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30
VIENA
MEIA-NOITE NO Primeiro Bairro, uma calma de morte, um silêncio que só Viena consegue produzir, um majestoso vazio. Kruz achava reconfortante. Mas o sentimento não durou muito. Era raro o velho telefonar-lhe para casa, e Kruz nunca tinha sido arrastado da cama a meio da noite para uma reunião. Duvidava que as noticias fossem boas.
Olhou para o fundo da rua e não viu nada fora do normal. Uma olhadela para o retrovisor confirmou que não tinha sido seguido. Saiu e caminhou até o portão da imponente casa de pedra do velho. No piso térreo, luzes brilhavam por trás das cortinas fechadas. No segundo piso brilhava uma única luz. Kruz tocou à campainha. Tinha a sensação de estar a ser observado, qualquer coisa imperceptível, como um bafo na nuca. Olhou por cima do ombro. Nada.
Alcançou novamente a campainha, mas antes que a pudesse pressionar, um zumbido soou e a barra da fechadura saltou para trás. Empurrou o portão e atravessou o pátio frontal. Quando chegou ao pórtico, viu a porta aberta e um homem de paletó aberto e gravata solta. Não se esforçava minimamente para esconder o coldre de couro preto que continha uma pistola Glock. Kruz não estava alarmado com a visão; ele conhecia bem o homem. Era um antigo agente da Staatspolizei chamado Klaus Halder. Tinha sido Kruz a contratá-lo para guarda-costas do velho. Halder acompanhava normalmente o velho quando este saia ou quando esperava visitas em casa. A sua presença à meia-noite não era, como o telefonema para a casa de Kruz, um bom sinal.
— Onde está ele?
Halder olhou para o chão sem dizer uma palavra. Kruz desapertou a gabardina e entrou no estúdio do velho. A parede falsa estava afastada para o lado. O pequeno elevador estilo cápsula estava à espera. Entrou e o pressionar de um botão enviou-o lentamente para baixo. As portas abriram alguns segundos mais tarde, revelando uma pequena câmara subterrânea decorada com o dourado dos gostos barrocos do velho. Os americanos tinham-na construído para ele, para que conduzisse reuniões importantes sem medo que os russos pudessem estar à escuta. Construíram também a passagem, aquela alcançável através de uma porta de aço inoxidável com uma fechadura de combinação. Kruz era uma das poucas pessoas em Viena que sabia para onde a passagem conduzia e quem tinha vivido na casa do outro lado.
O velho estava sentado numa pequena mesa, uma bebida à sua frente. Kruz percebeu que ele estava inquieto, porque estava a girar o copo, duas voltas para a direita, duas para a esquerda. Direita, direita, esquerda, esquerda. Um estranho hábito, pensou Kruz. Ameaçador como o diabo. Calculou que o velho o tivesse apanhado numa vida anterior, noutro mundo. Uma imagem formou-se na mente de Kruz: um comissário russo acorrentado a uma mesa de interrogatório, o velho sentado do outro lado, vestido de preto dos pés à cabeça, girando a sua bebida e olhando para a sua presa com aqueles olhos azuis insondáveis. Kruz sentiu o seu coração dar um solavanco. Os pobres coitados estavam provavelmente cagados de medo mesmo antes de as coisas se tornarem duras.
O velho levantou o olhar, o girar do copo parou. O seu olhar calmo fixou a camisa de Kruz. Kruz olhou para baixo e viu que tinha os botões desalinhados. Tinha-se vestido no escuro para não acordar a mulher. O velho apontou para uma cadeira vazia. Kruz arranjou a camisa e sentou-se. O girar do copo recomeçou, duas voltas para a direita, duas para a esquerda. Direita, direita, esquerda, esquerda.
Falou sem saudar ou sem introdução. Era como se estivessem a continuar uma conversa interrompida por alguém que bate à porta.
— Durante as passadas setenta e duas horas — disse o velho foram planejados dois atentados contra a vida do israelense, o primeiro em Roma, o segundo na Argentina. Infelizmente o israelense sobreviveu a ambos. Em Roma, foi aparentemente salvo pela intervenção de um colega dos serviços secretos israelenses. Na Argentina, as coisas foram mais complicadas. Há provas que sugerem o envolvimento dos americanos.
Kruz, naturalmente, tinha perguntas. Em circunstâncias normais teria segurado a língua e esperado que o velho terminasse. Agora, trinta minutos depois de ter sido retirado da cama, não mostrou nenhuma da sua normal paciência.
— O que estava o israelense a fazer na Argentina?
O rosto do velho pareceu gelar, e a sua mão ficou imóvel. Kruz tinha transposto a linha, a linha que separava o que ele sabia do passado do velho daquilo que jamais saberia. Sentiu o peito encolher debaixo da pressão do olhar fixo. Não era todos os dias que se conseguia enfurecer um homem capaz de orquestrar, em setenta e duas horas e em continentes diferentes, duas tentativas de homicídio.
— Não é necessário que saibas por que razão o israelense esteve na Argentina, ou mesmo que lá tenha estado. O que precisas de saber é que este assunto deu uma reviravolta perigosa.
O girar do copo voltou.
— Como já acreditavas, os americanos sabem tudo. A minha verdadeira identidade, o que eu fiz durante a guerra. Não havia maneira de o esconder. Éramos aliados. Trabalhamos juntos na grande cruzada contra os comunistas. No passado, sempre contei com a sua discrição, não por algum sentido de lealdade para comigo, mas por simples medo de embaraço. Eu não tenho ilusões, Manfred. Sou como uma prostituta para eles. Viraram-se para mim quando estavam sozinhos e necessitados, mas agora que a guerra-fria acabou, sou como uma mulher que eles preferiam esquecer. E se agora estão de alguma forma a cooperar com os israelenses... — deixou a frase por terminar. — Estás a ver o que quero dizer, Manfred?
Kruz acenou.
— Presumo que saibam sobre Peter?
— Eles sabem tudo. Eles têm o poder de me destruir, e ao meu filho, mas apenas se estiverem dispostos a suportar a dor de uma ferida auto-infligida. Eu costumava estar seguro de que eles nunca se virariam contra mim. Agora, já não tenho certeza.
— O que queres que eu faça?
— Mantém sob vigilância constante as embaixadas israelense e americana. Designa vigilância física a todo o pessoal dos serviços secretos. Controla os aeroportos e estações de trem. Contata, também, os teus informadores nos jornais. Eles podem recorrer à imprensa. Não quero ser apanhado desprevenido.
Kruz olhou para a mesa e viu o seu próprio reflexo na superfície polida.
— E quando o ministro me perguntar por que dedico tantos recursos aos americanos e aos israelenses? O que digo?
— Preciso lembrar o que está em jogo, Manfred? O que dirá ao ministro é problema seu. Apenas faça o que digo. Não vou deixar Peter perder estas eleições. Entendeu?
Kruz olhou para os impiedosos olhos azuis e viu mais uma vez o homem vestido de preto dos pés à cabeça. Fechou os olhos e concordou com um movimento de cabeça.
O velho levou o copo aos lábios e, antes de beber, sorriu. Era tão agradável como uma súbita racha numa placa de vidro. Alcançou o bolso de peito do casaco, exibiu um pedaço de papel, e lançou-o sobre o tampo da mesa. Kruz olhou para ele enquanto deslizava, em seguida levantou o olhar.
— O que é isto?
— É um número de telefone. Kruz não tocou no papel.
— Um número de telefone?
— Nunca se sabe o que pode resultar de uma situação destas. Poderá ser necessário recorrer à violência. É possível que eu possa não estar em condições de ordenar tais medidas. Nesse caso, Manfred, a responsabilidade cai sobre ti.
Kruz pegou no pedaço de papel e levantou-o entre os seus dois dedos indicadores.
— Se ligar para este número, quem vai atender?
O velho sorriu.
— A violência.
31
ZURIQUE
HERR CHRISTIAN ZIGERLI, coordenador de eventos especiais do Dolder Grand Hotel, era como o próprio hotel: digno e pomposo, resoluto e discreto, um homem que apreciava o seu lugar de destaque na vida porque lhe permitia olhar para os outros de cima. Era também um homem que não gostava de surpresas. Normalmente, exigia setenta e duas horas de aviso prévio para reservas especiais e conferências, mas quando a Heller Enterprises e a Systech Wireless manifestaram vontade de conduzir as negociações finais da fusão no Dolder, Herr Zigerli concordou abdicar das setenta e duas horas de previsão em troca de uma sobretaxa de quinze por cento. Ele podia ser atencioso quando queria, mas ser atencioso, como todo o resto no Dolder, tinha um preço exorbitante.
A Heller Enterprises era a licitante por isso cabia-lhe tratar das reservas: não o próprio velho Rudolf Heller, claro, mas uma vistosa assistente pessoal italiana de nome Elena. Herr Zigerli tinha tendência a formar uma ideia sobre as pessoas rapidamente. Ele dizia que qualquer outro hoteleiro que fosse bom faria o mesmo. Não gostava de italianos de uma maneira geral, e a agressiva e exigente Elena rapidamente ganhou um lugar de destaque na sua lista de clientes pouco considerados. Ela falava alto ao telefone, um crime capital segundo ele, e parecia acreditar que só por gastar grandes quantidades de dinheiro do seu patrão tinha direito a privilégios especiais. Ela parecia conhecer bem o hotel. Fato estranho, já que Herr Zigerli tinha memória de elefante e não se lembrava dela como hóspede no Dolder. As suas exigências eram minunciosamente especificas. Queria quatro suítes contiguas perto do terraço com vista para o campo de golfe e para o lago. Quando Zigerli a informou que não seria possível — duas mais duas, ou três mais uma, mas não quatro seguidas — perguntou se os hóspedes podiam ser recolocados para a acomodar. Lamento, disse o hoteleiro, mas o Dolder Grand não tem o hábito de transformar hóspedes em refugiados. Ela decidiu optar por três suítes contiguas a uma quarta mais ao fundo do corredor.
— As delegações vão chegar às duas da tarde de amanhã — disse ela. — E gostariam de um almoço de trabalho leve.
Seguiram-se mais dez minutos de discussão sobre o que constituía um "almoço de trabalho leve".
Quando o menu ficou completo, Elena atirou mais uma exigência. Ela chegaria quatro horas antes das delegações, acompanhada pelo chefe de segurança da Heller, para inspecionar os quartos. Assim que as inspeções estivessem terminadas, não seria permitida a entrada de pessoal do hotel, exceto se acompanhados pela segurança da Heller. Herr Zigerli suspirou profundamente e concordou, em seguida desligou o telefone e, com a porta do seu gabinete fechada e trancada, fez uma série de exercícios de respiração para acalmar os nervos.
A manhã das negociações amanheceu cinza e fria. Os torreões majestosos do Dolder furavam o cobertor de nevoeiro gelado, e o asfalto perfeito da entrada brilhava como granito preto polido. Herr Zigerli estava de guarda no lobby, mesmo por trás das reluzentes portas de vidro, pés à largura dos ombros, mãos de lado, preparado para a batalha. Ela vai atrasar-se, pensou. Atrasam-se sempre. Ela vai precisar de mais suites. Ela vai querer mudar o menu. Ela vai ser perfeitamente horrível.
Um Mercedes sedã preto deslizou até a entrada e parou à porta. Herr Zigerli olhou discretamente para o relógio de pulso. Precisamente dez horas. Impressionante. O paquete abriu a porta traseira e uma lustrosa bota preta emergiu — Bruno Magli, reparou Zigerli — seguido por um torneado joelho e coxa. Herr Zigerli balançou para a frente nas pontas dos pés e alisou o cabelo sobre a zona careca. Já tinha visto muitas belas mulheres pairando pela famosa entrada do Dolder Grand, mesmo assim, poucas a tinham passado com mais graça e estilo que a encantadora Elena da Heller Enterprises. Ela tinha o cabelo acastanhado, preso por um gancho na nuca, e pele da cor do mel. Os seus olhos castanhos salpicados de dourado pareciam ter ganho ainda mais brilho quando lhe apertou a mão. A sua voz, tão alta e exigente pelo telefone, era agora suave e arrebatadora, assim como o seu sotaque italiano. Ela largou-lhe a mão e voltou-se para o acompanhante pouco sorridente.
— Herr Zigerli, este é o Oskar. O Oskar é segurança.
Aparentemente, o Oskar não tinha apelido. Nem precisava, pensou Zigerli. Ele tinha a constituição de um lutador de wrestling, com cabelo ruivo claro e sardas vagas espalhadas pelas largas bochechas. Herr Zigerli, um observador treinado da condição humana, viu qualquer coisa de familiar em Oskar. Um colega de tribo, por assim dizer. Ele conseguia imaginá-lo há dois séculos atrás, nas roupas de um lenhador, caminhando pesadamente por um trilho pela Floresta Negra. Como todos os bons seguranças, Oskar deixou os olhos falarem por si, e os seus olhos disseram a Herr Zigerli que ele estava ansioso por começar o trabalho.
— Eu levo-os aos seus quartos — disse o hoteleiro. — Por favor sigam-me. Herr Zigerli decidiu levá-los pela escada em vez do elevador. Era um dos mais finos atributos do Dolder, e Oskar, o lenhador, não parecia ser do tipo que prefere esperar pelos elevadores quando há um lanço de escadas para subir. Os quartos eram no quarto piso. No patamar, Oskar estendeu a mão para receber os cartões eletrônicos.
— A partir daqui é conosco se não se importa. Não é necessário mostrar-nos o interior dos quartos. Já todos estivemos em hotéis antes.
Uma piscadela cúmplice, uma palmadinha no ombro.
— Indique-nos apenas para onde é. Ficamos bem.
De fato, ficarão, pensou Zigerli. Oskar era um homem que inspirava confiança a outros homens. Mulheres também, Zigerli suspeitou. Ponderou se a deliciosa Elena — ele já começava a pensar nela como a sua Elena — seria uma das conquistas de Oskar. Colocou os cartões eletrônicos na palma da mão de Oskar e indicou-lhes o caminho.
Herr Zigerli era um homem de muitas máximas : "Um cliente sossegado é um cliente satisfeito" estava entre as suas preferidas. E a partir daí interpretou o subsequente silêncio no quarto piso como prova que Elena e o seu amigo Oskar estavam satisfeitos com as acomodações. Isto, por sua vez, satisfazia Herr Zigerli. Ele agora gostava de fazer Elena feliz. Conforme foi continuando pelo resto da manhã, ela estava-lhe na cabeça, como o traço de essência que se lhe tinha colado à mão.
Ele encontrou-se ansioso por algum problema, alguma queixa disparatada que requeresse contato com ela. Mas não houve nada, apenas o silêncio da perfeição. Ela tinha o Oskar agora. Ela não tinha necessidade do coordenador de eventos especiais do melhor hotel da Europa. Herr Zigerli, uma vez mais, tinha feito o seu trabalho bem demais.
Não ouviu nada deles, nem os viu, até as duas da tarde quando se reuniram na recepção e formaram uma improvável comissão de boas-vindas para as delegações que chegavam. Havia agora neve a cair no pátio frontal. Zigerli acreditava que o mau tempo apenas realçava o encanto do hotel: um abrigo da tempestade, como a própria Suíça.
A primeira limusina parou na entrada e largou dois passageiros. Um era o próprio Herr Rudolf Heller, um homem baixo e velho, vestindo um dispendioso terno preto e gravata prateada. Os seus óculos ligeiramente fumados sugeriam um problema na visão; o seu passo rápido e impaciente deixava a impressão de que, apesar da idade avançada, ele era um homem capaz de cuidar de si próprio. Herr Zigerli deu-lhe as boas-vindas ao Dolder e apertou-lhe a mão. Parecia feita de pedra. Estava acompanhado pelo carrancudo Herr Keppelmann. Vinte e cinco anos mais novo que Heller, cabelo curto, grisalho nas têmporas, olhos muito verdes. Herr Zigerli já tinha visto uma boa quantidade de guarda-costas no Dolder, e Herr Keppelmann parecia encaixar no perfil. Calmo, mas vigilante, silencioso como um rato de sacristia, seguro no passo e forte. Os olhos cor de esmeralda eram serenos, mas em constante movimento. Herr Zigerli olhou para Elena e reparou que o seu olhar estava fixado em Herr Keppelmann. Talvez ele se tivesse enganado sobre Oskar. Talvez o taciturno Keppelmann fosse o homem mais sortudo do mundo.
Os americanos chegaram a seguir: Brad Cantwell e Shelby Somerset, o CEO e COO da System Communications, Inc., de Reston, Virgínia. Notava-se sofisticação que Zigerli não costumava ver em americanos. Não eram exageradamente amigáveis, nem estavam a bramir para os celulares quando entraram na recepção.
Cantwell falou alemão assim como Herr Zigerli e evitou cruzar o olhar. Somerset era o mais afável dos dois. O seu tom aristocrático, o blazer azul bastante viajado e a gravata às riscas ligeiramente amarrotada identificavam-no como um yuppie Oriental.
Herr Zigerli fez alguns comentários de boas-vindas, e depois recuou calmamente para segundo plano. Era algo que ele fazia excepcionalmente bem. Enquanto Elena conduzia o grupo em direção à escadaria, ele deslizou para seu gabinete e fechou a porta. Um impressionante grupo de homens, pensou. Ele esperava que grandes coisas saíssem deste empreendimento. O seu papel no assunto, embora menor, foi executado com precisão e competência serena. Nos dias de hoje, tais atributos tinham pouco valor, mas eram a moeda do reino miniatura de Herr Zigerli. Ele suspeitava que os homens da Heller Enterprises e System Communications provavelmente sentiam o mesmo.
NO CENTRO DE ZURIQUE, numa rua calma perto do local onde as águas verdes do Rio Limmat desaguam no lago, Konrad Becker estava a encerrar o seu banco privado por aquele dia quando o telefone na sua mesa tocou com suavidade. Tecnicamente, ainda faltavam cinco minutos para a hora de fecho, mas estava tentado a deixar o gravador atender. Backer sabia por experiência que só clientes problemáticos telefonavam tão tarde, e o seu dia já tinha sido difícil o suficiente. Em vez disso, como um bom banqueiro suíço, alcançou o receptor e levou-o à orelha sem pensar.
— Becker and Puhl.
— Konrad, é Shelby Somerset. Como é que estás?
Becker engoliu em seco. Somerset era o nome do americano da CIA: pelo menos, Somerset era como ele dizia que se chamava. Becker duvidava seriamente que fosse o seu nome verdadeiro.
— O que posso fazer por si, senhor Somerset?
— Como entrada podes deixar-te de formalismos, Konrad.
— E como prato principal?
— Podes descer a escada, ir até a Talstrasse e entrar no Mercedes que está lá à tua espera.
— E porque quereria eu fazer isso?
— Eu preciso de te ver.
— Onde é que o Mercedes me vai levar?
— A um sítio agradável, garanto-te.
— E como devo ir vestido?
— Traje executivo serve perfeitamente. E, Konrad?
— Sim, senhor Somerset?
— Não penses em armar-te em difícil. Isto é a sério. Desce a escada. Entra no carro. Estamos de olho em ti. Estamos sempre de olho em ti.
— Que reconfortante, senhor Somerset — disse o banqueiro, mas a ligação já tinha sido cortada.
VINTE MINUTOS MAIS TARDE, Herr Zigerli estava na recepção quando reparou num dos americanos, Shelby Somerset, a caminhar ansioso na parte de fora da entrada. Um momento mais tarde, um Mercedes prateado parou e uma pequena figura careca saiu do banco de trás. Mocassins indianos polidos, uma pasta à prova de choque. Um banqueiro, pensou Zigerli. Apostava o seu ordenado nisso. Somerset fez ao recém-chegado um sorriso amigável e deu uma palmada firme no ombro. O pequeno homem, apesar da calorosa recepção, parecia no entanto estar a caminhar para a sua própria execução. Mesmo assim, Herr Zigerli achou que as conversações estavam a correr bem. O homem do dinheiro tinha chegado.
— BOA TARDE, HERR BECKER. É um prazer vê-lo. Eu sou Heller. Rudolf Heller. Este é o meu sócio, senhor Keppelmann. Aquele homem ali é o nosso parceiro americano, Brad Cantwell. É obvio que você e o senhor Somerset já se conhecem. O banqueiro piscou os olhos várias vezes e depois fixou o seu pequeno olhar astuto em Shamron, como se estivesse a tentar calcular o seu valor liquido. Segurou a pasta sobre os genitais, em antecipação de um ataque iminente.
— Os meus associados e eu estamos prestes a embarcar numa joint-venture. O problema é que não conseguimos fazê-lo sem a sua ajuda. É isso que fazem os banqueiros, não é, Herr Becker? Ajudam a lançar grandes empreendimentos? Ajudam as pessoas a realizar os seus sonhos e o seu potencial?
— Depende do empreendimento, Herr Heller.
— Estou a ver — disse Shamron, sorrindo. — Por exemplo, há muitos anos atrás, um grupo de homens foi ver você. Alemães e austríacos. Queriam lançar um grande empreendimento também. Confiaram-lhe uma grande soma de dinheiro e deram-lhe o poder de transformar numa soma ainda maior. Você se saiu extraordinariamente bem. Transformou-a numa montanha de dinheiro. Presumo que se lembre desses cavalheiros? Presumo que também saiba onde conseguiram o dinheiro?
O olhar do banqueiro suíço endureceu. Tinha concluído o cálculo sobre o valor líquido de Shamron.
— É israelense, não é?
— Prefiro pensar em mim mesmo como um cidadão do mundo — respondeu Shamron. — Moro em muitos lugares, falo a língua de muitas terras. A minha lealdade, como os meus interesses financeiros, não tem fronteiras nacionais. Como suíço tenho certeza que consegue entender o meu ponto de vista.
— Eu entendo — disse Becker — mas não acredito numa palavra do que diz.
— E se eu fosse de Israel? — perguntou Shamron. — Isso teria algum impacto na sua decisão?
— Teria.
— Como?
— Não me interessam os israelenses — disse Becker prontamente. — E os judeus também.
— Lamento ouvir isso, Herr Becker, mas um homem tem direito a sua opinião, e não vou discutir isso. Nunca deixo politicagem meter-se no caminho dos negócios. Preciso de ajuda para o meu empreendimento, e você é a única pessoa que pode me ajudar.
Becker elevou o sobrolho zombeteiramente.
— Qual é exatamente a natureza deste empreendimento, Herr Heller?
— É bem simples, na verdade. Quero que me ajude a sequestrar um de seus clientes.
— Parece-me, Herr Heller, que esse empreendimento seria uma violação das leis de segredo bancário e de várias outras leis deste pais.
— Então suponho que teremos de manter seu envolvimento em segredo.
— E se eu me recusar a cooperar?
— Então serei obrigado a contar ao mundo que você é o banqueiro dos assassinos, que está sentado em dois bilhões e meio de dólares de pilhagens do Holocausto. Soltaremos os cães de caça do Congresso Judaico Mundial sobre você. Quando terminarem, você e o seu banco estarão em farrapos.
O banqueiro suíço lançou um olhar de súplica a Shelby Somerset.
— Nós tínhamos um acordo.
— Ainda temos — balbuciou o sedento americano —, mas os contornos do acordo mudaram. Seu cliente é um homem muito perigoso. Passos precisam de ser dados para neutralizá-lo. Precisamos de você, Konrad. Ajude-nos a resolver um problema. Vamos fazer o bem juntos.
O banqueiro trauteou com os dedos na pasta.
— Tem razão. Ele é um homem perigoso, e se eu ajudo a sequestrá-lo, é melhor começar a abrir a minha própria sepultura.
— Estaremos lá, Konrad. Vamos protegê-lo.
— E se os contornos do acordo mudarem novamente? Quem vai me proteger então?
Shamron intercedeu.
— Receberia cem milhões de dólares com a dispersão final da conta. Agora não haverá dispersão final da conta porque vai me entregar o dinheiro todo. Se colaborar, deixo-o ficar com metade do montante a receber. Presumo que consiga fazer a conta, Herr Becker?
— Consigo.
— Cinquenta milhões de dólares é mais do que merece, mas estou disposto a deixá-lo ficar com esse montante para ganhar a sua cooperação neste assunto. Um homem consegue comprar muita segurança com cinquenta milhões.
— Quero isso por escrito, um termo de garantia.
Shamron abanou a cabeça com desdém, como se dissesse que havia algumas coisas, e devia saber melhor que qualquer um, meu querido companheiro, que não se põe por escrito.
— O que precisa de mim? — perguntou Becker.
— Vai nos ajudar a entrar na casa dele.
— Como?
— Vai precisar vê-lo com urgência sobre um assunto qualquer da conta. Talvez alguns papéis que precisem ser assinados, alguns detalhes finais da preparação para a liquidação e dispersão dos bens.
— E assim que estiver dentro da casa?
— O seu trabalho termina. O seu novo assistente trata do resto a partir daí.
— Meu novo assistente?
Shamron olhou para Gabriel.
— Talvez seja hora de apresentar Herr Becker a seu novo parceiro.
ELE ERA UM HOMEM de muitos nomes e muitas personalidades. Herr Zigerli conhecia-o como Oskar, o chefe de segurança da Heller. O senhorio da sua morada em Paris conhecia-o como Vincent Laffont, um escritor freelancer viajante de descendência britânica que passava a maior parte do seu tempo de mala às costas. Em Londres, era conhecido como Clyde Bridges, diretor de marketing europeu de uma obscura firma de software canadiana. Em Madrid, ele era um alemão rico de alma inquieta, que preguiçava horas em cafés e bares, e viajava para aliviar o aborrecimento.
O seu nome verdadeiro era Uzi Navot. No léxico hebraico dos serviços secretos israelenses, Navot era um katsa, um operacional de campo secreto e oficial de casos.
O seu território era a Europa Ocidental. Detentor de um charme malandro, poliglota e de uma arrogância fatalista, Navot tinha penetrado células de terrorismo palestino e recrutado agentes em embaixadas árabes espalhadas pelo continente. Possuía contatos em quase todos os serviços secretos e de segurança da Europa e orientava uma vasta rede de sayanim, auxiliares voluntários recrutados em comunidades judaicas locais. Podia sempre contar com a melhor mesa na sala de grelhados do Ritz de Paris porque o maître d'hôtel era um informante pago, assim como o chefe dos serviços de limpeza.
— Konrad Becker, apresento-lhe Oskar Lange.
O banqueiro permaneceu sentado e imóvel por um longo momento, como se tivesse sido subitamente transformado em estátua. Então os seus pequenos olhos espertos pousaram em Shamron, e levantou as mãos num gesto inquisitório.
— O que devo fazer eu com ele.
— Diga-nos você. Ele é muito bom, o nosso Oskar.
— Consegue fazer-se passar por advogado?
— com a devida preparação, ele conseguia fazer-se passar pela sua mãe.
— Quanto tempo tem de durar esta charada?
— Cinco minutos, talvez menos.
— Quando se está com Ludwig Vogel, cinco minutos podem parecer uma eternidade.
— Foi o que ouvi dizer — disse Shamron.
— E o Klaus?
— Klaus?
— O guarda-costas de Vogel.
Shamron sorriu. A resistência tinha terminado. O banqueiro suíço juntara-se à equipe e jurara fidelidade à bandeira de Herr Heller e o seu nobre empreendimento.
— Ele é muito profissional — disse Becker. — Já estive na casa meia dúzia de vezes, mas ele revista-me sempre minuciosamente e pede-me para abrir a pasta. Portanto, se está a pensar levar uma arma para dentro da casa...
Shamron interrompeu-o.
— Não tencionamos levar armas para dentro da casa.
— Klaus está sempre armado.
— Tem a certeza?
— Uma Glock, penso eu. — O banqueiro deu uma palmadinha no lado esquerdo do seu peito. — Usa-a aqui. Não faz muito esforço em escondê-la.
— Um pormenor encantador, Herr Becker.
O banqueiro aceitou o elogio com uma inclinação da cabeça.
— Pormenores são a minha vida, Herr Heller.
— Perdoe a minha insolência, Herr Heller, mas como é que se rapta alguém que está protegido por um guarda-costas, se o guarda-costas está armado e o raptor não?
— Herr Vogel vai abandonar a casa voluntariamente.
— Um rapto voluntário? — o tom de Becker era incrédulo. — Que peculiar. E como é que se convence um homem a deixar-se raptar voluntariamente ?
Shamron cruzou os braços.
— Preocupe-se em levar o Oskar para dentro da casa e deixe o resto connosco.
32
MUNIQUE
NO BONITO PEQUENO bairro de Lehel em Munique havia um velho apartamento, com um portão para a rua e um bem arranjado pátio na entrada principal. O elevador era instável e indeciso, e eram mais as vezes que subiam a escada em caracol até o terceiro andar. O mobiliário tinha o anonimato de um quarto de hotel. Havia duas camas no quarto, e o sofá da sala de estar era um davenport. Na arrecadação havia quatro camas extras de abrir. A despensa estava cheia de produtos não deterioráveis e os armários continham louça e talheres para oito. As janelas da sala de estar tinham vista para a rua, mas os estores mantinham-se fechados o tempo todo, para que dentro do apartamento parecesse sempre fim de dia. Os telefones não tinham campainha. Em vez disso, estavam equipados com luzes vermelhas que piscavam para indicar que estava a tocar.
As paredes da sala de estar estavam forradas de mapas: centro de Viena, Viena metropolitana, Áustria oriental, Polônia. Na parede oposta às janelas estava pendurado um enorme mapa da Europa Central, que mostrava toda a rota de fuga, esticando-se de Viena até a costa do Báltico. Shamron e Gabriel discutiram a cor antes de decidirem pelo vermelho. À distância parecia um rio de sangue, como Shamron desejara, o rio de sangue que fluía pelas mãos de Erich Radek. Só falavam em alemão no apartamento. Shamron tinha-o decretado. Radek era referido como Radek e apenas Radek; Shamron não iria chamá-lo pelo nome que ele comprara aos americanos. Shamron decretou outras regras também. Era a operação de Gabriel, e consequentemente era um espetáculo dirigido por Gabriel. Era Gabriel, com o sotaque berlinense da sua mãe, que orientava as equipes, Gabriel que revia os relatórios de Viena, e Gabriel quem tomava todas as decisões operacionais finais.
Durante os primeiros dias, Shamron esforçou-se para se encaixar no seu papel de apoio, mas à medida que a sua confiança em Gabriel ia crescendo, descobriu ser mais fácil retirar-se para segundo plano. Ainda assim, cada agente que passava pelo apartamento seguro reparava na nuvem negra que pairava sobre ele. Parecia não dormir nunca. Ele permanecia de pé perante os mapas todo o tempo, ou sentava-se na mesa da cozinha no escuro, fumando como uma chaminé: como um homem que luta contra uma consciência pesada.
— Ele é como um doente terminal que planeia o seu próprio funeral —, assinalou Oded, um veterano agente de língua alemã que Gabriel tinha escolhido para conduzir o carro de fuga. — E se correr mal, eles gravarão isso na sua lápide, mesmo por baixo da Estrela de David.
Sob condições perfeitas, tal operação envolveria semanas de preparação. Gabriel tinha apenas dias. A operação Ira de Deus tinha-o preparado bem. Os terroristas do Setembro Negro estavam constantemente em movimento, aparecendo e desaparecendo com uma frequência de fazer enlouquecer. Quando alguém era localizado e identificado, a equipe de choque entrava em ação à velocidade da luz. Equipas de vigilância eram preparadas, veículos e apartamentos seguros eram alugados, rotas de fuga eram planejadas. O reservatório de experiência era muito útil a Gabriel em Munique. Poucos agentes secretos sabiam mais sobre planeamento rápido e ataques súbitos do que ele e Shamron.
Ao fim do dia, viam as noticias na televisão alemã. As eleições na vizinha Áustria captavam a atenção dos espectadores alemães. Metzler estava na frente. As multidões nos comícios de campanha, como a sua liderança nas sondagens, cresciam de dia para dia. A Áustria, assim parecia, estava prestes a fazer o impensável, eleger um chanceler da extrema-direita. Dentro do apartamento seguro, Gabriel e a sua equipe descobriram-se na bizarra posição de torcer pela subida de Meztler nas sondagens, pois sem Metzler, a porta para Radek estava fechada.
Invariavelmente, pouco depois das noticias, Lev revia a operação a partir de King Saul Boulevard e sujeitava Gabriel a uma fastidiosa examinação cruzada dos eventos do dia. Era a única vez que Shamron se sentia aliviado por não carregar o fardo do comando operacional. Gabriel dava voltas ao apartamento com o telefone colado à orelha, respondendo pacientemente às questões de Lev. E por vezes, se a luz estivesse correta, Shamron veria a mãe de Gabriel, caminhando ao lado dele. Ela era o único membro da equipe que nunca ninguém mencionou.
UMA VEZ POR DIA, normalmente ao fim da tarde, Gabriel e Shamron escapavam do apartamento seguro para passear nos Jardins Ingleses. A sombra de Eichmann pairava sobre eles. Gabriel reconheceu que ele estivera lá desde o inicio. Ele tinha ido a Viena naquela noite em que Max Klein contara a Gabriel a história do oficial SS que assassinara uma dúzia de prisioneiros em Birkenau e agora saboreava café todas as tardes no Café Central. Mesmo assim, Shamron tinha diligentemente evitado falar no seu nome, até agora.
Gabriel já tinha ouvido a história da captura de Eichmann muitas vezes. De fato, Shamron tinha-a contado em Setembro de 1972 para espicaçar Gabriel a juntar-se ao grupo da Ira de Deus. A versão que Shamron lhe contou durante esses passeios ao longo dos trilhos de árvores dos Jardins Ingleses era mais detalhada que qualquer outra que Gabriel tivesse escutado antes. Gabriel sabia que isto não era apenas divagação de um velho tentando reviver glórias passadas. Os editores podiam esperar sentados pelas suas memórias, Shamron não era de apregoar o seu próprio sucesso. Gabriel sabia que Shamron lhe estava a contar a história de Eichmann por uma razão. Eu já fiz a viagem que estás prestes a fazer, dizia Shamron. Noutro tempo, noutro local, na companhia de outro homem, mas há coisas que deves saber. Gabriel, por vezes, não conseguia afastar a sensação de estar a caminhar com a História.
— A parte mais difícil foi esperar pelo avião de fuga. Estávamos presos na casa segura com aquela ratazana humana. Alguns elementos da equipe não suportavam olhar para ele. Eu tinha de me sentar no seu quarto noite após noite e vigiá-lo. Ele estava acorrentado à cama de ferro vestido com um pijama e tinha óculos opacos a tapar os olhos. Estávamos estritamente proibidos de conversar com ele. Apenas o interrogador estava autorizado a falar com ele. Eu não consegui obedecer a essas ordens. Sabes, eu precisava de saber. Como é que este homem, que se enjoava ao ver sangue, matou seis milhões do meu povo? A minha mãe e o meu pai? As minhas duas irmãs? Perguntei-lhe porque o tinha feito? Ele disse-me que o tinha feito porque era o seu trabalho, o seu trabalho, Gabriel, como se ele não fosse mais que um empregado bancário ou um maquinista de trem.
E mais tarde, encostados aos balaústres de uma velha ponte sobre um ribeiro:
— Só o quis matar uma vez, Gabriel, quando ele me tentou dizer que não odiava o povo judeu, que na verdade gostava e admirava o povo judeu. Para me mostrar o quanto ele gostava de judeus, começou a recitar as nossas palavras: Shema, Yisrael, Adonai Eloheinu, Adonai Echad! Eu não conseguia ouvir aquelas palavras vindas daquela boca, a boca que tinha dado ordens para assassinar seis milhões. Cravei-lhe a mão sobre a cara até que ele se calasse. Ele começou a abanar e a ter convulsões. Pensei que lhe tinha causado um ataque de coração. Ele perguntou-me se eu o ia matar. Ele suplicou-me que não fizesse mal ao seu filho. Este homem que tinha arrancado os filhos dos braços dos pais e os tinha lançado ao fogo estava preocupado com o seu próprio filho, como se nós fossemos agir como ele, como se nós fossemos assassinar crianças.
E numa gasta mesa de madeira, numa esplanada deserta:
— Nós queríamos que ele concordasse em voltar connosco para Israel voluntariamente. Ele, claro, não queria ir. Ele queria ser julgado na Argentina ou na Alemanha. Eu disse-lhe que isso não era possível. De uma maneira ou de outra, ele ia ser julgado em Israel. Eu arrisquei a minha carreira permitindo que ele tivesse um pouco de vinho tinto e um cigarro. Eu não bebi com o assassino. Eu não podia. Assegurei-lhe que lhe seria dada a oportunidade de contar a sua versão da história, que lhe seria oferecido um julgamento apropriado com uma defesa adequada. Ele não tinha ilusões sobre o resultado, mas a noção de se poder explicar ao mundo era-lhe de alguma forma apelativa. Também apontei o fato de que ele teria a dignidade de saber que estava prestes a morrer, algo que ele negou aos milhões que marcharam para as salas de despir e para as câmaras de gás enquanto Max Klein lhes tocava serenatas. Ele assinou o papel, datou-o como um bom burocrata alemão, e estava feito.
Gabriel escutou atentamente com a gola do casaco elevada para proteger as orelhas e as mãos enfiadas nos bolsos. Shamron mudou o foco de Adolf Eichmann para Erich Radek.
— Tu tens uma vantagem porque já estiveste cara-a-cara com ele uma vez, no Café Central. Eu apenas vira Eichmann ao longe, enquanto vigiávamos a sua casa e planeávamos o rapto, mas nunca falara com ele ou mesmo estivera perto dele. Eu sabia exatamente a sua altura, mas não conseguia imaginar.
Eu tinha ideia de como a sua voz soaria, mas não é a mesma coisa. Tu conheces Radek, mas infelizmente ele também sabe muito sobre ti, também, graças a Manfred Kruz. Ele vai querer saber mais. Ele vai sentir-se exposto e vulnerável. Ele vai tentar equilibrar o jogo fazendo-te perguntas. Ele vai querer saber porque o estás a perseguir. Sob nenhuma circunstância deves envolver-te como numa conversa normal. Lembra-te, Erich Radek não era um guarda de campo ou um operador de câmara de gás. Ele era um SD, um interrogador hábil. Ele vai tentar fazer uso dessas habilidades uma última vez para evitar o seu destino. Não te deixes cair nas suas mãos. És o responsável agora. Ele vai tentar contradizer-te e abalar as tuas convicções.
Gabriel olhou para baixo, como se estivesse a ler as palavras gravadas na mesa.
— Então porque merecem Eichmann e Radek as armadilhas da justiça — disse ele finalmente — e os palestinos do Setembro Negro apenas a vingança?
— Terias dado um excelente estudante Talmud, Gabriel.
— E tu estás a fugir à minha pergunta.
— Obviamente, que houve uma medida de pura vingança na nossa decisão contra os terroristas do Setembro Negro, mas foi mais do que isso. Eles constituem uma ameaça contínua. Se não os matássemos seriam eles a matar-nos. Era guerra.
— Porque não prendê-los, levá-los a julgamento?
— Para que pudessem declamar a sua propaganda a partir de um tribunal israelense?
— Shamron abanou a cabeça lentamente. — Eles já fizeram isso — levantou a mão e apontou para a torre que se ergue no Parque Olímpico — aqui mesmo nesta cidade, em frente às câmaras de todo o mundo. Não nos competia a nós dar-lhes outra oportunidade de justificarem o massacre de inocentes.
Baixou a mão e inclinou-se sobre a mesa. Foi nessa altura que contou a Gabriel os desejos do primeiro-ministro. Enquanto conversava, a sua respiração gelava perante ele.
— Eu não quero matar um velho — disse Gabriel.
— Ele não é um velho. Ele usa as roupas de um velho e esconde-se por trás do rosto de um velho, mas ele ainda é Erich Radek, o monstro que matou uma dúzia de homens em Auschwitz porque não conseguiram identificar uma peça de Brahms. O monstro que matou duas moças à beira de uma estrada polonesa porque não quiseram negar as atrocidades de Birkenau. O monstro que abriu as campas de milhões e sujeitou os seus cadáveres a uma humilhação final. A velhice não perdoa tais pecados.
Gabriel levantou os olhos e fitou o olhar insistente de Shamron.
— Eu sei que ele é um monstro. Eu só não quero matá-lo. Eu quero que o mundo saiba o que este homem fez.
— Então é melhor preparares-te para a batalha com ele. — Shamron olhou para o seu relógio de pulso. — Mandei vir uma pessoa para te ajudar. De fato, deve estar mesmo a chegar.
— Porque só agora estou a saber disso? Pensava que era eu que tomava todas as decisões operacionais.
— E és — disse Shamron. — Mas por vezes eu tenho de mostrar o caminho. É para isso que servem os velhos.
NEM GABRIEL NEM Shamron acreditavam em prenúncios ou presságios. Se acreditassem, a operação que trouxe Moshe Rivlin de Yad Vashem até a casa segura em Munique teria lançado dúvidas sobre a capacidade da equipe para levar a cabo a tarefa que tinham pela frente.
Shamron queria que Rivlin fosse contatado discretamente. Infelizmente, King Saul Boulevard confiou o trabalho a um par de aprendizes acabados de sair da academia, ambos nitidamente de aparência sefardita. Decidiram contatar Rivlin enquanto este caminhava de Yad Vashem para o seu apartamento perto do mercado Yehuda. Rivlin, que tinha sido criado na zona de Bensonhurts no Brooklyn e ainda era vigilante quando caminhava pela rua, rapidamente notou que estava a ser seguido por dois homens de carro. Presumiu que fossem homens-bomba do Hamas ou um par de criminosos de rua. Quando o carro parou ao lado dele e os seus ocupantes pediram para falar, Rivlin desatou a correr como um louco. Para surpresa de todos, o atarracado arquivista provou ser uma presa esquiva e conseguiu escapar aos seus captores durante vários minutos até ser encurralado pelos dois agentes do Escritório na Rua Ben Yehuda.
Ele chegou ao apartamento seguro em Lehel ao fim dessa tarde, carregando duas malas cheias de material de pesquisa e irritado pela maneira como tinha sido convocado.
— Como esperam raptar um homem como Erich Radek se não conseguem apanhar um arquivista gordo? Vá lá — disse ele, puxando Gabriel para a privacidade do quarto do fundo. — Temos muito terreno para cobrir e pouco tempo para o fazer. No SÉTIMO DIA, Adrian Carter chegou a Munique. Era uma quarta-feira; chegou ao apartamento seguro ao fim da tarde, quando o crepúsculo se tornava escuro. O passaporte no bolso do seu sobretudo ainda dizia Brad Cantwell. Gabriel e Shamron tinham acabado de regressar de um passeio nos Jardins Ingleses e ainda estavam embrulhados em chapéus e cachecóis. Gabriel tinha enviado o resto dos elementos da equipe para as posições de fase final, consequentemente o apartamento seguro estava vazio de pessoal do Escritório. Apenas Rivlin permanecia. Saudou o diretor da CIA com a camisa para fora e os sapatos descalçados e disse que seu nome era Yaacov. O arquivista tinha-se adaptado bem à disciplina da operação.
Gabriel fez o chá. Carter desabotoou o casaco e conduziu-se a si próprio numa preocupada excursão pelo apartamento. Passou bastante tempo em frente aos mapas. Carter acreditava em mapas. Os mapas nunca te mentirão. Os mapas nunca te dirão o que eles acham que tu queres ouvir.
— Gosto do que fizeste com o sitio, Herr Heller. — Carter finalmente despiu o sobretudo. — Miséria neo-contemporânea. E o cheiro. Tenho certeza de que o conheço. Trazido da Wienerwald ao fundo do quarteirão, se não estou em erro. Gabriel entregou-lhe uma caneca de chá com o cordão da saqueia ainda pendente do rebordo.
— Porque estás aqui Adrian?
— Pensei em passar para ver se precisavam de ajuda.
— Tretas.
Carter sentou-se pesadamente no sofá, um vendedor no final de uma longa e improdutiva viagem pela estrada. — Verdade seja dita, estou aqui por ordem do meu diretor. Parece que ele está com um sério ataque de nervosismo. Ele sente que estamos juntos num ramo e vocês estão com a motosserra nas mãos. Ele quer que a Agência seja posta na jogada.
— E isso significa o quê?
— Ele quer saber o plano de jogo.
— Tu sabes o plano de jogo, Adrian. Eu disse-te o plano de jogo em Virginia. Não se alterou.
— Eu sei os esboços do plano — disse Carter. — Agora quero ver o quadro pronto.
— O que estás a dizer é que o teu diretor quer rever o plano e dar a palavra final.
— Algo do gênero. E quando acontecer, ele quer que eu fique na retaguarda com o Ari também.
— E se lhe dissermos para ir para o inferno?
— Eu diria que há cinquenta por cento de hipóteses de alguém sussurrar um aviso na orelha de Erich Radek, e perdem-no. Joga com o diretor, Gabriel. É a única maneira de apanhares Radek.
— Estamos prontos para agir, Adrian. Agora é a altura para sugestões úteis do sétimo andar.
Shamron sentou-se ao lado de Carter.
— Se o teu diretor tivesse dez gramas de cérebro, ficaria o mais afastado disto que conseguisse.
— Tentei explicar-lhe isso — não nesses termos, claro, mas qualquer coisa perto. Ele não tem nada disso. Ele veio da Wall Street, o nosso diretor. Ele gosta de pensar em si próprio como um individuo prático, atacante. Sempre soube o que cada divisão da companhia estava a fazer. Tenta gerir a Agência da mesma maneira. E como sabes, é também amigo do presidente. Se o chateias, ele telefona para a Casa Branca, e acaba-se.
Gabriel olhou para Shamron, que cerrava os dentes e acenava a cabeça. Carter
obteve o seu relatório. Shamron permaneceu sentado por alguns minutos, mas em breve estava de pé a percorrer a sala, como um chefe cujas receitas secretas estão a ser entregues a um concorrente do outro lado da rua. Quando terminou, Carter dispensou um longo tempo enchendo a fornilha do seu cachimbo com tabaco.
— Parece-me que os cavalheiros estão prontos — disse ele. — De que estão à espera? Se fosse vocês, punha-me em ação antes que o meu diretor que tem a palavra final decida que quer fazer parte da equipe de rapto.
Gabriel concordou. Levantou o telefone e ligou para Uzi Navot em Zurique.
33
VIENA * MUNIQUE
KLAUS HALDER BATEU suavemente na porta do estúdio. A voz do outro lado concedeu-lhe permissão para entrar. Empurrou a porta e viu o velho sentado à média luz, com os olhos fixos na tremeluzente tela de televisão: um comício de Meztler dessa tarde em Graz, estimulando multidões, a conversa já versava a composição do gabinete ministerial de Metzler. O velho desligou a televisão com o comando e virou os seus olhos azuis para o guarda-costas. Halder apontou para o telefone com o olhar. Uma luz verde piscava.
— Quem é?
— Herr Becker, de Zurique.
O velho levantou o receptor.
— Boa noite, Konrad.
— Boa noite, Herr Vogel. Peço desculpa por o incomodar tão tarde, mas o assunto não podia esperar.
— Há alguma coisa errada?
— Não, muito pelo contrário. No seguimento das recentes notícias eleitorais de Viena, decidi apressar o passo dos meus preparativos e proceder como se a vitória de Peter Metzler fosse um dado adquirido.
— Uma decisão acertada, Konrad.
— Calculei que concordasse. Tenho vários documentos que precisam da sua assinatura. Pensei que seria melhor começarmos o processo agora em vez de esperar pelo final.
— Que tipo de documentos?
— O meu advogado estará mais habilitado para os explicar do que eu. Se não se importar, eu gostaria de ir a Viena para uma reunião. Não demorará mais do que alguns minutos.
— Pode ser na sexta-feira?
— Sexta-feira está ótimo, desde que seja ao fim da tarde. Tenho um compromisso inadiável da parte da manhã.
— Podemos apontar para as quatro da tarde?
— Às cinco seria melhor para mim, Herr Vogel.
— Tudo bem, sexta às cinco.
— Vemo-nos lá.
— Konrad?
— Sim, Herr Vogel.
— Esse advogado — diga-me como se chama, por favor.
— Oskar Lange, Herr Vogel. É um homem muito competente, já fiz uso dos seus serviços em muitas ocasiões anteriores.
— Presumo que seja um tipo que compreende o significado da palavra discrição?
— Discreto, nem sequer dá para começar a descrevê-lo. Está em muito boas mãos.
— Adeus, Konrad.
O velho desligou o telefone e olhou para Halder.
— Vai trazer alguém com ele? Um aceno lento.
— Ele sempre veio sozinho no passado. Porquê trazer um ajudante de repente?
— Herr Becker está prestes a receber cem milhões de dólares, Klaus. Se há um homem no mundo em quem podemos confiar, é o gnomo de Zurique.
O guarda-costas dirigiu-se à porta.
— Klaus?
— Sim, Herr Vogel?
— Talvez tenhas razão. Telefona a alguns dos nossos amigos em Zurique. Descobre se alguém já ouviu falar de um advogado chamado Oskar Lange.
UMA HORA MAIS TARDE, uma gravação do telefonema de Becker foi enviada por transmissão segura dos escritórios da Becker & Puhl em Zurique para o apartamento seguro em Munique. Escutaram-na uma vez, depois outra, e ainda outra. Adrian Carter não gostou do que ouviu.
— Vocês sabem que assim que Radek pousar o telefone, vai fazer uma segunda chamada para Zurique para verificar o Oskar Lange. Espero que tenham pensado nisso.
Shamron parecia desapontado com Carter.
— O que acha, Adrian? Nunca fizemos este tipo de coisa antes? Somos crianças que precisam de orientação?
Enquanto esperava pela resposta, Carter chegou um fósforo ao cachimbo e puxou a fumaça.
— Já ouviu o termo sayan — disse Shamron. — Ou sayanim.
Carter acenou com o cachimbo preso entre os dentes.
— Seus pequenos ajudantes voluntários — disse. — O empregado de hotel que consegue quartos sem reserva. As locadoras que conseguem carros indetectáveis. Os médicos que tratam seus agentes quando têm ferimentos que possam suscitar perguntas difíceis. Os banqueiros que dão empréstimos de emergência.
Shamron acenou.
— Somos um pequeno serviço secreto, só mil e duzentos empregados em tempo integral. Não conseguiríamos fazer o que fazemos sem a ajuda de sayanim. Eles são uma das vantagens da diáspora, o meu exército privado de pequenos voluntários.
— E Oskar Lange?
— Ele é um advogado fiscal e imobiliário de Zurique. Por acaso também é judeu. Algo que ele não publicita em Zurique. Há alguns anos levei o Oskar a jantar a um pequeno restaurante no lago e acrescentei-o à minha lista de ajudantes. Na semana passada, pedi-lhe um favor. Eu queria usar o seu passaporte e o seu escritório e queria que ele desaparecesse por um par de semanas. Quando lhe disse porquê, ele prontificou-se a ajudar com prazer. De fato, ele próprio queria ir a Viena e capturar Radek.
— Espero que ele esteja em lugar seguro.
— Pode-se dizer que sim, Adrian. Ele está de momento num apartamento seguro em Jerusalém.
Shamron inclinou-se em direção ao leitor de fitas, carregou em REWIND, STOP e depois PLAY:
— Pode ser na sexta-feira?
— Sexta-feira está ótimo, desde que seja ao fim da tarde. Tenho um compromisso inadiável da parte da manhã.
— Podemos apontar para as quatro da tarde?
— Às cinco seria melhor para mim, Herr Vogel. .-..
— Tudo bem, sexta às cinco. " STOP.
MOSHE RIVLIN DEIXOU o apartamento seguro na manhã seguinte e regressou a Israel num voo da El Al, com um acompanhante do Escritório sentado ao seu lado. Gabriel ficou até as sete da tarde de quinta-feira, quando uma van Volkswagen com dois pares de esquis montados no teto parou em frente ao apartamento e deu duas buzinadelas.
Ele guardou a sua Beretta na parte de trás da calça. Carter desejou-lhe boa sorte; Shamron deu-lhe um beijo na cara e mandou-o descer.
Shamron abriu as cortinas e olhou para a rua escura. Gabriel apareceu no passeio e dirigiu-se à janela do condutor. Após um momento de discussão, a porta abriu e Chiara saiu. Circundou a van e foi brevemente iluminada pelos faróis da frente antes de entrar para o lugar do passageiro.
A van afastou-se da borda do passeio. Shamron acompanhou até as luzes vermelhas da traseira desaparecerem numa curva. Não se moveu. A espera. Sempre a espera.
O seu isqueiro acendeu, uma nuvem de fumaça formou-se contra o vidro.
34
ZURIQUE
KONRAD BECKER E Uzi Navot saíram dos escritórios da Becker & Puhl precisamente quatro minutos depois da uma da tarde de sexta-feira. Um vigilante do Escritório chamado Zalman, posicionado do outro lado da Talstrasse num Fiat sedã cinza, registrou a hora assim como o tempo, um aguaceiro torrencial, em seguida enviou as noticias a Shamron no apartamento seguro de Munique. Becker estava vestido para um funeral, num terno cinza de risquinhas e uma gravata cor de carvão. Navot, imitando o estilo de vestir de Oskar Lange, usava um blazer Armani com uma camisa e gravata azul elétrica a condizer. Becker tinha pedido um táxi para os levar ao aeroporto.
Shamron teria preferido um carro particular, com um motorista do Escritório, mas Becker viajava sempre de táxi para o aeroporto e Gabriel não queria que a rotina fosse quebrada. Então foi um normal táxi de cidade, conduzido por um imigrante turco, que os levou do centro de Zurique até o aeroporto Kloten por um vale enevoado, com o vigilante de Gabriel sempre a reboque.
Foram em breve confrontados com a primeira falha técnica. Uma frente fria tinha passado por Zurique, transformando a chuva em neve e gelo e obrigando as autoridades do aeroporto Kloten a suspender os voos momentaneamente. O voo 157 8 da Swiss International Airlines, com destino a Viena, embarcou a horas e depois esperou imóvel para entrar na pista. Shamron e Adrian Carter, monitorizando a situação nos computadores do apartamento seguro de Munique, debateram a próxima jogada. Deveriam dar instruções a Becker para ligar a Radek e avisá-lo do atraso? E se Radek tivesse outros planos e decidisse adiar para outra altura? As equipes e veículos estavam nas posições finais. Um cancelamento temporário poderia pôr em risco a segurança operacional. Esperar, aconselhou Shamron, e esperar foi o que fizeram.
Pelas 14h30, as condições atmosféricas melhoraram. Kloten reabriu e o voo 1578 assumiu o seu lugar na fila ao fundo da pista. Shamron fez os cálculos. O voo para Viena levava menos de noventa minutos. Se descolassem em breve, talvez chegassem a tempo a Viena.
Às 14h25 o avião estava no ar, e o azar tinha sido evitado. Shamron informou a equipe de recepção no Aeroporto Schwechat em Viena que o embrulho estava a caminho.
A tempestade sobre os Alpes fez o voo para Viena bastante mais turbulento do que Becker teria preferido. Para acalmar os nervos, consumiu três garrafinhas miniatura de Stolichnaya e visitou a casa de banho duas vezes, tudo isto foi registrado por Zalma, que estava sentado três filas atrás. Navot, o retrato da concentração e serenidade, olhava pela janela para o mar de nuvens negras, a sua água com gás intata. Aterrissaram em Schwechat poucos minutos depois das quatro da tarde sob uma luz cinza sujo. Zalman seguiu-os pelo terminal até o controle de passaportes. Becker foi mais uma vez à casa de banho. Navot, com um movimento quase imperceptível dos olhos, ordenou a Zalman que fosse com ele. Depois de se aliviar, o banqueiro passou três minutos em frente ao espelho arranjando-se, uma quantidade de tempo fora do normal, pensou Zalman, para um homem virtualmente sem cabelo. O vigilante pensou em dar a Becker um pontapé no tornozelo para o apressar, mas decidiu não o perturbar. Afinal de contas, ele era um amador a agir sob coação.
Depois de passar pelo controle de passaporte, Becker e Navot dirigiram-se ao terminal de chegadas. Aí, entre a multidão, estava um especialista em vigilância, alto e magro chamado Mordecai. Vestia um desleixado terno preto e segurava um cartão onde se lia BAUER. O seu carro, um grande Mercedes sedã, estava à espera no estacionamento de curta duração. A dois lugares de distância estava um Audi comercial de três portas prateado. As chaves estavam no bolso de Zalman.
Zalman evitou aproximar-se deles durante a viagem de carro até Viena. Ligou para o apartamento seguro de Munique e, em poucas palavras, cuidadosamente escolhidas, informou Shamron que Navot e Becker estavam dentro do horário e procediam em direção ao alvo. Pelas 16h45, Mordecai chegou ao Canal do Danúbio. Pelas 16h50 atravessou a linha em direção ao Primeiro Bairro e estava no trânsito de hora de ponta ao longo da Ringstrasse. Virou à direita, para uma rua de pedra estreita, e logo na primeira à esquerda. Um momento mais tarde, parou em frente ao portão de ferro ornamentado de Erich Radek. Zalman ultrapassou pela esquerda e continuou a conduzir.
— FAZ SINAL DE LUZES — disse Becker — e o guarda-costas deixa entrar.
Mordecai seguiu a instrução. Durante breves segundos de tensão, o portão manteve-se imóvel; então ouviu-se um bater metálico agudo, seguido do zumbido de um motor.
Enquanto o portão abria lentamente, o guarda-costas de Radek apareceu na porta da frente, a luz intensa do candelabro brilhava sobre a sua cabeça e ombros como uma auréola. Mordecai esperou até o portão estar completamente aberto e avançou para a entrada em forma de ferradura.
Navot saiu primeiro, depois Becker. O banqueiro apertou a mão do guarda-costas e apresentou:
— O meu associado de Zurique, Herr Oskar Lange. O guarda-costas acenou e convidou-os a entrar com um gesto. A porta da frente fechou-se.
Mordecai olhou para o relógio: 16h58. Pegou no celular e ligou um número de Viena. — Vou chegar tarde para jantar — disse.
— Está tudo bem?
— Sim — disse ele. — Está tudo bem.
ALGUNS SEGUNDOS MAIS TARDE, em Munique, o sinal chegou à tela do computador de Shamron. Shamron olhou para o relógio.
— Quanto tempo lhes vais dar? — perguntou Carter.
— Cinco minutos — disse Shamron — e nem um segundo a mais.
O AUDI SEDÃ PRETO com uma antena alta montada na bagageira estava estacionado a algumas ruas de distância. Zalman estacionou atrás, saiu e caminhou até a porta do passageiro. Oded estava sentado ao volante, um homem compacto com olhos castanhos claros e um nariz achatado de pugilista. Zalman, enquanto se instalava ao seu lado, conseguia cheirar tensão na sua respiração. Zalman tinha a vantagem de ter estado em atividade toda a tarde; Oded tinha estado preso no apartamento seguro de Viena sem nada para fazer exceto imaginar as consequências de um fracasso. Um celular estava no assento, a ligação com Munique já estava estabelecida. Zalman conseguia ouvir a respiração uniforme de Shamron. Uma imagem formou-se na sua mente: uma versão mais jovem de Shamron marchando na sua direção sob uma chuva torrencial na Argentina, Eichmann descendo de um ônibus e caminhando para ele vindo da direção oposta. Oded ligou o carro. Zalman foi arrastado de volta ao presente. Olhou para o relógio no painel de instrumentos: 17:03...
A E461, MAIS conhecida pelos austríacos como a Brünnerstrasse, é uma estrada de duas faixas que vem do Norte de Viena e atravessa as onduladas colinas do Weinviertel, a região de vinhos austríaca. São oitenta quilômetros até a fronteira checa. Há uma passagem-de-nível, abrigada por um dossel em abóbada, chefiada por dois relutantes guardas em abandonar o conforto do seu abrigo de alumínio e vidro para levar a cabo qualquer inspeção dos veículos que passam. Do lado checo da passagem-de-nível, a inspeção de documentos de viagem leva normalmente um pouco mais de tempo, embora o tráfego vindo da Áustria seja normalmente recebido de braços abertos. A um quilômetro e meio para lá da fronteira, ancorada nas colinas da Morávia do Sul, fica a antiga cidade de Mikulov. É uma cidade fronteiriça, com as caraterísticas de cerco de uma cidade fronteiriça. E ajustava-se perfeitamente ao estado de espírito de Gabriel. Ele estava por trás de um parapeito de tijolo de um castelo medieval, bem por cima dos telhados de telha vermelha da velha cidade, por baixo de um par de pinheiros dobrados pelo vento. A chuva fria caía como lágrimas na superfície da sua gabardina de oleado. O seu olhar estendia-se colina abaixo, em direção à fronteira. Na escuridão, apenas as luzes do tráfego na autoestrada eram visíveis, luzes brancas surgindo na sua direção, luzes vermelhas afastando-se na direção da fronteira austríaca.
Olhou para o relógio. Eles estariam dentro da casa de Radek neste instante. Gabriel conseguia imaginar pastas abrindo-se, café e bebidas sendo servidas. E então outra imagem apareceu, uma fila de mulheres vestidas de cinza, caminhando ao longo de uma estrada com neve e ensopada de sangue. A sua mãe, vertendo lágrimas de gelo.
— O que vai dizer a seu filho sobre a guerra, judia?
— A verdade, Herr Sturmbannführer. Direi ao meu filho a verdade.
— Ninguém vai acreditar em você.
Ela não lhe disse a verdade, claro. Em vez disso tinha confiado a verdade ao papel e trancado nos arquivos de Yad Vashem. Talvez Yad Vasehm fosse o local ideal para ela. Talvez existam verdades que, de tão aterradoras, fiquem melhor se confinadas num arquivo de horrores, em quarentena, separadas das não infectadas. Ela não pôde contar que fora vítima de Radek, como Gabriel não podia dizer que era o carrasco de Shamron. Ela sempre soube, no entanto.
Ela conhecia o rosto da morte, e ela tinha visto a morte nos olhos de Gabriel. O telefone no bolso de seu casaco vibrou silenciosamente contra a anca. Ele levou-o lentamente à orelha e ouviu a voz de Shamron. Guardou o telefone no bolso e deixou-se estar por um momento, observando os faróis flutuando na sua direção através da negra planície austríaca.
— O que vai dizer quando estiver com ele? — perguntara Chiara.
A verdade, Gabriel pensava agora. Eu direi a verdade.
Começou a caminhada, descendo as estreitas ruas de pedra de uma cidade antiga, em direção ao escuro.
35
VIENA
UZI NAVOT SABIA como revistar uma pessoa. Klaus Halder era muito bom no seu trabalho. Começou no colarinho da camisa de Navot e terminou nos canhões das suas calças
Armani. Em seguida virou a atenção para a pasta. Trabalhou lentamente, como um homem com todo o tempo do mundo, e com uma atenção de monge para todos os detalhes. Quando a revista terminou finalmente, ele ajeitou o conteúdo com cuidado e colocou os trincos de volta no sítio.
— Herr Vogel vai vê-los agora — disse. — Sigam-me, por favor. Caminharam pelo corredor central, depois passaram por um par de portas duplas e entraram numa sala de visitas. Erich Radek, num casaco de linho grosso e gravata cor de ferrugem, estava sentado perto da lareira. Acolheu os convidados com um simples aceno da sua alongada cabeça, mas não se esforçou por levantar-se. Radek, pensou Navot, é um homem que costuma receber visitas sentado.
O guarda-costas deslizou suavemente para fora da sala e fechou as portas.
Becker, sorrindo, aproximou-se e apertou a mão de Radek. Navot não desejava tocar no assassino, mas dadas as circunstâncias não tinha outra escolha. A mão oferecida era fria e seca, o aperto firme e sem tremor. Era um aperto de mão para o testar. Navot sentia que tinha passado.
Radek estalou os dedos em direção às cadeiras vazias, em seguida a sua mão voltou para o apoio de copo no braço da cadeira. Começou a girá-lo para a frente e para trás, duas voltas para a direita, duas para a esquerda. Havia qualquer coisa no movimento que fazia azia ao estômago de Navot.
— Ouvi coisas muito boas sobre o seu trabalho, Herr Lange disse Radek subitamente. — Tem uma excelente reputação perante os seus colegas em Zurique.
— É tudo mentira, asseguro-lhe, Herr Vogel.
— É muito modesto. — Girou a bebida. — Você fez um trabalho para um amigo meu há alguns anos, um cavalheiro chamado Helmut Schneider.
E tu estás a tentar armadilhar-me, pensou Navot. Ele tinha-se preparado para um estratagema destes. O verdadeiro Oskar Lange tinha-lhe fornecido uma lista de clientes dos últimos dez anos para Navot memorizar. O nome Helmut Schneider não estava nela.
— Lidei com um bom número de clientes durante os últimos anos, mas temo que o nome Schneider não esteja entre eles. Talvez o seu amigo me tenha confundido com outra pessoa.
Navot olhou para baixo, abriu os trincos da sua pasta e levantou a tampa. Quando voltou a levantar o olhar, os olhos azuis de Radek estavam perfurantes nos seus e a sua bebida rodava no braço da cadeira. Havia uma tranquilidade assustadora nos seus olhos. Era como estar a ser estudado por um retrato.
— Talvez tenha razão. — O tom conciliatório de Radek não condizia com a sua expressão. — Konrad disse que precisava da minha assinatura nalguns documentos relacionados com a liquidação dos bens da conta.
— Sim, está correto.
Navot retirou um dossier da pasta e colocou a pasta no chão aos seus pés. Radek acompanhou a viagem da pasta para baixo e devolveu o seu olhar ao rosto de Navot. Navot levantou a capa do dossier e elevou o olhar. Abriu a boca para falar, mas foi interrompido pelo tocar do telefone. Agudo e eletrônico, soou aos ouvidos sensíveis de Navot como um grito num cemitério. Navot olhou para a mesa estilo Biedermeier, e o telefone tocou uma segunda vez. Começou a tocar uma terceira vez, mas ficou subitamente em silêncio, como se tivesse sido amordaçado a meio do grito. Navot conseguia ouvir Halder, o guarda-costas, falando numa extensão do corredor.
— Boa tarde. .. Não, peço desculpa, mas Herr Vogel está neste momento em reunião. Navot retirou o primeiro documento do dossier. Radek estava agora visivelmente distraído, o seu olhar distante. Estava a ouvir o som da voz do seu guarda-costas. Navot chegou-se à frente na cadeira e segurou o papel num ângulo que permitisse a Radek ver.
— Este é o primeiro documento que necessita...
Radek levantou a mão exigindo silêncio. Navot ouviu passadas no corredor, seguido do som de portas a abrir. O guarda-costas entrou na sala e dirigiu-se à beira de Radek.
— É Manfred Kruz — disse ele num sussurro capelista. — Ele quer-lhe dar uma palavra. Diz que é urgente e não pode esperar.
ERICH RADEK LEVANTOU-SE lentamente da cadeira e caminhou para o telefone.
— O que se passa Manfred?
— Os israelenses.
— Que têm eles?
— Tenho informações que indicam que um grande grupo de operacionais se reuniu em Viena nestes dias para te raptar.
— Essas informações estão confirmadas?
— Suficientemente confirmadas para concluir que já não é seguro permanecer em casa. Destaquei uma unidade da Staatspolizei para te apanhar e levar-te para um local seguro.
— Ninguém consegue entrar aqui Manfred. Limita-te a pôr um guarda armado fora da casa.
— Estamos a lidar com os israelenses, Herr Vogel. Eu quero-o fora da casa.
— Está bem, se insistes, mas diz à tua unidade para recuar. Klaus dá conta do recado.
— Um guarda-costas não é suficiente. Eu sou responsável pela sua segurança e quero-o sob proteção policial. Lamento, mas tenho de insistir. As informações que tenho são muito específicas.
— Quando é que os teus agentes chegam aqui?
— A qualquer momento. Prepare-se para sair.
Desligou o telefone e olhou para os dois homens sentados junto à lareira.
— Peço desculpas, cavalheiros, mas estou com muita pressa, é uma emergência. Temos de terminar isto em outra hora. — Voltou-se para seu guarda-costas.
— Abra os portões Klaus e arranje-me um casaco. Já.
OS MOTORES DO portão frontal funcionaram. Mordecai, sentado ao volante do Mercedes, olhou pelo espelho retrovisor e viu um carro entrar vindo da rua com uma sirene azul rodopiando no teto. Parou atrás dele e travou a fundo. Dois homens saíram e escalaram os degraus da frente. Mordecai lentamente ligou a ignição.
ERICH RADEK FOI para o corredor. Navot arrumou a sua pasta e levantou-se. Becker ficou congelado no lugar. Navot cravou os dedos por baixo do braço do banqueiro e levantou-o.
Seguiram Radek até o corredor. Luzes de emergência azuis piscavam pelas paredes e teto. Radek estava junto ao seu guarda-costas, falando-lhe baixo ao ouvido. O guarda-costas segurava um sobretudo e parecia tenso. Enquanto ajudava Radek a vestir o casaco, os seus olhos estavam em Navot.
Alguém bateu à porta, dois estrondos agudos ecoaram pelo teto alto e chão de mármore do corredor. O guarda-costas largou o sobretudo de Radek e rodou o trinco. Dois homens à paisana empurraram e entraram na casa.
— Está pronto Herr Vogel?
Radek acenou, em seguida voltou-se e olhou uma vez mais para Navot e Becker.
— Mais uma vez, por favor aceitem as minhas desculpas, cavalheiros. Peço imensa desculpa pelo incômodo.
Radek voltou-se na direção da porta com Klaus ao seu lado. Um dos agentes travou o caminho ao guarda-costas colocando-lhe uma mão no peito. O guarda-costas afastou-a com uma pancada.
— O que pensa que está fazendo?
— Herr Kruz deu-nos instruções especificas. Só devemos levar Herr Vogel sob proteção.
— Kruz nunca teria dado uma ordem dessas. Ele sabe que eu vou onde quer que ele vá. Foi sempre assim.
— Lamento, mas essas são as nossas ordens.
— Deixe-me ver o seu distintivo e a sua identificação.
— Não há tempo. Por favor, Herr Vogel. Venha connosco.
O guarda-costas recuou um passo e meteu a mão dentro do casaco. Conforme a arma ficou à vista, Navot lançou-se para a frente. com a mão esquerda, agarrou o pulso do guarda-costas e encostou-lhe a arma contra o abdômen. com a direita, deu-lhe dois fortes golpes de mão aberta na nuca. O primeiro atordoou Halder; o segundo fez os seus joelhos cederem. A sua mão relaxou e a Glock caiu no chão de mármore. Radek olhou para a arma e por um instante pensou em apanhá-la. Em vez disso, voltou-se, precipitou-se para a porta aberta do seu estúdio e fechou-a com um estrondo.
Navot tentou a maçaneta. Trancada.
Deu uns passos atrás e lançou o ombro contra a porta. A porta desfez-se e ele tropeçou para dentro da sala escura. Levantou-se cambaleante e viu que Radek já tinha fugido através da falsa frente de uma estante de livros e estava dentro de um pequeno elevador do tamanho de uma cabine telefônica.
Navot saltou para a frente enquanto a porta do elevador começou a fechar. Conseguiu enfiar os dois braços para dentro e agarrou Radek pela lapela do sobretudo. Quando a porta bateu contra o ombro esquerdo de Navot, Radek agarrou-lhe os pulsos e tentou libertar-se. Navot segurou firmemente.
Oded e Zalman vieram em seu auxilio. Zalman, o mais alto dos dois, alcançou por cima da cabeça de Navot e puxou a porta. Oded deslizando por entre as pernas de Navot aplicou pressão por baixo. Perante a investida, a porta finalmente deslizou e abriu.
Navot arrastou Radek para fora do elevador. Já não havia tempo para subterfúgios ou enganos. Navot tapou a boca do velho com a mão, Zalman segurou-lhe as pernas e levantou-o do chão. Oded encontrou o interruptor e apagou a luz.
Navot olhou para Becker.
— Entre no carro. Depressa, idiota.
Arrastaram Radek degraus abaixo em direção ao Audi. Radek puxava a mão de Navot, tentando libertar-se do tampão na boca e esperneava. Navot conseguia ouvir Zalman resmungar entre dentes. De alguma forma, mesmo no calor da batalha, ele conseguia resmungar em alemão.
Oded abriu a porta de trás antes de dar a volta e correr para o volante.
Navot empurrou primeiro a cabeça de Radek para o fundo e colou-o ao assento.
Zalman forçou sua entrada e fechou a porta. Becker entrou na parte de trás do Mercedes. Mordecai acelerou fundo, e o carro guinou para a rua, o Audi seguindo de perto.
O corpo de Radek ficou subitamente quieto. Navot retirou a mão e o austríaco sorveu ofegante o ar.
— Está me machucando — disse. — Não consigo respirar.
— Eu deixo você se levantar, mas tem que prometer que se comporta bem. Não vai haver mais tentativas de fuga. Promete?
— Deixe eu me levantar. Está me esmagando, estúpido.
— Eu deixo, velho. Faça apenas um favor primeiro. Diga seu nome, por favor.
— Sabe meu nome. É Vogel. Ludwig Vogel.
— Não, não, esse nome não. Seu nome verdadeiro.
— Esse é o meu nome verdadeiro.
— Quer se levantar e deixar Viena como um homem, ou vou ter de ir sentado em cima de você o tempo todo?
— Eu quero me sentar. Está me machucando, maldição!
— Diga apenas seu nome.
Ficou em silêncio por um momento; então murmurou:
— Meu nome é Radek.
— Desculpe, mas não consegui ouvir. Pode dizer seu nome outra vez, por favor? Desta vez alto.
Inspirou profundamente e o seu corpo ficou rígido, como se estivesse em sentido em vez de deitado no banco de trás de um carro.
— MEU NOME É STURMBANNFÜHRER ERICH RADEK!
NO APARTAMENTO SEGURO de Munique, a mensagem apareceu na tela do computador de Shamron: O EMBRULHO FOI RECEBIDO. Carter deu-lhe uma palmada nas costas.
— Raios me partam! Eles o pegaram. Eles o pegaram mesmo.
Shamron levantou-se e caminhou até o mapa.
— Pegá-lo foi a parte mais fácil da operação, Adrian. Tirá-lo de lá vai ser outra história.
Olhou para o mapa. Oitenta quilômetros até a fronteira tcheca. Corra, Oded, pensou ele. Dirija como nunca dirigiu em sua vida.
36
VIENA
ODED JÁ TINHA guiado por aquela estrada uma dúzia de vezes, mas nunca como esta, nunca com a sirene a gritar e a rodopiar no teto, e nunca com os olhos de Erich Radek fitando os seus pelo retrovisor. A retirada do centro da cidade tinha corrido melhor do que esperado. O tráfego de fim de tarde era intenso, mas não ao ponto de não se conseguir desviar para dar passagem ao barulho e à luz da sua sirene. Radek amotinou-se duas vezes. Cada insurreição foi implacavelmente dominada por Navot e Zalman.
Circulavam agora em direção a norte pela E461. O tráfego de Viena tinha ficado para trás, a chuva caía continuamente e gelava nos cantos do para-brisas. Uma tabuleta passou de repente: REPÚBLICA CHECA 42 KM. Navot olhou prolongadamente sobre o ombro, então, em hebraico, instruiu Oded para desligar a sirene.
— Para onde vamos? — perguntou Radek respirando com dificuldade. — Para onde me estão a levar? Onde?
Navot não disse nada, como Gabriel tinha ordenado.
— Deixem-no fazer perguntas até ficar com a cara azul — Gabriel tinha dito.
— Simplesmente não lhe deem a satisfação de uma resposta. Deixem a incerteza afligir-lhe a mente. Era isso que ele faria se os papéis estivessem invertidos. Então Navot observou as povoações que passavam pela janela Mistelbach, Wilfersdorf, Erdberg — e pensou apenas numa coisa, o guarda-costas que ele tinha deixado inconsciente no corredor da entrada da casa de Radek em Stöbbergasse.
Poysdorf apareceu perante eles. Oded acelerou pela vila, em seguida virou para uma estrada de duas faixas e seguiu-a em direção a leste por entre pinheiros cobertos de neve.
— Para onde vamos? Para onde me estão a levar?
Navot já não conseguia suportar mais as suas perguntas em silêncio.
— Vamos para casa — disse de repente. — E tu vens connosco. Radek traçou um sorriso gelado.
— Cometeste apenas um erro esta noite, Herr Lange. Devias ter morto o meu guarda-costas quando tiveste oportunidade.
KLAUS HALDER ABRIU um olho, em seguida o outro. A escuridão era absoluta. Deixou-se estar deitado imóvel por um momento tentando determinar a posição do seu corpo. Tinha caído para a frente, com os braços para os lados, e a sua face direita estava pressionada contra o mármore frio. Tentou levantar a cabeça, um relâmpago de dor lancinante abateu-se-lhe sobre o pescoço. Lembrou-se então do instante em que tinha acontecido. Estava a tentar alcançar a arma quando levou duas pancadas por trás. Fora o advogado de Zurique, Oskar Lange. Obviamente que Lange não era um simples advogado. Ele estava a tramar alguma, como Halder temia desde o início.
Colocou-se de joelhos e sentou-se encostado à parede. Fechou os olhos e esperou que a sala parasse de girar, então esfregou a parte de trás da cabeça. Tinha um inchaço do tamanho de uma maçã. Ergueu o pulso esquerdo e lançou um olhar ao painel luminoso do seu relógio de pulso: 17:57. Quando tinha acontecido? Poucos minutos depois das cinco, 17h10 no máximo. A não ser que tivessem um helicóptero à espera na Stephansplatz, o mais certo era ainda estarem na Áustria.
Apalpou o bolso da frente do seu casaco esportivo e descobriu que o celular ainda lá estava. Tirou-o e ligou. Dois toques. Uma voz familiar.
— Aqui Kruz.
TRINTA SEGUNDOS MAIS TARDE, Manfred Kruz bateu com o telefone e avaliou suas opções. A resposta mais óbvia seria fazer soar o alarme e alertar todas as unidades policiais do país que o velho fora sequestrado por agentes israelenses, fechar as fronteiras e os aeroportos. Óbvia, sim, mas muito perigosa. Uma jogada dessas iria levantar muitas questões desconfortáveis. Porque foi Herr Vogel raptado? Quem é ele realmente? A candidatura de Peter Metzler seria esquadrinhada, assim como a carreira de Kruz. Mesmo na Áustria, tais assuntos assumiam vida própria, e Kruz tinha visto muitos para saber que o inquérito não terminaria à porta de Vogel.
Os israelenses sabiam que ele ficaria incapacitado, e tinham escolhido bem o momento. Kruz tinha de pensar numa maneira sutil de intervir, alguma maneira de impedir os israelenses sem destruir tudo no processo. Alcançou o telefone e marcou.
— Daqui Kruz. Os americanos informaram-nos que um possível grupo da al-Qaeda está em trânsito de automóvel pelo país esta tarde. Eles suspeitam que os membros da al-Qaeda possam estar a viajar com simpatizantes europeus para melhor se misturarem no ambiente. A partir deste momento estou a ativar a rede de alerta terrorista. Aumentem a segurança nas fronteiras, aeroportos e estações de trem para Nível Dois.
Desligou e olhou pela janela. Tinha atirado uma bóia ao velho. Perguntou a si mesmo se ele estaria em condições de a agarrar. Kruz sabia que se conseguisse, seria confrontado com um outro problema em breve: o que fazer com a equipe de rapto israelense. Levou a mão ao bolso do paletó e retirou um pedaço de papel.
— Se ligar para este número, quem vai atender?
— A violência.
Manfred Kruz alcançou o seu telefone.
O RELOJOEIRO, DESDE seu regresso a Viena, dificilmente encontrava razão para sair do santuário da sua pequena loja no Bairro Stephansdom. As frequentes viagens tinham-no deixado com um enorme número de peças acumulado que requeriam a sua atenção, incluindo um relógio regulador vienense, estilo Biedermeier, fabricado pelo famoso relojoeiro Vienense Ignaz Marenzeller em 1840. A caixa de mogno estava nas condições originais, embora o painel prateado de uma só peça tivesse requerido muitas horas de restauração. O movimento Biedermeier original feito à mão, com a sua corda de 75 dias, estava exposto em várias peças cuidadosamente arranjadas na superfície da sua mesa de trabalho.
O telefone tocou. Ele baixou o volume do seu leitor de CD portátil e o Concerto Brandenburg N°. 4 em Sol de Bach diminuiu até um sussurro. Uma escolha banal, Bach, mas o Relojoeiro considerava a precisão de Bach um acompanhamento perfeito para a tarefa de desmantelar e reconstruir o movimento de um relógio antigo. Alcançou o telefone com a mão esquerda. Uma onda de dor percorreu-lhe o comprimento do braço, uma lembrança dos seus abusos em Roma e na Argentina. Levou o receptor à orelha e prendeu-o contra o ombro.
— Sim — disse distraidamente. As suas mãos estavam de volta ao trabalho.
— O seu número foi-me dado por um amigo comum.
— Estou a ver — disse o Relojoeiro de modo descomprometido. Como posso ajudá-lo?
— Não sou eu quem precisa de ajuda. É o nosso amigo. O Relojoeiro pousou as ferramentas.
— O nosso amigo? — perguntou.
— Realizou trabalhos para ele em Roma e na Argentina. Presumo que saiba a quem me estou a referir?
O Relojoeiro sabia de fato. Então, o velho induzira-o em erro e por duas vezes colocara-o em situações de campo comprometedoras. Agora tinha cometido o pecado operacional fatal de dar o seu nome a um estranho. Era óbvio que estava em sarilhos. O Relojoeiro suspeitou que tivesse alguma coisa a ver com os israelenses. Decidiu que agora seria um excelente momento para acabar com a relação.
— Peço desculpa — disse — mas penso que me está a confundir com outra pessoa. O homem do outro lado da linha tentou contra-argumentar. O Relojoeiro desligou o telefone e aumentou o volume do seu leitor de CD até que o som de Bach encheu a oficina.
NO APARTAMENTO SEGURO de Munique, Carter desligou o telefone e olhou para Shamron, que ainda estava de pé em frente ao mapa, como se imaginasse o progresso de Radek para norte em direção à fronteira checa.
— Era da nossa filial de Viena. Estão a monitorizar a rede de comunicações austríaca. Parece que Manfred Kruz elevou o alerta terrorista para Nível Dois.
— Nível Dois? O que significa isso?
— Significa que é possível que haja alguma dificuldade na fronteira.
A ASSISTÊNCIA ESTAVA na reentrância de um ribeiro gelado. Havia dois veículos, um Opel sedã e uma van Volkswagen. Chiara estava ao volante da Volkswagen, faróis apagados, motor desligado, o peso reconfortante de uma Beretta no colo. Não havia outros sinais de vida, não havia luzes na vila, não havia o ruído do tráfego na autoestrada, apenas o suave bater da neve no teto da van e o assobiar do vento pelos juncos dos abetos. Olhou por cima do ombro e olhou para o compartimento traseiro da Volkswagen. Tinha sido preparado para a chegada de Radek. O forro da traseira tinha sido colocado. Por baixo do forro estava um compartimento especialmente construído para escondê-lo durante a passagem pela fronteira. Ele ficaria confortável lá, mais confortável do que merecia.
Olhou pelo vidro. Não havia muito para ver, a estrada estreita subindo pela escuridão em direção a um cume à distância. Então, subitamente, houve uma luz, um brilho branco e limpo que iluminou o horizonte e transformou as árvores em minaretes pretos. Por alguns segundos, foi possível ver a neve, rodopiando como uma nuvem de insetos pelo ar varrido pelo vento. Então os faróis da frente surgiram. O carro contornou a colina, e as luzes espalharam-se por ela, atirando as sombras das árvores para um lado, depois para o outro. Chiara segurou a Beretta com a mão e deslizou o dedo indicador para dentro da guarda do gatilho.
O carro derrapou até parar junto à van. Ela olhou para o banco de trás e viu o assassino, sentado entre Navot e Zalman, rígido como um comissário à espera da limpeza de sangue. Ela rastejou até o compartimento traseiro e fez uma verificação final.
— TIRE O SOBRETUDO — ordenou Navot.
— Por quê?
— Porque estou mandando.
— Eu tenho o direito de saber por quê.
— Não tem direito nenhum! Faça apenas o que digo.
Radek permaneceu imóvel. Zalman puxou a lapela do casaco, mas o velho cruzou os braços com força junto ao peito. Navot suspirou pesadamente. Se o velho bastardo quer um combate final, vai consegui-lo. Navot abriu-lhe os braços à força enquanto Zalman puxava a manga direita, depois a esquerda. O casaco depois; em seguida Zalman rasgou a manga da camisa e expôs a pele caída do braço. Navot exibiu uma seringa, cheia de sedativo.
— Isso é para seu próprio bem — disse Navot. — É moderado e não tem efeito durante muito tempo. Vai fazer sua viagem muito mais suportável. Sem claustrofobia.
— Nunca tive claustrofobia.
— Não me interessa.
Navot espetou a agulha no braço de Radek e despejou o conteúdo. Passados alguns segundos, o corpo de Radek relaxou; em seguida a cabeça tombou para o lado e o queixo descaiu. Navot abriu a porta e saiu. Segurou o corpo amolecido de Radek debaixo dos braços e arrastou-o para fora do carro.
Zalman levantou-o pelas pernas e juntos carregaram-no como um morto de guerra para a lateral da van. Chiara estava agachada no interior, segurando uma máscara de oxigênio e outra de plástico transparente. Navot e Zalman deitaram Radek no chão da van; e Chiara colocou-lhe a máscara sobre o nariz e a boca. O plástico embaciou imediatamente, indicando que a respiração de Radek estava normal. Ela verificou-lhe o pulso. Regular e forte. Manusearam-no para dentro do compartimento e fecharam a tampa.
Chiara sentou-se ao volante e ligou o motor. Oded fechou-lhe a porta e deu uma pequena pancada com a mão no vidro. Chiara engatou a marcha e seguiu para a autoestrada. Os outros entraram no Opel e seguiram atrás dela.
CINCO MINUTOS MAIS TARDE, as luzes da fronteira apareceram como faróis no horizonte. Conforme Chiara se foi aproximando conseguiu ver uma pequena fila de trânsito com cerca de seis veículos de comprimento, esperando para atravessar. Havia dois guardas fronteiriços em evidência. Tinham as lanternas na mão e estavam a verificar passaportes e a espreitar pelas janelas. Ela olhou por cima do ombro. As portas do compartimento permaneciam fechadas. Radek estava em silêncio.
O carro em frente passou na inspeção e foi deixado seguir em direção ao lado checo. O guarda fronteiriço fez-lhe sinal para avançar. Ela baixou o vidro e sorriu.
— Passaporte, por favor.
Ela entregou. O segundo guarda tinha-se deslocado para o lado do passageiro da van, e ela conseguia ver o foco de luz da lanterna investigando o interior.
— Está tudo bem?
O guarda fronteiriço manteve os olhos na fotografia e não respondeu.
— Quando entrou na Áustria?
— Hoje.
— Onde?
— Pela Itália, em Tarvísio.
Ele dispensou um momento comparando o rosto dela com a fotografia do passaporte. Em seguida abriu a porta do motorista e com um gesto ordenou-lhe que saísse da van.
UZI NAVOT OBSERVOU a cena em primeira fila, no lugar do passageiro no banco da frente do Opel. Olhou para Oded e praguejou ligeiramente por entre os dentes. Em seguida ligou do celular para o apartamento seguro de Munique. Shamron atendeu ao primeiro toque.
— Temos um problema — disse Navot.
ELE ORDENOU que se colocasse na frente da van e apontou a lanterna para seu rosto. Através do brilho conseguia ver o segundo guarda fronteiriço abrindo a porta do passageiro da van. Forçou-se a olhar para o interrogador. Tentou não pensar na Beretta contra as suas costas. Ou em Gabriel, esperando do outro lado da fronteira em Mikulov. Ou Navot, Oded e Zalman observando impotentes do Opel.
— Para onde se dirige esta noite?
— Praga — disse ela.
— Por que vai para Praga?
Ela disparou-lhe um olhar: Não tem nada com isso. Então disse: — Vou visitar meu namorado.
— Namorado — repetiu ele. — O que seu namorado faz em Praga?
Ensina italiano, dissera Gabriel.
Ela respondeu à pergunta.
— Onde?
No Instituto de Estudos Linguísticos de Praga, tinha dito Gabriel. Mais uma vez, ela respondeu como Gabriel tinha instruído.
— E há quanto tempo ele é professor do Instituto de Estudos Linguísticos de Praga?
— Três anos.
— E vê-o com frequência?
— Uma vez por mês, às vezes duas.
O segundo guarda tinha entrado na van. Uma imagem de Radek passou-lhe pela mente, olhos fechados, máscara de oxigênio no rosto. Não acorde, pensou ela. Não se mexa. Não faça barulho. Aja decentemente, pelo menos uma vez em sua vida desprezível.
— E quando entrou na Áustria?
— Já disse isso.
— Diga outra vez, por favor.
— Hoje.
— A que horas?
— Não me lembro da hora.
— Era de manhã? Era de tarde?
— Tarde.
— Início da tarde? Fim da tarde?
— Início.
— Então ainda era dia?
Ela hesitou; ele pressionou-a.
— Sim? Ainda era dia?
Ela acenou. De dentro da van veio o som da porta traseira se abrindo. Ela se forçou a olhar diretamente para os olhos do interrogador. O seu rosto, escurecido pela irritante luz da lanterna, começou a parecer-se com Erich Radek, não a versão patética do Radek inconsciente na traseira da van, mas o Radek que arrastou uma criança chamada Irene Frankel das fileiras da marcha da morte de Birkenau em 1945 e a levou para uma floresta polonesa para um momento de tormento final.
— Diga as palavras, judia! Foi transferida para leste. Teve comida em abundância e cuidados médicos adequados. As câmaras de gás e o crematório são mentiras bolchevique-judaicas.
Eu consigo ser tão forte como você, Irene, pensou ela. Eu consigo passar por isso. Por você.
— Parou em algum lugar na Áustria?
— Não.
— Não aproveitou a oportunidade para visitar Viena?
— Já estive em Viena — disse ela. — Não me agrada.
Ele dispensou um momento examinando-lhe o rosto.
— É italiana?
— Tem meu passaporte na mão.
— Não estou falando de seu passaporte. Estou falando de sua etnia. Seu sangue. Descendência italiana ou imigrante do, digamos, Oriente Médio ou Norte de África?
— Sou italiana — assegurou ela.
O segundo guarda saiu da van e abanou a cabeça. O interrogador devolveu-lhe o passaporte.
— Peço desculpas pelo atraso — disse ele. — Tenha uma boa viagem.
Chiara sentou-se ao volante, engatou a marcha e passou a fronteira devagar. Desatou em lágrimas, lágrimas de alívio, lágrimas de raiva. No início tentou impedi-las, mas não conseguiu. A estrada ficou desfocada, as luzes traseiras transformaram-se em riscos vermelhos, e mesmo assim elas vieram.
— Por você, Irene — disse ela em voz alta. — Fiz isso por você.
A ESTAÇÃO DE trem de Mikulov fica no fim da cidade velha, onde as colinas encontram a planície. Há uma única plataforma, que suporta um quase constante ataque do vento que desliza pelos Cárpatos, e um melancólico estacionamento de gravilha, que se transforma num lago quando chove. Perto da bilheteira está uma parada de ônibus riscada de graffitis, e era ai, encostado ao lado de onde vem o vento, que Gabriel esperava, mãos mergulhadas nos bolsos do casaco impermeável.
Levantou o olhar quando a van entrou no estacionamento e esmagou a gravilha. Esperou até que parasse antes de sair da parada de ônibus para a chuva. Chiara esticou-se e abriu-lhe a porta. Quando a luz de teto se acendeu, ele viu que o seu rosto estava molhado.
— Estás bem?
— Estou ótima.
— Queres que eu conduza?
— Não, eu consigo.
— Tem certeza?
— Entra, Gabriel. Não suporto estar sozinha com ele.
Ele entrou e fechou a porta. Chiara deu meia volta e regressou à autoestrada. Um momento mais tarde estavam a ir para norte, para os Cárpatos. DEMORARAM MEIA HORA até chegar a Brno, mais uma hora para chegar a Ostrava. Gabriel abriu as portas do compartimento duas vezes para verificar Radek. Eram quase oito horas quando chegaram à fronteira polonesa. Sem verificações de segurança desta vez, sem fila de trânsito, apenas uma mão espetada fora do abrigo de tijolo acenando-lhes à passagem pela fronteira.
Gabriel rastejou para a traseira da van e puxou Radek do compartimento. Em seguida abriu uma gaveta e retirou uma seringa. Desta vez tinha uma dose moderada de estimulante, apenas o suficiente para o trazer de volta aos limites do consciente lentamente. Gabriel inseriu a seringa no braço de Radek, injetou a droga, em seguida retirou a agulha e esfregou a ferida com álcool. Os olhos de Radek abriram devagar. Observou o ambiente envolvente por um momento antes de se fixar no rosto de Gabriel.
— Allon? — murmurou ele pela máscara de oxigênio. Gabriel acenou lentamente.
— Para onde me levas? — Gabriel não respondeu. — Vou morrer? — perguntou, e, antes que Gabriel pudesse responder, voltou a ficar inconsciente.
37
POLÔNIA ORIENTAL
A BARREIRA ENTRE consciência e coma era como uma cortina de palco, pela qual ele conseguia passar à vontade. Só não sabia quantas vezes tinha passado por esta cortina. O tempo, como a sua velha vida, estavam perdidos para ele. A sua bela casa de Viena parecia a casa de outro homem, na cidade de outro homem. Algo tinha acontecido quando ele gritou o seu nome aos israelenses. Ludwig Vogel era agora um estranho para ele, um conhecido que ele já não via há muitos anos. Ele era Radek novamente. Infelizmente o tempo não tinha sido meigo com ele. O alto e belo homem de preto estava agora prisioneiro num corpo fraco e decadente.
O judeu tinha-o colocado no forro da traseira. As suas mãos e tornozelos estavam amarrados por uma grossa fita adesiva prateada, e estava amarrado com o cinto de segurança como um doente mental. Os seus pulsos serviam como o portal entre os dois mundos. Apenas tinha de os torcer num determinado ângulo para que a fita se cravasse dolorosamente na pele e passaria a cortina do mundo dos sonhos para o reino do real. Sonhos? Será apropriado chamar a tais visões sonhos? Não, eram demasiado exatas, descritivas demais. Eram memórias, sobre as quais ele não tinha controle, apenas o poder de as interromper por alguns momentos infligindo dor em si próprio com a fita adesiva do judeu.
O seu rosto estava perto da janela, e o vidro estava desobstruído. Ele era capaz, quando estava acordado, de ver a infindável região rural negra e as desoladoras vilas escurecidas. Também era capaz de ler os sinais na estrada. Não precisava dos sinais para saber onde estava. Algures, noutra vida, ele tinha sido o senhor da noite nesta terra. Ele lembrava-se desta estrada: Dachnow, Zukow, Narol... Ele sabia o nome da próxima vila, mesmo antes desta passar pela janela: Belzec...
Fechou os olhos. Porquê agora, passados tantos anos? Depois da guerra ninguém esteve assim tão interessado num mero oficial SD que servira na Ucrânia — ninguém exceto os russos, claro — e no momento em que o seu nome veio ao de cima com ligações à Solução Final, o General Gehlen tinha providenciado a sua fuga e o seu desaparecimento.
A sua antiga vida fora deixada para trás em segurança. Tinha sido perdoado por Deus e a sua Igreja e até mesmo pelos seus inimigos, que gananciosamente tiraram proveito dos seus serviços quando também eles se sentiram ameaçados pelo judaísmo-bolchevismo. Os governos rapidamente perderam o interesse em proceder contra os, assim chamados, criminosos de guerra, e amadores como Wiesenthal focaram a atenção em peixe graúdo como Eichmann e Mengele, ajudando de forma involuntária peixe mais miúdo como ele próprio a encontrar santuário em águas calmas. Houve um susto sério. Em meados dos anos setenta, um jornalista americano, um judeu, claro, que foi a Viena e colocou demasiadas questões. Na estrada que sai de Salzburg para sul ele mergulhou numa ravina, e a ameaça foi eliminada. Nessa altura agiu sem hesitar. Se tivesse lançado Max Klein numa ravina ao primeiro sinal de ameaça... Reparara nele naquele dia no Café Central, assim como nos dias que se seguiram. Os seus instintos tinham-lhe dito que Klein representava uma ameaça. Ele hesitou. Quando Klein levou a sua história ao judeu Lavon era demasiado tarde.
Passou pela cortina outra vez. Estava em Berlim, sentado no gabinete do oficial Gruppenführer Heinrich Müller, chefe da Gestapo. Müller tira um pedacinho de almoço dos dentes e sacode uma carta que acabou de receber de Luther no Ministério dos Negócios Estrangeiros. É 1942.
— Rumores das nossas atividades no Leste começaram a chegar aos ouvidos dos nossos inimigos. Também temos um problema com um dos locais na região de Warthegau. Queixas sobre uma contaminação qualquer.
— Se me permite colocar a questão óbvia, Herr Gruppenführer, que diferença faz se rumores chegam ao Oeste? Quem vai acreditar que tal coisa foi realmente possível?
— Rumores é uma coisa, Erich. Provas é outra.
— Quem vai descobrir provas? Algum servo polonês atrasado mental? Um vesgo abridor de valas ucraniano?
— Talvez os Ivans?
— Os russos? Como descobririam?
Müller ergueu uma mão de pedreiro. Discussão terminada. E então ele percebeu. A aventura russa do Führer não estava indo de acordo com os planos. A vitória no Leste já não estava assegurada.
Müller inclinou-se para a frente.
— Estou te mandando para o inferno Erich. Vou espetar essa sua cara nórdica tão fundo no esterco que nunca mais vai ver a luz do dia.
— Como poderei jamais agradecer, Herr Gruppenführer?
— Limpe a porcaria. Toda. Em toda parte. É sua responsabilidade garantir que se mantenha apenas um rumor. E quando a operação estiver concluída, quero que seja o único homem de pé.
Ele concordou. O rosto de Müller afastou-se pela noite polonesa. Estranho, não é? A sua verdadeira contribuição para a Solução Final não foi matar mas esconder e garantir a segurança, e no entanto estava com problemas agora, sessenta anos depois, por causa de um jogo idiota que fizera bêbado em Auschwitz num domingo. Aktion 1005? Sim, fora um projeto seu, mas nenhum sobrevivente judeu testemunharia sua presença na beira de uma vala comum, porque não havia sobreviventes. Ele geriu uma operação fechada. Eichmann e Himmler teriam sido aconselhados a fazer o mesmo. Foram tolos em permitir que tantos sobrevivessem.
Uma memória surgiu, janeiro de 1945, um rio de judeus frágeis dispersos ao longo de uma estrada muito parecida com esta. A estrada de Birkenau. Milhares de judeus, cada um com uma história para contar, cada um uma testemunha. Ele defendia a liquidação da população inteira do campo antes da evacuação. Não, disseram. Trabalho escravo era necessário com urgência no Reich. Trabalho? A maioria dos judeus que ele tinha visto sair de Birkenau mal conseguia andar, quanto mais manejar uma picareta ou uma pá. Eles não eram aptos para o trabalho, apenas para o massacre, e já tinha matado uns quantos, ele próprio. Por que, em nome de Deus, lhe tinham ordenado que limpasse as valas para depois permitir que milhares de testemunhas caminhassem para fora de um local como Birkenau?
Ele se esforçou por manter os olhos abertos, e observou pela janela. Estavam a conduzir ao longo das margens de um rio, perto da fronteira ucraniana. Ele conhecia este rio, um rio de cinzas, um rio de ossos.
Pensou quantas centenas de milhares estariam ali embaixo, sedimentadas no leito do Rio Bug.
Uma cidade adormecida: Uhrusk. Pensou em Peter. Ele tinha avisado que isto aconteceria.
— Se eu me tornar uma ameaça séria, posso ganhar a chancelaria — dissera Peter —, alguém vai tentar nops expor.
Ele sabia que Peter estava certo, mas também acreditava que conseguiria lidar com qualquer ameaça. Estava errado, e agora seu filho teria de enfrentar uma humilhação eleitoral inimaginável, tudo por sua culpa. Era como se os judeus tivessem levado Peter à beira de uma vala comum e apontado uma arma para sua cabeça. Ele pensou que conseguiria evitar que eles puxassem o gatilho, se conseguisse quebrar mais um acordo, engendrar uma fuga final.
E este judeu que olha fixamente para mim com aqueles rancorosos olhos verdes? O que espera ele que eu faça? Peça perdão? Vergue, chore e cuspa sentimentalismos? O que este judeu não percebe é que eu não sinto culpa pelo que fiz. Eu fui forçado pela mão de Deus e os ensinamentos da minha Igreja. Não nos disseram os padres que os judeus foram os assassinos de Deus? O Santo Padre e os seus cardeais não ficaram em silêncio quando sabiam perfeitamente o que estávamos a fazer no Leste? Será que este judeu espera que eu reprove assim sem mais nem menos e diga que foi um erro terrível? E porque olha ele para mim assim? Aqueles olhos eram-lhe familiares. Já os tinha visto em algum lado antes. Talvez fosse das drogas que lhe tinham dado. Ele não conseguia ter a certeza de nada. Ele nem tinha sequer a certeza de estar vivo. Talvez fosse a sua alma a fazer esta viagem ao longo do Rio Bug. Talvez estivesse no inferno.
Outra aldeola: Wola Uhruska. Ele conhecia a próxima vila. Sobibor...
Fechou os olhos, o veludo da cortina envolveu-o. É a Primavera de 1942, está a conduzir para fora de Kiev na estrada de Zhitomir com o comandante de uma unidade Einsatzgruppen ao lado. Estão a caminho para inspecionar uma ravina que se transformou num problema de segurança, um lugar que os ucranianos chamam Babi Yar. Quando chegam, o Sol já está a desaparecer no horizonte e está quase a anoitecer. Mesmo assim, há luz suficiente para observar o estranho fenômeno que acontece no fundo da ravina. A terra parece estar a debater-se com um ataque epiléptico. O solo tem convulsões, gás é disparado para o ar, juntamente com gêiseres de líquido pútrido. O fedor! Meu Deus, o fedor. Ele consegue cheirá-lo agora.
— Quando começou?
— Pouco depois do final do Inverno. O chão aqueceu, então os corpos aqueceram. Eles decompõem-se muito rapidamente.
— Quantos estão ali embaixo?
— Trinta e três mil judeus, alguns ciganos e prisioneiros soviéticos, assim por alto.
— Cerque a ravina inteira.
— No momento outros locais têm prioridade. Trataremos deste assim que possível.
— Que outros locais?
— Locais de que nunca ouviu falar: Birkenau, Belzec, Sobibor, Treblinka. Nosso trabalho aqui está feito. Esperam novas chegadas a qualquer momento, nos outros.
— O que vai fazer com este local?
— Abrimos as valas e queimamos os corpos, em seguida esmagamos os ossos e espalhamos os fragmentos nas florestas e nos rios.
— Queimar trinta mil cadáveres? Tentamos isso nas operações de massacre. Usamos lança-chamas, pelo amor de Deus. Cremações maciças a céu aberto não funcionam.
— Isso é porque nunca construíram uma pira em condições. Em Chelmno, eu provei que pode ser feito. Confie em mim, Kurt, um dia este local chamado Babi Yar será apenas um rumor, como os judeus que viviam aqui.
Ele torceu os pulsos. Desta vez a dor não foi suficiente para acordar. A cortina recusou-se a abrir. Permaneceu trancado numa prisão de memórias, vagueando por um rio de cinzas.
MERGULHARAM PELA noite adentro. O tempo era uma memória. A fita adesiva tinha-lhe cortado a circulação. Já não conseguia sentir as mãos e os pés. Sentia-se febrilmente quente num minuto e arrepiantemente frio no outro. Tinha a impressão de terem parado uma vez. Tinha cheirado gasolina. Estariam eles a encher o depósito? Ou seria apenas a memória de traves de caminho-de-ferro ensopadas em combustível?
Os efeitos da droga finalmente dissiparam. Ele estava agora acordado, alerta e consciente, e seguro de que não estava morto. Algo na postura do judeu lhe disse que estavam próximos do final da jornada. Tinham passado por Siedlce, depois, em Sokolow Podlaski, tinham virado para uma estrada de campo mais estreita. Dybow veio a seguir, depois Kosow Lacki. Saíram da estrada principal, para um trilho de terra batida. A van trepidava: dump-dump... dump-dump. A velha via-férrea, pensou, ainda aqui estava, claro. Seguiram o trilho até uma plataforma de abetos e bétulas e pararam um momento mais tarde num pequeno estacionamento alcatroado.
Um segundo carro entrou na clareira com os faróis apagados. Três homens saíram e aproximaram-se da van. Ele reconheceu-os. Eram os que o tinham tirado de Viena. O judeu colocou-se em cima dele e cuidadosamente cortou a fita adesiva e soltou as correias de couro.
— Venha — disse ele agradavelmente. — Vamos dar um passeio.
38
TREBLINKA, POLÔNIA
SEGUIRAM POR UM trilho por entre as árvores. Tinha começado a nevar. Os flocos caíam suavemente pelo ar tranquilo e assentavam-lhes nos ombros como cinzas de um
fogo distante. Gabriel segurava Radek pelo cotovelo. Os seus passos eram cambaleantes no início, mas em breve o sangue começou a fluir-lhe novamente aos pés e insistiu em caminhar sem o suporte de Gabriel. A sua respiração difícil gelava no ar. Cheirava a amargo e a medo.
Avançaram mais fundo para dentro da floresta. O trilho era arenoso e coberto por uma fina camada de faúlhas. Oded estava vários passos à frente, quase invisível através da queda de neve. Zalman e Navot caminhavam em formação atrás deles. Chiara tinha ficado para trás na clareira, vigiando os veículos. Fizeram uma pausa numa brecha nas árvores, de cerca de cinco metros de largura, estendendo-se pelo escuro. Gabriel iluminou-a com o foco de uma lanterna. No centro do corredor, em intervalos equidistantes, estavam várias pedras em pé. As pedras marcavam a linha da antiga vedação. Tinham chegado ao perímetro do campo. Gabriel desligou a lanterna e puxou Radek pelo cotovelo. Radek tentou resistir, mas tropeçou para a frente.
— Faça o que eu digo, Radek, e vai correr tudo bem. Não tente fugir, porque não há por onde escapar. Não vale a pena gritar por ajuda, porque ninguém vai ouvir seus gritos.
— Sente prazer em me ver com medo?
— Sinto nojo, para dizer a verdade. Não gosto nem de tocá-lo. Eu não gosto do som de sua voz.
— Então por que estamos aqui?
— Eu apenas quero que veja algumas coisas.
— Não há nada para ver aqui, Allon. Apenas um memorial polonês.
— Precisamente — Gabriel deu-lhe um puxão no cotovelo. — Venha, Radek. Mais depressa. Tem que andar mais depressa. Não temos muito tempo. Vai amanhecer em breve.
Um momento mais tarde, pararam de novo perante um caminho-de-ferro sem carris, o velho ramal que trouxera os trens da estação de Treblinka até o interior do campo. As traves tinham sido recriadas em pedra e estavam cobertas por neve recente. Seguiram os carris até o campo e pararam no sítio onde tinha estado a plataforma. Também ela estava representada em pedra.
— Lembra, Radek?
Ele ficou em silêncio, o queixo caído, a respiração áspera.
— Vá lá, Radek. Sabemos quem você é, nós sabemos o que fez. Desta vez não vai escapar. Não vale a pena entrar em jogos ou tentar negar alguma coisa. Não há tempo, a não ser que não queira salvar seu filho.
A cabeça de Radek girou lentamente. Os seus lábios comprimiram-se e o seu olhar endureceu.
— Faria mal ao meu filho?
— Na verdade, você fará por nós. Tudo o que temos a fazer é dizer ao mundo quem é o pai dele, e isso o destruirá. Foi por isso que plantou a bomba no escritório de Eli Lavon: para proteger Peter. Ninguém podia tocá-lo, não num lugar como a Áustria. A janela para você estava fechada há muito tempo. Estava seguro. A única pessoa que podia pagar um preço por seus crimes é seu filho. Foi por isso que tentou matar Eli Lavon. Foi por isso que assassinou Max Klein.
Voltou as costas a Gabriel e olhou para a escuridão.
— O que é que queres? O que queres saber?
— Conta-me como foi Radek. Eu já li sobre isso, eu vejo o memorial, mas não consigo imaginar como funcionou realmente. Como foi possível transformar em fumo um trem cheio de pessoas em apenas quarenta e cinco minutos? Quarenta e cinco minutos, porta a porta, não era disso que o staff das SS se costumava vangloriar por estes lados? Conseguiam transformar um judeu em fumo em quarenta e cinco minutos. Doze mil judeus por dia. Oitocentos mil no total.
Radek emitiu um riso fechado, um interrogador que não acreditava na afirmação do seu prisioneiro. Gabriel sentiu como se uma pedra tivesse sido posta sobre o seu coração.
— Oitocentos mil? Onde foste buscar um número desses?
— É a estimativa oficial do governo polonês.
— E espera que um bando de seres inferiores, como os poloneses, seja capaz de saber o que aconteceu nestes bosques? — A sua voz pareceu subitamente diferente, mais jovem e autoritária. — Por favor Allon, se vamos ter esta discussão, lidemos com os fatos e não com idiotice polonesa. Oitocentos mil? — Abanou a cabeça e efetivamente sorriu. Não, não foram oitocentos mil. O número real foi muito superior a isso.
UMA SÚBITA RAJADA de vento agitou as copas das árvores. Para Gabriel soou como o som dos rápidos de um rio. Radek estendeu a mão e pediu a lanterna. Gabriel hesitou.
— Não pensa que vou atacar você com isso, não?
— Eu sei de algumas coisas que fez.
— Isso foi há muito tempo.
Gabriel entregou-lhe a lanterna. Radek apontou o foco para a esquerda, iluminando um molho de árvores de folha permanente.
— Eles chamavam a esta área o campo de baixo. As casernas das SS eram ali mesmo. A vedação periférica passava mesmo por trás. Em frente, havia uma estrada alcatroada com arbustos e flores durante a Primavera e o Verão. Talvez te custe a acreditar, mas era na realidade bastante agradável. Não havia tantas árvores, claro. Plantamos as árvores depois de demolir o campo. Na altura eram apenas rebentos. Agora, estão completamente adultas, bem bonitas.
— Quantos SS?
— Normalmente cerca de quarenta. moças judias tratavam-lhes da limpeza, mas tinham polonesas para cozinhar, três moças locais que vinham das vilas em redor.
— E os ucranianos?
— Estavam aquartelados do lado oposto da estrada, em cinco casernas. A casa de Stangl era no meio, no cruzamento de duas estradas . Ele tinha um belo jardim. Foi desenhado para ele por um homem de Viena.
— Mas os recém-chegados nunca viram essa parte do campo?
— Não, não, cada parte do campo era cuidadosamente escondida da outra por vedações intercaladas com plantações de pinheiros. Quando chegavam ao campo, eles viam o que parecia ser uma normal estação de trem de campo, completa com um horário de partidas falso. Não havia partidas de Treblinka, claro. Apenas trens vazios partiam da estação.
— Havia aqui um edifício, não havia?
— Fora desenhado para parecer uma normal estação de trem, mas na realidade estava cheio de valores roubados de chegadas anteriores. Aquela seção ali era conhecida como o Largo da Estação. Ali havia o Largo da Recepção, ou o Largo da Triagem.
— Alguma vez viste a chegada dos transportes?
— Eu não tinha nada a ver com esse tipo de situação, mas sim, eu vi-os chegar.
— Havia dois procedimentos de chegada diferentes? Um para judeus da Europa Ocidental e outro para judeus do Leste?
— Sim, está correto. Os judeus da Europa Ocidental eram tratados com muita mentira e fraude. Não havia chicotes nem gritos. Era-lhes pedido educadamente que desembarcassem do trem. Pessoal médico de batas brancas estava à espera no Largo da Recepção para tratar dos doentes.
— Era tudo um estratagema, no entanto. Os velhos e os doentes eram levados e abatidos a tiro imediatamente.
Ele concordou.
— E os judeus do Leste? Como eram recebidos na plataforma?
— Eram recebidos por chicotes ucranianos.
— E depois?
Radek levantou a lanterna e apontou o foco a uma curta distância através da clareira.
— Havia uma cerca de arame farpado aqui. Para lá do arame existiam dois edifícios. Um era uma caserna para despir. No segundo edifício, judeus de trabalho cortavam o cabelo às mulheres. Quando terminavam, elas iam naquela direção. — Radek usou a lanterna para iluminar o caminho. — Havia aqui uma passagem, uma espécie de passagem de gado, com alguns metros de largura, arame farpado e ramos de pinheiro. Era conhecida como o tubo.
— Mas as SS tinham um nome especial para isso, não tinham?
Radek acenou.
— Estrada para o Paraíso.
— E onde ia dar a Estrada para o Paraiso?
Radek levantou o foco da sua luz.
— Para o campo de cima — disse. — O campo da morte.
PROSSEGUIRAM O CAMINHO até uma larga clareira polvilhada com centenas de pedregulhos, cada pedra representava uma comunidade judaica destruída em Treblinka. A pedra maior ostentava o nome Varsóvia. Gabriel olhou para lá das pedras, em direção ao céu, para leste. Começava a ganhar claridade.
— A Estrada para o Paraiso levava diretamente a um edifício de tijolo que albergava as câmaras de gás — disse Radek quebrando o silêncio. De repente parecia ansioso por falar. — Cada câmara tinha quatro metros por quatro metros. Inicialmente eram apenas três, mas em breve descobriram que precisavam de mais capacidade para satisfazer a procura. Foram acrescentadas mais dez. Um motor a gasóleo bombeava gases de monóxido de carbono para as câmaras. A asfixia demorava menos de trinta minutos. Depois disso os corpos eram retirados.
— E o que era feito com eles?
— Durante vários meses, foram enterrados ali fora, em grandes valas. Mas muito rapidamente as valas transbordaram e a decomposição dos corpos contaminou o campo.
— Foi quando chegou?
— Não de imediato. Treblinka era o quarto campo da nossa lista. Limpamos as valas de Birkenau primeiro, a seguir Belzec e Sobibor. Só chegamos a Treblinka em março de 1943. Quando eu cheguei... — a sua voz arrastou-se. — Terrível.
— O que fez?
— Abrimos as valas, claro, e retiramos os corpos.
— À mão?
Ele abanou a cabeça.
— Tínhamos uma escavadora mecânica. Acelerou bem o trabalho.
— A garra, não era assim que chamavam?
— Sim, era isso.
— E depois dos corpos serem retirados?
— Eram incinerados em grandes prateleiras de metal.
— Tinham um nome especial para as prateleiras, não tinham?
— Assadeiras — disse Radek. — Chamávamos de assadeiras.
— E depois dos corpos serem queimados?
— Esmagávamos os ossos e voltávamos a enterrá-los nas valas ou levávamos em carroças para despejar no rio Bug.
— E quando as valas antigas ficaram vazias?
— Depois disso, os corpos eram levados diretamente das câmaras de gás para as assadeiras. Funcionou assim até outubro desse ano, quando o campo foi fechado e todos os traços foram obliterados. Operou por pouco mais de um ano.
— E mesmo assim conseguiram assassinar oitocentos mil?
— Não foram oitocentos mil.
— Quantos foram então?
— Mais de um milhão. É qualquer coisa, não é? Mais de um milhão de pessoas, num lugar minúsculo como este, no meio de uma floresta polonesa.
GABRIEL TIROU A lanterna do rosto dele sacou a Beretta. Empurrou Radek com o cano. Caminharam ao longo de uma trilha, pelo campo de pedras. Zalman e Navot ficaram para trás no campo de cima. Gabriel conseguia ouvir os passos de Oded na gravilha atrás dele.
— Parabéns, Radek. Graças a você, é apenas um cemitério simbólico.
— Vai me matar agora? Não disse o que queria ouvir?
Gabriel empurrou-o pelo trilho.
— Você talvez tenha algum orgulho deste lugar, mas para nós é solo sagrado. Acha realmente que eu o poluiria com seu sangue?
— Então qual é o propósito disso? Por que me trouxe aqui?
— Você precisava ver isso mais uma vez. Visitar o local do crime para refrescar a memória e se preparar para o próximo testemunho. É assim que vai salvar seu filho da humilhação de ter tal homem na condição de pai. Vai para Israel pagar por seus crimes.
— Não foi meu crime! Eu não os matei! Eu apenas fiz o que Müller me ordenou. Eu limpei a porcaria!
— Teve sua cota de matança, Radek. Lembra do joguinho com Max Klein em Birkenau? E a marcha da morte? Também estava lá, não estava, Radek?
Radek reduziu o passo e voltou a cabeça. Gabriel deu-lhe um empurrão. Chegaram a um amplo declive retangular cheio de lascas de basalto negro, o local onde era a vala de cremação.
— Mate-me agora, maldição! Não me leve para Israel! Mate-me agora e acabe com isso. Aliás, é nisso que você é bom, não é, Allon?
— Não aqui — disse Gabriel. — Não neste lugar. Você nem sequer merece pôr os pés aqui, quanto mais morrer.
Radek caiu de joelhos defronte à vala.
— E se eu concordar em ir? Que destino me espera?
— A verdade o espera, Radek. Será posto perante o povo de Israel e confessará seus crimes. Seu papel na Aktion 1005. O massacre de prisioneiros em Birkenau. As mortes que infligiu durante a marcha da morte de Birkenau. Lembra das moças que assassinou, Radek?
Radek voltou a cabeça.
— Como é que...
Gabriel interrompeu-o.
— Não vai enfrentar julgamento por seus crimes, mas vai passar o resto da vida atrás das grades. Enquanto estiver na prisão, vai trabalhar com uma equipe de estudantes do Holocausto de Yad Vashem para compilar minuciosamente a história de Aktion 1005. Vais dizer aos que negam e aos que duvidam exatamente o que fizeste para esconder o maior caso de assassinato de massas da história. Vais dizer a verdade pela primeira vez na vida.
— Qual verdade, sua ou a minha?
— Só há uma verdade, Radek. Treblinka é a verdade.
— E o que é que eu ganho com isso?
— Mais do que mereces — disse Gabriel. — Não diremos nada sobre a ascendência duvidosa de Metzler.
— Estás disposto a aceitar um chanceler austríaco da extrema-direita para me apanhar?
— Algo me diz que Peter Metzler se vai tornar um grande amigo de Israel e dos judeus. Ele não vai querer fazer nada para nos irritar. Afinal de contas, nós teremos a chave para a sua destruição até muito depois de tu morreres.
— Como convenceste os americanos a trair-me? Chantagem, suponho: é essa a maneira judaica. Mas deve ter havido mais. Certamente juraram que nunca me dariam oportunidade de discutir a minha afiliação com a Organização Gehlen ou com a CIA. Suponho que a sua dedicação à verdade para por aí.
— Dá-me sua resposta Radek.
— Como posso confiar em ti, um judeu, que cumpras sua parte do acordo?
— Andaste a ler Der Sturmer outra vez? Vais confiar em mim porque não tens outra alternativa.
— E o que é que vai adiantar? Vai trazer de volta alguma das pessoas que aqui morreram?
— Não — concedeu Gabriel —, mas o mundo saberá a verdade, e tu vais passar os últimos anos de sua vida onde pertences. Aceita o acordo, Radek. Aceita pelo teu filho. Pensa nele como uma última fuga.
— Não ficará secreto para sempre. Um dia, a verdade sobreste caso vai vir ao de cima.
— Se calhar — disse Gabriel. — Suponho que não seja possível esconder a verdade para sempre.
A cabeça de Radek voltou-se lentamente e ele olhou para Gabriel com desdém.
— Se fosses um homem a sério, fazias tu mesmo. — Esboçou um sorriso trocista.
— Quanto à verdade, ninguém se importou enquanto este lugar estava operacional, e ninguém se vai importar agora.
Voltou-se e olhou para a vala. Gabriel guardou a Beretta no bolso e afastou-se. Oded, Zalman e Navot ficaram imóveis por trás dele no trilho. Gabriel passou por eles sem dizer uma palavra e dirigiu-se para baixo através do campo até a plataforma de caminho-de-ferro. Antes de virar para as árvores, parou por instantes para olhar sobre o ombro e viu Radek, segurando-se ao braço de Oded, pondo-se de pé devagar.
PARTE QUATRO
O prisioneiro de Abu Kabir
39
JAFFA, ISRAEL
HOUVE MUITA DISCUSSÃO sobre onde o manter cativo. Lev considerava-o um risco para a segurança e, como tal, queria mantê-lo sob custódia do Escritório. Shamron, como de costume, tomou a posição contrária, quanto mais não fosse por não querer ver os seus adorados serviços restringidos a gerir prisões. O primeiro-ministro, mesmo que a brincar, sugeriu que Radek fosse forçado a marchar para o Negev, para que os escorpiões e abutres tratassem dele. No fim, acabou por ser Gabriel a tomar a decisão. Segundo ele, para alguém como Radek, a pior punição seria a de ser tratado como um criminoso comum. Procuraram um local apropriado e concordaram em prendê-lo numa prisão policial, construída pelos ingleses durante o Mandato numa zona degradada de Jaffa, ainda hoje conhecida pelo seu nome árabe: Abu Kabir.
Passaram 72 horas para que a apreensão de Radek fosse tornada pública. O comunicado do primeiro-ministro foi conciso e propositadamente enganador. Foram tomadas muitas precauções para evitar embaraçar, sem necessidade, os austríacos. Segundo disse o primeiro-ministro, Radek foi descoberto a viver sob falsa identidade num pais não especificado. E após um período de negociações concordara vir de livre vontade para Israel. Segundo os termos do acordo, ele não seria julgado, uma vez que de acordo com a lei israelense, a única sentença possível seria a condenação à morte. Em vez disso, ele permaneceria constantemente sob a detenção do Estado e iria, de fato, dar-se como culpado dos seus crimes contra a humanidade ao trabalhar com uma equipe de historiadores em Yad Vashem e na Universidade Hebraica, com a finalidade de compilar a história definitiva da Aktion 1005.
Houve pouco rebuliço e muito menos excitação do que com a noticia que acompanhou o rapto de Eichmann. Na realidade, a noticia da captura de Radek foi sobreposta poucas horas depois pelo massacre de vinte e cinco pessoas num mercado de Jerusalém por um homem-bomba. Lev sentiu uma certa satisfação com o desenrolar dos acontecimentos, pois assim demonstrava o seu ponto de vista de que o Estado tinha mais com que se preocupar do que perseguir velhos nazistas. Começou a referir-se ao caso como "a asneira de Shamron", apesar de ele ter recuperado o seu devido nível hierárquico no serviço. Dentro do King Saul Boulevard, a captura de Radek pareceu reacender velhas fogueiras. Lev ajustou a sua postura de acordo com o estado de espirito geral mas era demasiado tarde. Todos sabiam que a prisão de Radek havia sido orquestrada pelo Memuneh e Gabriel e que Lev tinha tentado bloqueada a cada passo. O carisma de Lev junto dos soldados rasos caiu para níveis perigosamente baixos.
A pouco crível tentativa de manter secreta a identidade austríaca de Radek foi desfeita pelo vídeo da sua chegada a Abu Kabir. A imprensa de Vienna identificou rápida e corretamente o prisioneiro como sendo Ludwig Vogel, um empresário austríaco de renome. Teria ele de fato concordado deixar Viena voluntariamente? Ou teria sido, na verdade, raptado da sua residência fortificada no Primeiro Bairro? Nos dias que se seguiram, os jornais faziam alusões especulativas à sua misteriosa carreira e às suas ligações politicas. As investigações da imprensa aproximaram-se perigosamente de Peter Metzler. Renate Hoffman da Coligação para uma Áustria Melhor solicitou um inquérito oficial ao caso e sugeriu que Radek poderia ter ligações ao atentado a bomba ao Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra e à misteriosa morte de um judeu idoso chamado Max Klein. As suas exigências foram categoricamente ignoradas. O governo disse que o atentado fora obra de terroristas islâmicos. E quanto à infeliz morte de Max Klein, fora suicídio. Segundo o ministro da Justiça qualquer investigação complementar seria um desperdício de tempo.
O capítulo seguinte do caso Radek teria lugar, não em Viena, mas em Paris, onde um ex-agente do KGB com aspecto duvidoso surgiu na televisão francesa dizendo que Radek era o homem de Moscovo em Viena. Um antigo chefe de espionagem da Stasi, que se havia tornado um êxito literário na nova Alemanha, veio também reconhecer Radek.
De início, Shamron suspeitou que estas reivindicações faziam parte de uma campanha conjunta de desinformação com o fim de ilibar a CIA do vírus Radek: que era exatamente o que ele teria feito se os papéis estivessem invertidos. Depois, descobriu que, no interior da Agência, as sugestões de que Radek podia ter jogado para ambos os lados criaram algum pânico. Estavam a ser retirados arquivos dos arquivos mortos e a ser reunida à pressa uma equipe soviética de ajuda com elementos veteranos. Shamron divertia-se secretamente com a ansiedade dos seus colegas de Langley. Segundo Shamron, se se viesse a descobrir que Radek era um agente duplo seria muito justo. Adrian Carter solicitou autorização para interrogar Radek mal os historiadores tivessem terminado o seu trabalho. Shamron prometeu considerar o assunto com seriedade. O PRISIONEIRO DE Abu Kabir estava bastante alheio à tempestade criada à sua volta. A sua prisão era solitária, apesar de não ser demasiado árdua. Mantinha a cela e as roupas limpas, aceitava comida e pouco reclamava. Por muito que os guardas quisessem odiá-lo, não conseguiam. No fundo ele era um polícia e os seus carcereiros pareciam ver nele algo familiar. Tratava-os com cortesia e, como reação, era tratado com cortesia. Ele era, também, uma espécie de curiosidade. Eles haviam lido sobre homens como ele na escola e passavam à frente da sua cela a qualquer hora, apenas para o ver. Radek começou aos poucos a sentir-se como se fosse uma peça de exposição de um museu.
O seu único pedido foi o de lhe ser autorizado o acesso a um jornal todos os dias para se manter a par dos assuntos da atualidade. A questão foi levada até Shamron, que deu a sua autorização, desde que fosse um jornal israelense e não uma qualquer publicação alemã. Todas as manhãs o Jerusalém Post era-lhe entregue com a travessa do pequeno-almoço. Normalmente saltava as histórias sobre si mesmo — eram, aliás, muito incorretas — e dirigia-se diretamente à seção das notícias internacionais com a finalidade de acompanhar os desenvolvimentos das eleições austríacas.
Moshe Rivlin visitou Radek várias vezes para se preparar para o seu iminente depoimento. Foi decidido que as sessões seriam filmadas e transmitidas à noite na televisão israelense. Radek parecia estar cada vez mais agitado com a aproximação do dia da sua primeira aparição em público. Discretamente, Rivlin pediu ao chefe da prisão para manter o prisioneiro sob vigilância de suicídio. Foi plantado um guarda no corredor, junto às barras da cela de Radek. Ao princípio, Radek criou atritos com a vigilância adicional, mas passou rapidamente a apreciar a companhia.
Rivlin surgiu uma última vez na véspera da primeira sessão de depoimento de Radek. Passaram uma hora juntos; Radek estava preocupado e, pela primeira vez, nada cooperante. Rivlin arrumou os seus documentos e notas e pediu ao guarda para abrir a porta.
— Quero vê-lo — disse Radek de repente. — Pergunte se me daria a honra de me fazer uma visita. Diga-lhe que há algumas perguntas que eu quero fazer.
— Não posso prometer nada — disse Rivlin. — Não tenho ligações a...
— Pergunte, apenas — disse Radek. — O máximo que ele pode fazer é dizer não.
SHAMRON OBRIGOU Gabriel a permanecer em Israel até o primeiro dia de depoimento de Radek e Gabriel, apesar de estar ansioso por voltar a Veneza, aceitou relutante. Ele ficou no apartamento seguro perto das Portas de Zion e acordava todas as manhãs ao som dos sinos da igreja do bairro armênio. Sentava-se na sombra do terraço olhando as muralhas da Cidade Velha e desfrutava o seu tempo com café e jornais. Seguia de perto o caso Radek. Ficou contente por ver o nome de Shamron ligado à captura e não o seu. Gabriel vivia no estrangeiro, sob uma identidade falsa e não precisava que o seu verdadeiro nome fosse espalhado pela imprensa. Além disso, depois de tudo o que Shamron tinha feito pelo seu país, merecia um último dia de glória.
Conforme os dias passavam, lentamente, Gabriel percebeu que Radek parecia, cada vez mais, um estranho. Apesar de abençoado com uma memória quase fotográfica,
Gabriel lutava por se lembrar claramente da cara de Radek ou do som da sua voz. Treblinka parecia algo saído de um pesadelo. Perguntou-se se a sua mãe teria sentido o mesmo. Teria Radek permanecido nas divisões da sua memória como um convidado indesejado, ou teria ela forçado a sua memória para produzir a sua imagem na tela? Teria sido assim para todos os que se tinham cruzado com um Mal tão perfeito? Talvez assim se explicasse o silêncio que tinha dominado os sobreviventes. Talvez eles tivessem sido piedosamente libertados da dor das suas memórias, como meio de autopreservação. Uma ideia regressava-lhe constantemente ao pensamento: se, naquele dia na Polônia, Radek tivesse morto a sua mãe em vez das outras duas moças, ele nunca teria existido. Também ele começou a sentir a culpa dos sobreviventes.
Ele só tinha a certeza de uma coisa: ainda não estava pronto para esquecer. Assim, ficou contente quando um dos acólitos de Lev lhe ligou uma tarde a perguntar se ele estaria disposto a escrever uma história oficial do caso. Gabriel aceitou, desde que ele pudesse também criar uma versão não censurada dos acontecimentos, para ser guardada nos arquivos de Yad Vashem. Houve ainda alguma discussão sobre quando tal documento poderia ser tornado público. Foi então definida uma data de lançamento, quarenta anos, e Gabriel começou o trabalho.
Ele escreveu na mesa da cozinha, num computador portátil fornecido pelo Escritório. Todas as noites, trancava o computador num cofre de chão, escondido sob o sofá da sala de estar. Não tinha qualquer experiência de escrita, por isso, por instinto, fez a aproximação ao projecto como se de uma pintura se tratasse. Começou com um esboço de base, amplo e amorfo e então, lentamente, foi adicionando camadas de tinta. Usou uma paleta simples e a sua técnica de traço foi cuidada. com o passar dos dias, a cara de Radek voltou-lhe à memória com a clareza com que havia sido pintada pela mão da sua mãe.
Usualmente, trabalhava até o princípio da tarde. Depois fazia uma pausa e dava um passeio até o Hospital da Universidade de Hadassah, onde, após um mês de coma, Eli Lavon estava a mostrar sinais de querer regressar à consciência. Gabriel sentava-se junto de Lavon cerca de uma hora e falava-lhe do caso. Depois voltava ao apartamento e trabalhava até a noite.
No dia em que terminou o relatório, deixou-se ficar no Hospital até o princípio da noite e, por acaso, estava lá quando os olhos de Lavon se abriram. Lavon ficou a fixar o vazio por uns instantes; então a velha expressão inquisidora voltou-lhe ao olhar e divagou pelo ambiente desconhecido da sala do hospital até se fixar no rosto de Gabriel.
— Onde estamos? Viena?
— Jerusalém.
— O que é que estás aqui a fazer?
— Estou a trabalhar num relatório para o Escritório.
— Sobre o quê?
— Sobre a captura de um criminoso de guerra nazista chamado Erich Radek.
— Radek?
— Ele estava a viver em Viena sob o nome de Ludwig Vogel. Lavon sorriu.
— Conta-me tudo — murmurou, mas antes que Gabriel pudesse dizer uma palavra, ele já tinha adormecido outra vez.
Nessa noite, quando Gabriel voltou ao apartamento, a luz do atendedor de chamadas estava a piscar. Carregou no PLAY e a ouviu a voz de Moshe Rivlin.
— O prisioneiro de Abu Kabir quer falar com você. Eu mandava-o para o Inferno. Você é que sabe.
40
JAFFA, ISRAEL
O CENTRO DE DETENÇÕES era cercado por um alto muro cor de areia, com rolos de arame farpado no topo. Gabriel apresentou-se na entrada exterior no inicio da manhã seguinte e foi admitido sem demora. Para chegar ao interior, tinha de atravessar uma passagem vedada estreita, que lhe lembrava demasiado a Estrada para o Paraiso em Treblinka. Um guarda esperava-o na outra ponta. Silenciosamente, conduziu Gabriel pela porta de segurança e depois para uma sala de interrogatórios sem janelas, com paredes em blocos de betume. Radek estava sentado à mesa, imóvel, vestido com um terno escuro e gravata, para prestar depoimento. Estava algemado com os dedos cruzados sobre a mesa. Saudou Gabriel com um aceno de cabeça quase imperceptível, mas permaneceu sentado.
— Tire-lhe as algemas — disse Gabriel ao guarda.
— É contra as regras.
Gabriel olhou para o guarda e, pouco depois, as algemas tinham sido tiradas.
— Faz isso muito bem — disse Radek. — Isso foi mais uma artimanha psicológica sua? Está tentando demonstrar seu domínio sobre mim?
Gabriel puxou a cadeira de ferro e sentou-se.
— Não me parece que dadas as circunstâncias seja necessária uma demonstração dessas.
— Suponho que esteja certo — disse Radek. — Mesmo assim, admiro a forma como lidou com todo o caso. Eu gostaria de acreditar que teria feito as coisas assim tão bem.
— Para quem? — perguntou Gabriel. — Para os americanos, ou para os russos?
— Está se referindo às alegações feitas em Paris por aquele idiota do Belov?
— São verdadeiras?
Radek fitou Gabriel em silêncio e por breves segundos parte do velho olhar de aço regressou-lhe aos olhos azuis.
— Quando alguém esteve em jogo tanto tempo como eu estive, faz tantas alianças e envolve-se em tantas mentiras, que no fim é difícil saber onde é que a verdade e a mentira se separam.
— Belov parece ter certeza de que sabe a verdade.
— Sim, mas receio que seja apenas a certeza de um tolo. Sabe, é que Belov não estava em posição de saber a verdade. — Radek mudou de assunto. — Presumo que tenha visto os jornais desta manhã?
Gabriel acenou que sim.
— A margem de vitória dele foi maior que a esperada. Aparentemente, minha prisão teve algo a ver com isso. Os austríacos nunca gostaram de ver estranhos se metendo em seus assuntos.
— Não está se vangloriando, está?
— Claro que não — disse Radek. — Estou apenas com pena de não ter negociado com mais dureza em Treblinka. Talvez não devesse ter aceite tão facilmente. Não tenho tanta certeza de que a campanha do Peter pudesse ter descarrilhado com as revelações do meu passado.
— Há coisas que são politicamente incômodas, mesmo num pais como a Áustria
— Você nos subestima, Allon.
Gabriel deixou cair algum silêncio entre eles. Já estava a começar a arrepender-se da decisão de ter vindo.
— Moshe Rivlin disse que queria me ver — disse com desprezo. — Não tenho muito tempo.
Radek endireitou-se na cadeira.
— Estava pensando se poderia me fazer a cortesia profissional de responder a algumas perguntas.
— Isso depende das perguntas. Você e eu estamos em profissões diferentes, Radek.
— Sim — disse Radek. — Eu era um agente do serviço secreto americano e você é um assassino.
Gabriel levantou-se para ir embora. Radek levantou a mão.
— Espere — disse. — Sente-se. Por favor.
Gabriel voltou a sentar-se.
— O homem que ligou para minha casa na noite do sequestro...
— Quer dizer, de sua prisão?
Radek baixou a cabeça.
— Está bem, minha prisão. Presumo que era um impostor?
Gabriel acenou que sim.
— Ele era muito bom. Como ele conseguiu imitar Kruz tão bem?
— Não espera que eu responda a isso, Radek. — Gabriel olhou para o relógio. — Espero que não me tenha feito vir até Jaffa só para me fazeres uma pergunta.
— Não — disse Radek. — Há mais uma coisa que eu gostaria de saber. Quando estávamos em Treblinka, disse que eu tinha tomado parte na evacuação de prisioneiros de Birkenau.
Gabriel interrompeu-o. — Será que podemos deixar os eufemismos de vez, Radek? Não foi uma evacuação. Foi uma marcha da morte.
Radek manteve-se em silêncio por um momento.
— Disse também que eu tinha assassinado pessoalmente alguns prisioneiros.
— Eu sei que assassinou pelo menos duas moças — disse Gabriel. — Tenho certeza de que deve ter havido mais.
Radek fechou os olhos e acenou lentamente com a cabeça que sim.
— Houve mais — disse, distante. — Muitos mais. Lembro-me desse dia como se tivesse sido na semana passada. Eu já sabia há algum tempo que o fim estava próximo, mas ver aquela coluna de prisioneiros marchando em direção ao Reich... Foi quando eu soube que era o Götterdämmerung. Era, realmente, o Crepúsculo dos Deuses.
— E então começou a matá-los?
Ele acenou de novo.
— Eles tinham me confiado a missão de guardar seu terrível segredo e estavam deixando vários milhares de testemunhas saírem vivas de Birkenau. Deve imaginar como eu me senti.
— Não — disse Gabriel com honestidade. — Nem consigo começar a imaginar como deve ter se sentido.
— Houve uma moça — disse Radek. — Lembro-me de ter perguntado o que ela diria aos filhos sobre a guerra. Ela disse que lhes diria a verdade. Ordenei que mentisse. Ela se recusou. Matei duas outras moças e, mesmo assim, ela continuava a me desafiar. Por algum motivo, deixei-a ir. Parei de matar prisioneiros depois disso. Ao olhá-la nos olhos, percebi que não valia a pena.
Gabriel baixou os olhos e fixou as mãos para evitar morder a isca de Radek.
— Presumo que esta mulher seja sua testemunha? — perguntou Radek.
— Sim, é ela.
— É engraçado — disse Radek — mas ela tem seus olhos.
Gabriel levantou o olhar. Hesitou e depois disse: — É o que me dizem.
— É sua mãe?
Mais uma hesitação, depois a verdade.
— Diria que sinto muito — disse Radek. — Mas sei que as minhas desculpas não significam nada para você.
— Tem razão — disse Gabriel. — Não diga.
— Então foi por ela que fez isso?
— Não — disse Gabriel. — Foi por todos eles.
A porta se abriu. O guarda entrou e disse que estava na hora de seguir para Yad Vashem. Radek levantou-se devagar e esticou as mãos. Os seus olhos permaneceram firmes no rosto de Gabriel enquanto as algemas eram colocadas nos seus pulsos. Gabriel acompanhou-o até a entrada e ficou a vê-lo dirigir-se pela passagem, até a parte de trás de uma van que o esperava. Já tinha visto o suficiente. Agora só queria esquecer.
APÓS DEIXAR ABU KABIR, Gabriel foi até Safed para visitar Tziona. Almoçaram num pequeno restaurante de espetadas no Bairro dos Artistas. Ela tentou conversar com ele sobre o caso Radek, mas Gabriel, afastado da presença do assassino há apenas duas horas, não estava com disposição para discuti-lo ainda mais. Obrigou Tziona a jurar segredo quanto ao envolvimento dele no caso e depois mudou de assunto de repente.
Discutiram arte durante algum tempo, depois política e finalmente o estado da vida de Gabriel. Tziona tinha conhecimento de um apartamento vazio a apenas alguns quarteirões do dela. Era grande o suficiente para albergar um Estúdio e era abençoado com a melhor iluminação da Galileia de Cima. Gabriel prometeu pensar no assunto, mas Tziona sabia que ele estava apenas a apaziguá-la. O desconforto havia voltado aos seus olhos. Ele estava pronto para partir.
Enquanto bebiam o café, ele disse-lhe que tinha encontrado um lugar para algum do trabalho da sua mãe.
— Onde?
— O Museu da Arte do Holocausto em Yad Vashem. Os olhos de Tziona inundaram-se de lágrimas.
— Que perfeito — disse ela.
Depois do almoço subiram as escadas de pedra até o apartamento de Tziona. Ela abriu o armário e cuidadosamente retirou os quadros. Passaram uma hora a escolher vinte das melhores peças para Yad Vashem. Tziona encontrou outras duas telas mostrando a imagem de Erich Radek. Perguntou a Gabriel o que queria que ela fizesse com elas.
— Queima-as — respondeu ele.
— Mas, provavelmente, valem muito dinheiro agora.
— Não me interessa o quanto valem — disse Gabriel. — Eu nunca mais quero ver a cara dele.
Tziona ajudou-o a transportar os quadros para o carro dele. Arrancou para Jerusalém sob um céu carregado de nuvens. Dirigiu-se primeiro a Yad Vashem. O conservador recebeu os quadros e apressou-se para ir assistir ao início do depoimento de Erich Radek. como o resto do país. Gabriel conduziu pelas ruas silenciosas até o Monte das Oliveiras. Pôs uma pedra na campa da sua mãe e recitou-lhe as palavras de luto Kaddish. Fez o mesmo na campa do seu pai. Depois, dirigiu-se para o aeroporto e apanhou o voo da tarde para Roma.
41
VENEZA * VIENA
NA MANHÃ SEGUINTE, na sestière de Cannaregio, Francesco Tiepolo entrou na Igreja de San Giovanni Crisóstomo e atravessou lentamente a nave. olhou para a Capela de Saint Jerome e viu luzes acesas por detrás da lona que cobre a plataforma de trabalho. Aproximou-se lentamente, agarrou no andaime com a sua mão, grande como a pata de um urso, e abanou-o violentamente. O restaurador levantou a sua viseira de lupa e fitou-o como um gárgula.
— Bem-vindo a casa, Mário — disse Tiepolo para cirna. — Estava a começar a ficar preocupado com você. Por onde andaste?
O restaurador baixou a viseira e virou o seu olhar de volta para o Bellini.
— Tenho andado a recolher centelhas, Francesco.
A recolher centelhas. Tiepolo tinha o bom senso suficiente para não fazer mais perguntas. Apenas lhe interessava ter o restaurador finalmente de volta a Veneza. — Quanto tempo até terminares?
— Três meses — disse o restaurador. — Talvez quatro.
— Três seria melhor.
— Sim, Francesco. Eu sei que três meses seria melhor. Mas se continuas a abanar a minha plataforma, nunca mais vou acabar.
— Não estás a planejar fazer mais recados, ou estás, Mário?
— Só um — disse, com o pincel pousado em frente da tela. — Mas não vou demorar. Prometo.
— Isso é o que dizes sempre.
A ENCOMENDA CHEGOU por um estafeta motorizado à Relojoaria, no Primeiro Bairro de Viena, exatamente três semanas depois. O Relojoeiro recebeu a encomenda pessoalmente. Deixou sua assinatura nos papéis do correio e deu-lhe uma pequena gorjeta pelo incômodo. Depois, levou o embrulho para a oficina e colocou-o sobre a mesa.
O estafeta montou em sua moto e afastou-se rapidamente, reduzindo por instantes no fim da rua, apenas o suficiente para fazer sinal à mulher sentada ao volante do Renault sedã. A mulher teclou um número no celular e apertou SEND. Pouco depois, o Relojoeiro respondeu.
— Acabei de lhe enviar um relógio — disse ela. — Recebeu-o?
— Quem fala?
— Sou uma amiga de Max Klein — disse ela baixinho. — E de Eli Lavon. E de Reveka Gazit. E de Sarah Greenberg.
Ela baixou o telefone e pressionou rapidamente quatro números seguidos, virando em seguida a cabeça a tempo de ver a brilhante bola de fogo vermelha emergindo da fachada da loja do Relojoeiro.
Afastou-se da calçada, mãos trêmulas no volante e dirigiu para a Ringstrasse. Gabriel tinha abandonado sua moto e esperava-a na esquina. Ela parou o carro o tempo suficiente para ele entrar, depois virou para a larga avenida e desapareceu no trânsito da tarde. Um carro da Staatspolizei passou por eles a alta velocidade na direção contrária. Chiara manteve os olhos na estrada.
— Você está bem?
— Acho que vou vomitar.
— Sim, eu sei. Quer que eu dirija?
— Não, eu consigo.
— Devia ter me deixado enviar o sinal da detonação.
— Não queria que se sentisse responsável por mais uma morte em Viena. — Ela limpou uma lágrima da face. — Pensou neles quando ouviu a explosão? Pensou em Leah e Dani?
Ele hesitou, depois abanou a cabeça.
— Pensou em quê?
Ele chegou-se a ela e limpou-lhe outra lágrima.
— Em você, Chiara — disse ele, suavemente. — Pensei apenas em você.
NOTA DO AUTOR
Morte em Viena completa um ciclo de três romances sobrem os assuntos inacabados do Holocausto. A pilhagem de arte pelos nazistas e a colaboração de bancos suíços servem de pano de fundo para O Assassino Inglês. O papel da Igreja Católica no Holocausto e o silêncio do Papa Pio XII inspiraram O Confessor. Morte em Viena, como os seus predecessores, é vagamente baseada em fatos reais. Heinrich Gross foi de fato um médico na notória clínica de Spiegelgrund durante a guerra, e a descrição da pouco empenhada tentativa austríaca de o julgar em 2000 é inteiramente exata. Nesse mesmo ano, a Áustria foi abanada por alegações afirmando que agentes da polícia e dos serviços de segurança trabalhavam para Jörg Haider e o seu Partido da Liberdade de extrema-direita para ajudar a desacreditar críticos e oponentes políticos.
Aktion 1005 foi o verdadeiro nome de código do programa nazista para ocultar as provas do Holocausto e destruir os restos mortais de milhões de judeus. O líder da operação, um austríaco chamado Paul Blobel, foi condenado em Nuremberg pelo seu papel nos assassinatos em massa dos Einsatzgruppen e condenado à morte. Enforcou-se na prisão de Landsberg em Junho de 1951, nunca foi detalhadamente questionado sobre o seu papel como comandante da Aktion 1005.
O bispo Alois Hudal foi de fato o reitor do Pontifício Santa Maria dell'Anima e ajudou centenas de criminosos de guerra nazistas a fugir da Europa, incluindo o comandante de Treblinka, Franz Stangl. O Vaticano afirma que o bispo Hudal agia sem a aprovação ou o conhecimento do Papa ou outro agente sênior da Cúria.
A Argentina, claro, foi o destino final de milhares de criminosos de guerra procurados. É possível que um pequeno número ainda lá resida nos dias de hoje. Em 1994, o antigo oficial das SS, Erich Priebke, foi descoberto a viver livremente em Bariloche por uma equipe de reportagem da ABC. Evidentemente Priebke sentia-se tão seguro em Bariloche que, em entrevista ao correspondente da ABC, Sam Donaldson, admitiu de livre vontade o seu papel central no massacre das Grutas Ardeatinas em março de 1944. Priebke foi extraditado para Itália, julgado e condenado a prisão perpétua, embora lhe tenha sido permitido cumprir a pena em "prisão domiciliária". Durante vários anos de manobras legais e apelos, a Igreja Católica permitiu a Priebke viver num mosteiro nas imediações de Roma.
Olga Lengyel, no seu testemunho 1947, memória de uma sobrevivente em Auschwitz, escreveu: "Certamente todos aqueles cujas mãos estiveram direta, ou Indiretamente manchadas com o nosso sangue devem pagar pelos seus crimes. Menos do que isso seria um ultraje contra milhões de mortes inocentes." O seu apaixonado apelo por justiça, no entanto, passou largamente despercebido. Apenas uma minúscula percentagem daqueles que levaram a cabo a Solução Final ou tiveram um papel auxiliar ou colaboracionista enfrentaram punição pelos seus crimes. Dezenas de milhar encontraram santuário em terras estrangeiras, incluindo nos Estados Unidos; outros regressaram simplesmente a casa e prosseguiram com as suas vidas. Alguns arranjaram emprego na rede de serviços secretos do General Reinhard Gehlen patrocinada pela CIA. Que impacto tiveram homens como estes na conduta da política de relações internacionais da América durante a Guerra-Fria? A resposta talvez nunca seja inteiramente conhecida.
30
VIENA
MEIA-NOITE NO Primeiro Bairro, uma calma de morte, um silêncio que só Viena consegue produzir, um majestoso vazio. Kruz achava reconfortante. Mas o sentimento não durou muito. Era raro o velho telefonar-lhe para casa, e Kruz nunca tinha sido arrastado da cama a meio da noite para uma reunião. Duvidava que as noticias fossem boas.
Olhou para o fundo da rua e não viu nada fora do normal. Uma olhadela para o retrovisor confirmou que não tinha sido seguido. Saiu e caminhou até o portão da imponente casa de pedra do velho. No piso térreo, luzes brilhavam por trás das cortinas fechadas. No segundo piso brilhava uma única luz. Kruz tocou à campainha. Tinha a sensação de estar a ser observado, qualquer coisa imperceptível, como um bafo na nuca. Olhou por cima do ombro. Nada.
Alcançou novamente a campainha, mas antes que a pudesse pressionar, um zumbido soou e a barra da fechadura saltou para trás. Empurrou o portão e atravessou o pátio frontal. Quando chegou ao pórtico, viu a porta aberta e um homem de paletó aberto e gravata solta. Não se esforçava minimamente para esconder o coldre de couro preto que continha uma pistola Glock. Kruz não estava alarmado com a visão; ele conhecia bem o homem. Era um antigo agente da Staatspolizei chamado Klaus Halder. Tinha sido Kruz a contratá-lo para guarda-costas do velho. Halder acompanhava normalmente o velho quando este saia ou quando esperava visitas em casa. A sua presença à meia-noite não era, como o telefonema para a casa de Kruz, um bom sinal.
— Onde está ele?
Halder olhou para o chão sem dizer uma palavra. Kruz desapertou a gabardina e entrou no estúdio do velho. A parede falsa estava afastada para o lado. O pequeno elevador estilo cápsula estava à espera. Entrou e o pressionar de um botão enviou-o lentamente para baixo. As portas abriram alguns segundos mais tarde, revelando uma pequena câmara subterrânea decorada com o dourado dos gostos barrocos do velho. Os americanos tinham-na construído para ele, para que conduzisse reuniões importantes sem medo que os russos pudessem estar à escuta. Construíram também a passagem, aquela alcançável através de uma porta de aço inoxidável com uma fechadura de combinação. Kruz era uma das poucas pessoas em Viena que sabia para onde a passagem conduzia e quem tinha vivido na casa do outro lado.
O velho estava sentado numa pequena mesa, uma bebida à sua frente. Kruz percebeu que ele estava inquieto, porque estava a girar o copo, duas voltas para a direita, duas para a esquerda. Direita, direita, esquerda, esquerda. Um estranho hábito, pensou Kruz. Ameaçador como o diabo. Calculou que o velho o tivesse apanhado numa vida anterior, noutro mundo. Uma imagem formou-se na mente de Kruz: um comissário russo acorrentado a uma mesa de interrogatório, o velho sentado do outro lado, vestido de preto dos pés à cabeça, girando a sua bebida e olhando para a sua presa com aqueles olhos azuis insondáveis. Kruz sentiu o seu coração dar um solavanco. Os pobres coitados estavam provavelmente cagados de medo mesmo antes de as coisas se tornarem duras.
O velho levantou o olhar, o girar do copo parou. O seu olhar calmo fixou a camisa de Kruz. Kruz olhou para baixo e viu que tinha os botões desalinhados. Tinha-se vestido no escuro para não acordar a mulher. O velho apontou para uma cadeira vazia. Kruz arranjou a camisa e sentou-se. O girar do copo recomeçou, duas voltas para a direita, duas para a esquerda. Direita, direita, esquerda, esquerda.
Falou sem saudar ou sem introdução. Era como se estivessem a continuar uma conversa interrompida por alguém que bate à porta.
— Durante as passadas setenta e duas horas — disse o velho foram planejados dois atentados contra a vida do israelense, o primeiro em Roma, o segundo na Argentina. Infelizmente o israelense sobreviveu a ambos. Em Roma, foi aparentemente salvo pela intervenção de um colega dos serviços secretos israelenses. Na Argentina, as coisas foram mais complicadas. Há provas que sugerem o envolvimento dos americanos.
Kruz, naturalmente, tinha perguntas. Em circunstâncias normais teria segurado a língua e esperado que o velho terminasse. Agora, trinta minutos depois de ter sido retirado da cama, não mostrou nenhuma da sua normal paciência.
— O que estava o israelense a fazer na Argentina?
O rosto do velho pareceu gelar, e a sua mão ficou imóvel. Kruz tinha transposto a linha, a linha que separava o que ele sabia do passado do velho daquilo que jamais saberia. Sentiu o peito encolher debaixo da pressão do olhar fixo. Não era todos os dias que se conseguia enfurecer um homem capaz de orquestrar, em setenta e duas horas e em continentes diferentes, duas tentativas de homicídio.
— Não é necessário que saibas por que razão o israelense esteve na Argentina, ou mesmo que lá tenha estado. O que precisas de saber é que este assunto deu uma reviravolta perigosa.
O girar do copo voltou.
— Como já acreditavas, os americanos sabem tudo. A minha verdadeira identidade, o que eu fiz durante a guerra. Não havia maneira de o esconder. Éramos aliados. Trabalhamos juntos na grande cruzada contra os comunistas. No passado, sempre contei com a sua discrição, não por algum sentido de lealdade para comigo, mas por simples medo de embaraço. Eu não tenho ilusões, Manfred. Sou como uma prostituta para eles. Viraram-se para mim quando estavam sozinhos e necessitados, mas agora que a guerra-fria acabou, sou como uma mulher que eles preferiam esquecer. E se agora estão de alguma forma a cooperar com os israelenses... — deixou a frase por terminar. — Estás a ver o que quero dizer, Manfred?
Kruz acenou.
— Presumo que saibam sobre Peter?
— Eles sabem tudo. Eles têm o poder de me destruir, e ao meu filho, mas apenas se estiverem dispostos a suportar a dor de uma ferida auto-infligida. Eu costumava estar seguro de que eles nunca se virariam contra mim. Agora, já não tenho certeza.
— O que queres que eu faça?
— Mantém sob vigilância constante as embaixadas israelense e americana. Designa vigilância física a todo o pessoal dos serviços secretos. Controla os aeroportos e estações de trem. Contata, também, os teus informadores nos jornais. Eles podem recorrer à imprensa. Não quero ser apanhado desprevenido.
Kruz olhou para a mesa e viu o seu próprio reflexo na superfície polida.
— E quando o ministro me perguntar por que dedico tantos recursos aos americanos e aos israelenses? O que digo?
— Preciso lembrar o que está em jogo, Manfred? O que dirá ao ministro é problema seu. Apenas faça o que digo. Não vou deixar Peter perder estas eleições. Entendeu?
Kruz olhou para os impiedosos olhos azuis e viu mais uma vez o homem vestido de preto dos pés à cabeça. Fechou os olhos e concordou com um movimento de cabeça.
O velho levou o copo aos lábios e, antes de beber, sorriu. Era tão agradável como uma súbita racha numa placa de vidro. Alcançou o bolso de peito do casaco, exibiu um pedaço de papel, e lançou-o sobre o tampo da mesa. Kruz olhou para ele enquanto deslizava, em seguida levantou o olhar.
— O que é isto?
— É um número de telefone. Kruz não tocou no papel.
— Um número de telefone?
— Nunca se sabe o que pode resultar de uma situação destas. Poderá ser necessário recorrer à violência. É possível que eu possa não estar em condições de ordenar tais medidas. Nesse caso, Manfred, a responsabilidade cai sobre ti.
Kruz pegou no pedaço de papel e levantou-o entre os seus dois dedos indicadores.
— Se ligar para este número, quem vai atender?
O velho sorriu.
— A violência.
31
ZURIQUE
HERR CHRISTIAN ZIGERLI, coordenador de eventos especiais do Dolder Grand Hotel, era como o próprio hotel: digno e pomposo, resoluto e discreto, um homem que apreciava o seu lugar de destaque na vida porque lhe permitia olhar para os outros de cima. Era também um homem que não gostava de surpresas. Normalmente, exigia setenta e duas horas de aviso prévio para reservas especiais e conferências, mas quando a Heller Enterprises e a Systech Wireless manifestaram vontade de conduzir as negociações finais da fusão no Dolder, Herr Zigerli concordou abdicar das setenta e duas horas de previsão em troca de uma sobretaxa de quinze por cento. Ele podia ser atencioso quando queria, mas ser atencioso, como todo o resto no Dolder, tinha um preço exorbitante.
A Heller Enterprises era a licitante por isso cabia-lhe tratar das reservas: não o próprio velho Rudolf Heller, claro, mas uma vistosa assistente pessoal italiana de nome Elena. Herr Zigerli tinha tendência a formar uma ideia sobre as pessoas rapidamente. Ele dizia que qualquer outro hoteleiro que fosse bom faria o mesmo. Não gostava de italianos de uma maneira geral, e a agressiva e exigente Elena rapidamente ganhou um lugar de destaque na sua lista de clientes pouco considerados. Ela falava alto ao telefone, um crime capital segundo ele, e parecia acreditar que só por gastar grandes quantidades de dinheiro do seu patrão tinha direito a privilégios especiais. Ela parecia conhecer bem o hotel. Fato estranho, já que Herr Zigerli tinha memória de elefante e não se lembrava dela como hóspede no Dolder. As suas exigências eram minunciosamente especificas. Queria quatro suítes contiguas perto do terraço com vista para o campo de golfe e para o lago. Quando Zigerli a informou que não seria possível — duas mais duas, ou três mais uma, mas não quatro seguidas — perguntou se os hóspedes podiam ser recolocados para a acomodar. Lamento, disse o hoteleiro, mas o Dolder Grand não tem o hábito de transformar hóspedes em refugiados. Ela decidiu optar por três suítes contiguas a uma quarta mais ao fundo do corredor.
— As delegações vão chegar às duas da tarde de amanhã — disse ela. — E gostariam de um almoço de trabalho leve.
Seguiram-se mais dez minutos de discussão sobre o que constituía um "almoço de trabalho leve".
Quando o menu ficou completo, Elena atirou mais uma exigência. Ela chegaria quatro horas antes das delegações, acompanhada pelo chefe de segurança da Heller, para inspecionar os quartos. Assim que as inspeções estivessem terminadas, não seria permitida a entrada de pessoal do hotel, exceto se acompanhados pela segurança da Heller. Herr Zigerli suspirou profundamente e concordou, em seguida desligou o telefone e, com a porta do seu gabinete fechada e trancada, fez uma série de exercícios de respiração para acalmar os nervos.
A manhã das negociações amanheceu cinza e fria. Os torreões majestosos do Dolder furavam o cobertor de nevoeiro gelado, e o asfalto perfeito da entrada brilhava como granito preto polido. Herr Zigerli estava de guarda no lobby, mesmo por trás das reluzentes portas de vidro, pés à largura dos ombros, mãos de lado, preparado para a batalha. Ela vai atrasar-se, pensou. Atrasam-se sempre. Ela vai precisar de mais suites. Ela vai querer mudar o menu. Ela vai ser perfeitamente horrível.
Um Mercedes sedã preto deslizou até a entrada e parou à porta. Herr Zigerli olhou discretamente para o relógio de pulso. Precisamente dez horas. Impressionante. O paquete abriu a porta traseira e uma lustrosa bota preta emergiu — Bruno Magli, reparou Zigerli — seguido por um torneado joelho e coxa. Herr Zigerli balançou para a frente nas pontas dos pés e alisou o cabelo sobre a zona careca. Já tinha visto muitas belas mulheres pairando pela famosa entrada do Dolder Grand, mesmo assim, poucas a tinham passado com mais graça e estilo que a encantadora Elena da Heller Enterprises. Ela tinha o cabelo acastanhado, preso por um gancho na nuca, e pele da cor do mel. Os seus olhos castanhos salpicados de dourado pareciam ter ganho ainda mais brilho quando lhe apertou a mão. A sua voz, tão alta e exigente pelo telefone, era agora suave e arrebatadora, assim como o seu sotaque italiano. Ela largou-lhe a mão e voltou-se para o acompanhante pouco sorridente.
— Herr Zigerli, este é o Oskar. O Oskar é segurança.
Aparentemente, o Oskar não tinha apelido. Nem precisava, pensou Zigerli. Ele tinha a constituição de um lutador de wrestling, com cabelo ruivo claro e sardas vagas espalhadas pelas largas bochechas. Herr Zigerli, um observador treinado da condição humana, viu qualquer coisa de familiar em Oskar. Um colega de tribo, por assim dizer. Ele conseguia imaginá-lo há dois séculos atrás, nas roupas de um lenhador, caminhando pesadamente por um trilho pela Floresta Negra. Como todos os bons seguranças, Oskar deixou os olhos falarem por si, e os seus olhos disseram a Herr Zigerli que ele estava ansioso por começar o trabalho.
— Eu levo-os aos seus quartos — disse o hoteleiro. — Por favor sigam-me. Herr Zigerli decidiu levá-los pela escada em vez do elevador. Era um dos mais finos atributos do Dolder, e Oskar, o lenhador, não parecia ser do tipo que prefere esperar pelos elevadores quando há um lanço de escadas para subir. Os quartos eram no quarto piso. No patamar, Oskar estendeu a mão para receber os cartões eletrônicos.
— A partir daqui é conosco se não se importa. Não é necessário mostrar-nos o interior dos quartos. Já todos estivemos em hotéis antes.
Uma piscadela cúmplice, uma palmadinha no ombro.
— Indique-nos apenas para onde é. Ficamos bem.
De fato, ficarão, pensou Zigerli. Oskar era um homem que inspirava confiança a outros homens. Mulheres também, Zigerli suspeitou. Ponderou se a deliciosa Elena — ele já começava a pensar nela como a sua Elena — seria uma das conquistas de Oskar. Colocou os cartões eletrônicos na palma da mão de Oskar e indicou-lhes o caminho.
Herr Zigerli era um homem de muitas máximas : "Um cliente sossegado é um cliente satisfeito" estava entre as suas preferidas. E a partir daí interpretou o subsequente silêncio no quarto piso como prova que Elena e o seu amigo Oskar estavam satisfeitos com as acomodações. Isto, por sua vez, satisfazia Herr Zigerli. Ele agora gostava de fazer Elena feliz. Conforme foi continuando pelo resto da manhã, ela estava-lhe na cabeça, como o traço de essência que se lhe tinha colado à mão.
Ele encontrou-se ansioso por algum problema, alguma queixa disparatada que requeresse contato com ela. Mas não houve nada, apenas o silêncio da perfeição. Ela tinha o Oskar agora. Ela não tinha necessidade do coordenador de eventos especiais do melhor hotel da Europa. Herr Zigerli, uma vez mais, tinha feito o seu trabalho bem demais.
Não ouviu nada deles, nem os viu, até as duas da tarde quando se reuniram na recepção e formaram uma improvável comissão de boas-vindas para as delegações que chegavam. Havia agora neve a cair no pátio frontal. Zigerli acreditava que o mau tempo apenas realçava o encanto do hotel: um abrigo da tempestade, como a própria Suíça.
A primeira limusina parou na entrada e largou dois passageiros. Um era o próprio Herr Rudolf Heller, um homem baixo e velho, vestindo um dispendioso terno preto e gravata prateada. Os seus óculos ligeiramente fumados sugeriam um problema na visão; o seu passo rápido e impaciente deixava a impressão de que, apesar da idade avançada, ele era um homem capaz de cuidar de si próprio. Herr Zigerli deu-lhe as boas-vindas ao Dolder e apertou-lhe a mão. Parecia feita de pedra. Estava acompanhado pelo carrancudo Herr Keppelmann. Vinte e cinco anos mais novo que Heller, cabelo curto, grisalho nas têmporas, olhos muito verdes. Herr Zigerli já tinha visto uma boa quantidade de guarda-costas no Dolder, e Herr Keppelmann parecia encaixar no perfil. Calmo, mas vigilante, silencioso como um rato de sacristia, seguro no passo e forte. Os olhos cor de esmeralda eram serenos, mas em constante movimento. Herr Zigerli olhou para Elena e reparou que o seu olhar estava fixado em Herr Keppelmann. Talvez ele se tivesse enganado sobre Oskar. Talvez o taciturno Keppelmann fosse o homem mais sortudo do mundo.
Os americanos chegaram a seguir: Brad Cantwell e Shelby Somerset, o CEO e COO da System Communications, Inc., de Reston, Virgínia. Notava-se sofisticação que Zigerli não costumava ver em americanos. Não eram exageradamente amigáveis, nem estavam a bramir para os celulares quando entraram na recepção.
Cantwell falou alemão assim como Herr Zigerli e evitou cruzar o olhar. Somerset era o mais afável dos dois. O seu tom aristocrático, o blazer azul bastante viajado e a gravata às riscas ligeiramente amarrotada identificavam-no como um yuppie Oriental.
Herr Zigerli fez alguns comentários de boas-vindas, e depois recuou calmamente para segundo plano. Era algo que ele fazia excepcionalmente bem. Enquanto Elena conduzia o grupo em direção à escadaria, ele deslizou para seu gabinete e fechou a porta. Um impressionante grupo de homens, pensou. Ele esperava que grandes coisas saíssem deste empreendimento. O seu papel no assunto, embora menor, foi executado com precisão e competência serena. Nos dias de hoje, tais atributos tinham pouco valor, mas eram a moeda do reino miniatura de Herr Zigerli. Ele suspeitava que os homens da Heller Enterprises e System Communications provavelmente sentiam o mesmo.
NO CENTRO DE ZURIQUE, numa rua calma perto do local onde as águas verdes do Rio Limmat desaguam no lago, Konrad Becker estava a encerrar o seu banco privado por aquele dia quando o telefone na sua mesa tocou com suavidade. Tecnicamente, ainda faltavam cinco minutos para a hora de fecho, mas estava tentado a deixar o gravador atender. Backer sabia por experiência que só clientes problemáticos telefonavam tão tarde, e o seu dia já tinha sido difícil o suficiente. Em vez disso, como um bom banqueiro suíço, alcançou o receptor e levou-o à orelha sem pensar.
— Becker and Puhl.
— Konrad, é Shelby Somerset. Como é que estás?
Becker engoliu em seco. Somerset era o nome do americano da CIA: pelo menos, Somerset era como ele dizia que se chamava. Becker duvidava seriamente que fosse o seu nome verdadeiro.
— O que posso fazer por si, senhor Somerset?
— Como entrada podes deixar-te de formalismos, Konrad.
— E como prato principal?
— Podes descer a escada, ir até a Talstrasse e entrar no Mercedes que está lá à tua espera.
— E porque quereria eu fazer isso?
— Eu preciso de te ver.
— Onde é que o Mercedes me vai levar?
— A um sítio agradável, garanto-te.
— E como devo ir vestido?
— Traje executivo serve perfeitamente. E, Konrad?
— Sim, senhor Somerset?
— Não penses em armar-te em difícil. Isto é a sério. Desce a escada. Entra no carro. Estamos de olho em ti. Estamos sempre de olho em ti.
— Que reconfortante, senhor Somerset — disse o banqueiro, mas a ligação já tinha sido cortada.
VINTE MINUTOS MAIS TARDE, Herr Zigerli estava na recepção quando reparou num dos americanos, Shelby Somerset, a caminhar ansioso na parte de fora da entrada. Um momento mais tarde, um Mercedes prateado parou e uma pequena figura careca saiu do banco de trás. Mocassins indianos polidos, uma pasta à prova de choque. Um banqueiro, pensou Zigerli. Apostava o seu ordenado nisso. Somerset fez ao recém-chegado um sorriso amigável e deu uma palmada firme no ombro. O pequeno homem, apesar da calorosa recepção, parecia no entanto estar a caminhar para a sua própria execução. Mesmo assim, Herr Zigerli achou que as conversações estavam a correr bem. O homem do dinheiro tinha chegado.
— BOA TARDE, HERR BECKER. É um prazer vê-lo. Eu sou Heller. Rudolf Heller. Este é o meu sócio, senhor Keppelmann. Aquele homem ali é o nosso parceiro americano, Brad Cantwell. É obvio que você e o senhor Somerset já se conhecem. O banqueiro piscou os olhos várias vezes e depois fixou o seu pequeno olhar astuto em Shamron, como se estivesse a tentar calcular o seu valor liquido. Segurou a pasta sobre os genitais, em antecipação de um ataque iminente.
— Os meus associados e eu estamos prestes a embarcar numa joint-venture. O problema é que não conseguimos fazê-lo sem a sua ajuda. É isso que fazem os banqueiros, não é, Herr Becker? Ajudam a lançar grandes empreendimentos? Ajudam as pessoas a realizar os seus sonhos e o seu potencial?
— Depende do empreendimento, Herr Heller.
— Estou a ver — disse Shamron, sorrindo. — Por exemplo, há muitos anos atrás, um grupo de homens foi ver você. Alemães e austríacos. Queriam lançar um grande empreendimento também. Confiaram-lhe uma grande soma de dinheiro e deram-lhe o poder de transformar numa soma ainda maior. Você se saiu extraordinariamente bem. Transformou-a numa montanha de dinheiro. Presumo que se lembre desses cavalheiros? Presumo que também saiba onde conseguiram o dinheiro?
O olhar do banqueiro suíço endureceu. Tinha concluído o cálculo sobre o valor líquido de Shamron.
— É israelense, não é?
— Prefiro pensar em mim mesmo como um cidadão do mundo — respondeu Shamron. — Moro em muitos lugares, falo a língua de muitas terras. A minha lealdade, como os meus interesses financeiros, não tem fronteiras nacionais. Como suíço tenho certeza que consegue entender o meu ponto de vista.
— Eu entendo — disse Becker — mas não acredito numa palavra do que diz.
— E se eu fosse de Israel? — perguntou Shamron. — Isso teria algum impacto na sua decisão?
— Teria.
— Como?
— Não me interessam os israelenses — disse Becker prontamente. — E os judeus também.
— Lamento ouvir isso, Herr Becker, mas um homem tem direito a sua opinião, e não vou discutir isso. Nunca deixo politicagem meter-se no caminho dos negócios. Preciso de ajuda para o meu empreendimento, e você é a única pessoa que pode me ajudar.
Becker elevou o sobrolho zombeteiramente.
— Qual é exatamente a natureza deste empreendimento, Herr Heller?
— É bem simples, na verdade. Quero que me ajude a sequestrar um de seus clientes.
— Parece-me, Herr Heller, que esse empreendimento seria uma violação das leis de segredo bancário e de várias outras leis deste pais.
— Então suponho que teremos de manter seu envolvimento em segredo.
— E se eu me recusar a cooperar?
— Então serei obrigado a contar ao mundo que você é o banqueiro dos assassinos, que está sentado em dois bilhões e meio de dólares de pilhagens do Holocausto. Soltaremos os cães de caça do Congresso Judaico Mundial sobre você. Quando terminarem, você e o seu banco estarão em farrapos.
O banqueiro suíço lançou um olhar de súplica a Shelby Somerset.
— Nós tínhamos um acordo.
— Ainda temos — balbuciou o sedento americano —, mas os contornos do acordo mudaram. Seu cliente é um homem muito perigoso. Passos precisam de ser dados para neutralizá-lo. Precisamos de você, Konrad. Ajude-nos a resolver um problema. Vamos fazer o bem juntos.
O banqueiro trauteou com os dedos na pasta.
— Tem razão. Ele é um homem perigoso, e se eu ajudo a sequestrá-lo, é melhor começar a abrir a minha própria sepultura.
— Estaremos lá, Konrad. Vamos protegê-lo.
— E se os contornos do acordo mudarem novamente? Quem vai me proteger então?
Shamron intercedeu.
— Receberia cem milhões de dólares com a dispersão final da conta. Agora não haverá dispersão final da conta porque vai me entregar o dinheiro todo. Se colaborar, deixo-o ficar com metade do montante a receber. Presumo que consiga fazer a conta, Herr Becker?
— Consigo.
— Cinquenta milhões de dólares é mais do que merece, mas estou disposto a deixá-lo ficar com esse montante para ganhar a sua cooperação neste assunto. Um homem consegue comprar muita segurança com cinquenta milhões.
— Quero isso por escrito, um termo de garantia.
Shamron abanou a cabeça com desdém, como se dissesse que havia algumas coisas, e devia saber melhor que qualquer um, meu querido companheiro, que não se põe por escrito.
— O que precisa de mim? — perguntou Becker.
— Vai nos ajudar a entrar na casa dele.
— Como?
— Vai precisar vê-lo com urgência sobre um assunto qualquer da conta. Talvez alguns papéis que precisem ser assinados, alguns detalhes finais da preparação para a liquidação e dispersão dos bens.
— E assim que estiver dentro da casa?
— O seu trabalho termina. O seu novo assistente trata do resto a partir daí.
— Meu novo assistente?
Shamron olhou para Gabriel.
— Talvez seja hora de apresentar Herr Becker a seu novo parceiro.
ELE ERA UM HOMEM de muitos nomes e muitas personalidades. Herr Zigerli conhecia-o como Oskar, o chefe de segurança da Heller. O senhorio da sua morada em Paris conhecia-o como Vincent Laffont, um escritor freelancer viajante de descendência britânica que passava a maior parte do seu tempo de mala às costas. Em Londres, era conhecido como Clyde Bridges, diretor de marketing europeu de uma obscura firma de software canadiana. Em Madrid, ele era um alemão rico de alma inquieta, que preguiçava horas em cafés e bares, e viajava para aliviar o aborrecimento.
O seu nome verdadeiro era Uzi Navot. No léxico hebraico dos serviços secretos israelenses, Navot era um katsa, um operacional de campo secreto e oficial de casos.
O seu território era a Europa Ocidental. Detentor de um charme malandro, poliglota e de uma arrogância fatalista, Navot tinha penetrado células de terrorismo palestino e recrutado agentes em embaixadas árabes espalhadas pelo continente. Possuía contatos em quase todos os serviços secretos e de segurança da Europa e orientava uma vasta rede de sayanim, auxiliares voluntários recrutados em comunidades judaicas locais. Podia sempre contar com a melhor mesa na sala de grelhados do Ritz de Paris porque o maître d'hôtel era um informante pago, assim como o chefe dos serviços de limpeza.
— Konrad Becker, apresento-lhe Oskar Lange.
O banqueiro permaneceu sentado e imóvel por um longo momento, como se tivesse sido subitamente transformado em estátua. Então os seus pequenos olhos espertos pousaram em Shamron, e levantou as mãos num gesto inquisitório.
— O que devo fazer eu com ele.
— Diga-nos você. Ele é muito bom, o nosso Oskar.
— Consegue fazer-se passar por advogado?
— com a devida preparação, ele conseguia fazer-se passar pela sua mãe.
— Quanto tempo tem de durar esta charada?
— Cinco minutos, talvez menos.
— Quando se está com Ludwig Vogel, cinco minutos podem parecer uma eternidade.
— Foi o que ouvi dizer — disse Shamron.
— E o Klaus?
— Klaus?
— O guarda-costas de Vogel.
Shamron sorriu. A resistência tinha terminado. O banqueiro suíço juntara-se à equipe e jurara fidelidade à bandeira de Herr Heller e o seu nobre empreendimento.
— Ele é muito profissional — disse Becker. — Já estive na casa meia dúzia de vezes, mas ele revista-me sempre minuciosamente e pede-me para abrir a pasta. Portanto, se está a pensar levar uma arma para dentro da casa...
Shamron interrompeu-o.
— Não tencionamos levar armas para dentro da casa.
— Klaus está sempre armado.
— Tem a certeza?
— Uma Glock, penso eu. — O banqueiro deu uma palmadinha no lado esquerdo do seu peito. — Usa-a aqui. Não faz muito esforço em escondê-la.
— Um pormenor encantador, Herr Becker.
O banqueiro aceitou o elogio com uma inclinação da cabeça.
— Pormenores são a minha vida, Herr Heller.
— Perdoe a minha insolência, Herr Heller, mas como é que se rapta alguém que está protegido por um guarda-costas, se o guarda-costas está armado e o raptor não?
— Herr Vogel vai abandonar a casa voluntariamente.
— Um rapto voluntário? — o tom de Becker era incrédulo. — Que peculiar. E como é que se convence um homem a deixar-se raptar voluntariamente ?
Shamron cruzou os braços.
— Preocupe-se em levar o Oskar para dentro da casa e deixe o resto connosco.
32
MUNIQUE
NO BONITO PEQUENO bairro de Lehel em Munique havia um velho apartamento, com um portão para a rua e um bem arranjado pátio na entrada principal. O elevador era instável e indeciso, e eram mais as vezes que subiam a escada em caracol até o terceiro andar. O mobiliário tinha o anonimato de um quarto de hotel. Havia duas camas no quarto, e o sofá da sala de estar era um davenport. Na arrecadação havia quatro camas extras de abrir. A despensa estava cheia de produtos não deterioráveis e os armários continham louça e talheres para oito. As janelas da sala de estar tinham vista para a rua, mas os estores mantinham-se fechados o tempo todo, para que dentro do apartamento parecesse sempre fim de dia. Os telefones não tinham campainha. Em vez disso, estavam equipados com luzes vermelhas que piscavam para indicar que estava a tocar.
As paredes da sala de estar estavam forradas de mapas: centro de Viena, Viena metropolitana, Áustria oriental, Polônia. Na parede oposta às janelas estava pendurado um enorme mapa da Europa Central, que mostrava toda a rota de fuga, esticando-se de Viena até a costa do Báltico. Shamron e Gabriel discutiram a cor antes de decidirem pelo vermelho. À distância parecia um rio de sangue, como Shamron desejara, o rio de sangue que fluía pelas mãos de Erich Radek. Só falavam em alemão no apartamento. Shamron tinha-o decretado. Radek era referido como Radek e apenas Radek; Shamron não iria chamá-lo pelo nome que ele comprara aos americanos. Shamron decretou outras regras também. Era a operação de Gabriel, e consequentemente era um espetáculo dirigido por Gabriel. Era Gabriel, com o sotaque berlinense da sua mãe, que orientava as equipes, Gabriel que revia os relatórios de Viena, e Gabriel quem tomava todas as decisões operacionais finais.
Durante os primeiros dias, Shamron esforçou-se para se encaixar no seu papel de apoio, mas à medida que a sua confiança em Gabriel ia crescendo, descobriu ser mais fácil retirar-se para segundo plano. Ainda assim, cada agente que passava pelo apartamento seguro reparava na nuvem negra que pairava sobre ele. Parecia não dormir nunca. Ele permanecia de pé perante os mapas todo o tempo, ou sentava-se na mesa da cozinha no escuro, fumando como uma chaminé: como um homem que luta contra uma consciência pesada.
— Ele é como um doente terminal que planeia o seu próprio funeral —, assinalou Oded, um veterano agente de língua alemã que Gabriel tinha escolhido para conduzir o carro de fuga. — E se correr mal, eles gravarão isso na sua lápide, mesmo por baixo da Estrela de David.
Sob condições perfeitas, tal operação envolveria semanas de preparação. Gabriel tinha apenas dias. A operação Ira de Deus tinha-o preparado bem. Os terroristas do Setembro Negro estavam constantemente em movimento, aparecendo e desaparecendo com uma frequência de fazer enlouquecer. Quando alguém era localizado e identificado, a equipe de choque entrava em ação à velocidade da luz. Equipas de vigilância eram preparadas, veículos e apartamentos seguros eram alugados, rotas de fuga eram planejadas. O reservatório de experiência era muito útil a Gabriel em Munique. Poucos agentes secretos sabiam mais sobre planeamento rápido e ataques súbitos do que ele e Shamron.
Ao fim do dia, viam as noticias na televisão alemã. As eleições na vizinha Áustria captavam a atenção dos espectadores alemães. Metzler estava na frente. As multidões nos comícios de campanha, como a sua liderança nas sondagens, cresciam de dia para dia. A Áustria, assim parecia, estava prestes a fazer o impensável, eleger um chanceler da extrema-direita. Dentro do apartamento seguro, Gabriel e a sua equipe descobriram-se na bizarra posição de torcer pela subida de Meztler nas sondagens, pois sem Metzler, a porta para Radek estava fechada.
Invariavelmente, pouco depois das noticias, Lev revia a operação a partir de King Saul Boulevard e sujeitava Gabriel a uma fastidiosa examinação cruzada dos eventos do dia. Era a única vez que Shamron se sentia aliviado por não carregar o fardo do comando operacional. Gabriel dava voltas ao apartamento com o telefone colado à orelha, respondendo pacientemente às questões de Lev. E por vezes, se a luz estivesse correta, Shamron veria a mãe de Gabriel, caminhando ao lado dele. Ela era o único membro da equipe que nunca ninguém mencionou.
UMA VEZ POR DIA, normalmente ao fim da tarde, Gabriel e Shamron escapavam do apartamento seguro para passear nos Jardins Ingleses. A sombra de Eichmann pairava sobre eles. Gabriel reconheceu que ele estivera lá desde o inicio. Ele tinha ido a Viena naquela noite em que Max Klein contara a Gabriel a história do oficial SS que assassinara uma dúzia de prisioneiros em Birkenau e agora saboreava café todas as tardes no Café Central. Mesmo assim, Shamron tinha diligentemente evitado falar no seu nome, até agora.
Gabriel já tinha ouvido a história da captura de Eichmann muitas vezes. De fato, Shamron tinha-a contado em Setembro de 1972 para espicaçar Gabriel a juntar-se ao grupo da Ira de Deus. A versão que Shamron lhe contou durante esses passeios ao longo dos trilhos de árvores dos Jardins Ingleses era mais detalhada que qualquer outra que Gabriel tivesse escutado antes. Gabriel sabia que isto não era apenas divagação de um velho tentando reviver glórias passadas. Os editores podiam esperar sentados pelas suas memórias, Shamron não era de apregoar o seu próprio sucesso. Gabriel sabia que Shamron lhe estava a contar a história de Eichmann por uma razão. Eu já fiz a viagem que estás prestes a fazer, dizia Shamron. Noutro tempo, noutro local, na companhia de outro homem, mas há coisas que deves saber. Gabriel, por vezes, não conseguia afastar a sensação de estar a caminhar com a História.
— A parte mais difícil foi esperar pelo avião de fuga. Estávamos presos na casa segura com aquela ratazana humana. Alguns elementos da equipe não suportavam olhar para ele. Eu tinha de me sentar no seu quarto noite após noite e vigiá-lo. Ele estava acorrentado à cama de ferro vestido com um pijama e tinha óculos opacos a tapar os olhos. Estávamos estritamente proibidos de conversar com ele. Apenas o interrogador estava autorizado a falar com ele. Eu não consegui obedecer a essas ordens. Sabes, eu precisava de saber. Como é que este homem, que se enjoava ao ver sangue, matou seis milhões do meu povo? A minha mãe e o meu pai? As minhas duas irmãs? Perguntei-lhe porque o tinha feito? Ele disse-me que o tinha feito porque era o seu trabalho, o seu trabalho, Gabriel, como se ele não fosse mais que um empregado bancário ou um maquinista de trem.
E mais tarde, encostados aos balaústres de uma velha ponte sobre um ribeiro:
— Só o quis matar uma vez, Gabriel, quando ele me tentou dizer que não odiava o povo judeu, que na verdade gostava e admirava o povo judeu. Para me mostrar o quanto ele gostava de judeus, começou a recitar as nossas palavras: Shema, Yisrael, Adonai Eloheinu, Adonai Echad! Eu não conseguia ouvir aquelas palavras vindas daquela boca, a boca que tinha dado ordens para assassinar seis milhões. Cravei-lhe a mão sobre a cara até que ele se calasse. Ele começou a abanar e a ter convulsões. Pensei que lhe tinha causado um ataque de coração. Ele perguntou-me se eu o ia matar. Ele suplicou-me que não fizesse mal ao seu filho. Este homem que tinha arrancado os filhos dos braços dos pais e os tinha lançado ao fogo estava preocupado com o seu próprio filho, como se nós fossemos agir como ele, como se nós fossemos assassinar crianças.
E numa gasta mesa de madeira, numa esplanada deserta:
— Nós queríamos que ele concordasse em voltar connosco para Israel voluntariamente. Ele, claro, não queria ir. Ele queria ser julgado na Argentina ou na Alemanha. Eu disse-lhe que isso não era possível. De uma maneira ou de outra, ele ia ser julgado em Israel. Eu arrisquei a minha carreira permitindo que ele tivesse um pouco de vinho tinto e um cigarro. Eu não bebi com o assassino. Eu não podia. Assegurei-lhe que lhe seria dada a oportunidade de contar a sua versão da história, que lhe seria oferecido um julgamento apropriado com uma defesa adequada. Ele não tinha ilusões sobre o resultado, mas a noção de se poder explicar ao mundo era-lhe de alguma forma apelativa. Também apontei o fato de que ele teria a dignidade de saber que estava prestes a morrer, algo que ele negou aos milhões que marcharam para as salas de despir e para as câmaras de gás enquanto Max Klein lhes tocava serenatas. Ele assinou o papel, datou-o como um bom burocrata alemão, e estava feito.
Gabriel escutou atentamente com a gola do casaco elevada para proteger as orelhas e as mãos enfiadas nos bolsos. Shamron mudou o foco de Adolf Eichmann para Erich Radek.
— Tu tens uma vantagem porque já estiveste cara-a-cara com ele uma vez, no Café Central. Eu apenas vira Eichmann ao longe, enquanto vigiávamos a sua casa e planeávamos o rapto, mas nunca falara com ele ou mesmo estivera perto dele. Eu sabia exatamente a sua altura, mas não conseguia imaginar.
Eu tinha ideia de como a sua voz soaria, mas não é a mesma coisa. Tu conheces Radek, mas infelizmente ele também sabe muito sobre ti, também, graças a Manfred Kruz. Ele vai querer saber mais. Ele vai sentir-se exposto e vulnerável. Ele vai tentar equilibrar o jogo fazendo-te perguntas. Ele vai querer saber porque o estás a perseguir. Sob nenhuma circunstância deves envolver-te como numa conversa normal. Lembra-te, Erich Radek não era um guarda de campo ou um operador de câmara de gás. Ele era um SD, um interrogador hábil. Ele vai tentar fazer uso dessas habilidades uma última vez para evitar o seu destino. Não te deixes cair nas suas mãos. És o responsável agora. Ele vai tentar contradizer-te e abalar as tuas convicções.
Gabriel olhou para baixo, como se estivesse a ler as palavras gravadas na mesa.
— Então porque merecem Eichmann e Radek as armadilhas da justiça — disse ele finalmente — e os palestinos do Setembro Negro apenas a vingança?
— Terias dado um excelente estudante Talmud, Gabriel.
— E tu estás a fugir à minha pergunta.
— Obviamente, que houve uma medida de pura vingança na nossa decisão contra os terroristas do Setembro Negro, mas foi mais do que isso. Eles constituem uma ameaça contínua. Se não os matássemos seriam eles a matar-nos. Era guerra.
— Porque não prendê-los, levá-los a julgamento?
— Para que pudessem declamar a sua propaganda a partir de um tribunal israelense?
— Shamron abanou a cabeça lentamente. — Eles já fizeram isso — levantou a mão e apontou para a torre que se ergue no Parque Olímpico — aqui mesmo nesta cidade, em frente às câmaras de todo o mundo. Não nos competia a nós dar-lhes outra oportunidade de justificarem o massacre de inocentes.
Baixou a mão e inclinou-se sobre a mesa. Foi nessa altura que contou a Gabriel os desejos do primeiro-ministro. Enquanto conversava, a sua respiração gelava perante ele.
— Eu não quero matar um velho — disse Gabriel.
— Ele não é um velho. Ele usa as roupas de um velho e esconde-se por trás do rosto de um velho, mas ele ainda é Erich Radek, o monstro que matou uma dúzia de homens em Auschwitz porque não conseguiram identificar uma peça de Brahms. O monstro que matou duas moças à beira de uma estrada polonesa porque não quiseram negar as atrocidades de Birkenau. O monstro que abriu as campas de milhões e sujeitou os seus cadáveres a uma humilhação final. A velhice não perdoa tais pecados.
Gabriel levantou os olhos e fitou o olhar insistente de Shamron.
— Eu sei que ele é um monstro. Eu só não quero matá-lo. Eu quero que o mundo saiba o que este homem fez.
— Então é melhor preparares-te para a batalha com ele. — Shamron olhou para o seu relógio de pulso. — Mandei vir uma pessoa para te ajudar. De fato, deve estar mesmo a chegar.
— Porque só agora estou a saber disso? Pensava que era eu que tomava todas as decisões operacionais.
— E és — disse Shamron. — Mas por vezes eu tenho de mostrar o caminho. É para isso que servem os velhos.
NEM GABRIEL NEM Shamron acreditavam em prenúncios ou presságios. Se acreditassem, a operação que trouxe Moshe Rivlin de Yad Vashem até a casa segura em Munique teria lançado dúvidas sobre a capacidade da equipe para levar a cabo a tarefa que tinham pela frente.
Shamron queria que Rivlin fosse contatado discretamente. Infelizmente, King Saul Boulevard confiou o trabalho a um par de aprendizes acabados de sair da academia, ambos nitidamente de aparência sefardita. Decidiram contatar Rivlin enquanto este caminhava de Yad Vashem para o seu apartamento perto do mercado Yehuda. Rivlin, que tinha sido criado na zona de Bensonhurts no Brooklyn e ainda era vigilante quando caminhava pela rua, rapidamente notou que estava a ser seguido por dois homens de carro. Presumiu que fossem homens-bomba do Hamas ou um par de criminosos de rua. Quando o carro parou ao lado dele e os seus ocupantes pediram para falar, Rivlin desatou a correr como um louco. Para surpresa de todos, o atarracado arquivista provou ser uma presa esquiva e conseguiu escapar aos seus captores durante vários minutos até ser encurralado pelos dois agentes do Escritório na Rua Ben Yehuda.
Ele chegou ao apartamento seguro em Lehel ao fim dessa tarde, carregando duas malas cheias de material de pesquisa e irritado pela maneira como tinha sido convocado.
— Como esperam raptar um homem como Erich Radek se não conseguem apanhar um arquivista gordo? Vá lá — disse ele, puxando Gabriel para a privacidade do quarto do fundo. — Temos muito terreno para cobrir e pouco tempo para o fazer. No SÉTIMO DIA, Adrian Carter chegou a Munique. Era uma quarta-feira; chegou ao apartamento seguro ao fim da tarde, quando o crepúsculo se tornava escuro. O passaporte no bolso do seu sobretudo ainda dizia Brad Cantwell. Gabriel e Shamron tinham acabado de regressar de um passeio nos Jardins Ingleses e ainda estavam embrulhados em chapéus e cachecóis. Gabriel tinha enviado o resto dos elementos da equipe para as posições de fase final, consequentemente o apartamento seguro estava vazio de pessoal do Escritório. Apenas Rivlin permanecia. Saudou o diretor da CIA com a camisa para fora e os sapatos descalçados e disse que seu nome era Yaacov. O arquivista tinha-se adaptado bem à disciplina da operação.
Gabriel fez o chá. Carter desabotoou o casaco e conduziu-se a si próprio numa preocupada excursão pelo apartamento. Passou bastante tempo em frente aos mapas. Carter acreditava em mapas. Os mapas nunca te mentirão. Os mapas nunca te dirão o que eles acham que tu queres ouvir.
— Gosto do que fizeste com o sitio, Herr Heller. — Carter finalmente despiu o sobretudo. — Miséria neo-contemporânea. E o cheiro. Tenho certeza de que o conheço. Trazido da Wienerwald ao fundo do quarteirão, se não estou em erro. Gabriel entregou-lhe uma caneca de chá com o cordão da saqueia ainda pendente do rebordo.
— Porque estás aqui Adrian?
— Pensei em passar para ver se precisavam de ajuda.
— Tretas.
Carter sentou-se pesadamente no sofá, um vendedor no final de uma longa e improdutiva viagem pela estrada. — Verdade seja dita, estou aqui por ordem do meu diretor. Parece que ele está com um sério ataque de nervosismo. Ele sente que estamos juntos num ramo e vocês estão com a motosserra nas mãos. Ele quer que a Agência seja posta na jogada.
— E isso significa o quê?
— Ele quer saber o plano de jogo.
— Tu sabes o plano de jogo, Adrian. Eu disse-te o plano de jogo em Virginia. Não se alterou.
— Eu sei os esboços do plano — disse Carter. — Agora quero ver o quadro pronto.
— O que estás a dizer é que o teu diretor quer rever o plano e dar a palavra final.
— Algo do gênero. E quando acontecer, ele quer que eu fique na retaguarda com o Ari também.
— E se lhe dissermos para ir para o inferno?
— Eu diria que há cinquenta por cento de hipóteses de alguém sussurrar um aviso na orelha de Erich Radek, e perdem-no. Joga com o diretor, Gabriel. É a única maneira de apanhares Radek.
— Estamos prontos para agir, Adrian. Agora é a altura para sugestões úteis do sétimo andar.
Shamron sentou-se ao lado de Carter.
— Se o teu diretor tivesse dez gramas de cérebro, ficaria o mais afastado disto que conseguisse.
— Tentei explicar-lhe isso — não nesses termos, claro, mas qualquer coisa perto. Ele não tem nada disso. Ele veio da Wall Street, o nosso diretor. Ele gosta de pensar em si próprio como um individuo prático, atacante. Sempre soube o que cada divisão da companhia estava a fazer. Tenta gerir a Agência da mesma maneira. E como sabes, é também amigo do presidente. Se o chateias, ele telefona para a Casa Branca, e acaba-se.
Gabriel olhou para Shamron, que cerrava os dentes e acenava a cabeça. Carter
obteve o seu relatório. Shamron permaneceu sentado por alguns minutos, mas em breve estava de pé a percorrer a sala, como um chefe cujas receitas secretas estão a ser entregues a um concorrente do outro lado da rua. Quando terminou, Carter dispensou um longo tempo enchendo a fornilha do seu cachimbo com tabaco.
— Parece-me que os cavalheiros estão prontos — disse ele. — De que estão à espera? Se fosse vocês, punha-me em ação antes que o meu diretor que tem a palavra final decida que quer fazer parte da equipe de rapto.
Gabriel concordou. Levantou o telefone e ligou para Uzi Navot em Zurique.
33
VIENA * MUNIQUE
KLAUS HALDER BATEU suavemente na porta do estúdio. A voz do outro lado concedeu-lhe permissão para entrar. Empurrou a porta e viu o velho sentado à média luz, com os olhos fixos na tremeluzente tela de televisão: um comício de Meztler dessa tarde em Graz, estimulando multidões, a conversa já versava a composição do gabinete ministerial de Metzler. O velho desligou a televisão com o comando e virou os seus olhos azuis para o guarda-costas. Halder apontou para o telefone com o olhar. Uma luz verde piscava.
— Quem é?
— Herr Becker, de Zurique.
O velho levantou o receptor.
— Boa noite, Konrad.
— Boa noite, Herr Vogel. Peço desculpa por o incomodar tão tarde, mas o assunto não podia esperar.
— Há alguma coisa errada?
— Não, muito pelo contrário. No seguimento das recentes notícias eleitorais de Viena, decidi apressar o passo dos meus preparativos e proceder como se a vitória de Peter Metzler fosse um dado adquirido.
— Uma decisão acertada, Konrad.
— Calculei que concordasse. Tenho vários documentos que precisam da sua assinatura. Pensei que seria melhor começarmos o processo agora em vez de esperar pelo final.
— Que tipo de documentos?
— O meu advogado estará mais habilitado para os explicar do que eu. Se não se importar, eu gostaria de ir a Viena para uma reunião. Não demorará mais do que alguns minutos.
— Pode ser na sexta-feira?
— Sexta-feira está ótimo, desde que seja ao fim da tarde. Tenho um compromisso inadiável da parte da manhã.
— Podemos apontar para as quatro da tarde?
— Às cinco seria melhor para mim, Herr Vogel.
— Tudo bem, sexta às cinco.
— Vemo-nos lá.
— Konrad?
— Sim, Herr Vogel.
— Esse advogado — diga-me como se chama, por favor.
— Oskar Lange, Herr Vogel. É um homem muito competente, já fiz uso dos seus serviços em muitas ocasiões anteriores.
— Presumo que seja um tipo que compreende o significado da palavra discrição?
— Discreto, nem sequer dá para começar a descrevê-lo. Está em muito boas mãos.
— Adeus, Konrad.
O velho desligou o telefone e olhou para Halder.
— Vai trazer alguém com ele? Um aceno lento.
— Ele sempre veio sozinho no passado. Porquê trazer um ajudante de repente?
— Herr Becker está prestes a receber cem milhões de dólares, Klaus. Se há um homem no mundo em quem podemos confiar, é o gnomo de Zurique.
O guarda-costas dirigiu-se à porta.
— Klaus?
— Sim, Herr Vogel?
— Talvez tenhas razão. Telefona a alguns dos nossos amigos em Zurique. Descobre se alguém já ouviu falar de um advogado chamado Oskar Lange.
UMA HORA MAIS TARDE, uma gravação do telefonema de Becker foi enviada por transmissão segura dos escritórios da Becker & Puhl em Zurique para o apartamento seguro em Munique. Escutaram-na uma vez, depois outra, e ainda outra. Adrian Carter não gostou do que ouviu.
— Vocês sabem que assim que Radek pousar o telefone, vai fazer uma segunda chamada para Zurique para verificar o Oskar Lange. Espero que tenham pensado nisso.
Shamron parecia desapontado com Carter.
— O que acha, Adrian? Nunca fizemos este tipo de coisa antes? Somos crianças que precisam de orientação?
Enquanto esperava pela resposta, Carter chegou um fósforo ao cachimbo e puxou a fumaça.
— Já ouviu o termo sayan — disse Shamron. — Ou sayanim.
Carter acenou com o cachimbo preso entre os dentes.
— Seus pequenos ajudantes voluntários — disse. — O empregado de hotel que consegue quartos sem reserva. As locadoras que conseguem carros indetectáveis. Os médicos que tratam seus agentes quando têm ferimentos que possam suscitar perguntas difíceis. Os banqueiros que dão empréstimos de emergência.
Shamron acenou.
— Somos um pequeno serviço secreto, só mil e duzentos empregados em tempo integral. Não conseguiríamos fazer o que fazemos sem a ajuda de sayanim. Eles são uma das vantagens da diáspora, o meu exército privado de pequenos voluntários.
— E Oskar Lange?
— Ele é um advogado fiscal e imobiliário de Zurique. Por acaso também é judeu. Algo que ele não publicita em Zurique. Há alguns anos levei o Oskar a jantar a um pequeno restaurante no lago e acrescentei-o à minha lista de ajudantes. Na semana passada, pedi-lhe um favor. Eu queria usar o seu passaporte e o seu escritório e queria que ele desaparecesse por um par de semanas. Quando lhe disse porquê, ele prontificou-se a ajudar com prazer. De fato, ele próprio queria ir a Viena e capturar Radek.
— Espero que ele esteja em lugar seguro.
— Pode-se dizer que sim, Adrian. Ele está de momento num apartamento seguro em Jerusalém.
Shamron inclinou-se em direção ao leitor de fitas, carregou em REWIND, STOP e depois PLAY:
— Pode ser na sexta-feira?
— Sexta-feira está ótimo, desde que seja ao fim da tarde. Tenho um compromisso inadiável da parte da manhã.
— Podemos apontar para as quatro da tarde?
— Às cinco seria melhor para mim, Herr Vogel. .-..
— Tudo bem, sexta às cinco. " STOP.
MOSHE RIVLIN DEIXOU o apartamento seguro na manhã seguinte e regressou a Israel num voo da El Al, com um acompanhante do Escritório sentado ao seu lado. Gabriel ficou até as sete da tarde de quinta-feira, quando uma van Volkswagen com dois pares de esquis montados no teto parou em frente ao apartamento e deu duas buzinadelas.
Ele guardou a sua Beretta na parte de trás da calça. Carter desejou-lhe boa sorte; Shamron deu-lhe um beijo na cara e mandou-o descer.
Shamron abriu as cortinas e olhou para a rua escura. Gabriel apareceu no passeio e dirigiu-se à janela do condutor. Após um momento de discussão, a porta abriu e Chiara saiu. Circundou a van e foi brevemente iluminada pelos faróis da frente antes de entrar para o lugar do passageiro.
A van afastou-se da borda do passeio. Shamron acompanhou até as luzes vermelhas da traseira desaparecerem numa curva. Não se moveu. A espera. Sempre a espera.
O seu isqueiro acendeu, uma nuvem de fumaça formou-se contra o vidro.
34
ZURIQUE
KONRAD BECKER E Uzi Navot saíram dos escritórios da Becker & Puhl precisamente quatro minutos depois da uma da tarde de sexta-feira. Um vigilante do Escritório chamado Zalman, posicionado do outro lado da Talstrasse num Fiat sedã cinza, registrou a hora assim como o tempo, um aguaceiro torrencial, em seguida enviou as noticias a Shamron no apartamento seguro de Munique. Becker estava vestido para um funeral, num terno cinza de risquinhas e uma gravata cor de carvão. Navot, imitando o estilo de vestir de Oskar Lange, usava um blazer Armani com uma camisa e gravata azul elétrica a condizer. Becker tinha pedido um táxi para os levar ao aeroporto.
Shamron teria preferido um carro particular, com um motorista do Escritório, mas Becker viajava sempre de táxi para o aeroporto e Gabriel não queria que a rotina fosse quebrada. Então foi um normal táxi de cidade, conduzido por um imigrante turco, que os levou do centro de Zurique até o aeroporto Kloten por um vale enevoado, com o vigilante de Gabriel sempre a reboque.
Foram em breve confrontados com a primeira falha técnica. Uma frente fria tinha passado por Zurique, transformando a chuva em neve e gelo e obrigando as autoridades do aeroporto Kloten a suspender os voos momentaneamente. O voo 157 8 da Swiss International Airlines, com destino a Viena, embarcou a horas e depois esperou imóvel para entrar na pista. Shamron e Adrian Carter, monitorizando a situação nos computadores do apartamento seguro de Munique, debateram a próxima jogada. Deveriam dar instruções a Becker para ligar a Radek e avisá-lo do atraso? E se Radek tivesse outros planos e decidisse adiar para outra altura? As equipes e veículos estavam nas posições finais. Um cancelamento temporário poderia pôr em risco a segurança operacional. Esperar, aconselhou Shamron, e esperar foi o que fizeram.
Pelas 14h30, as condições atmosféricas melhoraram. Kloten reabriu e o voo 1578 assumiu o seu lugar na fila ao fundo da pista. Shamron fez os cálculos. O voo para Viena levava menos de noventa minutos. Se descolassem em breve, talvez chegassem a tempo a Viena.
Às 14h25 o avião estava no ar, e o azar tinha sido evitado. Shamron informou a equipe de recepção no Aeroporto Schwechat em Viena que o embrulho estava a caminho.
A tempestade sobre os Alpes fez o voo para Viena bastante mais turbulento do que Becker teria preferido. Para acalmar os nervos, consumiu três garrafinhas miniatura de Stolichnaya e visitou a casa de banho duas vezes, tudo isto foi registrado por Zalma, que estava sentado três filas atrás. Navot, o retrato da concentração e serenidade, olhava pela janela para o mar de nuvens negras, a sua água com gás intata. Aterrissaram em Schwechat poucos minutos depois das quatro da tarde sob uma luz cinza sujo. Zalman seguiu-os pelo terminal até o controle de passaportes. Becker foi mais uma vez à casa de banho. Navot, com um movimento quase imperceptível dos olhos, ordenou a Zalman que fosse com ele. Depois de se aliviar, o banqueiro passou três minutos em frente ao espelho arranjando-se, uma quantidade de tempo fora do normal, pensou Zalman, para um homem virtualmente sem cabelo. O vigilante pensou em dar a Becker um pontapé no tornozelo para o apressar, mas decidiu não o perturbar. Afinal de contas, ele era um amador a agir sob coação.
Depois de passar pelo controle de passaporte, Becker e Navot dirigiram-se ao terminal de chegadas. Aí, entre a multidão, estava um especialista em vigilância, alto e magro chamado Mordecai. Vestia um desleixado terno preto e segurava um cartão onde se lia BAUER. O seu carro, um grande Mercedes sedã, estava à espera no estacionamento de curta duração. A dois lugares de distância estava um Audi comercial de três portas prateado. As chaves estavam no bolso de Zalman.
Zalman evitou aproximar-se deles durante a viagem de carro até Viena. Ligou para o apartamento seguro de Munique e, em poucas palavras, cuidadosamente escolhidas, informou Shamron que Navot e Becker estavam dentro do horário e procediam em direção ao alvo. Pelas 16h45, Mordecai chegou ao Canal do Danúbio. Pelas 16h50 atravessou a linha em direção ao Primeiro Bairro e estava no trânsito de hora de ponta ao longo da Ringstrasse. Virou à direita, para uma rua de pedra estreita, e logo na primeira à esquerda. Um momento mais tarde, parou em frente ao portão de ferro ornamentado de Erich Radek. Zalman ultrapassou pela esquerda e continuou a conduzir.
— FAZ SINAL DE LUZES — disse Becker — e o guarda-costas deixa entrar.
Mordecai seguiu a instrução. Durante breves segundos de tensão, o portão manteve-se imóvel; então ouviu-se um bater metálico agudo, seguido do zumbido de um motor.
Enquanto o portão abria lentamente, o guarda-costas de Radek apareceu na porta da frente, a luz intensa do candelabro brilhava sobre a sua cabeça e ombros como uma auréola. Mordecai esperou até o portão estar completamente aberto e avançou para a entrada em forma de ferradura.
Navot saiu primeiro, depois Becker. O banqueiro apertou a mão do guarda-costas e apresentou:
— O meu associado de Zurique, Herr Oskar Lange. O guarda-costas acenou e convidou-os a entrar com um gesto. A porta da frente fechou-se.
Mordecai olhou para o relógio: 16h58. Pegou no celular e ligou um número de Viena. — Vou chegar tarde para jantar — disse.
— Está tudo bem?
— Sim — disse ele. — Está tudo bem.
ALGUNS SEGUNDOS MAIS TARDE, em Munique, o sinal chegou à tela do computador de Shamron. Shamron olhou para o relógio.
— Quanto tempo lhes vais dar? — perguntou Carter.
— Cinco minutos — disse Shamron — e nem um segundo a mais.
O AUDI SEDÃ PRETO com uma antena alta montada na bagageira estava estacionado a algumas ruas de distância. Zalman estacionou atrás, saiu e caminhou até a porta do passageiro. Oded estava sentado ao volante, um homem compacto com olhos castanhos claros e um nariz achatado de pugilista. Zalman, enquanto se instalava ao seu lado, conseguia cheirar tensão na sua respiração. Zalman tinha a vantagem de ter estado em atividade toda a tarde; Oded tinha estado preso no apartamento seguro de Viena sem nada para fazer exceto imaginar as consequências de um fracasso. Um celular estava no assento, a ligação com Munique já estava estabelecida. Zalman conseguia ouvir a respiração uniforme de Shamron. Uma imagem formou-se na sua mente: uma versão mais jovem de Shamron marchando na sua direção sob uma chuva torrencial na Argentina, Eichmann descendo de um ônibus e caminhando para ele vindo da direção oposta. Oded ligou o carro. Zalman foi arrastado de volta ao presente. Olhou para o relógio no painel de instrumentos: 17:03...
A E461, MAIS conhecida pelos austríacos como a Brünnerstrasse, é uma estrada de duas faixas que vem do Norte de Viena e atravessa as onduladas colinas do Weinviertel, a região de vinhos austríaca. São oitenta quilômetros até a fronteira checa. Há uma passagem-de-nível, abrigada por um dossel em abóbada, chefiada por dois relutantes guardas em abandonar o conforto do seu abrigo de alumínio e vidro para levar a cabo qualquer inspeção dos veículos que passam. Do lado checo da passagem-de-nível, a inspeção de documentos de viagem leva normalmente um pouco mais de tempo, embora o tráfego vindo da Áustria seja normalmente recebido de braços abertos. A um quilômetro e meio para lá da fronteira, ancorada nas colinas da Morávia do Sul, fica a antiga cidade de Mikulov. É uma cidade fronteiriça, com as caraterísticas de cerco de uma cidade fronteiriça. E ajustava-se perfeitamente ao estado de espírito de Gabriel. Ele estava por trás de um parapeito de tijolo de um castelo medieval, bem por cima dos telhados de telha vermelha da velha cidade, por baixo de um par de pinheiros dobrados pelo vento. A chuva fria caía como lágrimas na superfície da sua gabardina de oleado. O seu olhar estendia-se colina abaixo, em direção à fronteira. Na escuridão, apenas as luzes do tráfego na autoestrada eram visíveis, luzes brancas surgindo na sua direção, luzes vermelhas afastando-se na direção da fronteira austríaca.
Olhou para o relógio. Eles estariam dentro da casa de Radek neste instante. Gabriel conseguia imaginar pastas abrindo-se, café e bebidas sendo servidas. E então outra imagem apareceu, uma fila de mulheres vestidas de cinza, caminhando ao longo de uma estrada com neve e ensopada de sangue. A sua mãe, vertendo lágrimas de gelo.
— O que vai dizer a seu filho sobre a guerra, judia?
— A verdade, Herr Sturmbannführer. Direi ao meu filho a verdade.
— Ninguém vai acreditar em você.
Ela não lhe disse a verdade, claro. Em vez disso tinha confiado a verdade ao papel e trancado nos arquivos de Yad Vashem. Talvez Yad Vasehm fosse o local ideal para ela. Talvez existam verdades que, de tão aterradoras, fiquem melhor se confinadas num arquivo de horrores, em quarentena, separadas das não infectadas. Ela não pôde contar que fora vítima de Radek, como Gabriel não podia dizer que era o carrasco de Shamron. Ela sempre soube, no entanto.
Ela conhecia o rosto da morte, e ela tinha visto a morte nos olhos de Gabriel. O telefone no bolso de seu casaco vibrou silenciosamente contra a anca. Ele levou-o lentamente à orelha e ouviu a voz de Shamron. Guardou o telefone no bolso e deixou-se estar por um momento, observando os faróis flutuando na sua direção através da negra planície austríaca.
— O que vai dizer quando estiver com ele? — perguntara Chiara.
A verdade, Gabriel pensava agora. Eu direi a verdade.
Começou a caminhada, descendo as estreitas ruas de pedra de uma cidade antiga, em direção ao escuro.
35
VIENA
UZI NAVOT SABIA como revistar uma pessoa. Klaus Halder era muito bom no seu trabalho. Começou no colarinho da camisa de Navot e terminou nos canhões das suas calças
Armani. Em seguida virou a atenção para a pasta. Trabalhou lentamente, como um homem com todo o tempo do mundo, e com uma atenção de monge para todos os detalhes. Quando a revista terminou finalmente, ele ajeitou o conteúdo com cuidado e colocou os trincos de volta no sítio.
— Herr Vogel vai vê-los agora — disse. — Sigam-me, por favor. Caminharam pelo corredor central, depois passaram por um par de portas duplas e entraram numa sala de visitas. Erich Radek, num casaco de linho grosso e gravata cor de ferrugem, estava sentado perto da lareira. Acolheu os convidados com um simples aceno da sua alongada cabeça, mas não se esforçou por levantar-se. Radek, pensou Navot, é um homem que costuma receber visitas sentado.
O guarda-costas deslizou suavemente para fora da sala e fechou as portas.
Becker, sorrindo, aproximou-se e apertou a mão de Radek. Navot não desejava tocar no assassino, mas dadas as circunstâncias não tinha outra escolha. A mão oferecida era fria e seca, o aperto firme e sem tremor. Era um aperto de mão para o testar. Navot sentia que tinha passado.
Radek estalou os dedos em direção às cadeiras vazias, em seguida a sua mão voltou para o apoio de copo no braço da cadeira. Começou a girá-lo para a frente e para trás, duas voltas para a direita, duas para a esquerda. Havia qualquer coisa no movimento que fazia azia ao estômago de Navot.
— Ouvi coisas muito boas sobre o seu trabalho, Herr Lange disse Radek subitamente. — Tem uma excelente reputação perante os seus colegas em Zurique.
— É tudo mentira, asseguro-lhe, Herr Vogel.
— É muito modesto. — Girou a bebida. — Você fez um trabalho para um amigo meu há alguns anos, um cavalheiro chamado Helmut Schneider.
E tu estás a tentar armadilhar-me, pensou Navot. Ele tinha-se preparado para um estratagema destes. O verdadeiro Oskar Lange tinha-lhe fornecido uma lista de clientes dos últimos dez anos para Navot memorizar. O nome Helmut Schneider não estava nela.
— Lidei com um bom número de clientes durante os últimos anos, mas temo que o nome Schneider não esteja entre eles. Talvez o seu amigo me tenha confundido com outra pessoa.
Navot olhou para baixo, abriu os trincos da sua pasta e levantou a tampa. Quando voltou a levantar o olhar, os olhos azuis de Radek estavam perfurantes nos seus e a sua bebida rodava no braço da cadeira. Havia uma tranquilidade assustadora nos seus olhos. Era como estar a ser estudado por um retrato.
— Talvez tenha razão. — O tom conciliatório de Radek não condizia com a sua expressão. — Konrad disse que precisava da minha assinatura nalguns documentos relacionados com a liquidação dos bens da conta.
— Sim, está correto.
Navot retirou um dossier da pasta e colocou a pasta no chão aos seus pés. Radek acompanhou a viagem da pasta para baixo e devolveu o seu olhar ao rosto de Navot. Navot levantou a capa do dossier e elevou o olhar. Abriu a boca para falar, mas foi interrompido pelo tocar do telefone. Agudo e eletrônico, soou aos ouvidos sensíveis de Navot como um grito num cemitério. Navot olhou para a mesa estilo Biedermeier, e o telefone tocou uma segunda vez. Começou a tocar uma terceira vez, mas ficou subitamente em silêncio, como se tivesse sido amordaçado a meio do grito. Navot conseguia ouvir Halder, o guarda-costas, falando numa extensão do corredor.
— Boa tarde. .. Não, peço desculpa, mas Herr Vogel está neste momento em reunião. Navot retirou o primeiro documento do dossier. Radek estava agora visivelmente distraído, o seu olhar distante. Estava a ouvir o som da voz do seu guarda-costas. Navot chegou-se à frente na cadeira e segurou o papel num ângulo que permitisse a Radek ver.
— Este é o primeiro documento que necessita...
Radek levantou a mão exigindo silêncio. Navot ouviu passadas no corredor, seguido do som de portas a abrir. O guarda-costas entrou na sala e dirigiu-se à beira de Radek.
— É Manfred Kruz — disse ele num sussurro capelista. — Ele quer-lhe dar uma palavra. Diz que é urgente e não pode esperar.
ERICH RADEK LEVANTOU-SE lentamente da cadeira e caminhou para o telefone.
— O que se passa Manfred?
— Os israelenses.
— Que têm eles?
— Tenho informações que indicam que um grande grupo de operacionais se reuniu em Viena nestes dias para te raptar.
— Essas informações estão confirmadas?
— Suficientemente confirmadas para concluir que já não é seguro permanecer em casa. Destaquei uma unidade da Staatspolizei para te apanhar e levar-te para um local seguro.
— Ninguém consegue entrar aqui Manfred. Limita-te a pôr um guarda armado fora da casa.
— Estamos a lidar com os israelenses, Herr Vogel. Eu quero-o fora da casa.
— Está bem, se insistes, mas diz à tua unidade para recuar. Klaus dá conta do recado.
— Um guarda-costas não é suficiente. Eu sou responsável pela sua segurança e quero-o sob proteção policial. Lamento, mas tenho de insistir. As informações que tenho são muito específicas.
— Quando é que os teus agentes chegam aqui?
— A qualquer momento. Prepare-se para sair.
Desligou o telefone e olhou para os dois homens sentados junto à lareira.
— Peço desculpas, cavalheiros, mas estou com muita pressa, é uma emergência. Temos de terminar isto em outra hora. — Voltou-se para seu guarda-costas.
— Abra os portões Klaus e arranje-me um casaco. Já.
OS MOTORES DO portão frontal funcionaram. Mordecai, sentado ao volante do Mercedes, olhou pelo espelho retrovisor e viu um carro entrar vindo da rua com uma sirene azul rodopiando no teto. Parou atrás dele e travou a fundo. Dois homens saíram e escalaram os degraus da frente. Mordecai lentamente ligou a ignição.
ERICH RADEK FOI para o corredor. Navot arrumou a sua pasta e levantou-se. Becker ficou congelado no lugar. Navot cravou os dedos por baixo do braço do banqueiro e levantou-o.
Seguiram Radek até o corredor. Luzes de emergência azuis piscavam pelas paredes e teto. Radek estava junto ao seu guarda-costas, falando-lhe baixo ao ouvido. O guarda-costas segurava um sobretudo e parecia tenso. Enquanto ajudava Radek a vestir o casaco, os seus olhos estavam em Navot.
Alguém bateu à porta, dois estrondos agudos ecoaram pelo teto alto e chão de mármore do corredor. O guarda-costas largou o sobretudo de Radek e rodou o trinco. Dois homens à paisana empurraram e entraram na casa.
— Está pronto Herr Vogel?
Radek acenou, em seguida voltou-se e olhou uma vez mais para Navot e Becker.
— Mais uma vez, por favor aceitem as minhas desculpas, cavalheiros. Peço imensa desculpa pelo incômodo.
Radek voltou-se na direção da porta com Klaus ao seu lado. Um dos agentes travou o caminho ao guarda-costas colocando-lhe uma mão no peito. O guarda-costas afastou-a com uma pancada.
— O que pensa que está fazendo?
— Herr Kruz deu-nos instruções especificas. Só devemos levar Herr Vogel sob proteção.
— Kruz nunca teria dado uma ordem dessas. Ele sabe que eu vou onde quer que ele vá. Foi sempre assim.
— Lamento, mas essas são as nossas ordens.
— Deixe-me ver o seu distintivo e a sua identificação.
— Não há tempo. Por favor, Herr Vogel. Venha connosco.
O guarda-costas recuou um passo e meteu a mão dentro do casaco. Conforme a arma ficou à vista, Navot lançou-se para a frente. com a mão esquerda, agarrou o pulso do guarda-costas e encostou-lhe a arma contra o abdômen. com a direita, deu-lhe dois fortes golpes de mão aberta na nuca. O primeiro atordoou Halder; o segundo fez os seus joelhos cederem. A sua mão relaxou e a Glock caiu no chão de mármore. Radek olhou para a arma e por um instante pensou em apanhá-la. Em vez disso, voltou-se, precipitou-se para a porta aberta do seu estúdio e fechou-a com um estrondo.
Navot tentou a maçaneta. Trancada.
Deu uns passos atrás e lançou o ombro contra a porta. A porta desfez-se e ele tropeçou para dentro da sala escura. Levantou-se cambaleante e viu que Radek já tinha fugido através da falsa frente de uma estante de livros e estava dentro de um pequeno elevador do tamanho de uma cabine telefônica.
Navot saltou para a frente enquanto a porta do elevador começou a fechar. Conseguiu enfiar os dois braços para dentro e agarrou Radek pela lapela do sobretudo. Quando a porta bateu contra o ombro esquerdo de Navot, Radek agarrou-lhe os pulsos e tentou libertar-se. Navot segurou firmemente.
Oded e Zalman vieram em seu auxilio. Zalman, o mais alto dos dois, alcançou por cima da cabeça de Navot e puxou a porta. Oded deslizando por entre as pernas de Navot aplicou pressão por baixo. Perante a investida, a porta finalmente deslizou e abriu.
Navot arrastou Radek para fora do elevador. Já não havia tempo para subterfúgios ou enganos. Navot tapou a boca do velho com a mão, Zalman segurou-lhe as pernas e levantou-o do chão. Oded encontrou o interruptor e apagou a luz.
Navot olhou para Becker.
— Entre no carro. Depressa, idiota.
Arrastaram Radek degraus abaixo em direção ao Audi. Radek puxava a mão de Navot, tentando libertar-se do tampão na boca e esperneava. Navot conseguia ouvir Zalman resmungar entre dentes. De alguma forma, mesmo no calor da batalha, ele conseguia resmungar em alemão.
Oded abriu a porta de trás antes de dar a volta e correr para o volante.
Navot empurrou primeiro a cabeça de Radek para o fundo e colou-o ao assento.
Zalman forçou sua entrada e fechou a porta. Becker entrou na parte de trás do Mercedes. Mordecai acelerou fundo, e o carro guinou para a rua, o Audi seguindo de perto.
O corpo de Radek ficou subitamente quieto. Navot retirou a mão e o austríaco sorveu ofegante o ar.
— Está me machucando — disse. — Não consigo respirar.
— Eu deixo você se levantar, mas tem que prometer que se comporta bem. Não vai haver mais tentativas de fuga. Promete?
— Deixe eu me levantar. Está me esmagando, estúpido.
— Eu deixo, velho. Faça apenas um favor primeiro. Diga seu nome, por favor.
— Sabe meu nome. É Vogel. Ludwig Vogel.
— Não, não, esse nome não. Seu nome verdadeiro.
— Esse é o meu nome verdadeiro.
— Quer se levantar e deixar Viena como um homem, ou vou ter de ir sentado em cima de você o tempo todo?
— Eu quero me sentar. Está me machucando, maldição!
— Diga apenas seu nome.
Ficou em silêncio por um momento; então murmurou:
— Meu nome é Radek.
— Desculpe, mas não consegui ouvir. Pode dizer seu nome outra vez, por favor? Desta vez alto.
Inspirou profundamente e o seu corpo ficou rígido, como se estivesse em sentido em vez de deitado no banco de trás de um carro.
— MEU NOME É STURMBANNFÜHRER ERICH RADEK!
NO APARTAMENTO SEGURO de Munique, a mensagem apareceu na tela do computador de Shamron: O EMBRULHO FOI RECEBIDO. Carter deu-lhe uma palmada nas costas.
— Raios me partam! Eles o pegaram. Eles o pegaram mesmo.
Shamron levantou-se e caminhou até o mapa.
— Pegá-lo foi a parte mais fácil da operação, Adrian. Tirá-lo de lá vai ser outra história.
Olhou para o mapa. Oitenta quilômetros até a fronteira tcheca. Corra, Oded, pensou ele. Dirija como nunca dirigiu em sua vida.
36
VIENA
ODED JÁ TINHA guiado por aquela estrada uma dúzia de vezes, mas nunca como esta, nunca com a sirene a gritar e a rodopiar no teto, e nunca com os olhos de Erich Radek fitando os seus pelo retrovisor. A retirada do centro da cidade tinha corrido melhor do que esperado. O tráfego de fim de tarde era intenso, mas não ao ponto de não se conseguir desviar para dar passagem ao barulho e à luz da sua sirene. Radek amotinou-se duas vezes. Cada insurreição foi implacavelmente dominada por Navot e Zalman.
Circulavam agora em direção a norte pela E461. O tráfego de Viena tinha ficado para trás, a chuva caía continuamente e gelava nos cantos do para-brisas. Uma tabuleta passou de repente: REPÚBLICA CHECA 42 KM. Navot olhou prolongadamente sobre o ombro, então, em hebraico, instruiu Oded para desligar a sirene.
— Para onde vamos? — perguntou Radek respirando com dificuldade. — Para onde me estão a levar? Onde?
Navot não disse nada, como Gabriel tinha ordenado.
— Deixem-no fazer perguntas até ficar com a cara azul — Gabriel tinha dito.
— Simplesmente não lhe deem a satisfação de uma resposta. Deixem a incerteza afligir-lhe a mente. Era isso que ele faria se os papéis estivessem invertidos. Então Navot observou as povoações que passavam pela janela Mistelbach, Wilfersdorf, Erdberg — e pensou apenas numa coisa, o guarda-costas que ele tinha deixado inconsciente no corredor da entrada da casa de Radek em Stöbbergasse.
Poysdorf apareceu perante eles. Oded acelerou pela vila, em seguida virou para uma estrada de duas faixas e seguiu-a em direção a leste por entre pinheiros cobertos de neve.
— Para onde vamos? Para onde me estão a levar?
Navot já não conseguia suportar mais as suas perguntas em silêncio.
— Vamos para casa — disse de repente. — E tu vens connosco. Radek traçou um sorriso gelado.
— Cometeste apenas um erro esta noite, Herr Lange. Devias ter morto o meu guarda-costas quando tiveste oportunidade.
KLAUS HALDER ABRIU um olho, em seguida o outro. A escuridão era absoluta. Deixou-se estar deitado imóvel por um momento tentando determinar a posição do seu corpo. Tinha caído para a frente, com os braços para os lados, e a sua face direita estava pressionada contra o mármore frio. Tentou levantar a cabeça, um relâmpago de dor lancinante abateu-se-lhe sobre o pescoço. Lembrou-se então do instante em que tinha acontecido. Estava a tentar alcançar a arma quando levou duas pancadas por trás. Fora o advogado de Zurique, Oskar Lange. Obviamente que Lange não era um simples advogado. Ele estava a tramar alguma, como Halder temia desde o início.
Colocou-se de joelhos e sentou-se encostado à parede. Fechou os olhos e esperou que a sala parasse de girar, então esfregou a parte de trás da cabeça. Tinha um inchaço do tamanho de uma maçã. Ergueu o pulso esquerdo e lançou um olhar ao painel luminoso do seu relógio de pulso: 17:57. Quando tinha acontecido? Poucos minutos depois das cinco, 17h10 no máximo. A não ser que tivessem um helicóptero à espera na Stephansplatz, o mais certo era ainda estarem na Áustria.
Apalpou o bolso da frente do seu casaco esportivo e descobriu que o celular ainda lá estava. Tirou-o e ligou. Dois toques. Uma voz familiar.
— Aqui Kruz.
TRINTA SEGUNDOS MAIS TARDE, Manfred Kruz bateu com o telefone e avaliou suas opções. A resposta mais óbvia seria fazer soar o alarme e alertar todas as unidades policiais do país que o velho fora sequestrado por agentes israelenses, fechar as fronteiras e os aeroportos. Óbvia, sim, mas muito perigosa. Uma jogada dessas iria levantar muitas questões desconfortáveis. Porque foi Herr Vogel raptado? Quem é ele realmente? A candidatura de Peter Metzler seria esquadrinhada, assim como a carreira de Kruz. Mesmo na Áustria, tais assuntos assumiam vida própria, e Kruz tinha visto muitos para saber que o inquérito não terminaria à porta de Vogel.
Os israelenses sabiam que ele ficaria incapacitado, e tinham escolhido bem o momento. Kruz tinha de pensar numa maneira sutil de intervir, alguma maneira de impedir os israelenses sem destruir tudo no processo. Alcançou o telefone e marcou.
— Daqui Kruz. Os americanos informaram-nos que um possível grupo da al-Qaeda está em trânsito de automóvel pelo país esta tarde. Eles suspeitam que os membros da al-Qaeda possam estar a viajar com simpatizantes europeus para melhor se misturarem no ambiente. A partir deste momento estou a ativar a rede de alerta terrorista. Aumentem a segurança nas fronteiras, aeroportos e estações de trem para Nível Dois.
Desligou e olhou pela janela. Tinha atirado uma bóia ao velho. Perguntou a si mesmo se ele estaria em condições de a agarrar. Kruz sabia que se conseguisse, seria confrontado com um outro problema em breve: o que fazer com a equipe de rapto israelense. Levou a mão ao bolso do paletó e retirou um pedaço de papel.
— Se ligar para este número, quem vai atender?
— A violência.
Manfred Kruz alcançou o seu telefone.
O RELOJOEIRO, DESDE seu regresso a Viena, dificilmente encontrava razão para sair do santuário da sua pequena loja no Bairro Stephansdom. As frequentes viagens tinham-no deixado com um enorme número de peças acumulado que requeriam a sua atenção, incluindo um relógio regulador vienense, estilo Biedermeier, fabricado pelo famoso relojoeiro Vienense Ignaz Marenzeller em 1840. A caixa de mogno estava nas condições originais, embora o painel prateado de uma só peça tivesse requerido muitas horas de restauração. O movimento Biedermeier original feito à mão, com a sua corda de 75 dias, estava exposto em várias peças cuidadosamente arranjadas na superfície da sua mesa de trabalho.
O telefone tocou. Ele baixou o volume do seu leitor de CD portátil e o Concerto Brandenburg N°. 4 em Sol de Bach diminuiu até um sussurro. Uma escolha banal, Bach, mas o Relojoeiro considerava a precisão de Bach um acompanhamento perfeito para a tarefa de desmantelar e reconstruir o movimento de um relógio antigo. Alcançou o telefone com a mão esquerda. Uma onda de dor percorreu-lhe o comprimento do braço, uma lembrança dos seus abusos em Roma e na Argentina. Levou o receptor à orelha e prendeu-o contra o ombro.
— Sim — disse distraidamente. As suas mãos estavam de volta ao trabalho.
— O seu número foi-me dado por um amigo comum.
— Estou a ver — disse o Relojoeiro de modo descomprometido. Como posso ajudá-lo?
— Não sou eu quem precisa de ajuda. É o nosso amigo. O Relojoeiro pousou as ferramentas.
— O nosso amigo? — perguntou.
— Realizou trabalhos para ele em Roma e na Argentina. Presumo que saiba a quem me estou a referir?
O Relojoeiro sabia de fato. Então, o velho induzira-o em erro e por duas vezes colocara-o em situações de campo comprometedoras. Agora tinha cometido o pecado operacional fatal de dar o seu nome a um estranho. Era óbvio que estava em sarilhos. O Relojoeiro suspeitou que tivesse alguma coisa a ver com os israelenses. Decidiu que agora seria um excelente momento para acabar com a relação.
— Peço desculpa — disse — mas penso que me está a confundir com outra pessoa. O homem do outro lado da linha tentou contra-argumentar. O Relojoeiro desligou o telefone e aumentou o volume do seu leitor de CD até que o som de Bach encheu a oficina.
NO APARTAMENTO SEGURO de Munique, Carter desligou o telefone e olhou para Shamron, que ainda estava de pé em frente ao mapa, como se imaginasse o progresso de Radek para norte em direção à fronteira checa.
— Era da nossa filial de Viena. Estão a monitorizar a rede de comunicações austríaca. Parece que Manfred Kruz elevou o alerta terrorista para Nível Dois.
— Nível Dois? O que significa isso?
— Significa que é possível que haja alguma dificuldade na fronteira.
A ASSISTÊNCIA ESTAVA na reentrância de um ribeiro gelado. Havia dois veículos, um Opel sedã e uma van Volkswagen. Chiara estava ao volante da Volkswagen, faróis apagados, motor desligado, o peso reconfortante de uma Beretta no colo. Não havia outros sinais de vida, não havia luzes na vila, não havia o ruído do tráfego na autoestrada, apenas o suave bater da neve no teto da van e o assobiar do vento pelos juncos dos abetos. Olhou por cima do ombro e olhou para o compartimento traseiro da Volkswagen. Tinha sido preparado para a chegada de Radek. O forro da traseira tinha sido colocado. Por baixo do forro estava um compartimento especialmente construído para escondê-lo durante a passagem pela fronteira. Ele ficaria confortável lá, mais confortável do que merecia.
Olhou pelo vidro. Não havia muito para ver, a estrada estreita subindo pela escuridão em direção a um cume à distância. Então, subitamente, houve uma luz, um brilho branco e limpo que iluminou o horizonte e transformou as árvores em minaretes pretos. Por alguns segundos, foi possível ver a neve, rodopiando como uma nuvem de insetos pelo ar varrido pelo vento. Então os faróis da frente surgiram. O carro contornou a colina, e as luzes espalharam-se por ela, atirando as sombras das árvores para um lado, depois para o outro. Chiara segurou a Beretta com a mão e deslizou o dedo indicador para dentro da guarda do gatilho.
O carro derrapou até parar junto à van. Ela olhou para o banco de trás e viu o assassino, sentado entre Navot e Zalman, rígido como um comissário à espera da limpeza de sangue. Ela rastejou até o compartimento traseiro e fez uma verificação final.
— TIRE O SOBRETUDO — ordenou Navot.
— Por quê?
— Porque estou mandando.
— Eu tenho o direito de saber por quê.
— Não tem direito nenhum! Faça apenas o que digo.
Radek permaneceu imóvel. Zalman puxou a lapela do casaco, mas o velho cruzou os braços com força junto ao peito. Navot suspirou pesadamente. Se o velho bastardo quer um combate final, vai consegui-lo. Navot abriu-lhe os braços à força enquanto Zalman puxava a manga direita, depois a esquerda. O casaco depois; em seguida Zalman rasgou a manga da camisa e expôs a pele caída do braço. Navot exibiu uma seringa, cheia de sedativo.
— Isso é para seu próprio bem — disse Navot. — É moderado e não tem efeito durante muito tempo. Vai fazer sua viagem muito mais suportável. Sem claustrofobia.
— Nunca tive claustrofobia.
— Não me interessa.
Navot espetou a agulha no braço de Radek e despejou o conteúdo. Passados alguns segundos, o corpo de Radek relaxou; em seguida a cabeça tombou para o lado e o queixo descaiu. Navot abriu a porta e saiu. Segurou o corpo amolecido de Radek debaixo dos braços e arrastou-o para fora do carro.
Zalman levantou-o pelas pernas e juntos carregaram-no como um morto de guerra para a lateral da van. Chiara estava agachada no interior, segurando uma máscara de oxigênio e outra de plástico transparente. Navot e Zalman deitaram Radek no chão da van; e Chiara colocou-lhe a máscara sobre o nariz e a boca. O plástico embaciou imediatamente, indicando que a respiração de Radek estava normal. Ela verificou-lhe o pulso. Regular e forte. Manusearam-no para dentro do compartimento e fecharam a tampa.
Chiara sentou-se ao volante e ligou o motor. Oded fechou-lhe a porta e deu uma pequena pancada com a mão no vidro. Chiara engatou a marcha e seguiu para a autoestrada. Os outros entraram no Opel e seguiram atrás dela.
CINCO MINUTOS MAIS TARDE, as luzes da fronteira apareceram como faróis no horizonte. Conforme Chiara se foi aproximando conseguiu ver uma pequena fila de trânsito com cerca de seis veículos de comprimento, esperando para atravessar. Havia dois guardas fronteiriços em evidência. Tinham as lanternas na mão e estavam a verificar passaportes e a espreitar pelas janelas. Ela olhou por cima do ombro. As portas do compartimento permaneciam fechadas. Radek estava em silêncio.
O carro em frente passou na inspeção e foi deixado seguir em direção ao lado checo. O guarda fronteiriço fez-lhe sinal para avançar. Ela baixou o vidro e sorriu.
— Passaporte, por favor.
Ela entregou. O segundo guarda tinha-se deslocado para o lado do passageiro da van, e ela conseguia ver o foco de luz da lanterna investigando o interior.
— Está tudo bem?
O guarda fronteiriço manteve os olhos na fotografia e não respondeu.
— Quando entrou na Áustria?
— Hoje.
— Onde?
— Pela Itália, em Tarvísio.
Ele dispensou um momento comparando o rosto dela com a fotografia do passaporte. Em seguida abriu a porta do motorista e com um gesto ordenou-lhe que saísse da van.
UZI NAVOT OBSERVOU a cena em primeira fila, no lugar do passageiro no banco da frente do Opel. Olhou para Oded e praguejou ligeiramente por entre os dentes. Em seguida ligou do celular para o apartamento seguro de Munique. Shamron atendeu ao primeiro toque.
— Temos um problema — disse Navot.
ELE ORDENOU que se colocasse na frente da van e apontou a lanterna para seu rosto. Através do brilho conseguia ver o segundo guarda fronteiriço abrindo a porta do passageiro da van. Forçou-se a olhar para o interrogador. Tentou não pensar na Beretta contra as suas costas. Ou em Gabriel, esperando do outro lado da fronteira em Mikulov. Ou Navot, Oded e Zalman observando impotentes do Opel.
— Para onde se dirige esta noite?
— Praga — disse ela.
— Por que vai para Praga?
Ela disparou-lhe um olhar: Não tem nada com isso. Então disse: — Vou visitar meu namorado.
— Namorado — repetiu ele. — O que seu namorado faz em Praga?
Ensina italiano, dissera Gabriel.
Ela respondeu à pergunta.
— Onde?
No Instituto de Estudos Linguísticos de Praga, tinha dito Gabriel. Mais uma vez, ela respondeu como Gabriel tinha instruído.
— E há quanto tempo ele é professor do Instituto de Estudos Linguísticos de Praga?
— Três anos.
— E vê-o com frequência?
— Uma vez por mês, às vezes duas.
O segundo guarda tinha entrado na van. Uma imagem de Radek passou-lhe pela mente, olhos fechados, máscara de oxigênio no rosto. Não acorde, pensou ela. Não se mexa. Não faça barulho. Aja decentemente, pelo menos uma vez em sua vida desprezível.
— E quando entrou na Áustria?
— Já disse isso.
— Diga outra vez, por favor.
— Hoje.
— A que horas?
— Não me lembro da hora.
— Era de manhã? Era de tarde?
— Tarde.
— Início da tarde? Fim da tarde?
— Início.
— Então ainda era dia?
Ela hesitou; ele pressionou-a.
— Sim? Ainda era dia?
Ela acenou. De dentro da van veio o som da porta traseira se abrindo. Ela se forçou a olhar diretamente para os olhos do interrogador. O seu rosto, escurecido pela irritante luz da lanterna, começou a parecer-se com Erich Radek, não a versão patética do Radek inconsciente na traseira da van, mas o Radek que arrastou uma criança chamada Irene Frankel das fileiras da marcha da morte de Birkenau em 1945 e a levou para uma floresta polonesa para um momento de tormento final.
— Diga as palavras, judia! Foi transferida para leste. Teve comida em abundância e cuidados médicos adequados. As câmaras de gás e o crematório são mentiras bolchevique-judaicas.
Eu consigo ser tão forte como você, Irene, pensou ela. Eu consigo passar por isso. Por você.
— Parou em algum lugar na Áustria?
— Não.
— Não aproveitou a oportunidade para visitar Viena?
— Já estive em Viena — disse ela. — Não me agrada.
Ele dispensou um momento examinando-lhe o rosto.
— É italiana?
— Tem meu passaporte na mão.
— Não estou falando de seu passaporte. Estou falando de sua etnia. Seu sangue. Descendência italiana ou imigrante do, digamos, Oriente Médio ou Norte de África?
— Sou italiana — assegurou ela.
O segundo guarda saiu da van e abanou a cabeça. O interrogador devolveu-lhe o passaporte.
— Peço desculpas pelo atraso — disse ele. — Tenha uma boa viagem.
Chiara sentou-se ao volante, engatou a marcha e passou a fronteira devagar. Desatou em lágrimas, lágrimas de alívio, lágrimas de raiva. No início tentou impedi-las, mas não conseguiu. A estrada ficou desfocada, as luzes traseiras transformaram-se em riscos vermelhos, e mesmo assim elas vieram.
— Por você, Irene — disse ela em voz alta. — Fiz isso por você.
A ESTAÇÃO DE trem de Mikulov fica no fim da cidade velha, onde as colinas encontram a planície. Há uma única plataforma, que suporta um quase constante ataque do vento que desliza pelos Cárpatos, e um melancólico estacionamento de gravilha, que se transforma num lago quando chove. Perto da bilheteira está uma parada de ônibus riscada de graffitis, e era ai, encostado ao lado de onde vem o vento, que Gabriel esperava, mãos mergulhadas nos bolsos do casaco impermeável.
Levantou o olhar quando a van entrou no estacionamento e esmagou a gravilha. Esperou até que parasse antes de sair da parada de ônibus para a chuva. Chiara esticou-se e abriu-lhe a porta. Quando a luz de teto se acendeu, ele viu que o seu rosto estava molhado.
— Estás bem?
— Estou ótima.
— Queres que eu conduza?
— Não, eu consigo.
— Tem certeza?
— Entra, Gabriel. Não suporto estar sozinha com ele.
Ele entrou e fechou a porta. Chiara deu meia volta e regressou à autoestrada. Um momento mais tarde estavam a ir para norte, para os Cárpatos. DEMORARAM MEIA HORA até chegar a Brno, mais uma hora para chegar a Ostrava. Gabriel abriu as portas do compartimento duas vezes para verificar Radek. Eram quase oito horas quando chegaram à fronteira polonesa. Sem verificações de segurança desta vez, sem fila de trânsito, apenas uma mão espetada fora do abrigo de tijolo acenando-lhes à passagem pela fronteira.
Gabriel rastejou para a traseira da van e puxou Radek do compartimento. Em seguida abriu uma gaveta e retirou uma seringa. Desta vez tinha uma dose moderada de estimulante, apenas o suficiente para o trazer de volta aos limites do consciente lentamente. Gabriel inseriu a seringa no braço de Radek, injetou a droga, em seguida retirou a agulha e esfregou a ferida com álcool. Os olhos de Radek abriram devagar. Observou o ambiente envolvente por um momento antes de se fixar no rosto de Gabriel.
— Allon? — murmurou ele pela máscara de oxigênio. Gabriel acenou lentamente.
— Para onde me levas? — Gabriel não respondeu. — Vou morrer? — perguntou, e, antes que Gabriel pudesse responder, voltou a ficar inconsciente.
37
POLÔNIA ORIENTAL
A BARREIRA ENTRE consciência e coma era como uma cortina de palco, pela qual ele conseguia passar à vontade. Só não sabia quantas vezes tinha passado por esta cortina. O tempo, como a sua velha vida, estavam perdidos para ele. A sua bela casa de Viena parecia a casa de outro homem, na cidade de outro homem. Algo tinha acontecido quando ele gritou o seu nome aos israelenses. Ludwig Vogel era agora um estranho para ele, um conhecido que ele já não via há muitos anos. Ele era Radek novamente. Infelizmente o tempo não tinha sido meigo com ele. O alto e belo homem de preto estava agora prisioneiro num corpo fraco e decadente.
O judeu tinha-o colocado no forro da traseira. As suas mãos e tornozelos estavam amarrados por uma grossa fita adesiva prateada, e estava amarrado com o cinto de segurança como um doente mental. Os seus pulsos serviam como o portal entre os dois mundos. Apenas tinha de os torcer num determinado ângulo para que a fita se cravasse dolorosamente na pele e passaria a cortina do mundo dos sonhos para o reino do real. Sonhos? Será apropriado chamar a tais visões sonhos? Não, eram demasiado exatas, descritivas demais. Eram memórias, sobre as quais ele não tinha controle, apenas o poder de as interromper por alguns momentos infligindo dor em si próprio com a fita adesiva do judeu.
O seu rosto estava perto da janela, e o vidro estava desobstruído. Ele era capaz, quando estava acordado, de ver a infindável região rural negra e as desoladoras vilas escurecidas. Também era capaz de ler os sinais na estrada. Não precisava dos sinais para saber onde estava. Algures, noutra vida, ele tinha sido o senhor da noite nesta terra. Ele lembrava-se desta estrada: Dachnow, Zukow, Narol... Ele sabia o nome da próxima vila, mesmo antes desta passar pela janela: Belzec...
Fechou os olhos. Porquê agora, passados tantos anos? Depois da guerra ninguém esteve assim tão interessado num mero oficial SD que servira na Ucrânia — ninguém exceto os russos, claro — e no momento em que o seu nome veio ao de cima com ligações à Solução Final, o General Gehlen tinha providenciado a sua fuga e o seu desaparecimento.
A sua antiga vida fora deixada para trás em segurança. Tinha sido perdoado por Deus e a sua Igreja e até mesmo pelos seus inimigos, que gananciosamente tiraram proveito dos seus serviços quando também eles se sentiram ameaçados pelo judaísmo-bolchevismo. Os governos rapidamente perderam o interesse em proceder contra os, assim chamados, criminosos de guerra, e amadores como Wiesenthal focaram a atenção em peixe graúdo como Eichmann e Mengele, ajudando de forma involuntária peixe mais miúdo como ele próprio a encontrar santuário em águas calmas. Houve um susto sério. Em meados dos anos setenta, um jornalista americano, um judeu, claro, que foi a Viena e colocou demasiadas questões. Na estrada que sai de Salzburg para sul ele mergulhou numa ravina, e a ameaça foi eliminada. Nessa altura agiu sem hesitar. Se tivesse lançado Max Klein numa ravina ao primeiro sinal de ameaça... Reparara nele naquele dia no Café Central, assim como nos dias que se seguiram. Os seus instintos tinham-lhe dito que Klein representava uma ameaça. Ele hesitou. Quando Klein levou a sua história ao judeu Lavon era demasiado tarde.
Passou pela cortina outra vez. Estava em Berlim, sentado no gabinete do oficial Gruppenführer Heinrich Müller, chefe da Gestapo. Müller tira um pedacinho de almoço dos dentes e sacode uma carta que acabou de receber de Luther no Ministério dos Negócios Estrangeiros. É 1942.
— Rumores das nossas atividades no Leste começaram a chegar aos ouvidos dos nossos inimigos. Também temos um problema com um dos locais na região de Warthegau. Queixas sobre uma contaminação qualquer.
— Se me permite colocar a questão óbvia, Herr Gruppenführer, que diferença faz se rumores chegam ao Oeste? Quem vai acreditar que tal coisa foi realmente possível?
— Rumores é uma coisa, Erich. Provas é outra.
— Quem vai descobrir provas? Algum servo polonês atrasado mental? Um vesgo abridor de valas ucraniano?
— Talvez os Ivans?
— Os russos? Como descobririam?
Müller ergueu uma mão de pedreiro. Discussão terminada. E então ele percebeu. A aventura russa do Führer não estava indo de acordo com os planos. A vitória no Leste já não estava assegurada.
Müller inclinou-se para a frente.
— Estou te mandando para o inferno Erich. Vou espetar essa sua cara nórdica tão fundo no esterco que nunca mais vai ver a luz do dia.
— Como poderei jamais agradecer, Herr Gruppenführer?
— Limpe a porcaria. Toda. Em toda parte. É sua responsabilidade garantir que se mantenha apenas um rumor. E quando a operação estiver concluída, quero que seja o único homem de pé.
Ele concordou. O rosto de Müller afastou-se pela noite polonesa. Estranho, não é? A sua verdadeira contribuição para a Solução Final não foi matar mas esconder e garantir a segurança, e no entanto estava com problemas agora, sessenta anos depois, por causa de um jogo idiota que fizera bêbado em Auschwitz num domingo. Aktion 1005? Sim, fora um projeto seu, mas nenhum sobrevivente judeu testemunharia sua presença na beira de uma vala comum, porque não havia sobreviventes. Ele geriu uma operação fechada. Eichmann e Himmler teriam sido aconselhados a fazer o mesmo. Foram tolos em permitir que tantos sobrevivessem.
Uma memória surgiu, janeiro de 1945, um rio de judeus frágeis dispersos ao longo de uma estrada muito parecida com esta. A estrada de Birkenau. Milhares de judeus, cada um com uma história para contar, cada um uma testemunha. Ele defendia a liquidação da população inteira do campo antes da evacuação. Não, disseram. Trabalho escravo era necessário com urgência no Reich. Trabalho? A maioria dos judeus que ele tinha visto sair de Birkenau mal conseguia andar, quanto mais manejar uma picareta ou uma pá. Eles não eram aptos para o trabalho, apenas para o massacre, e já tinha matado uns quantos, ele próprio. Por que, em nome de Deus, lhe tinham ordenado que limpasse as valas para depois permitir que milhares de testemunhas caminhassem para fora de um local como Birkenau?
Ele se esforçou por manter os olhos abertos, e observou pela janela. Estavam a conduzir ao longo das margens de um rio, perto da fronteira ucraniana. Ele conhecia este rio, um rio de cinzas, um rio de ossos.
Pensou quantas centenas de milhares estariam ali embaixo, sedimentadas no leito do Rio Bug.
Uma cidade adormecida: Uhrusk. Pensou em Peter. Ele tinha avisado que isto aconteceria.
— Se eu me tornar uma ameaça séria, posso ganhar a chancelaria — dissera Peter —, alguém vai tentar nops expor.
Ele sabia que Peter estava certo, mas também acreditava que conseguiria lidar com qualquer ameaça. Estava errado, e agora seu filho teria de enfrentar uma humilhação eleitoral inimaginável, tudo por sua culpa. Era como se os judeus tivessem levado Peter à beira de uma vala comum e apontado uma arma para sua cabeça. Ele pensou que conseguiria evitar que eles puxassem o gatilho, se conseguisse quebrar mais um acordo, engendrar uma fuga final.
E este judeu que olha fixamente para mim com aqueles rancorosos olhos verdes? O que espera ele que eu faça? Peça perdão? Vergue, chore e cuspa sentimentalismos? O que este judeu não percebe é que eu não sinto culpa pelo que fiz. Eu fui forçado pela mão de Deus e os ensinamentos da minha Igreja. Não nos disseram os padres que os judeus foram os assassinos de Deus? O Santo Padre e os seus cardeais não ficaram em silêncio quando sabiam perfeitamente o que estávamos a fazer no Leste? Será que este judeu espera que eu reprove assim sem mais nem menos e diga que foi um erro terrível? E porque olha ele para mim assim? Aqueles olhos eram-lhe familiares. Já os tinha visto em algum lado antes. Talvez fosse das drogas que lhe tinham dado. Ele não conseguia ter a certeza de nada. Ele nem tinha sequer a certeza de estar vivo. Talvez fosse a sua alma a fazer esta viagem ao longo do Rio Bug. Talvez estivesse no inferno.
Outra aldeola: Wola Uhruska. Ele conhecia a próxima vila. Sobibor...
Fechou os olhos, o veludo da cortina envolveu-o. É a Primavera de 1942, está a conduzir para fora de Kiev na estrada de Zhitomir com o comandante de uma unidade Einsatzgruppen ao lado. Estão a caminho para inspecionar uma ravina que se transformou num problema de segurança, um lugar que os ucranianos chamam Babi Yar. Quando chegam, o Sol já está a desaparecer no horizonte e está quase a anoitecer. Mesmo assim, há luz suficiente para observar o estranho fenômeno que acontece no fundo da ravina. A terra parece estar a debater-se com um ataque epiléptico. O solo tem convulsões, gás é disparado para o ar, juntamente com gêiseres de líquido pútrido. O fedor! Meu Deus, o fedor. Ele consegue cheirá-lo agora.
— Quando começou?
— Pouco depois do final do Inverno. O chão aqueceu, então os corpos aqueceram. Eles decompõem-se muito rapidamente.
— Quantos estão ali embaixo?
— Trinta e três mil judeus, alguns ciganos e prisioneiros soviéticos, assim por alto.
— Cerque a ravina inteira.
— No momento outros locais têm prioridade. Trataremos deste assim que possível.
— Que outros locais?
— Locais de que nunca ouviu falar: Birkenau, Belzec, Sobibor, Treblinka. Nosso trabalho aqui está feito. Esperam novas chegadas a qualquer momento, nos outros.
— O que vai fazer com este local?
— Abrimos as valas e queimamos os corpos, em seguida esmagamos os ossos e espalhamos os fragmentos nas florestas e nos rios.
— Queimar trinta mil cadáveres? Tentamos isso nas operações de massacre. Usamos lança-chamas, pelo amor de Deus. Cremações maciças a céu aberto não funcionam.
— Isso é porque nunca construíram uma pira em condições. Em Chelmno, eu provei que pode ser feito. Confie em mim, Kurt, um dia este local chamado Babi Yar será apenas um rumor, como os judeus que viviam aqui.
Ele torceu os pulsos. Desta vez a dor não foi suficiente para acordar. A cortina recusou-se a abrir. Permaneceu trancado numa prisão de memórias, vagueando por um rio de cinzas.
MERGULHARAM PELA noite adentro. O tempo era uma memória. A fita adesiva tinha-lhe cortado a circulação. Já não conseguia sentir as mãos e os pés. Sentia-se febrilmente quente num minuto e arrepiantemente frio no outro. Tinha a impressão de terem parado uma vez. Tinha cheirado gasolina. Estariam eles a encher o depósito? Ou seria apenas a memória de traves de caminho-de-ferro ensopadas em combustível?
Os efeitos da droga finalmente dissiparam. Ele estava agora acordado, alerta e consciente, e seguro de que não estava morto. Algo na postura do judeu lhe disse que estavam próximos do final da jornada. Tinham passado por Siedlce, depois, em Sokolow Podlaski, tinham virado para uma estrada de campo mais estreita. Dybow veio a seguir, depois Kosow Lacki. Saíram da estrada principal, para um trilho de terra batida. A van trepidava: dump-dump... dump-dump. A velha via-férrea, pensou, ainda aqui estava, claro. Seguiram o trilho até uma plataforma de abetos e bétulas e pararam um momento mais tarde num pequeno estacionamento alcatroado.
Um segundo carro entrou na clareira com os faróis apagados. Três homens saíram e aproximaram-se da van. Ele reconheceu-os. Eram os que o tinham tirado de Viena. O judeu colocou-se em cima dele e cuidadosamente cortou a fita adesiva e soltou as correias de couro.
— Venha — disse ele agradavelmente. — Vamos dar um passeio.
38
TREBLINKA, POLÔNIA
SEGUIRAM POR UM trilho por entre as árvores. Tinha começado a nevar. Os flocos caíam suavemente pelo ar tranquilo e assentavam-lhes nos ombros como cinzas de um
fogo distante. Gabriel segurava Radek pelo cotovelo. Os seus passos eram cambaleantes no início, mas em breve o sangue começou a fluir-lhe novamente aos pés e insistiu em caminhar sem o suporte de Gabriel. A sua respiração difícil gelava no ar. Cheirava a amargo e a medo.
Avançaram mais fundo para dentro da floresta. O trilho era arenoso e coberto por uma fina camada de faúlhas. Oded estava vários passos à frente, quase invisível através da queda de neve. Zalman e Navot caminhavam em formação atrás deles. Chiara tinha ficado para trás na clareira, vigiando os veículos. Fizeram uma pausa numa brecha nas árvores, de cerca de cinco metros de largura, estendendo-se pelo escuro. Gabriel iluminou-a com o foco de uma lanterna. No centro do corredor, em intervalos equidistantes, estavam várias pedras em pé. As pedras marcavam a linha da antiga vedação. Tinham chegado ao perímetro do campo. Gabriel desligou a lanterna e puxou Radek pelo cotovelo. Radek tentou resistir, mas tropeçou para a frente.
— Faça o que eu digo, Radek, e vai correr tudo bem. Não tente fugir, porque não há por onde escapar. Não vale a pena gritar por ajuda, porque ninguém vai ouvir seus gritos.
— Sente prazer em me ver com medo?
— Sinto nojo, para dizer a verdade. Não gosto nem de tocá-lo. Eu não gosto do som de sua voz.
— Então por que estamos aqui?
— Eu apenas quero que veja algumas coisas.
— Não há nada para ver aqui, Allon. Apenas um memorial polonês.
— Precisamente — Gabriel deu-lhe um puxão no cotovelo. — Venha, Radek. Mais depressa. Tem que andar mais depressa. Não temos muito tempo. Vai amanhecer em breve.
Um momento mais tarde, pararam de novo perante um caminho-de-ferro sem carris, o velho ramal que trouxera os trens da estação de Treblinka até o interior do campo. As traves tinham sido recriadas em pedra e estavam cobertas por neve recente. Seguiram os carris até o campo e pararam no sítio onde tinha estado a plataforma. Também ela estava representada em pedra.
— Lembra, Radek?
Ele ficou em silêncio, o queixo caído, a respiração áspera.
— Vá lá, Radek. Sabemos quem você é, nós sabemos o que fez. Desta vez não vai escapar. Não vale a pena entrar em jogos ou tentar negar alguma coisa. Não há tempo, a não ser que não queira salvar seu filho.
A cabeça de Radek girou lentamente. Os seus lábios comprimiram-se e o seu olhar endureceu.
— Faria mal ao meu filho?
— Na verdade, você fará por nós. Tudo o que temos a fazer é dizer ao mundo quem é o pai dele, e isso o destruirá. Foi por isso que plantou a bomba no escritório de Eli Lavon: para proteger Peter. Ninguém podia tocá-lo, não num lugar como a Áustria. A janela para você estava fechada há muito tempo. Estava seguro. A única pessoa que podia pagar um preço por seus crimes é seu filho. Foi por isso que tentou matar Eli Lavon. Foi por isso que assassinou Max Klein.
Voltou as costas a Gabriel e olhou para a escuridão.
— O que é que queres? O que queres saber?
— Conta-me como foi Radek. Eu já li sobre isso, eu vejo o memorial, mas não consigo imaginar como funcionou realmente. Como foi possível transformar em fumo um trem cheio de pessoas em apenas quarenta e cinco minutos? Quarenta e cinco minutos, porta a porta, não era disso que o staff das SS se costumava vangloriar por estes lados? Conseguiam transformar um judeu em fumo em quarenta e cinco minutos. Doze mil judeus por dia. Oitocentos mil no total.
Radek emitiu um riso fechado, um interrogador que não acreditava na afirmação do seu prisioneiro. Gabriel sentiu como se uma pedra tivesse sido posta sobre o seu coração.
— Oitocentos mil? Onde foste buscar um número desses?
— É a estimativa oficial do governo polonês.
— E espera que um bando de seres inferiores, como os poloneses, seja capaz de saber o que aconteceu nestes bosques? — A sua voz pareceu subitamente diferente, mais jovem e autoritária. — Por favor Allon, se vamos ter esta discussão, lidemos com os fatos e não com idiotice polonesa. Oitocentos mil? — Abanou a cabeça e efetivamente sorriu. Não, não foram oitocentos mil. O número real foi muito superior a isso.
UMA SÚBITA RAJADA de vento agitou as copas das árvores. Para Gabriel soou como o som dos rápidos de um rio. Radek estendeu a mão e pediu a lanterna. Gabriel hesitou.
— Não pensa que vou atacar você com isso, não?
— Eu sei de algumas coisas que fez.
— Isso foi há muito tempo.
Gabriel entregou-lhe a lanterna. Radek apontou o foco para a esquerda, iluminando um molho de árvores de folha permanente.
— Eles chamavam a esta área o campo de baixo. As casernas das SS eram ali mesmo. A vedação periférica passava mesmo por trás. Em frente, havia uma estrada alcatroada com arbustos e flores durante a Primavera e o Verão. Talvez te custe a acreditar, mas era na realidade bastante agradável. Não havia tantas árvores, claro. Plantamos as árvores depois de demolir o campo. Na altura eram apenas rebentos. Agora, estão completamente adultas, bem bonitas.
— Quantos SS?
— Normalmente cerca de quarenta. moças judias tratavam-lhes da limpeza, mas tinham polonesas para cozinhar, três moças locais que vinham das vilas em redor.
— E os ucranianos?
— Estavam aquartelados do lado oposto da estrada, em cinco casernas. A casa de Stangl era no meio, no cruzamento de duas estradas . Ele tinha um belo jardim. Foi desenhado para ele por um homem de Viena.
— Mas os recém-chegados nunca viram essa parte do campo?
— Não, não, cada parte do campo era cuidadosamente escondida da outra por vedações intercaladas com plantações de pinheiros. Quando chegavam ao campo, eles viam o que parecia ser uma normal estação de trem de campo, completa com um horário de partidas falso. Não havia partidas de Treblinka, claro. Apenas trens vazios partiam da estação.
— Havia aqui um edifício, não havia?
— Fora desenhado para parecer uma normal estação de trem, mas na realidade estava cheio de valores roubados de chegadas anteriores. Aquela seção ali era conhecida como o Largo da Estação. Ali havia o Largo da Recepção, ou o Largo da Triagem.
— Alguma vez viste a chegada dos transportes?
— Eu não tinha nada a ver com esse tipo de situação, mas sim, eu vi-os chegar.
— Havia dois procedimentos de chegada diferentes? Um para judeus da Europa Ocidental e outro para judeus do Leste?
— Sim, está correto. Os judeus da Europa Ocidental eram tratados com muita mentira e fraude. Não havia chicotes nem gritos. Era-lhes pedido educadamente que desembarcassem do trem. Pessoal médico de batas brancas estava à espera no Largo da Recepção para tratar dos doentes.
— Era tudo um estratagema, no entanto. Os velhos e os doentes eram levados e abatidos a tiro imediatamente.
Ele concordou.
— E os judeus do Leste? Como eram recebidos na plataforma?
— Eram recebidos por chicotes ucranianos.
— E depois?
Radek levantou a lanterna e apontou o foco a uma curta distância através da clareira.
— Havia uma cerca de arame farpado aqui. Para lá do arame existiam dois edifícios. Um era uma caserna para despir. No segundo edifício, judeus de trabalho cortavam o cabelo às mulheres. Quando terminavam, elas iam naquela direção. — Radek usou a lanterna para iluminar o caminho. — Havia aqui uma passagem, uma espécie de passagem de gado, com alguns metros de largura, arame farpado e ramos de pinheiro. Era conhecida como o tubo.
— Mas as SS tinham um nome especial para isso, não tinham?
Radek acenou.
— Estrada para o Paraíso.
— E onde ia dar a Estrada para o Paraiso?
Radek levantou o foco da sua luz.
— Para o campo de cima — disse. — O campo da morte.
PROSSEGUIRAM O CAMINHO até uma larga clareira polvilhada com centenas de pedregulhos, cada pedra representava uma comunidade judaica destruída em Treblinka. A pedra maior ostentava o nome Varsóvia. Gabriel olhou para lá das pedras, em direção ao céu, para leste. Começava a ganhar claridade.
— A Estrada para o Paraiso levava diretamente a um edifício de tijolo que albergava as câmaras de gás — disse Radek quebrando o silêncio. De repente parecia ansioso por falar. — Cada câmara tinha quatro metros por quatro metros. Inicialmente eram apenas três, mas em breve descobriram que precisavam de mais capacidade para satisfazer a procura. Foram acrescentadas mais dez. Um motor a gasóleo bombeava gases de monóxido de carbono para as câmaras. A asfixia demorava menos de trinta minutos. Depois disso os corpos eram retirados.
— E o que era feito com eles?
— Durante vários meses, foram enterrados ali fora, em grandes valas. Mas muito rapidamente as valas transbordaram e a decomposição dos corpos contaminou o campo.
— Foi quando chegou?
— Não de imediato. Treblinka era o quarto campo da nossa lista. Limpamos as valas de Birkenau primeiro, a seguir Belzec e Sobibor. Só chegamos a Treblinka em março de 1943. Quando eu cheguei... — a sua voz arrastou-se. — Terrível.
— O que fez?
— Abrimos as valas, claro, e retiramos os corpos.
— À mão?
Ele abanou a cabeça.
— Tínhamos uma escavadora mecânica. Acelerou bem o trabalho.
— A garra, não era assim que chamavam?
— Sim, era isso.
— E depois dos corpos serem retirados?
— Eram incinerados em grandes prateleiras de metal.
— Tinham um nome especial para as prateleiras, não tinham?
— Assadeiras — disse Radek. — Chamávamos de assadeiras.
— E depois dos corpos serem queimados?
— Esmagávamos os ossos e voltávamos a enterrá-los nas valas ou levávamos em carroças para despejar no rio Bug.
— E quando as valas antigas ficaram vazias?
— Depois disso, os corpos eram levados diretamente das câmaras de gás para as assadeiras. Funcionou assim até outubro desse ano, quando o campo foi fechado e todos os traços foram obliterados. Operou por pouco mais de um ano.
— E mesmo assim conseguiram assassinar oitocentos mil?
— Não foram oitocentos mil.
— Quantos foram então?
— Mais de um milhão. É qualquer coisa, não é? Mais de um milhão de pessoas, num lugar minúsculo como este, no meio de uma floresta polonesa.
GABRIEL TIROU A lanterna do rosto dele sacou a Beretta. Empurrou Radek com o cano. Caminharam ao longo de uma trilha, pelo campo de pedras. Zalman e Navot ficaram para trás no campo de cima. Gabriel conseguia ouvir os passos de Oded na gravilha atrás dele.
— Parabéns, Radek. Graças a você, é apenas um cemitério simbólico.
— Vai me matar agora? Não disse o que queria ouvir?
Gabriel empurrou-o pelo trilho.
— Você talvez tenha algum orgulho deste lugar, mas para nós é solo sagrado. Acha realmente que eu o poluiria com seu sangue?
— Então qual é o propósito disso? Por que me trouxe aqui?
— Você precisava ver isso mais uma vez. Visitar o local do crime para refrescar a memória e se preparar para o próximo testemunho. É assim que vai salvar seu filho da humilhação de ter tal homem na condição de pai. Vai para Israel pagar por seus crimes.
— Não foi meu crime! Eu não os matei! Eu apenas fiz o que Müller me ordenou. Eu limpei a porcaria!
— Teve sua cota de matança, Radek. Lembra do joguinho com Max Klein em Birkenau? E a marcha da morte? Também estava lá, não estava, Radek?
Radek reduziu o passo e voltou a cabeça. Gabriel deu-lhe um empurrão. Chegaram a um amplo declive retangular cheio de lascas de basalto negro, o local onde era a vala de cremação.
— Mate-me agora, maldição! Não me leve para Israel! Mate-me agora e acabe com isso. Aliás, é nisso que você é bom, não é, Allon?
— Não aqui — disse Gabriel. — Não neste lugar. Você nem sequer merece pôr os pés aqui, quanto mais morrer.
Radek caiu de joelhos defronte à vala.
— E se eu concordar em ir? Que destino me espera?
— A verdade o espera, Radek. Será posto perante o povo de Israel e confessará seus crimes. Seu papel na Aktion 1005. O massacre de prisioneiros em Birkenau. As mortes que infligiu durante a marcha da morte de Birkenau. Lembra das moças que assassinou, Radek?
Radek voltou a cabeça.
— Como é que...
Gabriel interrompeu-o.
— Não vai enfrentar julgamento por seus crimes, mas vai passar o resto da vida atrás das grades. Enquanto estiver na prisão, vai trabalhar com uma equipe de estudantes do Holocausto de Yad Vashem para compilar minuciosamente a história de Aktion 1005. Vais dizer aos que negam e aos que duvidam exatamente o que fizeste para esconder o maior caso de assassinato de massas da história. Vais dizer a verdade pela primeira vez na vida.
— Qual verdade, sua ou a minha?
— Só há uma verdade, Radek. Treblinka é a verdade.
— E o que é que eu ganho com isso?
— Mais do que mereces — disse Gabriel. — Não diremos nada sobre a ascendência duvidosa de Metzler.
— Estás disposto a aceitar um chanceler austríaco da extrema-direita para me apanhar?
— Algo me diz que Peter Metzler se vai tornar um grande amigo de Israel e dos judeus. Ele não vai querer fazer nada para nos irritar. Afinal de contas, nós teremos a chave para a sua destruição até muito depois de tu morreres.
— Como convenceste os americanos a trair-me? Chantagem, suponho: é essa a maneira judaica. Mas deve ter havido mais. Certamente juraram que nunca me dariam oportunidade de discutir a minha afiliação com a Organização Gehlen ou com a CIA. Suponho que a sua dedicação à verdade para por aí.
— Dá-me sua resposta Radek.
— Como posso confiar em ti, um judeu, que cumpras sua parte do acordo?
— Andaste a ler Der Sturmer outra vez? Vais confiar em mim porque não tens outra alternativa.
— E o que é que vai adiantar? Vai trazer de volta alguma das pessoas que aqui morreram?
— Não — concedeu Gabriel —, mas o mundo saberá a verdade, e tu vais passar os últimos anos de sua vida onde pertences. Aceita o acordo, Radek. Aceita pelo teu filho. Pensa nele como uma última fuga.
— Não ficará secreto para sempre. Um dia, a verdade sobreste caso vai vir ao de cima.
— Se calhar — disse Gabriel. — Suponho que não seja possível esconder a verdade para sempre.
A cabeça de Radek voltou-se lentamente e ele olhou para Gabriel com desdém.
— Se fosses um homem a sério, fazias tu mesmo. — Esboçou um sorriso trocista.
— Quanto à verdade, ninguém se importou enquanto este lugar estava operacional, e ninguém se vai importar agora.
Voltou-se e olhou para a vala. Gabriel guardou a Beretta no bolso e afastou-se. Oded, Zalman e Navot ficaram imóveis por trás dele no trilho. Gabriel passou por eles sem dizer uma palavra e dirigiu-se para baixo através do campo até a plataforma de caminho-de-ferro. Antes de virar para as árvores, parou por instantes para olhar sobre o ombro e viu Radek, segurando-se ao braço de Oded, pondo-se de pé devagar.
PARTE QUATRO
O prisioneiro de Abu Kabir
39
JAFFA, ISRAEL
HOUVE MUITA DISCUSSÃO sobre onde o manter cativo. Lev considerava-o um risco para a segurança e, como tal, queria mantê-lo sob custódia do Escritório. Shamron, como de costume, tomou a posição contrária, quanto mais não fosse por não querer ver os seus adorados serviços restringidos a gerir prisões. O primeiro-ministro, mesmo que a brincar, sugeriu que Radek fosse forçado a marchar para o Negev, para que os escorpiões e abutres tratassem dele. No fim, acabou por ser Gabriel a tomar a decisão. Segundo ele, para alguém como Radek, a pior punição seria a de ser tratado como um criminoso comum. Procuraram um local apropriado e concordaram em prendê-lo numa prisão policial, construída pelos ingleses durante o Mandato numa zona degradada de Jaffa, ainda hoje conhecida pelo seu nome árabe: Abu Kabir.
Passaram 72 horas para que a apreensão de Radek fosse tornada pública. O comunicado do primeiro-ministro foi conciso e propositadamente enganador. Foram tomadas muitas precauções para evitar embaraçar, sem necessidade, os austríacos. Segundo disse o primeiro-ministro, Radek foi descoberto a viver sob falsa identidade num pais não especificado. E após um período de negociações concordara vir de livre vontade para Israel. Segundo os termos do acordo, ele não seria julgado, uma vez que de acordo com a lei israelense, a única sentença possível seria a condenação à morte. Em vez disso, ele permaneceria constantemente sob a detenção do Estado e iria, de fato, dar-se como culpado dos seus crimes contra a humanidade ao trabalhar com uma equipe de historiadores em Yad Vashem e na Universidade Hebraica, com a finalidade de compilar a história definitiva da Aktion 1005.
Houve pouco rebuliço e muito menos excitação do que com a noticia que acompanhou o rapto de Eichmann. Na realidade, a noticia da captura de Radek foi sobreposta poucas horas depois pelo massacre de vinte e cinco pessoas num mercado de Jerusalém por um homem-bomba. Lev sentiu uma certa satisfação com o desenrolar dos acontecimentos, pois assim demonstrava o seu ponto de vista de que o Estado tinha mais com que se preocupar do que perseguir velhos nazistas. Começou a referir-se ao caso como "a asneira de Shamron", apesar de ele ter recuperado o seu devido nível hierárquico no serviço. Dentro do King Saul Boulevard, a captura de Radek pareceu reacender velhas fogueiras. Lev ajustou a sua postura de acordo com o estado de espirito geral mas era demasiado tarde. Todos sabiam que a prisão de Radek havia sido orquestrada pelo Memuneh e Gabriel e que Lev tinha tentado bloqueada a cada passo. O carisma de Lev junto dos soldados rasos caiu para níveis perigosamente baixos.
A pouco crível tentativa de manter secreta a identidade austríaca de Radek foi desfeita pelo vídeo da sua chegada a Abu Kabir. A imprensa de Vienna identificou rápida e corretamente o prisioneiro como sendo Ludwig Vogel, um empresário austríaco de renome. Teria ele de fato concordado deixar Viena voluntariamente? Ou teria sido, na verdade, raptado da sua residência fortificada no Primeiro Bairro? Nos dias que se seguiram, os jornais faziam alusões especulativas à sua misteriosa carreira e às suas ligações politicas. As investigações da imprensa aproximaram-se perigosamente de Peter Metzler. Renate Hoffman da Coligação para uma Áustria Melhor solicitou um inquérito oficial ao caso e sugeriu que Radek poderia ter ligações ao atentado a bomba ao Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra e à misteriosa morte de um judeu idoso chamado Max Klein. As suas exigências foram categoricamente ignoradas. O governo disse que o atentado fora obra de terroristas islâmicos. E quanto à infeliz morte de Max Klein, fora suicídio. Segundo o ministro da Justiça qualquer investigação complementar seria um desperdício de tempo.
O capítulo seguinte do caso Radek teria lugar, não em Viena, mas em Paris, onde um ex-agente do KGB com aspecto duvidoso surgiu na televisão francesa dizendo que Radek era o homem de Moscovo em Viena. Um antigo chefe de espionagem da Stasi, que se havia tornado um êxito literário na nova Alemanha, veio também reconhecer Radek.
De início, Shamron suspeitou que estas reivindicações faziam parte de uma campanha conjunta de desinformação com o fim de ilibar a CIA do vírus Radek: que era exatamente o que ele teria feito se os papéis estivessem invertidos. Depois, descobriu que, no interior da Agência, as sugestões de que Radek podia ter jogado para ambos os lados criaram algum pânico. Estavam a ser retirados arquivos dos arquivos mortos e a ser reunida à pressa uma equipe soviética de ajuda com elementos veteranos. Shamron divertia-se secretamente com a ansiedade dos seus colegas de Langley. Segundo Shamron, se se viesse a descobrir que Radek era um agente duplo seria muito justo. Adrian Carter solicitou autorização para interrogar Radek mal os historiadores tivessem terminado o seu trabalho. Shamron prometeu considerar o assunto com seriedade. O PRISIONEIRO DE Abu Kabir estava bastante alheio à tempestade criada à sua volta. A sua prisão era solitária, apesar de não ser demasiado árdua. Mantinha a cela e as roupas limpas, aceitava comida e pouco reclamava. Por muito que os guardas quisessem odiá-lo, não conseguiam. No fundo ele era um polícia e os seus carcereiros pareciam ver nele algo familiar. Tratava-os com cortesia e, como reação, era tratado com cortesia. Ele era, também, uma espécie de curiosidade. Eles haviam lido sobre homens como ele na escola e passavam à frente da sua cela a qualquer hora, apenas para o ver. Radek começou aos poucos a sentir-se como se fosse uma peça de exposição de um museu.
O seu único pedido foi o de lhe ser autorizado o acesso a um jornal todos os dias para se manter a par dos assuntos da atualidade. A questão foi levada até Shamron, que deu a sua autorização, desde que fosse um jornal israelense e não uma qualquer publicação alemã. Todas as manhãs o Jerusalém Post era-lhe entregue com a travessa do pequeno-almoço. Normalmente saltava as histórias sobre si mesmo — eram, aliás, muito incorretas — e dirigia-se diretamente à seção das notícias internacionais com a finalidade de acompanhar os desenvolvimentos das eleições austríacas.
Moshe Rivlin visitou Radek várias vezes para se preparar para o seu iminente depoimento. Foi decidido que as sessões seriam filmadas e transmitidas à noite na televisão israelense. Radek parecia estar cada vez mais agitado com a aproximação do dia da sua primeira aparição em público. Discretamente, Rivlin pediu ao chefe da prisão para manter o prisioneiro sob vigilância de suicídio. Foi plantado um guarda no corredor, junto às barras da cela de Radek. Ao princípio, Radek criou atritos com a vigilância adicional, mas passou rapidamente a apreciar a companhia.
Rivlin surgiu uma última vez na véspera da primeira sessão de depoimento de Radek. Passaram uma hora juntos; Radek estava preocupado e, pela primeira vez, nada cooperante. Rivlin arrumou os seus documentos e notas e pediu ao guarda para abrir a porta.
— Quero vê-lo — disse Radek de repente. — Pergunte se me daria a honra de me fazer uma visita. Diga-lhe que há algumas perguntas que eu quero fazer.
— Não posso prometer nada — disse Rivlin. — Não tenho ligações a...
— Pergunte, apenas — disse Radek. — O máximo que ele pode fazer é dizer não.
SHAMRON OBRIGOU Gabriel a permanecer em Israel até o primeiro dia de depoimento de Radek e Gabriel, apesar de estar ansioso por voltar a Veneza, aceitou relutante. Ele ficou no apartamento seguro perto das Portas de Zion e acordava todas as manhãs ao som dos sinos da igreja do bairro armênio. Sentava-se na sombra do terraço olhando as muralhas da Cidade Velha e desfrutava o seu tempo com café e jornais. Seguia de perto o caso Radek. Ficou contente por ver o nome de Shamron ligado à captura e não o seu. Gabriel vivia no estrangeiro, sob uma identidade falsa e não precisava que o seu verdadeiro nome fosse espalhado pela imprensa. Além disso, depois de tudo o que Shamron tinha feito pelo seu país, merecia um último dia de glória.
Conforme os dias passavam, lentamente, Gabriel percebeu que Radek parecia, cada vez mais, um estranho. Apesar de abençoado com uma memória quase fotográfica,
Gabriel lutava por se lembrar claramente da cara de Radek ou do som da sua voz. Treblinka parecia algo saído de um pesadelo. Perguntou-se se a sua mãe teria sentido o mesmo. Teria Radek permanecido nas divisões da sua memória como um convidado indesejado, ou teria ela forçado a sua memória para produzir a sua imagem na tela? Teria sido assim para todos os que se tinham cruzado com um Mal tão perfeito? Talvez assim se explicasse o silêncio que tinha dominado os sobreviventes. Talvez eles tivessem sido piedosamente libertados da dor das suas memórias, como meio de autopreservação. Uma ideia regressava-lhe constantemente ao pensamento: se, naquele dia na Polônia, Radek tivesse morto a sua mãe em vez das outras duas moças, ele nunca teria existido. Também ele começou a sentir a culpa dos sobreviventes.
Ele só tinha a certeza de uma coisa: ainda não estava pronto para esquecer. Assim, ficou contente quando um dos acólitos de Lev lhe ligou uma tarde a perguntar se ele estaria disposto a escrever uma história oficial do caso. Gabriel aceitou, desde que ele pudesse também criar uma versão não censurada dos acontecimentos, para ser guardada nos arquivos de Yad Vashem. Houve ainda alguma discussão sobre quando tal documento poderia ser tornado público. Foi então definida uma data de lançamento, quarenta anos, e Gabriel começou o trabalho.
Ele escreveu na mesa da cozinha, num computador portátil fornecido pelo Escritório. Todas as noites, trancava o computador num cofre de chão, escondido sob o sofá da sala de estar. Não tinha qualquer experiência de escrita, por isso, por instinto, fez a aproximação ao projecto como se de uma pintura se tratasse. Começou com um esboço de base, amplo e amorfo e então, lentamente, foi adicionando camadas de tinta. Usou uma paleta simples e a sua técnica de traço foi cuidada. com o passar dos dias, a cara de Radek voltou-lhe à memória com a clareza com que havia sido pintada pela mão da sua mãe.
Usualmente, trabalhava até o princípio da tarde. Depois fazia uma pausa e dava um passeio até o Hospital da Universidade de Hadassah, onde, após um mês de coma, Eli Lavon estava a mostrar sinais de querer regressar à consciência. Gabriel sentava-se junto de Lavon cerca de uma hora e falava-lhe do caso. Depois voltava ao apartamento e trabalhava até a noite.
No dia em que terminou o relatório, deixou-se ficar no Hospital até o princípio da noite e, por acaso, estava lá quando os olhos de Lavon se abriram. Lavon ficou a fixar o vazio por uns instantes; então a velha expressão inquisidora voltou-lhe ao olhar e divagou pelo ambiente desconhecido da sala do hospital até se fixar no rosto de Gabriel.
— Onde estamos? Viena?
— Jerusalém.
— O que é que estás aqui a fazer?
— Estou a trabalhar num relatório para o Escritório.
— Sobre o quê?
— Sobre a captura de um criminoso de guerra nazista chamado Erich Radek.
— Radek?
— Ele estava a viver em Viena sob o nome de Ludwig Vogel. Lavon sorriu.
— Conta-me tudo — murmurou, mas antes que Gabriel pudesse dizer uma palavra, ele já tinha adormecido outra vez.
Nessa noite, quando Gabriel voltou ao apartamento, a luz do atendedor de chamadas estava a piscar. Carregou no PLAY e a ouviu a voz de Moshe Rivlin.
— O prisioneiro de Abu Kabir quer falar com você. Eu mandava-o para o Inferno. Você é que sabe.
40
JAFFA, ISRAEL
O CENTRO DE DETENÇÕES era cercado por um alto muro cor de areia, com rolos de arame farpado no topo. Gabriel apresentou-se na entrada exterior no inicio da manhã seguinte e foi admitido sem demora. Para chegar ao interior, tinha de atravessar uma passagem vedada estreita, que lhe lembrava demasiado a Estrada para o Paraiso em Treblinka. Um guarda esperava-o na outra ponta. Silenciosamente, conduziu Gabriel pela porta de segurança e depois para uma sala de interrogatórios sem janelas, com paredes em blocos de betume. Radek estava sentado à mesa, imóvel, vestido com um terno escuro e gravata, para prestar depoimento. Estava algemado com os dedos cruzados sobre a mesa. Saudou Gabriel com um aceno de cabeça quase imperceptível, mas permaneceu sentado.
— Tire-lhe as algemas — disse Gabriel ao guarda.
— É contra as regras.
Gabriel olhou para o guarda e, pouco depois, as algemas tinham sido tiradas.
— Faz isso muito bem — disse Radek. — Isso foi mais uma artimanha psicológica sua? Está tentando demonstrar seu domínio sobre mim?
Gabriel puxou a cadeira de ferro e sentou-se.
— Não me parece que dadas as circunstâncias seja necessária uma demonstração dessas.
— Suponho que esteja certo — disse Radek. — Mesmo assim, admiro a forma como lidou com todo o caso. Eu gostaria de acreditar que teria feito as coisas assim tão bem.
— Para quem? — perguntou Gabriel. — Para os americanos, ou para os russos?
— Está se referindo às alegações feitas em Paris por aquele idiota do Belov?
— São verdadeiras?
Radek fitou Gabriel em silêncio e por breves segundos parte do velho olhar de aço regressou-lhe aos olhos azuis.
— Quando alguém esteve em jogo tanto tempo como eu estive, faz tantas alianças e envolve-se em tantas mentiras, que no fim é difícil saber onde é que a verdade e a mentira se separam.
— Belov parece ter certeza de que sabe a verdade.
— Sim, mas receio que seja apenas a certeza de um tolo. Sabe, é que Belov não estava em posição de saber a verdade. — Radek mudou de assunto. — Presumo que tenha visto os jornais desta manhã?
Gabriel acenou que sim.
— A margem de vitória dele foi maior que a esperada. Aparentemente, minha prisão teve algo a ver com isso. Os austríacos nunca gostaram de ver estranhos se metendo em seus assuntos.
— Não está se vangloriando, está?
— Claro que não — disse Radek. — Estou apenas com pena de não ter negociado com mais dureza em Treblinka. Talvez não devesse ter aceite tão facilmente. Não tenho tanta certeza de que a campanha do Peter pudesse ter descarrilhado com as revelações do meu passado.
— Há coisas que são politicamente incômodas, mesmo num pais como a Áustria
— Você nos subestima, Allon.
Gabriel deixou cair algum silêncio entre eles. Já estava a começar a arrepender-se da decisão de ter vindo.
— Moshe Rivlin disse que queria me ver — disse com desprezo. — Não tenho muito tempo.
Radek endireitou-se na cadeira.
— Estava pensando se poderia me fazer a cortesia profissional de responder a algumas perguntas.
— Isso depende das perguntas. Você e eu estamos em profissões diferentes, Radek.
— Sim — disse Radek. — Eu era um agente do serviço secreto americano e você é um assassino.
Gabriel levantou-se para ir embora. Radek levantou a mão.
— Espere — disse. — Sente-se. Por favor.
Gabriel voltou a sentar-se.
— O homem que ligou para minha casa na noite do sequestro...
— Quer dizer, de sua prisão?
Radek baixou a cabeça.
— Está bem, minha prisão. Presumo que era um impostor?
Gabriel acenou que sim.
— Ele era muito bom. Como ele conseguiu imitar Kruz tão bem?
— Não espera que eu responda a isso, Radek. — Gabriel olhou para o relógio. — Espero que não me tenha feito vir até Jaffa só para me fazeres uma pergunta.
— Não — disse Radek. — Há mais uma coisa que eu gostaria de saber. Quando estávamos em Treblinka, disse que eu tinha tomado parte na evacuação de prisioneiros de Birkenau.
Gabriel interrompeu-o. — Será que podemos deixar os eufemismos de vez, Radek? Não foi uma evacuação. Foi uma marcha da morte.
Radek manteve-se em silêncio por um momento.
— Disse também que eu tinha assassinado pessoalmente alguns prisioneiros.
— Eu sei que assassinou pelo menos duas moças — disse Gabriel. — Tenho certeza de que deve ter havido mais.
Radek fechou os olhos e acenou lentamente com a cabeça que sim.
— Houve mais — disse, distante. — Muitos mais. Lembro-me desse dia como se tivesse sido na semana passada. Eu já sabia há algum tempo que o fim estava próximo, mas ver aquela coluna de prisioneiros marchando em direção ao Reich... Foi quando eu soube que era o Götterdämmerung. Era, realmente, o Crepúsculo dos Deuses.
— E então começou a matá-los?
Ele acenou de novo.
— Eles tinham me confiado a missão de guardar seu terrível segredo e estavam deixando vários milhares de testemunhas saírem vivas de Birkenau. Deve imaginar como eu me senti.
— Não — disse Gabriel com honestidade. — Nem consigo começar a imaginar como deve ter se sentido.
— Houve uma moça — disse Radek. — Lembro-me de ter perguntado o que ela diria aos filhos sobre a guerra. Ela disse que lhes diria a verdade. Ordenei que mentisse. Ela se recusou. Matei duas outras moças e, mesmo assim, ela continuava a me desafiar. Por algum motivo, deixei-a ir. Parei de matar prisioneiros depois disso. Ao olhá-la nos olhos, percebi que não valia a pena.
Gabriel baixou os olhos e fixou as mãos para evitar morder a isca de Radek.
— Presumo que esta mulher seja sua testemunha? — perguntou Radek.
— Sim, é ela.
— É engraçado — disse Radek — mas ela tem seus olhos.
Gabriel levantou o olhar. Hesitou e depois disse: — É o que me dizem.
— É sua mãe?
Mais uma hesitação, depois a verdade.
— Diria que sinto muito — disse Radek. — Mas sei que as minhas desculpas não significam nada para você.
— Tem razão — disse Gabriel. — Não diga.
— Então foi por ela que fez isso?
— Não — disse Gabriel. — Foi por todos eles.
A porta se abriu. O guarda entrou e disse que estava na hora de seguir para Yad Vashem. Radek levantou-se devagar e esticou as mãos. Os seus olhos permaneceram firmes no rosto de Gabriel enquanto as algemas eram colocadas nos seus pulsos. Gabriel acompanhou-o até a entrada e ficou a vê-lo dirigir-se pela passagem, até a parte de trás de uma van que o esperava. Já tinha visto o suficiente. Agora só queria esquecer.
APÓS DEIXAR ABU KABIR, Gabriel foi até Safed para visitar Tziona. Almoçaram num pequeno restaurante de espetadas no Bairro dos Artistas. Ela tentou conversar com ele sobre o caso Radek, mas Gabriel, afastado da presença do assassino há apenas duas horas, não estava com disposição para discuti-lo ainda mais. Obrigou Tziona a jurar segredo quanto ao envolvimento dele no caso e depois mudou de assunto de repente.
Discutiram arte durante algum tempo, depois política e finalmente o estado da vida de Gabriel. Tziona tinha conhecimento de um apartamento vazio a apenas alguns quarteirões do dela. Era grande o suficiente para albergar um Estúdio e era abençoado com a melhor iluminação da Galileia de Cima. Gabriel prometeu pensar no assunto, mas Tziona sabia que ele estava apenas a apaziguá-la. O desconforto havia voltado aos seus olhos. Ele estava pronto para partir.
Enquanto bebiam o café, ele disse-lhe que tinha encontrado um lugar para algum do trabalho da sua mãe.
— Onde?
— O Museu da Arte do Holocausto em Yad Vashem. Os olhos de Tziona inundaram-se de lágrimas.
— Que perfeito — disse ela.
Depois do almoço subiram as escadas de pedra até o apartamento de Tziona. Ela abriu o armário e cuidadosamente retirou os quadros. Passaram uma hora a escolher vinte das melhores peças para Yad Vashem. Tziona encontrou outras duas telas mostrando a imagem de Erich Radek. Perguntou a Gabriel o que queria que ela fizesse com elas.
— Queima-as — respondeu ele.
— Mas, provavelmente, valem muito dinheiro agora.
— Não me interessa o quanto valem — disse Gabriel. — Eu nunca mais quero ver a cara dele.
Tziona ajudou-o a transportar os quadros para o carro dele. Arrancou para Jerusalém sob um céu carregado de nuvens. Dirigiu-se primeiro a Yad Vashem. O conservador recebeu os quadros e apressou-se para ir assistir ao início do depoimento de Erich Radek. como o resto do país. Gabriel conduziu pelas ruas silenciosas até o Monte das Oliveiras. Pôs uma pedra na campa da sua mãe e recitou-lhe as palavras de luto Kaddish. Fez o mesmo na campa do seu pai. Depois, dirigiu-se para o aeroporto e apanhou o voo da tarde para Roma.
41
VENEZA * VIENA
NA MANHÃ SEGUINTE, na sestière de Cannaregio, Francesco Tiepolo entrou na Igreja de San Giovanni Crisóstomo e atravessou lentamente a nave. olhou para a Capela de Saint Jerome e viu luzes acesas por detrás da lona que cobre a plataforma de trabalho. Aproximou-se lentamente, agarrou no andaime com a sua mão, grande como a pata de um urso, e abanou-o violentamente. O restaurador levantou a sua viseira de lupa e fitou-o como um gárgula.
— Bem-vindo a casa, Mário — disse Tiepolo para cirna. — Estava a começar a ficar preocupado com você. Por onde andaste?
O restaurador baixou a viseira e virou o seu olhar de volta para o Bellini.
— Tenho andado a recolher centelhas, Francesco.
A recolher centelhas. Tiepolo tinha o bom senso suficiente para não fazer mais perguntas. Apenas lhe interessava ter o restaurador finalmente de volta a Veneza. — Quanto tempo até terminares?
— Três meses — disse o restaurador. — Talvez quatro.
— Três seria melhor.
— Sim, Francesco. Eu sei que três meses seria melhor. Mas se continuas a abanar a minha plataforma, nunca mais vou acabar.
— Não estás a planejar fazer mais recados, ou estás, Mário?
— Só um — disse, com o pincel pousado em frente da tela. — Mas não vou demorar. Prometo.
— Isso é o que dizes sempre.
A ENCOMENDA CHEGOU por um estafeta motorizado à Relojoaria, no Primeiro Bairro de Viena, exatamente três semanas depois. O Relojoeiro recebeu a encomenda pessoalmente. Deixou sua assinatura nos papéis do correio e deu-lhe uma pequena gorjeta pelo incômodo. Depois, levou o embrulho para a oficina e colocou-o sobre a mesa.
O estafeta montou em sua moto e afastou-se rapidamente, reduzindo por instantes no fim da rua, apenas o suficiente para fazer sinal à mulher sentada ao volante do Renault sedã. A mulher teclou um número no celular e apertou SEND. Pouco depois, o Relojoeiro respondeu.
— Acabei de lhe enviar um relógio — disse ela. — Recebeu-o?
— Quem fala?
— Sou uma amiga de Max Klein — disse ela baixinho. — E de Eli Lavon. E de Reveka Gazit. E de Sarah Greenberg.
Ela baixou o telefone e pressionou rapidamente quatro números seguidos, virando em seguida a cabeça a tempo de ver a brilhante bola de fogo vermelha emergindo da fachada da loja do Relojoeiro.
Afastou-se da calçada, mãos trêmulas no volante e dirigiu para a Ringstrasse. Gabriel tinha abandonado sua moto e esperava-a na esquina. Ela parou o carro o tempo suficiente para ele entrar, depois virou para a larga avenida e desapareceu no trânsito da tarde. Um carro da Staatspolizei passou por eles a alta velocidade na direção contrária. Chiara manteve os olhos na estrada.
— Você está bem?
— Acho que vou vomitar.
— Sim, eu sei. Quer que eu dirija?
— Não, eu consigo.
— Devia ter me deixado enviar o sinal da detonação.
— Não queria que se sentisse responsável por mais uma morte em Viena. — Ela limpou uma lágrima da face. — Pensou neles quando ouviu a explosão? Pensou em Leah e Dani?
Ele hesitou, depois abanou a cabeça.
— Pensou em quê?
Ele chegou-se a ela e limpou-lhe outra lágrima.
— Em você, Chiara — disse ele, suavemente. — Pensei apenas em você.
NOTA DO AUTOR
Morte em Viena completa um ciclo de três romances sobrem os assuntos inacabados do Holocausto. A pilhagem de arte pelos nazistas e a colaboração de bancos suíços servem de pano de fundo para O Assassino Inglês. O papel da Igreja Católica no Holocausto e o silêncio do Papa Pio XII inspiraram O Confessor. Morte em Viena, como os seus predecessores, é vagamente baseada em fatos reais. Heinrich Gross foi de fato um médico na notória clínica de Spiegelgrund durante a guerra, e a descrição da pouco empenhada tentativa austríaca de o julgar em 2000 é inteiramente exata. Nesse mesmo ano, a Áustria foi abanada por alegações afirmando que agentes da polícia e dos serviços de segurança trabalhavam para Jörg Haider e o seu Partido da Liberdade de extrema-direita para ajudar a desacreditar críticos e oponentes políticos.
Aktion 1005 foi o verdadeiro nome de código do programa nazista para ocultar as provas do Holocausto e destruir os restos mortais de milhões de judeus. O líder da operação, um austríaco chamado Paul Blobel, foi condenado em Nuremberg pelo seu papel nos assassinatos em massa dos Einsatzgruppen e condenado à morte. Enforcou-se na prisão de Landsberg em Junho de 1951, nunca foi detalhadamente questionado sobre o seu papel como comandante da Aktion 1005.
O bispo Alois Hudal foi de fato o reitor do Pontifício Santa Maria dell'Anima e ajudou centenas de criminosos de guerra nazistas a fugir da Europa, incluindo o comandante de Treblinka, Franz Stangl. O Vaticano afirma que o bispo Hudal agia sem a aprovação ou o conhecimento do Papa ou outro agente sênior da Cúria.
A Argentina, claro, foi o destino final de milhares de criminosos de guerra procurados. É possível que um pequeno número ainda lá resida nos dias de hoje. Em 1994, o antigo oficial das SS, Erich Priebke, foi descoberto a viver livremente em Bariloche por uma equipe de reportagem da ABC. Evidentemente Priebke sentia-se tão seguro em Bariloche que, em entrevista ao correspondente da ABC, Sam Donaldson, admitiu de livre vontade o seu papel central no massacre das Grutas Ardeatinas em março de 1944. Priebke foi extraditado para Itália, julgado e condenado a prisão perpétua, embora lhe tenha sido permitido cumprir a pena em "prisão domiciliária". Durante vários anos de manobras legais e apelos, a Igreja Católica permitiu a Priebke viver num mosteiro nas imediações de Roma.
Olga Lengyel, no seu testemunho 1947, memória de uma sobrevivente em Auschwitz, escreveu: "Certamente todos aqueles cujas mãos estiveram direta, ou Indiretamente manchadas com o nosso sangue devem pagar pelos seus crimes. Menos do que isso seria um ultraje contra milhões de mortes inocentes." O seu apaixonado apelo por justiça, no entanto, passou largamente despercebido. Apenas uma minúscula percentagem daqueles que levaram a cabo a Solução Final ou tiveram um papel auxiliar ou colaboracionista enfrentaram punição pelos seus crimes. Dezenas de milhar encontraram santuário em terras estrangeiras, incluindo nos Estados Unidos; outros regressaram simplesmente a casa e prosseguiram com as suas vidas. Alguns arranjaram emprego na rede de serviços secretos do General Reinhard Gehlen patrocinada pela CIA. Que impacto tiveram homens como estes na conduta da política de relações internacionais da América durante a Guerra-Fria? A resposta talvez nunca seja inteiramente conhecida.
30
VIENA
MEIA-NOITE NO Primeiro Bairro, uma calma de morte, um silêncio que só Viena consegue produzir, um majestoso vazio. Kruz achava reconfortante. Mas o sentimento não durou muito. Era raro o velho telefonar-lhe para casa, e Kruz nunca tinha sido arrastado da cama a meio da noite para uma reunião. Duvidava que as noticias fossem boas.
Olhou para o fundo da rua e não viu nada fora do normal. Uma olhadela para o retrovisor confirmou que não tinha sido seguido. Saiu e caminhou até o portão da imponente casa de pedra do velho. No piso térreo, luzes brilhavam por trás das cortinas fechadas. No segundo piso brilhava uma única luz. Kruz tocou à campainha. Tinha a sensação de estar a ser observado, qualquer coisa imperceptível, como um bafo na nuca. Olhou por cima do ombro. Nada.
Alcançou novamente a campainha, mas antes que a pudesse pressionar, um zumbido soou e a barra da fechadura saltou para trás. Empurrou o portão e atravessou o pátio frontal. Quando chegou ao pórtico, viu a porta aberta e um homem de paletó aberto e gravata solta. Não se esforçava minimamente para esconder o coldre de couro preto que continha uma pistola Glock. Kruz não estava alarmado com a visão; ele conhecia bem o homem. Era um antigo agente da Staatspolizei chamado Klaus Halder. Tinha sido Kruz a contratá-lo para guarda-costas do velho. Halder acompanhava normalmente o velho quando este saia ou quando esperava visitas em casa. A sua presença à meia-noite não era, como o telefonema para a casa de Kruz, um bom sinal.
— Onde está ele?
Halder olhou para o chão sem dizer uma palavra. Kruz desapertou a gabardina e entrou no estúdio do velho. A parede falsa estava afastada para o lado. O pequeno elevador estilo cápsula estava à espera. Entrou e o pressionar de um botão enviou-o lentamente para baixo. As portas abriram alguns segundos mais tarde, revelando uma pequena câmara subterrânea decorada com o dourado dos gostos barrocos do velho. Os americanos tinham-na construído para ele, para que conduzisse reuniões importantes sem medo que os russos pudessem estar à escuta. Construíram também a passagem, aquela alcançável através de uma porta de aço inoxidável com uma fechadura de combinação. Kruz era uma das poucas pessoas em Viena que sabia para onde a passagem conduzia e quem tinha vivido na casa do outro lado.
O velho estava sentado numa pequena mesa, uma bebida à sua frente. Kruz percebeu que ele estava inquieto, porque estava a girar o copo, duas voltas para a direita, duas para a esquerda. Direita, direita, esquerda, esquerda. Um estranho hábito, pensou Kruz. Ameaçador como o diabo. Calculou que o velho o tivesse apanhado numa vida anterior, noutro mundo. Uma imagem formou-se na mente de Kruz: um comissário russo acorrentado a uma mesa de interrogatório, o velho sentado do outro lado, vestido de preto dos pés à cabeça, girando a sua bebida e olhando para a sua presa com aqueles olhos azuis insondáveis. Kruz sentiu o seu coração dar um solavanco. Os pobres coitados estavam provavelmente cagados de medo mesmo antes de as coisas se tornarem duras.
O velho levantou o olhar, o girar do copo parou. O seu olhar calmo fixou a camisa de Kruz. Kruz olhou para baixo e viu que tinha os botões desalinhados. Tinha-se vestido no escuro para não acordar a mulher. O velho apontou para uma cadeira vazia. Kruz arranjou a camisa e sentou-se. O girar do copo recomeçou, duas voltas para a direita, duas para a esquerda. Direita, direita, esquerda, esquerda.
Falou sem saudar ou sem introdução. Era como se estivessem a continuar uma conversa interrompida por alguém que bate à porta.
— Durante as passadas setenta e duas horas — disse o velho foram planejados dois atentados contra a vida do israelense, o primeiro em Roma, o segundo na Argentina. Infelizmente o israelense sobreviveu a ambos. Em Roma, foi aparentemente salvo pela intervenção de um colega dos serviços secretos israelenses. Na Argentina, as coisas foram mais complicadas. Há provas que sugerem o envolvimento dos americanos.
Kruz, naturalmente, tinha perguntas. Em circunstâncias normais teria segurado a língua e esperado que o velho terminasse. Agora, trinta minutos depois de ter sido retirado da cama, não mostrou nenhuma da sua normal paciência.
— O que estava o israelense a fazer na Argentina?
O rosto do velho pareceu gelar, e a sua mão ficou imóvel. Kruz tinha transposto a linha, a linha que separava o que ele sabia do passado do velho daquilo que jamais saberia. Sentiu o peito encolher debaixo da pressão do olhar fixo. Não era todos os dias que se conseguia enfurecer um homem capaz de orquestrar, em setenta e duas horas e em continentes diferentes, duas tentativas de homicídio.
— Não é necessário que saibas por que razão o israelense esteve na Argentina, ou mesmo que lá tenha estado. O que precisas de saber é que este assunto deu uma reviravolta perigosa.
O girar do copo voltou.
— Como já acreditavas, os americanos sabem tudo. A minha verdadeira identidade, o que eu fiz durante a guerra. Não havia maneira de o esconder. Éramos aliados. Trabalhamos juntos na grande cruzada contra os comunistas. No passado, sempre contei com a sua discrição, não por algum sentido de lealdade para comigo, mas por simples medo de embaraço. Eu não tenho ilusões, Manfred. Sou como uma prostituta para eles. Viraram-se para mim quando estavam sozinhos e necessitados, mas agora que a guerra-fria acabou, sou como uma mulher que eles preferiam esquecer. E se agora estão de alguma forma a cooperar com os israelenses... — deixou a frase por terminar. — Estás a ver o que quero dizer, Manfred?
Kruz acenou.
— Presumo que saibam sobre Peter?
— Eles sabem tudo. Eles têm o poder de me destruir, e ao meu filho, mas apenas se estiverem dispostos a suportar a dor de uma ferida auto-infligida. Eu costumava estar seguro de que eles nunca se virariam contra mim. Agora, já não tenho certeza.
— O que queres que eu faça?
— Mantém sob vigilância constante as embaixadas israelense e americana. Designa vigilância física a todo o pessoal dos serviços secretos. Controla os aeroportos e estações de trem. Contata, também, os teus informadores nos jornais. Eles podem recorrer à imprensa. Não quero ser apanhado desprevenido.
Kruz olhou para a mesa e viu o seu próprio reflexo na superfície polida.
— E quando o ministro me perguntar por que dedico tantos recursos aos americanos e aos israelenses? O que digo?
— Preciso lembrar o que está em jogo, Manfred? O que dirá ao ministro é problema seu. Apenas faça o que digo. Não vou deixar Peter perder estas eleições. Entendeu?
Kruz olhou para os impiedosos olhos azuis e viu mais uma vez o homem vestido de preto dos pés à cabeça. Fechou os olhos e concordou com um movimento de cabeça.
O velho levou o copo aos lábios e, antes de beber, sorriu. Era tão agradável como uma súbita racha numa placa de vidro. Alcançou o bolso de peito do casaco, exibiu um pedaço de papel, e lançou-o sobre o tampo da mesa. Kruz olhou para ele enquanto deslizava, em seguida levantou o olhar.
— O que é isto?
— É um número de telefone. Kruz não tocou no papel.
— Um número de telefone?
— Nunca se sabe o que pode resultar de uma situação destas. Poderá ser necessário recorrer à violência. É possível que eu possa não estar em condições de ordenar tais medidas. Nesse caso, Manfred, a responsabilidade cai sobre ti.
Kruz pegou no pedaço de papel e levantou-o entre os seus dois dedos indicadores.
— Se ligar para este número, quem vai atender?
O velho sorriu.
— A violência.
31
ZURIQUE
HERR CHRISTIAN ZIGERLI, coordenador de eventos especiais do Dolder Grand Hotel, era como o próprio hotel: digno e pomposo, resoluto e discreto, um homem que apreciava o seu lugar de destaque na vida porque lhe permitia olhar para os outros de cima. Era também um homem que não gostava de surpresas. Normalmente, exigia setenta e duas horas de aviso prévio para reservas especiais e conferências, mas quando a Heller Enterprises e a Systech Wireless manifestaram vontade de conduzir as negociações finais da fusão no Dolder, Herr Zigerli concordou abdicar das setenta e duas horas de previsão em troca de uma sobretaxa de quinze por cento. Ele podia ser atencioso quando queria, mas ser atencioso, como todo o resto no Dolder, tinha um preço exorbitante.
A Heller Enterprises era a licitante por isso cabia-lhe tratar das reservas: não o próprio velho Rudolf Heller, claro, mas uma vistosa assistente pessoal italiana de nome Elena. Herr Zigerli tinha tendência a formar uma ideia sobre as pessoas rapidamente. Ele dizia que qualquer outro hoteleiro que fosse bom faria o mesmo. Não gostava de italianos de uma maneira geral, e a agressiva e exigente Elena rapidamente ganhou um lugar de destaque na sua lista de clientes pouco considerados. Ela falava alto ao telefone, um crime capital segundo ele, e parecia acreditar que só por gastar grandes quantidades de dinheiro do seu patrão tinha direito a privilégios especiais. Ela parecia conhecer bem o hotel. Fato estranho, já que Herr Zigerli tinha memória de elefante e não se lembrava dela como hóspede no Dolder. As suas exigências eram minunciosamente especificas. Queria quatro suítes contiguas perto do terraço com vista para o campo de golfe e para o lago. Quando Zigerli a informou que não seria possível — duas mais duas, ou três mais uma, mas não quatro seguidas — perguntou se os hóspedes podiam ser recolocados para a acomodar. Lamento, disse o hoteleiro, mas o Dolder Grand não tem o hábito de transformar hóspedes em refugiados. Ela decidiu optar por três suítes contiguas a uma quarta mais ao fundo do corredor.
— As delegações vão chegar às duas da tarde de amanhã — disse ela. — E gostariam de um almoço de trabalho leve.
Seguiram-se mais dez minutos de discussão sobre o que constituía um "almoço de trabalho leve".
Quando o menu ficou completo, Elena atirou mais uma exigência. Ela chegaria quatro horas antes das delegações, acompanhada pelo chefe de segurança da Heller, para inspecionar os quartos. Assim que as inspeções estivessem terminadas, não seria permitida a entrada de pessoal do hotel, exceto se acompanhados pela segurança da Heller. Herr Zigerli suspirou profundamente e concordou, em seguida desligou o telefone e, com a porta do seu gabinete fechada e trancada, fez uma série de exercícios de respiração para acalmar os nervos.
A manhã das negociações amanheceu cinza e fria. Os torreões majestosos do Dolder furavam o cobertor de nevoeiro gelado, e o asfalto perfeito da entrada brilhava como granito preto polido. Herr Zigerli estava de guarda no lobby, mesmo por trás das reluzentes portas de vidro, pés à largura dos ombros, mãos de lado, preparado para a batalha. Ela vai atrasar-se, pensou. Atrasam-se sempre. Ela vai precisar de mais suites. Ela vai querer mudar o menu. Ela vai ser perfeitamente horrível.
Um Mercedes sedã preto deslizou até a entrada e parou à porta. Herr Zigerli olhou discretamente para o relógio de pulso. Precisamente dez horas. Impressionante. O paquete abriu a porta traseira e uma lustrosa bota preta emergiu — Bruno Magli, reparou Zigerli — seguido por um torneado joelho e coxa. Herr Zigerli balançou para a frente nas pontas dos pés e alisou o cabelo sobre a zona careca. Já tinha visto muitas belas mulheres pairando pela famosa entrada do Dolder Grand, mesmo assim, poucas a tinham passado com mais graça e estilo que a encantadora Elena da Heller Enterprises. Ela tinha o cabelo acastanhado, preso por um gancho na nuca, e pele da cor do mel. Os seus olhos castanhos salpicados de dourado pareciam ter ganho ainda mais brilho quando lhe apertou a mão. A sua voz, tão alta e exigente pelo telefone, era agora suave e arrebatadora, assim como o seu sotaque italiano. Ela largou-lhe a mão e voltou-se para o acompanhante pouco sorridente.
— Herr Zigerli, este é o Oskar. O Oskar é segurança.
Aparentemente, o Oskar não tinha apelido. Nem precisava, pensou Zigerli. Ele tinha a constituição de um lutador de wrestling, com cabelo ruivo claro e sardas vagas espalhadas pelas largas bochechas. Herr Zigerli, um observador treinado da condição humana, viu qualquer coisa de familiar em Oskar. Um colega de tribo, por assim dizer. Ele conseguia imaginá-lo há dois séculos atrás, nas roupas de um lenhador, caminhando pesadamente por um trilho pela Floresta Negra. Como todos os bons seguranças, Oskar deixou os olhos falarem por si, e os seus olhos disseram a Herr Zigerli que ele estava ansioso por começar o trabalho.
— Eu levo-os aos seus quartos — disse o hoteleiro. — Por favor sigam-me. Herr Zigerli decidiu levá-los pela escada em vez do elevador. Era um dos mais finos atributos do Dolder, e Oskar, o lenhador, não parecia ser do tipo que prefere esperar pelos elevadores quando há um lanço de escadas para subir. Os quartos eram no quarto piso. No patamar, Oskar estendeu a mão para receber os cartões eletrônicos.
— A partir daqui é conosco se não se importa. Não é necessário mostrar-nos o interior dos quartos. Já todos estivemos em hotéis antes.
Uma piscadela cúmplice, uma palmadinha no ombro.
— Indique-nos apenas para onde é. Ficamos bem.
De fato, ficarão, pensou Zigerli. Oskar era um homem que inspirava confiança a outros homens. Mulheres também, Zigerli suspeitou. Ponderou se a deliciosa Elena — ele já começava a pensar nela como a sua Elena — seria uma das conquistas de Oskar. Colocou os cartões eletrônicos na palma da mão de Oskar e indicou-lhes o caminho.
Herr Zigerli era um homem de muitas máximas : "Um cliente sossegado é um cliente satisfeito" estava entre as suas preferidas. E a partir daí interpretou o subsequente silêncio no quarto piso como prova que Elena e o seu amigo Oskar estavam satisfeitos com as acomodações. Isto, por sua vez, satisfazia Herr Zigerli. Ele agora gostava de fazer Elena feliz. Conforme foi continuando pelo resto da manhã, ela estava-lhe na cabeça, como o traço de essência que se lhe tinha colado à mão.
Ele encontrou-se ansioso por algum problema, alguma queixa disparatada que requeresse contato com ela. Mas não houve nada, apenas o silêncio da perfeição. Ela tinha o Oskar agora. Ela não tinha necessidade do coordenador de eventos especiais do melhor hotel da Europa. Herr Zigerli, uma vez mais, tinha feito o seu trabalho bem demais.
Não ouviu nada deles, nem os viu, até as duas da tarde quando se reuniram na recepção e formaram uma improvável comissão de boas-vindas para as delegações que chegavam. Havia agora neve a cair no pátio frontal. Zigerli acreditava que o mau tempo apenas realçava o encanto do hotel: um abrigo da tempestade, como a própria Suíça.
A primeira limusina parou na entrada e largou dois passageiros. Um era o próprio Herr Rudolf Heller, um homem baixo e velho, vestindo um dispendioso terno preto e gravata prateada. Os seus óculos ligeiramente fumados sugeriam um problema na visão; o seu passo rápido e impaciente deixava a impressão de que, apesar da idade avançada, ele era um homem capaz de cuidar de si próprio. Herr Zigerli deu-lhe as boas-vindas ao Dolder e apertou-lhe a mão. Parecia feita de pedra. Estava acompanhado pelo carrancudo Herr Keppelmann. Vinte e cinco anos mais novo que Heller, cabelo curto, grisalho nas têmporas, olhos muito verdes. Herr Zigerli já tinha visto uma boa quantidade de guarda-costas no Dolder, e Herr Keppelmann parecia encaixar no perfil. Calmo, mas vigilante, silencioso como um rato de sacristia, seguro no passo e forte. Os olhos cor de esmeralda eram serenos, mas em constante movimento. Herr Zigerli olhou para Elena e reparou que o seu olhar estava fixado em Herr Keppelmann. Talvez ele se tivesse enganado sobre Oskar. Talvez o taciturno Keppelmann fosse o homem mais sortudo do mundo.
Os americanos chegaram a seguir: Brad Cantwell e Shelby Somerset, o CEO e COO da System Communications, Inc., de Reston, Virgínia. Notava-se sofisticação que Zigerli não costumava ver em americanos. Não eram exageradamente amigáveis, nem estavam a bramir para os celulares quando entraram na recepção.
Cantwell falou alemão assim como Herr Zigerli e evitou cruzar o olhar. Somerset era o mais afável dos dois. O seu tom aristocrático, o blazer azul bastante viajado e a gravata às riscas ligeiramente amarrotada identificavam-no como um yuppie Oriental.
Herr Zigerli fez alguns comentários de boas-vindas, e depois recuou calmamente para segundo plano. Era algo que ele fazia excepcionalmente bem. Enquanto Elena conduzia o grupo em direção à escadaria, ele deslizou para seu gabinete e fechou a porta. Um impressionante grupo de homens, pensou. Ele esperava que grandes coisas saíssem deste empreendimento. O seu papel no assunto, embora menor, foi executado com precisão e competência serena. Nos dias de hoje, tais atributos tinham pouco valor, mas eram a moeda do reino miniatura de Herr Zigerli. Ele suspeitava que os homens da Heller Enterprises e System Communications provavelmente sentiam o mesmo.
NO CENTRO DE ZURIQUE, numa rua calma perto do local onde as águas verdes do Rio Limmat desaguam no lago, Konrad Becker estava a encerrar o seu banco privado por aquele dia quando o telefone na sua mesa tocou com suavidade. Tecnicamente, ainda faltavam cinco minutos para a hora de fecho, mas estava tentado a deixar o gravador atender. Backer sabia por experiência que só clientes problemáticos telefonavam tão tarde, e o seu dia já tinha sido difícil o suficiente. Em vez disso, como um bom banqueiro suíço, alcançou o receptor e levou-o à orelha sem pensar.
— Becker and Puhl.
— Konrad, é Shelby Somerset. Como é que estás?
Becker engoliu em seco. Somerset era o nome do americano da CIA: pelo menos, Somerset era como ele dizia que se chamava. Becker duvidava seriamente que fosse o seu nome verdadeiro.
— O que posso fazer por si, senhor Somerset?
— Como entrada podes deixar-te de formalismos, Konrad.
— E como prato principal?
— Podes descer a escada, ir até a Talstrasse e entrar no Mercedes que está lá à tua espera.
— E porque quereria eu fazer isso?
— Eu preciso de te ver.
— Onde é que o Mercedes me vai levar?
— A um sítio agradável, garanto-te.
— E como devo ir vestido?
— Traje executivo serve perfeitamente. E, Konrad?
— Sim, senhor Somerset?
— Não penses em armar-te em difícil. Isto é a sério. Desce a escada. Entra no carro. Estamos de olho em ti. Estamos sempre de olho em ti.
— Que reconfortante, senhor Somerset — disse o banqueiro, mas a ligação já tinha sido cortada.
VINTE MINUTOS MAIS TARDE, Herr Zigerli estava na recepção quando reparou num dos americanos, Shelby Somerset, a caminhar ansioso na parte de fora da entrada. Um momento mais tarde, um Mercedes prateado parou e uma pequena figura careca saiu do banco de trás. Mocassins indianos polidos, uma pasta à prova de choque. Um banqueiro, pensou Zigerli. Apostava o seu ordenado nisso. Somerset fez ao recém-chegado um sorriso amigável e deu uma palmada firme no ombro. O pequeno homem, apesar da calorosa recepção, parecia no entanto estar a caminhar para a sua própria execução. Mesmo assim, Herr Zigerli achou que as conversações estavam a correr bem. O homem do dinheiro tinha chegado.
— BOA TARDE, HERR BECKER. É um prazer vê-lo. Eu sou Heller. Rudolf Heller. Este é o meu sócio, senhor Keppelmann. Aquele homem ali é o nosso parceiro americano, Brad Cantwell. É obvio que você e o senhor Somerset já se conhecem. O banqueiro piscou os olhos várias vezes e depois fixou o seu pequeno olhar astuto em Shamron, como se estivesse a tentar calcular o seu valor liquido. Segurou a pasta sobre os genitais, em antecipação de um ataque iminente.
— Os meus associados e eu estamos prestes a embarcar numa joint-venture. O problema é que não conseguimos fazê-lo sem a sua ajuda. É isso que fazem os banqueiros, não é, Herr Becker? Ajudam a lançar grandes empreendimentos? Ajudam as pessoas a realizar os seus sonhos e o seu potencial?
— Depende do empreendimento, Herr Heller.
— Estou a ver — disse Shamron, sorrindo. — Por exemplo, há muitos anos atrás, um grupo de homens foi ver você. Alemães e austríacos. Queriam lançar um grande empreendimento também. Confiaram-lhe uma grande soma de dinheiro e deram-lhe o poder de transformar numa soma ainda maior. Você se saiu extraordinariamente bem. Transformou-a numa montanha de dinheiro. Presumo que se lembre desses cavalheiros? Presumo que também saiba onde conseguiram o dinheiro?
O olhar do banqueiro suíço endureceu. Tinha concluído o cálculo sobre o valor líquido de Shamron.
— É israelense, não é?
— Prefiro pensar em mim mesmo como um cidadão do mundo — respondeu Shamron. — Moro em muitos lugares, falo a língua de muitas terras. A minha lealdade, como os meus interesses financeiros, não tem fronteiras nacionais. Como suíço tenho certeza que consegue entender o meu ponto de vista.
— Eu entendo — disse Becker — mas não acredito numa palavra do que diz.
— E se eu fosse de Israel? — perguntou Shamron. — Isso teria algum impacto na sua decisão?
— Teria.
— Como?
— Não me interessam os israelenses — disse Becker prontamente. — E os judeus também.
— Lamento ouvir isso, Herr Becker, mas um homem tem direito a sua opinião, e não vou discutir isso. Nunca deixo politicagem meter-se no caminho dos negócios. Preciso de ajuda para o meu empreendimento, e você é a única pessoa que pode me ajudar.
Becker elevou o sobrolho zombeteiramente.
— Qual é exatamente a natureza deste empreendimento, Herr Heller?
— É bem simples, na verdade. Quero que me ajude a sequestrar um de seus clientes.
— Parece-me, Herr Heller, que esse empreendimento seria uma violação das leis de segredo bancário e de várias outras leis deste pais.
— Então suponho que teremos de manter seu envolvimento em segredo.
— E se eu me recusar a cooperar?
— Então serei obrigado a contar ao mundo que você é o banqueiro dos assassinos, que está sentado em dois bilhões e meio de dólares de pilhagens do Holocausto. Soltaremos os cães de caça do Congresso Judaico Mundial sobre você. Quando terminarem, você e o seu banco estarão em farrapos.
O banqueiro suíço lançou um olhar de súplica a Shelby Somerset.
— Nós tínhamos um acordo.
— Ainda temos — balbuciou o sedento americano —, mas os contornos do acordo mudaram. Seu cliente é um homem muito perigoso. Passos precisam de ser dados para neutralizá-lo. Precisamos de você, Konrad. Ajude-nos a resolver um problema. Vamos fazer o bem juntos.
O banqueiro trauteou com os dedos na pasta.
— Tem razão. Ele é um homem perigoso, e se eu ajudo a sequestrá-lo, é melhor começar a abrir a minha própria sepultura.
— Estaremos lá, Konrad. Vamos protegê-lo.
— E se os contornos do acordo mudarem novamente? Quem vai me proteger então?
Shamron intercedeu.
— Receberia cem milhões de dólares com a dispersão final da conta. Agora não haverá dispersão final da conta porque vai me entregar o dinheiro todo. Se colaborar, deixo-o ficar com metade do montante a receber. Presumo que consiga fazer a conta, Herr Becker?
— Consigo.
— Cinquenta milhões de dólares é mais do que merece, mas estou disposto a deixá-lo ficar com esse montante para ganhar a sua cooperação neste assunto. Um homem consegue comprar muita segurança com cinquenta milhões.
— Quero isso por escrito, um termo de garantia.
Shamron abanou a cabeça com desdém, como se dissesse que havia algumas coisas, e devia saber melhor que qualquer um, meu querido companheiro, que não se põe por escrito.
— O que precisa de mim? — perguntou Becker.
— Vai nos ajudar a entrar na casa dele.
— Como?
— Vai precisar vê-lo com urgência sobre um assunto qualquer da conta. Talvez alguns papéis que precisem ser assinados, alguns detalhes finais da preparação para a liquidação e dispersão dos bens.
— E assim que estiver dentro da casa?
— O seu trabalho termina. O seu novo assistente trata do resto a partir daí.
— Meu novo assistente?
Shamron olhou para Gabriel.
— Talvez seja hora de apresentar Herr Becker a seu novo parceiro.
ELE ERA UM HOMEM de muitos nomes e muitas personalidades. Herr Zigerli conhecia-o como Oskar, o chefe de segurança da Heller. O senhorio da sua morada em Paris conhecia-o como Vincent Laffont, um escritor freelancer viajante de descendência britânica que passava a maior parte do seu tempo de mala às costas. Em Londres, era conhecido como Clyde Bridges, diretor de marketing europeu de uma obscura firma de software canadiana. Em Madrid, ele era um alemão rico de alma inquieta, que preguiçava horas em cafés e bares, e viajava para aliviar o aborrecimento.
O seu nome verdadeiro era Uzi Navot. No léxico hebraico dos serviços secretos israelenses, Navot era um katsa, um operacional de campo secreto e oficial de casos.
O seu território era a Europa Ocidental. Detentor de um charme malandro, poliglota e de uma arrogância fatalista, Navot tinha penetrado células de terrorismo palestino e recrutado agentes em embaixadas árabes espalhadas pelo continente. Possuía contatos em quase todos os serviços secretos e de segurança da Europa e orientava uma vasta rede de sayanim, auxiliares voluntários recrutados em comunidades judaicas locais. Podia sempre contar com a melhor mesa na sala de grelhados do Ritz de Paris porque o maître d'hôtel era um informante pago, assim como o chefe dos serviços de limpeza.
— Konrad Becker, apresento-lhe Oskar Lange.
O banqueiro permaneceu sentado e imóvel por um longo momento, como se tivesse sido subitamente transformado em estátua. Então os seus pequenos olhos espertos pousaram em Shamron, e levantou as mãos num gesto inquisitório.
— O que devo fazer eu com ele.
— Diga-nos você. Ele é muito bom, o nosso Oskar.
— Consegue fazer-se passar por advogado?
— com a devida preparação, ele conseguia fazer-se passar pela sua mãe.
— Quanto tempo tem de durar esta charada?
— Cinco minutos, talvez menos.
— Quando se está com Ludwig Vogel, cinco minutos podem parecer uma eternidade.
— Foi o que ouvi dizer — disse Shamron.
— E o Klaus?
— Klaus?
— O guarda-costas de Vogel.
Shamron sorriu. A resistência tinha terminado. O banqueiro suíço juntara-se à equipe e jurara fidelidade à bandeira de Herr Heller e o seu nobre empreendimento.
— Ele é muito profissional — disse Becker. — Já estive na casa meia dúzia de vezes, mas ele revista-me sempre minuciosamente e pede-me para abrir a pasta. Portanto, se está a pensar levar uma arma para dentro da casa...
Shamron interrompeu-o.
— Não tencionamos levar armas para dentro da casa.
— Klaus está sempre armado.
— Tem a certeza?
— Uma Glock, penso eu. — O banqueiro deu uma palmadinha no lado esquerdo do seu peito. — Usa-a aqui. Não faz muito esforço em escondê-la.
— Um pormenor encantador, Herr Becker.
O banqueiro aceitou o elogio com uma inclinação da cabeça.
— Pormenores são a minha vida, Herr Heller.
— Perdoe a minha insolência, Herr Heller, mas como é que se rapta alguém que está protegido por um guarda-costas, se o guarda-costas está armado e o raptor não?
— Herr Vogel vai abandonar a casa voluntariamente.
— Um rapto voluntário? — o tom de Becker era incrédulo. — Que peculiar. E como é que se convence um homem a deixar-se raptar voluntariamente ?
Shamron cruzou os braços.
— Preocupe-se em levar o Oskar para dentro da casa e deixe o resto connosco.
32
MUNIQUE
NO BONITO PEQUENO bairro de Lehel em Munique havia um velho apartamento, com um portão para a rua e um bem arranjado pátio na entrada principal. O elevador era instável e indeciso, e eram mais as vezes que subiam a escada em caracol até o terceiro andar. O mobiliário tinha o anonimato de um quarto de hotel. Havia duas camas no quarto, e o sofá da sala de estar era um davenport. Na arrecadação havia quatro camas extras de abrir. A despensa estava cheia de produtos não deterioráveis e os armários continham louça e talheres para oito. As janelas da sala de estar tinham vista para a rua, mas os estores mantinham-se fechados o tempo todo, para que dentro do apartamento parecesse sempre fim de dia. Os telefones não tinham campainha. Em vez disso, estavam equipados com luzes vermelhas que piscavam para indicar que estava a tocar.
As paredes da sala de estar estavam forradas de mapas: centro de Viena, Viena metropolitana, Áustria oriental, Polônia. Na parede oposta às janelas estava pendurado um enorme mapa da Europa Central, que mostrava toda a rota de fuga, esticando-se de Viena até a costa do Báltico. Shamron e Gabriel discutiram a cor antes de decidirem pelo vermelho. À distância parecia um rio de sangue, como Shamron desejara, o rio de sangue que fluía pelas mãos de Erich Radek. Só falavam em alemão no apartamento. Shamron tinha-o decretado. Radek era referido como Radek e apenas Radek; Shamron não iria chamá-lo pelo nome que ele comprara aos americanos. Shamron decretou outras regras também. Era a operação de Gabriel, e consequentemente era um espetáculo dirigido por Gabriel. Era Gabriel, com o sotaque berlinense da sua mãe, que orientava as equipes, Gabriel que revia os relatórios de Viena, e Gabriel quem tomava todas as decisões operacionais finais.
Durante os primeiros dias, Shamron esforçou-se para se encaixar no seu papel de apoio, mas à medida que a sua confiança em Gabriel ia crescendo, descobriu ser mais fácil retirar-se para segundo plano. Ainda assim, cada agente que passava pelo apartamento seguro reparava na nuvem negra que pairava sobre ele. Parecia não dormir nunca. Ele permanecia de pé perante os mapas todo o tempo, ou sentava-se na mesa da cozinha no escuro, fumando como uma chaminé: como um homem que luta contra uma consciência pesada.
— Ele é como um doente terminal que planeia o seu próprio funeral —, assinalou Oded, um veterano agente de língua alemã que Gabriel tinha escolhido para conduzir o carro de fuga. — E se correr mal, eles gravarão isso na sua lápide, mesmo por baixo da Estrela de David.
Sob condições perfeitas, tal operação envolveria semanas de preparação. Gabriel tinha apenas dias. A operação Ira de Deus tinha-o preparado bem. Os terroristas do Setembro Negro estavam constantemente em movimento, aparecendo e desaparecendo com uma frequência de fazer enlouquecer. Quando alguém era localizado e identificado, a equipe de choque entrava em ação à velocidade da luz. Equipas de vigilância eram preparadas, veículos e apartamentos seguros eram alugados, rotas de fuga eram planejadas. O reservatório de experiência era muito útil a Gabriel em Munique. Poucos agentes secretos sabiam mais sobre planeamento rápido e ataques súbitos do que ele e Shamron.
Ao fim do dia, viam as noticias na televisão alemã. As eleições na vizinha Áustria captavam a atenção dos espectadores alemães. Metzler estava na frente. As multidões nos comícios de campanha, como a sua liderança nas sondagens, cresciam de dia para dia. A Áustria, assim parecia, estava prestes a fazer o impensável, eleger um chanceler da extrema-direita. Dentro do apartamento seguro, Gabriel e a sua equipe descobriram-se na bizarra posição de torcer pela subida de Meztler nas sondagens, pois sem Metzler, a porta para Radek estava fechada.
Invariavelmente, pouco depois das noticias, Lev revia a operação a partir de King Saul Boulevard e sujeitava Gabriel a uma fastidiosa examinação cruzada dos eventos do dia. Era a única vez que Shamron se sentia aliviado por não carregar o fardo do comando operacional. Gabriel dava voltas ao apartamento com o telefone colado à orelha, respondendo pacientemente às questões de Lev. E por vezes, se a luz estivesse correta, Shamron veria a mãe de Gabriel, caminhando ao lado dele. Ela era o único membro da equipe que nunca ninguém mencionou.
UMA VEZ POR DIA, normalmente ao fim da tarde, Gabriel e Shamron escapavam do apartamento seguro para passear nos Jardins Ingleses. A sombra de Eichmann pairava sobre eles. Gabriel reconheceu que ele estivera lá desde o inicio. Ele tinha ido a Viena naquela noite em que Max Klein contara a Gabriel a história do oficial SS que assassinara uma dúzia de prisioneiros em Birkenau e agora saboreava café todas as tardes no Café Central. Mesmo assim, Shamron tinha diligentemente evitado falar no seu nome, até agora.
Gabriel já tinha ouvido a história da captura de Eichmann muitas vezes. De fato, Shamron tinha-a contado em Setembro de 1972 para espicaçar Gabriel a juntar-se ao grupo da Ira de Deus. A versão que Shamron lhe contou durante esses passeios ao longo dos trilhos de árvores dos Jardins Ingleses era mais detalhada que qualquer outra que Gabriel tivesse escutado antes. Gabriel sabia que isto não era apenas divagação de um velho tentando reviver glórias passadas. Os editores podiam esperar sentados pelas suas memórias, Shamron não era de apregoar o seu próprio sucesso. Gabriel sabia que Shamron lhe estava a contar a história de Eichmann por uma razão. Eu já fiz a viagem que estás prestes a fazer, dizia Shamron. Noutro tempo, noutro local, na companhia de outro homem, mas há coisas que deves saber. Gabriel, por vezes, não conseguia afastar a sensação de estar a caminhar com a História.
— A parte mais difícil foi esperar pelo avião de fuga. Estávamos presos na casa segura com aquela ratazana humana. Alguns elementos da equipe não suportavam olhar para ele. Eu tinha de me sentar no seu quarto noite após noite e vigiá-lo. Ele estava acorrentado à cama de ferro vestido com um pijama e tinha óculos opacos a tapar os olhos. Estávamos estritamente proibidos de conversar com ele. Apenas o interrogador estava autorizado a falar com ele. Eu não consegui obedecer a essas ordens. Sabes, eu precisava de saber. Como é que este homem, que se enjoava ao ver sangue, matou seis milhões do meu povo? A minha mãe e o meu pai? As minhas duas irmãs? Perguntei-lhe porque o tinha feito? Ele disse-me que o tinha feito porque era o seu trabalho, o seu trabalho, Gabriel, como se ele não fosse mais que um empregado bancário ou um maquinista de trem.
E mais tarde, encostados aos balaústres de uma velha ponte sobre um ribeiro:
— Só o quis matar uma vez, Gabriel, quando ele me tentou dizer que não odiava o povo judeu, que na verdade gostava e admirava o povo judeu. Para me mostrar o quanto ele gostava de judeus, começou a recitar as nossas palavras: Shema, Yisrael, Adonai Eloheinu, Adonai Echad! Eu não conseguia ouvir aquelas palavras vindas daquela boca, a boca que tinha dado ordens para assassinar seis milhões. Cravei-lhe a mão sobre a cara até que ele se calasse. Ele começou a abanar e a ter convulsões. Pensei que lhe tinha causado um ataque de coração. Ele perguntou-me se eu o ia matar. Ele suplicou-me que não fizesse mal ao seu filho. Este homem que tinha arrancado os filhos dos braços dos pais e os tinha lançado ao fogo estava preocupado com o seu próprio filho, como se nós fossemos agir como ele, como se nós fossemos assassinar crianças.
E numa gasta mesa de madeira, numa esplanada deserta:
— Nós queríamos que ele concordasse em voltar connosco para Israel voluntariamente. Ele, claro, não queria ir. Ele queria ser julgado na Argentina ou na Alemanha. Eu disse-lhe que isso não era possível. De uma maneira ou de outra, ele ia ser julgado em Israel. Eu arrisquei a minha carreira permitindo que ele tivesse um pouco de vinho tinto e um cigarro. Eu não bebi com o assassino. Eu não podia. Assegurei-lhe que lhe seria dada a oportunidade de contar a sua versão da história, que lhe seria oferecido um julgamento apropriado com uma defesa adequada. Ele não tinha ilusões sobre o resultado, mas a noção de se poder explicar ao mundo era-lhe de alguma forma apelativa. Também apontei o fato de que ele teria a dignidade de saber que estava prestes a morrer, algo que ele negou aos milhões que marcharam para as salas de despir e para as câmaras de gás enquanto Max Klein lhes tocava serenatas. Ele assinou o papel, datou-o como um bom burocrata alemão, e estava feito.
Gabriel escutou atentamente com a gola do casaco elevada para proteger as orelhas e as mãos enfiadas nos bolsos. Shamron mudou o foco de Adolf Eichmann para Erich Radek.
— Tu tens uma vantagem porque já estiveste cara-a-cara com ele uma vez, no Café Central. Eu apenas vira Eichmann ao longe, enquanto vigiávamos a sua casa e planeávamos o rapto, mas nunca falara com ele ou mesmo estivera perto dele. Eu sabia exatamente a sua altura, mas não conseguia imaginar.
Eu tinha ideia de como a sua voz soaria, mas não é a mesma coisa. Tu conheces Radek, mas infelizmente ele também sabe muito sobre ti, também, graças a Manfred Kruz. Ele vai querer saber mais. Ele vai sentir-se exposto e vulnerável. Ele vai tentar equilibrar o jogo fazendo-te perguntas. Ele vai querer saber porque o estás a perseguir. Sob nenhuma circunstância deves envolver-te como numa conversa normal. Lembra-te, Erich Radek não era um guarda de campo ou um operador de câmara de gás. Ele era um SD, um interrogador hábil. Ele vai tentar fazer uso dessas habilidades uma última vez para evitar o seu destino. Não te deixes cair nas suas mãos. És o responsável agora. Ele vai tentar contradizer-te e abalar as tuas convicções.
Gabriel olhou para baixo, como se estivesse a ler as palavras gravadas na mesa.
— Então porque merecem Eichmann e Radek as armadilhas da justiça — disse ele finalmente — e os palestinos do Setembro Negro apenas a vingança?
— Terias dado um excelente estudante Talmud, Gabriel.
— E tu estás a fugir à minha pergunta.
— Obviamente, que houve uma medida de pura vingança na nossa decisão contra os terroristas do Setembro Negro, mas foi mais do que isso. Eles constituem uma ameaça contínua. Se não os matássemos seriam eles a matar-nos. Era guerra.
— Porque não prendê-los, levá-los a julgamento?
— Para que pudessem declamar a sua propaganda a partir de um tribunal israelense?
— Shamron abanou a cabeça lentamente. — Eles já fizeram isso — levantou a mão e apontou para a torre que se ergue no Parque Olímpico — aqui mesmo nesta cidade, em frente às câmaras de todo o mundo. Não nos competia a nós dar-lhes outra oportunidade de justificarem o massacre de inocentes.
Baixou a mão e inclinou-se sobre a mesa. Foi nessa altura que contou a Gabriel os desejos do primeiro-ministro. Enquanto conversava, a sua respiração gelava perante ele.
— Eu não quero matar um velho — disse Gabriel.
— Ele não é um velho. Ele usa as roupas de um velho e esconde-se por trás do rosto de um velho, mas ele ainda é Erich Radek, o monstro que matou uma dúzia de homens em Auschwitz porque não conseguiram identificar uma peça de Brahms. O monstro que matou duas moças à beira de uma estrada polonesa porque não quiseram negar as atrocidades de Birkenau. O monstro que abriu as campas de milhões e sujeitou os seus cadáveres a uma humilhação final. A velhice não perdoa tais pecados.
Gabriel levantou os olhos e fitou o olhar insistente de Shamron.
— Eu sei que ele é um monstro. Eu só não quero matá-lo. Eu quero que o mundo saiba o que este homem fez.
— Então é melhor preparares-te para a batalha com ele. — Shamron olhou para o seu relógio de pulso. — Mandei vir uma pessoa para te ajudar. De fato, deve estar mesmo a chegar.
— Porque só agora estou a saber disso? Pensava que era eu que tomava todas as decisões operacionais.
— E és — disse Shamron. — Mas por vezes eu tenho de mostrar o caminho. É para isso que servem os velhos.
NEM GABRIEL NEM Shamron acreditavam em prenúncios ou presságios. Se acreditassem, a operação que trouxe Moshe Rivlin de Yad Vashem até a casa segura em Munique teria lançado dúvidas sobre a capacidade da equipe para levar a cabo a tarefa que tinham pela frente.
Shamron queria que Rivlin fosse contatado discretamente. Infelizmente, King Saul Boulevard confiou o trabalho a um par de aprendizes acabados de sair da academia, ambos nitidamente de aparência sefardita. Decidiram contatar Rivlin enquanto este caminhava de Yad Vashem para o seu apartamento perto do mercado Yehuda. Rivlin, que tinha sido criado na zona de Bensonhurts no Brooklyn e ainda era vigilante quando caminhava pela rua, rapidamente notou que estava a ser seguido por dois homens de carro. Presumiu que fossem homens-bomba do Hamas ou um par de criminosos de rua. Quando o carro parou ao lado dele e os seus ocupantes pediram para falar, Rivlin desatou a correr como um louco. Para surpresa de todos, o atarracado arquivista provou ser uma presa esquiva e conseguiu escapar aos seus captores durante vários minutos até ser encurralado pelos dois agentes do Escritório na Rua Ben Yehuda.
Ele chegou ao apartamento seguro em Lehel ao fim dessa tarde, carregando duas malas cheias de material de pesquisa e irritado pela maneira como tinha sido convocado.
— Como esperam raptar um homem como Erich Radek se não conseguem apanhar um arquivista gordo? Vá lá — disse ele, puxando Gabriel para a privacidade do quarto do fundo. — Temos muito terreno para cobrir e pouco tempo para o fazer. No SÉTIMO DIA, Adrian Carter chegou a Munique. Era uma quarta-feira; chegou ao apartamento seguro ao fim da tarde, quando o crepúsculo se tornava escuro. O passaporte no bolso do seu sobretudo ainda dizia Brad Cantwell. Gabriel e Shamron tinham acabado de regressar de um passeio nos Jardins Ingleses e ainda estavam embrulhados em chapéus e cachecóis. Gabriel tinha enviado o resto dos elementos da equipe para as posições de fase final, consequentemente o apartamento seguro estava vazio de pessoal do Escritório. Apenas Rivlin permanecia. Saudou o diretor da CIA com a camisa para fora e os sapatos descalçados e disse que seu nome era Yaacov. O arquivista tinha-se adaptado bem à disciplina da operação.
Gabriel fez o chá. Carter desabotoou o casaco e conduziu-se a si próprio numa preocupada excursão pelo apartamento. Passou bastante tempo em frente aos mapas. Carter acreditava em mapas. Os mapas nunca te mentirão. Os mapas nunca te dirão o que eles acham que tu queres ouvir.
— Gosto do que fizeste com o sitio, Herr Heller. — Carter finalmente despiu o sobretudo. — Miséria neo-contemporânea. E o cheiro. Tenho certeza de que o conheço. Trazido da Wienerwald ao fundo do quarteirão, se não estou em erro. Gabriel entregou-lhe uma caneca de chá com o cordão da saqueia ainda pendente do rebordo.
— Porque estás aqui Adrian?
— Pensei em passar para ver se precisavam de ajuda.
— Tretas.
Carter sentou-se pesadamente no sofá, um vendedor no final de uma longa e improdutiva viagem pela estrada. — Verdade seja dita, estou aqui por ordem do meu diretor. Parece que ele está com um sério ataque de nervosismo. Ele sente que estamos juntos num ramo e vocês estão com a motosserra nas mãos. Ele quer que a Agência seja posta na jogada.
— E isso significa o quê?
— Ele quer saber o plano de jogo.
— Tu sabes o plano de jogo, Adrian. Eu disse-te o plano de jogo em Virginia. Não se alterou.
— Eu sei os esboços do plano — disse Carter. — Agora quero ver o quadro pronto.
— O que estás a dizer é que o teu diretor quer rever o plano e dar a palavra final.
— Algo do gênero. E quando acontecer, ele quer que eu fique na retaguarda com o Ari também.
— E se lhe dissermos para ir para o inferno?
— Eu diria que há cinquenta por cento de hipóteses de alguém sussurrar um aviso na orelha de Erich Radek, e perdem-no. Joga com o diretor, Gabriel. É a única maneira de apanhares Radek.
— Estamos prontos para agir, Adrian. Agora é a altura para sugestões úteis do sétimo andar.
Shamron sentou-se ao lado de Carter.
— Se o teu diretor tivesse dez gramas de cérebro, ficaria o mais afastado disto que conseguisse.
— Tentei explicar-lhe isso — não nesses termos, claro, mas qualquer coisa perto. Ele não tem nada disso. Ele veio da Wall Street, o nosso diretor. Ele gosta de pensar em si próprio como um individuo prático, atacante. Sempre soube o que cada divisão da companhia estava a fazer. Tenta gerir a Agência da mesma maneira. E como sabes, é também amigo do presidente. Se o chateias, ele telefona para a Casa Branca, e acaba-se.
Gabriel olhou para Shamron, que cerrava os dentes e acenava a cabeça. Carter
obteve o seu relatório. Shamron permaneceu sentado por alguns minutos, mas em breve estava de pé a percorrer a sala, como um chefe cujas receitas secretas estão a ser entregues a um concorrente do outro lado da rua. Quando terminou, Carter dispensou um longo tempo enchendo a fornilha do seu cachimbo com tabaco.
— Parece-me que os cavalheiros estão prontos — disse ele. — De que estão à espera? Se fosse vocês, punha-me em ação antes que o meu diretor que tem a palavra final decida que quer fazer parte da equipe de rapto.
Gabriel concordou. Levantou o telefone e ligou para Uzi Navot em Zurique.
33
VIENA * MUNIQUE
KLAUS HALDER BATEU suavemente na porta do estúdio. A voz do outro lado concedeu-lhe permissão para entrar. Empurrou a porta e viu o velho sentado à média luz, com os olhos fixos na tremeluzente tela de televisão: um comício de Meztler dessa tarde em Graz, estimulando multidões, a conversa já versava a composição do gabinete ministerial de Metzler. O velho desligou a televisão com o comando e virou os seus olhos azuis para o guarda-costas. Halder apontou para o telefone com o olhar. Uma luz verde piscava.
— Quem é?
— Herr Becker, de Zurique.
O velho levantou o receptor.
— Boa noite, Konrad.
— Boa noite, Herr Vogel. Peço desculpa por o incomodar tão tarde, mas o assunto não podia esperar.
— Há alguma coisa errada?
— Não, muito pelo contrário. No seguimento das recentes notícias eleitorais de Viena, decidi apressar o passo dos meus preparativos e proceder como se a vitória de Peter Metzler fosse um dado adquirido.
— Uma decisão acertada, Konrad.
— Calculei que concordasse. Tenho vários documentos que precisam da sua assinatura. Pensei que seria melhor começarmos o processo agora em vez de esperar pelo final.
— Que tipo de documentos?
— O meu advogado estará mais habilitado para os explicar do que eu. Se não se importar, eu gostaria de ir a Viena para uma reunião. Não demorará mais do que alguns minutos.
— Pode ser na sexta-feira?
— Sexta-feira está ótimo, desde que seja ao fim da tarde. Tenho um compromisso inadiável da parte da manhã.
— Podemos apontar para as quatro da tarde?
— Às cinco seria melhor para mim, Herr Vogel.
— Tudo bem, sexta às cinco.
— Vemo-nos lá.
— Konrad?
— Sim, Herr Vogel.
— Esse advogado — diga-me como se chama, por favor.
— Oskar Lange, Herr Vogel. É um homem muito competente, já fiz uso dos seus serviços em muitas ocasiões anteriores.
— Presumo que seja um tipo que compreende o significado da palavra discrição?
— Discreto, nem sequer dá para começar a descrevê-lo. Está em muito boas mãos.
— Adeus, Konrad.
O velho desligou o telefone e olhou para Halder.
— Vai trazer alguém com ele? Um aceno lento.
— Ele sempre veio sozinho no passado. Porquê trazer um ajudante de repente?
— Herr Becker está prestes a receber cem milhões de dólares, Klaus. Se há um homem no mundo em quem podemos confiar, é o gnomo de Zurique.
O guarda-costas dirigiu-se à porta.
— Klaus?
— Sim, Herr Vogel?
— Talvez tenhas razão. Telefona a alguns dos nossos amigos em Zurique. Descobre se alguém já ouviu falar de um advogado chamado Oskar Lange.
UMA HORA MAIS TARDE, uma gravação do telefonema de Becker foi enviada por transmissão segura dos escritórios da Becker & Puhl em Zurique para o apartamento seguro em Munique. Escutaram-na uma vez, depois outra, e ainda outra. Adrian Carter não gostou do que ouviu.
— Vocês sabem que assim que Radek pousar o telefone, vai fazer uma segunda chamada para Zurique para verificar o Oskar Lange. Espero que tenham pensado nisso.
Shamron parecia desapontado com Carter.
— O que acha, Adrian? Nunca fizemos este tipo de coisa antes? Somos crianças que precisam de orientação?
Enquanto esperava pela resposta, Carter chegou um fósforo ao cachimbo e puxou a fumaça.
— Já ouviu o termo sayan — disse Shamron. — Ou sayanim.
Carter acenou com o cachimbo preso entre os dentes.
— Seus pequenos ajudantes voluntários — disse. — O empregado de hotel que consegue quartos sem reserva. As locadoras que conseguem carros indetectáveis. Os médicos que tratam seus agentes quando têm ferimentos que possam suscitar perguntas difíceis. Os banqueiros que dão empréstimos de emergência.
Shamron acenou.
— Somos um pequeno serviço secreto, só mil e duzentos empregados em tempo integral. Não conseguiríamos fazer o que fazemos sem a ajuda de sayanim. Eles são uma das vantagens da diáspora, o meu exército privado de pequenos voluntários.
— E Oskar Lange?
— Ele é um advogado fiscal e imobiliário de Zurique. Por acaso também é judeu. Algo que ele não publicita em Zurique. Há alguns anos levei o Oskar a jantar a um pequeno restaurante no lago e acrescentei-o à minha lista de ajudantes. Na semana passada, pedi-lhe um favor. Eu queria usar o seu passaporte e o seu escritório e queria que ele desaparecesse por um par de semanas. Quando lhe disse porquê, ele prontificou-se a ajudar com prazer. De fato, ele próprio queria ir a Viena e capturar Radek.
— Espero que ele esteja em lugar seguro.
— Pode-se dizer que sim, Adrian. Ele está de momento num apartamento seguro em Jerusalém.
Shamron inclinou-se em direção ao leitor de fitas, carregou em REWIND, STOP e depois PLAY:
— Pode ser na sexta-feira?
— Sexta-feira está ótimo, desde que seja ao fim da tarde. Tenho um compromisso inadiável da parte da manhã.
— Podemos apontar para as quatro da tarde?
— Às cinco seria melhor para mim, Herr Vogel. .-..
— Tudo bem, sexta às cinco. " STOP.
MOSHE RIVLIN DEIXOU o apartamento seguro na manhã seguinte e regressou a Israel num voo da El Al, com um acompanhante do Escritório sentado ao seu lado. Gabriel ficou até as sete da tarde de quinta-feira, quando uma van Volkswagen com dois pares de esquis montados no teto parou em frente ao apartamento e deu duas buzinadelas.
Ele guardou a sua Beretta na parte de trás da calça. Carter desejou-lhe boa sorte; Shamron deu-lhe um beijo na cara e mandou-o descer.
Shamron abriu as cortinas e olhou para a rua escura. Gabriel apareceu no passeio e dirigiu-se à janela do condutor. Após um momento de discussão, a porta abriu e Chiara saiu. Circundou a van e foi brevemente iluminada pelos faróis da frente antes de entrar para o lugar do passageiro.
A van afastou-se da borda do passeio. Shamron acompanhou até as luzes vermelhas da traseira desaparecerem numa curva. Não se moveu. A espera. Sempre a espera.
O seu isqueiro acendeu, uma nuvem de fumaça formou-se contra o vidro.
34
ZURIQUE
KONRAD BECKER E Uzi Navot saíram dos escritórios da Becker & Puhl precisamente quatro minutos depois da uma da tarde de sexta-feira. Um vigilante do Escritório chamado Zalman, posicionado do outro lado da Talstrasse num Fiat sedã cinza, registrou a hora assim como o tempo, um aguaceiro torrencial, em seguida enviou as noticias a Shamron no apartamento seguro de Munique. Becker estava vestido para um funeral, num terno cinza de risquinhas e uma gravata cor de carvão. Navot, imitando o estilo de vestir de Oskar Lange, usava um blazer Armani com uma camisa e gravata azul elétrica a condizer. Becker tinha pedido um táxi para os levar ao aeroporto.
Shamron teria preferido um carro particular, com um motorista do Escritório, mas Becker viajava sempre de táxi para o aeroporto e Gabriel não queria que a rotina fosse quebrada. Então foi um normal táxi de cidade, conduzido por um imigrante turco, que os levou do centro de Zurique até o aeroporto Kloten por um vale enevoado, com o vigilante de Gabriel sempre a reboque.
Foram em breve confrontados com a primeira falha técnica. Uma frente fria tinha passado por Zurique, transformando a chuva em neve e gelo e obrigando as autoridades do aeroporto Kloten a suspender os voos momentaneamente. O voo 157 8 da Swiss International Airlines, com destino a Viena, embarcou a horas e depois esperou imóvel para entrar na pista. Shamron e Adrian Carter, monitorizando a situação nos computadores do apartamento seguro de Munique, debateram a próxima jogada. Deveriam dar instruções a Becker para ligar a Radek e avisá-lo do atraso? E se Radek tivesse outros planos e decidisse adiar para outra altura? As equipes e veículos estavam nas posições finais. Um cancelamento temporário poderia pôr em risco a segurança operacional. Esperar, aconselhou Shamron, e esperar foi o que fizeram.
Pelas 14h30, as condições atmosféricas melhoraram. Kloten reabriu e o voo 1578 assumiu o seu lugar na fila ao fundo da pista. Shamron fez os cálculos. O voo para Viena levava menos de noventa minutos. Se descolassem em breve, talvez chegassem a tempo a Viena.
Às 14h25 o avião estava no ar, e o azar tinha sido evitado. Shamron informou a equipe de recepção no Aeroporto Schwechat em Viena que o embrulho estava a caminho.
A tempestade sobre os Alpes fez o voo para Viena bastante mais turbulento do que Becker teria preferido. Para acalmar os nervos, consumiu três garrafinhas miniatura de Stolichnaya e visitou a casa de banho duas vezes, tudo isto foi registrado por Zalma, que estava sentado três filas atrás. Navot, o retrato da concentração e serenidade, olhava pela janela para o mar de nuvens negras, a sua água com gás intata. Aterrissaram em Schwechat poucos minutos depois das quatro da tarde sob uma luz cinza sujo. Zalman seguiu-os pelo terminal até o controle de passaportes. Becker foi mais uma vez à casa de banho. Navot, com um movimento quase imperceptível dos olhos, ordenou a Zalman que fosse com ele. Depois de se aliviar, o banqueiro passou três minutos em frente ao espelho arranjando-se, uma quantidade de tempo fora do normal, pensou Zalman, para um homem virtualmente sem cabelo. O vigilante pensou em dar a Becker um pontapé no tornozelo para o apressar, mas decidiu não o perturbar. Afinal de contas, ele era um amador a agir sob coação.
Depois de passar pelo controle de passaporte, Becker e Navot dirigiram-se ao terminal de chegadas. Aí, entre a multidão, estava um especialista em vigilância, alto e magro chamado Mordecai. Vestia um desleixado terno preto e segurava um cartão onde se lia BAUER. O seu carro, um grande Mercedes sedã, estava à espera no estacionamento de curta duração. A dois lugares de distância estava um Audi comercial de três portas prateado. As chaves estavam no bolso de Zalman.
Zalman evitou aproximar-se deles durante a viagem de carro até Viena. Ligou para o apartamento seguro de Munique e, em poucas palavras, cuidadosamente escolhidas, informou Shamron que Navot e Becker estavam dentro do horário e procediam em direção ao alvo. Pelas 16h45, Mordecai chegou ao Canal do Danúbio. Pelas 16h50 atravessou a linha em direção ao Primeiro Bairro e estava no trânsito de hora de ponta ao longo da Ringstrasse. Virou à direita, para uma rua de pedra estreita, e logo na primeira à esquerda. Um momento mais tarde, parou em frente ao portão de ferro ornamentado de Erich Radek. Zalman ultrapassou pela esquerda e continuou a conduzir.
— FAZ SINAL DE LUZES — disse Becker — e o guarda-costas deixa entrar.
Mordecai seguiu a instrução. Durante breves segundos de tensão, o portão manteve-se imóvel; então ouviu-se um bater metálico agudo, seguido do zumbido de um motor.
Enquanto o portão abria lentamente, o guarda-costas de Radek apareceu na porta da frente, a luz intensa do candelabro brilhava sobre a sua cabeça e ombros como uma auréola. Mordecai esperou até o portão estar completamente aberto e avançou para a entrada em forma de ferradura.
Navot saiu primeiro, depois Becker. O banqueiro apertou a mão do guarda-costas e apresentou:
— O meu associado de Zurique, Herr Oskar Lange. O guarda-costas acenou e convidou-os a entrar com um gesto. A porta da frente fechou-se.
Mordecai olhou para o relógio: 16h58. Pegou no celular e ligou um número de Viena. — Vou chegar tarde para jantar — disse.
— Está tudo bem?
— Sim — disse ele. — Está tudo bem.
ALGUNS SEGUNDOS MAIS TARDE, em Munique, o sinal chegou à tela do computador de Shamron. Shamron olhou para o relógio.
— Quanto tempo lhes vais dar? — perguntou Carter.
— Cinco minutos — disse Shamron — e nem um segundo a mais.
O AUDI SEDÃ PRETO com uma antena alta montada na bagageira estava estacionado a algumas ruas de distância. Zalman estacionou atrás, saiu e caminhou até a porta do passageiro. Oded estava sentado ao volante, um homem compacto com olhos castanhos claros e um nariz achatado de pugilista. Zalman, enquanto se instalava ao seu lado, conseguia cheirar tensão na sua respiração. Zalman tinha a vantagem de ter estado em atividade toda a tarde; Oded tinha estado preso no apartamento seguro de Viena sem nada para fazer exceto imaginar as consequências de um fracasso. Um celular estava no assento, a ligação com Munique já estava estabelecida. Zalman conseguia ouvir a respiração uniforme de Shamron. Uma imagem formou-se na sua mente: uma versão mais jovem de Shamron marchando na sua direção sob uma chuva torrencial na Argentina, Eichmann descendo de um ônibus e caminhando para ele vindo da direção oposta. Oded ligou o carro. Zalman foi arrastado de volta ao presente. Olhou para o relógio no painel de instrumentos: 17:03...
A E461, MAIS conhecida pelos austríacos como a Brünnerstrasse, é uma estrada de duas faixas que vem do Norte de Viena e atravessa as onduladas colinas do Weinviertel, a região de vinhos austríaca. São oitenta quilômetros até a fronteira checa. Há uma passagem-de-nível, abrigada por um dossel em abóbada, chefiada por dois relutantes guardas em abandonar o conforto do seu abrigo de alumínio e vidro para levar a cabo qualquer inspeção dos veículos que passam. Do lado checo da passagem-de-nível, a inspeção de documentos de viagem leva normalmente um pouco mais de tempo, embora o tráfego vindo da Áustria seja normalmente recebido de braços abertos. A um quilômetro e meio para lá da fronteira, ancorada nas colinas da Morávia do Sul, fica a antiga cidade de Mikulov. É uma cidade fronteiriça, com as caraterísticas de cerco de uma cidade fronteiriça. E ajustava-se perfeitamente ao estado de espírito de Gabriel. Ele estava por trás de um parapeito de tijolo de um castelo medieval, bem por cima dos telhados de telha vermelha da velha cidade, por baixo de um par de pinheiros dobrados pelo vento. A chuva fria caía como lágrimas na superfície da sua gabardina de oleado. O seu olhar estendia-se colina abaixo, em direção à fronteira. Na escuridão, apenas as luzes do tráfego na autoestrada eram visíveis, luzes brancas surgindo na sua direção, luzes vermelhas afastando-se na direção da fronteira austríaca.
Olhou para o relógio. Eles estariam dentro da casa de Radek neste instante. Gabriel conseguia imaginar pastas abrindo-se, café e bebidas sendo servidas. E então outra imagem apareceu, uma fila de mulheres vestidas de cinza, caminhando ao longo de uma estrada com neve e ensopada de sangue. A sua mãe, vertendo lágrimas de gelo.
— O que vai dizer a seu filho sobre a guerra, judia?
— A verdade, Herr Sturmbannführer. Direi ao meu filho a verdade.
— Ninguém vai acreditar em você.
Ela não lhe disse a verdade, claro. Em vez disso tinha confiado a verdade ao papel e trancado nos arquivos de Yad Vashem. Talvez Yad Vasehm fosse o local ideal para ela. Talvez existam verdades que, de tão aterradoras, fiquem melhor se confinadas num arquivo de horrores, em quarentena, separadas das não infectadas. Ela não pôde contar que fora vítima de Radek, como Gabriel não podia dizer que era o carrasco de Shamron. Ela sempre soube, no entanto.
Ela conhecia o rosto da morte, e ela tinha visto a morte nos olhos de Gabriel. O telefone no bolso de seu casaco vibrou silenciosamente contra a anca. Ele levou-o lentamente à orelha e ouviu a voz de Shamron. Guardou o telefone no bolso e deixou-se estar por um momento, observando os faróis flutuando na sua direção através da negra planície austríaca.
— O que vai dizer quando estiver com ele? — perguntara Chiara.
A verdade, Gabriel pensava agora. Eu direi a verdade.
Começou a caminhada, descendo as estreitas ruas de pedra de uma cidade antiga, em direção ao escuro.
35
VIENA
UZI NAVOT SABIA como revistar uma pessoa. Klaus Halder era muito bom no seu trabalho. Começou no colarinho da camisa de Navot e terminou nos canhões das suas calças
Armani. Em seguida virou a atenção para a pasta. Trabalhou lentamente, como um homem com todo o tempo do mundo, e com uma atenção de monge para todos os detalhes. Quando a revista terminou finalmente, ele ajeitou o conteúdo com cuidado e colocou os trincos de volta no sítio.
— Herr Vogel vai vê-los agora — disse. — Sigam-me, por favor. Caminharam pelo corredor central, depois passaram por um par de portas duplas e entraram numa sala de visitas. Erich Radek, num casaco de linho grosso e gravata cor de ferrugem, estava sentado perto da lareira. Acolheu os convidados com um simples aceno da sua alongada cabeça, mas não se esforçou por levantar-se. Radek, pensou Navot, é um homem que costuma receber visitas sentado.
O guarda-costas deslizou suavemente para fora da sala e fechou as portas.
Becker, sorrindo, aproximou-se e apertou a mão de Radek. Navot não desejava tocar no assassino, mas dadas as circunstâncias não tinha outra escolha. A mão oferecida era fria e seca, o aperto firme e sem tremor. Era um aperto de mão para o testar. Navot sentia que tinha passado.
Radek estalou os dedos em direção às cadeiras vazias, em seguida a sua mão voltou para o apoio de copo no braço da cadeira. Começou a girá-lo para a frente e para trás, duas voltas para a direita, duas para a esquerda. Havia qualquer coisa no movimento que fazia azia ao estômago de Navot.
— Ouvi coisas muito boas sobre o seu trabalho, Herr Lange disse Radek subitamente. — Tem uma excelente reputação perante os seus colegas em Zurique.
— É tudo mentira, asseguro-lhe, Herr Vogel.
— É muito modesto. — Girou a bebida. — Você fez um trabalho para um amigo meu há alguns anos, um cavalheiro chamado Helmut Schneider.
E tu estás a tentar armadilhar-me, pensou Navot. Ele tinha-se preparado para um estratagema destes. O verdadeiro Oskar Lange tinha-lhe fornecido uma lista de clientes dos últimos dez anos para Navot memorizar. O nome Helmut Schneider não estava nela.
— Lidei com um bom número de clientes durante os últimos anos, mas temo que o nome Schneider não esteja entre eles. Talvez o seu amigo me tenha confundido com outra pessoa.
Navot olhou para baixo, abriu os trincos da sua pasta e levantou a tampa. Quando voltou a levantar o olhar, os olhos azuis de Radek estavam perfurantes nos seus e a sua bebida rodava no braço da cadeira. Havia uma tranquilidade assustadora nos seus olhos. Era como estar a ser estudado por um retrato.
— Talvez tenha razão. — O tom conciliatório de Radek não condizia com a sua expressão. — Konrad disse que precisava da minha assinatura nalguns documentos relacionados com a liquidação dos bens da conta.
— Sim, está correto.
Navot retirou um dossier da pasta e colocou a pasta no chão aos seus pés. Radek acompanhou a viagem da pasta para baixo e devolveu o seu olhar ao rosto de Navot. Navot levantou a capa do dossier e elevou o olhar. Abriu a boca para falar, mas foi interrompido pelo tocar do telefone. Agudo e eletrônico, soou aos ouvidos sensíveis de Navot como um grito num cemitério. Navot olhou para a mesa estilo Biedermeier, e o telefone tocou uma segunda vez. Começou a tocar uma terceira vez, mas ficou subitamente em silêncio, como se tivesse sido amordaçado a meio do grito. Navot conseguia ouvir Halder, o guarda-costas, falando numa extensão do corredor.
— Boa tarde. .. Não, peço desculpa, mas Herr Vogel está neste momento em reunião. Navot retirou o primeiro documento do dossier. Radek estava agora visivelmente distraído, o seu olhar distante. Estava a ouvir o som da voz do seu guarda-costas. Navot chegou-se à frente na cadeira e segurou o papel num ângulo que permitisse a Radek ver.
— Este é o primeiro documento que necessita...
Radek levantou a mão exigindo silêncio. Navot ouviu passadas no corredor, seguido do som de portas a abrir. O guarda-costas entrou na sala e dirigiu-se à beira de Radek.
— É Manfred Kruz — disse ele num sussurro capelista. — Ele quer-lhe dar uma palavra. Diz que é urgente e não pode esperar.
ERICH RADEK LEVANTOU-SE lentamente da cadeira e caminhou para o telefone.
— O que se passa Manfred?
— Os israelenses.
— Que têm eles?
— Tenho informações que indicam que um grande grupo de operacionais se reuniu em Viena nestes dias para te raptar.
— Essas informações estão confirmadas?
— Suficientemente confirmadas para concluir que já não é seguro permanecer em casa. Destaquei uma unidade da Staatspolizei para te apanhar e levar-te para um local seguro.
— Ninguém consegue entrar aqui Manfred. Limita-te a pôr um guarda armado fora da casa.
— Estamos a lidar com os israelenses, Herr Vogel. Eu quero-o fora da casa.
— Está bem, se insistes, mas diz à tua unidade para recuar. Klaus dá conta do recado.
— Um guarda-costas não é suficiente. Eu sou responsável pela sua segurança e quero-o sob proteção policial. Lamento, mas tenho de insistir. As informações que tenho são muito específicas.
— Quando é que os teus agentes chegam aqui?
— A qualquer momento. Prepare-se para sair.
Desligou o telefone e olhou para os dois homens sentados junto à lareira.
— Peço desculpas, cavalheiros, mas estou com muita pressa, é uma emergência. Temos de terminar isto em outra hora. — Voltou-se para seu guarda-costas.
— Abra os portões Klaus e arranje-me um casaco. Já.
OS MOTORES DO portão frontal funcionaram. Mordecai, sentado ao volante do Mercedes, olhou pelo espelho retrovisor e viu um carro entrar vindo da rua com uma sirene azul rodopiando no teto. Parou atrás dele e travou a fundo. Dois homens saíram e escalaram os degraus da frente. Mordecai lentamente ligou a ignição.
ERICH RADEK FOI para o corredor. Navot arrumou a sua pasta e levantou-se. Becker ficou congelado no lugar. Navot cravou os dedos por baixo do braço do banqueiro e levantou-o.
Seguiram Radek até o corredor. Luzes de emergência azuis piscavam pelas paredes e teto. Radek estava junto ao seu guarda-costas, falando-lhe baixo ao ouvido. O guarda-costas segurava um sobretudo e parecia tenso. Enquanto ajudava Radek a vestir o casaco, os seus olhos estavam em Navot.
Alguém bateu à porta, dois estrondos agudos ecoaram pelo teto alto e chão de mármore do corredor. O guarda-costas largou o sobretudo de Radek e rodou o trinco. Dois homens à paisana empurraram e entraram na casa.
— Está pronto Herr Vogel?
Radek acenou, em seguida voltou-se e olhou uma vez mais para Navot e Becker.
— Mais uma vez, por favor aceitem as minhas desculpas, cavalheiros. Peço imensa desculpa pelo incômodo.
Radek voltou-se na direção da porta com Klaus ao seu lado. Um dos agentes travou o caminho ao guarda-costas colocando-lhe uma mão no peito. O guarda-costas afastou-a com uma pancada.
— O que pensa que está fazendo?
— Herr Kruz deu-nos instruções especificas. Só devemos levar Herr Vogel sob proteção.
— Kruz nunca teria dado uma ordem dessas. Ele sabe que eu vou onde quer que ele vá. Foi sempre assim.
— Lamento, mas essas são as nossas ordens.
— Deixe-me ver o seu distintivo e a sua identificação.
— Não há tempo. Por favor, Herr Vogel. Venha connosco.
O guarda-costas recuou um passo e meteu a mão dentro do casaco. Conforme a arma ficou à vista, Navot lançou-se para a frente. com a mão esquerda, agarrou o pulso do guarda-costas e encostou-lhe a arma contra o abdômen. com a direita, deu-lhe dois fortes golpes de mão aberta na nuca. O primeiro atordoou Halder; o segundo fez os seus joelhos cederem. A sua mão relaxou e a Glock caiu no chão de mármore. Radek olhou para a arma e por um instante pensou em apanhá-la. Em vez disso, voltou-se, precipitou-se para a porta aberta do seu estúdio e fechou-a com um estrondo.
Navot tentou a maçaneta. Trancada.
Deu uns passos atrás e lançou o ombro contra a porta. A porta desfez-se e ele tropeçou para dentro da sala escura. Levantou-se cambaleante e viu que Radek já tinha fugido através da falsa frente de uma estante de livros e estava dentro de um pequeno elevador do tamanho de uma cabine telefônica.
Navot saltou para a frente enquanto a porta do elevador começou a fechar. Conseguiu enfiar os dois braços para dentro e agarrou Radek pela lapela do sobretudo. Quando a porta bateu contra o ombro esquerdo de Navot, Radek agarrou-lhe os pulsos e tentou libertar-se. Navot segurou firmemente.
Oded e Zalman vieram em seu auxilio. Zalman, o mais alto dos dois, alcançou por cima da cabeça de Navot e puxou a porta. Oded deslizando por entre as pernas de Navot aplicou pressão por baixo. Perante a investida, a porta finalmente deslizou e abriu.
Navot arrastou Radek para fora do elevador. Já não havia tempo para subterfúgios ou enganos. Navot tapou a boca do velho com a mão, Zalman segurou-lhe as pernas e levantou-o do chão. Oded encontrou o interruptor e apagou a luz.
Navot olhou para Becker.
— Entre no carro. Depressa, idiota.
Arrastaram Radek degraus abaixo em direção ao Audi. Radek puxava a mão de Navot, tentando libertar-se do tampão na boca e esperneava. Navot conseguia ouvir Zalman resmungar entre dentes. De alguma forma, mesmo no calor da batalha, ele conseguia resmungar em alemão.
Oded abriu a porta de trás antes de dar a volta e correr para o volante.
Navot empurrou primeiro a cabeça de Radek para o fundo e colou-o ao assento.
Zalman forçou sua entrada e fechou a porta. Becker entrou na parte de trás do Mercedes. Mordecai acelerou fundo, e o carro guinou para a rua, o Audi seguindo de perto.
O corpo de Radek ficou subitamente quieto. Navot retirou a mão e o austríaco sorveu ofegante o ar.
— Está me machucando — disse. — Não consigo respirar.
— Eu deixo você se levantar, mas tem que prometer que se comporta bem. Não vai haver mais tentativas de fuga. Promete?
— Deixe eu me levantar. Está me esmagando, estúpido.
— Eu deixo, velho. Faça apenas um favor primeiro. Diga seu nome, por favor.
— Sabe meu nome. É Vogel. Ludwig Vogel.
— Não, não, esse nome não. Seu nome verdadeiro.
— Esse é o meu nome verdadeiro.
— Quer se levantar e deixar Viena como um homem, ou vou ter de ir sentado em cima de você o tempo todo?
— Eu quero me sentar. Está me machucando, maldição!
— Diga apenas seu nome.
Ficou em silêncio por um momento; então murmurou:
— Meu nome é Radek.
— Desculpe, mas não consegui ouvir. Pode dizer seu nome outra vez, por favor? Desta vez alto.
Inspirou profundamente e o seu corpo ficou rígido, como se estivesse em sentido em vez de deitado no banco de trás de um carro.
— MEU NOME É STURMBANNFÜHRER ERICH RADEK!
NO APARTAMENTO SEGURO de Munique, a mensagem apareceu na tela do computador de Shamron: O EMBRULHO FOI RECEBIDO. Carter deu-lhe uma palmada nas costas.
— Raios me partam! Eles o pegaram. Eles o pegaram mesmo.
Shamron levantou-se e caminhou até o mapa.
— Pegá-lo foi a parte mais fácil da operação, Adrian. Tirá-lo de lá vai ser outra história.
Olhou para o mapa. Oitenta quilômetros até a fronteira tcheca. Corra, Oded, pensou ele. Dirija como nunca dirigiu em sua vida.
36
VIENA
ODED JÁ TINHA guiado por aquela estrada uma dúzia de vezes, mas nunca como esta, nunca com a sirene a gritar e a rodopiar no teto, e nunca com os olhos de Erich Radek fitando os seus pelo retrovisor. A retirada do centro da cidade tinha corrido melhor do que esperado. O tráfego de fim de tarde era intenso, mas não ao ponto de não se conseguir desviar para dar passagem ao barulho e à luz da sua sirene. Radek amotinou-se duas vezes. Cada insurreição foi implacavelmente dominada por Navot e Zalman.
Circulavam agora em direção a norte pela E461. O tráfego de Viena tinha ficado para trás, a chuva caía continuamente e gelava nos cantos do para-brisas. Uma tabuleta passou de repente: REPÚBLICA CHECA 42 KM. Navot olhou prolongadamente sobre o ombro, então, em hebraico, instruiu Oded para desligar a sirene.
— Para onde vamos? — perguntou Radek respirando com dificuldade. — Para onde me estão a levar? Onde?
Navot não disse nada, como Gabriel tinha ordenado.
— Deixem-no fazer perguntas até ficar com a cara azul — Gabriel tinha dito.
— Simplesmente não lhe deem a satisfação de uma resposta. Deixem a incerteza afligir-lhe a mente. Era isso que ele faria se os papéis estivessem invertidos. Então Navot observou as povoações que passavam pela janela Mistelbach, Wilfersdorf, Erdberg — e pensou apenas numa coisa, o guarda-costas que ele tinha deixado inconsciente no corredor da entrada da casa de Radek em Stöbbergasse.
Poysdorf apareceu perante eles. Oded acelerou pela vila, em seguida virou para uma estrada de duas faixas e seguiu-a em direção a leste por entre pinheiros cobertos de neve.
— Para onde vamos? Para onde me estão a levar?
Navot já não conseguia suportar mais as suas perguntas em silêncio.
— Vamos para casa — disse de repente. — E tu vens connosco. Radek traçou um sorriso gelado.
— Cometeste apenas um erro esta noite, Herr Lange. Devias ter morto o meu guarda-costas quando tiveste oportunidade.
KLAUS HALDER ABRIU um olho, em seguida o outro. A escuridão era absoluta. Deixou-se estar deitado imóvel por um momento tentando determinar a posição do seu corpo. Tinha caído para a frente, com os braços para os lados, e a sua face direita estava pressionada contra o mármore frio. Tentou levantar a cabeça, um relâmpago de dor lancinante abateu-se-lhe sobre o pescoço. Lembrou-se então do instante em que tinha acontecido. Estava a tentar alcançar a arma quando levou duas pancadas por trás. Fora o advogado de Zurique, Oskar Lange. Obviamente que Lange não era um simples advogado. Ele estava a tramar alguma, como Halder temia desde o início.
Colocou-se de joelhos e sentou-se encostado à parede. Fechou os olhos e esperou que a sala parasse de girar, então esfregou a parte de trás da cabeça. Tinha um inchaço do tamanho de uma maçã. Ergueu o pulso esquerdo e lançou um olhar ao painel luminoso do seu relógio de pulso: 17:57. Quando tinha acontecido? Poucos minutos depois das cinco, 17h10 no máximo. A não ser que tivessem um helicóptero à espera na Stephansplatz, o mais certo era ainda estarem na Áustria.
Apalpou o bolso da frente do seu casaco esportivo e descobriu que o celular ainda lá estava. Tirou-o e ligou. Dois toques. Uma voz familiar.
— Aqui Kruz.
TRINTA SEGUNDOS MAIS TARDE, Manfred Kruz bateu com o telefone e avaliou suas opções. A resposta mais óbvia seria fazer soar o alarme e alertar todas as unidades policiais do país que o velho fora sequestrado por agentes israelenses, fechar as fronteiras e os aeroportos. Óbvia, sim, mas muito perigosa. Uma jogada dessas iria levantar muitas questões desconfortáveis. Porque foi Herr Vogel raptado? Quem é ele realmente? A candidatura de Peter Metzler seria esquadrinhada, assim como a carreira de Kruz. Mesmo na Áustria, tais assuntos assumiam vida própria, e Kruz tinha visto muitos para saber que o inquérito não terminaria à porta de Vogel.
Os israelenses sabiam que ele ficaria incapacitado, e tinham escolhido bem o momento. Kruz tinha de pensar numa maneira sutil de intervir, alguma maneira de impedir os israelenses sem destruir tudo no processo. Alcançou o telefone e marcou.
— Daqui Kruz. Os americanos informaram-nos que um possível grupo da al-Qaeda está em trânsito de automóvel pelo país esta tarde. Eles suspeitam que os membros da al-Qaeda possam estar a viajar com simpatizantes europeus para melhor se misturarem no ambiente. A partir deste momento estou a ativar a rede de alerta terrorista. Aumentem a segurança nas fronteiras, aeroportos e estações de trem para Nível Dois.
Desligou e olhou pela janela. Tinha atirado uma bóia ao velho. Perguntou a si mesmo se ele estaria em condições de a agarrar. Kruz sabia que se conseguisse, seria confrontado com um outro problema em breve: o que fazer com a equipe de rapto israelense. Levou a mão ao bolso do paletó e retirou um pedaço de papel.
— Se ligar para este número, quem vai atender?
— A violência.
Manfred Kruz alcançou o seu telefone.
O RELOJOEIRO, DESDE seu regresso a Viena, dificilmente encontrava razão para sair do santuário da sua pequena loja no Bairro Stephansdom. As frequentes viagens tinham-no deixado com um enorme número de peças acumulado que requeriam a sua atenção, incluindo um relógio regulador vienense, estilo Biedermeier, fabricado pelo famoso relojoeiro Vienense Ignaz Marenzeller em 1840. A caixa de mogno estava nas condições originais, embora o painel prateado de uma só peça tivesse requerido muitas horas de restauração. O movimento Biedermeier original feito à mão, com a sua corda de 75 dias, estava exposto em várias peças cuidadosamente arranjadas na superfície da sua mesa de trabalho.
O telefone tocou. Ele baixou o volume do seu leitor de CD portátil e o Concerto Brandenburg N°. 4 em Sol de Bach diminuiu até um sussurro. Uma escolha banal, Bach, mas o Relojoeiro considerava a precisão de Bach um acompanhamento perfeito para a tarefa de desmantelar e reconstruir o movimento de um relógio antigo. Alcançou o telefone com a mão esquerda. Uma onda de dor percorreu-lhe o comprimento do braço, uma lembrança dos seus abusos em Roma e na Argentina. Levou o receptor à orelha e prendeu-o contra o ombro.
— Sim — disse distraidamente. As suas mãos estavam de volta ao trabalho.
— O seu número foi-me dado por um amigo comum.
— Estou a ver — disse o Relojoeiro de modo descomprometido. Como posso ajudá-lo?
— Não sou eu quem precisa de ajuda. É o nosso amigo. O Relojoeiro pousou as ferramentas.
— O nosso amigo? — perguntou.
— Realizou trabalhos para ele em Roma e na Argentina. Presumo que saiba a quem me estou a referir?
O Relojoeiro sabia de fato. Então, o velho induzira-o em erro e por duas vezes colocara-o em situações de campo comprometedoras. Agora tinha cometido o pecado operacional fatal de dar o seu nome a um estranho. Era óbvio que estava em sarilhos. O Relojoeiro suspeitou que tivesse alguma coisa a ver com os israelenses. Decidiu que agora seria um excelente momento para acabar com a relação.
— Peço desculpa — disse — mas penso que me está a confundir com outra pessoa. O homem do outro lado da linha tentou contra-argumentar. O Relojoeiro desligou o telefone e aumentou o volume do seu leitor de CD até que o som de Bach encheu a oficina.
NO APARTAMENTO SEGURO de Munique, Carter desligou o telefone e olhou para Shamron, que ainda estava de pé em frente ao mapa, como se imaginasse o progresso de Radek para norte em direção à fronteira checa.
— Era da nossa filial de Viena. Estão a monitorizar a rede de comunicações austríaca. Parece que Manfred Kruz elevou o alerta terrorista para Nível Dois.
— Nível Dois? O que significa isso?
— Significa que é possível que haja alguma dificuldade na fronteira.
A ASSISTÊNCIA ESTAVA na reentrância de um ribeiro gelado. Havia dois veículos, um Opel sedã e uma van Volkswagen. Chiara estava ao volante da Volkswagen, faróis apagados, motor desligado, o peso reconfortante de uma Beretta no colo. Não havia outros sinais de vida, não havia luzes na vila, não havia o ruído do tráfego na autoestrada, apenas o suave bater da neve no teto da van e o assobiar do vento pelos juncos dos abetos. Olhou por cima do ombro e olhou para o compartimento traseiro da Volkswagen. Tinha sido preparado para a chegada de Radek. O forro da traseira tinha sido colocado. Por baixo do forro estava um compartimento especialmente construído para escondê-lo durante a passagem pela fronteira. Ele ficaria confortável lá, mais confortável do que merecia.
Olhou pelo vidro. Não havia muito para ver, a estrada estreita subindo pela escuridão em direção a um cume à distância. Então, subitamente, houve uma luz, um brilho branco e limpo que iluminou o horizonte e transformou as árvores em minaretes pretos. Por alguns segundos, foi possível ver a neve, rodopiando como uma nuvem de insetos pelo ar varrido pelo vento. Então os faróis da frente surgiram. O carro contornou a colina, e as luzes espalharam-se por ela, atirando as sombras das árvores para um lado, depois para o outro. Chiara segurou a Beretta com a mão e deslizou o dedo indicador para dentro da guarda do gatilho.
O carro derrapou até parar junto à van. Ela olhou para o banco de trás e viu o assassino, sentado entre Navot e Zalman, rígido como um comissário à espera da limpeza de sangue. Ela rastejou até o compartimento traseiro e fez uma verificação final.
— TIRE O SOBRETUDO — ordenou Navot.
— Por quê?
— Porque estou mandando.
— Eu tenho o direito de saber por quê.
— Não tem direito nenhum! Faça apenas o que digo.
Radek permaneceu imóvel. Zalman puxou a lapela do casaco, mas o velho cruzou os braços com força junto ao peito. Navot suspirou pesadamente. Se o velho bastardo quer um combate final, vai consegui-lo. Navot abriu-lhe os braços à força enquanto Zalman puxava a manga direita, depois a esquerda. O casaco depois; em seguida Zalman rasgou a manga da camisa e expôs a pele caída do braço. Navot exibiu uma seringa, cheia de sedativo.
— Isso é para seu próprio bem — disse Navot. — É moderado e não tem efeito durante muito tempo. Vai fazer sua viagem muito mais suportável. Sem claustrofobia.
— Nunca tive claustrofobia.
— Não me interessa.
Navot espetou a agulha no braço de Radek e despejou o conteúdo. Passados alguns segundos, o corpo de Radek relaxou; em seguida a cabeça tombou para o lado e o queixo descaiu. Navot abriu a porta e saiu. Segurou o corpo amolecido de Radek debaixo dos braços e arrastou-o para fora do carro.
Zalman levantou-o pelas pernas e juntos carregaram-no como um morto de guerra para a lateral da van. Chiara estava agachada no interior, segurando uma máscara de oxigênio e outra de plástico transparente. Navot e Zalman deitaram Radek no chão da van; e Chiara colocou-lhe a máscara sobre o nariz e a boca. O plástico embaciou imediatamente, indicando que a respiração de Radek estava normal. Ela verificou-lhe o pulso. Regular e forte. Manusearam-no para dentro do compartimento e fecharam a tampa.
Chiara sentou-se ao volante e ligou o motor. Oded fechou-lhe a porta e deu uma pequena pancada com a mão no vidro. Chiara engatou a marcha e seguiu para a autoestrada. Os outros entraram no Opel e seguiram atrás dela.
CINCO MINUTOS MAIS TARDE, as luzes da fronteira apareceram como faróis no horizonte. Conforme Chiara se foi aproximando conseguiu ver uma pequena fila de trânsito com cerca de seis veículos de comprimento, esperando para atravessar. Havia dois guardas fronteiriços em evidência. Tinham as lanternas na mão e estavam a verificar passaportes e a espreitar pelas janelas. Ela olhou por cima do ombro. As portas do compartimento permaneciam fechadas. Radek estava em silêncio.
O carro em frente passou na inspeção e foi deixado seguir em direção ao lado checo. O guarda fronteiriço fez-lhe sinal para avançar. Ela baixou o vidro e sorriu.
— Passaporte, por favor.
Ela entregou. O segundo guarda tinha-se deslocado para o lado do passageiro da van, e ela conseguia ver o foco de luz da lanterna investigando o interior.
— Está tudo bem?
O guarda fronteiriço manteve os olhos na fotografia e não respondeu.
— Quando entrou na Áustria?
— Hoje.
— Onde?
— Pela Itália, em Tarvísio.
Ele dispensou um momento comparando o rosto dela com a fotografia do passaporte. Em seguida abriu a porta do motorista e com um gesto ordenou-lhe que saísse da van.
UZI NAVOT OBSERVOU a cena em primeira fila, no lugar do passageiro no banco da frente do Opel. Olhou para Oded e praguejou ligeiramente por entre os dentes. Em seguida ligou do celular para o apartamento seguro de Munique. Shamron atendeu ao primeiro toque.
— Temos um problema — disse Navot.
ELE ORDENOU que se colocasse na frente da van e apontou a lanterna para seu rosto. Através do brilho conseguia ver o segundo guarda fronteiriço abrindo a porta do passageiro da van. Forçou-se a olhar para o interrogador. Tentou não pensar na Beretta contra as suas costas. Ou em Gabriel, esperando do outro lado da fronteira em Mikulov. Ou Navot, Oded e Zalman observando impotentes do Opel.
— Para onde se dirige esta noite?
— Praga — disse ela.
— Por que vai para Praga?
Ela disparou-lhe um olhar: Não tem nada com isso. Então disse: — Vou visitar meu namorado.
— Namorado — repetiu ele. — O que seu namorado faz em Praga?
Ensina italiano, dissera Gabriel.
Ela respondeu à pergunta.
— Onde?
No Instituto de Estudos Linguísticos de Praga, tinha dito Gabriel. Mais uma vez, ela respondeu como Gabriel tinha instruído.
— E há quanto tempo ele é professor do Instituto de Estudos Linguísticos de Praga?
— Três anos.
— E vê-o com frequência?
— Uma vez por mês, às vezes duas.
O segundo guarda tinha entrado na van. Uma imagem de Radek passou-lhe pela mente, olhos fechados, máscara de oxigênio no rosto. Não acorde, pensou ela. Não se mexa. Não faça barulho. Aja decentemente, pelo menos uma vez em sua vida desprezível.
— E quando entrou na Áustria?
— Já disse isso.
— Diga outra vez, por favor.
— Hoje.
— A que horas?
— Não me lembro da hora.
— Era de manhã? Era de tarde?
— Tarde.
— Início da tarde? Fim da tarde?
— Início.
— Então ainda era dia?
Ela hesitou; ele pressionou-a.
— Sim? Ainda era dia?
Ela acenou. De dentro da van veio o som da porta traseira se abrindo. Ela se forçou a olhar diretamente para os olhos do interrogador. O seu rosto, escurecido pela irritante luz da lanterna, começou a parecer-se com Erich Radek, não a versão patética do Radek inconsciente na traseira da van, mas o Radek que arrastou uma criança chamada Irene Frankel das fileiras da marcha da morte de Birkenau em 1945 e a levou para uma floresta polonesa para um momento de tormento final.
— Diga as palavras, judia! Foi transferida para leste. Teve comida em abundância e cuidados médicos adequados. As câmaras de gás e o crematório são mentiras bolchevique-judaicas.
Eu consigo ser tão forte como você, Irene, pensou ela. Eu consigo passar por isso. Por você.
— Parou em algum lugar na Áustria?
— Não.
— Não aproveitou a oportunidade para visitar Viena?
— Já estive em Viena — disse ela. — Não me agrada.
Ele dispensou um momento examinando-lhe o rosto.
— É italiana?
— Tem meu passaporte na mão.
— Não estou falando de seu passaporte. Estou falando de sua etnia. Seu sangue. Descendência italiana ou imigrante do, digamos, Oriente Médio ou Norte de África?
— Sou italiana — assegurou ela.
O segundo guarda saiu da van e abanou a cabeça. O interrogador devolveu-lhe o passaporte.
— Peço desculpas pelo atraso — disse ele. — Tenha uma boa viagem.
Chiara sentou-se ao volante, engatou a marcha e passou a fronteira devagar. Desatou em lágrimas, lágrimas de alívio, lágrimas de raiva. No início tentou impedi-las, mas não conseguiu. A estrada ficou desfocada, as luzes traseiras transformaram-se em riscos vermelhos, e mesmo assim elas vieram.
— Por você, Irene — disse ela em voz alta. — Fiz isso por você.
A ESTAÇÃO DE trem de Mikulov fica no fim da cidade velha, onde as colinas encontram a planície. Há uma única plataforma, que suporta um quase constante ataque do vento que desliza pelos Cárpatos, e um melancólico estacionamento de gravilha, que se transforma num lago quando chove. Perto da bilheteira está uma parada de ônibus riscada de graffitis, e era ai, encostado ao lado de onde vem o vento, que Gabriel esperava, mãos mergulhadas nos bolsos do casaco impermeável.
Levantou o olhar quando a van entrou no estacionamento e esmagou a gravilha. Esperou até que parasse antes de sair da parada de ônibus para a chuva. Chiara esticou-se e abriu-lhe a porta. Quando a luz de teto se acendeu, ele viu que o seu rosto estava molhado.
— Estás bem?
— Estou ótima.
— Queres que eu conduza?
— Não, eu consigo.
— Tem certeza?
— Entra, Gabriel. Não suporto estar sozinha com ele.
Ele entrou e fechou a porta. Chiara deu meia volta e regressou à autoestrada. Um momento mais tarde estavam a ir para norte, para os Cárpatos. DEMORARAM MEIA HORA até chegar a Brno, mais uma hora para chegar a Ostrava. Gabriel abriu as portas do compartimento duas vezes para verificar Radek. Eram quase oito horas quando chegaram à fronteira polonesa. Sem verificações de segurança desta vez, sem fila de trânsito, apenas uma mão espetada fora do abrigo de tijolo acenando-lhes à passagem pela fronteira.
Gabriel rastejou para a traseira da van e puxou Radek do compartimento. Em seguida abriu uma gaveta e retirou uma seringa. Desta vez tinha uma dose moderada de estimulante, apenas o suficiente para o trazer de volta aos limites do consciente lentamente. Gabriel inseriu a seringa no braço de Radek, injetou a droga, em seguida retirou a agulha e esfregou a ferida com álcool. Os olhos de Radek abriram devagar. Observou o ambiente envolvente por um momento antes de se fixar no rosto de Gabriel.
— Allon? — murmurou ele pela máscara de oxigênio. Gabriel acenou lentamente.
— Para onde me levas? — Gabriel não respondeu. — Vou morrer? — perguntou, e, antes que Gabriel pudesse responder, voltou a ficar inconsciente.
37
POLÔNIA ORIENTAL
A BARREIRA ENTRE consciência e coma era como uma cortina de palco, pela qual ele conseguia passar à vontade. Só não sabia quantas vezes tinha passado por esta cortina. O tempo, como a sua velha vida, estavam perdidos para ele. A sua bela casa de Viena parecia a casa de outro homem, na cidade de outro homem. Algo tinha acontecido quando ele gritou o seu nome aos israelenses. Ludwig Vogel era agora um estranho para ele, um conhecido que ele já não via há muitos anos. Ele era Radek novamente. Infelizmente o tempo não tinha sido meigo com ele. O alto e belo homem de preto estava agora prisioneiro num corpo fraco e decadente.
O judeu tinha-o colocado no forro da traseira. As suas mãos e tornozelos estavam amarrados por uma grossa fita adesiva prateada, e estava amarrado com o cinto de segurança como um doente mental. Os seus pulsos serviam como o portal entre os dois mundos. Apenas tinha de os torcer num determinado ângulo para que a fita se cravasse dolorosamente na pele e passaria a cortina do mundo dos sonhos para o reino do real. Sonhos? Será apropriado chamar a tais visões sonhos? Não, eram demasiado exatas, descritivas demais. Eram memórias, sobre as quais ele não tinha controle, apenas o poder de as interromper por alguns momentos infligindo dor em si próprio com a fita adesiva do judeu.
O seu rosto estava perto da janela, e o vidro estava desobstruído. Ele era capaz, quando estava acordado, de ver a infindável região rural negra e as desoladoras vilas escurecidas. Também era capaz de ler os sinais na estrada. Não precisava dos sinais para saber onde estava. Algures, noutra vida, ele tinha sido o senhor da noite nesta terra. Ele lembrava-se desta estrada: Dachnow, Zukow, Narol... Ele sabia o nome da próxima vila, mesmo antes desta passar pela janela: Belzec...
Fechou os olhos. Porquê agora, passados tantos anos? Depois da guerra ninguém esteve assim tão interessado num mero oficial SD que servira na Ucrânia — ninguém exceto os russos, claro — e no momento em que o seu nome veio ao de cima com ligações à Solução Final, o General Gehlen tinha providenciado a sua fuga e o seu desaparecimento.
A sua antiga vida fora deixada para trás em segurança. Tinha sido perdoado por Deus e a sua Igreja e até mesmo pelos seus inimigos, que gananciosamente tiraram proveito dos seus serviços quando também eles se sentiram ameaçados pelo judaísmo-bolchevismo. Os governos rapidamente perderam o interesse em proceder contra os, assim chamados, criminosos de guerra, e amadores como Wiesenthal focaram a atenção em peixe graúdo como Eichmann e Mengele, ajudando de forma involuntária peixe mais miúdo como ele próprio a encontrar santuário em águas calmas. Houve um susto sério. Em meados dos anos setenta, um jornalista americano, um judeu, claro, que foi a Viena e colocou demasiadas questões. Na estrada que sai de Salzburg para sul ele mergulhou numa ravina, e a ameaça foi eliminada. Nessa altura agiu sem hesitar. Se tivesse lançado Max Klein numa ravina ao primeiro sinal de ameaça... Reparara nele naquele dia no Café Central, assim como nos dias que se seguiram. Os seus instintos tinham-lhe dito que Klein representava uma ameaça. Ele hesitou. Quando Klein levou a sua história ao judeu Lavon era demasiado tarde.
Passou pela cortina outra vez. Estava em Berlim, sentado no gabinete do oficial Gruppenführer Heinrich Müller, chefe da Gestapo. Müller tira um pedacinho de almoço dos dentes e sacode uma carta que acabou de receber de Luther no Ministério dos Negócios Estrangeiros. É 1942.
— Rumores das nossas atividades no Leste começaram a chegar aos ouvidos dos nossos inimigos. Também temos um problema com um dos locais na região de Warthegau. Queixas sobre uma contaminação qualquer.
— Se me permite colocar a questão óbvia, Herr Gruppenführer, que diferença faz se rumores chegam ao Oeste? Quem vai acreditar que tal coisa foi realmente possível?
— Rumores é uma coisa, Erich. Provas é outra.
— Quem vai descobrir provas? Algum servo polonês atrasado mental? Um vesgo abridor de valas ucraniano?
— Talvez os Ivans?
— Os russos? Como descobririam?
Müller ergueu uma mão de pedreiro. Discussão terminada. E então ele percebeu. A aventura russa do Führer não estava indo de acordo com os planos. A vitória no Leste já não estava assegurada.
Müller inclinou-se para a frente.
— Estou te mandando para o inferno Erich. Vou espetar essa sua cara nórdica tão fundo no esterco que nunca mais vai ver a luz do dia.
— Como poderei jamais agradecer, Herr Gruppenführer?
— Limpe a porcaria. Toda. Em toda parte. É sua responsabilidade garantir que se mantenha apenas um rumor. E quando a operação estiver concluída, quero que seja o único homem de pé.
Ele concordou. O rosto de Müller afastou-se pela noite polonesa. Estranho, não é? A sua verdadeira contribuição para a Solução Final não foi matar mas esconder e garantir a segurança, e no entanto estava com problemas agora, sessenta anos depois, por causa de um jogo idiota que fizera bêbado em Auschwitz num domingo. Aktion 1005? Sim, fora um projeto seu, mas nenhum sobrevivente judeu testemunharia sua presença na beira de uma vala comum, porque não havia sobreviventes. Ele geriu uma operação fechada. Eichmann e Himmler teriam sido aconselhados a fazer o mesmo. Foram tolos em permitir que tantos sobrevivessem.
Uma memória surgiu, janeiro de 1945, um rio de judeus frágeis dispersos ao longo de uma estrada muito parecida com esta. A estrada de Birkenau. Milhares de judeus, cada um com uma história para contar, cada um uma testemunha. Ele defendia a liquidação da população inteira do campo antes da evacuação. Não, disseram. Trabalho escravo era necessário com urgência no Reich. Trabalho? A maioria dos judeus que ele tinha visto sair de Birkenau mal conseguia andar, quanto mais manejar uma picareta ou uma pá. Eles não eram aptos para o trabalho, apenas para o massacre, e já tinha matado uns quantos, ele próprio. Por que, em nome de Deus, lhe tinham ordenado que limpasse as valas para depois permitir que milhares de testemunhas caminhassem para fora de um local como Birkenau?
Ele se esforçou por manter os olhos abertos, e observou pela janela. Estavam a conduzir ao longo das margens de um rio, perto da fronteira ucraniana. Ele conhecia este rio, um rio de cinzas, um rio de ossos.
Pensou quantas centenas de milhares estariam ali embaixo, sedimentadas no leito do Rio Bug.
Uma cidade adormecida: Uhrusk. Pensou em Peter. Ele tinha avisado que isto aconteceria.
— Se eu me tornar uma ameaça séria, posso ganhar a chancelaria — dissera Peter —, alguém vai tentar nops expor.
Ele sabia que Peter estava certo, mas também acreditava que conseguiria lidar com qualquer ameaça. Estava errado, e agora seu filho teria de enfrentar uma humilhação eleitoral inimaginável, tudo por sua culpa. Era como se os judeus tivessem levado Peter à beira de uma vala comum e apontado uma arma para sua cabeça. Ele pensou que conseguiria evitar que eles puxassem o gatilho, se conseguisse quebrar mais um acordo, engendrar uma fuga final.
E este judeu que olha fixamente para mim com aqueles rancorosos olhos verdes? O que espera ele que eu faça? Peça perdão? Vergue, chore e cuspa sentimentalismos? O que este judeu não percebe é que eu não sinto culpa pelo que fiz. Eu fui forçado pela mão de Deus e os ensinamentos da minha Igreja. Não nos disseram os padres que os judeus foram os assassinos de Deus? O Santo Padre e os seus cardeais não ficaram em silêncio quando sabiam perfeitamente o que estávamos a fazer no Leste? Será que este judeu espera que eu reprove assim sem mais nem menos e diga que foi um erro terrível? E porque olha ele para mim assim? Aqueles olhos eram-lhe familiares. Já os tinha visto em algum lado antes. Talvez fosse das drogas que lhe tinham dado. Ele não conseguia ter a certeza de nada. Ele nem tinha sequer a certeza de estar vivo. Talvez fosse a sua alma a fazer esta viagem ao longo do Rio Bug. Talvez estivesse no inferno.
Outra aldeola: Wola Uhruska. Ele conhecia a próxima vila. Sobibor...
Fechou os olhos, o veludo da cortina envolveu-o. É a Primavera de 1942, está a conduzir para fora de Kiev na estrada de Zhitomir com o comandante de uma unidade Einsatzgruppen ao lado. Estão a caminho para inspecionar uma ravina que se transformou num problema de segurança, um lugar que os ucranianos chamam Babi Yar. Quando chegam, o Sol já está a desaparecer no horizonte e está quase a anoitecer. Mesmo assim, há luz suficiente para observar o estranho fenômeno que acontece no fundo da ravina. A terra parece estar a debater-se com um ataque epiléptico. O solo tem convulsões, gás é disparado para o ar, juntamente com gêiseres de líquido pútrido. O fedor! Meu Deus, o fedor. Ele consegue cheirá-lo agora.
— Quando começou?
— Pouco depois do final do Inverno. O chão aqueceu, então os corpos aqueceram. Eles decompõem-se muito rapidamente.
— Quantos estão ali embaixo?
— Trinta e três mil judeus, alguns ciganos e prisioneiros soviéticos, assim por alto.
— Cerque a ravina inteira.
— No momento outros locais têm prioridade. Trataremos deste assim que possível.
— Que outros locais?
— Locais de que nunca ouviu falar: Birkenau, Belzec, Sobibor, Treblinka. Nosso trabalho aqui está feito. Esperam novas chegadas a qualquer momento, nos outros.
— O que vai fazer com este local?
— Abrimos as valas e queimamos os corpos, em seguida esmagamos os ossos e espalhamos os fragmentos nas florestas e nos rios.
— Queimar trinta mil cadáveres? Tentamos isso nas operações de massacre. Usamos lança-chamas, pelo amor de Deus. Cremações maciças a céu aberto não funcionam.
— Isso é porque nunca construíram uma pira em condições. Em Chelmno, eu provei que pode ser feito. Confie em mim, Kurt, um dia este local chamado Babi Yar será apenas um rumor, como os judeus que viviam aqui.
Ele torceu os pulsos. Desta vez a dor não foi suficiente para acordar. A cortina recusou-se a abrir. Permaneceu trancado numa prisão de memórias, vagueando por um rio de cinzas.
MERGULHARAM PELA noite adentro. O tempo era uma memória. A fita adesiva tinha-lhe cortado a circulação. Já não conseguia sentir as mãos e os pés. Sentia-se febrilmente quente num minuto e arrepiantemente frio no outro. Tinha a impressão de terem parado uma vez. Tinha cheirado gasolina. Estariam eles a encher o depósito? Ou seria apenas a memória de traves de caminho-de-ferro ensopadas em combustível?
Os efeitos da droga finalmente dissiparam. Ele estava agora acordado, alerta e consciente, e seguro de que não estava morto. Algo na postura do judeu lhe disse que estavam próximos do final da jornada. Tinham passado por Siedlce, depois, em Sokolow Podlaski, tinham virado para uma estrada de campo mais estreita. Dybow veio a seguir, depois Kosow Lacki. Saíram da estrada principal, para um trilho de terra batida. A van trepidava: dump-dump... dump-dump. A velha via-férrea, pensou, ainda aqui estava, claro. Seguiram o trilho até uma plataforma de abetos e bétulas e pararam um momento mais tarde num pequeno estacionamento alcatroado.
Um segundo carro entrou na clareira com os faróis apagados. Três homens saíram e aproximaram-se da van. Ele reconheceu-os. Eram os que o tinham tirado de Viena. O judeu colocou-se em cima dele e cuidadosamente cortou a fita adesiva e soltou as correias de couro.
— Venha — disse ele agradavelmente. — Vamos dar um passeio.
38
TREBLINKA, POLÔNIA
SEGUIRAM POR UM trilho por entre as árvores. Tinha começado a nevar. Os flocos caíam suavemente pelo ar tranquilo e assentavam-lhes nos ombros como cinzas de um
fogo distante. Gabriel segurava Radek pelo cotovelo. Os seus passos eram cambaleantes no início, mas em breve o sangue começou a fluir-lhe novamente aos pés e insistiu em caminhar sem o suporte de Gabriel. A sua respiração difícil gelava no ar. Cheirava a amargo e a medo.
Avançaram mais fundo para dentro da floresta. O trilho era arenoso e coberto por uma fina camada de faúlhas. Oded estava vários passos à frente, quase invisível através da queda de neve. Zalman e Navot caminhavam em formação atrás deles. Chiara tinha ficado para trás na clareira, vigiando os veículos. Fizeram uma pausa numa brecha nas árvores, de cerca de cinco metros de largura, estendendo-se pelo escuro. Gabriel iluminou-a com o foco de uma lanterna. No centro do corredor, em intervalos equidistantes, estavam várias pedras em pé. As pedras marcavam a linha da antiga vedação. Tinham chegado ao perímetro do campo. Gabriel desligou a lanterna e puxou Radek pelo cotovelo. Radek tentou resistir, mas tropeçou para a frente.
— Faça o que eu digo, Radek, e vai correr tudo bem. Não tente fugir, porque não há por onde escapar. Não vale a pena gritar por ajuda, porque ninguém vai ouvir seus gritos.
— Sente prazer em me ver com medo?
— Sinto nojo, para dizer a verdade. Não gosto nem de tocá-lo. Eu não gosto do som de sua voz.
— Então por que estamos aqui?
— Eu apenas quero que veja algumas coisas.
— Não há nada para ver aqui, Allon. Apenas um memorial polonês.
— Precisamente — Gabriel deu-lhe um puxão no cotovelo. — Venha, Radek. Mais depressa. Tem que andar mais depressa. Não temos muito tempo. Vai amanhecer em breve.
Um momento mais tarde, pararam de novo perante um caminho-de-ferro sem carris, o velho ramal que trouxera os trens da estação de Treblinka até o interior do campo. As traves tinham sido recriadas em pedra e estavam cobertas por neve recente. Seguiram os carris até o campo e pararam no sítio onde tinha estado a plataforma. Também ela estava representada em pedra.
— Lembra, Radek?
Ele ficou em silêncio, o queixo caído, a respiração áspera.
— Vá lá, Radek. Sabemos quem você é, nós sabemos o que fez. Desta vez não vai escapar. Não vale a pena entrar em jogos ou tentar negar alguma coisa. Não há tempo, a não ser que não queira salvar seu filho.
A cabeça de Radek girou lentamente. Os seus lábios comprimiram-se e o seu olhar endureceu.
— Faria mal ao meu filho?
— Na verdade, você fará por nós. Tudo o que temos a fazer é dizer ao mundo quem é o pai dele, e isso o destruirá. Foi por isso que plantou a bomba no escritório de Eli Lavon: para proteger Peter. Ninguém podia tocá-lo, não num lugar como a Áustria. A janela para você estava fechada há muito tempo. Estava seguro. A única pessoa que podia pagar um preço por seus crimes é seu filho. Foi por isso que tentou matar Eli Lavon. Foi por isso que assassinou Max Klein.
Voltou as costas a Gabriel e olhou para a escuridão.
— O que é que queres? O que queres saber?
— Conta-me como foi Radek. Eu já li sobre isso, eu vejo o memorial, mas não consigo imaginar como funcionou realmente. Como foi possível transformar em fumo um trem cheio de pessoas em apenas quarenta e cinco minutos? Quarenta e cinco minutos, porta a porta, não era disso que o staff das SS se costumava vangloriar por estes lados? Conseguiam transformar um judeu em fumo em quarenta e cinco minutos. Doze mil judeus por dia. Oitocentos mil no total.
Radek emitiu um riso fechado, um interrogador que não acreditava na afirmação do seu prisioneiro. Gabriel sentiu como se uma pedra tivesse sido posta sobre o seu coração.
— Oitocentos mil? Onde foste buscar um número desses?
— É a estimativa oficial do governo polonês.
— E espera que um bando de seres inferiores, como os poloneses, seja capaz de saber o que aconteceu nestes bosques? — A sua voz pareceu subitamente diferente, mais jovem e autoritária. — Por favor Allon, se vamos ter esta discussão, lidemos com os fatos e não com idiotice polonesa. Oitocentos mil? — Abanou a cabeça e efetivamente sorriu. Não, não foram oitocentos mil. O número real foi muito superior a isso.
UMA SÚBITA RAJADA de vento agitou as copas das árvores. Para Gabriel soou como o som dos rápidos de um rio. Radek estendeu a mão e pediu a lanterna. Gabriel hesitou.
— Não pensa que vou atacar você com isso, não?
— Eu sei de algumas coisas que fez.
— Isso foi há muito tempo.
Gabriel entregou-lhe a lanterna. Radek apontou o foco para a esquerda, iluminando um molho de árvores de folha permanente.
— Eles chamavam a esta área o campo de baixo. As casernas das SS eram ali mesmo. A vedação periférica passava mesmo por trás. Em frente, havia uma estrada alcatroada com arbustos e flores durante a Primavera e o Verão. Talvez te custe a acreditar, mas era na realidade bastante agradável. Não havia tantas árvores, claro. Plantamos as árvores depois de demolir o campo. Na altura eram apenas rebentos. Agora, estão completamente adultas, bem bonitas.
— Quantos SS?
— Normalmente cerca de quarenta. moças judias tratavam-lhes da limpeza, mas tinham polonesas para cozinhar, três moças locais que vinham das vilas em redor.
— E os ucranianos?
— Estavam aquartelados do lado oposto da estrada, em cinco casernas. A casa de Stangl era no meio, no cruzamento de duas estradas . Ele tinha um belo jardim. Foi desenhado para ele por um homem de Viena.
— Mas os recém-chegados nunca viram essa parte do campo?
— Não, não, cada parte do campo era cuidadosamente escondida da outra por vedações intercaladas com plantações de pinheiros. Quando chegavam ao campo, eles viam o que parecia ser uma normal estação de trem de campo, completa com um horário de partidas falso. Não havia partidas de Treblinka, claro. Apenas trens vazios partiam da estação.
— Havia aqui um edifício, não havia?
— Fora desenhado para parecer uma normal estação de trem, mas na realidade estava cheio de valores roubados de chegadas anteriores. Aquela seção ali era conhecida como o Largo da Estação. Ali havia o Largo da Recepção, ou o Largo da Triagem.
— Alguma vez viste a chegada dos transportes?
— Eu não tinha nada a ver com esse tipo de situação, mas sim, eu vi-os chegar.
— Havia dois procedimentos de chegada diferentes? Um para judeus da Europa Ocidental e outro para judeus do Leste?
— Sim, está correto. Os judeus da Europa Ocidental eram tratados com muita mentira e fraude. Não havia chicotes nem gritos. Era-lhes pedido educadamente que desembarcassem do trem. Pessoal médico de batas brancas estava à espera no Largo da Recepção para tratar dos doentes.
— Era tudo um estratagema, no entanto. Os velhos e os doentes eram levados e abatidos a tiro imediatamente.
Ele concordou.
— E os judeus do Leste? Como eram recebidos na plataforma?
— Eram recebidos por chicotes ucranianos.
— E depois?
Radek levantou a lanterna e apontou o foco a uma curta distância através da clareira.
— Havia uma cerca de arame farpado aqui. Para lá do arame existiam dois edifícios. Um era uma caserna para despir. No segundo edifício, judeus de trabalho cortavam o cabelo às mulheres. Quando terminavam, elas iam naquela direção. — Radek usou a lanterna para iluminar o caminho. — Havia aqui uma passagem, uma espécie de passagem de gado, com alguns metros de largura, arame farpado e ramos de pinheiro. Era conhecida como o tubo.
— Mas as SS tinham um nome especial para isso, não tinham?
Radek acenou.
— Estrada para o Paraíso.
— E onde ia dar a Estrada para o Paraiso?
Radek levantou o foco da sua luz.
— Para o campo de cima — disse. — O campo da morte.
PROSSEGUIRAM O CAMINHO até uma larga clareira polvilhada com centenas de pedregulhos, cada pedra representava uma comunidade judaica destruída em Treblinka. A pedra maior ostentava o nome Varsóvia. Gabriel olhou para lá das pedras, em direção ao céu, para leste. Começava a ganhar claridade.
— A Estrada para o Paraiso levava diretamente a um edifício de tijolo que albergava as câmaras de gás — disse Radek quebrando o silêncio. De repente parecia ansioso por falar. — Cada câmara tinha quatro metros por quatro metros. Inicialmente eram apenas três, mas em breve descobriram que precisavam de mais capacidade para satisfazer a procura. Foram acrescentadas mais dez. Um motor a gasóleo bombeava gases de monóxido de carbono para as câmaras. A asfixia demorava menos de trinta minutos. Depois disso os corpos eram retirados.
— E o que era feito com eles?
— Durante vários meses, foram enterrados ali fora, em grandes valas. Mas muito rapidamente as valas transbordaram e a decomposição dos corpos contaminou o campo.
— Foi quando chegou?
— Não de imediato. Treblinka era o quarto campo da nossa lista. Limpamos as valas de Birkenau primeiro, a seguir Belzec e Sobibor. Só chegamos a Treblinka em março de 1943. Quando eu cheguei... — a sua voz arrastou-se. — Terrível.
— O que fez?
— Abrimos as valas, claro, e retiramos os corpos.
— À mão?
Ele abanou a cabeça.
— Tínhamos uma escavadora mecânica. Acelerou bem o trabalho.
— A garra, não era assim que chamavam?
— Sim, era isso.
— E depois dos corpos serem retirados?
— Eram incinerados em grandes prateleiras de metal.
— Tinham um nome especial para as prateleiras, não tinham?
— Assadeiras — disse Radek. — Chamávamos de assadeiras.
— E depois dos corpos serem queimados?
— Esmagávamos os ossos e voltávamos a enterrá-los nas valas ou levávamos em carroças para despejar no rio Bug.
— E quando as valas antigas ficaram vazias?
— Depois disso, os corpos eram levados diretamente das câmaras de gás para as assadeiras. Funcionou assim até outubro desse ano, quando o campo foi fechado e todos os traços foram obliterados. Operou por pouco mais de um ano.
— E mesmo assim conseguiram assassinar oitocentos mil?
— Não foram oitocentos mil.
— Quantos foram então?
— Mais de um milhão. É qualquer coisa, não é? Mais de um milhão de pessoas, num lugar minúsculo como este, no meio de uma floresta polonesa.
GABRIEL TIROU A lanterna do rosto dele sacou a Beretta. Empurrou Radek com o cano. Caminharam ao longo de uma trilha, pelo campo de pedras. Zalman e Navot ficaram para trás no campo de cima. Gabriel conseguia ouvir os passos de Oded na gravilha atrás dele.
— Parabéns, Radek. Graças a você, é apenas um cemitério simbólico.
— Vai me matar agora? Não disse o que queria ouvir?
Gabriel empurrou-o pelo trilho.
— Você talvez tenha algum orgulho deste lugar, mas para nós é solo sagrado. Acha realmente que eu o poluiria com seu sangue?
— Então qual é o propósito disso? Por que me trouxe aqui?
— Você precisava ver isso mais uma vez. Visitar o local do crime para refrescar a memória e se preparar para o próximo testemunho. É assim que vai salvar seu filho da humilhação de ter tal homem na condição de pai. Vai para Israel pagar por seus crimes.
— Não foi meu crime! Eu não os matei! Eu apenas fiz o que Müller me ordenou. Eu limpei a porcaria!
— Teve sua cota de matança, Radek. Lembra do joguinho com Max Klein em Birkenau? E a marcha da morte? Também estava lá, não estava, Radek?
Radek reduziu o passo e voltou a cabeça. Gabriel deu-lhe um empurrão. Chegaram a um amplo declive retangular cheio de lascas de basalto negro, o local onde era a vala de cremação.
— Mate-me agora, maldição! Não me leve para Israel! Mate-me agora e acabe com isso. Aliás, é nisso que você é bom, não é, Allon?
— Não aqui — disse Gabriel. — Não neste lugar. Você nem sequer merece pôr os pés aqui, quanto mais morrer.
Radek caiu de joelhos defronte à vala.
— E se eu concordar em ir? Que destino me espera?
— A verdade o espera, Radek. Será posto perante o povo de Israel e confessará seus crimes. Seu papel na Aktion 1005. O massacre de prisioneiros em Birkenau. As mortes que infligiu durante a marcha da morte de Birkenau. Lembra das moças que assassinou, Radek?
Radek voltou a cabeça.
— Como é que...
Gabriel interrompeu-o.
— Não vai enfrentar julgamento por seus crimes, mas vai passar o resto da vida atrás das grades. Enquanto estiver na prisão, vai trabalhar com uma equipe de estudantes do Holocausto de Yad Vashem para compilar minuciosamente a história de Aktion 1005. Vais dizer aos que negam e aos que duvidam exatamente o que fizeste para esconder o maior caso de assassinato de massas da história. Vais dizer a verdade pela primeira vez na vida.
— Qual verdade, sua ou a minha?
— Só há uma verdade, Radek. Treblinka é a verdade.
— E o que é que eu ganho com isso?
— Mais do que mereces — disse Gabriel. — Não diremos nada sobre a ascendência duvidosa de Metzler.
— Estás disposto a aceitar um chanceler austríaco da extrema-direita para me apanhar?
— Algo me diz que Peter Metzler se vai tornar um grande amigo de Israel e dos judeus. Ele não vai querer fazer nada para nos irritar. Afinal de contas, nós teremos a chave para a sua destruição até muito depois de tu morreres.
— Como convenceste os americanos a trair-me? Chantagem, suponho: é essa a maneira judaica. Mas deve ter havido mais. Certamente juraram que nunca me dariam oportunidade de discutir a minha afiliação com a Organização Gehlen ou com a CIA. Suponho que a sua dedicação à verdade para por aí.
— Dá-me sua resposta Radek.
— Como posso confiar em ti, um judeu, que cumpras sua parte do acordo?
— Andaste a ler Der Sturmer outra vez? Vais confiar em mim porque não tens outra alternativa.
— E o que é que vai adiantar? Vai trazer de volta alguma das pessoas que aqui morreram?
— Não — concedeu Gabriel —, mas o mundo saberá a verdade, e tu vais passar os últimos anos de sua vida onde pertences. Aceita o acordo, Radek. Aceita pelo teu filho. Pensa nele como uma última fuga.
— Não ficará secreto para sempre. Um dia, a verdade sobreste caso vai vir ao de cima.
— Se calhar — disse Gabriel. — Suponho que não seja possível esconder a verdade para sempre.
A cabeça de Radek voltou-se lentamente e ele olhou para Gabriel com desdém.
— Se fosses um homem a sério, fazias tu mesmo. — Esboçou um sorriso trocista.
— Quanto à verdade, ninguém se importou enquanto este lugar estava operacional, e ninguém se vai importar agora.
Voltou-se e olhou para a vala. Gabriel guardou a Beretta no bolso e afastou-se. Oded, Zalman e Navot ficaram imóveis por trás dele no trilho. Gabriel passou por eles sem dizer uma palavra e dirigiu-se para baixo através do campo até a plataforma de caminho-de-ferro. Antes de virar para as árvores, parou por instantes para olhar sobre o ombro e viu Radek, segurando-se ao braço de Oded, pondo-se de pé devagar.
PARTE QUATRO
O prisioneiro de Abu Kabir
39
JAFFA, ISRAEL
HOUVE MUITA DISCUSSÃO sobre onde o manter cativo. Lev considerava-o um risco para a segurança e, como tal, queria mantê-lo sob custódia do Escritório. Shamron, como de costume, tomou a posição contrária, quanto mais não fosse por não querer ver os seus adorados serviços restringidos a gerir prisões. O primeiro-ministro, mesmo que a brincar, sugeriu que Radek fosse forçado a marchar para o Negev, para que os escorpiões e abutres tratassem dele. No fim, acabou por ser Gabriel a tomar a decisão. Segundo ele, para alguém como Radek, a pior punição seria a de ser tratado como um criminoso comum. Procuraram um local apropriado e concordaram em prendê-lo numa prisão policial, construída pelos ingleses durante o Mandato numa zona degradada de Jaffa, ainda hoje conhecida pelo seu nome árabe: Abu Kabir.
Passaram 72 horas para que a apreensão de Radek fosse tornada pública. O comunicado do primeiro-ministro foi conciso e propositadamente enganador. Foram tomadas muitas precauções para evitar embaraçar, sem necessidade, os austríacos. Segundo disse o primeiro-ministro, Radek foi descoberto a viver sob falsa identidade num pais não especificado. E após um período de negociações concordara vir de livre vontade para Israel. Segundo os termos do acordo, ele não seria julgado, uma vez que de acordo com a lei israelense, a única sentença possível seria a condenação à morte. Em vez disso, ele permaneceria constantemente sob a detenção do Estado e iria, de fato, dar-se como culpado dos seus crimes contra a humanidade ao trabalhar com uma equipe de historiadores em Yad Vashem e na Universidade Hebraica, com a finalidade de compilar a história definitiva da Aktion 1005.
Houve pouco rebuliço e muito menos excitação do que com a noticia que acompanhou o rapto de Eichmann. Na realidade, a noticia da captura de Radek foi sobreposta poucas horas depois pelo massacre de vinte e cinco pessoas num mercado de Jerusalém por um homem-bomba. Lev sentiu uma certa satisfação com o desenrolar dos acontecimentos, pois assim demonstrava o seu ponto de vista de que o Estado tinha mais com que se preocupar do que perseguir velhos nazistas. Começou a referir-se ao caso como "a asneira de Shamron", apesar de ele ter recuperado o seu devido nível hierárquico no serviço. Dentro do King Saul Boulevard, a captura de Radek pareceu reacender velhas fogueiras. Lev ajustou a sua postura de acordo com o estado de espirito geral mas era demasiado tarde. Todos sabiam que a prisão de Radek havia sido orquestrada pelo Memuneh e Gabriel e que Lev tinha tentado bloqueada a cada passo. O carisma de Lev junto dos soldados rasos caiu para níveis perigosamente baixos.
A pouco crível tentativa de manter secreta a identidade austríaca de Radek foi desfeita pelo vídeo da sua chegada a Abu Kabir. A imprensa de Vienna identificou rápida e corretamente o prisioneiro como sendo Ludwig Vogel, um empresário austríaco de renome. Teria ele de fato concordado deixar Viena voluntariamente? Ou teria sido, na verdade, raptado da sua residência fortificada no Primeiro Bairro? Nos dias que se seguiram, os jornais faziam alusões especulativas à sua misteriosa carreira e às suas ligações politicas. As investigações da imprensa aproximaram-se perigosamente de Peter Metzler. Renate Hoffman da Coligação para uma Áustria Melhor solicitou um inquérito oficial ao caso e sugeriu que Radek poderia ter ligações ao atentado a bomba ao Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra e à misteriosa morte de um judeu idoso chamado Max Klein. As suas exigências foram categoricamente ignoradas. O governo disse que o atentado fora obra de terroristas islâmicos. E quanto à infeliz morte de Max Klein, fora suicídio. Segundo o ministro da Justiça qualquer investigação complementar seria um desperdício de tempo.
O capítulo seguinte do caso Radek teria lugar, não em Viena, mas em Paris, onde um ex-agente do KGB com aspecto duvidoso surgiu na televisão francesa dizendo que Radek era o homem de Moscovo em Viena. Um antigo chefe de espionagem da Stasi, que se havia tornado um êxito literário na nova Alemanha, veio também reconhecer Radek.
De início, Shamron suspeitou que estas reivindicações faziam parte de uma campanha conjunta de desinformação com o fim de ilibar a CIA do vírus Radek: que era exatamente o que ele teria feito se os papéis estivessem invertidos. Depois, descobriu que, no interior da Agência, as sugestões de que Radek podia ter jogado para ambos os lados criaram algum pânico. Estavam a ser retirados arquivos dos arquivos mortos e a ser reunida à pressa uma equipe soviética de ajuda com elementos veteranos. Shamron divertia-se secretamente com a ansiedade dos seus colegas de Langley. Segundo Shamron, se se viesse a descobrir que Radek era um agente duplo seria muito justo. Adrian Carter solicitou autorização para interrogar Radek mal os historiadores tivessem terminado o seu trabalho. Shamron prometeu considerar o assunto com seriedade. O PRISIONEIRO DE Abu Kabir estava bastante alheio à tempestade criada à sua volta. A sua prisão era solitária, apesar de não ser demasiado árdua. Mantinha a cela e as roupas limpas, aceitava comida e pouco reclamava. Por muito que os guardas quisessem odiá-lo, não conseguiam. No fundo ele era um polícia e os seus carcereiros pareciam ver nele algo familiar. Tratava-os com cortesia e, como reação, era tratado com cortesia. Ele era, também, uma espécie de curiosidade. Eles haviam lido sobre homens como ele na escola e passavam à frente da sua cela a qualquer hora, apenas para o ver. Radek começou aos poucos a sentir-se como se fosse uma peça de exposição de um museu.
O seu único pedido foi o de lhe ser autorizado o acesso a um jornal todos os dias para se manter a par dos assuntos da atualidade. A questão foi levada até Shamron, que deu a sua autorização, desde que fosse um jornal israelense e não uma qualquer publicação alemã. Todas as manhãs o Jerusalém Post era-lhe entregue com a travessa do pequeno-almoço. Normalmente saltava as histórias sobre si mesmo — eram, aliás, muito incorretas — e dirigia-se diretamente à seção das notícias internacionais com a finalidade de acompanhar os desenvolvimentos das eleições austríacas.
Moshe Rivlin visitou Radek várias vezes para se preparar para o seu iminente depoimento. Foi decidido que as sessões seriam filmadas e transmitidas à noite na televisão israelense. Radek parecia estar cada vez mais agitado com a aproximação do dia da sua primeira aparição em público. Discretamente, Rivlin pediu ao chefe da prisão para manter o prisioneiro sob vigilância de suicídio. Foi plantado um guarda no corredor, junto às barras da cela de Radek. Ao princípio, Radek criou atritos com a vigilância adicional, mas passou rapidamente a apreciar a companhia.
Rivlin surgiu uma última vez na véspera da primeira sessão de depoimento de Radek. Passaram uma hora juntos; Radek estava preocupado e, pela primeira vez, nada cooperante. Rivlin arrumou os seus documentos e notas e pediu ao guarda para abrir a porta.
— Quero vê-lo — disse Radek de repente. — Pergunte se me daria a honra de me fazer uma visita. Diga-lhe que há algumas perguntas que eu quero fazer.
— Não posso prometer nada — disse Rivlin. — Não tenho ligações a...
— Pergunte, apenas — disse Radek. — O máximo que ele pode fazer é dizer não.
SHAMRON OBRIGOU Gabriel a permanecer em Israel até o primeiro dia de depoimento de Radek e Gabriel, apesar de estar ansioso por voltar a Veneza, aceitou relutante. Ele ficou no apartamento seguro perto das Portas de Zion e acordava todas as manhãs ao som dos sinos da igreja do bairro armênio. Sentava-se na sombra do terraço olhando as muralhas da Cidade Velha e desfrutava o seu tempo com café e jornais. Seguia de perto o caso Radek. Ficou contente por ver o nome de Shamron ligado à captura e não o seu. Gabriel vivia no estrangeiro, sob uma identidade falsa e não precisava que o seu verdadeiro nome fosse espalhado pela imprensa. Além disso, depois de tudo o que Shamron tinha feito pelo seu país, merecia um último dia de glória.
Conforme os dias passavam, lentamente, Gabriel percebeu que Radek parecia, cada vez mais, um estranho. Apesar de abençoado com uma memória quase fotográfica,
Gabriel lutava por se lembrar claramente da cara de Radek ou do som da sua voz. Treblinka parecia algo saído de um pesadelo. Perguntou-se se a sua mãe teria sentido o mesmo. Teria Radek permanecido nas divisões da sua memória como um convidado indesejado, ou teria ela forçado a sua memória para produzir a sua imagem na tela? Teria sido assim para todos os que se tinham cruzado com um Mal tão perfeito? Talvez assim se explicasse o silêncio que tinha dominado os sobreviventes. Talvez eles tivessem sido piedosamente libertados da dor das suas memórias, como meio de autopreservação. Uma ideia regressava-lhe constantemente ao pensamento: se, naquele dia na Polônia, Radek tivesse morto a sua mãe em vez das outras duas moças, ele nunca teria existido. Também ele começou a sentir a culpa dos sobreviventes.
Ele só tinha a certeza de uma coisa: ainda não estava pronto para esquecer. Assim, ficou contente quando um dos acólitos de Lev lhe ligou uma tarde a perguntar se ele estaria disposto a escrever uma história oficial do caso. Gabriel aceitou, desde que ele pudesse também criar uma versão não censurada dos acontecimentos, para ser guardada nos arquivos de Yad Vashem. Houve ainda alguma discussão sobre quando tal documento poderia ser tornado público. Foi então definida uma data de lançamento, quarenta anos, e Gabriel começou o trabalho.
Ele escreveu na mesa da cozinha, num computador portátil fornecido pelo Escritório. Todas as noites, trancava o computador num cofre de chão, escondido sob o sofá da sala de estar. Não tinha qualquer experiência de escrita, por isso, por instinto, fez a aproximação ao projecto como se de uma pintura se tratasse. Começou com um esboço de base, amplo e amorfo e então, lentamente, foi adicionando camadas de tinta. Usou uma paleta simples e a sua técnica de traço foi cuidada. com o passar dos dias, a cara de Radek voltou-lhe à memória com a clareza com que havia sido pintada pela mão da sua mãe.
Usualmente, trabalhava até o princípio da tarde. Depois fazia uma pausa e dava um passeio até o Hospital da Universidade de Hadassah, onde, após um mês de coma, Eli Lavon estava a mostrar sinais de querer regressar à consciência. Gabriel sentava-se junto de Lavon cerca de uma hora e falava-lhe do caso. Depois voltava ao apartamento e trabalhava até a noite.
No dia em que terminou o relatório, deixou-se ficar no Hospital até o princípio da noite e, por acaso, estava lá quando os olhos de Lavon se abriram. Lavon ficou a fixar o vazio por uns instantes; então a velha expressão inquisidora voltou-lhe ao olhar e divagou pelo ambiente desconhecido da sala do hospital até se fixar no rosto de Gabriel.
— Onde estamos? Viena?
— Jerusalém.
— O que é que estás aqui a fazer?
— Estou a trabalhar num relatório para o Escritório.
— Sobre o quê?
— Sobre a captura de um criminoso de guerra nazista chamado Erich Radek.
— Radek?
— Ele estava a viver em Viena sob o nome de Ludwig Vogel. Lavon sorriu.
— Conta-me tudo — murmurou, mas antes que Gabriel pudesse dizer uma palavra, ele já tinha adormecido outra vez.
Nessa noite, quando Gabriel voltou ao apartamento, a luz do atendedor de chamadas estava a piscar. Carregou no PLAY e a ouviu a voz de Moshe Rivlin.
— O prisioneiro de Abu Kabir quer falar com você. Eu mandava-o para o Inferno. Você é que sabe.
40
JAFFA, ISRAEL
O CENTRO DE DETENÇÕES era cercado por um alto muro cor de areia, com rolos de arame farpado no topo. Gabriel apresentou-se na entrada exterior no inicio da manhã seguinte e foi admitido sem demora. Para chegar ao interior, tinha de atravessar uma passagem vedada estreita, que lhe lembrava demasiado a Estrada para o Paraiso em Treblinka. Um guarda esperava-o na outra ponta. Silenciosamente, conduziu Gabriel pela porta de segurança e depois para uma sala de interrogatórios sem janelas, com paredes em blocos de betume. Radek estava sentado à mesa, imóvel, vestido com um terno escuro e gravata, para prestar depoimento. Estava algemado com os dedos cruzados sobre a mesa. Saudou Gabriel com um aceno de cabeça quase imperceptível, mas permaneceu sentado.
— Tire-lhe as algemas — disse Gabriel ao guarda.
— É contra as regras.
Gabriel olhou para o guarda e, pouco depois, as algemas tinham sido tiradas.
— Faz isso muito bem — disse Radek. — Isso foi mais uma artimanha psicológica sua? Está tentando demonstrar seu domínio sobre mim?
Gabriel puxou a cadeira de ferro e sentou-se.
— Não me parece que dadas as circunstâncias seja necessária uma demonstração dessas.
— Suponho que esteja certo — disse Radek. — Mesmo assim, admiro a forma como lidou com todo o caso. Eu gostaria de acreditar que teria feito as coisas assim tão bem.
— Para quem? — perguntou Gabriel. — Para os americanos, ou para os russos?
— Está se referindo às alegações feitas em Paris por aquele idiota do Belov?
— São verdadeiras?
Radek fitou Gabriel em silêncio e por breves segundos parte do velho olhar de aço regressou-lhe aos olhos azuis.
— Quando alguém esteve em jogo tanto tempo como eu estive, faz tantas alianças e envolve-se em tantas mentiras, que no fim é difícil saber onde é que a verdade e a mentira se separam.
— Belov parece ter certeza de que sabe a verdade.
— Sim, mas receio que seja apenas a certeza de um tolo. Sabe, é que Belov não estava em posição de saber a verdade. — Radek mudou de assunto. — Presumo que tenha visto os jornais desta manhã?
Gabriel acenou que sim.
— A margem de vitória dele foi maior que a esperada. Aparentemente, minha prisão teve algo a ver com isso. Os austríacos nunca gostaram de ver estranhos se metendo em seus assuntos.
— Não está se vangloriando, está?
— Claro que não — disse Radek. — Estou apenas com pena de não ter negociado com mais dureza em Treblinka. Talvez não devesse ter aceite tão facilmente. Não tenho tanta certeza de que a campanha do Peter pudesse ter descarrilhado com as revelações do meu passado.
— Há coisas que são politicamente incômodas, mesmo num pais como a Áustria
— Você nos subestima, Allon.
Gabriel deixou cair algum silêncio entre eles. Já estava a começar a arrepender-se da decisão de ter vindo.
— Moshe Rivlin disse que queria me ver — disse com desprezo. — Não tenho muito tempo.
Radek endireitou-se na cadeira.
— Estava pensando se poderia me fazer a cortesia profissional de responder a algumas perguntas.
— Isso depende das perguntas. Você e eu estamos em profissões diferentes, Radek.
— Sim — disse Radek. — Eu era um agente do serviço secreto americano e você é um assassino.
Gabriel levantou-se para ir embora. Radek levantou a mão.
— Espere — disse. — Sente-se. Por favor.
Gabriel voltou a sentar-se.
— O homem que ligou para minha casa na noite do sequestro...
— Quer dizer, de sua prisão?
Radek baixou a cabeça.
— Está bem, minha prisão. Presumo que era um impostor?
Gabriel acenou que sim.
— Ele era muito bom. Como ele conseguiu imitar Kruz tão bem?
— Não espera que eu responda a isso, Radek. — Gabriel olhou para o relógio. — Espero que não me tenha feito vir até Jaffa só para me fazeres uma pergunta.
— Não — disse Radek. — Há mais uma coisa que eu gostaria de saber. Quando estávamos em Treblinka, disse que eu tinha tomado parte na evacuação de prisioneiros de Birkenau.
Gabriel interrompeu-o. — Será que podemos deixar os eufemismos de vez, Radek? Não foi uma evacuação. Foi uma marcha da morte.
Radek manteve-se em silêncio por um momento.
— Disse também que eu tinha assassinado pessoalmente alguns prisioneiros.
— Eu sei que assassinou pelo menos duas moças — disse Gabriel. — Tenho certeza de que deve ter havido mais.
Radek fechou os olhos e acenou lentamente com a cabeça que sim.
— Houve mais — disse, distante. — Muitos mais. Lembro-me desse dia como se tivesse sido na semana passada. Eu já sabia há algum tempo que o fim estava próximo, mas ver aquela coluna de prisioneiros marchando em direção ao Reich... Foi quando eu soube que era o Götterdämmerung. Era, realmente, o Crepúsculo dos Deuses.
— E então começou a matá-los?
Ele acenou de novo.
— Eles tinham me confiado a missão de guardar seu terrível segredo e estavam deixando vários milhares de testemunhas saírem vivas de Birkenau. Deve imaginar como eu me senti.
— Não — disse Gabriel com honestidade. — Nem consigo começar a imaginar como deve ter se sentido.
— Houve uma moça — disse Radek. — Lembro-me de ter perguntado o que ela diria aos filhos sobre a guerra. Ela disse que lhes diria a verdade. Ordenei que mentisse. Ela se recusou. Matei duas outras moças e, mesmo assim, ela continuava a me desafiar. Por algum motivo, deixei-a ir. Parei de matar prisioneiros depois disso. Ao olhá-la nos olhos, percebi que não valia a pena.
Gabriel baixou os olhos e fixou as mãos para evitar morder a isca de Radek.
— Presumo que esta mulher seja sua testemunha? — perguntou Radek.
— Sim, é ela.
— É engraçado — disse Radek — mas ela tem seus olhos.
Gabriel levantou o olhar. Hesitou e depois disse: — É o que me dizem.
— É sua mãe?
Mais uma hesitação, depois a verdade.
— Diria que sinto muito — disse Radek. — Mas sei que as minhas desculpas não significam nada para você.
— Tem razão — disse Gabriel. — Não diga.
— Então foi por ela que fez isso?
— Não — disse Gabriel. — Foi por todos eles.
A porta se abriu. O guarda entrou e disse que estava na hora de seguir para Yad Vashem. Radek levantou-se devagar e esticou as mãos. Os seus olhos permaneceram firmes no rosto de Gabriel enquanto as algemas eram colocadas nos seus pulsos. Gabriel acompanhou-o até a entrada e ficou a vê-lo dirigir-se pela passagem, até a parte de trás de uma van que o esperava. Já tinha visto o suficiente. Agora só queria esquecer.
APÓS DEIXAR ABU KABIR, Gabriel foi até Safed para visitar Tziona. Almoçaram num pequeno restaurante de espetadas no Bairro dos Artistas. Ela tentou conversar com ele sobre o caso Radek, mas Gabriel, afastado da presença do assassino há apenas duas horas, não estava com disposição para discuti-lo ainda mais. Obrigou Tziona a jurar segredo quanto ao envolvimento dele no caso e depois mudou de assunto de repente.
Discutiram arte durante algum tempo, depois política e finalmente o estado da vida de Gabriel. Tziona tinha conhecimento de um apartamento vazio a apenas alguns quarteirões do dela. Era grande o suficiente para albergar um Estúdio e era abençoado com a melhor iluminação da Galileia de Cima. Gabriel prometeu pensar no assunto, mas Tziona sabia que ele estava apenas a apaziguá-la. O desconforto havia voltado aos seus olhos. Ele estava pronto para partir.
Enquanto bebiam o café, ele disse-lhe que tinha encontrado um lugar para algum do trabalho da sua mãe.
— Onde?
— O Museu da Arte do Holocausto em Yad Vashem. Os olhos de Tziona inundaram-se de lágrimas.
— Que perfeito — disse ela.
Depois do almoço subiram as escadas de pedra até o apartamento de Tziona. Ela abriu o armário e cuidadosamente retirou os quadros. Passaram uma hora a escolher vinte das melhores peças para Yad Vashem. Tziona encontrou outras duas telas mostrando a imagem de Erich Radek. Perguntou a Gabriel o que queria que ela fizesse com elas.
— Queima-as — respondeu ele.
— Mas, provavelmente, valem muito dinheiro agora.
— Não me interessa o quanto valem — disse Gabriel. — Eu nunca mais quero ver a cara dele.
Tziona ajudou-o a transportar os quadros para o carro dele. Arrancou para Jerusalém sob um céu carregado de nuvens. Dirigiu-se primeiro a Yad Vashem. O conservador recebeu os quadros e apressou-se para ir assistir ao início do depoimento de Erich Radek. como o resto do país. Gabriel conduziu pelas ruas silenciosas até o Monte das Oliveiras. Pôs uma pedra na campa da sua mãe e recitou-lhe as palavras de luto Kaddish. Fez o mesmo na campa do seu pai. Depois, dirigiu-se para o aeroporto e apanhou o voo da tarde para Roma.
41
VENEZA * VIENA
NA MANHÃ SEGUINTE, na sestière de Cannaregio, Francesco Tiepolo entrou na Igreja de San Giovanni Crisóstomo e atravessou lentamente a nave. olhou para a Capela de Saint Jerome e viu luzes acesas por detrás da lona que cobre a plataforma de trabalho. Aproximou-se lentamente, agarrou no andaime com a sua mão, grande como a pata de um urso, e abanou-o violentamente. O restaurador levantou a sua viseira de lupa e fitou-o como um gárgula.
— Bem-vindo a casa, Mário — disse Tiepolo para cirna. — Estava a começar a ficar preocupado com você. Por onde andaste?
O restaurador baixou a viseira e virou o seu olhar de volta para o Bellini.
— Tenho andado a recolher centelhas, Francesco.
A recolher centelhas. Tiepolo tinha o bom senso suficiente para não fazer mais perguntas. Apenas lhe interessava ter o restaurador finalmente de volta a Veneza. — Quanto tempo até terminares?
— Três meses — disse o restaurador. — Talvez quatro.
— Três seria melhor.
— Sim, Francesco. Eu sei que três meses seria melhor. Mas se continuas a abanar a minha plataforma, nunca mais vou acabar.
— Não estás a planejar fazer mais recados, ou estás, Mário?
— Só um — disse, com o pincel pousado em frente da tela. — Mas não vou demorar. Prometo.
— Isso é o que dizes sempre.
A ENCOMENDA CHEGOU por um estafeta motorizado à Relojoaria, no Primeiro Bairro de Viena, exatamente três semanas depois. O Relojoeiro recebeu a encomenda pessoalmente. Deixou sua assinatura nos papéis do correio e deu-lhe uma pequena gorjeta pelo incômodo. Depois, levou o embrulho para a oficina e colocou-o sobre a mesa.
O estafeta montou em sua moto e afastou-se rapidamente, reduzindo por instantes no fim da rua, apenas o suficiente para fazer sinal à mulher sentada ao volante do Renault sedã. A mulher teclou um número no celular e apertou SEND. Pouco depois, o Relojoeiro respondeu.
— Acabei de lhe enviar um relógio — disse ela. — Recebeu-o?
— Quem fala?
— Sou uma amiga de Max Klein — disse ela baixinho. — E de Eli Lavon. E de Reveka Gazit. E de Sarah Greenberg.
Ela baixou o telefone e pressionou rapidamente quatro números seguidos, virando em seguida a cabeça a tempo de ver a brilhante bola de fogo vermelha emergindo da fachada da loja do Relojoeiro.
Afastou-se da calçada, mãos trêmulas no volante e dirigiu para a Ringstrasse. Gabriel tinha abandonado sua moto e esperava-a na esquina. Ela parou o carro o tempo suficiente para ele entrar, depois virou para a larga avenida e desapareceu no trânsito da tarde. Um carro da Staatspolizei passou por eles a alta velocidade na direção contrária. Chiara manteve os olhos na estrada.
— Você está bem?
— Acho que vou vomitar.
— Sim, eu sei. Quer que eu dirija?
— Não, eu consigo.
— Devia ter me deixado enviar o sinal da detonação.
— Não queria que se sentisse responsável por mais uma morte em Viena. — Ela limpou uma lágrima da face. — Pensou neles quando ouviu a explosão? Pensou em Leah e Dani?
Ele hesitou, depois abanou a cabeça.
— Pensou em quê?
Ele chegou-se a ela e limpou-lhe outra lágrima.
— Em você, Chiara — disse ele, suavemente. — Pensei apenas em você.
NOTA DO AUTOR
Morte em Viena completa um ciclo de três romances sobrem os assuntos inacabados do Holocausto. A pilhagem de arte pelos nazistas e a colaboração de bancos suíços servem de pano de fundo para O Assassino Inglês. O papel da Igreja Católica no Holocausto e o silêncio do Papa Pio XII inspiraram O Confessor. Morte em Viena, como os seus predecessores, é vagamente baseada em fatos reais. Heinrich Gross foi de fato um médico na notória clínica de Spiegelgrund durante a guerra, e a descrição da pouco empenhada tentativa austríaca de o julgar em 2000 é inteiramente exata. Nesse mesmo ano, a Áustria foi abanada por alegações afirmando que agentes da polícia e dos serviços de segurança trabalhavam para Jörg Haider e o seu Partido da Liberdade de extrema-direita para ajudar a desacreditar críticos e oponentes políticos.
Aktion 1005 foi o verdadeiro nome de código do programa nazista para ocultar as provas do Holocausto e destruir os restos mortais de milhões de judeus. O líder da operação, um austríaco chamado Paul Blobel, foi condenado em Nuremberg pelo seu papel nos assassinatos em massa dos Einsatzgruppen e condenado à morte. Enforcou-se na prisão de Landsberg em Junho de 1951, nunca foi detalhadamente questionado sobre o seu papel como comandante da Aktion 1005.
O bispo Alois Hudal foi de fato o reitor do Pontifício Santa Maria dell'Anima e ajudou centenas de criminosos de guerra nazistas a fugir da Europa, incluindo o comandante de Treblinka, Franz Stangl. O Vaticano afirma que o bispo Hudal agia sem a aprovação ou o conhecimento do Papa ou outro agente sênior da Cúria.
A Argentina, claro, foi o destino final de milhares de criminosos de guerra procurados. É possível que um pequeno número ainda lá resida nos dias de hoje. Em 1994, o antigo oficial das SS, Erich Priebke, foi descoberto a viver livremente em Bariloche por uma equipe de reportagem da ABC. Evidentemente Priebke sentia-se tão seguro em Bariloche que, em entrevista ao correspondente da ABC, Sam Donaldson, admitiu de livre vontade o seu papel central no massacre das Grutas Ardeatinas em março de 1944. Priebke foi extraditado para Itália, julgado e condenado a prisão perpétua, embora lhe tenha sido permitido cumprir a pena em "prisão domiciliária". Durante vários anos de manobras legais e apelos, a Igreja Católica permitiu a Priebke viver num mosteiro nas imediações de Roma.
Olga Lengyel, no seu testemunho 1947, memória de uma sobrevivente em Auschwitz, escreveu: "Certamente todos aqueles cujas mãos estiveram direta, ou Indiretamente manchadas com o nosso sangue devem pagar pelos seus crimes. Menos do que isso seria um ultraje contra milhões de mortes inocentes." O seu apaixonado apelo por justiça, no entanto, passou largamente despercebido. Apenas uma minúscula percentagem daqueles que levaram a cabo a Solução Final ou tiveram um papel auxiliar ou colaboracionista enfrentaram punição pelos seus crimes. Dezenas de milhar encontraram santuário em terras estrangeiras, incluindo nos Estados Unidos; outros regressaram simplesmente a casa e prosseguiram com as suas vidas. Alguns arranjaram emprego na rede de serviços secretos do General Reinhard Gehlen patrocinada pela CIA. Que impacto tiveram homens como estes na conduta da política de relações internacionais da América durante a Guerra-Fria? A resposta talvez nunca seja inteiramente conhecida.
30
VIENA
MEIA-NOITE NO Primeiro Bairro, uma calma de morte, um silêncio que só Viena consegue produzir, um majestoso vazio. Kruz achava reconfortante. Mas o sentimento não durou muito. Era raro o velho telefonar-lhe para casa, e Kruz nunca tinha sido arrastado da cama a meio da noite para uma reunião. Duvidava que as noticias fossem boas.
Olhou para o fundo da rua e não viu nada fora do normal. Uma olhadela para o retrovisor confirmou que não tinha sido seguido. Saiu e caminhou até o portão da imponente casa de pedra do velho. No piso térreo, luzes brilhavam por trás das cortinas fechadas. No segundo piso brilhava uma única luz. Kruz tocou à campainha. Tinha a sensação de estar a ser observado, qualquer coisa imperceptível, como um bafo na nuca. Olhou por cima do ombro. Nada.
Alcançou novamente a campainha, mas antes que a pudesse pressionar, um zumbido soou e a barra da fechadura saltou para trás. Empurrou o portão e atravessou o pátio frontal. Quando chegou ao pórtico, viu a porta aberta e um homem de paletó aberto e gravata solta. Não se esforçava minimamente para esconder o coldre de couro preto que continha uma pistola Glock. Kruz não estava alarmado com a visão; ele conhecia bem o homem. Era um antigo agente da Staatspolizei chamado Klaus Halder. Tinha sido Kruz a contratá-lo para guarda-costas do velho. Halder acompanhava normalmente o velho quando este saia ou quando esperava visitas em casa. A sua presença à meia-noite não era, como o telefonema para a casa de Kruz, um bom sinal.
— Onde está ele?
Halder olhou para o chão sem dizer uma palavra. Kruz desapertou a gabardina e entrou no estúdio do velho. A parede falsa estava afastada para o lado. O pequeno elevador estilo cápsula estava à espera. Entrou e o pressionar de um botão enviou-o lentamente para baixo. As portas abriram alguns segundos mais tarde, revelando uma pequena câmara subterrânea decorada com o dourado dos gostos barrocos do velho. Os americanos tinham-na construído para ele, para que conduzisse reuniões importantes sem medo que os russos pudessem estar à escuta. Construíram também a passagem, aquela alcançável através de uma porta de aço inoxidável com uma fechadura de combinação. Kruz era uma das poucas pessoas em Viena que sabia para onde a passagem conduzia e quem tinha vivido na casa do outro lado.
O velho estava sentado numa pequena mesa, uma bebida à sua frente. Kruz percebeu que ele estava inquieto, porque estava a girar o copo, duas voltas para a direita, duas para a esquerda. Direita, direita, esquerda, esquerda. Um estranho hábito, pensou Kruz. Ameaçador como o diabo. Calculou que o velho o tivesse apanhado numa vida anterior, noutro mundo. Uma imagem formou-se na mente de Kruz: um comissário russo acorrentado a uma mesa de interrogatório, o velho sentado do outro lado, vestido de preto dos pés à cabeça, girando a sua bebida e olhando para a sua presa com aqueles olhos azuis insondáveis. Kruz sentiu o seu coração dar um solavanco. Os pobres coitados estavam provavelmente cagados de medo mesmo antes de as coisas se tornarem duras.
O velho levantou o olhar, o girar do copo parou. O seu olhar calmo fixou a camisa de Kruz. Kruz olhou para baixo e viu que tinha os botões desalinhados. Tinha-se vestido no escuro para não acordar a mulher. O velho apontou para uma cadeira vazia. Kruz arranjou a camisa e sentou-se. O girar do copo recomeçou, duas voltas para a direita, duas para a esquerda. Direita, direita, esquerda, esquerda.
Falou sem saudar ou sem introdução. Era como se estivessem a continuar uma conversa interrompida por alguém que bate à porta.
— Durante as passadas setenta e duas horas — disse o velho foram planejados dois atentados contra a vida do israelense, o primeiro em Roma, o segundo na Argentina. Infelizmente o israelense sobreviveu a ambos. Em Roma, foi aparentemente salvo pela intervenção de um colega dos serviços secretos israelenses. Na Argentina, as coisas foram mais complicadas. Há provas que sugerem o envolvimento dos americanos.
Kruz, naturalmente, tinha perguntas. Em circunstâncias normais teria segurado a língua e esperado que o velho terminasse. Agora, trinta minutos depois de ter sido retirado da cama, não mostrou nenhuma da sua normal paciência.
— O que estava o israelense a fazer na Argentina?
O rosto do velho pareceu gelar, e a sua mão ficou imóvel. Kruz tinha transposto a linha, a linha que separava o que ele sabia do passado do velho daquilo que jamais saberia. Sentiu o peito encolher debaixo da pressão do olhar fixo. Não era todos os dias que se conseguia enfurecer um homem capaz de orquestrar, em setenta e duas horas e em continentes diferentes, duas tentativas de homicídio.
— Não é necessário que saibas por que razão o israelense esteve na Argentina, ou mesmo que lá tenha estado. O que precisas de saber é que este assunto deu uma reviravolta perigosa.
O girar do copo voltou.
— Como já acreditavas, os americanos sabem tudo. A minha verdadeira identidade, o que eu fiz durante a guerra. Não havia maneira de o esconder. Éramos aliados. Trabalhamos juntos na grande cruzada contra os comunistas. No passado, sempre contei com a sua discrição, não por algum sentido de lealdade para comigo, mas por simples medo de embaraço. Eu não tenho ilusões, Manfred. Sou como uma prostituta para eles. Viraram-se para mim quando estavam sozinhos e necessitados, mas agora que a guerra-fria acabou, sou como uma mulher que eles preferiam esquecer. E se agora estão de alguma forma a cooperar com os israelenses... — deixou a frase por terminar. — Estás a ver o que quero dizer, Manfred?
Kruz acenou.
— Presumo que saibam sobre Peter?
— Eles sabem tudo. Eles têm o poder de me destruir, e ao meu filho, mas apenas se estiverem dispostos a suportar a dor de uma ferida auto-infligida. Eu costumava estar seguro de que eles nunca se virariam contra mim. Agora, já não tenho certeza.
— O que queres que eu faça?
— Mantém sob vigilância constante as embaixadas israelense e americana. Designa vigilância física a todo o pessoal dos serviços secretos. Controla os aeroportos e estações de trem. Contata, também, os teus informadores nos jornais. Eles podem recorrer à imprensa. Não quero ser apanhado desprevenido.
Kruz olhou para a mesa e viu o seu próprio reflexo na superfície polida.
— E quando o ministro me perguntar por que dedico tantos recursos aos americanos e aos israelenses? O que digo?
— Preciso lembrar o que está em jogo, Manfred? O que dirá ao ministro é problema seu. Apenas faça o que digo. Não vou deixar Peter perder estas eleições. Entendeu?
Kruz olhou para os impiedosos olhos azuis e viu mais uma vez o homem vestido de preto dos pés à cabeça. Fechou os olhos e concordou com um movimento de cabeça.
O velho levou o copo aos lábios e, antes de beber, sorriu. Era tão agradável como uma súbita racha numa placa de vidro. Alcançou o bolso de peito do casaco, exibiu um pedaço de papel, e lançou-o sobre o tampo da mesa. Kruz olhou para ele enquanto deslizava, em seguida levantou o olhar.
— O que é isto?
— É um número de telefone. Kruz não tocou no papel.
— Um número de telefone?
— Nunca se sabe o que pode resultar de uma situação destas. Poderá ser necessário recorrer à violência. É possível que eu possa não estar em condições de ordenar tais medidas. Nesse caso, Manfred, a responsabilidade cai sobre ti.
Kruz pegou no pedaço de papel e levantou-o entre os seus dois dedos indicadores.
— Se ligar para este número, quem vai atender?
O velho sorriu.
— A violência.
31
ZURIQUE
HERR CHRISTIAN ZIGERLI, coordenador de eventos especiais do Dolder Grand Hotel, era como o próprio hotel: digno e pomposo, resoluto e discreto, um homem que apreciava o seu lugar de destaque na vida porque lhe permitia olhar para os outros de cima. Era também um homem que não gostava de surpresas. Normalmente, exigia setenta e duas horas de aviso prévio para reservas especiais e conferências, mas quando a Heller Enterprises e a Systech Wireless manifestaram vontade de conduzir as negociações finais da fusão no Dolder, Herr Zigerli concordou abdicar das setenta e duas horas de previsão em troca de uma sobretaxa de quinze por cento. Ele podia ser atencioso quando queria, mas ser atencioso, como todo o resto no Dolder, tinha um preço exorbitante.
A Heller Enterprises era a licitante por isso cabia-lhe tratar das reservas: não o próprio velho Rudolf Heller, claro, mas uma vistosa assistente pessoal italiana de nome Elena. Herr Zigerli tinha tendência a formar uma ideia sobre as pessoas rapidamente. Ele dizia que qualquer outro hoteleiro que fosse bom faria o mesmo. Não gostava de italianos de uma maneira geral, e a agressiva e exigente Elena rapidamente ganhou um lugar de destaque na sua lista de clientes pouco considerados. Ela falava alto ao telefone, um crime capital segundo ele, e parecia acreditar que só por gastar grandes quantidades de dinheiro do seu patrão tinha direito a privilégios especiais. Ela parecia conhecer bem o hotel. Fato estranho, já que Herr Zigerli tinha memória de elefante e não se lembrava dela como hóspede no Dolder. As suas exigências eram minunciosamente especificas. Queria quatro suítes contiguas perto do terraço com vista para o campo de golfe e para o lago. Quando Zigerli a informou que não seria possível — duas mais duas, ou três mais uma, mas não quatro seguidas — perguntou se os hóspedes podiam ser recolocados para a acomodar. Lamento, disse o hoteleiro, mas o Dolder Grand não tem o hábito de transformar hóspedes em refugiados. Ela decidiu optar por três suítes contiguas a uma quarta mais ao fundo do corredor.
— As delegações vão chegar às duas da tarde de amanhã — disse ela. — E gostariam de um almoço de trabalho leve.
Seguiram-se mais dez minutos de discussão sobre o que constituía um "almoço de trabalho leve".
Quando o menu ficou completo, Elena atirou mais uma exigência. Ela chegaria quatro horas antes das delegações, acompanhada pelo chefe de segurança da Heller, para inspecionar os quartos. Assim que as inspeções estivessem terminadas, não seria permitida a entrada de pessoal do hotel, exceto se acompanhados pela segurança da Heller. Herr Zigerli suspirou profundamente e concordou, em seguida desligou o telefone e, com a porta do seu gabinete fechada e trancada, fez uma série de exercícios de respiração para acalmar os nervos.
A manhã das negociações amanheceu cinza e fria. Os torreões majestosos do Dolder furavam o cobertor de nevoeiro gelado, e o asfalto perfeito da entrada brilhava como granito preto polido. Herr Zigerli estava de guarda no lobby, mesmo por trás das reluzentes portas de vidro, pés à largura dos ombros, mãos de lado, preparado para a batalha. Ela vai atrasar-se, pensou. Atrasam-se sempre. Ela vai precisar de mais suites. Ela vai querer mudar o menu. Ela vai ser perfeitamente horrível.
Um Mercedes sedã preto deslizou até a entrada e parou à porta. Herr Zigerli olhou discretamente para o relógio de pulso. Precisamente dez horas. Impressionante. O paquete abriu a porta traseira e uma lustrosa bota preta emergiu — Bruno Magli, reparou Zigerli — seguido por um torneado joelho e coxa. Herr Zigerli balançou para a frente nas pontas dos pés e alisou o cabelo sobre a zona careca. Já tinha visto muitas belas mulheres pairando pela famosa entrada do Dolder Grand, mesmo assim, poucas a tinham passado com mais graça e estilo que a encantadora Elena da Heller Enterprises. Ela tinha o cabelo acastanhado, preso por um gancho na nuca, e pele da cor do mel. Os seus olhos castanhos salpicados de dourado pareciam ter ganho ainda mais brilho quando lhe apertou a mão. A sua voz, tão alta e exigente pelo telefone, era agora suave e arrebatadora, assim como o seu sotaque italiano. Ela largou-lhe a mão e voltou-se para o acompanhante pouco sorridente.
— Herr Zigerli, este é o Oskar. O Oskar é segurança.
Aparentemente, o Oskar não tinha apelido. Nem precisava, pensou Zigerli. Ele tinha a constituição de um lutador de wrestling, com cabelo ruivo claro e sardas vagas espalhadas pelas largas bochechas. Herr Zigerli, um observador treinado da condição humana, viu qualquer coisa de familiar em Oskar. Um colega de tribo, por assim dizer. Ele conseguia imaginá-lo há dois séculos atrás, nas roupas de um lenhador, caminhando pesadamente por um trilho pela Floresta Negra. Como todos os bons seguranças, Oskar deixou os olhos falarem por si, e os seus olhos disseram a Herr Zigerli que ele estava ansioso por começar o trabalho.
— Eu levo-os aos seus quartos — disse o hoteleiro. — Por favor sigam-me. Herr Zigerli decidiu levá-los pela escada em vez do elevador. Era um dos mais finos atributos do Dolder, e Oskar, o lenhador, não parecia ser do tipo que prefere esperar pelos elevadores quando há um lanço de escadas para subir. Os quartos eram no quarto piso. No patamar, Oskar estendeu a mão para receber os cartões eletrônicos.
— A partir daqui é conosco se não se importa. Não é necessário mostrar-nos o interior dos quartos. Já todos estivemos em hotéis antes.
Uma piscadela cúmplice, uma palmadinha no ombro.
— Indique-nos apenas para onde é. Ficamos bem.
De fato, ficarão, pensou Zigerli. Oskar era um homem que inspirava confiança a outros homens. Mulheres também, Zigerli suspeitou. Ponderou se a deliciosa Elena — ele já começava a pensar nela como a sua Elena — seria uma das conquistas de Oskar. Colocou os cartões eletrônicos na palma da mão de Oskar e indicou-lhes o caminho.
Herr Zigerli era um homem de muitas máximas : "Um cliente sossegado é um cliente satisfeito" estava entre as suas preferidas. E a partir daí interpretou o subsequente silêncio no quarto piso como prova que Elena e o seu amigo Oskar estavam satisfeitos com as acomodações. Isto, por sua vez, satisfazia Herr Zigerli. Ele agora gostava de fazer Elena feliz. Conforme foi continuando pelo resto da manhã, ela estava-lhe na cabeça, como o traço de essência que se lhe tinha colado à mão.
Ele encontrou-se ansioso por algum problema, alguma queixa disparatada que requeresse contato com ela. Mas não houve nada, apenas o silêncio da perfeição. Ela tinha o Oskar agora. Ela não tinha necessidade do coordenador de eventos especiais do melhor hotel da Europa. Herr Zigerli, uma vez mais, tinha feito o seu trabalho bem demais.
Não ouviu nada deles, nem os viu, até as duas da tarde quando se reuniram na recepção e formaram uma improvável comissão de boas-vindas para as delegações que chegavam. Havia agora neve a cair no pátio frontal. Zigerli acreditava que o mau tempo apenas realçava o encanto do hotel: um abrigo da tempestade, como a própria Suíça.
A primeira limusina parou na entrada e largou dois passageiros. Um era o próprio Herr Rudolf Heller, um homem baixo e velho, vestindo um dispendioso terno preto e gravata prateada. Os seus óculos ligeiramente fumados sugeriam um problema na visão; o seu passo rápido e impaciente deixava a impressão de que, apesar da idade avançada, ele era um homem capaz de cuidar de si próprio. Herr Zigerli deu-lhe as boas-vindas ao Dolder e apertou-lhe a mão. Parecia feita de pedra. Estava acompanhado pelo carrancudo Herr Keppelmann. Vinte e cinco anos mais novo que Heller, cabelo curto, grisalho nas têmporas, olhos muito verdes. Herr Zigerli já tinha visto uma boa quantidade de guarda-costas no Dolder, e Herr Keppelmann parecia encaixar no perfil. Calmo, mas vigilante, silencioso como um rato de sacristia, seguro no passo e forte. Os olhos cor de esmeralda eram serenos, mas em constante movimento. Herr Zigerli olhou para Elena e reparou que o seu olhar estava fixado em Herr Keppelmann. Talvez ele se tivesse enganado sobre Oskar. Talvez o taciturno Keppelmann fosse o homem mais sortudo do mundo.
Os americanos chegaram a seguir: Brad Cantwell e Shelby Somerset, o CEO e COO da System Communications, Inc., de Reston, Virgínia. Notava-se sofisticação que Zigerli não costumava ver em americanos. Não eram exageradamente amigáveis, nem estavam a bramir para os celulares quando entraram na recepção.
Cantwell falou alemão assim como Herr Zigerli e evitou cruzar o olhar. Somerset era o mais afável dos dois. O seu tom aristocrático, o blazer azul bastante viajado e a gravata às riscas ligeiramente amarrotada identificavam-no como um yuppie Oriental.
Herr Zigerli fez alguns comentários de boas-vindas, e depois recuou calmamente para segundo plano. Era algo que ele fazia excepcionalmente bem. Enquanto Elena conduzia o grupo em direção à escadaria, ele deslizou para seu gabinete e fechou a porta. Um impressionante grupo de homens, pensou. Ele esperava que grandes coisas saíssem deste empreendimento. O seu papel no assunto, embora menor, foi executado com precisão e competência serena. Nos dias de hoje, tais atributos tinham pouco valor, mas eram a moeda do reino miniatura de Herr Zigerli. Ele suspeitava que os homens da Heller Enterprises e System Communications provavelmente sentiam o mesmo.
NO CENTRO DE ZURIQUE, numa rua calma perto do local onde as águas verdes do Rio Limmat desaguam no lago, Konrad Becker estava a encerrar o seu banco privado por aquele dia quando o telefone na sua mesa tocou com suavidade. Tecnicamente, ainda faltavam cinco minutos para a hora de fecho, mas estava tentado a deixar o gravador atender. Backer sabia por experiência que só clientes problemáticos telefonavam tão tarde, e o seu dia já tinha sido difícil o suficiente. Em vez disso, como um bom banqueiro suíço, alcançou o receptor e levou-o à orelha sem pensar.
— Becker and Puhl.
— Konrad, é Shelby Somerset. Como é que estás?
Becker engoliu em seco. Somerset era o nome do americano da CIA: pelo menos, Somerset era como ele dizia que se chamava. Becker duvidava seriamente que fosse o seu nome verdadeiro.
— O que posso fazer por si, senhor Somerset?
— Como entrada podes deixar-te de formalismos, Konrad.
— E como prato principal?
— Podes descer a escada, ir até a Talstrasse e entrar no Mercedes que está lá à tua espera.
— E porque quereria eu fazer isso?
— Eu preciso de te ver.
— Onde é que o Mercedes me vai levar?
— A um sítio agradável, garanto-te.
— E como devo ir vestido?
— Traje executivo serve perfeitamente. E, Konrad?
— Sim, senhor Somerset?
— Não penses em armar-te em difícil. Isto é a sério. Desce a escada. Entra no carro. Estamos de olho em ti. Estamos sempre de olho em ti.
— Que reconfortante, senhor Somerset — disse o banqueiro, mas a ligação já tinha sido cortada.
VINTE MINUTOS MAIS TARDE, Herr Zigerli estava na recepção quando reparou num dos americanos, Shelby Somerset, a caminhar ansioso na parte de fora da entrada. Um momento mais tarde, um Mercedes prateado parou e uma pequena figura careca saiu do banco de trás. Mocassins indianos polidos, uma pasta à prova de choque. Um banqueiro, pensou Zigerli. Apostava o seu ordenado nisso. Somerset fez ao recém-chegado um sorriso amigável e deu uma palmada firme no ombro. O pequeno homem, apesar da calorosa recepção, parecia no entanto estar a caminhar para a sua própria execução. Mesmo assim, Herr Zigerli achou que as conversações estavam a correr bem. O homem do dinheiro tinha chegado.
— BOA TARDE, HERR BECKER. É um prazer vê-lo. Eu sou Heller. Rudolf Heller. Este é o meu sócio, senhor Keppelmann. Aquele homem ali é o nosso parceiro americano, Brad Cantwell. É obvio que você e o senhor Somerset já se conhecem. O banqueiro piscou os olhos várias vezes e depois fixou o seu pequeno olhar astuto em Shamron, como se estivesse a tentar calcular o seu valor liquido. Segurou a pasta sobre os genitais, em antecipação de um ataque iminente.
— Os meus associados e eu estamos prestes a embarcar numa joint-venture. O problema é que não conseguimos fazê-lo sem a sua ajuda. É isso que fazem os banqueiros, não é, Herr Becker? Ajudam a lançar grandes empreendimentos? Ajudam as pessoas a realizar os seus sonhos e o seu potencial?
— Depende do empreendimento, Herr Heller.
— Estou a ver — disse Shamron, sorrindo. — Por exemplo, há muitos anos atrás, um grupo de homens foi ver você. Alemães e austríacos. Queriam lançar um grande empreendimento também. Confiaram-lhe uma grande soma de dinheiro e deram-lhe o poder de transformar numa soma ainda maior. Você se saiu extraordinariamente bem. Transformou-a numa montanha de dinheiro. Presumo que se lembre desses cavalheiros? Presumo que também saiba onde conseguiram o dinheiro?
O olhar do banqueiro suíço endureceu. Tinha concluído o cálculo sobre o valor líquido de Shamron.
— É israelense, não é?
— Prefiro pensar em mim mesmo como um cidadão do mundo — respondeu Shamron. — Moro em muitos lugares, falo a língua de muitas terras. A minha lealdade, como os meus interesses financeiros, não tem fronteiras nacionais. Como suíço tenho certeza que consegue entender o meu ponto de vista.
— Eu entendo — disse Becker — mas não acredito numa palavra do que diz.
— E se eu fosse de Israel? — perguntou Shamron. — Isso teria algum impacto na sua decisão?
— Teria.
— Como?
— Não me interessam os israelenses — disse Becker prontamente. — E os judeus também.
— Lamento ouvir isso, Herr Becker, mas um homem tem direito a sua opinião, e não vou discutir isso. Nunca deixo politicagem meter-se no caminho dos negócios. Preciso de ajuda para o meu empreendimento, e você é a única pessoa que pode me ajudar.
Becker elevou o sobrolho zombeteiramente.
— Qual é exatamente a natureza deste empreendimento, Herr Heller?
— É bem simples, na verdade. Quero que me ajude a sequestrar um de seus clientes.
— Parece-me, Herr Heller, que esse empreendimento seria uma violação das leis de segredo bancário e de várias outras leis deste pais.
— Então suponho que teremos de manter seu envolvimento em segredo.
— E se eu me recusar a cooperar?
— Então serei obrigado a contar ao mundo que você é o banqueiro dos assassinos, que está sentado em dois bilhões e meio de dólares de pilhagens do Holocausto. Soltaremos os cães de caça do Congresso Judaico Mundial sobre você. Quando terminarem, você e o seu banco estarão em farrapos.
O banqueiro suíço lançou um olhar de súplica a Shelby Somerset.
— Nós tínhamos um acordo.
— Ainda temos — balbuciou o sedento americano —, mas os contornos do acordo mudaram. Seu cliente é um homem muito perigoso. Passos precisam de ser dados para neutralizá-lo. Precisamos de você, Konrad. Ajude-nos a resolver um problema. Vamos fazer o bem juntos.
O banqueiro trauteou com os dedos na pasta.
— Tem razão. Ele é um homem perigoso, e se eu ajudo a sequestrá-lo, é melhor começar a abrir a minha própria sepultura.
— Estaremos lá, Konrad. Vamos protegê-lo.
— E se os contornos do acordo mudarem novamente? Quem vai me proteger então?
Shamron intercedeu.
— Receberia cem milhões de dólares com a dispersão final da conta. Agora não haverá dispersão final da conta porque vai me entregar o dinheiro todo. Se colaborar, deixo-o ficar com metade do montante a receber. Presumo que consiga fazer a conta, Herr Becker?
— Consigo.
— Cinquenta milhões de dólares é mais do que merece, mas estou disposto a deixá-lo ficar com esse montante para ganhar a sua cooperação neste assunto. Um homem consegue comprar muita segurança com cinquenta milhões.
— Quero isso por escrito, um termo de garantia.
Shamron abanou a cabeça com desdém, como se dissesse que havia algumas coisas, e devia saber melhor que qualquer um, meu querido companheiro, que não se põe por escrito.
— O que precisa de mim? — perguntou Becker.
— Vai nos ajudar a entrar na casa dele.
— Como?
— Vai precisar vê-lo com urgência sobre um assunto qualquer da conta. Talvez alguns papéis que precisem ser assinados, alguns detalhes finais da preparação para a liquidação e dispersão dos bens.
— E assim que estiver dentro da casa?
— O seu trabalho termina. O seu novo assistente trata do resto a partir daí.
— Meu novo assistente?
Shamron olhou para Gabriel.
— Talvez seja hora de apresentar Herr Becker a seu novo parceiro.
ELE ERA UM HOMEM de muitos nomes e muitas personalidades. Herr Zigerli conhecia-o como Oskar, o chefe de segurança da Heller. O senhorio da sua morada em Paris conhecia-o como Vincent Laffont, um escritor freelancer viajante de descendência britânica que passava a maior parte do seu tempo de mala às costas. Em Londres, era conhecido como Clyde Bridges, diretor de marketing europeu de uma obscura firma de software canadiana. Em Madrid, ele era um alemão rico de alma inquieta, que preguiçava horas em cafés e bares, e viajava para aliviar o aborrecimento.
O seu nome verdadeiro era Uzi Navot. No léxico hebraico dos serviços secretos israelenses, Navot era um katsa, um operacional de campo secreto e oficial de casos.
O seu território era a Europa Ocidental. Detentor de um charme malandro, poliglota e de uma arrogância fatalista, Navot tinha penetrado células de terrorismo palestino e recrutado agentes em embaixadas árabes espalhadas pelo continente. Possuía contatos em quase todos os serviços secretos e de segurança da Europa e orientava uma vasta rede de sayanim, auxiliares voluntários recrutados em comunidades judaicas locais. Podia sempre contar com a melhor mesa na sala de grelhados do Ritz de Paris porque o maître d'hôtel era um informante pago, assim como o chefe dos serviços de limpeza.
— Konrad Becker, apresento-lhe Oskar Lange.
O banqueiro permaneceu sentado e imóvel por um longo momento, como se tivesse sido subitamente transformado em estátua. Então os seus pequenos olhos espertos pousaram em Shamron, e levantou as mãos num gesto inquisitório.
— O que devo fazer eu com ele.
— Diga-nos você. Ele é muito bom, o nosso Oskar.
— Consegue fazer-se passar por advogado?
— com a devida preparação, ele conseguia fazer-se passar pela sua mãe.
— Quanto tempo tem de durar esta charada?
— Cinco minutos, talvez menos.
— Quando se está com Ludwig Vogel, cinco minutos podem parecer uma eternidade.
— Foi o que ouvi dizer — disse Shamron.
— E o Klaus?
— Klaus?
— O guarda-costas de Vogel.
Shamron sorriu. A resistência tinha terminado. O banqueiro suíço juntara-se à equipe e jurara fidelidade à bandeira de Herr Heller e o seu nobre empreendimento.
— Ele é muito profissional — disse Becker. — Já estive na casa meia dúzia de vezes, mas ele revista-me sempre minuciosamente e pede-me para abrir a pasta. Portanto, se está a pensar levar uma arma para dentro da casa...
Shamron interrompeu-o.
— Não tencionamos levar armas para dentro da casa.
— Klaus está sempre armado.
— Tem a certeza?
— Uma Glock, penso eu. — O banqueiro deu uma palmadinha no lado esquerdo do seu peito. — Usa-a aqui. Não faz muito esforço em escondê-la.
— Um pormenor encantador, Herr Becker.
O banqueiro aceitou o elogio com uma inclinação da cabeça.
— Pormenores são a minha vida, Herr Heller.
— Perdoe a minha insolência, Herr Heller, mas como é que se rapta alguém que está protegido por um guarda-costas, se o guarda-costas está armado e o raptor não?
— Herr Vogel vai abandonar a casa voluntariamente.
— Um rapto voluntário? — o tom de Becker era incrédulo. — Que peculiar. E como é que se convence um homem a deixar-se raptar voluntariamente ?
Shamron cruzou os braços.
— Preocupe-se em levar o Oskar para dentro da casa e deixe o resto connosco.
32
MUNIQUE
NO BONITO PEQUENO bairro de Lehel em Munique havia um velho apartamento, com um portão para a rua e um bem arranjado pátio na entrada principal. O elevador era instável e indeciso, e eram mais as vezes que subiam a escada em caracol até o terceiro andar. O mobiliário tinha o anonimato de um quarto de hotel. Havia duas camas no quarto, e o sofá da sala de estar era um davenport. Na arrecadação havia quatro camas extras de abrir. A despensa estava cheia de produtos não deterioráveis e os armários continham louça e talheres para oito. As janelas da sala de estar tinham vista para a rua, mas os estores mantinham-se fechados o tempo todo, para que dentro do apartamento parecesse sempre fim de dia. Os telefones não tinham campainha. Em vez disso, estavam equipados com luzes vermelhas que piscavam para indicar que estava a tocar.
As paredes da sala de estar estavam forradas de mapas: centro de Viena, Viena metropolitana, Áustria oriental, Polônia. Na parede oposta às janelas estava pendurado um enorme mapa da Europa Central, que mostrava toda a rota de fuga, esticando-se de Viena até a costa do Báltico. Shamron e Gabriel discutiram a cor antes de decidirem pelo vermelho. À distância parecia um rio de sangue, como Shamron desejara, o rio de sangue que fluía pelas mãos de Erich Radek. Só falavam em alemão no apartamento. Shamron tinha-o decretado. Radek era referido como Radek e apenas Radek; Shamron não iria chamá-lo pelo nome que ele comprara aos americanos. Shamron decretou outras regras também. Era a operação de Gabriel, e consequentemente era um espetáculo dirigido por Gabriel. Era Gabriel, com o sotaque berlinense da sua mãe, que orientava as equipes, Gabriel que revia os relatórios de Viena, e Gabriel quem tomava todas as decisões operacionais finais.
Durante os primeiros dias, Shamron esforçou-se para se encaixar no seu papel de apoio, mas à medida que a sua confiança em Gabriel ia crescendo, descobriu ser mais fácil retirar-se para segundo plano. Ainda assim, cada agente que passava pelo apartamento seguro reparava na nuvem negra que pairava sobre ele. Parecia não dormir nunca. Ele permanecia de pé perante os mapas todo o tempo, ou sentava-se na mesa da cozinha no escuro, fumando como uma chaminé: como um homem que luta contra uma consciência pesada.
— Ele é como um doente terminal que planeia o seu próprio funeral —, assinalou Oded, um veterano agente de língua alemã que Gabriel tinha escolhido para conduzir o carro de fuga. — E se correr mal, eles gravarão isso na sua lápide, mesmo por baixo da Estrela de David.
Sob condições perfeitas, tal operação envolveria semanas de preparação. Gabriel tinha apenas dias. A operação Ira de Deus tinha-o preparado bem. Os terroristas do Setembro Negro estavam constantemente em movimento, aparecendo e desaparecendo com uma frequência de fazer enlouquecer. Quando alguém era localizado e identificado, a equipe de choque entrava em ação à velocidade da luz. Equipas de vigilância eram preparadas, veículos e apartamentos seguros eram alugados, rotas de fuga eram planejadas. O reservatório de experiência era muito útil a Gabriel em Munique. Poucos agentes secretos sabiam mais sobre planeamento rápido e ataques súbitos do que ele e Shamron.
Ao fim do dia, viam as noticias na televisão alemã. As eleições na vizinha Áustria captavam a atenção dos espectadores alemães. Metzler estava na frente. As multidões nos comícios de campanha, como a sua liderança nas sondagens, cresciam de dia para dia. A Áustria, assim parecia, estava prestes a fazer o impensável, eleger um chanceler da extrema-direita. Dentro do apartamento seguro, Gabriel e a sua equipe descobriram-se na bizarra posição de torcer pela subida de Meztler nas sondagens, pois sem Metzler, a porta para Radek estava fechada.
Invariavelmente, pouco depois das noticias, Lev revia a operação a partir de King Saul Boulevard e sujeitava Gabriel a uma fastidiosa examinação cruzada dos eventos do dia. Era a única vez que Shamron se sentia aliviado por não carregar o fardo do comando operacional. Gabriel dava voltas ao apartamento com o telefone colado à orelha, respondendo pacientemente às questões de Lev. E por vezes, se a luz estivesse correta, Shamron veria a mãe de Gabriel, caminhando ao lado dele. Ela era o único membro da equipe que nunca ninguém mencionou.
UMA VEZ POR DIA, normalmente ao fim da tarde, Gabriel e Shamron escapavam do apartamento seguro para passear nos Jardins Ingleses. A sombra de Eichmann pairava sobre eles. Gabriel reconheceu que ele estivera lá desde o inicio. Ele tinha ido a Viena naquela noite em que Max Klein contara a Gabriel a história do oficial SS que assassinara uma dúzia de prisioneiros em Birkenau e agora saboreava café todas as tardes no Café Central. Mesmo assim, Shamron tinha diligentemente evitado falar no seu nome, até agora.
Gabriel já tinha ouvido a história da captura de Eichmann muitas vezes. De fato, Shamron tinha-a contado em Setembro de 1972 para espicaçar Gabriel a juntar-se ao grupo da Ira de Deus. A versão que Shamron lhe contou durante esses passeios ao longo dos trilhos de árvores dos Jardins Ingleses era mais detalhada que qualquer outra que Gabriel tivesse escutado antes. Gabriel sabia que isto não era apenas divagação de um velho tentando reviver glórias passadas. Os editores podiam esperar sentados pelas suas memórias, Shamron não era de apregoar o seu próprio sucesso. Gabriel sabia que Shamron lhe estava a contar a história de Eichmann por uma razão. Eu já fiz a viagem que estás prestes a fazer, dizia Shamron. Noutro tempo, noutro local, na companhia de outro homem, mas há coisas que deves saber. Gabriel, por vezes, não conseguia afastar a sensação de estar a caminhar com a História.
— A parte mais difícil foi esperar pelo avião de fuga. Estávamos presos na casa segura com aquela ratazana humana. Alguns elementos da equipe não suportavam olhar para ele. Eu tinha de me sentar no seu quarto noite após noite e vigiá-lo. Ele estava acorrentado à cama de ferro vestido com um pijama e tinha óculos opacos a tapar os olhos. Estávamos estritamente proibidos de conversar com ele. Apenas o interrogador estava autorizado a falar com ele. Eu não consegui obedecer a essas ordens. Sabes, eu precisava de saber. Como é que este homem, que se enjoava ao ver sangue, matou seis milhões do meu povo? A minha mãe e o meu pai? As minhas duas irmãs? Perguntei-lhe porque o tinha feito? Ele disse-me que o tinha feito porque era o seu trabalho, o seu trabalho, Gabriel, como se ele não fosse mais que um empregado bancário ou um maquinista de trem.
E mais tarde, encostados aos balaústres de uma velha ponte sobre um ribeiro:
— Só o quis matar uma vez, Gabriel, quando ele me tentou dizer que não odiava o povo judeu, que na verdade gostava e admirava o povo judeu. Para me mostrar o quanto ele gostava de judeus, começou a recitar as nossas palavras: Shema, Yisrael, Adonai Eloheinu, Adonai Echad! Eu não conseguia ouvir aquelas palavras vindas daquela boca, a boca que tinha dado ordens para assassinar seis milhões. Cravei-lhe a mão sobre a cara até que ele se calasse. Ele começou a abanar e a ter convulsões. Pensei que lhe tinha causado um ataque de coração. Ele perguntou-me se eu o ia matar. Ele suplicou-me que não fizesse mal ao seu filho. Este homem que tinha arrancado os filhos dos braços dos pais e os tinha lançado ao fogo estava preocupado com o seu próprio filho, como se nós fossemos agir como ele, como se nós fossemos assassinar crianças.
E numa gasta mesa de madeira, numa esplanada deserta:
— Nós queríamos que ele concordasse em voltar connosco para Israel voluntariamente. Ele, claro, não queria ir. Ele queria ser julgado na Argentina ou na Alemanha. Eu disse-lhe que isso não era possível. De uma maneira ou de outra, ele ia ser julgado em Israel. Eu arrisquei a minha carreira permitindo que ele tivesse um pouco de vinho tinto e um cigarro. Eu não bebi com o assassino. Eu não podia. Assegurei-lhe que lhe seria dada a oportunidade de contar a sua versão da história, que lhe seria oferecido um julgamento apropriado com uma defesa adequada. Ele não tinha ilusões sobre o resultado, mas a noção de se poder explicar ao mundo era-lhe de alguma forma apelativa. Também apontei o fato de que ele teria a dignidade de saber que estava prestes a morrer, algo que ele negou aos milhões que marcharam para as salas de despir e para as câmaras de gás enquanto Max Klein lhes tocava serenatas. Ele assinou o papel, datou-o como um bom burocrata alemão, e estava feito.
Gabriel escutou atentamente com a gola do casaco elevada para proteger as orelhas e as mãos enfiadas nos bolsos. Shamron mudou o foco de Adolf Eichmann para Erich Radek.
— Tu tens uma vantagem porque já estiveste cara-a-cara com ele uma vez, no Café Central. Eu apenas vira Eichmann ao longe, enquanto vigiávamos a sua casa e planeávamos o rapto, mas nunca falara com ele ou mesmo estivera perto dele. Eu sabia exatamente a sua altura, mas não conseguia imaginar.
Eu tinha ideia de como a sua voz soaria, mas não é a mesma coisa. Tu conheces Radek, mas infelizmente ele também sabe muito sobre ti, também, graças a Manfred Kruz. Ele vai querer saber mais. Ele vai sentir-se exposto e vulnerável. Ele vai tentar equilibrar o jogo fazendo-te perguntas. Ele vai querer saber porque o estás a perseguir. Sob nenhuma circunstância deves envolver-te como numa conversa normal. Lembra-te, Erich Radek não era um guarda de campo ou um operador de câmara de gás. Ele era um SD, um interrogador hábil. Ele vai tentar fazer uso dessas habilidades uma última vez para evitar o seu destino. Não te deixes cair nas suas mãos. És o responsável agora. Ele vai tentar contradizer-te e abalar as tuas convicções.
Gabriel olhou para baixo, como se estivesse a ler as palavras gravadas na mesa.
— Então porque merecem Eichmann e Radek as armadilhas da justiça — disse ele finalmente — e os palestinos do Setembro Negro apenas a vingança?
— Terias dado um excelente estudante Talmud, Gabriel.
— E tu estás a fugir à minha pergunta.
— Obviamente, que houve uma medida de pura vingança na nossa decisão contra os terroristas do Setembro Negro, mas foi mais do que isso. Eles constituem uma ameaça contínua. Se não os matássemos seriam eles a matar-nos. Era guerra.
— Porque não prendê-los, levá-los a julgamento?
— Para que pudessem declamar a sua propaganda a partir de um tribunal israelense?
— Shamron abanou a cabeça lentamente. — Eles já fizeram isso — levantou a mão e apontou para a torre que se ergue no Parque Olímpico — aqui mesmo nesta cidade, em frente às câmaras de todo o mundo. Não nos competia a nós dar-lhes outra oportunidade de justificarem o massacre de inocentes.
Baixou a mão e inclinou-se sobre a mesa. Foi nessa altura que contou a Gabriel os desejos do primeiro-ministro. Enquanto conversava, a sua respiração gelava perante ele.
— Eu não quero matar um velho — disse Gabriel.
— Ele não é um velho. Ele usa as roupas de um velho e esconde-se por trás do rosto de um velho, mas ele ainda é Erich Radek, o monstro que matou uma dúzia de homens em Auschwitz porque não conseguiram identificar uma peça de Brahms. O monstro que matou duas moças à beira de uma estrada polonesa porque não quiseram negar as atrocidades de Birkenau. O monstro que abriu as campas de milhões e sujeitou os seus cadáveres a uma humilhação final. A velhice não perdoa tais pecados.
Gabriel levantou os olhos e fitou o olhar insistente de Shamron.
— Eu sei que ele é um monstro. Eu só não quero matá-lo. Eu quero que o mundo saiba o que este homem fez.
— Então é melhor preparares-te para a batalha com ele. — Shamron olhou para o seu relógio de pulso. — Mandei vir uma pessoa para te ajudar. De fato, deve estar mesmo a chegar.
— Porque só agora estou a saber disso? Pensava que era eu que tomava todas as decisões operacionais.
— E és — disse Shamron. — Mas por vezes eu tenho de mostrar o caminho. É para isso que servem os velhos.
NEM GABRIEL NEM Shamron acreditavam em prenúncios ou presságios. Se acreditassem, a operação que trouxe Moshe Rivlin de Yad Vashem até a casa segura em Munique teria lançado dúvidas sobre a capacidade da equipe para levar a cabo a tarefa que tinham pela frente.
Shamron queria que Rivlin fosse contatado discretamente. Infelizmente, King Saul Boulevard confiou o trabalho a um par de aprendizes acabados de sair da academia, ambos nitidamente de aparência sefardita. Decidiram contatar Rivlin enquanto este caminhava de Yad Vashem para o seu apartamento perto do mercado Yehuda. Rivlin, que tinha sido criado na zona de Bensonhurts no Brooklyn e ainda era vigilante quando caminhava pela rua, rapidamente notou que estava a ser seguido por dois homens de carro. Presumiu que fossem homens-bomba do Hamas ou um par de criminosos de rua. Quando o carro parou ao lado dele e os seus ocupantes pediram para falar, Rivlin desatou a correr como um louco. Para surpresa de todos, o atarracado arquivista provou ser uma presa esquiva e conseguiu escapar aos seus captores durante vários minutos até ser encurralado pelos dois agentes do Escritório na Rua Ben Yehuda.
Ele chegou ao apartamento seguro em Lehel ao fim dessa tarde, carregando duas malas cheias de material de pesquisa e irritado pela maneira como tinha sido convocado.
— Como esperam raptar um homem como Erich Radek se não conseguem apanhar um arquivista gordo? Vá lá — disse ele, puxando Gabriel para a privacidade do quarto do fundo. — Temos muito terreno para cobrir e pouco tempo para o fazer. No SÉTIMO DIA, Adrian Carter chegou a Munique. Era uma quarta-feira; chegou ao apartamento seguro ao fim da tarde, quando o crepúsculo se tornava escuro. O passaporte no bolso do seu sobretudo ainda dizia Brad Cantwell. Gabriel e Shamron tinham acabado de regressar de um passeio nos Jardins Ingleses e ainda estavam embrulhados em chapéus e cachecóis. Gabriel tinha enviado o resto dos elementos da equipe para as posições de fase final, consequentemente o apartamento seguro estava vazio de pessoal do Escritório. Apenas Rivlin permanecia. Saudou o diretor da CIA com a camisa para fora e os sapatos descalçados e disse que seu nome era Yaacov. O arquivista tinha-se adaptado bem à disciplina da operação.
Gabriel fez o chá. Carter desabotoou o casaco e conduziu-se a si próprio numa preocupada excursão pelo apartamento. Passou bastante tempo em frente aos mapas. Carter acreditava em mapas. Os mapas nunca te mentirão. Os mapas nunca te dirão o que eles acham que tu queres ouvir.
— Gosto do que fizeste com o sitio, Herr Heller. — Carter finalmente despiu o sobretudo. — Miséria neo-contemporânea. E o cheiro. Tenho certeza de que o conheço. Trazido da Wienerwald ao fundo do quarteirão, se não estou em erro. Gabriel entregou-lhe uma caneca de chá com o cordão da saqueia ainda pendente do rebordo.
— Porque estás aqui Adrian?
— Pensei em passar para ver se precisavam de ajuda.
— Tretas.
Carter sentou-se pesadamente no sofá, um vendedor no final de uma longa e improdutiva viagem pela estrada. — Verdade seja dita, estou aqui por ordem do meu diretor. Parece que ele está com um sério ataque de nervosismo. Ele sente que estamos juntos num ramo e vocês estão com a motosserra nas mãos. Ele quer que a Agência seja posta na jogada.
— E isso significa o quê?
— Ele quer saber o plano de jogo.
— Tu sabes o plano de jogo, Adrian. Eu disse-te o plano de jogo em Virginia. Não se alterou.
— Eu sei os esboços do plano — disse Carter. — Agora quero ver o quadro pronto.
— O que estás a dizer é que o teu diretor quer rever o plano e dar a palavra final.
— Algo do gênero. E quando acontecer, ele quer que eu fique na retaguarda com o Ari também.
— E se lhe dissermos para ir para o inferno?
— Eu diria que há cinquenta por cento de hipóteses de alguém sussurrar um aviso na orelha de Erich Radek, e perdem-no. Joga com o diretor, Gabriel. É a única maneira de apanhares Radek.
— Estamos prontos para agir, Adrian. Agora é a altura para sugestões úteis do sétimo andar.
Shamron sentou-se ao lado de Carter.
— Se o teu diretor tivesse dez gramas de cérebro, ficaria o mais afastado disto que conseguisse.
— Tentei explicar-lhe isso — não nesses termos, claro, mas qualquer coisa perto. Ele não tem nada disso. Ele veio da Wall Street, o nosso diretor. Ele gosta de pensar em si próprio como um individuo prático, atacante. Sempre soube o que cada divisão da companhia estava a fazer. Tenta gerir a Agência da mesma maneira. E como sabes, é também amigo do presidente. Se o chateias, ele telefona para a Casa Branca, e acaba-se.
Gabriel olhou para Shamron, que cerrava os dentes e acenava a cabeça. Carter
obteve o seu relatório. Shamron permaneceu sentado por alguns minutos, mas em breve estava de pé a percorrer a sala, como um chefe cujas receitas secretas estão a ser entregues a um concorrente do outro lado da rua. Quando terminou, Carter dispensou um longo tempo enchendo a fornilha do seu cachimbo com tabaco.
— Parece-me que os cavalheiros estão prontos — disse ele. — De que estão à espera? Se fosse vocês, punha-me em ação antes que o meu diretor que tem a palavra final decida que quer fazer parte da equipe de rapto.
Gabriel concordou. Levantou o telefone e ligou para Uzi Navot em Zurique.
33
VIENA * MUNIQUE
KLAUS HALDER BATEU suavemente na porta do estúdio. A voz do outro lado concedeu-lhe permissão para entrar. Empurrou a porta e viu o velho sentado à média luz, com os olhos fixos na tremeluzente tela de televisão: um comício de Meztler dessa tarde em Graz, estimulando multidões, a conversa já versava a composição do gabinete ministerial de Metzler. O velho desligou a televisão com o comando e virou os seus olhos azuis para o guarda-costas. Halder apontou para o telefone com o olhar. Uma luz verde piscava.
— Quem é?
— Herr Becker, de Zurique.
O velho levantou o receptor.
— Boa noite, Konrad.
— Boa noite, Herr Vogel. Peço desculpa por o incomodar tão tarde, mas o assunto não podia esperar.
— Há alguma coisa errada?
— Não, muito pelo contrário. No seguimento das recentes notícias eleitorais de Viena, decidi apressar o passo dos meus preparativos e proceder como se a vitória de Peter Metzler fosse um dado adquirido.
— Uma decisão acertada, Konrad.
— Calculei que concordasse. Tenho vários documentos que precisam da sua assinatura. Pensei que seria melhor começarmos o processo agora em vez de esperar pelo final.
— Que tipo de documentos?
— O meu advogado estará mais habilitado para os explicar do que eu. Se não se importar, eu gostaria de ir a Viena para uma reunião. Não demorará mais do que alguns minutos.
— Pode ser na sexta-feira?
— Sexta-feira está ótimo, desde que seja ao fim da tarde. Tenho um compromisso inadiável da parte da manhã.
— Podemos apontar para as quatro da tarde?
— Às cinco seria melhor para mim, Herr Vogel.
— Tudo bem, sexta às cinco.
— Vemo-nos lá.
— Konrad?
— Sim, Herr Vogel.
— Esse advogado — diga-me como se chama, por favor.
— Oskar Lange, Herr Vogel. É um homem muito competente, já fiz uso dos seus serviços em muitas ocasiões anteriores.
— Presumo que seja um tipo que compreende o significado da palavra discrição?
— Discreto, nem sequer dá para começar a descrevê-lo. Está em muito boas mãos.
— Adeus, Konrad.
O velho desligou o telefone e olhou para Halder.
— Vai trazer alguém com ele? Um aceno lento.
— Ele sempre veio sozinho no passado. Porquê trazer um ajudante de repente?
— Herr Becker está prestes a receber cem milhões de dólares, Klaus. Se há um homem no mundo em quem podemos confiar, é o gnomo de Zurique.
O guarda-costas dirigiu-se à porta.
— Klaus?
— Sim, Herr Vogel?
— Talvez tenhas razão. Telefona a alguns dos nossos amigos em Zurique. Descobre se alguém já ouviu falar de um advogado chamado Oskar Lange.
UMA HORA MAIS TARDE, uma gravação do telefonema de Becker foi enviada por transmissão segura dos escritórios da Becker & Puhl em Zurique para o apartamento seguro em Munique. Escutaram-na uma vez, depois outra, e ainda outra. Adrian Carter não gostou do que ouviu.
— Vocês sabem que assim que Radek pousar o telefone, vai fazer uma segunda chamada para Zurique para verificar o Oskar Lange. Espero que tenham pensado nisso.
Shamron parecia desapontado com Carter.
— O que acha, Adrian? Nunca fizemos este tipo de coisa antes? Somos crianças que precisam de orientação?
Enquanto esperava pela resposta, Carter chegou um fósforo ao cachimbo e puxou a fumaça.
— Já ouviu o termo sayan — disse Shamron. — Ou sayanim.
Carter acenou com o cachimbo preso entre os dentes.
— Seus pequenos ajudantes voluntários — disse. — O empregado de hotel que consegue quartos sem reserva. As locadoras que conseguem carros indetectáveis. Os médicos que tratam seus agentes quando têm ferimentos que possam suscitar perguntas difíceis. Os banqueiros que dão empréstimos de emergência.
Shamron acenou.
— Somos um pequeno serviço secreto, só mil e duzentos empregados em tempo integral. Não conseguiríamos fazer o que fazemos sem a ajuda de sayanim. Eles são uma das vantagens da diáspora, o meu exército privado de pequenos voluntários.
— E Oskar Lange?
— Ele é um advogado fiscal e imobiliário de Zurique. Por acaso também é judeu. Algo que ele não publicita em Zurique. Há alguns anos levei o Oskar a jantar a um pequeno restaurante no lago e acrescentei-o à minha lista de ajudantes. Na semana passada, pedi-lhe um favor. Eu queria usar o seu passaporte e o seu escritório e queria que ele desaparecesse por um par de semanas. Quando lhe disse porquê, ele prontificou-se a ajudar com prazer. De fato, ele próprio queria ir a Viena e capturar Radek.
— Espero que ele esteja em lugar seguro.
— Pode-se dizer que sim, Adrian. Ele está de momento num apartamento seguro em Jerusalém.
Shamron inclinou-se em direção ao leitor de fitas, carregou em REWIND, STOP e depois PLAY:
— Pode ser na sexta-feira?
— Sexta-feira está ótimo, desde que seja ao fim da tarde. Tenho um compromisso inadiável da parte da manhã.
— Podemos apontar para as quatro da tarde?
— Às cinco seria melhor para mim, Herr Vogel. .-..
— Tudo bem, sexta às cinco. " STOP.
MOSHE RIVLIN DEIXOU o apartamento seguro na manhã seguinte e regressou a Israel num voo da El Al, com um acompanhante do Escritório sentado ao seu lado. Gabriel ficou até as sete da tarde de quinta-feira, quando uma van Volkswagen com dois pares de esquis montados no teto parou em frente ao apartamento e deu duas buzinadelas.
Ele guardou a sua Beretta na parte de trás da calça. Carter desejou-lhe boa sorte; Shamron deu-lhe um beijo na cara e mandou-o descer.
Shamron abriu as cortinas e olhou para a rua escura. Gabriel apareceu no passeio e dirigiu-se à janela do condutor. Após um momento de discussão, a porta abriu e Chiara saiu. Circundou a van e foi brevemente iluminada pelos faróis da frente antes de entrar para o lugar do passageiro.
A van afastou-se da borda do passeio. Shamron acompanhou até as luzes vermelhas da traseira desaparecerem numa curva. Não se moveu. A espera. Sempre a espera.
O seu isqueiro acendeu, uma nuvem de fumaça formou-se contra o vidro.
34
ZURIQUE
KONRAD BECKER E Uzi Navot saíram dos escritórios da Becker & Puhl precisamente quatro minutos depois da uma da tarde de sexta-feira. Um vigilante do Escritório chamado Zalman, posicionado do outro lado da Talstrasse num Fiat sedã cinza, registrou a hora assim como o tempo, um aguaceiro torrencial, em seguida enviou as noticias a Shamron no apartamento seguro de Munique. Becker estava vestido para um funeral, num terno cinza de risquinhas e uma gravata cor de carvão. Navot, imitando o estilo de vestir de Oskar Lange, usava um blazer Armani com uma camisa e gravata azul elétrica a condizer. Becker tinha pedido um táxi para os levar ao aeroporto.
Shamron teria preferido um carro particular, com um motorista do Escritório, mas Becker viajava sempre de táxi para o aeroporto e Gabriel não queria que a rotina fosse quebrada. Então foi um normal táxi de cidade, conduzido por um imigrante turco, que os levou do centro de Zurique até o aeroporto Kloten por um vale enevoado, com o vigilante de Gabriel sempre a reboque.
Foram em breve confrontados com a primeira falha técnica. Uma frente fria tinha passado por Zurique, transformando a chuva em neve e gelo e obrigando as autoridades do aeroporto Kloten a suspender os voos momentaneamente. O voo 157 8 da Swiss International Airlines, com destino a Viena, embarcou a horas e depois esperou imóvel para entrar na pista. Shamron e Adrian Carter, monitorizando a situação nos computadores do apartamento seguro de Munique, debateram a próxima jogada. Deveriam dar instruções a Becker para ligar a Radek e avisá-lo do atraso? E se Radek tivesse outros planos e decidisse adiar para outra altura? As equipes e veículos estavam nas posições finais. Um cancelamento temporário poderia pôr em risco a segurança operacional. Esperar, aconselhou Shamron, e esperar foi o que fizeram.
Pelas 14h30, as condições atmosféricas melhoraram. Kloten reabriu e o voo 1578 assumiu o seu lugar na fila ao fundo da pista. Shamron fez os cálculos. O voo para Viena levava menos de noventa minutos. Se descolassem em breve, talvez chegassem a tempo a Viena.
Às 14h25 o avião estava no ar, e o azar tinha sido evitado. Shamron informou a equipe de recepção no Aeroporto Schwechat em Viena que o embrulho estava a caminho.
A tempestade sobre os Alpes fez o voo para Viena bastante mais turbulento do que Becker teria preferido. Para acalmar os nervos, consumiu três garrafinhas miniatura de Stolichnaya e visitou a casa de banho duas vezes, tudo isto foi registrado por Zalma, que estava sentado três filas atrás. Navot, o retrato da concentração e serenidade, olhava pela janela para o mar de nuvens negras, a sua água com gás intata. Aterrissaram em Schwechat poucos minutos depois das quatro da tarde sob uma luz cinza sujo. Zalman seguiu-os pelo terminal até o controle de passaportes. Becker foi mais uma vez à casa de banho. Navot, com um movimento quase imperceptível dos olhos, ordenou a Zalman que fosse com ele. Depois de se aliviar, o banqueiro passou três minutos em frente ao espelho arranjando-se, uma quantidade de tempo fora do normal, pensou Zalman, para um homem virtualmente sem cabelo. O vigilante pensou em dar a Becker um pontapé no tornozelo para o apressar, mas decidiu não o perturbar. Afinal de contas, ele era um amador a agir sob coação.
Depois de passar pelo controle de passaporte, Becker e Navot dirigiram-se ao terminal de chegadas. Aí, entre a multidão, estava um especialista em vigilância, alto e magro chamado Mordecai. Vestia um desleixado terno preto e segurava um cartão onde se lia BAUER. O seu carro, um grande Mercedes sedã, estava à espera no estacionamento de curta duração. A dois lugares de distância estava um Audi comercial de três portas prateado. As chaves estavam no bolso de Zalman.
Zalman evitou aproximar-se deles durante a viagem de carro até Viena. Ligou para o apartamento seguro de Munique e, em poucas palavras, cuidadosamente escolhidas, informou Shamron que Navot e Becker estavam dentro do horário e procediam em direção ao alvo. Pelas 16h45, Mordecai chegou ao Canal do Danúbio. Pelas 16h50 atravessou a linha em direção ao Primeiro Bairro e estava no trânsito de hora de ponta ao longo da Ringstrasse. Virou à direita, para uma rua de pedra estreita, e logo na primeira à esquerda. Um momento mais tarde, parou em frente ao portão de ferro ornamentado de Erich Radek. Zalman ultrapassou pela esquerda e continuou a conduzir.
— FAZ SINAL DE LUZES — disse Becker — e o guarda-costas deixa entrar.
Mordecai seguiu a instrução. Durante breves segundos de tensão, o portão manteve-se imóvel; então ouviu-se um bater metálico agudo, seguido do zumbido de um motor.
Enquanto o portão abria lentamente, o guarda-costas de Radek apareceu na porta da frente, a luz intensa do candelabro brilhava sobre a sua cabeça e ombros como uma auréola. Mordecai esperou até o portão estar completamente aberto e avançou para a entrada em forma de ferradura.
Navot saiu primeiro, depois Becker. O banqueiro apertou a mão do guarda-costas e apresentou:
— O meu associado de Zurique, Herr Oskar Lange. O guarda-costas acenou e convidou-os a entrar com um gesto. A porta da frente fechou-se.
Mordecai olhou para o relógio: 16h58. Pegou no celular e ligou um número de Viena. — Vou chegar tarde para jantar — disse.
— Está tudo bem?
— Sim — disse ele. — Está tudo bem.
ALGUNS SEGUNDOS MAIS TARDE, em Munique, o sinal chegou à tela do computador de Shamron. Shamron olhou para o relógio.
— Quanto tempo lhes vais dar? — perguntou Carter.
— Cinco minutos — disse Shamron — e nem um segundo a mais.
O AUDI SEDÃ PRETO com uma antena alta montada na bagageira estava estacionado a algumas ruas de distância. Zalman estacionou atrás, saiu e caminhou até a porta do passageiro. Oded estava sentado ao volante, um homem compacto com olhos castanhos claros e um nariz achatado de pugilista. Zalman, enquanto se instalava ao seu lado, conseguia cheirar tensão na sua respiração. Zalman tinha a vantagem de ter estado em atividade toda a tarde; Oded tinha estado preso no apartamento seguro de Viena sem nada para fazer exceto imaginar as consequências de um fracasso. Um celular estava no assento, a ligação com Munique já estava estabelecida. Zalman conseguia ouvir a respiração uniforme de Shamron. Uma imagem formou-se na sua mente: uma versão mais jovem de Shamron marchando na sua direção sob uma chuva torrencial na Argentina, Eichmann descendo de um ônibus e caminhando para ele vindo da direção oposta. Oded ligou o carro. Zalman foi arrastado de volta ao presente. Olhou para o relógio no painel de instrumentos: 17:03...
A E461, MAIS conhecida pelos austríacos como a Brünnerstrasse, é uma estrada de duas faixas que vem do Norte de Viena e atravessa as onduladas colinas do Weinviertel, a região de vinhos austríaca. São oitenta quilômetros até a fronteira checa. Há uma passagem-de-nível, abrigada por um dossel em abóbada, chefiada por dois relutantes guardas em abandonar o conforto do seu abrigo de alumínio e vidro para levar a cabo qualquer inspeção dos veículos que passam. Do lado checo da passagem-de-nível, a inspeção de documentos de viagem leva normalmente um pouco mais de tempo, embora o tráfego vindo da Áustria seja normalmente recebido de braços abertos. A um quilômetro e meio para lá da fronteira, ancorada nas colinas da Morávia do Sul, fica a antiga cidade de Mikulov. É uma cidade fronteiriça, com as caraterísticas de cerco de uma cidade fronteiriça. E ajustava-se perfeitamente ao estado de espírito de Gabriel. Ele estava por trás de um parapeito de tijolo de um castelo medieval, bem por cima dos telhados de telha vermelha da velha cidade, por baixo de um par de pinheiros dobrados pelo vento. A chuva fria caía como lágrimas na superfície da sua gabardina de oleado. O seu olhar estendia-se colina abaixo, em direção à fronteira. Na escuridão, apenas as luzes do tráfego na autoestrada eram visíveis, luzes brancas surgindo na sua direção, luzes vermelhas afastando-se na direção da fronteira austríaca.
Olhou para o relógio. Eles estariam dentro da casa de Radek neste instante. Gabriel conseguia imaginar pastas abrindo-se, café e bebidas sendo servidas. E então outra imagem apareceu, uma fila de mulheres vestidas de cinza, caminhando ao longo de uma estrada com neve e ensopada de sangue. A sua mãe, vertendo lágrimas de gelo.
— O que vai dizer a seu filho sobre a guerra, judia?
— A verdade, Herr Sturmbannführer. Direi ao meu filho a verdade.
— Ninguém vai acreditar em você.
Ela não lhe disse a verdade, claro. Em vez disso tinha confiado a verdade ao papel e trancado nos arquivos de Yad Vashem. Talvez Yad Vasehm fosse o local ideal para ela. Talvez existam verdades que, de tão aterradoras, fiquem melhor se confinadas num arquivo de horrores, em quarentena, separadas das não infectadas. Ela não pôde contar que fora vítima de Radek, como Gabriel não podia dizer que era o carrasco de Shamron. Ela sempre soube, no entanto.
Ela conhecia o rosto da morte, e ela tinha visto a morte nos olhos de Gabriel. O telefone no bolso de seu casaco vibrou silenciosamente contra a anca. Ele levou-o lentamente à orelha e ouviu a voz de Shamron. Guardou o telefone no bolso e deixou-se estar por um momento, observando os faróis flutuando na sua direção através da negra planície austríaca.
— O que vai dizer quando estiver com ele? — perguntara Chiara.
A verdade, Gabriel pensava agora. Eu direi a verdade.
Começou a caminhada, descendo as estreitas ruas de pedra de uma cidade antiga, em direção ao escuro.
35
VIENA
UZI NAVOT SABIA como revistar uma pessoa. Klaus Halder era muito bom no seu trabalho. Começou no colarinho da camisa de Navot e terminou nos canhões das suas calças
Armani. Em seguida virou a atenção para a pasta. Trabalhou lentamente, como um homem com todo o tempo do mundo, e com uma atenção de monge para todos os detalhes. Quando a revista terminou finalmente, ele ajeitou o conteúdo com cuidado e colocou os trincos de volta no sítio.
— Herr Vogel vai vê-los agora — disse. — Sigam-me, por favor. Caminharam pelo corredor central, depois passaram por um par de portas duplas e entraram numa sala de visitas. Erich Radek, num casaco de linho grosso e gravata cor de ferrugem, estava sentado perto da lareira. Acolheu os convidados com um simples aceno da sua alongada cabeça, mas não se esforçou por levantar-se. Radek, pensou Navot, é um homem que costuma receber visitas sentado.
O guarda-costas deslizou suavemente para fora da sala e fechou as portas.
Becker, sorrindo, aproximou-se e apertou a mão de Radek. Navot não desejava tocar no assassino, mas dadas as circunstâncias não tinha outra escolha. A mão oferecida era fria e seca, o aperto firme e sem tremor. Era um aperto de mão para o testar. Navot sentia que tinha passado.
Radek estalou os dedos em direção às cadeiras vazias, em seguida a sua mão voltou para o apoio de copo no braço da cadeira. Começou a girá-lo para a frente e para trás, duas voltas para a direita, duas para a esquerda. Havia qualquer coisa no movimento que fazia azia ao estômago de Navot.
— Ouvi coisas muito boas sobre o seu trabalho, Herr Lange disse Radek subitamente. — Tem uma excelente reputação perante os seus colegas em Zurique.
— É tudo mentira, asseguro-lhe, Herr Vogel.
— É muito modesto. — Girou a bebida. — Você fez um trabalho para um amigo meu há alguns anos, um cavalheiro chamado Helmut Schneider.
E tu estás a tentar armadilhar-me, pensou Navot. Ele tinha-se preparado para um estratagema destes. O verdadeiro Oskar Lange tinha-lhe fornecido uma lista de clientes dos últimos dez anos para Navot memorizar. O nome Helmut Schneider não estava nela.
— Lidei com um bom número de clientes durante os últimos anos, mas temo que o nome Schneider não esteja entre eles. Talvez o seu amigo me tenha confundido com outra pessoa.
Navot olhou para baixo, abriu os trincos da sua pasta e levantou a tampa. Quando voltou a levantar o olhar, os olhos azuis de Radek estavam perfurantes nos seus e a sua bebida rodava no braço da cadeira. Havia uma tranquilidade assustadora nos seus olhos. Era como estar a ser estudado por um retrato.
— Talvez tenha razão. — O tom conciliatório de Radek não condizia com a sua expressão. — Konrad disse que precisava da minha assinatura nalguns documentos relacionados com a liquidação dos bens da conta.
— Sim, está correto.
Navot retirou um dossier da pasta e colocou a pasta no chão aos seus pés. Radek acompanhou a viagem da pasta para baixo e devolveu o seu olhar ao rosto de Navot. Navot levantou a capa do dossier e elevou o olhar. Abriu a boca para falar, mas foi interrompido pelo tocar do telefone. Agudo e eletrônico, soou aos ouvidos sensíveis de Navot como um grito num cemitério. Navot olhou para a mesa estilo Biedermeier, e o telefone tocou uma segunda vez. Começou a tocar uma terceira vez, mas ficou subitamente em silêncio, como se tivesse sido amordaçado a meio do grito. Navot conseguia ouvir Halder, o guarda-costas, falando numa extensão do corredor.
— Boa tarde. .. Não, peço desculpa, mas Herr Vogel está neste momento em reunião. Navot retirou o primeiro documento do dossier. Radek estava agora visivelmente distraído, o seu olhar distante. Estava a ouvir o som da voz do seu guarda-costas. Navot chegou-se à frente na cadeira e segurou o papel num ângulo que permitisse a Radek ver.
— Este é o primeiro documento que necessita...
Radek levantou a mão exigindo silêncio. Navot ouviu passadas no corredor, seguido do som de portas a abrir. O guarda-costas entrou na sala e dirigiu-se à beira de Radek.
— É Manfred Kruz — disse ele num sussurro capelista. — Ele quer-lhe dar uma palavra. Diz que é urgente e não pode esperar.
ERICH RADEK LEVANTOU-SE lentamente da cadeira e caminhou para o telefone.
— O que se passa Manfred?
— Os israelenses.
— Que têm eles?
— Tenho informações que indicam que um grande grupo de operacionais se reuniu em Viena nestes dias para te raptar.
— Essas informações estão confirmadas?
— Suficientemente confirmadas para concluir que já não é seguro permanecer em casa. Destaquei uma unidade da Staatspolizei para te apanhar e levar-te para um local seguro.
— Ninguém consegue entrar aqui Manfred. Limita-te a pôr um guarda armado fora da casa.
— Estamos a lidar com os israelenses, Herr Vogel. Eu quero-o fora da casa.
— Está bem, se insistes, mas diz à tua unidade para recuar. Klaus dá conta do recado.
— Um guarda-costas não é suficiente. Eu sou responsável pela sua segurança e quero-o sob proteção policial. Lamento, mas tenho de insistir. As informações que tenho são muito específicas.
— Quando é que os teus agentes chegam aqui?
— A qualquer momento. Prepare-se para sair.
Desligou o telefone e olhou para os dois homens sentados junto à lareira.
— Peço desculpas, cavalheiros, mas estou com muita pressa, é uma emergência. Temos de terminar isto em outra hora. — Voltou-se para seu guarda-costas.
— Abra os portões Klaus e arranje-me um casaco. Já.
OS MOTORES DO portão frontal funcionaram. Mordecai, sentado ao volante do Mercedes, olhou pelo espelho retrovisor e viu um carro entrar vindo da rua com uma sirene azul rodopiando no teto. Parou atrás dele e travou a fundo. Dois homens saíram e escalaram os degraus da frente. Mordecai lentamente ligou a ignição.
ERICH RADEK FOI para o corredor. Navot arrumou a sua pasta e levantou-se. Becker ficou congelado no lugar. Navot cravou os dedos por baixo do braço do banqueiro e levantou-o.
Seguiram Radek até o corredor. Luzes de emergência azuis piscavam pelas paredes e teto. Radek estava junto ao seu guarda-costas, falando-lhe baixo ao ouvido. O guarda-costas segurava um sobretudo e parecia tenso. Enquanto ajudava Radek a vestir o casaco, os seus olhos estavam em Navot.
Alguém bateu à porta, dois estrondos agudos ecoaram pelo teto alto e chão de mármore do corredor. O guarda-costas largou o sobretudo de Radek e rodou o trinco. Dois homens à paisana empurraram e entraram na casa.
— Está pronto Herr Vogel?
Radek acenou, em seguida voltou-se e olhou uma vez mais para Navot e Becker.
— Mais uma vez, por favor aceitem as minhas desculpas, cavalheiros. Peço imensa desculpa pelo incômodo.
Radek voltou-se na direção da porta com Klaus ao seu lado. Um dos agentes travou o caminho ao guarda-costas colocando-lhe uma mão no peito. O guarda-costas afastou-a com uma pancada.
— O que pensa que está fazendo?
— Herr Kruz deu-nos instruções especificas. Só devemos levar Herr Vogel sob proteção.
— Kruz nunca teria dado uma ordem dessas. Ele sabe que eu vou onde quer que ele vá. Foi sempre assim.
— Lamento, mas essas são as nossas ordens.
— Deixe-me ver o seu distintivo e a sua identificação.
— Não há tempo. Por favor, Herr Vogel. Venha connosco.
O guarda-costas recuou um passo e meteu a mão dentro do casaco. Conforme a arma ficou à vista, Navot lançou-se para a frente. com a mão esquerda, agarrou o pulso do guarda-costas e encostou-lhe a arma contra o abdômen. com a direita, deu-lhe dois fortes golpes de mão aberta na nuca. O primeiro atordoou Halder; o segundo fez os seus joelhos cederem. A sua mão relaxou e a Glock caiu no chão de mármore. Radek olhou para a arma e por um instante pensou em apanhá-la. Em vez disso, voltou-se, precipitou-se para a porta aberta do seu estúdio e fechou-a com um estrondo.
Navot tentou a maçaneta. Trancada.
Deu uns passos atrás e lançou o ombro contra a porta. A porta desfez-se e ele tropeçou para dentro da sala escura. Levantou-se cambaleante e viu que Radek já tinha fugido através da falsa frente de uma estante de livros e estava dentro de um pequeno elevador do tamanho de uma cabine telefônica.
Navot saltou para a frente enquanto a porta do elevador começou a fechar. Conseguiu enfiar os dois braços para dentro e agarrou Radek pela lapela do sobretudo. Quando a porta bateu contra o ombro esquerdo de Navot, Radek agarrou-lhe os pulsos e tentou libertar-se. Navot segurou firmemente.
Oded e Zalman vieram em seu auxilio. Zalman, o mais alto dos dois, alcançou por cima da cabeça de Navot e puxou a porta. Oded deslizando por entre as pernas de Navot aplicou pressão por baixo. Perante a investida, a porta finalmente deslizou e abriu.
Navot arrastou Radek para fora do elevador. Já não havia tempo para subterfúgios ou enganos. Navot tapou a boca do velho com a mão, Zalman segurou-lhe as pernas e levantou-o do chão. Oded encontrou o interruptor e apagou a luz.
Navot olhou para Becker.
— Entre no carro. Depressa, idiota.
Arrastaram Radek degraus abaixo em direção ao Audi. Radek puxava a mão de Navot, tentando libertar-se do tampão na boca e esperneava. Navot conseguia ouvir Zalman resmungar entre dentes. De alguma forma, mesmo no calor da batalha, ele conseguia resmungar em alemão.
Oded abriu a porta de trás antes de dar a volta e correr para o volante.
Navot empurrou primeiro a cabeça de Radek para o fundo e colou-o ao assento.
Zalman forçou sua entrada e fechou a porta. Becker entrou na parte de trás do Mercedes. Mordecai acelerou fundo, e o carro guinou para a rua, o Audi seguindo de perto.
O corpo de Radek ficou subitamente quieto. Navot retirou a mão e o austríaco sorveu ofegante o ar.
— Está me machucando — disse. — Não consigo respirar.
— Eu deixo você se levantar, mas tem que prometer que se comporta bem. Não vai haver mais tentativas de fuga. Promete?
— Deixe eu me levantar. Está me esmagando, estúpido.
— Eu deixo, velho. Faça apenas um favor primeiro. Diga seu nome, por favor.
— Sabe meu nome. É Vogel. Ludwig Vogel.
— Não, não, esse nome não. Seu nome verdadeiro.
— Esse é o meu nome verdadeiro.
— Quer se levantar e deixar Viena como um homem, ou vou ter de ir sentado em cima de você o tempo todo?
— Eu quero me sentar. Está me machucando, maldição!
— Diga apenas seu nome.
Ficou em silêncio por um momento; então murmurou:
— Meu nome é Radek.
— Desculpe, mas não consegui ouvir. Pode dizer seu nome outra vez, por favor? Desta vez alto.
Inspirou profundamente e o seu corpo ficou rígido, como se estivesse em sentido em vez de deitado no banco de trás de um carro.
— MEU NOME É STURMBANNFÜHRER ERICH RADEK!
NO APARTAMENTO SEGURO de Munique, a mensagem apareceu na tela do computador de Shamron: O EMBRULHO FOI RECEBIDO. Carter deu-lhe uma palmada nas costas.
— Raios me partam! Eles o pegaram. Eles o pegaram mesmo.
Shamron levantou-se e caminhou até o mapa.
— Pegá-lo foi a parte mais fácil da operação, Adrian. Tirá-lo de lá vai ser outra história.
Olhou para o mapa. Oitenta quilômetros até a fronteira tcheca. Corra, Oded, pensou ele. Dirija como nunca dirigiu em sua vida.
36
VIENA
ODED JÁ TINHA guiado por aquela estrada uma dúzia de vezes, mas nunca como esta, nunca com a sirene a gritar e a rodopiar no teto, e nunca com os olhos de Erich Radek fitando os seus pelo retrovisor. A retirada do centro da cidade tinha corrido melhor do que esperado. O tráfego de fim de tarde era intenso, mas não ao ponto de não se conseguir desviar para dar passagem ao barulho e à luz da sua sirene. Radek amotinou-se duas vezes. Cada insurreição foi implacavelmente dominada por Navot e Zalman.
Circulavam agora em direção a norte pela E461. O tráfego de Viena tinha ficado para trás, a chuva caía continuamente e gelava nos cantos do para-brisas. Uma tabuleta passou de repente: REPÚBLICA CHECA 42 KM. Navot olhou prolongadamente sobre o ombro, então, em hebraico, instruiu Oded para desligar a sirene.
— Para onde vamos? — perguntou Radek respirando com dificuldade. — Para onde me estão a levar? Onde?
Navot não disse nada, como Gabriel tinha ordenado.
— Deixem-no fazer perguntas até ficar com a cara azul — Gabriel tinha dito.
— Simplesmente não lhe deem a satisfação de uma resposta. Deixem a incerteza afligir-lhe a mente. Era isso que ele faria se os papéis estivessem invertidos. Então Navot observou as povoações que passavam pela janela Mistelbach, Wilfersdorf, Erdberg — e pensou apenas numa coisa, o guarda-costas que ele tinha deixado inconsciente no corredor da entrada da casa de Radek em Stöbbergasse.
Poysdorf apareceu perante eles. Oded acelerou pela vila, em seguida virou para uma estrada de duas faixas e seguiu-a em direção a leste por entre pinheiros cobertos de neve.
— Para onde vamos? Para onde me estão a levar?
Navot já não conseguia suportar mais as suas perguntas em silêncio.
— Vamos para casa — disse de repente. — E tu vens connosco. Radek traçou um sorriso gelado.
— Cometeste apenas um erro esta noite, Herr Lange. Devias ter morto o meu guarda-costas quando tiveste oportunidade.
KLAUS HALDER ABRIU um olho, em seguida o outro. A escuridão era absoluta. Deixou-se estar deitado imóvel por um momento tentando determinar a posição do seu corpo. Tinha caído para a frente, com os braços para os lados, e a sua face direita estava pressionada contra o mármore frio. Tentou levantar a cabeça, um relâmpago de dor lancinante abateu-se-lhe sobre o pescoço. Lembrou-se então do instante em que tinha acontecido. Estava a tentar alcançar a arma quando levou duas pancadas por trás. Fora o advogado de Zurique, Oskar Lange. Obviamente que Lange não era um simples advogado. Ele estava a tramar alguma, como Halder temia desde o início.
Colocou-se de joelhos e sentou-se encostado à parede. Fechou os olhos e esperou que a sala parasse de girar, então esfregou a parte de trás da cabeça. Tinha um inchaço do tamanho de uma maçã. Ergueu o pulso esquerdo e lançou um olhar ao painel luminoso do seu relógio de pulso: 17:57. Quando tinha acontecido? Poucos minutos depois das cinco, 17h10 no máximo. A não ser que tivessem um helicóptero à espera na Stephansplatz, o mais certo era ainda estarem na Áustria.
Apalpou o bolso da frente do seu casaco esportivo e descobriu que o celular ainda lá estava. Tirou-o e ligou. Dois toques. Uma voz familiar.
— Aqui Kruz.
TRINTA SEGUNDOS MAIS TARDE, Manfred Kruz bateu com o telefone e avaliou suas opções. A resposta mais óbvia seria fazer soar o alarme e alertar todas as unidades policiais do país que o velho fora sequestrado por agentes israelenses, fechar as fronteiras e os aeroportos. Óbvia, sim, mas muito perigosa. Uma jogada dessas iria levantar muitas questões desconfortáveis. Porque foi Herr Vogel raptado? Quem é ele realmente? A candidatura de Peter Metzler seria esquadrinhada, assim como a carreira de Kruz. Mesmo na Áustria, tais assuntos assumiam vida própria, e Kruz tinha visto muitos para saber que o inquérito não terminaria à porta de Vogel.
Os israelenses sabiam que ele ficaria incapacitado, e tinham escolhido bem o momento. Kruz tinha de pensar numa maneira sutil de intervir, alguma maneira de impedir os israelenses sem destruir tudo no processo. Alcançou o telefone e marcou.
— Daqui Kruz. Os americanos informaram-nos que um possível grupo da al-Qaeda está em trânsito de automóvel pelo país esta tarde. Eles suspeitam que os membros da al-Qaeda possam estar a viajar com simpatizantes europeus para melhor se misturarem no ambiente. A partir deste momento estou a ativar a rede de alerta terrorista. Aumentem a segurança nas fronteiras, aeroportos e estações de trem para Nível Dois.
Desligou e olhou pela janela. Tinha atirado uma bóia ao velho. Perguntou a si mesmo se ele estaria em condições de a agarrar. Kruz sabia que se conseguisse, seria confrontado com um outro problema em breve: o que fazer com a equipe de rapto israelense. Levou a mão ao bolso do paletó e retirou um pedaço de papel.
— Se ligar para este número, quem vai atender?
— A violência.
Manfred Kruz alcançou o seu telefone.
O RELOJOEIRO, DESDE seu regresso a Viena, dificilmente encontrava razão para sair do santuário da sua pequena loja no Bairro Stephansdom. As frequentes viagens tinham-no deixado com um enorme número de peças acumulado que requeriam a sua atenção, incluindo um relógio regulador vienense, estilo Biedermeier, fabricado pelo famoso relojoeiro Vienense Ignaz Marenzeller em 1840. A caixa de mogno estava nas condições originais, embora o painel prateado de uma só peça tivesse requerido muitas horas de restauração. O movimento Biedermeier original feito à mão, com a sua corda de 75 dias, estava exposto em várias peças cuidadosamente arranjadas na superfície da sua mesa de trabalho.
O telefone tocou. Ele baixou o volume do seu leitor de CD portátil e o Concerto Brandenburg N°. 4 em Sol de Bach diminuiu até um sussurro. Uma escolha banal, Bach, mas o Relojoeiro considerava a precisão de Bach um acompanhamento perfeito para a tarefa de desmantelar e reconstruir o movimento de um relógio antigo. Alcançou o telefone com a mão esquerda. Uma onda de dor percorreu-lhe o comprimento do braço, uma lembrança dos seus abusos em Roma e na Argentina. Levou o receptor à orelha e prendeu-o contra o ombro.
— Sim — disse distraidamente. As suas mãos estavam de volta ao trabalho.
— O seu número foi-me dado por um amigo comum.
— Estou a ver — disse o Relojoeiro de modo descomprometido. Como posso ajudá-lo?
— Não sou eu quem precisa de ajuda. É o nosso amigo. O Relojoeiro pousou as ferramentas.
— O nosso amigo? — perguntou.
— Realizou trabalhos para ele em Roma e na Argentina. Presumo que saiba a quem me estou a referir?
O Relojoeiro sabia de fato. Então, o velho induzira-o em erro e por duas vezes colocara-o em situações de campo comprometedoras. Agora tinha cometido o pecado operacional fatal de dar o seu nome a um estranho. Era óbvio que estava em sarilhos. O Relojoeiro suspeitou que tivesse alguma coisa a ver com os israelenses. Decidiu que agora seria um excelente momento para acabar com a relação.
— Peço desculpa — disse — mas penso que me está a confundir com outra pessoa. O homem do outro lado da linha tentou contra-argumentar. O Relojoeiro desligou o telefone e aumentou o volume do seu leitor de CD até que o som de Bach encheu a oficina.
NO APARTAMENTO SEGURO de Munique, Carter desligou o telefone e olhou para Shamron, que ainda estava de pé em frente ao mapa, como se imaginasse o progresso de Radek para norte em direção à fronteira checa.
— Era da nossa filial de Viena. Estão a monitorizar a rede de comunicações austríaca. Parece que Manfred Kruz elevou o alerta terrorista para Nível Dois.
— Nível Dois? O que significa isso?
— Significa que é possível que haja alguma dificuldade na fronteira.
A ASSISTÊNCIA ESTAVA na reentrância de um ribeiro gelado. Havia dois veículos, um Opel sedã e uma van Volkswagen. Chiara estava ao volante da Volkswagen, faróis apagados, motor desligado, o peso reconfortante de uma Beretta no colo. Não havia outros sinais de vida, não havia luzes na vila, não havia o ruído do tráfego na autoestrada, apenas o suave bater da neve no teto da van e o assobiar do vento pelos juncos dos abetos. Olhou por cima do ombro e olhou para o compartimento traseiro da Volkswagen. Tinha sido preparado para a chegada de Radek. O forro da traseira tinha sido colocado. Por baixo do forro estava um compartimento especialmente construído para escondê-lo durante a passagem pela fronteira. Ele ficaria confortável lá, mais confortável do que merecia.
Olhou pelo vidro. Não havia muito para ver, a estrada estreita subindo pela escuridão em direção a um cume à distância. Então, subitamente, houve uma luz, um brilho branco e limpo que iluminou o horizonte e transformou as árvores em minaretes pretos. Por alguns segundos, foi possível ver a neve, rodopiando como uma nuvem de insetos pelo ar varrido pelo vento. Então os faróis da frente surgiram. O carro contornou a colina, e as luzes espalharam-se por ela, atirando as sombras das árvores para um lado, depois para o outro. Chiara segurou a Beretta com a mão e deslizou o dedo indicador para dentro da guarda do gatilho.
O carro derrapou até parar junto à van. Ela olhou para o banco de trás e viu o assassino, sentado entre Navot e Zalman, rígido como um comissário à espera da limpeza de sangue. Ela rastejou até o compartimento traseiro e fez uma verificação final.
— TIRE O SOBRETUDO — ordenou Navot.
— Por quê?
— Porque estou mandando.
— Eu tenho o direito de saber por quê.
— Não tem direito nenhum! Faça apenas o que digo.
Radek permaneceu imóvel. Zalman puxou a lapela do casaco, mas o velho cruzou os braços com força junto ao peito. Navot suspirou pesadamente. Se o velho bastardo quer um combate final, vai consegui-lo. Navot abriu-lhe os braços à força enquanto Zalman puxava a manga direita, depois a esquerda. O casaco depois; em seguida Zalman rasgou a manga da camisa e expôs a pele caída do braço. Navot exibiu uma seringa, cheia de sedativo.
— Isso é para seu próprio bem — disse Navot. — É moderado e não tem efeito durante muito tempo. Vai fazer sua viagem muito mais suportável. Sem claustrofobia.
— Nunca tive claustrofobia.
— Não me interessa.
Navot espetou a agulha no braço de Radek e despejou o conteúdo. Passados alguns segundos, o corpo de Radek relaxou; em seguida a cabeça tombou para o lado e o queixo descaiu. Navot abriu a porta e saiu. Segurou o corpo amolecido de Radek debaixo dos braços e arrastou-o para fora do carro.
Zalman levantou-o pelas pernas e juntos carregaram-no como um morto de guerra para a lateral da van. Chiara estava agachada no interior, segurando uma máscara de oxigênio e outra de plástico transparente. Navot e Zalman deitaram Radek no chão da van; e Chiara colocou-lhe a máscara sobre o nariz e a boca. O plástico embaciou imediatamente, indicando que a respiração de Radek estava normal. Ela verificou-lhe o pulso. Regular e forte. Manusearam-no para dentro do compartimento e fecharam a tampa.
Chiara sentou-se ao volante e ligou o motor. Oded fechou-lhe a porta e deu uma pequena pancada com a mão no vidro. Chiara engatou a marcha e seguiu para a autoestrada. Os outros entraram no Opel e seguiram atrás dela.
CINCO MINUTOS MAIS TARDE, as luzes da fronteira apareceram como faróis no horizonte. Conforme Chiara se foi aproximando conseguiu ver uma pequena fila de trânsito com cerca de seis veículos de comprimento, esperando para atravessar. Havia dois guardas fronteiriços em evidência. Tinham as lanternas na mão e estavam a verificar passaportes e a espreitar pelas janelas. Ela olhou por cima do ombro. As portas do compartimento permaneciam fechadas. Radek estava em silêncio.
O carro em frente passou na inspeção e foi deixado seguir em direção ao lado checo. O guarda fronteiriço fez-lhe sinal para avançar. Ela baixou o vidro e sorriu.
— Passaporte, por favor.
Ela entregou. O segundo guarda tinha-se deslocado para o lado do passageiro da van, e ela conseguia ver o foco de luz da lanterna investigando o interior.
— Está tudo bem?
O guarda fronteiriço manteve os olhos na fotografia e não respondeu.
— Quando entrou na Áustria?
— Hoje.
— Onde?
— Pela Itália, em Tarvísio.
Ele dispensou um momento comparando o rosto dela com a fotografia do passaporte. Em seguida abriu a porta do motorista e com um gesto ordenou-lhe que saísse da van.
UZI NAVOT OBSERVOU a cena em primeira fila, no lugar do passageiro no banco da frente do Opel. Olhou para Oded e praguejou ligeiramente por entre os dentes. Em seguida ligou do celular para o apartamento seguro de Munique. Shamron atendeu ao primeiro toque.
— Temos um problema — disse Navot.
ELE ORDENOU que se colocasse na frente da van e apontou a lanterna para seu rosto. Através do brilho conseguia ver o segundo guarda fronteiriço abrindo a porta do passageiro da van. Forçou-se a olhar para o interrogador. Tentou não pensar na Beretta contra as suas costas. Ou em Gabriel, esperando do outro lado da fronteira em Mikulov. Ou Navot, Oded e Zalman observando impotentes do Opel.
— Para onde se dirige esta noite?
— Praga — disse ela.
— Por que vai para Praga?
Ela disparou-lhe um olhar: Não tem nada com isso. Então disse: — Vou visitar meu namorado.
— Namorado — repetiu ele. — O que seu namorado faz em Praga?
Ensina italiano, dissera Gabriel.
Ela respondeu à pergunta.
— Onde?
No Instituto de Estudos Linguísticos de Praga, tinha dito Gabriel. Mais uma vez, ela respondeu como Gabriel tinha instruído.
— E há quanto tempo ele é professor do Instituto de Estudos Linguísticos de Praga?
— Três anos.
— E vê-o com frequência?
— Uma vez por mês, às vezes duas.
O segundo guarda tinha entrado na van. Uma imagem de Radek passou-lhe pela mente, olhos fechados, máscara de oxigênio no rosto. Não acorde, pensou ela. Não se mexa. Não faça barulho. Aja decentemente, pelo menos uma vez em sua vida desprezível.
— E quando entrou na Áustria?
— Já disse isso.
— Diga outra vez, por favor.
— Hoje.
— A que horas?
— Não me lembro da hora.
— Era de manhã? Era de tarde?
— Tarde.
— Início da tarde? Fim da tarde?
— Início.
— Então ainda era dia?
Ela hesitou; ele pressionou-a.
— Sim? Ainda era dia?
Ela acenou. De dentro da van veio o som da porta traseira se abrindo. Ela se forçou a olhar diretamente para os olhos do interrogador. O seu rosto, escurecido pela irritante luz da lanterna, começou a parecer-se com Erich Radek, não a versão patética do Radek inconsciente na traseira da van, mas o Radek que arrastou uma criança chamada Irene Frankel das fileiras da marcha da morte de Birkenau em 1945 e a levou para uma floresta polonesa para um momento de tormento final.
— Diga as palavras, judia! Foi transferida para leste. Teve comida em abundância e cuidados médicos adequados. As câmaras de gás e o crematório são mentiras bolchevique-judaicas.
Eu consigo ser tão forte como você, Irene, pensou ela. Eu consigo passar por isso. Por você.
— Parou em algum lugar na Áustria?
— Não.
— Não aproveitou a oportunidade para visitar Viena?
— Já estive em Viena — disse ela. — Não me agrada.
Ele dispensou um momento examinando-lhe o rosto.
— É italiana?
— Tem meu passaporte na mão.
— Não estou falando de seu passaporte. Estou falando de sua etnia. Seu sangue. Descendência italiana ou imigrante do, digamos, Oriente Médio ou Norte de África?
— Sou italiana — assegurou ela.
O segundo guarda saiu da van e abanou a cabeça. O interrogador devolveu-lhe o passaporte.
— Peço desculpas pelo atraso — disse ele. — Tenha uma boa viagem.
Chiara sentou-se ao volante, engatou a marcha e passou a fronteira devagar. Desatou em lágrimas, lágrimas de alívio, lágrimas de raiva. No início tentou impedi-las, mas não conseguiu. A estrada ficou desfocada, as luzes traseiras transformaram-se em riscos vermelhos, e mesmo assim elas vieram.
— Por você, Irene — disse ela em voz alta. — Fiz isso por você.
A ESTAÇÃO DE trem de Mikulov fica no fim da cidade velha, onde as colinas encontram a planície. Há uma única plataforma, que suporta um quase constante ataque do vento que desliza pelos Cárpatos, e um melancólico estacionamento de gravilha, que se transforma num lago quando chove. Perto da bilheteira está uma parada de ônibus riscada de graffitis, e era ai, encostado ao lado de onde vem o vento, que Gabriel esperava, mãos mergulhadas nos bolsos do casaco impermeável.
Levantou o olhar quando a van entrou no estacionamento e esmagou a gravilha. Esperou até que parasse antes de sair da parada de ônibus para a chuva. Chiara esticou-se e abriu-lhe a porta. Quando a luz de teto se acendeu, ele viu que o seu rosto estava molhado.
— Estás bem?
— Estou ótima.
— Queres que eu conduza?
— Não, eu consigo.
— Tem certeza?
— Entra, Gabriel. Não suporto estar sozinha com ele.
Ele entrou e fechou a porta. Chiara deu meia volta e regressou à autoestrada. Um momento mais tarde estavam a ir para norte, para os Cárpatos. DEMORARAM MEIA HORA até chegar a Brno, mais uma hora para chegar a Ostrava. Gabriel abriu as portas do compartimento duas vezes para verificar Radek. Eram quase oito horas quando chegaram à fronteira polonesa. Sem verificações de segurança desta vez, sem fila de trânsito, apenas uma mão espetada fora do abrigo de tijolo acenando-lhes à passagem pela fronteira.
Gabriel rastejou para a traseira da van e puxou Radek do compartimento. Em seguida abriu uma gaveta e retirou uma seringa. Desta vez tinha uma dose moderada de estimulante, apenas o suficiente para o trazer de volta aos limites do consciente lentamente. Gabriel inseriu a seringa no braço de Radek, injetou a droga, em seguida retirou a agulha e esfregou a ferida com álcool. Os olhos de Radek abriram devagar. Observou o ambiente envolvente por um momento antes de se fixar no rosto de Gabriel.
— Allon? — murmurou ele pela máscara de oxigênio. Gabriel acenou lentamente.
— Para onde me levas? — Gabriel não respondeu. — Vou morrer? — perguntou, e, antes que Gabriel pudesse responder, voltou a ficar inconsciente.
37
POLÔNIA ORIENTAL
A BARREIRA ENTRE consciência e coma era como uma cortina de palco, pela qual ele conseguia passar à vontade. Só não sabia quantas vezes tinha passado por esta cortina. O tempo, como a sua velha vida, estavam perdidos para ele. A sua bela casa de Viena parecia a casa de outro homem, na cidade de outro homem. Algo tinha acontecido quando ele gritou o seu nome aos israelenses. Ludwig Vogel era agora um estranho para ele, um conhecido que ele já não via há muitos anos. Ele era Radek novamente. Infelizmente o tempo não tinha sido meigo com ele. O alto e belo homem de preto estava agora prisioneiro num corpo fraco e decadente.
O judeu tinha-o colocado no forro da traseira. As suas mãos e tornozelos estavam amarrados por uma grossa fita adesiva prateada, e estava amarrado com o cinto de segurança como um doente mental. Os seus pulsos serviam como o portal entre os dois mundos. Apenas tinha de os torcer num determinado ângulo para que a fita se cravasse dolorosamente na pele e passaria a cortina do mundo dos sonhos para o reino do real. Sonhos? Será apropriado chamar a tais visões sonhos? Não, eram demasiado exatas, descritivas demais. Eram memórias, sobre as quais ele não tinha controle, apenas o poder de as interromper por alguns momentos infligindo dor em si próprio com a fita adesiva do judeu.
O seu rosto estava perto da janela, e o vidro estava desobstruído. Ele era capaz, quando estava acordado, de ver a infindável região rural negra e as desoladoras vilas escurecidas. Também era capaz de ler os sinais na estrada. Não precisava dos sinais para saber onde estava. Algures, noutra vida, ele tinha sido o senhor da noite nesta terra. Ele lembrava-se desta estrada: Dachnow, Zukow, Narol... Ele sabia o nome da próxima vila, mesmo antes desta passar pela janela: Belzec...
Fechou os olhos. Porquê agora, passados tantos anos? Depois da guerra ninguém esteve assim tão interessado num mero oficial SD que servira na Ucrânia — ninguém exceto os russos, claro — e no momento em que o seu nome veio ao de cima com ligações à Solução Final, o General Gehlen tinha providenciado a sua fuga e o seu desaparecimento.
A sua antiga vida fora deixada para trás em segurança. Tinha sido perdoado por Deus e a sua Igreja e até mesmo pelos seus inimigos, que gananciosamente tiraram proveito dos seus serviços quando também eles se sentiram ameaçados pelo judaísmo-bolchevismo. Os governos rapidamente perderam o interesse em proceder contra os, assim chamados, criminosos de guerra, e amadores como Wiesenthal focaram a atenção em peixe graúdo como Eichmann e Mengele, ajudando de forma involuntária peixe mais miúdo como ele próprio a encontrar santuário em águas calmas. Houve um susto sério. Em meados dos anos setenta, um jornalista americano, um judeu, claro, que foi a Viena e colocou demasiadas questões. Na estrada que sai de Salzburg para sul ele mergulhou numa ravina, e a ameaça foi eliminada. Nessa altura agiu sem hesitar. Se tivesse lançado Max Klein numa ravina ao primeiro sinal de ameaça... Reparara nele naquele dia no Café Central, assim como nos dias que se seguiram. Os seus instintos tinham-lhe dito que Klein representava uma ameaça. Ele hesitou. Quando Klein levou a sua história ao judeu Lavon era demasiado tarde.
Passou pela cortina outra vez. Estava em Berlim, sentado no gabinete do oficial Gruppenführer Heinrich Müller, chefe da Gestapo. Müller tira um pedacinho de almoço dos dentes e sacode uma carta que acabou de receber de Luther no Ministério dos Negócios Estrangeiros. É 1942.
— Rumores das nossas atividades no Leste começaram a chegar aos ouvidos dos nossos inimigos. Também temos um problema com um dos locais na região de Warthegau. Queixas sobre uma contaminação qualquer.
— Se me permite colocar a questão óbvia, Herr Gruppenführer, que diferença faz se rumores chegam ao Oeste? Quem vai acreditar que tal coisa foi realmente possível?
— Rumores é uma coisa, Erich. Provas é outra.
— Quem vai descobrir provas? Algum servo polonês atrasado mental? Um vesgo abridor de valas ucraniano?
— Talvez os Ivans?
— Os russos? Como descobririam?
Müller ergueu uma mão de pedreiro. Discussão terminada. E então ele percebeu. A aventura russa do Führer não estava indo de acordo com os planos. A vitória no Leste já não estava assegurada.
Müller inclinou-se para a frente.
— Estou te mandando para o inferno Erich. Vou espetar essa sua cara nórdica tão fundo no esterco que nunca mais vai ver a luz do dia.
— Como poderei jamais agradecer, Herr Gruppenführer?
— Limpe a porcaria. Toda. Em toda parte. É sua responsabilidade garantir que se mantenha apenas um rumor. E quando a operação estiver concluída, quero que seja o único homem de pé.
Ele concordou. O rosto de Müller afastou-se pela noite polonesa. Estranho, não é? A sua verdadeira contribuição para a Solução Final não foi matar mas esconder e garantir a segurança, e no entanto estava com problemas agora, sessenta anos depois, por causa de um jogo idiota que fizera bêbado em Auschwitz num domingo. Aktion 1005? Sim, fora um projeto seu, mas nenhum sobrevivente judeu testemunharia sua presença na beira de uma vala comum, porque não havia sobreviventes. Ele geriu uma operação fechada. Eichmann e Himmler teriam sido aconselhados a fazer o mesmo. Foram tolos em permitir que tantos sobrevivessem.
Uma memória surgiu, janeiro de 1945, um rio de judeus frágeis dispersos ao longo de uma estrada muito parecida com esta. A estrada de Birkenau. Milhares de judeus, cada um com uma história para contar, cada um uma testemunha. Ele defendia a liquidação da população inteira do campo antes da evacuação. Não, disseram. Trabalho escravo era necessário com urgência no Reich. Trabalho? A maioria dos judeus que ele tinha visto sair de Birkenau mal conseguia andar, quanto mais manejar uma picareta ou uma pá. Eles não eram aptos para o trabalho, apenas para o massacre, e já tinha matado uns quantos, ele próprio. Por que, em nome de Deus, lhe tinham ordenado que limpasse as valas para depois permitir que milhares de testemunhas caminhassem para fora de um local como Birkenau?
Ele se esforçou por manter os olhos abertos, e observou pela janela. Estavam a conduzir ao longo das margens de um rio, perto da fronteira ucraniana. Ele conhecia este rio, um rio de cinzas, um rio de ossos.
Pensou quantas centenas de milhares estariam ali embaixo, sedimentadas no leito do Rio Bug.
Uma cidade adormecida: Uhrusk. Pensou em Peter. Ele tinha avisado que isto aconteceria.
— Se eu me tornar uma ameaça séria, posso ganhar a chancelaria — dissera Peter —, alguém vai tentar nops expor.
Ele sabia que Peter estava certo, mas também acreditava que conseguiria lidar com qualquer ameaça. Estava errado, e agora seu filho teria de enfrentar uma humilhação eleitoral inimaginável, tudo por sua culpa. Era como se os judeus tivessem levado Peter à beira de uma vala comum e apontado uma arma para sua cabeça. Ele pensou que conseguiria evitar que eles puxassem o gatilho, se conseguisse quebrar mais um acordo, engendrar uma fuga final.
E este judeu que olha fixamente para mim com aqueles rancorosos olhos verdes? O que espera ele que eu faça? Peça perdão? Vergue, chore e cuspa sentimentalismos? O que este judeu não percebe é que eu não sinto culpa pelo que fiz. Eu fui forçado pela mão de Deus e os ensinamentos da minha Igreja. Não nos disseram os padres que os judeus foram os assassinos de Deus? O Santo Padre e os seus cardeais não ficaram em silêncio quando sabiam perfeitamente o que estávamos a fazer no Leste? Será que este judeu espera que eu reprove assim sem mais nem menos e diga que foi um erro terrível? E porque olha ele para mim assim? Aqueles olhos eram-lhe familiares. Já os tinha visto em algum lado antes. Talvez fosse das drogas que lhe tinham dado. Ele não conseguia ter a certeza de nada. Ele nem tinha sequer a certeza de estar vivo. Talvez fosse a sua alma a fazer esta viagem ao longo do Rio Bug. Talvez estivesse no inferno.
Outra aldeola: Wola Uhruska. Ele conhecia a próxima vila. Sobibor...
Fechou os olhos, o veludo da cortina envolveu-o. É a Primavera de 1942, está a conduzir para fora de Kiev na estrada de Zhitomir com o comandante de uma unidade Einsatzgruppen ao lado. Estão a caminho para inspecionar uma ravina que se transformou num problema de segurança, um lugar que os ucranianos chamam Babi Yar. Quando chegam, o Sol já está a desaparecer no horizonte e está quase a anoitecer. Mesmo assim, há luz suficiente para observar o estranho fenômeno que acontece no fundo da ravina. A terra parece estar a debater-se com um ataque epiléptico. O solo tem convulsões, gás é disparado para o ar, juntamente com gêiseres de líquido pútrido. O fedor! Meu Deus, o fedor. Ele consegue cheirá-lo agora.
— Quando começou?
— Pouco depois do final do Inverno. O chão aqueceu, então os corpos aqueceram. Eles decompõem-se muito rapidamente.
— Quantos estão ali embaixo?
— Trinta e três mil judeus, alguns ciganos e prisioneiros soviéticos, assim por alto.
— Cerque a ravina inteira.
— No momento outros locais têm prioridade. Trataremos deste assim que possível.
— Que outros locais?
— Locais de que nunca ouviu falar: Birkenau, Belzec, Sobibor, Treblinka. Nosso trabalho aqui está feito. Esperam novas chegadas a qualquer momento, nos outros.
— O que vai fazer com este local?
— Abrimos as valas e queimamos os corpos, em seguida esmagamos os ossos e espalhamos os fragmentos nas florestas e nos rios.
— Queimar trinta mil cadáveres? Tentamos isso nas operações de massacre. Usamos lança-chamas, pelo amor de Deus. Cremações maciças a céu aberto não funcionam.
— Isso é porque nunca construíram uma pira em condições. Em Chelmno, eu provei que pode ser feito. Confie em mim, Kurt, um dia este local chamado Babi Yar será apenas um rumor, como os judeus que viviam aqui.
Ele torceu os pulsos. Desta vez a dor não foi suficiente para acordar. A cortina recusou-se a abrir. Permaneceu trancado numa prisão de memórias, vagueando por um rio de cinzas.
MERGULHARAM PELA noite adentro. O tempo era uma memória. A fita adesiva tinha-lhe cortado a circulação. Já não conseguia sentir as mãos e os pés. Sentia-se febrilmente quente num minuto e arrepiantemente frio no outro. Tinha a impressão de terem parado uma vez. Tinha cheirado gasolina. Estariam eles a encher o depósito? Ou seria apenas a memória de traves de caminho-de-ferro ensopadas em combustível?
Os efeitos da droga finalmente dissiparam. Ele estava agora acordado, alerta e consciente, e seguro de que não estava morto. Algo na postura do judeu lhe disse que estavam próximos do final da jornada. Tinham passado por Siedlce, depois, em Sokolow Podlaski, tinham virado para uma estrada de campo mais estreita. Dybow veio a seguir, depois Kosow Lacki. Saíram da estrada principal, para um trilho de terra batida. A van trepidava: dump-dump... dump-dump. A velha via-férrea, pensou, ainda aqui estava, claro. Seguiram o trilho até uma plataforma de abetos e bétulas e pararam um momento mais tarde num pequeno estacionamento alcatroado.
Um segundo carro entrou na clareira com os faróis apagados. Três homens saíram e aproximaram-se da van. Ele reconheceu-os. Eram os que o tinham tirado de Viena. O judeu colocou-se em cima dele e cuidadosamente cortou a fita adesiva e soltou as correias de couro.
— Venha — disse ele agradavelmente. — Vamos dar um passeio.
38
TREBLINKA, POLÔNIA
SEGUIRAM POR UM trilho por entre as árvores. Tinha começado a nevar. Os flocos caíam suavemente pelo ar tranquilo e assentavam-lhes nos ombros como cinzas de um
fogo distante. Gabriel segurava Radek pelo cotovelo. Os seus passos eram cambaleantes no início, mas em breve o sangue começou a fluir-lhe novamente aos pés e insistiu em caminhar sem o suporte de Gabriel. A sua respiração difícil gelava no ar. Cheirava a amargo e a medo.
Avançaram mais fundo para dentro da floresta. O trilho era arenoso e coberto por uma fina camada de faúlhas. Oded estava vários passos à frente, quase invisível através da queda de neve. Zalman e Navot caminhavam em formação atrás deles. Chiara tinha ficado para trás na clareira, vigiando os veículos. Fizeram uma pausa numa brecha nas árvores, de cerca de cinco metros de largura, estendendo-se pelo escuro. Gabriel iluminou-a com o foco de uma lanterna. No centro do corredor, em intervalos equidistantes, estavam várias pedras em pé. As pedras marcavam a linha da antiga vedação. Tinham chegado ao perímetro do campo. Gabriel desligou a lanterna e puxou Radek pelo cotovelo. Radek tentou resistir, mas tropeçou para a frente.
— Faça o que eu digo, Radek, e vai correr tudo bem. Não tente fugir, porque não há por onde escapar. Não vale a pena gritar por ajuda, porque ninguém vai ouvir seus gritos.
— Sente prazer em me ver com medo?
— Sinto nojo, para dizer a verdade. Não gosto nem de tocá-lo. Eu não gosto do som de sua voz.
— Então por que estamos aqui?
— Eu apenas quero que veja algumas coisas.
— Não há nada para ver aqui, Allon. Apenas um memorial polonês.
— Precisamente — Gabriel deu-lhe um puxão no cotovelo. — Venha, Radek. Mais depressa. Tem que andar mais depressa. Não temos muito tempo. Vai amanhecer em breve.
Um momento mais tarde, pararam de novo perante um caminho-de-ferro sem carris, o velho ramal que trouxera os trens da estação de Treblinka até o interior do campo. As traves tinham sido recriadas em pedra e estavam cobertas por neve recente. Seguiram os carris até o campo e pararam no sítio onde tinha estado a plataforma. Também ela estava representada em pedra.
— Lembra, Radek?
Ele ficou em silêncio, o queixo caído, a respiração áspera.
— Vá lá, Radek. Sabemos quem você é, nós sabemos o que fez. Desta vez não vai escapar. Não vale a pena entrar em jogos ou tentar negar alguma coisa. Não há tempo, a não ser que não queira salvar seu filho.
A cabeça de Radek girou lentamente. Os seus lábios comprimiram-se e o seu olhar endureceu.
— Faria mal ao meu filho?
— Na verdade, você fará por nós. Tudo o que temos a fazer é dizer ao mundo quem é o pai dele, e isso o destruirá. Foi por isso que plantou a bomba no escritório de Eli Lavon: para proteger Peter. Ninguém podia tocá-lo, não num lugar como a Áustria. A janela para você estava fechada há muito tempo. Estava seguro. A única pessoa que podia pagar um preço por seus crimes é seu filho. Foi por isso que tentou matar Eli Lavon. Foi por isso que assassinou Max Klein.
Voltou as costas a Gabriel e olhou para a escuridão.
— O que é que queres? O que queres saber?
— Conta-me como foi Radek. Eu já li sobre isso, eu vejo o memorial, mas não consigo imaginar como funcionou realmente. Como foi possível transformar em fumo um trem cheio de pessoas em apenas quarenta e cinco minutos? Quarenta e cinco minutos, porta a porta, não era disso que o staff das SS se costumava vangloriar por estes lados? Conseguiam transformar um judeu em fumo em quarenta e cinco minutos. Doze mil judeus por dia. Oitocentos mil no total.
Radek emitiu um riso fechado, um interrogador que não acreditava na afirmação do seu prisioneiro. Gabriel sentiu como se uma pedra tivesse sido posta sobre o seu coração.
— Oitocentos mil? Onde foste buscar um número desses?
— É a estimativa oficial do governo polonês.
— E espera que um bando de seres inferiores, como os poloneses, seja capaz de saber o que aconteceu nestes bosques? — A sua voz pareceu subitamente diferente, mais jovem e autoritária. — Por favor Allon, se vamos ter esta discussão, lidemos com os fatos e não com idiotice polonesa. Oitocentos mil? — Abanou a cabeça e efetivamente sorriu. Não, não foram oitocentos mil. O número real foi muito superior a isso.
UMA SÚBITA RAJADA de vento agitou as copas das árvores. Para Gabriel soou como o som dos rápidos de um rio. Radek estendeu a mão e pediu a lanterna. Gabriel hesitou.
— Não pensa que vou atacar você com isso, não?
— Eu sei de algumas coisas que fez.
— Isso foi há muito tempo.
Gabriel entregou-lhe a lanterna. Radek apontou o foco para a esquerda, iluminando um molho de árvores de folha permanente.
— Eles chamavam a esta área o campo de baixo. As casernas das SS eram ali mesmo. A vedação periférica passava mesmo por trás. Em frente, havia uma estrada alcatroada com arbustos e flores durante a Primavera e o Verão. Talvez te custe a acreditar, mas era na realidade bastante agradável. Não havia tantas árvores, claro. Plantamos as árvores depois de demolir o campo. Na altura eram apenas rebentos. Agora, estão completamente adultas, bem bonitas.
— Quantos SS?
— Normalmente cerca de quarenta. moças judias tratavam-lhes da limpeza, mas tinham polonesas para cozinhar, três moças locais que vinham das vilas em redor.
— E os ucranianos?
— Estavam aquartelados do lado oposto da estrada, em cinco casernas. A casa de Stangl era no meio, no cruzamento de duas estradas . Ele tinha um belo jardim. Foi desenhado para ele por um homem de Viena.
— Mas os recém-chegados nunca viram essa parte do campo?
— Não, não, cada parte do campo era cuidadosamente escondida da outra por vedações intercaladas com plantações de pinheiros. Quando chegavam ao campo, eles viam o que parecia ser uma normal estação de trem de campo, completa com um horário de partidas falso. Não havia partidas de Treblinka, claro. Apenas trens vazios partiam da estação.
— Havia aqui um edifício, não havia?
— Fora desenhado para parecer uma normal estação de trem, mas na realidade estava cheio de valores roubados de chegadas anteriores. Aquela seção ali era conhecida como o Largo da Estação. Ali havia o Largo da Recepção, ou o Largo da Triagem.
— Alguma vez viste a chegada dos transportes?
— Eu não tinha nada a ver com esse tipo de situação, mas sim, eu vi-os chegar.
— Havia dois procedimentos de chegada diferentes? Um para judeus da Europa Ocidental e outro para judeus do Leste?
— Sim, está correto. Os judeus da Europa Ocidental eram tratados com muita mentira e fraude. Não havia chicotes nem gritos. Era-lhes pedido educadamente que desembarcassem do trem. Pessoal médico de batas brancas estava à espera no Largo da Recepção para tratar dos doentes.
— Era tudo um estratagema, no entanto. Os velhos e os doentes eram levados e abatidos a tiro imediatamente.
Ele concordou.
— E os judeus do Leste? Como eram recebidos na plataforma?
— Eram recebidos por chicotes ucranianos.
— E depois?
Radek levantou a lanterna e apontou o foco a uma curta distância através da clareira.
— Havia uma cerca de arame farpado aqui. Para lá do arame existiam dois edifícios. Um era uma caserna para despir. No segundo edifício, judeus de trabalho cortavam o cabelo às mulheres. Quando terminavam, elas iam naquela direção. — Radek usou a lanterna para iluminar o caminho. — Havia aqui uma passagem, uma espécie de passagem de gado, com alguns metros de largura, arame farpado e ramos de pinheiro. Era conhecida como o tubo.
— Mas as SS tinham um nome especial para isso, não tinham?
Radek acenou.
— Estrada para o Paraíso.
— E onde ia dar a Estrada para o Paraiso?
Radek levantou o foco da sua luz.
— Para o campo de cima — disse. — O campo da morte.
PROSSEGUIRAM O CAMINHO até uma larga clareira polvilhada com centenas de pedregulhos, cada pedra representava uma comunidade judaica destruída em Treblinka. A pedra maior ostentava o nome Varsóvia. Gabriel olhou para lá das pedras, em direção ao céu, para leste. Começava a ganhar claridade.
— A Estrada para o Paraiso levava diretamente a um edifício de tijolo que albergava as câmaras de gás — disse Radek quebrando o silêncio. De repente parecia ansioso por falar. — Cada câmara tinha quatro metros por quatro metros. Inicialmente eram apenas três, mas em breve descobriram que precisavam de mais capacidade para satisfazer a procura. Foram acrescentadas mais dez. Um motor a gasóleo bombeava gases de monóxido de carbono para as câmaras. A asfixia demorava menos de trinta minutos. Depois disso os corpos eram retirados.
— E o que era feito com eles?
— Durante vários meses, foram enterrados ali fora, em grandes valas. Mas muito rapidamente as valas transbordaram e a decomposição dos corpos contaminou o campo.
— Foi quando chegou?
— Não de imediato. Treblinka era o quarto campo da nossa lista. Limpamos as valas de Birkenau primeiro, a seguir Belzec e Sobibor. Só chegamos a Treblinka em março de 1943. Quando eu cheguei... — a sua voz arrastou-se. — Terrível.
— O que fez?
— Abrimos as valas, claro, e retiramos os corpos.
— À mão?
Ele abanou a cabeça.
— Tínhamos uma escavadora mecânica. Acelerou bem o trabalho.
— A garra, não era assim que chamavam?
— Sim, era isso.
— E depois dos corpos serem retirados?
— Eram incinerados em grandes prateleiras de metal.
— Tinham um nome especial para as prateleiras, não tinham?
— Assadeiras — disse Radek. — Chamávamos de assadeiras.
— E depois dos corpos serem queimados?
— Esmagávamos os ossos e voltávamos a enterrá-los nas valas ou levávamos em carroças para despejar no rio Bug.
— E quando as valas antigas ficaram vazias?
— Depois disso, os corpos eram levados diretamente das câmaras de gás para as assadeiras. Funcionou assim até outubro desse ano, quando o campo foi fechado e todos os traços foram obliterados. Operou por pouco mais de um ano.
— E mesmo assim conseguiram assassinar oitocentos mil?
— Não foram oitocentos mil.
— Quantos foram então?
— Mais de um milhão. É qualquer coisa, não é? Mais de um milhão de pessoas, num lugar minúsculo como este, no meio de uma floresta polonesa.
GABRIEL TIROU A lanterna do rosto dele sacou a Beretta. Empurrou Radek com o cano. Caminharam ao longo de uma trilha, pelo campo de pedras. Zalman e Navot ficaram para trás no campo de cima. Gabriel conseguia ouvir os passos de Oded na gravilha atrás dele.
— Parabéns, Radek. Graças a você, é apenas um cemitério simbólico.
— Vai me matar agora? Não disse o que queria ouvir?
Gabriel empurrou-o pelo trilho.
— Você talvez tenha algum orgulho deste lugar, mas para nós é solo sagrado. Acha realmente que eu o poluiria com seu sangue?
— Então qual é o propósito disso? Por que me trouxe aqui?
— Você precisava ver isso mais uma vez. Visitar o local do crime para refrescar a memória e se preparar para o próximo testemunho. É assim que vai salvar seu filho da humilhação de ter tal homem na condição de pai. Vai para Israel pagar por seus crimes.
— Não foi meu crime! Eu não os matei! Eu apenas fiz o que Müller me ordenou. Eu limpei a porcaria!
— Teve sua cota de matança, Radek. Lembra do joguinho com Max Klein em Birkenau? E a marcha da morte? Também estava lá, não estava, Radek?
Radek reduziu o passo e voltou a cabeça. Gabriel deu-lhe um empurrão. Chegaram a um amplo declive retangular cheio de lascas de basalto negro, o local onde era a vala de cremação.
— Mate-me agora, maldição! Não me leve para Israel! Mate-me agora e acabe com isso. Aliás, é nisso que você é bom, não é, Allon?
— Não aqui — disse Gabriel. — Não neste lugar. Você nem sequer merece pôr os pés aqui, quanto mais morrer.
Radek caiu de joelhos defronte à vala.
— E se eu concordar em ir? Que destino me espera?
— A verdade o espera, Radek. Será posto perante o povo de Israel e confessará seus crimes. Seu papel na Aktion 1005. O massacre de prisioneiros em Birkenau. As mortes que infligiu durante a marcha da morte de Birkenau. Lembra das moças que assassinou, Radek?
Radek voltou a cabeça.
— Como é que...
Gabriel interrompeu-o.
— Não vai enfrentar julgamento por seus crimes, mas vai passar o resto da vida atrás das grades. Enquanto estiver na prisão, vai trabalhar com uma equipe de estudantes do Holocausto de Yad Vashem para compilar minuciosamente a história de Aktion 1005. Vais dizer aos que negam e aos que duvidam exatamente o que fizeste para esconder o maior caso de assassinato de massas da história. Vais dizer a verdade pela primeira vez na vida.
— Qual verdade, sua ou a minha?
— Só há uma verdade, Radek. Treblinka é a verdade.
— E o que é que eu ganho com isso?
— Mais do que mereces — disse Gabriel. — Não diremos nada sobre a ascendência duvidosa de Metzler.
— Estás disposto a aceitar um chanceler austríaco da extrema-direita para me apanhar?
— Algo me diz que Peter Metzler se vai tornar um grande amigo de Israel e dos judeus. Ele não vai querer fazer nada para nos irritar. Afinal de contas, nós teremos a chave para a sua destruição até muito depois de tu morreres.
— Como convenceste os americanos a trair-me? Chantagem, suponho: é essa a maneira judaica. Mas deve ter havido mais. Certamente juraram que nunca me dariam oportunidade de discutir a minha afiliação com a Organização Gehlen ou com a CIA. Suponho que a sua dedicação à verdade para por aí.
— Dá-me sua resposta Radek.
— Como posso confiar em ti, um judeu, que cumpras sua parte do acordo?
— Andaste a ler Der Sturmer outra vez? Vais confiar em mim porque não tens outra alternativa.
— E o que é que vai adiantar? Vai trazer de volta alguma das pessoas que aqui morreram?
— Não — concedeu Gabriel —, mas o mundo saberá a verdade, e tu vais passar os últimos anos de sua vida onde pertences. Aceita o acordo, Radek. Aceita pelo teu filho. Pensa nele como uma última fuga.
— Não ficará secreto para sempre. Um dia, a verdade sobreste caso vai vir ao de cima.
— Se calhar — disse Gabriel. — Suponho que não seja possível esconder a verdade para sempre.
A cabeça de Radek voltou-se lentamente e ele olhou para Gabriel com desdém.
— Se fosses um homem a sério, fazias tu mesmo. — Esboçou um sorriso trocista.
— Quanto à verdade, ninguém se importou enquanto este lugar estava operacional, e ninguém se vai importar agora.
Voltou-se e olhou para a vala. Gabriel guardou a Beretta no bolso e afastou-se. Oded, Zalman e Navot ficaram imóveis por trás dele no trilho. Gabriel passou por eles sem dizer uma palavra e dirigiu-se para baixo através do campo até a plataforma de caminho-de-ferro. Antes de virar para as árvores, parou por instantes para olhar sobre o ombro e viu Radek, segurando-se ao braço de Oded, pondo-se de pé devagar.
PARTE QUATRO
O prisioneiro de Abu Kabir
39
JAFFA, ISRAEL
HOUVE MUITA DISCUSSÃO sobre onde o manter cativo. Lev considerava-o um risco para a segurança e, como tal, queria mantê-lo sob custódia do Escritório. Shamron, como de costume, tomou a posição contrária, quanto mais não fosse por não querer ver os seus adorados serviços restringidos a gerir prisões. O primeiro-ministro, mesmo que a brincar, sugeriu que Radek fosse forçado a marchar para o Negev, para que os escorpiões e abutres tratassem dele. No fim, acabou por ser Gabriel a tomar a decisão. Segundo ele, para alguém como Radek, a pior punição seria a de ser tratado como um criminoso comum. Procuraram um local apropriado e concordaram em prendê-lo numa prisão policial, construída pelos ingleses durante o Mandato numa zona degradada de Jaffa, ainda hoje conhecida pelo seu nome árabe: Abu Kabir.
Passaram 72 horas para que a apreensão de Radek fosse tornada pública. O comunicado do primeiro-ministro foi conciso e propositadamente enganador. Foram tomadas muitas precauções para evitar embaraçar, sem necessidade, os austríacos. Segundo disse o primeiro-ministro, Radek foi descoberto a viver sob falsa identidade num pais não especificado. E após um período de negociações concordara vir de livre vontade para Israel. Segundo os termos do acordo, ele não seria julgado, uma vez que de acordo com a lei israelense, a única sentença possível seria a condenação à morte. Em vez disso, ele permaneceria constantemente sob a detenção do Estado e iria, de fato, dar-se como culpado dos seus crimes contra a humanidade ao trabalhar com uma equipe de historiadores em Yad Vashem e na Universidade Hebraica, com a finalidade de compilar a história definitiva da Aktion 1005.
Houve pouco rebuliço e muito menos excitação do que com a noticia que acompanhou o rapto de Eichmann. Na realidade, a noticia da captura de Radek foi sobreposta poucas horas depois pelo massacre de vinte e cinco pessoas num mercado de Jerusalém por um homem-bomba. Lev sentiu uma certa satisfação com o desenrolar dos acontecimentos, pois assim demonstrava o seu ponto de vista de que o Estado tinha mais com que se preocupar do que perseguir velhos nazistas. Começou a referir-se ao caso como "a asneira de Shamron", apesar de ele ter recuperado o seu devido nível hierárquico no serviço. Dentro do King Saul Boulevard, a captura de Radek pareceu reacender velhas fogueiras. Lev ajustou a sua postura de acordo com o estado de espirito geral mas era demasiado tarde. Todos sabiam que a prisão de Radek havia sido orquestrada pelo Memuneh e Gabriel e que Lev tinha tentado bloqueada a cada passo. O carisma de Lev junto dos soldados rasos caiu para níveis perigosamente baixos.
A pouco crível tentativa de manter secreta a identidade austríaca de Radek foi desfeita pelo vídeo da sua chegada a Abu Kabir. A imprensa de Vienna identificou rápida e corretamente o prisioneiro como sendo Ludwig Vogel, um empresário austríaco de renome. Teria ele de fato concordado deixar Viena voluntariamente? Ou teria sido, na verdade, raptado da sua residência fortificada no Primeiro Bairro? Nos dias que se seguiram, os jornais faziam alusões especulativas à sua misteriosa carreira e às suas ligações politicas. As investigações da imprensa aproximaram-se perigosamente de Peter Metzler. Renate Hoffman da Coligação para uma Áustria Melhor solicitou um inquérito oficial ao caso e sugeriu que Radek poderia ter ligações ao atentado a bomba ao Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra e à misteriosa morte de um judeu idoso chamado Max Klein. As suas exigências foram categoricamente ignoradas. O governo disse que o atentado fora obra de terroristas islâmicos. E quanto à infeliz morte de Max Klein, fora suicídio. Segundo o ministro da Justiça qualquer investigação complementar seria um desperdício de tempo.
O capítulo seguinte do caso Radek teria lugar, não em Viena, mas em Paris, onde um ex-agente do KGB com aspecto duvidoso surgiu na televisão francesa dizendo que Radek era o homem de Moscovo em Viena. Um antigo chefe de espionagem da Stasi, que se havia tornado um êxito literário na nova Alemanha, veio também reconhecer Radek.
De início, Shamron suspeitou que estas reivindicações faziam parte de uma campanha conjunta de desinformação com o fim de ilibar a CIA do vírus Radek: que era exatamente o que ele teria feito se os papéis estivessem invertidos. Depois, descobriu que, no interior da Agência, as sugestões de que Radek podia ter jogado para ambos os lados criaram algum pânico. Estavam a ser retirados arquivos dos arquivos mortos e a ser reunida à pressa uma equipe soviética de ajuda com elementos veteranos. Shamron divertia-se secretamente com a ansiedade dos seus colegas de Langley. Segundo Shamron, se se viesse a descobrir que Radek era um agente duplo seria muito justo. Adrian Carter solicitou autorização para interrogar Radek mal os historiadores tivessem terminado o seu trabalho. Shamron prometeu considerar o assunto com seriedade. O PRISIONEIRO DE Abu Kabir estava bastante alheio à tempestade criada à sua volta. A sua prisão era solitária, apesar de não ser demasiado árdua. Mantinha a cela e as roupas limpas, aceitava comida e pouco reclamava. Por muito que os guardas quisessem odiá-lo, não conseguiam. No fundo ele era um polícia e os seus carcereiros pareciam ver nele algo familiar. Tratava-os com cortesia e, como reação, era tratado com cortesia. Ele era, também, uma espécie de curiosidade. Eles haviam lido sobre homens como ele na escola e passavam à frente da sua cela a qualquer hora, apenas para o ver. Radek começou aos poucos a sentir-se como se fosse uma peça de exposição de um museu.
O seu único pedido foi o de lhe ser autorizado o acesso a um jornal todos os dias para se manter a par dos assuntos da atualidade. A questão foi levada até Shamron, que deu a sua autorização, desde que fosse um jornal israelense e não uma qualquer publicação alemã. Todas as manhãs o Jerusalém Post era-lhe entregue com a travessa do pequeno-almoço. Normalmente saltava as histórias sobre si mesmo — eram, aliás, muito incorretas — e dirigia-se diretamente à seção das notícias internacionais com a finalidade de acompanhar os desenvolvimentos das eleições austríacas.
Moshe Rivlin visitou Radek várias vezes para se preparar para o seu iminente depoimento. Foi decidido que as sessões seriam filmadas e transmitidas à noite na televisão israelense. Radek parecia estar cada vez mais agitado com a aproximação do dia da sua primeira aparição em público. Discretamente, Rivlin pediu ao chefe da prisão para manter o prisioneiro sob vigilância de suicídio. Foi plantado um guarda no corredor, junto às barras da cela de Radek. Ao princípio, Radek criou atritos com a vigilância adicional, mas passou rapidamente a apreciar a companhia.
Rivlin surgiu uma última vez na véspera da primeira sessão de depoimento de Radek. Passaram uma hora juntos; Radek estava preocupado e, pela primeira vez, nada cooperante. Rivlin arrumou os seus documentos e notas e pediu ao guarda para abrir a porta.
— Quero vê-lo — disse Radek de repente. — Pergunte se me daria a honra de me fazer uma visita. Diga-lhe que há algumas perguntas que eu quero fazer.
— Não posso prometer nada — disse Rivlin. — Não tenho ligações a...
— Pergunte, apenas — disse Radek. — O máximo que ele pode fazer é dizer não.
SHAMRON OBRIGOU Gabriel a permanecer em Israel até o primeiro dia de depoimento de Radek e Gabriel, apesar de estar ansioso por voltar a Veneza, aceitou relutante. Ele ficou no apartamento seguro perto das Portas de Zion e acordava todas as manhãs ao som dos sinos da igreja do bairro armênio. Sentava-se na sombra do terraço olhando as muralhas da Cidade Velha e desfrutava o seu tempo com café e jornais. Seguia de perto o caso Radek. Ficou contente por ver o nome de Shamron ligado à captura e não o seu. Gabriel vivia no estrangeiro, sob uma identidade falsa e não precisava que o seu verdadeiro nome fosse espalhado pela imprensa. Além disso, depois de tudo o que Shamron tinha feito pelo seu país, merecia um último dia de glória.
Conforme os dias passavam, lentamente, Gabriel percebeu que Radek parecia, cada vez mais, um estranho. Apesar de abençoado com uma memória quase fotográfica,
Gabriel lutava por se lembrar claramente da cara de Radek ou do som da sua voz. Treblinka parecia algo saído de um pesadelo. Perguntou-se se a sua mãe teria sentido o mesmo. Teria Radek permanecido nas divisões da sua memória como um convidado indesejado, ou teria ela forçado a sua memória para produzir a sua imagem na tela? Teria sido assim para todos os que se tinham cruzado com um Mal tão perfeito? Talvez assim se explicasse o silêncio que tinha dominado os sobreviventes. Talvez eles tivessem sido piedosamente libertados da dor das suas memórias, como meio de autopreservação. Uma ideia regressava-lhe constantemente ao pensamento: se, naquele dia na Polônia, Radek tivesse morto a sua mãe em vez das outras duas moças, ele nunca teria existido. Também ele começou a sentir a culpa dos sobreviventes.
Ele só tinha a certeza de uma coisa: ainda não estava pronto para esquecer. Assim, ficou contente quando um dos acólitos de Lev lhe ligou uma tarde a perguntar se ele estaria disposto a escrever uma história oficial do caso. Gabriel aceitou, desde que ele pudesse também criar uma versão não censurada dos acontecimentos, para ser guardada nos arquivos de Yad Vashem. Houve ainda alguma discussão sobre quando tal documento poderia ser tornado público. Foi então definida uma data de lançamento, quarenta anos, e Gabriel começou o trabalho.
Ele escreveu na mesa da cozinha, num computador portátil fornecido pelo Escritório. Todas as noites, trancava o computador num cofre de chão, escondido sob o sofá da sala de estar. Não tinha qualquer experiência de escrita, por isso, por instinto, fez a aproximação ao projecto como se de uma pintura se tratasse. Começou com um esboço de base, amplo e amorfo e então, lentamente, foi adicionando camadas de tinta. Usou uma paleta simples e a sua técnica de traço foi cuidada. com o passar dos dias, a cara de Radek voltou-lhe à memória com a clareza com que havia sido pintada pela mão da sua mãe.
Usualmente, trabalhava até o princípio da tarde. Depois fazia uma pausa e dava um passeio até o Hospital da Universidade de Hadassah, onde, após um mês de coma, Eli Lavon estava a mostrar sinais de querer regressar à consciência. Gabriel sentava-se junto de Lavon cerca de uma hora e falava-lhe do caso. Depois voltava ao apartamento e trabalhava até a noite.
No dia em que terminou o relatório, deixou-se ficar no Hospital até o princípio da noite e, por acaso, estava lá quando os olhos de Lavon se abriram. Lavon ficou a fixar o vazio por uns instantes; então a velha expressão inquisidora voltou-lhe ao olhar e divagou pelo ambiente desconhecido da sala do hospital até se fixar no rosto de Gabriel.
— Onde estamos? Viena?
— Jerusalém.
— O que é que estás aqui a fazer?
— Estou a trabalhar num relatório para o Escritório.
— Sobre o quê?
— Sobre a captura de um criminoso de guerra nazista chamado Erich Radek.
— Radek?
— Ele estava a viver em Viena sob o nome de Ludwig Vogel. Lavon sorriu.
— Conta-me tudo — murmurou, mas antes que Gabriel pudesse dizer uma palavra, ele já tinha adormecido outra vez.
Nessa noite, quando Gabriel voltou ao apartamento, a luz do atendedor de chamadas estava a piscar. Carregou no PLAY e a ouviu a voz de Moshe Rivlin.
— O prisioneiro de Abu Kabir quer falar com você. Eu mandava-o para o Inferno. Você é que sabe.
40
JAFFA, ISRAEL
O CENTRO DE DETENÇÕES era cercado por um alto muro cor de areia, com rolos de arame farpado no topo. Gabriel apresentou-se na entrada exterior no inicio da manhã seguinte e foi admitido sem demora. Para chegar ao interior, tinha de atravessar uma passagem vedada estreita, que lhe lembrava demasiado a Estrada para o Paraiso em Treblinka. Um guarda esperava-o na outra ponta. Silenciosamente, conduziu Gabriel pela porta de segurança e depois para uma sala de interrogatórios sem janelas, com paredes em blocos de betume. Radek estava sentado à mesa, imóvel, vestido com um terno escuro e gravata, para prestar depoimento. Estava algemado com os dedos cruzados sobre a mesa. Saudou Gabriel com um aceno de cabeça quase imperceptível, mas permaneceu sentado.
— Tire-lhe as algemas — disse Gabriel ao guarda.
— É contra as regras.
Gabriel olhou para o guarda e, pouco depois, as algemas tinham sido tiradas.
— Faz isso muito bem — disse Radek. — Isso foi mais uma artimanha psicológica sua? Está tentando demonstrar seu domínio sobre mim?
Gabriel puxou a cadeira de ferro e sentou-se.
— Não me parece que dadas as circunstâncias seja necessária uma demonstração dessas.
— Suponho que esteja certo — disse Radek. — Mesmo assim, admiro a forma como lidou com todo o caso. Eu gostaria de acreditar que teria feito as coisas assim tão bem.
— Para quem? — perguntou Gabriel. — Para os americanos, ou para os russos?
— Está se referindo às alegações feitas em Paris por aquele idiota do Belov?
— São verdadeiras?
Radek fitou Gabriel em silêncio e por breves segundos parte do velho olhar de aço regressou-lhe aos olhos azuis.
— Quando alguém esteve em jogo tanto tempo como eu estive, faz tantas alianças e envolve-se em tantas mentiras, que no fim é difícil saber onde é que a verdade e a mentira se separam.
— Belov parece ter certeza de que sabe a verdade.
— Sim, mas receio que seja apenas a certeza de um tolo. Sabe, é que Belov não estava em posição de saber a verdade. — Radek mudou de assunto. — Presumo que tenha visto os jornais desta manhã?
Gabriel acenou que sim.
— A margem de vitória dele foi maior que a esperada. Aparentemente, minha prisão teve algo a ver com isso. Os austríacos nunca gostaram de ver estranhos se metendo em seus assuntos.
— Não está se vangloriando, está?
— Claro que não — disse Radek. — Estou apenas com pena de não ter negociado com mais dureza em Treblinka. Talvez não devesse ter aceite tão facilmente. Não tenho tanta certeza de que a campanha do Peter pudesse ter descarrilhado com as revelações do meu passado.
— Há coisas que são politicamente incômodas, mesmo num pais como a Áustria
— Você nos subestima, Allon.
Gabriel deixou cair algum silêncio entre eles. Já estava a começar a arrepender-se da decisão de ter vindo.
— Moshe Rivlin disse que queria me ver — disse com desprezo. — Não tenho muito tempo.
Radek endireitou-se na cadeira.
— Estava pensando se poderia me fazer a cortesia profissional de responder a algumas perguntas.
— Isso depende das perguntas. Você e eu estamos em profissões diferentes, Radek.
— Sim — disse Radek. — Eu era um agente do serviço secreto americano e você é um assassino.
Gabriel levantou-se para ir embora. Radek levantou a mão.
— Espere — disse. — Sente-se. Por favor.
Gabriel voltou a sentar-se.
— O homem que ligou para minha casa na noite do sequestro...
— Quer dizer, de sua prisão?
Radek baixou a cabeça.
— Está bem, minha prisão. Presumo que era um impostor?
Gabriel acenou que sim.
— Ele era muito bom. Como ele conseguiu imitar Kruz tão bem?
— Não espera que eu responda a isso, Radek. — Gabriel olhou para o relógio. — Espero que não me tenha feito vir até Jaffa só para me fazeres uma pergunta.
— Não — disse Radek. — Há mais uma coisa que eu gostaria de saber. Quando estávamos em Treblinka, disse que eu tinha tomado parte na evacuação de prisioneiros de Birkenau.
Gabriel interrompeu-o. — Será que podemos deixar os eufemismos de vez, Radek? Não foi uma evacuação. Foi uma marcha da morte.
Radek manteve-se em silêncio por um momento.
— Disse também que eu tinha assassinado pessoalmente alguns prisioneiros.
— Eu sei que assassinou pelo menos duas moças — disse Gabriel. — Tenho certeza de que deve ter havido mais.
Radek fechou os olhos e acenou lentamente com a cabeça que sim.
— Houve mais — disse, distante. — Muitos mais. Lembro-me desse dia como se tivesse sido na semana passada. Eu já sabia há algum tempo que o fim estava próximo, mas ver aquela coluna de prisioneiros marchando em direção ao Reich... Foi quando eu soube que era o Götterdämmerung. Era, realmente, o Crepúsculo dos Deuses.
— E então começou a matá-los?
Ele acenou de novo.
— Eles tinham me confiado a missão de guardar seu terrível segredo e estavam deixando vários milhares de testemunhas saírem vivas de Birkenau. Deve imaginar como eu me senti.
— Não — disse Gabriel com honestidade. — Nem consigo começar a imaginar como deve ter se sentido.
— Houve uma moça — disse Radek. — Lembro-me de ter perguntado o que ela diria aos filhos sobre a guerra. Ela disse que lhes diria a verdade. Ordenei que mentisse. Ela se recusou. Matei duas outras moças e, mesmo assim, ela continuava a me desafiar. Por algum motivo, deixei-a ir. Parei de matar prisioneiros depois disso. Ao olhá-la nos olhos, percebi que não valia a pena.
Gabriel baixou os olhos e fixou as mãos para evitar morder a isca de Radek.
— Presumo que esta mulher seja sua testemunha? — perguntou Radek.
— Sim, é ela.
— É engraçado — disse Radek — mas ela tem seus olhos.
Gabriel levantou o olhar. Hesitou e depois disse: — É o que me dizem.
— É sua mãe?
Mais uma hesitação, depois a verdade.
— Diria que sinto muito — disse Radek. — Mas sei que as minhas desculpas não significam nada para você.
— Tem razão — disse Gabriel. — Não diga.
— Então foi por ela que fez isso?
— Não — disse Gabriel. — Foi por todos eles.
A porta se abriu. O guarda entrou e disse que estava na hora de seguir para Yad Vashem. Radek levantou-se devagar e esticou as mãos. Os seus olhos permaneceram firmes no rosto de Gabriel enquanto as algemas eram colocadas nos seus pulsos. Gabriel acompanhou-o até a entrada e ficou a vê-lo dirigir-se pela passagem, até a parte de trás de uma van que o esperava. Já tinha visto o suficiente. Agora só queria esquecer.
APÓS DEIXAR ABU KABIR, Gabriel foi até Safed para visitar Tziona. Almoçaram num pequeno restaurante de espetadas no Bairro dos Artistas. Ela tentou conversar com ele sobre o caso Radek, mas Gabriel, afastado da presença do assassino há apenas duas horas, não estava com disposição para discuti-lo ainda mais. Obrigou Tziona a jurar segredo quanto ao envolvimento dele no caso e depois mudou de assunto de repente.
Discutiram arte durante algum tempo, depois política e finalmente o estado da vida de Gabriel. Tziona tinha conhecimento de um apartamento vazio a apenas alguns quarteirões do dela. Era grande o suficiente para albergar um Estúdio e era abençoado com a melhor iluminação da Galileia de Cima. Gabriel prometeu pensar no assunto, mas Tziona sabia que ele estava apenas a apaziguá-la. O desconforto havia voltado aos seus olhos. Ele estava pronto para partir.
Enquanto bebiam o café, ele disse-lhe que tinha encontrado um lugar para algum do trabalho da sua mãe.
— Onde?
— O Museu da Arte do Holocausto em Yad Vashem. Os olhos de Tziona inundaram-se de lágrimas.
— Que perfeito — disse ela.
Depois do almoço subiram as escadas de pedra até o apartamento de Tziona. Ela abriu o armário e cuidadosamente retirou os quadros. Passaram uma hora a escolher vinte das melhores peças para Yad Vashem. Tziona encontrou outras duas telas mostrando a imagem de Erich Radek. Perguntou a Gabriel o que queria que ela fizesse com elas.
— Queima-as — respondeu ele.
— Mas, provavelmente, valem muito dinheiro agora.
— Não me interessa o quanto valem — disse Gabriel. — Eu nunca mais quero ver a cara dele.
Tziona ajudou-o a transportar os quadros para o carro dele. Arrancou para Jerusalém sob um céu carregado de nuvens. Dirigiu-se primeiro a Yad Vashem. O conservador recebeu os quadros e apressou-se para ir assistir ao início do depoimento de Erich Radek. como o resto do país. Gabriel conduziu pelas ruas silenciosas até o Monte das Oliveiras. Pôs uma pedra na campa da sua mãe e recitou-lhe as palavras de luto Kaddish. Fez o mesmo na campa do seu pai. Depois, dirigiu-se para o aeroporto e apanhou o voo da tarde para Roma.
41
VENEZA * VIENA
NA MANHÃ SEGUINTE, na sestière de Cannaregio, Francesco Tiepolo entrou na Igreja de San Giovanni Crisóstomo e atravessou lentamente a nave. olhou para a Capela de Saint Jerome e viu luzes acesas por detrás da lona que cobre a plataforma de trabalho. Aproximou-se lentamente, agarrou no andaime com a sua mão, grande como a pata de um urso, e abanou-o violentamente. O restaurador levantou a sua viseira de lupa e fitou-o como um gárgula.
— Bem-vindo a casa, Mário — disse Tiepolo para cirna. — Estava a começar a ficar preocupado com você. Por onde andaste?
O restaurador baixou a viseira e virou o seu olhar de volta para o Bellini.
— Tenho andado a recolher centelhas, Francesco.
A recolher centelhas. Tiepolo tinha o bom senso suficiente para não fazer mais perguntas. Apenas lhe interessava ter o restaurador finalmente de volta a Veneza. — Quanto tempo até terminares?
— Três meses — disse o restaurador. — Talvez quatro.
— Três seria melhor.
— Sim, Francesco. Eu sei que três meses seria melhor. Mas se continuas a abanar a minha plataforma, nunca mais vou acabar.
— Não estás a planejar fazer mais recados, ou estás, Mário?
— Só um — disse, com o pincel pousado em frente da tela. — Mas não vou demorar. Prometo.
— Isso é o que dizes sempre.
A ENCOMENDA CHEGOU por um estafeta motorizado à Relojoaria, no Primeiro Bairro de Viena, exatamente três semanas depois. O Relojoeiro recebeu a encomenda pessoalmente. Deixou sua assinatura nos papéis do correio e deu-lhe uma pequena gorjeta pelo incômodo. Depois, levou o embrulho para a oficina e colocou-o sobre a mesa.
O estafeta montou em sua moto e afastou-se rapidamente, reduzindo por instantes no fim da rua, apenas o suficiente para fazer sinal à mulher sentada ao volante do Renault sedã. A mulher teclou um número no celular e apertou SEND. Pouco depois, o Relojoeiro respondeu.
— Acabei de lhe enviar um relógio — disse ela. — Recebeu-o?
— Quem fala?
— Sou uma amiga de Max Klein — disse ela baixinho. — E de Eli Lavon. E de Reveka Gazit. E de Sarah Greenberg.
Ela baixou o telefone e pressionou rapidamente quatro números seguidos, virando em seguida a cabeça a tempo de ver a brilhante bola de fogo vermelha emergindo da fachada da loja do Relojoeiro.
Afastou-se da calçada, mãos trêmulas no volante e dirigiu para a Ringstrasse. Gabriel tinha abandonado sua moto e esperava-a na esquina. Ela parou o carro o tempo suficiente para ele entrar, depois virou para a larga avenida e desapareceu no trânsito da tarde. Um carro da Staatspolizei passou por eles a alta velocidade na direção contrária. Chiara manteve os olhos na estrada.
— Você está bem?
— Acho que vou vomitar.
— Sim, eu sei. Quer que eu dirija?
— Não, eu consigo.
— Devia ter me deixado enviar o sinal da detonação.
— Não queria que se sentisse responsável por mais uma morte em Viena. — Ela limpou uma lágrima da face. — Pensou neles quando ouviu a explosão? Pensou em Leah e Dani?
Ele hesitou, depois abanou a cabeça.
— Pensou em quê?
Ele chegou-se a ela e limpou-lhe outra lágrima.
— Em você, Chiara — disse ele, suavemente. — Pensei apenas em você.
NOTA DO AUTOR
Morte em Viena completa um ciclo de três romances sobrem os assuntos inacabados do Holocausto. A pilhagem de arte pelos nazistas e a colaboração de bancos suíços servem de pano de fundo para O Assassino Inglês. O papel da Igreja Católica no Holocausto e o silêncio do Papa Pio XII inspiraram O Confessor. Morte em Viena, como os seus predecessores, é vagamente baseada em fatos reais. Heinrich Gross foi de fato um médico na notória clínica de Spiegelgrund durante a guerra, e a descrição da pouco empenhada tentativa austríaca de o julgar em 2000 é inteiramente exata. Nesse mesmo ano, a Áustria foi abanada por alegações afirmando que agentes da polícia e dos serviços de segurança trabalhavam para Jörg Haider e o seu Partido da Liberdade de extrema-direita para ajudar a desacreditar críticos e oponentes políticos.
Aktion 1005 foi o verdadeiro nome de código do programa nazista para ocultar as provas do Holocausto e destruir os restos mortais de milhões de judeus. O líder da operação, um austríaco chamado Paul Blobel, foi condenado em Nuremberg pelo seu papel nos assassinatos em massa dos Einsatzgruppen e condenado à morte. Enforcou-se na prisão de Landsberg em Junho de 1951, nunca foi detalhadamente questionado sobre o seu papel como comandante da Aktion 1005.
O bispo Alois Hudal foi de fato o reitor do Pontifício Santa Maria dell'Anima e ajudou centenas de criminosos de guerra nazistas a fugir da Europa, incluindo o comandante de Treblinka, Franz Stangl. O Vaticano afirma que o bispo Hudal agia sem a aprovação ou o conhecimento do Papa ou outro agente sênior da Cúria.
A Argentina, claro, foi o destino final de milhares de criminosos de guerra procurados. É possível que um pequeno número ainda lá resida nos dias de hoje. Em 1994, o antigo oficial das SS, Erich Priebke, foi descoberto a viver livremente em Bariloche por uma equipe de reportagem da ABC. Evidentemente Priebke sentia-se tão seguro em Bariloche que, em entrevista ao correspondente da ABC, Sam Donaldson, admitiu de livre vontade o seu papel central no massacre das Grutas Ardeatinas em março de 1944. Priebke foi extraditado para Itália, julgado e condenado a prisão perpétua, embora lhe tenha sido permitido cumprir a pena em "prisão domiciliária". Durante vários anos de manobras legais e apelos, a Igreja Católica permitiu a Priebke viver num mosteiro nas imediações de Roma.
Olga Lengyel, no seu testemunho 1947, memória de uma sobrevivente em Auschwitz, escreveu: "Certamente todos aqueles cujas mãos estiveram direta, ou Indiretamente manchadas com o nosso sangue devem pagar pelos seus crimes. Menos do que isso seria um ultraje contra milhões de mortes inocentes." O seu apaixonado apelo por justiça, no entanto, passou largamente despercebido. Apenas uma minúscula percentagem daqueles que levaram a cabo a Solução Final ou tiveram um papel auxiliar ou colaboracionista enfrentaram punição pelos seus crimes. Dezenas de milhar encontraram santuário em terras estrangeiras, incluindo nos Estados Unidos; outros regressaram simplesmente a casa e prosseguiram com as suas vidas. Alguns arranjaram emprego na rede de serviços secretos do General Reinhard Gehlen patrocinada pela CIA. Que impacto tiveram homens como estes na conduta da política de relações internacionais da América durante a Guerra-Fria? A resposta talvez nunca seja inteiramente conhecida.
30
VIENA
MEIA-NOITE NO Primeiro Bairro, uma calma de morte, um silêncio que só Viena consegue produzir, um majestoso vazio. Kruz achava reconfortante. Mas o sentimento não durou muito. Era raro o velho telefonar-lhe para casa, e Kruz nunca tinha sido arrastado da cama a meio da noite para uma reunião. Duvidava que as noticias fossem boas.
Olhou para o fundo da rua e não viu nada fora do normal. Uma olhadela para o retrovisor confirmou que não tinha sido seguido. Saiu e caminhou até o portão da imponente casa de pedra do velho. No piso térreo, luzes brilhavam por trás das cortinas fechadas. No segundo piso brilhava uma única luz. Kruz tocou à campainha. Tinha a sensação de estar a ser observado, qualquer coisa imperceptível, como um bafo na nuca. Olhou por cima do ombro. Nada.
Alcançou novamente a campainha, mas antes que a pudesse pressionar, um zumbido soou e a barra da fechadura saltou para trás. Empurrou o portão e atravessou o pátio frontal. Quando chegou ao pórtico, viu a porta aberta e um homem de paletó aberto e gravata solta. Não se esforçava minimamente para esconder o coldre de couro preto que continha uma pistola Glock. Kruz não estava alarmado com a visão; ele conhecia bem o homem. Era um antigo agente da Staatspolizei chamado Klaus Halder. Tinha sido Kruz a contratá-lo para guarda-costas do velho. Halder acompanhava normalmente o velho quando este saia ou quando esperava visitas em casa. A sua presença à meia-noite não era, como o telefonema para a casa de Kruz, um bom sinal.
— Onde está ele?
Halder olhou para o chão sem dizer uma palavra. Kruz desapertou a gabardina e entrou no estúdio do velho. A parede falsa estava afastada para o lado. O pequeno elevador estilo cápsula estava à espera. Entrou e o pressionar de um botão enviou-o lentamente para baixo. As portas abriram alguns segundos mais tarde, revelando uma pequena câmara subterrânea decorada com o dourado dos gostos barrocos do velho. Os americanos tinham-na construído para ele, para que conduzisse reuniões importantes sem medo que os russos pudessem estar à escuta. Construíram também a passagem, aquela alcançável através de uma porta de aço inoxidável com uma fechadura de combinação. Kruz era uma das poucas pessoas em Viena que sabia para onde a passagem conduzia e quem tinha vivido na casa do outro lado.
O velho estava sentado numa pequena mesa, uma bebida à sua frente. Kruz percebeu que ele estava inquieto, porque estava a girar o copo, duas voltas para a direita, duas para a esquerda. Direita, direita, esquerda, esquerda. Um estranho hábito, pensou Kruz. Ameaçador como o diabo. Calculou que o velho o tivesse apanhado numa vida anterior, noutro mundo. Uma imagem formou-se na mente de Kruz: um comissário russo acorrentado a uma mesa de interrogatório, o velho sentado do outro lado, vestido de preto dos pés à cabeça, girando a sua bebida e olhando para a sua presa com aqueles olhos azuis insondáveis. Kruz sentiu o seu coração dar um solavanco. Os pobres coitados estavam provavelmente cagados de medo mesmo antes de as coisas se tornarem duras.
O velho levantou o olhar, o girar do copo parou. O seu olhar calmo fixou a camisa de Kruz. Kruz olhou para baixo e viu que tinha os botões desalinhados. Tinha-se vestido no escuro para não acordar a mulher. O velho apontou para uma cadeira vazia. Kruz arranjou a camisa e sentou-se. O girar do copo recomeçou, duas voltas para a direita, duas para a esquerda. Direita, direita, esquerda, esquerda.
Falou sem saudar ou sem introdução. Era como se estivessem a continuar uma conversa interrompida por alguém que bate à porta.
— Durante as passadas setenta e duas horas — disse o velho foram planejados dois atentados contra a vida do israelense, o primeiro em Roma, o segundo na Argentina. Infelizmente o israelense sobreviveu a ambos. Em Roma, foi aparentemente salvo pela intervenção de um colega dos serviços secretos israelenses. Na Argentina, as coisas foram mais complicadas. Há provas que sugerem o envolvimento dos americanos.
Kruz, naturalmente, tinha perguntas. Em circunstâncias normais teria segurado a língua e esperado que o velho terminasse. Agora, trinta minutos depois de ter sido retirado da cama, não mostrou nenhuma da sua normal paciência.
— O que estava o israelense a fazer na Argentina?
O rosto do velho pareceu gelar, e a sua mão ficou imóvel. Kruz tinha transposto a linha, a linha que separava o que ele sabia do passado do velho daquilo que jamais saberia. Sentiu o peito encolher debaixo da pressão do olhar fixo. Não era todos os dias que se conseguia enfurecer um homem capaz de orquestrar, em setenta e duas horas e em continentes diferentes, duas tentativas de homicídio.
— Não é necessário que saibas por que razão o israelense esteve na Argentina, ou mesmo que lá tenha estado. O que precisas de saber é que este assunto deu uma reviravolta perigosa.
O girar do copo voltou.
— Como já acreditavas, os americanos sabem tudo. A minha verdadeira identidade, o que eu fiz durante a guerra. Não havia maneira de o esconder. Éramos aliados. Trabalhamos juntos na grande cruzada contra os comunistas. No passado, sempre contei com a sua discrição, não por algum sentido de lealdade para comigo, mas por simples medo de embaraço. Eu não tenho ilusões, Manfred. Sou como uma prostituta para eles. Viraram-se para mim quando estavam sozinhos e necessitados, mas agora que a guerra-fria acabou, sou como uma mulher que eles preferiam esquecer. E se agora estão de alguma forma a cooperar com os israelenses... — deixou a frase por terminar. — Estás a ver o que quero dizer, Manfred?
Kruz acenou.
— Presumo que saibam sobre Peter?
— Eles sabem tudo. Eles têm o poder de me destruir, e ao meu filho, mas apenas se estiverem dispostos a suportar a dor de uma ferida auto-infligida. Eu costumava estar seguro de que eles nunca se virariam contra mim. Agora, já não tenho certeza.
— O que queres que eu faça?
— Mantém sob vigilância constante as embaixadas israelense e americana. Designa vigilância física a todo o pessoal dos serviços secretos. Controla os aeroportos e estações de trem. Contata, também, os teus informadores nos jornais. Eles podem recorrer à imprensa. Não quero ser apanhado desprevenido.
Kruz olhou para a mesa e viu o seu próprio reflexo na superfície polida.
— E quando o ministro me perguntar por que dedico tantos recursos aos americanos e aos israelenses? O que digo?
— Preciso lembrar o que está em jogo, Manfred? O que dirá ao ministro é problema seu. Apenas faça o que digo. Não vou deixar Peter perder estas eleições. Entendeu?
Kruz olhou para os impiedosos olhos azuis e viu mais uma vez o homem vestido de preto dos pés à cabeça. Fechou os olhos e concordou com um movimento de cabeça.
O velho levou o copo aos lábios e, antes de beber, sorriu. Era tão agradável como uma súbita racha numa placa de vidro. Alcançou o bolso de peito do casaco, exibiu um pedaço de papel, e lançou-o sobre o tampo da mesa. Kruz olhou para ele enquanto deslizava, em seguida levantou o olhar.
— O que é isto?
— É um número de telefone. Kruz não tocou no papel.
— Um número de telefone?
— Nunca se sabe o que pode resultar de uma situação destas. Poderá ser necessário recorrer à violência. É possível que eu possa não estar em condições de ordenar tais medidas. Nesse caso, Manfred, a responsabilidade cai sobre ti.
Kruz pegou no pedaço de papel e levantou-o entre os seus dois dedos indicadores.
— Se ligar para este número, quem vai atender?
O velho sorriu.
— A violência.
31
ZURIQUE
HERR CHRISTIAN ZIGERLI, coordenador de eventos especiais do Dolder Grand Hotel, era como o próprio hotel: digno e pomposo, resoluto e discreto, um homem que apreciava o seu lugar de destaque na vida porque lhe permitia olhar para os outros de cima. Era também um homem que não gostava de surpresas. Normalmente, exigia setenta e duas horas de aviso prévio para reservas especiais e conferências, mas quando a Heller Enterprises e a Systech Wireless manifestaram vontade de conduzir as negociações finais da fusão no Dolder, Herr Zigerli concordou abdicar das setenta e duas horas de previsão em troca de uma sobretaxa de quinze por cento. Ele podia ser atencioso quando queria, mas ser atencioso, como todo o resto no Dolder, tinha um preço exorbitante.
A Heller Enterprises era a licitante por isso cabia-lhe tratar das reservas: não o próprio velho Rudolf Heller, claro, mas uma vistosa assistente pessoal italiana de nome Elena. Herr Zigerli tinha tendência a formar uma ideia sobre as pessoas rapidamente. Ele dizia que qualquer outro hoteleiro que fosse bom faria o mesmo. Não gostava de italianos de uma maneira geral, e a agressiva e exigente Elena rapidamente ganhou um lugar de destaque na sua lista de clientes pouco considerados. Ela falava alto ao telefone, um crime capital segundo ele, e parecia acreditar que só por gastar grandes quantidades de dinheiro do seu patrão tinha direito a privilégios especiais. Ela parecia conhecer bem o hotel. Fato estranho, já que Herr Zigerli tinha memória de elefante e não se lembrava dela como hóspede no Dolder. As suas exigências eram minunciosamente especificas. Queria quatro suítes contiguas perto do terraço com vista para o campo de golfe e para o lago. Quando Zigerli a informou que não seria possível — duas mais duas, ou três mais uma, mas não quatro seguidas — perguntou se os hóspedes podiam ser recolocados para a acomodar. Lamento, disse o hoteleiro, mas o Dolder Grand não tem o hábito de transformar hóspedes em refugiados. Ela decidiu optar por três suítes contiguas a uma quarta mais ao fundo do corredor.
— As delegações vão chegar às duas da tarde de amanhã — disse ela. — E gostariam de um almoço de trabalho leve.
Seguiram-se mais dez minutos de discussão sobre o que constituía um "almoço de trabalho leve".
Quando o menu ficou completo, Elena atirou mais uma exigência. Ela chegaria quatro horas antes das delegações, acompanhada pelo chefe de segurança da Heller, para inspecionar os quartos. Assim que as inspeções estivessem terminadas, não seria permitida a entrada de pessoal do hotel, exceto se acompanhados pela segurança da Heller. Herr Zigerli suspirou profundamente e concordou, em seguida desligou o telefone e, com a porta do seu gabinete fechada e trancada, fez uma série de exercícios de respiração para acalmar os nervos.
A manhã das negociações amanheceu cinza e fria. Os torreões majestosos do Dolder furavam o cobertor de nevoeiro gelado, e o asfalto perfeito da entrada brilhava como granito preto polido. Herr Zigerli estava de guarda no lobby, mesmo por trás das reluzentes portas de vidro, pés à largura dos ombros, mãos de lado, preparado para a batalha. Ela vai atrasar-se, pensou. Atrasam-se sempre. Ela vai precisar de mais suites. Ela vai querer mudar o menu. Ela vai ser perfeitamente horrível.
Um Mercedes sedã preto deslizou até a entrada e parou à porta. Herr Zigerli olhou discretamente para o relógio de pulso. Precisamente dez horas. Impressionante. O paquete abriu a porta traseira e uma lustrosa bota preta emergiu — Bruno Magli, reparou Zigerli — seguido por um torneado joelho e coxa. Herr Zigerli balançou para a frente nas pontas dos pés e alisou o cabelo sobre a zona careca. Já tinha visto muitas belas mulheres pairando pela famosa entrada do Dolder Grand, mesmo assim, poucas a tinham passado com mais graça e estilo que a encantadora Elena da Heller Enterprises. Ela tinha o cabelo acastanhado, preso por um gancho na nuca, e pele da cor do mel. Os seus olhos castanhos salpicados de dourado pareciam ter ganho ainda mais brilho quando lhe apertou a mão. A sua voz, tão alta e exigente pelo telefone, era agora suave e arrebatadora, assim como o seu sotaque italiano. Ela largou-lhe a mão e voltou-se para o acompanhante pouco sorridente.
— Herr Zigerli, este é o Oskar. O Oskar é segurança.
Aparentemente, o Oskar não tinha apelido. Nem precisava, pensou Zigerli. Ele tinha a constituição de um lutador de wrestling, com cabelo ruivo claro e sardas vagas espalhadas pelas largas bochechas. Herr Zigerli, um observador treinado da condição humana, viu qualquer coisa de familiar em Oskar. Um colega de tribo, por assim dizer. Ele conseguia imaginá-lo há dois séculos atrás, nas roupas de um lenhador, caminhando pesadamente por um trilho pela Floresta Negra. Como todos os bons seguranças, Oskar deixou os olhos falarem por si, e os seus olhos disseram a Herr Zigerli que ele estava ansioso por começar o trabalho.
— Eu levo-os aos seus quartos — disse o hoteleiro. — Por favor sigam-me. Herr Zigerli decidiu levá-los pela escada em vez do elevador. Era um dos mais finos atributos do Dolder, e Oskar, o lenhador, não parecia ser do tipo que prefere esperar pelos elevadores quando há um lanço de escadas para subir. Os quartos eram no quarto piso. No patamar, Oskar estendeu a mão para receber os cartões eletrônicos.
— A partir daqui é conosco se não se importa. Não é necessário mostrar-nos o interior dos quartos. Já todos estivemos em hotéis antes.
Uma piscadela cúmplice, uma palmadinha no ombro.
— Indique-nos apenas para onde é. Ficamos bem.
De fato, ficarão, pensou Zigerli. Oskar era um homem que inspirava confiança a outros homens. Mulheres também, Zigerli suspeitou. Ponderou se a deliciosa Elena — ele já começava a pensar nela como a sua Elena — seria uma das conquistas de Oskar. Colocou os cartões eletrônicos na palma da mão de Oskar e indicou-lhes o caminho.
Herr Zigerli era um homem de muitas máximas : "Um cliente sossegado é um cliente satisfeito" estava entre as suas preferidas. E a partir daí interpretou o subsequente silêncio no quarto piso como prova que Elena e o seu amigo Oskar estavam satisfeitos com as acomodações. Isto, por sua vez, satisfazia Herr Zigerli. Ele agora gostava de fazer Elena feliz. Conforme foi continuando pelo resto da manhã, ela estava-lhe na cabeça, como o traço de essência que se lhe tinha colado à mão.
Ele encontrou-se ansioso por algum problema, alguma queixa disparatada que requeresse contato com ela. Mas não houve nada, apenas o silêncio da perfeição. Ela tinha o Oskar agora. Ela não tinha necessidade do coordenador de eventos especiais do melhor hotel da Europa. Herr Zigerli, uma vez mais, tinha feito o seu trabalho bem demais.
Não ouviu nada deles, nem os viu, até as duas da tarde quando se reuniram na recepção e formaram uma improvável comissão de boas-vindas para as delegações que chegavam. Havia agora neve a cair no pátio frontal. Zigerli acreditava que o mau tempo apenas realçava o encanto do hotel: um abrigo da tempestade, como a própria Suíça.
A primeira limusina parou na entrada e largou dois passageiros. Um era o próprio Herr Rudolf Heller, um homem baixo e velho, vestindo um dispendioso terno preto e gravata prateada. Os seus óculos ligeiramente fumados sugeriam um problema na visão; o seu passo rápido e impaciente deixava a impressão de que, apesar da idade avançada, ele era um homem capaz de cuidar de si próprio. Herr Zigerli deu-lhe as boas-vindas ao Dolder e apertou-lhe a mão. Parecia feita de pedra. Estava acompanhado pelo carrancudo Herr Keppelmann. Vinte e cinco anos mais novo que Heller, cabelo curto, grisalho nas têmporas, olhos muito verdes. Herr Zigerli já tinha visto uma boa quantidade de guarda-costas no Dolder, e Herr Keppelmann parecia encaixar no perfil. Calmo, mas vigilante, silencioso como um rato de sacristia, seguro no passo e forte. Os olhos cor de esmeralda eram serenos, mas em constante movimento. Herr Zigerli olhou para Elena e reparou que o seu olhar estava fixado em Herr Keppelmann. Talvez ele se tivesse enganado sobre Oskar. Talvez o taciturno Keppelmann fosse o homem mais sortudo do mundo.
Os americanos chegaram a seguir: Brad Cantwell e Shelby Somerset, o CEO e COO da System Communications, Inc., de Reston, Virgínia. Notava-se sofisticação que Zigerli não costumava ver em americanos. Não eram exageradamente amigáveis, nem estavam a bramir para os celulares quando entraram na recepção.
Cantwell falou alemão assim como Herr Zigerli e evitou cruzar o olhar. Somerset era o mais afável dos dois. O seu tom aristocrático, o blazer azul bastante viajado e a gravata às riscas ligeiramente amarrotada identificavam-no como um yuppie Oriental.
Herr Zigerli fez alguns comentários de boas-vindas, e depois recuou calmamente para segundo plano. Era algo que ele fazia excepcionalmente bem. Enquanto Elena conduzia o grupo em direção à escadaria, ele deslizou para seu gabinete e fechou a porta. Um impressionante grupo de homens, pensou. Ele esperava que grandes coisas saíssem deste empreendimento. O seu papel no assunto, embora menor, foi executado com precisão e competência serena. Nos dias de hoje, tais atributos tinham pouco valor, mas eram a moeda do reino miniatura de Herr Zigerli. Ele suspeitava que os homens da Heller Enterprises e System Communications provavelmente sentiam o mesmo.
NO CENTRO DE ZURIQUE, numa rua calma perto do local onde as águas verdes do Rio Limmat desaguam no lago, Konrad Becker estava a encerrar o seu banco privado por aquele dia quando o telefone na sua mesa tocou com suavidade. Tecnicamente, ainda faltavam cinco minutos para a hora de fecho, mas estava tentado a deixar o gravador atender. Backer sabia por experiência que só clientes problemáticos telefonavam tão tarde, e o seu dia já tinha sido difícil o suficiente. Em vez disso, como um bom banqueiro suíço, alcançou o receptor e levou-o à orelha sem pensar.
— Becker and Puhl.
— Konrad, é Shelby Somerset. Como é que estás?
Becker engoliu em seco. Somerset era o nome do americano da CIA: pelo menos, Somerset era como ele dizia que se chamava. Becker duvidava seriamente que fosse o seu nome verdadeiro.
— O que posso fazer por si, senhor Somerset?
— Como entrada podes deixar-te de formalismos, Konrad.
— E como prato principal?
— Podes descer a escada, ir até a Talstrasse e entrar no Mercedes que está lá à tua espera.
— E porque quereria eu fazer isso?
— Eu preciso de te ver.
— Onde é que o Mercedes me vai levar?
— A um sítio agradável, garanto-te.
— E como devo ir vestido?
— Traje executivo serve perfeitamente. E, Konrad?
— Sim, senhor Somerset?
— Não penses em armar-te em difícil. Isto é a sério. Desce a escada. Entra no carro. Estamos de olho em ti. Estamos sempre de olho em ti.
— Que reconfortante, senhor Somerset — disse o banqueiro, mas a ligação já tinha sido cortada.
VINTE MINUTOS MAIS TARDE, Herr Zigerli estava na recepção quando reparou num dos americanos, Shelby Somerset, a caminhar ansioso na parte de fora da entrada. Um momento mais tarde, um Mercedes prateado parou e uma pequena figura careca saiu do banco de trás. Mocassins indianos polidos, uma pasta à prova de choque. Um banqueiro, pensou Zigerli. Apostava o seu ordenado nisso. Somerset fez ao recém-chegado um sorriso amigável e deu uma palmada firme no ombro. O pequeno homem, apesar da calorosa recepção, parecia no entanto estar a caminhar para a sua própria execução. Mesmo assim, Herr Zigerli achou que as conversações estavam a correr bem. O homem do dinheiro tinha chegado.
— BOA TARDE, HERR BECKER. É um prazer vê-lo. Eu sou Heller. Rudolf Heller. Este é o meu sócio, senhor Keppelmann. Aquele homem ali é o nosso parceiro americano, Brad Cantwell. É obvio que você e o senhor Somerset já se conhecem. O banqueiro piscou os olhos várias vezes e depois fixou o seu pequeno olhar astuto em Shamron, como se estivesse a tentar calcular o seu valor liquido. Segurou a pasta sobre os genitais, em antecipação de um ataque iminente.
— Os meus associados e eu estamos prestes a embarcar numa joint-venture. O problema é que não conseguimos fazê-lo sem a sua ajuda. É isso que fazem os banqueiros, não é, Herr Becker? Ajudam a lançar grandes empreendimentos? Ajudam as pessoas a realizar os seus sonhos e o seu potencial?
— Depende do empreendimento, Herr Heller.
— Estou a ver — disse Shamron, sorrindo. — Por exemplo, há muitos anos atrás, um grupo de homens foi ver você. Alemães e austríacos. Queriam lançar um grande empreendimento também. Confiaram-lhe uma grande soma de dinheiro e deram-lhe o poder de transformar numa soma ainda maior. Você se saiu extraordinariamente bem. Transformou-a numa montanha de dinheiro. Presumo que se lembre desses cavalheiros? Presumo que também saiba onde conseguiram o dinheiro?
O olhar do banqueiro suíço endureceu. Tinha concluído o cálculo sobre o valor líquido de Shamron.
— É israelense, não é?
— Prefiro pensar em mim mesmo como um cidadão do mundo — respondeu Shamron. — Moro em muitos lugares, falo a língua de muitas terras. A minha lealdade, como os meus interesses financeiros, não tem fronteiras nacionais. Como suíço tenho certeza que consegue entender o meu ponto de vista.
— Eu entendo — disse Becker — mas não acredito numa palavra do que diz.
— E se eu fosse de Israel? — perguntou Shamron. — Isso teria algum impacto na sua decisão?
— Teria.
— Como?
— Não me interessam os israelenses — disse Becker prontamente. — E os judeus também.
— Lamento ouvir isso, Herr Becker, mas um homem tem direito a sua opinião, e não vou discutir isso. Nunca deixo politicagem meter-se no caminho dos negócios. Preciso de ajuda para o meu empreendimento, e você é a única pessoa que pode me ajudar.
Becker elevou o sobrolho zombeteiramente.
— Qual é exatamente a natureza deste empreendimento, Herr Heller?
— É bem simples, na verdade. Quero que me ajude a sequestrar um de seus clientes.
— Parece-me, Herr Heller, que esse empreendimento seria uma violação das leis de segredo bancário e de várias outras leis deste pais.
— Então suponho que teremos de manter seu envolvimento em segredo.
— E se eu me recusar a cooperar?
— Então serei obrigado a contar ao mundo que você é o banqueiro dos assassinos, que está sentado em dois bilhões e meio de dólares de pilhagens do Holocausto. Soltaremos os cães de caça do Congresso Judaico Mundial sobre você. Quando terminarem, você e o seu banco estarão em farrapos.
O banqueiro suíço lançou um olhar de súplica a Shelby Somerset.
— Nós tínhamos um acordo.
— Ainda temos — balbuciou o sedento americano —, mas os contornos do acordo mudaram. Seu cliente é um homem muito perigoso. Passos precisam de ser dados para neutralizá-lo. Precisamos de você, Konrad. Ajude-nos a resolver um problema. Vamos fazer o bem juntos.
O banqueiro trauteou com os dedos na pasta.
— Tem razão. Ele é um homem perigoso, e se eu ajudo a sequestrá-lo, é melhor começar a abrir a minha própria sepultura.
— Estaremos lá, Konrad. Vamos protegê-lo.
— E se os contornos do acordo mudarem novamente? Quem vai me proteger então?
Shamron intercedeu.
— Receberia cem milhões de dólares com a dispersão final da conta. Agora não haverá dispersão final da conta porque vai me entregar o dinheiro todo. Se colaborar, deixo-o ficar com metade do montante a receber. Presumo que consiga fazer a conta, Herr Becker?
— Consigo.
— Cinquenta milhões de dólares é mais do que merece, mas estou disposto a deixá-lo ficar com esse montante para ganhar a sua cooperação neste assunto. Um homem consegue comprar muita segurança com cinquenta milhões.
— Quero isso por escrito, um termo de garantia.
Shamron abanou a cabeça com desdém, como se dissesse que havia algumas coisas, e devia saber melhor que qualquer um, meu querido companheiro, que não se põe por escrito.
— O que precisa de mim? — perguntou Becker.
— Vai nos ajudar a entrar na casa dele.
— Como?
— Vai precisar vê-lo com urgência sobre um assunto qualquer da conta. Talvez alguns papéis que precisem ser assinados, alguns detalhes finais da preparação para a liquidação e dispersão dos bens.
— E assim que estiver dentro da casa?
— O seu trabalho termina. O seu novo assistente trata do resto a partir daí.
— Meu novo assistente?
Shamron olhou para Gabriel.
— Talvez seja hora de apresentar Herr Becker a seu novo parceiro.
ELE ERA UM HOMEM de muitos nomes e muitas personalidades. Herr Zigerli conhecia-o como Oskar, o chefe de segurança da Heller. O senhorio da sua morada em Paris conhecia-o como Vincent Laffont, um escritor freelancer viajante de descendência britânica que passava a maior parte do seu tempo de mala às costas. Em Londres, era conhecido como Clyde Bridges, diretor de marketing europeu de uma obscura firma de software canadiana. Em Madrid, ele era um alemão rico de alma inquieta, que preguiçava horas em cafés e bares, e viajava para aliviar o aborrecimento.
O seu nome verdadeiro era Uzi Navot. No léxico hebraico dos serviços secretos israelenses, Navot era um katsa, um operacional de campo secreto e oficial de casos.
O seu território era a Europa Ocidental. Detentor de um charme malandro, poliglota e de uma arrogância fatalista, Navot tinha penetrado células de terrorismo palestino e recrutado agentes em embaixadas árabes espalhadas pelo continente. Possuía contatos em quase todos os serviços secretos e de segurança da Europa e orientava uma vasta rede de sayanim, auxiliares voluntários recrutados em comunidades judaicas locais. Podia sempre contar com a melhor mesa na sala de grelhados do Ritz de Paris porque o maître d'hôtel era um informante pago, assim como o chefe dos serviços de limpeza.
— Konrad Becker, apresento-lhe Oskar Lange.
O banqueiro permaneceu sentado e imóvel por um longo momento, como se tivesse sido subitamente transformado em estátua. Então os seus pequenos olhos espertos pousaram em Shamron, e levantou as mãos num gesto inquisitório.
— O que devo fazer eu com ele.
— Diga-nos você. Ele é muito bom, o nosso Oskar.
— Consegue fazer-se passar por advogado?
— com a devida preparação, ele conseguia fazer-se passar pela sua mãe.
— Quanto tempo tem de durar esta charada?
— Cinco minutos, talvez menos.
— Quando se está com Ludwig Vogel, cinco minutos podem parecer uma eternidade.
— Foi o que ouvi dizer — disse Shamron.
— E o Klaus?
— Klaus?
— O guarda-costas de Vogel.
Shamron sorriu. A resistência tinha terminado. O banqueiro suíço juntara-se à equipe e jurara fidelidade à bandeira de Herr Heller e o seu nobre empreendimento.
— Ele é muito profissional — disse Becker. — Já estive na casa meia dúzia de vezes, mas ele revista-me sempre minuciosamente e pede-me para abrir a pasta. Portanto, se está a pensar levar uma arma para dentro da casa...
Shamron interrompeu-o.
— Não tencionamos levar armas para dentro da casa.
— Klaus está sempre armado.
— Tem a certeza?
— Uma Glock, penso eu. — O banqueiro deu uma palmadinha no lado esquerdo do seu peito. — Usa-a aqui. Não faz muito esforço em escondê-la.
— Um pormenor encantador, Herr Becker.
O banqueiro aceitou o elogio com uma inclinação da cabeça.
— Pormenores são a minha vida, Herr Heller.
— Perdoe a minha insolência, Herr Heller, mas como é que se rapta alguém que está protegido por um guarda-costas, se o guarda-costas está armado e o raptor não?
— Herr Vogel vai abandonar a casa voluntariamente.
— Um rapto voluntário? — o tom de Becker era incrédulo. — Que peculiar. E como é que se convence um homem a deixar-se raptar voluntariamente ?
Shamron cruzou os braços.
— Preocupe-se em levar o Oskar para dentro da casa e deixe o resto connosco.
32
MUNIQUE
NO BONITO PEQUENO bairro de Lehel em Munique havia um velho apartamento, com um portão para a rua e um bem arranjado pátio na entrada principal. O elevador era instável e indeciso, e eram mais as vezes que subiam a escada em caracol até o terceiro andar. O mobiliário tinha o anonimato de um quarto de hotel. Havia duas camas no quarto, e o sofá da sala de estar era um davenport. Na arrecadação havia quatro camas extras de abrir. A despensa estava cheia de produtos não deterioráveis e os armários continham louça e talheres para oito. As janelas da sala de estar tinham vista para a rua, mas os estores mantinham-se fechados o tempo todo, para que dentro do apartamento parecesse sempre fim de dia. Os telefones não tinham campainha. Em vez disso, estavam equipados com luzes vermelhas que piscavam para indicar que estava a tocar.
As paredes da sala de estar estavam forradas de mapas: centro de Viena, Viena metropolitana, Áustria oriental, Polônia. Na parede oposta às janelas estava pendurado um enorme mapa da Europa Central, que mostrava toda a rota de fuga, esticando-se de Viena até a costa do Báltico. Shamron e Gabriel discutiram a cor antes de decidirem pelo vermelho. À distância parecia um rio de sangue, como Shamron desejara, o rio de sangue que fluía pelas mãos de Erich Radek. Só falavam em alemão no apartamento. Shamron tinha-o decretado. Radek era referido como Radek e apenas Radek; Shamron não iria chamá-lo pelo nome que ele comprara aos americanos. Shamron decretou outras regras também. Era a operação de Gabriel, e consequentemente era um espetáculo dirigido por Gabriel. Era Gabriel, com o sotaque berlinense da sua mãe, que orientava as equipes, Gabriel que revia os relatórios de Viena, e Gabriel quem tomava todas as decisões operacionais finais.
Durante os primeiros dias, Shamron esforçou-se para se encaixar no seu papel de apoio, mas à medida que a sua confiança em Gabriel ia crescendo, descobriu ser mais fácil retirar-se para segundo plano. Ainda assim, cada agente que passava pelo apartamento seguro reparava na nuvem negra que pairava sobre ele. Parecia não dormir nunca. Ele permanecia de pé perante os mapas todo o tempo, ou sentava-se na mesa da cozinha no escuro, fumando como uma chaminé: como um homem que luta contra uma consciência pesada.
— Ele é como um doente terminal que planeia o seu próprio funeral —, assinalou Oded, um veterano agente de língua alemã que Gabriel tinha escolhido para conduzir o carro de fuga. — E se correr mal, eles gravarão isso na sua lápide, mesmo por baixo da Estrela de David.
Sob condições perfeitas, tal operação envolveria semanas de preparação. Gabriel tinha apenas dias. A operação Ira de Deus tinha-o preparado bem. Os terroristas do Setembro Negro estavam constantemente em movimento, aparecendo e desaparecendo com uma frequência de fazer enlouquecer. Quando alguém era localizado e identificado, a equipe de choque entrava em ação à velocidade da luz. Equipas de vigilância eram preparadas, veículos e apartamentos seguros eram alugados, rotas de fuga eram planejadas. O reservatório de experiência era muito útil a Gabriel em Munique. Poucos agentes secretos sabiam mais sobre planeamento rápido e ataques súbitos do que ele e Shamron.
Ao fim do dia, viam as noticias na televisão alemã. As eleições na vizinha Áustria captavam a atenção dos espectadores alemães. Metzler estava na frente. As multidões nos comícios de campanha, como a sua liderança nas sondagens, cresciam de dia para dia. A Áustria, assim parecia, estava prestes a fazer o impensável, eleger um chanceler da extrema-direita. Dentro do apartamento seguro, Gabriel e a sua equipe descobriram-se na bizarra posição de torcer pela subida de Meztler nas sondagens, pois sem Metzler, a porta para Radek estava fechada.
Invariavelmente, pouco depois das noticias, Lev revia a operação a partir de King Saul Boulevard e sujeitava Gabriel a uma fastidiosa examinação cruzada dos eventos do dia. Era a única vez que Shamron se sentia aliviado por não carregar o fardo do comando operacional. Gabriel dava voltas ao apartamento com o telefone colado à orelha, respondendo pacientemente às questões de Lev. E por vezes, se a luz estivesse correta, Shamron veria a mãe de Gabriel, caminhando ao lado dele. Ela era o único membro da equipe que nunca ninguém mencionou.
UMA VEZ POR DIA, normalmente ao fim da tarde, Gabriel e Shamron escapavam do apartamento seguro para passear nos Jardins Ingleses. A sombra de Eichmann pairava sobre eles. Gabriel reconheceu que ele estivera lá desde o inicio. Ele tinha ido a Viena naquela noite em que Max Klein contara a Gabriel a história do oficial SS que assassinara uma dúzia de prisioneiros em Birkenau e agora saboreava café todas as tardes no Café Central. Mesmo assim, Shamron tinha diligentemente evitado falar no seu nome, até agora.
Gabriel já tinha ouvido a história da captura de Eichmann muitas vezes. De fato, Shamron tinha-a contado em Setembro de 1972 para espicaçar Gabriel a juntar-se ao grupo da Ira de Deus. A versão que Shamron lhe contou durante esses passeios ao longo dos trilhos de árvores dos Jardins Ingleses era mais detalhada que qualquer outra que Gabriel tivesse escutado antes. Gabriel sabia que isto não era apenas divagação de um velho tentando reviver glórias passadas. Os editores podiam esperar sentados pelas suas memórias, Shamron não era de apregoar o seu próprio sucesso. Gabriel sabia que Shamron lhe estava a contar a história de Eichmann por uma razão. Eu já fiz a viagem que estás prestes a fazer, dizia Shamron. Noutro tempo, noutro local, na companhia de outro homem, mas há coisas que deves saber. Gabriel, por vezes, não conseguia afastar a sensação de estar a caminhar com a História.
— A parte mais difícil foi esperar pelo avião de fuga. Estávamos presos na casa segura com aquela ratazana humana. Alguns elementos da equipe não suportavam olhar para ele. Eu tinha de me sentar no seu quarto noite após noite e vigiá-lo. Ele estava acorrentado à cama de ferro vestido com um pijama e tinha óculos opacos a tapar os olhos. Estávamos estritamente proibidos de conversar com ele. Apenas o interrogador estava autorizado a falar com ele. Eu não consegui obedecer a essas ordens. Sabes, eu precisava de saber. Como é que este homem, que se enjoava ao ver sangue, matou seis milhões do meu povo? A minha mãe e o meu pai? As minhas duas irmãs? Perguntei-lhe porque o tinha feito? Ele disse-me que o tinha feito porque era o seu trabalho, o seu trabalho, Gabriel, como se ele não fosse mais que um empregado bancário ou um maquinista de trem.
E mais tarde, encostados aos balaústres de uma velha ponte sobre um ribeiro:
— Só o quis matar uma vez, Gabriel, quando ele me tentou dizer que não odiava o povo judeu, que na verdade gostava e admirava o povo judeu. Para me mostrar o quanto ele gostava de judeus, começou a recitar as nossas palavras: Shema, Yisrael, Adonai Eloheinu, Adonai Echad! Eu não conseguia ouvir aquelas palavras vindas daquela boca, a boca que tinha dado ordens para assassinar seis milhões. Cravei-lhe a mão sobre a cara até que ele se calasse. Ele começou a abanar e a ter convulsões. Pensei que lhe tinha causado um ataque de coração. Ele perguntou-me se eu o ia matar. Ele suplicou-me que não fizesse mal ao seu filho. Este homem que tinha arrancado os filhos dos braços dos pais e os tinha lançado ao fogo estava preocupado com o seu próprio filho, como se nós fossemos agir como ele, como se nós fossemos assassinar crianças.
E numa gasta mesa de madeira, numa esplanada deserta:
— Nós queríamos que ele concordasse em voltar connosco para Israel voluntariamente. Ele, claro, não queria ir. Ele queria ser julgado na Argentina ou na Alemanha. Eu disse-lhe que isso não era possível. De uma maneira ou de outra, ele ia ser julgado em Israel. Eu arrisquei a minha carreira permitindo que ele tivesse um pouco de vinho tinto e um cigarro. Eu não bebi com o assassino. Eu não podia. Assegurei-lhe que lhe seria dada a oportunidade de contar a sua versão da história, que lhe seria oferecido um julgamento apropriado com uma defesa adequada. Ele não tinha ilusões sobre o resultado, mas a noção de se poder explicar ao mundo era-lhe de alguma forma apelativa. Também apontei o fato de que ele teria a dignidade de saber que estava prestes a morrer, algo que ele negou aos milhões que marcharam para as salas de despir e para as câmaras de gás enquanto Max Klein lhes tocava serenatas. Ele assinou o papel, datou-o como um bom burocrata alemão, e estava feito.
Gabriel escutou atentamente com a gola do casaco elevada para proteger as orelhas e as mãos enfiadas nos bolsos. Shamron mudou o foco de Adolf Eichmann para Erich Radek.
— Tu tens uma vantagem porque já estiveste cara-a-cara com ele uma vez, no Café Central. Eu apenas vira Eichmann ao longe, enquanto vigiávamos a sua casa e planeávamos o rapto, mas nunca falara com ele ou mesmo estivera perto dele. Eu sabia exatamente a sua altura, mas não conseguia imaginar.
Eu tinha ideia de como a sua voz soaria, mas não é a mesma coisa. Tu conheces Radek, mas infelizmente ele também sabe muito sobre ti, também, graças a Manfred Kruz. Ele vai querer saber mais. Ele vai sentir-se exposto e vulnerável. Ele vai tentar equilibrar o jogo fazendo-te perguntas. Ele vai querer saber porque o estás a perseguir. Sob nenhuma circunstância deves envolver-te como numa conversa normal. Lembra-te, Erich Radek não era um guarda de campo ou um operador de câmara de gás. Ele era um SD, um interrogador hábil. Ele vai tentar fazer uso dessas habilidades uma última vez para evitar o seu destino. Não te deixes cair nas suas mãos. És o responsável agora. Ele vai tentar contradizer-te e abalar as tuas convicções.
Gabriel olhou para baixo, como se estivesse a ler as palavras gravadas na mesa.
— Então porque merecem Eichmann e Radek as armadilhas da justiça — disse ele finalmente — e os palestinos do Setembro Negro apenas a vingança?
— Terias dado um excelente estudante Talmud, Gabriel.
— E tu estás a fugir à minha pergunta.
— Obviamente, que houve uma medida de pura vingança na nossa decisão contra os terroristas do Setembro Negro, mas foi mais do que isso. Eles constituem uma ameaça contínua. Se não os matássemos seriam eles a matar-nos. Era guerra.
— Porque não prendê-los, levá-los a julgamento?
— Para que pudessem declamar a sua propaganda a partir de um tribunal israelense?
— Shamron abanou a cabeça lentamente. — Eles já fizeram isso — levantou a mão e apontou para a torre que se ergue no Parque Olímpico — aqui mesmo nesta cidade, em frente às câmaras de todo o mundo. Não nos competia a nós dar-lhes outra oportunidade de justificarem o massacre de inocentes.
Baixou a mão e inclinou-se sobre a mesa. Foi nessa altura que contou a Gabriel os desejos do primeiro-ministro. Enquanto conversava, a sua respiração gelava perante ele.
— Eu não quero matar um velho — disse Gabriel.
— Ele não é um velho. Ele usa as roupas de um velho e esconde-se por trás do rosto de um velho, mas ele ainda é Erich Radek, o monstro que matou uma dúzia de homens em Auschwitz porque não conseguiram identificar uma peça de Brahms. O monstro que matou duas moças à beira de uma estrada polonesa porque não quiseram negar as atrocidades de Birkenau. O monstro que abriu as campas de milhões e sujeitou os seus cadáveres a uma humilhação final. A velhice não perdoa tais pecados.
Gabriel levantou os olhos e fitou o olhar insistente de Shamron.
— Eu sei que ele é um monstro. Eu só não quero matá-lo. Eu quero que o mundo saiba o que este homem fez.
— Então é melhor preparares-te para a batalha com ele. — Shamron olhou para o seu relógio de pulso. — Mandei vir uma pessoa para te ajudar. De fato, deve estar mesmo a chegar.
— Porque só agora estou a saber disso? Pensava que era eu que tomava todas as decisões operacionais.
— E és — disse Shamron. — Mas por vezes eu tenho de mostrar o caminho. É para isso que servem os velhos.
NEM GABRIEL NEM Shamron acreditavam em prenúncios ou presságios. Se acreditassem, a operação que trouxe Moshe Rivlin de Yad Vashem até a casa segura em Munique teria lançado dúvidas sobre a capacidade da equipe para levar a cabo a tarefa que tinham pela frente.
Shamron queria que Rivlin fosse contatado discretamente. Infelizmente, King Saul Boulevard confiou o trabalho a um par de aprendizes acabados de sair da academia, ambos nitidamente de aparência sefardita. Decidiram contatar Rivlin enquanto este caminhava de Yad Vashem para o seu apartamento perto do mercado Yehuda. Rivlin, que tinha sido criado na zona de Bensonhurts no Brooklyn e ainda era vigilante quando caminhava pela rua, rapidamente notou que estava a ser seguido por dois homens de carro. Presumiu que fossem homens-bomba do Hamas ou um par de criminosos de rua. Quando o carro parou ao lado dele e os seus ocupantes pediram para falar, Rivlin desatou a correr como um louco. Para surpresa de todos, o atarracado arquivista provou ser uma presa esquiva e conseguiu escapar aos seus captores durante vários minutos até ser encurralado pelos dois agentes do Escritório na Rua Ben Yehuda.
Ele chegou ao apartamento seguro em Lehel ao fim dessa tarde, carregando duas malas cheias de material de pesquisa e irritado pela maneira como tinha sido convocado.
— Como esperam raptar um homem como Erich Radek se não conseguem apanhar um arquivista gordo? Vá lá — disse ele, puxando Gabriel para a privacidade do quarto do fundo. — Temos muito terreno para cobrir e pouco tempo para o fazer. No SÉTIMO DIA, Adrian Carter chegou a Munique. Era uma quarta-feira; chegou ao apartamento seguro ao fim da tarde, quando o crepúsculo se tornava escuro. O passaporte no bolso do seu sobretudo ainda dizia Brad Cantwell. Gabriel e Shamron tinham acabado de regressar de um passeio nos Jardins Ingleses e ainda estavam embrulhados em chapéus e cachecóis. Gabriel tinha enviado o resto dos elementos da equipe para as posições de fase final, consequentemente o apartamento seguro estava vazio de pessoal do Escritório. Apenas Rivlin permanecia. Saudou o diretor da CIA com a camisa para fora e os sapatos descalçados e disse que seu nome era Yaacov. O arquivista tinha-se adaptado bem à disciplina da operação.
Gabriel fez o chá. Carter desabotoou o casaco e conduziu-se a si próprio numa preocupada excursão pelo apartamento. Passou bastante tempo em frente aos mapas. Carter acreditava em mapas. Os mapas nunca te mentirão. Os mapas nunca te dirão o que eles acham que tu queres ouvir.
— Gosto do que fizeste com o sitio, Herr Heller. — Carter finalmente despiu o sobretudo. — Miséria neo-contemporânea. E o cheiro. Tenho certeza de que o conheço. Trazido da Wienerwald ao fundo do quarteirão, se não estou em erro. Gabriel entregou-lhe uma caneca de chá com o cordão da saqueia ainda pendente do rebordo.
— Porque estás aqui Adrian?
— Pensei em passar para ver se precisavam de ajuda.
— Tretas.
Carter sentou-se pesadamente no sofá, um vendedor no final de uma longa e improdutiva viagem pela estrada. — Verdade seja dita, estou aqui por ordem do meu diretor. Parece que ele está com um sério ataque de nervosismo. Ele sente que estamos juntos num ramo e vocês estão com a motosserra nas mãos. Ele quer que a Agência seja posta na jogada.
— E isso significa o quê?
— Ele quer saber o plano de jogo.
— Tu sabes o plano de jogo, Adrian. Eu disse-te o plano de jogo em Virginia. Não se alterou.
— Eu sei os esboços do plano — disse Carter. — Agora quero ver o quadro pronto.
— O que estás a dizer é que o teu diretor quer rever o plano e dar a palavra final.
— Algo do gênero. E quando acontecer, ele quer que eu fique na retaguarda com o Ari também.
— E se lhe dissermos para ir para o inferno?
— Eu diria que há cinquenta por cento de hipóteses de alguém sussurrar um aviso na orelha de Erich Radek, e perdem-no. Joga com o diretor, Gabriel. É a única maneira de apanhares Radek.
— Estamos prontos para agir, Adrian. Agora é a altura para sugestões úteis do sétimo andar.
Shamron sentou-se ao lado de Carter.
— Se o teu diretor tivesse dez gramas de cérebro, ficaria o mais afastado disto que conseguisse.
— Tentei explicar-lhe isso — não nesses termos, claro, mas qualquer coisa perto. Ele não tem nada disso. Ele veio da Wall Street, o nosso diretor. Ele gosta de pensar em si próprio como um individuo prático, atacante. Sempre soube o que cada divisão da companhia estava a fazer. Tenta gerir a Agência da mesma maneira. E como sabes, é também amigo do presidente. Se o chateias, ele telefona para a Casa Branca, e acaba-se.
Gabriel olhou para Shamron, que cerrava os dentes e acenava a cabeça. Carter
obteve o seu relatório. Shamron permaneceu sentado por alguns minutos, mas em breve estava de pé a percorrer a sala, como um chefe cujas receitas secretas estão a ser entregues a um concorrente do outro lado da rua. Quando terminou, Carter dispensou um longo tempo enchendo a fornilha do seu cachimbo com tabaco.
— Parece-me que os cavalheiros estão prontos — disse ele. — De que estão à espera? Se fosse vocês, punha-me em ação antes que o meu diretor que tem a palavra final decida que quer fazer parte da equipe de rapto.
Gabriel concordou. Levantou o telefone e ligou para Uzi Navot em Zurique.
33
VIENA * MUNIQUE
KLAUS HALDER BATEU suavemente na porta do estúdio. A voz do outro lado concedeu-lhe permissão para entrar. Empurrou a porta e viu o velho sentado à média luz, com os olhos fixos na tremeluzente tela de televisão: um comício de Meztler dessa tarde em Graz, estimulando multidões, a conversa já versava a composição do gabinete ministerial de Metzler. O velho desligou a televisão com o comando e virou os seus olhos azuis para o guarda-costas. Halder apontou para o telefone com o olhar. Uma luz verde piscava.
— Quem é?
— Herr Becker, de Zurique.
O velho levantou o receptor.
— Boa noite, Konrad.
— Boa noite, Herr Vogel. Peço desculpa por o incomodar tão tarde, mas o assunto não podia esperar.
— Há alguma coisa errada?
— Não, muito pelo contrário. No seguimento das recentes notícias eleitorais de Viena, decidi apressar o passo dos meus preparativos e proceder como se a vitória de Peter Metzler fosse um dado adquirido.
— Uma decisão acertada, Konrad.
— Calculei que concordasse. Tenho vários documentos que precisam da sua assinatura. Pensei que seria melhor começarmos o processo agora em vez de esperar pelo final.
— Que tipo de documentos?
— O meu advogado estará mais habilitado para os explicar do que eu. Se não se importar, eu gostaria de ir a Viena para uma reunião. Não demorará mais do que alguns minutos.
— Pode ser na sexta-feira?
— Sexta-feira está ótimo, desde que seja ao fim da tarde. Tenho um compromisso inadiável da parte da manhã.
— Podemos apontar para as quatro da tarde?
— Às cinco seria melhor para mim, Herr Vogel.
— Tudo bem, sexta às cinco.
— Vemo-nos lá.
— Konrad?
— Sim, Herr Vogel.
— Esse advogado — diga-me como se chama, por favor.
— Oskar Lange, Herr Vogel. É um homem muito competente, já fiz uso dos seus serviços em muitas ocasiões anteriores.
— Presumo que seja um tipo que compreende o significado da palavra discrição?
— Discreto, nem sequer dá para começar a descrevê-lo. Está em muito boas mãos.
— Adeus, Konrad.
O velho desligou o telefone e olhou para Halder.
— Vai trazer alguém com ele? Um aceno lento.
— Ele sempre veio sozinho no passado. Porquê trazer um ajudante de repente?
— Herr Becker está prestes a receber cem milhões de dólares, Klaus. Se há um homem no mundo em quem podemos confiar, é o gnomo de Zurique.
O guarda-costas dirigiu-se à porta.
— Klaus?
— Sim, Herr Vogel?
— Talvez tenhas razão. Telefona a alguns dos nossos amigos em Zurique. Descobre se alguém já ouviu falar de um advogado chamado Oskar Lange.
UMA HORA MAIS TARDE, uma gravação do telefonema de Becker foi enviada por transmissão segura dos escritórios da Becker & Puhl em Zurique para o apartamento seguro em Munique. Escutaram-na uma vez, depois outra, e ainda outra. Adrian Carter não gostou do que ouviu.
— Vocês sabem que assim que Radek pousar o telefone, vai fazer uma segunda chamada para Zurique para verificar o Oskar Lange. Espero que tenham pensado nisso.
Shamron parecia desapontado com Carter.
— O que acha, Adrian? Nunca fizemos este tipo de coisa antes? Somos crianças que precisam de orientação?
Enquanto esperava pela resposta, Carter chegou um fósforo ao cachimbo e puxou a fumaça.
— Já ouviu o termo sayan — disse Shamron. — Ou sayanim.
Carter acenou com o cachimbo preso entre os dentes.
— Seus pequenos ajudantes voluntários — disse. — O empregado de hotel que consegue quartos sem reserva. As locadoras que conseguem carros indetectáveis. Os médicos que tratam seus agentes quando têm ferimentos que possam suscitar perguntas difíceis. Os banqueiros que dão empréstimos de emergência.
Shamron acenou.
— Somos um pequeno serviço secreto, só mil e duzentos empregados em tempo integral. Não conseguiríamos fazer o que fazemos sem a ajuda de sayanim. Eles são uma das vantagens da diáspora, o meu exército privado de pequenos voluntários.
— E Oskar Lange?
— Ele é um advogado fiscal e imobiliário de Zurique. Por acaso também é judeu. Algo que ele não publicita em Zurique. Há alguns anos levei o Oskar a jantar a um pequeno restaurante no lago e acrescentei-o à minha lista de ajudantes. Na semana passada, pedi-lhe um favor. Eu queria usar o seu passaporte e o seu escritório e queria que ele desaparecesse por um par de semanas. Quando lhe disse porquê, ele prontificou-se a ajudar com prazer. De fato, ele próprio queria ir a Viena e capturar Radek.
— Espero que ele esteja em lugar seguro.
— Pode-se dizer que sim, Adrian. Ele está de momento num apartamento seguro em Jerusalém.
Shamron inclinou-se em direção ao leitor de fitas, carregou em REWIND, STOP e depois PLAY:
— Pode ser na sexta-feira?
— Sexta-feira está ótimo, desde que seja ao fim da tarde. Tenho um compromisso inadiável da parte da manhã.
— Podemos apontar para as quatro da tarde?
— Às cinco seria melhor para mim, Herr Vogel. .-..
— Tudo bem, sexta às cinco. " STOP.
MOSHE RIVLIN DEIXOU o apartamento seguro na manhã seguinte e regressou a Israel num voo da El Al, com um acompanhante do Escritório sentado ao seu lado. Gabriel ficou até as sete da tarde de quinta-feira, quando uma van Volkswagen com dois pares de esquis montados no teto parou em frente ao apartamento e deu duas buzinadelas.
Ele guardou a sua Beretta na parte de trás da calça. Carter desejou-lhe boa sorte; Shamron deu-lhe um beijo na cara e mandou-o descer.
Shamron abriu as cortinas e olhou para a rua escura. Gabriel apareceu no passeio e dirigiu-se à janela do condutor. Após um momento de discussão, a porta abriu e Chiara saiu. Circundou a van e foi brevemente iluminada pelos faróis da frente antes de entrar para o lugar do passageiro.
A van afastou-se da borda do passeio. Shamron acompanhou até as luzes vermelhas da traseira desaparecerem numa curva. Não se moveu. A espera. Sempre a espera.
O seu isqueiro acendeu, uma nuvem de fumaça formou-se contra o vidro.
34
ZURIQUE
KONRAD BECKER E Uzi Navot saíram dos escritórios da Becker & Puhl precisamente quatro minutos depois da uma da tarde de sexta-feira. Um vigilante do Escritório chamado Zalman, posicionado do outro lado da Talstrasse num Fiat sedã cinza, registrou a hora assim como o tempo, um aguaceiro torrencial, em seguida enviou as noticias a Shamron no apartamento seguro de Munique. Becker estava vestido para um funeral, num terno cinza de risquinhas e uma gravata cor de carvão. Navot, imitando o estilo de vestir de Oskar Lange, usava um blazer Armani com uma camisa e gravata azul elétrica a condizer. Becker tinha pedido um táxi para os levar ao aeroporto.
Shamron teria preferido um carro particular, com um motorista do Escritório, mas Becker viajava sempre de táxi para o aeroporto e Gabriel não queria que a rotina fosse quebrada. Então foi um normal táxi de cidade, conduzido por um imigrante turco, que os levou do centro de Zurique até o aeroporto Kloten por um vale enevoado, com o vigilante de Gabriel sempre a reboque.
Foram em breve confrontados com a primeira falha técnica. Uma frente fria tinha passado por Zurique, transformando a chuva em neve e gelo e obrigando as autoridades do aeroporto Kloten a suspender os voos momentaneamente. O voo 157 8 da Swiss International Airlines, com destino a Viena, embarcou a horas e depois esperou imóvel para entrar na pista. Shamron e Adrian Carter, monitorizando a situação nos computadores do apartamento seguro de Munique, debateram a próxima jogada. Deveriam dar instruções a Becker para ligar a Radek e avisá-lo do atraso? E se Radek tivesse outros planos e decidisse adiar para outra altura? As equipes e veículos estavam nas posições finais. Um cancelamento temporário poderia pôr em risco a segurança operacional. Esperar, aconselhou Shamron, e esperar foi o que fizeram.
Pelas 14h30, as condições atmosféricas melhoraram. Kloten reabriu e o voo 1578 assumiu o seu lugar na fila ao fundo da pista. Shamron fez os cálculos. O voo para Viena levava menos de noventa minutos. Se descolassem em breve, talvez chegassem a tempo a Viena.
Às 14h25 o avião estava no ar, e o azar tinha sido evitado. Shamron informou a equipe de recepção no Aeroporto Schwechat em Viena que o embrulho estava a caminho.
A tempestade sobre os Alpes fez o voo para Viena bastante mais turbulento do que Becker teria preferido. Para acalmar os nervos, consumiu três garrafinhas miniatura de Stolichnaya e visitou a casa de banho duas vezes, tudo isto foi registrado por Zalma, que estava sentado três filas atrás. Navot, o retrato da concentração e serenidade, olhava pela janela para o mar de nuvens negras, a sua água com gás intata. Aterrissaram em Schwechat poucos minutos depois das quatro da tarde sob uma luz cinza sujo. Zalman seguiu-os pelo terminal até o controle de passaportes. Becker foi mais uma vez à casa de banho. Navot, com um movimento quase imperceptível dos olhos, ordenou a Zalman que fosse com ele. Depois de se aliviar, o banqueiro passou três minutos em frente ao espelho arranjando-se, uma quantidade de tempo fora do normal, pensou Zalman, para um homem virtualmente sem cabelo. O vigilante pensou em dar a Becker um pontapé no tornozelo para o apressar, mas decidiu não o perturbar. Afinal de contas, ele era um amador a agir sob coação.
Depois de passar pelo controle de passaporte, Becker e Navot dirigiram-se ao terminal de chegadas. Aí, entre a multidão, estava um especialista em vigilância, alto e magro chamado Mordecai. Vestia um desleixado terno preto e segurava um cartão onde se lia BAUER. O seu carro, um grande Mercedes sedã, estava à espera no estacionamento de curta duração. A dois lugares de distância estava um Audi comercial de três portas prateado. As chaves estavam no bolso de Zalman.
Zalman evitou aproximar-se deles durante a viagem de carro até Viena. Ligou para o apartamento seguro de Munique e, em poucas palavras, cuidadosamente escolhidas, informou Shamron que Navot e Becker estavam dentro do horário e procediam em direção ao alvo. Pelas 16h45, Mordecai chegou ao Canal do Danúbio. Pelas 16h50 atravessou a linha em direção ao Primeiro Bairro e estava no trânsito de hora de ponta ao longo da Ringstrasse. Virou à direita, para uma rua de pedra estreita, e logo na primeira à esquerda. Um momento mais tarde, parou em frente ao portão de ferro ornamentado de Erich Radek. Zalman ultrapassou pela esquerda e continuou a conduzir.
— FAZ SINAL DE LUZES — disse Becker — e o guarda-costas deixa entrar.
Mordecai seguiu a instrução. Durante breves segundos de tensão, o portão manteve-se imóvel; então ouviu-se um bater metálico agudo, seguido do zumbido de um motor.
Enquanto o portão abria lentamente, o guarda-costas de Radek apareceu na porta da frente, a luz intensa do candelabro brilhava sobre a sua cabeça e ombros como uma auréola. Mordecai esperou até o portão estar completamente aberto e avançou para a entrada em forma de ferradura.
Navot saiu primeiro, depois Becker. O banqueiro apertou a mão do guarda-costas e apresentou:
— O meu associado de Zurique, Herr Oskar Lange. O guarda-costas acenou e convidou-os a entrar com um gesto. A porta da frente fechou-se.
Mordecai olhou para o relógio: 16h58. Pegou no celular e ligou um número de Viena. — Vou chegar tarde para jantar — disse.
— Está tudo bem?
— Sim — disse ele. — Está tudo bem.
ALGUNS SEGUNDOS MAIS TARDE, em Munique, o sinal chegou à tela do computador de Shamron. Shamron olhou para o relógio.
— Quanto tempo lhes vais dar? — perguntou Carter.
— Cinco minutos — disse Shamron — e nem um segundo a mais.
O AUDI SEDÃ PRETO com uma antena alta montada na bagageira estava estacionado a algumas ruas de distância. Zalman estacionou atrás, saiu e caminhou até a porta do passageiro. Oded estava sentado ao volante, um homem compacto com olhos castanhos claros e um nariz achatado de pugilista. Zalman, enquanto se instalava ao seu lado, conseguia cheirar tensão na sua respiração. Zalman tinha a vantagem de ter estado em atividade toda a tarde; Oded tinha estado preso no apartamento seguro de Viena sem nada para fazer exceto imaginar as consequências de um fracasso. Um celular estava no assento, a ligação com Munique já estava estabelecida. Zalman conseguia ouvir a respiração uniforme de Shamron. Uma imagem formou-se na sua mente: uma versão mais jovem de Shamron marchando na sua direção sob uma chuva torrencial na Argentina, Eichmann descendo de um ônibus e caminhando para ele vindo da direção oposta. Oded ligou o carro. Zalman foi arrastado de volta ao presente. Olhou para o relógio no painel de instrumentos: 17:03...
A E461, MAIS conhecida pelos austríacos como a Brünnerstrasse, é uma estrada de duas faixas que vem do Norte de Viena e atravessa as onduladas colinas do Weinviertel, a região de vinhos austríaca. São oitenta quilômetros até a fronteira checa. Há uma passagem-de-nível, abrigada por um dossel em abóbada, chefiada por dois relutantes guardas em abandonar o conforto do seu abrigo de alumínio e vidro para levar a cabo qualquer inspeção dos veículos que passam. Do lado checo da passagem-de-nível, a inspeção de documentos de viagem leva normalmente um pouco mais de tempo, embora o tráfego vindo da Áustria seja normalmente recebido de braços abertos. A um quilômetro e meio para lá da fronteira, ancorada nas colinas da Morávia do Sul, fica a antiga cidade de Mikulov. É uma cidade fronteiriça, com as caraterísticas de cerco de uma cidade fronteiriça. E ajustava-se perfeitamente ao estado de espírito de Gabriel. Ele estava por trás de um parapeito de tijolo de um castelo medieval, bem por cima dos telhados de telha vermelha da velha cidade, por baixo de um par de pinheiros dobrados pelo vento. A chuva fria caía como lágrimas na superfície da sua gabardina de oleado. O seu olhar estendia-se colina abaixo, em direção à fronteira. Na escuridão, apenas as luzes do tráfego na autoestrada eram visíveis, luzes brancas surgindo na sua direção, luzes vermelhas afastando-se na direção da fronteira austríaca.
Olhou para o relógio. Eles estariam dentro da casa de Radek neste instante. Gabriel conseguia imaginar pastas abrindo-se, café e bebidas sendo servidas. E então outra imagem apareceu, uma fila de mulheres vestidas de cinza, caminhando ao longo de uma estrada com neve e ensopada de sangue. A sua mãe, vertendo lágrimas de gelo.
— O que vai dizer a seu filho sobre a guerra, judia?
— A verdade, Herr Sturmbannführer. Direi ao meu filho a verdade.
— Ninguém vai acreditar em você.
Ela não lhe disse a verdade, claro. Em vez disso tinha confiado a verdade ao papel e trancado nos arquivos de Yad Vashem. Talvez Yad Vasehm fosse o local ideal para ela. Talvez existam verdades que, de tão aterradoras, fiquem melhor se confinadas num arquivo de horrores, em quarentena, separadas das não infectadas. Ela não pôde contar que fora vítima de Radek, como Gabriel não podia dizer que era o carrasco de Shamron. Ela sempre soube, no entanto.
Ela conhecia o rosto da morte, e ela tinha visto a morte nos olhos de Gabriel. O telefone no bolso de seu casaco vibrou silenciosamente contra a anca. Ele levou-o lentamente à orelha e ouviu a voz de Shamron. Guardou o telefone no bolso e deixou-se estar por um momento, observando os faróis flutuando na sua direção através da negra planície austríaca.
— O que vai dizer quando estiver com ele? — perguntara Chiara.
A verdade, Gabriel pensava agora. Eu direi a verdade.
Começou a caminhada, descendo as estreitas ruas de pedra de uma cidade antiga, em direção ao escuro.
35
VIENA
UZI NAVOT SABIA como revistar uma pessoa. Klaus Halder era muito bom no seu trabalho. Começou no colarinho da camisa de Navot e terminou nos canhões das suas calças
Armani. Em seguida virou a atenção para a pasta. Trabalhou lentamente, como um homem com todo o tempo do mundo, e com uma atenção de monge para todos os detalhes. Quando a revista terminou finalmente, ele ajeitou o conteúdo com cuidado e colocou os trincos de volta no sítio.
— Herr Vogel vai vê-los agora — disse. — Sigam-me, por favor. Caminharam pelo corredor central, depois passaram por um par de portas duplas e entraram numa sala de visitas. Erich Radek, num casaco de linho grosso e gravata cor de ferrugem, estava sentado perto da lareira. Acolheu os convidados com um simples aceno da sua alongada cabeça, mas não se esforçou por levantar-se. Radek, pensou Navot, é um homem que costuma receber visitas sentado.
O guarda-costas deslizou suavemente para fora da sala e fechou as portas.
Becker, sorrindo, aproximou-se e apertou a mão de Radek. Navot não desejava tocar no assassino, mas dadas as circunstâncias não tinha outra escolha. A mão oferecida era fria e seca, o aperto firme e sem tremor. Era um aperto de mão para o testar. Navot sentia que tinha passado.
Radek estalou os dedos em direção às cadeiras vazias, em seguida a sua mão voltou para o apoio de copo no braço da cadeira. Começou a girá-lo para a frente e para trás, duas voltas para a direita, duas para a esquerda. Havia qualquer coisa no movimento que fazia azia ao estômago de Navot.
— Ouvi coisas muito boas sobre o seu trabalho, Herr Lange disse Radek subitamente. — Tem uma excelente reputação perante os seus colegas em Zurique.
— É tudo mentira, asseguro-lhe, Herr Vogel.
— É muito modesto. — Girou a bebida. — Você fez um trabalho para um amigo meu há alguns anos, um cavalheiro chamado Helmut Schneider.
E tu estás a tentar armadilhar-me, pensou Navot. Ele tinha-se preparado para um estratagema destes. O verdadeiro Oskar Lange tinha-lhe fornecido uma lista de clientes dos últimos dez anos para Navot memorizar. O nome Helmut Schneider não estava nela.
— Lidei com um bom número de clientes durante os últimos anos, mas temo que o nome Schneider não esteja entre eles. Talvez o seu amigo me tenha confundido com outra pessoa.
Navot olhou para baixo, abriu os trincos da sua pasta e levantou a tampa. Quando voltou a levantar o olhar, os olhos azuis de Radek estavam perfurantes nos seus e a sua bebida rodava no braço da cadeira. Havia uma tranquilidade assustadora nos seus olhos. Era como estar a ser estudado por um retrato.
— Talvez tenha razão. — O tom conciliatório de Radek não condizia com a sua expressão. — Konrad disse que precisava da minha assinatura nalguns documentos relacionados com a liquidação dos bens da conta.
— Sim, está correto.
Navot retirou um dossier da pasta e colocou a pasta no chão aos seus pés. Radek acompanhou a viagem da pasta para baixo e devolveu o seu olhar ao rosto de Navot. Navot levantou a capa do dossier e elevou o olhar. Abriu a boca para falar, mas foi interrompido pelo tocar do telefone. Agudo e eletrônico, soou aos ouvidos sensíveis de Navot como um grito num cemitério. Navot olhou para a mesa estilo Biedermeier, e o telefone tocou uma segunda vez. Começou a tocar uma terceira vez, mas ficou subitamente em silêncio, como se tivesse sido amordaçado a meio do grito. Navot conseguia ouvir Halder, o guarda-costas, falando numa extensão do corredor.
— Boa tarde. .. Não, peço desculpa, mas Herr Vogel está neste momento em reunião. Navot retirou o primeiro documento do dossier. Radek estava agora visivelmente distraído, o seu olhar distante. Estava a ouvir o som da voz do seu guarda-costas. Navot chegou-se à frente na cadeira e segurou o papel num ângulo que permitisse a Radek ver.
— Este é o primeiro documento que necessita...
Radek levantou a mão exigindo silêncio. Navot ouviu passadas no corredor, seguido do som de portas a abrir. O guarda-costas entrou na sala e dirigiu-se à beira de Radek.
— É Manfred Kruz — disse ele num sussurro capelista. — Ele quer-lhe dar uma palavra. Diz que é urgente e não pode esperar.
ERICH RADEK LEVANTOU-SE lentamente da cadeira e caminhou para o telefone.
— O que se passa Manfred?
— Os israelenses.
— Que têm eles?
— Tenho informações que indicam que um grande grupo de operacionais se reuniu em Viena nestes dias para te raptar.
— Essas informações estão confirmadas?
— Suficientemente confirmadas para concluir que já não é seguro permanecer em casa. Destaquei uma unidade da Staatspolizei para te apanhar e levar-te para um local seguro.
— Ninguém consegue entrar aqui Manfred. Limita-te a pôr um guarda armado fora da casa.
— Estamos a lidar com os israelenses, Herr Vogel. Eu quero-o fora da casa.
— Está bem, se insistes, mas diz à tua unidade para recuar. Klaus dá conta do recado.
— Um guarda-costas não é suficiente. Eu sou responsável pela sua segurança e quero-o sob proteção policial. Lamento, mas tenho de insistir. As informações que tenho são muito específicas.
— Quando é que os teus agentes chegam aqui?
— A qualquer momento. Prepare-se para sair.
Desligou o telefone e olhou para os dois homens sentados junto à lareira.
— Peço desculpas, cavalheiros, mas estou com muita pressa, é uma emergência. Temos de terminar isto em outra hora. — Voltou-se para seu guarda-costas.
— Abra os portões Klaus e arranje-me um casaco. Já.
OS MOTORES DO portão frontal funcionaram. Mordecai, sentado ao volante do Mercedes, olhou pelo espelho retrovisor e viu um carro entrar vindo da rua com uma sirene azul rodopiando no teto. Parou atrás dele e travou a fundo. Dois homens saíram e escalaram os degraus da frente. Mordecai lentamente ligou a ignição.
ERICH RADEK FOI para o corredor. Navot arrumou a sua pasta e levantou-se. Becker ficou congelado no lugar. Navot cravou os dedos por baixo do braço do banqueiro e levantou-o.
Seguiram Radek até o corredor. Luzes de emergência azuis piscavam pelas paredes e teto. Radek estava junto ao seu guarda-costas, falando-lhe baixo ao ouvido. O guarda-costas segurava um sobretudo e parecia tenso. Enquanto ajudava Radek a vestir o casaco, os seus olhos estavam em Navot.
Alguém bateu à porta, dois estrondos agudos ecoaram pelo teto alto e chão de mármore do corredor. O guarda-costas largou o sobretudo de Radek e rodou o trinco. Dois homens à paisana empurraram e entraram na casa.
— Está pronto Herr Vogel?
Radek acenou, em seguida voltou-se e olhou uma vez mais para Navot e Becker.
— Mais uma vez, por favor aceitem as minhas desculpas, cavalheiros. Peço imensa desculpa pelo incômodo.
Radek voltou-se na direção da porta com Klaus ao seu lado. Um dos agentes travou o caminho ao guarda-costas colocando-lhe uma mão no peito. O guarda-costas afastou-a com uma pancada.
— O que pensa que está fazendo?
— Herr Kruz deu-nos instruções especificas. Só devemos levar Herr Vogel sob proteção.
— Kruz nunca teria dado uma ordem dessas. Ele sabe que eu vou onde quer que ele vá. Foi sempre assim.
— Lamento, mas essas são as nossas ordens.
— Deixe-me ver o seu distintivo e a sua identificação.
— Não há tempo. Por favor, Herr Vogel. Venha connosco.
O guarda-costas recuou um passo e meteu a mão dentro do casaco. Conforme a arma ficou à vista, Navot lançou-se para a frente. com a mão esquerda, agarrou o pulso do guarda-costas e encostou-lhe a arma contra o abdômen. com a direita, deu-lhe dois fortes golpes de mão aberta na nuca. O primeiro atordoou Halder; o segundo fez os seus joelhos cederem. A sua mão relaxou e a Glock caiu no chão de mármore. Radek olhou para a arma e por um instante pensou em apanhá-la. Em vez disso, voltou-se, precipitou-se para a porta aberta do seu estúdio e fechou-a com um estrondo.
Navot tentou a maçaneta. Trancada.
Deu uns passos atrás e lançou o ombro contra a porta. A porta desfez-se e ele tropeçou para dentro da sala escura. Levantou-se cambaleante e viu que Radek já tinha fugido através da falsa frente de uma estante de livros e estava dentro de um pequeno elevador do tamanho de uma cabine telefônica.
Navot saltou para a frente enquanto a porta do elevador começou a fechar. Conseguiu enfiar os dois braços para dentro e agarrou Radek pela lapela do sobretudo. Quando a porta bateu contra o ombro esquerdo de Navot, Radek agarrou-lhe os pulsos e tentou libertar-se. Navot segurou firmemente.
Oded e Zalman vieram em seu auxilio. Zalman, o mais alto dos dois, alcançou por cima da cabeça de Navot e puxou a porta. Oded deslizando por entre as pernas de Navot aplicou pressão por baixo. Perante a investida, a porta finalmente deslizou e abriu.
Navot arrastou Radek para fora do elevador. Já não havia tempo para subterfúgios ou enganos. Navot tapou a boca do velho com a mão, Zalman segurou-lhe as pernas e levantou-o do chão. Oded encontrou o interruptor e apagou a luz.
Navot olhou para Becker.
— Entre no carro. Depressa, idiota.
Arrastaram Radek degraus abaixo em direção ao Audi. Radek puxava a mão de Navot, tentando libertar-se do tampão na boca e esperneava. Navot conseguia ouvir Zalman resmungar entre dentes. De alguma forma, mesmo no calor da batalha, ele conseguia resmungar em alemão.
Oded abriu a porta de trás antes de dar a volta e correr para o volante.
Navot empurrou primeiro a cabeça de Radek para o fundo e colou-o ao assento.
Zalman forçou sua entrada e fechou a porta. Becker entrou na parte de trás do Mercedes. Mordecai acelerou fundo, e o carro guinou para a rua, o Audi seguindo de perto.
O corpo de Radek ficou subitamente quieto. Navot retirou a mão e o austríaco sorveu ofegante o ar.
— Está me machucando — disse. — Não consigo respirar.
— Eu deixo você se levantar, mas tem que prometer que se comporta bem. Não vai haver mais tentativas de fuga. Promete?
— Deixe eu me levantar. Está me esmagando, estúpido.
— Eu deixo, velho. Faça apenas um favor primeiro. Diga seu nome, por favor.
— Sabe meu nome. É Vogel. Ludwig Vogel.
— Não, não, esse nome não. Seu nome verdadeiro.
— Esse é o meu nome verdadeiro.
— Quer se levantar e deixar Viena como um homem, ou vou ter de ir sentado em cima de você o tempo todo?
— Eu quero me sentar. Está me machucando, maldição!
— Diga apenas seu nome.
Ficou em silêncio por um momento; então murmurou:
— Meu nome é Radek.
— Desculpe, mas não consegui ouvir. Pode dizer seu nome outra vez, por favor? Desta vez alto.
Inspirou profundamente e o seu corpo ficou rígido, como se estivesse em sentido em vez de deitado no banco de trás de um carro.
— MEU NOME É STURMBANNFÜHRER ERICH RADEK!
NO APARTAMENTO SEGURO de Munique, a mensagem apareceu na tela do computador de Shamron: O EMBRULHO FOI RECEBIDO. Carter deu-lhe uma palmada nas costas.
— Raios me partam! Eles o pegaram. Eles o pegaram mesmo.
Shamron levantou-se e caminhou até o mapa.
— Pegá-lo foi a parte mais fácil da operação, Adrian. Tirá-lo de lá vai ser outra história.
Olhou para o mapa. Oitenta quilômetros até a fronteira tcheca. Corra, Oded, pensou ele. Dirija como nunca dirigiu em sua vida.
36
VIENA
ODED JÁ TINHA guiado por aquela estrada uma dúzia de vezes, mas nunca como esta, nunca com a sirene a gritar e a rodopiar no teto, e nunca com os olhos de Erich Radek fitando os seus pelo retrovisor. A retirada do centro da cidade tinha corrido melhor do que esperado. O tráfego de fim de tarde era intenso, mas não ao ponto de não se conseguir desviar para dar passagem ao barulho e à luz da sua sirene. Radek amotinou-se duas vezes. Cada insurreição foi implacavelmente dominada por Navot e Zalman.
Circulavam agora em direção a norte pela E461. O tráfego de Viena tinha ficado para trás, a chuva caía continuamente e gelava nos cantos do para-brisas. Uma tabuleta passou de repente: REPÚBLICA CHECA 42 KM. Navot olhou prolongadamente sobre o ombro, então, em hebraico, instruiu Oded para desligar a sirene.
— Para onde vamos? — perguntou Radek respirando com dificuldade. — Para onde me estão a levar? Onde?
Navot não disse nada, como Gabriel tinha ordenado.
— Deixem-no fazer perguntas até ficar com a cara azul — Gabriel tinha dito.
— Simplesmente não lhe deem a satisfação de uma resposta. Deixem a incerteza afligir-lhe a mente. Era isso que ele faria se os papéis estivessem invertidos. Então Navot observou as povoações que passavam pela janela Mistelbach, Wilfersdorf, Erdberg — e pensou apenas numa coisa, o guarda-costas que ele tinha deixado inconsciente no corredor da entrada da casa de Radek em Stöbbergasse.
Poysdorf apareceu perante eles. Oded acelerou pela vila, em seguida virou para uma estrada de duas faixas e seguiu-a em direção a leste por entre pinheiros cobertos de neve.
— Para onde vamos? Para onde me estão a levar?
Navot já não conseguia suportar mais as suas perguntas em silêncio.
— Vamos para casa — disse de repente. — E tu vens connosco. Radek traçou um sorriso gelado.
— Cometeste apenas um erro esta noite, Herr Lange. Devias ter morto o meu guarda-costas quando tiveste oportunidade.
KLAUS HALDER ABRIU um olho, em seguida o outro. A escuridão era absoluta. Deixou-se estar deitado imóvel por um momento tentando determinar a posição do seu corpo. Tinha caído para a frente, com os braços para os lados, e a sua face direita estava pressionada contra o mármore frio. Tentou levantar a cabeça, um relâmpago de dor lancinante abateu-se-lhe sobre o pescoço. Lembrou-se então do instante em que tinha acontecido. Estava a tentar alcançar a arma quando levou duas pancadas por trás. Fora o advogado de Zurique, Oskar Lange. Obviamente que Lange não era um simples advogado. Ele estava a tramar alguma, como Halder temia desde o início.
Colocou-se de joelhos e sentou-se encostado à parede. Fechou os olhos e esperou que a sala parasse de girar, então esfregou a parte de trás da cabeça. Tinha um inchaço do tamanho de uma maçã. Ergueu o pulso esquerdo e lançou um olhar ao painel luminoso do seu relógio de pulso: 17:57. Quando tinha acontecido? Poucos minutos depois das cinco, 17h10 no máximo. A não ser que tivessem um helicóptero à espera na Stephansplatz, o mais certo era ainda estarem na Áustria.
Apalpou o bolso da frente do seu casaco esportivo e descobriu que o celular ainda lá estava. Tirou-o e ligou. Dois toques. Uma voz familiar.
— Aqui Kruz.
TRINTA SEGUNDOS MAIS TARDE, Manfred Kruz bateu com o telefone e avaliou suas opções. A resposta mais óbvia seria fazer soar o alarme e alertar todas as unidades policiais do país que o velho fora sequestrado por agentes israelenses, fechar as fronteiras e os aeroportos. Óbvia, sim, mas muito perigosa. Uma jogada dessas iria levantar muitas questões desconfortáveis. Porque foi Herr Vogel raptado? Quem é ele realmente? A candidatura de Peter Metzler seria esquadrinhada, assim como a carreira de Kruz. Mesmo na Áustria, tais assuntos assumiam vida própria, e Kruz tinha visto muitos para saber que o inquérito não terminaria à porta de Vogel.
Os israelenses sabiam que ele ficaria incapacitado, e tinham escolhido bem o momento. Kruz tinha de pensar numa maneira sutil de intervir, alguma maneira de impedir os israelenses sem destruir tudo no processo. Alcançou o telefone e marcou.
— Daqui Kruz. Os americanos informaram-nos que um possível grupo da al-Qaeda está em trânsito de automóvel pelo país esta tarde. Eles suspeitam que os membros da al-Qaeda possam estar a viajar com simpatizantes europeus para melhor se misturarem no ambiente. A partir deste momento estou a ativar a rede de alerta terrorista. Aumentem a segurança nas fronteiras, aeroportos e estações de trem para Nível Dois.
Desligou e olhou pela janela. Tinha atirado uma bóia ao velho. Perguntou a si mesmo se ele estaria em condições de a agarrar. Kruz sabia que se conseguisse, seria confrontado com um outro problema em breve: o que fazer com a equipe de rapto israelense. Levou a mão ao bolso do paletó e retirou um pedaço de papel.
— Se ligar para este número, quem vai atender?
— A violência.
Manfred Kruz alcançou o seu telefone.
O RELOJOEIRO, DESDE seu regresso a Viena, dificilmente encontrava razão para sair do santuário da sua pequena loja no Bairro Stephansdom. As frequentes viagens tinham-no deixado com um enorme número de peças acumulado que requeriam a sua atenção, incluindo um relógio regulador vienense, estilo Biedermeier, fabricado pelo famoso relojoeiro Vienense Ignaz Marenzeller em 1840. A caixa de mogno estava nas condições originais, embora o painel prateado de uma só peça tivesse requerido muitas horas de restauração. O movimento Biedermeier original feito à mão, com a sua corda de 75 dias, estava exposto em várias peças cuidadosamente arranjadas na superfície da sua mesa de trabalho.
O telefone tocou. Ele baixou o volume do seu leitor de CD portátil e o Concerto Brandenburg N°. 4 em Sol de Bach diminuiu até um sussurro. Uma escolha banal, Bach, mas o Relojoeiro considerava a precisão de Bach um acompanhamento perfeito para a tarefa de desmantelar e reconstruir o movimento de um relógio antigo. Alcançou o telefone com a mão esquerda. Uma onda de dor percorreu-lhe o comprimento do braço, uma lembrança dos seus abusos em Roma e na Argentina. Levou o receptor à orelha e prendeu-o contra o ombro.
— Sim — disse distraidamente. As suas mãos estavam de volta ao trabalho.
— O seu número foi-me dado por um amigo comum.
— Estou a ver — disse o Relojoeiro de modo descomprometido. Como posso ajudá-lo?
— Não sou eu quem precisa de ajuda. É o nosso amigo. O Relojoeiro pousou as ferramentas.
— O nosso amigo? — perguntou.
— Realizou trabalhos para ele em Roma e na Argentina. Presumo que saiba a quem me estou a referir?
O Relojoeiro sabia de fato. Então, o velho induzira-o em erro e por duas vezes colocara-o em situações de campo comprometedoras. Agora tinha cometido o pecado operacional fatal de dar o seu nome a um estranho. Era óbvio que estava em sarilhos. O Relojoeiro suspeitou que tivesse alguma coisa a ver com os israelenses. Decidiu que agora seria um excelente momento para acabar com a relação.
— Peço desculpa — disse — mas penso que me está a confundir com outra pessoa. O homem do outro lado da linha tentou contra-argumentar. O Relojoeiro desligou o telefone e aumentou o volume do seu leitor de CD até que o som de Bach encheu a oficina.
NO APARTAMENTO SEGURO de Munique, Carter desligou o telefone e olhou para Shamron, que ainda estava de pé em frente ao mapa, como se imaginasse o progresso de Radek para norte em direção à fronteira checa.
— Era da nossa filial de Viena. Estão a monitorizar a rede de comunicações austríaca. Parece que Manfred Kruz elevou o alerta terrorista para Nível Dois.
— Nível Dois? O que significa isso?
— Significa que é possível que haja alguma dificuldade na fronteira.
A ASSISTÊNCIA ESTAVA na reentrância de um ribeiro gelado. Havia dois veículos, um Opel sedã e uma van Volkswagen. Chiara estava ao volante da Volkswagen, faróis apagados, motor desligado, o peso reconfortante de uma Beretta no colo. Não havia outros sinais de vida, não havia luzes na vila, não havia o ruído do tráfego na autoestrada, apenas o suave bater da neve no teto da van e o assobiar do vento pelos juncos dos abetos. Olhou por cima do ombro e olhou para o compartimento traseiro da Volkswagen. Tinha sido preparado para a chegada de Radek. O forro da traseira tinha sido colocado. Por baixo do forro estava um compartimento especialmente construído para escondê-lo durante a passagem pela fronteira. Ele ficaria confortável lá, mais confortável do que merecia.
Olhou pelo vidro. Não havia muito para ver, a estrada estreita subindo pela escuridão em direção a um cume à distância. Então, subitamente, houve uma luz, um brilho branco e limpo que iluminou o horizonte e transformou as árvores em minaretes pretos. Por alguns segundos, foi possível ver a neve, rodopiando como uma nuvem de insetos pelo ar varrido pelo vento. Então os faróis da frente surgiram. O carro contornou a colina, e as luzes espalharam-se por ela, atirando as sombras das árvores para um lado, depois para o outro. Chiara segurou a Beretta com a mão e deslizou o dedo indicador para dentro da guarda do gatilho.
O carro derrapou até parar junto à van. Ela olhou para o banco de trás e viu o assassino, sentado entre Navot e Zalman, rígido como um comissário à espera da limpeza de sangue. Ela rastejou até o compartimento traseiro e fez uma verificação final.
— TIRE O SOBRETUDO — ordenou Navot.
— Por quê?
— Porque estou mandando.
— Eu tenho o direito de saber por quê.
— Não tem direito nenhum! Faça apenas o que digo.
Radek permaneceu imóvel. Zalman puxou a lapela do casaco, mas o velho cruzou os braços com força junto ao peito. Navot suspirou pesadamente. Se o velho bastardo quer um combate final, vai consegui-lo. Navot abriu-lhe os braços à força enquanto Zalman puxava a manga direita, depois a esquerda. O casaco depois; em seguida Zalman rasgou a manga da camisa e expôs a pele caída do braço. Navot exibiu uma seringa, cheia de sedativo.
— Isso é para seu próprio bem — disse Navot. — É moderado e não tem efeito durante muito tempo. Vai fazer sua viagem muito mais suportável. Sem claustrofobia.
— Nunca tive claustrofobia.
— Não me interessa.
Navot espetou a agulha no braço de Radek e despejou o conteúdo. Passados alguns segundos, o corpo de Radek relaxou; em seguida a cabeça tombou para o lado e o queixo descaiu. Navot abriu a porta e saiu. Segurou o corpo amolecido de Radek debaixo dos braços e arrastou-o para fora do carro.
Zalman levantou-o pelas pernas e juntos carregaram-no como um morto de guerra para a lateral da van. Chiara estava agachada no interior, segurando uma máscara de oxigênio e outra de plástico transparente. Navot e Zalman deitaram Radek no chão da van; e Chiara colocou-lhe a máscara sobre o nariz e a boca. O plástico embaciou imediatamente, indicando que a respiração de Radek estava normal. Ela verificou-lhe o pulso. Regular e forte. Manusearam-no para dentro do compartimento e fecharam a tampa.
Chiara sentou-se ao volante e ligou o motor. Oded fechou-lhe a porta e deu uma pequena pancada com a mão no vidro. Chiara engatou a marcha e seguiu para a autoestrada. Os outros entraram no Opel e seguiram atrás dela.
CINCO MINUTOS MAIS TARDE, as luzes da fronteira apareceram como faróis no horizonte. Conforme Chiara se foi aproximando conseguiu ver uma pequena fila de trânsito com cerca de seis veículos de comprimento, esperando para atravessar. Havia dois guardas fronteiriços em evidência. Tinham as lanternas na mão e estavam a verificar passaportes e a espreitar pelas janelas. Ela olhou por cima do ombro. As portas do compartimento permaneciam fechadas. Radek estava em silêncio.
O carro em frente passou na inspeção e foi deixado seguir em direção ao lado checo. O guarda fronteiriço fez-lhe sinal para avançar. Ela baixou o vidro e sorriu.
— Passaporte, por favor.
Ela entregou. O segundo guarda tinha-se deslocado para o lado do passageiro da van, e ela conseguia ver o foco de luz da lanterna investigando o interior.
— Está tudo bem?
O guarda fronteiriço manteve os olhos na fotografia e não respondeu.
— Quando entrou na Áustria?
— Hoje.
— Onde?
— Pela Itália, em Tarvísio.
Ele dispensou um momento comparando o rosto dela com a fotografia do passaporte. Em seguida abriu a porta do motorista e com um gesto ordenou-lhe que saísse da van.
UZI NAVOT OBSERVOU a cena em primeira fila, no lugar do passageiro no banco da frente do Opel. Olhou para Oded e praguejou ligeiramente por entre os dentes. Em seguida ligou do celular para o apartamento seguro de Munique. Shamron atendeu ao primeiro toque.
— Temos um problema — disse Navot.
ELE ORDENOU que se colocasse na frente da van e apontou a lanterna para seu rosto. Através do brilho conseguia ver o segundo guarda fronteiriço abrindo a porta do passageiro da van. Forçou-se a olhar para o interrogador. Tentou não pensar na Beretta contra as suas costas. Ou em Gabriel, esperando do outro lado da fronteira em Mikulov. Ou Navot, Oded e Zalman observando impotentes do Opel.
— Para onde se dirige esta noite?
— Praga — disse ela.
— Por que vai para Praga?
Ela disparou-lhe um olhar: Não tem nada com isso. Então disse: — Vou visitar meu namorado.
— Namorado — repetiu ele. — O que seu namorado faz em Praga?
Ensina italiano, dissera Gabriel.
Ela respondeu à pergunta.
— Onde?
No Instituto de Estudos Linguísticos de Praga, tinha dito Gabriel. Mais uma vez, ela respondeu como Gabriel tinha instruído.
— E há quanto tempo ele é professor do Instituto de Estudos Linguísticos de Praga?
— Três anos.
— E vê-o com frequência?
— Uma vez por mês, às vezes duas.
O segundo guarda tinha entrado na van. Uma imagem de Radek passou-lhe pela mente, olhos fechados, máscara de oxigênio no rosto. Não acorde, pensou ela. Não se mexa. Não faça barulho. Aja decentemente, pelo menos uma vez em sua vida desprezível.
— E quando entrou na Áustria?
— Já disse isso.
— Diga outra vez, por favor.
— Hoje.
— A que horas?
— Não me lembro da hora.
— Era de manhã? Era de tarde?
— Tarde.
— Início da tarde? Fim da tarde?
— Início.
— Então ainda era dia?
Ela hesitou; ele pressionou-a.
— Sim? Ainda era dia?
Ela acenou. De dentro da van veio o som da porta traseira se abrindo. Ela se forçou a olhar diretamente para os olhos do interrogador. O seu rosto, escurecido pela irritante luz da lanterna, começou a parecer-se com Erich Radek, não a versão patética do Radek inconsciente na traseira da van, mas o Radek que arrastou uma criança chamada Irene Frankel das fileiras da marcha da morte de Birkenau em 1945 e a levou para uma floresta polonesa para um momento de tormento final.
— Diga as palavras, judia! Foi transferida para leste. Teve comida em abundância e cuidados médicos adequados. As câmaras de gás e o crematório são mentiras bolchevique-judaicas.
Eu consigo ser tão forte como você, Irene, pensou ela. Eu consigo passar por isso. Por você.
— Parou em algum lugar na Áustria?
— Não.
— Não aproveitou a oportunidade para visitar Viena?
— Já estive em Viena — disse ela. — Não me agrada.
Ele dispensou um momento examinando-lhe o rosto.
— É italiana?
— Tem meu passaporte na mão.
— Não estou falando de seu passaporte. Estou falando de sua etnia. Seu sangue. Descendência italiana ou imigrante do, digamos, Oriente Médio ou Norte de África?
— Sou italiana — assegurou ela.
O segundo guarda saiu da van e abanou a cabeça. O interrogador devolveu-lhe o passaporte.
— Peço desculpas pelo atraso — disse ele. — Tenha uma boa viagem.
Chiara sentou-se ao volante, engatou a marcha e passou a fronteira devagar. Desatou em lágrimas, lágrimas de alívio, lágrimas de raiva. No início tentou impedi-las, mas não conseguiu. A estrada ficou desfocada, as luzes traseiras transformaram-se em riscos vermelhos, e mesmo assim elas vieram.
— Por você, Irene — disse ela em voz alta. — Fiz isso por você.
A ESTAÇÃO DE trem de Mikulov fica no fim da cidade velha, onde as colinas encontram a planície. Há uma única plataforma, que suporta um quase constante ataque do vento que desliza pelos Cárpatos, e um melancólico estacionamento de gravilha, que se transforma num lago quando chove. Perto da bilheteira está uma parada de ônibus riscada de graffitis, e era ai, encostado ao lado de onde vem o vento, que Gabriel esperava, mãos mergulhadas nos bolsos do casaco impermeável.
Levantou o olhar quando a van entrou no estacionamento e esmagou a gravilha. Esperou até que parasse antes de sair da parada de ônibus para a chuva. Chiara esticou-se e abriu-lhe a porta. Quando a luz de teto se acendeu, ele viu que o seu rosto estava molhado.
— Estás bem?
— Estou ótima.
— Queres que eu conduza?
— Não, eu consigo.
— Tem certeza?
— Entra, Gabriel. Não suporto estar sozinha com ele.
Ele entrou e fechou a porta. Chiara deu meia volta e regressou à autoestrada. Um momento mais tarde estavam a ir para norte, para os Cárpatos. DEMORARAM MEIA HORA até chegar a Brno, mais uma hora para chegar a Ostrava. Gabriel abriu as portas do compartimento duas vezes para verificar Radek. Eram quase oito horas quando chegaram à fronteira polonesa. Sem verificações de segurança desta vez, sem fila de trânsito, apenas uma mão espetada fora do abrigo de tijolo acenando-lhes à passagem pela fronteira.
Gabriel rastejou para a traseira da van e puxou Radek do compartimento. Em seguida abriu uma gaveta e retirou uma seringa. Desta vez tinha uma dose moderada de estimulante, apenas o suficiente para o trazer de volta aos limites do consciente lentamente. Gabriel inseriu a seringa no braço de Radek, injetou a droga, em seguida retirou a agulha e esfregou a ferida com álcool. Os olhos de Radek abriram devagar. Observou o ambiente envolvente por um momento antes de se fixar no rosto de Gabriel.
— Allon? — murmurou ele pela máscara de oxigênio. Gabriel acenou lentamente.
— Para onde me levas? — Gabriel não respondeu. — Vou morrer? — perguntou, e, antes que Gabriel pudesse responder, voltou a ficar inconsciente.
37
POLÔNIA ORIENTAL
A BARREIRA ENTRE consciência e coma era como uma cortina de palco, pela qual ele conseguia passar à vontade. Só não sabia quantas vezes tinha passado por esta cortina. O tempo, como a sua velha vida, estavam perdidos para ele. A sua bela casa de Viena parecia a casa de outro homem, na cidade de outro homem. Algo tinha acontecido quando ele gritou o seu nome aos israelenses. Ludwig Vogel era agora um estranho para ele, um conhecido que ele já não via há muitos anos. Ele era Radek novamente. Infelizmente o tempo não tinha sido meigo com ele. O alto e belo homem de preto estava agora prisioneiro num corpo fraco e decadente.
O judeu tinha-o colocado no forro da traseira. As suas mãos e tornozelos estavam amarrados por uma grossa fita adesiva prateada, e estava amarrado com o cinto de segurança como um doente mental. Os seus pulsos serviam como o portal entre os dois mundos. Apenas tinha de os torcer num determinado ângulo para que a fita se cravasse dolorosamente na pele e passaria a cortina do mundo dos sonhos para o reino do real. Sonhos? Será apropriado chamar a tais visões sonhos? Não, eram demasiado exatas, descritivas demais. Eram memórias, sobre as quais ele não tinha controle, apenas o poder de as interromper por alguns momentos infligindo dor em si próprio com a fita adesiva do judeu.
O seu rosto estava perto da janela, e o vidro estava desobstruído. Ele era capaz, quando estava acordado, de ver a infindável região rural negra e as desoladoras vilas escurecidas. Também era capaz de ler os sinais na estrada. Não precisava dos sinais para saber onde estava. Algures, noutra vida, ele tinha sido o senhor da noite nesta terra. Ele lembrava-se desta estrada: Dachnow, Zukow, Narol... Ele sabia o nome da próxima vila, mesmo antes desta passar pela janela: Belzec...
Fechou os olhos. Porquê agora, passados tantos anos? Depois da guerra ninguém esteve assim tão interessado num mero oficial SD que servira na Ucrânia — ninguém exceto os russos, claro — e no momento em que o seu nome veio ao de cima com ligações à Solução Final, o General Gehlen tinha providenciado a sua fuga e o seu desaparecimento.
A sua antiga vida fora deixada para trás em segurança. Tinha sido perdoado por Deus e a sua Igreja e até mesmo pelos seus inimigos, que gananciosamente tiraram proveito dos seus serviços quando também eles se sentiram ameaçados pelo judaísmo-bolchevismo. Os governos rapidamente perderam o interesse em proceder contra os, assim chamados, criminosos de guerra, e amadores como Wiesenthal focaram a atenção em peixe graúdo como Eichmann e Mengele, ajudando de forma involuntária peixe mais miúdo como ele próprio a encontrar santuário em águas calmas. Houve um susto sério. Em meados dos anos setenta, um jornalista americano, um judeu, claro, que foi a Viena e colocou demasiadas questões. Na estrada que sai de Salzburg para sul ele mergulhou numa ravina, e a ameaça foi eliminada. Nessa altura agiu sem hesitar. Se tivesse lançado Max Klein numa ravina ao primeiro sinal de ameaça... Reparara nele naquele dia no Café Central, assim como nos dias que se seguiram. Os seus instintos tinham-lhe dito que Klein representava uma ameaça. Ele hesitou. Quando Klein levou a sua história ao judeu Lavon era demasiado tarde.
Passou pela cortina outra vez. Estava em Berlim, sentado no gabinete do oficial Gruppenführer Heinrich Müller, chefe da Gestapo. Müller tira um pedacinho de almoço dos dentes e sacode uma carta que acabou de receber de Luther no Ministério dos Negócios Estrangeiros. É 1942.
— Rumores das nossas atividades no Leste começaram a chegar aos ouvidos dos nossos inimigos. Também temos um problema com um dos locais na região de Warthegau. Queixas sobre uma contaminação qualquer.
— Se me permite colocar a questão óbvia, Herr Gruppenführer, que diferença faz se rumores chegam ao Oeste? Quem vai acreditar que tal coisa foi realmente possível?
— Rumores é uma coisa, Erich. Provas é outra.
— Quem vai descobrir provas? Algum servo polonês atrasado mental? Um vesgo abridor de valas ucraniano?
— Talvez os Ivans?
— Os russos? Como descobririam?
Müller ergueu uma mão de pedreiro. Discussão terminada. E então ele percebeu. A aventura russa do Führer não estava indo de acordo com os planos. A vitória no Leste já não estava assegurada.
Müller inclinou-se para a frente.
— Estou te mandando para o inferno Erich. Vou espetar essa sua cara nórdica tão fundo no esterco que nunca mais vai ver a luz do dia.
— Como poderei jamais agradecer, Herr Gruppenführer?
— Limpe a porcaria. Toda. Em toda parte. É sua responsabilidade garantir que se mantenha apenas um rumor. E quando a operação estiver concluída, quero que seja o único homem de pé.
Ele concordou. O rosto de Müller afastou-se pela noite polonesa. Estranho, não é? A sua verdadeira contribuição para a Solução Final não foi matar mas esconder e garantir a segurança, e no entanto estava com problemas agora, sessenta anos depois, por causa de um jogo idiota que fizera bêbado em Auschwitz num domingo. Aktion 1005? Sim, fora um projeto seu, mas nenhum sobrevivente judeu testemunharia sua presença na beira de uma vala comum, porque não havia sobreviventes. Ele geriu uma operação fechada. Eichmann e Himmler teriam sido aconselhados a fazer o mesmo. Foram tolos em permitir que tantos sobrevivessem.
Uma memória surgiu, janeiro de 1945, um rio de judeus frágeis dispersos ao longo de uma estrada muito parecida com esta. A estrada de Birkenau. Milhares de judeus, cada um com uma história para contar, cada um uma testemunha. Ele defendia a liquidação da população inteira do campo antes da evacuação. Não, disseram. Trabalho escravo era necessário com urgência no Reich. Trabalho? A maioria dos judeus que ele tinha visto sair de Birkenau mal conseguia andar, quanto mais manejar uma picareta ou uma pá. Eles não eram aptos para o trabalho, apenas para o massacre, e já tinha matado uns quantos, ele próprio. Por que, em nome de Deus, lhe tinham ordenado que limpasse as valas para depois permitir que milhares de testemunhas caminhassem para fora de um local como Birkenau?
Ele se esforçou por manter os olhos abertos, e observou pela janela. Estavam a conduzir ao longo das margens de um rio, perto da fronteira ucraniana. Ele conhecia este rio, um rio de cinzas, um rio de ossos.
Pensou quantas centenas de milhares estariam ali embaixo, sedimentadas no leito do Rio Bug.
Uma cidade adormecida: Uhrusk. Pensou em Peter. Ele tinha avisado que isto aconteceria.
— Se eu me tornar uma ameaça séria, posso ganhar a chancelaria — dissera Peter —, alguém vai tentar nops expor.
Ele sabia que Peter estava certo, mas também acreditava que conseguiria lidar com qualquer ameaça. Estava errado, e agora seu filho teria de enfrentar uma humilhação eleitoral inimaginável, tudo por sua culpa. Era como se os judeus tivessem levado Peter à beira de uma vala comum e apontado uma arma para sua cabeça. Ele pensou que conseguiria evitar que eles puxassem o gatilho, se conseguisse quebrar mais um acordo, engendrar uma fuga final.
E este judeu que olha fixamente para mim com aqueles rancorosos olhos verdes? O que espera ele que eu faça? Peça perdão? Vergue, chore e cuspa sentimentalismos? O que este judeu não percebe é que eu não sinto culpa pelo que fiz. Eu fui forçado pela mão de Deus e os ensinamentos da minha Igreja. Não nos disseram os padres que os judeus foram os assassinos de Deus? O Santo Padre e os seus cardeais não ficaram em silêncio quando sabiam perfeitamente o que estávamos a fazer no Leste? Será que este judeu espera que eu reprove assim sem mais nem menos e diga que foi um erro terrível? E porque olha ele para mim assim? Aqueles olhos eram-lhe familiares. Já os tinha visto em algum lado antes. Talvez fosse das drogas que lhe tinham dado. Ele não conseguia ter a certeza de nada. Ele nem tinha sequer a certeza de estar vivo. Talvez fosse a sua alma a fazer esta viagem ao longo do Rio Bug. Talvez estivesse no inferno.
Outra aldeola: Wola Uhruska. Ele conhecia a próxima vila. Sobibor...
Fechou os olhos, o veludo da cortina envolveu-o. É a Primavera de 1942, está a conduzir para fora de Kiev na estrada de Zhitomir com o comandante de uma unidade Einsatzgruppen ao lado. Estão a caminho para inspecionar uma ravina que se transformou num problema de segurança, um lugar que os ucranianos chamam Babi Yar. Quando chegam, o Sol já está a desaparecer no horizonte e está quase a anoitecer. Mesmo assim, há luz suficiente para observar o estranho fenômeno que acontece no fundo da ravina. A terra parece estar a debater-se com um ataque epiléptico. O solo tem convulsões, gás é disparado para o ar, juntamente com gêiseres de líquido pútrido. O fedor! Meu Deus, o fedor. Ele consegue cheirá-lo agora.
— Quando começou?
— Pouco depois do final do Inverno. O chão aqueceu, então os corpos aqueceram. Eles decompõem-se muito rapidamente.
— Quantos estão ali embaixo?
— Trinta e três mil judeus, alguns ciganos e prisioneiros soviéticos, assim por alto.
— Cerque a ravina inteira.
— No momento outros locais têm prioridade. Trataremos deste assim que possível.
— Que outros locais?
— Locais de que nunca ouviu falar: Birkenau, Belzec, Sobibor, Treblinka. Nosso trabalho aqui está feito. Esperam novas chegadas a qualquer momento, nos outros.
— O que vai fazer com este local?
— Abrimos as valas e queimamos os corpos, em seguida esmagamos os ossos e espalhamos os fragmentos nas florestas e nos rios.
— Queimar trinta mil cadáveres? Tentamos isso nas operações de massacre. Usamos lança-chamas, pelo amor de Deus. Cremações maciças a céu aberto não funcionam.
— Isso é porque nunca construíram uma pira em condições. Em Chelmno, eu provei que pode ser feito. Confie em mim, Kurt, um dia este local chamado Babi Yar será apenas um rumor, como os judeus que viviam aqui.
Ele torceu os pulsos. Desta vez a dor não foi suficiente para acordar. A cortina recusou-se a abrir. Permaneceu trancado numa prisão de memórias, vagueando por um rio de cinzas.
MERGULHARAM PELA noite adentro. O tempo era uma memória. A fita adesiva tinha-lhe cortado a circulação. Já não conseguia sentir as mãos e os pés. Sentia-se febrilmente quente num minuto e arrepiantemente frio no outro. Tinha a impressão de terem parado uma vez. Tinha cheirado gasolina. Estariam eles a encher o depósito? Ou seria apenas a memória de traves de caminho-de-ferro ensopadas em combustível?
Os efeitos da droga finalmente dissiparam. Ele estava agora acordado, alerta e consciente, e seguro de que não estava morto. Algo na postura do judeu lhe disse que estavam próximos do final da jornada. Tinham passado por Siedlce, depois, em Sokolow Podlaski, tinham virado para uma estrada de campo mais estreita. Dybow veio a seguir, depois Kosow Lacki. Saíram da estrada principal, para um trilho de terra batida. A van trepidava: dump-dump... dump-dump. A velha via-férrea, pensou, ainda aqui estava, claro. Seguiram o trilho até uma plataforma de abetos e bétulas e pararam um momento mais tarde num pequeno estacionamento alcatroado.
Um segundo carro entrou na clareira com os faróis apagados. Três homens saíram e aproximaram-se da van. Ele reconheceu-os. Eram os que o tinham tirado de Viena. O judeu colocou-se em cima dele e cuidadosamente cortou a fita adesiva e soltou as correias de couro.
— Venha — disse ele agradavelmente. — Vamos dar um passeio.
38
TREBLINKA, POLÔNIA
SEGUIRAM POR UM trilho por entre as árvores. Tinha começado a nevar. Os flocos caíam suavemente pelo ar tranquilo e assentavam-lhes nos ombros como cinzas de um
fogo distante. Gabriel segurava Radek pelo cotovelo. Os seus passos eram cambaleantes no início, mas em breve o sangue começou a fluir-lhe novamente aos pés e insistiu em caminhar sem o suporte de Gabriel. A sua respiração difícil gelava no ar. Cheirava a amargo e a medo.
Avançaram mais fundo para dentro da floresta. O trilho era arenoso e coberto por uma fina camada de faúlhas. Oded estava vários passos à frente, quase invisível através da queda de neve. Zalman e Navot caminhavam em formação atrás deles. Chiara tinha ficado para trás na clareira, vigiando os veículos. Fizeram uma pausa numa brecha nas árvores, de cerca de cinco metros de largura, estendendo-se pelo escuro. Gabriel iluminou-a com o foco de uma lanterna. No centro do corredor, em intervalos equidistantes, estavam várias pedras em pé. As pedras marcavam a linha da antiga vedação. Tinham chegado ao perímetro do campo. Gabriel desligou a lanterna e puxou Radek pelo cotovelo. Radek tentou resistir, mas tropeçou para a frente.
— Faça o que eu digo, Radek, e vai correr tudo bem. Não tente fugir, porque não há por onde escapar. Não vale a pena gritar por ajuda, porque ninguém vai ouvir seus gritos.
— Sente prazer em me ver com medo?
— Sinto nojo, para dizer a verdade. Não gosto nem de tocá-lo. Eu não gosto do som de sua voz.
— Então por que estamos aqui?
— Eu apenas quero que veja algumas coisas.
— Não há nada para ver aqui, Allon. Apenas um memorial polonês.
— Precisamente — Gabriel deu-lhe um puxão no cotovelo. — Venha, Radek. Mais depressa. Tem que andar mais depressa. Não temos muito tempo. Vai amanhecer em breve.
Um momento mais tarde, pararam de novo perante um caminho-de-ferro sem carris, o velho ramal que trouxera os trens da estação de Treblinka até o interior do campo. As traves tinham sido recriadas em pedra e estavam cobertas por neve recente. Seguiram os carris até o campo e pararam no sítio onde tinha estado a plataforma. Também ela estava representada em pedra.
— Lembra, Radek?
Ele ficou em silêncio, o queixo caído, a respiração áspera.
— Vá lá, Radek. Sabemos quem você é, nós sabemos o que fez. Desta vez não vai escapar. Não vale a pena entrar em jogos ou tentar negar alguma coisa. Não há tempo, a não ser que não queira salvar seu filho.
A cabeça de Radek girou lentamente. Os seus lábios comprimiram-se e o seu olhar endureceu.
— Faria mal ao meu filho?
— Na verdade, você fará por nós. Tudo o que temos a fazer é dizer ao mundo quem é o pai dele, e isso o destruirá. Foi por isso que plantou a bomba no escritório de Eli Lavon: para proteger Peter. Ninguém podia tocá-lo, não num lugar como a Áustria. A janela para você estava fechada há muito tempo. Estava seguro. A única pessoa que podia pagar um preço por seus crimes é seu filho. Foi por isso que tentou matar Eli Lavon. Foi por isso que assassinou Max Klein.
Voltou as costas a Gabriel e olhou para a escuridão.
— O que é que queres? O que queres saber?
— Conta-me como foi Radek. Eu já li sobre isso, eu vejo o memorial, mas não consigo imaginar como funcionou realmente. Como foi possível transformar em fumo um trem cheio de pessoas em apenas quarenta e cinco minutos? Quarenta e cinco minutos, porta a porta, não era disso que o staff das SS se costumava vangloriar por estes lados? Conseguiam transformar um judeu em fumo em quarenta e cinco minutos. Doze mil judeus por dia. Oitocentos mil no total.
Radek emitiu um riso fechado, um interrogador que não acreditava na afirmação do seu prisioneiro. Gabriel sentiu como se uma pedra tivesse sido posta sobre o seu coração.
— Oitocentos mil? Onde foste buscar um número desses?
— É a estimativa oficial do governo polonês.
— E espera que um bando de seres inferiores, como os poloneses, seja capaz de saber o que aconteceu nestes bosques? — A sua voz pareceu subitamente diferente, mais jovem e autoritária. — Por favor Allon, se vamos ter esta discussão, lidemos com os fatos e não com idiotice polonesa. Oitocentos mil? — Abanou a cabeça e efetivamente sorriu. Não, não foram oitocentos mil. O número real foi muito superior a isso.
UMA SÚBITA RAJADA de vento agitou as copas das árvores. Para Gabriel soou como o som dos rápidos de um rio. Radek estendeu a mão e pediu a lanterna. Gabriel hesitou.
— Não pensa que vou atacar você com isso, não?
— Eu sei de algumas coisas que fez.
— Isso foi há muito tempo.
Gabriel entregou-lhe a lanterna. Radek apontou o foco para a esquerda, iluminando um molho de árvores de folha permanente.
— Eles chamavam a esta área o campo de baixo. As casernas das SS eram ali mesmo. A vedação periférica passava mesmo por trás. Em frente, havia uma estrada alcatroada com arbustos e flores durante a Primavera e o Verão. Talvez te custe a acreditar, mas era na realidade bastante agradável. Não havia tantas árvores, claro. Plantamos as árvores depois de demolir o campo. Na altura eram apenas rebentos. Agora, estão completamente adultas, bem bonitas.
— Quantos SS?
— Normalmente cerca de quarenta. moças judias tratavam-lhes da limpeza, mas tinham polonesas para cozinhar, três moças locais que vinham das vilas em redor.
— E os ucranianos?
— Estavam aquartelados do lado oposto da estrada, em cinco casernas. A casa de Stangl era no meio, no cruzamento de duas estradas . Ele tinha um belo jardim. Foi desenhado para ele por um homem de Viena.
— Mas os recém-chegados nunca viram essa parte do campo?
— Não, não, cada parte do campo era cuidadosamente escondida da outra por vedações intercaladas com plantações de pinheiros. Quando chegavam ao campo, eles viam o que parecia ser uma normal estação de trem de campo, completa com um horário de partidas falso. Não havia partidas de Treblinka, claro. Apenas trens vazios partiam da estação.
— Havia aqui um edifício, não havia?
— Fora desenhado para parecer uma normal estação de trem, mas na realidade estava cheio de valores roubados de chegadas anteriores. Aquela seção ali era conhecida como o Largo da Estação. Ali havia o Largo da Recepção, ou o Largo da Triagem.
— Alguma vez viste a chegada dos transportes?
— Eu não tinha nada a ver com esse tipo de situação, mas sim, eu vi-os chegar.
— Havia dois procedimentos de chegada diferentes? Um para judeus da Europa Ocidental e outro para judeus do Leste?
— Sim, está correto. Os judeus da Europa Ocidental eram tratados com muita mentira e fraude. Não havia chicotes nem gritos. Era-lhes pedido educadamente que desembarcassem do trem. Pessoal médico de batas brancas estava à espera no Largo da Recepção para tratar dos doentes.
— Era tudo um estratagema, no entanto. Os velhos e os doentes eram levados e abatidos a tiro imediatamente.
Ele concordou.
— E os judeus do Leste? Como eram recebidos na plataforma?
— Eram recebidos por chicotes ucranianos.
— E depois?
Radek levantou a lanterna e apontou o foco a uma curta distância através da clareira.
— Havia uma cerca de arame farpado aqui. Para lá do arame existiam dois edifícios. Um era uma caserna para despir. No segundo edifício, judeus de trabalho cortavam o cabelo às mulheres. Quando terminavam, elas iam naquela direção. — Radek usou a lanterna para iluminar o caminho. — Havia aqui uma passagem, uma espécie de passagem de gado, com alguns metros de largura, arame farpado e ramos de pinheiro. Era conhecida como o tubo.
— Mas as SS tinham um nome especial para isso, não tinham?
Radek acenou.
— Estrada para o Paraíso.
— E onde ia dar a Estrada para o Paraiso?
Radek levantou o foco da sua luz.
— Para o campo de cima — disse. — O campo da morte.
PROSSEGUIRAM O CAMINHO até uma larga clareira polvilhada com centenas de pedregulhos, cada pedra representava uma comunidade judaica destruída em Treblinka. A pedra maior ostentava o nome Varsóvia. Gabriel olhou para lá das pedras, em direção ao céu, para leste. Começava a ganhar claridade.
— A Estrada para o Paraiso levava diretamente a um edifício de tijolo que albergava as câmaras de gás — disse Radek quebrando o silêncio. De repente parecia ansioso por falar. — Cada câmara tinha quatro metros por quatro metros. Inicialmente eram apenas três, mas em breve descobriram que precisavam de mais capacidade para satisfazer a procura. Foram acrescentadas mais dez. Um motor a gasóleo bombeava gases de monóxido de carbono para as câmaras. A asfixia demorava menos de trinta minutos. Depois disso os corpos eram retirados.
— E o que era feito com eles?
— Durante vários meses, foram enterrados ali fora, em grandes valas. Mas muito rapidamente as valas transbordaram e a decomposição dos corpos contaminou o campo.
— Foi quando chegou?
— Não de imediato. Treblinka era o quarto campo da nossa lista. Limpamos as valas de Birkenau primeiro, a seguir Belzec e Sobibor. Só chegamos a Treblinka em março de 1943. Quando eu cheguei... — a sua voz arrastou-se. — Terrível.
— O que fez?
— Abrimos as valas, claro, e retiramos os corpos.
— À mão?
Ele abanou a cabeça.
— Tínhamos uma escavadora mecânica. Acelerou bem o trabalho.
— A garra, não era assim que chamavam?
— Sim, era isso.
— E depois dos corpos serem retirados?
— Eram incinerados em grandes prateleiras de metal.
— Tinham um nome especial para as prateleiras, não tinham?
— Assadeiras — disse Radek. — Chamávamos de assadeiras.
— E depois dos corpos serem queimados?
— Esmagávamos os ossos e voltávamos a enterrá-los nas valas ou levávamos em carroças para despejar no rio Bug.
— E quando as valas antigas ficaram vazias?
— Depois disso, os corpos eram levados diretamente das câmaras de gás para as assadeiras. Funcionou assim até outubro desse ano, quando o campo foi fechado e todos os traços foram obliterados. Operou por pouco mais de um ano.
— E mesmo assim conseguiram assassinar oitocentos mil?
— Não foram oitocentos mil.
— Quantos foram então?
— Mais de um milhão. É qualquer coisa, não é? Mais de um milhão de pessoas, num lugar minúsculo como este, no meio de uma floresta polonesa.
GABRIEL TIROU A lanterna do rosto dele sacou a Beretta. Empurrou Radek com o cano. Caminharam ao longo de uma trilha, pelo campo de pedras. Zalman e Navot ficaram para trás no campo de cima. Gabriel conseguia ouvir os passos de Oded na gravilha atrás dele.
— Parabéns, Radek. Graças a você, é apenas um cemitério simbólico.
— Vai me matar agora? Não disse o que queria ouvir?
Gabriel empurrou-o pelo trilho.
— Você talvez tenha algum orgulho deste lugar, mas para nós é solo sagrado. Acha realmente que eu o poluiria com seu sangue?
— Então qual é o propósito disso? Por que me trouxe aqui?
— Você precisava ver isso mais uma vez. Visitar o local do crime para refrescar a memória e se preparar para o próximo testemunho. É assim que vai salvar seu filho da humilhação de ter tal homem na condição de pai. Vai para Israel pagar por seus crimes.
— Não foi meu crime! Eu não os matei! Eu apenas fiz o que Müller me ordenou. Eu limpei a porcaria!
— Teve sua cota de matança, Radek. Lembra do joguinho com Max Klein em Birkenau? E a marcha da morte? Também estava lá, não estava, Radek?
Radek reduziu o passo e voltou a cabeça. Gabriel deu-lhe um empurrão. Chegaram a um amplo declive retangular cheio de lascas de basalto negro, o local onde era a vala de cremação.
— Mate-me agora, maldição! Não me leve para Israel! Mate-me agora e acabe com isso. Aliás, é nisso que você é bom, não é, Allon?
— Não aqui — disse Gabriel. — Não neste lugar. Você nem sequer merece pôr os pés aqui, quanto mais morrer.
Radek caiu de joelhos defronte à vala.
— E se eu concordar em ir? Que destino me espera?
— A verdade o espera, Radek. Será posto perante o povo de Israel e confessará seus crimes. Seu papel na Aktion 1005. O massacre de prisioneiros em Birkenau. As mortes que infligiu durante a marcha da morte de Birkenau. Lembra das moças que assassinou, Radek?
Radek voltou a cabeça.
— Como é que...
Gabriel interrompeu-o.
— Não vai enfrentar julgamento por seus crimes, mas vai passar o resto da vida atrás das grades. Enquanto estiver na prisão, vai trabalhar com uma equipe de estudantes do Holocausto de Yad Vashem para compilar minuciosamente a história de Aktion 1005. Vais dizer aos que negam e aos que duvidam exatamente o que fizeste para esconder o maior caso de assassinato de massas da história. Vais dizer a verdade pela primeira vez na vida.
— Qual verdade, sua ou a minha?
— Só há uma verdade, Radek. Treblinka é a verdade.
— E o que é que eu ganho com isso?
— Mais do que mereces — disse Gabriel. — Não diremos nada sobre a ascendência duvidosa de Metzler.
— Estás disposto a aceitar um chanceler austríaco da extrema-direita para me apanhar?
— Algo me diz que Peter Metzler se vai tornar um grande amigo de Israel e dos judeus. Ele não vai querer fazer nada para nos irritar. Afinal de contas, nós teremos a chave para a sua destruição até muito depois de tu morreres.
— Como convenceste os americanos a trair-me? Chantagem, suponho: é essa a maneira judaica. Mas deve ter havido mais. Certamente juraram que nunca me dariam oportunidade de discutir a minha afiliação com a Organização Gehlen ou com a CIA. Suponho que a sua dedicação à verdade para por aí.
— Dá-me sua resposta Radek.
— Como posso confiar em ti, um judeu, que cumpras sua parte do acordo?
— Andaste a ler Der Sturmer outra vez? Vais confiar em mim porque não tens outra alternativa.
— E o que é que vai adiantar? Vai trazer de volta alguma das pessoas que aqui morreram?
— Não — concedeu Gabriel —, mas o mundo saberá a verdade, e tu vais passar os últimos anos de sua vida onde pertences. Aceita o acordo, Radek. Aceita pelo teu filho. Pensa nele como uma última fuga.
— Não ficará secreto para sempre. Um dia, a verdade sobreste caso vai vir ao de cima.
— Se calhar — disse Gabriel. — Suponho que não seja possível esconder a verdade para sempre.
A cabeça de Radek voltou-se lentamente e ele olhou para Gabriel com desdém.
— Se fosses um homem a sério, fazias tu mesmo. — Esboçou um sorriso trocista.
— Quanto à verdade, ninguém se importou enquanto este lugar estava operacional, e ninguém se vai importar agora.
Voltou-se e olhou para a vala. Gabriel guardou a Beretta no bolso e afastou-se. Oded, Zalman e Navot ficaram imóveis por trás dele no trilho. Gabriel passou por eles sem dizer uma palavra e dirigiu-se para baixo através do campo até a plataforma de caminho-de-ferro. Antes de virar para as árvores, parou por instantes para olhar sobre o ombro e viu Radek, segurando-se ao braço de Oded, pondo-se de pé devagar.
PARTE QUATRO
O prisioneiro de Abu Kabir
39
JAFFA, ISRAEL
HOUVE MUITA DISCUSSÃO sobre onde o manter cativo. Lev considerava-o um risco para a segurança e, como tal, queria mantê-lo sob custódia do Escritório. Shamron, como de costume, tomou a posição contrária, quanto mais não fosse por não querer ver os seus adorados serviços restringidos a gerir prisões. O primeiro-ministro, mesmo que a brincar, sugeriu que Radek fosse forçado a marchar para o Negev, para que os escorpiões e abutres tratassem dele. No fim, acabou por ser Gabriel a tomar a decisão. Segundo ele, para alguém como Radek, a pior punição seria a de ser tratado como um criminoso comum. Procuraram um local apropriado e concordaram em prendê-lo numa prisão policial, construída pelos ingleses durante o Mandato numa zona degradada de Jaffa, ainda hoje conhecida pelo seu nome árabe: Abu Kabir.
Passaram 72 horas para que a apreensão de Radek fosse tornada pública. O comunicado do primeiro-ministro foi conciso e propositadamente enganador. Foram tomadas muitas precauções para evitar embaraçar, sem necessidade, os austríacos. Segundo disse o primeiro-ministro, Radek foi descoberto a viver sob falsa identidade num pais não especificado. E após um período de negociações concordara vir de livre vontade para Israel. Segundo os termos do acordo, ele não seria julgado, uma vez que de acordo com a lei israelense, a única sentença possível seria a condenação à morte. Em vez disso, ele permaneceria constantemente sob a detenção do Estado e iria, de fato, dar-se como culpado dos seus crimes contra a humanidade ao trabalhar com uma equipe de historiadores em Yad Vashem e na Universidade Hebraica, com a finalidade de compilar a história definitiva da Aktion 1005.
Houve pouco rebuliço e muito menos excitação do que com a noticia que acompanhou o rapto de Eichmann. Na realidade, a noticia da captura de Radek foi sobreposta poucas horas depois pelo massacre de vinte e cinco pessoas num mercado de Jerusalém por um homem-bomba. Lev sentiu uma certa satisfação com o desenrolar dos acontecimentos, pois assim demonstrava o seu ponto de vista de que o Estado tinha mais com que se preocupar do que perseguir velhos nazistas. Começou a referir-se ao caso como "a asneira de Shamron", apesar de ele ter recuperado o seu devido nível hierárquico no serviço. Dentro do King Saul Boulevard, a captura de Radek pareceu reacender velhas fogueiras. Lev ajustou a sua postura de acordo com o estado de espirito geral mas era demasiado tarde. Todos sabiam que a prisão de Radek havia sido orquestrada pelo Memuneh e Gabriel e que Lev tinha tentado bloqueada a cada passo. O carisma de Lev junto dos soldados rasos caiu para níveis perigosamente baixos.
A pouco crível tentativa de manter secreta a identidade austríaca de Radek foi desfeita pelo vídeo da sua chegada a Abu Kabir. A imprensa de Vienna identificou rápida e corretamente o prisioneiro como sendo Ludwig Vogel, um empresário austríaco de renome. Teria ele de fato concordado deixar Viena voluntariamente? Ou teria sido, na verdade, raptado da sua residência fortificada no Primeiro Bairro? Nos dias que se seguiram, os jornais faziam alusões especulativas à sua misteriosa carreira e às suas ligações politicas. As investigações da imprensa aproximaram-se perigosamente de Peter Metzler. Renate Hoffman da Coligação para uma Áustria Melhor solicitou um inquérito oficial ao caso e sugeriu que Radek poderia ter ligações ao atentado a bomba ao Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra e à misteriosa morte de um judeu idoso chamado Max Klein. As suas exigências foram categoricamente ignoradas. O governo disse que o atentado fora obra de terroristas islâmicos. E quanto à infeliz morte de Max Klein, fora suicídio. Segundo o ministro da Justiça qualquer investigação complementar seria um desperdício de tempo.
O capítulo seguinte do caso Radek teria lugar, não em Viena, mas em Paris, onde um ex-agente do KGB com aspecto duvidoso surgiu na televisão francesa dizendo que Radek era o homem de Moscovo em Viena. Um antigo chefe de espionagem da Stasi, que se havia tornado um êxito literário na nova Alemanha, veio também reconhecer Radek.
De início, Shamron suspeitou que estas reivindicações faziam parte de uma campanha conjunta de desinformação com o fim de ilibar a CIA do vírus Radek: que era exatamente o que ele teria feito se os papéis estivessem invertidos. Depois, descobriu que, no interior da Agência, as sugestões de que Radek podia ter jogado para ambos os lados criaram algum pânico. Estavam a ser retirados arquivos dos arquivos mortos e a ser reunida à pressa uma equipe soviética de ajuda com elementos veteranos. Shamron divertia-se secretamente com a ansiedade dos seus colegas de Langley. Segundo Shamron, se se viesse a descobrir que Radek era um agente duplo seria muito justo. Adrian Carter solicitou autorização para interrogar Radek mal os historiadores tivessem terminado o seu trabalho. Shamron prometeu considerar o assunto com seriedade. O PRISIONEIRO DE Abu Kabir estava bastante alheio à tempestade criada à sua volta. A sua prisão era solitária, apesar de não ser demasiado árdua. Mantinha a cela e as roupas limpas, aceitava comida e pouco reclamava. Por muito que os guardas quisessem odiá-lo, não conseguiam. No fundo ele era um polícia e os seus carcereiros pareciam ver nele algo familiar. Tratava-os com cortesia e, como reação, era tratado com cortesia. Ele era, também, uma espécie de curiosidade. Eles haviam lido sobre homens como ele na escola e passavam à frente da sua cela a qualquer hora, apenas para o ver. Radek começou aos poucos a sentir-se como se fosse uma peça de exposição de um museu.
O seu único pedido foi o de lhe ser autorizado o acesso a um jornal todos os dias para se manter a par dos assuntos da atualidade. A questão foi levada até Shamron, que deu a sua autorização, desde que fosse um jornal israelense e não uma qualquer publicação alemã. Todas as manhãs o Jerusalém Post era-lhe entregue com a travessa do pequeno-almoço. Normalmente saltava as histórias sobre si mesmo — eram, aliás, muito incorretas — e dirigia-se diretamente à seção das notícias internacionais com a finalidade de acompanhar os desenvolvimentos das eleições austríacas.
Moshe Rivlin visitou Radek várias vezes para se preparar para o seu iminente depoimento. Foi decidido que as sessões seriam filmadas e transmitidas à noite na televisão israelense. Radek parecia estar cada vez mais agitado com a aproximação do dia da sua primeira aparição em público. Discretamente, Rivlin pediu ao chefe da prisão para manter o prisioneiro sob vigilância de suicídio. Foi plantado um guarda no corredor, junto às barras da cela de Radek. Ao princípio, Radek criou atritos com a vigilância adicional, mas passou rapidamente a apreciar a companhia.
Rivlin surgiu uma última vez na véspera da primeira sessão de depoimento de Radek. Passaram uma hora juntos; Radek estava preocupado e, pela primeira vez, nada cooperante. Rivlin arrumou os seus documentos e notas e pediu ao guarda para abrir a porta.
— Quero vê-lo — disse Radek de repente. — Pergunte se me daria a honra de me fazer uma visita. Diga-lhe que há algumas perguntas que eu quero fazer.
— Não posso prometer nada — disse Rivlin. — Não tenho ligações a...
— Pergunte, apenas — disse Radek. — O máximo que ele pode fazer é dizer não.
SHAMRON OBRIGOU Gabriel a permanecer em Israel até o primeiro dia de depoimento de Radek e Gabriel, apesar de estar ansioso por voltar a Veneza, aceitou relutante. Ele ficou no apartamento seguro perto das Portas de Zion e acordava todas as manhãs ao som dos sinos da igreja do bairro armênio. Sentava-se na sombra do terraço olhando as muralhas da Cidade Velha e desfrutava o seu tempo com café e jornais. Seguia de perto o caso Radek. Ficou contente por ver o nome de Shamron ligado à captura e não o seu. Gabriel vivia no estrangeiro, sob uma identidade falsa e não precisava que o seu verdadeiro nome fosse espalhado pela imprensa. Além disso, depois de tudo o que Shamron tinha feito pelo seu país, merecia um último dia de glória.
Conforme os dias passavam, lentamente, Gabriel percebeu que Radek parecia, cada vez mais, um estranho. Apesar de abençoado com uma memória quase fotográfica,
Gabriel lutava por se lembrar claramente da cara de Radek ou do som da sua voz. Treblinka parecia algo saído de um pesadelo. Perguntou-se se a sua mãe teria sentido o mesmo. Teria Radek permanecido nas divisões da sua memória como um convidado indesejado, ou teria ela forçado a sua memória para produzir a sua imagem na tela? Teria sido assim para todos os que se tinham cruzado com um Mal tão perfeito? Talvez assim se explicasse o silêncio que tinha dominado os sobreviventes. Talvez eles tivessem sido piedosamente libertados da dor das suas memórias, como meio de autopreservação. Uma ideia regressava-lhe constantemente ao pensamento: se, naquele dia na Polônia, Radek tivesse morto a sua mãe em vez das outras duas moças, ele nunca teria existido. Também ele começou a sentir a culpa dos sobreviventes.
Ele só tinha a certeza de uma coisa: ainda não estava pronto para esquecer. Assim, ficou contente quando um dos acólitos de Lev lhe ligou uma tarde a perguntar se ele estaria disposto a escrever uma história oficial do caso. Gabriel aceitou, desde que ele pudesse também criar uma versão não censurada dos acontecimentos, para ser guardada nos arquivos de Yad Vashem. Houve ainda alguma discussão sobre quando tal documento poderia ser tornado público. Foi então definida uma data de lançamento, quarenta anos, e Gabriel começou o trabalho.
Ele escreveu na mesa da cozinha, num computador portátil fornecido pelo Escritório. Todas as noites, trancava o computador num cofre de chão, escondido sob o sofá da sala de estar. Não tinha qualquer experiência de escrita, por isso, por instinto, fez a aproximação ao projecto como se de uma pintura se tratasse. Começou com um esboço de base, amplo e amorfo e então, lentamente, foi adicionando camadas de tinta. Usou uma paleta simples e a sua técnica de traço foi cuidada. com o passar dos dias, a cara de Radek voltou-lhe à memória com a clareza com que havia sido pintada pela mão da sua mãe.
Usualmente, trabalhava até o princípio da tarde. Depois fazia uma pausa e dava um passeio até o Hospital da Universidade de Hadassah, onde, após um mês de coma, Eli Lavon estava a mostrar sinais de querer regressar à consciência. Gabriel sentava-se junto de Lavon cerca de uma hora e falava-lhe do caso. Depois voltava ao apartamento e trabalhava até a noite.
No dia em que terminou o relatório, deixou-se ficar no Hospital até o princípio da noite e, por acaso, estava lá quando os olhos de Lavon se abriram. Lavon ficou a fixar o vazio por uns instantes; então a velha expressão inquisidora voltou-lhe ao olhar e divagou pelo ambiente desconhecido da sala do hospital até se fixar no rosto de Gabriel.
— Onde estamos? Viena?
— Jerusalém.
— O que é que estás aqui a fazer?
— Estou a trabalhar num relatório para o Escritório.
— Sobre o quê?
— Sobre a captura de um criminoso de guerra nazista chamado Erich Radek.
— Radek?
— Ele estava a viver em Viena sob o nome de Ludwig Vogel. Lavon sorriu.
— Conta-me tudo — murmurou, mas antes que Gabriel pudesse dizer uma palavra, ele já tinha adormecido outra vez.
Nessa noite, quando Gabriel voltou ao apartamento, a luz do atendedor de chamadas estava a piscar. Carregou no PLAY e a ouviu a voz de Moshe Rivlin.
— O prisioneiro de Abu Kabir quer falar com você. Eu mandava-o para o Inferno. Você é que sabe.
40
JAFFA, ISRAEL
O CENTRO DE DETENÇÕES era cercado por um alto muro cor de areia, com rolos de arame farpado no topo. Gabriel apresentou-se na entrada exterior no inicio da manhã seguinte e foi admitido sem demora. Para chegar ao interior, tinha de atravessar uma passagem vedada estreita, que lhe lembrava demasiado a Estrada para o Paraiso em Treblinka. Um guarda esperava-o na outra ponta. Silenciosamente, conduziu Gabriel pela porta de segurança e depois para uma sala de interrogatórios sem janelas, com paredes em blocos de betume. Radek estava sentado à mesa, imóvel, vestido com um terno escuro e gravata, para prestar depoimento. Estava algemado com os dedos cruzados sobre a mesa. Saudou Gabriel com um aceno de cabeça quase imperceptível, mas permaneceu sentado.
— Tire-lhe as algemas — disse Gabriel ao guarda.
— É contra as regras.
Gabriel olhou para o guarda e, pouco depois, as algemas tinham sido tiradas.
— Faz isso muito bem — disse Radek. — Isso foi mais uma artimanha psicológica sua? Está tentando demonstrar seu domínio sobre mim?
Gabriel puxou a cadeira de ferro e sentou-se.
— Não me parece que dadas as circunstâncias seja necessária uma demonstração dessas.
— Suponho que esteja certo — disse Radek. — Mesmo assim, admiro a forma como lidou com todo o caso. Eu gostaria de acreditar que teria feito as coisas assim tão bem.
— Para quem? — perguntou Gabriel. — Para os americanos, ou para os russos?
— Está se referindo às alegações feitas em Paris por aquele idiota do Belov?
— São verdadeiras?
Radek fitou Gabriel em silêncio e por breves segundos parte do velho olhar de aço regressou-lhe aos olhos azuis.
— Quando alguém esteve em jogo tanto tempo como eu estive, faz tantas alianças e envolve-se em tantas mentiras, que no fim é difícil saber onde é que a verdade e a mentira se separam.
— Belov parece ter certeza de que sabe a verdade.
— Sim, mas receio que seja apenas a certeza de um tolo. Sabe, é que Belov não estava em posição de saber a verdade. — Radek mudou de assunto. — Presumo que tenha visto os jornais desta manhã?
Gabriel acenou que sim.
— A margem de vitória dele foi maior que a esperada. Aparentemente, minha prisão teve algo a ver com isso. Os austríacos nunca gostaram de ver estranhos se metendo em seus assuntos.
— Não está se vangloriando, está?
— Claro que não — disse Radek. — Estou apenas com pena de não ter negociado com mais dureza em Treblinka. Talvez não devesse ter aceite tão facilmente. Não tenho tanta certeza de que a campanha do Peter pudesse ter descarrilhado com as revelações do meu passado.
— Há coisas que são politicamente incômodas, mesmo num pais como a Áustria
— Você nos subestima, Allon.
Gabriel deixou cair algum silêncio entre eles. Já estava a começar a arrepender-se da decisão de ter vindo.
— Moshe Rivlin disse que queria me ver — disse com desprezo. — Não tenho muito tempo.
Radek endireitou-se na cadeira.
— Estava pensando se poderia me fazer a cortesia profissional de responder a algumas perguntas.
— Isso depende das perguntas. Você e eu estamos em profissões diferentes, Radek.
— Sim — disse Radek. — Eu era um agente do serviço secreto americano e você é um assassino.
Gabriel levantou-se para ir embora. Radek levantou a mão.
— Espere — disse. — Sente-se. Por favor.
Gabriel voltou a sentar-se.
— O homem que ligou para minha casa na noite do sequestro...
— Quer dizer, de sua prisão?
Radek baixou a cabeça.
— Está bem, minha prisão. Presumo que era um impostor?
Gabriel acenou que sim.
— Ele era muito bom. Como ele conseguiu imitar Kruz tão bem?
— Não espera que eu responda a isso, Radek. — Gabriel olhou para o relógio. — Espero que não me tenha feito vir até Jaffa só para me fazeres uma pergunta.
— Não — disse Radek. — Há mais uma coisa que eu gostaria de saber. Quando estávamos em Treblinka, disse que eu tinha tomado parte na evacuação de prisioneiros de Birkenau.
Gabriel interrompeu-o. — Será que podemos deixar os eufemismos de vez, Radek? Não foi uma evacuação. Foi uma marcha da morte.
Radek manteve-se em silêncio por um momento.
— Disse também que eu tinha assassinado pessoalmente alguns prisioneiros.
— Eu sei que assassinou pelo menos duas moças — disse Gabriel. — Tenho certeza de que deve ter havido mais.
Radek fechou os olhos e acenou lentamente com a cabeça que sim.
— Houve mais — disse, distante. — Muitos mais. Lembro-me desse dia como se tivesse sido na semana passada. Eu já sabia há algum tempo que o fim estava próximo, mas ver aquela coluna de prisioneiros marchando em direção ao Reich... Foi quando eu soube que era o Götterdämmerung. Era, realmente, o Crepúsculo dos Deuses.
— E então começou a matá-los?
Ele acenou de novo.
— Eles tinham me confiado a missão de guardar seu terrível segredo e estavam deixando vários milhares de testemunhas saírem vivas de Birkenau. Deve imaginar como eu me senti.
— Não — disse Gabriel com honestidade. — Nem consigo começar a imaginar como deve ter se sentido.
— Houve uma moça — disse Radek. — Lembro-me de ter perguntado o que ela diria aos filhos sobre a guerra. Ela disse que lhes diria a verdade. Ordenei que mentisse. Ela se recusou. Matei duas outras moças e, mesmo assim, ela continuava a me desafiar. Por algum motivo, deixei-a ir. Parei de matar prisioneiros depois disso. Ao olhá-la nos olhos, percebi que não valia a pena.
Gabriel baixou os olhos e fixou as mãos para evitar morder a isca de Radek.
— Presumo que esta mulher seja sua testemunha? — perguntou Radek.
— Sim, é ela.
— É engraçado — disse Radek — mas ela tem seus olhos.
Gabriel levantou o olhar. Hesitou e depois disse: — É o que me dizem.
— É sua mãe?
Mais uma hesitação, depois a verdade.
— Diria que sinto muito — disse Radek. — Mas sei que as minhas desculpas não significam nada para você.
— Tem razão — disse Gabriel. — Não diga.
— Então foi por ela que fez isso?
— Não — disse Gabriel. — Foi por todos eles.
A porta se abriu. O guarda entrou e disse que estava na hora de seguir para Yad Vashem. Radek levantou-se devagar e esticou as mãos. Os seus olhos permaneceram firmes no rosto de Gabriel enquanto as algemas eram colocadas nos seus pulsos. Gabriel acompanhou-o até a entrada e ficou a vê-lo dirigir-se pela passagem, até a parte de trás de uma van que o esperava. Já tinha visto o suficiente. Agora só queria esquecer.
APÓS DEIXAR ABU KABIR, Gabriel foi até Safed para visitar Tziona. Almoçaram num pequeno restaurante de espetadas no Bairro dos Artistas. Ela tentou conversar com ele sobre o caso Radek, mas Gabriel, afastado da presença do assassino há apenas duas horas, não estava com disposição para discuti-lo ainda mais. Obrigou Tziona a jurar segredo quanto ao envolvimento dele no caso e depois mudou de assunto de repente.
Discutiram arte durante algum tempo, depois política e finalmente o estado da vida de Gabriel. Tziona tinha conhecimento de um apartamento vazio a apenas alguns quarteirões do dela. Era grande o suficiente para albergar um Estúdio e era abençoado com a melhor iluminação da Galileia de Cima. Gabriel prometeu pensar no assunto, mas Tziona sabia que ele estava apenas a apaziguá-la. O desconforto havia voltado aos seus olhos. Ele estava pronto para partir.
Enquanto bebiam o café, ele disse-lhe que tinha encontrado um lugar para algum do trabalho da sua mãe.
— Onde?
— O Museu da Arte do Holocausto em Yad Vashem. Os olhos de Tziona inundaram-se de lágrimas.
— Que perfeito — disse ela.
Depois do almoço subiram as escadas de pedra até o apartamento de Tziona. Ela abriu o armário e cuidadosamente retirou os quadros. Passaram uma hora a escolher vinte das melhores peças para Yad Vashem. Tziona encontrou outras duas telas mostrando a imagem de Erich Radek. Perguntou a Gabriel o que queria que ela fizesse com elas.
— Queima-as — respondeu ele.
— Mas, provavelmente, valem muito dinheiro agora.
— Não me interessa o quanto valem — disse Gabriel. — Eu nunca mais quero ver a cara dele.
Tziona ajudou-o a transportar os quadros para o carro dele. Arrancou para Jerusalém sob um céu carregado de nuvens. Dirigiu-se primeiro a Yad Vashem. O conservador recebeu os quadros e apressou-se para ir assistir ao início do depoimento de Erich Radek. como o resto do país. Gabriel conduziu pelas ruas silenciosas até o Monte das Oliveiras. Pôs uma pedra na campa da sua mãe e recitou-lhe as palavras de luto Kaddish. Fez o mesmo na campa do seu pai. Depois, dirigiu-se para o aeroporto e apanhou o voo da tarde para Roma.
41
VENEZA * VIENA
NA MANHÃ SEGUINTE, na sestière de Cannaregio, Francesco Tiepolo entrou na Igreja de San Giovanni Crisóstomo e atravessou lentamente a nave. olhou para a Capela de Saint Jerome e viu luzes acesas por detrás da lona que cobre a plataforma de trabalho. Aproximou-se lentamente, agarrou no andaime com a sua mão, grande como a pata de um urso, e abanou-o violentamente. O restaurador levantou a sua viseira de lupa e fitou-o como um gárgula.
— Bem-vindo a casa, Mário — disse Tiepolo para cirna. — Estava a começar a ficar preocupado com você. Por onde andaste?
O restaurador baixou a viseira e virou o seu olhar de volta para o Bellini.
— Tenho andado a recolher centelhas, Francesco.
A recolher centelhas. Tiepolo tinha o bom senso suficiente para não fazer mais perguntas. Apenas lhe interessava ter o restaurador finalmente de volta a Veneza. — Quanto tempo até terminares?
— Três meses — disse o restaurador. — Talvez quatro.
— Três seria melhor.
— Sim, Francesco. Eu sei que três meses seria melhor. Mas se continuas a abanar a minha plataforma, nunca mais vou acabar.
— Não estás a planejar fazer mais recados, ou estás, Mário?
— Só um — disse, com o pincel pousado em frente da tela. — Mas não vou demorar. Prometo.
— Isso é o que dizes sempre.
A ENCOMENDA CHEGOU por um estafeta motorizado à Relojoaria, no Primeiro Bairro de Viena, exatamente três semanas depois. O Relojoeiro recebeu a encomenda pessoalmente. Deixou sua assinatura nos papéis do correio e deu-lhe uma pequena gorjeta pelo incômodo. Depois, levou o embrulho para a oficina e colocou-o sobre a mesa.
O estafeta montou em sua moto e afastou-se rapidamente, reduzindo por instantes no fim da rua, apenas o suficiente para fazer sinal à mulher sentada ao volante do Renault sedã. A mulher teclou um número no celular e apertou SEND. Pouco depois, o Relojoeiro respondeu.
— Acabei de lhe enviar um relógio — disse ela. — Recebeu-o?
— Quem fala?
— Sou uma amiga de Max Klein — disse ela baixinho. — E de Eli Lavon. E de Reveka Gazit. E de Sarah Greenberg.
Ela baixou o telefone e pressionou rapidamente quatro números seguidos, virando em seguida a cabeça a tempo de ver a brilhante bola de fogo vermelha emergindo da fachada da loja do Relojoeiro.
Afastou-se da calçada, mãos trêmulas no volante e dirigiu para a Ringstrasse. Gabriel tinha abandonado sua moto e esperava-a na esquina. Ela parou o carro o tempo suficiente para ele entrar, depois virou para a larga avenida e desapareceu no trânsito da tarde. Um carro da Staatspolizei passou por eles a alta velocidade na direção contrária. Chiara manteve os olhos na estrada.
— Você está bem?
— Acho que vou vomitar.
— Sim, eu sei. Quer que eu dirija?
— Não, eu consigo.
— Devia ter me deixado enviar o sinal da detonação.
— Não queria que se sentisse responsável por mais uma morte em Viena. — Ela limpou uma lágrima da face. — Pensou neles quando ouviu a explosão? Pensou em Leah e Dani?
Ele hesitou, depois abanou a cabeça.
— Pensou em quê?
Ele chegou-se a ela e limpou-lhe outra lágrima.
— Em você, Chiara — disse ele, suavemente. — Pensei apenas em você.
NOTA DO AUTOR
Morte em Viena completa um ciclo de três romances sobrem os assuntos inacabados do Holocausto. A pilhagem de arte pelos nazistas e a colaboração de bancos suíços servem de pano de fundo para O Assassino Inglês. O papel da Igreja Católica no Holocausto e o silêncio do Papa Pio XII inspiraram O Confessor. Morte em Viena, como os seus predecessores, é vagamente baseada em fatos reais. Heinrich Gross foi de fato um médico na notória clínica de Spiegelgrund durante a guerra, e a descrição da pouco empenhada tentativa austríaca de o julgar em 2000 é inteiramente exata. Nesse mesmo ano, a Áustria foi abanada por alegações afirmando que agentes da polícia e dos serviços de segurança trabalhavam para Jörg Haider e o seu Partido da Liberdade de extrema-direita para ajudar a desacreditar críticos e oponentes políticos.
Aktion 1005 foi o verdadeiro nome de código do programa nazista para ocultar as provas do Holocausto e destruir os restos mortais de milhões de judeus. O líder da operação, um austríaco chamado Paul Blobel, foi condenado em Nuremberg pelo seu papel nos assassinatos em massa dos Einsatzgruppen e condenado à morte. Enforcou-se na prisão de Landsberg em Junho de 1951, nunca foi detalhadamente questionado sobre o seu papel como comandante da Aktion 1005.
O bispo Alois Hudal foi de fato o reitor do Pontifício Santa Maria dell'Anima e ajudou centenas de criminosos de guerra nazistas a fugir da Europa, incluindo o comandante de Treblinka, Franz Stangl. O Vaticano afirma que o bispo Hudal agia sem a aprovação ou o conhecimento do Papa ou outro agente sênior da Cúria.
A Argentina, claro, foi o destino final de milhares de criminosos de guerra procurados. É possível que um pequeno número ainda lá resida nos dias de hoje. Em 1994, o antigo oficial das SS, Erich Priebke, foi descoberto a viver livremente em Bariloche por uma equipe de reportagem da ABC. Evidentemente Priebke sentia-se tão seguro em Bariloche que, em entrevista ao correspondente da ABC, Sam Donaldson, admitiu de livre vontade o seu papel central no massacre das Grutas Ardeatinas em março de 1944. Priebke foi extraditado para Itália, julgado e condenado a prisão perpétua, embora lhe tenha sido permitido cumprir a pena em "prisão domiciliária". Durante vários anos de manobras legais e apelos, a Igreja Católica permitiu a Priebke viver num mosteiro nas imediações de Roma.
Olga Lengyel, no seu testemunho 1947, memória de uma sobrevivente em Auschwitz, escreveu: "Certamente todos aqueles cujas mãos estiveram direta, ou Indiretamente manchadas com o nosso sangue devem pagar pelos seus crimes. Menos do que isso seria um ultraje contra milhões de mortes inocentes." O seu apaixonado apelo por justiça, no entanto, passou largamente despercebido. Apenas uma minúscula percentagem daqueles que levaram a cabo a Solução Final ou tiveram um papel auxiliar ou colaboracionista enfrentaram punição pelos seus crimes. Dezenas de milhar encontraram santuário em terras estrangeiras, incluindo nos Estados Unidos; outros regressaram simplesmente a casa e prosseguiram com as suas vidas. Alguns arranjaram emprego na rede de serviços secretos do General Reinhard Gehlen patrocinada pela CIA. Que impacto tiveram homens como estes na conduta da política de relações internacionais da América durante a Guerra-Fria? A resposta talvez nunca seja inteiramente conhecida.
30
VIENA
MEIA-NOITE NO Primeiro Bairro, uma calma de morte, um silêncio que só Viena consegue produzir, um majestoso vazio. Kruz achava reconfortante. Mas o sentimento não durou muito. Era raro o velho telefonar-lhe para casa, e Kruz nunca tinha sido arrastado da cama a meio da noite para uma reunião. Duvidava que as noticias fossem boas.
Olhou para o fundo da rua e não viu nada fora do normal. Uma olhadela para o retrovisor confirmou que não tinha sido seguido. Saiu e caminhou até o portão da imponente casa de pedra do velho. No piso térreo, luzes brilhavam por trás das cortinas fechadas. No segundo piso brilhava uma única luz. Kruz tocou à campainha. Tinha a sensação de estar a ser observado, qualquer coisa imperceptível, como um bafo na nuca. Olhou por cima do ombro. Nada.
Alcançou novamente a campainha, mas antes que a pudesse pressionar, um zumbido soou e a barra da fechadura saltou para trás. Empurrou o portão e atravessou o pátio frontal. Quando chegou ao pórtico, viu a porta aberta e um homem de paletó aberto e gravata solta. Não se esforçava minimamente para esconder o coldre de couro preto que continha uma pistola Glock. Kruz não estava alarmado com a visão; ele conhecia bem o homem. Era um antigo agente da Staatspolizei chamado Klaus Halder. Tinha sido Kruz a contratá-lo para guarda-costas do velho. Halder acompanhava normalmente o velho quando este saia ou quando esperava visitas em casa. A sua presença à meia-noite não era, como o telefonema para a casa de Kruz, um bom sinal.
— Onde está ele?
Halder olhou para o chão sem dizer uma palavra. Kruz desapertou a gabardina e entrou no estúdio do velho. A parede falsa estava afastada para o lado. O pequeno elevador estilo cápsula estava à espera. Entrou e o pressionar de um botão enviou-o lentamente para baixo. As portas abriram alguns segundos mais tarde, revelando uma pequena câmara subterrânea decorada com o dourado dos gostos barrocos do velho. Os americanos tinham-na construído para ele, para que conduzisse reuniões importantes sem medo que os russos pudessem estar à escuta. Construíram também a passagem, aquela alcançável através de uma porta de aço inoxidável com uma fechadura de combinação. Kruz era uma das poucas pessoas em Viena que sabia para onde a passagem conduzia e quem tinha vivido na casa do outro lado.
O velho estava sentado numa pequena mesa, uma bebida à sua frente. Kruz percebeu que ele estava inquieto, porque estava a girar o copo, duas voltas para a direita, duas para a esquerda. Direita, direita, esquerda, esquerda. Um estranho hábito, pensou Kruz. Ameaçador como o diabo. Calculou que o velho o tivesse apanhado numa vida anterior, noutro mundo. Uma imagem formou-se na mente de Kruz: um comissário russo acorrentado a uma mesa de interrogatório, o velho sentado do outro lado, vestido de preto dos pés à cabeça, girando a sua bebida e olhando para a sua presa com aqueles olhos azuis insondáveis. Kruz sentiu o seu coração dar um solavanco. Os pobres coitados estavam provavelmente cagados de medo mesmo antes de as coisas se tornarem duras.
O velho levantou o olhar, o girar do copo parou. O seu olhar calmo fixou a camisa de Kruz. Kruz olhou para baixo e viu que tinha os botões desalinhados. Tinha-se vestido no escuro para não acordar a mulher. O velho apontou para uma cadeira vazia. Kruz arranjou a camisa e sentou-se. O girar do copo recomeçou, duas voltas para a direita, duas para a esquerda. Direita, direita, esquerda, esquerda.
Falou sem saudar ou sem introdução. Era como se estivessem a continuar uma conversa interrompida por alguém que bate à porta.
— Durante as passadas setenta e duas horas — disse o velho foram planejados dois atentados contra a vida do israelense, o primeiro em Roma, o segundo na Argentina. Infelizmente o israelense sobreviveu a ambos. Em Roma, foi aparentemente salvo pela intervenção de um colega dos serviços secretos israelenses. Na Argentina, as coisas foram mais complicadas. Há provas que sugerem o envolvimento dos americanos.
Kruz, naturalmente, tinha perguntas. Em circunstâncias normais teria segurado a língua e esperado que o velho terminasse. Agora, trinta minutos depois de ter sido retirado da cama, não mostrou nenhuma da sua normal paciência.
— O que estava o israelense a fazer na Argentina?
O rosto do velho pareceu gelar, e a sua mão ficou imóvel. Kruz tinha transposto a linha, a linha que separava o que ele sabia do passado do velho daquilo que jamais saberia. Sentiu o peito encolher debaixo da pressão do olhar fixo. Não era todos os dias que se conseguia enfurecer um homem capaz de orquestrar, em setenta e duas horas e em continentes diferentes, duas tentativas de homicídio.
— Não é necessário que saibas por que razão o israelense esteve na Argentina, ou mesmo que lá tenha estado. O que precisas de saber é que este assunto deu uma reviravolta perigosa.
O girar do copo voltou.
— Como já acreditavas, os americanos sabem tudo. A minha verdadeira identidade, o que eu fiz durante a guerra. Não havia maneira de o esconder. Éramos aliados. Trabalhamos juntos na grande cruzada contra os comunistas. No passado, sempre contei com a sua discrição, não por algum sentido de lealdade para comigo, mas por simples medo de embaraço. Eu não tenho ilusões, Manfred. Sou como uma prostituta para eles. Viraram-se para mim quando estavam sozinhos e necessitados, mas agora que a guerra-fria acabou, sou como uma mulher que eles preferiam esquecer. E se agora estão de alguma forma a cooperar com os israelenses... — deixou a frase por terminar. — Estás a ver o que quero dizer, Manfred?
Kruz acenou.
— Presumo que saibam sobre Peter?
— Eles sabem tudo. Eles têm o poder de me destruir, e ao meu filho, mas apenas se estiverem dispostos a suportar a dor de uma ferida auto-infligida. Eu costumava estar seguro de que eles nunca se virariam contra mim. Agora, já não tenho certeza.
— O que queres que eu faça?
— Mantém sob vigilância constante as embaixadas israelense e americana. Designa vigilância física a todo o pessoal dos serviços secretos. Controla os aeroportos e estações de trem. Contata, também, os teus informadores nos jornais. Eles podem recorrer à imprensa. Não quero ser apanhado desprevenido.
Kruz olhou para a mesa e viu o seu próprio reflexo na superfície polida.
— E quando o ministro me perguntar por que dedico tantos recursos aos americanos e aos israelenses? O que digo?
— Preciso lembrar o que está em jogo, Manfred? O que dirá ao ministro é problema seu. Apenas faça o que digo. Não vou deixar Peter perder estas eleições. Entendeu?
Kruz olhou para os impiedosos olhos azuis e viu mais uma vez o homem vestido de preto dos pés à cabeça. Fechou os olhos e concordou com um movimento de cabeça.
O velho levou o copo aos lábios e, antes de beber, sorriu. Era tão agradável como uma súbita racha numa placa de vidro. Alcançou o bolso de peito do casaco, exibiu um pedaço de papel, e lançou-o sobre o tampo da mesa. Kruz olhou para ele enquanto deslizava, em seguida levantou o olhar.
— O que é isto?
— É um número de telefone. Kruz não tocou no papel.
— Um número de telefone?
— Nunca se sabe o que pode resultar de uma situação destas. Poderá ser necessário recorrer à violência. É possível que eu possa não estar em condições de ordenar tais medidas. Nesse caso, Manfred, a responsabilidade cai sobre ti.
Kruz pegou no pedaço de papel e levantou-o entre os seus dois dedos indicadores.
— Se ligar para este número, quem vai atender?
O velho sorriu.
— A violência.
31
ZURIQUE
HERR CHRISTIAN ZIGERLI, coordenador de eventos especiais do Dolder Grand Hotel, era como o próprio hotel: digno e pomposo, resoluto e discreto, um homem que apreciava o seu lugar de destaque na vida porque lhe permitia olhar para os outros de cima. Era também um homem que não gostava de surpresas. Normalmente, exigia setenta e duas horas de aviso prévio para reservas especiais e conferências, mas quando a Heller Enterprises e a Systech Wireless manifestaram vontade de conduzir as negociações finais da fusão no Dolder, Herr Zigerli concordou abdicar das setenta e duas horas de previsão em troca de uma sobretaxa de quinze por cento. Ele podia ser atencioso quando queria, mas ser atencioso, como todo o resto no Dolder, tinha um preço exorbitante.
A Heller Enterprises era a licitante por isso cabia-lhe tratar das reservas: não o próprio velho Rudolf Heller, claro, mas uma vistosa assistente pessoal italiana de nome Elena. Herr Zigerli tinha tendência a formar uma ideia sobre as pessoas rapidamente. Ele dizia que qualquer outro hoteleiro que fosse bom faria o mesmo. Não gostava de italianos de uma maneira geral, e a agressiva e exigente Elena rapidamente ganhou um lugar de destaque na sua lista de clientes pouco considerados. Ela falava alto ao telefone, um crime capital segundo ele, e parecia acreditar que só por gastar grandes quantidades de dinheiro do seu patrão tinha direito a privilégios especiais. Ela parecia conhecer bem o hotel. Fato estranho, já que Herr Zigerli tinha memória de elefante e não se lembrava dela como hóspede no Dolder. As suas exigências eram minunciosamente especificas. Queria quatro suítes contiguas perto do terraço com vista para o campo de golfe e para o lago. Quando Zigerli a informou que não seria possível — duas mais duas, ou três mais uma, mas não quatro seguidas — perguntou se os hóspedes podiam ser recolocados para a acomodar. Lamento, disse o hoteleiro, mas o Dolder Grand não tem o hábito de transformar hóspedes em refugiados. Ela decidiu optar por três suítes contiguas a uma quarta mais ao fundo do corredor.
— As delegações vão chegar às duas da tarde de amanhã — disse ela. — E gostariam de um almoço de trabalho leve.
Seguiram-se mais dez minutos de discussão sobre o que constituía um "almoço de trabalho leve".
Quando o menu ficou completo, Elena atirou mais uma exigência. Ela chegaria quatro horas antes das delegações, acompanhada pelo chefe de segurança da Heller, para inspecionar os quartos. Assim que as inspeções estivessem terminadas, não seria permitida a entrada de pessoal do hotel, exceto se acompanhados pela segurança da Heller. Herr Zigerli suspirou profundamente e concordou, em seguida desligou o telefone e, com a porta do seu gabinete fechada e trancada, fez uma série de exercícios de respiração para acalmar os nervos.
A manhã das negociações amanheceu cinza e fria. Os torreões majestosos do Dolder furavam o cobertor de nevoeiro gelado, e o asfalto perfeito da entrada brilhava como granito preto polido. Herr Zigerli estava de guarda no lobby, mesmo por trás das reluzentes portas de vidro, pés à largura dos ombros, mãos de lado, preparado para a batalha. Ela vai atrasar-se, pensou. Atrasam-se sempre. Ela vai precisar de mais suites. Ela vai querer mudar o menu. Ela vai ser perfeitamente horrível.
Um Mercedes sedã preto deslizou até a entrada e parou à porta. Herr Zigerli olhou discretamente para o relógio de pulso. Precisamente dez horas. Impressionante. O paquete abriu a porta traseira e uma lustrosa bota preta emergiu — Bruno Magli, reparou Zigerli — seguido por um torneado joelho e coxa. Herr Zigerli balançou para a frente nas pontas dos pés e alisou o cabelo sobre a zona careca. Já tinha visto muitas belas mulheres pairando pela famosa entrada do Dolder Grand, mesmo assim, poucas a tinham passado com mais graça e estilo que a encantadora Elena da Heller Enterprises. Ela tinha o cabelo acastanhado, preso por um gancho na nuca, e pele da cor do mel. Os seus olhos castanhos salpicados de dourado pareciam ter ganho ainda mais brilho quando lhe apertou a mão. A sua voz, tão alta e exigente pelo telefone, era agora suave e arrebatadora, assim como o seu sotaque italiano. Ela largou-lhe a mão e voltou-se para o acompanhante pouco sorridente.
— Herr Zigerli, este é o Oskar. O Oskar é segurança.
Aparentemente, o Oskar não tinha apelido. Nem precisava, pensou Zigerli. Ele tinha a constituição de um lutador de wrestling, com cabelo ruivo claro e sardas vagas espalhadas pelas largas bochechas. Herr Zigerli, um observador treinado da condição humana, viu qualquer coisa de familiar em Oskar. Um colega de tribo, por assim dizer. Ele conseguia imaginá-lo há dois séculos atrás, nas roupas de um lenhador, caminhando pesadamente por um trilho pela Floresta Negra. Como todos os bons seguranças, Oskar deixou os olhos falarem por si, e os seus olhos disseram a Herr Zigerli que ele estava ansioso por começar o trabalho.
— Eu levo-os aos seus quartos — disse o hoteleiro. — Por favor sigam-me. Herr Zigerli decidiu levá-los pela escada em vez do elevador. Era um dos mais finos atributos do Dolder, e Oskar, o lenhador, não parecia ser do tipo que prefere esperar pelos elevadores quando há um lanço de escadas para subir. Os quartos eram no quarto piso. No patamar, Oskar estendeu a mão para receber os cartões eletrônicos.
— A partir daqui é conosco se não se importa. Não é necessário mostrar-nos o interior dos quartos. Já todos estivemos em hotéis antes.
Uma piscadela cúmplice, uma palmadinha no ombro.
— Indique-nos apenas para onde é. Ficamos bem.
De fato, ficarão, pensou Zigerli. Oskar era um homem que inspirava confiança a outros homens. Mulheres também, Zigerli suspeitou. Ponderou se a deliciosa Elena — ele já começava a pensar nela como a sua Elena — seria uma das conquistas de Oskar. Colocou os cartões eletrônicos na palma da mão de Oskar e indicou-lhes o caminho.
Herr Zigerli era um homem de muitas máximas : "Um cliente sossegado é um cliente satisfeito" estava entre as suas preferidas. E a partir daí interpretou o subsequente silêncio no quarto piso como prova que Elena e o seu amigo Oskar estavam satisfeitos com as acomodações. Isto, por sua vez, satisfazia Herr Zigerli. Ele agora gostava de fazer Elena feliz. Conforme foi continuando pelo resto da manhã, ela estava-lhe na cabeça, como o traço de essência que se lhe tinha colado à mão.
Ele encontrou-se ansioso por algum problema, alguma queixa disparatada que requeresse contato com ela. Mas não houve nada, apenas o silêncio da perfeição. Ela tinha o Oskar agora. Ela não tinha necessidade do coordenador de eventos especiais do melhor hotel da Europa. Herr Zigerli, uma vez mais, tinha feito o seu trabalho bem demais.
Não ouviu nada deles, nem os viu, até as duas da tarde quando se reuniram na recepção e formaram uma improvável comissão de boas-vindas para as delegações que chegavam. Havia agora neve a cair no pátio frontal. Zigerli acreditava que o mau tempo apenas realçava o encanto do hotel: um abrigo da tempestade, como a própria Suíça.
A primeira limusina parou na entrada e largou dois passageiros. Um era o próprio Herr Rudolf Heller, um homem baixo e velho, vestindo um dispendioso terno preto e gravata prateada. Os seus óculos ligeiramente fumados sugeriam um problema na visão; o seu passo rápido e impaciente deixava a impressão de que, apesar da idade avançada, ele era um homem capaz de cuidar de si próprio. Herr Zigerli deu-lhe as boas-vindas ao Dolder e apertou-lhe a mão. Parecia feita de pedra. Estava acompanhado pelo carrancudo Herr Keppelmann. Vinte e cinco anos mais novo que Heller, cabelo curto, grisalho nas têmporas, olhos muito verdes. Herr Zigerli já tinha visto uma boa quantidade de guarda-costas no Dolder, e Herr Keppelmann parecia encaixar no perfil. Calmo, mas vigilante, silencioso como um rato de sacristia, seguro no passo e forte. Os olhos cor de esmeralda eram serenos, mas em constante movimento. Herr Zigerli olhou para Elena e reparou que o seu olhar estava fixado em Herr Keppelmann. Talvez ele se tivesse enganado sobre Oskar. Talvez o taciturno Keppelmann fosse o homem mais sortudo do mundo.
Os americanos chegaram a seguir: Brad Cantwell e Shelby Somerset, o CEO e COO da System Communications, Inc., de Reston, Virgínia. Notava-se sofisticação que Zigerli não costumava ver em americanos. Não eram exageradamente amigáveis, nem estavam a bramir para os celulares quando entraram na recepção.
Cantwell falou alemão assim como Herr Zigerli e evitou cruzar o olhar. Somerset era o mais afável dos dois. O seu tom aristocrático, o blazer azul bastante viajado e a gravata às riscas ligeiramente amarrotada identificavam-no como um yuppie Oriental.
Herr Zigerli fez alguns comentários de boas-vindas, e depois recuou calmamente para segundo plano. Era algo que ele fazia excepcionalmente bem. Enquanto Elena conduzia o grupo em direção à escadaria, ele deslizou para seu gabinete e fechou a porta. Um impressionante grupo de homens, pensou. Ele esperava que grandes coisas saíssem deste empreendimento. O seu papel no assunto, embora menor, foi executado com precisão e competência serena. Nos dias de hoje, tais atributos tinham pouco valor, mas eram a moeda do reino miniatura de Herr Zigerli. Ele suspeitava que os homens da Heller Enterprises e System Communications provavelmente sentiam o mesmo.
NO CENTRO DE ZURIQUE, numa rua calma perto do local onde as águas verdes do Rio Limmat desaguam no lago, Konrad Becker estava a encerrar o seu banco privado por aquele dia quando o telefone na sua mesa tocou com suavidade. Tecnicamente, ainda faltavam cinco minutos para a hora de fecho, mas estava tentado a deixar o gravador atender. Backer sabia por experiência que só clientes problemáticos telefonavam tão tarde, e o seu dia já tinha sido difícil o suficiente. Em vez disso, como um bom banqueiro suíço, alcançou o receptor e levou-o à orelha sem pensar.
— Becker and Puhl.
— Konrad, é Shelby Somerset. Como é que estás?
Becker engoliu em seco. Somerset era o nome do americano da CIA: pelo menos, Somerset era como ele dizia que se chamava. Becker duvidava seriamente que fosse o seu nome verdadeiro.
— O que posso fazer por si, senhor Somerset?
— Como entrada podes deixar-te de formalismos, Konrad.
— E como prato principal?
— Podes descer a escada, ir até a Talstrasse e entrar no Mercedes que está lá à tua espera.
— E porque quereria eu fazer isso?
— Eu preciso de te ver.
— Onde é que o Mercedes me vai levar?
— A um sítio agradável, garanto-te.
— E como devo ir vestido?
— Traje executivo serve perfeitamente. E, Konrad?
— Sim, senhor Somerset?
— Não penses em armar-te em difícil. Isto é a sério. Desce a escada. Entra no carro. Estamos de olho em ti. Estamos sempre de olho em ti.
— Que reconfortante, senhor Somerset — disse o banqueiro, mas a ligação já tinha sido cortada.
VINTE MINUTOS MAIS TARDE, Herr Zigerli estava na recepção quando reparou num dos americanos, Shelby Somerset, a caminhar ansioso na parte de fora da entrada. Um momento mais tarde, um Mercedes prateado parou e uma pequena figura careca saiu do banco de trás. Mocassins indianos polidos, uma pasta à prova de choque. Um banqueiro, pensou Zigerli. Apostava o seu ordenado nisso. Somerset fez ao recém-chegado um sorriso amigável e deu uma palmada firme no ombro. O pequeno homem, apesar da calorosa recepção, parecia no entanto estar a caminhar para a sua própria execução. Mesmo assim, Herr Zigerli achou que as conversações estavam a correr bem. O homem do dinheiro tinha chegado.
— BOA TARDE, HERR BECKER. É um prazer vê-lo. Eu sou Heller. Rudolf Heller. Este é o meu sócio, senhor Keppelmann. Aquele homem ali é o nosso parceiro americano, Brad Cantwell. É obvio que você e o senhor Somerset já se conhecem. O banqueiro piscou os olhos várias vezes e depois fixou o seu pequeno olhar astuto em Shamron, como se estivesse a tentar calcular o seu valor liquido. Segurou a pasta sobre os genitais, em antecipação de um ataque iminente.
— Os meus associados e eu estamos prestes a embarcar numa joint-venture. O problema é que não conseguimos fazê-lo sem a sua ajuda. É isso que fazem os banqueiros, não é, Herr Becker? Ajudam a lançar grandes empreendimentos? Ajudam as pessoas a realizar os seus sonhos e o seu potencial?
— Depende do empreendimento, Herr Heller.
— Estou a ver — disse Shamron, sorrindo. — Por exemplo, há muitos anos atrás, um grupo de homens foi ver você. Alemães e austríacos. Queriam lançar um grande empreendimento também. Confiaram-lhe uma grande soma de dinheiro e deram-lhe o poder de transformar numa soma ainda maior. Você se saiu extraordinariamente bem. Transformou-a numa montanha de dinheiro. Presumo que se lembre desses cavalheiros? Presumo que também saiba onde conseguiram o dinheiro?
O olhar do banqueiro suíço endureceu. Tinha concluído o cálculo sobre o valor líquido de Shamron.
— É israelense, não é?
— Prefiro pensar em mim mesmo como um cidadão do mundo — respondeu Shamron. — Moro em muitos lugares, falo a língua de muitas terras. A minha lealdade, como os meus interesses financeiros, não tem fronteiras nacionais. Como suíço tenho certeza que consegue entender o meu ponto de vista.
— Eu entendo — disse Becker — mas não acredito numa palavra do que diz.
— E se eu fosse de Israel? — perguntou Shamron. — Isso teria algum impacto na sua decisão?
— Teria.
— Como?
— Não me interessam os israelenses — disse Becker prontamente. — E os judeus também.
— Lamento ouvir isso, Herr Becker, mas um homem tem direito a sua opinião, e não vou discutir isso. Nunca deixo politicagem meter-se no caminho dos negócios. Preciso de ajuda para o meu empreendimento, e você é a única pessoa que pode me ajudar.
Becker elevou o sobrolho zombeteiramente.
— Qual é exatamente a natureza deste empreendimento, Herr Heller?
— É bem simples, na verdade. Quero que me ajude a sequestrar um de seus clientes.
— Parece-me, Herr Heller, que esse empreendimento seria uma violação das leis de segredo bancário e de várias outras leis deste pais.
— Então suponho que teremos de manter seu envolvimento em segredo.
— E se eu me recusar a cooperar?
— Então serei obrigado a contar ao mundo que você é o banqueiro dos assassinos, que está sentado em dois bilhões e meio de dólares de pilhagens do Holocausto. Soltaremos os cães de caça do Congresso Judaico Mundial sobre você. Quando terminarem, você e o seu banco estarão em farrapos.
O banqueiro suíço lançou um olhar de súplica a Shelby Somerset.
— Nós tínhamos um acordo.
— Ainda temos — balbuciou o sedento americano —, mas os contornos do acordo mudaram. Seu cliente é um homem muito perigoso. Passos precisam de ser dados para neutralizá-lo. Precisamos de você, Konrad. Ajude-nos a resolver um problema. Vamos fazer o bem juntos.
O banqueiro trauteou com os dedos na pasta.
— Tem razão. Ele é um homem perigoso, e se eu ajudo a sequestrá-lo, é melhor começar a abrir a minha própria sepultura.
— Estaremos lá, Konrad. Vamos protegê-lo.
— E se os contornos do acordo mudarem novamente? Quem vai me proteger então?
Shamron intercedeu.
— Receberia cem milhões de dólares com a dispersão final da conta. Agora não haverá dispersão final da conta porque vai me entregar o dinheiro todo. Se colaborar, deixo-o ficar com metade do montante a receber. Presumo que consiga fazer a conta, Herr Becker?
— Consigo.
— Cinquenta milhões de dólares é mais do que merece, mas estou disposto a deixá-lo ficar com esse montante para ganhar a sua cooperação neste assunto. Um homem consegue comprar muita segurança com cinquenta milhões.
— Quero isso por escrito, um termo de garantia.
Shamron abanou a cabeça com desdém, como se dissesse que havia algumas coisas, e devia saber melhor que qualquer um, meu querido companheiro, que não se põe por escrito.
— O que precisa de mim? — perguntou Becker.
— Vai nos ajudar a entrar na casa dele.
— Como?
— Vai precisar vê-lo com urgência sobre um assunto qualquer da conta. Talvez alguns papéis que precisem ser assinados, alguns detalhes finais da preparação para a liquidação e dispersão dos bens.
— E assim que estiver dentro da casa?
— O seu trabalho termina. O seu novo assistente trata do resto a partir daí.
— Meu novo assistente?
Shamron olhou para Gabriel.
— Talvez seja hora de apresentar Herr Becker a seu novo parceiro.
ELE ERA UM HOMEM de muitos nomes e muitas personalidades. Herr Zigerli conhecia-o como Oskar, o chefe de segurança da Heller. O senhorio da sua morada em Paris conhecia-o como Vincent Laffont, um escritor freelancer viajante de descendência britânica que passava a maior parte do seu tempo de mala às costas. Em Londres, era conhecido como Clyde Bridges, diretor de marketing europeu de uma obscura firma de software canadiana. Em Madrid, ele era um alemão rico de alma inquieta, que preguiçava horas em cafés e bares, e viajava para aliviar o aborrecimento.
O seu nome verdadeiro era Uzi Navot. No léxico hebraico dos serviços secretos israelenses, Navot era um katsa, um operacional de campo secreto e oficial de casos.
O seu território era a Europa Ocidental. Detentor de um charme malandro, poliglota e de uma arrogância fatalista, Navot tinha penetrado células de terrorismo palestino e recrutado agentes em embaixadas árabes espalhadas pelo continente. Possuía contatos em quase todos os serviços secretos e de segurança da Europa e orientava uma vasta rede de sayanim, auxiliares voluntários recrutados em comunidades judaicas locais. Podia sempre contar com a melhor mesa na sala de grelhados do Ritz de Paris porque o maître d'hôtel era um informante pago, assim como o chefe dos serviços de limpeza.
— Konrad Becker, apresento-lhe Oskar Lange.
O banqueiro permaneceu sentado e imóvel por um longo momento, como se tivesse sido subitamente transformado em estátua. Então os seus pequenos olhos espertos pousaram em Shamron, e levantou as mãos num gesto inquisitório.
— O que devo fazer eu com ele.
— Diga-nos você. Ele é muito bom, o nosso Oskar.
— Consegue fazer-se passar por advogado?
— com a devida preparação, ele conseguia fazer-se passar pela sua mãe.
— Quanto tempo tem de durar esta charada?
— Cinco minutos, talvez menos.
— Quando se está com Ludwig Vogel, cinco minutos podem parecer uma eternidade.
— Foi o que ouvi dizer — disse Shamron.
— E o Klaus?
— Klaus?
— O guarda-costas de Vogel.
Shamron sorriu. A resistência tinha terminado. O banqueiro suíço juntara-se à equipe e jurara fidelidade à bandeira de Herr Heller e o seu nobre empreendimento.
— Ele é muito profissional — disse Becker. — Já estive na casa meia dúzia de vezes, mas ele revista-me sempre minuciosamente e pede-me para abrir a pasta. Portanto, se está a pensar levar uma arma para dentro da casa...
Shamron interrompeu-o.
— Não tencionamos levar armas para dentro da casa.
— Klaus está sempre armado.
— Tem a certeza?
— Uma Glock, penso eu. — O banqueiro deu uma palmadinha no lado esquerdo do seu peito. — Usa-a aqui. Não faz muito esforço em escondê-la.
— Um pormenor encantador, Herr Becker.
O banqueiro aceitou o elogio com uma inclinação da cabeça.
— Pormenores são a minha vida, Herr Heller.
— Perdoe a minha insolência, Herr Heller, mas como é que se rapta alguém que está protegido por um guarda-costas, se o guarda-costas está armado e o raptor não?
— Herr Vogel vai abandonar a casa voluntariamente.
— Um rapto voluntário? — o tom de Becker era incrédulo. — Que peculiar. E como é que se convence um homem a deixar-se raptar voluntariamente ?
Shamron cruzou os braços.
— Preocupe-se em levar o Oskar para dentro da casa e deixe o resto connosco.
32
MUNIQUE
NO BONITO PEQUENO bairro de Lehel em Munique havia um velho apartamento, com um portão para a rua e um bem arranjado pátio na entrada principal. O elevador era instável e indeciso, e eram mais as vezes que subiam a escada em caracol até o terceiro andar. O mobiliário tinha o anonimato de um quarto de hotel. Havia duas camas no quarto, e o sofá da sala de estar era um davenport. Na arrecadação havia quatro camas extras de abrir. A despensa estava cheia de produtos não deterioráveis e os armários continham louça e talheres para oito. As janelas da sala de estar tinham vista para a rua, mas os estores mantinham-se fechados o tempo todo, para que dentro do apartamento parecesse sempre fim de dia. Os telefones não tinham campainha. Em vez disso, estavam equipados com luzes vermelhas que piscavam para indicar que estava a tocar.
As paredes da sala de estar estavam forradas de mapas: centro de Viena, Viena metropolitana, Áustria oriental, Polônia. Na parede oposta às janelas estava pendurado um enorme mapa da Europa Central, que mostrava toda a rota de fuga, esticando-se de Viena até a costa do Báltico. Shamron e Gabriel discutiram a cor antes de decidirem pelo vermelho. À distância parecia um rio de sangue, como Shamron desejara, o rio de sangue que fluía pelas mãos de Erich Radek. Só falavam em alemão no apartamento. Shamron tinha-o decretado. Radek era referido como Radek e apenas Radek; Shamron não iria chamá-lo pelo nome que ele comprara aos americanos. Shamron decretou outras regras também. Era a operação de Gabriel, e consequentemente era um espetáculo dirigido por Gabriel. Era Gabriel, com o sotaque berlinense da sua mãe, que orientava as equipes, Gabriel que revia os relatórios de Viena, e Gabriel quem tomava todas as decisões operacionais finais.
Durante os primeiros dias, Shamron esforçou-se para se encaixar no seu papel de apoio, mas à medida que a sua confiança em Gabriel ia crescendo, descobriu ser mais fácil retirar-se para segundo plano. Ainda assim, cada agente que passava pelo apartamento seguro reparava na nuvem negra que pairava sobre ele. Parecia não dormir nunca. Ele permanecia de pé perante os mapas todo o tempo, ou sentava-se na mesa da cozinha no escuro, fumando como uma chaminé: como um homem que luta contra uma consciência pesada.
— Ele é como um doente terminal que planeia o seu próprio funeral —, assinalou Oded, um veterano agente de língua alemã que Gabriel tinha escolhido para conduzir o carro de fuga. — E se correr mal, eles gravarão isso na sua lápide, mesmo por baixo da Estrela de David.
Sob condições perfeitas, tal operação envolveria semanas de preparação. Gabriel tinha apenas dias. A operação Ira de Deus tinha-o preparado bem. Os terroristas do Setembro Negro estavam constantemente em movimento, aparecendo e desaparecendo com uma frequência de fazer enlouquecer. Quando alguém era localizado e identificado, a equipe de choque entrava em ação à velocidade da luz. Equipas de vigilância eram preparadas, veículos e apartamentos seguros eram alugados, rotas de fuga eram planejadas. O reservatório de experiência era muito útil a Gabriel em Munique. Poucos agentes secretos sabiam mais sobre planeamento rápido e ataques súbitos do que ele e Shamron.
Ao fim do dia, viam as noticias na televisão alemã. As eleições na vizinha Áustria captavam a atenção dos espectadores alemães. Metzler estava na frente. As multidões nos comícios de campanha, como a sua liderança nas sondagens, cresciam de dia para dia. A Áustria, assim parecia, estava prestes a fazer o impensável, eleger um chanceler da extrema-direita. Dentro do apartamento seguro, Gabriel e a sua equipe descobriram-se na bizarra posição de torcer pela subida de Meztler nas sondagens, pois sem Metzler, a porta para Radek estava fechada.
Invariavelmente, pouco depois das noticias, Lev revia a operação a partir de King Saul Boulevard e sujeitava Gabriel a uma fastidiosa examinação cruzada dos eventos do dia. Era a única vez que Shamron se sentia aliviado por não carregar o fardo do comando operacional. Gabriel dava voltas ao apartamento com o telefone colado à orelha, respondendo pacientemente às questões de Lev. E por vezes, se a luz estivesse correta, Shamron veria a mãe de Gabriel, caminhando ao lado dele. Ela era o único membro da equipe que nunca ninguém mencionou.
UMA VEZ POR DIA, normalmente ao fim da tarde, Gabriel e Shamron escapavam do apartamento seguro para passear nos Jardins Ingleses. A sombra de Eichmann pairava sobre eles. Gabriel reconheceu que ele estivera lá desde o inicio. Ele tinha ido a Viena naquela noite em que Max Klein contara a Gabriel a história do oficial SS que assassinara uma dúzia de prisioneiros em Birkenau e agora saboreava café todas as tardes no Café Central. Mesmo assim, Shamron tinha diligentemente evitado falar no seu nome, até agora.
Gabriel já tinha ouvido a história da captura de Eichmann muitas vezes. De fato, Shamron tinha-a contado em Setembro de 1972 para espicaçar Gabriel a juntar-se ao grupo da Ira de Deus. A versão que Shamron lhe contou durante esses passeios ao longo dos trilhos de árvores dos Jardins Ingleses era mais detalhada que qualquer outra que Gabriel tivesse escutado antes. Gabriel sabia que isto não era apenas divagação de um velho tentando reviver glórias passadas. Os editores podiam esperar sentados pelas suas memórias, Shamron não era de apregoar o seu próprio sucesso. Gabriel sabia que Shamron lhe estava a contar a história de Eichmann por uma razão. Eu já fiz a viagem que estás prestes a fazer, dizia Shamron. Noutro tempo, noutro local, na companhia de outro homem, mas há coisas que deves saber. Gabriel, por vezes, não conseguia afastar a sensação de estar a caminhar com a História.
— A parte mais difícil foi esperar pelo avião de fuga. Estávamos presos na casa segura com aquela ratazana humana. Alguns elementos da equipe não suportavam olhar para ele. Eu tinha de me sentar no seu quarto noite após noite e vigiá-lo. Ele estava acorrentado à cama de ferro vestido com um pijama e tinha óculos opacos a tapar os olhos. Estávamos estritamente proibidos de conversar com ele. Apenas o interrogador estava autorizado a falar com ele. Eu não consegui obedecer a essas ordens. Sabes, eu precisava de saber. Como é que este homem, que se enjoava ao ver sangue, matou seis milhões do meu povo? A minha mãe e o meu pai? As minhas duas irmãs? Perguntei-lhe porque o tinha feito? Ele disse-me que o tinha feito porque era o seu trabalho, o seu trabalho, Gabriel, como se ele não fosse mais que um empregado bancário ou um maquinista de trem.
E mais tarde, encostados aos balaústres de uma velha ponte sobre um ribeiro:
— Só o quis matar uma vez, Gabriel, quando ele me tentou dizer que não odiava o povo judeu, que na verdade gostava e admirava o povo judeu. Para me mostrar o quanto ele gostava de judeus, começou a recitar as nossas palavras: Shema, Yisrael, Adonai Eloheinu, Adonai Echad! Eu não conseguia ouvir aquelas palavras vindas daquela boca, a boca que tinha dado ordens para assassinar seis milhões. Cravei-lhe a mão sobre a cara até que ele se calasse. Ele começou a abanar e a ter convulsões. Pensei que lhe tinha causado um ataque de coração. Ele perguntou-me se eu o ia matar. Ele suplicou-me que não fizesse mal ao seu filho. Este homem que tinha arrancado os filhos dos braços dos pais e os tinha lançado ao fogo estava preocupado com o seu próprio filho, como se nós fossemos agir como ele, como se nós fossemos assassinar crianças.
E numa gasta mesa de madeira, numa esplanada deserta:
— Nós queríamos que ele concordasse em voltar connosco para Israel voluntariamente. Ele, claro, não queria ir. Ele queria ser julgado na Argentina ou na Alemanha. Eu disse-lhe que isso não era possível. De uma maneira ou de outra, ele ia ser julgado em Israel. Eu arrisquei a minha carreira permitindo que ele tivesse um pouco de vinho tinto e um cigarro. Eu não bebi com o assassino. Eu não podia. Assegurei-lhe que lhe seria dada a oportunidade de contar a sua versão da história, que lhe seria oferecido um julgamento apropriado com uma defesa adequada. Ele não tinha ilusões sobre o resultado, mas a noção de se poder explicar ao mundo era-lhe de alguma forma apelativa. Também apontei o fato de que ele teria a dignidade de saber que estava prestes a morrer, algo que ele negou aos milhões que marcharam para as salas de despir e para as câmaras de gás enquanto Max Klein lhes tocava serenatas. Ele assinou o papel, datou-o como um bom burocrata alemão, e estava feito.
Gabriel escutou atentamente com a gola do casaco elevada para proteger as orelhas e as mãos enfiadas nos bolsos. Shamron mudou o foco de Adolf Eichmann para Erich Radek.
— Tu tens uma vantagem porque já estiveste cara-a-cara com ele uma vez, no Café Central. Eu apenas vira Eichmann ao longe, enquanto vigiávamos a sua casa e planeávamos o rapto, mas nunca falara com ele ou mesmo estivera perto dele. Eu sabia exatamente a sua altura, mas não conseguia imaginar.
Eu tinha ideia de como a sua voz soaria, mas não é a mesma coisa. Tu conheces Radek, mas infelizmente ele também sabe muito sobre ti, também, graças a Manfred Kruz. Ele vai querer saber mais. Ele vai sentir-se exposto e vulnerável. Ele vai tentar equilibrar o jogo fazendo-te perguntas. Ele vai querer saber porque o estás a perseguir. Sob nenhuma circunstância deves envolver-te como numa conversa normal. Lembra-te, Erich Radek não era um guarda de campo ou um operador de câmara de gás. Ele era um SD, um interrogador hábil. Ele vai tentar fazer uso dessas habilidades uma última vez para evitar o seu destino. Não te deixes cair nas suas mãos. És o responsável agora. Ele vai tentar contradizer-te e abalar as tuas convicções.
Gabriel olhou para baixo, como se estivesse a ler as palavras gravadas na mesa.
— Então porque merecem Eichmann e Radek as armadilhas da justiça — disse ele finalmente — e os palestinos do Setembro Negro apenas a vingança?
— Terias dado um excelente estudante Talmud, Gabriel.
— E tu estás a fugir à minha pergunta.
— Obviamente, que houve uma medida de pura vingança na nossa decisão contra os terroristas do Setembro Negro, mas foi mais do que isso. Eles constituem uma ameaça contínua. Se não os matássemos seriam eles a matar-nos. Era guerra.
— Porque não prendê-los, levá-los a julgamento?
— Para que pudessem declamar a sua propaganda a partir de um tribunal israelense?
— Shamron abanou a cabeça lentamente. — Eles já fizeram isso — levantou a mão e apontou para a torre que se ergue no Parque Olímpico — aqui mesmo nesta cidade, em frente às câmaras de todo o mundo. Não nos competia a nós dar-lhes outra oportunidade de justificarem o massacre de inocentes.
Baixou a mão e inclinou-se sobre a mesa. Foi nessa altura que contou a Gabriel os desejos do primeiro-ministro. Enquanto conversava, a sua respiração gelava perante ele.
— Eu não quero matar um velho — disse Gabriel.
— Ele não é um velho. Ele usa as roupas de um velho e esconde-se por trás do rosto de um velho, mas ele ainda é Erich Radek, o monstro que matou uma dúzia de homens em Auschwitz porque não conseguiram identificar uma peça de Brahms. O monstro que matou duas moças à beira de uma estrada polonesa porque não quiseram negar as atrocidades de Birkenau. O monstro que abriu as campas de milhões e sujeitou os seus cadáveres a uma humilhação final. A velhice não perdoa tais pecados.
Gabriel levantou os olhos e fitou o olhar insistente de Shamron.
— Eu sei que ele é um monstro. Eu só não quero matá-lo. Eu quero que o mundo saiba o que este homem fez.
— Então é melhor preparares-te para a batalha com ele. — Shamron olhou para o seu relógio de pulso. — Mandei vir uma pessoa para te ajudar. De fato, deve estar mesmo a chegar.
— Porque só agora estou a saber disso? Pensava que era eu que tomava todas as decisões operacionais.
— E és — disse Shamron. — Mas por vezes eu tenho de mostrar o caminho. É para isso que servem os velhos.
NEM GABRIEL NEM Shamron acreditavam em prenúncios ou presságios. Se acreditassem, a operação que trouxe Moshe Rivlin de Yad Vashem até a casa segura em Munique teria lançado dúvidas sobre a capacidade da equipe para levar a cabo a tarefa que tinham pela frente.
Shamron queria que Rivlin fosse contatado discretamente. Infelizmente, King Saul Boulevard confiou o trabalho a um par de aprendizes acabados de sair da academia, ambos nitidamente de aparência sefardita. Decidiram contatar Rivlin enquanto este caminhava de Yad Vashem para o seu apartamento perto do mercado Yehuda. Rivlin, que tinha sido criado na zona de Bensonhurts no Brooklyn e ainda era vigilante quando caminhava pela rua, rapidamente notou que estava a ser seguido por dois homens de carro. Presumiu que fossem homens-bomba do Hamas ou um par de criminosos de rua. Quando o carro parou ao lado dele e os seus ocupantes pediram para falar, Rivlin desatou a correr como um louco. Para surpresa de todos, o atarracado arquivista provou ser uma presa esquiva e conseguiu escapar aos seus captores durante vários minutos até ser encurralado pelos dois agentes do Escritório na Rua Ben Yehuda.
Ele chegou ao apartamento seguro em Lehel ao fim dessa tarde, carregando duas malas cheias de material de pesquisa e irritado pela maneira como tinha sido convocado.
— Como esperam raptar um homem como Erich Radek se não conseguem apanhar um arquivista gordo? Vá lá — disse ele, puxando Gabriel para a privacidade do quarto do fundo. — Temos muito terreno para cobrir e pouco tempo para o fazer. No SÉTIMO DIA, Adrian Carter chegou a Munique. Era uma quarta-feira; chegou ao apartamento seguro ao fim da tarde, quando o crepúsculo se tornava escuro. O passaporte no bolso do seu sobretudo ainda dizia Brad Cantwell. Gabriel e Shamron tinham acabado de regressar de um passeio nos Jardins Ingleses e ainda estavam embrulhados em chapéus e cachecóis. Gabriel tinha enviado o resto dos elementos da equipe para as posições de fase final, consequentemente o apartamento seguro estava vazio de pessoal do Escritório. Apenas Rivlin permanecia. Saudou o diretor da CIA com a camisa para fora e os sapatos descalçados e disse que seu nome era Yaacov. O arquivista tinha-se adaptado bem à disciplina da operação.
Gabriel fez o chá. Carter desabotoou o casaco e conduziu-se a si próprio numa preocupada excursão pelo apartamento. Passou bastante tempo em frente aos mapas. Carter acreditava em mapas. Os mapas nunca te mentirão. Os mapas nunca te dirão o que eles acham que tu queres ouvir.
— Gosto do que fizeste com o sitio, Herr Heller. — Carter finalmente despiu o sobretudo. — Miséria neo-contemporânea. E o cheiro. Tenho certeza de que o conheço. Trazido da Wienerwald ao fundo do quarteirão, se não estou em erro. Gabriel entregou-lhe uma caneca de chá com o cordão da saqueia ainda pendente do rebordo.
— Porque estás aqui Adrian?
— Pensei em passar para ver se precisavam de ajuda.
— Tretas.
Carter sentou-se pesadamente no sofá, um vendedor no final de uma longa e improdutiva viagem pela estrada. — Verdade seja dita, estou aqui por ordem do meu diretor. Parece que ele está com um sério ataque de nervosismo. Ele sente que estamos juntos num ramo e vocês estão com a motosserra nas mãos. Ele quer que a Agência seja posta na jogada.
— E isso significa o quê?
— Ele quer saber o plano de jogo.
— Tu sabes o plano de jogo, Adrian. Eu disse-te o plano de jogo em Virginia. Não se alterou.
— Eu sei os esboços do plano — disse Carter. — Agora quero ver o quadro pronto.
— O que estás a dizer é que o teu diretor quer rever o plano e dar a palavra final.
— Algo do gênero. E quando acontecer, ele quer que eu fique na retaguarda com o Ari também.
— E se lhe dissermos para ir para o inferno?
— Eu diria que há cinquenta por cento de hipóteses de alguém sussurrar um aviso na orelha de Erich Radek, e perdem-no. Joga com o diretor, Gabriel. É a única maneira de apanhares Radek.
— Estamos prontos para agir, Adrian. Agora é a altura para sugestões úteis do sétimo andar.
Shamron sentou-se ao lado de Carter.
— Se o teu diretor tivesse dez gramas de cérebro, ficaria o mais afastado disto que conseguisse.
— Tentei explicar-lhe isso — não nesses termos, claro, mas qualquer coisa perto. Ele não tem nada disso. Ele veio da Wall Street, o nosso diretor. Ele gosta de pensar em si próprio como um individuo prático, atacante. Sempre soube o que cada divisão da companhia estava a fazer. Tenta gerir a Agência da mesma maneira. E como sabes, é também amigo do presidente. Se o chateias, ele telefona para a Casa Branca, e acaba-se.
Gabriel olhou para Shamron, que cerrava os dentes e acenava a cabeça. Carter
obteve o seu relatório. Shamron permaneceu sentado por alguns minutos, mas em breve estava de pé a percorrer a sala, como um chefe cujas receitas secretas estão a ser entregues a um concorrente do outro lado da rua. Quando terminou, Carter dispensou um longo tempo enchendo a fornilha do seu cachimbo com tabaco.
— Parece-me que os cavalheiros estão prontos — disse ele. — De que estão à espera? Se fosse vocês, punha-me em ação antes que o meu diretor que tem a palavra final decida que quer fazer parte da equipe de rapto.
Gabriel concordou. Levantou o telefone e ligou para Uzi Navot em Zurique.
33
VIENA * MUNIQUE
KLAUS HALDER BATEU suavemente na porta do estúdio. A voz do outro lado concedeu-lhe permissão para entrar. Empurrou a porta e viu o velho sentado à média luz, com os olhos fixos na tremeluzente tela de televisão: um comício de Meztler dessa tarde em Graz, estimulando multidões, a conversa já versava a composição do gabinete ministerial de Metzler. O velho desligou a televisão com o comando e virou os seus olhos azuis para o guarda-costas. Halder apontou para o telefone com o olhar. Uma luz verde piscava.
— Quem é?
— Herr Becker, de Zurique.
O velho levantou o receptor.
— Boa noite, Konrad.
— Boa noite, Herr Vogel. Peço desculpa por o incomodar tão tarde, mas o assunto não podia esperar.
— Há alguma coisa errada?
— Não, muito pelo contrário. No seguimento das recentes notícias eleitorais de Viena, decidi apressar o passo dos meus preparativos e proceder como se a vitória de Peter Metzler fosse um dado adquirido.
— Uma decisão acertada, Konrad.
— Calculei que concordasse. Tenho vários documentos que precisam da sua assinatura. Pensei que seria melhor começarmos o processo agora em vez de esperar pelo final.
— Que tipo de documentos?
— O meu advogado estará mais habilitado para os explicar do que eu. Se não se importar, eu gostaria de ir a Viena para uma reunião. Não demorará mais do que alguns minutos.
— Pode ser na sexta-feira?
— Sexta-feira está ótimo, desde que seja ao fim da tarde. Tenho um compromisso inadiável da parte da manhã.
— Podemos apontar para as quatro da tarde?
— Às cinco seria melhor para mim, Herr Vogel.
— Tudo bem, sexta às cinco.
— Vemo-nos lá.
— Konrad?
— Sim, Herr Vogel.
— Esse advogado — diga-me como se chama, por favor.
— Oskar Lange, Herr Vogel. É um homem muito competente, já fiz uso dos seus serviços em muitas ocasiões anteriores.
— Presumo que seja um tipo que compreende o significado da palavra discrição?
— Discreto, nem sequer dá para começar a descrevê-lo. Está em muito boas mãos.
— Adeus, Konrad.
O velho desligou o telefone e olhou para Halder.
— Vai trazer alguém com ele? Um aceno lento.
— Ele sempre veio sozinho no passado. Porquê trazer um ajudante de repente?
— Herr Becker está prestes a receber cem milhões de dólares, Klaus. Se há um homem no mundo em quem podemos confiar, é o gnomo de Zurique.
O guarda-costas dirigiu-se à porta.
— Klaus?
— Sim, Herr Vogel?
— Talvez tenhas razão. Telefona a alguns dos nossos amigos em Zurique. Descobre se alguém já ouviu falar de um advogado chamado Oskar Lange.
UMA HORA MAIS TARDE, uma gravação do telefonema de Becker foi enviada por transmissão segura dos escritórios da Becker & Puhl em Zurique para o apartamento seguro em Munique. Escutaram-na uma vez, depois outra, e ainda outra. Adrian Carter não gostou do que ouviu.
— Vocês sabem que assim que Radek pousar o telefone, vai fazer uma segunda chamada para Zurique para verificar o Oskar Lange. Espero que tenham pensado nisso.
Shamron parecia desapontado com Carter.
— O que acha, Adrian? Nunca fizemos este tipo de coisa antes? Somos crianças que precisam de orientação?
Enquanto esperava pela resposta, Carter chegou um fósforo ao cachimbo e puxou a fumaça.
— Já ouviu o termo sayan — disse Shamron. — Ou sayanim.
Carter acenou com o cachimbo preso entre os dentes.
— Seus pequenos ajudantes voluntários — disse. — O empregado de hotel que consegue quartos sem reserva. As locadoras que conseguem carros indetectáveis. Os médicos que tratam seus agentes quando têm ferimentos que possam suscitar perguntas difíceis. Os banqueiros que dão empréstimos de emergência.
Shamron acenou.
— Somos um pequeno serviço secreto, só mil e duzentos empregados em tempo integral. Não conseguiríamos fazer o que fazemos sem a ajuda de sayanim. Eles são uma das vantagens da diáspora, o meu exército privado de pequenos voluntários.
— E Oskar Lange?
— Ele é um advogado fiscal e imobiliário de Zurique. Por acaso também é judeu. Algo que ele não publicita em Zurique. Há alguns anos levei o Oskar a jantar a um pequeno restaurante no lago e acrescentei-o à minha lista de ajudantes. Na semana passada, pedi-lhe um favor. Eu queria usar o seu passaporte e o seu escritório e queria que ele desaparecesse por um par de semanas. Quando lhe disse porquê, ele prontificou-se a ajudar com prazer. De fato, ele próprio queria ir a Viena e capturar Radek.
— Espero que ele esteja em lugar seguro.
— Pode-se dizer que sim, Adrian. Ele está de momento num apartamento seguro em Jerusalém.
Shamron inclinou-se em direção ao leitor de fitas, carregou em REWIND, STOP e depois PLAY:
— Pode ser na sexta-feira?
— Sexta-feira está ótimo, desde que seja ao fim da tarde. Tenho um compromisso inadiável da parte da manhã.
— Podemos apontar para as quatro da tarde?
— Às cinco seria melhor para mim, Herr Vogel. .-..
— Tudo bem, sexta às cinco. " STOP.
MOSHE RIVLIN DEIXOU o apartamento seguro na manhã seguinte e regressou a Israel num voo da El Al, com um acompanhante do Escritório sentado ao seu lado. Gabriel ficou até as sete da tarde de quinta-feira, quando uma van Volkswagen com dois pares de esquis montados no teto parou em frente ao apartamento e deu duas buzinadelas.
Ele guardou a sua Beretta na parte de trás da calça. Carter desejou-lhe boa sorte; Shamron deu-lhe um beijo na cara e mandou-o descer.
Shamron abriu as cortinas e olhou para a rua escura. Gabriel apareceu no passeio e dirigiu-se à janela do condutor. Após um momento de discussão, a porta abriu e Chiara saiu. Circundou a van e foi brevemente iluminada pelos faróis da frente antes de entrar para o lugar do passageiro.
A van afastou-se da borda do passeio. Shamron acompanhou até as luzes vermelhas da traseira desaparecerem numa curva. Não se moveu. A espera. Sempre a espera.
O seu isqueiro acendeu, uma nuvem de fumaça formou-se contra o vidro.
34
ZURIQUE
KONRAD BECKER E Uzi Navot saíram dos escritórios da Becker & Puhl precisamente quatro minutos depois da uma da tarde de sexta-feira. Um vigilante do Escritório chamado Zalman, posicionado do outro lado da Talstrasse num Fiat sedã cinza, registrou a hora assim como o tempo, um aguaceiro torrencial, em seguida enviou as noticias a Shamron no apartamento seguro de Munique. Becker estava vestido para um funeral, num terno cinza de risquinhas e uma gravata cor de carvão. Navot, imitando o estilo de vestir de Oskar Lange, usava um blazer Armani com uma camisa e gravata azul elétrica a condizer. Becker tinha pedido um táxi para os levar ao aeroporto.
Shamron teria preferido um carro particular, com um motorista do Escritório, mas Becker viajava sempre de táxi para o aeroporto e Gabriel não queria que a rotina fosse quebrada. Então foi um normal táxi de cidade, conduzido por um imigrante turco, que os levou do centro de Zurique até o aeroporto Kloten por um vale enevoado, com o vigilante de Gabriel sempre a reboque.
Foram em breve confrontados com a primeira falha técnica. Uma frente fria tinha passado por Zurique, transformando a chuva em neve e gelo e obrigando as autoridades do aeroporto Kloten a suspender os voos momentaneamente. O voo 157 8 da Swiss International Airlines, com destino a Viena, embarcou a horas e depois esperou imóvel para entrar na pista. Shamron e Adrian Carter, monitorizando a situação nos computadores do apartamento seguro de Munique, debateram a próxima jogada. Deveriam dar instruções a Becker para ligar a Radek e avisá-lo do atraso? E se Radek tivesse outros planos e decidisse adiar para outra altura? As equipes e veículos estavam nas posições finais. Um cancelamento temporário poderia pôr em risco a segurança operacional. Esperar, aconselhou Shamron, e esperar foi o que fizeram.
Pelas 14h30, as condições atmosféricas melhoraram. Kloten reabriu e o voo 1578 assumiu o seu lugar na fila ao fundo da pista. Shamron fez os cálculos. O voo para Viena levava menos de noventa minutos. Se descolassem em breve, talvez chegassem a tempo a Viena.
Às 14h25 o avião estava no ar, e o azar tinha sido evitado. Shamron informou a equipe de recepção no Aeroporto Schwechat em Viena que o embrulho estava a caminho.
A tempestade sobre os Alpes fez o voo para Viena bastante mais turbulento do que Becker teria preferido. Para acalmar os nervos, consumiu três garrafinhas miniatura de Stolichnaya e visitou a casa de banho duas vezes, tudo isto foi registrado por Zalma, que estava sentado três filas atrás. Navot, o retrato da concentração e serenidade, olhava pela janela para o mar de nuvens negras, a sua água com gás intata. Aterrissaram em Schwechat poucos minutos depois das quatro da tarde sob uma luz cinza sujo. Zalman seguiu-os pelo terminal até o controle de passaportes. Becker foi mais uma vez à casa de banho. Navot, com um movimento quase imperceptível dos olhos, ordenou a Zalman que fosse com ele. Depois de se aliviar, o banqueiro passou três minutos em frente ao espelho arranjando-se, uma quantidade de tempo fora do normal, pensou Zalman, para um homem virtualmente sem cabelo. O vigilante pensou em dar a Becker um pontapé no tornozelo para o apressar, mas decidiu não o perturbar. Afinal de contas, ele era um amador a agir sob coação.
Depois de passar pelo controle de passaporte, Becker e Navot dirigiram-se ao terminal de chegadas. Aí, entre a multidão, estava um especialista em vigilância, alto e magro chamado Mordecai. Vestia um desleixado terno preto e segurava um cartão onde se lia BAUER. O seu carro, um grande Mercedes sedã, estava à espera no estacionamento de curta duração. A dois lugares de distância estava um Audi comercial de três portas prateado. As chaves estavam no bolso de Zalman.
Zalman evitou aproximar-se deles durante a viagem de carro até Viena. Ligou para o apartamento seguro de Munique e, em poucas palavras, cuidadosamente escolhidas, informou Shamron que Navot e Becker estavam dentro do horário e procediam em direção ao alvo. Pelas 16h45, Mordecai chegou ao Canal do Danúbio. Pelas 16h50 atravessou a linha em direção ao Primeiro Bairro e estava no trânsito de hora de ponta ao longo da Ringstrasse. Virou à direita, para uma rua de pedra estreita, e logo na primeira à esquerda. Um momento mais tarde, parou em frente ao portão de ferro ornamentado de Erich Radek. Zalman ultrapassou pela esquerda e continuou a conduzir.
— FAZ SINAL DE LUZES — disse Becker — e o guarda-costas deixa entrar.
Mordecai seguiu a instrução. Durante breves segundos de tensão, o portão manteve-se imóvel; então ouviu-se um bater metálico agudo, seguido do zumbido de um motor.
Enquanto o portão abria lentamente, o guarda-costas de Radek apareceu na porta da frente, a luz intensa do candelabro brilhava sobre a sua cabeça e ombros como uma auréola. Mordecai esperou até o portão estar completamente aberto e avançou para a entrada em forma de ferradura.
Navot saiu primeiro, depois Becker. O banqueiro apertou a mão do guarda-costas e apresentou:
— O meu associado de Zurique, Herr Oskar Lange. O guarda-costas acenou e convidou-os a entrar com um gesto. A porta da frente fechou-se.
Mordecai olhou para o relógio: 16h58. Pegou no celular e ligou um número de Viena. — Vou chegar tarde para jantar — disse.
— Está tudo bem?
— Sim — disse ele. — Está tudo bem.
ALGUNS SEGUNDOS MAIS TARDE, em Munique, o sinal chegou à tela do computador de Shamron. Shamron olhou para o relógio.
— Quanto tempo lhes vais dar? — perguntou Carter.
— Cinco minutos — disse Shamron — e nem um segundo a mais.
O AUDI SEDÃ PRETO com uma antena alta montada na bagageira estava estacionado a algumas ruas de distância. Zalman estacionou atrás, saiu e caminhou até a porta do passageiro. Oded estava sentado ao volante, um homem compacto com olhos castanhos claros e um nariz achatado de pugilista. Zalman, enquanto se instalava ao seu lado, conseguia cheirar tensão na sua respiração. Zalman tinha a vantagem de ter estado em atividade toda a tarde; Oded tinha estado preso no apartamento seguro de Viena sem nada para fazer exceto imaginar as consequências de um fracasso. Um celular estava no assento, a ligação com Munique já estava estabelecida. Zalman conseguia ouvir a respiração uniforme de Shamron. Uma imagem formou-se na sua mente: uma versão mais jovem de Shamron marchando na sua direção sob uma chuva torrencial na Argentina, Eichmann descendo de um ônibus e caminhando para ele vindo da direção oposta. Oded ligou o carro. Zalman foi arrastado de volta ao presente. Olhou para o relógio no painel de instrumentos: 17:03...
A E461, MAIS conhecida pelos austríacos como a Brünnerstrasse, é uma estrada de duas faixas que vem do Norte de Viena e atravessa as onduladas colinas do Weinviertel, a região de vinhos austríaca. São oitenta quilômetros até a fronteira checa. Há uma passagem-de-nível, abrigada por um dossel em abóbada, chefiada por dois relutantes guardas em abandonar o conforto do seu abrigo de alumínio e vidro para levar a cabo qualquer inspeção dos veículos que passam. Do lado checo da passagem-de-nível, a inspeção de documentos de viagem leva normalmente um pouco mais de tempo, embora o tráfego vindo da Áustria seja normalmente recebido de braços abertos. A um quilômetro e meio para lá da fronteira, ancorada nas colinas da Morávia do Sul, fica a antiga cidade de Mikulov. É uma cidade fronteiriça, com as caraterísticas de cerco de uma cidade fronteiriça. E ajustava-se perfeitamente ao estado de espírito de Gabriel. Ele estava por trás de um parapeito de tijolo de um castelo medieval, bem por cima dos telhados de telha vermelha da velha cidade, por baixo de um par de pinheiros dobrados pelo vento. A chuva fria caía como lágrimas na superfície da sua gabardina de oleado. O seu olhar estendia-se colina abaixo, em direção à fronteira. Na escuridão, apenas as luzes do tráfego na autoestrada eram visíveis, luzes brancas surgindo na sua direção, luzes vermelhas afastando-se na direção da fronteira austríaca.
Olhou para o relógio. Eles estariam dentro da casa de Radek neste instante. Gabriel conseguia imaginar pastas abrindo-se, café e bebidas sendo servidas. E então outra imagem apareceu, uma fila de mulheres vestidas de cinza, caminhando ao longo de uma estrada com neve e ensopada de sangue. A sua mãe, vertendo lágrimas de gelo.
— O que vai dizer a seu filho sobre a guerra, judia?
— A verdade, Herr Sturmbannführer. Direi ao meu filho a verdade.
— Ninguém vai acreditar em você.
Ela não lhe disse a verdade, claro. Em vez disso tinha confiado a verdade ao papel e trancado nos arquivos de Yad Vashem. Talvez Yad Vasehm fosse o local ideal para ela. Talvez existam verdades que, de tão aterradoras, fiquem melhor se confinadas num arquivo de horrores, em quarentena, separadas das não infectadas. Ela não pôde contar que fora vítima de Radek, como Gabriel não podia dizer que era o carrasco de Shamron. Ela sempre soube, no entanto.
Ela conhecia o rosto da morte, e ela tinha visto a morte nos olhos de Gabriel. O telefone no bolso de seu casaco vibrou silenciosamente contra a anca. Ele levou-o lentamente à orelha e ouviu a voz de Shamron. Guardou o telefone no bolso e deixou-se estar por um momento, observando os faróis flutuando na sua direção através da negra planície austríaca.
— O que vai dizer quando estiver com ele? — perguntara Chiara.
A verdade, Gabriel pensava agora. Eu direi a verdade.
Começou a caminhada, descendo as estreitas ruas de pedra de uma cidade antiga, em direção ao escuro.
35
VIENA
UZI NAVOT SABIA como revistar uma pessoa. Klaus Halder era muito bom no seu trabalho. Começou no colarinho da camisa de Navot e terminou nos canhões das suas calças
Armani. Em seguida virou a atenção para a pasta. Trabalhou lentamente, como um homem com todo o tempo do mundo, e com uma atenção de monge para todos os detalhes. Quando a revista terminou finalmente, ele ajeitou o conteúdo com cuidado e colocou os trincos de volta no sítio.
— Herr Vogel vai vê-los agora — disse. — Sigam-me, por favor. Caminharam pelo corredor central, depois passaram por um par de portas duplas e entraram numa sala de visitas. Erich Radek, num casaco de linho grosso e gravata cor de ferrugem, estava sentado perto da lareira. Acolheu os convidados com um simples aceno da sua alongada cabeça, mas não se esforçou por levantar-se. Radek, pensou Navot, é um homem que costuma receber visitas sentado.
O guarda-costas deslizou suavemente para fora da sala e fechou as portas.
Becker, sorrindo, aproximou-se e apertou a mão de Radek. Navot não desejava tocar no assassino, mas dadas as circunstâncias não tinha outra escolha. A mão oferecida era fria e seca, o aperto firme e sem tremor. Era um aperto de mão para o testar. Navot sentia que tinha passado.
Radek estalou os dedos em direção às cadeiras vazias, em seguida a sua mão voltou para o apoio de copo no braço da cadeira. Começou a girá-lo para a frente e para trás, duas voltas para a direita, duas para a esquerda. Havia qualquer coisa no movimento que fazia azia ao estômago de Navot.
— Ouvi coisas muito boas sobre o seu trabalho, Herr Lange disse Radek subitamente. — Tem uma excelente reputação perante os seus colegas em Zurique.
— É tudo mentira, asseguro-lhe, Herr Vogel.
— É muito modesto. — Girou a bebida. — Você fez um trabalho para um amigo meu há alguns anos, um cavalheiro chamado Helmut Schneider.
E tu estás a tentar armadilhar-me, pensou Navot. Ele tinha-se preparado para um estratagema destes. O verdadeiro Oskar Lange tinha-lhe fornecido uma lista de clientes dos últimos dez anos para Navot memorizar. O nome Helmut Schneider não estava nela.
— Lidei com um bom número de clientes durante os últimos anos, mas temo que o nome Schneider não esteja entre eles. Talvez o seu amigo me tenha confundido com outra pessoa.
Navot olhou para baixo, abriu os trincos da sua pasta e levantou a tampa. Quando voltou a levantar o olhar, os olhos azuis de Radek estavam perfurantes nos seus e a sua bebida rodava no braço da cadeira. Havia uma tranquilidade assustadora nos seus olhos. Era como estar a ser estudado por um retrato.
— Talvez tenha razão. — O tom conciliatório de Radek não condizia com a sua expressão. — Konrad disse que precisava da minha assinatura nalguns documentos relacionados com a liquidação dos bens da conta.
— Sim, está correto.
Navot retirou um dossier da pasta e colocou a pasta no chão aos seus pés. Radek acompanhou a viagem da pasta para baixo e devolveu o seu olhar ao rosto de Navot. Navot levantou a capa do dossier e elevou o olhar. Abriu a boca para falar, mas foi interrompido pelo tocar do telefone. Agudo e eletrônico, soou aos ouvidos sensíveis de Navot como um grito num cemitério. Navot olhou para a mesa estilo Biedermeier, e o telefone tocou uma segunda vez. Começou a tocar uma terceira vez, mas ficou subitamente em silêncio, como se tivesse sido amordaçado a meio do grito. Navot conseguia ouvir Halder, o guarda-costas, falando numa extensão do corredor.
— Boa tarde. .. Não, peço desculpa, mas Herr Vogel está neste momento em reunião. Navot retirou o primeiro documento do dossier. Radek estava agora visivelmente distraído, o seu olhar distante. Estava a ouvir o som da voz do seu guarda-costas. Navot chegou-se à frente na cadeira e segurou o papel num ângulo que permitisse a Radek ver.
— Este é o primeiro documento que necessita...
Radek levantou a mão exigindo silêncio. Navot ouviu passadas no corredor, seguido do som de portas a abrir. O guarda-costas entrou na sala e dirigiu-se à beira de Radek.
— É Manfred Kruz — disse ele num sussurro capelista. — Ele quer-lhe dar uma palavra. Diz que é urgente e não pode esperar.
ERICH RADEK LEVANTOU-SE lentamente da cadeira e caminhou para o telefone.
— O que se passa Manfred?
— Os israelenses.
— Que têm eles?
— Tenho informações que indicam que um grande grupo de operacionais se reuniu em Viena nestes dias para te raptar.
— Essas informações estão confirmadas?
— Suficientemente confirmadas para concluir que já não é seguro permanecer em casa. Destaquei uma unidade da Staatspolizei para te apanhar e levar-te para um local seguro.
— Ninguém consegue entrar aqui Manfred. Limita-te a pôr um guarda armado fora da casa.
— Estamos a lidar com os israelenses, Herr Vogel. Eu quero-o fora da casa.
— Está bem, se insistes, mas diz à tua unidade para recuar. Klaus dá conta do recado.
— Um guarda-costas não é suficiente. Eu sou responsável pela sua segurança e quero-o sob proteção policial. Lamento, mas tenho de insistir. As informações que tenho são muito específicas.
— Quando é que os teus agentes chegam aqui?
— A qualquer momento. Prepare-se para sair.
Desligou o telefone e olhou para os dois homens sentados junto à lareira.
— Peço desculpas, cavalheiros, mas estou com muita pressa, é uma emergência. Temos de terminar isto em outra hora. — Voltou-se para seu guarda-costas.
— Abra os portões Klaus e arranje-me um casaco. Já.
OS MOTORES DO portão frontal funcionaram. Mordecai, sentado ao volante do Mercedes, olhou pelo espelho retrovisor e viu um carro entrar vindo da rua com uma sirene azul rodopiando no teto. Parou atrás dele e travou a fundo. Dois homens saíram e escalaram os degraus da frente. Mordecai lentamente ligou a ignição.
ERICH RADEK FOI para o corredor. Navot arrumou a sua pasta e levantou-se. Becker ficou congelado no lugar. Navot cravou os dedos por baixo do braço do banqueiro e levantou-o.
Seguiram Radek até o corredor. Luzes de emergência azuis piscavam pelas paredes e teto. Radek estava junto ao seu guarda-costas, falando-lhe baixo ao ouvido. O guarda-costas segurava um sobretudo e parecia tenso. Enquanto ajudava Radek a vestir o casaco, os seus olhos estavam em Navot.
Alguém bateu à porta, dois estrondos agudos ecoaram pelo teto alto e chão de mármore do corredor. O guarda-costas largou o sobretudo de Radek e rodou o trinco. Dois homens à paisana empurraram e entraram na casa.
— Está pronto Herr Vogel?
Radek acenou, em seguida voltou-se e olhou uma vez mais para Navot e Becker.
— Mais uma vez, por favor aceitem as minhas desculpas, cavalheiros. Peço imensa desculpa pelo incômodo.
Radek voltou-se na direção da porta com Klaus ao seu lado. Um dos agentes travou o caminho ao guarda-costas colocando-lhe uma mão no peito. O guarda-costas afastou-a com uma pancada.
— O que pensa que está fazendo?
— Herr Kruz deu-nos instruções especificas. Só devemos levar Herr Vogel sob proteção.
— Kruz nunca teria dado uma ordem dessas. Ele sabe que eu vou onde quer que ele vá. Foi sempre assim.
— Lamento, mas essas são as nossas ordens.
— Deixe-me ver o seu distintivo e a sua identificação.
— Não há tempo. Por favor, Herr Vogel. Venha connosco.
O guarda-costas recuou um passo e meteu a mão dentro do casaco. Conforme a arma ficou à vista, Navot lançou-se para a frente. com a mão esquerda, agarrou o pulso do guarda-costas e encostou-lhe a arma contra o abdômen. com a direita, deu-lhe dois fortes golpes de mão aberta na nuca. O primeiro atordoou Halder; o segundo fez os seus joelhos cederem. A sua mão relaxou e a Glock caiu no chão de mármore. Radek olhou para a arma e por um instante pensou em apanhá-la. Em vez disso, voltou-se, precipitou-se para a porta aberta do seu estúdio e fechou-a com um estrondo.
Navot tentou a maçaneta. Trancada.
Deu uns passos atrás e lançou o ombro contra a porta. A porta desfez-se e ele tropeçou para dentro da sala escura. Levantou-se cambaleante e viu que Radek já tinha fugido através da falsa frente de uma estante de livros e estava dentro de um pequeno elevador do tamanho de uma cabine telefônica.
Navot saltou para a frente enquanto a porta do elevador começou a fechar. Conseguiu enfiar os dois braços para dentro e agarrou Radek pela lapela do sobretudo. Quando a porta bateu contra o ombro esquerdo de Navot, Radek agarrou-lhe os pulsos e tentou libertar-se. Navot segurou firmemente.
Oded e Zalman vieram em seu auxilio. Zalman, o mais alto dos dois, alcançou por cima da cabeça de Navot e puxou a porta. Oded deslizando por entre as pernas de Navot aplicou pressão por baixo. Perante a investida, a porta finalmente deslizou e abriu.
Navot arrastou Radek para fora do elevador. Já não havia tempo para subterfúgios ou enganos. Navot tapou a boca do velho com a mão, Zalman segurou-lhe as pernas e levantou-o do chão. Oded encontrou o interruptor e apagou a luz.
Navot olhou para Becker.
— Entre no carro. Depressa, idiota.
Arrastaram Radek degraus abaixo em direção ao Audi. Radek puxava a mão de Navot, tentando libertar-se do tampão na boca e esperneava. Navot conseguia ouvir Zalman resmungar entre dentes. De alguma forma, mesmo no calor da batalha, ele conseguia resmungar em alemão.
Oded abriu a porta de trás antes de dar a volta e correr para o volante.
Navot empurrou primeiro a cabeça de Radek para o fundo e colou-o ao assento.
Zalman forçou sua entrada e fechou a porta. Becker entrou na parte de trás do Mercedes. Mordecai acelerou fundo, e o carro guinou para a rua, o Audi seguindo de perto.
O corpo de Radek ficou subitamente quieto. Navot retirou a mão e o austríaco sorveu ofegante o ar.
— Está me machucando — disse. — Não consigo respirar.
— Eu deixo você se levantar, mas tem que prometer que se comporta bem. Não vai haver mais tentativas de fuga. Promete?
— Deixe eu me levantar. Está me esmagando, estúpido.
— Eu deixo, velho. Faça apenas um favor primeiro. Diga seu nome, por favor.
— Sabe meu nome. É Vogel. Ludwig Vogel.
— Não, não, esse nome não. Seu nome verdadeiro.
— Esse é o meu nome verdadeiro.
— Quer se levantar e deixar Viena como um homem, ou vou ter de ir sentado em cima de você o tempo todo?
— Eu quero me sentar. Está me machucando, maldição!
— Diga apenas seu nome.
Ficou em silêncio por um momento; então murmurou:
— Meu nome é Radek.
— Desculpe, mas não consegui ouvir. Pode dizer seu nome outra vez, por favor? Desta vez alto.
Inspirou profundamente e o seu corpo ficou rígido, como se estivesse em sentido em vez de deitado no banco de trás de um carro.
— MEU NOME É STURMBANNFÜHRER ERICH RADEK!
NO APARTAMENTO SEGURO de Munique, a mensagem apareceu na tela do computador de Shamron: O EMBRULHO FOI RECEBIDO. Carter deu-lhe uma palmada nas costas.
— Raios me partam! Eles o pegaram. Eles o pegaram mesmo.
Shamron levantou-se e caminhou até o mapa.
— Pegá-lo foi a parte mais fácil da operação, Adrian. Tirá-lo de lá vai ser outra história.
Olhou para o mapa. Oitenta quilômetros até a fronteira tcheca. Corra, Oded, pensou ele. Dirija como nunca dirigiu em sua vida.
36
VIENA
ODED JÁ TINHA guiado por aquela estrada uma dúzia de vezes, mas nunca como esta, nunca com a sirene a gritar e a rodopiar no teto, e nunca com os olhos de Erich Radek fitando os seus pelo retrovisor. A retirada do centro da cidade tinha corrido melhor do que esperado. O tráfego de fim de tarde era intenso, mas não ao ponto de não se conseguir desviar para dar passagem ao barulho e à luz da sua sirene. Radek amotinou-se duas vezes. Cada insurreição foi implacavelmente dominada por Navot e Zalman.
Circulavam agora em direção a norte pela E461. O tráfego de Viena tinha ficado para trás, a chuva caía continuamente e gelava nos cantos do para-brisas. Uma tabuleta passou de repente: REPÚBLICA CHECA 42 KM. Navot olhou prolongadamente sobre o ombro, então, em hebraico, instruiu Oded para desligar a sirene.
— Para onde vamos? — perguntou Radek respirando com dificuldade. — Para onde me estão a levar? Onde?
Navot não disse nada, como Gabriel tinha ordenado.
— Deixem-no fazer perguntas até ficar com a cara azul — Gabriel tinha dito.
— Simplesmente não lhe deem a satisfação de uma resposta. Deixem a incerteza afligir-lhe a mente. Era isso que ele faria se os papéis estivessem invertidos. Então Navot observou as povoações que passavam pela janela Mistelbach, Wilfersdorf, Erdberg — e pensou apenas numa coisa, o guarda-costas que ele tinha deixado inconsciente no corredor da entrada da casa de Radek em Stöbbergasse.
Poysdorf apareceu perante eles. Oded acelerou pela vila, em seguida virou para uma estrada de duas faixas e seguiu-a em direção a leste por entre pinheiros cobertos de neve.
— Para onde vamos? Para onde me estão a levar?
Navot já não conseguia suportar mais as suas perguntas em silêncio.
— Vamos para casa — disse de repente. — E tu vens connosco. Radek traçou um sorriso gelado.
— Cometeste apenas um erro esta noite, Herr Lange. Devias ter morto o meu guarda-costas quando tiveste oportunidade.
KLAUS HALDER ABRIU um olho, em seguida o outro. A escuridão era absoluta. Deixou-se estar deitado imóvel por um momento tentando determinar a posição do seu corpo. Tinha caído para a frente, com os braços para os lados, e a sua face direita estava pressionada contra o mármore frio. Tentou levantar a cabeça, um relâmpago de dor lancinante abateu-se-lhe sobre o pescoço. Lembrou-se então do instante em que tinha acontecido. Estava a tentar alcançar a arma quando levou duas pancadas por trás. Fora o advogado de Zurique, Oskar Lange. Obviamente que Lange não era um simples advogado. Ele estava a tramar alguma, como Halder temia desde o início.
Colocou-se de joelhos e sentou-se encostado à parede. Fechou os olhos e esperou que a sala parasse de girar, então esfregou a parte de trás da cabeça. Tinha um inchaço do tamanho de uma maçã. Ergueu o pulso esquerdo e lançou um olhar ao painel luminoso do seu relógio de pulso: 17:57. Quando tinha acontecido? Poucos minutos depois das cinco, 17h10 no máximo. A não ser que tivessem um helicóptero à espera na Stephansplatz, o mais certo era ainda estarem na Áustria.
Apalpou o bolso da frente do seu casaco esportivo e descobriu que o celular ainda lá estava. Tirou-o e ligou. Dois toques. Uma voz familiar.
— Aqui Kruz.
TRINTA SEGUNDOS MAIS TARDE, Manfred Kruz bateu com o telefone e avaliou suas opções. A resposta mais óbvia seria fazer soar o alarme e alertar todas as unidades policiais do país que o velho fora sequestrado por agentes israelenses, fechar as fronteiras e os aeroportos. Óbvia, sim, mas muito perigosa. Uma jogada dessas iria levantar muitas questões desconfortáveis. Porque foi Herr Vogel raptado? Quem é ele realmente? A candidatura de Peter Metzler seria esquadrinhada, assim como a carreira de Kruz. Mesmo na Áustria, tais assuntos assumiam vida própria, e Kruz tinha visto muitos para saber que o inquérito não terminaria à porta de Vogel.
Os israelenses sabiam que ele ficaria incapacitado, e tinham escolhido bem o momento. Kruz tinha de pensar numa maneira sutil de intervir, alguma maneira de impedir os israelenses sem destruir tudo no processo. Alcançou o telefone e marcou.
— Daqui Kruz. Os americanos informaram-nos que um possível grupo da al-Qaeda está em trânsito de automóvel pelo país esta tarde. Eles suspeitam que os membros da al-Qaeda possam estar a viajar com simpatizantes europeus para melhor se misturarem no ambiente. A partir deste momento estou a ativar a rede de alerta terrorista. Aumentem a segurança nas fronteiras, aeroportos e estações de trem para Nível Dois.
Desligou e olhou pela janela. Tinha atirado uma bóia ao velho. Perguntou a si mesmo se ele estaria em condições de a agarrar. Kruz sabia que se conseguisse, seria confrontado com um outro problema em breve: o que fazer com a equipe de rapto israelense. Levou a mão ao bolso do paletó e retirou um pedaço de papel.
— Se ligar para este número, quem vai atender?
— A violência.
Manfred Kruz alcançou o seu telefone.
O RELOJOEIRO, DESDE seu regresso a Viena, dificilmente encontrava razão para sair do santuário da sua pequena loja no Bairro Stephansdom. As frequentes viagens tinham-no deixado com um enorme número de peças acumulado que requeriam a sua atenção, incluindo um relógio regulador vienense, estilo Biedermeier, fabricado pelo famoso relojoeiro Vienense Ignaz Marenzeller em 1840. A caixa de mogno estava nas condições originais, embora o painel prateado de uma só peça tivesse requerido muitas horas de restauração. O movimento Biedermeier original feito à mão, com a sua corda de 75 dias, estava exposto em várias peças cuidadosamente arranjadas na superfície da sua mesa de trabalho.
O telefone tocou. Ele baixou o volume do seu leitor de CD portátil e o Concerto Brandenburg N°. 4 em Sol de Bach diminuiu até um sussurro. Uma escolha banal, Bach, mas o Relojoeiro considerava a precisão de Bach um acompanhamento perfeito para a tarefa de desmantelar e reconstruir o movimento de um relógio antigo. Alcançou o telefone com a mão esquerda. Uma onda de dor percorreu-lhe o comprimento do braço, uma lembrança dos seus abusos em Roma e na Argentina. Levou o receptor à orelha e prendeu-o contra o ombro.
— Sim — disse distraidamente. As suas mãos estavam de volta ao trabalho.
— O seu número foi-me dado por um amigo comum.
— Estou a ver — disse o Relojoeiro de modo descomprometido. Como posso ajudá-lo?
— Não sou eu quem precisa de ajuda. É o nosso amigo. O Relojoeiro pousou as ferramentas.
— O nosso amigo? — perguntou.
— Realizou trabalhos para ele em Roma e na Argentina. Presumo que saiba a quem me estou a referir?
O Relojoeiro sabia de fato. Então, o velho induzira-o em erro e por duas vezes colocara-o em situações de campo comprometedoras. Agora tinha cometido o pecado operacional fatal de dar o seu nome a um estranho. Era óbvio que estava em sarilhos. O Relojoeiro suspeitou que tivesse alguma coisa a ver com os israelenses. Decidiu que agora seria um excelente momento para acabar com a relação.
— Peço desculpa — disse — mas penso que me está a confundir com outra pessoa. O homem do outro lado da linha tentou contra-argumentar. O Relojoeiro desligou o telefone e aumentou o volume do seu leitor de CD até que o som de Bach encheu a oficina.
NO APARTAMENTO SEGURO de Munique, Carter desligou o telefone e olhou para Shamron, que ainda estava de pé em frente ao mapa, como se imaginasse o progresso de Radek para norte em direção à fronteira checa.
— Era da nossa filial de Viena. Estão a monitorizar a rede de comunicações austríaca. Parece que Manfred Kruz elevou o alerta terrorista para Nível Dois.
— Nível Dois? O que significa isso?
— Significa que é possível que haja alguma dificuldade na fronteira.
A ASSISTÊNCIA ESTAVA na reentrância de um ribeiro gelado. Havia dois veículos, um Opel sedã e uma van Volkswagen. Chiara estava ao volante da Volkswagen, faróis apagados, motor desligado, o peso reconfortante de uma Beretta no colo. Não havia outros sinais de vida, não havia luzes na vila, não havia o ruído do tráfego na autoestrada, apenas o suave bater da neve no teto da van e o assobiar do vento pelos juncos dos abetos. Olhou por cima do ombro e olhou para o compartimento traseiro da Volkswagen. Tinha sido preparado para a chegada de Radek. O forro da traseira tinha sido colocado. Por baixo do forro estava um compartimento especialmente construído para escondê-lo durante a passagem pela fronteira. Ele ficaria confortável lá, mais confortável do que merecia.
Olhou pelo vidro. Não havia muito para ver, a estrada estreita subindo pela escuridão em direção a um cume à distância. Então, subitamente, houve uma luz, um brilho branco e limpo que iluminou o horizonte e transformou as árvores em minaretes pretos. Por alguns segundos, foi possível ver a neve, rodopiando como uma nuvem de insetos pelo ar varrido pelo vento. Então os faróis da frente surgiram. O carro contornou a colina, e as luzes espalharam-se por ela, atirando as sombras das árvores para um lado, depois para o outro. Chiara segurou a Beretta com a mão e deslizou o dedo indicador para dentro da guarda do gatilho.
O carro derrapou até parar junto à van. Ela olhou para o banco de trás e viu o assassino, sentado entre Navot e Zalman, rígido como um comissário à espera da limpeza de sangue. Ela rastejou até o compartimento traseiro e fez uma verificação final.
— TIRE O SOBRETUDO — ordenou Navot.
— Por quê?
— Porque estou mandando.
— Eu tenho o direito de saber por quê.
— Não tem direito nenhum! Faça apenas o que digo.
Radek permaneceu imóvel. Zalman puxou a lapela do casaco, mas o velho cruzou os braços com força junto ao peito. Navot suspirou pesadamente. Se o velho bastardo quer um combate final, vai consegui-lo. Navot abriu-lhe os braços à força enquanto Zalman puxava a manga direita, depois a esquerda. O casaco depois; em seguida Zalman rasgou a manga da camisa e expôs a pele caída do braço. Navot exibiu uma seringa, cheia de sedativo.
— Isso é para seu próprio bem — disse Navot. — É moderado e não tem efeito durante muito tempo. Vai fazer sua viagem muito mais suportável. Sem claustrofobia.
— Nunca tive claustrofobia.
— Não me interessa.
Navot espetou a agulha no braço de Radek e despejou o conteúdo. Passados alguns segundos, o corpo de Radek relaxou; em seguida a cabeça tombou para o lado e o queixo descaiu. Navot abriu a porta e saiu. Segurou o corpo amolecido de Radek debaixo dos braços e arrastou-o para fora do carro.
Zalman levantou-o pelas pernas e juntos carregaram-no como um morto de guerra para a lateral da van. Chiara estava agachada no interior, segurando uma máscara de oxigênio e outra de plástico transparente. Navot e Zalman deitaram Radek no chão da van; e Chiara colocou-lhe a máscara sobre o nariz e a boca. O plástico embaciou imediatamente, indicando que a respiração de Radek estava normal. Ela verificou-lhe o pulso. Regular e forte. Manusearam-no para dentro do compartimento e fecharam a tampa.
Chiara sentou-se ao volante e ligou o motor. Oded fechou-lhe a porta e deu uma pequena pancada com a mão no vidro. Chiara engatou a marcha e seguiu para a autoestrada. Os outros entraram no Opel e seguiram atrás dela.
CINCO MINUTOS MAIS TARDE, as luzes da fronteira apareceram como faróis no horizonte. Conforme Chiara se foi aproximando conseguiu ver uma pequena fila de trânsito com cerca de seis veículos de comprimento, esperando para atravessar. Havia dois guardas fronteiriços em evidência. Tinham as lanternas na mão e estavam a verificar passaportes e a espreitar pelas janelas. Ela olhou por cima do ombro. As portas do compartimento permaneciam fechadas. Radek estava em silêncio.
O carro em frente passou na inspeção e foi deixado seguir em direção ao lado checo. O guarda fronteiriço fez-lhe sinal para avançar. Ela baixou o vidro e sorriu.
— Passaporte, por favor.
Ela entregou. O segundo guarda tinha-se deslocado para o lado do passageiro da van, e ela conseguia ver o foco de luz da lanterna investigando o interior.
— Está tudo bem?
O guarda fronteiriço manteve os olhos na fotografia e não respondeu.
— Quando entrou na Áustria?
— Hoje.
— Onde?
— Pela Itália, em Tarvísio.
Ele dispensou um momento comparando o rosto dela com a fotografia do passaporte. Em seguida abriu a porta do motorista e com um gesto ordenou-lhe que saísse da van.
UZI NAVOT OBSERVOU a cena em primeira fila, no lugar do passageiro no banco da frente do Opel. Olhou para Oded e praguejou ligeiramente por entre os dentes. Em seguida ligou do celular para o apartamento seguro de Munique. Shamron atendeu ao primeiro toque.
— Temos um problema — disse Navot.
ELE ORDENOU que se colocasse na frente da van e apontou a lanterna para seu rosto. Através do brilho conseguia ver o segundo guarda fronteiriço abrindo a porta do passageiro da van. Forçou-se a olhar para o interrogador. Tentou não pensar na Beretta contra as suas costas. Ou em Gabriel, esperando do outro lado da fronteira em Mikulov. Ou Navot, Oded e Zalman observando impotentes do Opel.
— Para onde se dirige esta noite?
— Praga — disse ela.
— Por que vai para Praga?
Ela disparou-lhe um olhar: Não tem nada com isso. Então disse: — Vou visitar meu namorado.
— Namorado — repetiu ele. — O que seu namorado faz em Praga?
Ensina italiano, dissera Gabriel.
Ela respondeu à pergunta.
— Onde?
No Instituto de Estudos Linguísticos de Praga, tinha dito Gabriel. Mais uma vez, ela respondeu como Gabriel tinha instruído.
— E há quanto tempo ele é professor do Instituto de Estudos Linguísticos de Praga?
— Três anos.
— E vê-o com frequência?
— Uma vez por mês, às vezes duas.
O segundo guarda tinha entrado na van. Uma imagem de Radek passou-lhe pela mente, olhos fechados, máscara de oxigênio no rosto. Não acorde, pensou ela. Não se mexa. Não faça barulho. Aja decentemente, pelo menos uma vez em sua vida desprezível.
— E quando entrou na Áustria?
— Já disse isso.
— Diga outra vez, por favor.
— Hoje.
— A que horas?
— Não me lembro da hora.
— Era de manhã? Era de tarde?
— Tarde.
— Início da tarde? Fim da tarde?
— Início.
— Então ainda era dia?
Ela hesitou; ele pressionou-a.
— Sim? Ainda era dia?
Ela acenou. De dentro da van veio o som da porta traseira se abrindo. Ela se forçou a olhar diretamente para os olhos do interrogador. O seu rosto, escurecido pela irritante luz da lanterna, começou a parecer-se com Erich Radek, não a versão patética do Radek inconsciente na traseira da van, mas o Radek que arrastou uma criança chamada Irene Frankel das fileiras da marcha da morte de Birkenau em 1945 e a levou para uma floresta polonesa para um momento de tormento final.
— Diga as palavras, judia! Foi transferida para leste. Teve comida em abundância e cuidados médicos adequados. As câmaras de gás e o crematório são mentiras bolchevique-judaicas.
Eu consigo ser tão forte como você, Irene, pensou ela. Eu consigo passar por isso. Por você.
— Parou em algum lugar na Áustria?
— Não.
— Não aproveitou a oportunidade para visitar Viena?
— Já estive em Viena — disse ela. — Não me agrada.
Ele dispensou um momento examinando-lhe o rosto.
— É italiana?
— Tem meu passaporte na mão.
— Não estou falando de seu passaporte. Estou falando de sua etnia. Seu sangue. Descendência italiana ou imigrante do, digamos, Oriente Médio ou Norte de África?
— Sou italiana — assegurou ela.
O segundo guarda saiu da van e abanou a cabeça. O interrogador devolveu-lhe o passaporte.
— Peço desculpas pelo atraso — disse ele. — Tenha uma boa viagem.
Chiara sentou-se ao volante, engatou a marcha e passou a fronteira devagar. Desatou em lágrimas, lágrimas de alívio, lágrimas de raiva. No início tentou impedi-las, mas não conseguiu. A estrada ficou desfocada, as luzes traseiras transformaram-se em riscos vermelhos, e mesmo assim elas vieram.
— Por você, Irene — disse ela em voz alta. — Fiz isso por você.
A ESTAÇÃO DE trem de Mikulov fica no fim da cidade velha, onde as colinas encontram a planície. Há uma única plataforma, que suporta um quase constante ataque do vento que desliza pelos Cárpatos, e um melancólico estacionamento de gravilha, que se transforma num lago quando chove. Perto da bilheteira está uma parada de ônibus riscada de graffitis, e era ai, encostado ao lado de onde vem o vento, que Gabriel esperava, mãos mergulhadas nos bolsos do casaco impermeável.
Levantou o olhar quando a van entrou no estacionamento e esmagou a gravilha. Esperou até que parasse antes de sair da parada de ônibus para a chuva. Chiara esticou-se e abriu-lhe a porta. Quando a luz de teto se acendeu, ele viu que o seu rosto estava molhado.
— Estás bem?
— Estou ótima.
— Queres que eu conduza?
— Não, eu consigo.
— Tem certeza?
— Entra, Gabriel. Não suporto estar sozinha com ele.
Ele entrou e fechou a porta. Chiara deu meia volta e regressou à autoestrada. Um momento mais tarde estavam a ir para norte, para os Cárpatos. DEMORARAM MEIA HORA até chegar a Brno, mais uma hora para chegar a Ostrava. Gabriel abriu as portas do compartimento duas vezes para verificar Radek. Eram quase oito horas quando chegaram à fronteira polonesa. Sem verificações de segurança desta vez, sem fila de trânsito, apenas uma mão espetada fora do abrigo de tijolo acenando-lhes à passagem pela fronteira.
Gabriel rastejou para a traseira da van e puxou Radek do compartimento. Em seguida abriu uma gaveta e retirou uma seringa. Desta vez tinha uma dose moderada de estimulante, apenas o suficiente para o trazer de volta aos limites do consciente lentamente. Gabriel inseriu a seringa no braço de Radek, injetou a droga, em seguida retirou a agulha e esfregou a ferida com álcool. Os olhos de Radek abriram devagar. Observou o ambiente envolvente por um momento antes de se fixar no rosto de Gabriel.
— Allon? — murmurou ele pela máscara de oxigênio. Gabriel acenou lentamente.
— Para onde me levas? — Gabriel não respondeu. — Vou morrer? — perguntou, e, antes que Gabriel pudesse responder, voltou a ficar inconsciente.
37
POLÔNIA ORIENTAL
A BARREIRA ENTRE consciência e coma era como uma cortina de palco, pela qual ele conseguia passar à vontade. Só não sabia quantas vezes tinha passado por esta cortina. O tempo, como a sua velha vida, estavam perdidos para ele. A sua bela casa de Viena parecia a casa de outro homem, na cidade de outro homem. Algo tinha acontecido quando ele gritou o seu nome aos israelenses. Ludwig Vogel era agora um estranho para ele, um conhecido que ele já não via há muitos anos. Ele era Radek novamente. Infelizmente o tempo não tinha sido meigo com ele. O alto e belo homem de preto estava agora prisioneiro num corpo fraco e decadente.
O judeu tinha-o colocado no forro da traseira. As suas mãos e tornozelos estavam amarrados por uma grossa fita adesiva prateada, e estava amarrado com o cinto de segurança como um doente mental. Os seus pulsos serviam como o portal entre os dois mundos. Apenas tinha de os torcer num determinado ângulo para que a fita se cravasse dolorosamente na pele e passaria a cortina do mundo dos sonhos para o reino do real. Sonhos? Será apropriado chamar a tais visões sonhos? Não, eram demasiado exatas, descritivas demais. Eram memórias, sobre as quais ele não tinha controle, apenas o poder de as interromper por alguns momentos infligindo dor em si próprio com a fita adesiva do judeu.
O seu rosto estava perto da janela, e o vidro estava desobstruído. Ele era capaz, quando estava acordado, de ver a infindável região rural negra e as desoladoras vilas escurecidas. Também era capaz de ler os sinais na estrada. Não precisava dos sinais para saber onde estava. Algures, noutra vida, ele tinha sido o senhor da noite nesta terra. Ele lembrava-se desta estrada: Dachnow, Zukow, Narol... Ele sabia o nome da próxima vila, mesmo antes desta passar pela janela: Belzec...
Fechou os olhos. Porquê agora, passados tantos anos? Depois da guerra ninguém esteve assim tão interessado num mero oficial SD que servira na Ucrânia — ninguém exceto os russos, claro — e no momento em que o seu nome veio ao de cima com ligações à Solução Final, o General Gehlen tinha providenciado a sua fuga e o seu desaparecimento.
A sua antiga vida fora deixada para trás em segurança. Tinha sido perdoado por Deus e a sua Igreja e até mesmo pelos seus inimigos, que gananciosamente tiraram proveito dos seus serviços quando também eles se sentiram ameaçados pelo judaísmo-bolchevismo. Os governos rapidamente perderam o interesse em proceder contra os, assim chamados, criminosos de guerra, e amadores como Wiesenthal focaram a atenção em peixe graúdo como Eichmann e Mengele, ajudando de forma involuntária peixe mais miúdo como ele próprio a encontrar santuário em águas calmas. Houve um susto sério. Em meados dos anos setenta, um jornalista americano, um judeu, claro, que foi a Viena e colocou demasiadas questões. Na estrada que sai de Salzburg para sul ele mergulhou numa ravina, e a ameaça foi eliminada. Nessa altura agiu sem hesitar. Se tivesse lançado Max Klein numa ravina ao primeiro sinal de ameaça... Reparara nele naquele dia no Café Central, assim como nos dias que se seguiram. Os seus instintos tinham-lhe dito que Klein representava uma ameaça. Ele hesitou. Quando Klein levou a sua história ao judeu Lavon era demasiado tarde.
Passou pela cortina outra vez. Estava em Berlim, sentado no gabinete do oficial Gruppenführer Heinrich Müller, chefe da Gestapo. Müller tira um pedacinho de almoço dos dentes e sacode uma carta que acabou de receber de Luther no Ministério dos Negócios Estrangeiros. É 1942.
— Rumores das nossas atividades no Leste começaram a chegar aos ouvidos dos nossos inimigos. Também temos um problema com um dos locais na região de Warthegau. Queixas sobre uma contaminação qualquer.
— Se me permite colocar a questão óbvia, Herr Gruppenführer, que diferença faz se rumores chegam ao Oeste? Quem vai acreditar que tal coisa foi realmente possível?
— Rumores é uma coisa, Erich. Provas é outra.
— Quem vai descobrir provas? Algum servo polonês atrasado mental? Um vesgo abridor de valas ucraniano?
— Talvez os Ivans?
— Os russos? Como descobririam?
Müller ergueu uma mão de pedreiro. Discussão terminada. E então ele percebeu. A aventura russa do Führer não estava indo de acordo com os planos. A vitória no Leste já não estava assegurada.
Müller inclinou-se para a frente.
— Estou te mandando para o inferno Erich. Vou espetar essa sua cara nórdica tão fundo no esterco que nunca mais vai ver a luz do dia.
— Como poderei jamais agradecer, Herr Gruppenführer?
— Limpe a porcaria. Toda. Em toda parte. É sua responsabilidade garantir que se mantenha apenas um rumor. E quando a operação estiver concluída, quero que seja o único homem de pé.
Ele concordou. O rosto de Müller afastou-se pela noite polonesa. Estranho, não é? A sua verdadeira contribuição para a Solução Final não foi matar mas esconder e garantir a segurança, e no entanto estava com problemas agora, sessenta anos depois, por causa de um jogo idiota que fizera bêbado em Auschwitz num domingo. Aktion 1005? Sim, fora um projeto seu, mas nenhum sobrevivente judeu testemunharia sua presença na beira de uma vala comum, porque não havia sobreviventes. Ele geriu uma operação fechada. Eichmann e Himmler teriam sido aconselhados a fazer o mesmo. Foram tolos em permitir que tantos sobrevivessem.
Uma memória surgiu, janeiro de 1945, um rio de judeus frágeis dispersos ao longo de uma estrada muito parecida com esta. A estrada de Birkenau. Milhares de judeus, cada um com uma história para contar, cada um uma testemunha. Ele defendia a liquidação da população inteira do campo antes da evacuação. Não, disseram. Trabalho escravo era necessário com urgência no Reich. Trabalho? A maioria dos judeus que ele tinha visto sair de Birkenau mal conseguia andar, quanto mais manejar uma picareta ou uma pá. Eles não eram aptos para o trabalho, apenas para o massacre, e já tinha matado uns quantos, ele próprio. Por que, em nome de Deus, lhe tinham ordenado que limpasse as valas para depois permitir que milhares de testemunhas caminhassem para fora de um local como Birkenau?
Ele se esforçou por manter os olhos abertos, e observou pela janela. Estavam a conduzir ao longo das margens de um rio, perto da fronteira ucraniana. Ele conhecia este rio, um rio de cinzas, um rio de ossos.
Pensou quantas centenas de milhares estariam ali embaixo, sedimentadas no leito do Rio Bug.
Uma cidade adormecida: Uhrusk. Pensou em Peter. Ele tinha avisado que isto aconteceria.
— Se eu me tornar uma ameaça séria, posso ganhar a chancelaria — dissera Peter —, alguém vai tentar nops expor.
Ele sabia que Peter estava certo, mas também acreditava que conseguiria lidar com qualquer ameaça. Estava errado, e agora seu filho teria de enfrentar uma humilhação eleitoral inimaginável, tudo por sua culpa. Era como se os judeus tivessem levado Peter à beira de uma vala comum e apontado uma arma para sua cabeça. Ele pensou que conseguiria evitar que eles puxassem o gatilho, se conseguisse quebrar mais um acordo, engendrar uma fuga final.
E este judeu que olha fixamente para mim com aqueles rancorosos olhos verdes? O que espera ele que eu faça? Peça perdão? Vergue, chore e cuspa sentimentalismos? O que este judeu não percebe é que eu não sinto culpa pelo que fiz. Eu fui forçado pela mão de Deus e os ensinamentos da minha Igreja. Não nos disseram os padres que os judeus foram os assassinos de Deus? O Santo Padre e os seus cardeais não ficaram em silêncio quando sabiam perfeitamente o que estávamos a fazer no Leste? Será que este judeu espera que eu reprove assim sem mais nem menos e diga que foi um erro terrível? E porque olha ele para mim assim? Aqueles olhos eram-lhe familiares. Já os tinha visto em algum lado antes. Talvez fosse das drogas que lhe tinham dado. Ele não conseguia ter a certeza de nada. Ele nem tinha sequer a certeza de estar vivo. Talvez fosse a sua alma a fazer esta viagem ao longo do Rio Bug. Talvez estivesse no inferno.
Outra aldeola: Wola Uhruska. Ele conhecia a próxima vila. Sobibor...
Fechou os olhos, o veludo da cortina envolveu-o. É a Primavera de 1942, está a conduzir para fora de Kiev na estrada de Zhitomir com o comandante de uma unidade Einsatzgruppen ao lado. Estão a caminho para inspecionar uma ravina que se transformou num problema de segurança, um lugar que os ucranianos chamam Babi Yar. Quando chegam, o Sol já está a desaparecer no horizonte e está quase a anoitecer. Mesmo assim, há luz suficiente para observar o estranho fenômeno que acontece no fundo da ravina. A terra parece estar a debater-se com um ataque epiléptico. O solo tem convulsões, gás é disparado para o ar, juntamente com gêiseres de líquido pútrido. O fedor! Meu Deus, o fedor. Ele consegue cheirá-lo agora.
— Quando começou?
— Pouco depois do final do Inverno. O chão aqueceu, então os corpos aqueceram. Eles decompõem-se muito rapidamente.
— Quantos estão ali embaixo?
— Trinta e três mil judeus, alguns ciganos e prisioneiros soviéticos, assim por alto.
— Cerque a ravina inteira.
— No momento outros locais têm prioridade. Trataremos deste assim que possível.
— Que outros locais?
— Locais de que nunca ouviu falar: Birkenau, Belzec, Sobibor, Treblinka. Nosso trabalho aqui está feito. Esperam novas chegadas a qualquer momento, nos outros.
— O que vai fazer com este local?
— Abrimos as valas e queimamos os corpos, em seguida esmagamos os ossos e espalhamos os fragmentos nas florestas e nos rios.
— Queimar trinta mil cadáveres? Tentamos isso nas operações de massacre. Usamos lança-chamas, pelo amor de Deus. Cremações maciças a céu aberto não funcionam.
— Isso é porque nunca construíram uma pira em condições. Em Chelmno, eu provei que pode ser feito. Confie em mim, Kurt, um dia este local chamado Babi Yar será apenas um rumor, como os judeus que viviam aqui.
Ele torceu os pulsos. Desta vez a dor não foi suficiente para acordar. A cortina recusou-se a abrir. Permaneceu trancado numa prisão de memórias, vagueando por um rio de cinzas.
MERGULHARAM PELA noite adentro. O tempo era uma memória. A fita adesiva tinha-lhe cortado a circulação. Já não conseguia sentir as mãos e os pés. Sentia-se febrilmente quente num minuto e arrepiantemente frio no outro. Tinha a impressão de terem parado uma vez. Tinha cheirado gasolina. Estariam eles a encher o depósito? Ou seria apenas a memória de traves de caminho-de-ferro ensopadas em combustível?
Os efeitos da droga finalmente dissiparam. Ele estava agora acordado, alerta e consciente, e seguro de que não estava morto. Algo na postura do judeu lhe disse que estavam próximos do final da jornada. Tinham passado por Siedlce, depois, em Sokolow Podlaski, tinham virado para uma estrada de campo mais estreita. Dybow veio a seguir, depois Kosow Lacki. Saíram da estrada principal, para um trilho de terra batida. A van trepidava: dump-dump... dump-dump. A velha via-férrea, pensou, ainda aqui estava, claro. Seguiram o trilho até uma plataforma de abetos e bétulas e pararam um momento mais tarde num pequeno estacionamento alcatroado.
Um segundo carro entrou na clareira com os faróis apagados. Três homens saíram e aproximaram-se da van. Ele reconheceu-os. Eram os que o tinham tirado de Viena. O judeu colocou-se em cima dele e cuidadosamente cortou a fita adesiva e soltou as correias de couro.
— Venha — disse ele agradavelmente. — Vamos dar um passeio.
38
TREBLINKA, POLÔNIA
SEGUIRAM POR UM trilho por entre as árvores. Tinha começado a nevar. Os flocos caíam suavemente pelo ar tranquilo e assentavam-lhes nos ombros como cinzas de um
fogo distante. Gabriel segurava Radek pelo cotovelo. Os seus passos eram cambaleantes no início, mas em breve o sangue começou a fluir-lhe novamente aos pés e insistiu em caminhar sem o suporte de Gabriel. A sua respiração difícil gelava no ar. Cheirava a amargo e a medo.
Avançaram mais fundo para dentro da floresta. O trilho era arenoso e coberto por uma fina camada de faúlhas. Oded estava vários passos à frente, quase invisível através da queda de neve. Zalman e Navot caminhavam em formação atrás deles. Chiara tinha ficado para trás na clareira, vigiando os veículos. Fizeram uma pausa numa brecha nas árvores, de cerca de cinco metros de largura, estendendo-se pelo escuro. Gabriel iluminou-a com o foco de uma lanterna. No centro do corredor, em intervalos equidistantes, estavam várias pedras em pé. As pedras marcavam a linha da antiga vedação. Tinham chegado ao perímetro do campo. Gabriel desligou a lanterna e puxou Radek pelo cotovelo. Radek tentou resistir, mas tropeçou para a frente.
— Faça o que eu digo, Radek, e vai correr tudo bem. Não tente fugir, porque não há por onde escapar. Não vale a pena gritar por ajuda, porque ninguém vai ouvir seus gritos.
— Sente prazer em me ver com medo?
— Sinto nojo, para dizer a verdade. Não gosto nem de tocá-lo. Eu não gosto do som de sua voz.
— Então por que estamos aqui?
— Eu apenas quero que veja algumas coisas.
— Não há nada para ver aqui, Allon. Apenas um memorial polonês.
— Precisamente — Gabriel deu-lhe um puxão no cotovelo. — Venha, Radek. Mais depressa. Tem que andar mais depressa. Não temos muito tempo. Vai amanhecer em breve.
Um momento mais tarde, pararam de novo perante um caminho-de-ferro sem carris, o velho ramal que trouxera os trens da estação de Treblinka até o interior do campo. As traves tinham sido recriadas em pedra e estavam cobertas por neve recente. Seguiram os carris até o campo e pararam no sítio onde tinha estado a plataforma. Também ela estava representada em pedra.
— Lembra, Radek?
Ele ficou em silêncio, o queixo caído, a respiração áspera.
— Vá lá, Radek. Sabemos quem você é, nós sabemos o que fez. Desta vez não vai escapar. Não vale a pena entrar em jogos ou tentar negar alguma coisa. Não há tempo, a não ser que não queira salvar seu filho.
A cabeça de Radek girou lentamente. Os seus lábios comprimiram-se e o seu olhar endureceu.
— Faria mal ao meu filho?
— Na verdade, você fará por nós. Tudo o que temos a fazer é dizer ao mundo quem é o pai dele, e isso o destruirá. Foi por isso que plantou a bomba no escritório de Eli Lavon: para proteger Peter. Ninguém podia tocá-lo, não num lugar como a Áustria. A janela para você estava fechada há muito tempo. Estava seguro. A única pessoa que podia pagar um preço por seus crimes é seu filho. Foi por isso que tentou matar Eli Lavon. Foi por isso que assassinou Max Klein.
Voltou as costas a Gabriel e olhou para a escuridão.
— O que é que queres? O que queres saber?
— Conta-me como foi Radek. Eu já li sobre isso, eu vejo o memorial, mas não consigo imaginar como funcionou realmente. Como foi possível transformar em fumo um trem cheio de pessoas em apenas quarenta e cinco minutos? Quarenta e cinco minutos, porta a porta, não era disso que o staff das SS se costumava vangloriar por estes lados? Conseguiam transformar um judeu em fumo em quarenta e cinco minutos. Doze mil judeus por dia. Oitocentos mil no total.
Radek emitiu um riso fechado, um interrogador que não acreditava na afirmação do seu prisioneiro. Gabriel sentiu como se uma pedra tivesse sido posta sobre o seu coração.
— Oitocentos mil? Onde foste buscar um número desses?
— É a estimativa oficial do governo polonês.
— E espera que um bando de seres inferiores, como os poloneses, seja capaz de saber o que aconteceu nestes bosques? — A sua voz pareceu subitamente diferente, mais jovem e autoritária. — Por favor Allon, se vamos ter esta discussão, lidemos com os fatos e não com idiotice polonesa. Oitocentos mil? — Abanou a cabeça e efetivamente sorriu. Não, não foram oitocentos mil. O número real foi muito superior a isso.
UMA SÚBITA RAJADA de vento agitou as copas das árvores. Para Gabriel soou como o som dos rápidos de um rio. Radek estendeu a mão e pediu a lanterna. Gabriel hesitou.
— Não pensa que vou atacar você com isso, não?
— Eu sei de algumas coisas que fez.
— Isso foi há muito tempo.
Gabriel entregou-lhe a lanterna. Radek apontou o foco para a esquerda, iluminando um molho de árvores de folha permanente.
— Eles chamavam a esta área o campo de baixo. As casernas das SS eram ali mesmo. A vedação periférica passava mesmo por trás. Em frente, havia uma estrada alcatroada com arbustos e flores durante a Primavera e o Verão. Talvez te custe a acreditar, mas era na realidade bastante agradável. Não havia tantas árvores, claro. Plantamos as árvores depois de demolir o campo. Na altura eram apenas rebentos. Agora, estão completamente adultas, bem bonitas.
— Quantos SS?
— Normalmente cerca de quarenta. moças judias tratavam-lhes da limpeza, mas tinham polonesas para cozinhar, três moças locais que vinham das vilas em redor.
— E os ucranianos?
— Estavam aquartelados do lado oposto da estrada, em cinco casernas. A casa de Stangl era no meio, no cruzamento de duas estradas . Ele tinha um belo jardim. Foi desenhado para ele por um homem de Viena.
— Mas os recém-chegados nunca viram essa parte do campo?
— Não, não, cada parte do campo era cuidadosamente escondida da outra por vedações intercaladas com plantações de pinheiros. Quando chegavam ao campo, eles viam o que parecia ser uma normal estação de trem de campo, completa com um horário de partidas falso. Não havia partidas de Treblinka, claro. Apenas trens vazios partiam da estação.
— Havia aqui um edifício, não havia?
— Fora desenhado para parecer uma normal estação de trem, mas na realidade estava cheio de valores roubados de chegadas anteriores. Aquela seção ali era conhecida como o Largo da Estação. Ali havia o Largo da Recepção, ou o Largo da Triagem.
— Alguma vez viste a chegada dos transportes?
— Eu não tinha nada a ver com esse tipo de situação, mas sim, eu vi-os chegar.
— Havia dois procedimentos de chegada diferentes? Um para judeus da Europa Ocidental e outro para judeus do Leste?
— Sim, está correto. Os judeus da Europa Ocidental eram tratados com muita mentira e fraude. Não havia chicotes nem gritos. Era-lhes pedido educadamente que desembarcassem do trem. Pessoal médico de batas brancas estava à espera no Largo da Recepção para tratar dos doentes.
— Era tudo um estratagema, no entanto. Os velhos e os doentes eram levados e abatidos a tiro imediatamente.
Ele concordou.
— E os judeus do Leste? Como eram recebidos na plataforma?
— Eram recebidos por chicotes ucranianos.
— E depois?
Radek levantou a lanterna e apontou o foco a uma curta distância através da clareira.
— Havia uma cerca de arame farpado aqui. Para lá do arame existiam dois edifícios. Um era uma caserna para despir. No segundo edifício, judeus de trabalho cortavam o cabelo às mulheres. Quando terminavam, elas iam naquela direção. — Radek usou a lanterna para iluminar o caminho. — Havia aqui uma passagem, uma espécie de passagem de gado, com alguns metros de largura, arame farpado e ramos de pinheiro. Era conhecida como o tubo.
— Mas as SS tinham um nome especial para isso, não tinham?
Radek acenou.
— Estrada para o Paraíso.
— E onde ia dar a Estrada para o Paraiso?
Radek levantou o foco da sua luz.
— Para o campo de cima — disse. — O campo da morte.
PROSSEGUIRAM O CAMINHO até uma larga clareira polvilhada com centenas de pedregulhos, cada pedra representava uma comunidade judaica destruída em Treblinka. A pedra maior ostentava o nome Varsóvia. Gabriel olhou para lá das pedras, em direção ao céu, para leste. Começava a ganhar claridade.
— A Estrada para o Paraiso levava diretamente a um edifício de tijolo que albergava as câmaras de gás — disse Radek quebrando o silêncio. De repente parecia ansioso por falar. — Cada câmara tinha quatro metros por quatro metros. Inicialmente eram apenas três, mas em breve descobriram que precisavam de mais capacidade para satisfazer a procura. Foram acrescentadas mais dez. Um motor a gasóleo bombeava gases de monóxido de carbono para as câmaras. A asfixia demorava menos de trinta minutos. Depois disso os corpos eram retirados.
— E o que era feito com eles?
— Durante vários meses, foram enterrados ali fora, em grandes valas. Mas muito rapidamente as valas transbordaram e a decomposição dos corpos contaminou o campo.
— Foi quando chegou?
— Não de imediato. Treblinka era o quarto campo da nossa lista. Limpamos as valas de Birkenau primeiro, a seguir Belzec e Sobibor. Só chegamos a Treblinka em março de 1943. Quando eu cheguei... — a sua voz arrastou-se. — Terrível.
— O que fez?
— Abrimos as valas, claro, e retiramos os corpos.
— À mão?
Ele abanou a cabeça.
— Tínhamos uma escavadora mecânica. Acelerou bem o trabalho.
— A garra, não era assim que chamavam?
— Sim, era isso.
— E depois dos corpos serem retirados?
— Eram incinerados em grandes prateleiras de metal.
— Tinham um nome especial para as prateleiras, não tinham?
— Assadeiras — disse Radek. — Chamávamos de assadeiras.
— E depois dos corpos serem queimados?
— Esmagávamos os ossos e voltávamos a enterrá-los nas valas ou levávamos em carroças para despejar no rio Bug.
— E quando as valas antigas ficaram vazias?
— Depois disso, os corpos eram levados diretamente das câmaras de gás para as assadeiras. Funcionou assim até outubro desse ano, quando o campo foi fechado e todos os traços foram obliterados. Operou por pouco mais de um ano.
— E mesmo assim conseguiram assassinar oitocentos mil?
— Não foram oitocentos mil.
— Quantos foram então?
— Mais de um milhão. É qualquer coisa, não é? Mais de um milhão de pessoas, num lugar minúsculo como este, no meio de uma floresta polonesa.
GABRIEL TIROU A lanterna do rosto dele sacou a Beretta. Empurrou Radek com o cano. Caminharam ao longo de uma trilha, pelo campo de pedras. Zalman e Navot ficaram para trás no campo de cima. Gabriel conseguia ouvir os passos de Oded na gravilha atrás dele.
— Parabéns, Radek. Graças a você, é apenas um cemitério simbólico.
— Vai me matar agora? Não disse o que queria ouvir?
Gabriel empurrou-o pelo trilho.
— Você talvez tenha algum orgulho deste lugar, mas para nós é solo sagrado. Acha realmente que eu o poluiria com seu sangue?
— Então qual é o propósito disso? Por que me trouxe aqui?
— Você precisava ver isso mais uma vez. Visitar o local do crime para refrescar a memória e se preparar para o próximo testemunho. É assim que vai salvar seu filho da humilhação de ter tal homem na condição de pai. Vai para Israel pagar por seus crimes.
— Não foi meu crime! Eu não os matei! Eu apenas fiz o que Müller me ordenou. Eu limpei a porcaria!
— Teve sua cota de matança, Radek. Lembra do joguinho com Max Klein em Birkenau? E a marcha da morte? Também estava lá, não estava, Radek?
Radek reduziu o passo e voltou a cabeça. Gabriel deu-lhe um empurrão. Chegaram a um amplo declive retangular cheio de lascas de basalto negro, o local onde era a vala de cremação.
— Mate-me agora, maldição! Não me leve para Israel! Mate-me agora e acabe com isso. Aliás, é nisso que você é bom, não é, Allon?
— Não aqui — disse Gabriel. — Não neste lugar. Você nem sequer merece pôr os pés aqui, quanto mais morrer.
Radek caiu de joelhos defronte à vala.
— E se eu concordar em ir? Que destino me espera?
— A verdade o espera, Radek. Será posto perante o povo de Israel e confessará seus crimes. Seu papel na Aktion 1005. O massacre de prisioneiros em Birkenau. As mortes que infligiu durante a marcha da morte de Birkenau. Lembra das moças que assassinou, Radek?
Radek voltou a cabeça.
— Como é que...
Gabriel interrompeu-o.
— Não vai enfrentar julgamento por seus crimes, mas vai passar o resto da vida atrás das grades. Enquanto estiver na prisão, vai trabalhar com uma equipe de estudantes do Holocausto de Yad Vashem para compilar minuciosamente a história de Aktion 1005. Vais dizer aos que negam e aos que duvidam exatamente o que fizeste para esconder o maior caso de assassinato de massas da história. Vais dizer a verdade pela primeira vez na vida.
— Qual verdade, sua ou a minha?
— Só há uma verdade, Radek. Treblinka é a verdade.
— E o que é que eu ganho com isso?
— Mais do que mereces — disse Gabriel. — Não diremos nada sobre a ascendência duvidosa de Metzler.
— Estás disposto a aceitar um chanceler austríaco da extrema-direita para me apanhar?
— Algo me diz que Peter Metzler se vai tornar um grande amigo de Israel e dos judeus. Ele não vai querer fazer nada para nos irritar. Afinal de contas, nós teremos a chave para a sua destruição até muito depois de tu morreres.
— Como convenceste os americanos a trair-me? Chantagem, suponho: é essa a maneira judaica. Mas deve ter havido mais. Certamente juraram que nunca me dariam oportunidade de discutir a minha afiliação com a Organização Gehlen ou com a CIA. Suponho que a sua dedicação à verdade para por aí.
— Dá-me sua resposta Radek.
— Como posso confiar em ti, um judeu, que cumpras sua parte do acordo?
— Andaste a ler Der Sturmer outra vez? Vais confiar em mim porque não tens outra alternativa.
— E o que é que vai adiantar? Vai trazer de volta alguma das pessoas que aqui morreram?
— Não — concedeu Gabriel —, mas o mundo saberá a verdade, e tu vais passar os últimos anos de sua vida onde pertences. Aceita o acordo, Radek. Aceita pelo teu filho. Pensa nele como uma última fuga.
— Não ficará secreto para sempre. Um dia, a verdade sobreste caso vai vir ao de cima.
— Se calhar — disse Gabriel. — Suponho que não seja possível esconder a verdade para sempre.
A cabeça de Radek voltou-se lentamente e ele olhou para Gabriel com desdém.
— Se fosses um homem a sério, fazias tu mesmo. — Esboçou um sorriso trocista.
— Quanto à verdade, ninguém se importou enquanto este lugar estava operacional, e ninguém se vai importar agora.
Voltou-se e olhou para a vala. Gabriel guardou a Beretta no bolso e afastou-se. Oded, Zalman e Navot ficaram imóveis por trás dele no trilho. Gabriel passou por eles sem dizer uma palavra e dirigiu-se para baixo através do campo até a plataforma de caminho-de-ferro. Antes de virar para as árvores, parou por instantes para olhar sobre o ombro e viu Radek, segurando-se ao braço de Oded, pondo-se de pé devagar.
PARTE QUATRO
O prisioneiro de Abu Kabir
39
JAFFA, ISRAEL
HOUVE MUITA DISCUSSÃO sobre onde o manter cativo. Lev considerava-o um risco para a segurança e, como tal, queria mantê-lo sob custódia do Escritório. Shamron, como de costume, tomou a posição contrária, quanto mais não fosse por não querer ver os seus adorados serviços restringidos a gerir prisões. O primeiro-ministro, mesmo que a brincar, sugeriu que Radek fosse forçado a marchar para o Negev, para que os escorpiões e abutres tratassem dele. No fim, acabou por ser Gabriel a tomar a decisão. Segundo ele, para alguém como Radek, a pior punição seria a de ser tratado como um criminoso comum. Procuraram um local apropriado e concordaram em prendê-lo numa prisão policial, construída pelos ingleses durante o Mandato numa zona degradada de Jaffa, ainda hoje conhecida pelo seu nome árabe: Abu Kabir.
Passaram 72 horas para que a apreensão de Radek fosse tornada pública. O comunicado do primeiro-ministro foi conciso e propositadamente enganador. Foram tomadas muitas precauções para evitar embaraçar, sem necessidade, os austríacos. Segundo disse o primeiro-ministro, Radek foi descoberto a viver sob falsa identidade num pais não especificado. E após um período de negociações concordara vir de livre vontade para Israel. Segundo os termos do acordo, ele não seria julgado, uma vez que de acordo com a lei israelense, a única sentença possível seria a condenação à morte. Em vez disso, ele permaneceria constantemente sob a detenção do Estado e iria, de fato, dar-se como culpado dos seus crimes contra a humanidade ao trabalhar com uma equipe de historiadores em Yad Vashem e na Universidade Hebraica, com a finalidade de compilar a história definitiva da Aktion 1005.
Houve pouco rebuliço e muito menos excitação do que com a noticia que acompanhou o rapto de Eichmann. Na realidade, a noticia da captura de Radek foi sobreposta poucas horas depois pelo massacre de vinte e cinco pessoas num mercado de Jerusalém por um homem-bomba. Lev sentiu uma certa satisfação com o desenrolar dos acontecimentos, pois assim demonstrava o seu ponto de vista de que o Estado tinha mais com que se preocupar do que perseguir velhos nazistas. Começou a referir-se ao caso como "a asneira de Shamron", apesar de ele ter recuperado o seu devido nível hierárquico no serviço. Dentro do King Saul Boulevard, a captura de Radek pareceu reacender velhas fogueiras. Lev ajustou a sua postura de acordo com o estado de espirito geral mas era demasiado tarde. Todos sabiam que a prisão de Radek havia sido orquestrada pelo Memuneh e Gabriel e que Lev tinha tentado bloqueada a cada passo. O carisma de Lev junto dos soldados rasos caiu para níveis perigosamente baixos.
A pouco crível tentativa de manter secreta a identidade austríaca de Radek foi desfeita pelo vídeo da sua chegada a Abu Kabir. A imprensa de Vienna identificou rápida e corretamente o prisioneiro como sendo Ludwig Vogel, um empresário austríaco de renome. Teria ele de fato concordado deixar Viena voluntariamente? Ou teria sido, na verdade, raptado da sua residência fortificada no Primeiro Bairro? Nos dias que se seguiram, os jornais faziam alusões especulativas à sua misteriosa carreira e às suas ligações politicas. As investigações da imprensa aproximaram-se perigosamente de Peter Metzler. Renate Hoffman da Coligação para uma Áustria Melhor solicitou um inquérito oficial ao caso e sugeriu que Radek poderia ter ligações ao atentado a bomba ao Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra e à misteriosa morte de um judeu idoso chamado Max Klein. As suas exigências foram categoricamente ignoradas. O governo disse que o atentado fora obra de terroristas islâmicos. E quanto à infeliz morte de Max Klein, fora suicídio. Segundo o ministro da Justiça qualquer investigação complementar seria um desperdício de tempo.
O capítulo seguinte do caso Radek teria lugar, não em Viena, mas em Paris, onde um ex-agente do KGB com aspecto duvidoso surgiu na televisão francesa dizendo que Radek era o homem de Moscovo em Viena. Um antigo chefe de espionagem da Stasi, que se havia tornado um êxito literário na nova Alemanha, veio também reconhecer Radek.
De início, Shamron suspeitou que estas reivindicações faziam parte de uma campanha conjunta de desinformação com o fim de ilibar a CIA do vírus Radek: que era exatamente o que ele teria feito se os papéis estivessem invertidos. Depois, descobriu que, no interior da Agência, as sugestões de que Radek podia ter jogado para ambos os lados criaram algum pânico. Estavam a ser retirados arquivos dos arquivos mortos e a ser reunida à pressa uma equipe soviética de ajuda com elementos veteranos. Shamron divertia-se secretamente com a ansiedade dos seus colegas de Langley. Segundo Shamron, se se viesse a descobrir que Radek era um agente duplo seria muito justo. Adrian Carter solicitou autorização para interrogar Radek mal os historiadores tivessem terminado o seu trabalho. Shamron prometeu considerar o assunto com seriedade. O PRISIONEIRO DE Abu Kabir estava bastante alheio à tempestade criada à sua volta. A sua prisão era solitária, apesar de não ser demasiado árdua. Mantinha a cela e as roupas limpas, aceitava comida e pouco reclamava. Por muito que os guardas quisessem odiá-lo, não conseguiam. No fundo ele era um polícia e os seus carcereiros pareciam ver nele algo familiar. Tratava-os com cortesia e, como reação, era tratado com cortesia. Ele era, também, uma espécie de curiosidade. Eles haviam lido sobre homens como ele na escola e passavam à frente da sua cela a qualquer hora, apenas para o ver. Radek começou aos poucos a sentir-se como se fosse uma peça de exposição de um museu.
O seu único pedido foi o de lhe ser autorizado o acesso a um jornal todos os dias para se manter a par dos assuntos da atualidade. A questão foi levada até Shamron, que deu a sua autorização, desde que fosse um jornal israelense e não uma qualquer publicação alemã. Todas as manhãs o Jerusalém Post era-lhe entregue com a travessa do pequeno-almoço. Normalmente saltava as histórias sobre si mesmo — eram, aliás, muito incorretas — e dirigia-se diretamente à seção das notícias internacionais com a finalidade de acompanhar os desenvolvimentos das eleições austríacas.
Moshe Rivlin visitou Radek várias vezes para se preparar para o seu iminente depoimento. Foi decidido que as sessões seriam filmadas e transmitidas à noite na televisão israelense. Radek parecia estar cada vez mais agitado com a aproximação do dia da sua primeira aparição em público. Discretamente, Rivlin pediu ao chefe da prisão para manter o prisioneiro sob vigilância de suicídio. Foi plantado um guarda no corredor, junto às barras da cela de Radek. Ao princípio, Radek criou atritos com a vigilância adicional, mas passou rapidamente a apreciar a companhia.
Rivlin surgiu uma última vez na véspera da primeira sessão de depoimento de Radek. Passaram uma hora juntos; Radek estava preocupado e, pela primeira vez, nada cooperante. Rivlin arrumou os seus documentos e notas e pediu ao guarda para abrir a porta.
— Quero vê-lo — disse Radek de repente. — Pergunte se me daria a honra de me fazer uma visita. Diga-lhe que há algumas perguntas que eu quero fazer.
— Não posso prometer nada — disse Rivlin. — Não tenho ligações a...
— Pergunte, apenas — disse Radek. — O máximo que ele pode fazer é dizer não.
SHAMRON OBRIGOU Gabriel a permanecer em Israel até o primeiro dia de depoimento de Radek e Gabriel, apesar de estar ansioso por voltar a Veneza, aceitou relutante. Ele ficou no apartamento seguro perto das Portas de Zion e acordava todas as manhãs ao som dos sinos da igreja do bairro armênio. Sentava-se na sombra do terraço olhando as muralhas da Cidade Velha e desfrutava o seu tempo com café e jornais. Seguia de perto o caso Radek. Ficou contente por ver o nome de Shamron ligado à captura e não o seu. Gabriel vivia no estrangeiro, sob uma identidade falsa e não precisava que o seu verdadeiro nome fosse espalhado pela imprensa. Além disso, depois de tudo o que Shamron tinha feito pelo seu país, merecia um último dia de glória.
Conforme os dias passavam, lentamente, Gabriel percebeu que Radek parecia, cada vez mais, um estranho. Apesar de abençoado com uma memória quase fotográfica,
Gabriel lutava por se lembrar claramente da cara de Radek ou do som da sua voz. Treblinka parecia algo saído de um pesadelo. Perguntou-se se a sua mãe teria sentido o mesmo. Teria Radek permanecido nas divisões da sua memória como um convidado indesejado, ou teria ela forçado a sua memória para produzir a sua imagem na tela? Teria sido assim para todos os que se tinham cruzado com um Mal tão perfeito? Talvez assim se explicasse o silêncio que tinha dominado os sobreviventes. Talvez eles tivessem sido piedosamente libertados da dor das suas memórias, como meio de autopreservação. Uma ideia regressava-lhe constantemente ao pensamento: se, naquele dia na Polônia, Radek tivesse morto a sua mãe em vez das outras duas moças, ele nunca teria existido. Também ele começou a sentir a culpa dos sobreviventes.
Ele só tinha a certeza de uma coisa: ainda não estava pronto para esquecer. Assim, ficou contente quando um dos acólitos de Lev lhe ligou uma tarde a perguntar se ele estaria disposto a escrever uma história oficial do caso. Gabriel aceitou, desde que ele pudesse também criar uma versão não censurada dos acontecimentos, para ser guardada nos arquivos de Yad Vashem. Houve ainda alguma discussão sobre quando tal documento poderia ser tornado público. Foi então definida uma data de lançamento, quarenta anos, e Gabriel começou o trabalho.
Ele escreveu na mesa da cozinha, num computador portátil fornecido pelo Escritório. Todas as noites, trancava o computador num cofre de chão, escondido sob o sofá da sala de estar. Não tinha qualquer experiência de escrita, por isso, por instinto, fez a aproximação ao projecto como se de uma pintura se tratasse. Começou com um esboço de base, amplo e amorfo e então, lentamente, foi adicionando camadas de tinta. Usou uma paleta simples e a sua técnica de traço foi cuidada. com o passar dos dias, a cara de Radek voltou-lhe à memória com a clareza com que havia sido pintada pela mão da sua mãe.
Usualmente, trabalhava até o princípio da tarde. Depois fazia uma pausa e dava um passeio até o Hospital da Universidade de Hadassah, onde, após um mês de coma, Eli Lavon estava a mostrar sinais de querer regressar à consciência. Gabriel sentava-se junto de Lavon cerca de uma hora e falava-lhe do caso. Depois voltava ao apartamento e trabalhava até a noite.
No dia em que terminou o relatório, deixou-se ficar no Hospital até o princípio da noite e, por acaso, estava lá quando os olhos de Lavon se abriram. Lavon ficou a fixar o vazio por uns instantes; então a velha expressão inquisidora voltou-lhe ao olhar e divagou pelo ambiente desconhecido da sala do hospital até se fixar no rosto de Gabriel.
— Onde estamos? Viena?
— Jerusalém.
— O que é que estás aqui a fazer?
— Estou a trabalhar num relatório para o Escritório.
— Sobre o quê?
— Sobre a captura de um criminoso de guerra nazista chamado Erich Radek.
— Radek?
— Ele estava a viver em Viena sob o nome de Ludwig Vogel. Lavon sorriu.
— Conta-me tudo — murmurou, mas antes que Gabriel pudesse dizer uma palavra, ele já tinha adormecido outra vez.
Nessa noite, quando Gabriel voltou ao apartamento, a luz do atendedor de chamadas estava a piscar. Carregou no PLAY e a ouviu a voz de Moshe Rivlin.
— O prisioneiro de Abu Kabir quer falar com você. Eu mandava-o para o Inferno. Você é que sabe.
40
JAFFA, ISRAEL
O CENTRO DE DETENÇÕES era cercado por um alto muro cor de areia, com rolos de arame farpado no topo. Gabriel apresentou-se na entrada exterior no inicio da manhã seguinte e foi admitido sem demora. Para chegar ao interior, tinha de atravessar uma passagem vedada estreita, que lhe lembrava demasiado a Estrada para o Paraiso em Treblinka. Um guarda esperava-o na outra ponta. Silenciosamente, conduziu Gabriel pela porta de segurança e depois para uma sala de interrogatórios sem janelas, com paredes em blocos de betume. Radek estava sentado à mesa, imóvel, vestido com um terno escuro e gravata, para prestar depoimento. Estava algemado com os dedos cruzados sobre a mesa. Saudou Gabriel com um aceno de cabeça quase imperceptível, mas permaneceu sentado.
— Tire-lhe as algemas — disse Gabriel ao guarda.
— É contra as regras.
Gabriel olhou para o guarda e, pouco depois, as algemas tinham sido tiradas.
— Faz isso muito bem — disse Radek. — Isso foi mais uma artimanha psicológica sua? Está tentando demonstrar seu domínio sobre mim?
Gabriel puxou a cadeira de ferro e sentou-se.
— Não me parece que dadas as circunstâncias seja necessária uma demonstração dessas.
— Suponho que esteja certo — disse Radek. — Mesmo assim, admiro a forma como lidou com todo o caso. Eu gostaria de acreditar que teria feito as coisas assim tão bem.
— Para quem? — perguntou Gabriel. — Para os americanos, ou para os russos?
— Está se referindo às alegações feitas em Paris por aquele idiota do Belov?
— São verdadeiras?
Radek fitou Gabriel em silêncio e por breves segundos parte do velho olhar de aço regressou-lhe aos olhos azuis.
— Quando alguém esteve em jogo tanto tempo como eu estive, faz tantas alianças e envolve-se em tantas mentiras, que no fim é difícil saber onde é que a verdade e a mentira se separam.
— Belov parece ter certeza de que sabe a verdade.
— Sim, mas receio que seja apenas a certeza de um tolo. Sabe, é que Belov não estava em posição de saber a verdade. — Radek mudou de assunto. — Presumo que tenha visto os jornais desta manhã?
Gabriel acenou que sim.
— A margem de vitória dele foi maior que a esperada. Aparentemente, minha prisão teve algo a ver com isso. Os austríacos nunca gostaram de ver estranhos se metendo em seus assuntos.
— Não está se vangloriando, está?
— Claro que não — disse Radek. — Estou apenas com pena de não ter negociado com mais dureza em Treblinka. Talvez não devesse ter aceite tão facilmente. Não tenho tanta certeza de que a campanha do Peter pudesse ter descarrilhado com as revelações do meu passado.
— Há coisas que são politicamente incômodas, mesmo num pais como a Áustria
— Você nos subestima, Allon.
Gabriel deixou cair algum silêncio entre eles. Já estava a começar a arrepender-se da decisão de ter vindo.
— Moshe Rivlin disse que queria me ver — disse com desprezo. — Não tenho muito tempo.
Radek endireitou-se na cadeira.
— Estava pensando se poderia me fazer a cortesia profissional de responder a algumas perguntas.
— Isso depende das perguntas. Você e eu estamos em profissões diferentes, Radek.
— Sim — disse Radek. — Eu era um agente do serviço secreto americano e você é um assassino.
Gabriel levantou-se para ir embora. Radek levantou a mão.
— Espere — disse. — Sente-se. Por favor.
Gabriel voltou a sentar-se.
— O homem que ligou para minha casa na noite do sequestro...
— Quer dizer, de sua prisão?
Radek baixou a cabeça.
— Está bem, minha prisão. Presumo que era um impostor?
Gabriel acenou que sim.
— Ele era muito bom. Como ele conseguiu imitar Kruz tão bem?
— Não espera que eu responda a isso, Radek. — Gabriel olhou para o relógio. — Espero que não me tenha feito vir até Jaffa só para me fazeres uma pergunta.
— Não — disse Radek. — Há mais uma coisa que eu gostaria de saber. Quando estávamos em Treblinka, disse que eu tinha tomado parte na evacuação de prisioneiros de Birkenau.
Gabriel interrompeu-o. — Será que podemos deixar os eufemismos de vez, Radek? Não foi uma evacuação. Foi uma marcha da morte.
Radek manteve-se em silêncio por um momento.
— Disse também que eu tinha assassinado pessoalmente alguns prisioneiros.
— Eu sei que assassinou pelo menos duas moças — disse Gabriel. — Tenho certeza de que deve ter havido mais.
Radek fechou os olhos e acenou lentamente com a cabeça que sim.
— Houve mais — disse, distante. — Muitos mais. Lembro-me desse dia como se tivesse sido na semana passada. Eu já sabia há algum tempo que o fim estava próximo, mas ver aquela coluna de prisioneiros marchando em direção ao Reich... Foi quando eu soube que era o Götterdämmerung. Era, realmente, o Crepúsculo dos Deuses.
— E então começou a matá-los?
Ele acenou de novo.
— Eles tinham me confiado a missão de guardar seu terrível segredo e estavam deixando vários milhares de testemunhas saírem vivas de Birkenau. Deve imaginar como eu me senti.
— Não — disse Gabriel com honestidade. — Nem consigo começar a imaginar como deve ter se sentido.
— Houve uma moça — disse Radek. — Lembro-me de ter perguntado o que ela diria aos filhos sobre a guerra. Ela disse que lhes diria a verdade. Ordenei que mentisse. Ela se recusou. Matei duas outras moças e, mesmo assim, ela continuava a me desafiar. Por algum motivo, deixei-a ir. Parei de matar prisioneiros depois disso. Ao olhá-la nos olhos, percebi que não valia a pena.
Gabriel baixou os olhos e fixou as mãos para evitar morder a isca de Radek.
— Presumo que esta mulher seja sua testemunha? — perguntou Radek.
— Sim, é ela.
— É engraçado — disse Radek — mas ela tem seus olhos.
Gabriel levantou o olhar. Hesitou e depois disse: — É o que me dizem.
— É sua mãe?
Mais uma hesitação, depois a verdade.
— Diria que sinto muito — disse Radek. — Mas sei que as minhas desculpas não significam nada para você.
— Tem razão — disse Gabriel. — Não diga.
— Então foi por ela que fez isso?
— Não — disse Gabriel. — Foi por todos eles.
A porta se abriu. O guarda entrou e disse que estava na hora de seguir para Yad Vashem. Radek levantou-se devagar e esticou as mãos. Os seus olhos permaneceram firmes no rosto de Gabriel enquanto as algemas eram colocadas nos seus pulsos. Gabriel acompanhou-o até a entrada e ficou a vê-lo dirigir-se pela passagem, até a parte de trás de uma van que o esperava. Já tinha visto o suficiente. Agora só queria esquecer.
APÓS DEIXAR ABU KABIR, Gabriel foi até Safed para visitar Tziona. Almoçaram num pequeno restaurante de espetadas no Bairro dos Artistas. Ela tentou conversar com ele sobre o caso Radek, mas Gabriel, afastado da presença do assassino há apenas duas horas, não estava com disposição para discuti-lo ainda mais. Obrigou Tziona a jurar segredo quanto ao envolvimento dele no caso e depois mudou de assunto de repente.
Discutiram arte durante algum tempo, depois política e finalmente o estado da vida de Gabriel. Tziona tinha conhecimento de um apartamento vazio a apenas alguns quarteirões do dela. Era grande o suficiente para albergar um Estúdio e era abençoado com a melhor iluminação da Galileia de Cima. Gabriel prometeu pensar no assunto, mas Tziona sabia que ele estava apenas a apaziguá-la. O desconforto havia voltado aos seus olhos. Ele estava pronto para partir.
Enquanto bebiam o café, ele disse-lhe que tinha encontrado um lugar para algum do trabalho da sua mãe.
— Onde?
— O Museu da Arte do Holocausto em Yad Vashem. Os olhos de Tziona inundaram-se de lágrimas.
— Que perfeito — disse ela.
Depois do almoço subiram as escadas de pedra até o apartamento de Tziona. Ela abriu o armário e cuidadosamente retirou os quadros. Passaram uma hora a escolher vinte das melhores peças para Yad Vashem. Tziona encontrou outras duas telas mostrando a imagem de Erich Radek. Perguntou a Gabriel o que queria que ela fizesse com elas.
— Queima-as — respondeu ele.
— Mas, provavelmente, valem muito dinheiro agora.
— Não me interessa o quanto valem — disse Gabriel. — Eu nunca mais quero ver a cara dele.
Tziona ajudou-o a transportar os quadros para o carro dele. Arrancou para Jerusalém sob um céu carregado de nuvens. Dirigiu-se primeiro a Yad Vashem. O conservador recebeu os quadros e apressou-se para ir assistir ao início do depoimento de Erich Radek. como o resto do país. Gabriel conduziu pelas ruas silenciosas até o Monte das Oliveiras. Pôs uma pedra na campa da sua mãe e recitou-lhe as palavras de luto Kaddish. Fez o mesmo na campa do seu pai. Depois, dirigiu-se para o aeroporto e apanhou o voo da tarde para Roma.
41
VENEZA * VIENA
NA MANHÃ SEGUINTE, na sestière de Cannaregio, Francesco Tiepolo entrou na Igreja de San Giovanni Crisóstomo e atravessou lentamente a nave. olhou para a Capela de Saint Jerome e viu luzes acesas por detrás da lona que cobre a plataforma de trabalho. Aproximou-se lentamente, agarrou no andaime com a sua mão, grande como a pata de um urso, e abanou-o violentamente. O restaurador levantou a sua viseira de lupa e fitou-o como um gárgula.
— Bem-vindo a casa, Mário — disse Tiepolo para cirna. — Estava a começar a ficar preocupado com você. Por onde andaste?
O restaurador baixou a viseira e virou o seu olhar de volta para o Bellini.
— Tenho andado a recolher centelhas, Francesco.
A recolher centelhas. Tiepolo tinha o bom senso suficiente para não fazer mais perguntas. Apenas lhe interessava ter o restaurador finalmente de volta a Veneza. — Quanto tempo até terminares?
— Três meses — disse o restaurador. — Talvez quatro.
— Três seria melhor.
— Sim, Francesco. Eu sei que três meses seria melhor. Mas se continuas a abanar a minha plataforma, nunca mais vou acabar.
— Não estás a planejar fazer mais recados, ou estás, Mário?
— Só um — disse, com o pincel pousado em frente da tela. — Mas não vou demorar. Prometo.
— Isso é o que dizes sempre.
A ENCOMENDA CHEGOU por um estafeta motorizado à Relojoaria, no Primeiro Bairro de Viena, exatamente três semanas depois. O Relojoeiro recebeu a encomenda pessoalmente. Deixou sua assinatura nos papéis do correio e deu-lhe uma pequena gorjeta pelo incômodo. Depois, levou o embrulho para a oficina e colocou-o sobre a mesa.
O estafeta montou em sua moto e afastou-se rapidamente, reduzindo por instantes no fim da rua, apenas o suficiente para fazer sinal à mulher sentada ao volante do Renault sedã. A mulher teclou um número no celular e apertou SEND. Pouco depois, o Relojoeiro respondeu.
— Acabei de lhe enviar um relógio — disse ela. — Recebeu-o?
— Quem fala?
— Sou uma amiga de Max Klein — disse ela baixinho. — E de Eli Lavon. E de Reveka Gazit. E de Sarah Greenberg.
Ela baixou o telefone e pressionou rapidamente quatro números seguidos, virando em seguida a cabeça a tempo de ver a brilhante bola de fogo vermelha emergindo da fachada da loja do Relojoeiro.
Afastou-se da calçada, mãos trêmulas no volante e dirigiu para a Ringstrasse. Gabriel tinha abandonado sua moto e esperava-a na esquina. Ela parou o carro o tempo suficiente para ele entrar, depois virou para a larga avenida e desapareceu no trânsito da tarde. Um carro da Staatspolizei passou por eles a alta velocidade na direção contrária. Chiara manteve os olhos na estrada.
— Você está bem?
— Acho que vou vomitar.
— Sim, eu sei. Quer que eu dirija?
— Não, eu consigo.
— Devia ter me deixado enviar o sinal da detonação.
— Não queria que se sentisse responsável por mais uma morte em Viena. — Ela limpou uma lágrima da face. — Pensou neles quando ouviu a explosão? Pensou em Leah e Dani?
Ele hesitou, depois abanou a cabeça.
— Pensou em quê?
Ele chegou-se a ela e limpou-lhe outra lágrima.
— Em você, Chiara — disse ele, suavemente. — Pensei apenas em você.
NOTA DO AUTOR
Morte em Viena completa um ciclo de três romances sobrem os assuntos inacabados do Holocausto. A pilhagem de arte pelos nazistas e a colaboração de bancos suíços servem de pano de fundo para O Assassino Inglês. O papel da Igreja Católica no Holocausto e o silêncio do Papa Pio XII inspiraram O Confessor. Morte em Viena, como os seus predecessores, é vagamente baseada em fatos reais. Heinrich Gross foi de fato um médico na notória clínica de Spiegelgrund durante a guerra, e a descrição da pouco empenhada tentativa austríaca de o julgar em 2000 é inteiramente exata. Nesse mesmo ano, a Áustria foi abanada por alegações afirmando que agentes da polícia e dos serviços de segurança trabalhavam para Jörg Haider e o seu Partido da Liberdade de extrema-direita para ajudar a desacreditar críticos e oponentes políticos.
Aktion 1005 foi o verdadeiro nome de código do programa nazista para ocultar as provas do Holocausto e destruir os restos mortais de milhões de judeus. O líder da operação, um austríaco chamado Paul Blobel, foi condenado em Nuremberg pelo seu papel nos assassinatos em massa dos Einsatzgruppen e condenado à morte. Enforcou-se na prisão de Landsberg em Junho de 1951, nunca foi detalhadamente questionado sobre o seu papel como comandante da Aktion 1005.
O bispo Alois Hudal foi de fato o reitor do Pontifício Santa Maria dell'Anima e ajudou centenas de criminosos de guerra nazistas a fugir da Europa, incluindo o comandante de Treblinka, Franz Stangl. O Vaticano afirma que o bispo Hudal agia sem a aprovação ou o conhecimento do Papa ou outro agente sênior da Cúria.
A Argentina, claro, foi o destino final de milhares de criminosos de guerra procurados. É possível que um pequeno número ainda lá resida nos dias de hoje. Em 1994, o antigo oficial das SS, Erich Priebke, foi descoberto a viver livremente em Bariloche por uma equipe de reportagem da ABC. Evidentemente Priebke sentia-se tão seguro em Bariloche que, em entrevista ao correspondente da ABC, Sam Donaldson, admitiu de livre vontade o seu papel central no massacre das Grutas Ardeatinas em março de 1944. Priebke foi extraditado para Itália, julgado e condenado a prisão perpétua, embora lhe tenha sido permitido cumprir a pena em "prisão domiciliária". Durante vários anos de manobras legais e apelos, a Igreja Católica permitiu a Priebke viver num mosteiro nas imediações de Roma.
Olga Lengyel, no seu testemunho 1947, memória de uma sobrevivente em Auschwitz, escreveu: "Certamente todos aqueles cujas mãos estiveram direta, ou Indiretamente manchadas com o nosso sangue devem pagar pelos seus crimes. Menos do que isso seria um ultraje contra milhões de mortes inocentes." O seu apaixonado apelo por justiça, no entanto, passou largamente despercebido. Apenas uma minúscula percentagem daqueles que levaram a cabo a Solução Final ou tiveram um papel auxiliar ou colaboracionista enfrentaram punição pelos seus crimes. Dezenas de milhar encontraram santuário em terras estrangeiras, incluindo nos Estados Unidos; outros regressaram simplesmente a casa e prosseguiram com as suas vidas. Alguns arranjaram emprego na rede de serviços secretos do General Reinhard Gehlen patrocinada pela CIA. Que impacto tiveram homens como estes na conduta da política de relações internacionais da América durante a Guerra-Fria? A resposta talvez nunca seja inteiramente conhecida.
30
VIENA
MEIA-NOITE NO Primeiro Bairro, uma calma de morte, um silêncio que só Viena consegue produzir, um majestoso vazio. Kruz achava reconfortante. Mas o sentimento não durou muito. Era raro o velho telefonar-lhe para casa, e Kruz nunca tinha sido arrastado da cama a meio da noite para uma reunião. Duvidava que as noticias fossem boas.
Olhou para o fundo da rua e não viu nada fora do normal. Uma olhadela para o retrovisor confirmou que não tinha sido seguido. Saiu e caminhou até o portão da imponente casa de pedra do velho. No piso térreo, luzes brilhavam por trás das cortinas fechadas. No segundo piso brilhava uma única luz. Kruz tocou à campainha. Tinha a sensação de estar a ser observado, qualquer coisa imperceptível, como um bafo na nuca. Olhou por cima do ombro. Nada.
Alcançou novamente a campainha, mas antes que a pudesse pressionar, um zumbido soou e a barra da fechadura saltou para trás. Empurrou o portão e atravessou o pátio frontal. Quando chegou ao pórtico, viu a porta aberta e um homem de paletó aberto e gravata solta. Não se esforçava minimamente para esconder o coldre de couro preto que continha uma pistola Glock. Kruz não estava alarmado com a visão; ele conhecia bem o homem. Era um antigo agente da Staatspolizei chamado Klaus Halder. Tinha sido Kruz a contratá-lo para guarda-costas do velho. Halder acompanhava normalmente o velho quando este saia ou quando esperava visitas em casa. A sua presença à meia-noite não era, como o telefonema para a casa de Kruz, um bom sinal.
— Onde está ele?
Halder olhou para o chão sem dizer uma palavra. Kruz desapertou a gabardina e entrou no estúdio do velho. A parede falsa estava afastada para o lado. O pequeno elevador estilo cápsula estava à espera. Entrou e o pressionar de um botão enviou-o lentamente para baixo. As portas abriram alguns segundos mais tarde, revelando uma pequena câmara subterrânea decorada com o dourado dos gostos barrocos do velho. Os americanos tinham-na construído para ele, para que conduzisse reuniões importantes sem medo que os russos pudessem estar à escuta. Construíram também a passagem, aquela alcançável através de uma porta de aço inoxidável com uma fechadura de combinação. Kruz era uma das poucas pessoas em Viena que sabia para onde a passagem conduzia e quem tinha vivido na casa do outro lado.
O velho estava sentado numa pequena mesa, uma bebida à sua frente. Kruz percebeu que ele estava inquieto, porque estava a girar o copo, duas voltas para a direita, duas para a esquerda. Direita, direita, esquerda, esquerda. Um estranho hábito, pensou Kruz. Ameaçador como o diabo. Calculou que o velho o tivesse apanhado numa vida anterior, noutro mundo. Uma imagem formou-se na mente de Kruz: um comissário russo acorrentado a uma mesa de interrogatório, o velho sentado do outro lado, vestido de preto dos pés à cabeça, girando a sua bebida e olhando para a sua presa com aqueles olhos azuis insondáveis. Kruz sentiu o seu coração dar um solavanco. Os pobres coitados estavam provavelmente cagados de medo mesmo antes de as coisas se tornarem duras.
O velho levantou o olhar, o girar do copo parou. O seu olhar calmo fixou a camisa de Kruz. Kruz olhou para baixo e viu que tinha os botões desalinhados. Tinha-se vestido no escuro para não acordar a mulher. O velho apontou para uma cadeira vazia. Kruz arranjou a camisa e sentou-se. O girar do copo recomeçou, duas voltas para a direita, duas para a esquerda. Direita, direita, esquerda, esquerda.
Falou sem saudar ou sem introdução. Era como se estivessem a continuar uma conversa interrompida por alguém que bate à porta.
— Durante as passadas setenta e duas horas — disse o velho foram planejados dois atentados contra a vida do israelense, o primeiro em Roma, o segundo na Argentina. Infelizmente o israelense sobreviveu a ambos. Em Roma, foi aparentemente salvo pela intervenção de um colega dos serviços secretos israelenses. Na Argentina, as coisas foram mais complicadas. Há provas que sugerem o envolvimento dos americanos.
Kruz, naturalmente, tinha perguntas. Em circunstâncias normais teria segurado a língua e esperado que o velho terminasse. Agora, trinta minutos depois de ter sido retirado da cama, não mostrou nenhuma da sua normal paciência.
— O que estava o israelense a fazer na Argentina?
O rosto do velho pareceu gelar, e a sua mão ficou imóvel. Kruz tinha transposto a linha, a linha que separava o que ele sabia do passado do velho daquilo que jamais saberia. Sentiu o peito encolher debaixo da pressão do olhar fixo. Não era todos os dias que se conseguia enfurecer um homem capaz de orquestrar, em setenta e duas horas e em continentes diferentes, duas tentativas de homicídio.
— Não é necessário que saibas por que razão o israelense esteve na Argentina, ou mesmo que lá tenha estado. O que precisas de saber é que este assunto deu uma reviravolta perigosa.
O girar do copo voltou.
— Como já acreditavas, os americanos sabem tudo. A minha verdadeira identidade, o que eu fiz durante a guerra. Não havia maneira de o esconder. Éramos aliados. Trabalhamos juntos na grande cruzada contra os comunistas. No passado, sempre contei com a sua discrição, não por algum sentido de lealdade para comigo, mas por simples medo de embaraço. Eu não tenho ilusões, Manfred. Sou como uma prostituta para eles. Viraram-se para mim quando estavam sozinhos e necessitados, mas agora que a guerra-fria acabou, sou como uma mulher que eles preferiam esquecer. E se agora estão de alguma forma a cooperar com os israelenses... — deixou a frase por terminar. — Estás a ver o que quero dizer, Manfred?
Kruz acenou.
— Presumo que saibam sobre Peter?
— Eles sabem tudo. Eles têm o poder de me destruir, e ao meu filho, mas apenas se estiverem dispostos a suportar a dor de uma ferida auto-infligida. Eu costumava estar seguro de que eles nunca se virariam contra mim. Agora, já não tenho certeza.
— O que queres que eu faça?
— Mantém sob vigilância constante as embaixadas israelense e americana. Designa vigilância física a todo o pessoal dos serviços secretos. Controla os aeroportos e estações de trem. Contata, também, os teus informadores nos jornais. Eles podem recorrer à imprensa. Não quero ser apanhado desprevenido.
Kruz olhou para a mesa e viu o seu próprio reflexo na superfície polida.
— E quando o ministro me perguntar por que dedico tantos recursos aos americanos e aos israelenses? O que digo?
— Preciso lembrar o que está em jogo, Manfred? O que dirá ao ministro é problema seu. Apenas faça o que digo. Não vou deixar Peter perder estas eleições. Entendeu?
Kruz olhou para os impiedosos olhos azuis e viu mais uma vez o homem vestido de preto dos pés à cabeça. Fechou os olhos e concordou com um movimento de cabeça.
O velho levou o copo aos lábios e, antes de beber, sorriu. Era tão agradável como uma súbita racha numa placa de vidro. Alcançou o bolso de peito do casaco, exibiu um pedaço de papel, e lançou-o sobre o tampo da mesa. Kruz olhou para ele enquanto deslizava, em seguida levantou o olhar.
— O que é isto?
— É um número de telefone. Kruz não tocou no papel.
— Um número de telefone?
— Nunca se sabe o que pode resultar de uma situação destas. Poderá ser necessário recorrer à violência. É possível que eu possa não estar em condições de ordenar tais medidas. Nesse caso, Manfred, a responsabilidade cai sobre ti.
Kruz pegou no pedaço de papel e levantou-o entre os seus dois dedos indicadores.
— Se ligar para este número, quem vai atender?
O velho sorriu.
— A violência.
31
ZURIQUE
HERR CHRISTIAN ZIGERLI, coordenador de eventos especiais do Dolder Grand Hotel, era como o próprio hotel: digno e pomposo, resoluto e discreto, um homem que apreciava o seu lugar de destaque na vida porque lhe permitia olhar para os outros de cima. Era também um homem que não gostava de surpresas. Normalmente, exigia setenta e duas horas de aviso prévio para reservas especiais e conferências, mas quando a Heller Enterprises e a Systech Wireless manifestaram vontade de conduzir as negociações finais da fusão no Dolder, Herr Zigerli concordou abdicar das setenta e duas horas de previsão em troca de uma sobretaxa de quinze por cento. Ele podia ser atencioso quando queria, mas ser atencioso, como todo o resto no Dolder, tinha um preço exorbitante.
A Heller Enterprises era a licitante por isso cabia-lhe tratar das reservas: não o próprio velho Rudolf Heller, claro, mas uma vistosa assistente pessoal italiana de nome Elena. Herr Zigerli tinha tendência a formar uma ideia sobre as pessoas rapidamente. Ele dizia que qualquer outro hoteleiro que fosse bom faria o mesmo. Não gostava de italianos de uma maneira geral, e a agressiva e exigente Elena rapidamente ganhou um lugar de destaque na sua lista de clientes pouco considerados. Ela falava alto ao telefone, um crime capital segundo ele, e parecia acreditar que só por gastar grandes quantidades de dinheiro do seu patrão tinha direito a privilégios especiais. Ela parecia conhecer bem o hotel. Fato estranho, já que Herr Zigerli tinha memória de elefante e não se lembrava dela como hóspede no Dolder. As suas exigências eram minunciosamente especificas. Queria quatro suítes contiguas perto do terraço com vista para o campo de golfe e para o lago. Quando Zigerli a informou que não seria possível — duas mais duas, ou três mais uma, mas não quatro seguidas — perguntou se os hóspedes podiam ser recolocados para a acomodar. Lamento, disse o hoteleiro, mas o Dolder Grand não tem o hábito de transformar hóspedes em refugiados. Ela decidiu optar por três suítes contiguas a uma quarta mais ao fundo do corredor.
— As delegações vão chegar às duas da tarde de amanhã — disse ela. — E gostariam de um almoço de trabalho leve.
Seguiram-se mais dez minutos de discussão sobre o que constituía um "almoço de trabalho leve".
Quando o menu ficou completo, Elena atirou mais uma exigência. Ela chegaria quatro horas antes das delegações, acompanhada pelo chefe de segurança da Heller, para inspecionar os quartos. Assim que as inspeções estivessem terminadas, não seria permitida a entrada de pessoal do hotel, exceto se acompanhados pela segurança da Heller. Herr Zigerli suspirou profundamente e concordou, em seguida desligou o telefone e, com a porta do seu gabinete fechada e trancada, fez uma série de exercícios de respiração para acalmar os nervos.
A manhã das negociações amanheceu cinza e fria. Os torreões majestosos do Dolder furavam o cobertor de nevoeiro gelado, e o asfalto perfeito da entrada brilhava como granito preto polido. Herr Zigerli estava de guarda no lobby, mesmo por trás das reluzentes portas de vidro, pés à largura dos ombros, mãos de lado, preparado para a batalha. Ela vai atrasar-se, pensou. Atrasam-se sempre. Ela vai precisar de mais suites. Ela vai querer mudar o menu. Ela vai ser perfeitamente horrível.
Um Mercedes sedã preto deslizou até a entrada e parou à porta. Herr Zigerli olhou discretamente para o relógio de pulso. Precisamente dez horas. Impressionante. O paquete abriu a porta traseira e uma lustrosa bota preta emergiu — Bruno Magli, reparou Zigerli — seguido por um torneado joelho e coxa. Herr Zigerli balançou para a frente nas pontas dos pés e alisou o cabelo sobre a zona careca. Já tinha visto muitas belas mulheres pairando pela famosa entrada do Dolder Grand, mesmo assim, poucas a tinham passado com mais graça e estilo que a encantadora Elena da Heller Enterprises. Ela tinha o cabelo acastanhado, preso por um gancho na nuca, e pele da cor do mel. Os seus olhos castanhos salpicados de dourado pareciam ter ganho ainda mais brilho quando lhe apertou a mão. A sua voz, tão alta e exigente pelo telefone, era agora suave e arrebatadora, assim como o seu sotaque italiano. Ela largou-lhe a mão e voltou-se para o acompanhante pouco sorridente.
— Herr Zigerli, este é o Oskar. O Oskar é segurança.
Aparentemente, o Oskar não tinha apelido. Nem precisava, pensou Zigerli. Ele tinha a constituição de um lutador de wrestling, com cabelo ruivo claro e sardas vagas espalhadas pelas largas bochechas. Herr Zigerli, um observador treinado da condição humana, viu qualquer coisa de familiar em Oskar. Um colega de tribo, por assim dizer. Ele conseguia imaginá-lo há dois séculos atrás, nas roupas de um lenhador, caminhando pesadamente por um trilho pela Floresta Negra. Como todos os bons seguranças, Oskar deixou os olhos falarem por si, e os seus olhos disseram a Herr Zigerli que ele estava ansioso por começar o trabalho.
— Eu levo-os aos seus quartos — disse o hoteleiro. — Por favor sigam-me. Herr Zigerli decidiu levá-los pela escada em vez do elevador. Era um dos mais finos atributos do Dolder, e Oskar, o lenhador, não parecia ser do tipo que prefere esperar pelos elevadores quando há um lanço de escadas para subir. Os quartos eram no quarto piso. No patamar, Oskar estendeu a mão para receber os cartões eletrônicos.
— A partir daqui é conosco se não se importa. Não é necessário mostrar-nos o interior dos quartos. Já todos estivemos em hotéis antes.
Uma piscadela cúmplice, uma palmadinha no ombro.
— Indique-nos apenas para onde é. Ficamos bem.
De fato, ficarão, pensou Zigerli. Oskar era um homem que inspirava confiança a outros homens. Mulheres também, Zigerli suspeitou. Ponderou se a deliciosa Elena — ele já começava a pensar nela como a sua Elena — seria uma das conquistas de Oskar. Colocou os cartões eletrônicos na palma da mão de Oskar e indicou-lhes o caminho.
Herr Zigerli era um homem de muitas máximas : "Um cliente sossegado é um cliente satisfeito" estava entre as suas preferidas. E a partir daí interpretou o subsequente silêncio no quarto piso como prova que Elena e o seu amigo Oskar estavam satisfeitos com as acomodações. Isto, por sua vez, satisfazia Herr Zigerli. Ele agora gostava de fazer Elena feliz. Conforme foi continuando pelo resto da manhã, ela estava-lhe na cabeça, como o traço de essência que se lhe tinha colado à mão.
Ele encontrou-se ansioso por algum problema, alguma queixa disparatada que requeresse contato com ela. Mas não houve nada, apenas o silêncio da perfeição. Ela tinha o Oskar agora. Ela não tinha necessidade do coordenador de eventos especiais do melhor hotel da Europa. Herr Zigerli, uma vez mais, tinha feito o seu trabalho bem demais.
Não ouviu nada deles, nem os viu, até as duas da tarde quando se reuniram na recepção e formaram uma improvável comissão de boas-vindas para as delegações que chegavam. Havia agora neve a cair no pátio frontal. Zigerli acreditava que o mau tempo apenas realçava o encanto do hotel: um abrigo da tempestade, como a própria Suíça.
A primeira limusina parou na entrada e largou dois passageiros. Um era o próprio Herr Rudolf Heller, um homem baixo e velho, vestindo um dispendioso terno preto e gravata prateada. Os seus óculos ligeiramente fumados sugeriam um problema na visão; o seu passo rápido e impaciente deixava a impressão de que, apesar da idade avançada, ele era um homem capaz de cuidar de si próprio. Herr Zigerli deu-lhe as boas-vindas ao Dolder e apertou-lhe a mão. Parecia feita de pedra. Estava acompanhado pelo carrancudo Herr Keppelmann. Vinte e cinco anos mais novo que Heller, cabelo curto, grisalho nas têmporas, olhos muito verdes. Herr Zigerli já tinha visto uma boa quantidade de guarda-costas no Dolder, e Herr Keppelmann parecia encaixar no perfil. Calmo, mas vigilante, silencioso como um rato de sacristia, seguro no passo e forte. Os olhos cor de esmeralda eram serenos, mas em constante movimento. Herr Zigerli olhou para Elena e reparou que o seu olhar estava fixado em Herr Keppelmann. Talvez ele se tivesse enganado sobre Oskar. Talvez o taciturno Keppelmann fosse o homem mais sortudo do mundo.
Os americanos chegaram a seguir: Brad Cantwell e Shelby Somerset, o CEO e COO da System Communications, Inc., de Reston, Virgínia. Notava-se sofisticação que Zigerli não costumava ver em americanos. Não eram exageradamente amigáveis, nem estavam a bramir para os celulares quando entraram na recepção.
Cantwell falou alemão assim como Herr Zigerli e evitou cruzar o olhar. Somerset era o mais afável dos dois. O seu tom aristocrático, o blazer azul bastante viajado e a gravata às riscas ligeiramente amarrotada identificavam-no como um yuppie Oriental.
Herr Zigerli fez alguns comentários de boas-vindas, e depois recuou calmamente para segundo plano. Era algo que ele fazia excepcionalmente bem. Enquanto Elena conduzia o grupo em direção à escadaria, ele deslizou para seu gabinete e fechou a porta. Um impressionante grupo de homens, pensou. Ele esperava que grandes coisas saíssem deste empreendimento. O seu papel no assunto, embora menor, foi executado com precisão e competência serena. Nos dias de hoje, tais atributos tinham pouco valor, mas eram a moeda do reino miniatura de Herr Zigerli. Ele suspeitava que os homens da Heller Enterprises e System Communications provavelmente sentiam o mesmo.
NO CENTRO DE ZURIQUE, numa rua calma perto do local onde as águas verdes do Rio Limmat desaguam no lago, Konrad Becker estava a encerrar o seu banco privado por aquele dia quando o telefone na sua mesa tocou com suavidade. Tecnicamente, ainda faltavam cinco minutos para a hora de fecho, mas estava tentado a deixar o gravador atender. Backer sabia por experiência que só clientes problemáticos telefonavam tão tarde, e o seu dia já tinha sido difícil o suficiente. Em vez disso, como um bom banqueiro suíço, alcançou o receptor e levou-o à orelha sem pensar.
— Becker and Puhl.
— Konrad, é Shelby Somerset. Como é que estás?
Becker engoliu em seco. Somerset era o nome do americano da CIA: pelo menos, Somerset era como ele dizia que se chamava. Becker duvidava seriamente que fosse o seu nome verdadeiro.
— O que posso fazer por si, senhor Somerset?
— Como entrada podes deixar-te de formalismos, Konrad.
— E como prato principal?
— Podes descer a escada, ir até a Talstrasse e entrar no Mercedes que está lá à tua espera.
— E porque quereria eu fazer isso?
— Eu preciso de te ver.
— Onde é que o Mercedes me vai levar?
— A um sítio agradável, garanto-te.
— E como devo ir vestido?
— Traje executivo serve perfeitamente. E, Konrad?
— Sim, senhor Somerset?
— Não penses em armar-te em difícil. Isto é a sério. Desce a escada. Entra no carro. Estamos de olho em ti. Estamos sempre de olho em ti.
— Que reconfortante, senhor Somerset — disse o banqueiro, mas a ligação já tinha sido cortada.
VINTE MINUTOS MAIS TARDE, Herr Zigerli estava na recepção quando reparou num dos americanos, Shelby Somerset, a caminhar ansioso na parte de fora da entrada. Um momento mais tarde, um Mercedes prateado parou e uma pequena figura careca saiu do banco de trás. Mocassins indianos polidos, uma pasta à prova de choque. Um banqueiro, pensou Zigerli. Apostava o seu ordenado nisso. Somerset fez ao recém-chegado um sorriso amigável e deu uma palmada firme no ombro. O pequeno homem, apesar da calorosa recepção, parecia no entanto estar a caminhar para a sua própria execução. Mesmo assim, Herr Zigerli achou que as conversações estavam a correr bem. O homem do dinheiro tinha chegado.
— BOA TARDE, HERR BECKER. É um prazer vê-lo. Eu sou Heller. Rudolf Heller. Este é o meu sócio, senhor Keppelmann. Aquele homem ali é o nosso parceiro americano, Brad Cantwell. É obvio que você e o senhor Somerset já se conhecem. O banqueiro piscou os olhos várias vezes e depois fixou o seu pequeno olhar astuto em Shamron, como se estivesse a tentar calcular o seu valor liquido. Segurou a pasta sobre os genitais, em antecipação de um ataque iminente.
— Os meus associados e eu estamos prestes a embarcar numa joint-venture. O problema é que não conseguimos fazê-lo sem a sua ajuda. É isso que fazem os banqueiros, não é, Herr Becker? Ajudam a lançar grandes empreendimentos? Ajudam as pessoas a realizar os seus sonhos e o seu potencial?
— Depende do empreendimento, Herr Heller.
— Estou a ver — disse Shamron, sorrindo. — Por exemplo, há muitos anos atrás, um grupo de homens foi ver você. Alemães e austríacos. Queriam lançar um grande empreendimento também. Confiaram-lhe uma grande soma de dinheiro e deram-lhe o poder de transformar numa soma ainda maior. Você se saiu extraordinariamente bem. Transformou-a numa montanha de dinheiro. Presumo que se lembre desses cavalheiros? Presumo que também saiba onde conseguiram o dinheiro?
O olhar do banqueiro suíço endureceu. Tinha concluído o cálculo sobre o valor líquido de Shamron.
— É israelense, não é?
— Prefiro pensar em mim mesmo como um cidadão do mundo — respondeu Shamron. — Moro em muitos lugares, falo a língua de muitas terras. A minha lealdade, como os meus interesses financeiros, não tem fronteiras nacionais. Como suíço tenho certeza que consegue entender o meu ponto de vista.
— Eu entendo — disse Becker — mas não acredito numa palavra do que diz.
— E se eu fosse de Israel? — perguntou Shamron. — Isso teria algum impacto na sua decisão?
— Teria.
— Como?
— Não me interessam os israelenses — disse Becker prontamente. — E os judeus também.
— Lamento ouvir isso, Herr Becker, mas um homem tem direito a sua opinião, e não vou discutir isso. Nunca deixo politicagem meter-se no caminho dos negócios. Preciso de ajuda para o meu empreendimento, e você é a única pessoa que pode me ajudar.
Becker elevou o sobrolho zombeteiramente.
— Qual é exatamente a natureza deste empreendimento, Herr Heller?
— É bem simples, na verdade. Quero que me ajude a sequestrar um de seus clientes.
— Parece-me, Herr Heller, que esse empreendimento seria uma violação das leis de segredo bancário e de várias outras leis deste pais.
— Então suponho que teremos de manter seu envolvimento em segredo.
— E se eu me recusar a cooperar?
— Então serei obrigado a contar ao mundo que você é o banqueiro dos assassinos, que está sentado em dois bilhões e meio de dólares de pilhagens do Holocausto. Soltaremos os cães de caça do Congresso Judaico Mundial sobre você. Quando terminarem, você e o seu banco estarão em farrapos.
O banqueiro suíço lançou um olhar de súplica a Shelby Somerset.
— Nós tínhamos um acordo.
— Ainda temos — balbuciou o sedento americano —, mas os contornos do acordo mudaram. Seu cliente é um homem muito perigoso. Passos precisam de ser dados para neutralizá-lo. Precisamos de você, Konrad. Ajude-nos a resolver um problema. Vamos fazer o bem juntos.
O banqueiro trauteou com os dedos na pasta.
— Tem razão. Ele é um homem perigoso, e se eu ajudo a sequestrá-lo, é melhor começar a abrir a minha própria sepultura.
— Estaremos lá, Konrad. Vamos protegê-lo.
— E se os contornos do acordo mudarem novamente? Quem vai me proteger então?
Shamron intercedeu.
— Receberia cem milhões de dólares com a dispersão final da conta. Agora não haverá dispersão final da conta porque vai me entregar o dinheiro todo. Se colaborar, deixo-o ficar com metade do montante a receber. Presumo que consiga fazer a conta, Herr Becker?
— Consigo.
— Cinquenta milhões de dólares é mais do que merece, mas estou disposto a deixá-lo ficar com esse montante para ganhar a sua cooperação neste assunto. Um homem consegue comprar muita segurança com cinquenta milhões.
— Quero isso por escrito, um termo de garantia.
Shamron abanou a cabeça com desdém, como se dissesse que havia algumas coisas, e devia saber melhor que qualquer um, meu querido companheiro, que não se põe por escrito.
— O que precisa de mim? — perguntou Becker.
— Vai nos ajudar a entrar na casa dele.
— Como?
— Vai precisar vê-lo com urgência sobre um assunto qualquer da conta. Talvez alguns papéis que precisem ser assinados, alguns detalhes finais da preparação para a liquidação e dispersão dos bens.
— E assim que estiver dentro da casa?
— O seu trabalho termina. O seu novo assistente trata do resto a partir daí.
— Meu novo assistente?
Shamron olhou para Gabriel.
— Talvez seja hora de apresentar Herr Becker a seu novo parceiro.
ELE ERA UM HOMEM de muitos nomes e muitas personalidades. Herr Zigerli conhecia-o como Oskar, o chefe de segurança da Heller. O senhorio da sua morada em Paris conhecia-o como Vincent Laffont, um escritor freelancer viajante de descendência britânica que passava a maior parte do seu tempo de mala às costas. Em Londres, era conhecido como Clyde Bridges, diretor de marketing europeu de uma obscura firma de software canadiana. Em Madrid, ele era um alemão rico de alma inquieta, que preguiçava horas em cafés e bares, e viajava para aliviar o aborrecimento.
O seu nome verdadeiro era Uzi Navot. No léxico hebraico dos serviços secretos israelenses, Navot era um katsa, um operacional de campo secreto e oficial de casos.
O seu território era a Europa Ocidental. Detentor de um charme malandro, poliglota e de uma arrogância fatalista, Navot tinha penetrado células de terrorismo palestino e recrutado agentes em embaixadas árabes espalhadas pelo continente. Possuía contatos em quase todos os serviços secretos e de segurança da Europa e orientava uma vasta rede de sayanim, auxiliares voluntários recrutados em comunidades judaicas locais. Podia sempre contar com a melhor mesa na sala de grelhados do Ritz de Paris porque o maître d'hôtel era um informante pago, assim como o chefe dos serviços de limpeza.
— Konrad Becker, apresento-lhe Oskar Lange.
O banqueiro permaneceu sentado e imóvel por um longo momento, como se tivesse sido subitamente transformado em estátua. Então os seus pequenos olhos espertos pousaram em Shamron, e levantou as mãos num gesto inquisitório.
— O que devo fazer eu com ele.
— Diga-nos você. Ele é muito bom, o nosso Oskar.
— Consegue fazer-se passar por advogado?
— com a devida preparação, ele conseguia fazer-se passar pela sua mãe.
— Quanto tempo tem de durar esta charada?
— Cinco minutos, talvez menos.
— Quando se está com Ludwig Vogel, cinco minutos podem parecer uma eternidade.
— Foi o que ouvi dizer — disse Shamron.
— E o Klaus?
— Klaus?
— O guarda-costas de Vogel.
Shamron sorriu. A resistência tinha terminado. O banqueiro suíço juntara-se à equipe e jurara fidelidade à bandeira de Herr Heller e o seu nobre empreendimento.
— Ele é muito profissional — disse Becker. — Já estive na casa meia dúzia de vezes, mas ele revista-me sempre minuciosamente e pede-me para abrir a pasta. Portanto, se está a pensar levar uma arma para dentro da casa...
Shamron interrompeu-o.
— Não tencionamos levar armas para dentro da casa.
— Klaus está sempre armado.
— Tem a certeza?
— Uma Glock, penso eu. — O banqueiro deu uma palmadinha no lado esquerdo do seu peito. — Usa-a aqui. Não faz muito esforço em escondê-la.
— Um pormenor encantador, Herr Becker.
O banqueiro aceitou o elogio com uma inclinação da cabeça.
— Pormenores são a minha vida, Herr Heller.
— Perdoe a minha insolência, Herr Heller, mas como é que se rapta alguém que está protegido por um guarda-costas, se o guarda-costas está armado e o raptor não?
— Herr Vogel vai abandonar a casa voluntariamente.
— Um rapto voluntário? — o tom de Becker era incrédulo. — Que peculiar. E como é que se convence um homem a deixar-se raptar voluntariamente ?
Shamron cruzou os braços.
— Preocupe-se em levar o Oskar para dentro da casa e deixe o resto connosco.
32
MUNIQUE
NO BONITO PEQUENO bairro de Lehel em Munique havia um velho apartamento, com um portão para a rua e um bem arranjado pátio na entrada principal. O elevador era instável e indeciso, e eram mais as vezes que subiam a escada em caracol até o terceiro andar. O mobiliário tinha o anonimato de um quarto de hotel. Havia duas camas no quarto, e o sofá da sala de estar era um davenport. Na arrecadação havia quatro camas extras de abrir. A despensa estava cheia de produtos não deterioráveis e os armários continham louça e talheres para oito. As janelas da sala de estar tinham vista para a rua, mas os estores mantinham-se fechados o tempo todo, para que dentro do apartamento parecesse sempre fim de dia. Os telefones não tinham campainha. Em vez disso, estavam equipados com luzes vermelhas que piscavam para indicar que estava a tocar.
As paredes da sala de estar estavam forradas de mapas: centro de Viena, Viena metropolitana, Áustria oriental, Polônia. Na parede oposta às janelas estava pendurado um enorme mapa da Europa Central, que mostrava toda a rota de fuga, esticando-se de Viena até a costa do Báltico. Shamron e Gabriel discutiram a cor antes de decidirem pelo vermelho. À distância parecia um rio de sangue, como Shamron desejara, o rio de sangue que fluía pelas mãos de Erich Radek. Só falavam em alemão no apartamento. Shamron tinha-o decretado. Radek era referido como Radek e apenas Radek; Shamron não iria chamá-lo pelo nome que ele comprara aos americanos. Shamron decretou outras regras também. Era a operação de Gabriel, e consequentemente era um espetáculo dirigido por Gabriel. Era Gabriel, com o sotaque berlinense da sua mãe, que orientava as equipes, Gabriel que revia os relatórios de Viena, e Gabriel quem tomava todas as decisões operacionais finais.
Durante os primeiros dias, Shamron esforçou-se para se encaixar no seu papel de apoio, mas à medida que a sua confiança em Gabriel ia crescendo, descobriu ser mais fácil retirar-se para segundo plano. Ainda assim, cada agente que passava pelo apartamento seguro reparava na nuvem negra que pairava sobre ele. Parecia não dormir nunca. Ele permanecia de pé perante os mapas todo o tempo, ou sentava-se na mesa da cozinha no escuro, fumando como uma chaminé: como um homem que luta contra uma consciência pesada.
— Ele é como um doente terminal que planeia o seu próprio funeral —, assinalou Oded, um veterano agente de língua alemã que Gabriel tinha escolhido para conduzir o carro de fuga. — E se correr mal, eles gravarão isso na sua lápide, mesmo por baixo da Estrela de David.
Sob condições perfeitas, tal operação envolveria semanas de preparação. Gabriel tinha apenas dias. A operação Ira de Deus tinha-o preparado bem. Os terroristas do Setembro Negro estavam constantemente em movimento, aparecendo e desaparecendo com uma frequência de fazer enlouquecer. Quando alguém era localizado e identificado, a equipe de choque entrava em ação à velocidade da luz. Equipas de vigilância eram preparadas, veículos e apartamentos seguros eram alugados, rotas de fuga eram planejadas. O reservatório de experiência era muito útil a Gabriel em Munique. Poucos agentes secretos sabiam mais sobre planeamento rápido e ataques súbitos do que ele e Shamron.
Ao fim do dia, viam as noticias na televisão alemã. As eleições na vizinha Áustria captavam a atenção dos espectadores alemães. Metzler estava na frente. As multidões nos comícios de campanha, como a sua liderança nas sondagens, cresciam de dia para dia. A Áustria, assim parecia, estava prestes a fazer o impensável, eleger um chanceler da extrema-direita. Dentro do apartamento seguro, Gabriel e a sua equipe descobriram-se na bizarra posição de torcer pela subida de Meztler nas sondagens, pois sem Metzler, a porta para Radek estava fechada.
Invariavelmente, pouco depois das noticias, Lev revia a operação a partir de King Saul Boulevard e sujeitava Gabriel a uma fastidiosa examinação cruzada dos eventos do dia. Era a única vez que Shamron se sentia aliviado por não carregar o fardo do comando operacional. Gabriel dava voltas ao apartamento com o telefone colado à orelha, respondendo pacientemente às questões de Lev. E por vezes, se a luz estivesse correta, Shamron veria a mãe de Gabriel, caminhando ao lado dele. Ela era o único membro da equipe que nunca ninguém mencionou.
UMA VEZ POR DIA, normalmente ao fim da tarde, Gabriel e Shamron escapavam do apartamento seguro para passear nos Jardins Ingleses. A sombra de Eichmann pairava sobre eles. Gabriel reconheceu que ele estivera lá desde o inicio. Ele tinha ido a Viena naquela noite em que Max Klein contara a Gabriel a história do oficial SS que assassinara uma dúzia de prisioneiros em Birkenau e agora saboreava café todas as tardes no Café Central. Mesmo assim, Shamron tinha diligentemente evitado falar no seu nome, até agora.
Gabriel já tinha ouvido a história da captura de Eichmann muitas vezes. De fato, Shamron tinha-a contado em Setembro de 1972 para espicaçar Gabriel a juntar-se ao grupo da Ira de Deus. A versão que Shamron lhe contou durante esses passeios ao longo dos trilhos de árvores dos Jardins Ingleses era mais detalhada que qualquer outra que Gabriel tivesse escutado antes. Gabriel sabia que isto não era apenas divagação de um velho tentando reviver glórias passadas. Os editores podiam esperar sentados pelas suas memórias, Shamron não era de apregoar o seu próprio sucesso. Gabriel sabia que Shamron lhe estava a contar a história de Eichmann por uma razão. Eu já fiz a viagem que estás prestes a fazer, dizia Shamron. Noutro tempo, noutro local, na companhia de outro homem, mas há coisas que deves saber. Gabriel, por vezes, não conseguia afastar a sensação de estar a caminhar com a História.
— A parte mais difícil foi esperar pelo avião de fuga. Estávamos presos na casa segura com aquela ratazana humana. Alguns elementos da equipe não suportavam olhar para ele. Eu tinha de me sentar no seu quarto noite após noite e vigiá-lo. Ele estava acorrentado à cama de ferro vestido com um pijama e tinha óculos opacos a tapar os olhos. Estávamos estritamente proibidos de conversar com ele. Apenas o interrogador estava autorizado a falar com ele. Eu não consegui obedecer a essas ordens. Sabes, eu precisava de saber. Como é que este homem, que se enjoava ao ver sangue, matou seis milhões do meu povo? A minha mãe e o meu pai? As minhas duas irmãs? Perguntei-lhe porque o tinha feito? Ele disse-me que o tinha feito porque era o seu trabalho, o seu trabalho, Gabriel, como se ele não fosse mais que um empregado bancário ou um maquinista de trem.
E mais tarde, encostados aos balaústres de uma velha ponte sobre um ribeiro:
— Só o quis matar uma vez, Gabriel, quando ele me tentou dizer que não odiava o povo judeu, que na verdade gostava e admirava o povo judeu. Para me mostrar o quanto ele gostava de judeus, começou a recitar as nossas palavras: Shema, Yisrael, Adonai Eloheinu, Adonai Echad! Eu não conseguia ouvir aquelas palavras vindas daquela boca, a boca que tinha dado ordens para assassinar seis milhões. Cravei-lhe a mão sobre a cara até que ele se calasse. Ele começou a abanar e a ter convulsões. Pensei que lhe tinha causado um ataque de coração. Ele perguntou-me se eu o ia matar. Ele suplicou-me que não fizesse mal ao seu filho. Este homem que tinha arrancado os filhos dos braços dos pais e os tinha lançado ao fogo estava preocupado com o seu próprio filho, como se nós fossemos agir como ele, como se nós fossemos assassinar crianças.
E numa gasta mesa de madeira, numa esplanada deserta:
— Nós queríamos que ele concordasse em voltar connosco para Israel voluntariamente. Ele, claro, não queria ir. Ele queria ser julgado na Argentina ou na Alemanha. Eu disse-lhe que isso não era possível. De uma maneira ou de outra, ele ia ser julgado em Israel. Eu arrisquei a minha carreira permitindo que ele tivesse um pouco de vinho tinto e um cigarro. Eu não bebi com o assassino. Eu não podia. Assegurei-lhe que lhe seria dada a oportunidade de contar a sua versão da história, que lhe seria oferecido um julgamento apropriado com uma defesa adequada. Ele não tinha ilusões sobre o resultado, mas a noção de se poder explicar ao mundo era-lhe de alguma forma apelativa. Também apontei o fato de que ele teria a dignidade de saber que estava prestes a morrer, algo que ele negou aos milhões que marcharam para as salas de despir e para as câmaras de gás enquanto Max Klein lhes tocava serenatas. Ele assinou o papel, datou-o como um bom burocrata alemão, e estava feito.
Gabriel escutou atentamente com a gola do casaco elevada para proteger as orelhas e as mãos enfiadas nos bolsos. Shamron mudou o foco de Adolf Eichmann para Erich Radek.
— Tu tens uma vantagem porque já estiveste cara-a-cara com ele uma vez, no Café Central. Eu apenas vira Eichmann ao longe, enquanto vigiávamos a sua casa e planeávamos o rapto, mas nunca falara com ele ou mesmo estivera perto dele. Eu sabia exatamente a sua altura, mas não conseguia imaginar.
Eu tinha ideia de como a sua voz soaria, mas não é a mesma coisa. Tu conheces Radek, mas infelizmente ele também sabe muito sobre ti, também, graças a Manfred Kruz. Ele vai querer saber mais. Ele vai sentir-se exposto e vulnerável. Ele vai tentar equilibrar o jogo fazendo-te perguntas. Ele vai querer saber porque o estás a perseguir. Sob nenhuma circunstância deves envolver-te como numa conversa normal. Lembra-te, Erich Radek não era um guarda de campo ou um operador de câmara de gás. Ele era um SD, um interrogador hábil. Ele vai tentar fazer uso dessas habilidades uma última vez para evitar o seu destino. Não te deixes cair nas suas mãos. És o responsável agora. Ele vai tentar contradizer-te e abalar as tuas convicções.
Gabriel olhou para baixo, como se estivesse a ler as palavras gravadas na mesa.
— Então porque merecem Eichmann e Radek as armadilhas da justiça — disse ele finalmente — e os palestinos do Setembro Negro apenas a vingança?
— Terias dado um excelente estudante Talmud, Gabriel.
— E tu estás a fugir à minha pergunta.
— Obviamente, que houve uma medida de pura vingança na nossa decisão contra os terroristas do Setembro Negro, mas foi mais do que isso. Eles constituem uma ameaça contínua. Se não os matássemos seriam eles a matar-nos. Era guerra.
— Porque não prendê-los, levá-los a julgamento?
— Para que pudessem declamar a sua propaganda a partir de um tribunal israelense?
— Shamron abanou a cabeça lentamente. — Eles já fizeram isso — levantou a mão e apontou para a torre que se ergue no Parque Olímpico — aqui mesmo nesta cidade, em frente às câmaras de todo o mundo. Não nos competia a nós dar-lhes outra oportunidade de justificarem o massacre de inocentes.
Baixou a mão e inclinou-se sobre a mesa. Foi nessa altura que contou a Gabriel os desejos do primeiro-ministro. Enquanto conversava, a sua respiração gelava perante ele.
— Eu não quero matar um velho — disse Gabriel.
— Ele não é um velho. Ele usa as roupas de um velho e esconde-se por trás do rosto de um velho, mas ele ainda é Erich Radek, o monstro que matou uma dúzia de homens em Auschwitz porque não conseguiram identificar uma peça de Brahms. O monstro que matou duas moças à beira de uma estrada polonesa porque não quiseram negar as atrocidades de Birkenau. O monstro que abriu as campas de milhões e sujeitou os seus cadáveres a uma humilhação final. A velhice não perdoa tais pecados.
Gabriel levantou os olhos e fitou o olhar insistente de Shamron.
— Eu sei que ele é um monstro. Eu só não quero matá-lo. Eu quero que o mundo saiba o que este homem fez.
— Então é melhor preparares-te para a batalha com ele. — Shamron olhou para o seu relógio de pulso. — Mandei vir uma pessoa para te ajudar. De fato, deve estar mesmo a chegar.
— Porque só agora estou a saber disso? Pensava que era eu que tomava todas as decisões operacionais.
— E és — disse Shamron. — Mas por vezes eu tenho de mostrar o caminho. É para isso que servem os velhos.
NEM GABRIEL NEM Shamron acreditavam em prenúncios ou presságios. Se acreditassem, a operação que trouxe Moshe Rivlin de Yad Vashem até a casa segura em Munique teria lançado dúvidas sobre a capacidade da equipe para levar a cabo a tarefa que tinham pela frente.
Shamron queria que Rivlin fosse contatado discretamente. Infelizmente, King Saul Boulevard confiou o trabalho a um par de aprendizes acabados de sair da academia, ambos nitidamente de aparência sefardita. Decidiram contatar Rivlin enquanto este caminhava de Yad Vashem para o seu apartamento perto do mercado Yehuda. Rivlin, que tinha sido criado na zona de Bensonhurts no Brooklyn e ainda era vigilante quando caminhava pela rua, rapidamente notou que estava a ser seguido por dois homens de carro. Presumiu que fossem homens-bomba do Hamas ou um par de criminosos de rua. Quando o carro parou ao lado dele e os seus ocupantes pediram para falar, Rivlin desatou a correr como um louco. Para surpresa de todos, o atarracado arquivista provou ser uma presa esquiva e conseguiu escapar aos seus captores durante vários minutos até ser encurralado pelos dois agentes do Escritório na Rua Ben Yehuda.
Ele chegou ao apartamento seguro em Lehel ao fim dessa tarde, carregando duas malas cheias de material de pesquisa e irritado pela maneira como tinha sido convocado.
— Como esperam raptar um homem como Erich Radek se não conseguem apanhar um arquivista gordo? Vá lá — disse ele, puxando Gabriel para a privacidade do quarto do fundo. — Temos muito terreno para cobrir e pouco tempo para o fazer. No SÉTIMO DIA, Adrian Carter chegou a Munique. Era uma quarta-feira; chegou ao apartamento seguro ao fim da tarde, quando o crepúsculo se tornava escuro. O passaporte no bolso do seu sobretudo ainda dizia Brad Cantwell. Gabriel e Shamron tinham acabado de regressar de um passeio nos Jardins Ingleses e ainda estavam embrulhados em chapéus e cachecóis. Gabriel tinha enviado o resto dos elementos da equipe para as posições de fase final, consequentemente o apartamento seguro estava vazio de pessoal do Escritório. Apenas Rivlin permanecia. Saudou o diretor da CIA com a camisa para fora e os sapatos descalçados e disse que seu nome era Yaacov. O arquivista tinha-se adaptado bem à disciplina da operação.
Gabriel fez o chá. Carter desabotoou o casaco e conduziu-se a si próprio numa preocupada excursão pelo apartamento. Passou bastante tempo em frente aos mapas. Carter acreditava em mapas. Os mapas nunca te mentirão. Os mapas nunca te dirão o que eles acham que tu queres ouvir.
— Gosto do que fizeste com o sitio, Herr Heller. — Carter finalmente despiu o sobretudo. — Miséria neo-contemporânea. E o cheiro. Tenho certeza de que o conheço. Trazido da Wienerwald ao fundo do quarteirão, se não estou em erro. Gabriel entregou-lhe uma caneca de chá com o cordão da saqueia ainda pendente do rebordo.
— Porque estás aqui Adrian?
— Pensei em passar para ver se precisavam de ajuda.
— Tretas.
Carter sentou-se pesadamente no sofá, um vendedor no final de uma longa e improdutiva viagem pela estrada. — Verdade seja dita, estou aqui por ordem do meu diretor. Parece que ele está com um sério ataque de nervosismo. Ele sente que estamos juntos num ramo e vocês estão com a motosserra nas mãos. Ele quer que a Agência seja posta na jogada.
— E isso significa o quê?
— Ele quer saber o plano de jogo.
— Tu sabes o plano de jogo, Adrian. Eu disse-te o plano de jogo em Virginia. Não se alterou.
— Eu sei os esboços do plano — disse Carter. — Agora quero ver o quadro pronto.
— O que estás a dizer é que o teu diretor quer rever o plano e dar a palavra final.
— Algo do gênero. E quando acontecer, ele quer que eu fique na retaguarda com o Ari também.
— E se lhe dissermos para ir para o inferno?
— Eu diria que há cinquenta por cento de hipóteses de alguém sussurrar um aviso na orelha de Erich Radek, e perdem-no. Joga com o diretor, Gabriel. É a única maneira de apanhares Radek.
— Estamos prontos para agir, Adrian. Agora é a altura para sugestões úteis do sétimo andar.
Shamron sentou-se ao lado de Carter.
— Se o teu diretor tivesse dez gramas de cérebro, ficaria o mais afastado disto que conseguisse.
— Tentei explicar-lhe isso — não nesses termos, claro, mas qualquer coisa perto. Ele não tem nada disso. Ele veio da Wall Street, o nosso diretor. Ele gosta de pensar em si próprio como um individuo prático, atacante. Sempre soube o que cada divisão da companhia estava a fazer. Tenta gerir a Agência da mesma maneira. E como sabes, é também amigo do presidente. Se o chateias, ele telefona para a Casa Branca, e acaba-se.
Gabriel olhou para Shamron, que cerrava os dentes e acenava a cabeça. Carter
obteve o seu relatório. Shamron permaneceu sentado por alguns minutos, mas em breve estava de pé a percorrer a sala, como um chefe cujas receitas secretas estão a ser entregues a um concorrente do outro lado da rua. Quando terminou, Carter dispensou um longo tempo enchendo a fornilha do seu cachimbo com tabaco.
— Parece-me que os cavalheiros estão prontos — disse ele. — De que estão à espera? Se fosse vocês, punha-me em ação antes que o meu diretor que tem a palavra final decida que quer fazer parte da equipe de rapto.
Gabriel concordou. Levantou o telefone e ligou para Uzi Navot em Zurique.
33
VIENA * MUNIQUE
KLAUS HALDER BATEU suavemente na porta do estúdio. A voz do outro lado concedeu-lhe permissão para entrar. Empurrou a porta e viu o velho sentado à média luz, com os olhos fixos na tremeluzente tela de televisão: um comício de Meztler dessa tarde em Graz, estimulando multidões, a conversa já versava a composição do gabinete ministerial de Metzler. O velho desligou a televisão com o comando e virou os seus olhos azuis para o guarda-costas. Halder apontou para o telefone com o olhar. Uma luz verde piscava.
— Quem é?
— Herr Becker, de Zurique.
O velho levantou o receptor.
— Boa noite, Konrad.
— Boa noite, Herr Vogel. Peço desculpa por o incomodar tão tarde, mas o assunto não podia esperar.
— Há alguma coisa errada?
— Não, muito pelo contrário. No seguimento das recentes notícias eleitorais de Viena, decidi apressar o passo dos meus preparativos e proceder como se a vitória de Peter Metzler fosse um dado adquirido.
— Uma decisão acertada, Konrad.
— Calculei que concordasse. Tenho vários documentos que precisam da sua assinatura. Pensei que seria melhor começarmos o processo agora em vez de esperar pelo final.
— Que tipo de documentos?
— O meu advogado estará mais habilitado para os explicar do que eu. Se não se importar, eu gostaria de ir a Viena para uma reunião. Não demorará mais do que alguns minutos.
— Pode ser na sexta-feira?
— Sexta-feira está ótimo, desde que seja ao fim da tarde. Tenho um compromisso inadiável da parte da manhã.
— Podemos apontar para as quatro da tarde?
— Às cinco seria melhor para mim, Herr Vogel.
— Tudo bem, sexta às cinco.
— Vemo-nos lá.
— Konrad?
— Sim, Herr Vogel.
— Esse advogado — diga-me como se chama, por favor.
— Oskar Lange, Herr Vogel. É um homem muito competente, já fiz uso dos seus serviços em muitas ocasiões anteriores.
— Presumo que seja um tipo que compreende o significado da palavra discrição?
— Discreto, nem sequer dá para começar a descrevê-lo. Está em muito boas mãos.
— Adeus, Konrad.
O velho desligou o telefone e olhou para Halder.
— Vai trazer alguém com ele? Um aceno lento.
— Ele sempre veio sozinho no passado. Porquê trazer um ajudante de repente?
— Herr Becker está prestes a receber cem milhões de dólares, Klaus. Se há um homem no mundo em quem podemos confiar, é o gnomo de Zurique.
O guarda-costas dirigiu-se à porta.
— Klaus?
— Sim, Herr Vogel?
— Talvez tenhas razão. Telefona a alguns dos nossos amigos em Zurique. Descobre se alguém já ouviu falar de um advogado chamado Oskar Lange.
UMA HORA MAIS TARDE, uma gravação do telefonema de Becker foi enviada por transmissão segura dos escritórios da Becker & Puhl em Zurique para o apartamento seguro em Munique. Escutaram-na uma vez, depois outra, e ainda outra. Adrian Carter não gostou do que ouviu.
— Vocês sabem que assim que Radek pousar o telefone, vai fazer uma segunda chamada para Zurique para verificar o Oskar Lange. Espero que tenham pensado nisso.
Shamron parecia desapontado com Carter.
— O que acha, Adrian? Nunca fizemos este tipo de coisa antes? Somos crianças que precisam de orientação?
Enquanto esperava pela resposta, Carter chegou um fósforo ao cachimbo e puxou a fumaça.
— Já ouviu o termo sayan — disse Shamron. — Ou sayanim.
Carter acenou com o cachimbo preso entre os dentes.
— Seus pequenos ajudantes voluntários — disse. — O empregado de hotel que consegue quartos sem reserva. As locadoras que conseguem carros indetectáveis. Os médicos que tratam seus agentes quando têm ferimentos que possam suscitar perguntas difíceis. Os banqueiros que dão empréstimos de emergência.
Shamron acenou.
— Somos um pequeno serviço secreto, só mil e duzentos empregados em tempo integral. Não conseguiríamos fazer o que fazemos sem a ajuda de sayanim. Eles são uma das vantagens da diáspora, o meu exército privado de pequenos voluntários.
— E Oskar Lange?
— Ele é um advogado fiscal e imobiliário de Zurique. Por acaso também é judeu. Algo que ele não publicita em Zurique. Há alguns anos levei o Oskar a jantar a um pequeno restaurante no lago e acrescentei-o à minha lista de ajudantes. Na semana passada, pedi-lhe um favor. Eu queria usar o seu passaporte e o seu escritório e queria que ele desaparecesse por um par de semanas. Quando lhe disse porquê, ele prontificou-se a ajudar com prazer. De fato, ele próprio queria ir a Viena e capturar Radek.
— Espero que ele esteja em lugar seguro.
— Pode-se dizer que sim, Adrian. Ele está de momento num apartamento seguro em Jerusalém.
Shamron inclinou-se em direção ao leitor de fitas, carregou em REWIND, STOP e depois PLAY:
— Pode ser na sexta-feira?
— Sexta-feira está ótimo, desde que seja ao fim da tarde. Tenho um compromisso inadiável da parte da manhã.
— Podemos apontar para as quatro da tarde?
— Às cinco seria melhor para mim, Herr Vogel. .-..
— Tudo bem, sexta às cinco. " STOP.
MOSHE RIVLIN DEIXOU o apartamento seguro na manhã seguinte e regressou a Israel num voo da El Al, com um acompanhante do Escritório sentado ao seu lado. Gabriel ficou até as sete da tarde de quinta-feira, quando uma van Volkswagen com dois pares de esquis montados no teto parou em frente ao apartamento e deu duas buzinadelas.
Ele guardou a sua Beretta na parte de trás da calça. Carter desejou-lhe boa sorte; Shamron deu-lhe um beijo na cara e mandou-o descer.
Shamron abriu as cortinas e olhou para a rua escura. Gabriel apareceu no passeio e dirigiu-se à janela do condutor. Após um momento de discussão, a porta abriu e Chiara saiu. Circundou a van e foi brevemente iluminada pelos faróis da frente antes de entrar para o lugar do passageiro.
A van afastou-se da borda do passeio. Shamron acompanhou até as luzes vermelhas da traseira desaparecerem numa curva. Não se moveu. A espera. Sempre a espera.
O seu isqueiro acendeu, uma nuvem de fumaça formou-se contra o vidro.
34
ZURIQUE
KONRAD BECKER E Uzi Navot saíram dos escritórios da Becker & Puhl precisamente quatro minutos depois da uma da tarde de sexta-feira. Um vigilante do Escritório chamado Zalman, posicionado do outro lado da Talstrasse num Fiat sedã cinza, registrou a hora assim como o tempo, um aguaceiro torrencial, em seguida enviou as noticias a Shamron no apartamento seguro de Munique. Becker estava vestido para um funeral, num terno cinza de risquinhas e uma gravata cor de carvão. Navot, imitando o estilo de vestir de Oskar Lange, usava um blazer Armani com uma camisa e gravata azul elétrica a condizer. Becker tinha pedido um táxi para os levar ao aeroporto.
Shamron teria preferido um carro particular, com um motorista do Escritório, mas Becker viajava sempre de táxi para o aeroporto e Gabriel não queria que a rotina fosse quebrada. Então foi um normal táxi de cidade, conduzido por um imigrante turco, que os levou do centro de Zurique até o aeroporto Kloten por um vale enevoado, com o vigilante de Gabriel sempre a reboque.
Foram em breve confrontados com a primeira falha técnica. Uma frente fria tinha passado por Zurique, transformando a chuva em neve e gelo e obrigando as autoridades do aeroporto Kloten a suspender os voos momentaneamente. O voo 157 8 da Swiss International Airlines, com destino a Viena, embarcou a horas e depois esperou imóvel para entrar na pista. Shamron e Adrian Carter, monitorizando a situação nos computadores do apartamento seguro de Munique, debateram a próxima jogada. Deveriam dar instruções a Becker para ligar a Radek e avisá-lo do atraso? E se Radek tivesse outros planos e decidisse adiar para outra altura? As equipes e veículos estavam nas posições finais. Um cancelamento temporário poderia pôr em risco a segurança operacional. Esperar, aconselhou Shamron, e esperar foi o que fizeram.
Pelas 14h30, as condições atmosféricas melhoraram. Kloten reabriu e o voo 1578 assumiu o seu lugar na fila ao fundo da pista. Shamron fez os cálculos. O voo para Viena levava menos de noventa minutos. Se descolassem em breve, talvez chegassem a tempo a Viena.
Às 14h25 o avião estava no ar, e o azar tinha sido evitado. Shamron informou a equipe de recepção no Aeroporto Schwechat em Viena que o embrulho estava a caminho.
A tempestade sobre os Alpes fez o voo para Viena bastante mais turbulento do que Becker teria preferido. Para acalmar os nervos, consumiu três garrafinhas miniatura de Stolichnaya e visitou a casa de banho duas vezes, tudo isto foi registrado por Zalma, que estava sentado três filas atrás. Navot, o retrato da concentração e serenidade, olhava pela janela para o mar de nuvens negras, a sua água com gás intata. Aterrissaram em Schwechat poucos minutos depois das quatro da tarde sob uma luz cinza sujo. Zalman seguiu-os pelo terminal até o controle de passaportes. Becker foi mais uma vez à casa de banho. Navot, com um movimento quase imperceptível dos olhos, ordenou a Zalman que fosse com ele. Depois de se aliviar, o banqueiro passou três minutos em frente ao espelho arranjando-se, uma quantidade de tempo fora do normal, pensou Zalman, para um homem virtualmente sem cabelo. O vigilante pensou em dar a Becker um pontapé no tornozelo para o apressar, mas decidiu não o perturbar. Afinal de contas, ele era um amador a agir sob coação.
Depois de passar pelo controle de passaporte, Becker e Navot dirigiram-se ao terminal de chegadas. Aí, entre a multidão, estava um especialista em vigilância, alto e magro chamado Mordecai. Vestia um desleixado terno preto e segurava um cartão onde se lia BAUER. O seu carro, um grande Mercedes sedã, estava à espera no estacionamento de curta duração. A dois lugares de distância estava um Audi comercial de três portas prateado. As chaves estavam no bolso de Zalman.
Zalman evitou aproximar-se deles durante a viagem de carro até Viena. Ligou para o apartamento seguro de Munique e, em poucas palavras, cuidadosamente escolhidas, informou Shamron que Navot e Becker estavam dentro do horário e procediam em direção ao alvo. Pelas 16h45, Mordecai chegou ao Canal do Danúbio. Pelas 16h50 atravessou a linha em direção ao Primeiro Bairro e estava no trânsito de hora de ponta ao longo da Ringstrasse. Virou à direita, para uma rua de pedra estreita, e logo na primeira à esquerda. Um momento mais tarde, parou em frente ao portão de ferro ornamentado de Erich Radek. Zalman ultrapassou pela esquerda e continuou a conduzir.
— FAZ SINAL DE LUZES — disse Becker — e o guarda-costas deixa entrar.
Mordecai seguiu a instrução. Durante breves segundos de tensão, o portão manteve-se imóvel; então ouviu-se um bater metálico agudo, seguido do zumbido de um motor.
Enquanto o portão abria lentamente, o guarda-costas de Radek apareceu na porta da frente, a luz intensa do candelabro brilhava sobre a sua cabeça e ombros como uma auréola. Mordecai esperou até o portão estar completamente aberto e avançou para a entrada em forma de ferradura.
Navot saiu primeiro, depois Becker. O banqueiro apertou a mão do guarda-costas e apresentou:
— O meu associado de Zurique, Herr Oskar Lange. O guarda-costas acenou e convidou-os a entrar com um gesto. A porta da frente fechou-se.
Mordecai olhou para o relógio: 16h58. Pegou no celular e ligou um número de Viena. — Vou chegar tarde para jantar — disse.
— Está tudo bem?
— Sim — disse ele. — Está tudo bem.
ALGUNS SEGUNDOS MAIS TARDE, em Munique, o sinal chegou à tela do computador de Shamron. Shamron olhou para o relógio.
— Quanto tempo lhes vais dar? — perguntou Carter.
— Cinco minutos — disse Shamron — e nem um segundo a mais.
O AUDI SEDÃ PRETO com uma antena alta montada na bagageira estava estacionado a algumas ruas de distância. Zalman estacionou atrás, saiu e caminhou até a porta do passageiro. Oded estava sentado ao volante, um homem compacto com olhos castanhos claros e um nariz achatado de pugilista. Zalman, enquanto se instalava ao seu lado, conseguia cheirar tensão na sua respiração. Zalman tinha a vantagem de ter estado em atividade toda a tarde; Oded tinha estado preso no apartamento seguro de Viena sem nada para fazer exceto imaginar as consequências de um fracasso. Um celular estava no assento, a ligação com Munique já estava estabelecida. Zalman conseguia ouvir a respiração uniforme de Shamron. Uma imagem formou-se na sua mente: uma versão mais jovem de Shamron marchando na sua direção sob uma chuva torrencial na Argentina, Eichmann descendo de um ônibus e caminhando para ele vindo da direção oposta. Oded ligou o carro. Zalman foi arrastado de volta ao presente. Olhou para o relógio no painel de instrumentos: 17:03...
A E461, MAIS conhecida pelos austríacos como a Brünnerstrasse, é uma estrada de duas faixas que vem do Norte de Viena e atravessa as onduladas colinas do Weinviertel, a região de vinhos austríaca. São oitenta quilômetros até a fronteira checa. Há uma passagem-de-nível, abrigada por um dossel em abóbada, chefiada por dois relutantes guardas em abandonar o conforto do seu abrigo de alumínio e vidro para levar a cabo qualquer inspeção dos veículos que passam. Do lado checo da passagem-de-nível, a inspeção de documentos de viagem leva normalmente um pouco mais de tempo, embora o tráfego vindo da Áustria seja normalmente recebido de braços abertos. A um quilômetro e meio para lá da fronteira, ancorada nas colinas da Morávia do Sul, fica a antiga cidade de Mikulov. É uma cidade fronteiriça, com as caraterísticas de cerco de uma cidade fronteiriça. E ajustava-se perfeitamente ao estado de espírito de Gabriel. Ele estava por trás de um parapeito de tijolo de um castelo medieval, bem por cima dos telhados de telha vermelha da velha cidade, por baixo de um par de pinheiros dobrados pelo vento. A chuva fria caía como lágrimas na superfície da sua gabardina de oleado. O seu olhar estendia-se colina abaixo, em direção à fronteira. Na escuridão, apenas as luzes do tráfego na autoestrada eram visíveis, luzes brancas surgindo na sua direção, luzes vermelhas afastando-se na direção da fronteira austríaca.
Olhou para o relógio. Eles estariam dentro da casa de Radek neste instante. Gabriel conseguia imaginar pastas abrindo-se, café e bebidas sendo servidas. E então outra imagem apareceu, uma fila de mulheres vestidas de cinza, caminhando ao longo de uma estrada com neve e ensopada de sangue. A sua mãe, vertendo lágrimas de gelo.
— O que vai dizer a seu filho sobre a guerra, judia?
— A verdade, Herr Sturmbannführer. Direi ao meu filho a verdade.
— Ninguém vai acreditar em você.
Ela não lhe disse a verdade, claro. Em vez disso tinha confiado a verdade ao papel e trancado nos arquivos de Yad Vashem. Talvez Yad Vasehm fosse o local ideal para ela. Talvez existam verdades que, de tão aterradoras, fiquem melhor se confinadas num arquivo de horrores, em quarentena, separadas das não infectadas. Ela não pôde contar que fora vítima de Radek, como Gabriel não podia dizer que era o carrasco de Shamron. Ela sempre soube, no entanto.
Ela conhecia o rosto da morte, e ela tinha visto a morte nos olhos de Gabriel. O telefone no bolso de seu casaco vibrou silenciosamente contra a anca. Ele levou-o lentamente à orelha e ouviu a voz de Shamron. Guardou o telefone no bolso e deixou-se estar por um momento, observando os faróis flutuando na sua direção através da negra planície austríaca.
— O que vai dizer quando estiver com ele? — perguntara Chiara.
A verdade, Gabriel pensava agora. Eu direi a verdade.
Começou a caminhada, descendo as estreitas ruas de pedra de uma cidade antiga, em direção ao escuro.
35
VIENA
UZI NAVOT SABIA como revistar uma pessoa. Klaus Halder era muito bom no seu trabalho. Começou no colarinho da camisa de Navot e terminou nos canhões das suas calças
Armani. Em seguida virou a atenção para a pasta. Trabalhou lentamente, como um homem com todo o tempo do mundo, e com uma atenção de monge para todos os detalhes. Quando a revista terminou finalmente, ele ajeitou o conteúdo com cuidado e colocou os trincos de volta no sítio.
— Herr Vogel vai vê-los agora — disse. — Sigam-me, por favor. Caminharam pelo corredor central, depois passaram por um par de portas duplas e entraram numa sala de visitas. Erich Radek, num casaco de linho grosso e gravata cor de ferrugem, estava sentado perto da lareira. Acolheu os convidados com um simples aceno da sua alongada cabeça, mas não se esforçou por levantar-se. Radek, pensou Navot, é um homem que costuma receber visitas sentado.
O guarda-costas deslizou suavemente para fora da sala e fechou as portas.
Becker, sorrindo, aproximou-se e apertou a mão de Radek. Navot não desejava tocar no assassino, mas dadas as circunstâncias não tinha outra escolha. A mão oferecida era fria e seca, o aperto firme e sem tremor. Era um aperto de mão para o testar. Navot sentia que tinha passado.
Radek estalou os dedos em direção às cadeiras vazias, em seguida a sua mão voltou para o apoio de copo no braço da cadeira. Começou a girá-lo para a frente e para trás, duas voltas para a direita, duas para a esquerda. Havia qualquer coisa no movimento que fazia azia ao estômago de Navot.
— Ouvi coisas muito boas sobre o seu trabalho, Herr Lange disse Radek subitamente. — Tem uma excelente reputação perante os seus colegas em Zurique.
— É tudo mentira, asseguro-lhe, Herr Vogel.
— É muito modesto. — Girou a bebida. — Você fez um trabalho para um amigo meu há alguns anos, um cavalheiro chamado Helmut Schneider.
E tu estás a tentar armadilhar-me, pensou Navot. Ele tinha-se preparado para um estratagema destes. O verdadeiro Oskar Lange tinha-lhe fornecido uma lista de clientes dos últimos dez anos para Navot memorizar. O nome Helmut Schneider não estava nela.
— Lidei com um bom número de clientes durante os últimos anos, mas temo que o nome Schneider não esteja entre eles. Talvez o seu amigo me tenha confundido com outra pessoa.
Navot olhou para baixo, abriu os trincos da sua pasta e levantou a tampa. Quando voltou a levantar o olhar, os olhos azuis de Radek estavam perfurantes nos seus e a sua bebida rodava no braço da cadeira. Havia uma tranquilidade assustadora nos seus olhos. Era como estar a ser estudado por um retrato.
— Talvez tenha razão. — O tom conciliatório de Radek não condizia com a sua expressão. — Konrad disse que precisava da minha assinatura nalguns documentos relacionados com a liquidação dos bens da conta.
— Sim, está correto.
Navot retirou um dossier da pasta e colocou a pasta no chão aos seus pés. Radek acompanhou a viagem da pasta para baixo e devolveu o seu olhar ao rosto de Navot. Navot levantou a capa do dossier e elevou o olhar. Abriu a boca para falar, mas foi interrompido pelo tocar do telefone. Agudo e eletrônico, soou aos ouvidos sensíveis de Navot como um grito num cemitério. Navot olhou para a mesa estilo Biedermeier, e o telefone tocou uma segunda vez. Começou a tocar uma terceira vez, mas ficou subitamente em silêncio, como se tivesse sido amordaçado a meio do grito. Navot conseguia ouvir Halder, o guarda-costas, falando numa extensão do corredor.
— Boa tarde. .. Não, peço desculpa, mas Herr Vogel está neste momento em reunião. Navot retirou o primeiro documento do dossier. Radek estava agora visivelmente distraído, o seu olhar distante. Estava a ouvir o som da voz do seu guarda-costas. Navot chegou-se à frente na cadeira e segurou o papel num ângulo que permitisse a Radek ver.
— Este é o primeiro documento que necessita...
Radek levantou a mão exigindo silêncio. Navot ouviu passadas no corredor, seguido do som de portas a abrir. O guarda-costas entrou na sala e dirigiu-se à beira de Radek.
— É Manfred Kruz — disse ele num sussurro capelista. — Ele quer-lhe dar uma palavra. Diz que é urgente e não pode esperar.
ERICH RADEK LEVANTOU-SE lentamente da cadeira e caminhou para o telefone.
— O que se passa Manfred?
— Os israelenses.
— Que têm eles?
— Tenho informações que indicam que um grande grupo de operacionais se reuniu em Viena nestes dias para te raptar.
— Essas informações estão confirmadas?
— Suficientemente confirmadas para concluir que já não é seguro permanecer em casa. Destaquei uma unidade da Staatspolizei para te apanhar e levar-te para um local seguro.
— Ninguém consegue entrar aqui Manfred. Limita-te a pôr um guarda armado fora da casa.
— Estamos a lidar com os israelenses, Herr Vogel. Eu quero-o fora da casa.
— Está bem, se insistes, mas diz à tua unidade para recuar. Klaus dá conta do recado.
— Um guarda-costas não é suficiente. Eu sou responsável pela sua segurança e quero-o sob proteção policial. Lamento, mas tenho de insistir. As informações que tenho são muito específicas.
— Quando é que os teus agentes chegam aqui?
— A qualquer momento. Prepare-se para sair.
Desligou o telefone e olhou para os dois homens sentados junto à lareira.
— Peço desculpas, cavalheiros, mas estou com muita pressa, é uma emergência. Temos de terminar isto em outra hora. — Voltou-se para seu guarda-costas.
— Abra os portões Klaus e arranje-me um casaco. Já.
OS MOTORES DO portão frontal funcionaram. Mordecai, sentado ao volante do Mercedes, olhou pelo espelho retrovisor e viu um carro entrar vindo da rua com uma sirene azul rodopiando no teto. Parou atrás dele e travou a fundo. Dois homens saíram e escalaram os degraus da frente. Mordecai lentamente ligou a ignição.
ERICH RADEK FOI para o corredor. Navot arrumou a sua pasta e levantou-se. Becker ficou congelado no lugar. Navot cravou os dedos por baixo do braço do banqueiro e levantou-o.
Seguiram Radek até o corredor. Luzes de emergência azuis piscavam pelas paredes e teto. Radek estava junto ao seu guarda-costas, falando-lhe baixo ao ouvido. O guarda-costas segurava um sobretudo e parecia tenso. Enquanto ajudava Radek a vestir o casaco, os seus olhos estavam em Navot.
Alguém bateu à porta, dois estrondos agudos ecoaram pelo teto alto e chão de mármore do corredor. O guarda-costas largou o sobretudo de Radek e rodou o trinco. Dois homens à paisana empurraram e entraram na casa.
— Está pronto Herr Vogel?
Radek acenou, em seguida voltou-se e olhou uma vez mais para Navot e Becker.
— Mais uma vez, por favor aceitem as minhas desculpas, cavalheiros. Peço imensa desculpa pelo incômodo.
Radek voltou-se na direção da porta com Klaus ao seu lado. Um dos agentes travou o caminho ao guarda-costas colocando-lhe uma mão no peito. O guarda-costas afastou-a com uma pancada.
— O que pensa que está fazendo?
— Herr Kruz deu-nos instruções especificas. Só devemos levar Herr Vogel sob proteção.
— Kruz nunca teria dado uma ordem dessas. Ele sabe que eu vou onde quer que ele vá. Foi sempre assim.
— Lamento, mas essas são as nossas ordens.
— Deixe-me ver o seu distintivo e a sua identificação.
— Não há tempo. Por favor, Herr Vogel. Venha connosco.
O guarda-costas recuou um passo e meteu a mão dentro do casaco. Conforme a arma ficou à vista, Navot lançou-se para a frente. com a mão esquerda, agarrou o pulso do guarda-costas e encostou-lhe a arma contra o abdômen. com a direita, deu-lhe dois fortes golpes de mão aberta na nuca. O primeiro atordoou Halder; o segundo fez os seus joelhos cederem. A sua mão relaxou e a Glock caiu no chão de mármore. Radek olhou para a arma e por um instante pensou em apanhá-la. Em vez disso, voltou-se, precipitou-se para a porta aberta do seu estúdio e fechou-a com um estrondo.
Navot tentou a maçaneta. Trancada.
Deu uns passos atrás e lançou o ombro contra a porta. A porta desfez-se e ele tropeçou para dentro da sala escura. Levantou-se cambaleante e viu que Radek já tinha fugido através da falsa frente de uma estante de livros e estava dentro de um pequeno elevador do tamanho de uma cabine telefônica.
Navot saltou para a frente enquanto a porta do elevador começou a fechar. Conseguiu enfiar os dois braços para dentro e agarrou Radek pela lapela do sobretudo. Quando a porta bateu contra o ombro esquerdo de Navot, Radek agarrou-lhe os pulsos e tentou libertar-se. Navot segurou firmemente.
Oded e Zalman vieram em seu auxilio. Zalman, o mais alto dos dois, alcançou por cima da cabeça de Navot e puxou a porta. Oded deslizando por entre as pernas de Navot aplicou pressão por baixo. Perante a investida, a porta finalmente deslizou e abriu.
Navot arrastou Radek para fora do elevador. Já não havia tempo para subterfúgios ou enganos. Navot tapou a boca do velho com a mão, Zalman segurou-lhe as pernas e levantou-o do chão. Oded encontrou o interruptor e apagou a luz.
Navot olhou para Becker.
— Entre no carro. Depressa, idiota.
Arrastaram Radek degraus abaixo em direção ao Audi. Radek puxava a mão de Navot, tentando libertar-se do tampão na boca e esperneava. Navot conseguia ouvir Zalman resmungar entre dentes. De alguma forma, mesmo no calor da batalha, ele conseguia resmungar em alemão.
Oded abriu a porta de trás antes de dar a volta e correr para o volante.
Navot empurrou primeiro a cabeça de Radek para o fundo e colou-o ao assento.
Zalman forçou sua entrada e fechou a porta. Becker entrou na parte de trás do Mercedes. Mordecai acelerou fundo, e o carro guinou para a rua, o Audi seguindo de perto.
O corpo de Radek ficou subitamente quieto. Navot retirou a mão e o austríaco sorveu ofegante o ar.
— Está me machucando — disse. — Não consigo respirar.
— Eu deixo você se levantar, mas tem que prometer que se comporta bem. Não vai haver mais tentativas de fuga. Promete?
— Deixe eu me levantar. Está me esmagando, estúpido.
— Eu deixo, velho. Faça apenas um favor primeiro. Diga seu nome, por favor.
— Sabe meu nome. É Vogel. Ludwig Vogel.
— Não, não, esse nome não. Seu nome verdadeiro.
— Esse é o meu nome verdadeiro.
— Quer se levantar e deixar Viena como um homem, ou vou ter de ir sentado em cima de você o tempo todo?
— Eu quero me sentar. Está me machucando, maldição!
— Diga apenas seu nome.
Ficou em silêncio por um momento; então murmurou:
— Meu nome é Radek.
— Desculpe, mas não consegui ouvir. Pode dizer seu nome outra vez, por favor? Desta vez alto.
Inspirou profundamente e o seu corpo ficou rígido, como se estivesse em sentido em vez de deitado no banco de trás de um carro.
— MEU NOME É STURMBANNFÜHRER ERICH RADEK!
NO APARTAMENTO SEGURO de Munique, a mensagem apareceu na tela do computador de Shamron: O EMBRULHO FOI RECEBIDO. Carter deu-lhe uma palmada nas costas.
— Raios me partam! Eles o pegaram. Eles o pegaram mesmo.
Shamron levantou-se e caminhou até o mapa.
— Pegá-lo foi a parte mais fácil da operação, Adrian. Tirá-lo de lá vai ser outra história.
Olhou para o mapa. Oitenta quilômetros até a fronteira tcheca. Corra, Oded, pensou ele. Dirija como nunca dirigiu em sua vida.
36
VIENA
ODED JÁ TINHA guiado por aquela estrada uma dúzia de vezes, mas nunca como esta, nunca com a sirene a gritar e a rodopiar no teto, e nunca com os olhos de Erich Radek fitando os seus pelo retrovisor. A retirada do centro da cidade tinha corrido melhor do que esperado. O tráfego de fim de tarde era intenso, mas não ao ponto de não se conseguir desviar para dar passagem ao barulho e à luz da sua sirene. Radek amotinou-se duas vezes. Cada insurreição foi implacavelmente dominada por Navot e Zalman.
Circulavam agora em direção a norte pela E461. O tráfego de Viena tinha ficado para trás, a chuva caía continuamente e gelava nos cantos do para-brisas. Uma tabuleta passou de repente: REPÚBLICA CHECA 42 KM. Navot olhou prolongadamente sobre o ombro, então, em hebraico, instruiu Oded para desligar a sirene.
— Para onde vamos? — perguntou Radek respirando com dificuldade. — Para onde me estão a levar? Onde?
Navot não disse nada, como Gabriel tinha ordenado.
— Deixem-no fazer perguntas até ficar com a cara azul — Gabriel tinha dito.
— Simplesmente não lhe deem a satisfação de uma resposta. Deixem a incerteza afligir-lhe a mente. Era isso que ele faria se os papéis estivessem invertidos. Então Navot observou as povoações que passavam pela janela Mistelbach, Wilfersdorf, Erdberg — e pensou apenas numa coisa, o guarda-costas que ele tinha deixado inconsciente no corredor da entrada da casa de Radek em Stöbbergasse.
Poysdorf apareceu perante eles. Oded acelerou pela vila, em seguida virou para uma estrada de duas faixas e seguiu-a em direção a leste por entre pinheiros cobertos de neve.
— Para onde vamos? Para onde me estão a levar?
Navot já não conseguia suportar mais as suas perguntas em silêncio.
— Vamos para casa — disse de repente. — E tu vens connosco. Radek traçou um sorriso gelado.
— Cometeste apenas um erro esta noite, Herr Lange. Devias ter morto o meu guarda-costas quando tiveste oportunidade.
KLAUS HALDER ABRIU um olho, em seguida o outro. A escuridão era absoluta. Deixou-se estar deitado imóvel por um momento tentando determinar a posição do seu corpo. Tinha caído para a frente, com os braços para os lados, e a sua face direita estava pressionada contra o mármore frio. Tentou levantar a cabeça, um relâmpago de dor lancinante abateu-se-lhe sobre o pescoço. Lembrou-se então do instante em que tinha acontecido. Estava a tentar alcançar a arma quando levou duas pancadas por trás. Fora o advogado de Zurique, Oskar Lange. Obviamente que Lange não era um simples advogado. Ele estava a tramar alguma, como Halder temia desde o início.
Colocou-se de joelhos e sentou-se encostado à parede. Fechou os olhos e esperou que a sala parasse de girar, então esfregou a parte de trás da cabeça. Tinha um inchaço do tamanho de uma maçã. Ergueu o pulso esquerdo e lançou um olhar ao painel luminoso do seu relógio de pulso: 17:57. Quando tinha acontecido? Poucos minutos depois das cinco, 17h10 no máximo. A não ser que tivessem um helicóptero à espera na Stephansplatz, o mais certo era ainda estarem na Áustria.
Apalpou o bolso da frente do seu casaco esportivo e descobriu que o celular ainda lá estava. Tirou-o e ligou. Dois toques. Uma voz familiar.
— Aqui Kruz.
TRINTA SEGUNDOS MAIS TARDE, Manfred Kruz bateu com o telefone e avaliou suas opções. A resposta mais óbvia seria fazer soar o alarme e alertar todas as unidades policiais do país que o velho fora sequestrado por agentes israelenses, fechar as fronteiras e os aeroportos. Óbvia, sim, mas muito perigosa. Uma jogada dessas iria levantar muitas questões desconfortáveis. Porque foi Herr Vogel raptado? Quem é ele realmente? A candidatura de Peter Metzler seria esquadrinhada, assim como a carreira de Kruz. Mesmo na Áustria, tais assuntos assumiam vida própria, e Kruz tinha visto muitos para saber que o inquérito não terminaria à porta de Vogel.
Os israelenses sabiam que ele ficaria incapacitado, e tinham escolhido bem o momento. Kruz tinha de pensar numa maneira sutil de intervir, alguma maneira de impedir os israelenses sem destruir tudo no processo. Alcançou o telefone e marcou.
— Daqui Kruz. Os americanos informaram-nos que um possível grupo da al-Qaeda está em trânsito de automóvel pelo país esta tarde. Eles suspeitam que os membros da al-Qaeda possam estar a viajar com simpatizantes europeus para melhor se misturarem no ambiente. A partir deste momento estou a ativar a rede de alerta terrorista. Aumentem a segurança nas fronteiras, aeroportos e estações de trem para Nível Dois.
Desligou e olhou pela janela. Tinha atirado uma bóia ao velho. Perguntou a si mesmo se ele estaria em condições de a agarrar. Kruz sabia que se conseguisse, seria confrontado com um outro problema em breve: o que fazer com a equipe de rapto israelense. Levou a mão ao bolso do paletó e retirou um pedaço de papel.
— Se ligar para este número, quem vai atender?
— A violência.
Manfred Kruz alcançou o seu telefone.
O RELOJOEIRO, DESDE seu regresso a Viena, dificilmente encontrava razão para sair do santuário da sua pequena loja no Bairro Stephansdom. As frequentes viagens tinham-no deixado com um enorme número de peças acumulado que requeriam a sua atenção, incluindo um relógio regulador vienense, estilo Biedermeier, fabricado pelo famoso relojoeiro Vienense Ignaz Marenzeller em 1840. A caixa de mogno estava nas condições originais, embora o painel prateado de uma só peça tivesse requerido muitas horas de restauração. O movimento Biedermeier original feito à mão, com a sua corda de 75 dias, estava exposto em várias peças cuidadosamente arranjadas na superfície da sua mesa de trabalho.
O telefone tocou. Ele baixou o volume do seu leitor de CD portátil e o Concerto Brandenburg N°. 4 em Sol de Bach diminuiu até um sussurro. Uma escolha banal, Bach, mas o Relojoeiro considerava a precisão de Bach um acompanhamento perfeito para a tarefa de desmantelar e reconstruir o movimento de um relógio antigo. Alcançou o telefone com a mão esquerda. Uma onda de dor percorreu-lhe o comprimento do braço, uma lembrança dos seus abusos em Roma e na Argentina. Levou o receptor à orelha e prendeu-o contra o ombro.
— Sim — disse distraidamente. As suas mãos estavam de volta ao trabalho.
— O seu número foi-me dado por um amigo comum.
— Estou a ver — disse o Relojoeiro de modo descomprometido. Como posso ajudá-lo?
— Não sou eu quem precisa de ajuda. É o nosso amigo. O Relojoeiro pousou as ferramentas.
— O nosso amigo? — perguntou.
— Realizou trabalhos para ele em Roma e na Argentina. Presumo que saiba a quem me estou a referir?
O Relojoeiro sabia de fato. Então, o velho induzira-o em erro e por duas vezes colocara-o em situações de campo comprometedoras. Agora tinha cometido o pecado operacional fatal de dar o seu nome a um estranho. Era óbvio que estava em sarilhos. O Relojoeiro suspeitou que tivesse alguma coisa a ver com os israelenses. Decidiu que agora seria um excelente momento para acabar com a relação.
— Peço desculpa — disse — mas penso que me está a confundir com outra pessoa. O homem do outro lado da linha tentou contra-argumentar. O Relojoeiro desligou o telefone e aumentou o volume do seu leitor de CD até que o som de Bach encheu a oficina.
NO APARTAMENTO SEGURO de Munique, Carter desligou o telefone e olhou para Shamron, que ainda estava de pé em frente ao mapa, como se imaginasse o progresso de Radek para norte em direção à fronteira checa.
— Era da nossa filial de Viena. Estão a monitorizar a rede de comunicações austríaca. Parece que Manfred Kruz elevou o alerta terrorista para Nível Dois.
— Nível Dois? O que significa isso?
— Significa que é possível que haja alguma dificuldade na fronteira.
A ASSISTÊNCIA ESTAVA na reentrância de um ribeiro gelado. Havia dois veículos, um Opel sedã e uma van Volkswagen. Chiara estava ao volante da Volkswagen, faróis apagados, motor desligado, o peso reconfortante de uma Beretta no colo. Não havia outros sinais de vida, não havia luzes na vila, não havia o ruído do tráfego na autoestrada, apenas o suave bater da neve no teto da van e o assobiar do vento pelos juncos dos abetos. Olhou por cima do ombro e olhou para o compartimento traseiro da Volkswagen. Tinha sido preparado para a chegada de Radek. O forro da traseira tinha sido colocado. Por baixo do forro estava um compartimento especialmente construído para escondê-lo durante a passagem pela fronteira. Ele ficaria confortável lá, mais confortável do que merecia.
Olhou pelo vidro. Não havia muito para ver, a estrada estreita subindo pela escuridão em direção a um cume à distância. Então, subitamente, houve uma luz, um brilho branco e limpo que iluminou o horizonte e transformou as árvores em minaretes pretos. Por alguns segundos, foi possível ver a neve, rodopiando como uma nuvem de insetos pelo ar varrido pelo vento. Então os faróis da frente surgiram. O carro contornou a colina, e as luzes espalharam-se por ela, atirando as sombras das árvores para um lado, depois para o outro. Chiara segurou a Beretta com a mão e deslizou o dedo indicador para dentro da guarda do gatilho.
O carro derrapou até parar junto à van. Ela olhou para o banco de trás e viu o assassino, sentado entre Navot e Zalman, rígido como um comissário à espera da limpeza de sangue. Ela rastejou até o compartimento traseiro e fez uma verificação final.
— TIRE O SOBRETUDO — ordenou Navot.
— Por quê?
— Porque estou mandando.
— Eu tenho o direito de saber por quê.
— Não tem direito nenhum! Faça apenas o que digo.
Radek permaneceu imóvel. Zalman puxou a lapela do casaco, mas o velho cruzou os braços com força junto ao peito. Navot suspirou pesadamente. Se o velho bastardo quer um combate final, vai consegui-lo. Navot abriu-lhe os braços à força enquanto Zalman puxava a manga direita, depois a esquerda. O casaco depois; em seguida Zalman rasgou a manga da camisa e expôs a pele caída do braço. Navot exibiu uma seringa, cheia de sedativo.
— Isso é para seu próprio bem — disse Navot. — É moderado e não tem efeito durante muito tempo. Vai fazer sua viagem muito mais suportável. Sem claustrofobia.
— Nunca tive claustrofobia.
— Não me interessa.
Navot espetou a agulha no braço de Radek e despejou o conteúdo. Passados alguns segundos, o corpo de Radek relaxou; em seguida a cabeça tombou para o lado e o queixo descaiu. Navot abriu a porta e saiu. Segurou o corpo amolecido de Radek debaixo dos braços e arrastou-o para fora do carro.
Zalman levantou-o pelas pernas e juntos carregaram-no como um morto de guerra para a lateral da van. Chiara estava agachada no interior, segurando uma máscara de oxigênio e outra de plástico transparente. Navot e Zalman deitaram Radek no chão da van; e Chiara colocou-lhe a máscara sobre o nariz e a boca. O plástico embaciou imediatamente, indicando que a respiração de Radek estava normal. Ela verificou-lhe o pulso. Regular e forte. Manusearam-no para dentro do compartimento e fecharam a tampa.
Chiara sentou-se ao volante e ligou o motor. Oded fechou-lhe a porta e deu uma pequena pancada com a mão no vidro. Chiara engatou a marcha e seguiu para a autoestrada. Os outros entraram no Opel e seguiram atrás dela.
CINCO MINUTOS MAIS TARDE, as luzes da fronteira apareceram como faróis no horizonte. Conforme Chiara se foi aproximando conseguiu ver uma pequena fila de trânsito com cerca de seis veículos de comprimento, esperando para atravessar. Havia dois guardas fronteiriços em evidência. Tinham as lanternas na mão e estavam a verificar passaportes e a espreitar pelas janelas. Ela olhou por cima do ombro. As portas do compartimento permaneciam fechadas. Radek estava em silêncio.
O carro em frente passou na inspeção e foi deixado seguir em direção ao lado checo. O guarda fronteiriço fez-lhe sinal para avançar. Ela baixou o vidro e sorriu.
— Passaporte, por favor.
Ela entregou. O segundo guarda tinha-se deslocado para o lado do passageiro da van, e ela conseguia ver o foco de luz da lanterna investigando o interior.
— Está tudo bem?
O guarda fronteiriço manteve os olhos na fotografia e não respondeu.
— Quando entrou na Áustria?
— Hoje.
— Onde?
— Pela Itália, em Tarvísio.
Ele dispensou um momento comparando o rosto dela com a fotografia do passaporte. Em seguida abriu a porta do motorista e com um gesto ordenou-lhe que saísse da van.
UZI NAVOT OBSERVOU a cena em primeira fila, no lugar do passageiro no banco da frente do Opel. Olhou para Oded e praguejou ligeiramente por entre os dentes. Em seguida ligou do celular para o apartamento seguro de Munique. Shamron atendeu ao primeiro toque.
— Temos um problema — disse Navot.
ELE ORDENOU que se colocasse na frente da van e apontou a lanterna para seu rosto. Através do brilho conseguia ver o segundo guarda fronteiriço abrindo a porta do passageiro da van. Forçou-se a olhar para o interrogador. Tentou não pensar na Beretta contra as suas costas. Ou em Gabriel, esperando do outro lado da fronteira em Mikulov. Ou Navot, Oded e Zalman observando impotentes do Opel.
— Para onde se dirige esta noite?
— Praga — disse ela.
— Por que vai para Praga?
Ela disparou-lhe um olhar: Não tem nada com isso. Então disse: — Vou visitar meu namorado.
— Namorado — repetiu ele. — O que seu namorado faz em Praga?
Ensina italiano, dissera Gabriel.
Ela respondeu à pergunta.
— Onde?
No Instituto de Estudos Linguísticos de Praga, tinha dito Gabriel. Mais uma vez, ela respondeu como Gabriel tinha instruído.
— E há quanto tempo ele é professor do Instituto de Estudos Linguísticos de Praga?
— Três anos.
— E vê-o com frequência?
— Uma vez por mês, às vezes duas.
O segundo guarda tinha entrado na van. Uma imagem de Radek passou-lhe pela mente, olhos fechados, máscara de oxigênio no rosto. Não acorde, pensou ela. Não se mexa. Não faça barulho. Aja decentemente, pelo menos uma vez em sua vida desprezível.
— E quando entrou na Áustria?
— Já disse isso.
— Diga outra vez, por favor.
— Hoje.
— A que horas?
— Não me lembro da hora.
— Era de manhã? Era de tarde?
— Tarde.
— Início da tarde? Fim da tarde?
— Início.
— Então ainda era dia?
Ela hesitou; ele pressionou-a.
— Sim? Ainda era dia?
Ela acenou. De dentro da van veio o som da porta traseira se abrindo. Ela se forçou a olhar diretamente para os olhos do interrogador. O seu rosto, escurecido pela irritante luz da lanterna, começou a parecer-se com Erich Radek, não a versão patética do Radek inconsciente na traseira da van, mas o Radek que arrastou uma criança chamada Irene Frankel das fileiras da marcha da morte de Birkenau em 1945 e a levou para uma floresta polonesa para um momento de tormento final.
— Diga as palavras, judia! Foi transferida para leste. Teve comida em abundância e cuidados médicos adequados. As câmaras de gás e o crematório são mentiras bolchevique-judaicas.
Eu consigo ser tão forte como você, Irene, pensou ela. Eu consigo passar por isso. Por você.
— Parou em algum lugar na Áustria?
— Não.
— Não aproveitou a oportunidade para visitar Viena?
— Já estive em Viena — disse ela. — Não me agrada.
Ele dispensou um momento examinando-lhe o rosto.
— É italiana?
— Tem meu passaporte na mão.
— Não estou falando de seu passaporte. Estou falando de sua etnia. Seu sangue. Descendência italiana ou imigrante do, digamos, Oriente Médio ou Norte de África?
— Sou italiana — assegurou ela.
O segundo guarda saiu da van e abanou a cabeça. O interrogador devolveu-lhe o passaporte.
— Peço desculpas pelo atraso — disse ele. — Tenha uma boa viagem.
Chiara sentou-se ao volante, engatou a marcha e passou a fronteira devagar. Desatou em lágrimas, lágrimas de alívio, lágrimas de raiva. No início tentou impedi-las, mas não conseguiu. A estrada ficou desfocada, as luzes traseiras transformaram-se em riscos vermelhos, e mesmo assim elas vieram.
— Por você, Irene — disse ela em voz alta. — Fiz isso por você.
A ESTAÇÃO DE trem de Mikulov fica no fim da cidade velha, onde as colinas encontram a planície. Há uma única plataforma, que suporta um quase constante ataque do vento que desliza pelos Cárpatos, e um melancólico estacionamento de gravilha, que se transforma num lago quando chove. Perto da bilheteira está uma parada de ônibus riscada de graffitis, e era ai, encostado ao lado de onde vem o vento, que Gabriel esperava, mãos mergulhadas nos bolsos do casaco impermeável.
Levantou o olhar quando a van entrou no estacionamento e esmagou a gravilha. Esperou até que parasse antes de sair da parada de ônibus para a chuva. Chiara esticou-se e abriu-lhe a porta. Quando a luz de teto se acendeu, ele viu que o seu rosto estava molhado.
— Estás bem?
— Estou ótima.
— Queres que eu conduza?
— Não, eu consigo.
— Tem certeza?
— Entra, Gabriel. Não suporto estar sozinha com ele.
Ele entrou e fechou a porta. Chiara deu meia volta e regressou à autoestrada. Um momento mais tarde estavam a ir para norte, para os Cárpatos. DEMORARAM MEIA HORA até chegar a Brno, mais uma hora para chegar a Ostrava. Gabriel abriu as portas do compartimento duas vezes para verificar Radek. Eram quase oito horas quando chegaram à fronteira polonesa. Sem verificações de segurança desta vez, sem fila de trânsito, apenas uma mão espetada fora do abrigo de tijolo acenando-lhes à passagem pela fronteira.
Gabriel rastejou para a traseira da van e puxou Radek do compartimento. Em seguida abriu uma gaveta e retirou uma seringa. Desta vez tinha uma dose moderada de estimulante, apenas o suficiente para o trazer de volta aos limites do consciente lentamente. Gabriel inseriu a seringa no braço de Radek, injetou a droga, em seguida retirou a agulha e esfregou a ferida com álcool. Os olhos de Radek abriram devagar. Observou o ambiente envolvente por um momento antes de se fixar no rosto de Gabriel.
— Allon? — murmurou ele pela máscara de oxigênio. Gabriel acenou lentamente.
— Para onde me levas? — Gabriel não respondeu. — Vou morrer? — perguntou, e, antes que Gabriel pudesse responder, voltou a ficar inconsciente.
37
POLÔNIA ORIENTAL
A BARREIRA ENTRE consciência e coma era como uma cortina de palco, pela qual ele conseguia passar à vontade. Só não sabia quantas vezes tinha passado por esta cortina. O tempo, como a sua velha vida, estavam perdidos para ele. A sua bela casa de Viena parecia a casa de outro homem, na cidade de outro homem. Algo tinha acontecido quando ele gritou o seu nome aos israelenses. Ludwig Vogel era agora um estranho para ele, um conhecido que ele já não via há muitos anos. Ele era Radek novamente. Infelizmente o tempo não tinha sido meigo com ele. O alto e belo homem de preto estava agora prisioneiro num corpo fraco e decadente.
O judeu tinha-o colocado no forro da traseira. As suas mãos e tornozelos estavam amarrados por uma grossa fita adesiva prateada, e estava amarrado com o cinto de segurança como um doente mental. Os seus pulsos serviam como o portal entre os dois mundos. Apenas tinha de os torcer num determinado ângulo para que a fita se cravasse dolorosamente na pele e passaria a cortina do mundo dos sonhos para o reino do real. Sonhos? Será apropriado chamar a tais visões sonhos? Não, eram demasiado exatas, descritivas demais. Eram memórias, sobre as quais ele não tinha controle, apenas o poder de as interromper por alguns momentos infligindo dor em si próprio com a fita adesiva do judeu.
O seu rosto estava perto da janela, e o vidro estava desobstruído. Ele era capaz, quando estava acordado, de ver a infindável região rural negra e as desoladoras vilas escurecidas. Também era capaz de ler os sinais na estrada. Não precisava dos sinais para saber onde estava. Algures, noutra vida, ele tinha sido o senhor da noite nesta terra. Ele lembrava-se desta estrada: Dachnow, Zukow, Narol... Ele sabia o nome da próxima vila, mesmo antes desta passar pela janela: Belzec...
Fechou os olhos. Porquê agora, passados tantos anos? Depois da guerra ninguém esteve assim tão interessado num mero oficial SD que servira na Ucrânia — ninguém exceto os russos, claro — e no momento em que o seu nome veio ao de cima com ligações à Solução Final, o General Gehlen tinha providenciado a sua fuga e o seu desaparecimento.
A sua antiga vida fora deixada para trás em segurança. Tinha sido perdoado por Deus e a sua Igreja e até mesmo pelos seus inimigos, que gananciosamente tiraram proveito dos seus serviços quando também eles se sentiram ameaçados pelo judaísmo-bolchevismo. Os governos rapidamente perderam o interesse em proceder contra os, assim chamados, criminosos de guerra, e amadores como Wiesenthal focaram a atenção em peixe graúdo como Eichmann e Mengele, ajudando de forma involuntária peixe mais miúdo como ele próprio a encontrar santuário em águas calmas. Houve um susto sério. Em meados dos anos setenta, um jornalista americano, um judeu, claro, que foi a Viena e colocou demasiadas questões. Na estrada que sai de Salzburg para sul ele mergulhou numa ravina, e a ameaça foi eliminada. Nessa altura agiu sem hesitar. Se tivesse lançado Max Klein numa ravina ao primeiro sinal de ameaça... Reparara nele naquele dia no Café Central, assim como nos dias que se seguiram. Os seus instintos tinham-lhe dito que Klein representava uma ameaça. Ele hesitou. Quando Klein levou a sua história ao judeu Lavon era demasiado tarde.
Passou pela cortina outra vez. Estava em Berlim, sentado no gabinete do oficial Gruppenführer Heinrich Müller, chefe da Gestapo. Müller tira um pedacinho de almoço dos dentes e sacode uma carta que acabou de receber de Luther no Ministério dos Negócios Estrangeiros. É 1942.
— Rumores das nossas atividades no Leste começaram a chegar aos ouvidos dos nossos inimigos. Também temos um problema com um dos locais na região de Warthegau. Queixas sobre uma contaminação qualquer.
— Se me permite colocar a questão óbvia, Herr Gruppenführer, que diferença faz se rumores chegam ao Oeste? Quem vai acreditar que tal coisa foi realmente possível?
— Rumores é uma coisa, Erich. Provas é outra.
— Quem vai descobrir provas? Algum servo polonês atrasado mental? Um vesgo abridor de valas ucraniano?
— Talvez os Ivans?
— Os russos? Como descobririam?
Müller ergueu uma mão de pedreiro. Discussão terminada. E então ele percebeu. A aventura russa do Führer não estava indo de acordo com os planos. A vitória no Leste já não estava assegurada.
Müller inclinou-se para a frente.
— Estou te mandando para o inferno Erich. Vou espetar essa sua cara nórdica tão fundo no esterco que nunca mais vai ver a luz do dia.
— Como poderei jamais agradecer, Herr Gruppenführer?
— Limpe a porcaria. Toda. Em toda parte. É sua responsabilidade garantir que se mantenha apenas um rumor. E quando a operação estiver concluída, quero que seja o único homem de pé.
Ele concordou. O rosto de Müller afastou-se pela noite polonesa. Estranho, não é? A sua verdadeira contribuição para a Solução Final não foi matar mas esconder e garantir a segurança, e no entanto estava com problemas agora, sessenta anos depois, por causa de um jogo idiota que fizera bêbado em Auschwitz num domingo. Aktion 1005? Sim, fora um projeto seu, mas nenhum sobrevivente judeu testemunharia sua presença na beira de uma vala comum, porque não havia sobreviventes. Ele geriu uma operação fechada. Eichmann e Himmler teriam sido aconselhados a fazer o mesmo. Foram tolos em permitir que tantos sobrevivessem.
Uma memória surgiu, janeiro de 1945, um rio de judeus frágeis dispersos ao longo de uma estrada muito parecida com esta. A estrada de Birkenau. Milhares de judeus, cada um com uma história para contar, cada um uma testemunha. Ele defendia a liquidação da população inteira do campo antes da evacuação. Não, disseram. Trabalho escravo era necessário com urgência no Reich. Trabalho? A maioria dos judeus que ele tinha visto sair de Birkenau mal conseguia andar, quanto mais manejar uma picareta ou uma pá. Eles não eram aptos para o trabalho, apenas para o massacre, e já tinha matado uns quantos, ele próprio. Por que, em nome de Deus, lhe tinham ordenado que limpasse as valas para depois permitir que milhares de testemunhas caminhassem para fora de um local como Birkenau?
Ele se esforçou por manter os olhos abertos, e observou pela janela. Estavam a conduzir ao longo das margens de um rio, perto da fronteira ucraniana. Ele conhecia este rio, um rio de cinzas, um rio de ossos.
Pensou quantas centenas de milhares estariam ali embaixo, sedimentadas no leito do Rio Bug.
Uma cidade adormecida: Uhrusk. Pensou em Peter. Ele tinha avisado que isto aconteceria.
— Se eu me tornar uma ameaça séria, posso ganhar a chancelaria — dissera Peter —, alguém vai tentar nops expor.
Ele sabia que Peter estava certo, mas também acreditava que conseguiria lidar com qualquer ameaça. Estava errado, e agora seu filho teria de enfrentar uma humilhação eleitoral inimaginável, tudo por sua culpa. Era como se os judeus tivessem levado Peter à beira de uma vala comum e apontado uma arma para sua cabeça. Ele pensou que conseguiria evitar que eles puxassem o gatilho, se conseguisse quebrar mais um acordo, engendrar uma fuga final.
E este judeu que olha fixamente para mim com aqueles rancorosos olhos verdes? O que espera ele que eu faça? Peça perdão? Vergue, chore e cuspa sentimentalismos? O que este judeu não percebe é que eu não sinto culpa pelo que fiz. Eu fui forçado pela mão de Deus e os ensinamentos da minha Igreja. Não nos disseram os padres que os judeus foram os assassinos de Deus? O Santo Padre e os seus cardeais não ficaram em silêncio quando sabiam perfeitamente o que estávamos a fazer no Leste? Será que este judeu espera que eu reprove assim sem mais nem menos e diga que foi um erro terrível? E porque olha ele para mim assim? Aqueles olhos eram-lhe familiares. Já os tinha visto em algum lado antes. Talvez fosse das drogas que lhe tinham dado. Ele não conseguia ter a certeza de nada. Ele nem tinha sequer a certeza de estar vivo. Talvez fosse a sua alma a fazer esta viagem ao longo do Rio Bug. Talvez estivesse no inferno.
Outra aldeola: Wola Uhruska. Ele conhecia a próxima vila. Sobibor...
Fechou os olhos, o veludo da cortina envolveu-o. É a Primavera de 1942, está a conduzir para fora de Kiev na estrada de Zhitomir com o comandante de uma unidade Einsatzgruppen ao lado. Estão a caminho para inspecionar uma ravina que se transformou num problema de segurança, um lugar que os ucranianos chamam Babi Yar. Quando chegam, o Sol já está a desaparecer no horizonte e está quase a anoitecer. Mesmo assim, há luz suficiente para observar o estranho fenômeno que acontece no fundo da ravina. A terra parece estar a debater-se com um ataque epiléptico. O solo tem convulsões, gás é disparado para o ar, juntamente com gêiseres de líquido pútrido. O fedor! Meu Deus, o fedor. Ele consegue cheirá-lo agora.
— Quando começou?
— Pouco depois do final do Inverno. O chão aqueceu, então os corpos aqueceram. Eles decompõem-se muito rapidamente.
— Quantos estão ali embaixo?
— Trinta e três mil judeus, alguns ciganos e prisioneiros soviéticos, assim por alto.
— Cerque a ravina inteira.
— No momento outros locais têm prioridade. Trataremos deste assim que possível.
— Que outros locais?
— Locais de que nunca ouviu falar: Birkenau, Belzec, Sobibor, Treblinka. Nosso trabalho aqui está feito. Esperam novas chegadas a qualquer momento, nos outros.
— O que vai fazer com este local?
— Abrimos as valas e queimamos os corpos, em seguida esmagamos os ossos e espalhamos os fragmentos nas florestas e nos rios.
— Queimar trinta mil cadáveres? Tentamos isso nas operações de massacre. Usamos lança-chamas, pelo amor de Deus. Cremações maciças a céu aberto não funcionam.
— Isso é porque nunca construíram uma pira em condições. Em Chelmno, eu provei que pode ser feito. Confie em mim, Kurt, um dia este local chamado Babi Yar será apenas um rumor, como os judeus que viviam aqui.
Ele torceu os pulsos. Desta vez a dor não foi suficiente para acordar. A cortina recusou-se a abrir. Permaneceu trancado numa prisão de memórias, vagueando por um rio de cinzas.
MERGULHARAM PELA noite adentro. O tempo era uma memória. A fita adesiva tinha-lhe cortado a circulação. Já não conseguia sentir as mãos e os pés. Sentia-se febrilmente quente num minuto e arrepiantemente frio no outro. Tinha a impressão de terem parado uma vez. Tinha cheirado gasolina. Estariam eles a encher o depósito? Ou seria apenas a memória de traves de caminho-de-ferro ensopadas em combustível?
Os efeitos da droga finalmente dissiparam. Ele estava agora acordado, alerta e consciente, e seguro de que não estava morto. Algo na postura do judeu lhe disse que estavam próximos do final da jornada. Tinham passado por Siedlce, depois, em Sokolow Podlaski, tinham virado para uma estrada de campo mais estreita. Dybow veio a seguir, depois Kosow Lacki. Saíram da estrada principal, para um trilho de terra batida. A van trepidava: dump-dump... dump-dump. A velha via-férrea, pensou, ainda aqui estava, claro. Seguiram o trilho até uma plataforma de abetos e bétulas e pararam um momento mais tarde num pequeno estacionamento alcatroado.
Um segundo carro entrou na clareira com os faróis apagados. Três homens saíram e aproximaram-se da van. Ele reconheceu-os. Eram os que o tinham tirado de Viena. O judeu colocou-se em cima dele e cuidadosamente cortou a fita adesiva e soltou as correias de couro.
— Venha — disse ele agradavelmente. — Vamos dar um passeio.
38
TREBLINKA, POLÔNIA
SEGUIRAM POR UM trilho por entre as árvores. Tinha começado a nevar. Os flocos caíam suavemente pelo ar tranquilo e assentavam-lhes nos ombros como cinzas de um
fogo distante. Gabriel segurava Radek pelo cotovelo. Os seus passos eram cambaleantes no início, mas em breve o sangue começou a fluir-lhe novamente aos pés e insistiu em caminhar sem o suporte de Gabriel. A sua respiração difícil gelava no ar. Cheirava a amargo e a medo.
Avançaram mais fundo para dentro da floresta. O trilho era arenoso e coberto por uma fina camada de faúlhas. Oded estava vários passos à frente, quase invisível através da queda de neve. Zalman e Navot caminhavam em formação atrás deles. Chiara tinha ficado para trás na clareira, vigiando os veículos. Fizeram uma pausa numa brecha nas árvores, de cerca de cinco metros de largura, estendendo-se pelo escuro. Gabriel iluminou-a com o foco de uma lanterna. No centro do corredor, em intervalos equidistantes, estavam várias pedras em pé. As pedras marcavam a linha da antiga vedação. Tinham chegado ao perímetro do campo. Gabriel desligou a lanterna e puxou Radek pelo cotovelo. Radek tentou resistir, mas tropeçou para a frente.
— Faça o que eu digo, Radek, e vai correr tudo bem. Não tente fugir, porque não há por onde escapar. Não vale a pena gritar por ajuda, porque ninguém vai ouvir seus gritos.
— Sente prazer em me ver com medo?
— Sinto nojo, para dizer a verdade. Não gosto nem de tocá-lo. Eu não gosto do som de sua voz.
— Então por que estamos aqui?
— Eu apenas quero que veja algumas coisas.
— Não há nada para ver aqui, Allon. Apenas um memorial polonês.
— Precisamente — Gabriel deu-lhe um puxão no cotovelo. — Venha, Radek. Mais depressa. Tem que andar mais depressa. Não temos muito tempo. Vai amanhecer em breve.
Um momento mais tarde, pararam de novo perante um caminho-de-ferro sem carris, o velho ramal que trouxera os trens da estação de Treblinka até o interior do campo. As traves tinham sido recriadas em pedra e estavam cobertas por neve recente. Seguiram os carris até o campo e pararam no sítio onde tinha estado a plataforma. Também ela estava representada em pedra.
— Lembra, Radek?
Ele ficou em silêncio, o queixo caído, a respiração áspera.
— Vá lá, Radek. Sabemos quem você é, nós sabemos o que fez. Desta vez não vai escapar. Não vale a pena entrar em jogos ou tentar negar alguma coisa. Não há tempo, a não ser que não queira salvar seu filho.
A cabeça de Radek girou lentamente. Os seus lábios comprimiram-se e o seu olhar endureceu.
— Faria mal ao meu filho?
— Na verdade, você fará por nós. Tudo o que temos a fazer é dizer ao mundo quem é o pai dele, e isso o destruirá. Foi por isso que plantou a bomba no escritório de Eli Lavon: para proteger Peter. Ninguém podia tocá-lo, não num lugar como a Áustria. A janela para você estava fechada há muito tempo. Estava seguro. A única pessoa que podia pagar um preço por seus crimes é seu filho. Foi por isso que tentou matar Eli Lavon. Foi por isso que assassinou Max Klein.
Voltou as costas a Gabriel e olhou para a escuridão.
— O que é que queres? O que queres saber?
— Conta-me como foi Radek. Eu já li sobre isso, eu vejo o memorial, mas não consigo imaginar como funcionou realmente. Como foi possível transformar em fumo um trem cheio de pessoas em apenas quarenta e cinco minutos? Quarenta e cinco minutos, porta a porta, não era disso que o staff das SS se costumava vangloriar por estes lados? Conseguiam transformar um judeu em fumo em quarenta e cinco minutos. Doze mil judeus por dia. Oitocentos mil no total.
Radek emitiu um riso fechado, um interrogador que não acreditava na afirmação do seu prisioneiro. Gabriel sentiu como se uma pedra tivesse sido posta sobre o seu coração.
— Oitocentos mil? Onde foste buscar um número desses?
— É a estimativa oficial do governo polonês.
— E espera que um bando de seres inferiores, como os poloneses, seja capaz de saber o que aconteceu nestes bosques? — A sua voz pareceu subitamente diferente, mais jovem e autoritária. — Por favor Allon, se vamos ter esta discussão, lidemos com os fatos e não com idiotice polonesa. Oitocentos mil? — Abanou a cabeça e efetivamente sorriu. Não, não foram oitocentos mil. O número real foi muito superior a isso.
UMA SÚBITA RAJADA de vento agitou as copas das árvores. Para Gabriel soou como o som dos rápidos de um rio. Radek estendeu a mão e pediu a lanterna. Gabriel hesitou.
— Não pensa que vou atacar você com isso, não?
— Eu sei de algumas coisas que fez.
— Isso foi há muito tempo.
Gabriel entregou-lhe a lanterna. Radek apontou o foco para a esquerda, iluminando um molho de árvores de folha permanente.
— Eles chamavam a esta área o campo de baixo. As casernas das SS eram ali mesmo. A vedação periférica passava mesmo por trás. Em frente, havia uma estrada alcatroada com arbustos e flores durante a Primavera e o Verão. Talvez te custe a acreditar, mas era na realidade bastante agradável. Não havia tantas árvores, claro. Plantamos as árvores depois de demolir o campo. Na altura eram apenas rebentos. Agora, estão completamente adultas, bem bonitas.
— Quantos SS?
— Normalmente cerca de quarenta. moças judias tratavam-lhes da limpeza, mas tinham polonesas para cozinhar, três moças locais que vinham das vilas em redor.
— E os ucranianos?
— Estavam aquartelados do lado oposto da estrada, em cinco casernas. A casa de Stangl era no meio, no cruzamento de duas estradas . Ele tinha um belo jardim. Foi desenhado para ele por um homem de Viena.
— Mas os recém-chegados nunca viram essa parte do campo?
— Não, não, cada parte do campo era cuidadosamente escondida da outra por vedações intercaladas com plantações de pinheiros. Quando chegavam ao campo, eles viam o que parecia ser uma normal estação de trem de campo, completa com um horário de partidas falso. Não havia partidas de Treblinka, claro. Apenas trens vazios partiam da estação.
— Havia aqui um edifício, não havia?
— Fora desenhado para parecer uma normal estação de trem, mas na realidade estava cheio de valores roubados de chegadas anteriores. Aquela seção ali era conhecida como o Largo da Estação. Ali havia o Largo da Recepção, ou o Largo da Triagem.
— Alguma vez viste a chegada dos transportes?
— Eu não tinha nada a ver com esse tipo de situação, mas sim, eu vi-os chegar.
— Havia dois procedimentos de chegada diferentes? Um para judeus da Europa Ocidental e outro para judeus do Leste?
— Sim, está correto. Os judeus da Europa Ocidental eram tratados com muita mentira e fraude. Não havia chicotes nem gritos. Era-lhes pedido educadamente que desembarcassem do trem. Pessoal médico de batas brancas estava à espera no Largo da Recepção para tratar dos doentes.
— Era tudo um estratagema, no entanto. Os velhos e os doentes eram levados e abatidos a tiro imediatamente.
Ele concordou.
— E os judeus do Leste? Como eram recebidos na plataforma?
— Eram recebidos por chicotes ucranianos.
— E depois?
Radek levantou a lanterna e apontou o foco a uma curta distância através da clareira.
— Havia uma cerca de arame farpado aqui. Para lá do arame existiam dois edifícios. Um era uma caserna para despir. No segundo edifício, judeus de trabalho cortavam o cabelo às mulheres. Quando terminavam, elas iam naquela direção. — Radek usou a lanterna para iluminar o caminho. — Havia aqui uma passagem, uma espécie de passagem de gado, com alguns metros de largura, arame farpado e ramos de pinheiro. Era conhecida como o tubo.
— Mas as SS tinham um nome especial para isso, não tinham?
Radek acenou.
— Estrada para o Paraíso.
— E onde ia dar a Estrada para o Paraiso?
Radek levantou o foco da sua luz.
— Para o campo de cima — disse. — O campo da morte.
PROSSEGUIRAM O CAMINHO até uma larga clareira polvilhada com centenas de pedregulhos, cada pedra representava uma comunidade judaica destruída em Treblinka. A pedra maior ostentava o nome Varsóvia. Gabriel olhou para lá das pedras, em direção ao céu, para leste. Começava a ganhar claridade.
— A Estrada para o Paraiso levava diretamente a um edifício de tijolo que albergava as câmaras de gás — disse Radek quebrando o silêncio. De repente parecia ansioso por falar. — Cada câmara tinha quatro metros por quatro metros. Inicialmente eram apenas três, mas em breve descobriram que precisavam de mais capacidade para satisfazer a procura. Foram acrescentadas mais dez. Um motor a gasóleo bombeava gases de monóxido de carbono para as câmaras. A asfixia demorava menos de trinta minutos. Depois disso os corpos eram retirados.
— E o que era feito com eles?
— Durante vários meses, foram enterrados ali fora, em grandes valas. Mas muito rapidamente as valas transbordaram e a decomposição dos corpos contaminou o campo.
— Foi quando chegou?
— Não de imediato. Treblinka era o quarto campo da nossa lista. Limpamos as valas de Birkenau primeiro, a seguir Belzec e Sobibor. Só chegamos a Treblinka em março de 1943. Quando eu cheguei... — a sua voz arrastou-se. — Terrível.
— O que fez?
— Abrimos as valas, claro, e retiramos os corpos.
— À mão?
Ele abanou a cabeça.
— Tínhamos uma escavadora mecânica. Acelerou bem o trabalho.
— A garra, não era assim que chamavam?
— Sim, era isso.
— E depois dos corpos serem retirados?
— Eram incinerados em grandes prateleiras de metal.
— Tinham um nome especial para as prateleiras, não tinham?
— Assadeiras — disse Radek. — Chamávamos de assadeiras.
— E depois dos corpos serem queimados?
— Esmagávamos os ossos e voltávamos a enterrá-los nas valas ou levávamos em carroças para despejar no rio Bug.
— E quando as valas antigas ficaram vazias?
— Depois disso, os corpos eram levados diretamente das câmaras de gás para as assadeiras. Funcionou assim até outubro desse ano, quando o campo foi fechado e todos os traços foram obliterados. Operou por pouco mais de um ano.
— E mesmo assim conseguiram assassinar oitocentos mil?
— Não foram oitocentos mil.
— Quantos foram então?
— Mais de um milhão. É qualquer coisa, não é? Mais de um milhão de pessoas, num lugar minúsculo como este, no meio de uma floresta polonesa.
GABRIEL TIROU A lanterna do rosto dele sacou a Beretta. Empurrou Radek com o cano. Caminharam ao longo de uma trilha, pelo campo de pedras. Zalman e Navot ficaram para trás no campo de cima. Gabriel conseguia ouvir os passos de Oded na gravilha atrás dele.
— Parabéns, Radek. Graças a você, é apenas um cemitério simbólico.
— Vai me matar agora? Não disse o que queria ouvir?
Gabriel empurrou-o pelo trilho.
— Você talvez tenha algum orgulho deste lugar, mas para nós é solo sagrado. Acha realmente que eu o poluiria com seu sangue?
— Então qual é o propósito disso? Por que me trouxe aqui?
— Você precisava ver isso mais uma vez. Visitar o local do crime para refrescar a memória e se preparar para o próximo testemunho. É assim que vai salvar seu filho da humilhação de ter tal homem na condição de pai. Vai para Israel pagar por seus crimes.
— Não foi meu crime! Eu não os matei! Eu apenas fiz o que Müller me ordenou. Eu limpei a porcaria!
— Teve sua cota de matança, Radek. Lembra do joguinho com Max Klein em Birkenau? E a marcha da morte? Também estava lá, não estava, Radek?
Radek reduziu o passo e voltou a cabeça. Gabriel deu-lhe um empurrão. Chegaram a um amplo declive retangular cheio de lascas de basalto negro, o local onde era a vala de cremação.
— Mate-me agora, maldição! Não me leve para Israel! Mate-me agora e acabe com isso. Aliás, é nisso que você é bom, não é, Allon?
— Não aqui — disse Gabriel. — Não neste lugar. Você nem sequer merece pôr os pés aqui, quanto mais morrer.
Radek caiu de joelhos defronte à vala.
— E se eu concordar em ir? Que destino me espera?
— A verdade o espera, Radek. Será posto perante o povo de Israel e confessará seus crimes. Seu papel na Aktion 1005. O massacre de prisioneiros em Birkenau. As mortes que infligiu durante a marcha da morte de Birkenau. Lembra das moças que assassinou, Radek?
Radek voltou a cabeça.
— Como é que...
Gabriel interrompeu-o.
— Não vai enfrentar julgamento por seus crimes, mas vai passar o resto da vida atrás das grades. Enquanto estiver na prisão, vai trabalhar com uma equipe de estudantes do Holocausto de Yad Vashem para compilar minuciosamente a história de Aktion 1005. Vais dizer aos que negam e aos que duvidam exatamente o que fizeste para esconder o maior caso de assassinato de massas da história. Vais dizer a verdade pela primeira vez na vida.
— Qual verdade, sua ou a minha?
— Só há uma verdade, Radek. Treblinka é a verdade.
— E o que é que eu ganho com isso?
— Mais do que mereces — disse Gabriel. — Não diremos nada sobre a ascendência duvidosa de Metzler.
— Estás disposto a aceitar um chanceler austríaco da extrema-direita para me apanhar?
— Algo me diz que Peter Metzler se vai tornar um grande amigo de Israel e dos judeus. Ele não vai querer fazer nada para nos irritar. Afinal de contas, nós teremos a chave para a sua destruição até muito depois de tu morreres.
— Como convenceste os americanos a trair-me? Chantagem, suponho: é essa a maneira judaica. Mas deve ter havido mais. Certamente juraram que nunca me dariam oportunidade de discutir a minha afiliação com a Organização Gehlen ou com a CIA. Suponho que a sua dedicação à verdade para por aí.
— Dá-me sua resposta Radek.
— Como posso confiar em ti, um judeu, que cumpras sua parte do acordo?
— Andaste a ler Der Sturmer outra vez? Vais confiar em mim porque não tens outra alternativa.
— E o que é que vai adiantar? Vai trazer de volta alguma das pessoas que aqui morreram?
— Não — concedeu Gabriel —, mas o mundo saberá a verdade, e tu vais passar os últimos anos de sua vida onde pertences. Aceita o acordo, Radek. Aceita pelo teu filho. Pensa nele como uma última fuga.
— Não ficará secreto para sempre. Um dia, a verdade sobreste caso vai vir ao de cima.
— Se calhar — disse Gabriel. — Suponho que não seja possível esconder a verdade para sempre.
A cabeça de Radek voltou-se lentamente e ele olhou para Gabriel com desdém.
— Se fosses um homem a sério, fazias tu mesmo. — Esboçou um sorriso trocista.
— Quanto à verdade, ninguém se importou enquanto este lugar estava operacional, e ninguém se vai importar agora.
Voltou-se e olhou para a vala. Gabriel guardou a Beretta no bolso e afastou-se. Oded, Zalman e Navot ficaram imóveis por trás dele no trilho. Gabriel passou por eles sem dizer uma palavra e dirigiu-se para baixo através do campo até a plataforma de caminho-de-ferro. Antes de virar para as árvores, parou por instantes para olhar sobre o ombro e viu Radek, segurando-se ao braço de Oded, pondo-se de pé devagar.
PARTE QUATRO
O prisioneiro de Abu Kabir
39
JAFFA, ISRAEL
HOUVE MUITA DISCUSSÃO sobre onde o manter cativo. Lev considerava-o um risco para a segurança e, como tal, queria mantê-lo sob custódia do Escritório. Shamron, como de costume, tomou a posição contrária, quanto mais não fosse por não querer ver os seus adorados serviços restringidos a gerir prisões. O primeiro-ministro, mesmo que a brincar, sugeriu que Radek fosse forçado a marchar para o Negev, para que os escorpiões e abutres tratassem dele. No fim, acabou por ser Gabriel a tomar a decisão. Segundo ele, para alguém como Radek, a pior punição seria a de ser tratado como um criminoso comum. Procuraram um local apropriado e concordaram em prendê-lo numa prisão policial, construída pelos ingleses durante o Mandato numa zona degradada de Jaffa, ainda hoje conhecida pelo seu nome árabe: Abu Kabir.
Passaram 72 horas para que a apreensão de Radek fosse tornada pública. O comunicado do primeiro-ministro foi conciso e propositadamente enganador. Foram tomadas muitas precauções para evitar embaraçar, sem necessidade, os austríacos. Segundo disse o primeiro-ministro, Radek foi descoberto a viver sob falsa identidade num pais não especificado. E após um período de negociações concordara vir de livre vontade para Israel. Segundo os termos do acordo, ele não seria julgado, uma vez que de acordo com a lei israelense, a única sentença possível seria a condenação à morte. Em vez disso, ele permaneceria constantemente sob a detenção do Estado e iria, de fato, dar-se como culpado dos seus crimes contra a humanidade ao trabalhar com uma equipe de historiadores em Yad Vashem e na Universidade Hebraica, com a finalidade de compilar a história definitiva da Aktion 1005.
Houve pouco rebuliço e muito menos excitação do que com a noticia que acompanhou o rapto de Eichmann. Na realidade, a noticia da captura de Radek foi sobreposta poucas horas depois pelo massacre de vinte e cinco pessoas num mercado de Jerusalém por um homem-bomba. Lev sentiu uma certa satisfação com o desenrolar dos acontecimentos, pois assim demonstrava o seu ponto de vista de que o Estado tinha mais com que se preocupar do que perseguir velhos nazistas. Começou a referir-se ao caso como "a asneira de Shamron", apesar de ele ter recuperado o seu devido nível hierárquico no serviço. Dentro do King Saul Boulevard, a captura de Radek pareceu reacender velhas fogueiras. Lev ajustou a sua postura de acordo com o estado de espirito geral mas era demasiado tarde. Todos sabiam que a prisão de Radek havia sido orquestrada pelo Memuneh e Gabriel e que Lev tinha tentado bloqueada a cada passo. O carisma de Lev junto dos soldados rasos caiu para níveis perigosamente baixos.
A pouco crível tentativa de manter secreta a identidade austríaca de Radek foi desfeita pelo vídeo da sua chegada a Abu Kabir. A imprensa de Vienna identificou rápida e corretamente o prisioneiro como sendo Ludwig Vogel, um empresário austríaco de renome. Teria ele de fato concordado deixar Viena voluntariamente? Ou teria sido, na verdade, raptado da sua residência fortificada no Primeiro Bairro? Nos dias que se seguiram, os jornais faziam alusões especulativas à sua misteriosa carreira e às suas ligações politicas. As investigações da imprensa aproximaram-se perigosamente de Peter Metzler. Renate Hoffman da Coligação para uma Áustria Melhor solicitou um inquérito oficial ao caso e sugeriu que Radek poderia ter ligações ao atentado a bomba ao Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra e à misteriosa morte de um judeu idoso chamado Max Klein. As suas exigências foram categoricamente ignoradas. O governo disse que o atentado fora obra de terroristas islâmicos. E quanto à infeliz morte de Max Klein, fora suicídio. Segundo o ministro da Justiça qualquer investigação complementar seria um desperdício de tempo.
O capítulo seguinte do caso Radek teria lugar, não em Viena, mas em Paris, onde um ex-agente do KGB com aspecto duvidoso surgiu na televisão francesa dizendo que Radek era o homem de Moscovo em Viena. Um antigo chefe de espionagem da Stasi, que se havia tornado um êxito literário na nova Alemanha, veio também reconhecer Radek.
De início, Shamron suspeitou que estas reivindicações faziam parte de uma campanha conjunta de desinformação com o fim de ilibar a CIA do vírus Radek: que era exatamente o que ele teria feito se os papéis estivessem invertidos. Depois, descobriu que, no interior da Agência, as sugestões de que Radek podia ter jogado para ambos os lados criaram algum pânico. Estavam a ser retirados arquivos dos arquivos mortos e a ser reunida à pressa uma equipe soviética de ajuda com elementos veteranos. Shamron divertia-se secretamente com a ansiedade dos seus colegas de Langley. Segundo Shamron, se se viesse a descobrir que Radek era um agente duplo seria muito justo. Adrian Carter solicitou autorização para interrogar Radek mal os historiadores tivessem terminado o seu trabalho. Shamron prometeu considerar o assunto com seriedade. O PRISIONEIRO DE Abu Kabir estava bastante alheio à tempestade criada à sua volta. A sua prisão era solitária, apesar de não ser demasiado árdua. Mantinha a cela e as roupas limpas, aceitava comida e pouco reclamava. Por muito que os guardas quisessem odiá-lo, não conseguiam. No fundo ele era um polícia e os seus carcereiros pareciam ver nele algo familiar. Tratava-os com cortesia e, como reação, era tratado com cortesia. Ele era, também, uma espécie de curiosidade. Eles haviam lido sobre homens como ele na escola e passavam à frente da sua cela a qualquer hora, apenas para o ver. Radek começou aos poucos a sentir-se como se fosse uma peça de exposição de um museu.
O seu único pedido foi o de lhe ser autorizado o acesso a um jornal todos os dias para se manter a par dos assuntos da atualidade. A questão foi levada até Shamron, que deu a sua autorização, desde que fosse um jornal israelense e não uma qualquer publicação alemã. Todas as manhãs o Jerusalém Post era-lhe entregue com a travessa do pequeno-almoço. Normalmente saltava as histórias sobre si mesmo — eram, aliás, muito incorretas — e dirigia-se diretamente à seção das notícias internacionais com a finalidade de acompanhar os desenvolvimentos das eleições austríacas.
Moshe Rivlin visitou Radek várias vezes para se preparar para o seu iminente depoimento. Foi decidido que as sessões seriam filmadas e transmitidas à noite na televisão israelense. Radek parecia estar cada vez mais agitado com a aproximação do dia da sua primeira aparição em público. Discretamente, Rivlin pediu ao chefe da prisão para manter o prisioneiro sob vigilância de suicídio. Foi plantado um guarda no corredor, junto às barras da cela de Radek. Ao princípio, Radek criou atritos com a vigilância adicional, mas passou rapidamente a apreciar a companhia.
Rivlin surgiu uma última vez na véspera da primeira sessão de depoimento de Radek. Passaram uma hora juntos; Radek estava preocupado e, pela primeira vez, nada cooperante. Rivlin arrumou os seus documentos e notas e pediu ao guarda para abrir a porta.
— Quero vê-lo — disse Radek de repente. — Pergunte se me daria a honra de me fazer uma visita. Diga-lhe que há algumas perguntas que eu quero fazer.
— Não posso prometer nada — disse Rivlin. — Não tenho ligações a...
— Pergunte, apenas — disse Radek. — O máximo que ele pode fazer é dizer não.
SHAMRON OBRIGOU Gabriel a permanecer em Israel até o primeiro dia de depoimento de Radek e Gabriel, apesar de estar ansioso por voltar a Veneza, aceitou relutante. Ele ficou no apartamento seguro perto das Portas de Zion e acordava todas as manhãs ao som dos sinos da igreja do bairro armênio. Sentava-se na sombra do terraço olhando as muralhas da Cidade Velha e desfrutava o seu tempo com café e jornais. Seguia de perto o caso Radek. Ficou contente por ver o nome de Shamron ligado à captura e não o seu. Gabriel vivia no estrangeiro, sob uma identidade falsa e não precisava que o seu verdadeiro nome fosse espalhado pela imprensa. Além disso, depois de tudo o que Shamron tinha feito pelo seu país, merecia um último dia de glória.
Conforme os dias passavam, lentamente, Gabriel percebeu que Radek parecia, cada vez mais, um estranho. Apesar de abençoado com uma memória quase fotográfica,
Gabriel lutava por se lembrar claramente da cara de Radek ou do som da sua voz. Treblinka parecia algo saído de um pesadelo. Perguntou-se se a sua mãe teria sentido o mesmo. Teria Radek permanecido nas divisões da sua memória como um convidado indesejado, ou teria ela forçado a sua memória para produzir a sua imagem na tela? Teria sido assim para todos os que se tinham cruzado com um Mal tão perfeito? Talvez assim se explicasse o silêncio que tinha dominado os sobreviventes. Talvez eles tivessem sido piedosamente libertados da dor das suas memórias, como meio de autopreservação. Uma ideia regressava-lhe constantemente ao pensamento: se, naquele dia na Polônia, Radek tivesse morto a sua mãe em vez das outras duas moças, ele nunca teria existido. Também ele começou a sentir a culpa dos sobreviventes.
Ele só tinha a certeza de uma coisa: ainda não estava pronto para esquecer. Assim, ficou contente quando um dos acólitos de Lev lhe ligou uma tarde a perguntar se ele estaria disposto a escrever uma história oficial do caso. Gabriel aceitou, desde que ele pudesse também criar uma versão não censurada dos acontecimentos, para ser guardada nos arquivos de Yad Vashem. Houve ainda alguma discussão sobre quando tal documento poderia ser tornado público. Foi então definida uma data de lançamento, quarenta anos, e Gabriel começou o trabalho.
Ele escreveu na mesa da cozinha, num computador portátil fornecido pelo Escritório. Todas as noites, trancava o computador num cofre de chão, escondido sob o sofá da sala de estar. Não tinha qualquer experiência de escrita, por isso, por instinto, fez a aproximação ao projecto como se de uma pintura se tratasse. Começou com um esboço de base, amplo e amorfo e então, lentamente, foi adicionando camadas de tinta. Usou uma paleta simples e a sua técnica de traço foi cuidada. com o passar dos dias, a cara de Radek voltou-lhe à memória com a clareza com que havia sido pintada pela mão da sua mãe.
Usualmente, trabalhava até o princípio da tarde. Depois fazia uma pausa e dava um passeio até o Hospital da Universidade de Hadassah, onde, após um mês de coma, Eli Lavon estava a mostrar sinais de querer regressar à consciência. Gabriel sentava-se junto de Lavon cerca de uma hora e falava-lhe do caso. Depois voltava ao apartamento e trabalhava até a noite.
No dia em que terminou o relatório, deixou-se ficar no Hospital até o princípio da noite e, por acaso, estava lá quando os olhos de Lavon se abriram. Lavon ficou a fixar o vazio por uns instantes; então a velha expressão inquisidora voltou-lhe ao olhar e divagou pelo ambiente desconhecido da sala do hospital até se fixar no rosto de Gabriel.
— Onde estamos? Viena?
— Jerusalém.
— O que é que estás aqui a fazer?
— Estou a trabalhar num relatório para o Escritório.
— Sobre o quê?
— Sobre a captura de um criminoso de guerra nazista chamado Erich Radek.
— Radek?
— Ele estava a viver em Viena sob o nome de Ludwig Vogel. Lavon sorriu.
— Conta-me tudo — murmurou, mas antes que Gabriel pudesse dizer uma palavra, ele já tinha adormecido outra vez.
Nessa noite, quando Gabriel voltou ao apartamento, a luz do atendedor de chamadas estava a piscar. Carregou no PLAY e a ouviu a voz de Moshe Rivlin.
— O prisioneiro de Abu Kabir quer falar com você. Eu mandava-o para o Inferno. Você é que sabe.
40
JAFFA, ISRAEL
O CENTRO DE DETENÇÕES era cercado por um alto muro cor de areia, com rolos de arame farpado no topo. Gabriel apresentou-se na entrada exterior no inicio da manhã seguinte e foi admitido sem demora. Para chegar ao interior, tinha de atravessar uma passagem vedada estreita, que lhe lembrava demasiado a Estrada para o Paraiso em Treblinka. Um guarda esperava-o na outra ponta. Silenciosamente, conduziu Gabriel pela porta de segurança e depois para uma sala de interrogatórios sem janelas, com paredes em blocos de betume. Radek estava sentado à mesa, imóvel, vestido com um terno escuro e gravata, para prestar depoimento. Estava algemado com os dedos cruzados sobre a mesa. Saudou Gabriel com um aceno de cabeça quase imperceptível, mas permaneceu sentado.
— Tire-lhe as algemas — disse Gabriel ao guarda.
— É contra as regras.
Gabriel olhou para o guarda e, pouco depois, as algemas tinham sido tiradas.
— Faz isso muito bem — disse Radek. — Isso foi mais uma artimanha psicológica sua? Está tentando demonstrar seu domínio sobre mim?
Gabriel puxou a cadeira de ferro e sentou-se.
— Não me parece que dadas as circunstâncias seja necessária uma demonstração dessas.
— Suponho que esteja certo — disse Radek. — Mesmo assim, admiro a forma como lidou com todo o caso. Eu gostaria de acreditar que teria feito as coisas assim tão bem.
— Para quem? — perguntou Gabriel. — Para os americanos, ou para os russos?
— Está se referindo às alegações feitas em Paris por aquele idiota do Belov?
— São verdadeiras?
Radek fitou Gabriel em silêncio e por breves segundos parte do velho olhar de aço regressou-lhe aos olhos azuis.
— Quando alguém esteve em jogo tanto tempo como eu estive, faz tantas alianças e envolve-se em tantas mentiras, que no fim é difícil saber onde é que a verdade e a mentira se separam.
— Belov parece ter certeza de que sabe a verdade.
— Sim, mas receio que seja apenas a certeza de um tolo. Sabe, é que Belov não estava em posição de saber a verdade. — Radek mudou de assunto. — Presumo que tenha visto os jornais desta manhã?
Gabriel acenou que sim.
— A margem de vitória dele foi maior que a esperada. Aparentemente, minha prisão teve algo a ver com isso. Os austríacos nunca gostaram de ver estranhos se metendo em seus assuntos.
— Não está se vangloriando, está?
— Claro que não — disse Radek. — Estou apenas com pena de não ter negociado com mais dureza em Treblinka. Talvez não devesse ter aceite tão facilmente. Não tenho tanta certeza de que a campanha do Peter pudesse ter descarrilhado com as revelações do meu passado.
— Há coisas que são politicamente incômodas, mesmo num pais como a Áustria
— Você nos subestima, Allon.
Gabriel deixou cair algum silêncio entre eles. Já estava a começar a arrepender-se da decisão de ter vindo.
— Moshe Rivlin disse que queria me ver — disse com desprezo. — Não tenho muito tempo.
Radek endireitou-se na cadeira.
— Estava pensando se poderia me fazer a cortesia profissional de responder a algumas perguntas.
— Isso depende das perguntas. Você e eu estamos em profissões diferentes, Radek.
— Sim — disse Radek. — Eu era um agente do serviço secreto americano e você é um assassino.
Gabriel levantou-se para ir embora. Radek levantou a mão.
— Espere — disse. — Sente-se. Por favor.
Gabriel voltou a sentar-se.
— O homem que ligou para minha casa na noite do sequestro...
— Quer dizer, de sua prisão?
Radek baixou a cabeça.
— Está bem, minha prisão. Presumo que era um impostor?
Gabriel acenou que sim.
— Ele era muito bom. Como ele conseguiu imitar Kruz tão bem?
— Não espera que eu responda a isso, Radek. — Gabriel olhou para o relógio. — Espero que não me tenha feito vir até Jaffa só para me fazeres uma pergunta.
— Não — disse Radek. — Há mais uma coisa que eu gostaria de saber. Quando estávamos em Treblinka, disse que eu tinha tomado parte na evacuação de prisioneiros de Birkenau.
Gabriel interrompeu-o. — Será que podemos deixar os eufemismos de vez, Radek? Não foi uma evacuação. Foi uma marcha da morte.
Radek manteve-se em silêncio por um momento.
— Disse também que eu tinha assassinado pessoalmente alguns prisioneiros.
— Eu sei que assassinou pelo menos duas moças — disse Gabriel. — Tenho certeza de que deve ter havido mais.
Radek fechou os olhos e acenou lentamente com a cabeça que sim.
— Houve mais — disse, distante. — Muitos mais. Lembro-me desse dia como se tivesse sido na semana passada. Eu já sabia há algum tempo que o fim estava próximo, mas ver aquela coluna de prisioneiros marchando em direção ao Reich... Foi quando eu soube que era o Götterdämmerung. Era, realmente, o Crepúsculo dos Deuses.
— E então começou a matá-los?
Ele acenou de novo.
— Eles tinham me confiado a missão de guardar seu terrível segredo e estavam deixando vários milhares de testemunhas saírem vivas de Birkenau. Deve imaginar como eu me senti.
— Não — disse Gabriel com honestidade. — Nem consigo começar a imaginar como deve ter se sentido.
— Houve uma moça — disse Radek. — Lembro-me de ter perguntado o que ela diria aos filhos sobre a guerra. Ela disse que lhes diria a verdade. Ordenei que mentisse. Ela se recusou. Matei duas outras moças e, mesmo assim, ela continuava a me desafiar. Por algum motivo, deixei-a ir. Parei de matar prisioneiros depois disso. Ao olhá-la nos olhos, percebi que não valia a pena.
Gabriel baixou os olhos e fixou as mãos para evitar morder a isca de Radek.
— Presumo que esta mulher seja sua testemunha? — perguntou Radek.
— Sim, é ela.
— É engraçado — disse Radek — mas ela tem seus olhos.
Gabriel levantou o olhar. Hesitou e depois disse: — É o que me dizem.
— É sua mãe?
Mais uma hesitação, depois a verdade.
— Diria que sinto muito — disse Radek. — Mas sei que as minhas desculpas não significam nada para você.
— Tem razão — disse Gabriel. — Não diga.
— Então foi por ela que fez isso?
— Não — disse Gabriel. — Foi por todos eles.
A porta se abriu. O guarda entrou e disse que estava na hora de seguir para Yad Vashem. Radek levantou-se devagar e esticou as mãos. Os seus olhos permaneceram firmes no rosto de Gabriel enquanto as algemas eram colocadas nos seus pulsos. Gabriel acompanhou-o até a entrada e ficou a vê-lo dirigir-se pela passagem, até a parte de trás de uma van que o esperava. Já tinha visto o suficiente. Agora só queria esquecer.
APÓS DEIXAR ABU KABIR, Gabriel foi até Safed para visitar Tziona. Almoçaram num pequeno restaurante de espetadas no Bairro dos Artistas. Ela tentou conversar com ele sobre o caso Radek, mas Gabriel, afastado da presença do assassino há apenas duas horas, não estava com disposição para discuti-lo ainda mais. Obrigou Tziona a jurar segredo quanto ao envolvimento dele no caso e depois mudou de assunto de repente.
Discutiram arte durante algum tempo, depois política e finalmente o estado da vida de Gabriel. Tziona tinha conhecimento de um apartamento vazio a apenas alguns quarteirões do dela. Era grande o suficiente para albergar um Estúdio e era abençoado com a melhor iluminação da Galileia de Cima. Gabriel prometeu pensar no assunto, mas Tziona sabia que ele estava apenas a apaziguá-la. O desconforto havia voltado aos seus olhos. Ele estava pronto para partir.
Enquanto bebiam o café, ele disse-lhe que tinha encontrado um lugar para algum do trabalho da sua mãe.
— Onde?
— O Museu da Arte do Holocausto em Yad Vashem. Os olhos de Tziona inundaram-se de lágrimas.
— Que perfeito — disse ela.
Depois do almoço subiram as escadas de pedra até o apartamento de Tziona. Ela abriu o armário e cuidadosamente retirou os quadros. Passaram uma hora a escolher vinte das melhores peças para Yad Vashem. Tziona encontrou outras duas telas mostrando a imagem de Erich Radek. Perguntou a Gabriel o que queria que ela fizesse com elas.
— Queima-as — respondeu ele.
— Mas, provavelmente, valem muito dinheiro agora.
— Não me interessa o quanto valem — disse Gabriel. — Eu nunca mais quero ver a cara dele.
Tziona ajudou-o a transportar os quadros para o carro dele. Arrancou para Jerusalém sob um céu carregado de nuvens. Dirigiu-se primeiro a Yad Vashem. O conservador recebeu os quadros e apressou-se para ir assistir ao início do depoimento de Erich Radek. como o resto do país. Gabriel conduziu pelas ruas silenciosas até o Monte das Oliveiras. Pôs uma pedra na campa da sua mãe e recitou-lhe as palavras de luto Kaddish. Fez o mesmo na campa do seu pai. Depois, dirigiu-se para o aeroporto e apanhou o voo da tarde para Roma.
41
VENEZA * VIENA
NA MANHÃ SEGUINTE, na sestière de Cannaregio, Francesco Tiepolo entrou na Igreja de San Giovanni Crisóstomo e atravessou lentamente a nave. olhou para a Capela de Saint Jerome e viu luzes acesas por detrás da lona que cobre a plataforma de trabalho. Aproximou-se lentamente, agarrou no andaime com a sua mão, grande como a pata de um urso, e abanou-o violentamente. O restaurador levantou a sua viseira de lupa e fitou-o como um gárgula.
— Bem-vindo a casa, Mário — disse Tiepolo para cirna. — Estava a começar a ficar preocupado com você. Por onde andaste?
O restaurador baixou a viseira e virou o seu olhar de volta para o Bellini.
— Tenho andado a recolher centelhas, Francesco.
A recolher centelhas. Tiepolo tinha o bom senso suficiente para não fazer mais perguntas. Apenas lhe interessava ter o restaurador finalmente de volta a Veneza. — Quanto tempo até terminares?
— Três meses — disse o restaurador. — Talvez quatro.
— Três seria melhor.
— Sim, Francesco. Eu sei que três meses seria melhor. Mas se continuas a abanar a minha plataforma, nunca mais vou acabar.
— Não estás a planejar fazer mais recados, ou estás, Mário?
— Só um — disse, com o pincel pousado em frente da tela. — Mas não vou demorar. Prometo.
— Isso é o que dizes sempre.
A ENCOMENDA CHEGOU por um estafeta motorizado à Relojoaria, no Primeiro Bairro de Viena, exatamente três semanas depois. O Relojoeiro recebeu a encomenda pessoalmente. Deixou sua assinatura nos papéis do correio e deu-lhe uma pequena gorjeta pelo incômodo. Depois, levou o embrulho para a oficina e colocou-o sobre a mesa.
O estafeta montou em sua moto e afastou-se rapidamente, reduzindo por instantes no fim da rua, apenas o suficiente para fazer sinal à mulher sentada ao volante do Renault sedã. A mulher teclou um número no celular e apertou SEND. Pouco depois, o Relojoeiro respondeu.
— Acabei de lhe enviar um relógio — disse ela. — Recebeu-o?
— Quem fala?
— Sou uma amiga de Max Klein — disse ela baixinho. — E de Eli Lavon. E de Reveka Gazit. E de Sarah Greenberg.
Ela baixou o telefone e pressionou rapidamente quatro números seguidos, virando em seguida a cabeça a tempo de ver a brilhante bola de fogo vermelha emergindo da fachada da loja do Relojoeiro.
Afastou-se da calçada, mãos trêmulas no volante e dirigiu para a Ringstrasse. Gabriel tinha abandonado sua moto e esperava-a na esquina. Ela parou o carro o tempo suficiente para ele entrar, depois virou para a larga avenida e desapareceu no trânsito da tarde. Um carro da Staatspolizei passou por eles a alta velocidade na direção contrária. Chiara manteve os olhos na estrada.
— Você está bem?
— Acho que vou vomitar.
— Sim, eu sei. Quer que eu dirija?
— Não, eu consigo.
— Devia ter me deixado enviar o sinal da detonação.
— Não queria que se sentisse responsável por mais uma morte em Viena. — Ela limpou uma lágrima da face. — Pensou neles quando ouviu a explosão? Pensou em Leah e Dani?
Ele hesitou, depois abanou a cabeça.
— Pensou em quê?
Ele chegou-se a ela e limpou-lhe outra lágrima.
— Em você, Chiara — disse ele, suavemente. — Pensei apenas em você.
NOTA DO AUTOR
Morte em Viena completa um ciclo de três romances sobrem os assuntos inacabados do Holocausto. A pilhagem de arte pelos nazistas e a colaboração de bancos suíços servem de pano de fundo para O Assassino Inglês. O papel da Igreja Católica no Holocausto e o silêncio do Papa Pio XII inspiraram O Confessor. Morte em Viena, como os seus predecessores, é vagamente baseada em fatos reais. Heinrich Gross foi de fato um médico na notória clínica de Spiegelgrund durante a guerra, e a descrição da pouco empenhada tentativa austríaca de o julgar em 2000 é inteiramente exata. Nesse mesmo ano, a Áustria foi abanada por alegações afirmando que agentes da polícia e dos serviços de segurança trabalhavam para Jörg Haider e o seu Partido da Liberdade de extrema-direita para ajudar a desacreditar críticos e oponentes políticos.
Aktion 1005 foi o verdadeiro nome de código do programa nazista para ocultar as provas do Holocausto e destruir os restos mortais de milhões de judeus. O líder da operação, um austríaco chamado Paul Blobel, foi condenado em Nuremberg pelo seu papel nos assassinatos em massa dos Einsatzgruppen e condenado à morte. Enforcou-se na prisão de Landsberg em Junho de 1951, nunca foi detalhadamente questionado sobre o seu papel como comandante da Aktion 1005.
O bispo Alois Hudal foi de fato o reitor do Pontifício Santa Maria dell'Anima e ajudou centenas de criminosos de guerra nazistas a fugir da Europa, incluindo o comandante de Treblinka, Franz Stangl. O Vaticano afirma que o bispo Hudal agia sem a aprovação ou o conhecimento do Papa ou outro agente sênior da Cúria.
A Argentina, claro, foi o destino final de milhares de criminosos de guerra procurados. É possível que um pequeno número ainda lá resida nos dias de hoje. Em 1994, o antigo oficial das SS, Erich Priebke, foi descoberto a viver livremente em Bariloche por uma equipe de reportagem da ABC. Evidentemente Priebke sentia-se tão seguro em Bariloche que, em entrevista ao correspondente da ABC, Sam Donaldson, admitiu de livre vontade o seu papel central no massacre das Grutas Ardeatinas em março de 1944. Priebke foi extraditado para Itália, julgado e condenado a prisão perpétua, embora lhe tenha sido permitido cumprir a pena em "prisão domiciliária". Durante vários anos de manobras legais e apelos, a Igreja Católica permitiu a Priebke viver num mosteiro nas imediações de Roma.
Olga Lengyel, no seu testemunho 1947, memória de uma sobrevivente em Auschwitz, escreveu: "Certamente todos aqueles cujas mãos estiveram direta, ou Indiretamente manchadas com o nosso sangue devem pagar pelos seus crimes. Menos do que isso seria um ultraje contra milhões de mortes inocentes." O seu apaixonado apelo por justiça, no entanto, passou largamente despercebido. Apenas uma minúscula percentagem daqueles que levaram a cabo a Solução Final ou tiveram um papel auxiliar ou colaboracionista enfrentaram punição pelos seus crimes. Dezenas de milhar encontraram santuário em terras estrangeiras, incluindo nos Estados Unidos; outros regressaram simplesmente a casa e prosseguiram com as suas vidas. Alguns arranjaram emprego na rede de serviços secretos do General Reinhard Gehlen patrocinada pela CIA. Que impacto tiveram homens como estes na conduta da política de relações internacionais da América durante a Guerra-Fria? A resposta talvez nunca seja inteiramente conhecida.
30
VIENA
MEIA-NOITE NO Primeiro Bairro, uma calma de morte, um silêncio que só Viena consegue produzir, um majestoso vazio. Kruz achava reconfortante. Mas o sentimento não durou muito. Era raro o velho telefonar-lhe para casa, e Kruz nunca tinha sido arrastado da cama a meio da noite para uma reunião. Duvidava que as noticias fossem boas.
Olhou para o fundo da rua e não viu nada fora do normal. Uma olhadela para o retrovisor confirmou que não tinha sido seguido. Saiu e caminhou até o portão da imponente casa de pedra do velho. No piso térreo, luzes brilhavam por trás das cortinas fechadas. No segundo piso brilhava uma única luz. Kruz tocou à campainha. Tinha a sensação de estar a ser observado, qualquer coisa imperceptível, como um bafo na nuca. Olhou por cima do ombro. Nada.
Alcançou novamente a campainha, mas antes que a pudesse pressionar, um zumbido soou e a barra da fechadura saltou para trás. Empurrou o portão e atravessou o pátio frontal. Quando chegou ao pórtico, viu a porta aberta e um homem de paletó aberto e gravata solta. Não se esforçava minimamente para esconder o coldre de couro preto que continha uma pistola Glock. Kruz não estava alarmado com a visão; ele conhecia bem o homem. Era um antigo agente da Staatspolizei chamado Klaus Halder. Tinha sido Kruz a contratá-lo para guarda-costas do velho. Halder acompanhava normalmente o velho quando este saia ou quando esperava visitas em casa. A sua presença à meia-noite não era, como o telefonema para a casa de Kruz, um bom sinal.
— Onde está ele?
Halder olhou para o chão sem dizer uma palavra. Kruz desapertou a gabardina e entrou no estúdio do velho. A parede falsa estava afastada para o lado. O pequeno elevador estilo cápsula estava à espera. Entrou e o pressionar de um botão enviou-o lentamente para baixo. As portas abriram alguns segundos mais tarde, revelando uma pequena câmara subterrânea decorada com o dourado dos gostos barrocos do velho. Os americanos tinham-na construído para ele, para que conduzisse reuniões importantes sem medo que os russos pudessem estar à escuta. Construíram também a passagem, aquela alcançável através de uma porta de aço inoxidável com uma fechadura de combinação. Kruz era uma das poucas pessoas em Viena que sabia para onde a passagem conduzia e quem tinha vivido na casa do outro lado.
O velho estava sentado numa pequena mesa, uma bebida à sua frente. Kruz percebeu que ele estava inquieto, porque estava a girar o copo, duas voltas para a direita, duas para a esquerda. Direita, direita, esquerda, esquerda. Um estranho hábito, pensou Kruz. Ameaçador como o diabo. Calculou que o velho o tivesse apanhado numa vida anterior, noutro mundo. Uma imagem formou-se na mente de Kruz: um comissário russo acorrentado a uma mesa de interrogatório, o velho sentado do outro lado, vestido de preto dos pés à cabeça, girando a sua bebida e olhando para a sua presa com aqueles olhos azuis insondáveis. Kruz sentiu o seu coração dar um solavanco. Os pobres coitados estavam provavelmente cagados de medo mesmo antes de as coisas se tornarem duras.
O velho levantou o olhar, o girar do copo parou. O seu olhar calmo fixou a camisa de Kruz. Kruz olhou para baixo e viu que tinha os botões desalinhados. Tinha-se vestido no escuro para não acordar a mulher. O velho apontou para uma cadeira vazia. Kruz arranjou a camisa e sentou-se. O girar do copo recomeçou, duas voltas para a direita, duas para a esquerda. Direita, direita, esquerda, esquerda.
Falou sem saudar ou sem introdução. Era como se estivessem a continuar uma conversa interrompida por alguém que bate à porta.
— Durante as passadas setenta e duas horas — disse o velho foram planejados dois atentados contra a vida do israelense, o primeiro em Roma, o segundo na Argentina. Infelizmente o israelense sobreviveu a ambos. Em Roma, foi aparentemente salvo pela intervenção de um colega dos serviços secretos israelenses. Na Argentina, as coisas foram mais complicadas. Há provas que sugerem o envolvimento dos americanos.
Kruz, naturalmente, tinha perguntas. Em circunstâncias normais teria segurado a língua e esperado que o velho terminasse. Agora, trinta minutos depois de ter sido retirado da cama, não mostrou nenhuma da sua normal paciência.
— O que estava o israelense a fazer na Argentina?
O rosto do velho pareceu gelar, e a sua mão ficou imóvel. Kruz tinha transposto a linha, a linha que separava o que ele sabia do passado do velho daquilo que jamais saberia. Sentiu o peito encolher debaixo da pressão do olhar fixo. Não era todos os dias que se conseguia enfurecer um homem capaz de orquestrar, em setenta e duas horas e em continentes diferentes, duas tentativas de homicídio.
— Não é necessário que saibas por que razão o israelense esteve na Argentina, ou mesmo que lá tenha estado. O que precisas de saber é que este assunto deu uma reviravolta perigosa.
O girar do copo voltou.
— Como já acreditavas, os americanos sabem tudo. A minha verdadeira identidade, o que eu fiz durante a guerra. Não havia maneira de o esconder. Éramos aliados. Trabalhamos juntos na grande cruzada contra os comunistas. No passado, sempre contei com a sua discrição, não por algum sentido de lealdade para comigo, mas por simples medo de embaraço. Eu não tenho ilusões, Manfred. Sou como uma prostituta para eles. Viraram-se para mim quando estavam sozinhos e necessitados, mas agora que a guerra-fria acabou, sou como uma mulher que eles preferiam esquecer. E se agora estão de alguma forma a cooperar com os israelenses... — deixou a frase por terminar. — Estás a ver o que quero dizer, Manfred?
Kruz acenou.
— Presumo que saibam sobre Peter?
— Eles sabem tudo. Eles têm o poder de me destruir, e ao meu filho, mas apenas se estiverem dispostos a suportar a dor de uma ferida auto-infligida. Eu costumava estar seguro de que eles nunca se virariam contra mim. Agora, já não tenho certeza.
— O que queres que eu faça?
— Mantém sob vigilância constante as embaixadas israelense e americana. Designa vigilância física a todo o pessoal dos serviços secretos. Controla os aeroportos e estações de trem. Contata, também, os teus informadores nos jornais. Eles podem recorrer à imprensa. Não quero ser apanhado desprevenido.
Kruz olhou para a mesa e viu o seu próprio reflexo na superfície polida.
— E quando o ministro me perguntar por que dedico tantos recursos aos americanos e aos israelenses? O que digo?
— Preciso lembrar o que está em jogo, Manfred? O que dirá ao ministro é problema seu. Apenas faça o que digo. Não vou deixar Peter perder estas eleições. Entendeu?
Kruz olhou para os impiedosos olhos azuis e viu mais uma vez o homem vestido de preto dos pés à cabeça. Fechou os olhos e concordou com um movimento de cabeça.
O velho levou o copo aos lábios e, antes de beber, sorriu. Era tão agradável como uma súbita racha numa placa de vidro. Alcançou o bolso de peito do casaco, exibiu um pedaço de papel, e lançou-o sobre o tampo da mesa. Kruz olhou para ele enquanto deslizava, em seguida levantou o olhar.
— O que é isto?
— É um número de telefone. Kruz não tocou no papel.
— Um número de telefone?
— Nunca se sabe o que pode resultar de uma situação destas. Poderá ser necessário recorrer à violência. É possível que eu possa não estar em condições de ordenar tais medidas. Nesse caso, Manfred, a responsabilidade cai sobre ti.
Kruz pegou no pedaço de papel e levantou-o entre os seus dois dedos indicadores.
— Se ligar para este número, quem vai atender?
O velho sorriu.
— A violência.
31
ZURIQUE
HERR CHRISTIAN ZIGERLI, coordenador de eventos especiais do Dolder Grand Hotel, era como o próprio hotel: digno e pomposo, resoluto e discreto, um homem que apreciava o seu lugar de destaque na vida porque lhe permitia olhar para os outros de cima. Era também um homem que não gostava de surpresas. Normalmente, exigia setenta e duas horas de aviso prévio para reservas especiais e conferências, mas quando a Heller Enterprises e a Systech Wireless manifestaram vontade de conduzir as negociações finais da fusão no Dolder, Herr Zigerli concordou abdicar das setenta e duas horas de previsão em troca de uma sobretaxa de quinze por cento. Ele podia ser atencioso quando queria, mas ser atencioso, como todo o resto no Dolder, tinha um preço exorbitante.
A Heller Enterprises era a licitante por isso cabia-lhe tratar das reservas: não o próprio velho Rudolf Heller, claro, mas uma vistosa assistente pessoal italiana de nome Elena. Herr Zigerli tinha tendência a formar uma ideia sobre as pessoas rapidamente. Ele dizia que qualquer outro hoteleiro que fosse bom faria o mesmo. Não gostava de italianos de uma maneira geral, e a agressiva e exigente Elena rapidamente ganhou um lugar de destaque na sua lista de clientes pouco considerados. Ela falava alto ao telefone, um crime capital segundo ele, e parecia acreditar que só por gastar grandes quantidades de dinheiro do seu patrão tinha direito a privilégios especiais. Ela parecia conhecer bem o hotel. Fato estranho, já que Herr Zigerli tinha memória de elefante e não se lembrava dela como hóspede no Dolder. As suas exigências eram minunciosamente especificas. Queria quatro suítes contiguas perto do terraço com vista para o campo de golfe e para o lago. Quando Zigerli a informou que não seria possível — duas mais duas, ou três mais uma, mas não quatro seguidas — perguntou se os hóspedes podiam ser recolocados para a acomodar. Lamento, disse o hoteleiro, mas o Dolder Grand não tem o hábito de transformar hóspedes em refugiados. Ela decidiu optar por três suítes contiguas a uma quarta mais ao fundo do corredor.
— As delegações vão chegar às duas da tarde de amanhã — disse ela. — E gostariam de um almoço de trabalho leve.
Seguiram-se mais dez minutos de discussão sobre o que constituía um "almoço de trabalho leve".
Quando o menu ficou completo, Elena atirou mais uma exigência. Ela chegaria quatro horas antes das delegações, acompanhada pelo chefe de segurança da Heller, para inspecionar os quartos. Assim que as inspeções estivessem terminadas, não seria permitida a entrada de pessoal do hotel, exceto se acompanhados pela segurança da Heller. Herr Zigerli suspirou profundamente e concordou, em seguida desligou o telefone e, com a porta do seu gabinete fechada e trancada, fez uma série de exercícios de respiração para acalmar os nervos.
A manhã das negociações amanheceu cinza e fria. Os torreões majestosos do Dolder furavam o cobertor de nevoeiro gelado, e o asfalto perfeito da entrada brilhava como granito preto polido. Herr Zigerli estava de guarda no lobby, mesmo por trás das reluzentes portas de vidro, pés à largura dos ombros, mãos de lado, preparado para a batalha. Ela vai atrasar-se, pensou. Atrasam-se sempre. Ela vai precisar de mais suites. Ela vai querer mudar o menu. Ela vai ser perfeitamente horrível.
Um Mercedes sedã preto deslizou até a entrada e parou à porta. Herr Zigerli olhou discretamente para o relógio de pulso. Precisamente dez horas. Impressionante. O paquete abriu a porta traseira e uma lustrosa bota preta emergiu — Bruno Magli, reparou Zigerli — seguido por um torneado joelho e coxa. Herr Zigerli balançou para a frente nas pontas dos pés e alisou o cabelo sobre a zona careca. Já tinha visto muitas belas mulheres pairando pela famosa entrada do Dolder Grand, mesmo assim, poucas a tinham passado com mais graça e estilo que a encantadora Elena da Heller Enterprises. Ela tinha o cabelo acastanhado, preso por um gancho na nuca, e pele da cor do mel. Os seus olhos castanhos salpicados de dourado pareciam ter ganho ainda mais brilho quando lhe apertou a mão. A sua voz, tão alta e exigente pelo telefone, era agora suave e arrebatadora, assim como o seu sotaque italiano. Ela largou-lhe a mão e voltou-se para o acompanhante pouco sorridente.
— Herr Zigerli, este é o Oskar. O Oskar é segurança.
Aparentemente, o Oskar não tinha apelido. Nem precisava, pensou Zigerli. Ele tinha a constituição de um lutador de wrestling, com cabelo ruivo claro e sardas vagas espalhadas pelas largas bochechas. Herr Zigerli, um observador treinado da condição humana, viu qualquer coisa de familiar em Oskar. Um colega de tribo, por assim dizer. Ele conseguia imaginá-lo há dois séculos atrás, nas roupas de um lenhador, caminhando pesadamente por um trilho pela Floresta Negra. Como todos os bons seguranças, Oskar deixou os olhos falarem por si, e os seus olhos disseram a Herr Zigerli que ele estava ansioso por começar o trabalho.
— Eu levo-os aos seus quartos — disse o hoteleiro. — Por favor sigam-me. Herr Zigerli decidiu levá-los pela escada em vez do elevador. Era um dos mais finos atributos do Dolder, e Oskar, o lenhador, não parecia ser do tipo que prefere esperar pelos elevadores quando há um lanço de escadas para subir. Os quartos eram no quarto piso. No patamar, Oskar estendeu a mão para receber os cartões eletrônicos.
— A partir daqui é conosco se não se importa. Não é necessário mostrar-nos o interior dos quartos. Já todos estivemos em hotéis antes.
Uma piscadela cúmplice, uma palmadinha no ombro.
— Indique-nos apenas para onde é. Ficamos bem.
De fato, ficarão, pensou Zigerli. Oskar era um homem que inspirava confiança a outros homens. Mulheres também, Zigerli suspeitou. Ponderou se a deliciosa Elena — ele já começava a pensar nela como a sua Elena — seria uma das conquistas de Oskar. Colocou os cartões eletrônicos na palma da mão de Oskar e indicou-lhes o caminho.
Herr Zigerli era um homem de muitas máximas : "Um cliente sossegado é um cliente satisfeito" estava entre as suas preferidas. E a partir daí interpretou o subsequente silêncio no quarto piso como prova que Elena e o seu amigo Oskar estavam satisfeitos com as acomodações. Isto, por sua vez, satisfazia Herr Zigerli. Ele agora gostava de fazer Elena feliz. Conforme foi continuando pelo resto da manhã, ela estava-lhe na cabeça, como o traço de essência que se lhe tinha colado à mão.
Ele encontrou-se ansioso por algum problema, alguma queixa disparatada que requeresse contato com ela. Mas não houve nada, apenas o silêncio da perfeição. Ela tinha o Oskar agora. Ela não tinha necessidade do coordenador de eventos especiais do melhor hotel da Europa. Herr Zigerli, uma vez mais, tinha feito o seu trabalho bem demais.
Não ouviu nada deles, nem os viu, até as duas da tarde quando se reuniram na recepção e formaram uma improvável comissão de boas-vindas para as delegações que chegavam. Havia agora neve a cair no pátio frontal. Zigerli acreditava que o mau tempo apenas realçava o encanto do hotel: um abrigo da tempestade, como a própria Suíça.
A primeira limusina parou na entrada e largou dois passageiros. Um era o próprio Herr Rudolf Heller, um homem baixo e velho, vestindo um dispendioso terno preto e gravata prateada. Os seus óculos ligeiramente fumados sugeriam um problema na visão; o seu passo rápido e impaciente deixava a impressão de que, apesar da idade avançada, ele era um homem capaz de cuidar de si próprio. Herr Zigerli deu-lhe as boas-vindas ao Dolder e apertou-lhe a mão. Parecia feita de pedra. Estava acompanhado pelo carrancudo Herr Keppelmann. Vinte e cinco anos mais novo que Heller, cabelo curto, grisalho nas têmporas, olhos muito verdes. Herr Zigerli já tinha visto uma boa quantidade de guarda-costas no Dolder, e Herr Keppelmann parecia encaixar no perfil. Calmo, mas vigilante, silencioso como um rato de sacristia, seguro no passo e forte. Os olhos cor de esmeralda eram serenos, mas em constante movimento. Herr Zigerli olhou para Elena e reparou que o seu olhar estava fixado em Herr Keppelmann. Talvez ele se tivesse enganado sobre Oskar. Talvez o taciturno Keppelmann fosse o homem mais sortudo do mundo.
Os americanos chegaram a seguir: Brad Cantwell e Shelby Somerset, o CEO e COO da System Communications, Inc., de Reston, Virgínia. Notava-se sofisticação que Zigerli não costumava ver em americanos. Não eram exageradamente amigáveis, nem estavam a bramir para os celulares quando entraram na recepção.
Cantwell falou alemão assim como Herr Zigerli e evitou cruzar o olhar. Somerset era o mais afável dos dois. O seu tom aristocrático, o blazer azul bastante viajado e a gravata às riscas ligeiramente amarrotada identificavam-no como um yuppie Oriental.
Herr Zigerli fez alguns comentários de boas-vindas, e depois recuou calmamente para segundo plano. Era algo que ele fazia excepcionalmente bem. Enquanto Elena conduzia o grupo em direção à escadaria, ele deslizou para seu gabinete e fechou a porta. Um impressionante grupo de homens, pensou. Ele esperava que grandes coisas saíssem deste empreendimento. O seu papel no assunto, embora menor, foi executado com precisão e competência serena. Nos dias de hoje, tais atributos tinham pouco valor, mas eram a moeda do reino miniatura de Herr Zigerli. Ele suspeitava que os homens da Heller Enterprises e System Communications provavelmente sentiam o mesmo.
NO CENTRO DE ZURIQUE, numa rua calma perto do local onde as águas verdes do Rio Limmat desaguam no lago, Konrad Becker estava a encerrar o seu banco privado por aquele dia quando o telefone na sua mesa tocou com suavidade. Tecnicamente, ainda faltavam cinco minutos para a hora de fecho, mas estava tentado a deixar o gravador atender. Backer sabia por experiência que só clientes problemáticos telefonavam tão tarde, e o seu dia já tinha sido difícil o suficiente. Em vez disso, como um bom banqueiro suíço, alcançou o receptor e levou-o à orelha sem pensar.
— Becker and Puhl.
— Konrad, é Shelby Somerset. Como é que estás?
Becker engoliu em seco. Somerset era o nome do americano da CIA: pelo menos, Somerset era como ele dizia que se chamava. Becker duvidava seriamente que fosse o seu nome verdadeiro.
— O que posso fazer por si, senhor Somerset?
— Como entrada podes deixar-te de formalismos, Konrad.
— E como prato principal?
— Podes descer a escada, ir até a Talstrasse e entrar no Mercedes que está lá à tua espera.
— E porque quereria eu fazer isso?
— Eu preciso de te ver.
— Onde é que o Mercedes me vai levar?
— A um sítio agradável, garanto-te.
— E como devo ir vestido?
— Traje executivo serve perfeitamente. E, Konrad?
— Sim, senhor Somerset?
— Não penses em armar-te em difícil. Isto é a sério. Desce a escada. Entra no carro. Estamos de olho em ti. Estamos sempre de olho em ti.
— Que reconfortante, senhor Somerset — disse o banqueiro, mas a ligação já tinha sido cortada.
VINTE MINUTOS MAIS TARDE, Herr Zigerli estava na recepção quando reparou num dos americanos, Shelby Somerset, a caminhar ansioso na parte de fora da entrada. Um momento mais tarde, um Mercedes prateado parou e uma pequena figura careca saiu do banco de trás. Mocassins indianos polidos, uma pasta à prova de choque. Um banqueiro, pensou Zigerli. Apostava o seu ordenado nisso. Somerset fez ao recém-chegado um sorriso amigável e deu uma palmada firme no ombro. O pequeno homem, apesar da calorosa recepção, parecia no entanto estar a caminhar para a sua própria execução. Mesmo assim, Herr Zigerli achou que as conversações estavam a correr bem. O homem do dinheiro tinha chegado.
— BOA TARDE, HERR BECKER. É um prazer vê-lo. Eu sou Heller. Rudolf Heller. Este é o meu sócio, senhor Keppelmann. Aquele homem ali é o nosso parceiro americano, Brad Cantwell. É obvio que você e o senhor Somerset já se conhecem. O banqueiro piscou os olhos várias vezes e depois fixou o seu pequeno olhar astuto em Shamron, como se estivesse a tentar calcular o seu valor liquido. Segurou a pasta sobre os genitais, em antecipação de um ataque iminente.
— Os meus associados e eu estamos prestes a embarcar numa joint-venture. O problema é que não conseguimos fazê-lo sem a sua ajuda. É isso que fazem os banqueiros, não é, Herr Becker? Ajudam a lançar grandes empreendimentos? Ajudam as pessoas a realizar os seus sonhos e o seu potencial?
— Depende do empreendimento, Herr Heller.
— Estou a ver — disse Shamron, sorrindo. — Por exemplo, há muitos anos atrás, um grupo de homens foi ver você. Alemães e austríacos. Queriam lançar um grande empreendimento também. Confiaram-lhe uma grande soma de dinheiro e deram-lhe o poder de transformar numa soma ainda maior. Você se saiu extraordinariamente bem. Transformou-a numa montanha de dinheiro. Presumo que se lembre desses cavalheiros? Presumo que também saiba onde conseguiram o dinheiro?
O olhar do banqueiro suíço endureceu. Tinha concluído o cálculo sobre o valor líquido de Shamron.
— É israelense, não é?
— Prefiro pensar em mim mesmo como um cidadão do mundo — respondeu Shamron. — Moro em muitos lugares, falo a língua de muitas terras. A minha lealdade, como os meus interesses financeiros, não tem fronteiras nacionais. Como suíço tenho certeza que consegue entender o meu ponto de vista.
— Eu entendo — disse Becker — mas não acredito numa palavra do que diz.
— E se eu fosse de Israel? — perguntou Shamron. — Isso teria algum impacto na sua decisão?
— Teria.
— Como?
— Não me interessam os israelenses — disse Becker prontamente. — E os judeus também.
— Lamento ouvir isso, Herr Becker, mas um homem tem direito a sua opinião, e não vou discutir isso. Nunca deixo politicagem meter-se no caminho dos negócios. Preciso de ajuda para o meu empreendimento, e você é a única pessoa que pode me ajudar.
Becker elevou o sobrolho zombeteiramente.
— Qual é exatamente a natureza deste empreendimento, Herr Heller?
— É bem simples, na verdade. Quero que me ajude a sequestrar um de seus clientes.
— Parece-me, Herr Heller, que esse empreendimento seria uma violação das leis de segredo bancário e de várias outras leis deste pais.
— Então suponho que teremos de manter seu envolvimento em segredo.
— E se eu me recusar a cooperar?
— Então serei obrigado a contar ao mundo que você é o banqueiro dos assassinos, que está sentado em dois bilhões e meio de dólares de pilhagens do Holocausto. Soltaremos os cães de caça do Congresso Judaico Mundial sobre você. Quando terminarem, você e o seu banco estarão em farrapos.
O banqueiro suíço lançou um olhar de súplica a Shelby Somerset.
— Nós tínhamos um acordo.
— Ainda temos — balbuciou o sedento americano —, mas os contornos do acordo mudaram. Seu cliente é um homem muito perigoso. Passos precisam de ser dados para neutralizá-lo. Precisamos de você, Konrad. Ajude-nos a resolver um problema. Vamos fazer o bem juntos.
O banqueiro trauteou com os dedos na pasta.
— Tem razão. Ele é um homem perigoso, e se eu ajudo a sequestrá-lo, é melhor começar a abrir a minha própria sepultura.
— Estaremos lá, Konrad. Vamos protegê-lo.
— E se os contornos do acordo mudarem novamente? Quem vai me proteger então?
Shamron intercedeu.
— Receberia cem milhões de dólares com a dispersão final da conta. Agora não haverá dispersão final da conta porque vai me entregar o dinheiro todo. Se colaborar, deixo-o ficar com metade do montante a receber. Presumo que consiga fazer a conta, Herr Becker?
— Consigo.
— Cinquenta milhões de dólares é mais do que merece, mas estou disposto a deixá-lo ficar com esse montante para ganhar a sua cooperação neste assunto. Um homem consegue comprar muita segurança com cinquenta milhões.
— Quero isso por escrito, um termo de garantia.
Shamron abanou a cabeça com desdém, como se dissesse que havia algumas coisas, e devia saber melhor que qualquer um, meu querido companheiro, que não se põe por escrito.
— O que precisa de mim? — perguntou Becker.
— Vai nos ajudar a entrar na casa dele.
— Como?
— Vai precisar vê-lo com urgência sobre um assunto qualquer da conta. Talvez alguns papéis que precisem ser assinados, alguns detalhes finais da preparação para a liquidação e dispersão dos bens.
— E assim que estiver dentro da casa?
— O seu trabalho termina. O seu novo assistente trata do resto a partir daí.
— Meu novo assistente?
Shamron olhou para Gabriel.
— Talvez seja hora de apresentar Herr Becker a seu novo parceiro.
ELE ERA UM HOMEM de muitos nomes e muitas personalidades. Herr Zigerli conhecia-o como Oskar, o chefe de segurança da Heller. O senhorio da sua morada em Paris conhecia-o como Vincent Laffont, um escritor freelancer viajante de descendência britânica que passava a maior parte do seu tempo de mala às costas. Em Londres, era conhecido como Clyde Bridges, diretor de marketing europeu de uma obscura firma de software canadiana. Em Madrid, ele era um alemão rico de alma inquieta, que preguiçava horas em cafés e bares, e viajava para aliviar o aborrecimento.
O seu nome verdadeiro era Uzi Navot. No léxico hebraico dos serviços secretos israelenses, Navot era um katsa, um operacional de campo secreto e oficial de casos.
O seu território era a Europa Ocidental. Detentor de um charme malandro, poliglota e de uma arrogância fatalista, Navot tinha penetrado células de terrorismo palestino e recrutado agentes em embaixadas árabes espalhadas pelo continente. Possuía contatos em quase todos os serviços secretos e de segurança da Europa e orientava uma vasta rede de sayanim, auxiliares voluntários recrutados em comunidades judaicas locais. Podia sempre contar com a melhor mesa na sala de grelhados do Ritz de Paris porque o maître d'hôtel era um informante pago, assim como o chefe dos serviços de limpeza.
— Konrad Becker, apresento-lhe Oskar Lange.
O banqueiro permaneceu sentado e imóvel por um longo momento, como se tivesse sido subitamente transformado em estátua. Então os seus pequenos olhos espertos pousaram em Shamron, e levantou as mãos num gesto inquisitório.
— O que devo fazer eu com ele.
— Diga-nos você. Ele é muito bom, o nosso Oskar.
— Consegue fazer-se passar por advogado?
— com a devida preparação, ele conseguia fazer-se passar pela sua mãe.
— Quanto tempo tem de durar esta charada?
— Cinco minutos, talvez menos.
— Quando se está com Ludwig Vogel, cinco minutos podem parecer uma eternidade.
— Foi o que ouvi dizer — disse Shamron.
— E o Klaus?
— Klaus?
— O guarda-costas de Vogel.
Shamron sorriu. A resistência tinha terminado. O banqueiro suíço juntara-se à equipe e jurara fidelidade à bandeira de Herr Heller e o seu nobre empreendimento.
— Ele é muito profissional — disse Becker. — Já estive na casa meia dúzia de vezes, mas ele revista-me sempre minuciosamente e pede-me para abrir a pasta. Portanto, se está a pensar levar uma arma para dentro da casa...
Shamron interrompeu-o.
— Não tencionamos levar armas para dentro da casa.
— Klaus está sempre armado.
— Tem a certeza?
— Uma Glock, penso eu. — O banqueiro deu uma palmadinha no lado esquerdo do seu peito. — Usa-a aqui. Não faz muito esforço em escondê-la.
— Um pormenor encantador, Herr Becker.
O banqueiro aceitou o elogio com uma inclinação da cabeça.
— Pormenores são a minha vida, Herr Heller.
— Perdoe a minha insolência, Herr Heller, mas como é que se rapta alguém que está protegido por um guarda-costas, se o guarda-costas está armado e o raptor não?
— Herr Vogel vai abandonar a casa voluntariamente.
— Um rapto voluntário? — o tom de Becker era incrédulo. — Que peculiar. E como é que se convence um homem a deixar-se raptar voluntariamente ?
Shamron cruzou os braços.
— Preocupe-se em levar o Oskar para dentro da casa e deixe o resto connosco.
32
MUNIQUE
NO BONITO PEQUENO bairro de Lehel em Munique havia um velho apartamento, com um portão para a rua e um bem arranjado pátio na entrada principal. O elevador era instável e indeciso, e eram mais as vezes que subiam a escada em caracol até o terceiro andar. O mobiliário tinha o anonimato de um quarto de hotel. Havia duas camas no quarto, e o sofá da sala de estar era um davenport. Na arrecadação havia quatro camas extras de abrir. A despensa estava cheia de produtos não deterioráveis e os armários continham louça e talheres para oito. As janelas da sala de estar tinham vista para a rua, mas os estores mantinham-se fechados o tempo todo, para que dentro do apartamento parecesse sempre fim de dia. Os telefones não tinham campainha. Em vez disso, estavam equipados com luzes vermelhas que piscavam para indicar que estava a tocar.
As paredes da sala de estar estavam forradas de mapas: centro de Viena, Viena metropolitana, Áustria oriental, Polônia. Na parede oposta às janelas estava pendurado um enorme mapa da Europa Central, que mostrava toda a rota de fuga, esticando-se de Viena até a costa do Báltico. Shamron e Gabriel discutiram a cor antes de decidirem pelo vermelho. À distância parecia um rio de sangue, como Shamron desejara, o rio de sangue que fluía pelas mãos de Erich Radek. Só falavam em alemão no apartamento. Shamron tinha-o decretado. Radek era referido como Radek e apenas Radek; Shamron não iria chamá-lo pelo nome que ele comprara aos americanos. Shamron decretou outras regras também. Era a operação de Gabriel, e consequentemente era um espetáculo dirigido por Gabriel. Era Gabriel, com o sotaque berlinense da sua mãe, que orientava as equipes, Gabriel que revia os relatórios de Viena, e Gabriel quem tomava todas as decisões operacionais finais.
Durante os primeiros dias, Shamron esforçou-se para se encaixar no seu papel de apoio, mas à medida que a sua confiança em Gabriel ia crescendo, descobriu ser mais fácil retirar-se para segundo plano. Ainda assim, cada agente que passava pelo apartamento seguro reparava na nuvem negra que pairava sobre ele. Parecia não dormir nunca. Ele permanecia de pé perante os mapas todo o tempo, ou sentava-se na mesa da cozinha no escuro, fumando como uma chaminé: como um homem que luta contra uma consciência pesada.
— Ele é como um doente terminal que planeia o seu próprio funeral —, assinalou Oded, um veterano agente de língua alemã que Gabriel tinha escolhido para conduzir o carro de fuga. — E se correr mal, eles gravarão isso na sua lápide, mesmo por baixo da Estrela de David.
Sob condições perfeitas, tal operação envolveria semanas de preparação. Gabriel tinha apenas dias. A operação Ira de Deus tinha-o preparado bem. Os terroristas do Setembro Negro estavam constantemente em movimento, aparecendo e desaparecendo com uma frequência de fazer enlouquecer. Quando alguém era localizado e identificado, a equipe de choque entrava em ação à velocidade da luz. Equipas de vigilância eram preparadas, veículos e apartamentos seguros eram alugados, rotas de fuga eram planejadas. O reservatório de experiência era muito útil a Gabriel em Munique. Poucos agentes secretos sabiam mais sobre planeamento rápido e ataques súbitos do que ele e Shamron.
Ao fim do dia, viam as noticias na televisão alemã. As eleições na vizinha Áustria captavam a atenção dos espectadores alemães. Metzler estava na frente. As multidões nos comícios de campanha, como a sua liderança nas sondagens, cresciam de dia para dia. A Áustria, assim parecia, estava prestes a fazer o impensável, eleger um chanceler da extrema-direita. Dentro do apartamento seguro, Gabriel e a sua equipe descobriram-se na bizarra posição de torcer pela subida de Meztler nas sondagens, pois sem Metzler, a porta para Radek estava fechada.
Invariavelmente, pouco depois das noticias, Lev revia a operação a partir de King Saul Boulevard e sujeitava Gabriel a uma fastidiosa examinação cruzada dos eventos do dia. Era a única vez que Shamron se sentia aliviado por não carregar o fardo do comando operacional. Gabriel dava voltas ao apartamento com o telefone colado à orelha, respondendo pacientemente às questões de Lev. E por vezes, se a luz estivesse correta, Shamron veria a mãe de Gabriel, caminhando ao lado dele. Ela era o único membro da equipe que nunca ninguém mencionou.
UMA VEZ POR DIA, normalmente ao fim da tarde, Gabriel e Shamron escapavam do apartamento seguro para passear nos Jardins Ingleses. A sombra de Eichmann pairava sobre eles. Gabriel reconheceu que ele estivera lá desde o inicio. Ele tinha ido a Viena naquela noite em que Max Klein contara a Gabriel a história do oficial SS que assassinara uma dúzia de prisioneiros em Birkenau e agora saboreava café todas as tardes no Café Central. Mesmo assim, Shamron tinha diligentemente evitado falar no seu nome, até agora.
Gabriel já tinha ouvido a história da captura de Eichmann muitas vezes. De fato, Shamron tinha-a contado em Setembro de 1972 para espicaçar Gabriel a juntar-se ao grupo da Ira de Deus. A versão que Shamron lhe contou durante esses passeios ao longo dos trilhos de árvores dos Jardins Ingleses era mais detalhada que qualquer outra que Gabriel tivesse escutado antes. Gabriel sabia que isto não era apenas divagação de um velho tentando reviver glórias passadas. Os editores podiam esperar sentados pelas suas memórias, Shamron não era de apregoar o seu próprio sucesso. Gabriel sabia que Shamron lhe estava a contar a história de Eichmann por uma razão. Eu já fiz a viagem que estás prestes a fazer, dizia Shamron. Noutro tempo, noutro local, na companhia de outro homem, mas há coisas que deves saber. Gabriel, por vezes, não conseguia afastar a sensação de estar a caminhar com a História.
— A parte mais difícil foi esperar pelo avião de fuga. Estávamos presos na casa segura com aquela ratazana humana. Alguns elementos da equipe não suportavam olhar para ele. Eu tinha de me sentar no seu quarto noite após noite e vigiá-lo. Ele estava acorrentado à cama de ferro vestido com um pijama e tinha óculos opacos a tapar os olhos. Estávamos estritamente proibidos de conversar com ele. Apenas o interrogador estava autorizado a falar com ele. Eu não consegui obedecer a essas ordens. Sabes, eu precisava de saber. Como é que este homem, que se enjoava ao ver sangue, matou seis milhões do meu povo? A minha mãe e o meu pai? As minhas duas irmãs? Perguntei-lhe porque o tinha feito? Ele disse-me que o tinha feito porque era o seu trabalho, o seu trabalho, Gabriel, como se ele não fosse mais que um empregado bancário ou um maquinista de trem.
E mais tarde, encostados aos balaústres de uma velha ponte sobre um ribeiro:
— Só o quis matar uma vez, Gabriel, quando ele me tentou dizer que não odiava o povo judeu, que na verdade gostava e admirava o povo judeu. Para me mostrar o quanto ele gostava de judeus, começou a recitar as nossas palavras: Shema, Yisrael, Adonai Eloheinu, Adonai Echad! Eu não conseguia ouvir aquelas palavras vindas daquela boca, a boca que tinha dado ordens para assassinar seis milhões. Cravei-lhe a mão sobre a cara até que ele se calasse. Ele começou a abanar e a ter convulsões. Pensei que lhe tinha causado um ataque de coração. Ele perguntou-me se eu o ia matar. Ele suplicou-me que não fizesse mal ao seu filho. Este homem que tinha arrancado os filhos dos braços dos pais e os tinha lançado ao fogo estava preocupado com o seu próprio filho, como se nós fossemos agir como ele, como se nós fossemos assassinar crianças.
E numa gasta mesa de madeira, numa esplanada deserta:
— Nós queríamos que ele concordasse em voltar connosco para Israel voluntariamente. Ele, claro, não queria ir. Ele queria ser julgado na Argentina ou na Alemanha. Eu disse-lhe que isso não era possível. De uma maneira ou de outra, ele ia ser julgado em Israel. Eu arrisquei a minha carreira permitindo que ele tivesse um pouco de vinho tinto e um cigarro. Eu não bebi com o assassino. Eu não podia. Assegurei-lhe que lhe seria dada a oportunidade de contar a sua versão da história, que lhe seria oferecido um julgamento apropriado com uma defesa adequada. Ele não tinha ilusões sobre o resultado, mas a noção de se poder explicar ao mundo era-lhe de alguma forma apelativa. Também apontei o fato de que ele teria a dignidade de saber que estava prestes a morrer, algo que ele negou aos milhões que marcharam para as salas de despir e para as câmaras de gás enquanto Max Klein lhes tocava serenatas. Ele assinou o papel, datou-o como um bom burocrata alemão, e estava feito.
Gabriel escutou atentamente com a gola do casaco elevada para proteger as orelhas e as mãos enfiadas nos bolsos. Shamron mudou o foco de Adolf Eichmann para Erich Radek.
— Tu tens uma vantagem porque já estiveste cara-a-cara com ele uma vez, no Café Central. Eu apenas vira Eichmann ao longe, enquanto vigiávamos a sua casa e planeávamos o rapto, mas nunca falara com ele ou mesmo estivera perto dele. Eu sabia exatamente a sua altura, mas não conseguia imaginar.
Eu tinha ideia de como a sua voz soaria, mas não é a mesma coisa. Tu conheces Radek, mas infelizmente ele também sabe muito sobre ti, também, graças a Manfred Kruz. Ele vai querer saber mais. Ele vai sentir-se exposto e vulnerável. Ele vai tentar equilibrar o jogo fazendo-te perguntas. Ele vai querer saber porque o estás a perseguir. Sob nenhuma circunstância deves envolver-te como numa conversa normal. Lembra-te, Erich Radek não era um guarda de campo ou um operador de câmara de gás. Ele era um SD, um interrogador hábil. Ele vai tentar fazer uso dessas habilidades uma última vez para evitar o seu destino. Não te deixes cair nas suas mãos. És o responsável agora. Ele vai tentar contradizer-te e abalar as tuas convicções.
Gabriel olhou para baixo, como se estivesse a ler as palavras gravadas na mesa.
— Então porque merecem Eichmann e Radek as armadilhas da justiça — disse ele finalmente — e os palestinos do Setembro Negro apenas a vingança?
— Terias dado um excelente estudante Talmud, Gabriel.
— E tu estás a fugir à minha pergunta.
— Obviamente, que houve uma medida de pura vingança na nossa decisão contra os terroristas do Setembro Negro, mas foi mais do que isso. Eles constituem uma ameaça contínua. Se não os matássemos seriam eles a matar-nos. Era guerra.
— Porque não prendê-los, levá-los a julgamento?
— Para que pudessem declamar a sua propaganda a partir de um tribunal israelense?
— Shamron abanou a cabeça lentamente. — Eles já fizeram isso — levantou a mão e apontou para a torre que se ergue no Parque Olímpico — aqui mesmo nesta cidade, em frente às câmaras de todo o mundo. Não nos competia a nós dar-lhes outra oportunidade de justificarem o massacre de inocentes.
Baixou a mão e inclinou-se sobre a mesa. Foi nessa altura que contou a Gabriel os desejos do primeiro-ministro. Enquanto conversava, a sua respiração gelava perante ele.
— Eu não quero matar um velho — disse Gabriel.
— Ele não é um velho. Ele usa as roupas de um velho e esconde-se por trás do rosto de um velho, mas ele ainda é Erich Radek, o monstro que matou uma dúzia de homens em Auschwitz porque não conseguiram identificar uma peça de Brahms. O monstro que matou duas moças à beira de uma estrada polonesa porque não quiseram negar as atrocidades de Birkenau. O monstro que abriu as campas de milhões e sujeitou os seus cadáveres a uma humilhação final. A velhice não perdoa tais pecados.
Gabriel levantou os olhos e fitou o olhar insistente de Shamron.
— Eu sei que ele é um monstro. Eu só não quero matá-lo. Eu quero que o mundo saiba o que este homem fez.
— Então é melhor preparares-te para a batalha com ele. — Shamron olhou para o seu relógio de pulso. — Mandei vir uma pessoa para te ajudar. De fato, deve estar mesmo a chegar.
— Porque só agora estou a saber disso? Pensava que era eu que tomava todas as decisões operacionais.
— E és — disse Shamron. — Mas por vezes eu tenho de mostrar o caminho. É para isso que servem os velhos.
NEM GABRIEL NEM Shamron acreditavam em prenúncios ou presságios. Se acreditassem, a operação que trouxe Moshe Rivlin de Yad Vashem até a casa segura em Munique teria lançado dúvidas sobre a capacidade da equipe para levar a cabo a tarefa que tinham pela frente.
Shamron queria que Rivlin fosse contatado discretamente. Infelizmente, King Saul Boulevard confiou o trabalho a um par de aprendizes acabados de sair da academia, ambos nitidamente de aparência sefardita. Decidiram contatar Rivlin enquanto este caminhava de Yad Vashem para o seu apartamento perto do mercado Yehuda. Rivlin, que tinha sido criado na zona de Bensonhurts no Brooklyn e ainda era vigilante quando caminhava pela rua, rapidamente notou que estava a ser seguido por dois homens de carro. Presumiu que fossem homens-bomba do Hamas ou um par de criminosos de rua. Quando o carro parou ao lado dele e os seus ocupantes pediram para falar, Rivlin desatou a correr como um louco. Para surpresa de todos, o atarracado arquivista provou ser uma presa esquiva e conseguiu escapar aos seus captores durante vários minutos até ser encurralado pelos dois agentes do Escritório na Rua Ben Yehuda.
Ele chegou ao apartamento seguro em Lehel ao fim dessa tarde, carregando duas malas cheias de material de pesquisa e irritado pela maneira como tinha sido convocado.
— Como esperam raptar um homem como Erich Radek se não conseguem apanhar um arquivista gordo? Vá lá — disse ele, puxando Gabriel para a privacidade do quarto do fundo. — Temos muito terreno para cobrir e pouco tempo para o fazer. No SÉTIMO DIA, Adrian Carter chegou a Munique. Era uma quarta-feira; chegou ao apartamento seguro ao fim da tarde, quando o crepúsculo se tornava escuro. O passaporte no bolso do seu sobretudo ainda dizia Brad Cantwell. Gabriel e Shamron tinham acabado de regressar de um passeio nos Jardins Ingleses e ainda estavam embrulhados em chapéus e cachecóis. Gabriel tinha enviado o resto dos elementos da equipe para as posições de fase final, consequentemente o apartamento seguro estava vazio de pessoal do Escritório. Apenas Rivlin permanecia. Saudou o diretor da CIA com a camisa para fora e os sapatos descalçados e disse que seu nome era Yaacov. O arquivista tinha-se adaptado bem à disciplina da operação.
Gabriel fez o chá. Carter desabotoou o casaco e conduziu-se a si próprio numa preocupada excursão pelo apartamento. Passou bastante tempo em frente aos mapas. Carter acreditava em mapas. Os mapas nunca te mentirão. Os mapas nunca te dirão o que eles acham que tu queres ouvir.
— Gosto do que fizeste com o sitio, Herr Heller. — Carter finalmente despiu o sobretudo. — Miséria neo-contemporânea. E o cheiro. Tenho certeza de que o conheço. Trazido da Wienerwald ao fundo do quarteirão, se não estou em erro. Gabriel entregou-lhe uma caneca de chá com o cordão da saqueia ainda pendente do rebordo.
— Porque estás aqui Adrian?
— Pensei em passar para ver se precisavam de ajuda.
— Tretas.
Carter sentou-se pesadamente no sofá, um vendedor no final de uma longa e improdutiva viagem pela estrada. — Verdade seja dita, estou aqui por ordem do meu diretor. Parece que ele está com um sério ataque de nervosismo. Ele sente que estamos juntos num ramo e vocês estão com a motosserra nas mãos. Ele quer que a Agência seja posta na jogada.
— E isso significa o quê?
— Ele quer saber o plano de jogo.
— Tu sabes o plano de jogo, Adrian. Eu disse-te o plano de jogo em Virginia. Não se alterou.
— Eu sei os esboços do plano — disse Carter. — Agora quero ver o quadro pronto.
— O que estás a dizer é que o teu diretor quer rever o plano e dar a palavra final.
— Algo do gênero. E quando acontecer, ele quer que eu fique na retaguarda com o Ari também.
— E se lhe dissermos para ir para o inferno?
— Eu diria que há cinquenta por cento de hipóteses de alguém sussurrar um aviso na orelha de Erich Radek, e perdem-no. Joga com o diretor, Gabriel. É a única maneira de apanhares Radek.
— Estamos prontos para agir, Adrian. Agora é a altura para sugestões úteis do sétimo andar.
Shamron sentou-se ao lado de Carter.
— Se o teu diretor tivesse dez gramas de cérebro, ficaria o mais afastado disto que conseguisse.
— Tentei explicar-lhe isso — não nesses termos, claro, mas qualquer coisa perto. Ele não tem nada disso. Ele veio da Wall Street, o nosso diretor. Ele gosta de pensar em si próprio como um individuo prático, atacante. Sempre soube o que cada divisão da companhia estava a fazer. Tenta gerir a Agência da mesma maneira. E como sabes, é também amigo do presidente. Se o chateias, ele telefona para a Casa Branca, e acaba-se.
Gabriel olhou para Shamron, que cerrava os dentes e acenava a cabeça. Carter
obteve o seu relatório. Shamron permaneceu sentado por alguns minutos, mas em breve estava de pé a percorrer a sala, como um chefe cujas receitas secretas estão a ser entregues a um concorrente do outro lado da rua. Quando terminou, Carter dispensou um longo tempo enchendo a fornilha do seu cachimbo com tabaco.
— Parece-me que os cavalheiros estão prontos — disse ele. — De que estão à espera? Se fosse vocês, punha-me em ação antes que o meu diretor que tem a palavra final decida que quer fazer parte da equipe de rapto.
Gabriel concordou. Levantou o telefone e ligou para Uzi Navot em Zurique.
33
VIENA * MUNIQUE
KLAUS HALDER BATEU suavemente na porta do estúdio. A voz do outro lado concedeu-lhe permissão para entrar. Empurrou a porta e viu o velho sentado à média luz, com os olhos fixos na tremeluzente tela de televisão: um comício de Meztler dessa tarde em Graz, estimulando multidões, a conversa já versava a composição do gabinete ministerial de Metzler. O velho desligou a televisão com o comando e virou os seus olhos azuis para o guarda-costas. Halder apontou para o telefone com o olhar. Uma luz verde piscava.
— Quem é?
— Herr Becker, de Zurique.
O velho levantou o receptor.
— Boa noite, Konrad.
— Boa noite, Herr Vogel. Peço desculpa por o incomodar tão tarde, mas o assunto não podia esperar.
— Há alguma coisa errada?
— Não, muito pelo contrário. No seguimento das recentes notícias eleitorais de Viena, decidi apressar o passo dos meus preparativos e proceder como se a vitória de Peter Metzler fosse um dado adquirido.
— Uma decisão acertada, Konrad.
— Calculei que concordasse. Tenho vários documentos que precisam da sua assinatura. Pensei que seria melhor começarmos o processo agora em vez de esperar pelo final.
— Que tipo de documentos?
— O meu advogado estará mais habilitado para os explicar do que eu. Se não se importar, eu gostaria de ir a Viena para uma reunião. Não demorará mais do que alguns minutos.
— Pode ser na sexta-feira?
— Sexta-feira está ótimo, desde que seja ao fim da tarde. Tenho um compromisso inadiável da parte da manhã.
— Podemos apontar para as quatro da tarde?
— Às cinco seria melhor para mim, Herr Vogel.
— Tudo bem, sexta às cinco.
— Vemo-nos lá.
— Konrad?
— Sim, Herr Vogel.
— Esse advogado — diga-me como se chama, por favor.
— Oskar Lange, Herr Vogel. É um homem muito competente, já fiz uso dos seus serviços em muitas ocasiões anteriores.
— Presumo que seja um tipo que compreende o significado da palavra discrição?
— Discreto, nem sequer dá para começar a descrevê-lo. Está em muito boas mãos.
— Adeus, Konrad.
O velho desligou o telefone e olhou para Halder.
— Vai trazer alguém com ele? Um aceno lento.
— Ele sempre veio sozinho no passado. Porquê trazer um ajudante de repente?
— Herr Becker está prestes a receber cem milhões de dólares, Klaus. Se há um homem no mundo em quem podemos confiar, é o gnomo de Zurique.
O guarda-costas dirigiu-se à porta.
— Klaus?
— Sim, Herr Vogel?
— Talvez tenhas razão. Telefona a alguns dos nossos amigos em Zurique. Descobre se alguém já ouviu falar de um advogado chamado Oskar Lange.
UMA HORA MAIS TARDE, uma gravação do telefonema de Becker foi enviada por transmissão segura dos escritórios da Becker & Puhl em Zurique para o apartamento seguro em Munique. Escutaram-na uma vez, depois outra, e ainda outra. Adrian Carter não gostou do que ouviu.
— Vocês sabem que assim que Radek pousar o telefone, vai fazer uma segunda chamada para Zurique para verificar o Oskar Lange. Espero que tenham pensado nisso.
Shamron parecia desapontado com Carter.
— O que acha, Adrian? Nunca fizemos este tipo de coisa antes? Somos crianças que precisam de orientação?
Enquanto esperava pela resposta, Carter chegou um fósforo ao cachimbo e puxou a fumaça.
— Já ouviu o termo sayan — disse Shamron. — Ou sayanim.
Carter acenou com o cachimbo preso entre os dentes.
— Seus pequenos ajudantes voluntários — disse. — O empregado de hotel que consegue quartos sem reserva. As locadoras que conseguem carros indetectáveis. Os médicos que tratam seus agentes quando têm ferimentos que possam suscitar perguntas difíceis. Os banqueiros que dão empréstimos de emergência.
Shamron acenou.
— Somos um pequeno serviço secreto, só mil e duzentos empregados em tempo integral. Não conseguiríamos fazer o que fazemos sem a ajuda de sayanim. Eles são uma das vantagens da diáspora, o meu exército privado de pequenos voluntários.
— E Oskar Lange?
— Ele é um advogado fiscal e imobiliário de Zurique. Por acaso também é judeu. Algo que ele não publicita em Zurique. Há alguns anos levei o Oskar a jantar a um pequeno restaurante no lago e acrescentei-o à minha lista de ajudantes. Na semana passada, pedi-lhe um favor. Eu queria usar o seu passaporte e o seu escritório e queria que ele desaparecesse por um par de semanas. Quando lhe disse porquê, ele prontificou-se a ajudar com prazer. De fato, ele próprio queria ir a Viena e capturar Radek.
— Espero que ele esteja em lugar seguro.
— Pode-se dizer que sim, Adrian. Ele está de momento num apartamento seguro em Jerusalém.
Shamron inclinou-se em direção ao leitor de fitas, carregou em REWIND, STOP e depois PLAY:
— Pode ser na sexta-feira?
— Sexta-feira está ótimo, desde que seja ao fim da tarde. Tenho um compromisso inadiável da parte da manhã.
— Podemos apontar para as quatro da tarde?
— Às cinco seria melhor para mim, Herr Vogel. .-..
— Tudo bem, sexta às cinco. " STOP.
MOSHE RIVLIN DEIXOU o apartamento seguro na manhã seguinte e regressou a Israel num voo da El Al, com um acompanhante do Escritório sentado ao seu lado. Gabriel ficou até as sete da tarde de quinta-feira, quando uma van Volkswagen com dois pares de esquis montados no teto parou em frente ao apartamento e deu duas buzinadelas.
Ele guardou a sua Beretta na parte de trás da calça. Carter desejou-lhe boa sorte; Shamron deu-lhe um beijo na cara e mandou-o descer.
Shamron abriu as cortinas e olhou para a rua escura. Gabriel apareceu no passeio e dirigiu-se à janela do condutor. Após um momento de discussão, a porta abriu e Chiara saiu. Circundou a van e foi brevemente iluminada pelos faróis da frente antes de entrar para o lugar do passageiro.
A van afastou-se da borda do passeio. Shamron acompanhou até as luzes vermelhas da traseira desaparecerem numa curva. Não se moveu. A espera. Sempre a espera.
O seu isqueiro acendeu, uma nuvem de fumaça formou-se contra o vidro.
34
ZURIQUE
KONRAD BECKER E Uzi Navot saíram dos escritórios da Becker & Puhl precisamente quatro minutos depois da uma da tarde de sexta-feira. Um vigilante do Escritório chamado Zalman, posicionado do outro lado da Talstrasse num Fiat sedã cinza, registrou a hora assim como o tempo, um aguaceiro torrencial, em seguida enviou as noticias a Shamron no apartamento seguro de Munique. Becker estava vestido para um funeral, num terno cinza de risquinhas e uma gravata cor de carvão. Navot, imitando o estilo de vestir de Oskar Lange, usava um blazer Armani com uma camisa e gravata azul elétrica a condizer. Becker tinha pedido um táxi para os levar ao aeroporto.
Shamron teria preferido um carro particular, com um motorista do Escritório, mas Becker viajava sempre de táxi para o aeroporto e Gabriel não queria que a rotina fosse quebrada. Então foi um normal táxi de cidade, conduzido por um imigrante turco, que os levou do centro de Zurique até o aeroporto Kloten por um vale enevoado, com o vigilante de Gabriel sempre a reboque.
Foram em breve confrontados com a primeira falha técnica. Uma frente fria tinha passado por Zurique, transformando a chuva em neve e gelo e obrigando as autoridades do aeroporto Kloten a suspender os voos momentaneamente. O voo 157 8 da Swiss International Airlines, com destino a Viena, embarcou a horas e depois esperou imóvel para entrar na pista. Shamron e Adrian Carter, monitorizando a situação nos computadores do apartamento seguro de Munique, debateram a próxima jogada. Deveriam dar instruções a Becker para ligar a Radek e avisá-lo do atraso? E se Radek tivesse outros planos e decidisse adiar para outra altura? As equipes e veículos estavam nas posições finais. Um cancelamento temporário poderia pôr em risco a segurança operacional. Esperar, aconselhou Shamron, e esperar foi o que fizeram.
Pelas 14h30, as condições atmosféricas melhoraram. Kloten reabriu e o voo 1578 assumiu o seu lugar na fila ao fundo da pista. Shamron fez os cálculos. O voo para Viena levava menos de noventa minutos. Se descolassem em breve, talvez chegassem a tempo a Viena.
Às 14h25 o avião estava no ar, e o azar tinha sido evitado. Shamron informou a equipe de recepção no Aeroporto Schwechat em Viena que o embrulho estava a caminho.
A tempestade sobre os Alpes fez o voo para Viena bastante mais turbulento do que Becker teria preferido. Para acalmar os nervos, consumiu três garrafinhas miniatura de Stolichnaya e visitou a casa de banho duas vezes, tudo isto foi registrado por Zalma, que estava sentado três filas atrás. Navot, o retrato da concentração e serenidade, olhava pela janela para o mar de nuvens negras, a sua água com gás intata. Aterrissaram em Schwechat poucos minutos depois das quatro da tarde sob uma luz cinza sujo. Zalman seguiu-os pelo terminal até o controle de passaportes. Becker foi mais uma vez à casa de banho. Navot, com um movimento quase imperceptível dos olhos, ordenou a Zalman que fosse com ele. Depois de se aliviar, o banqueiro passou três minutos em frente ao espelho arranjando-se, uma quantidade de tempo fora do normal, pensou Zalman, para um homem virtualmente sem cabelo. O vigilante pensou em dar a Becker um pontapé no tornozelo para o apressar, mas decidiu não o perturbar. Afinal de contas, ele era um amador a agir sob coação.
Depois de passar pelo controle de passaporte, Becker e Navot dirigiram-se ao terminal de chegadas. Aí, entre a multidão, estava um especialista em vigilância, alto e magro chamado Mordecai. Vestia um desleixado terno preto e segurava um cartão onde se lia BAUER. O seu carro, um grande Mercedes sedã, estava à espera no estacionamento de curta duração. A dois lugares de distância estava um Audi comercial de três portas prateado. As chaves estavam no bolso de Zalman.
Zalman evitou aproximar-se deles durante a viagem de carro até Viena. Ligou para o apartamento seguro de Munique e, em poucas palavras, cuidadosamente escolhidas, informou Shamron que Navot e Becker estavam dentro do horário e procediam em direção ao alvo. Pelas 16h45, Mordecai chegou ao Canal do Danúbio. Pelas 16h50 atravessou a linha em direção ao Primeiro Bairro e estava no trânsito de hora de ponta ao longo da Ringstrasse. Virou à direita, para uma rua de pedra estreita, e logo na primeira à esquerda. Um momento mais tarde, parou em frente ao portão de ferro ornamentado de Erich Radek. Zalman ultrapassou pela esquerda e continuou a conduzir.
— FAZ SINAL DE LUZES — disse Becker — e o guarda-costas deixa entrar.
Mordecai seguiu a instrução. Durante breves segundos de tensão, o portão manteve-se imóvel; então ouviu-se um bater metálico agudo, seguido do zumbido de um motor.
Enquanto o portão abria lentamente, o guarda-costas de Radek apareceu na porta da frente, a luz intensa do candelabro brilhava sobre a sua cabeça e ombros como uma auréola. Mordecai esperou até o portão estar completamente aberto e avançou para a entrada em forma de ferradura.
Navot saiu primeiro, depois Becker. O banqueiro apertou a mão do guarda-costas e apresentou:
— O meu associado de Zurique, Herr Oskar Lange. O guarda-costas acenou e convidou-os a entrar com um gesto. A porta da frente fechou-se.
Mordecai olhou para o relógio: 16h58. Pegou no celular e ligou um número de Viena. — Vou chegar tarde para jantar — disse.
— Está tudo bem?
— Sim — disse ele. — Está tudo bem.
ALGUNS SEGUNDOS MAIS TARDE, em Munique, o sinal chegou à tela do computador de Shamron. Shamron olhou para o relógio.
— Quanto tempo lhes vais dar? — perguntou Carter.
— Cinco minutos — disse Shamron — e nem um segundo a mais.
O AUDI SEDÃ PRETO com uma antena alta montada na bagageira estava estacionado a algumas ruas de distância. Zalman estacionou atrás, saiu e caminhou até a porta do passageiro. Oded estava sentado ao volante, um homem compacto com olhos castanhos claros e um nariz achatado de pugilista. Zalman, enquanto se instalava ao seu lado, conseguia cheirar tensão na sua respiração. Zalman tinha a vantagem de ter estado em atividade toda a tarde; Oded tinha estado preso no apartamento seguro de Viena sem nada para fazer exceto imaginar as consequências de um fracasso. Um celular estava no assento, a ligação com Munique já estava estabelecida. Zalman conseguia ouvir a respiração uniforme de Shamron. Uma imagem formou-se na sua mente: uma versão mais jovem de Shamron marchando na sua direção sob uma chuva torrencial na Argentina, Eichmann descendo de um ônibus e caminhando para ele vindo da direção oposta. Oded ligou o carro. Zalman foi arrastado de volta ao presente. Olhou para o relógio no painel de instrumentos: 17:03...
A E461, MAIS conhecida pelos austríacos como a Brünnerstrasse, é uma estrada de duas faixas que vem do Norte de Viena e atravessa as onduladas colinas do Weinviertel, a região de vinhos austríaca. São oitenta quilômetros até a fronteira checa. Há uma passagem-de-nível, abrigada por um dossel em abóbada, chefiada por dois relutantes guardas em abandonar o conforto do seu abrigo de alumínio e vidro para levar a cabo qualquer inspeção dos veículos que passam. Do lado checo da passagem-de-nível, a inspeção de documentos de viagem leva normalmente um pouco mais de tempo, embora o tráfego vindo da Áustria seja normalmente recebido de braços abertos. A um quilômetro e meio para lá da fronteira, ancorada nas colinas da Morávia do Sul, fica a antiga cidade de Mikulov. É uma cidade fronteiriça, com as caraterísticas de cerco de uma cidade fronteiriça. E ajustava-se perfeitamente ao estado de espírito de Gabriel. Ele estava por trás de um parapeito de tijolo de um castelo medieval, bem por cima dos telhados de telha vermelha da velha cidade, por baixo de um par de pinheiros dobrados pelo vento. A chuva fria caía como lágrimas na superfície da sua gabardina de oleado. O seu olhar estendia-se colina abaixo, em direção à fronteira. Na escuridão, apenas as luzes do tráfego na autoestrada eram visíveis, luzes brancas surgindo na sua direção, luzes vermelhas afastando-se na direção da fronteira austríaca.
Olhou para o relógio. Eles estariam dentro da casa de Radek neste instante. Gabriel conseguia imaginar pastas abrindo-se, café e bebidas sendo servidas. E então outra imagem apareceu, uma fila de mulheres vestidas de cinza, caminhando ao longo de uma estrada com neve e ensopada de sangue. A sua mãe, vertendo lágrimas de gelo.
— O que vai dizer a seu filho sobre a guerra, judia?
— A verdade, Herr Sturmbannführer. Direi ao meu filho a verdade.
— Ninguém vai acreditar em você.
Ela não lhe disse a verdade, claro. Em vez disso tinha confiado a verdade ao papel e trancado nos arquivos de Yad Vashem. Talvez Yad Vasehm fosse o local ideal para ela. Talvez existam verdades que, de tão aterradoras, fiquem melhor se confinadas num arquivo de horrores, em quarentena, separadas das não infectadas. Ela não pôde contar que fora vítima de Radek, como Gabriel não podia dizer que era o carrasco de Shamron. Ela sempre soube, no entanto.
Ela conhecia o rosto da morte, e ela tinha visto a morte nos olhos de Gabriel. O telefone no bolso de seu casaco vibrou silenciosamente contra a anca. Ele levou-o lentamente à orelha e ouviu a voz de Shamron. Guardou o telefone no bolso e deixou-se estar por um momento, observando os faróis flutuando na sua direção através da negra planície austríaca.
— O que vai dizer quando estiver com ele? — perguntara Chiara.
A verdade, Gabriel pensava agora. Eu direi a verdade.
Começou a caminhada, descendo as estreitas ruas de pedra de uma cidade antiga, em direção ao escuro.
35
VIENA
UZI NAVOT SABIA como revistar uma pessoa. Klaus Halder era muito bom no seu trabalho. Começou no colarinho da camisa de Navot e terminou nos canhões das suas calças
Armani. Em seguida virou a atenção para a pasta. Trabalhou lentamente, como um homem com todo o tempo do mundo, e com uma atenção de monge para todos os detalhes. Quando a revista terminou finalmente, ele ajeitou o conteúdo com cuidado e colocou os trincos de volta no sítio.
— Herr Vogel vai vê-los agora — disse. — Sigam-me, por favor. Caminharam pelo corredor central, depois passaram por um par de portas duplas e entraram numa sala de visitas. Erich Radek, num casaco de linho grosso e gravata cor de ferrugem, estava sentado perto da lareira. Acolheu os convidados com um simples aceno da sua alongada cabeça, mas não se esforçou por levantar-se. Radek, pensou Navot, é um homem que costuma receber visitas sentado.
O guarda-costas deslizou suavemente para fora da sala e fechou as portas.
Becker, sorrindo, aproximou-se e apertou a mão de Radek. Navot não desejava tocar no assassino, mas dadas as circunstâncias não tinha outra escolha. A mão oferecida era fria e seca, o aperto firme e sem tremor. Era um aperto de mão para o testar. Navot sentia que tinha passado.
Radek estalou os dedos em direção às cadeiras vazias, em seguida a sua mão voltou para o apoio de copo no braço da cadeira. Começou a girá-lo para a frente e para trás, duas voltas para a direita, duas para a esquerda. Havia qualquer coisa no movimento que fazia azia ao estômago de Navot.
— Ouvi coisas muito boas sobre o seu trabalho, Herr Lange disse Radek subitamente. — Tem uma excelente reputação perante os seus colegas em Zurique.
— É tudo mentira, asseguro-lhe, Herr Vogel.
— É muito modesto. — Girou a bebida. — Você fez um trabalho para um amigo meu há alguns anos, um cavalheiro chamado Helmut Schneider.
E tu estás a tentar armadilhar-me, pensou Navot. Ele tinha-se preparado para um estratagema destes. O verdadeiro Oskar Lange tinha-lhe fornecido uma lista de clientes dos últimos dez anos para Navot memorizar. O nome Helmut Schneider não estava nela.
— Lidei com um bom número de clientes durante os últimos anos, mas temo que o nome Schneider não esteja entre eles. Talvez o seu amigo me tenha confundido com outra pessoa.
Navot olhou para baixo, abriu os trincos da sua pasta e levantou a tampa. Quando voltou a levantar o olhar, os olhos azuis de Radek estavam perfurantes nos seus e a sua bebida rodava no braço da cadeira. Havia uma tranquilidade assustadora nos seus olhos. Era como estar a ser estudado por um retrato.
— Talvez tenha razão. — O tom conciliatório de Radek não condizia com a sua expressão. — Konrad disse que precisava da minha assinatura nalguns documentos relacionados com a liquidação dos bens da conta.
— Sim, está correto.
Navot retirou um dossier da pasta e colocou a pasta no chão aos seus pés. Radek acompanhou a viagem da pasta para baixo e devolveu o seu olhar ao rosto de Navot. Navot levantou a capa do dossier e elevou o olhar. Abriu a boca para falar, mas foi interrompido pelo tocar do telefone. Agudo e eletrônico, soou aos ouvidos sensíveis de Navot como um grito num cemitério. Navot olhou para a mesa estilo Biedermeier, e o telefone tocou uma segunda vez. Começou a tocar uma terceira vez, mas ficou subitamente em silêncio, como se tivesse sido amordaçado a meio do grito. Navot conseguia ouvir Halder, o guarda-costas, falando numa extensão do corredor.
— Boa tarde. .. Não, peço desculpa, mas Herr Vogel está neste momento em reunião. Navot retirou o primeiro documento do dossier. Radek estava agora visivelmente distraído, o seu olhar distante. Estava a ouvir o som da voz do seu guarda-costas. Navot chegou-se à frente na cadeira e segurou o papel num ângulo que permitisse a Radek ver.
— Este é o primeiro documento que necessita...
Radek levantou a mão exigindo silêncio. Navot ouviu passadas no corredor, seguido do som de portas a abrir. O guarda-costas entrou na sala e dirigiu-se à beira de Radek.
— É Manfred Kruz — disse ele num sussurro capelista. — Ele quer-lhe dar uma palavra. Diz que é urgente e não pode esperar.
ERICH RADEK LEVANTOU-SE lentamente da cadeira e caminhou para o telefone.
— O que se passa Manfred?
— Os israelenses.
— Que têm eles?
— Tenho informações que indicam que um grande grupo de operacionais se reuniu em Viena nestes dias para te raptar.
— Essas informações estão confirmadas?
— Suficientemente confirmadas para concluir que já não é seguro permanecer em casa. Destaquei uma unidade da Staatspolizei para te apanhar e levar-te para um local seguro.
— Ninguém consegue entrar aqui Manfred. Limita-te a pôr um guarda armado fora da casa.
— Estamos a lidar com os israelenses, Herr Vogel. Eu quero-o fora da casa.
— Está bem, se insistes, mas diz à tua unidade para recuar. Klaus dá conta do recado.
— Um guarda-costas não é suficiente. Eu sou responsável pela sua segurança e quero-o sob proteção policial. Lamento, mas tenho de insistir. As informações que tenho são muito específicas.
— Quando é que os teus agentes chegam aqui?
— A qualquer momento. Prepare-se para sair.
Desligou o telefone e olhou para os dois homens sentados junto à lareira.
— Peço desculpas, cavalheiros, mas estou com muita pressa, é uma emergência. Temos de terminar isto em outra hora. — Voltou-se para seu guarda-costas.
— Abra os portões Klaus e arranje-me um casaco. Já.
OS MOTORES DO portão frontal funcionaram. Mordecai, sentado ao volante do Mercedes, olhou pelo espelho retrovisor e viu um carro entrar vindo da rua com uma sirene azul rodopiando no teto. Parou atrás dele e travou a fundo. Dois homens saíram e escalaram os degraus da frente. Mordecai lentamente ligou a ignição.
ERICH RADEK FOI para o corredor. Navot arrumou a sua pasta e levantou-se. Becker ficou congelado no lugar. Navot cravou os dedos por baixo do braço do banqueiro e levantou-o.
Seguiram Radek até o corredor. Luzes de emergência azuis piscavam pelas paredes e teto. Radek estava junto ao seu guarda-costas, falando-lhe baixo ao ouvido. O guarda-costas segurava um sobretudo e parecia tenso. Enquanto ajudava Radek a vestir o casaco, os seus olhos estavam em Navot.
Alguém bateu à porta, dois estrondos agudos ecoaram pelo teto alto e chão de mármore do corredor. O guarda-costas largou o sobretudo de Radek e rodou o trinco. Dois homens à paisana empurraram e entraram na casa.
— Está pronto Herr Vogel?
Radek acenou, em seguida voltou-se e olhou uma vez mais para Navot e Becker.
— Mais uma vez, por favor aceitem as minhas desculpas, cavalheiros. Peço imensa desculpa pelo incômodo.
Radek voltou-se na direção da porta com Klaus ao seu lado. Um dos agentes travou o caminho ao guarda-costas colocando-lhe uma mão no peito. O guarda-costas afastou-a com uma pancada.
— O que pensa que está fazendo?
— Herr Kruz deu-nos instruções especificas. Só devemos levar Herr Vogel sob proteção.
— Kruz nunca teria dado uma ordem dessas. Ele sabe que eu vou onde quer que ele vá. Foi sempre assim.
— Lamento, mas essas são as nossas ordens.
— Deixe-me ver o seu distintivo e a sua identificação.
— Não há tempo. Por favor, Herr Vogel. Venha connosco.
O guarda-costas recuou um passo e meteu a mão dentro do casaco. Conforme a arma ficou à vista, Navot lançou-se para a frente. com a mão esquerda, agarrou o pulso do guarda-costas e encostou-lhe a arma contra o abdômen. com a direita, deu-lhe dois fortes golpes de mão aberta na nuca. O primeiro atordoou Halder; o segundo fez os seus joelhos cederem. A sua mão relaxou e a Glock caiu no chão de mármore. Radek olhou para a arma e por um instante pensou em apanhá-la. Em vez disso, voltou-se, precipitou-se para a porta aberta do seu estúdio e fechou-a com um estrondo.
Navot tentou a maçaneta. Trancada.
Deu uns passos atrás e lançou o ombro contra a porta. A porta desfez-se e ele tropeçou para dentro da sala escura. Levantou-se cambaleante e viu que Radek já tinha fugido através da falsa frente de uma estante de livros e estava dentro de um pequeno elevador do tamanho de uma cabine telefônica.
Navot saltou para a frente enquanto a porta do elevador começou a fechar. Conseguiu enfiar os dois braços para dentro e agarrou Radek pela lapela do sobretudo. Quando a porta bateu contra o ombro esquerdo de Navot, Radek agarrou-lhe os pulsos e tentou libertar-se. Navot segurou firmemente.
Oded e Zalman vieram em seu auxilio. Zalman, o mais alto dos dois, alcançou por cima da cabeça de Navot e puxou a porta. Oded deslizando por entre as pernas de Navot aplicou pressão por baixo. Perante a investida, a porta finalmente deslizou e abriu.
Navot arrastou Radek para fora do elevador. Já não havia tempo para subterfúgios ou enganos. Navot tapou a boca do velho com a mão, Zalman segurou-lhe as pernas e levantou-o do chão. Oded encontrou o interruptor e apagou a luz.
Navot olhou para Becker.
— Entre no carro. Depressa, idiota.
Arrastaram Radek degraus abaixo em direção ao Audi. Radek puxava a mão de Navot, tentando libertar-se do tampão na boca e esperneava. Navot conseguia ouvir Zalman resmungar entre dentes. De alguma forma, mesmo no calor da batalha, ele conseguia resmungar em alemão.
Oded abriu a porta de trás antes de dar a volta e correr para o volante.
Navot empurrou primeiro a cabeça de Radek para o fundo e colou-o ao assento.
Zalman forçou sua entrada e fechou a porta. Becker entrou na parte de trás do Mercedes. Mordecai acelerou fundo, e o carro guinou para a rua, o Audi seguindo de perto.
O corpo de Radek ficou subitamente quieto. Navot retirou a mão e o austríaco sorveu ofegante o ar.
— Está me machucando — disse. — Não consigo respirar.
— Eu deixo você se levantar, mas tem que prometer que se comporta bem. Não vai haver mais tentativas de fuga. Promete?
— Deixe eu me levantar. Está me esmagando, estúpido.
— Eu deixo, velho. Faça apenas um favor primeiro. Diga seu nome, por favor.
— Sabe meu nome. É Vogel. Ludwig Vogel.
— Não, não, esse nome não. Seu nome verdadeiro.
— Esse é o meu nome verdadeiro.
— Quer se levantar e deixar Viena como um homem, ou vou ter de ir sentado em cima de você o tempo todo?
— Eu quero me sentar. Está me machucando, maldição!
— Diga apenas seu nome.
Ficou em silêncio por um momento; então murmurou:
— Meu nome é Radek.
— Desculpe, mas não consegui ouvir. Pode dizer seu nome outra vez, por favor? Desta vez alto.
Inspirou profundamente e o seu corpo ficou rígido, como se estivesse em sentido em vez de deitado no banco de trás de um carro.
— MEU NOME É STURMBANNFÜHRER ERICH RADEK!
NO APARTAMENTO SEGURO de Munique, a mensagem apareceu na tela do computador de Shamron: O EMBRULHO FOI RECEBIDO. Carter deu-lhe uma palmada nas costas.
— Raios me partam! Eles o pegaram. Eles o pegaram mesmo.
Shamron levantou-se e caminhou até o mapa.
— Pegá-lo foi a parte mais fácil da operação, Adrian. Tirá-lo de lá vai ser outra história.
Olhou para o mapa. Oitenta quilômetros até a fronteira tcheca. Corra, Oded, pensou ele. Dirija como nunca dirigiu em sua vida.
36
VIENA
ODED JÁ TINHA guiado por aquela estrada uma dúzia de vezes, mas nunca como esta, nunca com a sirene a gritar e a rodopiar no teto, e nunca com os olhos de Erich Radek fitando os seus pelo retrovisor. A retirada do centro da cidade tinha corrido melhor do que esperado. O tráfego de fim de tarde era intenso, mas não ao ponto de não se conseguir desviar para dar passagem ao barulho e à luz da sua sirene. Radek amotinou-se duas vezes. Cada insurreição foi implacavelmente dominada por Navot e Zalman.
Circulavam agora em direção a norte pela E461. O tráfego de Viena tinha ficado para trás, a chuva caía continuamente e gelava nos cantos do para-brisas. Uma tabuleta passou de repente: REPÚBLICA CHECA 42 KM. Navot olhou prolongadamente sobre o ombro, então, em hebraico, instruiu Oded para desligar a sirene.
— Para onde vamos? — perguntou Radek respirando com dificuldade. — Para onde me estão a levar? Onde?
Navot não disse nada, como Gabriel tinha ordenado.
— Deixem-no fazer perguntas até ficar com a cara azul — Gabriel tinha dito.
— Simplesmente não lhe deem a satisfação de uma resposta. Deixem a incerteza afligir-lhe a mente. Era isso que ele faria se os papéis estivessem invertidos. Então Navot observou as povoações que passavam pela janela Mistelbach, Wilfersdorf, Erdberg — e pensou apenas numa coisa, o guarda-costas que ele tinha deixado inconsciente no corredor da entrada da casa de Radek em Stöbbergasse.
Poysdorf apareceu perante eles. Oded acelerou pela vila, em seguida virou para uma estrada de duas faixas e seguiu-a em direção a leste por entre pinheiros cobertos de neve.
— Para onde vamos? Para onde me estão a levar?
Navot já não conseguia suportar mais as suas perguntas em silêncio.
— Vamos para casa — disse de repente. — E tu vens connosco. Radek traçou um sorriso gelado.
— Cometeste apenas um erro esta noite, Herr Lange. Devias ter morto o meu guarda-costas quando tiveste oportunidade.
KLAUS HALDER ABRIU um olho, em seguida o outro. A escuridão era absoluta. Deixou-se estar deitado imóvel por um momento tentando determinar a posição do seu corpo. Tinha caído para a frente, com os braços para os lados, e a sua face direita estava pressionada contra o mármore frio. Tentou levantar a cabeça, um relâmpago de dor lancinante abateu-se-lhe sobre o pescoço. Lembrou-se então do instante em que tinha acontecido. Estava a tentar alcançar a arma quando levou duas pancadas por trás. Fora o advogado de Zurique, Oskar Lange. Obviamente que Lange não era um simples advogado. Ele estava a tramar alguma, como Halder temia desde o início.
Colocou-se de joelhos e sentou-se encostado à parede. Fechou os olhos e esperou que a sala parasse de girar, então esfregou a parte de trás da cabeça. Tinha um inchaço do tamanho de uma maçã. Ergueu o pulso esquerdo e lançou um olhar ao painel luminoso do seu relógio de pulso: 17:57. Quando tinha acontecido? Poucos minutos depois das cinco, 17h10 no máximo. A não ser que tivessem um helicóptero à espera na Stephansplatz, o mais certo era ainda estarem na Áustria.
Apalpou o bolso da frente do seu casaco esportivo e descobriu que o celular ainda lá estava. Tirou-o e ligou. Dois toques. Uma voz familiar.
— Aqui Kruz.
TRINTA SEGUNDOS MAIS TARDE, Manfred Kruz bateu com o telefone e avaliou suas opções. A resposta mais óbvia seria fazer soar o alarme e alertar todas as unidades policiais do país que o velho fora sequestrado por agentes israelenses, fechar as fronteiras e os aeroportos. Óbvia, sim, mas muito perigosa. Uma jogada dessas iria levantar muitas questões desconfortáveis. Porque foi Herr Vogel raptado? Quem é ele realmente? A candidatura de Peter Metzler seria esquadrinhada, assim como a carreira de Kruz. Mesmo na Áustria, tais assuntos assumiam vida própria, e Kruz tinha visto muitos para saber que o inquérito não terminaria à porta de Vogel.
Os israelenses sabiam que ele ficaria incapacitado, e tinham escolhido bem o momento. Kruz tinha de pensar numa maneira sutil de intervir, alguma maneira de impedir os israelenses sem destruir tudo no processo. Alcançou o telefone e marcou.
— Daqui Kruz. Os americanos informaram-nos que um possível grupo da al-Qaeda está em trânsito de automóvel pelo país esta tarde. Eles suspeitam que os membros da al-Qaeda possam estar a viajar com simpatizantes europeus para melhor se misturarem no ambiente. A partir deste momento estou a ativar a rede de alerta terrorista. Aumentem a segurança nas fronteiras, aeroportos e estações de trem para Nível Dois.
Desligou e olhou pela janela. Tinha atirado uma bóia ao velho. Perguntou a si mesmo se ele estaria em condições de a agarrar. Kruz sabia que se conseguisse, seria confrontado com um outro problema em breve: o que fazer com a equipe de rapto israelense. Levou a mão ao bolso do paletó e retirou um pedaço de papel.
— Se ligar para este número, quem vai atender?
— A violência.
Manfred Kruz alcançou o seu telefone.
O RELOJOEIRO, DESDE seu regresso a Viena, dificilmente encontrava razão para sair do santuário da sua pequena loja no Bairro Stephansdom. As frequentes viagens tinham-no deixado com um enorme número de peças acumulado que requeriam a sua atenção, incluindo um relógio regulador vienense, estilo Biedermeier, fabricado pelo famoso relojoeiro Vienense Ignaz Marenzeller em 1840. A caixa de mogno estava nas condições originais, embora o painel prateado de uma só peça tivesse requerido muitas horas de restauração. O movimento Biedermeier original feito à mão, com a sua corda de 75 dias, estava exposto em várias peças cuidadosamente arranjadas na superfície da sua mesa de trabalho.
O telefone tocou. Ele baixou o volume do seu leitor de CD portátil e o Concerto Brandenburg N°. 4 em Sol de Bach diminuiu até um sussurro. Uma escolha banal, Bach, mas o Relojoeiro considerava a precisão de Bach um acompanhamento perfeito para a tarefa de desmantelar e reconstruir o movimento de um relógio antigo. Alcançou o telefone com a mão esquerda. Uma onda de dor percorreu-lhe o comprimento do braço, uma lembrança dos seus abusos em Roma e na Argentina. Levou o receptor à orelha e prendeu-o contra o ombro.
— Sim — disse distraidamente. As suas mãos estavam de volta ao trabalho.
— O seu número foi-me dado por um amigo comum.
— Estou a ver — disse o Relojoeiro de modo descomprometido. Como posso ajudá-lo?
— Não sou eu quem precisa de ajuda. É o nosso amigo. O Relojoeiro pousou as ferramentas.
— O nosso amigo? — perguntou.
— Realizou trabalhos para ele em Roma e na Argentina. Presumo que saiba a quem me estou a referir?
O Relojoeiro sabia de fato. Então, o velho induzira-o em erro e por duas vezes colocara-o em situações de campo comprometedoras. Agora tinha cometido o pecado operacional fatal de dar o seu nome a um estranho. Era óbvio que estava em sarilhos. O Relojoeiro suspeitou que tivesse alguma coisa a ver com os israelenses. Decidiu que agora seria um excelente momento para acabar com a relação.
— Peço desculpa — disse — mas penso que me está a confundir com outra pessoa. O homem do outro lado da linha tentou contra-argumentar. O Relojoeiro desligou o telefone e aumentou o volume do seu leitor de CD até que o som de Bach encheu a oficina.
NO APARTAMENTO SEGURO de Munique, Carter desligou o telefone e olhou para Shamron, que ainda estava de pé em frente ao mapa, como se imaginasse o progresso de Radek para norte em direção à fronteira checa.
— Era da nossa filial de Viena. Estão a monitorizar a rede de comunicações austríaca. Parece que Manfred Kruz elevou o alerta terrorista para Nível Dois.
— Nível Dois? O que significa isso?
— Significa que é possível que haja alguma dificuldade na fronteira.
A ASSISTÊNCIA ESTAVA na reentrância de um ribeiro gelado. Havia dois veículos, um Opel sedã e uma van Volkswagen. Chiara estava ao volante da Volkswagen, faróis apagados, motor desligado, o peso reconfortante de uma Beretta no colo. Não havia outros sinais de vida, não havia luzes na vila, não havia o ruído do tráfego na autoestrada, apenas o suave bater da neve no teto da van e o assobiar do vento pelos juncos dos abetos. Olhou por cima do ombro e olhou para o compartimento traseiro da Volkswagen. Tinha sido preparado para a chegada de Radek. O forro da traseira tinha sido colocado. Por baixo do forro estava um compartimento especialmente construído para escondê-lo durante a passagem pela fronteira. Ele ficaria confortável lá, mais confortável do que merecia.
Olhou pelo vidro. Não havia muito para ver, a estrada estreita subindo pela escuridão em direção a um cume à distância. Então, subitamente, houve uma luz, um brilho branco e limpo que iluminou o horizonte e transformou as árvores em minaretes pretos. Por alguns segundos, foi possível ver a neve, rodopiando como uma nuvem de insetos pelo ar varrido pelo vento. Então os faróis da frente surgiram. O carro contornou a colina, e as luzes espalharam-se por ela, atirando as sombras das árvores para um lado, depois para o outro. Chiara segurou a Beretta com a mão e deslizou o dedo indicador para dentro da guarda do gatilho.
O carro derrapou até parar junto à van. Ela olhou para o banco de trás e viu o assassino, sentado entre Navot e Zalman, rígido como um comissário à espera da limpeza de sangue. Ela rastejou até o compartimento traseiro e fez uma verificação final.
— TIRE O SOBRETUDO — ordenou Navot.
— Por quê?
— Porque estou mandando.
— Eu tenho o direito de saber por quê.
— Não tem direito nenhum! Faça apenas o que digo.
Radek permaneceu imóvel. Zalman puxou a lapela do casaco, mas o velho cruzou os braços com força junto ao peito. Navot suspirou pesadamente. Se o velho bastardo quer um combate final, vai consegui-lo. Navot abriu-lhe os braços à força enquanto Zalman puxava a manga direita, depois a esquerda. O casaco depois; em seguida Zalman rasgou a manga da camisa e expôs a pele caída do braço. Navot exibiu uma seringa, cheia de sedativo.
— Isso é para seu próprio bem — disse Navot. — É moderado e não tem efeito durante muito tempo. Vai fazer sua viagem muito mais suportável. Sem claustrofobia.
— Nunca tive claustrofobia.
— Não me interessa.
Navot espetou a agulha no braço de Radek e despejou o conteúdo. Passados alguns segundos, o corpo de Radek relaxou; em seguida a cabeça tombou para o lado e o queixo descaiu. Navot abriu a porta e saiu. Segurou o corpo amolecido de Radek debaixo dos braços e arrastou-o para fora do carro.
Zalman levantou-o pelas pernas e juntos carregaram-no como um morto de guerra para a lateral da van. Chiara estava agachada no interior, segurando uma máscara de oxigênio e outra de plástico transparente. Navot e Zalman deitaram Radek no chão da van; e Chiara colocou-lhe a máscara sobre o nariz e a boca. O plástico embaciou imediatamente, indicando que a respiração de Radek estava normal. Ela verificou-lhe o pulso. Regular e forte. Manusearam-no para dentro do compartimento e fecharam a tampa.
Chiara sentou-se ao volante e ligou o motor. Oded fechou-lhe a porta e deu uma pequena pancada com a mão no vidro. Chiara engatou a marcha e seguiu para a autoestrada. Os outros entraram no Opel e seguiram atrás dela.
CINCO MINUTOS MAIS TARDE, as luzes da fronteira apareceram como faróis no horizonte. Conforme Chiara se foi aproximando conseguiu ver uma pequena fila de trânsito com cerca de seis veículos de comprimento, esperando para atravessar. Havia dois guardas fronteiriços em evidência. Tinham as lanternas na mão e estavam a verificar passaportes e a espreitar pelas janelas. Ela olhou por cima do ombro. As portas do compartimento permaneciam fechadas. Radek estava em silêncio.
O carro em frente passou na inspeção e foi deixado seguir em direção ao lado checo. O guarda fronteiriço fez-lhe sinal para avançar. Ela baixou o vidro e sorriu.
— Passaporte, por favor.
Ela entregou. O segundo guarda tinha-se deslocado para o lado do passageiro da van, e ela conseguia ver o foco de luz da lanterna investigando o interior.
— Está tudo bem?
O guarda fronteiriço manteve os olhos na fotografia e não respondeu.
— Quando entrou na Áustria?
— Hoje.
— Onde?
— Pela Itália, em Tarvísio.
Ele dispensou um momento comparando o rosto dela com a fotografia do passaporte. Em seguida abriu a porta do motorista e com um gesto ordenou-lhe que saísse da van.
UZI NAVOT OBSERVOU a cena em primeira fila, no lugar do passageiro no banco da frente do Opel. Olhou para Oded e praguejou ligeiramente por entre os dentes. Em seguida ligou do celular para o apartamento seguro de Munique. Shamron atendeu ao primeiro toque.
— Temos um problema — disse Navot.
ELE ORDENOU que se colocasse na frente da van e apontou a lanterna para seu rosto. Através do brilho conseguia ver o segundo guarda fronteiriço abrindo a porta do passageiro da van. Forçou-se a olhar para o interrogador. Tentou não pensar na Beretta contra as suas costas. Ou em Gabriel, esperando do outro lado da fronteira em Mikulov. Ou Navot, Oded e Zalman observando impotentes do Opel.
— Para onde se dirige esta noite?
— Praga — disse ela.
— Por que vai para Praga?
Ela disparou-lhe um olhar: Não tem nada com isso. Então disse: — Vou visitar meu namorado.
— Namorado — repetiu ele. — O que seu namorado faz em Praga?
Ensina italiano, dissera Gabriel.
Ela respondeu à pergunta.
— Onde?
No Instituto de Estudos Linguísticos de Praga, tinha dito Gabriel. Mais uma vez, ela respondeu como Gabriel tinha instruído.
— E há quanto tempo ele é professor do Instituto de Estudos Linguísticos de Praga?
— Três anos.
— E vê-o com frequência?
— Uma vez por mês, às vezes duas.
O segundo guarda tinha entrado na van. Uma imagem de Radek passou-lhe pela mente, olhos fechados, máscara de oxigênio no rosto. Não acorde, pensou ela. Não se mexa. Não faça barulho. Aja decentemente, pelo menos uma vez em sua vida desprezível.
— E quando entrou na Áustria?
— Já disse isso.
— Diga outra vez, por favor.
— Hoje.
— A que horas?
— Não me lembro da hora.
— Era de manhã? Era de tarde?
— Tarde.
— Início da tarde? Fim da tarde?
— Início.
— Então ainda era dia?
Ela hesitou; ele pressionou-a.
— Sim? Ainda era dia?
Ela acenou. De dentro da van veio o som da porta traseira se abrindo. Ela se forçou a olhar diretamente para os olhos do interrogador. O seu rosto, escurecido pela irritante luz da lanterna, começou a parecer-se com Erich Radek, não a versão patética do Radek inconsciente na traseira da van, mas o Radek que arrastou uma criança chamada Irene Frankel das fileiras da marcha da morte de Birkenau em 1945 e a levou para uma floresta polonesa para um momento de tormento final.
— Diga as palavras, judia! Foi transferida para leste. Teve comida em abundância e cuidados médicos adequados. As câmaras de gás e o crematório são mentiras bolchevique-judaicas.
Eu consigo ser tão forte como você, Irene, pensou ela. Eu consigo passar por isso. Por você.
— Parou em algum lugar na Áustria?
— Não.
— Não aproveitou a oportunidade para visitar Viena?
— Já estive em Viena — disse ela. — Não me agrada.
Ele dispensou um momento examinando-lhe o rosto.
— É italiana?
— Tem meu passaporte na mão.
— Não estou falando de seu passaporte. Estou falando de sua etnia. Seu sangue. Descendência italiana ou imigrante do, digamos, Oriente Médio ou Norte de África?
— Sou italiana — assegurou ela.
O segundo guarda saiu da van e abanou a cabeça. O interrogador devolveu-lhe o passaporte.
— Peço desculpas pelo atraso — disse ele. — Tenha uma boa viagem.
Chiara sentou-se ao volante, engatou a marcha e passou a fronteira devagar. Desatou em lágrimas, lágrimas de alívio, lágrimas de raiva. No início tentou impedi-las, mas não conseguiu. A estrada ficou desfocada, as luzes traseiras transformaram-se em riscos vermelhos, e mesmo assim elas vieram.
— Por você, Irene — disse ela em voz alta. — Fiz isso por você.
A ESTAÇÃO DE trem de Mikulov fica no fim da cidade velha, onde as colinas encontram a planície. Há uma única plataforma, que suporta um quase constante ataque do vento que desliza pelos Cárpatos, e um melancólico estacionamento de gravilha, que se transforma num lago quando chove. Perto da bilheteira está uma parada de ônibus riscada de graffitis, e era ai, encostado ao lado de onde vem o vento, que Gabriel esperava, mãos mergulhadas nos bolsos do casaco impermeável.
Levantou o olhar quando a van entrou no estacionamento e esmagou a gravilha. Esperou até que parasse antes de sair da parada de ônibus para a chuva. Chiara esticou-se e abriu-lhe a porta. Quando a luz de teto se acendeu, ele viu que o seu rosto estava molhado.
— Estás bem?
— Estou ótima.
— Queres que eu conduza?
— Não, eu consigo.
— Tem certeza?
— Entra, Gabriel. Não suporto estar sozinha com ele.
Ele entrou e fechou a porta. Chiara deu meia volta e regressou à autoestrada. Um momento mais tarde estavam a ir para norte, para os Cárpatos. DEMORARAM MEIA HORA até chegar a Brno, mais uma hora para chegar a Ostrava. Gabriel abriu as portas do compartimento duas vezes para verificar Radek. Eram quase oito horas quando chegaram à fronteira polonesa. Sem verificações de segurança desta vez, sem fila de trânsito, apenas uma mão espetada fora do abrigo de tijolo acenando-lhes à passagem pela fronteira.
Gabriel rastejou para a traseira da van e puxou Radek do compartimento. Em seguida abriu uma gaveta e retirou uma seringa. Desta vez tinha uma dose moderada de estimulante, apenas o suficiente para o trazer de volta aos limites do consciente lentamente. Gabriel inseriu a seringa no braço de Radek, injetou a droga, em seguida retirou a agulha e esfregou a ferida com álcool. Os olhos de Radek abriram devagar. Observou o ambiente envolvente por um momento antes de se fixar no rosto de Gabriel.
— Allon? — murmurou ele pela máscara de oxigênio. Gabriel acenou lentamente.
— Para onde me levas? — Gabriel não respondeu. — Vou morrer? — perguntou, e, antes que Gabriel pudesse responder, voltou a ficar inconsciente.
37
POLÔNIA ORIENTAL
A BARREIRA ENTRE consciência e coma era como uma cortina de palco, pela qual ele conseguia passar à vontade. Só não sabia quantas vezes tinha passado por esta cortina. O tempo, como a sua velha vida, estavam perdidos para ele. A sua bela casa de Viena parecia a casa de outro homem, na cidade de outro homem. Algo tinha acontecido quando ele gritou o seu nome aos israelenses. Ludwig Vogel era agora um estranho para ele, um conhecido que ele já não via há muitos anos. Ele era Radek novamente. Infelizmente o tempo não tinha sido meigo com ele. O alto e belo homem de preto estava agora prisioneiro num corpo fraco e decadente.
O judeu tinha-o colocado no forro da traseira. As suas mãos e tornozelos estavam amarrados por uma grossa fita adesiva prateada, e estava amarrado com o cinto de segurança como um doente mental. Os seus pulsos serviam como o portal entre os dois mundos. Apenas tinha de os torcer num determinado ângulo para que a fita se cravasse dolorosamente na pele e passaria a cortina do mundo dos sonhos para o reino do real. Sonhos? Será apropriado chamar a tais visões sonhos? Não, eram demasiado exatas, descritivas demais. Eram memórias, sobre as quais ele não tinha controle, apenas o poder de as interromper por alguns momentos infligindo dor em si próprio com a fita adesiva do judeu.
O seu rosto estava perto da janela, e o vidro estava desobstruído. Ele era capaz, quando estava acordado, de ver a infindável região rural negra e as desoladoras vilas escurecidas. Também era capaz de ler os sinais na estrada. Não precisava dos sinais para saber onde estava. Algures, noutra vida, ele tinha sido o senhor da noite nesta terra. Ele lembrava-se desta estrada: Dachnow, Zukow, Narol... Ele sabia o nome da próxima vila, mesmo antes desta passar pela janela: Belzec...
Fechou os olhos. Porquê agora, passados tantos anos? Depois da guerra ninguém esteve assim tão interessado num mero oficial SD que servira na Ucrânia — ninguém exceto os russos, claro — e no momento em que o seu nome veio ao de cima com ligações à Solução Final, o General Gehlen tinha providenciado a sua fuga e o seu desaparecimento.
A sua antiga vida fora deixada para trás em segurança. Tinha sido perdoado por Deus e a sua Igreja e até mesmo pelos seus inimigos, que gananciosamente tiraram proveito dos seus serviços quando também eles se sentiram ameaçados pelo judaísmo-bolchevismo. Os governos rapidamente perderam o interesse em proceder contra os, assim chamados, criminosos de guerra, e amadores como Wiesenthal focaram a atenção em peixe graúdo como Eichmann e Mengele, ajudando de forma involuntária peixe mais miúdo como ele próprio a encontrar santuário em águas calmas. Houve um susto sério. Em meados dos anos setenta, um jornalista americano, um judeu, claro, que foi a Viena e colocou demasiadas questões. Na estrada que sai de Salzburg para sul ele mergulhou numa ravina, e a ameaça foi eliminada. Nessa altura agiu sem hesitar. Se tivesse lançado Max Klein numa ravina ao primeiro sinal de ameaça... Reparara nele naquele dia no Café Central, assim como nos dias que se seguiram. Os seus instintos tinham-lhe dito que Klein representava uma ameaça. Ele hesitou. Quando Klein levou a sua história ao judeu Lavon era demasiado tarde.
Passou pela cortina outra vez. Estava em Berlim, sentado no gabinete do oficial Gruppenführer Heinrich Müller, chefe da Gestapo. Müller tira um pedacinho de almoço dos dentes e sacode uma carta que acabou de receber de Luther no Ministério dos Negócios Estrangeiros. É 1942.
— Rumores das nossas atividades no Leste começaram a chegar aos ouvidos dos nossos inimigos. Também temos um problema com um dos locais na região de Warthegau. Queixas sobre uma contaminação qualquer.
— Se me permite colocar a questão óbvia, Herr Gruppenführer, que diferença faz se rumores chegam ao Oeste? Quem vai acreditar que tal coisa foi realmente possível?
— Rumores é uma coisa, Erich. Provas é outra.
— Quem vai descobrir provas? Algum servo polonês atrasado mental? Um vesgo abridor de valas ucraniano?
— Talvez os Ivans?
— Os russos? Como descobririam?
Müller ergueu uma mão de pedreiro. Discussão terminada. E então ele percebeu. A aventura russa do Führer não estava indo de acordo com os planos. A vitória no Leste já não estava assegurada.
Müller inclinou-se para a frente.
— Estou te mandando para o inferno Erich. Vou espetar essa sua cara nórdica tão fundo no esterco que nunca mais vai ver a luz do dia.
— Como poderei jamais agradecer, Herr Gruppenführer?
— Limpe a porcaria. Toda. Em toda parte. É sua responsabilidade garantir que se mantenha apenas um rumor. E quando a operação estiver concluída, quero que seja o único homem de pé.
Ele concordou. O rosto de Müller afastou-se pela noite polonesa. Estranho, não é? A sua verdadeira contribuição para a Solução Final não foi matar mas esconder e garantir a segurança, e no entanto estava com problemas agora, sessenta anos depois, por causa de um jogo idiota que fizera bêbado em Auschwitz num domingo. Aktion 1005? Sim, fora um projeto seu, mas nenhum sobrevivente judeu testemunharia sua presença na beira de uma vala comum, porque não havia sobreviventes. Ele geriu uma operação fechada. Eichmann e Himmler teriam sido aconselhados a fazer o mesmo. Foram tolos em permitir que tantos sobrevivessem.
Uma memória surgiu, janeiro de 1945, um rio de judeus frágeis dispersos ao longo de uma estrada muito parecida com esta. A estrada de Birkenau. Milhares de judeus, cada um com uma história para contar, cada um uma testemunha. Ele defendia a liquidação da população inteira do campo antes da evacuação. Não, disseram. Trabalho escravo era necessário com urgência no Reich. Trabalho? A maioria dos judeus que ele tinha visto sair de Birkenau mal conseguia andar, quanto mais manejar uma picareta ou uma pá. Eles não eram aptos para o trabalho, apenas para o massacre, e já tinha matado uns quantos, ele próprio. Por que, em nome de Deus, lhe tinham ordenado que limpasse as valas para depois permitir que milhares de testemunhas caminhassem para fora de um local como Birkenau?
Ele se esforçou por manter os olhos abertos, e observou pela janela. Estavam a conduzir ao longo das margens de um rio, perto da fronteira ucraniana. Ele conhecia este rio, um rio de cinzas, um rio de ossos.
Pensou quantas centenas de milhares estariam ali embaixo, sedimentadas no leito do Rio Bug.
Uma cidade adormecida: Uhrusk. Pensou em Peter. Ele tinha avisado que isto aconteceria.
— Se eu me tornar uma ameaça séria, posso ganhar a chancelaria — dissera Peter —, alguém vai tentar nops expor.
Ele sabia que Peter estava certo, mas também acreditava que conseguiria lidar com qualquer ameaça. Estava errado, e agora seu filho teria de enfrentar uma humilhação eleitoral inimaginável, tudo por sua culpa. Era como se os judeus tivessem levado Peter à beira de uma vala comum e apontado uma arma para sua cabeça. Ele pensou que conseguiria evitar que eles puxassem o gatilho, se conseguisse quebrar mais um acordo, engendrar uma fuga final.
E este judeu que olha fixamente para mim com aqueles rancorosos olhos verdes? O que espera ele que eu faça? Peça perdão? Vergue, chore e cuspa sentimentalismos? O que este judeu não percebe é que eu não sinto culpa pelo que fiz. Eu fui forçado pela mão de Deus e os ensinamentos da minha Igreja. Não nos disseram os padres que os judeus foram os assassinos de Deus? O Santo Padre e os seus cardeais não ficaram em silêncio quando sabiam perfeitamente o que estávamos a fazer no Leste? Será que este judeu espera que eu reprove assim sem mais nem menos e diga que foi um erro terrível? E porque olha ele para mim assim? Aqueles olhos eram-lhe familiares. Já os tinha visto em algum lado antes. Talvez fosse das drogas que lhe tinham dado. Ele não conseguia ter a certeza de nada. Ele nem tinha sequer a certeza de estar vivo. Talvez fosse a sua alma a fazer esta viagem ao longo do Rio Bug. Talvez estivesse no inferno.
Outra aldeola: Wola Uhruska. Ele conhecia a próxima vila. Sobibor...
Fechou os olhos, o veludo da cortina envolveu-o. É a Primavera de 1942, está a conduzir para fora de Kiev na estrada de Zhitomir com o comandante de uma unidade Einsatzgruppen ao lado. Estão a caminho para inspecionar uma ravina que se transformou num problema de segurança, um lugar que os ucranianos chamam Babi Yar. Quando chegam, o Sol já está a desaparecer no horizonte e está quase a anoitecer. Mesmo assim, há luz suficiente para observar o estranho fenômeno que acontece no fundo da ravina. A terra parece estar a debater-se com um ataque epiléptico. O solo tem convulsões, gás é disparado para o ar, juntamente com gêiseres de líquido pútrido. O fedor! Meu Deus, o fedor. Ele consegue cheirá-lo agora.
— Quando começou?
— Pouco depois do final do Inverno. O chão aqueceu, então os corpos aqueceram. Eles decompõem-se muito rapidamente.
— Quantos estão ali embaixo?
— Trinta e três mil judeus, alguns ciganos e prisioneiros soviéticos, assim por alto.
— Cerque a ravina inteira.
— No momento outros locais têm prioridade. Trataremos deste assim que possível.
— Que outros locais?
— Locais de que nunca ouviu falar: Birkenau, Belzec, Sobibor, Treblinka. Nosso trabalho aqui está feito. Esperam novas chegadas a qualquer momento, nos outros.
— O que vai fazer com este local?
— Abrimos as valas e queimamos os corpos, em seguida esmagamos os ossos e espalhamos os fragmentos nas florestas e nos rios.
— Queimar trinta mil cadáveres? Tentamos isso nas operações de massacre. Usamos lança-chamas, pelo amor de Deus. Cremações maciças a céu aberto não funcionam.
— Isso é porque nunca construíram uma pira em condições. Em Chelmno, eu provei que pode ser feito. Confie em mim, Kurt, um dia este local chamado Babi Yar será apenas um rumor, como os judeus que viviam aqui.
Ele torceu os pulsos. Desta vez a dor não foi suficiente para acordar. A cortina recusou-se a abrir. Permaneceu trancado numa prisão de memórias, vagueando por um rio de cinzas.
MERGULHARAM PELA noite adentro. O tempo era uma memória. A fita adesiva tinha-lhe cortado a circulação. Já não conseguia sentir as mãos e os pés. Sentia-se febrilmente quente num minuto e arrepiantemente frio no outro. Tinha a impressão de terem parado uma vez. Tinha cheirado gasolina. Estariam eles a encher o depósito? Ou seria apenas a memória de traves de caminho-de-ferro ensopadas em combustível?
Os efeitos da droga finalmente dissiparam. Ele estava agora acordado, alerta e consciente, e seguro de que não estava morto. Algo na postura do judeu lhe disse que estavam próximos do final da jornada. Tinham passado por Siedlce, depois, em Sokolow Podlaski, tinham virado para uma estrada de campo mais estreita. Dybow veio a seguir, depois Kosow Lacki. Saíram da estrada principal, para um trilho de terra batida. A van trepidava: dump-dump... dump-dump. A velha via-férrea, pensou, ainda aqui estava, claro. Seguiram o trilho até uma plataforma de abetos e bétulas e pararam um momento mais tarde num pequeno estacionamento alcatroado.
Um segundo carro entrou na clareira com os faróis apagados. Três homens saíram e aproximaram-se da van. Ele reconheceu-os. Eram os que o tinham tirado de Viena. O judeu colocou-se em cima dele e cuidadosamente cortou a fita adesiva e soltou as correias de couro.
— Venha — disse ele agradavelmente. — Vamos dar um passeio.
38
TREBLINKA, POLÔNIA
SEGUIRAM POR UM trilho por entre as árvores. Tinha começado a nevar. Os flocos caíam suavemente pelo ar tranquilo e assentavam-lhes nos ombros como cinzas de um
fogo distante. Gabriel segurava Radek pelo cotovelo. Os seus passos eram cambaleantes no início, mas em breve o sangue começou a fluir-lhe novamente aos pés e insistiu em caminhar sem o suporte de Gabriel. A sua respiração difícil gelava no ar. Cheirava a amargo e a medo.
Avançaram mais fundo para dentro da floresta. O trilho era arenoso e coberto por uma fina camada de faúlhas. Oded estava vários passos à frente, quase invisível através da queda de neve. Zalman e Navot caminhavam em formação atrás deles. Chiara tinha ficado para trás na clareira, vigiando os veículos. Fizeram uma pausa numa brecha nas árvores, de cerca de cinco metros de largura, estendendo-se pelo escuro. Gabriel iluminou-a com o foco de uma lanterna. No centro do corredor, em intervalos equidistantes, estavam várias pedras em pé. As pedras marcavam a linha da antiga vedação. Tinham chegado ao perímetro do campo. Gabriel desligou a lanterna e puxou Radek pelo cotovelo. Radek tentou resistir, mas tropeçou para a frente.
— Faça o que eu digo, Radek, e vai correr tudo bem. Não tente fugir, porque não há por onde escapar. Não vale a pena gritar por ajuda, porque ninguém vai ouvir seus gritos.
— Sente prazer em me ver com medo?
— Sinto nojo, para dizer a verdade. Não gosto nem de tocá-lo. Eu não gosto do som de sua voz.
— Então por que estamos aqui?
— Eu apenas quero que veja algumas coisas.
— Não há nada para ver aqui, Allon. Apenas um memorial polonês.
— Precisamente — Gabriel deu-lhe um puxão no cotovelo. — Venha, Radek. Mais depressa. Tem que andar mais depressa. Não temos muito tempo. Vai amanhecer em breve.
Um momento mais tarde, pararam de novo perante um caminho-de-ferro sem carris, o velho ramal que trouxera os trens da estação de Treblinka até o interior do campo. As traves tinham sido recriadas em pedra e estavam cobertas por neve recente. Seguiram os carris até o campo e pararam no sítio onde tinha estado a plataforma. Também ela estava representada em pedra.
— Lembra, Radek?
Ele ficou em silêncio, o queixo caído, a respiração áspera.
— Vá lá, Radek. Sabemos quem você é, nós sabemos o que fez. Desta vez não vai escapar. Não vale a pena entrar em jogos ou tentar negar alguma coisa. Não há tempo, a não ser que não queira salvar seu filho.
A cabeça de Radek girou lentamente. Os seus lábios comprimiram-se e o seu olhar endureceu.
— Faria mal ao meu filho?
— Na verdade, você fará por nós. Tudo o que temos a fazer é dizer ao mundo quem é o pai dele, e isso o destruirá. Foi por isso que plantou a bomba no escritório de Eli Lavon: para proteger Peter. Ninguém podia tocá-lo, não num lugar como a Áustria. A janela para você estava fechada há muito tempo. Estava seguro. A única pessoa que podia pagar um preço por seus crimes é seu filho. Foi por isso que tentou matar Eli Lavon. Foi por isso que assassinou Max Klein.
Voltou as costas a Gabriel e olhou para a escuridão.
— O que é que queres? O que queres saber?
— Conta-me como foi Radek. Eu já li sobre isso, eu vejo o memorial, mas não consigo imaginar como funcionou realmente. Como foi possível transformar em fumo um trem cheio de pessoas em apenas quarenta e cinco minutos? Quarenta e cinco minutos, porta a porta, não era disso que o staff das SS se costumava vangloriar por estes lados? Conseguiam transformar um judeu em fumo em quarenta e cinco minutos. Doze mil judeus por dia. Oitocentos mil no total.
Radek emitiu um riso fechado, um interrogador que não acreditava na afirmação do seu prisioneiro. Gabriel sentiu como se uma pedra tivesse sido posta sobre o seu coração.
— Oitocentos mil? Onde foste buscar um número desses?
— É a estimativa oficial do governo polonês.
— E espera que um bando de seres inferiores, como os poloneses, seja capaz de saber o que aconteceu nestes bosques? — A sua voz pareceu subitamente diferente, mais jovem e autoritária. — Por favor Allon, se vamos ter esta discussão, lidemos com os fatos e não com idiotice polonesa. Oitocentos mil? — Abanou a cabeça e efetivamente sorriu. Não, não foram oitocentos mil. O número real foi muito superior a isso.
UMA SÚBITA RAJADA de vento agitou as copas das árvores. Para Gabriel soou como o som dos rápidos de um rio. Radek estendeu a mão e pediu a lanterna. Gabriel hesitou.
— Não pensa que vou atacar você com isso, não?
— Eu sei de algumas coisas que fez.
— Isso foi há muito tempo.
Gabriel entregou-lhe a lanterna. Radek apontou o foco para a esquerda, iluminando um molho de árvores de folha permanente.
— Eles chamavam a esta área o campo de baixo. As casernas das SS eram ali mesmo. A vedação periférica passava mesmo por trás. Em frente, havia uma estrada alcatroada com arbustos e flores durante a Primavera e o Verão. Talvez te custe a acreditar, mas era na realidade bastante agradável. Não havia tantas árvores, claro. Plantamos as árvores depois de demolir o campo. Na altura eram apenas rebentos. Agora, estão completamente adultas, bem bonitas.
— Quantos SS?
— Normalmente cerca de quarenta. moças judias tratavam-lhes da limpeza, mas tinham polonesas para cozinhar, três moças locais que vinham das vilas em redor.
— E os ucranianos?
— Estavam aquartelados do lado oposto da estrada, em cinco casernas. A casa de Stangl era no meio, no cruzamento de duas estradas . Ele tinha um belo jardim. Foi desenhado para ele por um homem de Viena.
— Mas os recém-chegados nunca viram essa parte do campo?
— Não, não, cada parte do campo era cuidadosamente escondida da outra por vedações intercaladas com plantações de pinheiros. Quando chegavam ao campo, eles viam o que parecia ser uma normal estação de trem de campo, completa com um horário de partidas falso. Não havia partidas de Treblinka, claro. Apenas trens vazios partiam da estação.
— Havia aqui um edifício, não havia?
— Fora desenhado para parecer uma normal estação de trem, mas na realidade estava cheio de valores roubados de chegadas anteriores. Aquela seção ali era conhecida como o Largo da Estação. Ali havia o Largo da Recepção, ou o Largo da Triagem.
— Alguma vez viste a chegada dos transportes?
— Eu não tinha nada a ver com esse tipo de situação, mas sim, eu vi-os chegar.
— Havia dois procedimentos de chegada diferentes? Um para judeus da Europa Ocidental e outro para judeus do Leste?
— Sim, está correto. Os judeus da Europa Ocidental eram tratados com muita mentira e fraude. Não havia chicotes nem gritos. Era-lhes pedido educadamente que desembarcassem do trem. Pessoal médico de batas brancas estava à espera no Largo da Recepção para tratar dos doentes.
— Era tudo um estratagema, no entanto. Os velhos e os doentes eram levados e abatidos a tiro imediatamente.
Ele concordou.
— E os judeus do Leste? Como eram recebidos na plataforma?
— Eram recebidos por chicotes ucranianos.
— E depois?
Radek levantou a lanterna e apontou o foco a uma curta distância através da clareira.
— Havia uma cerca de arame farpado aqui. Para lá do arame existiam dois edifícios. Um era uma caserna para despir. No segundo edifício, judeus de trabalho cortavam o cabelo às mulheres. Quando terminavam, elas iam naquela direção. — Radek usou a lanterna para iluminar o caminho. — Havia aqui uma passagem, uma espécie de passagem de gado, com alguns metros de largura, arame farpado e ramos de pinheiro. Era conhecida como o tubo.
— Mas as SS tinham um nome especial para isso, não tinham?
Radek acenou.
— Estrada para o Paraíso.
— E onde ia dar a Estrada para o Paraiso?
Radek levantou o foco da sua luz.
— Para o campo de cima — disse. — O campo da morte.
PROSSEGUIRAM O CAMINHO até uma larga clareira polvilhada com centenas de pedregulhos, cada pedra representava uma comunidade judaica destruída em Treblinka. A pedra maior ostentava o nome Varsóvia. Gabriel olhou para lá das pedras, em direção ao céu, para leste. Começava a ganhar claridade.
— A Estrada para o Paraiso levava diretamente a um edifício de tijolo que albergava as câmaras de gás — disse Radek quebrando o silêncio. De repente parecia ansioso por falar. — Cada câmara tinha quatro metros por quatro metros. Inicialmente eram apenas três, mas em breve descobriram que precisavam de mais capacidade para satisfazer a procura. Foram acrescentadas mais dez. Um motor a gasóleo bombeava gases de monóxido de carbono para as câmaras. A asfixia demorava menos de trinta minutos. Depois disso os corpos eram retirados.
— E o que era feito com eles?
— Durante vários meses, foram enterrados ali fora, em grandes valas. Mas muito rapidamente as valas transbordaram e a decomposição dos corpos contaminou o campo.
— Foi quando chegou?
— Não de imediato. Treblinka era o quarto campo da nossa lista. Limpamos as valas de Birkenau primeiro, a seguir Belzec e Sobibor. Só chegamos a Treblinka em março de 1943. Quando eu cheguei... — a sua voz arrastou-se. — Terrível.
— O que fez?
— Abrimos as valas, claro, e retiramos os corpos.
— À mão?
Ele abanou a cabeça.
— Tínhamos uma escavadora mecânica. Acelerou bem o trabalho.
— A garra, não era assim que chamavam?
— Sim, era isso.
— E depois dos corpos serem retirados?
— Eram incinerados em grandes prateleiras de metal.
— Tinham um nome especial para as prateleiras, não tinham?
— Assadeiras — disse Radek. — Chamávamos de assadeiras.
— E depois dos corpos serem queimados?
— Esmagávamos os ossos e voltávamos a enterrá-los nas valas ou levávamos em carroças para despejar no rio Bug.
— E quando as valas antigas ficaram vazias?
— Depois disso, os corpos eram levados diretamente das câmaras de gás para as assadeiras. Funcionou assim até outubro desse ano, quando o campo foi fechado e todos os traços foram obliterados. Operou por pouco mais de um ano.
— E mesmo assim conseguiram assassinar oitocentos mil?
— Não foram oitocentos mil.
— Quantos foram então?
— Mais de um milhão. É qualquer coisa, não é? Mais de um milhão de pessoas, num lugar minúsculo como este, no meio de uma floresta polonesa.
GABRIEL TIROU A lanterna do rosto dele sacou a Beretta. Empurrou Radek com o cano. Caminharam ao longo de uma trilha, pelo campo de pedras. Zalman e Navot ficaram para trás no campo de cima. Gabriel conseguia ouvir os passos de Oded na gravilha atrás dele.
— Parabéns, Radek. Graças a você, é apenas um cemitério simbólico.
— Vai me matar agora? Não disse o que queria ouvir?
Gabriel empurrou-o pelo trilho.
— Você talvez tenha algum orgulho deste lugar, mas para nós é solo sagrado. Acha realmente que eu o poluiria com seu sangue?
— Então qual é o propósito disso? Por que me trouxe aqui?
— Você precisava ver isso mais uma vez. Visitar o local do crime para refrescar a memória e se preparar para o próximo testemunho. É assim que vai salvar seu filho da humilhação de ter tal homem na condição de pai. Vai para Israel pagar por seus crimes.
— Não foi meu crime! Eu não os matei! Eu apenas fiz o que Müller me ordenou. Eu limpei a porcaria!
— Teve sua cota de matança, Radek. Lembra do joguinho com Max Klein em Birkenau? E a marcha da morte? Também estava lá, não estava, Radek?
Radek reduziu o passo e voltou a cabeça. Gabriel deu-lhe um empurrão. Chegaram a um amplo declive retangular cheio de lascas de basalto negro, o local onde era a vala de cremação.
— Mate-me agora, maldição! Não me leve para Israel! Mate-me agora e acabe com isso. Aliás, é nisso que você é bom, não é, Allon?
— Não aqui — disse Gabriel. — Não neste lugar. Você nem sequer merece pôr os pés aqui, quanto mais morrer.
Radek caiu de joelhos defronte à vala.
— E se eu concordar em ir? Que destino me espera?
— A verdade o espera, Radek. Será posto perante o povo de Israel e confessará seus crimes. Seu papel na Aktion 1005. O massacre de prisioneiros em Birkenau. As mortes que infligiu durante a marcha da morte de Birkenau. Lembra das moças que assassinou, Radek?
Radek voltou a cabeça.
— Como é que...
Gabriel interrompeu-o.
— Não vai enfrentar julgamento por seus crimes, mas vai passar o resto da vida atrás das grades. Enquanto estiver na prisão, vai trabalhar com uma equipe de estudantes do Holocausto de Yad Vashem para compilar minuciosamente a história de Aktion 1005. Vais dizer aos que negam e aos que duvidam exatamente o que fizeste para esconder o maior caso de assassinato de massas da história. Vais dizer a verdade pela primeira vez na vida.
— Qual verdade, sua ou a minha?
— Só há uma verdade, Radek. Treblinka é a verdade.
— E o que é que eu ganho com isso?
— Mais do que mereces — disse Gabriel. — Não diremos nada sobre a ascendência duvidosa de Metzler.
— Estás disposto a aceitar um chanceler austríaco da extrema-direita para me apanhar?
— Algo me diz que Peter Metzler se vai tornar um grande amigo de Israel e dos judeus. Ele não vai querer fazer nada para nos irritar. Afinal de contas, nós teremos a chave para a sua destruição até muito depois de tu morreres.
— Como convenceste os americanos a trair-me? Chantagem, suponho: é essa a maneira judaica. Mas deve ter havido mais. Certamente juraram que nunca me dariam oportunidade de discutir a minha afiliação com a Organização Gehlen ou com a CIA. Suponho que a sua dedicação à verdade para por aí.
— Dá-me sua resposta Radek.
— Como posso confiar em ti, um judeu, que cumpras sua parte do acordo?
— Andaste a ler Der Sturmer outra vez? Vais confiar em mim porque não tens outra alternativa.
— E o que é que vai adiantar? Vai trazer de volta alguma das pessoas que aqui morreram?
— Não — concedeu Gabriel —, mas o mundo saberá a verdade, e tu vais passar os últimos anos de sua vida onde pertences. Aceita o acordo, Radek. Aceita pelo teu filho. Pensa nele como uma última fuga.
— Não ficará secreto para sempre. Um dia, a verdade sobreste caso vai vir ao de cima.
— Se calhar — disse Gabriel. — Suponho que não seja possível esconder a verdade para sempre.
A cabeça de Radek voltou-se lentamente e ele olhou para Gabriel com desdém.
— Se fosses um homem a sério, fazias tu mesmo. — Esboçou um sorriso trocista.
— Quanto à verdade, ninguém se importou enquanto este lugar estava operacional, e ninguém se vai importar agora.
Voltou-se e olhou para a vala. Gabriel guardou a Beretta no bolso e afastou-se. Oded, Zalman e Navot ficaram imóveis por trás dele no trilho. Gabriel passou por eles sem dizer uma palavra e dirigiu-se para baixo através do campo até a plataforma de caminho-de-ferro. Antes de virar para as árvores, parou por instantes para olhar sobre o ombro e viu Radek, segurando-se ao braço de Oded, pondo-se de pé devagar.
PARTE QUATRO
O prisioneiro de Abu Kabir
39
JAFFA, ISRAEL
HOUVE MUITA DISCUSSÃO sobre onde o manter cativo. Lev considerava-o um risco para a segurança e, como tal, queria mantê-lo sob custódia do Escritório. Shamron, como de costume, tomou a posição contrária, quanto mais não fosse por não querer ver os seus adorados serviços restringidos a gerir prisões. O primeiro-ministro, mesmo que a brincar, sugeriu que Radek fosse forçado a marchar para o Negev, para que os escorpiões e abutres tratassem dele. No fim, acabou por ser Gabriel a tomar a decisão. Segundo ele, para alguém como Radek, a pior punição seria a de ser tratado como um criminoso comum. Procuraram um local apropriado e concordaram em prendê-lo numa prisão policial, construída pelos ingleses durante o Mandato numa zona degradada de Jaffa, ainda hoje conhecida pelo seu nome árabe: Abu Kabir.
Passaram 72 horas para que a apreensão de Radek fosse tornada pública. O comunicado do primeiro-ministro foi conciso e propositadamente enganador. Foram tomadas muitas precauções para evitar embaraçar, sem necessidade, os austríacos. Segundo disse o primeiro-ministro, Radek foi descoberto a viver sob falsa identidade num pais não especificado. E após um período de negociações concordara vir de livre vontade para Israel. Segundo os termos do acordo, ele não seria julgado, uma vez que de acordo com a lei israelense, a única sentença possível seria a condenação à morte. Em vez disso, ele permaneceria constantemente sob a detenção do Estado e iria, de fato, dar-se como culpado dos seus crimes contra a humanidade ao trabalhar com uma equipe de historiadores em Yad Vashem e na Universidade Hebraica, com a finalidade de compilar a história definitiva da Aktion 1005.
Houve pouco rebuliço e muito menos excitação do que com a noticia que acompanhou o rapto de Eichmann. Na realidade, a noticia da captura de Radek foi sobreposta poucas horas depois pelo massacre de vinte e cinco pessoas num mercado de Jerusalém por um homem-bomba. Lev sentiu uma certa satisfação com o desenrolar dos acontecimentos, pois assim demonstrava o seu ponto de vista de que o Estado tinha mais com que se preocupar do que perseguir velhos nazistas. Começou a referir-se ao caso como "a asneira de Shamron", apesar de ele ter recuperado o seu devido nível hierárquico no serviço. Dentro do King Saul Boulevard, a captura de Radek pareceu reacender velhas fogueiras. Lev ajustou a sua postura de acordo com o estado de espirito geral mas era demasiado tarde. Todos sabiam que a prisão de Radek havia sido orquestrada pelo Memuneh e Gabriel e que Lev tinha tentado bloqueada a cada passo. O carisma de Lev junto dos soldados rasos caiu para níveis perigosamente baixos.
A pouco crível tentativa de manter secreta a identidade austríaca de Radek foi desfeita pelo vídeo da sua chegada a Abu Kabir. A imprensa de Vienna identificou rápida e corretamente o prisioneiro como sendo Ludwig Vogel, um empresário austríaco de renome. Teria ele de fato concordado deixar Viena voluntariamente? Ou teria sido, na verdade, raptado da sua residência fortificada no Primeiro Bairro? Nos dias que se seguiram, os jornais faziam alusões especulativas à sua misteriosa carreira e às suas ligações politicas. As investigações da imprensa aproximaram-se perigosamente de Peter Metzler. Renate Hoffman da Coligação para uma Áustria Melhor solicitou um inquérito oficial ao caso e sugeriu que Radek poderia ter ligações ao atentado a bomba ao Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra e à misteriosa morte de um judeu idoso chamado Max Klein. As suas exigências foram categoricamente ignoradas. O governo disse que o atentado fora obra de terroristas islâmicos. E quanto à infeliz morte de Max Klein, fora suicídio. Segundo o ministro da Justiça qualquer investigação complementar seria um desperdício de tempo.
O capítulo seguinte do caso Radek teria lugar, não em Viena, mas em Paris, onde um ex-agente do KGB com aspecto duvidoso surgiu na televisão francesa dizendo que Radek era o homem de Moscovo em Viena. Um antigo chefe de espionagem da Stasi, que se havia tornado um êxito literário na nova Alemanha, veio também reconhecer Radek.
De início, Shamron suspeitou que estas reivindicações faziam parte de uma campanha conjunta de desinformação com o fim de ilibar a CIA do vírus Radek: que era exatamente o que ele teria feito se os papéis estivessem invertidos. Depois, descobriu que, no interior da Agência, as sugestões de que Radek podia ter jogado para ambos os lados criaram algum pânico. Estavam a ser retirados arquivos dos arquivos mortos e a ser reunida à pressa uma equipe soviética de ajuda com elementos veteranos. Shamron divertia-se secretamente com a ansiedade dos seus colegas de Langley. Segundo Shamron, se se viesse a descobrir que Radek era um agente duplo seria muito justo. Adrian Carter solicitou autorização para interrogar Radek mal os historiadores tivessem terminado o seu trabalho. Shamron prometeu considerar o assunto com seriedade. O PRISIONEIRO DE Abu Kabir estava bastante alheio à tempestade criada à sua volta. A sua prisão era solitária, apesar de não ser demasiado árdua. Mantinha a cela e as roupas limpas, aceitava comida e pouco reclamava. Por muito que os guardas quisessem odiá-lo, não conseguiam. No fundo ele era um polícia e os seus carcereiros pareciam ver nele algo familiar. Tratava-os com cortesia e, como reação, era tratado com cortesia. Ele era, também, uma espécie de curiosidade. Eles haviam lido sobre homens como ele na escola e passavam à frente da sua cela a qualquer hora, apenas para o ver. Radek começou aos poucos a sentir-se como se fosse uma peça de exposição de um museu.
O seu único pedido foi o de lhe ser autorizado o acesso a um jornal todos os dias para se manter a par dos assuntos da atualidade. A questão foi levada até Shamron, que deu a sua autorização, desde que fosse um jornal israelense e não uma qualquer publicação alemã. Todas as manhãs o Jerusalém Post era-lhe entregue com a travessa do pequeno-almoço. Normalmente saltava as histórias sobre si mesmo — eram, aliás, muito incorretas — e dirigia-se diretamente à seção das notícias internacionais com a finalidade de acompanhar os desenvolvimentos das eleições austríacas.
Moshe Rivlin visitou Radek várias vezes para se preparar para o seu iminente depoimento. Foi decidido que as sessões seriam filmadas e transmitidas à noite na televisão israelense. Radek parecia estar cada vez mais agitado com a aproximação do dia da sua primeira aparição em público. Discretamente, Rivlin pediu ao chefe da prisão para manter o prisioneiro sob vigilância de suicídio. Foi plantado um guarda no corredor, junto às barras da cela de Radek. Ao princípio, Radek criou atritos com a vigilância adicional, mas passou rapidamente a apreciar a companhia.
Rivlin surgiu uma última vez na véspera da primeira sessão de depoimento de Radek. Passaram uma hora juntos; Radek estava preocupado e, pela primeira vez, nada cooperante. Rivlin arrumou os seus documentos e notas e pediu ao guarda para abrir a porta.
— Quero vê-lo — disse Radek de repente. — Pergunte se me daria a honra de me fazer uma visita. Diga-lhe que há algumas perguntas que eu quero fazer.
— Não posso prometer nada — disse Rivlin. — Não tenho ligações a...
— Pergunte, apenas — disse Radek. — O máximo que ele pode fazer é dizer não.
SHAMRON OBRIGOU Gabriel a permanecer em Israel até o primeiro dia de depoimento de Radek e Gabriel, apesar de estar ansioso por voltar a Veneza, aceitou relutante. Ele ficou no apartamento seguro perto das Portas de Zion e acordava todas as manhãs ao som dos sinos da igreja do bairro armênio. Sentava-se na sombra do terraço olhando as muralhas da Cidade Velha e desfrutava o seu tempo com café e jornais. Seguia de perto o caso Radek. Ficou contente por ver o nome de Shamron ligado à captura e não o seu. Gabriel vivia no estrangeiro, sob uma identidade falsa e não precisava que o seu verdadeiro nome fosse espalhado pela imprensa. Além disso, depois de tudo o que Shamron tinha feito pelo seu país, merecia um último dia de glória.
Conforme os dias passavam, lentamente, Gabriel percebeu que Radek parecia, cada vez mais, um estranho. Apesar de abençoado com uma memória quase fotográfica,
Gabriel lutava por se lembrar claramente da cara de Radek ou do som da sua voz. Treblinka parecia algo saído de um pesadelo. Perguntou-se se a sua mãe teria sentido o mesmo. Teria Radek permanecido nas divisões da sua memória como um convidado indesejado, ou teria ela forçado a sua memória para produzir a sua imagem na tela? Teria sido assim para todos os que se tinham cruzado com um Mal tão perfeito? Talvez assim se explicasse o silêncio que tinha dominado os sobreviventes. Talvez eles tivessem sido piedosamente libertados da dor das suas memórias, como meio de autopreservação. Uma ideia regressava-lhe constantemente ao pensamento: se, naquele dia na Polônia, Radek tivesse morto a sua mãe em vez das outras duas moças, ele nunca teria existido. Também ele começou a sentir a culpa dos sobreviventes.
Ele só tinha a certeza de uma coisa: ainda não estava pronto para esquecer. Assim, ficou contente quando um dos acólitos de Lev lhe ligou uma tarde a perguntar se ele estaria disposto a escrever uma história oficial do caso. Gabriel aceitou, desde que ele pudesse também criar uma versão não censurada dos acontecimentos, para ser guardada nos arquivos de Yad Vashem. Houve ainda alguma discussão sobre quando tal documento poderia ser tornado público. Foi então definida uma data de lançamento, quarenta anos, e Gabriel começou o trabalho.
Ele escreveu na mesa da cozinha, num computador portátil fornecido pelo Escritório. Todas as noites, trancava o computador num cofre de chão, escondido sob o sofá da sala de estar. Não tinha qualquer experiência de escrita, por isso, por instinto, fez a aproximação ao projecto como se de uma pintura se tratasse. Começou com um esboço de base, amplo e amorfo e então, lentamente, foi adicionando camadas de tinta. Usou uma paleta simples e a sua técnica de traço foi cuidada. com o passar dos dias, a cara de Radek voltou-lhe à memória com a clareza com que havia sido pintada pela mão da sua mãe.
Usualmente, trabalhava até o princípio da tarde. Depois fazia uma pausa e dava um passeio até o Hospital da Universidade de Hadassah, onde, após um mês de coma, Eli Lavon estava a mostrar sinais de querer regressar à consciência. Gabriel sentava-se junto de Lavon cerca de uma hora e falava-lhe do caso. Depois voltava ao apartamento e trabalhava até a noite.
No dia em que terminou o relatório, deixou-se ficar no Hospital até o princípio da noite e, por acaso, estava lá quando os olhos de Lavon se abriram. Lavon ficou a fixar o vazio por uns instantes; então a velha expressão inquisidora voltou-lhe ao olhar e divagou pelo ambiente desconhecido da sala do hospital até se fixar no rosto de Gabriel.
— Onde estamos? Viena?
— Jerusalém.
— O que é que estás aqui a fazer?
— Estou a trabalhar num relatório para o Escritório.
— Sobre o quê?
— Sobre a captura de um criminoso de guerra nazista chamado Erich Radek.
— Radek?
— Ele estava a viver em Viena sob o nome de Ludwig Vogel. Lavon sorriu.
— Conta-me tudo — murmurou, mas antes que Gabriel pudesse dizer uma palavra, ele já tinha adormecido outra vez.
Nessa noite, quando Gabriel voltou ao apartamento, a luz do atendedor de chamadas estava a piscar. Carregou no PLAY e a ouviu a voz de Moshe Rivlin.
— O prisioneiro de Abu Kabir quer falar com você. Eu mandava-o para o Inferno. Você é que sabe.
40
JAFFA, ISRAEL
O CENTRO DE DETENÇÕES era cercado por um alto muro cor de areia, com rolos de arame farpado no topo. Gabriel apresentou-se na entrada exterior no inicio da manhã seguinte e foi admitido sem demora. Para chegar ao interior, tinha de atravessar uma passagem vedada estreita, que lhe lembrava demasiado a Estrada para o Paraiso em Treblinka. Um guarda esperava-o na outra ponta. Silenciosamente, conduziu Gabriel pela porta de segurança e depois para uma sala de interrogatórios sem janelas, com paredes em blocos de betume. Radek estava sentado à mesa, imóvel, vestido com um terno escuro e gravata, para prestar depoimento. Estava algemado com os dedos cruzados sobre a mesa. Saudou Gabriel com um aceno de cabeça quase imperceptível, mas permaneceu sentado.
— Tire-lhe as algemas — disse Gabriel ao guarda.
— É contra as regras.
Gabriel olhou para o guarda e, pouco depois, as algemas tinham sido tiradas.
— Faz isso muito bem — disse Radek. — Isso foi mais uma artimanha psicológica sua? Está tentando demonstrar seu domínio sobre mim?
Gabriel puxou a cadeira de ferro e sentou-se.
— Não me parece que dadas as circunstâncias seja necessária uma demonstração dessas.
— Suponho que esteja certo — disse Radek. — Mesmo assim, admiro a forma como lidou com todo o caso. Eu gostaria de acreditar que teria feito as coisas assim tão bem.
— Para quem? — perguntou Gabriel. — Para os americanos, ou para os russos?
— Está se referindo às alegações feitas em Paris por aquele idiota do Belov?
— São verdadeiras?
Radek fitou Gabriel em silêncio e por breves segundos parte do velho olhar de aço regressou-lhe aos olhos azuis.
— Quando alguém esteve em jogo tanto tempo como eu estive, faz tantas alianças e envolve-se em tantas mentiras, que no fim é difícil saber onde é que a verdade e a mentira se separam.
— Belov parece ter certeza de que sabe a verdade.
— Sim, mas receio que seja apenas a certeza de um tolo. Sabe, é que Belov não estava em posição de saber a verdade. — Radek mudou de assunto. — Presumo que tenha visto os jornais desta manhã?
Gabriel acenou que sim.
— A margem de vitória dele foi maior que a esperada. Aparentemente, minha prisão teve algo a ver com isso. Os austríacos nunca gostaram de ver estranhos se metendo em seus assuntos.
— Não está se vangloriando, está?
— Claro que não — disse Radek. — Estou apenas com pena de não ter negociado com mais dureza em Treblinka. Talvez não devesse ter aceite tão facilmente. Não tenho tanta certeza de que a campanha do Peter pudesse ter descarrilhado com as revelações do meu passado.
— Há coisas que são politicamente incômodas, mesmo num pais como a Áustria
— Você nos subestima, Allon.
Gabriel deixou cair algum silêncio entre eles. Já estava a começar a arrepender-se da decisão de ter vindo.
— Moshe Rivlin disse que queria me ver — disse com desprezo. — Não tenho muito tempo.
Radek endireitou-se na cadeira.
— Estava pensando se poderia me fazer a cortesia profissional de responder a algumas perguntas.
— Isso depende das perguntas. Você e eu estamos em profissões diferentes, Radek.
— Sim — disse Radek. — Eu era um agente do serviço secreto americano e você é um assassino.
Gabriel levantou-se para ir embora. Radek levantou a mão.
— Espere — disse. — Sente-se. Por favor.
Gabriel voltou a sentar-se.
— O homem que ligou para minha casa na noite do sequestro...
— Quer dizer, de sua prisão?
Radek baixou a cabeça.
— Está bem, minha prisão. Presumo que era um impostor?
Gabriel acenou que sim.
— Ele era muito bom. Como ele conseguiu imitar Kruz tão bem?
— Não espera que eu responda a isso, Radek. — Gabriel olhou para o relógio. — Espero que não me tenha feito vir até Jaffa só para me fazeres uma pergunta.
— Não — disse Radek. — Há mais uma coisa que eu gostaria de saber. Quando estávamos em Treblinka, disse que eu tinha tomado parte na evacuação de prisioneiros de Birkenau.
Gabriel interrompeu-o. — Será que podemos deixar os eufemismos de vez, Radek? Não foi uma evacuação. Foi uma marcha da morte.
Radek manteve-se em silêncio por um momento.
— Disse também que eu tinha assassinado pessoalmente alguns prisioneiros.
— Eu sei que assassinou pelo menos duas moças — disse Gabriel. — Tenho certeza de que deve ter havido mais.
Radek fechou os olhos e acenou lentamente com a cabeça que sim.
— Houve mais — disse, distante. — Muitos mais. Lembro-me desse dia como se tivesse sido na semana passada. Eu já sabia há algum tempo que o fim estava próximo, mas ver aquela coluna de prisioneiros marchando em direção ao Reich... Foi quando eu soube que era o Götterdämmerung. Era, realmente, o Crepúsculo dos Deuses.
— E então começou a matá-los?
Ele acenou de novo.
— Eles tinham me confiado a missão de guardar seu terrível segredo e estavam deixando vários milhares de testemunhas saírem vivas de Birkenau. Deve imaginar como eu me senti.
— Não — disse Gabriel com honestidade. — Nem consigo começar a imaginar como deve ter se sentido.
— Houve uma moça — disse Radek. — Lembro-me de ter perguntado o que ela diria aos filhos sobre a guerra. Ela disse que lhes diria a verdade. Ordenei que mentisse. Ela se recusou. Matei duas outras moças e, mesmo assim, ela continuava a me desafiar. Por algum motivo, deixei-a ir. Parei de matar prisioneiros depois disso. Ao olhá-la nos olhos, percebi que não valia a pena.
Gabriel baixou os olhos e fixou as mãos para evitar morder a isca de Radek.
— Presumo que esta mulher seja sua testemunha? — perguntou Radek.
— Sim, é ela.
— É engraçado — disse Radek — mas ela tem seus olhos.
Gabriel levantou o olhar. Hesitou e depois disse: — É o que me dizem.
— É sua mãe?
Mais uma hesitação, depois a verdade.
— Diria que sinto muito — disse Radek. — Mas sei que as minhas desculpas não significam nada para você.
— Tem razão — disse Gabriel. — Não diga.
— Então foi por ela que fez isso?
— Não — disse Gabriel. — Foi por todos eles.
A porta se abriu. O guarda entrou e disse que estava na hora de seguir para Yad Vashem. Radek levantou-se devagar e esticou as mãos. Os seus olhos permaneceram firmes no rosto de Gabriel enquanto as algemas eram colocadas nos seus pulsos. Gabriel acompanhou-o até a entrada e ficou a vê-lo dirigir-se pela passagem, até a parte de trás de uma van que o esperava. Já tinha visto o suficiente. Agora só queria esquecer.
APÓS DEIXAR ABU KABIR, Gabriel foi até Safed para visitar Tziona. Almoçaram num pequeno restaurante de espetadas no Bairro dos Artistas. Ela tentou conversar com ele sobre o caso Radek, mas Gabriel, afastado da presença do assassino há apenas duas horas, não estava com disposição para discuti-lo ainda mais. Obrigou Tziona a jurar segredo quanto ao envolvimento dele no caso e depois mudou de assunto de repente.
Discutiram arte durante algum tempo, depois política e finalmente o estado da vida de Gabriel. Tziona tinha conhecimento de um apartamento vazio a apenas alguns quarteirões do dela. Era grande o suficiente para albergar um Estúdio e era abençoado com a melhor iluminação da Galileia de Cima. Gabriel prometeu pensar no assunto, mas Tziona sabia que ele estava apenas a apaziguá-la. O desconforto havia voltado aos seus olhos. Ele estava pronto para partir.
Enquanto bebiam o café, ele disse-lhe que tinha encontrado um lugar para algum do trabalho da sua mãe.
— Onde?
— O Museu da Arte do Holocausto em Yad Vashem. Os olhos de Tziona inundaram-se de lágrimas.
— Que perfeito — disse ela.
Depois do almoço subiram as escadas de pedra até o apartamento de Tziona. Ela abriu o armário e cuidadosamente retirou os quadros. Passaram uma hora a escolher vinte das melhores peças para Yad Vashem. Tziona encontrou outras duas telas mostrando a imagem de Erich Radek. Perguntou a Gabriel o que queria que ela fizesse com elas.
— Queima-as — respondeu ele.
— Mas, provavelmente, valem muito dinheiro agora.
— Não me interessa o quanto valem — disse Gabriel. — Eu nunca mais quero ver a cara dele.
Tziona ajudou-o a transportar os quadros para o carro dele. Arrancou para Jerusalém sob um céu carregado de nuvens. Dirigiu-se primeiro a Yad Vashem. O conservador recebeu os quadros e apressou-se para ir assistir ao início do depoimento de Erich Radek. como o resto do país. Gabriel conduziu pelas ruas silenciosas até o Monte das Oliveiras. Pôs uma pedra na campa da sua mãe e recitou-lhe as palavras de luto Kaddish. Fez o mesmo na campa do seu pai. Depois, dirigiu-se para o aeroporto e apanhou o voo da tarde para Roma.
41
VENEZA * VIENA
NA MANHÃ SEGUINTE, na sestière de Cannaregio, Francesco Tiepolo entrou na Igreja de San Giovanni Crisóstomo e atravessou lentamente a nave. olhou para a Capela de Saint Jerome e viu luzes acesas por detrás da lona que cobre a plataforma de trabalho. Aproximou-se lentamente, agarrou no andaime com a sua mão, grande como a pata de um urso, e abanou-o violentamente. O restaurador levantou a sua viseira de lupa e fitou-o como um gárgula.
— Bem-vindo a casa, Mário — disse Tiepolo para cirna. — Estava a começar a ficar preocupado com você. Por onde andaste?
O restaurador baixou a viseira e virou o seu olhar de volta para o Bellini.
— Tenho andado a recolher centelhas, Francesco.
A recolher centelhas. Tiepolo tinha o bom senso suficiente para não fazer mais perguntas. Apenas lhe interessava ter o restaurador finalmente de volta a Veneza. — Quanto tempo até terminares?
— Três meses — disse o restaurador. — Talvez quatro.
— Três seria melhor.
— Sim, Francesco. Eu sei que três meses seria melhor. Mas se continuas a abanar a minha plataforma, nunca mais vou acabar.
— Não estás a planejar fazer mais recados, ou estás, Mário?
— Só um — disse, com o pincel pousado em frente da tela. — Mas não vou demorar. Prometo.
— Isso é o que dizes sempre.
A ENCOMENDA CHEGOU por um estafeta motorizado à Relojoaria, no Primeiro Bairro de Viena, exatamente três semanas depois. O Relojoeiro recebeu a encomenda pessoalmente. Deixou sua assinatura nos papéis do correio e deu-lhe uma pequena gorjeta pelo incômodo. Depois, levou o embrulho para a oficina e colocou-o sobre a mesa.
O estafeta montou em sua moto e afastou-se rapidamente, reduzindo por instantes no fim da rua, apenas o suficiente para fazer sinal à mulher sentada ao volante do Renault sedã. A mulher teclou um número no celular e apertou SEND. Pouco depois, o Relojoeiro respondeu.
— Acabei de lhe enviar um relógio — disse ela. — Recebeu-o?
— Quem fala?
— Sou uma amiga de Max Klein — disse ela baixinho. — E de Eli Lavon. E de Reveka Gazit. E de Sarah Greenberg.
Ela baixou o telefone e pressionou rapidamente quatro números seguidos, virando em seguida a cabeça a tempo de ver a brilhante bola de fogo vermelha emergindo da fachada da loja do Relojoeiro.
Afastou-se da calçada, mãos trêmulas no volante e dirigiu para a Ringstrasse. Gabriel tinha abandonado sua moto e esperava-a na esquina. Ela parou o carro o tempo suficiente para ele entrar, depois virou para a larga avenida e desapareceu no trânsito da tarde. Um carro da Staatspolizei passou por eles a alta velocidade na direção contrária. Chiara manteve os olhos na estrada.
— Você está bem?
— Acho que vou vomitar.
— Sim, eu sei. Quer que eu dirija?
— Não, eu consigo.
— Devia ter me deixado enviar o sinal da detonação.
— Não queria que se sentisse responsável por mais uma morte em Viena. — Ela limpou uma lágrima da face. — Pensou neles quando ouviu a explosão? Pensou em Leah e Dani?
Ele hesitou, depois abanou a cabeça.
— Pensou em quê?
Ele chegou-se a ela e limpou-lhe outra lágrima.
— Em você, Chiara — disse ele, suavemente. — Pensei apenas em você.
NOTA DO AUTOR
Morte em Viena completa um ciclo de três romances sobrem os assuntos inacabados do Holocausto. A pilhagem de arte pelos nazistas e a colaboração de bancos suíços servem de pano de fundo para O Assassino Inglês. O papel da Igreja Católica no Holocausto e o silêncio do Papa Pio XII inspiraram O Confessor. Morte em Viena, como os seus predecessores, é vagamente baseada em fatos reais. Heinrich Gross foi de fato um médico na notória clínica de Spiegelgrund durante a guerra, e a descrição da pouco empenhada tentativa austríaca de o julgar em 2000 é inteiramente exata. Nesse mesmo ano, a Áustria foi abanada por alegações afirmando que agentes da polícia e dos serviços de segurança trabalhavam para Jörg Haider e o seu Partido da Liberdade de extrema-direita para ajudar a desacreditar críticos e oponentes políticos.
Aktion 1005 foi o verdadeiro nome de código do programa nazista para ocultar as provas do Holocausto e destruir os restos mortais de milhões de judeus. O líder da operação, um austríaco chamado Paul Blobel, foi condenado em Nuremberg pelo seu papel nos assassinatos em massa dos Einsatzgruppen e condenado à morte. Enforcou-se na prisão de Landsberg em Junho de 1951, nunca foi detalhadamente questionado sobre o seu papel como comandante da Aktion 1005.
O bispo Alois Hudal foi de fato o reitor do Pontifício Santa Maria dell'Anima e ajudou centenas de criminosos de guerra nazistas a fugir da Europa, incluindo o comandante de Treblinka, Franz Stangl. O Vaticano afirma que o bispo Hudal agia sem a aprovação ou o conhecimento do Papa ou outro agente sênior da Cúria.
A Argentina, claro, foi o destino final de milhares de criminosos de guerra procurados. É possível que um pequeno número ainda lá resida nos dias de hoje. Em 1994, o antigo oficial das SS, Erich Priebke, foi descoberto a viver livremente em Bariloche por uma equipe de reportagem da ABC. Evidentemente Priebke sentia-se tão seguro em Bariloche que, em entrevista ao correspondente da ABC, Sam Donaldson, admitiu de livre vontade o seu papel central no massacre das Grutas Ardeatinas em março de 1944. Priebke foi extraditado para Itália, julgado e condenado a prisão perpétua, embora lhe tenha sido permitido cumprir a pena em "prisão domiciliária". Durante vários anos de manobras legais e apelos, a Igreja Católica permitiu a Priebke viver num mosteiro nas imediações de Roma.
Olga Lengyel, no seu testemunho 1947, memória de uma sobrevivente em Auschwitz, escreveu: "Certamente todos aqueles cujas mãos estiveram direta, ou Indiretamente manchadas com o nosso sangue devem pagar pelos seus crimes. Menos do que isso seria um ultraje contra milhões de mortes inocentes." O seu apaixonado apelo por justiça, no entanto, passou largamente despercebido. Apenas uma minúscula percentagem daqueles que levaram a cabo a Solução Final ou tiveram um papel auxiliar ou colaboracionista enfrentaram punição pelos seus crimes. Dezenas de milhar encontraram santuário em terras estrangeiras, incluindo nos Estados Unidos; outros regressaram simplesmente a casa e prosseguiram com as suas vidas. Alguns arranjaram emprego na rede de serviços secretos do General Reinhard Gehlen patrocinada pela CIA. Que impacto tiveram homens como estes na conduta da política de relações internacionais da América durante a Guerra-Fria? A resposta talvez nunca seja inteiramente conhecida.
30
VIENA
MEIA-NOITE NO Primeiro Bairro, uma calma de morte, um silêncio que só Viena consegue produzir, um majestoso vazio. Kruz achava reconfortante. Mas o sentimento não durou muito. Era raro o velho telefonar-lhe para casa, e Kruz nunca tinha sido arrastado da cama a meio da noite para uma reunião. Duvidava que as noticias fossem boas.
Olhou para o fundo da rua e não viu nada fora do normal. Uma olhadela para o retrovisor confirmou que não tinha sido seguido. Saiu e caminhou até o portão da imponente casa de pedra do velho. No piso térreo, luzes brilhavam por trás das cortinas fechadas. No segundo piso brilhava uma única luz. Kruz tocou à campainha. Tinha a sensação de estar a ser observado, qualquer coisa imperceptível, como um bafo na nuca. Olhou por cima do ombro. Nada.
Alcançou novamente a campainha, mas antes que a pudesse pressionar, um zumbido soou e a barra da fechadura saltou para trás. Empurrou o portão e atravessou o pátio frontal. Quando chegou ao pórtico, viu a porta aberta e um homem de paletó aberto e gravata solta. Não se esforçava minimamente para esconder o coldre de couro preto que continha uma pistola Glock. Kruz não estava alarmado com a visão; ele conhecia bem o homem. Era um antigo agente da Staatspolizei chamado Klaus Halder. Tinha sido Kruz a contratá-lo para guarda-costas do velho. Halder acompanhava normalmente o velho quando este saia ou quando esperava visitas em casa. A sua presença à meia-noite não era, como o telefonema para a casa de Kruz, um bom sinal.
— Onde está ele?
Halder olhou para o chão sem dizer uma palavra. Kruz desapertou a gabardina e entrou no estúdio do velho. A parede falsa estava afastada para o lado. O pequeno elevador estilo cápsula estava à espera. Entrou e o pressionar de um botão enviou-o lentamente para baixo. As portas abriram alguns segundos mais tarde, revelando uma pequena câmara subterrânea decorada com o dourado dos gostos barrocos do velho. Os americanos tinham-na construído para ele, para que conduzisse reuniões importantes sem medo que os russos pudessem estar à escuta. Construíram também a passagem, aquela alcançável através de uma porta de aço inoxidável com uma fechadura de combinação. Kruz era uma das poucas pessoas em Viena que sabia para onde a passagem conduzia e quem tinha vivido na casa do outro lado.
O velho estava sentado numa pequena mesa, uma bebida à sua frente. Kruz percebeu que ele estava inquieto, porque estava a girar o copo, duas voltas para a direita, duas para a esquerda. Direita, direita, esquerda, esquerda. Um estranho hábito, pensou Kruz. Ameaçador como o diabo. Calculou que o velho o tivesse apanhado numa vida anterior, noutro mundo. Uma imagem formou-se na mente de Kruz: um comissário russo acorrentado a uma mesa de interrogatório, o velho sentado do outro lado, vestido de preto dos pés à cabeça, girando a sua bebida e olhando para a sua presa com aqueles olhos azuis insondáveis. Kruz sentiu o seu coração dar um solavanco. Os pobres coitados estavam provavelmente cagados de medo mesmo antes de as coisas se tornarem duras.
O velho levantou o olhar, o girar do copo parou. O seu olhar calmo fixou a camisa de Kruz. Kruz olhou para baixo e viu que tinha os botões desalinhados. Tinha-se vestido no escuro para não acordar a mulher. O velho apontou para uma cadeira vazia. Kruz arranjou a camisa e sentou-se. O girar do copo recomeçou, duas voltas para a direita, duas para a esquerda. Direita, direita, esquerda, esquerda.
Falou sem saudar ou sem introdução. Era como se estivessem a continuar uma conversa interrompida por alguém que bate à porta.
— Durante as passadas setenta e duas horas — disse o velho foram planejados dois atentados contra a vida do israelense, o primeiro em Roma, o segundo na Argentina. Infelizmente o israelense sobreviveu a ambos. Em Roma, foi aparentemente salvo pela intervenção de um colega dos serviços secretos israelenses. Na Argentina, as coisas foram mais complicadas. Há provas que sugerem o envolvimento dos americanos.
Kruz, naturalmente, tinha perguntas. Em circunstâncias normais teria segurado a língua e esperado que o velho terminasse. Agora, trinta minutos depois de ter sido retirado da cama, não mostrou nenhuma da sua normal paciência.
— O que estava o israelense a fazer na Argentina?
O rosto do velho pareceu gelar, e a sua mão ficou imóvel. Kruz tinha transposto a linha, a linha que separava o que ele sabia do passado do velho daquilo que jamais saberia. Sentiu o peito encolher debaixo da pressão do olhar fixo. Não era todos os dias que se conseguia enfurecer um homem capaz de orquestrar, em setenta e duas horas e em continentes diferentes, duas tentativas de homicídio.
— Não é necessário que saibas por que razão o israelense esteve na Argentina, ou mesmo que lá tenha estado. O que precisas de saber é que este assunto deu uma reviravolta perigosa.
O girar do copo voltou.
— Como já acreditavas, os americanos sabem tudo. A minha verdadeira identidade, o que eu fiz durante a guerra. Não havia maneira de o esconder. Éramos aliados. Trabalhamos juntos na grande cruzada contra os comunistas. No passado, sempre contei com a sua discrição, não por algum sentido de lealdade para comigo, mas por simples medo de embaraço. Eu não tenho ilusões, Manfred. Sou como uma prostituta para eles. Viraram-se para mim quando estavam sozinhos e necessitados, mas agora que a guerra-fria acabou, sou como uma mulher que eles preferiam esquecer. E se agora estão de alguma forma a cooperar com os israelenses... — deixou a frase por terminar. — Estás a ver o que quero dizer, Manfred?
Kruz acenou.
— Presumo que saibam sobre Peter?
— Eles sabem tudo. Eles têm o poder de me destruir, e ao meu filho, mas apenas se estiverem dispostos a suportar a dor de uma ferida auto-infligida. Eu costumava estar seguro de que eles nunca se virariam contra mim. Agora, já não tenho certeza.
— O que queres que eu faça?
— Mantém sob vigilância constante as embaixadas israelense e americana. Designa vigilância física a todo o pessoal dos serviços secretos. Controla os aeroportos e estações de trem. Contata, também, os teus informadores nos jornais. Eles podem recorrer à imprensa. Não quero ser apanhado desprevenido.
Kruz olhou para a mesa e viu o seu próprio reflexo na superfície polida.
— E quando o ministro me perguntar por que dedico tantos recursos aos americanos e aos israelenses? O que digo?
— Preciso lembrar o que está em jogo, Manfred? O que dirá ao ministro é problema seu. Apenas faça o que digo. Não vou deixar Peter perder estas eleições. Entendeu?
Kruz olhou para os impiedosos olhos azuis e viu mais uma vez o homem vestido de preto dos pés à cabeça. Fechou os olhos e concordou com um movimento de cabeça.
O velho levou o copo aos lábios e, antes de beber, sorriu. Era tão agradável como uma súbita racha numa placa de vidro. Alcançou o bolso de peito do casaco, exibiu um pedaço de papel, e lançou-o sobre o tampo da mesa. Kruz olhou para ele enquanto deslizava, em seguida levantou o olhar.
— O que é isto?
— É um número de telefone. Kruz não tocou no papel.
— Um número de telefone?
— Nunca se sabe o que pode resultar de uma situação destas. Poderá ser necessário recorrer à violência. É possível que eu possa não estar em condições de ordenar tais medidas. Nesse caso, Manfred, a responsabilidade cai sobre ti.
Kruz pegou no pedaço de papel e levantou-o entre os seus dois dedos indicadores.
— Se ligar para este número, quem vai atender?
O velho sorriu.
— A violência.
31
ZURIQUE
HERR CHRISTIAN ZIGERLI, coordenador de eventos especiais do Dolder Grand Hotel, era como o próprio hotel: digno e pomposo, resoluto e discreto, um homem que apreciava o seu lugar de destaque na vida porque lhe permitia olhar para os outros de cima. Era também um homem que não gostava de surpresas. Normalmente, exigia setenta e duas horas de aviso prévio para reservas especiais e conferências, mas quando a Heller Enterprises e a Systech Wireless manifestaram vontade de conduzir as negociações finais da fusão no Dolder, Herr Zigerli concordou abdicar das setenta e duas horas de previsão em troca de uma sobretaxa de quinze por cento. Ele podia ser atencioso quando queria, mas ser atencioso, como todo o resto no Dolder, tinha um preço exorbitante.
A Heller Enterprises era a licitante por isso cabia-lhe tratar das reservas: não o próprio velho Rudolf Heller, claro, mas uma vistosa assistente pessoal italiana de nome Elena. Herr Zigerli tinha tendência a formar uma ideia sobre as pessoas rapidamente. Ele dizia que qualquer outro hoteleiro que fosse bom faria o mesmo. Não gostava de italianos de uma maneira geral, e a agressiva e exigente Elena rapidamente ganhou um lugar de destaque na sua lista de clientes pouco considerados. Ela falava alto ao telefone, um crime capital segundo ele, e parecia acreditar que só por gastar grandes quantidades de dinheiro do seu patrão tinha direito a privilégios especiais. Ela parecia conhecer bem o hotel. Fato estranho, já que Herr Zigerli tinha memória de elefante e não se lembrava dela como hóspede no Dolder. As suas exigências eram minunciosamente especificas. Queria quatro suítes contiguas perto do terraço com vista para o campo de golfe e para o lago. Quando Zigerli a informou que não seria possível — duas mais duas, ou três mais uma, mas não quatro seguidas — perguntou se os hóspedes podiam ser recolocados para a acomodar. Lamento, disse o hoteleiro, mas o Dolder Grand não tem o hábito de transformar hóspedes em refugiados. Ela decidiu optar por três suítes contiguas a uma quarta mais ao fundo do corredor.
— As delegações vão chegar às duas da tarde de amanhã — disse ela. — E gostariam de um almoço de trabalho leve.
Seguiram-se mais dez minutos de discussão sobre o que constituía um "almoço de trabalho leve".
Quando o menu ficou completo, Elena atirou mais uma exigência. Ela chegaria quatro horas antes das delegações, acompanhada pelo chefe de segurança da Heller, para inspecionar os quartos. Assim que as inspeções estivessem terminadas, não seria permitida a entrada de pessoal do hotel, exceto se acompanhados pela segurança da Heller. Herr Zigerli suspirou profundamente e concordou, em seguida desligou o telefone e, com a porta do seu gabinete fechada e trancada, fez uma série de exercícios de respiração para acalmar os nervos.
A manhã das negociações amanheceu cinza e fria. Os torreões majestosos do Dolder furavam o cobertor de nevoeiro gelado, e o asfalto perfeito da entrada brilhava como granito preto polido. Herr Zigerli estava de guarda no lobby, mesmo por trás das reluzentes portas de vidro, pés à largura dos ombros, mãos de lado, preparado para a batalha. Ela vai atrasar-se, pensou. Atrasam-se sempre. Ela vai precisar de mais suites. Ela vai querer mudar o menu. Ela vai ser perfeitamente horrível.
Um Mercedes sedã preto deslizou até a entrada e parou à porta. Herr Zigerli olhou discretamente para o relógio de pulso. Precisamente dez horas. Impressionante. O paquete abriu a porta traseira e uma lustrosa bota preta emergiu — Bruno Magli, reparou Zigerli — seguido por um torneado joelho e coxa. Herr Zigerli balançou para a frente nas pontas dos pés e alisou o cabelo sobre a zona careca. Já tinha visto muitas belas mulheres pairando pela famosa entrada do Dolder Grand, mesmo assim, poucas a tinham passado com mais graça e estilo que a encantadora Elena da Heller Enterprises. Ela tinha o cabelo acastanhado, preso por um gancho na nuca, e pele da cor do mel. Os seus olhos castanhos salpicados de dourado pareciam ter ganho ainda mais brilho quando lhe apertou a mão. A sua voz, tão alta e exigente pelo telefone, era agora suave e arrebatadora, assim como o seu sotaque italiano. Ela largou-lhe a mão e voltou-se para o acompanhante pouco sorridente.
— Herr Zigerli, este é o Oskar. O Oskar é segurança.
Aparentemente, o Oskar não tinha apelido. Nem precisava, pensou Zigerli. Ele tinha a constituição de um lutador de wrestling, com cabelo ruivo claro e sardas vagas espalhadas pelas largas bochechas. Herr Zigerli, um observador treinado da condição humana, viu qualquer coisa de familiar em Oskar. Um colega de tribo, por assim dizer. Ele conseguia imaginá-lo há dois séculos atrás, nas roupas de um lenhador, caminhando pesadamente por um trilho pela Floresta Negra. Como todos os bons seguranças, Oskar deixou os olhos falarem por si, e os seus olhos disseram a Herr Zigerli que ele estava ansioso por começar o trabalho.
— Eu levo-os aos seus quartos — disse o hoteleiro. — Por favor sigam-me. Herr Zigerli decidiu levá-los pela escada em vez do elevador. Era um dos mais finos atributos do Dolder, e Oskar, o lenhador, não parecia ser do tipo que prefere esperar pelos elevadores quando há um lanço de escadas para subir. Os quartos eram no quarto piso. No patamar, Oskar estendeu a mão para receber os cartões eletrônicos.
— A partir daqui é conosco se não se importa. Não é necessário mostrar-nos o interior dos quartos. Já todos estivemos em hotéis antes.
Uma piscadela cúmplice, uma palmadinha no ombro.
— Indique-nos apenas para onde é. Ficamos bem.
De fato, ficarão, pensou Zigerli. Oskar era um homem que inspirava confiança a outros homens. Mulheres também, Zigerli suspeitou. Ponderou se a deliciosa Elena — ele já começava a pensar nela como a sua Elena — seria uma das conquistas de Oskar. Colocou os cartões eletrônicos na palma da mão de Oskar e indicou-lhes o caminho.
Herr Zigerli era um homem de muitas máximas : "Um cliente sossegado é um cliente satisfeito" estava entre as suas preferidas. E a partir daí interpretou o subsequente silêncio no quarto piso como prova que Elena e o seu amigo Oskar estavam satisfeitos com as acomodações. Isto, por sua vez, satisfazia Herr Zigerli. Ele agora gostava de fazer Elena feliz. Conforme foi continuando pelo resto da manhã, ela estava-lhe na cabeça, como o traço de essência que se lhe tinha colado à mão.
Ele encontrou-se ansioso por algum problema, alguma queixa disparatada que requeresse contato com ela. Mas não houve nada, apenas o silêncio da perfeição. Ela tinha o Oskar agora. Ela não tinha necessidade do coordenador de eventos especiais do melhor hotel da Europa. Herr Zigerli, uma vez mais, tinha feito o seu trabalho bem demais.
Não ouviu nada deles, nem os viu, até as duas da tarde quando se reuniram na recepção e formaram uma improvável comissão de boas-vindas para as delegações que chegavam. Havia agora neve a cair no pátio frontal. Zigerli acreditava que o mau tempo apenas realçava o encanto do hotel: um abrigo da tempestade, como a própria Suíça.
A primeira limusina parou na entrada e largou dois passageiros. Um era o próprio Herr Rudolf Heller, um homem baixo e velho, vestindo um dispendioso terno preto e gravata prateada. Os seus óculos ligeiramente fumados sugeriam um problema na visão; o seu passo rápido e impaciente deixava a impressão de que, apesar da idade avançada, ele era um homem capaz de cuidar de si próprio. Herr Zigerli deu-lhe as boas-vindas ao Dolder e apertou-lhe a mão. Parecia feita de pedra. Estava acompanhado pelo carrancudo Herr Keppelmann. Vinte e cinco anos mais novo que Heller, cabelo curto, grisalho nas têmporas, olhos muito verdes. Herr Zigerli já tinha visto uma boa quantidade de guarda-costas no Dolder, e Herr Keppelmann parecia encaixar no perfil. Calmo, mas vigilante, silencioso como um rato de sacristia, seguro no passo e forte. Os olhos cor de esmeralda eram serenos, mas em constante movimento. Herr Zigerli olhou para Elena e reparou que o seu olhar estava fixado em Herr Keppelmann. Talvez ele se tivesse enganado sobre Oskar. Talvez o taciturno Keppelmann fosse o homem mais sortudo do mundo.
Os americanos chegaram a seguir: Brad Cantwell e Shelby Somerset, o CEO e COO da System Communications, Inc., de Reston, Virgínia. Notava-se sofisticação que Zigerli não costumava ver em americanos. Não eram exageradamente amigáveis, nem estavam a bramir para os celulares quando entraram na recepção.
Cantwell falou alemão assim como Herr Zigerli e evitou cruzar o olhar. Somerset era o mais afável dos dois. O seu tom aristocrático, o blazer azul bastante viajado e a gravata às riscas ligeiramente amarrotada identificavam-no como um yuppie Oriental.
Herr Zigerli fez alguns comentários de boas-vindas, e depois recuou calmamente para segundo plano. Era algo que ele fazia excepcionalmente bem. Enquanto Elena conduzia o grupo em direção à escadaria, ele deslizou para seu gabinete e fechou a porta. Um impressionante grupo de homens, pensou. Ele esperava que grandes coisas saíssem deste empreendimento. O seu papel no assunto, embora menor, foi executado com precisão e competência serena. Nos dias de hoje, tais atributos tinham pouco valor, mas eram a moeda do reino miniatura de Herr Zigerli. Ele suspeitava que os homens da Heller Enterprises e System Communications provavelmente sentiam o mesmo.
NO CENTRO DE ZURIQUE, numa rua calma perto do local onde as águas verdes do Rio Limmat desaguam no lago, Konrad Becker estava a encerrar o seu banco privado por aquele dia quando o telefone na sua mesa tocou com suavidade. Tecnicamente, ainda faltavam cinco minutos para a hora de fecho, mas estava tentado a deixar o gravador atender. Backer sabia por experiência que só clientes problemáticos telefonavam tão tarde, e o seu dia já tinha sido difícil o suficiente. Em vez disso, como um bom banqueiro suíço, alcançou o receptor e levou-o à orelha sem pensar.
— Becker and Puhl.
— Konrad, é Shelby Somerset. Como é que estás?
Becker engoliu em seco. Somerset era o nome do americano da CIA: pelo menos, Somerset era como ele dizia que se chamava. Becker duvidava seriamente que fosse o seu nome verdadeiro.
— O que posso fazer por si, senhor Somerset?
— Como entrada podes deixar-te de formalismos, Konrad.
— E como prato principal?
— Podes descer a escada, ir até a Talstrasse e entrar no Mercedes que está lá à tua espera.
— E porque quereria eu fazer isso?
— Eu preciso de te ver.
— Onde é que o Mercedes me vai levar?
— A um sítio agradável, garanto-te.
— E como devo ir vestido?
— Traje executivo serve perfeitamente. E, Konrad?
— Sim, senhor Somerset?
— Não penses em armar-te em difícil. Isto é a sério. Desce a escada. Entra no carro. Estamos de olho em ti. Estamos sempre de olho em ti.
— Que reconfortante, senhor Somerset — disse o banqueiro, mas a ligação já tinha sido cortada.
VINTE MINUTOS MAIS TARDE, Herr Zigerli estava na recepção quando reparou num dos americanos, Shelby Somerset, a caminhar ansioso na parte de fora da entrada. Um momento mais tarde, um Mercedes prateado parou e uma pequena figura careca saiu do banco de trás. Mocassins indianos polidos, uma pasta à prova de choque. Um banqueiro, pensou Zigerli. Apostava o seu ordenado nisso. Somerset fez ao recém-chegado um sorriso amigável e deu uma palmada firme no ombro. O pequeno homem, apesar da calorosa recepção, parecia no entanto estar a caminhar para a sua própria execução. Mesmo assim, Herr Zigerli achou que as conversações estavam a correr bem. O homem do dinheiro tinha chegado.
— BOA TARDE, HERR BECKER. É um prazer vê-lo. Eu sou Heller. Rudolf Heller. Este é o meu sócio, senhor Keppelmann. Aquele homem ali é o nosso parceiro americano, Brad Cantwell. É obvio que você e o senhor Somerset já se conhecem. O banqueiro piscou os olhos várias vezes e depois fixou o seu pequeno olhar astuto em Shamron, como se estivesse a tentar calcular o seu valor liquido. Segurou a pasta sobre os genitais, em antecipação de um ataque iminente.
— Os meus associados e eu estamos prestes a embarcar numa joint-venture. O problema é que não conseguimos fazê-lo sem a sua ajuda. É isso que fazem os banqueiros, não é, Herr Becker? Ajudam a lançar grandes empreendimentos? Ajudam as pessoas a realizar os seus sonhos e o seu potencial?
— Depende do empreendimento, Herr Heller.
— Estou a ver — disse Shamron, sorrindo. — Por exemplo, há muitos anos atrás, um grupo de homens foi ver você. Alemães e austríacos. Queriam lançar um grande empreendimento também. Confiaram-lhe uma grande soma de dinheiro e deram-lhe o poder de transformar numa soma ainda maior. Você se saiu extraordinariamente bem. Transformou-a numa montanha de dinheiro. Presumo que se lembre desses cavalheiros? Presumo que também saiba onde conseguiram o dinheiro?
O olhar do banqueiro suíço endureceu. Tinha concluído o cálculo sobre o valor líquido de Shamron.
— É israelense, não é?
— Prefiro pensar em mim mesmo como um cidadão do mundo — respondeu Shamron. — Moro em muitos lugares, falo a língua de muitas terras. A minha lealdade, como os meus interesses financeiros, não tem fronteiras nacionais. Como suíço tenho certeza que consegue entender o meu ponto de vista.
— Eu entendo — disse Becker — mas não acredito numa palavra do que diz.
— E se eu fosse de Israel? — perguntou Shamron. — Isso teria algum impacto na sua decisão?
— Teria.
— Como?
— Não me interessam os israelenses — disse Becker prontamente. — E os judeus também.
— Lamento ouvir isso, Herr Becker, mas um homem tem direito a sua opinião, e não vou discutir isso. Nunca deixo politicagem meter-se no caminho dos negócios. Preciso de ajuda para o meu empreendimento, e você é a única pessoa que pode me ajudar.
Becker elevou o sobrolho zombeteiramente.
— Qual é exatamente a natureza deste empreendimento, Herr Heller?
— É bem simples, na verdade. Quero que me ajude a sequestrar um de seus clientes.
— Parece-me, Herr Heller, que esse empreendimento seria uma violação das leis de segredo bancário e de várias outras leis deste pais.
— Então suponho que teremos de manter seu envolvimento em segredo.
— E se eu me recusar a cooperar?
— Então serei obrigado a contar ao mundo que você é o banqueiro dos assassinos, que está sentado em dois bilhões e meio de dólares de pilhagens do Holocausto. Soltaremos os cães de caça do Congresso Judaico Mundial sobre você. Quando terminarem, você e o seu banco estarão em farrapos.
O banqueiro suíço lançou um olhar de súplica a Shelby Somerset.
— Nós tínhamos um acordo.
— Ainda temos — balbuciou o sedento americano —, mas os contornos do acordo mudaram. Seu cliente é um homem muito perigoso. Passos precisam de ser dados para neutralizá-lo. Precisamos de você, Konrad. Ajude-nos a resolver um problema. Vamos fazer o bem juntos.
O banqueiro trauteou com os dedos na pasta.
— Tem razão. Ele é um homem perigoso, e se eu ajudo a sequestrá-lo, é melhor começar a abrir a minha própria sepultura.
— Estaremos lá, Konrad. Vamos protegê-lo.
— E se os contornos do acordo mudarem novamente? Quem vai me proteger então?
Shamron intercedeu.
— Receberia cem milhões de dólares com a dispersão final da conta. Agora não haverá dispersão final da conta porque vai me entregar o dinheiro todo. Se colaborar, deixo-o ficar com metade do montante a receber. Presumo que consiga fazer a conta, Herr Becker?
— Consigo.
— Cinquenta milhões de dólares é mais do que merece, mas estou disposto a deixá-lo ficar com esse montante para ganhar a sua cooperação neste assunto. Um homem consegue comprar muita segurança com cinquenta milhões.
— Quero isso por escrito, um termo de garantia.
Shamron abanou a cabeça com desdém, como se dissesse que havia algumas coisas, e devia saber melhor que qualquer um, meu querido companheiro, que não se põe por escrito.
— O que precisa de mim? — perguntou Becker.
— Vai nos ajudar a entrar na casa dele.
— Como?
— Vai precisar vê-lo com urgência sobre um assunto qualquer da conta. Talvez alguns papéis que precisem ser assinados, alguns detalhes finais da preparação para a liquidação e dispersão dos bens.
— E assim que estiver dentro da casa?
— O seu trabalho termina. O seu novo assistente trata do resto a partir daí.
— Meu novo assistente?
Shamron olhou para Gabriel.
— Talvez seja hora de apresentar Herr Becker a seu novo parceiro.
ELE ERA UM HOMEM de muitos nomes e muitas personalidades. Herr Zigerli conhecia-o como Oskar, o chefe de segurança da Heller. O senhorio da sua morada em Paris conhecia-o como Vincent Laffont, um escritor freelancer viajante de descendência britânica que passava a maior parte do seu tempo de mala às costas. Em Londres, era conhecido como Clyde Bridges, diretor de marketing europeu de uma obscura firma de software canadiana. Em Madrid, ele era um alemão rico de alma inquieta, que preguiçava horas em cafés e bares, e viajava para aliviar o aborrecimento.
O seu nome verdadeiro era Uzi Navot. No léxico hebraico dos serviços secretos israelenses, Navot era um katsa, um operacional de campo secreto e oficial de casos.
O seu território era a Europa Ocidental. Detentor de um charme malandro, poliglota e de uma arrogância fatalista, Navot tinha penetrado células de terrorismo palestino e recrutado agentes em embaixadas árabes espalhadas pelo continente. Possuía contatos em quase todos os serviços secretos e de segurança da Europa e orientava uma vasta rede de sayanim, auxiliares voluntários recrutados em comunidades judaicas locais. Podia sempre contar com a melhor mesa na sala de grelhados do Ritz de Paris porque o maître d'hôtel era um informante pago, assim como o chefe dos serviços de limpeza.
— Konrad Becker, apresento-lhe Oskar Lange.
O banqueiro permaneceu sentado e imóvel por um longo momento, como se tivesse sido subitamente transformado em estátua. Então os seus pequenos olhos espertos pousaram em Shamron, e levantou as mãos num gesto inquisitório.
— O que devo fazer eu com ele.
— Diga-nos você. Ele é muito bom, o nosso Oskar.
— Consegue fazer-se passar por advogado?
— com a devida preparação, ele conseguia fazer-se passar pela sua mãe.
— Quanto tempo tem de durar esta charada?
— Cinco minutos, talvez menos.
— Quando se está com Ludwig Vogel, cinco minutos podem parecer uma eternidade.
— Foi o que ouvi dizer — disse Shamron.
— E o Klaus?
— Klaus?
— O guarda-costas de Vogel.
Shamron sorriu. A resistência tinha terminado. O banqueiro suíço juntara-se à equipe e jurara fidelidade à bandeira de Herr Heller e o seu nobre empreendimento.
— Ele é muito profissional — disse Becker. — Já estive na casa meia dúzia de vezes, mas ele revista-me sempre minuciosamente e pede-me para abrir a pasta. Portanto, se está a pensar levar uma arma para dentro da casa...
Shamron interrompeu-o.
— Não tencionamos levar armas para dentro da casa.
— Klaus está sempre armado.
— Tem a certeza?
— Uma Glock, penso eu. — O banqueiro deu uma palmadinha no lado esquerdo do seu peito. — Usa-a aqui. Não faz muito esforço em escondê-la.
— Um pormenor encantador, Herr Becker.
O banqueiro aceitou o elogio com uma inclinação da cabeça.
— Pormenores são a minha vida, Herr Heller.
— Perdoe a minha insolência, Herr Heller, mas como é que se rapta alguém que está protegido por um guarda-costas, se o guarda-costas está armado e o raptor não?
— Herr Vogel vai abandonar a casa voluntariamente.
— Um rapto voluntário? — o tom de Becker era incrédulo. — Que peculiar. E como é que se convence um homem a deixar-se raptar voluntariamente ?
Shamron cruzou os braços.
— Preocupe-se em levar o Oskar para dentro da casa e deixe o resto connosco.
32
MUNIQUE
NO BONITO PEQUENO bairro de Lehel em Munique havia um velho apartamento, com um portão para a rua e um bem arranjado pátio na entrada principal. O elevador era instável e indeciso, e eram mais as vezes que subiam a escada em caracol até o terceiro andar. O mobiliário tinha o anonimato de um quarto de hotel. Havia duas camas no quarto, e o sofá da sala de estar era um davenport. Na arrecadação havia quatro camas extras de abrir. A despensa estava cheia de produtos não deterioráveis e os armários continham louça e talheres para oito. As janelas da sala de estar tinham vista para a rua, mas os estores mantinham-se fechados o tempo todo, para que dentro do apartamento parecesse sempre fim de dia. Os telefones não tinham campainha. Em vez disso, estavam equipados com luzes vermelhas que piscavam para indicar que estava a tocar.
As paredes da sala de estar estavam forradas de mapas: centro de Viena, Viena metropolitana, Áustria oriental, Polônia. Na parede oposta às janelas estava pendurado um enorme mapa da Europa Central, que mostrava toda a rota de fuga, esticando-se de Viena até a costa do Báltico. Shamron e Gabriel discutiram a cor antes de decidirem pelo vermelho. À distância parecia um rio de sangue, como Shamron desejara, o rio de sangue que fluía pelas mãos de Erich Radek. Só falavam em alemão no apartamento. Shamron tinha-o decretado. Radek era referido como Radek e apenas Radek; Shamron não iria chamá-lo pelo nome que ele comprara aos americanos. Shamron decretou outras regras também. Era a operação de Gabriel, e consequentemente era um espetáculo dirigido por Gabriel. Era Gabriel, com o sotaque berlinense da sua mãe, que orientava as equipes, Gabriel que revia os relatórios de Viena, e Gabriel quem tomava todas as decisões operacionais finais.
Durante os primeiros dias, Shamron esforçou-se para se encaixar no seu papel de apoio, mas à medida que a sua confiança em Gabriel ia crescendo, descobriu ser mais fácil retirar-se para segundo plano. Ainda assim, cada agente que passava pelo apartamento seguro reparava na nuvem negra que pairava sobre ele. Parecia não dormir nunca. Ele permanecia de pé perante os mapas todo o tempo, ou sentava-se na mesa da cozinha no escuro, fumando como uma chaminé: como um homem que luta contra uma consciência pesada.
— Ele é como um doente terminal que planeia o seu próprio funeral —, assinalou Oded, um veterano agente de língua alemã que Gabriel tinha escolhido para conduzir o carro de fuga. — E se correr mal, eles gravarão isso na sua lápide, mesmo por baixo da Estrela de David.
Sob condições perfeitas, tal operação envolveria semanas de preparação. Gabriel tinha apenas dias. A operação Ira de Deus tinha-o preparado bem. Os terroristas do Setembro Negro estavam constantemente em movimento, aparecendo e desaparecendo com uma frequência de fazer enlouquecer. Quando alguém era localizado e identificado, a equipe de choque entrava em ação à velocidade da luz. Equipas de vigilância eram preparadas, veículos e apartamentos seguros eram alugados, rotas de fuga eram planejadas. O reservatório de experiência era muito útil a Gabriel em Munique. Poucos agentes secretos sabiam mais sobre planeamento rápido e ataques súbitos do que ele e Shamron.
Ao fim do dia, viam as noticias na televisão alemã. As eleições na vizinha Áustria captavam a atenção dos espectadores alemães. Metzler estava na frente. As multidões nos comícios de campanha, como a sua liderança nas sondagens, cresciam de dia para dia. A Áustria, assim parecia, estava prestes a fazer o impensável, eleger um chanceler da extrema-direita. Dentro do apartamento seguro, Gabriel e a sua equipe descobriram-se na bizarra posição de torcer pela subida de Meztler nas sondagens, pois sem Metzler, a porta para Radek estava fechada.
Invariavelmente, pouco depois das noticias, Lev revia a operação a partir de King Saul Boulevard e sujeitava Gabriel a uma fastidiosa examinação cruzada dos eventos do dia. Era a única vez que Shamron se sentia aliviado por não carregar o fardo do comando operacional. Gabriel dava voltas ao apartamento com o telefone colado à orelha, respondendo pacientemente às questões de Lev. E por vezes, se a luz estivesse correta, Shamron veria a mãe de Gabriel, caminhando ao lado dele. Ela era o único membro da equipe que nunca ninguém mencionou.
UMA VEZ POR DIA, normalmente ao fim da tarde, Gabriel e Shamron escapavam do apartamento seguro para passear nos Jardins Ingleses. A sombra de Eichmann pairava sobre eles. Gabriel reconheceu que ele estivera lá desde o inicio. Ele tinha ido a Viena naquela noite em que Max Klein contara a Gabriel a história do oficial SS que assassinara uma dúzia de prisioneiros em Birkenau e agora saboreava café todas as tardes no Café Central. Mesmo assim, Shamron tinha diligentemente evitado falar no seu nome, até agora.
Gabriel já tinha ouvido a história da captura de Eichmann muitas vezes. De fato, Shamron tinha-a contado em Setembro de 1972 para espicaçar Gabriel a juntar-se ao grupo da Ira de Deus. A versão que Shamron lhe contou durante esses passeios ao longo dos trilhos de árvores dos Jardins Ingleses era mais detalhada que qualquer outra que Gabriel tivesse escutado antes. Gabriel sabia que isto não era apenas divagação de um velho tentando reviver glórias passadas. Os editores podiam esperar sentados pelas suas memórias, Shamron não era de apregoar o seu próprio sucesso. Gabriel sabia que Shamron lhe estava a contar a história de Eichmann por uma razão. Eu já fiz a viagem que estás prestes a fazer, dizia Shamron. Noutro tempo, noutro local, na companhia de outro homem, mas há coisas que deves saber. Gabriel, por vezes, não conseguia afastar a sensação de estar a caminhar com a História.
— A parte mais difícil foi esperar pelo avião de fuga. Estávamos presos na casa segura com aquela ratazana humana. Alguns elementos da equipe não suportavam olhar para ele. Eu tinha de me sentar no seu quarto noite após noite e vigiá-lo. Ele estava acorrentado à cama de ferro vestido com um pijama e tinha óculos opacos a tapar os olhos. Estávamos estritamente proibidos de conversar com ele. Apenas o interrogador estava autorizado a falar com ele. Eu não consegui obedecer a essas ordens. Sabes, eu precisava de saber. Como é que este homem, que se enjoava ao ver sangue, matou seis milhões do meu povo? A minha mãe e o meu pai? As minhas duas irmãs? Perguntei-lhe porque o tinha feito? Ele disse-me que o tinha feito porque era o seu trabalho, o seu trabalho, Gabriel, como se ele não fosse mais que um empregado bancário ou um maquinista de trem.
E mais tarde, encostados aos balaústres de uma velha ponte sobre um ribeiro:
— Só o quis matar uma vez, Gabriel, quando ele me tentou dizer que não odiava o povo judeu, que na verdade gostava e admirava o povo judeu. Para me mostrar o quanto ele gostava de judeus, começou a recitar as nossas palavras: Shema, Yisrael, Adonai Eloheinu, Adonai Echad! Eu não conseguia ouvir aquelas palavras vindas daquela boca, a boca que tinha dado ordens para assassinar seis milhões. Cravei-lhe a mão sobre a cara até que ele se calasse. Ele começou a abanar e a ter convulsões. Pensei que lhe tinha causado um ataque de coração. Ele perguntou-me se eu o ia matar. Ele suplicou-me que não fizesse mal ao seu filho. Este homem que tinha arrancado os filhos dos braços dos pais e os tinha lançado ao fogo estava preocupado com o seu próprio filho, como se nós fossemos agir como ele, como se nós fossemos assassinar crianças.
E numa gasta mesa de madeira, numa esplanada deserta:
— Nós queríamos que ele concordasse em voltar connosco para Israel voluntariamente. Ele, claro, não queria ir. Ele queria ser julgado na Argentina ou na Alemanha. Eu disse-lhe que isso não era possível. De uma maneira ou de outra, ele ia ser julgado em Israel. Eu arrisquei a minha carreira permitindo que ele tivesse um pouco de vinho tinto e um cigarro. Eu não bebi com o assassino. Eu não podia. Assegurei-lhe que lhe seria dada a oportunidade de contar a sua versão da história, que lhe seria oferecido um julgamento apropriado com uma defesa adequada. Ele não tinha ilusões sobre o resultado, mas a noção de se poder explicar ao mundo era-lhe de alguma forma apelativa. Também apontei o fato de que ele teria a dignidade de saber que estava prestes a morrer, algo que ele negou aos milhões que marcharam para as salas de despir e para as câmaras de gás enquanto Max Klein lhes tocava serenatas. Ele assinou o papel, datou-o como um bom burocrata alemão, e estava feito.
Gabriel escutou atentamente com a gola do casaco elevada para proteger as orelhas e as mãos enfiadas nos bolsos. Shamron mudou o foco de Adolf Eichmann para Erich Radek.
— Tu tens uma vantagem porque já estiveste cara-a-cara com ele uma vez, no Café Central. Eu apenas vira Eichmann ao longe, enquanto vigiávamos a sua casa e planeávamos o rapto, mas nunca falara com ele ou mesmo estivera perto dele. Eu sabia exatamente a sua altura, mas não conseguia imaginar.
Eu tinha ideia de como a sua voz soaria, mas não é a mesma coisa. Tu conheces Radek, mas infelizmente ele também sabe muito sobre ti, também, graças a Manfred Kruz. Ele vai querer saber mais. Ele vai sentir-se exposto e vulnerável. Ele vai tentar equilibrar o jogo fazendo-te perguntas. Ele vai querer saber porque o estás a perseguir. Sob nenhuma circunstância deves envolver-te como numa conversa normal. Lembra-te, Erich Radek não era um guarda de campo ou um operador de câmara de gás. Ele era um SD, um interrogador hábil. Ele vai tentar fazer uso dessas habilidades uma última vez para evitar o seu destino. Não te deixes cair nas suas mãos. És o responsável agora. Ele vai tentar contradizer-te e abalar as tuas convicções.
Gabriel olhou para baixo, como se estivesse a ler as palavras gravadas na mesa.
— Então porque merecem Eichmann e Radek as armadilhas da justiça — disse ele finalmente — e os palestinos do Setembro Negro apenas a vingança?
— Terias dado um excelente estudante Talmud, Gabriel.
— E tu estás a fugir à minha pergunta.
— Obviamente, que houve uma medida de pura vingança na nossa decisão contra os terroristas do Setembro Negro, mas foi mais do que isso. Eles constituem uma ameaça contínua. Se não os matássemos seriam eles a matar-nos. Era guerra.
— Porque não prendê-los, levá-los a julgamento?
— Para que pudessem declamar a sua propaganda a partir de um tribunal israelense?
— Shamron abanou a cabeça lentamente. — Eles já fizeram isso — levantou a mão e apontou para a torre que se ergue no Parque Olímpico — aqui mesmo nesta cidade, em frente às câmaras de todo o mundo. Não nos competia a nós dar-lhes outra oportunidade de justificarem o massacre de inocentes.
Baixou a mão e inclinou-se sobre a mesa. Foi nessa altura que contou a Gabriel os desejos do primeiro-ministro. Enquanto conversava, a sua respiração gelava perante ele.
— Eu não quero matar um velho — disse Gabriel.
— Ele não é um velho. Ele usa as roupas de um velho e esconde-se por trás do rosto de um velho, mas ele ainda é Erich Radek, o monstro que matou uma dúzia de homens em Auschwitz porque não conseguiram identificar uma peça de Brahms. O monstro que matou duas moças à beira de uma estrada polonesa porque não quiseram negar as atrocidades de Birkenau. O monstro que abriu as campas de milhões e sujeitou os seus cadáveres a uma humilhação final. A velhice não perdoa tais pecados.
Gabriel levantou os olhos e fitou o olhar insistente de Shamron.
— Eu sei que ele é um monstro. Eu só não quero matá-lo. Eu quero que o mundo saiba o que este homem fez.
— Então é melhor preparares-te para a batalha com ele. — Shamron olhou para o seu relógio de pulso. — Mandei vir uma pessoa para te ajudar. De fato, deve estar mesmo a chegar.
— Porque só agora estou a saber disso? Pensava que era eu que tomava todas as decisões operacionais.
— E és — disse Shamron. — Mas por vezes eu tenho de mostrar o caminho. É para isso que servem os velhos.
NEM GABRIEL NEM Shamron acreditavam em prenúncios ou presságios. Se acreditassem, a operação que trouxe Moshe Rivlin de Yad Vashem até a casa segura em Munique teria lançado dúvidas sobre a capacidade da equipe para levar a cabo a tarefa que tinham pela frente.
Shamron queria que Rivlin fosse contatado discretamente. Infelizmente, King Saul Boulevard confiou o trabalho a um par de aprendizes acabados de sair da academia, ambos nitidamente de aparência sefardita. Decidiram contatar Rivlin enquanto este caminhava de Yad Vashem para o seu apartamento perto do mercado Yehuda. Rivlin, que tinha sido criado na zona de Bensonhurts no Brooklyn e ainda era vigilante quando caminhava pela rua, rapidamente notou que estava a ser seguido por dois homens de carro. Presumiu que fossem homens-bomba do Hamas ou um par de criminosos de rua. Quando o carro parou ao lado dele e os seus ocupantes pediram para falar, Rivlin desatou a correr como um louco. Para surpresa de todos, o atarracado arquivista provou ser uma presa esquiva e conseguiu escapar aos seus captores durante vários minutos até ser encurralado pelos dois agentes do Escritório na Rua Ben Yehuda.
Ele chegou ao apartamento seguro em Lehel ao fim dessa tarde, carregando duas malas cheias de material de pesquisa e irritado pela maneira como tinha sido convocado.
— Como esperam raptar um homem como Erich Radek se não conseguem apanhar um arquivista gordo? Vá lá — disse ele, puxando Gabriel para a privacidade do quarto do fundo. — Temos muito terreno para cobrir e pouco tempo para o fazer. No SÉTIMO DIA, Adrian Carter chegou a Munique. Era uma quarta-feira; chegou ao apartamento seguro ao fim da tarde, quando o crepúsculo se tornava escuro. O passaporte no bolso do seu sobretudo ainda dizia Brad Cantwell. Gabriel e Shamron tinham acabado de regressar de um passeio nos Jardins Ingleses e ainda estavam embrulhados em chapéus e cachecóis. Gabriel tinha enviado o resto dos elementos da equipe para as posições de fase final, consequentemente o apartamento seguro estava vazio de pessoal do Escritório. Apenas Rivlin permanecia. Saudou o diretor da CIA com a camisa para fora e os sapatos descalçados e disse que seu nome era Yaacov. O arquivista tinha-se adaptado bem à disciplina da operação.
Gabriel fez o chá. Carter desabotoou o casaco e conduziu-se a si próprio numa preocupada excursão pelo apartamento. Passou bastante tempo em frente aos mapas. Carter acreditava em mapas. Os mapas nunca te mentirão. Os mapas nunca te dirão o que eles acham que tu queres ouvir.
— Gosto do que fizeste com o sitio, Herr Heller. — Carter finalmente despiu o sobretudo. — Miséria neo-contemporânea. E o cheiro. Tenho certeza de que o conheço. Trazido da Wienerwald ao fundo do quarteirão, se não estou em erro. Gabriel entregou-lhe uma caneca de chá com o cordão da saqueia ainda pendente do rebordo.
— Porque estás aqui Adrian?
— Pensei em passar para ver se precisavam de ajuda.
— Tretas.
Carter sentou-se pesadamente no sofá, um vendedor no final de uma longa e improdutiva viagem pela estrada. — Verdade seja dita, estou aqui por ordem do meu diretor. Parece que ele está com um sério ataque de nervosismo. Ele sente que estamos juntos num ramo e vocês estão com a motosserra nas mãos. Ele quer que a Agência seja posta na jogada.
— E isso significa o quê?
— Ele quer saber o plano de jogo.
— Tu sabes o plano de jogo, Adrian. Eu disse-te o plano de jogo em Virginia. Não se alterou.
— Eu sei os esboços do plano — disse Carter. — Agora quero ver o quadro pronto.
— O que estás a dizer é que o teu diretor quer rever o plano e dar a palavra final.
— Algo do gênero. E quando acontecer, ele quer que eu fique na retaguarda com o Ari também.
— E se lhe dissermos para ir para o inferno?
— Eu diria que há cinquenta por cento de hipóteses de alguém sussurrar um aviso na orelha de Erich Radek, e perdem-no. Joga com o diretor, Gabriel. É a única maneira de apanhares Radek.
— Estamos prontos para agir, Adrian. Agora é a altura para sugestões úteis do sétimo andar.
Shamron sentou-se ao lado de Carter.
— Se o teu diretor tivesse dez gramas de cérebro, ficaria o mais afastado disto que conseguisse.
— Tentei explicar-lhe isso — não nesses termos, claro, mas qualquer coisa perto. Ele não tem nada disso. Ele veio da Wall Street, o nosso diretor. Ele gosta de pensar em si próprio como um individuo prático, atacante. Sempre soube o que cada divisão da companhia estava a fazer. Tenta gerir a Agência da mesma maneira. E como sabes, é também amigo do presidente. Se o chateias, ele telefona para a Casa Branca, e acaba-se.
Gabriel olhou para Shamron, que cerrava os dentes e acenava a cabeça. Carter
obteve o seu relatório. Shamron permaneceu sentado por alguns minutos, mas em breve estava de pé a percorrer a sala, como um chefe cujas receitas secretas estão a ser entregues a um concorrente do outro lado da rua. Quando terminou, Carter dispensou um longo tempo enchendo a fornilha do seu cachimbo com tabaco.
— Parece-me que os cavalheiros estão prontos — disse ele. — De que estão à espera? Se fosse vocês, punha-me em ação antes que o meu diretor que tem a palavra final decida que quer fazer parte da equipe de rapto.
Gabriel concordou. Levantou o telefone e ligou para Uzi Navot em Zurique.
33
VIENA * MUNIQUE
KLAUS HALDER BATEU suavemente na porta do estúdio. A voz do outro lado concedeu-lhe permissão para entrar. Empurrou a porta e viu o velho sentado à média luz, com os olhos fixos na tremeluzente tela de televisão: um comício de Meztler dessa tarde em Graz, estimulando multidões, a conversa já versava a composição do gabinete ministerial de Metzler. O velho desligou a televisão com o comando e virou os seus olhos azuis para o guarda-costas. Halder apontou para o telefone com o olhar. Uma luz verde piscava.
— Quem é?
— Herr Becker, de Zurique.
O velho levantou o receptor.
— Boa noite, Konrad.
— Boa noite, Herr Vogel. Peço desculpa por o incomodar tão tarde, mas o assunto não podia esperar.
— Há alguma coisa errada?
— Não, muito pelo contrário. No seguimento das recentes notícias eleitorais de Viena, decidi apressar o passo dos meus preparativos e proceder como se a vitória de Peter Metzler fosse um dado adquirido.
— Uma decisão acertada, Konrad.
— Calculei que concordasse. Tenho vários documentos que precisam da sua assinatura. Pensei que seria melhor começarmos o processo agora em vez de esperar pelo final.
— Que tipo de documentos?
— O meu advogado estará mais habilitado para os explicar do que eu. Se não se importar, eu gostaria de ir a Viena para uma reunião. Não demorará mais do que alguns minutos.
— Pode ser na sexta-feira?
— Sexta-feira está ótimo, desde que seja ao fim da tarde. Tenho um compromisso inadiável da parte da manhã.
— Podemos apontar para as quatro da tarde?
— Às cinco seria melhor para mim, Herr Vogel.
— Tudo bem, sexta às cinco.
— Vemo-nos lá.
— Konrad?
— Sim, Herr Vogel.
— Esse advogado — diga-me como se chama, por favor.
— Oskar Lange, Herr Vogel. É um homem muito competente, já fiz uso dos seus serviços em muitas ocasiões anteriores.
— Presumo que seja um tipo que compreende o significado da palavra discrição?
— Discreto, nem sequer dá para começar a descrevê-lo. Está em muito boas mãos.
— Adeus, Konrad.
O velho desligou o telefone e olhou para Halder.
— Vai trazer alguém com ele? Um aceno lento.
— Ele sempre veio sozinho no passado. Porquê trazer um ajudante de repente?
— Herr Becker está prestes a receber cem milhões de dólares, Klaus. Se há um homem no mundo em quem podemos confiar, é o gnomo de Zurique.
O guarda-costas dirigiu-se à porta.
— Klaus?
— Sim, Herr Vogel?
— Talvez tenhas razão. Telefona a alguns dos nossos amigos em Zurique. Descobre se alguém já ouviu falar de um advogado chamado Oskar Lange.
UMA HORA MAIS TARDE, uma gravação do telefonema de Becker foi enviada por transmissão segura dos escritórios da Becker & Puhl em Zurique para o apartamento seguro em Munique. Escutaram-na uma vez, depois outra, e ainda outra. Adrian Carter não gostou do que ouviu.
— Vocês sabem que assim que Radek pousar o telefone, vai fazer uma segunda chamada para Zurique para verificar o Oskar Lange. Espero que tenham pensado nisso.
Shamron parecia desapontado com Carter.
— O que acha, Adrian? Nunca fizemos este tipo de coisa antes? Somos crianças que precisam de orientação?
Enquanto esperava pela resposta, Carter chegou um fósforo ao cachimbo e puxou a fumaça.
— Já ouviu o termo sayan — disse Shamron. — Ou sayanim.
Carter acenou com o cachimbo preso entre os dentes.
— Seus pequenos ajudantes voluntários — disse. — O empregado de hotel que consegue quartos sem reserva. As locadoras que conseguem carros indetectáveis. Os médicos que tratam seus agentes quando têm ferimentos que possam suscitar perguntas difíceis. Os banqueiros que dão empréstimos de emergência.
Shamron acenou.
— Somos um pequeno serviço secreto, só mil e duzentos empregados em tempo integral. Não conseguiríamos fazer o que fazemos sem a ajuda de sayanim. Eles são uma das vantagens da diáspora, o meu exército privado de pequenos voluntários.
— E Oskar Lange?
— Ele é um advogado fiscal e imobiliário de Zurique. Por acaso também é judeu. Algo que ele não publicita em Zurique. Há alguns anos levei o Oskar a jantar a um pequeno restaurante no lago e acrescentei-o à minha lista de ajudantes. Na semana passada, pedi-lhe um favor. Eu queria usar o seu passaporte e o seu escritório e queria que ele desaparecesse por um par de semanas. Quando lhe disse porquê, ele prontificou-se a ajudar com prazer. De fato, ele próprio queria ir a Viena e capturar Radek.
— Espero que ele esteja em lugar seguro.
— Pode-se dizer que sim, Adrian. Ele está de momento num apartamento seguro em Jerusalém.
Shamron inclinou-se em direção ao leitor de fitas, carregou em REWIND, STOP e depois PLAY:
— Pode ser na sexta-feira?
— Sexta-feira está ótimo, desde que seja ao fim da tarde. Tenho um compromisso inadiável da parte da manhã.
— Podemos apontar para as quatro da tarde?
— Às cinco seria melhor para mim, Herr Vogel. .-..
— Tudo bem, sexta às cinco. " STOP.
MOSHE RIVLIN DEIXOU o apartamento seguro na manhã seguinte e regressou a Israel num voo da El Al, com um acompanhante do Escritório sentado ao seu lado. Gabriel ficou até as sete da tarde de quinta-feira, quando uma van Volkswagen com dois pares de esquis montados no teto parou em frente ao apartamento e deu duas buzinadelas.
Ele guardou a sua Beretta na parte de trás da calça. Carter desejou-lhe boa sorte; Shamron deu-lhe um beijo na cara e mandou-o descer.
Shamron abriu as cortinas e olhou para a rua escura. Gabriel apareceu no passeio e dirigiu-se à janela do condutor. Após um momento de discussão, a porta abriu e Chiara saiu. Circundou a van e foi brevemente iluminada pelos faróis da frente antes de entrar para o lugar do passageiro.
A van afastou-se da borda do passeio. Shamron acompanhou até as luzes vermelhas da traseira desaparecerem numa curva. Não se moveu. A espera. Sempre a espera.
O seu isqueiro acendeu, uma nuvem de fumaça formou-se contra o vidro.
34
ZURIQUE
KONRAD BECKER E Uzi Navot saíram dos escritórios da Becker & Puhl precisamente quatro minutos depois da uma da tarde de sexta-feira. Um vigilante do Escritório chamado Zalman, posicionado do outro lado da Talstrasse num Fiat sedã cinza, registrou a hora assim como o tempo, um aguaceiro torrencial, em seguida enviou as noticias a Shamron no apartamento seguro de Munique. Becker estava vestido para um funeral, num terno cinza de risquinhas e uma gravata cor de carvão. Navot, imitando o estilo de vestir de Oskar Lange, usava um blazer Armani com uma camisa e gravata azul elétrica a condizer. Becker tinha pedido um táxi para os levar ao aeroporto.
Shamron teria preferido um carro particular, com um motorista do Escritório, mas Becker viajava sempre de táxi para o aeroporto e Gabriel não queria que a rotina fosse quebrada. Então foi um normal táxi de cidade, conduzido por um imigrante turco, que os levou do centro de Zurique até o aeroporto Kloten por um vale enevoado, com o vigilante de Gabriel sempre a reboque.
Foram em breve confrontados com a primeira falha técnica. Uma frente fria tinha passado por Zurique, transformando a chuva em neve e gelo e obrigando as autoridades do aeroporto Kloten a suspender os voos momentaneamente. O voo 157 8 da Swiss International Airlines, com destino a Viena, embarcou a horas e depois esperou imóvel para entrar na pista. Shamron e Adrian Carter, monitorizando a situação nos computadores do apartamento seguro de Munique, debateram a próxima jogada. Deveriam dar instruções a Becker para ligar a Radek e avisá-lo do atraso? E se Radek tivesse outros planos e decidisse adiar para outra altura? As equipes e veículos estavam nas posições finais. Um cancelamento temporário poderia pôr em risco a segurança operacional. Esperar, aconselhou Shamron, e esperar foi o que fizeram.
Pelas 14h30, as condições atmosféricas melhoraram. Kloten reabriu e o voo 1578 assumiu o seu lugar na fila ao fundo da pista. Shamron fez os cálculos. O voo para Viena levava menos de noventa minutos. Se descolassem em breve, talvez chegassem a tempo a Viena.
Às 14h25 o avião estava no ar, e o azar tinha sido evitado. Shamron informou a equipe de recepção no Aeroporto Schwechat em Viena que o embrulho estava a caminho.
A tempestade sobre os Alpes fez o voo para Viena bastante mais turbulento do que Becker teria preferido. Para acalmar os nervos, consumiu três garrafinhas miniatura de Stolichnaya e visitou a casa de banho duas vezes, tudo isto foi registrado por Zalma, que estava sentado três filas atrás. Navot, o retrato da concentração e serenidade, olhava pela janela para o mar de nuvens negras, a sua água com gás intata. Aterrissaram em Schwechat poucos minutos depois das quatro da tarde sob uma luz cinza sujo. Zalman seguiu-os pelo terminal até o controle de passaportes. Becker foi mais uma vez à casa de banho. Navot, com um movimento quase imperceptível dos olhos, ordenou a Zalman que fosse com ele. Depois de se aliviar, o banqueiro passou três minutos em frente ao espelho arranjando-se, uma quantidade de tempo fora do normal, pensou Zalman, para um homem virtualmente sem cabelo. O vigilante pensou em dar a Becker um pontapé no tornozelo para o apressar, mas decidiu não o perturbar. Afinal de contas, ele era um amador a agir sob coação.
Depois de passar pelo controle de passaporte, Becker e Navot dirigiram-se ao terminal de chegadas. Aí, entre a multidão, estava um especialista em vigilância, alto e magro chamado Mordecai. Vestia um desleixado terno preto e segurava um cartão onde se lia BAUER. O seu carro, um grande Mercedes sedã, estava à espera no estacionamento de curta duração. A dois lugares de distância estava um Audi comercial de três portas prateado. As chaves estavam no bolso de Zalman.
Zalman evitou aproximar-se deles durante a viagem de carro até Viena. Ligou para o apartamento seguro de Munique e, em poucas palavras, cuidadosamente escolhidas, informou Shamron que Navot e Becker estavam dentro do horário e procediam em direção ao alvo. Pelas 16h45, Mordecai chegou ao Canal do Danúbio. Pelas 16h50 atravessou a linha em direção ao Primeiro Bairro e estava no trânsito de hora de ponta ao longo da Ringstrasse. Virou à direita, para uma rua de pedra estreita, e logo na primeira à esquerda. Um momento mais tarde, parou em frente ao portão de ferro ornamentado de Erich Radek. Zalman ultrapassou pela esquerda e continuou a conduzir.
— FAZ SINAL DE LUZES — disse Becker — e o guarda-costas deixa entrar.
Mordecai seguiu a instrução. Durante breves segundos de tensão, o portão manteve-se imóvel; então ouviu-se um bater metálico agudo, seguido do zumbido de um motor.
Enquanto o portão abria lentamente, o guarda-costas de Radek apareceu na porta da frente, a luz intensa do candelabro brilhava sobre a sua cabeça e ombros como uma auréola. Mordecai esperou até o portão estar completamente aberto e avançou para a entrada em forma de ferradura.
Navot saiu primeiro, depois Becker. O banqueiro apertou a mão do guarda-costas e apresentou:
— O meu associado de Zurique, Herr Oskar Lange. O guarda-costas acenou e convidou-os a entrar com um gesto. A porta da frente fechou-se.
Mordecai olhou para o relógio: 16h58. Pegou no celular e ligou um número de Viena. — Vou chegar tarde para jantar — disse.
— Está tudo bem?
— Sim — disse ele. — Está tudo bem.
ALGUNS SEGUNDOS MAIS TARDE, em Munique, o sinal chegou à tela do computador de Shamron. Shamron olhou para o relógio.
— Quanto tempo lhes vais dar? — perguntou Carter.
— Cinco minutos — disse Shamron — e nem um segundo a mais.
O AUDI SEDÃ PRETO com uma antena alta montada na bagageira estava estacionado a algumas ruas de distância. Zalman estacionou atrás, saiu e caminhou até a porta do passageiro. Oded estava sentado ao volante, um homem compacto com olhos castanhos claros e um nariz achatado de pugilista. Zalman, enquanto se instalava ao seu lado, conseguia cheirar tensão na sua respiração. Zalman tinha a vantagem de ter estado em atividade toda a tarde; Oded tinha estado preso no apartamento seguro de Viena sem nada para fazer exceto imaginar as consequências de um fracasso. Um celular estava no assento, a ligação com Munique já estava estabelecida. Zalman conseguia ouvir a respiração uniforme de Shamron. Uma imagem formou-se na sua mente: uma versão mais jovem de Shamron marchando na sua direção sob uma chuva torrencial na Argentina, Eichmann descendo de um ônibus e caminhando para ele vindo da direção oposta. Oded ligou o carro. Zalman foi arrastado de volta ao presente. Olhou para o relógio no painel de instrumentos: 17:03...
A E461, MAIS conhecida pelos austríacos como a Brünnerstrasse, é uma estrada de duas faixas que vem do Norte de Viena e atravessa as onduladas colinas do Weinviertel, a região de vinhos austríaca. São oitenta quilômetros até a fronteira checa. Há uma passagem-de-nível, abrigada por um dossel em abóbada, chefiada por dois relutantes guardas em abandonar o conforto do seu abrigo de alumínio e vidro para levar a cabo qualquer inspeção dos veículos que passam. Do lado checo da passagem-de-nível, a inspeção de documentos de viagem leva normalmente um pouco mais de tempo, embora o tráfego vindo da Áustria seja normalmente recebido de braços abertos. A um quilômetro e meio para lá da fronteira, ancorada nas colinas da Morávia do Sul, fica a antiga cidade de Mikulov. É uma cidade fronteiriça, com as caraterísticas de cerco de uma cidade fronteiriça. E ajustava-se perfeitamente ao estado de espírito de Gabriel. Ele estava por trás de um parapeito de tijolo de um castelo medieval, bem por cima dos telhados de telha vermelha da velha cidade, por baixo de um par de pinheiros dobrados pelo vento. A chuva fria caía como lágrimas na superfície da sua gabardina de oleado. O seu olhar estendia-se colina abaixo, em direção à fronteira. Na escuridão, apenas as luzes do tráfego na autoestrada eram visíveis, luzes brancas surgindo na sua direção, luzes vermelhas afastando-se na direção da fronteira austríaca.
Olhou para o relógio. Eles estariam dentro da casa de Radek neste instante. Gabriel conseguia imaginar pastas abrindo-se, café e bebidas sendo servidas. E então outra imagem apareceu, uma fila de mulheres vestidas de cinza, caminhando ao longo de uma estrada com neve e ensopada de sangue. A sua mãe, vertendo lágrimas de gelo.
— O que vai dizer a seu filho sobre a guerra, judia?
— A verdade, Herr Sturmbannführer. Direi ao meu filho a verdade.
— Ninguém vai acreditar em você.
Ela não lhe disse a verdade, claro. Em vez disso tinha confiado a verdade ao papel e trancado nos arquivos de Yad Vashem. Talvez Yad Vasehm fosse o local ideal para ela. Talvez existam verdades que, de tão aterradoras, fiquem melhor se confinadas num arquivo de horrores, em quarentena, separadas das não infectadas. Ela não pôde contar que fora vítima de Radek, como Gabriel não podia dizer que era o carrasco de Shamron. Ela sempre soube, no entanto.
Ela conhecia o rosto da morte, e ela tinha visto a morte nos olhos de Gabriel. O telefone no bolso de seu casaco vibrou silenciosamente contra a anca. Ele levou-o lentamente à orelha e ouviu a voz de Shamron. Guardou o telefone no bolso e deixou-se estar por um momento, observando os faróis flutuando na sua direção através da negra planície austríaca.
— O que vai dizer quando estiver com ele? — perguntara Chiara.
A verdade, Gabriel pensava agora. Eu direi a verdade.
Começou a caminhada, descendo as estreitas ruas de pedra de uma cidade antiga, em direção ao escuro.
35
VIENA
UZI NAVOT SABIA como revistar uma pessoa. Klaus Halder era muito bom no seu trabalho. Começou no colarinho da camisa de Navot e terminou nos canhões das suas calças
Armani. Em seguida virou a atenção para a pasta. Trabalhou lentamente, como um homem com todo o tempo do mundo, e com uma atenção de monge para todos os detalhes. Quando a revista terminou finalmente, ele ajeitou o conteúdo com cuidado e colocou os trincos de volta no sítio.
— Herr Vogel vai vê-los agora — disse. — Sigam-me, por favor. Caminharam pelo corredor central, depois passaram por um par de portas duplas e entraram numa sala de visitas. Erich Radek, num casaco de linho grosso e gravata cor de ferrugem, estava sentado perto da lareira. Acolheu os convidados com um simples aceno da sua alongada cabeça, mas não se esforçou por levantar-se. Radek, pensou Navot, é um homem que costuma receber visitas sentado.
O guarda-costas deslizou suavemente para fora da sala e fechou as portas.
Becker, sorrindo, aproximou-se e apertou a mão de Radek. Navot não desejava tocar no assassino, mas dadas as circunstâncias não tinha outra escolha. A mão oferecida era fria e seca, o aperto firme e sem tremor. Era um aperto de mão para o testar. Navot sentia que tinha passado.
Radek estalou os dedos em direção às cadeiras vazias, em seguida a sua mão voltou para o apoio de copo no braço da cadeira. Começou a girá-lo para a frente e para trás, duas voltas para a direita, duas para a esquerda. Havia qualquer coisa no movimento que fazia azia ao estômago de Navot.
— Ouvi coisas muito boas sobre o seu trabalho, Herr Lange disse Radek subitamente. — Tem uma excelente reputação perante os seus colegas em Zurique.
— É tudo mentira, asseguro-lhe, Herr Vogel.
— É muito modesto. — Girou a bebida. — Você fez um trabalho para um amigo meu há alguns anos, um cavalheiro chamado Helmut Schneider.
E tu estás a tentar armadilhar-me, pensou Navot. Ele tinha-se preparado para um estratagema destes. O verdadeiro Oskar Lange tinha-lhe fornecido uma lista de clientes dos últimos dez anos para Navot memorizar. O nome Helmut Schneider não estava nela.
— Lidei com um bom número de clientes durante os últimos anos, mas temo que o nome Schneider não esteja entre eles. Talvez o seu amigo me tenha confundido com outra pessoa.
Navot olhou para baixo, abriu os trincos da sua pasta e levantou a tampa. Quando voltou a levantar o olhar, os olhos azuis de Radek estavam perfurantes nos seus e a sua bebida rodava no braço da cadeira. Havia uma tranquilidade assustadora nos seus olhos. Era como estar a ser estudado por um retrato.
— Talvez tenha razão. — O tom conciliatório de Radek não condizia com a sua expressão. — Konrad disse que precisava da minha assinatura nalguns documentos relacionados com a liquidação dos bens da conta.
— Sim, está correto.
Navot retirou um dossier da pasta e colocou a pasta no chão aos seus pés. Radek acompanhou a viagem da pasta para baixo e devolveu o seu olhar ao rosto de Navot. Navot levantou a capa do dossier e elevou o olhar. Abriu a boca para falar, mas foi interrompido pelo tocar do telefone. Agudo e eletrônico, soou aos ouvidos sensíveis de Navot como um grito num cemitério. Navot olhou para a mesa estilo Biedermeier, e o telefone tocou uma segunda vez. Começou a tocar uma terceira vez, mas ficou subitamente em silêncio, como se tivesse sido amordaçado a meio do grito. Navot conseguia ouvir Halder, o guarda-costas, falando numa extensão do corredor.
— Boa tarde. .. Não, peço desculpa, mas Herr Vogel está neste momento em reunião. Navot retirou o primeiro documento do dossier. Radek estava agora visivelmente distraído, o seu olhar distante. Estava a ouvir o som da voz do seu guarda-costas. Navot chegou-se à frente na cadeira e segurou o papel num ângulo que permitisse a Radek ver.
— Este é o primeiro documento que necessita...
Radek levantou a mão exigindo silêncio. Navot ouviu passadas no corredor, seguido do som de portas a abrir. O guarda-costas entrou na sala e dirigiu-se à beira de Radek.
— É Manfred Kruz — disse ele num sussurro capelista. — Ele quer-lhe dar uma palavra. Diz que é urgente e não pode esperar.
ERICH RADEK LEVANTOU-SE lentamente da cadeira e caminhou para o telefone.
— O que se passa Manfred?
— Os israelenses.
— Que têm eles?
— Tenho informações que indicam que um grande grupo de operacionais se reuniu em Viena nestes dias para te raptar.
— Essas informações estão confirmadas?
— Suficientemente confirmadas para concluir que já não é seguro permanecer em casa. Destaquei uma unidade da Staatspolizei para te apanhar e levar-te para um local seguro.
— Ninguém consegue entrar aqui Manfred. Limita-te a pôr um guarda armado fora da casa.
— Estamos a lidar com os israelenses, Herr Vogel. Eu quero-o fora da casa.
— Está bem, se insistes, mas diz à tua unidade para recuar. Klaus dá conta do recado.
— Um guarda-costas não é suficiente. Eu sou responsável pela sua segurança e quero-o sob proteção policial. Lamento, mas tenho de insistir. As informações que tenho são muito específicas.
— Quando é que os teus agentes chegam aqui?
— A qualquer momento. Prepare-se para sair.
Desligou o telefone e olhou para os dois homens sentados junto à lareira.
— Peço desculpas, cavalheiros, mas estou com muita pressa, é uma emergência. Temos de terminar isto em outra hora. — Voltou-se para seu guarda-costas.
— Abra os portões Klaus e arranje-me um casaco. Já.
OS MOTORES DO portão frontal funcionaram. Mordecai, sentado ao volante do Mercedes, olhou pelo espelho retrovisor e viu um carro entrar vindo da rua com uma sirene azul rodopiando no teto. Parou atrás dele e travou a fundo. Dois homens saíram e escalaram os degraus da frente. Mordecai lentamente ligou a ignição.
ERICH RADEK FOI para o corredor. Navot arrumou a sua pasta e levantou-se. Becker ficou congelado no lugar. Navot cravou os dedos por baixo do braço do banqueiro e levantou-o.
Seguiram Radek até o corredor. Luzes de emergência azuis piscavam pelas paredes e teto. Radek estava junto ao seu guarda-costas, falando-lhe baixo ao ouvido. O guarda-costas segurava um sobretudo e parecia tenso. Enquanto ajudava Radek a vestir o casaco, os seus olhos estavam em Navot.
Alguém bateu à porta, dois estrondos agudos ecoaram pelo teto alto e chão de mármore do corredor. O guarda-costas largou o sobretudo de Radek e rodou o trinco. Dois homens à paisana empurraram e entraram na casa.
— Está pronto Herr Vogel?
Radek acenou, em seguida voltou-se e olhou uma vez mais para Navot e Becker.
— Mais uma vez, por favor aceitem as minhas desculpas, cavalheiros. Peço imensa desculpa pelo incômodo.
Radek voltou-se na direção da porta com Klaus ao seu lado. Um dos agentes travou o caminho ao guarda-costas colocando-lhe uma mão no peito. O guarda-costas afastou-a com uma pancada.
— O que pensa que está fazendo?
— Herr Kruz deu-nos instruções especificas. Só devemos levar Herr Vogel sob proteção.
— Kruz nunca teria dado uma ordem dessas. Ele sabe que eu vou onde quer que ele vá. Foi sempre assim.
— Lamento, mas essas são as nossas ordens.
— Deixe-me ver o seu distintivo e a sua identificação.
— Não há tempo. Por favor, Herr Vogel. Venha connosco.
O guarda-costas recuou um passo e meteu a mão dentro do casaco. Conforme a arma ficou à vista, Navot lançou-se para a frente. com a mão esquerda, agarrou o pulso do guarda-costas e encostou-lhe a arma contra o abdômen. com a direita, deu-lhe dois fortes golpes de mão aberta na nuca. O primeiro atordoou Halder; o segundo fez os seus joelhos cederem. A sua mão relaxou e a Glock caiu no chão de mármore. Radek olhou para a arma e por um instante pensou em apanhá-la. Em vez disso, voltou-se, precipitou-se para a porta aberta do seu estúdio e fechou-a com um estrondo.
Navot tentou a maçaneta. Trancada.
Deu uns passos atrás e lançou o ombro contra a porta. A porta desfez-se e ele tropeçou para dentro da sala escura. Levantou-se cambaleante e viu que Radek já tinha fugido através da falsa frente de uma estante de livros e estava dentro de um pequeno elevador do tamanho de uma cabine telefônica.
Navot saltou para a frente enquanto a porta do elevador começou a fechar. Conseguiu enfiar os dois braços para dentro e agarrou Radek pela lapela do sobretudo. Quando a porta bateu contra o ombro esquerdo de Navot, Radek agarrou-lhe os pulsos e tentou libertar-se. Navot segurou firmemente.
Oded e Zalman vieram em seu auxilio. Zalman, o mais alto dos dois, alcançou por cima da cabeça de Navot e puxou a porta. Oded deslizando por entre as pernas de Navot aplicou pressão por baixo. Perante a investida, a porta finalmente deslizou e abriu.
Navot arrastou Radek para fora do elevador. Já não havia tempo para subterfúgios ou enganos. Navot tapou a boca do velho com a mão, Zalman segurou-lhe as pernas e levantou-o do chão. Oded encontrou o interruptor e apagou a luz.
Navot olhou para Becker.
— Entre no carro. Depressa, idiota.
Arrastaram Radek degraus abaixo em direção ao Audi. Radek puxava a mão de Navot, tentando libertar-se do tampão na boca e esperneava. Navot conseguia ouvir Zalman resmungar entre dentes. De alguma forma, mesmo no calor da batalha, ele conseguia resmungar em alemão.
Oded abriu a porta de trás antes de dar a volta e correr para o volante.
Navot empurrou primeiro a cabeça de Radek para o fundo e colou-o ao assento.
Zalman forçou sua entrada e fechou a porta. Becker entrou na parte de trás do Mercedes. Mordecai acelerou fundo, e o carro guinou para a rua, o Audi seguindo de perto.
O corpo de Radek ficou subitamente quieto. Navot retirou a mão e o austríaco sorveu ofegante o ar.
— Está me machucando — disse. — Não consigo respirar.
— Eu deixo você se levantar, mas tem que prometer que se comporta bem. Não vai haver mais tentativas de fuga. Promete?
— Deixe eu me levantar. Está me esmagando, estúpido.
— Eu deixo, velho. Faça apenas um favor primeiro. Diga seu nome, por favor.
— Sabe meu nome. É Vogel. Ludwig Vogel.
— Não, não, esse nome não. Seu nome verdadeiro.
— Esse é o meu nome verdadeiro.
— Quer se levantar e deixar Viena como um homem, ou vou ter de ir sentado em cima de você o tempo todo?
— Eu quero me sentar. Está me machucando, maldição!
— Diga apenas seu nome.
Ficou em silêncio por um momento; então murmurou:
— Meu nome é Radek.
— Desculpe, mas não consegui ouvir. Pode dizer seu nome outra vez, por favor? Desta vez alto.
Inspirou profundamente e o seu corpo ficou rígido, como se estivesse em sentido em vez de deitado no banco de trás de um carro.
— MEU NOME É STURMBANNFÜHRER ERICH RADEK!
NO APARTAMENTO SEGURO de Munique, a mensagem apareceu na tela do computador de Shamron: O EMBRULHO FOI RECEBIDO. Carter deu-lhe uma palmada nas costas.
— Raios me partam! Eles o pegaram. Eles o pegaram mesmo.
Shamron levantou-se e caminhou até o mapa.
— Pegá-lo foi a parte mais fácil da operação, Adrian. Tirá-lo de lá vai ser outra história.
Olhou para o mapa. Oitenta quilômetros até a fronteira tcheca. Corra, Oded, pensou ele. Dirija como nunca dirigiu em sua vida.
36
VIENA
ODED JÁ TINHA guiado por aquela estrada uma dúzia de vezes, mas nunca como esta, nunca com a sirene a gritar e a rodopiar no teto, e nunca com os olhos de Erich Radek fitando os seus pelo retrovisor. A retirada do centro da cidade tinha corrido melhor do que esperado. O tráfego de fim de tarde era intenso, mas não ao ponto de não se conseguir desviar para dar passagem ao barulho e à luz da sua sirene. Radek amotinou-se duas vezes. Cada insurreição foi implacavelmente dominada por Navot e Zalman.
Circulavam agora em direção a norte pela E461. O tráfego de Viena tinha ficado para trás, a chuva caía continuamente e gelava nos cantos do para-brisas. Uma tabuleta passou de repente: REPÚBLICA CHECA 42 KM. Navot olhou prolongadamente sobre o ombro, então, em hebraico, instruiu Oded para desligar a sirene.
— Para onde vamos? — perguntou Radek respirando com dificuldade. — Para onde me estão a levar? Onde?
Navot não disse nada, como Gabriel tinha ordenado.
— Deixem-no fazer perguntas até ficar com a cara azul — Gabriel tinha dito.
— Simplesmente não lhe deem a satisfação de uma resposta. Deixem a incerteza afligir-lhe a mente. Era isso que ele faria se os papéis estivessem invertidos. Então Navot observou as povoações que passavam pela janela Mistelbach, Wilfersdorf, Erdberg — e pensou apenas numa coisa, o guarda-costas que ele tinha deixado inconsciente no corredor da entrada da casa de Radek em Stöbbergasse.
Poysdorf apareceu perante eles. Oded acelerou pela vila, em seguida virou para uma estrada de duas faixas e seguiu-a em direção a leste por entre pinheiros cobertos de neve.
— Para onde vamos? Para onde me estão a levar?
Navot já não conseguia suportar mais as suas perguntas em silêncio.
— Vamos para casa — disse de repente. — E tu vens connosco. Radek traçou um sorriso gelado.
— Cometeste apenas um erro esta noite, Herr Lange. Devias ter morto o meu guarda-costas quando tiveste oportunidade.
KLAUS HALDER ABRIU um olho, em seguida o outro. A escuridão era absoluta. Deixou-se estar deitado imóvel por um momento tentando determinar a posição do seu corpo. Tinha caído para a frente, com os braços para os lados, e a sua face direita estava pressionada contra o mármore frio. Tentou levantar a cabeça, um relâmpago de dor lancinante abateu-se-lhe sobre o pescoço. Lembrou-se então do instante em que tinha acontecido. Estava a tentar alcançar a arma quando levou duas pancadas por trás. Fora o advogado de Zurique, Oskar Lange. Obviamente que Lange não era um simples advogado. Ele estava a tramar alguma, como Halder temia desde o início.
Colocou-se de joelhos e sentou-se encostado à parede. Fechou os olhos e esperou que a sala parasse de girar, então esfregou a parte de trás da cabeça. Tinha um inchaço do tamanho de uma maçã. Ergueu o pulso esquerdo e lançou um olhar ao painel luminoso do seu relógio de pulso: 17:57. Quando tinha acontecido? Poucos minutos depois das cinco, 17h10 no máximo. A não ser que tivessem um helicóptero à espera na Stephansplatz, o mais certo era ainda estarem na Áustria.
Apalpou o bolso da frente do seu casaco esportivo e descobriu que o celular ainda lá estava. Tirou-o e ligou. Dois toques. Uma voz familiar.
— Aqui Kruz.
TRINTA SEGUNDOS MAIS TARDE, Manfred Kruz bateu com o telefone e avaliou suas opções. A resposta mais óbvia seria fazer soar o alarme e alertar todas as unidades policiais do país que o velho fora sequestrado por agentes israelenses, fechar as fronteiras e os aeroportos. Óbvia, sim, mas muito perigosa. Uma jogada dessas iria levantar muitas questões desconfortáveis. Porque foi Herr Vogel raptado? Quem é ele realmente? A candidatura de Peter Metzler seria esquadrinhada, assim como a carreira de Kruz. Mesmo na Áustria, tais assuntos assumiam vida própria, e Kruz tinha visto muitos para saber que o inquérito não terminaria à porta de Vogel.
Os israelenses sabiam que ele ficaria incapacitado, e tinham escolhido bem o momento. Kruz tinha de pensar numa maneira sutil de intervir, alguma maneira de impedir os israelenses sem destruir tudo no processo. Alcançou o telefone e marcou.
— Daqui Kruz. Os americanos informaram-nos que um possível grupo da al-Qaeda está em trânsito de automóvel pelo país esta tarde. Eles suspeitam que os membros da al-Qaeda possam estar a viajar com simpatizantes europeus para melhor se misturarem no ambiente. A partir deste momento estou a ativar a rede de alerta terrorista. Aumentem a segurança nas fronteiras, aeroportos e estações de trem para Nível Dois.
Desligou e olhou pela janela. Tinha atirado uma bóia ao velho. Perguntou a si mesmo se ele estaria em condições de a agarrar. Kruz sabia que se conseguisse, seria confrontado com um outro problema em breve: o que fazer com a equipe de rapto israelense. Levou a mão ao bolso do paletó e retirou um pedaço de papel.
— Se ligar para este número, quem vai atender?
— A violência.
Manfred Kruz alcançou o seu telefone.
O RELOJOEIRO, DESDE seu regresso a Viena, dificilmente encontrava razão para sair do santuário da sua pequena loja no Bairro Stephansdom. As frequentes viagens tinham-no deixado com um enorme número de peças acumulado que requeriam a sua atenção, incluindo um relógio regulador vienense, estilo Biedermeier, fabricado pelo famoso relojoeiro Vienense Ignaz Marenzeller em 1840. A caixa de mogno estava nas condições originais, embora o painel prateado de uma só peça tivesse requerido muitas horas de restauração. O movimento Biedermeier original feito à mão, com a sua corda de 75 dias, estava exposto em várias peças cuidadosamente arranjadas na superfície da sua mesa de trabalho.
O telefone tocou. Ele baixou o volume do seu leitor de CD portátil e o Concerto Brandenburg N°. 4 em Sol de Bach diminuiu até um sussurro. Uma escolha banal, Bach, mas o Relojoeiro considerava a precisão de Bach um acompanhamento perfeito para a tarefa de desmantelar e reconstruir o movimento de um relógio antigo. Alcançou o telefone com a mão esquerda. Uma onda de dor percorreu-lhe o comprimento do braço, uma lembrança dos seus abusos em Roma e na Argentina. Levou o receptor à orelha e prendeu-o contra o ombro.
— Sim — disse distraidamente. As suas mãos estavam de volta ao trabalho.
— O seu número foi-me dado por um amigo comum.
— Estou a ver — disse o Relojoeiro de modo descomprometido. Como posso ajudá-lo?
— Não sou eu quem precisa de ajuda. É o nosso amigo. O Relojoeiro pousou as ferramentas.
— O nosso amigo? — perguntou.
— Realizou trabalhos para ele em Roma e na Argentina. Presumo que saiba a quem me estou a referir?
O Relojoeiro sabia de fato. Então, o velho induzira-o em erro e por duas vezes colocara-o em situações de campo comprometedoras. Agora tinha cometido o pecado operacional fatal de dar o seu nome a um estranho. Era óbvio que estava em sarilhos. O Relojoeiro suspeitou que tivesse alguma coisa a ver com os israelenses. Decidiu que agora seria um excelente momento para acabar com a relação.
— Peço desculpa — disse — mas penso que me está a confundir com outra pessoa. O homem do outro lado da linha tentou contra-argumentar. O Relojoeiro desligou o telefone e aumentou o volume do seu leitor de CD até que o som de Bach encheu a oficina.
NO APARTAMENTO SEGURO de Munique, Carter desligou o telefone e olhou para Shamron, que ainda estava de pé em frente ao mapa, como se imaginasse o progresso de Radek para norte em direção à fronteira checa.
— Era da nossa filial de Viena. Estão a monitorizar a rede de comunicações austríaca. Parece que Manfred Kruz elevou o alerta terrorista para Nível Dois.
— Nível Dois? O que significa isso?
— Significa que é possível que haja alguma dificuldade na fronteira.
A ASSISTÊNCIA ESTAVA na reentrância de um ribeiro gelado. Havia dois veículos, um Opel sedã e uma van Volkswagen. Chiara estava ao volante da Volkswagen, faróis apagados, motor desligado, o peso reconfortante de uma Beretta no colo. Não havia outros sinais de vida, não havia luzes na vila, não havia o ruído do tráfego na autoestrada, apenas o suave bater da neve no teto da van e o assobiar do vento pelos juncos dos abetos. Olhou por cima do ombro e olhou para o compartimento traseiro da Volkswagen. Tinha sido preparado para a chegada de Radek. O forro da traseira tinha sido colocado. Por baixo do forro estava um compartimento especialmente construído para escondê-lo durante a passagem pela fronteira. Ele ficaria confortável lá, mais confortável do que merecia.
Olhou pelo vidro. Não havia muito para ver, a estrada estreita subindo pela escuridão em direção a um cume à distância. Então, subitamente, houve uma luz, um brilho branco e limpo que iluminou o horizonte e transformou as árvores em minaretes pretos. Por alguns segundos, foi possível ver a neve, rodopiando como uma nuvem de insetos pelo ar varrido pelo vento. Então os faróis da frente surgiram. O carro contornou a colina, e as luzes espalharam-se por ela, atirando as sombras das árvores para um lado, depois para o outro. Chiara segurou a Beretta com a mão e deslizou o dedo indicador para dentro da guarda do gatilho.
O carro derrapou até parar junto à van. Ela olhou para o banco de trás e viu o assassino, sentado entre Navot e Zalman, rígido como um comissário à espera da limpeza de sangue. Ela rastejou até o compartimento traseiro e fez uma verificação final.
— TIRE O SOBRETUDO — ordenou Navot.
— Por quê?
— Porque estou mandando.
— Eu tenho o direito de saber por quê.
— Não tem direito nenhum! Faça apenas o que digo.
Radek permaneceu imóvel. Zalman puxou a lapela do casaco, mas o velho cruzou os braços com força junto ao peito. Navot suspirou pesadamente. Se o velho bastardo quer um combate final, vai consegui-lo. Navot abriu-lhe os braços à força enquanto Zalman puxava a manga direita, depois a esquerda. O casaco depois; em seguida Zalman rasgou a manga da camisa e expôs a pele caída do braço. Navot exibiu uma seringa, cheia de sedativo.
— Isso é para seu próprio bem — disse Navot. — É moderado e não tem efeito durante muito tempo. Vai fazer sua viagem muito mais suportável. Sem claustrofobia.
— Nunca tive claustrofobia.
— Não me interessa.
Navot espetou a agulha no braço de Radek e despejou o conteúdo. Passados alguns segundos, o corpo de Radek relaxou; em seguida a cabeça tombou para o lado e o queixo descaiu. Navot abriu a porta e saiu. Segurou o corpo amolecido de Radek debaixo dos braços e arrastou-o para fora do carro.
Zalman levantou-o pelas pernas e juntos carregaram-no como um morto de guerra para a lateral da van. Chiara estava agachada no interior, segurando uma máscara de oxigênio e outra de plástico transparente. Navot e Zalman deitaram Radek no chão da van; e Chiara colocou-lhe a máscara sobre o nariz e a boca. O plástico embaciou imediatamente, indicando que a respiração de Radek estava normal. Ela verificou-lhe o pulso. Regular e forte. Manusearam-no para dentro do compartimento e fecharam a tampa.
Chiara sentou-se ao volante e ligou o motor. Oded fechou-lhe a porta e deu uma pequena pancada com a mão no vidro. Chiara engatou a marcha e seguiu para a autoestrada. Os outros entraram no Opel e seguiram atrás dela.
CINCO MINUTOS MAIS TARDE, as luzes da fronteira apareceram como faróis no horizonte. Conforme Chiara se foi aproximando conseguiu ver uma pequena fila de trânsito com cerca de seis veículos de comprimento, esperando para atravessar. Havia dois guardas fronteiriços em evidência. Tinham as lanternas na mão e estavam a verificar passaportes e a espreitar pelas janelas. Ela olhou por cima do ombro. As portas do compartimento permaneciam fechadas. Radek estava em silêncio.
O carro em frente passou na inspeção e foi deixado seguir em direção ao lado checo. O guarda fronteiriço fez-lhe sinal para avançar. Ela baixou o vidro e sorriu.
— Passaporte, por favor.
Ela entregou. O segundo guarda tinha-se deslocado para o lado do passageiro da van, e ela conseguia ver o foco de luz da lanterna investigando o interior.
— Está tudo bem?
O guarda fronteiriço manteve os olhos na fotografia e não respondeu.
— Quando entrou na Áustria?
— Hoje.
— Onde?
— Pela Itália, em Tarvísio.
Ele dispensou um momento comparando o rosto dela com a fotografia do passaporte. Em seguida abriu a porta do motorista e com um gesto ordenou-lhe que saísse da van.
UZI NAVOT OBSERVOU a cena em primeira fila, no lugar do passageiro no banco da frente do Opel. Olhou para Oded e praguejou ligeiramente por entre os dentes. Em seguida ligou do celular para o apartamento seguro de Munique. Shamron atendeu ao primeiro toque.
— Temos um problema — disse Navot.
ELE ORDENOU que se colocasse na frente da van e apontou a lanterna para seu rosto. Através do brilho conseguia ver o segundo guarda fronteiriço abrindo a porta do passageiro da van. Forçou-se a olhar para o interrogador. Tentou não pensar na Beretta contra as suas costas. Ou em Gabriel, esperando do outro lado da fronteira em Mikulov. Ou Navot, Oded e Zalman observando impotentes do Opel.
— Para onde se dirige esta noite?
— Praga — disse ela.
— Por que vai para Praga?
Ela disparou-lhe um olhar: Não tem nada com isso. Então disse: — Vou visitar meu namorado.
— Namorado — repetiu ele. — O que seu namorado faz em Praga?
Ensina italiano, dissera Gabriel.
Ela respondeu à pergunta.
— Onde?
No Instituto de Estudos Linguísticos de Praga, tinha dito Gabriel. Mais uma vez, ela respondeu como Gabriel tinha instruído.
— E há quanto tempo ele é professor do Instituto de Estudos Linguísticos de Praga?
— Três anos.
— E vê-o com frequência?
— Uma vez por mês, às vezes duas.
O segundo guarda tinha entrado na van. Uma imagem de Radek passou-lhe pela mente, olhos fechados, máscara de oxigênio no rosto. Não acorde, pensou ela. Não se mexa. Não faça barulho. Aja decentemente, pelo menos uma vez em sua vida desprezível.
— E quando entrou na Áustria?
— Já disse isso.
— Diga outra vez, por favor.
— Hoje.
— A que horas?
— Não me lembro da hora.
— Era de manhã? Era de tarde?
— Tarde.
— Início da tarde? Fim da tarde?
— Início.
— Então ainda era dia?
Ela hesitou; ele pressionou-a.
— Sim? Ainda era dia?
Ela acenou. De dentro da van veio o som da porta traseira se abrindo. Ela se forçou a olhar diretamente para os olhos do interrogador. O seu rosto, escurecido pela irritante luz da lanterna, começou a parecer-se com Erich Radek, não a versão patética do Radek inconsciente na traseira da van, mas o Radek que arrastou uma criança chamada Irene Frankel das fileiras da marcha da morte de Birkenau em 1945 e a levou para uma floresta polonesa para um momento de tormento final.
— Diga as palavras, judia! Foi transferida para leste. Teve comida em abundância e cuidados médicos adequados. As câmaras de gás e o crematório são mentiras bolchevique-judaicas.
Eu consigo ser tão forte como você, Irene, pensou ela. Eu consigo passar por isso. Por você.
— Parou em algum lugar na Áustria?
— Não.
— Não aproveitou a oportunidade para visitar Viena?
— Já estive em Viena — disse ela. — Não me agrada.
Ele dispensou um momento examinando-lhe o rosto.
— É italiana?
— Tem meu passaporte na mão.
— Não estou falando de seu passaporte. Estou falando de sua etnia. Seu sangue. Descendência italiana ou imigrante do, digamos, Oriente Médio ou Norte de África?
— Sou italiana — assegurou ela.
O segundo guarda saiu da van e abanou a cabeça. O interrogador devolveu-lhe o passaporte.
— Peço desculpas pelo atraso — disse ele. — Tenha uma boa viagem.
Chiara sentou-se ao volante, engatou a marcha e passou a fronteira devagar. Desatou em lágrimas, lágrimas de alívio, lágrimas de raiva. No início tentou impedi-las, mas não conseguiu. A estrada ficou desfocada, as luzes traseiras transformaram-se em riscos vermelhos, e mesmo assim elas vieram.
— Por você, Irene — disse ela em voz alta. — Fiz isso por você.
A ESTAÇÃO DE trem de Mikulov fica no fim da cidade velha, onde as colinas encontram a planície. Há uma única plataforma, que suporta um quase constante ataque do vento que desliza pelos Cárpatos, e um melancólico estacionamento de gravilha, que se transforma num lago quando chove. Perto da bilheteira está uma parada de ônibus riscada de graffitis, e era ai, encostado ao lado de onde vem o vento, que Gabriel esperava, mãos mergulhadas nos bolsos do casaco impermeável.
Levantou o olhar quando a van entrou no estacionamento e esmagou a gravilha. Esperou até que parasse antes de sair da parada de ônibus para a chuva. Chiara esticou-se e abriu-lhe a porta. Quando a luz de teto se acendeu, ele viu que o seu rosto estava molhado.
— Estás bem?
— Estou ótima.
— Queres que eu conduza?
— Não, eu consigo.
— Tem certeza?
— Entra, Gabriel. Não suporto estar sozinha com ele.
Ele entrou e fechou a porta. Chiara deu meia volta e regressou à autoestrada. Um momento mais tarde estavam a ir para norte, para os Cárpatos. DEMORARAM MEIA HORA até chegar a Brno, mais uma hora para chegar a Ostrava. Gabriel abriu as portas do compartimento duas vezes para verificar Radek. Eram quase oito horas quando chegaram à fronteira polonesa. Sem verificações de segurança desta vez, sem fila de trânsito, apenas uma mão espetada fora do abrigo de tijolo acenando-lhes à passagem pela fronteira.
Gabriel rastejou para a traseira da van e puxou Radek do compartimento. Em seguida abriu uma gaveta e retirou uma seringa. Desta vez tinha uma dose moderada de estimulante, apenas o suficiente para o trazer de volta aos limites do consciente lentamente. Gabriel inseriu a seringa no braço de Radek, injetou a droga, em seguida retirou a agulha e esfregou a ferida com álcool. Os olhos de Radek abriram devagar. Observou o ambiente envolvente por um momento antes de se fixar no rosto de Gabriel.
— Allon? — murmurou ele pela máscara de oxigênio. Gabriel acenou lentamente.
— Para onde me levas? — Gabriel não respondeu. — Vou morrer? — perguntou, e, antes que Gabriel pudesse responder, voltou a ficar inconsciente.
37
POLÔNIA ORIENTAL
A BARREIRA ENTRE consciência e coma era como uma cortina de palco, pela qual ele conseguia passar à vontade. Só não sabia quantas vezes tinha passado por esta cortina. O tempo, como a sua velha vida, estavam perdidos para ele. A sua bela casa de Viena parecia a casa de outro homem, na cidade de outro homem. Algo tinha acontecido quando ele gritou o seu nome aos israelenses. Ludwig Vogel era agora um estranho para ele, um conhecido que ele já não via há muitos anos. Ele era Radek novamente. Infelizmente o tempo não tinha sido meigo com ele. O alto e belo homem de preto estava agora prisioneiro num corpo fraco e decadente.
O judeu tinha-o colocado no forro da traseira. As suas mãos e tornozelos estavam amarrados por uma grossa fita adesiva prateada, e estava amarrado com o cinto de segurança como um doente mental. Os seus pulsos serviam como o portal entre os dois mundos. Apenas tinha de os torcer num determinado ângulo para que a fita se cravasse dolorosamente na pele e passaria a cortina do mundo dos sonhos para o reino do real. Sonhos? Será apropriado chamar a tais visões sonhos? Não, eram demasiado exatas, descritivas demais. Eram memórias, sobre as quais ele não tinha controle, apenas o poder de as interromper por alguns momentos infligindo dor em si próprio com a fita adesiva do judeu.
O seu rosto estava perto da janela, e o vidro estava desobstruído. Ele era capaz, quando estava acordado, de ver a infindável região rural negra e as desoladoras vilas escurecidas. Também era capaz de ler os sinais na estrada. Não precisava dos sinais para saber onde estava. Algures, noutra vida, ele tinha sido o senhor da noite nesta terra. Ele lembrava-se desta estrada: Dachnow, Zukow, Narol... Ele sabia o nome da próxima vila, mesmo antes desta passar pela janela: Belzec...
Fechou os olhos. Porquê agora, passados tantos anos? Depois da guerra ninguém esteve assim tão interessado num mero oficial SD que servira na Ucrânia — ninguém exceto os russos, claro — e no momento em que o seu nome veio ao de cima com ligações à Solução Final, o General Gehlen tinha providenciado a sua fuga e o seu desaparecimento.
A sua antiga vida fora deixada para trás em segurança. Tinha sido perdoado por Deus e a sua Igreja e até mesmo pelos seus inimigos, que gananciosamente tiraram proveito dos seus serviços quando também eles se sentiram ameaçados pelo judaísmo-bolchevismo. Os governos rapidamente perderam o interesse em proceder contra os, assim chamados, criminosos de guerra, e amadores como Wiesenthal focaram a atenção em peixe graúdo como Eichmann e Mengele, ajudando de forma involuntária peixe mais miúdo como ele próprio a encontrar santuário em águas calmas. Houve um susto sério. Em meados dos anos setenta, um jornalista americano, um judeu, claro, que foi a Viena e colocou demasiadas questões. Na estrada que sai de Salzburg para sul ele mergulhou numa ravina, e a ameaça foi eliminada. Nessa altura agiu sem hesitar. Se tivesse lançado Max Klein numa ravina ao primeiro sinal de ameaça... Reparara nele naquele dia no Café Central, assim como nos dias que se seguiram. Os seus instintos tinham-lhe dito que Klein representava uma ameaça. Ele hesitou. Quando Klein levou a sua história ao judeu Lavon era demasiado tarde.
Passou pela cortina outra vez. Estava em Berlim, sentado no gabinete do oficial Gruppenführer Heinrich Müller, chefe da Gestapo. Müller tira um pedacinho de almoço dos dentes e sacode uma carta que acabou de receber de Luther no Ministério dos Negócios Estrangeiros. É 1942.
— Rumores das nossas atividades no Leste começaram a chegar aos ouvidos dos nossos inimigos. Também temos um problema com um dos locais na região de Warthegau. Queixas sobre uma contaminação qualquer.
— Se me permite colocar a questão óbvia, Herr Gruppenführer, que diferença faz se rumores chegam ao Oeste? Quem vai acreditar que tal coisa foi realmente possível?
— Rumores é uma coisa, Erich. Provas é outra.
— Quem vai descobrir provas? Algum servo polonês atrasado mental? Um vesgo abridor de valas ucraniano?
— Talvez os Ivans?
— Os russos? Como descobririam?
Müller ergueu uma mão de pedreiro. Discussão terminada. E então ele percebeu. A aventura russa do Führer não estava indo de acordo com os planos. A vitória no Leste já não estava assegurada.
Müller inclinou-se para a frente.
— Estou te mandando para o inferno Erich. Vou espetar essa sua cara nórdica tão fundo no esterco que nunca mais vai ver a luz do dia.
— Como poderei jamais agradecer, Herr Gruppenführer?
— Limpe a porcaria. Toda. Em toda parte. É sua responsabilidade garantir que se mantenha apenas um rumor. E quando a operação estiver concluída, quero que seja o único homem de pé.
Ele concordou. O rosto de Müller afastou-se pela noite polonesa. Estranho, não é? A sua verdadeira contribuição para a Solução Final não foi matar mas esconder e garantir a segurança, e no entanto estava com problemas agora, sessenta anos depois, por causa de um jogo idiota que fizera bêbado em Auschwitz num domingo. Aktion 1005? Sim, fora um projeto seu, mas nenhum sobrevivente judeu testemunharia sua presença na beira de uma vala comum, porque não havia sobreviventes. Ele geriu uma operação fechada. Eichmann e Himmler teriam sido aconselhados a fazer o mesmo. Foram tolos em permitir que tantos sobrevivessem.
Uma memória surgiu, janeiro de 1945, um rio de judeus frágeis dispersos ao longo de uma estrada muito parecida com esta. A estrada de Birkenau. Milhares de judeus, cada um com uma história para contar, cada um uma testemunha. Ele defendia a liquidação da população inteira do campo antes da evacuação. Não, disseram. Trabalho escravo era necessário com urgência no Reich. Trabalho? A maioria dos judeus que ele tinha visto sair de Birkenau mal conseguia andar, quanto mais manejar uma picareta ou uma pá. Eles não eram aptos para o trabalho, apenas para o massacre, e já tinha matado uns quantos, ele próprio. Por que, em nome de Deus, lhe tinham ordenado que limpasse as valas para depois permitir que milhares de testemunhas caminhassem para fora de um local como Birkenau?
Ele se esforçou por manter os olhos abertos, e observou pela janela. Estavam a conduzir ao longo das margens de um rio, perto da fronteira ucraniana. Ele conhecia este rio, um rio de cinzas, um rio de ossos.
Pensou quantas centenas de milhares estariam ali embaixo, sedimentadas no leito do Rio Bug.
Uma cidade adormecida: Uhrusk. Pensou em Peter. Ele tinha avisado que isto aconteceria.
— Se eu me tornar uma ameaça séria, posso ganhar a chancelaria — dissera Peter —, alguém vai tentar nops expor.
Ele sabia que Peter estava certo, mas também acreditava que conseguiria lidar com qualquer ameaça. Estava errado, e agora seu filho teria de enfrentar uma humilhação eleitoral inimaginável, tudo por sua culpa. Era como se os judeus tivessem levado Peter à beira de uma vala comum e apontado uma arma para sua cabeça. Ele pensou que conseguiria evitar que eles puxassem o gatilho, se conseguisse quebrar mais um acordo, engendrar uma fuga final.
E este judeu que olha fixamente para mim com aqueles rancorosos olhos verdes? O que espera ele que eu faça? Peça perdão? Vergue, chore e cuspa sentimentalismos? O que este judeu não percebe é que eu não sinto culpa pelo que fiz. Eu fui forçado pela mão de Deus e os ensinamentos da minha Igreja. Não nos disseram os padres que os judeus foram os assassinos de Deus? O Santo Padre e os seus cardeais não ficaram em silêncio quando sabiam perfeitamente o que estávamos a fazer no Leste? Será que este judeu espera que eu reprove assim sem mais nem menos e diga que foi um erro terrível? E porque olha ele para mim assim? Aqueles olhos eram-lhe familiares. Já os tinha visto em algum lado antes. Talvez fosse das drogas que lhe tinham dado. Ele não conseguia ter a certeza de nada. Ele nem tinha sequer a certeza de estar vivo. Talvez fosse a sua alma a fazer esta viagem ao longo do Rio Bug. Talvez estivesse no inferno.
Outra aldeola: Wola Uhruska. Ele conhecia a próxima vila. Sobibor...
Fechou os olhos, o veludo da cortina envolveu-o. É a Primavera de 1942, está a conduzir para fora de Kiev na estrada de Zhitomir com o comandante de uma unidade Einsatzgruppen ao lado. Estão a caminho para inspecionar uma ravina que se transformou num problema de segurança, um lugar que os ucranianos chamam Babi Yar. Quando chegam, o Sol já está a desaparecer no horizonte e está quase a anoitecer. Mesmo assim, há luz suficiente para observar o estranho fenômeno que acontece no fundo da ravina. A terra parece estar a debater-se com um ataque epiléptico. O solo tem convulsões, gás é disparado para o ar, juntamente com gêiseres de líquido pútrido. O fedor! Meu Deus, o fedor. Ele consegue cheirá-lo agora.
— Quando começou?
— Pouco depois do final do Inverno. O chão aqueceu, então os corpos aqueceram. Eles decompõem-se muito rapidamente.
— Quantos estão ali embaixo?
— Trinta e três mil judeus, alguns ciganos e prisioneiros soviéticos, assim por alto.
— Cerque a ravina inteira.
— No momento outros locais têm prioridade. Trataremos deste assim que possível.
— Que outros locais?
— Locais de que nunca ouviu falar: Birkenau, Belzec, Sobibor, Treblinka. Nosso trabalho aqui está feito. Esperam novas chegadas a qualquer momento, nos outros.
— O que vai fazer com este local?
— Abrimos as valas e queimamos os corpos, em seguida esmagamos os ossos e espalhamos os fragmentos nas florestas e nos rios.
— Queimar trinta mil cadáveres? Tentamos isso nas operações de massacre. Usamos lança-chamas, pelo amor de Deus. Cremações maciças a céu aberto não funcionam.
— Isso é porque nunca construíram uma pira em condições. Em Chelmno, eu provei que pode ser feito. Confie em mim, Kurt, um dia este local chamado Babi Yar será apenas um rumor, como os judeus que viviam aqui.
Ele torceu os pulsos. Desta vez a dor não foi suficiente para acordar. A cortina recusou-se a abrir. Permaneceu trancado numa prisão de memórias, vagueando por um rio de cinzas.
MERGULHARAM PELA noite adentro. O tempo era uma memória. A fita adesiva tinha-lhe cortado a circulação. Já não conseguia sentir as mãos e os pés. Sentia-se febrilmente quente num minuto e arrepiantemente frio no outro. Tinha a impressão de terem parado uma vez. Tinha cheirado gasolina. Estariam eles a encher o depósito? Ou seria apenas a memória de traves de caminho-de-ferro ensopadas em combustível?
Os efeitos da droga finalmente dissiparam. Ele estava agora acordado, alerta e consciente, e seguro de que não estava morto. Algo na postura do judeu lhe disse que estavam próximos do final da jornada. Tinham passado por Siedlce, depois, em Sokolow Podlaski, tinham virado para uma estrada de campo mais estreita. Dybow veio a seguir, depois Kosow Lacki. Saíram da estrada principal, para um trilho de terra batida. A van trepidava: dump-dump... dump-dump. A velha via-férrea, pensou, ainda aqui estava, claro. Seguiram o trilho até uma plataforma de abetos e bétulas e pararam um momento mais tarde num pequeno estacionamento alcatroado.
Um segundo carro entrou na clareira com os faróis apagados. Três homens saíram e aproximaram-se da van. Ele reconheceu-os. Eram os que o tinham tirado de Viena. O judeu colocou-se em cima dele e cuidadosamente cortou a fita adesiva e soltou as correias de couro.
— Venha — disse ele agradavelmente. — Vamos dar um passeio.
38
TREBLINKA, POLÔNIA
SEGUIRAM POR UM trilho por entre as árvores. Tinha começado a nevar. Os flocos caíam suavemente pelo ar tranquilo e assentavam-lhes nos ombros como cinzas de um
fogo distante. Gabriel segurava Radek pelo cotovelo. Os seus passos eram cambaleantes no início, mas em breve o sangue começou a fluir-lhe novamente aos pés e insistiu em caminhar sem o suporte de Gabriel. A sua respiração difícil gelava no ar. Cheirava a amargo e a medo.
Avançaram mais fundo para dentro da floresta. O trilho era arenoso e coberto por uma fina camada de faúlhas. Oded estava vários passos à frente, quase invisível através da queda de neve. Zalman e Navot caminhavam em formação atrás deles. Chiara tinha ficado para trás na clareira, vigiando os veículos. Fizeram uma pausa numa brecha nas árvores, de cerca de cinco metros de largura, estendendo-se pelo escuro. Gabriel iluminou-a com o foco de uma lanterna. No centro do corredor, em intervalos equidistantes, estavam várias pedras em pé. As pedras marcavam a linha da antiga vedação. Tinham chegado ao perímetro do campo. Gabriel desligou a lanterna e puxou Radek pelo cotovelo. Radek tentou resistir, mas tropeçou para a frente.
— Faça o que eu digo, Radek, e vai correr tudo bem. Não tente fugir, porque não há por onde escapar. Não vale a pena gritar por ajuda, porque ninguém vai ouvir seus gritos.
— Sente prazer em me ver com medo?
— Sinto nojo, para dizer a verdade. Não gosto nem de tocá-lo. Eu não gosto do som de sua voz.
— Então por que estamos aqui?
— Eu apenas quero que veja algumas coisas.
— Não há nada para ver aqui, Allon. Apenas um memorial polonês.
— Precisamente — Gabriel deu-lhe um puxão no cotovelo. — Venha, Radek. Mais depressa. Tem que andar mais depressa. Não temos muito tempo. Vai amanhecer em breve.
Um momento mais tarde, pararam de novo perante um caminho-de-ferro sem carris, o velho ramal que trouxera os trens da estação de Treblinka até o interior do campo. As traves tinham sido recriadas em pedra e estavam cobertas por neve recente. Seguiram os carris até o campo e pararam no sítio onde tinha estado a plataforma. Também ela estava representada em pedra.
— Lembra, Radek?
Ele ficou em silêncio, o queixo caído, a respiração áspera.
— Vá lá, Radek. Sabemos quem você é, nós sabemos o que fez. Desta vez não vai escapar. Não vale a pena entrar em jogos ou tentar negar alguma coisa. Não há tempo, a não ser que não queira salvar seu filho.
A cabeça de Radek girou lentamente. Os seus lábios comprimiram-se e o seu olhar endureceu.
— Faria mal ao meu filho?
— Na verdade, você fará por nós. Tudo o que temos a fazer é dizer ao mundo quem é o pai dele, e isso o destruirá. Foi por isso que plantou a bomba no escritório de Eli Lavon: para proteger Peter. Ninguém podia tocá-lo, não num lugar como a Áustria. A janela para você estava fechada há muito tempo. Estava seguro. A única pessoa que podia pagar um preço por seus crimes é seu filho. Foi por isso que tentou matar Eli Lavon. Foi por isso que assassinou Max Klein.
Voltou as costas a Gabriel e olhou para a escuridão.
— O que é que queres? O que queres saber?
— Conta-me como foi Radek. Eu já li sobre isso, eu vejo o memorial, mas não consigo imaginar como funcionou realmente. Como foi possível transformar em fumo um trem cheio de pessoas em apenas quarenta e cinco minutos? Quarenta e cinco minutos, porta a porta, não era disso que o staff das SS se costumava vangloriar por estes lados? Conseguiam transformar um judeu em fumo em quarenta e cinco minutos. Doze mil judeus por dia. Oitocentos mil no total.
Radek emitiu um riso fechado, um interrogador que não acreditava na afirmação do seu prisioneiro. Gabriel sentiu como se uma pedra tivesse sido posta sobre o seu coração.
— Oitocentos mil? Onde foste buscar um número desses?
— É a estimativa oficial do governo polonês.
— E espera que um bando de seres inferiores, como os poloneses, seja capaz de saber o que aconteceu nestes bosques? — A sua voz pareceu subitamente diferente, mais jovem e autoritária. — Por favor Allon, se vamos ter esta discussão, lidemos com os fatos e não com idiotice polonesa. Oitocentos mil? — Abanou a cabeça e efetivamente sorriu. Não, não foram oitocentos mil. O número real foi muito superior a isso.
UMA SÚBITA RAJADA de vento agitou as copas das árvores. Para Gabriel soou como o som dos rápidos de um rio. Radek estendeu a mão e pediu a lanterna. Gabriel hesitou.
— Não pensa que vou atacar você com isso, não?
— Eu sei de algumas coisas que fez.
— Isso foi há muito tempo.
Gabriel entregou-lhe a lanterna. Radek apontou o foco para a esquerda, iluminando um molho de árvores de folha permanente.
— Eles chamavam a esta área o campo de baixo. As casernas das SS eram ali mesmo. A vedação periférica passava mesmo por trás. Em frente, havia uma estrada alcatroada com arbustos e flores durante a Primavera e o Verão. Talvez te custe a acreditar, mas era na realidade bastante agradável. Não havia tantas árvores, claro. Plantamos as árvores depois de demolir o campo. Na altura eram apenas rebentos. Agora, estão completamente adultas, bem bonitas.
— Quantos SS?
— Normalmente cerca de quarenta. moças judias tratavam-lhes da limpeza, mas tinham polonesas para cozinhar, três moças locais que vinham das vilas em redor.
— E os ucranianos?
— Estavam aquartelados do lado oposto da estrada, em cinco casernas. A casa de Stangl era no meio, no cruzamento de duas estradas . Ele tinha um belo jardim. Foi desenhado para ele por um homem de Viena.
— Mas os recém-chegados nunca viram essa parte do campo?
— Não, não, cada parte do campo era cuidadosamente escondida da outra por vedações intercaladas com plantações de pinheiros. Quando chegavam ao campo, eles viam o que parecia ser uma normal estação de trem de campo, completa com um horário de partidas falso. Não havia partidas de Treblinka, claro. Apenas trens vazios partiam da estação.
— Havia aqui um edifício, não havia?
— Fora desenhado para parecer uma normal estação de trem, mas na realidade estava cheio de valores roubados de chegadas anteriores. Aquela seção ali era conhecida como o Largo da Estação. Ali havia o Largo da Recepção, ou o Largo da Triagem.
— Alguma vez viste a chegada dos transportes?
— Eu não tinha nada a ver com esse tipo de situação, mas sim, eu vi-os chegar.
— Havia dois procedimentos de chegada diferentes? Um para judeus da Europa Ocidental e outro para judeus do Leste?
— Sim, está correto. Os judeus da Europa Ocidental eram tratados com muita mentira e fraude. Não havia chicotes nem gritos. Era-lhes pedido educadamente que desembarcassem do trem. Pessoal médico de batas brancas estava à espera no Largo da Recepção para tratar dos doentes.
— Era tudo um estratagema, no entanto. Os velhos e os doentes eram levados e abatidos a tiro imediatamente.
Ele concordou.
— E os judeus do Leste? Como eram recebidos na plataforma?
— Eram recebidos por chicotes ucranianos.
— E depois?
Radek levantou a lanterna e apontou o foco a uma curta distância através da clareira.
— Havia uma cerca de arame farpado aqui. Para lá do arame existiam dois edifícios. Um era uma caserna para despir. No segundo edifício, judeus de trabalho cortavam o cabelo às mulheres. Quando terminavam, elas iam naquela direção. — Radek usou a lanterna para iluminar o caminho. — Havia aqui uma passagem, uma espécie de passagem de gado, com alguns metros de largura, arame farpado e ramos de pinheiro. Era conhecida como o tubo.
— Mas as SS tinham um nome especial para isso, não tinham?
Radek acenou.
— Estrada para o Paraíso.
— E onde ia dar a Estrada para o Paraiso?
Radek levantou o foco da sua luz.
— Para o campo de cima — disse. — O campo da morte.
PROSSEGUIRAM O CAMINHO até uma larga clareira polvilhada com centenas de pedregulhos, cada pedra representava uma comunidade judaica destruída em Treblinka. A pedra maior ostentava o nome Varsóvia. Gabriel olhou para lá das pedras, em direção ao céu, para leste. Começava a ganhar claridade.
— A Estrada para o Paraiso levava diretamente a um edifício de tijolo que albergava as câmaras de gás — disse Radek quebrando o silêncio. De repente parecia ansioso por falar. — Cada câmara tinha quatro metros por quatro metros. Inicialmente eram apenas três, mas em breve descobriram que precisavam de mais capacidade para satisfazer a procura. Foram acrescentadas mais dez. Um motor a gasóleo bombeava gases de monóxido de carbono para as câmaras. A asfixia demorava menos de trinta minutos. Depois disso os corpos eram retirados.
— E o que era feito com eles?
— Durante vários meses, foram enterrados ali fora, em grandes valas. Mas muito rapidamente as valas transbordaram e a decomposição dos corpos contaminou o campo.
— Foi quando chegou?
— Não de imediato. Treblinka era o quarto campo da nossa lista. Limpamos as valas de Birkenau primeiro, a seguir Belzec e Sobibor. Só chegamos a Treblinka em março de 1943. Quando eu cheguei... — a sua voz arrastou-se. — Terrível.
— O que fez?
— Abrimos as valas, claro, e retiramos os corpos.
— À mão?
Ele abanou a cabeça.
— Tínhamos uma escavadora mecânica. Acelerou bem o trabalho.
— A garra, não era assim que chamavam?
— Sim, era isso.
— E depois dos corpos serem retirados?
— Eram incinerados em grandes prateleiras de metal.
— Tinham um nome especial para as prateleiras, não tinham?
— Assadeiras — disse Radek. — Chamávamos de assadeiras.
— E depois dos corpos serem queimados?
— Esmagávamos os ossos e voltávamos a enterrá-los nas valas ou levávamos em carroças para despejar no rio Bug.
— E quando as valas antigas ficaram vazias?
— Depois disso, os corpos eram levados diretamente das câmaras de gás para as assadeiras. Funcionou assim até outubro desse ano, quando o campo foi fechado e todos os traços foram obliterados. Operou por pouco mais de um ano.
— E mesmo assim conseguiram assassinar oitocentos mil?
— Não foram oitocentos mil.
— Quantos foram então?
— Mais de um milhão. É qualquer coisa, não é? Mais de um milhão de pessoas, num lugar minúsculo como este, no meio de uma floresta polonesa.
GABRIEL TIROU A lanterna do rosto dele sacou a Beretta. Empurrou Radek com o cano. Caminharam ao longo de uma trilha, pelo campo de pedras. Zalman e Navot ficaram para trás no campo de cima. Gabriel conseguia ouvir os passos de Oded na gravilha atrás dele.
— Parabéns, Radek. Graças a você, é apenas um cemitério simbólico.
— Vai me matar agora? Não disse o que queria ouvir?
Gabriel empurrou-o pelo trilho.
— Você talvez tenha algum orgulho deste lugar, mas para nós é solo sagrado. Acha realmente que eu o poluiria com seu sangue?
— Então qual é o propósito disso? Por que me trouxe aqui?
— Você precisava ver isso mais uma vez. Visitar o local do crime para refrescar a memória e se preparar para o próximo testemunho. É assim que vai salvar seu filho da humilhação de ter tal homem na condição de pai. Vai para Israel pagar por seus crimes.
— Não foi meu crime! Eu não os matei! Eu apenas fiz o que Müller me ordenou. Eu limpei a porcaria!
— Teve sua cota de matança, Radek. Lembra do joguinho com Max Klein em Birkenau? E a marcha da morte? Também estava lá, não estava, Radek?
Radek reduziu o passo e voltou a cabeça. Gabriel deu-lhe um empurrão. Chegaram a um amplo declive retangular cheio de lascas de basalto negro, o local onde era a vala de cremação.
— Mate-me agora, maldição! Não me leve para Israel! Mate-me agora e acabe com isso. Aliás, é nisso que você é bom, não é, Allon?
— Não aqui — disse Gabriel. — Não neste lugar. Você nem sequer merece pôr os pés aqui, quanto mais morrer.
Radek caiu de joelhos defronte à vala.
— E se eu concordar em ir? Que destino me espera?
— A verdade o espera, Radek. Será posto perante o povo de Israel e confessará seus crimes. Seu papel na Aktion 1005. O massacre de prisioneiros em Birkenau. As mortes que infligiu durante a marcha da morte de Birkenau. Lembra das moças que assassinou, Radek?
Radek voltou a cabeça.
— Como é que...
Gabriel interrompeu-o.
— Não vai enfrentar julgamento por seus crimes, mas vai passar o resto da vida atrás das grades. Enquanto estiver na prisão, vai trabalhar com uma equipe de estudantes do Holocausto de Yad Vashem para compilar minuciosamente a história de Aktion 1005. Vais dizer aos que negam e aos que duvidam exatamente o que fizeste para esconder o maior caso de assassinato de massas da história. Vais dizer a verdade pela primeira vez na vida.
— Qual verdade, sua ou a minha?
— Só há uma verdade, Radek. Treblinka é a verdade.
— E o que é que eu ganho com isso?
— Mais do que mereces — disse Gabriel. — Não diremos nada sobre a ascendência duvidosa de Metzler.
— Estás disposto a aceitar um chanceler austríaco da extrema-direita para me apanhar?
— Algo me diz que Peter Metzler se vai tornar um grande amigo de Israel e dos judeus. Ele não vai querer fazer nada para nos irritar. Afinal de contas, nós teremos a chave para a sua destruição até muito depois de tu morreres.
— Como convenceste os americanos a trair-me? Chantagem, suponho: é essa a maneira judaica. Mas deve ter havido mais. Certamente juraram que nunca me dariam oportunidade de discutir a minha afiliação com a Organização Gehlen ou com a CIA. Suponho que a sua dedicação à verdade para por aí.
— Dá-me sua resposta Radek.
— Como posso confiar em ti, um judeu, que cumpras sua parte do acordo?
— Andaste a ler Der Sturmer outra vez? Vais confiar em mim porque não tens outra alternativa.
— E o que é que vai adiantar? Vai trazer de volta alguma das pessoas que aqui morreram?
— Não — concedeu Gabriel —, mas o mundo saberá a verdade, e tu vais passar os últimos anos de sua vida onde pertences. Aceita o acordo, Radek. Aceita pelo teu filho. Pensa nele como uma última fuga.
— Não ficará secreto para sempre. Um dia, a verdade sobreste caso vai vir ao de cima.
— Se calhar — disse Gabriel. — Suponho que não seja possível esconder a verdade para sempre.
A cabeça de Radek voltou-se lentamente e ele olhou para Gabriel com desdém.
— Se fosses um homem a sério, fazias tu mesmo. — Esboçou um sorriso trocista.
— Quanto à verdade, ninguém se importou enquanto este lugar estava operacional, e ninguém se vai importar agora.
Voltou-se e olhou para a vala. Gabriel guardou a Beretta no bolso e afastou-se. Oded, Zalman e Navot ficaram imóveis por trás dele no trilho. Gabriel passou por eles sem dizer uma palavra e dirigiu-se para baixo através do campo até a plataforma de caminho-de-ferro. Antes de virar para as árvores, parou por instantes para olhar sobre o ombro e viu Radek, segurando-se ao braço de Oded, pondo-se de pé devagar.
PARTE QUATRO
O prisioneiro de Abu Kabir
39
JAFFA, ISRAEL
HOUVE MUITA DISCUSSÃO sobre onde o manter cativo. Lev considerava-o um risco para a segurança e, como tal, queria mantê-lo sob custódia do Escritório. Shamron, como de costume, tomou a posição contrária, quanto mais não fosse por não querer ver os seus adorados serviços restringidos a gerir prisões. O primeiro-ministro, mesmo que a brincar, sugeriu que Radek fosse forçado a marchar para o Negev, para que os escorpiões e abutres tratassem dele. No fim, acabou por ser Gabriel a tomar a decisão. Segundo ele, para alguém como Radek, a pior punição seria a de ser tratado como um criminoso comum. Procuraram um local apropriado e concordaram em prendê-lo numa prisão policial, construída pelos ingleses durante o Mandato numa zona degradada de Jaffa, ainda hoje conhecida pelo seu nome árabe: Abu Kabir.
Passaram 72 horas para que a apreensão de Radek fosse tornada pública. O comunicado do primeiro-ministro foi conciso e propositadamente enganador. Foram tomadas muitas precauções para evitar embaraçar, sem necessidade, os austríacos. Segundo disse o primeiro-ministro, Radek foi descoberto a viver sob falsa identidade num pais não especificado. E após um período de negociações concordara vir de livre vontade para Israel. Segundo os termos do acordo, ele não seria julgado, uma vez que de acordo com a lei israelense, a única sentença possível seria a condenação à morte. Em vez disso, ele permaneceria constantemente sob a detenção do Estado e iria, de fato, dar-se como culpado dos seus crimes contra a humanidade ao trabalhar com uma equipe de historiadores em Yad Vashem e na Universidade Hebraica, com a finalidade de compilar a história definitiva da Aktion 1005.
Houve pouco rebuliço e muito menos excitação do que com a noticia que acompanhou o rapto de Eichmann. Na realidade, a noticia da captura de Radek foi sobreposta poucas horas depois pelo massacre de vinte e cinco pessoas num mercado de Jerusalém por um homem-bomba. Lev sentiu uma certa satisfação com o desenrolar dos acontecimentos, pois assim demonstrava o seu ponto de vista de que o Estado tinha mais com que se preocupar do que perseguir velhos nazistas. Começou a referir-se ao caso como "a asneira de Shamron", apesar de ele ter recuperado o seu devido nível hierárquico no serviço. Dentro do King Saul Boulevard, a captura de Radek pareceu reacender velhas fogueiras. Lev ajustou a sua postura de acordo com o estado de espirito geral mas era demasiado tarde. Todos sabiam que a prisão de Radek havia sido orquestrada pelo Memuneh e Gabriel e que Lev tinha tentado bloqueada a cada passo. O carisma de Lev junto dos soldados rasos caiu para níveis perigosamente baixos.
A pouco crível tentativa de manter secreta a identidade austríaca de Radek foi desfeita pelo vídeo da sua chegada a Abu Kabir. A imprensa de Vienna identificou rápida e corretamente o prisioneiro como sendo Ludwig Vogel, um empresário austríaco de renome. Teria ele de fato concordado deixar Viena voluntariamente? Ou teria sido, na verdade, raptado da sua residência fortificada no Primeiro Bairro? Nos dias que se seguiram, os jornais faziam alusões especulativas à sua misteriosa carreira e às suas ligações politicas. As investigações da imprensa aproximaram-se perigosamente de Peter Metzler. Renate Hoffman da Coligação para uma Áustria Melhor solicitou um inquérito oficial ao caso e sugeriu que Radek poderia ter ligações ao atentado a bomba ao Escritório de Investigação e Reclamações do Tempo da Guerra e à misteriosa morte de um judeu idoso chamado Max Klein. As suas exigências foram categoricamente ignoradas. O governo disse que o atentado fora obra de terroristas islâmicos. E quanto à infeliz morte de Max Klein, fora suicídio. Segundo o ministro da Justiça qualquer investigação complementar seria um desperdício de tempo.
O capítulo seguinte do caso Radek teria lugar, não em Viena, mas em Paris, onde um ex-agente do KGB com aspecto duvidoso surgiu na televisão francesa dizendo que Radek era o homem de Moscovo em Viena. Um antigo chefe de espionagem da Stasi, que se havia tornado um êxito literário na nova Alemanha, veio também reconhecer Radek.
De início, Shamron suspeitou que estas reivindicações faziam parte de uma campanha conjunta de desinformação com o fim de ilibar a CIA do vírus Radek: que era exatamente o que ele teria feito se os papéis estivessem invertidos. Depois, descobriu que, no interior da Agência, as sugestões de que Radek podia ter jogado para ambos os lados criaram algum pânico. Estavam a ser retirados arquivos dos arquivos mortos e a ser reunida à pressa uma equipe soviética de ajuda com elementos veteranos. Shamron divertia-se secretamente com a ansiedade dos seus colegas de Langley. Segundo Shamron, se se viesse a descobrir que Radek era um agente duplo seria muito justo. Adrian Carter solicitou autorização para interrogar Radek mal os historiadores tivessem terminado o seu trabalho. Shamron prometeu considerar o assunto com seriedade. O PRISIONEIRO DE Abu Kabir estava bastante alheio à tempestade criada à sua volta. A sua prisão era solitária, apesar de não ser demasiado árdua. Mantinha a cela e as roupas limpas, aceitava comida e pouco reclamava. Por muito que os guardas quisessem odiá-lo, não conseguiam. No fundo ele era um polícia e os seus carcereiros pareciam ver nele algo familiar. Tratava-os com cortesia e, como reação, era tratado com cortesia. Ele era, também, uma espécie de curiosidade. Eles haviam lido sobre homens como ele na escola e passavam à frente da sua cela a qualquer hora, apenas para o ver. Radek começou aos poucos a sentir-se como se fosse uma peça de exposição de um museu.
O seu único pedido foi o de lhe ser autorizado o acesso a um jornal todos os dias para se manter a par dos assuntos da atualidade. A questão foi levada até Shamron, que deu a sua autorização, desde que fosse um jornal israelense e não uma qualquer publicação alemã. Todas as manhãs o Jerusalém Post era-lhe entregue com a travessa do pequeno-almoço. Normalmente saltava as histórias sobre si mesmo — eram, aliás, muito incorretas — e dirigia-se diretamente à seção das notícias internacionais com a finalidade de acompanhar os desenvolvimentos das eleições austríacas.
Moshe Rivlin visitou Radek várias vezes para se preparar para o seu iminente depoimento. Foi decidido que as sessões seriam filmadas e transmitidas à noite na televisão israelense. Radek parecia estar cada vez mais agitado com a aproximação do dia da sua primeira aparição em público. Discretamente, Rivlin pediu ao chefe da prisão para manter o prisioneiro sob vigilância de suicídio. Foi plantado um guarda no corredor, junto às barras da cela de Radek. Ao princípio, Radek criou atritos com a vigilância adicional, mas passou rapidamente a apreciar a companhia.
Rivlin surgiu uma última vez na véspera da primeira sessão de depoimento de Radek. Passaram uma hora juntos; Radek estava preocupado e, pela primeira vez, nada cooperante. Rivlin arrumou os seus documentos e notas e pediu ao guarda para abrir a porta.
— Quero vê-lo — disse Radek de repente. — Pergunte se me daria a honra de me fazer uma visita. Diga-lhe que há algumas perguntas que eu quero fazer.
— Não posso prometer nada — disse Rivlin. — Não tenho ligações a...
— Pergunte, apenas — disse Radek. — O máximo que ele pode fazer é dizer não.
SHAMRON OBRIGOU Gabriel a permanecer em Israel até o primeiro dia de depoimento de Radek e Gabriel, apesar de estar ansioso por voltar a Veneza, aceitou relutante. Ele ficou no apartamento seguro perto das Portas de Zion e acordava todas as manhãs ao som dos sinos da igreja do bairro armênio. Sentava-se na sombra do terraço olhando as muralhas da Cidade Velha e desfrutava o seu tempo com café e jornais. Seguia de perto o caso Radek. Ficou contente por ver o nome de Shamron ligado à captura e não o seu. Gabriel vivia no estrangeiro, sob uma identidade falsa e não precisava que o seu verdadeiro nome fosse espalhado pela imprensa. Além disso, depois de tudo o que Shamron tinha feito pelo seu país, merecia um último dia de glória.
Conforme os dias passavam, lentamente, Gabriel percebeu que Radek parecia, cada vez mais, um estranho. Apesar de abençoado com uma memória quase fotográfica,
Gabriel lutava por se lembrar claramente da cara de Radek ou do som da sua voz. Treblinka parecia algo saído de um pesadelo. Perguntou-se se a sua mãe teria sentido o mesmo. Teria Radek permanecido nas divisões da sua memória como um convidado indesejado, ou teria ela forçado a sua memória para produzir a sua imagem na tela? Teria sido assim para todos os que se tinham cruzado com um Mal tão perfeito? Talvez assim se explicasse o silêncio que tinha dominado os sobreviventes. Talvez eles tivessem sido piedosamente libertados da dor das suas memórias, como meio de autopreservação. Uma ideia regressava-lhe constantemente ao pensamento: se, naquele dia na Polônia, Radek tivesse morto a sua mãe em vez das outras duas moças, ele nunca teria existido. Também ele começou a sentir a culpa dos sobreviventes.
Ele só tinha a certeza de uma coisa: ainda não estava pronto para esquecer. Assim, ficou contente quando um dos acólitos de Lev lhe ligou uma tarde a perguntar se ele estaria disposto a escrever uma história oficial do caso. Gabriel aceitou, desde que ele pudesse também criar uma versão não censurada dos acontecimentos, para ser guardada nos arquivos de Yad Vashem. Houve ainda alguma discussão sobre quando tal documento poderia ser tornado público. Foi então definida uma data de lançamento, quarenta anos, e Gabriel começou o trabalho.
Ele escreveu na mesa da cozinha, num computador portátil fornecido pelo Escritório. Todas as noites, trancava o computador num cofre de chão, escondido sob o sofá da sala de estar. Não tinha qualquer experiência de escrita, por isso, por instinto, fez a aproximação ao projecto como se de uma pintura se tratasse. Começou com um esboço de base, amplo e amorfo e então, lentamente, foi adicionando camadas de tinta. Usou uma paleta simples e a sua técnica de traço foi cuidada. com o passar dos dias, a cara de Radek voltou-lhe à memória com a clareza com que havia sido pintada pela mão da sua mãe.
Usualmente, trabalhava até o princípio da tarde. Depois fazia uma pausa e dava um passeio até o Hospital da Universidade de Hadassah, onde, após um mês de coma, Eli Lavon estava a mostrar sinais de querer regressar à consciência. Gabriel sentava-se junto de Lavon cerca de uma hora e falava-lhe do caso. Depois voltava ao apartamento e trabalhava até a noite.
No dia em que terminou o relatório, deixou-se ficar no Hospital até o princípio da noite e, por acaso, estava lá quando os olhos de Lavon se abriram. Lavon ficou a fixar o vazio por uns instantes; então a velha expressão inquisidora voltou-lhe ao olhar e divagou pelo ambiente desconhecido da sala do hospital até se fixar no rosto de Gabriel.
— Onde estamos? Viena?
— Jerusalém.
— O que é que estás aqui a fazer?
— Estou a trabalhar num relatório para o Escritório.
— Sobre o quê?
— Sobre a captura de um criminoso de guerra nazista chamado Erich Radek.
— Radek?
— Ele estava a viver em Viena sob o nome de Ludwig Vogel. Lavon sorriu.
— Conta-me tudo — murmurou, mas antes que Gabriel pudesse dizer uma palavra, ele já tinha adormecido outra vez.
Nessa noite, quando Gabriel voltou ao apartamento, a luz do atendedor de chamadas estava a piscar. Carregou no PLAY e a ouviu a voz de Moshe Rivlin.
— O prisioneiro de Abu Kabir quer falar com você. Eu mandava-o para o Inferno. Você é que sabe.
40
JAFFA, ISRAEL
O CENTRO DE DETENÇÕES era cercado por um alto muro cor de areia, com rolos de arame farpado no topo. Gabriel apresentou-se na entrada exterior no inicio da manhã seguinte e foi admitido sem demora. Para chegar ao interior, tinha de atravessar uma passagem vedada estreita, que lhe lembrava demasiado a Estrada para o Paraiso em Treblinka. Um guarda esperava-o na outra ponta. Silenciosamente, conduziu Gabriel pela porta de segurança e depois para uma sala de interrogatórios sem janelas, com paredes em blocos de betume. Radek estava sentado à mesa, imóvel, vestido com um terno escuro e gravata, para prestar depoimento. Estava algemado com os dedos cruzados sobre a mesa. Saudou Gabriel com um aceno de cabeça quase imperceptível, mas permaneceu sentado.
— Tire-lhe as algemas — disse Gabriel ao guarda.
— É contra as regras.
Gabriel olhou para o guarda e, pouco depois, as algemas tinham sido tiradas.
— Faz isso muito bem — disse Radek. — Isso foi mais uma artimanha psicológica sua? Está tentando demonstrar seu domínio sobre mim?
Gabriel puxou a cadeira de ferro e sentou-se.
— Não me parece que dadas as circunstâncias seja necessária uma demonstração dessas.
— Suponho que esteja certo — disse Radek. — Mesmo assim, admiro a forma como lidou com todo o caso. Eu gostaria de acreditar que teria feito as coisas assim tão bem.
— Para quem? — perguntou Gabriel. — Para os americanos, ou para os russos?
— Está se referindo às alegações feitas em Paris por aquele idiota do Belov?
— São verdadeiras?
Radek fitou Gabriel em silêncio e por breves segundos parte do velho olhar de aço regressou-lhe aos olhos azuis.
— Quando alguém esteve em jogo tanto tempo como eu estive, faz tantas alianças e envolve-se em tantas mentiras, que no fim é difícil saber onde é que a verdade e a mentira se separam.
— Belov parece ter certeza de que sabe a verdade.
— Sim, mas receio que seja apenas a certeza de um tolo. Sabe, é que Belov não estava em posição de saber a verdade. — Radek mudou de assunto. — Presumo que tenha visto os jornais desta manhã?
Gabriel acenou que sim.
— A margem de vitória dele foi maior que a esperada. Aparentemente, minha prisão teve algo a ver com isso. Os austríacos nunca gostaram de ver estranhos se metendo em seus assuntos.
— Não está se vangloriando, está?
— Claro que não — disse Radek. — Estou apenas com pena de não ter negociado com mais dureza em Treblinka. Talvez não devesse ter aceite tão facilmente. Não tenho tanta certeza de que a campanha do Peter pudesse ter descarrilhado com as revelações do meu passado.
— Há coisas que são politicamente incômodas, mesmo num pais como a Áustria
— Você nos subestima, Allon.
Gabriel deixou cair algum silêncio entre eles. Já estava a começar a arrepender-se da decisão de ter vindo.
— Moshe Rivlin disse que queria me ver — disse com desprezo. — Não tenho muito tempo.
Radek endireitou-se na cadeira.
— Estava pensando se poderia me fazer a cortesia profissional de responder a algumas perguntas.
— Isso depende das perguntas. Você e eu estamos em profissões diferentes, Radek.
— Sim — disse Radek. — Eu era um agente do serviço secreto americano e você é um assassino.
Gabriel levantou-se para ir embora. Radek levantou a mão.
— Espere — disse. — Sente-se. Por favor.
Gabriel voltou a sentar-se.
— O homem que ligou para minha casa na noite do sequestro...
— Quer dizer, de sua prisão?
Radek baixou a cabeça.
— Está bem, minha prisão. Presumo que era um impostor?
Gabriel acenou que sim.
— Ele era muito bom. Como ele conseguiu imitar Kruz tão bem?
— Não espera que eu responda a isso, Radek. — Gabriel olhou para o relógio. — Espero que não me tenha feito vir até Jaffa só para me fazeres uma pergunta.
— Não — disse Radek. — Há mais uma coisa que eu gostaria de saber. Quando estávamos em Treblinka, disse que eu tinha tomado parte na evacuação de prisioneiros de Birkenau.
Gabriel interrompeu-o. — Será que podemos deixar os eufemismos de vez, Radek? Não foi uma evacuação. Foi uma marcha da morte.
Radek manteve-se em silêncio por um momento.
— Disse também que eu tinha assassinado pessoalmente alguns prisioneiros.
— Eu sei que assassinou pelo menos duas moças — disse Gabriel. — Tenho certeza de que deve ter havido mais.
Radek fechou os olhos e acenou lentamente com a cabeça que sim.
— Houve mais — disse, distante. — Muitos mais. Lembro-me desse dia como se tivesse sido na semana passada. Eu já sabia há algum tempo que o fim estava próximo, mas ver aquela coluna de prisioneiros marchando em direção ao Reich... Foi quando eu soube que era o Götterdämmerung. Era, realmente, o Crepúsculo dos Deuses.
— E então começou a matá-los?
Ele acenou de novo.
— Eles tinham me confiado a missão de guardar seu terrível segredo e estavam deixando vários milhares de testemunhas saírem vivas de Birkenau. Deve imaginar como eu me senti.
— Não — disse Gabriel com honestidade. — Nem consigo começar a imaginar como deve ter se sentido.
— Houve uma moça — disse Radek. — Lembro-me de ter perguntado o que ela diria aos filhos sobre a guerra. Ela disse que lhes diria a verdade. Ordenei que mentisse. Ela se recusou. Matei duas outras moças e, mesmo assim, ela continuava a me desafiar. Por algum motivo, deixei-a ir. Parei de matar prisioneiros depois disso. Ao olhá-la nos olhos, percebi que não valia a pena.
Gabriel baixou os olhos e fixou as mãos para evitar morder a isca de Radek.
— Presumo que esta mulher seja sua testemunha? — perguntou Radek.
— Sim, é ela.
— É engraçado — disse Radek — mas ela tem seus olhos.
Gabriel levantou o olhar. Hesitou e depois disse: — É o que me dizem.
— É sua mãe?
Mais uma hesitação, depois a verdade.
— Diria que sinto muito — disse Radek. — Mas sei que as minhas desculpas não significam nada para você.
— Tem razão — disse Gabriel. — Não diga.
— Então foi por ela que fez isso?
— Não — disse Gabriel. — Foi por todos eles.
A porta se abriu. O guarda entrou e disse que estava na hora de seguir para Yad Vashem. Radek levantou-se devagar e esticou as mãos. Os seus olhos permaneceram firmes no rosto de Gabriel enquanto as algemas eram colocadas nos seus pulsos. Gabriel acompanhou-o até a entrada e ficou a vê-lo dirigir-se pela passagem, até a parte de trás de uma van que o esperava. Já tinha visto o suficiente. Agora só queria esquecer.
APÓS DEIXAR ABU KABIR, Gabriel foi até Safed para visitar Tziona. Almoçaram num pequeno restaurante de espetadas no Bairro dos Artistas. Ela tentou conversar com ele sobre o caso Radek, mas Gabriel, afastado da presença do assassino há apenas duas horas, não estava com disposição para discuti-lo ainda mais. Obrigou Tziona a jurar segredo quanto ao envolvimento dele no caso e depois mudou de assunto de repente.
Discutiram arte durante algum tempo, depois política e finalmente o estado da vida de Gabriel. Tziona tinha conhecimento de um apartamento vazio a apenas alguns quarteirões do dela. Era grande o suficiente para albergar um Estúdio e era abençoado com a melhor iluminação da Galileia de Cima. Gabriel prometeu pensar no assunto, mas Tziona sabia que ele estava apenas a apaziguá-la. O desconforto havia voltado aos seus olhos. Ele estava pronto para partir.
Enquanto bebiam o café, ele disse-lhe que tinha encontrado um lugar para algum do trabalho da sua mãe.
— Onde?
— O Museu da Arte do Holocausto em Yad Vashem. Os olhos de Tziona inundaram-se de lágrimas.
— Que perfeito — disse ela.
Depois do almoço subiram as escadas de pedra até o apartamento de Tziona. Ela abriu o armário e cuidadosamente retirou os quadros. Passaram uma hora a escolher vinte das melhores peças para Yad Vashem. Tziona encontrou outras duas telas mostrando a imagem de Erich Radek. Perguntou a Gabriel o que queria que ela fizesse com elas.
— Queima-as — respondeu ele.
— Mas, provavelmente, valem muito dinheiro agora.
— Não me interessa o quanto valem — disse Gabriel. — Eu nunca mais quero ver a cara dele.
Tziona ajudou-o a transportar os quadros para o carro dele. Arrancou para Jerusalém sob um céu carregado de nuvens. Dirigiu-se primeiro a Yad Vashem. O conservador recebeu os quadros e apressou-se para ir assistir ao início do depoimento de Erich Radek. como o resto do país. Gabriel conduziu pelas ruas silenciosas até o Monte das Oliveiras. Pôs uma pedra na campa da sua mãe e recitou-lhe as palavras de luto Kaddish. Fez o mesmo na campa do seu pai. Depois, dirigiu-se para o aeroporto e apanhou o voo da tarde para Roma.
41
VENEZA * VIENA
NA MANHÃ SEGUINTE, na sestière de Cannaregio, Francesco Tiepolo entrou na Igreja de San Giovanni Crisóstomo e atravessou lentamente a nave. olhou para a Capela de Saint Jerome e viu luzes acesas por detrás da lona que cobre a plataforma de trabalho. Aproximou-se lentamente, agarrou no andaime com a sua mão, grande como a pata de um urso, e abanou-o violentamente. O restaurador levantou a sua viseira de lupa e fitou-o como um gárgula.
— Bem-vindo a casa, Mário — disse Tiepolo para cirna. — Estava a começar a ficar preocupado com você. Por onde andaste?
O restaurador baixou a viseira e virou o seu olhar de volta para o Bellini.
— Tenho andado a recolher centelhas, Francesco.
A recolher centelhas. Tiepolo tinha o bom senso suficiente para não fazer mais perguntas. Apenas lhe interessava ter o restaurador finalmente de volta a Veneza. — Quanto tempo até terminares?
— Três meses — disse o restaurador. — Talvez quatro.
— Três seria melhor.
— Sim, Francesco. Eu sei que três meses seria melhor. Mas se continuas a abanar a minha plataforma, nunca mais vou acabar.
— Não estás a planejar fazer mais recados, ou estás, Mário?
— Só um — disse, com o pincel pousado em frente da tela. — Mas não vou demorar. Prometo.
— Isso é o que dizes sempre.
A ENCOMENDA CHEGOU por um estafeta motorizado à Relojoaria, no Primeiro Bairro de Viena, exatamente três semanas depois. O Relojoeiro recebeu a encomenda pessoalmente. Deixou sua assinatura nos papéis do correio e deu-lhe uma pequena gorjeta pelo incômodo. Depois, levou o embrulho para a oficina e colocou-o sobre a mesa.
O estafeta montou em sua moto e afastou-se rapidamente, reduzindo por instantes no fim da rua, apenas o suficiente para fazer sinal à mulher sentada ao volante do Renault sedã. A mulher teclou um número no celular e apertou SEND. Pouco depois, o Relojoeiro respondeu.
— Acabei de lhe enviar um relógio — disse ela. — Recebeu-o?
— Quem fala?
— Sou uma amiga de Max Klein — disse ela baixinho. — E de Eli Lavon. E de Reveka Gazit. E de Sarah Greenberg.
Ela baixou o telefone e pressionou rapidamente quatro números seguidos, virando em seguida a cabeça a tempo de ver a brilhante bola de fogo vermelha emergindo da fachada da loja do Relojoeiro.
Afastou-se da calçada, mãos trêmulas no volante e dirigiu para a Ringstrasse. Gabriel tinha abandonado sua moto e esperava-a na esquina. Ela parou o carro o tempo suficiente para ele entrar, depois virou para a larga avenida e desapareceu no trânsito da tarde. Um carro da Staatspolizei passou por eles a alta velocidade na direção contrária. Chiara manteve os olhos na estrada.
— Você está bem?
— Acho que vou vomitar.
— Sim, eu sei. Quer que eu dirija?
— Não, eu consigo.
— Devia ter me deixado enviar o sinal da detonação.
— Não queria que se sentisse responsável por mais uma morte em Viena. — Ela limpou uma lágrima da face. — Pensou neles quando ouviu a explosão? Pensou em Leah e Dani?
Ele hesitou, depois abanou a cabeça.
— Pensou em quê?
Ele chegou-se a ela e limpou-lhe outra lágrima.
— Em você, Chiara — disse ele, suavemente. — Pensei apenas em você.
NOTA DO AUTOR
Morte em Viena completa um ciclo de três romances sobrem os assuntos inacabados do Holocausto. A pilhagem de arte pelos nazistas e a colaboração de bancos suíços servem de pano de fundo para O Assassino Inglês. O papel da Igreja Católica no Holocausto e o silêncio do Papa Pio XII inspiraram O Confessor. Morte em Viena, como os seus predecessores, é vagamente baseada em fatos reais. Heinrich Gross foi de fato um médico na notória clínica de Spiegelgrund durante a guerra, e a descrição da pouco empenhada tentativa austríaca de o julgar em 2000 é inteiramente exata. Nesse mesmo ano, a Áustria foi abanada por alegações afirmando que agentes da polícia e dos serviços de segurança trabalhavam para Jörg Haider e o seu Partido da Liberdade de extrema-direita para ajudar a desacreditar críticos e oponentes políticos.
Aktion 1005 foi o verdadeiro nome de código do programa nazista para ocultar as provas do Holocausto e destruir os restos mortais de milhões de judeus. O líder da operação, um austríaco chamado Paul Blobel, foi condenado em Nuremberg pelo seu papel nos assassinatos em massa dos Einsatzgruppen e condenado à morte. Enforcou-se na prisão de Landsberg em Junho de 1951, nunca foi detalhadamente questionado sobre o seu papel como comandante da Aktion 1005.
O bispo Alois Hudal foi de fato o reitor do Pontifício Santa Maria dell'Anima e ajudou centenas de criminosos de guerra nazistas a fugir da Europa, incluindo o comandante de Treblinka, Franz Stangl. O Vaticano afirma que o bispo Hudal agia sem a aprovação ou o conhecimento do Papa ou outro agente sênior da Cúria.
A Argentina, claro, foi o destino final de milhares de criminosos de guerra procurados. É possível que um pequeno número ainda lá resida nos dias de hoje. Em 1994, o antigo oficial das SS, Erich Priebke, foi descoberto a viver livremente em Bariloche por uma equipe de reportagem da ABC. Evidentemente Priebke sentia-se tão seguro em Bariloche que, em entrevista ao correspondente da ABC, Sam Donaldson, admitiu de livre vontade o seu papel central no massacre das Grutas Ardeatinas em março de 1944. Priebke foi extraditado para Itália, julgado e condenado a prisão perpétua, embora lhe tenha sido permitido cumprir a pena em "prisão domiciliária". Durante vários anos de manobras legais e apelos, a Igreja Católica permitiu a Priebke viver num mosteiro nas imediações de Roma.
Olga Lengyel, no seu testemunho 1947, memória de uma sobrevivente em Auschwitz, escreveu: "Certamente todos aqueles cujas mãos estiveram direta, ou Indiretamente manchadas com o nosso sangue devem pagar pelos seus crimes. Menos do que isso seria um ultraje contra milhões de mortes inocentes." O seu apaixonado apelo por justiça, no entanto, passou largamente despercebido. Apenas uma minúscula percentagem daqueles que levaram a cabo a Solução Final ou tiveram um papel auxiliar ou colaboracionista enfrentaram punição pelos seus crimes. Dezenas de milhar encontraram santuário em terras estrangeiras, incluindo nos Estados Unidos; outros regressaram simplesmente a casa e prosseguiram com as suas vidas. Alguns arranjaram emprego na rede de serviços secretos do General Reinhard Gehlen patrocinada pela CIA. Que impacto tiveram homens como estes na conduta da política de relações internacionais da América durante a Guerra-Fria? A resposta talvez nunca seja inteiramente conhecida.
Daniel Silva
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