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Dito aquilo, afastou-se, e Emma ficou a vê-lo atravessar o claustro, até transpor o portão de ferro. Por fim, entrou no instituto, confusa e infeliz. Porque não havia sido mais compreensiva? Teria querido Raphael abrir-se com ela, se o tivesse encorajado? Mas, se as coisas corriam mal para Raphael, como ela pensava, porque pensara ele que uma outra pessoa podia ajudá-lo? E não fora o que ela fizera, de certa maneira, com Giles? Cansada das exigências amorosas, dos ciúmes, das rivalidades, não tinha ela decidido que Giles, com o seu estatuto, força e inteligência, podia oferecer-lhe um compromisso que lhe permitisse prosseguir, sozinha, com o que prezava mais na vida: o seu trabalho? Percebia agora que a sua relação com Giles havia sido um erro. Assim que regressasse a Cambridge, seria honesta com ele. Não iria ser nada agradável. Giles não estava habituado a ser rejeitado, mas Emma não queria pensar mais nesse assunto. Aquele seu futuro trauma nada representava comparado com a tragédia que se abatera sobre Santo Anselmo e de que ela, inevitavelmente, fazia parte.
Pouco antes do meio-dia, o padre Sebastian telefonou ao padre Martin, que estava na biblioteca a corrigir ensaios, perguntando-lhe se podia falar com ele. Tinha por costume telefonar pessoalmente ao padre Martin. Desde o primeiro dia em que tomara posse como reitor, tivera sempre o cuidado de nunca convocar o seu predecessor por meio de um ordinando ou de um dos funcionários; o seu novo reino, muito diferente do anterior, não seria pontuado pelo excesso de autoridade. Para outras pessoas, a ideia de que o antigo reitor continuaria a residir e a leccionar no instituto, a tempo parcial, seria interpretada como um convite ao desastre. Até então, sempre fora considerado de bom-tom que o reitor demissionário não só partisse com dignidade mas, também, se afastasse para tão longe quanto possível do instituto. Mas a combinação entre o padre Sebastian e o padre Martin, a princípio temporária, para colmatar a saída inesperada do professor de Teologia Pastoral, prolongara-se, por mútuo acordo, para satisfação de ambas as partes. O padre Sebastian não revelara qualquer inibição nem embaraço por ocupar, na igreja, o banco do seu predecessor, por reorganizar o gabinete ou por sentar-se à cabeceira da mesa, nem, tão-pouco, por introduzir no instituto as alterações que havia tão cuidadosamente planeado. Quanto ao padre Martin, acatara, sem qualquer rancor e até divertido, o seu novo estatuto. Nunca passara pela cabeça do padre Sebastian que um predecessor seu pudesse constituir uma ameaça, quer à sua autoridade quer às suas inovações. No entanto, nunca confidenciava com o padre Martin nem o consultava. Se precisava de alguma informação relativa aos pormenores de ordem administrativa, consultava os ficheiros ou perguntava à sua assistente. Homem dotado de grande confiança sobre si próprio, provavelmente teria acolhido o arcebispo de Cantuária, em pessoa, como seu subalterno, sem qualquer problema.
A relação entre os dois padres era de confiança e respeito mútuo e, pela parte do padre Martin, até de afecto. Como sempre tivera alguma dificuldade, durante o seu mandato, em acreditar que era, de facto, reitor, aceitara ser substituído de bom grado e com algum alívio. E se, por um lado, almejava que existisse entre eles um relacionamento mais caloroso, por outro, nunca conseguiria encarar tal coisa. Mas agora, sentado a convite do reitor na poltrona que costumava ocupar, em frente da lareira, atento à inquietude habitual do padre Sebastian, tomou consciência de que o reitor esperava uma ajuda da sua parte talvez uma palavra de reconforto, um conselho ou, apenas, a consolidação de uma mútua simpatia ou de uma ansiedade partilhada. Muito quieto na sua poltrona, fechou os olhos e rezou em silêncio.
O padre Sebastian deteve-se e anunciou:
Mistress Crampton partiu há dez minutos. Foi um encontro penoso, tanto para ela como para mim.
Nem poderia ser de outra maneira retorquiu o padre Martin. Julgou detectar na voz do reitor uma ponta de ressentimento pelo facto de o arcediago haver agravado os seus anteriores antagonismos, ao ser assassinado em Santo Anselmo. Aquele pensamento levou-o a um outro, ainda mais incongruente. O que teria Lady Macbeth a dizer à viúva de Duncan, se ela tivesse ido ao castelo de Inverness para ver o corpo do marido? ”Um caso deplorável, senhora, que tanto eu como o meu marido lamentamos profundamente. A visita havia sido bem-sucedida até agora. Tudo fizemos para que Sua Majestade se sentisse confortável.” O padre Martin ficou espantado ao verificar que aquele pensamento, tão perversamente inoportuno, pudesse ter-lhe passado pela cabeça e concluiu que devia estar a ficar louco.
Pediu para ir à igreja, a fim de ver onde o marido morreu prosseguiu o padre Sebastian. Pensei que fosse uma insensatez, mas o inspector Dalgliesh concordou. Ela exigiu a companhia dele e não a minha. Foi um gesto pouco correcto da sua parte, mas, dadas as circunstâncias, achei melhor não protestar. O que significa que ela terá visto O Juízo Final. Se o Dalgliesh confia tanto nela para que nada revele sobre a profanação do quadro, então porque não confia naqueles que trabalham comigo?
O padre Martin absteve-se de responder que Mistress Crampton não era tida como suspeita, e que o mesmo não acontecia com as pessoas que trabalhavam para o reitor.
Como que tomando súbita consciência da sua agitação, o padre Sebastian sentou-se em frente do colega.
Não queria que ela regressasse a casa sozinha e sugeri-lhe que o Stephen Morby a acompanhasse. Teria sido uma inconveniência, para nós, porque ele teria de regressar de comboio e, depois, apanhar um táxi, em Lowestoft, mas ela não aceitou a minha proposta. Ainda lhe perguntei se queria ficar para o almoço. Ela podia ter almoçado aqui, em paz, no meu quarto, porque, como é óbvio, a sala de jantar não seria o local mais indicado.
O padre Martin concordou, em silêncio, que teria sido desagradável ver Mistress Crampton sentada no meio de suspeitos, a mostrar-se delicada e a passar a terrina das batatas, provavelmente, ao assassino do marido.
Receio não ter estado à altura prosseguiu o reitor. Empregam-se frases de circunstância, já muito usadas, que deixam de ter qualquer sentido, e se reduzem a um conjunto de lugares-comuns, sem qualquer referência à fé ou ao seu significado.
Seja o que for que haja dito comentou o padre Martin, estou certo de que ninguém o teria feito melhor. Certas ocasiões vão muito para além das palavras.
Apesar daquele comentário, o padre Martin não pôde deixar de pensar que Mrs. Crampton não teria acolhido nem, tão-pouco, necessitado das palavras de encorajamento à coragem ou à esperança cristã do padre Sebastian.
O padre Sebastian, mudando de posição na poltrona, esforçava-se por manter a calma.
Nada disse a Mistress Crampton sobre a altercação que tive com o marido dela, na igreja, ontem à tarde. Só lhe iria causar maior desgosto. Arrependo-me amargamente de haver discutido com o arcediago. Custa-me saber que morreu com tanta raiva no coração. Dificilmente seria um estado de graça... tanto para ele como para mim.
Não podemos saber retorquiu gentilmente o padre Martin em que estado de espírito ele se encontrava quando morreu.
No entanto, o seu companheiro continuou:
Na minha opinião, o Dalgliesh mostrou-se insensível, confiando aos seus assistentes o interrogatório dos padres. Teria sido mais correcto, da sua parte, se tivesse sido ele a falar connosco. Naturalmente, todos colaborámos. Gostaria que a Polícia se mostrasse mais aberta à possibilidade de que alguém estranho ao instituto tenha sido o responsável pelo crime, muito embora sinta viva relutância em acreditar que o inspector Yarwood tenha alguma coisa a ver com o caso. No entanto, quanto mais depressa ele falar, melhor. E, como é natural, também espero, ansiosamente, pela reabertura da igreja. O coração deste instituto quase deixou de bater, desde que a selaram.
Penso que não poderemos lá voltar replicou o padre Martin enquanto não se proceder à limpeza dO Juízo Final, e, mesmo assim, não sei se isso vai ser possível. Talvez o quadro seja necessário como prova, no inquérito, no estado em que se encontra actualmente.
Isso é ridículo. Basta que os membros da equipa forense tirem fotografias do quadro. No entanto, a limpeza do quadro constitui um problema. Trata-se de um trabalho para especialistas, porque O Juízo Final é um tesouro nacional. Nunca poderíamos pedir ao Pilbeam que o limpasse com uma lata de aguarrás. Depois, teremos de proceder à cerimónia da reconsagração da igreja. Já me dirigi à biblioteca para verificar os cânones, mas não são de grande ajuda. O Cânone Quinze aborda a questão da profanação de igrejas, mas não dá qualquer conselho sobre a reconsagração. Como bem sabe, é um ritual católico, e talvez possamos adaptá-lo, mas é muito complicado e pouco adequado. Segundo a tradição católica, há uma procissão, conduzida por um cruciferário, seguido pelo bispo, pelos diáconos e por outros sacerdotes, com os seus trajes litúrgicos, passando pela nave central da igreja na presença dos fiéis.
Não consigo imaginar o bispo a querer tomar parte em tal procissão confessou o padre Martin. Já entrou em contacto com ele?
Claro que sim. Vem cá na quarta-feira à noite. Fez-me perceber, muito a propósito, que, se viesse mais cedo, a sua presença poderia revelar-se inconveniente, tanto para nós como para a Polícia. Já falou com os outros fideicomissários e não tenho quaisquer dúvidas sobre o que vai anunciar formalmente, assim que chegar: que Santo Anselmo terá de encerrar no fim deste período. Está apenas à espera de que se proceda às formalidades necessárias para que os ordinandos sejam transferidos para outros institutos teológicos. Em princípio, Cuddesdon e o Instituto de Santo Estêvão poderão ajudar-nos, mas não será fácil. Já falei com os dois reitores.
Ultrajado, o padre Martin quis protestar veementemente, mas a sua voz de homem idoso apenas conseguiu traduzir um sentimento de humilhação.
Mas isso é terrível! Teremos menos de dois meses para tratar de tudo! E o que vai acontecer aos funcionários do instituto? O casal Pilbeam? O Surtees? Vão ser despejados das suas casas?
Claro que não ripostou o padre Sebastian, num tom de voz que deixava transparecer alguma impaciência. É o Instituto de Teologia de Santo Anselmo que encerrará, no fim do período. O corpo docente que reside aqui ficará até que se decida qual o futuro dos edifícios. Isso também se aplica aos funcionários que trabalham a tempo parcial. O Paul Perronet telefonou-me e virá até cá, na quimta-feira, juntamente com os outros fideicomissários, para uma reunião, Mostrou-se peremptório: nenhum objecto valioso deverá ser removido da igreja ou da mansão, por enquanto. O testamento de Miss Arbuthnot é muito claro no que diz respeito às suas intenções, mas a situação será complicada do ponto de vista jurídico.
O padre Martin tomara conhecimento das cláusulas do testamento quando se tornara reitor. Se bem que não o dissesse, pensou que os padres residentes no instituto, incluindo ele próprio, iriam tornar-se homens muito ricos. Mas até que ponto isso podia afectá-los? Aquele pensamento horrorizou-o e sentiu que as suas mãos tremiam. Fitando-as, reparou nas pequenas veias purpúreas e nas manchas castanhas, que mais pareciam marcas de uma doença do que sinal de velhice, e sentiu que as suas forças se esvaíam.
Olhando de novo para o padre Sebastian, compreendeu, então, tomado por uma súbita intuição, que, por trás daquele rosto pálido e estóico, se escondia uma mente absolutamente impermeável às piores devastações provocadas pelo desgosto e pela ansiedade, e que já começara a preparar o futuro. Desta vez, não haveria qualquer possibilidade de recuperação. Todos os planos e a obra do padre Sebastian desapareceriam, levados pelo horror e pelo escândalo. Sobreviveria mas, agora, talvez pela primeira vez, acolheria de bom grado uma voz amiga que pudesse tranquilizá-lo.
Mantiveram-se sentados, em frente um do outro e em silêncio. O padre Martin procurou as palavras próprias mas não as encontrou. Ao longo de quinze anos, nunca lhe haviam pedido um conselho nem tão-pouco procurado o seu conforto ou ajuda. Agora que precisavam dele, sentia-se completamente impotente. O seu fracasso ultrapassava aquele momento. Parecia abranger todos os seus anos de sacerdócio. Que havia ele dado aos seus paroquianos e, mais tarde, aos ordinandos de Santo Anselmo? Afabilidade, afecto, tolerância e compreensão, mas essas eram as qualidades de todos os bem-intencionados. Havia ele alterado uma vida, ao longo do seu sacerdócio? Lembrou-se, então, das palavras de uma mulher que ele ouvira ao deixar a última paróquia onde estivera antes de se mudar para Santo Anselmo: ”O padre Martin é um homem que ninguém critica.” Parecia-lhe, agora, a pior das acusações.
Após algum tempo, levantou-se e o padre Sebastian imitou-o.
Gostaria que eu consultasse os ritos católicos para ver se podem ser adaptados à nossa prática?
Obrigado, padre replicou o reitor. Ficava-lhe muito agradecido.
Dito isto, avançou para a sua secretária enquanto o padre Martin, saía do escritório, fechando a porta atrás de si.
O primeiro ordinando a ser formalmente interrogado foi Raphael Arbuthnot. Dalgliesh havia decidido interrogá-lo, com Kate a seu lado, Arbuthnot demorou algum tempo para se apresentar à convocação; passavam dez minutos da hora marcada quando Robbins o conduziu à sala de interrogatórios.
Algo espantado, Dalgliesh reparou que Raphael ainda não recuperara; parecia tão chocado e nervoso como durante a primeira reunião que haviam tido na biblioteca. Talvez aquele curto espaço de tempo o houvesse levado a perceber em que situação se encontrava. Movia-se rigidamente, como um velho, e recusou o convite de Dalgliesh para que se sentasse. Ao invés, postou-se, de pé, atrás da cadeira, agarrando-se ao espaldar com ambas as mãos, e os nós dos seus dedos ficaram tão brancos como o seu rosto. Kate teve a ridícula impressão de que, se tocasse na pele ou nos caracóis louros de Raphael, descobriria que eram talhados em pedra. O contraste entre a cabeça loura e helénica e o preto austero da batina parecia conferir-lhe alguma autoridade, se bem que de forma teatral.
Ninguém que tenha estado presente no jantar de ontem começou Dalgliesh pôde ignorar que o senhor antipatizava com o arcediago. Porquê?
Não era a abertura que Raphael esperava. Talvez ele se houvesse preparado, mentalmente, para uma abordagem mais académica, que lhe fosse também mais familiar, pontuada por perguntas preliminares inofensivas sobre a história pessoal de um suspeito, levando progressivamente a um interrogatório mais agressivo. De olhos fixos em Dalgliesh, manteve-se calado.
Parecia impossível que uma resposta saísse daqueles lábios comprimidos, mas quando falou, por fim, o seu tom de voz era surpreendentemente calmo.
Prefiro não o revelar. Não lhe basta saber que eu antipatizava com o arcediago? Era um sentimento muito mais forte do que a pura antipatia. Eu odiava-o. Só agora me dou conta de que o meu ódio se tornou numa obsessão. Talvez eu estivesse a concentrar nele o ódio que nunca admitiria sentir por outra pessoa ou por outro local ou instituição. Conseguiu esboçar um sorriso tímido e acrescentou: Se o padre Sebastian se achasse aqui, diria que estou a dar azo à minha deplorável atracção pela psicologia barata.
Já ficámos ao corrente da condenação do padre John murmurou Kate, num tom de voz surpreendentemente gentil.
Era imaginação sua ou Dalgliesh apercebera-se de que a tensão de Raphael diminuíra ao de leve?
Claro, que disparate o meu... respondeu o rapaz. Deduzo que já tenham examinado o passado de todos nós. Pobre padre John. Nada escapa aos registos informáticos da Polícia, nem mesmo os anjos... Portanto, sabem que o Crampton foi uma das principais testemunhas de acusação. Foi ele e não o júri que enviou o padre John para a prisão.
Não é o júri mas, sim, o juiz que condena alguém a uma pena de prisão explicou Kate, apressando-se a acrescentar, como se receasse que Raphael desmaiasse. Porque não se senta, Mister Arbuthnot?
Após uma breve hesitação, Raphael sentou-se, esforçando-se visivelmente por se manter calmo e descontraído.
As pessoas que odiamos não deviam deixar-se assassinar comentou, porque isso lhes dá vantagem sobre nós. Não fui eu que o matei, mas sinto-me tão culpado como se o houvesse feito.
Foi o senhor que escolheu aquela passagem do Trollope que leu, ontem, durante o jantar? perguntou Dalgliesh.
Sim. Somos nós que escolhemos o que queremos ler.
Mas a passagem mencionava um arcediago muito diferente, com outra idade. Um homem ambicioso que se ajoelha ao lado do leito onde agoniza o pai e pede perdão por haver desejado a sua morte. No entanto, pareceu-me que o arcediago achou que era uma insinuação à sua pessoa.
Era essa a intenção. Raphael fez uma pausa antes de continuar. Sempre me perguntei por que motivo ele perseguiu o padre John com tanta veemência. Não que ele fosse um homossexual reprimido e temesse expor-se. Agora, contudo, sei que estava a purgar a sua própria culpabilidade.
Culpabilidade? exclamou Dalgliesh. Em relação a quê?
É melhor perguntar ao inspector Yarwood.
Dalgliesh decidiu mudar o rumo do interrogatório. Aquela não era a única pergunta que queria fazer a Yarwood e, enquanto ele estivesse em convalescença, Dalgliesh sentia que tacteava no escuro. Assim, resolveu perguntar a Raphael o que havia feito, depois das completas.
Primeiro, passei pelo meu quarto. Devemos manter o silêncio depois das completas, mas essa regra é invariavelmente quebrada. O silêncio não implica que não possamos falar uns com os outros. Não somos monges trapistas, mas, em geral, recolhemo-nos aos nossos quartos. Li e preparei um ensaio até às dez e meia da noite. O vento soprava com força... Bom, mas o senhor sabe disso, porque estava cá. Decidi então dirigir-me à mansão para ver como o Peter se sentia... Estou a referir-me ao Peter Buckhurst. Está a recuperar de um surto de febre tifóide e ainda se acha muito debilitado. Sabia que ele tem muito medo das tempestades? Não dos raios nem dos trovões, nem da chuva, mas do vento. A mãe dele morreu no quarto contíguo ao seu numa noite de vendaval, quando ele tinha sete anos, e, desde então, ficou com uma fobia ao vento.
Como foi que entrou na mansão?
Como de costume. O meu quarto é o número três, no claustro norte. Entrei pelo vestiário, atravessei o vestíbulo e subi a escada até ao segundo andar. Há ali uma enfermaria, onde o Peter tem dormido nas últimas semanas. Sabia que ele não queria estar sozinho e, por isso, fiz-lhe companhia durante toda a noite. Há uma segunda cama na enfermaria e dormi lá. Já tinha pedido autorização ao padre Sebastian para me ausentar do instituto depois das completas... Prometera assistir à primeira missa celebrada por um amigo meu, numa igreja situada nos arredores de Colchester, mas não me agradava deixar o Peter sozinho, e decidi que poderia partir de manhã cedo, no domingo, até porque a missa só começava às dez e meia.
Porque não me disse isso aquando da nossa primeira reunião na biblioteca, esta manhã, Mister Arbuthnot? inquiriu Dalgliesh. Perguntei a todos os presentes se tinham saído dos seus quartos depois das completas.
O senhor teria falado, no meu lugar? Não acha que seria uma humilhação, para o Peter, que todo o instituto ficasse a saber que ele tem medo do vento?
Como passaram a noite?
Conversámos e depois li-lhe um livro. Um conto de Saki, se quer saber.
Viu mais alguém, além do Peter Buckhurst, depois de entrar na mansão, às dez e meia da noite?
Apenas o padre Martin. Veio ver como o Peter se sentia, por volta das onze horas, mas não se demorou. Também estava preocupado com ele.
Estava preocupado... porque também sabia que Mister Buckhurst tem medo de vendavais? perguntou Kate.
Sim. É o tipo de coisas que o padre Martin acaba sempre por descobrir. Penso que mais ninguém o sabe, além de nós os dois.
Regressou ao seu quarto durante a noite?
Não. Se quisesse tomar duche, há uma casa de banho contígua à enfermaria, e não uso pijama.
Mister Arbuthnot, tem a certeza de que trancou a porta de acesso que liga a mansão ao claustro norte, quando entrou para ir ver o seu amigo? perguntou Dalgliesh.
A certeza absoluta. Mister Pilbeam costuma verificar se todas as portas estão fechadas à chave por volta das onze da noite, depois de trancar a porta da entrada principal. Ele poderá confirmá-lo.
E só saiu da enfermaria esta manhã?
Sim, porque passei a noite toda ali. Desligámos as luzes, por volta da meia-noite, e adormecemos. Não sei se ele dormiu bem, mas eu caí num sono profundo. Acordei pouco antes das seis e meia da manhã e verifiquei que o Peter ainda dormia. Regressava ao meu quarto quando o padre Sebastian saiu do seu gabinete. Ele não se mostrou admirado por me ver ali, nem me perguntou por que motivo ainda não havia partido. Agora me apercebo de que tinha outras coisas em que pensar. Disse-me para eu entrar em contacto com os ordinandos, os funcionários e os hóspedes e para lhes pedir que se reunissem na biblioteca, às sete e meia. Lembro-me de ter perguntado: ”E a oração da manhã, padre?”, ao que ele respondeu: ”Foi cancelada.”
Ele explicou-lhe por que motivo convocara aquela reunião? quis saber Dalgliesh.
Não. Só quando me juntei aos outros, na biblioteca, às sete e meia, soube o que tinha acontecido.
E nada mais tem a dizer-nos que possa estar relacionado com o assassínio do arcediago?
Fez-se um longo silêncio, durante o qual Arbuthnot olhou para as mãos, entrelaçadas sobre os joelhos. De repente, como se tivesse acabado de tomar uma decisão, ergueu o olhar e fitou Dalgliesh.
O senhor fez-me muitas perguntas e sei que é essa a sua função, mas, agora, posso ser eu a fazer-lhe uma pergunta?
Com certeza, mas não lhe prometo que responderei.
Cá vai. Parece ser evidente que os senhores... quero dizer, a Polícia... acredita que alguém que dormiu no instituto, ontem à noite, assassinou o arcediago. Devem ter um motivo para pensar tal coisa, mas não será mais provável que um intruso haja entrado na igreja, talvez para roubar, e tenha sido apanhado pelo Crampton? Afinal de contas, este lugar não oferece qualquer segurança. O ladrão não teria qualquer dificuldade em entrar no pátio, como também não lhe seria muito difícil entrar na mansão e obter a chave da igreja. Qualquer pessoa que já tenha estado aqui sabe onde se guardam as chaves. Por isso, pergunto-me porque se concentraram em nós... quero dizer, nos padres e nos ordinandos?
Mantemos o espírito aberto em relação a quem cometeu o homicídio replicou Dalgliesh. Mais do que imagina.
Sabe, é que estive a pensar... prosseguiu Raphael... e não devo ter sido o único, como é óbvio. Se alguém do instituto tivesse assassinado o Crampton, só podia ser eu. Mais ninguém o faria. Ninguém o odiava tanto como eu e, mesmo que odiasse, nunca seria capaz de cometer um homicídio. Já dei comigo a pensar se não assassinei o Crampton, sem me dar conta do que fazia. Talvez me tenha levantado, a meio da noite, e, de regresso ao meu quarto, o tenha visto a entrar na igreja. Não seria possível que eu o tivesse seguido, depois discutido violentamente com ele e, levado por um impulso de loucura, o houvesse assassinado?
Porque haveria de pensar em tal coisa? perguntou Dalgliesh, num tom de voz imperturbável.
Porque é uma hipótese plausível. Se consideram que se tratou de um ”caso interno”, como lhe chamam, então, quem mais poderia ser senão eu? Até porque existe uma prova que sustenta essa hipótese Quando regressei ao meu aposento, esta manhã, depois de avisar os outros para que se dirigissem à biblioteca, percebi que alguém entrara no quarto durante a noite. Havia um ramo caído, do lado de dentro da porta e, a não ser que alguém o tenha tirado, ainda lá está. Bom, mas, agora, que resolveram fechar o claustro norte, não posso voltar ao meu quarto para verificar se aquele ramo ainda se encontra no mesmo sítio. De qualquer maneira, constitui uma prova, não é verdade?
Tem a certeza de que esse ramo não estava já no seu quarto quando saiu, depois das completas, para ir ver como estava o Peter Buckhurst?
A certeza absoluta, porque ter-me-ia saltado à vista. Nunca me passaria despercebido. Alguém entrou no meu quarto, depois de eu sair para ir ver o Peter. Eu devo lá ter voltado, a dada altura, durante a noite. Quem mais podia ser, debaixo daquele temporal?
Já alguma vez sofreu de amnésia temporária? perguntou Dalgliesh.
Não, nunca.
E está a dizer-me a verdade, quando afirma que não se lembra de ter assassinado o arcediago?
Sim. Posso jurar, se quiser.
Pois tudo o que lhe posso dizer é que a pessoa... e pode tanto ser um homem como uma mulher... a pessoa que cometeu o homicídio sabia exactamente o que estava a fazer.
Isso significa que, se tivesse sido eu, teria acordado, hoje de manhã, com as mãos manchadas de sangue?
Não atribua significados errados ao que eu digo replicou Dalgliesh. Bom, penso que, por ora, é tudo. Se, mais tarde se lembrar de alguma coisa, informe-nos imediatamente.
Aquela dispensa, por parte de Dalgliesh, foi tão súbita que apanhou Kate de surpresa. Sempre com os olhos fixos em Dalgliesh, Raphael agradeceu e retirou-se.
Dalgliesh e Kate esperaram que a porta se fechasse atrás dele.
Então, Kate? exclamou Dalgliesh. Qual é a sua opinião? Ele é um actor consumado ou um rapaz inocente que se mostra muito ansioso?
Diria que é um grande actor. Com a aparência dele, tem de ser forçosamente bom actor, o que não o torna culpado. Mesmo assim, a sua história revela uma grande astúcia... Confessa, mais ou menos, ser o assassino, na esperança de descobrir o que sabemos ao certo. E não tem qualquer álibi. Podia ter-se facilmente esgueirado, enquanto o Peter Buckhurst dormia, ir buscar as chaves e telefonar ao arcediago. Sabemos, por Miss Betterton, que ele é bom a imitar vozes; podia ter-se feito passar por um dos padres e, se alguém o visse na mansão, ninguém questionaria a sua presença ali. Mesmo que o Peter Buckhurst tenha acordado e descoberto que o amigo saíra, existem fortes possibilidades de que nunca o venha a trair. Ser-lhe-ia muito mais fácil acreditar que a outra cama não estava vazia.
É melhor interrogarmos o Buckhurst a seguir replicou Dalgliesh. Você e o Piers podem encarregar-se disso. Mas, se o Arbuthnot foi buscar as chaves, porque não tornou a guardá-las quando regressou à mansão? Ainda subsiste a possibilidade de que o assassino do Crampton não possa ter regressado ao instituto, a não ser, claro, que seja isso que ele queira que nós pensemos. Se o Raphael matou o arcediago... e, até falarmos com o Yarwood, ele é o principal suspeito... só revelaria a sua astúcia ao desfazer-se das chaves. Reparou que ele não se referiu ao Yarwood uma única vez, como provável suspeito? OArbuthnot não é estúpido e deve ter-se apercebido do significado do desaparecimento do Yarwood. Não pode ser assim tão ingénuo para supor que um oficial da Polícia seria incapaz de cometer um homicídio.
E o ramo que ele encontrou no quarto? perguntou Kate.
Afirma que ainda lá está e, pessoalmente, não duvido. A questão é saber como é que esse ramo foi lá parar e quando. O que significa que a equipa forense vai ter de alargar a sua área de pesquisa ao quarto do Arbuthnot. Se ele disse a verdade... mas não deixa de ser uma história muito esquisita..., então, o ramo pode ser uma prova importante. No entanto, continuo a pensar que este homicídio foi cuidadosamente planeado. Se o Arbuthnot tinha um assassínio em mente, porque complicou as coisas, indo até ao quarto do Peter Buckhurst? Se o amigo dele estava assim tão perturbado pela tempestade, o Arbuthnot nunca podia deixá-lo sozinho. Nem, tão-pouco, contar que o Buckhurst acabasse por adormecer, embora só por volta da meia-noite.
Por outro lado rematou Kate, se queria arranjar um álibi, provavelmente o Peter Buckhurst era a sua única hipótese. Afinal de contas, um rapaz doente e aterrorizado enganar-se-ia facilmente em relação ao passar das horas. Se o Arbuthnot tinha planeado matar o Crampton à meia-noite, podia sempre dizer ao Buckhurst que já era mais tarde quando apagaram as luzes.
O que só iria beneficiá-lo, Kate, se o patologista conseguisse estabelecer a hora exacta da morte do Crampton. O Arbuthnot não tem um álibi, mas isso aplica-se a todos os outros residentes do instituto,
Incluindo o Yarwood.
Que pode deter a chave de todo este enigma. Temos de continuar mas, enquanto ele não recobrar totalmente, talvez estejamos a negligenciar provas importantes.
Vê-o como suspeito, chefe? quis saber Kate.
Por enquanto, tenho de o ver como suspeito, mas parece-me pouco provável. Não consigo imaginar que um homem em estado mental tão precário fosse capaz de planear e de executar um homicídio de modo tão elaborado. Se, ao deparar inesperadamente com o Crampton aqui, houvesse sido acometido por uma raiva assassina, então, tê-lo-ia morto no quarto.
Mas isso estende-se a todos os suspeitos, chefe.
Exactamente, o que nos leva de volta à questão central: por que razão o homicídio foi planeado desta forma?
Nobby Clark e o fotógrafo estavam à porta. O rosto de Clark assumira uma reverência solene, como se acabasse de entrar numa igreja, o que, nele, significava que tinha boas notícias. Aproximando-se da mesa, pousou algumas fotografias instantâneas de impressões digitais. Uma do dedo indicador ao dedo mínimo da mão direita, outra da palma de uma mão, também direita, revelando quatro dedos e a impressão lateral de um polegar. Depois, pousou uma ficha de impressões digitais.
São do doutor Stannard anunciou. Não podiam ser mais nítidas. Recolhemos a impressão da palma da mão na parede, à direita dO Juízo Final, e a outra no assento do banco, no segundo camarote. Podemos ter recolhido mais impressões da palma da mão dele, mas não me parece necessário, dado o que já obtivemos. Nem será preciso enviá-las para o laboratório para verificar se coincidem, Raramente vi impressões tão nítidas. Não restam dúvidas. São do doutor Stannard.
Se o Stannard for o Caim comentou Piers, será a nossa investigação mais curta, até à data. Lá voltamos nós para o nevoeiro de Londres. Que pena. Estava a pensar jantar no Crown e passear pela praia, amanhã, antes do pequeno-almoço.
Dalgliesh encontrava-se de pé, junto à janela virada a leste, contemplando o promontório. Virando-se, retorquiu:
Se fosse a si, não perdia a esperança tão rapidamente.
Tinham tirado a secretária de debaixo da janela e haviam-na colocado no centro da sala, ladeada por duas cadeiras de espaldar alto. Stannard sentar-se-ia na poltrona que se encontrava, agora, de frente para a secretária. Sentir-se-ia fisicamente mais confortável, mas psicologicamente em forte desvantagem.
Aguardaram em silêncio. Dalgliesh não mostrava qualquer intenção em falar, e Piers trabalhava com ele havia tempo bastante para saber quando devia manter-se calado. Robbins devia ter alguma dificuldade em encontrar Stannard. Passaram-se quase cinco minutos antes que ouvissem a porta da frente abrir-se.
O doutor Stannard anunciou Robbins, sentando-se discretamente a um canto, com um bloco de apontamentos na mão.
Stannard entrou com passo apressado, respondendo com rispidez ao ”bom dia” de Dalgliesh, e olhou à sua volta, como se não soubesse se devia sentar-se ou não.
Sente-se nesta cadeira, doutor Stannard indicou Piers. Stannard olhou de novo à sua volta, com deliberado interesse, deixando transparecer o seu desagrado pelas instalações e, depois, sentou-se. Primeiro, recostou-se na poltrona, mas pareceu pensar, em seguida, que aquela posição não era cómoda, e sentou-se na beira da poltrona, com as pernas unidas e as mãos nos bolsos do casaco. O seu olhar, fixado em Dalgliesh, era mais intrigado do que agressivo, mas Piers podia sentir que estava ofendido e que experimentava uma outra emoção mais forte, que ele interpretava como sendo de medo.
Ninguém se mostra no seu melhor quando está envolvido na investigação de um homicídio. Até mesmo as testemunhas mais cooperantes, cujo desejo de ajudar é fortificado pela sua inocência, podem sentir-se amedrontadas com as perguntas da Polícia, interpretando-as como uma intromissão na sua vida privada; ninguém encara essas perguntas de consciência perfeitamente tranquila. Pequenos pecadilhos passados remontam invariavelmente ao consciente da testemunha. Mesmo assim, Piers achava que Stannard se mostrava singularmente pouco disposto a colaborar. Não era somente uma consequência do seu preconceito pessoal contra todos os homens que usavam bigodes” compridos; simplesmente não simpatizava com aquele homem. Stannard tinha um rosto muito fino, com nariz comprido e olhos demasiado juntos, sublinhados por rugas de descontentamento. Era o rosto de um homem que nunca havia conseguido aquilo a que achava ter direito. Piers tentou interpretar a personalidade de Stannard. O que podia ter-lhe corrido mal na vida? Obter a classificação de segundo melhor aluno em vez da de primeiro? Obter um cargo de assistente numa antiga universidade politécnica em vez de ser promovido a assistente em Cambridge ou Oxford? Ter menos poder, dinheiro ou sexo do que sentia merecer? Não era provável que aquela aparente insatisfação de Stannard estivesse relacionada com a última parte; as mulheres pareciam sempre deixar-se atrair por aquele tipo de revolucionário amador, numa imitação pobre de Che Guevara. Piers perdera a sua amada Rosie por causa de um rebelde com aquele mesmo género de rosto sisudo. Admitia que talvez a sua antipatia para com Stannard se devesse aos seus preconceitos, mas era demasiado experiente para não os manter debaixo de controlo e só o facto de o haver admitido fez com que sentisse uma perversa satisfação.
Trabalhava há tempo suficiente com Dalgliesh para saber como iria ser representado aquele acto. Piers faria a maior parte das perguntas, enquanto Adam Dalgliesh interviria quando assim o decidisse í Era sempre algo com que a testemunha nunca contava. Piers perguntou a si próprio se Dalgliesh tinha consciência de como a sua presença silenciosa podia intimidar alguém.
Apresentou-se e deu início ao interrogatório, com as perguntas preliminares do costume, num tom de voz impassível. Nome, endereço, data de nascimento, ocupação, estado civil. As respostas de Stannard eram breves, mas, a certa altura, replicou:
Não vejo que importância possa ter o meu estado civil para o caso. Na realidade, vivo com alguém. Do sexo feminino, por sinal.
Não lhe dando ouvidos, Piers perguntou:
E chegou quando?
Na sexta-feira à noite, para um fim-de-semana prolongado.
Devo partir hoje à noite, antes do jantar. Penso que nada me impede de partir, não é verdade?
Costuma vir até Santo Anselmo regularmente?
Sim, pode dizer-se que sim, principalmente aos fins-de-semana, nos últimos dezoito meses.
Pode ser mais específico?
Penso que terei vindo cá umas doze vezes.
Quando foi a última vez que cá esteve?
Foi há um mês, mas não me recordo da data exacta. Cheguei numa sexta-feira e fiquei até domingo. Comparado com este fim-de-semana, foi muito monótono.
Dalgliesh interveio pela primeira vez.
Porque visita com tanta regularidade o instituto, doutor Stannard?
Stannard abriu a boca mas, logo depois, hesitou. Piers teve a nítida sensação de que ele ia responder: ”Porquê? Não posso?”, mas se detivera a tempo. A resposta, quando veio, soou como havendo sido cuidadosamente planeada.
Estou a fazer uma pesquisa para um livro sobre a vida familiar dos primeiros anglo-católicos, incluindo a infância, a juventude, o casamento e a vida em família. A minha intenção é explorar as primeiras experiências no desenvolvimento religioso em relação à sexualidade. Como esta instituição é anglo-católica, a sua biblioteca mostra-se particularmente rica em documentação, e tenho acesso a ela. O meu avô era Samuel Stannard, sócio da firma Stannard, Fox & Perronet, em Norwich. Representam Santo Anselmo desde que foi fundado, e a família Arbuthnot, ainda há mais tempo. Quando venho até cá, não só me dedico à minha pesquisa como aproveito para mudar de ares.
E a sua pesquisa já está muito avançada? quis saber Piers.
Não. Ainda se encontra na fase inicial, porque os meus tempos livres são escassos. Ao contrário da crendice popular, os professores têm muito trabalho.
Mas tem documentos consigo que provem até onde avançou na sua pesquisa?
Aqui não, porque os deixo em casa.
Com tantas visitas continuou Piers, pensava que já tivesse esgotado todos os recursos da biblioteca do instituto. Já pensou consultar outras bibliotecas? Como a Bodleiana, por exemplo?
Existem mais bibliotecas para além da Bodleiana ripostou Stannard.
Tem razão. Há a Casa Pusey, em Oxford. Creio que dispõe de uma colecção admirável referente aos anglo-católicos. Tenho a certeza!e que o bibliotecário poderá ajudá-lo. Virou-se, então, para Dalgliesh. E há a Biblioteca de Londres, claro. A Biblioteca Doutor Williams, em Bloomsbury, ainda existe, chefe?
Antes que Dalgliesh pudesse responder, se é que tinha intenção de o fazer, Stannard replicou:
O que é que o senhor tem a ver com o local onde decido fazer as minhas pesquisas? E se está a tentar mostrar que, de vez em quando, a Polícia Metropolitana recruta oficiais licenciados, então esqueça, porque isso não me interessa minimamente.
Estava só a querer ajudá-lo fingiu desculpar-se Piers. Portanto, veio até cá umas doze vezes, no espaço de ano e meio, para fazer uma pesquisa na biblioteca e usufruir, ao mesmo tempo, de um fim-de-semana de férias. O arcediago Crampton esteve presente no instituto aquando de uma das suas anteriores visitas?
Não. Nunca o tinha visto até ontem. Ele chegou no sábado à tarde... não sei, ao certo, a que horas, mas vi-o pela primeira vez à hora do chá, que foi servido na sala de estar dos estudantes, já apinhada de pessoas, quando eu apareci, às quatro horas. Alguém... penso que foi o Raphael Arbuthnot... me apresentou às pessoas que eu ainda não conhecia, mas, como não estava com disposição para tagarelar sobre banalidades, peguei numa chávena de chá e em duas sanduíches e regressei à biblioteca. O velho padre Martin levantou a cabeça do livro que lia durante o tempo suficiente para me dar a entender que não era permitido comer ou beber na biblioteca. Assim, decidi ir para o meu quarto. Só voltei a ver o arcediago ao jantar. Depois, fiquei a trabalhar na biblioteca até à hora das completas. Como sou ateu, não lhes fiz companhia.
E quando soube que o arcediago fora assassinado?
Pouco antes das sete da manhã de hoje, quando o Raphael Arbuthnot me telefonou para me dizer que havia sido convocada uma reunião geral, na biblioteca, às sete e meia. Não me agradou nada ser chamado à biblioteca, como se eu estivesse na escola, mas pensei que era melhor ir ver do que se tratava. Quanto ao homicídio, sei menos do que vocês.
Alguma vez assistiu aos serviços religiosos que se celebram em Santo Anselmo? perguntou Piers.
Não. Como já disse, venho até cá por causa da biblioteca e para passar um fim-de-semana sossegado, não para ir à missa. Tanto quanto sei, o meu ateísmo não parece preocupar os padres e, por isso, não vejo porque vos incomoda tanto...
Oh, mas não nos incomoda nada, Mister Stannard, asseguro-lhe replicou Piers. Portanto, quer dizer que nunca pôs os pés na igreja?
Eu não disse isso. Não ponha na minha boca palavras que não proferi. Posso ter entrado por curiosidade na igreja, aquando de uma das minhas visitas. Tenho a certeza de que vi o interior, incluindo OJuízo Final, que tem algum interesse para mim. O que eu disse foi que nunca assisti a uma missa.
Sem erguer o olhar do papel que tinha à sua frente, Dalgliesh perguntou:
Quando foi a última vez que esteve na igreja, doutor Stannard?
Não me lembro, nem me parece que isso seja importante. Bom, mas não foi, de certeza, durante este fim-de-semana.
E quando foi que viu o arcediago Crampton pela última vez, durante este fim-de-semana?
Depois das completas. Ouvi-os sair da igreja, por volta das dez e um quarto da noite. Encontrava-me na sala de estar dos estudantes,
a ver um vídeo. Não havia nada de jeito na televisão e, como eles têm uma pequena colecção de vídeos, escolhi Quatro Casamentos e Um Funeral. Já tinha visto o filme, antes, mas pensei que valia a pena voltar a vê-lo. O Crampton entrou, a dada altura, mas, como não me mostrei propriamente entusiasmado com a sua presença, ele saiu logo de seguida.
Portanto, o senhor deve ter sido a última pessoa ou, pelo menos, uma das últimas pessoas a vê-lo vivo concluiu Piers.
O que, deduzo, me coloca no topo da lista de suspeitos, mas parece-me que não fui a última pessoa a vê-lo vivo. Quem o viu vivo pela última vez foi o assassino. Eu não o matei. Ouçam, quantas vezes vou ter de repeti-lo? Nunca tinha visto o homem antes. Não discuti com ele nem me aproximei sequer da igreja ontem à noite. Já estava na cama, às onze e meia. Depois de o filme acabar, saí pela porta que dá para o claustro sul e dirigi-me ao meu quarto. A tempestade atingira o seu auge naquele momento, e não convidava propriamente a um passeio à beira-mar. Segui directamente para o meu quarto. É o número um, no claustro sul.
Havia luzes na igreja?
Que eu reparasse, não. Mas, agora que penso melhor nisso, também não vi luzes nos quartos dos ordinandos nem nos dos hóspedes. A única luz que havia era a que ilumina, embora mal, os dois claustros.
Deve compreender, por certo, que temos de conseguir uma visão tão completa quanto possível do que aconteceu nas horas que precederam o assassínio explicou Piers. Por isso lhe pergunto: viu ou ouviu algo que lhe tenha parecido estranho ou invulgar?
Stannard riu-se, se bem que sem grande entusiasmo.
Imagino que devem ter-se passado muitas coisas, mas não sou dotado de poderes telepáticos para saber o que vai na cabeça dos outros. No entanto, devo dizer que fiquei com a impressão de que o arcediago não era exactamente bem-vindo, mas ninguém o ameaçou de morte na minha presença.
Teve oportunidade de falar com o arcediago, quando ele lhe foi apresentado, à hora do chá?
Se lhe dirigi a palavra, foi durante o jantar, quando lhe pedi que me passasse a manteiga. Como não tenho jeito para falar de banalidades, concentrei-me na comida e no vinho, que eram muito superiores à companhia. Não pode dizer-se que tenha sido um jantar alegre. Não era a costumeira reunião de todos os convivas, sob o olhar de Deus... ou, melhor dizendo, sob o olhar atento do Sebastian Morell, o que vai dar ao mesmo... Mas o seu chefe estava presente e poderá falar-lhe sobre o jantar.
O inspector sabe o que viu e ouviu retorquiu Piers. O que pretendemos, neste momento, é registar o seu depoimento.
Como já disse, não foi um jantar propriamente animado. Os ordinandos pareciam muito apagados, o padre Sebastian presidia com uma cortesia glacial e alguns dos presentes tinham dificuldade em desviar o olhar da Emma Lavenham, pelo que não os censuro, O Raphael Arbuthnot leu uma passagem do Trollope... Não é um autor que eu conheça mas pareceu-me inofensivo, pelo que ouvi. Já não pode dizer-se o mesmo do arcediago. E, se o Arbuthnot pretendia deixar o arcediago constrangido, escolheu o momento ideal. É difícil fingir que estamos a gostar da comida quando as nossas mãos tremem e parece que vamos vomitar no prato. Depois do jantar, os outros dirigiram-se para a igreja. Foi a última vez que vi os demais residentes, até o Crampton entrar na sala de estar dos estudantes, quando eu via o filme.
E não viu nem ouviu algo de suspeito, durante o resto da noite?
Já me fizeram essa pergunta quando nos reunimos na biblioteca, esta manhã. Se eu tivesse visto ou ouvido alguma coisa que me parecesse suspeita, tê-lo-ia dito.
Piers voltou a perguntar:
E não pôs os pés na igreja, durante este fim-de-semana, nem para assistir à missa nem numa outra altura qualquer?
Mas quantas vezes é que eu vou ter de vos repetir? A resposta é não. Não. Não. Não!
Dalgliesh, então, ergueu o olhar e fitou Stannard.
Então, como explica que se tenham encontrado impressões digitais suas... e recentes... na parede junto ao Juízo Finale, no banco do segundo camarote da frente? Reparámos que a poeira que se acumulava no assento do banco desaparecera em certos pontos. É mais do que provável que os cientistas forenses descubram vestígios dessa mesma poeira no seu casaco. Foi aí que se escondeu quando o arcediago entrou na igreja?
Agora sim, Piers podia ver distintamente uma expressão de puro terror estampada no rosto de Stannard, mas, em vez de se sentir triunfante, experimentava uma sensação de vergonha. Uma coisa era colocar um suspeito em desvantagem; outra era assistir àquela transformação de um homem num animal aterrorizado. Stannard pareceu encolher fisicamente e, de repente, transformar-se num rapazinho, sentado numa cadeira demasiado grande para ele. Ainda mantinha as mãos nos bolsos, mas tirou-as e tentou colocá-las à volta do corpo.
O tweed fino de que era feito o casaco esticou-se, e Piers pensou detectar o ruído de uma costura a rasgar-se. As provas são incontestáveis retomou Dalgliesh. Desde que entrou nesta sala, o senhor não tem feito outra coisa senão mentir. Se não assassinou o arcediago Crampton, então, aconselho-o a contar-nos toda a verdade agora.
Stannard não replicou. Unira as mãos, que pousara sobre os joelhos. Com a cabeça inclinada para a frente, parecia um homem concentrado em oração. Aparentemente, remetera-se àquele silêncio para pensar e os dois oficiais aguardaram em silêncio. Quando, por fim, Stannard ergueu a cabeça e falou, podia perceber-se que havia conseguido dominar o medo e estava preparado para se defender. Piers detectou, na sua voz, um misto de obstinação e de arrogância.
Não matei o Crampton e posso prová-lo. É verdade que menti quando disse que não tinha visitado a igreja, mas isso é natural. Sabia
que, se vos dissesse a verdade, imediatamente me considerariam o principal suspeito, o que vos convinha, não é verdade? A última coisa que querem é imputar o crime a um dos residentes de Santo Anselmo. Eu tenho o perfil ideal para preencher todos os requisitos do principal suspeito, porque aqueles padres são sacrossantos. Pois bem, não fui eu.
Então, porque esteve na igreja? perguntou Piers. Não deve pensar, com certeza, que acreditemos que foi até lá para rezar...
Stannard ignorou aquele reparo. Parecia preparar-se para a inevitável explicação ou talvez estivesse a seleccionar mentalmente as palavras mais adequadas e convincentes. Quando, por fim, falou, olhou fixamente para a parede mais afastada, evitando Dalgliesh. A sua voz era controlada, mas com uma ponta mal dissimulada de petulância.
Muito bem, tenho de admitir que vos devo uma explicação. É perfeitamente inocente e nada tem a ver com a morte do Crampton. Sendo assim, ficava-vos muito agradecido se me assegurassem que esta conversa será mantida em segredo.
Sabe que não podemos prometer-lhe isso ripostou Dalgliesh.
Ouça, acabo de dizer que nada tem a ver com a morte do Crampton. Conheci-o ontem, pela primeira vez. Nunca o vira antes. Não discuti com ele nem tinha motivos para desejar a sua morte. Odeio a violência. Sou um pacifista e não apenas por convicção política.
Doutor Stannard, queira fazer o favor de responder à minha pergunta impacientou-se Dalgliesh. Escondeu-se na igreja. Porquê?
É o que estou a tentar dizer-lhe. Andava à procura de uma coisa. Um documento, geralmente referido pelas pessoas que o conhecem como ”o papiro de Santo Anselmo”. Diz-se que é uma ordem, assinada por Pôncio Pilatos, destinada ao capitão da guarda, para que remova o corpo crucificado de um agitador político. Com certeza compreendem a sua importância. Foi oferecido a Miss Arbuthnot, a fundadora de Santo Anselmo, pelo irmão e, desde então, tem estado sob a custódia do reitor do instituto. Reza a história que o documento é uma falsificação, mas uma vez que ninguém tem permissão para o ver ou o submeter a uma avaliação científica, a dúvida mantém-se em aberto. Como é óbvio, esse documento é de grande interesse para qualquer estudioso.
Como você, por exemplo? exclamou Piers. Não me tinha apercebido de que também era um especialista em manuscritos pré-bizantinos. Pensava que era sociólogo...
Isso não me impede de me interessar pela história da Igreja. Piers ignorou-o e prosseguiu:
Portanto, sabendo que seria muito pouco provável que lhe dessem a oportunidade de ver esse documento, resolveu roubá-lo?
Stannard lançou a Piers um olhar de concentrada maldade, antes de replicar com carregada ironia:
Se não me engano, a definição jurídica de roubo é encarada como o intento de privar, de forma permanente, um proprietário do seu bem. Sendo o senhor oficial da Polícia, pensava que o saberia.
Doutor Stannard interveio Dalgliesh, a sua grosseria pode parecer-lhe natural, ou talvez a encare como uma forma agradável, se bem que algo infantil, de aliviar a sua tensão nervosa, mas não lhe aconselho a dar azo a essa tendência quando estiver envolvido numa investigação de homicídio. Retomando o fio à meada, foi até à igreja Porque pensou que o papiro estava escondido ali?
Por me parecer o local mais indicado. Já tinha vasculhado a biblioteca... pelo menos, tanto quanto me foi possível, com o padre Peregrine sempre presente, e a reparar em tudo, mas fingindo alhear-se do que se passa à sua volta. Pensei que tinha chegado a altura de me concentrar num outro lugar. Foi então que me passou pela cabeça que o documento talvez estivesse escondido atrás do Juízo Final. Fui à igreja, no sábado à tarde, porque reina sempre a calma no instituto, aos sábados depois do almoço.
E como foi que entrou na igreja?
Tinha as chaves. Estive aqui pouco depois da Páscoa, quando a maioria dos estudantes se achava de férias e Miss Ramsey se encontrava ausente. Tirei as chaves do seu gabinete, uma Chubb e uma Yale, e mandei fazer cópias em Lowestoft. Ninguém deu pela falta das chaves durante as poucas horas em que as tive comigo. Se tivessem dado pela sua falta, estava preparado para dizer que as havia encontrado, caídas, no claustro sul. Qualquer um podia tê-las perdido.
Parece pensar em tudo. Onde estão, agora, essas cópias que mandou fazer?
Depois da notícia bombástica que o Sebastian Morell nos deu esta manhã, decidi que não era exactamente o tipo de coisa que eu queria que descobrissem em meu poder. Se querem saber, livrei-me delas. Para ser mais exacto, limpei-as, primeiro, para apagar as minhas impressões digitais, e, depois, enterrei-as, por baixo de um tufo de relva, no rebordo do penhasco.
Seria capaz de encontrá-las novamente? perguntou Piers.
Provavelmente, se bem que demorasse algum tempo, mas sei que as enterrei em qualquer lugar num raio de dez metros.
Nesse caso, é melhor encontrá-las rematou Dalgliesh. O sargento Robbins acompanhá-lo-á.
E o que pretendia fazer com o papiro de Santo Anselmo, se o tivesse encontrado? quis saber Piers.
Copiá-lo. Escrever um artigo sobre o documento, para os jornais, e publicar um livro. Propunha-me levá-lo aonde qualquer documento daquela importância deve estar: ao domínio público.
Piers, contudo, não se deixou convencer.
Pelo dinheiro? Pela fama que lhe daria a nível académico? Ou por ambos?
O olhar de Stannard agora era francamente virulento.
Não vou negar que, se eu escrevesse um livro, como tinha em mente, é óbvio que isso me daria dinheiro.
Dinheiro, fama, prestígio académico, a sua fotografia nos jornais. Já houve pessoas que mataram por razões menos fortes.
Antes que Stannard pudesse protestar, Dalgliesh interveio:
Pelo que percebi, não encontrou o papiro.
Não. Levei comigo um corta-papéis comprido, na esperança de extrair o que pudesse estar escondido entre O Juízo Final e a parede.
Tinha-me posto em cima de um banco para alcançar melhor o quadro quando ouvi alguém entrar na igreja. Apressei-me a colocar o banco no seu lugar e a esconder-me. Aparentemente, os senhores já sabem onde.
No segundo camarote. Uma brincadeira de crianças replicou Piers. O que deve ter sido algo humilhante para si... Não podia ter-se posto de joelhos... Não me parece que convencesse alguém, se fingisse rezar...
E confessar que tinha as chaves da igreja? Por mais estranho que vos possa parecer, não achei que fosse a melhor opção. Virou-se para Dalgliesh. No entanto, posso provar que estou a dizer a verdade. Não quis ver quem acabara de entrar, mas, quando avançaram pela ala central até à nave, ouvi-os nitidamente. Era o Morell e o arcediago. Discutiam sobre o futuro de Santo Anselmo. Posso reproduzir-vos a maior parte da conversa. Tenho boa memória para fixar discursos e eles nem se deram ao trabalho de falar em voz baixa. Se estão à procura de alguém que tenha um problema com o arcediago, não precisam de ir mais longe. Uma das coisas que o Crampton afirmou foi que queria que o retábulo do altar fosse removido da igreja.
Num tom de voz que poderia ser confundido por vivo interesse, Piers perguntou:
Que explicação se propunha dar se eles tivessem espreitado por baixo do banco do camarote e deparassem consigo? Penso que devia estar a analisar a situação em que se encontrava com grande concentração. Ou já tinha uma explicação preparada para tal eventualidade?
Stannard deu àquela pergunta a mesma importância que lhe daria se houvesse sido feita por um seu aluno não muito promissor.
Essa sua sugestão é simplesmente ridícula. Porque haveriam eles de verificar o interior do camarote? Mesmo que o tivessem feito, porque se dariam ao incómodo de se ajoelhar e espreitar por baixo do banco? Mas, se o tivessem feito, não restam dúvidas de que eu me encontraria numa situação deveras constrangedora.
Pois encontra-se numa situação deveras constrangedora agora, doutor Stannard retorquiu Dalgliesh. Admitiu ter encetado uma busca infrutífera na igreja. Como podemos ter a certeza de que não regressou lá, ontem à noite?
Porque vos dou a minha palavra de que não regressei à igreja. Que mais posso dizer? E acrescentou, em tom truculento: Aliás, não podem provar sequer que eu lá tenha regressado.
Disse que se serviu de um corta-papéis de madeira para sondar o que havia por trás dO Juízo Final retomou Piers. Tem a certeza de que foi só disso que se serviu? Ontem à noite, enquanto a comunidade estava nas completas, não terá ido à cozinha para ir buscar uma faca de trinchar?
Por fim, a estudada indiferença de Stannard, a sua mal dissimulada truculência e arrogância deram lugar ao medo. A pele em torno dos seus lábios, muito vermelhos e húmidos, era uma penumbra branca e os ossos das suas faces sobressaíam, vincados por linhas vermelhas que realçavam ainda mais a sua tez esverdeada.
Virou-se, de corpo inteiro, para Dalgliesh, com tal veemência que quase caiu da poltrona.
Meu Deus, Dalgliesh, tem de acreditar em mim! Eu não fui à cozinha! Seria incapaz de espetar uma faca fosse em quem fosse! Nem mesmo num animal! Nunca poderia cortar o pescoço de uma galinha! É absurdo! Só de pensar nisso, fico horrorizado. Estive na igreja apenas uma vez. Juro por tudo o que há de mais sagrado! E só tinha comigo um corta-papéis! Posso mostrar-vos. Se quiserem, vou buscá-lo.
Tinha-se levantado e olhava fixamente para os seus interlocutores, num desesperado apelo. O silêncio imperou, até que Stannard o quebrou, dizendo com uma réstia de esperança e triunfo:
Há outra coisa. Penso poder provar que não regressei à igreja na noite de sábado, porque telefonei daqui à minha namorada, que está em Nova Iorque, às onze e meia. A nossa relação estreitou-se ultimamente e falamos pelo telefone quase todos os dias. Servi-me do meu telemóvel e posso dar-vos o número dela. Nunca passaria meia hora a falar com ela, se planeasse assassinar o arcediago.
Pois não atalhou Piers, se já o tivesse planeado antes...
Porém, ao ver o olhar aterrorizado de Stannard, Dalgliesh compreendeu que tinha à sua frente alguém que podia ser eliminado da lista de suspeitos, porque Stannard não fazia a menor ideia de como o arcediago havia sido assassinado.
Tenho de regressar à universidade amanhã de manhã. Pensava partir esta noite. O Pilbeam devia conduzir-me a Ipswich. Não podem manter-me preso aqui. Eu não fiz nada de mal!
Não obtendo resposta, acrescentou, em parte assustado, em parte zangado:
Ouçam, eu tenho o meu passaporte comigo. Ando sempre com ele. Como não conduzo, serve de documento de identificação. Se vos ceder temporariamente o meu passaporte, deixar-me-ão partir?
O inspector Tarrant encarregar-se-á disso afirmou Dalgliesh, e passar-lhe-á um recibo. Muito embora o caso ainda não tenha acabado, dou-lhe permissão para se ir embora.
Só mais uma coisa: creio que vai contar ao Sebastian Morell o que aconteceu.
Não, está enganado replicou Dalgliesh. É o senhor que lhe vai contar.
Dalgliesh, o padre Martin e o padre Sebastian reuniram-se no gabinete deste último. O padre Sebastian lembrava-se, palavra por palavra, da conversa que tivera com o arcediago na igreja. Reproduziu o diálogo como se recitasse algo de cor, mas Dalgliesh não pôde deixar de reparar na ponta de arrependimento na voz do reitor que, findo o seu relato, se calou, sem sequer tentar explicar-se ou justificar-se. Enquanto o reitor falara, o padre Martin sentara-se na poltrona em frente da lareira, com a cabeça baixa, tão atento e quieto como se estivesse a ouvir uma confissão.
Seguiu-se uma pausa.
Obrigado, padre agradeceu Dalgliesh. O seu relato coincide com o testemunho prestado pelo doutor Stannard.
Longe de mim querer intrometer-me no seu campo de responsabilidades replicou o padre Sebastian, mas o facto de o Stannard se ter escondido na igreja, ontem à tarde, não quer dizer que ele lá não tenha regressado de noite. Devo compreender que, mesmo assim, o excluiu da lista dos suspeitos?
Dalgliesh não tinha qualquer intenção de revelar que Stannard ignorava como o arcediago morrera. Perguntava a si próprio se o padre Sebastian se havia esquecido da importância das chaves desaparecidas, quando este acrescentou:
Se ele fez uma cópia das chaves, não precisava de ir buscar um molho ao armário. Por outro lado, também é verdade que poderia tê-lo feito com o intuito de lançar as suspeitas sobre outra pessoa.
Isso seria pressupor retomou Dalgliesh que o homicídio foi planeado com algum avanço, e não um impulso momentâneo. O Stannard continua a ser suspeito... como todos os outros, por enquanto... mas disse-lhe que podia partir, e creio que todos ficarão felizes por se verem livres dele.
Nem imagina quanto. Já tínhamos começado a desconfiar de que a sua pesquisa sobre a vida doméstica dos primeiros anglo-católicos era um pretexto para ele vir até cá regularmente. Quem mais desconfiado andava era o padre Peregrine. Contudo, o avô do Stannard foi um dos sócios da firma de advogados que trabalha com o instituto desde o século dezanove. Ajudou-nos muito e nunca poderíamos negar um favor ao seu neto. Talvez o arcediago tivesse razão: somos escravos do nosso passado. Assim que conheci o Stannard, fiquei com muito má impressão dele. Revelou-se pretensioso e altivo, dando um pretexto, algo comum, para a sua cupidez e desonestidade: a inviolabilidade da pesquisa histórica.
O padre Martin não abrira a boca durante a reunião. Saiu, acompanhado de Dalgliesh, do gabinete do padre Sebastian, sem proferir palavra. Contudo, depois de fechar a porta atrás de si, deteve-se e perguntou:
Gostaria de ver o papiro de Santo Anselmo?
Sim, muito mesmo.
Guardo-o nos meus aposentos.
Subiram a escada de caracol que levava à torre. A vista era espectacular, mas o quarto estava longe de ser confortável. Dava a impressão de ter sido mobilado com peças desemparelhadas e demasiado velhas para estarem à vista do público mas que, por outro lado, ainda se encontravam em estado suficientemente bom para serem deitadas fora. Um emaranhado tão grande de peças de mobiliário costuma criar uma atmosfera de alegre intimidade, mas, ali, era deprimente, e Dalgliesh deu consigo a pensar se o padre Martin já se teria dado conta disso.
Na parede virada a norte, havia uma pequena gravura religiosa com uma moldura de couro. Era difícil perceber os seus contornos mas, à primeira vista, tinha pouco mérito artístico, e as cores achavam-se tão desbotadas que havia alguma dificuldade em vislumbrar as figuras centrais da Virgem e do Menino. O padre Martin pegou no pequeno quadro, levantou a parte superior da moldura e tirou a gravura. Aninhada entre os dois vidros escondia-se o que parecia ser uma folha de cartolina grossa, rasgada, com rebordos irregulares, e coberta com linhas de tinta preta. O padre Martin não aproximou a folha da janela e Dalgliesh teve dificuldade em decifrar a mensagem em latim, à excepção do cabeçalho. Parecia haver uma marca circular no canto superior direito, onde o papiro se rasgara, e podia distinguir-se o ziguezague das folhas de junco de que era feito.
Só foi examinado uma única vez explicou o padre Martin, pouco depois de Miss Arbuthnot o receber como prenda. Parecem não restar quaisquer dúvidas de que o papiro, em si, é antigo, datando do século primeiro. O Edwin, o irmão dela, não deve ter tido qualquer dificuldade em encontrá-lo porque, como deve saber, era egiptólogo.
Mas porque deu ele este valioso documento à irmã? Independentemente da origem do papiro, tal acto não deixa de ser, no mínimo curioso. Se foi falsificado para desacreditar a religião de Miss Arbuthnot, porque o manteve em segredo? Por outro lado, se ele estava convencido de que se tratava de um documento genuíno, não teria sido mais lógico torná-lo público?
É essa a principal razão por que sempre o considerámos como uma falsificação. Porque haveria o Edwin de se desfazer do papiro, se fosse genuíno, quando poderia ter-lhe trazido fama e prestígio? Talvez quisesse que a irmã o destruísse. Devia ter fotografias do documento e, assim que soubesse que o original fora destruído, poderia acusar o instituto de destruir deliberadamente um papiro de valor incomparável. Miss Arbuthnot revelou grande sensatez ao agir como agiu. Quanto aos motivos do seu irmão, são menos claros.
Também se coloca a questão comentou Dalgliesh de saber por que razão Pôncio Pilatos se daria ao trabalho de dar uma ordem por escrito. Penso que o normal, naquela altura, era dar ordens de viva voz.
Não necessariamente. No entanto, o assunto já podia estar resolvido, de uma maneira ou de outra, passados tantos anos continuou Dalgliesh. Mesmo que o papiro remonte à época de Cristo, a tinta pode ser muito mais recente. Penso que, com o progresso da ciência, agora já poderia saber-se a verdade.
O padre Martin estava a juntar de novo, com grande cuidado, a moldura e a gravura. Por fim, pendurou o quadro na parede e recuou, para se certificar de que estava num equilíbrio perfeito.
Nesse caso, Adam, acredita que a verdade nunca pode prejudicar ninguém? perguntou.
Não diria tanto, mas acredito que temos de procurar a verdade, por mais incómoda que possa ser.
É essa a sua profissão: procurar a verdade, mas nunca fica a conhecê-la por inteiro. Como seria possível? É um homem muito inteligente, mas o que faz não resulta forçosamente num acto de justiça. É bom não esquecer que há a justiça dos homens e a justiça divina.
Não sou assim tão arrogante, padre. Limito a minha ambição à justiça dos homens. E nem mesmo essa está nas minhas mãos. A minha função é proceder a uma detenção. O júri, então, decide se a pessoa é culpada ou inocente e o juiz profere a sentença. E, no fim, faz-se justiça?
Nem sempre. Talvez não tantas vezes como gostaríamos. Mas, num mundo imperfeito, é o melhor que se consegue fazer.
Não renego a importância da verdade replicou o padre Martin. Estou apenas a dizer que a procura da verdade pode ser perigosa, bem como a sua descoberta. Sugeriu que devíamos mandar analisar o papiro de Santo Anselmo e estabelecer a sua autenticidade. Mas isso não poria um ponto final na controvérsia. Alguns afirmariam que o papiro só poderia ser uma cópia de outro, genuíno e mais antigo. Outros optariam por não acreditar nos especialistas e enfrentaríamos anos de controvérsia perniciosa. E, passados muitos anos de discussões, o papiro continuaria envolto em mistério. Ora, não queremos ter um novo Sudário de Turim...
Havia uma pergunta que Dalgliesh queria fazer, mas hesitou, consciente da sua presunção e de que, assim que a formulasse, receberia uma resposta sincera, mas que poderia ser penosa.
Padre, se o papiro fosse analisado e se estabelecesse, com elevada percentagem de certeza, que era genuíno, isso alteraria a sua fé?
O padre Martin sorriu.
Meu filho, para alguém que, em cada minuto da sua existência, tem a certeza da presença viva de Cristo, porque haveria de preocupar-se com o que acontece aos humanos?
No gabinete do andar inferior, o padre Sebastian pedira a Emma que fosse vê-lo. Convidando-a a sentar-se numa cadeira, disse:
Penso que deseja regressar a Cambridge, quanto antes. Falei com Mister Dalgliesh e ele não se opôs. Pelo que sei, de momento, não detém autoridade para reter aqui todos aqueles que quiserem partir, desde que a Polícia saiba onde poderá contactar com eles. E, como é já do seu conhecimento, nem os padres residentes nem os ordinandos irão ausentar-se.
Uma súbita irritação, quase a rondar o azedume, tornara a voz de Emma mais ríspida do que se dava conta, quando ela exclamou:
Quer dizer que o senhor e o inspector Dalgliesh estiveram a decidir o que eu devia ou não devia fazer? Não será, antes, algo que deve ser discutido entre mim e o senhor?
O padre Sebastian baixou a cabeça, por breves instantes, e depois fitou-a, olhos nos olhos.
Peço-lhe que me desculpe, Emma. Exprimi-me mal. É que pensava que desejava regressar a Cambridge, nada mais...
Mas porque haveria de pensar isso?
Minha filha, há um assassino entre nós. Temos de encará-lo e sentir-me-ia mais descansado se soubesse que não estava aqui. Sei que não temos motivos para supor que qualquer um de nós corra perigo em Santo Anselmo, mas, neste momento, não é um lugar sossegado ou calmo, nem para si nem para ninguém.
A voz de Emma retomou o seu tom normal quando replicou:
O que não significa que eu queira ir-me embora. Foi o senhor que afirmou que o instituto deveria prosseguir com a sua rotina normal, na medida do possível. Para mim, isso implicava que podia ficar cá e dar os meus três seminários, como de costume. Não percebo é o que isso pode ter a ver com a Polícia.
Nada tem a ver com a Polícia, Emma. Falei com o Dalgliesh porque sabia que você e eu haveríamos de ter esta conversa. Antes de falar consigo, achei ser meu dever descobrir se alguém teria permissão para sair do instituto. Seria inútil falar-lhe desse assunto sem poder ter a certeza da resposta que poderia dar-lhe. Perdoe-me pela minha óbvia falta de tacto. Todos somos, de certa maneira, prisioneiros da educação que tivemos. Receio que o meu instinto seja atirar, primeiro, as crianças e as mulheres para os botes salva-vidas. Sorrindo, o padre Sebastian acrescentou: Aliás, é um hábito de que a minha mulher costumava queixar-se...
E quanto a Mistress Pilbeam e à Karen Surtees? perguntou Emma. Terão de ir-se embora?
O padre Sebastian, indeciso, esboçou um sorriso constrangido. Emma, mau grado o seu estado de espírito, riu-se.
Não me vai dizer que ambas estão em segurança porque têm um homem que as protege!
Não, nem era essa a minha intenção, porque só me deixaria ficar mal... Miss Surtees informou a Polícia de que tenciona ficar com o irmão, até que se proceda a uma detenção, o que significa que talvez fique aqui durante algum tempo. Penso que ela se encarregará de proteger o irmão, e não o contrário... Quanto ao casal Pilbeam, sugeri que talvez não fosse má ideia Mistress Pilbeam ir visitar um dos seus filhos casados, mas ela, não sem alguma aspereza, respondeu-me que, se partisse, não haveria mais ninguém para preparar as refeições.
Sentindo um súbito arrependimento, Emma murmurou:
Peço-lhe desculpa por me ter mostrado tão ríspida e talvez um pouco egoísta. Se for mais fácil para o senhor... ou para todos... que eu me vá embora, então, como é natural, não ficarei aqui. Não quero tornar-me um incómodo nem aumentar a vossa ansiedade. Estava apenas a pensar em mim, o que foi errado da minha parte.
Sendo assim, fique, por favor. A sua presença, sobretudo nos próximos três dias, talvez faça aumentar a minha ansiedade, mas será uma benesse para todos, trazendo-nos conforto e paz. Sempre se enquadrou muito bem no espírito do instituto, Emma, e não é agora que vai mudar.
Mais uma vez, entreolharam-se, e Emma não teve a menor dúvida quanto ao que viu no olhar do padre Sebastian: uma expressão de agrado e de alívio. Desviou o olhar, consciente de que o padre Sebastian podia discernir no olhar dela um sentimento menos aceitável: o de piedade. ”Já não é assim tão novo”, pensava, ”e tudo isto foi um grande choque para ele. E talvez constitua o fim de tudo por que lutou e que amou.”
O almoço em Santo Anselmo era sempre mais frugal do que o jantar, sendo constituído, em regra, por uma sopa, seguida de uma variedade de saladas com carnes frias e um prato quente vegetariano. Tal como durante o jantar, era saboreado em silêncio, o que se revelou particularmente bem-vindo, naquele dia, para Emma, embora desconfiasse não ser só ela a acolhê-lo com agrado. Quando a comunidade se juntava, o silêncio parecia ser a única resposta possível para uma tragédia, que, pela sua terrível singularidade, ia muito além das palavras ou da compreensão. O silêncio em Santo Anselmo era sempre uma bênção, por ser mais positivo do que a simples ausência de conversação; agora, conferia ao almoço uma fugaz ilusão de normalidade. Contudo, pouco se comeu e até mesmo os pratos de sopa foram deixados quase intocados, enquanto Mrs. Pilbeam, muito pálida, se movia por entre os convivas, como um autómato.
Emma planeara regressar ao seu quarto para trabalhar, mas sabia que lhe seria impossível concentrar-se. Tomada de súbito impulso que, a princípio, teve dificuldade em explicar, decidiu ir ver se George Gregory estava na Vivenda São Lucas. Nem sempre se achava presente no instituto nas vezes que ela ali ia, mas, quando o encontrava, sentiam-se bem na companhia um do outro, sem serem demasiado íntimos. Agora, contudo, Emma tinha de falar com alguém que pertencesse a Santo Anselmo mas que não fosse parte integrante do instituto, alguém com quem ela não tivesse de pesar as palavras. Seria um alívio poder falar do homicídio com uma pessoa que, segundo Emma, o achava intrigante, por não se sentir pessoalmente atingido.
Gregory estava em casa. A porta da Vivenda São Lucas achava-se aberta e, quando Emma se aproximou, pôde perceber que o professor de Grego escutava uma ópera de Haendel, que ela também tinha, em cassete, com o contratenor James Bowman a cantar Ombra Mai Fu. A voz, de uma extraordinária beleza, ecoava no promontório. Aguardou que aquela ária terminasse e, quando pousou a mão na maçaneta da porta, Gregory, em voz alta, convidou-a a entrar. Emma atravessou o gabinete, recheado de estantes com livros meticulosamente alinhados, e passou à varanda envidraçada que dava para o promontório. Gregory estava a beber café, e um forte aroma enchia a sala. Emma não esperara que o café fosse servido no instituto, mas, quando Gregory lhe perguntou se desejava tomar um, aceitou. George Gregory colocou uma mesa baixa ao lado da cadeira de vime onde Emma se recostara, contente por estar ali.
Muito embora houvesse entrado na vivenda com o espírito perturbado, havia algo de que Emma tinha de falar. Fitou o seu anfitrião atentamente, enquanto este a servia. A barbicha conferia um ar mefistofélico ao rosto que ela sempre achara mais belo do que atraente. Da testa alta, o seu cabelo louro caía, para trás, em ondas tão regulares que pareciam ter sido feitas por rolos eléctricos. Por baixo das pestanas finas, os seus olhos observavam o mundo com uma expressão de desprezo irónico e alegre. Era um homem que cuidava da sua aparência. Emma sabia que ele corria todos os dias e que praticava natação, excepto nos meses mais frios de Inverno. Quando lhe estendeu a chávena de café, viu novamente a deformidade que ele nunca tentara ocultar. A parte dianteira do dedo anelar esquerdo havia sido decepada por um machado, quando ele era adolescente. Gregory tinha-lhe contado as circunstâncias do acidente, quando Emma o conhecera, e ela apercebera-se de que aquele homem sentia a necessidade de realçar que se tratara de um acidente, por sua culpa, e não de um defeito de nascença. Ficara espantada com o facto de ele lhe explicar por que motivo tinha aquela deformidade, que em pouco ou nada o incapacitava, mas concluíra que isso se devia ao facto de George Gregory ter grande amor-próprio.
Preciso de consultá-lo acerca de uma coisa... Não, exprimi-me mal... Gostaria de falar consigo sobre algo em que tenho pensado,
Sinto-me lisonjeado, mas porquê eu? Não seria mais apropriado falar com um dos padres?
Não quero atormentar o padre Martin e sei o que o padre Sebastian me diria... pelo menos penso saber, embora, por vezes, ele possa revelar-se uma caixinha de surpresas.
Mas se é uma questão moral, os especialistas são eles, não eu fez notar Gregory.
Sim, pode dizer-se que se trata de uma questão moral... pelo menos, de uma questão de ética, mas não sei se quero ouvir a opinião de um especialista na matéria. Até que ponto acha que devemos colaborar com a Polícia? O que devemos dizer-lhe?
É essa a sua dúvida?
É.
Penso que será melhor sermos sinceros. Calculo que deseja que o assassino do Crampton seja preso. Isso não lhe causa qualquer problema, pois não? Não é de opinião que, em certas circunstâncias, o homicídio deve ser perdoado, pois não?
Não. Sempre pensei que todos os assassinos deviam ser presos. Já não tenho tanta certeza em relação ao que gostaria que lhes acontecesse depois, mas, mesmo quando sinto alguma empatia... ou até mesmo simpatia... por um assassino, continuo a querer que seja preso e condenado.
Mas não quer tomar parte activa na captura do assassino, é isso?
Digamos, antes, que não quero prejudicar inocentes.
Mas nem você nem, tão-pouco, o Dalgliesh podem evitá-lo. Há sempre inocentes que sofrem durante a investigação de um homicídio. Em quem está a pensar, em particular?
Prefiro não o dizer. Fez-se silêncio, até que Emma prosseguiu: Não sei porque vim incomodá-lo com o meu problema, mas senti que precisava de falar com alguém que não faça realmente parte do instituto.
Veio falar comigo replicou Gregory porque eu não sou importante para si. Não se sente atraída sexualmente por mim. Sente-se bem aqui, porque nada do que dissermos um ao outro alterará o nosso relacionamento. Tem-me na conta de um homem inteligente, honesto, impassível e em quem pode confiar, o que é verdade. Além do mais, não pensa que eu assassinei o Crampton, e não se engana, porque não fui eu. Era-me absolutamente indiferente, quando vivo, e continua a sê-lo, depois de morto. Admito, no entanto, sentir alguma curiosidade em saber quem o matou, mas não passa disso. Também gostaria de saber como foi que ele morreu, mas você não mo vai dizer nem eu vou expor-me a uma recusa, fazendo-lhe essa pergunta. Mas, como é lógico, estou envolvido no caso, tal como todos os outros. O Dalgliesh ainda não mandou chamar-me, mas isso não quer dizer que eu seja o último da sua lista de suspeitos.
O que vai dizer, quando ele o chamar?
Vou responder, com toda a honestidade, às perguntas que me fizer. Não vou mentir. Se ele me pedir a minha opinião, dar-lha-ei, mas com prudência. Não cairei na asneira de elaborar qualquer teoria nem me oferecerei para dar informações que não me forem pedidas. Não tenciono fazer o trabalho por eles. Só Deus sabe como são bem pagos para cumprir o seu dever. E, acima de tudo, não me esquecerei de que poderei estar a acrescentar dados ao que já lhes terá sido dito por outra pessoa. Eis o que tenciono fazer. No entanto, quando o Dalgliesh ou um dos seus assistentes condescender em receber-me, provavelmente, vou mostrar-me demasiado arrogante ou curioso para que eles me peçam uma opinião. Ajudei-a?
Aconselha-me então a não mentir, mas também a não dizer mais do que o necessário? Devo esperar que eles me façam as perguntas para, depois, responder com toda a honestidade?
Mais ou menos.
Então, Emma fez uma pergunta que desejava formular desde que havia conhecido George Gregory, não sem estranhar sentir que era aquele o momento certo.
Não nutre grande simpatia por Santo Anselmo, não é verdade? Isso deve-se ao facto de não ser crente ou por pensar que eles também não são assim tão crentes como parecem?
Oh, não duvido da sua fé, mas aquilo em que eles acreditam tornou-se irrelevante. Não me refiro ao ensino moral: a herança judaico-cristã criou a civilização ocidental e devemos estar-lhe gratos por isso. Mas a Igreja que eles servem agoniza. Quando olho para O Juízo Final, tento perceber qual era o seu significado para os homens e mulheres do século quinze. Quando a vida é curta, difícil e marcada pelo sofrimento, torna-se vital acreditar no Paraíso; quando não existem leis eficazes, torna-se necessário reger a vida pelo medo do castigo e da punição no Inferno. A Igreja oferecia-lhes conforto com histórias e ilustrações sobre a esperança na vida eterna. O século vinte e um oferece outras compensações. O futebol, por exemplo, onde temos o ritual, a cor, o drama, o sentido de pertença; o futebol tem os seus sacerdotes e, até mesmo, os seus mártires. Depois, há o consumismo, a arte, a música, as viagens, o álcool, as drogas. Todos temos ao nosso alcance recursos para afastar esses dois horrores da vida humana: o tédio e a certeza de que vamos morrer. E agora... que Deus nos ajude... há também a Internet, a pornografia, acessível com o simples premir de algumas teclas. Se quer descobrir uma rede de pedofilia ou saber como fabricar uma bomba para mandar pelos ares as pessoas que não estão de acordo consigo, encontra tudo o que precisa na Internet, mais um poço sem fundo de outras informações, algumas até bastante úteis.
Mas quando tudo isso falha, até mesmo a música, a poesia ou a arte?
Então, minha querida amiga, votar-me-ei ao silêncio. Se o meu fim se revelar doloroso, confiarei na morfina e na compaixão do meu médico. Ou talvez resolva nadar, mar adentro, e olhar pela última vez para o céu.
Porque permanece aqui? quis saber Emma. Porque aceitou este cargo?
Porque gosto de ensinar grego a rapazes inteligentes. E você Porque se tornou professora universitária?
Porque gosto de ensinar literatura inglesa a rapazes e raparigas inteligentes. Mas é uma resposta parcial. Por vezes, dou comigo a pensar para onde me dirijo, ao certo. Seria agradável fazer trabalhos criativos, em vez de analisar a criatividade dos outros.
Já foi apanhada na rede da selva académica? Eu tive o cuidado de me manter à distância. Este lugar convém-me. Disponho de dinheiro suficiente para não ser obrigado a trabalhar a tempo inteiro. Tenho uma vida em Londres... que os padres nunca aprovariam, mas que me proporciona um contraste estimulante com a vida que levo aqui. Também preciso de paz, para escrever e pensar, e é nesta região deserta que a encontro. Nunca recebo visitantes. Mantenho-os à distância, com o pretexto de que tenho apenas um quarto de dormir. Sempre que me apetece, posso comer no instituto, onde sei que conto com excelentes refeições e vinhos e, também, com conversas raramente enfadonhas, as quais, na maior parte das vezes, até se revelam deveras interessantes. Gosto de dar longos passeios solitários. Tenho alojamento gratuito, embora o instituto me pague um salário irrisório pelo ensino de uma disciplina que, de outra forma, nunca se poderia dar ao luxo de ministrar aos seus estudantes. Infelizmente, o assassino pôs um ponto final em tudo isto e começo a sentir grande raiva em relação a essa pessoa.
O que é mais horrível é saber que pode ter sido alguém que conhecemos replicou Emma.
Um ”caso interno”, como a Polícia lhe chama. Mas não restam dúvidas quanto a isso... Então, Emma, não a tenho na conta de uma pessoa cobarde. Encare a realidade. Que gatuno iria fazer um longo trajecto, numa noite escura e tempestuosa, até uma igreja remota, que não podia sequer imaginar que se achasse aberta, na esperança de arrombar as poucas caixas de colectas e para tirar delas algumas moedas? Além do mais, o círculo de suspeitos não é assim tão grande. Posso desde já dizer-lhe que está fora desse círculo, minha querida amiga. Claro que o primeiro a chegar à cena do crime é sempre o mais suspeito, na ficção policial... na qual os padres parecem ser viciados... mas penso poder afirmar que está acima de qualquer suspeita. Sobram, assim, os quatro ordinandos que se encontravam no instituto, ontem à noite, e mais sete pessoas: os Pilbeam, o Surtees e a irmã, o Yarwood, o Stannard e eu. Até mesmo o Dalgliesh não suspeita de nenhum dos nossos quatro padres, muito embora os mantenha na lista de suspeitos, sobretudo se ele se lembrar do que disse Pascal: ”Os homens nunca praticam o mal tão completa e alegremente como quando são levados por uma convicção religiosa.”
Emma não queria falar dos padres. Num tom de voz calmo, replicou:
Penso que também podemos eliminar os Pilbeam.
Admito que me parecem assassinos improváveis, mas, por outro lado, todos o somos. No entanto, ficaria muito perturbado se visse uma cozinheira tão dotada a cumprir uma pena de prisão perpétua. Muito bem, risquem-se os Pilbeam da lista de suspeitos.
Emma quis dizer que os quatro ordinandos também podiam ser eliminados, mas algo a fez pensar duas vezes, por recear o que podia ouvir. Ao invés, acrescentou:
Tenho a certeza de que o senhor também não faz parte da lista de suspeitos. Não tinha motivos para odiar o arcediago. Na realidade, a sua morte pode ter decidido, de vez, a questão do encerramento de Santo Anselmo. E não é isso a última coisa que o senhor quer?
Era algo inevitável, mais cedo ou mais tarde. O que me espanta é que este instituto tenha durado tanto tempo. Mas tem razão, não tinha qualquer motivo para desejar a morte do Crampton. Se eu fosse capaz de matar alguém... e não sou, a não ser em caso de defesa própria... seria, mais provavelmente, o Sebastian Morell.
O padre Sebastian? Mas porquê?
Trata-se de um rancor muito antigo. Ele impediu que eu me tornasse membro de All Souls. Agora, isso já não tem qualquer importância, mas, na altura, teve e de que maneira. Ele escrevera uma crítica bastante destrutiva acerca do meu último livro, acusando-me, por meio de insinuações veladas, de plágio, o que não correspondia à verdade, claro. Tratou-se apenas de uma daquelas estranhas coincidências de frases e ideias, mas o escândalo não me ajudou em nada.
Deve ter sido horrível.
Nem por isso. São coisas que acontecem, como deve saber. É o pesadelo de todos os escritores.
Mas, então, porque foi que o padre Sebastian lhe propôs o cargo de professor de Grego em Santo Anselmo? Esqueceu-se do que se tinha passado?
Nunca tocou no assunto e é possível que se haja esquecido. Ao que tudo indica, era muito importante para mim, mas não para ele. E, mesmo que se lembrasse quando me candidatei ao lugar, duvido que isso o tivesse preocupado, já que acabara de contratar um excelente professor de Grego para o instituto, por um salário irrisório.
Emma nada disse. Olhando para ela, Gregory acrescentou:
Beba mais um pouco de café e, depois, pode contar-me os últimos mexericos de Cambridge.
Quando Dalgliesh telefonou para perguntar a George Gregory se podia ir até à Vivenda São Mateus, obteve esta resposta: Contava poder ser interrogado em minha casa. É que estou à espera de um telefonema da minha agente e ela só tem este número de telefone, porque tenho grande aversão a telemóveis.
Dalgliesh estranhou que o professor recebesse um telefonema de negócios a um domingo. Como que sentindo o seu cepticismo, Gregory acrescentou:
Devia ir almoçar com ela, amanhã, em Londres, no Ivy. Parti do princípio de que isso seria impossível ou inconveniente. Tentei entrar em contacto com ela, mas não tive sorte. Deixei-lhe um recado no gravador de mensagens, pedindo-lhe que me ligasse. Como é óbvio, se ela não me telefonar ainda hoje ou, o mais tardar, amanhã de manhã, terei de ir a Londres. Penso que não se opõe...
Neste momento, não replicou Dalgliesh, se bem que preferisse que todos permanecessem em Santo Anselmo, pelo menos até se concluir a primeira parte da investigação.
Asseguro-lhe que não faço tenções de fugir. Pelo contrário; não é todos os dias que sentimos a excitação de um homicídio.
Miss Lavenham não parece partilhar desse seu contentamento comentou Dalgliesh.
Claro que não. Coitada... Bom, mas é preciso não esquecer que ela viu o morto. Sem esse impacte visual, um homicídio não deixa de causar um frisson atávico, mais ao género dos romances da Agatha Christie do que real. Sei que se julga que o horror imaginado pode ser muito mais poderoso do que o real, mas não acredito que isso se aplique também a um homicídio. Tenho a certeza de que, quando alguém vê o corpo de uma pessoa assassinada, nunca mais consegue apagar completamente essa visão da memória. Nesse caso, vem até cá? Muito obrigado.
O comentário de Gregory havia sido de uma insensibilidade brutal mas não andava longe da razão. Fora enquanto detective, recentemente nomeado, ajoelhado ao lado do corpo da primeira vítima de que nunca haveria de esquecer-se, que Dalgliesh experimentara, pela primeira vez, numa mistura de choque, raiva e piedade, o poder devastador do homicídio. Perguntou a si próprio como estaria a reagir Emma e se ele poderia ajudá-la. Provavelmente não. Toda e qualquer tentativa, da parte dele, no sentido de a ajudar poderia ser interpretada como uma intrusão ou uma manifestação de condescendência. Não havia ninguém em Santo Anselmo com quem Emma pudesse falar livremente sobre o que vira na igreja, a não ser o padre Martin, mas o pobre homem precisava mais de apoio do que ela. Podia, também, partir e levar consigo o segredo, mas não era mulher para fugir. Por que motivo, mesmo sem a conhecer, Dalgliesh tinha a certeza disso? Irritado consigo próprio, decidiu esquecer-se temporariamente dos problemas de Emma e concentrar-se na sua investigação.
Não se sentia descontente por ir visitar Gregory à Vivenda São Lucas, se bem que não tivesse qualquer intenção de interrogar os ordinandos nos seus quartos. Era mais prático e rápido que fossem eles a vir ao seu encontro. Porém, no seu território, Gregory mostrar-se-ia mais à vontade e menos na defensiva. Dalgliesh podia também saber mais sobre aquela testemunha por meio de um exame discreto aos seus aposentos do que através de meia dúzia de perguntas directas. Os livros, os quadros, a disposição dos artefactos eram, por vezes, mais reveladores do que as palavras.
Quando Dalgliesh e Kate seguiram Gregory até à sala principal da vivenda, o inspector ficou, mais uma vez, espantado pelas diferentes individualidades que marcavam as três vivendas ocupadas. O alegre aconchego do lar dos Pilbeam, a oficina prática e simples de Surtees, onde reinava o cheiro a madeira, aguarrás e a ração, e, por fim, aquele espaço habitado por um professor, que se revelava um obcecado pela arrumação. A Vivenda São Lucas havia sido adaptada para servir os dois principais interesses de Gregory: a literatura e a música clássica. Toda a parte da frente da sala fora forrada com estantes de livros, do chão ao tecto, excepto por cima da lareira vitoriana, onde havia uma gravura do Arco de Constantino, de Piranesi. Era importante, para Gregory, que a altura das prateleiras fosse igual à dos livros que acomodavam uma mania partilhada, aliás, por Dalgliesh e a impressão era a de uma sala onde reinava uma ordem perfeita, realçada pelos tons de castanho e dourado das capas de cabedal dos livros. Uma secretária, de carvalho, com um computador, e uma cadeira giratória encontravam-se em frente da janela, onde os cortinados haviam sido substituídos por persianas de madeira.
Passaram à varanda envidraçada, que corria a toda a volta da casa.
Era ali a sala de estar de Gregory, mobilada com cadeiras de vime leves mas confortáveis e um sofá, uma mesa baixa e outra, redonda e maior, ao fundo, onde se empilhavam livros e revistas. Até mesmo aqueles livros estavam arrumados ordeiramente, de acordo com o seu tamanho. O telhado e as paredes de vidro achavam-se protegidos por venezianas, que deviam ser essenciais no Verão. Mesmo em pleno Inverno, a temperatura ambiente da sala, virada a sul, era agradavelmente amena. Lá fora, para lá dos campos desertos, podiam avistar-se, ao longe, os topos das árvores que circundavam o pântano e, a leste, a vasta extensão parda do mar do Norte.
As cadeiras não eram as mais adequadas para um interrogatório policial mas não havia outras. Gregory sentou-se numa, virada a sul, e recostou-se, estendendo as pernas compridas, o que demonstrava que se sentia perfeitamente à vontade.
Dalgliesh começara por fazer perguntas para as quais já sabia as respostas, depois de examinar os ficheiros pessoais de todos aqueles que trabalhavam ou estudavam em Santo Anselmo. O ficheiro de Gregory mostrara-se muito menos informativo do que os dos ordinandos. O primeiro documento, uma carta do Instituto Keble, em Oxford, deixava claro por que forma Gregory havia ido parar a Santo Anselmo. Dalgliesh, que tinha excelente memória, conseguiu lembrar-se de quase tudo o que havia lido.
”Agora que o Bradley finalmente se reformou (como foi que conseguiu persuadi-lo?), corre o boato de que anda à procura de um substituto. Já pensou no George Gregory? Pelo que sei, está ocupado, neste momento, com uma nova tradução do livro Euripides, mas anda à procura de um emprego a tempo parcial, de preferência no campo, onde possa prosseguir a sua tradução em paz. Do ponto de vista académico, o meu amigo não poderia encontrar pessoa mais adequada, porque ele é um excelente professor. É a história costumeira do professor catedrático que nunca se sente realizado. Não é um homem de temperamento fácil, mas penso que poderá convir-lhe. Ele falou comigo, quando jantou cá, na sexta-feira passada. Não lhe prometi nada, mas disse-lhe que iria informar-me se o meu amigo ainda andava à procura de um professor. Penso que terá de considerar a questão monetária, mas, neste caso, não é essencial. O que ele procura é a privacidade e a calma.”
Veio trabalhar para aqui em mil novecentos e noventa e cinco, por meio de um convite, não é assim? perguntou Dalgliesh.
Digamos antes que fui caçado. O instituto queria um professor experiente de Grego e que também tivesse algumas noções de hebraico. Eu queria um lugar de professor a tempo parcial, de preferência no campo, onde me oferecessem alojamento. Possuo uma casa em Oxford, mas, de momento, está arrendada. O arrendatário é uma pessoa responsável e a renda é elevada; portanto, não é propriamente um contrato que eu deseje rescindir. O padre Martin teria qualificado o nosso acordo de providencial; já o padre Sebastian encarou o meu recrutamento como mais um exemplo da sua capacidade de beneficiar o instituto. Não posso falar pelo reitor de Santo Anselmo, mas penso que nenhuma das duas partes se arrependeu com o acordo estabelecido,
Quando foi que conheceu o arcediago Crampton?
Por ocasião da sua primeira visita, três meses atrás, quando foi nomeado fideicomissário do instituto. Não me lembro da data exacta, Regressou há duas semanas e, depois, ontem. Da segunda vez, deu-se ao trabalho de me procurar para conhecer os termos do meu contrato com o instituto. Fiquei com a impressão de que, se eu não o tivesse desencorajado, ele teria começado a doutrinar-me em relação às minhas convicções religiosas. Remeti-o ao Sebastian Morell para o primeiro assunto e mostrei-me suficientemente inflexível em relação ao segundo, o que o levou, sem dúvida, a ir procurar vítimas mais indefesas, como o Surtees, segundo me pareceu.
E durante esta última visita? Viu-o?
Só o vi, ontem à noite, ao jantar. Não foi propriamente uma ocasião festiva, mas o senhor também lá estava, por isso viu e ouviu o mesmo que eu, ou talvez mais. Depois do jantar, não esperei que o café fosse servido, e voltei para casa.
E quanto ao resto da noite, Mister Gregory?
Passei-a em casa. Li, fiz algumas revisões e corrigi vários testes dos meus alunos. Depois, ouvi música, Wagner, para ser mais preciso, antes de me deitar. E, poupando-lhe tempo, não saí de casa em nenhum momento durante a noite. Não vi ninguém nem ouvi nada, a não ser a tempestade.
E quando tomou conhecimento de que o arcediago fora assassinado?
Quando o Raphael Arbuthnot me telefonou, por volta das sete menos um quarto, esta manhã, e me disse que o padre Sebastian convocara uma reunião de emergência com todos os residentes para as sete e meia, na biblioteca. Não me forneceu qualquer explicação e só quando nos reunimos, conforme nos foi pedido, soube o que havia acontecido.
Como reagiu à notícia?
Não sei, é complicado. Penso que, a princípio, fiquei chocado e não quis acreditar que era verdade. Não conhecia o arcediago, por isso não tinha motivos para me sentir pessoalmente desgostoso. Aquela charada na biblioteca foi extraordinária, não concorda? Só mesmo o Morell seria capaz de tal coisa. Deduzo que tenha sido ideia dele. Ali estávamos, uns de pé, outros sentados, como membros de uma família à espera da leitura do testamento. Afirmei que a minha primeira reacção foi de choque, e é verdade, mas não posso dizer que tenha ficado surpreendido. Quando entrei na biblioteca e vi o rosto da Emma Lavenham, percebi imediatamente que acontecera algo de muito grave. Penso que soube do que se tratava, mesmo antes de o Morell nos pôr ao corrente.
Sabia, então, que o arcediago Crampton não era propriamente bem-vindo em Santo Anselmo?
Tento manter-me à distância no que respeita à política do instituto; as instituições pequenas e isoladas, como esta, podem tornar-se verdadeiras incubadoras de mexericos e de insinuações. Mas também não sou surdo nem cego. Quase todos nós sabíamos que o futuro de Santo Anselmo era incerto e que o arcediago Crampton estava determinado a encerrá-lo, mais cedo ou mais tarde.
E o encerramento do instituto incomodava-o?
Não era algo que eu acolhesse de bom grado, mas já encarei essa possibilidade, pouco depois de me mudar para cá. No entanto, tendo em consideração a rapidez com que a Igreja Anglicana se move, pensei que estaria a salvo durante, pelo menos, mais dez anos. Vou sentir pena de deixar a vivenda, em particular, porque mandei instalar esta varanda à minha custa. Este lugar é ideal para o meu trabalho e, vou ter saudades dele. No entanto, guardo a esperança de que não seja obrigado a sair daqui. Não sei o que a Igreja irá fazer com os edifícios, mas não me parece que seja fácil vender a propriedade. Talvez | eu possa comprar a vivenda, mas ainda é cedo para pensar nisso, e nem sequer sei se o instituto pertence aos comissários da Igreja ou à diocese, porque é um mundo ao qual sou totalmente alheio.
Assim, ou Gregory não tinha conhecimento das disposições do testamento de Miss Arbuthnot, ou fingia desconhecê-las. Julgando que Dalgliesh não tivesse mais nada a perguntar-lhe, Gregory levantou-se.
Dalgliesh, todavia, ainda não terminara.
O Ronald Treeves era seu aluno? perguntou.
Claro que sim. Dou aulas de Grego e de Hebraico a todos os ordinandos, excepto àqueles que são licenciados em Literatura Clássica. O Treeves tirara o curso de Geografia, o que significa que devia estudar aqui durante, pelo menos, três anos, e aprender grego desde o princípio. Mas já me tinha esquecido... O senhor veio até cá para investigar a morte dele. Agora, contudo, parece pouco importante
quando comparada com o que se deu depois, não concorda? Aliás, sempre foi irrelevante, pelo menos, enquanto hipotético homicídio. O veredicto mais lógico teria sido o de suicídio.
Foi com essa impressão que ficou, quando viu o corpo?
Só formei uma opinião depois de ter tempo para reflectir calmamente. O que me convenceu foram as roupas dobradas. Um rapaz novo, que se propõe escalar um penhasco, não arruma a sua batina e o seu capote com tanto cuidado. Ele tinha estado cá para uma lição particular, na sexta-feira à noite, antes das completas, e pareceu-me o mesmo de sempre; não particularmente alegre, mas ele nunca se mostrava alegre. Não me lembro se falámos de mais alguma coisa, a não ser da tradução em que ele estava a trabalhar. Parti para Londres, logo após a lição, e ali passei a noite, no meu clube. Foi quando regressei, no sábado à tarde, que Mistress Munroe me mandou parar.
Como era ele? quis saber Kate.
O Ronald Treeves? Calmo, trabalhador, inteligente... mas talvez não tão esperto como pensava que era; inseguro e extraordinariamente intolerante para a sua idade. Penso que o seu paizinho tinha um papel determinante na vida dele, o que talvez explique a escolha do Ronald; se não conseguia ser bem-sucedido no ramo do papá, podia fazer-lhe frente, escolhendo outra vocação. No entanto, nunca falámos sobre a sua vida privada. Uma das minhas regras é nunca me envolver com os problemas pessoais dos ordinandos, porque pode ser desastroso, principalmente num pequeno instituto como este. Estou aqui para lhes ensinar grego e hebraico e não para estudar as suas psiques. Quando afirmei que precisava de privacidade, isso incluía afastar-me da pressão exercida pelas diferentes personalidades humanas, A propósito, quando pensam que a notícia do homicídio vai tornar-se pública? Devemos contar com a habitual invasão da comunicação social?
Como é evidente, o homicídio do arcediago não pode ser mantido em segredo indefinidamente replicou Dalgliesh. Estou a estudar, juntamente com o padre Sebastian, de que forma o Departamento de Relações Públicas da Scotland Yard nos pode ajudar. Quando tivermos algo a dizer, marcaremos uma conferência de imprensa.
E não há qualquer objecção quanto à minha ida a Londres esta noite:
Nem eu detenho autoridade para impedi-lo de lá ir. Gregory tornou a levantar-se.
Mesmo assim, acho melhor cancelar o almoço que tinha amanhã. Tenho o pressentimento de que será mais interessante para mim ficar aqui do que envolver-me numa conversa enfadonha sobre os pecadilhos da minha editora e as minúcias do meu contrato. Penso que prefira que eu não explique por que motivo cancelo a reunião, não é assim
Seria de grande ajuda, pelo menos por ora. Gregory avançara até à porta.
Que pena. Gostaria de explicar-lhe que não posso viajar até Londres porque sou um dos suspeitos na investigação de um homicídio. Adeus, inspector. Se precisar novamente de mim, sabe onde encontrar-me.
A brigada de Dalgliesh acabou o dia tal como o havia começado com uma reunião na Vivenda São Mateus. Porém, agora, os seus membros haviam passado para a mais confortável das duas salas de estar. Tinham-se sentado no sofá e nas poltronas e bebiam o último café do dia. Era chegada a altura de avaliar os progressos feitos. Já haviam determinado a hora e a procedência do telefonema recebido por Mrs. Crampton. Fora efectuado do telefone de parede, que se achava no corredor, à entrada da saleta de Mrs. Pilbeam, às nove horas e vinte e oito minutos da noite de sábado. Constituía, assim, mais uma prova importante, atestando aquilo de que já se desconfiava, desde o princípio: que o assassino era alguém de Santo Anselmo.
Avaliando aquela descoberta, Piers comentou:
Se estivermos certos e o autor do telefonema tiver ligado, mais tarde, para o telemóvel do arcediago, então, todos aqueles que assistiram às completas estão, de certa forma, ilibados. O que nos deixa com o Surtees e a irmã, o Gregory, o inspector Yarwood, os Pilbeam e a Emma Lavenham. Não me parece, contudo, que qualquer um de nós encare seriamente a doutora Lavenham como uma potencial suspeita e já eliminámos o Stannard.
Não inteiramente contrapôs Dalgliesh. Não possuímos autoridade para o manter retido aqui e tenho a certeza de que ele não faz a menor ideia de como foi que o Crampton morreu, o que não significa forçosamente que não esteja implicado no caso. Ele saiu de Santo Anselmo, mas continua a ser um dos suspeitos.
Ainda há outra coisa continuou Piers. O Arbuthnot entrou na sacristia mesmo em cima da hora para assistir às completas. Obtive esta informação do padre Martin que, como é evidente, não faz ideia da sua importância. Tanto eu como o Robbins já verificámos, chefe. Conseguimos, ambos, sair da porta que dá para o claustro sul e atravessar o pátio em dez segundos. Assim, o Arbuthnot teria tempo para efectuar o telefonema e entrar na igreja às nove e meia.
Mas não seria demasiado arriscado? perguntou Kate. Qualquer um podia tê-lo visto.
Na escuridão? E com a ténue iluminação do claustro? Quem estaria ali para o ver, se todos os outros se encontravam na igreja? Não, Kate, penso que ele não corria grande risco.
Pergunto-me se não será um pouco prematuro foi a vez de Robbins opinar excluir todos os que assistiram às completas. Suponhamos que o Caim tivesse um cúmplice. Nada nos prova que o homicídio haja sido cometido por uma só pessoa. Qualquer um que se encontrasse na igreja antes das nove horas e vinte e oito minutos. Pode não ter feito o tal telefonema, mas isso não quer dizer que não esteja implicado no crime.
Estás a pensar numa conspiração, é isso? perguntou Piers. Talvez tenhas razão. O que não faltava era pessoas que odiassem o Crampton. Talvez tenha sido um crime cometido por um homem e uma mulher. Quando a Kate e eu interrogámos os irmãos Surtees, percebemos nitidamente que nos estavam a ocultar alguma coisa. O Eric parecia absolutamente aterrorizado.
O único suspeito que produzira um testemunho interessante fora Karen Surtees. Alegara que nem ela nem o irmão haviam saído da Vivenda São João, durante a noite. Viram televisão, até às onze horas, e depois tinham ido dormir. Quando, contudo, Kate lhe perguntara se um deles poderia ter saído da vivenda, sem que o outro desse por isso, ela replicara: ”É uma maneira muito grosseira de nos perguntar se um de nós saiu, numa noite de tempestade, com o intuito de assassinar o arcediago! Pois bem, não saímos daqui. E se julga que o Eric poderia sair da vivenda sem eu me dar conta disso, a resposta é não, porque dormimos na mesma cama, se quer sabê-lo. Na realidade, sou irmã dele apenas por parte de pai e, mesmo que o não fosse, vocês estão a investigar um homicídio e não um caso de incesto, o que significa que o nosso relacionamento não vos diz respeito!”
E ambos se convenceram de que ela estava a dizer a verdade? quis saber Dalgliesh.
Bastou-me olhar para o irmão dela para ter a certeza respondeu Kate. Não sei se ela o avisou do que se propunha dizer, mas o Eric Surtees não gostou do que ouviu. Depois, não deixa de ser estranho que a Karen Surtees se tenha dado ao trabalho de nos revelar tal coisa. Podia ter dito que a tempestade os mantivera acordados, durante a maior parte da noite, o que lhes forneceria um álibi. Sim, bem sei que ela parece ser uma mulher que gosta de chocar os outros, mas não me parece motivo suficiente para nos revelar a sua relação incestuosa, se é que podemos considerá-la como incestuosa...
No entanto retomou Piers, demonstra que ela estava ansiosa por arranjar um álibi. É como se os dois irmãos estivessem a pensar já no futuro, dizendo agora a verdade, por saber que mais tarde poderão ter de confirmar os seus depoimentos em tribunal.
Fora igualmente encontrado um ramo no quarto de Raphael Arbuthnot, situado no claustro norte, mas a equipa forense não descobrira nada mais de relevante. Durante o dia, Dalgliesh confirmara a sua perspectiva inicial quanto à importância daquela descoberta. Se a sua teoria estivesse certa, o ramo era, de facto, uma prova vital, mas ele achou que ainda era um pouco prematuro dar voz às suas suspeitas.
Falaram, então, dos resultados dos interrogatórios individuais. À excepção de Raphael, todos os residentes de Santo Anselmo afirmavam que se haviam deitado por volta das onze e meia, se bem que houvessem sido incomodados, de tempos a tempos, pela força do vento, mas nada haviam visto ou ouvido de estranho durante a noite. O padre Sebastian mostrara-se disposto a colaborar, mas não sem manter uma certa reserva. Fora com dificuldade que ocultara o seu desagrado por ser interrogado por dois assistentes e começara por afirmar que podia conceder-lhes apenas alguns minutos, porque aguardava a visita de Mrs. Crampton. O reitor afirmara que, até às onze, estivera a trabalhar num artigo que escrevia regularmente para certo jornal teológico, e que se deitara às onze e meia, depois de tomar o seu uísque. O padre John Betterton e a irmã haviam lido até pouco depois das dez e, depois, Miss Betterton preparara cacau quente para os dois. Os Pilbeam haviam visto televisão, enquanto se protegiam de uma noite de tempestade com copiosas chávenas de chá.
Eram oito horas da noite e nada mais podiam fazer. A equipa forense há muito partira para o hotel, e Kate, Piers e Robbins desejaram-se mutuamente as boas-noites. No dia seguinte, Kate e Robbins iriam até à Casa de Saúde Ashcombe, para ver o que podiam descobrir acerca do período em que Margaret Munroe ali trabalhara. Dalgliesh guardou na sua pasta os papéis que queria manter em segredo e atravessou o promontório em direcção ao pátio oeste, que lhe permitia entrar directamente para a ala onde se encontrava o seu quarto.
Tinha acabado de entrar no quarto quando o telefone tocou. Era Mrs. Pilbeam. O padre Sebastian pensava que talvez o inspector Dalgliesh quisesse jantar no seu quarto, o que lhe pouparia o incómodo de ir até Southwold. O jantar seria frugal uma sopa, seguida de salada, carnes frias e fruta, mas, se isso lhe bastasse, Pilbeam teria todo o gosto em levar-lhe o jantar ao quarto. Feliz por ser poupado a uma viagem de carro, Dalgliesh agradeceu a Mrs. Pilbeam e retorquiu que aquela refeição seria bem-vinda. Dez minutos mais tarde, Pilbeam batia à porta. Dalgliesh suspeitava que Pilbeam não queria que a esposa atravessasse nem sequer a curta distância do pátio, depois do anoitecer.
Com surpreendente destreza, afastou a secretária da parede, pôs a mesa e serviu a refeição.
Se deixar o tabuleiro do lado de fora da porta, eu virei buscálo daqui a uma hora anunciou.
O termo continha uma sopa minestrone, com vegetais e massa, que era obviamente caseira. Mrs. Pilbeam havia colocado no tabuleiro, igualmente, uma taça de parmesão ralado e, ainda, pãezinhos quentes, embrulhados num guardanapo, e um pratinho de manteiga. O prato principal era composto por fatias de fiambre, acompanhadas de uma salada. Alguém, muito provavelmente o padre Sebastian, havia fornecido uma garrafa de clarete, mas esquecera-se do copo. Dalgliesh, que não sentia vontade de saborear aquele vinho sozinho, guardou a garrafa no armário e, findo o jantar, preparou café. Colocou o tabuleiro do lado de fora da porta do quarto e, poucos minutos depois, ouviu os passos arrastados de Pilbeam ecoando nas lajes do pavimento do claustro. Abriu a porta para lhe agradecer e desejar boa noite.
Sentia-se num deprimente estado de cansaço físico e de excitação intelectual, que é prejudicial para o sono. O silêncio era sinistro e, quando avançou até à janela, contemplou a mansão que, com as suas chaminés, a torre e a cúpula, formava uma massa negra e disforme, recortando-se no céu pálido. A fita azul e branca da Polícia selava as colunas do claustro norte que, agora, estava quase limpo de folhas mortas. Ao brilho da lâmpada que se achava por cima da porta do claustro sul, as lajes do átrio reluziam e o arbusto de brincos-deprincesa parecia tão estranhamente colorido como uma mancha de tinta vermelha no muro de pedra.
Sentou-se para ler, mas a paz que reinava à sua volta não ecoava DO seu íntimo. O que havia, naquele lugar, que o levava a sentir que a sua vida estava a ser julgada? Pensou nos longos anos de solidão que impusera a si próprio, desde que a sua mulher falecera. Não se servira da sua profissão para evitar um compromisso com o amor, para manter inviolável algo mais do que o seu apartamento, com vista para o Tamisa, que ele encontrava, à noite, exactamente tal como o deixara de manhã? Ser um observador distanciado da vida tinha a sua dignidade; exercer uma profissão que preservava a sua privacidade enquanto lhe fornecia o pretexto ou melhor, lhe conferia o dever de invadir a privacidade dos outros, tinha as suas vantagens, sobretudo para os seus escritos. Mas não havia igualmente algo de ignóbil naquilo tudo? Se continuasse a manter-se afastado da vida, não correria o risco de abafar, até mesmo de perder aquilo a que os padres de Santo Anselmo chamavam alma? Seis versos vieram-lhe, então, à cabeça, e pegou numa folha de papel, rasgou-a ao meio e escreveu-os:
Epitáfio para Um Poeta Morto
Por fim enterrado, aquele que era tão sensato,
Jaz numa cova, envolto em barro. Onde as mãos não alcançam, os lábios não se movem,
Onde nenhuma voz importuna o seu amor.
Como é estranho que não possa compreender nem ver
Aquele seu derradeiro acto de arrogância.
Segundos depois, acrescentou, por baixo: ”Com os meus pedidos de desculpa a Marvell.” Pensou, então, nos dias em que a sua poesia lhe saía tão facilmente como aquele verso algo irónico. Agora, era uma escolha de palavras mais cerebral e calculada. Haveria ainda algo de espontâneo na sua vida?
Disse a si próprio que aquela introspecção estava a tornar-se mórbida. Para a afastar, tinha de sair de Santo Anselmo. Do que precisava, antes de se deitar, era de dar um passeio. Fechou a porta do seu quarto, passou pelo quarto de São Ambrósio, onde não havia luz por trás das cortinas corridas, e, destrancando o portão de ferro, virou, decidido, para sul e avançou em direcção ao mar.
Fora Miss Arbuthnot que decretara que não houvesse fechaduras nas portas dos quartos dos ordinandos. Emma perguntava a si própria se a fundadora do instituto não havia temido o que os ordinandos poderiam fazer, se não corressem o risco de serem inesperadamente interrompidos. Teria sido a forma de exprimir, sem se dar conta, o seu medo pela sexualidade? Talvez como consequência daquela regra imposta, também não haviam sido colocadas fechaduras nos quartos de hóspedes. O portão de ferro trancado, junto à igreja, parecia ser a única medida de segurança necessária para a noite; afinal, o que havia a temer, por trás daquela barreira ricamente trabalhada? Por não existir qualquer tradição de trincos nem de fechaduras, não havia uma só fechadura de reserva para uma emergência, e Pilbeam estivera muito ocupado, durante o dia, para ir a Lowestfoft comprar algumas, mesmo que encontrasse uma loja aberta ao domingo. O padre Sebastian havia perguntado a Emma se ela não se sentiria mais à vontade na mansão, mas, não querendo deixar-se trair pelo seu nervosismo, Emma garantira-lhe que ficaria bem no seu quarto. O padre Sebastian não insistira e, quando Emma regressou ao quarto, depois das completas, para descobrir que não fora colocada uma fechadura na porta,
O seu orgulho impediu-a de ir procurar o padre Sebastian, de lhe confessar o seu medo e de lhe dizer que tinha mudado de ideias e queria ficar alojada na mansão.
Vestiu o roupão e ligou o computador portátil, decidida a trabalhar, mas sentia-se exausta. Os pensamentos e as palavras que lhe vinham à cabeça eram turvos, soterrados pelos acontecimentos daquele dia. Só ao fim da manhã Robbins a fora procurar e lhe pedira que se dirigisse à sala de interrogatórios. Ali, Dalgliesh, com Miss Miskin à sua direita, fizera-a passar em revista os acontecimentos da noite anterior. Emma contara como havia acordado com o barulho do vento e ouvira o toque do sino. Já não conseguira explicar porque vestira o roupão para ir verificar o que se passava. Agora, parecia-lhe haver sido um comportamento precipitado e irracional. No entanto, julgava que, ainda algo ensonada, reagira ao único toque do sino que escutara por entre as rajadas ululantes do vento, levada por uma recordação inconsciente do repicar de sinos, na sua infância e adolescência, a que aprendera a obedecer de imediato.
Contudo, estava perfeitamente acordada quando empurrara a porta entreaberta da igreja e vira, por entre os pilares, O Juízo Final, iluminado, e as duas figuras, uma jazendo no chão e a outra debruçada sobre a primeira, numa atitude de compaixão e desespero. Dalgliesh não lhe havia pedido que descrevesse aquela cena em pormenor. Nem precisava, porque estivera presente. Não exprimira, tão-pouco, qualquer simpatia ou preocupação pelo que ela passara, mas, por outro lado, não fora Emma que perdera um ente querido. As perguntas que lhe havia feito foram simples e directas. Não que houvesse tentado poupá-la; se existisse algo que o inspector Dalgliesh quisesse saber, ter-lhe-ia perguntado, por muito angustiada que ela se sentisse, Quando o sargento Robbins a introduzira na sala de interrogatórios e o inspector Dalgliesh se levantara, convidando-a a sentar-se, Emma dissera a si mesma: ”Não estou em frente do homem que escreveu Um Caso para Resolver e Outros Poemas; estou em frente de um oficial da Polícia, que nunca poderá ser meu aliado.” Havia pessoas que Emma amava e queria proteger, ao passo que ele nada mais desejava senão saber a verdade. E, por fim, fizera-lhe a pergunta que ela tanto receava.
O padre Martin disse-lhe alguma coisa quando se aproximou dele?
Emma fizera uma pausa antes de replicar.
Sim, trocámos algumas palavras.
Sobre o quê, doutora Lavenham?
Emma não respondera. Não ia mentir, mas parecia-lhe que a simples memória do que o padre Martin havia dito era, só por si, uma traição.
Como o silêncio se prolongasse, Dalgliesh insistira.
Doutora Lavenham, a senhora viu o corpo. Viu o que fizeram ao arcediago. Ele era um homem forte e alto. O padre Martin tem quase oitenta anos e está fisicamente muito débil. Se ficar provado que a arma do crime foi o castiçal de ferro, isso significa que alguém o empunhou com força. Crê realmente que o padre Martin poderia tê-lo empunhado?
Emma protestara veementemente.
Claro que não! Ele seria incapaz de qualquer acto de crueldade. É um homem bondoso e afável. O melhor homem que jamais conheci. Nunca tal ideia me passou pela cabeça! Nem acredito que possa passar pela cabeça dos outros!
Então, porque parte do princípio que é exactamente isso que eu penso? perguntara Dalgliesh calmamente.
Tivera de repetir a pergunta, porque Emma o fitara intensamente, como que petrificada. Por fim, respondera:
Porque ele afirmou, desesperado: ”Meu Deus, o que foi que fizemos? O que foi que fizemos?”
E, quando pensou nisso mais tarde, o que achou que ele quis dizer com esse desabafo?
Emma, efectivamente, pensara naquele desabafo mais tarde. Nunca poderia esquecer-se de tais palavras. Por fim, lá respondera, sempre com os olhos postos no seu interlocutor.
Penso que queria dizer que o arcediago ainda estaria vivo, se não tivesse vindo até Santo Anselmo. Que talvez ele não tivesse sido assassinado, se o criminoso não soubesse quanto antipatizavam com ele no instituto. Que essa antipatia podia ter contribuído para a sua morte. Que o instituto tinha a sua quota-parte de culpa.
Sim, foi exactamente isso que o padre Martin me disse, ao explicar o seu desabafo.
Emma consultou o relógio. Eram onze e vinte da noite. Consciente de que lhe seria impossível trabalhar, resolveu ir deitar-se. Como os seus alojamentos ficavam ao fundo da ala, o quarto de dormir tinha duas janelas, uma das quais dava para o muro sul da igreja. Correu as cortinas antes de se deitar e tentou esquecer-se de que a porta não estava trancada. Quando, contudo, fechou os olhos, deparou com imagens de morte, borbulhando, como sangue, na sua retina e a realidade a tornar-se ainda mais terrível, deturpada pela sua imaginação. Viu, novamente, a poça viscosa de sangue, mas agora coberta por uma mancha acinzentada, composta por bocados da massa encefálica que faziam lembrar vomitado. As imagens grotescas dos amaldiçoados e dos demónios sorridentes ganharam vida, esboçando gestos obscenos. Quando abriu os olhos, na esperança de banir da sua mente aquela terrível visão, a escuridão do quarto oprimiu-a ainda mais. Até o ar parecia exalar o odor da morte.
Levantou-se e abriu a janela que dava para o promontório. Sentiu uma lufada de ar fresco acariciar-lhe o rosto e contemplou o céu, pontilhado de estrelas.
Voltou para a cama, mas o sono teimava em não vir. Sentia as pernas pesadas, mas o medo era mais forte do que o cansaço. Por fim, tornou a levantar-se e desceu ao piso térreo. Olhar, por entre a escuridão, para aquela porta destrancada era menos aterrador do que imaginá-la entreaberta. Permanecer ali, na saleta, era melhor do que ficar à espera de ouvir passos na escada. Ainda pensou em entalar uma cadeira por baixo da maçaneta da porta, mas não conseguiu mexer-se.
Sentiu nojo de si própria por se saber tão cobarde, enquanto repetia mentalmente que ninguém lhe queria mal. Mas as imagens de esqueletos voltavam novamente ao seu espírito. Alguém que vivia no promontório ou, mais provavelmente, no instituto pegara num castiçal de ferro e esmagara o crânio do arcediago, batendo-lhe uma segunda, terceira e mais vezes, num frenesim de ódio e de sede de sangue. Só podia ter sido o acto de alguém que enlouquecera. Ou não? Podia alguém sentir-se seguro em Santo Anselmo?
Foi então que ouviu o ranger do portão de ferro a abrir-se e o dique da fechadura, quando, logo de seguida, se fechou. Ecoaram passos decididos, sem nada de furtivo. Emma abriu, a medo, a porta e espreitou. O seu coração batia com mais força. O inspector Dalgliesh estava à porta do quarto de São Jerónimo. Emma devia ter produzido algum ruído, porque ele se virou, aproximou-se e ela abriu-lhe a porta, sentindo um grande conforto por ver um ser humano, mas ciente de que isso devia transparecer no seu rosto.
Sente-se bem? perguntou Dalgliesh. Emma conseguiu esboçar um sorriso.
Não muito, de momento, mas isto passa. Não conseguia adormecer...
Pensava que se tinha mudado para a mansão. O padre Sebastian não lho sugeriu?
Sim, sugeriu, mas pensei que ficava bem aqui. Pela janela, Dalgliesh olhou para a igreja e replicou:
Este não é o melhor quarto para si. Quer trocar comigo? Penso que ficaria mais confortável no meu quarto.
Emma sentiu dificuldade em ocultar o seu alívio.
Mas isso não vai causar-lhe incómodo?
De forma alguma. Podemos mudar a maior parte dos nossos pertences amanhã. Tudo do que precisa, agora, é de roupa de cama. Receio que os seus lençóis não sirvam na minha cama, porque é de casal.
E se mudássemos apenas as almofadas e os cobertores?
Boa ideia.
Carregando-os para o quarto de São Jerónimo, Emma pôde aperceber-se de que Dalgliesh já trouxera para baixo as suas almofadas e cobertores, e pousara tudo sobre o espaldar de uma cadeira. A seu lado, havia um saco de viagem e uma pasta de cabedal. Talvez tivesse arrumado as coisas de que precisava para aquela noite e para o dia seguinte.
Dirigindo-se ao armário, Dalgliesh disse:
O instituto fornece-nos as usuais bebidas inofensivas e há um pacote de leite no frigorífico. Prefere cacau ou Ovomaltineí Também tenho uma garrafa de clarete...
Preferia um pouco de vinho, por favor.
Emma sentou-se no sofá, enquanto Dalgliesh tirava do armário a garrafa, o saca-rolhas e dois copos de água.
É óbvio que o instituto não está à espera que os seus hóspedes bebam vinho. Podemos escolher entre as canecas e os copos de água.
- Um copo de água serve, mas, para isso, vai ter de abrir uma garrafa nova.
A melhor altura para abri-la é quando precisamos dela...
Emma estava surpreendida por perceber como se sentia à vontade na presença do inspector. Era do que precisava: que alguém lhe fizesse companhia. Mantiveram-se em silêncio durante bastante tempo, enquanto beberricavam devagar. Depois, Dalgliesh falou-lhe das férias que havia passado no instituto, quando era criança, de como os padres levantavam as batinas, para jogar à bola com ele, numa zona relvada do jardim; das viagens que ele fazia de bicicleta para ir comprar peixe, do prazer que sentia com as suas leituras solitárias na biblioteca, à noite. Em seguida, perguntou a Emma qual era o programa dos seus seminários em Santo Anselmo, quais os poetas que escolhera para objecto de estudo e que tipo de reacção obtinha dos ordinandos. Não mencionou o homicídio. A conversa fluía naturalmente. Emma gostava do som da voz de Dalgliesh. Tinha a sensação de que uma parte dela flutuava por cima de ambos, enquanto se deixava embalar por aquela voz, grave e masculina, à qual a sua, mais aguda, servia de contraponto.
Quando se levantou e desejou uma boa noite a Dalgliesh, este levantou-se, de imediato, e anunciou, com uma formalidade que não havia revelado até ali:
Se não se opuser, passarei a noite aqui, nesta poltrona. Se Miss Mískin estivesse alojada no instituto, eu pedir-lhe-ia que lhe fizesse companhia. Como não está, tomarei o lugar dela, a não ser que se sinta incomodada com a minha presença...
Emma apercebeu-se de que Dalgliesh se esforçava por facilitar-lhe a vida, não querendo impor-se, mas que sabia quanto ela tinha medo de ficar sozinha.
Mas não lhe vou causar grande incómodo? perguntou, meio a medo. Vai dormir mal...
Não se preocupe. Estou muito habituado a dormir em poltronas e passarei uma noite tranquila.
O quarto de São Jerónimo era quase idêntico ao seu. O candeeiro da mesa-de-cabeceira estava aceso e Emma viu que Dalgliesh não tivera tempo de tirar os seus livros. Estivera a ler ou, com certeza, a reler Beowulf. Havia também uma edição de bolso, já muito velha, da Penguin, do livro de David Cecil, Os Primeiros Romancistas Vitorianos, com uma fotografia do autor, parecendo ridiculamente novo embora ostentasse, na contracapa, o preço em libras e xelins. Portanto, tal como ela, Dalgliesh gostava de comprar livros em segunda mão, nos alfarrabistas. O terceiro livro era O Parque de Mansfield. Emma ainda pensou levar a Dalgliesh os seus livros, mas sentiu relutância em incomodá-lo, agora que já haviam desejado uma boa noite um ao outro.
Era uma sensação estranha estar deitada naqueles lençóis. Emma esperava que Dalgliesh não a desprezasse pela sua cobardia. O alívio de saber que ele estava no piso inferior era imenso. Fechou os olhos à escuridão e às visões de morte e, passados poucos minutos, adormeceu
Acordou após uma noite sem pesadelos e, consultando o relógio viu que eram sete da manhã. Reinava a calma no quarto e, ao descer, viu que Dalgliesh já tinha saído, levando consigo a sua almofada e cobertor. Abrira a janela, como se ansiasse não deixar o menor vestígio da sua respiração ali. Emma soube, então, que ele nunca diria a ninguém onde havia passado a noite.
Ruby Pilbeam não precisava de despertador. Havia dezoito anos que acordava, tanto de Verão como de Inverno, às seis da manhã. Na segunda-feira, acordou e estendeu a mão para acender o candeeiro da mesa-de-cabeceira. Reg mexeu-se, empurrou os cobertores para trás e sentou-se na beira da cama. O odor tépido do seu corpo trazia sempre algum reconforto a Ruby. Perguntava a si própria se Reg dormia ou ficara deitado, sem se mexer, à espera que ela acordasse. Tanto um como o outro havia apenas passado por breves períodos de sono agitado e, às três horas, tinham-se levantado e ido até à cozinha para beber uma chávena de chá, aguardando pelo amanhecer. Por fim, o cansaço sobrepusera-se ao choque e ao horror e, às quatro, tinham voltado a deitar-se. Não haviam dormido tranquilamente, mas tinham conseguido ceder ao sono.
Ambos haviam estado muito ocupados ao longo do dia anterior, e apenas as suas actividades, propositadamente incessantes, tinham dado àquele dia terrível uma vaga semelhança com a normalidade. E, à noite, sentados em frente da mesa da cozinha, haviam falado sobre o homicídio, sussurrando, como se todas as divisões da Vivenda São Marcos estivessem apinhadas de pessoas invisíveis que os escutassem. O diálogo entre marido e mulher fora reservado, se bem que carregado de suspeitas inconfessáveis, frases incompletas e pausas de grande angústia. A simples declaração de que era ridículo imaginar que alguém, em Santo Anselmo, podia ser o assassino seria estabelecer uma associação entre o local e o crime; pronunciar um nome seria admitir que alguém, residindo no instituto, poderia ter perpetrado tão hediondo crime.
No entanto, haviam chegado às duas possíveis teorias que menos os angustiavam, porque induziam uma crença. Antes de se deitarem, ambos tinham ensaiado mentalmente as suas teorias, como se fosse uma litania. Alguém roubara as chaves da igreja. Alguém estivera em Santo Anselmo, talvez meses atrás, e sabia que elas ficavam guardadas no armário de Miss Ramsey, que nunca era trancado. Essa mesma pessoa marcara um encontro com o arcediago Crampton, antes de ele chegar ao instituto no sábado. Mas porque havia marcado um encontro na igreja? Porque não havia melhor lugar. Nunca poderia ser no quarto do arcediago, sem correr riscos, e não havia nenhum abrigo em todo o promontório. Era possível que o próprio arcediago tivesse ido buscar as chaves e aberto a igreja, enquanto esperava pelo seu visitante. Seguira-se uma discussão violenta entre os dois e o homicídio. Talvez tudo houvesse sido premeditado e o visitante comparecesse ao encontro, munido de uma arma, como, por exemplo, uma pistola ou uma navalha. Nem um nem outro sabia como o arcediago morrera, mas ambos visualizavam mentalmente um raio de luz reflectido na lâmina de uma navalha. Depois, a fuga. O assassino trepara pelo portão de ferro, saindo pelo mesmo sítio por onde entrara. A segunda teoria era ainda mais plausível, conferindo-lhes um reforçado conforto. O arcediago tirara as chaves e recolhera à igreja, no momento em que um ladrão tentava roubar o retábulo do altar. O arcediago apanhara-o em flagrante e o ladrão, aterrorizado, assassinara-o. Assim que aquela explicação fora tacitamente aceite como perfeitamente racional, Ruby e o marido não haviam falado mais sobre o homicídio naquela noite.
Geralmente, Ruby ia sozinha para o instituto. O pequeno-almoço era servido às oito horas, depois da missa das sete e meia, mas Ruby gostava de planear o seu dia. O padre Sebastian tomava o pequeno-almoço no seu quarto e Ruby tinha de preparar o tabuleiro, que consistia num sumo de laranja, café e duas torradas barradas com marmelada, que ela própria confeccionava. Às oito e meia, as suas ajudantes, Mrs. Bardwell e Mrs. Stacey, costumavam entrar ao serviço, vindas de Reydon, no velho Ford de Mrs. Bardwell, mas o padre Sebastian tinha-lhes telefonado e pedido que viessem apenas dentro de alguns dias. Ruby não sabia que explicação ele lhes tinha dado, mas não se atrevera a perguntar. Assim, ela e Reg teriam mais trabalho, mas Ruby sentia-se contente por ser poupada à ávida curiosidade das suas ajudantes, bem como às suas especulações e inevitáveis exclamações de surpresa e horror, assim que soubessem o que acontecera. Concluiu, então, que o assassínio do arcediago podia ser um entretenimento para aqueles que não conheciam a vítima nem eram tidos como suspeitos, e Elsie Bardwell haveria de tirar partido de tal escândalo.
Reg costumava entrar ao serviço depois da sua mulher, mas, naquele dia, tinham saído juntos da Vivenda São Marcos. Ele não lhe dera qualquer explicação para o facto, mas Ruby sabia a razão. Santo Anselmo deixara de ser um lugar sagrado e seguro. Acompanhando a mulher, Reg iluminou, com a sua lanterna, o carreiro que levava ao portão de ferro e dava acesso ao átrio oeste. A ténue luminosidade dos primeiros raios de sol começara já a reflectir-se nos campos desertos, mas, para Ruby, parecia-lhe que avançava por entre uma impenetrável escuridão. Reg fez incidir a lanterna sobre o portão para encontrar o buraco da fechadura. Atrás do portão, a fileira de lâmpadas que iluminavam os claustros projectava as sombras dos pilares nas lajes. O claustro norte continuava selado. O tronco do castanheiro erguia-se, negro e imóvel, por entre um tapete de folhas mortas. Quando o foco da lanterna passou pelo arbusto de brincos-de-princesa no muro oeste, as suas flores vermelhas reluziram como gotas de sangue. Depois de entrar no corredor que separava a sua saleta da cozinha, Ruby estendeu a mão para acender a luz. Foi então que se apercebeu de que a escuridão, ali, não era total. Um pouco mais à frente, o corredor estava iluminado por uma luz que saía pela porta entreaberta da adega.
Que estranho, Reg... comentou. A porta da adega está aberta. Alguém se levantou cedo hoje. Ou não verificaste, ontem, se a porta estava fechada?
Claro que verifiquei. Achas, porventura, que eu ia deixá-la aberta?
Aproximaram-se do alto da escada. Era iluminada por lâmpadas potentes e equipada, de cada lado, com um corrimão forte, de madeira. Ao fundo da escada, jazia o corpo de uma mulher.
Meu Deus, Reg! gritou Ruby Pilbeam. É Miss Betterton!
Reg empurrou-a para o lado e ordenou:
Fica aqui.
Ruby escutou as solas dos sapatos do marido a ecoar nos degraus de pedra e hesitou, apenas breves segundos, antes de seguir atrás dele, agarrando-se ao corrimão com ambas as mãos. Por fim, o casal ajoelhou-se ao lado do corpo.
Miss Betterton estava estendida no chão, de costas, com a cabeça junto do último degrau. Havia um lanho na sua testa, mas de onde saía apenas um fio de sangue. Usava um roupão de lã velho e desbotado e, por baixo, uma camisa de dormir branca. O seu cabelo grisalho e fino aparecia, de um lado da cabeça, enrolado numa trança, cujas pontas espigadas estavam presas por um elástico. Os seus olhos, fixos no alto da escada, achavam-se abertos.
Oh, meu Deus, não pode ser! gritou Ruby, com a voz entrecortada pelo choque. Pobrezinha! Pobrezinha!
Instintivamente, pôs o braço à volta do corpo sem vida, mas sabia que aquele seu gesto era inútil. Podia sentir, no cabelo e no roupão, o cheiro acre da velhice desleixada e perguntou a si própria se aquele cheiro era o que restava de Miss Betterton, depois de tudo o resto haver desaparecido. Tomada por uma piedade impotente, retirou o braço.
Miss Betterton nunca a deixaria tocá-la, em vida; porque haveria de impor-lhe aquele contacto físico, agora que ela estava morta? Reg endireitou-se e declarou:
Está morta. E fria. Ao que parece, partiu o pescoço. Já nada podemos fazer por ela. É melhor ires chamar o padre Sebastian.
Ter de acordar o padre Sebastian, encontrar as palavras certas e arranjar coragem para as pronunciar deixou Ruby horrorizada. Preferia que fosse Reg a dar a notícia, mas isso significava que ela teria de ficar sozinha ao lado do corpo e essa ideia era ainda mais assustadora. Pela primeira vez, o medo sobrepunha-se à piedade. Os recantos da adega pareciam ter-se alongado, com grandes áreas escuras e sinistras, nas quais espreitavam horrores imaginados. Não que fosse uma mulher dotada de imaginação fértil, mas, agora, tinha a impressão de que o seu mundo de rotina, de trabalho consciencioso, de companheirismo e amor se desmoronava à sua volta. Sabia que bastaria a Reg estender uma mão para que a adega, com as suas paredes caiadas de branco e as suas prateleiras de garrafas de vinho, se tornassem tão inofensivas como quando ela e o padre Sebastian desciam para ali ir buscar o vinho que seria servido ao jantar. Contudo, Reg não estendeu a mão. Tudo devia ser deixado como estava.
Quando subiu a escada, cada passo seu pareceu-lhe um esforço gigantesco, imposto por pernas que se haviam tornado repentinamente demasiado fracas para suportar o seu corpo. Acendeu todas as luzes do corredor e parou para recobrar o fôlego, antes de subir ao quarto do padre Sebastian. Primeiro, bateu à porta timidamente; depois, teve de bater com mais força, até que a porta se abriu, com desconcertante brusquidão, e o padre Sebastian a fitou. Nunca o tinha visto antes em roupão e, por breves instantes, desorientada pelo choque, pensou estar em frente de um estranho. O padre Sebastian parecia ter ficado espantado por vê-la ali, àquela hora, porque estendeu a mão para a ajudar a entrar.
É Miss Betterton... balbuciou Ruby. Eu e o Reg encontrámo-la ao fundo da escada da adega. Receio que esteja morta... Ficou admirada por se aperceber de que a sua voz não deixava transparecer a angústia que sentia. O padre Sebastian fechou a porta e desceu com ela a escada, enquanto a segurava por um braço. Chegados ao alto da escada da adega, Ruby aguardou, enquanto o via descer, trocar algumas palavras com Reg e ajoelhar-se ao lado do corpo.
Passado pouco tempo, o padre Sebastian levantou-se. Com o seu tom de voz sempre calmo e autoritário, virou-se para Reg e disse:
Isto foi um choque para vocês os dois. Penso que será melhor retomarem a vossa rotina. O inspector Dalgliesh e eu trataremos do que for necessário. Só por meio do trabalho e da oração conseguiremos ultrapassar este momento tão difícil.
Reg subiu a escada para se juntar à mulher e, sem trocarem palavra, dirigiram-se para a cozinha.
Suponho que vão querer tomar o pequeno-almoço, como de costume... comentou Ruby.
Claro que sim, minha linda. Não podem encarar o trabalho do dia de estômago vazio. Ouviste o que o padre Sebastian disse. Temos de prosseguir calmamente com o nosso trabalho.
Ruby fitou-o, com os olhos marejados de lágrimas.
Não foi um acidente, pois não?
Claro que foi. Podia acontecer a qualquer um. Pobre padre John. Vai ser terrível para ele.
Ruby, contudo, não partilhava da opinião do marido. Seria um choque, claro, como sempre o são as mortes repentinas. Mas não havia como negá-lo: Miss Betterton era uma pessoa com quem não devia ser fácil viver. Pegou no avental branco e começou a preparar o pequeno-almoço, embora com um peso no coração.
O padre Sebastian dirigiu-se ao seu escritório e telefonou a Dalgliesh. O inspector atendeu tão prontamente que não ficaram dúvidas de que já estava levantado. O padre Sebastian deu-lhe a notícia e, cinco minutos mais tarde, os dois achavam-se de pé, junto do corpo. Dalgliesh baixou-se, tocou no rosto de Miss Betterton com mãos experientes e, depois, endireitou-se e olhou para o corpo, absorto nos seus pensamentos.
É preciso avisar o padre John anunciou o padre Sebastian, mas isso é da minha responsabilidade. Calculo que ainda esteja a dormir, mas tenho de vê-lo antes que ele se dirija ao oratório para a oração da manhã. Vai ser um duro golpe para ele. Miss Betterton não tinha um temperamento fácil, mas era a sua única parente e pareciam muito chegados. No entanto, o padre Sebastian não se dirigiu para a escada. Ao invés, perguntou: Faz ideia de quando foi que isto aconteceu?
Pelo rigor mortis, diria que ela está morta há já umas sete horas respondeu Dalgliesh, mas o patologista vai poder fornecer-nos mais pormenores. Não pode estabelecer-se a hora da morte por meio de um exame superficial. Haverá, como é óbvio, uma autópsia.
Ela morreu depois das completas informou o padre Sebastian, provavelmente, por volta da meia-noite. Mesmo assim, deve ter atravessado o corredor em silêncio. Mas era sempre muito discreta. Movia-se como uma sombra. Não quero que o irmão a veja aqui, desta maneira. Tenho a certeza de que poderá transportá-la para o quarto dela. Miss Betterton não era crente e temos de respeitar a sua sensibilidade. Não quereria, por certo, jazer na igreja, mesmo que estivesse aberta, nem, tão-pouco, no oratório.
Ela tem de ficar aqui, padre, até que o patologista a examine. Temos de encarar esta morte como suspeita.
Ao menos, podemos tapá-la. Vou ver se encontro um lençol.
Sim, podemos tapá-la. Mas, quando o padre Sebastian se preparava para subir a escada, Dalgliesh deteve-o e perguntou: Faz ideia do que ela estava a fazer aqui?
Virando-se, o padre Sebastian hesitou antes de responder.
Infelizmente, sim. Miss Betterton servia-se de uma garrafa da adega com grande regularidade. Todos os padres o sabiam e creio que os ordinandos e os funcionários também. Mas devo dizer que não tirava mais do que uma garrafa, duas vezes por semana, e que escolhia sempre os vinhos de menor qualidade. Como deve calcular, eu já falara, tão diplomaticamente quanto possível, do problema de Miss Betterton ao padre John. Ele pagava sempre o vinho que a irmã tirava ou, pelo menos, as garrafas que ele encontrava vazias no seu apartamento. Tínhamos consciência do perigo que estes degraus íngremes constituíam para uma senhora de idade. Foi por isso que mandámos instalar uma forte iluminação e substituímos a corda pelo corrimão de madeira.
Quer dizer que, quando descobriu que alguém roubava garrafas da adega, mandou colocar um corrimão mais forte para lhe facilitar a vida e evitar que ela caísse?
Porquê? Faz-lhe confusão, inspector?
Não; dadas as suas prioridades, não faz.
Dalgliesh observou, então, o padre Sebastian quando este subiu a escada, com passos firmes, e desapareceu, fechando a porta do corredor atrás de si. Pelo exame superficial que Dalgliesh havia feito, não restavam dúvidas de que Miss Betterton tinha partido o pescoço. Calçava pantufas muito apertadas e Dalgliesh reparara que a sola da do pé direito estava descolada. A escada era bem iluminada e o interruptor achava-se junto do primeiro degrau. Uma vez que a luz devia estar acesa quando Miss Betterton caíra, era difícil acreditar que tivesse tropeçado, na escuridão. No entanto, mesmo que tivesse tropeçado, não a teriam encontrado ao fundo da escada, caída de barriga para baixo? Dalgliesh detectara, também, no terceiro degrau a contar do fim, o que parecia ser uma pequena mancha de sangue. Pela posição do corpo tudo indicava que não rebolara pela escada abaixo, porque só batera com a cabeça no antepenúltimo degrau, antes de cair pesadamente no chão da adega. Ora, com certeza, devia ter-lhe sido difícil lançar-se com tanta força sobre o vácuo, a não ser que tivesse descido a escada a correr, o que era ridículo. E se alguém a tivesse empurrado? Dalgliesh sentiu-se invadido por uma sensação avassaladora de impotência. Se era um caso de homicídio, como podia esperar prová-lo em virtude do estado em que se encontrava a sola da pantufa direita? A morte de Margaret Munroe fora declarada oficialmente como provocada por causa natural. O seu corpo havia sido cremado e as suas cinzas enterradas ou espalhadas pela terra. Até que ponto esta nova morte não seria conveniente ao assassino do arcediago Crampton?
. No entanto, agora cabia aos especialistas debruçar-se sobre o caso. Mark Ayling seria chamado a comparecer no que poderia considerar-se a nova cena de um crime, para atestar a hora da morte, e rondar em volta do corpo, como um predador. Nobby Clark e os seus homens rastejariam pela adega, à procura de pistas que não encontrariam. Se Agatha Betterton tinha visto ou ouvido alguma coisa ou houvesse transmitido o que sabia à pessoa errada, era muito pouco provável que, agora, a Polícia o descobrisse.
Dalgliesh aguardou que o padre Sebastian regressasse com o lençol para cobrir o corpo, em sinal de reverência, e, por fim, os dois homens subiram a escada. Chegados ao corredor, o padre Sebastian desligou as luzes e, estendendo a mão para o alto, trancou a fechadura da porta.
Mark Ayling chegou com a sua habitual prontidão e mais ruidosamente do que da vez precedente. Avançando pelo corredor, ao lado de Dalgliesh, informou:
Pensava poder trazer-lhe o resultado da autópsia do arcediago Crampton mas ainda estavam a dactilografar o relatório. No entanto, posso, desde já, dizer-lhe que não encontrará nada que possa surpreendê-lo. A morte resultou de pancadas múltiplas na cabeça, desferidas com um objecto pesado, de contornos afiados, como, por exemplo, um castiçal de ferro. Morreu, quase de certeza, à segunda pancada. À parte isso, era um homem de meia-idade saudável, que podia aproveitar a sua reforma durante muitos anos.
Calçou as luvas de látex, antes de descer com todo o cuidado a escada da adega, mas, desta vez, não perdeu tempo a mudar de roupa, e o seu exame, se bem que não superficial, foi rápido.
Levantando-se, afirmou:
Está morta há aproximadamente seis horas. Causa da morte: pescoço partido. Mas não precisava de me chamar para saber isso. Parece-me um caso simples. Ela caiu, com toda a força, bateu com a testa no terceiro degrau a contar do fim, e aterrou de costas. No entanto, parece-me que deve estar a pôr a si próprio uma dúvida: ela caiu ou foi empurrada?
De facto, já tinha pensado em fazer-lhe essa pergunta... admitiu Dalgliesh.
À primeira vista, diria que foi empurrada, mas é preciso algo de mais concreto do que a minha opinião. Não me atreveria a afirmá-lo, em julgamento, depois de ajuramentado. O problema são os degraus íngremes. Parecem ter sido concebidos para matar velhotas. Tendo em consideração a inclinação, é muito possível que ela não tenha tocado nos degraus até bater com a cabeça, já no fim da queda. Só posso concluir que uma morte acidental é tão provável como um homicídio. A propósito, quais são as suas outras dúvidas? Julga que ela viu alguma coisa no sábado à noite? E por que motivo se dirigiu ela à adega?
Parece que tinha o hábito de vaguear pela mansão à noite respondeu Dalgliesh, cautelosamente.
Quer dizer que gostava da pinga, hein?
Dalgliesh ignorou aquele reparo. O patologista fechou a sua mala e informou:
Vou chamar uma ambulância para que a tirem daqui e tratarei de proceder à autópsia, quanto antes, mas duvido que vá revelar-lhe algo que já não saiba. Pelos vistos, a morte parece andar atrás de si... Aceitei substituir o Colby Brooksbank, que se encontra em Nova Iorque para assistir ao casamento do filho, e já fui chamado para proceder ao exame de mais mortes violentas do que, em regra, me calham em seis meses. O médico legista já o informou da data do inquérito sobre a morte do Crampton?
Ainda não.
Mas terá notícias em breve, porque ele já anda atrás de mim. Olhou, pela última vez, para o corpo e disse, então, com surpreendente gentileza:
Pobre senhora. Mas, ao menos, foi rápido. Dois segundos de terror e, depois, o nada. Talvez tivesse preferido morrer na sua cama... Mas não é isso que todos queremos?
Dalgliesh não tinha motivos que o levassem a cancelar as instruções que dera a Kate para que visitasse a Casa de Saúde Ashcombe. Às nove horas, ela e Robbins meteram-se a caminho. O frio da manhã era penetrante. Os primeiros raios de sol espalhavam-se, tão rosados como sangue diluído, sobre a grande extensão de mar. Caía uma geada fina e o ar era agreste. Depois de os pára-brisas limparem o vidro, Kate contemplou a paisagem, despojada de cor, em que até mesmo os campos longínquos de beterraba açucareira haviam perdido o seu verde viçoso. Esforçava-se por combater o leve rancor que sentia por haver sido destacada para uma missão que, em seu entender, não passava de uma perda de tempo. Adam Dalgliesh raramente dava voz aos seus palpites, mas Kate sabia, por experiência própria, que o palpite de um detective geralmente se baseia na realidade; uma palavra, um olhar, uma coincidência, um pormenor aparentemente insignificante ou não relacionado com o inquérito, que se fixa no subconsciente e provoca um ligeiro mal-estar. Geralmente, no fim, revela-se inconsequente, mas, por vezes, fornece a pista vital que só um tolo ignoraria. Não lhe agradava abandonar a cena do crime, deixando Piers no comando, mas havia outras compensações, como conduzir o Jaguar de Dalgliesh.
Não se sentia totalmente triste por sair de Santo Anselmo. Raramente havia participado da investigação de um homicídio em que, tanto física como psicologicamente, se visse como uma perfeita estranha. O instituto era demasiado masculino e austero e até demasiado claustrofóbico para que ela pudesse sentir-se à vontade. Os padres e os ordinandos haviam-se mostrado educados, mas era uma cortesia que soava a falso. Viam-na como uma mulher e não como uma oficial da Polícia, quando Kate julgava que a batalha já fora ganha. Também tinha a nítida sensação de que todos eles partilhavam um segredo, que possuíam uma fonte de autoridade esotérica que diminuía subtilmente a sua. Perguntava a si própria se Dalgliesh e Piers sentiam o mesmo. Provavelmente não, mas, afinal, eram homens, e Santo Anselmo, mau grado a sua aparente afabilidade, representava um mundo masculino. Além do mais, era um mundo académico, onde, mais uma vez, Adam Dalgliesh e Piers se sentiam à vontade. Assim, Kate apercebeu-se de que algumas das suas inseguranças sociais e culturais haviam regressado, quando julgava já haver conseguido resolvê-las e até tê-las ultrapassado. Era humilhante dar-se conta de que uma meia dúzia de homens, de batinas negras, pudesse fazer com que ela revivesse aquelas velhas dúvidas. Assim, foi com uma grande sensação de alívio que virou para oeste, enquanto o pulsar das ondas ia diminuindo de intensidade. A ondulação omnipresente já havia ecoado nos seus ouvidos durante demasiado tempo. Kate teria preferido que Piers a acompanhasse. Ao menos, discutiriam, de igual para igual, sobre todo o tipo de assuntos, criticando-se mutuamente, num diálogo mais aberto do que ela podia ter com um oficial de patente inferior à sua. Além do mais, começava a achar o sargento Robbins irritante, por sentir que ele era bom de mais para ser de verdade. Olhou de relance para o perfil juvenil do seu companheiro, fitou os seus olhos cinzentos, fixos na estrada, e questionou, de novo, o que o teria levado a ingressar na Polícia. Se ele se alistara na Polícia por pensar ser essa a sua vocação, ela também. Sentira a necessidade de seguir uma profissão em que se sentisse útil, onde o facto de não ter um diploma universitário não fosse considerado como uma desvantagem e que, além disso, fosse estimulante e variada. Para Kate, a sua carreira na Polícia fora a maneira que ela havia encontrado para se esquecer da sua infância pobre e do cheiro de urina impregnado na escada dos Edifícios Ellison Fairweather, onde crescera. O seu trabalho havia-lhe dado muito, incluindo o apartamento com vista para o Tamisa, algo que ainda lhe custava a acreditar que conseguira obter. Em troca, dera a sua lealdade e dedicação. Para Robbins, que nos tempos livres era pregador laico, servir o seu Deus protestante provavelmente era também uma vocação. Kate perguntava a si própria se aquilo em que ele acreditava era diferente do que o padre Sebastian tinha por crença e, se fosse esse o caso, até que ponto seria diferente e porquê, mas concluiu que não era o momento adequado para uma discussão teológica. De que lhe serviria, aliás? Durante o liceu, a sua turma fora composta por alunos de muitas nacionalidades e de religiões diferentes. No entanto, para Kate, nenhuma dessas religiões dispunha de uma filosofia coerente. Chegara à conclusão de que podia viver sem Deus; já não estava tão certa de conseguir viver sem o seu trabalho.
A casa de saúde ficava numa aldeia, situada a sudeste de Norwich, É melhor não metermos por Norwich aconselhou Kate. Fica atento ao desvio para Bramerton.
Cinco minutos mais tarde, saíam da A146 e seguiam, com menos velocidade, por entre sebes desnudadas, atrás das quais os telhados vermelhos das vivendas testemunhavam o alastramento dos subúrbios pelos campos verdes.
A minha mãe morreu de cancro numa casa de saúde, há dois anos comentou Robbins calmamente.
Lamento imenso. Quer dizer que esta visita não vai ser fácil para ti...
Não há problema. Foram inexcedíveis para com a minha mãe e todos nós, enquanto ela esteve internada. Com os olhos na estrada, Kate replicou:
Mesmo assim, é quase certo que vai trazer-te recordações penosas.
O que mais me marcou foi o sofrimento da minha mãe antes de ela entrar na casa de saúde. Após uma longa pausa, ele acrescentou: O Henry James apelidava a morte de ”essa coisa digna”.
”Meu Deus”, pensou Kate, ”primeiro, o Adam Dalgliesh com a sua poesia, depois, o Piers que conhece o Richard Hooker, e, agora, o Robbins, que lê Henry James! Porque não me mandam um sargento para quem a ideia de um desafio literário seja ler Jeffrey Archer?”
Tive um namorado que era bibliotecário e tentou fazer-me apreciar o Henry James, mas, assim que eu chegava ao fim de uma frase, já me tinha esquecido de como havia começado. Conheces aquela velha expressão: ”Meter-se em cavalarias altas?” Pois parece-me que se aplica ao Henry James...
Só li O Calafrio e depois de ter visto o filme. A certa altura, citava a frase relativa à morte e, não sei porquê, ficou-me gravada na memória.
É uma bela frase mas não corresponde à verdade. A morte é como o nascimento; dolorosa e indigna, pelo menos, na maior parte dos casos. ”E talvez seja melhor assim”, rematou mentalmente, ”porque nos faz lembrar que somos animais. Talvez fizéssemos melhor em tentarmos comportar-nos mais como animais inofensivos e deixarmos de nos armar em deuses.”
Seguiu-se nova pausa até que Robbins disse, sempre num tom de voz calmo:
A morte da minha mãe teve o seu quê de dignidade.
Encontraram a casa de saúde sem dificuldade. Ficava numa propriedade à saída da aldeia. Um grande letreiro conduziu-os a um parque de estacionamento, situado à direita. Por trás estendia-se a casa de saúde, um edifício moderno de um só andar, rodeado de relvado, onde havia canteiros circulares com uma variedade de arbustos perenes, oferecendo um espectáculo de verdes, cores de púrpura e castanho-dourados.
No interior, a sensação imediata que se tinha da recepção era a de luz e de muitas flores. Duas pessoas já se tinham dirigido ao balcão; uma mulher, que ultimava os pormenores para levar o marido a passear, no dia seguinte, e um membro do clero, que aguardava pacientemente a sua vez. Alguém passou com um carrinho onde havia uma bebé cuja cabeça havia sido adornada com uma fita cor-de-rosa, de onde sobressaía um grande laço. Fitando Kate, a bebé brindou-a com um olhar dócil. Nesse mesmo instante, uma menina, acompanhada pela mãe, entrou, trazendo ao colo um cachorro, e gritou: ”Trouxemos o Trixie para ver a avó!”, rindo-se, enquanto o cãozito lhe lambia uma orelha. Por sua vez, uma enfermeira jovem, de bata rosa com um distintivo, ajudava um homem de rosto macilento a atravessar o átrio. Os visitantes entravam, com flores e embrulhos, saudando os presentes em voz alta. Kate esperara encontrar uma atmosfera de calma e de reverência e nunca aquele ambiente activo, de funcionalidade e de vida, que se traduzia pela entrada e saída de pessoas que pareciam sentir-se ali como em casa.
Quando a mulher de cabelo grisalho que se achava por trás do balcão da recepção se virou para eles, lançou um olhar de relance ao distintivo de Kate, como se a chegada de dois oficiais da Polícia Metropolitana fosse uma ocorrência comum.
Telefonaram ontem, não foi? exclamou. Miss Whetstone, a directora, está à vossa espera. O gabinete dela é mesmo em frente,
Miss Whetstone aguardava à porta. Ou estava habituada a que as suas visitas aparecessem sem avisar ou ouvira-os chegar. Fê-los entrar numa divisão onde quase todas as paredes haviam sido substituídas por vidros. Situada no centro do edifício, dava para dois corredores, que conduziam, respectivamente, às alas norte e sul. A janela, virada a leste, oferecia uma vista do jardim que, aos olhos de Kate, parecia ser mais institucional do que a própria casa. Tinha zonas relvadas, com bancos de madeira, postados a intervalos regulares, à volta de carreiros de pedra, e canteiros onde os botões murchos de rosas conferiam um toque de cor por entre os arbustos desnudados da sua folhagem.
Miss Whetstone fez-lhes sinal para que se sentassem, tomou o seu lugar atrás da secretária e brindou-os com o sorriso atencioso de uma professora primária que acolhesse alunos não muito promissores. Era uma mulher baixa, de seios abundantes, cabelo curto e grisalho, com uma franja sobre um par de olhos que deviam detectar tudo, mas que julgavam com alguma bondade. Usava uniforme azul-claro, com um cinto de fivela prateada e um distintivo preso no bolso de peito. Apesar do ambiente informal, a Casa de Saúde Ashcombe acreditava no estatuto e nas virtudes de uma directora à moda antiga.
Estamos a investigar a morte de um estudante do Instituto de Teologia de Santo Anselmo informou Kate. O seu corpo foi encontrado por Mistress Margaret Munroe, que trabalhou aqui, antes de ser contratada pelo reitor de Santo Anselmo. Nada nos leva a pensar que Mistress Munroe esteja implicada na morte do rapaz, mas ela deixou um diário onde relata pormenorizadamente como foi que encontrou o corpo. Menciona ainda, numa anotação efectuada mais tarde, que a tragédia lhe fez lembrar algo que acontecera na sua vida, doze anos antes. Aparentemente, terá sido algo que lhe provocou alguma preocupação. E gostaríamos de descobrir do que se trata. Uma vez que, há doze anos, ela trabalhava aqui, como enfermeira, pode ter sido algo que se passou neste estabelecimento, relacionado com alguém que ela tenha conhecido ou com um paciente de quem haja tratado. Talvez os vossos registos nos possam ajudar. Ou talvez uma das enfermeiras a tenha conhecido e possamos falar com ela.
Durante a viagem, Kate tinha ensaiado mentalmente o que iria dizer, ora seleccionando, ora eliminando ou pesando cada palavra. Elaborara aquele discurso para esclarecer Miss Whetstone, mas também para ficar com uma ideia mais clara da investigação a que procedia. Antes de partir, ainda pensara perguntar a Adam Dalgliesh o que devia procurar, ao certo, mas mudara de ideias, por não querer revelar a sua confusão e ignorância.
Como que pressentindo o que lhe ia no espírito, Adam Dalgliesh dissera-lhe:
Há doze anos atrás, aconteceu algo importante. Há doze anos, a Margaret Munroe trabalhava como enfermeira na Casa de Saúde Ascombe. Há doze anos, a trinta de Abril de mil novecentos e oitenta e oito, a Clara Arbuthnot morreu nessa mesma casa. Pode ser que os factos estejam relacionados entre si. A sua missão é mais uma pesquisa do que uma investigação específica.
Kate replicara:
Se compreendo que possa haver um elo de ligação entre as mortes do Ronald Treeves e de Mistress Munroe, ainda não percebi como podem estar relacionadas com o homicídio do arcediago.
Nem eu, Kate, mas, mesmo assim, tenho a sensação de que as três mortes estão ligadas entre si. Talvez não directamente, mas de uma forma qualquer. Existe uma possibilidade de que a Margaret Munroe tenha sido assassinada. Se for esse o caso, então, é quase certo que a morte dela e a do Crampton estão interligadas, porque recuso-me a acreditar que tenhamos dois assassinos distintos em Santo Anselmo.
Aquele argumento parecera-lhe credível, na altura. Agora que o seu pequeno discurso terminara, Kate sentia-se novamente em dúvida. Teria ido longe de mais com os seus ensaios? Não teria sido melhor confiar na inspiração do momento? O olhar céptico e penetrante com que Miss Whetstone fitava ambos em nada a ajudava.
Vejamos se entendi bem. A Margaret Munroe morreu recentemente, de ataque cardíaco, deixando um diário onde se refere a um acontecimento importante, na sua vida, que se passou há doze anos atrás. E os senhores estão ansiosos por saber do que se trata, em relação a uma investigação de que se ocupam. Uma vez que ela trabalhava aqui, há doze anos, pensam que pode ser algo relacionado com esta casa. E têm esperança de que os nossos registos vos possam ajudar ou que uma enfermeira que ainda se encontre no exercício das suas funções a tenha conhecido e se lembre de um incidente ocorrido há doze anos.
Sei que é um tiro no escuro admitiu Kate, mas temos de seguir a pista deixada por Mistress Munroe no seu diário.
Em relação a um rapaz que foi encontrado morto rematou Miss Whetstone. Porquê? Tratou-se de um caso de homicídio?
Não insinuei tal coisa, Miss Whetstone.
No entanto, houve, recentemente, um homicídio em Santo Anselmo. As notícias correm depressa nesta região. O arcediago Crampton foi assassinado. A vossa visita está relacionada com esse inquérito?
Não temos motivos para supor que exista uma ligação entre as duas mortes replicou Kate. Além do mais, o nosso interesse pelo diário começou antes de o arcediago ser assassinado.
Compreendo. Bom, é nosso dever ajudar a Polícia e não vejo qualquer objecção em verificar a ficha de Mistress Munroe e de vos passar informações que vos possam ser úteis, uma vez que penso que ela não se oporia a isso, se ainda trabalhasse connosco. No entanto, não me parece que a sua ficha vos traga algo de novo. Tudo o que se passa na Casa de Saúde Aschombe é transparente, incluindo as mortes dos nossos pacientes.
De acordo com as informações que obtivemos continuou Kate, uma vossa paciente, Miss Clara Arbuthnot de seu nome, morreu um mês antes de Mistress Munroe começar a trabalhar aqui. Gostaríamos de verificar as datas, porque pode ser que as duas mulheres se tenham conhecido.
Parece-me muito pouco provável, a não ser que se tenham conhecido fora desta casa. Contudo, posso verificar as datas. Todos os nossos registos se encontram agora informatizados, mas ainda não remontámos a mil novecentos e oitenta e oito. Mantemos apenas os registos dos nossos empregados, dada a hipótese de alguém nos pedir referências para efeitos de contratação. As duas fichas encontram-se na casa principal. Talvez exista alguma informação na ficha médica de Miss Arbuthnot que eu considere confidencial e, se assim for, por certo compreenderão que não poderei revelá-la.
- Ficava-lhe muito agradecida - insistiu Kate -, se pudéssemos consultar tanto a ficha de Mistress Munroe como a Ficha médica de Miss Arbuthnot.
Não posso permiti-lo. Compreendo que se trata de um caso extraordinário e devo dizer que nunca me fizeram, anteriormente, um tal pedido. Mas também é verdade que os senhores não se mostraram muito explícitos, tanto quanto ao vosso interesse por Mistress Munroe como por Miss Arbuthnot. Antes que prossigamos, penso que será melhor eu falar com Mistress Barton, a nossa administradora.
Antes que Kate pudesse responder, Robbins adiantou. Se tudo isto lhe parece vago, é porque nós próprios não sabemos bem o que investigar. Tudo o que sabemos é que se passou algo de importante na vida de Mistress Munroe, há doze anos atrás. Era uma pessoa que não parecia ter outros interesses para além do seu trabalho e é possível que o acontecimento de que ela falou esteja relacionado com a Casa de Saúde Ashcombe. Não podia, ao menos, consultar as duas fichas, para ver se as datas estão correctas? Se não houver nada na ficha de Mistress Munroe que lhe pareça relevante, então receio termos perdido o nosso tempo. Mas se houver, nesse caso, poderia consultar Mistress Barton antes de decidir se nos pode confiar essa informação.
Miss Whetstone fitou Robbins durante alguns instantes.
Parece-me uma sugestão sensata. Vou ver se consigo encontrar as fichas, mas pode demorar algum tempo.
Naquele preciso instante, a porta abriu-se e uma enfermeira entrou.
Mistress Wilson acaba de chegar de ambulância, Miss Whetstone. As filhas vieram com ela.
O rosto de Miss Whetstone iluminou-se imediatamente perante aquela expectativa. Dava a ideia de que se preparava para acolher um hóspede importante e que, em vez de trabalhar numa casa de saúde, ocupava um lugar num hotel de luxo.
Óptimo. Vou já. Vamos pô-la no mesmo quarto da Helen. Penso que se sentirá melhor com alguém da mesma idade. Virou-se, então, para Kate. Vou estar ocupada durante algum tempo. Querem aguardar ou preferem voltar mais tarde?
Kate tinha a impressão de que a presença física de ambos oferecia melhores hipóteses de obterem, mais depressa, as informações, e replicou:
Se não se importar, preferíamos aguardar. Mas Miss Whetstone já saíra do seu gabinete.
Obrigada, Robbins. A tua intervenção foi-nos útil.
Kate aproximou-se da janela, observando as entradas e saídas na recepção. Olhando de relance para Robbins, viu que estava muito pálido. Julgou detectar uma pequena lágrima na face do colega e apressou-se a desviar o olhar. ”Já não sou tão bondosa nem afável como era há dois anos”, pensou. ”O que me está a acontecer? O Adam Dalgliesh tinha razão, quando falei com ele. Se não posso dar a esta profissão aquilo de que ela precisa, incluindo alguma humanidade, é melhor pedir a demissão.” Ao pensar em Dalgliesh, desejou subitamente que ele estivesse ali. Sorrindo, lembrou-se de como, numa situação igual àquela, ele nunca poderia ter resistido à importância das palavras proferidas. Por vezes, tinha a impressão de que o gosto pela leitura de Adam Dalgliesh era obsessivo. Seria demasiado escrupuloso para examinar os papéis que se encontravam na secretária de Miss Whetstone, a não ser que fossem relevantes para a investigação, mas leria certamente os inúmeros recados que estavam afixados no painel de cortiça junto da janela.
Nem Kate nem Robbins falaram. Permaneciam, de pé, no mesmo lugar desde que Miss Whetstone se levantara, mas não tiveram de esperar muito. Miss Whetstone regressou, passados quinze minutos, com duas pastas e ocupou, mais uma vez, o seu lugar atrás da secretária.
Sentem-se, por favor pediu.
Kate sentia-se como alguém que se candidatara a um emprego e aguardava pela humilhação de ver outra pessoa a examinar o seu currículo banal.
Miss Whetstone já havia examinado as fichas antes de regressar.
Receio que nada haja, aqui, que possa ajudar-vos. A Margaret Munroe começou a trabalhar nesta casa no dia um de Junho de mil novecentos e oitenta e oito e saiu a trinta de Abril de mil novecentos e noventa e quatro. Sofria de uma doença do coração e o médico recomendou-lhe que procurasse um emprego menos cansativo. Como já sabem, foi trabalhar para Santo Anselmo, a fim de se ocupar, sobretudo, da roupa de cama e administrar alguns tratamentos ligeiros, num pequeno instituto, onde residem estudantes novos e saudáveis. Pouco mais há na sua ficha, a não ser os habituais períodos de férias, os atestados médicos e um relatório anual confidencial. Comecei a trabalhar aqui seis meses depois de ela sair e não a conheci, mas tudo indica que era uma enfermeira conscienciosa e gentil, se bem que pouco imaginativa. A sua falta de imaginação, contudo, podia ser uma qualidade, tal como o seu temperamento, não demasiado sentimental. A emotividade excessiva nunca ajudou ninguém a ser tratado melhor na Casa de Saúde Ashcombe.
E Miss Arbuthnot? perguntou Kate.
A Clara Arbuthnot morreu um mês antes de a Margaret Munroe vir trabalhar para cá. Por conseguinte, não pode ter sido tratada por Mistress Munroe e, se elas se conheceram, não foi como paciente e enfermeira.
Miss Arbuthnot morreu sozinha?
Nenhum paciente morre sozinho, aqui. É certo que não tinha familiares, mas um padre, o reverendo Hubert Johnson, veio visitá-la, a seu pedido, antes de Miss Arbuthnot morrer.
E podemos falar com ele, Miss Whetstone?
Receio que isso ultrapasse a capacidade até da Polícia Metropolitana replicou secamente Miss Whetstone. Ele também era nosso paciente, naquela altura, e estava a submeter-se a um tratamento temporário. No entanto, foi aqui que veio a morrer, dois anos depois.
Portanto, não há ninguém na Casa de Saúde Ashcombe que se recorde da vida de Mistress Munroe, há doze anos atrás?
A Shirley Legge é a nossa enfermeira mais antiga. Não temos um índice elevado de rotatividade de pessoal mas, como esta profissão exige requisitos específicos, pensamos que é melhor, para as enfermeiras, deixarem de se ocupar dos casos terminais, de tempos a tempos. Mistress Legge é a única enfermeira que estava aqui há doze anos, se bem que tenha de verificá-lo, mas, para vos ser franca, não tenho tempo. Talvez queiram falar directamente com ela. Penso que está de serviço.
Lamento se estamos a dar-lhe muito incómodo desculpou-se Kate, mas ser-nos-ia muito importante falar com ela. Obrigada.
Mais uma vez, Miss Whetstone desapareceu, deixando as duas fichas em cima da secretária. O primeiro impulso de Kate foi passar uma vista de olhos pelas fichas, mas algo a deteve. Em parte, achava que Miss Whetstone fora honesta com eles e nada mais havia a descobrir e, por outro lado, tinha plena consciência de que todos os seus movimentos seriam vistos pelas divisórias de vidro. Então, porque haveria de criar problemas com Miss Whetstone? Em nada ajudaria a investigação.
A directora regressou, cinco minutos depois, com uma mulher de meia-idade e traços vincados, que apresentou como sendo Mrs. Shirley Legge. Mrs. Legge não perdeu tempo.
Miss Whetstone disse-me que procuram informações sobre a Margaret Munroe. Lamento não poder ajudar-vos. Não a conhecia bem. Não era pessoa que tivesse amigos íntimos. Lembro-me, contudo, de que era viúva e de que o filho tinha ganho uma bolsa para frequentar a universidade, mas não me lembro qual. Queria alistar-se no exército e penso que lhe pagaram as despesas da universidade, até ele sair em missão, ou qualquer coisa do género. Fiquei muito triste por saber que Mistress Munroe morreu. Se bem me lembro, ela não tinha mais família e deve ter sido um choque para o filho.
O filho morreu antes dela, assassinado na Irlanda do Norte replicou Kate.
Deve ter sido terrível para ela. Depois disso, duvido que se preocupasse com a morte. Aquele rapaz era a sua vida. Lamento não vos poder ser mais útil. Se alguma coisa importante lhe aconteceu enquanto trabalhou aqui, ela não mo disse. Mas podem tentar falar com a Mildred Fawcett. Virou-se, então, para Miss Whetstone. Lembra-se da Mildred? Reformou-se pouco depois de a senhora chegar. Conhecia a Margaret Munroe. Tenho ideia de que se formaram ao mesmo tempo, no velho Hospital de Westminster. Talvez valesse a pena falar com ela.
Miss Whetstone perguntou Kate, tem o endereço dessa senhora nos seus registos?
Foi, contudo, Shirley Legge que respondeu.
Não precisa de se incomodar, Miss Whetstone. Posso dizer-vos onde ela mora, porque ainda enviamos cartões de boas-festas uma à outra. Além do mais, o seu endereço é daqueles que nos fica na cabeça. Possui uma vivenda à saída de Medgrave. A Vivenda Clipetty-Clop. Creio que, na área, costumava haver estábulos.
Finalmente, a sorte parecia sorrir-lhes. Mildred Fawcett poderia ter-se igualmente retirado para a Cornualha ou para o Noroeste, mas morava numa localidade situada não muito longe de Santo Anselmo. Kate agradeceu a Miss Whetstone e a Shirley Legge pela ajuda e perguntou se podiam consultar a lista telefónica local. Mais uma vez, tiveram sorte. O número de telefone de Miss Fawcett constava da lista.
Havia uma caixa de madeira a um canto do balcão da recepção, com uma etiqueta colada onde se lia: ”Fundo para flores.” Kate dobrou uma nota de cinco libras e inseriu-a na ranhura. Duvidava que fosse visto como uma despesa legítima, relativamente aos fundos da Polícia, e também não estava segura de que aquele seu gesto fosse em consequência de um assomo de generosidade ou, antes, representasse uma pequena oferta supersticiosa ao destino.
De volta ao carro, depois de apertarem os cintos, Kate telefonou para a Vivenda Clipetty-Clop, mas ninguém atendeu.
É melhor eu dar conta dos nossos progressos disse, então, se é que lhes podemos chamar tal coisa...
A conversa telefónica foi breve. Pousando o telemóvel, informou Robbins:
Vamos falar com a Mildred Fawcett, conforme já tínhamos planeado, se conseguirmos encontrá-la. Depois, o Adam Dalgliesh quer-nos de regresso ao instituto quanto antes. O patologista acabou de sair de Santo Anselmo.
O Adam Dalgliesh disse-te como foi que aconteceu? Foi um acidente? perguntou Robbins.
Ainda é muito cedo para o saber, mas tudo indica que sim. E, se não foi um acidente, como poderemos prová-lo?
E já lá vão quatro mortes comentou Robbins.
Obrigada, sargento, mas sei contar.
Saiu com todo o cuidado da propriedade onde se encontrava a Casa de Saúde Ashcombe, mas, ao chegar à estrada, acelerou. Havia algo de perturbador na morte de Miss Betterton, para lá do choque inicial. Kate precisava de sentir que, uma vez iniciada uma investigação, a Polícia assumia o comando da situação. Uma investigação podia correr bem ou mal, mas eram eles que interrogavam, sondavam, dissecavam, elaborando e decidindo uma estratégia, que ora puxava ora largava os fios do controlo total. Contudo, agora sentia, na investigação do homicídio de Crampton, uma subtil ansiedade, que se alojara no seu inconsciente desde o princípio, e que ela não havia encarado até então. Era a tomada de consciência de que o poder podia estar algures e de que, apesar da experiência e inteligência de Dalgliesh, havia outra mente brilhante em campo. Kate receava que, uma vez perdido o controlo da situação, eles não conseguissem reconquistá-lo. Provavelmente, já se lhes escapara. Estava impaciente por regressar a Santo Anselmo, quanto antes. Entretanto, de pouco lhe servia especular, porque a viagem deles nada trouxera de novo.
Desculpa, se fui um pouco brusca, mas não vale a pena falarmos do assunto enquanto não soubermos todos os pormenores. Por ora, devemos concentrar-nos em terminar esta missão.
Assim que se aproximou de Medgrave, Kate abrandou, porque perderia ainda mais tempo, se não encontrasse a vivenda, do que diminuindo a velocidade.
Olha para a esquerda, que eu olho para a direita disse a Robbins. Podemos sempre perguntar onde fica a vivenda, mas preferia não o fazer, porque não quero atrair atenções.
Não precisaram de perguntar. Quando entraram na aldeia, Kate avistou uma vivenda de tijolo, a uns quarenta metros da estrada. Um cartaz branco, no portão, indicava o nome, em letras pretas, cuidadosamente pintadas: ”Vivenda Clipetty-Clop.” O pórtico central era de 1893, conforme estava esculpido, por cima, no muro de pedra. A fachada revelava ainda duas janelas arredondadas, no piso térreo, e três no primeiro andar. A pintura era de um branco reluzente, as vidraças das janelas brilhavam e as lajes de pedra que levavam à porta da frente estavam libertas de ervas daninhas. A primeira impressão que se tinha daquela vivenda era a de ordem e de conforto. Depois de estacionar o Jaguar na berma da estrada, Kate e Robbins subiram o carreiro até estacarem em frente da porta, onde havia um batedor em forma de ferradura. Bateram, mas ninguém respondeu.
Provavelmente saiu, mas é melhor darmos a volta disse Kate. A bruma cessara e, embora ainda estivesse frio, o dia aclarara e podiam ver-se, no céu, riscos de um azul muito pálido. Um caminho de pedra, no lado esquerdo da vivenda, levava a um portão, que se abria para o jardim. Kate, que nascera e crescera numa cidade, pouco entendia de jardinagem, mas percebeu imediatamente que aquele jardim tão limpo era obra de um entusiasta por aquele passatempo. O espaço entre as árvores e os arbustos, o desenho cuidado dos canteiros e a horta, mais adiante, revelavam que Miss Fawcett era uma verdadeira especialista em jardinagem. A ligeira encosta onde a propriedade se situava proporcionava ainda uma bela vista. A paisagem outonal estendia-se livremente, em todos os seus tons de verde, dourado e castanho, por baixo do imenso céu de East Anglia.
Ao vê-los, uma mulher, debruçada sobre um dos canteiros, com uma sachola na mão, levantou-se. Era alta e parecia uma cigana, com o rosto vincado de rugas e tisnado pelo sol, e o cabelo preto, quase sem fios grisalhos, preso num rabo-de-cavalo. Por cima da sua saia comprida de lã, usava um avental, munido de um bolso a meio; a sua indumentária era completada por sapatos e luvas grossas. Não pareceu surpreendida nem desconcertada por vê-los.
Kate e Robbins apresentaram-se, mostraram as suas credenciais e repetiram resumidamente tudo o que haviam dito a Miss Whetstone. No entanto, Kate acrescentou:
Não conseguiram ajudar-nos, na casa de saúde, mas Mistress Shirley Legge disse-nos que a senhora trabalhava ali, há doze anos atrás, e conheceu Mistress Munroe. Encontrámos o seu número na lista e tentámos telefonar-lhe, mas ninguém atendeu.
Devia estar no fundo do jardim. Os meus amigos não param de me dizer que eu devia ter um telemóvel, mas é a última coisa que quero, porque constitui uma verdadeira aberração. Não volto a andar de comboio enquanto não houver compartimentos para quem não utilize telemóveis.
Ao contrário de Miss Whetstone, Miss Fawcett não fazia perguntas. Podia pensar-se que a visita de dois oficiais da Polícia Metropolitana era algo de corriqueiro na sua vida. Depois de olhar fixamente para Kate, disse:
É melhor entrarem.
Conduziu-os a uma espécie de despensa, com chão em tijoleira, uma pia de pedra, por baixo da janela, e prateleiras e armários embutidos ao longo da parede. Pairava no ar o cheiro a terra húmida e a maçãs, com um leve vestígio de parafina. Aquela divisão fora transformada em arrecadação. Havia um pouco de tudo, como Kate pôde verificar: um caixote de maçãs, cebolas que pendiam do tecto, novelos de cordel, baldes, uma mangueira enrolada à volta de um prego, na parede, e uma prateleira onde se alinhavam ferramentas de jardinagem, impecavelmente limpas. Miss Fawcett tirou o avental e os sapatos e, descalça, conduziu-os à sala de estar.
Para Kate, a sala revelava uma vida independente e solitária. Em frente da lareira, havia uma poltrona de espaldar alto, ladeada, à esquerda, por uma mesa com um candeeiro e, à direita, por outra com uma pilha de livros. Uma mesa redonda, em frente da janela, havia sido posta para uma só pessoa e as três cadeiras restantes achavam-se encostadas à parede. Um gato grande e amarelo estava aninhado numa cadeira baixa, de assento estofado. Ao vê-los entrar, ergueu a cabeça, feroz, olhou-os fixamente e, insultado com aquela intrusão, saltou da cadeira e dirigiu-se pesadamente para a despensa. Ouviram uma portinhola abrir-se e fechar-se logo de seguida. Kate nunca havia visto um gato tão feio.
Miss Fawcett puxou duas cadeiras e, depois, dirigiu-se a um armário, embutido num nicho, do lado esquerdo da lareira.
Não sei se posso ajudar-vos, mas se algo de importante aconteceu à Margaret Munroe, quando ambas trabalhávamos na casa de saúde, é provável que eu o tenha anotado no meu diário. O meu pai sempre insistiu em que devíamos manter os nossos diários de infância, e o hábito ficou-me. É como quando nos ensinam que deve rezar-se antes de dormir; assim que começamos a rezar as nossas orações, em criança, a nossa consciência obriga-nos a continuar a fazê-lo em adulto, por muito que nos custe. Disse que foi qualquer coisa que se passou há doze anos, o que nos leva até mil novecentos e oitenta e oito...
Sentou-se na poltrona em frente da lareira, com o que parecia ser o caderno de exercícios de criança.
Lembra-se se tratou de uma senhora chamada Miss Clara Arbuthnot, quando trabalhava na Casa de Saúde Ashcombe? perguntou Kate.
Se Miss Fawcett estranhou a súbita menção daquele nome, não o disse.
Lembro-me, efectivamente, de Miss Arbuthnot respondeu. Fui a enfermeira responsável pelo seu tratamento, desde o dia em que ela entrou na casa de saúde até ao dia em que morreu, cinco semanas mais tarde.
Tirando o estojo dos óculos do bolso da saia, começou a folhear as páginas do seu diário. Levou algum tempo até encontrar a data certa, porque, como Kate já temia, o seu interesse ia-se prendendo em outras anotações, à medida que folheava o diário. Kate perguntou a si própria se aquela lentidão, por parte de Miss Fawcett, não era propositada. Ao fim de alguns minutos de uma leitura silenciosa, pousou as mãos sobre o diário e, de novo, Kate sentiu que ela a fitava com olhar penetrante.
Há aqui uma menção tanto a Clara Arbuthnot, como a Margaret Munroe, mas encontro-me, inesperadamente, numa situação muito delicada. Prometi guardar segredo na altura, e não vejo motivos para voltar com a minha palavra atrás.
Depois de reflectir, Kate retorquiu:
A informação que a senhora encontrou pode ser crucial para nós, não somente em relação ao aparente suicídio de um ordinando. É muito importante que saibamos o que escreveu, quanto antes. A Clara Arbuthnot e a Margaret Munroe estão mortas. Julga que elas iriam querer que a senhora se calasse, quando se trata de ajudar a justiça?
Miss Fawcett levantou-se.
Não se importam de ir até ao jardim durante alguns minutos, por favor? pediu. Eu bato na janela quando puderem voltar. Tenho de ficar sozinha para reflectir melhor no assunto.
Kate e Robbins saíram e caminharam, lado a lado, até ao fundo do jardim, onde pararam para contemplar a paisagem. Atormentada pela impaciência, Kate comentou:
Aquele diário esteve a poucos metros do meu alcance. Tudo o que eu precisava de fazer era passar uma rápida vista de olhos pelas suas páginas. E que fazemos, se ela não nos disser mais nada? Se o caso for a tribunal, talvez se consiga uma intimação, mas como podemos saber que o diário dela é uma prova relevante? Provavelmente, trata-se de uma passagem em que conta como ela e a Margaret Munroe foram até Frinton e fizeram amor, debaixo do molhe. Não há um molhe em Frinton replicou Robbins.
Além do mais, Miss Arbuthnot estava às portas da morte. Bom, é melhor voltarmos. Não quero perder a pancadinha na janela.
Quando a ouviram, regressaram à sala de estar calmamente, desejosos de não deixarem transparecer a sua impaciência.
Os senhores deram-me a vossa palavra de que a informação que procuram é necessária para a investigação que levam a cabo, neste momento, mas queria que me garantissem que, se o que anotei no meu diário for considerado irrelevante, não tomarão nota do que eu disser.
Não sabemos se o seu diário será ou não relevante. explicou Kate. Se o for, então, terá de ser revelado, possivelmente até como sendo uma prova. Nada podemos prometer-lhe. Só podemos pedir-lhe que nos ajude.
Obrigada pela sua honestidade agradeceu Miss Fawcett. Têm sorte. O meu avô era chefe de polícia e pertenço a uma geração... infelizmente, cada vez mais diminuta... que ainda confia na Polícia. Estou disposta a dizer-vos o que sei e, também, a entregar-vos o meu diário, se a informação vos for útil.
Kate pensou que não valia a pena apresentar mais argumentos, porque poderiam ser contraproducentes. Limitou-se a murmurar um ”Obrigada” e aguardou.
Ponderei no assunto enquanto os senhores estiveram no jardim continuou Miss Fawcett. Disseram-me que esta visita se deve à morte de um estudante do instituto de Santo Anselmo. Também afirmaram que nada leva a crer que a Margaret Munroe esteja envolvida nessa morte, à excepção de ter sido ela a encontrar o corpo. Mas há muito mais para além desses factos... Dois oficiais como os senhores nunca se teriam dado ao trabalho de vir até aqui, se não houvesse suspeitas de um crime. A vossa investigação é relativa a um homicídio, não é verdade?
Sim confessou Kate. Fazemos parte de uma equipa que está a investigar o homicídio do arcediago Crampton, no Instituto de Santo Anselmo. Pode não haver qualquer elo de ligação com a passagem do diário de Mistress Munroe, mas temos de verificá-lo. Creio que tomou conhecimento da morte do arcediago...
Não, não sabia de nada replicou Miss Fawcett. Raramente compro o jornal e nunca vejo televisão. Mas, se estão a investigar um homicídio, então, o caso muda de figura... Há uma passagem no meu diário, do dia vinte e sete de Abril de mil novecentos e oitenta e oito, que diz respeito a Mistress Munroe. O meu problema é que, na altura, tanto ela como eu prometemos guardar segredo.
Miss Fawcett, permite-me que leia essa passagem?
Não me parece que, se a lesse, ficasse esclarecida. Escrevi pouca coisa, mas lembro-me de muitos mais pormenores do que aqueles que escrevi. E penso ser meu dever revelá-los, muito embora duvide que tenha alguma relação com a vossa investigação. Além do mais, deram-me a vossa palavra de que o assunto ficará por aqui, se o que vou revelar-vos não for relevante.
Quanto a isso, prometo-lhe que nada será divulgado. Miss Fawcett sentou-se, muito direita, com as palmas das mãos apoiadas nas páginas do diário, como se o protegesse de olhares indiscretos.
Em Abril de mil novecentos e oitenta e oito, eu tratava de doentes em fase terminal, na Casa de Saúde Ashcombe, mas isso os senhores já sabem. Uma das minhas pacientes disse-me, certo dia, que desejava casar-se, antes de morrer, mas que queria manter em segredo tanto a sua intenção como a cerimónia. Perguntou-me, então, se eu podia ser sua testemunha e eu aceitei. Não me cabia fazer-lhe perguntas. Era um desejo expresso por uma paciente a quem eu me afeiçoara e que já tinha pouco tempo de vida. O que me surpreendeu foi ver como ela teve forças para comparecer à cerimónia. O casamento foi marcado, com a autorização do arcebispo, e foi celebrado ao meio-dia do dia vinte e sete, em St. Osyth, uma pequena igreja em Clampstoke-Lacey, nos arredores de Norwich. O padre que presidiu à cerimónia foi o reverendo Hubert Johnson, que a minha paciente conhecera na casa de saúde. Não vi o noivo até ele chegar, de carro, para nos ir buscar, como se tivéssemos combinado dar um passeio pelo campo, a fim de não despertar a atenção da minha superiora. O padre Hubert tinha ficado de arranjar uma segunda testemunha mas não conseguiu, Não me recordo do que correu mal. Quando íamos a sair da casa de saúde, vi a Margaret Munroe. Acabara de ser entrevistada pela enfermeira-chefe para um lugar. Aliás, eu é que lhe havia sugerido que se candidatasse. Sabia que podia contar com a sua total discrição. Tínhamos estudado ao mesmo tempo no velho Hospital de Westminster, em Londres, muito embora ela fosse consideravelmente mais nova do que eu. Entrei tarde para a escola de enfermagem após uma breve incursão pela vida académica. O meu pai opunha-se fortemente à minha vocação e tive de esperar que ele morresse para poder inscrever-me.
A cerimónia do casamento teve lugar e, logo de seguida, eu e a minha paciente regressámos à casa de saúde. Ela parecia muito feliz e em paz, nos seus últimos dias de vida, mas não voltámos a falar do casamento. Aconteceu tanta coisa durante os anos em que trabalhei naquele estabelecimento, que duvido de que me lembrasse do casamento, se não tivesse anotado esta passagem no meu diário. Mas bastou-me ler as palavras que escrevi, mesmo sem mencionar nomes, para que tudo me viesse à memória com uma surpreendente clareza., Estava um dia lindo. Lembro-me de que o cemitério, em St. Osyth, estava colorido de amarelo pelos narcisos, e que, quando saímos da igreja, o Sol brilhava.
A sua paciente era a Clara Arbuthnot? perguntou Kate. Miss Fawcett fitou-a.
Sim, era ela.
E o noivo?
Não faço ideia. Não consigo lembrar-me nem da sua aparência, nem do seu nome, e duvido que a Margaret conseguisse ajudar-me, se fosse viva.
Mas, como testemunha, ela assinou certamente a certidão de casamento, onde estavam inscritos os nomes dos noivos persistiu Kate.
Suponho que sim, mas não havia nenhum motivo particular para que ela se lembrasse disso. Num casamento religioso, só os nomes próprios são mencionados durante a cerimónia. Miss Fawcett fez uma pausa antes de prosseguir: Tenho de confessar-vos que não fui totalmente sincera convosco. Precisava de algum tempo para reflectir e para pensar no que deveria revelar. Não precisava de consultar o meu diário para responder às vossas perguntas. Já havia verificado a data, antes, porque no dia doze de Outubro, uma quinta-feira, a Margaret Munroe me telefonou, de uma cabina, em Lowestoft. Perguntou-me o nome da noiva e eu disse-lho. Já não pude dizer-lhe o nome do noivo, mesmo que o quisesse. Não o registei no meu diário e, se alguma vez o soube, há muito o esqueci.
É tudo aquilo de que consegue lembrar-se em relação ao noivo? perguntou Kate. Que idade tinha, como se apresentou, como falava? Tornou a vê-lo, na casa de saúde?
Não, nem mesmo quando a Clara estava já moribunda e, tanto quanto sei, nem sequer assistiu à cremação. Foi uma firma de advogados, em Norwich, que se encarregou da cerimónia. Nunca mais o vi, nem ouvi falar dele. No entanto, há uma coisa... que me despertou a atenção quando ele enfiou a aliança no dedo da Clara. Faltava-lhe a parte da frente do dedo anelar esquerdo.
Kate experimentou uma sensação de triunfo e de excitação tão grande que receou que se reflectisse na expressão do seu rosto. Nem sequer se atreveu a olhar para Robbins. Tentando manter a voz calma, perguntou:
Miss Arbuthnot alguma vez lhe confidenciou o que a levou a querer casar-se? É possível, por exemplo, que houvesse uma criança envolvida?
Uma criança? Ela nunca me falou em ter tido uma criança e, tanto quanto me lembro, não havia qualquer menção a uma gravidez na sua ficha médica. Nunca recebeu, tão-pouco, a visita de uma criança. Mas, por outro lado, também nunca recebeu a visita do homem com quem tinha casado.
Portanto, ela nada mais lhe disse?
Apenas que tencionava casar-se, que o seu casamento devia ser mantido em segredo e que precisava da minha ajuda. E eu dei-lha
Havia mais alguém em quem ela pudesse confiar?
O padre que a casou, o reverendo Hubert Johnson, passava muitas horas com a Clara, antes de ela morrer. Lembro-me de que foi ele que lhe deu a extrema-unção e a ouviu em confissão. Eu tinha de me certificar de que ninguém os incomodava, quando o reverendo Johnson estava com a minha paciente. Ela deve ter-lhe contado tudo, quer como seu padre, quer como seu amigo. Mas ele também estava gravemente doente e morreu dois anos mais tarde.
Nada mais havia a saber e, depois de agradecer a Miss Fawcett, Kate e Robbins regressaram ao carro. Miss Fawcett observava-os da janela e Kate arrancou, até que, ao encontrar um lugar onde pudesse estacionar, parou. Pegou, então, no telemóvel e disse com satisfação
Tenho algo de positivo a relatar. Finalmente, temos uma pista
Depois do almoço, como o padre John não aparecesse, Emma foi bater à porta do seu apartamento. Temia vê-lo mas, quando ele abriu a porta, parecia o mesmo de sempre. O seu rosto iluminou-se e convidou-a a entrar.
Padre, lamento imenso... murmurou Emma, reprimindo as lágrimas. Teve de dizer a si mesma que havia ido até ali para lhe dar algumas palavras de conforto e não para o deixar ainda mais angustiado. Mas era como reconfortar uma criança. Emma queria tê-lo nos seus braços. O padre John indicou-lhe a poltrona em frente da lareira, que devia ser a da irmã, e sentou-se à frente dela.
Pergunto a mim mesmo se pode fazer-me um favor, Emma.
Tudo o que quiser, padre.
São as roupas da Agatha. Sei que tenho de as separar e dar, mas parece-me ainda tão cedo para pensar nisso... Como sei que só nos deixará no fim da semana, pensei que poderia encarregar-se de separar as roupas. Tenho a certeza de que Mistress Pilbeam se ofereceria para me ajudar, porque é uma pessoa muito bondosa, mas preferia que fosse você. Se não lhe der muito incómodo, talvez pudesse tratar disso amanhã.
Com certeza, padre. Separarei as roupas, à tarde, depois do meu seminário.
Tudo o que ela tinha está no seu quarto. Deve haver algumas jóias. Se houver, pode levá-las consigo e vendê-las? Gostaria de doar algum dinheiro a uma instituição de caridade que ajude os detidos. Penso que deve haver uma instituição desse género...
Deve haver, com toda a certeza, padre replicou Emma. Eu tratarei de me informar, mas não gostaria de examinar, primeiro, as jóias e decidir se gostaria de guardar algumas?
Não, obrigado, Emma. É muito gentil da sua parte, mas prefiro que sejam todas vendidas.
O silêncio impôs-se até que o padre John prosseguiu:
A Polícia esteve aqui, esta manhã, a examinar o apartamento e o quarto dela. O inspector Tarrant estava acompanhado por um desses oficiais que usam batas brancas. Apresentou-mo como sendo Mister Clark.
Examinar o apartamento? exclamou Emma, num tom de voz mais ríspido. Mas porquê?
Não me disseram. Não se demoraram e deixaram tudo arrumado. Nunca ninguém se aperceberia de que eles tinham estado aqui. Seguiu-se um novo silêncio, novamente quebrado pelo padre John. O inspector Tarrant perguntou-me onde estive e o que fiz ontem, entre o fim das completas e as seis da madrugada.
Mas isso é inadmissível! protestou Emma, revoltada. O padre John esboçou um sorriso melancólico.
Eles são forçados a fazer esse tipo de perguntas. O inspector Tarrant foi muito diplomata. Estava apenas a cumprir o seu dever
Emma não pôde deixar de pensar que muitos dos problemas do mundo eram provocados por pessoas que alegavam estar apenas a cumprir o seu dever.
O patologista também esteve aqui acrescentou o padre John, num fio de voz, mas julgo que o terá ouvido chegar.
Toda a comunidade o ouviu chegar, porque não se pode dizer que tenha sido propriamente discreto.
O padre John sorriu.
Tem razão. Ele também não se demorou. O inspector Dalgliesh perguntou-me se eu queria estar presente quando eles removessem o corpo, mas disse-lhe que preferia ficar aqui, sozinho. No fim de contas, não foi o corpo da Agatha que eles removeram, porque ela já havia partido há muito tempo...
”Partido há muito tempo.” Que queria o padre John dizer, ao certo, com uma frase tão enigmática? Aquelas quatro palavras ecoaram no espírito de Emma com o mesmo som do dobrar dos sinos por um finado.
Levantando-se, pegou na mão dele e disse-lhe:
Vemo-nos amanhã, padre, quando eu vier separar e embrulhar as roupas. Tem a certeza de que não lhe posso ser útil em mais nada?
Depois de lhe agradecer, o padre John acrescentou:
Só há mais uma coisa e espero não estar a aproveitar-me da sua bondade, mas podia tentar procurar o Raphael? Não o vejo desde o que se passou hoje e temo que isso o tenha afectado. Ele foi sempre gentil para com ela e sei que a Agatha gostava muito dele.
Emma encontrou Raphael no rebordo do penhasco, a cerca de cem metros do instituto. Quando se aproximou, ele sentou-se na relva e Emma, imitando-o, estendeu-lhe a mão, em silêncio.
Com o olhar fixo no mar e sem se virar para ela, Raphael murmurou:
Ela era a única pessoa, aqui, que gostava de mim.
Isso não é verdade, Raphael, e você sabe-o bem! protestou Emma, indignada.
O que quis dizer é que era a única pessoa que gostava realmente de mim. Da minha pessoa. Do Raphael. Não do beneficiário da benevolência geral. Nem do candidato ao sacerdócio. Nem, muito menos, do último Arbuthnot vivo... mesmo sendo eu um bastardo. Já lhe devem ter contado. Fui largado, aqui, quando era bebé, numa dessas alcofas de palha, com alças. Se me tivessem abandonado num desses juncos, junto do pântano, teria sido mais apropriado, mas talvez a minha mãe tenha pensado que ninguém me descobriria ali. Ao menos, teve a decência de me deixar à porta do instituto, onde, mais cedo ou mais tarde, alguém me encontraria. Não lhes restou qualquer alternativa a não ser a de ficarem comigo. Em troca, dei-lhes vinte e cinco anos para se sentirem benevolentes e para poderem exercer a virtude da caridade.
Sabe perfeitamente que não é isso que eles sentem por si, Raphael.
Mas é o que eu sinto. Sei que estou a ser egoísta e que revelo ter pena de mim próprio, mas é assim que eu sou. Nem precisa de mo dizer. Costumava pensar que todos os meus problemas se resolveriam, se eu conseguisse levá-la a amar-me e, mais tarde, a casar comigo.
Isso é ridículo, Raphael. Quando pensar com mais clareza, percebê-lo-á. O casamento não é uma terapia.
Mas teria sido um compromisso definitivo e constituiria um refúgio para mim.
A Igreja não é um refúgio para si?
Irá ser, assim que for ordenado padre. Então, não haverá ponto de retorno.
Depois de ponderar, Emma retorquiu:
Não tem de ser forçosamente ordenado. Deve ser uma decisão sua e de mais ninguém. Se sente dúvidas quanto à sua vocação, então não dê um passo em falso.
Parece Mister Gregory a falar. Se menciono a palavra ”vocação”, ele diz-me para não falar como uma personagem de um romance do Graham Greene. É melhor voltarmos. Fez uma pausa e riu-se. Em certos aspectos, ela era terrivelmente chata quando viajávamos até Londres, mas nunca quis ir até à capital com mais ninguém.
Levantou-se e iniciaram o percurso de regresso ao instituto. Emma não tentou apanhá-lo. Seguindo mais devagar pelo rebordo do penhasco, sentia pena de Raphael, do padre John e de todas as pessoas de Santo Anselmo de quem gostava.
Tinha alcançado o portão de ferro que dava para o átrio oeste quando, ouvindo uma voz chamá-la, se virou e viu que era Karen Surtees. Haviam-se encontrado, em fins-de-semana anteriores, quando ambas se achavam no instituto, mas nunca haviam falado, excepto para trocar saudações. Apesar daquele distanciamento, Emma nunca sentira que havia um antagonismo entre ela e Karen Surtees. Aguardou, com alguma curiosidade, para saber o que ela queria dizer-lhe. Karen olhou para trás, na direcção da Vivenda São João, antes de falar.
Desculpe por ter gritado, mas queria falar consigo. Que história é essa de a velha Betterton ter sido encontrada morta na adega? O padre Martin foi até à vivenda, esta manhã, para nos dar a notícia, mas devo dizer que não foi bem-vindo.
Por achar que não havia razão para ocultar o pouco que sabia, Emma respondeu:
Penso que ela tropeçou no primeiro degrau e caiu.
Não terá sido empurrada? De qualquer maneira, é uma morte que não podem imputar nem ao Eric nem a mim, se ela morreu antes da meia-noite. Fomos até Ipswich, ontem à noite, para ver um filme e jantar fora. Queríamos sair daqui por algumas horas. Não faz ideia de como anda a investigação? Estava a referir-me à investigação do homicídio do arcediago Crampton, claro.
Não faço a menor ideia. A Polícia não nos fornece qualquer informação.
Nem mesmo aquele atraente inspector? perguntou Karen Surtees. Já calculava. Meu Deus, como aquele homem é sinistro! Estou desejosa de que ele avance com a sua investigação, porque quero voltar para Londres. De qualquer maneira, vou ficar aqui, com o Eric, até ao fim da semana. Só quero fazer-lhe mais uma pergunta. Talvez não possa ou não queira ajudar-me, mas não sei a quem mais recorrer. É crente? Costuma ir à igreja?
A pergunta era tão inesperada que, por momentos, Emma sentiu-se completamente desorientada. Revelando alguma impaciência, Karen acrescentou:
Refiro-me à missa. À comunhão. Costuma comungar?
Sim, por vezes.
É que tenho estado a pensar naquelas pastilhas, as hóstias. O que acontece? Abre-se a boca e eles enfiam-nas lá dentro ou podemos pegar-lhes com as mãos?
A conversa era cada vez mais bizarra mas, mesmo assim, Emma respondeu:
Algumas pessoas abrem a boca, mas, nas igrejas anglicanas, é habitual estenderem-se ambas as mãos e pegar na hóstia com as palmas uma sobre a outra.
E o padre observa-nos enquanto comemos a hóstia?
Pode fazê-lo, se nos estiver a recitar todas as palavras do Livro de Orações, mas, geralmente, passa para o outro fiel, e podemos mesmo ter de esperar pela nossa vez, enquanto ele ou um outro padre se aproximam de nós com o cálice. Mas porque pergunta?
Por nenhum motivo em particular. É que sempre senti grande curiosidade em saber como era. Estava a pensar em ir a uma missa e não queria fazer triste figura. Mas não é preciso ser-se crismado? Provavelmente, recusar-se-iam a dar-me a hóstia.
Não creio. Haverá uma missa no oratório, amanhã de manhã. Emma acrescentou, não sem uma ponta de malícia: Podia dizer ao padre Sebastian que gostaria de estar presente. Provavelmente” ele far-lhe-ia algumas perguntas e pedir-lhe-ia que se confessasse primeiro...
Confessar-me ao padre Sebastian? Enlouqueceu? Acho que vou deixar a minha regeneração espiritual para depois do meu regresso a Londres. A propósito, quanto tempo julga ficar por aqui?
Devia partir na quinta-feira retorquiu Emma, mas consegui tirar um dia a mais. Provavelmente, ficarei até ao fim da semana.
Nesse caso, desejo-lhe boa sorte. Ah, e obrigada pelas informações.
Virou-se e afastou-se, com as costas curvadas, regressando, em passo estugado, à Vivenda São João.
Vendo-a afastar-se, Emma disse a si mesma que era melhor para todos que Karen não quisesse permanecer em Santo Anselmo por mais tempo. Teria sido tentador falar do homicídio com outra mulher da sua idade, mas, por outro lado, poderia constituir uma grave imprudência. Karen podia fazer-lhe perguntas acerca do modo como ela descobrira o corpo do arcediago, às quais Emma teria dificuldade em não responder. Todos os restantes residentes de Santo Anselmo se haviam mostrado escrupulosos na sua reserva, mas alguma coisa lhe dizia que a reserva e a discrição não eram qualidades que se aplicassem a Karen Surtees. Intrigada por aquela estranha conversa, Emma seguiu o seu caminho. De todas as perguntas que Karen lhe podia ter feito, as que formulara eram aquelas que Emma nunca esperara ouvir.
Era uma e um quarto da tarde quando Kate e Robbins regressaram a Santo Anselmo. Dalgliesh pôde perceber que Kate, ao fazer o relatório, tentava ocultar a sua excitação. Costumava ser reservada e muito profissional nos seus momentos de maior êxito, mas o entusiasmo era patente na sua voz e no seu olhar, e Dalgliesh sentia-se contente por isso. Talvez Kate voltasse a ser a mesma de sempre, para quem trabalhar na Polícia era mais do que um dever, mais do que um salário adequado e uma promoção em perspectiva, mais do que uma escada para a fazer sair da sua infância pobre. Dalgliesh ansiara por ver novamente a velha Kate que conhecia.
Ela havia-lhe telefonado para o informar sobre o casamento. Assim que Kate e Robbins se tinham despedido de Miss Fawcett, Dalgliesh dera-lhes instruções para que obtivessem uma cópia da certidão de casamento e regressassem a Santo Anselmo o mais depressa possível. Depois de consultar o mapa rodoviário, Kate descobrira que Clampstoke-Lacey ficava apenas a vinte quilómetros dali e pensou que seria mais sensato começarem, primeiro, pela igreja.
Contudo, não tiveram sorte. St. Osyth fazia agora parte de um vicariato conjunto e, enquanto aguardava pelo novo vigário, um padre celebrava temporariamente a missa ali, bem como em outras igrejas. Tinha saído, para fazer a sua ronda de visitas, e a sua jovem esposa não sabia onde se encontravam os registos da paróquia. Na realidade, parecia nem sequer saber do que se tratava e, um pouco atrapalhada, sugeriu-lhes que esperassem pelo regresso do marido, que devia voltar pouco antes do jantar, a não ser que um dos seus paroquianos o convidasse. Se fosse esse o caso, então ele provavelmente telefonar-lhe-ia, se bem que, por vezes, estivesse tão absorvido pelos problemas da paróquia que se esquecia de a avisar. O ligeiro rancor que Kate detectou na voz da jovem mulher do padre dava a entender que era costume ele esquecer-se de avisá-la quando não vinha jantar a casa. Assim, o melhor plano, agora, parecia ser o de ir até ao cartório, em Norwich; ali, a sorte sorriu-lhes, e conseguiram obter uma cópia da certidão de casamento.
Nesse meio-tempo, Dalgliesh telefonara a Paul Perronet, porque tinha duas perguntas importantes a fazer-lhe, antes de falar com George Gregory. A primeira dizia respeito às estipulações exactas do testamento de Miss Arbuthnot. A segunda estava relacionada com as alíneas de uma lei e com a data em que entrara em vigor.
Kate e Robbins, que não haviam querido perder mais tempo almoçando em caminho, tragaram avidamente os pãezinhos de queijo e o café que Mrs. Pilbeam lhes trouxera.
Agora, podemos deduzir porque foi que a Margaret Munroe se lembrou do casamento explicou Dalgliesh. Ela tinha estado a escrever o seu diário, revivendo o passado, e duas imagens vieram-lhe simultaneamente à memória: a do Gregory, na praia, tirando a luva da mão esquerda e tomando a pulsação do Ronald Treeves, e a página com as fotografias de noivos, no Sole Bay Weekly Gazette, que ela acabara de ver quando o Surtees lhe trouxera os alhos-porros embrulhados em papel de jornal. Foi a fusão da morte com a vida. No dia seguinte, telefonou a Miss Fawcett, não do instituto onde alguém poderia escutar a conversa, mas de uma cabina, em Lowestoft, e obteve a confirmação daquilo de que já suspeitava: o nome da noiva. Foi então que falou com a pessoa a quem a sua descoberta dizia respeito. E só duas pessoas se enquadram nessa situação: o George Gregory e o Raphael Arbuthnot. Poucas horas depois de falar com essa pessoa, a Margaret Munroe estava morta.
Dobrando a cópia da certidão de casamento, prosseguiu:
Falaremos com o Gregory na casa dele e não aqui. Quero que me acompanhe, Kate. O carro dele está estacionado em frente da vivenda; se ele saiu, não deve ter ido muito longe.
Mas o casamento não fornece um móbil ao Gregory para assassinar o arcediago Crampton replicou Kate. Devia ter ocorrido há vinte e cinco anos atrás. O Raphael Arbuthnot não poderá herdar o património. O testamento estipula que ele tem de ser filho legítimo, de acordo com a lei inglesa.
Mas é exactamente no que o casamento dos pais o torna: num herdeiro legítimo, de acordo com a lei inglesa.
Gregory devia ter acabado de chegar, porque, quando abriu a porta, vestia um fato de treino preto e tinha uma toalha à volta do pescoço. O cabelo estava molhado e a camisola de algodão, colada ao seu tronco.
Não se afastando para deixá-los entrar, perguntou:
Ia tomar banho. É urgente?
Deixava transparecer claramente que aquela visita era tão inoportuna como a de um vendedor ambulante e, pela primeira vez, Dalgliesh viu, no olhar do professor de Grego, o desafio de um antagonismo que Gregory nem sequer tentava ocultar.
Sim, é urgente replicou. Podemos entrar? Conduzindo-os à varanda envidraçada, Gregory exclamou:
Tem o ar de um homem que, finalmente, fez alguns progressos, inspector. Alguns poderiam dizer que já não era sem tempo. Esperemos que não acabe no ”Lamaçal do Desânimo”...
Fez-lhes sinal para que ocupassem o sofá enquanto se sentava atrás da secretária, girando a cadeira, com as pernas estendidas. Depois, começou a esfregar vigorosamente o cabelo com a toalha.
Não tirando a certidão de casamento do bolso, Dalgliesh anunciou:
O senhor casou-se com Clara Arbuthnot, a vinte e sete de Abril de mil novecentos e oitenta e oito, na Igreja de St. Osyth, em Clampstoke-Lacey, Norfolk. Porque não mo disse? Acreditava, porventura, que as circunstâncias desse casamento não seriam relevantes para a nossa investigação?
Gregory manteve-se calado durante breves segundos, mas quando falou, por fim, a sua voz era calma. Dalgliesh perguntou a si mesmo se o professor não se tinha já preparado, havia muito, para aquela confrontação.
Suponho que, ao referir-se às circunstâncias do casamento, está a pensar no significado da data. Não lhe falei nisso por achar que não lhe dizia respeito. Esta é a primeira razão. A segunda é que prometi à minha mulher que o nosso casamento seria mantido em segredo até que eu informasse o nosso filho... e, sim, o Raphael é meu filho. A terceira razão é que não lhe revelei a verdade por julgar que o momento certo ainda não tinha chegado. Contudo, quer-me parecer que estão a forçar a minha decisão.
Alguém em Santo Anselmo sabe do seu casamento? perguntou Kate.
Gregory fitou-a como se só naquele momento se tivesse dado conta da sua presença e não gostasse do que via.
Ninguém. Como é óbvio, vão ter de sabê-lo, e irão culpar-me por ter mantido o Raphael na ignorância da verdade durante tanto tempo. E a eles, também. Sendo a natureza humana como é, provavelmente ser-lhes-á difícil perdoarem-me e não me vejo a habitar esta vivenda por muito mais tempo. Mas, como apenas aceitei o lugar de professor para conhecer melhor o meu filho, e Santo Anselmo está condenado a encerrar as suas portas, isso agora já pouco importa. No entanto, gostava de concluir este episódio da minha vida de uma forma mais agradável e na altura que eu achasse propícia.
Mas qual a razão de todo esse segredo? quis saber Kate. Até mesmo os empregados da casa de saúde não sabiam de nada. Porque se deram ao trabalho de casar, se ninguém devia sabê-lo?
Pensava que já o tinha deixado bem claro. O Raphael devia saber a verdade, mas somente quando eu achasse ser o momento certo. Nunca me passou pela cabeça que estaria envolvido na investigação de um homicídio e veria a Polícia a vasculhar a minha vida privada. Em meu entender, o momento próprio para revelar a verdade ao Raphael ainda não chegou, mas suponho que os senhores terão todo o gosto em lhe contar o que descobriram.
- Não replicou Dalgliesh. Essa responsabilidade é sua, não nossa.
Os dois homens, então, entreolharam-se.
Julgo que têm o direito a uma explicação, tanto quanto me for possível dá-la anunciou, por fim, Gregory. Saberão melhor do que muitos outros que os nossos motivos raramente são simples e nunca tão puros quanto parecem. Conhecemo-nos em Oxford, quando eu era professor dela. Era uma rapariga de dezoito anos, muito atraente, e, quando deixou bem claro que queria envolver-se comigo, não consegui resistir. O nosso romance revelou-se um desastre humilhante. Não me tinha apercebido de que ela tinha dúvidas quanto à sua sexualidade e me usava apenas como objecto de experiência. Foi infeliz na sua escolha. Eu podia ter sido mais sensível e criativo, mas, na minha ingenuidade, não encarava o acto sexual como um exercício de acrobacia. Além do mais, era muito novo e, talvez, também um pouco afectado para encarar filosoficamente um fracasso sexual. Podemos aceitar certas coisas, mas tudo se complica quando a nossa parceira revela nojo. Penso que fui rude com ela. Só me disse que estava grávida quando já era tarde de mais para fazer um aborto. Tenho ideia de que tentava convencer-se de que não lhe estava a acontecer aquilo. Não era propriamente uma rapariga sensata. O Raphael herdou a sua beleza mas não a sua inteligência. Nunca se pôs a hipótese de um casamento; a ideia de um tal compromisso sempre me apavorou ao longo de toda a minha vida. Além de que ela não escondia o quanto me odiava. Quando o bebé nasceu, não me disse nada. Só me escreveu, mais tarde, para me informar de que dera à luz um menino e que o abandonara à porta de Santo Anselmo. Depois, partiu para o estrangeiro com uma companheira e nunca mais nos vimos.
”Assim, perdi o contacto com a Clara, mas ela deve ter tentado descobrir onde eu vivia porque, no princípio de Abril de mil novecentos e oitenta e oito, escreveu-me, dizendo-me que estava a morrer e solicitando que fosse visitá-la à Casa de Saúde Ashcombe, nos arredores de Norwich. Foi então que me pediu que eu casasse com ela.
A explicação que me deu foi que era pelo bem do seu filho. Penso que, por aquela altura, ela tinha encontrado Deus. Parece ser uma tendência dos Arbuthnot encontrar Deus nas alturas mais impróprias para o resto da família...
Mas qual a razão de todo esse segredo em relação ao casamento? tornou a perguntar Kate.
Foi ela que insistiu. Tratei de todos os preparativos e limitei-me a telefonar para a casa de saúde a perguntar se podia levá-la a passear. A enfermeira que cuidava dela também estava a par do nosso segredo e foi uma das testemunhas. Lembro-me de que houve alguns problemas quanto à segunda testemunha, mas uma mulher que tinha estado na casa de saúde para uma entrevista de emprego aceitou ajudar-nos. O padre que Clara, entretanto, conhecera também se encontrava internado e dava-lhe aquilo a que chamam apoio espiritual. Era padre da Igreja de St. Osyth, em Clampstoke-Lacey. Conseguiu obter a autorização do arcebispo, a fim de que os banhos não corressem. Casámo-nos e, depois, levei a Clara de volta para a casa de saúde. Ela pediu-me que guardasse a certidão de casamento e ainda a tenho. Morreu três dias depois. A enfermeira que tratava dela escreveu-me, dizendo que a Clara morrera sem sofrimento, porque o casamento lhe trouxera paz de espírito. Fiquei feliz por ver que o acto produzira alguma diferença, pelo menos, para um de nós, já que o casamento não teve qualquer efeito na minha vida. A Clara pediu-me que dissesse ao Raphael a verdade quando eu achasse chegado o momento certo.
E o senhor esperou doze anos. Alguma vez tencionava realmente dizer-lhe?
Não necessariamente. Não fazia tenção de atrapalhar a minha vida com um filho adolescente nem, tão-pouco, queria atrapalhar a dele, dizendo-lhe que tinha um pai. Nada fiz por ele, nem participei da sua educação. Parecia-me ignóbil da minha parte apresentar-me, de repente, ao Raphael como se o meu objectivo fosse julgá-lo e verificar se era merecedor de ser reconhecido como meu filho.
Mas, na prática, não foi isso o que acabou por fazer? comentou Dalgliesh.
Assumo a minha culpabilidade. Descobri, no meu íntimo, uma certa curiosidade, ou talvez fosse o sangue a falar... Afinal, a paternidade é a nossa única hipótese de obter a imortalidade. Fiz algumas discretas investigações e descobri que o Raphael passara dois anos no estrangeiro, depois de terminar os estudos na universidade, e que, quando regressara, anunciara a sua intenção de se tornar padre. Como não se formara em Teologia, tinha de tirar o curso, com duração de três anos. Então, há seis anos atrás, passei uma semana aqui, como hóspede. Mais tarde, quando soube que havia uma vaga para o lugar, a tempo parcial, de professor de Grego, candidatei-me.
O senhor sabe que Santo Anselmo vai inevitavelmente encerrar replicou Dalgliesh. Após a morte do Ronald Treeves e o homicídio do arcediago, o encerramento dar-se-á mais cedo do que o previsto. Por conseguinte, deve ter noção de que tinha um motivo para desejar a morte do arcediago, não é verdade? Tanto o senhor como o Raphael, aliás. O seu casamento foi efectuado depois da entrada em vigor da lei, de mil novecentos e setenta e seis, sobre a legitimidade que torna o seu filho herdeiro legítimo. A alínea dois dessa mesma lei estipula que, se os pais de um herdeiro ilegítimo se casarem e se o pai tiver domicílio na Inglaterra ou no País de Gales, essa pessoa torna-se herdeira legítima a partir da data do casamento dos pais. Conferi as estipulações do testamento de Miss Agnes Arbuthnot. Se o instituto encerrar, tudo o que foi doado por ela será partilhado pelos descendentes de seu pai, tanto do sexo masculino como feminino, desde que sejam membros praticantes da Igreja Anglicana e filhos legítimos, aos olhos da lei inglesa. O Raphael Arbuthnot é o único herdeiro. Vai dizer-me que não o sabia?
Pela primeira vez, Gregory deixou cair a sua estudada máscara de desprendimento irónico.
O rapaz não o sabe replicou, num tom de voz peremptório. Se aceito e até compreendo que, para os senhores, eu seja um conveniente suspeito, recuso-me a acreditar que, mau grado toda a vossa inteligência, possam apresentar um motivo, no caso do Raphael.
Havia, claro, outros motivos para além do financeiro, mas Dalgliesh achou melhor não os explorar.
Só temos a sua palavra de que ele não sabe ser o herdeiro contrapôs Kate.
Gregory, levantando-se, avançou para ela.
Então, mandem-no chamar e eu conto-lhe tudo, aqui e agora.
Acha que é uma atitude sensata ou generosa da sua parte? interveio Dalgliesh.
Quero lá saber se o é ou não! Nunca permitirei que o Raphael seja acusado de homicídio. Mandem-no chamar que eu revelar-lhe-ei toda a verdade. Primeiro, todavia, vou tomar banho. Não faço tenção de me apresentar ao Raphael como seu pai, quando tresando a suor.
Dito isto, desapareceu no interior da casa e ouviram-no subir a escada.
Dalgliesh virou-se para Kate.
Vá ter com o Nobby Clark e diga-lhe que precisamos de um saco de amostras. Quero que ele examine aquele fato de treino. E peça ao Raphael para vir até cá, daqui a cinco minutos.
Acha mesmo necessário, chefe? perguntou Kate.
Sim, para bem dele. O Gregory tem razão: a única maneira de nos convencer de que o Raphael Arbuthnot ignora o seu parentesco é estarmos presentes quando ele o souber.
Kate regressou com o saco de amostras, passados poucos minutos. Gregory ainda estava a tomar banho.
Falei com o Raphael e ele estará aqui dentro de cinco minutos anunciou.
Aguardaram em silêncio. Dalgliesh olhou em seu redor e, depois, para o escritório, por entre a porta entreaberta; o computador em cima da secretária, de frente para a parede, as prateleiras onde os volumes com capa de couro estavam meticulosamente alinhados. Nada ali era supérfluo. Não havia ornamentos nem peças a mais. Era o santuário de um intelectual que prezava o conforto e a ordem. Dalgliesh não pôde deixar de pensar que toda aquela aparente ordem iria ser perturbada.
Ouviram, então, uma porta abrir-se, e Raphael surgiu na varanda. Poucos segundos mais tarde, foi a vez de Gregory que, agora, usava calças e camisa azul, engomada, mas ainda tinha o cabelo despenteado.
Talvez fosse melhor sentarmo-nos pediu.
Depois de todos se sentarem, Raphael, intrigado, olhou para Gregory e, em seguida, para Dalgliesh, mas manteve-se calado. Gregory fitou o filho.
Há uma coisa que tenho de te dizer: este momento não foi da minha escolha, mas como a Polícia se interessou mais pela minha vida privada do que eu esperava, não me resta qualquer alternativa. Casei-me com a tua mãe no dia vinte e sete de Abril de mil novecentos e oitenta e oito. Deves sentir que esta confissão devia ter ocorrido há vinte e seis anos atrás. Não sei como to dizer sem parecer melodramático, mas sou o teu pai, Raphael.
Raphael fixou o olhar em Gregory.
Não acredito. Não é verdade.
Era a reacção natural perante uma notícia chocante e inesperada. Depois, num tom de voz mais alto, repetiu:
Não acredito.
Contudo, o seu rosto revelava uma realidade diferente. A cor desaparecera gradualmente das suas faces e pescoço, e esse facto era tão visível que parecia que a circulação normal do sangue se havia invertido. Raphael levantou-se e, petrificado, olhou para Dalgliesh e Kate como se procurasse, desesperado, alguém que negasse aquela revelação. Os músculos do seu rosto pareciam ter-se encolhido, por baixo de rugas vincadas. Por breves momentos, Dalgliesh viu, pela primeira vez, alguma semelhança entre pai e filho, mas não teve tempo de fixá-la.
Não sejas enfadonho, Raphael ripostou Gregory. Estou certo de que podemos representar esta cena sem ter de recorrer a Mistress Henry Wood. Sempre detestei o melodrama vitoriano. Achas que seria o tipo de coisa com que iria brincar? O inspector Dalgliesh tem em seu poder uma cópia da certidão de casamento.
Isso não significa que o senhor seja meu pai.
A tua mãe só teve relações sexuais com um homem, em toda a sua vida. E esse homem fui eu. Reconheci a minha responsabilidade numa carta que escrevi à tua mãe. Por qualquer motivo, exigiu-me que eu admitisse, por escrito, esse meu momento de loucura. Após nos casarmos, ela deu-me toda a correspondência que havíamos trocado. Depois, há ainda o teste do ADN. Duvido que possam contestar-se esses factos. Fez uma pausa, antes de acrescentar: Lamento que esta notícia te repugne tanto.
O tom de voz de Raphael era tão distante e frio que mal se percebeu o que disse a seguir.
O que aconteceu? A história do costume, com certeza. Levou-a para a cama, engravidou-a, descobriu que a ideia de se casar e de ser pai não lhe agradava e abandonou-a, não foi?
Não propriamente. Nem eu nem a tua mãe queríamos ter filhos e a hipótese do casamento nunca nos passou pela cabeça. Eu era mais velho do que ela e penso que tenho mais culpas por isso. A tua mãe tinha apenas dezoito anos. A tua religião não se baseia num acto de perdão cósmico? Então, porque não lhe perdoas? Ficaste melhor entregue àqueles padres do que se tivesses vivido com ela ou comigo.
Seguiu-se um longo silêncio, até que, por fim, Raphael comentou:
Eu teria sido o herdeiro de Santo Anselmo. Gregory olhou para Dalgliesh, que disse:
E é o herdeiro, a não ser que me tenha escapado algum pormenor legal. Já consultei os advogados. A Agnes Arbuthnot escreveu, no seu testamento, que, se um dia o instituto fechasse, tudo o que ela tinha doado deveria ser herdado pelos herdeiros legítimos de seu pai, tanto do sexo masculino como do feminino, desde que fossem membros activos da Igreja Anglicana. Não escreveu ”nascidos após celebrado o casamento”, mas ”herdeiros legítimos segundo a lei inglesa”. Os seus pais casaram-se depois da entrada em vigor da lei sobre a legitimidade, de mil novecentos e setenta e seis, o que o torna herdeiro legítimo.
Raphael avançou para a janela virada a sul e ali ficou, fitando, em silêncio, o promontório.
Acabarei por me conformar, mas já me havia habituado a ter uma mãe que me abandonara, como uma trouxa de roupa velha, numa instituição de caridade. Tinha-me habituado a desconhecer o nome de meu pai e a pensar que ele já não era vivo. Estava habituado a ter crescido num instituto teológico, enquanto os meus colegas tinham um lar. Agora, tudo o que lhe peço é que não tenha nunca mais de o ver. Dalgliesh perguntou a si mesmo se Gregory tinha detectado a emoção, rapidamente controlada, que transparecera por breves instantes no tom de voz do filho. Pode tratar-se disso replicou Gregory, mas agora não, porque deduzo que o inspector Dalgliesh queira que eu permaneça aqui. É que esta excitante novidade conferiu-me um móbil, e a ti também.
Raphael virou-se e fitou Gregory.
Matou-o?
Não. E tu?
Meu Deus, tudo isto é ridículo! exclamou o rapaz, virando-se de seguida para Dalgliesh. Pensava que o seu dever era investigar um homicídio e não intrometer-se na vida das pessoas.
Lamento, mas não são raras as vezes em que as duas coisas se interligam.
Dalgliesh lançou um olhar a Kate, e os dois afastaram-se em direcção à porta.
Como já deve calcular comentou Gregory, é preciso informar o Sebastian Morell. Preferia que deixasse esse assunto comigo ou com o Raphael. Depois, virou-se para o filho. Não te importas?
Eu não vou dizer nada respondeu o rapaz. Diga-lhe o que muito bem entender, porque é um assunto que me é completamente indiferente. Há dez minutos atrás, eu não tinha pai, e não é agora que tenho um.
Dirigindo-se a Gregory, Dalgliesh perguntou:
Quanto tempo pretende esperar? Não vai poder fazê-lo indefinidamente.
E nem vou fazê-lo, se bem que, ao fim de doze anos, uma semana a mais ou a menos me pareça irrelevante. Mas prefiro nada dizer ao Morell enquanto a vossa investigação não estiver concluída, se é que isso virá a acontecer. Dir-lhe-ei no fim da semana. Penso que tenho o direito de escolher o lugar e a hora.
Raphael já saíra da vivenda e, pelas janelas, manchadas pela humidade da brisa marítima, puderam ver que ele se encaminhava para o mar.
Ele estará bem? inquietou-se Kate. Não seria melhor alguém ir atrás dele?
Vai sobreviver replicou Gregory. Não é o Ronald Treeves, que, apesar de ter pena de si próprio, sempre foi poupado em toda a sua vida, ao passo que o meu filho se fortaleceu com um amor-próprio saudável.
Quando chamaram Nobby Clark para que guardasse o casaco, Gregory não se opôs e observou, divertido, o sargento a enfiá-lo no saco de plástico e a etiquetá-lo. Depois, acompanhou Dalgliesh, Kate e Clark até à porta, com tanta formalidade como se estivesse a despedir-se de hóspedes que estimava.
De regresso à Vivenda São Mateus, Kate, muito pensativa, comentou:
É um motivo... O que torna o Gregory o nosso principal sus| peito, se bem que isso não faça sentido, pois não? Quero dizer, não restam dúvidas de que o instituto vai fechar, mas, de qualquer maneira, o Raphael teria herdado tudo, afinal. Não havia razão para que o Gregory apressasse o processo...
Olhe que havia... replicou Dalgliesh. Pense bem, Kate. Não deu qualquer explicação para aquele seu misterioso reparo e
Kate sabia que de nada lhe serviria perguntar ao chefe em que estava a pensar.
Quando chegaram à Vivenda São Mateus, Piers surgiu à porta.
Ia telefonar-lhe agora mesmo, chefe exclamou. Recebemos uma chamada do hospital. O inspector Yarwood já pode receber visitas. Sugeriram que deixássemos para amanhã de manhã a nossa entrevista, quando ele se sentir com mais força.
”Todos os hospitais”, pensou Dalgliesh, ”seja qual for sua a situação ou arquitectura, são essencialmente iguais: o mesmo cheiro, a mesma pintura, os mesmos sinais que indicam aos visitantes o caminho para as enfermarias, os mesmos quadros inofensivos nos corredores, para tranquilizar e não inquietar, os mesmos visitantes com flores e embrulhos à volta das camas dos seus familiares, o mesmo pessoal numa variedade de uniformes, movendo-se decididamente no seu habitat natural, os mesmos rostos cansados.” Quantos hospitais havia ele visitado, na sua carreira, para ficar de guarda a prisioneiros ou testemunhas, para anotar depoimentos num leito de morte, para interrogar médicos com outras preocupações mais imediatas em mente do que as suas?
Quando se aproximaram da enfermaria, Piers comentou:
Tento fugir destes lugares. Apanhamos infecções incuráveis e, se não ficamos cansados com os nossos visitantes, são os dos outros doentes que nos matam de exaustão. Depois, não se dorme bem e a comida é intragável.
Olhando para o assistente, Dalgliesh suspeitou de que, por trás daquelas palavras, se escondia uma repugnância mais profunda, beirando a fobia.
Os médicos são como a Polícia. Pensamos que não precisamos deles até chegar a altura e, depois, esperamos que eles façam milagres. Quero que fique lá fora enquanto falo com o Yarwood, pelo menos de início. Se eu precisar de uma testemunha, mando-o chamar. Vou ter de ir com calma.
Um médico interno, parecendo ridiculamente novo, com um estetoscópio à volta do pescoço, confirmou que o inspector Yarwood estava apto a ser entrevistado e conduziu-os a uma ala lateral, mais pequena do que as restantes. À porta, um agente uniformizado mantinha-se de guarda. Levantou-se prontamente quando os viu aproximarem-se e pôs-se em sentido.
Agente Lane, não é verdade? perguntou Dalgliesh. Não me parece que a sua presença seja necessária logo que souberem que já falei com o inspector Yarwood, e julgo que está ansioso por sair daqui.
Efectivamente... É que temos poucos homens no activo. ”E quem não tem?”, pensou Dalgliesh.
A cama de Yarwood estava posicionada de forma a dar-lhe uma vista dos telhados nivelados dos prédios suburbanos. Tinha uma perna suspensa no ar, por meio de uma roldana. Após o haver encontrado, de passagem, em Lowestoft, Dalgliesh tinha apenas visto o inspector uma vez, em Santo Anselmo. Já naquela altura ficara impressionado com o ar resignado daquele homem. Agora, parecia ter encolhido fisicamente, e a sua resignação dera lugar à expressão de um homem derrotado pela vida. Os hospitais não abalam alguém apenas fisicamente. Ninguém consegue transmitir uma sensação de autoridade, estendido naquelas camas funcionais e estreitas. Yarwood estava diminuído, tanto física como psicologicamente, e, quando os seus olhos escuros se fixaram em Dalgliesh, revelaram uma expressão de vergonha e de humilhação perante o que o destino lhe havia reservado.
Era impossível evitar a primeira pergunta, depois de trocarem um aperto de mão.
Como se sente, hoje?
Yarwood, contudo, não optou por uma resposta directa.
Se o Pilbeam e aquele rapaz não me tivessem encontrado no momento certo, já não estaria neste mundo. Teria sido o fim de tudo aquilo que sinto, o fim da minha claustrofobia. Teria sido melhor para a Sharon, para as crianças, e até para mim. Desculpe se lhe pareço lamechas. Quando caí naquela ravina e antes que perdesse os sentidos, não senti dor nem medo. Apenas uma sensação de paz. Não teria sido uma morte muito má. A verdade, Mister Dalgliesh, é que eu preferia que me tivessem deixado naquela ravina.
Mas eu não. Já tivemos mortes que bastem em Santo Anselmo replicou Dalgliesh, não querendo dizer àquele homem que, entretanto, ocorrera uma outra.
Yarwood contemplou os telhados dos prédios.
Não teria mais de passar pelo que passei nem de me sentir um fracassado.
Procurando palavras de conforto, mesmo sabendo que não as encontraria, Dalgliesh replicou:
O senhor tem de se mentalizar de que, independentemente de todos os problemas que tenha, de momento, o seu tormento não durará para sempre. Nada é eterno.
Mas pode piorar. Custa a crer, mas é verdade.
Só se o permitir.
Fez-se uma pausa e, depois, fazendo um esforço, Yarwood retorquiu:
Talvez tenha razão. Desculpe se o desiludi. Afinal, o que aconteceu, ao certo? Sei que o Crampton foi assassinado, mais nada. Até agora, têm conseguido manter os pormenores do homicídio fora do alcance dos jornais nacionais e a rádio local só relatou os factos. O que aconteceu? Creio que, após a descoberta do corpo, terá ido procurar-me e só então se deu conta de que eu havia desaparecido. O que deve ter complicado ainda mais as coisas para si... Um assassino a monte e o único homem que podia dar-lhe alguma ajuda, a nível profissional, a posicionar-se como principal suspeito... Sei que vai parecer-lhe estranho, mas não consigo ter qualquer interesse pelo caso. Logo eu, que costumava ser um profissional a quem acusavam de demasiado zeloso. A propósito, não fui eu que o matei.
Nem nunca tal coisa me passou pela cabeça. O Crampton foi encontrado na igreja e, até agora, tudo indica que tenha sido atraído até lá. Se o senhor quisesse matá-lo, bastar-lhe-ia bater à porta do quarto dele.
Mas isso também se aplica a todos os outros residentes do instituto.
O assassino queria incriminar Santo Anselmo. O seu propósito era o de que o arcediago fosse a principal, mas não a única vítima; não me parece que o senhor quisesse destruir a reputação do instituto...
Nova pausa. Yarwood fechou os olhos e abanou agitadamente a cabeça na almofada.
Não, nunca haveria de desejar tal coisa. Gosto muito daquele lugar e, agora, também o prejudiquei.
Não é assim tão fácil prejudicar Santo Anselmo. Como conheceu os padres?
Foi há cerca de três anos. Nessa altura, tinha acabado de ser nomeado sargento da Polícia de Suffolk. O padre Peregrine chocou com uma carrinha, na estrada de Lowestoft. Não houve feridos, mas eu tive de interrogá-lo. Ele é muito distraído para ser bom condutor e consegui persuadi-lo a deixar de conduzir. Penso que os outros padres me ficaram agradecidos. De qualquer maneira, não se opuseram nem ficaram aborrecidos quando comecei a aparecer por lá. Não sei o que há naquele lugar, mas fazia sentir-me diferente. Quando a Sharon me deixou, comecei a ir até Santo Anselmo, aos domingos de manhã, para assistir à missa. Não sou crente nem fazia ideia do que se passava, durante a missa, mas isso não tinha importância. Sentia-me bem ali. Os padres sempre se mostraram bondosos para comigo. Não me faziam perguntas nem me pediam para que eu desabafasse com eles. Aceitavam-me tal como eu era. Passei por tudo e mais alguma coisa: médicos, psiquiatras e psicólogos. Mas, em Santo Anselmo, era diferente. Não, nunca faria fosse o que fosse para prejudicar o instituto. Não pude deixar de reparar que há um agente à porta do meu quarto... Não sou assim tão estúpido... Um pouco louco, mas estúpido, não. Parti a perna, não a cabeça...
Ele está aqui para sua protecção. Eu não fazia ideia do que viu e que provas podia fornecer-me, e alguém podia querer eliminá-lo.
Não estará a exagerar?
Talvez, mas preferi não arriscar. Consegue lembrar-se do que, aconteceu no sábado à noite?
Sim, até ter perdido os sentidos na ravina. Tenho uma vaga ideia de ter caminhado, mesmo com aquele vendaval... Pareceu-me um passeio mais curto do que na realidade foi... No entanto, lembro-me perfeitamente de tudo o resto ou, pelo menos, da maior parte.
Comecemos, então, pelo princípio. A que horas saiu do seu quarto?
Por volta da meia-noite e cinco. A tempestade acordou-me. Dormitava, mas não adormecera profundamente. Acendi a luz e consultei o relógio. Deve saber o que é, quando temos uma noite agitada. Ficamos deitados na cama, na esperança de que seja mais tarde do que pensamos e de que falte pouco tempo para nascer o dia. Foi quando o pânico se apoderou de mim. Tentei combatê-lo. Fiquei deitado, a suar e hirto de medo. Tinha de sair daquele quarto, de Santo Anselmo. Teria a mesma reacção em outro lugar qualquer. Penso que vesti um casaco por cima do pijama e calcei os sapatos, mas não as peúgas. Não consigo lembrar-me dessa parte. O vento não me preocupava. De certa forma, até ajudava. Teria saído, mesmo que nevasse.
E saiu por onde?
Pelo portão de ferro que separa a igreja do quarto de Santo
Ambrósio. Tenho uma chave. Todos os visitantes recebem uma chave do portão, como deve saber.
Encontrámos o portão trancado. Lembra-se se o trancou?
Devo tê-lo feito, não é verdade? Até porque é aquele tipo de coisas que fazemos maquinalmente.
Viu alguém a rondar a igreja?
Não. O átrio estava vazio.
E não ouviu nada? Não viu luzes acesas? Não reparou, por exemplo, se a porta da igreja estava aberta?
Nada ouvi a não ser o vento e não me parece que houvesse luzes acesas na igreja. Se havia, não reparei. Penso que teria reparado se a porta da igreja se encontrasse totalmente aberta, mas já não posso dizer o mesmo, se estivesse apenas entreaberta. No entanto, vi alguém, mas não perto da igreja. Quando passei em frente da porta do quarto de Santo Ambrósio, vi o Eric Surtees, mas, repito, ele não se achava perto da igreja. Encontrava-se no claustro norte e preparava-se para entrar na mansão.
Não lhe pareceu estranho?
Nem por isso. Não consigo descrever-lhe o que senti naquele momento. Respirar em pleno ar livre, a sensação de me achar longe do espaço restrito do meu quarto... Se tivesse pensado no Surtees, teria concluído naturalmente que alguém o mandara chamar para reparar algum electrodoméstico ou coisa parecida. Afinal, ele é o homem dos sete ofícios em Santo Anselmo.
Depois da meia-noite, a meio de uma tempestade?
O silencio imperou mais uma vez. Não deixava de ser interessante, pensou Dalgliesh, como as suas perguntas, longe de preocuparem Yarwood, pareciam tê-lo animado e feito esquecer, pelo menos temporariamente, o peso das suas preocupações.
Mas ele é um improvável homicida, não concorda? exclamou Yarwood. É um tipo afável, simples, que está sempre pronto a ajudar os outros. Tanto quanto sei, não tinha motivos para odiar o Crampton. De qualquer maneira, ele ia a entrar na mansão, não na igreja. E que estaria ali a fazer se ninguém o mandara chamar?
Talvez tivesse ido buscar as chaves da igreja, por saber onde iria encontrá-las.
Então, seria um pouco disparatado da sua parte. E porquê tanta pressa? Não devia pintar a sacristia na segunda-feira? Tenho ideia de o Pilbeam me dizer qualquer coisa acerca disso. Se o Surtees queria a chave da igreja, porque não a fora buscar antes? Ele podia entrar na mansão quando muito bem lhe apetecesse.
Seria mais arriscado. O ordinando que ficara de preparar a igreja para as completas teria reparado que faltava um molho de chaves.
Muito bem, sou forçado a concordar consigo quanto a esse ponto. Mas o seu argumento aplica-se tanto ao Surtees como a mim. Se o Surtees queria confrontar o Crampton, sabia onde encontrá-lo, como sabia, também, que a porta do quarto de Santo Agostinho estaria aberta.
Tem a certeza de que era o Surtees? A ponto de o afirmar em julgamento, se for necessário? Afinal, já passava da meia-noite e não se sentia muito bem...
Tenho a certeza absoluta. Já o vi as vezes suficientes para conseguir reconhecê-lo. A iluminação do claustro não era das melhores, mas não me enganei. Manteria esta minha afirmação num julgamento, mesmo que fosse sujeito a vários interrogatórios, se é aí que quer chegar. Não que servisse de grande coisa... Parece que já estou a ver o advogado de defesa a virar-se para o júri, na sua alegação final. Fraca visibilidade. Uma figura vista apenas por breves segundos. O testemunho de um homem muito perturbado psicologicamente e suficientemente louco para ir dar um passeio numa noite de tempestade. E, depois, o toque final: a prova de que, ao contrário do Surtees, eu antipatizava com o Cramp ton.
Yarwood, agora, começava a mostrar sinais de cansaço. O seu súbito interesse pela investigação parecia tê-lo deixado exausto. Chegara o momento de Dalgliesh se retirar, e sentia-se ansioso por sair dali com a nova informação que obtivera. Antes, porém, tinha de se certificar se não havia mais nada que Yarwood pudesse revelar-lhe.
Como já deve calcular disse, vamos precisar de um depoimento, mas não é urgente. A propósito, faz ideia do que terá provocado o seu ataque de pânico? A discussão com o Crampton, à hora do chá, no sábado?
Já está a par disso? Claro que sim. Não estava à espera de ver o Crampton em Santo Anselmo e penso que também terá sido um choque para ele. Não fui eu que comecei a discussão, foi ele. Pôs-se a acusar-me, tremendo de raiva, como se estivesse possesso. As suas acusações remontavam à altura em que a sua primeira mulher havia morrido. Eu ainda era detective e foi o meu primeiro caso de homicídio.
Homicídio?
O Crampton matou a mulher, Mister Dalgliesh. Tinha a certeza naquela época, e continuo a ter a certeza agora. Sim, revelei excesso de zelo e quase dei cabo do inquérito. No fim, ele apresentou queixa por perseguição e recebi uma reprimenda, o que me prejudicou na minha carreira. Duvido que tivesse sido promovido a inspector, se continuasse na Polícia Metropolitana. Mesmo assim, tenho tanta certeza agora como tive naquela época de que ele matou a mulher e ficou impune.
Baseando-se em que provas?
Havia uma garrafa de vinho perto da cama dela. Morreu de uma overdose de aspirinas misturadas com álcool. Acontece que a garrafa fora limpa. Não sei como foi que ele conseguiu levá-la a engolir um frasco inteiro de aspirinas, mas tenho a certeza de que foi ele. E mentiu. Sei que ele mentiu. Afirmou que não tinha subido ao quarto da mulher e isso não é verdade.
Não digo que ele não tenha mentido. Pode ter, realmente, limpo a garrafa e ter-se aproximado da cama da mulher replicou Dalgliesh, mas isso não o converte num assassino. Pode muito bem ter entrado em pânico, ao encontrar a mulher morta. As pessoas têm comportamentos estranhos quando perdem o controlo.
Ele matou-a, Mister Dalgliesh repetiu obstinadamente Yarwood. Estava espelhado na cara dele. Nos olhos dele. Mentiu, o que não significa que eu tenha querido vingar a morte da mulher dele.
E havia mais alguém que pudesse tê-lo feito? Ela tinha parentes próximos, irmãos mais novos, um antigo amante?
Ninguém, Mister Dalgliesh. Apenas os pais, que não me pareceram particularmente entristecidos com a morte da filha. A pobre coitada nunca chegou a ser justiçada, nem eu. Não lamento a morte do Crampton, mas também não o matei. Nem me parece que tenha qualquer interesse em saber quem o matou, se o senhor descobrir quem foi.
Havemos de descobri-lo replicou Dalgliesh. Não pode esquecer-se de que é um oficial da Polícia. Não pode acreditar no que acaba de dizer. Eu mantenho-me em contacto. Guarde para si o que me revelou, mas já sabe que o silêncio é de ouro.
Sei? Penso que não. Custa-me a crer que um dia retomarei as minhas funções.
E virou o rosto, num gesto de deliberada rejeição. Contudo, havia ainda uma última pergunta que Dalgliesh tinha de fazer.
Contou a alguém as suas suspeitas acerca do arcediago, em Santo Anselmo?
Não. Nem era o tipo de conversa que eles apreciassem. De qualquer maneira, pertence ao passado. Nunca pensei que voltasse a ver aquele homem. Mas, agora, eles já sabem... se o Raphael Arbuthnot se deu ao trabalho de lhes contar.
O Raphael?
Ele estava no claustro sul quando o Crampton me abordou. O Raphael ouviu tudo.
Piers e Dalgliesh tinham ido até ao hospital no Jaguar do inspector. Não falaram enquanto apertavam os cintos de segurança. Só quando saíram dos subúrbios da cidade Dalgliesh relatou resumidamente o que acabara de descobrir.
Depois de o escutar em silêncio, Piers comentou:
Não consigo ver o Surtees como um assassino, mas, se foi ele, então, não agiu sozinho. A irmã deve tê-lo ajudado. Custa-me a crer que tenha acontecido alguma coisa na Vivenda São João, no sábado à noite, sem que ela o soubesse. Mas porque haveriam eles de desejar a morte do Crampton? Provavelmente, sabiam que ele estava decidido a mandar encerrar Santo Anselmo, na primeira oportunidade que se lhe oferecesse. Isso não conviria ao Surtees... Parece levar uma vida muito agradável, naquela vivenda, com os seus porcos... Porém, não seria matando o arcediago que impediria que o instituto fechasse. E se tinha assuntos pessoais a resolver com o Crampton, porque se deu ao trabalho de elaborar um estratagema complexo para o atrair à igreja? Ele sabia que o Crampton estava a dormir, portanto, também devia saber que a porta do quarto dele se encontrava aberta.
Tal como sabiam todos os outros que se encontravam no instituto, incluindo os visitantes. Quem quer que matou o Crampton, queria certificar-se de que nós pensaríamos que se tratava de um ”caso interno”. É algo que ficou estabelecido, desde o princípio. Mas não existe um motivo óbvio, no que diz respeito ao Surtees e àquela sua meia-irmã. No que diz respeito ao móbil, o George Gregory é o principal suspeito.
Aquelas considerações não precisavam de ser reiteradas e Piers arrependeu-se de ter aberto a boca. Havia aprendido que, sempre que Adam Dalgliesh se remetia ao silêncio, era melhor ficar calado, especialmente quando nada havia de novo a acrescentar.
De volta à Vivenda São Mateus, Dalgliesh decidiu entrevistar os dois Surtees, na companhia de Kate. Chegaram cinco minutos mais tarde, escoltados por Robbins. Karen Surtees foi conduzida à sala de espera enquanto o seu irmão entrava na sala de interrogatórios.
Podia perceber-se que Eric Surtees estava na pocilga quando Robbins o fora buscar, e, quando entrou, trouxe consigo o cheiro forte, se bem que não desagradável de todo, de terra e de animais. Tivera apenas tempo para lavar as mãos que, agora, apertara e pousara sobre os joelhos. Estavam tão imóveis que pareciam em desacordo com o resto do corpo, fazendo lembrar a Dalgliesh dois animais pequenos, fechados sobre si mesmos e petrificados pelo medo. Surtees não tivera sequer tempo de consultar a irmã, e a forma como olhou para trás, quando a porta da sala se fechou, demonstrou quanto ele precisava da presença e do apoio da irmã. Sentado, como se fosse uma estátua, apenas os seus olhos se mexiam, ora fitando Dalgliesh, ora fitando Kate. Dalgliesh sabia reconhecer o medo e interpretá-lo. Sabia que o inocente era, frequentemente, o que revelava maior medo, ao passo que o culpado, depois de preparar a sua versão, se mostrava ansioso por contá-la, revelando-se, durante o interrogatório, orgulhoso e quase arrogante e afastando qualquer manifestação embaraçosa de culpa ou de medo.
Não perdendo tempo com formalidades. Dalgliesh disse:
Quando os meus assistentes o interrogaram, no domingo, o senhor declarou não haver saído da Vivenda São João na noite de sábado. Vou fazer-lhe novamente a pergunta: depois das completas, no sábado, dirigiu-se ao instituto ou à igreja?
Surtees olhou, de relance, para a janela, como se procurasse um meio de fugir dali, mas, depois, forçou-se a encarar Dalgliesh.
Claro que não! respondeu, num tom de voz anormalmente estridente. Porque haveria de fazê-lo?
Mister Surtees, há uma testemunha que afirma tê-lo visto entrar em Santo Anselmo, pela porta do claustro norte, pouco depois da meia-noite. E não restam quaisquer dúvidas quanto à sua identificação.
Não era eu. Devia ser outra pessoa. Ninguém pode ter-me visto no instituto, porque eu não estava lá. É mentira.
No entanto, nem mesmo Surtees parecia convencido das suas negações.
Mister Surtees, quer que o prendamos por homicídio? perguntou Dalgliesh, num tom de voz paciente.
Surtees encolheu-se. Parecia, agora, um menino.
Sim, é verdade confessou, após um longo silêncio. Regressei ao instituto. Acordei, vi luzes na igreja e fui ver o que estava a acontecer.
E que horas eram quando reparou que havia luzes na igreja?
Passava pouco da meia-noite. Tinha-me levantado para ir à casa de banho e foi quando vi que havia luzes na igreja.
Kate interveio pela primeira vez.
As vivendas são todas construídas de acordo com o mesmo plano, Mister Surtees. Os quartos de dormir e as casas de banho encontram-se nas traseiras. Na sua vivenda, dão para noroeste. Pode explicar-me como conseguiu ver a igreja dali?
Surtees humedeceu os lábios.
Tinha sede. Desci para ir beber um copo de água e vi a luz, pela janela da sala de estar. Pelo menos, foi o que pensei, a princípio, porque era muito ténue. Foi então que decidi ir ver o que se passava.
Não pensou em acordar a sua irmã ou em telefonar a Mister Pilbeam ou ao padre Sebastian? perguntou Dalgliesh. Era o mais natural...
Não queria incomodá-los.
Foi muito corajoso da sua parte comentou Kate aventurar-se, sozinho, pelo promontório, numa noite de tempestade, para se confrontar com um hipotético intruso. O que tencionava fazer quando entrasse na igreja?
Não sei. Estava um pouco confuso.
Parece-me bem que, agora, também está um pouco confuso... comentou Dalgliesh. Mas prossiga. Afirma que se dirigiu para a igreja. E em seguida?
Não cheguei a entrar. Não podia, porque não tinha as chaves. A luz continuava acesa. Entrei na mansão e fui buscar um molho de chaves ao gabinete de Miss Ramsey, mas, quando regressei ao claustro norte, a luz fora já apagada.
Falava agora com mais confiança e não apertava as mãos com tanta força.
Foi Kate que, depois de lançar um rápido olhar a Dalgliesh, retomou o interrogatório.
E o que fez depois?
Não fiz nada. Concluí que tinha visto mal e que nunca houvera luzes na igreja.
Mas, antes, parecia estar convencido de que havia luzes na igreja, porque, caso contrário, o que o levaria a sair de casa e a enfrentar a tempestade? Primeiro, uma luz acende-se, depois, apaga-se misteriosamente... Não lhe passou pela cabeça entrar na igreja para investigar o que se passava? Afinal, era esse o seu objectivo quando saiu de casa, não é verdade?
Não me pareceu necessário murmurou Surtees quando vi que estava tudo às escuras. Já lhe disse; cheguei à conclusão de que me havia enganado. Mesmo assim, verifiquei se a porta da sacristia
estava aberta e, como a vi trancada, fiquei a saber que ninguém podia achar-se na igreja.
Depois de se encontrar o corpo do arcediago, descobriu-se que um dos três molhos de chaves da igreja tinha desaparecido. Quantos havia, quando o senhor foi buscar um desses molhos?
Não me lembro. Não reparei. Estava ansioso por sair do gabinete. Sabia onde se encontravam as chaves e peguei num molho.
E não voltou a colocá-lo no devido lugar?
Não, porque não queria entrar novamente na mansão.
Nesse caso, Mister Surtees interveio calmamente Dalgliesh, onde estão as chaves que o senhor tirou?
Kate raramente havia visto um suspeito tão apavorado. A esperança e confiança que revelara no início do interrogatório haviam desaparecido, e Surtees deixou-se escorregar na cadeira, cabisbaixo, a tremer.
Vou perguntar-lhe novamente insistiu Dalgliesh. Entrou na igreja no sábado à noite?
Surtees conseguiu endireitar-se e, até, encarar o olhar que Dalgliesh lhe lançava. Kate tinha a impressão de que o terror havia dado lugar ao alívio. Surtees preparava-se para revelar a verdade e sentia-se feliz por pôr um ponto final naquele longo suplício de mentiras. A partir dali, ele e a Polícia estariam do mesmo lado. Aprovariam a sua atitude, absolvê-lo-iam e dir-lhe-iam que o compreendiam. Kate já havia presenciado aquela reacção muitas vezes.
Muito bem; entrei na igreja, mas não matei ninguém, juro! Nunca seria capaz! Juro perante Deus que nunca lhe toquei com um só dedo. Estive na igreja durante menos de um minuto.
A fazer o quê? perguntou Dalgliesh.
Fui buscar algo para a Karen. Algo de que ela precisava. Nada tinha a ver com o arcediago. É um assunto pessoal, que só a nós diz respeito.
Mister Surtees, deve ter consciência de que isso não chega replicou Kate. Não existem assuntos pessoais na investigação de um homicídio. O que o levou a entrar na igreja no sábado à noite? Surtees olhou para Dalgliesh, como se lhe pedisse que o compreendesse.
A Karen precisava de uma outra hóstia consagrada. Tinha de ser consagrada e pediu-me que fosse buscar uma.
Ela pediu-lhe que roubasse uma hóstia da igreja?
A Karen não encara as coisas sob esse prisma. Houve uma pausa, até que, por fim, Surtees acrescentou: Sim, creio que foi o que ela me pediu. Mas a culpa não foi dela. Foi minha. Eu não tinha nada que ceder. A princípio, recusei-me a fazê-lo, porque os padres sempre foram bons para comigo, mas era importante para a Karen e, por fim, acedi. Ela tinha de obter a hóstia antes do fim-de-semana, porque precisava dela na sexta-feira. Achava que não era um furto importante. Para ela não passava de uma pastilha. Até porque a Karen nunca me teria pedido para roubar algo de valioso.
Mas uma hóstia é algo de valioso, não concorda? perguntou Dalgliesh.
Fez-se silêncio de novo.
Conte-me o que aconteceu no sábado à noite. Volte atrás no tempo e reflicta com calma. Quero saber todos os pormenores.
Surtees estava mais calmo. Parecia mais animado e a cor regressara às suas faces.
Esperei até muito tarde. Tinha de me certificar de que todos dormiam ou que, pelo menos, estivessem nos seus quartos. A tempestade ajudou, porque calculei que ninguém se atreveria a ir dar um passeio. Saí de casa por volta da meia-noite menos um quarto.
E que roupa vestia?
Calças castanhas e um blusão de cabedal grosso. Não usava roupas claras. Achámos que seria mais seguro, se eu usasse roupas escuras, mas não estava disfarçado, se é isso que quer saber.
Usava luvas?
Não. Nós... Eu achei que não era necessário. Só tenho as minhas luvas de jardinagem e um par de luvas de lã, muito velho. Teria de tirá-las para pegar na hóstia e abrir as fechaduras, e pensei que não me ajudaria em nada, se usasse luvas. Ninguém saberia que houvera um furto. Não dariam pela falta de uma hóstia e, se dessem, pensariam que as tinham contado mal. Pelo menos, foi o que então pensei. Só tenho duas chaves: a do portão de ferro e a da porta do claustro norte. Geralmente, não preciso de chaves durante o dia, porque tanto o portão como as portas dos dois claustros ficam abertas. Sabia que as chaves da igreja estavam no gabinete de Miss Ramsey. Em épocas festivas, como a Páscoa, ofereço ao instituto flores da minha estufa. O padre Sebastian, então, pede-me para as deixar num balde com água, na sacristia, porque há sempre um ordinando que decora a igreja. Por vezes, o padre Sebastian entrega-me as chaves ou diz-me para ir buscá-las ao gabinete; tranco a porta, depois de sair, e volto a colocá-las no seu devido lugar. Em princípio, devemos assinar o livro de registo sempre que requisitamos as chaves da igreja, mas, na maioria dos casos, ninguém se dá ao trabalho de o fazer.
Facilitaram-lhe a vida, não foi? E não custa nada roubar as pessoas que confiam em nós...
Dalgliesh deu-se conta do seu tom de desprezo, enquanto se apercebia de como Kate ficara surpresa com aquele seu reparo. Logo se arrependeu, dizendo a si mesmo que estava a envolver-se demasiado na investigação.
Com uma maior confiança do que aquela que havia revelado até então, Surtees retorquiu:
Eu não ia fazer mal a ninguém porque seria incapaz de tal coisa. E, mesmo que tivesse conseguido roubar a hóstia, ninguém seria prejudicado. Estou convencido de que nem se aperceberiam. Não passava de uma hóstia, que não deve custar mais do que um penny.
Regressemos ao que aconteceu na noite de sábado retomou Dalgliesh. Deixemos, por enquanto, as desculpas e as justificações. O que interessa, agora, são apenas os factos.
Como já disse, devia ser meia-noite menos um quarto quando saí de casa. O instituto estava imerso na escuridão e o vento soprava com muita força. Só havia uma luz acesa, num dos quartos de hóspedes, mas as cortinas estavam corridas. Servi-me da minha chave para entrar no instituto pela porta dos fundos. Passei pela copa para aceder à parte da frente da mansão. Como tinha uma lanterna comigo, não tive de acender as luzes, se bem que houvesse uma acesa, no vestíbulo, que iluminava a estátua da Virgem com o Menino. Tinha já inventado um pretexto para a minha presença ali, àquela hora, se alguém me visse. Diria que havia visto uma luz acesa na igreja e que fora buscar as chaves para ver o que se passava. Sabia que não era uma desculpa muito convincente, mas também não estava à espera de encontrar alguém. Fui buscar as chaves ao gabinete de Miss Ramsey e saí pela mesma porta por onde entrara, fechando-a atrás de mim com todo o cuidado. Apaguei as luzes do claustro e dirigi-me à igreja, seguindo ao longo dos muros. Não tive dificuldade em abrir a porta da sacristia. A fechadura está sempre oleada e a chave girou facilmente. Abri-a, de mansinho, e, guiando-me pela luz da minha lanterna, desliguei o alarme.
”Como, até ali, tudo correra bem, começava a sentir-me menos assustado e mais optimista. Sabia onde estavam as hóstias. À direita do altar, numa espécie de nicho, iluminado por uma luzinha vermelha. Guardam ali as hóstias consagradas para a eventualidade de um dos padres ter de dar a extrema-unção a alguém que esteja muito doente ou ter de ir celebrar a missa numa igreja das aldeias das redondezas que não tenha padre. Levara um sobrescrito no bolso, onde contava guardar a hóstia. Mas, quando abri a porta que comunica com a igreja, vi que havia alguém.
Fez nova pausa. Dalgliesh resistiu à tentação de tecer um comentário ou de fazer mais perguntas. Cabisbaixo, Surtees entrelaçara as mãos, que pousara em cima da secretária. Parecia estar a fazer um esforço para se lembrar do que se havia passado.
Uma luz estava acesa na ala norte da igreja, por cima dO Juízo Final. E, em frente do quadro, havia alguém, envolto num capote e com a cabeça coberta pelo capuz.
Kate não conseguiu resistir mais e perguntou:
Reconheceu a pessoa?
Não. Estava meio escondido pelo pilar, e a luz era muito ténue. Além do mais, o capuz tapava-lhe a cabeça.
Como era essa pessoa? Alta? Baixa?
Diria que tinha estatura média, mas não me lembro bem. Foi então que a grande porta sul se abriu e alguém entrou. Também não consegui perceber quem era. Só o ouvi exclamar: ”Onde está?”, e apressei-me a fechar a porta que comunicava com a igreja. Percebi imediatamente que perdera a oportunidade de roubar a hóstia. Nada mais me restava fazer senão sair, trancar a porta da sacristia e regressar à mansão.
Tem a certeza de que não reconheceu nenhuma dessas duas pessoas? perguntou Dalgliesh.
A certeza absoluta. Não cheguei a ver-lhes os rostos. Aliás, nem sequer tive tempo de examinar o segundo homem.
Como sabe que era um homem?
Porque ouvi a voz dele.
Não tem ideia de quem era?
A julgar pela voz, penso que podia ser o arcediago.
Então, significa que ele falou em voz alta? Surtees corou, envergonhado.
Suponho que sim, se bem que, na altura, não me parecesse. O silêncio era total na igreja, e a sua voz ecoou, mas repito: não tenho a certeza de que fosse a voz do arcediago. Foi apenas a impressão com que fiquei, naquela altura.
Era por de mais evidente que Surtees nada mais podia dizer-lhes sobre a identidade das duas figuras. Dalgliesh, então, perguntou-lhe o que havia feito, depois de sair da igreja.
Voltei a ligar o alarme, saí, tranquei a porta e atravessei o claustro, passando em frente da porta sul da igreja. Não me parece que estivesse entreaberta, porque não me lembro de ver uma luz acesa, mas também é verdade que não prestei atenção. Tudo o que eu queria era sair dali o mais depressa possível. Atravessei o promontório, de regresso a casa, e contei à Karen o que se tinha passado. Pensava devolver as chaves no domingo de manhã, mas, quando nos mandaram chamar à biblioteca e nos informaram de que o arcediago tinha sido assassinado, percebi que isso seria impossível.
O que fez com as chaves?
Enterrei-as num canto da pocilga confessou Surtees, visivelmente atrapalhado.
Quando esta entrevista terminar, o sargento Williams irá consigo para que você lhe entregue as chaves.
Surtees preparava-se para se levantar, mas Dalgliesh deteve-o.
Eu disse quando esta entrevista terminar, Mister Surtees.
A informação que tinha acabado de obter era a mais importante até ali, e Dalgliesh teve de fazer um esforço para resistir à tentação de seguir, de imediato, aquela nova pista. Primeiro, contudo, tinha de confirmar, tanto quanto possível, a história de Surtees.
Quando Kate a chamou, Karen Surtees entrou na sala sem revelar qualquer nervosismo, sentou-se ao lado do seu meio-irmão, sem sequer esperar que Dalgliesh lho dissesse, pousou a mala que trazia ao ombro no espaldar da cadeira e virou-se para Surtees.
Está tudo bem, Eric?
Sim. Desculpa, Karen, mas contei-lhes. E repetiu: Desculpa.
Porque tens de pedir desculpas? Deste o teu melhor. A culpa não foi tua se havia alguém na igreja. Tu tentaste. E quem ficou a ganhar foi a Polícia. São eles que devem estar-te agradecidos.
Assim que Karen entrara, os olhos de Surtees tinham-se iluminado, e a sensação da sua força a passar para o irmão era quase palpável quando Karen pousou a sua mão sobre a dele. As palavras de Surtees haviam revelado remorso, mas nada havia de servilismo no olhar que lhe lançara. Dalgliesh identificou, de imediato, a mais perigosa de todas as complicações: o amor.
Karen, então, virou-se para Dalgliesh, fitando-o com um olhar penetrante e desafiador. Abrira os olhos e dava a ideia de que tentava reprimir um sorriso.
O seu irmão admitiu ter estado na igreja no sábado à noite informou Dalgliesh.
Na madrugada de domingo, porque já passava da meia-noite. E ele é apenas meu irmão por parte do pai.
Eu sei, porque já o disse aos meus assistentes. Acabei de ouvir a história dele e, agora, quero ouvir a sua.
Vai ser muito semelhante à do Eric. Ele não tem jeito para mentir, como provavelmente já descobriram. É um inconveniente, mas, às vezes, tem as suas vantagens. De qualquer maneira, não é nada de muito grave. Ele não cometeu crime nenhum e a ideia de que pudesse fazer mal ou matar alguém é perfeitamente ridícula. Pois se nem consegue matar os seus próprios porcos! Eu tinha-lhe pedido que me arranjasse uma das hóstias consagradas da igreja. Se não sabe o que são, posso dizer-lhe que se trata de pequenos discos circulares brancos, feitos de farinha e água, segundo me parece, do tamanho de uma moeda de dois pence. Mesmo que o Eric conseguisse tirar uma hóstia e fosse apanhado, não consigo ver os juizes a condená-lo por crime de roubo, porque o valor do objecto roubado é perfeitamente insignificante.
Tudo depende da sua escala de valores retorquiu Dalgliesh. Mas, afinal, porque queria a hóstia?
Não vejo que relação possa ter com a vossa investigação, mas não me importo de o dizer. Sou jormalista free-lancer e estou a escrever um artigo sobre as missas negras. A propósito, trata-se de um artigo que me foi encomendado e já procedi à maior parte da minha pesquisa. Consegui infiltrar-me em certas seitas. Alguns dos seguidores disseram-me, então, que precisavam de uma hóstia consagrada e prometi-lhes que podia arranjar uma. E não me venha dizer que podia muito bem ter comprado uma caixa de hóstias, não consagradas, por uma ninharia, porque foi esse o argumento do Eric. Empenhei-me na minha pesquisa e precisava do artigo genuíno. Pode não respeitar o meu trabalho, mas levo-o tão a sério como o senhor leva o seu. Tinha prometido que arranjaria uma hóstia consagrada e era o que ia fazer, caso contrário, todo o meu trabalho teria sido em vão.
E persuadiu o seu meio-irmão a roubar uma hóstia para si.
Acha que o padre Sebastian me daria uma, se eu lha pedisse?
O seu irmão dirigiu-se à igreja sozinho?
Claro que sim! Não fazia qualquer sentido eu ir com ele e aumentar os riscos. Se ele fosse apanhado, podia sempre arranjar um pretexto para a sua presença no instituto, mas eu não.
E esperou por ele?
Não se tratou de uma questão de esperar por ele. Não chegámos a deitar-nos, ou melhor, não chegámos a dormir.
Portanto, assim que ele voltou, contou-lhe o que acontecera? Não preferiu contar-lhe o sucedido na manhã seguinte?
Ele contou-me o que se passara, mal regressou, porque eu fiquei à espera dele.
Miss Surtees, isto é muito importante. Por favor, recue no tempo e tente lembrar-se exactamente das palavras que o seu irmão proferiu, ao relatar-lhe o que tinha acontecido.
Não sei se vou conseguir lembrar-me das palavras exactas dele, mas a mensagem era clara. Disse-me que não tivera qualquer problema em ir buscar as chaves. Abriu a porta da sacristia, com a ajuda da sua lanterna, e, depois, a porta que comunica com a igreja. Foi então que viu uma luz acesa, por cima daquele quadro a óleo. Parece-me que se chama O Juízo Final. E viu uma figura, de pé, junto ao quadro, que usava um capote com capuz. Logo de seguida, a porta principal da igreja abriu-se e uma outra pessoa entrou. Perguntei-lhe se havia reconhecido as duas figuras e ele respondeu-me que não. O homem do capote tinha o capuz a tapar-lhe a cabeça e estava de costas voltadas para o Eric. Quanto ao outro homem, só o viu de relance. O Eric ficou com a ideia de que a segunda figura exclamou: ”Onde está?”, ou qualquer coisa no género. E pensou que era a voz do arcediago.
E ele não adiantou qualquer palpite em relação à outra figura?
Não, nem poderia fazê-lo. Não pensou que pudesse haver algo de sinistro por ver uma figura encapuçada na igreja. Aquelas presenças, na igreja, tinham estragado os nossos planos, e era estranho que, àquela hora da noite, houvesse gente ali, mas o Eric concluiu que era um dos padres ou um dos ordinandos. E eu pensei o mesmo, aliás. Só Deus sabia o que ambos faziam ali, depois da meia-noite. No que me diz respeito, até podiam estar entretidos a celebrar uma missa negra. Como é óbvio, se o Eric tivesse adivinhado que o arcediago ia ser assassinado, teria prestado mais atenção. Pelo menos, é o que julgo. O que terias feito, Eric, se te tivesses confrontado com um assassino munido de um punhal?
Fitando Dalgliesh, Surtees respondeu:
Teria fugido e feito soar o alarme, claro. Os quartos dos hóspedes não ficam fechados à chave; por isso, teria corrido para o quarto de São Jerónimo, para lhe pedir ajuda, inspector. Na altura, senti-me desapontado, já que conseguira obter as chaves sem que ninguém desse por isso. Tudo parecia correr bem, mas, depois do que vi, tive de conformar-me com o meu fracasso e de voltar para casa.
Nada mais havia a perguntar a Surtees, por ora, e Dalgliesh informou-o de que podia retirar-se, não sem antes avisar os dois irmãos de que deviam manter em segredo as informações que haviam prestado, porque, caso contrário, arriscar-se-iam a ser condenados por sonegar informações à Polícia, se não fossem acusados de algo mais grave. O sargento Robbins iria acompanhar Surtees, para reaver as chaves que deveriam ficar em poder da Polícia. Os dois garantiram-lhe o seu sigilo: Eric Surtees, com tanta formalidade como se estivesse a prestar juramento; Karen Surtees, com evidente má-fé.
Quando, finalmente, Eric se levantou, Karen imitou-o, mas Dalgliesh exclamou:
Gostaria que ficasse, Miss Surtees, porque tenho mais algumas perguntas a fazer-lhe.
Quando a porta se fechou atrás de Eric, Dalgliesh disse:
Quando comecei a interrogar o seu irmão, ele afirmou que a senhora queria que ele lhe arranjasse uma outra hóstia O que significa que não foi a primeira vez que ele tentou roubar hóstias. O que aconteceu da primeira vez?
Imóvel na sua cadeira, a voz de Karen Surtees era calma quando respondeu:
O Eric deve ter-se enganado ou exprimido mal, porque só houve esta vez.
Não me parece. Posso mandar chamar Mister Surtees e perguntar-lhe, mas seria mais simples se a senhora me explicasse o que aconteceu da vez precedente.
Isto nada tem a ver com o homicídio explicou Karen, à defesa. Aconteceu no último período.
Aqui, quem julga o que está ou não relacionado com o homicídio sou só eu. Quem roubou a hóstia, da vez anterior?
Não foi propriamente roubada. Foi-me oferecida.
Pelo Ronald Treeves?
Sim, se quer mesmo sabê-lo. Algumas hóstias são consagradas e enviadas para as igrejas das redondezas onde falte temporariamente um padre e onde tenha de ser celebrada a comunhão. As hóstias são consagradas aqui e levadas para a igreja, por quem quer que vá celebrar a missa ou ajudar à sua celebração. Naquela semana, era a vez do Ronald, e deu-me uma hóstia. Uma de entre muitas. Era um pequeno favor que ele estava a prestar-me.
Kate interveio repentinamente.
Devia ter plena consciência de que, para aquele rapaz, não se tratava de um pequeno favor. E como tencionava pagar-lhe? Da maneira mais óbvia?
Karen Surtees corou, mas de raiva e não por vergonha. Dalgliesh pensou, por breves instantes, que ela iria lançar-se num antagonismo aberto, o que seria perfeitamente compreensível.
Desculpe se a ofendemos murmurou. Como conseguiu persuadir o Ronald Treeves?
A raiva momentânea de Karen havia-se dissipado. Fitou Dalgliesh com os seus olhos penetrantes e estreitos, mas, logo de seguida, acalmou-se. Dalgliesh pôde detectar o preciso instante em que Karen Surtees se dera conta de que seria mais prudente para ela se fosse sincera.
Muito bem, persuadi-o da maneira mais óbvia e, se estão a pensar em julgar-me moralmente, esqueçam. De qualquer maneira, é algo que não lhes diz respeito acrescentou, olhando de soslaio para Kate, com franca hostilidade. E, muito menos, a ela. Não vejo que relevância tudo isto tenha para o assassínio do arcediago, porque não pode haver qualquer relação entre as duas coisas.
Para lhe ser franco, não tenho a mesma certeza replicou Dalgliesh. Pode haver um elo de ligação. Se não houver, nada do que aqui for dito será usado, mais tarde. E que fique bem claro que não estou a fazer-lhe perguntas acerca do roubo da hóstia, movido por uma ávida curiosidade acerca da sua vida privada.
Ouça, eu gostava do Ronald. Talvez fosse mais um sentimento de pena. Ele, aqui, não era propriamente popular. O papá dele era muito rico, poderoso, no ramo errado. Armamento, não é verdade? De qualquer maneira, o Ronald não se integrara em Santo Anselmo. Quando vinha passar o fim-de-semana com o Eric, encontrava-me com o rapaz, de tempos a tempos, e dávamos longos passeios pelos penhascos, até ao pântano. Conversámos de tudo e de nada. Ele contava-me coisas que o senhor nunca conseguiria sacar-lhe, nem daqui a um milhão de anos. Nem, muito menos, aqueles padres, com ou sem confissão. E fiz-lhe um grande favor. Ele tinha vinte e três anos e ainda era virgem. Estava ansioso por ter relações sexuais. Estava mortinho por experimentar.
”E talvez tenha morrido por isso”, pensou Dalgliesh, mas prestou de novo atenção ao depoimento de Karen Surtees.
Seduzi-lo não foi propriamente difícil. Os homens é que têm a mania de fazer um bicho-de-sete-cabeças do facto de seduzir raparigas virgens. Eu pensava, só Deus sabe porquê, que seria uma experiência cansativa, sem qualquer emoção, mas teve o seu lado excitante. E, se quer saber como foi que o ocultámos ao Eric, então, digo-lhe que não fizemos amor na vivenda, mas numa zona relvada do penhasco. Ele teve uma sorte dos diabos por se iniciar comigo e não ter de recorrer a uma prostituta... tentara, certa vez, mas ficara tão enojado consigo próprio que não conseguira chegar ao fim. Karen Surtees fez uma pausa, e, como Dalgliesh nada dissesse, continuou, ainda mais na defensiva. Afinal, ele estava a treinar-se para ser padre, não é verdade? Como poderia ajudar os outros, se não tivesse vivido? Costumava falar da graça do celibato e penso que até nem é mau, quando alguém o deseja. Mas, acreditem, não era o que ele queria. Teve realmente muita sorte em conhecer-me.
O que aconteceu à hóstia? perguntou Dalgliesh.
Meu Deus, que falta de sorte! Nunca vai acreditar. Perdi-a. Enfiei-a num sobrescrito, que guardei na minha pasta, juntamente com outros papéis. Foi a última vez que a vi. Provavelmente, deitei o sobrescrito no cesto dos papéis. Só sei que não consegui encontrá-lo.
Portanto, pediu ao Ronald que lhe arranjasse outra hóstia, mas ele, então, mostrou-se menos conivente.
Digamos que foi mais ou menos isso. Ele deve ter pensado melhor no que fizera, durante as férias. Até parece que eu dera cabo da vida dele, em vez de contribuir para a sua educação sexual...
E, passado uma semana, estava morto rematou Dalgliesh.
Eu é que não fui responsável pela morte dele! Nunca desejei que aquele pobre rapaz morresse!
Então, acha que pode ter sido um homicídio?
Karen Surtees fitou Dalgliesh, subitamente apavorada, e Dalgliesh pôde discernir, nos olhos dela, um misto de surpresa e de terror.
Homicídio? Claro que não! Quem haveria de querer assassiná-lo? Foi uma morte acidental. Ele começou a escavar na base do penhasco, o que provocou um desabamento de areia. Houve um inquérito e o senhor, com certeza, conhece o veredicto.
Quando ele se recusou a arranjar-lhe a segunda hóstia consagrada, tentou fazer chantagem?
Claro que não!
Não terá insinuado sequer que, depois do que se passara entre vocês, ele estava nas suas mãos e que a senhora tinha em seu poder uma informação que poderia levá-lo a ser expulso do instituto, deitando por terra o seu desejo de ser ordenado padre?
Não! respondeu Karen, veementemente. De que me teria servido? Primeiro, só iria comprometer o Eric e, segundo, aqueles padres iriam acreditar no Ronald Treeves e nunca em mim. Eu não me achava em posição de fazer chantagem com o Ronald.
Pensa que ele se deu conta disso?
Como posso saber? Tudo o que sei é que ele era meio maluco. Ouça, não devia estar a investigar o homicídio do Crampton? A morte do Ronald nada tem a ver com este caso. Nem nunca poderia haver qualquer ligação entre ambos.
E calou-se, amuada.
A senhora e o seu irmão já ocultaram informações vitais a esta investigação ripostou Dalgliesh. Se tivéssemos sabido, no domingo de manhã, o que soubemos apenas hoje, alguém poderia já estar preso. Se nem a senhora nem o seu irmão estão envolvidos no homicídio do Crampton, então, sugiro-lhe que responda às minhas perguntas com toda a sinceridade e que me diga a verdade. O que aconteceu quando o Ronald Treeves foi até à Vivenda São João, naquela sexta-feira à noite?
Eu tinha chegado de Londres, para passar o fim-de-semana com o Eric. Não sabia que o Ronald ia aparecer. Ele não tinha o direito de entrar na nossa casa daquela maneira. Habituámo-nos a deixar a porta da rua aberta, mas, para todos os efeitos, aquela vivenda é a casa do Eric. O Ronald subiu a escada... e, se tem mesmo de o saber, encontrou-me, a mim e ao Eric, na cama. Ficou parado, à porta, a olhar para nós. Parecia desvairado. Desatou a fazer-me acusações ridículas. Não me lembro, ao certo, do que foi que disse. Até podia ter sido divertido, mas foi francamente assustador. Era como se um louco, de repente, gritasse comigo e me caluniasse. Não, não é essa a palavra certa. Não era um ataque. Ele não gritou nem sequer levantou a voz, o que tornava a situação ainda mais assustadora. Eric e eu estávamos nus, o que nos punha em desvantagem. Sentámo-nos na cama e olhámos para ele, enquanto o Ronald, com a sua voz estridente, continuava a acusar-me sem parar. Meu Deus, foi tão estranho... Sabem que ele estava convencido de que ia casar-se comigo? Eu, mulher de um pároco! O rapaz estava louco. Não só parecia como estava mesmo louco.
Karen Surtees pronunciara as últimas palavras num tom que revelava incredulidade e espanto, como se tivesse acabado de desabafar um segredo a um amigo com quem bebia uns copos num bar.
A senhora seduziu-o e o Ronald pensou que o amava disse Dalgliesh. Ele deu-lhe a hóstia consagrada porque lha pediu e porque ele nunca seria capaz de lhe negar nada a si. Sabia exactamente o que tinha feito. E, depois, percebeu que nunca houvera amor da sua parte e apenas se servira dele. No dia seguinte, suicidou-se. Agora, pergunto-lhe: Miss Surtees, sente-se de alguma forma responsável pela morte do Ronald Treeves?
Não! gritou, desesperada, Karen. Nunca lhe disse que o amava! A culpa não é minha se ele pensou tal coisa! E não acredito que se tenha suicidado. Foi um acidente. Foi o que o júri decidiu e é no que acredito!
Não me parece... murmurou calmamente Dalgliesh. Penso que a senhora sabe muito bem o que levou o Ronald Treeves a suicidar-se.
Mesmo que o soubesse, isso não me tornaria responsável. Que bicho lhe mordeu, para entrar na casa do Eric daquela maneira, e subir a escada a correr, como se estivesse na sua própria casa? Agora julgo que vai contar tudo ao padre Sebastian, para que ele expulse o Eric da vivenda.
Não, engana-se sibilou Dalgliesh. Nada direi ao padre Sebastian. A senhora e o seu irmão expuseram-se ao perigo. Tenho de lhe relembrar, mais uma vez, que tudo o que me disse deve permanecer em segredo absoluto. Tudo.
Está bem. Nada diremos. Porque haveríamos de fazê-lo? Também não percebo porque haveria de sentir-me culpada pela morte do Ronald ou do arcediago. Nem eu nem o Eric os matámos, mas pensámos que seria a essa conclusão que o senhor chegaria, à primeira oportunidade que se lhe deparasse. Afinal, aqueles padres são sagrados, não é verdade? Pois sugiro-lhe que comece a olhar para os motivos deles, em vez de implicar connosco. Não me pareceu que fosse importante ocultar-lhe que o Eric tinha ido à igreja. Pensava que um dos estudantes havia assassinado o arcediago e que acabaria por confessar a sua culpa. Pois não é nisso que aqueles padres são especialistas? Na confissão? Não me deixarei culpabilizar nem, muito menos, me sinto culpada. Não sou cruel. Tive pena quando soube que o Ronald morrera. Não o obriguei a dar-me aquela hóstia. Pedi-lhe um favor e, por fim, ele aceitou. Nem tive relações sexuais com ele só para conseguir os meus intentos. Pronto, em parte, sim, mas não foi esse o único e exclusivo motivo. Tive relações sexuais com o Ronald porque sentia pena dele, porque não tinha mais nada que fazer, aqui, e talvez por outras razões que o senhor não compreenderia ou que desaprovaria, se as conhecesse.
Nada mais havia a dizer. Karen estava assustada, mas não envergonhada. Nada do que Dalgliesh pudesse dizer-lhe a levaria a sentir-se responsável pela morte de Ronald Treeves. Pensou no desespero que o rapaz devia ter sentido para pôr fim à sua vida daquela maneira horrível. Havia sido confrontado com duas alternativas insustentáveis: permanecer em Santo Anselmo, sob a constante ameaça de ser traído e de se sentir atormentado pelo que havia feito, ou confessar-se ao padre Sebastian, com a antecipada certeza de que seria forçado a regressar a casa do pai, como um falhado. Dalgliesh perguntou a si mesmo o que teria pensado e dito o padre Sebastian. O padre Martin ter-se-ia mostrado misericordioso, mas Dalgliesh já não tinha a mesma certeza quanto ao padre Sebastian. Contudo, ainda que este houvesse revelado alguma misericórdia, como poderia Ronald Treeves continuar em Santo Anselmo, tendo a plena consciência de que ficara ali apenas para ser posto à prova?
Por fim, deixou Karen partir. Sentia-se invadido por uma profunda pena e, ao mesmo tempo, pela cólera que parecia direccionada para algo mais profundo e indistinto do que Karen Surtees e a sua insensibilidade. Mas que direito tinha ele de se sentir enraivecido? Karen Surtees expusera a sua noção, muito própria, da moralidade. Prometera a alguém arranjar uma hóstia consagrada e devia cumprir a sua palavra. Era uma jornalista de investigação, e levava o seu trabalho a sério, mesmo que tivesse de recorrer a meios menos próprios para atingir os seus objectivos. Não houvera nenhuma comunhão de valores entre ela e o Ronald Treeves, nem nunca poderia ter havido. Não podia sequer imaginar que alguém se suicidasse por causa de um pequeno disco, feito de farinha e de água. Para ela, o sexo pouco mais fora do que uma alternativa ao seu enfado, a satisfação de sentir o poder de iniciar um jovem numa nova experiência, um desafio ao seu prazer. Levar aquela experiência mais a sério poderia conduzir ao ciúme, às exigências, às recriminações e à confusão, na melhor das hipóteses ou à morte por sufocação, na pior das hipóteses. E não havia ele, Dalgliesh, ao longo dos seus anos de solidão, separado a sua vida sexual de um compromisso sério, mesmo que tivesse de ser mais prudente na escolha das suas parceiras? Mesmo que tivesse de se tornar mais sensível aos sentimentos alheios, para não os ferir? Perguntava a si próprio o que iria dizer a Sir Aired. Provavelmente, apenas que um veredicto em aberto teria sido mais lógico do que o de morte acidental, mas que não havia quaisquer provas que indicassem um crime, se bem que tivesse havido um crime.
Preservaria o segredo de Ronald. O rapaz não deixara nenhuma mensagem final. E não havia como saber se, naqueles últimos segundos, quando já era tarde de mais, talvez houvesse mudado de ideias. Se morrera por nem sequer poder tolerar o pensamento de que o seu pai soubesse a verdade, não lhe cabia a ele, Dalgliesh, revelar agora tal coisa.
Tomou consciência do seu prolongado silêncio e de que Kate, sentada a seu lado, reprimindo a sua impaciência, devia perguntar a si mesma por que motivo o seu chefe não falava.
Muito bem rematou Dalgliesh. Finalmente, estamos a chegar a algum lado. Descobrimos as chaves desaparecidas, o que significa que o Caim sempre regressou à mansão e devolveu o molho de chaves de que se serviu. Agora, temos de encontrar o capote.
Se ainda existir replicou Kate, dando voz aos pensamentos de Dalgliesh.
Dalgliesh mandou chamar Piers e Robbins à sala de interrogatórios, a fim de os informar das últimas descobertas.
Verificaram todos os capotes? perguntou. Tanto os castanhos como os pretos?
Foi Kate que respondeu.
Sim, chefe. Agora que o Treeves morreu, há dezanove estudantes residentes e outros tantos capotes. Quinze desses estudantes estão ausentes, e todos eles levaram os seus capotes, excepto um, que foi a casa porque a mãe fazia anos e comemorava, ao mesmo tempo, mais um aniversário de casamento. O que significa que sobram cinco capotes, no vestiário, e, efectivamente, estavam lá todos quando verificámos. Examinámo-los, um a um, minuciosamente, bem como os capotes dos padres.
Os capotes têm etiquetas com os nomes? Não reparei quando os examinei.
Desta vez, quem respondeu foi Piers.
Todos estão devidamente identificados. Aparentemente, são as únicas peças de vestuário que têm etiquetas. Deduzo que seja por serem todos iguais, excepto no tamanho. Não há aqui um capote que não tenha uma etiqueta.
Por enquanto, não sabiam se o assassino usara capote quando cometera o homicídio. Era, inclusivamente, possível que, quando o arcediago entrara na igreja, houvesse uma terceira pessoa que Surtees não vira. Mas, agora que sabiam que alguém usara um capote, muito provavelmente, o assassino, os cinco capotes, embora parecessem limpos, teriam de ser examinados em laboratório para procurar vestígios minúsculos de sangue, cabelos ou fibras. E o que acontecera ao vigésimo capote? Seria possível que alguém se tivesse esquecido dele, quando o instituto devolvera as roupas de Ronald Treeves à sua família?
Dalgliesh lembrou-se, então, da conversa que tivera com Sir Aired, na Scotland Yard. O motorista de Sir Aired havia sido enviado para ir buscar o Porsche de Ronald e trouxera um embrulho com roupas quando regressara a Londres. Mas o embrulho continha o capote? Dalgliesh esforçou-se por se lembrar. Falara-se de um fato, de sapatos e de uma batina, mas fora feita alusão a um capote?
Liga para Sir Aired ordenou a Kate. Ele deu-me um cartão com o endereço e o número de telefone da sua residência, antes de sair da Scotland Yard. Encontrarás o cartão no processo. Duvido que ele esteja em casa, a esta hora, mas deve haver alguém. Diz que preciso de falar com ele pessoalmente e que é urgente.
Dalgliesh estava a contar com dificuldades. Sir Aired não era um homem a quem se tivesse facilmente acesso pelo telefone, além de haver sempre a possibilidade de que se encontrasse fora do país. Mas tiveram sorte. O homem que atendeu o telefone lá se convenceu, não sem alguma relutância, de que se tratava de um assunto urgente, e indicou o número de telefone do gabinete de Sir Aired, em Mayfair. Ali, uma voz, algo esganiçada, informou que Sir Aired estava numa reunião. Dalgliesh retorquiu que tinham de ir chamá-lo. Poderia ele esperar? Sabendo que podia ter de esperar, pelo menos, três quartos de hora antes que o pusessem em contacto telefónico com Sir Aired, Dalgliesh respondeu que não podia esperar um minuto sequer. A voz, então, replicou:
Não desligue, por favor.
Passado menos de um minuto, Sir Aired atendia a chamada. A sua voz forte e autoritária revelava-se calma, se bem que deixasse transparecer uma certa impaciência controlada.
Inspector Dalgliesh? Aguardava notícias suas, mas nunca imaginei que ia telefonar-me quando eu estivesse a meio de uma reunião. Se tem notícias para me dar, prefiro ouvi-las mais tarde. Julgo que o homicídio que ocorreu em Santo Anselmo está relacionado com a morte do meu filho. Correcto?
Neste momento, não temos qualquer indício que sugira qualquer ligação entre os dois casos. Entrarei em contacto consigo para lhe falar do veredicto do inquérito, assim que terminar a minha investigação. Como calcula, damos prioridade ao homicídio. Mas queria fazer-lhe uma pergunta relativa às roupas do seu filho. Lembro-me que me disse que o instituto as havia devolvido. Estava presente quando o embrulho foi aberto?
Não, mas cheguei pouco depois. Não é assunto por que me interesse normalmente, mas a minha governanta, que trata dessas coisas, queria consultar-me. Tinha-lhe dito que levasse as roupas para Oxfam, mas, como o fato era da mesma medida do filho dela, perguntou-me se eu não me importava de lho dar. Também estava preocupada com a batina. Não lhe parecia que pudesse servir de alguma coisa em Oxfam, e perguntou-me se devia enviá-la de volta para Santo Anselmo. Eu disse-lhe que, se eles se tinham livrado da batina, não tinham qualquer interesse em recebê-la de volta e que podia fazer com ela o que muito bem entendesse. Penso que acabou por deitá-la fora. É tudo?
E o capote?
Não havia nenhum capote.
Tem a certeza, Sir Aired?
Não, claro que não. Não fui eu que abri o embrulho. Mas, se houvesse um capote, Mistress Mellors ter-me-ia dito e perguntado o que devia fazer com ele. Tanto quanto me lembro, ela mostrou-me tudo o que fora devolvido, porque as roupas ainda estavam embrulhadas com papel pardo e atadas com cordel. Não vejo por que motivo ela teria tirado o capote do embrulho, mas posso perceber que é algo importante para a sua investigação...
Muito importante, Sir Aired. Obrigado pela sua ajuda. Posso entrar em contacto com Mistress Mellors?
A voz do outro lado do fio tornou-se impaciente.
Não faço ideia. Não controlo os gestos dos meus empregados. Como ela vive connosco, penso que estará em casa. Bom dia, inspector.
Tiveram sorte outra vez quando ligaram novamente para a mansão de Sir Aired, em Holland Park. Foi a mesma voz masculina que atendeu, mas disse que iria passar a chamada para o apartamento da governanta.
Depois de Dalgliesh lhe assegurar que falara com Sir Aired e lhe telefonava com a autorização do seu patrão, Mrs. Mellors informou-o de que fora ela que abrira o embrulho que continha as roupas de Mr. Ronald, quando Santo Anselmo as havia devolvido, e que fizera uma lista do conteúdo. Não havia qualquer capote castanho. Sir Aired dera-lhe permissão para ficar com o fato. As restantes peças de vestuário tinham sido levadas por um dos empregados até ao armazém de Oxfam, em Notting Hill Gate. Quanto à batina, fora deitada fora. Mrs. Mellors pensava que era uma pena desperdiçar um tecido tão bom, mas não conseguira pensar em alguém que pudesse servir-se da batina.
Acrescentou, então, o que era surpreendente numa mulher cuja voz confiante e respostas inteligentes haviam soado racionais:
A batina foi encontrada junto do corpo de Mister Ronald, não é verdade? Não creio que gostasse de usá-la, porque isso seria demasiado sinistro. Ainda pensei em aproveitar os botões... ter-me-iam dado jeito... mas não quis tocar na batina. Para lhe ser sincera, fiquei contente por a deitar fora.
Depois de lhe agradecer e de pousar o auscultador, Dalgliesh comentou:
O que aconteceu ao capote e onde está? O nosso primeiro passo é falar com a pessoa que embrulhou as roupas. O padre Martin disse-me que quem se encarregara disso fora o padre John Betterton.
Emma dava o seu segundo seminário, em frente da grande lareira de pedra da biblioteca. Tal como com os precedentes, tinha pouca esperança de abstrair o pequeno grupo de estudantes das actividades soturnas que decorriam no instituto. O inspector Dalgliesh ainda não dera permissão para que se reabrisse a igreja, a fim de que o padre Sebastian procedesse à reconsagração, como havia planeado. Os oficiais forenses continuavam a trabalhar, chegando de manhã cedo numa carrinha sinistra, que alguém devia ter trazido de Londres e que ficava estacionada em frente da entrada principal, mau grado os protestos do padre Peregrine. O inspector Dalgliesh e os dois assistentes prosseguiam com os seus inquéritos misteriosos e as luzes ficavam acesas até tarde na Vivenda São Mateus.
O padre Sebastian proibira os estudantes de falar sobre o homicídio; ou, conforme dissera, ”entrar em conivência com o mal e agravar a angústia com boatos mal-intencionados ou puramente especulativos”. Não podia estar à espera, por certo, que os estudantes respeitassem aquela proibição, e Emma, aliás, punha em causa a sua utilidade. No entanto, as especulações eram discretas e esporádicas, em vez de serem generalizadas e prolongadas, mas o facto de haverem sido proibidas só acrescentava um sentimento de culpa ao peso já sentido pela ansiedade e pela tensão existentes em Santo Anselmo. Na opinião de Emma, teria sido muito melhor se pudessem falar abertamente do homicídio. Tal como Raphael dissera: ”Ter polícias em casa é como ter uma invasão de ratos; mesmo quando não os vemos nem os ouvimos, sabemos que andam por aí.”
A morte de Miss Betterton pouco acrescentara ao peso da angústia. Não passara de um segundo golpe, mais leve, no nervosismo já anestesiado pelo horror. Aceitando que a morte dela fora acidental, a comunidade tentara separá-la de todo o clima de tensão e de medo que envolvia o homicídio do arcediago. Os ordinandos conheciam mal Miss Betterton e só Raphael lamentava genuinamente a sua morte.
Porém, até mesmo ele parecia ter encontrado alguma estabilidade emocional desde a véspera, num equilíbrio precário que se dividia entre refúgios no seu mundo privado e ataques repentinos de um azedume pungente. Desde que havia falado com Raphael no promontório, Emma não tornara a vê-lo a sós, pelo que se sentia contente. Raphael não tinha um feitio fácil.
Se bem que existisse uma sala de conferências no segundo andar da mansão, Emma optara pela biblioteca. Dizia a si mesma que era mais conveniente ter à mão os livros de que pudesse precisar como referência, muito embora tivesse noção de que havia uma explicação menos racional para a sua decisão. A sala de conferências era demasiado pequena, com uma atmosfera pesada, o que lhe provocava uma sensação de claustrofobia. Por muito que a presença da Polícia a intimidasse, era-lhe mais suportável estar no centro da mansão e ver as suas actividades, do que sentir-se enclausurada e isolada no segundo andar, tentando imaginar o que se passava à sua volta.
Dormira tranquilamente na noite anterior. Já haviam procedido à instalação de fechaduras de segurança nas portas dos quartos e entregado as chaves aos hóspedes. Mesmo assim, Emma sentia-se grata por ocupar, agora, o quarto de São Jerónimo em vez de estar no quarto contíguo ao muro da igreja, com aquela grande janela que a fazia sentir-se em risco. Apenas Henry Bloxham mencionara a sua mudança. Ouvira-o dizer a Stephen: ”Pelo que percebi, o Dalgliesh pediu para mudar de quarto, a fim de ficar mais perto da igreja. Do que pode estar ele à espera? De que o assassino regresse à cena do crime? Achas que ele fica sentado toda a noite, a espreitar pela janela?”
Quando Emma estava em Santo Anselmo, por vezes os padres, quando não estavam ocupados com outros afazeres, vinham assistir aos seus seminários, não sem antes lhe pedir permissão. Nunca falavam ou intervinham, nem, tão-pouco, Emma tinha a sensação de estar a ser discretamente controlada. Naquele dia, o padre John juntara-se aos quatro ordinandos, ao passo que o padre Peregrine, como de costume, ocupava a sua secretária ao fundo da biblioteca, e estava de tal forma embrenhado no seu trabalho que, aparentemente, a presença de outras pessoas lhe era indiferente. Os ordinandos encontravam-se sentados em cadeiras baixas, num círculo, à excepção de Peter Buckhurst, que escolhera uma cadeira de costas direitas e se mantinha calado, com as suas mãos muito brancas sobre o livro, como se estivesse a lê-lo em braile.
Emma planeara falar da poesia de George Herbert, mas, rejeitando as obras mais conhecidas, escolhera um poema mais difícil: A Quididade. Henry tinha acabado de ler em voz alta o último verso:
Não é ofício, arte, ou notícia, Nem a Bolsa, nem a atarefada Câmara;
Mas é o que, enquanto o uso, Me faz estar contigo, e todos o aceitam.
Fez-se silêncio, até que Stephen Morby perguntou:
O que quer dizer ”quididade”?
É a essência de algo.
E as últimas palavras: ”estar contigo, e todos o aceitam”? Que quis dizer ele com isso? Parece ser um erro de tipografia, mas é evidente que não o é. Estava à espera de que ele empregasse a palavra ”maior parte” e não ”todos”.
A nota da minha edição replicou Raphael refere que havia um jogo de cartas chamado ”Todos o aceitam”. O vencedor fica com todos os louros. Assim, penso que o que Herbert quis dizer foi que, quando escrevia poesia, entregava-se nas mãos de Deus, que o ajudava sempre.
Herbert gostava de trocadilhos explicou Emma. Lembram-se d O Pórtico da Igreja: Podia ser um jogo de cartas, em que se trocam as cartas por outras, de valor mais alto. Não nos podemos esquecer de que Herbert fala da sua poesia. Quando a escreve, tem tudo, porque está com Deus. Além do mais, os leitores da época conheciam o jogo de cartas a que ele se refere e compreendiam o trocadilho.
Quem me dera conhecer esse jogo! exclamou Henry. Devíamos fazer uma pesquisa e descobrir quais eram as regras. Não deve ser assim tão difícil.
Mas de nada nos serviria protestou Raphael. Quero que o poema me conduza ao altar e ao silêncio, e não a um livro de referências ou a um baralho de cartas.
Concordo. É um verso muito característico de Herbert, não é verdade? O mundano e até mesmo o frívolo santificados... Mesmo assim, gostaria de compreender melhor a sua mensagem.
Emma tinha os olhos postos no seu livro e só se deu conta de que alguém entrara na biblioteca quando os quatro estudantes se levantaram ao mesmo tempo. O inspector Dalgliesh parou junto à soleira da porta. Se estava desconcertado por perceber que havia interrompido uma aula, não o demonstrou, e o seu pedido de desculpas a Emma foi mais convencional do que sentido.
Peço que me desculpe. Não sabia que estavam a utilizar a biblioteca. Gostaria de falar com o padre John Betterton e disseram-me que o encontraria aqui.
O padre John, algo atrapalhado, levantou-se. Emma tinha plena consciência de que corara, mas, uma vez que lhe era impossível escondê-lo, forçou-se a encarar o olhar grave e sombrio de Dalgliesh. Não se levantara, e parecera-lhe que os quatro ordinandos se tinham aproximado dela, como se formassem um corpo de guarda-costas em batina, prontos a enfrentar qualquer intruso que ousasse afrontá-la.
Raphael, então, num tom de voz irónico e demasiado alto, proclamou:
As palavras de Mercúrio são ríspidas, depois de ouvirmos os cânticos de Apoio. Aquilo de que estávamos a precisar, justamente, era do polícia-poeta. Deparámo-nos com um problema em relação a George Herbert. Porque não se junta a nós, inspector, e nos ajuda, com toda a sua sapiência?
Dalgliesh fitou-o, em silêncio, por breves segundos.
Tenho a certeza de que Miss Lavenham dispõe de todos os conhecimentos necessários para vos ajudar. Vamos, padre?
A porta fechou-se atrás deles e os quatro ordinandos voltaram a sentar-se. Para Emma, aquele episódio tivera uma importância que ia muito além das palavras proferidas ou dos olhares trocados. Percebera que o inspector Dalgliesh não gostava de Raphael. Sabia que ele era um homem que nunca deixava que os seus sentimentos pessoais interferissem na sua vida profissional. E não o faria, agora, mas Emma estava convencida de que não interpretara mal aquela pequena faísca de antagonismo. Ainda mais estranho era o prazer que sentia com aquela sua dedução.
Cruzando os braços por baixo da batina, o padre Betterton seguiu Dalgliesh, tentando manter-se a seu lado, como uma criança obediente. Atravessaram o vestíbulo, saíram pela porta da frente e contornaram a mansão, dirigindo-se para a Vivenda São Mateus. O padre Betterton parecia mais envergonhado do que preocupado. Dalgliesh perguntava a si próprio como iria ele reagir ao interrogatório. Ao longo da sua carreira, todos aqueles que haviam tido encontros prévios com as autoridades, de que resultara uma detenção, nunca mais se sentiam à vontade na presença da Polícia. Dalgliesh receara que o julgamento e a detenção do padre Betterton, que devia ter sido uma experiência marcante, o impossibilitasse de colaborar. Kate, contudo, relatara como o padre Betterton suportara, com grande estoicismo, sem deixar transparecer qualquer repulsa, a recolha das suas impressões digitais, e eram poucos os potenciais suspeitos que acolhiam, de bom grado, aquele roubo oficial de identidade. Além do mais, aparentemente parecia menos afectado do que o resto da comunidade, tanto pelo homicídio como pela morte da irmã, mantendo o mesmo olhar de resignação espantada perante uma vida que tinha de ser sofrida em vez de ser aproveitada.
Depois de entrar na sala de interrogatórios, sentou-se na beira da cadeira, sem revelar o menor indício de que pensava ir passar por um suplício.
Foi o senhor que se encarregou de embrulhar as roupas do Ronald Treeves, antes que fossem devolvidas à família, padre? perguntou Dalgliesh.
A vaga sensação de embaraço deu lugar a um sentimento inquestionável de culpa.
Meu Deus, penso que cometi um disparate... Porque julgo que quer saber o que aconteceu ao capote...
Devolveu-o à família?
Não, mas é muito difícil de explicar. E pareceu ainda mais envergonhado quando olhou para Kate. Seria mais fácil para mim, se pudesse testemunhar na presença do seu outro assistente, inspector. É que se trata realmente de algo muito embaraçoso para mim.
Não era um pedido a que Dalgliesh normalmente tivesse acedido, mas as circunstâncias, só por si, eram invulgares.
Na qualidade de oficial da Polícia, Miss Miskin está habituada a ouvir confidências embaraçosas. Mas, se isso o faz sentir-se mais à vontade...
Sim, faz. Por favor. Sei que parece um disparate da minha parte, mas será mais fácil para mim.
A um sinal de Dalgliesh, Kate retirou-se. Piers estava a trabalhar no computador no andar de cima, e Kate anunciou:
O padre Betterton tem algo a revelar que, ao que tudo indica, não é conveniente para os meus ouvidos castos de senhora. O Adam Dalgliesh mandou chamar-te. Parece que o capote do Treeves não foi devolvido à família. Porque não nos disseram antes? Mas, afinal, o que se passa com esta gente?
Nada respondeu Piers. Só não raciocinam como os polícias.
Não raciocinam como qualquer pessoa que alguma vez tenha conhecido. Dêem-me um bom vilão, à moda antiga!
Piers cedeu-lhe o lugar e desceu à sala de interrogatórios.
Afinal, o que aconteceu, padre? quis saber Dalgliesh, depois de Piers se sentar a seu lado.
Penso que o padre Sebastian lhe terá contado o pedido que me fez para que eu embrulhasse as roupas do rapaz. Ele pensava... Nós pensámos que não seria justo pedir a um dos nossos colaboradores que se encarregasse desse trabalho. As roupas dos mortos constituem algo de muito pessoal. É sempre penoso termos de tratar dos seus pertences. Subi ao quarto do Ronald e agrupei as suas roupas. Não tinha muita coisa, claro. Não encorajamos os nossos estudantes a trazer roupas ou objectos pessoais em demasia. Pedimos-lhes que tragam apenas o estritamente necessário. Agrupei as coisas dele, mas, quando estava a dobrar o capote, reparei que... O padre Betterton hesitou. Bem, reparei que estava manchado no lado de dentro.
Manchado de quê, padre?
Bem, era óbvio que ele tinha estado deitado, com o capote vestido, enquanto fazia amor.
Era uma mancha de esperma? perguntou Piers.
Sim, era uma mancha bastante grande, por sinal. Achei que não devia enviar o capote, naquele estado, ao pai dele. O Ronald nunca haveria de o querer e eu sabia... nós sabíamos que Sir Aired se opusera a que o filho viesse estudar para Santo Anselmo e não desejava, tão-pouco, que ele se tornasse padre. Se tivesse visto o capote, isso poderia trazer problemas ao instituto.
Está a referir-se a um escândalo sexual?
Sim, ou algo do género. E teria sido tão humilhante para o pobre Ronald... Tenho a certeza de que seria a última coisa que pretenderia que acontecesse. Muito embora eu não soubesse o que fazer, conclui que nunca poderia enviar o capote naquele estado.
Porque não tentou limpá-lo?
Por acaso, pensei nisso, mas não me seria nada fácil. Tinha medo de que a minha irmã me visse com o capote e me perguntasse o que estava a fazer. Não tenho muito jeito para lavar roupa, além de que, como é óbvio, não queria que ninguém me visse a lavar o capote. O nosso apartamento é pequeno e temos... tínhamos muito pouca privacidade. Então, decidi esquecer o problema. Sei que fui um verdadeiro idiota, mas o embrulho tinha de ficar pronto para ser entregue ao motorista de Sir Aired, e pensei que poderia tratar do capote mais tarde. Não queria que alguém soubesse o que acontecera e fosse contá-lo ao padre Sebastian. É que eu sabia quem era... Sabia quem era a mulher com quem o Ronald tivera relações sexuais.
Portanto, era uma mulher? perguntou Piers.
Sim, era. Posso afiançar-vos que era uma mulher.
Se não tiver qualquer ligação com o homicídio do arcediago replicou Dalgliesh, não existem motivos para que mais alguém, além de nós os três, o saiba. No entanto, penso que posso ajudá-lo. Essa mulher era a Karen Surtees?
O padre Betterton não ocultou o seu alívio.
Sim, era ela, de facto. É que, sabe, gosto muito de observar as aves e, num dos meus passeios, vi-os juntos, através dos meus binóculos. Estavam no promontório. Como é evidente, não disse nada a ninguém. É o tipo de coisas que o padre Sebastian teria grande dificuldade em deixar passar ao lado. E havia o Eric Surtees. É boa pessoa e sente-se feliz aqui, com os seus porcos. Não queria estragar a felicidade dele. Depois, pessoalmente, não me parecia um acto assim tão condenável. Se eles se amavam, se eram felizes juntos... Se bem que não faça ideia de como fosse o seu relacionamento. Mas, quando pensamos na crueldade, no orgulho e no egoísmo que tantas vezes perdoamos, o que Ronald fizera... aos meus olhos, não era assim tão terrível. Ele não era particularmente feliz aqui, como sabe. Não sei porquê, mas nunca chegou a integrar-se e penso que também não era feliz em casa dos pais. Talvez precisasse de conhecer alguém que se mostrasse afável e bondoso para com ele. As vidas dos outros são sempre um mistério... Não podemos julgá-las. Devemos usar de toda a nossa piedade e compreensão, tanto para com os mortos, como para com os vivos. Assim, rezei muito e decidi calar-me. Mas ficava com o problema do capote...
Padre, temos de encontrar esse capote quanto antes informou Dalgliesh. Que destino lhe deu?
Enrolei-o o mais que pude e lancei-o para o fundo do meu roupeiro. Sei que parece um acto disparatado mas, na altura, pareceu-me a melhor solução, até porque não tinha pressa em desfazer-me do capote... Mas os dias foram passando e tudo se complicou. Então, naquele sábado, compreendi que tinha de tomar uma decisão. Esperei que a minha irmã fosse dar um passeio. Peguei num dos meus lenços, molhei-o com água quente, ensaboei-o muito bem e esfreguei o local da mancha tão vigorosamente que consegui tirá-la. Depois, enxuguei o capote com uma toalha e deixei-o a secar em frente do fogão a gás. Foi então que pensei que era melhor tirar a etiqueta, para que as pessoas não se lembrassem da morte do Ronald. Desci ao vestiário e pendurei o capote num dos ganchos. Assim, se um dos ordinandos, por acaso, se esquecesse do seu capote, podia usar aquele. Tinha resolvido dizer ao padre Sebastian que me esquecera de devolver o capote do Ronald, sem mais explicações. Bastaria dizer-lhe que o pendurara no vestiário. Sabia que ele concluiria que eu havia sido distraído e esqueceria rapidamente o incidente. Pareceu-me a melhor solução.
Dalgliesh havia aprendido, por experiência própria, que apressar o depoimento de uma testemunha pode ser catastrófico e conseguiu controlar a sua impaciência.
E onde está o capote agora, padre? perguntou.
Pendurado no vestiário, mais precisamente no último gancho, do lado direito. Deixei-o ali no sábado, pouco antes das completas. Já lá não está? Não pude verificar, claro... não que tal ideia me tenha passado pela cabeça... porque os senhores selaram a porta do vestiário.
Quando foi que pendurou o capote no vestiário, mais precisamente?
Como já disse, pouco antes das completas. Fui um dos primeiros a dirigir-me à igreja. Éramos muito poucos, porque a maioria dos estudantes estava ausente e os respectivos capotes tinham ficado pendurados no vestiário. Como devem calcular, não os contei. Pendurei o capote que pertencera ao Ronald onde já lhe disse: no último gancho, do lado direito.
Usou-o enquanto o teve em seu poder, padre? O padre Betterton fitou Dalgliesh.
Nunca faria uma coisa dessas. Nós temos os nossos capotes, que são pretos, e nunca precisaria de usar o do Ronald.
Em geral, os estudantes usam apenas os capotes deles ou são partilhados?
Cada um usa o seu. Por vezes, sem querer, enganam-se, mas isso nunca poderia acontecer na noite de sábado, porque nenhum dos ordinandos usa capote quando assiste às completas, excepto nos mais frios dias de Inverno. Até porque é um trajecto curto até à igreja,, se passarmos pelo claustro norte. E o Ronald nunca emprestaria o seu capote a ninguém. Era muito esquisito em relação às suas coisas.
Padre, porque não me contou isso antes? perguntou Dalgliesh.
Porque o senhor não mo perguntou.
Mas não lhe ocorreu que, quando examinássemos todos os capotes, à procura de vestígios de sangue, devêssemos saber se algum havia desaparecido?
Não. E, tanto quanto sei, o capote do Ronald não desapareceu. Estava pendurado num gancho, com os outros, no vestiário.
Dalgliesh aguardou. A confusão do padre John dera lugar a uma certa angústia. Olhou para Dalgliesh, depois para Piers, mas não encontrou qualquer conforto nos seus rostos.
Não pensei nos pormenores da vossa investigação, no que faziam ou no que tal coisa pudesse representar. Nem queria pensar nisso, porque não me dizia respeito. Tudo o que fiz foi responder honestamente às perguntas que os senhores me fizeram.
Dalgliesh era forçado a admitir que se tratava de um argumento perfeitamente válido. Porque haveria o padre John de pensar que o capote podia ser relevante para a investigação? Alguém que conhecesse melhor os procedimentos da Polícia, ou fosse mais curioso e interessado, teria fornecido aquela informação, mesmo sem saber se seria particularmente útil. Como o padre John não possuía nenhum desses requisitos, mesmo que lhe houvesse passado pela cabeça contar o que sabia, acabaria por achar que era mais importante a preservação do patético segredo do Ronald Treeves.
Lamento imenso murmurou, constrangido. Dificultei o vosso trabalho? É importante?
E que resposta podia Dalgliesh dar?
O que é importante é a hora certa em que pendurou o capote no último gancho replicou. Tem a certeza de que foi antes das completas?
A certeza absoluta. Deviam ser nove e um quarto. Costumo ser dos primeiros a entrar na igreja para as completas; ia mencionar o assunto ao padre Sebastian, depois do serviço, mas saiu apressadamente e não tive oportunidade de falar com ele. E, na manhã seguinte, quando soubemos do homicídio, pareceu-me que não seria inteligente da minha parte preocupá-lo com um assunto que se tornara insignificante.
Obrigado por tudo, padre agradeceu Dalgliesh. O que o senhor nos contou é importante. E mais importante ainda é que guarde para si o que acabou de nos revelar. Ficava-lhe grato se não mencionasse esta nossa conversa a ninguém.
Nem mesmo ao padre Sebastian?
A ninguém. Quando a investigação tiver terminado, então, terá toda a liberdade de contar ao padre Sebastian aquilo que muito bem entender. Por ora, não quero que ninguém saiba que o capote do Ronald Treeves se encontra, algures, no instituto.
Mas não continua pendurado no gancho, no vestiário?
Neste momento, não, padre respondeu Dalgliesh, mas conto encontrá-lo.
Acompanhou à porta o padre Betterton, que parecia ter-se tornado, de repente, um homem muito velho e confuso. Já à soleira, reunindo forças, virou-se e disse:
Como é natural, não falarei a ninguém sobre a nossa conversa, porque o senhor mo pediu. Mas posso também pedir-lhe que nada diga sobre o relacionamento do Ronald Treeves com a Karen?
Se estiver relacionado com o homicídio do arcediago replicou Dalgliesh, então, não poderemos preservar esse segredo. É assim o homicídio, padre. São muito poucas as coisas que podemos manter em segredo quando um ser humano é assassinado. Mas posso afiançar-lhe que só será revelado se e quando eu o achar necessário.
Depois de lhe repetir quanto era importante que não falasse a ninguém do capote, Dalgliesh deixou o padre John partir. Havia uma vantagem em lidar com os padres e ordinandos de Santo Anselmo; podia ter-se a certeza de que, quando faziam uma promessa, a cumpriam.
Cinco minutos mais tarde, toda a equipa, incluindo os oficiais forenses, reuniu-se por trás das portas fechadas da Vivenda São Mateus. Dalgliesh contou o que acabara de saber.
Muito bem; vamos iniciar uma nova busca anunciou. Antes, porém, temos de esclarecer a questão dos três molhos de chaves. Após o homicídio, um molho de chaves desapareceu. Durante a noite, o Surtees tirou um, que enterrou na pocilga, mas já o devolveu. Isso significa que o Caim deve ter tirado o segundo molho, que tornou a colocar no devido lugar depois de assassinar o arcediago. Se partirmos do princípio de que era ele que usava o capote, pode estar escondido em qualquer lado, tanto no instituto como no exterior. Não é uma peça de vestuário que possa esconder-se facilmente, mas o Caim tinha muito por onde escolher: toda a área que abrange o promontório e a praia. Tinha, igualmente, o tempo a seu favor: podia esconder o capote entre a meia-noite e as cinco e trinta e cinco da madrugada. Talvez até o haja queimado. Existem inúmeras valas, no promontório, onde poderia atear uma fogueira sem que ninguém o visse. Só precisaria de petróleo e de uma caixa de fósforos.
Sei o que eu teria feito com o capote replicou Piers. Tê-lo-ia dado a comer aos porcos. Aqueles animais comem tudo, sobretudo se for uma peça de roupa ensanguentada. Teríamos muita sorte se encontrássemos alguma coisa, excepto, talvez, a pequena corrente, na parte de trás da gola.
Pois bem, então, tentem encontrar o capote ordenou Dalgliesh. Piers e Robbins, dirijam-se à Vivenda São João. O padre Sebastian deu-nos autorização para nos movermos por toda a parte e, assim, não precisaremos de um mandado, a não ser que alguém levante alguma objecção. É importante que ninguém saiba do que andamos à procura. Onde se encontram, neste instante, os ordinandos? Alguém sabe?
Penso que estão na sala de aulas no primeiro andar da mansão respondeu Kate. O padre Sebastian preparou um seminário sobre teologia.
Óptimo, porque mantê-los-á ocupados e não os teremos à perna. Mister Clark, não se importa de se encarregar, com os seus homens, das buscas no promontório e na costa? Pessoalmente, duvido muito que o Caim se tivesse dirigido até lá, debaixo daquela tempestade, só para deitar o capote ao mar, mas descobrirão vários esconderijos possíveis. A Kate e eu encarregamo-nos das buscas na mansão.
A equipa dispersou. Enquanto os oficiais forenses partiam em direcção ao mar e Piers e Robbins se encaminhavam para a Vivenda São João, Dalgliesh e Kate transpuseram o portão de ferro que dava acesso ao átrio oeste. O claustro norte já estava limpo de folhas, mas nada se havia encontrado de interessante, após o exaustivo exame da equipa forense, exceptuando o ramo de que Raphael falara e que, efectivamente, estava no seu quarto.
Dalgliesh abriu a porta do vestiário, onde pairava um cheiro a humidade. Os cinco capotes encontravam-se dependurados dos seus ganchos, numa triste decrepitude, como se estivessem ali há várias décadas. Dalgliesh calçou luvas de látex e virou o capuz de cada um dos capotes. As etiquetas estavam nos seus lugares: Morby, Arbuthnot, Buckhurst, Bloxham, McCauley. Passaram à lavandaria. Havia quatro cestos de roupa por baixo da mesa com tampo de fórmica, situada entre as duas janelas altas da divisão. Do lado esquerdo, podia ver-se um tanque com duas tábuas de madeira e um secador de roupa, muito antigo. As quatro máquinas de lavar roupa estavam encostadas à parede do lado direito e todas tinham as portas fechadas.
Kate ficou à soleira da porta, enquanto Dalgliesh abria as três primeiras portas. Quando se debruçou para abrir a quarta, Kate percebeu que ele se endireitou logo de seguida, e aproximou-se. Por trás do vidro espesso, podiam ver-se as pregas de uma peça de vestuário castanho, de lã. Tinham encontrado o capote.
Havia um cartão sobre a máquina de lavar. Pegando-lhe, Kate estendeu-o a Dalgliesh, sem dizer palavra. A mensagem fora escrita com uma caneta preta e a caligrafia era meticulosamente desenhada. ”Este veículo não deve ficar estacionado no pátio dianteiro. Tenha a bondade de o estacionar na parte de trás da mansão. P. G.”
É o padre Peregrine afirmou Dalgliesh. E parece ter sido ele que desligou a máquina de lavar; ainda há cinco centímetros de água no tambor.
Água com sangue? perguntou Kate. E debruçou-se, para ver melhor.
Não se vê muito bem, mas o laboratório procederá à análise. Avise o Piers e os outros. Diga-lhes que cessem as buscas. Quero que abram a porta desta máquina de lavar, recolham a água que ainda se encontra no tambor e enviem o capote para o laboratório. E quero que recolham amostras de cabelo de todos os residentes em Santo Anselmo. Ainda bem que o padre Peregrine passou por aqui. Se uma máquina deste tamanho tivesse completado o ciclo de lavagem, duvido que encontrássemos quaisquer vestígios, como sangue, fibras ou cabelos. O Piers e eu vamos falar com ele.
O Caim correu um grande risco comentou Kate. Foi um acto insano da sua parte voltar aqui e ligar a máquina de lavar. Foi por mero acaso que não encontrámos o capote mais cedo.
Ele pouco se importava que descobríssemos o capote. Talvez fosse exactamente isso que ele queria. O importante era que não estabelecêssemos um elo de ligação entre ele e o capote.
Mas ele devia saber que o padre Peregrine podia acordar e vir até cá, para desligar a máquina de lavar.
Não, Kate, ele não o sabia, porque é uma das pessoas que não se serve destas máquinas. Lembra-se do diário de Mistress Munroe? O George Gregory dá a sua roupa a lavar à Ruby Pilbeam.
O padre Peregrine estava sentado atrás da sua secretária, na extremidade oeste da biblioteca, e era difícil lobrigá-lo, escondido por trás de uma pilha de livros. Não havia mais ninguém na biblioteca.
Padre, na noite do crime, desligou uma das máquinas de lavar? perguntou Dalgliesh.
O padre Peregrine ergueu a cabeça. Aparentemente, não havia reconhecido, de imediato, os seus visitantes.
Ah, é o senhor, inspector Dalgliesh! Desculpe, mas não o reconheci exclamou. De que estava a falar?
Da noite de sábado. Da noite em que o arcediago foi assassinado. Perguntei-lhe se foi até à lavandaria e desligou uma máquina de lavar.
Fui até à lavandaria? Dalgliesh estendeu-lhe o cartão.
Creio que foi o senhor que escreveu este recado, porque está assinado com as suas iniciais. E, se não me engano, a caligrafia é sua...
Sim, de facto, é a minha caligrafia. Meu Deus, parece-me que se trata do cartão errado!
E que dizia o outro cartão?
Que os ordinandos não devem ligar as máquinas de lavar depois das completas. Deito-me cedo e tenho o sono leve. Aquelas máquinas já são muito velhas e fazem muito barulho. Penso que o defeito é do sistema de canalização e não das máquinas em si. Mas a questão nem é essa. Os ordinandos devem remeter-se ao silêncio depois das completas, e não é o melhor momento para se lavar roupa.
E ouviu a máquina a trabalhar, padre? Colocou este cartão em cima da máquina?
Devo ter sido eu, efectivamente, Mas devia estar ensonado, porque não me lembro
Ensonado, padre? interveio Piers. Não sei como alguém ensonado consegue pegar num papel e numa caneta e, depois, redigir um bilhete.
Pensava que me tinha explicado. Esse é o cartão errado. Tenho vários já preparados. Estão no meu quarto, se quiserem vê-los.
Seguiram-no até à cela que lhe servia de quarto. Ali, numa estante atulhada de livros, uma caixa de cartolina continha uma meia dúzia de cartões. Dalgliesh leu um por um: ”Esta secretária é para meu uso exclusivo. Pede-se aos ordinandos que não deixem aqui os seus livros. Tenham a bondade de tornar a colocar os livros nas respectivas prateleiras, pela ordem correcta.” ”Estas máquinas de lavar não devem ser utilizadas depois das completas. De ora em diante, desligarei toda e qualquer máquina que esteja a funcionar depois das dez da noite.” ”Este painel é reservado exclusivamente aos comunicados oficiais, e não à troca de recados pessoais entre os estudantes.” Todos os bilhetes estavam assinados: ”P. G.”
Para que eu me tenha enganado no cartão, devia estar mesmo meio a dormir concluiu o padre Peregrine.
O ruído da máquina deve tê-lo acordado, a dada altura, e o senhor foi até à copa para pôr termo ao barulho. Não pensou que isso podia ser importante quando Miss Miskin o interrogou?
Essa jovem perguntou-me se eu tinha ouvido alguém entrar ou sair da mansão e, também, se eu me ausentara do meu quarto. Lembro-me perfeitamente das palavras que ela empregou. Pediu-me que fosse exacto nas minhas respostas, e assim fiz. Respondi-lhe que não. Ninguém me falou nas máquinas de lavar.
Todas as máquinas tinham a porta fechada retomou Dalgliesh. Parece-me que, de costume, quando não estão a funcionar, as portas ficam abertas. Foi o senhor que as fechou?
Não me lembro, mas é bem possível que tenha sido eu respondeu o padre Peregrine, com evidente complacência. Seria um gesto natural da minha parte. Dou muito valor à ordem e à arrumação. Não gosto de ver aquelas máquinas abertas. Nem há motivo para isso.
Os pensamentos do padre Peregrine pareceram, então, concentrar-se novamente nos seus livros e no seu trabalho. Regressou à biblioteca, seguido de Dalgliesh e de Piers, e tomou o seu lugar, como se a entrevista tivesse acabado.
Dando tanto ênfase à sua voz quanto lhe era permitido, Dalgliesh perguntou:
Padre, está interessado em ajudar-me a apanhar o assassino? Não se mostrando intimidado pelo metro e oitenta de Dalgliesh, o padre Peregrine pareceu considerar aquela pergunta como uma proposta e não como uma acusação velada e, depois de um breve período de reflexão, respondeu:
Os assassinos devem ser presos, claro, mas não me parece que eu tenha a competência necessária para ajudá-lo, inspector. Não tenho qualquer experiência no campo da investigação policial. Talvez fosse melhor pedir ajuda ao padre Sebastian ou ao padre John. Eles lêem muitos romances policiais, o que deve conferir-lhes alguma perspicácia. Certa vez, o padre Sebastian emprestou-me um livro, da autoria de Mister Hammond Innes, mas, se a memória não me falha, era demasiado denso para o meu intelecto.
Piers, emudecido, ergueu o olhar para o alto e virou as costas àquele fiasco. Entretanto, sempre com o olhar pousado no seu livro, o padre Peregrine parecia ter-se animado e ergueu a cabeça.
Só uma coisa. Esse assassino, depois de cometer o crime, devia querer fugir. Devia ter um carro à sua espera, em frente do portão oeste. Parece-me o mais lógico. Mas já não o vejo a lavar roupa, numa altura daquelas. Essa história da máquina de lavar foi uma cilada para que o peixe mordesse o engodo.
Repetindo, em voz baixa, ”o peixe mordesse o engodo”, Piers afastou-se, como se não conseguisse aguentar mais.
Porque prosseguiu o padre Peregrine, com engodo ou sem ele, o significado é o mesmo. Os peixes, nomeadamente os arenques, foram a fonte de proteínas desta costa durante muitos anos. Não sei muito bem qual a etimologia da palavra ”engodo”, mas também se emprega a palavra ”isca” e não ”isco”, como muita gente pensa. Pode, inclusivamente, dizer-se que uma investigação não é ”iscada”, quando o seu êxito é comprometido por informações irrelevantes, como o meu bilhete, para mal dos meus pecados...
Claro, claro... anuiu Dalgliesh, suspirando, resignado. Mas não ouviu nem viu nada quando saiu do seu quarto?
Como já lhe disse, não me lembro de haver saído do meu quarto. Porém, uma vez que a máquina foi desligada e havia sobre ela um dos meus cartões, a evidência é incontestável. E tenho a certeza de que, se alguém tivesse entrado no meu quarto para me tirar um dos cartões, eu teria dado por isso. Mas não posso ajudá-lo mais do que já fiz. Lamento imenso, inspector.
O olhar do padre Peregrine tinha-se voltado novamente para o seu livro, e Dalgliesh e Piers deixaram-no. À porta da biblioteca, Piers exclamou:
Não consigo acreditar! O homem é doido! E pensar que ele é considerado competente para ensinar estudantes em pós-graduação!
Pelo que sei, é um professor brilhante replicou Dalgliesh. Além do mais, o que nos disse faz sentido. Acordou, ouviu um ruído que detesta, levantou-se, meio a dormir, pegou num dos seus cartões sem se aperceber de que era o errado, colocou-o em cima da máquina e voltou a deitar-se, sempre num profundo estado de sonolência. O problema é que não acredita que o assassino possa ser alguém de Santo Anselmo. Nem sequer admite essa possibilidade. E é a mesma coisa, em relação ao padre John e ao capote. Nem um nem o outro tentam ocultar-nos informações, tal como não se recusam peremptoriamente a colaborar. Mas, porque não raciocinam como um oficial de polícia, não vêem qual o interesse das perguntas que lhes fazemos e recusam-se, simplesmente, a pensar sequer na hipótese de que o assassino seja alguém de Santo Anselmo.
Nesse caso, vão ter um grande choque replicou Piers. E quanto ao padre Sebastian? E ao padre Martin?
Esses viram o corpo, Piers. Tem consciência do ”onde” e do ”como”. Mas a questão que se coloca é se têm noção, também, do ”quem”.
Na lavandaria, o capote tinha sido tirado da máquina e guardado num saco de plástico. A água, tingida de um rosa tão pálido que parecia mais imaginado do que real, fora recolhida em garrafas devidamente etiquetadas. Dois dos homens de Clark passavam pó pela máquina de lavar a fim de recolher impressões digitais. Dalgliesh tinha a sensação de que todos aqueles esforços eram inúteis; Gregory usara luvas, na igreja, e era pouco provável que as tivesse tirado antes de regressar à vivenda. Porém, tinham de o fazer; a defesa tentaria tudo por tudo para pôr em causa a eficácia da investigação.
Isto confirma comentou que o Gregory é o nosso principal suspeito, mas já o era, a partir do momento em que descobrimos o seu casamento. A propósito: onde é que ele está? Alguém o sabe?
Foi até Norwich esta manhã respondeu Kate. Disse a Mistress Pilbeam que voltaria a meio da tarde. É ela que arruma e limpa a vivenda, e estava lá quando ele saiu.
Assim que o Gregory regressar, vamos interrogá-lo mas, desta vez, quero que tudo o que ele disser fique gravado. Há duas coisas que são importantes. Ele não pode saber que o capote do Treeves permaneceu no instituto, nem que a máquina de lavar roupa foi desligada. Piers, vai falar novamente com o padre John e o padre Sebastian. Usa de tacto. E tenta certificar-te de que a mensagem chegará ao conhecimento do padre Peregrine.
Assim que Piers saiu, Kate exclamou:
Não podíamos pedir ao padre Sebastian que anunciasse que a porta do claustro norte já está aberta e que os estudantes podem servir-se da lavandaria? Ficaríamos de guarda para ver se o Gregory ia buscar o capote. Ele deve querer saber se nós o encontrámos.
É uma boa ideia, Kate, mas não provaria nada. Ele nunca cairia na armadilha. Se decidir ir até à lavandaria, levará uma trouxa de roupa suja consigo. E porque haveria de dar-se a esse trabalho? Planeou tudo de maneira a que encontrássemos o capote e nos convencêssemos, mais uma vez, de que o assassino é alguém do instituto. O que lhe interessa é que não consigamos provar que ele o usava na noite do crime. Em princípio, nada tinha a recear. Contudo, teve pouca sorte, porque o Surtees entrou na igreja no sábado à noite. Sem o testemunho do Surtees, nada provaria que o assassino usava capote. Também não teve sorte quando o padre Peregrine desligou a máquina de lavar. Se a máquina tivesse completado o ciclo de lavagem, não teriam ficado quaisquer vestígios.
Mesmo assim, ele podia alegar que o Treeves lhe havia emprestado o capote fez notar Kate.
Seria uma desculpa muito estranha. O Treeves era muito possessivo no que dizia respeito aos seus pertences. E por que motivo haveria de emprestar-lhe o seu capote? Mas tens razão. Provavelmente, essa alegação fará parte da sua defesa.
Piers, entretanto, regressara.
O padre John estava na biblioteca com o padre Peregrine anunciou. Penso que compreenderam a situação. Mas temos todo o interesse em vigiar o Gregory e interceptá-lo assim que ele regresse.
E se ele quiser um advogado? perguntou Kate.
Teremos de esperar que arranje um respondeu Dalgliesh. Contudo, Gregory não pedira um advogado. Uma hora mais tarde, estava sentado calmamente na sala de interrogatórios.
Creio conhecer os meus direitos e os vossos limites para não ter de pagar honorários a um advogado começou por dizer. Aqueles que poderiam realmente ajudar-me custar-me-iam muito caro, e aqueles a quem poderia pagar não me ajudariam em nada. O meu solicitador, se bem que tenha competência para redigir um testamento, revelar-se-ia um incómodo para todos nós. Não assassinei o Crampton. Não só a violência me repugna, como não tinha qualquer motivo para desejar a morte dele.
Dalgliesh tinha decidido deixar que Kate e Piers conduzissem o interrogatório. Ambos estavam sentados em frente de Gregory, enquanto Dalgliesh fora postar-se junto da janela virada a leste. Aquela sala tornara-se um estranho cenário para um interrogatório. Com a mesa quadrada, as quatro cadeiras e as duas poltronas, estava tão despojada de mobília como quando eles se haviam instalado ali. A única modificação que haviam feito fora substituir a lâmpada que iluminava a mesa. Os vestígios de que haviam ocupado a vivenda estavam patentes apenas na cozinha, onde havia várias chávenas e pairava um ténue cheiro a sanduíches e café, e na sala de espera, um pouco mais confortável, onde Mrs. Pilbeam havia colocado uma jarra com flores. Dalgliesh perguntava a si próprio de que forma um espectador casual interpretaria a cena que se desenrolava, então, naquele espaço funcional, com três homens e uma mulher manifestamente absorvidos pelos seus pensamentos. Podia interpretá-la apenas como um interrogatório ou uma conspiração, cuja atmosfera misteriosa era realçada pelo bater ritmado das ondas na praia.
Kate ligou o gravador e passou às perguntas preliminares. Gregory indicou o seu nome e endereço, e os três polícias, o seu nome e a sua patente.
Foi Piers quem fez a primeira pergunta:
O arcediago Crampton foi assassinado no sábado passado, por volta da meia-noite. Onde esteve, nessa noite, a partir das dez horas?
Já respondi a essa pergunta, da primeira vez que me interrogaram. Estava em casa, a ouvir Wagner. Não saí de casa, a não ser quando me telefonaram e me pediram que estivesse presente na reunião que o padre Sebastian convocara para a biblioteca.
Temos a prova de que alguém, nessa noite, entrou no quarto do Raphael Arbuthnot. Foi o senhor?
Como podia ser eu? Pois se acabo de vos dizer que não saí de minha casa.
No dia vinte e sete de Abril de mil novecentos e oitenta e oito, casou-se com a Clara Arbuthnot, e já nos revelou que o Raphael era seu filho. Tinha consciência, naquela altura, de que o seu casamento tornaria o Raphael um filho legítimo e, por conseguinte, o herdeiro de Santo Anselmo?
Houve um breve silêncio. ”Ele não sabe como foi que descobrimos que se casou com a Clara Arbuthnot e não tem a certeza do que sabemos”, concluiu Dalgliesh.
Na altura, não tive consciência disso respondeu Gregory, por fim. Só mais tarde... mas não me lembro quando... me dei conta de que a lei de mil novecentos e setenta e seis tornava o meu filho um herdeiro legítimo.
Quando se casou, conhecia as cláusulas do testamento de Miss Agnes Arbuthnot?
Desta vez, não houve qualquer hesitação. Dalgliesh não tinha quaisquer dúvidas de que Gregory se havia informado, provavelmente através de uma pesquisa efectuada em Londres, se bem que devesse ter usado uma falsa identidade e, consequentemente, estivesse convencido de que a Polícia nunca conseguiria apresentar prova disso.
Não, não conhecia.
A sua esposa não lhe falou das cláusulas do testamento, quer antes, quer depois do casamento?
Nova hesitação e um brilho nos olhos. Por fim, decidiu arriscar:
Não, ela nada me disse a esse respeito. Estava mais preocupada em salvar a sua alma do que com o futuro financeiro do nosso filho. E, se essas vossas perguntas, algo ingénuas, se destinam a provar que eu tinha um móbil, então, permitam-me que vos faça notar que se aplicam igualmente aos quatro padres residentes.
Que engraçado... sibilou Piers. Julgava que não tinha conhecimento das disposições do testamento de Miss Agnes Arbuthnot...
Não estava a pensar nas vantagens financeiras. Pensava na antipatia generalizada em relação ao arcediago. E, se pretendem insinuar que o matei para assegurar que o meu filho se tornasse o único herdeiro, tenho de vos lembrar de que há muito se previa que o instituto encerrasse. Todos nós sabíamos que seria apenas uma questão de tempo.
Talvez o encerramento fosse inevitável replicou Kate, mas não imediato. O padre Sebastian podia ter conseguido um adiamento de um ou de dois anos, ou seja, o tempo suficiente para que o seu filho terminasse a sua formação e fosse ordenado padre. Era isso que o senhor queria?
Teria preferido que ele seguisse uma outra carreira mas penso que é esse um dos pequenos incómodos de ser pai. Os filhos raramente agem com sensatez. Depois de o ignorar durante vinte e cinco anos, não ficaria bem aconselhar o Raphael sobre o modo como devia orientar a sua vida.
Descobrimos hoje foi a vez de Piers falar que o assassino do arcediago usava o capote de um dos ordinandos. Descobrimos um capote numa das máquinas da lavandaria de Santo Anselmo. Foi o senhor que o escondeu ali?
Não, não fui eu, nem sei quem o tenha feito.
Descobrimos também que alguém, provavelmente um homem, telefonou a Mistress Crampton às nove horas e vinte e oito minutos da noite do crime, alegando estar a telefonar do gabinete da diocese, para lhe pedir o número do telemóvel do arcediago. Foi o senhor que efectuou esse telefonema?
Gregory reprimiu um sorriso.
Este interrogatório é surpreendentemente simplista para uma equipa que, segundo soube, é considerada das melhores da Scotland Yard. Não, não fui eu que efectuei esse telefonema, nem sei quem o fez.
Era a hora a que os padres e os quatro ordinandos deviam ir assistir às completas. Onde se encontrava nessa altura?
Na minha casa, a corrigir alguns testes. E não fui o único a não ir às completas. O Yarwood, o Stannard, o Surtees e o Pilbeam, bem como as três senhoras, resistiram à tentação de ir ouvir a prédica do arcediago. Têm a certeza de que foi um homem que telefonou para Mistress Crampton?
O homicídio do arcediago não foi a única tragédia que pôs em perigo o futuro de Santo Anselmo prosseguiu Kate. A morte do Ronald Treeves também não ajudou. Ele esteve em sua casa, na sexta-feira à noite, e morreu no dia seguinte. O que se passou, naquela sexta-feira à noite?
Gregory fitou-a. A sua expressão de aversão e de desprezo era tão patente como se tivesse acabado de cuspir. Kate corou.
O Ronald Treeves fora rejeitado e traído retomou ela. Foi ter consigo na esperança de ser confortado e o senhor mandou-o embora. Foi o que aconteceu, não é verdade?
Ele foi a minha casa para ter uma lição de Grego. É verdade que a lição durou menos tempo do que o habitual, mas foi ele que mo pediu. Já devem saber, por certo, que ele tinha roubado uma hóstia consagrada. Aconselhei-o a que fosse confessar-se ao padre Sebastian. Não podia dar-lhe outro conselho, e estou certo de que teriam feito o mesmo. Ele perguntou-me se corria o risco de ser expulso, e respondi-lhe que, com os preconceitos do padre Sebastian, teria de contar com isso. Queria que eu o tranquilizasse, mas não podia dar-lhe qualquer esperança. Mais valia que ele se arriscasse a ser expulso do que cair nas mãos de uma chantagista. O pai dele é muito rico e aquela mulher tê-lo-ia submetido a chantagem durante anos.
O que o leva a pensar que a Karen Surtees é uma chantagista? Conhece-a assim tão bem?
O suficiente para saber que é uma jovem sem escrúpulos e que tem sede de poder. O segredo do Treeves nunca ficaria a salvo nas mãos dela.
Portanto, ele saiu da sua casa e suicidou-se concluiu Kate.
Infelizmente, mas nunca poderia tê-lo previsto nem, muito menos, impedido.
E houve uma outra morte interveio Piers. Temos a prova de que Mistress Munroe tinha descoberto que o senhor era o pai do Raphael. Ela disse-lhe que o sabia?
De novo se fez silêncio. Gregory pousara as mãos sobre a secretária e fitava os seus interlocutores. Não conseguia ver-lhe o rosto, mas Dalgliesh sabia que aquele homem estava prestes a tomar uma decisão, porque se perguntava, de novo, o que sabia a Polícia, tentando perceber se Margaret Munroe falara com mais alguém ou se havia deixado um bilhete.
O silêncio não durou mais de seis segundos, se bem que parecesse muito mais longo.
Sim, ela foi visitar-me respondeu Gregory, por fim.
Tinha feito certas pesquisas... não precisou quais, que confirmavam as suas suspeitas. Aparentemente, havia duas coisas que a preocupavam. Primeiro, achava que eu estava a enganar o padre Sebastian, trabalhando aqui sob um falso pretexto e, acima de tudo, pensava que o Raphael tinha o direito de saber a verdade. Se bem que o assunto não lhe dissesse respeito, achei por bem explicar-lhe por que motivo eu não me casara com a mãe do Raphael quando ela engravidara, e porque voltara atrás na minha decisão mais tarde. Disse-lhe ainda que, para falar com o Raphael, estava à espera, primeiro, de ter motivos para achar que a notícia não iria ser demasiado desagradável para ele. Queria escolher o momento certo. Prometi-lhe que falaria com o Raphael antes do final do período. Com base nessa minha promessa, que ela não tinha qualquer direito de exigir, prometeu, por seu lado, manter segredo.
E, nessa mesma noite, morreu rematou Dalgliesh.
De um ataque cardíaco. Se o choque provocado pela sua descoberta e pelo esforço que fez para me falar do assunto foram fatais para ela, então, só me resta lamentá-lo. Não creio que possam responsabilizar-me por todas as mortes que ocorreram em Santo Anselmo. Daqui a pouco vão acusar-me de ter empurrado a Agatha Betterton pela escada abaixo.
E empurrou-a? perguntou Kate.
Desta vez, Gregory foi suficientemente inteligente e disfarçou o seu desprezo.
Pensava que investigavam a morte do arcediago Crampton. Nunca me passou pela cabeça que quisessem fazer-me passar por um assassino em série. Não seria melhor concentrarem-se na única dessas mortes que foi, incontestavelmente, um homicídio?
Foi então que Dalgliesh interveio.
Vamos recolher uma amostra de cabelo de todos aqueles que passaram a noite de sábado em Santo Anselmo. Penso que não verá qualquer inconveniente...
Não, se essa afronta se estender a todos os outros suspeitos. Deduzo que não seja preciso uma anestesia geral para tal procedimento...
De pouco lhes servia, agora, prolongar o interrogatório, e Kate desligou o gravador.
Podem recolher uma amostra do meu cabelo agora propôs Gregory. É que faço tenção de trabalhar e não quero ser interrompido.
E, dito aquilo, saiu.
Quero essas amostras esta noite informou Dalgliesh. Depois, regresso a Londres. Pretendo estar no laboratório quando procederem ao exame do capote. Se nos derem prioridade, não levará mais de dois dias a termos os resultados. Vocês os dois ficam aqui com o Robbins. Vou falar com o padre Sebastian para que possam instalar-se aqui, na vivenda. Se não houver camas de reserva, deve conseguir arranjar, ao menos, um colchão ou um saco-cama. E quero que vigiem o Gregory durante vinte e quatro horas por dia.
E se não conseguirmos obter nada com o resultado do exame do capote? perguntou Kate. Tudo o que conseguimos, até agora, foram provas circunstanciais. Sem provas conclusivas, não poderemos fundamentar a nossa acusação.
Kate acabara de dar voz ao que era óbvio e nem Dalgliesh nem Piers replicaram.
Quando a irmã era viva, o padre John raramente comparecia às refeições, excepto ao jantar, porque o padre Sebastian contava com a presença de todos os residentes, por encarar aquela refeição como a celebração da união da vida comunitária. De uma forma algo inesperada, apareceu para o chá, na terça-feira. A morte da irmã não fora objecto de nenhuma reunião oficial no instituto; o padre Sebastian transmitira a notícia a cada um dos residentes, em privado. Os quatro ordinandos já haviam ido visitar o padre John, para lhe apresentar condolências e, agora, esforçavam-se por lhe transmitir a sua simpatia, enchendo-lhe a chávena e levando-lhe sanduíches, scones e fatias de bolo da mesa do refeitório. Sentado perto da porta, aquele homenzinho tranquilo, sempre muito educado, sorria de tempos a tempos. Depois do chá, Emma sugeriu-lhe que talvez pudesse começar a separar as roupas de Miss Betterton e subiram, juntos, ao apartamento.
Por não saber muito bem como iria embrulhar as peças de roupa, Emma havia pedido a Mrs. Pilbeam dois grandes sacos de plástico, um para aquilo que pudesse ser enviado para Oxfam ou outra instituição de caridade, e outro para tudo quanto seria deitado fora. Mas os dois sacos pretos pareciam tanto ser simples sacos de lixo que Emma decidiu começar por fazer uma triagem preliminar e só depois embrulhar e tirar as roupas do apartamento, numa altura em que o padre John estivesse ausente.
Deixou-o, sentado, na semiobscuridade da sala de estar, junto das chamas azul-claras do seu fogão a gás, e entrou no quarto de Miss Betterton. Um candeeiro com um abajur empoeirado e fora de moda fornecia uma fraca iluminação, mas havia, na mesa-de-cabeceira, um outro candeeiro com uma lâmpada mais potente, que projectava um feixe de luz pelo quarto, e Emma pôde começar a sua tarefa. Do lado direito da cama de latão havia uma cadeira e uma cómoda de gavetas arredondadas. A outra única peça de mobiliário era o imenso roupeiro de mogno, com pés esculpidos, que ocupava todo o espaço entre as duas janelas. Emma abriu a porta e as suas narinas captaram, de imediato, o cheiro a bafio, a que se misturava o odor a alfazema e a naftalina.
A tarefa de separar e pôr de lado as roupas de Miss Betterton revelou-se menos difícil do que ela pensava. Ao longo da sua vida solitária, Miss Betterton usara poucas roupas e custava a crer que tivesse comprado algo nos últimos dez anos. Emma tirou do roupeiro um casaco pesado, de pêlo de rato-almiscarado, muito puído, dois fatos de tweed, cujos casacos, cintados e de ombros almofadados, deviam ter estado em moda nos anos trinta, uma colecção variada de casacos de malha e de saias compridas de tweed, e dois vestidos de noite em veludo e cetim de excelente qualidade, mas de corte tão arcaico que dificilmente uma mulher moderna os usaria, a não ser para um baile de máscaras. A cómoda continha blusas, roupa interior, cuecas que, se bem que parecessem lavadas, se apresentavam manchadas no interior, camisas de dormir de manga comprida e bolas de peúgas brancas. Pouco havia ali que pudesse ser oferecido a uma instituição de caridade.
Sentiu uma súbita piedade por Miss Betterton ao pensar, algo revoltada, que o inspector Tarrant e o seu colega haviam remexido naqueles restos patéticos. O que esperavam encontrar? Uma carta, um diário, uma confissão? Durante a Idade Média, as congregações de fiéis, confrontadas domingo após domingo com a imagem aterradora do Juízo Final, oravam para que fossem poupadas a uma morte súbita, por recearem entregar a alma ao Criador, sem se confessarem, primeiro. Nos tempos que corriam, os homens, nos seus derradeiros momentos, eram mais propensos a lamentar haverem deixado a secretária desarrumada, projectos inacabados e cartas que pudessem incriminá-los.
Foi então que Emma fez uma descoberta surpreendente, ao abrir a gaveta de baixo. Cuidadosamente embrulhada em papel pardo, havia uma farda de oficial da RAF, com as asas por cima do bolso esquerdo, dois galões nas mangas e uma faixa com condecorações, além de um boné achatado e já muito velho. Emma tirou o casaco e a farda, pousou-os sobre a cama e contemplou-os, em silêncio, durante alguns momentos.
Encontrou as jóias na gaveta da esquerda da cómoda, guardadas num pequeno estojo de couro. Havia pouca coisa e os camafeus e medalhões, os anéis pesados, de ouro, e os longos colares de pérolas pareciam ser herança de família. Era difícil estabelecer o seu valor, muito embora algumas das pedras preciosas parecessem genuínas, e Emma perguntou a si própria como iria cumprir a promessa que fizera ao padre John. Talvez fosse melhor levar as jóias até Cambridge, e mandá-las avaliar numa das joalharias da cidade. Até lá, seria uma grande responsabilidade para ela guardá-las em lugar seguro.
O estojo tinha um fundo falso e, ao levantá-lo, encontrou um pequeno sobrescrito, amarelecido pelo passar dos anos. Abriu-o e encontrou um anel de ouro, com um rubi rodeado de diamantes. Muito embora as pedras fossem pequenas, estavam incrustadas artisticamente. Tomada por um súbito impulso, Emma enfiou-o no dedo anelar esquerdo e reconheceu o que era: um anel de noivado. Devia ter sido oferecido a Miss Betterton pelo aviador, que devia ter morrido em combate: se não, de que outra forma podia ter ela conservado a farda? Emma imaginou, então, um avião solitário, provavelmente um Spitfire ou um Hurricane, a rodopiar, fora de controlo, deixando atrás de si um rasto de fumo, antes de mergulhar no canal. Ou o homem da farda teria sido piloto de um caça, abatido ao sobrevoar terreno inimigo, juntando-se, na morte, a todos aqueles a que as suas bombas haviam tirado a vida? Havia ele sido amante de Agatha Betterton, antes de morrer?
Porque custava tanto a crer que os velhos haviam sido novos, fortes e senhores da beleza animal tão característica da juventude? Porque seria tão difícil imaginar que haviam amado e sido correspondidos, tinham rido e experimentado o optimismo dos jovens? Lembrou-se de Miss Betterton, nas poucas ocasiões em que a vira, passeando ao longo do penhasco, com um gorro de lã na cabeça e o queixo espetado para a frente, como se combatesse um inimigo mais poderoso do que o vento; ou a cruzar-se com ela, nas escadas, cumprimentando-a com um leve aceno de cabeça, ou fitando-a, de relance, com aqueles seus olhos escuros e assustadoramente penetrantes. Raphael gostava dela e haviam passado muito tempo juntos. Mas seria o afecto dele genuíno ou apenas uma resposta ao dever de se mostrar gentil para com uma senhora de idade? E, se aquele anel era realmente de noivado, porque deixara Miss Betterton de usá-lo? Talvez por representar algo que havia acabado e que tinha de ser guardado, tal como Miss Betterton guardara a farda do seu noivo. Porque não quisera lembrar-se, ao acordar, todas as manhãs, de que aquele símbolo sobrevivera ao homem que comprara o anel e iria sobreviver também a ela. Porque não quisera exibir publicamente o seu desgosto, em cada gesto da sua mão. Era um lugar-comum afirmar-se que os mortos continuam vivos na memória daqueles que os amaram, mas de que servia a memória como substituto de uma voz terna e de dois braços fortes? E não era essa a inspiração de quase toda a poesia no mundo? O lado transitório da vida, do amor e da beleza? A tomada de consciência de que o carro alado do tempo tem punhais nas rodas? Alguém bateu à porta. Emma virou-se e deparou com Miss Miskin. Por breves momentos, as duas mulheres entreolharam-se, e Emma não detectou qualquer sinal de amizade no olhar de Kate Miskin.
O padre John disse-me que a encontraria aqui. O inspector Dalgliesh pediu-me que informasse toda a gente de que regressou a Londres, mas eu, o inspector Tarrant e o sargento Robbins ficaremos aqui, por enquanto. Agora que se instalaram fechaduras nas portas dos quartos de hóspedes, é importante que se tranque, todas as noites. Estarei no instituto, depois das completas, e acompanhá-la-ei até ao seu quarto.
Então, o inspector Dalgliesh partira sem se despedir. E porque haveria de o fazer? Tinha mais coisas em que pensar do que nas regras de cortesia. Devia ter-se despedido apenas do padre Sebastian, porque a mais não era obrigado.
O tom de voz de Miss Miskin fora cortês e Emma sabia que estava a ser injusta, sentindo-se ofendida pelo facto de o inspector Dalgliesh não se haver despedido dela.
Não preciso que me escolte ao meu quarto declarou. Mas julgam que corremos perigo?
Fez-se silêncio, até que Kate Miskin replicou:
Eu não disse isso, mas é bom não esquecer que há um assassino à solta e, enquanto não o apanharmos, será melhor que todos tomem precauções.
Vão proceder a uma detenção? Nova pausa.
Assim o esperamos. Afinal, é para isso que cá estamos. Para proceder a uma detenção. Lamento não lhe poder dizer mais de momento. Vemo-nos mais tarde.
E saiu, fechando a porta atrás de si. Ficando novamente sozinha, olhando para o boné dobrado e a farda sobre a cama, e com o anel de noivado ainda na mão, Emma sentiu os olhos marejados de lágrimas. Contudo, não saberia dizer se chorava por sentir pena de Miss Betterton e do seu amado, ou se por sentir pena de si própria. Por fim, tornou a colocar o anel dentro do sobrescrito e decidiu-se a terminar a sua tarefa.
Na manhã seguinte, antes que o Sol nascesse, Dalgliesh dirigiu-se ao laboratório de Lambeth. Chovera toda a noite e, se bem que a chuva tivesse parado, as luzes encarnadas, amarelas e verdes dos semáforos projectavam o seu reflexo garrido e trémulo nas estradas ainda encharcadas, enquanto, no ar, pairava o cheiro a maresia. Londres parecia dormir apenas entre as duas e as quatro da madrugada. Agora, a pouco e pouco, a capital começava a despertar e os trabalhadores, em pequenos grupos, emergiam para se apoderarem da cidade.
O material recolhido na cena de um crime em Suffolk normalmente teria sido enviado para o laboratório forense de Huntingdon, mas este encontrava-se sobrecarregado com trabalho. Lambeth dispusera-se a dar prioridade máxima àquele caso, conforme Dalgliesh havia pedido. Conheciam-no bem no laboratório, e foi saudado com grande entusiasmo pelo pessoal. A Dr.a Anna Prescott, responsável pelo Departamento de Biologia Forense, estava à sua espera. Havia fornecido inúmeros testemunhos à coroa, em muitos dos casos investigados por Dalgliesh, e este sabia quanto o seu êxito profissional dependera da reputação da Dr.a Anna Prescott como cientista, da confiança e lucidez com que apresentava as suas descobertas ao júri e da sua calma e segurança quando era interrogada pela defesa. Contudo, tal como todos os cientistas forenses, não era oficial da Polícia. Se Gregory fosse levado a julgamento, ela prestaria o seu depoimento como especialista independente, com autoridade apenas para falar dos factos de que tivesse conhecimento.
O capote fora posto a secar na máquina do laboratório e, agora, estava estendido sobre uma grande mesa iluminada pelo clarão de quatro lâmpadas fluorescentes. O fato de treino de Gregory fora levado para uma outra mesa, a fim de evitar qualquer contaminação. Proceder-se-ia à recolha, com fita adesiva, das fibras do fato de treino que pudessem encontrar-se à superfície do capote, para depois serem examinadas e comparadas ao microscópio. Se aquele exame microscópico inicial revelasse que as fibras originais do fato de treino correspondiam àquelas que fossem encontradas no capote, seguir-se-ia uma série de outrros testes comparativos, incluindo a análise instrumental da composição química das próprias fibras. Mas tudo aquilo demorava bastante tempo e só seria efectuado mais tarde. O sangue já seguira para o laboratório de análises, e Dalgliesh aguardava o resultado sem qualquer ansiedade, por ter a certeza de que pertencia ao arcediago Crampton. O que ele e a Dr.a Prescott procuravam, agora, eram cabelos. Munidos de máscaras, luvas e batas, os dois debruçaram-se sobre o capote. Dalgliesh, então, concluiu que o olhar humano era um espantoso instrumento de pesquisa. Precisaram apenas de alguns segundos para encontrar o que procuravam. Enrolados na corrente dourada que havia na parte de trás da gola, podiam ver-se dois cabelos grisalhos. A Dra. Prescott desenrolou-os com todo o cuidado e colocou-os numa lamela de vidro. Examinou-os, de imediato, ao microscópio e anunciou com viva satisfação:
Ambos ainda têm as respectivas raízes, o que significa que temos boas hipóteses de obter o seu ADN.
Dois dias depois, às sete e meia da manhã, Dalgliesh, que regressara ao seu apartamento com vista para o Tamisa, recebeu um telefonema do laboratório. Haviam conseguido extrair o ADN das duas raízes de cabelos e era o de Gregory. Se bem que já esperasse aquela notícia, Dalgliesh recebeu-a com algum alívio. A comparação feita ao microscópio das fibras encontradas no capote e na superfície do fato de treino revelara que eram idênticas, mas ainda teriam de esperar pelos resultados finais. Pousando o auscultador, Dalgliesh reflectiu por breves momentos. Devia aguardar ou actuar imediatamente? Não queria adiar mais aquela detenção. O ADN provava que Gregory usara o capote do Ronald Treeves, e a comparação entre as fibras só viria confirmar aquela incontestável descoberta. Podia telefonar a Kate e a Piers, que se achavam ainda em Santo Anselmo, porque ambos tinham competência suficiente para proceder a uma detenção. Contudo, Dalgliesh sentia que devia estar presente e sabia porquê. O acto de prender Gregory, de lhe dizer quais os seus direitos, amenizaria, de certa forma, o fracasso da sua investigação precedente, quando, apesar de conhecer a identidade do assassino e de escutar a sua confissão, não conseguira provas suficientes para o deter. Não participar naquela detenção, agora, seria como deixar algo inacabado, se bem que Dalgliesh não soubesse muito bem o quê.
Como já esperava, tivera muito com que se ocupar naqueles dois últimos dias. Regressara para encontrar trabalho em atraso, problemas que eram da sua responsabilidade e outros que o preocupavam tanto como a todos os outros oficiais. Havia uma grande falta de homens no activo e tornava-se urgente recrutar homens e mulheres inteligentes, educados e motivados, de todos os quadrantes da sociedade, numa altura em que as outras carreiras ofereciam salários mais elevados, maior prestígio e menor stresse. Era preciso reduzir o peso da burocracia, aumentar a eficácia dos detectives e lutar contra a corrupção, numa época em que o suborno não se traduzia por uma nota de dez libras enfiada num bolso, mas na partilha de lucros elevados provenientes do tráfico de droga. Entretanto, ia regressar, se bem que por pouco tempo, a Santo Anselmo. Deixara de ser um lugar de bondade e de paz, mas tinha de terminar a sua missão e queria rever certas pessoas. Deu consigo a pensar se Emma Lavenham estaria ainda no instituto.
Afastando da sua mente as complicações da sua agenda sobrecarregada, os processos que requeriam a sua atenção e a reunião que fora marcada para aquela tarde, deixou uma mensagem para o comissário adjunto e para a sua assistente pessoal. Só depois telefonou a Kate. A calma reinava em Santo Anselmo uma calma anormal, segundo ela. As pessoas tinham retomado a sua rotina diária, mas com uma espécie de energia disfarçada, como se aquele cadáver ensanguentado ainda jazesse, na igreja, aos pés do Juízo Final. Kate tinha a sensação de que, no instituto, ainda se aguardava pelo desenlace que todos os residentes desejavam mas que, por outro lado, pareciam temer. Gregory não se mostrara. A pedido de Dalgliesh, entregara o seu passaporte depois do último interrogatório, e não havia perigo de que pudesse fugir. Mas a fuga nunca havia sido uma opção para Gregory, porque não fazia parte dos seus planos ser apanhado, de forma humilhante, num país estrangeiro e inóspito.
Estava frio e Dalgliesh sentiu, pela primeira vez, no ar de Londres, o travo metálico do Inverno. Um vento agreste varria a City e, quando alcançou a A12, as rajadas tinham-se tornado mais fortes. Para seu espanto, havia muito pouco trânsito, à excepção dos camiões que seguiam para os portos da costa leste, e Dalgliesh conduziu a grande velocidade, com as mãos pousadas ao de leve no volante e os olhos fixos na estrada. Que possuía ele, a não ser dois cabelos grisalhos, como frágeis instrumentos de justiça? No entanto, teriam de ser suficientes.
Pensou, então, no julgamento e deu consigo a analisar a alegação da defesa. A prova do ADN nunca poderia ser contestada; Gregory usara o capote de Ronald Treeves. Mas o advogado de defesa alegaria, provavelmente, que o seu constituinte, ao dar a aula de Grego a Treeves, naquela sexta-feira, lhe havia pedido emprestado o capote, talvez depois de se queixar que tinha frio, e que, nesse mesmo dia, usara o seu fato de treino preto. Nada era menos provável, mas iria o júri acreditar naquela hipótese? Gregory possuía um móbil forte, mas todos os outros residentes também, incluindo Raphael. O ramo que se havia encontrado no chão da saleta de Raphael podia ter entrado, trazido pelo vento, quando ele saíra do seu quarto para ir fazer companhia a Peter Buckhurst; por conseguinte, a acusação talvez fizesse melhor em não explorar demasiado aquela hipótese. O telefonema recebido por Mrs. Crampton, da cabina do instituto, era uma prova perigosa para a defesa, mas podia ter sido feito por outras oito pessoas, provavelmente por Raphael. Havia ainda algumas suspeitas que recaíam sobre Miss Betterton. Possuía um móbil para perpetrar o homicídio, e tivera oportunidade de o cometer, mas teria forças para empunhar aquele pesado castiçal? Nunca ninguém o saberia, porque Agatha Betterton estava morta. Gregory não tinha sido acusado do homicídio de Miss Betterton nem de haver assassinado Margaret Munroe. Não havia, tanto num caso como no outro, provas suficientes que justificassem a sua detenção.
Dalgliesh fez a viagem em menos de três horas e meia. Alcançara a recta final da estrada de acesso e podia ver à sua frente o mar turbulento, pontilhado de branco, que se estendia até ao horizonte. Parou o carro e telefonou a Kate. Gregory havia saído de casa, meia hora antes, e passeava pela praia.
Espere por mim ao fundo da estrada costeira ordenou Dalgliesh, e traga um par de algemas. Talvez não venhamos a precisar delas, mas não quero correr riscos.
Poucos minutos depois, avistou Kate, que avançava na sua direcção. Sem pronunciar palavra, entrou no carro e Dalgliesh fez marcha atrás para seguir até ao local onde a escada levava à praia. Podiam ver Gregory, um vulto solitário envolto num casaco de tweed comprido, com a gola levantada para o proteger do vento. Parado junto de um dos quebra-mares, contemplava o mar. Quando avançaram pela parte da praia coberta de seixos, uma súbita rajada fê-los perder o equilíbrio, mas o sibilar do vento era abafado pelo rebentar das ondas, que se sucediam, uma após a outra, em explosões de água, embatendo em torno dos quebra-mares e projectando bolas de espuma, que dançavam e rolavam, como bolhas de sabão translúcidas, até à parte mais alta do penhasco.
Caminhavam, lado a lado, em direcção ao vulto imóvel. Gregory, então, virou-se. Quando se acharam a vinte metros dele, trepou, decidido, para o rebordo do quebra-mar e avançou até ao pontão onde se situava o abrigo, a pouco menos de quarenta centímetros de altura do mar enfurecido.
Dalgliesh disse a Kate:
Se ele mergulhar, telefone para Santo Anselmo. Diga-lhes que vamos precisar de um bote e de uma ambulância.
Depois, com igual determinação, Dalgliesh trepou para o quebra-mar e seguiu atrás de Gregory. Quando estava apenas a escassos centímetros deste, parou, e os dois homens olharam um para o outro. Gregory gritou, mas Dalgliesh teve dificuldade em ouvir o que ele lhe dizia por causa do mar revolto.
Se veio prender-me, estou aqui, mas tem de se aproximar um pouco mais. Não é sua obrigação dizer-me uma lengalenga qualquer acerca dos meus direitos? Penso que é o seu dever.
Dalgliesh não lhe respondeu. Durante dois minutos, fitaram-se, em silêncio, e, naquele curto espaço de tempo, Dalgliesh tomou transitoriamente consciência da sua existência passada. O que sentia, agora, era algo de novo: uma intensa raiva que jamais experimentara anteriormente. A raiva que se apoderara dele quando olhara para o corpo do arcediago em nada se comparava com aquela nova emoção. Não a condenava nem tentava reprimi-la; aceitava-a simplesmente. Sabia, agora, porque se sentira relutante em encarar Gregory na sala de interrogatórios. Ao afastar-se, pudera distanciar-se muito mais do que da presença física do seu adversário, mas, agora, tal era-lhe impossível.
Dalgliesh nunca havia encarado o seu trabalho como uma cruzada. Conhecia outros detectives a quem a visão da vítima, na sua patética insignificância final, imprimia na mente uma imagem tão poderosa que só a conseguiam exorcizar no momento da detenção do assassino. Alguns chegavam a fazer os seus pactos pessoais com o destino; não bebiam nem tiravam férias enquanto não apanhassem o assassino. Partilhava da sua piedade e ultraje, mas nunca do seu envolvimento e da sua antipatia pessoal. Para ele, a detenção devia ser um compromisso profissional e intelectual com a descoberta da verdade. Contudo, não era o que sentia naquele momento. Não era apenas o facto de Gregory haver profanado um lugar onde ele havia sido feliz, e perguntou a si mesmo, não sem algum azedume, que graça poderia ter sido conferida a Santo Anselmo pela simples felicidade de Adam Dalgliesh. Não era só por sentir grande reverência pelo padre Martin e não conseguir esquecer a sua expressão horrorizada, quando o fitara, depois de deparar com o corpo de Crampton; nem, tão-pouco, aquele outro momento em que cabelos negros e macios lhe haviam acariciado o rosto, e Emma, trémula, estivera nos seus braços, por tão escassos segundos que lhe custara a acreditar que chegara realmente a abraçá-la. Aquela emoção opressiva tinha outra origem, mais primitiva e ignóbil. Gregory planeara e perpetrara o homicídio, a poucos metros do local onde Dalgliesh dormia e, agora, tencionava levar a sua vitória até ao fim. Nadaria para o mar alto, até morrer de frio e de exaustão, feliz por se achar no elemento de que tanto gostava e que lhe traria um final misericordioso. Mas os planos de Gregory não se ficavam por ali. Dalgliesh podia ler o seu pensamento, tal como sabia que ele lia o seu. Planeara levar o seu adversário com ele. Se Gregory se lançasse à água, Dalgliesh também teria de mergulhar, por não lhe restar outra opção. Nunca poderia viver com a recordação de nada haver feito, enquanto um homem se afogava. Mas não seria por compaixão que arriscaria a sua vida, mas, sim, por teimosia e orgulho.
Dalgliesh comparou forças com o seu adversário. Ambos estavam ao mesmo nível no que dizia respeito à condição física, mas Gregory devia ser um nadador mais experiente. Nenhum dos dois resistiria muito tempo às águas geladas mas, se o socorro viesse rapidamente como Dalgliesh o previa, ambos sobreviveriam. Ainda pensou se devia voltar atrás e ordenar a Kate que telefonasse para Santo Anselmo e mandasse lançar o bote ao mar, mas mudou de ideias; se Gregory ouvisse o ruído de carros na estrada costeira, nem sequer hesitaria. Ainda havia uma hipótese, mesmo que remota, de que Gregory voltasse atrás no seu intento, mas Dalgliesh sabia que ele tinha, do seu lado, uma vantagem quase desmesurada: só um deles ficaria feliz por morrer.
No entanto, ainda se mantinham imóveis, frente a frente, na extremidade do pontão. Então, de súbito, como se fosse um dia de Verão e o brilho do Sol se reflectisse no azul do mar, Gregory deixou cair o casaco e mergulhou.
Aqueles dois minutos de confronto haviam sido intermináveis para Kate. Parara, como se os seus músculos se tivessem petrificado, e os seus olhos se tivessem fixado nas duas figuras imóveis; só depois avançara, involuntariamente, com todo o cuidado. As ondas molhavam-lhe os pés mas nem sentia a vaga de frio que batia, a um ritmo regular, nas suas pernas. Sem se dar conta, começara a praguejar: ”Volte para trás. Volte para trás. Deixe-o mergulhar!”, com tanta intensidade que o seu apelo devia, certamente, ter sido ouvido por Dalgliesh, muito embora este continuasse de costas viradas para ela. E, agora, que o inevitável acontecera, Kate já podia agir. Marcou o número do instituto e ouviu o toque da campainha. Ninguém respondeu e Kate murmurou obscenidades que normalmente nunca diria. A campainha continuou a tocar. Por fim, ouviu a voz do padre Sebastian.
Daqui fala a Kate Miskin, padre. Estou na praia disse, tentando manter a calma. O Dalgliesh e o Gregory mergulharam do pontão. Precisamos de um bote e de uma ambulância quanto antes.
O padre Sebastian não lhe fez qualquer pergunta.
Fique onde está para podermos localizá-la mais depressa. Vamos já para aí.
A espera que se seguiu pareceu-lhe ainda mais demorada, mas cronometrou-a. Tinham passado três minutos e quinze segundos quando ouviu o ruído do motor de carros. Sempre com os olhos fixos nas cristas das ondas violentas, deixara de ver as duas cabeças. Correu até ao pontão, para onde Gregory se dirigira, esquecendo-se da rebentação turbulenta e das rajadas de vento. Então, de repente, avistou uma cabeça grisalha e uma cabeça morena, separadas entre si por poucos metros antes que voltassem a desaparecer por baixo de uma vaga.
Era importante não os perder de vista, tanto quanto possível, mas, de vez em quando, Kate olhava para a escada. Tinha ouvido mais do que um carro, mas apenas conseguia ver o Land Rover estacionado na berma do penhasco. Dava a sensação de que todos os residentes do instituto haviam ido até à praia e começado a trabalhar metódica e rapidamente. As portas da barraca já tinham sido abertas e os calços de madeira haviam sido cravados por entre os seixos da encosta que levava à praia. O bote, então, foi empurrado pela esteira improvisada e, depois, içado por seis homens, que o transportaram até à beira-mar. Kate percebeu que Pilbeam e Henry Bloxham iriam proceder ao salvamento e ficou admirada por não ver Stephen Morby, um homem bastante forte, mas talvez Henry fosse um marinheiro mais experiente. Parecia-lhe impossível que conseguissem furar aquela barreira de ondas, mas, poucos segundos depois, ouviu o troar do motor do bote e viu que avançava, pelo mar adentro, para depois se aproximar do local onde ela se encontrava. Depois de, mais uma vez, ver as duas cabeças, indicou-as aos homens que se encontravam no bote.
Logo de seguida, deixou de lobrigar os nadadores e o bote, excepto quando surgiam no alto de uma onda encrespada. Como não pudesse fazer mais nada, Kate juntou-se ao grupo que corria ao longo da praia. Raphael carregava uma corda, o padre Peregrine enfiara um colete salva-vidas e Piers e Robbins transportavam aos ombros duas macas de lona enroladas. Mrs. Pilbeam e Emma também estavam ali, a primeira munida com um estojo de primeiros socorros e a segunda com toalhas e uma pilha de cobertores. Agruparam-se para melhor observar o que se passava no mar.
O bote regressava. O ruído do motor era mais forte e apareceu, de repente, erguendo-se no topo de uma onda, antes de mergulhar novamente.
Conseguiram apanhá-los! anunciou Raphael. Vejo quatro pessoas a bordo.
O bote aproximava-se, a grande velocidade agora, mas parecia impossível que conseguisse resistir àquele mar tão encapelado. Foi então que o pior aconteceu. Deixaram de ouvir o ruído do motor e viram Pilbeam, desesperado, debruçar-se, enquanto a pequena embarcação era arremessada, de um lado para o outro, pelas vagas, como se fosse um brinquedo até que, de repente, a uns vinte metros da praia, a parte de trás se ergueu, se imobilizou, na vertical, por breves segundos, e se afundou.
Raphael tinha atado uma das pontas da corda a um dos postes do quebra-mar e, fixando a outra à sua cintura, entrou pelo mar adentro. Stephen Morby, Piers e Robbins seguiram-no. O padre Peregrine despira a sua batina e lançara-se por baixo das ondas, como se aquele mar turbulento fosse o seu habitat natural. Henry e Pilbeam, ajudados por Robbins, lutavam por conseguir desembarcar. O padre Peregrine e Raphael agarraram Dalgliesh, enquanto que Stephen e Piers fizeram o mesmo com Gregory. Poucos segundos mais tarde, eram arremessados para os seixos. O padre Sebastian e o padre Martin apressaram-se a puxá-los até à praia. Estendidos na areia, Pilbeam e Henry tentavam recobrar o fôlego, enquanto as ondas rebentavam contra os seus corpos.
Apenas Dalgliesh perdera os sentidos. Correndo para o local onde ele estava estendido, Kate percebeu que batera com a cabeça numa das fundações do quebra-mar e que se via sangue na sua camisa rasgada. Havia também uma marca, tão vermelha como sangue, no local onde as mãos de Gregory lhe haviam apertado a garganta. Arrancando-lhe a camisa, pressionou a ferida, enquanto ouvia Mrs. Pilbeam dizer:
Deixe isso comigo, miss. Tenho aqui ligaduras. Mas foi Morby que tomou o controlo da situação.
Primeiro, temos de tirar toda a água que ele tem nos pulmões. E, virando Dalgliesh, começou a reanimá-lo. Um pouco mais ao longe, sob o olhar atento de Robbins, Gregory, envergando apenas uns calções, estava sentado com a cabeça entre as mãos, respirando com dificuldade.
Kate, por fim, virou-se para Piers.
Enrola-o em cobertores e fá-lo beber uma bebida quente. Assim que ele tiver recuperado e conseguir compreender o que estás a fazer, prende-o. E não te esqueças de algemá-lo. Não quero correr mais riscos. Ah, e já agora, quando lhe recitares as acusações, acrescenta tentativa de homicídio.
Virou-se de novo para Dalgliesh, que, de repente, começou a cuspir água e sangue e murmurou algo inaudível. Foi então que Kate se deu conta de que Emma se havia ajoelhado, muito pálida, a seu lado. Ao perceber que Kate a fitava, levantou-se e afastou-se, como se tivesse compreendido que não estava a fazer nada ali.
Já tinham ouvido a sirene da ambulância mas não faziam ideia de quanto tempo demoraria a chegar até ali. Piers e Morby, pegando em Dalgliesh, estenderam-no numa das macas. Depois, transportaram-no para um dos carros, com o padre Martin mantendo-se ao lado de Dalgliesh. O grupo que entrara no mar começara a tiritar de frio. Enrolados em cobertores, passaram uma garrafa uns aos outros e, por fim, regressaram à escada. De repente, as nuvens abriram-se e um ténue raio de luz iluminou a praia. Vendo aqueles jovens a esfregar o cabelo com as toalhas e a fazer exercícios de aquecimento para activar a circulação sanguínea, Kate quase podia ser levada a pensar que tudo aquilo fora uma ida à praia, num dia de Verão, e de que, dali a pouco, começariam a brincar às escondidas.
Tinham alcançado o penhasco e colocado a maca na parte de trás do Land Rover quando Kate percebeu que Emma Lavenham estava novamente a seu lado.
Ele vai ficar bem? perguntou Emma.
Sim, vai sobreviver, porque é rijo como o ferro. O ferimento da cabeça deitou muito sangue, mas não me parece profundo. Deve ter alta e voltar a Londres daqui a poucos dias. Como nós, aliás.
Regresso a Cambridge esta noite. Não se importa de se despedir dele por mim e de lhe transmitir os meus cumprimentos?
E, sem esperar pela resposta, virou-se e foi juntar-se ao grupo formado pelos quatro ordinandos. Robbins empurrava Gregory, algemado e enrolado em cobertores, para o interior do Alfa Romeo. Piers aproximou-se de Kate e os dois fitaram Emma.
Ela volta para Cambridge esta noite comentou Kate. E porque não? É lá que tem a sua vida.
E tu? Onde tens a tua vida? perguntou Piers.
Não que precisasse de ouvir a resposta, mas Kate replicou:
A minha vida é ao lado do Robbins, do Adam Dalgliesh e de ti. O que pensavas que ia dizer? Afinal, estamos a falar do meu trabalho.
Dalgliesh regressou a Santo Anselmo pela última vez num belo dia, em meados de Abril, em que o céu, o mar e a terra se uniam num cenário de beleza serena. Conduzia com o tejadilho baixado e a aragem que lhe acariciava o rosto trazia consigo a essência perfumada e algo nostálgica dos meses de Abril da sua infância e juventude. Partira deixando para trás alguns receios, que se haviam dissipado assim que transpusera os subúrbios de Londres, e agora a sua paz interior comungava com aquele dia ameno.
O padre Martin escrevera-lhe uma carta convidando-o a visitá-lo, agora que Santo Anselmo fora oficialmente encerrado. Escrevera: ”Gostaríamos de ter a oportunidade de nos despedirmos dos nossos amigos, antes de partir, e esperamos que a Emma também possa estar presente durante este fim-de-semana de Abril.” O padre Martin quisera que Dalgliesh soubesse que ela também estaria presente, mas também a teria avisado de que ele iria? E, se o houvesse feito, teria ela, à última hora, decidido não ir?
Lá estava o desvio que lhe era familiar, e que, agora, se tornava mais fácil de avistar, porque o grande freixo coberto de hera havia caído. Os jardins dianteiros das duas vivendas geminadas estavam cobertos de narcisos, cujo esplendor contrastava com o amarelo pálido das primaveras espalhadas pela relva. As sebes de cada lado do relvado revelavam os seus primeiros rebentos. Dalgliesh pôde, então, avistar o mar, que parecia estender-se calmamente até ao horizonte. Muito acima, invisível e quase inaudível, um avião de caça deixava um rastro branco no céu. O pântano parecia pacífico e acolhedor, com as suas águas azuis. Dalgliesh podia imaginar o brilho dos cardumes de peixes a nadar por baixo daquela superfície estática. A tempestade que se fizera sentir na noite em que o arcediago havia sido assassinado destruíra os últimos postes de madeira do navio naufragado. Nem mesmo os últimos vestígios do casco apodrecido haviam resistido, e o areal espalhava-se, liberto de entraves, até ao mar. Com um dia tão radioso, Dalgliesh nem sequer conseguia sentir qualquer tristeza perante aquela prova do poder devastador do tempo.
Antes de virar para norte e de seguir ao longo da estrada costeira, encostou na berma do penhasco e desligou o motor. Tinha de ler novamente uma carta. Recebera-a uma semana depois de Gregory haver sido condenado a uma pena de prisão perpétua pelo homicídio do arcediago Crampton. A caligrafia revelava mão firme. Não estava assinada; apenas o nome de Dalgliesh aparecia no sobrescrito.
Peço-lhe desculpa por este papel de carta que, por certo compreenderá, não foi da minha escolha. Deve ter sido informado, a esta altura, de que decidi confessar-me culpado. Poderia ter alegado que a minha intenção era poupar àqueles infelizes idiotas, o padre Martin e o padre John, o suplício de comparecerem em tribunal, como testemunhas de acusação, ou declarar a minha relutância em ver o meu filho ou a Emma Lavenham expostos à brutal astúcia do meu advogado, mas tenho plena consciência de que não acreditaria em mim. Como é evidente, o motivo que me levou a confessar-me culpado foi o de evitar que o Raphael sofra com o estigma da suspeita durante toda a vida. Cheguei à conclusão de que existem boas hipóteses de que eu possa ser absolvido. A inteligência do meu advogado é quase proporcional aos seus honorários e, desde o início, deixou bem claro que estava confiante de que eu poderia safar-me, muito embora tenha tido o cuidado de não empregar essa expressão. Afinal, sou o exemplo acabado do homem respeitável da classe média.
Tinha planeado, desde o princípio, ser absolvido, se o caso chegasse a tribunal, como eu calculava, se bem que tivesse decidido assassinar o Crampton numa noite em que o Raphael não se encontrasse no instituto. Como sabe, tomei a precaução de passar pelo quarto dele, a fim de me certificar de que saíra. Se o tivesse encontrado no seu quarto, teria eu cometido, à mesma, o homicídio? A resposta é não. Nem naquela noite nem nunca. Era pouco provável que conseguisse reunir todas as condições necessárias ao êxito do meu plano de forma tão perfeita. Não deixa de ser interessante concluir que o Crampton morreu devido a um simples acto de bondade por parte do Raphael, quando resolveu ir fazer companhia a um amigo. Já havia reparado que, não raras vezes, o mal resulta do bem. Como filho de um pároco, o senhor tem, por certo, mais competência do que eu para decifrar este enigma teológico.
As pessoas que, como nós, vivem numa civilização decadente têm três escolhas. Podem tentar evitar o declínio, tal como uma criança constrói castelos de areia na praia, à beira-mar. Podem ignorar o fim da beleza, da sabedoria, da arte, da integridade intelectual, encontrando refúgio nas suas consolações pessoais. Foi isso que tentei fazer durante muitos anos. Por fim, podem aliar-se aos bárbaros e reclamar a sua parte dos despojos.
É a opção mais popular e a que acabei por escolher. O Deus do meu filho foi-lhe imposto. Esteve nas mãos daqueles padres, desde que nasceu. Queria dar-lhe a oportunidade de optar por uma divindade mais contemporânea o dinheiro. Agora que tem dinheiro, descobrirá que não poderá passar sem ele, pelo menos em parte. De qualquer forma, continuará a ser um homem rico e só o tempo dirá se viria a ser padre.
Penso que nada tenho a dizer-lhe sobre o homicídio que o senhor já não saiba. O bilhete anónimo que escrevi a Sir Aired destinava-se, como é evidente, a causar problemas a Santo Anselmo, e, em particular, ao Sebastian Morell. Mas nunca podia pensar que aquele bilhete trouxesse ao instituto o mais distinto dos detectives da Scotland Yard. A sua presença, em vez de me desanimar, revelou-se um desafio maior. O meu plano para atrair o arcediago à igreja resultou perfeitamente; ele mal podia esperar para ver a aberração que eu lhe havia descrito, pelo telefone. A lata de tinta preta e o pincel estavam convenientemente à minha disposição, na sacristia, e confesso que gostei de vandalizar O Juízo Final. Que pena que o Crampton tenha tido tão pouco tempo para apreciar a minha obra de arte.
Talvez esteja a pensar nas outras duas mortes pelas quais não fui acusado. A primeira, a asfixia de Margaret Munroe, revelou-se necessária. Exigiu pouco planeamento e a morte dela foi fácil, quase natural. Era uma mulher infeliz, que, provavelmente, tinha pouco tempo de vida, mas que podia prejudicar-me. A ela, pouco importava se lhe restava um dia, um mês ou um ano de vida, mas, para mim, isso era muito importante. Eu planeara revelar o meu parentesco com o Raphael só depois de Santo Anselmo encerrar e de se esbater o escândalo provocado pelo homicídio. Mas o senhor depressa se deu conta dos meus planos. Eu queria assassinar o Crampton e, ao mesmo tempo, lançar as suspeitas sobre o instituto, sem fornecer provas concludentes contra mim. Queria que Santo Anselmo fechasse mais cedo, de preferência antes que o meu filho fosse ordenado padre, para que pudesse herdar por inteiro tudo a que tinha direito. E devo confessar que também sentia algum prazer com a perspectiva de ver a carreira do Sebastian Morell terminar na suspeita, no fracasso e na ignomínia. Ele tudo fizera para que a minha terminasse da mesma maneira.
Talvez se questione sobre a morte da Agatha Betterton, uma outra mulher infeliz, mas aproveitei-me simplesmente de uma inesperada oportunidade. Engana-se se pensa que ela estava no alto da escada quando telefonei a Mistress Crampton. Ela não me viu, nessa altura. Porém, viu-me na noite do crime, quando fui colocar as chaves da igreja no armário. Suponho que poderia tê-la morto naquele momento, mas decidi aguardar. Afinal, ela era tida como louca. Mesmo que me acusasse de haver estado na mansão depois da meia-noite, seria a palavra dela contra a minha e duvido muito que o depoimento da Agatha Betterton prevalecesse.
No domingo à noite, foi falar comigo para me dizer que o meu segredo estava a salvo. Nunca foi uma mulher coerente mas deu-me a entender que a pessoa que havia assassinado o arcediago Grampton nada teria a recear. Era um risco que eu não podia correr. Deve ter plena consciência de que nunca me poderá imputar essas mortes. O móbil não chega. E, se esta confissão for usada contra mim, negarei haver escrito este bilhete.
Aprendi algo surpreendente sobre o homicídio, em particular, e sobre a violência, em geral. Mas já deve sabê-lo, Dalgliesh; afinal é um especialista no assunto. Pessoalmente, acho-o interessante. O primeiro golpe que desferi foi deliberado, não sem alguma relutância. Era basicamente uma questão de impor a minha força de vontade. Mentalmente, sabia que desejava a morte daquele homem e de que aquela maneira era a mais eficaz de o eliminar. Tencionava desferir apenas um golpe, dois, no máximo, mas, após o primeiro, a adrenalina actua e a violência apodera-se de nós. Continuei a desferir os golpes de forma inconsciente. Mesmo que o senhor tivesse aparecido naquele momento, duvido que tivesse conseguido parar. Não é quando planeamos a violência que o instinto primitivo se apodera de nós; é quando desferimos o primeiro golpe.
Não vi o meu filho desde que fui preso. Ele não revelou qualquer vontade em ver-me e é melhor assim. Vivi toda a minha vida sem afecto humano e seria difícil aceitá-lo agora.
A carta acabava assim. Dobrando-a, Dalgliesh perguntou a si próprio se Gregory iria suportar o encarceramento, que talvez durasse, no mínimo, dez anos. Provavelmente sobreviveria, desde que tivesse os seus livros. Mas estaria ele, naquele preciso instante, a olhar pela janela gradeada da sua cela e a sentir o desejo de inalar, também, o suave aroma daquele dia primaveril?
Ligou o motor do carro e seguiu directamente para o instituto. A porta da frente estava aberta de par em par; entrou no vestíbulo vazio. A pequena luzinha ainda se achava acesa, aos pés da estátua da Virgem e do Menino, e pairava no ar o mesmo odor eclesiástico, composto de incenso, de cera e de livros muito velhos, mas parecia-lhe que a mansão já havia sido despojada parcialmente e que, agora, aguardava com calma resignação o seu fim inevitável.
Não ouvindo o eco de passos, Dalgliesh deu-se conta, de súbito, de uma presença e, erguendo o olhar, viu o padre Sebastian no alto da escada.
Bom dia, Adam. Suba, por favor saudou. Era a primeira vez que o reitor o tratava pelo seu nome próprio.
Seguindo-o até ao escritório, Dalgliesh não pôde deixar de reparar nas modificações. O quadro de Burne-Jones já não estava pendurado na parede, por cima da lareira, e o bufete também fora removido.
Havia igualmente uma subtil mudança no padre Sebastian. Deixara de usar batina, substituída agora por um fato com colarinho clerical. Parecia mais velho. O homicídio cobrara os seus dividendos. Se bem que os traços perfeitos e austeros do seu rosto não houvessem perdido autoridade e confiança, exprimiam actualmente a euforia controlada do êxito. A cadeira universitária que lhe havia sido atribuída era sinónimo de prestígio e algo que ele almejava havia muito. Dalgliesh deu-lhe os parabéns pela sua nova função.
Obrigado agradeceu o padre Sebastian. Diz-se que não devemos voltar atrás, mas espero que se prove o contrário, tanto para mim como para a universidade onde irei leccionar.
Sentaram-se e conversaram durante alguns minutos, numa concessão necessária à cortesia. O padre Sebastian não era pessoa para revelar qualquer mal-estar, mas Dalgliesh podia perceber que ainda se sentia algo incomodado pelo desagradável pensamento de que o homem sentado à sua frente o encarara, há muito pouco tempo, como um possível homicida, e duvidava que Sebastian Morell pudesse esquecer ou perdoar-lhe pela indignação que sentira quando haviam recolhido as suas impressões digitais. Agora, como se achasse ser esse o seu dever, pôs Dalgliesh ao corrente das mudanças no instituto.
Todos os nossos estudantes encontraram vaga em outros institutos teológicos. Os quatro ordinandos que o senhor conheceu, quando o arcediago foi assassinado, foram aceites em Cuddesdon ou no Instituto de Santo Estêvão, em Oxford.
Portanto, o Raphael pretende ainda ser ordenado? quis saber Dalgliesh.
Claro. Porquê? Pensava que ele ia desistir? O Raphael revelou grande generosidade, mas vai continuar a ser um homem muito rico.
Depois, falou por alto dos outros padres, mas com maior franqueza do que Dalgliesh esperava. O padre Peregrine tinha aceite um lugar de arquivista numa biblioteca, em Roma, uma cidade à qual sempre desejara regressar. O padre John recebera um convite para capelão de um convento, perto de Scarborough. Uma vez que havia sido condenado por pedofilia, tinha de participar qualquer mudança de endereço, mas o convento oferecer-lhe-ia o refúgio que ele havia encontrado em Santo Anselmo. Reprimindo um sorriso, Dalgliesh pensou que não se poderia ter encontrado um posto mais adequado para o padre John. O padre Martin estava a construir uma casa em Norwich, e os Pilbeam mudar-se-iam para lá, a fim de tratar dele, herdando a casa quando ele falecesse. Muito embora se houvesse confirmado o direito de Raphael à herança, a sua posição legal era complicada e ainda havia muito que decidir, inclusivamente se a igreja seria incluída na diocese local ou se acabaria por ser desconsagrada. Raphael exprimira o desejo de que o quadro de Van der Weyden fosse usado como retábulo de altar num local apropriado e já se começara a procurar uma igreja que o acolhesse. Por enquanto, o quadro estava guardado no cofre de um banco, bem como todos os objectos de prata. Raphael também havia decidido doar aos Pilbeam e a Eric Surtees as vivendas em que viviam. O edifício principal havia sido vendido e seria transformado num centro residencial de meditação e medicina alternativa. O tom de voz do padre Sebastian deixou transparecer um certo desagrado, ao revelar o destino da mansão, mas Dalgliesh concluiu que podia ter sido pior. Entretanto, tanto os quatro padres residentes como os funcionários permaneceriam ali, a pedido dos novos proprietários.
Quando se tornou evidente que aquela conversa chegara ao fim, Dalgliesh mostrou a carta de Gregory ao padre Sebastian.
Penso que tem o direito de a ler murmurou.
O padre Sebastian leu-a, em silêncio, e depois dobrou-a e devolveu-a a Dalgliesh.
Obrigado. É espantoso que um homem que gostava da língua e da literatura de uma das maiores civilizações do mundo haja descido a esse rosário de desculpas de mau gosto. Pelo que sei, os assassinos são invariavelmente arrogantes, mas, no caso dele, é uma arrogância à escala do Satanás de Milton. ”Mal, sê o meu Bem.” Pergunto-me quando foi que ele leu O Paraíso Perdido pela última vez. O arcediago Crampton tinha razão numa das suas críticas à minha pessoa. Eu devia ter sido mais cuidadoso na escolha daqueles que convidei para virem trabalhar comigo. Deduzo que passe a noite connosco...
Sim, padre.
Vai ser muito agradável para todos nós. Espero que goste da sua estada.
O padre Sebastian não acompanhou Dalgliesh ao quarto de São Jerónimo, mas chamou Mrs. Pilbeam e entregou-lhe a chave. Mrs. Pilbeam revelou-se invulgarmente faladora enquanto verificava que, no quarto, havia tudo aquilo de que Dalgliesh iria precisar; dir-se-ia até que sentia relutância em retirar-se.
O padre Sebastian já deve tê-lo informado das mudanças. Não posso dizer que o Reg e eu ficássemos encantados com a ideia de termos aqui um centro de medicina alternativa. No entanto, as pessoas que vieram até cá pareciam sérias e inofensivas. Propuseram-nos, a nós e ao Eric Surtees, que continuássemos a trabalhar para o tal centro. Penso que ele ficou contente com a proposta, mas eu e o Reg já estamos velhos de mais para novas mudanças. Trabalhamos para os padres há muitos anos, e não íamos habituar-nos a estranhos. Mister Raphael disse-nos que tínhamos toda a liberdade de vender a vivenda, e é o que provavelmente faremos, guardando o dinheiro para a nossa velhice. O padre Martin provavelmente já lhe disse que tencionamos mudar-nos para Norwich com ele. Encontrou uma bela casa, com um escritório só para ele e muito espaço para nós os três. E não estou a ver o padre Martin a tomar conta dele, aos oitenta anos... Depois, vai fazer-lhe bem mudar de ares e de vida, e a nós também. Tem tudo de que precisa, Mister Dalgliesh? O padre Martin vai ficar contente em vê-lo. Encontrá-lo-á na praia. Mister Raphael voltou para passar o fim-de-semana connosco, e Miss Lavenham também cá está.
Dalgliesh estacionou o seu Jaguar na parte de trás do instituto e seguiu, a pé, até ao pântano. Ao longe, pôde ver que os porcos da Vivenda São João, agora, andavam em liberdade pelo promontório. Aparentemente, até mesmo os porcos pareciam perceber que tudo mudara. Foi então que viu Eric Surtees a sair da vivenda, com um balde na mão.
Atravessou o carreiro até ao pântano. Do alto da escada, podia ver a praia em toda a sua extensão. As três figuras pareciam haver-se distanciado umas das outras, de propósito. A norte, Emma escolhera um recanto, entre os seixos, e lia um livro. Raphael sentara-se num quebra-mar e, com as pernas na água, contemplava o horizonte. E, mais perto, num baixio arenoso, o padre Martin parecia estar a atear uma fogueira.
Ao ouvir o ranger dos sapatos de Dalgliesh nos seixos, levantou-se com dificuldade e sorriu.
Adam! Fico contente por ter podido vir. Já esteve com o padre Sebastian?
Sim, e dei-lhe os parabéns pela sua nova carreira.
Foi sempre algo que ele quis replicou o padre Martin. E sabia que haveria uma vaga, no Outono, mas nunca podia aceitar o convite se Santo Anselmo tivesse continuado a funcionar.
Agachou-se novamente. Dalgliesh podia ver que o padre Martin escavara um buraco na areia, à volta do qual construía agora um pequeno muro de seixos. A seu lado, havia uma mochila e uma caixa de fósforos. Dalgliesh sentou-se, apoiando-se nos cotovelos, enquanto enfiava os pés na areia.
Prosseguindo com a sua tarefa, o padre Martin perguntou:
É feliz, Adam?
Tenho saúde, um emprego de que gosto, conforto, estabilidade para poder oferecer-me alguns luxos ocasionais e a minha poesia. Considerando que três quartos da população mundial vive na pobreza, se me queixasse de ser infeliz, não seria isso uma perversa indulgência?
Diria mesmo um pecado ou algo que devemos combater. Se não podemos louvar Deus como Ele o merece, podemos, ao menos, agradecer-Lhe. Mas será isso suficiente?
Vai pregar-me um sermão, padre?
Nem sequer uma homilia. Gostaria de vê-lo casado, Adam, ou, pelo menos, a partilhar a sua vida com alguém. Sei que a sua esposa morreu ao dar à luz, o que deve ser uma sombra constante na sua vida. Mas não podemos nem devemos ignorar o amor. Perdoe-me, se lhe pareço insensível e impertinente, mas o desgosto pode tornar-se uma comodidade.
Oh, não é por desgosto que continuo sozinho, padre. Nada de tão simples, natural e admirável. É por puro egoísmo. O amor pela minha privacidade, a relutância em sofrer ou voltar a ser responsável pela felicidade de outra pessoa. E não diga que o sofrimento pode ser uma fonte de inspiração para a minha poesia, porque tenho plena consciência disso. Já me basta ver o sofrimento com que deparo na minha profissão. Além do mais, o senhor não daria um bom casamenteiro. Ela nunca haveria de me querer, como bem sabe. Sou muito velho, reservado, independente e, talvez, com mãos demasiado manchadas de sangue.
O padre Martin tinha escolhido um seixo arredondado e colocara-o no pequeno muro com todo o cuidado. Parecia tão entretido como uma criança.
E, provavelmente, tem alguém em Cambridge acrescentou Dalgliesh.
Muito provavelmente, tratando-se de uma mulher como ela. Tanto em Cambridge como noutro sítio qualquer. O que significa que teria de arriscar. Mas, ao menos, sempre seria uma mudança para si. Só me resta desejar-lhe boa sorte, Adam.
Aquelas últimas palavras soaram como uma despedida. Dalgliesh levantou-se e olhou para Emma. Percebeu que ela também se havia levantado e avançara até à beira-mar. Estavam a menos de cinquenta metros um do outro. ”Vou esperar”, pensou Dalgliesh. ”Se ela vier até mim, então isso já significará alguma coisa, mesmo que seja apenas para me dizer adeus.” Só depois se deu conta de que estava a ser cobarde e pouco galante. Tinha de dar o primeiro passo e dirigiu-se para a beira-mar. Ainda tinha no bolso do casaco a folha de papel com seis linhas de versos. Tirou-a e rasgou-a em pedaços, que lançou ao mar, ficando a vê-los enquanto eram arrastados pelas ondas. Virou-se novamente para Emma mas, quando começou a andar, viu que ela também se virara e avançava na sua direcção. Sem dizerem palavra, acharam-se, lado a lado, contemplando o horizonte.
Quando Emma falou, por fim, as suas palavras surpreenderam-no.
Quem é a Sadie?
Porque me faz essa pergunta?
Quando recobrou os sentidos naquele dia, fiquei com a impressão de que contava que ela estivesse à sua espera.
”Meu Deus! Devo ter parecido um farrapo depois de ser arrastado, seminu, até à praia, a sangrar, coberto de areia e a cuspir água.”
A Sadie era muito doce replicou. Ensinou-me que, se bem que a poesia fosse uma paixão, não precisava de o ser durante toda a vida. A Sadie era muito sensata para os seus quinze anos.
Julgou ouvir um risinho de contentamento, mas o ruído foi abafado por uma súbita rajada de vento. Era ridículo, na sua idade, ter consciência daquela incerteza que o consumia. Sentia-se dividido entre o rancor, que lhe parecia tão característico dos jovens, e o prazer perverso de ser ainda capaz de experimentar uma emoção tão forte. Mas, agora, tinha de dizer o que sentia. Contudo, mal pronunciou as palavras, ficou chocado pela sua banalidade, mesmo que elas tivessem sido logo levadas pelo vento.
Gostaria muito de voltar a vê-la, se a ideia não lhe repugnar. Pensei... Esperava... que talvez fosse possível conhecermo-nos melhor.
”Devo ter parecido um dentista a marcar a consulta seguinte”, recriminou-se. Depois, virou-se para a fitar, e o que viu no rosto dela deu-lhe vontade de gritar de alegria.
As linhas de comboios replicou ela, em tom grave entre Londres e Cambridge são excelentes. Nos dois sentidos.
E estendeu-lhe a mão.
O padre Martin tinha acabado de construir a fogueira. Tirou da mochila uma folha de jornal, que amarrotou e enfiou no buraco. Depois, colocou por cima o papiro de Santo Anselmo e, agachando-se, acendeu um fósforo. A folha de jornal incendiou-se imediatamente e as chamas pareceram atacar o papiro como se fosse uma presa. Foi então que se apercebeu de que Raphael se aproximara e, parado a seu lado, observava aquele ritual em silêncio.
O que está a queimar, padre? perguntou.
Um documento que já levou alguém à tentação do pecado e pode fazer o mesmo a outros. Chegou a altura de desaparecer para sempre.
Fez-se silêncio, até que Raphael disse:
Não serei mau padre.
O padre Martin, o menos expressivo dos homens, pousou a mão sobre o ombro do rapaz por breves segundos e rectificou:
Não, meu filho. Penso que será um bom padre.
Então, ficaram a observar, em silêncio, o fogo que se extinguia e os últimos círculos brancos de fumo a serem arrastados para o mar.
P. D. James
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