A calcinha, quero dizer. Tenho uma igual! Comprei na Marks and Spencer de Cambridge com o meu primeiro salário.” Às 10h35, na mesa da recepção nos fundos do saguão principal do Laboratório Hoggatt, Brenda Pridmore arregalou os olhos quando o inspetor Blakelock empurrou para ela o primeiro saco de provas etiquetado do crime do fosso de tufo. Ela estendeu o dedo e deslizou pelo plástico fino através do qual se via claramente a calcinha amassada e manchada nos fundilhos. O detetive que trouxe as provas dissera que a moça tinha estado em um baile. Engraçado, Brenda pensou, que ela nem tinha se dado ao trabalho de vestir uma roupa de baixo limpa. Talvez não fosse higiênica. Ou talvez tivesse se trocado com pressa demais. E agora a roupa íntima, que ela havia vestido tão descuidadamente no dia de sua morte, seria manipulada por mãos estranhas, examinada à luz ultravioleta, talvez entregue, devidamente protocolada, para o juiz e o júri do Tribunal da Coroa. Brenda entendeu que nunca mais conseguiria usar a sua calcinha, para sempre contaminada com a lembrança dessa morta desconhecida. Talvez até tivessem comprado as calcinhas juntas, na mesma loja, no mesmo dia. Ela se lembrava da excitação de estar pela primeira vez gastando um dinheiro que havia ganhado. Era um sábado de tarde e havia muita gente no balcão de lingerie, mãos ansiosas remexendo as calcinhas. Ela gostou daquela com ramalhetes de flores pink bordadas à máquina na frente. Essa moça desconhecida também. Talvez suas mãos tivessem se tocado. Exclamou: “Inspetor. A morte não é terrível?” “Assassinato é que é. A morte não. Pelo menos, não mais que o nascimento. Não dá para ter um sem o outro, senão não existiria lugar para nós. Acho que não vou ficar muito desesperado quando chegar a minha hora.” “Mas aquele policial que trouxe as provas disse que ela só tinha dezoito anos. A minha idade.” O inspetor estava preparando a pasta do novo caso, transferindo meticulosamente os detalhes do formulário da polícia para o arquivo. E sua cabeça, que para ela lembrava cabelos de milho, estava abaixada sobre o papel de tal forma que não podia ver seu rosto. De repente, lembrou que tinham lhe dito que ele havia perdido a filha única, morta por um motorista fugitivo, e desejou não ter aberto a boca. Sentiu o rosto se incendiar e desviou os olhos. Mas quando ele respondeu, estava com a voz perfeitamente firme.
“É, coitadinha. Deve ter provocado. Elas não aprendem. O que tem aí?” “O saco com roupas de homem, terno, sapato, e roupa de baixo. Acha que são do principal suspeito?” “Devem ser do marido, provavelmente.” “Isso prova o quê? Ela foi enforcada, não foi?” “Não dá para dizer com certeza até chegar o relatório do doutor Kerrison. Mas eles sempre examinam a roupa do principal suspeito. Pode ter traços de sangue, um grão de terra ou de areia, tinta, fibras pequenas da roupa da vítima, até alguma mancha de saliva. Ela também pode ter sido estuprada. Esse pacote todo vai para a Sala de Investigação Biológica junto com a roupa da vítima.” “Mas o policial não falou nada de estupro! Achei que tinha dito que este pacote é do marido.” “Você não deve se preocupar com isso. Tem que aprender a ser igual a um médico, uma enfermeira, neutro, sabe?” “É assim que se sente um cientista forense?” “Tem que ser. É o trabalho dele. Ele não pensa na vítima, nem no suspeito. Isso é com a polícia. Eles só pensam nos fatos científicos.” Tem razão, pensou Brenda. Lembrou do momento em que, três dias antes, o chefe do Serviço Científico da Seção de Instrumentos deixara que olhasse no gigantesco scanner do microscópio eletrônico a imagem de uma minúscula partícula de cal instantaneamente ampliada em uma exótica flor incandescente. Ele explicara: “É um coccolith, aumentado seis mil vezes.” “Um o quê?” “O esqueleto de um microrganismo que viveu nos mares antigos de onde vem o calcário depositado na cal. Dependendo de onde é retirado o calcário, eles são diferentes. É assim que se pode distinguir uma amostra de cal de outra.” Ela exclamara: “Mas é tão lindo!” Ele tomara seu lugar no visor do instrumento. “É, bonito, não é?” Mas ela entendeu que, enquanto olhava deslumbrada para um milhão de anos no passado, ele pensava apenas na minúscula partícula de cal tirada da sola do sapato do suspeito, o vestígio que podia determinar se um homem era estuprador ou assassino. E ele não se importava de fato, pensara ela. Só queria encontrar a resposta certa. Teria sido inútil perguntar para ele se achava que havia um propósito unificador na vida, se podia ser mesmo acaso um animal tão pequeno, impossível de ser visto a olho nu, morto havia milhões de anos nas profundezas do mar, ser ressuscitado por cientistas para provar que um homem
era inocente ou culpado. Era estranho, pensou, que os cientistas nem sempre fossem religiosos quando seu trabalho revelava um mundo de uma variedade tão maravilhosa e ao mesmo tempo tão misteriosamente unificado e inteiro. Parece que o dr. Lorrimer era o único membro do Hoggatt a ir regularmente à igreja, diziam. Imaginou se ousaria perguntar a ele sobre o coccolith e Deus. Ele havia sido muito gentil essa manhã, a respeito do crime. Chegara ao laboratório uma hora atrasado, às dez da manhã, parecendo terrivelmente cansado porque havia passado a noite na cena do crime, e viera até a mesa da recepção para pegar sua correspondência pessoal. Havia dito assim: “Você vai receber hoje de manhã as provas do seu primeiro caso de assassinato. Não se deixe impressionar, Brenda. A gente só deve ter medo de uma morte, a nossa própria.” Era uma coisa estranha de dizer, um jeito esquisito de animar os outros. Mas ele tinha razão. De repente, ficou contente de o inspetor Blakelock fazer a documentação sobre o crime do fosso de tufo. Agora, a dona daquela calcinha manchada ficaria para ela desconhecida, anônima, um número em uma série biológica dentro de um envelope pardo. A voz do inspetor cortou seus pensamentos: “Já estão prontos para serem postos no correio aqueles relatórios para o tribunal que conferimos ontem?” “Já, está tudo registrado no livro. Só queria fazer uma pergunta. Por que todas as declarações para o tribunal têm impresso ‘Decreto de Justiça Criminal 1967 seções 2 e 9’?” “É o estatuto para provas escritas a serem apresentadas no processo de autuação e no Tribunal da Coroa. Pode procurar essas seções na biblioteca. Antes do Decreto 1967, os laboratórios passavam um mau bocado, garanto a você, porque todas as provas científicas tinham de ser fornecidas oralmente. Veja, os funcionários que aparecem no tribunal ainda têm de passar um bom tempo acompanhando os julgamentos. A defesa nem sempre aceita as conclusões científicas. Essa é a parte difícil do trabalho, não a análise, mas sim ficar lá, sozinho, no banco de testemunhas para defender as provas no interrogatório. Se o sujeito não for bom no tribunal, todo o trabalho cuidadoso que faz aqui dentro não serve para nada.” Brenda se lembrou de repente de uma outra coisa que a sra. Mallett lhe havia dito: que o motorista que matara a filha dele fora absolvido porque o cientista não tinha resistido ao interrogatório. Alguma coisa relativa à análise das lascas de tinta encontradas na estrada que combinavam com o carro do suspeito. Deve ser terrível perder uma filha única, perder qualquer filho. Talvez isso fosse a pior coisa que podia acontecer para um ser humano. Não era de estranhar que o
inspetor Blakelock fosse sempre tão quieto, que quando os policiais vinham com suas brincadeiras ele respondesse apenas com um sorriso lento, suave. Deu uma olhada no relógio do laboratório. Dez e quarenta e cinco. A qualquer minuto os alunos do curso A Cena do Crime estariam chegando para a palestra sobre a coleta e preservação de provas científicas, e este breve momento de quietude acabaria. Imaginou o que o coronel Hoggatt iria pensar se visitasse seu laboratório agora. Seus olhos foram atraídos, como sempre, para o retrato dele, pendurado ao lado da porta do escritório do inspetor-chefe. Mesmo ali da sua mesa dava para ler as letras douradas na moldura.
 
Coronel William Makepeace Hoggatt V.C. Chefe de polícia 1894-1912 Fundador do Laboratório Hoggatt de Ciência Forense
 
Mostrava o coronel Hoggatt na sala que ainda era usada como biblioteca, o rosto vermelho severo, de suíças debaixo das penas do chapéu, a farda pregueada cheia de medalhas, com uma fileira de botões dourados. Uma mão dominadora pousada, como numa bênção sacerdotal, sobre um microscópio antiquado feito de latão brilhante. Mas os olhos ameaçadores não estavam fixados nessa moderna maravilha científica e sim em Brenda. Sob seu olhar acusador, chamada pelo dever, debruçou-se sobre o trabalho.
8
Por volta do meio-dia, terminou a reunião dos cientistas seniores no escritório do diretor para discutir a mobília e o equipamento do prédio novo, e Howarth ligou para a secretária ir limpar a mesa de reunião. Ficou olhando enquanto ela esvaziava e polia o cinzeiro (ele não fumava e o cheiro de cinza o incomodava), juntava os exemplares das plantas do laboratório e amontoava os papéis em desordem. Mesmo de sua mesa, Howarth conseguia ver os complicados rabiscos geométricos de Middlemass e a agenda amarrotada, marcada com círculos de xícara de café, do examinador-chefe de veículos, Bill Morgan. Ficou olhando a moça se deslocar com calada competência em torno da mesa, pensando, como sempre, o que estaria se passando, se é que se passava alguma coisa por trás daquela testa excepcionalmente larga, daqueles olhos amendoados, enigmáticos. Sentia mais falta do que esperava de sua antiga assistente pessoal, Marjory Faraker. Pesaroso, pensou que havia sido bom para sua presunção saber que a dedicação dela não chegava, afinal, a ponto de deixar Londres, onde, surpreendentemente, se descobriu que possuía uma vida pessoal, para juntar-se a ele no pântano. Como toda boa secretária, ela havia adquirido, ou pelo menos soubera simular, a aquisição dos atributos ideais de esposa, mãe, amante, confidente, criada e amiga, sem ser de fato, nem esperar ser, nenhuma dessas coisas. Ela lisonjeara sua auto-estima, o protegera das irritações menores da vida, preservara sua privacidade com agressividade maternal, garantira, com infinito tato, que ele soubesse tudo o que acontecia de importante em seu laboratório. Não podia reclamar de Angela Foley. Era uma datilógrafa e estenógrafa mais que competente e uma secretária eficiente. Nada era deixado por fazer. Só que ele sentia que mal existia para ela, que sua autoridade, vagamente respeitada, era uma charada. O fato de ser prima de Lorrimer era irrelevante. Nunca ouvira a moça mencionar o nome dele. De quando em quando, imaginava que tipo de vida levava naquele remoto chalé com sua amiga escritora, até que ponto se satisfazia com isso. Mas ela nada lhe dizia, nem sobre o laboratório. Ele sabia que Hoggatt tinha uma pulsação, toda instituição tem, mas isso lhe escapava. Disse: “O Departamento do Exterior quer que a gente receba um biólogo dinamarquês durante dois ou três dias no mês que vem. Vai visitar a Inglaterra para estudar a polícia. Por favor, marque um horário para ele assim que tiver algum tempo. Melhor ver também os compromissos do doutor Lorrimer. Depois, informe o Departamento que datas podemos oferecer.”
“Sim senhor, doutor Howarth.” Pelo menos a autópsia havia terminado. Tinha sido pior do que ele esperava, mas agüentou até o fim sem problemas. Nunca imaginara que as cores do corpo humano pudessem ser tão vivas, tão exoticamente belas. Reviu os dedos enluvados de Kerrison, escorregadios como enguias, ocupados com os orifícios do corpo. Explicando, demonstrando, descartando. Era de pensar que havia se tornado tão imune ao mal-estar e ao cheiro doce-azedo de seu necrotério. E para todos os peritos em morte violenta, que se deparam diariamente com a desintegração final da personalidade, a piedade era tão irrelevante quanto a indisposição. A srta. Foley já estava pronta para sair e tinha chegado à sua mesa para esvaziar a bandeja de papéis a serem despachados. Ele perguntou: “O inspetor Blakelock já preparou as médias do mês passado?” “Sim, senhor. A média de todas as provas é de doze dias, e a de álcool no sangue caiu para 1,2 dia. Mas o número para crimes contra a pessoa tornou a subir. Estou acabando de registrar esses dados.” “Passe para mim assim que estiver pronto, por favor.” Ele desconfiava que podia haver lembranças ainda mais persistentes do que a imagem de Kerrison marcando com seu bisturi de cartilagem a longa linha da primeira incisão no corpo branco como leite. Doyle, aquele grande touro negro, sorrindo para ele no banheiro depois de terem lavado as mãos lado a lado. E por que, pensou, havia deduzido que era preciso se lavar? Suas mãos não estavam contaminadas. “Desempenho-padrão de sempre. Limpo, rápido e completo, esse é o doc Kerrison. Desculpe não poder chamar o senhor quando estiver tudo pronto para fazer a prisão. Não é permitido. Vai ter que imaginar esse pedaço. Mas vai poder assistir ao julgamento, com um pouco de sorte.” Angela Foley estava parada na frente da mesa, olhando para ele de um jeito estranho, pensou. “Sim?” “Scobie teve de ir embora, doutor Howarth. Não está se sentindo nada bem. Acha que deve ser essa tal gripe de dois dias que anda no ar. Ele pediu para avisar que o incinerador quebrou.” “Deve ter telefonado para o técnico antes de sair.” “Telefonou, sim, senhor. Disse que ontem de manhã estava bom, quando o inspetor Doyle veio com as ordens judiciais autorizando a destruição das provas de maconha. Estava funcionando.” Howarth ficou irritado. Essa história era daqueles detalhes administrativos menores com que a srta. Faraker nem sonharia incomodá-lo. Adivinhou que a
srta. Foley estava esperando que dissesse alguma coisa gentil sobre Scobie, que perguntasse se o velho tinha sido capaz de voltar para casa de bicicleta. O dr. MacIntyre devia, sem dúvida, balir feito um carneiro ansioso sempre que algum funcionário ficava doente. Abaixou a cabeça sobre seus papéis. Mas a srta. Foley estava na porta. Tinha de ser agora. Fez um esforço para dizer: “Peça ao doutor Lorrimer para descer um pouco, por favor.” Podia, de um jeito perfeitamente casual, ter pedido a Lorrimer que ficasse depois da reunião. Por que não fizera isso? Talvez porque pudesse haver um eco do diretor de escola em um pedido tão público. Talvez porque fosse uma entrevista que ele gostaria de protelar, mesmo que temporariamente. Lorrimer entrou e parou diante da escrivaninha. Howarth tirou da gaveta da direita a pasta pessoal de Bradley e falou: “Sente, por favor. Este é o relatório anual sobre Bradley. Você fez uma avaliação negativa. Já contou para ele?” Lorrimer continuou de pé enquanto respondia: “As normas de relatório exigem que eu conte a ele. Tivemos uma reunião na minha sala às dez e meia, assim que voltei da autópsia.” “Parece um pouco duro. Segundo o relatório, é a primeira avaliação negativa que ele recebe. Foi admitido para um período de experiência faz dezoito meses. Por que não deu certo?” “Achei que isso estava claro na minha avaliação detalhada. Ele foi promovido acima da sua capacidade.” “Em outras palavras, a Junta cometeu um erro?” “Não é tão raro assim. As Juntas às vezes erram. E não só no caso de promoção.” A insinuação era gritante, uma provocação deliberada, porém Howarth decidiu ignorar. Com esforço, manteve a voz controlada. “Não estou disposto a assinar o relatório desse jeito. É cedo demais para fazer uma avaliação justa dele.” “No ano passado, desculpei o rapaz quando estava conosco fazia seis meses. Mas se discorda da minha avaliação, talvez deva manifestar sua opinião. Tem um espaço aí.” “Que eu pretendo usar. E sugiro que você tente fazer o rapaz sentir algum suporte e apoio. Existem duas razões para desempenho inadequado. Algumas pessoas são capazes de melhorar e melhoram se levarem um judicioso chute. Outras não. Dar-lhes um chute não só é inútil como destrói a pouca confiança que têm. Seu departamento é muito eficiente. Mas pode ser ainda melhor e mais feliz se você aprender a entender as pessoas. A administração depende, em
grande parte, das relações pessoais.” Fez um esforço para levantar o rosto. Lorrimer falou com os lábios tão tensos que as palavras soaram rachadas: “Não tinha me dado conta de que a sua família é famosa pelo sucesso nas relações pessoais.” “O fato de não aceitar críticas sem se tornar tão pessoal e odioso quanto uma mocinha neurótica é exemplo do que estou querendo dizer.” Nunca sabia o que Lorrimer podia responder. A porta se abriu e sua irmã entrou. Estava usando calça comprida e um casaco de pêlo de carneiro, o cabelo loiro preso com uma echarpe. Olhou para os dois com desembaraço e disse com naturalidade: “Desculpe, não sabia que estavam ocupados. Devia ter pedido para o inspetor Blakelock ligar perguntando.” Mortalmente pálido, Lorrimer virou nos calcanhares, passou por ela e saiu. Domenica ficou olhando ele ir, sorriu e deu de ombros. “Desculpe se interrompi alguma coisa. Só queria avisar que vou até Norwich por umas duas horas, para comprar material. Quer alguma coisa?” “Nada, obrigado.” “Volto antes do jantar, mas acho que vou faltar ao concerto da aldeia. Sem Claire Easterbrook, Mozart vai ser bem insuportável. Ah, estou pensando em passar em Londres a maior parte da semana que vem.” O irmão não respondeu. Ela olhou para ele e perguntou: “O que houve?” “Como é que Lorrimer soube de Gina?” Não precisava perguntar se ela é que havia contado. Podia ter revelado qualquer coisa, mas não isso. Ela atravessou a sala para estudar o Stanley Spencer em cima do aparador da lareira, e perguntou com leveza: “Por quê? Ele não falou do seu divórcio, falou?” “Não diretamente, mas a insinuação foi intencional.” Ela se virou para ele. “Provavelmente Lorrimer se deu ao trabalho de descobrir o máximo possível a seu respeito, quando soube que era candidato ao cargo. O Serviço Forense não é tão grande afinal.” “Mas eu sou de fora.” “Mesmo assim, deve ter havido contatos, fofocas. Um casamento fracassado é uma daquelas bobagens que ele pode ter farejado. E daí? Não é nada excepcional. Achei que cientistas forenses fossem particularmente expostos. Se não bastasse passar todas aquelas horas na cena do crime, ainda têm de comparecer inesperadamente ao tribunal. Deviam estar acostumados com
casamentos desfeitos.” Ele disse, sabendo que soava tão petulante quanto uma criança teimosa: “Não quero esse homem no meu laboratório.” “Seu laboratório? Não é assim tão simples, é? Não acho que o Stanley Spencer fique bem em cima da lareira. Parece incongruente. Estranho papai ter comprado isso. Não é o tipo de quadro para ele, eu diria. Você pendurou ali para chocar?” Miraculosamente, sua raiva e irritação se abrandaram. Ela sempre conseguia fazer isso com ele. “Só para desconcertar e confundir. É para sugerir que eu talvez seja um sujeito mais complicado do que eles pensam.” “Ah, mas você é! Eu jamais precisaria da Assunção em Cookham para provar isso. Por que não Greuze? Ficaria bom com esse aparador esculpido.” “Bonitinho demais.” Ela riu e foi embora. Ele pegou o relatório sobre Clifford Bradley e escreveu no espaço devido: “O desempenho do sr. Bradley tem sido decepcionante, mas nem todas as dificuldades são de sua responsabilidade. Falta-lhe segurança e ele poderia se beneficiar com mais apoio e estímulo do que vem recebendo. Corrigi a avaliação final para aquilo que considero mais justo e conversei com o biólogo-chefe sobre a administração de pessoal de seu departamento.” Se acabasse resolvendo que aquele não era, afinal, o emprego para ele, o comentário malicioso deveria servir até certo ponto para garantir que Lorrimer não tivesse chance de ser seu sucessor como diretor de Hoggatt.
9
Precisamente à 1h48, Paul Middlemass, examinador de documentos, abriu sua pasta sobre o crime do fosso de tufo. O Laboratório de Exames de Documentos, que ocupava toda a parte da frente do edifício imediatamente abaixo do teto, tinha cheiro de papelaria, um amálgama penetrante de papel e tinta, acentuado pelo cheiro intenso dos produtos químicos. Middlemass respirava aquilo como o seu ar nativo. Era um homem alto, magro, de traços grandes, com um rosto flexível, de boca larga e uma feiúra agradável, os cabelos cinzentos caindo em madeixas pesadas sobre a pele cor de pergaminho. Tranqüilo e aparentemente indolente, era, de fato, um trabalhador prodigioso, obcecado por seu emprego. O papel em todas as suas manifestações era a sua paixão. Poucos homens, dentro ou fora do Serviço Científico Forense, sabiam tanto a respeito. Manejava os papéis com alegria e uma espécie de reverência, regozijava-se com eles, conhecia sua proveniência quase pelo cheiro. A identificação do peso e fórmula de uma amostra por cristalografia espectrográfica ou por raios X simplesmente confirmava o que olho e tato já haviam pronunciado. A satisfação de ver surgir uma obscura marca d’água debaixo dos raios X era tão fascinante aos seus olhos difíceis de surpreender como a esperada marca do ceramista para um colecionador de porcelana. Seu pai, morto há muito tempo, era dentista, e o filho havia pegado para seu uso a coleção desordenadamente grande de guarda-pós cirúrgicos de desenho original. Eram de corte antiquado, acinturados e largos embaixo como o casaco de um dândi do período da Regência, com botões de metal subindo até o lado do pescoço. Embora as mangas fossem curtas, de forma que seus pulsos finos sobravam para fora, como os de um menino de escola crescido demais, ele os usava com certo panaché, como se essa roupa de trabalho pouco ortodoxa, tão diferente dos guarda-pós normais do restante da equipe do laboratório, simbolizasse aquela mistura única de perícia científica, experiência e originalidade que distinguia o bom examinador de documentos. Tinha acabado de telefonar para sua mulher, ao se lembrar, um tanto atrasado, que precisava ajudar no concerto da aldeia essa noite. Gostava de mulheres e antes do casamento tinha tido uma série de casos eventuais, satisfatórios e descompromissados. Casara-se tarde, com uma saudável pesquisadora científica de Cambridge, vinte anos mais nova, e toda noite voltava para seu moderno apartamento nos arredores da cidade dirigindo seu Jaguar, sua maior extravagância, quase sempre tarde, mas raramente tarde demais para poder levá
la até o pub local. Seguro em seu emprego, com uma reputação internacional cada vez maior, e plenamente satisfeito maritalmente com a sua graciosa Sophie, sabia que era bem-sucedido e desconfiava que era feliz. O Laboratório de Exames de Documentos, com seus armários e fileiras de câmeras fotográficas, ocupava um espaço que alguns de seus colegas, principalmente Edwin Lorrimer, consideravam excessivo demais. Mas, iluminado por fileiras de lâmpadas fluorescentes e com um teto baixo, era abafado e mal ventilado, e naquela tarde o aquecimento central, em que nunca se podia confiar, concentrara todos os seus esforços no alto do edifício. Geralmente não reparava em suas condições de trabalho, mas a temperatura subtropical era difícil de ignorar. Abriu a porta para o corredor. Em frente, um pouco à direita, ficavam o banheiro dos homens e o das mulheres, e ele podia ouvir os passos ocasionais, leves ou pesados, rápidos ou tranqüilos, dos funcionários que passavam, abrindo e fechando as duas portas. Não se importava com o ruído. Dedicava-se à sua tarefa. O exemplar que estava agora examinando não tinha mistério. Se o crime não fosse assassinato teria deixado aquilo para o assistente científico, que ainda não voltara de um almoço atrasado. Mas assassinato significava invariavelmente a aparição no tribunal e o interrogatório. A defesa nunca deixava de questionar as provas científicas nessa que era a mais grave das acusações, e a aparição no tribunal colocava o exame de documentos em geral, e o Laboratório Hoggatt em particular, sob julgamento público. Era questão de princípio para ele assumir sempre pessoalmente os casos de assassinato. Quase nunca eram os mais interessantes. Ele gostava mesmo de investigações históricas. A satisfação de demonstrar, como tinha acabado de fazer no mês anterior, que um documento datado de 1872 havia sido impresso em um papel que continha polpa de madeira tratada com produtos químicos que só começaram a ser usados em 1874, descoberta essa que havia dado início a um fascinante desvendamento de uma complexa fraude de documentos. Nada havia de complicado e interessante no atual caso. No entanto, poucos anos antes, o pescoço de um homem podia depender de sua opinião. Ele nunca pensava na meia dúzia de homens que foi enforcada durante os vinte anos de sua experiência forense, sobretudo por causa de suas provas, e quando o fazia, não eram as caras apavoradas, mas estranhamente anônimas no patíbulo que ele se lembrava, nem de seus nomes, mas do papel e da tinta, do traço descendente mais grosso, da forma peculiar de uma letra. Esticou em cima da mesa o bilhete encontrado na bolsa da moça morta, colocando de ambos os lados as duas amostras de caligrafia do marido que a polícia havia obtido. Uma era a carta para a mãe do suspeito, escrita em Southend durante as férias, e ele imaginou como teriam conseguido arrancar
aquilo da mãe. A outra, um breve recado telefônico sobre uma partida de futebol. O bilhete da bolsa da vítima era ainda menor. “Você já tem o seu homem, portanto deixe pra lá o Barry Taylor, se não quer se arrepender. Seria uma pena estragar uma cara bonita como a sua. Ácido não embeleza ninguém. Cuidado. Um amigo.” Concluiu que o estilo vinha de um recente filme de suspense da televisão; a letra estava obviamente disfarçada. A polícia possivelmente forneceria mais algumas amostras da caligrafia do suspeito quando visitasse o local de trabalho do rapaz, mas não precisava delas de fato. As semelhanças entre o bilhete de ameaça e as amostras eram inconfundíveis. O autor tentara alterar a inclinação da mão e mudara a forma dos erres minúsculos. Mas a caneta era levantada regularmente a cada quarta letra (até então Middlemass não havia encontrado um falsificador que se lembrasse de variar o intervalo com que levantava a caneta do papel) e os pingos dos is, altos e ligeiramente para a esquerda, além do apóstrofo superincisivo, eram quase uma marca registrada. Ia analisar a amostra do papel, fotografar e ampliar cada letra individualmente, e depois montar em uma tabela de comparação. O júri passaria esse material solenemente de mão em mão, imaginando por que era preciso pagar um preço alto a um perito para vir e explicar aquilo que qualquer um podia ver com os próprios olhos. O telefone tocou. Middlemass esticou o braço comprido e levou o aparelho até a orelha esquerda. A voz de Susan Bradley, primeiro apologética, depois conspiradora, e finalmente quase em lágrimas, guinchou dentro do seu ouvido um longo monólogo de reclamação e desespero. Ele ouviu, emitiu suaves ruídos encorajadores, segurando o fone a três ou quatro centímetros da orelha, observando ao mesmo tempo que o autor do bilhete, pobre homem, não tinha nem pensado em alterar seu mui característico corte do t minúsculo. Não que isso tivesse adiantado. E não podia saber, coitado, que suas tentativas acabariam como prova em seu julgamento por assassinato. “Tudo bem”, disse. “Não se preocupe. Deixe comigo.” “E não vai contar a ele que eu telefonei, tá?” “Claro que não, Susan. Fique calma. Eu ajeito isso.” A voz continuou. “E diga para ele parar de ser bobo, pelo amor de Deus. Será que não sabe que existe um milhão e meio de desempregados? Lorrimer não pode mandar o rapaz embora. Diga para o Clifford se agarrar a esse emprego e parar de ser bobo. Eu cuido de Lorrimer.” Desligou o telefone. Gostava de Susan Moffat. Durante dois anos, trabalhou para ele como assistente científico. Tinha mais cabeça e mais coragem que o marido, e ele se perguntava, sem se preocupar demais, por que teria casado com
Bradley. Por pena, talvez, e um instinto maternal muito forte. Havia mulheres que simplesmente tinham de carregar, literalmente, os infelizes no colo. Ou talvez fosse apenas falta de escolha, a necessidade de um lar para ela e a filha. Bom, era tarde demais para tentar impedir o casamento agora, e certamente isso não tinha lhe ocorrido na época. Ela, pelo menos, tinha um lar para si e para a criança. Havia trazido o bebê para vê-lo fazia quinze dias. A visita daquele pacote chorão com cara de ameixa seca não tinha conseguido alterar a sua decisão de não ter filhos, mas Susan, sem dúvida, parecia bem feliz. E provavelmente ficaria ainda mais se fosse possível fazer alguma coisa a respeito de Lorrimer. Pensou que talvez tivesse chegado a hora de agir. E tinha, no fim das contas, suas próprias razões para assumir a tarefa. Era uma pequena obrigação pessoal que, até então, não tinha abalado aquilo que os outros chamavam de consciência. Mas o telefonema de Susan Bradley o relembrou. Ficou escutando. Passos conhecidos... Bom, uma coincidência, melhor agora que mais tarde. Foi até a porta e falou para a pessoa que se afastava: “Lorrimer, quero conversar com você.” Lorrimer entrou, parou ao lado da porta, nada sorridente em seu guarda-pó cuidadosamente abotoado, e olhou para o colega com seus olhos escuros, cautelosos. Middlemass fez um esforço para olhar dentro deles, depois desviou os olhos. As íris pareciam ter se dilatado em duas poças negras de desespero. Não se sentia competente para lidar com esse tipo de emoção, e ficou incomodado. O que poderia estar perturbando o coitado? Disse, cuidadosamente casual: “Escute, Lorrimer, deixe Bradley em paz, está bem? Sei que ele não é nenhum presente de Deus para a ciência forense, mas é consciencioso e esforçado e você não vai ajudar nem a inteligência nem a velocidade dele se continuar infernizando o coitado. Então, pare com isso.” “Está me dizendo como eu devo lidar com meus funcionários?” A voz de Lorrimer estava perfeitamente controlada, mas a veia em sua testa começou a pulsar visivelmente. Middlemass achou difícil não fixar os olhos naquilo. “Isso mesmo, parceiro. Esse funcionário pelo menos. Sei muito bem o que você está pretendendo e não gosto disso. Portanto, pare por aqui.” “Está querendo me ameaçar?” “Considere como um aviso amigável, mais ou menos amigável pelo menos. Não vou fingir que gosto de você, e jamais trabalharia ao seu lado se o Departamento do Interior tivesse feito a loucura de nomear você diretor deste laboratório. Mas admito que o que faz no seu departamento normalmente não é da minha conta, só que isto aqui é uma exceção. Sei o que está acontecendo e
não estou gostando. Por isso decidi intervir.” “Nunca imaginei que tivesse tanto carinho por Bradley. Evidentemente, Susan Bradley deve ter telefonado. O cara nunca teria coragem de falar por si mesmo. Ela telefonou, Middlemass?” Middlemass ignorou a pergunta. Foi em frente: “Não tenho nenhuma consideração especial por Bradley. Mas tive, sim, certa afeição por Peter Ennalls, se você lembra dele.” “Ennalls se afogou porque foi abandonado pela noiva e teve um colapso nervoso. Deixou um bilhete explicando o seu ato, o qual foi lido no processo. As duas coisas aconteceram meses depois de ele sair do Laboratório Sul. Nada disso teve a ver comigo.” “O que aconteceu enquanto ele estava no laboratório teve muito a ver com você. Era um rapaz agradável, bastante comum, com duas boas notas A e um incrível desejo de vir a ser biólogo forense, quando teve o azar de começar a trabalhar sob as suas ordens. Por acaso, era primo de minha mulher. Fui eu que recomendei que experimentasse o trabalho. Então, tenho um certo interesse, pode-se dizer uma certa responsabilidade.” Lorrimer disse: “Ele nunca contou que era parente de sua mulher. Mas não vejo que diferença isso faz. Era completamente inadequado para o trabalho. Um biólogo forense que não consegue trabalhar bem sob pressão não serve nem para mim, nem para a polícia, e era melhor ele ir embora. Não temos lugar para turistas. É isso que eu pretendo dizer ao Bradley.” “Então é melhor pensar de novo.” “E como você vai me forçar a fazer isso?” Era extraordinário que lábios tão apertados pudessem produzir som, que a voz de Lorrimer, alta e distorcida, conseguisse forçar passagem pelas cordas vocais, sem rompê-las. “Vou deixar claro para Howarth que você e eu não podemos servir no mesmo laboratório. Ele não vai gostar disso. Conflitos entre os funcionários seniores é a última complicação que ele pode querer agora. Então vou sugerir ao Departamento de Administração que um de nós dois seja transferido antes de toda a complicação da mudança para o prédio novo. Estou confiando que Howarth e a Administração vão achar mais fácil encontrar outro biólogo forense do que outro examinador de documentos.” Middlemass ficou surpreso consigo mesmo. Esse palavrório todo não havia lhe ocorrido antes de começar a falar. Não que fosse tolice. Não existia nenhum outro examinador de documentos do seu calibre na polícia e Howarth sabia disso. Se ele se recusasse categoricamente a trabalhar no mesmo laboratório que
Lorrimer, um dos dois teria de ir embora. A disputa não faria bem a nenhum dos dois diante do Departamento de Administração, mas achava que sabia qual dos dois sairia mais prejudicado. “Você colaborou para me impedir de chegar à direção, agora quer me botar para fora do laboratório”, disse Lorrimer. “Estou pouco me importando se você está aqui ou não. Só pare de infernizar o Bradley.” “Se eu estivesse disposto a ouvir conselhos de alguém sobre como administrar meu departamento, não seria de um fetichista de papel de terceira classe com um diploma de segunda categoria, que não sabe a diferença entre prova científica e intuição.” O insulto era absurdo demais para atravessar a segurança da auto-estima de Middlemass. Mas pelo menos permitia uma resposta. Descobriu que estava ficando zangado. E de repente entendeu: “Escute aqui, companheiro, se não está se dando bem na cama, se ela não está achando que você é bom na coisa, não traga a sua frustração para os outros. Lembre do conselho de Chesterfield. A despesa é exorbitante, a posição ridícula e o prazer passageiro.” Ficou perplexo com o resultado. Lorrimer deu um grito estrangulado e voou para cima dele. A reação de Middlemass foi ao mesmo tempo instintiva e profundamente satisfatória. Esticou o braço direito e acertou um soco no nariz de Lorrimer. Houve um segundo de silêncio atônito em que os dois homens ficaram se olhando. E então o sangue jorrou, Lorrimer cambaleou e caiu para a frente. Middlemass amparou-o pelos ombros e sentiu o peso de sua cabeça no peito. Pensou: “Meu Deus, ele vai desmaiar”. Tinha consciência de um emaranhado de emoções: surpresa consigo mesmo, gratificação infantil, pena e vontade de rir. Perguntou: “Você está bem?” Lorrimer livrou-se do amparo e endireitou o corpo. Procurou o lenço e cobriu com ele o nariz. A mancha vermelha foi crescendo. Baixando os olhos, Middlemass viu o sangue de Lorrimer espalhado em seu guarda-pó branco, decorativo como uma rosa. Disse: “Já que está num momento histriônico, acho que sua resposta agora devia ser: ‘Juro, seu porco, vai pagar por isto’.” Ficou perplexo com o súbito brilho de ódio nos olhos negros. A voz de Lorrimer saiu abafada pelo lenço. “Vai pagar por isso.” E saiu. Middlemass de repente percebeu a presença da sra. Bidwell, a faxineira do laboratório, parada na porta, os olhos arregalados e excitados por trás dos
ridículos óculos gatinho com pedrinhas de brilhante. “Não é bonito, isso não. Dois homens importantes brigando um com o outro. Deviam ter vergonha.” “E temos, senhora Bidwell. Temos.” Bem devagar, Middlemass tirou seu guarda-pó e entregou a ela. “Jogue isto aqui na roupa suja, por favor.” “O senhor sabe muito bem, senhor Middlemass, que eu não entro no banheiro dos homens durante o horário de trabalho. Ponha no cesto o senhor mesmo. E se quiser um limpo agora, sabe onde encontrar. Não vou mexer mais com a roupa suja até amanhã. Brigar desse jeito. Não é de estranhar, ver o doutor Lorrimer metido numa coisa dessas. Mas não é o tipo de homem que a gente acha que vai ver brigando de soco. Não tem coragem, é o que eu acho. Mas ele anda esquisito esses dias, anda, sim. O senhor deve ter ouvido falar do problema que houve no saguão ontem, não ouviu? Ele praticamente expulsou os filhos do doutor Kerrison daqui. Os dois só estavam esperando o pai. Que mal tem nisso agora? O clima no laboratório não anda bom ultimamente, e se um certo cavalheiro não tomar cuidado, ainda vai acontecer uma tragédia, escute o que estou dizendo.”
10
Pouco antes das cinco já estava escuro, era a hora em que o inspetor Doyle voltava para sua casa na aldeia, distante seis quilômetros ao norte de Cambridge. Tentou telefonar para a esposa, mas não conseguiu: a linha estava ocupada. Mais um de seus intermináveis, secretos e caros telefonemas para um dos seus velhos amigos da enfermagem, pensou e, dever cumprido, não tentou de novo. Como sempre, o portão de ferro batido estava aberto e estacionou na frente da casa. Não valia a pena guardar o carro na garagem por poucas horas, que era o tempo a que podia se permitir. A Casa Scoope não tinha o seu melhor aspecto no fim de tarde daquele dia escuro de novembro. Não era de admirar que os agentes imobiliários não tivessem mandado ninguém ultimamente para visitar o local. Era uma época ruim do ano. A casa, pensou, era um monumento ao erro de cálculo. Havia sido comprada por menos de dezessete mil libras e até agora já gastara nela mais cinco mil, esperando vender por pelo menos quarenta. Mas isso foi antes da recessão atrapalhar os cálculos até de especuladores mais experimentados do que ele. Agora, com o mercado imobiliário em marcha lenta, não havia nada a fazer senão esperar. Podia se permitir ficar na casa até o mercado se aquecer. Não tinha certeza se conseguiria ficar era com sua mulher. Não tinha certeza nem se queria isso. Também o casamento havia sido um erro de cálculo, mas dadas as circunstâncias na época, um erro compreensível. Ele não perdia tempo se lamentando. Os dois altos retângulos de luz da janela da saleta do primeiro andar bem que podiam ser uma bem-vinda promessa de calor e conforto. Em vez disso, eram vagamente ameaçadores: Maureen estava em casa. E onde mais, ela argumentaria, poderia estar nessa lúgubre aldeia de East Anglia, numa noite sem graça de novembro? Tinha acabado de tomar o chá e a bandeja ainda estava a seu lado. O frasco de leite, com a tampa amassada recolocada no lugar, uma caneca só, pão fatiado caindo fora do pacote, um naco de manteiga em um prato engordurado, um bolo de frutas em sua embalagem ainda fechada. Ele sentiu a costumeira onda de irritação, mas nada disse. Uma vez havia protestado contra seu desleixo e ela respondera, dando de ombros: “O que é que tem? Ninguém está vendo.” Ele via e não gostava, mas fazia muitos meses que não contava mais com ela. Disse:
“Vou tirar um cochilo durante umas duas horas. Me acorde às sete, por favor.” “Quer dizer que não vamos ao concerto de Chevisham?” “Pelo amor de Deus, Maureen, você ontem estava berrando que não ia se dar ao trabalho de ir. Coisa de criança. Lembra?” “Não é exatamente uma maravilha de programa, mas pelo menos a gente sai um pouco. Sai! Sai deste buraco. Juntos para variar. Pelo menos, é um motivo para se vestir melhor. E você disse que depois a gente podia ir jantar no restaurante chinês de Ely.” “Desculpe. Eu não podia saber que ia pegar um caso de assassinato.” “Que horas você volta? Se é que adianta perguntar.” “Só Deus sabe. Vou pegar o sargento Beale. Tem ainda umas duas pessoas que temos de ver no salão de danças de Muddington, principalmente um rapaz chamado Barry Taylor que tem de dar umas explicações. Dependendo do que a gente arrancar dele, pode ser que eu precise ver o marido de novo.” “Disso você vai gostar, não vai? De deixar o sujeito num suadouro. Foi por isso que resolveu ser policial? Por gostar de assustar as pessoas?” “Isso é tão idiota quanto dizer que você foi ser enfermeira porque gosta de esvaziar urinol.” Atirou-se numa poltrona e fechou os olhos, tentando dormir. Reviu a cara apavorada do rapaz, farejou de novo o medo. Mas ele resistiu bem àquela primeira entrevista, prejudicada em vez de favorecida pela presença do advogado dele, que nunca vira o cliente antes e que deixara dolorosamente visível que preferia nunca ver de novo. Ele havia sustentado o seu álibi, de que os dois brigaram no salão de dança e que fora embora cedo. Que ela não havia chegado em casa à uma hora. Que saíra para procurá-la na rua, atravessando o campo de tufo e voltando sozinho meia hora depois. Que não tinha visto ninguém e que não tinha nem chegado perto do fosso e do carro destruído. Era um bom álibi, simples, sem elaborações, possivelmente até verdadeiro, a não ser por um detalhe essencial. Mas, com sorte, na sexta-feira estaria pronto o relatório sobre o sangue dela e a mancha no punho do blusão dele, sobre os minúsculos traços de areia e poeira do carro no sapato dele. Se Lorrimer trabalhasse até tarde essa noite, como sempre fazia, a análise do sangue podia até ficar pronta amanhã. E então viriam as elaborações, as contradições, e, finalmente, a verdade. Ela perguntou: “Quem mais estava na cena do crime?” Pensou que era um milagre ela se dar ao trabalho de perguntar. Respondeu, sonolento: “Lorrimer, claro. Nunca perde uma cena de crime. Acho que não confia em nenhum de nós. Como sempre, esperamos por Kerrison durante meia hora. E
Lorrimer ficou louco com isso, claro. Ele fez todo o trabalho no local, tudo o que se pode fazer, depois teve que ficar lá, congelando junto com a gente, esperando aquela bênção de Deus para a ciência forense chegar, com a sirene da escolta da polícia berrando na frente, só para nos revelar que aquilo que nós todos pensamos que era um corpo, surpresa!, era mesmo um corpo e que podia ser removido.” “O patologista forense faz mais do que isso.” “Claro que faz. Mas não muito mais, não na cena do crime. O trabalho dele é depois.” E acrescentou: “Desculpe eu não telefonar. Tentei, mas estava ocupado.” “Acho que era o papai. A proposta dele ainda está de pé, aquele emprego de chefe de segurança da organização. Mas não pode esperar muito mais. Se você não aceitar até o fim do mês, ele vai botar um anúncio.” Ah, meu Deus, pensou, isso de novo. “Preferia que seu pai não falasse da organização. Faz o negócio de família ficar parecendo a Máfia. Se fosse, eu podia até ficar tentado a aceitar. O que o papai tem são três lojinhas baratas e vagabundas que vendem terno barato e vagabundo para uns idiotas baratos e vagabundos que não conseguem saber o que é um pano bom nem que você enfie na garganta deles. Eu podia até pensar em entrar no negócio se o papai já não tivesse nomeado seu querido irmãozinho co-diretor, pronto para ocupar o lugar dele, e se ele não tivesse deixado tão claro que só me tolera porque sou seu marido. Mas nem morto eu vou ficar andando de um lado para outro como um veadinho fiscal de loja, vigiando para nenhuma bicha roubar as cuecas, mesmo que isso venha com o belo nome de chefe de segurança. Eu fico onde estou.” “Onde tem contatos tão úteis.” O que será que ela queria dizer com isso, pensou? Tinha tomado o cuidado de não contar nada, mas ela não era nenhuma boba. Devia ter adivinhado. Acrescentou: “Onde eu tenho um emprego. Sabia o que esperar quando casou comigo.” Mas ninguém nunca sabe disso, pensou. Não de verdade. “Não pense que vou estar aqui quando você voltar.” Era a velha ameaça. Ele disse, tranqüilo: “Faça o que quiser. Mas se está pensando que vai de carro, esqueça. Vou levar o Cortina, o tufo está castigando o Renault. Então, se quer fugir para a casa da mamãe antes de amanhã de manhã, vai ter que telefonar para papai vir buscar ou tomar um táxi.” Ela estava falando, mas sua voz, insistente e rabugenta, vinha de muito longe,
não mais em palavras coerentes, mas em ondas de som que batiam em seu cérebro. Duas horas. Independentemente de ela acordá-lo ou não, sabia que ia despertar em ponto. Fechou os olhos e dormiu.
 
 
 
LIVRO DOIS
 
A morte de guarda-pó branco
1
O saguão do Hoggatt estava muito tranqüilo às 8h40 da manhã. Brenda sempre achou que essa era a parte do dia de trabalho de que mais gostava. Uma hora antes dos funcionários chegarem e de começar o agito do laboratório, quando ela e o inspetor Blakelock trabalhavam juntos no vazio silencioso do saguão, parado e solene como uma igreja, preparando uma batelada de pastas de papel pardo para registrar os novos casos do dia, reembalando provas para a coleção da polícia, fazendo a conferência final dos relatórios do laboratório para os tribunais, para garantir que o exame havia sido completo, que nenhum detalhe fora omitido. Imediatamente ao chegar, ela vestia seu guarda-pó branco, e se sentia diferente, não mais jovem e insegura, mas uma mulher profissional, quase uma cientista, membro aceito da equipe do laboratório. Entrava então na cozinha nos fundos da casa e fazia chá. Depois da dignificação do guarda-pó branco essa tarefa doméstica era um pouco humilhante, e ela não precisava de fato beber nada assim logo depois do café-da-manhã. Mas o inspetor Blakelock, que vinha de carro de Ely todos os dias, estava sempre pronto para o seu chá, e ela não se importava de preparar para ele. “Essa é a bebida que se deve dar à tropa”, dizia invariavelmente, colando os lábios úmidos na borda da xícara e engolindo o líquido quente como se sua garganta fosse de amianto. “Você sabe fazer chá muito bem, Brenda, não vou negar.” E ela respondia: “Minha mãe diz que o segredo é sempre aquecer a chaleira e deixar o chá descansar só cinco minutos.” Essa pequena conversa ritual, tão invariável que ela quase podia repetir em silêncio as palavras dele, controlando a vontade de rir, o cheiro familiar do chá, as mãos que iam esquentando aos poucos em torno da caneca grossa, constituíam um tranqüilizador e reconfortante começo para o dia de trabalho. Gostava do inspetor Blakelock. Ele pouco falava, mas nunca era impaciente com ela, sempre gentil, sempre a imagem de um pai companheiro. Até sua mãe, quando visitou o laboratório, antes de Brenda assumir o posto, ficou contente de ela trabalhar sozinha com ele. Brenda ainda sentia a cara queimar de vergonha quando lembrava a insistência da mãe em visitar o Hoggatt para ver onde a filha ia trabalhar, embora o inspetor-chefe Martin, agente de comunicação com a polícia, parecesse ter achado aquilo perfeitamente razoável. Explicou à mãe dela que era uma novidade no Hoggatt terem uma recepcionista na entrada e não um policial iniciante. Se ela se desse bem no trabalho, isso permitiria à polícia
economizar um oficial, além de servir de treinamento para ela. O inspetor disse ainda que “a recepção é o coração do laboratório”. No momento, ele visitava os Estados Unidos com um grupo de oficiais da polícia e o inspetor Blakelock é que estava encarregado das suas funções, de receber as provas, fazer o registro dos comparecimentos ao tribunal, preparar as estatísticas, e ainda discutir os casos com o detetive encarregado, explicar o que o laboratório teria possibilidade de fazer, rejeitar os casos que os cientistas não poderiam resolver e garantir que as declarações finais no tribunal estivessem completas. Brenda achava que aquilo era uma grande responsabilidade para ele e estava decidida a não decepcioná-lo. Quando estava preparando o chá, chegou a primeira prova do dia, trazida, sem dúvida, por um detetive que trabalhava no caso. Era mais um saco plástico com roupas do crime do fosso de tufo. Enquanto o inspetor Blakelock revirava o saco em suas mãos grandes, ela viu através do plástico uma calça azul-escura com a cintura ensebada, uma jaqueta listrada de gola larga, e um par de sapatos pretos de bico fino e fivelas enfeitadas. O inspetor Blakelock estava estudando o relatório da polícia. “São do namorado que estava com ela no salão de dança. Vai precisar de um novo arquivo para o relatório, mas registre em Biologia e ponha Muddington como referência, além de um número de subgrupo. Depois coloque uma etiqueta vermelha de Urgente. Assassinato tem prioridade.” “E se tiver dois ou três assassinatos ao mesmo tempo, quem resolve qual é a prioridade?” “O chefe do departamento encarregado. É função dele distribuir o trabalho para a equipe. Depois de assassinato e estupro, o costume é dar prioridade para os casos em que o acusado não foi solto sob fiança.” Brenda disse: “Espero que não se importe de eu fazer tantas perguntas. Só quero aprender. O doutor Lorrimer falou que devo descobrir tudo o que posso fazer e não ver este trabalho só como rotina.” “Pode perguntar, menina, eu não ligo. Só não dê muito ouvido ao doutor Lorrimer. Ele não é o diretor aqui, mesmo achando que é. Depois que registrar, essa trouxa vai para a prateleira da Biologia.” Brenda registrou o número da prova cuidadosamente no livro-diário e levou o pacote embrulhado em plástico para a prateleira de provas à espera de entrega na Sala de Pesquisa Biológica. Era bom estar informada das entradas. Olhou o relógio. Quase dez para as nove. Logo chegaria o correio e haveria em cima da mesa um monte de envelopes gordos, contendo as amostras de sangue dos casos de motoristas embriagados do dia anterior. Depois, começariam a chegar as viaturas de polícia. Policiais fardados e à paisana trariam grandes envelopes de
documentos para o sr. Middlemass, o examinador de documentos; kits preparados especialmente pelo laboratório para coletar manchas de saliva, sangue e sêmen; sacos desajeitados de lençóis e cobertores manchados ou sujos; instrumentos contundentes de todo tipo; facas manchadas de sangue cuidadosamente lacradas em suas caixas. Agora, a qualquer momento os primeiros funcionários estariam chegando. A sra. Bidwell, a faxineira, já devia estar ali havia vinte minutos. Talvez tenha pegado a gripe de Scobie. O primeiro da equipe técnica a aparecer seria provavelmente Clifford Bradley, analista científico do Departamento de Biologia, correndo pelo saguão como se não tivesse o direito de estar ali, com os olhos ansiosos de animal acuado e aquele ridículo bigode comprido, tão preocupado que mal percebia quando o cumprimentavam. Depois, srta. Foley, a secretária do diretor, calma e controlada, sempre com um sorriso secreto. Para Brenda, a srta. Foley lembrava Mona Rigby, sua colega de escola, sempre escolhida para o papel da Madona na peça de Natal. Jamais gostou de Mona Rigby — que não teria sido escolhida outra vez para o cobiçado papel se soubessem dela o que Brenda sabia —, e não tinha certeza de gostar da srta. Foley. Depois, alguém de quem ela realmente gostava, o sr. Middlemass, o examinador de documentos, com o paletó jogado em cima dos ombros, pulando os degraus de três em três e gritando um cumprimento ao balcão. Em seguida, podiam chegar em qualquer ordem. O saguão estaria permanentemente vivo, como um terminal de trens, e no coração da aparente confusão, controlando e dirigindo, ajudando e explicando, estaria a equipe do balcão de recepção. Parecendo indicar que o dia de trabalho estava para começar, o telefone tocou. A mão do inspetor Blakelock agarrou o aparelho. Escutou em silêncio um tempo que pareceu maior que o normal, depois ela ouviu quando dizia: “Acho que o doutor Lorrimer ainda não está aqui. O senhor está dizendo que ele não voltou para casa ontem à noite?” Mais um silêncio. O inspetor Blakelock virou meio de costas para ela e abaixou a cabeça conspiratoriamente sobre o fone como se estivesse escutando uma confidência. Depois, pousou o aparelho no balcão e voltou-se para Brenda: “Era o pai do doutor Lorrimer, o velhor senhor Lorrimer. Parece que o biólogochefe não tomou o chá hoje de manhã nem voltou para casa ontem. A cama dele não está desfeita.” “Bom, aqui ele chegou. Quer dizer, a porta da frente estava trancada quando entramos.” Sobre isso não havia dúvida. Quando virou a esquina do prédio, depois de deixar a bicicleta no velho estábulo, ela viu o inspetor Blakelock parado na porta da frente, como se estivesse esperando por ela. Depois, quando chegou ao seu
lado, ele acendeu a lanterna sobre as três fechaduras e inseriu as três chaves, primeiro a Yale, depois a Ingersoll e por último a trava de segurança que desligava o sistema de alarme eletrônico conectado à delegacia de polícia de Guy’s Marsh. Entraram juntos no saguão apagado. Ela havia ido até a chapelaria para vestir o guarda-pó branco e ele até o box no escritório do inspetor-chefe Martin para desligar o sistema que protegia as portas internas das salas principais do laboratório. Brenda riu e disse: “A senhora Bidwell não apareceu para começar a limpeza e agora o doutor Lorrimer sumiu. Vai ver que fugiram juntos. O grande escândalo do Hoggatt.” Não era uma piada muito engraçada, portanto não se surpreendeu quando o inspetor Blakelock não riu. Ele disse: “A porta trancada não quer dizer nada. O doutor Lorrimer tem as chaves. E se tivesse arrumado a cama e depois chegado supercedo aqui, o mais provável é que fosse trancar de novo as portas e ligar os alarmes internos.” “Mas como ele ia entrar no Laboratório de Biologia depois?” “Ia ter de abrir a porta primeiro e deixar aberta antes de tornar a ligar os alarmes. Não parece muito provável. Quando ele fica sozinho aqui, quase sempre só usa a Yale.” Atendeu ao telefone outra vez e disse: “Espere um pouquinho, por favor, senhor Lorrimer. Acho que ele não está aqui, mas vou dar uma olhada.” “Eu vou”, Brenda disse, ansiosa para mostrar que era útil. Para ser mais rápida, passou por baixo da tampa do balcão sem levantá-la. Ao virar-se, ela o viu com incrível clareza, num brilho instantâneo como do flash de uma câmera. O inspetor Blakelock com a boca meio aberta em protesto, o braço estendido para ela num gesto rígido e histriônico de proteção ou repressão. Mas então, sem entender, ela riu e subiu correndo a escada larga. O Laboratório de Biologia ficava nos fundos do segundo andar, ocupando, com sua sala de pesquisa anexa, quase toda a extensão do edifício. A porta estava fechada. Virou a maçaneta e abriu, tateando a parede em busca do interruptor. Encontrou com os dedos e apertou. Os dois tubos compridos da luz fluorescente pendurados do teto piscaram, depois cintilaram e brilharam com sua luz constante. Viu o corpo imediatamente. Estava caído no espaço entre as duas grandes mesas de exame centrais, de bruços, a mão esquerda como uma garra no chão, o braço direito dobrado para trás. As pernas estavam retas. Ela soltou um curioso som entre grito e gemido e ajoelhou-se ao lado. O cabelo em cima da orelha esquerda estava emaranhado e espetado, como o pêlo do seu gato quando tomava banho, e não dava para ver o sangue no cabelo escuro. Mas sabia que
era sangue. Já tinha escurecido o colarinho do guarda-pó branco e uma pequena poça havia se espalhado e coagulado no chão do laboratório. Só dava para ver seu olho esquerdo, fixo, opaco e retraído como o olho de uma rês morta. Tocou o rosto com os dedos. Estava frio. Mas já havia entendido, assim que viu aquele olho vidrado, que aquilo era a morte. Não tinha lembrança de fechar a porta e descer a escada. O inspetor Blakelock continuava atrás do balcão, rígido como uma estátua, o telefone ainda na mão. Ela sentiu vontade de rir ao ver a cara dele, estava tão engraçado. Tentou falar, mas as palavras não saíram. Seu queixo tremia incontrolavelmente e os dentes batiam. Fez algum gesto. Ele disse alguma coisa que ela não entendeu, deixou cair o telefone no balcão e correu para cima. Ela cambaleou até a pesada poltrona vitoriana encostada na parede do escritório do inspetor-chefe Martin, a poltrona do coronel Hoggatt. O retrato dele olhando para ela. Diante de seus olhos, o olho esquerdo pareceu ir crescendo, os lábios se retorcerem num esgar. Todo o seu corpo foi tomado por um frio terrível. Seu coração parecia ter ficado imenso, batendo contra as costelas. Respirava em grandes haustos, mas mesmo assim não conseguia ar suficiente. Ouviu então o toque do telefone. Levantou devagar, como um robô, foi até o balcão e pegou o aparelho. A voz do sr. Lorrimer, fraca e lamuriosa, falou do outro lado. Tentou dizer as palavras de sempre, “Laboratório Hoggatt. Recepção”. Mas as palavras não saíram. Desligou o telefone e voltou à poltrona. Não guardou nenhuma lembrança de ouvir o longo toque da campainha, nem de atravessar o hall para atender. De repente, a porta se abriu e o saguão ficou cheio de gente, ruidoso de vozes. A luz parecia ter ficado brilhante, o que era estranho, e via todo mundo como atores num palco, muito iluminado, os rostos grotescos, acentuados por maquiagem, cada palavra clara e compreensível, como se estivesse sentada na platéia. Sra. Bidwell, a faxineira, com seu casaco de gola de pele falsa, os olhos brilhando de indignação, a voz muito alta e aguda. “O que é que está acontecendo aqui! Algum maluco telefonou para o meu marido e disse que eu não precisava vir hoje, que a senhora Schofield ia precisar de mim. Quem é que está aprontando?” O inspetor Blakelock estava descendo a escada, devagar e decidido, o protagonista fazendo a sua entrada. Dr. Howarth, Clifford Bradley, srta. Foley, sra. Bidwell formaram um pequeno círculo, olhando para ele. O diretor deu um passo à frente. Parecia que ia desmaiar. Disse: “E então, Blakelock?” “É o doutor Lorrimer, senhor. Está morto. Assassinado.” Claro que não podiam repetir a palavra em uníssono, olhando uns para os
outros, como um coro grego. Mas a palavra pareceu ecoar pelo silêncio do saguão, perdendo o sentido, como um gemido sonoro. Assassinato, assassinato, assassinato. Ela viu o dr. Howarth correr para a escada. O inspetor Blakelock virou-se para ir com ele, mas o diretor o deteve: “Não, fique aí. Não deixe ninguém passar do saguão. Telefone para o chefe de polícia e para o doutor Kerrison. Depois, ligue para o Departamento do Interior.” Só nesse momento parece que notaram a presença de Brenda. A sra. Bidwell foi até ela. “Foi você que encontrou? Coitadinha!” E de repente não era mais teatro. As luzes se apagaram. As caras ficaram amorfas, comuns. Brenda deu um pequeno suspiro. Sentiu os braços da sra. Bidwell em torno dos ombros. O cheiro do casaco apertado em seu rosto. A pele era macia como a pata do seu gatinho. E, como uma bênção, começou a chorar.
2
Num hospital-escola de Londres, junto ao rio, de onde podia, em seus momentos mais masoquistas, enxergar a janela de seu próprio escritório, o dr. Charles Freeborn, controlador do serviço de Ciência Forense, estava com cada centímetro dos seus dois metros de estatura duro na cama estreita, o nariz espetado para fora da dobra metódica do lençol, o cabelo branco como uma névoa no travesseiro. A cama era curta para ele, inconveniente ao qual se adaptara passando aplicadamente os pés pelas guardas. A mesa-de-cabeceira abrigava o aglomerado de presentes, de utilidades, e de pequenos divertimentos considerados indispensáveis para uma breve estada no hospital. Entre eles, um vaso de rosas de aspecto oficial, sem perfume, mas coloridas, em meio a botões fúnebres e artificiais. O comandante Adam Dalgliesh observou o rosto de olhos fixos no teto, tão imóvel que se surpreendeu de repente com a impressão de estar visitando um morto. Ao se lembrar que Freeborn estava se recuperando de nada mais sério do que uma bem-sucedida operação de varicose, aproximou-se da cama e disse, cauteloso: “Olá!” Freeborn, despertado de seu torpor, deu um pulo, como um boneco de mola, derrubando de cima da mesa-de-cabeceira uma caixa de lenços de papel, dois exemplares do Jornal da Sociedade de Ciência Forense e uma caixa de chocolates aberta. Esticou o braço magro e manchado, com a pulseira de identificação do hospital, e apertou forte a mão de Dalgliesh. “Adam! Não me assuste assim, maldito! Nossa, como estou contente de ver você! A única boa notícia que tive hoje é que o encarregado vai ser você. Achei que podia já ter ido embora. Quanto tempo vai poder ficar? Como é que vai para lá?” Dalgliesh respondeu as perguntas em ordem. “Dez minutos. De helicóptero, saindo do aeroporto de Battersea. Estou indo para lá agora. Como vai você, Charles? Estou incomodando?” “Eu é que estou incomodando. Isto aqui não podia ter acontecido num momento pior. E o mais enlouquecedor é que a culpa é minha. A operação podia esperar. Só que a dor estava ficando muito chata e Meg insistiu para eu fazer agora, antes de me aposentar, achando, quem sabe, que é melhor usar o tempo do governo do que o meu.” Relembrando o que sabia do empenho e das conquistas de Freeborn no Serviço de Ciência Forense, os difíceis anos de guerra, a aposentadoria atrasada,
os últimos cinco anos em que trocara a direção pelas frustrações da burocracia, Dalgliesh disse: “Muito sensato da parte dela. E você não ia poder fazer nada em Chevisham.” “Eu sei. É ridícula esta sensação de responsabilidade por não estar no posto quando acontece uma tragédia. Ligaram do escritório para me contar, logo depois das nove. Melhor que ficar sabendo pelas visitas ou pelo jornal da tarde, acho que pensaram. Bondade deles. O chefe de polícia deve ter ligado para a Yard minutos depois de receber a notícia. O que você sabe?” “A mesma coisa que você, imagino. Falei com o chefe de polícia e com Howarth. Me passaram os dados principais. Crânio esmagado, aparentemente por uma marreta pesada que Lorrimer estava examinando. O laboratório estava devidamente trancado quando o assistente de comunicação com a polícia e a jovem recepcionista chegaram às oito e meia da manhã. As chaves de Lorrimer estavam no bolso dele. Quase sempre trabalhava até tarde e a maior parte do laboratório sabia que pretendia fazer isso ontem à noite. Nenhum sinal de arrombamento. Quatro chaveiros. Lorrimer tem um como chefe do serviço científico e responsável pela segurança. O assistente de comunicação com a polícia tem outro. Esses dois são as únicas pessoas autorizadas a trancar e abrir o prédio. O diretor tem o terceiro chaveiro no seu armário lacrado, e o quarto fica num cofre na delegacia de Guy’s Marsh para o caso de o alarme tocar durante a noite.” Freeborn disse: “Então ou Lorrimer deixou o assassino entrar ou o assassino tinha as chaves.” Dalgliesh pensou que havia outras possibilidades, mas agora não era hora de discutir. Perguntou: “Lorrimer deixaria entrar alguém que fosse do laboratório, imagino.” “Por que não? Ele provavelmente permitiria a entrada de qualquer policial que conhecesse, principalmente se fosse um detetive envolvido em um caso recente. Do contrário, tenho minhas dúvidas. Também pode ter deixado entrar um amigo ou parente, mas acho essa hipótese menos provável. Era um chato meticuloso e não consigo imaginar que pudesse usar o laboratório como local de encontros. E claro que deixaria entrar o patologista forense.” “Que é um homem de lá mesmo, Henry Kerrison, me disseram. O chefe de polícia contou que ele foi chamado para ver o corpo. Bom, não tinham outra coisa a fazer. Não sabia que vocês tinham achado um sucessor para Donald Corredor-da-Morte.” “E não encontramos. Kerrison está fazendo o serviço independente. É bemconceituado e provavelmente é ele que vamos nomear se conseguirmos fazer a autoridade de Saúde da área concordar. Há as dificuldades de sempre sobre as
responsabilidades dele no hospital. Eu queria muito deixar o Serviço de Patologia Forense arrumado antes de ir embora. Mas essa é uma dor de cabeça que vou ter que deixar para o meu sucessor.” Dalgliesh pensou sem afeto em Donald Corredor-da-Morte, com seu satânico humor de colegial (“Essa faca de bolo, não, minha querida senhora. Usei hoje de manhã em uma das vítimas de Harry Facada e está sem corte”), a sua mania de autopromoção e sua intolerável risada bucólica, e agradeceu pelo menos por não ter de interrogar aquele terrível impostor. Disse: “Me fale de Lorrimer. Como ele era?” Aquela era a pergunta que havia no coração de toda investigação de assassinato. No entanto, tinha consciência do seu absurdo antes mesmo de fazêla. Era a parte mais estranha do trabalho do detetive, a construção de um relacionamento com o morto, visto apenas como um corpo encolhido na cena do crime ou nu na mesa do necrotério. A vítima era o centro do mistério da própria morte. Morria por ser o que era. Antes de encerrar o caso, Dalgliesh teria recebido uma dúzia de retratos da personalidade de Lorrimer, transferidos como gravuras das cabeças de outras pessoas. Com essas descrições amorfas e incertas, criaria suas próprias imagens, sobrepostas e dominantes, mas essenciais mesmo que incompletas, ou distorcidas (assim como as outras) por seus próprios preconceitos, sua própria personalidade. Mas a pergunta precisava ser feita. E pelo menos podia confiar que Freeborn responderia sem dar início a uma discussão filosófica sobre a base do ser. Suas mentes, porém, devem ter funcionado juntas por um momento, porque logo ouviu: “Estranho como sempre tem de se fazer essa pergunta, que só se consiga enxergar pelos olhos dos outros. Lorrimer está na casa dos quarenta anos. Parece João Batista sem a barba e é quase tão inflexível quanto. Solteiro. Mora com o pai, um velho, num chalé nos arredores da cidade. É... era... um biólogo forense extremamente competente, mas duvido que fosse além disso. Obsessivo, irritado, incômodo de se estar junto. Candidatou-se ao emprego em Hoggatt, e, claro, ficou em segundo lugar, atrás de Howarth. “Como ele e o laboratório receberam a nova nomeação?” “Lorrimer recebeu muito mal, acredito. Já o laboratório não teria aceitado bem sua nomeação. Era impopular com a maioria dos funcionários seniores. Mas sempre tem um ou dois que prefeririam um colega a um estranho, mesmo odiando o sujeito. E o sindicato fez o barulho esperado porque não se nomeou um cientista forense.” “Por que nomeou Howarth? Acredito que você estava na Junta.” “Ah, estava. Aceito uma parte da responsabilidade. Isso não quer dizer que eu ache que cometi um erro. O velho doc Mac era realmente um dos maiores
cientistas forenses. Nós dois começamos juntos, mas não há como negar que andou soltando um pouco as rédeas nos últimos anos. Howarth realmente aumentou o rendimento do trabalho em dez por cento. E depois, tem a construção do prédio novo. Era um risco calculado pegar um homem sem experiência forense, mas estávamos pensando primordialmente no gerenciamento. Pelo menos, a maior parte da Junta estava e os outros acabaram convencidos de que não seria mau, sem deixar bem claro, confesso, o que se entendia por essa palavra abençoada. Gerenciamento. A nova ciência. Todos nós nos rendemos a ela. Antigamente, fazíamos o trabalho, animávamos a equipe se fosse preciso, dávamos um chute no traseiro dos preguiçosos, encorajávamos os inseguros e convencíamos uma força policial relutante e cética a usar nossos serviços. Ah, e de vez em quando mandávamos informações estatísticas ao Departamento do Interior, só para eles lembrarem que estávamos lá. Parecia funcionar bem. A repartição não entrou em colapso. Você já parou para pensar qual é exatamente a diferença entre administração e gerenciamento, Adam?” “Guarde essa pergunta para confundir o candidato em sua próxima Junta. Howarth estava antes no Instituto de Pesquisa Bruche, não estava? Por que quis sair de lá? Deve ter tido uma perda de rendimentos.” “Não mais que umas seiscentas libras por mês, mas isso não foi problema. Tinha pai rico, e ficou tudo para ele e para a meia-irmã.” “Mas é um lugar maior, com certeza? E não deve estar conseguindo fazer pesquisa em Hoggatt.” “Alguma, faz, sim, mas basicamente é um laboratório de prestação de serviços, claro. Isso preocupou um pouco a Junta. Mas é difícil tomar a decisão de convencer seu candidato mais promissor de que ele está sendo rebaixado. Científica e academicamente, ele estudou física pura, está muito adiante do resto. Na verdade, fizemos uma certa pressão e ele deu as razões de sempre. Que estava se acomodando, que queria uma nova esfera de atividade, que estava ansioso para sair de Londres. Dizem os mexericos que acabou de ser abandonado pela esposa e queria começar de novo. Provavelmente é essa a razão. Graças a Deus, ele não usou a maldita palavra desafio. Se eu tiver de ouvir mais um candidato me dizer que considera o emprego um desafio, vomito em cima da mesa de reunião. Adam, estou ficando velho.” Sacudiu a cabeça na direção da janela. “É um aperto e tanto lá, nem preciso dizer.” “Eu sei. Fiz uma entrevista extremamente curta, mas cheia de tato. Eles são brilhantes em insinuar mais do que dizem de fato. Mas evidentemente é importante resolver a coisa depressa. Além de preservar a confiança no Serviço Forense, todos vocês hão de querer colocar o laboratório para funcionar de
novo.” “O que está acontecendo agora? Com o pessoal, eu digo.” “O Departamento de Investigação Criminal trancou as portas internas e está mantendo os funcionários na biblioteca e na área de recepção até eu chegar. Estão ocupados, escrevendo um relatório de todos os seus movimentos desde que Lorrimer foi visto vivo pela última vez, e a polícia local começa a fazer uma investigação preliminar nos álibis. Isso deve economizar algum tempo. Estou levando comigo um oficial, John Massingham. O Laboratório Metropolitano vai assumir qualquer trabalho forense. Estão mandando para lá um sujeito do Departamento de Relações Públicas para lidar com a imprensa, de forma que não vou ter de me preocupar com isso. Por sorte, aquele grupo de rock está se desfazendo tão espetacularmente justo agora. Isso e os problemas do governo devem nos manter longe da primeira página por um ou dois dias.” Freeborn olhava os dedos de seus pés com um ligeiro desgosto, como se fossem membros errantes, cujas deficiências só agora percebia. De quando em quando, mexia os dedos, mas era impossível dizer se fazia isso em obediência às ordens médicas ou por satisfação pessoal. Depois de um momento, disse: “Comecei minha carreira no Hoggatt, você sabe. Foi antes da guerra. Tudo o que tínhamos então era química, tubos de ensaio, provetas, soluções. E não se empregava moças porque não era decente elas se ocuparem com casos sexuais. Hoggatt era antiquado até para o Serviço Forense de 1930. Mas não cientificamente. Tínhamos um espectrógrafo quando isso ainda era uma novidade deslumbrante. O pântano produziu uns crimes eventuais. Lembra do caso Mulligan, aquele velho que retalhou o irmão e amarrou os pedaços nas eclusas de Leamings? Belas provas forenses nesse caso.” “Umas cinqüenta manchas de sangue na parede da pocilga, não era? E Mulligan jurou que era sangue de porco.” A voz de Freeborn ficou rememorativa. “Eu gostava daquele bandido. E eles ainda usam aquelas fotos que eu tirei das manchas para ilustrar palestras sobre vestígios de sangue. Engraçada a atração que o Hoggatt exercia, e ainda exerce, nessa área. Uma mansão palladiana inadequada, em uma aldeia sem graça de East Anglia à beira do pântano negro. A quinze quilômetros de Ely, que não é nenhum famoso centro de atividade para jovens. Os invernos gelam seus ossos e o vento da primavera, o vento do pântano como dizem, arranca a turfa e sufoca como smog. E mesmo assim os funcionários, se não vão embora no fim do primeiro mês, ficam para sempre. Sabia que o Hoggatt tem uma pequena capela Wren anexa? Arquitetonicamente, é muito superior ao resto da casa porque o velho Hoggatt nunca mexeu com ela. Acho que ele era quase inteiramente desprovido de gosto estético, usava a
capela como depósito de produtos químicos, depois que foi desconsagrada, ou seja lá o que for que fazem com igrejas fora de uso. Howarth reuniu um quarteto de cordas no laboratório e deram um concerto lá. Parece que é um violinista amador de renome. No momento, deve estar pensando que devia ter ficado com a música. Não é um bom começo para ele, coitado. E aquilo sempre foi um laboratório tão alegre. Acredito que o isolamento é que nos dava essa sensação de camaradagem.” Dalgliesh disse, sombrio: “Duvido que isso sobreviva uma hora depois da minha chegada.” “Não. Vocês geralmente levam junto tantos problemas quantos vão resolver. Não tem jeito. Assassinato é assim, um crime que contamina. Ah, você vai resolver esse, eu sei. Sempre resolve. Mas estou pensando é a que custo.” Dalgliesh não respondeu. Era ao mesmo tempo honesto demais e amigo demais de Freeborn para fazer promessas confortadoras e triviais. Claro, teria tato. Isso nem precisava dizer. Mas estaria em Hoggatt para resolver um assassinato e todas as outras considerações teriam de cair diante dessa tarefa absoluta. Assassinato sempre tinha um custo para ser solucionado, às vezes para ele mesmo, outras, para os outros. E Freeborn tinha razão. Era um crime que contaminava a todos que tocava, inocentes e culpados. Não lamentava os dez minutos que passara com Freeborn. O velho acreditava, com simples patriotismo, que o Serviço de Ciência Forense ao qual dedicara a vida toda era o melhor do mundo. Ajudara a dar forma a isso, e provavelmente tinha razão. Dalgliesh colhera o que tinha vindo colher. Mas ao apertar a mão dele e se despedir, sabia que não deixava nenhuma consolação.
3
A biblioteca do Hoggatt ficava nos fundos do andar térreo. As três altas janelas davam para o terraço de pedra e para um duplo lance de escada que descia para onde antes havia sido o gramado e o jardim, mas que hoje era meio acre de mato abandonado, limitado do lado oeste pelo anexo de tijolos do Departamento de Exame de Veículos, e a leste pelo bloco de antigos estábulos, hoje transformados em garage. A sala era um dos raros ambientes da casa que escaparam ao zelo transformador do antigo proprietário. As estantes originais de carvalho entalhado ainda cobriam as paredes, embora abrigassem agora a biblioteca científica do laboratório, que não era de desprezar. O espaço extra necessário para acomodar os exemplares encadernados das publicações nacionais e internacionais era fornecido por duas unidades metálicas móveis que dividiam a sala em três baias. Debaixo de cada janela havia uma mesa de trabalho, com quatro cadeiras, quase completamente coberta por uma maquete do prédio novo. Nesse ambiente um tanto inadequado é que os funcionários estavam reunidos. Um sargento-detetive do Departamento de Investigação Criminal da Scotland Yard local sentado impassível perto da porta era lembrete de por que estavam tão inconvenientemente encarcerados. Todos puderam descer à chapelaria do térreo gentilmente escoltados e foi-lhes comunicado que da biblioteca podiam telefonar para casa. O restante do laboratório, porém, estava, no momento, fora do seu alcance. Assim que chegaram, todos receberam a solicitação de escrever um breve relato de onde haviam estado e com quem na tarde e na noite da véspera. As declarações tinham sido recolhidas pelo sargento e entregues a seu colega do balcão de recepção, provavelmente para começarem a verificação preliminar. Os funcionários menores que forneceram um álibi satisfatório foram mandados de volta para casa assim que suas histórias foram verificadas; um a um, e com certa relutância porque iam perder a emoção do que aconteceria depois, seguiram seu rumo. Os menos afortunados, ao lado daqueles que primeiro chegaram ao laboratório aquela manhã e de todos os cientistas seniores, foram avisados de que tinham que esperar a equipe da Scotland Yard. O diretor aparecera brevemente na biblioteca. Um pouco antes, tinha ido junto com Angela Foley contar a notícia da morte de Lorrimer a seu pai. Ao voltar, ficara em sua sala com o detetive superintendente Mercer do Departamento de Investigação Criminal local. Diziam que o dr. Kerrison estava com eles. Os minutos se arrastavam enquanto esperavam o primeiro zumbido de
helicóptero chegando. Inibidos pela presença da polícia, fosse por prudência, delicadeza ou vergonha de tocar no assunto que ocupava suas cabeças, todos se falavam com aquela cuidadosa polidez de desconhecidos no saguão de um aeroporto. No geral, as mulheres estavam mais equipadas para o tédio da espera. Sra. Mallett, a datilógrafa do escritório geral, havia trazido seu tricô e, fortalecida por um álibi inabalável (tinha assistido ao concerto da aldeia sentada entre a atendente do correio e o sr. Mason, do armazém geral), além de algo que lhe ocupava as mãos, ficou batendo as agulhas com compreensível, embora irritante, complacência, até receber a ordem de soltura. Sra. Bidwell, faxineira do laboratório, havia insistido em visitar seu armário de vassouras, sob escolta, e se abastecera de um espanador de penas e alguns trapos, com os quais atacou vigorosamente as estantes. Estava estranhamente silenciosa, mas o grupo de cientistas nas mesas podia ouvi-la resmungando para si mesma enquanto castigava os livros de uma extremidade das baias. Brenda Pridmore recebeu permissão para pegar do balcão o livro de recepção de provas e, muito pálida, mas externamente controlada, estava conferindo os números do mês anterior. O livro ocupava um espaço grande demais da mesa, mas pelo menos era um trabalho legítimo. Claire Easterbrook, analista científica chefe do Departamento de Biologia agora com a morte de Lorrimer, havia tirado de sua maleta um texto científico que tinha preparado sobre os recentes progressos nos grupamentos de sangue e se acomodara para revisá-lo, aparentemente tão pouco preocupada como se assassinato em Hoggatt fosse um inconveniente rotineiro contra o qual estava, prudentemente, sempre preparada. Cada um dos outros funcionários passava o tempo a seu modo. Os que preferiam a desculpa dos negócios mergulharam num livro e, de quando em quando, faziam uma ostensiva anotação. Os dois examinadores de veículos, que todo mundo dizia não conversarem sobre nada a não ser carros, se agacharam lado a lado, as costas apoiadas nas estantes de metal, e falaram de carros com desesperado empenho. Por volta de quinze para as dez, Middlemass já tinha terminado as palavras cruzadas do Times e fez o resto do jornal durar o máximo possível. Mas agora até a coluna de falecimentos já se esgotara. Dobrou o jornal e jogou sobre a mesa para outras mãos que esperavam, ansiosas. Foi um alívio quando Stephen Copley, o químico-chefe, chegou pouco antes das dez, irrompendo sala adentro como sempre, a cara rubicunda, com sua tonsura e franja de cabelo preto encaracolado brilhando, como se tivesse acabado de sair do sol. Não havia nada que pudesse desconcertá-lo, certamente não a morte de um homem de quem não gostava. Mas estava seguro do seu álibi, tendo passado todo o dia anterior no Tribunal da Coroa e a noite com amigos em Norwich, só retornando a Chevisham a tempo de chegar atrasado essa manhã.
Seus colegas, aliviados de ter alguma coisa para comentar, começaram a interrogá-lo sobre o caso. Falavam um pouco alto demais para parecer natural. O resto do grupo ouvia com simulado interesse, como se a conversa fosse um diálogo dramático com finalidade de entretenimento. “Quem foi que chamaram para a defesa?”, Middlemass perguntou. “Charlie Pollard. Ele apoiou o barrigão no peitoril e explicou confidencialmente ao júri que não precisava ter medo das testemunhas chamadas de peritos científicos porque nenhum de nós, ele inclusive, claro, sabia realmente do que estava falando. O júri ficou imensamente tranqüilo, nem preciso dizer.” “Os júris detestam provas científicas.” “Acham que não vão conseguir entender, e isso realmente acaba acontecendo. Assim que a gente sobe ao banco, dá para ver uma cortina de obstinada incompreensão descendo sobre suas mentes. O que eles querem é certeza. Essa partícula de tinta vem do corpo daquele carro? Responda sim ou não. Nada daquelas probabilidades matemáticas de que a gente tanto gosta.” “Se detestam provas científicas, detestam matemática mais ainda. Se você dá uma opinião que depende da capacidade de dividir um fator por dois terços, o que eles fazem? ‘Acho que vai ter de se explicar de um jeito mais simples, senhor Middlemass. O júri e eu não temos nenhum diploma de matemática, sabe.’ O que querem dizer é: Você é um arrogante filho-da-mãe e é aconselhável o júri não acreditar em nenhuma palavra do que diz.” Era uma velha discussão. Brenda já ouvira tudo aquilo antes, quando comia os sanduíches do seu almoço numa sala que ficava entre a cozinha e a sala de estar que ainda era chamada de canto da bagunça. Mas parecia bem terrível eles serem capazes de falar com tanta naturalidade enquanto o dr. Lorrimer estava morto lá em cima. De repente, sentiu necessidade de dizer o nome dele. Levantou a cabeça e fez um esforço para falar: “O doutor Lorrimer achava que o Serviço Forense ia acabar com cerca de três imensos laboratórios fazendo o trabalho do país inteiro, com as provas chegando pelo ar. Para ele, os dois lados tinham de concordar com todas as provas científicas antes do julgamento.” Middlemass disse, sem esforço: “É uma velha discussão. A polícia quer um laboratório regional bom e próximo, e quem pode dizer que não estão certos? Além disso, três quartos do trabalho científico forense não precisa de toda essa instrumentação sofisticada. Seria mais o caso de laboratórios regionais altamente equipados terem representantes locais. Mas quem vai querer trabalhar nos laboratórios menores se todo trabalho mais interessante vai para outro lugar?” A srta. Easterbrook parecia ter terminado sua revisão. Disse:
“Lorrimer sabia que essa idéia do laboratório como árbitro científico não ia funcionar, não com o sistema acusatório britânico. De qualquer forma, a prova científica tem de ser comprovada como qualquer outra.” “Mas como?”, Middlemass perguntou. “Pelo júri ordinário? Imagine que você é um perito examinador de documentos não ligado ao Serviço e que foi chamado para a defesa. Você e eu discordamos. Como o júri pode escolher entre nós dois? Pode ser que escolham acreditar em você porque é mais bonita.” “Ou em você, que é o mais provável, por ser homem.” “Ou então um deles, aquele, crucial, me rejeita porque eu lembro o tio Ben e a família inteira sabe que Ben era o campeão mundial da mentira.” “Tudo bem. Tudo bem.” Copley espalhou as mãos gordas numa bênção pacificadora. “É igual a democracia. Um sistema falível, mas o melhor que temos.” Middlemass prosseguiu: “É incrível, porém, como funciona bem. Você olha para o júri, ali sentado, educado e atento, como crianças se comportando bem porque são visitas em um território estranho e não querem parecer bobos, nem ofender os nativos. E no entanto quantas vezes eles passam um veredicto que é manifestamente perverso quanto às provas?” Claire Easterbrook disse, seco: “Se o veredicto é manifestamente contrário à verdade, já é outra questão.” “O julgamento de um crime não é um tribunal que possa trazer a verdade à tona. Nós pelo menos lidamos com fatos. E as emoções? A senhora amava seu marido, senhora B.? Como a pobre mulher pode explicar que, provavelmente como a maioria das mulheres, ela amava o marido quase o tempo todo, quando ele não roncava na orelha dela a noite inteira, nem gritava com as crianças, nem regulava o dinheiro do bingo.” Copley disse: “Não dá. Se a mulher for inteligente e se o advogado preparou direitinho, ela tira o lenço e chora, ‘Ah, sim, senhor. Nunca existiu marido melhor, Deus é testemunha.’ É um jogo, não é? Você ganha se obedecer às regras.” Claire Easterbrook deu de ombros: “Se você sabe as regras. Muitas vezes só um lado sabe as regras do jogo. O que é natural se é esse o lado que faz as regras.” Copley e Middlemass riram. Clifford Bradley estava meio escondido do resto do grupo, atrás da mesa da maquete do prédio novo. Tinha tirado um livro qualquer da estante, mas durante os últimos dez minutos nem se dera ao trabalho de virar a página. Estavam rindo! Estavam realmente dando risada! Levantando da mesa foi
tateando até a baia mais distante e devolveu o livro, encostando a testa no aço frio do móvel. Discretamente, Middlemass veio até ele e, de costas para o grupo, pegou um livro da estante. Disse: “Tudo bem?” “Deus queira que eles cheguem.” “É o que todos queremos. O helicóptero vai estar aqui a qualquer minuto.” “Como podem rir assim? Não estão nem ligando?” “Claro que estão. Assassinato é uma coisa bestial, vergonhosa e inconveniente. Mas duvido que alguém aqui esteja sentindo alguma dor puramente pessoal. E as tragédias dos outros, o perigo dos outros, sempre provocam uma certa euforia quando a gente está seguro.” Olhou para Bradley e disse, suavemente: “Homicídio culposo sempre acontece, você sabe. Até homicídio justificado. Embora, pensando bem, não dê para declarar uma coisa dessas.” “Você acha que fui eu que matei, não acha?” “Não acho nada. Seja como for, você tem um álibi. Sua sogra não estava com você ontem à noite?” “Não a noite inteira. Pegou o ônibus das sete e quarenta e cinco.” “Bom, com sorte, há de haver alguma prova de que ele já estava morto essa hora.” E por que, Middlemass pensou, Bradley haveria de achar que não estava? Os olhos escuros e ansiosos de Bradley se apertaram, desconfiados. “Como você sabe que a mãe de Sue estava em casa ontem de noite?” “Susan me contou. Na verdade, ela me telefonou no laboratório um pouco antes das duas. Para falar de Lorrimer.” Pensou um pouco e continuou tranqüilo. “Ela estava pensando se haveria uma possibilidade de ele pedir transferência, agora que Howarth já está no posto faz um ano. Achou que eu podia saber de alguma coisa. Quando voltar para casa, diga a ela que eu não pretendo falar do telefonema à polícia, a menos que ela conte antes. Ah, e é melhor você garantir a ela que não fui eu que esmaguei a cabeça dele. Faria muita coisa por Sue, mas é preciso ter sempre um limite.” Bradley disse, com uma nota de ressentimento: “Por que você haveria de se preocupar? Não tem nenhum problema com o seu álibi. Não estava no concerto da aldeia?” “Não a noite inteira. E meu álibi produz um ligeiro embaraço mesmo eu tendo sido visto por lá.” Bradley virou para ele e disse com súbita veemência: “Não fui eu! Ah, meu Deus, não agüento essa espera!” “Tem de agüentar. Controle-se, Cliff! Perder o controle agora não vai ser nada bom nem para você nem para Susan. São policiais ingleses, não esqueça, não é a KGB que estamos esperando.”
Foi então que escutaram o ruído havia muito esperado, um distante zumbido crepitando como uma vespa furiosa. As vozes esparsas à mesa se calaram, cabeças se levantaram e, todos juntos, o grupo foi até a janela. A sra. Bidwell correu para pegar um bom lugar. O helicóptero vermelho e branco apareceu matraqueando acima das árvores e pairou, como uma mosca ruidosa, acima do telhado. Ninguém falava. Até que se ouviu a voz de Middlemass: “O menino prodígio da Yard desce muito adequadamente das nuvens. Bom, vamos torcer para ele trabalhar depressa. Quero voltar para o meu laboratório. Alguém tem de dizer para ele que não é o único com um caso de homicídio nas mãos.”
4
O inspetor detetive honorable John Massingham não gostava de helicópteros, que considerava barulhentos, apertados e assustadoramente inseguros. Como a sua coragem física estava acima de questão, fosse por ele ou por qualquer outra pessoa, normalmente não fazia objeções em dizer isso. Mas sabia que seu chefe não gostava de conversa desnecessária e ali, amarrados lado a lado, em incômoda proximidade no Enstrom F28, resolveu que o caso de Chevisham teria o mais propício começo devido à sua política de disciplinado silêncio. Observou interessado que o painel de instrumentos da cabine era incrivelmente semelhante ao painel de um carro; até a velocidade do ar era mostrada em quilômetros e não em nós. Pena que a semelhança terminasse aí. Ajustou melhor os fones de ouvido e acomodou-se para acalmar os nervos no estudo concentrado de seus mapas. Os tentáculos marrom-avermelhados dos subúrbios de Londres tinham finalmente desaparecido e a paisagem quadriculada de outono, com suas múltiplas texturas, igual a uma colagem de tecidos, se desenrolou diante deles num padrão cambiável de marrom, verde e ouro, levando até Cambridge. O sol incerto traçava largas faixas nas aldeias nítidas, segmentadas, nos bem tratados parques municipais e nos campos abertos. Miniaturas de carrinhos de metal, brilhantes como besouros ao sol, perseguiam-se, agitadas, pelas estradas. Dalgliesh olhou para seu companheiro, o rosto forte, pálido, as sardas borrifadas pelo nariz adunco e pela testa larga, a mecha de cabelo vermelho espetada debaixo dos fones de ouvido, e pensou que o rapaz parecia muito com o pai, aquele formidável par do reino, três vezes condecorado, cuja coragem só se comparava à sua obstinação e ingenuidade. O incrível da família Massingham era uma linhagem que vinha desde quinhentos anos atrás conseguir produzir tantas gerações de afáveis homens comuns. Lembrava-se da última vez que viu Lord Dungannon. Um debate na Câmara dos Lordes sobre delinqüência juvenil, assunto em que ele se considerava perito uma vez que, sem dúvida, havia sido adolescente um dia e ajudara durante um breve período a organizar um clube de jovens na propriedade do avô. Suas idéias, quando finalmente surgiram, foram formuladas em toda a sua banal simplicidade, sem nenhuma ordem lógica ou relevante, e numa voz curiosamente suave, pontuada por longas pausas, em que olhava pensativamente para o trono, parecendo se comunicar alegremente com alguma presença interior. Enquanto isso, como lemingues que sentiram o cheiro do mar, os nobres lordes iam saindo da câmara em bandos, para voltar, como se convocados por telepatia, quando o discurso de Dungannon estava chegando ao
seu fecho. Mas se a família não havia contribuído nada com o estadismo e pouco com as artes, sabia morrer com espetacular galanteria por causas ortodoxas em todas as gerações. E agora o herdeiro de Dungannon havia escolhido este trabalho longe de ortodoxo. Seria interessante ver se, pela primeira vez num campo tão desusado, a família obtinha alguma distinção. O que havia levado Massingham a escolher o serviço policial em vez da carreira no exército, usual na família, como veículo para sua natural combatividade e antiquado patriotismo era coisa que Dalgliesh não perguntava, em parte porque respeitava a privacidade dos outros, em parte porque não tinha certeza de que queria ouvir a resposta. Até o momento, Massingham estava se saindo excepcionalmente bem. A polícia era uma corporação tolerante e considerava que ninguém era culpado pelo pai que tinha. Aceitaram que o rapaz ganhasse sua promoção por mérito, embora não fossem tão ingênuos a ponto de achar que ser filho mais velho de um par do reino não tivesse lá os seus efeitos. Chamavam Massingham de Honjohn pelas costas, e às vezes na cara dele, e sem malícia. Embora a família estivesse agora empobrecida e a propriedade tivesse sido vendida (Lord Dungannon estava criando sua considerável família em uma vila modesta em Bayswater), o rapaz ainda havia freqüentado a escola do pai. Sem dúvida, pensou Dalgliesh, o velho guerreiro não sabia que existiam outras escolas, pois como qualquer outra classe, também a aristocracia, por mais pobre que fosse, sempre conseguia encontrar dinheiro para as coisas que realmente queria. Mas ele era um produto espúrio daquele estabelecimento e não tinha nem a elegância ligeiramente dégagé, nem o irônico alheamento que caracterizava seus alunos. Se não soubesse da história, Dalgliesh concluiria que Massingham era produto de uma sólida família de classe média alta, de um médico ou de um advogado talvez, e de alguma antiga e respeitada escola secundária. Era apenas a segunda vez que trabalhavam juntos. Na primeira, Dalgliesh ficou impressionado com a inteligência e a enorme capacidade de trabalho de Massingham, e por sua admirável esperteza em manter a boca fechada e perceber quando o chefe queria ficar sozinho. Surpreendeu-se também com um aspecto impiedoso do rapaz, coisa que, pensou, não devia acontecer, uma vez que sabia que essa característica devia estar presente em todo bom detetive. E agora o Enstrom estava matraqueando acima das torres e pontões de Cambridge, e dava para ver a curva cintilante do rio, as avenidas brilhantes de outono que atravessavam verdes gramados até as pontes corcundas em miniatura, a Capela do King’s College virada para cima e girando lentamente ao lado de seu quadrado listrado de grama. Quase imediatamente a cidade ficara
para trás e viram, como um mar de ébano enrugado, a terra preta dos pântanos. Abaixo deles, estradas retas altas sobre os campos, com aldeias espalhadas ao longo delas como se se apegassem à segurança do solo mais elevado; fazendas isoladas com seus tetos tão baixos que pareciam meio submersas na turfa; uma ou outra torre de igreja majestosa, isolada de sua aldeia, com as pedras de túmulos plantadas em torno, como dentes tortos. Deviam estar quase chegando; Dalgliesh já via a alta torre oeste e os pináculos da Catedral de Ely no leste. Massingham levantou os olhos do mapa e olhou para baixo. Sua voz crepitou nos fones de Dalgliesh: “Chegamos, senhor.” Chevisham estendia-se abaixo deles. Ficava em um estreito platô acima dos pântanos, as casas espalhadas ao longo do lado norte de duas estradas convergentes. A torre da imponente igreja em forma de cruz era imediatamente identificável, assim como o Solar Chevisham e, atrás dele, espalhado pelo campo riscado e ligando as duas estradas, a construção de tijolo e concreto do prédio novo. Sobrevoaram a rua principal daquilo que parecia uma típica aldeia de East Anglia. Dalgliesh viu de relance o frontão ornamentado de tijolo vermelho da capela local, uma ou duas casas de aspecto próspero com cornijas holandesas, um pequeno aglomerado de caixas semi-isoladas, recém-construídas, com a placa do construtor ainda exposta, e o que parecia ser o armazém geral e o correio da aldeia. Havia pouca gente à vista, mas o ruído do motor fez saírem figuras das lojas e casas com o rosto pálido e protegendo os olhos voltados para eles. E então estavam virando na direção do Laboratório Hoggatt, baixando sobre o que devia ser a capela Wren. Ficava a uns quatrocentos metros da casa, dentro de um triplo círculo de faias, um edifício isolado tão pequeno e perfeito que parecia uma maquete de arquiteto colocada em uma paisagem fabricada, ou uma elegante loucura eclesiástica, justificada apenas por sua clássica pureza, tão distante da religião quanto da vida. Era estranho que ficasse tão longe da casa. Dalgliesh pensou que provavelmente havia sido construída mais tarde, talvez porque o proprietário original tivesse brigado com o pároco e, como desafio, resolvido fazer seu próprio arranjo espiritual. Sem dúvida, a propriedade não parecia suficientemente grande para comportar uma capela particular. Por alguns segundos, enquanto desciam por uma falha entre as árvores, ele teve uma visão desimpedida da frente oeste da capela. Viu uma única janela em arco, bem alta, com dois nichos equilibrados, e quatro colunas coríntias separando as baias, o conjunto coroado com um grande frontão decorado, com uma lanterna hexagonal no topo. O helicóptero parecia estar quase tocando as árvores. As folhas quebradiças do outono, sacudidas pelo jato de ar, se espalhavam como uma chuva de papel picado sobre o teto e o verde brilhante da grama.
O helicóptero virou a ponto de dar enjôo, a capela sumiu de vista, e pararam, o motor matraqueando, prontos para pousar no amplo terraço nos fundos da casa. Por cima do telhado, viu o pátio fronteiro dividido em vagas de estacionamento, as viaturas da polícia organizadamente alinhadas, e uma coisa que parecia um furgão mortuário. Um largo caminho, bordejado com arbustos esparsos e umas poucas árvores, levava ao que o mapa mostrava ser Stoney Piggott Road. Não havia portão na rua. Além, via-se a bandeira brilhante de uma parada de ônibus com seu abrigo. Então o helicóptero começou a descer e só a parte de trás da casa estava visível. Numa janela do térreo, viu os borrões dos rostos que observavam o movimento. Havia um comitê de recepção de três membros, os corpos estranhamente encolhidos, os pescoços esticados. O vento das lâminas do motor levantava seus cabelos em formas grotescas, agitava as pernas de suas calças e achatava as jaquetas contra os peitos. Agora, com o aparelho desligado, o súbito silêncio era tão absoluto que ele viu as três figuras imóveis como se fossem um quadro de bonecos em um mundo silencioso. Ele e Massingham soltaram os cintos de segurança e saltaram para terra. Durante uns cinco segundos os dois grupos ficaram se olhando. Então, em um gesto único, as três figuras que esperavam ajeitaram os cabelos e avançaram cautelosamente para recebê-los. Ao mesmo tempo, seus ouvidos desbloquearam e o mundo voltou a ser audível. Virou-se para agradecer e falar brevemente com o piloto. Depois, ele e Massingham avançaram. Dalgliesh já conhecia o superintendente Mercer do Departamento de Investigação Criminal local; haviam se encontrado em diversas conferências da polícia. Mesmo a vinte metros de distância, seus ombros taurinos, o rosto redondo de comediante com a boca larga virada para cima e os olhos brilhantes de botão eram imediatamente reconhecíveis. Dalgliesh sentiu a mão ser esmagada, e Mercer fez as apresentações. Dr. Howarth: um homem alto, loiro, quase tão alto quanto o próprio Dalgliesh, de olhos muito espaçados e de um azul profundo, e cílios tão compridos que poderiam parecer efeminados em qualquer rosto menos arrogantemente masculino. Dalgliesh pensou que podia ser considerado um homem excepcionalmente bonito, não fosse uma certa incongruência de feições, talvez o contraste entre a finura da pele esticada sobre os malares lisos e o queixo forte, saliente, e a boca intransigente. Achou que dava para concluir que era rico. Os olhos azuis olhavam o mundo com a segurança ligeiramente cínica de um homem acostumado a conseguir o que queria, quando queria, por meio do expediente mais simples, o de pagar por tudo. Ao lado dele, o dr. Henry Kerrison, mesmo tão alto quanto ele, parecia diminuído. Seu rosto amassado e ansioso era banhado em fadiga, e nos olhos escuros, de pálpebras
pesadas, havia um ar incomodamente próximo da derrota. Apertou a mão de Dalgliesh com um gesto firme e fresco, mas nada disse. Howarth falou: “A casa não tem entrada pelos fundos. Temos que dar a volta. É o jeito mais fácil.” Levando suas pastas da cena do crime, Dalgliesh e Massingham seguiram atrás dele pelo lado da casa. Os rostos da janela do térreo haviam desaparecido e estava tudo excepcionalmente quieto. Pisando as folhas que tinham voado sobre o caminho, cheirando o afiado ar de outono com seu toque de fumaça, e o sol no rosto, Massingham sentiu uma onda de bem-estar animal. Era bom sair de Londres. Aquele prometia ser o tipo de trabalho de que ele mais gostava. O pequeno grupo virou na esquina da casa e Dalgliesh e Massingham tiveram a primeira visão da fachada do Laboratório Hoggatt.
5
A casa era um excelente exemplo de arquitetura residencial do fim do século XVII, uma mansão de tijolos de três andares, com telhados em arestas e quatro águas-furtadas, a projeção em balcão do centro coroada por um frontão, com uma cornija e um medalhão ricamente entalhados. Um lance de quatro largos degraus de pedra, em curva, levava ao portal, imponente em suas pilastras, mas sólida e discretamente correto. Dalgliesh fez uma pausa para estudar a fachada. Howarth disse: “Agradável, não é? Mas espere para ver o que o velho fez com quase toda a parte de dentro.” A porta da frente, com elegante mas discreta fechadura e aldrava de latão, era dotada de duas trancas de segurança, uma Chubb e uma Ingersoll, além da Yale. Num olhar superficial, não havia sinal de ter sido forçada. Foi aberta quase antes de Howarth levantar a mão para tocar a campainha. O homem que se afastou sem sorrir para eles entrarem, embora não usasse farda, Dalgliesh identificou imediatamente como um policial. Howarth apresentou-o brevemente como inspetor Blakelock, assistente de comunicação com a polícia. E acrescentou: “As três fechaduras estavam em ordem quando Blakelock chegou hoje de manhã. A Chubb liga o sistema de alarme eletrônico com a delegacia de polícia de Guy’s Marsh. O sistema de proteção interna é controlado por um painel na sala do agente de comunicação com a polícia.” Dalgliesh virou-se para Blakelock. “E estava em ordem?” “Sim, senhor.” “Tem outra saída?” Foi Howarth quem respondeu. “Não. Meu antecessor mandou bloquear permanentemente a porta dos fundos e uma lateral. Era complicado demais lidar com as travas do sistema de segurança para três portas. Todo mundo entra e sai pela frente.” Menos uma pessoa, talvez, ontem à noite, pensou Dalgliesh. Atravessaram o saguão de entrada que ocupava quase todo o comprimento da casa, os passos de repente ressoando alto no piso quadriculado de mármore. Dalgliesh estava acostumado a registrar impressões de relance. O grupo não se deteve a caminho da escada, mas ele colheu uma clara impressão da sala, o teto alto com sanca, as duas elegantes portas com bandeiras à direita e à esquerda, um retrato a óleo do fundador do laboratório na parede da direita, a madeira
brilhante do balcão de recepção ao fundo. Diante dele, um policial com uma pilha de papéis, falando ao telefone, provavelmente checando álibis. Sem levantar os olhos, continuou sua conversa. A escada era notável. A balaustrada era feita de painéis de carvalho decorados com ramos de acanto e cada pilar do corrimão, encimado por um pesado abacaxi de carvalho. Não havia tapete e a madeira crua estava muito marcada. O dr. Kerrison e o superintendente Mercer subiram atrás de Dalgliesh em silêncio. Howarth, à frente, parecia sentir necessidade de falar: “O térreo é ocupado pela recepção, pelo depósito de provas, meu escritório, a sala da secretária, o escritório geral, e a sala do agente de comunicação com a polícia. É tudo, a não ser pela área de serviço nos fundos. O inspetor-chefe Martin é o chefe do Serviço de Comunicação com a polícia, mas no momento está nos Estados Unidos e temos só Blakelock a postos. Neste andar, ficam a Biologia nos fundos, a Criminalística na frente, e a Seção de Instrumentos no fim do corredor. Preparei uma planta do laboratório para o senhor, mas deixei no meu escritório. Achei que gostaria de ocupar minha sala se for conveniente. Mas ainda não tirei minhas coisas, estava esperando a sua decisão. Este é o Laboratório de Biologia.” Deu uma olhada para o superintendente Mercer, que tirou do bolso a chave e destrancou a porta. Era uma sala comprida, obviamente reformada a partir de duas salas menores, talvez uma de estar e uma saleta íntima. As sancas do teto haviam sido removidas, provavelmente porque o coronel Hoggatt achasse que eram inadequadas para um laboratório, mas restavam as cicatrizes da profanação. As janelas originais foram substituídas por dois modelos compridos que ocupavam quase toda a parede dos fundos. Havia uma fileira de bancadas e pias debaixo das janelas, e duas bancadas de trabalho como ilhas no centro da sala, uma dotada de pias, a outra com uma porção de microscópios. À esquerda, ficava um pequeno escritório com divisórias de vidro; à direita, o laboratório fotográfico. Ao lado da porta, uma geladeira imensa. Mas os objetos mais bizarros da sala eram dois manequins de vitrine, um homem e uma mulher, colocados entre as janelas. Estavam sem roupas e desprovidos de perucas. A posição das carecas em forma de ovo, os braços articulados rigidamente dobrados numa paródia de bênção, os olhos estatelados e os lábios curvos como pontas de flecha lhes davam o ar hierático de uma dupla de divindades. Aos seus pés, como uma vítima sacrifical vestida de branco, jazia o corpo. Howarth ficou olhando os dois manequins como se nunca tivesse visto nada igual. Parecia pensar que tinha de explicar a presença deles. Pela primeira vez, perdeu um pouco de sua segurança.
“Estes são Liz e Burton. O pessoal veste neles as roupas dos suspeitos para poder comparar manchas de sangue e cortes.” E acrescentou: “Quer que eu fique aqui?”. “Por ora, sim”, respondeu Dalgliesh. Ajoelhou-se junto ao corpo. Kerrison avançou para parar a seu lado. Howarth e Mercer ficaram um de cada lado da porta. Depois de dois minutos, Dalgliesh falou: “A causa da morte é óbvia. Parece que foi atingido por um único golpe e morreu onde caiu. O sangramento é incrivelmente pequeno.” Kerrison completou: “Não é tão raro. Como o senhor sabe, é possível sofrer sérios danos intracranianos com uma simples fratura, principalmente se há hemorragia extradural ou subdural, ou laceração de massa encefálica. Concordo que provavelmente foi morto com um único golpe e que aquela marreta de madeira em cima da mesa parece a arma mais provável. Mas Blain-Thompson vai poder informar melhor quando ele for colocado em cima da mesa. Vai fazer a necropsia hoje de tarde.” “A rigidez cadavérica é quase completa. A que horas você estima que ocorreu a morte?” “Cheguei aqui pouco antes das nove e achei que ele estava morto fazia umas doze horas, talvez um pouco mais. Digamos entre oito e nove da noite. A janela está fechada e a temperatura bem constante em dezenove graus centígrados. Geralmente eu estimo a queda de temperatura corporal nessas circunstâncias em pouco menos de um grau por hora. Medi a temperatura quando examinei o corpo e, levando em conta a rigidez que já estava quase completa, diria que é pouco provável que estivesse vivo muito depois das nove da noite. Mas sabe como essas estimativas são pouco confiáveis. Melhor dizer entre oito e meia e meia-noite.” Howarth falou da porta: “O pai de Lorrimer disse que o filho telefonou para casa às oito e quarenta e cinco. Fui ver o velho hoje de manhã junto com Angela Foley para dar a notícia. Ela é minha secretária e é prima de Lorrimer. Mas o senhor vai falar com o velho, naturalmente. Pareceu bem seguro da hora.” Dalgliesh disse para Kerrison: “Parece que o sangramento foi bem constante, mas sem espirrar nem um pouco antes. Acha que o assassino teria ficado sujo de sangue?” “Não necessariamente, sobretudo se eu estiver certo e a arma for a marreta. Provavelmente, foi um único giro seguido de golpe quando Lorrimer virou as costas. O fato de o assassino bater acima da orelha esquerda não parece
particularmente importante. Pode ser que seja canhoto, mas não há nenhuma razão para pensar assim.” “E não seria preciso muita força. Até uma criança podia ter feito isso.” Kerrison hesitou, desconcertado. “Bom, uma mulher, com certeza.” Havia uma pergunta que Dalgliesh tinha de fazer formalmente, embora, pela posição do corpo e pelo fluxo do sangue, não houvesse dúvida. “Ele morreu imediatamente ou existe alguma possibilidade de ter andado por aí durante algum tempo e até trancado a porta e ajustado o alarme?” “Essa reação não é inteiramente desconhecida, claro. Mas neste caso específico eu diria que é muito improvável, virtualmente impossível. Não faz um mês peguei um homem com ferimento de machado, uma fratura com afundamento de quinze centímetros no osso parietal e extensa hemorragia extradural. Ele foi a um pub, passou meia hora com os amigos, depois se apresentou ao pronto-socorro e morreu em quinze minutos. Ferimentos na cabeça são imprevisíveis, mas não este aqui, acho.” Dalgliesh virou para Howarth. “Quem encontrou o corpo?” “Nossa recepcionista, Brenda Pridmore. Ela entra às oito e meia, junto com Blakelock. O velho Lorrimer telefonou para dizer que o filho não tinha dormido em casa, então ela subiu para ver se Lorrimer estava aqui. Cheguei quase imediatamente com a faxineira, a sra. Bidwell. Alguém telefonou para o marido dela hoje de manhã pedindo para ela ir à minha casa, ajudar minha irmã, em vez de vir ao laboratório. Era um chamado falso. Achei que pudesse ser trote bobo da aldeia, mesmo assim resolvi vir mais cedo para cá para ver se estava acontecendo alguma coisa estranha. Então, coloquei a bicicleta dela no porta-malas do meu carro e chegamos aqui pouco antes das nove. Minha secretária, Angela Foley, e Clifford Bradley, o analista científico no Departamento de Biologia, chegaram mais ou menos ao mesmo tempo.” “Quem ficou a sós com o corpo em algum momento?” “Brenda Pridmore, claro, mas muito brevemente, imagino. Depois, o inspetor Blakelock subiu sozinho. E eu também durante alguns segundos. Logo tranquei a porta do laboratório, mantive todo o pessoal no saguão principal e esperei lá até o doutor Kerrison chegar. Ele veio em cinco minutos e examinou o corpo. Fiquei ao lado da porta. O superintendente Mercer chegou logo depois e entreguei a ele a chave do Laboratório de Biologia.” Mercer disse: “O doutor Kerrison sugeriu chamar o doutor Greene, cirurgião da polícia daqui, para confirmar suas conclusões preliminares. O doutor Greene não ficou
sozinho com o corpo. Depois de um exame rápido e bastante superficial, eu tranquei a porta. Só foi aberta de novo quando os fotógrafos e os funcionários das digitais chegaram. Tiraram as impressões e examinaram a marreta, mas paramos por aí quando soubemos que a Yard tinha sido convocada e que o senhor estava a caminho. Os rapazes das digitais ainda estão aqui, na sala de comunicações com a polícia, mas deixei os fotógrafos irem embora.” Vestindo as luvas de pesquisa, Dalgliesh passou a mão pelo corpo. Debaixo do guarda-pó branco, Lorrimer estava usando calça cinza e paletó de tweed. No bolso interno havia um carteira fina de couro, contendo seis notas de uma libra, a carteira de motorista, um bloco de selos, e dois cartões de crédito. O bolso externo direito guardava uma bolsinha com as chaves do carro e três outras, duas Yale e uma menor, complicada, provavelmente de uma escrivaninha ou gaveta. Havia duas canetas esferográficas presas no bolso superior esquerdo do guardapó. No bolso inferior direito havia um lenço, o chaveiro do laboratório e, fora do molho, uma chave isolada que parecia bastante nova. Não havia mais nada no corpo. Ele foi até a bancada central, examinar duas provas que ali estavam, a marreta e um paletó de homem. A marreta era uma arma estranha, evidentemente feita à mão. O cabo de carvalho de corte rústico tinha uns quarenta e cinco centímetros de comprimento e pensou que podia ter sido parte de uma bengala pesada. A cabeça, que calculou pesar pouco mais de um quilo, estava escura de um lado por causa do sangue coagulado, no qual se espetavam dois ou três fios grossos de cabelo branco, como bigodes de gato. Era impossível detectar na crosta de cabelos mais escuros quais podiam ter saído da cabeça de Lorrimer, ou distinguir seu sangue a olho nu. Isso seria trabalho para o Laboratório Metropolitano da polícia, quando a marreta, cuidadosamente empacotada e com duas etiquetas de identificação em vez de uma, chegasse ao Departamento de Biologia no fim daquele dia. E perguntou ao superintendente: “Nenhuma digital?” “Nenhuma, a não ser as do velho Pascoe. É o dono da marreta. Não foram apagadas, de forma que parece que este sujeito estava de luva.” Dalgliesh pensou que isso apontava para premeditação ou para precaução instintiva da parte de um perito bem informado. Mas se tinha vindo preparado para matar, era estranho que tivesse contado com a primeira arma disponível. A menos, claro, que soubesse que a marreta ia estar à mão. Abaixou-se para estudar o paletó. Era a parte de cima de um terno barato produzido em massa, em um tom áspero de azul, com finas riscas mais claras, e lapelas largas. A manga havia sido cuidadosamente estendida e o punho mostrava um traço do que podia ser sangue. Aparentemente, Lorrimer já havia
começado a análise. Em cima da bancada estava o aparelho de eletroforese ligado na sua fonte e com duas colunas de seis pares de pequenos círculos perfurados na lâmina de ágar-ágar. Ao lado, um suporte com tubos de ensaio com uma série de amostras de sangue. À direita, duas pastas pardas do laboratório com os registros biológicos e, ao lado delas, aberto sobre a bancada, um caderno in quarto de folhas soltas presas por argolas. A página da esquerda, com data do dia anterior, estava toda coberta de hieroglifos e fórmulas, numa caligrafia fina, escura, ereta. Embora a maior parte das anotações científicas pouco significassem para ele, Dalgliesh percebeu que a hora em que Lorrimer começara e terminara cada análise havia sido cuidadosamente anotada. A página da direita estava em branco. Disse a Howarth: “Quem é o biólogo-chefe, agora que Lorrimer morreu?” “Claire Easterbrook. Senhorita Easterbrook, mas é aconselhável tratar por senhora.” “Ela está aqui?” “Junto com os outros na biblioteca. Acho que tem um álibi sólido para toda a noite de ontem, mas como é cientista sênior foi pedido que ficasse aqui. E é claro que vai querer retomar o trabalho assim que os funcionários tiverem permissão de entrar no laboratório. Houve um homicídio duas noites atrás em um fosso de tufo, em Muddington, esse paletó é uma prova, e ela quer tocar esse assunto, além de cuidar da carga pesada de sempre.” “Gostaria de ver essa moça primeiro, por favor, e aqui. Depois a senhora Bidwell. Tem um lençol para cobrir o corpo?” Howarth disse: “Imagino que deve haver alguma capa de móvel ou algo do tipo no armário. Fica no outro andar.” “Ficaria muito grato se mostrasse ao inspetor Massingham. Depois, se quiser esperar na biblioteca ou em sua própria sala podemos trocar uma palavrinha quando eu terminar aqui.” Durante um segundo, achou que Howarth ia protestar. Ele franziu a testa e o belo rosto ficou momentaneamente enevoado, petulante como o de uma criança. Mas saiu junto com Massingham sem dizer uma palavra. Kerrison ainda estava parado ao lado do corpo, rígido como um guarda de honra. Teve um pequeno sobressalto como se caísse de novo na realidade e disse: “Se não precisar mais de mim tenho de ir para o hospital. Pode me encontrar no St. Luke’s em Ely ou aqui, na Velha Reitoria. Entreguei ao sargento um relatório de todos os meus movimentos na noite passada. Estive em casa o tempo todo. Às nove, conforme o combinado, telefonei para um dos meus colegas no
hospital, o doutor J. D. Underwood, sobre um assunto que vai ser tratado no próximo comitê médico. Acho que ele já confirmou que realmente conversamos. Como não tinha a informação que eu estava esperando, ele me retornou a ligação por volta de quinze para as dez.” Não havia razão para deter Kerrison, nem para suspeitar dele, de momento. Depois que ele saiu, Mercer disse: “Pensei deixar dois sargentos, Reynolds e Underhill, e uns dois policiais, Cox e Warren, se estiver tudo bem para você. São todos bons oficiais, experientes. O chefe disse que é para fornecer tudo o que precisar. Ele foi a Londres para uma reunião esta manhã, mas volta de noite. Vou mandar subir os caras do furgão mortuário se o senhor acha que já podem levar o corpo.” “Sim, já terminei o exame. Quero uma palavrinha com os seus homens assim que eu falar com a senhorita Easterbrook. Mas peça para um dos sargentos subir em dez minutos para embalar a marreta para o laboratório da Yard, por favor. O piloto do helicóptero deve estar querendo voltar.” Trocaram mais algumas palavras sobre o arranjo de trabalho conjunto com a polícia local, e Mercer afastou-se para supervisionar a remoção do corpo. Ia esperar até apresentar Dalgliesh a seus oficiais; depois disso, sua responsabilidade terminava. O caso estaria nas mãos de Dalgliesh.
6
Dois minutos depois, Claire Easterbrook surgiu no laboratório. Entrou com a segurança que um investigador menos experiente que Dalgliesh poderia tomar por arrogância ou falta de sensibilidade. Era uma mulher magra, de corpo comprido, de uns trinta anos, rosto ossudo, inteligente. Seu cabelo escuro e encaracolado parecia ter sido cortado em camadas por uma mão competente e sem dúvida cara, para cair em mechas sobre a testa e enrolar na nuca do pescoço alto e arqueado. Usava um suéter castanho de lã fina, acinturado, e saia preta que ondulava até a barriga da perna sobre as botas de salto alto. As mãos, com unhas cortadas bem curtas, não exibiam anéis, e seu único ornamento era um colar de grandes contas de madeira presas por corrente de prata. Mesmo sem o guarda-pó branco a impressão que dava, sem dúvida intencional, era de uma competência profissional ligeiramente intimidante. Antes que Dalgliesh tivesse a chance de falar, ela disse, com um toque de beligerância: “Acho que vai perder seu tempo comigo. Meu amante e eu jantamos ontem à noite em Cambridge, na residência do mestre da faculdade dele. Estava com outras cinco pessoas das oito e meia até quase meia-noite. Já dei o nome delas para o policial na biblioteca.” Dalgliesh disse, com suavidade: “Desculpe, senhorita Easterbrook, ter de pedir que venha aqui antes da remoção do corpo do doutor Lorrimer. E parece impertinente sugerir que se sente em seu próprio laboratório, de forma que não vou fazer isso. Não vai demorar muito.” Ela ficou vermelha, como se tivesse sido pega em uma atitude inconveniente. Olhando com relutante desagrado para a forma embolada coberta no chão, os tornozelos rígidos aparecendo sob o pano, disse: “Teria um aspecto mais digno se estivesse descoberto. Desse jeito podia ser um saco de lixo. É uma superstição curiosa, esse instinto de cobrir os mortos recentes. Afinal, somos nós que estamos em desvantagem.” Em um tom delicado, Massingham comentou: “Claro que não é o seu caso, já que o mestre e a mulher dele podem confirmar o seu álibi.” Os olhos dos dois se cruzaram, os dele frios e divertidos, os dela escuros de desagrado. Dalgliesh disse: “O doutor Howarth me contou que a senhora agora é a bióloga-chefe. Pode me explicar, por favor, o que o doutor Lorrimer estava fazendo ontem à noite?
Mas não toque em nada.” Ela foi imediatamente para a mesa e observou as duas provas, as pastas e a parafernália científica. Disse: “Pode abrir esta pasta, por favor?” As mãos enluvadas de Dalgliesh deslizaram entre as capas e abriram a pasta. “Ele conferiu o resultado de Clifford Bradley para o caso Pascoe. A marreta pertence a um trabalhador rural do pântano, de sessenta e quatro anos, chamado Pascoe, cuja esposa desapareceu. Ele diz que foi abandonado por ela, mas existem duas ou três circunstâncias suspeitas. A polícia mandou a marreta para ver se o sangue que há nela é humano. Não é. Pascoe afirma que usou a marreta para sacrificar um cachorro agonizante. Bradley concluiu que o sangue reage ao soro anticanino e o doutor Lorrimer repetiu o resultado. Portanto foi o cachorro mesmo que morreu.” Mesquinho demais para gastar uma bala ou chamar o veterinário, pensou Massingham, feroz. Achou estranho a morte desse vira-lata desconhecido deixálo momentaneamente mais furioso que o assassinato de Lorrimer. A srta. Easterbrook passou para o caderno aberto. Os dois homens esperaram. Então franziu a testa obviamente surpresa: “Estranho. Edwin sempre anotava a hora que começava e terminava uma análise, e o processo adotado. Ele rubricou o resultado de Bradley no relatório Pascoe, mas não tem nada no caderno. E é claro que havia começado a analisar o caso do fosso de tufo, mas isso também não tem registro. A última anotação é de cinco e quarenta e cinco e está inacabada. Alguém deve ter arrancado a página da direita.” “Por que acha que alguém faria isso?” Ela olhou diretamente nos olhos de Dalgliesh e falou com calma: “Para destruir a prova do que ele estava fazendo, ou o resultado da análise, ou o tempo que gastou nisso. A primeira e a segunda hipóteses seriam inteiramente sem sentido. Pela aparelhagem, o que ele estava fazendo é evidente, e qualquer biólogo competente poderia repetir o trabalho. Então provavelmente é a última.” A aparência de inteligência não era enganadora. Dalgliesh perguntou: “Quanto tempo levaria para conferir o resultado do Pascoe?” “Não muito. Na verdade, ele começou antes das seis e acho que já tinha acabado quando saí às seis e quinze. Fui a última a sair. Os nossos subordinados já tinham ido embora. Não costumam trabalhar depois das seis. Sempre fico até mais tarde, mas tinha de me vestir para o jantar.” “E o trabalho que fez sobre o caso do fosso de tufo, quanto tempo teria levado?” “Difícil afirmar com precisão. Eu diria que podia se ocupar disso até as nove
horas ou mais. Estava comparando uma amostra do sangue da vítima com o sangue da mancha seca pelo sistema de grupamento sanguíneo ABO, usando a eletroforese para identificar as haptoglobinas e a PGM, a enzima fosfoglucomutase. A eletroforese é uma técnica para identificar os constituintes protéicos e enzimáticos do sangue colocando-se as amostras num gel de amido ou de ágar-ágar, aplicando depois uma corrente elétrica nelas. Como pode ver, ele havia começado o processo.” Dalgliesh conhecia o princípio científico da eletroforese, mas achou que não era preciso mencionar o fato. Abriu a pasta do fosso de tufo e disse: “Não tem nada aqui dentro.” “Ele anotaria o resultado na pasta mais tarde. Mas não teria começado a análise sem escrever os detalhes em seu caderno.” Havia duas lixeiras de pedal junto à parede. Massingham abriu as duas. Uma, forrada de plástico, era evidentemente para lixo do laboratório e vidro quebrado. A outra, para papel. Remexeu o conteúdo: lenços de papel, alguns envelopes rasgados, um jornal velho. Nada parecido com uma página arrancada. Dalgliesh pediu: “Me fale de Lorrimer.” “O que quer saber?” “Qualquer coisa que possa lançar uma luz no porquê de alguém detestar ele a ponto de afundar sua cabeça.” “Nisso eu temo não poder ajudar. Não faço idéia.” “Gostava dele?” “Não especialmente. Não é uma questão em que eu tenha pensado muito. Me dava bem com ele. Era um perfeccionista que não tolerava gente incompetente. Mas era fácil trabalhar ao lado dele quando se entende do serviço. Não tive problemas.” “Então ele não precisaria conferir os seus resultados. E os que não entendem do assunto?” “Melhor perguntar para eles, comandante.” “Era querido entre os funcionários?” “E o que isso tem a ver com o caso? Não acho que eu seja querida. Nem por isso temo pela minha vida.” Ficou quieta um momento, depois disse em tom mais conciliador: “Talvez esteja parecendo que quero dificultar seu trabalho. Mas não é isso. Só não posso ajudar. Não faço idéia de quem matou Lorrimer, nem por quê. Só sei que não fui eu.” “Notou alguma mudança nele ultimamente?” “Mudança? Quer dizer, no comportamento ou no estado de espírito dele? Não.
Dava a impressão de um homem sob pressão. Mas ele era esse tipo de homem, solitário, obsessivo, trabalhava demais. Uma coisa estranha. Ele vinha se interessando pela nova recepcionista, Brenda Pridmore. É uma menina bonita, mas não chega perto do nível intelectual dele, eu acho. Não creio que fosse nada sério, mas isso provocou uma certa graça no laboratório. Acho que ele provavelmente estava tentando provar alguma coisa para alguém, ou talvez para si mesmo.” “A senhora ouviu falar do telefonema para a senhora Bidwell, claro.” “Imagino que o laboratório inteiro está sabendo. Não fui eu que telefonei para ela, se é o que está pensando. De qualquer forma, eu saberia que uma coisa dessas não podia funcionar.” “O que quer dizer com não podia funcionar?” “Dependia, claro, de o velho Lorrimer, o pai, não estar em casa ontem. Afinal, a pessoa que telefonou não podia saber que, até o momento em que Edwin deixou de levar o chá da manhã para o pai, ele ainda não tinha notado que o filho não havia voltado para casa desde a noite anterior. Parece que o velho Lorrimer foi para a cama sem perceber nada. Mas a pessoa que ligou não podia saber disso. Normalmente, a ausência de Edwin teria sido notada muito antes.” “Havia alguma razão para supor que o velho senhor Lorrimer não estaria em casa ontem?” “Ele devia ter dado entrada no hospital de Addenbrooke ontem à tarde, para tratar de um problema de pele. Acho que o Laboratório de Biologia inteiro sabia disso. Ele costumava telefonar sempre, reclamando dos arranjos e querendo saber se Edwin ia ter tempo livre para irem de carro. Ontem, um pouco depois da dez, telefonou para dizer que o leito afinal não estaria livre para ele.” “Quem atendeu?” “Eu atendi. Tocou na sala particular de Edwin, que ainda não tinha voltado da autópsia do fosso de tufo. Contei para ele assim que chegou.” “Para quem mais contou?” “Quando saí da sala creio ter mencionado que o velho senhor Lorrimer não iria mais se internar. Não tenho certeza das palavras exatas. Mas acho que ninguém fez nenhum comentário, nem prestou muita atenção.” “E todos os funcionários da Biologia estavam no laboratório a essa hora e ouviram o que a senhora disse?” De repente, ela perdeu a compostura. Ficou vermelha e hesitou, como se tivesse se dado conta de onde levava isso tudo. Os dois homens ficaram esperando. Depois, zangada consigo mesma, adotou uma atitude defensiva: “Desculpe, não me lembro. Vão ter de perguntar a eles. Não me pareceu importante no momento e eu estava ocupada. Estávamos todos ocupados. Acho
que estava todo mundo lá, mas não tenho certeza.” “Obrigado”, disse Dalgliesh, frio. “A senhora foi extremamente útil.”
7
A sra. Bidwell apareceu na porta no momento em que os dois atendentes do furgão funerário estavam levando o corpo. Pareceu lamentar seu desaparecimento e observou o contorno de giz que Massingham havia traçado no chão como uma pobre substituição da coisa real. Olhando a caixa de metal tampada, disse: “Coitado! Nunca pensei que um dia veria ele sendo levado deste laboratório desse jeito. Nunca foi muito querido, o senhor sabe. Mas não acho que esteja preocupado com isso onde se encontra agora. Aquilo que botaram em cima dele é uma das minhas capas?” Olhou desconfiada para o pano, agora cuidadosamente dobrado na ponta de uma das bancadas. “Veio do armário do laboratório, sim.” “Tudo bem, contanto que seja devolvido para o lugar de onde saiu. Pensando bem, era melhor ir direto para a roupa suja. Mas não quero que nenhum dos seus homens leve, não. A roupa suja aqui já some bem depressa.” “Por que ele não era querido, senhora Bidwell?” “Exigente demais. É verdade que a gente precisa ser assim, se quer fazer alguma coisa direito. Mas, pelo que sei, ele exagerava. E estava piorando, pode acreditar. Andava esquisito ultimamente. Nervoso. Já ouviu falar da grosseria dele na recepção anteontem, acho? Ah, bom, vai ouvir. Pergunte ao inspetor Blakelock. Foi um pouco antes do almoço. O doutor Lorrimer cortou um doze com aquela filha entojada do doutor Kerrison. Quase botou a menina porta afora. Ela berrava feito uma maluca. Entrei no saguão bem na hora. O pai dela não vai gostar disso, não, eu falei para o inspetor Blakelock. Ele adora essas crianças. Escreva o que eu digo, falei, se o doutor Lorrimer não tomar cuidado vai ter morte neste laboratório. Disse a mesma coisa para o senhor Middlemass.” “Quero que me conte do telefonema desta manhã, senhora Bidwell. A que horas foi?” “Quase sete horas. Estava tomando chá e tinha acabado de encher a chaleira para a segunda xícara, quando o telefone tocou.” “Quem atendeu?” “Bidwell. O telefone fica no hall. Ele se levantou e foi atender. Xingando porque tinha acabado de se servir do arenque. Ele odeia peixe frio, o Bidwell. A gente sempre come arenque na quinta-feira por causa da perua de peixe do Marshall que vem de Ely na quarta de tarde.”
“Seu marido sempre atende ao telefone?” “Ele sempre faz isso. E se ele não está, eu deixo tocar. Não agüento aquela coisa. Nunca agüentei. E nunca ia ter em casa se não fosse a nossa Shirley pagar para instalar um. Ela agora está casada e mora para os lados de Mildenhall. Diz que fica mais tranqüila de saber que a gente pode ligar se precisar de algo. Só pra isso que serve. Não consigo escutar nada do que as pessoas falam. E a campainha é de meter medo, Deus me livre. Telegrama e toque de telefone. Duas coisas que eu odeio.” “Quem no laboratório sabia que seu marido sempre atende ao telefone?” “Quase todo mundo, eu acho. Eles sabem que eu não toco nem o dedo naquela coisa. Não é segredo nenhum. Cada um é como Deus o fez e alguns são até piores. Não tenho do que me envergonhar.” “Claro que não. Seu marido deve estar trabalhando agora?” “Isso mesmo. Na fazenda Yeoman, propriedade do capitão Massey. Quase que só no trator. Faz vinte anos que ele está lá, quase.” Dalgliesh fez com a cabeça um gesto imperceptível para Massingham e o inspetor saiu discretamente para trocar uma palavra com o sargento Underhill. Era bom checar com o senhor Bidwell enquanto a lembrança do telefonema estava fresca. Dalgliesh continuou: “O que aconteceu depois?” “Bidwell voltou. Disse que não era para eu vir ao laboratório hoje de manhã porque a senhora Schofield precisava de mim para um serviço particular em Leamings. Que eu tinha de ir de bicicleta. Depois ela me trazia de volta. Amarraria minha bicicleta na traseira daquele Jaguar vermelho que ela tem, claro. Achei que era descaramento dela, sabendo que eu devo trabalhar aqui de manhã, mas não tenho nada contra a senhora Schofield e se ela precisava de mim, eu não ia recusar. O laboratório ia ter de esperar, falei para o Bidwell. Não dá para estar em dois lugares ao mesmo tempo, falei. O que não der para fazer hoje, faço amanhã.” “Trabalha aqui toda manhã?” “Menos no fim de semana. Chego aqui quase sempre antes das oito e meia, e trabalho até as dez. Depois, volto ao meio-dia para o caso de algum cavalheiro querer que esquente o almoço. Quase todas as meninas se viram sozinhas. Também lavo os pratos para eles. Calculo que saio aí pelas duas e meia. Veja bem, é serviço leve. Scobie, o atendente do laboratório, cuida da limpeza dos departamentos comigo, mas o serviço pesado é feito pelos faxineiros terceirizados. Eles só vêm nas segundas e sextas-feiras, das sete às nove, numa perua cheia de homem, vinda de Ely. Nessas manhãs, eles limpam o saguão, a escada e fazem a faxina mais pesada. O inspetor Blakelock chega mais cedo
nesses dias para abrir a porta para eles, e Scobie fica de olho neles. Não que a gente repare que estiveram aqui. Falta interesse pessoal, sabe? Não é como antigamente quando eu e duas mulheres da aldeia fazíamos a limpeza toda.” “O que a senhora teria feito logo ao chegar, se fosse uma quinta-feira comum? Quero que pense bem, senhora Bidwell. Isso pode ser muito importante.” “Não preciso pensar. Faço a mesma coisa todo dia.” “Então me conte.” “Tirar o chapéu e o casaco na chapelaria do térreo. Colocar o avental. Pegar o balde, o sabão e o desinfetante do armário de vassouras. Limpar o banheiro dos homens e o das mulheres. Conferir a roupa suja e empacotar. Colocar guarda-pós brancos limpos onde for preciso. Depois tirar o pó e arrumar a sala do diretor e o escritório geral.” “Certo”, disse Dalgliesh. “Pode fazer a ronda comigo? Três minutos depois, uma curiosa procissãozinha subiu a escada. A sra. Bidwell, agora vestindo um avental de trabalho azul-marinho, levava um balde plástico numa mão e uma escova na outra, ia na frente. Dalgliesh e Massingham atrás. Os dois lavatórios ficavam no andar de cima, ao fundo, na frente do Laboratório de Exames de Documentos. Evidentemente tinham sido reformados a partir do que fora um dia um quarto elegante. Mas agora um corredor estreito que levava a uma janela única, gradeada, havia sido construída no meio da sala. Uma porta ameaçadora dava entrada para o banheiro feminino à esquerda, e uns metros adiante outra porta semelhante levava ao lavatório masculino à direita. A sra. Bidwell dirigiu-se para a sala da esquerda. Era maior do que Dalgliesh esperava, mas pouco iluminada por uma única janela de vidro opaco pivotante, a cerca de um metro e meio do chão. A janela estava aberta. Havia três cubículos. A sala externa continha duas pias com depósito de toalhas de papel e, à esquerda da porta, um longo balcão coberto de fórmica com espelho em cima, que aparentemente servia de penteadeira. À direita, ficava um incinerador a gás de parede, uma fileira de ganchos de pendurar roupa, um grande cesto de roupa suja e duas poltronas de vime bem surradas. Dalgliesh disse à sra. Bidwell: “É assim que a senhora esperava encontrar?” Os olhinhos atentos da sra. Bidwell conferiram tudo ao redor. As portas para os três cubículos estavam abertas e ela inspecionou rapidamente cada um. “Nem melhor, nem pior. As moças procuram deixar tudo em ordem, justiça seja feita.” “E a janela sempre fica aberta?” “Inverno e verão, menos quando está frio demais. É a única ventilação, sabe?” “O incinerador está apagado. Isso é normal?”
“É, sim. A última a sair à noite desliga, e eu acendo de novo na manhã seguinte.” Dalgliesh olhou dentro. O incinerador estava vazio a não ser por um vestígio de cinza de carvão. Foi até a janela. Em algum momento durante a noite, havia evidentemente entrado alguma chuva, e era plenamente visível que os pingos haviam sido enxutos do chão de ladrilhos. Mas mesmo o painel interno, onde a chuva não teria caído, estava incrivelmente limpo e não havia sinal de poeira no batente. Perguntou: “A senhora limpou essa janela ontem, senhora Bidwell?” “Claro. Como eu disse, limpo os banheiros toda manhã. E quando eu limpo, limpo mesmo. Posso começar a limpeza?” “Hoje não vai ser preciso. Vamos fazer de conta que a senhora terminou aqui. Agora o que acontece? O que faz com a roupa suja?” O cesto continha apenas um guarda-pó, marcado com as iniciais C.M.E. A sra. Bidwell disse: “Hoje não é dia de ter muita roupa, não numa quinta. Eles sempre conseguem fazer o avental durar a semana toda e jogam aqui na sexta, antes de ir embora. Segunda é o dia de mais movimento, tem de distribuir os novos guarda-pós. Parece que a senhorita Easterbrook derramou chá ontem. Nunca faz isso. Mas ela é exigente, a senhorita Easterbrook. Não vai ficar andando por aí com guarda-pó sujo, seja que dia for da semana.” Então havia pelo menos um membro do Departamento de Biologia, pensou Dalgliesh, que sabia que a sra. Bidwell estaria logo cedo no laboratório para pegar um guarda-pó limpo. Seria interessante descobrir quem estava presente quando a meticulosa srta. Easterbrook teve o seu acidente com o chá. O banheiro dos homens, a não ser pelo corredor de mictórios, era pouco diferente do das mulheres. Havia a mesma janela redonda, a mesma ausência de qualquer marca no vidro e no batente. Dalgliesh arrastou uma das cadeiras e, evitando cuidadosamente qualquer contato com a janela ou com o batente, olhou para fora. Havia quase um metro e meio de distância até a janela de baixo e a mesma medida até a janela do primeiro andar. Abaixo de ambas um terraço pavimentado corria até a parede. A ausência de terra fofa, a chuva da noite, e a limpeza eficiente da sra. Bidwell indicavam que seria muita sorte conseguirem alguma prova de que alguém havia escalado por ali. Mas um homem ou uma mulher razoavelmente magros e de pés firmes, com suficiente coragem, e imune a alturas, sem dúvida poderia entrar por ali. Mas se o assassino fazia parte da equipe do laboratório, por que iria arriscar o pescoço sabendo que as chaves estavam com Lorrimer? E se o assassino fosse de fora, como explicar a porta da frente trancada, o sistema de alarme intacto, e o fato de Lorrimer ter aberto a
porta para ele? Voltou a atenção para as pias. Nenhuma estava particularmente suja, mas junto à borda da que ficava mais perto da porta havia uma mancha de muco que parecia aveia. Abaixou a cabeça sobre a pia e aspirou. Seu olfato extremamente agudo detectou no ralo um leve mas inconfundível e desagradável cheiro de vômito humano. Enquanto isso, a sra. Bidwell abriu a tampa do cesto de roupa suja. Soltou uma exclamação. “Que estranho. Está vazia.” Dalgliesh e Massingham olharam. E o primeiro perguntou: “O que esperava encontrar, senhora Bidwell?” “O guarda-pó do senhor Middlemass.” Ela saiu depressa do banheiro. Dalgliesh e Massingham foram atrás. Abriu a porta da Sala de Exame de Documentos e olhou dentro. Depois tornou a fechar a porta e encostou-se nela. “Sumiu! Não está pendurado no gancho. Então onde foi parar? Onde está o guarda-pó branco do senhor Middlemass?” Dalgliesh perguntou: “Por que a senhora achou que ele estaria no cesto de roupa suja?” Os olhos da sra. Bidwell ficaram imensos. Ela moveu os olhos de um lado para o outro e depois disse com assombrado prazer: “Porque estava sujo de sangue, por isso. Sangue de Lorrimer!”
8
Por último, desceram a escada principal em direção à sala do diretor. Da biblioteca vinha um murmúrio entrecortado de vozes, baixas e espasmódicas, como em um velório. Um policial detetive estava parado na porta da frente, com aquele ar de alerta alheado de um homem pago para suportar o tédio, mas pronto para entrar em ação se, de repente, fosse necessário. Howarth tinha deixado sua sala destrancada e a chave estava na porta. Dalgliesh achou interessante o diretor ter escolhido esperar junto com os demais funcionários na biblioteca e imaginou se tencionava com isso demonstrar solidariedade a seus colegas, ou se era uma admissão cheia de tato de que seu escritório era uma das salas que devia receber as atenções matinais da sra. Bidwell, sendo, portanto, de especial interesse para Dalgliesh. Mas esse pensamento era sem dúvida sutil demais. Difícil acreditar que Howarth não tivesse entrado em sua sala desde a descoberta do corpo. Se havia alguma coisa a ser removida, ele, mais do que todos, devia ter tido a chance de fazer isso. Dalgliesh esperava uma sala impressionante, mas ainda assim se surpreendeu. A sanca do teto arqueado era esplêndida, uma alegre confusão de grinaldas, conchas, fitas, e ramos de videira, disciplinada apesar da ornamentação. A lareira de mármore branco e manchado contava com um friso bem esculpido de ninfas, além de pastores tocando flauta e a clássica cornija com frontão aberto. Deduziu que o salão de proporções agradáveis, pequeno demais para ser dividido e não suficientemente grande para um laboratório, havia escapado de sofrer o mesmo destino de boa parte da casa, mais por conveniências administrativas e científicas do que por qualquer sensibilidade da parte do coronel Hoggatt por sua inata perfeição. Estava recém-mobiliada em um estilo impossível de ofender, uma bela concessão entre ortodoxia burocrática e funcionalidade moderna. Havia uma grande estante fechada com vidro à esquerda da lareira, um armário pessoal e um cabide de casacos à direita. A mesa de reuniões retangular com quatro cadeiras, de um tipo fornecido para funcionários públicos seniores, ficava entre as altas janelas. Ao lado dela, um armário de segurança feito de aço, equipado com uma fechadura de segredo. A escrivaninha de Howarth, um móvel despojado da mesma madeira da mesa de reuniões, ficava de frente para a porta. Além de um forro de mata-borrão manchado de tinta e de um tinteiro, tinha uma pequena estante de madeira com o Shorter Oxford Dictionary, um dicionário de citações, o Roget’s Thesaurus, e o Fowler’s Modern English Usage. A seleção parecia curiosa para um cientista. Havia três bandejas de metal rotuladas de
“Entra”, “Pendente” e “Sai”. A bandeja de “Sai” continha dois envelopes pardos, o de cima identificado com “Capela — Propostas para transferência do Departamento de Meio Ambiente” e o segundo, uma pasta grande, usada e volumosa que havia sido muito remendada, identificada como “Laboratório Novo — Comissionamento”. Dalgliesh se surpreendeu com o despojamento e a impessoalidade de toda a sala. Era claro que fora recentemente decorada para a chegada de Howarth; o tapete cinza-esverdeado-pálido, com um quadrado combinando debaixo da escrivaninha, ainda não exibia marcas, e as cortinas desciam em pregas imaculadas de verde-escuro. Havia um único quadro, pendurado acima da lareira, mas era um original, um Stanley Spencer da primeira fase, mostrando a Assunção da Virgem. Coxas gordas, curtas, com varicose, usando meias vermelhas, flutuando para cima a partir de um círculo de mãos postas de trabalhadores voltadas para um comitê de recepção formado por querubins boquiabertos. Ele achou que era uma escolha excêntrica para a sala, discordante tanto em data quanto em estilo. Além dos livros, o quadro era o único objeto que refletia algum gosto pessoal; Dalgliesh pensou que dificilmente teria sido fornecido por um órgão do governo. No mais, a sala tinha aquela atmosfera submobiliada e expectante de uma sala preparada para receber um ocupante desconhecido e ainda esperando a marca de seu gosto e personalidade. Era difícil acreditar que Howarth trabalhasse ali havia quase um ano. A sra. Bidwell, com a boca contraída e os olhos apertados, demonstrava evidente desaprovação. Dalgliesh perguntou: “É assim que a senhora esperava encontrar a sala?” “Assim mesmo. Toda manhã. Nada pra eu fazer aqui, não é? Veja bem, eu tiro o pó, lustro tudo e passo o aspirador no tapete. Mas ele é limpo e arrumado, não tem como negar. Não igual ao velho doutor MacIntyre. Ah, ele era um homem adorável! Mas bagunceiro! Tinha de ver a mesa dele de manhã. E a fumaça! Nem dava pra ver ele do outro lado da sala, às vezes. Tinha em cima da mesa aquela caveira linda pra guardar os cachimbos. Encontraram o crânio quando fizeram o buraco para passar os canos do novo prédio de Exame de Veículos. Estava enterrado fazia mais de duzentos anos, o doutor Mac falou. E me mostrou a rachadura, igual a de uma xícara, onde tinham esmagado a caveira. Esse crime eles nunca resolveram. Sinto falta daquela caveira. Era linda mesmo de se olhar. E tinha todas aquelas fotografias com os amigos na universidade, com os remos cruzados em cima deles, e uma paisagem colorida da Escócia, com vacas peludas chapinhando num lago, e um retrato do pai dele com os cachorros, e um tão lindo da mulher, já tinha morrido, coitadinha, e um outro quadro grande de Veneza com as gôndolas e um monte de estrangeiro de roupa esquisita, e uma
caricatura do doutor Mac feita por um dos amigos, com o amigo morto no chão e o doutor Mac de chapéu de caçador procurando pista com a lente de aumento. Era bem gozado, era mesmo. Ah, eu adorava os quadros do doutor Mac!” Olhou para o Spencer com uma nítida falta de entusiasmo. “E não tem nada estranho na sala agora?” “Já disse, tudo como de costume. Bom, veja o senhor mesmo. Mais limpo que não sei o quê. De dia é diferente, claro, quando ele está trabalhando aqui. Mas deixa a sala sempre como se não fosse voltar no dia seguinte.” Não havia mais nada a descobrir com a sra. Bidwell. Dalgliesh agradeceu e disse que podia voltar para casa assim que tivesse conferido com o sargento detetive Reynolds, na biblioteca, todas as informações sobre o que havia feito na noite anterior. Explicou isso com seu tato de sempre, mas tato era desperdício com a sra. Bidwell. Ela disse, alegre e sem rancor: “Não adianta querer botar a culpa em mim, nem em Bidwell. A gente estava junto no concerto da aldeia. Sentamos cinco fileiras atrás de Joe Machin, que é o sacristão, e na frente de Willie Barnes, que é mordomo do reitor, e ficamos até o fim. Sem sair no intervalo que nem alguém que eu conheço.” “Quem foi que saiu, senhora Bidwell?” “Pergunte para ele mesmo. Sentou no fim da fileira na nossa frente, um cavalheiro que pode ser ou não o dono da sala onde a gente está agora. Quer falar com ele? Quer que eu peça para ele entrar?” Falou num tom cheio de esperança e olhou para a porta como um cachorro perdigueiro ansioso, as orelhas espetadas, pronto para atender a ordem de ir pegar a caça. “Vamos cuidar disso, senhora Bidwell, muito obrigado. E se quisermos falar com a senhora de novo entramos em contato. A senhora foi de grande ajuda.” “Estava pensando em fazer um café para todo mundo antes de ir. Não tem problema nenhum, tem?” Não adiantava alertar que não devia falar com o pessoal do laboratório, nem com a aldeia inteira. Dalgliesh não tinha dúvidas de que sua revista aos banheiros e o guarda-pó manchado de sangue logo seriam do conhecimento de todos. Mas não faria grande dano. O assassino devia saber que a polícia se debruçaria imediatamente sobre a possível significação do falso chamado matinal à sra. Bidwell. Estava lidando com homens e mulheres inteligentes, experientes, mesmo que indiretamente, em investigações criminais, conhecedores das atitudes da polícia, cientes das regras que orientavam cada movimento seu. Ele não tinha dúvidas de que, mentalmente, a maior parte do grupo que estava agora esperando na biblioteca para ser entrevistado acompanhava de perto suas atitudes. E entre eles, ou conhecido por eles, estava um assassino.
9
O superintendente Mercer selecionou dois sargentos com olho para o contraste ou, talvez, com vistas a satisfazer qualquer preconceito que Dalgliesh pudesse ter quanto à idade e experiência de seus subordinados. O sargento Reynolds estava perto do final de seu tempo de serviço, um oficial da velha guarda, de ombros largos, fala lenta, nativo dos pântanos. O sargento Underhill, recentemente promovido, parecia tão jovem que podia ser seu filho. Seu rosto aberto, infantil, com um ar de disciplinado idealismo, era vagamente familiar para Massingham, que desconfiava ter visto aquela cara em um panfleto de recrutamento da polícia, mas que resolveu, em prol da cooperação harmoniosa, dar a Underhill o benefício da dúvida. Os quatro policiais estavam sentados à mesa de conferência na sala do diretor. Dalgliesh dava informações à sua equipe antes de começar as entrevistas preliminares. Como sempre, estava inquieto pela consciência do tempo correndo. Já passava das onze e estava ansioso para terminar com o laboratório e ir ver o velho sr. Lorrimer. As pistas físicas para o assassinato de seu filho podiam estar ali; a pista para o homem em si estaria em outra parte. Mas nem suas palavras nem seu tom traíam impaciência. “Vamos começar supondo que o telefonema para a senhora Bidwell e a morte de Lorrimer estão ligados. Isso significa que o chamado foi feito pelo assassino ou por um cúmplice. Não vamos determinar o sexo da pessoa que telefonou até termos a confirmação de Bidwell, mas provavelmente foi uma mulher, alguém que sabia que o velho senhor Lorrimer devia ter ido para o hospital ontem e que não teve informações sobre o cancelamento do compromisso. Com o velho em casa, o estratagema dificilmente daria certo. Conforme a senhorita Easterbrook apontou, ninguém podia contar com o fato de ele ir para a cama cedo ontem à noite, sem se dar conta de que o filho não havia voltado para casa até o laboratório abrir hoje de manhã.” Massingham disse: “O assassino teria de tomar o cuidado de estar aqui bem cedo hoje de manhã, supondo que não soubesse que seu plano havia fracassado. E supondo, claro, que o telefonema não era um duplo blefe. Isso seria uma bela manobra, que nos faria perder tempo e confundiria a investigação, desviando a suspeita de todos, menos dos que chegaram cedo.” A não ser por um dos suspeitos, podia ser uma manobra ainda mais precisa, pensou Dalgliesh. A chegada da sra. Bidwell à casa de Howarth atendendo ao
chamado é que havia dado ao próprio diretor a desculpa para chegar tão cedo. Imaginou a que horas Howarth devia chegar. Essa seria uma das perguntas a fazer. Disse: “Vamos imaginar que não foi um blefe, que o assassino, ou seu cúmplice, fez o telefonema para atrasar a chegada da senhora Bidwell e a descoberta do corpo. O que ele estaria pretendendo fazer? Plantar ou destruir provas? Arrumar alguma coisa que havia esquecido; limpar a marreta; eliminar provas de qualquer coisa que estivesse fazendo aqui na noite passada; devolver as chaves para o corpo? Mas Blakelock tinha a melhor oportunidade para fazer isso, e não teria precisado levar as chaves embora. Com o telefonema, alguém pode ter tido a chance de recolocar o chaveiro de reserva no armário de segurança. Mas isso teria sido perfeitamente possível sem ter de atrasar a chegada da senhora Bidwell. E é claro que pode ter sido feito.” Underhill disse: “O senhor acha mesmo provável que o telefonema tivesse a intenção de atrasar a descoberta do corpo e dar tempo para o assassino devolver as chaves? É certo que a senhora Bidwell devia ser a primeira a entrar no Departamento de Biologia hoje de manhã para levar os guarda-pós limpos. Mas o assassino não podia contar com isso. O inspetor Blakelock e Brenda Pridmore tiveram ocasião de ir até lá.” Na opinião de Dalgliesh, o assassino devia ter achado que esse risco valia a pena. Pela sua experiência, a rotina matinal de uma instituição quase nunca variava. A menos que Blakelock tivesse a tarefa de checar a segurança do laboratório (e essa era outra pergunta a ser feita), ele e Brenda Pridmore provavelmente teriam dado início ao seu trabalho normal no balcão da recepção. Na seqüência natural dos acontecimentos, a sra. Bidwell é quem teria encontrado o corpo. Qualquer funcionário que fosse ao Laboratório de Biologia antes dela precisaria de uma boa desculpa para explicar sua presença lá, a menos, claro, que trabalhasse no Departamento de Biologia. Massingham disse: “Estranho o guarda-pó que desapareceu, senhor. Pouco provável que tenha sido removido ou destruído para impedir a gente de saber sobre a briga entre Middlemass e Lorrimer. Esse pequeno episódio, pouco edificante, mas intrigante, deve ter corrido pelo laboratório minutos depois de acontecido. A senhora Bidwell deve ter se encarregado disso.” Dalgliesh e Massingham pensavam em até que ponto a descrição que a sra. Bidwell fez da briga, com o máximo de dramaticidade, seria realmente exata. Era evidente que ela havia entrado no laboratório depois do soco e que tinha visto muito pouco. Previdente, Dalgliesh reconhecia ali um fenômeno comum: o desejo
da testemunha, consciente da pobreza de sua prova, de valorizar sua informação para não decepcionar a polícia, mantendo-se o máximo possível dentro dos limites da verdade. Despido dos ornatos da sra. Bidwell, o cerne do duro fato era decepcionantemente pequeno. “Por que eles estavam brigando eu não tenho idéia. Só sei que era por causa de uma mulher, e que o doutor Lorrimer estava zangado porque ela tinha telefonado ao senhor Middlemass. A porta estava aberta e foi isso que eu ouvi quando passei para ir ao toalete das mulheres. Acho que ela telefonou para marcar um encontro e o doutor Lorrimer não gostou. Nunca vi um homem mais branco. Feito a morte. Ele estava com um lenço todo ensanguentado sobre o rosto e os olhos pretos fuzilando. O sr. Middlemass estava vermelho feito um peru. De vergonha eu acho. Bom, não é bem o que a gente está acostumado a ver no Hoggatt, funcionário graúdo batendo no outro desse jeito. Quando um cavalheiro de classe parte para briga de soco quase sempre tem uma mulher no meio. É a mesma coisa com esse crime, se o senhor quer saber.” Dalgliesh disse: “Vamos pegar a versão de Middlemass para o caso. Gostaria agora de dar uma palavrinha com o pessoal do laboratório reunido na biblioteca. Depois, eu e o inspetor Massingham começaremos as entrevistas preliminares: Howarth, as duas mulheres, Angela Foley e Brenda Pridmore, Blakelock, Middlemass, e qualquer dos outros que não tenha um álibi firme. Gostaria que você se encarregasse de organizar a rotina de sempre, sargento. Quero um funcionário sênior em cada departamento enquanto se faz a busca. Eles são os únicos que podem dizer se alguma coisa mudou em seus laboratórios desde ontem. Você vai procurar, sabemos que sem muita esperança, a página que foi arrancada do caderno de Lorrimer, e qualquer indício do que ele estava fazendo aqui ontem à noite, além de trabalhar no crime do fosso de tufo, qualquer sinal do que aconteceu com o guarda-pó que sumiu. Quero uma busca completa em todo o prédio, principalmente em relação aos possíveis meios de entrada e saída do Hoggatt. A chuva da noite passada é um empecilho. As paredes, provavelmente, estão todas lavadas, mas talvez encontre algum indício de que ele saiu pela janela de um dos banheiros. “Vai precisar de uma dupla de homens lá fora, sargento. A terra está bem mole depois da chuva e se o assassino veio de carro ou de moto pode haver sinais de pneu. Qualquer marca que se encontre deve ser comparada com a lista de pneus daqui, não precisamos perder tempo de ir até o Laboratório Metropolitano para isso. Na calçada oposta à entrada, existe um ponto de ônibus. Descubra a que horas passam por aqui. Sempre existe a possibilidade de um passageiro ou o motorista e o cobrador terem notado alguma coisa. Quero que o prédio do
laboratório seja revistado primeiro, e o mais depressa possível, para que o pessoal possa voltar ao trabalho. Estão com um novo homicídio nas mãos e não podemos manter este lugar fechado mais do que o estritamente necessário. Gostaria que tivessem livre acesso amanhã de manhã. “Depois, tem aquela mancha que parece vômito na primeira pia do banheiro dos homens. O cheiro no ralo ainda é bem perceptível. Quero que mande uma amostra disso para o Laboratório Metropolitano com urgência. Talvez seja preciso desparafusar a junta para chegar à base do sifão. Temos de descobrir quem usou o banheiro por último, ontem à tarde, e se alguém notou a mancha na pia. Se ninguém admitir que passou mal durante o dia, nem puder apresentar uma testemunha de que tenha passado mal, vamos querer saber o que cada um comeu no jantar. Pode ser vômito de Lorrimer, portanto vamos precisar de informação sobre o conteúdo de seu estômago. Gostaria também que uma amostra de cabelo e uma de sangue dele fiquem aqui no laboratório. Mas o doutor Blain-Thompson pode cuidar disso.” Reynolds perguntou: “Vamos partir do princípio de que o horário mais crítico é entre seis e quinze, quando ele foi visto vivo no laboratório pela última vez, e meia-noite?” “Por ora. Depois que eu falar com o pai dele e confirmar se ele fez mesmo aquele telefonema às oito e quarenta e cinco, vamos poder reduzir esse horário. E vamos ter uma idéia mais clara da hora da morte depois que o doutor BlainThompson tiver feito a necropsia. Mas a julgar pelo grau de rigor mortis, o doutor Kerrison não está longe da verdade.” Mas Kerrison não precisava passar longe da hora, se fosse o assassino. É sabido que não se pode confiar no rigor mortis e, se quisesse um álibi, Kerrison podia alterar até uma hora no horário da morte sem levantar suspeita. Se o cálculo fosse apertado, ele nem teria necessidade de uma hora. Tinha sido prudente da parte dele chamar o médico da polícia para confirmar sua estimativa da hora da morte. Mas até que ponto o dr. Greene, por mais experiente que fosse em corpos, estaria disposto a discordar da opinião de um patologista forense, a menos que o parecer dele fosse manifestamente perverso? Se Kerrison fosse culpado, teria corrido pouco risco ao chamar Greene. Dalgliesh se pôs de pé. “Certo”, disse. “Vamos em frente?”
10
Dalgliesh não gostava de ter mais de um oficial presente com ele na entrevista preliminar, de forma que Massingham anotava tudo. Registros desnecessários. Sabia que Dalgliesh tinha memória quase absoluta. Mas mesmo assim achava que aquilo era prático. Estavam sentados juntos à mesa de reuniões da sala do diretor, mas Howarth, talvez por se recusar a sentar-se em qualquer lugar que não a sua mesa em sua própria sala, preferiu ficar de pé. Estava encostado à lareira, bem à vontade. De quando em quando Massingham levantava um olhar discreto para observar o perfil dominante e nítido, recortado contra o friso clássico. Havia três chaveiros sobre a mesa: o que foi tirado do corpo de Lorrimer, outro entregue pelo inspetor Blakelock e o chaveiro que o dr. Howarth, ao manipular a fechadura de segurança, havia tirado da caixa no armário. Todos eram idênticos, uma chave Yale e duas chaves de segurança da porta da frente, mais uma chave pequena em uma argola simples de metal. Nenhum deles tinha nome marcado, provavelmente por questões de segurança. Dalgliesh disse: “Estes são os três únicos chaveiros que existem?” “Sim, a não ser pelo outro que fica na delegacia de Guy’s Marsh. Naturalmente, verifiquei, hoje de manhã, se a polícia ainda está com o chaveiro deles. Ele é mantido em um cofre, sob o controle do oficial de plantão, e não foi tocado. É preciso deixar as chaves na delegacia para o caso de o alarme disparar. O que não aconteceu a noite passada.” Dalgliesh já sabia, por Mercer, que o chaveiro da delegacia tinha sido conferido. Perguntou: “E a chave menor?” “É do Depósito de Provas. O sistema é assim: toda prova que chega é protocolada e depois guardada lá, até ser entregue ao chefe do departamento adequado. É responsabilidade dele alocar a prova a um funcionário específico. Além disso, guardamos as provas que já foram examinadas e estão esperando a polícia vir buscar, e as que foram apresentadas à corte durante o julgamento e são devolvidas a nós para serem destruídas. Estas consistem principalmente de drogas. São destruídas aqui, no incinerador, e a destruição é testemunhada por um funcionário do laboratório e um encarregado do caso. O Depósito de Provas também é protegido pelo sistema de alarme eletrônico, mas evidentemente precisamos de uma chave por segurança interna quando o sistema não está ligado.”
“E todas as portas internas do laboratório e a sua sala estavam protegidas ontem à noite, depois que o sistema interno de alarme foi ligado? Isso quer dizer que um intruso só poderia sair sem ser notado pelas janelas do banheiro do último andar. Todas as outras são protegidas por grades ou equipadas com alarme eletrônico?” “Isso mesmo. Ele pode ter entrado também por lá, claro, e isso foi o que mais nos preocupou. Mas não seria uma subida fácil e o alarme teria disparado assim que tentasse ganhar acesso a qualquer sala do laboratório. Logo que vim para cá chegamos a pensar em estender o sistema de alarme até o banheiro, mas não pareceu necessário. Não houve nenhuma invasão do prédio em setenta e tantos anos de existência do laboratório.” “Qual é exatamente o procedimento para trancar o laboratório?” “Só os dois agentes de comunicação com a polícia e Lorrimer, como responsável pela segurança, estavam autorizados a trancar o prédio. Ele ou o agente de plantão tinham a responsabilidade de não permitir que nenhum funcionário permanecesse nas instalações, e que todas as portas internas estivessem fechadas antes de ligar o alarme e a porta da frente ser finalmente fechada para a noite. A ligação do sistema de alarme com a delegacia de polícia de Guy’s Marsh é ativada quer a porta seja fechada por dentro ou por fora.” “E estas outras chaves encontradas no corpo, três na bolsinha de couro e uma chave solta. Reconhece alguma delas?” “Não as chaves da bolsinha. Uma é obviamente a do carro e suponho que as outras duas sejam chaves de casa. A que está solta parece muito com a chave da capela Wren. Se for, eu não sabia que Lorrimer tinha uma cópia. Agora não é mais importante. Mas, pelo que sei, só existe uma chave da capela e ela fica pendurada no quadro da sala do agente de comunicação com a polícia. Não é uma chave de segurança e não estamos especialmente preocupados com a capela. Lá não tem nada de real valor. De vez em quando, arquitetos e sociedades arqueológicas pedem para dar uma olhada, então deixamos que peguem a chave emprestada, assinando um livro no escritório. Não permitimos que entrem no terreno do laboratório para chegar até lá. Têm de usar a entrada dos fundos em Guy’s Marsh Road. O pessoal da empresa de limpeza pega a chave a cada dois meses para limpar e examinar o aquecimento, já que a capela tem de ser mantida relativamente quente no inverno, porque o teto e as sancas são bem delicados, e a srta. Willard vai até lá de quando em quando, para tirar o pó. Quando o pai dela era reitor de Chevisham, às vezes costumava celebrar um rito na capela, e acho que ela tem uma relação sentimental com o lugar.” Massingham saiu, foi até a sala do inspetor-chefe Martin e trouxe a chave da capela. As duas eram iguais. O caderninho amarrado à chave mostrava que havia
sido pedida pela última vez pela srta. Willard na segunda-feira, 25 de outubro. Howarth continuou: “Estamos pensando em transferir a capela para o Departamento de Meio Ambiente quando mudarmos para o prédio novo. O Tesouro sempre fica irritado de ver nossos fundos serem usados em aquecimento e manutenção. Formei um quarteto de cordas e demos um concerto na capela em 26 de agosto, mas fora isso nunca é usada. Creio que vai querer dar uma olhada lá, e vale a pena. É um belo exemplo de arquitetura religiosa do fim do século XVII, embora, na verdade, não tenha sido projetada por Wren, mas por Alexander Fort, que foi muito influenciado por ele.” Dalgliesh perguntou de repente: “Como o senhor se dava com Lorrimer?” Howarth respondeu, tranqüilo: “Não especialmente bem. Respeitava Lorrimer como biólogo, e sem dúvida não tinha nenhuma queixa dele nem no trabalho, nem na cooperação comigo enquanto diretor. Não era um homem de relacionamento fácil e eu não achava que fosse especialmente simpático. Mas era, provavelmente, um dos sorologistas mais respeitados do Serviço Forense e vamos sentir a sua falta. Se tinha um defeito, era a relutância em delegar tarefas. Tinha dois sorologistas em seu departamento para analisar sangue líquido e manchas, amostras de saliva e sêmen, mas invariavelmente assumia ele próprio os casos de assassinato. Além do seu trabalho rotineiro e do comparecimento em tribunais e nas cenas dos crimes, fazia muitas palestras em cursos de treinamento de detetives e de métodos policiais.” O caderno de rascunho de Lorrimer estava em cima da mesa. Dalgliesh empurrou-o para Howarth. “Já viu isto antes?” “O caderno de rascunho do Lorrimer? Já, acho que já tinha notado no departamento dele, ou quando ele estava carregando. Era obsessivamente arrumado e detestava pedaços de papel. Tudo que considerava importante, ele anotava nesse caderno e passava depois para as pastas. Claire Easterbrook me disse que está faltando a última página.” “Por isso é que estamos particularmente ansiosos para saber o que ele estava fazendo aqui a noite passada, além de trabalhar no crime do fosso de tufo. Ele podia ter entrado em qualquer outro laboratório, claro?” “Se desligasse o alarme interno, sim. Acho que quando era o último a ficar no prédio era prática usual dele confiar na chave Yale e na trava da porta da frente. Só verificava as portas internas e ligava o alarme de segurança antes de ir embora. Evidentemente, é importante não disparar o alarme por acidente.”
“Ele teria competência para realizar algum exame em outro departamento?” “Depende do que estivesse tentando fazer. Essencialmente, claro, se ocupava com a identificação e agrupamento de material biológico, sangue, manchas corporais, e o exame de fibras e tecidos animais e vegetais. Mas era um cientista competente no geral e tinha uma ampla gama de interesses, de interesses científicos. Biólogos forenses, principalmente em laboratórios pequenos, como este foi até agora, acabam sendo bem versáteis. Mas ele não tentaria usar os instrumentos mais sofisticados da Seção de Instrumentos, o espectrômetro de massa, por exemplo.” “E o senhor não faz nenhuma idéia do que ele estava fazendo?” “Nenhuma. Sei que entrou nesta sala. Tive de procurar o nome de um cirurgião consultor que forneceu prova para a defesa em um de nossos casos antigos, e deixei o catálogo de médicos em cima da minha mesa quando saí ontem. Hoje de manhã, estava de volta ao seu lugar na biblioteca. Poucas coisas deixavam Lorrimer mais irritado do que as pessoas tirarem livros da biblioteca. Só que, se ele entrou nesta sala ontem à noite, não posso acreditar que tenha sido só para corrigir meu descuido com os livros de referências.” Por fim, Dalgliesh lhe perguntou sobre seus movimentos na noite anterior. “Toquei violino no concerto da aldeia. O reitor tinha de preencher uns cinco minutos do programa e perguntou se o quarteto de cordas podia tocar alguma coisa que ele descreveu como curta e alegre. Os músicos eram eu, um químico júnior, um dos cientistas do Departamento de Exame de Documentos e uma datilógrafa do escritório geral. A senhorita Easterbrook ia tocar o primeiro cello, mas tinha um compromisso para jantar que considerava importante e não pôde participar. Tocamos o Divertimento em ré maior de Mozart e fomos os terceiros do programa.” “O senhor ficou até o final do concerto?” “Era essa a minha intenção. Mas o salão estava incrivelmente quente e pouco antes do intervalo, às oito e meia, eu fugi. Fiquei do lado de fora.” Dalgliesh quis saber o que exatamente havia feito. “Nada especial. Fiquei sentado em um daqueles túmulos durante uns vinte minutos, depois fui embora.” “Viu alguém, ou alguém viu o senhor?” “Vi alguém usando uma fantasia de cavalo (agora sei que era Middlemass substituindo o inspetor-chefe Martin) sair do banheiro dos homens. Ele trotou por ali, bem contente, eu achei, e ficou batendo a queixada perto de um dos túmulos. Depois, apareceu um grupo de pessoas dançando quadrilha, vindo do Moonraker e passando pelo cemitério. Era uma cena incrível. A lua correndo no céu e essas figuras extravagantes com os guizos tocando e os chapéus enfeitados
com sempre-vivas saindo do escuro e avançando para mim na névoa que subia do chão. Era como um filme maluco ou como um balé. Só precisava é de uma música de segunda categoria, de preferência Stravinsky. Eu estava sentado no túmulo a uma certa distância, e acho que não me viram. É claro que eu não me revelei. O cavalo foi com eles e sumiram no salão. Depois, ouvi o violino começar a tocar. Acho que fiquei sentado ali mais uns dez minutos e fui embora. Fui andando pelo dique de Leamings e cheguei em casa por volta das dez. Minha meia-irmã, Domenica, pode confirmar o horário.” Passaram algum tempo discutindo os arranjos administrativos para a investigação. O dr. Howarth disse que ia se mudar para a sala da srta. Foley, colocando seu escritório à disposição da polícia. Não havia possibilidade de o laboratório abrir no restante do dia, mas Dalgliesh adiantou que esperava que fosse possível retomarem o trabalho na manhã seguinte. E antes de Howarth sair, comentou: “Todos com quem conversei respeitavam o doutor Lorrimer como biólogo forense. Mas como era o homem Lorrimer? O senhor, por exemplo, o que sabia dele além de que era um profissional competente?” O dr. Howarth disse, frio: “Nada. Nosso contato era meramente profissional. E agora, se não tem mais nenhuma pergunta, preciso telefonar para o Departamento de Administração e providenciar para que, com toda a excitação dessa saída de cena dele, um tanto espetacular, não esqueçam de me mandar um substituto.”
11
Com a capacidade de recuperação da juventude, Brenda Pridmore logo se refizera do choque de encontrar o corpo de Lorrimer. Recusou-se decididamente a ser levada para casa. Quando chegou o momento de Dalgliesh recebê-la, estava perfeitamente calma e, de fato, ansiosa para contar sua história. Com a sua nuvem de fartos cabelos ruivos e o rosto sardento, queimado de vento, parecia o retrato da saúde bucólica. Mas os olhos cinzentos eram inteligentes, a boca sensível e delicada. Olhou para Dalgliesh, por cima da escrivaninha, como uma criança dócil e totalmente sem medo. Ele adivinhou que durante toda a sua jovem vida ela estava acostumada a receber uma gentileza paternal dos homens e nunca duvidou de que ia ter o mesmo tratamento daqueles desconhecidos oficiais de polícia. Em resposta às perguntas de Dalgliesh, descreveu exatamente o que aconteceu desde o momento de sua chegada ao laboratório aquela manhã até a descoberta do corpo. Dalgliesh perguntou: “Tocou o corpo?” “Não! Ajoelhei ao lado dele, e acho que realmente coloquei a mão em seu rosto. Mas foi só isso. Sabia que ele estava morto.” “E depois?” “Não me lembro. Sei que desci correndo e o inspetor Blakelock estava parado olhando para mim. Não conseguia falar, mas acho que ele viu na minha cara que alguma coisa estava errada. Me lembro de sentar na cadeira que fica do lado da porta da sala do inspetor-chefe Martin e de olhar o retrato do coronel Hoggatt. Depois não me lembro de mais nada até a chegada do doutor Howarth e da senhora Bidwell.” “Acha que alguém podia ter saído do prédio passando por você enquanto estava sentada ali?” “O assassino, o senhor quer dizer? Não vejo como. Sei que não estava muito alerta, mas não desmaiei, nem fiz nenhuma bobagem assim. Tenho certeza que eu teria visto se alguém atravessasse o saguão. E mesmo que ele conseguisse passar por mim, teria dado de cara com o doutor Howarth, não teria?” Dalgliesh quis saber sobre seu emprego no Hoggatt, o quanto conhecia o dr. Lorrimer. Ela tagarelou com uma segurança sem artifício sobre a sua vida, seus colegas, seu emprego fascinante, o inspetor Blakelock que era tão bom para ela e que tinha perdido a única filha, contando com cada frase mais do que sabia. Não que fosse burra, pensou Massingham, só é honesta e inventiva. Pela primeira vez ouviram falar de Lorrimer com afeto.
“Ele era sempre muito gentil comigo, mesmo eu não trabalhando no Departamento de Biologia. Claro que era um homem muito sério. Tinha tantas responsabilidades. O Departamento de Biologia é tremendamente sobrecarregado e ele trabalhava até tarde quase toda noite, conferindo resultados, recuperando o atraso. Acho que ele ficou decepcionado de não ser escolhido para o lugar do doutor Mac. Não que tivesse me falado isso, não ia me dizer uma coisa dessas, não é?, sou novata e ele muito leal.” Dalgliesh perguntou: “Acha que alguém pode ter entendido errado o interesse dele por você, pode ter ficado com um pouco de ciúme?” “Com ciúme do doutor Lorrimer porque ele parava às vezes na minha mesa para falar de trabalho, porque era gentil comigo? Mas ele era velho! Isso é bobagem!” Reprimindo um sorriso ao se inclinar sobre o caderno e rabiscar umas palavras em staccato, Massingham pensou que devia ser mesmo. Dalgliesh perguntou: “Parece que houve algum problema na véspera da morte dele, quando os filhos do Kerrison apareceram no laboratório. Você estava no saguão nesse momento?” “Está falando da hora que ele empurrou a senhorita Kerrison para fora do saguão? Bom, ele não empurrou de verdade, mas foi muito duro com ela. A garota tinha entrado com o irmãozinho e queriam ficar esperando o pai. O doutor Lorrimer olhou para eles como se odiasse os dois de verdade. Não era o jeito dele. Acho que estava sob alguma pressão terrível. Talvez uma premonição da morte. Sabe o que ele me disse quando as provas do fosso de tufo chegaram? Disse que a única morte que a gente tem de temer é a própria. Não acha que é uma coisa incrível de dizer?” “Muito estranho”, Dalgliesh concordou. “E isso me faz lembrar de outra coisa. O senhor disse que qualquer coisa pode ser importante. Bem, ontem de manhã chegou uma carta meio gozada para o doutor Lorrimer. Foi por isso que ele parou no balcão para pegar comigo a correspondência pessoal. Só tinha aquele envelope pardo fininho com o endereço escrito em letras maiúsculas. E era só o nome dele, sem nenhuma qualificação. Esquisito, não é?” “Ele recebia muitas cartas pessoais aqui?” “Não, não muitas. O regulamento diz que toda comunicação tem de ser endereçada para o diretor. No balcão, a gente recebe as provas, mas toda a correspondência vai para o escritório central para ser separada. Nós só entregamos as cartas pessoais, mas não vem muitas dessas.”
No rápido exame preliminar que ele e Massingham haviam feito na sala meticulosamente arrumada de Lorrimer, Dalgliesh não havia encontrado nenhum correspondência pessoal. Perguntou se a srta. Pridmore sabia se o dr. Lorrimer tinha ido almoçar em casa. Ela disse que sim. Então era possível que tivesse levado a carta para lá. Isso podia significar alguma coisa, ou nada. Era só mais um pequeno fato que teria de ser investigado. Agradeceu a Brenda Pridmore e recomendou que voltasse a procurá-lo se lembrasse de qualquer coisa que pudesse ser importante, por menor que fosse. Brenda não estava acostumada a dissimular. Era óbvio que alguma coisa havia lhe ocorrido. Ficou vermelha e abaixou os olhos. A metamorfose de alegre confidente para escolar culpada era pateticamente cômica. Dalgliesh disse, suavemente: “Pois não?” Ela não falou, mas fez um esforço para fitar seus olhos e sacudiu a cabeça. Ele esperou um momento e disse: “A investigação de homicídio nunca é agradável. Como na maioria das coisas desagradáveis da vida, às vezes parece mais fácil não se envolver, não se deixar contaminar. Mas é impossível. Nesse tipo de investigação, esconder uma verdade às vezes significa contar uma mentira.” “Mas imagine se alguém passa uma informação, uma coisa particular, talvez, que ninguém tem o direito de saber, e isso lança uma suspeita sobre a pessoa errada?” Dalgliesh disse, suavemente: “Tem de confiar em nós. Pode tentar fazer isso?” Ela assentiu com a cabeça e sussurrou: “Posso”, mas não disse mais nada. Ele achou que não era o momento de pressionar. Deixou que fosse embora e mandou chamar Angela Foley.
12
Em contraste com a confiança sem artifício de Brenda Pridmore, Angela Foley apresentou um olhar brando e inescrutável. Era uma moça de aparência fora do comum, com o rosto em forma de coração e a testa larga, extremamente alta, a partir da qual o cabelo, fino como de bebê, da cor de trigo maduro, se esticava para trás preso num coque no alto da cabeça. Os olhos eram estreitos, amendoados, e tão fundos que Dalgliesh achou difícil adivinhar a sua cor. A boca era pequena, contraída e pouco comunicativa acima do queixo pontudo. Usava um vestido ocre de lã fina, e por cima, um casaquinho de mangas curtas e estampa complicada, botas curtas de amarrar, um contraste sofisticado e exótico à beleza e simplicidade ortodoxas do conjunto de tricô feito à mão usado por Brenda. Se estava triste pela morte violenta do primo, escondia isso admiravelmente bem. Disse que havia trabalhado como secretária do diretor por cinco anos, primeiro com o dr. MacIntyre e agora com o dr. Howarth. Antes disso, havia sido datilógrafa e estenógrafa no escritório geral do laboratório, tendo se empregado no Hoggatt logo ao sair da escola. Tinha vinte e sete anos. Até dois anos antes, vivera num conjugado em Ely, mas agora repartia o Chalé Sprogg’s com uma amiga. Tinham passado juntas toda a noite anterior. Edwin Lorrimer e o pai eram seus únicos parentes vivos, mas viam-se muito pouco. A família, explicou, como se fosse a coisa mais natural do mundo, nunca tinha sido chegada. “Então sabe muito pouco dos seus negócios particulares, seu testamento, por exemplo?” “Não, nada. Quando minha avó deixou todo o dinheiro para ele, e nos encontramos no escritório do advogado, ele disse que eu seria a sua herdeira. Mas acho que ele só estava se sentindo culpado pelo fato de eu não ter sido lembrada no testamento. Acho que isso não quis dizer nada. E, claro, ele pode ter mudado de idéia.” “Lembra quanto sua avó deixou?” Ela fez uma pausa. Quase, pensou ele, como se estivesse ponderando se a ignorância não soaria mais suspeita do que o conhecimento. E disse: “Acho que eram umas trinta mil libras. Não sei quanto seria agora.” Ele a conduziu breve mas cautelosamente pelos acontecimentos da manhã. Ela e a amiga tinham um carro, um Mini, mas ela geralmente ia de bicicleta para o trabalho. Tinha feito isso essa manhã, chegando ao laboratório na hora de sempre, pouco antes das nove, e ficara surpresa de ver o dr. Howarth com a sra.
Bidwell dentro do carro, chegando pouco antes dela. Brenda Pridmore abriu a porta do laboratório para ela. O inspetor Blakelock vinha descendo a escada e deu a notícia do crime. Ficaram todos juntos no saguão, enquanto o dr. Howarth subia até o Laboratório de Biologia. O inspetor Blakelock telefonou para a polícia e para o dr. Kerrison. Quando o dr. Howarth voltou para o saguão, pediu a ela para ir junto com o inspetor Blakelock conferir as chaves. Ela e o diretor eram os dois únicos membros da equipe que sabiam a combinação do armário de segurança. Ele ficou no saguão, falando com Brenda Pridmore. As chaves estavam dentro da caixa no armário, e ela e o inspetor Blakelock as deixaram lá. Tornou a fechar a trave de segurança e voltou ao saguão. O dr. Howarth tinha entrado em sua sala para telefonar para o Departamento do Interior, dizendo para os demais funcionários esperarem no saguão. Depois, quando a polícia e o dr. Kerrison chegaram, o dr. Howarth a levou de carro com ele para dar a notícia ao velho sr. Lorrimer. Ele a deixou com o velho para voltar ao laboratório. Foi nessa hora que telefonou para a amiga, srta. Mawson. As duas ficaram lá até a sra. Swaffield, a mulher do reitor, chegar com um policial, cerca de uma hora depois. “O que fez no Chalé Postmill?” “Fiz chá e levei para meu tio. A senhorita Mawson ficou na cozinha quase o tempo todo, lavando a louça para ele. A cozinha estava meio desarrumada, principalmente as panelas sujas do dia anterior.” “E como parecia estar o seu tio?” “Preocupado, e bem zangado de ter ficado sozinho. Não acho que ele tenha entendido bem que Edwin morreu.” Parecia não haver muito mais a perguntar. Pelo que sabia, o primo não tinha inimigos. Não fazia idéia de quem podia tê-lo matado. Sua voz, aguda, bastante monótona, a voz de uma menina pequena, sugeria que aquilo não era grande razão de preocupação para ela. Não expressava nenhum sentimento, não elaborava nenhuma teoria, respondia a todas as perguntas com compostura naquela voz aguda, sem entonação. Ele podia ser um visitante casual e sem importância satisfazendo uma curiosidade sobre a rotina do dia de trabalho no laboratório. Sentiu uma antipatia instintiva por ela. Não teve dificuldade para esconder isso, mas achou interessante, porque fazia muito tempo que um suspeito de homicídio não provocava nele uma reação tão física e tão imediata. Mas imaginou se era algum preconceito que fazia surgir naqueles olhos secretos e profundos um lampejo de desdém, de desprezo mesmo, e daria tudo para saber o que estava se passando atrás daquela testa alta, um tanto saliente. Quando ela saiu, Massingham disse: “Estranho o doutor Howarth ter mandado a secretária e Blakelock conferirem
as chaves. Deve ter percebido imediatamente a importância delas. O acesso ao laboratório é fundamental neste caso. Então por que não foi conferir pessoalmente? Ele sabia a combinação.” “Orgulhoso demais para levar uma testemunha e inteligente demais para ficar sem testemunha. E pode ter achado que era mais importante supervisionar as coisas no saguão. Pelo menos, teve o cuidado de proteger Angela Foley. Não mandou que fosse sozinha. Bom, vamos ver o que Blakelock tem a dizer.”
13
Igual ao dr. Howarth, o inspetor Blakelock preferiu não sentar. Parou em posição de sentido, de frente para Dalgliesh diante da escrivaninha de Howarth como um homem que se ocupa de uma tarefa disciplinar. Dalgliesh sabia que não adiantava tentar fazê-lo relaxar. Blakelock havia aprendido a técnica de responder perguntas em seus dias de inspetor-detetive no banco de testemunhas. Forneceu a informação que lhe foi pedida, nem mais, nem menos, os olhos fixos em algum ponto trinta centímetros acima do ombro direito de Dalgliesh. Quando disse seu nome com uma voz firme e sem expressão, Dalgliesh quase achou que ia estender a mão sobre a Bíblia e fazer um juramento. Respondendo ao interrogatório de Dalgliesh, descreveu seus movimentos desde que saiu de sua casa em Ely para vir ao laboratório. Seu relato do encontro do corpo correspondia ao de Brenda Pridmore. Assim que viu a expressão dela ao descer a escada, compreendeu que algo estava errado e subiu correndo para o Laboratório de Biologia, sem esperar que ela falasse. A porta estava aberta e a luz acesa. Descreveu a posição do corpo com tal precisão que parecia que seus rígidos contornos haviam ficado impressos em sua retina mental. Percebera imediatamente que Lorrimer estava morto. Não tocara o corpo a não ser, instintivamente, para enfiar a mão no bolso do guarda-pó e se certificar de que as chaves estavam lá. Dalgliesh perguntou: “Ao chegar no laboratório hoje de manhã o senhor esperou que a senhorita Pridmore alcançasse o senhor antes de entrar. Por que isso?” “Vi que ela vinha se aproximando pela lateral do prédio, depois de guardar a bicicleta, e achei que seria gentil esperar por ela, senhor. Assim não ia precisar abrir a porta de novo para ela.” “E encontrou as três fechaduras e o sistema de segurança interna em boa ordem?” “Sim, senhor.” “Você costuma fazer uma vistoria de rotina assim que chega?” “Não, senhor. Claro que se tivesse encontrado qualquer uma das fechaduras ou o painel de segurança violados, eu teria verificado na hora. Mas estava tudo em ordem.” “Disse antes que o telefonema do pai do doutor Lorrimer foi uma surpresa para o senhor. Não viu o carro do biólogo-chefe quando chegou de manhã?” “Não, senhor. Os funcionários seniores usam a garagem dos fundos.”
“Por que mandou a senhorita Pridmore ver se o doutor Lorrimer estava lá?” “Não mandei, senhor. Ela passou por baixo do balcão antes que eu pudesse impedir.” “Então, pressentiu que havia alguma coisa errada?” “Não exatamente, senhor. Não pensei que ela fosse encontrar o corpo. Mas acho que me ocorreu por um momento que ele podia ter passado mal.” “Que tipo de homem era o doutor Lorrimer, inspetor?” “Era o biólogo-chefe, senhor.” “Isso eu sei. Estou perguntando como ele era como homem e como colega.” “Eu não conhecia bem. Não era de ficar parado no balcão da recepção conversando. Mas eu me dava bem com ele. Era um bom cientista forense.” “Fiquei sabendo que ele estava interessado em Brenda Pridmore. Será que isso não quer dizer que às vezes parava no balcão?” “Não mais que uns minutos, senhor. Gostava de trocar uma palavrinha com a menina de vez em quando. Todo mundo gosta. É bom ter alguém tão novinha no laboratório. Ela é bonita, trabalhadora, entusiasmada, e acho que o doutor Lorrimer queria animar Brenda.” “Nada mais que isso, inspetor?” Impassível, Blakelock respondeu: “Não, senhor.” Dalgliesh então perguntou de seus movimentos na noite anterior. Ficou sabendo que ele e a mulher haviam comprado ingressos para o concerto da aldeia, embora ela estivesse relutante em ir por causa de uma forte dor de cabeça. Sofria de sinusite, o que às vezes a inutilizava. Mas assistiram à primeira parte do programa e saíram no intervalo porque a dor piorou. Ele foi dirigindo até Ely e chegaram em casa às oito e quarenta e cinco. O casal morava em um bangalô moderno nos arredores da cidade, sem vizinhos próximos, e achava pouco provável que alguém tivesse notado o seu retorno. Dalgliesh disse: “Parece ter havido uma relutância geral da parte de todo mundo em ficar até o final do programa. Por que se deu ao trabalho de ir se sabia que sua mulher não estava bem?” “O doutor MacIntyre, nosso ex-diretor, gostava que o pessoal do laboratório participasse das atividades da aldeia, e o inspetor-chefe Martin pensa da mesma forma. Então comprei as entradas e minha mulher achou que era melhor a gente ir. Ela tinha esperança de que o concerto ajudasse a esquecer a dor de cabeça. Mas a primeira metade foi bem barulhenta e ela acabou piorando.” “O senhor foi buscar sua mulher em casa ou ela veio encontrar o senhor aqui?” “Ela chegou mais cedo de ônibus, senhor, e passou a tarde com a senhora Dean, esposa do ministro da capela. São velhas amigas. Fui até lá buscar minha
mulher quando saí do trabalho, às seis horas. Comemos um peixe com fritas antes do concerto.” “É nessa hora que sai diariamente?” “Sim, senhor.” “E quem tranca o laboratório se os cientistas ficam trabalhando até mais tarde?” “Sempre vejo quem ficou, senhor. Se são funcionários comuns, tenho de esperar por eles. Mas isso é raro. O doutor Howarth tem todas as chaves e verifica o sistema de alarme e tranca quando trabalha até mais tarde.” “O doutor Lorrimer normalmente ficava trabalhando depois de você sair?” “Era comum isso acontecer três ou quatro noites por semana, senhor. Mas eu não ficava preocupado quando era o doutor Lorrimer que trancava. Ele era muito consciencioso.” “Ele deixaria alguém entrar no laboratório se estivesse sozinho?” “Não, senhor, a menos que fosse algum funcionário, ou um policial, quem sabe. Mas tinha de ser um policial que ele conhecesse. Não ia deixar entrar alguém que não tivesse o que fazer aqui. O doutor Lorrimer era muito exigente para permitir a entrada de pessoas sem autorização.” “Foi por isso que tentou expulsar a senhorita Kerrison à força anteontem?” O inspetor Blakelock não perdeu a compostura. “Eu não diria que ele expulsou à força, senhor. Ele nem encostou a mão na menina.” “Pode me descrever exatamente o que aconteceu de fato, inspetor?” “A senhorita Kerrison e o irmãozinho vieram encontrar o pai. O doutor Kerrison estava dando uma palestra aquele dia, no curso de treinamento de inspetores. Sugeri à senhorita Kerrison que esperasse sentada, mas o doutor Lorrimer estava descendo a escada nesse momento para verificar se a marreta tinha chegado para exame. Ele viu os garotos e perguntou num tom bem decidido o que estavam fazendo lá. Disse que um laboratório de ciência forense não era lugar para crianças. A senhorita Kerrison respondeu que não ia sair, então ele caminhou em sua direção como se tivesse a intenção de empurrar a menina. Ficou muito branco, com uma expressão muito estranha, eu achei. Ele não encostou um dedo nela, mas acho que a moça ficou com medo que ele fizesse isso. Ela dá impressão de ser muito nervosa. Foi nessa hora que começou a gritar: ‘Odeio você, odeio você’. O doutor Lorrimer virou as costas e subiu a escada. Aí, Brenda tentou consolar a menina.” “E a senhorita Kerrison e o irmãozinho foram embora sem esperar o pai?” “Foram, sim, senhor. O doutor Kerrison desceu uns cinco minutos depois e eu avisei que as crianças tinham vindo mas que já tinham ido embora.” “Não falou nada do incidente?”
“Não, senhor.” “Esse era um comportamento típico do doutor Lorrimer?” “Não, senhor. Mas parecia que ele não andava bem nas últimas semanas. Acho que estava com alguma preocupação.” “E o senhor não faz idéia do tipo de preocupação?” “Não, senhor.” “Ele tinha inimigos?” “Não que eu saiba.” “Então não faz idéia de quem podia desejar a morte dele?” “Não, senhor.” “Depois da descoberta do corpo do doutor Lorrimer, o doutor Howarth mandou o senhor e a senhorita Foley verificarem se o chaveiro estava no armário de segurança. Pode descrever exatamente o que fizeram?” “A senhorita Foley abriu o armário. Ela e o diretor são as duas únicas pessoas que conhecem a combinação.” “E o senhor ficou olhando?” “Fiquei, sim, senhor, mas não prestei atenção nos números. Apenas observei como ela virava e ajustava o disco.” “E depois?” “Ela tirou a caixa de metal e abriu. Não estava trancada. As chaves estavam dentro.” “O senhor ficou atento o tempo todo, inspetor? Tem certeza absoluta de que a senhorita Foley não podia ter recolocado as chaves dentro da caixa sem que o senhor visse?” “Não, senhor. Seria completamente impossível.” “Uma última coisa, inspetor. Quando o senhor subiu para ver o corpo, a senhorita Pridmore ficou aqui sozinha. Ela me disse que está praticamente certa de que ninguém poderia ter se esgueirado para fora do laboratório durante esse período. O senhor já pensou nessa possibilidade?” “Que o assassino pode ter passado a noite inteira aqui? Sim, senhor. Mas não estava escondido na sala do agente de comunicação porque eu teria visto quando fui desligar o alarme interno. É a sala mais próxima da porta da frente. Podia estar na sala do diretor, mas não vejo como podia ter atravessado o saguão e aberto a porta sem a senhorita Pridmore notar, mesmo ela estando em estado de choque. A porta não estava só encostada. Ele teria de girar a chave Yale.” “E o senhor tem certeza absoluta de que o seu chaveiro não ficou longe do senhor a noite passada em nenhum momento?” “Posso garantir, senhor.” “Obrigado, inspetor. Isso é tudo por ora. Podia pedir para o senhor
Middlemass entrar?”
14
O examinador de documentos entrou na sala muito à vontade e seguro, acomodou o corpo comprido na poltrona de Howarth sem esperar convite, cruzou o tornozelo direito sobre o joelho esquerdo e levantou uma sobrancelha interrogativa para Dalgliesh, como uma visita que não espera nada além de tédio do seu anfitrião, mas polidamente decide não revelar isso. Vestia calça escura de cotelê, malha de lã fina ocre de gola rulê, e meias de um roxo brilhante com sapatos esporte de couro. O efeito era de informalidade dégagé, mas Dalgliesh notou que a calça era feita sob medida, a malha de cashmere, e os sapatos feitos à mão. Deu uma olhada na declaração de Middlemass sobre seus movimentos desde as sete horas da noite anterior. Ao contrário dos seus colegas, havia sido escrita com caneta-tinteiro, não esferográfica, numa caligrafia fina, alta, inclinada, que conseguia ser ao mesmo tempo decorativa e praticamente ilegível. Não era o tipo de letra que ele esperava. Disse: “Antes de começarmos, poderia me contar de sua briga com Lorrimer?” “A minha versão, o senhor quer dizer, e não a da senhora Bidwell?” “A verdade, e não especulações.” “Não foi um episódio especialmente edificante, e não posso dizer que tenha ficado orgulhoso. Mas não foi importante. Eu tinha começado o trabalho no caso do fosso de tufo quando ouvi Lorrimer saindo do banheiro. Tinha um assunto particular que queria tratar com ele. Conversamos, discutimos, ele avançou para mim e eu reagi com um soco no nariz dele. Sangrou espetacularmente em cima do meu guarda-pó. Eu me desculpei. Ele saiu.” “Qual o motivo da briga? Uma mulher?” “Dificilmente, comandante, não com Lorrimer. Acho que ele sabia que existiam dois sexos, mas duvido que aprovasse o arranjo. Era um pequeno problema pessoal, algo que aconteceu uns dois anos atrás. Nada a ver com este laboratório.” “Então o quadro é o seguinte: o senhor está se preparando para começar a trabalhar em uma prova de um caso de assassinato, uma prova importante, uma vez que o senhor resolve que deve ser examinada pessoalmente. Porém, não está tão absorto na sua tarefa a ponto de não ouvir passos diante da porta, e identificar que são de Lorrimer. Parece-lhe um momento propício para chamar Lorrimer e discutir uma coisa que aconteceu dois anos atrás, uma coisa que aparentemente o senhor esqueceu nesse ínterim, mas que de repente provoca tanto os dois que acabam tentando se nocautear.”
“Falando assim, parece estranho.” “Falando assim, parece absurdo.” “Acho que é absurdo, de certa forma. Era sobre um primo de minha mulher, Peter Ennalls. Ele se formou com duas notas A em ciências e parecia interessado em entrar para o Serviço. Veio se aconselhar comigo e orientei como devia proceder. Acabou como assistente sob as ordens de Lorrimer no Laboratório Sul. Não deu certo. Não acho que tenha sido inteiramente culpa de Lorrimer, mas ele não tem o dom de se relacionar bem com os funcionários jovens. Ennalls acabou com uma carreira fracassada, um noivado rompido, e o que se descreve com o eufemismo de esgotamento nervoso. Afogou-se. Ouvimos falar do acontecido no Laboratório Sul. É uma instituição pequena e essas coisas se espalham. Não conhecia de fato o rapaz. Minha mulher gostava dele. “Não culpo Lorrimer pela morte de Peter. Um suicida, no fim das contas, é sempre o responsável pela própria destruição. Mas minha mulher acredita que Lorrimer podia ter ajudado mais o rapaz. Telefonei para ela ontem depois do almoço, para explicar que ia chegar tarde e nossa conversa me lembrou que sempre quis falar com Lorrimer a respeito de Peter. Por coincidência, ouvi os passos dele. Então pedi que entrasse e o resultado foi o que a senhora Bidwell sem dúvida dramatizou. Ela, não duvido, vê uma mulher como causa de qualquer desentendimento entre homens. E se de fato falou de uma mulher ou de um telefonema, a mulher é minha e o telefonema esse que acabo de contar.” Parecia plausível, pensou Dalgliesh. Podia até ser verdade. A história de Peter Ennalls teria de ser verificada. Era só mais uma tarefa quando já estavam sobrecarregados e a verdade disso dificilmente estaria em jogo. Mas Middlemass havia falado no tempo presente: “Lorrimer não tem o dom de se relacionar bem com os funcionários jovens”. Haveria, talvez, algum funcionário júnior ali próximo que estaria sofrendo em suas mãos? Mas resolveu deixar passar, por enquanto. Paul Middlemass era um homem inteligente. Ao fazer uma declaração formal pensaria bem no efeito que acabaria tendo sobre sua carreira a atitude de assinar embaixo de uma mentira. Dalgliesh disse: “Segundo esta declaração, o senhor estava fazendo o papel de cavalo na quadrilha do concerto da aldeia ontem à noite. Apesar disso, diz que não pode dar o nome de ninguém que confirme ter visto o senhor. Ao que parece, tanto os dançarinos como a platéia podiam ver o cavalo para lá e para cá, mas não quem estava dentro da roupa. Mas não tinha ninguém quando o senhor chegou ou saiu do salão?” “Ninguém que pudesse me reconhecer. É complicado, mas não dá para resolver. Foi uma coisa esquisita. Eu não danço quadrilha. Normalmente não participo desses rituais rústicos, e concertos de aldeia não são o meu ideal de
entretenimento. Quem gosta disso é o chefe de comunicação com a polícia, o inspetor-chefe Martin, mas ele teve a chance inesperada dessa visita aos Estados Unidos e me pediu para ir no seu lugar. Somos mais ou menos do mesmo tamanho e ele deve ter achado que a roupa ia servir em mim. Precisava de alguém de ombros bem largos e com força suficiente para agüentar o peso da cabeça. Eu devia a ele um favor. Há um mês, ele intercedeu por mim junto à polícia rodoviária quando me pegaram dirigindo acima da velocidade. Agora não podia recusar seu pedido. “Compareci a um ensaio a semana passada, e tudo o que tinha de fazer, como o senhor disse, era ficar para lá e para cá com os dançarinos, depois que eles tivessem feito o número deles, estalando a queixada para a platéia, sacudindo o rabo, e me fazendo de idiota no geral. Isso não importava nem um pouco, uma vez que ninguém me reconheceria. Eu não tinha a intenção de passar a noite toda no concerto, de forma que pedi a Bob Gotobed, que é o chefe do grupo folclórico, para me telefonar do salão uns quinze minutos antes da hora de entrarmos em cena. Nosso número estava marcado para depois do intervalo e ele calculou que isso ia ser por volta das oito e meia. O concerto, como já devem ter lhe dito, começou às sete e meia.” “E o senhor ficou trabalhando no laboratório até receber a chamada?” “Isso mesmo. Meu assistente saiu, me trouxe dois sanduíches de carne com chutney e eu jantei na minha mesa. Bob telefonou às oito e quinze e disse que estavam um pouco adiantados, que era melhor eu ir logo. Os rapazes estavam vestidos e propuseram tomar uma cerveja no Moonraker. O salão não tem licença para vender bebidas, de forma que tudo o que se encontra no intervalo é chá ou café, servidos pelo Grupo de Mães. Saí do laboratório acho que às oito e vinte.” “O senhor diz aqui que no seu entender Lorrimer estava vivo nesse momento.” “Sabemos que ele estava vivo vinte e cinco minutos depois disso, se o pai dele tiver razão sobre o telefonema. Mas na verdade acho que vi Lorrimer. Saí pela porta da frente porque é a única possível, mas tive que dar a volta até a garage que fica nos fundos para pegar meu carro. A luz estava acesa no Departamento de Biologia e vi uma figura vestida de guarda-pó branco passar rapidamente pela janela. Não posso jurar que fosse Lorrimer. Só posso dizer que no momento nunca me ocorreu que não fosse. E eu sabia, claro, que ele devia estar no prédio. É o responsável por trancar tudo e era excessivamente exigente com a segurança. Não teria ido embora sem conferir todos os departamentos, inclusive o Exame de Documentos.” “Como a porta da frente estava trancada?” “Só com a Yale e com uma única volta. Era o que eu esperava. Saí.”
“O que aconteceu quando chegou ao salão?” “Para explicar isso tenho de descrever as esquisitices arquitetônicas do lugar. Foi construído com pouco dinheiro, faz cinco anos, pela construtora da aldeia. E o comitê achou que podia economizar não contratando um arquiteto. Eles simplesmente disseram para o sujeito que queriam um salão retangular com um palco, dois camarins e banheiros numa ponta, e um balcão de recepção, chapelaria e bar do outro. Foi construído por Harry Gotobed e seus filhos. Harry é um dos sustentáculos da capela e um modelo de retidão não conformista. Não aprova o teatro, amador ou não, e acho que houve alguma dificuldade para ele ser convencido a construir um palco. Mas com toda a certeza não quis fazer uma porta de comunicação entre os camarins masculino e feminino. O resultado é que ficamos com um palco com duas salas atrás, cada uma com um banheiro separado. Há uma saída de cada lado, para o cemitério, e duas portas que dão para o palco, mas literalmente não existe um espaço comum atrás do palco. Conseqüentemente, os homens se vestem no camarim da direita e entram no palco por esse lado, e as mulheres pela esquerda. Quem quiser entrar pelo lado oposto tem que sair do camarim, vestindo o figurino, e correr, quem sabe debaixo de chuva, pelo cemitério e, se não tropeçar num túmulo, nem quebrar o pé, nem cair numa cova aberta, finalmente fazer a sua entrada triunfal, mesmo que molhada, pelo lado oposto.” De repente, jogou a cabeça para trás e deu uma gargalhada. Recuperou-se e disse: “Desculpe a risada de mau gosto. É que eu me lembrei da apresentação da sociedade dramática no ano passado. Escolheram uma dessas comédias familiares antiquadas, em que os personagens passam a maior parte do tempo em traje de noite trocando falas irônicas. A jovem Bridie Corrigan do armazém fazia a empregada. Ao passar pelo cemitério, achou que viu o fantasma da velha Maggie Gotobed. Entrou em cena gritando, com a touca torta na cabeça, mas lembrou o papel a ponto de dizer: ‘Minha Nossa Senhora, o jantar está servido!’. O que fez com que o elenco inteiro saísse docilmente do palco, os homens para um lado, as mulheres para o outro. O nosso salão colabora bastante com o interesse das apresentações, sem dúvida.” “Então o senhor entrou no camarim da direita?” “Isso mesmo. Estava um campo de batalha. Lá dentro, o elenco tem de pendurar os casacos de rua, além dos figurinos. Na parede há uma fileira de ganchos e um banco no meio da sala, um espelho bem pequeno, e espaço para apenas duas pessoas fazerem a maquiagem ao mesmo tempo. A piazinha fica no banheiro. Bom, o senhor sem dúvida vai visitar o local. Ontem à noite, estava um verdadeiro caos, com casacos, figurinos, caixas e objetos de cena empilhados no
banco e caindo no chão. A roupa de cavalo estava pendurada em um dos ganchos, então eu vesti.” “Não havia ninguém lá quando chegou?” “Ninguém no camarim, mas dava para ouvir alguém no banheiro. Eu sabia que a maior parte do grupo estava no Moonraker. Quando vesti minha fantasia, a porta do banheiro se abriu e Harry Sprogg saiu. Ele faz parte do grupo. Estava com seu traje de palco.” Massingham anotou o nome: Harry Sprogg. Dalgliesh perguntou: “Vocês conversaram?” “Não. Ele disse alguma coisa, que ficou contente de eu ter podido ir, e que os companheiros estavam no Moonraker. Disse que estava indo lá chamar o grupo. É o único que não bebe, acho que por isso não foi com os outros. Assim que saiu, fui atrás dele até o cemitério.” “Sem falar com ele?” “Não me lembro se disse alguma coisa. Ficamos juntos apenas alguns segundos. Fui atrás dele porque o camarim estava abafado, fedendo mesmo, e a roupa era excepcionalmente pesada e quente. Pensei em esperar lá fora, onde poderia me juntar aos rapazes quando voltassem do pub. E foi o que fiz.” “Não viu ninguém?” “Não, mas isso não quer dizer que não tivesse ninguém lá. A visão fica um pouco restrita através dos olhos de uma cabeça de cavalo. Se houvesse alguém imóvel no cemitério, eu poderia não ter visto. Não estava esperando ver ninguém.” “Quanto tempo ficou lá?” “Menos de cinco minutos. Galopei por ali um pouco, depois experimentei estalar a queixada e balançar o rabo. Tem lá um túmulo especialmente horrendo, um anjo de mármore com uma expressão de enojante piedade e a mão apontando para o céu. Dei uma ou duas voltas ao redor dele e bati a queixada para aquela cara idiota. Sabe Deus por quê! Talvez fosse o efeito conjugado do luar e do próprio lugar. Aí, vi os rapazes vindo do Moonraker pelo cemitério e me juntei a eles.” “Falou alguma coisa com eles?” “Posso ter dito boa-noite ou olá, mas acho que não. De qualquer forma, eles não iam reconhecer a minha voz dentro da cabeça. Levantei a pata direita e fiz uma reverência de brincadeira, depois fui atrás deles. Entramos no camarim juntos. Dava para ouvir a platéia ocupando seus lugares, e aí o diretor de cena apareceu na porta e disse: ‘Tudo certo, rapazes!’. Os seis dançarinos entraram em cena, e ouvi o violino começando a tocar, os pés batendo no chão, e os sinos tocando. Depois a música mudou e esse era o sinal para eu me juntar a eles e
fazer a minha parte. Parte da ação consistia em descer a escada do palco e dar uns pulos no meio da platéia. Parece ter dado certo, a julgar pelos gritos da meninas, mas se o senhor está pensando em perguntar se alguém me reconheceu, não perca tempo. Não vejo como poderiam.” “Mas depois da apresentação?” “Ninguém me viu depois da apresentação. Descemos aos trambolhões a escada do palco para o camarim, mas o aplauso continuou. Então percebi que alguns idiotas da platéia estavam gritando ‘Bis’. Os rapazes de verde não esperaram um segundo convite e subiram de novo, como um bando de operários que ouviu alguém gritar que o bar está aberto. Concluí que o combinado com Bill Martin compreendia uma apresentação, sem bis, e que já tinha me feito de idiota o suficiente para uma noite. Portanto, quando o violino atacou e começaram a bater os pés, eu tirei o figurino, pendurei no prego, e fui embora. Pelo que sei, ninguém me viu sair e não havia ninguém no estacionamento quando abri meu carro. Cheguei em casa antes das dez e minha mulher pode confirmar a hora se estiver interessado. Mas não creio que esteja.” “Seria mais útil se pudesse encontrar alguém para falar pelo senhor entre oito e quarenta e cinco e meia-noite.” “Eu sei. É uma loucura, não é? Se eu soubesse que alguém estava planejando matar Lorrimer durante a noite, teria tomado o cuidado de não colocar a cabeça até um segundo antes de entrar em cena. É uma pena a cabeça do bicho ser tão grande. Ela fica apoiada, como o senhor vai descobrir, no ombro de quem está usando a roupa e não encosta no rosto nem na cabeça. Senão o senhor podia encontrar algum cabelo ou alguma prova biológica de que eu realmente usei aquilo. E não adianta procurar impressões também. Manipulei aquilo durante o ensaio, mas uma dúzia de outras pessoas também. Todo esse incidente, para mim, é um exemplo da loucura que é ser bonzinho. Se eu tivesse dito ao velho Bill o que ele podia fazer com aquele maldito cavalo, antes das oito da noite eu teria chegado no Pantom Arms literalmente são e salvo, e com um belo álibi.” Dalgliesh encerrou a entrevista perguntando sobre o guarda-pó desaparecido. “É de um modelo bem original. Na verdade, tenho meia dúzia desses, todos herdados de meu pai. Os outros cinco ficam no armário aqui, se quiser dar uma olhada. Têm cintura marcada, de algodão branco pesado, abotoados até o pescoço com botões em relevo do Corpo Dentário do Exército Real. Ah, e não têm bolsos. Meu velho achava que bolsos eram anti-higiênicos.” Massingham pensou que um guarda-pó já manchado com o sangue de Lorrimer podia ser considerado pelo assassino uma roupa especialmente útil. Como um eco de seus pensamentos, Middlemass disse: “Se for encontrado, não creio que eu possa dizer com segurança quais são as
manchas provocadas pela nossa briga. Havia uma mancha de uns dez por cinco centímetros no ombro direito, mas podia haver outras. Os sorologistas, porém, devem ser capazes de dar alguma idéia da idade comparativa das manchas.” Isso se o guarda-pó um dia for encontrado, Dalgliesh pensou. Não seria fácil destruí-lo completamente. Mas o assassino, se tivesse levado a roupa, teria tido a noite inteira para se livrar da prova. Perguntou: “E o senhor jogou esse guarda-pó especificamente no cesto de roupa suja do banheiro masculino logo depois da briga?” “Era o que eu pretendia fazer, mas mudei de idéia. A mancha não era grande e as mangas estavam completamente limpas. Vesti o guarda-pó de novo e só joguei no cesto quando me lavei antes de ir embora.” “Lembra qual pia usou?” “A primeira, mais próxima da porta.” “A pia estava limpa?” Se Middlemass se surpreendeu com a pergunta, escondeu isso bem. “Limpa o possível, depois de um dia de uso. Eu me lavo bastante, de modo que a pia estava bem limpa quando saí. E eu também.” Na cabeça de Massingham, a imagem tomou forma com incrível clareza: Middlemass de guarda-pó ensangüentado bem curvado sobre a pia, as duas torneiras totalmente abertas, a água jorrando e gorgolejando pelo ralo, água manchada de rosa pelo sangue de Lorrimer. Mas quanto ao horário? Se o velho Lorrimer havia mesmo falado com o filho às oito e quarenta e cinco, então Middlemass estava limpo, pelo menos para a primeira parte de noite. Então, visualizou outra cena: o corpo de Lorrimer estatelado, o som ardido do telefone, a mão enluvada de Middlemass pegando o aparelho. Mas será que o velho Lorrimer realmente podia tomar a voz de outro pela do filho? Quando o examinador de documentos saiu, Massingham disse: “Pelo menos, ele tem uma pessoa para confirmar a história. O doutor Howarth viu o cavalo trotando em volta do túmulo de anjo no cemitério. Dificilmente os dois teriam tempo de inventar essa história hoje de manhã. E não vejo de que outra forma Howarth podia ter sabido disso.” Dalgliesh disse: “A menos que tenham inventado a história no cemitério ontem de noite. Ou a menos que fosse Howarth, não Middlemass, dentro da roupa de cavalo.”
15
“Eu não gostava dele, tinha medo dele, mas não matei Lorrimer. Sei que todo mundo vai pensar que fui eu, mas não é verdade. Não sou capaz de matar coisa alguma. Nem mesmo um animal, quanto mais um homem.” Clifford Bradley tinha resistido bastante bem à longa espera pelo interrogatório. Não era incoerente. Tentou comportar-se com dignidade. Mas havia trazido consigo para dentro da sala o ácido contágio do medo, entre todas as emoções a mais difícil de esconder. Todo seu corpo tremia, as mãos inquietas abrindo e fechando no colo, a boca trêmula, os olhos ansiosos, piscando. Não era uma figura impressionante e o medo o tornava lastimável. Seria um assassino ineficiente, Massingham pensou. Olhando o rapaz, sentia um pouco daquela vergonha instintiva dos saudáveis diante dos doentes. Era fácil imaginar aquele homem vomitando na pia, vomitando sua culpa e terror. Era menos fácil visualizá-lo arrancando a página do caderno, destruindo o guarda-pó, organizando o telefonema matinal para a sra. Bidwell. Dalgliesh disse, suavemente: “Ninguém está acusando o senhor. Deve estar ciente do sistema judiciário para saber que eu não estaria conversando com o senhor assim se fosse lhe advertir. Disse que não matou Lorrimer. Faz idéia de quem fez isso?” “Não. Por que deveria? Não sabia nada dele. Só sei é que estava em casa com minha mulher ontem à noite. Minha sogra veio jantar e fui com ela até o ponto para pegar o ônibus da sete e quarenta e cinco para Ely. Depois voltei direto para casa, e fiquei por lá a noite inteira. Minha sogra telefonou por volta das nove horas para dizer que tinha chegado bem. Não falou comigo porque eu estava no banho. Minha mulher me contou. Mas Sue pode confirmar que, a não ser para levar a mãe dela até o ônibus, eu não saí de casa.” Bradley admitiu que não sabia que a internação hospitalar do sr. Lorrimer havia sido adiada. Achava que devia estar fora do laboratório, talvez no banheiro, quando o velho telefonou. Não sabia do telefonema matinal para a sra. Bidwell, nem da página arrancada do caderno de Lorrimer, nem do guarda-pó desaparecido de Paul Middlemass. Questionado sobre seu jantar de quarta-feira, disse que tinha comido carne enlatada temperada com curry, acompanhado de arroz e ervilha. Depois, comeu um pavê, que explicou defensivamente ter sido feito com bolo amanhecido e creme. Massingham disfarçou um arrepio quando anotou esses detalhes. Ficou contente ao ver Dalgliesh dispensar Bradley. Parecia não haver mais nada de importante a se saber dele naquele estado, nada mais a
se saber de ninguém do laboratório. Estava ansioso para ir até a casa de Lorrimer, e ouvir o que o pai dele tinha a dizer. Mas antes de saírem, o sargento Reynolds tinha alguma coisa a declarar. E quase não conseguia controlar a excitação da voz. “Encontramos marcas de pneu, senhor, na metade do caminho, no meio dos arbustos. Para mim, parecem bem frescas. Colocamos uma proteção até o fotógrafo chegar e depois vamos fazer um molde de gesso. É difícil ter certeza antes de comparar com o catálogo, mas para mim parece que os dois pneus de trás eram um Dunlop e um Semperit. Combinação bem esquisita, deve nos ajudar a descobrir o carro.” Era uma pena, Dalgliesh pensou, o superintendente Mercer ter dispensado os fotógrafos. Mas não era de admirar. Dada a atual pressão de trabalho na polícia, ficava difícil justificar a permanência indefinida de homens ociosos. E pelo menos os homens das digitais estavam lá. Perguntou: “Já conseguiu entrar em contato com o senhor Bidwell?” “O capitão Massey disse que ele está no campo plantando beterrabas. Mas vai dar o recado quando o senhor Bidwell voltar para o pastejo.” “Para o quê?” “O pastejo, senhor. É a parada para comer que se faz por aqui por volta das dez e meia ou onze.” “Fico contente de o capitão Massey ter um bom senso de prioridade entre agricultura e assassinato.” “Estão atrasados com o trabalho na terra, senhor, mas o capitão me garantiu que o senhor Bidwell irá até a delegacia de Guy’s Marsh hoje de tarde, assim que terminar o trabalho.” “Se não aparecer, é melhor você desenterrar o sujeito, nem que precise emprestar o trator do capitão Massey para isso. Esse telefonema é importante. Agora vou conversar com os cientistas seniores na biblioteca e explicar que quero que estejam presentes em seus departamentos quando você fizer a busca interna. Os outros podem ir para casa. Vou dizer a eles que espero terminar a revista até o fim do dia. Deve ser possível reabrir o laboratório amanhã de manhã. O inspetor Massingham e eu vamos ver o pai do doutor Lorrimer no Chalé Postmill. Se surgir um fato novo pode falar conosco lá ou pelo serviço de rádio de Guy’s Marsh.” Menos de dez minutos depois, com Massingham à direção do Rover da polícia, estavam a caminho da casa de Lorrimer.
 
 
 
LIVRO TRÊS
 
Um homem experimental
1
O Chalé Postmill ficava três quilômetros ao norte da aldeia, no cruzamento das Stoney Piggott Road e Tenpenny Lane, onde a rua subia suavemente, de forma tão imperceptível que Dalgliesh mal podia acreditar que estava em uma rampa até o carro parar na margem gramada. Ao virar para fechar a porta, viu a aldeia estendida ao lado da estrada lá embaixo. Debaixo de céu turbulento de pintura, com suas nuvens brancas, cinzentas e roxas se compactando no azul-pálido do alto, e o sol correndo em manchas pelos campos e cintilando nos telhados e janelas, aquilo parecia um isolado posto avançado de fronteira, mas acolhedor, próspero e seguro. A morte violenta podia vagar ao leste pelos pântanos escuros, mas decerto não ali, debaixo daqueles domésticos tetos. O Laboratório Hoggatt ficava escondido por seu cinturão de árvores, mas o prédio novo era imediatamente identificável, os tocos de concreto, fossos e paredes semiconstruídas parecendo a ordeira escavação de alguma cidade há muito sepultada. O chalé, uma construção baixa de tijolos, com a frente guarnecida de madeira branca, exibia o topo redondo e as pás do moinho visíveis na parte de trás. A construção ficava afastada da rua por um largo fosso. Uma ponte de pranchas de madeira e um portão pintado de branco levavam ao caminho e à porta de ferrolho. A primeira impressão de melancólica negligência, produzida talvez pelo isolamento e pelo despojamento das paredes e janelas externas, resultava ilusória num segundo olhar. O jardim da frente tinha aquele aspecto descabelado e crescido do outono, mas as roseiras dos dois canteiros circulares de cada lado do caminho estavam devidamente podadas. O piso de cascalho não tinha ervas daninhas, a pintura da porta e das janelas brilhava. Uns sete metros adiante, duas pranchas largas e sólidas atravessavam o fosso, levando a um pátio pavimentado com pedras e uma garage de tijolos. Lá havia um velho e gasto Mini vermelho estacionado ao lado de uma viatura da polícia. A partir da pilha de revistas paroquiais, de uma outra menor que parecia de programas do concerto, e de um buquê de crisântemos desgrenhados e folhagem de outono no banco de trás, Dalgliesh deduziu que o reitor, ou mais provavelmente sua mulher, já estava no chalé, provavelmente a caminho de ajudar na decoração da igreja, embora quinta-feira fosse um dia meio incomum para essa tarefa eclesiástica. Mal tinha se virado desse exame no carro da reitoria, quando a porta do chalé se abriu e uma mulher irrompeu pelo caminho em sua direção. Ninguém que fosse nascido e criado em uma reitoria teria qualquer
dúvida de que ali estava a sra. Swaffield. Parecia de fato o protótipo da esposa de um reitor campestre, os seios grandes, alegre, cheia de energia, exsudando a segurança ligeiramente intimidante de uma mulher acostumada a identificar autoridade e competência ao primeiro olhar, fazendo disso uso imediato. Vestia saia de tweed coberta com um avental florido de algodão, conjunto tricotado à mão, sapatos rústicos e meias de lã. O chapéu de feltro que parecia uma torta, a copa perfurada por um alfinete de aço, jogado displicentemente sobre a testa alta. “Bom dia. Bom dia. Vocês devem ser o comandante Dalgliesh e o inspetor Massingham. Winifred Swaffield. Entrem, por favor. O velho cavalheiro está lá em cima, se trocando. Insistiu em vestir o terno quando soube que vocês estavam a caminho, mesmo eu garantindo que não era preciso. Vai descer num minuto. Acho que vocês vão conversar mais à vontade na saleta da frente. Este é o policial Davis, mas é claro que já devem conhecer. Ele me disse que foi mandado aqui para garantir que ninguém entre no quarto do doutor Lorrimer e para não deixar nenhuma visita incomodar o velho. Bom, até agora não veio ninguém a não ser um repórter e eu logo me livrei dele, portanto está tudo bem. Mas o policial realmente me ajudou bastante na cozinha. Eu só estava fazendo um almocinho para o senhor Lorrimer. Sopa e um omelete, apenas, mas parece que não tem muita coisa mais na despensa, a não ser enlatados e ele vai precisar disso no futuro. Ninguém vai querer vir carregada da reitoria como uma assistencialista da era vitoriana. “Simon e eu queríamos que voltasse já para a reitoria, mas ele parece que não quer ir, e a gente realmente não deve pressionar os outros, principalmente os mais velhos. E talvez seja melhor assim. Simon está com essa gripe de dois dias, por isso não veio até aqui, e não queremos que o velho pegue. Mas não podemos deixar que fique aqui sozinho de noite. Achei que podia chamar a sobrinha dele, Angela Foley, mas ele disse que não. Então estou com esperança que Millie Gotobed, do Moonraker, possa dormir aqui hoje, e amanhã pensamos no que fazer. Mas eu não devia ficar atrapalhando vocês com as minhas preocupações.” Ao final desse discurso, Dalgliesh e Massingham se viram empurrados para a sala da frente. Com o som de seus passos na sala estreita, o policial Davis surgiu do que se supunha ser a cozinha, esticou-se em posição de sentido, cumprimentou, corou e olhou Dalgliesh com uma mistura de súplica e ligeiro desespero antes de tornar a desaparecer. O cheiro de sopa feita em casa flutuava apetitosamente pela porta. A saleta, abafada e com forte cheiro de cigarro, era adequadamente mobiliada, mas dava a impressão de triste desconforto, um atravancado repositório de lembranças do envelhecimento e seus tristes consolos. A lareira havia sido
fechada com painéis de madeira e um aquecedor a gás antiquado chiava num fogo feroz e incômodo em cima do sofá revestido de tapeçaria, com duas manchas engorduradas marcando o local onde inúmeras cabeças se encostaram. Havia uma mesa quadrada de carvalho com pernas arqueadas entalhadas e quatro cadeiras combinando, com assentos de vinil, e um grande aparador, encostado na parede à frente da janela, decorado com cacos de jogos de chá há muito quebrados. No aparador havia duas garrafas de Guinness e um copo usado. À direita do aquecedor, uma alta bergère e ao lado dela uma mesinha de vime com um abajur caindo aos pedaços, uma bolsa de fumo, um cinzeiro com uma foto do píer de Brighton, e um tabuleiro de xadrez com as peças colocadas, cheio de restos de comida ressecada e poeira acumulada. A alcova à direita do fogo era ocupada por um grande aparelho de televisão. Acima dele, um par de estantes com uma coleção de romances populares de tamanho e encadernação idênticos, publicados por um clube do livro do qual o sr. Lorrimer parece ter sido associado por um breve período. Pareciam colados uns nos outros, nunca abertos, nem lidos. Dalgliesh e Massingham sentaram-se no sofá. A sra. Swaffield se encarapitou muito ereta na beira da
 
bergère, sorrindo para eles, animadora, enchendo a sala triste com o clima tranqüilizador de geléia feita em casa, lições de catecismo bem conduzidas e coros femininos cantando o “Jerusalém” de Blake. Os dois homens se sentiram imediatamente em casa. Não que ela não tenha conhecimento dos punhos puídos e esfarrapados da vida, pensou Dalgliesh. Ela simplesmente passa isso a ferro com mão firme, e caprichosamente remenda tudo. Dalgliesh perguntou: “Como está ele, senhora Swaffield?” “Surpreendentemente bem. Fica falando do filho no presente, o que é um pouco desconcertante, mas acho que sabe que Edwin está morto. Não estou querendo insinuar que o velho está caduco. Absolutamente. Mas às vezes é difícil saber o que os mais velhos estão sentindo. Deve ter sido um choque terrível, claro. Que horror, não é? Eu acho que algum criminoso daquelas gangues de Londres deve ter invadido o laboratório para roubar alguma prova. Estão dizendo na aldeia que não havia sinal de arrombamento, mas um assaltante realmente decidido consegue entrar em qualquer lugar, foi o que sempre me disseram. Sei que o padre Gregory está passando maus bocados com arrombamentos na St. Mary, em Guy’s Marsh. A caixa de esmolas foi pilhada duas vezes e roubaram duas almofadas de genuflexório, aquelas que a Associação de Mães tinha bordado especialmente para comemorar o aniversário de cinqüenta
anos. Só Deus sabe para que alguém ia querer uma coisa dessas. Felizmente nunca tivemos esse problema por aqui. Simon ia detestar ter de trancar a igreja. Chevisham sempre foi uma aldeia muito ordeira, por isso é que o crime é tão chocante.” Dalgliesh não ficou surpreso de a aldeia já saber que não houvera arrombamento no laboratório. Provavelmente um dos funcionários, com a desculpa de precisar telefonar para casa para dizer que não ia almoçar e ávido por revelar a notícia excitante, não tenha sido discreto. Mas seria inútil tentar identificar o culpado. Em sua experiência, as notícias se infiltravam numa comunidade de aldeia por um processo de osmose verbal e precisaria ser muito ousado para tentar controlar ou eliminar a misteriosa difusão. A sra. Swaffield, como toda esposa de pároco que se preza, havia sido, sem dúvida, uma das primeiras a saber. Dalgliesh disse: “É uma pena a senhorita Foley e o tio, aparentemente, não se darem bem. Se ele pudesse passar um tempo com ela isso resolveria pelo menos o seu problema imediato. Ela e a amiga estavam aqui quando a senhora chegou hoje de manhã, não é?” “Estavam, as duas. O doutor Howarth também veio pessoalmente com Angela para dar a notícia, o que achei muito delicado da parte dele, e depois deixou Angela aqui quando voltou para o laboratório. Não podia ficar afastado por muito tempo, claro. Acho que Angela telefonou para a amiga, que veio na mesma hora. Depois o policial chegou e eu vim logo em seguida. Não havia por que as duas ficarem depois que eu cheguei, e o doutor Howarth estava ansioso para manter a maior parte da equipe no laboratório, esperando pelo senhor.” “Ele não tem mais nenhum parente nem amigo próximo, pelo que estou sabendo.” “Nenhum, acho. Eles eram muito discretos. O velho senhor Lorrimer não ia à igreja nem participava das atividades da aldeia, então nunca chegamos a nos conhecer de verdade. Sei que as pessoas esperam que o pároco saia batendo na porta das casas, arrancando as pessoas, mas Simon não acredita que isso seja muito bom, e devo dizer que acho que tem razão. O doutor Lorrimer, claro, freqüentava a St. Mary em Guy’s Marsh. O padre Gregory talvez possa lhe contar alguma coisa sobre ele, apesar de eu achar que a sua participação na vida da igreja não era muito ativa. Costumava pegar a senhorita Willard na Velha Reitoria para ir com ele. Talvez valha a pena trocar uma palavrinha com ela, se bem que parece pouco provável que os dois fossem próximos. Imagino que ele dava carona à senhorita Willard mais por sugestão de padre Gregory do que por vontade própria. Ela é uma mulher estranha, dificilmente a pessoa adequada para cuidar de crianças, no meu entender. Mas aí está quem vocês realmente
querem ver.” A morte, pensou Dalgliesh, oblitera as semelhanças familiares, assim como apaga a personalidade; não há afinidade entre vivos e mortos. O homem que entrou na sala, arrastando um pouco os pés, mas ainda ereto, fora um dia tão alto quanto o filho; os ralos cabelos grisalhos escovados para trás de uma testa alta ainda mostravam uns fios do preto que haviam sido um dia; os olhos úmidos, debaixo de pálpebras enrugadas, eram também escuros. Mas não havia parentesco com aquele corpo rígido no chão do laboratório. A morte, separando os dois para sempre, havia roubado deles até aquela semelhança. A sra. Swaffield fez as apresentações com uma voz decididamente animadora, como se eles todos tivessem ficado surdos. Depois, com muito tato, desapareceu, murmurando algo sobre a sopa na cozinha. Massingham levantou-se para ajudar o velho a se sentar, mas o sr. Lorrimer o afastou com um gesto seco de mão. Por fim, depois de alguma hesitação, como se a saleta não lhe fosse familiar, acomodou-se no que era evidentemente o seu lugar de sempre, a velha poltrona de encosto alto à direita do fogo, de onde encarou Dalgliesh com firmeza. Ali sentado, muito ereto, com seu terno azul-marinho antiquado e mal cortado, com um forte cheiro de naftalina, e que agora pendia solto de seus ossos encolhidos pela idade, parecia patético, quase grotesco, mas não despido de dignidade. Dalgliesh imaginou por que teria se dado ao trabalho de trocar de roupa. Seria um gesto de respeito pelo filho, a necessidade de formalizar a dor, uma inquieta urgência de encontrar algo para fazer? Ou seria alguma convicção atávica de que a autoridade estava a caminho e tinha de receber uma demonstração de deferência? Dalgliesh lembrou do enterro de um jovem detetive morto no cumprimento do dever. O que havia achado quase intoleravelmente patético não havia sido a beleza sonora do serviço funerário, nem as crianças pequenas andando de mãos dadas atrás do caixão do pai. Havia sido a recepção posterior na pequena delegacia, a bebida e a comida feita em casa cuidadosamente planejada, que a viúva, mesmo não tendo as condições financeiras, havia providenciado para conforto dos colegas e amigos do marido. Talvez tivesse sido confortador para ela no momento, ou a consolasse em memória. Talvez o velho sr. Lorrimer também se sentisse melhor por ter se dado àquele trabalho. Acomodando-se a alguma distância de Dalgliesh no sofá incrivelmente empelotado, Massingham abriu o caderno. Graças a Deus o velho estava calmo. Nunca se pode prever como os parentes recebem uma coisa dessas. Dalgliesh, ele sabia, era famoso por saber lidar com os aflitos. Suas condolências podiam ser curtas, quase formais, mas pelo menos soavam sinceras. Ele tinha sempre certeza de que a família ia querer colaborar com a polícia, mas nunca que haveria
gratidão. Não se valia da excepcional interdependência psicológica que quase sempre sustentava o detetive e a família da vítima, e que era tão fatalmente fácil de explorar. Não fazia promessas ilusórias, nunca intimidava os fracos, nem se abandonava ao sentimentalismo. E mesmo assim as pessoas parecem gostar dele, pensou Massingham. Sabe Deus por quê. Às vezes, é tão frio que mal parece humano. Ficou olhando Dalgliesh se levantar quando o velho sr. Lorrimer entrou na sala, mas não fez nenhum gesto para ajudá-lo a se sentar. Massingham olhou brevemente a cara do chefe e viu aquele ar conhecido de distante interesse especulativo. Imaginou o que, se é que alguma coisa, seria capaz de levá-lo a sentir piedade espontânea. Lembrou de outro caso em que haviam trabalhado juntos um ano antes, quando ainda era sargento-detetive: a morte de uma criança. Dalgliesh tinha olhado os pais com esse mesmo olhar de calma avaliação. Mas trabalhara dezoito horas por dia durante um mês para resolver o caso. E seu livro de poemas seguinte continha uma poesia excepcional sobre uma criança assassinada que ninguém na Yard, mesmo os que diziam ter entendido, teve a temeridade de sequer mencionar a seu autor. Ele disse: “Como a senhora Swaffield deve ter explicado, meu nome é Dalgliesh e este é o inspetor Massingham. Acredito que o doutor Howarth avisou que viríamos. Sinto muito por seu filho. Acha que pode responder algumas perguntas?” O sr. Lorrimer apontou a cozinha. “O que ela está fazendo aqui?” A voz era surpreendente: aguda e com um traço da agressividade da idade, mas excepcionalmente forte para um velho. “Senhora Swaffield? Acho que está preparando a sua sopa.” “Pelo cheiro, deve ter usado as cebolas e cenouras que estavam na cesta de verduras. Edwin sabe que não gosto de cenoura na sopa.” “Ele é que cozinhava para o senhor?” “Ele é que cozinha quando não está em alguma cena do crime. Eu não como muito ao meio-dia, mas ele me deixa alguma coisa para esquentar, geralmente um ensopado da noite anterior ou um pouco de peixe com molho. Não deixou nada hoje porque não estava em casa ontem à noite. Tive de fazer meu próprio café-da-manhã. Fiquei com vontade de comer bacon, mas achei melhor deixar para o caso de ele querer fazer hoje à noite. Ele sempre prepara ovos com bacon quando chega tarde.” Dalgliesh perguntou: “Senhor Lorrimer, o senhor tem alguma idéia de por que alguém haveria de querer matar seu filho? Ele tinha inimigos?” “Por que teria inimigos? Não conhecia ninguém, a não ser o pessoal do
laboratório. Lá, todo mundo tinha muito respeito por ele. Meu filho mesmo me disse. Por que alguém haveria de querer fazer mal a ele? Edwin vivia para o trabalho.” Proferiu a última frase como se fosse uma expressão original pela qual sentia grande orgulho. “O senhor telefonou para ele no laboratório ontem à noite, não telefonou? A que horas foi isso?” “Oito e quarenta e cinco. A tevê apagou. Não piscou, nem fez aquele ziguezague que faz às vezes. Edwin me ensinou a arrumar o botão de trás. Mas ela simplesmente apagou e ficou só uma rodinha de luz e isso apagou também. Não pude ver as notícias das nove da noite, então telefonei para Edwin e pedi que mandasse o técnico. É uma tevê alugada, e eles têm de mandar o técnico a qualquer hora, mas sempre encontram alguma desculpa. Mês passado, quando telefonei, levaram dois dias para vir.” “Lembra do que seu filho disse?” “Ele falou que não adiantava ligar tarde da noite. Que ia cuidar disso logo de manhã, antes de ir para o trabalho. Mas é claro que não cuidou. Não voltou para casa. A tevê ainda está quebrada. Eu não gosto de telefone. É o Edwin que sempre cuida dessas coisas. Acha que a senhora Swaffield podia ligar?” “Tenho certeza que sim. Quando telefonou, ele disse alguma coisa, que estava esperando alguma visita?” “Não. Parecia que estava com pressa, que não tinha gostado de eu telefonar. Mas ele sempre me disse para ligar para o laboratório se tivesse algum problema.” “E ele não mencionou mais nada, além de dizer que ia chamar o técnico da tevê de manhã?” “O que mais podia dizer? Não era de ficar conversando ao telefone.” “O senhor também ligou para ele no laboratório para falar da sua consulta no hospital?” “Liguei. Eu tinha de ir para o Addenbrooke ontem à tarde. Edwin ia me levar. Por causa da minha perna, sabe? É psoríase. Vão experimentar um tratamento novo.” Ele fez menção de enrolar a barra da calça. Dalgliesh disse depressa: “Tudo bem, senhor Lorrimer. Quando o senhor ficou sabendo que o leito afinal não estaria disponível?” “Por volta das nove horas ele ligaram. Ele tinha acabado de sair. Então telefonei para o laboratório. Sei o número do Departamento de Biologia, claro. É onde ele trabalha. A senhorita Easterbrook atendeu e disse que Edwin estava no hospital cuidando de uma autópsia, mas que dava o recado para ele assim que
chegasse. No Addenbrooke disseram que provavelmente vão mandar me buscar na terça-feira que vem. Quem é que vai me levar agora?” “Tenho certeza que a senhora Swaffield vai dar um jeito, ou quem sabe sua sobrinha possa ajudar. Gostaria que ela ficasse com o senhor?” “Não. O que ela pode fazer? Esteve aqui hoje de manhã com aquela amiga dela, aquela mulher que escreve. Edwin não gosta de nenhuma das duas. A amiga, senhorita Mawson, não é esse o nome dela?, andou fuçando lá em cima. Eu escuto muito bem. Ouvi direitinho quando ela subiu. Já ia subir a escada, quando ela apareceu. Disse que tinha ido ao banheiro. Por que estava com a luva de lavar louça se tinha ido ao banheiro?” Por quê?, pensou Dalgliesh. Sentiu um espasmo de irritação porque o policial Davis não chegara mais cedo. Era perfeitamente natural que Howarth viesse dar a notícia junto com Angela Foley e deixasse a moça com o tio. Alguém tinha de ficar com ele e quem poderia ser mais adequada que a sua única parente? Provavelmente, era também normal que Angela Foley pedisse a ajuda da amiga. Provavelmente as duas estariam interessadas no testamento de Lorrimer. Bom, isso também era natural. Massingham se mexeu no sofá. Dalgliesh sentiu a ansiedade dele para subir ao quarto de Lorrimer. Sentia a mesma coisa. Mas livros e papéis, esses tristes detritos da vida eliminada, podiam esperar. A testemunha talvez não se mostrasse tão comunicativa na próxima vez. Perguntou: “O que o seu filho fazia, senhor Lorrimer?” “Depois do trabalho, o senhor quer saber? Ele fica no quarto, geralmente. Lendo, acho. Tem uma bela biblioteca lá em cima. É um intelectual, Edwin. Não liga muito para a televisão, então eu fico sentado aqui. Às vezes, dá para ouvir o toca-discos. E tem o jardim quase todo fim de semana, lavar o carro, cozinhar, fazer compra. Tem uma vida bem ocupada. E não tem muito tempo. Fica no laboratório até as sete quase toda noite, às vezes mais.” “E amigos?” “Não, ele não é de muitos amigos. Nós somos bem reservados.” “E não saía nos fins de semana?” “Para onde iria? E o que ia acontecer comigo? Além disso, tem as compras. Quando não está em alguma cena de crime a trabalho, ele me leva para Ely sábado de manhã e fazemos o supermercado. Depois almoçamos na cidade. Gosto desses passeios.” “Quem costumava telefonar para ele?” “Do laboratório? Só o agente de comunicação com a polícia liga para dizer que ele tem de estar na cena do crime. Às vezes, no meio da noite. Mas ele nunca me acorda. Tem uma extensão do telefone no quarto dele. Só me deixa um bilhete e geralmente está de volta a tempo de me trazer uma xícara de chá às sete horas.
Hoje ele não fez isso, claro. Por isso que eu liguei para o laboratório. Liguei primeiro para o número dele, mas não respondeu. Aí, liguei para a recepção. Ele me deu os dois números no caso de eu não conseguir falar com ele numa emergência.” “E ninguém mais telefonou para ele recentemente, não recebeu nenhuma visita?” “Quem haveria de visitar? E ninguém telefonou, a não ser aquela mulher.” Dalgliesh disse, muito suavemente: “Que mulher, senhor Lorrimer?” “Não sei quem era ela. Só sei que ligou. Foi na segunda-feira da semana passada. Edwin estava tomando banho e o telefone ficou tocando. Então achei melhor atender.” “Lembra exatamente o que aconteceu e o que foi dito, quando o senhor atendeu? Pense bem, senhor Lorrimer, não se apresse. Isso pode ser muito importante.” “Não tem muito o que lembrar. Eu ia dizer o nosso número e pedir para ela esperar, mas ela não me deu tempo. Começou a falar assim que eu peguei o telefone: ‘A gente está certo, alguma coisa está acontecendo’. Aí, disse alguma coisa sobre as telas queimadas e que já tinha os números.” “Telas queimadas e que tinha os números?” “Isso mesmo. Parece que não faz sentido agora, mas era alguma coisa assim. Aí, ela deu os números.” “E o senhor lembra, senhor Lorrimer?” “Só do último, que era 1840. Ou talvez pudesse ser dois números, 18 e 40. Eu lembro porque a primeira casa que nós tivemos depois que eu casei era número 18 e a segunda, 40. É mesmo uma coincidência. Bom, esses números ficaram na minha cabeça. Mas não lembro dos outros.” “Quantos números ao todo?” “Três ou quatro ao todo, acho. Tinha dois, e depois o 18 e o 40.” “O que pareciam ser esses números, senhor Lorrimer? O senhor achou que ela estava dando um número de telefone ou a chapa de um carro, por exemplo? Não lembra que impressão teve no momento?” “Nenhuma impressão. Por que teria? Mais parecia um número de telefone, acho. Não acredito que fosse uma chapa de carro. Não tinha letra nenhuma, entende? Parecia uma data: 1840.” “Faz alguma idéia de quem estava telefonando?” “Não. Não acho que fosse alguém do laboratório. A voz não parecia com ninguém de lá.” “O que quer dizer isso, senhor Lorrimer? Como era a voz?”
O velho ficou ali sentado, olhando fixo à frente. As mãos, de dedos longos como as do filho, mas com a pele seca e manchada como folhas mortas, pousadas pesadamente entre os joelhos, grotescamente grandes para os pulsos finos. Depois de um momento, disse: “Excitada.” Outro silêncio. Ambos os detetives olharam para ele. Massingham achou que ali estava mais um exemplo da habilidade do chefe. Ele teria ido correndo dar busca no testamento e nos papéis. Depois de um momento, o velho falou de novo. A palavra, quando saiu, foi surpreendente: “Conspiratória. Era isso que parecia. Conspiratória.” Ficaram esperando, pacientemente, mas ele não disse mais nada. Então, viram que estava chorando. Seu rosto não se alterou, mas uma única lágrima, brilhante como uma pérola, pingou nas mãos ressecadas. Ele olhou aquilo, como se estivesse pensando o que poderia ser. E disse: “Ele era um bom filho para mim. Houve um tempo, quando foi para a faculdade em Londres, em que perdemos contato. Ele escrevia para a mãe e para mim, mas não vinha visitar. Mas nestes últimos anos, desde que fiquei sozinho, tomou conta de mim. Não estou reclamando. Ouso dizer que ele deixou um pouco de dinheiro, e eu tenho a minha pensão. Mas é duro quando os jovens vão embora primeiro. E quem vai cuidar de mim agora?” Dalgliesh falou, suavemente: “Temos de olhar o quarto dele, examinar os papéis. O quarto está trancado?” “Trancado? Por que estaria? Ninguém entrava lá além de Edwin.” Dalgliesh fez um sinal de cabeça para Massingham, que foi chamar a sra. Swaffield. E subiram.
2
Era um quarto comprido, de teto baixo, com paredes brancas e janela de veneziana que dava para um retângulo de grama não cortada, um par de macieiras retorcidas, carregadas de frutos verdes e dourados ao sol de outono, uma cerca viva rala, pontilhada de frutinhas e o moinho mais adiante. Mesmo à luz amena da tarde o moinho parecia uma ruína melancólica de sua antiga força. A pintura das paredes estava descascando e as grandes pás, cujos sarrafos haviam caído como dentes podres, jaziam pesadamente inertes no ar inquieto. Atrás do moinho, a vastidão da negra terra pantanosa, recém-arada para o outono, se estendia em volumes cintilantes entre os diques. Dalgliesh desviou o olhar dessa paisagem de melancólica paz para examinar o quarto. Massingham já estava ocupado na escrivaninha. Ao encontrar a tampa destrancada, rolou-a para dentro alguns centímetros e deixou cair de novo. Experimentou as gavetas. Só a de cima à esquerda estava trancada. Se estava impaciente para Dalgliesh tirar do bolso as chaves de Lorrimer e abri-la, disfarçou sua ansiedade. Era sabido que o homem mais velho podia trabalhar mais rápido que todos os seus colegas, mas às vezes ainda gostava de ir devagar. Era o que estava fazendo agora, olhando o quarto com seus olhos escuros, sombrios, parado, muito quieto, como se estivesse captando ondas invisíveis. O lugar tinha uma estranha paz. As proporções eram certas e os móveis ficavam bem onde haviam sido colocados. Um homem tinha espaço para pensar naquele retiro despojado. Encostada à parede oposta, havia cama de solteiro, bem-arrumada, coberta com uma manta vermelha e marrom. Uma longa estante acima da cama acomodava um abajur de leitura regulável, um rádio, um tocadiscos, um relógio, uma garrafa de água, e um livro de orações. Diante da janela, uma mesa de trabalho de carvalho com cadeira de rodinhas. Sobre a mesa, um mata-borrão e uma caneca de cerâmica marrom e azul cheia de lápis e canetas esferográficas. Os únicos outros móveis eram uma poltrona velha com uma mesa baixa ao lado, um guarda-roupa de dois corpos de carvalho, à esquerda da porta, e à direita uma escrivaninha antiquada com tampa de enrolar. O telefone estava pendurado na parede. Não havia quadros, nem espelho, nenhuma bagagem masculina, nem bugigangas em cima da mesa ou no aparador. Era tudo funcional, prático, sem enfeites. Era um quarto onde um homem se sentia à vontade. Dalgliesh foi olhar os livros. Calculou que devia haver uns quatrocentos, cobrindo completamente a parede. Havia pouca ficção, embora os novelistas russos e ingleses do século XIX estivessem presentes. A maior parte era de
história, ou biografias, mas havia uma prateleira de filosofia: Ciência e Cristo, de Teilhard de Chardin, O ser e o nada, de Jean-Paul Sartre, O primeiro e o último, de Simone Weil, A república, de Platão, e uma história de filosofia grega e medieval, publicada pela Universidade de Cambridge. Aparentemente, Lorrimer tentara um dia aprender sozinho o grego. A estante tinha uma cartilha de grego e um dicionário. Massingham pegou um livro de religião comparada. Disse: “Parece que era um desses homens que se atormentam querendo descobrir o sentido da existência.” Dalgliesh devolveu à estante o Sartre que estava estudando. “Acha isso censurável?” “Acho inútil. A especulação metafísica é quase tão sem sentido quanto uma discussão sobre o sentido do pulmão. Pulmão serve para respirar.” “E a vida para viver. Acha que é um credo pessoal adequado?” “Para maximizar o prazer e minimizar a dor, sim, senhor, acho. E também para suportar com estoicismo as dificuldades que não posso evitar. Ser humano é garantir o suficiente disso sem inventar nada disso. De qualquer forma, não acredito que se possa entender aquilo que não se pode ver, nem tocar, nem medir.” “Um positivista lógico. E muito bem acompanhado. Mas ele passou a vida examinando o que podia, sim, ver, tocar e medir. Parece que não lhe bastava. Bom, vamos ver o que seus papéis pessoais têm a nos dizer.” Voltou a atenção para a escrivaninha, deixando a gaveta trancada por último. Abriu o tampo de enrolar, revelando duas gavetas pequenas e uma porção de nichos. E ali, cuidadosamente rotulada e compartimentada, estavam as minúcias da vida solitária de Lorrimer. Uma gaveta com três contas esperando pagamento, e uma de recibos. Um envelope identificado contendo a linhagem matrimonial dos pais, e suas certidões de nascimento e de batismo. Seu passaporte, um rosto anônimo, mas com os olhos fixos como que hipnotizados, os músculos do pescoço tensos. A lente da câmera podia ser o tambor de uma arma. Uma apólice de seguro de vida. Recibos de gasolina, eletricidade e gás. O contrato de manutenção do aquecimento central. O contrato de aluguel da televisão. Uma carteira com extratos bancários. Sua pasta de investimentos, seguros, sem graça, ortodoxos. Nada sobre seu trabalho. Evidentemente ele mantinha sua vida tão cuidadosamente compartimentalizada quanto o seu sistema de arquivos. Tudo o que tinha a ver com sua profissão — os diários, os rascunhos de trabalhos científicos — era mantido em sua sala no laboratório. E provavelmente escritos lá. Isso podia justificar o trabalho até tarde. A partir do conteúdo de sua
escrivaninha, era impossível adivinhar a profissão que exercia. Seu testamento estava num envelope separado, junto com uma breve carta da firma de advogados de Ely, Pargeter, Coleby e Hunt. O documento era muito curto e havia sido feito cinco anos antes. Lorrimer deixava o Chalé Postmill e dez mil libras para seu pai, e o resto de todas as suas propriedades para a prima, Angela Maud Foley. A julgar pela pasta de investimentos, a senhorita Foley ia herdar uma soma de capital bastante útil. Por fim, Dalgliesh tirou o chaveiro de Lorrimer do bolso e destrancou a gaveta superior esquerda. A fechadura funcionou muito bem. A gaveta estava cheia de papéis cobertos com a caligrafia de Lorrimer. Dalgliesh levou-os para a mesa diante da janela e fez sinal para Massingham puxar a poltrona. Sentaram-se juntos. Havia vinte e oito cartas no total e os dois leram todas sem falar nada. Massingham via os dedos longos de Dalgliesh pegando cada folha, depositando na mesa, depois empurrando para ele, e pegando a próxima. Pareceu-lhe que o relógio estava tiquetaqueando incrivelmente alto e que sua própria respiração havia se tornado embaraçosamente incomodativa. As cartas eram uma liturgia da amarga esfoliação do amor. Estava tudo ali: a incapacidade de aceitar que o desejo não era mais retribuído, a exigência de explicações que, se tentadas, poderiam magoar ainda mais, a autopiedade torturante, os espasmos da esperança irracionalmente renovada, as petulantes explosões do amante incapaz de ver onde estava a felicidade dela, a humilhante autodegradação. “Entendo que você não queira viver nos pântanos. Mas isso não precisa ser uma dificuldade, querida. Posso conseguir transferência para o Laboratório Metropolitano, se você prefere Londres. Ou podemos encontrar uma casa em Cambridge ou Norwich, alternativas de duas cidades civilizadas. Você uma vez me disse que gostava de viver nas alturas. Ou se quiser, posso continuar aqui e podíamos ter um apartamento em Londres para você, e eu iria sempre que pudesse. Provavelmente, quase todos os domingos. A semana sem você seria uma eternidade, mas qualquer coisa é suportável se eu souber que você me pertence. Você pertence a mim. Todos os livros, toda a procura, e a leitura, a que leva tudo isso afinal? Foi você quem me ensinou que a resposta é tão simples.” Algumas cartas eram altamente eróticas. De todas, talvez as cartas de amor fossem as mais difíceis de escrever bem, pensou Massingham. Será que o coitado não sabia que se o desejo havia morrido essas cartas só poderiam incomodar? Talvez os amantes que usam uma linguagem só deles para seus atos mais secretos sejam os mais sábios. Pelo menos o erotismo adquire uma feição pessoal. Ali, as descrições sexuais eram ou embaraçosamente lawrencianas em sua intensidade, ou friamente cínicas. Ele reconheceu com surpresa uma emoção que só podia ser vergonha. Estava acostumado a examinar a pornografia privada
de vidas assassinadas, mas aquelas cartas, com sua mistura de desejo cru e elevado sentimento, estavam fora da sua experiência. O sofrimento nu que expressavam parecia-lhe neurótico, irracional. O sexo não tinha mais nenhum poder de chocá-lo; o amor, concluiu, decididamente conseguia. Ficou chocado com o contraste entre a tranqüilidade do quarto do homem e a turbulência de sua mente. Pensou: este caso está me ensinando pelo menos a não juntar escombros pessoais. O trabalho policial era tão eficiente quanto a religião para ensinar um homem a viver cada dia como se fosse o último. E não era só o assassinato que violava a privacidade. Qualquer morte súbita podia fazer a mesma coisa. Se o helicóptero caísse ao pousar, que tipo de quadro seus pertences apresentariam ao mundo? Um conformista filisteu de direita, obcecado com a forma física? Homme moyen sensuel, e moyen tudo por sinal? Pensou em Emma, com quem dormia sempre que podia e que, ele achava, ia acabar se transformando em Lady Dungannon, a menos que, como parecia cada vez mais provável, ela encontrasse um filho mais velho com melhor futuro e mais tempo para lhe dedicar. Imaginou o que Emma, a alegre hedonista com o seu franco gosto pela cama, acharia dessas fantasias auto-indulgentes, masturbatórias, dessa humilhante crônica das misérias do amor derrotado. Uma metade de folha de papel estava coberta com um único nome. Domenica, Domenica, Domenica. E depois Domenica Lorrimer, uma combinação sem graça, nada eufônica. Talvez tivesse sido atingido pela infelicidade dessa combinação, porque só escreveu o nome uma vez. As cartas pareciam trabalhadas, empenhadas, como as de uma menina que pratica em segredo o desejado nome de casada. Nenhuma das cartas era datada, todas sem destinatário nem assinatura. Algumas eram evidentemente rascunhos, uma dolorosa busca pela palavra fugidia, o manuscrito marcado pela borracha. Mas agora Dalgliesh estava empurrando para ele a carta final. Ali não havia alterações, nem incertezas, e se havia um rascunho anterior, Lorrimer o destruiu. Essa era tão clara quanto uma afirmação. As palavras, escritas com força na caligrafia ereta e escura de Lorrimer, distribuíam-se em linhas uniformes, precisas, como num exercício de caligrafia. Talvez essa fosse uma que ele pretendia enviar afinal. “Tenho procurado as palavras para explicar o que aconteceu comigo, o que você fez acontecer. Sabe como isso é difícil para mim. Tantos anos escrevendo relatórios oficiais, as mesmas frases, as mesmas áridas conclusões. Minha cabeça era um computador programado para a morte. Eu era como um homem nascido em escuridão, vivendo em uma caverna profunda, agachado em busca de conforto junto a uma fogueirinha inadequada, olhando as sombras que dançam sobre os desenhos da caverna, tentando encontrar algum significado em seus
rústicos contornos, um sentido para a existência que me ajude a suportar a escuridão. E então você chegou, me pegou pela mão e me levou para o sol. E ali estava o mundo real, me ofuscando os olhos com suas cores, com sua beleza. E só foi preciso a sua mão e a coragem de dar uns poucos passos para fora das sombras e das fantasias, na direção da luz. Ex umbris et imaginibus in veritatem.” Dalgliesh pousou a carta. Disse: “‘Deus, permita-me saber o meu fim e o número dos meus dias, para que eu me certifique do quanto me resta para viver.’ Se tivesse escolha, provavelmente Lorrimer ia preferir ver seu assassinato ficar impune do que ter outros olhos lendo estas cartas. O que acha delas?” Massingham não sabia bem se tinha de falar do assunto ou do estilo. Disse, cautelosamente: “A passagem sobre a caverna é boa. Parece que ele trabalhou bastante esse pedaço.” “Mas não é totalmente original. É um reflexo da República, de Platão. E como o homem da caverna de Platão, ele sente a luz ofuscar e machucar seus olhos. George Orwell escreveu em algum lugar que o assassinato, o crime único, é sempre resultado de fortes emoções. Bom, isto é uma emoção forte. Mas parece que estamos com o corpo errado.” “O senhor acha que o doutor Howarth sabia?” “Quase com certeza. O incrível é que parece que ninguém no laboratório desconfiava desse relacionamento. Não é o tipo de informação que a senhora Bidwell, por exemplo, fosse deixar passar. Primeiro, acho, vamos ver com os advogados se o testamento ainda é válido, depois procuramos a dama.” Mas esse programa ia mudar. O telefone da parede tocou, abalando a paz do quarto. Massingham atendeu. Era o sargento Underhill tentando, com pouco sucesso, disfarçar a excitação da voz. “Tem um major Hunt da firma Pargeter, Coleby e Hunt, de Ely, querendo ver o senhor Dalgliesh. Ele preferiu não falar ao telefone. Disse que é para ligar e ver quando seria bom para o senhor Dalgliesh ir até lá. E temos uma testemunha, senhor! Está na delegacia de polícia de Guy’s Marsh. O nome dele é Alfred Goddard. É um dos passageiros do ônibus das nove e dez que passou pelo laboratório.”
3
“Ele corria em disparada como se fosse um diabo saído do inferno.” “Pode dar uma descrição dele, senhor Goddard?” “Não. Velho não era.” “Muito jovem?” “Também não disse que era jovem. De onde eu estava não dava pra ver bem. Mas não corria feito um velho, não.” “Correndo atrás do ônibus, talvez.” “Se estava, não pegou.” “Não estava acenando?” “Claro que não. O motorista não podia ver o cara. Que adianta acenar atrás do ônibus?” A delegacia de polícia de Guy’s Marsh era um prédio vitoriano de tijolos vermelhos, com um frontão de madeira branca. Parecia tanto uma estação de trem antiga, que Dalgliesh desconfiou que as autoridades policiais do século XIX economizavam usando o mesmo arquiteto e a mesma planta. Sr. Alfred Goddard, esperando confortavelmente na sala de entrevistas com uma enorme caneca de chá fumegante à sua frente, parecia bem à vontade, nem contente nem impressionado de se ver como testemunha-chave de uma investigação de assassinato. Era um camponês de pele escura, enrugado, mirrado, que cheirava a fumo forte, álcool e esterco de vaca. Dalgliesh se lembrou que os primeiros colonizadores dos pântanos eram chamados de “barriga-amarela” pelos vizinhos das terras altas, porque se arrastavam como sapos pelos campos alagados ou espadanavam em cima da lama como palmípedes. Qualquer das duas coisas se aplicava ao sr. Goddard. Dalgliesh observou interessado que ele usava uma coisa que parecia uma tira de couro no punho esquerdo e imaginou que aquilo devia ser pele de enguia seca, um antigo amuleto para afastar reumatismo. Os dedos deformados que seguravam rigidamente a caneca de chá sugeriam que o talismã não era dos mais eficazes. Dalgliesh duvidava de que ele tivesse se dado ao trabalho de se apresentar se Bill Carney, o cobrador do ônibus, não o conhecesse como passageiro habitual do serviço noturno às quartas-feiras, indo de Ely para Stoney Piggott, via Chevisham, e não tivesse orientado a investigação policial até o seu remoto chalé. Tinha sido sumariamente arrancado de sua toca, mas não demonstrava nenhum ressentimento por Bill Carney nem pela polícia, e anunciou que estava disposto a responder perguntas se elas fossem feitas, como explicou, de “um jeito
civilizado”. Sua maior reclamação com a vida era o ônibus de Stoney Piggott: os atrasos, as falhas na circulação, os aumentos de tarifa e, particularmente, a estupidez da recente experiência de usar ônibus de dois andares no itinerário de Stoney Piggott, e a sua conseqüente expulsão para o andar de cima toda quartafeira, por causa do cachimbo. “Mas que sorte a nossa o senhor estar lá”, Massingham observou. Sr. Goddard simplesmente fez um ruído tomando seu chá. Dalgliesh prosseguiu com o interrogatório: “Será que o senhor lembra alguma coisa sobre ele, senhor Goddard? O peso, o cabelo, como estava vestido?” “Não. Estatura mediana, usava casaco meio pro curto, ou uma capa, quem sabe. Aberta, talvez.” “Lembra da cor?” “Meio escura, acho. Só vi um segundo. Aí as árvores entraram na frente. O ônibus estava saindo quando eu botei os olhos nele.” Massingham interferiu: “O motorista não viu ninguém, nem o cobrador.” “Claro. Eles estavam no andar de baixo. Não dava mesmo pra ver. E o motorista estava dirigindo a droga do ônibus.” Dalgliesh disse: “Senhor Goddard, isto é muito importante. O senhor lembra se havia alguma luz no laboratório?” “Como assim, laboratório?” “A casa de onde essa pessoa saiu correndo.” “Luz acesa na casa? Se quer saber da casa por que não fala casa?” Sr. Goddard fez uma pantomima das dificuldades do pensamento intenso, apertou a boca numa careta e entrecerrou os olhos. Eles ficaram esperando. Depois de um intervalo que julgou adequado, anunciou: “Luz fraca, talvez. Nada brilhante, não. Acho que tinha luz, sim, nas janelas do andar térreo.” Massingham perguntou: “Tem certeza de que era um homem?” Sr. Goddard pousou nele um olhar que era uma mistura de censura e pesar, como alguém que está prestando um exame oral diante de uma pergunta que evidentemente considera injusta. “Estava de calça, não estava? Se não era homem, parecia.” “Mas não tem certeza absoluta?” “Não dá pra ter certeza de nada hoje em dia. Foi-se o tempo em que a gente se vestia com decência, com respeito a Deus. Homem ou mulher, era humano e
estava correndo. Foi isso que eu vi.” “Então, podia ser uma mulher usando calça comprida?” “Não corria como mulher. Mulher corre dum jeito maluco, de joelho apertado e chutando o pé pra cima feito pato. Pena elas não apertarem o joelho quando não estão correndo, é o que eu digo.” A dedução até que era correta, pensou Dalgliesh. Nenhuma mulher corria exatamente como um homem. A primeira impressão de Goddard era de um homem jovem correndo, e provavelmente era isso que tinha visto. Interrogatório demais só podia confundir o sujeito. O motorista e o cobrador, convocados na garagem dos ônibus e ainda de uniforme, não puderam confirmar a história de Goddard, mas o que conseguiram acrescentar foi útil. Não era de surpreender que nenhum dos dois tivesse visto o corredor, uma vez que um muro de quase dois metros e as árvores acima dele impedem a visão do laboratório do primeiro andar do ônibus, e só poderiam ter visto de relance a casa quando o veículo passou diante do caminho de entrada aberto e diminuiu a marcha no ponto. Mas se o sr. Goddard estivesse certo e a pessoa tivesse aparecido só quando o ônibus já estava saindo, eles não teriam visto nada. Foi útil ambos confirmarem que o ônibus estava no horário, pelo menos naquela quarta-feira à noite. Bill Carney tinha até olhado seu relógio quando estavam saindo. Mostrava nove e onze. O ônibus havia parado no ponto por uns dois segundos. Nenhum dos três passageiros fez qualquer movimento preliminar para descer, mas tanto o motorista como o cobrador notaram uma mulher esperando no escuro do abrigo do ponto e acharam que ia subir. Ela, porém, não subiu, mas virou-se e se afastou mais para o escuro do abrigo quando o ônibus encostou. O cobrador achou estranho ela estar esperando ali, uma vez que não havia outro ônibus essa noite. Mas tinha chovido um pouco e ele concluiu, sem pensar muito a respeito, que ela estava se abrigando. Não era função sua, como apontou muito razoavelmente, arrastar passageiros para dentro do ônibus se eles não queriam subir. Dalgliesh interrogou detidamente os dois sobre a mulher, mas havia poucas informações sólidas que pudessem dar. Ambos concordaram que ela trazia um lenço na cabeça e que a gola do casaco estava levantada até as orelhas. O motorista, porém, achou que ela usava calça preta e uma capa acinturada. Bill Carney concordou quanto à calça, mas achou que ela vestia um casaco felpudo, e não uma capa. A única razão para acharem que se tratava de uma mulher era o lenço na cabeça. Nenhum dos dois foi capaz de descrever essa peça. Eles achavam pouco provável que qualquer dos três passageiros do primeiro andar pudesse ajudar. Dois eram idosos que viajavam sempre, mas aparentemente
estavam dormindo. E o terceiro, totalmente desconhecido. Dalgliesh sabia que os três teriam de ser encontrados. Seria um daqueles trabalhos demorados, mas necessários, e que raramente produzem qualquer informação que valha a pena. Mas era surpreendente o quanto observavam as pessoas menos prováveis. Os que dormiam podiam ter sido despertados pela parada do ônibus e podiam até ter visto a mulher com mais clareza que o cobrador ou o motorista. Sr. Goddard, não era de surpreender, não tinha notado a mulher. Perguntou causticamente como alguém poderia enxergar através da cobertura do maldito ponto, e, de qualquer forma, para sorte deles, estava olhando para o outro lado, não estava? Dalgliesh apressou-se a acalmá-lo, e quando suas declarações finalmente satisfizeram o velho, determinou que fosse levado de volta de carro para seu chalé, sentado com algum estilo, como um minúsculo manequim, muito ereto, no banco de trás do carro de polícia. Só depois de uns dez minutos Dalgliesh e Massingham conseguiram partir para Ely. Albert Bidwell apresentou-se à delegacia, como combinado, embora atrasado, trazendo uma pesada amostra da lama do campo e um ar de mau humor. Massingham imaginou como ele e a mulher teriam se conhecido e o que teria juntado duas personalidades tão diversas. Tinha certeza de que ela era cockney de nascimento; ele, um nativo dos pântanos. Era taciturno, enquanto ela, falante; ele pensava devagar, já ela era cortante, e ele tão pouco curioso quanto ela era ávida por mexericos e novidades. Sr. Bidwill admitiu ter recebido o telefonema. Era uma mulher e o recado era que a senhora Bidwell devia ir até Leamings para dar uma mão à sra. Schofield, em vez de ir trabalhar no laboratório. Não se lembrava se a mulher tinha dado o nome, mas achava que não. Já tinha atendido telefonemas da sra. Schofield uma ou duas vezes antes, quando ela ligou pedindo a ajuda de sua mulher em jantares e coisas assim. Coisas de mulher. Não sabia dizer se era a mesma voz. Quando perguntaram se achava que havia sido a sra. Schofield quem chamou, respondeu que não achava nada. Dalgliesh perguntou: “Lembra se a pessoa disse que sua mulher devia vir a Leamings ou ir a Leamings?” Ele evidentemente não entendeu o sentido da pergunta, mas a recebeu com rude desconfiança e, depois de uma longa pausa, disse que não sabia. Quando Massingham perguntou se a pessoa ao telefone podia não ser uma mulher, mas um homem disfarçando a voz, ele lhe deu um olhar de concentrada aversão, como se deplorasse uma cabeça capaz de imaginar maldade tão sofisticada. Mas a pergunta deu origem a sua resposta mais longa. Disse, em tom definitivo, que não sabia se era uma mulher ou um homem fingindo ser mulher, ou, quem sabe,
uma menina. Tudo o que sabia é que tinham pedido que desse um recado a sua esposa e que ele fez isso. Mas se soubesse que ia provocar todo esse incômodo, não teria atendido ao telefone. E com isso tiveram de se contentar.
4
Pela experiência de Dalgliesh, advogados que trabalhavam em cidades com catedrais eram invariavelmente bem instalados, e o escritório de Pargeter, Coleby e Hunt não era exceção. Tratava-se de uma casa do período da Regência muito bem conservada, com uma vista para o jardim da catedral, um portal fronteiro imponente, cuja tinta negro-ébano brilhava como se ainda estivesse molhada, e cuja aldrava em forma da cabeça de leão havia sido polida até ficar quase branca. A porta foi aberta por um funcionário de certa idade, muito magro, lembrando um personagem dickensiano em seu terno preto antiquado e colarinho duro, cuja aparência de lúgubre resignação iluminou-se um pouco ao ver os dois, como se gostasse da perspectiva de problema. Fez uma ligeira curvatura quando Dalgliesh se apresentou e disse: “O major Hunt, claro, está esperando pelo senhor. Está terminando a reunião com um cliente. Por favor, venha por aqui e não vai ter de aguardar mais do que dois minutos.” A sala de espera onde foram colocados parecia a saleta de um clube masculino no seu conforto e aparência de desordem controlada. As poltronas de couro eram tão largas e profundas que ficava difícil imaginar alguém com mais de sessenta anos se levantando dali sem dificuldade. Apesar do calor de dois radiadores antiquados, havia um fogo de coque queimando na lareira. A grande mesa redonda de mogno estava coberta de revistas dedicadas aos interesses da nobreza rural, a maioria das quais parecia muito antiga. Havia uma estante de porta de vidro com volumes encadernados de histórias do condado, e outros ilustrados sobre arquitetura e pintura. O óleo acima da lareira mostrando uma carruagem com cavalos e lacaios parecia muito uma obra de Stubbs e Dalgliesh pensou que provavelmente era mesmo. Ele só teve tempo de inspecionar brevemente a sala e tinha ido até a janela para olhar a capela de Nossa Senhora da catedral, quando a porta se abriu e o funcionário reapareceu para levá-los à sala do major Hunt. O homem que se levantou de trás da escrivaninha para recebê-los era o oposto de seu funcionário. Corpulento, ereto, no final da meia-idade, vestindo um terno surrado, mas bem cortado, de tweed, a cara vermelha e quase careca, os olhos vivos debaixo de sobrancelhas hirsutas e irrequietas. Avaliou Dalgliesh com um olhar franco ao apertarem as mãos, como se estivesse resolvendo onde situá-lo em algum esquema privado de coisas, depois sacudiu a cabeça como se estivesse satisfeito. Ainda parecia mais um soldado que um advogado e Dalgliesh adivinhou que a
voz com que o cumprimentou havia adquirido aquele latido alto e autoritário nos pátios de manobra e nos refeitórios da Segunda Guerra Mundial. “Bom dia, bom dia. Sente, por favor, comandante. Sei que é trágico o assunto que o traz aqui. Creio que nunca perdemos um dos nossos clientes por assassinato.” O funcionário tossiu. Era exatamente a tosse que Dalgliesh esperava, inofensiva, mas discretamente ameaçadora e que não podia ser ignorada. “Houve o caso de Sir James Cummins, senhor, em 1923. Foi morto com um tiro por seu vizinho, o capitão Cartwright, por causa da sedução da senhora Cartwright por Sir James. O desentendimento ainda foi agravado por alguns conflitos sobre direitos de pesca.” “Isso mesmo, Mitching. Mas foi na época do meu pai. Enforcaram o pobre Cartwright. Uma pena, meu pai sempre achou. Tinha uma boa ficha no exército, sobreviveu a Somme e Arras, e terminou no patíbulo. Mutilado de guerra, pobrediabo. O júri provavelmente teria recomendado clemência se ele não tivesse mutilado o corpo. Ele realmente cortou o corpo, não foi, Mitching?” “Isso mesmo, senhor. Encontraram a cabeça enterrada no pomar.” “Foi isso que acabou com Cartwright. Os jurados ingleses não toleram que se mutile um corpo. Crippen estaria vivo hoje se tivesse enterrado Belle Elmore inteira.” “Dificilmente, senhor. Crippen nasceu em 1860.” “Bom, mas não estaria morto há muito tempo. Não seria de admirar que tivesse chegado a este século. Era só três anos mais velho que seu pai, Mitching, e muito parecido com ele, pequeno, de olhos saltados e nervoso. Vive para sempre, gente desse tipo. Ah, bom, voltando ao nosso assunto. Vocês dois tomam café, espero. Prometo que dá para beber. Mitching mandou instalar um daqueles aparelhos de vidro e agora moemos nosso próprio grão. Café então, por favor, Mitching.” “A senhorita Makepeace já está preparando, senhor.” O major Hunt tinha aparência de alguém bem alimentado, e Massingham deduziu, com alguma inveja, que seus negócios com o último cliente haviam sido concluídos ao longo de um bom almoço. Ele e Dalgliesh tinham devorado um sanduíche apressado e uma cerveja em um pub entre Chevisham e Guy’s Marsh. Dalgliesh, que todo mundo sabia apreciar comida e vinho, tinha o hábito inconveniente de ignorar o horário de refeições no meio de um caso. Massingham não era exigente quanto à qualidade, era a quantidade que ele deplorava. Mas pelo menos iam tomar um café. Mitching postou-se perto da porta e não mostrou nenhuma tendência de sair. Isso parecia ser perfeitamente aceitável. Dalgliesh achou que ele e o major eram
como uma dupla de comediantes sempre aperfeiçoando o seu número e que não deixam passar nenhuma oportunidade de ensaiar. O major Hunt disse: “O senhor quer saber a respeito do testamento de Lorrimer, é claro.” “E tudo o mais que o senhor possa nos contar sobre ele.” “Não vai ser muito. Só estive com ele duas vezes desde que cuidei da herança de sua avó. Mas evidentemente farei o que for possível. Quando o crime entra pela janela, a privacidade sai pela porta. É assim, não é, Mitching?” “Não pode haver segredos, senhor, na luz feroz que banha o patíbulo.” “Acho que a frase não é bem assim, Mitching. E não temos mais patíbulo. O senhor é abolicionista, comandante?” Dalgliesh disse: “Tenho de ser até o dia em que se possa ter a certeza absoluta de que nunca, em nenhuma circunstância, se possa cometer um erro.” “É a resposta ortodoxa, mas provoca uma série de questões, não é? Mas claro que o senhor não está aqui para discutir a pena capital. Não percamos tempo. O testamento. Onde foi que eu pus a caixa, Mitching?” “Está aqui, senhor.” “Então traga aqui, homem. Traga.” O funcionário levou a caixa metálica preta até a mesa lateral e colocou-a na frente do major Hunt, que abriu a tampa com alguma cerimônia e tirou o testamento. Dalgliesh disse: “Encontramos um testamento na escrivaninha dele. Com data de 3 de maio de 1971. Parece o original.” “Então ele não destruiu aquele documento? Interessante. Sugere que não tinha se decidido afinal.” “Então existe outro testamento?” “Ah, existe, sim, comandante. Existe, sim. Era sobre isso que eu queria conversar com o senhor. Foi assinado por ele na sexta-feira passada e tanto o original como a única cópia estão aqui comigo. Estão aqui. Por favor, gostaria que o senhor mesmo lesse.” Entregou o testamento. Era muito breve. Lorrimer, na forma usual, revogava todos os testamentos anteriores, declarava estar em plena posse de suas faculdades mentais e dispunha de sua propriedade em menos de doze linhas. O Chalé Postmill ficava para seu pai, junto com uma soma de dez mil libras. Mil libras ficavam para Brenda Pridmore para “permitir a compra de qualquer livro necessário para o progresso de sua educação científica”. Todo o restante de suas posses era deixado para a Academia de Ciência Forense para atribuir um prêmio anual em dinheiro, no valor que a Academia considerasse adequado, para um ensaio original sobre qualquer aspecto da investigação científica do crime, ensaio
a ser julgado por um júri de três membros, selecionado anualmente pela Academia. Não havia menção a Angela Foley. Dalgliesh perguntou: “Ele deu alguma explicação de por que excluir a prima, Angela Foley, do testamento?” “Na verdade, deu, sim. Achei correto apontar para ele que, no caso de sua morte, a prima, como única parente viva, além do pai, poderia contestar o testamento. Se fizesse isso, uma batalha judicial poderia custar dinheiro e dilapidar seriamente o capital. Não senti nenhuma obrigação de forçá-lo a alterar sua decisão. Simplesmente achei correto apontar as possíveis conseqüências. Você ouviu o que ele respondeu, não ouviu, Mitching?” “Ouvi, sim, senhor. O falecido doutor Lorrimer expressou sua desaprovação ao modo de vida escolhido por sua prima. Deplorou particularmente a relação que, segundo afirmava, existia entre ela e aquela senhora com quem reside. Disse que não desejava que a citada companheira se beneficiasse de seus bens. Se sua prima resolvesse contestar o testamento, ele estava disposto a deixar a questão para os tribunais. Não seria mais sua preocupação. Ele deixaria claros os seus desejos. E observou também, se bem me lembro, senhor, que o testamento devia ser de natureza transitória. Tinha em mente se casar e, se fizesse isso, o testamento, evidentemente, perderia o valor. Nesse ínterim, queria se proteger contra o que considerava a remota possibilidade de sua prima herdar tudo no caso de ele morrer inesperadamente antes de esclarecer seus negócios particulares.” “Perfeito, Mitching, foi isso o que ele disse. Devo acrescentar que isso fez com que eu aceitasse melhor o novo testamento. Se ele estava pretendendo se casar, evidentemente o documento não ia mais ter valor e ele poderia repensar o assunto. Não que eu achasse necessariamente o testamento justo ou injusto. Um homem tem o direito de dispor de seus bens da maneira que achar mais conveniente, se o Estado lhe deixar alguma coisa de que dispor. Pareceu-me um pouco estranho, se ele estava noivo para casar, que não mencionasse a dama no testamento intermediário. Mas acho que o princípio é sólido. Se deixasse para ela uma quantia insignificante, ela dificilmente lhe agradeceria, e se deixasse tudo, ela provavelmente casaria logo com outro sujeito e tudo passaria para ele.” Dalgliesh perguntou: “Ele não falou nada sobre o pretendido casamento?” “Nem o nome da moça. E naturalmente eu não perguntei. Não tenho nem certeza de que tivesse em mente alguém em particular. Podia ser apenas uma intenção, ou, talvez, uma desculpa para alterar o testamento. Eu simplesmente lhe dei os parabéns e observei que o novo testamento perderia o valor assim que
o casamento ocorresse. Ele disse que entendia e que no momento oportuno voltaria para fazer um novo documento. Por enquanto, era isso o que queria e foi isso que elaborei. Mitching assinou, e minha secretária ficou como segunda testemunha. Ah, aí vem ela com o café. Você lembra de ter assinado o testamento do doutor Lorrimer, não é?” A moça magra e de aparência nervosa que trouxe o café sacudiu a cabeça, aterrorizada, em resposta ao latido do major e saiu correndo da sala. O Major Hunt disse, satisfeito: “Ela lembra. Estava tão apavorada que mal podia assinar. Mas assinou. Está tudo aí. Tudo correto e em ordem. Nós sabemos como elaborar um testamento válido, não é, Mitching? Mas vai ser interessante ver a mulherzinha batalhar por isso.” Dalgliesh perguntou por quanto Angela Foley estaria batalhando. “Calculo que por volta de cinqüenta mil libras. Nenhuma fortuna nos dias de hoje, mas útil, bem útil. O capital original foi deixado integral para ele, pela Annie Lorrimer, sua avó paterna. Uma mulher extraordinária. Nascida e criada nos pântanos. Tinha um armazém de aldeia com o marido, ali em Low Willow. Ele morreu relativamente cedo, de tanto beber, não agüentava os invernos dos pântanos, e ela continuou sozinha. Nem todo o dinheiro veio do comércio, claro, embora ela tenha vendido num bom momento. Não, ela tinha faro para cavalos. Coisa extraordinária. Sabe Deus de onde tirou isso. Pelo que se comenta, nunca montou um cavalo na vida. Fechava a loja e ia para Newark três vezes por ano. Nunca perdeu um centavo, pelo que ouvi dizer, e economizava cada libra que ganhava.” “Como era a família? O pai de Lorrimer era filho único?” “Isso mesmo. Era sim. Ela tinha um filho e uma filha, a mãe de Angela Foley. Não tolerava nenhum dos dois, pelo que sei. A filha envergonhou a família com o sacristão da aldeia e acabou expulsa de casa no bom estilo vitoriano. O casamento não deu certo e creio que Maud Foley nunca tenha visto a mãe de novo. Ela morreu de câncer uns cinco anos depois que nasceu a filha. A velha não aceitou a neta, que acabou nas mãos das autoridades locais. Passou a maior parte da vida em lares adotivos, eu acho.” “E o filho?” “Ah, casou com uma professora local e isso deu mais ou menos certo, pelo que eu sei. Mas a família nunca foi unida. A velha não ia deixar o dinheiro para o filho porque, dizia ela, isso significava duplos impostos. Ela tinha bem mais de quarenta anos quando ele nasceu. Mas acho que a verdade é que simplesmente não gostava muito dele. Não creio que visse muito o neto, Edwin, mas tinha de deixar o dinheiro para alguém e era daquela geração que acreditava que o
sangue é mais grosso do que a sopa da caridade e que sangue de homem é mais consistente do que sangue de mulher. Além do fato de expulsar a filha e nunca se interessar pela neta, a geração dela não acreditava em deixar dinheiro diretamente para mulheres. Seria só um estímulo para sedutores e caça-dotes. E então deixou tudo para o neto, Edwin Lorrimer. Quando ela morreu, acredito que ele teve remorsos de consciência pela prima. Como o senhor sabe, no primeiro testamento ela era sua herdeira.” Dalgliesh disse: “Sabe se Lorrimer contou para ela que tencionava mudar o testamento?” O advogado olhou duro para ele. “Ele não disse. Diante das circunstâncias, seria conveniente para ela se pudesse provar que contou.” Tão conveniente, pensou Dalgliesh, que teria sem dúvida mencionado o fato ao ser entrevistada. Mas mesmo que acreditasse ser herdeira do primo, isso não fazia dela necessariamente uma assassina. Se queria sua parte do dinheiro da avó, por que esperar até agora para matar o primo? O telefone tocou. O major Hunt resmungou desculpas e pegou o aparelho. Tapando o bocal, disse para Dalgliesh: “É a senhorita Foley, ligando do Chalé Postmill. O velho senhor Lorrimer quer dar uma palavrinha comigo a respeito do testamento. Ela está dizendo que ele está ansioso para saber se o chalé agora é dele. Quer que eu conte?” “Isso é com o senhor. Mas ele é o parente mais próximo. Tanto faz saber os termos do testamento agora como depois. E ela também.” O major Hunt hesitou. Depois, falou. “Tudo bem, Betty. Ponha a senhorita Foley na linha.” Tornou a olhar para Dalgliesh. “Essa notícia vai sacudir Chevisham.” Dalgliesh teve uma súbita visão do rosto jovem e empenhado de Brenda Pridmore brilhando diante dele do outro lado da escrivaninha de Howarth. “É”, disse, sombrio. “Acho que vai, sim.”
5
Leamings, a casa de Howarth, ficava a quase cinco quilômetros da aldeia de Chevisham na estrada para Cambridge, uma construção moderna de concreto, madeira e vidro em balanço sobre o pântano plano, com duas asas brancas como velas fechadas. Mesmo à fraca luz da tarde era impressionante. A casa ficava em radical e esplêndido isolamento, e seu efeito não dependia senão da perfeição de linhas e da simplicidade artística. Não havia nenhuma outra construção à vista, a não ser um solitário chalé de madeira preta sobre estacas, desolado como um cadafalso de execuções e, dramaticamente, como uma intrincada miragem pendurada acima do horizonte oriental, a maravilhosa torre única e oitavada da catedral de Ely. Dos cômodos dos fundos via-se uma imensidão de céu e os vastos campos não delimitados cortados pelo dique de Leamings, que mudavam com as estações desde a negra terra rasgada até a semeadura de primavera e a colheita. Nada se ouvia além do vento e, no verão, o incessante sussurrar dos grãos. O local era pequeno e o arquiteto teve de ser engenhoso. Não havia jardim, nada a não ser um curto caminho que levava a um pátio pavimentado e à garagem dupla. Diante da garage, um Jaguar XJS vermelho ao lado do Triumph de Howarth. Massingham deu uma olhada invejosa no Jaguar e imaginou como a sra. Schofield podia ter conseguido entrega tão rápida. Entraram com o carro e estacionaram ao lado dele. Antes mesmo de Dalgliesh desligar o motor, Howarth saiu e ficou esperando por eles em silêncio. Estava usando um comprido avental de açougueiro listrado de azul e branco no qual parecia perfeitamente à vontade, evidentemente não vendo razão nem para explicar nem para tirar a peça de roupa. Enquanto subiam os degraus abertos de madeira, Dalgliesh elogiou a casa. Howarth disse: “Foi projetada por um arquiteto sueco que é autor de algumas construções modernas em Cambridge. Na verdade, pertence a um amigo da universidade. Ele e a mulher vão passar uns dois anos de licença em Harvard. Se resolverem mudar para os Estados Unidos, talvez vendam a casa. Seja como for, estamos acomodados para os próximos dezoito meses e poderemos procurar outra coisa se for preciso.” Estavam subindo uma larga escada circular de madeira que ficava no centro da casa. Lá em cima, alguém ouvia, muito alto, uma gravação do final do Concerto de Brandenburgo número 3. O glorioso contraponto da música batia nas paredes e ressoava pela casa. Massingham podia quase ver a casa alçando vôo com suas
asas brancas, pairando alegremente sobre os pântanos. Elevando a voz acima da música, Dalgliesh disse: “A senhora Schofield gosta daqui?” A voz de Howarth, cuidadosamente casual, baixou sobre eles. “Ela talvez não fique aqui por muito tempo. Domenica gosta de variar. Minha meia-irmã sofre do horreur de domicile de Baudelaire, prefere estar sempre em outro lugar. Seu hábitat natural é Londres, mas está comigo agora porque está ilustrando uma nova edição limitada de Crabbe para a Paradine Press.” O disco terminou. Howarth fez uma pausa e disse com uma espécie de rispidez, como se lamentasse o impulso de confidenciar: “Acho que devo revelar a vocês que minha irmã ficou viúva faz pouco mais de um ano e meio. O marido foi morto em um acidente de automóvel. Ela é que estava dirigindo, mas teve sorte. Pelo menos, eu acho que teve sorte. Não sofreu nem um arranhão. Charles Schofield morreu três dias depois.” “Sinto muito”, disse Dalgliesh. Não sem um certo cinismo, pensou que seria interessante saber por que aquilo lhe teria sido revelado. A impressão que Howarth lhe passara era de um homem essencialmente reservado, do tipo que não confidencia com facilidade uma tragédia pessoal ou familiar. Seria um apelo ao cavalheirismo, uma solicitação coberta para que a irmã fosse tratada com consideração especial? Ou estaria Howarth alertando que ela ainda estava perturbada pela dor, imprevisível, desequilibrada até? Dificilmente estaria insinuando que desde a tragédia ela se permitia um impulso irresistível de matar seus amantes. Tinham chegado ao alto da escada e estavam agora no amplo balcão de madeira que parecia flutuar no espaço. Howarth abriu uma porta e falou: “Vou deixar vocês à vontade. Estou começando mais cedo o jantar de hoje. Ela está aí dentro.” E disse: “Estes são o comandante Dalgliesh e o inspetor detetive Massingham do Metropolitano. Eles estão investigando o homicídio. Minha irmã, Domenica Schofield.” A sala era imensa, com uma janela triangular do teto ao chão projetada sobre os campos como a proa de um navio, e um alto teto curvo de pinho claro. Havia poucos móveis, muito modernos. Na verdade, a sala parecia mais um estúdio de músico do que uma sala de estar. Encostadas às paredes, uma quantidade de cavaletes com partituras e estojos de violino e, em cima deles, uma estante com um equipamento de som estéreo moderno e evidentemente caro. Havia um único quadro, um óleo de Sidney Nolan retratando Ned Kelly. A máscara de metal sem expressão, com dois olhos anônimos cintilando pelas aberturas, combinava bem com a austeridade da sala, com a severa escuridão dos pântanos ao entardecer.
Era fácil imaginá-lo, um sombrio Hereward já perto do fim, passeando pelos campos enlameados. Domenica Schofield estava de pé ao lado de uma mesa de desenho, no centro da sala. Virou-se, sem sorrir, olhou para os dois com os olhos do irmão, e Dalgliesh encontrou de novo aquelas desconcertantes piscinas azuis debaixo das sobrancelhas grossas e arqueadas. Como sempre, naqueles momentos cada vez mais raros em que, inesperadamente, se via cara a cara com uma mulher bonita, seu coração palpitou. Era um prazer mais sensual que sexual e ficava contente de ainda sentir aquilo, mesmo no meio de uma investigação de assassinato. Mas imaginou quanto era estudada aquela virada calma e determinada, aquele primeiro olhar remoto, e mesmo assim investigador, dos olhos notáveis. Àquela luz, as íris, iguais às do irmão, eram quase violeta, o branco tingido de um azul mais pálido. Tinha a pele clara, cor de mel, cabelos loiros afastados da testa e amarrados num nó ao pé da nuca. A calça jeans apertava as coxas fortes e se completava acima com uma camisa de colarinho aberto, xadrez de azul e verde. Dalgliesh calculou que devia ser dez anos mais nova que seu meio-irmão. Quando falou, a voz era curiosamente grave para uma mulher, com um toque de aspereza. “Sentem.” Apontou com um gesto vago para as cadeiras de metal cromado e couro. “Se não se importam vou continuar trabalhando.” “Se a senhora não se importa de conversar enquanto trabalha, nem se opuser a que eu sente enquanto fica de pé.” Puxou a cadeira para mais perto do cavalete, de onde podia ver tanto o trabalho quanto o rosto dela, e acomodou-se. A cadeira era incrivelmente confortável. Sentiu que ela logo lamentou sua falta de civilidade. Em qualquer confronto, aquele que está de pé tem uma vantagem psicológica, mas não se o adversário tiver sentado muito evidentemente à vontade, num ponto que ele mesmo escolheu. Massingham, quase ostensivamente quieto, pegou outra cadeira para si e colocou junto à parede, à esquerda da porta. Ela devia sentir a presença dele às suas costas, mas nada revelou. Não tinha como protestar contra uma situação que ela mesma havia armado, mas, como se sentisse que a entrevista havia começado mal, disse: “Desculpe eu dar a impressão de estar obsessivamente ocupada, mas tenho de cumprir um prazo. Meu irmão provavelmente já contou que estou ilustrando uma nova edição dos poemas de Crabbe para a Paradine Press. Este desenho é para ‘Procrastinação’ — Dinah entre as suas curiosas bobagens.” Dalgliesh entendeu que ela devia ser uma artista profissional muito competente para receber aquela encomenda, mas estava impressionado era pela sensibilidade e segurança do desenho à sua frente. Era incrivelmente cheio de
detalhes, mas sem frescuras, um equilíbrio altamente decorativo e lindamente bem composto entre a figura esguia da moça e os objetos de desejo cuidadosamente enumerados por Crabbe. Estava tudo ali, meticulosamente desenhado: o papel de parede estampado, o tapete rosa, a cabeça de veado empalhada, e o relógio esmaltado com jóias. Pensou que era uma ilustração muito inglesa para o mais inglês dos poetas. Ela estava cuidando muito dos detalhes de época. Na parede da direita, havia um quadro de cortiça com esboços pendurados: uma árvore, salas meio terminadas, peças de mobília, pequenas impressões de paisagens. Ela disse: “Ainda bem que não é preciso gostar da obra de um poeta para ilustrar com competência. Quem foi que disse que Crabbe é ‘Pope em meias de lã’? Depois de vinte versos, minha cabeça começa a pulsar em parelhas rimadas. Mas talvez o senhor seja clássico. Escreve versos, não escreve?” Ela fazia aquilo soar como se ele colecionasse figurinhas como hobby. Dalgliesh disse: “Eu respeito Crabbe desde que li, quando ainda menino, que Jane Austen dissera que gostaria muito de ter sido a senhora Crabbe. Quando ele foi a Londres pela primeira vez, era tão pobre que teve de empenhar as roupas, e depois gastou o dinheiro numa edição dos poemas de Dryden.” “E o senhor acha isso bonito?” “Acho atraente.” E citou:
 
Tristeza havia e dores, mundo afora; nenhuma entrou, porém, onde ela mora; mães sofrem, viúvas choram, ela sabia, sentia pena, rezava e adormecia; pois cria, e não tinha miúdo o coração, que a tudo abarcava uma forte paixão.
 
Ela lançou para ele um rápido olhar tortuoso. “Neste caso, felizmente, não tem mãe nenhuma para sofrer, nem viúva para chorar. E eu desisti de rezar quando tinha nove anos. Ou será que o senhor só está querendo provar que é capaz de citar Crabbe?” “Certamente”, Dalgliesh respondeu. “Na verdade, vim conversar com a senhora sobre isto aqui.” Tirou um maço de cartas do bolso do paletó, abriu uma das páginas e estendeu para ela. Perguntou: “É a letra de Lorrimer?” Ela olhou com descaso a página.
“Claro. Pena que ele não mandou. Eu gostaria de ter lido essas cartas, mas não agora, acho.” “Não creio que sejam muito diferentes das que ele realmente mandou.” Por um momento, achou que ela estava a ponto de negar ter recebido alguma carta dele. Pensou: “Ela lembrou que podemos facilmente conferir com o carteiro”. Viu os olhos azuis ficarem cautelosos. Ela disse: “O amor termina assim, não com uma explosão, mas com choramingos.” “Não tanto um choramingo quanto um grito de dor.” Ela não estava trabalhando, mas sim imóvel, examinando o desenho. Disse: “Incrível como o sofrimento é pouco atraente. Teria sido melhor ele tentar ser franco. ‘É importante para mim, não é muito importante para você. Por que não ser generosa? Não vai te custar nada, a não ser uma meia hora do seu tempo de vez em quando.’ Eu teria tido mais respeito por ele.” “Mas ele não estava pedindo um arranjo comercial”, disse Dalgliesh. “Estava pedindo amor.” “Isso era uma coisa que eu não tinha para dar e que ele não tinha o direito de esperar.” Nenhum de nós tem o direito de esperar isso, Dalgliesh pensou. Mas esperamos. Sem nenhuma relevância, uma frase de Plutarco apareceu em sua cabeça. “Meninos jogam pedras em sapos por esporte. Mas os sapos não morrem por esporte, morrem de verdade.” “Por que a senhora rompeu com Lorrimer?”, perguntou. Ela pareceu surpresa um momento. “Eu ia perguntar como o senhor sabe que fui eu que rompi. Mas é claro que está com as outras cartas. Ele devia estar choramingando. Faz dois meses que eu disse que não queria continuar. Não falei mais com ele depois disso.” “A senhora deu alguma razão para isso?” “Não. Não sei se existe alguma razão. Tem de existir? Não existe nenhum outro homem, se é isso que o senhor tem em mente. Que visão lindamente simples da vida o senhor deve ter, comandante. Imagino que o trabalho policial deve produzir uma mentalidade de fichário. Vítima: Edwin Lorrimer. Crime: assassinato. Acusada: Domenica Schofield. Motivo: sexo. Veredicto: culpada. Que pena que não dá mais para fechar a coisa direitinho com a sentença: morte. Digamos que eu me cansei dele.” “Depois de esgotar as possibilidades sexuais e emocionais?” “Digamos, mais intelectuais, se me perdoa a arrogância. Acho que as possibilidades físicas se esgotam logo, não acha? Mas se o homem tem brilho, inteligência, e seus entusiasmos pessoais, então a relação tem alguma razão de ser. Uma vez conheci um homem que era uma autoridade em arquitetura do
século XVII. Andávamos quilômetros de carro, olhando igrejas. Foi fascinante enquanto durou, e agora eu sei bastante sobre o final do século XVII. Isso é uma coisa a favor.” “Enquanto os únicos entusiasmos intelectuais de Lorrimer eram filosofia popular e ciência forense.” “Biologia forense. Ele era estranhamente tímido a respeito disso. O Decreto sobre Segredo Oficial parecia estar gravado no que ele descreveria como sua alma. Além disso, podia ser chato até sobre o próprio trabalho. Cientistas são invariavelmente assim, eu descobri. Meu irmão é o único cientista que conheço que não me chateia depois dos primeiros dez minutos de conversa.” “Onde faziam amor?” “Isso é impertinente. E será relevante?” “Pode ser, para todas as pessoas que sabiam que vocês eram amantes.” “Ninguém sabia. Não me agrada que meus assuntos particulares sejam motivo de risadinhas no banheiro feminino do Hoggatt.” “Então ninguém sabia além de seu irmão e da senhora?” Os dois deviam ter resolvido antecipadamente que seria bobo e perigoso negar que Howarth sabia. Ela disse: “Espero que não pergunte se ele concordava.” “Não. Tenho certeza de que ele não concordava.” “Certeza por quê?” Ela tencionava um tom mais leve, quase de brincadeira, mas Dalgliesh percebeu a farpa de raivosa defensiva. Disse, suavemente: “Eu simplesmente me pus no lugar dele. Se tivesse acabado de assumir um novo posto, e encontrado certas dificuldades, o caso de minha meia-irmã com um membro da equipe, e um membro que provavelmente se sentia passado para trás, constituiria uma complicação que eu preferiria não ter.” “Talvez o senhor esteja subestimando a segurança do meu irmão. Ele não precisava do apoio de Edwin Lorrimer para conduzir o laboratório com eficiência.” “A senhora trazia Lorrimer para cá?” “Seduzir um funcionário do meu irmão aqui na própria casa dele? Se eu não gostasse do meu irmão, isso teria dado um tempero extra ao caso. No final, admito que até podia pensar nisso. Mas como não pensei, seria simplesmente de mau gosto. Nós dois temos carro, e o dele é especialmente espaçoso.” “Achei que isso era expediente de adolescentes lascivos. Devia ser muito incômodo e frio.” “Muito frio. O que foi uma razão a mais para resolver parar.” Ela se voltou para ele com súbita veemência. “Olhe, não estou tentando chocar o senhor. Estou tentando ser verdadeira.
Odeio morte, perda, violência. Quem não odeia? Mas não estou lamentando, para o caso de o senhor pensar em me dar os pêsames. Só existiu um homem cuja morte me deixou triste, e esse homem não foi Edwin Lorrimer. E não me sinto responsável. Por que deveria? Não sou responsável. Mesmo que ele tivesse se matado eu não me sentiria culpada. Sendo como foi, não acredito que a morte dele tenha qualquer coisa a ver comigo. Ele pode ter sentido vontade de me matar, acho. Eu nunca tive o menor motivo para querer matar Edwin.” “Tem idéia de quem teria?” “Algum estranho, imagino. Alguém que entrou no laboratório para destruir ou para plantar alguma prova judicial. Quem sabe algum motorista bêbado querendo pegar de volta a amostra do seu sangue. Edwin pegou o intruso em flagrante e foi morto por ele.” “O exame de álcool no sangue não é feito no Departamento de Biologia.” “Então pode ter sido algum inimigo, alguém com alguma coisa contra ele. Alguém contra quem ele testemunhou no passado. Afinal, ele deve ser bem conhecido no banco de testemunhas. A morte do perito.” “A dificuldade é saber como o assassino entrou e saiu do laboratório.” “Provavelmente ganhou acesso durante o dia e se escondeu até o laboratório ser fechado à noite. Deixo com vocês o trabalho de descobrir como ele saiu. Talvez tenha se esgueirado depois que o laboratório abriu de manhã, durante a confusão, quando aquela menina, Brenda Pridmore, não é?, descobriu o corpo. Acho que ninguém devia estar vigiando a porta de entrada.” “E o telefonema falso para a senhora Bidwell?” “Eu diria que provavelmente não tem nenhuma ligação. Algum engraçadinho. Ela agora deve estar com medo de admitir o que aconteceu. Se eu fosse vocês, interrogava as funcionárias mais jovens do laboratório. É o tipo de brincadeira que uma adolescente pouco inteligente pode achar divertida.” Dalgliesh prosseguiu, perguntando sobre os movimentos dela na noite anterior. Ela disse que não havia acompanhado o irmão ao concerto, por não gostar de comes e bebes rústicos, não ter vontade de ouvir Mozart tocado com indiferença, e por ter alguns desenhos para terminar. Os dois jantaram cedo, por volta das quinze para as sete, e Howarth saiu de casa às sete e vinte. Ela continuara trabalhando sem interrupção nem de telefonemas nem de visitas até o irmão voltar pouco depois das dez, quando ele lhe contou como tinha sido a noite enquanto tomavam um último uísque. Ambos foram cedo para a cama. Sem que ninguém perguntasse, ela revelou que seu irmão parecia perfeitamente normal ao voltar, embora ambos estivessem cansados. Ele tinha comparecido a uma cena de crime na noite anterior e perdido algumas horas de sono. Ocasionalmente, ela contava mesmo com a sra. Bidwell, por exemplo,
antes e depois do jantar que ela e Howarth ofereceram logo após a sua chegada, mas certamente não a chamaria em um dia que tinha de trabalhar no laboratório. Dalgliesh perguntou: “Seu irmão lhe contou que saiu do concerto depois do intervalo?” “Ele me disse que ficou sentado em um túmulo uma meia hora, meditando sobre a mortalidade. Imagino que, naquele estágio de coisas, devia estar achando os mortos mais interessantes do que os vivos.” Dalgliesh olhou para o imenso teto côncavo de madeira. “Deve ser caro manter este lugar aquecido no inverno. Qual é o sistema de aquecimento?” Mais uma vez houve um rápido lampejo dissimulado de azul. “É aquecimento central a gás. Não temos lareira. É uma das coisas de que sentimos falta. Portanto, não poderíamos ter queimado o guarda-pó de Paul Middlemass. Na verdade, seria uma bobagem tentar. O plano mais sensato seria encher de pedras os bolsos do guarda-pó e jogar no dique de Leamings. Você provavelmente ia acabar pescando o avental, mas não vejo como isso poderia ajudar a descobrir quem foi que jogou lá. Isso é o que eu teria feito.” “Não teria, não”, Dalgliesh disse suavemente. “A peça não tinha bolsos.” Ela não se ofereceu para acompanhá-los até a porta, mas Howarth estava esperando ao pé da escada. Dalgliesh disse: “O senhor não me contou que sua irmã era amante de Lorrimer. Será que se convenceu de fato de que isso não era relevante?” “Para a morte dele? Por que seria? Pode ter sido relevante para a vida dele. Duvido muito que tenha sido para a dela. E não sou guarda de minha irmã. Ela é capaz de falar por si mesma, como o senhor já deve ter descoberto.” Acompanhou-os até o carro, escrupuloso como um anfitrião que quer se livrar de hóspedes inconvenientes. Dalgliesh perguntou, com a mão na porta do carro: “O número 1840 significa alguma coisa para o senhor?” “Em que contexto?” “No que quiser.” Howarth disse, calmo: “Whewell publicou A filosofia das ciência indutivas; nasceu Tchaikovsky; Berlioz compôs a Symphonie Funèbre et Triomphale. Acho que meu conhecimento desse ano pouco notável se limita a isso. Ou, se quiser outro contexto, é a razão entre a massa do próton e a massa do elétron.” Massingham disse do outro lado do Rover: “Acho que é 1836, a menos que se queira arredondar. Boa noite, senhor.” Quando estavam virando para a estrada, Dalgliesh perguntou: “Como é que você lembra esse tipo de informação absolutamente irrelevante?”
“Da escola. Podia haver desigualdade quanto às classes sociais, mas o ensino era bom. É um número que fica na cabeça.” “Não na minha. O que achou da senhora Schofield?” “Não esperava que ela fosse assim.” “Tão atraente, tão talentosa ou tão arrogante?” “As três coisas. O rosto dela me lembra alguém, uma atriz. Francesa, acho.” “Simone Signoret quando moça. Incrível você ter idade para lembrar uma coisa dessas.” “Ano passado assisti à reprise de Casque d’Or.” Dalgliesh disse: “Ela nos contou pelo menos uma mentirinha”. Além da mentira principal que ela pode ou não ter contado, pensou Massingham. Era experiente o suficiente para saber que a mentira central, a afirmação de inocência, é que era a mais difícil de detectar. E as pequenas e engenhosas invenções, quase sempre desnecessárias, que no fim confundem e entregam. “Qual, senhor?” “Sobre o lugar onde ela e Lorrimer faziam amor, no banco de trás do carro. Não acredito nisso. Você acredita?” Era raro Dalgliesh perguntar a um subordinado tão diretamente. Desconcertado, Massingham sentiu-se testado. Pensou bem antes de responder. “Psicologicamente seria errado. É uma mulher exigente, que gosta do conforto, e que tem em alta conta a própria dignidade. E deve ter assistido à remoção do corpo do marido de dentro das ferragens do carro depois do acidente em que ela estava dirigindo. De alguma forma, acho que não ia gostar de fazer sexo dentro do carro de ninguém. A menos, claro, que esteja tentando exorcizar essa lembrança. Podia ser isso.” Dalgliesh sorriu. “Na verdade, eu estava pensando por um lado menos esotérico. Um Jaguar escarlate, último modelo, dificilmente seria um veículo discreto para ficar rodando pelo campo com o amante. E o velho senhor Lorrimer disse que o filho quase nunca saía de casa de noite, a menos que fosse para a cena de algum crime. Essas coisas são imprevisíveis. Por outro lado, freqüentemente ficava até tarde no laboratório. Pode ser que nem toda essa demora fosse trabalho. Acho que ele e a sra. Schofield tinham um local de encontros bem perto daqui.” “Acha que é importante, senhor?” “Importante a ponto de fazer com que ela mentisse. Por que haveria de se importar de nós sabermos como eles se divertiam? Eu poderia entender se dissesse que não tínhamos nada a ver com isso. Por que se dar ao trabalho de mentir? Houve também um outro momento em que ela perdeu muito brevemente
a compostura. Foi quando falou da arquitetura das igrejas do século XVII. Fiquei com a impressão de que houve um breve momento, quase imperceptível, de confusão, quando ela se deu conta de que tinha tropeçado dizendo algo indiscreto, ou pelo menos algo que preferia não ter dito. Amanhã, depois de terminadas as entrevistas, vamos dar uma olhada na capela do Hoggatt.” “Mas o sargento Reynolds já deu uma olhada lá hoje de manhã, senhor, depois que fizemos a busca no prédio. É só uma capela vazia, trancada. Não encontrou nada.” “Provavelmente porque não há nada para encontrar. É só um palpite. Agora é melhor a gente ir para a entrevista coletiva em Guy’s Marsh e depois trocar uma palavrinha com o chefe de polícia, se ele já tiver voltado. Também gostaria de ver Brenda Pridmore outra vez. E quero passar mais tarde na Velha Reitoria para trocar uma palavra com o doutor Kerrison. Mas isso pode esperar até descobrirmos o que a senhora Gotobed, do Moonraker, pode oferecer de jantar.”
6
Vinte minutos depois, na cozinha de Leamings, uma incongruente mistura de laboratório e domesticidade rústica, Howarth estava misturando sauce vinaigrette. O cheiro enjoativo, pungente do óleo de oliva, desenhando uma fina curva dourada ao sair da boca do frasco, despertou, como sempre, lembranças da Itália e de seu pai, um diletante colecionador de bugigangas, que passava a maior parte do ano na Toscana ou em Veneza, e cuja vida auto-indulgente, hipocondríaca e solitária havia terminado, bem adequadamente, uma vez que ele parecia abominar a velhice, no dia de seus cinqüenta anos. Para seus dois filhos sem mãe, o pai era mais um enigma do que um estranho, raramente ao lado deles em pessoa, sempre presente misteriosamente em suas mentes. Maxim tinha uma lembrança de sua figura em robe de chambre estampado de roxo e ouro, parado ao pé de sua cama naquela noite extraordinária de vozes abafadas, passos correndo, silêncios inexplicáveis, em que morreu sua madrasta. Estava passando em casa as férias da escola, tinha oito anos, ignorado na crise da doença, assustado e solitário. Lembrava-se claramente da voz fina, muito cansada de seu pai, já assumindo os langores da dor. “Sua madrasta morreu faz dez minutos, Maxim. Prova que o destino não quer mesmo que eu seja marido. Não quero mais correr o risco de uma dor dessas. Você, meu menino, deve cuidar de sua irmã. Conto com você.” E uma mão fria pousou em seu ombro, displicente, como se lhe atribuísse aquele fardo. Ele o aceitou, literalmente, aos oito anos de idade, e nunca o deixou cair. De início, a enormidade daquela confiança o deixou horrorizado. Lembrava-se como havia ficado lá deitado, apavorado, olhando a escuridão. Cuidar de sua irmã. Domenica tinha três meses. Como poderia cuidar dela? O que daria para ela comer? Como vesti-la? E a escola? Não iam deixar que ficasse em casa cuidando da irmã. Deu um sorriso torto ao recordar do alívio que sentiu na manhã seguinte, ao saber que a babá continuaria trabalhando. Lembrava-se de seus primeiros esforços para assumir responsabilidades, pegando decididamente o guidão do carrinho, empenhado em empurrá-lo por Broad Walk, lutando para erguer Domenica até o cadeirão. “Deixe comigo, Master Maxim. Você está atrapalhando em vez de ajudar.” Mas depois a babá começou a perceber que ele estava se transformando em ajuda e não em estorvo, que o bebê podia ser deixado com ele em segurança, enquanto ela e a única outra criada da casa se dedicavam aos seus próprios interesses, sem vigilância. A maior parte de suas férias ele passou ajudando a
cuidar de Domenica. Por intermédio do advogado, o pai mandava de Roma, Verona, Florença e Veneza instruções sobre mesadas e escola. Era ele quem ajudava a comprar as roupas, a levava para a escola, a consolava e aconselhava. Tinha tentado apoiar a irmã pelas agonias e incertezas da adolescência, antes mesmo de ter saído da sua. Tinha sido seu defensor contra o mundo. Sorriu, lembrando do telefonema que recebeu em Cambridge, pedindo que fosse buscála aquela mesma noite “na frente do estádio de hóquei, aquela casa de tortura assustadora, à meia-noite. Eu desço pela saída de incêndio. Prometa”. E depois o código secreto de rebeldia e fidelidade: “Contra mundum”. “Contra mundum”. O pai voltou da Itália tão pouco perturbado pelo insistente chamado da reverenda madre que era evidente que já devia estar pensando em voltar. “A saída de sua irmã foi, sem dúvida, desnecessariamente excêntrica. Encontro à meia-noite. Dramática corrida de carro atravessando metade da Inglaterra. A madre superiora parecia particularmente aflita porque ela deixou para trás o baú, se bem que eu posso imaginar como teria sido incômodo sair com ele pela escada de incêndio. E você deve ter passado a noite inteira fora da escola. Seu tutor não deve ter gostado disso.” “Eu agora sou pós-graduando, pai. Tirei meu diploma faz um ano e meio.” “É mesmo. O tempo passa tão depressa na minha idade. Física, não foi? Estranha escolha. Não podia ter ido buscar sua irmã depois da aula do jeito normal?” “Queríamos estar o mais longe possível daquele lugar antes deles descobrirem que ela tinha ido embora, antes que começassem a procurar.” “Boa estratégia, por sinal.” “Dom detesta a escola, pai. Está completamente infeliz lá.” “Eu também me sentia assim na escola, mas nunca pensei em querer outra coisa. A reverenda madre parece uma mulher encantadora. Uma certa tendência ao mau hálito quando fica nervosa, mas acho que isso não deve ter incomodado sua irmã. Dificilmente tiveram algum contato mais íntimo. Por falar nisso, ela não está disposta a receber Domenica de volta.” “Será que Domenica precisa ir para outro internato, pai? Tem quase quinze anos. Não precisa ir para a escola. E quer ser pintora.” “Talvez ela possa ficar em casa até ter idade para ir para a escola de arte, se é isso que você aconselha. Mas não vale a pena abrir a casa de Londres só para uma pessoa. Devo voltar para Veneza a semana que vem. Só vim para consultar o doutor Mavers-Brown.” “Quem sabe ela podia ir para a Itália com você por um mês ou dois. Ela ia adorar ver a Accademia. E tem de conhecer Florença.”
“Ah, acho que não vai dar, filho. Isso está fora de questão. Seria muito melhor ela alugar um quarto em Cambridge e você ficar de olho nela. Tem uns quadros bem agradáveis no Museu Fitzwilliam. Ah, meu Deus, que responsabilidade são os filhos! Não é nada bom eu me preocupar assim no meu estado de saúde. Mavers-Brown insiste que eu tenho de evitar a ansiedade.” E ele agora jaz, guardado em sua definitiva auto-suficiência, naquele que é o mais bonito dos cemitérios, o Cemitério Britânico de Roma. Ele teria gostado disso, pensou Maxim, se fosse capaz de tolerar a idéia da própria morte, assim como teria deplorado o superagressivo motorista italiano cuja velocidade mal calculada na esquina da Via Vittoria com o Corso o havia mandado para lá. Ouviu os passos da irmã na escada. “Então, foram embora.” “Faz uns vinte minutos. Tivemos uma breve escaramuça de despedida. Dalgliesh ofendeu você?” “Não mais do que eu a ele. Ficamos quites, eu diria. Acho que não gosta de mim.” “Acho que não gosta muito de ninguém. Mas é considerado altamente inteligente. Acha que é atraente?” Ela respondeu à pergunta não formulada. “Seria como fazer amor com um carrasco.” Molhou o dedo no molho vinagrete. “Vinagre demais. O que você estava fazendo?” “Além de cozinhar? Pensando em papai. Sabe, Dom, quando eu tinha onze anos me convenci totalmente de que ele tinha matado nossas mães.” “As duas? Quer dizer, a sua e a minha? Que idéia estranha. Como ele poderia fazer isso? A sua morreu de câncer e a minha de pneumonia. Não dava para provocar isso.” “Eu sei. Só que ele parecia um viúvo tão natural. Na época, achei que tinha feito isso para impedir que elas tivessem mais bebês.” “Bom, teria impedido de fato. Estava pensando se a tendência ao assassinato é herdada?” “Não exatamente. Mas tanta coisa é. A total inabilidade de papai estabelecer relacionamentos, por exemplo. A incrível absorção em si mesmo. Sabe que ele chegou a me matricular em Stonyhurst antes de lembrar que a sua mãe, não a minha, é que era católica?” “Pena que ele descobriu. Eu ia adorar ver o que os jesuítas teriam feito de você. O problema da educação religiosa, se você é pagão, como eu, é que você passa o resto da vida com a sensação de que perdeu alguma coisa, não de que essa coisa não estava lá.”
Foi até a mesa e mexeu com o dedo a tigela de cogumelos. “Sou capaz de fazer relacionamentos. O problema é que enjôo logo e eles não duram muito. E parece que só sei ser boa de um jeito. Que bom que a gente se entende, não é? Meus sentimentos por você vão durar até eu morrer. Vou me trocar agora ou quer que eu veja o vinho?” “Vão durar até eu morrer.” Contra mundum. Era tarde demais para cortar aquele cordão, mesmo que ele quisesse. Lembrou da cabeça enfaixada de Charles Schofield, os olhos moribundos ainda maliciosos por trás das duas fendas das bandagens, os lábios inchados se mexendo dolorosamente. “Parabéns, Giovanni. Lembre de mim no seu jardim de Parma.” O que era muito incrível não era a mentira em si, ou o fato de Schofield ter acreditado nela, ou fingido acreditar, mas sim ele odiar tanto o cunhado a ponto de morrer com aquele escárnio nos lábios. Ou será que tinha pensado que um físico, pobre burguês, não conheceria os seus dramaturgos jacobinos? Até a mulher dele, aquela incansável sofisticada sexual, sabia que sim. “Vocês bem que dormiriam juntos se Domenica inventasse de querer. Ela não ia se preocupar com uma pitada de incesto. Mas vocês não precisam disso, não é? Não precisam de nada tão normal quanto o sexo para serem mais do que já são um para o outro. Nenhum dos dois quer mais ninguém. Por isso é que eu estou indo embora. Vou enquanto ainda resta um pouco de mim para ir embora.” “Max, o que foi?” A voz de Domenica, afiada de ansiedade, o trouxe de volta ao presente. A cabeça dele girou por um caleidoscópio de anos, por um turbilhão de imagens sobrepostas da infância e da juventude, até aquela última imagem inesquecível, imóvel, perfeitamente em foco, gravada para sempre em sua memória, os dedos mortos de Lorrimer em garra no chão do laboratório, o olho semi-aberto e opaco de Lorrimer, o sangue de Lorrimer. Ele disse: “Vá se trocar. Eu cuido do vinho.”
7
“O que os outros vão dizer?” “Você só pensa nisso, mãe, o que as pessoas vão dizer. O que interessa o que elas dizem? Não fiz nada para me envergonhar.” “Claro que não. Se alguém falar alguma coisa, seu pai vai lá tomar uma atitude. Mas você sabe como são as línguas nesta aldeia. Mil libras. Eu mal podia acreditar quando aquele advogado ligou. É uma boa quantia. E quando Lillie Pearce contar a novidade para o Stars and Plough inteiro, na certa serão dez mil, isso sim.” “E quem é que liga para Lillie Pearce, aquela vaca.” “Brenda! Não admito que fale assim. E temos que viver nesta aldeia.” “Você tem. Eu não. E se a cabeça deles é assim, quanto mais cedo eu for embora melhor. Ah, mãe, não fique assim! Ele só queria me ajudar, queria ser bonzinho. E provavelmente fez isso num impulso.” “Mas não foi muita consideração dele, não. Podia ter conversado com seu pai ou comigo.” “Mas ele não sabia que ia morrer.” Brenda e a mãe estavam sozinhas na casa de fazenda. Arthur Pridmore tinha saído depois do jantar para a reunião mensal do Conselho da Igreja Paroquial. Tinham acabado de arrumar a cozinha e a longa noite se estendia diante delas. Inquietas demais para se acomodar em frente da televisão e preocupadas demais com os extraordinários acontecimentos do dia para pegar um livro, as duas se sentaram diante da lareira, nervosas, meio excitadas, meio temerosas, sentindo falta do vulto tranqüilizador de Arthur em sua cadeira de encosto alto. Então, a sra. Pridmore sacudiu-se de volta à normalidade e pegou a cesta de costura. “Bom, pelo menos vai ajudar a fazer um belo casamento. Se você tem de aceitar, melhor aplicar no Correio. Assim rende juros e vai estar lá quando você precisar.” “Preciso agora. Para comprar livros e um microscópio como queria o doutor Lorrimer. Foi para isso que deixou o dinheiro para mim e é isso que vou fazer com ele. Além disso, se as pessoas deixam dinheiro com uma finalidade específica, não se pode usar para outra coisa. E nem quero. Vou pedir para papai fazer uma estante e uma bancada de trabalho no meu quarto e vou começar já a trabalhar para os meus graus A em ciência.” “Ele não devia ter pensado em você. E Angela Foley? Ela teve uma vida terrível, aquela menina. Nunca recebeu nem um tostão do testamento da avó, e agora isso.”
“Não é problema nosso, mãe. A decisão foi dele. Quem sabe teria deixado para ela se não tivessem brigado.” “O que você quer dizer com isso, brigado? Quando?” “Semana passada. Terça-feira, acho. Foi um pouco antes de eu voltar para casa e a maioria dos funcionários já tinha saído. O inspetor Blakelock me mandou subir para a Biologia com uma dúvida num dos relatórios para o tribunal. Os dois estavam juntos na sala do doutor Lorrimer e ouvi parte da discussão. Ela estava pedindo dinheiro e ele disse que não ia dar nada para ela e falou alguma coisa de mudar o testamento.” “Quer dizer que ficou lá ouvindo?” “Bom, não tinha como evitar, tinha? Estavam falando bem alto. Ele disse coisas horríveis de Stella Mawson, sabe, aquela escritora que vive com Angela Foley. Eu não estava escutando de propósito. Não escutei por querer.” “Podia ter ido embora.” “E descer até o saguão para voltar a subir? Eu tinha mesmo de falar com ele sobre o caso Munnings. Não podia voltar e dizer para o inspetor Blakelock que não tinha resposta porque o doutor Lorrimer estava discutindo com a prima. Além disso, a gente sempre escutava segredos na escola.” “Não está mais na escola agora. Realmente, Brenda, você às vezes me deixa preocupada. Uma hora se comporta como uma adulta sensata, logo em seguida parece que voltou para o primário. Já tem dezoito anos, já é adulta. O que a escola tem a ver com isso?” “Não sei por que você está ficando tão nervosa. Não contei para ninguém.” “Bom, vai ter de contar para aquele detetive da Scotland Yard.” “Mãe! Não posso! Isso não tem nada a ver com o assassinato.” “Quem sabe? Você tem de contar para a polícia tudo o que possa ser importante. Ele não disse isso para você?” Foi exatamente isso. Brenda se lembrava da expressão dele e da sua cara ficando vermelha. Ele sabia que ela estava escondendo alguma coisa. Disse, num desafio teimoso: “Bom, não posso acusar Angela Foley de assassinato, e isso seria praticamente uma acusação. Além disso”, acrescentou triunfante, lembrando algo que o inspetor Blakelock tinha lhe dito, “seria boato, não prova de verdade. Ele não ia dar importância para uma coisa dessas. Além disso, mãe, tem outra coisa. Suponha que ela não achasse realmente que o primo fosse mudar o testamento tão logo. Aquele advogado disse que o doutor Lorrimer fez o novo documento na sexta-feira passada, não foi? Bom, provavelmente ele fez isso porque teve de ir para a cena do crime em Ely naquela sexta de manhã. A polícia só telefonou às dez horas. Deve ter sido quando foi procurar o advogado.”
“O que quer dizer com isso?” “Nada. Só que se as pessoas acharem que eu tinha um motivo, ela também tinha.” “Mas é claro que você não tinha motivo nenhum! Isso é ridículo. É uma maldade! Ah, Brenda, se você pelo menos tivesse ido ao concerto comigo e com seu pai.” “Não, muito obrigada. Ouvir a senhorita Spencer cantando ‘As pálidas mãos que eu amava’ e os meninos da Escola Dominical fazendo aquela dança do mastro, e as mulheres do Instituto Feminino com os sinos de mão e o velho senhor Matthews batendo suas conchas acústicas? Já vi demais isso tudo.” “Mas você teria um álibi.” “Também teria se você e papai tivessem ficado aqui em casa comigo.” “Isso não teria importância se não fosse essas mil libras. Bom, vamos esperar que Gerald Bowlem entenda.” “Se ele não entender, sabe muito bem o que pode fazer! Não vejo o que isto aqui tem a ver com Gerald. Não sou casada com ele, nem noiva, nem nada. É melhor ele não se meter.” Olhou para a mãe e ficou horrorizada de repente. Só tinha visto a mãe daquele jeito uma única vez, na noite em que ela sofreu o segundo aborto e o dr. Greene contou que nunca mais poderia ter outro filho. Brenda tinha apenas doze anos na época. Mas o rosto de sua mãe, subitamente relembrado, era exatamente como agora, como se uma mão invisível tivesse passado sobre ele, apagando o seu brilho, borrando os contornos de faces e sobrancelhas, embaçando os olhos, deixando uma máscara amorfa de desolação. Lembrou-se e entendeu o que antes havia apenas sentido, a raiva e o ressentimento de ver que sua mãe, indestrutível e reconfortante como uma grande rocha em uma terra exausta, também podia ser vulnerável à dor. Estava ali para aplacar as aflições de Brenda, não para sofrer, para confortar, não para buscar conforto. Mas agora Brenda estava mais velha e podia entender. Viu a mãe com clareza, como uma estranha que acabasse de conhecer. O vestido barato, imaculadamente limpo, como sempre, com o broche que Brenda lhe dera no último aniversário preso na lapela. Os tornozelos grossos acima dos sapatos discretos de salto baixo, as mãos gordas com as manchas escuras de idade, a aliança de ouro fosco enfiada na carne, o cabelo encaracolado que um dia foi vermelho-dourado como o dela, ainda escovado com simplicidade para um lado e preso com uma presilha de tartaruga, a pele fresca, quase sem rugas. Passou os braços pelos ombros da mãe. “Ah, mãe, não se preocupe. Vai dar tudo certo. O comandante Dalgliesh vai descobrir quem fez aquilo e tudo volta ao normal. Olhe, vou fazer um chocolate.
Não vamos esperar papai voltar da reunião. Vamos tomar agora. Mãe, está tudo bem. Está mesmo. Tudo bem.” Simultaneamente, os ouvidos de ambas captaram o ruído do carro chegando. Olharam uma para a outra, sem fala, culpadas como conspiradoras. Não era o velho Morris da família. Quem seria? O Conselho da Igreja Paroquial nunca acabava antes de oito e meia. Brenda foi até a janela e olhou para fora. O carro parou. Ela virou para a mãe, pálida. “É a polícia! É o comandante Dalgliesh!” Sem dizer uma palavra, a sra. Pridmore se levantou, resoluta. Colocou a mão brevemente no ombro da filha, saiu para o corredor, e abriu a porta antes de Massingham levantar a mão para bater. Com lábios rígidos, disse: “Entrem, por favor. Estou contente que estejam aqui. Brenda tem uma coisa para contar, uma coisa que acho que devem saber.”
8
O dia estava quase encerrado. De robe de chambre, sentado à mesinha diante da janela de seu quarto no Moonraker, Dalgliesh ouviu o relógio da igreja tocar as onze e meia. Gostou do quarto. Era o maior dos dois que a sra. Gotobed podia oferecer. A janela única dava para o cemitério da igreja do lado do salão da aldeia e além dele para a galeria e a torre quadrada de pedra da Igreja de St. Nicholas. Havia apenas três quartos na hospedaria. O menor e mais barulhento, que ficava em cima do pub, ficou para Massingham. O quarto principal já estava ocupado por um casal americano viajando por East Anglia, talvez em busca de lembranças de família. Tinham se sentado na mesma mesa dele, alegremente ocupados com mapas e guias, e se é que ficaram sabendo que seus recémchegados companheiros de mesa eram policiais investigando um assassinato, foram bem-educados demais para revelar qualquer interesse. Depois de um breve sorriso e um boa-noite macio em seu sotaque transatlântico, voltaram toda a atenção para o excelente ensopado de lebre com cidra preparado pela sra. Gotobed. Estava tudo muito quieto. As vozes abafadas do pub haviam silenciado há muito. Fazia mais de uma hora que ele ouvira os últimos gritos de despedida. Massingham, ele sabia, havia passado a primeira parte da noite no pub, esperando, talvez, colher alguma informação útil. Dalgliesh esperava que a cerveja estivesse gostosa. Nascera suficientemente perto dos pântanos para saber que, se não fosse assim, Massingham ia achar a noite frustrante. Levantou-se para esticar as pernas e os ombros, olhando o quarto com aprovação. As tábuas do chão eram de carvalho antigo, escuras e sólidas como pranchas de navio. Na lareira queimava um fogo de lenha e turfa atrás da grade vitoriana de ferro, a fumaça penetrante subindo pela chaminé decorada com espigas de trigo e flores secas amarradas com fita. A grande cama de casal era de latão, alta e enfeitada nos quatro cantos com punhos grandes como balas de canhão. Antes, a sra. Gotobed havia dobrado a colcha de crochê, revelando um acolchoado de plumas fofo e convidativo. Em qualquer hotel quatro estrelas podia ter encontrado mais luxo, porém dificilmente tal conforto. Voltou ao trabalho. Tinha sido um dia ocupado com interrogatórios e mais interrogatórios, telefonemas a Londres, uma entrevista coletiva marcada às pressas e muito insatisfatória, duas consultas ao chefe de polícia, a coleta dos pedaços de informação e as conjecturas que, no final, se juntariam para formar o quadro completo. Podia ser uma analogia banal, essa comparação do trabalho
detetivesco com a montagem das peças de um quebra-cabeça. Mas era bem adequada, principalmente porque muitas vezes o pedaço fugidio, tentador, que faltava, era a parte vital de um rosto humano, que iria completar o quadro. Virou a página da última entrevista do dia, com Henry Kerrison, na Velha Reitoria. O cheiro da casa ainda estava em seu nariz, um cheiro que evocava comida requentada e lustra-móveis, e lembrava as visitas que fazia em criança junto com seus pais aos vicariatos de aldeia, grandes demais e mal aquecidos. A governanta de Kerrison e seus filhos já estavam na cama fazia tempo e havia na casa um silêncio melancólico e tristonho, como se todas as tragédias e as decepções de seus numerosos encarregados ainda pesassem no ar. Kerrison atendeu pessoalmente à porta e levou Massingham e ele até o escritório onde estava ocupado separando os slides coloridos de ferimentos post mortem para ilustrar uma palestra que ia dar na semana seguinte na escola de treinamento de detetives. Sobre a mesa havia uma foto emoldurada dele menino ao lado de um homem mais velho, evidentemente seu pai. Estavam em cima de um penhasco, escalando com cordas enroladas nos ombros. Além da própria fotografia, o que Dalgliesh achou interessante foi Kerrison não ter se dado ao trabalho de tirá-la dali. Aparentemente, não se incomodara com a chegada das visitas em hora tão avançada. Dava até para acreditar que gostou de sua companhia. Continuara trabalhando à luz da escrivaninha, encaixando cada slide na sua moldura e depois colocando na pilha adequada, atento como um colegial com seu hobby. Respondera às perguntas tranqüila e precisamente, mas como se estivesse pensando em outra coisa. Dalgliesh perguntou se a filha tinha lhe contado sobre o incidente com Lorrimer. “Contou. Contou, sim. Quando cheguei para o almoço, depois da minha palestra, ela estava chorando no quarto. Parece que Lorrimer foi grosseiro sem necessidade. Mas Nell é uma menina sensível e nem sempre dá para saber a verdade objetiva.” “Não conversou com ele a respeito?” “Não conversei com ninguém. Pensei se devia, mas isso significaria perguntar ao inspetor Blakelock e à senhorita Pridmore, e não queria envolver os dois. Eles tinham de trabalhar com Lorrimer. E por sinal eu também. A eficiência de uma instituição independente, como o Hoggatt, depende em grande parte do bom relacionamento entre os membros da equipe. Achei que era melhor não levar o assunto adiante. Pode ter sido prudência, pode ter sido covardia, não sei.” Deu um sorriso triste, e continuou: “Só sei que não era motivo para assassinato.” Motivo para assassinato. Dalgliesh já havia descoberto muitos motivos nesse
primeiro dia ocupado mas não muito satisfatório. Mas o motivo era o fator menos importante em uma investigação de assassinato. Trocaria alegremente as sutilezas psicológicas dos motivos por uma única e indiscutível prova física ligando o suspeito ao crime. E até então não havia nenhuma. Ainda estava esperando que chegassem do Laboratório Metropolitano os relatórios sobre a marreta e sobre o vômito. A figura suspeita que o velho Goddard viu fugindo de Hoggatt continuava misteriosa. Nenhuma outra pessoa tinha sido ainda localizada, nem ninguém havia sugerido que o vulto não passava de fantasia de um velho. As marcas de pneu junto ao portão, agora já definitivamente identificadas pelo catálogo de pneus do laboratório, ainda não estavam vinculadas a nenhum carro. Não era de surpreender que não tivesse sido encontrado nenhum vestígio do guarda-pó de Middlemass, nem qualquer indicação de como e por que havia desaparecido. O exame do salão da aldeia e da fantasia de cavalo não produzira nada que desmentisse o relato de Middlemass para os acontecimentos daquela noite, e aparentemente o cavalo, uma fantasia de lona e sarja pesada e inteiriça, garantia que o portador ficasse incógnito até, no caso de Middlemass, a sola dos elegantes sapatos feitos à mão. O mistério central do caso perdurava. Quem tinha passado aquele recado telefônico para Lorrimer sobre as telas queimadas e o número 1840? Seria a mesma mulher que telefonou para a senhora Bidwell? O que estava escrito na página que faltava no caderno de rascunho de Lorrimer? O que havia levado Lorrimer a fazer aquele testamento extraordinário? Levantando a cabeça das pastas, ficou ouvindo. Havia um ruído, quase imperceptível, como o caminhar de uma miríade de insetos. Lembrou de ouvir esse ruído nas noites de sua infância, acordado na cama de seu quarto no vicariato do pai em Norfolk, um som que nunca tinha ouvido no barulho das cidades, o primeiro, delicado, sibilante murmúrio da chuva noturna. Logo seguido do bater das gotas contra a janela e o gemido do vento na chaminé. O fogo estalou e logo se assanhou. Houve uma violenta rajada de chuva contra a janela e em seguida, tão rápido como havia começado, o breve temporal terminou. Abriu a janela para saborear o cheiro úmido da noite e olhou um lençol de escuridão, a terra negra do pântano fundindo-se com o céu mais pálido. Quando seus olhos se acostumaram com a noite, conseguiu discernir o retângulo baixo do salão da aldeia e, mais adiante, a grande torre medieval da igreja. Em seguida, a lua deslizou para fora das nuvens e o cemitério da igreja ficou visível, os obeliscos e pedras tumulares brilhando, pálidos, como se exsudassem sua própria luz misteriosa. Abaixo dele, vagamente iluminado, estava o caminho de cascalho pelo qual os dançarinos de quadrilha haviam passado, na noite anterior, tilintando seus sinos na neblina que subia. Olhando o
cemitério da igreja visualizou o cavalo galopando ao encontro deles, oscilando a cabeça grotesca entre as sepulturas, batendo a queixada no ar. E imaginou mais uma vez quem estaria dentro da roupa. A porta abaixo de sua janela se abriu e a sra. Gotobed apareceu, chamando o seu gato no escuro: “Snowball! Snowball! Venha para dentro”. Um relâmpago branco passou e a porta fechou. Dalgliesh trancou sua janela e resolveu que ele também ia encerrar o seu dia.
 
 
 
LIVRO QUATRO
 
 
Pendente pelo pescoço
1
O Chalé Sprogg’s, baixo e pesado com seu teto opressivo de sapé, coberto com uma rede de arame para resistir ao vento de inverno, estava quase invisível da estrada. Ficava pouco mais de um quilômetro a noroeste da aldeia, em frente a Sprogg’s Green, um largo gramado triangular plantado com chorões. Empurrando um portão de treliça branco no qual alguém otimista havia inutilmente trocado a palavra Sprogg’s por Lavanda, Dalgliesh e Massingham subiram por um jardinzinho tão arrumado e convencional quanto o de uma mansão suburbana. Uma árvore de acácia plantada no meio do gramado exibia sua glória outonal de vermelho e dourado; a trepadeira de rosas amarelas domesticadas sobre a porta ainda luzia uma vaga ilusão de verão; e um canteiro de gerânios, fúcsias e dálias misturadas, todas sustentadas por estacas e muito bem cuidadas, brilhava contrastante com o bronze de uma cerca viva de faias. Ao lado da porta, havia um cesto de gerânios pendurado, agora já não tão floridos, mas ainda brilhantes com alguns botões magros. A aldrava era um peixe de latão muito polido, com cada escama brilhando. Quem abriu a porta foi uma mulher esguia, quase frágil, descalça, usando um blusão de algodão estampado de verde e marrom sobre a calça de veludo cotelê. Tinha espessos cabelos escuros mesclados de prata e cortados bem curtos, com uma franja pesada que encontrava as sobrancelhas. Seus olhos eram o traço mais marcante, imensos, as íris castanhas pontilhadas de verde, claras e translúcidas debaixo das fortes sobrancelhas arqueadas. Seu rosto era pálido e tenso, marcado por rugas profundas na testa e descendo dos lados do nariz largo até os cantos da boca. Dalgliesh pensou que era o rosto de uma masoquista torturada de um tríptico medieval, os músculos salientes e contraídos como se castigados. Mas ninguém podia, diante do olhar daqueles olhos notáveis, dizer que eram comuns ou sem graça. Dalgliesh falou: “Senhorita Mawson? Eu sou Adam Dalgliesh. Este é o inspetor Massingham.” Ela lhe deu um olhar direto e impessoal, dizendo sem sorrir: “Vamos para o escritório, por favor. Só acendemos o fogo da lareira de noite. Se querem falar com Angela, eu sinto muito, mas ela não está. Foi até o Chalé Postmill com a sra. Swaffield para ver o pessoal da Seguridade Social. Estão tentando convencer o velho Lorrimer a ir para um asilo. Parece que ele está resistindo bravamente aos carinhos da burocracia. Boa sorte para ele.” A porta da frente dava diretamente para uma sala de estar de teto baixo, com vigas de carvalho. A sala o surpreendeu. Era como entrar na sala de um
antiquário, mas daquelas em que o proprietário arruma os seus variados objetos cuidando do efeito geral. O aparador sobre a lareira e cada cantinho tinha um ornamento: três prateleiras cheias de uma variedade de canecas, bules de chá, xícaras pintadas e bibelôs de Staffordshire; e as paredes estavam quase totalmente cobertas com gravuras, velhos mapas emoldurados, pequenas pinturas a óleo, e silhuetas vitorianas em molduras ovais. Acima da lareira estava o objeto mais espetacular de todos, uma espada curva em sua bainha finamente lavrada. Imaginou se a sala refletia simplesmente um impulso comprador indiscriminado, ou se esses objetos cuidadosamente expostos serviam como talismãs reconfortantes contra os espíritos indomados dos pântanos circundantes. Na lareira aberta, a pilha de lenha estava preparada, mas não acesa. Debaixo de uma janela, a mesa desdobrável envernizada já estava arrumada para dois. A srta. Mawson conduziu os dois até seu estúdio. Era uma sala menor, menos cheia, com uma janela de treliça dando para uma vista do terraço de pedra, um gramado com um relógio de sol no centro, e um vasto campo de beterrabas ainda não colhidas. Ele registrou, interessado, que ela escrevia à mão. Havia uma máquina de escrever, mas ficava em uma mesa isolada. Sobre a escrivaninha de trabalho abaixo da janela havia apenas uma pilha de papel em branco, coberto com uma escrita elegante em preto. As linhas se distribuíam cuidadosamente pelo papel e até as margens eram alinhadas. Dalgliesh disse: “Sinto estar interrompendo seu trabalho.” “Não está, não. Sentem, por favor. Hoje não está indo bem. Se estivesse, eu teria pendurado um aviso de ‘Não Perturbe’ na porta e vocês não teriam entrado. E já estou quase terminando, só falta mais um capítulo. Acho que querem que eu forneça um álibi para Angela. Colaborar com a polícia, não é assim que se diz? O que nós duas estávamos fazendo quarta-feira à noite. E quando, onde, por que, com quem.” “Queremos, sim, fazer algumas perguntas.” “Mas essa primeiro, claro. Não tem problema nenhum. Passamos a noite juntas, desde as seis e quinze, hora que ela chegou em casa.” “Fazendo o quê, senhorita Mawson?” “O que fazemos normalmente. Nós separamos o dia da noite, eu com uísque, Angela com xerez. Perguntei como foi o seu dia e ela quis saber como foi o meu. Aí ela acendeu a lareira e fez o jantar. Comemos abacate com sauce vinaigrette, ensopado de galinha, queijo e bolachas. Arrumamos a cozinha juntas e Angela datilografou o manuscrito para mim até as nove. Nessa hora, ligamos a televisão, vimos o noticiário, e depois um filme. Isso foi até quinze para as onze, chocolate para Angela, uísque para mim, e cama.”
“Nenhum das duas saiu do chalé?” “Não.” Dalgliesh perguntou quanto tempo fazia que morava ali. “Eu? Oito anos. Nasci nos pântanos, em Soham, na verdade, e passei a maior parte da minha infância aqui. Mas fui para a Universidade de Londres quando tinha dezoito anos, tirei o diploma, e depois trabalhei sem grande sucesso em diversos empregos como jornalista e editora. Vim para cá faz oito anos quando ouvi dizer que o chalé estava para alugar. Foi quando resolvi desistir do emprego e me dedicar exclusivamente a escrever.” “E a senhorita Foley?” “Ela veio morar aqui faz dois anos. Coloquei um anúncio procurando uma datilógrafa para meio período e ela se apresentou. Na época, estava morando de aluguel em Ely e não estava contente lá. Por isso sugeri que mudasse para cá. Ela dependia do ônibus para vir trabalhar. Morar aqui é muito mais conveniente para ir ao laboratório.” “Então mora na aldeia há tempo suficiente para conhecer bastante gente?” “O quanto se conhece no pântano. Mas não o bastante para apontar com o dedo o assassino que está procurando.” “Conhecia bem o doutor Lorrimer?” “De vista. Não sabia que Angela era prima dele até ela vir morar comigo. Eles não eram próximos e ele nunca veio aqui. Conheço a maior parte dos funcionários do laboratório, naturalmente. O doutor Howarth fundou um quarteto de cordas logo depois que chegou, e no último mês de agosto deu um concerto na capela Wren. Depois serviram queijo e vinho no saguão. Conheci muitos funcionários aí. Na verdade, eu já conhecia de vista e de nome, como sempre acontece numa aldeia. Freqüentamos o mesmo correio, o mesmo pub. Mas se está procurando boatos da aldeia ou do laboratório, não adianta falar comigo.” Dalgliesh disse: “Foi bom o concerto da capela?” “Não muito. Howarth é um bom violinista amador e Claire Easterbrook é competente no violoncelo, mas os outros dois não rendiam muito. Ele não repetiu a experiência. Fiquei sabendo que fizeram comentários desagradáveis sobre um recém-chegado achar que era seu dever civilizar os nativos subdesenvolvidos, e isso deve ter chegado aos ouvidos dele. Ele dá mesmo a impressão de achar que faz sozinho com uma mão nas costas uma ponte sobre o abismo cultural entre o cientista e o artista. Ou talvez não tenha gostado da acústica. Minha opinião é que os outros não quiseram continuar tocando com ele. Como líder do quarteto ele deve ter se comportado com a mesma arrogância que
usa como diretor. O laboratório sem dúvida está mais eficiente, o rendimento do trabalho melhorou vinte por cento. Se a equipe está contente, isso é outro assunto.” Então, ela não era assim tão imune à fofoca do laboratório e da aldeia, pensou Dalgliesh. Imaginou por que estaria sendo tão franca. Com a mesma franqueza, perguntou, direto: “Ontem, quando esteve no Chalé Postmill, a senhora subiu até o primeiro andar?” “Estranho o velho ter dito isso! O que será que ele achou que eu estava querendo? Só fui ao banheiro ver se encontrava uma lata de sapólio para limpar a pia. Não achei.” “Sabe do testamento do doutor Lorrimer, não?” “Acho que a aldeia inteira já sabe. Na verdade, talvez eu tenha sido uma das primeiras a saber. O velho estava agitado, querendo saber como ficaria sua situação financeira. Por isso, Angela telefonou para o advogado. Ela já o conhecia da época do testamento da avó. E o major Hunt contou que o chalé e mais dez mil libras seriam do velho. Assim, pôde sossegar a cabeça dele.” “E a senhorita Foley não recebe nada?” “Isso mesmo. Parece que aquela nova recepcionista do laboratório, que caiu nas graças do Edwin, vai receber mil libras.” “Um testamento não muito justo.” “Já encontrou algum beneficiário que considere justo um testamento? O testamento da avó dele foi pior. Angela perdeu o dinheiro numa época que aquilo podia ter mudado a vida dela. Agora não precisa mais. Nós duas nos viramos muito bem aqui.” “É de supor que não tenha sido um choque para ela. Ele não tinha contado suas intenções?” “Se esse é um jeito cuidadoso de descobrir se ela tinha motivo para o assassinato, pode perguntar para ela mesma. Está chegando.” Angela Foley entrou pela sala, desamarrando o lenço da cabeça. Seu rosto ficou sombrio ao ver os visitantes. Incomodada, disse, rápida e na defensiva: “A senhorita Mawson gosta de passar a manhã trabalhando. Os senhores poderiam ter avisado que viriam.” A amiga riu. “Eles não me incomodaram. Está sendo útil aprender os métodos da polícia. São eficientes, sem ser grosseiros. Voltou cedo.” “O Departamento de Serviço Social telefonou dizendo que eles só podem chegar depois do almoço. O tio não quer receber essa gente, mas quer me ver menos ainda. Está almoçando com os Swaffield na reitoria, então achei que era
melhor voltar para casa.” Stella Mawson acendeu um cigarro. “Chegou numa boa hora. O senhor Dalgliesh estava perguntando com muito tato se você tinha motivo para assassinar seu primo. Em outras palavras, se Edwin contou para você que estava a ponto de modificar o testamento.” Angela Foley olhou, calma, para Dalgliesh: “Não. Ele nunca discutiu seus problemas comigo e eu não discutia os meus com ele. Acho que não converso com ele faz dois anos, a não ser sobre coisas do laboratório.” Dalgliesh disse: “É estranho, sem dúvida, que ele tenha resolvido mudar um testamento feito há muito tempo sem falar com você a respeito, não?” Ela deu de ombros, e explicou: “Eu não tinha nada a ver com isso. Ele era só meu primo, não meu irmão. Edwin pediu transferência do Laboratório Sul para o Hoggatt faz cinco anos, para morar com o pai, não porque eu morava aqui. Ele não me conhecia de fato. Se conhecesse, duvido que tivesse gostado de mim. Não me devia nada, nem justiça.” “E você gostava dele?” Ela fez uma pausa e pensou, como se ela própria estivesse procurando uma resposta para aquela pergunta. Apertando os olhos, Stella Mawson ficou olhando para ela através da fumaça do cigarro. A senhorita Foley falou então: “Não. Eu não gostava dele, não. Acho até que tinha um pouco de medo. Era um homem psicologicamente pesado, inseguro do seu lugar na vida. Ultimamente, a tensão e a infelicidade dele eram quase palpáveis. Eu achava embaraçoso e, bom, um pouco ameaçador. As pessoas mais seguras de si pareciam não notar ou não se incomodar com isso. Mas os mais inseguros se sentiam ameaçados. Acho que era por isso que Clifford Bradley tinha tanto medo dele.” Stella Mawson disse: “Bradley provavelmente fazia Edwin lembrar dele mesmo quando jovem. Era dolorosamente inseguro, até no trabalho, quando começou. Lembra como ele costumava ensaiar seu depoimento na véspera de se apresentar no tribunal? Escrevia todas as perguntas que o advogado de defesa poderia fazer, tomando o cuidado de saber as respostas palavra por palavra, aprendendo de cor todas as fórmulas científicas para impressionar o júri? Ele se atrapalhou todo em um dos seus primeiros casos e nunca perdoou a si mesmo.” Fez-se um breve e estranho silêncio. Angela Foley parecia prestes a falar, mas mudou de idéia. Seu olhar enigmático estava pregado na amiga. Os olhos de
Stella Mawson se desviaram. Ela foi até a escrivaninha e apagou o cigarro. Disse: “Foi sua tia que contou para você. Ela costumava ler as perguntas para ele muitas e muitas vezes. Noites de tensão e incompreensível tédio. Não se lembra?” “Lembro”, disse Angela com sua voz aguda e controlada. “Lembro, sim.” Virouse para Dalgliesh. “Se não tem mais nada para me perguntar, eu tenho uma porção de coisas para fazer. O doutor Howarth sabe que só vou ao laboratório à tarde. E Stella deve estar querendo trabalhar.” As duas mulheres os acompanharam até a porta, e ficaram paradas junto ao batente como quem apressa polidamente os convidados que vão embora. Dalgliesh estava quase esperando que acenassem uma despedida. Não tinha interrogado a srta. Foley sobre a discussão com o primo. Chegaria a hora para isso, mas não ainda. Tinha achado interessante, mas não surpreendente, que ela mentisse. Porém, o que mais chamou sua atenção tinha sido a história de Stella Mawson, de que Lorrimer ensaiava seus depoimentos na véspera de um julgamento. Alguém havia lhe contado isso, e ele tinha quase certeza que não tinha sido Angela Foley. Enquanto se afastavam de carro, Massingham disse: “Cinqüenta mil libras teriam transformado toda a vida dela, dado uma certa independência, e uma chance de sair daqui. Que vida é essa para uma moça, as duas sozinhas, empacadas aqui neste pântano isolado? E ela não parece ser muito mais que um burro de carga.” Dalgliesh, para variar um pouco, estava dirigindo. Massingham observava pelo retrovisor seus olhos sombrios, as mãos compridas pousadas levemente na direção, quando ouviu a voz do chefe: “Estou lembrando de uma coisa que o velho George Greenhall, o primeiro sargento-detetive com quem trabalhei, me falou uma vez. Fazia vinte e cinco anos que ele estava no DIC. Não se surpreendia mais com as pessoas, não ficava chocado com nada. Ele me alertou: ‘Vão dizer que a força mais destrutiva do mundo é o ódio. Mas não acredite nisso, não, rapaz. É o amor. E se você quer ser detetive é melhor aprender a identificar o amor quando ele aparecer na sua frente’.”
2
Brenda chegou mais de uma hora atrasada no laboratório na quinta-feira de manhã. Depois da excitação do dia anterior, dormiu demais e a mãe não a chamou de propósito. Queria ir embora sem tomar o café-da-manhã, mas a sra. Pridmore colocou o habitual prato de bacon com ovos na sua frente e disse com firmeza que ela não ia sair de casa enquanto não comesse. Sabendo muito bem que seus pais ficariam muito mais contentes se ela nunca mais pisasse no Hoggatt, achou melhor não discutir. Chegou, sem fôlego e se desculpando, e encontrou o inspetor Blakelock tentando dar conta das provas recebidas em dois dias, um fluxo constante de chegadas e um telefone que tocava sem parar. Imaginou como ele iria recebê-la, se sabia das mil libras, e se isso ia fazer alguma diferença. Mas ele parecia o mesmo de sempre. Disse: “Assim que ajeitar suas coisas, vá falar com o diretor. Ele está na sala da senhorita Foley. A polícia está usando a sala dele. Não se preocupe com o chá. A senhorita Foley só vem depois do almoço. Tem de encontrar com alguém do Serviço Social para tratar das coisas do tio.” Brenda ficou contente por não ter de enfrentar Angela Foley ainda. A confissão que fizera ao comandante Dalgliesh na noite passada tinha sido muito parecida com uma traição para ser confortável. Perguntou: “Então, todo mundo já chegou?” “Clifford Bradley não conseguiu. A mulher telefonou dizendo que ele não está bem. A polícia está aqui desde as oito e meia. Estão conferindo todas as provas, principalmente as drogas, e deram mais uma busca no laboratório inteiro. Parece que estão achando que tem alguma coisa esquisita acontecendo.” Não era normal o inspetor Blakelock ser tão comunicativo. Brenda aproveitou: “O que quer dizer isso, alguma coisa esquisita?” “Não disseram. Mas agora querem ver todas as pastas do laboratório que tenham o número 18 ou o número 40, ou 1840 no registro.” Brenda arregalou os olhos. “Só deste ano, ou temos de olhar também nos microfilmes?” “Peguei as deste ano e as do ano passado para começar, e o sargento Underhill e o outro policial estão examinando agora. Não sei o que eles pensam que vão encontrar, e pela cara deles, parece que não sabem também. Melhor mostrar-se ágil. O doutor Howarth pediu para você falar com ele assim que chegasse.” “Mas não sei taquigrafia nem datilografia! O que você acha que ele quer
comigo?” “Ele não disse. Talvez queira que você pegue os arquivos. E meu palpite é que vai ter um monte de telefonemas, e pega coisa e leva coisa.” “E o comandante Dalgliesh? Não está aqui?” “Ele e o inspetor Massingham saíram faz uns dez minutos. Para entrevistar alguém, eu acho. Mas esqueça os dois. Nosso trabalho é aqui, ajudando o laboratório a funcionar direitinho.” Era o mais perto de um pito a que o inspetor Blakelock jamais havia chegado. Brenda correu para a sala da srta. Foley. Todo mundo sabia que o diretor não gostava que batessem na porta, então Brenda entrou com a segurança de que era capaz. Pensou que só podia fazer o melhor de si mesma. Se isso não bastasse, ele ia ter de engolir. O diretor estava sentado à escrivaninha, aparentemente estudando uma pasta. Levantou os olhos sem sorrir em resposta ao bom-dia dela, e disse: “O inspetor Blakelock explicou que vou precisar de ajuda hoje de manhã enquanto a senhorita Foley não está? Pode trabalhar com a senhora Mallett no escritório central?” “Sim, senhor.” “A polícia quer examinar mais alguns arquivos. Eles estão interessados em determinados números. Presumo que o inspetor Blakelock lhe tenha explicado.” “Sim, senhor.” “Estão trabalhando agora nos registros de 1976 e 75, então é melhor você começar com a série de 1974 e qualquer outro ano anterior que pedirem.” Howarth tirou os olhos das pastas e olhou diretamente para ela pela primeira vez. “O doutor Lorrimer deixou algum dinheiro para você, não foi?” “Foi, sim, senhor. Mil libras para comprar livros e aparelhos.” “Não precisa me chamar de senhor. Doutor Howarth está bom. Você gostava dele?” “Gostava. Gostava, sim.” O dr. Howarth abaixou os olhos e virou as páginas da pasta. “Estranho, não pensei que ele fosse atraente para mulheres e as mulheres para ele.” Brenda disse, resoluta: “Não era desse jeito.” “O que não era desse jeito? Quer dizer que ele não pensava em você como mulher?” “Não sei. O que quero dizer é que não acho que ele estivesse querendo...” A voz dela falhou. O dr. Howarth virou uma página. Disse:
“Seduzir você?” Brenda tomou coragem, estimulada por um jato de raiva: “Bom, não podia, não é? Não aqui no laboratório. E a gente não se encontrava em nenhum outro lugar. Se o senhor conhecesse um pouco como ele era, não falaria assim.” Brenda ficou horrorizada com a própria temeridade. Mas o diretor veio num tom que lhe pareceu triste: “Acho que tem razão. Não sabia mesmo nada dele.” Ela fez um esforço para se justificar. “Ele me explicou o que é a ciência.” “E o que é a ciência?” “Ele me ensinou que os cientistas formulam teorias sobre o funcionamento do mundo físico e depois testam essas teorias com experimentos. Se as experiências são bem-sucedidas, as teorias ficam confirmadas. Se não dão certo, os cientistas têm de encontrar outra teoria para explicar os fatos. Ele disse que com a ciência acontece um excitante paradoxo: a decepção não significa sempre derrota. Pode ser um passo à frente.” “Você não estudou ciência na escola? Achei que estudavam física e química no colegial.” “Ninguém nunca me explicou isso assim.” “Tem razão. Acho que devem ter entediado os alunos com experiências de magnetismo e as propriedades do dióxido de carbono. A propósito, a senhorita Foley datilografou um relatório sobre a relação entre a equipe e a carga de trabalho. Quero que confira esses números. A senhora Mallett pode fazer isso junto com você, e quero o relatório entregue a todos os diretores antes da reunião da semana que vem. Ela vai lhe dar a lista de endereços.” “Sim, senhor. Sim, doutor Howarth.” “E gostaria que levasse esta pasta à senhorita Easterbrook no Laboratório de Biologia.” Olhou para ela, e pela primeira vez Brenda achou que parecia gentil. Disse, muito suavemente: “Sei como está se sentindo. Senti a mesma coisa. Mas o que existe agora é só um contorno de giz no chão, só um risco branco. Apenas isso.” Ele lhe entregou a pasta. Era o sinal para ir embora. Na porta, Brenda parou. O diretor disse: “O que foi?” “Estava pensando que o trabalho de detetive deve ser como a ciência. O detetive formula uma teoria, depois testa. Se os fatos que ele descobre se encaixam, a teoria está certa. Se não, então ele tem de achar outra teoria, outro
suspeito.” O dr. Howarth disse, secamente: “É uma analogia razoável. Mas a tentação de selecionar os fatos certos provavelmente é maior. E os detetives fazem experiências com seres humanos. Suas propriedades são complexas e não suscetíveis a uma análise exata.” Uma hora depois, Brenda levou o terceiro conjunto de arquivos ao sargento Underhill na sala do diretor. O inspetor-detetive de ar agradável deu um pulo para pegar a pilha pesada de suas mãos. O telefone tocou na mesa do dr. Howarth, e o sargento Underhill atendeu. Desligou o aparelho e olhou para seu parceiro. “Era do Laboratório Metropolitano. Deram o resultado do exame de sangue. A marreta foi mesmo a arma. Era o sangue de Lorrimer que estava nela. E analisaram o vômito também.” Ele levantou a cabeça, lembrando que Brenda ainda estava na sala, e esperou que ela saísse e fechasse a porta. O oficial-detetive perguntou: “E aí?” “Era o que a gente pensou. Tire suas próprias conclusões. Um cientista forense saberia que o laboratório não é capaz de determinar o grupo sanguíneo a partir do vômito. Os ácidos do estômago destroem os anticorpos. O que eles podem dizer é o que havia na comida. Então o que você tem de fazer, se é o seu vômito e você é suspeito, é mentir quando contar o que comeu no jantar. Quem vai desmentir?” O companheiro disse: “A menos que...” O sargento Underhill pegou de novo o telefone. “Exatamente. Como eu disse, tire você mesmo suas conclusões.”
3
Depois dos últimos dias de chuva intermitente e um vacilante sol de outono, a manhã estava fria mas brilhante, o sol inesperadamente quente em suas costas. Mas mesmo com aquela claridade suave, a Velha Reitoria era uma casa deprimente com seus tijolos cor de fígado cru debaixo da hera, a sua varanda pesada e o beiral entalhado acima. O portão de ferro aberto para o caminho, meio pendurado das dobradiças, estava enfiado na cerca viva falhada que bordejava o jardim. O caminho de cascalho estava cheio de ervas daninhas. A grama estava amassada e desenterrada nos pontos onde alguém tinha feito uma inepta tentativa de cortá-la, evidentemente com um cortador sem gume. Os dois canteiros eram um emaranhado de crisântemos altos e dálias raquíticas, com as flores sufocadas pelas ervas daninhas. Num canto do gramado, um cavalinho de madeira de criança caído de lado era o único sinal de vida humana. Ao se aproximarem da casa, porém, uma jovem e um menino pequeno apareceram na varanda e ficaram olhando para eles. Naturalmente só podiam ser os filhos de Kerrison. Quando Dalgliesh e Massingham se aproximaram, perceberam que a semelhança era evidente. Achou que a garota devia estar em idade escolar, embora mal parecesse ter dezesseis anos, a não ser por uma certa reserva no olhar. Tinha cabelos escuros, lisos, puxados para trás de uma testa alta, sardenta, presos com elásticos em rabinhos descuidados. Usava os costumeiros jeans desbotados da sua geração, com um agasalho ocre, largo o bastante para ser de seu pai. Em volta do pescoço, Dalgliesh percebeu alguma coisa parecida com uma gargantilha de couro. Estava descalça, os pés sujos, com as marcas mais claras das sandálias de verão. O menino, que ficou mais junto dela ao ver os estranhos, tinha uns três ou quatro anos, era robusto, de cara redonda, e tinha o nariz largo e a boca delicada. Seu rosto era uma miniatura mais suavizada do do pai, as sobrancelhas retas e escuras acima de olhos de pálpebras pesadas. Estava usando short azul apertado e um agasalho de listras muito mal tricotado, contra o qual apertava uma grande bola. As pernas fortes estavam enfiadas em botas vermelhas de borracha de cano curto. Ele apertou a bola contra o corpo e fixou em Dalgliesh um olhar firme e desconcertantemente avaliativo Dalgliesh percebeu de repente que não sabia praticamente nada sobre crianças. A maioria de seus amigos não tinha filhos. E os que tinham haviam aprendido a convidá-lo sempre que seus rebentos exigentes, perturbadores e egoístas estavam na escola. Seu único filho tinha morrido junto com a mãe,
apenas vinte e quatro horas depois de nascido. Embora mal conseguisse lembrar do rosto da mulher, a não ser em sonhos, a imagem daqueles traços pálidos, como de uma boneca, daquele corpinho enfaixado, as pálpebras coladas, o ar secreto de paz em si mesmo, era tão clara e imediata que ele às vezes imaginava se a imagem era mesmo de seu filho, tão breve e intensamente observada, ou se ele havia produzido dentro de si mesmo um protótipo de infância morta. Seu filho seria agora bem mais velho do que esse menino, estaria entrando nos anos traumáticos da adolescência. Há muito tinha se convencido que estava contente de ter sido poupado disso. Mas agora ocorreu-lhe subitamente que existia todo um vasto território de experiência humana que lhe havia sido recusado, e para o qual tinha virado as costas, e que essa rejeição de alguma forma o diminuía enquanto homem. Essa transitória dor da perda o surpreendeu pela intensidade. Fez um esforço para considerar tal sensação, tão desconhecida e pouco desejada. De repente, o menino sorriu para ele e estendeu a bola. O efeito foi tão desconcertantemente lisonjeiro quanto o momento em que um gato de rua avança para alguém com o rabo ereto, condescendendo em ser acariciado. Os dois se olharam. Dalgliesh retribuiu o sorriso. Então, Massingham avançou e arrancou a bola das mãozinhas gordas. “Vamos jogar futebol?” Começou a driblar com a bola azul e amarela no gramado. Imediatamente as perninhas fortes foram atrás. Os dois desapareceram por detrás da casa e Dalgliesh ouviu a risada alta e estridente do menino. A garota ficou olhando os dois, o rosto subitamente contraído de preocupação amorosa. Depois, virou-se para Dalgliesh. “Espero que ele saiba que não pode chutar a bola na fogueira. Já está quase apagada, mas as brasas ainda estão muito quentes. Eu estava queimando lixo.” “Não se preocupe. Ele é um cara cuidadoso. E tem irmãos mais novos.” Ela o olhou com atenção pela primeira vez. “O senhor é o comandante Dalgliesh, não é? Eu sou Nell, e ele é William Kerrison. Mas meu pai não está em casa.” “Eu sei. Viemos falar com a sua governanta, senhorita Willard, não é esse o nome dela? Ela está?” “Se eu fosse o senhor, não escutava nada do que ela diz. É uma mentirosa. E rouba bebida do papai. Não quer interrogar William e eu?” “Uma policial feminina virá conversar com vocês dois outra hora, quando seu pai estiver em casa.” “Não vou falar com ela. Não ligo de falar com o senhor, mas não quero falar com nenhuma polícia feminina. Não gosto de assistentes sociais.”
“Uma policial não é uma assistente social.” “É a mesma coisa. Ela fica julgando as pessoas, não fica? Veio uma assistente social aqui quando minha mãe foi embora, antes do caso da custódia, e ela olhou para William e para mim como se a gente fosse um incômodo público que alguém tinha deixado na porta da casa dela. E investigou a casa inteira, também, fuçando em tudo, fingindo que estava admirando, fazendo de conta que era só uma visita social.” “Policiais, homens ou mulheres, nunca fingem que estão só fazendo uma visita social. Ninguém acreditaria na gente se fosse assim, não é?” Os dois viraram e caminharam na direção da casa. Nell perguntou: “Vai descobrir quem matou o doutor Lorrimer?” “Espero que sim. Espero que sim.” “E aí o que acontece com ele, com o assassino, quero dizer?” “Ele vai comparecer perante os juízes. Depois, se acharem que as provas são suficientes, ele vai ser julgado na Corte da Coroa.” “E depois?” “Se ficar comprovado que é culpado de assassinato, o juiz passa uma sentença que pode chegar até a prisão perpétua. Isso quer dizer que ele vai ficar na prisão um longo tempo, talvez dez anos ou mais.” “Mas isso é uma bobagem. Não endireita as coisas. Não traz de volta o doutor Lorrimer.” “Não endireita nada, mas não é bobagem. A vida é preciosa para todos nós. Mesmo as pessoas que não têm quase nada a não ser a vida querem viver a vida até o último momento. Ninguém tem o direito de tirar a vida do outro.” “O senhor fala como se a vida fosse igual à bola do William. Se tirarem a bola dele, ele sabe o que perdeu. O doutor Lorrimer não sabe que perdeu nada.” “Perdeu os anos que podia ter vivido.” “Isso é igual tirar de William a bola que ele não tinha. Não quer dizer nada. É só um monte de palavras. E se ele já fosse morrer na semana que vem? Aí só teria perdido sete dias. Não pode botar alguém na prisão durante dez anos para pagar por sete dias perdidos. Podiam nem ser dias felizes.” “Mesmo que ele fosse um homem muito velho com um dia só para viver, a lei diz que ele tem o direito de viver o seu último dia. Matar por querer ainda seria assassinato.” A menina disse, pensativa: “Acho que era diferente quando as pessoas acreditavam em Deus. Então a pessoa assassinada podia morrer em pecado mortal e ir para o inferno. Aí, sim, esses sete dias iam fazer diferença. Ele podia se arrepender e ter tempo de ser absolvido.”
Dalgliesh disse: “Todos esses problemas são mais fáceis para gente que acredita em Deus. Quem não acredita ou não consegue acreditar, tem de fazer o melhor possível. É isso que é a lei, o melhor que se pode fazer. A justiça humana é imperfeita, mas é a única justiça que se tem.” “Tem certeza de que não quer me interrogar? Eu sei que meu pai não matou o doutor Lorrimer. Ele não é assassino. Estava em casa com William e comigo quando o doutor Lorrimer morreu. Pusemos juntos o William para dormir às sete e meia, e aí ficamos com ele uns vinte minutos e papai leu a história do Urso Paddington para ele. Depois, eu fui para a cama porque estava com dor de cabeça e não estava me sentindo bem. Papai me trouxe uma caneca de chocolate que fez especialmente para mim. Sentou do meu lado e ficou lendo poesia da minha antologia da escola até achar que eu estava dormindo. Mas eu não estava dormindo de verdade. Estava só fingindo. Ele saiu do quarto um pouco antes das nove horas, mas eu ainda estava acordada. Quer que eu conte como eu sei?” “Se quiser contar...” “Porque ouvi o relógio da igreja tocar. Aí papai saiu do quarto e eu fiquei lá deitada no escuro, pensando. Ele voltou para dar uma olhada em mim de novo uma meia hora depois, mas eu ainda fiquei fingindo que estava dormindo. Isso elimina o papai, não é?” “Não se sabe exatamente quando o doutor Lorrimer morreu, mas acho que sim, provavelmente elimina, sim.” “A não ser que eu esteja mentindo para o senhor.” “As pessoas muitas vezes mentem para a polícia. Você também?” “Não. Mas acho que mentiria se achasse que ia salvar papai. Não ligo para o doutor Lorrimer, sabe? Gostei de ele morrer. Não era um homem bom. Um dia antes dele morrer, William e eu fomos até o laboratório para encontrar papai. Ele estava fazendo uma palestra para o curso de detetives e nós fomos lá esperar ele sair antes do almoço. O inspetor Blakelock deixou a gente sentar no saguão, e aquela menina que trabalha com ele no balcão, aquela bonita, sorriu para o William e ofereceu para ele uma maçã que era o almoço dela. Aí o doutor Lorrimer desceu a escada e viu a gente. Sei que era ele porque o inspetor chamou ele pelo nome e ele disse: ‘O que essas crianças estão fazendo aqui? Um laboratório não é lugar para criança’. Eu disse assim: ‘Não sou criança. Meu nome é senhorita Eleanor Kerrison e este é meu irmão, William, e estamos esperando nosso pai’. Ele olhou de um jeito que parecia que odiava a gente, a cara branca, tremendo. E falou: ‘Bom, vocês não podem esperar aqui’. Aí ficou muito bravo com o inspetor Blakelock. Quando o doutor Lorrimer foi embora, ele disse que era melhor a gente sair, mas falou para o William não ligar e tirou uma bala da
orelha dele. Sabia que o inspetor é mágico?” “Não. Não sabia.” “Quer ver a casa antes de falar com a senhorita Willard? Gosta de ver casas?” “Gosto muito, mas acho que talvez não agora.” “Veja a saleta, pelo menos. É a melhor sala, de longe. Aqui, olhe, não é linda?” A saleta não era nada linda. Era uma sala sombria, com lambris de carvalho onde parecia que nada havia mudado desde os dias em que, vestidas de bombazina, a mulher e as filhas do reitor vitoriano ali se sentavam, piedosamente ocupadas com sua costura para a paróquia. As janelas gradeadas, emolduradas de vermelho-escuro, as cortinas com a sujeira entranhada, eficazmente bloqueavam a maior parte da luz diurna, de forma que Dalgliesh entrou em uma penumbra fria que o foguinho da lareira não conseguia dissipar. Uma imensa mesa de mogno, com uns crisântemos arrumados em um vidro de geléia, estava encostada à parede dos fundos, e a lareira, uma construção ornamentada de mármore, estava quase escondida por duas imensas poltronas afundadas e um sofá dilapidado. Com inesperado formalismo, como se a sala a chamasse ao dever de anfitriã, Eleanor disse: “Tento manter pelo menos uma sala arrumada para o caso de chegar visita. As flores são bonitas, não são? Foi William que arrumou. Por favor, sentem. Posso oferecer um café?” “Seria muito bom, mas acho que não vamos esperar. Estamos aqui realmente para ver a senhorita Willard.” Massingham e William apareceram na porta, afogueados pelo exercício, William com a bola enfiada debaixo do braço esquerdo. Eleanor mostrou o caminho, passando por uma porta coberta de baeta verde cheia de tachas douradas que levava a um corredor de pedra até os fundos da casa. Abandonando Massingham, William foi trotando atrás dela, a mão gorda segurando desajeitadamente o jeans muito justo. Ela parou diante de uma porta de carvalho não polido e disse: “A senhorita Willard está aí dentro. Não gosta que a gente entre. Como ela cheira forte, a gente não entra mesmo.” E levando William pela mão, ela os deixou.
 
 
Dalgliesh bateu na porta. Ouviu-se um rápido ruído de arrastar dentro do quarto, como um animal perturbado em seu antro, então a porta se abriu ligeiramente e um olho escuro e desconfiado os espiou pela estreita abertura. Dalgliesh disse: “Senhorita Willard? Comandante Dalgliesh e inspetor Massingham da polícia
metropolitana. Estamos investigando o assassinato do doutor Lorrimer. Podemos entrar?” O olho amaciou. Ela aspirou o ar brevemente, envergonhada, mais como um ronco, e abriu completamente a porta. “Claro. Claro. O que os senhores vão pensar de mim? Ainda estou naquele momento que a minha querida babá chamava de impossibilitada. Mas não estava esperando os senhores, e geralmente tenho um momento de tranqüilidade para mim nesta hora da manhã.” Eleanor tinha razão, o quarto cheirava mesmo. Um cheiro que Massingham diagnosticou, depois de farejar cautelosamente, composto de xerez doce, roupa usada e perfume barato. Estava muito quente. Uma pequena chama azul lambia as formas ovais incandescentes da pilha alta de briquetes de carvão na lareira vitoriana. A janela, que dava para uma vista da garagem e para o ermo jardim dos fundos, estava só um pouquinho aberta no alto, apesar da temperatura amena, e o ar do quarto era opressivo, pesado e cheio de felpas como um cobertor sujo. O próprio quarto tinha uma horrenda e perversa feminilidade. Tudo parecia umidamente macio, os assentos cobertos de cretone das duas poltronas, a gorda fila de almofadas ao longo do encosto da chaise longue vitoriana, o tapete de pele falsa junto ao fogo. O aparador da lareira estava coberto de fotografias em molduras de prata, a maior parte mostrando um pastor de sotaina e sua mulher, que Dalgliesh tomou pelo pais da srta. Willard, lado a lado, mas estranhamente dissociados, diante de uma variedade de igrejas bastante desinteressantes. O lugar de honra era ocupado por uma fotografia de estúdio da própria srta. Willard, jovem, risonhamente tímida, o cabelo farto em ondas corrugadas. Na prateleira da parede à direita da porta havia uma pequena imagem de madeira de uma Madona sem braços, com um Menino Jesus risonho sobre o ombro. Uma vela em um pires queimava aos pés da santa, lançando uma suave luminosidade sobre a terna cabeça inclinada e o olho sem visão. Dalgliesh achou que aquilo provavelmente era uma cópia, uma boa cópia, de alguma peça de museu medieval. Sua delicada beleza enfatizava a vulgaridade do quarto, e lhe emprestava dignidade, como se dissesse que existia mais de um tipo de solidão humana, de dor humana, e que a mesma misericórdia abrangia todas elas. A srta. Willard indicou-lhes a chaise longue. “Meu pequeno esconderijo”, disse, alegremente. “Gosto de ser reservada, sabe? Expliquei ao doutor Kerrison que só podia vir para cá se pudesse ter minha privacidade. É uma coisa rara e bonita, não acha? O espírito humano definha sem ela.” Olhando as mãos dela, Dalgliesh imaginou que provavelmente ela tinha uns quarenta e cinco anos, embora o rosto parecesse mais velho. O cabelo escuro,
seco, áspero e muito crespo, não combinava com sua pele desbotada. Dois cachos como salsichas nas têmporas sugeriam que tinha arrancado precipitadamente os bobes ao ouvir baterem na porta. Mas seu rosto já estava maquiado. Havia um círculo de ruge debaixo de cada olho e o batom tinha se infiltrado nas rugas que subiam dos lábios. O queixo pequeno, quadrado, ossudo era solto como o de uma marionete. Não estava completamente arrumada, e um penhoar acolchoado de náilon florido, manchado de chá e do que parecia ser ovo, estava amarrado sobre uma camisola de náilon azul-vivo com um babado imundo no pescoço. Massingham ficou fascinado com as dobras feito bulbos de algodão mole acima dos seus sapatos, das quais não conseguia tirar os olhos, até entender que tinha vestido as meias de trás para a frente. Ela disse: “Querem me perguntar sobre o álibi do doutor Kerrison, acho. Claro, é ridículo ele ter de apresentar um álibi, um homem tão bom, incapaz de qualquer violência. Mas eu posso ajudar os senhores, sim. Ele estava em casa até depois das nove com toda certeza, e eu tornei a cruzar com ele de novo uma hora depois. Mas isso tudo é mera perda de tempo. O senhor é muito famoso, comandante, mas este é um daqueles crimes que a ciência não consegue resolver. Não é à toa que chamam este lugar de pântano negro. Ao longo dos séculos, o mal emana deste solo podre. Podemos combater o mal, comandante, mas não com as suas armas.” Massingham disse: “Bom, vamos dar uma chance às nossas armas.” Ela olhou para ele e sorriu com pena. “Mas todas as portas estavam fechadas. Todos os seus aparelhos científicos estavam intactos. Ninguém arrombou, e ninguém podia ter saído. E assim mesmo ele foi derrubado. Isso não foi mão humana, inspetor.” “Era certamente uma arma contundente, senhorita Willard”, disse Dalgliesh, “e não tenho a menor dúvida de que era manejada por uma mão humana. Nosso trabalho é descobrir de quem, e espero que possa nos ajudar. A senhora é a governanta do doutor Kerrison e de sua filha, não é?” A srta. Willard lançou-lhe um olhar no qual a pena por tamanha ignorância se misturava a uma suave censura. “Não sou governanta, comandante. Não sou mesmo. Digamos que sou uma hóspede que trabalha. O doutor Kerrison precisava de alguém para morar aqui porque as crianças não podem ficar sozinhas quando ele é chamado para ver algum crime. São filhos de um casamento desfeito, o que é uma pena. A velha e triste história. O senhor não é casado, comandante?” “Não.”
“Muito inteligente.” Ela suspirou, manifestando na sibilante expulsão do ar um infinito anseio, um infinito lamento. Dalgliesh persistiu: “Então a senhora vive completamente à parte?” “Tenho minhas acomodações. Esta sala de estar e um quarto ao lado. Minha própria quitinete atrás desta porta aqui. Não vou mostrar agora porque não está bem como eu gostaria que estivesse.” “Quais são exatamente os arranjos domésticos, senhorita Willard?” “Eles preparam o próprio café-da-manhã. O doutor geralmente almoça no hospital, claro. Nell e William comem alguma coisa quando ela se dá ao trabalho de preparar, e eu cuido de mim. Depois, cozinho alguma coisa para todos à noite, coisa simples, ninguém aqui é de comer muito. Jantamos cedo por causa de William. É mais como um lanche reforçado, na verdade. Nell e o pai é que cozinham durante o fim de semana. Funciona bastante bem.” Bastante bem para você, pensou Massingham. Claro que William parecia saudável e bem nutrido, mas a menina tinha idade de quem devia estar na escola, e não trabalhando quase sem ajuda naquela monstruosidade de casa, isolada e triste. Imaginou como seria sua relação com a srta. Willard. Como se tivesse lido seus pensamentos, a srta. Willard disse: “William é um doce de menino. Não dá absolutamente nenhum trabalho. Na verdade, mal vejo o menino. Mas Nell é difícil, muito difícil. Meninas na idade dela geralmente são. Ela precisava da mão firme de uma mãe. Os senhores sabem, claro, que a senhora Kerrison abandonou o marido faz um ano? Fugiu com um dos colegas dele do hospital. Ele ficou completamente arrasado. Agora ela está tentando conseguir que a Corte Suprema mude a ordem de custódia e deixe os meninos com ela quando o divórcio sair daqui a um mês. Tenho certeza que seria melhor. As crianças têm de ficar com a mãe. Não que Nell ainda seja uma criança. É pelo menino que estão brigando, não por Nell. Se o senhor quer saber, nenhum dos dois liga para ela. Ela dá muito trabalho para o pai. Pesadelos, ataques histéricos, asma. Ele está indo para Londres segunda-feira que vem para uma conferência de três dias sobre patologia forense. Eu tenho certeza que ela vai fazer o pai pagar por essa pequena viagem quando voltar. Neurótica, sabe? Castigando o pai porque ele gosta mais do irmão, mesmo que ele, claro, não perceba isso.” Dalgliesh ficou pensando que processo mental podia ter levado a essa eloqüente avaliação psicológica. Não que estivesse necessariamente errado, pensou. Sentiu uma profunda pena de Kerrison. De repente, Massingham sentiu-se mal. O calor e o cheiro forte do quarto foram mais fortes que ele. Uma gota de suor frio pingou sobre seu caderno. Resmungando uma desculpa, foi até a janela e tentou abri-la. Ela resistiu um
momento, depois desceu com força. Um grande sopro de ar fresco e revigorante invadiu o ambiente. A frágil luz diante da Madona entalhada tremeu e se apagou. Quando voltou às suas anotações, Dalgliesh já estava perguntando sobre a noite anterior. A srta. Willard disse que havia preparado um jantar de carne moída, batatas, e ervilhas congeladas, com um manjar branco de sobremesa. Tinha lavado a louça sozinha e depois ido se despedir da família antes de voltar para seus cômodos. Estavam então na saleta, mas o dr. Kerrison e Nell já iam levar William para a cama. Ela não viu nem ouviu mais nada até um pouco depois das nove horas, quando saiu para verificar se a porta da frente estava trancada. O dr. Kerrison às vezes descuidava das trancas e nem sempre percebia como ela ficava nervosa por dormir sozinha no andar térreo. Ouvia-se cada história terrível. Tinha passado pela porta do escritório que estava meio aberta e ouviu o dr. Kerrison falando ao telefone. Voltou para a sua sala e ligou a televisão. O dr. Kerrison apareceu brevemente antes das dez para falar com ela sobre um pequeno aumento de salário, mas foram interrompidos por um telefonema. Ele voltou uns dez minutos depois e ficaram juntos por cerca de meia hora. Tinha sido agradável ter a oportunidade de uma conversa particular, sem as crianças se metendo. Ele então se despediu e deixou-a. Ela tornou a ligar a televisão e ficou assistindo até quase meia-noite, quando foi para a cama. Se o dr. Kerrison tivesse saído com o carro, ela tinha quase certeza que teria ouvido, uma vez que a janela de sua sala dava para a garagem que ficava desse lado da casa. Bom, isso eles mesmos podiam ver. Ela perdeu a hora na manhã seguinte e só tomou café depois das nove. Tinha sido despertada pelo toque do telefone, mas só quando o dr. Kerrison voltou do laboratório foi que ficou sabendo da morte do dr. Lorrimer. O dr. Kerrison voltou brevemente à casa logo depois das nove horas, para contar a ela e a Nell o que tinha acontecido e ligar para o hospital pedindo que transferissem os chamados dele para o balcão de recepção do laboratório. Dalgliesh disse: “Acredito que o doutor Lorrimer costumava levar a senhora de carro para o culto das onze da manhã na St. Mary, em Guy’s Marsh, não? Ele parecia ser um homem solitário e não muito feliz. Pelo que pude apurar, era uma pessoa que ninguém conhecia bem. Estava imaginando se ele teria na senhora a companhia e a amizade que parecia não ter em sua vida profissional.” Massingham levantou a cabeça, curioso com a resposta a esse ostensivo convite a uma confidência. Ela velou os olhos como um pássaro, e uma mancha vermelha se espalhou como uma coisa contagiosa em seu pescoço. Numa tentativa de superioridade, respondeu:
“Ora, acho que o senhor está brincando comigo, comandante. É comandante, não é? Parece tão estranho, como um título naval. Meu falecido cunhado era da Marinha, de forma que conheço um pouco essas coisas. Mas o senhor estava falando de amizade. Isso quer dizer confiança. Eu gostaria de ter sido útil, mas ele não era fácil de conhecer. E havia também a diferença de idade. Não sou assim tão mais velha, menos de cinco anos, acho. Mas é bastante quando se compara jovem. Não, acho que nós éramos apenas dois réprobos anglicanos neste pântano evangélico. Nós nem sentávamos juntos na igreja. Sempre sentei no terceiro banco depois do púlpito e ele gostava de ficar bem atrás.” Dalgliesh insistiu: “Mas ele devia gostar da sua companhia. Vinha buscar a senhora todo domingo, não é?” “Só porque o padre Gregory pediu para ele. Tem um ônibus para Guy’s Marsh, mas tenho de esperar meia hora e como o doutor Lorrimer passava de carro pela Velha Reitoria, o padre Gregory sugeriu que seria um arranjo sensato se nós dois fôssemos juntos. Ele nunca entrou aqui. Eu sempre estava pronta, esperando por ele lá fora. Se o pai dele ficava doente, ou ele próprio tinha de atender um caso, ele telefonava. Às vezes, não tinha como me avisar, o que era inconveniente. Mas eu sabia que se ele não aparecesse até vinte para as onze não ia vir mais, e aí pegava o ônibus. Ele geralmente vinha, claro, a não ser durante os primeiros seis meses deste ano, quando desistiu de ir à missa. Mas telefonou no começo de setembro, dizendo que vinha me buscar como sempre. Naturalmente, eu nunca perguntei para ele o porquê daquela interrupção. A gente às vezes atravessa essas noites escuras da alma.” Então ele parou de ir à missa quando começou o caso com Domenica Schofield e voltou a freqüentar a igreja depois do rompimento. Dalgliesh perguntou: “Ele comungava?” Ela ficou surpresa com a pergunta. “Não depois que voltou a ir à missa em meados de setembro. Confesso que fiquei um pouco preocupada. Pensei mesmo se devia sugerir que ele conversasse com o padre Gregory se alguma coisa o estava perturbando. Mas é terreno muito delicado. E eu realmente não tinha nada a ver com isso.” E não ia querer ofendê-lo, pensou Massingham. Aquelas caronas deviam ser muito convenientes. Dalgliesh perguntou: “Então ele realmente telefonava de vez em quando. A senhora nunca ligou para ele?” Ela se virou e agitou-se, afofando uma almofada. “Deus me livre, não! Por que ligaria? Não sei nem o número dele.” Massingham disse:
“Parece estranho ele preferir freqüentar a igreja em Guy’s Marsh em vez de ir na da aldeia.” A srta. Willard olhou para ele, severa. “Nem um pouco. O senhor Swaffield é um homem muito bom, mas é de outra linha, outra. Os evangélicos sempre foram muito fortes nos pântanos. Quando meu querido pai era reitor aqui, estava sempre brigando com o Conselho Paroquial da Igreja. E acho também que o doutor Lorrimer não queria se envolver com atividades da igreja e da aldeia. É tão difícil de escapar quando a pessoa é conhecida como membro regular da congregação. O padre Gregory não esperava isso, sabia que o doutor Lorrimer precisava cuidar do pai e que as exigências do seu trabalho eram grandes. Por sinal, fiquei muito chateada porque a polícia não chamou o padre Gregory. Alguém devia ter lembrado do padre para encomendar o corpo.” Dalgliesh disse, suavemente: “Ele já estava morto fazia algumas horas quando o corpo foi encontrado, senhorita Willard.” “Mesmo assim, tinha direito a um padre.” Ela se pôs de pé como se quisesse indicar que a entrevista estava encerrada. Dalgliesh também já estava satisfeito. Fez um agradecimento formal e pediu à srta. Willard que entrasse em contato com ele imediatamente se lembrasse de alguma coisa que pudesse ser interessante. Ele e Massingham estavam na porta quando ela chamou, imperiosamente: “Jovem!” Os dois detetives viraram para olhá-la. Ela falou diretamente com Massingham, como uma babá antiquada ralhando com uma criança: “Podia, por favor, fechar a janela que o senhor abriu sem nenhuma consideração? E reacender a vela?” Humildemente, como se obedecesse a uma ordem doméstica há muito esquecida, Massingham fez as duas coisas. Tiveram de encontrar a saída sozinhos e não viram ninguém. Quando estavam dentro do carro, apertando os cintos, por fim explodiu: “Meu Deus do céu, até parece que Kerrison não conseguiu encontrar ninguém melhor do que essa megera velha para cuidar dos filhos. É uma vaca, bêbada, meio louca.” “Não é tão simples assim para Kerrison. Uma aldeia distante, uma casa grande e fria, e uma filha que não deve ser fácil. Diante da escolha entre esse tipo de trabalho e o salário desemprego, a maior parte das mulheres hoje em dia ia preferir o desemprego. Deu uma olhada na fogueira?” “Nada lá. Parece que estão periodicamente queimando uma parte da mobília
velha e do lixo do jardim que está empilhado numa das cocheiras. William disse que Nell fez uma fogueira hoje cedo.” “Então William fala, afinal?”, Dalgliesh perguntou. “Ah, William sabe falar, sim. Mas não sei se o senhor ia entender o que diz. Acreditou na senhorita Willard quando ela deu aquele álibi para o Kerrison?” “Acredito nela do mesmo jeito que acreditei na senhora Bradley e senhora Blakelock quando elas confirmaram os álibis de seus maridos. Quem pode dizer? Sabemos que Kerrison ligou mesmo para o doutor Collingwood às nove e que estava em casa para receber o telefonema de resposta dele por volta das dez. Se a senhorita Willard sustentar essa história, ele está livre de suspeita para essa hora, e eu tenho a impressão de que é a hora crucial. Mas como ele podia saber disso? E se soubesse, por que achar que seríamos capazes de determinar a hora da morte com tanta exatidão? Ficar junto com a filha até as nove, depois ir falar com a senhorita Willard pouco antes das dez parece muito uma tentativa de determinar que estava em casa durante toda essa hora.” Massingham disse: “Deve ter estado mesmo, para atender aquele telefonema às dez horas. E não vejo como ele podia ter ido até Hoggatt, matado Lorrimer, e voltado para casa em menos de sessenta minutos, não se tivesse ido a pé. E a senhorita Willard parece segura de que ele não pegou o carro. Acho que até seria possível se pegasse um atalho pelo prédio novo, mas seria muito apertado.” Nesse momento, o rádio do carro bipou. Dalgliesh atendeu. Era da sala de controle de Guy’s Marsh para dizer que o sargento Reynolds queria falar com eles. O relatório do Laboratório Metropolitano havia chegado.
4
Os dois abriram a porta juntos. A sra. Bradley com o bebê dormindo nos braços. Bradley disse: “Entre. É sobre o vômito, não é? Estava esperando o senhor.” Foram para a sala de estar. Bradley indicou as duas poltronas para Dalgliesh e Massingham e sentou no sofá na frente deles. A esposa aproximou-se dele, com o bebê no ombro. Dalgliesh perguntou: “Quer um advogado?” “Não. Pelo menos por enquanto. Estou pronto para contar toda a verdade e isso não vai me prejudicar. Acho que pode me custar o emprego. Mas isso é o pior que pode me acontecer. E acho que já não me importa.” Massingham abriu seu caderno enquanto Dalgliesh falava com Susan Bradley. “Gostaria de colocar o bebê no berço, senhora Bradley?” Ela olhou para Dalgliesh com olhos brilhantes e sacudiu a cabeça com veemência, apertando mais a criança, como se achasse que os dois iam arrancá-la de seus braços. Massingham ficou agradecido de, pelo menos, a criança estar dormindo. Mas preferia que nem ela nem a mãe estivessem presentes. Olhou para o bebê, embrulhado em sua roupinha cor-de-rosa no colo da mãe, os fios de cabelo mais compridos acima do pescocinho fino, uma mancha redonda sem cabelos na parte de trás da cabeça, os olhos fechados e o nariz ridiculamente arrebitado. A frágil mãe e seu bebezinho eram mais inibidores do que um escritório inteiro de recalcitrantes advogados. Era bem mais fácil levar um suspeito no banco de trás da viatura policial até a delegacia para tomar seu depoimento no anonimato da sala de interrogatório. Até a sala de estar dos Bradley provocava nele uma mistura de irritação e pena. Ainda tinha cheiro de nova e inacabada. Não havia lareira, e a televisão ocupava o lugar de honra acima do aquecedor elétrico embutido na parede. Sobre ela, uma gravura popular de ondas quebrando numa encosta rochosa. A parede oposta tinha sido preparada para combinar com a cortina florida, mas as outras três estavam nuas, o reboco já começando a rachar. No canto, estava o cadeirão de bebê de metal e embaixo dele um pedaço de plástico estendido para proteger o carpete. Tudo parecia novo, como se não tivessem trazido para o casamento nenhuma bagagem pessoal, chegando espiritualmente nus na posse dessa pequena sala sem características. Dalgliesh disse: “Podemos concluir que o relato anterior de seus movimentos na noite de quarta-feira não era verdadeiro ou estava incompleto. Então, o que aconteceu de
fato?” Por um momento, Massingham imaginou por que Dalgliesh não estava advertindo Bradley. Depois, achou ter entendido. Bradley podia ter coragem de matar se provocado além do limite tolerável, mas nunca teria coragem de pular de uma janela do terceiro andar. E se não tinha, como poderia ter saído do laboratório? O assassino de Lorrimer usou as chaves ou saltou. Toda a investigação, todos os cuidados e repetidos exames do edifício confirmavam essa hipótese. Não havia outro jeito. Bradley olhou para a mulher. Ela lhe deu um breve e confiante sorriso e estendeu a mão livre. Ele segurou a mão dela e os dois ficaram mais juntos. Depois, umedeceu os lábios e começou a falar como se o discurso estivesse bem ensaiado. “Na terça-feira, o doutor Lorrimer terminou de escrever o meu relatório confidencial anual. Disse que queria conversar comigo sobre o assunto no dia seguinte, antes de passar o documento para o doutor Howarth. Por isso me chamou na sala dele quando cheguei no laboratório. Tinha feito um relatório negativo e, segundo as regras, precisava me explicar por quê. Eu queria me defender, mas não consegui. E não havia nenhuma privacidade de fato. Senti que o laboratório inteiro sabia o que tinha acontecido e que estava ouvindo e esperando. Além disso, fiquei com muito medo dele. Não sei exatamente por quê. Não sei explicar. Ele tinha um tal efeito sobre mim que bastava estar trabalhando ao meu lado que eu começava a tremer. Quando ele estava fora, numa cena de crime, era o paraíso. Eu trabalhava perfeitamente bem. O relatório confidencial anual não era injusto. Sabia que meu trabalho tinha decaído. Mas ele tinha sua parte nisso. Parecia tomar minha incompetência como uma afronta pessoal. Trabalho malfeito era absolutamente intolerável para ele. Ficava obcecado com os meus erros. E como eu ficava tão apavorado, errava ainda mais.” Fez uma breve pausa. Ninguém disse nada. Ele continuou: “Nós não íamos ao concerto da aldeia porque não conseguimos uma babysitter, e de qualquer jeito a mãe de Susan vinha jantar aqui. Cheguei em casa um pouco antes das seis. Depois do jantar, que foi carne com curry, arroz e ervilha, fui com ela pegar o ônibus das quinze para as oito. Voltei direto para cá. Mas fiquei pensando no relatório negativo, no que o doutor Howarth ia dizer, no que eu ia fazer se ele recomendasse minha transferência, como faria para vender esta casa. Nós compramos quando os preços estavam altos, e seria quase impossível encontrar um interessado agora, a não ser com prejuízo. Além disso, achava que outro laboratório não ia me aceitar. Depois de algum tempo, pensei em voltar ao Hoggatt e enfrentar o doutor Lorrimer. Acho que tinha a idéia de conseguir me
comunicar, de conseguir falar com ele como outro ser humano e mostrar como eu estava me sentindo. Achei que ia ficar maluco se continuasse trancado aqui. Tinha de andar para algum lugar, então andei até o Hoggatt. Não contei para Sue o que eu ia fazer, mas ela tentou me convencer a não sair. Mesmo assim eu fui.” Ele olhou para Dalgliesh e perguntou: “Posso tomar um pouco de água?” Sem dizer uma palavra, Massingham se levantou e foi procurar a cozinha. Não viu os copos, mas encontrou duas xícaras lavadas no escorredor. Encheu uma delas com água fria e levou de volta para Bradley, que bebeu tudo. Passou a mão na boca molhada e continuou: “Não encontrei ninguém no caminho para o laboratório. As pessoas nesta aldeia não saem a pé depois que escurece, e acho que a maioria estava no concerto. A luz estava acesa no saguão do laboratório. Toquei a campainha e Lorrimer veio atender. Pareceu surpreso de me ver, mas eu disse que queria falar com ele. Ele consultou o relógio e disse que só tinha cinco minutos. Fui com ele até o Laboratório de Biologia.” Ele olhou diretamente para Dalgliesh. “Foi uma entrevista estranha. Senti que ele estava impaciente e queria se livrar de mim. Durante uma parte do tempo achei que nem estava escutando o que eu dizia, nem notava que eu estava ali. Eu não me saí bem. Tentei explicar que não estava sendo descuidado de propósito, que na verdade gostava do trabalho, queria que desse certo e fosse bom para o departamento. Tentei explicar o efeito que ele tinha sobre mim. Não sei se ele estava escutando. Ficou lá, com os olhos pregados no chão. “Então levantou a cabeça e começou a falar. Na verdade, não estava olhando para mim, mas através de mim, quase como se eu não estivesse ali. E foi dizendo coisas, coisas terríveis, como se fossem as palavras de uma peça de teatro, que não tivessem nada a ver comigo. Fiquei ouvindo as mesmas palavras repetidas e repetidas. Fracasso. Inútil. Incorrigível. Incompetente. Ele falou até alguma coisa sobre casamento, como se eu fosse um fracasso sexual também. Acho que estava louco. Não posso explicar como foi, aquele ódio todo saindo dele, ódio, tristeza, desespero. Fiquei lá tremendo com esse rio de palavras caindo em cima de mim como se... como se fosse sujeira. E aí ele focalizou os olhos em mim e eu vi que estava me vendo, a mim, Clifford Bradley. A voz dele ficou bem diferente quando disse: “‘Você é um biólogo de terceira classe e um cientista forense de quarta categoria. Já era isso quando veio para este departamento e não vai mudar nunca. Só tenho duas alternativas, conferir cada resultado seu ou arriscar que este serviço e este laboratório sejam desacreditados nos tribunais. Nenhuma das
duas é aceitável. Então sugiro que procure outro emprego. E agora tenho mais o que fazer, por favor vá embora.’ “Ele me deu as costas e eu saí. Eu entendi que era impossível. Teria sido melhor não ter ido lá. Ele nunca tinha dito exatamente o que achava de mim, pelo menos não com aquelas palavras. Me senti mal, triste, e sabia que estava chorando. E para me humilhar ainda mais, subi a escada tropeçando até o banheiro masculino e mal consegui chegar à primeira pia para vomitar. Não sei quanto tempo fiquei ali, em cima da pia, meio chorando, meio vomitando. Acho que pode ter sido uns três ou quatro minutos. Depois de um tempo, abri a torneira fria e lavei o rosto. Tentei me controlar. Mas ainda estava tremendo, com enjôo. Sentei numa das privadas e apoiei a cabeça nas mãos. “Não sei quanto tempo fiquei ali. Uns dez minutos, talvez, mas pode ter sido mais. Sabia que nunca ia mudar o que ele achava de mim, que não ia me entender nunca. Ele não era um ser humano. Entendi que me odiava. Mas aí comecei a sentir ódio por ele também, e de um jeito diferente. Eu ia ter que ir embora, ele ia se encarregar disso. Mas pelo menos eu podia dizer o que achava dele. Podia agir como homem. Então desci a escada e entrei no Laboratório de Biologia.” De novo fez uma pausa. O bebê se mexeu no colo da mãe e mesmo dormindo deu um gritinho. Susan Bradley começou automaticamente a andar de um lado para o outro cantarolando, mas conservou os olhos no marido. Bradley continuou: “Ele estava caído entre as duas bancadas de trabalho do meio da sala, de bruços. Não esperei para ver se estava morto. Sei que devia me sentir mal por causa disso, pelo fato de deixar ele lá, sem ajuda. Mas não ajudei. E não consigo me arrepender. Naquele momento não fiquei contente de ele estar morto. Não sentia nada a não ser terror. Desci a escada correndo e saí do laboratório como se o assassino de Lorrimer estivesse atrás de mim. A porta ainda estava com a chave Yale e sei que posso ter levantado o trinco de baixo, mas não me lembro. Queria sair logo dali. Acho que estava passando um ônibus, mas foi embora antes que eu chegasse ao portão. Quando cheguei na rua estava sumindo. Então vi um carro se aproximando e instintivamente recuei para a sombra do muro. O carro passou devagar e virou na entrada do laboratório. Então fiz um esforço para andar devagar e normalmente. E só me lembro de ter chegado em casa.” Susan Bradley falou pela primeira vez: “Clifford me contou tudo. Mas é claro que tinha mesmo de contar. Parecia estar tão mal que eu logo vi que alguma coisa horrível devia ter acontecido. Resolvemos o que era melhor fazer. Nós dois sabíamos que ele não tinha nada a ver com o que aconteceu com o doutor Lorrimer. Mas quem ia acreditar no Cliff?
Todo mundo no departamento sabia o que o doutor Lorrimer achava dele. Ia ser suspeito mesmo, e se o senhor descobrisse que ele estava lá no laboratório no momento em que o crime aconteceu, como poderia convencer o senhor que não era culpado? Então resolvemos dizer que ficamos juntos a noite inteira. Minha mãe telefonou mesmo às nove horas para avisar que tinha chegado bem, e eu disse para ela que Cliff estava no banho. Ela nunca gostou muito do meu casamento e eu não queria contar que ele não estava em casa. Ela ia começar a criticar por ele me deixar sozinha com o bebê. Então nós sabíamos que ela ia confirmar minhas declarações e isso podia ajudar, mesmo que ela não tivesse falado com ele. Mas aí Cliff lembrou do vômito.” O marido recomeçou a falar, agora quase impetuoso, como se quisesse que eles entendessem e acreditassem: “Sabia que tinha jogado água no rosto, mas não tinha certeza se a pia estava limpa. Quanto mais eu pensava, mais achava que estava manchada de vômito. E sabia o quanto o senhor podia concluir disso. Eu sou do tipo secretor, mas isso não me preocupou. Sabia que os ácidos do estômago iam destruir os anticorpos e que o laboratório não ia conseguir determinar o meu grupo sanguíneo. Mas havia o curry, o corante das ervilhas. Iam conseguir dados suficientes sobre aquela última refeição para poder me identificar. E não podia mentir sobre o que comemos no jantar porque a mãe de Sue estava conosco. “Foi assim que tivemos a idéia de tentar impedir que a senhora Bidwell fosse cedo para o laboratório. Sempre vou trabalhar antes das nove, então ia ser, como de costume, o primeiro a chegar na cena do crime. Se fosse direto para o banheiro como normalmente vou, e limpasse a pia, a única prova de que tinha estado ali na noite anterior teria sumido para sempre. Ninguém ia saber.” Susan Bradley disse: “A idéia de ligar para a senhora Bidwell foi minha e fui eu que falei com o marido dela. A gente sabia que ela não ia atender ao telefone. Não atendia nunca. Mas Cliff não sabia que o velho senhor Lorrimer não tinha ido para o hospital no dia anterior. Estava fora do departamento quando ele ligou. Então o plano deu todo errado. O senhor Lorrimer telefonou para o inspetor Blakelock e todo mundo chegou no laboratório quase tão cedo quanto Cliff. Depois disso, não dava para fazer mais nada, senão esperar.” Dalgliesh podia imaginar como aquele tempo de espera devia ter sido terrível. Não era de admirar que Bradley não tivesse conseguido encarar a obrigação de ir para o laboratório. Perguntou: “Quando tocou a campainha do laboratório, quanto tempo levou para o doutor Lorrimer atender?” “Foi quase imediatamente. Ele não pode ter descido do Departamento de
Biologia. Devia estar em algum lugar do andar térreo.” “Ele disse se estava esperando alguém?” A tentação de mentir era evidente. Mas Bradley disse: “Não. Disse que tinha coisas para fazer, mas achei que estava falando da análise em que estava trabalhando.” “E quando você encontrou o corpo, não viu nem ouviu nada do assassino?” “Não. Não fiquei esperando para ver, claro. Mas tenho certeza de que estava lá e bem perto. Não sei por quê.” “Notou a posição da marreta, o fato de estar faltando uma página do caderno de Lorrimer?” “Não. Nada. Só lembro de Lorrimer, do corpo, e de um fio de sangue.” “Quando estava no banheiro, ouviu a campainha?” “Não, mas acho que não daria para ouvir, não acima do primeiro andar. E é claro que não ia ouvir enquanto estivesse vomitando.” “Quando o doutor Lorrimer abriu a porta para você, alguma coisa lhe pareceu estranha, além do fato de ele atender tão depressa?” “Nada, a não ser o fato de ele estar com o caderno na mão.” “Tem certeza disso?” “Tenho, tenho certeza, sim. Estava aberto e dobrado.” Então a chegada de Bradley havia interrompido o que quer que estivesse fazendo. E estava no andar térreo, onde ficavam a sala do diretor, o Departamento de Registro, e o Depósito de Provas. Dalgliesh disse: “O carro que entrou no laboratório quando você saiu... que tipo era?” “Não vi. Só me lembro dos faróis. Não temos carro e não sei identificar os diferentes modelos, a não ser que olhe bem.” “Lembra como estava sendo dirigido? Se o motorista entrou no laboratório com segurança, como se soubesse aonde ia? Ou se era hesitante, como se estivesse procurando um lugar conveniente para parar e viu por acaso a entrada aberta?” “Ele simplesmente diminuiu um pouco a marcha e entrou direto. Acho que era alguém que conhecia o lugar. Mas não fiquei esperando para ver se foi até o laboratório. No dia seguinte, claro, fiquei sabendo que não podia ter sido a polícia de Guy’s Marsh, nem ninguém que tivesse a chave, senão o corpo teria sido encontrado antes.” Olhou para Dalgliesh com olhos ansiosos: “O que vai acontecer comigo agora? Não posso encarar o pessoal do laboratório.” “O inspetor Massingham vai levar você até a delegacia de polícia de Guy’s Marsh para fazer um depoimento formal e assinar. Eu explico ao doutor Howarth
o que aconteceu. Ele e o Departamento de Administração é que vão dizer se e quando você volta ao laboratório. Imagino que possam dar uma licença especial até que esse caso se esclareça.” Se é que seria esclarecido. Se Bradley estava dizendo a verdade, agora tinham certeza de que Lorrimer tinha morrido entre oito e quarenta e cinco, quando o pai telefonou para ele, e pouco antes das nove e onze, quando o ônibus de Guy’s Marsh partiu do ponto de Chevisham. A pista do vômito havia determinado para eles a hora da morte, tinha resolvido o mistério do telefonema para a sra. Bidwell. Mas não tinha apontado um assassino. E se Bradley fosse inocente, que tipo de vida teria, dentro ou fora do Serviço de Ciência Forense, a menos que o caso fosse resolvido? Olhou para Massingham e Bradley se afastando, depois começou a caminhar o quase um quilômetro de volta até Hoggatt, não muito satisfeito com a perspectiva da entrevista com Howarth. Deu uma olhada para trás e viu que Susan Bradley estava ainda parada na porta olhando para ele, com o bebê no colo.
5
Howarth disse: “Não vou lançar mão do velho lugar-comum de assumir a culpa. Não acredito nessa espúria aceitação de transferência de responsabilidade. Mesmo assim, devia ter sabido que Bradley estava prestes a ter um colapso. Desconfio que o velho doutor MacIntyre não teria deixado isso acontecer. E agora é melhor eu telefonar para o Departamento de Administração. Acho que vão querer que ele fique em casa por enquanto. Do ponto de vista do trabalho, isso é particularmente inconveniente. Estão precisando de todos os braços disponíveis no Departamento de Biologia. Claire Easterbrook está assumindo todo o trabalho de Lorrimer, na medida do que é capaz, mas o que ela pode fazer tem um limite. De momento está ocupada com a análise do fosso de tufo. Insiste em começar de novo a eletroforese. Dá para entender: ela é quem vai ter de depor. Só pode falar dos próprios resultados.” Dalgliesh perguntou o que era mais provável de acontecer com Clifford Bradley. “Ah, em algum lugar deve existir um regulamento para atender essa condição. Sempre existe. Vão lidar com ele com a mistura de sempre: eficiência e humanidade. A menos, claro, que você proponha prender o rapaz por assassinato. Nesse caso, administrativamente, o problema se resolveria sozinho. Por sinal, o Setor de Relações Públicas ligou. Talvez você não tenha tido tempo de ver os jornais de hoje. Alguns jornais estão ficando bem agitados com a segurança do laboratório. ‘As amostras de sangue estão a salvo?’ E um dos Sundays encomendou um artigo sobre a ciência a serviço do crime. Vão mandar alguém para falar comigo às três da tarde. O Setor de Relações Públicas gostaria de trocar uma palavra com você. Estão querendo marcar outra entrevista coletiva para hoje de tarde.” Quando Howarth saiu, Dalgliesh foi encontrar o sargento Underhill e ocupouse com as quatro grandes pilhas de pastas que Brenda Pridmore havia providenciado. Incrível quantos dos seis mil casos e quase vinte e cinco mil provas com que o laboratório lidava todo ano tinham os números 18, 40 ou 1840. Os casos vinham de todos os departamentos: Biologia, Toxicologia, Criminalística, Exame de Documentos, Análise de Álcool no Sangue, Exame de Veículo. Quase todos os cientistas do laboratório acima do nível de assistente científico tinham se ocupado deles. Todos pareciam estar perfeitamente em ordem. Ainda estava convencido de que o misterioso telefonema para Lorrimer
continha a pista para o mistério de sua morte. Mas parecia cada vez menos provável que os números se referissem a qualquer registro de pastas, se é que o velho sr. Lorrimer lembrava deles corretamente. Por volta das três horas, decidira pôr de lado a tarefa e ver se o exercício físico seria capaz de estimular seu cérebro. Tinha chegado a hora, pensou, de andar pelos arredores e dar uma olhada na capela Wren. Estava pegando o casaco quando o telefone tocou. Era Massingham da delegacia de Guy’s Marsh. O carro que havia estacionado na entrada do Hoggatt na noite de quarta-feira tinha sido localizado. Era um Cortina cinzento pertencente à sra. Maureen Doyle. A sra. Doyle estava atualmente hospedada com parentes em Ilford, Essex, mas confirmara que o carro era dela e que na noite do crime estava sendo dirigido por seu marido, o detetive inspetor Doyle.
6
A sala de entrevistas da delegacia de Guy’s Marsh era pequena, abafada e cheia. O superintendente Mercer, com seu corpanzil, ocupava mais espaço do que lhe era devido, e respirava além da sua quota de ar, pensou Massingham. Dos cinco homens presentes, incluindo o estenógrafo, o próprio Doyle parecia ao mesmo tempo o mais cômodo e o menos preocupado. Dalgliesh estava fazendo o interrogatório dele. Mercer parado junto às janelas gradeadas. “O senhor esteve no Hoggatt na noite passada. Encontramos marcas recentes de pneu na terra debaixo das árvores à direita da entrada, marcas dos seus pneus. Se quiser perder o seu tempo e o nosso, pode olhar os moldes de gesso.” “Admito que são as marcas dos meus pneus. Estacionei lá, brevemente, na segunda-feira à noite.” “Por quê?” A pergunta era tão tranqüila, tão razoável, que dava a impressão de que ele tinha um genuíno interesse humano em saber. “Estava com uma pessoa.” Fez uma pausa e acrescentou: “Senhor”. “Para seu próprio bem, espero que tenha estado mesmo com alguém ontem à noite. Mesmo um álibi embaraçoso é melhor do que nenhum. O senhor discutiu com Lorrimer. É uma das únicas pessoas que ele deixaria entrar no laboratório. E estacionou seu carro debaixo das árvores. Se não matou Lorrimer, por que está tentando nos convencer do contrário?” “O senhor não acredita de fato que eu matei Lorrimer. Provavelmente já deve desconfiar de alguém ou saber quem foi. Não vai me assustar, porque sei que não tem nenhuma prova. E não vai conseguir prova nenhuma. Estava dirigindo o Cortina porque a embreagem do Renault quebrou, não porque não quisesse ser reconhecido. Fiquei com o sargento Beale até as oito horas. Tínhamos ido entrevistar um homem chamado Barry Taylor em Muddington, e depois fomos ver umas outras pessoas que estiveram no baile da terça-feira passada. A partir das oito horas dirigi sozinho e não é da conta de ninguém aonde eu fui.” “Não quando se trata de um caso de assassinato. Não é isso que o senhor diz para os seus suspeitos quando eles saem com essa bobagem da santidade de suas vidas privadas? Você não precisa disso, Doyle.” “Eu não estive no laboratório na noite de quarta-feira. Aquelas marcas de pneus foram feitas quando estacionei lá na segunda.” “O Dunlop esquerdo traseiro é novo. Foi instalado na segunda-feira de tarde na mecânica do Gorringe e sua mulher só foi buscar o Cortina às dez da manhã
da quarta. Se não foi ao Hoggatt para encontrar Lorrimer, o que foi fazer lá? E se o seu negócio era legítimo, por que parar na entrada e embaixo das árvores?” “Se tivesse ido lá para matar Lorrimer, teria estacionado em uma das garagens dos fundos. Teria sido mais seguro do que deixar o Cortina na entrada. E só cheguei ao Hoggatt depois das nove. Sabia que Lorrimer ia trabalhar até tarde no caso do fosso de tufo, mas não tão tarde. O laboratório estava escuro. A verdade, se quer saber, é que peguei uma mulher no cruzamento saindo de Manea. Não estava com pressa de chegar em casa, e queria um lugar calmo e escondido para estacionar. O laboratório me pareceu um bom lugar, como outro qualquer. Ficamos lá das nove e quinze, mais ou menos, até quinze para as dez. Ninguém saiu durante esse tempo.” Tinha demorado bastante para o que devia ser apenas um encontro rápido de uma noite, pensou Massingham. Dalgliesh perguntou: “Deu-se ao trabalho de se apresentarem, de descobrir quem era ela?” “Disse para ela que meu nome era Ronny McDowell. Um nome qualquer. Ela contou que se chamava Dora Meakin. Não acho que mais de um de nós estivesse mentindo.” “Só isso? Não perguntou onde ela morava, onde trabalhava?” “Ela disse que trabalhava na fábrica de açúcar de beterraba e que morava em um chalé perto da casa de máquinas abandonada de Hunter’s Fen. Fica a uns cinco quilômetros de Manea. Falou que era viúva. Como bom cavalheiro, deixei a moça no começo da alameda que vai para Hunter’s Fen. Se não estava mentindo, deve bastar para descobrir quem é.” O superintendente-chefe Mercer disse, sombrio: “Para sua sorte, espero que sim. Sabe o que isso quer dizer para você, claro?” Doyle riu. Era um som surpreendentemente leve. “Ah, sei muito bem. Mas não se preocupe com isso. Vou apresentar minha demissão, e a partir de agora.” Dalgliesh perguntou: “Tem certeza do escuro? O laboratório estava apagado?” “Eu não teria parado se não estivesse. Não havia nenhuma luz à vista. E embora eu admita ter ficado preocupado por uns minutos, posso jurar que ninguém passou pela entrada enquanto estive ali.” “Nem saiu pela porta da frente?” “É possível, acho. Mas o caminho entre a entrada e o portão não tem mais de vinte metros, eu diria. Acho que eu teria notado, a menos que saísse muito depressa. Duvido que alguém fosse arriscar uma coisa dessas, não se tivesse visto o meu farol e sabido que o carro estava lá.” Dalgliesh olhou para Mercer:
“Temos de voltar a Chevisham. Passamos por Hunter’s Fen no caminho.”
7
Apoiada no encosto da chaise longue vitoriana, Angela Foley fazia uma massagem no pescoço da amiga. O cabelo áspero provocava cócegas nas costas de suas mãos, enquanto apertava com firmeza e suavidade os músculos tensos, sentindo cada vértebra debaixo da pele quente e tensa. Stella estava sentada, com a cabeça tombada para a frente apoiada nas mãos. Nenhuma das duas falava nada. Lá fora, um vento leve, rasteiro soprava vacilante sobre os pântanos, varrendo as folhas secas do pátio e levando a fumaça branca e fina que saía da chaminé. Mas dentro da sala de estar tudo estava tranqüilo, a não ser pelo crepitar do fogo, o tique-taque do relógio antigo e o som da respiração delas. O chalé estava impregnado pelo cheiro resinoso da madeira de macieira queimando, somado ao aroma saboroso do ensopado de carne requentado do jantar da véspera. Depois de alguns minutos, Angela Foley perguntou: “Está melhor? Quer uma compressa na testa?” “Não, está ótimo. Quase passou mesmo. Estranho eu só ter dor de cabeça nos dias em que o livro vai especialmente bem.” “Mais dois minutos, e depois preciso cuidar do jantar.” Angela esticou os dedos e curvou-se de novo para a sua tarefa. A voz de Stella, abafada no suéter, disse de repente: “Como era ser criança aos cuidados da autoridade local?” “Não sei se eu sei. Quer dizer, não morei em nenhuma instituição ou coisa parecida. Passei a maior parte do tempo num lar adotivo.” “Bom, e como era isso? Você nunca me contou.” “Não era mau. Não, não é verdade. Era como viver em uma pensão de segunda sabendo que não querem você ali e sem poder pagar a conta. Até encontrar você e vir morar aqui, era assim que eu me sentia o tempo todo, pouco à vontade no mundo. Acho que meus pais adotivos eram bons. Tentavam ser. Mas eu não era bonita, nem era grata. Não deve ser muito divertido cuidar do filho dos outros, e acho que sempre se espera gratidão. Olhando para trás, sou capaz de perceber que não fui fonte de muita alegria para eles, era sem graça e mal-humorada. Uma vez, ouvi um vizinho dizer à minha mãe adotiva que eu tinha cara de feto com a testa saliente e os traços miúdos. Tinha inveja das outras crianças porque tinham mães e eu não. Nunca superei isso de fato. É mesquinho reconhecer, mas o fato é que eu não gosto de Brenda Pridmore, a nova recepcionista, porque ela é evidentemente uma filha amada e tem um lar de verdade.”
“E você também, agora. Mas sei do que está falando. Até os cinco anos a gente já aprendeu que o mundo é bom e que tudo e todos nos estendem os braços com amor. Ou então já se sabe que se é rejeitado. Ninguém esquece a primeira lição.” “Eu esqueci, por sua causa. Star, não acha que a gente devia começar a procurar outro chalé, quem sabe mais perto de Cambridge? Deve haver por lá algum emprego para uma secretária qualificada.” “Não vamos precisar de outro chalé. Telefonei para o meu editor hoje de tarde, e acho que vai dar certo.” “Hearne e Collingwood? Mas como pode dar certo? Achei que você tinha dito que...” “Vai dar tudo certo.” De repente, Stella se livrou das mãos que a massageavam e levantou. Foi até o corredor e voltou, o casaco nas costas, as botas na mão. Sentou-se na cadeira diante da lareira e começou a calçá-las. Angela Foley observou a cena calada. Então Stella tirou do bolso da jaqueta um envelope pardo aberto e jogou. Caiu em cima do veludo da chaise longue. “Ah, queria mostrar isso para você.” Curiosa, Angela tirou de dentro dele uma única folha dobrada. “Onde você achou isso?” “Peguei na mesa de Edwin quando estava procurando o testamento. Na hora, achei que poderia me ser útil. Agora resolvi que não.” “Mas, Star, você devia ter deixado lá para a polícia encontrar! É uma pista. Eles vão ter de saber. É provável que Edwin estivesse fazendo isso naquela noite, conferindo. É importante. Não podemos ficar com esse papel.” “Então é melhor você ir até o Chalé Postmill e fingir que encontrou, senão vai ser meio embaraçoso explicar como veio parar conosco.” “Mas a polícia não vai acreditar. Não deram por falta disso. Imagino quando terá chegado ao laboratório. Estranho Lorrimer ter levado isso para casa e nem ter trancado.” “Por que deveria? A escrivaninha dele só tinha uma gaveta com chave. E acho que ninguém, nem o pai dele, entrava naquele quarto.” “Mas, Star, isso pode explicar por que ele foi morto! Pode ser o motivo do assassinato.” “Ah, não acho, não. É só uma malvadeza gratuita, anônima, que não prova nada. A morte de Edwin foi ao mesmo tempo mais simples e mais complicada que isso. Geralmente é assim com o assassinato. Mas a polícia pode considerar isso um motivo e concordo que seria conveniente para nós. Estou começando a pensar que devia ter deixado onde estava.” Puxou as botas e estava pronta para sair. Angela Foley perguntou:
“Sabe quem matou Edwin, não sabe?” “Você fica chocada de eu não ter ido correndo confiar naquele comandante incrivelmente bem-apessoado?” Angela sussurrou: “O que você vai fazer?” “Nada. Não tenho provas. A polícia é paga para fazer o trabalho dela. Eu talvez tivesse mais espírito cívico quando tínhamos a pena de morte. Não tenho medo de fantasma de gente enforcada. Podem ficar nos quatro cantos da minha cama e uivar a noite inteira se quiserem. Mas não conseguiria viver, não conseguiria trabalhar, o que é quase a mesma coisa para mim, sabendo que coloquei na prisão um outro ser humano, e para sempre.” “Não para sempre. Uns dez anos.” “Eu não agüentaria dez dias. Vou sair agora. Não devo demorar.” “Mas, Star, já são quase sete horas! Nós íamos jantar.” “O ensopado não estraga.” Angela Foley ficou em silêncio, olhando a amiga ir para a porta. Por fim perguntou: “Star, como você sabia que Edwin ensaiava as provas na véspera de ir depor no tribunal?” “Se você não me contou, e diz que não contou, eu devo ter inventado. Não tenho como ter sabido isso por mais ninguém. Melhor pensar que foi minha imaginação criativa.” A mão dela estava na porta. Angela gritou: “Star, não saia hoje! Fique comigo. Estou com medo.” “Medo por você, ou por mim?” “Por nós duas. Por favor, não vá. Não hoje.” Stella voltou. Sorriu e estendeu as mãos num gesto que podia ser de resignação ou de adeus. O vento deu um uivo, um golpe de ar frio entrou quando a porta da frente se abriu. O som da porta se fechando ecoou pelo chalé e Stella se foi.
8
“Meu Deus, que lugar medonho!” Massingham bateu a porta do carro e olhou sem acreditar o que o esperava. A alameda por onde desceram aos solavancos, sob a luz tênue da tarde que morria, terminava finalmente em uma estreita ponte de ferro sobre um canal de águas cinzentas e vagarosas como óleo, entre dois altos diques. Na outra margem, havia uma casa de máquinas vitoriana, os tijolos empilhados num monte desordenado junto ao riacho estagnado, a grande roda meio visível através da parede em ruínas. Ao lado da casa, dois chalés abaixo do nível da água. Atrás deles, estendiam-se os campos marcados e sombrios até o vermelho e roxo do céu noturno. A carcaça de uma árvore petrificada, um carvalho do charco, encontrado pelo arado e arrancado das profundezas da turfa, tinha sido deixada à beira da trilha para secar. Lembrava alguma criatura pré-histórica mutilada, levantando os cotos para o céu indiferente. Embora os últimos dois dias tivessem sido secos, a paisagem parecia saturada por semanas de chuva, os jardins fronteiros, tristonhos e ensopados, os troncos de umas poucas árvores raquíticas, moles como polpa. Era um local onde se tinha a impressão de que o sol nunca brilhava. Quando seus pés ressoaram na ponte de ferro, um pato solitário surgiu com um grasnar agitado. O silêncio era absoluto. Havia uma luz atrás das cortinas fechadas de apenas um dos chalés, e passaram por touceiras de margaridas despetaladas e murchas até a porta da frente. A pintura estava descascada, a aldrava de ferro tão empenada que Dalgliesh teve dificuldade para levantá-la. Durante alguns minutos após a batida seca e peremptória, houve silêncio. Em seguida a porta se abriu. Viram uma mulher descuidada, pálida, de uns quarenta anos, com olhos apagados e apreensivos, e cabelos cor de palha presos para trás com dois pentes. Usava um vestido xadrez marrom com um cardigã volumoso em um tom de azul berrante. Assim que a viu, Massingham instintivamente recuou, se desculpando, mas Dalgliesh falou: “Senhora Meakin? Somos da polícia. Podemos entrar?” Ela não se deu ao trabalho de olhar a carteira de identificação que ele mostrou. Mal parecia sequer surpresa. Sem nada dizer, apertou-se contra a parede para dar passagem. Os dois passaram por ela e entraram na sala de estar, que era pequena e mobiliada com muita simplicidade, tristemente arrumada e despojada. O ar era frio e cheirava a umidade. Havia um aquecedor elétrico com só uma barra acesa, e o ambiente era iluminado por uma única lâmpada pendurada por
um fio. No centro da sala, havia uma mesa de madeira com quatro cadeiras. Ela evidentemente ia começar a jantar. Numa bandeja havia um prato com três postas de peixe, uma porção de tomate amassado e ervilhas. Ao lado, uma embalagem de papelão ainda fechada, contendo uma torta de maçã. Dalgliesh disse: “Desculpe interromper o seu jantar. Gostaria de levar a bandeja para a cozinha para que a comida não esfrie?” Ela sacudiu a cabeça e fez sinal para se sentarem. Acomodaram-se em volta da mesa como três jogadores de cartas, com a bandeja entre eles. As ervilhas soltavam um líquido verde que ensopava aos poucos os pedaços de peixe. Era difícil acreditar que uma refeição tão simples pudesse produzir cheiro tão forte. Depois de alguns segundos, como se tivesse consciência disso, ela empurrou a bandeja de lado. Dalgliesh tirou do bolso a fotografia de Doyle e estendeu para ela. “Acredito que a senhora passou algum tempo ontem à noite com este homem.” “Senhor McDowell. Ele não está com nenhum problema, está? Vocês não são detetives particulares, não é? Ele é um cavalheiro de verdade, gentil. Não gostaria de criar problema para ele.” O tom de sua voz era baixo e bastante inexpressivo, não como a voz de uma mulher do campo, pensou Dalgliesh. “Não, não somos detetives particulares. Ele está com um pequeno problema, mas não por sua causa. Somos da polícia. O melhor jeito de a senhora ajudar é dizer a verdade. Estamos interessados em saber quando a senhora se encontrou com ele e quanto tempo ficaram juntos.” Ela o encarou. “Quer dizer, uma espécie de álibi?” “Isso mesmo. Uma espécie de álibi.” “Ele me pegou onde eu sempre costumo ficar, no cruzamento, a quase um quilômetro de Manea. Isso deve ter sido aí pelas sete. Depois fomos para um pub. Eles quase sempre começam me pagando uma bebida. Essa é a parte que eu mais gosto, sentar no pub junto com alguém, olhar as pessoas, ouvir vozes, barulho. Eu geralmente tomo um xerez, ou vinho do Porto. Se me oferecem, tomo dois. Nunca tomo mais que dois drinques. Às vezes, eles estão com pressa e só me oferecem um.” Dalgliesh perguntou, calmo: “Onde ele levou a senhora?” “Não sei onde era, mas ficava distante uma meia hora de carro. Dava para ver que ele estava pensando aonde ir antes de dar a partida. Por isso é que sei que mora longe. Eles querem ficar longe dos lugares onde são conhecidos. Eu noto isso, isso e a olhada rápida que dão antes de entrar no pub. O pub chamava The
Plough. Eu li na placa iluminada do lado de fora. Sentamos no salão, um lugar bonito mesmo. Tinha um fogo de turfa e uma prateleira alta cheia de pratos coloridos, e dois vasos de rosas artificiais atrás do balcão, e um gato preto na frente do fogo. O barman chamava Joe. Era ruivo.” “Quanto tempo ficaram lá?” “Não muito. Tomei dois vinhos do Porto e ele dois uísques duplos. Aí, disse que tinha de ir.” “Para onde ele levou a senhora em seguida, senhora Meakin?” “Acho que foi para Chevisham. Dei uma olhada na placa da esquina um pouco antes da gente chegar. Viramos na entrada de uma casa grande e paramos debaixo das árvores. Perguntei quem morava ali e ele disse que ninguém, que era usada só para escritórios do governo. Aí, apagou o farol.” Dalgliesh perguntou suavemente: “E fizeram amor no carro. Foram para o banco de trás, senhora Meakin?” Ela não pareceu surpresa nem constrangida com a pergunta. “Não, ficamos na frente.” “Senhora Meakin, isto é muito importante. Lembra quanto tempo ficaram lá?” “Ah, lembro, sim. Dava para ver o relógio do painel. Eram quase nove e quinze quando a gente chegou e ficamos lá até um pouco antes das dez. Eu sei porque estava preocupada pensando se ele ia me deixar no fim da alameda. Era só isso que eu queria. Não queria que ele viesse até a porta. Mas fica ruim se me deixam muito longe de casa. Às vezes, não é fácil voltar.” Ela falava, pensou Massingham, como se estivesse reclamando do serviço de ônibus local. Dalgliesh disse: “Alguém saiu da casa ou desceu pela entrada enquanto estavam lá no carro? A senhora teria notado se alguém passasse?” “Ah, teria, sim, eu acho. Eu teria visto se alguém tivesse saído pelo portão. Tem um poste na outra calçada, que ilumina a entrada.” Massingham insistiu: “Mas a senhora teria notado? Não estavam um pouco ocupados?” De repente, ela riu, um som áspero e dissonante que surpreendeu os dois. “Acha que estava me divertindo? Acha que gosto disso?” E a voz voltou a ficar inexpressiva, quase subserviente. Ela reforçou: “Eu teria notado.” Dalgliesh perguntou: “Sobre o que conversaram, senhora Meakin?” Ela se animou com a pergunta. Virou-se para Dalgliesh quase agitada. “Ah, ele tem lá os seus problemas. Todo mundo tem, não é? Às vezes ajuda conversar com uma pessoa estranha, alguém que você sabe que nunca mais vai
ver. Eles nunca pedem para me encontrar de novo. Ele não pediu. Mas foi gentil, sem pressa para ir embora. Às vezes, eles quase me empurram para fora do carro. Isso não é coisa de cavalheiro, machuca. Mas o senhor McDowell parecia que gostava de conversar. Falou da mulher, na verdade. Que não queria viver no campo. É uma moça de Londres e fica brigando com ele para voltar para lá. Quer que ele largue o emprego e vá trabalhar para o pai dela. Ela agora está na casa dos pais e ele não sabe se vai voltar.” “Ele não contou que era policial?” “Ah, não! Disse que era antiquário. Parecia saber bastante sobre antigüidades. Mas não presto muita atenção quando falam do trabalho. Quase todos mentem.” Dalgliesh disse, suavemente: “Senhora Meakin, o que a senhora está fazendo é muito arriscado. Sabe disso, não sabe? Algum dia pode esbarrar em um homem que queira mais do que uma hora e tanto do seu tempo, alguém perigoso.” “Eu sei. Às vezes, quando o carro vai parando e estou lá parada esperando do lado da rua, pensando como será que ele é, dá para escutar meu coração batendo. Aí eu sei que estou com medo. Mas pelo menos estou sentindo alguma coisa. É melhor ficar com medo do que ficar sozinha.” Massingham disse: “É melhor ficar sozinha do que morta.” Ela olhou para ele. “Acha mesmo, senhor? Mas o senhor não sabe nada sobre solidão, não é?” Cinco minutos depois os dois saíram, explicando à sra. Meakin, que um policial viria no dia seguinte para levá-la à delegacia de Guy’s Marsh para prestar depoimento. Ela pareceu perfeitamente satisfeita com isso, perguntando apenas se alguém na fábrica precisava saber. Dalgliesh a tranqüilizou. Quando atravessaram a ponte, Massingham virou para olhar o chalé. Ela ainda estava parada na porta, uma figura magra contra a luz. Disse, com raiva: “Meu Deus, é tudo tão sem esperança. Por que ela não sai daqui, não muda para uma cidade, Ely ou Cambridge, para ver um pouco de vida?” “Está falando como um daqueles profissionais cujo conselho para solitários é sempre o mesmo: ‘Saia, encontre gente, entre para um clube’. O que, pensando bem, é exatamente o que ela está fazendo.” “Seria melhor ela deixar este lugar, encontrar outro emprego.” “Que emprego? Provavelmente ela acha que tem sorte de estar empregada. E este chalé pelo menos é um lar. É preciso juventude, energia e dinheiro para mudar uma vida inteira. E ela não tem nenhuma dessas coisas. Tudo que ela pode fazer é manter a sanidade do único jeito que sabe.” “Mas para quê? Para terminar como mais um corpo jogado num fosso de tufo?”
“Talvez. Pode ser isso que o seu subconsciente esteja procurando. Existe mais de um jeito de cortejar a morte. Ela pode argumentar que o jeito dela pelo menos dá o consolo de um pub quentinho, iluminado, e, sempre, a esperança de que vai ser diferente da próxima vez. Ela não vai parar porque uma dupla de policiais intrometidos disse que é perigoso. Ela sabe isso. Pelo amor de Deus, vamos embora daqui.” Quando estavam apertando os cintos, Massingham comentou: “Quem haveria de pensar que Doyle fosse com ela. Não imaginava que pudesse pegar uma mulher dessas. Como dizia lorde Chesterfield, de noite todos os gatos são pardos. Mas passar quase uma hora contando seus problemas para ela...” “Os dois queriam alguma coisa um do outro. Vamos esperar que tenham conseguido.” “Doyle conseguiu uma coisa: um álibi. E nós também lucramos com o encontro. Agora sabemos quem matou Lorrimer.” Dalgliesh disse: “Achamos que sabemos quem é o assassino e como matou. Podemos até achar que sabemos por quê. Mas não temos nem uma fagulha de prova e sem provas não podemos dar nem mais um passo. No momento, não temos fatos suficientes nem para pedir um mandado de busca.” “E agora, senhor?” “De volta para Guy’s Marsh. Quando essa história do Doyle estiver resolvida, quero ouvir o relatório de Underhill e falar com o chefe de polícia. Depois, de volta a Hoggatt. Vamos estacionar onde Doyle parou. Quero verificar se seria possível alguém sair por aquela entrada sem ser visto.
9
Por volta das sete horas, o trabalho finalmente estava em dia, o último relatório do tribunal tinha sido checado, as últimas provas completas empacotadas para a polícia pegar, os números de casos e provas recebidos tinham sido calculados e conferidos. Brenda notou como o inspetor Blakelock parecia cansado. Ele mal tinha falado uma palavra que não fosse necessária durante a última hora. Brenda não achava que estivesse insatisfeito com ela, simplesmente nem notava que ela estava ali. Ela própria tinha falado pouco, e sempre aos sussurros, com medo de quebrar o silêncio, misterioso e quase palpável, do saguão vazio. À sua direita, a grande escada curvava para o escuro lá de cima. Durante todo o dia havia ressoado com os pés de cientistas, policiais, funcionários da cena do crime chegando para a palestra. Agora, a escadaria tinha se tornado tão portentosa e ameaçadora como uma casa mal-assombrada. Tentou não olhar para ela, mas seus olhos eram atraídos irresistivelmente. A cada olhadela para cima, ela imaginava que podia ver o rosto pálido de Lorrimer se formando nas sombras amorfas e pairando no ar. Seus olhos negros olhavam para ela suplicantes e desesperados. Finalmente às sete horas ouviu a voz do inspetor Blakelock: “Então, isso é tudo. Sua mãe não vai gostar de você ter ficado até tão tarde.” Brenda respondeu, com mais segurança do que sentia: “Ah, mamãe não vai se importar. Ela sabe que eu cheguei tarde. Telefonei para ela antes e disse para não me esperar antes de sete e meia.” Separaram-se para pegar seus casacos. Depois, Brenda ficou esperando na porta até o inspetor Blakelock ligar e checar o alarme interno. Todas as portas dos diversos laboratórios tinham sido fechadas e verificadas antes. Por fim, saíram pela porta da frente e ele girou as duas últimas chaves. A bicicleta de Brenda ficava num abrigo ao lado dos velhos estábulos, onde eram estacionados os carros. Ainda juntos, foram para os fundos. O inspetor esperou até que ela montasse na bicicleta para dar partida no carro, depois foi indo devagarinho atrás dela pelo caminho da saída. No portão, deu uma buzinada de adeus e virou à esquerda. Brenda acenou e acelerou, pedalando na direção oposta. Achou que sabia por que o inspetor tinha esperado tão cuidadosamente até ela estar em segurança fora do prédio, e ficou grata. Talvez, pensou, eu faça ele lembrar da filha que morreu e por isso é tão bom comigo. E então, quase imediatamente, aconteceu. O tranco súbito e o raspar do metal sobre o asfalto eram inconfundíveis. A bicicleta deslizou, e ela quase caiu dentro
do dique. Apertando os dois freios, desmontou e examinou os pneus à luz da lanterna pesada que levava sempre na sacola. Ambos estavam furados. Sua reação imediata foi de intensa irritação. Acontecer uma coisa dessas justo num dia em que estava voltando tarde! Passou o facho da lanterna pela estrada atrás dela, tentando identificar a causa do acidente. Devia haver vidro ou alguma coisa cortante em algum lugar. Mas não viu nada e entendeu que não ia adiantar se visse. Não tinha jeito de consertar os furos. O próximo ônibus para casa só passaria por ali depois das nove, e não havia mais ninguém no laboratório para lhe dar uma carona. Passou pouco tempo pensando. O melhor plano evidentemente era levar a bicicleta de volta para o abrigo e ir para casa pelo prédio novo. Cortaria quase três quilômetros de caminho e, se andasse depressa, chegaria em casa pouco depois das sete e meia. Raiva e indignação contra a má sorte são poderosos antídotos para o medo. Assim como a fome e o saudável cansaço que pede uma lareira. Brenda jogou a bicicleta, agora reduzida a um trambolho ridiculamente antiquado, de volta ao abrigo, e atravessou depressa o pátio do Hoggatt até o portão de madeira destrancado que dava para o novo local, antes de começar a sentir medo. Agora, porém, sozinha no escuro, o temor meio supersticioso, que parecia seguro de sentir tendo a seu lado a presença protetora do inspetor Blakelock, começou a lhe dar nos nervos. Diante dela a massa negra do laboratório em construção pairava como um monumento pré-histórico, suas grandes pedras manchadas com o sangue de antigos sacrifícios, praticados em honra dos deuses implacáveis. A noite estava muito escura, com um teto de nuvens baixas cobrindo as estrelas pálidas. Enquanto ela hesitava, as nuvens se abriram como mãos pesadas e revelaram a lua cheia, frágil e transparente como uma hóstia de comunhão. Olhando para ela, quase sentiu o gosto da delicada massa de trigo, derretendo no céu da boca. Então as nuvens voltaram a se formar e a escuridão fechou-se em torno dela. E o vento começou a soprar. Segurou com mais firmeza a lanterna. Era sólida, tranqüilizadora, pesada em sua mão. Decidida, seguiu caminho por entre as pilhas de tijolos cobertos com encerados, as grandes vigas enfileiradas, as duas cabanas bem-feitinhas sobre estacas que serviam de escritório para o construtor, perto da abertura da parede de tijolos que marcava a entrada do futuro laboratório. Então hesitou de novo. A abertura pareceu ficar mais estreita diante de seus olhos, quase simbolicamente tenebrosa e assustadora, uma entrada para a escuridão e o desconhecido. Os medos da infância, não tão distantes, retornaram.. Estava tentada a voltar. Então ralhou severamente consigo mesma, que não devia ser boba. Não havia nada de estranho nem de sinistro em um edifício em construção, um artefato de
tijolos, concreto e aço sem nenhuma lembrança do passado, sem nenhum sofrimento a esconder entre paredes antigas. Além disso, conhecia muito bem o local. O pessoal do laboratório não tinha permissão de encurtar caminho pelo prédio novo. O dr. Howarth colocara um aviso no quadro alertando para os perigos, mas todos sabiam que se fazia isso. Antes de começar a construção, havia um atalho pelo campo de Hoggatt. Era natural que as pessoas agissem como se a trilha ainda estivesse lá. E ela estava cansada e com fome. Era ridículo hesitar agora. Então lembrou de seus pais. Ninguém em casa sabia dos pneus furados e sua mãe logo ia ficar preocupada. Ela ou o pai provavelmente iam ligar para o laboratório e quando ninguém atendesse iam saber que todo mundo já havia ido embora. Iam pensar nela morta ou ferida no meio da rua, sendo levada inconsciente para uma ambulância. Pior ainda, iam imaginá-la caída no chão do laboratório, uma segunda vítima. Tinha sido difícil convencer os pais a deixar que aceitasse o trabalho, e essa ansiedade final, aumentando a cada minuto que ela demorava e culminando em alívio e raiva pelo atraso, poderia facilmente jogá-los em uma injustificada e teimosa insistência para que deixasse o emprego. Era realmente o pior dos momentos para chegar tarde em casa. Iluminou a abertura com a lanterna e resolutamente entrou para o escuro. Tentou visualizar a maquete do novo laboratório exposta na biblioteca. Este saguão grande, ainda sem teto, devia ser a área de recepção da qual partiam duas alas principais. Tinha de pegar à esquerda, aquilo que viria a ser o Departamento de Biologia, para tomar o atalho mais rápido para a Guy’s Marsh Road. Passou o facho luminoso pelas paredes de tijolos, depois seguiu cuidadosamente seu caminho pelo chão irregular em direção à abertura da esquerda. A poça de luz encontrou uma porta, depois outra. O escuro pareceu aumentar, pesado com o cheiro de pó de tijolo e terra comprimida. E agora a pálida luminosidade do céu noturno se extinguira porque estava na área coberta do laboratório. O silêncio era absoluto. Ela se viu avançando, respiração presa, olhos fixos na pequena poça de luz aos seus pés. E de repente não havia mais nada, nem céu acima, nem porta, nada além da negra escuridão. Passou a luz pelas paredes. Estavam ameaçadoramente próximas. Aquela sala era pequena demais mesmo para um escritório. Parecia ter dado em alguma espécie de armário ou depósito. Em algum lugar, sabia, devia haver uma abertura, aquela por onde havia entrado. Mas desorientada na claustrofóbica escuridão, não conseguia mais distinguir o teto das paredes. A cada movimento da lanterna os tijolos das paredes pareciam estar se fechando em cima dela, o teto baixando inexoravelmente, como a tampa de uma tumba se fechando. Lutando para se controlar, foi avançando aos poucos ao longo de uma
parede, dizendo a si mesma que logo ia encontrar uma abertura. De repente, a lanterna sacudiu em sua mão e o rastro de luz sumiu do chão. Parou, horrorizada com o perigo. No meio da sala, havia um buraco quadrado protegido apenas por duas pranchas atravessadas sobre ele. Um passo em pânico e teria chutado as tábuas, tropeçado e despencado para o negro nada. Em sua imaginação o buraco era sem fundo, seu corpo jamais seria encontrado. Ficaria lá, caída na lama e no escuro, fraca demais para gritar por socorro. E tudo o que ouviria seriam as vozes distantes dos operários quando, tijolo a tijolo, fosse sendo emparedada viva em sua negra tumba. E então foi atacada por um outro horror, mais racional. Pensou nos pneus furados. Teria sido realmente um acidente? Os pneus estavam bons quando estacionara a bicicleta de manhã. Talvez não tivesse sido vidro na rua afinal. Talvez alguém tivesse feito aquilo de propósito, alguém que sabia que ela ia ficar até tarde no laboratório, que não haveria ninguém para lhe dar uma carona, que provavelmente iria pelo prédio novo. Imaginou-o no escuro do início da noite, deslizando silenciosamente para o abrigo de bicicletas, faca na mão, agachado ao lado dos pneus, ouvindo o chiado do ar escapando, calculando que tamanho teria de ser o furo para fazer os pneus ficarem no chão antes de ela rodar longe demais. E agora estava esperando por ela, faca na mão, em algum ponto da escuridão. Estaria sorrindo, experimentando a lâmina, ouvindo cada passo dela, observando o facho da lanterna. Ele também teria uma lanterna, claro. Que logo iria brilhar em seu rosto, cegando seus olhos, de forma que não poderia enxergar a boca cruel e triunfal, a faca brilhando. Instintivamente, apagou a luz e ficou ouvindo, o coração batendo com tanta força que tinha a impressão de estar sacudindo até as paredes. Então ouviu o barulho, suave como um único passo, macio como o toque da manga de um casaco na madeira. Ele estava chegando. Estava ali. E agora só existia o pânico. Soluçando, atirou-se contra as paredes, esfolando as palmas das mãos nos tijolos ásperos. De repente, encontrou um espaço. Caiu por ele, tropeçou, a lanterna rolou de suas mãos. Gemendo, ficou caída, esperando a morte. O terror baixou com um guincho de selvagem exultação e um bater de asas que a deixou de cabelos em pé. Ela gritou, um pequeno som gemido que se perdeu no grito do pássaro, e a coruja encontrou a janela sem vidros e mergulhou na noite. Não sabia quanto tempo estava caída ali, as mãos doloridas agarrando a terra, a boca engasgada de poeira. Mas depois de algum tempo controlou os soluços e levantou a cabeça. Viu claramente a janela, um imenso quadrado de luz brilhante, salpicado de estrelas. E à direita brilhou uma porta. Ela se pôs de pé com dificuldade. Não esperou para encontrar a lanterna, mas saiu direto para
aquela abençoada abertura de luz. Adiante, havia outra. E, de repente, não mais paredes, apenas a estrelada abóbada do céu oscilando acima dela. Ainda soluçando, mas agora aliviada, saiu correndo sob o luar, sem pensar, os cabelos caindo-lhe nos ombros, os pés mal parecendo tocar a terra. E, agora, havia um cinturão de árvores na sua frente e, brilhando em meio aos ramos de outono, a capela Wren iluminada por dentro, convidativa e sagrada, brilhando como a imagem de um cartão de Natal. Correu para lá, as mãos estendidas, como centenas de seus antepassados nos pântanos escuros devem ter corrido para seus altares pedindo proteção. A porta estava aberta e um raio de luz atravessava o pátio como uma flecha. Ela se atirou sobre o carvalho, e a grande porta girou para dentro numa glória de luz. De início, sua mente, chocada em estupor, se recusou a reconhecer o que seus olhos perplexos viam com tanta clareza. Sem entender, estendeu a mão hesitante e alisou o veludo cotelê macio da calça, a mão úmida e pendente. Aos poucos, deliberadamente, seus olhos foram subindo e ela viu e entendeu ao mesmo tempo. O rosto de Stella Mawson, horrível na morte, pairava acima dela, os olhos entreabertos, as mãos estendidas como num apelo mudo de piedade ou de ajuda. Em torno de seu pescoço, um cordão duplo de seda azul, com o festão da borda preso bem alto a um gancho na parede. Ao lado, num segundo gancho, estava enrolada a corda do sino. Havia uma cadeira baixa de madeira caída junto aos pés oscilantes. Brenda pegou a cadeira. Gemendo, agarrou a corda e puxou-a três vezes antes que escorregasse de suas mãos trêmulas, e ela caiu, desmaiada.
 
10
A um quilômetro do outro lado do campo, no terreno do Hoggatt, Massingham dirigiu o Rover para a entrada do laboratório e deu ré entre os arbustos. Apagou os faróis. A luz da rua, do lado oposto, lançava um suave fulgor sobre o caminho, e a porta do laboratório estava plenamente visível ao luar. Ele disse: “Tinha esquecido, senhor, que esta noite é de lua cheia. Ele teria que esperar até a lua se esconder atrás de uma nuvem. Mesmo assim, sem dúvida poderia sair da casa e descer a entrada sem ser visto, se escolhesse um bom momento. Afinal, Doyle estava com a cabeça, e não só a cabeça, em outra coisa.” “Só que o assassino não tinha como saber disso. Se viu o carro chegando, duvido que fosse se arriscar. Bom, podemos pelo menos descobrir se isso é possível mesmo sem a colaboração da senhora Meakin. Isso me lembra de uma brincadeira da escola, As Pegadas da Vovó. Você vai primeiro, ou vou eu?” Mas estava escrito que a experiência nunca seria realizada. Pois foi nesse momento que ouviram, fracos, mas inconfundíveis, os três toques do sino da capela.
11
Massingham levou o carro em velocidade até o gramado e freou a centímetros da cerca viva. Diante deles, a rua fazia uma suave curva entre duas fileiras de arbustos castigados pelo vento, passando pelo que parecia uma dilapidada cocheira de madeira escura, seguindo para os charcos nus de Guy’s Marsh. À direita, ficava o vulto negro do prédio novo. Os faróis iluminaram uma passagem e além dela um caminho que atravessava o campo até um círculo distante de árvores, agora parecendo apenas um borrão escuro no céu da noite. Ele disse: “Estranho como a capela fica longe da casa, e tão escondida. Nem dá para ver que está lá. Dá para pensar que a primeira família construiu a capela para algum rito secreto, necromântico.” “É mais provável que fosse um mausoléu familiar. Eles não planejavam se extinguir.” Nenhum dos dois voltou a falar. Guiados pelo instinto, rodaram dois quilômetros até o acesso mais próximo da Guy’s Marsh Road para a capela. Embora menos direto, era mais rápido e mais fácil do que encontrar o caminho a pé pelo terreno do laboratório até o prédio novo. Apressando os pés, viram-se quase correndo, levados por algum medo não identificado, em direção às árvores distantes. E agora estavam no círculo de faias plantadas a espaços irregulares, inclinando a cabeça sob os ramos baixos, os pés crepitando o tapete de folhas caídas, e por fim puderam ver as janelas fracamente iluminadas da capela. Ao chegar à porta meio aberta, Massingham virou-se instintivamente como se fosse lançar-se de ombro contra ela, mas recuou, com um sorriso. “Desculpe, eu estava esquecendo. Não há por que me atirar para dentro. Provavelmente é só a senhorita Willard polindo os metais e o reitor fazendo uma prece obrigatória para manter o local santificado.” Gentilmente, com um ligeiro floreio, empurrou a porta e deu um passo de lado para Dalgliesh entrar antes dele na antecapela iluminada. Depois disso, não houve mais palavras, nem pensamento consciente, apenas ação instintiva. Os dois moviam-se como uma só pessoa. Massingham agarrou e levantou as pernas penduradas e Dalgliesh, pegando a cadeira derrubada pelo corpo tombado de Brenda, removeu o duplo laço do cordão do pescoço de Stella Mawson e baixou seu corpo no chão. Massingham arrebentou os fechos de seu casaco, forçou sua cabeça para trás e, debruçando-se sobre ela, tentou a respiração boca a boca. Brenda, atirada junto à parede, mexeu-se e gemeu, e
Dalgliesh ajoelhou-se a seu lado. Ao tocar seus ombros com os braços, ela se debateu como louca um momento, guinchando como um gatinho, depois abriu os olhos e reconheceu o comandante. Seu corpo relaxou contra o dele. Disse, sem forças: “O assassino. No prédio novo. Estava me esperando. Foi embora?” Havia um painel de interruptores à esquerda da porta. Dalgliesh acendeu todos com um único gesto, e a capela interna se incendiou de luzes. Passando por trás da grade esculpida do órgão, entrou na nave. Estava vazia. A porta que levava à galeria do órgão estava entreaberta. Ele subiu a estreita escada em espiral até a galeria. Também estava vazia. Depois, ficou olhando lá de cima o silencioso vazio da nave, passando os olhos pelo belo teto esculpido, o chão de mármore quadriculado, a dupla ala de bancos elegantemente entalhados com seus encostos altos em arco junto às paredes norte e sul, a mesa de carvalho sem toalha de altar que ficava diante do sacrário sob uma das janelas leste. Tudo que havia sobre ela agora eram dois candelabros de prata, as altas velas brancas queimadas pela metade, os pavios escuros. E na parede à esquerda do altar, incongruente, pendurada acima do primeiro banco, uma tabela de hinos. Mostrava quatro números:
 
29 10 18 40
 
Ele lembrou da voz do velho senhor Lorrimer: “Ela disse alguma coisa sobre a tela queimada e que já tinha os números.” Os dois últimos eram 18 e 40. E o que estava queimado não era uma tela, nem uma teca, mas sim duas velas de altar.
12
Quarenta minutos depois, Dalgliesh estava sozinho na capela. O dr. Greene havia sido chamado, declarado rapidamente que Stella Mawson estava morta e ido embora. Massingham tinha saído com ele para levar Brenda Pridmore para casa e explicar aos pais dela o que havia acontecido, passar no Chalé Sprogg’s e chamar o dr. Howarth. O dr. Greene tinha aplicado uma injeção de sedativo em Brenda, e achava que ela não seria capaz de responder interrogatório até amanhã seguinte. O patologista forense fora chamado e estava a caminho. As vozes, as perguntas, os passos sonoros, estava tudo silenciado de momento. Dalgliesh sentiu-se excepcionalmente sozinho no silêncio da capela, ainda mais porque o corpo de Stella continuava ali, e teve a sensação de que alguém, ou alguma coisa, havia se retirado recentemente, deixando o ar mais livre. Ajoelhou-se e olhou a mulher morta com atenção. Em vida, apenas seus olhos haviam emprestado personalidade àquele rosto áspero. Agora pareciam vidrados e gomosos como balas pegajosas sob as pálpebras entreabertas. Não era um rosto sereno. Seus traços, ainda não assentados pela morte, mostravam ainda o peso da inquietude da vida. Já tinha visto muitos rostos mortos. Tinha se tornado um adepto da leitura dos estigmas da violência. Às vezes, podia ler neles o quando, o como, o onde. Mas agora não lhe diziam nada. Levantou a ponta do cordão ainda enrolado frouxamente em seu pescoço. Era feito de seda trançada, azul-real, longo o bastante para amarrar uma cortina pesada, e enfeitado na ponta por um pingente de franjas pratas e azuis. Havia uma arca de um metro e meio encostada à parede e, colocando as luvas, ele abriu a tampa. O cheiro de naftalina subiu a suas narinas, penetrante como um anestésico. Dentro da arca havia duas partes de uma cortina de veludo desbotada, uma sobrepeliz engomada mas amassada, um capelo de formatura preto-e-branco e, em cima dessa pilha variada, um segundo cordão com pingente. Quem quer que tivesse colocado aquele cordão em torno do pescoço de Stella, ela própria ou outra pessoa, sabia previamente onde ele podia ser encontrado. Começou a explorar a capela. Pisava de leve, mas mesmo assim seus pés caíam com portentoso peso sobre o chão de mármore. Devagar, foi caminhando entre as duas alas de bancos esplendidamente entalhados, na direção do altar. No desenho e na mobília aquela capela lembrava a de sua faculdade. Até o cheiro era o mesmo, um odor escolástico, frio, austero, só vagamente eclesiástico. Agora que o altar havia sido desnudado de toda a sua mobília, exceto os dois
candelabros, a capela parecia puramente secular, não consagrada. Talvez tenha sido sempre assim. O formalismo de seu classicismo rejeitava a emoção. Era o homem, não Deus que ali estava entronizado, a razão, não o mistério. Aquele era um lugar em que certos rituais de afirmação haviam sido celebrados, reafirmando a visão que seu proprietário tinha da ordem correta do universo e do seu próprio lugar nessa ordem. Procurou alguma lembrança do proprietário original e encontrou. À direita do altar ficava o único monumento da capela, um busto esculpido, meio escondido por uma cortina de mármore, mostrando um cavalheiro do século XVIII com sua peruca e a inscrição:
 
Dieu aye merci de son ame.
 
A súplica simples, sem enfeites, tão fora de época, era especialmente inadequada para a pose formal do monumento, o orgulho da cabeça levantada, o ricto de auto-satisfação nos opulentos lábios de mármore. Ele tinha construído a capela e plantado ao redor um triplo círculo de árvores, e a morte não havia detido sua mão nem o tempo suficiente para ele fazer a entrada de carruagens. De cada um dos lados do painel do órgão e dando para a janela leste, havia dois bancos ornamentados debaixo de dosséis curvos, ambos protegidos do vento por uma cortina azul de veludo semelhante às guardadas dentro da arca. Os assentos tinham almofadas combinando. Sobre os apoios de livros, estavam as almofadinhas macias, com pingentes prateados nos cantos. Foi até o banco da direita. Em cima da almofada, havia um pesado livro de orações encadernado de couro preto que parecia nunca usado. As páginas se abriam com dificuldade e as grossas letras pretas e vermelhas brilhavam em cada página.
 
Pois sou um estranho para vós: e transitório, como eram meus pais. Oh, poupai-me para que eu recobre a minha força: antes que vá para vós e nunca mais seja visto.
 
Pegou o livro pela lombada e sacudiu. Nenhum papel caiu de dentro de suas rígidas páginas. Mas no lugar onde o livro estava, quatro fios de cabelo, um loiro e três escuros, tinham ficado grudados na penugem do veludo. Pegou do bolso um envelope e fixou os fios na borda gomada. Sabia que os cientistas forenses poderiam fazer muito pouco com apenas quatro fios de cabelo, mas era possível que se aprendesse alguma coisa. A capela, pensou, deve ter sido ideal para eles. Abrigada pelas árvores, isolada, segura, até aquecida. Os moradores do pântano ficavam em casa depois que escurecia e, mesmo à luz da noite, teriam um horror meio supersticioso de
visitar esse santuário vazio e estranho. Mesmo sem chave, não tinham de temer nenhuma intromissão casual. Ela só precisava tomar cuidado para não ser vista quando entrasse com seu Jaguar vermelho no Hoggatt para estacioná-lo fora das vistas em uma das garagens dos estábulos. E depois? Esperar a luz do Departamento de Biologia finalmente se apagar, e o facho da lanterna de Lorrimer avançar brilhando para juntar-se a ela na caminhada pelo terreno do laboratório, em meio às árvores. Imaginou se ela teria fechado as cortinas do santuário, se teria sido mais excitante fazer amor com Lorrimer diante daquele altar desnudado, a paixão nova triunfando sobre a antiga. O cabelo de fogo de Massingham apareceu na porta. Ele disse: “A menina está bem. A mãe levou direto para a cama e está dormindo. Depois, passei no Chalé Sprogg’s. A porta estava aberta e a luz da sala acesa, mas não tinha ninguém. Howarth estava em casa quando telefonei, mas a senhora Schofield não estava. Ele disse que logo estaria aqui. O doutor Kerrison está no hospital, numa reunião do comitê médico. A governanta disse que ele saiu logo depois das sete. Não telefonei para o hospital ainda. Se ele estiver lá, vai poder indicar uma porção de testemunhas.” “E Middlemass?” “Não atendeu. Saiu para jantar, ou está no pub, talvez. Ninguém atende também em nenhum dos números de Blakelock. Alguma coisa por aqui, senhor?” “Nada, a não ser o que já era de esperar encontrar. Deixou um homem a postos para mostrar o caminho a Blain-Thompson quando ele chegar?” “Sim, senhor. E acho que está chegando.”
13
Antes de começar um exame, o dr. Reginald Blain-Thompson tinha o curioso hábito de ficar andando em volta do corpo, os olhos fixos nele com grande intensidade como se temesse que o morto pudesse saltar de novo à vida e agarrálo pelo pescoço. Estava andando agora, imaculado em seu terno risca-de-giz, o inevitável botão de rosa com seu prendedor de prata tão fresco em sua lapela como se fosse uma flor de junho, recém-colhida. Era um solteirão alto, de rosto fino e ar aristocrático, com a pele rosada e macia de uma moça. Era sabido que nunca usava roupas protetoras na hora de examinar um corpo, e isso lembrou Dalgliesh de um daqueles programa de televisão em que o cozinheiro prepara um jantar completo de quatro pratos em traje de gala, só pelo prazer de demonstrar o refinamento de sua arte. Dizia-se até, injustamente, que BlainThompson fazia suas autópsias vestindo smoking. Mas, apesar dessas idiossincrasias pessoais, era um excelente patologista forense. Era adorado pelos júris. Quando estava no banco de testemunhas, com seu formalismo ligeiramente entediado e sua voz de ator, enumerando os detalhes de sua formidável qualificação e experiência, os jurados olhavam para ele com a admiração respeitosa de homens que conhecem um consultor distinto quando estão diante de um e não têm nenhuma intenção de ser tão rudes a ponto de desacreditar o que ele tenha escolhido lhes dizer. Ele agachou-se ao lado do corpo, ouviu, cheirou e tocou. Depois apagou sua luz de exame e levantou-se. Disse: “É, muito bem. Evidentemente, ela está morta e é muito recente. Menos de duas horas, se quiserem muito saber. Mas vocês já devem ter concluído isso ou não teriam descido o corpo. Quando disseram que encontraram? Às oito e três. Morta há uma hora e meia, digamos. É possível. Vão me perguntar se é suicídio ou assassinato. Tudo o que posso dizer de momento é que só existe a marca dupla em torno do pescoço e foi feita pelo cordão. Mas isso vocês podem ver por si mesmos. Não há sinal de estrangulamento manual, e não parece que a corda tenha sido sobreposta a um fio mais fino. É uma mulher frágil, pouco mais de sessenta quilos eu calculo, de forma que não precisaria muita força para ser dominada. Mas não há sinal de luta e as unhas parecem perfeitamente limpas, portanto ela provavelmente não teve a chance de arranhar. Se é assassinato, ele deve ter atacado por trás muito depressa, baixado a corda enrolada por cima de sua cabeça e pendurado assim que sobreveio a inconsciência. Quanto à causa da morte, se foi estrangulamento, pescoço quebrado ou inibição vagal, bom, vão ter
de esperar até eu colocar o corpo na mesa. Posso levar agora se estiverem prontos.” “Quando pode fazer o post mortem?” “Bom, o melhor seria imediatamente, não é? Estão me atrasando, comandante. Não têm nenhuma pergunta a respeito do meu relatório sobre Lorrimer?” Dalgliesh respondeu: “Nenhuma, obrigado. Tentei ligar para o senhor.” “Desculpe se estou difícil de encontrar. Passei quase todo o dia encarcerado em comitês. Quando é o inquérito de Lorrimer?” “Amanhã, às duas da tarde.” “Estarei lá. Vão adiar, eu creio. E eu telefono para o senhor e forneço um relatório preliminar assim que ela estiver costurada.” Calçou as luvas cuidadosamente, dedo por dedo, e foi embora. Deu para ouvir quando trocava algumas palavras com o oficial que estava esperando do lado de fora para iluminar o caminho até seu carro. Um dos dois riu. Depois as vozes se calaram. Massingham pôs a cabeça para fora da porta. De uniforme escuro, os dois atendentes do furgão mortuário, anônimos burocratas da morte, manobraram a maca pela porta com descuidada prática. O corpo de Stella Mawson foi levantado com gentileza impessoal. Os homens viraram e rolaram a maca e já iam sair quando, de repente, o caminho foi barrado por duas sombras escuras, e Howarth e sua irmã entraram depressa e ao mesmo tempo na capela. Os homens da maca pararam, imóveis como escravos antigos, que nada vêem, nada escutam. A entrada dos dois pareceu a Massingham tão artificialmente dramática como a de um casal de artistas de cinema chegando a uma première. Estavam usando roupas idênticas: calças e jaquetas de couro ocre com as golas de pele levantadas. E pela primeira vez ele se deu conta da grande semelhança entre os dois. A impressão de um filme ficou ainda mais reforçada. Olhando os rostos pálidos e arrogantes emoldurados pela pele, achou que pareciam gêmeos decadentes, os perfis claros e belos teatralmente contrastantes com os lambris de carvalho escuro. Ainda simultaneamente, os olhos de ambos pousaram no volume coberto da maca, e depois em Dalgliesh. Ele disse para Howarth: “Demorou para chegar.” “Minha irmã estava fora e esperei até que voltasse. O senhor disse que queria a presença dos dois. Não entendi que era uma coisa de urgência imediata. O que aconteceu? O inspetor Massingham não foi exatamente comunicativo quando nos convocou tão peremptoriamente.” “Stella Mawson morreu enforcada.” Ele não tinha dúvidas de que Howarth avaliava sua cuidadosa escolha de
palavras. Os olhos de ambos os irmãos se voltaram para os dois ganchos da parede da capela, um com a corda do sino enganchada, e o outro, onde estivera pendurado o cordão azul com seu pingente que Dalgliesh segurava com leveza. Howarth falou: “Imagino que ela sabia onde encontrar o cordão. Mas por que escolher aqui?” “Reconhece o cordão?” “Não estava na arca? Deve haver dois cordões idênticos. Tínhamos pensado em pendurar as cortinas na entrada da nave quando fizemos nosso concerto aqui, no dia 26 de agosto. Mas acabamos desistindo. A noite estava quente demais para nos preocuparmos com corrente de ar. Na época, havia dois cordões com pingentes na arca.” “Quem pode ter visto isso?” “Praticamente todo mundo que ajudou com os preparativos: eu, minha irmã, senhorita Foley, Martin, Blakelock. Middlemass deu uma mão arrumando as cadeiras alugadas, e mais uma porção de pessoas do laboratório. Algumas das mulheres ajudaram com os refrescos para depois do concerto e ficaram por aqui durante a tarde. A arca não é trancada. Qualquer um que tivesse curiosidade podia olhar dentro dela. Mas não vejo como a senhorita Mawson podia saber do cordão. Ela veio ao concerto, mas não teve nada a ver com os preparativos.” Dalgliesh fez um sinal para os homens da maca. Eles a empurraram para fora suavemente, e Howarth e a srta. Schofield recuaram para deixá-los passar. Dalgliesh perguntou então: “Quantas chaves existem deste lugar?” “Já lhe disse ontem. Só sei de uma. É guardada num armário na sala do agente de comunicação com a polícia.” “E é aquela que está agora na fechadura?” Howarth não virou a cabeça ao responder: “Se tiver a etiqueta plástica do laboratório, é, sim.” “Sabe se a chave foi entregue a alguém no dia de hoje?” “Não. É o tipo de detalhe que dificilmente Blakelock deixaria chegar até mim.” Dalgliesh voltou-se para Domenica Schofield: “E é essa, suponho, a chave que a senhora emprestou para mandar fazer cópias quando resolveu usar a capela para os seus encontros com Lorrimer. Quantas chaves?” Ela disse, calma: “Duas. Uma o senhor encontrou no corpo dele. Esta é a segunda.” Ela tirou a chave do bolso da jaqueta e a estendeu na palma da mão, num gesto frio de desdém. Por um momento, pareceu que ia virar a mão e deixar que caísse ao chão.
“Não nega que vinha aqui?” “Por que deveria? Não é ilegal. Éramos maiores de idade, em nosso juízo perfeito, e livres. Não era nem adultério, apenas fornicação. O senhor parece fascinado por minha vida sexual, comandante, mesmo em meio a suas preocupações mais normais. Não tem medo que isso se transforme em uma obsessão?” A voz de Dalgliesh não se alterou: “E não pediu a chave de volta quando rompeu com Lorrimer?” “Mais uma vez, por que deveria? Eu não precisava dela. Não era uma aliança de noivado.” Howarth não olhou para a irmã durante essa conversa. De repente, disse bruscamente: “Quem encontrou o corpo?” “Brenda Pridmore. Já foi levada para casa. O doutor Greene está com ela agora.” A voz de Domenica Schofield soou surpreendentemente gentil: “Pobre menina. Parece que está se tornando um hábito ela descobrir corpos, não é? Agora que já explicamos a história das chaves, tem mais alguma coisa que o senhor queira conosco hoje?” “Só saber onde vocês dois estavam desde as seis da tarde.” Howarth disse: “Saí do Hoggatt umas quinze para as seis e fiquei em casa desde então. Minha irmã saiu para dirigir sozinha às sete horas. Ela gosta de fazer isso às vezes.” Domenica Schofield disse: “Não sei se consigo lhe contar a rota exata, mas parei em um pub muito agradável em Whittlesford para tomar um drinque e comer alguma coisa pouco antes das oito horas. Eles talvez se lembrem de mim. Sou bem conhecida lá. Por quê? Está nos dizendo que isto é assassinato?” “É uma morte inexplicada.” “E suspeita, talvez. Mas o senhor não chegou a pensar que ela pode ter matado Lorrimer e tirado a própria vida?” “Pode me dar uma boa razão para isso?” Ela riu de mansinho. “Para matar Edwin? Pela melhor e mais comum das razões, ou pelo menos foi o que eu li. Porque ela foi casada com ele. Não descobriu isso, não, comandante?” “Como a senhora sabe?” “Porque ele me contou. Talvez seja a única pessoa do mundo a quem ele contou. Disse que o casamento não foi consumado e que conseguiram uma anulação dois anos depois. Acho que foi por isso que nunca levou a mulher para
casa. É um negócio embaraçoso mostrar a nova esposa para os pais e para a aldeia, principalmente quando ela não é esposa coisa nenhuma e se desconfia que nunca será. Não creio que os pais dele soubessem, portanto não é tão surpreendente que o senhor ainda não soubesse. Mas o que se espera é que o senhor desenterre tudo sobre a vida privada dos outros.” Antes que Dalgliesh pudesse responder, todos os ouvidos captaram ao mesmo tempo os passos apressados nos degraus de pedra, e Angela Foley apareceu na porta. Estava afogueada da corrida. Olhando, perturbada, de um rosto para o outro, o corpo ofegante, perguntou, sem ar: “Onde ela está? Onde está Star?” Dalgliesh deu um passo à frente, mas ela recuou, aterrorizada de que pudesse tocá-la. Disse: “Aqueles homens... Embaixo das árvores. Com uma lanterna. Estavam empurrando alguma coisa. O que era? O que vocês fizeram com Star?” Sem olhar para seu irmão, Domenica Schofield estendeu-lhe a mão. Ele a pegou. Não se aproximaram, só ficaram rigidamente ligados pelas mãos apertadas, distantes um do outro. Dalgliesh disse: “Sinto muito, senhorita Foley. Sua amiga está morta.” Quatro pares de olhos acompanharam quando os olhos dela se viraram, primeiro para as laçadas do cordão azul penduradas nas mãos de Dalgliesh, depois para os dois ganchos, e por fim para a cadeira agora arrumada contra a parede. Ela sussurrou: “Oh, não. Oh, não.” Massingham avançou para pegar seu braço, mas ela sacudiu o toque. Lançou a cabeça para trás e uivou, como um animal: “Star! Star!” Antes que Massingham pudesse detê-la, saiu correndo da capela e eles puderam ouvir seu grito enlouquecido e desesperado, trazido pelo vento leve. Massingham foi atrás dela. Estava calada agora, desviando das árvores, correndo depressa. Mas ele a alcançou com facilidade antes que ela chegasse até as duas figuras distantes com sua terrível carga. Primeiro, Angela se debateu loucamente. Mas, de repente, desabou entre seus braços e ele pôde carregá-la e levar para o carro. Quando voltou à capela, meia hora depois, Dalgliesh estava sentado calado em um dos bancos, aparentemente concentrado no livro de orações. Baixou o livro e perguntou: “Como ela está?” “O doutor Green deu um sedativo. Ele arranjou uma enfermeira da prefeitura para ficar com ela esta noite. Não conseguiu pensar em mais ninguém. Ao que
parece nem ela nem Brenda Pridmore vão ser capazes de responder interrogatório amanhã de manhã.” Olhou o montinho de fichas de cartões numerados no banco ao lado de Dalgliesh. O chefe disse: “Encontrei isto aqui no fundo da arca. Acho que podemos examinar isto e os números na tabela em busca de impressões digitais. Mas já sabemos o que vamos encontrar.” Massingham perguntou: “Acredita nessa história da senhora Schofield de que Lorrimer e Stella Mawson foram casados?” “Ah, acho que acredito, sim. Por que mentir quando é tão fácil verificar os fatos? E isso explica tanta coisa: aquela incrível mudança do testamento; até a explosão quando estava falando com Bradley. Esse primeiro fracasso sexual deve ter machucado fundo. Mesmo depois de todos esses anos ele não agüentava pensar que ela podia se beneficiar, mesmo que indiretamente, do seu testamento. Ou quem sabe o insuportável fosse que, ao contrário dele, ela havia encontrado a felicidade, e com uma mulher.” Massingham disse: “Então ela e Angela Foley não recebem nada. Mas isso não é razão para ela se matar. E por que justamente aqui?” Dalgliesh se pôs de pé: “Não creio que tenha se matado. Isto foi assassinato.”
 
 
 
LIVRO CINCO
 
O fosso de tufo
1
Antes do amanhecer, estavam na fazenda Bowlem. A sra. Pridmore tinha começado cedo a assar seu pão. Duas grandes tigelas de cerâmica já estavam em cima da mesa, cobertas com pano, e todo o chalé recendia com o cheiro quente e fecundo do fermento. Quando Dalgliesh e Massingham chegaram, o dr. Greene, um homem atarracado, de ombros largos, com o rosto benevolente de uma rã, guardava seu estetoscópio nos fundos de uma antiquada maleta Gladstone. Fazia menos de doze horas que Dalgliesh e ele haviam se encontrado pela última vez, desde que, como cirurgião da polícia, tinha sido o primeiro médico a ser chamado para ver o corpo de Stella Mwason. Depois de um breve exame, tinha se pronunciado: “Se está morta? Resposta: sim. Causa da morte? Resposta: enforcamento. Hora da morte: mais ou menos uma hora atrás. Agora é melhor chamar um perito e ele vai explicar por que a primeira pergunta é a única que ele pode responder no momento.” O médico não perdeu tempo com gentilezas nem com perguntas, simplesmente cumprimentou os dois detetives com um aceno de cabeça e continuou falando com a sra. Pridmore. “A menina está ótima. Sofreu um choque feio, mas nada que uma boa noite de sono não conserte. É moça e saudável, e precisa de mais um par de mortos para ficar neurótica, se é disso que estão com medo. Minha família trata da sua faz três gerações e até agora nenhum de nós perdeu a cabeça.” Acenou para Dalgliesh. “O senhor pode subir agora.” Arthur Pridmore estava parado ao lado da mulher, a mão agarrando o ombro dela. Ninguém o apresentou a Dalgliesh, nem precisava. Ele disse: “Ela ainda não viu o pior, não é? Já é o segundo morto. Como acha que vai ser a vida dela nesta aldeia se essas duas mortes não forem solucionadas?” O dr. Greene estava impaciente. Fechou a maleta bruscamente. “Pelo amor de Deus, homem, ninguém vai desconfiar de Brenda! Ela mora aqui desde que nasceu. Fui eu que fiz o parto.” “Isso não protege da difamação, protege? Não estou dizendo que vai ser acusada. Mas sabe como é nos pântanos. As pessoas podem ser supersticiosas, insistentes, impiedosas. Periga de ela ficar marcada como mulher que traz má sorte.” “Não a sua linda Brenda, não, senhor. Ela vai ser é a heroína local, isso sim. Esqueça essa bobagem mórbida, Arthur, e venha até o carro comigo. Quero falar
daquele negócio do Conselho Paroquial.” Os dois saíram juntos. A sra. Pridmore olhou para Dalgliesh. Ele achou que havia chorado. Ela disse: “E agora vocês vão interrogar minha filha, fazer ela falar, remexer tudo outra vez.” “Não se preocupe”, disse Dalgliesh, suavemente, “falar ajuda.” Ela não fez nenhum movimento para acompanhá-los ao primeiro andar, demonstrando um tato pelo qual Dalgliesh agradeceu. Ele não poderia ter feito nenhuma objeção, principalmente porque não tinha havido tempo de providenciar uma policial feminina, mas achava que Brenda ia ficar mais relaxada e ser mais comunicativa na ausência da mãe. Ela atendeu alegremente ao toque na porta. O quarto pequeno, com suas vigas baixas e as cortinas fechadas contra o escuro da manhã, estava cheio de luz e cor, e ela estava sentada na cama, alerta e de olhos brilhantes, a auréola de cabelos caindo pelos ombros. Dalgliesh ponderou de novo sobre o poder de recuperação dos jovens. Massingham parou de repente na porta, pensando que ela devia estar na Galeria Uffizi, com os pés flutuando sobre um regato de flores silvestres, e ao fundo, a paisagem ensolarada da Itália se estendendo até o horizonte infinito. Era ainda bem o quarto de uma colegial. Havia duas estantes de livros de estudo, outra com uma coleção de bonecas em trajes típicos, e um quadro de cortiça com recortes dos suplementos dominicais e fotos de amigos. Tinha uma cadeira de vime ao lado da cama, acomodando um grande urso de pelúcia. Dalgliesh tirou o bichinho e colocou-o ao lado dela, depois sentou-se. Perguntou: “Como está se sentindo? Melhor?” Ela se inclinou impulsivamente para ele. A manga do penhoar creme caiu sobre o braço cheio de sardas. Disse: “Estou contente de vocês terem vindo. Ninguém quer falar sobre o que aconteceu. Não entendem que vou ter de falar sobre isso alguma hora e que é muito melhor que seja agora enquanto ainda está fresco na minha cabeça. Foi o senhor que me encontrou, não foi? Me lembro de alguém me carregando, igualzinho Marianne Dashwood em Razão e sensibilidade, e do cheiro bom do seu paletó de tweed. Mas não recordo de mais nada depois disso. Ah, lembro de ter tocado o sino, isso sim.” “Foi inteligente de sua parte. Estávamos estacionados na entrada do Hoggatt e ouvimos, senão, podia levar horas até o corpo ser encontrado.” “Não foi inteligência, não. Foi pânico. Acho que vocês entenderam o que aconteceu. Furaram os dois pneus da minha bicicleta e eu resolvi voltar para casa a pé pelo prédio novo. Aí, me perdi e entrei em pânico. Comecei a pensar no assassino do doutor Lorrimer e a achar que ele estava à minha espera. Imaginei até que ele podia ter furado os meus pneus de propósito. Parece bobagem agora,
mas na hora não foi.” Dalgliesh disse: “Nós examinamos a bicicleta. Ontem de tarde, um caminhão de cascalho passou pelo laboratório e derrubou uma parte da carga. Tinha uma lasca fina em cada pneu da sua bicicleta. Mas seu medo foi perfeitamente natural. Não lembra se realmente havia alguém no prédio?” “Não com certeza. Não vi ninguém e acho que imaginei a maior parte dos ruídos que escutei. O que me assustou mesmo foi uma coruja. Então, quando consegui sair do prédio, corri em pânico, e atravessei um campo até a capela.” “Não teve a impressão de que podia haver alguém vivo na capela?” “Bom, não tem nenhuma coluna para as pessoas se esconderem atrás. É uma capela gozada, não acha? Não é bem um lugar sagrado. Talvez não tenham rezado o suficiente lá dentro. Eu só tinha estado lá dentro uma vez antes, quando o doutor Howarth e mais três funcionários do laboratório deram um concerto, então eu sabia como era. O senhor quer dizer que ele podia estar agachado atrás de um banco me vigiando? É uma idéia horrível.” “Sim, sem dúvida. Mas agora que está segura, é capaz de pensar nisso?” “Tudo bem, já que o senhor está aqui.” Fez uma pausa. “Acho que ele não estava lá. Não vi ninguém e acho que não ouvi ninguém. Mas estava tão apavorada que é provável que eu nem tivesse notado. O que vi foi só um monte de roupa pendurada na parede, e depois o rosto caído em cima de mim.” Ele não precisou alertá-la para a importância da pergunta seguinte. “Lembra onde encontrou a cadeira, a posição exata?” “Estava virada do lado direito do corpo, como se ela tivesse chutado para longe. Acho que estava caída de costas, mas podia estar de lado.” “Mas tem bem certeza de que estava caída?” “Tenho, sim. Lembro de ter colocado em pé para eu poder subir e pegar a corda do sino.” Ela olhou para ele, de olhos brilhantes. “Não devia ter feito isso, não é? Agora vocês não vão poder descobrir se as marcas ou a terra que ficou no assento vieram do meu sapato ou do dela. Foi por isso que o inspetor Massingham levou meu sapato ontem de noite? Mamãe me contou.” “Foi por isso, sim.” A cadeira seria examinada em busca de digitais, depois mandada para exame no Laboratório Metropolitano. Mas esse assassinato, se fosse mesmo um assassinato, havia sido premeditado. Dalgliesh duvidava que dessa vez o criminoso tivesse cometido algum erro. Brenda disse: “Uma coisa, porém, me chamou a atenção. É estranho que a luz estivesse
acesa, não é?” “Isso é outra coisa que eu queria perguntar. Tem certeza absoluta que a capela estava iluminada? Não foi você mesma que acendeu a luz?” “Tenho certeza que não fui eu. Vi luzes brilhando no meio das árvores, como a Cidade de Deus, sabe. Teria sido mais razoável correr para a rua assim que saí do prédio novo. Mas, de repente, vi a forma da capela e a luz brilhando fraquinha pelas janelas, e corri para ela quase por instinto.” “Acho que foi por instinto mesmo. Seus antepassados fizeram a mesma coisa. Só que correram em busca do santuário na St. Nicholas.” “Estou pensando nas luzes desde que acordei. Parece suicídio, não acha? Não creio que as pessoas se matem no escuro. Eu não faria isso. Não consigo imaginar eu me matando, a menos que estivesse doente, sem esperança, sozinha e com dores terríveis, ou se alguém me torturasse para me fazer contar uma informação vital. Mas se me suicidasse, nunca apagaria as luzes. Ia querer ver uma última luz antes de ir para as trevas, o senhor não? Mas um assassino sempre quer atrasar a descoberta do corpo, não é? Então por que não apagou a luz e trancou a porta?” Ela falava com alegre despreocupação. A doença, a solidão, e a dor eram tão irreais e remotas quanto a tortura. Dalgliesh disse: “Talvez porque quisesse que parecesse suicídio. Foi essa a primeira coisa que pensou quando encontrou o corpo, que ela tinha se matado?” “Na hora não. Estava apavorada demais para pensar. Mas desde que acordei e comecei a pensar em tudo, sim, acho que eu imaginei que era suicídio.” “Mas não tem certeza de por que pensou nisso?” “Talvez porque enforcamento seja um jeito esquisito de matar alguém. Mas os suicidas muitas vezes se enforcam, não é? O antigo guardador de porcos do senhor Bowlem se enforcou, numa cocheira. E a velha Annie Makepeace. O que já notei é que nos pântanos as pessoas geralmente se dão um tiro ou se enforcam. Sabe, na fazenda sempre tem uma arma e uma corda.” Ela falava com simplicidade e sem medo. Tinha passado a vida inteira na fazenda. Sempre havia nascimento e morte, nascimento e morte de animais e de humanos também. E as longas noites escuras dos invernos no pântano traziam seu próprio miasma de loucura e desespero. Mas não para Brenda. Ele disse: “Você me deixa horrorizado. Isso soa como um holocausto.” “Não acontece muito, mas a gente lembra quando isso ocorre. Eu só associo enforcamento com suicídio. Acha que desta vez estou errada?” “Acho que pode estar. Mas nós vamos descobrir. Você foi uma grande ajuda.” Passou mais cinco minutos conversando com Brenda, mas não havia nada que ela pudesse acrescentar. Não tinha acompanhado o inspetor Blakelock até a sala do inspetor-chefe Martin quando ele ligou os alarmes noturnos, de forma que não
podia dizer se a chave da capela estava ou não ainda em seu gancho. Só havia encontrado Stella Mawson uma única vez, no concerto na capela, quando se sentou na mesma fileira que Angela Foley, Stella Mawson, sra. Schofield e o dr. Kerrison com os filhos. Quando Dalgliesh e Massingham estavam saindo, ela disse: “Acho que mamãe e papai não vão mais me deixar voltar para o laboratório agora. Na verdade, tenho certeza que não. Querem que eu case com Gerald Bowlem. Acho que eu gostaria de casar com ele, pelo menos nunca pensei em casar com outro, mas não ainda. Eu gostaria de primeiro ter uma carreira, de me tornar técnica... Só que mamãe não vai ter nem um minuto de sossego se eu continuar no laboratório. Ela me adora, e eu sou tudo o que ela tem na vida. Não se pode ferir as pessoas que amam a gente.” Dalgliesh identificou o pedido de socorro. Voltou e sentou na cadeira. Fingindo olhar pela janela, Massingham estava intrigado. Imaginou o que iam pensar na Yard se pudessem ver o velho tomando tempo de uma investigação de assassinato para dar conselhos sobre as ambigüidades morais da liberação da mulher moderna. Mas quase desejou que Brenda perguntasse a ele. Desde que entraram no quarto, ela só tinha olhado para Dalgliesh. Agora ouviu que Dalgliesh estava dizendo: “Acho que um emprego científico não é fácil de combinar com as funções de uma mulher de fazendeiro.” “Acho que não seria muito justo com Gerald.” “Eu costumava pensar que nós podemos conseguir quase tudo o que queremos da vida, que é só uma questão de organização. Mas agora estou começando a achar que temos de fazer escolhas mais vezes do que gostaríamos. O importante é ter certeza de que é a nossa escolha, de mais ninguém, e que estamos fazendo aquilo honestamente. Outra coisa de que eu tenho certeza: nunca é bom tomar uma decisão quando não se está perfeitamente bem. Por que não esperar um tempinho, até nós resolvermos o caso do doutor Lorrimer? Quem sabe sua mãe passe a pensar diferente então.” Ela disse: “Acho que é isso que o assassinato faz, muda a vida das pessoas e estraga tudo.” “Mudanças, sim. Mas não estraga necessariamente. Você é jovem, inteligente, corajosa, não deve deixar que estrague a sua.” Lá embaixo, na cozinha, a sra. Pridmore preparava sanduíches, colocando tiras de bacon frito entre fatias generosas de pão crocante. Disse, áspera: “Vocês dois estão com cara de quem precisa de um café-da-manhã. Acordados a noite inteira, tenho certeza. Não vai fazer mal nenhum sentar e perder uns
minutinhos para comer isto aqui. E acabei de fazer chá.” O jantar da noite anterior havia sido dois sanduíches que um policial foi buscar no Moonraker, e que eles tinham comido na capela. Só quando sentiu o cheiro do bacon foi que Massingham se deu conta do tamanho da sua fome. Mordeu agradecido o pão quentinho cheio do sal do bacon curado em casa e tomou por cima um chá forte e quente. Sentiu-se acolhido pelo calor e cordialidade da cozinha, aquele confortável abrigo, como um útero nos pântanos escuros. Então, tocou o telefone. A sra. Pridmore foi atender. Disse: “Era o doutor Greene ligando do Chalé Sprogg’s. Mandou dizer que Angela Foley está se sentindo bem e pronta para falar com o senhor.”
2
Angela Foley entrou lentamente na sala. Estava bem-vestida e perfeitamente calma, mas os dois homens ficaram chocados com a sua transformação. Andava dura e seu rosto parecia envelhecido e marcado como se tivesse passado a noite inteira em um ataque de tristeza. Seus olhos pequenos estavam pálidos e fundos atrás dos ossos salientes, as faces doentiamente manchadas, a boca delicada, inchada e havia uma marca de herpes em seu lábio superior. Só a sua voz estava inalterada. A fala sem ênfase, infantil com que havia respondido as primeiras perguntas. A enfermeira da prefeitura, que havia passado a noite no Chalé Sprogg’s, tinha acendido o fogo. Angela olhou a madeira crepitante e observou: “Stella nunca acendia o fogo antes do fim da tarde. Eu costumava arrumar a lenha antes de ir para o laboratório, e ela acendia o fósforo meia hora antes de eu chegar.” Dalgliesh disse: “Encontramos as chaves da casa no corpo da senhorita Mawson. Tivemos de destrancar a escrivaninha dela para examinar os papéis. Você estava dormindo, não pudemos pedir sua permissão.” Ela respondeu, sem expressão: “Não teria feito nenhuma diferença, teria? Vocês teriam olhado do mesmo jeito. Tinham de olhar.” “Sabia que sua amiga um dia teve uma espécie de casamento com Edwin Lorrimer? Não houve divórcio. O casamento foi anulado dois anos depois, porque não foi consumado. Ela contou para você?” Angela virou-se para olhá-lo, mas era impossível captar a expressão daqueles olhos pequenos, como de um bicho novo. Se em sua voz havia alguma emoção, era mais próxima de um tortuoso divertimento do que de surpresa. “Casados? Ela e Edwin? Então era por isso que ela sabia que...” Calou-se. “Não, ela não me contou. Quando vim morar aqui era um novo começo para nós duas. Eu não queria falar sobre o passado e não achei que ela quisesse também. Ela às vezes me contava coisas, sobre sua vida na universidade, seu trabalho, as pessoas que conheceu. Mas isso ela não me falou.” Dalgliesh perguntou suavemente: “É capaz de contar o que aconteceu ontem à noite?” “Ela disse que ia dar uma volta. Sempre fazia isso, mas geralmente depois do jantar. Era quando pensava em seus livros, trabalhava as tramas e o diálogo,
passeando sozinha na escuridão.” “A que horas ela saiu?” “Um pouco antes das sete.” “Ela estava com a chave da capela?” “Stella me pediu a chave ontem, depois do almoço, pouco antes de eu voltar para o laboratório. Disse que queria descrever uma capela familiar do século XVII no livro, mas eu não sabia que pretendia fazer a visita tão cedo. Às dez e meia, ela ainda não tinha voltado para casa e fiquei preocupada, e saí para procurá-la. Andei durante quase uma hora antes de pensar em olhar na capela.” Ela então falou diretamente com Dalgliesh, como se estivesse explicando alguma coisa para uma criança obtusa: “Stella fez isso por mim. Ela se matou para eu receber o dinheiro do seguro de vida dela. Ela me contou que eu era sua única beneficiária. Sabe, o dono deste chalé está com pressa de vendê-lo; precisa do dinheiro. Nós queríamos comprar, mas não tínhamos o valor suficiente para fazer o depósito. Pouco antes de sair, ela me perguntou como era ter ficado aos cuidados da autoridade local, como era não ter um lar de verdade. Quando Edwin morreu, pensamos que haveria alguma coisa para mim no testamento. Mas não havia. Foi por isso que ela me pediu a chave. Não era verdade que ela queria colocar uma descrição da capela no livro, não neste livro pelo menos. A história se passa em Londres, e o livro está quase pronto. Eu sei porque estou datilografando. Na hora, achei estranho ela querer a chave, mas aprendi a nunca perguntar nada a Stella. “Agora eu entendo. Ela queria dar solidez para a minha vida, onde nós duas fomos felizes, solidez para sempre. Sabia o que ia fazer. Sabia que não ia voltar nunca. Quando eu estava massageando o seu pescoço para aliviar a sua dor de cabeça, ela sabia que nunca mais eu ia tocar nela.” Dalgliesh perguntou: “Acha que um escritor, qualquer escritor que não estivesse mentalmente doente, escolheria se matar quando estava a ponto de terminar um livro?” Ela disse, sem expressão: “Não sei. Não entendo como sente um escritor.” Dalgliesh disse: “Bom, eu entendo. E ela não se mataria.” Ela não respondeu. Ele continuou, suavemente: “A senhorita Mawson era feliz, morando aqui com você?” Angela olhou para ele intensamente, e, pela primeira vez, sua voz se animou, como se estivesse querendo que ele entendesse. “Stella disse que nunca tinha sido tão feliz em toda a sua vida. Disse que isso é que era o amor, saber que você pode fazer uma outra pessoa feliz e receber a
própria felicidade em troca.” “Então por que haveria de se matar? Acha que podia mesmo acreditar que você ia preferir o dinheiro dela do que ela própria? Por que acharia isso?” “Stella sempre se subestimou. Pode ter pensado que eu ia acabar esquecendo dela com o passar do tempo, mas que o dinheiro e a segurança durariam para sempre. Ela podia até achar que era ruim para mim viver com ela, que o dinheiro de alguma forma me libertaria. Uma vez disse alguma coisa muito próxima disso.” Dalgliesh olhou a figura esguia, ereta, sentada com as mãos cruzadas no colo diante dele, na poltrona alta. Fixou os olhos no rosto dela. E disse tranqüilamente: “Mas não vai haver dinheiro nenhum. A apólice de seguro de vida tem uma cláusula sobre suicídio. Se a senhorita Mawson se matou, você não recebe nada.” Ela não sabia. Disso ao menos ele tinha certeza. A notícia a surpreendeu, mas não a chocou. Não se tratava de uma assassina que se vê privada do que julgara ganhar. Ela sorriu e continuou, suavemente: “Não importa.” “Importa para a investigação. Eu li um dos romances de sua amiga. A senhorita Mawson era uma escritora altamente inteligente, o que significa que era também uma mulher inteligente. Não tinha o coração forte e os pagamentos do seguro de vida não deviam ser baratos. Não deve ter sido fácil pagar. Acha mesmo que ela não sabia os termos da apólice?” “O que está querendo dizer?” “A senhorita Mawson sabia, ou achou que sabia, quem tinha matado o doutor Lorrimer, não é?” “É. Ela me disse isso. Mas não me contou quem era.” “Nem se era homem ou mulher?” Angela pensou um momento: “Não, nada. Só que sabia. Não tenho certeza de ela ter dito isso, não com todas as palavras. Mas quando perguntei, ela não negou.” Fez uma pausa, e continuou, mais animada: “Está achando que ela saiu para encontrar com o assassino, é isso? Que ela tentou fazer chantagem? Mas Stella não faria uma coisa dessas! Só um idiota correria esse tipo de risco e ela não era idiota. O senhor mesmo disse isso. Ela não iria voluntariamente enfrentar cara a cara um criminoso, por dinheiro nenhum. Nenhuma mulher em seu juízo perfeito iria.” “Mesmo que o assassino fosse uma mulher?” “Não sozinha e à noite. Star era tão pequena e frágil, e não tinha o coração forte. Quando me abraçava, era como se eu estivesse abraçando um passarinho.”
Ela olhou para o fogo e disse, quase divagando: “Nunca mais nos veremos. Nunca. Ela sentou nesta poltrona e colocou as botas, como sempre fez. Eu nunca me ofereci para ir com ela de noite. Sabia que precisava ficar sozinha. Foi tudo tão normal, até ela chegar na porta. Aí, eu fiquei com medo. Implorei para ela não ir. E nunca mais vamos nos ver. Ela nunca mais vai falar comigo, não comigo, nunca mais. Nunca mais vai escrever palavra nenhuma. Ainda não acredito. Sei que deve ser verdade, senão vocês não estariam aqui, mas ainda não acredito. Como é que eu vou agüentar quando acabar acreditando?” Dalgliesh disse: “Senhorita Foley, temos de saber se ela saiu na noite em que o doutor Lorrimer foi morto.” Ela olhou para ele. “Sei o que está tentando me forçar a fazer. Se eu disser que ela saiu, então o caso está encerrado, não é? Tudo bem amarradinho: meios, motivo, oportunidade. Ele era ex-marido dela e ela tinha ódio dele por causa do testamento. Stella foi tentar convencer Edwin a nos ajudar com algum dinheiro. Quando ele recusou, ela pegou a primeira arma que encontrou e bateu na cabeça dele.” Dalgliesh disse: “Ele pode ter aberto a porta do laboratório para ela, embora seja pouco provável. Mas como ela teria saído de lá?” “Pode dizer que eu peguei as chaves do cofre de segurança do doutor Howarth e emprestei para ela. Depois, coloquei de volta na manhã seguinte.” “Fez isso?” Ela negou com a cabeça. “Só poderia ter feito isso, senhorita Foley, se você e o inspetor Blakelock estivessem nisso juntos. E que razão teria ele para querer ver o doutor Lorrimer morto? Quando sua única filha foi morta por um motorista fugitivo, a prova do cientista forense ajudou a garantir uma absolvição. Mas isso foi dez anos antes, e o técnico não era o doutor Lorrimer. Quando a senhorita Pridmore me contou sobre a morte da filha do inspetor, nós investigamos. A prova tinha a ver com partículas de tinta, trabalho de um químico forense, não de um biólogo. Está me dizendo que o inspetor Blakelock mentiu quando disse que as chaves estavam no cofre de segurança?” “Ele não mentiu. As chaves estavam lá.” “Então qualquer acusação que a gente pretenda lançar contra a senhorita Mawson se enfraquece, não é? Alguém poderia acreditar que ela desceu de uma janela do terceiro andar? Você tem que acreditar que estamos aqui para
encontrar a verdade, não para fabricar uma solução fácil.” Mas ela tinha razão, pensou Massingham. Uma vez que Angela Foley admitisse que sua amiga havia saído do Chalé Sprogg’s aquela noite, seria difícil imputar o crime a qualquer outra pessoa. A solução que ela havia proposto era bem plausível e quem quer que fosse levado a julgamento pelo assassinato de Lorrimer teria de contar com o máximo da defesa. Olhou para o rosto de seu chefe. Dalgliesh disse: “Concordo que nenhuma mulher em seu juízo perfeito sairia sozinha de noite para encontrar um assassino. Por isso é que não acho que ela fez isso. Ela achou que sabia quem havia matado Edwin Lorrimer, e se ela tivesse mesmo um encontro a noite passada, não seria com ele. Senhorita Foley, por favor olhe para mim. Tem que confiar em mim. Ainda não sei se sua amiga se matou ou foi morta. Mas para descobrir a verdade, tenho que saber se ela saiu na noite em que o doutor Lorrimer foi morto.” Ela disse, sem expressão: “Estávamos juntas a noite inteira. Já falei isso.” Fez-se um silêncio. A Massingham pareceram vários minutos. Então o fogo tornou-se mais intenso e ouviu-se um estalo, como um tiro de revólver. Uma tora de lenha rolou da lareira. Dalgliesh se ajoelhou e com a pinça recolocou-a no lugar. O silêncio continuou. Então Angela disse: “Por favor, me conte a verdade primeiro. Acha que Star foi assassinada?” “Não posso ter certeza. Posso não conseguir provar nunca. Mas, sim, acho que ela foi assassinada.” Ela disse: “Star saiu, sim, aquela noite. Ficou fora de oito e meia até cerca de nove e meia. Não me contou onde esteve, e estava perfeitamente normal, perfeitamente sóbria quando voltou para casa. Não disse nada. Mas saiu, sim.” E disse, finalmente: “Gostaria que fossem embora agora, por favor.” “Acho que alguém devia ficar com você.” “Não sou criança. Não quero a senhora Swaffield, nem a enfermeira, nem nenhum bom samaritano da aldeia. Não preciso de nenhuma polícia feminina. Não cometi nenhum crime, portanto vocês não têm o direito de me impor a sua presença. Já contei tudo o que sabia. Vocês trancaram a escrivaninha de Stella, de forma que ninguém vai poder mexer nos papéis dela. Não vou fazer nenhuma bobagem. É essa a expressão que as pessoas usam quando estão delicadamente querendo dizer que alguém está pensando em se matar, não é? Bom, eu não estou pensando nisso. Estou bem agora. Só quero ficar sozinha.” Dalgliesh disse:
“Acredito que mais tarde vamos ter de nos impor a você outra vez.” “Mais tarde é melhor do que agora.” Ela não estava querendo ofender. Era simplesmente a expressão de um fato. Levantou-se, rígida, e foi até a porta, a cabeça altiva como se só a disciplina do corpo conseguisse manter intacta a frágil integridade de sua mente. Dalgliesh e Massingham trocaram olhares. Ela estava certa. Não podiam forçar conforto nem companhia onde nenhuma dessas coisas era desejada. Não tinham autoridade legal nem para ficar, nem para obrigá-la a sair. E havia coisas a fazer. Angela foi até a janela e ficou olhando atrás da cortina o carro circundar Sprogg’s Green e acelerar na direção da aldeia. Depois, correu para o hall e pegou o catálogo telefônico da estante. Levou alguns segundos folheando febrilmente as páginas até encontrar o número que queria. Discou, esperou e falou. Desligando o aparelho, voltou para a sala. Lentamente, com toda cerimônia, tirou da parede a espada francesa e ficou parada muito quieta, os braços estendidos, a arma repousando nas palmas das mãos. Depois de alguns segundos, fechou a mão esquerda em torno da bainha, e com a direita, lenta e decididamente, desnudou a lâmina. Então foi para o seu lugar ao lado da porta da sala, a espada nua na mão, e mediu o ambiente com os olhos, olhando a disposição dos móveis e objetos, atenta como uma estranha calculando suas chances em algum futuro tribunal. Após alguns minutos, foi para o escritório, e mais uma vez estudou silenciosamente a sala. Ao lado da lareira havia uma poltrona vitoriana com estofamento de botões. Angela a arrastou até a porta do escritório e escondeu a lâmina nua atrás dela, com a ponta apoiada no chão, e escorregou a bainha para baixo da poltrona. Satisfeita porque não dava para ver nenhuma das duas, voltou para a sala. Sentou-se ao lado do fogo, imóvel, esperando pelo som de um carro.
3
Claire Easterbrook pode ter ficado surpresa quando, ao chegar ao laboratório pouco antes das nove horas, o inspetor Blakelock pediu que fosse imediatamente falar com o comandante Dalgliesh, mas não demonstrou nada. Primeiro, vestiu seu guarda-pó branco, para afirmar sua independência, mas não demorou muito mais do que o estritamente necessário para atender ao chamado. Quando entrou na sala do diretor, viu os dois detetives, um moreno e outro ruivo, conversando baixinho perto da janela, quase, pensou, como se o seu negócio fosse normal e a sua presença costumeira. Havia sobre a mesa do dr. Howarth uma pasta estranha; e uma planta do laboratório e um mapa militar da aldeia aberto estavam em cima da mesa de reuniões, mas não era visível nenhuma outra alteração na sala. Dalgliesh foi para a mesa e disse: “Bom dia, senhorita Easterbrook. Soube o que aconteceu ontem à noite?” “Não. Por que deveria? Fui ao teatro depois do jantar, por isso não era possível me encontrar, e não falei com ninguém a não ser com o inspetor Blakelock. Ele não me contou nada.” “Stella Mawson, a amiga da senhorita Foley, foi encontrada enforcada na capela.” Ela franziu a testa como se a notícia fosse uma ofensa pessoal e disse, com nada mais do que um interesse polido: “Sei. Acho que não conhecia essa moça. Ah, sim, me lembro. Ela esteve no concerto da capela. Cabelo grisalho, olhos muito marcantes. O que aconteceu? Se matou?” “É uma das possibilidades. Pouco provável que tenha sido um acidente.” “Quem encontrou?” “Senhorita Pridmore.” Ela disse, com surpreendente suavidade: “Coitadinha.” Dalgliesh abriu a pasta, pegou dois envelopes transparentes de provas, e disse: “Gostaria que desse uma olhada nesses quatro fios de cabelo para mim. É urgente e não temos tempo de levar para o Laboratório Metropolitano. Quero saber, se possível, se os cabelos escuros são da mesma cabeça.” “É mais fácil dizer se não são. Posso dar uma olhada no microscópio, mas duvido que possa ajudar com alguma coisa. A identificação capilar nunca é fácil, e não sei quanto dá para fazer com apenas três amostras. Além do exame microscópico, normalmente usaríamos o espectrômetro para tentar identificar as
diferenças nos traços de elementos, mas nem isso é possível com apenas três fios de cabelo. Se fossem submetidos ao meu exame, diria que não posso dar uma opinião.” Dalgliesh disse: “Mesmo assim, agradeceria se desse uma olhada. É só um palpite e quero saber se vale a pena continuar procurando.” Massingham disse: “Gostaria de acompanhar, se não se importa.” Ela o encarou: “Faria alguma diferença se eu me importasse?” Dez minutos depois, ela levantou a cabeça do microscópio de comparação e disse: “Se estamos falando de palpite, o meu, se vale alguma coisa, é de que vieram de cabeças diferentes. A cutícula, o córtex e a medula são todos significativamente diferentes. Mas acho que ambos são de homem. Veja você mesmo.” Massingham curvou a cabeça sobre o visor. E viu o que pareciam cortes de dois troncos, granulados e manchados. Ao lado havia dois outros troncos, com as cascas lascadas. Mas dava para perceber que eram diferentes, e que vinham de cabeças diferentes. Disse: “Obrigado. Vou contar ao comandante Dalgliesh.”
4
Não havia nada que pudesse colocar entre si próprio e aquela lâmina afiada e brilhante. Pensou, angustiado, que uma bala seria pior, mas depois ponderou. Usar uma arma de fogo pelo menos exigia alguma habilidade, saber mirar antes. Uma bala podia ir para qualquer parte, e se ela errasse o primeiro tiro, ele teria pelo menos a garantia de uma segunda chance. Mas ela estava com um metro de aço afiado na mão e, naquele espaço reduzido, bastava ela girar e ele receberia um corte até o osso. Entendeu por que o havia levado até o escritório. Ali não existia espaço para manobras, nenhum objeto à mão que pudesse pegar e atirar. E sabia também que não podia olhar em torno, tinha de manter os olhos firmes e sem medo no rosto dela. Tentou manter a voz calma e razoável. Um sorriso nervoso, um leve indício de hostilidade ou provocação e ele não teria mais tempo para argumentar. Disse: “Olhe, não acha que devíamos conversar? Eu sou o homem errado, acredite.” Ela disse: “Leia aquele bilhete. Aquele na mesa atrás do senhor. Leia em voz alta.” Ele não ousou virar a cabeça, mas estendeu a mão e procurou em cima da mesa. Encontrou uma única folha de papel. Leu: “Melhor checar as provas de maconha quando o inspetor-detetive Doyle estiver por perto. Como acha que ele conseguiu comprar aquela casa?” “E então?” “Onde arrumou isto?” “Na mesa de Edwin Lorrimer. Stella encontrou e me deu. O senhor matou Stella porque ela sabia, porque tentou chantagear o senhor. Ela marcou um encontro com o senhor a noite passada na capela Wren e o senhor estrangulou Stella.” Ele podia rir pela ironia da coisa, mas sabia que uma risada seria fatal. E, pelo menos, estavam conversando. Quanto mais ela esperasse, maiores seriam as suas chances. “Está dizendo que sua amiga pensou que eu tinha assassinado Edwin Lorrimer?” “Ela sabia que não. Stella estava andando na noite em que ele morreu, e acho que viu alguém saindo do laboratório e reconheceu quem era. Ela sabia que não era o senhor. Não teria se arriscado a um encontro sozinha se achasse que o senhor era o assassino. O senhor Dalgliesh me explicou isso. Ela foi à capela achando que era seguro, que podia entrar num acordo com o senhor. Mas o
senhor matou Stella. Por isso é que eu vou matar o senhor. Stella odiava a idéia de trancar as pessoas na prisão. Eu não agüento a idéia do assassino dela ser libertado um dia. Dez anos em troca da vida de Stella. Por que o senhor deveria viver quando ela está morta?” O inspetor Doyle não tinha dúvidas de que ela estava falando sério. Já tinha lidado com pessoas enlouquecidas porque pressionadas além do limite da sua resistência, já tinha visto aquele ar fanático de dedicação. Continuou impassível, apoiado nas solas dos pés, os braços soltos, os olhos pregados nos dela, esperando a primeira contração instintiva dos músculos antes de ela atacar. Tentou manter a voz baixa, calma, mas sem nenhum traço de ironia. “É um pensamento razoável. Não pense que sou contra. Nunca entendi por que as pessoas resistem à idéia de matar instantaneamente um assassino condenado e se conformam em matar aos poucos, ao longo de vinte anos. Mas pelo menos é um condenado. Existe a questão do julgamento. Nenhuma execução sem seu devido processo. E acredite, senhorita Foley, eu sou o homem errado. Não matei Lorrimer, e, para minha sorte, posso provar isso.” “Não me importa se matou Edwin Lorrimer. Só Stella me importa. E o senhor matou Stella.” “Eu nem sabia que estava morta. Mas se foi assassinada ontem em alguma hora entre três e meia e sete e meia, eu estou livre de qualquer suspeita. Tenho o melhor álibi do mundo. Estava na delegacia de polícia de Guy’s Marsh sendo interrogado pela Yard. E quando Dalgliesh e Massingham saíram, fiquei lá mais umas duas horas. Telefone para a delegacia. Pergunte para qualquer um. Olhe, pode me trancar num armário, em qualquer lugar onde eu não possa escapar, enquanto telefona para Guy’s Marsh. Pelo amor de Deus, você não quer cometer um erro desses, quer? Uma execução extra-oficial é uma coisa, assassinato é outra.” Achou que a mão que segurava a espada perdeu alguma tensão. Mas não havia nenhuma mudança no rosto branco, retesado. Ela disse: “E o bilhete?” “Sei quem mandou o bilhete: foi minha mulher. Ela queria que eu saísse da polícia, e sabia que não havia nada melhor do que um aborrecimento oficial para me forçar a pedir minha dispensa. Tive alguns problemas com a polícia faz uns dois anos. O comitê disciplinar me inocentou, mas na ocasião eu quase pedi dispensa então. Não reconhece a perversidade feminina? Esse bilhete não prova nada, a não ser que ela queria a minha desgraça para me afastar do trabalho.” “Mas o senhor estava roubando maconha, trocando por substância inofensiva?” “Ah, isso é outro problema. Mas você não vai me matar por causa disso. E não vai conseguir provar, sabe? O último lote de provas de maconha que passou
pelas minhas mãos foi destruído com autorização do tribunal. Eu mesmo ajudei a queimar. Na hora certa, por sorte. O incinerador quebrou logo depois.” “E as provas que o senhor queimou? Eram maconha?” “Uma parte era, sim. Mas você nunca vai conseguir provar que eu fiz a troca, mesmo que resolva mostrar esse bilhete, não agora. E o que importa isso? Saí da polícia. Olhe, você sabe que eu estava trabalhando no assassinato do fosso de tufo. Acha mesmo que eu estaria sentado em casa a esta hora do dia, disponível para vir até aqui na mesma hora que você ligou, simplesmente para satisfazer minha curiosidade, se ainda estivesse em um caso de homicídio, se não tivesse sido suspenso ou demitido? Posso não ser um exemplo de probidade policial, mas não sou um assassino, e posso provar isso. Telefone para Dalgliesh e pergunte.” Agora não existia mais dúvida: ela havia relaxado a mão que segurava a espada. Ali estava, parada, muito quieta, não mais olhando para ele, mas com o olhar pairando fora da janela. A expressão de seu rosto não tinha mudado, mas ele viu que estava chorando. As lágrimas escorriam de seus olhinhos apertados, correndo livremente pelas faces. Ele avançou devagar e tirou a espada de suas mãos. Passou um braço em torno de seus ombros. Angela não recuou. Ele disse: “Olhe, você sofreu um choque. Não devia ter ficado aqui sozinha. Não acha que é hora de tomar uma xícara de chá? Me mostre onde é a cozinha que eu faço. Ou, melhor ainda, tem alguma bebida mais forte?” Ela disse, sem expressão: “Tem uísque, mas é de Stella. Eu não bebo.” “Bom, vai beber agora. Vai fazer bem a você. E eu também preciso, pelo amor de Deus. Agora é melhor sentar quietinha e me contar tudo.” “Mas se não foi o senhor, quem matou Stella?” “Meu palpite é que foi a mesma pessoa que matou Lorrimer. Dois assassinos em uma comunidade pequena seria coincidência demais. Mas olhe, você tem que mostrar esse bilhete para a polícia. Não pode mais me prejudicar, mas pode ser útil para eles. Se a sua amiga encontrou uma informação incriminatória na mesa de Lorrimer, pode ter encontrado outra também. Ela não usou esse bilhete. Provavelmente sabia que não valia nada. Mas, e a informação que usou de fato?” Ela disse, sem expressão: “Você fala com eles, se quiser. Não me importa mais.” Mas ele esperou até fazer o chá. Gostou da organização e limpeza da cozinha, e se empenhou em arrumar a bandeja que colocou na frente dela, sobre uma mesa baixa que puxou para junto da lareira. Recolocou a espada na parede, afastando-se para ter certeza de que estava na posição correta. Depois, acendeu o fogo. Ela tinha sacudido a cabeça quando lhe ofereceu uísque, mas ele se serviu
de uma dose generosa e sentou-se do outro lado da lareira. Não achava a moça atraente. Mesmo em seus breves encontros no laboratório, mal havia lhe dispensado um olhar de passagem. Não era normal se dedicar tanto a uma mulher de quem não queria nada, e a sensação de gentileza desinteressada era desconhecida, mas agradável. Sentado diante dela em silêncio, sentia seus traumas se desfazerem e serem substituídos por uma curiosa paz. As duas tinham coisas bem interessantes ali, pensou, percorrendo com os olhos a sala confortável, cheia de objetos. Imaginou se tudo ficaria para ela. Passaram-se dez minutos até ele decidir telefonar. Quando voltou, a visão de seu rosto a tirou do amortecimento da tristeza. Ela perguntou: “Como foi? O que disse o comandante?” Entrou na sala de testa franzida, intrigado. Disse: “Ele não estava. Nem Massingham. Os dois não estavam nem em Guy’s Marsh, nem no laboratório. Foram para Muddington, até o fosso de tufo.”
5
Rodaram de novo pelo mesmo caminho que haviam seguido na noite anterior, ao ouvir os três toques do sino da capela, quase dois quilômetros até a junção da Guy’s Marsh Road e depois direto pela rua principal da aldeia. Nenhum dos dois falava. Massingham tinha dado uma olhada no rosto do chefe e resolvido que o silêncio seria o mais prudente. E por certo não era hora de autocongratulações. Ainda não tinham provas, aquele fato definitivo que daria solução ao caso. E Massingham imaginou se jamais teriam. Estavam lidando com homens e mulheres inteligentes, que deviam saber que bastava manter as bocas fechadas e nada poderia ser provado. Na rua da aldeia, os primeiros compradores da manhã de sábado começavam a aparecer. Os grupos de mulheres fofoqueiras viraram a cabeça para um olhar rápido no carro que passava. E em seguida as casas se espassaram e a propriedade de Hoggatt, com o prédio novo, apareceu à direita. Massingham tinha reduzido a marcha para virar na entrada da Velha Reitoria, quando aconteceu. A bola azul e amarela pulou na estrada à frente do carro, e, atrás dela, correram as botas vermelhas de borracha brilhando, correu William. Estavam indo devagar demais para haver perigo, mas Massingham xingou ao desviar e frear. E seguiram-se dois segundos de horror. Depois, pareceu a Dalgliesh que o tempo havia parado, de forma que em sua memória ele viu todo o acidente como num filme em câmara lenta. O Jaguar vermelho saltando e pairando, suspenso no ar; um relâmpago azul dos olhos aterrorizados; a boca aberta num grito mudo; os dedos brancos agarrados ao volante. Instintivamente, protegeu a cabeça e dobrou o corpo para se proteger do impacto. O Jaguar bateu no pára-choque traseiro do Rover, arrancando-o com um grito de metal rasgado. O carro sacudiu violentamente e girou. Houve um segundo de absoluto silêncio. Aí, ele e Massingham soltaram os cintos e correram para o gramado até o corpinho imóvel. Uma bota estava no meio da rua, e a bola rolou devagar para o gramado. William fora atirado sobre um monte de feno, deixado ali após a poda do final do verão. Estava caído de braços abertos, tão relaxado em sua perfeita imobilidade, que o primeiro pensamento horrorizado de Massingham foi de que tinha quebrado o pescoço. Nos poucos segundos em que resistiu ao impulso de tomar o menino nos braços e, em vez disso, saiu correndo para telefonar do carro pedindo uma ambulância, William voltou a respirar e começou a espernear por causa da umidade áspera da palha. Privado de sua dignidade e de sua bola,
começou a chorar. Domenica Schofield, os cabelos escorridos pelo rosto descolorido e perturbado, veio correndo até eles. “Ele está bem?” Massingham apalpou o corpo de William, depois tomou o menino nos braços. “Acho que sim. Parece bem.” Chegaram à entrada da Velha Reitoria quando Eleanor Kerrison vinha correndo pela entrada na direção do grupo. Era evidente que estava lavando o cabelo, que pendia em mechas encharcadas sobre seus ombros. William, ao vê-la, redobrou as lágrimas. Enquanto Massingham se encaminhava para a casa, ela correu desajeitadamente a seu lado, segurando seu braço. Gotas de água saltavam de seu cabelo e ficavam como pérolas no rosto de William. “Papai foi chamado para ver um corpo. Disse que ia levar William e eu para almoçar em Cambridge quando voltasse. Vamos comprar uma cama de gente grande para William. Eu estava lavando o cabelo especialmente para o passeio. Deixei William com a senhorita Willard. Ele está bom, não está? Tem certeza que ele está bem? Não tem de levar para o hospital? O que aconteceu?” “Não vimos direito. Acho que ele foi apanhado e jogado longe pelo párachoque dianteiro do Jaguar. Por sorte, caiu em cima do monte de palha.” “Podia ter morrido. Eu avisei a senhorita Willard a respeito da rua. Ele não pode brincar sozinho no jardim. Tem certeza que não precisa chamar o doutor Greene?” Massingham entrou na casa e foi direto para a saleta, onde deitou William no sofá. Disse: “Podemos chamar, sim, mas tenho certeza que ele está bem. Escute só.” Como se entendesse, William parou de chorar imediatamente e sentou-se no sofá. Começou a soluçar alto, mas, aparentemente indiferente à força das sacudidas em seu corpo, olhou as pessoas com interesse. Depois fixou os olhos no pé esquerdo sem bota. Levantando os olhos para Dalgliesh, perguntou, sério: “Cadê a bola do William?” “Deve estar na beira da estrada, acho”, disse Massingham. “Eu vou buscar. E vocês vão ter de tomar alguma providência para colocar um portão nessa entrada.” Ouviram passos no hall, e a srta. Willard apareceu na porta, alvoroçada e inquieta. Eleanor estava sentada ao lado do irmão no sofá. Pôs-se de pé e confrontou a mulher com um desprezo silencioso tão implacável que fez a srta. Willard corar. Ela olhou para o grupo e comentou num tom defensivo: “Quanta gente. Achei mesmo que tinha ouvido vozes.” Então a menina falou. Sua voz, Massingham pensou, era arrogante e cruel como a de uma matrona vitoriana dispensando uma criada. O confronto teria
sido quase cômico se não fosse ao mesmo tempo patético e horrível. “Pode fazer suas malas e ir embora. Está despedida. Só pedi para olhar William enquanto eu lavava o cabelo. Não consegue fazer nem isso. Ele podia ter morrido. A senhora é uma mulher velha, inútil, feia e burra. Bebe demais, cheira mal e todos nós detestamos a senhora. Não precisamos mais da senhora. Então vá embora. Arrume as suas coisas horrendas, bestiais, e vá. Eu posso cuidar de William e do papai. Ele não precisa de mais ninguém, só de mim.” O sorriso tolo e simpático apagou-se do rosto da srta. Willard. Duas manchas vermelhas apareceram em seu rosto e em sua testa, como se as palavras fossem uma chicotada física. De repente ficou pálida, e seu corpo começou a tremer. Procurou o encosto de uma cadeira para se apoiar e disse, com a voz aguda e distorcida pela dor: “Você! Acha que ele precisa de você? Posso ser de meia-idade e não ser mais bonita, mas pelo menos não sou maluca. E se eu sou feia, olhe para você! Ele só agüenta você por causa de William. Você podia ir embora amanhã e ele pouco se importaria. Ia até gostar. É de William que ele gosta, não de você. Vi na cara dele, ouvi ele dizer, e sei. Ele está pensando em deixar você de volta com a sua mãe. Não sabia disso, sabia? E tem mais uma coisa que você não sabe. Para onde você acha que o seu querido paizinho vai depois que droga você para dormir? Vai para a capela Wren fazer amor com ela.” Eleanor virou e viu Domenica Schofield. Depois virou-se e falou diretamente para Dalgliesh. “Ela está mentindo! Diga que ela está mentindo! Que não é verdade.” Fez-se um silêncio. Não podia ter durado mais que dois segundos, enquanto Dalgliesh formava na cabeça uma resposta cuidadosa. Então, como se estivesse impaciente com a demora, Massingham falou claramente sem olhar para o rosto do chefe: “É verdade, sim.” Ela olhou de Dalgliesh para Domenica Schofield. Depois, vacilou, como se fosse desmaiar. Dalgliesh fez um movimento para ampará-la, mas ela recuou. E disse com uma voz de fria calma: “Achei que ele tinha feito tudo por mim. Não bebi o chocolate que ele preparou para mim. Não estava dormindo quando ele voltou. Levantei e fiquei espiando ele no jardim, queimando o guarda-pó branco na fogueira. Sabia que estava manchado de sangue. Achei que tinha ido procurar o doutor Lorrimer porque ele foi bruto comigo e com William. Achei que tinha feito tudo por mim, porque gostava de mim.” De repente, deu um grito desesperado e alto, como um animal atormentado, mas ao mesmo tempo tão humano e tão adulto que Dalgliesh sentiu o sangue
gelar. “Papai! Papai! Ah, não!” Ela pôs a mão no pescoço e puxou a gargantilha de couro de dentro do suéter, batalhou com ela, contorcendo-se como um animal preso em uma armadilha. E então o cordão arrebentou. Sobre o tapete escuro, rolaram e espalharam-se seis botões dourados recém-polidos, brilhantes como jóias. Massingham abaixou-se e recolheu-os cuidadosamente com seu lenço. Ninguém disse nada. William desceu do sofá e foi até a irmã, abraçando com força sua perna. Os lábios dele tremiam. Domenica Schofield falou diretamente a Dalgliesh: “Meu Deus, que ocupação mais sórdida a sua.” Dalgliesh a ignorou. Disse para Massingham: “Cuide das crianças. Vou telefonar para a polícia feminina e é melhor chamar a senhora Swaffield. Não consigo pensar em mais ninguém. Não saia do lado dela enquanto não chegarem as duas. Vou cuidar das coisas aqui.” Massingham virou-se para Domenica Schofield. “Não é uma ocupação. É um dever. E está sugerindo que não quer que ele seja cumprido?” Foi até a menina. Ela estava tremendo violentamente. Dalgliesh achou que ela ia recuar do toque dele. Mas, ao contrário, ficou perfeitamente imóvel. Com três palavras, ele a havia destruído. Mas para quem mais ela podia apelar? Massingham tirou seu casaco de tweed e o enrolou em torno dela. Disse suavemente, sem tocá-la: “Venha comigo. Me mostre onde podemos fazer o chá. E depois você vai deitar um pouco. Eu e William vamos ficar ao seu lado. Eu vou ler uma história para seu irmão.” Eleanor o seguiu com o abandono de um prisioneiro diante de seu carcereiro, sem olhá-lo, o casaco comprido arrastando no chão. Massingham deu a mão a William. A porta se fechou quando passaram. Dalgliesh desejou nunca mais ver Massingham. Mas tornaria a vê-lo, eventualmente, sem nem lembrar nem se importar. Não queria trabalhar com ele nunca mais, mas sabia que voltaria a trabalhar. Não era homem para destruir a carreira de um subordinado simplesmente porque ele tinha ofendido suscetibilidades a que ele próprio, Dalgliesh, não tinha direito. O que Massingham fizera parecia-lhe imperdoável. Mas a vida havia lhe ensinado que o imperdoável era, em geral, o que mais facilmente se perdoava. Era possível fazer honestamente o trabalho policial. Na verdade, não havia nenhum outro jeito de fazê-lo. Mas era impossível fazê-lo sem causar dor. A srta. Willard tinha se arrastado até o sofá. Resmungou, como se tentasse
explicar para si mesma. “Eu não tinha intenção de fazer isso. Ela me forçou a falar. Não tinha intenção. Não queria que ele ficasse magoado.” Domenica Schofield virou-se para sair. “Não, em geral ninguém quer.” E disse a Dalgliesh: “Se quiser falar comigo, sabe onde vou estar.” “Vamos querer um depoimento.” “Claro. Não está sempre querendo? Saudade e solidão, terror e desespero, toda a lama humana organizadamente documentada em uma folha e meia de papel ofício.” “Não, apenas os fatos.” Não perguntou a ela quando havia começado. Não era realmente importante, e achou que não precisava perguntar. Brenda Pridmore tinha lhe dito que havia sentado na mesma fileira da sra. Schofield e do dr. Kerrison com os filhos no concerto da capela. Isso foi na quinta-feira, 26 de agosto. No começo de setembro, Domenica havia rompido com Edwin Lorrimer. Já na porta, ela hesitou e virou-se. Dalgliesh perguntou: “Ele telefonou para você na manhã seguinte ao assassinato para informar que havia recolocado a chave no corpo de Lorrimer?” “Ele nunca me telefonou. Nenhum dos dois, nunca. Era o nosso pacto. E eu nunca ligava para ele.” Fez uma pausa e disse, rudemente: “Eu não sabia. Podia ter suspeitado, mas não sabia. Não estávamos... como é mesmo que vocês dizem?.. juntos nisso. Não tenho culpa. Não foi por minha causa.” “Não”, disse Dalgliesh, “não acho que tenha sido. O motivo para assassinato raramente é de tão pouca importância.” Domenica fixou nele seus olhos inesquecíveis. Perguntou: “Por que não gosta de mim?” A vaidade que a levava a fazer uma tal pergunta num momento desses o deixou perplexo. Mas era o seu próprio conhecimento que mais o perturbou. Entendia muito bem o que havia levado aqueles dois homens a rastejar culpadamente, como dois adolescentes concupiscentes, para aquele ponto de encontros, fazendo-se parceiros do jogo erótico e esotérico dela. Pensou amargamente que, dada a oportunidade, ele teria feito a mesma coisa. Ela se foi. Ele foi até a srta. Willard. “Telefonou para o doutor Lorrimer falando das velas queimadas, dos números na tabela de hinos?” “Conversei com ele quando me levou à missa no penúltimo domingo. Tinha de falar de alguma coisa durante a viagem. Ele não falava nunca. Eu estava
preocupada com as velas do altar. Notei que alguém tinha acendido as velas quando estive na capela no final de setembro. Na minha última visita, tinham queimado mais ainda. Achei que a capela podia estar sendo usado por adoradores do diabo. Sei que foi desconsagrada, mas ainda é um lugar santo. Mas ainda assim seria uma profanação. E é tão isolada. Ninguém vai lá. A gente do pântano não gosta de sair de casa depois que escurece. Eu não sabia se devia falar com o reitor ou consultar o padre Gregory. O doutor Lorrimer me pediu para ir até a capela no dia seguinte e contar os números dos hinos na tabela. Achei que era uma coisa esquisita, mas parecia que ele achava importante. Eu não tinha nem notado que tinham mudado. Eu podia pedir a chave, sabe? Ele já não gostava de fazer isso.” Mas Lorrimer podia ter pegado a chave sem assinar, pensou Dalgliesh. Por que não havia feito isso? Por causa do risco de ser visto? Por que era intolerável para a sua personalidade conformista, obsessiva, quebrar uma regra do laboratório? Ou, o mais provável, porque não tolerava entrar na capela de novo, e ver com os próprios olhos a prova da traição? Ela não tinha nem se dado ao trabalho de mudar o local de encontros. Ainda usava o mesmo código engenhoso para marcar a data do próximo encontro. Até a chave que entregara a Kerrison tinha sido a mesma de Lorrimer. E ninguém melhor do que ele sabia o significado daqueles quatro números. Dia 29 do mês dez às seis e quarenta. Perguntou: “E ficaram esperando juntos na sexta-feira passada, escondidos sob as árvores?” “A idéia foi dele. Precisava de uma testemunha, entende? Ah, ele tinha razão de estar preocupado. Uma mulher como aquela, tão inadequada para ser madrasta de William. Um homem depois do outro, o doutor Lorrimer disse. Por isso que ela teve que sair de Londres. Não dava sossego para os homens. Qualquer um servia. Ele sabia dela, entende? Disse que o laboratório inteiro sabia. Ela tinha se insinuado até para ele uma vez. Que horror. Doutor Lorrimer ia escrever à senhora Kerrison para pôr um fim nisso. Mas eu não soube dizer o endereço dela para ele. O doutor Kerrison é muito discreto com as cartas, e acho que nem ele mesmo sabe exatamente onde está a mulher. Mas nós sabíamos que ela tinha fugido com um médico, e sabíamos o nome dele. É um nome bem comum, e o doutor Lorrimer disse que podia localizar os dois pelo catálogo médico.” O catálogo médico. Então era por isso que ele o queria consultar, por isso abriu a porta tão depressa quando Bradley tocou a campainha. Só teve de descer para a sala do diretor no andar térreo. E estava com o caderno na mão. O que mesmo Howarth havia dito? Que ele detestava pedacinhos de papel. Usava o caderno para anotar qualquer coisa importante. E isso era importante. Os nomes e endereços dos possíveis amantes da sra. Kerrison.
Srta. Willard olhou para ele. Dalgliesh viu que estava chorando, as lágrimas correndo pelo rosto e pingando desimpedidas nas mãos que se retorciam. Ela disse: “O que vai acontecer com ele? O que o senhor vai fazer com ele?” O telefone tocou. Dalgliesh atravessou o hall e atendeu. Era Clifford Bradley. Sua voz soava aguda e excitada como a de uma moça. Ele disse: “Comandante Dalgliesh? Disseram na delegacia que o senhor podia estar aí. Tenho que contar já. É importante. Acabo de me lembrar como eu sabia que o assassino ainda estava lá. Eu ouvi um som quando cheguei na porta do laboratório. O mesmo som que ouvi de novo faz dois minutos no banheiro do andar de baixo. Sue tinha acabado de falar no telefone com a mãe dela. O que eu ouvi foi alguém desligando o aparelho.” Era a confirmação de uma coisa de que desconfiava havia muito. Voltou para a sala e perguntou à srta. Willard: “Por que nos disse que ouviu o doutor Kerrison dando um telefonema da sala dele às nove horas? Ele pediu para a senhora mentir para nós?” O rosto manchado, os olhos secos das lágrimas olharam para ele. “Ah, não, ele nunca pediria isso! O que ele perguntou foi se eu tinha escutado. Foi quando voltou para casa depois que foi ver o corpo. Eu queria ajudar, queria que ficasse satisfeito comigo. Era uma mentirinha tão sem importância. E não era uma mentira de verdade. Achei que talvez tivesse escutado mesmo. O senhor podia desconfiar dele e eu sei que o doutor Kerrinson não faria uma coisa dessas. Ele é atencioso, bom, gentil. Parece um pecado tão venial proteger os inocentes. Aquela mulher podia ter o doutor entre as garras dela, mas eu sabia que ele nunca seria capaz de matar.” Provavelmente ele já pensava em telefonar do laboratório para o hospital, se não chegasse em casa a tempo. Mas com Lorrimer morto isso deve ter exigido muita coragem. Devia ter acabado de desligar o telefone quando ouviu os passos se aproximando. O que fazer? Correr para a sala escura, olhar e esperar? Deve ter sido um dos seus piores momentos, parado lá, imóvel na escuridão, a respiração presa, o coração batendo, imaginando quem estaria chegando tão tarde da noite, como teria conseguido entrar. E podia ter sido Blakelock. Blakelock, que teria ligado imediatamente para a polícia, que teria imediatamente dado uma busca no laboratório. Mas era apenas o apavorado Bradley. Não tinha havido telefonema, nem pedido de socorro, só o eco de passos em pânico pelo corredor. E então tudo o que ele tinha a fazer era prosseguir, sair em silêncio do laboratório e ir para casa pelo prédio novo, pelo mesmo caminho por onde tinha vindo. Apagou a luz e foi para a porta da frente. E então viu os faróis do carro de Doyle entrando no
prédio e recuando para estacionar entre os arbustos. Não ousou mais sair pela porta. O caminho estava impedido. E não podia ficar esperando que fossem embora. Havia Nell em casa, que podia acordar e perguntar por ele. Havia a resposta ao telefonema às dez horas. Tinha de voltar. Mas não perdeu a cabeça. Foi um lance inteligente pegar as chaves de Lorrimer e trancar o laboratório. A investigação policial iria se concentrar inevitavelmente nos quatro chaveiros e no número limitado de pessoas com acesso a eles. E ele conhecia o único jeito de sair e tinha a habilidade e a coragem para tanto. Vestiu o guarda-pó de Middlemass para proteger sua roupa. Sabia como seria fatal um fiapo de roupa rasgada. Mas nada se rasgou. E nas primeiras horas da manhã uma leve chuva lavou das paredes e janelas qualquer prova que pudesse traí-lo. Chegou em casa em segurança e arrumou uma desculpa para falar com a srta. Willard, estabelecendo um álibi mais firme. Ninguém havia telefonado para ele, ninguém o procurara. E ele sabia que, no dia seguinte, estaria entre os primeiros a examinar o corpo. Howarth dissera que havia ficado na porta enquanto Kerrison fazia o seu exame. Deve ter sido nesse momento que ele recolocou a chave no bolso de Lorrimer. Mas esse foi um dos seus erros. Lorrimer usava as chaves pessoais numa bolsinha de couro, não soltas no bolso. Houve um ruído de pneus no cascalho da entrada. Ele olhou pela janela e viu o carro de polícia com o sargento-detetive Reynolds e duas policiais femininas no banco de trás. Acabava-se assim o segredo do caso. Só que no final de um caso são as pessoas quem sempre se acabavam. E agora ele e Massingham estavam livres para as últimas entrevistas, as mais difíceis de todas.
 
À beira do campo de tufo um menino empinava uma pipa vermelha. Levada pelo vento fresco, ela subia e mergulhava, agitando a rabiola retorcida contra o azul do céu, claro e brilhante como num dia de verão. O campo de tufo estava vivo, cheio de vozes e risos. Até as latas vazias de cerveja cintilavam como brinquedos brilhantes e pedaços de papel rodopiavam alegremente, levados pelo vento. O ar estava impregnado do cheiro de mar. Dava quase para acreditar que os compradores de sábado passeando com seus filhos pelos campos estavam levando seus piqueniques para a praia, que o campo de tufo levava às dunas e à vegetação rasteira, ao litoral do mar, ruidoso de crianças. Até mesmo o painel que a polícia lutava para erguer contra o vento parecia mais um teatrinho de fantoches, com um pequeno grupo de curiosos pacientemente parados a certa distância, esperando que o show começasse. Foi o superintendente Mercer quem primeiro subiu até eles de dentro do fosso de tufo. Disse: “É um negócio sujo: o marido daquela menina encontrada aqui na quarta-feira.
Era assistente de açougueiro. Ontem, levou para casa uma das facas e de noite veio aqui e cortou a garganta. Deixou um bilhete confessando a morte da mulher, coitado. Isso não teria acontecido se a gente tivesse conseguido prender o sujeito ontem. Mas a morte de Lorrimer e a suspensão de Doyle nos atrasou. Só recebemos o resultado do exame de sangue ontem de noite. Com quem o senhor quer falar?” “Com o doutor Kerrison.” Mercer deu uma olhada penetrante em Dalgliesh, mas disse apenas: “Ele já acabou o trabalho aqui. Vou avisar.” Três minutos depois, a figura de Kerrison apareceu sobre a borda do fosso de tufo e caminhou na direção deles. Perguntou: “Foi a Nell, não foi?” “Foi.” Ele não perguntou como nem quando. Ouviu atentamente quando Dalgliesh fez a advertência judicial, como se nunca tivesse escutado aquilo antes e quisesse guardar na memória. Depois disse, olhando para Dalgliesh: “Preferia não ir até a delegacia de Guy’s Marsh, não ainda. Quero contar para o senhor agora, só para o senhor, para mais ninguém. Não vai haver nenhuma dificuldade. Vou fazer uma confissão completa. Aconteça o que acontecer, não quero que Nell tenha que depor. Pode me prometer isso?” “Sabe que não posso. Mas não vejo razão por que a Coroa vá querer chamá-la se o senhor vai se declarar culpado.” Dalgliesh abriu a porta do carro, mas Kerrison sacudiu a cabeça. Disse, sem um traço de autopiedade: “Prefiro ficar aqui fora. Vou ter muitos anos para ficar sentado, sem poder andar debaixo do céu. Talvez o resto da minha vida. Se fosse só a morte de Lorrimer, eu podia ter a esperança de um veredicto de homicídio culposo. A morte dele não foi premeditada. Já a outra foi.” Massingham ficou no carro, enquanto Dalgliesh e Kerrison caminhavam em torno do fosso de tufo. Kerrison disse: “Tudo começou aqui, neste exato lugar, faz só quatro dias. Mas parece uma eternidade. Outra vida, outro tempo. Nós dois fomos chamados para o assassinato do fosso de tufo e ele depois me puxou de lado e disse que fosse encontrá-lo às oito e meia no laboratório. Não pediu, mandou. E me disse também sobre o que queria conversar. Domenica.” Dalgliesh perguntou: “Sabia que ele tinha sido amante dela antes do senhor?” “Não até a gente se encontrar aquela noite. Ela nunca me falou dele, nunca mencionou o nome dele. Mas quando ele soltou aquele rio de ódio, inveja e
ciúme, claro que eu entendi. Não perguntei como descobriu a meu respeito. Acho que estava louco. Talvez nós dois estivéssemos loucos.” “E ele ameaçou escrever à sua mulher e impedir que tivesse a custódia dos seus filhos a menos que desistisse dela.” “Ele ia escrever de qualquer jeito. Queria Domenica de volta e acho, coitado, que acreditava que isso fosse possível. Mas mesmo assim queria me castigar. Só uma vez antes encontrei tamanho ódio. Ele estava ali parado, pálido, brigando comigo, me insultando, me dizendo que eu ia perder as crianças, que eu não tinha capacidade para ser pai, que nunca mais ia ver os meus filhos. E de repente não era Lorrimer falando. Entende, eu tinha ouvido tudo aquilo antes, da minha mulher. Era a voz dele, mas as palavras dela. E eu senti que não agüentava mais. Tinha ficado acordado quase a noite inteira, tinha tido uma cena horrível quando cheguei em casa, e passei o dia inteiro preocupado com o que Lorrimer iria me dizer. “Foi então que o telefone tocou. Era o pai dele, reclamando da televisão. Lorrimer falou rapidamente e logo desligou o telefone. Mas enquanto falava, eu vi a marreta. E sabia que estava com as luvas no bolso do casaco. Com o telefonema do pai ele pareceu ficar mais calmo. Ele falou que não tinha mais nada a me dizer. Foi quando virou as costas, me dispensando, que eu peguei a marreta e bati. Ele caiu sem um gemido. Coloquei a marreta de volta na mesa, e foi então que vi o caderno aberto com os nomes e endereços de três médicos. Um deles era o amante de minha mulher. Arranquei a página e guardei amassada no bolso. Aí, fui até o telefone e fiz a minha ligação. Eram nove horas. O resto acho que o senhor já sabe.” Tinham circundado o fosso de tufo, andando juntos, os olhos fixos na grama brilhante. Então viraram e começaram a voltar. Dalgliesh disse: “Acho melhor você me contar.” Mas não havia nada de novo para saber. Tudo acontecera exatamente como Dalgliesh havia concluído. Quando Kerrison terminou de descrever a queima do guarda-pó e da folha do caderno, Dalgliesh perguntou: “E Stella Mawson?” “Ela telefonou para o hospital e pediu que fosse encontrar com ela na capela, ontem às sete e meia. Me deu uma idéia do assunto. Disse que tinha o rascunho de uma carta que queria discutir comigo, uma carta que encontrara numa certa escrivaninha. Eu sabia o que estaria escrito.” Ela deve ter levado a tal carta para a capela, pensou Dalgliesh. Nem o original nem a cópia tinham sido encontrados em sua mesa. Pareceu-lhe excepcional que tivesse realmente se arriscado a informar Kerrison de que tinha a carta. Como ele podia ter certeza, quando a matou, de que não tinha deixado uma cópia? E como
ela podia ter certeza de que ele tentaria dominá-la e pegar a carta? Quase como se soubesse o que estava se passando na cabeça de Dalgliesh, Kerrison explicou: “Não foi o que está pensando. Ela não tentou me vender a carta. Não tentou vender nada. Me contou que havia tirado a carta da mesa de Lorrimer quase por impulso, porque não queria que a polícia a encontrasse. Por alguma razão que não explicou, odiava Lorrimer, e não tinha nada contra mim. O que ela disse foi o seguinte: ‘Ele já causou desgraça suficiente nesta vida. Por que causaria ainda mais depois da morte?’. Disse uma outra coisa estranha: ‘Fui vítima dele uma vez. Não vejo por que você deva ser agora’. Ela se colocava do meu lado, alguém que me prestara um favor. E agora estava me pedindo alguma coisa em troca, algo simples e comum. Uma coisa que sabia que eu podia fazer.” Dalgliesh concluiu: “O dinheiro para comprar o Chalé Sprogg’s, a segurança dela e de Angela Foley.” “Não seria nem um presente, apenas um mero empréstimo. Queria quatro mil libras por um prazo de cinco anos a uma taxa de juros que pudesse pagar. Precisava desesperadamente do dinheiro e queria arrumar depressa. Me explicou que não tinha mais ninguém a quem pedir. Estava plenamente disposta a fazer um contrato legal. Era a mais gentil, a mais razoável das chantagistas.” E Stella achava que estava lidando com o mais gentil e mais razoável dos homens. Não tinha sentido medo nenhum até aquele último momento em que ele tirou o cordão do bolso do casaco, e ela entendeu que não estava diante de uma outra vítima de Lorrimer, mas de seu assassino. Dalgliesh perguntou: “Você devia estar com o cordão pronto. Quando resolveu que ela tinha de morrer?” “Até isso, igual à morte de Lorrimer, foi quase por acaso. Ela pegou a chave de Angela Foley e chegou à capela primeiro. Estava sentada na nave, em um dos bancos. Deixou a porta aberta, e, quando entrei, vi a arca. Sabia que o cordão estava lá dentro. Tive muito tempo para explorar a capela enquanto esperava Domenica. Então peguei o cordão e coloquei no bolso. Depois fui até ela e conversamos. Stella estava com a carta no bolso. Tirou e mostrou para mim, sem o menor medo. Não era a carta terminada, apenas um rascunho que ele estava elaborando. Lorrimer deve ter gostado de escrever aquilo, deve ter trabalhado muito para fazer direito. “Ela era uma mulher excepcional. Eu disse que emprestava o dinheiro, que ia pedir para meu advogado escrever um contrato. Havia um livro de orações na capela e ela me fez pôr a mão em cima dele e jurar sobre ele que eu nunca ia contar a ninguém o que aconteceu entre nós. Acho que estava apavorada com a
possibilidade de um dia Angela Foley vir a saber. Foi quando entendi que ela, e só ela, sabia dessa informação perigosa, foi que resolvi que tinha de morrer.” Ele parou de andar. Virou-se para Dalgliesh e disse: “Sabe, eu não podia arriscar com ela. Não estou tentando me justificar. Nem estou tentando fazer você entender. Você não é pai, jamais entenderia. Não podia arriscar dar a minha esposa esse instrumento contra mim quando o caso de custódia fosse à Corte Suprema. Eles provavelmente não iam ligar tanto de eu ter uma amante, isso não me tornaria incapaz de cuidar de meus filhos. Se assim fosse, que chance teria a maioria dos pais de ter a custódia dos filhos? Mas um caso secreto que eu havia escondido da polícia, com uma mulher cujo amante anterior tinha sido assassinado, um homicídio para o qual eu tinha apenas um álibi fraco e um forte motivo. Será que isso não pesava na balança? Minha esposa é bonita e plausível, perfeitamente sã externamente. É isso que torna a coisa tão impossível. A loucura não é tão difícil de diagnosticar, a neurose é menos dramática, mas tão letal quanto, se você tem de conviver com ela. Minha mulher nos afastou, Nell e eu. Não podia deixar que ficasse com Nell e William. Parado ali na capela, na frente de Stella Mawson, eu sabia que era a vida deles contra a dela. “E foi tão fácil. Passei o cordão duplo ao redor do pescoço dela e puxei forte. Ela deve ter morrido instantaneamente. Então levei o corpo para a sacristia e pendurei no gancho. Ainda lembrei de raspar suas botas na cadeira e de derrubar a cadeira. Atravessei de volta o campo até onde tinha deixado o meu carro. Estacionei onde Domenica parava o dela quando nos encontrávamos, junto de uma velha cocheira no fim da Guy’s Marsh Road. Até o horário deu certo para mim. Eu tinha de ir ao hospital para uma reunião do comitê médico, mas planejava passar antes no meu laboratório e fazer algum trabalho. Mesmo que alguém no hospital observasse a hora da minha chegada, só havia vinte minutos inexplicáveis. E eu podia com muita facilidade ter passado vinte minutos a mais no trajeto.” Caminharam em silêncio para o carro. E Kerrison voltou a falar: “Ainda não entendo. Ela era tão bonita. E não apenas a beleza. Podia ter o homem que quisesse. Era incrível que, por alguma razão, quisesse a mim. Quando estávamos juntos, deitados à luz de velas no silêncio da capela, depois de fazer amor, eu esquecia toda ansiedade, toda tensão, toda responsabilidade. Era fácil para nós, porque as noites estão escuras. Ela podia estacionar com segurança perto da cocheira. Ninguém passa a pé pela Guy’s Marsh Road de noite, só uns poucos carros. Eu sabia que ia ser mais difícil na primavera, já que os dias são mais longos, o céu mais claro. Mas não esperava que ela fosse me querer até lá. Já era um milagre que me quisesse agora. Nunca pensei além do próximo encontro, da próxima data marcada na tabela de hinos. Ela não deixava que eu lhe telefonasse. Nunca nos víamos, nem nos falávamos senão quando estávamos sozinhos na capela, mas isso não era importante. Ela dava o que podia, e isso me bastava.” Estavam agora de volta ao carro. Massingham estava segurando a porta aberta. Kerrison virou-se para Dalgliesh e disse: “Não era amor, mas era, à sua própria maneira, um jeito de amar. E era tanta paz. Isto também é paz, saber que não tenho de fazer mais nada. Que há um fim para a responsabilidade, um fim para a aflição. Um assassino se coloca à parte da humanidade inteira para sempre. É uma espécie de morte. Agora, eu sou como um moribundo, os problemas ainda estão lá, mas estou me afastando deles para uma nova dimensão. Perdi tantos direitos ao matar Stella Mawson, até o direito de sentir dor.” Ele entrou no banco traseiro do carro sem dizer mais nenhuma palavra. Dalgliesh fechou a porta. Foi quando sentiu o coração desamparado. A bola azul e amarela veio rolando pelo campo de tufo em sua direção e, atrás dela, gritando e rindo alto, com a mãe atrás dele chamando-o, a criança. Por um segundo terrível, Dalgliesh pensou que era William, a franja escura dos cabelos de William, o riso de William, as botas vermelhas de William brilhando ao sol.

 

 

                                                                  P. D. James

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

                                                   

O melhor da literatura para todos os gostos e idades