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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MORTE EM ORDENS SAGRADAS / P. D. James
MORTE EM ORDENS SAGRADAS / P. D. James

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

MORTE EM ORDENS SAGRADAS

Primeira Parte

 

         Areia Mortífera

 

Partiu do padre Martin a ideia de que eu escrevesse um relato sobre como descobri o cadáver.

 

Perguntei-lhe: ”Como se escrevesse uma carta, contando o que sucedeu a um amigo?”

 

O padre Martin replicou: ”Como se fosse uma obra de ficção, em que você se mantém à distância, analisando os acontecimentos, enquanto se vai lembrando do que fez, do que sentiu... Como se tivesse acontecido a outra pessoa.”

 

Se bem que percebesse aonde ele queria chegar, não sabia como começar. ”Tudo o que aconteceu, ou apenas o meu passeio pela praia e a descoberta do corpo do Ronald?”, perguntei.

 

”Tudo o que lhe aprouver contar. Escreva sobre o instituto ou sobre a sua vida se assim o desejar. Penso que lhe será de grande ajuda.”

 

”E com o senhor? Ajudou-o?”

 

Não faço a menor ideia do que me levou a pronunciar aquelas palavras. Saíram-me da boca. Na realidade, era uma pergunta tola, e, de certa forma, até impertinente, mas o padre Martin pareceu não se importar.

 

Após uma pausa, retorquiu: ”Não me ajudou, mas tudo se passou há já muito tempo e pode ser diferente consigo.”

 

Devia pensar nos tempos de guerra, quando fora feito prisioneiro pelos japoneses, e nos acontecimentos horríveis que havia presenciado no campo de batalha. O padre Martin nunca fala dos seus tempos de guerra, porque haveria de falar comigo sobre assunto tão delicado? No entanto, sei que ele não fala desse assunto com mais ninguém, nem mesmo com os outros padres.

 

Esta conversa deu-se há dois dias, quando caminhávamos pelos claustros, depois das vésperas. Deixei de ir à missa desde que o Charlie morreu, mas assisto às vésperas. No fundo, trata-se de uma questão de cortesia. Não me parece correcto trabalhar no instituto, receber um salário, aceitar a bondade dos padres e não ir a um dos serviços religiosos. Talvez esteja a ser demasiado sensível. Mr. Gregory, o professor de Grego a tempo parcial, vive numa das vivendas, tal como eu, e nunca vai à missa, a não ser quando tocam trechos musicais do seu agrado. Nunca alguém me pressionou para ir à missa. Nem, tão-pouco, alguma vez me perguntaram porque motivo deixei de frequentar a igreja. Contudo, como é óbvio, repararam, porque reparam em tudo.

 

Quando regressei a casa, pensei no que o padre Martin me dissera se a ideia seria ou não boa. Nunca tive qualquer dificuldade em escrever. Quando andava na escola, tinha boas notas em redacção e Miss Allison a nossa professora de Inglês, costumava dizer que eu dispunha de talento suficiente para me tornar escritora, mas eu sabia que ela se enganava. Não sou dotada de grande imaginação, pelo menos, do género da que é necessária aos escritores. Não tenho o dom de inventar histórias. Apenas sei escrever o que vejo, o que faço e o que sei e, por vezes, o que sinto, se bem que já não seja tão fácil. Desde a mais tenra idade que sempre quis ser enfermeira. Agora, com sessenta e quatro anos, estou reformada, mas ainda me mantenho activa aqui, em Santo Anselmo. Sou, em parte, a enfermeira-chefe do instituto: trato de pequenos achaques, mas também me ocupo da roupa de cama. As minhas funções são simples, porque sofro do coração, o que me leva a considerar-me uma mulher de sorte por continuar a trabalhar. A direcção do instituto facilita-me a vida ao máximo. Foi mesmo ao ponto de arranjar um carrinho, leve, para que eu não me sinta tentada a carregar fardos de roupa demasiado pesados. Devia ter falado nisto antes. Nem sequer escrevi o meu nome. Chamo-me Margaret Munroe.

 

Creio saber por que razão o padre Martin sugeriu que talvez me fizesse bem se começasse a escrever de novo. Ele sabe que eu costumava escrever uma extensa missiva ao Charlie, todas as semanas. Penso que, à excepção da Ruby Pilbeam, ele é o único a sabê-lo. Todas as semanas, sentava-me e tentava lembrar-me do que tinha acontecido desde a última carta que escrevera, como, por exemplo, das pequenas trivialidades que nunca eram irrelevantes para o Charlie: as refeições que eu tomava, as piadas que ouvia, as histórias sobre os alunos, a descrição do tempo. Talvez possa pensar-se que pouco há a contar, numa localidade tão pacata como esta, situada nas margens de penhascos, longe de tudo, mas era, invariavelmente, uma surpresa para mim descobrir tudo o que me vinha à mente, de cada vez que escrevia. E sabia que o Charlie apreciava as minhas cartas. ”Continua a escrever, mãe”, dizia-me, quando vinha a casa, em licença. E era o que eu fazia.

 

Depois de morrer em combate, o exército enviou-me todos os seus pertences e encontrei um grande maço de cartas. Não todas as cartas que lhe escrevera. Ter-lhe-ia sido impossível guardar todas. No entanto, guardara as mais compridas. Peguei no maço, levei-o até ao promontório e queimei-o.

 

Estava um dia ventoso, como é frequente nesta localidade costeira, e as chamas crepitaram, saltaram, mudando de direcção com o vento. Os pedaços de papel chamuscados ergueram-se no ar e voltearam em torno do meu rosto, como traças. O cheiro do fumo feriu as minhas narinas, o que achei estranho, porque a fogueira era pequena. Bom, mas o que estou a tentar dizer é que sei porque foi que o padre Martin sugeriu que eu relatasse, por escrito, o que aconteceu. Pensou que, se eu escrevesse algo, qualquer coisa, isso talvez pudesse trazer-me de volta à vida. É bom homem, talvez até mesmo um santo homem, mas são tantas as coisas que ele não compreende.

 

Não deixa de ser estranho escrever este relato sem saber se alguém o lerá. Nem sequer sei se estou a escrever mais para mim própria ou para um leitor imaginário, para quem tudo o que diga respeito a Santo Anselmo seja desconhecido ou constitua uma novidade. Sendo assim, talvez seja melhor dizer algo sobre o instituto, a fim de situar o cenário. Santo Anselmo foi fundado em 1861 por uma senhora muito devota, de seu nome Agnes Arbuthnot, que queria certificar-se de que haveria sempre ”rapazes instruídos e devotos, ordenados para serem padres católicos no seio da Igreja Anglicana”. Recorri às aspas porque a frase é de Miss Arbuthnot. Se a sei, deve-se ao facto de existir um folheto sobre a sua vida na igreja. Doou o edifício, os terrenos, quase toda a sua mobília e dinheiro suficiente pelo menos, assim pensava para que o instituto durasse eternamente. Contudo, o dinheiro nunca chega e, actualmente, o Instituto de Santo Anselmo tem de ser financiado, na sua maior parte, pela Igreja. Sei que tanto o padre Martin como o padre Sebastian temem que a Igreja tencione mandar encerrar o instituto. Nunca falam sobre o assunto abertamente e muito menos o comentam com o pessoal, apesar de todos o conhecermos. Numa comunidade pequena e isolada, como Santo Anselmo, as notícias e os boatos parecem ser trazidos, em silêncio, pelo vento.

 

Além de doar o edifício, Miss Arbuthnot mandou erigir os claustros norte e sul, nos fundos, para que pudessem ser aproveitados como quartos para os estudantes, e a ala de quartos de hóspedes, que liga o claustro sul à igreja. Mandou construir também quatro vivendas para os funcionários, alinhadas num semicírculo, no promontório, a cerca de cinquenta metros do edifício principal. E baptizou essas pequenas vivendas com os nomes dos quatro evangelistas. Eu vivo na Vivenda São Mateus, a casa mais a sul. A Ruby Pilbeam, que faz as vezes de cozinheira e governanta, e o seu marido, homem dos sete ofícios, residem na Vivenda São Marcos. Mr. Gregory ocupa a Vivenda São Lucas, e, na vivenda mais a norte, de seu nome São João, reside o Eric Surtees, que ajuda Mr. Pilbeam nos seus afazeres. O Eric cria porcos, mas mais como um passatempo do que para fornecer sustento ao instituto. Para além de nós os quatro, ainda há as empregadas de limpeza que trabalham a tempo parcial e residem em Reydon e Lowestoft. Temos vinte estudantes, quatro padres residentes e cá nos vamos arranjando. Até porque seria difícil substituir qualquer um de nós. Esta região despovoada, varrida pelo vento, onde não há uma aldeia, um pub, uma loja sequer, é demasiado remota para a maior parte das pessoas. Pessoalmente, gosto de viver aqui, mas até mesmo eu sinto, por vezes, que se trata de um local assustador e algo sinistro. Ano após ano, o mar corrói os penhascos arenosos e, em certas ocasiões, deixo-me ficar no rebordo do penhasco, contemplando o horizonte. Consigo, então, imaginar uma onda gigantesca erguendo-se, muito branca e reluzente, avançando para a praia, abatendo-se sobre os torreões, as torres da igreja e as casas, e varrendo-nos a todos do mapa. A velha aldeia de Ballard’s Mere está submersa há séculos e, em certas noites mais ventosas, as pessoas dizem que se consegue ouvir o eco dos sinos da igreja, cujas torres ficaram para sempre debaixo de água. O que o mar não destruiu foi devastado por um grande incêndio, em 1695. Nada restou da ancestral aldeia, a não ser a igreja medieval, que Miss Arbuthnot mandou restaurar e transformou numa parte integrante do instituto, e os dois pilares de tijolo, tudo o que sobrou do solar, de estilo isabelino, que havia aqui.

 

Talvez seja melhor eu explicar a maneira de ser do Ronald Treeves, o rapaz que morreu. Afinal, é sobre a sua morte que deveria estar a escrever. Antes de o inquérito se iniciar, a Polícia interrogou-me, querendo saber se eu o conhecia bem. Penso que o conhecia melhor do que o restante pessoal, mas pouco adiantei às autoridades, porque nada havia a dizer. Além de que não achei que fosse correcto da minha parte dar voz aos boatos que correm sobre os nossos alunos. Sabia que ele não era popular, mas não o disse à Polícia. O problema do Ronald era não estar integrado neste meio e, pela minha parte, creio que ele tinha consciência disso. Primeiro, o pai dele era Sir Aired Treeves, que dirige uma importante empresa de armamento. O Ronald fazia questão em que todos soubessem que o seu pai era muito rico, demonstrando-o pelos seus pertences. Tinha um Porsche, ao passo que os outros alunos aqueles que possuem um automóvel só dispõem de carros utilitários. Falava também das suas férias, em locais paradisíacos e remotos, que os outros alunos munca poderiam visitar nem, muito menos, passar férias lá.

 

Tudo isto talvez lhe tivesse conferido popularidade em outros institutos, mas não aqui. Todos têm o seu quê de pedantismo relativamente a alguma coisa, por mais que o neguem, mas, em Santo Anselmo, não se trata de uma questão de dinheiro. Nem, tão-pouco, de tradição familiar, muito embora o filho de um pároco tenha mais hipóteses de se tornar popular do que o filho de um cantor da moda. Penso que o que importa, para a juventude de hoje, é a esperteza, o bom aspecto e o sentido de humor. Gostam de pessoas que os façam rir. O Ronald não era tão esperto quanto pensava e nunca conseguia fazer rir os outros. Os colegas achavam-no monótono, e, como não podia deixar de ser, quando ele se apercebeu disso, tornou-se ainda mais distante. Não disse nada disto à Polícia. De que serviria? O Ronald estava morto. Era, também, bisbilhoteiro, porque queria sempre saber tudo o que se passava e não parava de fazer perguntas. Nunca teve sorte comigo. No entanto, por vezes, à noite, aparecia em minha casa, sentava-se e começava a falar, enquanto eu tricotava e o escutava em silêncio. No Instituto de Santo Anselmo, os alunos não são encorajados a visitar as casas dos funcionários, salvo quando são convidados para tanto. O padre Sebastian defende a nossa privacidade, mas eu não me importava de receber a visita do jovem Ronald. Ao recordar aqueles serões, chego à conclusão de que o Ronald era um rapaz solitário. Caso contrário, nunca se teria dado ao trabalho de me visitar. Depois, fazia-me lembrar o meu Charlie. O meu filho não era distante nem impopular, mas gosto de pensar que, se ele se sentisse sozinho ou precisasse de desabafar, haveria alguém, como eu, disposto a escutá-lo.

 

Quando a Polícia apareceu, perguntaram-me por que motivo eu fora procurar o Ronald na praia. Como é evidente, não fora por isso que eu resolvera ir até à praia. Duas vezes por semana, faço um passeio solitário, depois do almoço, e, quando saí de casa, nem sequer sabia que o Ronald desaparecera. Mesmo que o soubesse, nunca teria ido procurá-lo na praia. É difícil imaginar o que pode acontecer a alguém numa praia deserta. Não se corre perigo, se não escalarmos o quebra-mar nem nos aproximarmos demasiado dos penhascos. Quando os alunos chegam a Santo Anselmo, são imediatamente avisados dos perigos que correm, se forem nadar sozinhos ou se resolverem aproximar-se dos penhascos arenosos.

 

No tempo de Miss Arbuthnot, era possível descer directamente da mansão até à praia, mas o mar alterou a paisagem, depois de invadir a costa. Agora, quando saímos do instituto, temos de andar uns oitocentos metros para sul, em direcção ao único local onde os penhascos são baixos e suficientemente firmes para suportar uma meia dúzia de degraus velhos, de madeira, com um corrimão. Para lá deste ponto, fica Ballard’s Mere, imersa na escuridão, rodeada de árvores e separada do mar apenas por um estreito baixio de cascalho. Por vezes, vou até ao pântano, mas costumo dar meia volta. Naquele dia, contudo, desci os degraus que levam à praia e comecei a caminhar, em direcção a norte.

 

Depois de uma noite chuvosa, o dia estava bonito, o céu azul, pontilhado por poucas nuvens escuras, e a maré, baixa. Contornei um pequeno promontório e avistei a praia deserta, estendendo-se à frente dos meus olhos, com os seus estreitos recifes de cascalho e o quebra-mar, coberto de musgo, avançando mar adentro. Foi então que vi, uns quinze metros à minha frente, o que me pareceu ser uma trouxa escura, na base da arriba. Corri para aquela estranha trouxa e encontrei uma batina preta e um capote castanho, cuidadosamente dobrados. Uma parte do penhasco havia resvalado e desabado e, agora, jazia na praia, num grande bloco de areia espessa, misturada com tufos de relva e pedras. Soube imediatamente o que tinha acontecido. Tenho a vaga ideia de haver soltado um grito abafado. Logo de seguida, comecei a esgravatar a areia. Sabia que um corpo estava soterrado debaixo daquele bloco, mas era impossível saber onde. Lembro-me de como a areia grossa se incrustou debaixo das minhas unhas e de como os meus esforços me pareceram lentos, o que me levou, enraivecida, a revolver a areia, aos pontapés, fazendo-a saltar tão alto, que me atingia no rosto e nos olhos. Foi então que reparei numa vara de madeira, de pontas afiadas, a uns quinze metros, perto do mar. Fui buscar a vara e usei-a como uma pá, começando a escavar. Ao fim de alguns minutos, a ponta da vara embateu em algo macio. Ajoelhei-me e comecei novamente a revolver a areia com as mãos. Por fim, pude ver que a vara atingira duas nádegas, cobertas de veludo castanho.

 

Após aquela descoberta, não consegui prosseguir. O meu coração batia descompassadamente e as forças faltavam-me. Tinha a sensação de que acabara de humilhar quem quer que estivesse soterrado debaixo da areia, e de que havia algo de ridículo e de quase indecente naquelas duas nádegas expostas. Sabia que a pessoa estava morta e que toda a minha ânsia de nada serviria. Nunca poderia ter salvo aquela pessoa, mas era-me insustentável prosseguir as escavações sozinha, descobrindo o corpo, centímetro por centímetro, mesmo que tivesse forças para tanto. Só me restava dar a notícia e pedir ajuda. Penso que soube, mesmo naquele momento, quem era o morto. No entanto, lembrei-me, de repente, de que as batinas de todos os ordinandos estão etiquetadas com os seus nomes. Virei a gola da batina e li o nome inscrito.

 

Depois, lembro-me de percorrer a praia, aos tropeções, por entre os baixios, cobertos de seixos, e de subir, a custo, os degraus. Em seguida, desatei a correr pelo carreiro que segue ao longo do penhasco, em direcção ao instituto. Era um trajecto de oitocentos metros, mas pareceu-me interminável e, a cada passo que dava, com crescente dificuldade, a mansão parecia afastar-se. O meu coração batia com mais força ainda e os ossos das minhas pernas pareciam querer desfazer-se. Foi então que ouvi um carro. Voltei-me para trás. O veículo acabara de sair da estrada, avançando, na minha direcção, pelo carreiro que corre junto da margem do penhasco. Postei-me a meio do carreiro, acenei freneticamente e o carro abrandou. Era Mr. Gregory.

 

Não me recordo de como foi que lhe dei a notícia. Tenho uma vaga imagem da minha pessoa, parada na estrada, coberta de areia, com os cabelos ao vento, gesticulando na direcção do mar. Mr. Gregory nada disse. Abriu a porta do carro, em silêncio, e ajudou-me a entrar. Talvez tivesse sido mais aconselhável seguir directamente até ao instituto, mas, ao invés, Mr. Gregory deu meia volta e seguiu até ao local onde se encontram os degraus que levam à praia. Desde então, tenho perguntado a mim própria se ele não acreditou em mim e quis certificar-se do que eu lhe contara, antes de avisar os outros. Já não consigo lembrar-me da caminhada que fizemos até à praia. A única imagem nítida que me vem à mente é a de nós os dois parados, junto do corpo sem vida do Ronald. Sempre sem pronunciar uma só palavra, Mr. Gregory ajoelhou-se e começou a escavar com as mãos. Usava luvas de cabedal, o que o ajudou nesse trabalho. Ambos revolvemos apressadamente a areia, em silêncio, tentando alcançar â cabeça do morto.

 

Além de calças de veludo, o Ronald usava apenas uma camisa cinzenta. Por fim, conseguimos pôr a descoberto a parte de trás da sua cabeça. Era como desenterrar um cão ou um gato mortos. A camada mais funda de areia ainda estava húmida, e o cabelo loiro do Ronald era, agora, de um tom cinzento-escuro. Tentei limpar os seus cabelos e senti, nas palmas das mãos, quanto os grãos de areia eram ásperos e frios.

 

”Não mexa no corpo!”, gritou, em tom ríspido, Mr. Gregory. Assustada, afastei a mão, como se tivesse acabado de sofrer uma queimadura. ”É melhor deixarmos o corpo tal como o encontrámos, até porque já sabemos de quem se trata.”

 

Se bem que eu soubesse que o Ronald estava morto, achava que devíamos, ao menos, voltá-lo. Ainda nutria a ridícula esperança de que talvez pudéssemos fazer-lhe respiração boca a boca. Muito embora tivesse plena consciência de que não estava a ser racional, algo me dizia que devíamos agir. Mr. Gregory descalçou a luva da mão esquerda e pressionou dois dedos contra a garganta do Ronald. ”Está morto”, anunciou. ”Não restam dúvidas. Já nada podemos fazer por ele.”

 

Ficámos, ali, ajoelhados de cada lado do corpo, durante algum tempo. Quem nos visse, podia pensar que rezávamos, e, pela minha parte, teria murmurado uma prece pelo Ronald, mas faltavam-me as palavras. Então, o Sol irrompeu no céu e, de repente, aquela cena tornou-se irreal. Era como se, de um minuto para o outro, Mr. Gregory e eu passássemos de uma fotografia a preto e branco para uma fotografia a cores. À nossa volta, imperava a claridade. Os grãos de areia que se haviam incrustado no cabelo do Ronald brilhavam, agora, quais pontos de luz.

 

”Temos de pedir ajuda e de chamar a Polícia”, murmurou Mr. Gregory. ”Importa-se de ficar aqui, junto do corpo? Eu não demoro. Pode acompanhar-me, se preferir, mas penso que seria melhor que um de nós ficasse aqui.”

 

”Vá. Demorará menos tempo de carro. Eu não me importo de esperar.”

 

Observei Mr. Gregory, quando, com passos apressados, se afastou em direcção ao quebra-mar, contornou o promontório e desapareceu de vista. Um minuto depois, ouvi o motor do carro. Afastei-me, então, do corpo e sentei-me. Os seixos ainda estavam molhados, em virtude da chuva que caíra durante a noite, e aquela humidade fria infiltrou-se nas minhas calças de algodão. Com os braços à volta dos joelhos, contemplei o mar ali sentada, pensei no Mike, pela primeira vez em muitos anos. Morreu quando a sua motocicleta derrapou, na auto-estrada, e embateu numa árvore. Tínhamos regressado da nossa lua-de-mel havia menos de duas semanas. Conhecêramo-nos pouco mais de um ano antes. O que sen ti, com a morte do Mike, foi um choque e uma sensação de completa in credulidade. Não fui invadida pelo desgosto. Naquela altura, pensei que os meus sentimentos eram a expressão do desgosto mas, passados todos estes anos, sei que não foi esse sentimento que me assolou. Depois da morte de Mike, se bem que soubesse que me tornara Margaret Munroe, estado civil: viúva, ainda me sentia Margaret Parker, de vinte e um anos de idade, estado civil: solteira, e enfermeira. Ao aperceber-me de que estava grávida, também isso me pareceu algo de irreal Quando o bebé nasceu, parecia nada ter a ver com o Mike, com a nossa curta vida em comum, nem, tão-pouco, comigo. Os laços de sangue surgiram mais tarde e, por isso mesmo, revelaram-se mais fortes. Quando o Charlie morreu, chorei por ele e pelo seu pai, mas continuo sem conseguir ter uma recordação nítida do rosto do Mike.

 

Tinha consciência da presença do corpo do Ronald, atrás de mim, mas sentia-me aliviada por não estar sentada a seu lado. Certas pessoas, quando velam os mortos, sentem que a sua presença é uma companhia, mas não era esse o meu caso, pelo menos relativamente ao Ronald. Tudo o que sentia era uma profunda tristeza. Não por aquele pobre rapaz nem, sequer, pelo Charlie, pelo Mike ou por mim mesma. Era mais uma tristeza universal, que parecia impregnar tudo o que me rodeava, como a brisa que me aflorava as faces, o céu, onde havia algumas nuvens, correndo quase deliberadamente, e o próprio mar. Dei comigo a pensar em todas as pessoas que haviam vivido e morrido nesta zona costeira e nos esqueletos que jaziam nas profundezas do mar. As suas vidas deviam ter sido importantes para eles e para os seus entes queridos, mas, agora, estavam mortos e era como se nunca houvessem nascido. E, daqui a cem anos, ninguém se lembrará do Charlie, do Mike ou de mim. As nossas vidas são tão insignificantes quanto um grão de areia. Sentia a alma despojada, inclusivamente de qualquer sentimento de tristeza. Com o olhar perdido no mar imenso, aceitando que, no fim, nada conta e que tudo o que nos resta é aproveitar o momento presente, senti-me em paz.

 

Penso que devia estar numa espécie de transe, porque não me apercebi das três figuras que se aproximavam, salvo quando surgiram à minha frente. O padre Sebastian, com o seu capote preto, a protegê-lo do vento, e Mr. Gregory caminhavam lado a lado. Ambos tinham a cabeça inclinada para a frente e mais parecia que marchavam. O padre Martin seguia-os, um pouco mais atrás, tentando não perder o equilíbrio. Lembro-me de pensar, naquele momento, que não era correcto da parte dos outros dois seguir à sua frente e não esperar por ele.

 

Senti-me constrangida por me descobrirem, ali, sentada. Levantei-me e o padre Sebastian perguntou:

 

”Está tudo bem consigo, Margaret?”

 

”Sim.” Logo de seguida, afastei-me, quando os três homens se aproximaram do corpo.

 

O padre Martin benzeu-se.

 

”Que desgraça”, murmurou.

 

Mesmo naquele momento de choque, pensei que o padre Martin empregara uma estranha expressão para descrever o sucedido, mas depressa me apercebi de que ele não estava apenas a pensar no Ronald Treeves. Pensava, acima de tudo, no instituto.

 

Baixou-se e encostou a mão à nuca do Ronald, mas Mr. Gregory interveio, em tom ríspido:

 

”Não restam dúvidas de que está morto. Por isso, é melhor não mexermos mais no corpo.”

 

O padre Martin postara-se um pouco mais atrás. Reparei que os seus lábios se mexiam. Creio que começara a rezar.

 

”Se você, Gregory, regressar ao instituto e avisar a Polícia”, replicou o padre Sebastian, ”eu e o padre Martin ficamos aqui. É melhor levar a Margaret consigo. Foi um choque para ela. Conduza-a a Mistress Pilbeam, se quiser, e explique o que aconteceu. Tenho a certeza de que Mistress Pilbeam tomará conta dela e preparará um chá bem quente. Ninguém deverá falar do sucedido até que eu dê a notícia aos nossos ordinandos. Se, entretanto, a Polícia quiser falar com a Margaret, poderá fazê-lo mais tarde.”

 

É engraçado, mas lembro-me de me sentir ofendida pelo facto de o padre Martin falar de mim a Mr. Gregory, como se eu não estivesse ali. Além do mais, não queria que alguém me levasse a casa da Ruby Pilbeam. Simpatizo com a Ruby, que sempre conseguiu ser afável sem se tornar demasiado intrometida, mas o que eu queria era voltar para a minha casa.

 

Aproximando-se de mim, o padre Sebastian pousou a mão sobre o meu ombro e disse:

 

”Foi muito corajosa, Margaret, pelo que lhe fico agradecido. Agora, vá com Mister Gregory. Eu irei vê-la mais tarde. Não se preocupe. O padre Martin e eu ficamos aqui, de vigília ao Ronald.”

 

Não pude deixar de reparar que era a primeira vez que o padre Sebastian pronunciava o nome do morto.

 

Já no carro, Mr. Gregory conduziu em silêncio, durante algum tempo; depois, comentou:

 

”Foi uma morte estranha. Pergunto a mim próprio o que o médico legista... e, agora, que penso melhor no assunto, o que a Polícia irá descobrir. ”

 

”Concluirá, por certo, que se tratou de um acidente”, repliquei.

 

”Um acidente deveras curioso, não acha?”

 

Não respondi.

 

”.Bom, mas tenho a certeza de que não é o primeiro cadáver que vê”, prosseguiu Mr. Gregory. ”Já deve estar habituada à morte.”

 

”Sou enfermeira, Mister Gregory.”

 

Lembrei-me, então, do primeiro cadáver que vira, aos dezoito anos, quando ainda era estagiária. Naquele tempo, a enfermagem era muito diferente do que é agora. Costumávamos amortalhar os cadáveres e tudo era feito com grande reverência, em silêncio, por trás dos biombos. A enfermeira-chefe tinha por hábito dizer uma oração, antes de começarmos. Explicava-nos que era o último serviço que podia prestar aos nossos pacientes, mas eu não ia falar sobre isso a Mr. Gregory.

 

”A visão de um cadáver dá-nos uma sensação de reconforto e de segurança; faz-nos compreender que podemos viver como homens mas que morremos como animais. Para mim, constitui um alívio. Não consigo imaginar coisa mais horrorosa do que a vida eterna.”

 

Mantive-me em silêncio. Não que eu antipatize com Mr. Gregory. Mal nos conhecemos. A Ruby Pilbeam encarrega-se da limpeza da sua casa e da sua roupa, uma vez por semana. É um acordo privado que ambos estipularam. A verdade é que não tenho grande intimidade com Mr. Gregory e não estava com disposição para começar a conhecê-lo melhor, naquele momento.

 

O carro passou por entre as torres geminadas da ala oeste e entrou no átrio. Mr. Gregory tirou o cinto, ajudou-me a tirar o meu e disse: ”Eu acompanho-a a casa de Mistress Pilbeam. Pode ser que não esteja. Se ela não estiver, é melhor a senhora ficar em minha casa. Ambos estamos a precisar de uma bebida bem forte.”

 

Felizmente, a Ruby Pilbeam estava em casa. Depois de um breve relato dos factos, Mr. Gregory acrescentou: ”O padre Sebastian e o padre Martin ficaram de vigília ao corpo e a Polícia não deve tardar. Não mencione o sucedido a ninguém, até o padre Sebastian regressar.”

 

Depois de Mr. Gregory sair, a Ruby fez um chá quente e forte. Andou à minha volta mas não me consigo lembrar das palavras que disse ou dos gestos que fez. Pouco falei e ela não esperava outra coisa de mim, porque me tratou como se eu estivesse doente. Ajudou-me a sentar numa poltrona, em frente do aquecedor, que ligou no máximo, para o caso de eu sentir frio, devido ao choque, e correu as cortinas para que eu pudesse ter aquilo a que chamou ”uma boa sesta”.

 

Tenho uma vaga ideia de que a Polícia surgiu, uma hora mais tarde, na pessoa de um jovem sargento, com pronúncia galesa. Mostrou-se afável e paciente. Respondi às suas perguntas calmamente. Afinal, pouco havia a dizer. Perguntou-me se eu conhecia bem o Ronald, quando fora a última vez que o vira e se ele parecera deprimido, ultimamente. Respondi que vira o Ronald, pela última vez, na noite anterior, a caminho da casa de Mr. Gregory, talvez para ter a sua aula de Grego. O primeiro período acabara de começar e fora a única vez que o vira. Fiquei com a impressão de que o sargento penso que se chamava Jones ou Evans, sei que tinha um apelido de origem galesa se arrependeu de perguntar se o Ronald se mostrava deprimido. Declarou que estava tudo em ordem, fez as mesmas perguntas à Ruby e, depois, partiu.

 

O padre Sebastian deu a notícia quando os ordinandos se juntaram para assistir às vésperas das cinco da tarde. Por aquela altura, a maior parte já calculava que tinha havido uma tragédia, porque os carros da Polícia e a carrinha mortuária não haviam chegado ao instituto em segredo. Como não me dirigi à biblioteca, não faço ideia do que o padre Sebastian terá dito. Tudo o que eu queria era ficar sozinha. Mais tarde, nesse mesmo dia, o Raphael Arbuthnot, um dos ordinandos, foi visitar-me. Apareceu com um pequeno vaso de violetas-africanas, como demonstração de solidariedade por parte de todos os estudantes. Um deles devia ter ido, de carro, até Pakefield ou Lowestoft para comprar as flores. Quando o Raphael me entregou o pequeno vaso, debruçou-se para a frente e deu-me um beijo na face. ”Lamento imenso, Margaret”, murmurou. Se bem que se trate do tipo de coisas que se diz num momento como aquele, não me pareceu um lugar-comum mas, sim, um pedido de desculpas.

 

Só dois dias mais tarde comecei a ter pesadelos. Nunca tive pesadelos, nem mesmo quando era estudante de enfermagem e lidei, pela primeira vez, com a morte. São horríveis e, agora, fico sentada, em frente da televisão, até tarde, com medo do momento em que o cansaço me obrigue a ir deitar-me. O sonho é sempre o mesmo. O Ronald Treeves está de pé, junto da minha cama. Encontra-se nu, mas o seu corpo aparece coberto por areia húmida, que se cola ainda mais ao seu cabelo e ao seu rosto. Só se lhe vêem os olhos, que me fixam, com expressão reprovadora, como se me perguntassem porque não fiz mais esforços a fim de salvá-lo. Tenho a certeza de que não havia nada a fazer para ajudá-lo. Sei que ele morreu, muito antes de eu o ter encontrado. No entanto, ele continua a surgir nos meus sonhos, noite após noite, com aquele olhar acusador, enquanto a areia lhe cai do rosto redondo e pouco atraente.

 

Talvez, agora, que escrevi sobre os meus pesadelos, o Ronald me deixe em paz. Não me tenho na conta de uma mulher dotada de imaginação fértil, mas há qualquer coisa de estranho quanto à sua morte, algo de que eu devia recordar-me mas que se mantém no meu inconsciente. Não sei porquê, mas qualquer coisa me diz que a morte do Ronald Treeves não foi um fim, mas sim um começo.

 

O telefone de Dalgliesh tocou às dez e meia da manhã, pouco antes de regressar ao seu gabinete, depois de uma reunião com o Departamento de Relações Comunitárias. Demorara mais que o previsto como acontece sempre com aquele género de reuniões e tinha apenas cinquenta minutos para se juntar ao comissário, no gabinete do ministro do Interior, na Câmara dos Comuns. Tempo apenas para um café e para fazer alguns telefonemas mais urgentes. Contudo, mal acabara de entrar no gabinete, a sua assistente espreitou por trás da porta.

 

Mister Harkness ficar-lhe-ia agradecido se o senhor fosse vê-lo antes de sair. Está com Sir Aired Treeves.

 

E agora? Era óbvio que Sir Aired Treeves queria alguma coisa: as pessoas que visitam os oficiais seniores da Scotland Yard geralmente querem alguma coisa. E Sir Aired Treeves conseguia sempre o que queria. Não se dirige uma das multinacionais mais prósperas sem saber, instintivamente, como ter controlo sobre o poder, tanto em questões importantes como em assuntos insignificantes. Dalgliesh, aliás, já ouvira falar da reputação de Sir Aired Treeves. Era quase impossível viver no século xxi e não haver ouvido falar daquele homem. Um patrão justo, até mesmo bondoso, de uma vasta equipa de empregados eficazes; um generoso defensor de obras de caridade, que financiava por meio dos fundos dos seus vários consórcios, e um respeitável coleccionador de arte europeia do século xx. Porém, aquelas mesmas características podiam ser interpretadas, pelos mais preconceituosos, como as de um implacável gestor, que eliminava os empregados menos competentes; um adepto, muito bem aconselhado, das causas humanitárias que estavam na moda e um investidor, com mira no lucro a longo prazo. Até mesmo a fama de homem rude era ambígua. Uma vez que agia indiscriminadamente, tanto com os fracos como com os poderosos, ganhava uma reputação de implacável igualitarismo.

 

Dalgliesh subiu, pelo elevador, até ao sétimo andar, sem grande entusiasmo; mesmo assim, sentia alguma curiosidade. Ao menos, a reunião duraria pouco tempo, porque ele tinha de estar às dez e um quarto no Ministério do Interior. E, quando se tratava de prioridades, o ministro ganhava precedência até mesmo sobre Sir Aired Treeves.

 

O comissário adjunto e Sir Aired encontravam-se de pé, em frente da secretária de Harkness. Quando Dalgliesh entrou, os dois homens viraram-se. Como acontece frequentemente com as figuras públicas que aparecem nos jornais e revistas, a primeira impressão que Dalgliesh teve de Treeves foi algo desconcertante. Era mais forte e menos bem-parecido do que na televisão, talvez porque os contornos do seu rosto não fossem tão bem definidos. Por outro lado, a sensação de poder latente e de um certo gozo, se bem que acanhado, quanto à impressão que transmitia aos outros, era ainda mais notória. Tinha a mania de se vestir ao estilo de um próspero fazendeiro. Só usava fatos de tweed, feitos por medida, para as ocasiões mais formais. E, de facto, na sua pessoa havia certos indícios de um camponês: os ombros largos e o cabelo em desalinho, que nenhum barbeiro conseguiria disciplinar completamente. O seu cabelo era escuro, quase negro, com uma madeixa grisalha a meio da testa. Se Sir Aired fosse um homem que se preocupasse mais com a sua aparência, Dalgliesh teria pensado que aquela madeixa era pintada.

 

Os olhos de Treeves, por baixo de sobrancelhas fartas, fixaram-se em Dalgliesh, examinando-o de alto a baixo.

 

Penso que já se conhecem afirmou Harkness.

 

Os dois homens trocaram um aperto de mão. A mão de Sir Aired era fria e firme, mas retirou-a imediatamente, dando a entender que aquele cumprimento não passara de uma mera formalidade.

 

Sim, já nos encontrámos replicou Sir Aired. Numa conferência organizada pelo Ministério do Interior, no final dos anos oitenta, não foi? Acerca do policiamento nas cidades do interior. Nem sei como lá fui parar...

 

A sua empresa fez um generoso donativo para um dos programas integrados nas iniciativas de policiamento das cidades do interior. Talvez o senhor quisesse certificar-se de que o seu dinheiro seria bem empregue...

 

Duvido. Os jovens querem empregos bem remunerados, pelos quais valha a pena acordar de manhã cedo. Não querem receber formação para empregos que simplesmente não existem.

 

Dalgliesh recordou aquela ocasião. Fora mais um dos exercícios, muito bem organizados, de relações públicas, por parte das autoridades. Alguns dos oficiais seniores e ministros presentes nutriam grandes esperanças quanto ao êxito da iniciativa, mas os resultados haviam sido quase nulos. Treeves colocara várias perguntas pertinentes, exprimira o seu cepticismo quanto às respostas que lhe haviam sido dadas e saíra antes de o ministro fazer o seu discurso. Por que motivo decidira então estar presente e fora mesmo ao ponto de contribuir com um donativo? Talvez porque também houvesse sido, da sua parte, uma manobra de relações públicas.

 

Harkness indicou as cadeiras giratórias, alinhadas em frente da janela, e murmurou algo acerca de tomarem um café.

 

Obrigado, mas não bebo café respondeu Treeves. O seu tom de voz insinuava que tinham acabado de lhe oferecer uma bebida esotérica, imprópria para consumo às dez e quarenta e cinco minutos da manhã.

 

Os três homens sentaram-se com alguma da portentosa desconfiança dos ”padrinhos” da Mafia, quando se encontram para conjugar as suas diferentes esferas de interesse. Treeves consultou o relógio de pulso. Era óbvio que estipulara o tempo que concederia àquele encontro. Fora até ali, por sua própria iniciativa, sem avisar antes, nem, tão-pouco, dizer qual o seu propósito, o que o colocava em vantagem. Entrara no edifício, certo de que um oficial sénior arranjaria tempo para recebê-lo, e não se enganara.

 

O meu filho mais velho, Ronald, que, a propósito, foi adoptado, morreu, há dez dias, em consequência do desabamento de um penhasco, no condado de Suffolk. Um desabamento de areia seria uma descrição mais adequada; aqueles penhascos, a sul de Lowestoft, têm sido alvo da corrosão do mar, desde o século dezassete. A causa da morte do meu filho foi asfixia. O Ronald estudava no Instituto de Teologia de Santo Anselmo, em Ballard’s Mere. É uma instituição da facção conservadora da Igreja Anglicana que mais se aproxima do catolicismo, e cujo objectivo é a preparação dos jovens para o sacerdócio. Dito isto, Sir Aired fitou Dalgliesh. Mas creio que o senhor sabe a que me refiro... O seu pai não era um membro do clero?

 

”Como é que ele sabe?”, perguntou Dalgliesh a si próprio. Provavelmente, alguém lho dissera, em certa ocasião, Sir Aired registara mentalmente a informação e, por fim, pedira a um dos seus lacaios para verificar se era verdade, antes de se preparar para aquela reunião. Era um homem que acreditava na vantagem de possuir o máximo de informação possível acerca das pessoas com quem se lida. E, se essa informação comprometesse terceiros, tanto melhor. Todo e qualquer pormenor sobre a vida das pessoas com quem tinha de lidar, sem que estas o soubessem, era uma arma útil na consolidação do seu poder.

 

Sim, de facto, o meu pai foi pároco na diocese de Norfolk.

 

O seu filho estava a estudar para vir a ser padre? perguntou Harkness.

 

Que eu saiba, o que ele aprendia, no Instituto de Santo Anselmo, não o habilitava para nenhuma outra profissão.

 

Os jornais mencionaram a morte, mas não me lembro de terem falado sobre o inquérito interveio Dalgliesh.

 

Nem podia lembrar-se, porque tudo foi feito com a maior discrição. Concluiu-se que se tratara de uma morte acidental, quando o veredicto deveria ter ficado em aberto. Se o reitor e os outros membros do corpo docente de Santo Anselmo não estivessem presentes, como um grupo de defensores da moral, vestidos de preto, o médico legista, provavelmente, teria arranjado coragem para pronunciar um veredicto mais correcto.

 

Esteve presente, Sir Aired?

 

Não, mas mandei alguém representar-me. Eu encontrava-me na China, a negociar um contrato deveras complexo com uma empresa de Pequim. Regressei para a cremação, após a trasladação do corpo do meu filho para Londres. Tinham preparado, em Santo Anselmo, uma missa fúnebre... creio que lhe chamam um requiem, mas nem eu nem a minha esposa estivemos presentes. Nunca me senti à vontade numa igreja. Logo após o inquérito, pedi a dois dos meus motoristas que fossem buscar o Porsche do meu filho. Entregaram-lhes as roupas, a carteira e o relógio de pulso do Ronald. O Norris, o meu motorista particular, trouxe o embrulho, mas pouca coisa continha. Os estudantes são encorajados a não ter mais do que um mínimo de roupa: um fato, dois pares de calças de ganga, camisolas de algodão e de lã, sapatos e aquela batina preta que eles têm de usar. O Ronald também possuía alguns livros, claro, mas doei-os à biblioteca do instituto. Não deixa de ser estranho com que rapidez se consegue arrumar uma vida... Foi então que, anteontem, recebi isto.

 

Sir Aired tirou a carteira, desdobrou uma folha de papel e passou-a a Dalgliesh, que a examinou e, por sua vez, a entregou ao comissário adjunto. Harkness leu o bilhete em voz alta:

 

”Porque não faz certas perguntas em relação à morte do seu filho? Ninguém acredita que se tenha tratado de um acidente. Aqueles padres são capazes de tudo para manter o bom nome de Santo Anselmo. Passam-se certas coisas, naquele instituto, que deveriam ser investigadas. Vai permitir que eles fiquem impunes?”

 

Para mim, esse bilhete anda muito perto de uma acusação de homicídio declarou Sir Aired.

 

Harkness passou novamente a folha de papel a Dalgliesh.

 

Mas, sem provas, sem um alegado móbil e sem o nome de um possível suspeito, não será, antes contrapôs, uma partida de mau gosto, por parte de alguém que quer criar problemas ao instituto?

 

Dalgliesh estendeu a folha de papel a Sir Aired Treeves, mas este acenou impacientemente, dando a entender que não pretendia guardá-la.

 

É uma hipótese replicou Sir Aired Treeves, entre muitas outras, e penso que não irão ignorá-la. Contudo, pessoalmente, levei a questão muito a sério. O bilhete foi escrito em computador, como não podia deixar de ser. Assim, não existe a menor possibilidade de a letra estar desalinhada, pista que é sempre usada nos livros policiais. Também não têm de se dar ao trabalho de procurar impressões digitais. Já mandei fazê-lo, confidencialmente, claro. Nada. Nem eu esperava o contrário. Por fim, diria que o bilhete foi escrito por alguém com instrução. Ele... ou ela... não deu erros de ortografia e respeitou as regras da pontuação. E, nesta época de jovens iletrados, penso que isso significa que o autor do bilhete é alguém de meia-idade.

 

E que decidiu escrever uma mensagem misteriosa, que o levasse a agir rematou Dalgliesh.

 

Porque diz isso?

 

Não veio até cá?

 

Disse que o seu filho foi adoptado atalhou Harkness. Qual era o passado dele?

 

Não havia passado. A mãe tinha catorze anos e o pai, quinze, quando ele nasceu. Foi concebido junto de um pilar de cimento, no túnel de Westway. Era branco, saudável e recém-nascido... um artigo muito procurado no mercado da adopção. A verdade é que tivemos muita sorte em nos ter calhado aquele bebé. Mas porque faz essa pergunta?

 

O senhor afirmou que esse bilhete era uma acusação de homicídio e passou-me pela cabeça quem poderia beneficiar com a morte do seu filho, se é que existe alguém...

 

Uma morte beneficia sempre alguém. Neste caso, o único beneficiário é o meu segundo filho, Marcus, cujos bens, quando ele atingir os trinta anos de idade, serão, agora, aumentados. Pela mesma lógica, a sua eventual herança será maior. Mas como o Marcus se encontrava na escola, no momento da morte do irmão, podemos excluí-lo.

 

O Ronald escreveu-lhe ou disse-lhe que se sentia deprimido ou infeliz?

 

A mim, não, mas também sei que eu seria a última pessoa com quem ele desabafaria, se tivesse algum problema. Bom, mas parece que não estamos a entender-nos. Não estou aqui para ser interrogado nem para fazer parte da vossa investigação. Já vos disse o pouco que sabia. Agora, quero que se encarreguem do assunto.

 

Harkness olhou de relance para Dalgliesh e, depois, replicou. Como sabe, a investigação é da alçada da Polícia do condado de Suffolk, e posso dizer-lhe que é eficiente.

 

Não duvido. É de presumir que receba, de tempos a tempos, a visita da Inspecção-Geral de Sua Majestade para as Forças Policiais, que procede a uma auditoria interna e, no fim, a qualifica como sendo eficiente. Mas esses agentes estiveram envolvidos no primeiro inquérito. O que eu quero é que, agora, sejam vocês a assumir o comando da investigação. Para ser mais específico, quero que o inspector Dalgliesh se encarregue dessa investigação.

 

Harkness olhou novamente para Dalgliesh; parecia querer protestar, mas mudou de ideia e calou-se.

 

Vou de férias, na semana que vem replicou Dalgliesh, e tenciono passar alguns dias no condado de Suffolk. Conheço bem o Instituto de Santo Anselmo. Posso sempre falar com as autoridades locais e com algumas pessoas do instituto, a fim de verificar se, à primeira vista, existem dados que nos possam levar a uma investigação. Se bem que, com o veredicto já feito e a cremação do corpo do seu filho, seja muito pouco provável que, agora, surjam novas pistas.

 

Harkness decidiu, por fim, dar a sua opinião:

 

É um procedimento muito pouco ortodoxo. Treeves levantou-se.

 

Talvez, mas parece-me perfeitamente sensato. Exijo discrição. É por isso mesmo que não tenciono regressar àquela zona. Já houve demasiada confusão quando a notícia da morte do Ronald foi publicada nos jornais locais. Não quero ver cabeçalhos nos tablóides a insinuar que a morte do Ronald está envolta em mistério.

 

No entanto, é essa a sua opinião, não é assim, Sir Aired? contrapôs Harkness.

 

Claro que é essa a minha opinião. Ou o Ronald morreu de acidente, ou se suicidou, ou foi assassinado. A primeira hipótese é improvável, a segunda, inexplicável. Sobra a terceira. Entre em contacto comigo, quando chegar a uma conclusão.

 

Sentia-se feliz com a opção de carreira do seu filho? quis saber Harkness. Logo depois, fez uma pausa, e acrescentou: Carreira, vocação, profissão ou como lhe queira chamar...

 

Transparecia, no tom de voz do comissário adjunto, um certo dilema entre o tacto e a dúvida, bem revelador de que não esperava que a sua pergunta fosse bem recebida. E não se enganou. Muito embora Sir Aired se mostrasse calmo, a sua resposta constituiu um inequívoco aviso.

 

Aonde quer chegar, ao certo?

 

Agora que Harkness ganhara coragem, não fazia tenção de se deixar intimidar.

 

Estava a pensar se o seu filho não teria algo em mente, como algum motivo que, em particular, o apoquentasse.

 

Sir Aired consultou, de novo, o relógio de pulso.

 

Está a sugerir um suicídio? Pensava que tinha deixado o meu ponto de vista bem claro. Essa hipótese foi definitivamente excluída, percebeu? Por que raio haveria ele de suicidar-se? Tinha tudo o que queria.

 

E se não fosse o que o senhor queria? sugeriu timidamente Dalgliesh.

 

Claro que não era o que eu queria! Uma carreira sem futuro! A Igreja Anglicana desaparecerá, daqui a vinte anos, se o declínio actual continuar. Ou transformar-se-á numa seita de excêntricos, preocupados em manter velhas superstições e preservar ancestrais lugares de culto... isto, se o Estado não os transformar em monumentos nacionais. As pessoas correm atrás da ilusão da espiritualidade. A maioria crê em Deus e a ideia de que a morte pode ser o fim de tudo não é agradável. No entanto, deixaram de acreditar que o Paraíso existe, não temem o Inferno, e não é agora que vão começar a ir à missa. O Ronald tinha instrução, era inteligente e oportunidades não lhe faltavam. Não era estúpido. Podia ter feito algo de proveitoso em relação à sua vida. Sabia qual era a minha opinião quanto à opção que fizera. Era assunto encerrado, para nós os dois. Portanto, não ia com certeza enfiar a cabeça debaixo de uma tonelada de areia só para me mostrar o seu desagrado.

 

Sir Aired Treeves despediu-se de Harkness e Dalgliesh com um breve aceno de cabeça. A reunião havia terminado. Dalgliesh desceu, pelo elevador, juntamente com Sir Aired e acompanhou-o até ao local onde o motorista aguardava o patrão, ao lado do Mercedes.

 

Dera meia volta quando Sir Aired o chamou.

 

Com a cabeça por cima do vidro da janela, disse-lhe:

 

Creio que lhe terá ocorrido que o Ronald possa ter sido assassinado num outro local e que o seu corpo haja sido arrastado até à praia...

 

Penso que o senhor devia partir do princípio de que a Polícia de Suffolk também terá pensado nisso... replicou Dalgliesh.

 

Não sei se partilho da sua opinião. De qualquer maneira, é uma hipótese que deve ser levada em conta.

 

Não fez sinal ao motorista, sentado, muito hirto, atrás do volante, para que arrancasse. Ao invés, como que levado por um súbito impulso, comentou:

 

Há outra questão que me intriga. Veio-me à ideia, quando estava na igreja. Frequento a igreja, de tempos a tempos, como quando vou assistir à missa anual, na City. Sabe como são estas coisas. é preciso aparecermos... Bom, mas pensei que deveria reflectir melhor na questão, logo que tivesse algum tempo livre. É sobre o credo.

 

Dalgliesh tinha por norma ocultar qualquer expressão de surpresa e perguntou, em tom grave:

 

Qual deles, Sir Aired?

 

Há mais do que um?

 

Há três.

 

Meu Deus! Bem, escolha um qualquer, porque deve ser tudo a mesma coisa. Como foi que eles começaram? Ou, melhor dizendo, quem os escreveu?

 

Intrigado, Dalgliesh sentiu-se tentado a perguntar se Sir Aired falara naquele assunto com o filho, mas a prudência prevaleceu.

 

Penso que um teólogo poderia ser-lhe mais útil do que eu, Sir Aired.

 

Mas não é filho de um pároco? Pensava que soubesse. Não tive tempo para andar a fazer perguntas por aí.

 

A memória de Dalgliesh recuou até ao gabinete de seu pai, na paróquia de Norfolk, a factos que havia aprendido ou lera, por alto, nos livros da biblioteca da casa paterna e a palavras que, agora, raramente empregava, mas que pareciam estar registadas na sua mente desde tenra idade.

 

O credo niceno foi formulado pelo Concílio de Niceia, no século quarto. E, inexplicavelmente, lembrou-se da data. Penso que foi em trezentos e vinte e cinco. O imperador Constantino convocou o concílio para se formular a profissão de fé da Igreja e lidar com a heresia do arianismo.

 

E porque é que a Igreja não actualiza esses credos? Não voltamos ao século quarto para compreender a medicina, a ciência ou a natureza do Universo. Não recuo ao século quarto, quando dirijo as minhas empresas. Então, porquê regressar ao ano de trezentos e vinte e cinco para entender Deus?

 

Preferia que houvesse um credo para o século vinte e um? quis saber Dalgliesh. Sentiu-se tentado a perguntar se Sir Aired pensava em escrevê-lo, mas, em vez disso, acrescentou: Duvido muito de que um novo concílio, numa cristandade dividida, chegasse a qualquer consenso. Estou certo de que a Igreja acha que os bispos de Niceia receberam inspiração divina.

 

Mas tratou-se de um concílio de homens, não é verdade? Uma reunião de homens poderosos, que trouxeram consigo as suas ideias pessoais, os seus preconceitos e as suas rivalidades. No fundo, tudo se resumiu ao poder e a quem ficava com ele. O senhor já fez parte de inúmeras comissões e sabe como funcionam. Por acaso, esteve nalguma reunião que fosse fruto da inspiração divina?

 

Tenho de admitir que não, muito menos no que diz respeito às reuniões de trabalho, no Ministério do Interior. Está a pensar em escrever ao arcebispo ou, quem sabe, ao papa?

 

Sir Aired brindou-o com um olhar desconfiado, mas, aparentemente, decidiu que, se Dalgliesh estava a gozar com ele, devia ignorá-lo.

 

Tenho mais que fazer. Depois, foge um pouco à minha especialidade. No entanto, é uma questão interessante. É de admitir que se lembrassem disso. Quando estiver em Santo Anselmo e chegar a uma conclusão, diga-me. Vou estar fora do país nos próximos dez dias, mas não há pressa. Se o meu filho foi assassinado, saberei o que fazer. Se o Ronald se suicidou, então isso só a ele diz respeito, mas, mesmo assim, gostava de saber o que se passou.

 

Despediu-se de Dalgliesh com um aceno de cabeça e ordenou ao motorista:

 

Muito bem, Norris. Leve-me de volta ao escritório.

 

O carro arrancou. Dalgliesh ficou a observar o Mercedes a afastar-se, durante algum tempo. Sir Aired não deixava os seus créditos por mãos alheias. Fizera uma avaliação da questão com demasiada confiança, quase com alguma presunção. Ora, era um homem mais complexo do que parecia. Um misto de ingenuidade e de subtileza, de arrogância e de uma curiosidade exagerada. E, ao tomar sobre si, de forma incongruente, a análise da questão, conferira-lhe, de imediato, uma dignidade que resultava, tão-somente, do seu interesse pessoal. No entanto, Dalgliesh sentia-se ainda atónito. O veredicto sobre a morte de Ronald Treeves, mesmo que surpreendente, havia sido, pelo menos, misericordioso. Haveria qualquer outro motivo, mais obscuro, para lá da preocupação de um pai, que levasse Sir Aired a insistir numa nova investigação?

 

Dalgliesh regressou ao sétimo andar. Harkness encontrava-se junto da janela. Sem se voltar, exclamou:

 

Um homem extraordinário! Disse-lhe mais alguma coisa?

 

Sim. Que gostaria de voltar a escrever o credo de Niceia.

 

Que ideia tão absurda...

 

Mas, provavelmente, menos prejudicial para a raça humana do que a maior parte das suas outras actividades.

 

Não; estava a referir-me ao seu propósito de que um oficial da Scotland Yard perca um tempo precioso com a reabertura do inquérito acerca da morte do filho. Ora, mas é tido e sabido que não vai descansar enquanto não conseguir o que deseja. Trata do assunto com a Polícia de Suffolk ou prefere que seja eu a fazê-lo?

 

É melhor sermos tão discretos quanto possível. O Peter Jackson foi transferido para a Polícia de Suffolk, no ano passado, como comissário adjunto. Vou falar com ele. Além do mais, conheço Santo Anselmo. Passei ali as férias de Verão, durante três anos. Não acredito que ainda lá estejam os mesmos padres, mas, pelo menos, encararão a minha chegada com maior naturalidade, dadas as circunstâncias.

 

Acredita mesmo nisso? Podem viver longe de tudo e de todos, mas duvido muito que sejam assim tão ingénuos. Um inspector da Polícia Metropolitana de Londres, interessado na morte acidental de um estudante? Bom, mas não nos resta qualquer alternativa... Treeves tudo fará para conseguir o que quer, mas também não podemos mandar até lá dois dos nossos sargentos, para que comecem a meter o nariz numa investigação que é da alçada de outra força policial. No entanto, se, de facto, se tratar de uma morte suspeita, a Polícia de Suffolk terá de reabrir o inquérito, quer o Treeves queira, quer não. Também pode desistir da ideia de que irão proceder, em segredo, à investigação de um homicídio. Quando se descobre um crime, ficamos todos em pé de igualdade, quer sejamos da Scotland Yard ou de uma autoridade policial local. É algo que nem mesmo o Treeves pode manipular, só para sua conveniência. Estranho, não acha? Refiro-me ao facto de ele se ter dado ao trabalho de vir até cá e de ter feito do caso um assunto pessoal. Se quer manter a imprensa à distância, então, porque insiste na reabertura do inquérito? E porque terá levado aquele bilhete tão a sério? O que ele mais deve receber são cartas de loucos. Era de esperar que não desse qualquer importância ao bilhete anónimo e o deitasse no caixote do lixo.

 

Dalgliesh nada disse. Fosse qual fosse o motivo do remetente, o bilhete não lhe parecera obra de uma pessoa desequilibrada. Harkness aproximou-se um pouco mais da janela e, de pé, com os ombros descaídos, contemplou o panorama familiar de torres e espirais como se, de repente, tudo aquilo lhe fosse estranho.

 

Sempre sem se voltar, continuou:

 

Não demonstrou qualquer pena pelo rapaz, pois não? E não deve ter sido fácil para ele... Refiro-me ao rapaz, claro. Foi adoptado, presumivelmente porque o Treeves e a esposa julgavam que não podiam ter filhos. Mais tarde, a esposa do Treeves engravida e nasce um filho. Um artigo genuíno, sangue do sangue de Sir Aired Treeves, e não um miúdo escolhido pelo respectivo departamento dos Serviços Sociais. E nem sequer é tão invulgar como isso. Conheço um caso assim. O filho adoptado sente, invariavelmente, que não faz parte da família.

 

As palavras de Harkness haviam sido proferidas com mal disfarçada veemência. Foi Dalgliesh quem quebrou o momento de silêncio que se seguiu.

 

Talvez justifique a atitude de Sir Aired. Ou talvez ele sinta um complexo de culpa. Não conseguia amar o rapaz como filho, enquanto estava vivo, e não consegue sentir qualquer pesar, agora que o Ronald está morto, mas insiste em que se faça justiça.

 

Harkness voltou-se e replicou, em tom brusco:

 

De que serve a justiça para os mortos? É melhor concentrarmo-nos na justiça para os vivos. Bom, faça o que puder que eu tratarei de informar o comandante. Se bem que Dalgliesh e Harkness se tratassem pelos respectivos nomes próprios, havia sete anos, este último dirigira-se ao colega como se estivesse a dar ordens a um sargento.


Os documentos para a reunião, no Ministério do Interior, achavam-se em cima da sua secretária e os respectivos anexos haviam sido devidamente etiquetados. Como sempre, a assistente particular de Dalgliesh mostrara-se eficiente. Quando Dalgliesh guardou os documentos na pasta e desceu, pelo elevador, libertou a sua mente de todas as preocupações do dia e deixou-a divagar até à costa ventosa de Ballard’s Mere.

 

Ia voltar a Ballard’s Mere finalmente. Porque não regressara antes? A sua tia vivera na zona costeira de East Anglia, primeiro numa casa de campo, e mais tarde, num velho moinho restaurado. E, de cada vez que Dalgliesh a visitava, podia ter ido até Santo Anselmo. Teria sido fruto de uma instintiva relutância em evitar a desilusão, da consciência de que regressamos sempre a um local de que gostamos sem qualquer capacidade crítica, enterrada pelo triste passar dos anos? Além do mais, regressaria a Santo Anselmo como um estranho. Quando visitara, pela última vez, o instituto, o padre Martin ainda fazia parte do corpo docente, mas, agora, devia estar reformado, porque tinha cerca de oitenta anos. Dalgliesh sabia que, ao regressar a Santo Anselmo, levaria consigo, apenas, recordações que não poderia partilhar com mais ninguém. Chegaria àquele local, sem ser convidado, na qualidade de oficial da Polícia, com o objectivo de reabrir, sem grande justificação, um caso que devia ter provocado muita angústia e embaraço aos padres de Santo Anselmo. Apesar de tudo, Dalgliesh sentia um súbito contentamento por voltar àquele local.

 

Passou, distraidamente, em frente dos edifícios burocráticos de características indistintas, entre a Broadway e a Praça do Parlamento, porque, mentalmente, se transportara para um cenário sossegado e menos frenético. Os penhascos arenosos, debruçando-se sobre a praia molhada pela chuva, os vários quebra-mares de madeira, quase destruídos por séculos de marés mas conseguindo, mesmo assim, suportar as investidas violentas do mar, a estrada de arenito que, em tempos idos, percorrera a parte interior do penhasco, mas que, agora, seguia perigosamente ao longo da margem do precipício. O Instituto de Santo Anselmo, com as duas torres Tudor, em ruínas, flanqueando o átrio da frente, a porta de carvalho, revestida a ferro, e, nos fundos da imensa mansão vitoriana, erigida em pedra e tijolo, os delicados claustros, encerrando a ala oeste, com o claustro norte a levar directamente à pequena igreja medieval, que servia a comunidade. Lembrava-se de que os estudantes usavam batina e capote castanhos, com capuzes para os proteger do vento, sempre presente naquela região. Podia vê-los, naquele momento, com sobrepelizes, a preparar-se para as vésperas, ocupando os bancos da igreja, onde devia pairar o cheiro a incenso, e o altar, com mais velas do que as que o seu pai da ala anglicana da Igreja consideraria adequado. E, por cima do altar, o quadro da Sagrada Família, pintado por Rogier van der Weyden. Aquela bela obra de arte ainda lá estaria? E quanto àquele outro tesouro, mais secreto, misterioso e preservado, o papiro de Santo Anselmo, ainda estaria escondido algures no instituto?

 

Dalgliesh passara ali as férias de Verão, durante três anos consecutivos. O seu pai trocara funções com outro clérigo, destacado para a paróquia de uma cidade difícil, no interior, a fim de lhe dar uma oportunidade de mudar de ambiente. Os pais de Dalgliesh não haviam mostrado qualquer intenção de permitir que o filho ficasse enclausurado, durante as férias de Verão, numa cidade industrial, e haviam-no convidado a permanecer no presbitério, com os recém-chegados. Mas, quando o jovem Dalgliesh soubera que o reverendo Cuthbert Simpson e a esposa tinham quatro filhos, todos com menos de oito anos, incluindo dois gémeos, de sete, mudara de ideia. Mesmo aos catorze anos, Dalgliesh ansiava por um pouco de privacidade, durante as férias. Assim, concordara em aceitar o convite do reitor de Santo Anselmo, apesar de saber que, no entender de sua mãe, teria demonstrado um espírito generoso se, ao invés, se oferecesse para ficar e tomar conta dos gémeos.

 

O instituto encontrava-se quase vazio. Apenas alguns ordinandos estrangeiros haviam decidido manter-se ali. Tanto os ordinandos como os padres tudo haviam feito para que a estada de Dalgliesh fosse feliz. Tinham mesmo ido ao ponto de construir uma baliza numa extensão de relva, aparada especialmente para o efeito, por trás da igreja. E não se cansavam de jogar com ele. Dalgliesh lembrava-se, também, de que a comida era muito superior às refeições da escola e, até mesmo, às refeições do presbitério, e de que gostara do seu quarto, apesar de não ter vista para o mar. Contudo, o que mais havia apreciado fora os passeios solitários para sul, em direcção ao pântano, ou para norte, em direcção a Lowestoft, a total liberdade de ir à biblioteca, o silêncio omnipresente mas nunca opressivo, e a certeza de que, em cada dia, podia fazer o que bem lhe apetecesse.

 

Então, durante a sua segunda visita, a 3 de Agosto, Sadie chegara.

 

O padre Martin tinha-lhe dito: ”A neta de Mistress Millson vai passar alguns dias com ela, na sua casa. Segundo sei, tem mais ou menos a tua idade, Adam. Talvez possa fazer-te companhia.” Mrs. Millson era a cozinheira. Na altura, tinha sessenta anos e, agora, também já devia estar reformada há muito.

 

E, de certa forma, Sadie havia feito companhia ao jovem Dalgliesh. Era uma rapariga magra, de quinze anos, com cabelos louros, que pendiam de cada lado do seu rosto estreito, e olhos pequenos, de um cinzento invulgar, pontilhado de traços verdes, que, no primeiro encontro, o haviam fitado com ofendida intensidade. No entanto, acedera em passear com Dalgliesh, se bem que raramente falasse. Pegava num seixo, lançava-o ao mar ou, de repente, desatava a correr, com feroz determinação, para, depois, se voltar e esperar por Dalgliesh, como se ele fosse um cachorro que devia correr atrás de uma bola.

 

Dalgliesh lembrava-se de um certo dia em que, depois de uma forte tempestade, o céu se iluminara, mas o vento ainda soprava com força e as ondas ainda eram altas. Tinham ficado sentados, lado a lado, no abrigo do quebra-mar, partilhando uma limonada, que bebiam da mesma garrafa. Dalgliesh havia escrito um poema para Sadie que, tanto quanto ele se lembrava, era mais um exercício para tentar imitar Eliot (o seu mais recente entusiasmo literário) do que um tributo a um sentimento genuíno. Sadie lera o poema, com as sobrancelhas franzidas.

 

Foste tu que escreveste isto?

 

Sim. É para ti. É um poema.

 

Não, não é, porque não rima. O Billy Price, um rapaz da minha turma, escreve poemas e rimam sempre.

 

É um tipo diferente de poema replicara, indignado, o jovem Dalgliesh.

 

Não, não é. Se fosse, as palavras do fim de cada linha tinham de rimar. Foi o Billy Price que mo disse.

 

Mais tarde, Dalgliesh convencera-se de que Billy Price tinha certa razão. Mas, naquele momento, levantara-se, rasgara o papel e atirara os pedaços para a areia, esperando que a próxima onda os levasse para o esquecimento eterno. Afinal, o famoso poder erótico dos poemas de nada lhe valera. Contudo, o espírito feminino de Sadie, apercebendo-se dos elementares objectivos de Dalgliesh, optara por uma manobra menos sofisticada, mais atávica, declarando:

 

Aposto em como não tens coragem de mergulhar do pontão do quebra-mar.

 

Dalgliesh pensara que Billy Price, para além de escrever versos que rimavam no fim de cada linha, teria, sem dúvida, coragem para mergulhar do pontão. Sem dizer palavra, levantou-se e tirou a camisa. De calções, tomou balanço, fez uma pausa e, tendo o cuidado de não perder o equilíbrio, atravessou o chão coberto de algas até ao fundo do pontão e mergulhou, de cabeça, no mar turbulento. Aquela parte era menos funda do que ele pensara e sentiu alguns seixos a roçar-lhe nas palmas das mãos, antes de voltar à superfície. Mesmo em Agosto, o mar do Norte era gelado, mas o choque térmico era temporário. O que se seguiu foi aterrador. Era como se estivesse à mercê de forças incontroláveis, como se mãos possantes o agarrassem pelos ombros e o empurrassem para baixo. Tentou libertar-se, mas a praia, de repente, desapareceu, para além de uma gigantesca barreira de água. A onda abateu-se sobre o seu corpo e Dalgliesh sentiu-se ir ao fundo, para, logo a seguir, voltar à tona e ver a luz do dia. Nadou, com todas as suas energias, em direcção ao quebra-mar, que, a cada segundo que passava, lhe parecia mais distante.

 

Podia ver Sadie, de pé, no rebordo do pontão, com o cabelo ao vento e a agitar os braços freneticamente. Gritava algo, mas Dalgliesh nada conseguia ouvir. Reunindo forças, esperou que outra onda avançasse e, depois, já desesperado, tentou aguentar o impacte, antes que a onda recuasse e lhe fizesse perder os poucos metros que avançara. Esforçando-se por não entrar em pânico, sabia que devia tentar aproveitar o avanço que cada nova onda lhe proporcionava. E, por fim, após avançar metro após metro, com grande sacrifício, conseguiu. Ofegante, agarrou-se ao rebordo do pontão. Passaram-se vários minutos antes que lograsse mexer-se, mas Sadie estendeu-lhe a mão e ajudou-o a trepar a parede do pontão.

 

Ficaram sentados, sempre lado a lado, no pequeno recife de seixos e, em silêncio, Sadie tirou o vestido e começou a esfregar as costas dele. Quando a pele gelada de Dalgliesh secou, sempre sem pronunciar palavra, Sadie estendeu-lhe a camisa. Lembrava-se de que a visão do corpo da rapariga, dos seus seios pequenos e empinados e dos mamilos rosados e macios, não lhe provocara qualquer desejo, mas uma emoção que, mais tarde, interpretara como um misto de afecto e de piedade. Por fim, Sadie dissera:

 

Queres ir até ao pântano? Conheço um esconderijo secreto. O pântano ainda devia existir. Era uma extensão de águas estagnadas e escuras, separadas do mar agreste por uma zona pedregosa. A sua superfície oleosa deixava adivinhar profundezas impenetráveis. Excepto por ocasião de tempestades violentas, as águas estagnadas do pântano e a água salgada do mar nunca se encontravam, em virtude daquela barreira de terra e pedras. Na margem da corrente, os troncos fossilizados de árvores enegrecidas erigiam-se como tótems de uma civilização desaparecida. O pântano era um famoso retiro de aves marinhas e havia nichos de madeira por entre as árvores e os arbustos, mas apenas o mais entusiasta ornitólogo se atreveria a penetrar naquele sinistro leito de água.

 

O esconderijo secreto de Sadie havia sido, outrora, o casco de madeira de um navio naufragado, parcialmente enterrado nas areias daquela extensão de terra, entre o mar e o pântano. Ainda havia alguns degraus apodrecidos que desciam até à cabina, e fora ali que tinham passado o resto daquela tarde e todos os dias que se seguiram. A única fonte de luz provinha das brechas nas tábuas, e os dois jovens riam-se ao ver os seus corpos marcados por riscas de sombra e luz, seguindo o percurso das linhas com os dedos. Dalgliesh passava o tempo lendo, escrevendo, ou simplesmente recostado, em silêncio, na parede curva da cabina, enquanto Sadie impunha, naquele pequeno mundo deles, o seu espírito doméstico organizado, mas igualmente excêntrico. As merendas fornecidas pela avó eram cuidadosamente estendidas nas pedras achatadas. Entregava os petiscos ao amigo com toda a cerimónia, e só comiam quando ela assim decidia. Enchia os frascos vazios de compota com água do pântano, que continha juncos, ervas e plantas não identificadas de aspecto viscoso, que ela apanhava das fissuras existentes nos penhascos. Por vezes, percorriam, juntos, a praia, à procura de seixos com buracos para acrescentar ao colar que Sadie começara a fazer, depois de estender uma corda ao longo da parede da cabina.

 

Durante anos, após aquele Verão inesquecível, o cheiro de alcatrão e da madeira apodrecida, misturado com o odor da maresia, encerrara, para Dalgliesh, uma certa carga erótica. Onde se encontraria Sadie, agora?, perguntou a si próprio. Provavelmente, estava casada, com uma prole de filhos louros se os respectivos pais não houvessem morrido afogados, electrocutados ou não tivessem sido eliminados pelo processo preliminar de selecção imposto por Sadie. Era muito pouco provável que tivesse restado qualquer vestígio do navio encalhado. Ao fim de décadas de embates furiosos, o mar devia ter, finalmente, reclamado a sua presa. E, muito antes que a última prancha fosse arrastada pela maré, o colar teria rebentado, deixando cair aqueles seixos, cuidadosamente apanhados, na areia que cobria o chão da cabina.


Na terça-feira, dia 12 de Outubro, Margaret Munroe escreveu a última página do seu diário.

 

Ao reler este diário, desde que comecei a escrevê-lo, a maior parte dos meus relatos parece ser tão enfadonha que pergunto a mim mesma porque insisto em escrever. As anotações que se seguiram à morte do Ronald Treeves pouco mais foram do que uma descrição da minha rotina diária, alternando com a descrição do tempo. Depois do inquérito e da missa de requiem, fiquei com a ideia de que a tragédia fora formalmente encerrada e que o Ronald nunca passara por cá. Nenhum dos outros ordinandos fala dele, pelo menos comigo. Nem, muito menos, os padres. O corpo do Ronald nunca regressou a Santo Anselmo, nem mesmo para o requiem. Sir Aired quis que o filho fosse cremado em Londres e, assim, depois do inquérito, o corpo foi trasladado por uma agência funerária londrina. O padre John agrupou as roupas do Ronald e Sir Aired enviou dois homens, de carro, para levarem o Porsche e um embrulho com os pertences de Ronald. Os meus pesadelos começam a desaparecer e já não acordo, a meio da noite, empapada em suor, imaginando que aquele monstro cego, com o corpo e o rosto cobertos de areia, me vai perseguir.

 

O padre Martin tinha razão. Anotar todos os pormenores ajudou-me e tenciono continuar a escrever. Dou comigo a aguardar ansiosamente pelo fim do dia, quando, depois de arrumar a louça do jantar, me posso sentar em frente da mesa, com este bloco de apontamentos. Não possuo qualquer outro talento, mas gosto de fazer uso das palavras, de recordar o passado, de distanciar-me de tudo o que me aconteceu e de tentar encontrar alguma lógica nesses mesmos acontecimentos.

Hoje, contudo, as minhas anotações não serão monótonas nem rotineiras. O dia de ontem foi diferente. Aconteceu algo muito importante í tenho de passá-lo para o papel, a fim de completar o meu relato. Ainda não sei se isso será correcto da minha parte. Afinal, não é um segredo meu e, muito embora nunca alguém venha a ler este relato a não ser eu, não posso deixar de sentir que existem certas coisas que não devem escrever-se. Quando não se fala nem se escreve sobre um segredo, pode-se, ao menos, guardá-lo, com toda a segurança, na nossa mente. Registá-lo num diário dá a ideia de que ele se liberta e de que se lhe confere o poder de se espalhar, como pólen, pelo ar, e de entrar em outras mentes. Pode parecer um pouco exagerado, mas deve haver alguma ponta de verdade nesta minha teoria, caso contrário, porque acharia eu que tenho de parar de escrever, neste preciso momento? Por outro lado, não faz sentido continuar com este diário, se deixar de parte os factos mais importantes. Além disso, não existe qualquer risco de que estas palavras sejam lidas, mesmo que eu guarde o bloco numa gaveta destrancada. São poucas as pessoas que vêm visitar-me e nenhuma delas iria vasculhar as minhas coisas. Mas talvez eu devesse ter mais cuidado com a minha privacidade. Pensarei melhor nisso, amanhã, mas, por ora, vou escrever o mais que puder e me atrever. O mais estranho, nisto tudo, é que nunca me teria lembrado, se o Eric Surtees não me houvesse trazido, como presente, quatro alhos-porros cultivados por ele. Eric sabe que gosto de comer alhos-porros, ao jantar, com molho de queijo, e costuma oferecer-me alguns dos legumes da sua horta. Não sou a única beneficiária da sua generosidade. Costuma oferecer os seus produtos aos habitantes das outras vivendas assim como ao instituto. Pouco antes de ele aparecer, eu estivera a ler o meu relato sobre a descoberta do corpo do Ronald e, quando desembrulhei o pacote que continha os alhos-porros, aquela cena, na praia, veio-me à memória. Então, tudo se encaixou e lembrei-me, de repente. Ressurgiu, na minha mente, com a mesma clareza de uma fotografia, e recordei cada gesto, cada palavra proferida, tudo, à excepção dos nomes mas não tenho a certeza de alguma vez os haver conhecido. Tudo se passou há doze anos atrás, mas podia ter sido ontem.

 

Jantei e levei o segredo comigo para a cama. Esta manhã, soube que devia falar com a pessoa a quem ele mais respeita. Depois disso, manter-me-ei calada para sempre. Mas, primeiro, tenho de verificar se o que me veio à memória corresponde à verdade e efectuei um telefonema, quando, esta tarde, fui a Lowestoft para fazer algumas compras. Então, há cerca de duas horas, revelei o que sabia. Não que eu tenha alguma coisa a ver com isso, até porque, agora, já nada posso fazer. Mas fiquei satisfeita por ter falado. Teria sido muito desconfortável, para mim, continuar a viver aqui, sabendo o que sei, sem falar sobre o assunto, perguntando a mim mesma se seria essa a atitude mais acertada. Agora, porém, já não tenho que me preocupar mais. No entanto, continuo a achar estranho que as coisas não se tenham esclarecido e nunca me teria lembrado de nada, se o Eric não me tivesse vindo trazer aqueles alhos-porros.

 

Foi um dia muito cansativo e sinto-me exausta, talvez até demasiado cansada para dormir. Acho que vou ver o princípio do Newsnight e, depois, deitar-me.

 

Margaret Munroe pegou no bloco de apontamentos e guardou-o na gaveta da escrivaninha. Depois, mudou de óculos, para ver televisão, ligou o aparelho e recostou-se na poltrona de espaldar alto, com o telecomando pousado num dos braços da poltrona. Estava a ficar um pouco surda. O som irrompeu violentamente, antes que ela o ajustasse, e a música introdutória do programa chegou ao fim. Sabia que o mais certo era acabar por adormecer na poltrona, mas o esforço de se levantar e dirigir-se ao quarto, para se deitar, parecia-lhe demasiado violento.

 

Estava quase a dormitar quando sentiu uma corrente de ar e teve consciência, mais por instinto do que pelo ruído, de que alguém acabara de entrar na sala. O trinco da porta estalou. Voltando a cabeça para um dos lados, viu quem era e exclamou:

 

Ah, é você! Deve ter sido uma surpresa, para si, ver a luz acesa na minha casa, a esta hora. Estava a pensar que já são horas de ir para a cama.

 

A figura aproximou-se da poltrona, por trás, e Margaret Munroe esticou a cabeça para cima, à espera de uma resposta. Então, as mãos fortes, calçando luvas de borracha amarelas, taparam-lhe as narinas e a boca, pressionando-lhe a cabeça contra o espaldar da poltrona.

 

Margaret Munroe soube que a morte chegara, mas não sentiu medo. Apenas uma grande surpresa e um cansado conformismo. Debater-se não lhe serviria de nada. Nem sequer queria fazê-lo. Só desejava partir rapidamente, sem dor nem sofrimento. As suas últimas sensações terrenas foram as da borracha fria das luvas no rosto e do cheiro de látex nas narinas, antes de o seu coração bater pela última vez.

 


Na quinta-feira, dia 17 de Outubro, mais precisamente quando faltavam cinco minutos para as dez da manhã, o padre Martin saiu do seu quarto, situado no pequeno torreão da ala sul da mansão, desceu a escada de caracol e atravessou o corredor que levava ao escritório do padre Sebastian. Ao longo dos últimos quinze anos, a manhã de quinta-feira era reservada para a reunião semanal de todos os padres residentes. O padre Sebastian fazia o seu relatório e, depois, resolviam-se os problemas pendentes, relativos à manutenção do instituto, abordavam-se as dificuldades entretanto surgidas e acertavam-se os últimos pormenores da Eucaristia de domingo e das outras missas a celebrar ao longo da semana seguinte, tal como os convites a endereçar a futuros pregadores.

 

Finda esta reunião, o ordinando mais antigo era chamado para uma entrevista privada com o padre Sebastian. A sua função era transmitir as expectativas, queixas ou ideias que o corpo de estudantes desejasse comunicar, e, por outro lado, receber instruções e informações do corpo docente, que deveria passar aos outros ordinandos, incluindo os pormenores relativos às missas que seriam celebradas na semana seguinte. A participação dos estudantes parava ali. O Instituto de Santo Anselmo continuava a aderir à interpretação, já ultrapassada, do in statu pupillari e a demarcação entre professores e alunos era observada à risca. Apesar de tudo, o regime de ensino mostrava-se surpreendentemente liberal, em especial no que dizia respeito às licenças de sábado, desde que os estudantes não saíssem antes das cinco da tarde de sexta-feira, depois de assistir às vésperas, e regressassem a tempo da Eucaristia de domingo, às dez horas da manhã.

 

O gabinete do padre Sebastian ficava na ala leste, por cima do pórtico, e tinha vista sobre o mar, por entre as duas torres Tudor. Era muito espaçoso para um gabinete, mas, tal como o padre Martin, seu predecessor, o padre Sebastian recusara-se a alterar-lhe as proporções, mandando instalar divisórias. A sua secretária, Miss Beatrice Ramsey, ocupava a sala contígua. Trabalhava apenas de quarta a sexta-feira, mas conseguia fazer, naqueles três dias, o mesmo que a maior parte das outras secretárias faria em cinco dias. Era uma mulher de meia-idade, dona de uma devoção e de uma integridade intimidantes, e o padre Martin tinha sempre medo de soltar gases inadvertidamente na sua presença. Miss Ramsey era muito dedicada ao padre Sebastian, se bem que sem qualquer dos sentimentos ou manifestações confrangedoras que o afecto de uma solteirona por um padre por vezes revela. Na realidade, o respeito demonstrado por Miss Ramsey parecia ser não tanto pelo homem, mas mais pelo ofício, e achava ser seu dever mantê-lo nas melhores condições.

 

Para lá da sua vastidão, o gabinete do padre Sebastian continha alguns dos objectos mais valiosos que haviam sido doados por MissArbuthnot. Por cima da lareira de pedra, onde estava inscrito o mote i teológico de Santo Anselmo, Credo ut intelligam, pendia um quadro, da autoria de Burne-Jones. Retratava um grupo de raparigas, de beleza inverosímil e cabelos ondulados, brincando num pomar. O quadro havia estado no refeitório, anteriormente, mas o padre Sebastian, sem fornecer qualquer explicação, mandara colocá-lo no seu gabinete. O padre Martin, aquando da mudança do quadro, tentara reprimir a sua desconfiança de que aquele gesto fora menos um sinal, por parte do reitor, de afecto pelo quadro ou de admiração pelo artista, do que do desejo de que os objectos valiosos do instituto fossem valorizar o seu gabinete e ficassem sempre submetidos ao seu olhar vigilante. Naquela quinta-feira, a reunião seria composta apenas por três pessoas: o padre Sebastian, o padre Martin e o padre Peregrine Glover. O padre John Betterton tivera de marcar, com urgência, consulta num dentista, em Halesworth, e transmitira o seu pedido de desculpas. Quanto ao padre Peregrine, bibliotecário do instituto, compareceu à reunião, passados poucos minutos da hora marcada. Com quarenta e dois anos de idade, era o mais novo dos padres residentes, mas, para o padre Martin, não raras vezes parecia ser o mais velho. De rosto rechonchudo e tez macia, assemelhava-se a um mocho, em virtude dos óculos de aros redondos que usava. Tinha cabelo espesso e negro, orlado por uma franja curta. Só lhe faltava a tonsura para completar a sua semelhança com um frade da época medieval. Além do mais, os traços suaves do seu rosto transmitiam a falsa impressão de ser fisicamente fraco. Sempre que se despiam das suas vestes e nadavam, o padre Martin não deixava de ficar admirado ao ver como o corpo do padre Peregrine era atlético. O padre Martin nadava apenas nos dias mais quentes, chapinhando, sempre com alguma apreensão, nos baixios de profundidade incerta, enquanto observava, atónito, o padre Peregrine, esguio como um golfinho, a furar as ondas. Nas reuniões de quinta-feira, o padre Peregrine pouco falava; em geral, fazia-o mais para narrar um facto do que para emitir uma opinião pessoal, mas os outros escutavam-no com atenção, porque havia sido distinguido, a nível académico. Doutorara-se em Ciências Naturais, por Cambridge, antes de se doutorar em Teologia e optar pelo sacerdócio anglicano. Em Santo Anselmo, ensinava História da Igreja, por vezes com um relevo desconcertante sobre a evolução das descobertas e do pensamento científicos. Era cioso da sua privacidade e ocupava um quarto minúsculo do piso térreo da mansão, situado nos fundos, junto da biblioteca, e que se recusava a abandonar, talvez porque aquele espaço espartano, digno de um eremita, lhe lembrasse as celas dos monges que secretamente desejava ocupar. O seu quarto ficava perto da lavandaria e a única preocupação do padre Peregrine era a de que os estudantes se servissem das máquinas de lavar, ruidosas e velhas, depois das dez da noite.

 

O padre Martin alinhou três cadeiras, em semicírculo, à frente da janela. Antes de se sentarem, os três homens baixaram as cabeças para a oração que o padre Sebastian recitou:

 

Concede-nos, Senhor, a Tua Graça, em todos os nossos actos, e fornece-nos o Teu apoio contínuo; que todas as nossas obras se iniciem e se terminem em Ti; que possamos glorificar o Teu Santo Nome e, finalmente, que, por meio da Tua misericórdia, possamos alcançar a vida eterna; por Nosso Senhor, Jesus Cristo. Ámen.

 

Feita a oração, acomodaram-se nas cadeiras, com as mãos pousadas nos joelhos, e o padre Sebastian iniciou o seu relato:

 

O primeiro assunto que tenho a comunicar, hoje, é algo delicado. Recebi um telefonema da Scotland Yard. Aparentemente, Sir Aired Treeves terá manifestado o seu descontentamento pelo veredicto acerca da morte do Ronald e pediu à Scotland Yard que procedesse a uma investigação. Um tal inspector Adam Dalgliesh chegará ao nosso instituto, na sexta-feira, depois do almoço. Prometi fornecer-lhe toda a cooperação de que ele necessitar.

 

Aquela notícia foi recebida em silêncio. O padre Martin sentiu um súbito calafrio no estômago e comentou:

 

Mas o corpo foi cremado, procedeu-se a um inquérito e foi proferido um veredicto. Mesmo que Sir Aired Treeves não esteja de acordo, não vejo o que a Polícia possa descobrir, agora. E porquê a Scotland Yard? Porquê um inspector? Parece um curioso abuso de poder.

 

O padre Sebastian esboçou o seu habitual sorriso sardónico.

 

Penso que é fácil concluir que Sir Aired Treeves apelou directamente ao topo da hierarquia. Homens como ele agem sempre assim. Além do mais, dificilmente pediria à Polícia de Suffolk que reabrisse o caso, uma vez que foi esta que procedeu ao inquérito preliminar. Quanto à escolha do inspector Dalgliesh, pelo que sei, tencionava vir passar férias nesta região e conhece Santo Anselmo. Provavelmente, a Scotland Yard está a tentar agradar a Sir Aired, mas sem ter de recorrer a grandes meios e sem nos causar grande incómodo.

 

A propósito: o inspector falou em si, padre Martin.

 

O padre Martin sentiu-se dividido entre uma vaga apreensão e um certo contentamento.

 

Eu fazia já parte deste corpo docente quando ele passou as férias de Verão, aqui, durante três anos consecutivos. O seu pai era um pároco da diocese de Norfolk, mas já não me lembro de que paróquia... O Adam era um rapazinho encantador, muito inteligente e sensível. Bom, mas ignoro como será, agora. No entanto, terei todo o gosto em voltar a vê-lo.

 

Os meninos encantadores e sensíveis comentou o padre Peregrine costumam tornar-se adultos insensíveis e desagradáveis. Mas, como não nos resta qualquer alternativa quanto à sua visita, fico contente por saber que, pelo menos, um de nós anseia por ver esse tal inspector. Não faço ideia do que pretende Sir Aired com esta nova investigação. Se, porventura, esse inspector Dalgliesh chegar à conclusão de que há indícios de um crime, então, como é óbvio, as autoridades locais reabrirão o caso.

 

Não deixava de ser estranho, pensou o padre Martin, ouvir, em voz alta, a palavra ”crime”, uma palavra que, desde que ocorrera a tragédia, ninguém, em Santo Anselmo, se atrevera a pronunciar. Foi o padre Sebastian que retomou o diálogo.

 

A hipótese de um crime é simplesmente ridícula. Se existisse qualquer indício de que a morte do Ronald não foi acidental, ter-se-iam descoberto provas, durante o inquérito.

 

Havia, contudo, uma terceira possibilidade, que pairava nas mentes dos três padres. O veredicto de morte acidental havia constituído um alívio para Santo Anselmo. Mesmo assim, aquela morte havia plantado a semente do desastre no instituto, porque não fora a única. Era possível, segundo pensava o padre Martin, que aquele hipotético suicídio tivesse eclipsado, de certa forma, o ataque cardíaco que havia sido fatal a Margaret Munroe. Ruby Pilbeam tinha-a encontrado, sentada na sua poltrona, na manhã seguinte. E, agora, apenas cinco dias volvidos, era como se Margaret nunca tivesse feito parte de Santo Anselmo. A irmã, cuja existência lhes era desconhecida até que o padre Martin inspeccionara a papelada de Margaret, tratara do funeral. Chegara a Santo Anselmo com uma camioneta, para recolher a mobília e os demais pertences da falecida, e não convidara nenhum elemento do instituto para as exéquias de Margaret Munroe. Somente o padre Martin tivera consciência de como a morte do Ronald havia afectado Margaret. Chegava mesmo a pensar que era o único, ali, a sentir a falta dela.

 

O padre Sebastian continuou:

 

Todos os quartos de hóspedes estarão ocupados, este fim-de-semana. Além do inspector Dalgliesh, a Emma Lavenham chegará a Santo Anselmo, vinda directamente de Cambridge, conforme combinado, para um seminário de três dias sobre os poetas metafísicos. O inspector Roger Yarwood, de Lowestoft, também cá estará. Sofreu de grande tensão nervosa, recentemente, após o seu divórcio. Tenciona ficar uma semana. Como é óbvio, nada teve a ver com a investigação da morte do Ronald Treeves. O Clive Stannard estará de regresso, mais uma vez, para passar aqui o fim-de-semana, com o objectivo de prosseguir a sua pesquisa sobre a vida doméstica dos primeiros anglo-católicos do movimento de Oxford. Como todos os quartos de hóspedes estarão ocupados, é melhor que ele fique no quarto de Peter Buckhurst. O doutor Metcalf quer que o Peter permaneça na enfermaria por ora, porque ali se sentirá mais quente e confortável.

 

Lamento muito saber que o Stannard está de regresso replicou o padre Peregrine. Pensava que nunca mais voltaria a vê-lo. É um jovem mal-educado e a sua pretensa pesquisa não me convence. Procurei saber o seu ponto de vista sobre o efeito do caso Gorham, que modificou a crença do movimento de Oxford, de J. B. Mozley, e percebi que ele não fazia a menor ideia daquilo de que eu estava a falar. Para mim, a presença dele na biblioteca é indesejável... e penso que os estudantes partilham a minha opinião.

 

O avô dele era o advogado de Santo Anselmo e um dos benfeitores deste instituto contrapôs o padre Sebastian. Não me agrada pensar que um membro da sua família não é bem-vindo. No entanto, isso não lhe dá o direito de passar fins-de-semana aqui, de graça, sempre que lhe apetece. A obra deste instituto prevalece sobre tudo o resto. Se ele voltar a causar distúrbios, o problema será resolvido com toda a diplomacia.

 

E quem é o quinto visitante? perguntou o padre Martin. Apesar de se esforçar por controlar o tom de voz, o padre Sebastian não foi bem-sucedido.

 

O arcediago Crampton telefonou-me, dizendo que chegará no sábado e que ficará até domingo à tarde.

 

Mas esteve cá há duas semanas! exclamou o padre Martin. Não tenciona tornar-se uma visita regular, pois não?

 

Receio bem que sim. A morte do Ronald Treeves trouxe, de novo, ao de cima a questão do futuro de Santo Anselmo. Como sabem, o meu plano de acção tem sido evitar a controvérsia, continuar a nossa obra, sem grande alarde, e usar de toda a influência que possuo nos círculos da Igreja para impedir o encerramento do instituto. Não existem fundamentos válidos para justificar o encerramento, à excepção da política da Igreja de centralizar todos os cursos teológicos em três institutos. Se essa decisão for levada por diante, então, Santo Anselmo fechará as portas, mas nunca por causa da qualidade do nosso ensino nem, muito menos, dos ordinandos que preparamos para o sacerdócio.

 

O padre Sebastian ignorou aquela confirmação do óbvio. Depois, e como bem sabem, existe outro problema em relação à visita do arcediago. Da última vez que cá esteve, o padre John resolveu ir de férias. Ora, não me parece que possa voltar a fazê-lo. No entanto, se o padre John cá estiver, é certo e sabido que a presença do arcediago lhe vai ser penosa e muito confrangedora para nós.

 

O padre John Betterton fora trabalhar para Santo Anselmo depois de passar alguns anos na prisão. Havia sido condenado por assédio sexual a dois jovens acólitos da igreja onde era padre. Confessara-se culpado, mas o assédio sexual havia sido mais uma questão de um afecto exagerado, demonstrado por certas carícias, do que uma ofensa sexual grave, e muito dificilmente teria sido condenado a uma pena de prisão, se o arcediago Crampton não se houvesse empenhado em encontrar provas adicionais. Para o efeito, interrogara antigos meninos do coro, obtivera novos depoimentos e alertara a Polícia. O incidente causara grande ressentimento e muita infelicidade, e a perspectiva de ter o arcediago e o padre John debaixo do mesmo tecto horrorizava o padre Martin. Sentia grande compaixão, de cada vez que via o padre John quase rastejando, no cumprimento das suas funções, comungando mas nunca celebrando, e encontrando em Santo Anselmo mais um refúgio do que um emprego. Sem dúvida, o arcediago agira mediante aquilo que considerava ser o seu dever e talvez fosse injusto pensar-se que o cumprimento do dever, naquele caso, havia sido incompatível com o que ele representava. No entanto, a perseguição que movera a outro membro do clero por quem não tinha qualquer antipatia pessoal e, mais estranho ainda, que mal conhecia parecia inexplicável.

 

Pergunto a mim mesmo comentou o padre Martin se o Crampton estaria no seu perfeito juízo quando resolveu perseguir o padre John. É que houve algo de irracional no caso...

 

Estaria no seu perfeito juízo? ripostou o padre Sebastian. Não sofria de qualquer doença mental e, com certeza, nunca houve qualquer insinuação de que ele...

 

O caso deu-se interveio o padre Martin pouco depois de a esposa do arcediago se suicidar, num momento muito difícil para ele.

 

A perda de um ente querido é sempre um momento difícil. Não vejo como a tragédia pessoal que se abateu sobre o arcediago possa ter afectado o seu discernimento no que diz respeito ao caso do padre John. Também passei por um mau momento quando a Verónica morreu.

 

O padre Martin teve dificuldade em reprimir um ténue sorriso. Lady Verónica Morell morrera, ao cair do cavalo, numa caçada, aquando de um dos seus regressos regulares à casa familiar que nunca chegara a deixar realmente e ao desporto de que nunca conseguira nem desejara abdicar. O padre Martin suspeitava, aliás, de que, se o padre Sebastian soubesse que a mulher iria morrer, inevitavelmente, e tivesse de escolher a causa de morte, esta seria, sem dúvida, a que escolheria. ”A minha mulher faleceu em consequência de uma queda de cavalo, enquanto caçava” tinha um certo charme, quando comparado com ”A minha mulher morreu de pneumonia”. Desde então, o padre Sebastian não revelara qualquer intenção de voltar a casar. Talvez por haver sido marido da filha de um conde, embora cinco anos mais velha do que ele e ostentando uma semelhança espantosa com os animais que ela tanto adorava, tornara-se pouco atractiva, até mesmo algo degradante, a perspectiva de se unir a uma mulher de menor categoria social. Ao aperceber-se de que os seus pensamentos podiam ser considerados ignóbeis, o padre Martin apressou-se a fazer, mentalmente, um acto de contrição.

 

Simpatizava com Lady Verónica. Lembrava-se da sua figura elegante quando passeava pelos claustros, depois da última missa, e dizia ao marido, com voz roufenha: ”O teu sermão foi muito demorado, Seb. Não percebi metade e tenho a certeza de que os miúdos também não.” Lady Verónica referia-se sempre aos ordinandos chamando-lhes ”miúdos”. Por vezes, o padre Martin dava consigo a perguntar a si próprio se ela não pensava que o marido dirigia um estábulo de cavalos de corrida.

 

Todos reparavam que o reitor ficava sempre mais relaxado e alegre quando a sua esposa estava no instituto. O padre Martin recusava-se teimosamente a imaginar o padre Sebastian e Lady Verónica no leito matrimonial, mas, sempre que os via juntos, não tinha quaisquer dúvidas de que se amavam. Para o padre Martin, era mais uma manifestação da variedade e das peculiaridades do estado marital, de que ele, solteirão inveterado, não fora mais do que um observador fascinado. Contudo, e a seu ver, talvez uma grande empatia fosse tão importante quanto o amor e fizesse durar um casamento por mais tempo.

 

Quando o Raphael chegar prosseguiu o padre Sebastian, falar-lhe-ei, claro está, da visita do arcediago. O rapaz nutre grande simpatia pelo padre John. Por vezes, chega mesmo a perder a razão quando fala no assunto. Ora, não vai ajudar em nada se ele se envolver numa discussão acesa com o arcediago. Só prejudicaria o instituto. O Raphael terá de ter em mente que o arcediago não só é o fídeicomissário de Santo Anselmo como um convidado, que deve ser tratado com todo o respeito.

 

Por acaso perguntou o padre Peregrine, o inspector Yarwood não era o oficial da Polícia que foi encarregado do caso, quando a primeira mulher do arcediago se suicidou?

 

Os outros fitaram-no, espantados. Era o tipo de informação que o padre Peregrine tinha tendência para assimilar mentalmente. Por vezes, parecia que o seu subconsciente nada mais era do que um repositório de diferentes factos e de certas notícias, de que se lembrava, sempre que queria. Tem a certeza? ripostou o padre Sebastian. Naquela | época, os Crampton viviam em Londres. O arcediago só se mudou para Suffolk depois da morte da esposa. Portanto, o caso deve ter sido entregue à Polícia Metropolitana.

 

Sabe, é que lemos tanta coisa... desculpou-se o padre Peregrine, placidamente. Lembro-me do relato sobre o inquérito. Penso que foi um agente chamado Roger Yarwood que investigou o assunto. Naquela altura, era sargento da Polícia Metropolitana. O padre Sebastian franziu o sobrolho.

 

Mais um contratempo que pode provocar algum embaraço. Receio bem que quando eles se encontrarem... o que vai acontecer, inevitavelmente... isso trará memórias tristes ao arcediago. Mas nada podemos fazer para evitá-lo. O Yarwood precisa de repouso e de recuperar e, além do mais, fez reserva. Foi de grande ajuda para o instituto, há três anos, antes de ser promovido, quando ainda trabalhava na Brigada de Trânsito e o padre Peregrine bateu naquela camioneta que se encontrava parada. Como sabem, assiste regularmente à missa de domingo, que lhe proporciona algum conforto espiritual. Se a sua presença despertar memórias dolorosas ao arcediago, nesse caso, este terá de suportá-las, tal como o padre John suporta as suas. Tratarei de instalar a Emma no quarto de Santo Ambrósio, contíguo à igreja.; o inspector Dalgliesh no quarto de São Jerónimo; o arcediago no quarto de Santo Agostinho e o Roger Yarwood no quarto de São Gregório. ”Espera-nos um fim-de-semana tenso e desagradável”, pensou o padre Martin. ”Será muito angustiante para o padre John ter de se encontrar com o arcediago, e o próprio Crampton não deve almejar esse encontro, apesar de saber que será inevitável. Afinal, tem conhecimento de que o padre John está em Santo Anselmo. E, se o padre Peregrine estiver certo e raramente se engana, um encontro entre o arcediago e o inspector Yarwood também será embaraçoso para ambos. Vai igualmente ser difícil controlar o Raphael ou mantê-lo à distância do arcediago. No fim de contas, é o ordinando mais antigo. E, por fim, resta o Stannard. Para além de quaisquer motivos dúbios quanto à sua visita a Santo Anselmo, nunca é um convidado fácil. Mas o pior será a presença do Adam Dalgliesh, um homem que nos fará lembrar, de forma implacável, tristes eventos que todos pensávamos pertencerem já ao passado, e que nos observará com o seu olhar experiente e céptico.”

 

O padre Martin despertou do seu devaneio, ao ouvir a voz do padre Sebastian:

 

Bom, agora, penso que podemos ir tomar o nosso café da manhã.


Raphael Arbuthnot entrou e parou, à espera, com a segurança graciosa que lhe era costumeira. A sua batina preta, com uma fila de botões forrados, ao contrário das dos outros ordinandos, parecia, nova, feita à medida, contribuindo para o tornar ainda mais elegante. A sombria austeridade do traje, em contraste com o rosto pálido e o cabelo luzidio de Raphael, era, paradoxalmente, teatral e hierática. Quando se reunia a sós com Raphael, o padre Sebastian não conseguia deixar de sentir um certo mal-estar. Sendo, ele próprio, um homem atraente, sempre valorizara talvez até de mais a boa aparência nos outros homens e a beleza nas mulheres. O seu apurado sentido estético só não tivera qualquer influência no que respeitara à falecida esposa. No entanto, a beleza masculina incomodava-o e chegava mesmo a repugná-lo. Os rapazes novos, em particular os rapazes ingleses, não deviam parecer-se com um deus grego algo dissoluto. Não que Raphael se assemelhasse a um ser andrógino, mas, apesar de tudo, o padre Sebastian sentia que aquela beleza atraía mais os homens do que as mulheres, mesmo que não tivesse o poder de fazer bater mais depressa o seu coração.

 

Veio-lhe, de novo, à mente a mais insistente das muitas preocupações que faziam com que fosse difícil estar com Raphael sem ser invadido por novas desconfianças e dúvidas a respeito do rapaz. Até que ponto a vocação de Raphael era válida? O instituto devia ter concordado em aceitá-lo como estudante, quando ele já fazia parte da família? Santo Anselmo era o único lar que Raphael conhecera, desde que a sua mãe, a última descendente dos Arbuthnot, o abandonara, à porta do instituto, com duas semanas de idade, havia vinte e cinco anos. Raphael era um filho ilegítimo e não desejado. Não teria sido mais sensato, mesmo mais prudente, encorajá-lo a apresentar a sua candidatura em Cuddesdon ou na Casa de Santo Estêvão, em Oxford? Fora o próprio Raphael que insistira em ordenar-se padre por Santo Anselmo. Não teria sido uma subtil ameaça da sua parte? Não quisera insinuar que, se não se ordenasse padre ali, então, não abraçaria a sua vocação? Talvez o instituto houvesse sido demasiado condescendente na sua ansiedade de não perder o último dos Arbuthnot. Agora, porém, era tarde de mais e o padre Sebastian não podia impedir-se de sentir uma certa irritação por dar-se conta das vezes em que aquelas suas infrutíferas preocupações acerca de Raphael se intrometiam nos problemas mais imediatos. Decidido a pôr um ponto final nas suas dúvidas, concentrou-se nos problemas do instituto.

 

Antes de mais, quero falar-lhe de alguns pequenos pormenores, Raphael. Os estudantes que insistem em estacionar os seus carros em frente do instituto devem fazê-lo de forma mais ordeira. Como sabe, prefiro que estacionem os veículos motorizados na parte de trás dos edifícios do instituto. Se, no entanto, têm de estacionar os vossos carros e motorizadas no átrio da frente, ao menos, sejam mais cuidadosos. É um assunto que irrita particularmente o padre Peregrine. Diga também aos seus colegas que devem lembrar-se de não usar as máquinas de lavar roupa, depois das completas. O ruído das máquinas incomoda o padre Peregrine. E, agora, que já não temos Mistress Munroe, dei autorização para que a roupa de cama seja mudada de quinze em quinze dias. Os lençóis e cobertores estarão ao vosso dispor na lavandaria. Os estudantes deverão servir-se do que precisam e fazer as suas próprias camas. Já colocámos um anúncio para que alguém substitua Mistress Munroe, mas pode levar algum tempo até obtermos resposta.

 

Não me esquecerei de mencionar esses assuntos aos outros estudantes, padre Sebastian.

 

Tenho mais duas coisas importantes a dizer-lhe, Raphael. Vamos receber a visita, na sexta-feira, de um tal inspector Dalgliesh, da Scotland Yard. Ao que parece, Sir Aired Treeves não ficou contente com o veredicto que se seguiu ao inquérito sobre a morte do Ronald e pediu à Scotland Yard que procedesse a uma investigação. Não faço ideia de quanto tempo esse tal inspector vai ficar aqui, mas provavelmente será apenas durante o fim-de-semana. Como é óbvio, o nosso dever é colaborar com ele, o que significa que vocês deverão responder às suas perguntas com toda a honestidade. Mas, atenção, não quero que lhe forneçam as vossas opiniões.

 

Mas o Ronald foi cremado. O que espera o inspector Dalgliesh provar, agora? Com certeza que não pode subverter as provas apresentadas aquando do inquérito.

 

Penso que não. Creio que se trata mais de uma questão de agradar a Sir Aired, mostrando-lhe que se procedeu a uma investigação meticulosa relativamente à morte do filho.

 

Mas isso é ridículo! A Polícia de Suffolk revelou grande competência. O que pensa a Scotland Yard descobrir, agora?

 

Muito pouco, se quer saber a minha opinião. De qualquer maneira, o inspector Dalgliesh será nosso hóspede e irá ocupar o quarto de São Jerónimo. Teremos ainda outros visitantes. O inspector Yarwood chega na sexta-feira, para umas férias. Precisa de muito repouso e deverá almoçar e jantar no quarto. Mister Stannard está de regresso para prosseguir a sua pesquisa na nossa biblioteca. Também esperamos uma visita curta do arcediago Crampton. Chega no sábado e tenciona partir logo a seguir ao almoço, no domingo. Pedi-lhe que pregasse a homilia, nas completas de sábado à noite. Será uma pequena congregação, mas não podemos evitá-lo.

 

Se tivesse sabido disso antes, tudo teria feito para não estar cá comentou Raphael.

 

Eu sei, mas conto consigo, na qualidade do ordinando mais antigo, para estar presente, pelo menos, até depois das completas, e para que trate o arcediago com toda a cortesia que deve demonstrar para com um visitante, um homem mais velho e um padre.

 

Não tenho qualquer problema com as duas primeiras categorias. É a terceira que me está atravessada na garganta. Como consegue ele encarar-nos e encarar o padre John, depois do que fez?

 

Penso que, tal como nós, o arcediago Crampton se sente confortado por acreditar que fez o que achava correcto, na altura.

 

Raphael corou violentamente.

 

E como pode ele pensar que estava a agir correctamente exclamou, quando, apesar de ser padre, perseguiu um outro padre até conseguir que ele fosse preso? Já seria uma desgraça se fosse uma pessoa comum a fazer tal coisa. Mas, partindo de um homem na posição dele, é abominável. Logo o padre John, o mais bondoso de todos os homens...

 

Está a esquecer-se, Raphael, de que o padre John se declarou culpado durante o julgamento. Declarou-se culpado de má conduta para com dois rapazes nocivos. Não os violou, não os seduziu, nem, muito menos, os maltratou fisicamente. Efectivamente, declarou-se culpado, mas nunca teria ido parar à prisão, se o Crampton não tivesse começado a vasculhar o passado, persuadindo aqueles três jovens a prestar declarações. Afinal, o que tinha o Crampton a ver com o caso? Se achou que também lhe dizia respeito, enquanto membro do clero. Temos de nos lembrar de que o padre John também se declarou culpado quanto às acusações mais graves. Claro! Declarou-se culpado porque se sentia culpado. Ainda hoje, sente um grande complexo de culpa só por estar vivo. Mas, acima de tudo, fê-lo para evitar que aqueles três rapazes mentissem, quando depusessem como testemunhas. Foi isso que o padre John não conseguiu suportar. Todo o mal que esses rapazes iriam infligir a si mesmos, cometendo perjúrio num tribunal. O padre John quis poupá-los a esse mal, mesmo à custa de ir parar à prisão.

 

Foi ele que lhe disse isso? ripostou o padre Sebastian. Falou sobre esse assunto com ele?

 

Nem por isso. Pelo menos, não directamente. Mas sei que é verdade.

 

O padre Sebastian sentiu, de súbito, grande constrangimento. Podia realmente ser verdade. Era algo em que ele próprio já havia pensado. Só que aquela percepção psicológica era apropriada para ele, enquanto padre; vinda de um estudante, era, no mínimo, estranha.

 

Raphael, sabe muito bem que não tinha o direito de falar sobre esse assunto com o padre John. Ele cumpriu a sua pena e veio viver e trabalhar para cá. O passado já lá vai. É realmente lamentável que ele tenha de deparar novamente com o arcediago, mas ainda será mais penoso, tanto para ele como para nós, se você tentar interferir. Todos temos, dentro de nós, um lado obscuro. O do padre John só a ele, a Deus e ao seu confessor diz respeito. Se você tentar intervir, será apenas uma demonstração de arrogância espiritual.

 

Raphael parecia não ter dado ouvidos ao seu reitor.

 

Além do mais, sabemos por que motivo o Crampton vem até Santo Anselmo, não é verdade? Para coscuvilhar e ver se consegue arranjar novas provas que o levem a encerrar o instituto. Quer ver-nos fechar as portas. Aliás, deixou-o bem claro, assim que o bispo o nomeou como um dos fideicomissários de Santo Anselmo.

 

E, se for tratado com aspereza, então, terá ainda mais provas, de que tanto precisa para mandar encerrar o instituto. Mantive Santo Anselmo aberto devido às influências que consegui mobilizar, prosseguindo com o meu trabalho discretamente e não hostilizando potenciais inimigos. O instituto passa por momentos difíceis e a morte do Ronald Treeves em nada nos ajudou. Dito isto, e após uma pausa, o padre Sebastian fez uma pergunta que não ousara fazer até então. Vocês devem ter falado da morte dele entre vós. Qual é a opinião dos outros ordinandos?

 

Percebeu imediatamente que aquela pergunta era incomodativa. Seguiu-se um breve silêncio, antes de Raphael responder.

 

Penso que a opinião geral é de que o Ronald se suicidou.

 

Mas porquê? Têm uma opinião formada quanto a essa hipótese?

 

Desta vez, o silêncio foi mais prolongado.

 

Não, não temos.

 

O padre Sebastian avançou até à sua secretária e analisou uma folha de papel. Em tom mais ríspido, comentou:

 

Vejo que o instituto vai estar praticamente vazio durante este fím-de-semana. Apenas quatro ordinandos vão ficar cá. Faça favor de me lembrar por que razão tantos ordinandos pediram licença para sair, logo no início do primeiro período.

 

Três ordinandos começaram o seu treino numa paróquia. O Rupert foi convidado para pregar no Instituto de Santa Margarida e penso que dois outros ordinandos vão ouvi-lo. A mãe do Richard faz cinquenta anos no mesmo dia em que celebra as suas bodas de prata, e ele obteve uma licença especial para estar presente na festa de família. Depois, não se esqueceu, por certo, de que o Toby Williams vai ser colocado na sua primeira paróquia e muitos dos seus colegas querem ir apoiá-lo. Sobram o Henry, o Stephen, o Peter e eu. Tinha a esperança de obter licença depois das completas. Perderei a recepção ao Toby, mas gostaria de estar presente na sua primeira missa, na paróquia que lhe foi confiada.

 

O padre Sebastian continuava a analisar a folha de papel. Sim, parece bater tudo certo. Pode ausentar-se, mas só depois de ter ouvido o sermão do arcediago. Mas... não costuma ter lições de grego com Mister Gregory, depois da missa de domingo? É melhor falar com ele.

 

Já falei. Ele pode receber-me na segunda-feira.

 

Muito bem. Penso que já tratámos de todos os assuntos da semana, Raphael. Já agora, pode aproveitar para levar o seu ensaio. Está em cima da secretária. O Evelyn Waugh, certa vez, escreveu num dos seus livros de viagens que encarava a teologia como a ciência da simplificação, em que as ideias nebulosas e esquivas eram consideradas inteligentes e exactas. A sua tese não foi uma coisa nem outra. Além do mais, empregou erradamente a palavra rivalizar. Não é sinónimo de imitar.

 

Claro que não. Peço desculpa. Posso imitá-lo, mas nunca conseguirei rivalizar com o senhor.

 

O padre Sebastian voltou-se para ocultar um sorriso.

 

Pois recomendo-lhe vivamente que não tente fazer nem uma coisa nem outra.

 

Quando a porta se fechou atrás de Raphael, o sorriso manteve-se no rosto do padre Sebastian; só depois se lembrou de que não conseguira arrancar a Raphael uma promessa de bom comportamento. Uma promessa, quando dada, é mantida, mas Raphael nada prometera. Ia ser realmente um fim-de-semana muito complicado.


Dalgliesh saiu do seu apartamento com vista para o Tamisa, em Queenshythe, antes do amanhecer. O edifício, agora convertido nos modernos escritórios de uma empresa financeira, havia sido, antes, um armazém, e o cheiro a especiarias, tão fugidio quanto as recordações, ainda pairava nas divisões espaçosas, despojadas de mobília e com paredes de madeira, que ele ocupava no último andar. Quando o edifício fora vendido, Dalgliesh resistira teimosamente aos esforços do novo proprietário de rescindir o seu arrendamento a longo prazo. Por fim, quando Dalgliesh rejeitara a última oferta, ridiculamente alta, o novo proprietário havia reconhecido a sua derrota e o último andar permanecera inviolável. Dalgliesh usufruía, agora, à custa da empresa, de uma porta da rua só para ele, que dava para a parte lateral do prédio, bem como de um elevador privado, mas que lhe custara um aumento de renda. Desconfiava que o resto do edifício se revelara mais do que adequado para as necessidades da empresa e que a presença de um oficial da Scotland Yard no último andar trazia ao porteiro da noite uma sensação de segurança, talvez ilusória. Dalgliesh, assim, mantivera o que mais prezava: a sua privacidade e o isolamento, à noite, o silêncio durante o dia, e uma vista privilegiada da vida, em constante movimento, do Tamisa.

 

Seguiu para leste, passando pela City e por Whitechapel, a caminho da Al. Mesmo às sete da manhã, as ruas tinham algum trânsito e pequenos grupos de trabalhadores burocráticos emergiam das estações do metro. Londres nunca chegava a dormir e Dalgliesh gostava daquela calma, ao amanhecer, das primeiras agitações de uma vida que, dali a poucas horas, se tornaria insuportável, quando comparada com a facilidade de circular agora por ruas desimpedidas. Quando entrou na A12 e se libertou dos tentáculos da Eastern Avenue, o primeiro laivo rosado no céu escuro transformara-se numa clara luminosidade. Os campos e sebes ganharam tonalidades de um cinzento luminoso, em que as árvores e os arbustos, com a delicada transparência de uma aguarela japonesa, apresentavam gradualmente contornos mais definidos, enriquecidos pelos primeiros dias outonais. Para Dalgliesh, era a altura ideal para observar as árvores. Somente na Primavera conseguiam ser mais belas. Ainda não se apresentavam desnudadas das suas folhas e o padrão escuro dos galhos e ramos tornava-se visível, por entre uma neblina de verdes, vermelhos e amarelos desbotados.

 

Enquanto conduzia, pensou no objectivo daquela viagem e analisou os motivos do seu envolvimento sem dúvida, pouco ortodoxo na morte de um rapaz que ele não conhecia, uma morte que já fora investigada por um médico legista e oficialmente despachada, tal como a sua cremação, que havia reduzido o corpo a pó. O facto de se ter oferecido para investigar o caso não fora um acto impulsivo. Poucos eram os actos impulsivos que tomava, na sua vida oficial. Não fora, também, para se ver livre de Sir Aired, muito embora fosse o tipo de homem que preferia ver pelas costas. Pensou, de novo, na preocupação daquele homem pela morte de um filho adoptado por quem ele não havia mostrado grande afecto, mas talvez Dalgliesh estivesse a ser presunçoso. Afinal, Sir Aired era um homem que tudo fazia para não ser traído pelos seus sentimentos. Era muito possível que nutrisse muito mais carinho pelo filho do que deixara transparecer. Ou estaria obcecado pela necessidade de saber a verdade, mesmo que inconveniente, mesmo que desagradável, mesmo que difícil de investigar? Se assim era, então Dalgliesh podia compreender os motivos de Sir Aired.

 

Chegou a Lowestoft em menos de três horas. Havia muitos anos que não passava por aquela cidade e, aquando da sua anterior visita, ficara chocado com o aspecto deprimente de deterioração e de pobreza. As fachadas dos hotéis, viradas para o mar, que, em tempos mais prósperos, haviam alojado a classe média durante as férias de Verão, anunciavam sessões de bingo. A maior parte das lojas tinha encerrado e os transeuntes, de semblante carregado, caminhavam pelos passeios, lentamente. No entanto, agora, Lowestoft parecia estar a passar pelo que podia considerar-se um renascimento. Haviam substituído os telhados e pintado de novo as casas. Dalgliesh sentiu que acabara de entrar numa cidade que olhava para o futuro com alguma confiança. A ponte que levava às docas era-lhe familiar e, quando a atravessou, sentiu um aperto no coração. Havia percorrido aquele caminho, de bicicleta, na sua infância, para ir comprar arenques frescos ao cais. Ainda se lembrava do cheiro dos peixes, acabados de pescar, quando os guardava na mochila. Ficava tão pesada, que lhe curvava as costas.

 

Mas regressava feliz a Santo Anselmo, feliz por oferecer alimento para o almoço ou para o jantar dos padres. Reconheceu igualmente o cheiro característico do alcatrão e da água do mar e olhou, com renovado prazer, os barcos ancorados no porto, enquanto perguntava a si próprio se ainda seria possível comprar peixe fresco no cais. Mesmo que o fosse, nunca mais carregaria às costas uma oferenda para Santo Anselmo, com a mesma excitação e a sensação do dever cumprido, como acontecera na sua infância.

 

Dalgliesh esperava que a esquadra de polícia fosse similar àquela de que se lembrava. Uma casa com terraço, adaptada para ser utilizada pela Polícia e cuja metamorfose era marcada por um candeeiro azul, à porta. Ao invés, deparou com um edifício moderno, de dois andares, com a fachada rasgada por uma fileira de janelas sombrias. Uma antena de rádio elevava-se do telhado com impressionante autoridade; e, na entrada, a bandeira inglesa adejava no alto do mastro.

 

Aguardavam-no. A recepcionista cumprimentou-o, com a encantadora pronúncia típica da região de Suffolk, como se a sua chegada fosse tudo aquilo de que precisasse para ganhar o dia.

 

O sargento Jones aguarda-o. Vou telefonar-lhe. Ele desce já.

 

O sargento Irfon Jones era moreno, magro, de pele amarelada, ligeiramente bronzeada pelo mar e pelo sol, que contrastava com o seu cabelo negro. Às primeiras palavras de saudação, revelou onde nascera.

 

Mister Dalgliesh, não é verdade? Estava à sua espera. Mister Williams achou que podíamos utilizar o gabinete dele. Queira seguir-me, por favor. Ele lamenta não poder estar presente, e o chefe está em Londres, numa reunião, mas o senhor já deve sabê-lo. Só precisa de assinar a ficha...

 

Seguindo atrás do sargento Jones por uma porta lateral de vidro fosco e ao longo de um corredor estreito, Dalgliesh comentou:

 

Está muito longe de casa, sargento.

 

É verdade, Mister Dalgliesh. A mais de setecentos quilómetros, para ser mais exacto. Casei com uma rapariga de Lowestoft, que é filha única. A mãe dela não goza de grande saúde e é melhor, para a Jenny, ficar perto de casa. Assim que pude, pedi para ser transferido da minha terra natal, no País de Gales. Não me dou mal aqui. Sinto-me bem em qualquer lugar, desde que esteja perto do mar.

 

Mas é um mar muito diferente...

 

E uma costa muito diferente, também, e ambas são perigosas. Não que tenhamos muitas mortes devido a acidentes. O pobre rapaz foi o primeiro caso, em três anos e meio. Além do mais, há sinais e as pessoas da região sabem que aqueles penhascos são perigosos. Ou, pelo menos, já o deviam saber, a esta altura. Depois, a zona é isolada. Não é o tipo de lugar para onde se leve as crianças para um passeio ou um piquenique. Bom, chegámos. Mister Williams deixou a secretária arrumada. Não que existam muitas provas vitais para analisar... Aceita um café? Ah, está aqui. Vou só acender a máquina.

 

Havia um tabuleiro com duas chávenas cujas asas estavam perfeitamente alinhadas, lado a lado, uma cafeteira, uma lata de café um jarro de leite e uma chaleira eléctrica. O sargento Jones revelou-se rápido e competente, se bem que um tudo-nada demasiado meticuloso quanto ao procedimento, e o café era excelente. Os dois homens sentaram-se nas cadeiras baixas, dispostas em frente da janela.

 

Segundo sei, foi chamado para ir até à praia. O que aconteceu, ao certo? perguntou Dalgliesh.

 

Não fui o primeiro a chegar ao local da tragédia. Foi o jovem

 

Brian Miles. É o nosso agente de rondas. O padre Sebastian telefonou e o Brian tentou chegar à praia o mais depressa possível. Não demorou mais do que uma meia hora. Quando chegou, havia duas pessoas junto ao corpo: o padre Sebastian e o padre Martin. O pobre rapaz estava morto. Qualquer um podia aperceber-se disso. Mas o Brian é boa pessoa e não gostou do que viu. Não estou a dizer que tenha pensado numa morte suspeita, mas não há como negar que aquilo era estranho. Como sou o seu superior, ele entrou em contacto comigo.

 

Eu estava aqui quando o telefone tocou, pouco antes das três da tarde, num momento em que o doutor Mallinson, o médico assistente da nossa corporação, se encontrava também na esquadra. Seguimos juntos, até ao local da tragédia. Com uma ambulância? quis saber Dalgliesh.

 

Nessa altura, não. Penso que, em Londres, os médicos legistas dispõem da sua própria ambulância, mas, aqui, temos de recorrer aos bombeiros, quando queremos transportar um cadáver. Só que a ambulância estava em serviço e talvez tenha levado cerca de uma hora e meia antes que removêssemos o corpo. Quando o levámos para a casa mortuária, falei com o assistente do médico legista e ele disse-me que o seu chefe iria pedir a ajuda do departamento forense. Mister Melisli é um homem muito cuidadoso. Foi nessa altura que se decidiu trratar do caso como se fosse o de uma morte suspeita. O que foi que encontrou no local? Bem, o rapaz estava morto, Mister Dalgliesh. O doutor Mallinson atestou-o de imediato, se bem que não fosse preciso um médico para saber que o rapaz morrera... Segundo o doutor MaJlinson, estava morto havia umas cinco ou seis horas. Mister Gregory e Mistress Munroe tinham destapado a maior parte do corpo e a nuca, mas o rosto e os braços ainda se encontravam soterrados. O padre Sebastian e o padre Martin ficaram no local. Não que pudessem fazer alguma coisa, mas o padre Sebastian insistiu em ficar até nós desenterrarmos o cadáver. Fiquei com a impressão de que ele queria rezar pela alma do rapaz. Lá desenterrámos o pobre infeliz, virámo-lo, colocámo-lo na maca e o doutor Mallinson examinou-o. Não que houvesse alguma coisa para examinar... O corpo achava-se recoberto de areia e o rapaz estava morto.

 

Havia ferimentos visíveis a olho nu?

 

Tanto quanto eu me apercebesse, não, Mister Dalgliesh. Mas, quando somos chamados para investigar um acidente daqueles, ficamos sempre na dúvida, não é verdade? No entanto, o doutor Mallinson não conseguiu encontrar quaisquer sinais de violência, como um lanho na nuca ou coisa parecida. Por outro lado, não havia como saber o que o doutor Scargill podia descobrir durante a autópsia. É o patologista forense da região. O doutor Mallinson declarou que nada mais podia fazer a não ser determinar a hora provável do óbito e que, quanto ao resto, teríamos de esperar pela autópsia. Não que pensássemos que houvesse algo de suspeito. Naquela altura, parecia tudo muito simples. O rapaz devia ter andado a escavar no penhasco, demasiado perto da saliência arenosa que, para seu infortúnio, se abateu sobre ele. Foi o que nos pareceu e foi o que se concluiu, mais tarde, durante o inquérito.

 

Portanto, não houve nada que lhe tenha parecido estranho ou suspeito?

 

Bom, mais estranho do que suspeito... Ele estava numa posição esquisita... De cabeça para baixo, como um coelho ou um cão... que estivesse a escavar um buraco para passar por baixo do penhasco.

 

E não encontraram nada perto do cadáver?

 

Apenas as roupas dele. Um capote castanho e uma espécie de traje comprido, com botões. Acho que lhe chamam batina... Estavam meticulosamente dobrados, por sinal.

 

E não encontraram algo que pudesse servir de arma?

 

Apenas uma vara de madeira. Desenterrámo-la juntamente com o corpo. A vara estava perto da mão direita do cadáver. Pensei que era melhor trazermos a vara para a esquadra, para o caso de ser importante, mas de nada nos serviu. No entanto, tenho-a aqui, se quiser vê-la, Mister Dalgliesh. Não faço a menor ideia porque não a deitaram fora, depois de encerrado o inquérito. Certo é que não conseguimos descobrir o que quer que fosse na vara. Nem impressões digitais, nem, tão-pouco, vestígios de sangue.

 

Dito isto, o sargento Jones levantou-se e dirigiu-se a um armário, de onde tirou um objecto envolto em plástico. Era uma vara de madeira clara, com cerca de cinquenta centímetros de comprimento. Ao examiná-la mais de perto, Dalgliesh pôde ver um traço que parecia ser de tinta azul.

 

Aos meus olhos, não esteve dentro de água prosseguiu o sargento Jones. Talvez o rapaz a tenha encontrado na praia e apanhado, sem qualquer objectivo em mente. É quase instintivo apanhar coisas que encontramos na praia. O padre Sebastian sugeriu que a vara provinha de uma antiga barraca situada logo acima dos de graus que levam à praia e que o instituto mandou demolir. Ao que parece, o padre Sebastian terá pensado que a antiga cabana, pintada de azul e branco, era demasiado desagradável à vista e que seria mais apropriada uma simples barraca de madeira. E foi o que eles fizeram. Também é utilizada para albergar o bote que socorre os banhistas que se metem em apuros. De qualquer maneira, a barraca antiga estava a cair aos pedaços, mas não a removeram completamente, e sobraram algumas tábuas apodrecidas, empilhadas naquela área. Mas, passado todo este tempo, creio que já nada mais resta da velha barraca.

 

Encontraram pegadas?

 

Foi a primeira coisa que procurámos. As pegadas do rapaz estavam cobertas pelo desabamento de areia, mas encontrámos uma fileira de pegadas, mais longe, na praia. Eram dele, porque tínhamos os seus sapatos para comparar, se bem que, ao que julgo, deva ter caminhado ao longo da zona coberta pelos seixos, como a maioria faz. Ví no local onde se deu a tragédia, havia pegadas a mais, como era de esperar, com Mistress Munroe, Mister Gregory e os dois padres sem se preocuparem onde punham os pés.

 

Ficou surpreendido com o veredicto?

 

Tenho de confessar que fiquei. Um veredicto em aberto teria sido mais lógico. Mister Melish sentou-se ao lado do júri. Gosta de o fazer, quando o caso é mais complexo ou existe maior interesse público. A decisão dos oito jurados foi tomada por unanimidade. Não pode negar-se que um veredicto em aberto nunca é satisfatório e que Santo Anselmo é muito respeitado na região. Estão isolados de tudo, mas os rapazes pregam nas igrejas locais e ainda ajudam nas obras sociais da comunidade. Não estou, com isto, a insinuar que o júri tenha errado. Pelo menos, deve ter sido o que os seus membros pensaram.

 

Nem Sir Aired se pode queixar da eficiência da investigação acrescentou Dalgliesh. Pessoalmente, não vejo que mais poderiam ter feito.

 

Nem eu, Mister Dalgliesh, e o médico legista disse o mesmo. Parecia não haver nada mais para falar e, depois de agradecer ao sargento Jones pela sua colaboração e pelo café, Dalgliesh saiu da esquadra. A vara de madeira, com o -traço de tinta azul, tinha sido embrulhada e etiquetada. Dalgliesh trouxe-a consigo, mais pela sensação de que era isso o que o jovem Jones esperava que ele fizesse do que por achar que lhe pudesse servir de pista.

 

Ao fundo do parque de estacionamento, um homem carregava caixas de papelão no banco de trás de um Rover. Olhando à sua volta,

 

avistou Dalgliesh, que avançava para o seu Jaguar, olhou-o fixamente por momentos e, depois, como se tomando uma súbita decisão, aproximou-se. Dalgliesh deu consigo a olhar para um rosto prematuramente envelhecido, que parecia marcado pela falta de sono ou pelo sofrimento. Era uma expressão que ele havia visto demasiadas vezes, anteriormente, para não a reconhecer de imediato.

 

Deve ser o inspector Adam Dalgliesh exclamou o desconhecido. O Ted Williams disse-me que o senhor passaria por aqui. Sou o inspector Roger Yarwood. Estou de baixa médica e vim até cá buscar algumas coisas. Só queria dizer-lhe que vai encontrar-me em Santo Anselmo. Os padres acolhem-me, de tempos a tempos. É mais barato do que um hotel e a companhia é mais alegre do que a do sanatório local, que costuma ser a outra alternativa. Ah, e a comida também é mais saborosa.

 

As palavras haviam-lhe saído em catadupa, como se aquele homem tivesse ensaiado o que devia dizer; nos seus olhos negros, havia uma expressão de arrogância e, ao mesmo tempo, de vergonha. Dalgliesh não acolheu bem aquela notícia. Talvez levado pelo seu lado irracional, pensara que seria o único visitante de Santo Anselmo.

 

Como que sentindo a sua reacção, Yarwood acrescentou:

 

Não se preocupe. Não irei bater à porta do seu quarto, depois das completas, para beber um copo. Quero ficar o mais longe possível de todos os mexericos da Polícia e parece-me que o senhor também.

 

Antes que Dalgliesh pudesse fazer algo mais do que trocar um aperto de mão com Yarwood, este despediu-se, com um breve aceno de cabeça, deu meia volta e afastou-se rapidamente em direcção ao seu carro.

 

Dalgliesh comunicara que chegaria ao instituto depois do almoço. Antes de sair de Lowestoft, encontrou uma charcutaria e comprou pãezinhos quentes, uma embalagem de manteiga, um patê de textura espessa e uma garrafa de meio litro de vinho. Como sempre, de cada vez que viajava pela província, trouxera consigo um copo e um termo com café. Depois de sair da cidade, seguiu por estradas secundárias e, por fim, desembocou numa vereda muito estreita, de piso irregular, onde cresciam ervas daninhas. Mais à frente, encontrou um portão aberto, com uma extensa vista sobre os campos outonais. Dalgliesh resolveu parar ali para saborear o seu piquenique. Antes, porém, desligou o telemóvel. Saiu do Jaguar, recostou-se a um dos pilares do portão e fechou os olhos, para melhor escutar o silêncio. Eram aqueles momentos que tanto almejava na sua vida agitada. A consciência de que ninguém sabia onde ele estava nem podia contactá-lo. Os sons quase indistintos do campo chegaram-lhe aos ouvidos, trazidos pela brisa perfumada: o canto de um pássaro ao longe, o sussurro do vento nos arbustos, o estalar de um galho por cima da sua cabeça. Depois de acabar a refeição, caminhou vigorosamente pela vereda cerca de setecentos metros e, em seguida, voltou ao carro e regressou à A12, em direcção a Ballard’s Mere.

 

Naquela estrada, um pouco antes do que pensava, encontrou o desvio, com o mesmo freixo alto, mas agora apodrecido e coberto de hera, e, ao lado, as duas vivendas aprumadas, com os seus jardins dianteiros bem cuidados. Contornada a curva, havia uma vereda, cujas margens eram encimadas por sebes vivas, de tons outonais, e que limitavam a visão do promontório, de tal forma que não conseguia avistar-se Santo Anselmo, à excepção dos pontos em que a vegetação era menos densa e se obtinha um breve lampejo das duas chaminés altas, de tijolo, e da cúpula da ala sul. Quando Dalgliesh alcançou a zona dos penhascos e virou para norte, pelo trilho arenoso que seguia ao longo da ribanceira, avistou então Santo Anselmo que surgia ao longe; um edifício bizarro, de tijolo e pedra, parecendo tão garrido e irreal como um cenário, recortando-se contra o azul-forte do céu. Dava a ideia de que era o edifício que se aproximava gradualmente dele e não o contrário. Perante aquela visão, vieram-lhe à memória imagens da sua adolescência e dos seus estados de espírito de então, que passavam da alegria ao sofrimento, da incerteza à esperança. A mansão parecia estar na mesma. Os cotos das torres geminadas, de estilo Tudor feitos de tijolos que ameaçavam ruir, pontilhados por tufos de ervas daninhas alojadas nas muitas fissuras ainda estavam de sentinela à entrada do átrio dianteiro Ao passar por entre as torres, viu de novo a mansão, em toda a sua complexa autoridade.

 

Na sua infância, era de bom-tom menosprezar o estilo arquitectónico vitoriano; e, assim, ele encarara a mansão com o devido desdém, não sem sentir um certo complexo de culpa. O arquitecto, provavelmente influenciado pelo proprietário original, incorporara na mansão todas as características próprias da moda: as chaminés altas, as janelas de varandas envidraçadas, a cúpula central, a torre sul, a fachada acastelada e um grande pórtico de pedra. Contudo, ao fim de tantos anos, parecia a Dalgliesh que o resultado era menos discordante do que lhe havia parecido, quando jovem, e que o arquitecto havia alcançado um certo equilíbrio e não um sentido de proporção desagradável, na sua interpretação dramática do romantismo medieval, do neogótico e da vaidade do ambiente familiar vitoriano.

 

Dalgliesh era esperado e a sua chegada desejada. Antes mesmo que pudesse fechar o carro, a porta da frente abriu-se e uma figura débil, de batina preta, desceu, coxeando, os três degraus de pedra.

 

Dalgliesh reconheceu imediatamente o padre Martin Petrie. Foi um choque e uma surpresa ver que o antigo reitor ainda se encontrava no instituto porque devia ter, pelo menos, oitenta anos. Mas era, sem sombra de dúvida, o homem que Dalgliesh venerara e, sim, que amara na sua infância. Paradoxalmente, o passar dos anos dissipou-se, mas, por outro lado, reivindicou a sua inexorável devastação. Os ossos das faces daquele ancião eram mais proeminentes, por cima do pescoço esquelético; a grande melena que lhe atravessava a testa alta, e que outrora fora farta e de um tom castanho brilhante, era agora branca e tão rala como a de um bebé. A boca, com o lábio inferior mais carnudo do que o superior, revelava menos firmeza. Os dois homens trocaram um aperto de mão, em silêncio. Para Dalgliesh, era como pegar num monte de ossos desconjuntados, tapados por uma luva de pelica delicada. No entanto, o aperto de mão do padre Martin ainda era forte. Os seus olhos, se bem que encovados pela idade, continuavam límpidos e cinzentos, e o seu coxear, uma relíquia que lhe ficara da guerra, era mais pronunciado, se bem que o velho padre ainda conseguisse andar sem ter de recorrer ao apoio de uma bengala. Por fim, o seu rosto, sempre gentil, revelava, como antigamente, a inquestionável graciosidade da autoridade espiritual. Pelo olhar do padre Martin, Dalgliesh apercebeu-se de que não era só na qualidade de um velho amigo que estava a ser recebido. O que viu, na expressão do olhar do padre Martin, foi um misto de apreensão e de alívio, o que o levou a questionar-se, de novo e não sem remorsos, porque se mantivera afastado durante todos aqueles anos, para, no fim, regressar fortuitamente e quase movido por um impulso. E, pela primeira vez, Dalgliesh perguntou a si próprio o que o esperava, ao certo, em Santo Anselmo. Conduzindo-o até à mansão, o padre Martin disse: Lamento imenso, mas vou ter de lhe pedir que mude o seu carro para o jardim que se encontra na parte de trás da mansão. O padre Peregrine não gosta de ver carros estacionados no átrio dianteiro, mas não há pressa. Instalámo-lo no quarto de São Jerónimo, que ocupou anteriormente.

 

Entraram no grande vestíbulo, com o chão de mármore e a escada de madeira que conduzia à galeria onde se achavam os quartos. As memórias regressaram, em torrente, à mente de Dalgliesh, ao sentir o cheiro do incenso, da cera, dos livros antigos e da comida. Exceptuando a construção de uma pequena divisão, do lado esquerdo da entrada, tudo parecia estar exactamente na mesma. A porta daquela nova divisão encontrava-se aberta e Dalgliesh conseguiu entrever um altar. Talvez fosse um oratório. A estátua da Virgem, em madeira, com o Menino nos braços, mantinha-se ao fundo da escada, junto da lâmpada vermelha que a iluminava, tal como a jarra de flores no plinto, a adornar os pés de Maria. Dalgliesh deteve-se para examinar a estátua e o padre Martin aguardou pacientemente. Era uma excelente cópia de uma Madonna com o Menino que estava exposta no Victoria and Albert Museum, mas Dalgliesh não se recordava de quem fora o seu escultor. Aquela estátua não revelava qualquer sentimento de melancólica piedade, tão comum naquele tipo de imagens, nem era sequer a representação simbólica das agonias que iriam seguir-se. Tanto a mãe como o filho riam-se, o bebé estendendo os braços roliços, a Virgem, pouco mais do que uma criança, deleitando-se com o seu filho. Quando começaram a subir a escada, o padre Martin acrescentou: Deve estar admirado por me ver. Oficialmente, estou reformado, claro, mas o instituto teve a bondade de me manter ao serviço e ajudo no ensino de Teologia Pastoral. O padre Sebastian Morell é há quinze anos o reitor do instituto. Sei que vai querer voltar a visitar locais que lhe são familiares, mas o padre Sebastian está à nossa espera, até porque deve ter ouvido o seu carro. O gabinete do reitor é o mesmo, desde que esteve cá pela última vez.


O homem que se levantou e avançou para os saudar era muito diferente do padre Martin. Devia ter mais de um metro e oitenta e era mais novo do que Dalgliesh esperava. O seu cabelo castanho-claro, com poucos fios grisalhos, estava penteado para trás, revelando uma testa alta. A boca, de contornos inflexíveis, o nariz, ligeiramente adunco, e o queixo comprido realçavam um rosto de uma beleza demasiado convencional e um tanto austera. O mais espantoso eram os olhos, de um azul ao mesmo tempo claro e carregado e que perturbaram Dalgliesh pela intensidade com que se fixaram na sua pessoa. Era o rosto de um homem de acção, talvez de um soldado, mais do que o de um académico. A batina, de bom corte, confeccionada em tecido de gabardina preta, parecia um traje incongruente para um homem que exsudava tanto poder.

 

Até mesmo a decoração do gabinete era discordante. A secretária, onde havia um computador e uma impressora, era agressivamente moderna, comparada com o crucifixo de madeira esculpida que pendia da parede e devia datar da Idade Média. A parede oposta continha uma colecção da Vanity Fair com caricaturas de abades vitorianos, de rostos escanhoados ou com fartos bigodes, tanto magros como rubicundos, pálidos ou ternurentos e revelando sempre uma expressão confiante por cima das batinas de linho, com fios de onde pendia um crucifixo. De cada lado da lareira de pedra, com o mote do instituto inscrito, viam-se fotografias emolduradas de pessoas e paisagens que, presumivelmente, tinham um lugar especial na memória do seu proprietário. E, por cima da lareira, havia um quadro a óleo de Burne-Jones. Era uma fantasia romântica, onde se destacava a famosa utilização da luz pelo artista, que nunca se centrava na terra nem no mar. Quatro raparigas, com os cabelos ornados de grinaldas de flores, trajando vestidos longos de musselina estampada, em tons de rosa e verde-claro, agrupavam-se em torno de uma macieira. Uma estava sentada, com um livro aberto sobre o regaço e um gatinho aninhado no braço direito; outra pousara uma lira de parte e olhava, com expressão pensativa, para um ponto distante do pomar. As restantes raparigas achavam-se de pé, junto da macieira. Uma delas estendera o braço para colher uma maçã madura, enquanto a quarta abrira o seu avental para receber o fruto. Dalgliesh, então, reparou numa outra obra da autoria de Burne-Jones: um bufete, de duas gavetas, com pés direitos, em forma de castor, e dois painéis pintados: um, de uma mulher, dando de comer a pássaros; o outro, de uma criança rodeada por cordeiros. Lembrava-se tanto do quadro como do bufete, mas tinha ideia de que estavam no refeitório. O romantismo exacerbado daquelas duas obras de arte parecia chocar com a austeridade clerical que reinava no gabinete.

 

Um sorriso de boas-vindas transformou por completo o rosto do reitor, mas foi tão breve que podia ter sido apenas um espasmo muscular.

 

Adam Dalgliesh? Seja bem-vindo. O padre Martin disse-me que já passou muito tempo desde que esteve aqui, pela última vez. Como eu gostava que o seu regresso tivesse ocorrido numa ocasião mais feliz...

 

Também eu replicou Dalgliesh. Só espero não vos incomodar durante muito tempo.

 

O padre Sebastian indicou duas poltronas que se achavam de cada lado da lareira, enquanto o padre Martin pegava numa das cadeiras da mesa de reuniões.

 

Depois de se sentarem, o padre Sebastian prosseguiu: Tenho de admitir que fiquei admirado quando o seu comissário adjunto me telefonou. Enviar até cá um inspector da Polícia Metropolitana, a fim de investigar o procedimento da autoridade local... acerca de um caso que, muito embora tenha sido trágico para todos aqueles intimamente envolvidos, não pode ser considerado grave. Além do mais, procedeu-se a um inquérito, que já foi devidamente encerrado. Essa vossa atitude não será algo extravagante? Ou, melhor dizendo, irregular?

 

Irregular? Não. Talvez, antes, pouco convencional. Mas, como eu planeava passar férias na região de Suffolk, pensou-se que se pouparia tempo e que talvez fosse mais conveniente para o instituto.

 

Ao menos, teve a vantagem de o trazer de volta até nós. Como é óbvio, responderemos a todas as suas perguntas. Sir Aired Treeves não teve a cortesia de nos abordar directamente. Nem sequer esteve presente durante o inquérito... pelo que nos foi dito, encontrava-se no estrangeiro... mas enviou um advogado. Tanto quanto me lembro, Sir Aired não manifestou qualquer descontentamento perante o veredicto. Apesar de havermos tido poucos contactos com Sir Aired, percebemos que é um homem de trato difícil. Nunca ocultou o seu desagrado pela escolha de profissão do filho... porque, para Sir Aired, nunca será uma vocação. Custa-nos compreender os motivos que o levaram a querer reabrir o caso. Existem, a nosso ver, apenas três alternativas. Um crime está fora de questão. O Ronald não tinha inimigos, aqui, nem alguém beneficiava com a sua morte. Suicídio? É decerto uma possibilidade confrangedora, mas não existem sinais, tanto no que diz respeito ao seu comportamento como à sua conduta aqui, que possam sugerir um tal grau de desespero. Resta a morte provocada por um acidente. Pela minha parte, pensava que Sir Aired aceitasse o veredicto com algum alívio. É que houve uma carta anónima replicou Dalgliesh. Creio que o meu comissário adjunto lhe terá falado dela. Se Sir Aired não a tivesse recebido, muito provavelmente eu não estaria aqui.

 

Dito isto, Dalgliesh tirou a folha de papel da carteira e entregou-a ao reitor. O padre Sebastian examinou-a de relance e, por fim, disse:

 

Foi escrita num computador. Temos computadores em Santo Anselmo. Um deles está aqui, no meu gabinete.

 

Não faz ideia de quem possa ter enviado essa carta a Sir Aired? quis saber Dalgliesh.

 

O padre Sebastian pouco examinou a carta antes de a devolver, num gesto de repúdio.

 

Não. Temos os nossos inimigos. Talvez esteja a utilizar uma palavra demasiado forte; seria mais correcto afirmar que há pessoas que preferiam que este instituto não existisse. Mas a sua oposição é ideológica, teológica ou financeira e está relacionada com os recursos da Igreja. Recuso-me a crer que alguém fosse capaz de descer a um nível tão baixo como o da calúnia. Estou realmente surpreendido por saber que Sir Aired levou esta carta em consideração. Como homem de poder, deve estar habituado a receber cartas anónimas. Bom, mas, como é evidente, ajudá-lo-emos em tudo o que pudermos. Deve querer, sem dúvida, visitar, antes de mais, o local onde o Ronald morreu. Quero, desde já, pedir-lhe desculpa por não poder acompanhá-lo e por o deixar ao cuidado do padre Martin. É que estou à espera de um visitante, esta tarde, e tenho de tratar de outros assuntos urgentes. As vésperas são às cinco da tarde, para o caso de querer assistir. Depois, haverá um pequeno beberete, no meu gabinete, antes do jantar. À sexta-feira, não servimos vinho às refeições, como penso que deve lembrar-se, mas, quando temos hóspedes, é de bom-tom oferecer-lhes um cálice de xerez, antes do jantar. Temos quatro outros visitantes neste fim-de-semana. O arcediago Crampton, um dos fideicomissários do instituto; a doutora Emma Lavenham, que vem de Cambridge até cá, no início do semestre, para iniciar os ordinandos na herança literária do anglicanismo; o doutor Clive Stannard, que utiliza a nossa biblioteca para as suas pesquisas, e um outro oficial da Polícia, o inspector Roger Yarwood, das autoridades locais, que neste momento está de baixa médica. Nenhum deles estava presente quando o Ronald morreu. Se estiver interessado em saber quem se encontrava aqui no instituto, naquela altura, o padre Martin poderá dar-lhe uma lista dos nomes. Podemos contar consigo para o jantar?

 

Esta noite, não, se me derem licença, mas conto estar de volta para as completas.

 

Nesse caso, vemo-nos na igreja. Espero que ache o seu quarto confortável.

 

Dito isto, o padre Sebastian levantou-se. Era óbvio que a reunião acabara.

 

Penso que gostaria de ver a igreja, de caminho para o seu quarto sugeriu o padre Martin.

 

Era evidente que tomava a concordância, para não dizer o entu siasmo de Dalgliesh, como certo, e, na realidade, este não sentia qual quer relutância quanto àquela sugestão. Havia certas coisas na pequena igreja que estava ansioso por voltar a ver.

 

A Madonna de Van der Weyden ainda se encontra por cima do altar? perguntou.

 

Sim. Esse quadro, bem como O Juízo Final, são as nossas duas maiores atracções. Desculpe, não era isto que eu queria dizer. Não procuramos encorajar as visitas ao instituto. Temos poucos visitantes e, quando vêm até cá, marcam sempre o dia e a hora, antes. Não fazemos publicidade das nossas riquezas.

 

O Van der Weyden está no seguro?

 

Não, nem nunca esteve. Não podemos pagar o prémio e, tal como o padre Sebastian diz, é um quadro insubstituível. O dinheiro do reembolso não compraria outro, mas tomamos as nossas precauções. Claro que o facto de estarmos tão isolados ajuda, mas, agora, temos um moderno sistema de alarme. O painel encontra-se dentro da porta que liga o claustro norte à igreja e o alarme também cobre a porta principal da ala sul. Se a memória não me falha, o sistema de alarme foi instalado muito depois da sua última estada aqui. O bispo insistiu que devíamos procurar aconselhar-nos quanto a questões de segurança, se o quadro permanecesse na igreja e, claro está, tinha razão.

 

Tenho uma vaga ideia de que a igreja estava aberta todo o dia, quando passei cá as férias de Verão. Sim, mas isso foi antes de os especialistas em arte sacra concluirem que o quadro era original. Custa-me muito saber que a igreja tem de estar trancada, em especial, num instituto de Teologia. Foi por isso que, quando eu ainda era o reitor, mandei instalar um pequeno oratório. Deve tê-lo visto, do lado esquerdo do vestíbulo, quando entrou. O oratório, em si, não pode ser consagrado, porque faz parte de um outro edifício, mas o altar é consagrado e fornece um local para os estudantes poderem recolher-se, em privado, ou para meditar quando a igreja fecha, depois dos serviços religiosos do dia.

 

Passaram por um vestiário, existente nos fundos da mansão e que dava acesso à porta do claustro norte. O vestiário estava dividido ao meio por uma fileira de cabides, dispostos por cima de uma bancada comprida, e por baixo de cada gancho havia um receptáculo para guardar sapatos e botas. A maior parte dos ganchos nada continha, mas cerca de meia dúzia sustentavam capotes castanhos, todos dotados de capuz. Era evidente que os capotes, tal como as batinas pretas que os ordinandos usavam no instituto, haviam sido recomendados pela sua temível fundadora, Agnes Arbuthnot, porque devia ter-se lembrado da força dos ventos agrestes que varriam aquela costa desprotegida. Do lado direito do vestiário, a porta para a lavandaria, entreaberta, deixava vislumbrar quatro grandes máquinas de lavar e uma de secar roupa.

 

Dalgliesh e o padre Martin saíram da obscuridade da mansão para o claustro e o leve mas penetrante cheiro do abrigo anglicano deu lugar ao ar fresco do átrio, iluminado pelo sol e imerso no mais profundo silêncio. Tal como quando era criança, Dalgliesh sentiu que recuava no tempo. Ali, os tijolos vermelhos que embelezavam a mansão vitoriana haviam sido substituídos pela simplicidade da pedra. Os claustros, com os seus pilares esguios, corriam à volta de três dos lados do átrio pavimentado com lajes de York, atrás dos quais uma fileira, idêntica, de portas maciças levava aos alojamentos dos estudantes, situados numa ala de dois andares. Os quatro quartos de hóspedes ficavam na ala oeste da parte dianteira do edifício principal e achavam-se separados do muro da igreja por um portão de ferro forjado, para além do qual podiam avistar-se hectares de vegetação pálida e selvagem e, mais ao longe, campos verdes de beterraba açucareira.

 

No centro do átrio, um castanheiro-da-índia revelava já a sua decrepitude outonal. Na base do tronco retorcido, de onde fragmentos de casca haviam caído como crostas, tinham rebentado pequenos galhos, e as suas folhas eram tão verdes e tenras como os primeiros rebentos da Primavera. Mais acima, os ramos compridos estendiam-se, em tons de amarelo e castanho, e as folhas mortas, que se encaracolavam no chão de pedra, estavam secas e quebradiças, contrastando com a casca escura e luzidia das castanhas.

 

Alguns pormenores constituíam uma novidade para Dalgliesh, naquele cenário que retivera na sua memória durante tanto tempo, entre eles, vasos de terracota, simples mas de formato elegante, alinhados aos pés dos pilares. Deviam constituir um espectáculo colorido durante o Verão, mas agora os caules retorcidos dos gerânios estavam ressequidos e as poucas flores que restavam eram uma insignificante lenbrança de glórias passadas. E Dalgliesh tinha a certeza de que o arbusto de brincos-de-princesa que trepava vigorosamente pelo muro da mansão, virado para leste, havia sido plantado depois de ele ali ter estado. Ainda estava carregado de flores, mas as folhas tinham começado a cair e as pétalas espalhavam-se, em montículos, como sangue derramado.

 

Vamos entrar pela sacristia anunciou o padre Martin. Dito isto, tirou um grande porta-chaves do bolso da batina. Peço desculpa se demorar algum tempo a encontrar a chave certa. Sei que, ao fim destes anos, já devia saber qual é, mas são tantas... Depois, receio bem que nunca consiga habituar-me ao sistema de segurança. Está accionado para nos conceder um minuto para que introduzamos o código de quatro dígitos, mas o alarme é tão fraco que mal consigo ouvi-lo. O padre Sebastian não gosta de ruídos estridentes, em particular na igreja. No entanto, se o alarme é accionado, por qualquer motivo, provoca um tamanho fragor, que se ouve no edifício principal.

 

Quer que eu procure as chaves por si?

 

Não, obrigado, Adam. Eu cá me arranjo. Nunca tive dificuldade em decorar o código porque é o ano em que Miss Arbuthnot fundou o instituto: mil oitocentos e sessenta e um.

 

Um número, pensou Dalgliesh, que poderia ocorrer facilmente a qualquer potencial intruso.

 

A sacristia era maior do que Dalgliesh se lembrava e servia também de vestiário e escritório. À esquerda da porta que conduzia à igreja, havia uma outra fileira de ganchos para pendurar os capotes. Numa outra parede, encontravam-se os guarda-roupas altos para as vestes. Ao centro, duas cadeiras de espaldar direito, e uma bacia com um escorredor de louça, junto de um pequeno armário, cujo topo, era em fórmica., sustentava uma chaleira eléctrica e uma cafeteira. Duas latas de tinta branca, outra de tinta preta e um frasco de geleia com pincéis encontravam-se encostados à outra parede. À esquerda da porta, e por baixo de uma das duas janelas, havia uma secretária com gavetas, em cujo tampo se via um crucifixo de prata. Por cima da secretária, um cofre fora incrustado na parede. Ao perceber que Dalgliesh olhava fixamente para o cofre, o padre Martin exclamou: O padre Sebastian mandou instalar o cofre para que guardássemos os nossos cálices e patenas, que datam do século dezassete. Foram deixados em herança ao instituto por Miss Arbuthnot e são autênticas obras de arte. Anteriormente, devido ao seu valor, estavam no banco, mas o padre Sebastian achou que devíamos utilizá-los e tinha toda a razão.

 

Junto da secretária, podiam ver-se várias fotografias a sépia, quase todas muito antigas, algumas remontando mesmo aos primeiros anos de vida do instituto. Uma delas era o retrato de Miss Arbuthnot. Estava ladeada por dois padres, ambos mais altos do que ela, cada um envergando batina e mitra. Após um escrutínio passageiro mas atento, Dalgliesh não teve quaisquer dúvidas sobre quem era a personalidade dominante naquela fotografia. Longe de se sentir diminuída pela austeridade clerical dos seus guardiões, Miss Arbuthnot parecia muito à vontade, com os dedos entrelaçados sobre as pregas da saia. As suas roupas eram simples mas dispendiosas. Mesmo numa fotografia tão antiga, podia reconhecer-se o brilho da seda pura, de que era feita a blusa de gola alta, bem como a riqueza do tecido da saia. Não usava jóias, à excepção de um camafeu, que adornava a gola da blusa, e de um fio com uma cruz. Por baixo do cabelo forte, muito claro, preso num carrapito, destacava-se o rosto, em forma de coração, com olhos espaçados, de expressão firme e sobrancelhas direitas. Dalgliesh não pôde impedir-se de imaginar como aquela mulher seria, se a sua austeridade algo severa se dissipasse numa gargalhada. Era o retrato de uma mulher bonita, que não sentia qualquer prazer na sua beleza e que procurara, em outras coisas, a gratificação do poder.

 

A memória da igreja voltou-lhe à mente, ao sentir o cheiro do incenso e do fumo de velas acesas. Atravessaram a nave lateral, virada para norte, e o padre Martin sussurrou:

 

Quer voltar a ver, com certeza, O Juízo Final. O Juízo Final podia ser iluminado por uma lâmpada fixada num piiar próximo. O padre Martin estendeu o braço e aquele cenário tenebroso, de súbito, ganhou vida. Estavam em frente de uma representação brilhante do dia do Juízo Final, pintada em madeira, numa prancha em forma de meia-lua, com um diâmetro de cerca de três metros e meio. No topo, a figura sentada de Cristo, no Paraíso, estendendo as mãos, manchadas de sangue, sobre o drama, que se desenrolava mais abaixo. A figura central era São Miguel. Empunhava uma pesada espada na mão direita e, na esquerda, várias balanças, em que pesava as almas dos justos e dos ímpios. À sua esquerda, o Diabo, de cauda escamosa, queixo pontiagudo, sorriso lascivo e dentes afiados, personificando o horror, preparava-se para reclamar as suas presas. Os virtuosos, de mãos pálidas elevadas para o alto, rezavam, enquanto os amaldiçoados formavam uma massa de hermafroditas negros, barrigudos e de bocas escancaradas. A seu lado, um grupo de demónios inferiores, munidos de forquilhas e correntes, empurrava as suas vítimas para a boca de um peixe gigantesco, cujas mandíbulas eram cobertas de espadas pontiagudas, que faziam as vezes de dentes. À esquerda, o Paraíso era representado como um hotel acastelado, com um anjo-porteiro, que acolhia as almas puras. São Pedro, de capa e tiara tripla, recebia os abençoados mais importantes. Todos estavam nus, mas ostentavam os aprestos da classe a que pertenciam: um cardeal, com o seu chapéu escarlate, um bispo, com a sua mitra um rei e uma rainha com as respectivas coroas. Dalgliesh não pôde deixar de pensar que havia muito pouca democracia naquela visão medieval do Paraíso. Aos seus olhos, todos os abençoados revelavam expressões de devoção enfadonha, ao passo que os amaldiçoados eram consideravelmente mais interessantes, mostrando-se mais provocadores do que arrependidos, enquanto caíam, de cabeça para baixo, na bocarra do peixe. Um desses ímpios, maior do que os restantes, resistia ao seu destino, com o dedo encostado ao nariz, num gesto de desprezo para com a figura de São Miguel. O Juízo Final, originalmente exposto de forma mais proeminente, fora concebido para aterrorizar as congregações medievais e levá-las até à virtude e ao conformismo social, pelo medo de irem parar ao Inferno. Agora, aquele quadro era visto pelos académicos interessados em arte sacra ou pelos visitantes, para quem o medo do Inferno deixara de ter qualquer significado, e que procuravam o Paraíso neste mundo e não em outro qualquer. Enquanto contemplavam o quadro, o padre Martin explicou: É, sem dúvida, um Juízo Final excepcional, provavelmente um dos melhores do país, mas gostava que pudéssemos exibi-lo noutro local. Data de cerca de mil quatrocentos e oitenta. Não sei se viu O Juízo Final de Wenhaston. É tão parecido com este que deve ter sido pintado pelo mesmo monge de Blythburgh. Enquanto que o outro esteve exposto no exterior, durante alguns anos, e teve de ser restaurado, o nosso está em muito melhor estado e acha-se mais perto da traça original. Tivemos muita sorte. Este quadro foi descoberto em mil novecentos e trinta, num celeiro de dois andares, perto de Wisset, onde era usado como divisória de um quarto, e, por isso, permaneceu em local seco, provavelmente desde mil e oitocentos. O padre Martin desligou a luz e continuou alegremente as suas explicações. Tínhamos uma torre circular, muito antiga, que ainda estava intacta... talvez conheça a que existe em Bramfield... mas ruiu há já muito tempo. Aqui, ficava a pia baptismal, com uma representação dos sete sacramentos, mas, como pode ver, pouco resta da escultura, Segundo a lenda, a pia baptismal foi dragada do mar, durante uma grande tempestade, no fim do século dezoito. Não sabemos se estava aqui, desde o início, ou se pertencia a uma das igrejas que foram devastadas por essa tempestade. O que é certo é que, nesta igreja, estão representados vários séculos. Como pode ver, ainda temos quatro camarotes.

 

Apesar de serem tão antigos, era na época vitoriana que Dalgliesh pensava, sempre que via camarotes que serviam de lugares reservados em serviços religiosos. Ali, tinham assento o fidalgo rural e a respectiva família, usufruindo da privacidade do camarote de madeira, sem que o resto da congregação ou quem ocupasse o púlpito os pudessem ver. Dalgliesh podia imaginar aquela família, fechada no camarote, enquanto se perguntava a si próprio se os fiéis levariam almofadas, mantas, sanduíches, bebidas e, talvez mesmo, um livro, discretamente tapado, para aliviar as horas de jejum e o tédio do sermão. Quando era miúdo, Dalgliesh passara grande parte do seu tempo a imaginar o que faria o fidalgo se sofresse da bexiga. Como podia o fidalgo tal como os restantes fiéis ficar sentado, ao longo dos dois serviços religiosos da Eucaristia de domingo, escutando longos sermões ou entoando a litania? Seria comum ter um bacio escondido por baixo dos bancos de madeira?

 

Os dois homens atravessaram a nave, em direcção ao altar. O padre Martin avançou até a um pilar, situado atrás do púlpito, e premiu um interruptor. Logo de seguida, a escuridão reinante na igreja pareceu intensificar-se, ao mesmo tempo que o quadro ganhava cor e vida. As figuras da Virgem e de São José, fixas na sua silenciosa adoração, ao longo de mais de quinhentos anos, pareceram por momentos sair, esvoaçando, da tábua de madeira onde estavam pintadas e pairar no ar, como uma visão. A Virgem fora pintada sobre um fundo de brocado intricado, em tons de dourado e castanho que, pela riqueza da sua textura, realçava a simplicidade e vulnerabilidade daquela figura. Estava sentada, num banco baixo, com o Menino Jesus, nu, deitado sobre um pano branco, no seu regaço. O rosto de Maria, de um oval perfeito, era pálido, com a boca terna, por baixo de um nariz fino; os olhos, de pestanas fartas, por baixo de sobrancelhas ligeiramente arqueadas, estavam fixos na criança, com uma expressão de resignada admiração. Da sua testa alva, madeixas acobreadas, levemente ondulantes, caíam sobre o manto azul, roçando as mãos delicadas, cujos dedos mal se tocavam numa prece. A criança olhava para ela, com os dois braços abertos, como que antecipando a crucificação. São José, envolto num manto vermelho, encontrava-se sentado do lado direito do quadro, como se fosse um guardião prematuramente envelhecido e prestes a adormecer, apoiando-se no seu cajado.

 

Tanto Dalgliesh como o padre Martin mantiveram-se em silêncio. O padre Martin só voltou a falar depois de desligar a luz. Dalgliesh perguntou a si próprio se o padre se sentiria inibido de falar de assuntos mundanos enquanto o quadro operava a sua magia.

 

Os especialistas parecem estar de acordo de que se trata de un genuíno Rogier van der Weyden, provavelmente pintado entre mil quatrocentos e quarenta e mil quatrocentos e quarenta e cinco. Os outros dois painéis deviam mostrar santos e o retrato do mecenas e da sua família.

 

De onde provém este quadro? perguntou Dalgliesh.

 

Miss Arbuthnot doou-o ao instituto, um ano depois de ser fundado. Era sua intenção que fosse colocado no altar. Foi o meu predecessor, o padre Nicholas Warbug, que mandou chamar os especialistas em arte. Interessava-se por arte sacra, em particular da época da Renascença holandesa, e sentiu uma natural curiosidade em saber se era uma obra genuína. No documento que acompanhava esta doação, Miss Arbuthnot limitava-se a descrevê-lo como parte de um triptico de altar, mostrando Santa Maria e São José, e cuja autoria podia ser atribuída a Rogier van der Weyden. Não consigo deixar de sentir que teria sido muito melhor se não se tivesse procurado saber se era um quadro valioso ou não. Podíamos ter apreciado a sua beleza, sem nos deixarmos obcecar pela segurança da obra de arte.

 

Como foi que Miss Arbuthnot o adquiriu?

 

Comprou-o. Uma família de proprietários de vastas terras, na região, andava a desfazer-se de alguns dos seus tesouros artísticos para conseguir manter as suas propriedades. Penso que Miss Arbuthnot nem sequer pagou muito pelo quadro. Primeiro, havia dúvidas quanto ao seu autor; e, mesmo que se comprovasse ser um Van der Weyden genuíno, o pintor não era nem conhecido nem, muito menos, respeitado, em mil oitocentos e sessenta, como o é hoje. Claro que é uma responsabilidade acrescida para nós. Sei que o arcediago considera que devíamos tirar este quadro daqui.

 

Tirá-lo daqui? Mas para onde?

 

Talvez para uma catedral, onde haja maior segurança. Talvez, até mesmo, para uma galeria de arte ou para um museu. Penso que o arcediago chegou mesmo a sugerir ao padre Sebastian que se vendesse o quadro.

 

E que o produto da venda revertesse para os pobres e necessitados? rematou Dalgliesh.

 

Bem, reverteria sempre para a Igreja. Um dos seus outros argumentos é de que mais pessoas deveriam ter a possibilidade de ver o quadro. Porque haveria um pequeno instituto de Teologia, situado num local ermo, acrescentar este aos nossos outros privilégios?

 

Havia uma ponta de azedume no tom de voz do padre Martin, Dalgliesh achou por bem manter-se em silêncio e, após uma pausa, o seu companheiro, pressentindo que fora longe de mais, acrescentou;

 

São argumentos válidos, claro. Talvez devêssemos até levá-los em conta, mas é difícil imaginar uma igreja sem o seu retábulo. Além do mais, foi-nos oferecido por Miss Arbuthnot para que fosse colocado por cima do altar, nesta igreja, e, pessoalmente, julgo que devemos opor-nos a qualquer sugestão de que seja levado daqui. Não me importava de deixar partir O Juízo Final mas não este quadro.

 

Contudo, quando viraram costas, a mente de Dalgliesh estava absorta em considerandos mais seculares. Não precisara de recorrer às palavras de Sir Aired, quando este se pronunciara sobre a vulnerabilidade do instituto, para recordar como o futuro daquele refúgio se mostrava tão incerto. Que futuro, a longo prazo, podia haver para um instituto de características tão discordantes das opiniões dominantes da Igreja, educando não mais do que vinte estudantes, situado naquele local, tão inacessível quanto remoto? Se o futuro do instituto estava, agora, em questão, a misteriosa morte de Ronald Treeves podia ser o factor que faria desequilibrar a balança. E, se o instituto encerrasse as suas portas, o que aconteceria ao quadro de Van der Weyden e aos outros objectos de arte valiosos que haviam sido doados por Miss Arbuthnot? O que aconteceria ao edifício em si? Lembrando-se da fotografia que vira na sacristia, era difícil acreditar que aquela mulher não havia pensado, mesmo que com viva relutância, naquela possibilidade, e que não tomara providências para evitar o pior. Assim, voltava-se, invariavelmente, ao âmago da questão: quem beneficiava com o encerramento do instituto? Dalgliesh teria gostado de fazer aquela pergunta ao padre Martin, mas decidiu que isso revelaria uma grande falta de tacto da sua parte, além de ser impróprio, naquele lugar. Contudo, seria obrigado a fazer aquela pergunta, mais cedo ou mais tarde.

 

Os quatro quartos de hóspedes haviam sido baptizados por Miss Arbuthnot com os nomes dos quatro doutores da Igreja: São Gregório, Santo Agostinho, São Jerónimo e Santo Ambrósio. Após esta iniciativa de ordem teológica, decidira que as vivendas, destinadas aos funcionários do instituto, seriam apelidadas com os nomes dos quatro evangelistas, São Matias, São Marcos, São Lucas e São João, mas a inspiração, aparentemente, esgotara-se aí, e os quartos dos estudantes acabaram por ser identificados, por forma menos imaginativa mas mais conveniente, através de números, tanto no claustro da ala norte, como no claustro da ala sul.

 

Talvez se lembre de que costumava ficar alojado no quarto de São Jerónimo, quando era criança. É a segunda porta, a seguir à igreja. Hoje em dia, é o nosso único quarto de casal; por isso, a cama deve ser confortável. Receio não ter uma chave para lhe dar. Nunca tivemos chaves para os nossos hóspedes. Reina aqui a segurança. No entanto, se tiver documentos que queira guardar, podemos pô-los no cofre. Espero que se sinta bem instalado, Adam. Como vê, os quartos foram remodelados desde a sua última visita.

 

Os ”quartos de hóspedes”, na realidade, pareciam-se mais com suites. Os dois homens entraram no quarto do São Jerónimo.

 

A sala de estar, que antes lembrava um repositório acolhedor, se bem que atafulhado em demasia, com peças soltas de mobiliário que mais pareciam os restos de uma venda de caridade da paróquia, era agora uma sala tão funcional como o estúdio de um estudante. Nada ali era supérfluo; a modernidade convencional substituíra a individualidade. A mesa, que também podia servir de escrivaninha, com as respectivas cadeiras, achava-se em frente da janela, com vista para os terrenos baldios, a oeste. Duas poltronas ladeavam o aquecedor a gás. Havia ainda uma mesa baixa e uma estante. À direita da lareira, um guarda-louça, com tampo de fórmica, apresentava uma bandeja com uma chaleira eléctrica, um bule, duas chávenas e os respectivos pires.

 

Há um pequeno frigorífico naquele guarda-louça e Mistress Pilbeam colocará lá dentro, todos os dias, uma garrafa de leite explicou o padre Martin. Como vai poder ver, quando subir ao primeiro andar, instalámos um chuveiro no que era parte do seu antigo quarto. Deve estar lembrado, por certo, de que, quando esteve aqui pela última vez, tinha de atravessar os claustros para se servir de uma das casas de banho da mansão.

 

Dalgliesh, efectivamente, lembrava-se, e bem, porque constituíra para ele um dos grandes prazeres da sua estada em Santo Anselmo. Podia descer, de roupão, para o exterior, com uma toalha à volta dos ombros, e dirigir-se à casa de banho, ou percorrer os cerca de quinhentos metros até à barraca de banhistas, para um mergulho, antes do pequeno-almoço. O pequeno chuveiro podia ser moderno, mas era um pobre substituto daquela benesse.

 

Se me der licença, espero por si aqui, enquanto você abre as malas, porque ainda gostaria de lhe mostrar duas coisas.

 

O quarto era tão simples como a sala do andar inferior. Tinha uma cama de madeira com a respectiva mesa-de-cabeceira e candeeiro, um armário, outra estante e uma poltrona. Dalgliesh abriu o seu saco de viagem e pendurou o único fato que achara necessário trazer consigo. Depois de um duche rápido, juntou-se de novo ao padre Martin, que se achava de pé, em frente da janela, a contemplar o promontório. Quando Dalgliesh entrou, o padre Martin tirou uma folha de papel do bolso da batina.

 

Tenho algo que você deixou aqui, quando tinha catorze anos. Não lhe enviei esta folha de papel, porque não tinha a certeza se iria ficar contente em saber que eu a lera. Guardei-a e talvez você gostasse de reavê-la, ao fim de todos estes anos. Penso que, com alguma boa vontade, pode dizer-se que é um poema.

 

O que, para Dalgliesh, era uma suposição pouco provável. Reprimiu um gemido e pegou na folha de papel. Que indiscrição, embaraço, ou pretensão juvenil ia ressuscitar do passado, para seu grande desconforto? A visão da caligrafia que lhe era familiar e, ao mesmo tempo, estranha aos seus olhos fê-lo recuar no tempo mais depressa do que se fosse uma fotografia, dado ser algo mais pessoal. Custava-lhe a crer que a mão do rapazito que escrevera naquela folha de papel era a mesma que, naquele momento, a segurava.

 

Dalgliesh leu o poema em silêncio.

 

A Família do Morto

 

”Que belo dia”, disseste, ao passar,

 

com voz enfadada, caminhando, sem que te vissem, na rua.

 

Não chegaste a dizer: ”Por favor, coloca o teu casaco à minha volta, Porque lá fora o Sol brilha, mas aqui dentro a geada mata.”

 

Aquele seu pensamento juvenil trouxe-lhe uma outra recordação, de algo que fora comum durante a sua infância: a de seu pai, presidindo a um funeral, com a riqueza dos torrões de terra amontoados, em contraste com o verde reluzente da relva artificial, algumas coroas de flores, o perfume que exalavam e o vento a erguer a sobrepeliz de seu pai. Dalgliesh lembrava-se de que aquelas linhas haviam sido escritas depois do enterro de um filho único. Lembrava-se, também, que se preocupara com as duas últimas palavras da última linha, por pensar que tinham demasiadas vogais iguais, mas não conseguira encontrar uma outra expressão que considerasse à altura do que pretendia exprimir.

 

Sempre achei que se tratava de um pensamento extraordinário para um rapaz de catorze anos comentou o padre Martin. Gostaria de guardá-lo, a não ser que você o queira de novo.

 

Dalgliesh limitou-se a acenar, em sinal de concordância, e devolveu a folha de papel, em silêncio. O padre Martin voltou a dobrá-la e guardou-a no bolso com a satisfação de uma criança.

 

Disse que havia outra coisa que queria mostrar-me...? referiu Dalgliesh, em seguida.

 

De facto, mas talvez fosse melhor sentarmo-nos.

 

Mais uma vez, o padre Martin enfiou a mão no bolso fundo da batina, de onde tirou o que parecia um caderno de exercícios escolares, enrolado com um elástico. Alisando-o, no regaço, e pousando as mãos sobre a capa, como que se quisesse proteger o que, afinal, era um bloco de apontamentos, declarou:

 

Antes de irmos até à praia, gostaria que lesse isto. Dispensa qualquer explicação. A mulher que escreveu este diário morreu, de ataque de coração, na noite em que fez as últimas anotações. Pode não ter qualquer significado no que diz respeito à morte do Ronald. Mostrei este diário ao padre Sebastian e foi essa a sua opinião. Segundo ele, o relato pode ser ignorado com toda a segurança. Pode, efectivamente, nada significar, mas, no entanto, inquieta-me. Assim, pensei que seria boa ideia mostrar-lho, aqui, onde ninguém pode interromper-nos. Gostaria que lesse as anotações relativas ao primeiro e ao último dia. Dito isto, estendeu o bloco a Dalgliesh e manteve-se calado, enquanto o inspector o lia.

 

Como foi parar às suas mãos? perguntou este, finda a leitura,

 

Procurei-o e encontrei-o. Mistress Pilbeam encontrou a Margaret Munroe na sua casa, às quatro horas e um quarto da manhã de sexta-feira, dia treze de Outubro. De caminho para o instituto, ficou admirada por ver luzes, àquela hora, na Vivenda São Mateus. Depois de o doutor Metcalf, o médico que presta assistência em Santo Anselmo, ter visto o corpo e dado ordem para que fosse levado, lembrei-me da sugestão que havia dado à Margaret. Tinha-lhe dito que escrevesse um relato sobre o modo como descobrira o corpo do Ronald e tive curiosidade em saber se ela o fizera. Encontrei este bloco, por baixo do seu papel de carta, na gaveta de uma pequena escrivaninha que ela tinha na sala de estar. Não tomara qualquer precaução para manter este bloco escondido.

 

E, tanto quanto sabe, mais ninguém tem conhecimento da existência deste diário? quis saber Dalgliesh.

 

Não, à excepção do padre Sebastian. Tenho a certeza de que a Margaret nunca falaria dele a ninguém, nem mesmo a Mistress Pilbeam, a pessoa que lhe era mais próxima. Além do mais, não havia quaisquer vestígios de que alguém tivesse vasculhado a casa. O corpo parecia em paz. Quando me chamaram, a Margaret estava calmamente sentada na sua poltrona, com o tricô no regaço.

 

E não faz ideia daquilo a que ela se refere no diário?

 

Não. Deve ter sido qualquer coisa que ela viu ou ouviu no dia em que o Ronald morreu e que lhe veio à memória, em associação com a oferta dos alhos-porros, por parte do Eric Surtees. É o nosso homem dos sete ofícios, por assim dizer, e ajuda o Reg Pilbeam. Mas isso já o sabe pelo que acabou de ler. Pessoalmente, não consigo descobrir o que foi que a Margaret descobriu.

 

A morte dela foi inesperada?

 

Nem por isso. Sofria do coração, havia já muitos anos. Tanto o doutor Metcalf como o cardiologista que ela consultara, em Ipswich, tinham falado com ela sobre a possibilidade de um transplante de coração, mas a Margaret mostrara-se inflexível: não queria ser submetida a nenhuma operação. Afirmara que tais recursos, tão raros, deviam ser usados em jovens ou em pessoas que tivessem filhos pequenos para criar. Penso que a Margaret perdera o gosto pela vida, após a morte do filho. Não que fosse uma pessoa mórbida. Diria antes que não era suficientemente agarrada à vida para lutar por ela.

 

Gostaria de guardar este diário, se não se importa replicou Dalgliesh. O padre Sebastian pode ter razão. Talvez não tenha qualquer significado, mas não deixa de ser um documento interessante, se tivermos em conta as circunstâncias que envolveram a morte do Ronald Treeves.

 

Dito isto, Dalgliesh guardou o diário na sua pasta, fechou-a e trancou-a. Os dois homens permaneceram em silêncio durante mais alguns minutos. Dalgliesh tinha a nítida sensação de que o ambiente se tornara carregado, em virtude de medos inconfessáveis e de suspeitas. O Ronald Treeves morrera misteriosamente e, uma semana mais tarde, a mulher que o encontrara e, subsequentemente, descobrira um segredo, para ela importante, morrera também. Podia não passar de uma coincidência. Por enquanto, não havia quaisquer provas de nada que se parecesse com um crime, e Dalgliesh partilhava o que pensava ser a relutância do padre Martin em ouvir semelhante palavra pronunciada em voz alta.

 

Ficou admirado com o veredicto? perguntou.

 

Um pouco. Estava à espera de que ficasse em aberto. Mas a ideia de que o Ronald possa ter-se suicidado, ainda por cima, através de um acto tão medonho, é algo que não conseguimos sequer encarar,

 

Que espécie de jovem era ele? Sentia-se feliz aqui?

 

Não sei se era feliz, se bem que me pareça que não se teria adaptado melhor em outro instituto de Teologia. Era um rapaz inteligente e esforçado, mas faltava-lhe um certo encanto, coitado. Mostrava-se, também, estranhamente crítico para a sua idade. Diria que a sua personalidade era um misto de alguma insegurança com uma considerável presunção. Não tinha amigos íntimos... não que encorajemos, aqui, esse tipo de amizades... e talvez sofresse um pouco por causa da solidão. Mas nada havia, nos seus estudos ou na sua vida neste local, que sugerisse desespero ou que fizesse supor que se sentia tentado pelo pecado do suicídio. Claro está, se ele se suicidou, então, teremos de arcar com a nossa quota-parte de culpa. Devíamos ter percebido que ele sofria. Por outro lado, a verdade é que nunca revelou qualquer indício nesse sentido.

 

Estava satisfeito com a vocação do Ronald?

 

O padre Martin demorou algum tempo antes de responder:

 

O padre Sebastian sentia-se satisfeito, mas pergunto a mim próprio se não se terá deixado influenciar pelas boas notas do Ronald, O rapaz não era tão esperto como pensava, mas não quer dizer que não fosse inteligente. Pessoalmente, tinha as minhas dúvidas quanto à sua vocação. Sempre me pareceu que o Ronald estava desesperado por impressionar o pai. Como é óbvio, o Ronald nunca poderia medir forças com ele, no seu mundo, mas podia escolher uma carreira que não oferecesse qualquer comparação com a do pai. E com o sacerdócio, particularmente o católico, há sempre a tentação do poder. Uma vez ordenado, o Ronald teria autoridade para decretar a absolvição Ao menos, era algo que Sir Aired não podia fazer. Nunca disse isto a ninguém e posso estar errado. Quando analisámos a candidatura do Ronald, percebi que me encontrava numa situação delicada. Nunca é fácil, para um reitor, ter o seu predecessor ainda em funções no instituto que dirige. E a candidatura do Ronald revelou-se uma questão em que não achei ser correcto da minha parte opor-me ao padre Sebastian.

 

Foi com uma sensação de um mal-estar progressivo, se bem que isso lhe parecesse ilógico, que Dalgliesh ouviu o padre Martin dizer:

 

Agora, penso que gostaria de ver o local onde o Ronald morreu.

 

Eric Surtees saiu da Vivenda São João pela porta dos fundos e passou pelos canteiros de legumes, a fim de ir ver os seus porcos. Lil, Marigold, Daisy e Myrtle surgiram, formando um aglomerado que se destacava pelos grunhidos, e levantaram os focinhos rosados para o sentir. Consoante o estado de espírito de Eric, uma visita à pocilga, que ele mesmo construíra, acalmava-lhe o ânimo. Todavia, quando se debruçou sobre a cerca e coçou o lombo de Myrtle, soube que nada conseguiria mitigar a ansiedade que pesava sobre ele como se carregasse um fardo aos ombros.

 

A sua meia-irmã, Karen, devia chegar por volta da hora do chá. Morava em Londres e costumava visitá-lo no terceiro fim-de-semana de cada mês e, independentemente do tempo que fizesse, aqueles dois dias ficavam sempre gravados na memória de Eric como soalheiros, aquecendo e iluminando as semanas seguintes. Karen mudara a vida dele por completo nos últimos quatro anos. Eric já não conseguia imaginar-se sem ela. Em condições normais, aquela visita de Karen seria encarada por Eric como uma dádiva dos céus, porque ela visitara-o no fim-de-semana anterior. No entanto, Eric sabia que ela vinha visitá-lo, de novo, porque tinha um favor a pedir-lhe, um favor que ele lhe negara, no fim-de-semana precedente; agora, só lhe restava arranjar coragem para recusar, outra vez, o pedido de Karen.

 

Debruçado sobre o muro da pocilga, passou em revista aqueles últimos quatro anos e pensou na sua relação com Karen. No início, não havia sido das melhores. Eric tinha vinte e seis anos quando conhecera a sua meia-irmã, três anos mais nova do que ele. Tanto Eric como a sua mãe só haviam tomado conhecimento da existência de Karen quando ele tinha dez anos. O pai, caixeiro-viajante de uma grande editora, conseguira dirigir, com êxito, duas famílias até que, ao fim de dez anos, o esforço físico e financeiro se havia tornado demasiado pesado para ele: pegara nas suas coisas e partira com a amante. Nem Eric nem a mãe haviam ficado particularmente tristes por vê-lo partir; não havia nada de que a mãe de Eric mais gostasse do que de uma afronta, e o marido proporcionara-lhe uma que a mantivera num estado de alegre indignação e de luta feroz durante os últimos dez anos da sua vida. Esforçara-se, sem o conseguir, para ter a casa de Londres em seu nome, insistira em ficar com a custódia do único filho do casal (que não fora objecto de batalhas judiciais) e protagonizara uma longa e azeda disputa relativa à concessão de uma pensão de alimentos. Quanto a Eric, nunca mais voltara a ver o pai.

 

A casa, de quatro andares, fazia parte de uma fileira de moradias vitorianas, situadas perto da estação de metro de Oval, em Londres. Quando a mãe de Eric falecera, em consequência da doença de Alzheimer, Eric permanecera na casa, sozinho, depois de o solicitador do pai o informar de que podia continuar a morar ali, sem ter de pagar renda, até o pai falecer. Havia quatro anos, um ataque cardíaco vitimara o pai, quando este viajava pelo país. Fora então que Eric descobrira que a casa lhe havia sido deixada em herança, assim como à sua meia-irmã.

 

Vira-a, pela primeira vez, durante o funeral do pai. O evento era difícil dignificá-lo com nome mais cerimonioso tivera lugar num crematório, na região norte de Londres, sem a presença de um padre, nem mesmo de amigos e familiares, à excepção de Eric, Karen e dois representantes da agência funerária. A cremação demorara apenas alguns minutos.

 

À saída do crematório, a irmã, sem qualquer preâmbulo, dissera-lhe:

 

Era o que o papá queria. Nunca foi dado a qualquer religião. Não queria flores nem que os outros chorassem por ele. Vamos ter de falar sobre a casa, mas não agora. Tenho uma reunião urgente e já foi difícil conseguir sair do escritório.

 

Nem sequer perguntara a Eric se queria boleia, e ele voltara sozinho para casa. No dia seguinte, porém, Karen telefonara-lhe. Eric guardava na memória uma nítida lembrança de abrir a porta a Karen. Vestia, tal como durante a cremação, calças de cabedal justas, uma camisola de algodão encarnada e muito larga, e botas de tacão alto. Usava o cabelo espetado, como se o houvesse empastado de brilhantina, e tinha uma pedra brilhante cravada numa das abas do nariz. A aparência de Karen era convenientemente outré, mas Eric descobrira, para sua grande surpresa, que gostava do aspecto dela. Haviam passado para a sala da frente, poucas vezes utilizada, sem trocar uma só palavra. Karen olhara em seu redor, avaliando os pertences da mãe de Eric, tal como a mobília, pesada e velha, que ele nunca se dera ao trabalho de substituir, as cortinas poeirentas e os bibelôs, de gosto duvidoso, que a mãe havia trazido de umas férias em Espanha.

 

Temos de chegar a uma decisão em relação a esta casa declarara Karen. Podemos vendê-la agora, e cada um ficar com a sua metade, ou podemos ficar com ela. Também podemos investir algum dinheiro numa remodelação e transformá-la em três apartamentos pequenos. Não vai ser barato, mas o papá deixou-me um seguro de vida e não me importo de gastar o dinheiro que tenho a receber na remodelação da casa, desde que fique com uma proporção maior das rendas. A propósito: e tu, que pensas fazer? Quero dizer, tencionas ficar aqui a viver?

 

Nem por isso. Não pretendo continuar a viver em Londres. Se vendermos a casa, terei dinheiro suficiente para comprar uma pequena vivenda algures e, talvez até, para me lançar no mercado da jardinagem ou qualquer coisa no género.

 

Nesse caso, serias um idiota. Precisas de muito mais dinheiro do que aquele que vais receber para abrir um negócio de jardinagem e, além do mais, esse tipo de actividade não rende, pelo menos à escala em que estás a pensar. No entanto, se queres sair de Londres, então deves querer vender a casa.

 

Eric pensara: ”Ela sabe o que quer e acabará por consegui-lo, não importa o que eu disser.” No entanto, não se importava. Seguiu atrás de Karen, na inspecção que ela fez a todas as divisões da casa, como que se estivesse em transe.

 

Por fim, Eric dissera:

 

Mas não me importo de não a vender, se é isso que queres.

 

Não é o que eu quero mas sim o que é mais prático para nós dois. O mercado imobiliário está estável, neste momento, com tendência para melhorar. Bom, mas se transformarmos esta casa em três apartamentos, baixará o seu valor como residência familiar. Por outro lado, irá proporcionar-nos um rendimento regular.

 

E fora o que inevitavelmente acontecera. Eric sabia que Karen começara por desprezar aquele irmão por parte do pai, mas, à medida que começaram a trabalhar em conjunto, a sua atitude fora-se alterando visivelmente. Mostrara-se agradavelmente surpreendida por descobrir como Eric era habilidoso de mãos e quanto eles poupavam, por ele saber pintar tectos, colocar papel de parede, fazer prateleiras e instalar lava-louças. Eric nunca se ralara em melhorar a casa que havia sido, durante tanto tempo, a sua residência. Agora, descobria em si talentos inesperados. Contrataram um canalizador profissional, um electricista e um empreiteiro para as obras mais complexas, mas a maior parte da remodelação fora feita por Eric. Assim, ele e Karen, involuntariamente, haviam-se tornado sócios. Aos sábados, partiam à aventura, comprando mobília em segunda mão, procurando os melhores saldos para roupa de cama e louça, e, no fim do dia, mostravam um ao outro os seus trofeus com a expressão triunfal de duas crianças. Eric ensinara Karen a usar, com segurança, um maçarico, insistira na preparação cuidada das peças de carpintaria antes de as pintar, mau grado os protestos de Karen de que não era preciso, e espantara-a com a meticulosidade com que tirava as medidas dos móveis de cozinha para que coubessem na perfeição. Enquanto trabalhavam, Karen falara da sua vida, da carreira de jornalista free-lancer em que começava a ganhar alguma reputação, do seu prazer em conseguir um artigo com o seu nome, da mesquinhez, da má-língua e dos pequenos escândalos que existiam no ramo literário em que ela trabalhava. Era um universo totalmente estranho para Eric, e sentia-se feliz por não lhe ser exigido que passasse a fazer parte do mundo jornalístico. O seu sonho era ter uma vivenda, com uma horta, e talvez até poder criar porcos, a sua paixão secreta.

 

E podia lembrar-se como poderia não se lembrar? do dia em que se haviam tornado amantes. Eric tinha acabado de arranjar os estores de madeira de uma das janelas viradas a sul e, depois, tinham ambos começado a pintar as paredes. Karen era trapalhona e, a certa altura, anunciara que, como estava com calor e tinha o corpo cheio de tinta, ia tomar um duche. Sempre seria uma oportunidade de testar a eficiência da nova casa de banho. Eric também parara de trabalhar e sentara-se, com as pernas cruzadas, encostado à única parede que faltava pintar, enquanto observava a luz infiltrar-se pelos estores meio corridos a incidir sobre o chão salpicado de tinta.

 

Fora então que Karen voltara à sala. Enrolara uma toalha à volta da cintura mas exibia os seios. Trazia, no braço, uma coberta. Estendera-a no chão, deitara-se e, rindo-se, abrira os braços na direcção de Eric. Como que em transe, ele ajoelhara-se a seu lado e sussurrara:

 

Não podemos... Não podemos... Somos irmãos...

 

Só por parte do pai, portanto, fica tudo em família.

 

Mas os estores... Há luz a mais... protestara Eric. Karen levantara-se e baixara os estores. A sala ficara imersa numa quase total obscuridade. Então, pressionara a cabeça de Eric contra os seus seios.

 

Havia sido a primeira vez, para Eric, e mudara a sua vida. Sabia que Karen não o amava e, naquela altura, ele ainda não a amava. Durante aquele momento de entrega total a que se seguiriam muitos outros, Eric fechara os olhos e dera largas a todas as suas fantasias, ora românticas, ora ternas, violentas e até mesmo vergonhosas. Tudo o que fantasiara tornara-se realidade. Até que um dia, enquanto, mais confortavelmente, estavam deitados na cama, ele abrira os olhos, fitara Karen e percebera que havia encontrado o amor.

 

Fora Karen que lhe encontrara o emprego em Santo Anselmo.

 

Havia sido destacada para fazer um artigo em Ipswich e, numa breve pausa, pegara num exemplar do East Anglian Daily News. De regresso a Londres, nessa mesma noite, passara pela casa em obras, onde Eric comia agora na cave, enquanto os trabalhos de remodelação continuavam, e levara o jornal com ela.

 

É uma oferta de emprego para um ajudante num instituto de Teologia, a sul de Lowestoft. Deve ser suficientemente isolado para o teu gosto. Oferecem uma casa que, pelo que percebi, tem um jardim. Talvez consigas persuadi-los a deixarem-te criar galinhas.

 

Não quero fazer criação de galinhas. Prefiro os porcos.

 

Então, que sejam porcos, desde que não cheirem muito mal. Não pagam grande coisa, mas deves ficar com um rendimento de duzentas e cinquenta libras por semana, das rendas. E provavelmente ainda conseguirás fazer algumas economias. Então? Que te parece?

 

Eric pensara que era bom de mais para ser verdade.

 

Talvez prefiram um casal, se bem que não o refiram no anúncio continuara Karen. Mas é melhor começarmos a tratar do assunto. Eu levo-te até lá, amanhã de manhã, se quiseres. Telefona-lhes agora e marca uma entrevista. Eles indicam um número de telefone no anúncio.

 

No dia seguinte, como combinado, Karen levara-o até Suffolk, deixando-o em frente do portão do instituto, e dissera-lhe que regressaria dali a uma hora e esperaria por ele. Eric fora entrevistado pelo padre Sebastian Morell e pelo padre Martin Petrie. Sentira-se preocupado com a hipótese de lhe pedirem referências clericais ou de lhe perguntarem se costumava ir à missa, mas não fora feita qualquer alusão a questões religiosas.

 

Deves conseguir obter referências da câmara, mas é melhor provares que és um bom funcionário dissera-lhe Karen, no dia anterior. Afinal, eles não estão à procura de um escriturário. Eu trouxe uma máquina fotográfica comigo. Vou tirar fotografias dos guarda-louças, das prateleiras e dos acabamentos que fizeste e podes mostrar-lhas. Lembra-te de que tens de te promover.

 

Eric, contudo, não precisara de se promover. Respondera às perguntas dos dois padres com toda a simplicidade e mostrara as fotografias com uma ânsia de tal forma comovente que os dois homens haviam imediatamente percebido quanto ele queria aquele emprego Assim, haviam-no levado até à casa, para que ele a visse. Era maior do que Eric imaginara ou desejara, ficava a uns oitenta metros das traseiras do instituto, tinha uma vista panorâmica sobre os campos baldios e um pequeno jardim abandonado. Só ao fim de trabalhar havia um mês em Santo Anselmo se atrevera a falar nos porcos, mas ninguém levantara qualquer objecção. O padre Martin, no entanto, comentara, revelando algum nervosismo:

 

Não os vai deixar à solta, pois não, Eric?

 

Não, padre Martin. Pensei que talvez pudesse construir uma pocilga e um cercado, mas mostrar-lhe-ei o esboço, antes de comprar a madeira.

 

E quanto ao cheiro? quisera saber o padre Sebastian. Ouvi dizer que os porcos não cheiram mal, mas, pessoalmente, detecto o cheiro deles. Bom, mas também é possível que eu tenha um nariz mais sensível do que a maioria das pessoas...

 

Não vão cheirar mal, porque os porcos são animais muito limpos.

 

Assim, Eric conseguira ter a sua casa, o seu jardim, os seus porcos e, de três em três semanas, Karen. Não conseguia imaginar uma vida mais a seu contento.

 

Encontrara, em Santo Anselmo, a paz que havia procurado durante toda a sua vida. Nunca percebera porque lhe era tão vital a ausência de ruídos, de controvérsias ou das pressões de feitios diferentes em conflito. Não que o seu pai houvesse sido violento para com ele. Na maior parte do tempo, estava ausente, e o casamento fracassado de seus pais fora mais uma questão de queixumes e de provocações, ditas entre dentes, do que de gritos ou ataques de fúria. O que Eric considerava timidez era algo que fazia parte da sua personalidade desde a mais tenra idade. Mesmo quando havia trabalhado na câmara um emprego pouco interessante, mantivera-se sempre à margem das discussões ocasionais ou das questiúnculas que pareciam fazer parte do dia-a-dia de alguns dos outros funcionários. Até conhecer e, mais tarde, se apaixonar por Karen, não houvera outra companhia, para Eric, mais desejável do que a sua.

 

E agora, com aquela paz, aquele santuário, a sua horta e os seus porcos, um emprego de que gostava e pelo qual era respeitado, além das visitas regulares de Karen, descobrira uma vida que o preenchia por completo. Mas tudo se alterara quando o arcediago Crampton fora nomeado fideicomissário do instituto. O medo do que Karen lhe pudesse pedir era apenas uma preocupação acrescentada, para Eric, à grande ansiedade que se apoderara dele, assim que soubera da chegada do arcediago.

 

Aquando da primeira visita do arcediago, o padre Sebastian havia dito a Eric:

 

É possível que o arcediago passe por sua casa, no domingo ou na segunda-feira, para visitá-lo, Eric. O bispo nomeou-o fideicomissário do instituto e deve haver perguntas que ele julgue necessário fazer.

 

Houvera algo no tom de voz do padre Sebastian, quando pronunciara as últimas palavras, que havia deixado Eric alerta.

 

Perguntas sobre as minhas funções aqui, padre?

 

Mais sobre os termos do seu contrato ou acerca de tudo o que vier à cabeça do arcediago. Talvez ele queira dar uma vista de olhos pela casa.

 

E, de facto, o arcediago quisera visitar a casa de Eric. Aparecera, na segunda-feira seguinte, pouco depois das nove da manhã. Karen, contra o que era costume, passara a noite de domingo com Eric, mas partira, às pressas, às sete e meia da manhã. Tinha uma reunião em Londres às dez, e estava já muito atrasada. O trânsito na A12 era péssimo, às segundas-feiras de manhã, sobretudo perto de Londres. Na sua pressa e Karen estava sempre com pressa, esquecera-se de que deixara a secar, no estendal situado num dos lados da casa, um sutiã e um par de cuecas. Havia sido a primeira coisa que o arcediago vira, quando atravessara o carreiro. Sem se apresentar, dissera:

 

Não sabia que tinha visitas.

 

Eric arrancara as peças ofensivas do estendal e enfiara-as no bolso das calças, só se dando conta depois de que aquele gesto, no seu misto de vergonha e embaraço, havia sido um erro.

 

A minha irmã passou cá o fim-de-semana, padre murmurara.

 

Não sou o seu padre. Não uso esse termo. Pode tratar-me por arcediago.

 

Sim, senhor arcediago.

 

Era um homem muito alto, com mais de um metro e noventa, de rosto quadrado, olhos penetrantes, sobrancelhas espessas mas bem delineadas e bigode.

 

Haviam atravessado o carreiro, em silêncio, em direcção ao curral. Ao menos, pensara Eric, nada havia de que o arcediago se pudesse queixar quanto ao estado do jardim.

 

Os porcos haviam-nos cumprimentado com grunhidos muito mais altos do que de costume.

 

Não sabia que criava porcos comentara o arcediago. Fornece a carne deles ao instituto?

 

Por vezes, mas não são grandes consumidores de carne de porco. A carne costuma vir de um talho, em Lowestoft. Quanto a mim, crio porcos mas não para os matar. Pedi permissão ao padre Sebastian e ele deu-ma.

 

De quanto tempo precisa para tratar dos seus porcos?

 

Não muito, pad... senhor arcediago.

 

Parecem muito barulhentos, mas, ao menos, não cheiram mal. Não havia resposta para aquele comentário. O arcediago virara as costas, em direcção à porta da casa, e Eric seguira atrás dele. Na sala de estar, Eric indicara uma das quatro cadeiras de espaldar direito que condiziam com a mesa, mas o arcediago parecera não reparar no seu convite. De costas viradas para a lareira, examinara a sala: as duas poltronas uma, de balouço, a outra, de estilo Windsor, com assento acolchoado em patchwork, a estante baixa, correndo ao longo de uma das paredes, e os cartazes que Karen trouxera e afixara à parede com fita adesiva especial.

 

Deduzo que o produto que utilizou para afixar esses cartazes não vai estragar a parede... comentara o arcediago.

 

Em princípio, não. É um material concebido especialmente para o efeito. Assemelha-se a pastilha elástica.

 

Depois, o arcediago puxara uma das cadeiras e sentara-se, fazendo sinal a Eric para que o imitasse. As perguntas que se tinham seguido não haviam sido feitas em tom agressivo, mas Eric não pudera deixar de se sentir como um suspeito, interrogado para ser acusado por alguém de um crime que desconhecia.

 

Há quanto tempo trabalha aqui? Quatro anos, não é verdade?

 

Sim, senhor arcediago.

 

E quais são os seus deveres, ao certo?

 

Os deveres de Eric eram tudo menos precisos.

 

Ajudo em tudo o que é necessário. Arranjo tudo o que se estraga, desde que não seja eléctrico, e ocupo-me da limpeza exterior. O que quer dizer que lavo o chão dos claustros, varro o átrio e limpo as janelas. Mistress Pilbeam é a responsável pela limpeza interior e há uma senhora que vem de Reydon, para ajudá-la.

 

Não se pode dizer que seja um trabalho pesado. O jardim parece estar bem tratado. Gosta de jardinagem?

 

Sim, muito mesmo.

 

Mas é demasiado pequeno para fornecer legumes para o instituto.

 

Não todos os legumes, mas, como cultivo em demasia para o meu próprio uso, levo o excedente até à cozinha do instituto e entrego-o a Mistress Pilbeam e, por vezes, também ofereço legumes às pessoas que habitam nas outras vivendas.

 

E eles pagam-lhe pelos seus legumes?

 

Não, claro que não!

 

E quanto lhe pagam pelas suas funções, que de árduas pouco ou nada têm?

 

O salário mínimo, baseado num dia de trabalho de cinco horas.

 

Eric não dissera que nem ele nem o reitor do instituto se haviam preocupado com o seu horário de trabalho. Por vezes, cumpria as suas tarefas em menos de cinco horas, mas havia alturas em que trabalhava muito mais do que esse período de tempo.

 

Para além do seu salário, ainda tem esta casa pela qual não paga renda. No entanto, paga do seu bolso, com certeza, o aquecimento, a electricidade e a taxa camarária.

 

Pago, do meu bolso, a taxa camarária.

 

E quanto aos domingos?

 

O meu dia de folga é ao domingo.

 

Estava a pensar nos serviços religiosos. Costuma ir à missa, aqui?

 

Eric frequentava a igreja, de tempos a tempos, mas apenas assistia às vésperas. Sentava-se na última fila e ouvia a música e as vozes afinadas do padre Sebastian e do padre Martin entoando palavras que ele não compreendia, mas que lhe pareciam ser muito belas. Contudo, não era, com certeza, àquilo que o arcediago se referira.

 

Não costumo ir à missa de domingo respondera, por fim, Eric.

 

O padre Sebastian não lhe fez essa pergunta, quando o entrevistou?

 

Não, senhor arcediago. Perguntou-me se eu tinha aptidões para cumprir os meus deveres.

 

Nem sequer lhe perguntou se você era cristão?

 

Ao menos, Eric tinha uma resposta para aquela pergunta.

 

Sou cristão, senhor arcediago, porque fui baptizado, quando era bebé. Aliás, ainda tenho o cartão do meu baptizado algures.

 

E olhara à sua volta, como se o cartão do seu registo de baptismo, com uma ilustração de Cristo a abençoar as criancinhas, se pudesse materializar, de repente.

 

Seguira-se um silêncio constrangedor. Eric dera-se conta de que a resposta não havia agradado ao arcediago. Não sabia se devia oferecer-lhe um café, mas talvez ainda fosse muito cedo para tal medida de cortesia. O silêncio mantivera-se até que o arcediago se levantara.

 

Pelo que vejo, leva uma vida confortável aqui, e, ao que tudo indica, o padre Sebastian parece estar satisfeito com o seu serviço, mas nada é eterno. Santo Anselmo foi fundado há cento e quarenta anos, mas a Igreja... ou melhor, o mundo... mudou muito, durante esse tempo. Sugiro-lhe que, caso ouça falar de um outro emprego que lhe agrade, considere seriamente a hipótese de se candidatar.

 

Quer dizer que Santo Anselmo pode fechar? exclamara: Eric. Logo de seguida, apercebera-se de que o arcediago havia ido mais longe do que pretendia.

 

Eu não disse isso. Além do mais, são assuntos que não lhe dizem respeito. Apenas sugeri, para seu próprio bem, que não deve pensar que tem, aqui, um emprego para o resto da vida.

 

Dito aquilo, saíra. Parado à porta, Eric ficara a vê-lo atravessar o promontório, em direcção ao instituto. Sentira-se invadido por uma extraordinária emoção. O seu estômago parecia andar às voltas e sentia um amargo gosto de fel na boca. Eric Surtees, que sempre evitara, a todo o custo, emoções violentas, experimentava agora uma reacção física esmagadora, pela segunda vez na sua vida. A primeira ocorrera quando se dera conta de que amava Karen. Contudo, agora era diferente. Era uma emoção tão poderosa quanto o amor, mas muito mais perturbadora. Fora então que Eric Surtees soubera que o que sentia, pela primeira vez em toda a sua vida, era ódio por outro ser humano.


Dalgliesh aguardou no vestíbulo enquanto o padre Martin subiu ao seu quarto para ir buscar o capote. Quando voltou, Dalgliesh indagou:

 

Não seria melhor irmos de carro até onde conseguirmos?

 

Dalgliesh teria preferido ir a pé, até à praia, mas sabia que, para o seu companheiro, a caminhada seria cansativa, e não apenas a nível físico.

 

O padre Martin aceitou aquela sugestão com evidente alívio. Nenhum dos dois falou até alcançarem o ponto onde o trilho costeiro virava para oeste e se juntava à estrada de Lowestoft. Dalgliesh estacionou o Jaguar na berma, ajudou o padre Martin a desapertar o cinto de segurança, abriu-lhe a porta e os dois homens dirigiram-se para a praia.

 

Seguiram por uma estreita vereda, de areia e relva, já muito pisada, por entre arbustos de ramagens entrelaçadas. Em certos pontos, os ramos dos arbustos, que pendiam sobre a vereda, formavam um tal emaranhado que mais pareciam caminhar por um túnel escuro, onde a ondulação do mar se reduzia a um gemido distante e ritmado. Os arbustos revelavam já as suas primeiras folhas, douradas pelo sol, e dava a sensação de que, a cada passo que davam sobre a relva esponjosa, esta exalava os odores pungentes e nostálgicos do Outono. Saíram da semiobscuridade e avistaram, à frente, o pântano, com a sua superfície sinistra separada do mar por uns cinquenta metros de cascalho. Pareceu, a Dalgliesh, que havia menos cotos enegrecidos de árvores, erguendo-se, quais monumentos pré-históricos, de guarda ao pântano Tentou encontrar vestígios do navio naufragado, mas apenas conseguiu vislumbrar uma única estaca, apodrecida, com a forma de uma barbatana de tubarão, que quebrava a extensão lisa de areia.

 

O acesso à praia, naquele local, era tão fácil que os seis degraus, cobertos de areia, e o corrimão de madeira nem sequer eram necessários. No alto da escada, construída numa pequena depressão de terra, existia uma barraca de madeira, rectangular e maior do que uma barraca de praia normal. Junto dela havia um amontoado de madeira, tapado com um encerado. Dalgliesh levantou uma das pontas do encerado e viu uma pilha de tábuas, meticulosamente alinhadas e, até meio, pintadas de azul.

 

É o que resta da nossa antiga barraca de praia explicou o padre Martin. Era igual àquelas que se vêem na praia de Southwold mas o padre Sebastian pensou que constituía um elemento estranho nesta paisagem. Além do mais, a barraca estava quase em ruínas e tornara-se demasiado desagradável ao olhar. Assim, mandámos demoli-la. O padre Sebastian achou que uma barraca de madeira, sem ser pintada, seria mais adequada. Esta região costeira é tão desértica que nem sequer nos utilizamos da barraca quando vimos até à praia para nadar, mas convinha termos um local onde pudéssemos mudar de roupa, até porque não desejamos ficar com fama de excêntricos. A barraca também alberga o nosso pequeno bote salva-vidas, porque pode ser perigoso nadar nestas águas.

 

Dalgliesh não levara consigo a estaca de madeira, nem isso teria sido necessário. Não tinha quaisquer dúvidas de que provinha da antiga barraca. Teria Ronald Treeves apanhado a estaca, ao acaso, sem qualquer objectivo em mente a não ser lançá-la ao mar? Tê-la-ia encontrado, ali, ou mais à frente, na praia? Tê-la-ia levado com a intenção de se servir dela para escavar um buraco na saliência arenosa que se projectava do penhasco, mesmo por cima da sua cabeça? Ou teria havido uma segunda pessoa que transportara aquela estaca de madeira apodrecida? Ronald era novo e presumivelmente forte. Como poderia alguém forçá-lo a enfiar-se debaixo da areia sem que apresentasse marcas de violência no corpo?

 

A maré começara a baixar e os dois homens caminharam ao longo da estreita faixa de areia húmida, junto das ondas. Depois, seguiram pelos dois quebra-mares. Eram construções recentes. Os velhos quebra-mares, de que Dalgliesh se recordava, achavam-se, agora, no meio dos outros, reduzidos a dois pilares, enterrados na areia, sustentados por pranchas apodrecidas.

 

Levantando a bainha do capote para melhor trepar para a extremidade do quebra-mar, cuja superfície era verde e escorregadia, o padre Martin exclamou:

 

A Comunidade Europeia forneceu estes dois novos quebra-mares. São parte das defesas contra o mar. Alteraram a paisagem da praia em alguns locais e penso que há mais areia, actualmente, do que no tempo em que você veio cá passar férias.

 

Depois de andar cerca de duzentos metros, o padre Martin anunciou calmamente:

 

É aqui.

 

Dito isso, avançou para o penhasco. Dalgliesh viu, então, uma cruz de madeira cravada na areia.

 

Colocámos a cruz neste local, um dia depois de encontrarmos o corpo do Ronald. Por enquanto, ainda cá está. Talvez as pessoas que passaram por aqui não se tenham atrevido a tirá-la, mas não me parece que vá cá ficar durante muito tempo. Assim que começarem as tempestades de Inverno, o mar chegará até a este ponto.

 

Acima da cruz, o penhasco arenoso parecia ter sido cortado às fatias em certos sítios. Na margem, uma franja de ervas daninhas tremia, embalada pela brisa. De ambos os lados, podiam notar-se os pontos em que o penhasco se alterara, deixando fendas profundas nos recifes. Dalgliesh concluiu que era perfeitamente possível alguém deitar-se, com a cabeça por baixo de uma daquelas saliências, e tentar vasculhar, com um pau, uma das fendas, provocando um desabamento de cerca de meia tonelada de areia. No entanto, seria necessário ter uma força de vontade fora do comum ou estar debaixo de um grande desespero para sondar aqueles penhascos tão perigosos. Dalgliesh não conseguia pensar em formas mais terríveis de morrer. E, se Ronald Treeves queria suicidar-se, nadar no mar até que o frio e o cansaço o invadissem não teria sido melhor opção? Até então, a palavra ”suicídio” não havia sido mencionada, na sua conversa com o padre Martin, mas, agora, Dalgliesh sabia que chegara o momento.

 

Trata-se de uma morte, padre, que parece mais um suicídio do que um trágico acidente. Mas, se o Ronald Treeves queria suicidar-se, porque não nadou até alcançar o mar alto?

 

O Ronald nunca faria tal coisa, porque tinha muito medo do mar. Nem sequer sabia nadar. Quando os colegas vinham à praia, ele nunca os acompanhava, nem me lembro, tão-pouco, de alguma vez o haver visto a passear pela praia. É, aliás, um dos motivos porque fiquei surpreendido por ele ter escolhido Santo Anselmo em vez de se candidatar a um dos outros institutos de Teologia. Já receava que ( pensasse no suicídio como uma hipótese mais plausível do que a do acidente. É uma possibilidade que nos causa, a todos, grande angústia. Se o Ronald se suicidou sem que nós sequer nos tenhamos apercebido de que era tão infeliz, então, não temos qualquer perdão. Desiludimo-lo. Ainda me custa a crer que tenha vindo até aqui com a intenção de cometer um acto que, para ele, seria um grave pecado. O Ronald tirou a batina e o capote e dobrou-os cuidadosamente. fez notar Dalgliesh. Acha que ele faria isso se tencionasse apenas escalar o penhasco? Talvez. Seria difícil trepar pelo penhasco com a batina ou o capote. Houve um pormenor particularmente pungente quanto às suas roupas. O Ronald colocara-as, com todo o cuidado, sobre a areia, com as mangas dobradas para dentro. Era como se tivesse preparado as malas para uma viagem, embora fosse um rapaz muito meticuloso.

 

”Mas por que carga de água terá ele trepado pelo penhasco?”, pensou Dalgliesh. Se andava à procura de alguma coisa, o que podia ser? Aqueles bancos de areia instável, com uma fina camada de seixos e pedras, dificilmente constituíam um bom esconderijo. No entanto, Dalgliesh sabia que haviam sido feitas descobertas interessantes, em tempos, naquela região, incluindo pedaços de âmbar e até ossos humanos, que haviam dado à costa, vindos de cemitérios há muito submersos pelo mar. Se Treeves avistara um desses objectos, onde se encontrava ele agora? Não se havia descoberto nada de interessante junto do corpo, à excepção de uma estaca de madeira.

 

De regresso, caminharam pela praia, em silêncio. Dalgliesh abrandou a marcha, para poder manter-se ao lado do seu companheiro, cujas passadas eram incertas e mais vagarosas. O velho padre baixara a cabeça para se proteger do vento e apertara o capote à volta do tronco. Para Dalgliesh, era um pouco como passear com a personificação da morte.

 

Quando entraram novamente no carro, Dalgliesh declarou:

 

Gostaria de dar uma palavra à senhora que encontrou Mistress Munroe morta... uma tal Mistress Pilbeam, não é verdade? Também seria útil falar com o médico, se bem que me pareça difícil encontrar uma justificação para uma conversa com ele, sem o alarmar. Não quero levantar suspeitas, quando não existem motivos para tal. A morte do Ronald já causou grande angústia.

 

O doutor Metcalf deve passar pelo instituto, esta tarde. O Pea Buckhurst, um dos estudantes, está em período de convalescença, depois de ter contraído febre tifóide, no fim do último período. Como os pais dele estão em serviço, no estrangeiro, mantivemo-lo aqui durante as férias, para que pudesse ter todos os cuidados médicos necessários à sua recuperação. Quando o George Metcalf passa pelo instituto e tem algum tempo livre, antes da visita seguinte, costuma aproveitar para passear os seus dois cães. Talvez consigamos apanhá-lo.

 

Tiveram sorte. Quando transpuseram as torres e entraram no -rio, avistaram um Range Rover estacionado. Dalgliesh e o padre Martin saíram do carro, no mesmo instante em que o doutor Metcalf descia a escada, com a sua maleta, depois de se haver virado para alguém que supostamente se achava no interior da mansão. O médico era um homem alto, com o rosto marcado pelo passar dos anos e que devia estar perto da reforma. Avançou para o Range Rover, abriu a porta, sendo saudado por latidos; dois dálmatas saltaram, ao ver o dono. Soltando imprecações, o médico tirou, depois, duas grandes taças e uma garrafa de plástico do porta-bagagens. Abriu-a e encheu as taças de água. Os dois animais beberam a água, abanando vigorosamente as caudas brancas.

 

Foi então que, ao avistar Dalgliesh e o padre Martin, os saudou

 

Boa tarde, padre! O Peter está a recuperar e não há motivos para alarme. Agora, vai ter de sair um pouco mais. Menos teologia e mais ar puro. Vou levar o Ajax e o Jasper a passear até ao pântano. Está tudo bem consigo, padre?

 

Está tudo bem, obrigado, George. Deixe-me apresentar-lhe o Adam Dalgliesh. Veio passar alguns dias connosco.

 

O médico voltou-se para olhar para Dalgliesh e, enquanto trocavam um aperto de mão, acenou, em sinal de aprovação, como se Dalgliesh tivesse acabado de passar numa inspecção.

 

Pensava ver Mistress Munroe, durante a minha estada explicou Dalgliesh, mas cheguei tarde de mais. Não fazia ideia de que ela estava tão doente, mas soube, pelo padre Martin, que a morte dela não foi inesperada.

 

O médico tirou o casaco, pegou numa grossa camisola de lã que tinha no carro, vestiu-a e, em seguida, substituiu os sapatos por botas, A morte continua a ter o condão de me surpreender replicou. Quando pensamos que um paciente não dura mais de uma semana, vamos encontrá-lo de pé e a chatear tudo e todos, um ano mais tarde. Então, pensamos que vai durar mais uns seis meses e, quando voltamos, no dia a seguir, ficamos a saber que morreu durante a noite. É por isso que nunca digo aos meus pacientes quanto tempo têm de vida. Mas Mistress Munroe sabia que o seu coração estava em muito mau estado... afinal de contas, era enfermeira... A sua morte não me apanhou de surpresa. Podia morrer a qualquer momento e sabíamo-lo, tanto eu como ela.

 

O que significa que o colégio foi poupado a uma segunda autópsia, logo após a do Ronald comentou Dalgliesh.

 

Meu Deus! Tem razão! Nem nunca se justificaria, no caso de Mistress Munroe. Visitava-a frequentemente; aliás, visitei-a um dia antes de ela morrer. Lamento saber que não chegou a tempo de a ver, Era uma velha amiga sua? Sabia que o senhor vinha visitá-la?

 

Não, não sabia respondeu Dalgliesh. Que pena... Se esperasse a sua visita, talvez se tivesse aguentado. Nunca se sabe com as pessoas que sofrem do coração. Aliás, nunca se sabe com qualquer paciente. Dito isto, despediu-se, com novo aceno de cabeça, e afastou-se, com os seus cães. Podemos ir falar com Mistress Pilbeam, agora, se quiser, exclamou o padre Martin. Levo-o até à porta e faço as apresentações mas, depois, deixo-vos a sós.

 

Na Vivenda São Marcos, a porta que dava para o alpendre estava aberta, de par em par, e a luz vinda do interior espalhava-se pelo chão de tijoleira, iluminando as folhas das plantas e os seus vasos em terracota, que se alinhavam em prateleiras de ambos os lados da entrada. O padre Martin acabara de erguer a mão para bater quando a porta interior se abriu. Mrs. Pilbeam, sorrindo, afastou-se para deixar entrar os dois homens. O padre Martin não se alongou nas apresentações e saiu, depois de alguma hesitação, como se não soubesse se esperavam que os abençoasse.

 

Dalgliesh entrou na pequena sala de estar, atafulhada de móveis, invadido por uma doce nostalgia e sentindo que regressara à infância. Numa sala igual àquela, havia-se sentado na mesa, balouçando as pernas e comendo uma fatia de bolo, enquanto a sua mãe visitava os paroquianos, ou, durante o Natal, regalando-se com as empadas, enquanto ouvia a voz materna. Tudo, naquela sala, lhe era familiar: o fogão de sala, em ferro forjado, com uma tampa trabalhada; a mesa quadrada, ao centro, com uma toalha vermelha, de tecido grosso, tendo como centro um arranjo floral; as duas cadeiras de braços, uma delas de balouço, colocadas dos dois lados da lareira; os bibelôs; alinhados na cornija: dois cães de louça do Staffordshire, com olhos salientes; um vaso, com arabescos a mais e a inscrição ”Recordação de Southend”, e um sortido de fotografias com molduras de prata. Nas paredes, gravuras vitorianas, nas suas molduras originais de madeira: The Sailor’s Return, Granpapa’s Pet e outra, representando um bando de crianças, estranhamente asseadas e ladeadas pelos respectivos pais, a atravessar um prado para ir à missa. A janela, virada a sul, estava aberta, oferecendo uma vista sobre o promontório, e o peitoril estreito encontrava-se coberto com uma quantidade de pequenos vasos de cactos e violetas-africanas. A única nota discordante era o televisor e o gravador de vídeo.

 

Mrs. Pilbeam era uma mulher baixa, anafada, de rosto bronzeado e cabelo claro, cuidadosamente penteado. Usava um avental por cima da saia, mas, ao ver as visitas, tirara-o e pendurara-o num prego, por trás da porta. Indicou a cadeira de baloiço a Dalgliesh e sentaram-se, um em frente do outro, com Dalgliesh a resistir à tentação de se recostar e deixar-se embalar.

 

Ao perceber que ele examinava as ilustrações, Mrs. Pilbeam comentou:

 

Herdei-as do meu avô. Cresci com essas ilustrações. O Reg acha-as demasiado sentimentais, mas eu gosto delas. Hoje em dia, já não se pinta assim.

 

De facto anuiu Dalgliesh.

 

Os olhos que o fitavam eram dóceis mas também inteligentes. SirAlred Treeves mostrara-se peremptório, ao exigir que a investigação fosse conduzida com toda a discrição, o que não significava que devesse ser mantida em segredo. E Mrs. Pilbeam tinha tanto direito à verdade quanto o padre Martin, ou, pelo menos, ao mínimo necessário.

 

Queria falar-lhe acerca da morte do Ronald Treeves. O pai, Sir Aired, não se encontrava em Inglaterra durante o inquérito e pediu-me para fazer algumas perguntas em relação ao que aconteceu realmente, para se certificar de que o veredicto foi correcto.

 

O padre Sebastian já nos tinha dito que o senhor viria até cá para fazer algumas perguntas replicou Mrs. Pilbeam. Mas que ideia tão descabida a de Sir Aired, não acha? Seria mais natural que quisesse deixar as coisas como estão.

 

Dalgliesh fitou a sua interlocutora.

 

Ficou satisfeita com o veredicto, Mistress Pilbeam?

 

Bom, como não fui eu que encontrei o corpo, não me chamaram para depor durante o inquérito. Era algo que, afinal, não me dizia respeito. Mas, respondendo à sua pergunta, a morte do Ronald pareceu-me um pouco estranha... Todos sabem que aqueles penhascos são perigosos. Bom, mas a verdade é que o pobre rapaz morreu. Não consigo perceber o que é que o pai dele ganha, começando tudo de novo.

 

Dalgliesh ignorou aquele último reparo.

 

Como bem sabe, não posso falar com Mistress Munroe, mas gostaria de saber se ela lhe contou como descobriu o corpo. O padre Martin disse-me que a senhora e Mistress Munroe eram amigas.

 

Pobre Margaret. Sim, pode dizer-se que éramos amigas, muito embora a Margaret não fosse pessoa para me visitar sem avisar primeiro. Mesmo quando o filho dela foi morto, não senti que fôssemos amigas íntimas. O Charlie era capitão do exército e ela orgulhava-se muito dele. Costumava dizer que o filho sempre quisera ser soldado.

 

O pobre infeliz foi capturado pelo IRA. Penso que estava envolvido numa missão secreta e torturaram-no para tentar descobrir de que se tratava. Quando soubemos da trágica notícia, fiquei em casa da Margaret, durante uma semana. Na verdade, foi o padre Sebastian que me pediu, mas eu tê-lo-ia feito à mesma. A Margaret não se opôs. Penso que nem se deu conta da minha presença. No entanto, quando eu lhe preparava as refeições, ela comia alguma coisa. Fiquei contente quando um dia, de repente, me pediu que a deixasse a sós. ”Desculpe, Ruby, tenho sido muito má companhia. Foi muito gentil da sua parte, mas agora é melhor voltar para casa.” Foi o que me disse. E eu voltei para casa.

 

”Vê-la, ao fim de vários meses, foi como deparar com alguém que estava a ser torturado no Inferno sem ser capaz de emitir um só gemido. Os olhos dela haviam-se tornado muito grandes, ao passo que o corpo parecia ter mirrado. Penso que não conseguira superar a perda do Charlie... e quem consegue superar a morte de um filho? Ninguém, não é verdade? Mesmo assim, acho que começava a interessar-se novamente pela vida. Pelo menos, foi o que todos pensámos. Mas, depois, deixaram que aqueles assassinos saíssem da prisão, graças a uma amnistia, e ela não tolerou tal coisa. Além do mais, creio que sofria muito de solidão. Nutria grande afecto pelos rapazes porque, para ela, eram sempre umas crianças... e sentia algum conforto em tratar deles, sempre que adoeciam. No entanto, os estudantes tornaram-se mais acanhados em relação à Margaret, depois da morte do filho. Os jovens não gostam de ver a infelicidade dos outros, e quem pode censurá-los por isso?

 

Mas vão ter de saber lidar com a infelicidade alheia, assim que se ordenarem padres retorquiu Dalgliesh.

 

Oh, acabarão por aprender, porque são bons meninos.

 

Mistress Pilbeam, simpatizava com o Ronald Treeves? quis saber Dalgliesh.

 

Mrs. Pilbeam demorou alguns minutos antes de responder.

 

Não me cabia decidir se simpatizava ou não com ele. Nem a mim nem a ninguém. Numa pequena comunidade, não devemos ter favoritos. Foi algo que o padre Sebastian sempre combateu. No entanto, tenho de dizer que o Ronald não era popular e penso que, aqui, não se sentia em casa. Era um bocadinho vaidoso de mais e muito crítico em relação aos outros, o que, em geral, é sinónimo de insegurança, não é verdade? Depois, fazia questão de nos lembrar de que o pai era rico.

 

Sabe se ele era particularmente amigo de Mistress Munroe?

 

Da Margaret? Penso que pode dizer-se que sim. Sei que costumava visitá-la com alguma frequência. Os estudantes só podem visitar as pessoas que vivem nas vivendas se forem convidados, mas tenho a impressão de que ele visitava a Margaret. Não que ela se tenha queixado. Nem sequer consigo imaginar de que podiam falar. Talvez gostassem da companhia um do outro.

 

Mistress Munroe chegou a dizer-lhe como foi que descobriu o corpo?

 

Pouco disse e eu também não lhe fiz perguntas. Claro que veio tudo à baila, durante o inquérito. O que soube, li-o nos jornais, mas não assisti ao inquérito. Todos falavam na morte do Ronald, mas nunca na presença do padre Sebastian, porque ele detesta mexericos. No entanto, penso que, de uma maneira ou de outra, fiquei a par de todos os pormenores, se bem que não houvesse grande coisa de que falar, Mistress Munroe disse-lhe que estava a escrever um relato da sua descoberta?

 

Não, mas isso também não me espanta. A Margaret tinha muito jeito para a escrita. Antes de o Charlie ser assassinado, costumava escrever-lhe todas as semanas. Quando eu ia visitá-la, encontrava-a, sentada em frente da mesa, a escrever cartas enormes ao filho, Mas nunca me disse que andava a redigir um relato sobre o pobre Ronald. Porque decidiu ela fazê-lo?

 

Foi a senhora que a encontrou, quando ela teve o ataque cardíaco? O que aconteceu, Mistress Pilbeam?

 

Bem, vi luzes acesas na casa dela, quando saí para me dirigir ao instituto, pouco antes das seis da manhã. Havia alguns dias que não via nem falava com a Margaret e sentia um peso na consciência. Julguei que estava a abandoná-la e que ela podia querer vir até cá para jantar comigo e com o Reg e, talvez, ver televisão. Por isso, fui até à casa dela. E lá estava ela, morta, na sua poltrona.

 

A porta da rua estava destrancada ou a senhora tinha uma chave!

 

Estava destrancada. Aqui, não costumamos trancar as portas e as janelas. Bati à porta e, como ninguém respondesse, entrei. Foi quando a encontrei. Estava já fria, sentada na sua poltrona, hirta como uma tábua, com o tricô no regaço. Ainda tinha uma das agulhas de tricô na mão direita. Chamei imediatamente o padre Sebastian e telefonei ao doutor Metcalf, que havia estado com a Margaret no dia anterior. A pobrezinha tinha o coração muito fraco; por essa razão, não houve quaisquer problemas quanto ao atestado de óbito. Aliás, foi uma morte santa. Devíamos todos ter a mesma sorte.

 

E não encontrou um bilhete, uma carta?

 

Não havia nada à vista e, como é óbvio, não vasculhei as coisas da Margaret. Porque haveria de fazê-lo?

 

Claro que não, Mistress Pilbeam. É que estava a pensar se podia haver um manuscrito, uma carta ou qualquer documento, em cima da mesa...

 

Não vi nada em cima da mesa. Mas houve algo que me despertou a atenção... A Margaret nunca podia estar a tricotar...

 

Porque diz isso?

 

Bom, ela estava a tricotar uma camisola para o padre Martin, que tinha visto uma numa loja em Ipswich e lha descrevera. A Margaret pensou tricotar uma camisola idêntica para a oferecer ao padre Martin, no Natal. Mas era um padrão muito complicado, com torcidos e outros pontos complicados, e a Margaret queixava-se da dificuldade em executar o trabalho. Nunca poderia tricotar a camisola sem ter o esquema dos diferentes pontos de tricô à sua frente. Vi a Margaret muitas vezes embrenhada no seu tricô e sempre a seguir o esquema. Além do mais, usava óculos para ver televisão. Ora, a Margaret Colocava sempre os seus óculos com aros dourados para tricotar.

 

E esse tal esquema não estava na sala?

 

Não. Só as agulhas e os novelos que tinha em cima do regaço. Também segurava na agulha de tricô de uma maneira esquisita. A Margaret não tricotava como eu. Usava a técnica francesa. Segurava a agulha esquerda na horizontal e trabalhava com a outra. Lembro-me de achar tudo aquilo estranho, ao vê-la com o tricô no regaço, quando nunca poderia estar a tricotar.

 

E não comentou isso com ninguém?

 

De que me serviria? Já não importava. Foi apenas um pormenor curioso. Talvez se tenha sentido mal, logo depois de pegar nas agulhas e no trabalho e de se sentar na poltrona, e não tenha tido tempo para ir buscar o esquema. Sinto muito a falta dela. Ainda me causa estranheza pensar que a vivenda está vazia. Parece que ela desapareceu, de um momento para o outro. Nunca falava da família, mas descobriu-se que tinha uma irmã, que residia em Surbiton. Foi a irmã que tratou da cremação da Margaret, em Londres. Mais tarde, a irmã e o cunhado vieram até cá para esvaziar a vivenda. Não há nada como a morte para que os nossos familiares apareçam. A Margaret nunca teria querido uma missa de requiem, mas o padre Sebastian organizou um elogio fúnebre, na igreja, em que todos interviemos. O padre Sebastian pensou que talvez eu gostasse de ler uma passagem de São Paulo, mas disse-lhe que preferia recitar uma oração. Não sei porquê, mas não suporto São Paulo. Na minha ideia, tinha o seu quê de desordeiro. Havia aqueles grupos de cristãos que não se metiam com ninguém, dando-se bem com os outros, sem se meterem em apuros. Ninguém é perfeito. Foi então que São Paulo apareceu inesperadamente e começou a dar ordens e a tecer críticas. Ou, então, mandava-lhes uma das suas ferozes epístolas. Não era um tipo de carta que eu gostasse de receber, e foi o que disse ao padre Sebastian.

 

E que lhe respondeu ele?

 

Que São Paulo foi um dos maiores génios religiosos e que, se não tivesse sido ele, não seríamos cristãos, hoje em dia. Respondi-lhe à letra, retorquindo: ”Nesse caso, teríamos de ser outra coisa qualquer.” Não me fiquei por aí e perguntei-lhe o que poderíamos ter sido, se não fosse São Paulo, mas não me parece que ele o soubesse, Disse-me que ia pensar no assunto, mas nunca chegou a dar-me uma resposta. Limitou-se a comentar que eu levantara uma questão que não estava incluída no programa de estudos da Faculdade de Teologia de Cambridge.

 

E não fora, por certo, a única questão que Mrs. Pilbeam levantara, pensou Dalgliesh. Depois de recusar o seu gentil convite para tomar chá e comer uma fatia de bolo, saiu da vivenda.

 

A Dr.a Emma Lavenham saiu mais tarde do que pensava de Cambridge. Giles almoçara no refeitório e, enquanto ela fizera as malas, falara-lhe de assuntos que, segundo ele, tinham de ser resolvidos antes que Emma viajasse. Emma ficara com a sensação de que Giles se sentira satisfeito por atrasá-la. Este nunca gostara das suas ausências trimestrais, sempre que ela dava aquele seminário de três dias no Instituto de Santo Anselmo. Nunca se opusera abertamente, talvez por saber que Emma encararia isso como uma imperdoável intromissão na sua vida. No entanto, Giles recorria a outras maneiras, mais subtis, para exprimir o seu desagrado por uma actividade em que não participava e que decorria numa instituição que ele pouco respeitava, como ateu confesso que era, se bem que não pudesse queixar-se de que o trabalho de Emma, em Cambridge, fosse prejudicado por aquelas suas viagens.

 

Em virtude da hora tardia a que almoçara, Emma sabia que não iria escapar ao trânsito, sempre muito congestionado, das sextas-feiras à noite; a cada vez que era obrigada a parar, no engarrafamento, sentia-se ressentida com as tácticas subtis de Giles e, ao mesmo tempo, irritada consigo própria, por não saber opor-se-lhe. Emma começara a aperceber-se, desde o final do último período, que Giles se tornara mais possessivo, exigindo-lhe mais tempo e afecto. E, agora, com a perspectiva de se tornar professor catedrático numa universidade do Norte da Inglaterra, Giles começara a pensar no casamento, talvez por encarar tal hipótese como a melhor maneira de se assegurar de que Emma não o deixaria. Ela sabia que Giles tinha ideias muito definidas acerca do que constituía, para ele, a esposa perfeita. Infelizmente, tudo indicava que ela preenchia todos os requisitos de Giles. Assim, decidiu que, ao menos durante os três dias que iam seguir-se, se abstrairia de todos os seus problemas pessoais.

 

O seu contrato com o instituto iniciara-se três anos antes. Mais tarde, Emma dera-se conta de que o padre Sebastian a havia recrutado valendo-se dos seus contactos, em Cambridge. O instituto procurava um lente universitário, de preferência novo, que pudesse dar três seminários, no início de cada período, sobre ”A herança poética do anglicanismo”. Devia ser alguém de renome ou que começasse já a ser conhecido, que conseguisse ter um bom relacionamento com os jovens ordinandos e se encaixasse no espírito de Santo Anselmo, No entanto, o padre Sebastian não achara necessário definir que espírito era esse. O cargo, conforme o padre Sebastian havia dito a Emma, era consequência de um desejo expresso pela fundadora do instituto, Miss Arbuthnot. Influenciada pelos seus amigos anglo-católicos do movimento de Oxford naquela e noutras questões, Miss Arbuthnot achara que seria importante para os recém-ordenados padres anglicanos conhecerem a sua herança literária. Emma, que, com vinte e oito anos, fora recentemente nomeada professora universitária, havia então sido convidada para aquilo que o padre Sebastian descrevera como uma conversa informal sobre a possibilidade de ela se juntar à sua pequena comunidade durante nove dias por ano. Emma aceitara o convite, impondo apenas uma condição: que a poesia não se limitasse aos autores anglicanos nem se restringisse a determinada época, salientando que gostaria de incluir os poemas de Gerard Manley Hopkins e poetas modernos, como T. S. Eliot. Depois de se certificar de que ela era a pessoa indicada para o cargo, o padre Sebastian parecera satisfeito por deixar esses pormenores ao critério de Emma. E, exceptuando uma breve aparição no terceiro seminário, em que a sua presença intimidara Emma, não mais demonstrara qualquer interesse pelo curso.

 

Agora, aqueles três dias em Santo Anselmo haviam-se tornado importantes para Emma, que dava consigo a aguardar ansiosamente pelos seus seminários, até porque o ambiente em Cambridge não era totalmente desprovido de certas tensões e de alguma ansiedade. Emma cedo fora nomeada professora universitária talvez demasiado cedo. como pensava, por vezes. Tinha de conciliar o ensino, de que tanto gostava, com as suas pesquisas, as suas responsabilidades administrativas e, também, com uma disponibilidade total para os estudantes que. à medida que o tempo fora passando, a procuravam para lhe falar dos seus problemas. Muitos eram os primeiros das suas famílias a frequentar uma universidade e tinham grandes esperanças mas, também, muitos receios. Outros, que se haviam saído bem no primeiro ano, achavam as listas de leitura obrigatória muito longas. Existiam ainda aqueles que tinham saudades de casa, mas se sentiam envergonhados em admiti-lo, ou que se julgavam pouco preparados para enfrentar aquela nova vida.

 

As exigências de Giles e a sua vida amorosa, algo complicada, em nada ajudavam às pressões profissionais a que Emma estava sujeita. Assim, era sempre um alívio para ela tornar-se parte da paz e do isolamento de Santo Anselmo, falar de poesia, que tanto apreciava, com rapazes inteligentes que não tinham de se preocupar com o teste semanal nem tentavam agradar-lhe, dando opiniões construtivas. Emma gostava daqueles rapazes e, muito embora desencorajasse, de tempos a tempos, uma abordagem mais romântica ou um arrobo sentimental, sabia que eles também gostavam dela, ficavam contentes por ver uma mulher no instituto e aguardavam com ansiedade a sua visita, vendo-a como uma aliada. E aquele sentimento não era exclusivo dos estudantes. Emma era sempre recebida em Santo Anselmo como uma amiga. O padre Sebastian, ao desejar-lhe as boas-vindas, mostrava-se algo formal, mas não conseguia ocultar a sua satisfação por haver escolhido a pessoa certa. Quanto aos outros padres, eram mais expansivos nas suas demonstrações de contentamento.

 

Se, por um lado, Emma antecipava com alegria as suas visitas a Santo Anselmo, por outro, sentia-se invariavelmente deprimida quando regressava a casa, para ver o pai. Desde que havia renunciado ao seu cargo em Oxford, mudara-se para um apartamento numa mansão remodelada, perto da estação de Marylebone. Os muros de tijolos da mansão lembravam-lhe carne crua. A mobília pesada, o papel de parede, escuro, e as janelas de cortinas espessas criavam um permanente ambiente sinistro em que o seu pai nunca parecera reparar. Henry Lavenham casara-se tarde e perdera a esposa, vitimada por um cancro da mama, pouco após o nascimento da segunda filha do casal. Emma tinha apenas três anos e, mais tarde, apercebera-se de que o pai transferira para o bebé todo o amor que sentira pela esposa, reforçado por um sentimento de pena perante o desamparo daquela criança órfã. Emma tinha plena consciência de que fora a menos amada das duas filhas, mas nunca sentira inveja da sua irmã mais nova. Havia compensado aquela falta de amor, dedicando-se ao trabalho e ao êxito pessoal. Duas palavras tinham-lhe ficado gravadas na memória, desde a adolescência: brilhante e bela. Ambas lhe haviam imposto um fardo: a primeira, a expectativa de ter êxito, que Emma alcançara cedo de mais para pensar que fora por seu mérito próprio; a segunda, um enigma, por vezes quase um tormento. Tornara-se bela durante a adolescência, e dava consigo a olhar-se ao espelho, tentando definir e avaliar aquele bem estranhamente valorizado, já consciente, contudo, de que, se uma boa aparência era considerada uma bênção, a beleza constituía uma dádiva perigosa.

 

Emma e Marianne haviam sido educadas por uma irmã do pai. Era uma mulher sensata, reservada e escrupulosa, totalmente desprovida do instinto maternal, mas consciente dos seus deveres. Soubera criar as duas irmãs num ambiente estável, mas onde não coubera o sentimentalismo. E, quando Marianne fizera onze anos, a tia retomara a sua vida própria, regida por cães, jogos de bridge e viagens pelo estrangeiro. As duas raparigas haviam visto a tia partir sem qualquer sentimento de pena.

 

Contudo, no dia em que completaria dezanove anos, Marian morrera, atropelada por um condutor embriagado, e Emma ficara sozinha com o pai. Quando voltara a casa, para vê-lo, ele tratara-a com uma cortesia escrupulosa, quase forçada. Emma não pudera deixar de perguntar a si própria se a falta de diálogo entre eles, ou o cuidado em evitar qualquer demonstração de carinho que tinha dificuldade em definir como um afastamento, porque o que haviam sido eles senão dois estranhos? Era o resultado de o pai se aperceber, aos setenta anos e sem mais ninguém, que seria embaraçoso exigir da filha o amor de que, antes, ele nunca revelara necessitar.

 

Naquele momento, Emma estava perto do fim da viagem. A entrada estreita, seguindo ao longo do mar, raramente era utilizada, excepto no Verão, aos fins-de-semana, e, naquele fim de tarde, emma era a única viajante. A estrada abria-se à sua frente, sombria e algo si nistra, à luz do entardecer. Como sempre, de cada vez que regressava a Santo Anselmo, teve a sensação de que se dirigia para uma costa selvagem, misteriosa e isolada, tanto no espaço como no tempo.

 

Ao virar para norte, entrou na vereda que conduzia directamente a Santo Anselmo, e as chaminés altas, a torre e a mansão surgiram, recortando-se no céu, como vultos negros. Foi então que avistou uma figura que caminhava à sua frente e reconheceu o padre John Bettertoi. Parando na berma, Emma baixou o vidro da janela. Posso dar-lhe boleia, padre? O padre John voltou-se e pestanejou, como se, por momentos não a reconhecesse. Só depois a brindou com o seu sorriso, sempre afável e quase infantil.

 

Emma! Obrigado, obrigado. Uma boleia é bem-vinda. Andei mais do que tencionava, na minha incursão pelo pântano. Usava um casaco grosso, de tweed, e tinha uns binóculos pendurados ao pescoço. Entrou, e o cheiro nauseabundo das águas insalubres do pântano, impregnado no tweed, espalhou-se pelo interior do carro. Teve sorte na sua observação das aves?

 

Só vi os habituais residentes de Inverno. Seguiram viagem, sentados lado a lado, em silêncio. Tempos houvera em que Emma tivera dificuldade em sentir-se à vontade na presença do padre John. Acontecera na sua primeira visita, três anos antes, quando Raphael lhe contara tudo sobre o encarceramento do padre John.

 


”Alguém vai acabar por contar-lho, em Cambridge ou até mesmo aqui, e prefiro que o saiba da minha boca. O padre John confessou ter assediado dois rapazes que pertenciam ao coro da sua igreja. Foi a expressão que eles empregaram, mas duvido que se tenha tratado realmente de um assédio. No entanto, o padre John foi condenado a três anos de prisão.”

 

Emma replicara:

 

”Pouco percebo de leis, mas parece-me uma sentença algo pesada.”

 

É que não foram só aqueles dois rapazitos. O Matthew Crampton, um outro padre, de uma paróquia vizinha, fez questão em apresentar mais provas e conseguiu levar a depor outros três rapazes, mais velhos. Acusaram o padre John das piores monstruosidades. Segundo eles, por terem sido vítimas de abuso por parte do padre John, não conseguiram arranjar emprego, o que os tornara infelizes, delinquentes e anti-sociais. Estavam a mentir, claro, mas, mesmo assim, o padre John declarou-se culpado, porque tinha os seus motivos.”

 

Muito embora não partilhasse da fé inabalável de Raphael na inocência do padre John, Emma não deixara de sentir dó daquele homem. Parecia haver-se refugiado num mundo à parte, numa tentativa de preservar precariamente uma personalidade vulnerável, como se carregasse, dentro de si, algo tão frágil que mesmo o mais leve movimento o podia quebrar. Era sempre educado e afável, e Emma apenas conseguira detectar a sua angústia nas poucas ocasiões em que o olhara, olhos nos olhos, mas tivera de desviar o rosto, por não suportar ver tanto sofrimento. Talvez o padre John sofresse, em silêncio, por sentir a consciência pesada. Emma, em parte, continuava a desejar que Raphael não lhe houvesse contado a história. Não conseguia imaginar que tipo de vida o padre John levara na prisão. E perguntava a si própria se seria realmente possível que um homem estivesse disposto a suportar tamanho sofrimento. A vida do padre John em Santo Anselmo também não devia ser fácil. Ocupava um apartamento privado, no terceiro andar, com a irmã solteira, uma mulher que podia descrever-se caridosamente como excêntrica. Muito embora fosse óbvio para Emma, nas poucas ocasiões em que os havia visto juntos, que ele era muito dedicado à irmã, talvez até mesmo o amor fosse mais um fardo acrescido e não um consolo.

 

E, agora, não sabia se devia falar-lhe ou não da morte de Ronald Treeves. Emma lera um breve artigo nos jornais e Raphael, que por qualquer motivo achava ser seu dever mantê-la ao corrente de tudo o que se passava em Santo Anselmo, telefonara-lhe para comunicar a triste notícia. Depois de reflectir sobre que palavras devia empregar, Emma enviara uma carta de condolências, muito curta, ao padre Sebastian. Poucos dias depois, recebera uma carta de agradecimento, ainda mais curta, escrita pelo padre Sebastian, com a sua caligrafia cuidada. Assim, seria natural falar de Ronald ao padre John, agora, mas houve algo que a deteve. Tinha um pressentimento de que o assunto não era bem-vindo, por ser confrangedor.

 

Foi então que Santo Anselmo surgiu, com as suas chaminés altas, os torreões, a torre e a cúpula, escurecendo, à medida que o Sol se ia pondo. À frente, os dois pilares em ruínas do portão isabelino, há muito demolido, transmitiam em silêncio a sua mensagem ambígua: símbolos fálicos toscos, sentinelas indomáveis, postadas em frente do inimigo que avançava com lentidão, suportando obstinadamente a certeza do fim inevitável da mansão. Seria a presença a seu lado do padre John, ou a ideia do Ronald Treeves a exalar o último suspiro, por baixo de toneladas de areia, que lhe provocaram uma súbita tristeza e uma vaga apreensão? Até então, Emma visitara Santo Anselmo sempre com grande alegria; agora, contudo, à medida que se aproximava do instituto, sentia algo muito parecido com o medo.

 

Quando Emma parou no átrio, a porta da frente abriu-se e Raphael surgiu à entrada. Já devia ter andado, por certo, à procura dela, Ali ficou, imóvel, como uma estátua de pedra, a fitar os dois recém-chegados. Emma, então, lembrou-se da primeira vez em que havia visto Raphael; sentada, atrás da sua secretária, detivera-se, dominada por uma total incredulidade, até que se rira alto, perante a incapacidade de esconder a sua surpresa. Um outro estudante, Stephen Morby, rira-se também e dissera:

 

”É realmente extraordinário, não é? No outro dia, estávamos num pub, em Reydon, e uma rapariga aproximou-se e exclamou: ”De onde vens, do Olimpo?” Só tive vontade de saltar para cima da mesa, encher o peito de ar e gritar: ”Olha para mim! Olha para mim!” Bom, mas a esperança é a última a morrer...”

 

Stephen falara do colega sem revelar qualquer inveja. Talvez tivesse consciência de que a beleza, num homem, não era o dom que parecia ser; na realidade, Emma não conseguia olhar para Raphael sem se recordar da superstição da fada má no dia do baptizado. Interessara-se por aquele rapaz de grande beleza, mas não sentira por ele a menor atracção sexual. Talvez Raphael atraísse mais os homens do que as mulheres. No entanto, se possuía esse poder em relação a ambos os sexos, parecia não se dar conta disso. Emma podia perceber, pela facilidade e confiança com que Raphael se comportava, que o rapaz tinha consciência de que era dono de uma rara beleza e que era a sua aparência que o tornava diferente. Valorizava-a e tinha-se em boa conta, mas não parecia importar-se com o efeito que provocava nos outros.

 

O seu rosto, ao ver Emma, abriu-se num sorriso e ele desceu os degraus, de mão estendida. Contudo, por sentir uma estranha apreensão talvez por influência de velhas superstições, Emma interpretou aquele gesto mais como um aviso do que como uma saudação. O padre John despediu-se, com um sorriso e uma curta vénia, e afastou-se.

 

Raphael pegou no computador portátil e na pasta de Emma.

 

Bem-vinda. Não posso prometer-lhe um fim-de-semana agradável, mas talvez venha a revelar-se interessante. Temos dois polícias hospedados em Santo Anselmo... e um é da Scotland Yard. O inspector Dalgliesh veio até cá para nos fazer perguntas sobre a morte do Ronald Treeves. Há ainda outro hóspede que, pelo menos para mim, ainda é menos bem-vindo. Faço tenção de não me cruzar com ele e aconselho-a vivamente a fazer o mesmo. Trata-se do arcediago Matthew Crampton.

 

Faltava fazer uma visita. Dalgliesh regressou ao seu quarto; depois, transpôs a entrada em ferro forjado do portão que separava o quarto de Santo Ambrósio do muro da igreja e seguiu pela vereda, de oitenta metros, que levava à Vivenda São João. A tarde passara depressa e o Sol começara a pôr-se num céu garrido, raiado de tons róseos. De ambos os lados da vereda, uma franja de relva, alta e frágil, estremecia sob a brisa que se tornara mais forte. Atrás de si, a fachada oeste de Santo Anselmo estava iluminada, e as três vivendas habitadas brilhavam como postos avançados de uma fortaleza cercada, realçando o contorno negro da Vivenda São Mateus, agora vazia.

 

À medida que a luminosidade se ia desvanecendo, o som do mar intensificava-se, e o seu gemido ritmado transformava-se num grunhido abafado. Dalgliesh lembrava-se de como os últimos raios de luz traziam sempre aquela sensação do mar a encapelar-se, com toda a força, como se a noite e a escuridão fossem os seus aliados naturais. Durante as férias que ali passara, costumava sentar-se à janela do quarto de São Jerónimo, a olhar para os campos sombrios, imaginando uma praia onde os castelos de areia seriam finalmente demolidos, os gritos e as risadas das crianças silenciados, as cadeiras de praia dobradas e o mar tomaria posse da costa, extraindo os ossos de marinheiros afogados dos porões de embarcações há muito naufragadas.

 

A porta da Vivenda São João estava aberta, e a luz do interior espalhava-se pelo carreiro que conduzia à cancela. Dalgliesh ainda podia ver claramente as paredes de madeira da pocilga, à direita, e ouvir os grunhidos dos animais. O cheiro também estava presente, mas não era forte nem desagradável. Por trás da pocilga, avistou, mas já com mais dificuldade, o jardim, com os canteiros perfeitamente alinhados de legumes irreconhecíveis e canas altas sustentando a última colheita de feijões e, mais adiante, uma pequena estufa.

 

Ao som dos seus passos, a figura de Eric Surtees surgiu à entrada. Pareceu hesitar mas, logo de seguida, sem abrir a boca, afastou-se e, com um gesto, convidou Dalgliesh a entrar. Dalgliesh sabia que o padre Sebastian havia informado os funcionários da sua visita, se bem que já não tivesse a certeza de que o padre lhes tivesse fornecido qualquer explicação adicional. Mesmo assim, Dalgliesh podia aperceber-se de que era aguardado, mas não bem-vindo.

 

Mister Surtees? perguntou. Sou o inspector Dalgliesh, da Polícia Metropolitana de Londres. Penso que o padre Sebastian lhe terá dito que me encontro aqui para fazer algumas perguntas sobre a morte do Ronald Treeves. O pai do rapaz não se encontrava na Inglaterra durante o inquérito e quer saber, tanto quanto possível, quais foram as circunstâncias que envolveram a morte do filho. Se não lhe der muito incómodo, gostaria de lhe tomar alguns minutos para uma pequena conversa.

 

Está bem anuiu Surtees. Importa-se de que passemos para ali?

 

Dalgliesh seguiu, atrás dele, para a sala que ficava do lado direito da passagem. Aquela casa não podia ser mais diferente da acolhedora residência de Mrs. Pilbeam. Muito embora houvesse uma mesa central com cadeiras de espaldar direito, a sala parecia uma oficina. A parede em frente da porta tinha várias prateleiras, de onde pendiam ferramentas de jardinagem, impecavelmente limpas: enxadas, forquilhas, sacholas, juntamente com tesouras de poda e serrotes, enquanto, por baixo, uma bancada de madeira, com vários compartimentos, continha utensílios mais pequenos. Havia ainda, junto a uma janela, um banco de carpinteiro, iluminado por uma lâmpada fluorescente. A porta da cozinha achava-se aberta e deixava passar um cheiro forte e desagradável. Surtees estava a cozer alguns legumes para alimentar a sua pequena vara de porcos.

 

Surtees puxou uma cadeira, cujos pés rasparam no chão de pedra.

 

Se não se importa de aguardar aqui, vou lavar-me explicou. É que estive agora mesmo na pocilga.

 

Pela porta aberta, Dalgliesh pôde ver Surtees lavar vigorosamente o rosto e a cabeça. Parecia estar a livrar-se de algo mais do que a sujidade superficial. Regressou, logo de seguida, ainda com a toalha à volta do pescoço, e sentou-se muito direito à frente de Dalgliesh, com a expressão angustiada de um prisioneiro que se prepara para ser interrogado.

 

De repente, perguntou, em voz rouca:

 

Posso oferecer-lhe um chá?

 

Pensando que uma chávena de chá bem quente talvez deixasse Surtees mais à vontade, Dalgliesh respondeu:

 

Se não lhe der muito trabalho...

 

Não. Uso saquinhos. Costuma adicionar açúcar ao chá? Ou leite?

 

Apenas umas gotas de leite, por favor.

 

Surtees regressou, pouco depois, e pousou duas canecas pesadas sobre a mesa. O chá estava forte e a ferver. Nenhum dos dois homens pegou nas canecas. Dalgliesh raramente entrevistara alguém que tanto deixasse transparecer uma consciência pesada. Todavia, no caso de Surtees, sentia a consciência pesada em relação a quê? Era simplesmente ridículo imaginar aquele rapaz de ar tímido não devia ter mais de vinte e poucos anos a eliminar qualquer criatura viva. Até mesmo os seus porcos deviam ser abatidos no matadouro. Não que, conforme Dalgliesh podia verificar, Surtees não tivesse forças para fazer isso. Por baixo das mangas curtas da camisa aos quadrados, os músculos dos seus braços eram grossos e tinha mãos ásperas e tão desmesuradamente grandes, em comparação com o corpo, que pareciam ter-lhe sido implantadas. O rosto delicado estava tisnado pelo sol e pelo vento, mas a gola aberta da camisa deixava ver uma pele tão branca e macia como a de uma criança.

 

Pegando na sua caneca, Dalgliesh indagou:

 

Sempre criou porcos ou só começou a criá-los desde que veio trabalhar para aqui? Foi há quatro anos, não é verdade?

 

Só crio porcos desde que vim trabalhar para Santo Anselmo Sempre gostei de porcos. Quando arranjei este emprego, o padre Sebastian disse-me que eu podia ter uns seis porcos, desde que não fossem muito barulhentos nem exalassem mau cheiro, mas a verdade é que os porcos são muito asseados. As pessoas pensam que cheiram mal, mas enganam-se.

 

Foi você quem construiu a pocilga? Fiquei admirado por ver que utilizou madeira. Pensava que os porcos podiam destruir quase tudo.

 

E podem. Os muros são de madeira, mas apenas do lado exterior. O padre Sebastian insistiu nesse ponto. Odeia cimento. Construí as paredes com blocos.

 

Surtees esperara que Dalgliesh bebesse o primeiro trago para pegar na sua caneca. Dalgliesh ficou admirado por ver como aquele rapaz apreciava chá.

 

Pouco sei sobre porcos, mas disseram-me que são inteligentes e excelentes animais de companhia.

 

Surtees, por fim, animou-se visivelmente.

 

E é verdade. São dos animais mais inteligentes que há. Sempre gostei muito de porcos.

 

E quem ficou a ganhar foi o instituto, porque têm toucinho fumado que não sabe a produtos químicos, nem exsuda aquele líquido de cheiro forte que corta o apetite a qualquer um. E também devem ter o privilégio de saborear um bom presunto, devidamente fumado,


Não crio porcos para a manutenção do instituto. Crio-os... bem, para ter companhia. Como é evidente, têm de ser abatidos, mais cedo ou mais tarde, mas, hoje em dia, é um problema. Existem tantos regulamentos da União Europeia sobre os matadouros, onde é preciso haver sempre um veterinário de serviço, que as pessoas não aceitam matar uma meia dúzia de porcos. Depois, há ainda o problema do transporte. Felizmente, Mister Harrison, um agricultor de Blythburgh, ajuda-me. Envio os meus porcos para o matadouro juntamente com os dele. Além do mais, ele faz presuntos para consumo próprio, o que me permite oferecer aos padres uma bela perna de porco, de tempos a tempos. Não são grandes consumidores de carne de porco, mas gostam de ter toucinho fumado na despensa. O padre Sebastian insiste sempre em pagar, mas também me recuso sempre a receber dinheiro pelo toucinho fumado.

 

Como já lhe havia sucedido antes, Dalgliesh não podia deixar de se sentir admirado com a capacidade do ser humano de gostar dos seus animais de criação, a ponto de ter grande cuidado com o seu bem-estar e atender às suas necessidades com dedicação, e, ao mesmo tempo, de se conformar com o seu abate. Por fim, resolveu que chegara a altura de passar ao assunto que o levara a visitar Surtees. Conhecia o Ronald Treeves pessoalmente? perguntou.

 

Nem por isso. Sabia que era um dos ordinandos e via-o no instituto, mas pouco falávamos. Penso que era um rapaz solitário. Quero dizer, sempre que o via, costumava estar sozinho.

 

O que aconteceu no dia em que ele morreu? Onde se encontrava?

 

Estava em casa com a minha irmã. Como era fim-de-semana, ela tinha vindo visitar-me. Não vimos o Ronald nesse sábado, e só tivemos conhecimento de que ele havia desaparecido quando Mister Pilbeam passou por aqui e nos perguntou se ele tinha estado cá em casa. Respondemos-lhe que não. Não soubemos de mais nada até eu sair, por volta das cinco da tarde, para ir varrer os claustros e o átrio e lavar os degraus da entrada. Chovera na véspera, e os claustros estavam lamacentos e cobertos de folhas mortas. Geralmente, costumo varrer e limpar os claustros depois dos serviços religiosos, mas, terminada a missa, o padre Sebastian pediu-me que limpasse os claustros antes das vésperas. Estava nessa tarefa quando Mister Pilbeam me disse que fora encontrado o corpo do Ronald Treeves. Mais tarde, um pouco antes das vésperas, o padre Sebastian mandou reunir toda a gente na biblioteca e informou-nos do que havia acontecido.

 

Deve ter sido um grande choque para todos.

 

Surtees tinha o olhar pousado nas mãos, que entrelaçara e pousara sobre a mesa. De repente, tirou as mãos de cima da mesa, como um miúdo, e debruçou-se para a frente.

 

Sim, um choque. Acho que sim, que foi um choque... murmurou, em voz rouca.

 

Parece ser a única pessoa em Santo Anselmo que se dedica à jardinagem. Cultiva para seu benefício próprio ou para o instituto!

 

Cultivo a maior parte dos vegetais para meu benefício próprio e, também, para quem os quiser. Não cultivo quantidades suficientes para abastecer o instituto. Podia alargar o jardim, mas levava-me muito tempo. O solo é bom, tendo em conta que estamos perto do mar. A minha irmã costuma levar alguns legumes quando regressa a Londres, depois de me visitar, e Miss Betterton também gosta dos meus produtos, porque é ela que prepara as refeições do irmão, o padre John. Mistress Pilbeam também cozinha para ela e para o marido, e, sempre que posso, dou-lhe alguns legumes.

 

Mistress Munroe deixou um diário continuou Dalgliesh, onde menciona que você teve a gentileza de lhe levar alguns alhos-porros, no dia onze de Outubro, um dia antes de ela morrer. Lembra-se de lhe ter levado os alhos-porros?

 

Seguiu-se uma breve pausa, antes de Surtees responder.

 

Sim, é provável que lhe tenha levado alhos-porros, mas não me lembro.

 

Ora, não foi assim há tanto tempo insistiu Dalgliesh, gentilmente. Foi há pouco mais de uma semana. Tem a certeza de que não se lembra?

 

Agora me lembro! Levei-lhe os alhos-porros ao fim da tarde, Mistress Munroe costumava dizer que gostava de comer, ao jantar, alhos-porros com molho de queijo, e decidi ir até à Vivenda São Mateus para lhos oferecer.

 

E o que aconteceu?

 

Surtees ergueu o olhar, pasmado.

 

Não aconteceu nada. Ela agradeceu e levou-os para dentro,

 

Quer dizer que não entrou?

 

Não. Ela não me convidou mas, mesmo que o tivesse feito, eu não teria aceite. A Karen estava cá e eu queria regressar quanto antes, Nessa semana, a Karen ficou comigo até quinta-feira de manhã. Na verdade, fui até casa de Mistress Munroe um pouco à sorte, porque julgava que ela podia estar com Mistress Pilbeam. E, se ela não estivesse em casa, teria deixado os alhos-porros à porta.

 

Mas Mistress Munroe estava em casa. Tem a certeza de que não falaram de nada? De que não aconteceu nada? De que se limitou a entregar-lhe os alhos-porros?

 

Entreguei-lhos e vim-me embora.

 

Foi então que Dalgliesh ouviu o motor de um carro que se aproximava. Surtees devia ter escutado aquele ruído ao mesmo tempo, porque se levantou, visivelmente aliviado, e exclamou:

 

Deve ser a Karen. É a minha irmã e vem passar o fim-de-semana comigo.

 

O automóvel parara. Surtees correu para a porta. Apercebendo-se da ansiedade do jovem em falar a sós com a irmã, provavelmente para avisá-la da sua presença, Dalgliesh seguiu atrás de Surtees calmamente e parou à soleira da porta.

 

Uma mulher, entretanto, saíra do carro e, naquele momento, ela e o irmão fitavam Dalgliesh. Sem dizer palavra, ela voltou-se e começou a tirar uma grande mochila e vários sacos de plástico do portabagagens. Carregados com os sacos, os dois irmãos avançaram para o carreiro que conduzia até à porta da vivenda.

 

Karen, este é o inspector Dalgliesh, da Scotland Yard. Está aqui para fazer perguntas sobre o Ronald explicou Surtees.

 

A irmã de Surtees tinha cabelo preto, curto e eriçado, conforme a última moda. As duas argolas douradas e pesadas que lhe ornamentavam as orelhas realçavam a palidez do rosto, de traços delicados. Os seus olhos eram estreitos e as sobrancelhas arqueadas, e, se bem que as íris fossem pretas, irradiavam uma luminosidade extraordinária. Com uma boca de lábios finos, realçados por um batom vermelho-vivo, o rosto daquela rapariga era um esboço cuidadosamente desenhado, em tons de branco, vermelho e preto. O olhar que lançou a Dalgliesh foi hostil, a princípio, numa reacção àquela visita inesperada, para logo de seguida se tornar desconfiado.

 

Entraram os três na oficina. Karen Surtees deixou cair a sua mochila sobre a mesa. Cumprimentando Dalgliesh com um leve aceno de cabeça, voltou-se para o irmão e disse:

 

É melhor guardares imediatamente estas refeições ultracongeladas no frigorífico. E encontrarás uma grade de garrafas de vinho no carro.

 

Surtees olhou para a irmã, depois para Dalgliesh, e saiu. Sempre em silêncio, Karen Surtees, então, começou a tirar da mochila um surtido de roupas e de latas.

 

É visível que não quer ter visitas neste momento observou Dalgliesh, mas, já que aqui estou, poupava-me tempo se pudesse responder a algumas perguntas.

 

Dispare. A propósito, o meu nome é Karen Surtees, irmã do Eric por parte de pai. Ouça: por acaso, não chegou um pouco tarde de mais? É que não vai servir-lhe de muito fazer perguntas sobre o Ronald Treeves agora, porque houve um inquérito e o veredicto foi o de morte acidental. Nem sequer vai ter um corpo para exumar. O pai do rapaz mandou-o cremar em Londres. Os seus superiores não se deram ao trabalho de lhe transmitir estas informações? Também não percebo que relação a morte do rapaz possa ter com a Polícia Metropolitana. Não devia ser um caso para a Polícia de Suffolk?

 

Basicamente, sim, mas Sir Aired sente uma curiosidade natural pelas circunstâncias que levaram à morte do filho. E, como eu tencionava passar alguns dias nesta região, pediu-me que descobrisse o que pudesse.

 

Se ele realmente queria saber como foi que o filho morreu, então, que tivesse estado presente no inquérito. O que ele deve ter é a consciência pesada e, agora, quer mostrar ao mundo que era um pai que se preocupava com o filho. Afinal, o que o atormenta? Não me digam que ele pensa que o Ronald foi assassinado!

 

Não deixava de ser estranho ouvir aquela palavra, tão evitada em Santo Anselmo, pronunciada com tanta naturalidade.

 

Não me parece que seja isso que ele pense retorquiu Dalgliesh.

 

O que é certo é que não posso ajudá-lo. Devo ter-me cruzado com o filho dele umas duas vezes, e limitámo-nos a desejar ”bom dia” um ao outro.

 

Quer dizer que não eram amigos?

 

Não sou amiga de nenhum dos estudantes. E se por amigos está a insinuar o que penso, venho até cá para mudar de ares e para ver o meu irmão, e não para ir para a cama com todos os ordinandos, percebeu? Não que lhes fizesse algum mal; pelo contrário... Encontrava-se em Santo Anselmo no fim-de-semana em que o Ronald morreu?

 

Sim. Chegara na sexta-feira, por volta desta mesma hora.

 

E viu o Ronald, nesse fim-de-semana?

 

Não, nem o meu irmão tão-pouco. Soubemos que ele tinha desaparecido quando o Pilbeam veio até cá e nos perguntou se o rapaz havia estado aqui. Respondemos-lhe que não. Final da história Ouça, se quer saber mais coisas, não pode esperar até amanhã? É que gostava de me pôr à vontade, desfazer as malas, beber uma chávena de chá... Foi um inferno para sair de Londres. Se estiver de acordo, paramos por aqui hoje, se bem que eu nada mais tenha a acrescentar No que me diz respeito, o Ronald não passava de um dos estudantes do instituto.

 

No entanto, tanto a senhora como o seu irmão devem ter uma opinião formada sobre a morte dele ou terão falado nesse assunto entre vós.

 

Surtees, entretanto, acabara de arrumar as compras na cozinha e regressara à sala. Karen olhou para o irmão, antes de retorquir: Claro que falámos sobre esse assunto. Toda a gente que vive naquele maldito instituto deve ter falado sobre ele. Se quer saber a minha opinião, penso que o rapaz se suicidou. Porquê, já não sei e também não é coisa que me diga respeito. Como já referi, mal o conhecia, mas que foi um acidente muito estranho, lá isso foi. O rapaz devia saber que os penhascos eram perigosos. Avisos é que não faltam por toda a parte. Afinal, o que estava ele a fazer na praia?

 

Essa é uma das perguntas para a qual ainda não obtive resposta rematou Dalgliesh.

 

Dito aquilo, agradeceu aos dois irmãos e preparava-se para sair quando uma ideia lhe passou pela mente. Dirigindo-se a Surtees, perguntou:

 

Diga-me só mais uma coisa em relação aos alhos-porros que levou a Mistress Munroe. Consegue lembrar-se se os levou num saco de plástico ou se os embrulhou?

 

Surtees não conseguiu disfarçar o seu espanto.

 

Não me lembro. Penso que os embrulhei em papel de jornal. É o que costumo fazer, sempre que ofereço legumes, pelo menos os mais volumosos.

 

Consegue lembrar-se de que jornal se serviu para embrulhar os alhos-porros? Eu sei que não é fácil... Como Surtees não respondesse, Dalgliesh acrescentou: Era um semanário? Um diário? Que jornais costuma ler?

 

Foi Karen que respondeu:

 

Era um exemplar do Sole Bay Weekly Gazette. Como sou jornalista, tenho tendência para reparar nos jornais.

 

Quer dizer que estava na cozinha quando o seu irmão embrulhou os alhos-porros?

 

Se reparei que jornal era, só podia estar lá, não é verdade? De qualquer maneira, lembro-me de ver o Eric a embrulhar os alhos-porros e de me dizer que ia levá-los a Mistress Munroe.

 

Por acaso, não se lembra da data do jornal?

 

Não. Lembro-me de que jornal era porque, como acabei de dizer, tenho tendência para reparar nos jornais. O Eric abriu-o na página central, onde havia uma reportagem fotográfica do funeral de um agricultor da região. O homem quis que a sua vitela preferida estivesse presente no funeral, e, por isso, levaram o animal, adornado com fitas pretas nos chifres e à volta do pescoço, até à sepultura do dono. Não me parece que tenham permitido que a vitela entrasse na igreja, mas não há dúvida de que é o tipo de reportagem fotográfica que qualquer editor adora.

 

Dalgliesh voltou-se para Surtees.

 

A que dia sai o Sole Bay Gazette?

 

À quinta-feira, mas só costumo lê-lo ao fim-de-semana.

 

Portanto, o jornal de que se serviu, provavelmente, era o da semana anterior. Dalgliesh voltou-se para Karen. Muito obrigado. A sua ajuda foi-me preciosa.

 

Os dois irmãos acompanharam-no até à porta. Quando Dalgliesh se virou para fechar a cancela, reparou nos dois vultos à soleira da porta, observando-o, como se quisessem certificar-se de que ele não ia voltar. Então, viraram as costas ao mesmo tempo, e a porta fechou-se atrás deles.

 

Dalgliesh planeara regressar a Santo Anselmo a tempo de assistir às completas, depois de jantar sozinho no Crown, em Southwold. No entanto, demorou-se mais do que pensava, porque a refeição era demasiado rica para ser saboreada às pressas e, quando estacionou o Jaguar, o serviço religioso já havia começado. Aguardou, no quarto, até que um feixe de luz se projectou no átrio e viu a porta sul da igreja abrir-se e a pequena congregação sair. Dirigiu-se, então, à porta da sacristia até que, ao fim de algum tempo, o padre Sebastian saiu e se virou para fechar a porta à chave.

 

Dalgliesh interceptou-o.

 

Podemos falar, padre? Ou prefere esperar até amanhã? Sabia que, em Santo Anselmo, se observava silêncio após as completas, mas o reitor replicou:

 

Vai demorar muito, inspector?

 

Não, padre.

 

Nesse caso, podemos falar agora, se é isso que quer. Faça favor de vir comigo até ao meu gabinete.

 

Ali chegados, o reitor sentou-se atrás da sua secretária e fez sinal a Dalgliesh para que ocupasse uma cadeira à sua frente. No que lhe dizia respeito, não ia ser uma conversa a dois, em cadeirões baixos, junto à lareira. Não tinha tenções de iniciar a conversa nem de perguntar a Dalgliesh a que conclusões havia chegado relativamente à morte de Ronald Treeves. Ao invés, esperou, remetendo-se a um silêncio que, muito embora não fosse hostil, dava a impressão de que ele estava a forçar a sua paciência.

 

O padre Martin mostrou-me o diário de Mistress Munroe explicou Dalgliesh. Ao que tudo indica, o Ronald Treeves passou mais tempo com ela do que seria de esperar e, como já é sabido, foi também ela que encontrou o corpo, o que faz com que toda e qualquer referência, por parte de Mistress Munroe, ao Ronald Treeves se torne importante. Estava a pensar, em particular, na última anotação que ela escreveu no dia em que morreu. Mas, pelo que sei o senhor não levou muito a sério o testemunho de que Mistress Munroe havia descoberto um segredo e estava preocupada...

 

Testemunho? Que palavra tão forense, inspector. Levei-o a sério porque era um assunto sério para Mistress Munroe. Senti, no entanto, certa relutância em ler um diário privado, mas, como o padre Martin a havia encorajado a escrevê-lo, mostrou-se interessado em saber o que Mistress Munroe anotara nele. Talvez tenha sido apenas uma curiosidade natural, muito embora eu não consiga deixar de pensar que o diário devia ter sido destruído, sem que ninguém o lesse. Contudo, os factos parecem ser evidentes. A Margaret Munroe era uma mulher inteligente e sensata. Descobriu algo que a deixou preocupada, falou com a pessoa a quem isso dizia respeito e ficou satisfeita. Qualquer que tenha sido a explicação que lhe deram, teve o poder de deixar Mistress Munroe descansada. Quanto a mim, nada teria ganho e, inclusivamente, causaria problemas sérios, se tivesse começado a investigar o assunto. Espero bem que não esteja a sugerir que eu devia ter convocado todas as pessoas que vivem, estudam e trabalham no instituto, para lhes perguntar se haviam partilhado com Mistress Munroe algum segredo! Preferi confiar na palavra dela, mesmo por escrito, de que a explicação que lhe fora dada não a havia obrigado a mais investigações.

 

O Ronald Treeves parecia ser um rapaz solitário, padre. Simpatizava com ele? quis saber Dalgliesh.

 

Era uma pergunta perigosa, mesmo provocadora, mas o padre Sebastian manteve a sua atitude impassível. De olhos postos no reitor, Dalgliesh ainda pensou detectar uma ligeira inflexibilidade naquele rosto atraente, mas não teve a certeza.

 

A resposta do reitor não se fez esperar e podia ter incluído uma reprimenda mas o seu tom de voz não deixou transparecer qualquer ressentimento.

 

No que diz respeito ao meu relacionamento com os ordinandos, não me preocupo com questões de simpatias e antipatias, nem isso seria correcto da minha parte. O favoritismo é particularmente perigoso numa pequena comunidade. O Ronald era um rapaz singularmente desprovido de qualquer encanto, mas desde quando o encanto é considerado uma virtude cristã?

 

Mas o senhor preocupava-se em saber, com certeza, se ele era feliz aqui, não é assim?

 

Não é função deste instituto promover a felicidade individual, Ter-me-ia preocupado, isso sim, se pensasse que ele era infeliz. Levamos as nossas responsabilidades pastorais pelos estudantes muito a sério, inspector. O Ronald nunca procurou ajuda nem deu qualquer indicação de que precisava de ajuda, o que não exclui a minha própria culpa. A religião do Ronald era, para ele, muito importante, e estava profundamente empenhado na sua vocação. Nunca teria quaisquer dúvidas de que o suicídio é um grave pecado. O acto, em si, nunca poderia ter sido impulsivo; afinal, há que fazer uma caminhada de quase oitocentos metros até ao pântano e, depois, passar ainda pela praia. Se o Ronald se suicidou, só pode ter sido porque estava desesperado. E era minha obrigação saber que um dos meus estudantes estava desesperado, mas, se era esse o caso, nunca o soube.

 

O suicídio de um jovem saudável é sempre um mistério concluiu Dalgliesh. Morrem, sem ninguém saber porquê. Talvez nem mesmo eles o soubessem explicar.

 

Não estou a pedir a sua absolvição atalhou o reitor. Estava apenas a enunciar os factos.

 

Silêncio. A segunda pergunta de Dalgliesh era igualmente delicada, mas tinha de fazê-la. Perguntava a si próprio se não estava a ser directo de mais, mas achava que o padre Sebastian era um homem que apreciava a frontalidade e nunca toleraria uma excessiva diplomacia, até porque se entendiam um ao outro muito para além do que diziam.

 

Estava a pensar em quem beneficiaria se o instituto encerrasse as portas...

 

Eu, entre outros, mas penso que perguntas desse tipo poderão ser respondidas, com maior exactidão, pelos nossos advogados. AStannard, Fox & Perronet presta os seus serviços a este instituto desde a sua fundação e, actualmente, o Paul Perronet é um dos nossos fideicomissários. O gabinete da firma fica em Norwich. Ele poderá falar-lhe um pouco mais da história do instituto, se está interessado. Sei que, por vezes, ele trabalha aos sábados de manhã. Deseja que eu marque uma hora em que ele possa recebê-lo? Vou ver se consigo apanhá-lo em casa.

 

Ficava-lhe muito agradecido, padre.

 

O reitor pegou no telefone. Nem precisou de consultar a sua agenda. Depois de digitar o número, seguiu-se uma curta pausa e, por fim, exclamou:

 

Paul? Daqui é o Sebastian Morell. Estou a telefonar-lhe do meu gabinete. Tenho aqui comigo o inspector Adam Dalgliesh. Lembra-se de termos falado, ontem à noite, sobre a visita dele? Pois bem, o inspector Dalgliesh tem algumas perguntas a fazer sobre o instituto e gostaria que fosse você a responder... Sim, a tudo o que ele perguntar. Não temos nada a esconder... É muita gentileza sua, Paul. Vou passar-lhe o inspector Dalgliesh.

 

E passou o auscultador a Dalgliesh. Uma voz grave ecoou do outro lado da linha:

 

Daqui fala o Paul Perronet. Estarei no meu gabinete amanhã de manhã. Tenho uma reunião às dez horas, mas se puder vir mais cedo, por volta das nove, teremos tempo para conversar. Devo chegar por volta das oito e meia. O padre Sebastian dar-lhe-á o endereço. O nosso escritório fica muito perto da catedral. Então, vemo-nos amanhã, por volta das nove horas. Boa noite.

 

Quando Dalgliesh voltou a sentar-se, o reitor perguntou:

 

Tem mais alguma coisa a dizer-me esta noite?

 

Seria, para mim, de grande ajuda consultar a ficha de serviços da Margaret Munroe, se ainda a tiverem.

 

Se Mistress Munroe ainda estivesse viva, isso seria considerado matéria confidencial, como deve calcular. Mas, como ela faleceu, não vejo qualquer objecção. Miss Ramsey guarda as fichas num armário trancado à chave, na sala ao lado. Eu vou buscá-la.

 

Saiu e Dalgliesh pôde ouvir uma gaveta a abrir-se. Volvidos alguns segundos, o reitor estava de regresso e entregou-lhe uma pasta. Não inquiriu que hipotética relevância a ficha de Mistress Munroe podia ter na trágica morte de Ronald Treeves, e Dalgliesh julgava saber porquê. Reconhecia no padre Sebastian um estratega experiente, que nunca faria uma pergunta, se julgasse que a resposta ia ser evasiva ou indesejável. Havia prometido colaborar e tudo faria ao seu alcance para ajudar Dalgliesh. Contudo, registaria todos os seus pedidos mais inconvenientes até que, por fim, esperaria pelo momento certo para lhe relembrar tudo o que lhe exigira, em busca de pormenores insignificantes com vista a um resultado provavelmente nulo. Ninguém estava mais qualificado do que o padre Sebastian para iludir os seus adversários, levando-os a uma situação comprometedora, em que não pudessem defender-se legitimamente.

 

Quer levar a ficha consigo, inspector? perguntou.

 

Só por esta noite, padre. Devolvo-lha amanhã.

 

Sendo assim, se nada mais tem a perguntar-me por hoje, desejo-lhe uma boa noite.

 

Levantou-se e abriu a porta a Dalgliesh. Podia ser apenas uma medida de cortesia, mas, para Dalgliesh, parecia mais o gesto de um director de uma escola a certificar-se de que o parente recalcitrante de um dos seus alunos finalmente compreendera que devia retirar-se.

 

A porta que dava para o claustro sul estava aberta. Pilbeam ainda não a havia trancado. O átrio, iluminado apenas pelas luzes de presença em torno dos claustros, estava submerso na escuridão, e viam-se apenas luzes acesas em dois dos quartos dos estudantes, no claustro sul. Quando Dalgliesh se dirigiu para o seu quarto, viu que duas pessoas estavam paradas em frente da porta do quarto de Santo Ambrósio. Havia sido apresentado a uma, à hora do chá, e aquele rosto jovem e pálido era inconfundível. A outra pessoa era do sexo feminino. Ao ouvir passos, voltara-se e, quando Dalgliesh abriu a porta do seu quarto, o olhar dele cruzou-se com o daquela mulher; por breves segundos, entreolharam-se, como que tomados por uma estupefacção recíproca. A luz tombava sobre um rosto de grave, mas estonteante beleza, e Dalgliesh experimentou uma emoção que raramente sentia nos tempos que corriam: um sobressalto, provocado por uma sensação de espanto.

 

Foi Raphael quem quebrou aquele estranho momento.

 

Penso que ainda não se conhecem. Emma, este é o inspector Dalgliesh, que veio directamente da Scotland Yard para nos dizer como foi que o Ronald morreu. Inspector, apresento-lhe a doutora Emma Lavenham, que vem propositadamente de Cambridge até cá, três vezes por ano, para tentar civilizar-nos. Depois de ambos termos assistido religiosamente às completas, decidimos, cada um por seu lado, dar um passeio e observar as estrelas. Encontrámo-nos no promontório e, como um perfeito anfitrião, acompanhei a doutora Lavenham ao seu quarto. Boa noite, Emma.

 

O tom de voz e o olhar de Raphael deixavam transparecer um certo sentido de propriedade, e Dalgliesh pôde perceber que Emma Lavenham se sentia incomodada.

 

Eu teria sido capaz de encontrar o caminho de volta ao meu quarto mas, de qualquer maneira, fico-lhe muito agradecida pela sua gentileza, Raphael.

 

Por breves instantes, pareceu que Raphael lhe ia pegar na mão, mas Emma Lavenham despediu-se dos dois homens com um ”boa noite” firme, e apressou-se a entrar no quarto.

 

Raphael, então, virou-se para Dalgliesh.

 

As estrelas, hoje, desiludiram-me. Boa noite, inspector. Espero que tenha tudo o que precisa.

 

Dito isto, deu meia volta e afastou-se com passos decididos em direcção ao seu quarto, situado no claustro norte.

 

Por algum motivo que tinha dificuldade em explicar, Dalgliesh sentiu, de repente, uma intensa irritação. Raphael Arbuthnot era um jovem brincalhão, mas demasiado bonito para o seu próprio bem. Devia ser descendente de Miss Arbuthnot, a fundadora de Santo Anselmo. Se tal descendência se confirmasse, o que herdaria, caso o instituto fosse forçado a encerrar?

 

Decidido a esquecer aquele momento de irritação, Dalgliesh sentou-se à frente da secretária e abriu a ficha de Mrs. Munroe, analisando escrupulosamente cada um dos documentos que a compunham. Chegara a Santo Anselmo no dia 1 de Maio de 1994, depois de trabalhar na Casa de Saúde Ashcombe nos arredores de Norwich.

 

Santo Anselmo havia colocado um anúncio tanto no Church Times como nos jornais regionais, procurando uma senhora que se encarregasse da roupa da cama e ajudasse no governo da mansão. O problema de coração de Mrs. Munroe havia-lhe sido diagnosticado recentemente e, na sua carta de candidatura, declarava que as suas funções de enfermeira se tinham tornado demasiado penosas e que, por isso, procurava um lugar em que pudesse residir e encarregar-se de tarefas menos pesadas. A carta de recomendação, redigida pela enfermeira-chefe da casa de saúde, era positiva, se bem que não muito entusiasta quanto às qualidades de Mrs. Munroe. Segundo a carta, Mrs. Munroe, que começara a trabalhar na instituição no dia 1 de Junho de 1988, fora uma enfermeira escrupulosa e dedicada, embora talvez um pouco reservada de mais no seu relacionamento com as outras pessoas. Cuidar dos moribundos havia-se tornado extenuante para ela, tanto física como psicologicamente, mas a direcção da casa de saúde era de opinião que ela seria capaz de se responsabilizar por alguns cuidados de saúde básicos, num instituto de jovens saudáveis, e teria todo o gosto em fazê-lo, para além de se encarregar da roupa de cama. Assim que se mudara para Santo Anselmo, raramente se ausentara. Havia muito poucos pedidos de autorização para sair e, ao que tudo indicava, preferia passar as suas férias na vivenda, onde se lhe juntava o seu único filho, um oficial do exército. A impressão geral transmitida pela sua ficha era a de uma mulher trabalhadora, escrupulosa, muito reservada e com poucos interesses na vida, para além do filho. Havia uma anotação, onde se lia que o filho fora assassinado, dezoito meses depois de Mrs. Munroe começar a trabalhar em Santo Anselmo.

 

Dalgliesh guardou a ficha na gaveta da secretária, tomou um duche e deitou-se. Depois de desligar as luzes, tentou ajeitar-se na cama, mas as preocupações que o haviam atormentado durante o dia recusavam-se a abandoná-lo. Achou-se, de novo, na praia, ao lado do padre Martin. Tornou a ver, na sua imaginação, o capote castanho e a batina meticulosamente dobrados, como se o rapaz tivesse feito as malas para uma viagem, e talvez houvesse encarado, dessa maneira, o que ia fazer. Teria realmente despido o capote e a batina para poder trepar melhor por um penhasco de areias instáveis, cobertas de pedras e unidas precariamente por tufos de relva? E porque tentara trepar pelo penhasco? E se o tivesse feito na esperança de alcançar ou descobrir alguma coisa? Naquela zona costeira, apareciam, de tempos a tempos partes de esqueletos, há muito soterrados, por baixo da areia, arrastados até à costa, muitas gerações atrás, dos cemitérios submersos que jaziam nas profundezas do mar. Contudo, nada se encontrara, na cena da tragédia, que indicasse uma descoberta daquele género. Mesmo que Treeves tivesse avistado um crânio ou a extremidade de um osso a sobressair da areia, porque achara necessário despir o capote e a batina, antes de tentar alcançar o que tinha visto? Para Dalgliesh, havia algo de mais significativo naqueles trajes meticulosamente dobrados. Não teria sido uma desistência deliberada, quase cerimoniosa, de uma vida, de uma vocação e talvez mesmo de uma crença religiosa?

 

Dividido entre a piedade, a curiosidade e a dúvida, Dalgliesh pensou então no diário de Margaret Munroe. Havia lido tantas vezes os parágrafos da última anotação que poderia recitá-los de cor. Mrs. Munroe descobrira um segredo tão importante que não conseguira decidir-se a registá-lo a não ser de forma evasiva. Falara com a pessoa a quem o segredo dizia respeito e, poucas horas depois daquela revelação, estava morta. Tendo em conta que sofria do coração, a morte podia ter-se dado a qualquer momento. Talvez tivesse sido antecipada pela ansiedade ou pela necessidade de confrontar as implicações da sua descoberta. Por outro lado, a morte de Mrs. Munroe podia ter sido conveniente para alguém. E teria sido um homicídio fácil. Uma senhora de idade, sozinha, sofrendo do coração, um médico que a visitava regularmente e não teria qualquer dificuldade em passar a certidão de óbito. E por que motivo pegara no seu tricô, se tinha posto os óculos que costumava usar para ver televisão? E, se estava a assistir a um programa na televisão, quando morrera, então quem apagara o televisor? Como era evidente, podia encontrar-se uma explicação para todos aqueles estranhos pormenores. Já anoitecera e Mrs. Munroe estava cansada. Mesmo que surgissem mais provas mas que mais provas poderiam existir?, poucas eram as hipóteses de resolver, por enquanto, aquele mistério. Tal como Ronald Treeves, Margaret Munroe havia sido cremada. De repente, Dalgliesh deu consigo a pensar em como Santo Anselmo parecia estranhamente diligente em livrar-se dos seus mortos, mas isso era uma injustiça da sua parte. Tanto Sir Aired como a irmã de Mrs. Munroe não haviam querido a presença de qualquer membro do instituto nas exéquias.

 

Desejava ter podido ver o corpo de Treeves. Era sempre desagradável possuir provas em segunda mão e nem sequer alguém se tinha lembrado de tirar fotografias da cena da tragédia. No entanto, os testemunhos eram claros e apontavam para um suicídio. Mas porquê? Treeves encararia aquele acto como um pecado mortal. O que teria sido tão forte para o levar àquele fim horrendo?

 

Qualquer visitante de uma cidade histórica depressa se apercebe, nas suas deambulações, de que as casas mais atractivas do centro são, invariavelmente, escritórios de sociedades de advogados. A sede da Stannard, Fox & Perronet não constituía excepção. Ficava situada a poucos metros da catedral, numa elegante mansão jorgiana, separada da calçada por uma estreita faixa empedrada. A porta dianteira reluzente, o batente em forma de cabeça de leão, a pintura cintilante das paredes e as janelas imunes à sujidade citadina reflectiam a ténue luminosidade matinal, enquanto as cortinas imaculadas, de renda, proclamavam a respeitabilidade, a prosperidade e a exclusividade da firma. Na recepção, que, em tempos idos, havia sido parte de uma sala dianteira, uma rapariga de rosto corado ergueu o olhar da revista que estava a ler e saudou Dalgliesh com a agradável pronúncia de Norfolk.

 

Inspector Dalgliesh, não é verdade? Mister Perronet está à sua espera. Pediu-me que lhe dissesse para subir, assim que chegasse. É a porta da frente, no primeiro andar. A assistente de Mister Perronet não trabalha aos sábados e só cá estamos nós os dois, mas posso oferecer-lhe um café, se quiser.

 

Sorrindo, Dalgliesh agradeceu, declinou a oferta e subiu a escada, ao longo da qual se alinhavam fotografias de antigos sócios da firma. O homem que o esperava em frente do gabinete e o convidou a entrar era mais velho do que a sua voz sugerira pelo telefone. Devia ter cinquenta e muitos anos. Era bastante alto e magro, de queixo comprido, olhos cinzento-claros, escondidos atrás de óculos, e cabelo louro. Parecia mais o rosto de um comediante do que o de um advogado. Vestia um fato escuro com risca branca já antigo, mas feito por medida; aquela ortodoxia, contudo, era desvirtuada por uma camisa às riscas azuis e um laço rosa com bolas brancas. Era como se Mr. Perronet se desse conta de uma discordância na sua personalidade ou de uma excentricidade qualquer que fazia questão em cultivar.

 

O gabinete para onde Dalgliesh foi conduzido correspondeu às suas expectativas. A secretária era de estilo jorgiano e desimpedida de quaisquer papéis ou de cinzeiros cheios de beatas de cigarro. Por cima da elegante lareira de mármore, havia um quadro a óleo, sem dúvida o retrato de um dos fundadores, e várias aguarelas, cuidadosamente alinhadas, que, se não eram originais de Cotman, constituíam excelentes reproduções.

 

Posso oferecer-lhe um café? Não? Revela ser um homem sensato. Ainda é muito cedo. Costumo tomar um café por volta das onze. Aproveito para sair daqui e dar um passeio até St. Peter Mancroft. Espero que a cadeira não seja baixa de mais. Não? Sente-se na outra, se preferir. O padre Sebastian pediu-me que lhe respondesse a todas as perguntas que deseje formular acerca de Santo Anselmo. Como bem sabe, se esta nossa conversa fizesse parte de um inquérito policial oficial, não só seria meu desejo como meu dever colaborar.

 

A gentileza daqueles olhos azuis era enganadora. Podiam muito bem estar a sondar o seu interlocutor.

 

Muito dificilmente poderia considerar as poucas perguntas que quero fazer como um inquérito oficial replicou Dalgliesh. Aliás, a minha posição é francamente ambígua. Deduzo que o padre Sebastian lhe terá dito que Sir Aired Treeves não ficou satisfeito com o veredicto relativo à morte do filho. Pediu-me que procedesse a uma investigação preliminar, a fim de apurar se existe matéria suficiente para reabrir o caso. Como já havia planeado passar uns dias na região e conheço Santo Anselmo, pareceu-me oportuno ser eu a visitar o instituto. Contudo, se houver indícios de um crime, então, a investigação será imediatamente entregue à Polícia de Suffolk.

 

Então, Sir Aired não ficou satisfeito com o veredicto? exclamou Paul Perronet. Julgava que tinha sido um alívio para ele.

 

Sir Aired é de opinião que as provas que levaram ao veredicto de morte acidental são inconcludentes.

 

Talvez o sejam, mas a verdade é que não existiam provas de outro género, se bem que fosse aconselhável que o veredicto tivesse ficado em aberto.

 

Uma morte acidental, logo num momento difícil prosseguiu Dalgliesh, quando o instituto deve tentar evitar todo e qualquer tipo de publicidade nefasta.

 

Sim, de facto, mas a tragédia foi tratada com grande discrição. O padre Sebastian é muito cuidadoso nesse campo. Além de que Santo Anselmo já teve os seus escândalos. Houve um, envolvendo um caso de homossexualidade, em mil novecentos e vinte e três, quando o padre responsável pela disciplina de História da Religião, de seu nome Cuthbert, se apaixonou perdidamente por um dos ordinandos e ambos foram apanhados pelo reitor em flagrante delito. Partiram, juntos, no tandem do padre Cuthbert, em direcção às docas de Felixstowe e à liberdade, depois de haverem trocado a batina por calções vitorianos. Um quadro muito interessante, como costumo dizer. Mais tarde, houve um outro escândalo, mais grave, em mil novecentos e trinta e dois, quando o reitor da altura se converteu ao catolicismo e levou metade dos professores e um terço dos ordinandos com ele, o que deve ter feito a Agnes Arbuthnot dar voltas no túmulo! Mas é verdade que este último caso ocorreu, com efeito, num momento difícil.

 

O senhor assistiu ao inquérito?

 

Sim, em representação do instituto. A nossa firma representa Santo Anselmo desde a sua fundação. Miss Arbuthnot... ou, melhor dizendo, toda a família, tinha aversão a Londres e, quando o pai dela se mudou para Suffolk e mandou construir a mansão, em mil oitocentos e quarenta e dois, pediu à nossa firma que se encarregasse dos seus assuntos legais. Como deve calcular, estávamos fora da alçada jurídica da região, mas penso que ele preferia uma firma situada em East Anglia do que outra de Suffolk. Miss Arbuthnot deu continuidade à nossa associação, após a morte do pai. Um dos nossos sócios mais velhos é sempre um dos fideicomissários do instituto. Miss Arbuthnot deixou-o escrito no seu testamento, em que estipulava que esse nosso sócio deveria ser membro activo da Igreja Anglicana, mais precisamente do movimento de Oxford. Actualmente, sou eu o fidei comissário. Não faço ideia do que faremos, no futuro, se todos os nossos sócios forem católicos apostólicos romanos, membros de algo ma seita ou ateus. Teríamos de convencer alguém a converter-se. agora, no entanto, houve sempre um sócio que preenchesse todos os requisitos impostos por Miss Arbuthnot.

 

É, portanto, uma firma antiga? perguntou Dalgliesh.

 

Foi fundada em mil setecentos e noventa e dois. Já não existem membros da família Stannard na firma. O último é professor numa das novas universidades, se não me engano. Mas teremos um jovem Fox dentro de muito pouco tempo. Aliás, é uma rapariga... uma brasa! Trata-se de Priscilla Fox, que se licenciou o ano passado mas que tem uma carreira promissora à sua frente. Pela parte que me toca, gostava de ver esta firma continuar.

 

Segundo me disse o padre Sebastian, a morte do jovem Treves pode ter apressado o encerramento de Santo Anselmo. Como fi deicomissário, partilha da mesma opinião?

 

Receio bem que sim. Poderá apressar, de facto, mas não pro vocar o encerramento de Santo Anselmo, o que é muito diferemt Como deve saber, a Igreja tem uma política: centralizar o ensino teológico em certas instituições, mas Santo Anselmo sempre foi considerado como uma espécie de anomalia. Pode fechar as portas mais depressa, depois do que aconteceu, mas o seu encerramento, infelizmente, é inevitável. Não se trata apenas de uma questão da política e dos recursos da Igreja. O espírito de Santo Anselmo está ultrapassado. E teve sempre os seus opositores: ”elitista”, ”pedante”, ”demasiado isolado” e até mesmo ”onde os estudantes são bem alimentados de mais” são algumas das críticas que lhe foram apontadas. O que é certo é que o vinho, em Santo Anselmo, é da melhor qualidade. Tenho o cuidado de não visitar o instituto durante a Quaresma ou às sextas-feiras. A maior parte da garrafeira do instituto é oferecida e não lhes custa uma só moeda. O cónego Cosgrove deixou-lhes a sua adega, há cinco anos. O velhote tinha um paladar muito apurado e as suas garrafas de vinho devem chegar para abastecer o instituto até ao seu encerramento.

 

Se e quando encerrarem, o que irá acontecer aos edifícios e ao seu recheio? quis saber Dalgliesh.

 

O padre Sebastian não lhe disse?

 

Disse-me apenas que seria um dos beneficiários, mas preferiu que o senhor me fornecesse todos os pormenores.

 

É verdade, já me esquecia.

 

Mr. Perronet levantou-se e abriu um armário situado à esquerda da imponente lareira. Tirou, não sem alguma dificuldade, uma caixa grande, com uma etiqueta, onde estava escrito: ”ARBUTHNOT”.

 

Se está interessado na história do instituto, como penso, talvez seja melhor começarmos pelo princípio. Está tudo aqui. Por muito estranho que possa parecer-lhe, pode ler-se toda a história de uma família numa caixa de metal. Começarei com o pai de Agnes Arbuthnot, Claude Arbuthnot, que morreu em mil oitocentos e cinquenta e nove. Fabricava botões... para aquelas botas altas que as senhoras da época usavam e para cerimónias oficiais... e fivelas, numa fábrica nos arredores de Ipswich. Saiu-se bem no seu negócio e tornou-se um homem muito rico. Agnes, nascida em mil oitocentos e vinte, era a filha mais velha. A seguir, havia Edwin, nascido em mil oitocentos e vinte e três, e Clara, que nasceu dois anos mais tarde. Não perderemos mais tempo com Clara. Nunca chegou a casar e morreu de tuberculose, na Itália, em mil oitocentos e quarenta e nove. Foi enterrada em Roma, num cemitério protestante... e em muito boa companhia, devo dizer. Pobre Keats! Bom, mas era o que faziam, naquela altura. Viajavam para locais com climas amenos e muito sol, em busca da cura. A viagem bastava para os matar. Que pena que ela não haja viajado

 

Torquay, descansando ali para sempre. Bom, mas, de qualquer maneira, esqueçamos Clara.

 

”Como deve calcular, foi o velho Claude que mandou construir a mansão. Tinha acumulado uma fortuna considerável e queria mostrar que era rico. Deixou a mansão a Agnes. Quanto ao dinheiro, foi dividido entre os dois irmãos, Agnes e Edwin, mas penso que terá havido alguns atritos quanto à transmissão da propriedade. Todavia, como Agnes sempre vivera ali e tratara da manutenção da propriedade e Edwin não, foi ela que ficou com a mansão e os terrenos. Se o pai Arbuthnot, um protestante inflexível, tivesse sabido o que a sua filha iria fazer com a mansão, tudo teria sido diferente, mas ninguém pode zelar pelos seus bens, depois de morto. Ele havia legado a propriedade a Agnes e nada mais havia a fazer. Um ano após a morte do velho Arbuthnot, Agnes resolveu ir passar alguns dias a casa de um amigo de infância, que vivia em Oxford. Quando regressou, achava-se completamente influenciada pelo movimento de Oxford e decidiu fundar Santo Anselmo. A mansão já existia, mas Agnes mandou erigir os dois claustros, restaurar e incorporar a igreja e construir quatro vivendas para os empregados...

 

E o que aconteceu ao Edwin? inquiriu Dalgliesh.

 

Era um explorador. À excepção do Claude, todos os homens da família tinham uma natural apetência pelas viagens. Aliás, o Edwin participou numas escavações muito importantes, que se efectuaram no Médio Oriente. Raramente vinha a Inglaterra e morreu no Cairo, em mil oitocentos e noventa.

 

Foi ele que doou o papiro de Santo Anselmo ao instituto Os olhos cinzento-claros, que até ali haviam sido tão afáveis, estreitaram-se por trás dos óculos, revelando uma súbita desconfiança. Seguiu-se um breve silêncio, antes de Perronet responder.

 

Então, sabe da existência do papiro... murmurou. O padre Sebastian não mo disse.

 

Sei muito pouco, para lhe ser sincero. O meu pai estava a par do segredo e, embora tenha sido sempre discreto, eu captava algumas frases soltas quando ia até Santo Anselmo na sua companhia. Um miúdo de catorze anos tem um ouvido mais apurado e uma mente mais curiosa do que os adultos pensam. O meu pai contou-me muito pouca coisa e fez-me jurar que eu nunca revelaria aquele segredo, a verdade é que eu nem sequer sentia qualquer interesse em falar sobre o assunto.

 

O padre Sebastian pediu-me que lhe respondesse a todas as suas perguntas, mas não tenho muito para lhe dizer acerca do papiro. Provavelmente, sabe tanto quanto eu. Foi, de facto, oferecido a Miss Arbuthnot em mil oitocentos e oitenta e sete, pelo seu irmão, que, muito provavelmente, tinha habilidade suficiente para o falsificar ou conhecimentos para mandar falsificá-lo. Era um homem que gostava de pregar partidas e deve ter achado muita graça à ideia de pregar mais uma à sua própria irmã, até porque ele era um ateu fervoroso. Será que um ateu pode ser fervoroso? Bom, o que é certo é que ele era contra qualquer religião.

 

Afinal, de que trata o papiro, ao certo?

 

Pretende ser um comunicado de Pôncio Pilatos a um oficial da guarda, a propósito da remoção de certo corpo. Miss Arbuthnot convenceu-se de que se tratava de uma falsificação e a maior parte dos reitores que viram esse documento, mais tarde, foram da mesma opinião. Pessoalmente, nunca o vi, mas o meu pai teve oportunidade de examiná-lo, assim como o velho Stannard, se a memória não me falha. O meu pai não teve quaisquer dúvidas de que se tratava de um documento genuíno mas afirmou que, se partíssemos do princípio de que se tratava de uma falsificação, fora elaborada com grande perícia.

 

O que é estranho é que Miss Arbuthnot não tenha mandado destruí-lo comentou Dalgliesh.

 

Não partilho da sua opinião. Não diria que se tratou de uma atitude estranha. Há uma nota aqui, nesta caixa, no meio dos outros papéis. Se não se importa, faço-lhe um breve resumo. Meteu-se na cabeça de Miss Arbuthnot que, se o papiro fosse destruído, o irmão tornaria o caso público e, assim, a destruição do papiro serviria apenas para provar a sua autenticidade, porque, uma vez destruído, já ninguém poderia provar que se tratava de uma falsificação. Miss Arbuthnot deixou instruções no sentido de que esse documento se mantivesse em poder de cada reitor, que o passaria ao seu sucessor, apenas ao morrer.

 

O que significa que, presentemente, quem tem o papiro em seu poder é o padre Martin concluiu Dalgliesh.

 

Exactamente. Duvido que o padre Sebastian saiba sequer onde o padre Martin o guardou. Se precisar de mais informações sobre esse tal documento, é melhor falar com o padre Martin, se bem que eu não veja que relação ele possa ter com a morte do jovem Treeves.

 

Nem eu, pelo menos, por enquanto atalhou Dalgliesh. E o que aconteceu à família, depois da morte do Edwin Arbuthnot?

 

Teve um filho, Hugh, nascido em mil oitocentos e oitenta, que morreu no cumprimento do dever, na batalha do Somme, em mil novecentos e dezasseis. O meu avó também foi morto nessa batalha. Os mortos daquela guerra ainda povoam os nossos sonhos, não acha? O Hugh Arbuthnot deixou dois filhos, o mais velho, Edwin, nascido em mil novecentos e três, que nunca casou, e morreu em Alexandria, em mil novecentos e setenta e nove. E Claude, nascido em mil novecentos e cinco. Era o avó do Raphael Arbuthnot, um dos estudantes do instituto. O Raphael é o último Arbuthnot.

 

Mas não herda a fortuna da família?

 

Não. Infelizmente, é filho ilegítimo. O testamento de Miss Arbuthnot era muito pormenorizado e específico. Não me parece que aquela santa senhora tenha pensado sequer que o instituto poderii encerrar, mas o meu predecessor que tratava dos assuntos da família, na altura, fez-lhe notar que deveria tomar precauções para tal eventualidade. Existe uma cláusula, no testamento, em que se estipula qut a propriedade e todo o recheio do instituto e da igreja que foram doados por Miss Arbuthnot, se ainda existirem aquando do seu encerramento, deverão ser divididos, em partes iguais, pelos descendentes directos de seu pai, desde que sejam legítimos, segundo a lei inglesa, e membros activos da Igreja Anglicana.

 

”Legítimos, segundo a lei inglesa”... murmurou Dalgliesh. Não deixa de ser uma frase invulgar.

 

Nem por isso. Miss Arbuthnot agiu conforme a classe a que pertencia e de acordo com a sua idade. Em questões de herança e bens, os vitorianos eram sempre muito sensíveis em relação à possibilidade de surgir um reclamante estrangeiro, de legitimidade duvidosa nascido de uma união não oficializada. Existem, aliás, casos célebres Na falta de um herdeiro legítimo, a propriedade e o seu recheio deverão ser divididos, mais uma vez em partes iguais, por todos os padres residentes no instituto, na altura do seu encerramento.

 

O que significa que os beneficiários são o padre Sebastian Moreli, o padre Martin Petrie, o padre Peregrine Glover e o padre Job Betterton, o que é um pouco injusto para Raphael, não acha? Deduzo que não existam quaisquer dúvidas quanto à sua ilegitimidade.

 

Estou de acordo consigo quanto à primeira questão. Essa injustiça não escapou ao padre Sebastian. A hipótese de o instituto en cerrar foi aventada mais a sério, há dois anos, e, nessa altura, ele foi falar comigo. Sentia-se de certo modo descontente com os termos do testamento e sugeriu que, na eventualidade de o instituto encerrar deveria chegar-se a um acordo entre os beneficiários, a fim de que Raphael também pudesse ser incluído na partilha. Normalmente, como deve saber, as doações e os legados podem ser alterados, por acordo dos beneficiários, mas, neste caso, é mais complicado. Informei o padre Sebastian de que não lhe poderia dar respostas fáceis acerca da partilha da propriedade. Por exemplo, existe um quadro muito valioso na igreja. Foi Miss Arbuthnot que o doou, dando instruções para que fosse colocado por cima do altar. Se a igreja continuar a ser consagrada, deve o quadro ser retirado do altar ou deverá proceder-se a um acordo, em que se estipula que quem ficar responsável pela igreja poderá adquirir o quadro? O novo fideicomissário, o arcediago Crampton, tem revelado a sua intenção de mandar remover o quadro para um local mais seguro ou de que seja vendido. O produto da venda do quadro reverteria, claro está, a favor da diocese. O arcediago Crampton gostaria de ver todos os objectos de valor removidos do instituto. Já tive oportunidade de lhe dizer que, no lugar dele, me arrependeria de um acto tão prematuro, mas é muito provável que ele leve os seus planos avante. Goza de considerável influência, e uma tal acção asseguraria que fosse a Igreja, e não pessoas individuais, a beneficiar com o encerramento do instituto.

 

”Depois, há o problema dos edifícios. Confesso que não vejo qualquer tipo de aproveitamento para eles, e o mais provável é já não existirem daqui a vinte anos. O mar está a avançar rapidamente pela costa adentro. Depois, a erosão afectaria consideravelmente o valor dos edifícios. O seu recheio, mesmo já sem o quadro, provavelmente, tem muito mais valor, como é o caso de todos os objectos de prata, os livros e a mobília.

 

E ainda há o papiro de Santo Anselmo acrescentou Dalgliesh.

 

Sentiu, mais uma vez, que aquela referência não era bem recebida.

 

É de pressupor que esse manuscrito passaria também para os beneficiários retorquiu Perronet, o que poderia criar alguns problemas. Mas, se o instituto fechar e, subsequentemente, deixar de haver um reitor, então o papiro será incluído no espólio.

 

Deve tratar-se de um objecto de valor, quer seja autêntico ou não.

 

Sim, poderia ter um valor considerável para alguém interessado em dinheiro ou em poder.

 

”Tal como Sir Aired Treeves”, pensou Dalgliesh. Mas era difícil imaginar Sir Aired a introduzir deliberadamente o seu filho adoptivo no instituto apenas para poder ficar com o papiro de Santo Anselmo, mesmo que tivesse provas da sua existência.

 

Creio que não há dúvidas quanto à ilegitimidade do Raphael?... insistiu Dalgliesh.

 

Não, inspector, não existem quaisquer dúvidas. A sua mãe, quando engravidou, não escondeu que não era casada nem tencionava casar. Nunca revelou o nome do pai da criança, muito embora expressasse vivamente o seu desprezo e ódio por ele. Quando a criança nasceu, deixou-a à porta do instituto, num cesto, com um bilhete onde se lia: ”É de supor que pratiquem a caridade cristã. Sendo assim, pratiquem-na com este filho bastardo. Se querem dinheiro, peçam-no ao meu pai.” O bilhete está na caixa que lhe mostrei sobre a família Arbuthnot. Foi um acto inconcebível por parte de uma mãe.

 

Era realmente inconcebível, pensou Dalgliesh. Havia mulheres que abandonavam os filhos e que, por vezes, iam mesmo ao ponto de assassiná-los. No entanto, houvera uma brutalidade calculada naquela rejeição por parte de uma mulher que tinha dinheiro e, com certeza, amigos também.

 

Partiu para o estrangeiro, logo de seguida, e penso que viajou pelo Extremo Oriente e pela índia, durante dez anos. Tenho ideia de que, durante a maior parte do tempo, se fazia acompanhar por uma amiga, uma médica, que se suicidou, pouco antes de a Clara Arbuthnot regressar a Inglaterra. A Clara morreu de cancro, na Casa de Saúde Ashcombe, nos arredores de Norwich, em trinta de Abril de mil novecentos e oitenta e oito.

 

Sem nunca ver o filho?

 

Nunca o viu nem se interessou por ele, mas também é preciso ter em conta que morreu muito nova. Se tivesse vivido mais tempo, talvez tudo tivesse sido diferente. O pai dela, que tinha mais de cinquenta anos quando casou, era já um velho na altura em que o neto nasceu, e nunca teria tolerado qualquer escândalo. No entanto, ainda estabeleceu um pequeno rendimento para o neto. O reitor da altun foi nomeado tutor do Raphael, depois da morte do avô. O instituto tem sido, para todos os efeitos, a casa do Raphael. Os padres souberam encarregar-se da sua educação. Acharam que o mais indicado seria que o Raphael fosse estudar para uma escola preparatória, onde poderia conviver com outros rapazes da sua idade, e penso que foi uma sábia decisão. Seguiu-se um colégio interno, para que terminasse os estudos. O rendimento deixado pelo seu avô mal dava para as propinas. No entanto, o Raphael passava as férias no instituto.

 

Foi então que o telefone tocou. Depois de atender, Paul Perronet fitou o seu interlocutor:

 

Era a Sally, a informar-me de que o meu cliente acaba de chegar. Há mais alguma coisa que deseje saber, inspector?

 

Não, obrigado. Não tenho a certeza de que aquilo que me contou seja ou não relevante, mas fico-lhe agradecido por ter escutado as minhas dúvidas. Obrigado por tudo.

 

Pelo seguimento da nossa conversa, diria que nos afastámos, e muito, da morte daquele pobre rapaz. Só lhe peço que me informe do resultado da sua investigação. Como fideicomissário, tenho interesse em saber.

 

Dalgliesh prometeu que informaria Paul Perronet de qualquer descoberta que fizesse.

 

Saiu do edifício e subiu a rua, em direcção ao esplendor de St. Pi ter Mancroft. Afinal, estava de férias e tinha o direito de dedicar pelo menos uma hora aos seus interesses pessoais.

 

Ponderou no que acabara de saber. Havia uma estranha coincidência: Clara Arbuthnot morrera no hospício onde Margaret Munroe

 


trabalhara como enfermeira. Mas talvez não fosse assim tão estranho. Miss Arbuthnot possivelmente teria querido morrer no condado em que nascera. Por outro lado, o Instituto de Santo Anselmo havia colocado um anúncio nos jornais da região e Mrs. Munroe andava à procura de um novo emprego. Além do mais, as duas mulheres não podiam conhecer-se. Dalgliesh teria de verificar as datas, embora lhe parecesse impossível que elas se tivessem encontrado, uma vez que Miss Arbuthnot morrera um mês antes de Margaret Munroe começar a trabalhar no hospício.

 

Contudo, havia outro facto de que acabara de tomar conhecimento e que se revelava uma desconfortável complicação. Fosse qual fosse a verdade em relação à morte do Ronald Treeves, acelerara o encerramento do Instituto de Santo Anselmo. E, quando tal sucedesse, quatro dos membros do pessoal docente tornar-se-iam homens muito ricos.

 

Dalgliesh havia decidido que Santo Anselmo ficaria feliz com a sua ausência durante a maior parte do dia, mas dissera ao padre Martin que regressaria para o jantar. Ao fim de duas horas a explorar a cidade, descobriu um restaurante onde nem a comida nem a decoração eram pretensiosas e regalou-se com um almoço frugal. Havia algo que ainda tinha de fazer, antes de voltar ao instituto. Consultou a lista telefónica, no restaurante, e descobriu o endereço dos editores do Sole BÍJ Weekly Gazette. A sede, comum a uma série de jornais locais e revistas, ficava num prédio baixo, que mais parecia uma garagem, perto de uma das saídas da cidade. Dalgliesh não teve qualquer problema em obter exemplares atrasados do jornal. A memória de Karen Surtees não lhe falhara. A edição da semana anterior à da morte de Mrs. Munroe exibia, realmente, a fotografia de uma vitela, com fitas pretas nos chifres, junto da sepultura do dono.

 

Dalgliesh estacionara no pátio em frente do edifício e, de regresso, leu atentamente o jornal. Era um semanário regional e a sua preocupação com a vida local e rural e com os interesses das pequenas cidades constituía uma agradável novidade em relação às preocupações previsíveis em jornais de tiragem nacional. Naquele pequeno jornal, havia artigos sobre torneios de jogos de cartas, anúncios, uma página de necrologia, relatos de competições de dardos e de reuniões de grupos e associações locais. Outra das páginas era dedicada aos casamentos da semana, com fotografias dos noivos e padrinhos, sorrindo para a câmara, e havia ainda muitas páginas de anúncios para o mercado imobiliário, com fotografias das casas e dos bangalós que estavam à venda ou podiam ser arrendados. Quatro páginas eram dedicadas a mensagens pessoais e outros anúncios. Apenas dois artigos faziam alusão às preocupações menos inocentes do mundo internacional. Sete imigrantes ilegais haviam sido apanhados num celeiro e suspeitava-se de que tinham sido trazidos para ali de barco. A Polícia detivera dois suspeitos, depois de apreender cocaína, suscitando a hipótese de poder existir um traficante de droga na região.

 

Dobrando o jornal, Dalgliesh concluiu que o seu palpite de nada lhe valera. Se houvera algo no Gazette que avivara a memória de Margaret Munroe, o segredo morrera com ela.

 

Depois de sair do seu vicariato, em Cressingfield, a sul de Ipswich, o reverendo Matthew Crampton, arcediago de Reydon, escolheu o trajecto mais curto para Santo Anselmo. Entrou na A12 com a confiança de quem havia deixado a paróquia, a esposa e o seu gabinete em boas mãos. Mesmo na juventude, nunca saía de casa sem o pensamento, a que nunca dava voz, de que podia não regressar. Não que fosse uma preocupação séria, mas, sim, uma hipótese omnipresente, tal como os restantes receios que se aninhavam no seu subconsciente. Por vezes, chegava a pensar que levava a sua vida, dia após dia, na expectativa da morte. Os pequenos rituais diurnos que estavam associados àquela hipótese nada tinham a ver com uma preocupação mórbida com a morte, nem tão-pouco com a sua fé. Era mais um legado deixado pela mãe, que todas as manhãs insistia para que ele vestisse roupa interior lavada, uma vez que podia ser atropelado e expor-se aos olhares de enfermeiras, médicos e, talvez mesmo, do cangalheiro, como uma pobre vítima do desinteresse maternal. Quando era criança, chegava a imaginar a cena final: ele, estendido num gavetão da morgue, enquanto a sua mãe se sentia reconfortada e agradecida pela certeza de que, pelo menos, o filho morrera com umas cuecas lavadas.

 

O arcediago Crampton havia ultrapassado o seu primeiro casamento com a mesma meticulosidade com que arrumara a sua secretária. A visita silenciosa ao canto da escada, o que vislumbrara pela janela do seu gabinete, o súbito choque de ouvir uma risada, haviam sido misericordiosamente mitigados pelos seus deveres na paróquia, pela rotina e pelo seu segundo casamento. Trancara à chave, num compartimento escuro da sua memória, o primeiro casamento, não sem antes proferir formalmente uma sentença quanto ao passado. Certa vez, ouvira uma das suas paroquianas, mãe de uma criança disléxica e surda, contar como a filha havia sido ”declarada” deficiente pelas autoridades locais e apercebera-se de que aquela estranha expressão era sinónimo de que as necessidades da criança seriam asseguradas e se tomariam as devidas medidas para o seu bem-estar. Assim, num contexto diferente mas usando de igual autoridade, o arcediago Matthew Crampton tinha ”declarado” o seu primeiro casamento como algo que pertencia ao passado. Não havia transcrito para o papel as palavras que nunca proferira mas podia recitá-las de cor, como se falasse de alguém que conhecera casualmente, referindo-se sempre a ele próprio na terceira pessoa, e aquela breve e final dispensa do seu primeiro casamento, na sua cabeça, aparecia sempre escrita em itálico.

 

O arcediago Crampton casou-se com a sua primeira mulher, afim de se tornar vigário de uma cidade do interior. Barbara Hampton era dez anos mais nova do que o marido, muito bonita, voluntariosa e mentalmente instável facto que a sua família jamais havia revelado. O casamento, a princípio, fora normal. Ele considerava-se o feliz esposo de uma mulher que pensava não merecer. A sentimentalidade dela era encarada como afabilidade, e a facilidade com que se dava com estranhos, a sua beleza e a sua generosidade tornaram-na muito popular na paróquia. Durante meses, ele não se dera conta, nem muito menos falara dos problemas que, entretanto, haviam surgido no matrimónio. Até que a partir de certa altura, os paroquianos tinham começado a telefonar para o vicariato, quando ela estava ausente, contando-lhe histórias embaraçosas. Os rompantes de mau génio, os gritos, os insultos, que ele julgava acontecerem apenas a ele, dentro das quatro paredes de sua casa, sem que mais ninguém o soubesse, haviam passado para o exterior e os rumores começaram a espalhar-se pela paróquia. Ela recusara-se a ser tratada, argumentando que era ele que estava louco. Fora por essa altura que ela começara a beber.

 

Então, ao fim de quatro anos de casamento, numa certa tarde em que ele devia sair para ir visitar alguns dos seus fiéis que estavam doentes, sabendo que a mulher fora deitar-se, com o pretexto de que se sentia cansada, resolvera ir ver como ela estava. Abrira a porta do quarto, espreitara e, julgando que ela dormia, não ousara incomodá-la e saíra. Ao regressar, naquela mesma noite, descobrira que ela estava morta. Tinha tomado uma dose excessiva de aspirinas. O inquérito conduzira a um veredicto de suicídio. Ele recriminara-se por haver casado com uma mulher muito mais nova, que nunca poderia preencher os requisitos para ser A esposa de um vigário. Encontrou, mais tarde, a felicidade num casamento mais consentâneo com a sua posição, mas nunca deixou de chorar pela morte da primeira mulher.

 

Era assim a história, conforme ele a recitava mentalmente, se bem que lhe viesse ao espírito com menos frequência. Voltara a casar, ao fim de dezoito meses. Um vigário que ficara viúvo de forma tão trágica fora inevitavelmente visto como o alvo preferido das casamenteiras da paróquia e ficara sempre com a impressão de que alguém havia escolhido, por ele, a sua segunda mulher e de que se tratara de uma decisão à qual ele anuíra alegremente.

 

Porém, voltando ao presente, tinha uma tarefa a cumprir, que lhe agradava, se bem que tentasse convencer-se que se tratava do seu dever: persuadir Sebastian Morell de que o Instituto de Santo Anselmo devia fechar as portas e, também, encontrar quaisquer provas adicionais que o ajudassem a tornar o encerramento do instituto tão rápido quanto inevitável. Acreditava que Santo Anselmo, um instituto cuja manutenção custava muito dinheiro, ficava situado numa localidade remota, tinha apenas vinte estudantes, criteriosamente seleccionados, mas usufruía de demasiados privilégios e era algo elitista; constituía o exemplo acabado de tudo o que estava errado na Igreja Anglicana. O arcediago, por outro lado, admitia, e regozijava-se pela sua honestidade, que o seu antagonismo para com a instituição era extensivo ao seu director; por que motivo aquele homem devia ser apelidado de reitor? Era uma antipatia, a nível pessoal, que ia muito para além de quaisquer diferenças de opinião sobre a Igreja ou a Teologia. Admitia, também, embora só em parte, que a antipatia que sentia para com Sebastian Morell se devia ao facto de ambos pertencerem a classes sociais muito diferentes. O arcediago Crampton tinha-se na conta de haver trilhado o seu caminho para ser ordenado e, mais tarde, promovido. Na realidade, pouco batalhara para alcançar os seus objectivos; enquanto estudante universitário, o seu percurso havia sido facilitado por generosas dádivas, e a sua mãe sempre fizera todas as vontades ao único filho. Contudo, Morell era filho e neto de bispos e um dos seus antepassados fora um dos grandes arcebispos da Igreja, no século xvi. Os Morell viviam em palácios e o arcediago Crampton sabia que o seu adversário estenderia os tentáculos, familiares e pessoais, da sua influência para chegar às fontes do poder em Whitehall, às universidades e à Igreja, e não cederia um só milímetro na luta para manter o seu pequeno feudo.

 

Houvera, ainda, aquela mulher dele, com cara de cavalo; só Deus sabia porque fora que Sebastian Morell casara com ela. Lady Verónica encontrava-se presente no instituto, aquando da primeira visita do arcediago Crampton, muito antes de ele ser nomeado fideicomissário, e ficara sentada à sua esquerda durante o jantar. A ocasião não fora particularmente feliz para ambos, mas, entretanto, ela morrera. Ao menos, o arcediago Crampton seria poupado àquela voz roufenha, ofensivamente pedante, que transportava consigo séculos de arrogância e de insensibilidade. O que sabiam ela e o seu marido da pobreza e das suas humilhantes privações? Quando haviam eles sido obrigados a conviver com a violência e os problemas intratáveis de uma paróquia em franca decadência? Morell nem sequer tinha servido qualquer comunidade, excepto durante os seus primeiros dois anos de sacerdócio, em que fora padre na paróquia de uma cidade em voga. Por que razão um homem com a sua capacidade intelectual e reputação se contentara em ser o responsável de um pequeno instituto teológico, isolado de tudo e de todos, era um mistério para o arcediago, que julgava não ser o único a desconfiar daquela aparente abnegação por parte de Morell.

 

Contudo, podia haver uma explicação para a escolha de Sebastian Morell, com base nos termos do deplorável testamento de Miss Arbuthnot. Como fora possível que os seus advogados houvessem permitido que ela fizesse um testamento daqueles? A verdade é que ela nunca poderia adivinhar que os quadros e as pratas que doara a Santo Anselmo se tornassem tão valiosos, século e meio mais tarde. Nos últimos anos, Santo Anselmo havia sido sustentado pela Igreja. Assim, era moralmente justo que, quando fechasse, os seus bens revertessem a favor da Igreja ou de uma das suas instituições de caridade. Era inconcebível que Miss Arbuthnot tivesse a intenção de converter em multimilionários os quatro padres que residiam no instituto, aquando do seu encerramento. Um tinha perto de oitenta anos e o outro era um confesso pedófilo. O arcediago Crampton tudo faria para se certificar de que todos os objectos de valor fossem removidos do instituto antes de este encerrar. Sebastian Morell nunca poderia opor-se a isso, sem que caísse sobre si a acusação de ser um homem egoísta e ambicioso. A sua tortuosa campanha para manter o instituto aberto era, provavelmente, uma artimanha para esconder o seu interesse pelo espólio.

 

As linhas de batalha haviam sido formalmente delineadas e o arcediago Crampton estava confiante de que ia a caminho do que esperava ser um conflito decisivo.

 

O padre Sebastian sabia que teria de se confrontar com o arcediago, antes que o fim-de-semana acabasse, mas não fazia tenção de que aquele confronto se desse na igreja. Estava preparado, talvez até mesmo um pouco ansioso, para defender o seu território, mas nunca o faria em frente do altar. Contudo, quando o arcediago lhe comunicou que queria ver o quadro de Rogier van der Weyden, o padre Sebastian, que não tinha um pretexto para não o acompanhar e sabia que entregar-lhe as chaves seria um acto pouco civilizado da sua parte, consolou-se com o pensamento de que, provavelmente, aquela visita seria curta. Afinal, que poderia desagradar ao arcediago na igreja, a não ser, talvez, o odor persistente do incenso? O padre Sebastian decidiu manter a calma e, na medida do possível, restringir a sua conversa com o arcediago a meras trivialidades, por estar convicto de que dois padres podiam falar, um com outro, numa igreja, sem qualquer azedume.

 

Os dois homens atravessaram, em silêncio, o claustro norte até à porta da sacristia. Nem um nem outro abriu a boca até o padre Sebastian acender a luz que iluminava o quadro; postaram-se, lado a lado, a contemplá-lo.

 

O padre Sebastian nunca havia conseguido encontrar as palavras adequadas para descrever o efeito que a súbita revelação daquela imagem tinha sobre ele, e não era agora que iria tentar encontrá-las. Passou-se um longo minuto antes que o arcediago falasse. A sua voz ressoou estranhamente alta no silêncio da igreja.

 

Não devia estar aqui, como é óbvio. Nunca pensou em mudálo de lugar?

 

Mudá-lo para onde, arcediago? Foi oferecido ao instituto por miss Arbuthnot, justamente para que fosse colocado por cima do altar da igreja.

 

Mas não é um local seguro para uma obra de arte tão valiosa. Segundo os seus cálculos, quanto valerá? Cinco milhões de libras? oito milhões? Dez?

 

Não faço a menor ideia. No que diz respeito à segurança, o retábulo encontra-se neste lugar há mais de cem anos. Para onde sugere que o mudemos?

 

Para um local mais seguro ou um local onde outras pessoas possam vê-lo. O procedimento mais sensato... e já falei nisso com o bispo... seria vendê-lo a um museu, onde pudesse ficar exposto ao público. A Igreja ou qualquer instituição de caridade poderia fazer bom uso do produto da venda. O mesmo se aplica a dois dos vossos cálices mais valiosos. Não me parece apropriado que objectos de tal valor sejam mantidos aqui, apenas para o privilégio e satisfação de vinte ordinandos.

 

O padre Sebastian sentiu-se tentado a citar um versículo das Escrituras: ”Pois este unguento podia ter sido vendido por muito, mas foi dado aos pobres.” No entanto, absteve-se prudentemente de tecer qualquer comentário, sem, todavia, conseguir disfarçar um certo azedume na sua voz quando replicou:

 

O retábulo é propriedade deste instituto. Nunca será vendido, enquanto eu for o reitor, nem, tão-pouco, removido daqui. As pratas serão mantidas no santuário, em segurança, e usadas para o fim para que foram feitas.

 

Mesmo que a sua presença implique que a igreja tenha de ficar trancada e não esteja disponível para os ordinandos?

 

A igreja está sempre ao dispor dos nossos ordinandos. Só têm de pedir as chaves.

 

A necessidade de recorrer à oração, por vezes, é muito mais espontânea do que o acto de pedir uma chave contrapôs o arcediago.

 

É por isso mesmo que temos um oratório.

 

O arcediago virou as costas e o padre Sebastian afastou-se para apagar a luz que iluminava o quadro. O seu companheiro prosseguiu:

 

De qualquer maneira, quando o instituto fechar, o quadro terá de ser removido. Não sei o que a diocese pensa fazer com este local... refiro-me à igreja. Fica longe de mais para servir uma paróquia, como antigamente, mesmo em conjugação com outras. Depois, onde arranjariam vocês uma congregação? Além do mais, é muito pouco provável que quem quer que compre a mansão vá querer uma capela privada, mas nunca se sabe. Pessoalmente, não consigo imaginar quem possa estar interessado em comprar a mansão. Fica situada num local remoto, de acesso difícil e sem ligação directa à praia. Não a vejo transformada num hotel ou numa casa de convalescença. E com a erosão da costa, esta mansão não estará aqui, dentro de vinte anos.

 

O padre Sebastian esperou até ter a certeza de que recobrara a calma.

 

Está a falar, arcediago, como se a decisão de encerrar o instituto já tivesse sido tomada. Partia do princípio de que, como reitor de Santo Anselmo, me consultariam primeiro. Ora, ainda ninguém falou comigo nem me escreveu a esse respeito.

 

Oh, mas será consultado, como não podia deixar de ser. Só depois se dará início a todos os trâmites necessários. Mas o fim é inevitável, e você sabe-o tão bem quanto eu. A Igreja Anglicana está a centralizar e a racionalizar o seu ensino teológico. Há algum tempo que se fala nessa reforma. Santo Anselmo é muito pequeno, remoto, caro e elitista.

 

Elitista, arcediago?

 

Empreguei esta palavra deliberadamente. Quando foi a última vez que aceitou um ordinando vindo do sistema educacional do Estado?

 

O Stephen Morby veio do sistema educacional do Estado e atrevo-me a dizer que é, provavelmente, o nosso ordinando mais inteligente.

 

Sim, mas deve ter sido o primeiro caso. Provavelmente, veio de Oxford e com notas muito altas. E quando aceitarão um ordinando do sexo feminino? Ou uma mulher sacerdote no vosso corpo docente?

 

Nunca nenhuma mulher concorreu.

 

Exactamente, porque as mulheres sabem bem quando não são desejadas.

 

Penso que a história recente prova o contrário, arcediago. Não somos preconceituosos. A Igreja, ou melhor, o sínodo tomou a sua decisão, se bem que este lugar seja demasiado pequeno para ter ordinandos do sexo feminino. Até mesmo os institutos teológicos mais importantes estão a experimentar algumas dificuldades. São os ordinandos que acabam por sofrer. Pessoalmente, nunca presidiria a uma instituição cristã em que alguns membros se recusam a comungar por causa dos outros.

 

O elitismo não é o vosso único problema. Se a Igreja não sofrer uma reforma para ir ao encontro das necessidades do século vinte e um, acabará por desaparecer. A vida que os seus estudantes levam, aqui, é ridiculamente privilegiada, muito longe das vidas dos homens e mulheres que eles esperam servir. O estudo do grego e do hebraico têm o seu lugar, não o nego, mas também devemos reflectir sobre novas disciplinas que poderemos oferecer. Que conhecimentos têm eles de sociologia, do relacionamento entre as raças, da colaboração entre as diferentes religiões?

 

O padre Sebastian conseguiu, a custo, fazer com que a sua voz deixasse transparecer uma aparente calma.

 

O ensino que facultamos aqui é um dos melhores do país, Os relatórios das inspecções provam-no. Além do mais, é um disparate alegar que os nossos estudantes não têm qualquer contacto com o mundo real ou não são treinados para servir esse mesmo mundo. Padres aqui ordenados saíram de Santo Anselmo para ir servir nas áreas mais difíceis e pobres, tanto em Inglaterra como no estrangeiro. E o padre Donovan, que morreu de febre tifóide, no Extremo Oriente, porque não quis abandonar o seu rebanho, ou o padre Bruce, que foi martirizado em África? E há mais. Santo Anselmo ensinou dois dos bispos mais eminentes deste século.

 

Foram bispos notáveis para a sua época, não para a nossa. Está a falar do passado, enquanto que eu me preocupo com as necessidades do presente, em particular, dos jovens. Não traremos pessoas para a nossa fé com as nossas convenções antiquadas, uma liturgia arcaica e uma Igreja que é considerada pretensiosa, enfadonha, elitista e até mesmo racista. Santo Anselmo tornou-se irrelevante para esta nova era.

 

Afinal, o que pretende? Uma Igreja sem mistério, destituída desse ensino, da tolerância e da dignidade que constituíram as virtudes do anglicanismo? Uma Igreja sem qualquer humildade, perante o inefável mistério e amor de Deus Todo-Poderoso? Serviços religiosos com hinos banais, uma liturgia deturpada e a Eucaristia condirgida como se fosse uma dessas festas de paróquia? Lamento imenso mas não é assim que conduzo os serviços religiosos, aqui, em Santo Anselmo. Reconheço que existem diferenças legítimas quanto ao modo como ambos encaramos o sacerdócio. Longe de mim querer ofendê-lo.

 

Não sei, mas penso que a sua intenção era ofender-me. Deixe-me ser franco consigo, Morell.

 

Já foi franco. Pensa que este é o lugar mais adequado?

 

Santo Anselmo será encerrado. Serviu o seu propósito, no passado, com grande eficiência. Disso não restam dúvidas, mas tornou-se irrelevante, agora. O seu ensino é bom, mas será melhor do que o de Chichester, Salisbury ou Lincoln? Tiveram de fechar as portas.

 

Santo Anselmo não encerrará, pelo menos, enquanto eu for vivo. É bom não esquecer que gozo de certas influências.

 

Já o sabemos. Foi justamente disso que estive a queixar-me.., do poder da influência, de se conhecer as pessoas certas, de se mover nos círculos adequados e de se poder sussurrar algo ao ouvido de alguém. Essa perspectiva da Inglaterra está tão ultrapassada como este instituto. O mundo a que pertencia Lady Verónica morreu.

 

A ira, controlada a custo, do padre Sebastian finalmente encontrou vazão. Mal conseguia falar, mas as suas palavras, distorcidas pelo ódio, irromperam, por fim, num tom de voz que nem sequer conseguiu reconhecer como sendo o seu.

 

Como se atreve? Como se atreve a mencionar o nome da minha mulher?

 

Os dois homens entreolharam-se, como se fossem dois pugilistas. Foi o arcediago quem quebrou aquele momento de grande tensão.

 

Peço-lhe que me perdoe. Fui imoderado e pouco caritativo. Empreguei as palavras erradas no lugar errado. É melhor irmos embora.

 

Ainda esboçou um gesto como se estivesse disposto a estender a mão ao outro, mas mudou de ideia. Caminharam, em silêncio, ao longo da nave norte, em direcção à porta da sacristia. De súbito, o padre Sebastian deteve-se.

 

Está aqui mais alguém sussurrou. Não estamos sozinhos.

 

Os dois homens estacaram e puseram-se à escuta.

 

Não ouço nada rematou o arcediago, ao fim de alguns segundos. A igreja está vazia. A porta estava trancada e o alarme ligado, quando entrámos. Não está ninguém aqui.

 

Claro que não. Foi apenas uma impressão da minha parte. O padre Sebastian voltou a ligar o alarme e trancou a porta da sacristia, depois de os dois homens saírem; passaram para o claustro norte. O pedido de desculpas fora feito, mas o padre Sebastian sabia que as palavras que ambos haviam dito nunca poderiam ser esquecidas. Sentia-se enojado consigo próprio por haver perdido o controlo. Tanto ele como o arcediago haviam falhado, mas era ele o anfitrião e, consequentemente, quem tinha mais responsabilidades. Além de que o arcediago apenas havia dado voz aos pensamentos e às ideias de terceiros. O padre Sebastian sentiu-se invadido por uma profunda depressão, acompanhada por uma emoção que lhe era menos familiar, se bem que fosse mais forte do que uma vaga apreensão. Era medo.

 

O lanche, aos sábados, em Santo Anselmo, era informal. Mrs. Pilbeam preparava-o e era servido na sala de estar dos estudantes, nas traseiras da mansão, que ficava à disposição de todos aqueles que permaneciam no instituto durante o fim-de-semana. Em geral, eram poucos, particularmente quando havia um jogo de futebol não muito longe dali.

 

Eram três da tarde e Emma, Raphael Arbuthnot, Henry Bloxrum e Stephen Morby aproveitavam aquele momento de ócio na saleta de Mrs. Pilbeam, localizada entre a cozinha principal e a passagem que conduzia ao claustro sul. Era naquela mesma passagem que um lanço de escadas íngreme levava à adega. A cozinha, com os seus quatro fornos a gás, as bancadas, reluzentes, em aço, e o equipamento moderno, estava vedada aos estudantes. Por conseguinte, era na pequena saleta, com um fogão a gás e uma mesa quadrada, que Mrs. Pilbeam fazia scones, bolos e preparava o chá. Era uma divisão acanhada, até mesmo um pouco desleixada, em contraste com o asseio cirúrgico da cozinha A lareira original, com guarda-fogo em ferro trabalhado, permanecia no seu lugar e, muito embora os toros agora fossem sintéticos e o combustível o gás, conferia um ambiente confortável ao aposento.

 

Aquela saleta constituía o território privado de Mrs. Pilbeam. A cornija continha alguns dos seus tesouros pessoais, que, na sua maior parte, lhe haviam sido oferecidos pelos estudantes sempre que regressavam de férias: um bule decorado, um sortido de canecas e de jarras, os cães em porcelana de que ela tanto gostava e até mesmo uma boneca de vestido garrido, cujas pernas pendiam do rebordo da cornija.

 

Mrs. Pilbeam tinha três filhos, espalhados pelo mundo, e podia perceber que a afável senhora Emma, apreciava aquelas reuniões sema nais com os jovens, tanto quanto os ordinandos acolhiam com alívio aquela mudança da austeridade masculina que imperava na sua rotina diária. Tal como eles, Emma sentia-se confortada pelo afecto maternal, mas não demasiado sentimental, de Mrs. Pilbeam. Perguntava a si mesma se o padre Sebastian aprovava aquelas reuniões informais. Não tinha a menor dúvida de que ele sabia da sua existência; poucas coisas se passavam no instituto de que o padre Sebastian não tivesse conhecimento.

 

Naquela tarde de sábado, apenas três estudantes estavam presentes. Peter Buckhurst, que continuava em convalescença, ficara a descansar no quarto.

 

Emma aninhara-se nas almofadas de uma cadeira de vime, do lado direito da lareira, enquanto Raphael ocupara outra, à sua frente, e esticara as pernas. Quanto a Henry, estendera uma secção da edição de sábado do The Times sobre um canto da mesa, enquanto que, no outro, Stephen recebia aulas de culinária ministradas por Mrs. Pilbeam. A mãe dele, que habitava no Norte da Inglaterra numa vivenda imaculada, na qual ele havia crescido, acreditava que os filhos varões não deviam ajudar na lida da casa, tal como a sua mãe e a sua avó, antes dela. Contudo, quando Stephen estudara em Oxford, ficara noivo de uma jovem e brilhante médica com vistas mais largas e que acreditava na igualdade dos sexos. Naquela tarde, encorajado por Mrs. Pilbeam e ouvindo, de tempos a tempos, algumas críticas dos seus colegas, dedicava-se, com afinco, à preparação da massa de pasteleiro, e já adicionara a banha e a manteiga à farinha.

 

Não é assim, Mister Stephen repreendeu Mrs. Pilbeam. Amasse a massa com a ponta dos dedos, erguendo-a para a deixar cair na taça. Assim, apanhará ar, o que é muito importante.

 

Mas sinto-me um perfeito idiota... resmungou Stephen.

 

És um perfeito idiota! comentou Henry. Se a tua Allison pudesse ver-te neste preciso instante, ficaria com grandes dúvidas acerca da tua capacidade de ser pai das duas brilhantes criancinhas que vocês planeiam ter.

 

Não ficava nada! protestou Stephen, com um sorriso.

 

Mesmo assim, essa massa tem uma cor esquisita. Porque não vais antes ao supermercado? Vendem massas de grande qualidade, já prontas a usar, na área dos congelados...

Nada se compara à pastelaria caseira, Mister Henry. Não desencoraje Mister Stephen. Agora, sim, parece estar bem. Comece a adicionar a água. Não, não pegue no jarro. Tem de adicionar uma colher de água de cada vez.

 

Eu tinha uma grande receita de frango estufado explicou | Stephen, quando vivia em Oxford. Compra-se um frango partido aos pedaços no supermercado e, depois, junta-se-lhe uma sopa de cogumelos de pacote. Ou também pode ser uma sopa de tomate. Sai sempre bem. A massa já está pronta, Mistress Pilbeam?

 

Mrs. Pilbeam examinou o conteúdo da taça onde, finalmente, a massa se formara numa bola reluzente.

 

Para a semana que vem, dar-lhe-ei algumas receitas de frango estufado. A massa parece estar boa. Agora, vamos embrulhá-la em papel aderente e colocá-la no frigorífico para que repouse.

 

Porque é que a massa precisa de repousar? Quem está exausto sou eu! Fica sempre com esta cor? Parece estar um pouco mole

 

Raphael levantou-se e perguntou:

 

Onde está o detective?

 

Foi Henry que respondeu, sem erguer o olhar do jornal.

 

Ao que parece, só volta para o jantar. Vi-o partir, esta manhã, logo a seguir ao pequeno-almoço. Tenho de confessar que senti um certo alívio ao vê-lo ir-se embora. Não pode dizer-se que a sua presença seja agradável...

 

O que espera aquele homem descobrir? exclamou Stephen. Não pode reabrir o inquérito. Ou pode? É possível proceder-se a um inquérito quando o cadáver já foi cremado?

 

Henry ergueu o olhar.

 

Olha que não deve ser lá muito fácil, mas pergunta ao Dalgliesh. Ele é que é o especialista.

 

Dito isto, retomou a sua leitura do The Times. Stephen dirigiu-se ao lava-louça para lavar as mãos.

 

Sinto a consciência pesada no que se refere ao Ronald. Nunca nos demos ao incómodo de o compreender...

 

Ao incómodo? Mas devíamos fazê-lo? Que eu saiba, Santo Anselmo não é uma escola preparatória. A voz de Raphael, então, adoptou um tom pedante. ”Este é o jovem Treeves, Arbuthnot, e vai ficar no seu dormitório. Tome conta dele, está bem? Mostre-lhe as redondezas.” Talvez o Ronald tenha pensado que regressara aos tempos da escola, com aquele seu péssimo hábito de etiquetar tudo. As roupas com o nome escrito e as etiquetas autocolantes em tudo o resto. Que julgava ele? Que íamos roubá-lo?

 

Uma morte súbita provoca sempre emoções previsíveis sentenciou Henry. O choque, o desgosto, a revolta, a culpa. Ultrapassámos o choque, não sentimos grande desgosto nem temos motivos para nos sentirmos revoltados. Sobra apenas o complexo de culpa Não sei porquê, mas parece-me que vai haver uma enfadonha uniformidade nas nossas próximas confissões. O padre Beeding vai ficar farto de ouvir o nome do Ronald Treeves. Intrigada, Emma perguntou: Não são os padres residentes que ouvem as vossas confissões? Henry riu-se. Meu Deus, claro que não! Podemos ser elitistas mas não a esse ponto. Um padre de Framlingham vem até cá duas vezes em cada período, para ouvir as nossas confissões. Acabara a leitura do jornal e dobrou-o cuidadosamente.

 

Por falar no Ronald, cheguei a contar-vos que o vi na noite de sexta-feira? Ou seja, na véspera de ele morrer?

 

Não replicou Raphael. Viste-o onde?

 

A sair da pocilga dos porcos.

 

O que estava ele lá a fazer?

 

Como queres que saiba? Provavelmente, a coçar os lombos dos porcos. Agora, falando a sério: quando o vi, pareceu-me que estava muito aflito e, por breves segundos, cheguei mesmo a pensar que estivera a chorar. Não penso que ele me tenha visto. Passou por mim, aos tropeções, em direcção ao promontório.

 

Contaste isso à Polícia?

 

Não, nem a mais ninguém. Tudo o que a Polícia me perguntou... com o que me pareceu ser uma grande falta de tacto... foi se eu achava que o Ronald tinha motivos para querer suicidar-se. Sair do chiqueiro, na noite anterior, mesmo que parecendo muito aflito, dificilmente o levaria a enfiar a cabeça debaixo de uma tonelada de areia. Depois, não tinha a certeza do que vira. Ele quase chocou contra mim, mas estava muito escuro. Posso ter imaginado coisas. É de presumir que o Eric Surtees nada disse sobre o assunto, caso contrário, ter-se-ia falado nisso durante o inquérito. De qualquer maneira, o Ronald foi visto mais tarde, nessa mesma noite, por Mister Gregory, que afirmou que ele lhe parecera estar bem durante a aula de Grego.

 

Mesmo assim foi um estranho acidente, não acham? perguntou Stephen.

 

Mais estranho agora do que nos pareceu na altura. Não consigo pensar noutra coisa. Dá ideia de que o Ronald paira por aqui... Por vezes parece estar mais fisicamente presente, parece ser mais real do que quando era vivo.

 

Fez-se silêncio. Emma nada dissera. Olhou para Henry e desejou, mais uma vez, ter uma ideia mais precisa quanto ao carácter do rapaz. Lembrava-se de uma conversa que havia tido com Raphael quando Henry entrara para o instituto.

 

O Henry intriga-me. E a si?

 

Ela respondera:

 

Todos vocês me intrigam.

 

Ainda bem, porque não queremos parecer-lhe transparentes. Além do mais, deixe que lhe diga que a senhora também nos intriga. Mas, o Henry... que está ele a fazer aqui?

 

Imagino que o mesmo que você.

 

Se eu ganhasse um milhão de libras por ano, com a possibilidade de ganhar um outro milhão no Natal, como bónus pelo meu bom comportamento, duvido muito que quisesse abdicar desse privilégio por um salário de dezassete mil libras ao ano, se tivesse sorte, Ainda por cima, sem sequer poder sonhar em ter uma casa decente para o meu vicariato. Todas as casas foram vendidas a famílias de yuppies com predilecção pela arquitectura vitoriana. Tudo o que conseguimos, agora, é um miserável apartamento com lugar reservado para o nosso Fiesta, em segunda mão, na garagem do prédio. Lembra-se daquela passagem desagradável, em São Lucas, sobre o jovem rico que se rendia à tristeza, porque era dono de grande fortuna? Revejo-me nele. Felizmente, não só sou pobre como, ainda, filho ilegítimo... Pensa que Deus fez com que nunca sejamos confrontados com tentações a que nunca teremos forças de resistir? Emma replicara:

 

A história do século vinte não sustenta mais essa tese.

 

Talvez eu passe esta ideia ao padre Sebastian ou lhe sugira que a desenvolva num sermão. Por outro lado, é melhor não.

 

A voz de Raphael trouxe-a de volta ao presente.

 

O Ronald era um empecilho... A sua preparação cuidada das matérias, de forma a que pudesse pensar em perguntas inteligentes para fazer, e aquela constante obsessão de escrevinhar... Provavelmente, anotava as passagens que, segundo ele, lhe podiam ser úteis para os seus futuros sermões. Não há nada como uma infusão de versículos para elevar o medíocre a memorável, especialmente se a congregação não se aperceber de que está a citar passagens da Bíblia.

 

Dei comigo a pensar, de tempos a tempos, o que o levava a frequentar os meus seminários confessou Emma. Afinal, não são frequentados apenas por voluntários?

 

Raphael soltou uma gargalhada rouca, meio irónica, meio desdenhosa, que soou asperamente aos ouvidos de Emma.

 

Sim, minha querida amiga, com certeza. Só que, aqui, a palavra ”voluntário” não tem o mesmo significado do que em outro sítio qualquer. Digamos antes que certos comportamentos são mais aceitáveis do que outros.

 

Meu Deus... E eu que pensava que vocês assistiam aos meus seminários por gostarem de poesia...

 

E gostamos replicou Stephen. O problema é que somos apenas vinte, o que implica que estamos a ser constantemente observados. Os padres não o fazem por mal. Tudo se resume ao facto de sermos tão poucos. É por isso que a Igreja é da opinião que sessenta ordinandos é o número ideal para um instituto teológico... e tem razão. O arcediago lá tem os seus motivos quando afirma que somos um instituto muito pequeno.

 

Oh, o arcediago! ripostou Raphael, exaltado. Temos de falar nele?

 

Pronto, não falamos mais nele, mas não deixa de ser um homem estranho... Por princípio, a Igreja Anglicana é a conjunção de quatro movimentos religiosos diferentes, mas em que movimento ele se encaixa? É um evangelista bíblico e, mesmo assim, aceita as mulheres padres. Está sempre a dizer que temos de mudar para melhor servir o novo século, mas não se pode considerá-lo um digno representante da teologia liberal, e é inflexível na sua posição quanto ao divórcio e o aborto.

 

É o exemplo de um atavismo vitoriano atalhou Henry. Quando ele está aqui, sinto-me transportado para um romance de Trollope, só que os papéis estão invertidos. O padre Sebastian devia ser o arcediago Grantly e o Crampton devia personificar a personagem do Slope.

 

Não, o Slope, não interveio Stephen. O Slope era um hipócrita. Ao menos, o arcediago é sincero.

 

Com efeito, não restam dúvidas de que o homem é sincero rematou Raphael, tal como Hitler, Gengiscão e todos os tiranos foram sinceros.

 

Mas olha que ele não é tido como um tirano na sua paróquia fez notar Stephen. Na realidade, considero que é um bom padre. Não te esqueças de que passei uma semana na paróquia dele, durante a Páscoa. As gentes de lá gostam dele. Até gostam dos seus sermões. Tal como um dos seus fiéis me disse: ”Ele conhece a sua fé, crê e explica-nos as suas ideias com grande clareza. E não há uma única pessoa, nesta paróquia, que tenha passado por momentos difíceis, que não lhe esteja agradecida pelo apoio que ele lhe deu.” Sabes que mais? Parece-me que conhecemos apenas o lado mau do arcediago, porque, sempre que ele vem até cá, é um homem completamente diferente.

 

Ele perseguiu um outro padre e fê-lo ir parar à prisão teimou Raphael. Achas que isso é caridade cristã? Odeia o padre Sebastian. Onde está o amor fraternal? E odeia este lugar, tudo o que ele representa, e está a tentar fazer com que a Igreja mande encerrar Santo Anselmo.

 

Por outro lado, o padre Sebastian está a fazer tudo o que está ao seu alcance para manter o instituto aberto replicou Henry. Pela parte que me toca, sei em quem vou apostar...

 

Olha que não sei... A morte do Ronald não veio ajudar...

 

A Igreja não pode encerrar um instituto teológico só porque um estudante se suicidou. Bom, o que nos consola é que o arcediago se vai embora amanhã, logo a seguir ao pequeno-almoço. Ao que parece, precisam dele na paróquia a que preside. Portanto, só temos de aturá-lo durante duas refeições. Raphael, é melhor portares-te bem, ouviste:

 

O padre Sebastian já me puxou as orelhas. Tentarei promover um impressionante controlo sobre mim próprio.

 

E, se falhares, pedirás desculpa ao arcediago, antes de ele se ir embora?

 

Não me parece... respondeu Raphael. Tenho um pressentimento de que ninguém irá pedir desculpas ao arcediago, amanhã de manhã.

 

Dez minutos mais tarde, os ordinandos dirigiram-se para a sala de estar que lhes estava reservada para o lanche. Mrs. Pilbeam, então, voltou-se para Emma.

 

Parece cansada, miss. Fique aqui e tome uma chávena de chá comigo. Já que está aí tão aninhada, aproveite este momento de sossego.

 

Obrigada, Mistress Pilbeam.

 

Mrs. Pilbeam abriu uma mesa baixa sobre a qual colocou uma grande chávena de chá e um pires, com um scone amanteigado, recheado de geleia. Como sabia bem a Emma estar ali sentada, em paz, ao lado de outra mulher, escutando o estalido da cadeira de vime quando Mrs. Pilbeam se sentou, inalando o cheiro dos scones, acabados de fazer, e olhando para as chamas azuis do fogão.

 

Emma teria preferido que não se tivesse falado em Ronald Treeves. Ainda não se dera conta de como aquela morte, envolta em mistério, conseguia ensombrar o dia-a-dia do instituto. E não havia sido a única morte. Mrs. Munroe, ao menos, morrera calmamente, em paz, e talvez tivesse ficado contente por partir, mas fora mais uma perda, naquela pequena comunidade, onde as mortes nunca passavam despercebidas. Henry tinha razão: havia sempre um sentimento de culpa generalizado, após uma morte. Emma deu consigo a desejar ter sido mais paciente e gentil com Ronald. A imagem dele, a sair, aos tropeções, da casa de Surtees, ficara-lhe gravada na mente e sabia que não conseguiria apagá-la facilmente.

 

E, agora, havia o arcediago. A antipatia que Raphael sentia por ele começava a tornar-se obsessiva. Era mais do que simples antipatia. Houvera ódio nas suas palavras, uma emoção que Emma nunca pensara encontrar em Santo Anselmo. Apercebeu-se do quanto se habituara a contar com aquelas suas visitas. Palavras do Livro de Orações, que lhe eram familiares, vieram-lhe à memória. Aquela paz que o mundo não podia oferecer. Uma paz que havia sido quebrada pela imagem de um rapaz, de boca aberta, tentando respirar, e encontrando apenas a areia mortífera. Além do mais, Santo Anselmo fazia parte do mundo. Os estudantes podiam ser ordinandos e os seus professores, padres, mas nem por isso deixavam de ser homens. O instituto podia erguer-se, como um desafio à Igreja, no seu isolamento simbólico, entre o mar e hectares de promontórios despovoados, mas a vida entre as paredes do edifício era intensa, muito controlada, quase claustrofóbica. Que emoções poderiam desenvolver-se naquela atmosfera sufocante?

 

E que pensar de Raphael, órfão de mãe, que crescera naquele mundo de total reclusão, saindo apenas para a vida, igualmente masculina e controlada, de uma escola preparatória e de um colégio interno? Tinha realmente vocação ou estava a pagar uma velha dívida da única maneira que sabia? Emma deu-se conta de que era a primeira vez que tecia mentalmente críticas aos padres. Deviam ter pensado, com certeza, que Raphael deveria seguir os seus estudos num outro instituto. Sempre havia pensado no padre Sebastian e no padre Martin como dotados da sapiência e da bondade dificilmente compreensíveis para aqueles que, como ela, encontravam na religião mais uma estrutura organizada para o empenho moral do que o repositório final da revelação da verdade. Por mais voltas que desse, contudo, regressava sempre à mesma angustiante conclusão: aqueles padres não passavam de homens.

 

O vento, entretanto, levantara-se. Emma podia ouvi-lo como um uivo longínquo e irregular, quase não se distinguindo do embater das ondas na costa.

 

Vamos ter ventos fortes esta noite, mas duvido que a tempestade que se avizinha piore antes do amanhecer disse Mrs. Pilbeam. No entanto, vamos ter mau tempo, esta noite.

 

Sorveram o chá em silêncio, até que Mrs. Pilbeam acrescentou:

 

Sabe, todos eles são bons meninos.

 

Eu sei replicou Emma.

 

E pareceu-lhe que era ela que tentava reconfortar Mrs. Pilbeam.

 

O padre Sebastian não apreciava o lanche. Nunca comia bolos e tinha a impressão de que os scones e as sanduíches lhe cortavam o apetite para o jantar. Mesmo assim, achava ser seu dever passar pela sala de estar, por volta das quatro horas da tarde, sempre que havia hóspedes no instituto. Geralmente, demorava-se apenas o suficiente para beber duas taças de chá earl grey com limão e acolher os recém-chegados. Naquele sábado, deixara as boas-vindas para o padre Martin, mas, às quatro e dez, pensou que seria cortês da sua parte aparecer na sala. Tinha descido o primeiro lanço de degraus da escada quando deparou com o arcediago.

 

Preciso de falar consigo, Morell, no seu gabinete, por favor, ”E agora?”, pensou o padre Sebastian enquanto subia as escadas, atrás do arcediago. Chegado ao patamar, Crampton abriu a porta do gabinete sem qualquer cerimónia. O padre Sebastian convidou-o a ocupar uma das cadeiras em frente da lareira, mas o arcediago ignorou-o e os dois homens permaneceram de pé, fitando-se tão de perto que o padre Sebastian podia sentir o azedume que a respiração do arcediago exalava. Viu-se forçado a sustentar o olhar feroz e penetrante do seu hóspede, reparando em todos os pormenores do rosto de Crampton: os dois pêlos negros que saiam da narina esquerda, as manchas vermelhas, provocadas pela ira, que lhe coloriam as faces e uma migalha de scone colada ao canto da boca. Sem saber o que fazer, observou o arcediago, enquanto este recobrava o controlo sobre si mesmo.

 

Quando Crampton, por fim, falou, estava mais calmo, mas a ameaça no seu tom de voz era inconfundível.

 

O que está aquele oficial da Polícia a fazer aqui? Quem o convidou? O inspector Dalgliesh? Pensava que lhe havia explicado...

 

Não estou a referir-me ao Dalgliesh, mas sim ao Roger Yar wood.

 

Mister Yarwood é nosso hóspede. É inspector da Polícia de Suffolk e tirou uma semana de férias.

 

Qual é a sua ideia em tê-lo aqui, Morell?

 

Ele visita-nos, de tempos a tempos, e acolhemo-lo de bom grado. Neste momento, encontra-se de baixa. Escreveu-me a perguntar se podia passar cá uma semana. Como gostamos dele, ficámos contentes com a sua estadia.

 

O Yarwood foi o oficial que investigou a morte da minha mulher. Não me venha, agora, dizer que não o sabia!

 

Mas como poderia eu sabê-lo, arcediago? Como é que alguém daqui poderia adivinhá-lo? Nem era assunto de que o inspector Yarwood falasse, já que veio para cá a fim de esquecer o seu trabalho. Compreendo quanto terá sido aborrecido, para si, encontrá-lo no instituto e lamento que tal tenha acontecido. Compreendo, igualmente, que a presença dele lhe traz memórias tristes. Mas tratou-se de uma extraordinária coincidência, e nada mais. O inspector Yarwood pediu para ser transferido da Polícia Metropolitana de Londres para a Polícia de Suffolk, há cerca de cinco anos, se a memória não me atraiçoa. Creio que terá sido pouco depois da morte da sua esposa, arcediago.

 

O padre Sebastian evitara usar a palavra ”suicídio”, se bem que soubesse que estava implícita naquela conversa. Como era inevitável, a tragédia que atingira a primeira mulher do arcediago era bem conhecida nos círculos clericais.

 

Ele tem de partir sentenciou o arcediago. Não me sinto preparado para me sentar à mesa com aquele homem.

 

O padre Sebastian viu-se dividido entre uma piedade genuína, mas não suficientemente avassaladora para o deixar atrapalhado, e uma emoção mais pessoal.

 

E eu não estou preparado para dizer ao inspector Yarwood que se vá embora. Como acabei de afirmar, ele é nosso hóspede. Sejam quais forem as memórias que ele lhe suscita, estou certo de que dois adultos poderão sentar-se à mesma mesa sem provocar ultrajes mútuos.

 

Ultrajes?

 

Perdão, exprimi-me mal. Porque se sente tão zangado, arcediago? O Yarwood estava apenas a cumprir o seu dever. Nada tinha de pessoal contra si.

 

Tornou-se um caso pessoal, para ele, desde a primeira vez que apareceu no vicariato. Aquele homem, por meio de insinuações veladas, acusou-me de homicídio! Ia visitar-me, todos os dias, mesmo quando eu me sentia mais triste e vulnerável, para me importunar com perguntas e mais perguntas, querendo saber todos os pormenores do meu casamento, assunto que não lhe dizia respeito! Depois do inquérito e de pronunciado o veredicto, apresentei queixa à Polícia Metropolitana. Teria recorrido à Alta Autoridade Policial, mas pensei que nunca me levariam a sério. Além do mais, estava a tentar ultrapassar o meu desgosto. No entanto, a Polícia Metropolitana abriu um inquérito e admitiu que o Yarwood talvez tivesse revelado excesso de zelo profissional.

 

Excesso de zelo? O padre Sebastian recorreu, então, a um velho lugar-comum. Julgo que ele terá pensado que estava a cumprir o seu dever.

 

Dever? Nada tinha a ver com o dever! O que ele pensou foi que podia ter um caso que lhe granjeasse certa reputação, isso sim. Oh, e teria sido um caso que lhe traria grande publicidade... Um vigário acusado de assassinar a esposa. Consegue imaginar o prejuízo que esse tipo de alegação poderia provocar na minha diocese, na minha paróquia? Ele torturou-me e divertiu-se à minha custa!

 

O padre Sebastian tinha dificuldade em conciliar aquela acusação com o inspector Yarwood que ele conhecia. Sentia emoções contraditórias: pena do arcediago; indecisão, por não saber se deveria falar ou não com Yarwood; preocupação, por não desejar atormentar desnecessariamente um homem que ainda estava muito frágil, tanto física como mentalmente, e a viva ansiedade de que o fim-de-semana acabasse sem que fosse forçado a confrontar-se com Crampton de novo. E todas aquelas suas preocupações se uniam, de forma incongruente, quase ridícula, na questão insignificante de como iria distribuir os lugares à mesa. Não podia sentar os dois oficiais da Polícia lado a lado; tanto um como o outro queriam evitar, a todo o custo, qualquer conversa profissional e era um assunto que o padre Sebastian não queria ouvir à sua mesa (o padre Sebastian nunca pensava no refeitório de Santo Anselmo noutros termos a não ser como a ”sua” sala de jantar ou a ”sua” mesa). Era óbvio que nem Raphael nem o padre John podiam sentar-se, quer ao lado, quer em frente do arcediago Crampton. Clive Stannard era um hóspede enfadonho, mesmo quando estava nos seus melhores momentos, e o padre Sebastian não podia colocá-lo perto de Crampton ou de Dalgliesh. Desejava que a sua mulher ainda fosse viva. Nada daquilo aconteceria se Verónica ainda estivesse viva, e não pôde deixar de sentir um certo ressentimento por ela o haver deixado tão cedo.

 

Foi então que alguém bateu à porta. Contente com aquela interrupção, exclamou:

 

Entre!

 

Raphael surgiu à porta. O arcediago fitou-o, de alto a baixo e, por fim, dirigiu-se ao padre Sebastian.

 

Vai então tratar do assunto, não é verdade, Morell?

 

E saiu.

 

O padre Sebastian, apesar de se sentir contente com aquela interrupção, não estava com disposição para ser acolhedor e perguntou, com alguma rispidez:

 

O que se passa, Raphael?

 

É sobre o inspector Yarwood, padre. Prefere não jantar com os restantes hóspedes e pergunta se é possível levarem-lhe algo de comer ao quarto.

 

O inspector Yarwood está doente?

 

Não me pareceu em boa forma, mas não me disse que se sentia mal. Ele viu o arcediago durante o lanche, e penso que não quer encontrar-se com ele novamente. Quando desceu, estacou à entrada da sala e deu meia volta. Resolvi ir até ao seu quarto para saber se ele se sentia bem.

 

E ele disse-lhe porque estava tão transtornado?

 

Sim, padre.

 

Pois não tinha o direito de desabafar consigo nem com qualquer outra pessoa que resida aqui. Foi uma atitude muito pouco profissional e sensata da parte do inspector Yarwood, e você devia tê-lo impedido de a tomar.

 

Ele não falou muito no assunto, padre, mas o pouco que disse toi deveras interessante.

 

O que quer que ele lhe tenha revelado deve ser mantido em segredo, percebeu? Bom, agora vá falar com Mistress Pilbeam e peçalhe que leve alguma coisa ao quarto do inspector, à hora do jantar, como, por exemplo, uma sopa e uma salada.

 

Penso que é tudo o que ele quer, padre, porque me disse que desejava ficar sozinho.

 

O padre Sebastian, mais uma vez, perguntou a si mesmo se devia falar com Yarwood, mas mudou de ideia. Talvez o que ele queria, ficar a sós, fosse a melhor solução. O arcediago devia partir na manhã seguinte, logo após o pequeno-almoço, porque queria estar de regresso à sua paróquia para pregar a homilia das dez e meia da manhã e dera a entender que uma personalidade importante da região estaria na congregação. Com alguma sorte, os dois homens não tornariam a ver-se.

 

Cansado, o padre Sebastian desceu a escada em direcção à sala de estar dos estudantes, para tomar as suas duas chávenas de chá earl

 

O refeitório, vindo a sul, era quase uma réplica, em tamanho e estilo, da biblioteca, com o mesmo tecto abobadado e igual número de janelas ogivais, estreitas e altas, se bem que estas fossem destituídas de vitrais coloridos e, ao invés, tivessem vidraças de um tom verde-claro com desenhos de folhas de videiras e cachos de uvas. As paredes estavam adornadas com três quadros pré-rafaelitas, todos doados por Miss Arbuthnot. Um, da autoria de Dante Gabriel Rossetti, mostrava uma rapariga de cabelos ruivos flamejantes, sentada junto de uma janela, a ler um livro que a imaginação podia interpretar como| sendo de conteúdo religioso. O segundo quadro, de Edward Burne-f -Jones, que representava três raparigas de cabelos escuros a dançar de roda, à sombra de uma laranjeira, era ostensivamente secular, e o terceiro e maior, de William Holman Hunt, retratava um padre, em frente de uma capela, feita em colmo, a baptizar um grupo de antigos bretões. Não eram obras que Emma apreciasse particularmente, mas não tinha dúvidas de que constituíam uma valiosa parte do espólio de Santo Anselmo. O refeitório, pela sua traça, havia sido concebido para ser uma sala de jantar, mas mais orientada para a ostentação do que para a intimidade familiar. Mesmo as grandes famílias vitorianas sentir-se-iam isoladas e desconfortáveis naquele monumento à grandiosidade paternal. Santo Anselmo procedera a poucas modificações ao adaptar a antiga sala de jantar para lhe conferir uma utilização institucional. A mesa de carvalho oval ainda se mantinha ao centro, mas fora-lhe acrescentada, ao meio, uma tábua de madeira mais simples com cerca de metro e meio de comprimento. As cadeiras datavam da fundação do instituto, mas a portinhola que se abria para a cozinha desaparecera, e a comida era colocada num grande aparador com uma toalha branca, antes de ser servida.

 

Mrs. Pilbeam servia à mesa, com a ajuda de dois dos ordinandos que procediam àquela tarefa por turnos. O casal Pilbeam partilhava a mesma refeição, mas comia na saleta de Mrs. Pilbeam. Aquando da sua primeira visita, Emma sentira-se intrigada ao ver como aquela estranha combinação funcionava tão bem. Mrs. Pilbeam parecia saber instintivamente em que altura os comensais terminavam certo prato, na sala de jantar, porque aparecia sempre no momento oportuno. Não era necessário tocar qualquer campainha, e a entrada e o prato principal eram comidos em silêncio, enquanto um dos ordinandos, postado num púlpito à esquerda da porta, lia em voz alta, tarefa que também era feita por turnos.

 

A escolha do assunto era deixada à responsabilidade do ordinando e não se pedia que as leituras fossem necessariamente passagens da Bíblia ou de textos religiosos. Ao longo das suas visitas, Emma ouvira Henry Bloxham ler uma passagem de A Terra Devastada, de T. S. Eliot, Stephen Morby recitar, com grande vivacidade, Mulliner, um conto de P. G. Wodehouse, e Peter Buckhurst escolher um trecho de Diário de ninguém, de George e Weedon Grossmith. A vantagem daquele sistema para Emma, além do seu interesse pela leitura e da revelação da escolha pessoal de cada um dos ordinandos, era poder tirar proveito dos excelentes dotes culinários de Mrs. Pilbeam, sem ter de conversar sobre banalidades com os outros convivas.

 

Com o padre Sebastian a presidir à mesa, o jantar em Santo Anselmo revestia-se das formalidades de uma casa particular. Mas, depois de serem servidos os dois primeiros pratos e de findar a leitura, o silêncio que imperara até àquele momento parecia facilitar a conversação, que, por norma, prosseguia alegremente, enquanto o ordinando saía do púlpito e se servia, e os comensais passavam para a sala de estar ou para o pátio, pela porta sul, para tomar café. Não raras vezes, a conversa prosseguia até chegar a hora das completas. Depois, como era costume, os ordinandos recolhiam aos seus quartos e remetiam-se ao silêncio.

 

Se bem que, segundo a tradição, cada um dos estudantes ocupasse à mesa os lugares vazios, naquela noite, o padre Sebastian ocupara-se da disposição dos hóspedes e dos funcionários. À sua esquerda, ficaria o arcediago Crampton, seguido por Emma e pelo padre Martin. À sua direita, ficariam o inspector Dalgliesh, o padre Peregrine e, por fim, Clive Stannard. George Gregory raramente jantava no instituto, mas naquela noite resolvera estar presente, e fora-lhe atribuído um lugar entre Stannard e Stephen Morby. Emma esperava ver o inspector Yarwood, mas este não descera para o jantar e ninguém formulara qualquer comentário sobre a sua ausência. O padre John também não estava presente. Três dos quatro estudantes que haviam ficado no instituto tinham-se postado atrás das cadeiras que lhes estavam reservadas e, tal como os outros comensais, aguardavam a acção de graças.

 

Foi então que Raphael entrou, abotoando às pressas a batina.

 

Murmurou um pedido de desculpas e, abrindo um livro que trazia na mão, tomou o seu lugar no púlpito. O padre Sebastian proferiu a acção de graças, em latim, a que se seguiu um arrastar de cadeiras quando todos os convivas ocuparam os seus lugares.

 

Sentando-se ao lado do arcediago, Emma apercebeu-se da sua proximidade física e parecia-lhe que o sentimento era recíproco. Sabia, por instinto, que o arcediago era um homem e, como tal, era sensível ao sexo oposto, com uma forte mas reprimida sexualidade, Era tão alto como o padre Sebastian, mas com um corpo mais atlético, de ombros e pescoço largos e semblante carregado, mas nem por isso menos atraente. Os seus cabelos e barba eram negros, salpicados, aqui e ali, por fios grisalhos. Tinha olhos encovados e sobrancelhas tão bem desenhadas que podia pensar-se que as depilava. Eram justamente aquelas sobrancelhas que conferiam um toque discordante de feminilidade à sua grave expressão masculina. O padre Sebastian havia-o apresentado a Emma quando tinham entrado na sala de jantar, O arcediago pegara-lhe na mão com uma força que não demonstrava afabilidade e fitara-a com uma expressão de espanto, como se Emma fosse, para ele, um enigma que lhe competia decifrar antes que o jantar terminasse.

 

A entrada fora já servida. Era constituída por beringelas e pimentos assados e regados com azeite. O som quase abafado do chocar de talheres fez-se ouvir quando os convivas começaram a jantar. Como se aguardasse por aquele sinal, Raphael iniciou então a sua leitura. Antes de começar, anunciou, como se estivesse a preparar-se para dar uma lição de religião:

 

Vou ler o primeiro capítulo de As Torres de Barchester, de Anthony Trollope.

 

Era uma obra que Emma, grande apreciadora de romances vitorianos, conhecia, mas estranhou aquela escolha de Raphael. Os ordinandos, por vezes, liam trechos de romances, mas, em regra, escolhiam apenas determinada passagem. Raphael lia bem e Emma deu consigo a comer com uma indolência quase exagerada, enquanto a sua mente se deixava transportar pelo cenário e pela história. Dava ideia de que Santo Anselmo era o lugar mais apropriado para selei Trollope. Por baixo do telhado abobadado e imponente do instituto onde se encontrava, era-lhe fácil imaginar o quarto do bispo, no Palácio de Barchester, e o arcediago Grantly, de vigília ao leito de morte de seu pai, ciente de que se ele vivesse até à queda do governo e esperava-se que isso acontecesse, a qualquer momento, nunca poderia aspirar a suceder-lhe como bispo. Era uma passagem poderosa, com aquele filho orgulhoso e ambicioso a ajoelhar-se e a rezar, pedindo perdão a Deus por haver pecado, ao desejar a morte do próprio pai.

 

O vento levantara-se desde o entardecer. Agora, fustigava a mansão, em grandes rajadas, que mais pareciam explosões. Sempre que o vento atingia a mansão com uma rajada ululante, Raphael fazia uma pausa na sua leitura, como se fosse um professor que aguardava que os seus indisciplinados alunos se calassem. Nos momentos de acalmia, retomava a leitura e a sua voz ecoava, parecendo estranhamente nítida e potente.

 

Emma apercebeu-se de que a figura sombria, sentada a seu lado, se imobilizara. Olhando de relance para as mãos do arcediago, viu que apertavam, com força, o garfo e a faca. Peter Buckhurst circulava silenciosamente em torno da mesa, com a garrafa de vinho, mas o arcediago pegou no copo com tal ímpeto que Emma teve a certeza de que iria parti-lo. A mão do arcediago pareceu-lhe tornar-se maior e quase monstruosa, com os pêlos dos dedos eriçados, mas Emma sabia que aquilo só podia ser fruto da sua fértil imaginação. No entanto, apercebera-se de que o inspector Dalgliesh, sentado à sua frente, erguera por breves momentos o olhar, fitando, atónito, o arcediago. Emma tinha a certeza de que a forte tensão que o seu companheiro de mesa lhe transmitia não passava despercebida aos restantes convivas, mas apenas o inspector Dalgliesh parecia havê-lo notado. Gregory comia, em silêncio, mas com evidente satisfação. Mal erguera o olhar até Raphael começar a sua leitura. Mesmo assim, olhava, de quando em vez, para o ordinando, com uma expressão admirada e até mesmo algo divertida.

 

A voz de Raphael prosseguiu enquanto Mrs. Pilbeam e Peter Buckhurst levantavam os pratos. Logo de seguida, foi servido o prato principal: cassoulet, com batatas cozidas, cenouras e feijões. O arcediago tentou recompor-se, mas mal tocou na comida. Após todos os convivas haverem terminado de comer o prato principal a que se seguiriam fruta ou queijo com tostas, Raphael fechou o livro, dirigiu-se ao aparador para tirar o seu prato aquecido e ocupou o seu lugar numa das extremidades da mesa. Emma olhou para o padre Sebastian. A expressão do seu rosto alterara-se e fitava Raphael, que evitava propositadamente retribuir aquele olhar.

 

Ninguém parecia disposto a quebrar o silêncio, até que o arcediago, fazendo um esforço, se voltou para Emma e encetou uma conversa empolada acerca do relacionamento dela com o instituto. Quando se licenciara? Que disciplina ensinava? Achava os estudantes, em geral, receptivos? Qual era a sua opinião pessoal sobre o ensino da língua inglesa e da poesia religiosa, inserido num programa de estudos teológicos? Emma percebia que o arcediago queria pô-la à vontade, ou, pelo menos, tentar manter um diálogo interessante com ela, mas sentiu-se como que submetida a um interrogatório, com a desconfortável sensação de que, dado o silêncio que reinava à mesa, tanto as perguntas do arcediago como as suas respostas soavam em tom estranhamente alto. Não conseguia evitar olhar de relance para Adam Dalgliesh, sentado à direita do reitor; parecia ter muito que conversar com o seu anfitrião, mas, com certeza, não devia estar a falar da morte do Ronald. De tempos a tempos, Emma sentia que o olhar de Dalgliesh se fixava nela. Os seus olhares cruzaram-se, por breves segundos, e Emma desviou o rosto rapidamente, para, logo de seguida, irritada consigo própria por aquele momento de embaraço injustificado, se virar para o seu companheiro de mesa, disposta a suportar a curiosidade do arcediago.

 

Por fim, passaram à sala de estar, para o café, mas a mudança de ambiente em nada contribuiu para animar a conversa, que se tornou uma troca irregular de trivialidades, e, muito antes da hora das completas, o grupo desfez-se. Emma foi uma das primeiras a sair. Apesar da tempestade, precisava de apanhar ar fresco e de fazer algum exercício antes de se deitar. Naquela noite, iria faltar às completas. Era a primeira vez que sentia uma necessidade premente de sair da mansão. Porém, quando abriu a porta que dava para o claustro sul, o vento atingiu-a com a força de uma pancada. Dentro de pouco tempo, nem conseguiria manter-se de pé. Não era uma noite para um passeio solitário até ao promontório, que se tornara, de repente, hostil. Perguntou a si própria o que estaria a fazer Adam Dalgliesh. Provavelmente, pensara ser cortês da sua parte assistir às completas. Para ela, seria o serão de trabalho como sempre e, depois, iria para a cama mais cedo. E avançou pelo claustro sul, mal iluminado, em direcção ao quarto de Santo Ambrósio e à solidão.

 

Eram nove horas e vinte e nove minutos. Raphael, o último a entrar na sacristia, deparou com o padre Sebastian, sozinho, a tirar a batina antes de envergar os trajes para as completas. Raphael pousara a mão na maçaneta da porta que conduzia à igreja quando o padre Sebastian o deteve.

 

Escolheu aquele capítulo do Trollope de propósito para aborrecer o arcediago?

 

É um capítulo que aprecio particularmente, padre. Aquele homem orgulhoso e ambicioso, ajoelhado junto do leito de morte do pai, confrontado com a secreta esperança de que o bispo morra a tempo. É um dos capítulos mais impressionantes que o Trollope escreveu. Pensei que todos gostariam de ouvi-lo.

 

Não lhe pedi uma crítica literária da obra do Trollope e não respondeu à minha pergunta. Escolheu aquele capítulo para deixar o arcediago constrangido?

 

Sim, padre replicou Raphael, com toda a calma.

 

E fê-lo, provavelmente, em virtude do que ouviu da boca do inspector Yarwood, antes do jantar.

 

Ele estava desfeito. O arcediago conseguiu entrar, mais ou menos à força, no quarto do Roger e confrontou-se com ele. Na sua angústia, o Roger confidenciou-me uma coisa mas, mais tarde, disse-me que devia esquecer-me do que ouvira.

 

E a sua maneira de esquecer o que ouviu foi escolher, de propósito, o capítulo de um romance que não só iria perturbar um dos nossos hóspedes, como iria trair o facto de o inspector Yarwood haver desabafado consigo.

 

Aquele capítulo, padre, só poderá ser ofensivo para o arcediago se o que o Roger me revelou for verdade.

 

Compreendo. Mesmo assim, você resolveu armar-se em Hamlet. Semeou a desconfiança e desobedeceu às instruções que lhe dei sobre como se devia comportar com o arcediago, enquanto ele aqui estivesse hospedado. Preciso de ter uma conversa consigo, Raphael. Sou obrigado a reflectir seriamente sobre se posso recomendá-lo para a ordenação. Terá de ponderar se sente ou não vocação para ser padre

 

Era a primeira vez que o padre Sebastian dava voz à dúvida que, ele mal se atrevia a admitir, mesmo em pensamento. Forçou-se a fitar Raphael, olhos nos olhos, enquanto esperava por uma resposta.

 

Mas será que nos resta qualquer alternativa, padre, tanto para o senhor como para mim? replicou Raphael serenamente.

 

O que surpreendeu o padre Sebastian não foi a resposta, mas o tom com que havia sido pronunciada. Detectara na voz de Raphael o que lhe vira igualmente no olhar. Não era provocação, nem um desafio à sua autoridade, nem mesmo o seu usual tom de irónico desprendimento; era, antes, a expressão de um sentimento muito mais perturbador e doloroso: o vestígio de uma triste resignação que constituía, ao mesmo tempo, um pedido de ajuda. Sem acrescentar mais nada, o padre Sebastian acabou de se arranjar. Depois, esperou que Raphael lhe abrisse a porta da sacristia e seguiu atrás do rapaz em direcção à igreja, iluminada apenas por velas.

 

Dalgliesh era o único membro da congregação a assistir às completas. Escolhera um lugar a meio da nave lateral direita. Henry Bloxlan, trajando uma sobrepeliz branca, acendeu duas velas no altar e uma fileira de outras, envoltas em quebra-luzes de vidro, ao longo dos bancos do coro. Henry colocara o ferrolho da grande porta sul, antes da chegada de Dalgliesh, que, sentado no seu lugar, contava ouvir, atrás de si, o ranger da porta a abrir-se. Contudo, nem Emma nem nenhum dos outros hóspedes ou funcionários apareceram. A igreja estava quase imersa na escuridão e, sentado, entregou-se a uma calma concentração, em que o tumulto da tempestade lhe parecia tão distante que fazia agora parte de uma outra realidade. Por fim, Henry acendeu a luz que iluminava o altar, e o quadro de Van der Weyden manchou de cor o ambiente obscuro. Henry ajoelhou-se em frente ao altar e regressou à sacristia. Dois minutos depois, os quatro padres residentes entraram, seguidos pelos ordinandos e pelo arcediago. Aquelas figuras, envergando sobrepelizes brancas, avançaram em silêncio, ocuparam os seus lugares com dignidade e a voz do padre Sebastian quebrou o silêncio com a primeira oração.

 

Que Deus Todo-Poderoso nos conceda uma noite sossegada e um fim perfeito. Amen.

 

Durante o serviço eram entoados vários cânticos, com a perfeição que advinha da prática e do hábito. Dalgliesh ora se levantava, ora se ajoelhava, conforme o caso, e participava nas orações porque não queria passar por um simples voyeur. Esquecera-se por completo do Ronald Treeves e da sua morte. Ali, não era o oficial da Polícia, porque nada mais se lhe pedia a não ser que trouxesse consigo a aquiescência do seu coração.

 

Depois da colecta final e antes da bênção, o arcediago levantou-se para pregar a homilia. Decidiu postar-se em frente da grade do altar, em vez de avançar até ao púlpito. Dalgliesh pensou que era indiferente, uma vez que iria pregar para uma congregação de uma só pessoa e,

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com certeza, para a pessoa a quem tinha menos interesse em dirigir-se. A homilia foi breve, com uma duração de menos de seis minutos. Porém, revelou-se poderosa, se bem que proferida com serenidade, como se o arcediago tivesse consciência de que as palavras menos agradáveis ganham maior intensidade quando proferidas em voz baixa. Ali ficou aquele homem moreno, de barba, lembrando um profeta do Velho Testamento, enquanto que a sua audiência, sentada, com as suas sobrepelizes e os olhos postados no chão, fazia lembrar um con-junto de estátuas de pedra.

 

O tema da homilia era o apostolado cristão no mundo moderno e constituiu um ataque a tudo o que Santo Anselmo representava, havia cem anos, e ao que o padre Sebastian mais prezava. A mensagem nem sequer era ambígua. A Igreja nunca poderia sobreviver para responder às necessidades de um novo século, incrivelmente violento e perturbado, a menos que regressasse aos princípios fundamentais da fé. O apostolado moderno não era uma questão de indulgência, por meio de uma linguagem, arcaica embora bela, em que as palavras frequentemente obscureciam e não realçavam a realidade da fé. Havia a tentação de se valorizar a inteligência e a realização intelectual de tal forma que a teologia se havia tornado um exercício filosófico para justificar o cepticismo. Igualmente sedutora era a exagerada ênfase dada às cerimónias, às vestimentas e aos procedimentos, uma obsessão acompanhada de uma excelência musical competitiva, que, frequentemente, transformava a missa num espectáculo. A Igreja não era uma organização social no seio da qual a classe média podia apaziguar a sua ânsia pela beleza, pela ordem, pela nostalgia ou pela ilusão da espiritualidade. Apenas com um regresso à verdade do evangelho podia esperar-se que a Igreja fosse ao encontro das necessidades do mundo moderno. Finda a homilia, o arcediago regressou ao seu lugar, e os ordinandos e os padres ajoelharam-se, enquanto o padre Sebastian dava a última bênção. Depois da pequena procissão sair da igreja, Henry voltou atrás para apagar as velas e a luz do altar. Em seguida, avançou até à porta sul, para desejar cortesmente as boas-noites a Dalglis e para trancar a porta atrás de si. À excepção daquelas duas palavras, os dois homens nada mais disseram um ao outro.

 

Quando ouviu o raspar do ferro na porta, Dalgliesh sentiu que estava a ser prematuramente excluído de algo que nunca havia conpreendido totalmente nem aceitado, mas que, agora, se fechava definitivamente para ele. Protegido pelo claustro da força violenta da ventania, transpôs os poucos metros que separavam a porta da igreja do seu quarto.

 

           A Morte de Um Arcediago

 

O arcediago não se demorou após as completas. Juntamente com o padre Sebastian, tirou as vestes, em silêncio, na sacristia, e despediu-se com um ríspido ”boa noite”, antes de sair para o claustro varrido pelo vento.

 

O átrio era agora um turbilhão de som e de fúria. As primeiras chuvas haviam cessado, mas o vento de sudoeste, ganhando força, remoinhava à volta do castanheiro, silvando por entre as folhas mais altas, vergando os grandes ramos, que voltavam a erguer-se para, logo depois, se vergarem de novo, numa majestosa e lenta dança fúnebre. Os galhos mais frágeis e os rebentos estalavam e tombavam nas lajes. O claustro sul ainda se mantinha limpo, mas as folhas mortas, rolando no átrio, formavam já uma pilha húmida junto da porta da sacristia e do muro do claustro norte.

 

Antes de entrar na mansão, o arcediago passou os sapatos pelo tapete, para se livrar das esqueléticas folhas que se tinham colado às solas, e atravessou o vestiário em direcção ao vestíbulo. Apesar da tempestade violenta, a casa estava estranhamente silenciosa. Perguntou a si próprio se os quatro padres ainda estariam na igreja ou na sacristia, talvez em reunião, para exprimir a sua indignação pela homilia que ele havia pregado. Os ordinandos deviam ter recolhido aos seus quartos. Havia qualquer coisa de invulgar e de quase sinistro naquela atmosfera serena e algo pungente.

 

Ainda não eram dez e meia da noite. O arcediago sentia-se agitado e sem vontade de se deitar tão cedo, mas o passeio que desejara subitamente fazer parecia-lhe impraticável e até perigoso, na escuridão da noite e sob a fúria do vento. Sabia que era costume, em Santo Anselmo, guardar silêncio após as completas e, muito embora não nutrisse grande simpatia por aquela tradição, não desejava que alguém o visse desrespeitá-la. Tinha ideia de que havia um televisor na sala de estar destinada aos estudantes, mas os programas, aos sábados, nunca eram do seu agrado e sentia certa relutância em perturbar aquela aparente calma. Contudo, talvez pudesse encontrar um livro, ali, e ninguém se oporia, se ele resolvesse ver o último noticiário da noite. Quando abriu a porta da sala, percebeu que havia lá alguém. O rapaz que lhe havia sido apresentado, durante o almoço, como sendo Clive Stannard, via um filme e, voltando-se, ao ouvir a porta abrir-se, pareceu ofendido com aquela súbita intrusão. O arcediago! hesitou por breves instantes. Por fim, desejou as boas-noites ao rapaz, saiu, passando pela porta que ficava ao lado dos degraus que conduziam à adega e atravessou o átrio, em direcção ao quarto de Santo Agostinho.

 

Às dez horas e quarenta minutos, estava já em pijama e roupão e pronto para se deitar. Lera um capítulo do Evangelho segundo São Marcos e dissera as suas orações habituais, mas, naquela noite, nada mais havia sido do que um exercício de rotina da sua devoção. Conhecia as palavras das Sagradas Escrituras de cor e recitara-as, em silêncio, devagar e com atenção redobrada, como se pudesse extrair, de cada uma, algum significado que lhe tivesse escapado até então. Tirou o roupão, certificou-se de que a janela estava bem fechada e en fiou-se na cama.

 

Quando alguém tem que fazer, consegue reprimir as recordações que lhe vêm ao espírito. Deitado, entre lençóis espessos e ásperos, en quanto o vento uivava lá fora, teve consciência de que não iria adormecer tão cedo. O dia pesado e atarefado estimulara-lhe a mente. Talvez devesse ter lutado contra o vento e dado o seu passeio. Lembrou-se, então, da homilia que proferira, com mais satisfação do que arrependimento. Preparara-a cuidadosamente e dissera-a em voz baixa, mas com veemência e autoridade. Aquelas coisas tinham de ser ditas e fora o que ele fizera. E, com a sua homilia, havia deixado o padre Sebastian Morell ainda mais zangado; se o aborrecimento e a antipatia o haviam tornado seu inimigo, já nada havia a fazer. Não que o arcediago gostasse de cultivar a impopularidade; era importante, para ele, dar-se bem com as pessoas que respeitava. Sempre havia sido ambicioso e tinha plena consciência de que não se ganhava a mi tra de bispo suscitando antagonismos contra um sector importante à Igreja, mesmo que a sua influência fosse, agora, menos poderosa do que o fora anos antes. Sebastian Morell já não era tão influente como julgava. Naquela batalha, o arcediago Crampton tinha a certeza de estar do lado do vencedor. No entanto, havia ainda outras batalhas, relativas a princípios, que deviam ser travadas se a Igreja Anglicana qui sesse sobreviver e preparar-se para o novo milénio. O encerramento de Santo Anselmo podia ser um conflito menor, naquela guerra, mas sentir-se-ia satisfeito por o ganhar.

 

Que havia, então, em Santo Anselmo, que tanto o perturbava!

 

Porque tinha a impressão de que ali, naquela costa deserta, a espiritualidade tinha de ser vivida com maior intensidade do que em outro local? Porque sentia que o seu passado estava em julgamento? Santo Anselmo nem sequer tinha uma longa tradição de devoção. A igreja era medieval, e nela quase se ouvia, por entre o silêncio, o eco de séculos de cânticos, muito embora nunca o houvesse sensibilizado. Para ele, uma igreja só tinha uma função: devia ser um edifício destinado ao culto, e não um local de culto, em si. Santo Anselmo não passava da criação de uma solteirona vitoriana, com muito dinheiro, pouca sensatez e uma predilecção por alvas de renda e padres solteiros. Provavelmente, aquela mulher devia ser meio louca. Era perfeitamente ridículo que a sua influência perniciosa ainda regesse um instituto de Teologia do século xxi.

 

O arcediago Crampton mexeu as pernas vigorosamente, tentando libertar-se dos lençóis, demasiado esticados, que o apertavam. De repente, desejou que Muriel estivesse ali, com ele, para que pudesse encontrar, nos seus braços, o esquecimento momentâneo do sexo. Mas mesmo que, em pensamento, estendesse os braços para a mulher, surgia sempre, entre eles, com tanta frequência como no leito marital, a memória daquele outro corpo, dos braços tão finos e delicados como os de uma criança, dos seios pontiagudos e da boca carnuda, explorando o seu corpo. ”Gostas disto? E disto? Sabe-te bem?”

 

Aquele amor havia sido um erro desde o princípio; fora mal aconselhado e tão previsivelmente desastroso que, passados tantos anos, Crampton ainda se perguntava como se deixara iludir. A relação parecera ser tirada do excerto de um romance cor-de-rosa de quinta categoria. Começara inclusivamente num dos cenários predilectos da ficção romântica: um cruzeiro pelo Mediterrâneo. Um amigo de Crampton, que fora convidado a dar uma palestra numa viagem a locais arqueológicos e históricos da Itália e da Ásia, adoecera, à última hora, e sugerira que o seu amigo o substituísse. Se os organizadores do cruzeiro tivessem tido tempo e encontrassem um candidato mais qualificado, talvez nunca o chamassem, mas, para sua surpresa, tinham-lhe telefonado. Felizmente, não havia académicos de renome entre os passageiros e, depois de uma preparação preliminar cuidadosa e de consultar os melhores roteiros, conseguira fazer a palestra.

 

Barbara encontrava-se a bordo, numa viagem de estudos, com a mãe e o padrasto. Era a mais nova de todos os passageiros e Crampton não fora o único homem que se encantara com ela. Parecera-lhe mais uma criança do que uma rapariga de dezanove anos, nascida fora do seu tempo. O cabelo preto, curto, com uma franja comprida sobre os olhos de um azul intenso, o rosto em forma de coração e os lábios pequenos, mas carnudos, o corpo infantil e elegante, realçado pelos vestidos muito curtos que usava, conferiam-lhe o ar de uma mulher dos anos vinte. Os passageiros mais velhos, que haviam vivido nos anos trinta e tinham uma vaga memória da década anterior, tão frenética, suspiravam, levados pela nostalgia, e murmuravam que Barbara; lhes fazia lembrar a actriz Claudette Colbert, quando era nova. Mas, para Crampton, aquela era uma imagem falsa. Barbara não tinha a sofisticação das estrelas de cinema, mas, antes, a alegria, inocência e vulnerabilidade de uma criança, que o haviam levado a interpretar o seu desejo sexual como uma vontade de a acarinhar e proteger. Não quisera acreditar na sua sorte quando ela o distinguira com os seus favores e, mais tarde, se enamorara dele com dedicação e até de forma um tanto possessiva. Passados três meses, estavam casados. Ele tinha trinta e nove anos, ela acabara de fazer vinte.

 

Educada numa sucessão de escolas onde a religião era o multiculturalismo e a ortodoxia liberal, Barbara nada sabia sobre a Igreja Anglicana, mas mostrava-se ávida de informação e de maior instrução, Só mais tarde ele se dera conta de que a relação professor-aluna tinha, para Barbara, uma forte carga erótica. Gostava de ser dominada, e não apenas fisicamente. Todavia, os seus entusiasmos eram de pouca dura, incluindo o que manifestara pelo casamento. A igreja onde Crampton era vigário na altura havia vendido o grande vicariato vitoriano e construído uma vivenda moderna, de dois andares, mas sem qualquer mérito arquitectónico, e não era a casa em que Barbara esperava viver.

 

Extravagante, caprichosa, teimosa, Barbara era como ele depressa percebera a antítese da esposa que convinha a um clérigo ambicioso da Igreja Anglicana. Até mesmo o sexo se revestira de uma grande ansiedade. Barbara mostrava-se mais exigente quando ele já estava exausto ou nas raras ocasiões em que tinham convidados que pernoitavam na casa. Crampton tomava consciência de como as paredes da casa eram finas quando Barbara passava de murmúrios a gemidos de prazer, gritando que queria mais e mais. Na manhã seguinte, durante o pequeno-almoço, ela aparecia em camisa de dormir, aberta de forma provocante, ensonada e triunfante, enquanto erguia os braços para o marido, fazendo com que as alças da camisa de dormir deslizassem.

 

Porque casara com ele? Para se sentir em segurança? Para se livrar da mãe e do padrasto que detestava? Para que alguém a mimasse, cuidasse dela e lhe fizesse todas as vontades? Para se saber amada. Crampton depressa começara a recear as súbitas mudanças de humor e os intempestivos ataques de fúria da mulher. Esforçara-se por mantê-los ao abrigo do conhecimento da paróquia, mas os boatos depressa haviam começado. Lembrava-se, em particular, com um sentimento de vergonha, da visita de um dos seus paroquianos, que era médico de profissão. ”Como bem sabe, a sua esposa não é minha paciente, e longe de mim querer interferir na vossa vida, mas ela não está bem. Penso que devia procurar apoio profissional.” Contudo, quando havia sugerido a Barbara que talvez ela devesse consultar um psiquiatra ou até um médico de clínica geral, ela acusara-o, soluçando, de querer mandá-la internar para se ver livre dela.

 

Lá fora, o vento, que por breves momentos abrandara, levantou-se de novo, num crescendo ululante. Em geral, o arcediago gostava de escutar a fúria do vento, no aconchego da sua cama; agora, contudo, aquele quarto pequeno e simples parecia-lhe uma prisão. Desde que Barbara morrera, pedira perdão a Deus por haver casado com ela, por a haver desiludido, tanto no amor como na compreensão, mas nunca havia pedido perdão por desejar vê-la morta. Agora, deitado naquela cama estreita, via-se confrontado com o seu passado. Não era por um acto de sua livre vontade que os ferrolhos da masmorra escura para onde ele remetera o seu casamento se abriam. Não escolhera as visões que lhe vinham à mente. O encontro, tão penoso para ele, com Yarwood e aquele lugar haviam-se aliado para que não lhe restasse qualquer alternativa senão recordar o passado.

 

Entre o sonho e o pesadelo, imaginou-se numa sala de interrogatórios, moderna, funcional, indistinta. Só depois se deu conta de que era a sala de estar do seu antigo vicariato. Estava sentado num sofá, entre Dalgliesh e Yarwood. Não o tinham algemado, por enquanto, mas sabia que já havia sido julgado e considerado culpado, porque os dois polícias tinham todas as provas de que precisavam. Era um filme, rodado em segredo, cujas imagens eram de má qualidade. De tempos a tempos, Dalgliesh dizia ”Pare aqui” e, quando Yarwood premia um botão, a imagem imobilizava-se e eles analisavam-na, num silêncio acusador. Todas as suas pequenas transgressões e indelicadezas, bem como o seu fiasco amoroso, passavam-lhe à frente dos olhos. E, agora, chegara o momento de ver a última bobina, por entre as trevas.

 

Já não estava sentado no sofá, entalado entre os seus dois acusadores. Passara para a tela, a fim de reviver cada gesto, cada palavra, cada emoção, como da primeira vez. Era o fim de tarde de um dia cinzento, em meados de Outubro. Uma chuva fina caíra continuamente nos últimos dois dias. Crampton regressava a casa, depois de duas horas de visitas aos doentes e aos que não podiam sair de casa. Como sempre, esforçara-se por ir ao encontro das necessidades previsíveis de cada um dos seus paroquianos. Mrs. Oliver, cega, gostava que ele lhe lesse uma passagem das Escrituras e rezasse com ela; o velho Sam Possinger, que a cada visita gostava de travar, mais uma vez, a batalha de Alamein; Mrs. Poley, presa ao seu andarilho, ansiava por saber o último boato que corria na paróquia; Cari Lomas, que nunca estivera em St. Botolph, mas gostava de conversar sobre teologia e sobre as falhas da Igreja Anglicana; Mrs. Poley que, com a sua ajuda, ia até à cozinha e fazia chá, tirando da lata o bolo de gengibre que havia feito para ele. Aquando da sua primeira visita, Crampton caíra na asneira de elogiar os seus dotes de doceira e, agora, estava condenado a comer uma fatia, todas as semanas, por não ter coragem de lhe dizer que sempre detestara bolo de gengibre. Mas o chá, forte e a ferver, era sempre bem-vindo e poupava-lhe o incómodo de o fazer quando regressasse a casa.

 

Estacionou o seu Vauxhall Cavalier na rua e atravessou o carreiro de cimento que cortava ao meio a relva húmida, ainda não aparada, onde pétalas de rosas caídas começavam a desfazer-se na zona do jardim dianteiro. O silêncio era total no interior da casa e, como já era costume, entrou com alguma apreensão. Barbara mostrara-se mal-humorada e agitada ao pequeno-almoço. Aquela sua agitação, bem como o facto de não se haver dado ao trabalho de mudar de roupa, era sempre mau sinal. Durante o almoço uma sopa de pacote seguida de uma salada, ainda em roupão, empurrara o seu prato, explicando que se sentia muito cansada para comer e que ia deitar-se e tentar dormir um pouco durante a parte da tarde.

 

Acrescentara ainda, com alguma petulância: ”É melhor ires visitar os teus velhos paroquianos. Afinal, é tudo o que te interessa. Não me incomodes, quando voltares. Não quero que me fales deles. Não quero ouvir seja o que for.”

 

Ele nada dissera, mas, dividido entre a raiva e a piedade, vira-a subir lentamente a escada, com o cinto de seda do seu roupão a roçar pelos degraus e a cabeça pendendo para a frente, como se agonizasse, no seu desespero.

 

Agora, de regresso a casa, com viva apreensão, fechou a porta atrás de si. Barbara ainda estaria na cama ou esperara que ele saísse, para se vestir e fazer uma das suas destrutivas e humilhantes voltas pela paróquia? Ele tinha de o saber. Subiu as escadas sem fazer barulho, por não querer acordá-la, se estivesse a dormir.

 

A porta do quarto encontrava-se fechada e fez girar a maçaneta devagar. O quarto estava mergulhado em semiobscuridade, com as cortinas corridas, quase por completo, ao longo da janela que dava para o rectângulo de relva endurecida, com os dois canteiros triangulares que formavam o jardim e, mais atrás, as fileiras de casas idênticas àquela. Avançou em direcção à cama e, assim que os seus olhos se adaptaram àquela escuridão, viu-a com toda a clareza. Estava deitada sobre o lado direito, com a mão colocada por baixo da face e o braço esquerdo sobre o cobertor. Debruçando-se, ouviu a sua respiração pesada e lenta, detectou o cheiro a álcool no seu hálito e um odor desagradável, mais forte, que identificou como o de vomitado. Na mesa-de-cabeceira, havia uma garrafa de Cabernet Sauvignon e, ao lado, caído, e com a tampa mais à frente, um frasco grande, vazio, que havia contido comprimidos solúveis de aspirina.

 

Crampton pensou que ela adormecera por estar bêbeda e que queria ficar deitada, sem que ninguém a incomodasse. Pegou, instintivamente, na garrafa de vinho e preparava-se para calcular quanto ela havia bebido quando uma voz o aconselhou a pousar imediatamente a garrafa. Reparando num lenço que saía de debaixo da almofada, pegou-lhe para limpar a garrafa e só depois o colocou novamente sob a almofada. Tinha a impressão de que agia contra a sua vontade e sem qualquer lógica. Saiu do quarto, fechou a porta e desceu a escada. Mais uma vez, pensou: ”Ela adormeceu porque está bêbeda e não quer que ninguém a incomode.” Meia hora mais tarde, dirigiu-se ao escritório, preparou, com toda a calma, os documentos que deveria levar para a reunião do Conselho Paroquiano, marcada para as seis da tarde, e saiu de casa.

 

Não tinha qualquer imagem mental da reunião do Conselho Paroquiano, mas lembrava-se de ter regressado a casa, de carro, com Melvyn Hopkins, um dos seus conselheiros. Tinha prometido a Melvyn que o deixaria ver o último relatório da comissão da Igreja sobre a responsabilidade social e sugerira-lhe que o acompanhasse ao vicariato. A partir dali, a sequência de imagens tornava-se mais clara. Pedindo desculpa por Barbara não estar presente e explicando a Melvyn que ela se encontrava doente, subira, mais uma vez, ao quarto, abrira de novo a porta, com todo o cuidado, e vira, na penumbra, a figura imóvel, a garrafa de vinho e o frasco de aspirinas. Aproximara-se da cama. A respiração pesada cessara. Colocando uma mão na face de Barbara, sentiu que estava fria. Percebeu imediatamente que estava morta. Então, vieram-lhe à memória palavras que lera ou ouvira, não sabia bem como, mas que, agora, eram aterrorizadoras pela insinuação que continham. ”É sempre aconselhável termos alguém connosco, quando descobrimos o corpo de um morto.”

 

Não conseguiu reviver o funeral ou a cremação, porque não se lembrava. Em seu lugar, havia apenas um emaranhado de rostos compadecidos, preocupados ou, até, angustiados, saindo da escuridão, grotescos e distorcidos, para fitá-lo melhor. E, no meio daqueles rostos, surgiu aquele que ele mais temia. Estava sentado novamente no sofá, mas, desta vez, com o sargento Yarwood e um rapaz de uniforme, que não devia ser mais velho do que um dos meninos do seu coro, e que, sentado, se mantivera em silêncio durante o interrogatório.

 

E, quando voltou para casa, depois de visitar os seus paroquianos, pouco depois das cinco da tarde, conforme afirmou, o que fez ao certo?

 

Já lhe disse, sargento. Subi ao quarto para ver se a minha mulher ainda estava a dormir.

 

Quando abriu a porta, o candeeiro da mesa-de-cabeceira encontrava-se aceso?

 

Não. As cortinas tinham sido corridas quase na totalidade e o quarto estava imerso numa semiobscuridade.

 

Aproximou-se do corpo?

 

Já lhe disse, sargento. Espreitei pela porta, vi que a minha mulher ainda estava deitada e pensei que dormia.

 

A que horas se foi ela deitar?

 

À hora do almoço. Penso que devia ser meio-dia e meia. Disse-me que não tinha fome e que ia tentar dormir um pouco.

 

Não estranhou que ela ainda dormisse, passadas cinco horas!

 

Não. Ela dissera-me que estava cansada. Além do mais, a minha mulher costumava dormir à tarde.

 

Não lhe ocorreu que ela pudesse estar doente? Não lhe passou pela cabeça subir ao quarto e certificar-se de que a sua mulher estava bem? Não se apercebeu de que ela talvez precisasse urgentemente de assistência médica?

 

Estou farto de lhe dizer que pensei que ela estava a dormir.

 

Viu a garrafa de vinho e o frasco de aspirinas na mesa-de-cabeceira?

 

Vi a garrafa de vinho e deduzi que a minha mulher tinha estado a beber.

 

Sabe se ela levou a garrafa de vinho para o quarto quando se foi deitar?

 

Não, não a levou quando se foi deitar. Deve ter descido para vir buscá-la, depois de eu sair.

 

E levou-a para o quarto, para se deitar com a garrafa?

 

Penso que sim, até porque não havia mais ninguém em casa, Não restam dúvidas de que foi ela que levou a garrafa para o quarto. Como poderia ter ido parar à mesa-de-cabeceira? É exactamente essa a questão. É que, sabe, não havia impressões digitais na garrafa. Tem alguma explicação para isso?

 

Claro que não. Só posso deduzir que ela limpou a garrafa. Havia um lenço debaixo da almofada. [

 

Quer dizer que o senhor conseguiu ver o lenço, mas não viu ofrasco caído na mesa-de-cabeceira?

 

Naquela altura, não vi nada. Só reparei no lenço, mais tarde, quando encontrei a minha mulher morta.

 

E as perguntas continuavam. Yarwood regressava, de tempos a tempos, certas vezes, acompanhado pelo jovem agente uniformizado e, noutras, sozinho. Crampton acabara por temer o toque da campainha da porta e mal se atrevia a espreitar pela janela, com medo de avistar a figura, de casaco cinzento, a aproximar-se pelo carreiro com passos decididos. As perguntas eram sempre as mesmas e as suas respostas iam-se tornando menos convincentes, até mesmo aos seus ouvidos. E a perseguição continuara, após o veredicto, previsível, de suicídio. Barbara fora cremada, havia já algumas semanas. Nada sobrava dela, a não ser alguns ossos calcinados e uma mão-cheia de cinzas enterradas num canto do adro da igreja, mas Yarwood prosseguia com o seu interrogatório.

 

Nunca Nemesis fora personificada por alguém com aspecto tão andrajoso. Yarwood mais parecia um caixeiro-viajante, persistente nas suas perguntas, imune à rejeição, transportando com ele o cheiro acre do fracasso. Era magro, com a altura mínima requerida para ingressar na Polícia, com uma pele estragada e uma testa alta e ossuda e olhos escuros e impenetráveis. Raras eram as vezes que olhava directamente para Crampton durante os seus interrogatórios. Fitava, ao invés, o vazio, como se comunicasse intimamente com um seu superior. O seu tom de voz era monótono, e o silêncio a que se remetia entre cada pergunta estava carregado de uma ameaça que parecia abranger muito mais do que a sua vítima. Raramente avisava que tencionava visitar Crampton, dando a impressão de que sabia quando este se encontrava em casa. Aguardava, com aparente paciência, que lhe abrissem a porta e entrava com toda a discrição. Nunca havia qualquer conversa preliminar; apenas as mesmas perguntas insistentes.

 

Diria que o seu casamento era feliz?

 

Aquela impertinência emudecera Crampton. Só depois, refeito do choque inicial, dera consigo a responder, num tom de voz tão ríspido que mal o reconhecia:

 

Deduzo que, para a Polícia, todos os relacionamentos, incluindo os mais sagrados, podem ser classificados. Devia elaborar um questionário adequado ao casamento, porque poupar-nos-ia muito tempo. ”Assinale, com uma cruz, na casa apropriada, a sua resposta: Muito feliz. Feliz. Razoavelmente feliz. Um tanto infeliz. Infeliz. Muito infeliz. Mortífero.”

 

Por fim, Crampton apresentara queixa ao chefe da Polícia e as visitas de Yarwood haviam cessado. Seria informado, mais tarde, que se reconhecia que, após o inquérito, o sargento Yarwood abusara da sua autoridade, em particular, quando ia a casa de Crampton, sozinho, para interrogá-lo, quando não tinha autorização para tal. Aquele homem manteve-se na memória de Crampton como uma figura sombria e acusadora. O tempo, a nova paróquia, a sua promoção a arcediago, o segundo casamento nada conseguira apaziguar a feroz raiva que o consumia sempre que pensava em Yarwood.

 

E agora, ele voltara a aparecer. Crampton não se lembrava exactamente do que tinham dito um ao outro. Apenas sabia que o seu rancor e azedume haviam extravasado, numa torrente de vitupérios exaltados.

 

Desde que Barbara morrera, Crampton rezara, primeiro, regularmente, depois, de tempos a tempos, pedindo perdão pelos pecados que havia cometido contra ela: a sua impaciência, intolerância, falta de amor e incapacidade para a compreender ou lhe perdoar. No entanto, recusava-se a tomar consciência do seu pecado maior, ao desejar a morte de Barbara. E recebera a absolvição do seu pecadilho de negligência, pela voz do médico assistente de Barbara, quando se haviam encontrado pouco antes do inquérito.

 

Sinto um peso na consciência confessara Crampton. Se me tivesse dado conta, quando regressei a casa, de que a Barbara não estava a dormir... que caíra em coma... e tivesse chamado uma ambulância, isso teria feito alguma diferença?

 

Recebera a resposta que o absolvera:

 

Com tudo o que ela ingeriu, não teria feito diferença alguma.) Mas que havia em Santo Anselmo que o obrigava a confrontar-se

 

com todas as suas mentiras? Soubera que Barbara corria risco de vida e desejara a sua morte. Aos olhos do seu Deus, era, por certo, tão culpado de homicídio como se houvesse sido ele a dissolver aquelas aspirinas e as tivesse enfiado, à força, pela garganta de Barbara abaixo ou como se lhe tivesse levado aos lábios um copo de vinho. Como podia ele continuar a exercer o sacerdócio, pregando o perdão dos pecados, quando ninguém sabia que ele pecara? Como conseguira falar à pequena congregação, poucas horas antes, com aquela sombra a macular-lhe a alma?

 

Estendendo a mão, acendeu o candeeiro da mesa-de-cabeceira. A luz que inundou o quarto era mais brilhante do que a suave luminosidade de quando ele lera uma passagem das Escrituras. Saiu da cama e ajoelhou-se, cobrindo o rosto com as mãos. Não precisou de procurar as palavras certas; vinham-lhe à mente, com naturalidade,” trazendo com elas a promessa de perdão e de paz. ”Que Deus tenha piedade deste pecador.”

 

Foi quando estava a rezar, de joelhos, que o seu telemóvel, pousado sobre a mesa-de-cabeceira, quebrou o silêncio com um toque de chamada incongruentemente alegre. Era um som tão inesperado, tão discordante, que, durante alguns segundos, o arcediago não conseguiu identificá-lo. Por fim, levantou-se com dificuldade e estendeu a mão para atender.

 

Pouco antes das cinco e meia da manhã, o padre Martin acordou com um grito de terror. Sobressaltado, sentou-se na cama, hirto como uma estátua, fitando com olhos esbugalhados a escuridão. Gotas de suor corriam-lhe pela testa e picavam-lhe os olhos. Enxugando-as, sentiu que a sua pele, esticada e fria, parecia a de um cadáver. A pouco e pouco, enquanto o horror do pesadelo cessava, o quarto retomou a sua dimensão. Formas pardas, mais imaginadas do que vistas, emergiram da escuridão e tornaram-se-lhe familiares: uma cadeira, a cómoda, a cabeceira da cama, o contorno de um quadro. As cortinas das quatro janelas circulares estavam corridas, mas podia ver, a leste, um fio ténue de luar que, mesmo na mais sombria das noites, pairava sobre o mar. Deu-se conta, então, da tempestade. O vento tornara-se forte ao longo da noite e, quando o padre Martin se deitara, uivava à volta da torre, como um espectro do mal. Agora, contudo, a acalmia momentânea era mais ameaçadora do que bem-vinda, e, imóvel na sua cama, escutou o silêncio, mas não detectou passos na escada nem vozes.

 

Quando começara a ter pesadelos, dois anos antes, pedira que lhe dessem aquele pequeno quarto circular, na torre sul, explicando que apreciava a vista sobre o mar e a costa e que procurava o silêncio e a solidão. Tinha já alguma dificuldade em subir a escada mas, ao menos, esperava que ninguém ouvisse os seus gritos. No entanto, o padre Sebastian adivinhara a verdade. O padre Martin lembrava-se da breve conversa que haviam tido, certo domingo, após a missa.

 

O padre Sebastian dissera:

 

Dorme bem?

 

Razoavelmente.

 

Se tem pesadelos, existe maneira de solucionar o problema. Não me refiro a psiquiatras, no sentido geral, mas diz-se que, por vezes, falar do passado com pessoas que suportaram a mesma experiência ajuda a ultrapassar os pesadelos.

 

Aquela conversa surpreendera o padre Martin. O padre Sebastian nunca escondera o seu cepticismo quanto aos psiquiatras, afirmando que se sentiria mais inclinado a respeitá-los se pudessem explicar a base médica ou filosófica da sua disciplina, ou conseguissem definir-lhe a diferença entre a mente e o cérebro. Era sempre surpreendente verificar que o padre Sebastian sabia tudo sobre o que se passava em Santo Anselmo. Quanto ao padre Martin, não acolhera de bom grado aquela abordagem e pusera ponto final na conversa. Sabia que não era o único sobrevivente de um campo de prisioneiros japonês atormentado, na sua velhice, pelos horrores que um cérebro jovem conseguira esquecer. Não tinha a menor intenção de se sentar num círculo para falar das suas experiências com os outros, se bem que tivesse lido que alguns antigos prisioneiros haviam encontrado ajuda naquele tipo de terapia. Mas, no seu caso, tinha de lidar consigo próprio. O vento levantara-se e os gemidos ritmados tinham dado lugar a uivos e, mais tarde, a guinchos de crescente intensidade, mais numa manifestação do mal do que da força da natureza. Saiu da cama, calçou as pantufas e, caminhando com dificuldade, abriu a janela virada a leste. A rajada fria pareceu-lhe uma aragem benéfica, tirando da sua boca e narinas o cheiro fétido da selva, abafando, na sua cacofonia selvagem, os gemidos e gritos demasiado humanos e purificando a sua mente das imagens mais horríveis.

 

O pesadelo era sempre o mesmo. Rupert tinha sido levado de volta para o campo, na noite anterior, e agora os prisioneiros alinhavam-se para assistir à sua decapitação. Depois das torturas que lhe haviam sido infligidas, o rapaz mal conseguiu andar até ao local da execução, onde caiu, de joelhos, quase aliviado. Num derradeiro esforço, ergueu a cabeça antes que a lâmina do sabre caísse. Durante dois segundos, a cabeça manteve-se presa ao corpo mas, logo de seguida, rolou lentamente e a grande torrente vermelha jorrou, como uma última celebração à vida. Era aquela imagem que, noite após noite, o padre Martin tinha de suportar. Quando acordava, sentia-se angustiado pelas mesmas dúvidas. Por que razão Rupert tentara fugir, quando sabia que era puro suicídio! Porque não falara a ninguém do seu objectivo? Pior ainda, por que razão ele, Martin, não avançara, em sinal de protesto, antes que a lâmina tombasse? Porque nem sequer tentara tirar, mau grado o seu estado debilitado, o sabre das mãos do guarda, preferindo morrer com o seu amigo? O amor, partilhado mas nunca consumado, que sentira por Rupert fora o único da sua vida. Tudo o resto havia sido apenas o exercício da benevolência ou a prática da afabilidade. Apesar dos momentos de contentamento e de outros, mais raros, de alegria espiritual, o padre Martin carregava o peso daquela traição. Não tinha o direito de estar vivo, mas havia um lugar onde sabia que podia encontrar a paz e resolveu dirigir-se para lá.

 

Pegou no molho de chaves que deixara sobre a mesa-de-cabeceira, vestiu o casaco de malha velho, com cotoveleiras de cabedal, que usava no Inverno, cobriu-se com o capote, abriu a porta do quarto e desceu a escada.

Não precisava de lanterna; uma luz de presença ficava acesa em cada patamar e a escada de caracol, um contínuo entrave à sua deficiência, era bem iluminada, através de lâmpadas incrustadas nas paredes. A tempestade abrandara. O silêncio na mansão era absoluto, e o gemido abafado do vento realçava uma calma interior, mais portentosa do que a simples ausência de ruídos. Era difícil imaginar que, por trás das portas dos quartos, havia pessoas a dormir, que aquele silêncio fora, alguma vez, perturbado pelo eco de passos apressados e de vozes masculinas, ou que a pesada porta da frente não estivera trancada durante várias gerações.

 

No vestíbulo, uma única lâmpada vermelha, colocada aos pés da Virgem e do Menino, iluminava o rosto sorridente da mãe e coloria de rosa os braços roliços e estendidos do Menino Jesus. A madeira parecia haver-se transformado em carne humana. Tomando cuidado para que os seus passos não ecoassem, o padre Martin atravessou o vestíbulo em direcção ao vestiário. A fileira de capotes castanhos era a primeira prova de que aquela mansão estava ocupada; contudo, naquele momento sinistro, parecia mais um conjunto de relíquias esquecidas por uma geração há muito desaparecida. Ouvia claramente o vento, agora, e, quando destrancou a porta que se abria para o claustro norte, notou que se intensificara de novo, com fúria renovada.

 

Para sua surpresa, a luz que se achava por cima da porta estava apagada, bem como as luzes que corriam ao longo das paredes do claustro. Mas, quando premiu o interruptor, acenderam-se e pôde ver que o chão de pedra estava coberto de folhas. Mesmo quando fechou a porta atrás de si, uma nova rajada de vento agitou o grande castanheiro. Um turbilhão de folhas esvoaçou à sua volta como um bando de pássaros de plumagem castanha que quisessem bicar-lhe gentilmente o rosto para, logo de seguida, pousarem nos seus ombros.

 

O padre Martin dirigiu-se para a porta da sacristia, onde teve alguma dificuldade em identificar as duas chaves de que precisava. Entrou, premiu o interruptor ao lado da porta, digitou o código para silenciar o toque insistente do sistema de alarme e avançou até à nave central da igreja. O interruptor que acendia as luzes do tecto da nave ficava à sua direita, e estendeu a mão para o accionar. Foi então que se apercebeu, com alguma surpresa mas sem qualquer angústia, que o foco de luz que iluminava O Juízo Final estava aceso, e que o seu reflexo banhava a extremidade oeste da igreja. Resolvendo não acender as luzes do tecto, avançou, seguindo ao longo do muro norte.

 

Aproximando-se ào Juízo Final, estacou, petrificado com o horror que se estendia a seus pés. O sangue não desaparecera. Estava ali, naquele lugar onde ele viera procurar paz, tão vermelho como no seu pesadelo. Não jorrava, mas espalhava-se, em poças e estreitos regatos pelas pedras do chão. Aquela torrente deixara de correr mas, quando a fitou, pareceu estremecer e tornar-se viscosa. O pesadelo não havia cessado. Ainda estava encurralado num lugar de horror, a que não pudera escapar quando acordara. Ou o peso do seu passado era tanto que acabara por enlouquecê-lo. Fechou os olhos e murmurou:

 

Meu Deus, ajuda-me.

 

Por fim, o consciente sobrepôs-se ao choque e, abrindo os olhos, forçou-se a fitar novamente o que julgara ser um pesadelo.

 

Os seus sentidos, incapazes de apreenderem toda a cena, registaram-na lentamente, pormenor por pormenor. O crânio esmagado; os óculos do arcediago, caídos um pouco mais ao longe, mas intactos, os dois castiçais de ferro, colocados ao lado do cadáver, como num acto de desdém e de sacrilégio; as mãos do arcediago abertas, parecendo querer agarrar-se às pedras, mas mostrando-se mais brancas e delicadas do que em vida; o roupão cor de púrpura, de cetim, agora empapado em sangue. Por fim, o padre Martin ergueu o olhar para O Juízo Final. O diabo que dançava, no centro do quadro, usava agora óculos, bigode e barba curta, e o seu braço direito fora alongado num gesto de vulgar desafio. Por baixo do quadro, havia uma pequena lata de tinta preta e, a seu lado, a tampa onde estava pousado um pincel.

 

O padre Martin avançou, cambaleando, e ajoelhou-se ao lado da cabeça do arcediago. Tentou rezar mas as palavras não lhe vinham à mente. De repente, sentia necessidade de ver outros seres humanos, de ouvir passos, de sentir o conforto de uma companhia. Sem pensar no que fazia, dirigiu-se para a zona oeste da igreja e puxou, com força, a corda do sino. O seu badalar, tão suave como de costume, pareceu-lhe ecoar com uma força aterradora.

 

Depois, avançou até à porta sul e, com mãos trémulas, conseguiu tirar os ferrolhos pesados. O vento entrou, trazendo consigo folhas mortas. Deixou a porta entreaberta e, já com passo mais firme, voltou para junto do corpo. Tinha de dizer certas palavras e finalmente encontrou forças para as pronunciar.

 

Ainda estava de joelhos, com a ponta do capote estendendo-se no sangue, quando ouviu passos e, de seguida, uma voz feminina. Emma ajoelhou-se a seu lado e colocou os braços à volta dos seus ombros. O padre Martin sentiu o cabelo dela acariciar-lhe o rosto e a sua pele delicadamente perfumada, que lhe tirou da mente o odor agridoce do sangue. Se bem que tremesse, a voz de Emma era calma.

 

É melhor sairmos daqui, padre. Está tudo bem. Mas não estava tudo bem, e nada seria como dantes.

 

Tentou fitá-la, mas não conseguiu erguer a cabeça; apenas os seus lábios se moveram, num sussurro:

 

Meu Deus, o que foi que fizemos? O que foi que fizemos? Sentiu, então, que Emma o abraçava, levada pelo medo. Atrás deles, a grande porta sul rangeu ao abrir-se.


Dalgliesh, geralmente, não tinha dificuldade em adormecer, mesmo que não fosse na sua cama. Anos de trabalho como detective haviam tornado o seu corpo imune ao desconforto de uma variedade de sofás e, desde que tivesse um candeeiro ou uma lanterna à mão, para o breve período de leitura que lhe era necessário para encontrar o sono, a sua mente livrava-se dos afazeres do dia com a mesma facilidade que o seu corpo cansado. Contudo, naquela noite, era diferente. O quarto convidava ao sono, a cama era confortável sem ser demasiado mole, o candeeiro da mesa-de-cabeceira encontrava-se à altura certa para a sua leitura e a roupa de cama mostrava-se adequada ao clima. Pegou num exemplar da tradução de Seamus Heaney de Beowulf e leu as primeiras cinco páginas, com persistência, como se fosse um ritual nocturno que lhe havia sido prescrito e não algo que lhe dava prazer. No entanto, a poesia depressa se apoderou dele e leu calmamente até às onze horas da noite. Depois, apagou a luz e acomodou-se na cama, contando adormecer dali a pouco.

 

Só que o sono teimava em não vir; aguardou por aquele momento, tão ansiado, em que a mente se liberta do peso da consciência e mergulha, sem medo, na sua morte diária. Talvez fosse a fúria do vento que o mantinha acordado. Normalmente, gostava de adormecer, escutando, aninhado na cama, a tempestade, mas dir-se-ia que aquela era diferente. Havia momentos em que o vento abrandava, breves períodos de paz total, antecipando os lamentos ululantes que depressa pareciam transformar-se num coro de demónios em fúria Durante aqueles crescendos, escutava o gemer do castanheiro e imaginava os seus galhos a partir-se, o seu tronco a oscilar, primeiro, com relutância e, depois, a agitar-se numa dança macabra, que levava os ramos mais altos a roçar na janela do seu quarto. E podia também ouvir o mar com o som surdo da ondulação, em acompanhamento vibrante àquela sinfonia tumultuosa. Parecia impossível que um ser vivo conseguisse resistir ao duplo assalto do vento e das águas turbulentas.

 

Durante um período de acalmia, Dalgliesh acendeu a luz e consultou o relógio. Ficou espantado ao ver que eram cinco horas e trinta e cinco minutos da manhã. Devia ter adormecido ou, pelo menos, dormitado durante mais de seis horas. Começava a pensar que a tempestade finalmente cessara quando os gemidos recomeçaram, em novo crescendo. Quando se lhe sucedeu outro período de acalmia, Dalgliesh captou um som diferente. Era um som que lhe era familiar, desde criança, e que reconheceu imediatamente: o repicar de um sino. Era um único toque, nítido e harmonioso. Ainda perguntou a si próprio, por instantes, se aquele som não lhe ficara nos ouvidos, depois de haver sonhado, mas a realidade impôs-se. Estava perfeitamente acordado e sabia o que acabara de ouvir. Pôs-se à escuta mas o repicar do sino não se repetiu.

 

Agiu prontamente. Tinha o hábito, desde há muito, de nunca se deitar sem deixar, ao alcance da mão, o que lhe pudesse ser necessário numa emergência. Vestiu o roupão, calçou os sapatos e pegou na lanterna de bolso, suficientemente pesada para servir de arma, que deixara em cima da mesa-de-cabeceira.

 

Saiu do quarto, guiando-se apenas pela luz da sua lanterna, abriu a porta da frente e avançou para o claustro, enfrentando uma rajada de vento e um remoinho de folhas que parecia voar em torno da sua cabeça, como um bando de pássaros assustados. As luzes de presença, alinhadas ao longo das paredes dos claustros norte e sul, chegavam apenas para traçar o contorno dos pilares e projectar um sinistro fulgor no chão de pedra. A imponente mansão estava mergulhada na escuridão e apenas se via uma luz acesa, ao lado, no quarto de Santo Ambrósio, onde Emma estava alojada. Passando em frente da janela sem sequer parar para chamá-la, Dalgliesh, de súbito, sentiu medo. Um feixe de luminosidade indicava que a grande porta sul da igreja estava entreaberta. As suas dobradiças rangeram quando a empurrou para entrar, antes de voltar a fechá-la atrás de si.

 

Por segundos, não mais, deteve-se, horrorizado com a cena que se lhe deparava. Não havia qualquer obstáculo entre ele e O Juízo Final e podia vê-lo, emoldurado por dois pilares de pedra, tão vibrante e iluminado que as cores desmaiadas pareciam ganhar um colorido novo, jamais imaginado. O choque da desfiguração, a negro, do quadro em nada se comparava com o horror que se via a seus pés. O corpo do arcediago jazia, à frente do quadro, como se estivesse prostrado, num acto de extrema adoração. Dois pesados castiçais de ferro mantinham-se, cerimoniosamente, de cada lado da sua cabeça. A poça de sangue era de um vermelho tão luxuriante que mais parecia sobrenatural. Até mesmo os dois vultos lhe pareciam irreais; o padre, de cabelos brancos, com o seu capote, ajoelhado e quase agarrado ao morto, e a rapariga, agachada ao seu lado, com um braço em torno dos ombros dele. Desorientado, Dalgliesh ainda pensou que os pequenos demónios negros do quadro tinham saído da tela e dançavam, agora, em volta da cabeça de Emma.

 

Voltara-se para trás, ao ouvir a porta abrir-se. Levantou-se e correu para Dalgliesh.

 

Ainda bem que veio.

 

Agarrou-se a Dalgliesh, que soube, quando a segurou nos braços e sentiu o seu corpo trémulo, que não passara de um gesto instintivo de alívio.

 

Libertando-se dos seus braços, disse:

 

E o padre Martin. Não consigo fazê-lo mexer-se.

 

O padre Martin estendera o braço sobre o corpo do arcediago e apoiara a outra mão na poça de sangue. Baixando a lanterna, Dalgliesh pousou a mão no ombro do velho padre.

 

Sou eu, o Adam, padre. Pode ir, agora. Estou aqui. Está tudo bem.

 

Mas claro que não estava tudo bem. No mesmo instante em que pronunciou aquelas palavras anódinas, percebeu quanto eram falsas.

 

O padre Martin não se mexeu, e o seu ombro parecia tão rígido como o do cadáver. Num tom de voz mais alto, Dalgliesh insistiu:

 

Agora, tem de vir comigo, padre. Já nada podemos fazer aqui.

 

Desta vez, como se aquelas palavras o tivessem finalmente atingido, o padre Martin deixou que o ajudassem a levantar-se. Olhou para a mão ensanguentada, com uma espécie de espanto infantil, e depois limpou-a ao capote. ”Só vai complicar a investigação”, pensou Dalgliesh. Muito embora sentisse compaixão por aquelas duas pessoas, tinha, agora, outras preocupações mais urgentes: a obrigação de manter a cena do crime com todos os seus indícios e de se certificar de que aquela forma de homicídio seria mantida em segredo. Se a porta sul estivera trancada, como de costume, o assassino devia ter entrado pela sacristia, depois de passar pelo claustro norte. Com a ajuda de Emma, Dalgliesh conduziu o padre Martin para a fila de bancos que se achava mais próxima da porta.

 

Ajudou-o a sentar-se e disse a Emma:

 

Espere aqui, durante alguns minutos. Não demoro. Vou trancar a porta sul e sair pela porta da sacristia, que também fecharei à chave. Não deixe ninguém entrar.

 

Virou-se, então, para o padre Martin:

 

Consegue ouvir-me?

 

O padre Martin ergueu o olhar pela primeira vez e fitou Dalgliesh. O sofrimento estampado no seu rosto excedia tudo o que Dalgliesh podia imaginar.

 

Sim, sim. Eu estou bem. Peço-lhe que me desculpe, Adam. Portei-me mal, mas agora já estou bem.

 

Mau grado o que dizia, o padre Martin ainda se encontrava sob o efeito do choque, mas, ao menos, parecia capaz de compreender o que se lhe dizia.

 

Tenho de pedir-vos mais uma coisa prosseguiu Dalgliesh. Lamento se vos parecer insensível, ou se não for a altura mais propícia, mas é importante. Não digam a ninguém o que viram aqui. A ninguém. Compreenderam?

 

Os dois murmuraram a sua anuência, e depois o padre Martin repetiu, num tom de voz mais claro:

 

Compreendemos.

 

Dalgliesh, então, afastou-se, mas Emma deteve-o:

 

Ele já cá não está, pois não? Não está escondido algures, na igreja, não é verdade?

 

Não me parece que esteja, mas vou verificar.

 

Dalgliesh não queria acender mais luzes. Aparentemente, só ele e Emma haviam acordado com o repicar do sino. A última coisa que ele queria era que a cena do crime fosse visitada por mais pessoas. De lanterna na mão, trancou, primeiro, a porta sul e, depois, procedeu a um exame, rápido mas metódico, da igreja, a fim de tranquilizar Emma, porque a sua experiência havia-lhe feito compreender, quase de imediato, que aquela morte não era recente. Abriu as portas que davam para os dois camarotes, fez incidir o foco de luz sobre os bancos e depois, ajoelhando-se, espreitou. Foi então que descobriu algo. Alguém havia ocupado o segundo banco, porque uma parte do assento estava livre de poeira. Dalgliesh não tinha dúvidas de que alguém se havia escondido ali.

 

Concluída a sua inspecção rápida, regressou para junto de Emma e do padre Martin, que continuavam sentados, e anunciou:

 

Está tudo em ordem. Só cá estamos nós. Padre, a porta da sacristia está fechada?

 

Sim. Fechei-a, depois de entrar.

 

Pode dar-me as chaves, por favor?

 

O padre Martin vasculhou no bolso do capote e entregou-lhe um molho de chaves.

 

Não me demoro. Vou trancar a porta, depois de sair. Vão ficar bem até ao meu regresso?

 

Não me parece que o padre Martin deva permanecer aqui por muito mais tempo objectou Emma.

 

Nem vai ser necessário assegurou-lhe Dalgliesh. Precisava apenas de alguns minutos para ir buscar Roger Yarwood. Fosse qual fosse a autoridade que iria encarregar-se da investigação, Dalgliesh precisava de ajuda. Havia ainda uma questão protocolar. Yarwood era oficial da Polícia de Suffolk. Antes que o chefe da Polícia nomeasse o oficial responsável pelo caso, Yarwood podia encarregar-se temporariamente da investigação.

 

Dalgliesh sentiu-se aliviado por encontrar um lenço no bolso do seu roupão e serviu-se dele para se certificar de que não deixava as suas impressões digitais na porta da sacristia. Depois de ligar novamente o alarme e de fechar a porta atrás de si, caminhou por entre as folhas mortas que se apinhavam no chão do claustro norte e avançou apressadamente para a ala onde ficavam os quartos de hóspedes. Lembrava-se de que Roger Yarwood ocupava o quarto de São Gregório.

 

Não havia luzes acesas no quarto de São Gregório. Dalgliesh entrou, atravessou a pequena saleta, guiando-se pela luz da sua lanterna, e, ao chegar à escada, chamou Yarwood. Não obteve resposta. Subiu ao quarto e descobriu que a porta se encontrava aberta. Yarwood deitara-se, mas a cama estava vazia. Dalgliesh abriu a porta da casa de banho e verificou que também não havia ninguém ali. Acendeu a luz e inspeccionou o roupeiro, onde faltavam o sobretudo e os sapatos, Yarwood devia ter saído e de nada lhe serviria tentar encontrá-lo, porque podia estar em qualquer parte, até mesmo no promontório, apesar da tempestade. Assim, Dalgliesh regressou à igreja. Emma e o padre Martin continuavam sentados no mesmo lugar onde os havia deixado.

 

Padre, porque não vai com a doutora Lavenham até ao quarto dela? Tenho a certeza de que pode fazer-lhe um chá. Julgo que o padre Sebastian vai querer falar com todos os residentes no instituto, mas, entretanto, talvez fosse melhor o senhor tentar descansar um pouco, no quarto da doutora Lavenham.

 

O padre Martin fitou-o, com o olhar espantado de uma criança.

 

Mas o padre Sebastian vai precisar de mim... protestou. Foi Emma que replicou:

 

Claro que vai, mas não é melhor esperarmos até que o inspector Dalgliesh tenha falado com ele? Porque não vamos até ao meu quarto? Tenho lá tudo o que é preciso para fazer chá. A mim, vai saber-me muito bem.

 

O padre Martin acabou por anuir, com um aceno de cabeça, e levantou-se, mas Dalgliesh deteve-o.

 

Antes que saia, padre, temos de verificar se o cofre foi arrombado. Dirigiram-se à sacristia e Dalgliesh pediu-lhe o código da fechadura. Depois, cobrindo os dedos com o lenço para manter quaisquer impressões digitais que pudesse haver na maçaneta do cofre, fê-la girar com cuidado e abriu a porta. No interior, por cima de uma pilha de documentos, havia uma pasta de couro. Tirou-a, colocou-a sobre a secretária e abriu-a, revelando, embrulhados em papel de seda, dois magníficos cálices, adornados com pedras preciosas, e uma patena de estilo pré-Reforma, doação da fundadora de Santo Anselmo.

 

Não falta nada informou o padre Martin.

 

Dalgliesh voltou a guardar a pasta no cofre e fechou-o. O móbil do crime não havia sido o roubo, nem lhe passara pela cabeça, por um momento sequer, que o houvesse sido.

 

Esperou que Emma e o padre Martin saíssem pela porta sul, depois, trancou-a e, saindo pela sacristia, avançou pelo claustro norte, cujo pavimento estava agora totalmente coberto de folhas. A tempestade começara a abrandar e, muito embora o seu rasto de devastação se espalhasse à volta de Dalgliesh, sob a forma de galhos partidos e folhas caídas, as rajadas de vento eram menos intensas. Entrando pela porta do claustro norte, subiu os dois lanços de escada que conduziam ao quarto do reitor.

 

O padre Sebastian não tardou a abrir a porta. Vestia um roupão de lã, aos quadrados, e o seu cabelo, em desalinho, fazia-o parecer mais novo. Os dois homens entreolharam-se. Antes mesmo que abrisse a boca, Dalgliesh percebeu que o reitor sabia que palavras ele ia pronunciar. Eram ríspidas, mas não havia uma maneira fácil nem mais delicada de lhe dar a notícia.

O arcediago Crampton foi assassinado. O padre Martin encontrou-o na igreja, pouco depois das cinco e meia da manhã. O reitor levou a mão ao bolso e tirou o seu relógio.

 

Passam poucos minutos das seis replicou. Porque não me informaram antes?

 

O padre Martin tocou o sino da igreja para dar o alarme, e tanto eu como a doutora Lavenham acordámos com o toque. Ela chegou primeiro à cena do crime. Depois, houve alguns procedimentos que precisei de cumprir. E, agora, tenho de telefonar à Polícia de Suffolk.

 

Mas não é um assunto para o inspector Yarwood?

 

Devia ser, mas o Yarwood desapareceu. Posso servir-me do seu gabinete?

 

Claro. Vou só mudar de roupa e já vou ter consigo. Mais alguém sabe o que se passou?

 

Ainda não, padre.

 

Sendo assim, vou ter de lhes dar a notícia.

 

Fechou a porta e Dalgliesh dirigiu-se para o gabinete, situado no piso inferior.

 

Dalgliesh deixara na sua carteira o número de telefone de Suffolk de que precisava naquele momento, mas, depois de pensar durante alguns segundos, conseguiu lembrar-se do número. Após identificar-se, indicaram-lhe o número directo do chefe da Polícia. A partir dali, tudo se tornou mais rápido e simples. Estava a lidar com homens habituados a acordar a meio da noite e prontos a agir. Elaborou um relato breve mas completo e não teve de repeti-lo.

 

Fez-se silêncio, do outro lado da linha, até que o chefe da Polícia replicou:

 

O desaparecimento do Yarwood constitui, em si, uma complicação. O Alred Treeves, outra, mas menos importante. No entanto, não vejo como podemos agir. Mas não podemos perder mais tempo. Os três primeiros dias são sempre vitais. Vou falar com o comandante. Vai querer que uma equipa parta em busca do Yarwood?

 

Por enquanto, ainda não. Pode ter ido dar um passeio. É possível até que já tenha regressado. Se não for esse o caso, então, pedirei aos estudantes daqui que o procurem, mal amanheça. Se houver novidades, entro em contacto consigo. Se o Yarwood não aparecer, então, aí sim, é melhor vocês encarregarem-se do caso.

 

Certo. Os seus superiores terão de dar a devida autorização, mas penso que é melhor partir do princípio de que vai ser você o oficial responsável pelo caso. Tratarei dos pormenores com a Polícia Metropolitana, mas deduzo que irá querer trabalhar com a sua equipa, não é verdade?

 

Seria mais simples. Após nova pausa, o chefe da Polícia prosseguiu:

 

Conheço os padres de Santo Anselmo. São boas pessoas. Apresente as minhas condolências ao padre Sebastian. Este caso vai prejudicá-los de muitas formas.

 

Passados cinco minutos, a Scotland Yard telefonava para informar Dalgliesh dos pormenores que tinham sido acertados. Dalgliesh ficaria encarregado do caso. Os detectives Kate Miskin e Piers Tarrant, juntamente com o sargento Robbins, já haviam partido de carro, e a equipa de apoio, um fotógrafo e três oficiais forenses, seguiriam em breve. Uma vez que Dalgliesh já se encontrava no local do crime, não fora considerado necessário recorrer a um helicóptero. A equipa viajaria, de comboio, até Ipswich, e a Polícia de Suffolk trataria de levá-los até ao instituto. O Dr. Kynaston, o patologista com quem Dalgliesh costumava trabalhar, estava ocupado num outro caso. O patologista local encontrava-se de férias, em Nova Iorque, mas o seu substituto, o Dr. Mark Ayling, estava de serviço e já se havia disponibilizado. Seria sensato recorrer aos seus serviços. Qualquer material que fosse recolhido para análise deveria ser enviado, quer para o laboratório de Huntingdon, quer para o de Lambeth, dependendo do volume de trabalho.

 

O padre Sebastian tivera a gentileza de aguardar na antessala, enquanto Dalgliesh procedia àqueles telefonemas. Quando se apercebeu de que as conversações finalmente pareciam terminadas, entrou e anunciou:

 

Agora, gostaria de ir até à igreja. O senhor tem as suas responsabilidades, mas eu também tenho as minhas.

 

Primeiro, é mais urgente organizar uma busca para se tentar encontrar o Roger Yarwood. Quem é o seu ordinando mais adequado para o ir procurar?

 

O Stephen Morby. Ele e o Pilbeam podem levar o Land Rover. Dito isto, pegou no telefone, discou um número e depressa obteve resposta.

 

Bom dia, Pilbeam. Está vestido? Importa-se de acordar Mister Morby e de vir com ele até ao meu gabinete, imediatamente?

 

A espera foi curta. Dalgliesh ouviu passos apressados, subindo a escada, uma pausa em frente da porta e, por fim, os dois homens entraram.

 

Dalgliesh ainda não conhecia Pilbeam. Era um homem forte, com mais de um metro e oitenta de altura, de rosto bronzeado e cabelo louro. Ao vê-lo, Dalgliesh teve a sensação de que aquele homem lhe era familiar. Só depois se deu conta de que Pilbeam era muito parecido com um actor secundário, de cujo nome não conseguia lembrar-se, mas que costumava aparecer frequentemente em filmes de guerra, no papel do oficial, um pouco simplório mas muito dedicado, que, no final, invariavelmente, morria sem soltar um gemido, para maior glória do herói.

 

Manteve-se de pé, à espera. Parecia muito à vontade. A seu lado, Stephen Morby, de corpo franzino, tinha o aspecto de um miúdo. O padre Sebastian dirigiu-se a Pilbeam:

 

Mister Yarwood desapareceu. Receio que tenha ido vaguear, sem rumo, novamente.

 

Esteve uma noite muito má para passeios, padre.

 

Exactamente. Pode regressar a qualquer momento, mas não posso esperar mais. Quero que você e Mister Morby levem o Lane Rover e o procurem. O seu telemóvel está ligado?

 

Sim, padre.

 

Telefone-me imediatamente, se houver novidades. Se ele não estiver no promontório ou perto do pântano, não percam mais tempo a tentar encontrá-lo. Poderá ser um caso para a Polícia. Só mais uma coisa, Pilbeam...

 

Sim?

 

Quando você e Mister Morby regressarem, com ou sem Mister Yarwood, venham ter imediatamente comigo e não falem do assunto a ninguém. Isso também se aplica a si, Stephen. Compreendido

 

Sim, padre. Aconteceu alguma coisa, não é verdade? Para além de Mister Yarwood ter desaparecido.

 

Explico-lhes melhor quando vocês tiverem regressado. Não é provável que possam fazer grande coisa até ao amanhecer, mas, mesmo assim, quero que iniciem as buscas imediatamente. Levem lanternas, cobertores e um termo de café. Pilbeam, vou dirigir-me a toda a comunidade, na biblioteca, às sete e meia. Diga à sua esposa que esteja presente.

 

Sim, padre.

 

Os dois homens saíram.

 

São ambos muito sensatos comentou, então, o padre Sebastian. Se o Yarwood estiver no promontório, vão encontrá-lo. Achei melhor deixar as explicações para quando eles regressarem.

 

Fez muito bem anuiu Dalgliesh.

 

Era óbvio que o autoritarismo natural do padre Sebastian se estava a adaptar rapidamente às circunstâncias trágicas. Para Dalgliesh, todavia, um suspeito com uma parte tão activa na investigação era uma novidade que dispensava, porque a situação exigia a maior prudência.

 

O senhor tinha razão, inspector. Encontrar o Yarwood é a nossa maior prioridade. Mas, agora, talvez eu já possa ir para onde devo estar, ou seja, para junto do arcediago.

 

Primeiro, gostaria de lhe fazer algumas perguntas, padre Quantas chaves existem da porta da igreja e quem as tem?

 

É realmente necessário que as faça agora?

 

É, sim, padre. Como disse, o senhor tem as suas responsabilidades e eu tenho as minhas.

 

E as suas são mais importantes do que as minhas?

 

Por enquanto, são.

 

O padre Sebastian teve o cuidado de não deixar transparecer a sua impaciência quando respondeu.

 

Existem sete molhos de duas chaves, da porta da sacristia, uma de segurança, e uma Yale. A porta sul tranca-se apenas com o ferrolho. Cada um dos quatro padres residentes possui um molho, e os outros três estão no armário, na sala contígua ao gabinete de Miss Ramsey. Temos de manter a igreja fechada, por causa do valor do retábulo e dos ornamentos em prata, mas qualquer um dos nossos ordinandos pode requisitá-las, sempre que deseje, porque são eles que se ocupam da limpeza da igreja.

 

E quanto aos funcionários e aos hóspedes?

 

Apenas têm acesso à igreja quando se fazem acompanhar por alguem que possua um desses conjuntos, excepto nas horas dos serviços religiosos. Como temos quatro serviços religiosos por dia, a oração da manhã, a Eucaristia, as vésperas e as completas, não pode dizer-se que estejam propriamente impedidos de ir à igreja. Esta restrição não me agrada, mas é o preço que pagamos por manter o quadro de Van der Weyden por cima do altar. O problema é que os nossos ordinandos nem sempre se lembram de reactivar o alarme. Além dessas chaves, todos os funcionários e hóspedes possuem chaves do portão de ferro do átrio oeste, que conduz ao promontório.

 

E quem conhece o código do sistema de alarme?

 

Penso que toda a gente. Mantemos os nossos tesouros ao abrigo de intrusos, não dos nossos hóspedes e colaboradores.

 

Que chaves possuem os ordinandos, por exemplo?

 

Cada um tem duas chaves, uma do portão de ferro por onde costumam entrar e outra da porta do claustro norte ou do claustro sul conforme as alas em que se encontram alojados. Nenhum deles possui uma chave que lhes permita aceder à igreja.

 

As chaves do Ronald Treeves foram devolvidas, depois de ele morrer?

 

Sim. Estão numa gaveta da escrivaninha de Miss Ramsey, mas, como acabei de dizer, ele não tinha uma chave que lhe permitisse entrar na igreja. Bom, e agora, se me dá licença, gostaria de ir para junto do arcediago.

 

Com certeza. De caminho, podemos verificar se os três molhos suplementares das chaves da igreja continuam no chaveiro.

 

O padre Sebastian nada disse. Quando passaram para o gabinete de Miss Ramsey, dirigiu-se a um armário estreito, situado à esquerda da lareira. Não estava trancado. No interior, havia duas fileiras de pregos onde se encontravam chaves com as respectivas etiquetas. Na primeira fila, três dos pregos indicavam: ”IGREJA”. Um estava vazio.

 

Consegue lembrar-se de quando foi que viu, pela última vez as chaves da igreja, padre? perguntou Dalgliesh.

 

O padre Sebastian pensou durante alguns segundos antes de responder.

 

Creio que foi ontem de manhã, antes da hora do almoço. Vieram entregar algumas latas de tinta para o Surtees, que vai pintar a sacristia. O Pilbeam veio até cá buscar um molho de chaves. Eu encontrava-me no meu gabinete quando ele assinou o registo e o veio devolver, cinco minutos mais tarde.

 

Dito isto, o padre Sebastian abriu a gaveta direita da escrivaninha de Miss Ramsey e tirou um livro.

 

Penso que foi ele o último a requisitar as chaves, ontem, mas pode verificar, se quiser. Como vê, teve-as em seu poder durante cinco minutos. Mas a última pessoa que terá visto as chaves deve ter sido o Henry Bloxham. Ficara de preparar a igreja para as completas, ontem à noite. Eu encontrava-me aqui quando ele veio requisitar o molho de chaves e no meu gabinete quando o devolveu. Se tivesse dado pela falta de um molho, ter-nos-ia informado.

 

Quer dizer que o senhor pode afiançar que o Henry Bloxan devolveu realmente as chaves, padre?

 

Não. Eu estava no meu gabinete, mas a porta de comunicação encontrava-se aberta e o Henry desejou-me as boas-noites. Não existe qualquer registo da sua requisição, porque os ordinandos que recolhem as chaves antes de um serviço religioso não são obrigados a assinar o livro. Bom, mas agora, inspector, tenho de insistir. Posso ir até à igreja?

 

O silêncio ainda reinava na mansão. Passaram, em silêncio, pelo vestíbulo. O padre Sebastian dirigiu-se, então, para a porta que comunicava com o vestiário, mas Dalgliesh interveio.

 

Temos de evitar passar pelo claustro norte, tanto quanto for possível.

 

Nada mais disseram até alcançarem a porta da sacristia. O padre Sebastian começou a procurar a chave, remexendo nos bolsos.

 

Eu encarrego-me disso, padre ofereceu-se Dalgliesh. Destrancou a porta, entrou com o reitor, trancou novamente a porta, e, por fim, passaram para a igreja. Dalgliesh tinha deixado acesa a luz que iluminava directamente O Juízo Final, e o horror que se estendia aos pés do quadro era, agora, mais visível. O padre Sebastian não vacilou ao avançar para o altar. Nada disse. Olhou, primeiro, para o quadro profanado e, só depois, para o seu adversário morto, então, benzeu-se e ajoelhou-se, concentrando-se numa oração silenciosa. Observando-o, Dalgliesh perguntou a si próprio que palavras o padre Sebastian encontraria para comunicar com o seu Deus. Não devia esta a rezar pela alma do arcediago, porque seria um anátema, atendendo ao rígido protestantismo de Crampton.

Depois, imaginou quais seriam as palavras que acharia adequadas, se fosse ele que estivesse a rezar naquele momento. ”Ajuda-me a resolver este caso, sem prejudicar os inocentes, e protege a minha equipa.” A última vez que se lembrava de ter rezado com paixão e na crença de que a sua oração era válida, fora quando a sua mulher se achava já moribunda, mas Deus não ouvira os seus apelos ou, se os ouvira, não lhe respondera. Pensou na morte e no seu carácter definitivo e inevitável. O que o atraía, em parte, na sua profissão era a ilusão de que a morte constituía um mistério que podia ser solucionado e que, uma vez encontrada a solução, todos os problemas, dúvidas e receios podiam ser postos de parte como um trapo.

 

Então, percebeu que o padre Sebastian rezava, em voz alta, como se, tendo consciência da presença silenciosa de Dalgliesh, sentisse a necessidade de o levar a participar, mesmo que como ouvinte, no seu secreto exercício de expiação. Proferidas pelo tom de voz harmonioso do padre Sebastian, aquelas palavras, que Dalgliesh conhecia bem, eram mais uma afirmação do que uma prece, parecendo o eco dos seus próprios pensamentos; ouviu-as, como que pela primeira vez, sentindo um calafrio de medo.

 

”E tu, Senhor, que estabeleceste, no princípio, a fundação da terra; e os céus são a obra das Tuas mãos: perecerão, mas Tu permanecerás; todas as coisas se tornarão velhas como os trapos; mas, como uma vestimenta, dobrá-las-ás e transformar-se-ão; e Tu continuarás o mesmo e os Teus anos serão eternos.”


Dalgliesh fez a barba, tomou duche e vestiu-se com a grande rapidez que lhe vinha de anos de prática. Por volta das sete horas e vinte e cinco minutos, juntava-se de novo ao reitor, no seu gabinete. O padre Sebastian consultou o relógio.

 

É chegado o momento de me dirigir à biblioteca. Direi algumas palavras, primeiro, e depois poderá prosseguir. Convém-lhe?

 

Perfeitamente.

 

Era a primeira vez, desde que havia chegado, que Dalgliesh entrava na biblioteca. O padre Sebastian acendeu várias luzes que iluminaram as prateleiras. De imediato vieram à memória de Dalgliesh os longos serões de Verão que ali passara, a ler, sob o olhar incansável dos bustos, alinhados no alto das prateleiras, dos últimos raios do pôr do Sol dourando as lombadas de couro e compondo feixes de cor sobre a madeira polida, das noites longas, quando a ondulação do mar parecia fortalecer-se com o lusco-fusco. Contudo, agora, o tecto abobadado e alto perdia-se na escuridão, e as vidraças coloridas das janelas ogivais formavam um buraco negro, emoldurado a chumbo. Ao longo da parede norte, as prateleiras tinham sido dispostas em ângulos rectos, formando pequenos cubículos, cada um com uma mesa e uma cadeira. O padre Sebastian dirigiu-se para o cubículo mais próximo, arrastou duas cadeiras e colocou-as no centro da sala.

 

Vamos precisar de quatro cadeiras. Três para as senhoras e uma para o Peter Buckhurst. Ainda não tem forças suficientes para ficar de pé, durante muito tempo, se bem que o meu comunicado seja breve. Não vale a pena arranjar uma cadeira para a irmã do padre John, porque é uma senhora já de idade avançada e que raramente sai do apartamento. Dalgliesh ajudou-o a carregar as duas últimas cadeiras, que o padre Sebastian colocou ao lado das outras. Logo de seguida, recuou como que para verificar se estavam bem alinhadas.

 

O som de passos ligeiros, ao longo do vestíbulo, fez-se ouvir, e os ordinandos, todos envergando a batina preta, entraram ao mesmo tempo, como se tivessem combinado fazê-lo, e postaram-se atrás das cadeiras, muito direitos, quase imóveis. Os seus rostos ainda estavam pálidos e tensos e tinham os olhos fixos no padre Sebastian. A tensão que haviam trazido para a biblioteca era quase palpável.

 

Menos de um minuto mais tarde, Mrs. Pilbeam e Emma apareceram. O padre Sebastian fez-lhes sinal para que se sentassem, e acomodaram-se, lado a lado, debruçando-se ligeiramente uma para a outra, como se um simples roçar de ombros pudesse reconfortá-las. Tendo consciência da importância da ocasião, Mrs. Pilbeam trocara a bata branca por um traje que parecia incongruentemente festivo. Optara por usar uma saia de lã, verde, e uma blusa azul-clara e adornara o seu pescoço com um camafeu. Emma estava muito pálida mas tivera o cuidado de mudar de roupa, como se tentasse impor a ordem e a normalidade na devastação causada pelo homicídio. Os seus sapatos castanhos, de saltos baixos, estavam impecavelmente engraxados, e usava calças de veludo, uma blusa creme que parecia acabada de passar a ferro, e um casaco de cabedal.

 

O padre Sebastian dirigiu-se a Buckhurst.

 

Não quer sentar-se, Peter?

 

Obrigado, padre, mas prefiro ficar de pé.

 

Pois eu preferia que se sentasse.

 

Sem mais demoras, Buckhurst sentou-se ao lado de Emma.

 

Os três padres entraram, logo de seguida. O padre John e o padre Peregrine postaram-se de cada lado do grupo constituído pelos ordinandos, enquanto que o padre Martin, julgando detectar um convite mudo, avançou e colocou-se ao lado do padre Sebastian.

 

Lamento imenso, mas a minha irmã ainda está a dormir anunciou o padre John, e não quis acordá-la. No entanto, se a sua presença for necessária, talvez possa vir mais tarde.

 

Claro que sim murmurou Dalgliesh. Com o olhar posto em Emma, deu-se conta de que ela fitava o padre Martin com preocupação e muito afecto. Quase se levantara quando ele entrara. Não só era bela como inteligente e bondosa. Dalgliesh, então, sentiu uma súbita ternura, um sentimento que lhe era tão estranho como indesejável. ”Meu Deus! Mais uma complicação, não! Nem agora, nem nunca”, repreendeu-se mentalmente.

 

Os segundos transformaram-se em minutos antes que se ouvissem novos passos. A porta abriu-se e George Gregory entrou, logo seguido por Clive Stannard. Este último, ou se deixara dormir, ou não vira motivos para se incomodar, porque vestira um par de calças e um casaco de tweed por cima do pijama, cuja gola ultrapassava a do casaco e cujas calças roçavam nos sapatos. Em contraste com aquele desleixo, Gregory vestira-se com todo o cuidado, e a sua camisa e gravata mostravam-se imaculadas.

 

Lamento imenso se vos fiz esperar desculpou-se Gregory. Mas não gosto de me vestir sem tomar um duche primeiro.

 

Postou-se atrás de Emma, pousou a mão no espaldar da cadeira que ela ocupava, mas, depois, retirou-a, sentindo que aquele gesto não era apropriado. O seu olhar, fixo no padre Sebastian, revelava alguma desconfiança, mas Dalgliesh pensou também detectar uma certa curiosidade. Quanto a Stannard, parecia francamente assustado e ten tava ocultá-lo com uma indiferença tão artificial como embaraçada.

 

Não é um pouco cedo para dramas? exclamou. Deduzo que aconteceu algo. Não é melhor ficarmos a sabê-lo já?

 

Ninguém lhe respondeu. A porta tornou a abrir-se. Eric Surtes envergava o seu fato-macaco. Hesitou, à porta, e lançou um olhar in trigado a Dalgliesh, como se tivesse ficado surpreendido por vê-lo ali. Karen Surtees, que mais parecia um papagaio, com uma camisola comprida encarnada por cima de calças verdes, tivera apenas tempo de passar batom nos lábios. Os seus olhos, desprovidos de maquilhagem, pareciam realçar a sua visível sonolência. Depois de hesitar, sen tou-se na única cadeira vaga, e o irmão postou-se atrás dela. Todas as pessoas convocadas estavam, agora, presentes. Dalgliesh deu consigo a pensar que mais pareciam um estranho grupo de convidados de um casamento, que posavam, com viva relutância, para um fotógrafo de masiado entusiasta.

 

Rezemos anunciou o padre Sebastian.

 

Aquela exortação era inesperada. Apenas os padres e os ordinandos reagiram instintivamente, baixando a cabeça e unindo as mãos. As senhoras não sabiam muito bem o que se esperava delas, mas, de pois de lançarem um olhar de relance ao padre Martin, levantaram-se. Emma e Mrs. Pilbeam baixaram a cabeça, enquanto Karen Surtees fitou Dalgliesh, com um cepticismo beligerante, como se o achasse responsável por aquele momento de vivo embaraço. Gregory, sorrindo manteve a cabeça bem direita, enquanto que Stannard, de sobrolho franzido, mudou de posição. O padre Sebastian pronunciou a primeira oração da manhã. Fez uma pausa e, depois, repetiu a oração que dissera nas completas, dez horas antes.

 

Senhor, rogamos-Te que visites este lugar e o libertes de todas as armadilhas do inimigo; que os Teus anjos permaneçam aqui e nos mantenham na santa paz; e que nos abençoes para todo o sempre por Nosso Senhor, Jesus Cristo. Ámen.

 

O coro de ”améns” foi repetido timidamente pelas senhoras e,, com mais confiança, pelos ordinandos. O grupo, então, agitou-se. Era menos um movimento do que um suspiro generalizado. Dalglies pensou: ”Já sabem. Mas um deles sabe-o há mais tempo do que os restantes.” As senhoras voltaram a sentar-se. Todos os olhares estavam pousados no padre Sebastian, que, quando começou a falar, o fez com voz calma e quase inexpressiva.

 

A noite passada, uma terrível maldição abateu-se sobre a nossa comunidade. O arcediago Crampton foi brutalmente assassinado na igreja. O seu corpo foi encontrado pelo padre Martin, às cinco e meia da manhã. O inspector Dalgliesh, que se encontra aqui hospedado por outro assunto, vai continuar a ser nosso hóspede, mas, agora, na qualidade do oficial de polícia que investiga um homicídio. É nosso dever, bem como nosso desejo, prestar-lhe toda a assistência de que precisa, respondendo às suas perguntas honestamente e sem nada ocultar. Também não lhe faremos sentir que a sua presença é indesejável, quer por palavras, quer por gestos. Telefonei aos ordinandos que estiveram ausentes, durante o fim-de-semana, e adiei o seu regresso ao instituto por uma semana. Aqueles que se encontram aqui, de momento, devem tentar continuar com a sua vida e o seu trabalho no instituto, sem deixar de colaborar com a Polícia. Pus a Vivenda São Mateus à disposição de Mister Dalgliesh e será ali que os seus colaboradores trabalharão. A pedido de Mister Dalgliesh, a igreja e o acesso ao claustro norte ficarão vedados. A missa será celebrada no oratório, à hora do costume, bem como todos os outros serviços religiosos, até que a igreja seja reaberta. A morte do arcediago é, agora, um assunto que diz apenas respeito à Polícia. Não especulem nem conversem, entre vós, sobre esse assunto. Como devem calcular, não podemos ocultar o homicídio. A notícia espalhar-se-á inevitavelmente. Peço-vos que não telefonem a ninguém nem transmitam a terceiros o que se passou. Penso que poderemos contar, pelo menos, com um dia de sossego. Se houver qualquer coisa que vos preocupe, tanto o padre Martin como eu estamos aqui para vos ajudar. Fez uma pausa e, por fim, acrescentou: Como sempre. E, agora, passo a palavra a Mister Dalgliesh.

 

A sua audiência havia-o escutado quase em total silêncio. Apenas à menção da palavra ”homicídio”, fora quebrado. Dalgliesh ouvira alguém parecera-lhe ter sido Mrs. Pilbeam reprimir um grito. Raphael, lívido, estava tão hirto que Dalgliesh receou que o rapaz fosse desmaiar. Eric Surtees lançara um olhar aterrado à irmã, mas desviara-o rapidamente para fitar o padre Sebastian. Gregory franzira o sobrolho e mergulhara numa profunda concentração. Pairava, naquela atmosfera glacial, o peso do medo. À excepção do olhar que Surtees lançara à irmã, ninguém se entreolhara, talvez por todos terem medo do que poderiam ver, pensou Dalgliesh.

 

Admirado por verificar que o padre Sebastian não fizera qualquer alusão às ausências de Yarwood, Pilbeam e Stephen Morby, Dalgliesh sentia-se grato pela discrição do reitor. Decidiu ser breve. Sempre que investigava um homicídio, não tinha o hábito de pedir desculpa pelo incómodo que podia causar a todas as pessoas envolvidas, talvez por considerar que era o menor dos males provocados por um crime.

 

Acordou-se que seja a Polícia Metropolitana a encarregar-se deste caso anunciou. Uma pequena equipa de polícias e especialistas chegará ao instituto ainda hoje. Como o padre Sebastian vos disse, a igreja ficará fechada, assim como o claustro norte e a porta que o liga à mansão. Ou eu ou um dos meus assistentes falaremos com cada um de vós, durante o dia de hoje. Contudo, ganharíamos tempo se estabelecêssemos certos factos, desde já. Algum dos presen tes saiu do seu quarto, ontem à noite, depois das completas? Alguém se aproximou ou entrou na igreja? Viram ou ouviram qualquer coisa ontem à noite, que possa ter qualquer relação com o crime?

 

Fez-se silêncio até que Henry o quebrou.

 

Eu saí para dar um passeio, ontem à noite, pouco depois das dez e meia. Dei cinco voltas aos claustros, para fazer algum exercício e, depois, regressei ao meu quarto. Estou alojado no quarto número dois do claustro sul. Não vi nem ouvi nada de estranho. O vento ssoprava com força, fazendo tombar muitas folhas no claustro norte É tudo aquilo de que me lembro.

 

Foi você que acendeu as velas da igreja, antes das completas, abriu a porta sul da igreja, não é verdade? perguntou Dalgliesh. Onde foi buscar as chaves? Ao gabinete de Miss Ramsey?

 

Sim. Fui buscá-las, pouco antes do serviço, e, depois, guardei -as no mesmo sítio. Havia lá três molhos de chaves quando fui buscar um deles, e outros tantos quando voltei a colocar o que levara comigo no respectivo prego.

 

Vou perguntar mais uma vez: algum de vocês saiu do quarto depois das completas? retomou Dalgliesh.

 

Esperou por breves momentos mas, não obtendo qualquer resposta, prosseguiu:

 

Vou querer ver os sapatos e as roupas que usaram, ontem à noite. Mais tarde, também será necessário recolher as impressões digi tais de todos aqueles que passaram o fim-de-semana em Santo Anselmo, a fim de se proceder a uma triagem. Penso que é tudo, por enquanto.

 

Silêncio, de novo.

 

Tenho uma pergunta a fazer-lhe, Mister Dalgliesh interviu Gregory. Parecem faltar três pessoas, entre elas um oficial da Polícia de Suffolk. Existe alguma relação especial entre essa situação e a investigação?

 

Por enquanto, não respondeu Dalgliesh.

 

Aquela quebra do silêncio pareceu estimular Stannard, que se lançou num discurso inflamado:

 

Posso perguntar porque é que o inspector Dalgliesh parte do princípio de que este caso é aquilo a que a Polícia chama um ”caso fechado”? Enquanto examinam as nossas roupas e nos tiram as impressões digitais, provavelmente, o culpado já estará a milhas daqui. Afinal, este local não oferece segurança alguma. Pela minha parte, não tenciono dormir aqui esta noite, sem ter uma fechadura na porta do meu quarto.

 

A sua preocupação é perfeitamente natural atalhou o padre Sebastian. Vou mandar colocar fechaduras mais seguras no seu quarto e nos dos outros hóspedes.

 

E quanto à minha pergunta? Porque se parte do princípio de que o assassino foi um de nós? insistiu Stannard.

 

Era a primeira vez que aquela hipótese era colocada de viva voz, e Dalgliesh teve a sensação de que ninguém ousava olhar para os outros, receando que isso pudesse constituir uma acusação velada.

 

Não se partiu desse princípio replicou.

 

O encerramento do claustro norte explicou, então, o padre Sebastian irá implicar que os ordinandos cujos quartos se situem ali tenham de deixá-los temporariamente. Com tantos estudantes ausentes, isso aplica-se, de momento, a si, Raphael. Se me entregar as suas chaves, dar-lhe-ei, em troca, a chave do quarto três do claustro sul e da porta do corredor sul.

 

E quanto às minhas coisas, padre? Os meus livros? As minhas roupas? Não posso ir buscá-las?

 

Vai ter de passar sem elas, por enquanto. Os seus colegas, por certo, emprestar-lhe-ão tudo aquilo de que precisar. Não posso deixar de realçar mais uma vez quanto é importante que se mantenham afastados das áreas que a Polícia vai isolar.

 

Sem dizer mais nada, Raphael tirou um molho de chaves do bolso, seleccionou duas e, avançando, entregou-as ao padre Sebastian.

 

Pelo que me foi dito, todos os padres residentes possuem chaves da igreja volveu Dalgliesh. Poderiam verificar, agora, se ainda se encontram em vosso poder?

 

Pela primeira vez, o padre Betterton falou.

 

Receio não ter as minhas comigo. Deixo-as sempre em cima da mesa-de-cabeceira.

 

Dalgliesh ainda tinha as chaves do padre Martin e avançou para os outros dois padres, para se certificar de que também ainda tinham as suas.

 

Virou-se, então, para o padre Sebastian, que disse:

 

Penso que já foi dito tudo, por ora. O horário dos programas de hoje será mantido, tanto quanto possível. Não haverá a oração da manhã, mas tenciono celebrar a missa, no oratório, ao meio-dia. É tu do. Obrigado.

 

e saiu da biblioteca. Seguiu-se um arrastar de pés. Os outros entreolharam-se e, por fim, um a um, encaminharam-se para a porta

 

Dalgliesh tinha desligado o seu telemóvel durante a reunião, mas mal voltou a ligá-lo, recebeu uma chamada. Era Stephen Morb.

 

Inspector Dalgliesh? Encontrámos o inspector Yarwood. Caído numa vala, a meio caminho da estrada de acesso. Tentei telefonar-lhe antes, mas não consegui. Ele tinha parte do corpo dentro da água e perdeu os sentidos. Pensamos que partiu uma perna. Não queriam” mexer-lhe para não piorar o seu estado, mas também não podiam” deixá-lo ali. Tirámo-lo da vala com todo o cuidado e já pedimos um ambulância. Ele está a ser transportado para a ambulância, neste momento. Vão levá-lo para o Hospital de Ipswich.

 

Agiram correctamente. Ele está muito mal?

 

Os enfermeiros julgam que vai safar-se, mas ainda não recuperou os sentidos. Eu vou acompanhá-lo na ambulância. Dir-lhe-ei mais alguma coisa quando regressar. Mister Pilbeam segue atrás de nós; por isso, voltarei ao instituto com ele.

 

Certo. Tentem despachar-se. Precisamos de vocês os dois aqui. Depois de desligar, Dalgliesh deu a notícia ao padre Sebastian que comentou:

 

Era o que eu temia. Faz parte do seu problema. Pelo que soube, sofre de claustrofobia e, quando tem um ataque de pânico, precisa de sair e de andar para apanhar ar. Depois que a mulher o deixou, levando os filhos consigo, ele costumava desaparecer durante dias a fio.Por vezes, andava até cair, exausto. A Polícia encontrava-o e trazia-o de volta. Graças a Deus que o encontraram a tempo. Agora, se quiser acompanhar-me até ao meu gabinete, talvez pudéssemos falar sobre aquilo de que o senhor e os seus colegas irão precisar na Vivenda S. Mateus.

 

Fica para mais tarde, padre. Primeiro, tenho de falar com” Betterton.

 

Penso que o padre John voltou para o seu apartamento. Fica situado no terceiro andar da ala norte. Deve estar à sua espera.

 

O padre Sebastian havia tido a inteligência de não especular, em voz alta, sobre a possível implicação de Yarwood no crime. Mas a sua caridade cristã parava ali. Apesar de ter guardado para si as suas ideias, em parte, talvez desejasse que o resultado final fosse o mellhor possível; um homicídio cometido por um homem atacado por momentânea insanidade, e que não poderia ser responsabilizado pelos seus actos. E, se Yarwood não sobrevivesse à queda, nem por isso deixava de ser considerado suspeito. A sua morte seria sempre conveniente para alguém.

 

Antes de se dirigir ao apartamento dos Betterton, Dalgliesh voltou ao seu quarto e telefonou ao chefe da Polícia de Suffolk.


Havia uma campainha ao lado da estreita porta do apartamento dos Betterton. Dalgliesh mal teve tempo de a premir, porque o padre John apareceu e fez-lhe sinal para que entrasse.

 

Se não se importa de esperar um pouco, vou buscar a minha irmã. Penso que está na cozinha. Temos uma cozinha muito pequena aqui, mas ela prefere comer sozinha a juntar-se-nos nas refeições comunitárias. Eu não demoro.

 

A sala onde Dalgliesh se encontrava era baixa mas espaçosa, com quatro janelas circulares viradas para o mar. Estava mobilada em excesso, com o que parecia serem relíquias de residências anteriores: cadeiras baixas e estofadas, um sofá, cujo assento parecia instável, com o espaldar tapado por uma manta indiana, em frente da lareira; uma mesa redonda de mogno, ao centro, com seis cadeiras desemparelhadas no estilo; uma secretária de pés altos, entre duas das janelas; uma variedade de mesinhas carregadas com o testemunho ecléctico de duas vidas fotografias em molduras de prata, algumas estatuetas de porcelana, caixinhas de madeira e uma taça de pot-pourri cujo perfume bolorento há muito deixara de se fazer sentir no ambiente abafado da sala.

 

Do lado esquerdo da porta, a parede encontrava-se totalmente ocupada por estantes de livros. Devia ser aquela a biblioteca da juventude do padre John, dos seus tempos de estudante e de sacerdote, mas havia também volumes de capa preta, com o título Peças do Am, que datavam dos anos trinta e quarenta. Ao lado, viam-se vários romances policiais. Dalgliesh pôde perceber que o padre John era um entusiasta das escritoras do chamado Período Áureo: Dorothy L Sayers, Margery Allingham e Ngaio Marsh. Do lado direito da porta, havia um saco de golfe que continha meia dúzia de tacos. Era um objecto estranho naquela sala, que não apresentava outros vestígios de qualquer interesse por aquele desporto.

 

Os quadros eram tão variados quanto os outros artefactos: pinturas a óleo vitorianas, muito sentimentais no conteúdo mas razoáveis no estilo; naturezas-mortas e aguarelas, que parecia terem sido pintadas pelos antepassados da época vitoriana porque eram boas de mais para serem obras de amadores, mas não o suficiente para terem sido pintadas por profissionais. Apesar da pouca claridade, a sala era muito viva, pessoal e confortável para transmitir um ar deprimente. Junto às duas poltronas de espaldar alto, de cada lado da lareira, havia um candeeiro de leitura. Os dois irmãos deviam sentar-se, ali, um frente ao outro, para ler confortavelmente.

 

Mal Miss Betterton entrou na sala, Dalgliesh ficou chocado com a estranha disparidade dos padrões de genes familiares. À primeira vista, era difícil acreditar que aqueles dois Betterton fossem parentes próximos. O padre John era baixo e entroncado, tinha um rosto dócil, que espelhava uma expressão contínua de espanto e ansiedade. A sua irmã devia ser, pelo menos, vinte centímetros mais alta do que ele, tinha um corpo esquelético e olhos penetrantes, que reflectiam uma expressão desconfiada. As únicas semelhanças entre os dois irmãos eram as orelhas de lóbulos compridos, as pálpebras superiores descaídas e as bocas finas. A irmã parecia ser consideravelmente mais velha do que o padre John. O seu cabelo grisalho-escuro estava apanhado, no alto da cabeça, por duas travessas, e as pontas do carrapito espetavam-se na vertical. Usava uma saia comprida, quase até aos pés, de tweed fino, uma camisa às riscas, que parecia ser do irmão, e um casaco de malha comprido, cujas mangas ostentavam já buracos de traças.

 

Agatha, este é o inspector Dalgliesh, da Scotland Yard.

 

Um polícia? Dalgliesh estendeu a mão.

 

Sim, Miss Betterton, sou, efectivamente, um polícia.

 

A mão que, após uma hesitação breve, se fechou na sua era fria e tão magra que podia sentir cada osso e articulação.

 

Agatha Betterton, então, comentou, naquele tom de voz algo estridente e tão característico da classe alta que aqueles que não a possuem têm dificuldade em acreditar que possa ser natural:

 

Receio que tenha vindo bater à porta errada, meu bom homem. Não temos cães aqui.

 

Mister Dalgliesh nada tem a ver com cães, Agatha.

 

Pensei que me tivesses dito que ele era treinador de cães.

 

Não, eu expliquei-te que o inspector não treina cães.

 

Bom, também já não temos barcos. O nosso primo Raymond era comandante, durante a última guerra, não da Marinha Real, mas da Reserva de Voluntários da Marinha Real. Penso que lhe chamam a ”Marinha Ondulante” por causa das listas douradas das mangas. De qualquer maneira, isso não lhe fez grande diferença, já que morreu no cumprimento do dever. Talvez o senhor tenha reparado nos tacos de golfe do primo Raymond, ao lado da porta. Não podemos afeiçoar-nos a um pau, mas também nos sentimos relutantes em desfazermo-nos dos tacos. Mas porque não está de uniforme, Mister Dalgliesh Gosto de ver um homem de uniforme. Sim, porque uma batina não é a mesma coisa.

 

Sou inspector, Miss Betterton. É uma patente específica da Polícia Metropolitana, e nada tem a ver com a marinha.

 

Compreendendo que aquele diálogo já havia ido longe de mais, o padre John interveio, com a sua voz dócil mas firme.

 

Agatha, minha querida, aconteceu uma coisa terrível. Quero que me escutes atentamente e que mantenhas a calma. O arcediago Crampton foi assassinado. É por isso que o inspector Dalgliesh precisa de falar contigo e com todos nós. Temos de ajudá-lo, o melhor que pudermos, a descobrir o responsável por um acto tão hediondo.

 

O seu pedido para que a irmã mantivesse a calma fora desnecessário. Miss Betterton recebeu a notícia sem revelar a menor surpresa ou angústia.

 

Virando-se para Dalgliesh, exclamou:

 

Afinal, o senhor tem o faro apurado como um cão. É uma pena que não tenha pensado em trazer um dos seus cães. Onde foi ele assassinado? Estou a referir-me ao arcediago, como terá compreendido, por certo.

 

Na igreja, Miss Betterton. O padre Sebastian não vai gostar disso. Não seria melhor o senhor ir avisá-lo?

 

Tanto ele como todos os outros já o sabem, Agatha explicou o padre John.

 

O que é certo é que ninguém vai sentir a falta dele aqui. Era um homem muitíssimo desagradável. Estou a referir-me ao arcediago, como terá compreendido, por certo. Poderia explicar-lhe porque tenho esta opinião sobre o arcediago, mas trata-se de um assunto de família confidencial. Espero que compreenda. O senhor parece ser um oficial inteligente e discreto, o que só revela a formação que teve na Marinha Real. Há certas pessoas que é preferível estarem mortas. Não vou explicar-lhe por que motivo o arcediago é uma delas, mas posso assegurar-lhe que o mundo será melhor sem ele. Mas vão ter de fazer alguma coisa com o corpo. Não pode permanecer na igreja. O padre Sebastian nunca o permitiria. E quanto aos serviços religiosos? Não deveriam já estar a tratar disso? Não vou à missa, porque não sou crente, mas o meu irmão é e não me parece que gostasse de tropeçar no corpo do arcediago. Independentemente das nossas opiniões pessoais sobre o arcediago, não seria nada agradável depararmos com o seu corpo na igreja.

 

O corpo vai ser removido, Miss Betterton replicou Dalgliesh, mas a igreja terá de ficar fechada, pelo menos durante quatro dias. Agora, se me permite, gostaria de lhe fazer algumas perguntas. O seu irmão ou a senhora saíram do vosso apartamento, ontem à noite, depois das completas?

 

E porque haveríamos de sair daqui, inspector?

 

É exactamente isso que eu gostaria de saber, Miss Betterton. Algum de vós saiu deste apartamento depois das dez da noite de ontem?

 

Dalgliesh olhou para a irmã e, depois, para o irmão. Foi o padre John que respondeu.

 

Costumamos deitar-nos às onze da noite. Não saí do meu apartamento, nem antes nem depois das completas, e tenho a certeza de que a Agatha também não.

 

Se um de vocês tivesse saído, o outro tê-lo-ia notado? Foi a vez de Miss Betterton responder:

 

Claro que não. Não ficamos acordados toda a noite, a pensar no que o outro está a fazer. O meu irmão tem total liberdade para sair à noite, se assim o desejar, mas não vejo motivos para que o fizesse. Deduzo que o senhor queira, antes, saber se algum de nós assassinou o arcediago. Não sou estúpida. Sei muito bem aonde este interrogatório conduz. Bom, não o matei, nem penso que o meu irmão o tenha morto, porque nunca foi um homem de acção.

 

O padre John, visivelmente atrapalhado, protestou veementemente:

 

Claro que não fui eu que matei o arcediago, Agatha! Como podes pensar em tal coisa?

 

Não fui eu que pensei nessa hipótese. Foi o inspector replicou ela, fitando novamente Dalgliesh. O arcediago ia expulsar-nos daqui. Foi ele próprio que mo disse.

 

Nunca poderia dizer-te tal coisa, Agatha interveio, de novo, o padre John. Deves ter compreendido mal.

 

Quando foi que teve essa conversa com o arcediago, Miss Betterton? quis saber Dalgliesh.

 

Da última vez que ele cá esteve. Foi numa segunda-feira de manhã. Dirigi-me ao curral dos porcos, para ver se o Surtees tinha legumes que me pudesse dar. Ele é muito bondoso. Eu tinha acabado de sair da sua casa quando encontrei o arcediago. Pensei que também fora até ali para pedir alguns legumes, ou talvez porque quisesse ver os porcos. Reconheci-o imediatamente. Como é evidente, não esperava encontrá-lo ali e talvez tenha sido um pouco ríspida quando o cumprimentei. Nunca fui hipócrita, nem sei fingir que simpatizo com alguém. Como também não sou crente, não tenho de praticar a caridade cristã. Além do mais, ninguém me tinha dito que ele estava de visita ao instituto. Porque nunca me dizem essas coisas? Nunca teria sabido que ele estava cá, neste fim-de-semana, se o Raphael Arbuthnot não mo tivesse dito.

 

Julgo que já terá conhecido o Raphael Arbuthnot. É um rapaz encantador e muito esperto. Janta connosco, de tempos a tempos, e lemos uma peça juntos. Ele podia ser actor, se os padres não lhe tivessem deitado a mão. Pode desempenhar todo o tipo de papéis e tem um talento inato para imitar vozes.

 

A minha irmã gosta muito de teatro explicou o padre John. Ela e o Raphael vão até Londres, uma vez em cada período, para fazer compras, almoçar e assistir a uma matiné de teatro.

 

Penso que, para ele, representa muito sair daqui retomou Miss Betterton. Infelizmente, já não ouço tão bem como antigamente. Os actores modernos não aprendem a projectar a voz. Só sussurram. Acha que eles terão disciplinas de sussurros nas escolas de teatro? Mesmo quando ficamos nas filas da frente, por vezes, é muito difícil perceber o que os actores dizem. Como é óbvio, nunca me queixei do meu problema ao Raphael, porque não quero ferir a sua susceptibilidade.

 

Mas insistiu gentilmente Dalgliesh o que foi que o arcediago lhe disse, ao certo, para pensar que ele estava a ameaçar expulsá-la, Miss Betterton?

 

Foi qualquer coisa que ele disse sobre as pessoas que viviam à custa da Igreja sem nada dar em troca.

 

O padre John, mais uma vez, interveio:

 

Ele nunca diria uma coisa dessas, Agatha. Tens a certeza de que te lembras bem do que te disse?

 

Ele pode não ter utilizado exactamente estas palavras, John, mas foi o que quis insinuar. Depois, ainda me disse que eu não devia ter a certeza de poder ficar aqui para o resto da vida. Compreendi perfeitamente aonde queria chegar. Estava a ameaçar expulsar-nos.

 

O padre John, cada vez mais angustiado, replicou:

 

Mas ele nunca poderia expulsar-nos daqui, Agatha, porque não” tinha poder para fazê-lo. Foi o que o Raphael me disse, quando lho contei. Falámos nisso, da última vez em que ele jantou cá. Retorqui que, se o arcediago tinha conseguido mandar o meu irmão para a cadeia, também podia expulsar-nos daqui, mas o Raphael tranquilizou-me, ao afirmar, ”Não, porque eu impedi-lo-ei.”

 

O padre John, desesperado pelo rumo que a conversa tomara, afastara-se e postara-se junto da janela.

 

Estou a ver uma motorizada a subir a estrada anunciou. Que estranho. Não creio que estejamos à espera de visitantes hoje. Talvez seja uma visita para si, inspector.

 

Dalgliesh foi juntar-se ao padre John.

 

Vou ter de deixá-la, Miss Betterton. Obrigado pela sua colaboração. Talvez tenha de lhe fazer mais perguntas e, se for esse o caso, perguntarei primeiro, qual será a melhor hora para a senhora me receber. Padre, posso ver o seu molho de chaves, por favor?

 

O padre John saiu da sala, regressando, quase de imediato, com o seu porta-chaves. Dalgliesh comparou as duas chaves da igreja com as do padre Martin.

 

Onde deixou as suas chaves ontem à noite, padre? perguntou.

 

No lugar do costume. Em cima da minha mesa-de-cabeceira. Deixo-as sempre ali quando vou deitar-me.

 

Ao encaminhar-se para a porta, Dalgliesh olhou de relance para os tacos de golfe. As cabeças estavam a descoberto, e mostravam-se muito limpas e reluzentes. A imagem que, então, lhe veio à mente era assustadoramente nítida e convincente. Teria de ser alguém com boa visão, e ainda haveria o problema de esconder o taco até à ocasião em que fosse usado como arma, no momento em que a atenção do arcediago estivesse concentrada na contemplação àO Juízo Final, agora vandalizado. Mas constituiria isso um problema? Bastar-lhe-ia esconder o taco por trás de um pilar. E, com uma arma daquele comprimento, o risco do assassino ficar sujo de sangue era muito menor. Teve a súbita visão de um jovem louro, aguardando, imóvel, na penumbra, com um taco de golfe em punho. O arcediago nunca se teria levantado da cama e ido até à igreja se houvesse sido chamado por Raphael, mas este, segundo a opinião de Miss Betterton, podia imitar a voz de qualquer pessoa.


A chegada do Dr. Mark Ayling foi inesperada, por ocorrer àquela hora. Depois de sair do apartamento dos Betterton, Dalgliesh descia a escada quando ouviu a motorizada entrar no átrio. Como todas as manhãs, Pilbeam tinha aberto a porta principal e Dalgliesh saiu para a ténue luminosidade de um dia que, depois da tempestade, realçava a bonança. Até mesmo a ondulação do mar era mais omnipresente,

 

A poderosa motorizada deu a volta ao átrio até parar em frente da entrada principal. O condutor tirou o capacete, depois, uma caixa do porta-bagagens e, com o capacete debaixo do braço, subiu os degraus com a despreocupação de um simples paquete que fosse entregar uma encomenda.

 

Mark Ayling apresentou-se. O corpo está na igreja, não é verdade?

 

Adam Dalgliesh. Sim, está. Faça favor de me seguir. Vamos passar pela mansão e sair pela porta sul, porque mandei fechar a porta” da mansão que comunica com o claustro norte.

 

Não se via ninguém no vestíbulo e Dalgliesh teve a sensação de que os passos do Dr. Ayling ecoavam estranhamente no chão. Não que se esperasse que o patologista surgisse de mansinho, mas aquela chegada não fora propriamente revestida de grande tacto profissional. Dalgliesh perguntou a si próprio se devia ir procurar o padre Sebastian para proceder às apresentações, mas mudou de ideias. Afinal, não se tratava de uma visita social e não tinham tempo a perder. No entanto, não havia quaisquer dúvidas de que a chegada do médico fora notada e, quando seguiram pelo corredor e passaram em frente da escada para a adega, em direcção à porta do claustro sul, sentiu-se culpado por não haver seguido as regras das boas maneiras, o que não deixava de ser um disparate. Proceder à investigação de um homicídio numa atmosfera de não cooperação e de hostilidade, mal dissimuladas, era menos complicado do que ter de lidar com as nuances sociais e teológicas de um lugar como aquele.

 

Atravessaram o átrio por baixo dos ramos desnudados do grande castanheiro e alcançaram a porta da sacristia, sem trocarem uma só palavra. Quando Dalgliesh destrancou a porta, Ayling perguntou:

 

Onde posso mudar de farda?

 

Aqui, porque a sacristia faz as vezes de escritório e de vestiário. Mudar de ”farda” para Ayling, aparentemente, significava trocar as suas roupas de cabedal por uma bata castanha e as suas botas por sapatos macios por cima dos quais calçou peúgas brancas de algodão.

 

Quando trancou a porta da sacristia, atrás deles, Dalgliesh disse:

 

Tudo indica que o assassino entrou por esta porta. Mandei isolar a igreja até a minha equipa chegar de Londres.

 

Ayling pousou meticulosamente as suas roupas de cabedal na cadeira giratória da secretária, e as botas no chão, ao lado.

 

Por que motivo a Polícia Metropolitana está encarregue deste caso e não a Polícia de Suffolk? perguntou.

 

Temos um inspector da Polícia de Suffolk que está hospedado aqui, o que complica as coisas. Como eu também me encontrava no instituto, por causa de um outro assunto, pareceu-me sensato tomar o comando, por ora.

 

Ayling pareceu ficar satisfeito com aquela justificação.

 

Entraram no corpo central da igreja. A iluminação da nave central era ténue, mas devia ser suficiente para uma congregação que sabia a liturgia de cor. Aproximaram-se dO Juízo Final. Dalgliesh acendeu o interruptor da lâmpada que o iluminava. Na obscuridade sinistra, pejada pelo cheiro a incenso, que parecia estender-se, em imaginação, para lá das paredes da igreja, numa infinita escuridão, o foco projectou a sua luz com um chocante fulgor, mais brilhante do que Dalgliesh se lembrava. Talvez fosse devido à presença de outra pessoa que aquela cena se transformava num acto de grande guignol, pensou; uma encenação onde o actor jazia, imóvel, numa posição estudada; um toque de inspiração, ao colocar os castiçais, um de cada lado da cabeça, enquanto o autor daquele cenário, remetendo-se ao papel de simples espectador, protegido pela sombra do pilar, aguardava em silêncio a sua deixa.

 

Ayling, estacando momentaneamente perante aquele fulgor inesperado, parecia determinar a eficácia de uma tal encenação. Quando iniciou o seu exame em torno do cadáver, poderia pensar-se que era um realizador, avaliando os ângulos das câmaras e certificando-se de que a posição do morto era, ao mesmo tempo, realista e artística. Dalgliesh, por seu lado, reparava com maior clareza em certos pormenores: o salto gasto da pantufa de cabedal preto, que caíra do pé direito de Crampton, e como aquele pé, descalço, parecia grande e peculiar, com o dedo maior muito comprido e feio. Com o rosto parcialmente coberto, aquele pé, agora imóvel para todo o sempre, assumia maior força do que a que teria se todo o corpo estivesse nu,! provocando uma súbita sensação de pena e de ultraje.

 

Dalgliesh conhecera Crampton apenas de passagem, e sentira uma leve irritação por deparar com um outro visitante. Todavia, agora, experimentava uma raiva que nunca havia sentido antes, sempre que se achava na cena de um crime. Deu consigo a repetir palavras que lhe eram familiares: ”Quem fez isto?” Haveria de descobrir a resposta àquela pergunta e, desta vez, também encontraria as provas; desta vez, não daria o caso por encerrado, conhecendo a identidade do criminoso, o seu móbil e os meios que empregara, mas sem ter poderes para proceder à sua detenção. O fardo dos seus fracassos anteriores ainda lhe pesava, mas aquele caso iria ajudá-lo a esquecer frustrações passadas.

 

Ayling continuava a pesquisar à volta do cadáver, sem sequer erguer o olhar, como se tivesse deparado com um fenómeno interessante mas invulgar e não soubesse como reagiria perante o resultado do seu escrutínio. Por fim, agachou-se junto da cabeça, inalou delicadamente a ferida e perguntou:

 

Quem é?

 

Desculpe. Ignorava que não lhe haviam dito. É o arcediago Crampton. Foi recentemente nomeado fideicomissário deste instituto e chegou no sábado de manhã.

 

Alguém não gostava dele, a não ser que tenha surpreendido um intruso e este crime não seja de índole pessoal. Existe aqui algum objecto que valha a pena roubar?

 

O retábulo do altar é valioso, mas seria muito difícil removê-lo. Nem sequer encontrámos indícios de que alguém tenha tentado roubá-lo. Também existem objectos de prata valiosos no cofre da sacristia, mas não foi arrombado.

 

E os castiçais ainda estão aqui acrescentou Ayling. Se bem que sejam de ferro e pouco valor tenham. Parece não haver grandes dúvidas quanto à arma utilizada e à causa da morte. Um golpe na parte direita do crânio, acima da orelha, desferido com um instrumento pesado de ponta afiada. Se ele não morreu com o primeiro golpe, deve ter, com certeza, caído. O criminoso, então, desferiu mais golpes. Diria que agiu como que dominado por um frenesim, quando atacou a sua vítima.

 

Endireitou-se e, com a mão enluvada, pegou no castiçal que não apresentava vestígios de sangue.

 

É pesado, o que significa que o assassino devia ter força. Mas pode ter sido uma mulher ou um homem de idade, se lhe pegaram, com ambas as mãos. Isso também implica que o assassino devia ter boa visão porque a vítima não ia ficar de costas voltadas para um estranho... ou para alguém em quem não confiasse. Como foi que o Crampton entrou aqui?

 

Dalgliesh apercebeu-se de que iria trabalhar, naquele caso, com um patologista que não parecia muito preocupado com os limites das suas responsabilidades.

 

Tanto quanto sei, ele não tinha chave. Ou alguém, que já se encontrava na igreja, o deixou entrar, ou encontrou a porta aberta. OJuízo Final foi vandalizado. Talvez o assassino tenha atraído o Crampton até aqui.

 

Parece ser um crime cometido por alguém da casa, o que reduz convenientemente o número de suspeitos. Quando foi que encontraram o corpo?

 

Às cinco e meia da manhã. Eu cheguei quatro minutos depois. A julgar pelo aspecto do sangue e pelo princípio da rigidez no rosto, deduzi que ele estava morto há umas cinco horas.

 

Vou tirar a temperatura ao corpo, mas duvido que possa dar uma estimativa mais exacta da hora da morte. No entanto, diria que ele morreu por volta da meia-noite.

 

E quanto ao sangue? perguntou Dalgliesh. Jorrou em abundância?

 

Não com o primeiro golpe. Já sabe como são os ferimentos na cabeça. As hemorragias dão-se no interior da caixa craniana. Mas também é verdade que o nosso homem não se limitou a desferir um único golpe, pois não? Só o segundo golpe e os subsequentes terão provocado hemorragias externas, fazendo com que o sangue jorrasse abundantemente, ou esguichasse, dependendo da distância a que os golpes foram desferidos. Se o assassino era destro, então, deduzo que terá ficado com o braço direito, e até mesmo o tronco, cheio de sangue. Mas ele já estava à espera disso. Podia usar uma camisa e ter arregaçado as mangas. Podia usar uma camisola de algodão, de manga curta, ou, melhor ainda, estar nu. Não seria a primeira vez...

 

Dalgliesh não ouvia nada em que já não tivesse pensado.

 

A vítima não teria ficado admirada ao deparar com o criminoso nu?

 

Ayling ignorou aquela interrupção.

 

Mas teve de agir rapidamente. Não podia contar com que a vítima se mantivesse de costas voltadas para ele por mais de um ou dois segundos, o que lhe deixava muito pouco tempo para arregaçar as mangas e ir buscar o castiçal ao local onde o escondera.

 

E onde julga que o criminoso escondeu os castiçais, antes de desferir o primeiro golpe? quis saber Dalgliesh.

 

No interior do camarote? Não, porque talvez fosse um pouco longe de mais. E porque não por trás do pilar? Só precisava de um castiçal, como é evidente. Deve ter ido buscar o outro ao altar, para, depois, preparar a sua pequena encenação, mas não faço ideia por que razão se terá dado a esse trabalho. Não me parece que haja sido um acto de reverência.

 

Percebendo que Dalgliesh não reagia às suas teorias, Ayling prosseguiu:

 

Vou tirar a temperatura à vítima para ver se isso me ajuda a determinar a hora da morte, mas duvido que consiga ser mais exacto do que a sua estimativa inicial. Só lhe poderei dar mais informações quando tiver o corpo em cima da mesa de autópsia.

 

Dalgliesh, não querendo assistir à primeira violação de privacidade do morto, preferiu andar de um lado para o outro, na nave central, até que, virando-se, viu que Ayling havia terminado e se levantara.

 

Regressaram, então, à sacristia. Enquanto o médico legista tirava a bata e vestia as suas roupas de cabedal, Dalgliesh perguntou:

 

Aceita um café?

 

Não, obrigado, porque, primeiro, o tempo escasseia e, segundo, porque eles não querem ver-me. Devo proceder à autópsia amanhã de manhã; telefono-lhe, quando terminar, se bem que não esteja a contar com grandes surpresas. O médico legista vai querer que o laboratório termine as suas pesquisas. É muito meticuloso quanto a esse ponto. Penso que poderei usar o laboratório da Polícia Metropolitana, se o laboratório de Huntingdon estiver com muito trabalho. Deduzo que não vai autorizar a remoção do corpo antes que o fotógrafo e os restantes membros da sua equipa forense tenham terminado o seu trabalho, mas telefone-me, quando estiver tudo pronto. Não sei porquê, mas palpita-me que os residentes do instituto vão ficar contentes por se verem livres do cadáver.

 

Dalgliesh trancou a porta da sacristia e reactivou o alarme. Por um motivo que tinha dificuldade em definir, sentia-se relutante em fazer passar o seu companheiro novamente pela mansão.

 

Vamos sair pelo portão que leva ao promontório sugeriu. Assim, não nos encontraremos com ninguém.

 

Seguiram pelo atalho de relva pisada. Ao longe, Dalgliesh podia ver luzes nas três vivendas ocupadas. Pareciam os postos avançados de uma fortaleza cercada. Também havia luzes na Vivenda São Mateus e deduziu que Mrs. Pilbeam, provavelmente munida de espanador e aspirador, se certificava de que a casa estava limpa e pronta a ser ocupada pela Polícia. Lembrou-se, então, de Margaret Munroe e da sua morte solitária, que poderia ter sido tão oportuna, e veio-lhe à mente uma convicção, tão forte quanto aparentemente irracional, de que havia um elo de ligação entre as três mortes. O aparente suicídio, a morte natural atestada por um médico, o brutal homicídio; havia um cordão que os ligava a todos. Podia ser ténue, retorcido, mas, assim que Dalgliesh o encontrasse, ele levá-lo-ia ao âmago do mistério. Já no pátio dianteiro, esperou que Ayling partisse na sua motorizada. Voltara-se para entrar de novo na mansão quando avistou os faróis de um carro. Tinha acabado de contornar a estrada de acesso e avançava rapidamente. Passados poucos segundos, identificou o Alfa Romeo de Piers Tarrant. Os dois primeiros membros da sua equipa tinham acabado de chegar.

 

O detective Piers Tarrant recebeu o telefonema às seis e um quarto da manhã. Passados dez minutos, estava pronto para partir. Tinham-lhe dado instruções para que fosse buscar Kate Miskin, e concluiu que aquela boleia não iria atrasá-lo; o apartamento de Kate, com vista para o Tamisa, situado perto de Wapping, ficava em caminho, no percurso que ele se propunha tomar. O sargento Robbins, que vivia na fronteira de Essex, seguiria no seu carro. Com alguma sorte, Piers esperava chegar antes do colega. Saiu do seu apartamento e avançou pelas ruas desertas. Foi buscar o seu Alfa Romeo ao lugar que lhe estava reservado numa garagem, por cortesia da Polícia da City, atirou o saco de viagem para o banco de trás e seguiu, em direcção a oeste, pela mesma estrada por onde viajara Dalgliesh, dois dias antes.

 

Kate aguardava-o à entrada do prédio onde morava. Nunca o tinha convidado a entrar, mas também nunca conhecera o interior do apartamento do seu colega, situado em plena City. O rio, sempre em constante mudança devido aos contrastes de cor e sombra, com as suas ondas e marés, a sua vida comercial agitada, era a paixão de Kate, enquanto que a paixão de Piers era a City. O seu apartamento de três assoalhadas ficava por cima de uma charcutaria, numa rua estreita, perto da Catedral de São Paulo. A camaradagem da Polícia Metropolitana e a sua vida sexual não faziam parte daquele seu mundo privado. No seu apartamento, nada era supérfluo, e cada móvel, cada objecto havia sido cuidadosamente escolhido e tão caro quanto os seus meios lhe permitiam. A City, com as suas igrejas e becos, as suas passagens estreitas e pátios interiores que raramente eram visitados, constituía um passatempo e uma alternativa à sua profissão. Tal como Kate, também ele se sentia fascinado pelo Tamisa, mas enquanto parte da história e vida da City. Seguia para o trabalho de bicicleta e só se servia do carro quando saía de Londres, mas, sempre que conduzia, tinha de ser num automóvel que lhe agradasse.

 

Kate apertou o cinto de segurança, depois de o cumprimentar, e nada disse durante os primeiros três quilómetros de viagem, mas Piers

podia sentir a sua excitação, tal como sabia que ela detectava a dele.

 

Gostava de Kate e respeitava-a, mas o relacionamento profissional de ambos era pontuado por ocasionais rancores, irritações, ou até mesmo alguma rivalidade. Todavia, partilhavam aquela adrenalina sempre que iniciavam a investigação de um homicídio. Piers dera consigo a pensar, uma vez por outra, se aquele entusiasmo quase visceral não estava perigosamente perto de uma sede de sangue; pelo menos, teria, por certo, uma relação íntima com a caça.

Depois de deixarem Docklands para trás, Kate, por fim, dignou-se falar:

 

Muito bem, põe-me a par do que sabes. Afinal, estudaste teologia em Oxford e já deves ter ouvido falar do tal instituto.

 

O facto de ele, em tempos idos, ter estudado teologia em Oxford era uma das poucas coisas que Kate sabia sobre o companheiro e que nunca deixara de a intrigar. Por vezes, Piers convencia-se de que ela o julgava dotado de uma intuição especial e de conhecimentos esotéricos, o que lhe dava alguma vantagem sempre que tinha de analisar os motivos e as infinitas vicissitudes do ser humano. Kate perguntara-lhe: ”Para que serve a teologia? Explica-me. Decidiste passar três anos da tua vida a estudá-la e deves ter sentido que alcançaste algo de importante ou de útil ao estudar teologia.” Piers duvidava que Kate tivesse acreditado quando lhe respondera que escolhera o curso de Teologia por lhe dar mais hipóteses de arranjar colocação, em Oxford, do que o curso de História, que ele teria preferido. Não lhe dissera, contudo, o que fora que ganhara com a sua experiência: um fascínio pela complexidade dos bastiões intelectuais que os homens erigiam para suportar a descrença. A sua própria descrença mantivera-se inabalável, mas nunca se arrependera de ter tirado o curso de Teologia.

 

Sei pouca coisa sobre Santo Anselmo replicou. Tive um amigo que foi para lá, depois de se licenciar, mas perdemos o contacto. Pelas fotografias que vi, é uma mansão vitoriana imensa, situada numa das zonas mais desertas da costa. Existem muitos mitos em torno do instituto e, tal como a maioria, provavelmente, têm algum fundamento. Santo Anselmo é um instituto da Alta Igreja, que se aproxima do catolicismo, cuja especialidade é o seu curso de Teologia, opondo-se praticamente a tudo o que aconteceu na história do anglicanismo nos últimos cinquenta anos. É preciso ter-se uma média muito elevada e uma carta de recomendação para se ser admitido em Santo Anselmo. Também me disseram que a comida é excelente.

 

Duvido muito que tenhamos oportunidade de prová-la resmungou Kate. Quer dizer, então, que é um instituto elitista?

 

Pode dizer-se que sim, mas o Manchester United também é considerado elitista, portanto...

 

Pensaste, alguma vez, em ir para lá?

 

Não, porque não estudei teologia com o objectivo de me ordenar padre. De qualquer maneira, nunca me aceitariam. Não tinha uma média suficiente para ser admitido. O reitor é uma personagem muito especial. É uma verdadeira autoridade em Richard Hooker. Não vale a pena perguntares, porque eu explico: foi um teólogo do século dezasseis. Dou-te a minha palavra de que alguém que escreve um ensaio completo sobre o Hooker não é nenhum burro. Podemos vir a ter problemas com o reverendo doutor Sebastian Morell.

 

E a vítima? O Adam Dalgliesh disse-te alguma coisa?

 

Apenas que é o arcediago Crampton e que foi encontrado morto na igreja.

 

O que é um arcediago?

 

Uma espécie de rottweiler... sabes, aqueles cães de que se fala muito hoje em dia... da Igreja. Um arcediago... também pode ser uma arcediaga... zela pelos bens da Igreja e encarrega-se da nomeação dos padres para as diversas paróquias. Os arcediagos têm a seu cargo um certo número de paróquias, que visitam uma vez por ano. Digamos que é o equivalente espiritual do inspector da Polícia de Sua Majestade.

 

Portanto vai ser um desses casos fechados, em que todos os suspeitos se encontram debaixo do mesmo tecto e, por isso mesmo, nós vamos ter de andar, nas pontas dos pés, a fim de evitar telefonemas pessoais para o comandante ou queixas ao arcebispo de Cantuária. Mas porque nos escolheram, afinal?

 

O Adam Dalgliesh não perdeu muito tempo com esses considerandos. Já sabes como ele é. De qualquer maneira, ordenou que nos metêssemos a caminho. Ao que parece, um inspector da Polícia de Suffolk passou a noite de ontem no instituto, mas o comissário da localidade concordou que seria pouco aconselhável ser ele a encarregar-se do caso.

 

Kate não fez mais perguntas, mas Piers tinha a impressão de que ela ficara zangada por o seu chefe não lhe haver telefonado em primeiro lugar. Tinha mais tempo de serviço do que Piers, muito embora não atribuísse qualquer importância à sua antiguidade. Piers ainda pensou se devia dizer à sua colega que Adam Dalgliesh quisera poupar tempo, telefonando-lhe, primeiro, a ele, uma vez que tinha o carro mais veloz, mas mudou de ideias.

 

Como calculara, ultrapassaram Robbins na estrada secundária de Colchester. Piers sabia que, se fosse Kate a conduzir, teria abrandado a velocidade para que toda a equipa chegasse ao mesmo tempo, ao passo que a reacção dele, ao ver Robbins, foi acenar-lhe e carregar a fundo no acelerador.

 

Kate recostara a cabeça e parecia dormitar. Olhando de relance para aquele rosto atraente e forte, pensou na relação que tinha com ela. Modificara-se nos dois últimos anos, desde que o Relatório Macpherson havia sido publicado. Muito embora pouco soubesse sobre a vida de Kate, tinha conhecimento de que ela era filha ilegítima e havia sido criada por uma avó num dos bairros mais pobres de uma pequena cidade do interior. A grande maioria dos seus vizinhos, amigos e colegas de escola era de raça negra. Ao descobrir que fazia parte de uma força policial onde o racismo estava institucionalizado, Kate

sentira-se tão indignada e furiosa que mudara a sua atitude para com a corporação a que pertencia. Politicamente mais sofisticado do que ela e, também, mais cínico, Piers havia tentado transmitir-lhe alguma calma, sempre que tinham uma das suas muito acaloradas discussões.

 

Ela perguntara, alterada:

 

Depois deste relatório, alistar-te-ias na Polícia, se fosses preto?

 

Não, mas também não me alistaria, se fosse branco. O que importa é que já cá estou e não vejo que motivos o Macpherson possa ter para me despedir.

 

Piers sabia onde queria que aquela sua profissão o levasse: a um posto de oficial sénior no departamento antiterrorista. Era ali que se ofereciam as melhores oportunidades de uma brilhante carreira. Entretanto, sentia-se contente por trabalhar numa brigada de prestígio, com um chefe exigente que ele respeitava, onde não faltavam emoções fortes e casos sempre diferentes para investigar, que mantinham a rotina à distância.

 

Kate afirmara, sempre revoltada:

 

Então, é isto que eles querem? Desencorajar os pretos a alistar-se e despedir oficiais decentes, que não tenham quaisquer preconceitos racistas?

 

Pelo amor de Deus, Kate, esquece o assunto. Estás a tornar-te uma chata.

 

O relatório estipula que um acto é considerado racista quando a vítima o entende como tal. Pois eu acho este relatório tão racista como as directivas que contém. Um relatório que vai contra os meus princípios, enquanto oficial branca. Onde posso apresentar queixa?

 

Podes sempre tentar o Departamento de Relações Multirraciais, mas duvido que isso possa trazer-te grandes alegrias. Talvez não fosse má ideia falares, primeiro, com o Adam Dalgliesh sobre o assunto.

 

Piers não sabia se Kate chegara a falar com o chefe, mas o certo é que ainda se mantinha na brigada. No entanto, tinha plena consciência de que, agora, trabalhava com uma Kate diferente. Continuava a ser uma profissional conscienciosa, esforçada e dedicada e nunca desiludiria os seus colegas de equipa. Por outro lado, havia algo que desaparecera nela: a crença de que ser polícia era uma vocação pessoal ou um serviço público e a de que requeria muito mais do que empenho e dedicação. Piers, que achara aquela interpretação tão pessoal de Kate excessivamente romântica e ingénua, percebia agora quanto se enganara. Ao menos, o Relatório Macpherson tivera a vantagem de destruir para sempre a veneração de Kate pelos magistrados. Por volta das oito e meia, atravessaram a aldeia de Wrentham, ainda envolta na serenidade do amanhecer, que parecia ser ainda mais notória em virtude de as sebes e as árvores revelarem a dilapidação de uma noite de tempestade, que não afectara Londres. Kate despertou para consultar o mapa e atentar no desvio para Ballard’s Mere. Piers abrandou a velocidade.

 

O Adam Dalgliesh avisou-me de que seria fácil não repararmos no desvio. Disse-me que procurasse avistar um freixo muito velho, do lado direito da estrada, e duas casas, do lado esquerdo.

 

Era impossível não reparar no freixo, com o seu pesado manto de hera, mas, quando viraram para a estrada que não era mais do que uma estreita vereda, bastou-lhes uma vista de olhos para perceber o que tinha acontecido. Um ramo fora arrancado do tronco e agora jazia, na lomba, parecendo, à luz da alvorada, como que um osso. Do ramo saíam galhos mortos, fazendo lembrar dedos retorcidos. O tronco principal revelava a grande ferida onde o ramo se partira, e a estrada, de novo transitável, ainda estava cheia dos destroços do Outono: ramos encaracolados de hera, pedaços de cascas de árvore e um espesso tapete de folhas verdes e amarelas.

 

Havia luzes nas duas casas. Piers encostou e buzinou. Volvidos poucos segundos, uma mulher de meia-idade e corpo forte atravessava o jardim dianteiro. Tinha um rosto afável, tisnado pelo sol, cabelos em desalinho e usava uma bata florida por cima do que parecia serem vários casacos de lã. Kate baixou o vidro da janela.

 

Piers, debruçando-se sobre a colega, saudou:

 

Bom dia! Parece que tiveram um pequeno problema aqui,

 

O ramo caiu ontem à noite, às dez horas em ponto. Foi a tempestade. Tivemos um verdadeiro vendaval. Felizmente, ouvimos o ramo cair... Nem poderíamos deixar de o ouvir com o estrondo da queda. O meu marido teve medo de que provocasse qualquer acidente e foi colocar sinais vermelhos de ambos os lados do tronco que caiu no meio da estrada. Então, assim que amanheceu, o meu Bryan e Mister Daniels, da casa ao lado, foram buscar o tractor e arrastaram-no para fora da estrada. Não que passe muita gente por aqui, a não ser aqueles que vêm visitar os padres e os estudantes do instituto. No entanto, pensámos que não devíamos esperar pelos serviços camarários. para tirar o tronco da estrada.

 

A que horas limparam a estrada, Mistress...? perguntou Kate.

 

Finch. Mistress Finch. Às seis e meia da manhã. Ainda estava escuro, mas o Brian queria limpar a estrada antes de ir trabalhar.

 

Sorte nossa comentou Kate. Foi muito gentil da vossa parte. Obrigada. Portanto, quer dizer que ninguém pôde passar de carro por esta estrada, quer numa quer noutra direcção, entre as dez da noite de ontem e as seis e meia da manhã de hoje?

 

Exactamente, miss. Só houve um senhor de motorizada... que se dirigia, com certeza, para o instituto, porque esta estrada não leva a mais lado nenhum, mas ainda não voltou.

E mais ninguém passou por aqui?

Que eu visse, não, e costumo ver, porque a minha cozinha dá para a estrada.

 

Agradeceram mais uma vez, despediram-se e seguiram. Olhando para trás, Kate pôde ver que, depois de ficar a observá-los durante alguns segundos, Mrs. Finch fechou a cancela e voltou para o interior da casa.

 

Um motociclista e ainda não regressou comentou Piers. Devia ser o patologista, embora fosse de esperar que ele chegasse de carro. Bom, sempre temos algumas novidades para o Adam Dalgliesh. Se esta estrada é o único acesso...

 

Kate tinha os olhos fixos no mapa.

 

E é, pelo menos, para veículos. Nesse caso, se o assassino não for um dos residentes do instituto, teria de lá chegar antes das dez da noite e não pode ter saído, pelo menos, por esta estrada. Pensas que se trata de um ”caso fechado”?

 

Foi a impressão com que fiquei pelo que o Adam Dalgliesh me disse.

 

A questão do acesso ao promontório era tão importante que Kate preparava-se para dizer que ficara admirada pelo seu chefe ainda não ter enviado alguém interrogar Mrs. Finch, quando se lembrou de que, até que ela e Piers chegassem a Santo Anselmo, com quem podia contar Dalgliesh para proceder a investigações?

 

A estrada estreita estava deserta. Era mais baixa do que os terrenos que a circundavam e orlada de arbustos. Foi com admiração e prazer que Kate, de repente, avistou a grande imensidão parda e encapelada do mar do Norte. Mais a norte, uma mansão vitoriana recortava-se no céu.

 

Ao aproximarem-se, Kate comentou:

 

Meu Deus, que monstruosidade! Quem se terá lembrado de mandar construir uma mansão como esta a poucos metros do mar?

 

Ninguém replicou Piers, porque, quando a mansão foi construída, o mar estava muito mais afastado.

 

Não me digas que admiras o género...

 

Não sei... A proximidade do mar parece transmitir uma certa segurança.

 

Um motociclista, então, passou por eles, mas em sentido inverso

 

Deve ser o patologista concluiu Kate.

 

Piers abrandou quando transpuseram os dois pilares em ruínas até ao local onde Dalgliesh esperava por eles.

 

A Vivenda São Mateus dificilmente poderia acomodar uma equipa vasta, mas Dalgliesh pensava que, por enquanto, podia servir. Não havia alojamentos para os serviços policiais apropriados naquela região e mandar instalar caravanas no promontório seria um expediente caro e pouco prático. Se a sua equipa permanecesse no instituto, isso suscitaria vários problemas, incluindo o do local das refeições. Mesmo nos casos mais penosos, seja um homicídio, seja a perda de um ente querido, as pessoas continuam a ter de comer e de dormir. Dalgliesh lembrava-se de como, após a morte de seu pai, a sua mãe se havia preocupado com o alojamento de todas as pessoas que pernoitariam no presbitério para assistir à cerimónia fúnebre, com o que podiam ou não comer e que tipo de refeição deveria ser servida a toda a paróquia, o que mitigara momentaneamente o seu desgosto. O sargento Robbins, entretanto, já começara a telefonar para os hotéis indicados pelo padre Sebastian, a fim de arranjar um quarto para ele, Kate, Piers e os três oficiais forenses. Quanto a Dalgliesh, continuaria alojado em Santo Anselmo.

 

A vivenda constituía o centro de operações mais invulgar de toda a sua carreira. A irmã de Mrs. Munroe, ao remover todos os vestígios físicos de ocupação da casa, deixara-a tão despojada de carácter que até o próprio ar que ali se respirava era insípido. As duas salas do piso térreo estavam mobiladas com o que parecia serem os detritos dos quartos de hóspedes. Na sala de estar, à esquerda da porta de entrada, uma poltrona de braços, com almofadas já desbotadas, e uma cadeira baixa de palha, com o respectivo banco para os pés, haviam sido colocadas de cada lado da pequena lareira vitoriana. Ao meio, havia uma mesa quadrada, com quatro cadeiras; duas outras cadeiras achavam-se encostadas à parede. Do lado esquerdo da lareira, uma estante continha apenas uma Bíblia, com sobrecapa de cabedal, e um exemplar de Alice do Outro Lado do Espelho, de Lewis Carroll. A sala de estar da direita mostrava-se um pouco mais convidativa, com uma mesa encostada à parede, duas cadeiras de mogno, com pés em forma de bola, £ um sofá e uma poltrona muito velhos. Os dois quartos do primeiro andar estavam vazios. Dalgliesh decidira que uma das salas de estar poderia servir como gabinete, onde procederia aos interrogatórios, e a outra, de sala de espera, enquanto que um dos quartos do primeiro andar, que dispunha de ficha para o telefone e de várias tomadas eléctricas, poderia albergar o computador que a Polícia de Suffolk já havia fornecido.

 

Quanto à alimentação, também já tudo fora tratado. Dalgliesh recusara juntar-se à comunidade, ao jantar. A sua presença afectaria até mesmo o grande poder de conversação do padre Sebastian. O reitor convidara-o para que continuasse a tomar as refeições no instituto sem esperar, contudo, que Dalgliesh aceitasse. Assim, Dalgliesh jantaria fora. No entanto, fora acordado que o instituto fornecesse a toda a equipa sopa e sanduíches, à uma da tarde. A questão do pagamento por aquele serviço foi tacitamente ignorada por ambas as partes, mas a situação não deixava de ser bizarra. Dalgliesh dera consigo a pensar se aquele caso de homicídio não seria o primeiro em que o assassino assegurava o alojamento e a alimentação do oficial encarregado da investigação.

 

Toda a equipa estava ansiosa por começar a trabalhar, mas, primeiro, tinham de examinar o corpo. Dalgliesh, Kate, Piers e Robbins dirigiram-se à igreja, onde lhes foi pedido que calçassem galochas especiais. Já devidamente equipados, atravessaram a ala norte da igreja, em direcção ao local onde se achava O Juízo Final. Dalgliesh sabia que nenhum dos seus colaboradores tentaria anestesiar o horror que sentiria com piadas macabras de mau gosto, até porque quem era adepto desse tipo de piadas não trabalhava sob as suas ordens durante muito tempo. Depois de acender o projector que iluminava o quadro, contemplaram o corpo, em silêncio, durante alguns minutos. A presa que deveriam caçar ainda não se perfilava no horizonte, e o seu trilho nem sequer fora detectado, mas deixara a sua obra de devastação, ali, na igreja, e eles eram obrigados a vê-la.

 

Apenas Kate quebrou o silêncio, perguntando:

 

Onde costumam estar os castiçais?

 

No altar.

 

E quando foi a última vez que alguém viu O Juízo Final, antes de ser vandalizado?

 

Ontem à noite, às nove e meia, durante as completas. Fecharam a porta da igreja, activaram o alarme e regressaram ao centro de operações, onde se acomodaram para a primeira reunião, antes de lançarem mãos à obra. Dalgliesh tinha consciência de que a reunião não podia ser pautada pela pressa. Toda e qualquer informação que se esquecesse de dar, ou que não fosse bem compreendida, poderia resultar em atrasos, mal-entendidos e erros. Assim, fez um relato pormenorizado, se bem que conciso, de tudo o que vira e fizera desde que havia chegado a Santo Anselmo, sem se esquecer de mencionar a sua investigação sobre a morte do Ronald Treeves e o con| teúdo do diário de Margaret Munroe. Os seus colaboradores escutavam-no em silêncio, tomando notas de quando em vez.

 

Sentada, muito direita, Kate tinha o olhar fixo no seu bloco, excepto quando o levantava para fitar Dalgliesh, com perturbadora intensidade. Como de costume, sempre que trabalhava num caso, usava sapatos baixos e confortáveis, calças estreitas e um casaco de corte impecável, por baixo do qual vestia uma camisola de gola alta, no Inverno, que substituía por uma blusa de seda, no Verão. O seu cabelo castanho-claro estava penteado numa trança curta. Não recorria aos artifícios da maquilhagem, e o seu rosto era mais atraente do que bonito, exprimindo o que ela era: honesta, de confiança e conscienciosa, mas não totalmente em paz consigo própria.

 

Piers, impaciente como sempre, tinha dificuldade em ficar sentado. Depois de experimentar várias posições na cadeira que ocupava, enrolara as pernas nos pés da cadeira e colocara o braço por cima do espaldar. Contudo, o seu rosto, algo roliço, deixava transparecer um vivo interesse; as suas pestanas pesadas e os seus olhos castanhos revelavam a habitual expressão divertida, algo irreverente. Aparentemente menos concentrado do que Kate, nem por isso perdia pitada do que se dizia. Optara por um traje de linho, com camisa verde e calças castanho-claras, num estilo demasiado informal e algo negligente, que, na realidade, era tão estudado quanto a aparência mais convencional de Kate.

 

Robbins, tão formal e impecavelmente trajado como um motorista particular, sentara-se, perfeitamente à vontade, na outra extremidade da mesa, e levantava-se, de tempos a tempos, para fazer café.

 

Quando Dalgliesh terminou o seu relato, Kate perguntou:

 

Que nome vamos dar a este assassino, chefe?

Sempre que iniciavam uma investigação, a equipa tinha, por hábito, escolher um nome para o criminoso, fugindo, contudo, a alcunhas já muito conhecidas. Foi Piers que sugeriu:

 

Caim seria um nome indicado, porque é bíblico e curto, se bem que não seja lá muito original...

 

Pois então que seja Caim decidiu Dalgliesh. Agora, debrucemo-nos sobre o nosso trabalho. Quero que tirem as impressões digitais de todos os que se encontravam no instituto ontem à noite, incluindo os hóspedes e os padres. Quanto às impressões digitais do arcediago, podemos esperar pela chegada dos peritos forenses. É melhor darem prioridade às dos outros, antes de começarmos com os interrogatórios. Depois, examinem as roupas que todos os residentes usavam ontem, incluindo os padres. Já examinei os capotes dos ordinandos. Encontram-se no seu devido lugar e não falta nenhum. Pareceram-me limpos, mas verifiquem outra vez. Duvido que o assassino tenha usado um capote ou uma batina comentou Piers. Porque haveria de fazê-lo? Se o Crampton foi atraído até à igreja, devia estar à espera de encontrar a pessoa que o chamou em pijama ou camisa de dormir. Até porque o assassino deve ter desferido rapidamente o primeiro golpe, aproveitando o momento em que o Crampton se virou para contemplar O Juízo Final. Talvez tivesse tempo, apenas, para arregaçar a manga do pijama, mas não sei... Não me parece que estivesse coberto com um capote pesado. Também podia estar nu, claro, ou parcialmente nu, por baixo do roupão, e deixá-lo cair, antes de desferir o golpe. Mesmo assim, teve de ser muito rápido.

 

O patologista também é da opinião, nada original, aliás, que o criminoso podia estar nu. ca

 

Não é assim tão extravagante como possa parecer, chefe. Afinal, porque haveria o criminoso de se mostrar ao Crampton? Tudo o que teve de fazer foi destrancar a porta sul e deixá-la entreaberta. Depois acendeu a luz que ilumina o Juízo Final e escondeu-se atrás do pilar. O Crampton talvez tenha ficado admirado por não encontrar ninguém à sua espera mas, mesmo assim, avançou até ao Juízo Final, atraído pela luz e porque a pessoa que o chamou lhe havia dito que o quadro fora vandalizado. Mas não seria mais lógico o arcediago telefonar ao padre Sebastian antes de se dirigir à igreja? contrapôs Kate. ^

 

Não, se o arcediago quisesse ver com os seus próprios olhos o acto de vandalismo. Não devia querer fazer triste figura, lançando um alarme desnecessariamente. Agora, pergunto a mim próprio que desculpa o criminoso lhe terá dado para a sua presença, na igreja, àquela hora da noite. Ter-lhe-á dito que avistou uma nesga de luz na igreja. Que acordou com a tempestade, olhou pela janela, avistou um vulto e ficou desconfiado? Provavelmente, contudo, a questão nem se pôs, porque o primeiro reflexo do arcediago seria sempre dirigir-se à igreja. E se o Caim usasse um capote acrescentou Kate, porque o colocou novamente no vestiário, mas guardou as chaves da igreja. As duas chaves que desapareceram constituem uma prova vital. O criminoso não podia correr o risco de as ter em seu poder e ser-lhe-ia fácil livrar-se delas: bastaria deitá-las, algures, no promontório. Mas porque não tornou a guardá-las, no seu devido lugar? Se teve coragem para ir buscá-las ao armário, então, seria de calcular que também teria coragem para voltar a colocá-las lá novamente.

 

Não, se estivesse com as mãos ou a roupa ensanguentadas opinou Piers.

 

Mas porque teria forçosamente de ter as mãos ensanguentadas? Depois de cometer o crime, já não tinha pressa. Assim, teria tempo para regressar ao seu quarto e lavar-se. Sabia que o corpo do Crampton só seria descoberto quando a igreja fosse aberta para a oração da manhã, às sete e um quarto. No entanto, há mais uma coisa...

 

O quê? perguntou Dalgliesh.

 

O facto de as chaves não terem sido colocadas novamente no chaveiro não aponta para que o criminoso seja alguém que vive fora da mansão? Todos os padres podiam alegar um motivo legítimo para ir ao gabinete de Miss Ramsey, a qualquer hora do dia ou da noite. Não teriam qualquer problema se alguém os visse a colocar as chaves no armário.

 

Está a esquecer-se de um pormenor, Kate interveio Dalgliesh. Os padres nunca precisariam de devolver as chaves, porque cada um tem um molho. Já verifiquei que ainda os têm em seu poder.

 

No entanto, um deles podia ter ido buscar outro molho replicou Piers, justamente para lançar as suspeitas sobre os funcionários, os ordinandos ou os hóspedes.

 

É uma possibilidade admitiu Dalgliesh, tal como é bem possível que a profanação àO Juízo Final nada tenha a ver com o homicídio. Há uma malícia quase infantil no acto de vandalismo que contrasta com a brutalidade do homicídio. Mas o mais extraordinário, em relação a este crime, é que tenha sido cometido daquela maneira. Se alguém queria matar o Crampton, não precisava de atraí-lo à igreja. Os quartos de hóspedes não têm fechaduras nem chaves nas portas. Qualquer pessoa podia ter ido ao quarto do Crampton e matá-lo, enquanto dormia. Mesmo um estranho não teria grande dificuldade em entrar na mansão. Bastar-lhe-ia conhecer a disposição das diferentes alas do instituto, e não é muito difícil trepar o portão de ferro.

 

Mas sabemos que não pode ter sido um forasteiro prosseguiu Kate, por causa das duas chaves que desapareceram. Além do mais, nenhum carro poderia ter passado pela estrada de acesso, depois de aquele ramo ter caído, às dez horas da noite de ontem. Só se o assassino veio até cá a pé, e trepou pelo ramo, mas nunca seria fácil, com o vendaval de ontem.

 

O assassino sabia onde encontrar as chaves e conhecia o código do alarme explicou Dalgliesh. Tudo indica que só possa ser uma das pessoas que se encontrava aqui, ontem à noite, mas devemos manter o espírito aberto a outras possibilidades. Se o homicídio tivesse sido cometido de uma forma menos espectacular e bizarra, teria sido difícil imputá-lo a alguém associado a Santo Anselmo. Haveria sempre a possibilidade de que alguém tivesse penetrado no colégio, como, por exemplo, um ladrão que soubesse que as portas dos quartos não eram trancadas e tivesse morto o Crampton, num momento de pânico, porque ele acordara na hora errada. Não é provável, mas também não posso descartar essa possibilidade. O Caim não só queria ver o Crampton morto, como queria que o homicídio fosse associado a Santo Anselmo. Assim que descobrirmos o porquê, estaremos mais perto de solucionar este mistério.

 

O sargento Robbins, que permanecera calado no seu canto, ia tomando notas. Dois dos seus muitos méritos eram a sua capacidade de trabalhar, sem dar nas vistas, e de saber estenografia, mas tinha tão boa memória que nem precisava de tomar notas. Embora fosse o membro de patente mais baixa, não deixava de fazer parte daquela equipa, e Kate deu consigo a desejar que Dalgliesh puxasse por ele. Tem alguma teoria, sargento? quis saber Dalgliesh.

 

Nem por isso. É, quase de certeza, um crime cometido por alguém que se encontrava no instituto e que se sente muito contente por termos chegado a essa conclusão. No entanto, estava a pensar no castiçal... Terá sido, realmente, a arma do crime? Sim, está ensanguentado, mas pode ter sido tirado do altar e usado depois de o Crampton estar morto. A autópsia não vai poder determinar, pelo menos de forma concludente, se o primeiro golpe foi desferido com o castiçal. Isso só poderá apurar-se se houver vestígios do sangue e da massa encefálica do Crampton no castiçal. Em que estás a pensar? perguntou Piers. O enigma central marca justamente a diferença entre um homicídio claramente premeditado e um ataque de fúria.

 

Suponhamos que não se tratou de um crime premeditado. Parecem não restar dúvidas de que alguém atraiu o Crampton até à igreja, presumivelmente para lhe mostrar a profanação do Juizo Final. Alguém está à espera dele. Dá-se, então, uma troca de palavras desagradáveis. O Caim perde o controlo e desfere um golpe. O Crampton cai. Então, o Caim, ao ver que se encontra perante um homem morto, encontra maneira de imputar o homicídio ao instituto. Pega nos dois castiçais e serve-se de um para desferir sucessivos golpes no Crampton. Finalmente, coloca os dois castiçais ao lado da cabeça do morto.

 

É possível anuiu Kate, mas isso significaria que o Caím tinha à mão algo suficientemente pesado para esmagar um crânio.

 

Podia ter um martelo ou um outro utensílio pesado, como, por exemplo, uma ferramenta de jardinagem prosseguiu Robbins. Suponhamos que o Caim viu uma nesga de luz na igreja, ontem à noite, e resolveu entrar e ver o que se passava, armando-se com o que tinha à mão. É então que depara com o Crampton. Discutem violentamente e ele ataca-o.

 

Mas porque haveria alguém de entrar na igreja, àquela hora da noite, armado? objectou Kate. Porque não telefonar, antes, a um dos padres?

 

Talvez o Caim preferisse investigar por sua conta ou, quem sabe, não se achasse sozinho. Talvez estivesse acompanhado por mais alguém.

 

”Como, por exemplo, por uma irmã”, pensou Kate, ponderando naquela teoria, que achava deveras interessante.

 

Dalgliesh manteve-se em silêncio durante algum tempo até que, por fim, rematou:

 

Temos muito que fazer e sugiro que comecemos já. Fez nova pausa, enquanto perguntava a si próprio se deveria falar no que lhe ia no pensamento. Não restavam dúvidas de que estavam perante um caso de homicídio, mas Dalgliesh não queria tornar a investigação mais complicada com questões que podiam ser irrelevantes. Por outro lado, sentia que devia dar voz às suas suspeitas., Penso que temos de ver este homicídio no contexto das duas mortes que o precederam. A do Treeves e a de Mistress Munroe. Tenho um palpite... e nada mais do que isso, a esta altura... de que estão interligados. Mesmo que seja um elo ténue, algo me diz que existe. A sua sugestão foi acolhida por um silêncio de poucos segundos. Dalgliesh podia sentir que os seus colaboradores tinham ficado admirados. Por fim, Piers replicou:

 

Julgava que o senhor estivesse mais ou menos convencido de que o Treeves se suicidou. Se, no entanto, foi assassinado, então, seria uma grande coincidência termos dois assassinos em Santo Anselmo. Quanto a mim, a morte do Treeves deveu-se a um suicídio ou a uma causa natural, e nada mais. Se não, vejamos: de acordo com os factos que acabou de nos expor, o corpo do rapaz foi encontrado a cerca de duzentos metros do único acesso à praia. Ora, seria difícil que alguém o carregasse até lá e duvido muito que o Treeves acompanhasse o seu assassino de bom grado. Era um rapaz forte e saudável. Nunca ninguém conseguiria lançar quase uma tonelada de areia sobre a sua cabeça, a não ser que estivesse drogado ou bêbedo. Ora, nada disso aconteceu, porque o senhor nos disse que a autópsia foi minuciosa. Kate dirigiu-se directamente a Piers:

 

Muito bem; vamos partir do princípio de que o Treeves se suicidou, mas tem de haver um motivo. O que o levou a um acto tão desesperado? Ou quem?

 

Mesmo assim, não vejo qualquer relação com o homicídio do Crampton, porque ele nem sequer se encontrava em Santo Anselmo naquela altura, e não temos motivos para crer que conhecia o Ronald Treeves.

 

E quanto a Mistress Munroe? insistiu Kate. Ela lembrou-se de um segredo relacionado com o seu passado e que a deixou preocupada. Fala com a pessoa a quem esse segredo diz respeito e, pouco depois, morre. Não posso deixar de pensar que a morte dela foi estranhamente conveniente.

 

Mas para quem? Por amor de Deus, Kate! protestou Piers. Ela sofria do coração. Podia morrer a qualquer momento.

 

Kate, no entanto, não se deixou abalar na sua obstinação.

 

Ela escreveu aquela anotação no seu diário porque se lembrou de algo. E seria tão fácil matá-la... Uma mulher de idade, que sofria do coração e que, muito provavelmente, nunca recearia nada de mau por parte do seu assassino.

 

Pronto, ela sabia alguma coisa anuiu Piers. Isso não quer dizer que fosse algo importante. Podia ser um pecadilho menor talvez condenável aos olhos do padre Sebastian ou dos outros padres mas que mais ninguém levaria a sério. E, agora, ela foi cremada, a sua casa esvaziada e as provas, se é que existiam, desapareceram para sempre. Seja o que for de que ela se lembrou, foi algo que se deu há doze anos atrás. Quem iria cometer um crime por um motivo tão absurdo

 

Lembra-te de que foi ela que encontrou o corpo do Treeves - fez notar Kate.

 

E o que é que isso tem a ver com o resto? A última anotação do diário é suficientemente explícita. Ela não se recordou do tal segredo quando encontrou o corpo do Treeves. Lembrou-se apenas quando o Surtees lhe foi levar uns alhos-porros. Foi nesse momento que o presente e o passado se uniram para ela. Alhos-porros... Poderá haver algum significado na palavra em si? Ou algum trocadilho que nos tenha escapado?

 

Pelo amor de Deus, Kate, isso parece ter sido tirado de um romance da Agatha Christie! troçou Piers, virando-se, em seguida para Dalgliesh. Quer dizer, então, que devemos investigar dois homicídios, chefe? O do Crampton e o de Mistress Munroe?

 

Não, porque não quero pôr em risco a investigação de um homicídio apenas com base num palpite meu. O que quis dizer foi que pode haver uma ligação e que não devemos esquecer-nos dessa possibilidade, mesmo que nos pareça remota. Bom, temos muito que fazer e, portanto, não percamos mais tempo. A prioridade vai para a recolha das impressões digitais e dos testemunhos dos padres e dos ordinandos. Kate e Piers, encarreguem-se disso. Eles já estão fartos de mim, tal como o Surtees; portanto, é melhor que sejam vocês a falar com ele e com a irmã. Só ganharemos alguma vantagem se eles forem interrogados por pessoas que nunca viram antes. No entanto, não penso que adiantemos grande coisa enquanto o inspector Yarwood não recuperar e o pudermos interrogar. De acordo com o hospital, em princípio, terá alta na terça-feira.

 

Se existe uma hipótese de ele possuir uma prova vital replicou Piers, ou se for suspeito, devemos mantê-lo sob vigilância discretamente?

 

Já se encontra discretamente sob vigilância respondeu Dalgliesh. A Polícia de Suffolk encarregou-se disso. Ele saiu do quarto, na noite do crime, e pode ter avistado o assassino e, por isso, resolvi pô-lo sob protecção policial.

 

Ouviu-se, então, o motor de um carro, que avançava pelo promontório. O sargento Robbins levantou-se e dirigiu-se para a janela.

 

Mister Clark e os outros oficiais chegaram anunciou. Piers consultou o relógio e comentou:

 

Nada mau, mas teriam chegado cá mais depressa se tivessem vindo de carro. O que leva mais tempo é sair de Ipswich. Ainda bem que o comboio não se atrasou. Dalgliesh virou-se para Robbins. Peça-lhes que tragam o equipamento para aqui. Podem servir-se de um dos quartos. Provavelmente, também vão querer um café antes de começarem o trabalho.

 

Sim, senhor.

 

Dalgliesh decidira que os oficiais do laboratório forense podiam mudar de roupa na igreja, se bem que longe da cena do crime. Brian Clark, o chefe de equipa, que tinha a alcunha de Nobby, havia já trabalhado com Dalgliesh. Calmo, racional e desprovido de qualquer sentido de humor, não era o mais inspirador dos colegas, mas tinha granjeado reputação pela sua meticulosidade e, quando se dignava falar, os seus comentários revelavam invariavelmente grande sensatez. Se houvesse algo a encontrar...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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