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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MORTE NO CASTELO /Pearl S. Buck
MORTE NO CASTELO /Pearl S. Buck

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

Pelas altas janelas do castelo coava-se o sol fraco de uma Primavera inglesa. Levantara-se de madrugada e, como todas as manhãs, cavalgara pela quinta, enquanto ela dormia. Quando regressara a casa, a trote, eram nove e meia, sentia-se esfomeado e dirigira-se ao salão de jantar, onde tomavam todas as refeições, excepto o chá. Ela às vezes falava numa saleta para o pequeno almoço, mas ele estava habituado, desde que se conhecia, àquele enorme casarão e à comprida mesa, debaixo do lustre, onde agora se sentavam, ele na extremidade norte, ela na extremidade sul.

Naquela manhã, contudo, ela levantara-se mais cedo do que de costume. De que outra maneira explicar as três ou quatro dúzias de asfódelos amarelos que enfeitavam a mesa, numa grande jarra de prata colocada sobre o naperon? A não ser que Kate tivesse ido ao jardim... Anos atrás, tinham decidido não falar ao pequeno almoço, embora a decisão houvesse sido muitas vezes esquecida. Recém-casada, ela queixara-se, até, de ele desejar que tomassem o pequeno almoço juntos.   Ainda a via, frágil, uma autêntica beldade inglesa, de olhos azuis e cabelos cor de mel, a fitá-lo do outro lado da mesa... E ouvia a sua voz clara, doce, queixosa e obstinada:

 

 

 

 

- É uma hora do dia horrível, Richard! Os meus pais nunca se quiseram ver um ao outro tão cedo.

- Minha querida - replicara, a rir -, se fosse obrigado a encarar a tua mãe todas as manhãs, talvez tivesse a mesma opinião. A tua mãe é uma górgona, Mary; mas tu possuis um rosto de rosa e quero vé-1o enquanto saboreio os rins e o bacon do pequeno almoço. É prerrogativa. minha.

- Nesse caso, não falarei! - ameaçara, com os olhos a sorrir.

- Nem precisas - redarguira-lhe.

E, nos trinta e cinco anos do seu feliz casamento pouco ou nada falara de manhã, embora tomasse

fiellmente o pequeno almoço com ele. Mulherzinha teimosa!

Observou o rosto que o encarava agora do outro lado da mesa. Era ainda bonito -uma rosa um nadinha murcha, talvez, mas que continuava a ser digna de se ver - e nada parecido com o da mãe. Assemelhava-se mais ao do pai, um nobre par que se retirara demasiado cedo para um arruinado castelo da Cornualha. Ele limitara-se a transferi-la de um cas-

telo para outro, com a diferença de que nunca permitira que o seu caísse em ruínas - nem nunca permitiria, apesar daqueles ridículos tempos, em que até parecia que as pessoas deviam ser   castigadas por terem nascido na sua mansão familiar.

Ela notou o olhar de desagrado que lançou aos asfódelos e ergueu as sobrancelhas, numa interrogação.

- Nada - respondeu-lhe, brusco -, estava apenas a lembrar-me de uma coisa.

Wells, simultâneamente cozinheiro e mordomo, naqueles dias de pouca abastança, estava de pé, de costas para eles, virado para o guardalouça. Partiu um ovo para dentro de água quente, pois ela gostava do seu ovo escalfado, com acompanhamento de arenque fumado. Wells, alto e erecto na sua puida libré cinzenta, emagrecera com a idade, mas usava os cabelos brancos cuidadosamente penteados e tinha as mãos ainda firmes. Fora lacaio nos tempos em que Sir Richard não passava de um rapaz e Lady Mary de uma rapariguinha loura, de vestidos brancos, curtos. As famílias eram vizinhas, embora distantes, e os dois jovens uma espécie de adversários enfeitiçados. Mary fingia não ver Richard quando ele ia tomar chá ao castelo com a mãe e, ao serem mandados brincar para o parque, se punha com exibicionismos de ginástica e saltos.

Wells voltou-se e, de rosto comprido e melancólico, perguntou:

- Deseja um ovo com os rins e o bacon, Sir Richard? - Sim, obrigado - respondeu-lhe. - Ouso dizer, até, que estou bem precisado dele. Kate ainda não foi para a estação?

-   É um bocadinho cedo, Sir. Está a limpar o pó ao salão grande, para receber o americano, Sir.

- Vá dizer-lhe que, assim, se atrasa. - Sim, Sir Richard.

O velho saiu da sala, disfarçando corajosamente um leve manquejar, e o silêncio voltou a reinar no aposento. Lady Mary bebia o seu chá, a olhar pensativamente as flores, enquanto Sir Richard espalhava manteiga na torrada e observava a mulher.

- Reunir-te-ás a nós, minha querida, não sei se sabes... Por momentos, julgou que Mary não quebraria o silêncio; mas depois ela falou, em voz ainda clara,   .   doce e singularmente jovem, apesar dos seus cabelos brancos:

- Não tinha pensado nisso. Achas que devo?...

- Não o quero receber sozinho - afirmou Sir Richard.

- Telefonaste ao Philip Webster?

- Meu Deus, esqueci-me!

Saltou da cadeira e ia a meio caminho da porta quando

ela falou outra vez:

---- Telefonei-lhe eu.

- Sir Richard parou.

- O quê?... Fizeste muito bem. Não sei como me esqueci... - Com ele cá, não precisarás de mim.

- Precisarei, sim,. Apoio moral, querida. Sabes muito bem como o Webster é pessimista, sempre convencido de que acontecerá o pior... Do que, aliás, também me convenço com demasiada facilidade.

Voltou a sentar-se. Não sabia porquê, mas, agora que iniciara a conversa, apetecia-lhe continuá-la.

- Foi o Webster que se lembrou deste negócio com o americano, e há-de insistir comigo, há-de teimar que a região está condenada, o castelo também, e repisar todas as tolices do costume.

- Porque se teria lembrado do americano? Talvez por o teu pai ter vendido aqueles dois quadros do salão de baile a um americano, no ano em que nos casámos... Mas isso foi há tanto tempo! Lembras-te? Creio que os vendeu para pagar a nossa viagem de núpcias, pobre querido!

- Quem pagou a nossa viagem de núpcias fui eu! - declarou Sir Richard, em tom firme. - O que ele pagou, com a venda dos quadros, foram as casas de banho. Naqueles tempos, enterrava-se o dinheiro todo nas terras... - prosseguiu, rabugento. - Obrigou-me a viver na penúria, em Oxford,, e a verdade é que lhe valeu de muito! A terra nunca foi melhor, mas continua a não chegar, a não ser que modernizemos os nossos métodos. E depois os impostos!... Quando abrimos as portas ao público, pensei que nos salvaríamos; mas, ao que parece, nada chega. O governo quer tudo.

- Sim, foram os quadros que lembraram o Philip - comentou Lady Mary, enquanto espalhava marmelada numa torrada. - Caso contrário, seria estranho que recorresse a um americano, não achas?

Sentiu-se, de súbito, irritado. O latejar doloroso da cabeça, a que se tornara atreito no último ano estava a incomodá-lo. - Deixa de te queixar de coisas que não posso remediar! - volveu-lhe, mal-humorado.

No salão, Wells olhava desaprovadoramente a neta.

- Precisam de ti, Kate. julgam que chegarás atrasada.

- Só mais um minutinho, avô, por favor.

Limpava o pó ao pesado armário de carvalho - carvalho inglês -, com as armas reais esculpidas. Durante quinhentos anos o castelo pertencera à realeza; depois fora doado à família Sedgeley e outros quinhentos anos haviam decorrido. Kate sonhava com os séculos passados, enquanto trabalhava, recordava os livros que lera na biblioteca durante os anos em que crescera no castelo. Sir Richard e Lady Mary tinham-na estragado, ao criá-la como uma mascote e ao mandá-la estudar para Londres - a ela, que não passava de neta do mordomo. Estragaram-na como, antes, haviam estragado o pai, Colin, que também crescera no castelo. Colin recusara-se a entrar para o serviço como lacaio, sob as ordens do pai, fugira para Londres, fora artista durante algum tempo e, chegada a guerra, alistara-se na Força Aérea e tornara-se piloto.

No espaço de um ano, Colin casara-se, tornara-se herói de guerra e morrera num ataque aéreo a Londres, no próprio dia em que lhe deram licença para ir ver a filha recém-nascida. A mãe de Kate morrera também e a criança salvara-se apenas porque alguém tivera a presença de espírito suficiente para empurrar a alcofa para debaixo de uma mesa de cozinha.

órfã aos nove dias de idade, o avô levara-a para o castelo. Wells fora o único parente que conhecera, pois a avó, Elsie Wells, morrera ao dar à luz Colin. Quanto à família do lado materno, nunca ninguém lhe falara a esse respeito e Kate aprendera muito nova que existem coisas acerca das quais não se fala; e seria inútil fazer perguntas, pois não obteria resposta.

O avó educara-a bem; ensinara-lhe o que sabia e instruíra-a à maneira antiga. Chegara, porém, a altura de Sir Richard e Lady Mary - sobretudo o primeiro - insistirem em que Kate recebesse mais educação do que a dispensada na escola da aldeia. Por isso, fora para Londres. Wells; não aprovara a ideia, mas nada pudera fazer ou dizer contra a resolução de Sir Richard. Kate, pelo   contrário, aceitara a novidade com satisfação e aprendera em Londres novas maneiras de ser útil. Agora podia guiar o automóvel quando Sir Richard queria que o fizesse e ajudava Lady Mary na sua correspondência. Era muito mais do que uma criada e muito menos do que uma filha, mas o castelo era o seu lar.

Não conseguia imaginar, sequer, o que teria sido a sua vida sem aquele abrigo e nem queria pensar no que seria a sua vida e a do avô se o castelo deixasse de ser o lar de ambos,

- Trabalhas de mais - observou-lhe Wells, deixando-se cair pesadamente numa enorme cadeira de carvalho, a cadeira do rei Carlos.

Agora sentava-se sempre que podia, nem que fosse por um instante apenas.

Kate continuou a limpar os intrincados arabescos da mesa, uma comprida prancha de madeira polida, assente em pernas de ferro e pés em firma de garra a segurar uma bola de cristal.

- Não trabalho nada! - contrapôs, alegremente. - Gosto de me entreter com qualquer coisa, avó.

-]És tão teimosa como o teu pai - tornou Wells, mas o tom da sua voz exprimia mais orgulho do que crítica. - Não consegui fazer nada do Colin, a partir do momento em que nasceu. E quando casou acima da sua condição...

Mas Kate interrompeu-o:

- já me contou isso muitas vezes, avô; agora tenho tanto em que pensar que não posso ouvir novamente essa velha história.

Estás feita Miss Mandona, como de costume, desde que nasceste - resmungou Wells, levantando-se. - Não há duvida de que sais ao teu pai. Aconselho-te a ires ao salão de jantar, senão...

Encaminhou-se vagarosamente para a porta, Mas Kate ultrapassou-o, a correr, e chegou ao salão antes dele.

- Bons dias, Sir Richard. O avô disse-me que me chamou. Ao reparar que a chávena de Sir Richard estava vazia, levou-a para o guarda-louça e encheu-a de café e leite quente, que adoçou com dois quadrados de açúcar. A sua figurinha pequena e viva movia-se com rapidez e agilidade.

- Vais chegar atrasada - resmungou Sir Richard, ao aceitar a chávena.

- Tira o avental, Kate - ordenou-lhe Lady Mary. - A rapariga obedeceu.

- Sim, minha senhora. Estou pronta, como vê: blusa lavada e saia de fazenda; falta só enfiar o casaco e dar uma

penteadela ao cabelo.

- Repito-te que chegarás atrasada - teimou Sir Richard. Kate sorriu-lhe, lisonjeadora, com os cabelos castanhos, encaracolados, a emuldurarem-lhe o rosto cheio de vida.

- Querido Sir Richard, não chegarei nada atrasada. Sei quanto tempo levarei.

- Guias sempre muito depressa, minha atrevidona. - Isso é que não guio, Sir! Nem imagina como sou cuidadosa...

- Do que tu és capaz é que não imagino. Fazes tudo demasiado depressa.

- já tive algum acidente?

- Também nunca tiveste de transportar um americano. - Diz isso de uma maneira que até parece   que ele não é humano! - exclamou Kate, a rir.

- Se queres que te diga, não estou muito seguro da sua espécie,

Tinham estado a falar como iguais, uma jovem e um velho, e Sir Richard ’gostava que assim fosse. Mas ela sabia, pela força do hábito, quando devia passar do papel de quase filha para o de quase criada, e foi o que fez ao perguntar-lhe:

- Como reconhecerei o americano, quando o encontrar, Sir Richard?

Lady Mary intrometeu-se, suave e desprendidamente como era seu hábito:

- Creio que será o único a não parecer inglês.

Kate riu-se, com um riso agradável, espontâneo e musical, vibrante de alegria.

- Talvez o consiga convencer a Meter-se outra vez no comboio para a América! Ou, se não me agradar a sua cara, falo-lhe no quarto do duque e prego-lhe um susto dos grandes! Sir Richard pousou a chávena e afirmou:

- Devíamos instalá-lo no quarto do rei João. Compete-nos mostrar-lhe o melhor que temos.

- É demasiado húmido - lembrou Lady Mary. - Há aquele gotejar no canto esquerdo do tecto, onde o estuque caiu. Foi há anos e ainda Pinga, não sei porquê. Wells, tem a certeza de que não sabe, também?

- Ninguém soube nunca, minha senhora.

- Bem, agora já não tem importância, uma vez que, segundo parece, o castelo vai ser vendido... A não ser que alguém se lembre de ideia melhor.

- É um crime, minha senhora, com sua licença- protestou Wells.

Sir Richard deu um murro na mesa e gritou:

- Kate!

A rapariga, que estivera a olhar de rosto para rosto, com ar interrogador e os lábios entreabertos, estremeceu ao ouvir gritar o seu nome.

- Vou já, Sir - respondeu, e saiu.

O silêncio voltou a reinar, até Wells, que hesitava junto

do guarda-louça e batia nervosamente com os pratos de prata uns nos outros, se voltar para eles com o corpo sacudido por uma comoção que sabia não lhe permitiriam revelar.

- Se não precisa de mais nada, Sir, tenho de ir para a cozinha; o rapaz do talho deve estar à minha espera... Um assadozinho para esta noite, minha senhora?

Lady Mary acenou afirmativamente, com indiferença, e o mordomo saiu. Tinham acabado de comer. Sir Richard acendeu o cachimbo e a mulher observou-o, pensativa, com a cabeça prateada inclinada um pouco para a esquerda. Foi ela quem quebrou o silêncio, com voz melancolicamente firme.

-   Sabes que não tentámos tudo, Richard... que não tentámos deveras...

Sir Richard expeliu duas fumaças, antes de redarguir: - Ocorre-te alguma solução? A mim não ocorre nada. Foi uma sorte o Webster encontrar aquelas cartas nos arquivos! Os Blaynes são riquíssimos. Petróleo, creio... ou talvez aço. Os Americanos nadam em petróleo.

- Horrível porcaria! Fumo negro em todas as cidades, segundo tenho ouvido dizer. Não admira que queiram pendurar os seus quadros aqui! Trarão os dois que levaram?

- Minha querida, estão no seu direito de fazer o que lhes apetecer com esses dois quadros; pagaram-nos. Se assim não fosse, não teríamos casas de banho no castelo. Aliás, isso aconteceu há tanto tempo!

- Cinco casas de banho para vinte e sete quartos! - Sempre é melhor do que as criadas com tinas de borracha e jarros de agua quente, como quando eu era rapaz. Meu Deus, nunca esquecerei a maneira como essas tinas bambeavam e entornavam a água, que caía através do tecto! Aconteceu-me isso na manhã em que o príncipe de Gales cá esteve e a água caiu em cima desta mesa. Tinha só dezassete anos e quase morri de vergonha. Por nada deste mundo queria descer para almoçar, e o meu pai...

Lady Mary interrompeu-o, com um sorriso suave: - Francamente, Richard! Contaste-me isso no primeiro dia em que nos encontrámos... e sei lá quantas vezes depois!

- É uma boa história, por muitas vezes que a contou.

Ouviram um toque de buzina, levantaram-se e saíram para o pátio. O velho Rolls Royce tremia devido à vibração do motor. Entronizada ao volante, com todas as janelas descidas, encontrava-se Kate, cujos cabelos lhe esvoaçavam em redor do rosto.

- Lá vou eu! - anunciou.

Lado a lado, muito direitos e elegantes, inclinaram a cabeça, acenaram-lhe e ficaram a vê-la afastar-se.

«Os queridos», pensou, enquanto conduzia velozmente por entre os verdes relvados, ao longo da alameda, «os queridos e corajosos velhinhos, dispostos a desfazerem-se do seu tesouro, da sua herança, do seu lar, do seu castelo!... E do meu lar também», lembrou a si mesma, embora os seus direitos fossem muito diferentes dos deles. Se o americano não se comovesse ao vê-los; se não dissesse logo que não podia de maneira nenhuma expulsá-los; se destruísse o seu sonho de que continuariam a viver exactamente como sempre, tinham vivido, só com os quadros nas paredes; se o castelo fosse transformado em museu, mas com tudo o mais tal qual estava e ela a cuidar dele como agora; se ele não compreendesse que seria impossível e cruel qualquer modificação: então ela... ela odiá-lo-ia, pronto! Odiá-lo-ia de todo o coração e conseguiria, fosse como fosse, estragar tudo. Isso é que estragaria!

Olhou para trás, antes de a elevação seguinte ocultar o castelo, e debruçou-se perigosamente, para o envolver no último olhar, de que nunca   se esquecia. Como era bonito, assim banhado de sol! Lady Mary e Sir Richard ainda se encontravam precisamente onde os deixara. O sol brilhava nas suas cabeças brancas e Kate sentiu uma onda de amor por aqueles a quem o castelo pertencia e a quem ela pertencia também, de certo modo. Viu-os olhar para cima, como se observassem qualquer coisa que se encontrasse muito alto, e depois a volta da estrada e a elevação ocultou-lhos.

Os olhos de Lady Mary tinham sido os primeiros a erguerem-se para a janela rasgada debaixo do telhado alto e saliente.

- Vês ali alguma coisa; Richard?

- Onde?

- Na janela perdida. Está lá alguém... - Como pode ser perdida se lá está alguém?. Podiam ser eles.

- Ora, ora, minha querida!

- Pois sim, mas nunca dizes se acreditas realmente ou não.

- Se acredito em quê?

- Sabes muito bem.

- Sei muito bem o quê?

- Richard, estás a fazer-te estúpido e isso é maldoso da tua parte!

- Pronto, direi a verdade: não vejo nada na janela. Nunca vi.

Lady Mary bateu o pé, amuada, e inclinou-se para um canteiro de narcisos amarelos, que contrastavam com a rocha cinzenta do castelo. Sir Richard olhou ternamente o vulto frágil e os cabelos prateados da mulher. A dor de cabeça passara-lhe tão depressa como viera, o que lhe causava grande alívio.

- Estou a tornar-me estúpido, meu amor? Talvez! Mas haverá, hoje em dia, alguém que saiba alguma coisa? Acreditar-te-ia mais facilmente do que a qualquer outra pessoa.

Lady Mary estendeu-lhe a mão e encaminharam-se para os grandes teixos, aparados em forma de elefantes. Pararam, melancólicos, a pensar que os teixos tinham sido plantados havia duzentos anos e aparados cem anos depois por um Sedgeley que prestara serviço na Índia.

- Esse americano derrubará os elefantes.

- Tolice, querida. Actualmente, os   Americanos já não são selvagens.

- Tu às vezes falas como se fossem.

- Isso é porque não me dá prazer nenhum tê-los no meu castelo ou imaginá-los a derrubarem os meus teixos.

.   Dirigiram-se em seguida ao roseiral, onde as abelhas, impacientes, zumbiam em redor dos botões ainda não desabrochados.

- Devias ter conservado o teu lugar na Câmara dos Lordes - dizia Lady Mary. - Lorde Richard Sedgeley! Talvez as coisas não tivessem...

- Que poderia eu fazer, minha querida? - interrompeu-a. - Os tempos são outros...

- Apostaria que não percebe nada de rosas – murmurou Lady Mary, preocupada, inclinada sobre as flores. - Nunca ouvi falar em rosas   americanas.

- Nem eu. Suponho que não se dão naquele pavoroso clima.

Achas que mascará pastilhas elásticas?

Poupa-me a essas perguntas tolas, minha querida. Trata-se, provavelnente, de um indivíduo decente e, se assim fôr, não mascará gorna. Pelo menos percebe de pintura...

- Onde comerá ?? Não serei capaz de falar, se comer a mesa connosco,

- Wells poderá levar-lhe a comida num tabuleiro.

O mordomo surgiu, nesse momento, como se tivesse ouvido chamar o seu nome, e anunciou, em tom sepulcral:

- Chegou um homem de automóvel, Sir   Richard.

- O castelo está fechado, hoje - replicou-lhe o patrão, irritado. - Ainda é só terça-feira.

- Foi o que lhe disse, Sir.

- Diga-lho outra vez, então. Não compensa mostrar o castelo a menos de dez pessoas de cada vez. Explique-lhe isso.

- Ele é do tipo persistente, Sir - observou Wells, duvidoso.

Sir Richard esfregou o nariz, pensativo.

- Aconselhe-o a vir na quinta-feira, com o resto do público.

- O automóvel é americano, Sir.

Lady Mary intrometeu-se, com a ar de quem vai resolver o problema:

- Pergunte ao motorista quem é o patrão.

- Não traz motorista, minha senhora, é ele próprio quem conduz o automóvel.

- Nesse caso, ou é turista ou pretende vender qualquer

coisa - afirmou Lady Mary, em tom decisivo. - Na primeira hipótese, diga-lhe que não pode ver o castelo hoje e que não abrimos excepções; na segunda, diga-lhe que bata à porta de serviço e depois vá abrir e mande-o embora.

- Sim, minha senhora. - Wells fez uma ligeira vénia e deixou-os.

Seguiram-no tristemente com a vista.

- Um destes dias... – começou Sir Richard.

- Não digas isso, Richard, - pediu Lady Mary, sem o deixar acabar. - Não sei o que faríamos sem ele. Wells. é como o castelo. Claro que tenho pensado em diversas soluções... Como, por exemplo, arranjar marido para Kate... alguém que pudesse ajudar Wells até... enfim, tu sabes, e ser, talvez, uma espécie de cozinheiro enquanto...

Calou-se, surpreendida com a expressão horrorizada do marido.

- Impossível!

- Que queres dizer, Richard?

- Um marido para Kate   ...   alguém como... Wells?

- Não vejo porque não   ...

- Kate casada com um mordomo ou... um cozinheiro?

- Francamente, Richard, ela não passa de uma criada! Uma criada maravilhosa e tudo o mais, de acordo, mas... Porque olhas assim para mim?

- Não a considero uma criada...

- Estás a ser muito estranho, Richard.

- Não estou a ser nada estranho, minha querida; simplesmente, não posso suportar a ideia de a vida se tornar diferente do que sempre foi para nós. Estamos a envelhecer e será difícil, pelo menos...

Voltou-se bruscamente e Lady Mary correu para o seu lado e encostou o rosto à manga do casaco do marido.

- Não te atormentes, Richard! Sabes no que estou a pensar? No primeiro dia em que me beijaste. Lembras-te? Foi na Primavera, num dia como este, e os narcisos também estavam em flor. A tua mãe apareceu...

Sir Richard passou-lhe o braço pelos ombros e exclamou:

- Meu Deus, esquecera-me! «Fizeste isso muito bem, meu filho», disse a minha mãe.

- Tive vontade de chorar. Era tão tímida!

- E eu respondi...

Mas Lady Mary interrompeu-o novamente:

- Richard, deve haver qualquer coisa que possamos fazer para salvar o castelo! Como é possível mil anos de vida acabarem connosco? Que fizemos nós?

Que não fizemos nós - murmurou Sir Richard, tristemente.

- O remédio não está nas nossas mãos. É o fim de uma era, meu amor, e nós acabamos com ela, mais nada. Alguém tem de acabar, creio... Alguém teve, quando Roma caiu. O nosso castelo foi construído sobre ruínas romanas, como sabes. Agora não há outra alternativa, receio bem...

- Tens a certeza de que o Webster fez tudo quanto podia? - Ele mostrou-me as cartas que recebeu. Havia duas hipóteses, apenas. A compra do castelo pelo Governo, para ser convertido em prisão, já era má ideia, mas a outra ainda era pior: essa gente da energia atómica queria deitá-lo abaixo e construir aqui uma fábrica. Precisam de uma área deserta e os nossos cinco mil acres de florestas e quintas servir-lhes-iam muito bem.

Sir Richard tacteou à procura do cachimbo e da bolsa do tabaco, encheu-o, acendeu-o e aspirou uma longa fumaça.

- Bem, minha querida, só nos resta continuar com a quinta, mas, ao que parece, isso é impossível se não vendermos o castelo. Os rendeiros queixam-se de que os telhados vertem e de que lhes faltam comodidades modernas, e eu não sei aonde ir buscar dinheiro para isso. Não, o museu ainda é a melhor ideia. Entregamos o castelo ao americano e retiramo-nos para a casa do porteiro, que é, com certeza, confortável, e com o dinheiro que ele nos der pagamos os melhoramentos necessários na quinta e talvez possamos fazê-la. render, se Deus quiser. Pelo menos o castelo não servirá de prisão a criminosos... nem o demolirão.

Lady Mary puxou os curtos cabelos brancos para trás. - Preferia que não mencionasses Deus... Se tivéssemos um filho...

- Mas não temos! - replicou-lhe o marido, secamente. - Mas, se tivéssemos, ele podia...

’Minha querida, porque falas nisso se ele nunca nasceu, se nunca foi, sequer, concebido? Esse assunto está arrumado há muito tempo.

- Continuas a pensar que a culpa foi minha Sir Richard sacudiu a cinza e resmungou:

- Maldito cachimbo, parece entupido!

- Sabes muito bem que nunca se provou que fosse eu a culpada - prosseguiu Lady Mary, em voz ligeiramente colérica. - Foi uma grande teimosia da tua parte não te deixares examinar.

- Porque voltas agora com esse assunto? É absurdo, na nossa idade! E eu... não havia razão nenhuma para pensar que eu... Além disso, sugeri que adoptássemos uma criança. Lady Mary afastou-se dele e replicou--

- Sabes muito bem que os filhos adoptivos não podem herdar. Têm de ser descendentes do mesmo sangue. - Descendentes masculinos. Podiamos ter adoptado uma filha. A verdade. . . - estava de novo às voltas com o cachimbo’ a limpá-lo com um troncozinho que arrancara a um arbusto-... a verdade é que pensei uma ou duas vezes em adoptar Kate.

- Kate? É então por isso que não a consideras uma criada? -Agora é demasiado tarde, suponho...

- Tardíssimo -declarou a mulher, coim decisão.

Ouviram, naquele momento, o barulho que o velho automóvel fazia a parar. Kate regressava. O Rolls Royce tramspôs o portão, ao fundo da alameda, e parou.

- Parece que foi tudo por água abaixo - observou Sir Richard, inquieto, ao ver Kate apear-se do alto e, velho veículo.

Mas, ao reparar que atrás dela desciam quatro homens;, todos de fato escuro e pasta, murmurou:

- Meu Deus!

- Richard, sinto-me desfalecer... - disse Lady Mary, baixinho.

- Tolice! É preciso aguentar firme, minha querida; o americano trouxe o seu séquito. Confesso, no entanto, que gostaria que o Webster estivesse presente.

Avançou, com o corpo alto e magro erecto, e dirigiu-se aos recém-chegados.

- Bons dias. Qual dos senhores é John Blayne?

Nenhum, Sir Richard - respondeu-lhe Kate, com os cabelos despenteados pelo vento e expressão humilhada.- Ele vem de automóvel.

Os homens avançaram, um por um, e Sir Richard sentiu a mão apertada quatro vezes. Lady Mary conservou-se atrás dele, tendo o cuidado de esconder as mãos uma na outra.

O mais novo dos quatro, um indivíduo apresentável, de cabelos cor de areia, cortados curtos, informou, em tom alegre:

- Mr. Blayne saiu de Londres logo após o pequeno almoço, Sir. Guia ele próprio o automóvel.

- E, provàvelmente, acabará por se perder no caminho, coisa que lhe acontece com muita frequência - declarou um segundo jovem, vivamente.

Sir Richard observou-os, um por um. Eram todos semelhantes, todos limpos e arranjados, todos de cabelos curtos e de aspecto alarmantemente saudável e eficiente.

- Mr. Blayne pára constantemente a ver catedrais e outras coisas semelhantes - afirmou o terceiro, muito calmo. - É capaz de não chegar cá antes de amanhã...

- Podemos começar? - perguntou o quarto a Sir Richard.

- Começar? - repetiu o interpelado.

- Sim, começar a ver o castelo. É para isso que estamos aqui. Mr. Blayne não gosta que desperdicemos tempo.

Wells surgiu, a manquejar, de trás dos teixos, arquejante do esforço, e exclamou, esganiçado:

- Ele perdeu-se, Sir!

- Acalme-se, Wells - ordenou-lhe Sir Richard, severamente. - Deixe de correr. Respire fundo duas vezes e depois fale como um ser racional.

- Francamente, Wells? - admoestou-o Lady Mary, - Que será de nós se tiver uma apoplexia? Que falta de tino!

- Não tem vergonha, avô? - perguntou-lhe Kate, zangada, estendendo a mão e puxando-lhe para trás uma madeixa branca, que saíra do seu lugar. - Descanse, vamos, e faça o que Sir Richard lhe disse. Respire... isso... mais uma vez... Pronto, agora explique-nos quem é que se perdeu.

- O carro... ainda está no mesmo sítio... e ele desapareceu - informou o mordomo, a custo.

- O carro de quem?

- Do americano.

Os quatro jovens entreolharam-se e um deles perguntou:

- O automóvel é verde-escuro?

-   É - confirmou Wells.

- É ele! - afirmou o indivíduo que fizera a pergunta, voltando-se para os companheiros.

- Imaginem que chegou antes do comboio! E com todas estas estradas aos ziguezagues!

- Guia como um doido, se não depara com nenhuma catedral!

Sir Richard levantou a mão, a pedir silêncio, e, instintivamente, os americanos obedeceram.

- Querem dizer - perguntou, devagar - que o... o indivíduo que chegou aqui à frente dos quatro é Mr. John P. Blayne?

- Quem havia de ser? - redarguiu um dos jovens.

- Mas perdeu-se... - comentou Lady Mary.

- Tolice! - exclamou Sir Richard, em tom decidido. Temos de o encontrar. Separemo-nos todos e reunamo-nos daqui a meia hora no salão grande, para trocarmos impressões, se o não tivermos encontrado.

- Mas como é ele? - indagou Kate.

- Nunca vi ninguém igual - gemeu Wells.

- Não exagere! - protestou um dos rapazes. - É um americano típico: alto, cabelo castanho, olhos azuis...

- Olhos castanhos - emendou outro.

- Bem, olhos, seja qual for a cor. Veste fato cinzento... Era cinzento, não era, amigos?... Não? Bem, veste fato. Provàvelmente, gravata encarnada...

- E disse-lhe eu que aguardasse à porta de serviço! - queixou-se Wells. - «Posso dar por aí uma vista de olhos?», perguntou-me. «Não!», respondi-lhe. «Faça favor de ficar onde está, meu jovem, enquanto vou saber ordens!» Quando regressei, sumira-se! Gritei, a chamá-lo, e só ouvi o pássaro do carvalho grande, que costuma troçar de mim quando chamo o gato da cozinha.

Kate voltou-se para Sir Richard e disse-lhe, com ar de terna autoridade:

- Querido Sir Richard, deve sentar-se no salão com Lady Mary e esperar por nós. Avô, faça-lhes uma chávena de chá e beba uma também, na copa. Nós - os seus olhos escuros percorreram os quatro americanos - havemos de o encontrar. Mas cuidado, rapazes: não pisem os canteiros das flores nem partam os ramos dos teixos, para procurarem no meio deles. Depois esperem no salão grande, que fica para lá daquela porta. Mas, por favor, não comecem a vaguear no interior do castelo enquanto eu não regressar.

- Sim, ma’am - disse um dos rapazes,   e os outros fizeram coro:

- Sim, ma’am... sim, ma’am... Assim faremos, ma’am. Afastaram-se, com grande alarde de obediência, e Wells voltou-se, ainda pouco firme nas pernas, e desapareceu pela porta grande.

. Lady Mary acercou-se de Kate e beijou-a ao de leve numa das faces.

- Obrigada, minha querida! - agradeceu-lhe.

- Ah, minha pequena, que seria de nós sem ti?! - suspirou Sir Richard, cuja cabeça latejava outra vez, dolorosamente.

- Venham comigo, meus queridos - atalhou Kate, na sua voz suave e reconfortante.

Meteu-se entre ambos, deu-lhes o braço e conduziu-os ao salão, sempre a tagarelar.

- Estou muito zangada, sabem? Como se atreveu esse americano a provocar tal rebuliço? Perguntei aos outros porque não viajou decentemente de comboio com eles, como dissera, e os rapazinhos limitaram-se a encolher os ombros!

Encolheu também os seus, com um bocadinho de exagero, a sublinhar as palavras, e olhou primeiro para Sir Richard, à sua direita, e depois para Lady Mary, à sua esquerda. Não sorriam, como pretendia, e, por isso, continuou, com forçada alegria:

- As histórias que me contaram acerca dele! Guia o automóvel como um demónio -afirmaram- e não quer motorista, mas é capaz de ficar horas esquecidas em qualquer velha catedral, sem eles saberem onde se encontra.- Kate abanou a cabeça. - E pensar que me levantei uma hora mais cedo do que o costume, para ter o castelo bonito! Limpei e tornei a limpar, embora não perceba porque lhe quero causar boa impressão, uma vez que se trata   de vender o castelo... - Perdeu, de súbito, o tom de alegre desafio e exclamou, melancólica: - Meu, Deus? meu Deus, como gosto deste velho casarão!

Tinham chegado ao salão grande. Kate conduziu-os à saleta que ficava a seguir, instalou-os nas suas cadeiras e aproveitou um momento em que ficou atrás deles para tirar o lenço e limpar apressadamente os olhos. Depois endireitou os livros que se encontravam em cima da mesa e continuou a falar:

- Não posso suportar que estrangeiros vejam o castelo, a não ser quando se encontra com o melhor aspecto possível... Esse americano não passa, afinal, de um estrangeiro... e eu gostaria muito que tivesse continuado na sua terra. Para castigo, não correrei mais por causa dele, esteja lá onde estiver!

- Não te preocupes mais, Kate - aconselhou-lhe Lady Mary, docemente -, e diz ao Wells que nos traga o chá. Sinto-me meio desfalecida.

- Ele não se esquecerá de trazer o chá, Lady Mary. E agora, se me dão licença, vou ao jardim ver se aqueles homenzinhos não espatifam tudo.

Deixou-os e, de caminho, parou no salão, a ver-se ao espelho; depois de todas aquelas aventuras precisava, com certeza, de se arranjar. No entanto, a imagem que o espelho reflectiu - faces coradas de se ter irritado e cabelos que a humidade do ar matinal tornara mais anelados- pareceu-lhe absolutamente satisfatória. Mais tranquila, saiu do castelo e desceu de novo o caminho ensaibrado, em direcção aos teixos.

Talvez lá estivesse, pois aquelas grandes árvores aparadas em forma de elefante em movimento eram famosas. Olhou ao longo da comprida fila de gigantescos teixos, mas não viu ninguém. Pensou que estivesse no roseiral e para lá se encaminhou.

Afastou-se alguns passos, mas depois parou. Teria sido demasiado ríspida?

- Pode levar a rã, se quiser - disse-lhe, por cima do ombro. - Detesto rãs.

- Importa-se que vá consigo? - perguntou-lhe ele, colocando-se a seu lado,. - Receio ter-me perdido e não sei onde deixei o automóvel.

Kate achou que o devia admoestar mais uma vez.

- Não devia ter entrado na propriedade sem permissão.

- Bem, compreende...

- Não compreendo nada! Repito-lhe que não devia entrar sem autorização.

Fitaram-se, olhos nos olhos.

- Desculpe - disse ele, e deixou-a.

Kate deixou-o afastar-se uns vinte metros e depois chamou-o outra vez. Oh, quando era preciso também sabia ser má! Um gato a brincar com um rato.

- Viu, por acaso, andar por aí um velhote? Perdemo-lo...

O americano retrocedeu alguns passos e perguntou-lhe:

- Perderam-no?

- Sim.

- Como é ele?

- Nunca o vi; por isso, não sei.

- Então como pode dizer que o perdeu?

- Não fui eu, compreende? Ele veio visitar Sir Richard... acerca do castelo. Estamos todos satisfeitos por ter desaparecido.

- Satisfeitos?

- Sim. No entanto, temos de o encontrar. - Foi ao seu

encontro e acrescentou: - Venha; já que está aqui, pode ajudar-nos a procurar. Ele é uma espécie de monstro...

- Monstro?

- Sim, com dinheiro. - No tom em que proferiu a palavra «dinheiro» encerrava-se toda a sua defesa apaixonada do castelo.

Caminhavam lado a lado, ela sem se dignar olhá-lo, ele a observá-la à socapa. Kate prosseguiu, com ar distraído e ausente, como se   não tivesse importância nenhuma o que dissesse a um desconhecido, a um intrometido que nada ali tinha que fazer e a quem o assunto não dizia respeito:

- Quer comprar o castelo. . - Sim?

- Sim, para um   .   museu. Nós adoramos o castelo e detestamo-lo a ele.

- Então porque quer vender o castelo?

- Não sou eu. O castelo pertence à família, mas eu vivo aqui desde que nasci. O meu pai nasceu cá e o meu avô também.

Calou-se, suspirou e pouco depois prosseguiu:

- Para que nos havemos de preocupar a procurá-lo? já vi em toda a parte... Talvez se tenha ido embora. Oxalá que sim! Bem, vou levá-lo, à entrada de serviço.

- Obrigado.

Caminharam em silêncio, durante algum tempo até que Kate viu o automóvel. Era, de facto, verde.

- É o seu carro?

- Bonito... - Olhou o veículo, com ar desinteressado   e mudou de direcção. - Bem, adeus.

- Importa-se

- Diga.

- Não devia pedir isto, mas... agora, já que cá estou...

- Diga, diga...

- Gostava de ver o interior do castelo. Tenho ouvido falar tanto dele... Quando cheguei falei com um velhote, mas respondeu-me que não me podia deixar entrar.

- Era o meu avô.

- Não se parece nada com ele.

Como queria que parecesse

Importa-se então...

Sorriu-lhe, mas Kate esforçou-se por não retribuir o sorriso.

- Se lhe mostrar o castelo promete ir-se logo embora?

- Se quiser que vá... - Não o levarei à parte habitada pela família. Evidentemente.

- Muito bem, então... mas não nos demoraremos. Hipocritamente, começou a volta que tão bem conhecia. Não estava ninguém nas cozinhas nem na copa. Conduziu-o por uma escadinha de caracol a um corredor estreito, subiram ainda outra escada e chegaram aos pequenos e velhos aposentos do andar superior. Kate ia esclarecendo o companheiro, à medida que avançavam.

- Esta é a parte velha do castelo. A rainha Isabel é que o mandou aumentar. Dizem que Shakespeare esteve aqui e aqui leu à soberana o seu Sonho de uma Noite de Verão. Recentemente, Charles Dickens também cá esteve.

- Recentemente?

- Apenas há um século...não é nada...

- Como comunica esta parte do castelo com a outra?

- Há aqui uma passagem. Cuidado! Isso é um alçapão. Empurrou-o para o lado, com decisão, e ele olhou para

baixo e viu, a seus pés, uma pesada argola de ferro, que sobressaía do chão carunchoso.

- Há alçapões por toda a parte - explicou-lhe Kate.- Conduzem directamente às masmorras.

- As masmorras?

O castelo foi residência real durante cinco séculos e os reis e as rainhas parece que andam sempre a meter pessoas nas masmorras - ou andavam, pelo menos. Podia ter dado uma queda de milhas, sabe?

- Milhas é força de expressão, com certeza.

- Apostaria que, se caísse, lhe pareceriam milhas!

Riram ambos, inesperadamente, com um riso franco e cordial. A seguir foi ela que tropeçou numa tábua saliente e ele que a segurou.

- Cuidado, olhe...

Mas Kate afastou-se e replicou: - Não há perigo, obrigada. Provavelmente, ninguém conhece o castelo melhor do que eu. Costumava explorá-lo, em pequena.

- Não tinha medo?

- Suponho que não. Sentia-me em segurança, aqui, e estava acostumada a andar sozinha. Além disso, eles foram sempre bondosos comigo.

- Eles?

- Sir Richard e Lady Mary.

Porque lhe diria tudo aquilo? Naturalmente ria-se dela... Observou-o, mas não notou diferença nenhuma no seu olhar sorridente. No entanto, não tinha coragem para levar mais longe à partida. Estendeu a mão, francamente, e confessou:

- Claro que sei quem o senhor é, Mr. Blayne. Não compreendo porque se me meteu na cabeça proceder assim.

A boca dele estremeceu - uma boca atraente, sensitiva e terna - e Blayne declarou:

- Também não fui sincero, confesso... - Mas o senhor não me podia conhecer...- Não, mas tive a intuição...

- A intuição?.

-   Uma ideia... um pressentimento de que sabia quem eu era e porque estava aqui.

Ah!

- Portanto, agora que confessámos tudo um ao outro e estamos a ser sinceros, importa-se de me dizer quem é, na realidade?

- Sou Kate - respondeu, fitando-o nos olhos. Kate? Kate quê?

- Kate Wells, a criada.

- Miss Kate Wells- murmurou devagar, perscrutando-lhe o rosto ruborizado.

- Kate, apenas. - Recuou e depois passou-lhe à frente e disse-lhe: - Por aqui, Mr. Blayne, por favor. Esperam-no no salão grande.

Percorreu à frente dele corredores tão estreitos que seria impossível caminharem lado a lado, até chegar à portazinha que conduzia ao salão grande. Aí teve de parar um momento, pois o fecho estava ferrugento e não se abria. Blayne alcançou-a.

- Com licença...

Mas ela recusou o auxílio que lhe oferecia e redarguiu:

- Não conhece o fecho tão bem como eu. Não tarda a ceder.

O Americano aguardou, mas como afinal o fecho não

cedesse, agarrou-a pelos ombros e afastou-a com firmeza para o lado. Kate susteve a respiração,   surpreendida, e não disse nada. Que experimentasse ! Não conseguiria abrir a porta, mas

era daquelas pessoas tão convencidas   de si mesmas que tinham de aprender à sua custa... Com grande desgosto seu, porém,

o fecho teimoso cedeu à primeira tentativa e a porta abriu-se.

Os quatro jovens americanos,   que havia muito tinham desistido de procurar Blayne, encontravam-se no salão grande, sentados nas cadeiras de carvalho esculpido.   Ao vê-lo, soltaram exclamaçoes em que havia mais contentamento do que surpresa.

-John Preston Blayne, finalmente!

- Pensávamos que se perdera!

’es: Kate interrompeu-lhes as exclaniaçõ   que nem sequer o -Se querem que lhes diga, desconfio

procuraram.   - o rosto todo num sori   .   0 mais jovem dos quatro franziu

riso e replicou:’   le aparece sempre, e na

-   Nem foi precíso, pois não?

melhor conipanhia possível!

John Blayine rÍti-se.   prontos para começar _-Trouxeirnos os planos e estainos

a itrabalhar assin que quiser, john.-E, como se quisesse dar mais peso às suas palavras, desenrolou o maço de papéis que segurava e estendeu-os em cima da mesa.

- A trabalhar? - repetiu Kate, surpreendida. - Que quer dizer?

Assustada, olhou das folhas de papel para Mr. Blayne, e depois, sucessivamente, para os quatro indivíduos, que pareciam deslocados no salão grande do castelo. ,

- Nada de precipitações, amigos - replicou John Blayne, em tom cordial. - Não admira que Miss Wells se- surpreenda; vocês estão a pôr o carro adiante dos bois. Arrumem a papelada, pois ainda não está nada resolvido, e desapareçam até amanhã. Têm quartos na estalagem da aldeia.

- O ar despreocupado em que decorrera a conversa dissipou-se como neblina açoitada pela ventania. Apesar do seu tom cordial, a voz de John Blayne exprimia autoridade e os quatro moços entreolharam-se. O mais velho pigarreou e disse:

. - Na verdade, John, foi bom ter aparecido neste momento e ainda bem que não está nada resolvido. O trabalho é impossível.

John Blayne olhou de um para outro dos seus homens e Kate viu o seu rosto endurecer. Severo, hem? Ou apenas habituado a levar a sua avante?

- Impossível - repetiu serenamente o americano. - Não conheço essa palavra.

- As vigas são demasiado fracas - informou um dos homens.

Kate não se conteve e entrou na discussão:

- São fracas, hem?! Também o senhor seria fraco, se já tivessem passado por si mil anos. Fracas! São tão sólidas como o Banco de Inglaterra!

John Blayne lançou-lhe um olhar divertido e alegre e disse:

- Obrigado, Miss Wells. Quanto a vocês, amigos, sei muito bem que o castelo não é Buckingham ou Windsor, pois conta muito mais anos. Ê aí que reside a sua beleza e é por isso que teremos de o demolir, pedra por pedra...

- Parte é tijolo - informaram os homens, em coro - e os tijolos esfarelam-se em pó... Teremos sorte se conseguirmos transportar metade.

Blayne atalhou, secamente: - Avaliam mal a mão-de-obra inglesa!

A discussão acalorou-se. Os jovens sem nome (Kate estava certa de que não tinham nome, por serem tão semelhantes, com o nariz curto, o queixo forte e o cabelo cortado da mesma maneira) lançaram-se, cheios de entusiasmo, na refrega.

- Tem cometido muitas loucuras, John, mas esta supera-as a todas!

- Lembra-se daquele templo japonês que comprou e levou para Nova Iorque? Ainda está no armazém e ninguém se atreve a tentar reconstruí-lo... Porque não o utiliza como museu?

- E aquele quadro que disse tinha de ser restaurado...

John Blayne ouviu-os, firme como uma rocha, a sorrir, divertido com a catadupa de recriminações, e, mal os apanhou sem fôlego, perguntou-lhes:

- já desabafaram tudo? Serei doido, não contesto, mas lembrem-se de que, no. fim de contas, consigo sempre o que pretendo. Porque não reconstruo o templo japonês, perguntaram... Qualquer dia, no momento conveniente e no local adequado, mandarei reconstruí-lo. Desafiá-los-ei a meterem ombros à tarefa... e vocês meterão. Mas não quero transformar um templo em museu, com os fantasmas dos monges budistas a meditarem entre mulheres gordas pintadas por Rubens e deuses e deusas romanos! Um castelo é exactamente o que pretendo e exactamente o que terei. Quanto ao tal quadro, tive ou não tive razão? Debaixo daquela capa de óleos havia um Rafael! Cheirou-me! Hei-de pendurá-lo ali mesmo, por cima da chaminé.

Por momentos, reinou um silêncio pesado. Por fim, o mais velho dos quatro tirou um livro de apontamentos e um lápis da algibeira e advertiu:

- Está bem, mas custar-lhe-á uma pequena fortuna,. Será preciso embrulhar todos os tijolos em papel de seda...

-   Lembrem-me de encomendar cem toneladas de papel de seda.

- Serão precisos barcos para transportar os tijolos e a pedra...

- Lembrem-me de arranjar dez barcos, em vez dos dois que possuímos.

O rapaz que falara voltou-se para os companheiros e encolheu os ombros, com as sobrancelhas arqueadas numa   expressão de impotência.

- Muito bem, camaradas, aceitemos o desafio e tratemos de demolir o castelo!

Kate, que escutara a discussão com horror crescente, não podia suportar mais. Olhou para os desenhos e plantas espalhados em cima da mesa e viu o castelo, não naquele verdejante monte inglês, ~ numa paisagem agreste, algures muito longe, e rodeado, não de prados ingleses e calmos arroios, mas de montanhas arborizadas num litoral rochoso. E, de súbito, compreendeu.

- Pretende... pretende levar o castelo para a   América?

Mas isso é uma loucura, Mr. Blayne! Além de impossível, pois Sir Richard não consentirá. Tenho a certeza de que pensou que o museu seria aqui! Um momento, vou chamá-lo, assim como Lady Mary. Não...   não resistiriam. à? ideia... Oh, como dizer-lhes?!

Hesitou, a torcer as mãos, mas nesse momento a porta atrás dela abriu-se e Wells; espreitou, voltou-se e anunciou aos patrões o que vira:

- O cavalheiro foi encontrado, Sir Richard.

O velho casal entrou. lado a lado, a sorrir corajosamente, e Sir Richard estendeu a mão, sem dar a Kate tempo de falar.

- Como está, Mr. Blayne? Pregou-nos um susto, pois não

sabíamos quem era e ignorávamos onde se metera. É facílimo uma pessoa perder-se, na propriedade. Peço-lhe desculpa do

que aconteceu.

John Blayne aceitou o caloroso aperto de mão e conseguiu dominar o seu retraimento instintivo. Que força de mãos a daqueles velhos ingleses!

- A culpa foi exclusivamente minha, Sir Richard. Não devia ter chegado com tanta sem-cerimónia...

Voltou-se para Lady Mary e acrescentou:

- Apresento-lhe também as minhas desculpas, Lady Mary. Kate notou que a pobre senhora estava corada, do esforço que fazia. Querida velhinha, com que coragem tentava resignar-se! A rapariga olhou para o americano, mas desviou imediatamente a vista. Não o ajudaria nem um bocadinho! Ele que se arranjasse como pudesse, pois não merecia outra coisa, por não ter dito a verdade ao pobre Sir Richard. Este, se soubesse, jamais consentiria... Mas Lady Mary falava, na sua voz alta e aflautada - a sua voz pública, que usava para inaugurar bazares e discursar em chás de caridade.

- Mr. Blade…

- Blayne, minha querida - Emendou-a Sir Richard.

- Ah, sim,   desculpe! Os nomes amerIcanos são tão difíceis! Agora que nos habituámos à ideia, asseguro-lhe que estamos quase reconciliados com ela... É maravilhoso pensar nos tesouros artísticos

que penderão destas velhas paredes. Iremos residir para o pavilhão,

junto dos portões, mas creio que viremos aqui muitas vezes, como turistas... Não é verdade, Kate?  

Voltou-se, mas a obstinada rapariga limitou-se a menear a cabeça, com os olhos rasos de lágrimas. Lady Mary fitou-a, cheia de espanto, e perguntou:

-Kate, que tens tu? olha, Richard, Kate está a chorar!

- Não estou a chorar nada! - replicou a jovem, veemente.- Esforço-me apenas por não... por não espirrar. Virou as costas e improvisou   muito bem um espirro.

-Meu Deus, estes   velhos castelos são húmidos, Mr. Blayne! - exclamou Lady Mary, sorrindo ao americano. Espero que esteja   preparado... e que não pense em aquecimento central e tudo isso... Tenho a certeza de que seria mau para os quadros. Nós nunca encaramos essa ideia, apesar sobretudo quando os invernos de, às vezes, o frio   ser terrível, são cinzentos, sem um bocadinho de sol.

- É muito amável, Lady Mary - redarguiu o americano, docemente, ao mesmo tempo que olhava para as costas de Kate.

É surpreendente num americano - dizia Sir Richard - esse amor ao passado e o desejo de possuir este velho castelo...

John Blayne percorreu o salão com a vista, disposto a enfrentar a situação sózinho, pois os quatro rapazes seguido o seu conselho e partido, com as plantas, para a estalagem da aldeia. Quanto a Kate, aproximara-se de uma janela e mantinha-se obstinadamente de costas voltadas.

O americano recorreu ao estratagema de falar muito depressa.

- Talvez seja surpreendente, Sir Richard, mas herdei de minha mãe o amor pela Arte. Ela adorava velhos quadros e meu pai comprava-lhos, creio que para lhe agradar, apenas. Afinal, esses quadros são agora o seu melhor investimento. Digo agora porque, quando minha mãe começou   a coleccionar quadros, antes de morrer, há cerca de uns quinze anos, e se tornou evidente que eu seria filho único (o que não tem, afinal, nada a ver com o caso, a não ser que ela queria qualquer coisa que a ajudasse a distrair-se quando me mandaram para Groton), meu pai achou que se tratava de uma mania absurda. Mas ela insistiu e tornou-se autêntica conhecedora da arte dos séculos doze e treze, conhecimento que alargou depois até fins do século dezassete, sobretudo no tocante à pintura inglesa.

- Interessante - comentou Sir Richard.

- Meu pai adorava-a e deixava-a fazer a sua vontade. Mas quando ela morreu e os seus bens foram avaliados, ficou surpreendido, para não dizer atónito, ao ser informado pelos advogados de que a colecção era excelente e valia mais de cem milhões de dólares, com possibilidades de triplicar durante a sua vida. Decidiu imediatamente construir uma espécie de cofre-forte para guardar a colecção, qualquer coisa como um Forte Knox particular...

- Muito interessante -murmurou Sir Richard.

- Mas, a mim, isso pareceu-me quase um crime, pois os quadros fizeram-se para se verem, e, portanto, protestei. Con­fesso que não conseguiria convencer o meu pai se os nossos advogados não tivessem a brilhante ideia de lhe sugerir uma fundação.

- Mas o edifício teria, com certeza, fundações! - admi­rou-se Lady Mary.

John Blayne olhou-a, muito sério, e por fim sorriu.

- Não, Lady Mary; «fundação», na América, não quer dizer apenas alicerces, significa também um fundo posto de parte com um objectivo não lucrativo, um serviço público de determinada espécie. Como os advogados salientaram ao meu pai, se ele construir um museu que fique aberto ao público, poderá financiá-lo graças à tal fundação, o que será deduzido nos impostos.

-Compreendes o que está a dizer?- perguntou Lady Mary a Sir Richard.

- Ainda não, minha querida - respondeu-lhe o marido. - Mas espero vir a compreender, com o tempo.

- Fique para almoçar connosco, a fim de continuarmos à conversar, Mr... - e Lady Mary calou-se, constrangida.

- Blayne - acrescentou Sir Richard.

- Com muito prazer - aceitou o americano, sorrindo a ambos. - Não sei se sabem que se conjugam perfeitamente com este ambiente... É uma característica dos Ingleses, supo­nho, darem a impressão de que constroem os ambientes a condizer com a sua personalidade...

- Acontece precisamente o contrário - redarguiu Sir Richard, sorrindo também, mas de modo vago. - O ambiente é que influi em nós.

Kate não pôde suportar mais. Voltou-se, numa fúria, e gaguejou:

- Lady Mary, minha querida senhora, e Sir Richard... garanto-lhes que não fazem a mínima ideia... eu própria nãcr fazia até...

John Blayne lançou-lhe um olhar desesperado e rogou:

- Miss Wells, por favor! Temos muito que conversar, evi­dentemente, e eu...

- Tem razão, mas parece-me melhor explicar-se j á - vol­veu-lhe a jovem, fora de si. - Sir Richard, acho que deve saber, e Lady Mary também...

Mas John Blayne perdeu também a paciência e interrom­peu-a:

-Francamente, Miss Wells, este assunto só' diz respeito a Sir Richard e a mim. Não vejo com que direito... Sir Richard, houve um mal-entendido que pode, com certeza, ser esclare­cido. Ou melhor, duvido que tenha sido, sequer, um mal­-entendido, a não ser da parte de Miss Wells. Claro que ela não viu a nossa correspondência...

- Eles contaram-me tudo! - afirmou Kate.

- Minha querida - interveio Lady Mary, surpreendida -, não compreendo porque estás sempre a interromper Mr. Blade.

- Blayne, minha querida - emendou-a Sir Richard, mas ninguém lhe prestou atenção.

- Ele é que me interrompe a mim, minha senhora! - exclamou Kate, furiosa.

- Creio - sugeriu Sir Richard, judiciosamente - que devíamos falar à vez, minha querida... Primeiro as senhoras, Mr. Blayne?... Ou concedemos-lhe esse privilégio, Kate, por ser nosso hóspede?

John Blayne e Kate fitaram-se, nenhum deles disposto a ceder e sabendo ambos que um teria de o fazer.

- Então? -- insistiu Sir Richard, docemente. John Blayne encolheu os ombros e declarou:

- Cedo eu, Sir Richard, como americano. Ensinaram-me , a ser cavalheiro e, portanto, primeiro as senhoras.

Sir Richard riu-se, divertido com a disputa.

- Muito bem dito, sim senhor! Ouviste, minha querida? Diz que o ensinaram a ser cavalheiro... Muito   bonito num americano, hem?

Lady Mary pagou sorriso com sorriso e redarguiu: - É muito melhor do que se esperava.

- Obrigado - agradeceu John Blayne. - E agora, se me permite a franqueza, aceito com prazer o seu convite para almoçar, Lady Mary, aconteça depois o que acontecer.

Lady Mary inclinou a cabeça e ordenou ao mordomo: - Ponha outro talher, Wells, e sirva a sopa na terrina de prata. - Olhou os dois homens, que a observavam, e acrescentou: - Almoçaremos na sala de jantar pequena, só os três.

- Muito bem, minha senhora - respondeu ?Wells, e desapareceu.

Entretanto, Kate aguardava, mal contendo a impaciência. Lady Mary parecia esquecida da controvérsia e talvez Sir Richard preferisse que a esquecessem também, mas ela não era dessa opinião. Voltou-se e disse, com firmeza:

- Prossiga, Mr. Blayne, por favor.

- A deixa é sua, Miss Wells - replicou o americano, com uma espécie de desesperada despreocupação.- Não? Seja, pois! Sir Richard, ela tem razão... O que planeio é uma grande loucura, uma coisa terrível   ...   Tenciono levá-lo.

Kate não fez caso do tom brincalhão em que Blayne falara .e explicou:

- É o castelo que ele Pretende levar, Sir Richard.

Fez-se silêncio, que Lady Mary acabou por interromper, em voz quase inaudível:

- Disseste levar- Kate?

- Para a América, Lady Mary.

- Para a América? - repetiu a velha senhora, muito baixinho, apercebendo-se, lentamente, do monstruoso significado da frase. - Richard... ele quer levar o castelo para a América!

Sir Richard empalideceu e, depois, o sangue subiu-lhe ao rosto, numa onda. A dor que lhe martelou as têmporas deixou-o meio cego.

- Não compreendo, Mr. Blayne!

- Não o censuro, Sir Richard - afirmou John Blayne, delicadamente. - A culpa é minha, pois devia ter deixado os nossos advogados discutirem a transacção... Como sempre, ,fui muito impetuoso, muito sem-cerimónia... Mas julguei que a minha carta explicasse tudo, que fosse suficiente...

Tirou da algibeira um pedaço de papel, que desdobrou e colocou em cima da mesa.

- Aqui está o que tenho em mente... - O papel continha um esboço do castelo, sobre um fundo de montes arborizados e não de prados ingleses.

Lady Mary tacteou à procura dos óculos, pô-los e leu as poucas palavras do canto inferior esquerdo:

- Conn... Conn - murmurou.

- Connecticut - concluiu o americano.

Sr
- Que nome tão estranho! - exclamou a velha senhora. o nome do desenhador?

Sir Richard olhou também o papel, mas com desapego. Nada lhe interessaria enquanto aquele martelo não deixasse de lhe torturar a cabeça. No entanto, fez um esforço e observou.

- Bonito desenho, meu caro. Parece, de facto, o castelo, mas a torre leste está demasiado baixo. As duas torres deviam ser do mesmo tamanho, Mr. Blayne.

Kate avançou, colocou a mão no braço do americano e disse-lhe, docemente:

- Ainda não compreenderam... não podem. Deve ajudá-los... acredite que deve.

John Blayne olhou a mãozinha que lhe apertava o braço e depois fitou os olhos ansiosos da rapariga. Acenou, por fim, com a cabeça e Kate deixou a mão escorregar e pender ao longo do corpo.

- Permita-me que lhe lembre, Sir Richard - disse, tirando da algibeira do peito uma carta que desdobrou. - Felizmente trouxe uma cópia da carta que lhe escrevi. Talvez se lembre... Perdão, primeiro desejo responder a Lady Mary: Connecticut é o nome de um estado e não de um artista. Permita agora que leia só este parágrafo, Sir Richard. «Tenciono utilizar o castelo como o mais belo museu jamais concebido no Connecticut. O preço será elevado, mas estou disposto a pagar qualquer importância para que a valiosíssima colecção de quadros deixada por minha mãe receba instalação condigna e o público a possa apreciar ... » Não é Connecticut, E.U.A., que ali está escrito? Não creio que haja outro...

Percebia perfeitamente que estavam transtornados. Sir

Richard sentou-se numa enorme cadeira de carvalho e murmurou:

- Pensei que concebido no Connecticut... enfim, pensei que se referia apenas ao plano...’à ideia....

- É uma invasão... é o que é! - gritou Lady Mary, esganiçada, de súbito, a sua doce voz. - Outra vez a Armada espanhola, Richard.

Muito direito e digno, Sir Richard levantou a mão, a pedir siléncio e ficou imóvel, consciente apen.-as do latejar doloroso do seu cérebro. Tinha os olhos fixos em qualquer ponto distante do grande salão e quando, finalmente, falou, em Voz baixa e pouco firme, foi como se se dírigisse a alguém que aí estivesse:

- Herdei o Castelo de Starborotigh e a propriedade em que se encontra, incluindo mil acres’ de florestas e trés   mil acres de terras de lavoura, dos meus antepassados. O castelo foi doado ao meu antepassado, William Sedgeley, pela extraordinária bravura com que defendeu o Rei, numa conjura para o assassinarem, e em todas as gerações temos... feito o possível para cuidar do castelo, da quinta e da floresta. Agora, infelizmente, o Mundo mudou tanto que uma herança como esta se transformou num fardo intolerável, muito superior às forças de um homem. Sou responsável por setenta   famílias que vivem e trabalham nas minhas terras e... e... e...

A voz faltou-lhe e Kate correu para o seu lado. Lady sentou-se numa cadeira de espaldar alto, com o rosto delicado muito pálido.

-Oh, meu Deus! - murmurou.

John Blayne aproximou-se, mas ela afastou-o.

- Por favor... - disse-lhe, baixinho.

Kate olhou, ansiosa, para o americano e perguntou-lhe:

- Posso pedir-lhe que me faça uma coisa, Mr. Blayne? Sei como tratar de ambos, mas preciso da sua colaboração.

- Com certeza, Miss Wells; farei tudo, tudo o que puder.

Não era, de maneira nenhuma, intenção minha causar-lhes tal desgosto e acredite que lamento muito.

- Nesse caso - conseguiu sorrir-lhe, apesar da angústia que a consumia -, importa-se de ir fazer companhia aos seus homens, na estalagem, e de vir, antes, jantar? Sir Richard e Lady Mary terão, assim, um pouco mais de tempo para se acostumarem a esta... estranha situação.

- Da melhor vontade, Miss Wells. Mas não seria melhor voltar só amanhã?

- Volte esta noite - ordenou Sir Richard, em tom inesperadamente- firme. - Ainda não acabámos de falar, nem acabaremos enquanto não nos compreendermos um ao outro.

Lady Mary levantou a cabeça, orgulhosamente agora, e foi de novo a senhora do castelo, quando disse:

- E, evidentemente, passará a noite connosco, Mr. Blayne.

- É muito amável, Lady Mary, mas não desejo causar-lhe tantos incómodos. Reservarei um quarto na estalagem.

Wells, que entrara para anunciar o almoço, parou à porta e disse, delicadamente:

- Perdão, minha senhora, mas julguei compreender que o cavalheiro da América ficaria no castelo. já tirei a mala do automóvel e arrumei as suas coisas.

- Obrigada, Wells. Em que quarto o instalou? - No quarto do rei, minha senhora.

Transfira-o para o quarto do rei João - ordenou Sir Richard, severamente.

- Para esse quarto não, Richard - pediu. Lady Mary, em voz baixa, olhando ansiosamente o marido. - Há a humidade, como sabes, e, além disso,- eles têm andado muito barulhentos, ultimamente. Não é verdade, Kate?

Mas Kate estava entretida noutra conversa e não ouviu a pergunta.

- Creio que eles perceberam o que se passava. Andam sempre à nossa frente   *   nestas coisas, como sabes.

Sir Richard sorriu à mulher, com indulgência, e a tensão abrandou momentâneamente. Voltou-se para o mordomo e disse-lhe:

- Será então o quarto do duque, Wells. - Muito bem, milorde.

Enquanto o casal resolvia a questão do quarto, Kate e John Blayne tratavam do regresso do segundo ao castelo. -... sim, o jantar é às oito, aqui, no salão grande. E, por favor, Mr. Blayne, laço preto.

- Oh, mas com certeza!

Sorriu, como a dizer-lhe que compreendera tudo quanto lhe explicara, inclinou a cabeça diante de Sir Richard e de Lady Mary e dirigiu-se para a porta que conduzia ao jardim. Não teve coragem de olhar para trás, nem mesmo antes de transpor a porta. Receava verificar que Kate lhe virava as costas, o que seria superior à? suas forças.

Só depois de a porta se fechar, Kate se voltou para os dois velhotes e lhes perguntou, com uma ligeireza de que não se julgara capaz:

E agora, meus queridos, porque não vão almoçar?

Às oito horas, pontualmente, sentaram-se a jantar. Lady Mary e Sir Richard às cabeceiras da mesa comprida e estreita e John Blayne no meio deles e à direita de Lady Mary. Wells encontrava-se junto do aparador, pronto para servir, e Kate, de vestido preto, aventalinho branco e pequena touca empoleirada nos caracóis castanhos, atrás da cadeira de Lady Mary. A John Blayne parecia uma actriz, singularmente encantadora no papel que, naquele momento representava; na opinião dos donos da casa, fazia apenas o que sempre fizera desde que atingira a idade de entrar para o serviço do castelo.

Como se houvesse sido firmada uma trégua, a conversa durante o jantar oscilou entre arte é política, - história medieval e drama contemporâneo, condições da lavoura de ambos os lados do Atlântico e importância das raças na criação de gado. O assado estava delicioso, o vinho era de boa colheita, a sobremesa constou de ameixas de uma árvore da horta, conservadas no Verão anterior, os acepipes de salmão fumado ligeiramente cozido e o queijo era Stilton.

Só ao café, na saleta contígua ao grande salão, se falou do negócio em vista. Kate trouxe a bandeja do café, que colocou numa mesa baixa, à frente de Lady Mary, e o americano notou que as chávenas eram quatro e que Kate deixara na cozinha o avental e a touca.

- Simples ou com leite, Mr. Blayne? - perguntou Lady Mary.

- Simples, por favor, Lady Mary.

Os dois homens estavam de pé, de costas para a lareira, e Kate ao lado de Lady Mary, sentada num sofá baixo. - Pedi ao meu advogado, Philip Webster, que estivesse

aqui amanhã, às dez horas da manhã, a fim de discutir conosco o assunto do castelo -informou Sir Richard, em tom casual.

- Terei muito prazer em o conhecer.

- É possível... - Sir Richard hesitou. - É possível que gostasse de ter presente, também, o seu representante legal, Mr. Blayne... mas creio que não o conseguiria mandar vir da América a tempo da nossa reunião de amanhã... - e Sir Richard soltou uma gargalhadinha.

- O meu advogado, David Holt, da firma nova-iorquina Haynes, Holt, Bagley & Spence, veio comigo a Inglaterra, Sir Richard. Tem estado em Londres, mas telefonei-lhe esta tarde e ficou de chegar à estalagem da aldeia esta noite.

- Nesse caso, estarão presentes os conselheiros de ambos. Fundamental! - exclamou Sir Richard. - Fundamental, sem dúvida. Amanhã de manhã, às dez horas, no salão grande. Talvez lhe agrade um passeio a cavalo antes do pequeno almoço? Wells arranjar-lhe-ia qualquer coisa para vestir. O meu cavalo é fogoso, mas de confiança... Contudo, talvez o senhor prefira o cavalo de minha mulher, é uma montada mais velha, mas forte de fôlego e de pernas.

- Obrigado, Sir Richard. Nada me agradará mais do que um passeio matinal, a cavalo. - Voltou-se para Kate e perguntou-lhe: - Importa-se de me fazer companhia, Miss Wells, e de me mostrar a região?

Ela sorriu-lhe, como uma criança feliz, e abanou a cabeça: - Tenho obrigações a cumprir de manhã, Mr. Blayne. -Compreendo- murmurou, serenamente, e acrescentou, dirigindo-se a Sir Richard: - Talvez fosse melhor retirar-me agora, Sir Richard, tendo em vista tudo o que nos espera amanhã.

- Com certeza.

Sir Richard puxou um cordão de campainha   e o som ouviu-se, ao longe. Quando o mordomo apareceu,   o patrão ordenou-lhe:

- Acompanhe Mr. Blayne ao quarto do duque, Wells.

- Sim, milorde.

- Acho melhor ir também - disse Kate -, para me certificar de que está tudo em condições.

Pegou na bandeja do café e dirigiu-se para a porta.

- É muito amável - murmurou-lhe John Blayne.

O americano deu as boas-noites aos castelões e ia a meio da sala quando Lady Mary observou:

- Espero que eles não o incomodem esta noite.

-   Cuidado, minha querida. As tuas observações podem assustar Mr. Blayne e tirar-lhe o sono.

- Não se preocupe comigo, Sir Richard; tenho o sono pesado. Tranquilize-se, Lady Mary; dormirei bem. Até amanhã de manhã. - Parou à porta e levantou a mão, num gesto de despedida.

Sir Richard e Lady Mary estavam agora sentados ao lado um do outro, no sofá baixo. Tinham um ar real e ao   mesmo tempo terno, e haviam dominado por completo a situação enquanto a trégua durara. As espadas cruzar-se-iam a sério no dia seguinte de manhã.

Depois de a porta se fechar, Lady Mary suspirou e pousou docemente a mão na do marido.

- É muito simpático, não achas, Richard, apesar de ser...

- Muito - Simpático - concordou o marido. - Surpreendentemente, até. Mas nunca se sabe, com americanos...

Wells abriu a porta do quarto do duque e anunciou:

- Chegámos, Sir. Espero que encontre tudo a seu contento.

A cama estava aberta e John Blayne verificou que o seu pijama e o seu roupão tinham sido dispostos em cima da colcha desbotada e os sapatos de quarto colocados ao lado um do outro, no chão. A luz acesa, em cima da mesa-de-cabeceira, emprestava ao quarto um calor que não possuía quando lá estivera a vestir-se, antes do jantar. O lume esperto, na pequena lareira, fazia o possível por combater a humidade.

- A vela está junto do candeeiro, Sir, assim como os fósforos.

- Para que preciso da vela?

- Às vezes a electricidade falta, Sir, e, além   disso, alguns corredores não têm luz.

- Mas, Wells, não tenho intenção nenhuma de andar a passear pelo castelo, de noite!

- Pois sim, Sir, mas nunca se sabe. Mais vale prevenir do que remediar, é o que digo sempre. Se não precisa de mais nada, desejo-lhe que passe bem a noite, Sir.

- Obrigado, Wells.

O velho mordomo saiu e Kate deu uma volta pelo aposento. Passou o dedo pelos parapeitos, a fim de ver se havia pó, e endireitou os compridos cortinados de cetim. Era um quarto enorme, com janelas que iam do chão ao tecto. Os cortinados de cetim escarlate começavam a esgarçar e a jovem tentava ocultar os rasgões entre as pregas. Reparou que ele a olhava, porém, largou o cortinado.

- Cortou-se na testa! - exclamou, aproximando-se dele. John Blayne levou a mão à cabeça e explicou:

- Esta manhã dei uma pancada naquela porta baixa, quando íamos a entrar no salão grande.

- E não disse nada!

- Começaram logo a acontecer tantas coisas...

- Tenho de lhe lavar já a ferida.

Aproximou-se do lavatório e deitou água de um grande jarro de porcelana na bacia. Em seguida abriu uma gaveta e tirou uma toalha lavada.

- Não é nada... - protestou o’ americano.

- Tem sangue seco no golpe, debaixo do cabelo - insistiu Kate. - Baixe-se, por favor, senão tenho de ir buscar um escadote!

Blayne riu-se, baixou-se e sentiu o contacto suave das mãos da rapariga, enquanto lhe lavava o ferimento superficial. Desprendia-se dela uma fragrância agradável,   a limpeza, e tinha pele excelente e olhos tão azuis como nunca vira outros iguais, de um profundo azul-violeta, muito raro, como o dos olhos das madonas dos quadros antigos. As pestanas, escuras, eram bastas e levemente arqueadas para cima.

- Não parece americano- dizia, enquanto se desempenhava da tarefa de que se incumbira. - Dói? - Absolutamente nada.

- Importa-se de se baixar mais um bocadinho, por favor? É extraordinariamente alto, de facto.

- Depende da rapariga ao lado da qual me encontrar. Pela primeira vez a ouviu rir, com um riso encantador, franco e simpático.

- O interior da sua boca também é bonita - comentou. Kate levou a mão à boca e replicou:

- Deve ter-me visto a garganta! Esqueci-me de que estava tão perto.

- Mas não me esqueci eu.

A rapariga apressou-se a recuar e a protestar: - Francamente, Mr. Blayne...

- Não podia chamar-me Jolin, enquanto estiver no castelo? - Com esse nome só conheço o rei - replicou, esforçando-se por conter o riso.

- Ah, mas esse está morto!

- Pronto, voltou a sangrar! --? Aproximou-se mais, para estancar o sangue da ferida reaberta, é contrapôs: - Quanto ao rei João, não está morto... de todo. Ainda cá tem o seu quarto, aquele em que o não quiseram instalar. Um velho castelo como este está sempre vivo ou, pelo menos, habitado. - Quer dizer assombrado, não?

A boca maravilhosa estava agora tão perto dele que teve de se retesar todo. Absorvida pela sua tarefa, Kate, entreabrira os lábios e a ponta da língua espreitava-lhe entre os dentes brancos.

- Não, assombrado, não - afirmou. - Como podiam assombrar-nos pessoas que nos amamos? Sim, porque são pessoas... de forma diferente, talvez, mas vivas.

Recuou e esboçou um gesto que abarcou o quarto todo.

-   Neste quarto, é muito possível ser-se acordado de manhã pelos sinos da capela real, em baixo. Agora é o salão de baile, mas foi em tempos o lugar onde a rainha Isabel se ajoelhava de madrugada, para rezar. Ela rezava muito, sabia? As pessoas têm tendência para não se lembrar disso, mas ela era religiosa. Creio que se sentia muito só e que não podia confiar em ninguém, nem mesmo em Essex, a quem amava. Talvez, sobretudo, em Essex, pois dissera-lhe que o amava e ele dispunha dessa vantagem.

-   Como sabe que lho disse?

- Teve de dizer, com certeza. Apesar de rainha, apaixonou-se como qualquer mulher. Apostaria que lutou contra o próprio coração, pois não ignorava que não podia (ou que não devia) ficar à mercê de nenhum homem. Mas o coração acabou por vencer... Sinto-me satisfeita por não ser ninguém. - Um lindo ninguénzinho.

Kate riu-se outra vez.

- Revelei-me, não foi? Mas escusava de ter dado por isso! - Não pude evitar.

- Tenho de deixar de falar - afirmou, fingindo-se aborrecida. - Afinal, é só um arranhão. - Afastou-se, direita ao lavatório.

- Não, não! - protestou, seguindo-a. - Por favor!

- Se continua a arreliar-me... - Estava junto da porta, agora.

- Voltemos a falar do castelo - pediu. - Diga-me mais coisas a esse respeito.

Kate reflectiu, parada no limiar da porta.

- O que me levou a acompanhá-lo nos corredores foi o facto de serem, na realidade, muito perigosos...

- Assombrados, também?

- Não. Conduzem, no entanto, às masmorras, como lhe disse, e a um rio subterrâneo.

- Oh, não, isso é demasiado perfeito! É o que todos os castelos sonham possuir: masmorras e rios subterrâneos!

- Mas é absolutamente verdade! Podia mostrar-lhe...

- Quero que mostre, advirto-a!

- Há também uma janela, na torre do lado leste, que não se sabe a que quarto pertence. Nunca ninguém o encontrou...

- Como sabem que existe um quarto, se nunca ninguém o encontrou?

John Blayne brincava, de novo, mas Kate? estava seria. Esqueceu-se de si mesma, aproximou-se dele e segredou-lhe, de olhos muito abertos:

- Houve, uma vez, uma grande festa, no tempo do rei João, e dependuraram fitas de todas as janelas... mas no fim verificaram que uma das janelas não tinha fita nenhuma. Existiu sempre essa janela!

- Essa agora!

- É verdade - insistiu. - Havia na biblioteca um livro acerca do castelo, que contava isto tudo.

-   Tenho de ver esse livro.

- Desapareceu há muito tempo, ninguém sabe como. Mas o meu avó viu-o.

- Se demolirmos o castelo, descobriremos os seus segredos.

- Não... Oh, por favor, não! Não quero conhecer os seus segredos.

Blayne surpreendeu-se com a expressão perturbada do rosto miúdo da rapariga e perguntou-lhe, sério:

- Diga-me cá, os eles a que Lady Mary se referiu fazem parte dos segredos?

Kate deixou de se mostrar perturbada para parecer assustada.

- Não me compete a mim responder, Mr. Blayne - replicou. .

Depois dominou-se, levantou a cabeça e brindou-o com um sorrizinho formal, como se estivesse resolvida a não permitir amizades.

- Tenho de voltar para junto de Lady Mary - declarou. - Deve estar a interrogar-se acerca do que me terá acontecido.

Deixou-o sozinho no quarto do duque e afastou-se rapidamente, ao longo do sinuoso corredor de pedra. Não obstante o momento de pânico, sentia-se inesperadamente alegre e começou a cantarolar baixinho. Como a vida era maravilhosa! Primeiro, pregava tremendos sustos às pessoas, depois convencia-as, não se sabia como, de que, fosse como fosse, tudo correria bem!

- Desculpem-me, por favor! - pediu, ao irromper, quase a Correr, na saleta de estar.

, - Demoraste-te muito tempo - observou Lady Mary. - Foi por causa do americano, minha senhora. Fez-me tantas Perguntas acerca do castelo!

- As perguntas, Kate, serão respondidas amanhã, na presença dos nossos advogados - lembrou-lhe docemente Sir Richard.

- Sim, milorde.

- Agora acompanha a senhora ao quarto. já devia estar deitada há uma hora. Teve um dia fatigante.

Sim, milorde.

Cerca das dez horas da manhã seguinte, estavam reunidos no salão grande, Sir Richard, Lady Mary, John Blayne e o seu advogado, David Holt, indivíduo de meia-idade, cara escanhoada, magro e reservado. Philip Webster foi o último a chegar, mas a sua presença foi imediatamente notada. Era um homem baixo, um pouco corpulento, sem chapéu e de fato castanho, amarrotado, e cachimbo na boca.

Mal o viu entrar, Lady Mary voltou-se para ele, de mãos unidas numa súplica, e exclamou: .

- Graças a Deus chegou, Philip!

- O meu advogado, Mr. Philip Webster, de Londres apresentou-o Sir Richard, voltando-se para John Blayne. Webster, este é o... o cavalheiro americano com quem trocou, suponho, correspondência.

- O meu advogado, David Holt, da Haynes, Holt, Bagley & Spence - apresentou, por sua vez, Blayne.

Philip Webster tirou o cachimbo da boca, apertou a mão a John Blayne e inclinou a cabeça, sem falar, diante de David Holt. Depois virou-se para Sir Richard e explodiu:

- Vamos lá a saber, Richard, que diabo fazem aqueles rapazolas, ao portão? Chegaram numa carangueja qualquer, muito ruidosa, logo atrás de mim, e quando lhes perguntei que queriam responderam-me que vinham tirar medidas ao castelo, a fim de o transferirem. Como se se tratasse de uma capoeira, ou coisa parecida! - Calou-se e, ao tomar consciência do silêncio que, de súbito, se estabelecera, perguntou:- Mas, afinal, que se passa?

Sir Richard não respondeu logo. A dor martelava-lhe novamente as têmporas e teve de aguardar que se acalmasse. Quando falou, fê-lo no seu habitual tom sereno, mas numa atitude distante, como se não participasse no que ali se passava.

- Estamos num grande apuro, Philip, numa situação muito desagradável. Não compreendo... tenho a certeza de que não pretendeste iludir-me, Philip, mas é tudo tão...

Calou-se e olhou para Lady Mary, que abanava a cabeça. - Receio que a venda não se possa efectuar, Philip, mas confesso que não sei o que faremos....

- É absolutamente impossível - interveio Lady Mary, de mãos ainda unidas e a tremer. - Mas, nestes tempos, tudo é impossível.

- O que é impossível, Lady Mary?

- Querem levar o castelo e, ainda por cima, para uma terra cujo nome não sei, sequer, pronunciar! Confesso que nunca ouvi falar em coisa tão impossível e que não compreendo como o Philip achou a ideia realizável. Confesso, Philip, que não posso, não posso, simplesmente...

- Meu Deus! - exclamou Webster. - Então os homens

tinham razão. Mas é incrível! E, claro, eu não concordei com tal coisa. Como poderia, imaginar que alguém se lembrasse de transferir o castelo para a América? Que virá a seguir? Mas que loucura, que loucura!

John Blayne aproximou-se, empunhando uma carta na mão estendida.

- Não é loucura nenhuma, creia; estamos habituados a transferir grandes edifícios para onde queremos. - E, serenamente, abriu a carta em cima da mesa, para quem a quisesse ler.

Ninguém se mexeu nem falou.

- Lamento muito tudo isto, Mr. Webster - prosseguiu John Blayne. - Trata-se, simplesmente, de um daqueles mal-entendidos que surgem hoje em dia entre continentes... Queira ler isto. É uma carta. que eu escrevi. Devia ter-lhe enviado uma cópia, bem sei, mas supus que Sir Richard lhe mostraria o original...

- Eu já receava isto, Blayne - declarou Mr. Holt. - Des-

confio das coisas feitas sem formalidade.

- É muito perigoso - corroborou Webster.

John Blayne lançou-lhe um olhar rápido, meio impaciente, meio divertido, e ia a falar, mas Mr. Holt antecipou-se-lhe e impediu-o:

- Mr. Webster tem razão, a situação requer um acordo.

- De outra maneira será muito perigoso - observou Philip Webster, satisfeito por ter sido compreendido.

John Blayne voltou-se’ para Philip Webster e aguardou, enquanto a carta era lida cuidadosamente.

- Não se trata de transacção susceptível de ser efectuada por indivíduos vulgares, compreendem? - comentou, por fim, o advogado inglês, franzindo os lábios e abanando a cabeça. Só advogados deviam tratar deste género de coisas. Claro que os, meus clientes têm razão; é impossível. Nós, Ingleses, não exportamos os nossos castelos, como sabem. - Voltou-se para Sir Richard e acrescentou: - Receio que tenha de haver litígio. Pode ser muito desagradável, nunca se sabe... mas não teremos outro remédio senão seguir para a frente.

Lady Mary, que escutara a conversa a torcer nervosamente os dedos levantou-se, de súbito, com um movimento gracioso, e declarou:

- Creio que, neste momento, nos saberia bem a todos uma chávena de chá...

Puxou o cordão da campainha, com força, e o tilintar ecoou pelos corredores distantes.

Quando Wells; acorreu, pediu-lhe que mandasse Kate servir chá a todos e acrescentou, como se não confiasse na vista do velho mordomo:

- Somos cinco, Wells.

- Muito bem, minha senhora.

Wells apressou-se a virar as costas e a sair do salão. Sabedor do motivo da reunião, não queria que vissem as lágrimas que não conseguia reter e que lhe corriam,   já, pelas faces enrugadas.

Durante o pequeno intervalo, os dois advogados mantiveram-se calados e atentos.

- Não haverá litígio nenhum - declarou John Blayne. Não obrigarei- Sir Richard a vender o castelo contra sua vontade. Contudo... bem, aqui está o cheque da importância combinada (um milhão de dólares), como prova de que vim de boa fé.

Lady Mary soltou uma exclamaçãozinha abafada, ao ver o cheque. Kate, que entrava com a bandeja contendo as chávenas fumegantes, levantou a cabeça para John Blayne. Os olhos dos dois cruzaram-se, por instantes.

- A carta é um compromisso, Mr. Blayne - afirmou David Holt, medindo as palavras. - Devo lembrar-lhe, também, que já gastou cinquenta mil dólares, fretou dois barcos e...

Webster interrompeu-o, sem rodeios:

- A carta não provaria nada num tribunal inglês, Sir. - Somos americanos, Sir, e procedemos de acordo com a lei   americana! - retorquiu-lhe Holt.

- O meu cliente é inglês! - afirmou Webster.

- O facto de ser inglês não significa que não perceba o que diz uma carta escrita em simples inglês - declarou Mr. Holt, - sobretudo havendo nos nossos arquivos uma carta sua a aceitar a nossa proposta.

- Repito que o meu cliente não pode aceitar o que não compreende - insistiu Webster.

- Trouxemos - connosco um grupo de peritos em arquitectura - teimou o advogado americano -, em breve chegarão técnicos, fizeram-se já inúmeros planos e assinaram-se contratos, tudo isto baseado na carta de aquiescência que recebemos. Os prejuízos serão, portanto, grandes, se o negócio for cancelado.

Webster atirou o cachimbo ao chão e passou as mãos de dedos curtos pelos grisalhos cabelos ruivos, até os deixar numa espécie de matagal desgrenhado.

- Experimente, Sir, experimente! Será outro Agincourt, mas lembre-se quem ganhou, então! O castelo, encontra-se em Solo inglês!

- Acabem com isso! - ordenou, em tom imperioso, John Blayne.

Os dois advogados obedeceram e o americano rasgou o cheque em bocadinhos e deixou-os cair no chão. Depois tirou a carta de cima da mesa, dobrou-a, meteu-a no sobrescrito e estendeu-a a Sir Richard.

- É sua, Sir Richard; faça dela o que lhe apetecer. Não vim aqui para negociar e, sim, com o simples objectivo de encontrar uma maneira bonita de exibir grandes quadros pintados por grandes artistas. Queria pendurá-los em lugar onde as pessoas os pudessem ver (sim, as pessoas da minha terra, - os Americanos - queria compartilhar os quadros com eles, em vez de os ter fechados num cofre, como barras de ouro. - Suponho que perguntarão porque...

- Por favor, cavalheiros, o chá! - interrompeu-os Kate.

- Sim, sim - concordou Lady Mary, em voz vibrante de nervosismo. - Cheguem as cadeiras para a mesa e compartilhemos... compartilhemos...

-...um dos hábitos mais civilizados - concluiu David

Holt, galantemente, e levantou a chávena na direcção da castelã, como se erguesse uma taça de champanhe para um brinde.

Chegaram as cadeiras para a mesa e Kate aproximou-se e ofereceu-lhes leite e açúcar.

- Sim - declarou Sir Richard, mexendo o chá, mas sem desviar os olhos de John Blayne -, creio que temos curiosidade de saber porquê.

John olhou em redor do grande salão, primeiro para as paredes forradas de tapeçarias e depois, para as pessoas reunidas em volta da mesa.

- Talvez porque me sinta de certo modo culpado, embora não espere que compreendam o que quero dizer... Meu pai é um homem rico e a sua fortuna foi acumulada de maneira...

bem, da maneira que lhe pareceu melhor. Minha mãe era diferente, absolutamente diferente...

Hesitou e David Holt comentou, saudoso.

- Era uma senhora encantadora!

- Creio que desejo recompensar de qualquer maneira tudo o que ele... - prosseguiu John Blayne, mas Sir Richard interrompeu-o:

- Seu pai sabe dessa ideia?

- Com certeza, Sir Richard, e considera-a loucura pura e simples. Mas, para ser franco consigo, devo acrescentar que meu pai e eu raramente concordamos seja no que for. Discutimos pelo menos dia sim, dia não.

Aí tem! - explodiu Philip Webster.

- Mas lembrei-lhe que, em virtude de administrar a fundação (e notem que foi ele quem me pediu que a administrasse), devia fazer as coisas à minha maneira.

- Mas porque desta maneira? - perguntou Sir Richard.- Para despeitar seu pai, talvez, por ele querer construir qualquer coisa a seu modo?

John. Blayne levantou-se da mesa, afastou-se alguns passos, inquieto, e retrocedeu, com a mesma inquietação.

- Não pretendo despeitar meu pai. Estimo-o e ambos amá-mos minha mãe, cada um à sua maneira. Não, quero o castelo porque estou convencido de que é o que me convem. Os grandes quadros podem viver numa atmosfera harmoniosa. Os nossos museus estão atravancados e eu quero o meu museu... bem, harmonioso. Há um velho ditado chinês segundo o qual alguém perguntou a Lao-tseu (creio que foi a ele) se determinada tarefa estava a ser feita convenientemente, e ele respondeu: «A maneira é uma maneira, mas não é a maneira eterna.» Este castelo está em Inglaterra há mil anos e ficaria no Connectícut outros mil, depois de todos nós morrermos, com os quadros em segurança e preservados para alegria das gerações que jamais veremos. Compreendem agora o profundo desejo que sinto de comprar uma coisa tão bela como este castelo, este pedaço da Inglaterra? Eu próprio sou inglês, por ascendência.

Lady Mary acenou,   como se compreendesse, contra sua vontade. Kate acenou também, mas os homens continuaram carrancudos,

- Lembro-me como minha mãe comprava os quadros. Ao princípio, não percebia de arte; sentia-a, apenas. Depois, à medida que o seu amor pelas coisas belas que comprava crescia, começou a compreender e a conhecer. Um dia, comprou um Fra Angélico a um velho italiano, em Veneza. O homem utilizava-o para dispor o peixe que vendia e ela não sabia que o quadro era valioso, mas apenas que era belo. Nunca se importou com o seu valor em dinheiro, uma das coisas que meu pai não podia, talvez, compreender. Disse-me (e foi uma das últimas coisas que disse!): «John, cuida dos meus tesouros.» E eu cuidarei deles, quero que existam, não só por amor de minha mãe, mas também por amor dos artistas que os criaram! Minha mãe compreendia esses artistas, sabia o que eles tinham querido exprimir. Passava horas sentada diante de um quadro, a «absorvê-lo». Pouco resta no mundo de hoje dessa espécie de amor puro, ou de qualquer espécie de amor, talvez. Não desistirei da minha ideia, Sir Richard! Se não .puder ter este castelo, encontrarei outro, algures em Inglaterra!

Voltou-se para Philip Webster e acrescentou: - Lamento, Sir, que o negócio não se faça. - Não aprovo, John - declarou Mr. Holt. Mas John Blayne sorriu e disse-lhe:

- Encontrar-nos-emos na estalagem, antes de regressarmos a Londres.

David Holt inclinou a cabeça em redor da mesa, Pegou na pasta e saiu silenciosamente do salão. John pareceu que o ia seguir, mas depois deteve-se, mordeu os lábios e estendeu a mão a Webster.

- Adeus. O senhor daria uma boa luta, mas não haverá nenhuma. Ganhou sem luta.

- Sinto-me muito feliz por isso, Mr. Blayne. O senhor

é um adversário extraordinariamente generoso, raríssimo, mesmo.

- De modo nenhum. Não sou lutador, ao contrário de meu pai. Um lutador na família chega, creio.   Mas não permitirei que uma disputa estrague um belo plano. Adeus, Sir Richard e Lady Mary! Pertencem aqui, ambos, são parte do castelo e de tudo quanto ele significa para a Inglaterra... e para todos nós, no   Mundo. Miss Wells...

- Não estendeu a mão a Kate e ela notou-o. Por nada deste mundo   lhe estenderia a sua, então. Levantou a cabeça e fitou o seu olhar franco, onde brilhava a sombra de um sorriso.

- A sua rã estará em segurança, agora. Pode passar o resto da vida numa folha de nenúfar.

Custava-lhe partir e por isso se demorava, a sorrir-lhes com inconsciente avidez. Gostava deles. Eram pessoas em quem se podia confiar, pessoas tão seguras de si mesmas, embora pertencessem a outra era, que não temiam a riqueza e o seu poder. Sentia-se atraído para Sir Richard e Lady Mary com um afecto que o surpreendia e enternecia. E Kate - tratava-a. assim, mentalmente -   pertencia-lhes de uma maneira que ainda não compreendia e que desejava compreender. Possuía graça vigorosa, beleza saudável, muito sua. Não a conseguia compreender nem, tão-pouco, a curiosidade que ela lhe inspirava. Havia na sua pequenez um não sei quê que cativava, uma delicadeza que tornava divertido o seu ar de competência e confiança em si mesma. Era uma criaturinha generosa, sem egoísmo, e os seus cabelos de caracóis naturais e o seu rosto sem pinturas formavam contraste agradável com as raparigas que povoavam - um tanto ou quanto densamente - o mundo em que estava habituado a viver.   Tinha a impressão de que até o pai concordaria com ele a respeito de Kate, se alguma vez a conhecesse: concordaria com ele, definitivamente, e de bom grado poria Louise de lado.

Lady Mary levantou-se da mesa, olhou interrogadoramente de uns para os outros e perguntou:

- Mas não acabámos, com certeza, de conversar? Deve haver muito mais que dizer e poderemos fazê-lo durante o almoço. Mr. Blayne deve estar esfomeado.

Sir Richard levantou-se e colocou-se ao lado da mulher. Enternecia, pensou John Blayne, verificar que quando um se levantava ou se afastava o outro ia imediatamente juntar-se-lhe. Recordá-los-ia sempre, lado a lado, num esplendor antigo. Era uma façanha envelhecer com esplendor.

- Se me permite, Lady Mary, acho que devo reunir-me aos meus homens e a Mr. Holt, na estalagem. O novo rumo dos acontecimentos deve tê-los deixado um pouco indecisos...

- Mas voltará para jantar? E passará cá a noite outra vez, com certeza?

- Claro que deve passar cá a noite, Mr. Blayne - corroborou Sir Richard, que acrescentou, inclinando-se para ’a mulher:- Não e Blayne, minha querida.

O americano hesitou e, nesse momento, entrou Wells, que lhe perguntou:

- Deseja que traga o seu automóvel, Mr. Blayne? - Sim, Wells, se fizer favor. Mas...

Olhou de Sir Richard para Lady Mary, ao mesmo tempo que evitava encarar Kate. Até que ponto ousaria dar-se ao luxo de saborear aquele calor inglês? Ocorreu-lhe, enquanto se encontrava no velho salão, com o sol a coar-se pelas altas janelas profundamente embebidas nas grossas paredes de pedra, que havia muito tempo desde a morte da mãe! - que não sabia o que era simples calor humano.

- Voltarei - prometeu, sorrindo a todos.

Philip Webster apreciou o seu almoço como só um vencedor seria capaz de fazer.

- Enfim, vencemos! - exclamou, pela terceira vez. - E ninguém pode dizer que a situação não era perigosa. Podiam ter-nos processado por quebra de compromisso, Richard, ? embora, nesse caso, eu lutasse até ao fim.

Sir Richard voltou-se para ele, com as grossas sobrancelhas franzidas, e replicou:

- Está a dizer-me que faltei à minha palavra? Eu nunca falto à minha palavra!

- Não, não - apressou-se Webster a esclarecer. - Meu Deus, seria inútil tentar levar a melhor consigo num ponto de honra, Richard! Nunca mais acabaríamos. Penso apenas no futuro, meu caro. Que faremos a seguir? Estamos exactamente onde estávamos antes de tudo isto começar.

Lady Mary suspirou.

- Uma prisão ou uma fábrica atómica são as únicas possibilidades, não é? - perguntou. - julgo,   contudo, que um castelo que foi a própria raiz da Inglaterra podia servir para qualquer coisa intermediária, não lhe parece? Mas, actualmente, não existem meios termos, não sei porquê. Não poderá telefonar a alguém de Londres, Philip? Ao primeiro-ministro, ao chanceler do Tesouro, a alguém?

.   Podia tentar outra vez o Conselho Britânico das Artes... Nunca se sabe quando mudam de opinião - sugeriu Webster.

-   Pois claro - concordou Sir Richard. - Devia telefonar-lhes, até, todos os dias, pelo menos duas vezes por dia. Esses tipos finos, das artes, passam a vida a beber chá e a esquecer-se do que é prático.

- Tentarei outra vez, e agora mesmo - resolveu Webstr, e saiu do aposento.

Sir Richard viu-o afastar-se, melancolicamente, e comentou: - Devo confessar-te, minha querida, que tenho as minhas dúvidas de que   o Philip seja capaz de resolver o assunto... Creio, até que lamenta não ter havido nenhuma acção legal. Teria ensejo de escrever intermináveis alegações, que ninguém perceberia, e de se levantar diante de toda a gente, no tribunal, e papaguear todo aquele palavreado em que os advogados são férteis, por dá cá aquela palha! São todos- actores, na minha opinião, e, quando se chega a factos, tão pouco de fiar como eles. Passam a vida a repisar precedentes que outros advogados abriram, séculos atrás.

- Tenho a certeza de que não encontrariam nenhum precedente de venda de um castelo a... Como se chama a terra, Richard?

- Não sei pronunciar o nome. Lady Mary suspirou de novo.

-Connecticut, creio? Imagina, mudarem-nos o castelo para uma terra cujo nome nem sequer sabemos pronunciar! - Há, pelo menos, um ponto em que Webster tem razão, minha querida: as nossas dificuldades são tremendas. Como sabes, as únicas ofertas particulares que recebemos, apesar de tantos anúncios, foram para uma escola de rapazes e um hospital de malucos. À prisão e à fábrica atómica nem sequer me refiro. Não se serviriam do castelo para isso, arrasá-lo-iam.

O que interessa a esses cientistas é espaço vazio, um bocado de deserto, como já te disse. Os nossos cientistas ingleses sonham imitar os americanos: aqueles esplêndidos desertos! Imagina, um deserto de mil acres, aqui, em Inglaterra!

Lady Mary ouvia-o, horrorizada, com os olhos fascinados, ainda infantilmente azuis, presos ao rosto do marido. - Podias estipular na escritura de venda que não fariam

isso - sugeriu. - Sempre disseste que o castelo não seria modificado. Foi até por isso que aquele milionário americano de Hollywood não o comprou. Disse que instalaria aquecimento central e canalização americana, e tu...

- Não penses mais nisso, minha querida; os Americanos têm sempre a mania de modificar tudo. Uma coisa, pelo menos, devemos dizer em abono desse tal Blayne...

John...

-   Sim, sim, John... Esse, pelo menos, pretendia reconstruir o castelo exactamente como ele é. Disse alguma coisa acerca de aquecimento central?

- Não, nem de canalizações.

- Quanto a canalizações é natural, pois ninguém se lembraria de instalar casas de banho em museus... embora os Americanos pareçam querê-las em toda a parte. Mas a ideia de transferir o castelo... Concordo com o pai dele, seria uma autêntica loucura. Porque não muda o Connecticut para cá?

Kate entrou na sala com uma jarra de tulipas, que colocou em cima da mesa.

- São lindas, não são, Lady Mary? E desabrocharam logo a seguir aos narcisos, como se tudo no castelo quisesse ter o melhor aspecto possível nesta Primavera.

- Pareces muito contente- observou Sir Richard.

- Porque não? Portou-se muito bem, Sir Richard! Quando o americano compreendeu os seus sentimentos acerca do castelo, viu que a honra lhe mandava ceder. Portou-se dignamente, não acha?

Só quando percebeu que o seu tom alegre não os animava avaliou o estado de espirito do casal. Estavam tranquilamente sentados, Lady Mary com as mãos abandonadas no colo e Sir Richard de pernas cruzadas, com ar grave e o olhar distante, como se nem sequer a ouvissem.  

- Que se passa, meus queridos? - perguntou, ternamente. Impulsiva, ajoelhou aos pés de Lady Mary e acariciou-lhe as mãos velhas e finas - mãozinhas magras, semelhantes a avezinhas depenadas.

- Estamos em situação muito precária, Kate - confessou Sir Richard. - Nada melhorou.

- Gostarias de ver o castelo transformado em prisão?- perguntou-lhe, lamentosamente, Lady Mary.

- Oh, não seja tão pessimista! - exclamou a jovem.-

O que estão é muito fatigados, meus queridos, como é natural; eu própria me sinto exausta.

- Terei de cumprir a palavra que dei a esse americano

- prosseguiu Sir Richard. - Mesmo que não a cumpra (o que, nota, não penso fazer), daqui a uma semana terei de falar com alguém, acerca de qualquer outra solução.

Kate levantou-se e fez menção de se aproximar, mas Sir Richard não queria ser reconfortado.

- Não, Kate, não - gemeu, empurrando-a docemente. Não compreendes. Ninguém compreende. Preciso de ficar só, alguns instantes.

Levantou-se da poltrona e saiu da sala.

Kate voltou para junto de Lady Mary, puxou um tam-

borete e sentou-se a seu lado. A lareira ainda estava acesa, mas mesmo assim o aposento parecia gelado.

- A situação é, de facto, tão desesperada, minha senhora?

- É - confirmou a velha dama. - O que mais me preocupa, Kate, é o que eles dirão.

- Também pensei nisso.

Às vezes, quando estavam sós, Kate apoiava a cabeça nos joelhos de Lady Mary, como se fosse outra vez criança. Fê-lo naquele momento e, ao sentir a mão da velhinha afagar-lhe os cabelos, agarrou-lha e encostou-a a uma das faces.

- Sempre os respeitámos - prosseguiu Lady Mary. - Deixamo-los andar por aí, de noite, mesmo quando isso nos impede de dormir... E aqueles sinos, que não consegue calar! Se nos preocupamos tanto com eles, não seria justo que eles se   preocupassem também um bocadinho connosco?

- Sim, se eles sabem - concordou Kate. - Contudo, como poderiam ajudar-nos, mesmo que soubessem? Talvez se sintam muito mais impotentes do que pensamos, pobrezinhos! Às vezes, penso que é tudo uma questão de ondas...

- Ondas? - repetiu Lady Mary, em tom vago.

- Como nas telefonias, minha senhora. Não há fios nem nada que se veja, mas as vozes chegam até nós... Simplesmente, como não temos, em nós, nada que sirva para estabelecer ligação... Talvez eles tentem tudo para comunicarem connosco e não o consigam...

Lady Mary parecia nem a ouvir.

- Se ao menos nos pudessem ajudar a encontrar um tesouro escondido algures... - murmurou. - Richard diz que é uma tolice, pois julga-se sempre que nos castelos há tesouros escondidos pelos antepassados, mas se sempre se julga,

não seria nada de espantar que, algumas vezes, fosse verdade. - Talvez o rei João nos dissesse, se eu me levantasse cedo, quando os sinos tocam...

Kate exprimiu-se em tom meio brincalhão e Lady Mary não lhe respondeu logo. Por fim perguntou, em voz grave: Achas que endoidecemos?

Certamente que não - afirmou Kate, beijando a mão que segurava. - Alguma vez inventou alguma coisa da sua cabeça, Lady Mary?

- Nunca! - exclamou com veemência a’ interpelada. Nunca, nunca! Foi sempre um deles que mo disse.

- Então eles, às vezes, conseguem comunicar connosco e nós devemos, simplesmente, tentar por todos os modos obter o seu auxílio.

Levantou-se para atiçar o lume e colocar mais um toro. Quando voltou a falar, a sua voz revestiu-se de cuidadosa indiferença.

- Foi pena o americano vir cá com ideia tão estúpida. ,É muito simpático... e nada estúpido.

Calou-se, soltou uma gargalhada e acrescentou: - A rã... é tão divertida!

Lady Mary fitou-a, boquiaberta. Pensou perguntar de que se ria e a que rã se referia, mas a expressão do rosto de Kate fê-la desistir da ideia. Que se passava? Havia mais do que divertimento no olhar da rapariga; havia ternura.

Sir Richard puxou as rédeas do cavalo e percorreu os seus campos com a vista. Uma ténue neblina quase obscurecera o sol, depois do meio-dia, mas com o avançar da tarde a névoa dissipara-se e o sol inundava de luz a paisagem colorida. Era uma visão agradável, a oferecida pelos campos verdes, com o trigo ainda tenro, e as suas boas vacas Guernsey a pastarem nos extensos prados. Ao longe. um aglomerado de telhados localizava a, aldeia e, aquí e ali, algumas árvores abrigavam uma cabana de rendeiro.

Como era eterna, a paisagem! Campos, prados e florestas pertenciam-lhe pelo direito divino de antigos reis havia muito mortos, mas que, antes de a morte os levar, tinham doado aquela parte dos seus dominios a William Sedgeley, seu antepassado. Sir Richard orgulhava-se da sua semelhança física com William. já em rapaz sua mãe costumava dizer: «Richard é tão parecido com Sir William! Que pena não lhe termos dado esse nome!» O retrato de Sir William, um jovem   alto, flexível, de cabeça erguida e montado a cavalo, pendia da parede da chaminé, no salão de baile. Havia sangue real. algures nos Sedgeleys - oculto, evidentemente. Um boato, segredado de geração em geração, insinuava que William fora amante de uma rainha e quando nascera um filho desses amores o levara secretamente para casa, a fim de ser criado entre os seus outros filhos, como uma águia entre pombos. A história devia ser verdadeira. Doutro modo, como se justificaria que o castelo, uma residência real, tivesse sido doado aos Sedgeleys?

E, acima de tudo, como se explicaria a si próprio? Sabia, havia muito, que não era um homem vulgar, nem mesmo entre os seus pares. Tinham-lhe chamado orgulhoso, arrogante, até -«Aquele rapazola altivo», diziam dele em Oxford, e o epiteto magoara-o enquanto o não contara ao pai.

«E é muito justo que o sejas», dissera-lhe o pai, complacente. «Tens todo o direito de andar de cabeça erguida; és um Sedgeley, do Castelo de Starborough, e eles, comparados contigo, não passam de novos-ricos.»

E, contudo, apesar de todo o seu orgulho, não era livre. Tinha os seus   rendeiros, devia-se-lhes, e eles, como todos os da sua espécie em todas as partes do mundo, pugnavam não pela sua independência, mas, sim, pela sua dependência. A força dos fracos! Eram crianças, crianças que pediam sem pensarem em dar, que faziam dos reis seus escravos, assim como todos os governantes eram escravos dos governados.

O povo, eis o cadinho dos tiranos, dos descontentes, dos insatisfeitos, dos gananciosos, dos estúpidos... Se fosse um homem vulgar que tivesse de ganhar o seu pão, ou mesmo alguém como Webster, estaria sobrecarregado e oprimido como se sentia agora, com a consciência transformada numa brasa que lhe ardia no peito por se considerar responsável pelos seus rendeiros como um rei se sente responsável pelos seus súbditos? Gemeu alto. Intolerável fardo lhe vergava os ombros só porque nascera num castelo, filho de seu pai, herdeiro de todas as responsabilidades de um reino!. Sim, porque os seus domínios eram uma espécie de reino, maior ainda do que o Mónaco!

Enquanto falava baixinho, consigo mesmo, como tantas vezes lhe sucedia, Sir Richard ouviu gritos e viu à sua espera, ao fundo da estrada sinuosa por onde seguia, um grupo de mal vestidos rendeiros. Lá estavam eles, dispostos a pedir mais alguma coisa - pensou, com crescente melancolia, - sem senso suficiente para compreenderem que o mundo que conheciam, e que antes— deles os seus pais haviam conhecido, estava prestes a extinguir-se.  

Meteu o cavalo a trote e parou diante deles, muito direito e ríspido.

- Então, homens? Que querem desta vez?

Um indivíduo grosseiro, de grenha fulva e hirsuta, avançou, e Sir Richard reconheceu Banks, o desordeiro. - Ouvimos dizer que o castelo ia ser vendido, Sir Richard.

O velho castelão olhou-o de alto, de cima do grande cavalo baio, e indagou, friamente:

- E depois?

- Que será de nós, Sir? - perguntou-lhe Banks, em tom firme e resoluto.

A pergunta desatou a língua aos outros:

- Sim, Sir Richard, é isso que queremos saber! Trata-se do nosso pão, Sir... temos de pensar nos nossos filhos...

Filhos! Não tinham mais nada senão filhos, filharada que deitavam a este mundo para ele sustentar! Que amarga injustiça aqueles ingleses poderem gerar filhos ingleses, enquanto ele os não tinha, nunca os tivera, na realidade, pois como podia um homem da sua posição reconhecer um momento de loucura quando não passava de um rapaz de dezasseis anos, para ser exacto? Afastou a recordação, mas não antes de um rosto se, impor ao seu espírito: a cara bonita de uma rapariga simples. Repeliu-o imediatamente, como sempre fazia, irritado por a memória ser tão implacável. A sua mulher era o seu amor, o seu único amor, e, contudo, quando discutiam, como tinham discutido na manhã anterior, acerca de quem era responsável pela sua falta de filhos, via aquele rosto - o rosto de. Elsie - e repelia-o. Não, jamais poderia revelar o seu segredo, jamais poderia replicar à mulher: «Eu sei que podia ter gerado um filho!»

A própria Elsie nunca insinuara a ninguém; nem tão-pouco a si mesma, que havia um segredo entre os dois. Wells também nunca lho lembrara, durante todos aqueles anos, embora devesse saber... tudo.   Wells era jovem, então, apesar de contar mais vinte anos do que ele, e limitara-se a anunciar, um dia, que na véspera casara com Elsie.

«A meu pedido e como compensação conveniente», dissera-lhe severamente o pai; e, recusando-lhe mais explicações, mandara Richard para Oxford.

- Vocês têm filhos de mais - respondeu a Banks.

Os homens romperam num clamor irritado. Sir Richard levantou a mão, a ordenar silêncio, e eles recuaram.

- Ainda não decidimos nada - disse, secamente.

Olhou-os um instante e reconheceu-os um por um. James Durin, com quem caçara furões em rapaz; o velho Bumsley, que era preciso não. perder de vista, pois gostava de pescar furtivamente; Lester, Hunt e Frame, três dos seus melhores e mais vigorosos trabalhadores... A sua voz adoçou-se um pouco ao prosseguir:

- É preciso tomar muitas coisas em consideração. Não vos esquecemos, nem às vossas famílias, e Lady Mary é tão devotada ao castelo como vós o sois. Temos consciência da nossa situação e podeis estar certos de que não esquecemos o vosso bem-estar nem ignoramos os males que vos afligem., Banks, nós sabemos que o teu telhado precisa de ser colmado...

Interrompeu-o um coro de protestos; - Não é só o do Banks, Sir Richard...

- O nosso não leva colmo novo desde o tempo do meu avó! - Colmo! Quem se interessa por colmo, hoje em dia? Um bom telhado de ardósia em todas as cabanas...

- E fossas sépticas...

O cavalo, assustado com o barulho, curveteou da esquerda para a direita e ergueu-se nas patas traseiras. Sir Richard, puxou-lhe as rédeas, com força.  

-Estamos ao corrente de tudo isso-afirmou – e temos

grandes planos para o futuro. Sabereis deles a seu tempo.

Os homens recuaram, como recuavam sempre que ele adoptava o seu ar régio.

-Obrigado, Sir Richard... Nós conhecemos as suas dficuldades, Sir, Os tempos estaão maus para todos... Mas com as nossas famílias e tudo o mais... as mulheres a queixarem-se das fendas no telhado, quando chove... as camas dos garoto? a terem de ser desviadas, a humidade a escorrer pelas paredes...

O coro sincopado prosseguiu, até Sir Richard o interromper :

- Nós sabemos - repetiu, tristemente.

Banks estendeu a mão direita e declarou:

- Sem ressentimento!

Sir Richard estendeu   a esquerda, cujo indicador ostentava o seu grande anel de sinete. Não o usava sempre, mas às vezes, como naquele dia, gostava de o pôr, quando ia passear a cavalo pelas suas terras. Vê-lo na sua mão de linhas correctas causava-lhe um secreto conforto, era um convite ao sonho. Nada, nenhuma dificuldade ou problema, podia anular o facto de que nascera Sir Richard Sedgeley, do Castelo de Starborough! Banks apertou-lhe a mão, um instante, e comentou:

- Belo anel, Sir Richard!

- Ofereceu-o o rei ao meu antepassado, William Sedgeley, há quinhentos anos, quando o castelo se tornou nosso. Castelo e anel têm pertencido por direito, desde então, a cada herdeiro Sedgeley.

Houve um momento de silêncio. Sir Richard sabia o que estavam a pensar. A quem pertenceriam o castelo e o anel quando não houvesse nenhum herdeiro? Banks baixou a cabeça, como se fosse beijar o anel, e depois largou a mão de Sir Richard. Saberiam, o segredo? Apostaria que sim. Sabiam tudo, com a sua astúcia boçal. Fazia parte do seu poder sobre os governantes descobrir os segredos, as fraquezas, os pecados da juventude, as loucuras íntimas, e utilizá-las quando chegava a ocasião apropriada.

Meteu o cavalo a galope e deixou os homens a segui-lo com a vista. Quando se certificou de que não o podiam ver, tirou o anel do indicador e meteu-o na algibeira do casaco. Depois reduziu o galope para um trote vagaroso e sentiu os lábios trémulos. Aonde iria encontrar forças para resistir, sabedoria para se guiar? Estava só e solitário, como só os governantes poderiam estar; e tinha de se conservar ;assim, pois como poderia humilhar-se a pedir a alguém o auxílio de que precisava? Não vivia ninguém que fosse seu igual ou, até, seu superior... Só os seus antepassados podiam dar-lhe coragem e a eles resolveu recorrer naquela hora angustiosa.

Seguiu a estrada que levava à aldeia de Starborough e à igreja outrora erguida para a devoção de um soberano e da sua corte. Nela se encontravam as cinzas de todos os Sedgeleys mortos depois do dia em que lhes fora concedido o direito de ali repousarem. Sabia já onde as suas próprias cinzas repousariam: no canto extremo, do lado leste, onde incidia um raio de sol coado pela rosácea da Janela.

Desmontou, amarrou o cavalo ao poste a esse fim destinado e entrou no silêncio sombrio do templo, que estava deserto. Percorreu a nave e só então viu que se enganara, que a igreja não estava deserta. O velho vigário encontrava-se diante do altar, às voltas com um dos altos castiçais de prata. Voltou-se, assustado, e estendeu a mão.

- Sir Richard, a sua vinda e inesperada, mas agradável! Estou a consertar esta vela. Um dos meninos de coro deixou-a cair, durante os ensaios da noite passada, mas a vela é boa e se eu conseguir... São caríssimas, estas grandes velas

de altar...

- Deixe-me ajudá-lo - ofereceu-se Sir Richard.

- Oh, não se incomode! - protestou o sacerdote. - No entanto, se quiser fazer o favor de segurar o castiçal enquanto eu...

Sir Richard segurou o castiçal com ambas as mãos, enquanto. o vigário acendia uma vela mais pequena e derretia a cera da grande o suficiente para colar o bocado partido. Sir Richard observou o velho rosto bondoso, tão perto do seu, e recordou os tempos em que; ainda rapaz, o vigário viera, jovem, para a aldeia de Starborough.

- Na realidade - murmurou-, vim aqui procurar ajuda, sem esperar encontrá-la, evidentemente. Tencionava apenas... meditar um pouco, talvez, junto das sepulturas dos meus antepassados. Estou metido num grande apuro.

- Sim? - comentou o sacerdote, sem levantar a cabeça Lamento muito, Sir Richard. Não sei porquê,   não o associo com apuros. Foi sempre   um bom homem.

- Não se trata desse género de apuros - replicou Sir Richard. - Não é nada que eu próprio tenha feito.

Nada que ele próprio tivesse feito? Sim, não seria justo classificar de sarilho arranjado por si aquele breve episódio num cálido dia de Verão, quando encontrara Elsie na floresta, a colher morangos bravos, aquele apressado instante de, excitação física no corpo de um rapaz...

«A tua semente é valiosa, não a desperdices», dissera-lhe o pai, brutalmente. «Não és apenas o meu filho e herdeiro, és também o filho e herdeiro de uma ascendência nobre.»

Se seu pai não estivesse tão estropiado por ferimentos recebidos na guerra, se pudesse ter outros *filhos, talvez tivesse falado de maneira muito diferente. Mas apenas ele existia, precioso como o príncipe herdeiro, a única esperança de imortalidade de seu pai. E se seu pai não lhe tivesse imposto tão pesadamente a sua ambição, não teria ele, Richard, sido um jovem diferente, de coração menos rebelde e desejos reprimidos menos violentos?

- Sejam quais forem as suas dificuldades, terei muito prazer em o   ajudar, se puder - ofereceu-se o vigário, Pronto, creio que assim soldara. Pouse o castiçal cuidadosamente, por favor, e deixemos a cera solidificar. Sente-se aqui nos bancos do coro, Sir Richard, e diga-me....

Mas Sir Richard afastara-se para o recanto onde se encontravam os túmulos dos Sedgeleys e olhava o perfil de pedra de William, em efígie na sepultura do meio, com a sua armadura de cavaleiro. As mãos de pedra estavam unidas em prece, embora ele tivesse sido um guerreiro e não um homem de rezas e houvesse poucas dúvidas, a julgar pelos arquivos da família, de que fora, de facto, amante de uma rainha.

- Sinto-me responsável pelo castelo - disse Sir Richard, devagar, de olhos postos no rosto de pedra, um rosto arrogante, mesmo na morte. - Sou responsável - prosseguiu, resoluto - pelo castelo, pelas terras que lhe pertencem e pelas pessoas que vivem nessas terras. Confiam em mim como os

seus antepassados confiaram nos meus, mas receio não poder continuar a conservar o meu domínio.

o vigário, que o seguira, olhava-o com as mãos cruzadas debaixo da sotaina.

- Ouvi falar a esse respeito, Sir Richard, e esperava que não passasse tudo de mexericos - observou.   .

- Quem me dera que fossem! Infelizmente, assim não acontece e terei de vender o castelo para salvar a terra. Não há outra possibilidade. Está cá um americano interessado em comprar, mas...

Calou-se e o vigário abanou a cabeça.

- Meu Deus, um americano? O Governo não poderá...

- O Governo ofereceu-me uma prisão ou uma fábrica atómica, duas sugestões igualmente impossiveis! O castelo e um tesouro confiado à minha guarda. Não o posso salvar. Se tivesse um herdeiro... mas não tenho. Falhei como administrador do meu reino hereditário, se assim me posso exprimir.

O meu povo depositou a sua fé em mim, mas eu não fui capaz de... É uma estranha história, à sua maneira, tão estranha como qualquer das histórias do castelo, doutros tempos. -Conte-me, Sir Richard; far-lhe-á bem.

- Houve um rei que se refugiou no meu castelo: Carlos I. Perdera Londres, perdera o Sussex e estava na iminência de perder o trono - começou Sir Richard, pois, embora a história fosse conhecida de ambos, valia sempre a pena contá-la.

- O povo rebelara-se contra ele, porque o desiludira. O povo não perdoa a um rei. Eu também perdi Londres, como sabe, e por minha própria culpa. Minha mulher diz-me muitas vezes: «Devias ter ocupado o lugar que por direito te pertencia em Londres!» Tantas vezes mo diz. E agora... agora parece que perdi também o meu Sussex e o meu povo. - Enquanto falava, não deixava de olhar o rosto de pedra do seu antepassado. - Creio que nunca se provou como Sir William morreu... Uns dizem que se envenenou. Não tem importância. Digamos que se envenenou quando se descobriu que ele... Estendeu a mão e tocou nas mãos de pedra, unidas. - Humidade... - murmurou - ... sempre humidade. Lembro-me de quando era rapaz. Estavam sempre frias e húmidas.

- A igreja não recebe sol - lembrou o vigário.

Como se não o Ouvisse, Sir Richard continuou a murmurar, quase como se falasse sozinho.

- Foi traído pelos seus próprios servidores, denunciado ao rei por alguém que conhecia a história, o seu mordomo, creio, um homem em quem confiava. O mordomo sabia da criança... um filho secreto, evidentemente.

O vigário olhou Sir Richard, estendeu a mão para o seu braço e perguntou-lhe:

- Sente-se bem?

Sir Richard libertou o braço, com um gesto de impaciência, e replicou,

- Claro que me sinto bem. Porque não havia   de sentir? É tudo verdade. A mulher dele nunca teve filhos   e censurava-o por isso, teimava que não tinha culpa de o casamento ser estéril. Mas ele sabia que podia gerar filhos...

- Lamento, mas não o estou a compreender bem, Sir Richard - confessou o vigário, perplexo. - Como sabia ele que podia ter filhos?

Sir Richard voltou-se para o sacerdote, de olhos semicerrados, e respondeu-lhe, em tom sibilante e quase inaudível:

- Porque procriara um filho concebido pela... rainha! Não seria isso uma prova?

Soltou, inesperadamente uma gargalhada, e depois ficou de novo sério e grave, Afastou-se, com brusquidão do túmulo e dirigiu-se para o altar, onde parou de olhos postos na rosácea, de costas para o vigário.

- Diga-me uma coisa - existe um lar para almas? -Confesso que não sei-respondeu o sacerdote, docemente. -Explique-me o que   quer dizer, sim?

- BOM... que aconteceria se eles, vivessem realmente no castelo?

-Eles?

- Minha mulher jura que os ouve. Se lá moram, que farão se demolirmos ó castelo? Não se vingarão, mandando-nos um castigo qualquer? Uma tragédia, talvez, pela qual eu seria, novamente, responsável?

- Se quer que lhe diga, Sir Richard, devia tomar uma chávena de chá e descansar - volveu-lhe o sacerdote, fitando-o com apreensão. - Venha comigo...

Mas Sir Richard continuava a ’não o ouvir.

- Que faria o senhor, por exemplo, se esta igreja fosse destruida como consequência de qualquer malogro seu, de qualquer malogro involuntário, está bem ãe ver?

Rezaria para ser perdoado - respondeu-lhe o sacerdote, serenamente ’e- depois continuaria o meu trabalho, são com o ’céu a cobrir-me.

Sir Richard não disse mais nada. Saiu do templo, seguido pelo olhar surpreendido do vigário, saltou para a Montada impaciente e partiu a galope. De súbito, sentiu a punhalada de dores latejantes no interior do crânio, primeiro no alto da cabeça e depois, insistentes, atrás dos olhos. Pararia na estalagem da aldeia, disse para consigo, e beberia um copo de cerveja.

As longas sombras do fim da tarde reflectiam-se nas pedras, quando chegou à estalagem. A porta estava aberta e, ao desmontar, ouviu vozes altas, interrompidas por gargalhadas irónicas. Travava-se qualquer discussão em que o seu nome intervinha. Parou a prender o cavalo e escutou. O estalajadeiro... Sim, era a voz áspera de George Bowen...

- Não me interessa o que Sir Richard diz; o que eu digo é que se ponham a andar daqui para fora! Francamente! Vão para a vossa terra, americanos, pois nós já estamos fartos de vocês e da vossa raça! Fartos, ouviram? Fartos! É um pecado e uma vergonha ter de ouvir semelhantes baboseiras. Levarem-nos o castelo! A rainha nunca o consentiria, podem ter a certeza!

Uma voz americana, cordial, replicou, em tom despreocupado.

- -- Não se irrite, homem! Nós não temos nada a ver com o caso; fomos apenas contratados para fazer o trabalho. De qualquer maneira, o negócio gorou-se; o seu precioso Sir Richard correu connosco.

- Deus pague a Sir Richard! - exclamou George. - Ele não nos   desiludirá, não! Não haveria turistas... os garotos ingleses não teriam onde aprender história, se não fosse ele e o castelo. Vêm às centenas, esses garotos londrinos...

- E você teria de fechar a estalagem, se eles não viessem - interrompeu-o o americano que falara antes.

Sir Richard não pôde suportar mais. Tirou o anel da algibeira, enfiou-o no indicador e entrou na estalagem.

- Cá está ele em pessoa, mesmo no momento oportuno!

- exclamou, alegremente, o estalajadeiro. - Que deseja tomar, Sir Richard?

- Um copo de cerveja, por favor - respondeu friamente. Os seus olhos perscrutaram, devagar, os vários rostos. Estavam presentes alguns dos seus rendeiros; os quais baixaram respeitosamente os olhos, quando os fitou. já o mesmo não aconteceu com os americanos. Esses sustentaram o seu olhar com uma familiaridade tão sorridente que Sir Richard lhes virou as costas e se encostou ao balcão.

- Atrevidos e grosseiros - resmungou George. - já os teria posto no olho   da rua se não fossem tão bons fregueses. Palavra que o faria, Sir Richard, depois de ouvir toda a sua conversa acerca de comprarem o castelo e o levarem para o seu pais! Invasores, é o que lhes chamo...

Era imensamente gordo e, de ano para ano, o espaço atrás do balcão tornava-se mais acanhado para o seu volume, cada vez mais avantajado. Estendeu o braço para tirar uma garrafa do armário especial e soltou um fundo suspiro.

- Terei de ser eu ou o balcão, estou a ver... Preciso de chegar o balcão para a frente ou de arranjar maneira de emagrecer.

- Eh, George! - gritou-lhe atrevidamente um dos jovens americanos. - Que é isso que estás a tirar do esconderijo? George voltou-se a custo, mas sem perder a dignidade,

abriu a garrafa   e encheu um copo alto de cerveja de um tom dourado-pálido, que colocou diante de Sir Richard. Só então respondeu, em voz altiva:

- Agradecia aos americanos que não abusassem do meu nome próprio. Queiram lembrar-se de que estão em Inglaterra e de que este cavalheiro é Sir Richard Sedgeley, senhor da aldeia e da terra em que ela se ergue, de certo modo senhor de todos nós. Contamos com ele para nos defender, como sempre fez e antes dele fizeram os seus antepassados. A minha família vive aqui há centenas de anos. sob o domínio dos. Sedgeleys, e viverá outras centenas mais, como costumo dizer ao meu filho George... Agradecemos-lhe, Sir Richard.

Sir Richard inclinou a cabeça, mas não falou. Levantou o copo de cerveja com a mão esquerda e o grande anel refulgiu-lhe no indicador.

- Vá para o diabo; Georgie! - replicou o americano, com imperturbável boa disposição. - Estive cá durante a guerra, mas não a lutar contra vocês, assim como agora também não. Andei até metido com uma rapariga inglesa... nada de sério, evidentemente, pois ela tinha os dentes grandes de mais para o meu gosto... - Virou-se para os compatriotas que o acompanhavam e perguntou-lhes: - julgam que a consegui convencer a tratar da dentuça? Isso sim! «Tira-os», dizia-lhe, «que eu pago. Arranja uma dentadura postiça, querida, que te caiba na boca e não me atrapalhe ... » julgam que me deu ouvidos? Não! E aposto que continua com eles, embora agora lhos tirassem de graça. Inglesa casmurra como o diabo! Palavra que fiquei contente assim que me pude ir embora!

- Não ficou, com certeza, mais contente do que nós - redarguiu-lhe George. - Agradeço-lhes que se ponham à andar agora também, e quanto mais depressa melhor. Quero limpar a loja, e não o posso fazer.com vocês cá.

O americano que falara levantou o copo e emborcou o conteúdo.

- Vamos, camaradas, não temos aqui nada que fazer. Quem perderá quando nos formos embora será você, Georgie. Mr. John P. Blayne empregará o seu dinheiro em qualquer outro lado... Adeus, Mr.—. Sir Richard Sedgeley. Foi pena não fecharmos o negócio!

Sir Richard conservara-se ao balcão, a beber vagarosamente a sua cerveja, sem demonstrar que ouvia a conversa que se travava na estalagem. Naquele momento, porém, voltou-se e fitou o americano.

- Não fui eu que os mandei embora - declarou friamente.

- Creio que trabalham para Mr. Blayne. Não nos encontrámos ontem de manhã, no castelo? Não estou ao corrente de...

- Há muitas coisas de que não está ao corrente - interrompeu-o o indivíduo, alegremente, encaminhando-se para a porta. - Até à, vista, Georgie... Adeus, Inglaterra!

- Gangsters, e o que eles são! - sentenciou o estalajadeiro, mal os viu pelas costas. - Boa viagem! Esteja à vontade, Sir Richard, beba sem pressa.

- Tenho de regressar ao. castelo - respondeu, mas não se afastou do balcão.

Os rendeiros que se encontravam na estalagem, alguns a atirar setas ao alvo, sem grande entusiasmo, começaram também a dirigir-se para   a porta. Não tinham Participado na disputa e, ao passarem pelo castelão, limitaram-se a murmurar poucas palavras de despedida:

- Boas tardes, Sir Richard... - Temos de ir andando, Sir...

- A minha velhota deve estar furiosa, sem saber o que

me aconteceu...

- O jantar está à espera...

Inclinava a cabeça a cada um deles, num gesto de reconhecimento. Sim, também conhecia aqueles. Conhecia as suas famílias e conhecia-os desde que nascera, desde que, em pequeno, cavalgava pela propriedade com o pai. Montava o seu primeiro cavalo - uma égua preta, lembrava-se bem! - e sentia uma onda de prazer quando homens feitos paravam, ao vê-lo passar, e levavam a mão à testa, respeitosamente. Os mais velhos ainda faziam o mesmo e ele continuava a sentir igual prazer, aumentado pelos anos da sua responsabilidade, do seu reinado, como gostava de pensar.

- Encho outra vez o copo, Sir Richard? - perguntou-lhe George.

- Não, obrigado; faz-se tarde. - Pagou a cerveja e, à porta, parou e voltou-se para trás: - Os americanos têm razão, George - afirmou. - Actualmente, quem perde somos nós, de uma maneira ou de outra. Se o castelo tivesse de ser vendido, que preferias, uma prisão ou uma fábrica atómica?

George estremeceu, surpreendido. - Que diz, Sir?

- Os turistas chegam para conservares a tua estalagem aberta, mas um castelo é diferente... - respondeu, esforçando-se por sorrir. - Precisa mais do que turistas... Vê lá como te comportas com os americanos, quando eles voltarem. Receio que o negócio, como eles dizem, esteja longe de ser recusado.

Saiu e George ficou embasbacado, com os olhos mais arregalados do que nunca. A mulher, uma criatura baixa e magra, de nariz comprido e ralos cabelos grisalhos, surgiu à porta de comunicação e anunciou:

- O jantar está pronto, George. Que discussão foi essa? George, estás a ouvir-me? Pareces tolo, aí parado!

- Ele é que está tolo, desconfio - respondeu-lhe George. - Sir Richard perdeu por completo o juízo, para dizer tolices acerca de prisões e fábricas atómicas.

- Passaste o dia a beber, está visto! - censurou-o a mulher, em tom ácido. - Anda, vem meter qualquer coisa mais, além de cerveja, nessa enorme pança que devora os lucros todos da venda!

A mulher desapareceu e, passado um momento, George seguiu-a, ainda aparvalhado.

Entretanto, Sir Richard cavalgava vagarosamente, de regresso ao castelo. Deixava as rédeas penderem, frouxas, e percorria com a vista a suave paisagem de campos e florestas. A luz vespertina alongava as sombras e tornava mais profundos o tom dourado dos salgueiros e o verde do trigo ainda por sazonar. Ao longe, o castelo recortava-se, em toda a sua imponente beleza, no clarão do poente. Era o seu lar, a sua herança; como podia abandoná-lo?

Tentou imaginar o castelo desaparecido e, nos cabeços e nos vales largos, uma magnífica quinta moderna, com novos maquinismos e moradias, a terra cultivada e produtiva, os celeiros reconstruídos... uma quinta de sonho. Ao longe, ouviu vozes a cantarem. Os rendeiros regressavam a casa, por uma estrada próxima. Tinham-no avistado a cavalgar no caminho que levava ao castelo e, como estavam longe de mais para o cumprimentar, cantavam: «For he’s a jolly good felow ... »

Sentiu lágrimas nos olhos. Amavam-no! Ergueu a mão, num agradecimento, os homens seguiram o seu caminho e os -os morreram no silêncio da tarde.

Sim, podia ver a quinta, a bela quinta nova construida , sobre a sua velha terra, as florestas bem tratadas, os campos ricos estenderem-se a perder de vista e todo o seu povo novanente feliz... Mas ele... onde estaria ele? Como poderia ser se o seu castelo desaparecesse? Um rei sem castelo não é rei.

A cabeça latejava-lhe, em ondas de pungente agonia, e deu uma ordem ríspida ao cavalo. Tudo o que queria, agora, era chegar ao castelo... O Sol desaparecera atrás do horizonte e, à ténue luz crepuscular, o velho. castelo erguia-se, solitário e. triste, para o céu que começava a escurecer.

- Desculpe, Mr. Blayne - disse Kate -, não o devia chamar para atender o telefone, mas era o seu pai... de Nova Iorque. Pelo menos foi o que me pareceu.

Blayne andava sozinho, fora do castelo, a ver o Sol descer lentamente atrás das torres, quando a viu na moldura da porta do salão grande, de vestido claro, da cor dos narcisos. - Como era a voz?- perguntou-lhe, a sorrir.

- Se quer que diga a verdade... pareceu-me o touro de Bashan, a urrar através do oceano.

Blayne soltou uma gargalhada e acompanhou-a à biblioteca.

- É o meu pai! - Pegou no auscultador e atendeu: - Está? Está? - Ninguém respondeu. - Desligou, provàvelmente, amuado por eu não estar aqui de plantão à espera da sua chamada!

- Talvez não, talvez seja alguma tempestade no mar.   - Kate tirou-lhe o auscultador e disse: - Telefonista, quer fazer o favor de me dar outra vez Nova Iorque? Está aqui a pessoa que chamaram... Muito bem, esperará.

Desligou e voltou-se para o americano, com os olhos a sorrir.

- A telefonista prometeu restabelecer a ligação   o mais depressa possível, mas acrescentou que a outra pessoa   lhe deu ordem de só o fazer quando «o seu danado filho estivesse presente»... O seu pai é sempre assim?

- Sempre foi e sempre será, benza-o Deus! - Como pôde a sua mãe...

Calou-se e mordeu-os lábios. Era atrevimento... Que direito tinha de o interrogar?

-   Aturá-lo? - terminou Blayne, por ela. - Minha mãe adorava-o, ria-se dele e não o temia nada. Por isso, era absolutamente louco por ela! Quando minha mãe morreu, receei que enlouquecesse. Tudo quanto lhe pertencera se tornou sagrado, ninguém devia tocar no que ela tocara... Os quadros, por exemplo... Quis fechá-los, como já expliquei.

- Gosto de saber que duas pessoas se amaram assim murmurou Kate, quando ele se calou.

Estava encostada à pesada secretária de mogno, a olhá-lo. Blayne pegou num pequeno elefante de marfim e, como continuasse calado, Kate prosseguiu, na mesma voz serena e sonhadora, com os olhos postos nas mãos dele - mãos bonitas, compridas, fortes e limpas.

Claro que não sei nada dessas coisas, além do que ouvi contar acerca dos meus pais. Minha mãe amava o meu pai, pois, de contrário, nunca o teria aceitado para marido. Ele era de   categoria social inferior à sua. - Hesitou, antes de acrescentar, com timidez: - Ela era uma lady... Mas não sei porque lhe conto estas coisas.

- Porque não havia de’ contar? - perguntou, fitando-a. Eu sabia que não era... o que tentou fazer-me acreditar.

- Oh, mas sou! - insistiu. - Meu pai era filho do mordomo do castelo, não se esqueça.

- De Wells? - inquiriu, incrédulo. Kate acenou afirmativamente:

- É meu avô.

Trocaram. um longo olhar e por fim John Blayne voltou a cabeça e perguntou, impaciente:

- Que importância tem isso?

- Creio que tem importância, aqui no castelo - respondeu-lhe, docemente -, mas não para mim.

John Blayne começou a andar de um lado para o outro, consciente, pela primeira vez, dos motivos que o levavam a continuar no castelo. Desejou que ela não lhe tivesse falado dos pais e, no mesmo instante, desejou que lhe dissesse mais coisas, a esse respeito.

- Como eram eles, na realidade?

- Segundo ouvi dizer - começou, devagar, - meu pai era alto, bonito e muito orgulhoso. Vi tantas fotografias dele! Ainda rapaz, depois já crescido, depois com o uniforme da Força Aérea... Nunca quis ser criado e, por isso, fugiu para Londres, aos vinte anos. Queria ser artista e chegou, até, a expor os seus quadros, na capital. A maior parte das suas pinturas eram do castelo.

- Viu-as?

- Não, os bombardeamentos destruíram-nas. Depois casou e... - calou-se, de súbito.

- E?

- Pouco mais há a acrescentar... excepto eu. - Como era a sua mãe?

- Chamava-se Diana Knowles. Meu avó disse-me sempre que era uma lady, mas nunca vi nenhuma fotografia dela e desisti de fazer perguntas a seu respeito, pois meu avó não me dizia nada. Creio que era baixa, morena, flexível e... distante.

- Porquê?

- Porque meu avô me disse que a família dela era orgulhosa e não aprovou o seu casamento com Colin Wells.

Kate, que não o fitara enquanto falava, levantou a cabeça e procurou o seu olhar. O americano sorriu-lhe e depois atravessou o aposento e espreitou pela janela. A rapariga seguiu os seus movimentos, pensativa.

«Quase demasiado perfeito», pensou, enquanto o observava. Uma mulher precisava de ter muito cuidado, sobretudo uma mulher como ela, numa estranha e anómala situação como a que desfrutava no castelo, umas vezes quase filha, mas sempre criada e neta do mordomo...

«Muito bem», pensou, melancólica, «disse-lhe a verdade!» Fora ele que assim o quisera. Agora que sabia tudo, podia pensar o que entendesse. Enquanto revolvia o punhal na ferida, não deixava de o observar. Continuava junto da janela, tendo como fundo o castelo e os verdes relvados, alto e esbelto, elegante mesmo no seu despretensioso fato cinzento, com a camisa aberta no colarinho.

- Parece inglês - comentou, docemente. - Vendo-o assim, até parece que pertence ao castelo...

. .   -   Tenho passado muito tempo da minha vida em Inglaterra - redarguiu-lhe John Blayne. - Vinha frequentemente passar cá o Verão, com minha mãe. Tínhamos uma casa em Cotswolds, mas meu pai vendeu-a logo que ela morreu. Não teve coragem de a voltar a ver. Creio que se conheceram em Cotswolds; a família de minha mãe era de   origem inglesa e daquelas paragens.

- Isso explica a sua maneira de ser.

- Não explica, não. Sou americano,   fundamentalmente e por escolha.

- Porque o afirma desse modo? É   alguma desgraça ser inglês?

- Evidentemente que não, mas gosto da maneira de ser americana: franqueza, simplicidade e até egoísmo, se quiser chamar-lhe assim - um egoísmo inocente, como o das crianças. Meu pai... - Fez uma pausa e riu-se, com relutante ternura. - Ele sabe o que quer e encarrega-se de fazer com que todos o saibam, também!

- Ah, mas você é assim mesmo, não sei se sabe, - afirmou Kate, com veemência.

- Eu? Como o meu pai? Ora essa...

- É, sim! É delicado e tudo o mais, nas não deixou de nos dizer o que quer... e não o considero incapaz de, no fim, obter o que pretende.

John Blayne ’voltara-se, quando ela começara a falar, e agora olhavam-se de soslaio, meio a rir. Que bonita rapariguinha, com os cabelos negros, encaracolados, a emoldurarem—lhe o rosto, os profundos olhos azuis... Uma beldade inglesa nascida de contraditórias raízes! Seria difícil não crescer bonita naquele ambiente e, contudo, nem mesmo o castelo podia ter modelado a delicadeza dos seus lábios, o narizinho aquilino, as sobrancelhas finas...

Sentiu um perigoso sobressalto no coração, uma subida de temperatura no sangue, e alarmou-se. Como se não tivesse complicações bastantes, mesmo sem se deixar envolver numa aventura romântica, por muito temporária que fosse! Descobrira; havia muito tempo, que as mulheres o achavam atraente e, depois de uma ou duas aventuras na universidade, aperfeiçoara uma técnica cautelosa e meio-humorística de autodefesa. Infelizmente, naquele momento, a dificuldade não consistia em afastá-la, pois não via, da parte dela, sinais nenhuns de abordagem... Pelo contrário, tivera o cuidado especial de frisar que era apenas a criada do castelo, ideia que - verificava alarmado- se lhe tornava cada vez mais desagradável. Irritado consigo mesmo, percebia que lhe dava prazer saber que, tivesse o pai sido o que fosse, a mãe fora... Repeliu semelhante pensamento. Como se essas distinções tivessem importância no seu país!

Não, quem devia lembrar era Louise, o que devia perguntar a si mesmo era se tinha para com ela uma obrigação cujo cumprimento a honra exigisse. O seu pai e o de Louise eram amigos velhos, da vida inteira, e adversários nos negócios. Tornara-se por certo que o filho de um e a filha do outro, que tinham brincado juntos em garotos, casariam um dia. «Uma fusão», dissera Blayne pai.

, Ao pensar em Louise, John lembrou-se de que, embora a tivesse beijado muitas vezes formalmente, nunca a beijara espontânea ou irresistivelmente, como agora, diabos o levassem, se imaginava a beijar Kate!

Voltou-se para a rapariga e perguntou-lhe, numa tentativa desesperada de dar à conversa um ar de brincadeira:

- Sua mãe era, por acaso, alguma princesa? Kate sentou-se na otomana, defronte da lareira. - Talvez... - Ia a dizer «é muito possível, com as prin-

cesas nunca se sabe», mas dominou a involuntária alegria que lhe enchia o coração e lembrou: - Começámos a falar de si e não de mim, Disse-lhe que o achava parecido com o seu pai.

- E eu respondi-lhe que não sou. No entanto... - Esqueceu-a por momentos e, de mãos nas algibeiras e testa franzida, recordou o seu formidável pai. - Em rapaz quis ser como ele, tentei interessar-me pelos negócios, pela concorrência, por tudo isso... até pelo futebol... Sentia-me estranho, só por não conseguir interessar-me por ganhar jogos... Ele tem sempre de ganhar, não sei se sabe... Bem, quando pretendi ser como ele tive de lhe resistir, senão dominar-me-ia como um escravo. Fui obrigado a tornar-me obstinado e controverso à minha maneira...

Calou-se e - fitou-a, como se a visse pela primeira vez.

- É muito inteligente! - exclamou, devagar. - Tem razão, afinal! À minha maneira, sou como o meu pai. Desagrada-lhe, isso?

Levantou a cabeça para o fitar, imensamente mais alto do que ela, e. sobressaltou-se ao descobrir que ansiava subitamente... o quê? O seu contacto, que as suas mãos se estendessem para as dela, a levantassem docemente e... e...

- Oh, não! - apressou-se a responder. - Não me desagrada nada, evidentemente! jamais teria semelhante... semelhante pensamento.

E se ele soubesse o que pensava, de facto? Que vergonha sentiria se adivinhasse que não ousava mexer-se com medo de estender as mãos para tocar nas dele!

- É despropositado, sem duvida - dizia ele, - mas nunca vi olhos como os seus! São profundos como o mar e mais escuros.

Continuou silenciosa, imóvel, quase hipnotizada, mas o retinir súbito do telefone libertou-a.

- Oh! - exclamou, em voz abafada. - Deve ser o seu pai. Passou à frente dele, com profundo alívio, salva daquele momento perigoso. «Como fui capaz», pensou, «como fui capaz, se só ontem o conheci!»

- Sim - disse, atendendo o telefone. - Sim, está aqui... Com certeza, Mr. Blayne... Louise? Não, não sou Louise... Sim, sim, tem estado aqui, à espera...

Entregou o auscultador a John Blayne e dirigiu-se em bicos de pés para a porta, com o coração subitamente gelado. Louise? Quem era Louise? Ou... Estacou, sobressaltada por uma espécie de rugido vindo do telefone.

- Johnny. Onde diabo estás tu? Há seis horas que tento comunicar contigo!

A voz dominadora abria caminho sob o Atlântico e estilhaçava a paz em Inglaterra. Com a cara toda franzida, John Blayne afastava o auscultador do ouvido a toda a extensão do braço.

- Sim, pai... sim. Há horas que estou à espera, também. Viu Kate à porta e fez-lhe sinal para retroceder. A rapariga ficou à espera, obediente.

- Quem era essa rapariga que atendeu? - perguntou o vozeirão.

- É uma pessoa do castelo - respondeu o rapaz em tom suave. - Não a conhece...

-Bem, vê lá se não esqueces Louise.   Reconheço uma boa aliança, quando me aparece pela frente,   e não quero perder esta. Holt informou-me de que o velho   não quer o castelo transferido e de que o negócio se gorou.   A ideia pareceu-me idiota, desde o princípio! Dá os meus cumprimentos a Sir Richard e diz-lhe que o felicito pelo seu bom-senso!

John Blayne estendeu o queixo, em ar de desafio, e os seus olhos brilharam como aço puro.

- O negócio não se gorou e Holt não tinha nada que lhe dizer! já devia saber que não sou homem que desista! Se não obtiver este castelo, obterei outro!

- E a respeito de Louise? Quando era novo não brincava às escondidas com uma rapariga como tu estás a fazer com ela.

- Diga-lhe...

- Decidi que a fusão se realizaria na segunda-feira da próxima semana. O pai dela vem de Pittsburgo com os seus advogados e é uma data memorável para as duas firmas e para’ as duas famílias. Quero que estejas cá, mais nada; quero-te presente!

John Blayne explodiu:

- Ouça, pai, eu levo o meu trabalho a sério. O pai responsabilizou-me pela fundação. Portanto, se não lhe, agrada a maneira como procedo, arranje outra pessoa qualquer, mas não actue como se não se tratasse de um emprego e ’como se pudesse chamar-me para casa quando lhe apetece. Não pode! A fundação não é um estratagema para fugir aos impostos, pela parte que me toca; é uma homenagem à memória de minha mãe, mas é ainda mais uma homenagem às grandes obras de arte que ela deixou. Trate o pai da sua fusão que eu tratarei da minha fundação.

Interrompeu-o uma explosão de cólera que, depois de atravessar o Atlântico, fez vibrar o aparelho que o rapaz segurava. - Johnny, tenho uma quantidade de dinheiro empatada nesses... - Calou-se e acrescentou, mais comedido: - nos quadros da tua mãe. No tempo que levas a arranjar os teus castelos e sei lá que mais, posso mandar construir um edifício moderno, seguro como o Forte Knox...

John calou o pai desligando o telefone. O seu rosto atraente estava escarlate e crispado de cólera.

- Diabos levem o velho... Fique sabendo que posso ficar em Inglaterra o tempo que me apetecer... para sempre, até, se quiser! juro que trarei para cá todos os quadros... e trarei se...

De súbito, porém, lembrou-se de Kate.

- Oh, desculpe!

A rapariga olhava-o, com admiração, e comentou, docemente:

- É um homem tão extraordinário como o seu pai. Seria difícil decidir qual tem a voz mais forte e o temperamento mais explosivo. Foi um verdadeiro espectáculo, creia!

John Blayne soltou uma gargalhada curta e triste.

- Não falei por falar; sou capaz de fazer o que disse. Não desisto. Irei a França, à Alemanha, seja aonde for, ainda, que leve anos! Segunda-feira em Nova Iorque... para me encontrar com Louise e assistir à fusão! Bolas para a fusão!

Kate endireitou a saia por cima dos joelhos, devagar, e perguntou em voz tão cuidadosamente neutra que lembrava a picada ocasional, mas lancinante, de uma abelha:

- Quem é Louise?

Blayne, que andava de um lado para o outro, parou defronte da chaminé e perguntou, em tom inexpressivo:

- Louise?

- Sim, Louise - repetiu, firmemente, a jovem.

-   Louise... bem... Louise é filha de um milionário do carvão, de Pittsburgo, que é ao mesmo tempo o melhor amigo de meu pai. Há anos que planeiam a fusão das companhias e as nossas famílias sempre quiseram que nos uníssemos também. Carvão, Louise; aço, eu!

Encolheu os ombros, com certo exagero, e observou o quadro que pendia da parede   da chaminé, uma duquesa de Remmey.

- É uma rapariga maravilhosa, bonita, etc.... Elegante, creio que é o termo que mais se lhe ajusta. Boas roupas, sempre muito alinhadinha...

Kate via perfeitamente que Blayne procurava as palavras que devia dizer e imaginava Louise: uma daquelas jovens americanas esguias e elegantes... Mas que dor súbita era aquela sob o esterno, porque lhe custava tanto respirar enquanto aguardava que ele falasse?... «Oh, Kate, es uma idiota!»

Por fim, falou ela e, ao principio, a sua voz soou-lhe aos ouvidos fraca e estranha:

-   Disse que podia ficar em Inglaterra... Então porque não deixa o castelo continuar aqui, onde pertence? Podia fazer cá o museu, como primeiro julgámos ser sua intenção... e não ficaríamos todos com o coração despedaçado.

John Blayne regressou à janela e, de costas para Kate, fitou os montes e os vales. Um raio de sol moribundo incidiu no campanário da igreja da aldeia e reflectiu-o? como uma cruz de prata, no céu vespertino.

- Muitas razões se opõem a essa solução - afirmou, impaciente. - Trazer milhões de dólares de quadros através do mar? Todos os patifes dos dois continentes estariam alerta... Além disso, seria preciso contar, provàvelmente, com certas normas existentes entre os dois países, para a entrada e saída de obras de arte... Mas deve haver uma solução! Se ao menos eu pudesse...

Voltou-se e sentou-se numa enorme arca que se encontrava encostada a parede. Acto contínuo, ’porém, levantou-se e comentou:

- Os entalhes são bonitos, mas pouco próprios para nos sentarmos em cima deles!

Kate não conteve uma gargalhada, ao ver a sua expressão lamentosa.

- É a arca do rei João. Era aí que ele guardava os seus tesouros, uma coroa oferecida pelos Escoceses e um ceptro incrustado de pedras preciosas.

John Blayne experimentou levantar a tampa.

- Está fechada à chave... Os tesouros ainda cá estão?

- Não sei! As chaves desapareceram há muito tempo. Mas que ia dizer, acerca de uma solução?

O americano voltou mais uma vez à janela e sentou-se no parapeito, de costas para a paisagem.

-   Estava a pensar alto... Compreende, serei um idealista idiota, mas desejo sinceramente que o povo americano veja algo de belo e não num edifício da 5.” Avenida, semelhante a uma máquina de lavar. Quero os quadros expostos na sua moldura autêntica: um castelo. Não temos um castelo na Nova Inglaterra - pelo menos não temos um castelo verdadeiro, como este, que é, em si mesmo, um tesouro de arte. Nós, Americanos, precisamos deste género de coisas... não temos nenhum sentido histórico... Compreende-me, Kate?

Kate compreendia que, ao dizer «este género de coisas», o jovem americano se referia às paredes apaineladas de carvalho, à enorme lareira de pedra, construída para queimar toros de dois metros e meio de comprimento, aos tectos altos, abobadados, ao ar de nobreza, à atmosfera de séculos...

- Por favor - murmurou docemente, enquanto pensava com era agradável ouvi-lo chamar-lhe Kate -, por favor, não faça nunca nada que não deseje fazer!

- Isso é fácil. A dificuldade está em saber o que quero fazer.

O telefone tocou, sem lhe dar tempo de responder, e Kate levantou o auscultador, atendeu e estendeu-lho:

- É para si, da estalagem.

Blayne ouviu um clamor distante de vozes e, depois, a voz do seu advogado.

- Sim, Holt - respondeu a qualquer coisa que o outro lhe disse, - Sim, estou aqui, no castelo... Devem ficar todos na estalagem até eu... Sim, falei com meu pai. Você devia ter aguardado as minhas instruções antes... Sim, bem sei que me devo decidir... já lhe disse que não me importo que cheguem amanhã mais trinta e cinco pessoas! Podem esperar, também... Compreendo que pretende apenas ser útil... é muito eficiente e eu aprecio essa qualidade, mas a eficiência tem de esperar por alguma coisa mais importante... Já lhe disse que não sei. Tenho de pensar... Sim, sairá   muito caro esperar, mas... Está bem, chame-lhe idiotice, se quiser. Mas idiotice ao princípio   pode redundar em sensatez, no fim... Há uma solução, mas eu ainda não... Não, ainda não sei o que faremos! Quando souber informá-lo-ei.

Desligou, voltou-se para Kate e comentou: - Diabos o levem,, mais à sua eficiência idiota!

Mas ela já lá não estava. Desaparecera na penumbra, como se fosse feita de névoa. Blayne saiu do aposento pela porta junto da qual Kate parara e desceu um largo corredor de pedra, até à entrada de um salão. Não havia ninguém nas proximidades e os seus péssos ecoavam como se estivesse sozinho no castelo. Olhou à sua volta, abarcou os largos espaços que começavam a mergulhar nas sombras da noite próxima. Por que porta ela se teria i escapado, e como conseguira afastar-se tanto? Apurou o ouvido e teve a impressão de ouvir vozes que a distância não permitia identificar. Uma voz de homem e, depois, uma suave voz feminina, a responder-lhe. Dirigiu-se para uma das paredes do salão e abriu uma pequena porta de madeira, chapeada   de ferro, que dava para um corredor curto. Neste estava aberta outra porta, esta larga e pesada e fronteira a um muro. Blayne transpô-la e encontrou-se numa rua pavimentada, que se estendia em ambas as direcções. Numa das extremidades viu. uma escada de caracol, de enormes blocos de madeira, que subia para, o andar superior de uma das torres. Ao fundo da escada, a luz de uma velha lanterna de ferro, que’-]balouçava pendente de uma viga, recortava as silhuetas de duas pessoas, o vulto magro e curvado ,de Wells; e, perto dele--, o de Kate, encostada a um carvalho retorcido, com os braços cruzados no peito.

Parou um monento, a vê-los como fantasmas na moldura da história. Naquela rua estreita, entre baixos edifícios de pedra, deviam ter vivido, supôs, os servos dos reis, as criadas que rodeavam as rainhas e levavam vida secreta e oculta à sombra dos grandes. Wells podia ter vivido em qualquer época, há mil anos ou- agora, e Kate, que poucos instantes antes, na biblioteca, lhe parecera miraculosamente próxima e real,. era fácil de imaginar naquele mesmo local, há muito, muito tempo. Sentiu-se, de súbito, gelado e deslocado e preparava-se para regressar ao salão grande quando ela o viu. Acenou a Wells, que subiu a escada e a deixou, e encaminhou-se, com passo firme sobre as pedras que o orvalho começava a molhar, para o local onde o americano se encontrava.

- Posso ser-lhe útil nalguma coisa, Blayne? - perguntou-lhe, ao chegar junto dele,

- Não, Miss Wells, obrigado.

- Nesse caso acho melhor entrarmos. Anda chuva no ar. Entrou e Blayne seguiu-a, até que, no salão grande, hesitaram: ela não sabia que dizer e ele estava resolvido a não falar. Kate acendeu as velas altas, existentes em cima da mesa. À luz das velas o seu rosto parecia ainda mais encantador, um rosto de rapariga, muito jovem e cheia de vida. Vinte e quatro velas ao todo, contou o americano, e ela ainda na quarta.

- Ama Louise? - perguntou-lhe, de súbito, Kate, em voz fria e tão firme como os dedos que seguravam o longo pavio de cera.

- Não posso responder-lhe agora a essa pergunta, mas sempre lhe digo que começo a perceber alguma coisa acerca da diferença entre uma fusão e um casamento.

- Ignoro em absoluto o que seja uma fusão! - confessou Kate, sinceramente.

Faltavam   treze velas mais... Ela acendia-as devagar, tendo o cuidado de verificar se havia cinza nos pavios e de se certificar se a chama era brilhante.

Uma fusão - explicou, distraído, com os olhos postos na mão esguia que acendia uma vela - é a união de duas firmas. Não tem nada a ver com o casamento, excepto nos casos como o meu, em que há um filho numa firma e uma filha na outra... Meu pai possui a maior companhia de aço ... - ora, não tem importância!-... o pai dela a maior companhia de carvão. Mas eu já lhe disse tudo isto, não disse? O carvão e o aço estão um para o outro como o amor está para o   casamento... Agora já sabe o que é uma fusão. Compreendeu?

Compreendi - respondeu, acendendo a décima oitava vela.

Blayne endireitou-se e apoiou ambas as mãos na mesa.

- Ainda bem que compreendeu, pois, de súbito, deixei eu de compreender ! Neste momento, nenhuma dessas coisas faz sentido para mim ... E para si, faz, realmente?

-Claro que sim -respondeu, em tom grave, atenta ao seu trabalho, Em Inglaterra o príncipe casa com a princesa... a única diferença é que, em vez de lhe chamarem fusão, chamam-lhe casamento de conveniência. Oh, sim, estames   muito habituados a esse gênero de coisas !

Acendeu a última vela, enquanto falava, e ele não a ouviu

0lhava as velas acesas e o rosto que resplandecia, entre ela Agora,   se me der licença... - murmurou Kate, devagar.

Blayne suspirou e ficou um momento como que atordoado Como poderia   retê-la ali? Como explicar-lhe... Mas que tinha de lhe explicar? Os   seus olhos pousaram na pasta, que abandonara ao chegar e de que se esquecera depois. Atravessou o aposento e, hesitante, abriu-a.

- Tenho aqui algumas fotografias que trouxe para mostrar a Sir Richard - murmurou. - Talvez goste de as ver, também.

Voltou à mesa, junto da qual ela se encontrava, tirou as fotografias e espalhou-as na sua frente.

- São do Connecticut. A paisagem não é muito diferente da inglesa, como vê... um pouco mais agreste, talvez, com rochas e encostas de pedra... Pensava reconstituir o castelo neste cabeço, acima do rio, com a floresta ao fundo... Cá está o esboço. Fi-lo eu próprio... é imaginário, já se vê...

Separou vários esboços e prosseguiu:

- Cá está o salão grande... Nada mau, tendo em conta que eu nunca o vira, não acha? Até o lustre...

Kate viu o castelo no Connecticut como se fosse um sonho num país muito distante. O salão grande estava cheio de estrangeiros, americanos que , olhavam para cima, para o grande tecto de vigas. Eram esboços, figurinhas minúsculas, de rostos sem feições.

- O lustre não é apenas um lustre... - murmurou, de súbito. - Terá de ter cuidado, com as pessoas, que se colocarem debaixo dele. Só de pensar nele sinto calafrios! - Porquê?

- É perigoso - disse, muito baixo. - Tem uma voz, segundo afirma Lady Mary. «Deixá-lo-ei cair ... » - Imitou uma voz fraca e distante, de sotaque escocês.

John Blayne sorriu e a rapariga protestou:

- Oh, não se ria! Lady Mary afirma que ouviu... Mas o americano riu. mais ainda, divertido.

- Que atracção para os turistas. E você, também ouviu essa voz?

- Não, mas já vi o lustre estremecer e vibrar, até os cristais tilintarem!

- Não fala a sério!

- Talvez eu esteja...

- Ora vamos, olhe-me nos olhos e diga a verdade! Agarrou-a pelos ombros, ainda a rir. Kate começara a sorrir, também, mas antes que pudesse responder ouviram passos pesados e Sir Richard apareceu à porta e observou-os. John Blayne deixou cair as mãos e Kate recuou.

- Acabo de expor uma ideia a Mr. Blayne - disse a rapariga.

- Deveras? -   replicou Sir Richard, sem mudar de expressão.

Compreendendo que o estratagema não chegara para o aplacar, Kate apressou-se a prosseguir:

- Sugeri-lhe que reconsiderasse a ideia que tivemos ao princípio: fazer o museu aqui, Sir Richard.

Sir Richard ergueu as grossas sobrancelhas, entrou e parou ao lado deles.

- E que respondeu Mr. Blayne?

Kate olhou o americano e murmurou: - Recusou outra vez... Ainda não, pelo menos...

Sem que Blayne tivesse tempo de falar, Lady Mary entrou também no salão. Substituíra o fato de fazenda por um vestido comprido, de cetim cinzento-pálido, com um folho de renda branca, e retocara as faces com um nadinha de rouge, de um tom rosado, encantador.

- Onde estiveste, Richard? - inquiriu, na sua voz doce e infantil. - Tenho andado preocupadíssima por tua causa. Que fazes aqui, tão tarde e ainda com o fato de montar? São horas quase de jantar e Wells ficará aborrecido se chegarmos atrasados. jantamos no salão pequeno, Richard.

Sir Richard aproximou-se da mulher, pegou-lhe na mão e beijou-lha galantemente.

- Tencionava ir procurar-te, minha querida, para te informar de que voltara. Entretanto, ao que parece, Kate encarregou-se corajosamente de Mr. Blayne, enquanto tu e eu abandonávamos a liça... Acenderam, as velas todas porque estava tão escuro que não se podiam ver, e Kate fez-lhe uma proposta.

- O quê?! - exclamou Lady Mary, delicadamente. Enlouqueceste, Richard!

- Não, não! - protestou o marido, erguendo uma das nãos. - Por favor, não tires conclusões precipitadas! Ela limitou-se a propor-lhe que aceitasse a nossa ideia original e trouxesse os quadros para cá. O castelo seria um museu, mas onde está, como ao principio supusemos que seria.

- Espléndida ideia! - elogiou Lady Mary. - Sempre foi, aliás. Não consigo compreender porque desistiu dela, Mr. Blayne.

O americano olhou sucessivamente os três rostos que o rodeavam. Fantasia, pensou; gente de sonho a viver noutra era! Como trazê-los à realidade? Começou a falar devagar e com a maior clareza:

-   Lady Mary, Sir Richard... e... - Olhou para Kate, mas

desviou logo a vista. - Desejava poder concordar que a ideia é boa, Lady Mary... mas infelizmente não é. Aqui, o castelo está muito fora de mão. Nem sequer se encontra na rota turística, partindo de Londres...

Hesitou, constrangido. Kate virara-lhe as costas, mas Sir Richard e Lady Mary fitavam-no com dolorosa intensidade. Não os queria magoar! Prosseguiu, pouco seguro de si:

- Os castelos pertencem, suponho, a determinada época. Outrora eram necessários, quando um homem tinha de construir a sua própria fortaleza. Hoje... bem, as fortalezas já não protegem ninguém. São como a Grande Muralha da China, quando as pessoas receavam o inimigo do Norte... Agora o inimigo vem do céu, da terra ou do mar. Estamos cercados! Por isso, o castelo tornou-se, por si mesmo, uma peça de museu, seja onde for que se encontre, no velho ou no novo mundo. Talvez o novo mundo precise mais dele do que o velho, dada a sua falta de história própria. De qualquer modo, neste curioso mundo de hoje, a História pertence a toda a parte.

Sir Richard rejeitou todas as suas palavras com um aceno de mão:

- Socialismo! O meu castelo pertence-me a mim, Mr. Blayne. Cinjamo-nos aos factos, por favor.

John Blayne voltou-se, de maneira a encará-lo, e replicou:

- Muito bem, Sir Richard, terá os factos. Os meus advogados investigaram e souberam que, mesmo com o castelo aberto ao público todo o ano, um dia por semana, a receita foi de duzentos dólares, mais ou menos, o que equivale a... cerca de oitenta e sete libras. Quantas pessoas? Algumas centenas, as suficientes para manterem uma estalagem, mas não um castelo. Serei sincero com todos: seria ou não seria má ideia trazer grandes obras de arte para aqui, com despesas imensas, para depois ninguém as ver? Não seria justo, pois não? - roubar um país jovem como o meu, cujo povo está faminto de arte e de coisas belas, tirar-lhe tesouros e levá-los para lugar onde não poderiam ser apreciados por todos.

Olhou-os sucessivamente, mas encontrou apenas expressões de reservada gravidade.

- Ou estarei enganado?

- Que há de mal num museu particular? - perguntou-lhe Lady Mary. - Seria agradável receber apenas pessoas de sapatos limpos... Exponha a ideia ao seu pai.

Sir Richard descalçou as luvas de montar. Sorria, mas vagamente, como se não estivesse a ouvir, com o olhar embaciado e distante. Afastara-se de todos.

- Exactamente, exactamente... - murmurou. - Vejo que estás pronta para o   _jantar, minha querida - acrescentou, dirigindo-se à mulher.- Estás muito bonita. Espero que o Philip não tarde, também.- Estaremos aqui dentro de poucos minutos... Mr. Blayne, são horas de nos vestirmos para jantar.

Saiu da sala com dignidade e passado um momento John Blayne saiu também. Sentia-se desamparado. Que podia fazer, excepto deixá-los entregues à sua sorte? Assim faria, sabia-o, se não fosse Kate, a jovem e bonita Kate, cujo destino e futuro pareciam ligados ao velho castelo, e às três velhas criaturas de sonho que o habitavam e não o abandonariam. Assim, que seria dela?

- Senta-te, Kate- ordenou Lady Mary à jovem, quando, ficaram sós.

Ao mesmo tempo, a velha senhora sentava-se também na grande cadeira de carvalho esculpido, ao lado da lareira, e cruzava as mãos no regaço. Sentia-se perdida e só. Ela, a castelã de Starborough, não sabia, porque não lhe diziam, o que na realidade se passava. Aonde fora Richard, para cavalgar tantas horas a fio? Porquê estivera Kate a falar a sós com o americano? Que tramariam e porque não lhe diziam nada? A tarde fora terrivelmente longa e passara-a a tricotar, numa ansiedade insuportável. Wells mostrara-se irritado e agitado, só por terem um convidado para jantar, e ela própria se vestira com meia, hora de antecedência, pretextando que aquele vestido, que não usava desde que não podia pagar uma criada pessoal, era difícil de vestir sem auxílio.

- Agora, Kate - começou, - vamos lá a saber que estiveste a dizer a esse rapaz?

Kate deixou-se cair na almofada, ao lado de Lady Mary, : e respondeu-lhe:

- Na realidade nada mais lhe disse, minha senhora, além de que desejaria que fizesse aqui o museu, como desde o princípio supusemos.

- Agora que   o conheço, a ideia parece-me absurda - afirmou Lady Mary, impaciente. - Ele não é pessoa que pudesse ser feliz aqui.

- Porque não, minha senhora?

- Um americano? Além disso, Kate, não creio que eles

gostassem da ideia... Sentir-se-iam muito constrangidos se cá estivesse sempre um americano, para não falar noutros americanos que por certo viriam, mesmo em pequeno número. Ficariam confusos e eu nem quero pensar nas consequências... No fim de contas, eles estão aqui há muito mais tempo do que nós e não podem ser ignorados.

Kate apertou a mão esguia e nervosa, sulcada de veias ,- delicadas, de Lady Mary e perguntou:

- Tem a certeza absoluta de que Os ouve, minha querida? Não será apenas... sonho? Às vezes penso que leva   vida muito solitária, aqui, afastando-se até dos turistas...

Lady Mary retirou a mão das de Kate e afirmou:

- Com certeza que os ouço! E não sou apenas eu, Kate. Lembras-te do que te disse da mãe de Richard? Veio para cá no dia do casamento e, na primeira noite que passou no castelo (sem que ninguém lhe tivesse dito nada acerca deles), ao descer para jantar perguntou ao pai de Richard quem era a encantadora senhora que se encontrava ao cimo da escada. O velho Sir Richard respondeu-lhe serenamente: «Ah, viste-a! Era dama de companhia de uma rainha e foi assassinada por um lacaio que se apaixonou por ela.». Como vês não sonho, Kate, e magoa-me muito que duvides de mim’

- Mas eu não duvido, minha querida. Simplesmente eu própria não os consigo ver nem ouvir.- Levantou-se e ficou de pé, ao lado da senhora.

-   Isso significa que duvidas deles - afirmou Lady Mary. Se acreditasses, vê-los-ias ou ouvi-los-ias, pelo menos. Garanto-te que, quando estou só, me dão a conhecer a sua presença... se quiseres que me exprima antes assim.

- Não os vê, realmente?

- Vejo-os tão claramente como vejo aquelas velas a arderem ali, em cima da mesa! Contudo, se soprares as velas e as apagares podes pensar que nunca estiveram acesas ou que não podem acender-se, não é verdade? Com eles acontece o mesmo. Parecem mortos até alguém acender a chama. Quando estou só, concentro-me por momentos, às vezes durante meia hora, penso neles, eles sentem o meu pensamento e saem das sombras. Estão sempre presentes mas têm de ser sentidos antes de poderem ser visto ou ouvidos.

Fez uma pausa, fitou melancólicamente a rapariga e perguntou-lhe :

- Parece-te impossíve?

- Nada me parece impossível - respondeu-lhe Kate, docemente -   Acredito na senhora. Falou alguma vez a Sir Richard acerca deles ?

- Com certeza! Muitas vezes, até.

- E ele acredita neles ?

- Com Richard não se trata de uma questão de acreditar, mas de ver.

- Se Sir Richard os vê, porque não fala deles como a Senhora ?   

- Talvez não vejamos os mesmos. - Lady Mary inclinou-se para Kate e segredou-lhe: - já pensaste que ele pode ver apenas os maus?

Olhou por cima do ombro e Kate viu uma estranha expressão de horror transformar-lhe a doçura das feições.

- Que é, minha querida Lady Mary?

Agarrou as mãos da velha senhora e apertou-as nas suas. Estavam frias e inertes e Kate massajou-as docemente, para as aquecer. Lady Mary fitou-a, com expressão vaga, e respondeu num cicio:

- Ainda ontem disse a Richard estar convencida de que existia um rei no castelo, pois a voz do lustre parece a do querido rei João. Diz-se que ele tinha uma voz estranha, muito alta. Richard. respondeu-me que sim, que existia um rei no castelo, mas olhou -me de maneira tão... tão sinistra que não se referia, com certeza, ao mesmo rei que eu. Talvez tenha visto, até, um dos decapitados... Não sei... Ainda bem que eu só vejo os bons! São eles que se conservam perto de mim e desejam ajudar-nos.

- Que disse depois a Sir Richard, minha senhora?

- Disse-lhe: «Richard, afinal tu também os vês!» E ele respondeu-me... Oh, Kate, pareceu-me tão estranho o que me disse, tão estranho! Respondeu-me assim: «gostarias de ser rainha?»

- Que queria dizer?

- Que não desejava falar no assunto, suponho... Sempre que desejo sinceramente falar deles, Sir Richard muda de conversa, para não ter de me responder. Oh, meu Deus, às vezes é tão irritante!

Soltou suavemente as mãos das de Kate e prosseguiu, após breve silêncio:

- Sei que eles nos podem ajudar, se quiserem.

- Como?

Aquela conversa perturbava-a. Toda a vida soubera que Lady Mary acreditava na existência daqueles outros seres que tinham vivido no castelo e, até então, aceitara a possibilidade da permanência dos mortos para além da vida. A Inglaterra era um velho país, rico de história, e o castelo um símbolo do passado. A ponte que atravessava o fosso fora levantada em muitas violentas batalhas contra Dinamarqueses e Normandos, no castelo tinham-se refugiado reis e assassinado príncipes, e rainhas haviam sido levadas para o leito   pelos seus amantes secretos. O castelo era como que um armazém de paixões, vinganças e ambições, um lugar de retiro e inspiração. Homens e mulheres haviam ’criado, no seu tempo, aquilo de que precisavam. Só agora, quando o mundo se transformara, não se sabia como, numa tremenda confusão, o castelo deixara de ter significado, excepto para o punhado de pessoas que nele viviam, uma das quais ela, Kate.

Mas vivia, realmente, ali? O telefonema recebido naquela tarde, de outro mundo; a voz alta, autoritária e arrogante de um americano, que soara como a voz de um inimigo na biblioteca silenciosa, de paredes forradas de livros que ninguém lia... Seria a voz da vida e de hoje, de um mundo do qual se escondia? Não, não se escondia! Precisavam de si no castelo, precisavam de si aqueles dois velhos sonhadores a quem amava tanto. Oh, se fosse homem!... Se fosse homem, sim, poderia ajudá-los! Assim, mulher, nem sabia em que acreditava. Talvez tivesse evitado saber... Não vira nem ouvira

os mortos, mas talvez isso se devesse ao facto de ser activa, jovem e forte. Lady Mary estava muitas vezes doente e passava horas sozinha ou com Sir Richard, e se, em certas ocasiões, Sir Richard se mostrava serenamente bem disposto, de uma alegria calma, que devia ser como que a sombra da esfusiante e encantadora alegria da sua juventude, outras mergulhava numa melancolia profunda, fechava-se dentro de si mesmo e chegava, até, a desaparecer horas e horas seguidas. Nesses momentos, Lady Mary ficava possuída de uma angústia vaga, que durava até ele regressar. Havia muito tempo que o castelo não recebia convidados e era verdade que, quando o público o visitava, Lady Mary se fechava nos seus aposentos até partirem todos.

- Deve haver um tesouro   no castelo - dizia a senhora.-Durante estes séculos, alguém deve ter escondido aqui jóias ou ouro e prata. Aqueles reis e rainhas! Oh,, eles sabem onde está! Guiar-nos-ão até ao tesouro, se confiarmos neles!

Que responder a tal confiança? Olhou-a, com um sorriso triste, e por fim estendeu-lhe a mão.

- Venha, minha querida - murmurou ternamente. Devem ser quase horas do jantar e os cavalheiros estão à sua espera. Além disso, tenho de ir mudar de roupa e o meu avô não gosta que me atrase.

Dirigiram-se, de braço dado, para a porta. Aí, Lady Mary parou, olhou para trás e ordenou:

- Apaga as velas, Kate. Custam dois xelins cada uma, essas grandes velas de cera!

Seguiu o seu caminho e Kate, obediente, apagou as velas uma por uma, com o pesado apagador de prata. O salão grande mergulhou em trevas e ela ficou perdida nas suas sombras, atenta e à escuta. Depois de escurecer levantara-se vento, um vento prenhe de chuva,   que gemia ao contornar ás ameias e atravessar a torre de   menagem. Não se ouvia som de voz humana ou de passos.   «Se acreditarmos- ajudar-nos-ão», dissera Lady Mary... Mas   como pode alguém obrigar-se   .   a si mesmo a acreditar? E a fé obrigada terá valor? Kate curvou a cabeça, uniu com força as mãos sob o queixo e fitou as trevas.

- Ajudai-nos - murmurou. - Por favor ajudai-nos todos, um de vós, alguém!

Aguardou um minuto, ou mais, até não   poder suportar o uivo do vento solitário. Ninguém lhe respondeu. Deixou cair as mãos ao longo do corpo e, às escuras, atravessou o aposento, direita à porta que levava ao seu quarto, no andar de cima.

Os três homens esperavam por Lady Mary na pequena sala de jantar. Era um aposento agradável, à noite, com os cortinados escarlate corridos, a lareira acesa e a mesa iluminada para o jantar. Entre os castiçais altos, de prata, via-se uma jarra, também de prata, com tulipas vermelhas, e a toalha de damasco irlandês resplandecia. Wells servia sherry, que os homens sorviam de pé, junto da lareira.

John Blayne ergueu o seu copo contra a luz e exclamou:

- Ouro líquido! Há quanto tempo o tem, Sir Richard?

- Depois da guerra nunca mais reabasteci as adegas - respondeu-lhe o castelão.

- Se as adegas estão cheias disto, não precisa de vender o castelo! - afirmou Philip Webster, estalando os lábios.

- Ah, mas não estão cheias! - exclamou, tristemente, Sir Richard. - Estão quase vazias, como tudo o mais.

- Suponho que não pensou em vender os outros tesouros?

- indagou o advogado.

- Não - redarguiu o interpelado, secamente. - Não tenho esse direito.

- Quem, senão o senhor, o tem? - insistiu Webster,

- Há outros habitantes.

John Blayne ergueu as sobrancelhas e murmurou: Refere-se...

- Refiro-me aos vultos da história - respondeu Sir Richard, sem esperar que acabasse.

- Ou a fantasmas? - indagou Webster, meio brincalhão.

- Aos grandes mortos - acrescentou Sir Richard, em tom grave.

Lady Mary parou à porta, vulto esbelto e gracioso no seu vestido cinzento-prateado.

- Fi-los esperar?

- Não, minha querida - respondeu-lhe o marido, indo ao seu encontro e segurando-lhe na mão, com uma graça fora de moda.- Tomávamos uma gota de sherry e tagarelávamos

um pouco.

Puxou a cadeira para a mulher se sentar e ocupou o seu lugar à cabeceira da mesa.

- Mr. Blayne fica à direita de Lady Mary - informou Philip à esquerda.

Sentaram-se e   Wells; serviu a sopa, de uma terrina que trouxera para o aparador. John Blayne percorreu o aposento com o olhar e perguntou:

.   Onde está Kate?

Foi Wells quem respondeu, em tom de desculpa:

- Não se demora. Houve qualquer coisa que a atrasou, esta noite. Queira desculpar, Lady Mary.

Webster provou a sopa e depois entalou o guardanapo de linho no colarinho e gabou, brusco:

- Excelente sopa, Lady Mary.

- Sim, Wells; é um especialista em sopas. Creio que utiliza ossos - replicou a castelã.

Lady Mary comia a sua sopa delicadamente, mal tocando com os lábios na antiga colher de prata. À luz das velas, o seu rosto pálido tinha um leve rosado e os seus olhos uma expressão mística.

John Blayne continuou a falar de Kate com obstinada teimosia:

- Kate é uma espécie de secretária, não é?

- Seja o que for, é absolutamente indispensável - afirmou Lady Mary, docemente.

Wells; voltou-se para a mesa e, sem olhar para ninguém, com ar tão distante   como se apresentasse um estranho, declarou:

- A minha neta é a criada, Sir. - E saiu do aposento.

- Agrada-me muito que fiquem cá os dois, esta noite - declarou Sir Richard, como se não tivesse ouvido nada. Não gosto de falar de negócios depois do jantar. Será muito melhor amanhã de amanhã, tanto mais que o dia foi exaustivo.

-- É sempre um prazer - redarguiu Philip Webster.

- Obrigado, Sir Richard - agradeceu Blayne. - Ainda não vi bem o castelo e gostava de o percorrer, não por quaisquer razões comerciais, mas simplesmente —por ser o lugar mais encantador que já vi. Encantador e encantado. Tenho a certeza de que tudo pode acontecer, aqui.

Lady Mary inclinou-se para a frente, com o rosto iluminado, e perguntou, ansiosa:

- Acha sinceramente,   que sim? Então pode! É tudo uma questão de acreditar, aquilo a que a Bíblia chama fé. Garanto-lhe que eu própria vi...

- Com licença, Sir Richard...

Kate estava à porta agora de vestido preto, aventalinho e touca brancos. Escovara o cabelo e lavara o rosto com água fria. John Blayne viu-a na moldura escura da porta e não conseguiu desviar os olhos dela. Se na véspera aceitara o seu vestuário, como, o de --alguém que representava um papel, naquela noite esse facto irritava-o. Revoltava-se contra o vício da distinção de classes e dizia para consigo que, na América, Kate seguiria o seu caminho, fossem quais fossem as suas relações de família.

- Há uma chamada de Nova Iorque - dizia a rapariga. Creio que é outra vez o pai de Mr. Blayne, Sir.

O americano levantou-se e deixou cair o guardanapo em cima da mesa.

- Meu pai? Não faço ideia do que quererá dizer-me... Dissemos tudo há uma hora. Queira desculpar,   Lady Mary. , Oh, com certeza! - exclamou a velha senhora, com ar assustado.- Mas imaginem, ouvir alguém falar através do mar! - Viu os dois jovens desaparecerem no corredor escuro e prosseguiu: - Richard, não compreendo por que motivo te parece estranho que eu os ouça falar do Além, uma vez que alguém de muito longe pode falar connosco aqui no castelo, sem fios nem coisa nenhuma... e ainda por cima uma pessoa absolutamente estranha e americana!

- Actualmente nada me parece estranho - respondeu Sir Richard, distraído.

Wells entrou com tenazes estufados, numa bandeja de prata.

- Delicioso! - exclamou Webster. - A minha caça favorita. Mas não estamos na época...

- Com licença, Sir - disse Wells, em tom firme, servindo as avezinhas e regando-as com molho.

- Muito bem, não perguntarei como a arranjou! - declarou o advogado, a rir. - Um homem tem o direito de comer os seus próprios tenazes.

- - Não admito caça furtiva, Wells! - admoestou Sir Richard.

- Não, Sir - concordou Wells. - Foi isso mesmo que disse ao caçador furtivo, quando lhe tirei as aves.

- Devia tê-las dado ao guarda da caça, Wells; - censurou-o Lady Mary.

- Mas nós podemos comê-las tão bem como o guarda da caça - afirmou Webster, alegremente. - Pelo menos agora, que estão aqui.

- Claro, Sir - concordou o mordomo, e saiu mais uma vez da sala.

Comeram em silêncio, por momentos. Webster pegou num ossinho delicado, chupou-o com delícia, colocou-o no prato e limpou os dedos ao guardanapo.

- Devo dizer-lhes, enquanto o nosso convidado está ausente, que fiz mais um esforço desesperado no sentido de o castelo ser considerado monumento   nacional – informou o advogado. - Mas o que não faltam são castelos... Leram o anúncio que saiu a semana passada,   no Times? Alugava-se um castelo com duzentos e cinquenta quartos e dez casas de banho por um xelim anual, mais a manutenção, evidentemente, que é de vinte mil libras. É verdade que não há muitos castelos com mil anos... Tenho poucas esperanças, mas ainda existe, talvez, uma possibilidade... Ainda bem que convidou Blayne para ficar, Richard.

- Estou certa de que acontecerá qualquer coisa - afirmou a castelã.

Webster acabou de comer a ave e recostou-se na cadeira, à espera do assado.

- Que poderá acontecer, Lady Mary?

- Acontecerá alguma coisa - repetiu, com firmeza.

Os seus doces olhos azuis tinham uma expressão distante e um tenue sorriso arqueava-lhe os lábios. Debicara apenas a ave que tinha no prato e, por fim, desistiu de fingir que comia. Os anéis de diamantes que usava nas mãos inquietas brilharam à luz das velas, quando colocou a faca e o garfo no prato.

- Tenho fé que acontecerá - afirmou. - Talvez, sim - concordou Sir Richard, distraído. - É muito possível... O direito divino dos reis...

Webster olhou de um velho rosto para o outro, perplexo, e perguntou:

- Haverá alguma coisa que eu não compreendo?

Nenhum deles lhe respondeu e Wells entrou com o assado, colocou a travessa no aparador e começou a trinchar grandes fatias finas.

. - Mr. Webster gosta da sua carne mal passada - advertiu Lady Mary.

- Sim, minha senhora - respondeu o mordomo. - Eu sei, minha senhora.

- Oh, sabe sempre tudo, Wells! - protestou Lady Mary.

Na biblioteca, John Blayne segurava no auscultador o mais longe possível do ouvido e Kate, à porta, ria baixinho, para consigo.

- Ora ouça isto! - disse-lhe o americano, - em voz baixa, olhando-a.

- Não posso deixar de ouvir - respondeu Kate. - Não lhe devia ter falado na ideia de instalar o museu aqui. É capaz de ter alguma apoplexia! Foi maldade sua, uma vez que também o não deseja aqui.

John Blayne mordeu os lábios e fingiu encolher-se todo, enquanto a voz implacável do pai continuava a zurzi-lo:

- Que ideia foi essa, de me desligares o telefone antes de eu acabar de falar? Diabos te levem! Não consegui que reatassem a ligação, para te dizer o que penso! Estás doido, não deviam consentir que andasses sozinho fora de casa! Fica sabendo que, por’ nada deste mundo, consentiria que levassem os quadros do país! Também não os darei a ninguém, nem sequer ao Metropolitan, pois custaram-me bom dinheiro! Preferia desistir da fundação.

John Blayne olhou outra vez para Kate e andou com um braço à roda, como um moinho de vento, a fingir que dava corda a si mesmo. Depois gritou ao telefone:

- Agora é a minha vez, pai! Ouça... estou a falar! Concordo consigo! Que tal, hem?... Sim, concordo consigo! Ah! Soltou um grande suspiro de alívio, ao fazer-se silêncio, e prosseguiu:

- Sim, compreendo que não saiba que pensar... Concordo consigo, mas por razões diferentes e não, por os quadros lhe terem custado bom dinheiro, embora o dinheiro seja sempre bom. Também não é por ser mau dar qualquer coisa, pois não sou dessa opinião... Sim, estou a dizer que concordo consigo!... Sim, e concordo consigo porque quero pessoas a ver os quadros todos os dias e todo o dia, incluindo domingos e feriados, e é por isso que desejo que fiquem no Connecticut, tão perto quanto possível de várias grandes cidades, com boas estradas para ir e vir e cadeiras confortáveis onde as pessoas se possam sentar, para descansar, mas sem deixarem de ver, ao mesmo tempo. Como as pessoas não, poderão vir aqui, não traremos os quadros para cá... Que é isso? Há trovoada em Nova Iorque?... Ah, estava apenas a dizer-me que me calasse!... Está bem, sim, senhor... Adeus... - mas com saudades... Ouviu, pai? Vou desligar... mas com saudades do Johnny!

Desligou e desatou a rir à gargalhada.

- Meu Deus, que pai! Que irreprimível, inextinguível, adorável velho demónio de pai!

Viu outra vez Kate na moldura da porta, com aquela incrível farda de criada, e meteu as mãos nas algibeiras, por ,precaução, antes de ir ao seu encontro.

- Tenho uma ideia - declarou.- Você pode ajudar-me! Kate olhou-o, sorridente e maliciosa, e redarguiu: . - Não é se posso que interessa e, sim, se quero!

- Ah, mas você quer! Deve!

- Se devo... devo, suponho.... mas só o farei se o desejar! - Então persuada Sir Richard a deixar-me ter o castelo, Kate... e você com ele!

- Eu... como uma peça de mobiliário? - perguntou, deixando de rir.

- Não conseguiria reconstituir o castelo sem você, Kate.

- Viu a expressão do seu rosto (duvidosa, intrigada... ferida?) e apressou-se a prosseguir: - Você pode ser uma conselheira especial ou... tudo o que quiser.

A jovem recuou um passo.

- Pagar-lhe-ei - afirmou o americano. - Pagar-lhe-ei o que desejar.

- Pagar-me? - repetiu. - Não me poderia pagar... Não estou à venda... assim como o castelo também não está. Oh, não, não me conhece! Não sou nada .. absolutamente nada... o que Julga.

Afastou-se dele, atravessou a sala mal iluminada e parou à janela. John Blayne seguiu-a com a vista e viu pela primeira vez a sua nuca branca e delicada, sob os sedosos caracóis negros. Que lhe dissera que a irritara assim? A Lua surgira, uma lua prematura, que fazia o possível por romper as nuvens baixas e banhava Kate numa luz suave e pálida.

- Não tem a mínima noção do que e o castelo nem do que ele significa! - afirmou., veemente, voltando-se e encarando-o. - Este castelo é um mundo! Não são pedras e móveis, e história, história vivida por pessoas! E a História não se pode comprar nem transferir para outro país; não pode comprar as pessoas que viveram no castelo nem mudá-las... No fim de contas, o senhor é um comerciante, Mr. Blayne, não tem sensibilidade. Lady Mary disse a verdade: É preciso sentir antes de saber. O senhor sabe apenas o que pode contar e ver, mas ela sabe muito, muito mais. Ela exerce uma influência aqui! Deve haver outra solução.

John Blayne continuou afastado dela, a observá-la. Como era estranha! Quem seria? Não era a rapariga inglesa com quem estivera havia uma hora nem, tão-pouco, a rapariga que dele se rira poucos minutos antes! Como a perdera?

Kate voltou-se para a janela e observou a Lua. John Blayne colocou-se a seu lado e admirou-lhe o rosto pálido, bonito e distante. Quem quer que fosse, jamais a poderia esquecer, agora. Sentia-se meio receoso dela, atraído, ansioso por lhe tocar, por a recuperar... E, contudo, sabia que não o faria a não ser que ela mesma o desejasse. Saberia a própria Kate quem era? Uma enjeitada, talvez, uma criança de sangue real deixada ali não sabia como, que não pertencia a Wells... Oh, com certeza que não pertencia a Wells! Não havia naquele perfil puro, na graça esbelta daquela cabecinha tão altivamente erguida, nada que a ele se assemelhasse.

- Vá-se embora, por favor! - dizia-lhe. - Vá-se embora e deixe-nos entregues ao nosso castelo e aos nossos tempos. Deixe-nos em paz e solidão. Vá para o seu país, a que pertence, e deixe-nos ficar no nosso velho país, a que pertencemos.

- Kate... - murmurou - Kate, também está a sonhar?

- Não - respondeu, tranquila. - Eu nunca sonho.

Não se voltou para o olhar. John Blayne: aguardou, mas ela recusou-se-lhe e ele acabou por sair? deixando-a junto da janela, ao luar.

Sentiu certo prazer em regressar à sala quente e iluminada, onde Sir Richard, Lady Mary e Webster comiam carne assada, batatas e couves estufadas.

Philip Webster levantou os olhos do telegrama que lia, ao ouvi-lo sentar-se.

- Lamento, Sir Richard, mas receio que não haja esperança. - disse o advogado. - Ao que parece, não podem sobrecarregar-se com a despesa de outro castelo, neste momento. Três milhões de desempregados, etc.... cerca de mais oito mil escolas elementares necessárias... - Calou-se, sem acrescentar mais nada.

- Interrompi? - perguntou John Blayne.

- De maneira nenhuma - afirmou Sir Richard. - No pé em que as coisas já estão, não temos segredos... Continue, Webster! Nos tempos que correm, o Governo considera tudo mais importante do que castelos com mil anos.

Lady Mary desistiu de comer o assado e colocou’ cuidadosamente a faca e o garfo no prato.

- Há outra maneira; Philip...

- Certamente não se refere, outra vez, a fantasmas, Lady Mary? - perguntou John Blayne, em tom despreocupado.

Wells serviu-lhe assado batatas e couves quentes e saiu novamente.

- Jamais - exclamou Lady Mary, cujo rosto delicado enrubescera. - Detesto essa palavra! São espíritos, mais reais do que nós. Não lhes chame fantasmas, por favor, pelo menos na minha presença! Eles estão vivos, esta é a sua morada e não lha podem tirar. Eles existem. Richard, fala, ao menos desta vez! Eles existem... Sabes que existem, não sabes? Não sabes? Responde, sim ou não!

Sir Richard bebeu um golo de vinho tinto e limpou cuidadosamente os lábios.

- Bem, minha querida, seja como, for, só posso dizer que não sou responsável por eles. Sou apenas responsável por ti e por mim, pela terra e pelos meus rendeiros. Tenho de tomar as minhas decisões baseado em coisas tangíveis.

- Muito bem! - redarguiu Lady Mary.- Concedam-me, todos, alguns dias. Há cento e cinquenta quartos neste castelo, lugares que nunca vimos... tesouros escondidos, talvez!

John Blayne riu-se, aliviado com a vivacidade   da resposta. Espicaçá-la-ia um bocadinho mais, só para animar o jantar. - Não diga isso, Lady Mary! Não fala a sério, com cer-

teza. Todos os castelos dão origem a essas histórias de tesouros...

Lady Mary pousou nele o olhar sereno e redarguiu: - Embora duvide que valha a pena, explicar-lhe-ei. Se não compreender, paciência... Temos de ser.... O único termo que me ocorre é «puros de coração». Temos de ser puros de coração para os vermos, aos bons, aos que nos ajudarão. Caso contrário, os maus podem apoderar-se por completo de nós, utilizar-nos...

- Deixa-me perplexo, Lady Mary - confessou John Blayne.- Para ser franco, devo dizer-lhe que não faço a mínima ideia do que está a falar.

- Ah, nem tenta! - afirmou a idosa senhora. - Precisa de ter vontade de aprender a sentir para além de si mesmo. Esqueça-se de, si e ouvirá sons que nunca ouviu... talvez seja um único som apenas, uma nota alta e clara de música imutável. Verá- não sei como explicar, mas será como espreitar através de comprido túnel e ver, ao fundo, uma luzinha a brilhar. Deve concentrar-se nessa luz com todo o seu ser... e pedir depois o que desejar. Pode ver ou não ver alguém, mas obterá sempre uma resposta, quanto mais não seja sob a   forma de uma simples sensação de paz e alívio. Mas se não vir nem ouvir, espere. Talvez dentro de poucos dias...

Fitou os olhos incrédulos do jovem americano e sorriu-lhe tristemente.

- Não compreende, pobre homem, pois não? Mas é verdade, apesar disso. Em   países mais antigos do que o nosso - na Ásia, por exemplo- o fenómeno é muito conhecido. Chamam-lhe prana e existem muitos livros a esse respeito. Não se trata de fantasmas nem de tolice nenhuma desse género, mas, sim, de aprender a penetrar noutro nível de existência. Deve querer aprender a ter uma necessidade antes de pedir a sua satisfação, e, para isso, é preciso desejar qualquer coisa, evidentemente. Depois... Enfim, cada um de nós terá de pedir o que pretende.

Falava com tal simplicidade, tal convicção, que John Blayne se sentiu involuntariamente comovido e se lembrou, surpreso, de uma conversa que tivera com o idoso sacerdote que oficiara no funeral de sua mãe.

«Era uma boa mulher», dissera o velhote, naquela serena tarde de Outono, ao lado da campa recente, depois de todos, excepto ele e o sacerdote, partirem. «Mas o que mais me interessava nela era o seu espírito delicadamente perceptivo. Foi universal na vida e será eterna na morte.»

«Que quer dizer?», suplicara; desejando, naquele momento de luto recente, acreditar que sua mãe não estava para sempre fora do seu alcance. Viveriam ainda os mortos? Naquele instante, no silêncio do cemitério, quase acreditara.

O sacerdote hesitara e pelo seu rosto fino espalhara-se leve rubor.

«Só posso dizer que através da fé encontro possibilidades que, creio, os cientistas confirmará   o um dia. Em resumo, meu querido rapaz, tenho fé em que a morte respeite apenas ao corpo. Sua mãe prossegue o seu caminho, com a sua habitual alegria, mas, digamos, num comprimento de onda só dela, se me permite que alardeie conhecimentos científicos que na realidade não possuo ... »

John Blayne voltou-se para Sir Richard, que continuara a bebericar o seu vinho e a escutar a conversa com ar ausente.

- Sir Richard, acredita como sua esposa? - perguntou Sir Richard pousou o copo e tocou no bigode com o guardanapo.

- Enfim, viveram neste castelo vinte gerações de reis e duas rainhas, para não mencionar cinco séculos da minha própria família. Quem sou eu para dizer que minha esposa se engana? Ainda o ano passado encontrei um rubi no campo de ténis... Não fui eu que lá o pus, asseguro-lhe, e jamais o vira antes. Nunca procurámos nenhum tesouro.

-   Nem o pedimos - interveio Lady Mary.

- Nem o pedimos - concordou Sir Richard. - Mas fique alguns dias e tirará as suas próprias conclusões.

- Obrigado - agradeceu o americano.

Sentia-se subitamente confuso e, ao mesmo tempo, esforçava-se por fugir a uma vaga mas crescente inquietação. Desistira, havia muito, das suas secretas e meio envergonhadas tentativas de comunicação com a mãe e aceitara, por assim dizer, o facto da morte, talvez total. Ali, no castelo, a fronteira entre a vida e a morte não era tão nítida, mas estava decidido a não se deixar arrastar outra vez para o pântano.

- Ficarei - aceitou, brusco, - se me permitir que proceda a uma inspecção do castelo... Não acredito que encontrem o ’tesouro, pelo menos da maneira que o procuram, embora seja muito possível que, se desmancharmos o castelo pedra por pedra...

Lady Mary levantou-se bruscamente.

- Desculpem-me - disse, e abandonou a sala.

Os três homens ficaram um longo momento silenciosos. Por fim, incapaz de suportar mais tempo o silêncio, John Blayne interrompeu-o.

- Lady Mary é encantadora na sua simplicidade, Sir Richard, mas aquelas velhas fantasias...

Calou-se e Sir Richard não levantou a cabeça. Pegara de novo no copo e girava-o, devagar, entre os dedos, de olhar fixo na sua cor carregada, vermelho-sangue à luz das velas.

- Não acredita neles - murmurou por fim - E o senhor? - contrapôs o americano.

Sir Richard encolheu levemente os ombros e levantou a garrafa

- Um pouco mais de Porto?... Não?... Webster?

- Não, obrigado - agradeceu o advogado. - Se me dão licença, vou-me deitar. Tive um dia muito fatigante.

- Assim como todos nós - concordou John Blayne, com a sensação de o terem detido, como se lhe houvessem fechado, de súbito, uma porta na cara.

Levantaram-se e Sir Richard Puxou o cordão da campainha, para chamar Wells.

- Conduza os cavalheiros aos seus quartos - ordenou-lhe. - A mim não é preciso - afirmou Webster. - Conheço o caminho. Boas noites, Richard.

- Também me despeço, Sir Richard. Boas noites - disse John Blayne.

Não garantiria que Sir Richard o tivesse ouvido. Webster saíra e o velho castelão ficara de pé junto da lareira quase apagada, abstracto e de cabeça baixa.

- Por aqui, Mr. Blayne, por favor- convidou-o Wells. Obedeceu. Os corredores já não lhe eram absolutamente estranhos, sobretudo os que partiam do salão grande e da frente do castelo para a ala leste, mas mesmo assim tinha a impressão de que facilmente se perderia neles, sozinho.

O chão era de pedra cinzenta, sem carpetes, e as janelas, estreitas, estavam profumdamente embebidas na parede, que devia ter uns noventa centímetros de espessura. Estugou o passo, para alcançar o mordomo, e perguntou-lhe:

- Acredita naquelas histórias de fantasmas, Wells?

O velho não virou a cabeça nem afrouxou o passo. Respondeu apenas:

- Nunca ouço o que se diz à mesa, Sir.

– Nem mesmo quando se encontra na sala ?

-Nunca, Mr. Blayne.

-Há quanto tempo vive aqui ?

-Desde que nasci, Sir.

Parou junto de uma mesa de carvalho, ao fundo da escada, e acendeu uma. vela que ali se encontrava.

-Subimos dois lanços de escada para chegarmos ao quarto do duque, Sir.  

-A propósito, do Duque de quê ?

-Duque de Starborough, Sir. Foi o favorito de Ricardo II, creio. O seu quarto não é tão húmido como alguns dos andares de baixo, Sir, e espero que tenha apreciado a vista do rio eda aldeia, quando acordou de manhã.

- Apreciei, sem dúvida.

Subiram um curto lanço de gastos degraus de pedra e pararam defronte da porta familiar. Wells torceu o puxador de bronze e a porta gemeu, mas não se abriu. Um sopro de vento inesperado fez tremer a chama da vela.

-As janelas devem estar abertas - -observou John

-Não, Sir - declarou o mordomo.-Há sempre uma cor­rente de ar quando alguém vem a este quarto, à noite.

- Porquê?

- Ignoro, Sir. Foi sempre assim... Pronto, a vela apagou-se. Aguarde um momento, por favor, Sir. Trago sempre fósforos comigo.

John Blayne parou, às escuras, e ouviu o vento gemer, debaixo da porta, e o riscar de um fósforo. A vela acendeu-se novamente e à sua luz. Blayne viu Wells de costas para a porta, com o corpo a servir de escudo para que a chama não se apagasse outra vez.

-Faça favor de segurar a vela, Sir - pediu-lhe Wells, bai­xinho.-Entrarei de costas e depois terei de segurar a porta, para não nos bater na cara. Segure a vela perto de mim, Sir, e não faça barulho, por favor.

John Blayne aceitou a vela e riu, hesitante.

-E algum jogo, Wells?

Encontravam-se já dentro do quarto. A porta bateu e a vela apagou-se uma vez mais, como se dedos invisíveis tives­sem apertado o pavio. Na escuridão, ouviu o mordomo res­mungar:

- Oh, irritantes criaturas! Basta, deixemo-nos de tolices... Sir, dê-me a vela, por favor. Colocá-la-ei em cima da mesa.

Sentiu os dedos de Wells, frios e húmidos, tactearem-lhe as mãos e apressou-se a entregar-lhe a vela e a aguardar, imóvel. O ar estava sereno e o vento, fosse qual fosse a sua origem, cessara. Ouviu o mordomo riscar um fósforo e mais uma vez a luz brilhou.

- Pronto! - exclamou Wells, triunfante. - Agora não terá mais complicações, Sir. Eles sabem quando falo a sério!...

- Eles?

- Sim, Sir, eles. Não incomodarão um desconhecido. Só arreliam pessoas que conhecem... Talvez sejam as crianças, compreende? Antigamente morriam muitas crianças pequeni­nas... aqui no castelo também, segundo creio.

Crianças? De que estaria o velhote a falar?

- Se a vela o incomodar, tem o interruptor da luz eléc­trica junto da cama, Sir - informou, em tom cordial, en­quanto preparava o quarto. -já abri a cama, Sir, e pus uma garrafa de água quente, não vão os lençóis estar húmidos... Aqui chamamos-lhe um «Porco de pedra»... Conservar-se-á quente toda a noite. Não há casa de banho na ala leste, Sir, infelizmente, mas eu   trarei uma banheira portátil, de manhã, e uma lata de água quente, quando Kate trouxer o chá e as torradas... Boas noites, Sir.

Já à porta, parou e olhou para trás. Não soprava uma aragem, agora, e a vela ardia firmemente. A lâmpada velada, da mesa-de-cabeceira, também estava acesa.

- Espero que os sinos da capela não o acordem, Sir . Tocam muitas vezes às quatro da manhã...

- Os sinos da capela? Ah, sim ! Ela disse-me...a sua...

Calou-se, sem saber como   falar de Kate, mas o mordomo prosseguiu, em tom suave:

- O grande salão de baile, mesmo debaixo deste quarto, era a capela quando o castelo foi residência real. Algumas pessoas ainda ouvem os sinos ... Eu Ouço-os muitas vezes, assim , como Lady Mary.

Creio que Sir Richard também os ouve, mas nunca o diz. Mais uma vez, boas noites, Mr. Blayne.

A pesada porta fechou-se com uma espécie de gemido áspero, e reinou   o silêncio – o silêncio mais profundo de que Jonh Blayne tinha memória, um silêncio que sentia, pois podia imaginá-lo quase   sólido, à sua volta. Que dissera Lady Mary ? Era preciso sentir, afirmara, e depois concentrar-se na luz ao fim do túnel, na luzinha distante, concentrar-se e pedir o que desejasse ... Que tolice! Como se ele desejasse alguma coisa que não tiesse !! E, contudo.. E, contudo, começava a sentir que desejava muito uma coisa, uma coisa que o dinheiro não compraria.

Despiu-se e dirigiu-se para o lavatório antiquado. O enorme jarro de prata, que se encontrava dentro da grande bacia de porcelana, estava cheio de água quente. Encheu a bacia, torceu a esponja fumegante e lavou-se todo antes de vestir o pijama. Era uma daquelas coisas, pensou, meio divertido, que até os reis e as rainhas, tinham feito de vez em quando, para não falar nos duques...

- Nada mau, caro duque - disse, em voz alta, e sentiu-se de súbito tão bem disposto que começou a assobiar baixinho.

Apagou a vela, mas teve o cuidado de a colocar perto d acama, não fosse a electricidade faltar.

- For he’s a jolly good fellow... - cantarolou, enquanto subia para a enorme cama, debaixo do dossel de cetim escarlate.

De súbito, lembrou-se de que deixara os fósforos em cima da mesa. Era melhor tê-los à mão, no caso de...

- No caso de apareceres, meu velho duque - murmurou, despreocupado e recomeçares com os teus truques.

De novo na cama, instalou-se cómodamente no colchão macio e nas enormes almofadas cheias de penas. Um ténue cheiro a bolor recordou-lhe um odor cediço, que notara em qualquer lado... Aspirou, tentando lembrar-se. Ah, sim, Camboja, e as ruínas de Angkor ! A cama de hotel em que lá dormira tinha aquele mesmo cheiro a tempo e a decadência. E ele imaginara essas ruínas assombradas, também, por algo que, não sendo embora tão absurdo como fantasmas, era, contudo, igualmente vago, como uma presença acumulada através de séculos de condensada vida humana. Não seria possível, inevitável, até, que a matéria do corpo humano, a massa,deixasse atrás de si uma energia transmigradora?

Enquanto assim divagava, experimentou uma percepção desconfortável, uma pressão quase física que o gelou, e, quase num ímpeto de pânico, riu alto, de si mesmo, e afastou semelhantes ideias. O melhor seria pensar em qualquer coisa agradável, no fim daquele curioso segundo dia! Tantas coisas lhe tinham acontecido em tão poucas horas! Qual fora a visão mais agradável que se lhe deparara? De súbito, viu Kate a sorrir-lhe na escuridão, um rosto bonito, terno e puro, de olhos azuis cheios de franqueza e calor. Um talismã - disse para consigo, - um amuleto contra reis e rainhas mortos e duques caprichosos.

E adormeceu embalado por este reconfortante pensamento.

 

LADY MARY estremeceu, na sua larga cama de dossel. Abriu os olhos e ficou imóvel, na escuridão. Acordara-a qualquer coisa, um ruído ou talvez uma voz.

Tê-la-ia Richard chamado? Sentou-se, bocejou delicadamente com a mão à frente da boca e acendeu o candeeiro da mesa-de-cabeceira. Os cortinados brancos, da janela, oscilavam suavemente e a atmosfera estava húmida. A esperada chuva chegara e agora devia estar a levantar-se nevoeiro, sobre o rio. Empurrou os cobertores para trás e tacteou com os pés no chão, à procura dos silenciosos de cetim. Tinha de ir ver imediatamente se Richard precisava de alguma coisa. Enfiou o negligée branco e acendeu a vela, pois no corredor entre o seu quarto e o do marido não havia luz. As portas abriram-se facilmente e Lady Mary entrou no quarto de Sir Richard, ,aproximou-se da cama e olhou o marido, tapando com a mão a chama bruxuleante da vela, para que.a.luz não lhe batesse na cara e o acordasse.

- Richard chamou baixinho.

Não respondeu. Dormia e respirava profunda e serenamente. Não fora ele, portanto, que chamara. Quem a teria acordado, então? Saiu do aposento em bicos de pés, regressou ao seu quarto e fechou a porta. Devia deitar-se de novo? Hesitou a tremer, devido ao ar húmido. Depois, como acontecia sempre que se sentia indecisa, concentrou-se, de olhos fechados, até ver, ao fundo do comprido túnel, a luzinha que lhe. aconselharia o que devia fazer...

A sensação familiar de bem-estar, de alívio, aqueceu-lhe o corpo. Não, não voltaria para a cama. Vestiria qualquer coisa quente - o roupão de flanela - e depois? Talvez andasse apenas a sentir tudo, a sentir que era o momento exacto, à espera,   talvez, do que eles lhe dissessem? Podia não ouvir voz nenhuma, mas às vezes guiava-se por sensações, como se mãos invisíveis, mais leves do que a névoa, lhe tocassem nas faces, nas mãos e nos ombros e a guiassem para qualquer lado. Sim, agora sentia--as, conduzindo-a pelo corredor ao salão grande. Abandonou-se até se encontrar sob o lustre e sentir que a detinham.

« Espera », sentiu que lhe ordenavam. «Espera até ouvires uma voz, a voz do rei João» - se é que era a dele, pobre rei que morrera uma noite no castelo, depois de comer demasiados pêssegos maduros e de beber cidra fresca. Fora sempre um dos seus favoritos, apesar de tudo. Uma vez encontrara uma descrição dele, num velho livro da biblioteca:

«Alto e formoso de corpo, de ardentes olhos azuis e belos cabelos ruivos; voraz, sempre esfomeado, jovem que- amara tarde e não tinha vergonha de beber todo o dia e toda a noite ... »

A descrição recordara-lhe Richard, quando se tinham apaixonado - «jovem que amara tarde», tão tarde que perguntara muitas vezes a si mesma se não houvera outra mulher antes dela. Não ousara interrogá-lo a esse respeito e, durante algum tempo, roera-a um ciúme inconfessado por ele nada lhe dizer acerca de um amor mais antigo.

Olhou, esperançada, para o lustre e viu os cristais estremecerem e brilharem suavemente à luz da vela, como um rosto de mil olhos.

- Muito bem - murmurou baixinho, - se chegou o momento, diga qualquer coisa... Por favor, rei João, diga-me onde está o tesouro.

Olhou para cima, com a cabeça toda inclinada para trás e os compridos cabelos prateados caídos ao longo das costas, e escutou, de rosto atento.

- Ou o que é? - murmurou, para a luz.

Kate dormia, também, mas com um sono leve. Deixara uma vela acesa no toucador, uma pequena vela dentro de um recipiente fundo, para não correr o risco de incêndio. Acendia-a todas as noites, para estar prevenida no caso de Lady Mary a chamar de noite. Dormia serenamente, com os cabelos negros soltos na almofada, um braço nu dobrado sobre a .cabeça e a outra mão aberta, de palma para cima, no seio. Era bela, a dormir,   .   embora ninguém ali estivesse para o verificar. Sorria, talvez a sonhar com recentes aventuras - os nenúfares do lago e o sol; a luz da lareira no salão grande e o vulto alto de John à janela...

.Uma. porta estalou e Kate abriu imediatamente os olhos. Acordava ao mínimo ruído, consciente, mesmo a dormir, da existência dos dois seres por quem se sentia responsável, por tanto   lhes querer.

- Diga? - murmurou.

Ninguém lhe respondeu. Apoiou-se num cotovelo e viu uma silhueta escura, uma sombra na porta. Conteve a respiração e levou a mão à boca, para abafar algum som que involuntariamente lhe chegasse aos lábios. Lady Mary entrou no quarto.

- Sou eu, Kate. A minha vela apagou-se e esqueci-me de meter a caixa dos fósforos na algibeira.

Aproximou-se da cama e fitou os olhos muito abertos de Kate.

- Que tens, filha? Também viste alguma coisa? - Não, minha senhora. Mas... mas não a esperava... - Eu também não esperava estar aqui - confessou Lady

Mary -, mas chamaram-me. Levantei-me e aguardei instruções e agora compreendo perfeitamente que chegou o momento de agirmos.

Kate, de olhos fitos na castelã, sentiu um medo súbito. Mas de quê? Não, com certeza, daquela criaturinha terna e idosa, que conhecia melhor do que o seu próprio ser impulsivo... Mas Lady Mary parecia, naquele momento, tão transparente, tão frágil, tão sobrenatural, que...

- Ouviu uma voz, minha senhora?

- Não sei - respondeu-lhe a castelã. - Creio que ouvi alguém, mas não tenho a certeza de ter ouvido, de facto, alguma coisa... ou alguém. Houve como que um contacto, uma comunicação, se compreendes o que quero dizer...

- Não compreendo bem... - confessou Kate, surpreendida.

- Não posso ficar aqui a explicar-te, Kate - retorquiu Lady Mary, com certa impaciéncia. - O que interessa é que os sinto, que sei que andam por aqui. Levanta-te depressa, Kate; eles podem aborrecer-se, se querem dizer-nos qualquer coisa e não nos encontram à espera. Desaparecerão, amuados... Bem sabes que não lhes é fácil alcançar-nos... Creio que tentam com tanto afã como nós...

Kate enfiou o roupão cor-de-rosa, puxou para trás os cabelos despenteados e fez os possíveis para não estremecer. Lady Mary parecia-lhe estranha... Tinha um ar resoluto, grave, mas distante, sobretudo nos olhos...

- Não seria melhor levarmos alguém connosco, minha senhora? - perguntou. - Vou chamar o meu avô, sim?

-   De maneira nenhuma! - proibiu-a a castelã. - Ele é demasiado velho e nós não sabemos aonde nos conduzirão... Talvez às masmorras. Podia escorregar nas pedras húmidas e, depois, teríamos de o transportar...

- Não deseja que chame Sir Richard? Ou Mr. Webster ou... ou o americano?...

- Descrentes - volveu-lhe Lady Mary. - Serviriam apenas para emitir impulsos negativos e ficaríamos impedidas de estabelecer contacto. Não, Kate; iremos apenas as duas... Mas despacha-te, sê boa rapariga. Traz a vela e os teus fósforos...

Não tinha outro remédio senão obedecer... Enfiou os silenciosos de pele branca e seguiu Lady Mary através do corredor do salão grande, até às adegas. Lady Mary parou, então, e abriu um velho armário alto, de madeira, dentro do qual se, encontravam penduradas centenas de chaves. Escolheu uma, enorme, de bronze, cheia de verdete, e abriu uma porta estreita, que dava para um corredor sinuoso.

- Minha senhora, tem a certeza de que não se constipará? - perguntou-lhe Kate, ansiosamente, quebrando o silêncio, em que a seguira. - Há tanto tempo que ninguém aqui vem!

O próprio ar parece morto.

- A morte é coisa que não existe - afirmou Lady Mary. Trata-se apenas de uma mudança para qualquer coisa... para outro estádio daquilo a que chamamos vida. É apenas uma transferência de energia, compreendes? Tenta, Kate, por favor! Significaria tanto para mim se alguém compreendesse!

A idosa senhora parou no corredor mergulhado em penumbra. Tinha o rosto maravilhosamente animado, agora, os olhos ternos, a voz quente e meiga. Kate sentiu um desejo profundo de acreditar no que lhe dizia e, ao mesmo tempo, um impulso que a convidava a retroceder, a fugir para o salão grande e a procurar alguém jovem e virgem daquelas ideias estranhas, alguém como ela... Mas quem havia no castelo que fosse jovem, além de John Blayne? E John Blayne era um estrangeiro, pertencia a um mundo novo.

- É como a radiotelegrafia - afirmava Lady Mary. Existe em nós um instrumento de transmissão, mas nem todos sabem utilizá-lo. Um dia aprenderemos e, então, ninguém achará estranho falar de fantasmas. É só por ainda não sabermos bem... ou sermos tão poucos os que sabemos...

De súbito, atravessou o espírito de Kate o receio terrível de que Lady Mary estivesse a enlouquecer. Levantou involuntariamente a vela, para que a luz lhe iluminasse por completo o rosto, e a castelã recuou e gritou:

- Não faças isso! Magoa-me!

«Enlouquece!», pensou Kate, desesperada, com os olhos cheios de lágrimas, e, através do véu de pranto, viu - ou julgou ver - uma espécie de auréola em redor da cabeça de Lady Mary, como a das madonas dos quadros antigos.

Pousou a vela no parapeito de uma janela e abraçou a velha senhora .

- Não está bem, minha querida - murmurou. - Acho-a tão estranha! Talvez seja fadiga, de toda esta ansiedade... Seria natural...

Lady Mary soltou-se, suave, mas firmemente.

- Deixa de tremer, minha filha. Não estou louca e sinto perfeitamente o que pensas. Não há nada de estranho, trata-se apenas de bom-senso... Mas não falarei disso agora. Lembra-te, apenas, do que nos trouxe aqui: vimos pedir-lhes que nos mostrem o tesouro, se algum tesouro existe.

Virou as costas a Kate e caminhou à sua frente por um corredor comprido e sinuoso, que descia quase imperceptivelmente. Andava como se dormisse, resoluta, desembaraçada, com passo firme e porte confiante. Falava, não consigo mesma, pensou Kate, e com certeza não com ela, mas como se se dirigisse a alguém que caminhava adiante   de si.

- Precisamos de um milhão de dólares. É o que o americano nos oferece. A quanto equivale, em libras? Sim, são muitas, muitas libras, mais do que conseguiríamos reunir... e o Governo não fará nada... Só rubis no campo de ténis, não... Por favor, isto é sério! Agora trata-se do castelo, do castelo todo, e para onde iremos nós, se no-lo tirarem? E vocês? Kate sentia-se desfalecer de compaixão e de medo.

- Por favor, querida Lady Mary, voltemos para trás e chamemos alguém!

- Tolice! - atalhou a castelã, em tom firme. - Continuaremos em frente. Eles falarão quando puderem.

E começou a descer, adiante da jovem, para as masmorras.

Sir Richard abriu as pálpebras, e olhou em redor do quarto. Ainda estava escuro, ainda reinava a escuridão intensa que antecede a alvorada. Aos seus ouvidos ecoou uma voz de mulher.

- Quem está aí?! - gritou.

Ninguém respondeu, mas Sir Richard julgou   ouvir respirar, uma respiração trémula, uma espécie de adejar algures, perto da janela do lado norte. Tacteou na mesa, à procura dos fósforos, e atirou com a caixa ao chão.

- Diabo! - praguejou, em voz alta.

Acendeu o candeeiro eléctrico, dizendo para consigo que tinha de encontrar os fósforos, pois podia precisar da vela. Saltou da cama e, de camisa de dormir antiquada, com os joelhos gelados, ajoelhou no chão de pedra e tacteou o mais que pôde. Da caixa de fósforos nem sombra!

- Diabo! Diabo! - resmungou, entre os dentes cerrados. Levantou-se, hirto, procurou com o pé, até encontrar os chinelos, dirigiu-se para a janela e bateu com a perna na esquina da secretária. A janela estava aberta e o luar brilhava palidamente nos teixos e na relva. Os elefantes erguiam-se, monstruosos e altos, e reflectiam sombras negras. Não distinguiu mais nada, mas debruçou-se da janela e chamou:

- Eh, ai, falem!

Ninguém falou, mas um bando de pássaros que dormiam na hera levantou voo, assustado. Sir Richard soltou uma gargalhada.

- Eram então vocês, seus patifes!

Ficou um momento à janela, a respirar o ar puro, recentemente lavado pela chuva, e depois bocejou e regressou à cama. No caminho, tropeçou na caixa de fósforos.

Meteu-se na cama, puxou os cobertores e tentou readormecer. Impossível. Os acontecimentos dos últimos dois dias acudiram-lhe ao espírito e viveu-os em todos os pormenores. Aquele americano! Invejava a juventude, a alegria, o poder confiante do homem. Invadiu-o um pressentimento. Tantas vezes a Inglaterra fora revivificada pela mocidade de outras terras! Ali, no seu próprio castelo construído sobre alicerces romanos, jovens dinamarqueses, vindos de França como conquistadores, tinham criado uma vida nova e forte. Acendeu a luz da mesa-de-cabeceira e estendeu o braço para o livro que andava a ler.

«”França», dizia o antigo cronista, «tu jazias ferida e fraca no chão... Mas olhai, da Dinamarca surgiu uma nova raça... Fez-se um pacto entre ti e ela   ...   e essa raça erguerá o teu nome e o teu poderio até aos céus   ...   »

«E como foi grande a fusão», dizia o livro, «da velha ordem românica com a juvenil energia humana!»

Sir Richard suspirou e compreendeu que não conseguiria adormecer. Não era ele, agora, a velha ordem? E não trazia John Blayne a nova? Arrumou o livro e apagou a luz. A tremer de frio, puxou os cobertores mais para cima e mergulhou num sono inquieto, povoado de sonhos nebulosos.

Horas depois - ou talvez minutos apenas - acordou, ou supôs que assim sucedeu, a profunda e vaga melancolia que já conhecia tão bem e que precedia sempre a dor latejante e implacável que lhe torturava o cérebro. Lá estava ela outra vez... Como escapar-lhe? Temia as trevas que se abatiam sobre o seu espírito... Luz! Precisava de encontrar luz! Onde estava a luz? Não podia respirar, lutou para abrir os olhos e, por fim, como se o prendessem pesadas correntes, levantou-se devagar da cama, tacteou à procura do candeeiro, que não encontrou, e, depois, procurou também os fósforos, mas igualmente em vão.

Lembrou-se de que tinha fósforos e uma vela atrás do painel móvel e dirigiu-se, às apalpadelas, para a parede. Tacteou à   procura do local exacto - o centro de uma estrela nos entalhes do painel, premiu-o e a parede, que só ele e Wells sabiam ser uma porta, deslizou, com um estalido. Entrou pela abertura, fechou novamente o painel, com cuidado, e tacteou ao longo da parede, até encontrar o recesso e a caixa de fósforos. Os três primeiros fósforos não acenderam por estarem húmidos, mas Sir Richard tirou um do fundo da caixa e conseguiu finalmente acender a vela. Cego de dor, desceu o corredor que levava à escada de caracol, ao fundo, e, com uma dura e estranha resolução, como um sonâmbulo, subiu os dois lanços que levavam à torre leste. Aí o corredor estreitava tanto que mal tinha espaço para o seu corpo magro. Ao fundo via-se uma porta a toda a largura, arqueada e muito baixa. Abriu-a e penetrou numa sala octogonal.

A luz da vela iluminou o vulto esguio de Wells, de cabelos despenteados e todo sujo de teias de aranha.

O mordomo pousou um joelho em terra e saudou-o: - Boas noites, majestade. Quase desesperava que viesse. Sir Richard estendeu a mão e Wells beijou-lha. - Levante-se, Lorde Dunsten - ordenou o’ castelão. Wells levantou-se, fez uma vénia profunda e, como se se tratasse de um ritual havia muito estabelecido, tirou a vela da mão do amo e colocou-a em cima da mesa.

- Queira sentar-se, majestade.

Ao mesmo tempo, afastou da mesa uma pesada cadeira de carvalho, sobre a qual se encontrava um esfarrapado manto de veludo cor de púrpura, em que envolveu Sir Richard. Este sentou-se e aguardou, num silêncio solene, enquanto Wells; se dirigia a uma arca alta e estreita, também de carvalho, que estava encostada à parede. Abriu-a, levantando a pesada tampa com esforço, e tirou um grande livro forrado de couro, com fechos de prata. Transportou o volume para a mesa, com ambas as mãos, e colocou-o diante de Sir Richard, que estava imóvel e de olhos baixos. Depois regressou à arca e retirou um ceptro grande, de ouro maciço, incrustado de pedras preciosas, que levou também, com as duas mãos, a Sir Richard, que o aceitou com a mão direita. Mais uma vez Wells; voltou à arca, agora para tirar uma coroa de ouropel, de cinco pontas altas, cada uma das quais com uma estrela de prata. Colocou a coroa na cabeça de Sir Richard, curvou-se em nova vénia profunda e perguntou:

- Vossa majestade deseja mais alguma coisa?

- Mais nada, Lorde Dunsten; podeis retirar-vos.

- Obrigado, majestade - agradeceu Wells.

Mal recuara, porém, alguns passos, a caminho da porta, Sir Richard deteve-o, levantando a mão esquerda.

- Uma pergunta, Lorde Dunsten.

- Diga, majestade.

- Como meu fiel primeiro-ministro, vencestes a conjura com que pretendiam roubar-me a coroa?

- Nada tem a temer, majestade - respondeu-lhe Wells.

O mordomo esperou que Sir Richard dissesse mais alguma coisa, com ar de ansiosa preocupação no rosto magro e comprido e sombras escuras nas faces cavadas.

Sir Richard soltou um suspiro profundo e sentido.

- Ah, os meus inimigos desejam o meu fim! Acabarão com todos os monarcas... vereis... vereis... Matarão Ricardo IV como mataram outros reis.

- Ninguém sabe que vossa majestade está aqui. - Só vós, Lorde Dunsten.

Wells dobrou-se em nova cortesia e afirmou:

- Estamos bem escondidos e jamais vos trairei, sir. Sir Richard. voltou a nobre cabeça, envolveu Wells num olhar majestoso e estendeu-lhe a mão direita. Wells; aproximou-se, curvou-se e beijou o anel de ouro, com o grande rubi, que Sir Richard usava no indicador.

- Mereceis ser Lorde Protector - declarou Sir Richard, com comovente dignidade. - Sê-lo-eis um dia, prometo-vos. Saberei recompensar a vossa lealdade... o que fizeste por mim há muito tempo...

- Por favor, majestade! - suplicou Wells, torcendo as mãos compridas e magras. - Combinámos que nunca tocaríamos nesse assunto. O rapaz morreu.

Sir Richard emendou-o:

- O príncipe morreu... e eu nunca... nunca... o esquecerei.   - O queixo pendeu-lhe para o peito, por instantes, e cerrou os olhos. A dor, a dor! Debateu-se, para não perder a consciência. Mergulhava nas trevas, na morte, vivo apenas na dor que sentia. Após um esforço tremendo, sentiu-se emergir, de novo. De súbito, com um estremecimento, levantou a cabeça, puxou a vela mais para perto, abriu o livro e começou a ler. Wells observou-o um instante e depois recuou silenciosamente até à porta, onde se deteve mais um momento ainda. A luz da vela incidia no vulto de manto de púrpura, no belo perfil que envelhecia, na coroa, no ceptro e no espaldar alto da cadeira.

Era um trono...

Nas profundezas das masmorras, debaixo do castelo, um som ecoou, com estrondo. Kate levantou a cabeça, assustada, e protegeu a chama da vela com a mão.

- Que foi isto, minha senhora?

Lady Mary continuava a examinar cuidadosamente a parede gretada e respondeu, distraída:

- Foi uma porta que bateu.

- Parecia a tampa de um caixão- murmurou Kate. - Que tolice!

Lady Mary encontrou uma pedra solta, uma pequena pedra numa fenda entre dois grandes blocos, tirou-a e espreitou pela abertura.

- Está aqui qualquer coisa! - exclamou.

Meteu a mão no buraco e retirou uma torcida colher de

prata, que o tempo cobrira de verdete.

- Mais nada... - murmurou. - Algum   desgraçado prisioneiro que escondeu a colher, para não ser   obrigado a comer com as mãos...

Muito acima das suas cabeças soou, naquele momento, um súbito tilintar de metal.

- Minha senhora, não me diga também que aquilo não foi nada!- gritou Kate.

Lady Mary escutou, atenta.

- Parecem moedas de ouro a chocalhar! - exclamou, com o rosto iluminado de entusiasmo; e, levantando a cabeça, perguntou: - Quem quer que sejais, onde quer que estejais, aonde devo ir?

Aguardaram, à escuta, imóveis e mudas, e Kate quase acreditou que Lady Mary obteria resposta. Mas em vão esperaram.

O silêncio tornou-se mais pesado e, de súbito, o ar denso de poeira e humidade tornou-se irrespirável. Kate, até aí animada pelo nervosismo e pela expectativa, sentiu-se assustada e deprimida. Olhou para Lady Mary e viu-lhe o rosto cor de cinza e os olhos azuis baços, de um cinzento-pálido.

-   Temos de retroceder, minha senhora! - gritou. - Este ar é mortífero, venenoso! Sufocaremos... Ah, não, não desmaie agora! Que lhe disse eu?

Lady Mary, que parecia, de facto, prestes a desmaiar, apoiou-se no ombro de Kate, a arquejar.

- Deixe-me ir abrir aquela porta!

Amparando Lady Mary com uma das mãos e segurando a vela com a outra, dirigiu-se a uma porta que ficava do lado oposto à escada. Pousou a vela numa pedra saliente e tentou abrir a porta, mas por mais que empurrasse, não o conseguiu.

O fecho estava velho e ferrugento e não se movia nem um milímetro.

-   É inútil - declarou, sem perder mais tempo. - Temos de ir outra vez pela escada. Agarre-se a mim, minha senhora; havemos de a subir, dê lá por onde der! Por aqui, querida... As pedras são mais lisas neste ponto, onde algum pobre prisioneiro andou de um lado para o outro, talvez até morrer... Nunca me perdoarei tê-la deixado vir aqui! Que insensatez!

Penosamente, subiram os degraus de pedra até ao patamar. Debaixo de uma janela, tão alta e estreita que não parecia mais que uma fenda aberta na parede, havia uma saliência de pedra

-   Sente-se um bocadinho, minha   senhora - recomendou Kate. - Vou a correr chamar o meu avô para nos ajudar. posso deixá-la?

- Estou bem - afirmou Lady Mary, em voz fraca, mas resoluta.

- Não me demorarei - prometeu-lhe a rapariga. - Depois deve meter-se outra vez na cama e beber uma boa chávena de chá quente.

Beijou-a, num impulso irreprimível, e correu pelos corredores fora, direita ao quarto do avó.

Ao ficar só, Lady Mary continuou sentada na saliência de pedra e uniu as mãos no regaço, com as palmas voltadas para cima, como se esperasse receber alguma coisa. Chamou a si as últimas forças, fechou os olhos e concentrou a atenção no familiar túnel comprido e na luzinha que brilhava ao fundo.

-   Desisto - murmurou, em voz baixa, mas nítida. Estou vazia... e à espera... à espera...

Levantou a cabeça, para escutar, e abriu os olhos. Ouvia uma voz... sim, não havia dúvida... Não, eram duas vozes, algures por cima de si. À esquerda? Não, à direita... Era difícil distinguir! Ecoavam estranhamente, ao longe, por cima   ... por toda a parte. Não ouvia as palavras... eram confusas   ... De súbito, distinguiu, quase com nitidez: «Vossa majestade   ...   » e sentiu-se desfalecer. Sempre era verdade, então! Não se tratava apenas de imaginação, sua, era mais do que o vento na hera que subia pelas paredes... Outros seres viviam ali, no castelo!

A cabeça pendeu-lhe para o peito, as suas mãos tornaram-se frouxas e fechou os olhos.

- Avô! - chamou Kate. Ninguém lhe respondeu. Escancarou a porta e encontrou o quarto mergulhado na penumbra da hora anterior ao amanhecer. Espreitou pelas cortinas da cama antiga onde Wells dormia e não o viu.

- Que lhe terá acontecido? - murmurou. - Não foi, com certeza, para a cozinha, tão cedo!

Saiu do quarto a correr e, mal   percorrera seis metros, ouviu um grito vindo dos lados do quarto do duque. A campainha tocou, violentamente, e a porta escancarou-se.

- Que diabo!... - praguejou John Blayne. - Espere - gritou-lhe Kate, - vou já para aí!

Estugou o passo e encontrou John à porta do quarto do duque. Kate puxou o cabelo para trás e apertou melhor o cinto do roupão.

- Que foi? - perguntou ao americano, sem deixar de reparar como o roupão de cetim vermelho lhe ficava bem e como parecia jovem, com os cabelos despenteados e o rosto ensonado.

- É idiotice, mas vi uma espécie de cabeça flutuante passar pela minha janela! - respondeu, esforçando-se por rir. Alguém se lembrou de me pregar uma partida.

- Sonhou, com certeza.

John Blayne passou as mãos pelos cabelos e ergueu as sobrancelhas.

- Sonhei? Talvez... De onde veio você, por exemplo? - Procuro o meu avô. Viu-o?

- A esta hora? Não... Aconteceu alguma coisa?

- Não sei. - Não sabe? Que quer dizer?   Está alguém doente?

- Não creio, mas...

- Você está doente!

Avançou um passo e pousou-lhe as mãos nos ombros. - Está a tremer toda! Não me desminta! Porque anda a vaguear pelo castelo, a esta hora da noite, se não está doente? Ou assustada? - perguntou, agarrando-lhe nas mãos e aquecendo-lhas.

- Talvez esteja um bocadinho... assustada - confessou.

- Absolutamente compreensível, pois confesso-lhe que, a esta hora da noite, o seu castelo   me causa calafrios! Não acredito, sequer, que visse passar pela minha, janela uma cabeça sem corpo, mas vi. Como demónio conseguiu viver aqui toda a sua vida e ser o que é ?

Kate sorria-lhe, bebia todas as suas palavras. - Como sabe o que sou? Só ontem me conheceu. - Conheço uma rosa, mal vejo alguma! - replicou-lhe, meio a brincar. - E uma rosa que tenha outro nome, além do seu, não é tão doce. Shakespeare...

Kate tremia, mas já não de frio. Tinha de acabar imediatamente com aquela estúpida conversa... O que sentia era absurdo, como se se dissolvesse por dentro...

- Oh! - exclamou, de súbito, - Esqueci-me de Lady Mary! Soltou as mãos das dele e desatou a correr.

Desapareceu tão depressa que quase acreditaria que se sumira pelo chão abaixo, se este não fosse de pedra, ou se esgueirara por uma porta invisível, se a houvesse. Os corredores sinuosos ocultaram-na instantâneamente, mas, mesmo assim, correu atrás dela e encontrou-se num labirinto de galerias. Era inútil procurá-la; não a encontraria e ainda acabaria por se perder, se continuasse a vaguear indefinidamente, com tão pouca luz. Na realidade, já se perdera, até. Qual era a sua porta   ? Deixara-a entreaberta, mas nos corredores soprava um estranho vento frio e nenhuma porta estava aberta.

- Que diabo se passará? - resmungou, entre dentes, enquanto procurava de um lado e de outro.

«Por falar em diabo», pensou, «onde estará Wells?» Lembrou-se do mordomo ao ver, pendente da parede, um comprido e gasto cordão de campainha. Puxou-o e ouviu um chocalhar distante, mas ninguém apareceu. Puxou novamente, desta vez com ’mais força, e o cordão de veludo soltou-se do tecto em ogiva e enrolou-se-lhe nos ombros, como uma cobra. Atirou-o ao chão, enojado, e disse para consigo que não tinha outro remédio senão continuar às voltas, até encontrar o caminho. Aquele corredor devia ter um fim!

Andou durante vários minutos, até que o corredor virou em ângulo recto. Parou e olhou a direito, em frente, numa extensão de quinze metros ou mais. O corredor não tinha janelas, mas, ao fundo, Blayne distinguiu um vulto imóvel e indefinido, na escuridão.

-.Wells! Não obteve resposta. O homem continuou imóvel. Avançou, hesitante, até o vulto se encontrar ao alcance da sua mão. Estendeu-a e sentiu o contacto frio do aço. O «homem» era, nem mais nem menos, uma armadura! Desatou a rir de si mesmo.

-Estou a ficar tão doido como tu, meu velho!-murmurou, e a sua voz ecoou de maneira estranha entre as paredes de pedra.

Tentou rir-se outra vez, mas não conseguiu.

- Um invólucro vazio de homem, eis o que tu és - afirmou, em voz alta. - E o que todos nós seremos, se continuarmos aqui muito mais tempo.

Voltou-se e retrocedeu na direcção em que viera.

Não dera muitos passos, contudo, quando ouviu uma espécie de gemido profundo e contido, que terminava num arquejo estrangulado. Parou. O ruído provinha de trás de uma porta, cerca de seis metros à sua frente. Aproximou-se e bateu. Ninguém lhe respondeu. Experimentou o fecho, com cuidado, e a porta abriu-se. Numa mesa, ao lado de uma cama envolta em pesadas cortinas, ardia uma vela. De súbito, o gemido ergueu-se, do interior das cortinas, e terminou no mesmo arquejo estrangulado e gorgolejante. Atravessou o quarto pé ante pé e afastou as puídas cortinas de cetim vermelho. Sob uma esfarrapada coberta de seda, Webster dormia, de costas, com a barba crespa esticada para cima. O gemido e   o arquejo formaram-se-lhe outra vez na garganta, prestes a explodir...

Blayne apressou-se a cerrar   as cortinas, a ocultar o desagradável espectáculo. Webster que dormisse, se podia, se alguém podia naquele antro de fantasmas! Havia de encontrar o seu quarto fosse como fosse, embora pudesse estar ainda mais perdido do que imaginava naquele quebra-cabeças a Júlio Verne, naquele recuar de tempo, naquela confusão de séculos! Mas porquê Júlio Verne, se o próprio Einstein afirmara, na era moderna, a eternidade do tempo? O facto de a história se repetir fora uma verdade banal, simples, até Einstein fazer as suas portentosas descobertas. E se o tempo fosse, deveras, um circulo, um carrocel infinito, repetindo-se sempre e sempre idêntico? E se tudo aquilo fosse apenas um resíduo do tempo, uma espécie de neurónio, uma cinza do que acontecera havia muito?

«Acaba com isso!», ordenou a si mesmo. «Domina-te e põe cobro às excentricidades do teu cérebro! Esses pensamentos são próprios de cérebros cuja vontade consciente adormeceu. Pesadelos!»

De súbito, perdeu o fio aos pensamentos, ao ver, debaixo dos pés, uma linha branca, larga, que cercava a cama de Webster. Pegou na vela e observou-a melhor. Era um risco de giz, traçado no velho chão de pedra com mão pouco firme e assinalado aqui e ali por toscas cruzes. Percorreu-o em toda a extensão e depois retrocedeu e repôs a vela em cima da mesa. Um risco de giz... e cruzes! Onde ouvira falar daquela antiga superstição? Na Irlanda,. evidentemente, no último Verão da vida de sua mãe! Ela quisera rever a ilha verde e ele levara-a a County Wicklow, onde tinham passado uma quinzena a passear pelos montes escuros e a fazer piqueniques nas margens de um lago profundo, num vale encantador. A mulher de um aldeão dissera-lhe, certa noite, numa casa de campo com telhado de colmo, onde se haviam recolhido ao serem surpreendidos por uma trovoada inesperada, que, embora andassem espíritos pela encosta e entrassem, até, ali em casa, «não lhe tocarão se o senhor desenhar um risco de giz branco em redor da cama onde dormir e traçar nele muitas cruzes».

Portanto, Webster era irlandês! Isso explicava tudo! E que seria aquilo, ali em cima da mesa?... Uma garrafa, de água, benzida sem dúvida por algum padre e, dessa maneira, santa.

Sim, o chão estava manchado de água... Lá estava também uma bíblia, sobre a qual Webster colocara - homem cauteloso! - uma pistolazinha de coronha de madrepérola, de modelo antigo, certamente uma relíquia que encontrara algures no castelo e de que se apropriara por aquela noite...

Sorriu melancolicamente. Valente Webster, que fingia grande coragem quando estava com os outros, grande cepticísmo, mas que, ao apanhar-se sozinho, recorria aos meios mais antigos de protecção!

Levantou o apagador de prata, apagou com ele a vela e dirigiu-se em seguida para a porta. Ao tentar fechá-la com cuidado, porém, uma das inesperadas e inexplicáveis correntes de ar arrancou-lha da mão e bateu-a com violência, ruidosa-

mente. Ouviu um grito, dentro do quarto, e compreendeu que Webster acordara. Abriu outra vez a porta, a fim de lhe explicar o que se passara e foi acolhido por um esguicho de água fria na cara. Sufocou e recuou um passo.

- Webster! - gritou. - Que está a fazer? Sou eu, John Blayne!

- Valha-nos Deus! - ouviu Webster murmurar, ao mesmo tempo que riscava um fósforo e, pouco depois, acendia a vela   - Que faz aqui, homem, a esta hora da noite? - perguntou, fitando-o, de pé ao lado da cama.

- já não é noite - replicou-lhe o americano. - Está quase a nascer o dia, como você mesmo veria se não se tivesse encafuado com riscos de giz, bíblias, pistolas e sei lá que mais... Para não falar no banho de água fria que me atirou à cara!

- A água benta nunca fez mal a ninguém - afirmou o advogado - Se puder deixar de rir, agradecia-lhe que me dis-sesse porque anda a vaguear pelo castelo. Tenho a certeza de que se levanta tanto de madrugada como eu.

- Tive um pesadelo, já que deseja saber - confessou Blayne, enquanto limpava, com o lenço, a água da cara e do pescoço.

- Um pesadelo? - repetiu Webster.

- Nada mais que um pesadelo. Uma cabeça, para ser preciso, flutuou . junto da minha janela, sem* nenhum corpo pegado. Agora não se ponha com fantasias! Existe um terraço, do lado de fora da minha janela, e alguém - Wells, sem dúvida, que é   suficientemente escanzelado para parecer um fantasma seja onde for, mesmo sem o ambiente deste castelo,.. - se lembrou de dar um passeio à meia-noite.

- Volto para a cama - decidiu Webster.- Na minha idade, não há nada mais fácil do que apanhar uma constipação.

- Sim? - observou John Blayne, divertido.- E eu que pensava pedir-lhe que me acompanhasse ao meu quarto, a fim de investigarmos a história da cabeça, só para estabelecermos os factos e não restarem dúvidas! Tenho uma grande fé nos factos, sabe? Se tiver medo, agora que gastou toda a agua benta no banho que me deu, pode levar a bíblia numa das mãos e a pistola na outra...

- Não tenho medo de ninguém! - berrou Webster.- E se estou a bater os dentes a culpa é do frio e de mais nada! - Venha, então. Mas é longe, desde já o aviso. Há horas que ando perdido.

- Não diga asneiras, homem - resmungou Webster, irritado. - O seu quarto fica a pouca distância do meu, do lado de baixo do corredor.  

Blayne deu o braço ao advogado e arrastou-o, em longas passadas, para o corredor. E Webster conduziu-o ao quarto do duque.

- Ainda bem que o encontrei! - exclamou o americano, pelo caminho. - juro-lhe que andava à procura do meu quarto há hora e meia! Agora o senhor diz-me que fica a pouca distância... Ah, tinha razão, afinal, Webster! Lembro-me da armadura esculpida na porta - uma bela porta, a propósito, pesada como...

Empurrou a porta com força, enquanto falava, mas ela abriu-se facilmente, como se alguém a puxasse do interior, e os dois homens entraram de escantilhão. Wells encontrava-se no quarto, alto e correcto, mesmo com as suas roupas de noite.

- Por onde andou, Mr. Blayne? - perguntou, surpreendido. - Procurei-o por toda a parte, pois pareceu-me tê-lo ouvido chamar.

- Passou pela minha janela, no terraço? - indagou o americano, fitando-o.

- Que terraço, Sir?

- Não brinque, Wells! Gosto de brincadeiras, acredite, mas não de ver cabeças sem corpo flutuarem defronte da minha janela!

Falara de ânimo leve, mas surpreendeu-o a transformação que de súbito se operou no velho mordomo. Wells; cerrou os dentes, semicerrou os olhos e as suas sobrancelhas grisalhas e hirsutas franziram-se sobre o nariz comprido.

- Como ousa gracejar com a cabeça do duque de Starborough?!

John Blayne recuou, estupefacto, mas Wells avançou para ele e acrescentou, por entre os dentes cerrados:

- Se soubesse quem eu sou, não se atreveria... não se atreveria, não!

De olhos fixos nele, John Blayne disse para consigo que por demais sabia quem Wells era: o avô de Kate, o mordomo indispensável. Mas que tinha isso a ver com a cabeça do duque e um insulto imaginário?

- Francamente, Wells... - gaguejou. - Peço desculpa, mas...

Wells, porém, passou pela sua frente, sem se dignar olhá-lo, abriu a porta e desapareceu no corredor.

- O homem é doido? - perguntou o americano ao advogado.

Surpreendido, o rosto de Webster, ao responder-lhe, exprimia apenas embaraço e não medo nem inquietação.

_ - Doido, não... Esquisito, talvez. Sim, concordo que e esquisito. De vez em quando representa um bocado, assim como o próprio velhote... Creio que tudo isto lhes sobe a cabeça...

- Sir Richard representa?

- Sim, lamento dizê-lo - respondeu Webster, suspirando. - Admito que se verificam aqui certas situações estranhas, difíceis de explicar...

- Quem é Wells? - indagou John Blayne. - Ou quem julga que é?

- É ... é o mordomo- titubeou Webster.

John Blayne fitou-o e afirmou:

- Não acredito.

- Porquê? - perguntou-lhe o advogado, com uma tossezinha constrangida.

- Farei outra pergunta. - Blayne aproximou-se, tocou no peito de Webster e inquiriu:- Quem é Kate?

Webster recuou.

- Kate? Apenas o que vê, uma rapariga extraordinariamente atraente. Sabe ser útil de diversas maneiras... aqui no castelo como criada, etc....

- Ela não é apenas atraente, e encantadora - interrompeu-o Blayne. - Criada? Onde se viu uma criada tratada como Kate? Ela é como uma filha para a família e...

- Tolice ! - interrompeu-o, por sua vez, Webster. - Eles sentam-se, ela fica de pé e não come no salão grande, com Lady Mary e Sir Richard... É verdade que... Mas em Inglaterra ensinam-se as crianças a tratar o pai por «Sir»...

- Pai? - perguntou, vivamente, John Blayne. - Quem?

- Pensei que se referia a Sir Richard.

- Sir Richard!

Webster refez-se da confusão e declarou:.

Confesso que não sei de que está a falar, Blayne. Na realidade, nem sequer sei o que estou aqui a fazer! Trata-se de alguma brincadeira e eu não gosto de brincadeiras a esta hora da noite, ou do dia, como quiser. Portanto, se me der licença...

John Blayne sentiu uma explosão de cólera na cabeça e replicou:

- Quem pede licença sou eu, porque quem se vai embora sou eu! Desisto do projecto de uma vez para. sempre; deixou de me interessar. Se fizer o favor de dizer a Sir Richard que parti...

Sentiu Webster apertar-lhe um ombro, com força, e ouviu-o afirmar:

- Não pode partir assim, sem mais nem menos, neste momento. já foi longe de mais e podemos processá-lo... Blayne soltou-se, com uma sacudidela brusca, e replicou:

- Processem-me à vontade! Notificarei os meus advogados.

E agora faça favor de sair do meu quarto.

Esperou, mas Webster não saiu. Em vez disso, cingiu melhor o cinto do roupão de flanela castanha em redor da larga cintura, atravessou o aposento e sentou-se numa enorme e velha cadeira de veludo escarlate. Fingiu que soltava uma gargalhada e exclamou:

- Ora vamos, Blayne, assim até sou capaz de pensar que também tem medo de fantasmas e que é por isso que não quer o castelo!

John Blayne não fez caso da gargalhada.

- Sabe muito bem que não tenho medo de nada. Simplesmente, não posso confiar em ninguém, aqui. Você, por exemplo, ao jantar declarou que Lady Mary dizia tolices... mas que descobri eu no meio da noite? O senhor e todos aqueles truques bárbaros! É um mentiroso, Webster!

O advogado levantou-se, de um pulo.

- Mentiroso, eu?! Viu ou não viu uma cabeça? Responda-me apenas sim ou não.

sim. - Não tinha nada que irromper pelo meu quarto... Enfrentaram-se, como dois ’galos brigões. Blayne fitou os olhos cinzentos e redondos de Webster e viu, à meia-luz da madrugada, como o rosto do advogado era grotesco, com o nariz achatado, a boca pequena e apertada e a barbicha hirsuta. De súbito, não conteve uma gargalhada e estendeu a mão.

- Sente-se outra vez-ordenou-lhe.- Não o deixarei ir-se embora, agora que o tenho em meu poder. Estou apenas roído de vulgar curiosidade! Diga-me...

Segurou Webster pelos ombros, forçou-o a sentar-se na enorme cadeira e depois puxou, para si, um tamborete, cuja almofada de cetim amarelo estava quase em farrapos.

- Diga-me sinceramente, confidencialmente, completamente

- como quiser - quem é Wells é quem é Kate? Farejo um segredo, um segredo muito empoeirado é bolorento, como tudo o mais aqui no castelo. Talvez precise, também, de sol e de ar... Vamos, Webster, nada de fingimentos comigo! Não somos crianças, apesar de todas estas artes de berliques e berloques! Webster estremeceu, com um calafrio.

- Está húmido... é muito perigoso - queixou-se. - Até sinto as unha   s dos pés encaracolarem-se! - Levantou a gola do roupão e enfiou as mãos nas algibeiras.

- Muito bem, Mr. Webster, comece! - ordenou-lhe o americano, em tom firme.

- Webster espirrou, prolongada e ruidosamente, assoou-se, olhou-o, desviou a vista e teve um acesso de tosse, antes de responder:

- Bem, deixe-me ver... em resposta às suas duas perguntas... Acerca do Wells, não foi? Ele é exactamente o que’ parece, creia. Era um jovem lacaio no castelo, quando Sir Richard nasceu, e gradualmente ascendeu à categoria _de mordomo. Casou com a filha de um rendeiro - uma rapariga chamada Elsie, lembro-me, muito bonita e muito mais nova do que ele, que morreu ao dar à luz o seu único filho, Colin.

Colin foi o pai de Kate, evidentemente... um rapaz muito difícil.

.   - Explique o «difícil»!

Webster teve novo ataque de tosse.

- Ainda arranjo aqui a minha morte, se não me precato... Difícil? Bem, impaciente, agitado... sempre a julgar-se superior à sua categoria... Foi uma criança inteligente e Sir Richard estragou-o com mimo. Era um bonito rapaz, parecido com a mãe irlandesa. Foi pena que Richard não tivesse filhos.

- Por culpa de quem?

- Culpa? - repetiu Webster, levantando as sobrancelhas. - Não lhe chamaria culpa, pois, na realidade, ninguém foi culpado. Ás vezes acontece duas pessoas não poderem ter filhos um do outro por qualquer oculta razão psicológica, embora os possam ter de qualquer outra pessoa... Claro que não é esse o caso, de maneira nenhuma! Richard foi sempre muito devotado à esposa. Não, não... era natural que gostasse de Colin. O rapaz tinha uma maneira franca e ousada de lidar com ele e seguia-o por aí... Aprendeu a montar bem, etc... é até mostrou possuir talento para a pintura. Sir Richard mandou-o para uma escola e, lembro-me, Wells não aprovou esses exageros, protestou que colocariam o rapaz acima da sua categoria.

- Mas Sir Richard insistiu?

- Sim, e creio que com razão, de certo modo. O rapaz era... diferente, invulgar... As visitas tinham dificuldade em acreditar que fosse apenas o filho do mordomo.

- Mas como tinham as visitas ensejo de o ver?

- Bem... - Webster hesitou.

- Vamos, homem! - barafustou Blayne, impaciente. Não lhe estou a arrancar dentes!

- Bem, Sir Richard tinha-o consigo, à hora do chá e depois do jantar... exibia-o, deixava-o recitar poemas....

- Apesar dos protestos de Wells?

- Sim, suponho que sim. O rapaz era superior, evidentemente, e muito dedicado a Sir Richard, em consequência dos mimos deste.

- Sir Richard não podia- suportar a ideia de ver Colin feito servo?- perguntou Blayne, vivamente.

- Quanto a isso - respondeu o advogado, após um momento de hesitação, o próprio Colin não podia suportar a ideia de ser criado.

- Por isso, fugiu para Londres, fez-se artista e a guerra deu-lhe a oportunidade de ser herói. Casou, como você gosta de dizer, com tanta elegância, «acima da sua categoria» e... - John Blayne levantou-se do tamborete e começou a andar de um lado para o outro. - Começo a compreender.

- Quem lhe contou essa parte da história?

-- Não, importa. Soube apenas o fim antes do princípio. É verdadeira, não é?

Webster encolheu os ombros:

Oh, sim, tão verdadeira quanto é possível, na vida! - O que é verdade, é verdade, e o senhor devia sabê-lo, como advogado.

Webster encolheu novamente os ombros e depois enroscou-se todo na cadeira, a tentar aquecer.

- Porque consentiu Lady Mary em tudo isso?

- Porque não havia de consentir? - replicou o advogado, empertigando-se, como se fosse defender um cliente.- Sir Richard e Lady Mary são duas pessoas muito gentis e maravilhosas e estou certo de que ansiavam por ter filhos. Sir Richard tem sofrido por falta de um herdeiro.

Pergunto a mim mesmo o que sentirá um homem quando não tem filhos por culpa sua...

Foi a vez de Webster se levantar e começar a andar de um lado para o’ outro.

- Francamente, Mr.. Blayne, não sei como começamos a falar neste assunto! Eu... Enfim, deixe-me dizer-lhe que sei não ter sido por culpa de Sir Richard, como o senhor diz... embora   repudie a palavra.

- Nunca se falou em divórcio?

- Evidentemente que não! Sir Richard jamais pensaria em magoar a esposa, apesar de não ter o desejado herdeiro!_ Toma-o pelo xá da Pérsia? Só os reis têm de gerar filhos!

Blayne mostrou-se implacável:

- Quer dizer que há um filho, algures?

- Não, não e não! - gritou Webster. - Não quero dizer semelhante coisa! Além disso, ele é demasiado velho... - Sabe muito bem, Webster - interrompeu-o o americano -, ou devia saber, que, se existe um filho, teremos um problema mais a resolver. Seria o herdeiro do castelo... - Não existe nenhum herdeiro -   afirmou Webster, fitando-o. - Agora agradeço-lhe que me deixe voltar para a cama. - Com certeza.

Abriu a porta, com evidente paciência, e depois de Webster sair em silêncio fechou-a e ficou parado, a pensar, com as mãos nas algibeiras do roupão.

«Não existe nenhum herdeiro», dissera Webster. Portanto, nenhum filho... Mas talvez existisse uma filha... uma filha que poderia ser Kate? Contudo, faltava um elo, um elo essencial! Quem era Colin? Quem?

Ah, não, não deixaria ainda o castelo!

- Lady Mary?- chamou Kate.

Conseguira escapar, mais uma vez. Oh, mas era perigoso encontrar-se assim com John Blayne, os dois sozinhos, ele a estender-lhe as mãos e o seu sangue a ferver, ao mínimo contacto! Nunca estivera verdadeiramente apaixonada, embora uma vez, havia muito tempo, se tivesse interessado por um rapaz da aldeia. Mas Sir Richard acabara com tudo. Lembrava-se perfeitamente desse momento, como se tivesse sido na véspera, pois nunca o vira tão zangado. Detivera-a no salão grande, sozinha, e dissera-lhe, baixando tanto as pálpebras que os seus olhos nem se viam:

- Lembra-te de quem és! Não quero o filho de um camponês aqui no meu castelo!

- Eu não... eu não sonhava trazê-lo para aqui - titubeara.

- Seria ainda mais desonroso para ti encontrares-te com ele em segredo, - replicara-lhe. - Nunca mais o verás. Proíbo-to!

Fugira, assustadíssima, e a família do rapaz fora despedida da quinta. O moço escrevera-lhe um bilhete a lápis, num bocado de papel: «Estou muito longe, Katie, nunca mais te verei.» A péssima caligrafia repelira-a e depressa o esquecera

- mas não esquecera, sabia-o, a   .   exaltação que o incidente provocara. Agora Sir Richard ficaria igualmente zangado, se soubesse!

De súbito, viu Lady Mary à espera onde a deixara, no corredor de pedra que levava às masmorras, e correu para ela. A idosa senhora não se mexeu, continuou com as mãos no regaço, de palmas voltadas para cima e olhos semicerrados.

- Acorde, queridinha, voltei... Não aconteceu nada... e é quase manhã.

- Enquanto falava, massajeava as mãos frias de Lady Mary e puxava-lhe para trás os cabelos de prata. Mas o corpo imóvel, sentado na húmida saliência de pedra, com a cabeça caída para o peito, não reagia.

- Valha-nos Deus! - exclamou Kate, baixinho, invadida por súbito terror. - Será possível que eles a tenham matado, por invocar o seu auxílio?... Lady Mary, minha querida senhora, ouve-me?

Lady Mary   não respondeu, mas a jovem apercebeu-se de que a ouvia.

- Ajudai-me! - murmurou Kate, olhando à sua volta.- Tenho de a levar, seja lá como for...

Meteu um braço sob os de Lady Mary e amparou-a assim, enquanto a conduzia.

- Meu Deus - gemeu, muito baixo -, e tão leve... como se ela própria fosse um fantasma! Oh, este maldito castelo! Meu Deus, meu Deus, quem me dera... quem me dera...

E, entre suspiros e temores, reconduziu a velha castelã ao quarto e deitou-a na cama.

De manhã, Wells voltou a ser o mesmo mordomo imperturbável e correcto, ao servir os pratos do pequeno almoço. Sir Richard ocupava, com ar distante e majestoso, o seu lugar à cabeceira da mesa, e Philip Webster mostrava-se animado e palrador como   sempre. Só Lady Mary não se encontrava no lugar habitual, pois Kate servia-lhe o pequeno almoço no quarto.

O sol entrava a jorros no salão grande, inundava as pedras cinzentas do chão e as tapeçarias das paredes, as janelas estavam escancaradas e até a porta que dava para o jardim se encontrava aberta. O ar primaveril, doce e fresco, varria o castelo de lés a lés, e John Blayne começava a perguntar-se se as experiências da noite anterior não teriam sido, afinal, sonhos. Mas não, tomara conhecimento de fragmentos de uma história vivida entre aquelas paredes, de uma história que podia ser tão significativa para si como acontecimentos antigos o eram para Sir Richard e Lady Mary.

- Mr. Blayne - dissera-lhe Sir Richard, mal o vira a mesa do pequeno almoço -, tenho tentado decidir o que seria melhor para mim e para o meu reino, quero dizer, para os meus rendeiros. Enquanto não chego a uma conclusão definitiva, pode chamar os seus rapazes, a fim de tirarem as medidas que pretende.

- Agrada-me, sem duvida, que tenham qualquer coisa que fazer, Sir Richard. Têm-se aborrecido na estalagem.

- Será preferível trabalharem, mesmo que, no fim, tudo fique em nada, a beberem cerveja todo o dia e a darem ouvidos a mexericos - afirmou o castelão.

John Blayne fez uma serie de telefonemas rápidos e menos de uma hora, depois os quatro homens entravam e saiam dos aposentos do castelo, numa roda-viva. Sem casaco, de mangas arregaçadas e o colarinho desabotoado, entregavam-se ao seu trabalho, eficiente e entusiasticamente. Agora eram homens com um objectivo, homens de lápis e papel em punho, réguas, fitas métricas e mapas. Um agrimensor espreitava com um olho fechado, pelo seu teodolito e conferia medidas; um desenhador de plantas anotava observações num livrinho de apontamentos e John Blayne andava entre eles, muito calmo e seguro de si, a dar-lhes ordens secas. Mostrava-se alegre e resoluto, com o queixo atirado para a frente e os olhos escuros atentos e animados. Os absurdos da noite estavam esquecidos.

- Os vidros devem ser contados e numerados com referência a cada janela e cada janela referenciada com a indicação do quarto que pertence, antes de serem acondicionados com algodão. Seria impossível arranjar vidro igual.

E pouco depois:

- Quero o trabalho feito a todo o vapor, seja qual for a decisão. Se tivermos de parar, pararemos; se não, o que tivermos feito será um avanço. E não se esqueçam de que lhes estou a pagar! Vamos, toca a trabalhar!

Era evidente que se sentia satisfeito. Nada lhe agradava mais do que encarregar-se de qualquer grande empreendimento com um objectivo - e ao objectivo juntava-se, agora, o mistério de Kate. Estava atento, desejoso de a ver, mas ela ainda não aparecera. Mais cinco minutos e iria procurá-la. Despiu o casaco, tirou a gravata e o vento matutino pôs-lhe o cabelo em desordem e deu-lhe cor às faces. Nunca se sentira melhor, gritava as ordens que tinha a dar aos seus homens e intercalava-as de gracejos.

- Se encontrarem um desses fantasmas de que estão constantemente a falar no castelo, ponham-lhe uma etiqueta, para sabermos onde pertence! Se conseguir chegar ao Connecticut, metê-lo-emos outra vez no seu buraco. Conservem toda a gente feliz, é o meu lema, até os fantasmas... Se for o fantasma de alguma rainha, deixem-me dar-lhe uma vista de olhos primeiro,

hem... Calma ai, Johnson! Essas vidraças com barras não são para se espreitar... são tão valiosas como diamantes.

No meio dos gracejos e do barulho do trabalho, ouviu um pequeno grito, vindo das portas giratórias do salão grande. Olhou para cima e viu Kate, com as mãos comprimidas na boca.

- Entre - chamou-a. - Entre, rosa da manhã!

A rapariga aproximou-se devagar, muito bonita num vestido de linho azul e com um aventalinho branco, de folhos. - Que demónio está a fazer? - perguntou.

- O que vê - respondeu-lhe, sorrindo, prazenteiro.

- O que vejo, seja lá o que for, tem de parar   neste mesmo instante, imediatamente! - ripostou, em voz nítida. Blayne fechou um olho e olhou ao longo de uma régua que encostou a uma janela.

- Porque grita, se sabe que capto o mais leve som, os passinhos de um rato, o rufiar da asa de um passarinho, o murmúrio de uma voz de rapariga, o gemido de um fantasma...

Kate bateu o pé, para lhe interromper o chorrilho de tolices, e ordenou:

- Diga aos seus homens que saiam do castelo! - Lembre-se de que lhes pago belos dólares precisamente para cá trabalharem! Deixe-se disso... - replicou, enquanto escrevia vários números numa folha de papel, em cima da mesa.,

- Se não lho diz, dir-lho-ei eu - afirmou Kate.

Blayne sorriu é continuou a escrever. Irritada, a jovem bateu as palmas e os homens interromperam-no que faziam e olharam-na.

- Senhores! - A sua voz clara e aflautada vibrou no ar. - Querem fazer o favor de partir imediatamente?

- Partimos? - perguntou um deles ao americano. Blayne nem levantou a cabeça, entretido a somar as parcelas que anotara. Só quando obteve o total respondeu:

- Com certeza que não. - Não dei ordens nesse sentido, que me conste.

Os rapazes recomeçaram a trabalhar.

Pelo canto do olho, Blayne viu Kate aproximar-se. Ao chegar a seu lado, baixou a voz e disse-lhe, ao ouvido direito:

- Vou imediatamente informar Sir Richard.

Fingindo-se distraído e atento aos algarismos, mas com todos os sentidos conscientes da sua presença, da sua fragrância e da sua beleza, o americano respondeu-lhe, calmamente:

- Porque não foi logo? Nestes casos, aconselho sempre toda a gente a recorrer às instâncias mais altas. É inútil implicar comigo, pois, como sabe, não sou dono do castelo.

Kate bateu-lhe no ombro com o indicador e disse:

- Venha comigo, por favor.

Blayne endireitou-se e fitou-a, com expressão de exagerada inocência.

- Porque hei-de ir consigo? Não estou a roubar o castelo! Nem a comportar-me, sequer, como se fosse essa a minha intenção. Limito-me a dar que fazer aos meus homens, mas esse pormenor foi esclarecido com Webster. Estou dentro dos meus direitos.

Kate achou insuportável o seu olhar tão alegre e tão atrevido. Abriu a boca e fechou-a logo a seguir, incapaz de dizer uma palavra, e depois começou a gaguejar:

- O senhor... o senhor... Fique sabendo... Mostrar-lhe-ei... eu...

- Calma, Katezinha!

Desistiu, sufocada de fúria, e, deixando-o a rir-se à sua custa, atravessou o salão a correr, como uma garota, foi direita à biblioteca de Sir Richard - e bateu à porta. Ninguém respondeu. Encostou o ouvido à almofada de carvalho, escutou e depois abriu a porta. Sir Richard não estava ali.

Correu pelo corredor   fora, a caminho do quarto do castelão. Talvez ainda dormisse... A noite fora tão movimentada, com toda a gente a acordar às horas mais disparatadas! Abriu a porta do quarto, mas Sir Richard também lá não estava.

Onde estaria Wells? Ele devia saber onde se encontrava- o amo... Revistou a cozinha e a copa, à procura do mordomo. Às vezes, Sir Richard e Wells saíam e andavam a vaguear lá por fora, como dois velhos perdigueiros, ninguém sabia por onde...

Wells não estava na cozinha nem na copa e, por isso, só lhe restava procurar Lady Mary.

Aproximou-se da porta em bicos de pés e abriu-a. Lady Mary repousava ainda, na cama. jazia encostada   às almofadas, sob o dossel de seda cor-de-rosa desbotada, com os cabelos brancos- puxados para trás, afastados do rosto pálido e delicado, uma tira de renda na cabeça e as mãos unidas no peito. Ao ouvir a porta gemer nos pesados gonzos, abriu os olhos e sentou-se.

- Lady Mary, querida! - exclamou Kate, correndo para o seu lado. - Que tem? Está pálida como um fantasma! Que viu agora?

- Porque me acordaste?

Havia tanta tristeza na sua voz que Kate se sentiu confusa.

-   Vinha procurar Sir Richard, minha senhora. Os americanos, invadiram o castelo, andam por toda a parte. Eu disse-lhe...

Disseste-lhe?

Kate pegou-lhe na mão, desassossegada, e murmurou:

- Tem as mãos frias como gelo, minha senhora. Refiro-me ao americano, a John Blayne... Disse-lhe que os mandasse imediatamente embora, mas não ligou importância nenhuma. Ordenei então aos homens que partissem, mas, claro, não me obedeceram. Por isso, resolvi procurar Sir Richard e informá-lo, mas como não está em parte nenhuma vim ter com a senhora. Deve falar-lhes... Estão a proceder como se... Está a ouvir-me, Lady Mary?

Um estranho véu acinzentado cobriu os olhos da idosa senhora, que se deixou cair nas almofadas e fitou o desbotado dossel.

- Seria melhor, talvez... - murmurou. -- Não tenho a certeza, depois dá que... Não é possível, mas eu ouvi... ouvi claramente, Kate, enquanto tu te demoraste tanto tempo, a noite passada... Não estou a imaginar nem a sonhar   ...   Ouvi duas vozes... duas vozes inteiramente desconhecidas   ...   Uma era a voz de um velho e resmungava «Matarão Ricardo IV... bem escondido aqui ... », e a outra (oh, uma voz tão velha e tão trémula, esforçando-se por falar com firmeza e coragem!) afirmava: «... jamais o trairei, sir... » Sir! É um tratamento reservado a reis, apenas. Mas que rei seria, Kate?

Não sei, minha senhora - titubeou a rapariga.

Não sabes - murmurou, devagar, Lady Mary. - Ninguém sabe. Mas eu ouvi essas vozes, vozes de velhos, muito, muito tristes, vindas de muito longe, das paredes, Kate... Tu sabes que eles. se   podem esconder nas paredes... Não têm corpo, coitadinhos... Oh, Kate, afastemo-nos deste castelo... ou deixemos o castelo afastar-se de nós!

Fitou a rapariga, com expressão suplicante, e Kate viu-lhe os olhos. meigos e tristes encherem-se de lágrimas.

- Oh, minha querida senhora! - exclamou, ternamente. Teve um pesadelo, queridinha... A culpa de tudo isso são as velhas histórias idiotas que há tanto tempo ouve contar. Não se sente bem, é o que é. Chamarei o médico... Tem a testa quente e as mãos geladas.

Segurou o pulso de Lady, Mary entre o polegar e o indicador e acrescentou:

- E o seu pulso parece um cavalo, Lady Mary! Ter-se-á constipado?

Lady Mary virou o rosto, nas   almofadas, e murmurou: - Eles não nos podem ajudar, Kate; só pensam em si mesmos... recordam... e só isso... recordam... recordam... Talvez seja a única maneira como vivem, agora. Para eles,   .   só existe o passado; não há futuro. Claro que não há futuro...

«Delira», pensou Kate, «ou viu, realmente, qualquer coisa. Ah, não, que tolice!» A atmosfera estava pesada e o quarto escuro, apesar   do dia bonito. Kate largou a mão esguia que ainda segurava, aproximou-se da janela, afastou os cortinados e deixou entrar o sol da manhã através dos vidros antigos, em irregulares prismas de cor.

- Está um dia tão bonito, minha senhora! - exclamou, alegremente. - Veja este sol! Não acha linda a maneira como entra, todo colorido, pelos vidros? Vou-lhe buscar uma chávena de chá e uma torrada com manteiga e verá como se sente melhor, depois de comer mais alguma coisa! Teve uma noite extenuante... e o dia não promete ser muito melhor, com aqueles americanos!

Enquanto falava, atarefava-se no quarto, endireitando as escovas de prata, no toucador, dobrando o roupão de seda, que Lady Mary deixara na cadeira, apanhando uma folha da papel da carpete de Aubusson, certamente trazida pelo vento da noite...

- Se a senhora os visse! - prosseguiu. - Trepam pelo castelo como... como cabras monteses! Claro que nunca vi cabras monteses, mas garanto-lhe que se riria, se os visse! Dois deles andam nas ameias, a tirar medidas. Gostava de os ver cair ao fosso! Eram capazes de se curar, não acha? Os Americanos são tão brutalmente saudáveis! Abarrotam de ovos e bacon, com certeza, de bifes e daquelas vitaminas alfabéticas de que andam sempre a falar! Esta manhã comerá um ovo ao pequeno almoço, minha jóia. Ontem dei ordens nesse Sentido, na capoeira! Há lá uma galinha Velha muito inteligente, sabe? «Um ovo, por favor», disse-lhe eu, e ela fitou-me com um olho, depois com o outro... e foi imediatamente para o ninho, a querida!

Enquanto falava, olhava para a cama, mas tinha a impressão de não ser ouvida. Lady Mary continuava de olhos fixos no dossel, imóvel, com a mão abandonada onde caíra. De súbito, percorreu-a um movimento convulsivo, sentou-se e olhou para a parede do lado leste, ao mesmo tempo que levava as mãos às faces e gemia.

Sem perde de tempo, Kate encheu um copo de água, da garrafa de prata que estava em cima da mesa, e pediu:

- Beba, minha senhora; beba isto!... Sim, deve beber..

Não olhe mais para aquela parede, não? Que vê lá? Diga-me... diga-me...

Tentou tirar-lhe as mãos das faces, mas Lady Mary estava rígida. Por fim pousou o copo e murmurou:

- Tenho de ir chamar Sir Richard... Prometo que não me demoro nada, minha senhora.

Lady Mary não respondeu nem se moveu e Kate saiu do , quarto a correr e meteu pelo corredor que levava ao de Sir Richard. Não valia a pena procurá-lo ali...- No entanto, ao passar, espreitou pela porta aberta e, surpreendida, viu-o sentado à secretária, junto da janela aberta. Vestia o fato de fazenda habitual, estava bem penteado e tinha uma expressão calma.

- Sir Richard! - exclamou, em voz abafada. - De onde veio? Ainda há poucos minutos aqui estive...

Mas, como não obtivesse resposta, aproximou-se e perguntou-lhe:

Ouviu-me chamar? Não respondeu...

Esqueces quem és, mulher - replicou,. severo. - Como te atreves a entrar no meu quarto sem autorização?

Era ele que pronunciava aquelas palavras, em tom frio e, ,, até, hostil, mas Kate não podia acreditar nos seus ouvidos. Tinha um ar tão calmo, tão senhor de si... e, contudo, aquela atitude não parecia dele...

- Queria dizer-lhe... pensei que devia saber... eles invadiram o castelo e Lady Mary está doente... muito doente... e... Sir Richard levantou-se e perguntou:

- Onde está Lorde Dunsten?

Lorde Dunsten?

- Sai do meu caminho, estúpida mulher, - empurrando-a e dirigindo-se para a porta. - Dunsten, venha cá! gritou.

Wells surgiu, de súbito, como se tivesse saído do chão, e, enquanto ele entrava por uma porta, Lady Mary aparecia pela outra, em frente. Kate olhou sucessivamente aquelas três pessoas que conhecia tão bem, mas que naquele momento mal reconhecia.

- Estou aqui, Sir Richard - disse Wells.

Richard! - exclamou Lady Mary, da porta. - Prometeste-me que não voltarias lá e voltaste... vejo que voltaste! Foi onde estiveste toda a noite!

Sir Richard olhava-os, inexpressivamente.

- Tive um sonho estranho... - murmurou, levando as mãos à fronte - ... muito estranho!

- Estiveste lá outra vez - insistiu Lady Mary, aproximando-se e agarrando-o por um braço. - Que tens lá escondido? Diz-me... deves dizer-me! Ouvi qualquer coisa... alguém a falar, a dizer coisas tão estranhas!

- Sabes o que lá tenho - replicou Sir Richard, ao mesmo tempo que tentava, em vão, libertar o braço, que a mulher não largava. - Estiveste lá.

- Há muitos anos e nunca mais lá voltei.

- Livros... Velhos livros, apenas, e... e... intimidade, isolamento.

- Escondes qualquer coisa!

- Não tenho nada! - gritou, num ímpeto de súbita cólera. Nem sequer um... um filho! Não tenho um filho, digo-to eu! Lady Mary largou-lhe o braço, as mãos penderam-lhe ao longo do corpo e perguntou, devagar:

- Nunca me perdoaste, pois não, Richard?

- Ninguém para... para   ocupar o meu lugar... o trono... - murmurou, tristemente.

Wells aproximou-se, a tremer, e titubeou:

- Sir Richard... por favor! Não está em si!

Conduziu o castelão para uma cadeira, ajudou-o a   sentar-se e acrescentou:

- Se me dá licença que sugira, Lady Mary... Kate,   telefona ao Dr. Briggs e chama Mr. Webster. Não podemos resolver este assunto sozinhos... Vamos, não fiques ai parada como se fosses de pedra!

Mas ela sentia-se de pedra. A discussão entre aqueles dois seres que nunca ouvira discutir... Porque seria? E a que trono se referiria Sir Richard?

- Kate! - gritou Wells.

A rapariga viu-lhe os olhos irados e, aterrada, saiu do quarto, correu ao telefone e marcou, freneticamente, um número.

- Dr. Briggs?... Fala Kate, do castelo... Estamos numa grande aflição, Sir... Os dois, Sir... Parece que estão a sonhar, a delirar... Não, nunca os vi assim... Obrigada, Sir.

Desligou e foi bater à porta de Philip Webster. Ele abriu imediatamente e saiu, com o amarrotado fato de fazenda, mas a cheirar a sabão.

- Bons dias, Kate!

- Por favor, Mr. Webster... - murmurou, arquejante. Os americanos estão a proceder como se tencionassem levar o castelo amanhã...

- O quê?

É verdade... E Sir Richard e Lady Mary parecem, tam-

bém, muito estranhos.

- Onde estão?

- No quarto de Sir Richard.

O advogado começou a andar e Kate seguiu-o. Quando chegaram ao quarto, a rapariga não pôde acreditar no que   os seus olhos viam. Wells desaparecera e Sir Richard e Lady Mary estavam sentados à mesa, junto da janela, a beber chá pela mesma chávena, como se não tivesse havido briga nenhuma. Webster parou à porta, sem ser visto, e Kate aguardou, atrás dele. Os dois velhinhos conversavam amigavelmente.

- Garanto-te, minha querida, que não há nada de mal dizia Sir Richard. - Blayne tem autorização minha para tirar medidas, etc. No fim de contas, não está a deitar o castelo abaixo! Não está nada decidido, ainda, e o bom-senso aconselha que os homens que ele trouxe não andem por ai à boa vida. Blayne paga-lhes, como sabes, e sempre é melhor que tragam qualquer coisa, mesmo que, no fim de contas, não sirva para nada, se não chegarmos a acordo. Mas, se te incomoda, mandarei parar tudo, evidentemente.

Lady Mary estendeu-lhe a chávena e perguntou-lhe: - Queres ver-te livre do castelo, Richard?

O marido recusou o chá, com um gesto da mão:

- Bebe tu o resto, querida. -Tirou o cachimbo e prosseguiu: - É em ti que eu penso. Não podias viver sem o castelo, pois não, minha querida? Sinceramente.

Lady Mary não respondeu logo.

- Nunca se sabe... - murmurou por fim, pensativa. Nunca sabemos aquilo de que somos capazes até termos de o fazer. No caso de não encontrarmos o tesouro...

- Espero que não tenciones desistir - observou Sir Ri-

chard, acendendo o cachimbo e puxando enormes fumaças.

- É insensato desistir, bem sabes... e tu nunca desististe.

- Não vejo nada estranho, aqui - observou Webster, em voz baixa, Por cima do ombro.

Apesar disso, entrou no quarto e perguntou: - Sente-se bem, Richard?

Sir Richard levantou a cabeça, surpreendido, e replicou:

- Eu? Com certeza! Porque’ pergunta? Como havia de me sentir mal numa manhã tão maravilhosa? Temos estado a conversar... Entra, Kate; ainda não te tinha visto esta manhã... Estás abatida... Não achas, querida?

Kate, que entrara atrás de Webster, parou, intrigada e constrangida.

- Devias ir ao médico, Kate- aconselhou Sir Richard, segurando-lhe na mão. - Ela está quente, Webster.

Ao aperceber-se de que todos a olhavam, Kate retirou a mão com um gesto brusco. Era a primeira vez que Sir Richard lhe pegava na mão.

- Lady Mary - disse, em tom firme e resoluto -, afirmou que a noite passada ouviu uma voz verdadeira.

Lady Mary riu-se, com um leve rubor nas faces, e perguntou:

- Afirmei?

Webster sentou-se e meteu-se na conversa:

- Ah, sim!... Pensava encontrar um tesouro qualquer, não era?

Kate não desistiu, porém: - Minha senhora...

- Encontraste ou não algum tesouro, meu amor?- interrompeu-a Sir Richard. - É muito provável que haja algum, Webster... Às vezes encontramos as coisas mais inesperadas...

O rubi, por exemplo... Cheguei a dizer-lhe que o mandei engastar num anel de ouro? Eu mostro-lho... Kate, onde pus eu o anel?

- Nunca o vi - afirmou a rapariga, secamente. - Nem sabia, sequer, que tinha semelhante anel, Sir Richard.

- Não sabias agora! Toda a gente o viu! Orgulho-me muito dele, por sinal, embora não o use sempre... Dá demasiado nas vistas... a não ser que quem o use seja um rei, evidentemente. Há sempre essa possibilidade...

- Que possibilidade? - inquiriu Kate.

- A possibilidade... de tudo - respondeu-lhe, sorridente, Sir Richard. - A possibilidade de encontrar o tesouro, por exemplo, ou de vender o castelo...   ou não vender... - concluiu, abrindo as mãos, num gesto largo.

- Por este andar - comentou Webster, levantando-se não tarda que não estejamos a redigir escrituras e a pedir assinaturas.

- Talvez seja essa a única maneira de quebrar a cadela do passado - murmurou Sir Richard.

- Mas o tesouro...

- Sim meu amor. - Voltou-se para a mulher e concordou, indulgente: - Diz-se, de facto, que todos os castelos têm um tesouro escondido.

- Sir Richard, Lady Mary! - exclamou Kate, mas ninguém pareceu ouvi-la.

- É um jovem tão simpático! - murmurou a idosa senhora, docemente. - Creio, até, que gostaria de o tratar por John. Achas que não, faria mal, Richard?

- Com certeza que não, minha querida, tanto mais que tens alguma dificuldade em te lembrares do seu apelido...

- Eu lembro-me, Richard - afirmou, a sorrir. - Mas Blayne é um nome tão bonito! Recorda-me aquela espada que está no túmulo, na igreja... Mas John ainda é mais bonito... É simples e muito mais fácil de dizer.

- Porque esperas, Kate? - perguntou, de súbito, Sir Richard, em tom brusco.

Olharam-na todos, a sorrir bondosamente, mas com um ar distante e até frio. Despediam-na, compreendeu, e sentiu uma barreira erguer-se entra ela e eles.

- Talvez esteja enganada a respeito de vocês todos... disse, muito devagar. - Talvez não os conheça, afinal... Armei apenas em idiota... fiz figura de parva ao tentar fazer muito... ao pensar que ajudava... Insultei o americano... e no fim de contas foi ele o único a ser bondoso comigo.

Ouviu um soluço e, ao aperceber-se que saíra do seu próprio peito, correu pela porta fora.

Quando ia a meio caminho do seu quarto, na ala leste, cega pelas lágrimas, sentiu-se, de súbito, presa em dois braços fortes.

- Aonde vai tão depressa? - perguntou-lhe John Blayne, alegremente.

- Oh! - Parou e libertou-se. - Por favor! Tencionava procurá-lo... assim que... Devo dizer-lhe que me enganei, esta manhã... - gaguejou, ao mesmo tempo que enxugava os olhos com a ponta do avental. - Exagerei a minha autoridade   ... Não tinha o mínimo direito... simples criada que sou... de   ... de dar ordens como se... como se...

- Venha cá. - Puxou-a para um vão onde havia um banco de pedra, debaixo de uma alta janela ogival. - Sente-se.

Obrigou-a a sentar-se e estendeu-lhe o seu grande lenço limpo.

- Não é isto que faz sempre o herói de todos os romances? Oferecer um lenço limpo, para a heroína enxugar as lágrimas?... Pensando melhor, creio que lhe compete, também, ser ele próprio a enxugá-las... Dê-me licença, Kate, por favor... Ah, Kate, Kate, torna-se tão a sério, minha pequena

Que pestanas aquelas, compridas, arqueadas e negras! Não, ali não havia a tolice das pestanas falsas, das tintas e de todas as outras patacoadas do mesmo jaez!

Blayne dobrou o lenço e guardou-o outra vez na algibeira.

- Melhor, hem?

Kate abanou a cabeça e mordeu os lábios.

- Ouça-me, Kate - pediu, muito sério. - Está sempre a recordar-me que é apenas a criada. Não quer que o esqueça? Porque não me deixa esquecê-lo?

- Porque... - estava quase a chorar outra vez - ... porque é isto que sou.

Blayne pegou-lhe na mão e observou-a, na sua palma aberta. Era pequena, roliça como a de uma criança, mas forte.

- Não importa as vezes que mo diga - afirmou, devagar -, e não importa porque, para mim, não tem o mínimo significado, Kate. Sou americano e nós, Americanos, não classificamos as pessoas. Pode viver onde quiser e ser o que lhe apetecer... se não for demasiado teimosa. E este polegar é de pessoa teimosa... inclina-se muito para trás.

Flectiu o polegar de Kate e prosseguiu:

- Eu também sou teimoso. Está a ver o meu dedo? Ainda sou mais teimoso que você, pois tenho mais tempo de prática... Portanto, desista, porque não conseguirá modificar-me. Fique sabendo que não lhe levarei o castelo se não quiser que lho leve. Ir-me-ei embora e tudo voltará a ser como antes, como sempre foi e sempre será... e a Kate será outra vez feliz.

- Não- murmurou a rapariga, em voz baixa, - não voltarei a ser feliz.

Blayne dobrou a mão sobre a dela.

- A sua mão treme... treme como um passarinho assustado... Kate, diga-me quem é. Sinto que existe um segredo qualquer no castelo... mas um segredo que não é de fantasmas e, sim, de alguém que está vivo... Deixe-me ajudá-la. - Não existe segredo nenhum.

- Não me quer dizer?

- Quero dizer-lhe, apenas, que me enganei a seu respeito. - Mas a Kate não me conhece.

- Enganei-me a seu respeito. Quero dizer... pensei que era...

- O quê?

Fitava-a nos olhos, fixamente, e ela não podia desviar o olhar. Tentou sorrir e sentiu-se corar e o coração bater, bater... O rosto dele estava perto, muito perto... os seus lábios...

Kate!

Wells estava diante deles, de mandíbulas cerradas, olhar severo. Kate libertou a mão e o mordomo ordenou-lhe:

- Volta imediatamente para a copa! A louça do pequeno almoço ainda está por lavar e esta tarde é dia de visita do público.

John Blayne levantou-se e declarou:

- A culpa foi minha, Wells, e não creio que seja, preciso falar a Kate dessa maneira.

- Há um telefonema do estrangeiro para si, Mr. Blayneinformou Wells, como se não o ouvisse, em tom gelado.- Pode atender na biblioteca. É outra vez o seu pai.

- Obrigado.

Sorriu a Kate e encaminhou-se para a biblioteca.

Wells aguardou que ele desaparecesse e depois voltou-se para Kate, que continuava sentada no vão da janela e olhava, agora, a alameda de teixos.

- Não te intrometas com este americano - ordenou. - já há bastantes tolices   no castelo, sem precisares de ajudar à festa aumentando a confusão. Sir Richard ficaria muito zangado.

- Este mundo é confuso... - respondeu a rapariga, sem voltar a cabeça. - Eu sei... e concordo consigo, avô. Não quero... intrometer-me, como diz. Somos pessoas de trabalho, mais nada, e eles não se importam, realmente, connosco. Tudo quanto fazem é muito acima das nossas cabeças... nunca os compreenderemos.

- Não sabes o que dizes - volveu o velho, com mau modo.

Deixou-a e Kate seguiu com o olhar o vulto magro e velho, até o perder de vista. Wells nunca gostara dela. Quem era ele? Quem era ela? Porque eram tão diferentes e porque, também, não gostava dele? Nunca o amara, nem mesmo em criança. Sentira-se sempre muito só, mas nunca tanto como agora . . .

E, impelida pela sua solidão, sentiu o desejo irreprimível de seguir John Blayne, de o procurar cegamente, apenas para estar junto dele no   pouco tempo em que o americano ainda permanecesse no castelo.

Blayne estava na biblioteca, sentado à grande secretária de carvalho, de olhos fechados, rosto franzido numa careta e auscultador o mais afastado possível do ouvido, como sempre. Do telefone saía a voz alta e áspera do seu pai.

- Estás a ouvir-me? Quero-te aqui, em Nova Iorque, na próxima segunda-feira... Porquê? Por causa da fusão, Johnny.Onde estiveste este tempo todo?

Blayne respondeu, calmo, mas firme: - Não é assim tão simples, pai. Surgiram complicações, aqui... Não os compreendo bem, mas...

- Queres dizer que não estarás aqui? - interrompeu-o a voz do pai, como uma serra eléctrica.

- Não, não estarei.

- Sabes o que dizes? O pai de Louise ficará furioso, e tu não ignoras como ele é quando se enfurece! Eu fico furioso também e com a fúria de dois lá se vai a fusão por água abaixo, como de costume. Que lhe hei-de dizer?

-   Não precisa de lhe dar explicações acerca do que estou a fazer. De resto, para que toda essa ópera?

Kate entrou no aposento em bicos de pés. Blayne não a viu e ela ficou imóvel, à espera.

- A ópera - replicou a voz agastada, sublinhando a palavra - é que Louise anda a divertir-se com outro tipo, enquanto tu namoras um castelo! Se não estiveres aqui na segunda-feira perdê-la-ás, tão certo como o meu nome ser John Preston Blayne Sénior! Filho, porque deitas tudo a perder por causa de um monte de pedras velhas? - A voz suavizou-se levemente. - Só sabemos o que é o amor quando o perdemos, como eu perdi. Lembro-me de tudo quanto disse à tua mãe e que feriu os seus senti   mentos... Mas não é só do que disse ou fiz que me lembro. Lembro-me também das vezes que podia ter estado com ela e não estive, das coisas que desejava, agora, ter feito e não fiz...

A voz áspera tremeu, comovida, mas durante escassos segundos, apenas.

- Vai para o Inferno! - praguejou, distintamente, e desligou.

Kate tentou sair, sem ser vista, mas Blayne colocou-se entre ela e a porta.

- Era o meu pai. - Eu sei.

- Deixa-me explicar, antes de se ir embora? - Explicar o que são fusões?

- Não. Explicar algo muito mais importante.

Kate fitou-o, corajosamente, e depois aproximou-se da secretária, levantou o auscultador e estendeu-lho:

Tome.

Blayne aceitou-o, estupidamente, e perguntou:

- Para quê?

- Não precisa de mandar um telegrama, primeiro?

Saiu da sala, de cabeça levantada, e deixou-o especado, a segui-la com o olhar aparvalhado. Deu alguns passos na sua direcção, mas depois parou e retrocedeu, devagar, para junto

da secretária. Sentou-se, com a cabeça apertada entre as mãos. Passaram dez minutos. Por fim levantou outra vez o auscultador, marcou um número e aguardou. Ditou um telegrama, mas para Louise e não para o pai.

Ficou ainda um momento sentado, e de súbito sorriu e bateu na secretária com as duas mãos. Começou a assobiar baixinho, uma valsa, e saiu da biblioteca quase a dançar...

Chegada ao seu quarto, Kate sentou-se e chorou. Estava ofegante, fatigada e confusa. O quarto ficava na torre do lado ocidental, tinha janelas estreitas a toda a volta e uma pequena lareira baixa, na parede de rocha. Fora, em tempos, o quarto de uma açafata muito jovem, natural de Gales, que certa noite se enforcara na trave larga, do meio do tecto, angustiada de solidão. Ninguém dera pela sua, falta e só passados dias a tinham procurado. Chamara-se. Megan. Kate, que costumava pensar muito nela, perguntava-se qual teria sido o seu aspecto e se o seu desejo de morrer nascera de outro motivo além da solidão.   Talvez a sua ama tivesse sido cruel, talvez se tivesse apaixonado, talvez... talvez... Mas quem saberia a verdade?

. Parecia-lhe agora compreender como Megan pudera morrer naquele quartinho. Talvez se tivesse sentado, também, a chorar, naquele mesmo tamborete de carvalho, junto da lareira... Ela própria não pensava em morrer, mas apetecia-lhe chorar, e chorou, com longos soluços magoados, até não poder mais. Depois levantou-se, lavou a cara, penteou-se, abriu a cómoda e arrumou muito bem todas as gavetas. Em seguida, pregou dois botões que lhe haviam caído do casaco de malha e passajou um rasgão da combinação de seda preta. Como não tinha mais que fazer, abriu a porta e escutou, com curiosidade de saber como se arranjavam no castelo sem ela. O silêncio, porém, era total. Passado um momento, desceu em bicos de pés a, escada circular e encaminhou-se   para o salão grande, onde não faltava barulho e movimento e onde a voz de John fazia perguntas, dava ordens, discutia e contradizia.

- Devemos proporcionar um incentivo - dizia naquele momento o americano. - Por exemplo, *que se poderia fazer aqui depois de o castelo desaparecer? De que maneira seria possível utilizar a terra mais lucrativamente?

- Não lhe parece que é incentivo bastante a soma em dinheiro que lhe oferece?

Esta segunda voz pertencia a David Holt, o advogado alto e grisalho, correctamente vestido. Estava sentado à comprida mesa, ao lado de John. e estudavam algarismos escritos num grande livro preto.

- Quero um projecto - prosseguiu John. - Actualmente, o dinheiro não serve para nada. O que convinha era qualquer coisa que assegurasse trabalho e proventos às pessoas...

UM dos quatro jovens parou naquele momento junto deles e disse:

- Sabe uma coisa, Mr. Blayne? Todo este monte é de argila, noventa centímetros abaixo da superfície do solo! Trabalhos de cimento, eis a solução. Reconstruir todas aquelas velhas cabanas... Lembre-se do que fizeram na América, na Park Avenue! Aço, vidro e cimento! Bonito.

- Outra Nova Iorque? - perguntou Blayne, a rir.- Não chega uma?

- Podia fazer um parque, Mr. Blayne - sugeriu outro rapaz, do extremo oposto do salão. - Disneylândia, Inglaterra. A minha opinião, precisam de qualquer coisa que os faça rir. Recreação pública.

- Tome nota das ideias, Holt - recomendou John ao advogado, pelo meu lado, tenho estado a pensar numa herdade-modelo. Não estragaria a paisagem e teria de tudo: vacarias, silos... Matagais e castelos podem ser igualmente improdutivos.

- Fala a sério?

- Com certeza! Não quero deixar um deserto atrás de mim. É preciso estudar o assunto a fundo. Os rapazes que façam uma planta, pelo sim, pelo não, com cálculos de preço incluindo os maquinismos mais modernos, manadas Guemesey importadas dos E.U.A.... Palavra, há qualquer coisa de romântico nisso! Os animais Guemesey são provenientes da ilha do mesmo nome, mas, como acontece connosco foram melhorados pela sua estada na América. Portanto, devolvemo-los na sua forma moderna! Entretanto, não recuso ideias nenhumas. Temos uma semana para...

Kate, que ia já a caminho da cozinha, ainda ouviu as últimas palavras.   Uma semana. Ficaria mais uma semana? Levou as mãos aos lábios, num gesto involuntário. Como poderia suportar? Que partisse   , que partisse agora, enquanto ainda conseguia dominar o coração!

Desceu rapidamente o corredor que levava à sala particular de Lady Mary e de Sir Richard. Deviam ser quase horas do almoço e ela estivera ausente tanto tempo! já a tinham chamado, com certeza... Mas não estavam placidamente sentados perto da janela, ele a fumar o seu cachimbo e ela outra vez a tricotar, tão ternos e serenos como se nada houvesse perturbado a paz da manhã. Philip Webster andava de um lado para o outro, de mãos nas algibeiras o cabelos desgrenhados, como se tivesse passado os dedos por eles vezes sem conta.

Lady Mary fez sinal a Kate de que não precisavam dela e a rapariga foi tratar dos seus deveres na copa e na cozinha. - Podia vender parcelas da propriedade, Richard...

- Não venderei - afirmou o castelão. - Lutarei até ao fim! - Voltou-se para a mulher e acrescentou: - Minha querida, os teus domínios permanecerão intactos. Porque são os teus domínios, minha querida, este reinozinho... No fim de contas, existem outros reinos assim pequenos - Mónaco, Listenstaina e, agora, Starborough. Não é desrazoável. Podes confiar em mim. Não permitirei que os rendeiros obtenham vantagens... Tenho sido demasiado brando com eles, mas isso acaba-se. Que disse John Gomer? «Três coisas, todas da mesma espécie, são implacáveis- quando obtêm vantagens: uma enxurrada, um fogo devastador e a multidão banal da gentinha.» As suas   palavras datam de 1385, mas ainda hoje são verdadeiras.

- Não sei de que estás a falar, Richard - confessou Lady Mary, distraída, a contar as malhas. - Que maçada, enganei-me!- Puxou a lã e desmanchou a carreira.

-Se começasse a vender parcelas e talhões viria para cá gente nova, começariam a construir casas e o castelo ficaria sozinho no meio de uma aldeia.

- Creio que sim - concordou Lady Mary, às voltas com a malha.

- Ficaríamos sitiados - prosseguiu o marido, mas não seria a primeira vez, Webster, o castelo tem defesas. O fosso está seco, bem. sei, mas simplesmente porque o drenámos, por causa dos mosquitos. Facilmente se mudaria outra vez o leito do rio e o fosso depressa se encheria, como dantes. Procedimento essencial, aliás, pois de contrário as pessoas encheriam as ameias! Planeei tudo há muito tempo.

Webster sentou-se, de súbito, e fitou-o. - Está a dizer tolices, Richard.

- Isso é que não estou! - replicou Sir Richard, muito vermelho e com os olhos a chisparem sob as grossas sobrancelhas. - Não é asneira nenhuma, com certeza, um Inglês defender o seu castelo. É o seu dever, pois ele é o rei. E não seria a primeira vez que um rei subiria à varanda da torre do castelo de Starborough e comandaria os seus homens, até forçar uma retirada!

Lady Mary levantou a cabeça do novelo de lã cor-de-rosa e perguntou:

- A retirada de quem, Richard?- A sua voz soava serenamente, mas o seu rosto tornara-se, de súbito, muito triste.

O marido fitou-a, inexpressivamente, e respondeu:

- As pessoas... as suas casas...

- Que casas?

- As casas que as pessoas construiriam.

- As casas não andam - afirmou Lady Mary, na mesma voz triste e serena. - Além disso, não são eles o inimigo.

- São! - gritou o marido. - Sufocam-me! Asfixiam a grandeza! É por isso que os reis constróem sempre os seus castelos muito longe, ?em lugares solitários. O Povo! Eis o inimigo!. A gente comum... os idiotas... os servos... os... os... Já disse, defenderei este castelo enquanto viver! jamais o. abandonarei...

Lady Mary interrompeu-o:

- Sabes o que farão, nesse caso? Arrasarão o castelo. Ele não pode ficar aqui sozinho. No fim arrasá-lo-ão ou transformá-lo-ão em qualquer coisa que seja útil para eles. Está aqui há muito tempo; começo a compreender isso.

- Talvez tenha razão, Lady Mary - observou Webster. Sir Richard levantou-se. O seu cérebro transformara-se, de súbito, numa brasa torturante, encerrada nas paredes do crânio.

- Vocês dois... - murmurou   vocês dois... contra mim! Onde está Wells?

Saiu da sala e Lady Mary continuou a tricotar em silêncio. Por fim, perguntou ao advogado:

- Foi ele, foi Richard que trouxe para cá os americanos, não foi, Philip?

- Foi ele que me mandou pôr o anúncio...

- E agora não quer sair. Há pouco disse que o fazia por mim, mas eu já não me importo... É só ele... Mas há mais alguma coisa, parece   ...   Talvez estejamos, finalmente, a chegar ao fundo da questão   ...

Webster respirou fundo, como se estivesse sufocado. - Não compreendo, Lady Mary.

- Eu também, não compreendo, Philip. Nem sequer compreendo Richard, com quem vivi todos estes anos. Fomos felizes, ou assim julguei, pelo menos. Também já não tenho a certeza a esse respeito, agora. E sempre acreditei - estupidamente, parece-me - que de qualquer maneira... alguém nos ajudaria. Mas talvez eles não possam, talvez lhes seja difícil. Não creio que eles tenham ido para algum lado, apesar de estarem mortos, Philip... Estão apenas noutro estado de consciência, mas isso e o mesmo que estar noutro país, suponho... Lamento-os muito, por esse motivo, mas não podemos depender deles. Temos de cuidar de nós próprios.

Webster fitava-a, de olhos arregalados de espanto. - Não sei de que está a falar, Lady Mary!

- Creio que não sabe, de facto.

Lady Mary suspirou e guardou o trabalho num cestinho de verga.

A porta abriu-se e Wells entrou. Penteara-se e vestira uma camisa branca por baixo da libré coçada, mas mesmo assim parecia fatigado, doente e muito velho.

- Por favor, minha senhora, que há acerca do americano? Come cá todo o dia?

A sua voz tremia e Lady Mary fitou-o e perguntou-lhe:

- Que lhe aconteceu, Wells? Parece que... viu alguma coisa!

Wells levou a mão à boca, para ocultar a tremura dos lábios.

- Ouvi Sir Richard falar com a senhora, Lady Mary. ]É comigo que ele está zangado, não com a senhora... Eu sei. Mas a verdade é que- Não posso fazer tudo quanto ele quer. Precisa de melhor apoio do que eu lhe posso dar, com a minha idade. já não sou um protector capaz para ele... - De súbito, começou a tartamudear: - O rei precisa de auxílio. Eu sozinho não posso... não posso...

- Que rei? - interrompeu-o a castelã.

Wells procurou atabalhoadamente o lenço e limpou os olhos, antes de responder:

- Perdão minha senhora?

- Perguntei que rei - esclareceu Lady Mary, pronunciando as palavras com clareza..

- Não compreendo o que quer dizer, minha senhora. Eu falava de Sir Richard.

Webster voltou-se para o mordomo e interveio:

- O que quer dizer é que já não pode encarregar-se do trabalho todo sozinho, não é?

- Sim, Sir. Obrigado, Sir. Mas se me permitisse que falasse consigo só um momento, minha senhora... a sós...

Lady Mary, que estava sentada com as mãos no regaço o a cabeça pendente para o peito, endireitou-se e replicou, irritada:

.   - Não, não, Wells! Agora não me apetece falar. Claro que o americano é nosso convidado. Almoçaremos todos juntos, - São seis americanos, minha senhora.

- Com nós três, nove, Wells.

Despediu-o com um aceno de cabeça, acenou também a Webster, levantou-se e saiu, a caminho do quarto do marido. Ele não estava, mas se estivesse ela teria entrado do mesmo modo, disse para consigo. Chegara a altura de descobrir o que acontecera à memória e ao espirito de Richard. Atravessou o quarto deserto e tentou abrir o painel da parede. Sabia que se abria, mas só pelo que ouvira dizer. Premiu todos os entalhes, todos os pontos possíveis, mas o painel continuou como estava.

- Vamos... - murmurou.- Eu sei que te abres... Não finjas comigo, que vivo aqui há muito tempo.

O painel continuava fechado. Lady Mary estava prestes a desistir quando, de súbito, sem saber onde tocara, a parede deslizou silenciosamente... e encontrou-se cara a cara com Sir Richard. Estava na sua frente, a fitá-la como se fosse uma desconhecida, uma intrusa. Tinha o rosto altivo e frio e mantinha-se erecto e tenso, com as mãos ao longo do corpo. Lady Mary teve a impressão de que o sangue lhe fugia da cabeça e de coração sentiu-se desfalecer. Tentou gritar e não pôde.

- Ainda bem que te encontro finalmente, Richard! -conseguiu exclamar, por fim, chamando a si todas as suas forças . – Há tanto tempo que te procuro... toda.a minha vida, creio !

Falou como se já esperasse encontrá-lo ali e aguardou a sua resposta. - Mas, em vez de responder, Sir Richard estendeu a mão e tocou no painel, que deslizou entre ambos, sem ruído, rápida e suavemente, deixando-a de novo sózinha.

Por instantes ficou muda de espanto, depois a cólera galvanizou-a . Era intolerável ! Como ousava expulsá-la assim, como se fosse uma desconhecida? Que se passaria com ele? Sentiu-se invadida por um medo terrível, bateu no painel com os punhos e gritou :

- Deixa-me entrar, Richard ! Richard... Richard...

Não obteve resposta. . Encostou o ouvido à parede, mas não ouviu nada. Na trepadeira, fora da janela aberta, os pássaros bateram as asas e abalaram.

«Tenho de o encontrar ! », pensou, desesperada, e tentou de novo encontrar o ponto secreto que abriria o painel. Mas, por mais que carregasse e apalpasse, não o encontrava. Não havia outra maneira de passar para o outro lado... Ou haveria? Tentou lembrar-se, de   olhos fechados e mãos a apertar as têmporas. Havia muitos anos, quando, noiva, vierapara o castelo, Richard levara-a, um dia, a um quarto da torre - a sala do trono, como lhe chamava, porque, em pequeno, brincara ali aos reis com o seu mutilado pai. Mas não havia no aposento trono nenhum; apenas uma pesada cadeira   de carvalho.

Por onde tinham ido, nesse dia? E porque nunca mais lá voltara? Porque não quisera! Não esquecera, embora nunca se tivesse permitido pensar nisso, a modificação que se operara no marido,   que se tornara de súbito ressentido, melancólico e triste. Ainda agora, decorridos tantos anos, via o seu rosto jovem e belo e ouvia a sua voz:

- Ainda bem que não conheceste o meu pai. Foi horrivelmente mutilado, na guerra. Felizmente nasci antes de ele partir, pois de contrário não estaria aqui.

Ela era demasiado nova, então, quase uma criança, para compreender ou responder. Limitara-se a fitá-lo e ele prosseguira:

- Orgulhava-se de mim... orgulhava-se doentiamente do meu aspecto, de tudo...   Insistia constantemente para que casasse de novo, a fim de   ter filhos... Mas eu redargui-lhe sempre que não casaria só para arranjar herdeiros... até que te conheci- E agora é demasiado tarde... ele morreu e nunca verá os nossos filhos!

Lembrava-se do susto tremendo que sentira ao ouvi-lo soltar um grande soluço. Nunca ouvira um homem chorar. Abraçara-o e tentara reconfortá-lo:

- Richard, meu amor, teremos muitos, muitos filhos bonitos. Prometo!

- Agora, ao recordar tudo isso, não conteve os soluços e começou a chorar em silêncio. Não fora capaz de cumprir a pronessa, não lhe dera filhos nenhuns. Era insuportável a dor da recordação!

Cega pelas   lágrimas,   .   saiu do quarto e correu pelo corredor fora, sem saber em que direcção seguia. Viu Kate à entrada de uma porta,   com uma bandeja de pratos na mão, e ao notar o rosto assustado da rapariga correu ainda mais depressa. Há quantos anos não corria assim? O coração batia-lhe desabaladamente no peito, mas ela continuava a correr, por instinto, como um pombo correio, e assim desceu a escada que levava às masmorras. Por fim encontrou-se diante da porta fechada, que lhe bloqueava o caminho. Fora atrás da porta que ouvira vozes. Escutou, com ambas as mãos enfiadas no peito, mas não ouviu nada. Bateu à porta e gritou com todas as suas forças, Richard! Richard!

Não obteve resposta. Porque chamava por Richard? vozes que ouvira não tinham nada a ver com ele... ou teria, mas a porta permanecia implacavelmente fechada! As forças faltaram-lhe, encostou os braços ao batente, apoiou a cabeça neles e julgou que ia morrer de fadiga e desalento. De súbito, porém, sentiu-se envolvida em braços fortes e ouviu a voz de Kate:

- Minha senhora... minha senhora !   Felizmente o médico chegou neste momento. É o Dr. BroomhalI, Lady Mary, o médico novo, pois o Dr. Briggs disse que tinha de ir a Londres. Vim atrás da senhora, assim que pude largar a bandeja... Pareceu-me tão transtornada, ao passar por mim como se não visse nada! Quando o doutor chegou e eu lhe disse...

O médico, que a seguia de perto, interrompeu-a:

- Francamente, Lady Mary, não está certo! Dissera que estava de cama e venho encontrá-la aqui, neste buraco húmido, a correr...

- Richard - murmurou, Lady Mary. – Encontrem Richard... Procurem-no...

- Sim, minha senhora - prometeu Kate, docemente. Procuraremos. Mas a senhora não devia...

- Tem de ir imediatamente para o quarto - ordenou o médico.

Agarrou-lhe num braço e Kate noutro e levaram-na assim, quase a arrastá-la.

- São tão irregulares - queixou-se Lady Mary, como atordoada.

- O quê? - perguntou o médico, que era um jovem de cabelos ruivos, magro e forte.

- O doutor é demasiado alto - explicou, impaciente - e a Kate demasiado baixa. Parecem. muletas desemparelhadas.

O médico soltou uma gargalhada franca e saudável.

- Um metro! e noventa... concordo que é ser alto! Dê-me licença, Lady Mary...

E, juntando o gesto à palavra, pegou-lhe e transportou-a com tanta facilidade como se fosse uma criança. A velha senhora sentiu-se subitamente melhor.

- Oh, obrigada! - agradeceu. - Desde a minha lua-de-mel que não me pegavam assim.   Richard costumava fazê-lo de surpresa, para me arreliar... não sei se deva permitir-lhe...

- Não tem nada de grave - disse o médico, por cima do ombro, a Kate.

- Richard   é que precisa de cuidados - declarou Lady, Mary.

- Que tem ele? - perguntou-lhe o médico, meio a brincar. - Pareceu excelente, quando ontem o vi na aldeia, a trotar no seu belo cavalo baio!

- Estou assustada. - Fechou os olhos e repetiu: - Estou muito assustada. Acho-o... muito estranho.

- Estranho? - O tom de gracejo desaparecera da voz do médico.

- Olhou-me... olhou-me como se nunca me tivesse visto...

fechou... fechou-me uma porta na cara. Chamei-o e... e... não respondeu.

- Sir Richard também estava lá em baixo, nas masmorras?

- Não. Eu é que corri para lá... quando ele não abriu a... a porta... Há uma velha escada de pedra que leva a...

- Aonde?

- Não sei. Uma espécie de quarto...

Lady Mary calou-se e o Dr. Broomhall olhou Kate de maneira significativa. «Há aqui qualquer coisa que não está bem», dizia o olhar, e a jovem acenou afirmativamente. Tinham chegado à porta do quarto de Lady Mary. Kate abriu-a e o médico entrou e deitou a velha senhora na cama.

Ela porém sentou-se, de súbito, e gritou: _ Richard!

Sir Richard encontrava-se no meio do quarto, como se estivesse à sua espera.

- Minha, querida, - disse,   aproximando-se - onde estiveste? Procurei-te por toda a   parte. Um dos homens disse que te vira vir nesta direcção, mas quando cheguei não te encontrei.

- Richard,- murmurou, olhando-o como se fosse um fantasma -, porque fechaste o painel?

Sir Richard ergueu as hirsutas sobrancelhas e repetiu:

- O painel? Que painel?

Richard, não finjas!

- Não estou a fingir, minha querida . Tu é que.. É evidente que não estás bem. Ela não está bem, doutor.

Antes que o médico tivesse tempo de responder, bateram à porta entreaberta e John Blayne entrou. ,

- Ah, encontrou-a! - exclamou. - Os meus homens disseram-me que se tinha perdido, Lady Mary, e andaram todos à sua procura . - Voltou-se para Kate e perguntou-lhe: - Onde estava ela?

- Nas, masmorras - respondeu-lhe a rapariga, em tom grave.

- Meu Deus! - exclamou Sir Richard. - Quando desistirás dessa absurda caçada ao tesouro? - Podias ter caído com os degraus escorregadios de humidade como estão. Constipaste-te, com certeza. Deita-te, querida.

Empurrou-a docemente contra as almofadas e esfregou-lhe as mãos, ao mesmo tempo que admoestava Kate:

- Como pudeste perdê-la de vista, Kate?

- Lady Mary queixou-se de que o senhor lhe fechara uma porta qualquer na cara - replicou a jovem, sem rodeios.

- Eu, fechar-lhe uma porta na cara? Que absurdo! Estive sempre aqui! Porque foi ela para as masmorras?

- Já lá estivéramos antes. - Kate hesitou, antes de acrescentar: - A... a procurar o tesouro.

-.Mas... julguei que isso não passasse tudo de brincadeira’ - exclamou John Blayne, surpreendido.   -

- Não foi brincadeira nenhuma - afirmou Kate, olhando de um rosto para outro e corando.

Na idade de Lady Mary... - começou o médico, mas Sir Richard interrompeu-o:

- Não se trata de uma questão de idade. Ela teve sempre estranhas ideias acerca de... Bem, sim, talvez últimamente tenha sido pior... Kate, acabaram-se as tolices acerca do tesouro, não a quero preocupada. Sou responsável por ela... Como a acha, doutor?

O médico, que entretanto examinara os olhos e o pulso de Lady Mary, tirou um pó da maleta e respondeu:

-   Sofreu qualquer espécie de abalo e precisa de repouso. Tome isto, Lady Mary. É apenas um sedativo suave. Dormirá um bocado e quando acordar sentir-se-á melhor. Sugiro que saiamos   todos do quarto, para repousar melhor.

- Eu não a deixarei - afirmou Sir Richard, com firmeza.

- Muito bem, mas nós sairemos - concordou o médico. voltarei ainda hoje, mais tarde.

Saiu do quarto, seguido por Kate e por John Blayne, e Sir Richard puxou uma cadeira e sentou-se ao lado da cama. Afagou docemente as mãos da mulher, que o fitou com olhos duvidosos e suplicantes.

- Foi sonho meu, . Richard? - perguntou-lhe, em voz fraca. - Tu não... tu não estavas atrás do painel quando eu... Minha querida, tens de deixar de te preocupar - interrompeu-a. - Eu tratarei de tudo. Em devido tempo, tratarei de tudo. Fecha os olhos, estás em segurança no teu quarto, no nosso lar, no nosso castelo...

Não creio que fosse um sonho.

- As pessoas têm toda a espécie de sonhos... - Não há nada de mal nos sonhos.

A voz de Sir Richard soava muito distante e ela mal ouvia o que ele dizia. Mas talvez não tivesse importância, talvez fosse verdade que sonhara apenas. Richard olharia por ela?..

E deixou-se afundar num reino de paz.

Sir Richard, sentado a seu   lado, afagava-lhe a mão amorosamente, compassadamente, e murmurava-lhe, cheio de ternura, de olhos postos no rosto adormecido:

- Estás tão pálida, pobre querida... Tenho   de cuidar de ti. E posso fazê-lo. Guardei segredo, não te contei.. e ainda não te posso dizer...

Debruçou-se para ela e perguntou-lhe, quase junto do rosto :

- Ouves-me, meu amor?

Não conseguia abrir as pálpebras; estavam muito pesadas. Também não conseguia falar. Aquela fadiga insuportável...Dir-se-ía que tinha um peso de chumbo no corpo... Só ouvia a sua voz a ecoar nos ouvidos.

- Não ouve - murmurou Sir Richard. - Ainda bem... A coroa é responsabilidade minha - Minha, culpa... Sou um fraco. Devia ter lutado com os meus inimigos, como o meu pai lutou, com uma espada! Esperei demasiado ... - Tinha medo de que me chamassem monstro, como a ele, pobre rei mutilado! Mas serei, finalmente, digno do meu nome: Richard IV!

Largou a mão da mulher e começou a andar de um lado para o outro, ao acaso, inclinando-se para ver a jarra de flores primaveris, numa secretáriazinha de pau-rosa, as escovas de prata no toucador, e a sua própria fotografioa, tirada quando era jovem, metida numa moldura de ouro e pendurada na na parede do lado leste.

- Perfeito, suponho ... diziam que era perfeito... Até o meu pai... Mas ele dizia também que eu era fraco. Não era nem sou, ele é que era um monstro! Não, um monstro, não ... Sabia lidar com as pessoas... Eu não sei ... eu não quero... mas deves ser forte, deves ...

Aproximou-se mais da fotografia, e perscrutou o seu próprio rosto, alegre e jovem.

-És fraco... fraco ! Aqui escondido, sem dizeres, sequer, à tua raínha ! Ela jaz ali, na cama, doente, inconsciente... A tua filha corrompeu-se ... até o teu filho foi morto por estrangeiros... O teu único filho ! Sózinho, em Londres... um posto avançado... Porque não ficou aqui, no castelo, em segurança ? Tu não ousaste... tu e os teus segredos ! Deixaste matar o príncipe... O estrangeiro está aqui... aqui, no castelo onde te tens escondido todos estes anos. Odeio-te !

Esmurrou a fotografia, o vidro partiu-se e caíu ruidosamente no chão. Sir Richard ficou de olhos postos nos estilhaços.

- A espada de meu pai – murmurou.

Lady Mary ouviu o estrondo,como se tivesse ocorrido muito longe. Tentou levantar-se, vencer as trevas do sono, abriu os olhos, e viu o marido voltar-se para a porta, cego e rubro. Com um esforço tremendo, gritou-lhe :

- Richard ... Richard, tu estás ...

Doente, era o que queria acrescentar – Richard, estás doente. Vem, deixa-me tratar de ti. Alguém nos ajudará a ambos. Julgou que gritava, mas a voz não lhe passou da garganta. Quís levantar-se, correr atrás dele, e não conseguiu mexer-se. O sono e a inconsciência puxavam-na para trás.

Antes de sair do castelo, o Dr. Broomhall falou em particular com Kate.

- Não estou muito preocupado com Lady Mary; a sua indisposição é passageira, e resulta de susto, frio e boa dose de fadiga. Estará muito melhor, quando acordar, daqui a umas horas. Convém que esteja quente, sossegada e - sorriu, encorajador - livre de preocupações.

- Farei o possível, Dr. Broomhall.’E Sir Richard?

- Ele é que me preocupa, deveras, embora deva esperar qe o dr. Briggs regresse de Londres, para discutir o caso. - Mas ele pareceu...

O médico abanou a cabeça e interrompeu-a:

- O que ele disse em defesa própria foi desmentido pela expressão dos seus olhos. É evidente que sofre de ilusões. Há quanto tempo dura isto, Kate?

- Não sei dizer ao certo, doutor.

- No caso de Lady Mary, foi um choque subito o causador da sua indisposição, mas no de Sir Richard o mal é funcional e, portanto, o tratamento’terá de ser mais complicado.

- Que quer dizer, doutor?

-Emocionalmente determinado e abrangendo considerável período de tempo. - Olhou à sua volta e acrescentou: - Este castelo é bonito, mas gostaria de que Sir Richard e Lady Mary se pudessem afastar   dele por uns tempos... por muito tempo, até. Quando o passado começa a afectar o presente, como parece acontecer a Sir Richard, devem quebrar-se

cadeias. Mas, como disse, terei de discutir o assunto com Dr. Briggs.

- Muito obrigada, doutor.

-Faça o mais que puder por eles, Kate, e daqui a algumas oras voltarei, para ver como está Lady Mary.

. Saiu e encaminhou-se para o seu- pequeno automóvel, que stacionara atrás do grande, de John Blayne.

Meia hora depois, foi anunciado o almoço. Como Sir Richard não se encontrava em lado nenhum e o seu cavalo também não estava na cavalariça, presumiram que saíra para um passeio. Lady Mary dormia profundamente. Philip Webster sentou-se à comprida mesa, com os seis americanos, e Wells e Kate serviram o almoço. Não se demoraram a tomar o café, pois Wells lembrara-lhes que naquele dia o castelo estava aberto ao público e por volta das três horas começariam a chegar os charabãs.

- Haverá gente por toda a parte, como o senhor sabe muito bem, Mr. Webster - disse o mordomo, aborrecido. - Tem razão, Wells, mas eu não serei um deles. Irei à estalagem fazer uns telefonemas. E o senhor? - perguntou ao advogado de Blayne. - Posso oferecer-lhe uma boleia no meu Austin, Mr. Holt?

- Agradeço muito, Mr. Webster. Também tenho assuntos a tratar e, para isso, a relativa tranquilidade da estalagem da aldeia parece-me mais aconselhável que ’o castelo. E você, John?

- Ficarei aqui, com os rapazes. Trabalharemos até ouvirmos chegar os carros e depois sairemos do caminho. Sir Richard ainda o fez primeiro do que nós, hem?

- Procede muitas vezes assim, Sir - observou Wells, em tom de quem se desculpa. - Custa-lhe ver essa gente entrar no seu castelo e chama-lhes intrusos e invasores, embora sejam, na sua maioria, ingleses e paguem bom dinheiro.

Sem recorrer ao auxílio de Wells, Sir Richard vestiu o fato de montar, percorreu rapidamente os corredores familiares do castelo, saiu pela porta do lado oeste e dirigiu-se à cavalariça. Mais uma vez sem o auxílio do mordomo, tirou o cavalo da baia, selou-o, ajaezou-o e montou-o com a agilidade de quem estava habituado a lidar com cavalos. Passou a mão pelo pescoço macio da montada, falou baixinho e o baio arrebitou as orelhas e agitou a cauda. As ferraduras ecoaram nas pedras do pátio e depois a relva abafou-lhes o ruído e o animal seguiu a direcção indicada por Sir Richard. Primeiro a trote e a seguir num galope fácil, conduziu o dono pelos prados verdes e ao longo de alamedas ainda salpicadas de prímulas.

Meia hora depois, Sir Richard puxou-lhe as rédeas, defronte da igreja, e desmontou. Antes de atar as rédeas ao poste, levou a mão à cabeça, para acalmar a dor que começava a atormentá-lo. Geralmente uma boa galopada abrandava-lhe a dor e, às vezes, fazia-lha passar por completo, mas naquele dia não sucedera assim.

A igreja estava deserta e escura, como calculara que estaria ao principio da tarde. Sir Richard subiu a nave central e virou para o recanto à esquerda do altar. Ali repousavam os seus antepassados e ali repousaria ele um dia, ao lado de Mary, o último dos Sedgeleys. A um lado ficava o túmulo do pai, encimado por uma estátua jacente, e, no espaço do ombro ao joelho, a espada do seu antepassado William Sedgeley, o homem a quem o castelo fora doado cinco séculos atrás. A tradição dizia que a espada estava ali pronta a ser usada, mas só por um Sedgeley e só num monento, de absoluta necessidade.

Sir Richard parou junto do túmulo, pousou a mão direita na espada e puxou para a tirar da bainha. Saiu com dificuldade, mas ele empregou toda a sua força e o ruído produzido pelo atrito de! metal contra metal ecoou no silêncio da igreja. Levantou-a com as duas mãos, pousou os lábios no punho e depois segurou-a verticalmente, na sua frente.

- Juro - começou, em voz alta e rouca -, juro por meu pai e por meus avós...

.   - Sir Richard! - exclamou o vigário, que subia os degraus do altar.

. - Sim, sou eu Richard Sedgeley, de Starborough Castle.

- Surpreendeu-me, Sir Richard - murmurou o sacerdote, hesitante, espreitando nas sombras do recanto. - julguei ouvir um som estranho e vim investigar.

- Tem na sua frente Richard o IV - declarou Sir Richard, majestosamente, de espada levantada.

- Perdão? - O vigário fitou a estranha figura de rosto corado e olhos’ coruscantes, com a espada levantada à sua frente. - Sente-se bem, Sir Richard? - inquiriu, assustado.

- Lembre-se de que Ricardo, o rei mutilado, foi meu pai! Os seus exércitos eram muito fortes e ele manejava facilmente a espada. Estou aqui para a reclamar! - afirmou, em voz que parecia sobrenatural,

.   Depois afastou o sacerdote e saiu do templo, de espada erguida na mão direita.

- Não se levantará, minha senhora - afirmou Kate -, apesar de estarem a chegar os turistas.

- Mas eu estou levantada - protestou Lady Mary, irritada. - Mais, já estou quase vestida. Vai-te embora, Kate.

- Não vou - teimou a rapariga.

Depois de servir o almoço e de concluir o seu trabalho na copa, Kate fora ao quarto de Lady Mary, esperando encontrá-la ainda a dormir ou, talvez, meio sonolenta.   Em vez disso, encontrara-a sentada na borda da cama, a tentar vestir-se, e os seus protestos e censuras de nada tinham valido. A velha senhora teimava em levantar-se.

- Já te disse, Kate, que preciso de falar com o americano. Tenho de lhe falar de negócios, de um assunto muito importante. Onde está ele?

- O médico deu-me ordens - insistiu Kate, não menos

teimosa. - A senhora deve ficar, na cama. Amanhã, se se sentir...

-   Amanhã será demasiado tarde - interrompeu-a Lady Mary. - E como te atreves a falar-me de ordens, Kate? Esqueces-te de quem és, deveras, e surpreendes-me. Não é à primeira vez que o noto; abusas. Estragámos-te com mimo e agora, lá porque estamos em dificuldades, portas-te muito mal. Abusas, é o que é.

Kate fitou-a, espantada, e desatou a chorar. Nunca Lady Mary lhe falara assim.

- Oh, minha senhora, sabe muito bem que não a posso ver nem a Sir Richard em dificuldades!

- Tenho de falar com o americano. Quero dizer-lhe que parta imediatamente, pois foi ele que provocou tudo isto.

- Oh, concordo que o americano deve partir! - gemeu a rapariga. - Quero que eles partam, todos! Se pudéssemos voltar aos bons dias passados, só nós três e Wells! Havia tanto sossego, tanta paz! - E continuou a soluçar.

- Deixa de chorar, Kate! - ordenou-lhe Lady Mary, impaciente. - Incomoda-me. Sabes muito bem. que não, podemos passar sem ti, sejas lá o que fores. Vá, ajuda-me, pois tenho a cabeça um bocado pesada. Cuidado com esse botão, que está quase a cair... já me sinto melhor, convenientemente vestida.

Leva-me ao americano, esteja ele onde estiver! - Apoiou-se ao braço de Kate e saíram as duas do quarto.

Encontraram-no no terraço, a conversar com um dos seus homens. Lady Mary endireitou o frágil corpo, ergueu a cabeça e chamou:

- Mr. Blayne!

- Faça favor, Lady Mary - respondeu, a sorrir. - Se veio dizer-me para nos irmos embora, garanto-lhe que desapareceremos exactamente cinco minutos antes das três.

Lady Mary observou os homens que se encontravam no interior do castelo, a tirar medidas e a’ desenhar em grandes folhas de papel, e disse a Kate:

- Estes americanos parecem estar por toda a parte, não achas?

- Ainda não pensei nisso, Lady Mary.

- Devias pensar, Kate - redarguiu, com suave severidade. - Hoje em dia, toda a gente devia pensar em tudo. A propósito, Mr. Blayne, importa-se de partir imediatamente, em vez de quando os turistas chegarem?

Olhou-a, intrigado, perguntando a si mesmo se estaria a ser alvo de alguma brincadeira à inglesa,

- Partir, Lady Mary?

- Por favor! - respondeu-lhe a castelã, no mesmo tom agradável. - Com todo o séquito. Kate, diz aos homens que. Mr. Blayne vai partir, a meu pedido.

- Eles não me darão ouvidos, minha senhora. já o tentei antes.

. A brincadeira já ia longa, se de brincadeira se tratava, e John declarou, impetuosamente:

- Claro que partiremos, Lady Mary, mas devo lembrar-lhe que Sir Richard nos deu autorização para ficar. Na realidade, pediu-nos que iniciássemos os nossos trabalhos, como estava planeado, e...

Lady Mary endireitou-se tão bruscamente que se desequilibrou. Kate aproximou-se, para lhe oferecer o braço, mas já não foi preciso. A indignação emprestava novas forças à idosa senhora.

- Como se atreve? Põe em dúvida a minha autoridade? Aqui é a minha casa, Mr. Blayne, eu tenho o direito de... de...

- Partiremos imediatamente.  

- Kate - ordenou Lady Mary, em tom imperioso -, acompanha-o, pois de contrário perde-se. - Baixou a voz e acrescentou: - Olha que não quero que se aproxime de Sir Richard! Se vires Wells; manda-o aqui Imediatamente.

- Sim, minha senhora - respondeu Kate., e seguiu . John Blayne, que saíra para o jardim em vez de informar, primeiro, os seus homens.

Kate alcançou-o, perto de um dos teixos cortados em forma de elefante, e entreolharam-se, em silêncio.

- Que significa isto, Kate? - perguntou-lhe   ele por fim, impaciente. - Como hei-de saber que fazer? Sir Richard disse-me que ficasse, Lady   Mary manda-me embora, e procedem ambos como se vivessem na Idade Média e pudessem dar ordens a toda a gente.

- De certo modo estão a viver no passado, Mr. Blayne; é esse o mal. A culpa é do castelo... têm de se afastar dele. - Deve haver uma maneira, embora não seja, talvez, a maneira eterna - recordou-lhe.

Pegou-lhe na mão, segurando-a como se fosse uma flor, e perguntou-lhe:

-   Sabe que tem umas bonitas mãozinhas?

- Por favor... - corou e tentou soltar a mão, mas ele cobriu-a com a outra.

-   Porque desconfia dos Americanos?

-,Não desconfio... - afirmou. - Porque havia de desconfiar? O senhor é o único americano que conheço.

«Oh, que   linda rapariga ela é!», pensou. Segura de si, graciosa e de aspecto altivo, com um rosto que parecia um quadro, de feições delicadas, pele fina e olhos violeta.

- Então porque não confia em mim? Por favor, Mr. Blayne...

Ao ver a expressão dos seus olhos, o americano largou-lhe a mão.

- Que e, Kate?

Mordeu os lábios e os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. É que eu... - hesitou e calou-se.

É que você o quê? - Segurou-lhe no queixo, para a obrigar à   olhá-lo, mas ela desviou a cabeça.

- Nada... Não é só o castelo. Sir Richard e Lady Mary atormentam-se apenas   por causa do castelo, mas eu tenho de pensar também neles, de olhar por eles...

É o tesouro do castelo, não é?

Sim - murmurou, tomando-o a sério. Creio que é, - Faz alguma ideia do que seja o tesouro?

Olhava-a fixamente e, por momentos, Kate sentiu-se assustada.

- Não... não faço, Mr...  

- John interrompeu-a.

- John - repetiu, como uma criança a aprender uma nova ’lição, na escola.

- Começo agora a compreender.

- Desejava que se fosse embora... sinceramente - confessou, em voz baixa. - Desejava que nos deixasse entregues a nós mesmos.

- Não me deve censurar, Kate. A culpa não é minha e a minha partida não resolverá nada. Se ao menos explicasse... Interrompeu-o, com inesperada impaciência:

- Já lhe disse que não posso explicar nada; sou apenas a criada.

- Não é! É tudo aqui no castelo e não a posso deixar!

- afirmou, em tom firme. - Ficarei até...

Mas ela também sabia ser firme:

- Não ficará. Partirá, como Lady Mary lhe pediu.

Blayne cedeu, de súbito, compreendo que da teimosia nada resultaria:

- Iremos imediatamente

Pouco depois, Wells apresentava-se a Lady Mary.

- Chamou-me, minha senhora?

- Chamei. Quero saber onde está Sir Richard. Os olhos do mordomo pestanejaram.

- Não sei, minha senhora. Saiu a cavalo, antes do almoço. Não deseja mais nada?

- Devia saber, Wells. É seu dever saber sempre onde Sir Richard está.

- Tenho muito que fazer, minha senhora.

- Não me fale dessa maneira!

- Não, minha senhora. Queira desculpar.

Lady Mary fez uma pausa, para que compreendesse que não o desculpava, e depois ordenou:

- Procure-o.

- Sim, minha senhora.

O mordomo afastara-se até à entrada do castelo quando ela o, chamou:

- Venha cá, Wells!

Retrocedeu, com as mãos ressequidas, pendentes ao longo do corpo e uma expressão de surpresa no rosto comprido e velho.

- Wells - murmurou a castelã, em voz baixa e apressada - agora compreendo o que não compreendia antes.

O mordomo fitou-a, inexpressivamente.

- Wells! - chamou, brusca.

- Minha senhora?

Sei tudo!

Tudo, minha senhora? Tudo. Wells, eu vi-o.

A expressão do rosto comprido do mordomo modificou-se. As faces tremeram, pestanejou rapidamente, duas ou três vezes, e humedeceu os lábios, antes de falar.

- Só posso dizer que ainda bem, minha senhora. Tem sido... uma terrível tensão, se permite que o diga.

- Calculo que sim. Fez o que julgava ser justo, Wells, e não o censuro.

Calou-se. O rosto tremia-lhe e o mordomo desviou o olhar, num respeito enternecido. Lady Mary prosseguiu, muito baixo, ,atropelando as palavras:

Wells, o rapaz... Colin... não era seu, pois não? Não, minha senhora...

- Então porque...

- Pela mãe dele, minha senhora. Chamava-se Elsie... Eu andava tonto por ela... doido de amor... mas ela nem para mim olhava, embora soubesse que Sir Richard não podia... que o pai dele jamais consentiria que a filha de um camponês... - Cale-se um instante, Wells...

Estava tão horrivelmente pálida que o velho se assustou, mas não ousou chamar ninguém. Pensar que ela não soubera, em todos aqueles anos! Ele duvidara, mas Elsie afirmara que não, que Lady Mary não sabia...

- Não se atormente agora, minha senhora - pediu, baixinho. - Foi tudo há tanto tempo!

Ele... amou-a, Wells?

- Sir Richard? Oh, não, minha senhora! Foi apenas um capricho, num dia de Verão. Ela própria o sabia. E Elsie   ... tinha medo dele, de certo modo, tão acima da sua categoria   ... - Mas deu-lhe um filho!

Wells hesitou.

- Bem... a criança era um rapaz... sim, minha senhora. Foi, então, por minha culpa que...

Limpou os olhos a um lencinho de renda, que tirou do cinto.

- Foi culpa da senhora o quê?

Lady Mary abanou a cabeça e por momentos não pôde falar.

- Deve ajudar-me, Wells; - pediu por fim.

- Sim, minha senhora, em tudo quanto quiser.

- Precisamos de nos ver livres dos americanos... Ou já partiram?

- Não sei, minha senhora, tenho estado na cozinha, a preparar um guisado de borrego para o jantar...

- Venha comigo agora, temos de encontrar Sir Richard. Estendeu a mão e apoiou-se no braço do velho.

Os quatro jovens americanos dobravam os seus papéis e guardavam-nos nas pastas, entre risos irónicos.

- Sem explicações?

- Ordens superiores, mais nada! . Mandou-nos ? sair daqui dentro de um quarto de hora e disse que se encontraria connosco na estalagem.

- Perda de tempo desde o princípio. - Não, uma vez que nos pagam...

- Olhem, lá vem a velhota a entrar... e o velho fantasma...

Olharam para Lady Mary, que também os observava e lhes pediu, friamente:

- Despachem-se, por favor.

- Nada nos convém melhor, minha senhora.

- Que atrevimento! - exclamou, entre dentes, mas eles ouviram-na.

- Malditos americanos, hem, senhora? Mande-nos para o Inferno... se o Inferno for a América.

Vamos, Wells.

Percorreram aposento após aposento, mas em nenhum ,encontraram Sir Richard. À frente deles, Kate e John caminhavam lado a lado.

John parou, à porta. O rosto de Kate, tão ternamente jovem, tão infantil quando se sentia magoado, estava agora levantado para ele, com os lábios ternos e os olhos cor de violeta, pensou, ao mergulhar neles o seu olhar - enevoados. Para onde vai? - perguntou-lhe ela.

Para a estalagem da aldeia. Nunca mais nos veremos?

Existe algum motivo para nos voltarmos a encontrar, Kate?

Continuou a fitar o rosto que se erguia para si. Só agora compreendia que, afinal, ela era apenas uma rapariguinha. Mostrava-se sempre tão brusca, tão cheia de vida e de actividade, que lhe parecera mais alta do que era. Agora, desaparecida a brusquidão, sufocada a vivacidade, parecia pequena e desamparada. Quis pegar-lhe na mão, mas não se atreveu.

- Creio que não - respondeu-lhe Kate.- Não me ocorre nenhuma razão, mas... ? mordeu os lábios e calou-se.

- Mas o quê, Kate?

- É estranho, mas... terei saudades suas. Estúpido, evidentemente, porque o senhor não as terá minhas.

- É estranho, mas...   terei - afirmou, fitando-a com firmeza.

Apertou-lhe a mão nas suas, e despediu-se:

- Adeus, Katezinha!

- Adeus - redarguiu, muito baixo.

Blayne correu pela escada abaixo,   para   o seu comprido automóvel verde. Instalou-se e voltou-se para acenar, antes de partir. Kate sorriu, ao ver que os seus lábios formavam as palavras «não parto para sempre,!»

Depois, Lady Mary, acompanhada de Wells, reuniu-se a Kate, na escada. A castelã ergueu a frágil mão e acenou. John Blayne olhou o grupo, com um estranho pressentimento, com sincera mágoa. Que seria deles? - Que seria de Kate?

O Sol brilhava, alto, sobre a torre ocidental, e a sua luz dourada incendiava as escuras paredes de pedra. Os três vultos pareciam pequenos e desamparados à sombra do castelo.

O suave vibrar do motor lembrava o bater de um coração, e Kate, ouvindo-o e sabendo quem estava ao volante, sentiu-se invadir por uma grande tristeza. Nunca se sentira tão só. Instintivamente levou as mãos ao rosto, num gesto de medo. Como podia ficar ali, agora? Como resignar-se a nunca mais o ver?

Ao vê-la assim, John Blayne sentiu-se impelido pelo mesmo instinto, desligou o motor, abriu a porta do automóvel e correu para ela...

Contudo, ao chegar, foi a Lady Mary que falou:,

- Lady Mary, suplico-lhe, posso ser de alguma utilidade a Sir Richard? Passa-se alguma coisa de grave?

Ficou surpreendida e respondeu-lhe, agitada:

- Não, não! Vá-se embora, por favor... vá-se embora já!

- Mas, comovida com o seu gesto, acrescentou: - E diga aos seus homens que peço desculpa por lhes ter falado asperamente. Hoje... não sou eu mesma. Agora vá...

Blayne inclinou a cabeça, vencido mas grato, regressou, devagar, ao automóvel. Kate seguiu-o, sem bem saber porquê. Olharam-se mais uma vez, ela silenciosa e com expressão suplicante.

- Não - respondeu Blayne à súplica muda dos seus -, não partirei enquanto não souber o que se passa. Chame-me se... se...

Kate acenou, sem sorrir, e. ele meteu-se no automóvel e partiu. Parada, a vê-lo, afastar-se, deu consigo a soluçar, sem querer saber porque o fazia e sem se importar que a vissem.

Atrás dela, no terraço, Lady Mary e Wells observavam-na, uma escandalizada e o outro irritado. Kate a chorar! Porque choraria a rapariga, agora que o americano partira, finalmente?

- Kate! - chamou Lady Mary. - Kate, vem cá imediatamente!

Mas, nesse momento, chegou o primeiro de três autocarros com turistas,   as portas abriram-se e os passageiros começaram a apear-se.

Wells; ocupou   o seu lugar à porta do palácio e Kate correu para Lady Mary,   dando-lhe o braço. A idosa senhora parecia estar em sentido, mas os visitantes nem a viam, ou se viam não diziam nada. Tinham ido ver uma relíquia da velha Inglaterra e estavam todos resolvidos a receber o valor do dinheiro gasto.

- Bonito castelinho - disse alguém.

- É um dos mais velhos de Inglaterra - comentou outro. Entraram no salão grande e percorreram-no devagar, a admirar as tapeçarias e a tocar, com dedos curiosos, nos painéis trabalhados.

- Estúpidas torrezinhas - comentou alguém.

- Normandas - elucidou outro. - Pelo menos é o que

diz o livro.

- Como pôde alguém viver nestes velhos antros bolorentos? - perguntou uma mulher.

- Por razões pessoais - respondeu-lhe o marido..

- Não parece uma casa, pois não, mãezinha? Parece mais um museu.

- É a bem dizer para que servem os castelos, actualmente. Para isso e para ensinar história aos garotos.

- A mim causar-me-ia calafrios viver aqui!

- Também a mim. Vamos lá para fora, para o sol.

Eram estas as conversas que se ouviam, enquanto a vaga de curiosos, de olhos arregalados, passava de aposento para aposento.

Lady Mary e Kate sentaram-se num banco, debaixo de uma velha faia, à espera de poderem entrar outra vez no seu castelo, já livre de intrusos. O ar sereno da tarde trouxe até elas o barulho de um cavalo a galope e, pouco depois, Sir Richard apareceu, vindo dos lados da aldeia, a cavalgar como se comandasse um exército numa batalha. Tinha a mão direita erguida, a empunhar uma espada cuja lâmina refulgia ao sol. Kate, com Lady Mary agarrada ao seu braço, apressou-se a abandonar o seu refúgio. Chegaram aos degraus que conduziam à porta do oeste quando Sir Richard amarrava o cavalo. Vinha corado, com uma expressão violenta no olhar, e brandiu a espada por cima das suas cabeças.

- Onde está ele? - gritou.- Onde está o estrangeiro? Onde estão os seus homens?

Wells desceu a escada a correr, para segurar   as rédeas do ca valo.

Olharam todos Sir Richard, com uma estranha mistura de terror e admiração. Montado no cavalo arquejante, parecia um quadro de outras eras. O porte imponente, o corpo robusto, a bela cabeça, o forte braço direito a brandir a espada...

- Oh, Wells - segredou Lady Mary, não é maravilhoso?! Corta-se-me o coração. Que hei-de fazer? O que hei-de fazer? - E, de súbito, gritou: - Richard, onde estiveste?

- Deixe-o comigo, minha senhora - murmurou Wells. Afagou, devagar, o pescoço do cavalo e observou, muito calmo:

- Vem cheio de espuma, majestade. Deve ter vindo de muito longe... Mas agora pode descansar; foram-se todos embora.

- Nesse caso devo Perseguí-los! - exclamou Sir Richard. Persegui-los-ei. até ao fim.

- É inútil, Richard - afirmou Lady Mary. - Desmonta do teu cavalo e entra, por favor. Tomaremos chá. Tenho a certeza de que estás esfomeado.

Fitou-a como se não a conhecesse e replicou:

- Silêncio, mulher! Para dentro do castelo! Isto é guerra! Lorde Dunsten, o vosso cavalo! Segui-me... enc.ontrá-los-emos! Kate não se mexera de onde estava. Seria aquilo um pesadelo, no meio da tarde? Porque falava assim o avô a Sir Richard, como se soubesse o que se passava? E Lady Mary...

- Oh, por favor! - gemeu.

Nesse momento Sir Richard   viu os três veículos parados na alameda e as pessoas a atravessarem o terraço, e exclamou:

- Estão a atacar outra vez! Vieram com reforços!

Kate correu para seu lado e compreendeu, de súbito, exactamente o que devia dizer:

- Desça do seu cavalo, Sir Richard. Temos de entrar todos no castelo, depressa, e de fechar os grandes portões. Tem razão, estamos cercados.

. Fitou-a, hesitante. As pessoas que estavam no jardim olhavam-nos, mas seguiam o seu caminho.

,- Venha - insistiu Kate - antes que tomem o castelo. Sir Richard reagiu imediatamente:

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- Para a sala do trono, então,! - gritou. - Ide lá ter comigo, Lorde. Dunsten! Kate, ajuda-me... esta espada... é pesadíssima... Não ouso largá-la...

Kate ajudou-o a desmontar, enquanto Lady Mary os observava, com as lágrimas a correr pelo rosto. Entraram no castelo pela porta lateral, pois o salão grande estava cheio de turistas, atravessaram o terraço do lado oeste e chegaram à biblioteca.

- Deixe-o comigo - disse Kate, baixinho, a Lady Mary. Convencê-lo-ei a ir para o quarto... Avô, diga às pessoas que se vão embora... explique-lhes que ele está doente... que receberão o seu dinheiro.

Wells acenou e Kate seguiu Sir Richard, dando-lhe o braço e deixando-o apoiar-se a ela. Parecia outra vez lúcido, ou pelo menos ela assim pensou, quando chegaram aos seus aposentos.

- Cavalguei muito, Kate - disse, na sua voz habitual.- Parece que havia urgência...   Que faço com esta grande espada?

- Deixe-a ver...

Olhou-a com súbita e incontida desconfiança e uma expressão de medo desesperado.

Deixara outra vez de ser o mesmo.

- Não... não! Não a largarei. É um truque... julgas que não percebo?

Fitou-o,   perplexa, e, horrorizada, viu-o apontar-lhe a espada e avançar direito a ela. Recuou, até ficar encostada à parede e não poder afastar-se mais, aterrada e muda. Erguia-se diante dela, com os olhos coruscantes sob , as sobrancelhas hirsutas... mas, de súbito, baixou a espada e uma estranha e selvagem melancolia substituiu a cólera.

- Minha filha... - murmurou.- Minha filha... minha filha...

Tinha a voz abafada, os olhos cheios de ternura, e Kate sentiu-se ainda mais aterrada.

- Não1 - suplicou. - Não me faça mal!

Sir Richard abanou a cabeça, sorriu e pousou a espada em cima da mesa. Depois, como se a esquecesse, premiu o botão do painel, atrás dela, e a parede deslizou. Entrou no espaço aberto e o painel fechou-se outra vez. Kate susteve a respiração e, logo a seguir, correu ao encontro de Lady Mary, para lhe dizer... Para lhe dizer o quê? Que Sir Richard. desaparecera!

Encontrou-a no terraço, com um ar de indómita autoridade, enquanto Wells despedia os irritados visitantes. - Malditos aristocratas!

- Daremos parte deles, descansem...

- O castelo pertence, agora, ao público, não é verdade?* - Não passa tudo de um monte de lixo!

Kate acercou-se de Lady Mary e disse-lhe, docemente: - Venha, minha querida. Venha tomar o seu chá, antes que tudo isto a mate.

A poeira ’levantada pelos veículos mal assentara ainda quando Philip Webster chegou no seu pequeno e barulhento automóvel Surpreendeu-se ao encontrar Lady Mary e Kate no terraço e ao ver Wells sacudir as mãos, como se nunca mais as pudesse livrar do contágio.

- Não cheguei tarde de mais, para o chá? - perguntou o advogado, esperançado.

- Não, não. - Lady Mary era sempre graciosa, quando se tratava de receber bem. - Íamos, precisamente, preparar-nos para o nosso. Foi uma tarde invulgar.

- Já se sente melhor, Lady Mary?

- Sem dúvida, Philip. Creio que não cheguei a ter nada... Mas onde esteve e que fez?

- Estive horas ao telefone, Lady Mary - informou, rápida e nervosamente, - sempre que conseguia afastar dele o David Holt. Meu Deus, que corda comprida têm os Americanos! Apresentei de novo o nosso caso a todas as pessoas importantes, e prometeram-me estudá-lo o mais depressa possível, o que pode significar a próxima semana ou o próximo ano... Mas onde está Sir Richard?

- Está no castelo - respondeu Lady Mary, entrando. Oxalá esteja bem!

Wells desapareceu na direcção da cozinha, a resmungar qualquer coisa acerca do chá, e Kate acompanhou Lady Mary.

- Mas que aconteceu? - indagou Webster. – Algum mistério mais?

-Vamos procurá-lo.

- Creio que ele está no quarto, minha senhora- disse Kate.

- E o chá? - queixou-se Webster.

Mas como não lhe dessem ouvidos, não teve outro remédio senão seguir as duas mulheres. Algures, ao longo do corredor, Wells; juntou-se-lhes, quase sem se tornar notado. A porta do quarto de Sir Richard estava fechada apenas no trinco e Kate abriu-a. Em frente, o painel estava outra vez aberto. Sir Richard voltara... para levar a espada. Desaparecera de cima da mesa.

- Sabia da existência deste painel? - perguntou Lady Mary ao advogado, lívida e em voz fria.

- Sabia. Foi ideia do pai de Richard, a quem este quarto sempre pertenceu, Quando morreu, Richard mudou-se, para à...

- Ignorava - declarou a castelã. - Assim como ignorava existência desta... desta saída. Aonde leva?

- Ao quarto da torre leste- informou Webster. - Estive

lá uma vez. Foi lá, até, que o pai de Richard morreu. - Ignorava, igualmente, esse pormenor.

- Eu sabia, minha senhora - disse Wells. - Estava lá quando ele morreu, e Sir Richard também... Sir Richard era então muito jovem. A morte foi súbita. O senhor velho estava sentado na grande cadeira de carvalho, a ver com o filho um grande livro, muito antigo, que fala do castelo, e de súbito soltou um suspiro profundo e caiu para a frente. Foi um grande choque, embora soubéssemos que sofria do coração desde que fora tão gravemente ferido na guerra, em Liège. Estava a brincar com Sir Richard -eram muito unidos,quase misteriosos- e acabava de dizer qualquer coisa acerca de seu filho, o príncipe, e de levantar o braço e agitar uma velha bandeira de seda com o escudo de armas dos Sedgeleys, que estava dobrada no livro. Disse, em francês, uma frase semelhante a «Morreu o rei - viva o rei!», riu-se... e logo a seguir morreu.

- Tantas coisas que eu nunca soube!- murmurou Lady Mary, mais pálida do que nunca.- Onde está Kate? - perguntou, olhando vagamente em redor do quarto. - Diga-lhe que eu... eu... eu tenho de...

- Estou aqui, minha senhora - respondeu-lhe Kate, alarmada.- Quer voltar para o seu quarto, minha querida?

-   Não... Temos de o procurar... ali...

Apontou o painel aberto e entrou, à frente, no corredor que se seguia. Webster ia a um lado, Kate a outro e Wells; atrás. Caminharam em silêncio, a subir, e por fim Wells disse:

- Isto era uma escada, noutros tempos, mas o pai de Sir Richard mandou-a transformar numa rampa, por assim lhe ser mais fácil subir.

Ninguém fez comentários. Continuaram a subir até chegarem ao fim, contornaram a torre e encontraram-se perante a porta fechada, no alto.

- Lembro-me disto - declarou Lady Mary, experimentando a porta, que estava fechada por dentro.

- Richard! - chamou. - Abre a porta, por favor.

O único som que lhe respondeu foi uma tosse estrangulada.

- Richard, abre imediatamente - ordenou.

Caiu qualquer coisa ao chão e ouviu-se arrastar uma cadeira pesada.

- Deixe-me falar-lhe eu, minha senhora- pediu Wells, em voz baixa.

Aproximou-se da porta e levantou a voz:

- Meu soberano, o inimigo foi derrotado.   Desbaratámo-lo. Estou às vossas ordens, meu senhor.

Sir Richard respondeu imediatamente, em   voz estentórea: - Sois um traidor, Lorde Dunsten! Fostes   vós que. deixastes o inimigo entrar no meu castelo! Chamai os? meus guardas!

Os outros escutavam e olhavam Wells, que abanou a cabeça e recomeçou, corajosamente:

- Sois injusto comigo, Majestade, sois, deveras! Servi vosso pai e sirvo-vos a vós fielmente! Mas se me julgais culpado, chamarei os guardas e entregar-me-ei!

- Mandai embora essas pessoas que estão convosco - ordenou-lhe Sir Richard. - Abrirei a porta, mas só a vós.

Lady Mary fez sinal a Kate e a Webster para a seguirem, afastaram-se um pouco e olharam para Wells, que soltava longos suspiros. Afastou-se alguns passos, regressou para junto da porta, cruzou os braços e inclinou-se diante deles, como a despedir-se, e por fim bateu sete vezes.

Ouviram o som de um ferrolho a ser aberto e a voz de

Sir Richard ecoou no corredor:

- Estais só?

- Sim, meu soberano - respondeu Wells, em voz alta -

- Mandai selar os cavalos! Acompanhar-me-eis!

- Selai os cavalos! - gritou Wells, em voz trémula do esforço que fazia. - Às ordens de Vossa Majestade! Esbaratemos os americanos!

A porta abriu-se, mas em vez de Sir Richard apareceu apenas o seu braço direito, de espada em punho. Wells entrou e a porta fechou-se, ruidosamente.

Lady   .   Mary, que sustivera a respiração, voltou-se com súbita energia para Webster e ordenou-lhe:

- Chame o médico, diga-lhe que venha imediatamente. Não sabemos o que vai acontecer atrás daquela porta fechada. Peça-lhe que não perca tempo.

Mal acabou de falar, desceu rapidamente a rampa, a caminho do salão grande.

Kate correu atrás dela e murmurou, ofegante:

- Com licença, minha senhora! Lembrei-me de uma coisa, dispense-me só um momento. Espere por mim no salão grande.

Lembrara-se, de facto, de uma coisa: John dissera que não partiria ainda da aldeia ! Correu à copa e telefonou daí para a estalagem.

- Mr. Blayne está aí, George - perguntou, quando o estalajadeiro atendeu.- Fala Kate, do castelo.

- Está, sim. Sentou-se agora mesmo, a tomar uma chávena de chá, no jardim. Que aconteceu? Está a respirar como uma orca ...

- Preciso de falar com ele, por favor . Diga-lhe que é um recado muito importante !

- Pois sim, vou chamá-lo.

- Por favor, George !

Pouco depois, ouviu a voz do   americano

- John Blayne...

- Oh ! – Exclamou, ainda ofegante. -Vá imediatamente para a América, sim? Suplico-lhe!

-Kate! Que diabo aconteceu?

-Por favor, não posso dizer ao telefone, com a aldeia toda à escuta, mas é muito perigoso para si. Não se demore nem mais um momento !

-Já são demasiados mistérios, Kate!-protestou. -Se é assim tão perigoso, irei ao castelo certificar-me com os meus próprios olhos.

- Não o deve fazer !

- Então diga-me ...

-É que... Sir Richard não está bem... encontra-se fora de si... não sabemos porquê, mas quer... quer matá-lo.

- Matar-me ? – repetiu, a rir. - Que absurdo!

- É verdade! Será melhor nunca mais o ver. Acredite, será melhor para todos nós.

- Porque havia de ter medo?

- Ele julga que o senhor é seu, inimigo.

- Que tolice! - exclamou, novamente a rir. - Não vivemos na Idade Média.

- Sir Richard vive... E não é caso para rir, se é de mim que se ri! Repito-lhe que ele o quer matar!

- Kate...

- Diga?

- Tem medo por mim?

A resposta foi quase inaudível e hesitante:

- Sim.

- Então vou para aí.

- Não... por favor saia da aldeia. _ deixe a Inglaterra, arrume já as suas coisas...

- Não poderei esperar até amanhã, só para saber como ele está   ?

- Não. É um caso de vida ou de morte. Adeus, adeus! .   - Adeus, Kate - despediu-se, e desligou.

Ao voltar-se, deparou com o estalajadeiro atrás de si.

- Que se passa? - perguntou-lhe George. - Que aconteceu no castelo?

- Querem que eu saia do país - respondeu-lhe, devagar. - Não sei porquê... não compreendo...

- Quando Sir Richard dá uma ordem, quer ser obedecido - redarguiu o homem, em tom de advertência.

- Talvez isso dependa de quem. receber a ordem. - Kate é uma rapariga teimosa, Mr. Blayne, mas boa pequena. Lady Mary tem sorte por possuir uma criada assim, nestes tempos...

- Ela não é uma criada, George.

- Então o que é?- Os olhos redondos do estalajadeiro arregalaram-se ainda mais.- Quem é ela, então? – Descobri-lo-ei. É por isso que fico.

- Deseja um quarto Da estalagem, esta noite, Mr. Blayne? John não respondeu logo, mas por fim acenou com a cabeça:

- Talvez sim, George... só para esta noite... - Que vai fazer agora, Mr. Blayne?

- Voltarei ao castelo assim que acabar de beber o chá.

Wells enfrentava agora o amo, no quarto da torre. - Largai a espada, Majestade - pediu.

Mas Sir Richard, apontando-lha, ameaçou, em voz rouca: Traspassar-vos-ei!

O quarto dançava em círculos diante dos seus olhos injectados de sangue, círculos vermelhos, sulcados de luzes, que quase não lhe deixavam ver Wells.

- Devo abrir a porta, meu senhor - continuou Wells. A vossa rainha deve saber tudo, agora.

- Eu próprio lho direi, traidor. - gritou Sir Richard, avançando para o vulto cinzento, que ora aparecia, ora desaparecia.

De súbito, ouviu ruídos atrás de si--alguém a gemer e a arquejar, o atrito de um ferrolho enferrujado. Entretanto, como Wells; passara para a retaguarda, teve de girar nos calcanhares e quase caiu. Wells desviou-se para o lado. A porta continuava fechada.

- Sois um demónio - prosseguiu Sir Richard. - Pensáveis enganar-me, hem? Passar-vos para os meus inimigos! Mas tenho uma maneira de vo-lo impedir, finalmente. Eu, Ricardo IV, farei o que Rícardo III fez... Esta espada... esta espada... Ah, estas malditas cores a dançarem por toda a parte! Oh, vejo-vos aí!

Via, de facto, um rosto pálido e aterrado, o rosto de um velho, de um desconhecido. Lançou a espada para a frente, na direcção dessa cara, e no mesmo instante o corpo rolou no chão. Viu o corpo caído aos seus pés e olhou para a es   pada, perplexo:

- Está suja de sangue - murmurou, enojado, e deixou-a cair ruidosamente na pedra.

Do lado de fora da porta, o pequeno grupo escutava, aterrorizado. Ninguém viera ajudá-los. O médico, informara Webster, não estava no consultório, e os americanos havia muito tinham sido despedidos.

- Não quer que chame o vigário, ao menos? - perguntou Kate, mas nesse momento viu John,. ao fundo do corredor, correr para eles.

- Graças a Deus, graças a Deus! - exclamou Lady Mary, ao vê-lo.- Mas como soube que precisávamos de auxílio? - Kate disse-me que não viesse, que havia um perigo qualquer... e por isso vim! Fui direito ao quarto de Sir Richard e ao ver o painel aberto entrei e subi, como o Coelho Branco em Alice no... - Calou-se, ao ver as expressões dos três rostos, e pediu, subitamente grave: - Digam-me depressa o que aconteceu.

- Sir Richard está ali - informou Lady Mary, apontando.

- Fechou-se por dentro.

- O meu avô também lá está - acrescentou Kate.

- Sir Richard está muito doente - disse Webster. - Precisamos de arranjar maneira de chegar até ele.

- As masmorras! - exclamou ele. - Há uma passagem...

- A porta é de ferro maciço - lembrou-lhe Lady Mary. E está fechada.

- Deve haver uma chave, algures - alvitrou o advogado.

- Claro que a fechadura estará ferrugenta, mas com um machado...

- Um momento! - pediu John. - Há electricidade, lá em baixo?

- Há - respondeu-lhe Kate. - O pai de Sir Richard instalou-a nas adegas.

- Se a porta é de ferro... - começou Webster, mas John interrompeu-o:

- Um dos meus homens deixou cá um broquim eléctrico e tencionava vir amanhã buscá-lo...

Virou-lhes as costas e correu pela rampa abaixo, seguido de Kate. Quando Lady Mary e Webster chegaram à porta da masmorra, ouviram o som do broquim eléctrico a cortar o metal. O   instrumento fazia um ruído terrível e era impossível falar. Só lhes restava esperar.

- Agora ajude-me, Webster - disse John, por fim. - A porta é pesada e devemos deixá-la cair suavemente. É uma sorte ser estreita! Kate, leve daqui o broquim... Agora, Webster... Você daquele lado, eu deste... Afaste-se para trás, Lady Mary, por favor.

Obedeceram-lhe todos, sem uma palavra, e o americano e o advogado baixaram lentamente a porta, para o chão de pedra. Espreitaram para a escuridão e depararam com uma cela sem janela.

John transpôs o limiar e exclamou:

-£ uma espécie de chaminé! Olhe, Webster, não, tem tecto... e, veja, um rectângulo de luz, lá em cima. Webster entrou também e olhou para cima.

- Tem razão... Conduz à torre.

- Mas como? - murmurou John. - Deve haver degraus... Sim, aqui na parede! Sente-os?

- Sim, meu Deus! - exclamou Webster. - Mas detestaria...

- Ouvem alguma voz? - perguntou Lady Mary.

- Nem um suspiro - respondeu John, a tactear os degraus na parede. - Posso subir... Posso subir e ver o que...

- Oh, não! - suplicou Kate, entrando também. - Não suba, por favor! Se cair...

- Não cairei - afirmou John. - Sou alpinista, Kate, e dos bons.

Subia já, agarrando-se ao degrau que ficava por cima da sua cabeça, a tactear o caminho.

- Mas que lhe acontecerá, quando lá chegar?- gritou a rapariga, torcendo as mãos. - Como sabe...

- A única maneira de saber é ir lá. Leve Lady Mary para cima, Obedeça-me, Kate... Webster, acompanhe-as. Encontrar-me-ei com vocês lá no alto, quando abrir aquela porta.

Obedeceram-lhe mais uma vez e,   sozinho, Blayne subiu devagar, mas com perícia, os estreitos degraus. A abertura quadrada, no cimo, devia ser um alçapão... Lembrava-se de uma porta assim nas velhas cavalariças da casa onde morara em criança, no Connecticut. Nesses tempos subira através de túneis de feno, agora subia através de um túnel de rocha e tentava não pensar, para não ter medo. O silêncio parecia sobrenatural. Nem uma voz, nem um som... Onde estaria Sir Richard?

Continuou a subir, interminavelmente, esforçando-se por não fazer barulho. A certa altura, na aresta de um degrau, a mão escorregou-lhe e foi quase catapultado para o fundo do abismo, mas conseguiu agarrar-se ao degrau de cima. Mão atrás de mão, pé atrás de pé, chegou por fim à abertura e entrou numa sala, brilhantemente iluminada pelo candeeiro colocado em cima de uma mesa de carvalho esculpido. Tentou fechar o alçapão, mas os velhos gonzos não cederam.

Sentado à mesa, numa grande cadeira de carvalho, encontrava-se um vulto estranho, envolto num velho manto de veludo cor de púrpura e tendo na cabeça uma coroa de ouro - Não, de ouropel. Sir Richard! Não podia ser... e contudo teve imediatamente a certeza de que era. Parecia ler em voz baixa um enorme livro e segurava na mão direita qualquer coisa com uma extremidade assente no chão. Um ceptro? Parecia autentico, de ouro maciço e faiscante de pedras preciosas! Afinal sempre havia um tesouro e Sir Richard encontrara-o... Porque diabo se escondia ali? Que mistério havia em tudo aquilo?

Parado junto do alçapão, John perguntava-se se devia falar. Devia...

- Sir Richard... - chamou, baixinho.

Sir Richard levantou a cabeça, como se quisesse escutar, e baixou-a de novo. Foi então que John viu, ao lado da porta, o corpo caído de Wells. Perto encontrava-se uma espada comprida e fina, que verificou, horrorizado, estar ainda húmida de sangue.

Ficou petrificado, sem poder desviar os olhos do macabro espectáculo, enquanto Sir Richard murmurava, com a cabeça caída para o peito. Que fazer? Não convinha, por certo, arrancá-lo àquele torpor enquanto não abrisse a porta. Continuou imóvel, procurando distinguir se o ferrolho estava metido na argola. Ferrolho? Eram três, nem menos, e estavam metidos nas respectivas argolas! Tinha de se aproximar em silêncio e de os puxar um por um, para depois puxar a porta... Mas a espada... precisava de se apoderar dela, por uma questão de segurança.

De respiração suspensa, chegou à porta e estendeu a mão por cima do. corpo. Pobre Wells! Desviou o olhar do rosto morto, desfigurado numa careta de medo e dê olhos abertos...

O primeiro ferrolho abriu-se facilmente e sem o mínimo ruído; o segundo produziu um ligeiro atrito... O murmúrio cessou. John ficou imóvel, um instante, e depois voltou-se e olhou para trás. Sir Richard não se movera. Continuava sentado, com a cabeça inclinada para o livro, atento à página em que estava aberto.

Mas estava silencioso! Teria os olhos fechados? Talvez dormitasse... Aguardou, alerta. Sim, era possível que Sir Richard tivesse adormecido, com sono leve dos velhos. Tinha de se apressar. Tentou abrir o terceiro’ ferrolho, mas estava perro e não cedia facilmente. Teve de empregar as duas mãos e todas as suas forças... Nem metade do ferro saíra ainda quando sentiu qualquer coisa nas costas, qualquer coisa bicuda, que o empurrava. Olhou para trás, para a direita, verificou que a espada desaparecera e compreendeu, acto continuo, quem a empunhava.

- Estou aqui apenas para o ajudar, Sir Richard- disse, em voz clara.

A espada empurrou-o com mais força, obrigando-o a mover-se para a esquerda, mas sem lhe. conseguir escapar. Fosse para que lado fosse que se movesse, a espada acompanhava-o e sentia-a cortar-lhe a roupa e picar-lhe a pele.

- Desejei este encontro - declarou Sir Richard, entre dentes.- Procurei-o! Assim fica tudo arrumado entre nós, ao fim de todos estes anos, agora que o tenho em meu poder. Depois de todos estes anos em que me perseguiu...

- Volte a si, Sir Richard! - aconselhou John, que se sentia empurrado, passo à passo, para o alçapão, sempre com a espada espetada nas costas.

- A obrigar-me a esconder o meu filho para salvar a sua vida... Em vão.— em vão! As suas bombas mataram-no! Filho? Que filho? Sir Richard não tinha filho nenhum...

O sonho de um filho jamais nascido!

Sentiu uma punhalada de dor e um líquido quente escorreu-lhe pelas costas.

- Sir Richard! Sou seu amigo - gritou, desesperado.- Não pode odiar um amigo!

- Não me digno odiá-lo- replicou o velho. - E trate-me pelo meu verdadeiro nome! o que faço é dever meu, como rei. Podia té-1o envenenado, à minha mesa, mas isso incomodaria outros. Devo desempenhar esta tarefa sozinho. De joelhos, de joelhos.

John virara-se, de súbito,. e agora encontravam-se cara   a cara. Santo Deus, como era absurdo encontrar-se à mercê de um velho doido inglês! Mas estava preso entre a ponta de uma espada e a bocarra de um alçapão! Fora bom   esgrimista, em Harvard... Uma vez, no seu ano de caloiro, aparara uma espada na mão e ficara a saber como cortava!

- De joelhos, já lhe disse! - gritou Sir Richard. - Ensinar-lhe-ei a apresentar-se diante de um rei!

- Mas, por favor...

Tentou rir-se de tudo aquilo, mas o riso morria-lhe na garganta. Aqueles olhos que o fulminavam com uma fúria maníaca...

- De joelhos! - repetiu o louco, entre dentes. Caiu de joelhos, para escapar à espada.

- Ouça-me, Sir Richard... Está bem, rei ou lá o que e! Lady Mary tinha razão, há um ’tesouro no castelo... Está ali na mesa... o seu ceptro real... chegará para conservar o seu castelo. Baixe a espada, pois garanto-lhe que não precisa dela. Chamarei Lady Mary e dir-lhe-ei que a espera com o tesouro... Com o tesouro, homem!

Sir Richard fitava-o, mas a fúria desvanecia-se. Parecia intrigado. Baixou a mão direita, dirigiu-se, a cambalear, para a mesa, largou a espada e pegou no ceptro.

John endireitou-se e aproximou-se, sorrateiro, da mesa, atraído pela espada, sem deixar de falar.

- Webster arranjará uma maneira de dispor do ceptro. Vale uma fortuna...

Estendeu a mão para a espada... Ah, graças a Deus! Agora dominava a situação, podia abrir ’a porta e pedir auxílio. Mas, mal pegara na espada, viu Sir Richard erguer o pesado ceptro com ambas as mãos e, para seu espanto, fazer menção de lho atirar à cabeça, como se fosse uma maça. Recuou e ergueu a espada, para aparar o golpe com ela, fintando para um lado e para o outro, livrando-se de todas as investidas de Sir Richard, mas com tão escassa margem que sabia não poder distrair-se uma fracção de segundo que fosse. De uma das vezes saltou para o lado, quando o ceptro faiscou por cima da sua cabeça, e o pesado objecto bateu num canto da secretária e desfê-lo.

Enquanto o louco duelo prosseguia, enquanto se esforçava por não ferir Sir Richard e salvar, apenas, a sua vida, tinha consciência, embora vaga, de um constante murmúrio, de uma torrente de palavras entrecortadas e desconexas que brotavam dos lábios espumantes do velho.

- As cinzas do seu corpo... Meu   filho, meu filho! Wells sabia. Onde está Wells? Wells... Wells... Wells...

A voz de Sir Richard ergue-se, esganiçada, ao mesmo tempo que levantava outra vez o ceptro e avançava, cambaleante.

John ouviu o grito, por entre a torrente de palavras, e não se atreveu a parar. O ceptro encontrava-se por cima da sua cabeça... Desviou-se para o lado, correu para a esquerda e para a direita, fugindo de canto para canto. Sir Richard perseguia-o sempre, com passo incerto, mas conseguindo às vezes imobilizá-lo, usando o ceptro como uma moca. Uma vez esfolou-lhe a cara, outra bateu-lhe no braço esquerdo, outra ainda num ombro... Ah, mas a espada era forte, uma jóia de espada, e a sua mão não perdera a perícia. Sir Richard exigia força e subtileza, enquanto arquejava e gemia sob o peso da improvisada maça. Ceptro e espada cruzaram-se e os dois homens ficaram cara a cara, um a tentar por todas as formas não ferir o oponente.

- Trate dela, Kate! - gritou John.

Mas Lady Mary afastou-os a todos, quando se aproximaram. - Estou bem - afirmou.

Tentou humedecer os lábios secos, lançou-lhes um sorriso triste, dementado, e fitou-os com olhos que não viam.

- Eles não ajudaram, afinal! Por isso, talvez não existam! Falava em voz alta e clara e, repelindo as mãos estendidas para a ajudarem, afastou-se de todos.

O dia estava fresco e o ar puro, com o sol delicado de uma manhã de Verão inglesa. O castelo nunca parecera tão belo, pensou John, que viera a pé da aldeia, sentindo que precisava de algum tempo a sós consigo mesmo, antes de se encontrar com Kate. A paisagem estava parada e calma e na aldeia também reinava o silêncio. As pessoas conservavam-se em casa, a falar da sombra que se abatera na região. No inquérito ficara provado que a morte fora acidental. Sir Richard morrera e com ele o último Sedgeley. Para quem ficaria agora o castelo?

John pedira que lhe levassem o pequeno almoço ao quarto; mas Thomas surgira-lhe à porta e perguntara:

- Que será, agora, de todos nós, Sir? Contávamos com Sir Richard, compreende? Às vezes era uma pessoa complicada e todo aferrado às suas ideias, mas estávamos habituados a isso, já do tempo do seu pai. Eram arrogantes e orgulhosos, mas tinham esse direito. Foram os iguais a eles que fizeram a Inglaterra. Assim, que vai ser de nós?

- Não sei, Thomas... e creio que, por enquanto, ainda ninguém sabe. Mas hão-de dizer-lhes alguma coisa, com certeza. - Temos de esperar - murmurou Thomas, tristemente.

John despedira-se com um aceno de cabeça e seguira o seu caminho, ao longo da estrada pavimentada que contornava a aldeia, e metera depois pela estrada que atravessava os prados e a floresta. Kate devia esperá-lo na alameda de teixos. Na noite anterior, depois de ele ter tratado de tudo para o funeral, tinham-se despedido com um aperto de mão.

- Voltarei de manhã - prometera-lhe. - Espere-me na alameda dos teixos. Cerca das onze, está bem?

Acenara que sim.

E lá estava, de vestido branco, na alameda sombria. Como parecia pequena entre os gigantescos arbustos que a cercavam!

O sol caia a pino e ela caminhava numa esteira de luz estreita, mas suficiente para a roubar às sombras e lhe incendiar os cabelos.

Encontraram-se, John apertou-lhe as duas mãos e conteve-se, para não a apertar nos braços. Era ainda demasiado cedo e ela sentia-se naturalmente triste por tudo quanto acontecera.

- Está cá o vigário - informou. - Veio cedo, a pedido de Lady Mary. A senhora quer a cripta cheia de rosas vermelhas e afirmou que não deseja um sermão comprido. As pessoas poderão entrar e aproximar-se quanto quiserem, e a espada partida deve voltar para o seu lugar.

- Como está ela?

- Cheia de coragem. Esta manhã falou dele calmamente embora eu tenha a certeza de que não dormiu, tão grandes são os círculos roxos que lhe pisam os belos olhos. Disse sentir-se .contente por o marido ter partido primeiro, pois suportaria melhor estar só do que ele. As mulheres são mais fortes quando se trata de determinadas coisas, afirmou. Os homens querem muito, disse-me, nós, as mulheres,

pedimos na realidade muito pouco. Apenas alguém que nos dê um pouco de   afecto, com quem possamos conversar... e a quem possamos agarrar a mão...

A voz tremeu-lhe e John apertou-a nos braços. Kate apoiou a cabeça no seu peito e Blayne encostou a cara aos seus cabelos.

- Kate... - murmurou, passado um momento. John?

- Não assistirei ao funeral. Acha que ela se importará muito? Não posso, depois do último e terrível encontro na sala do trono.

Pararam, de mãos dadas, e John admirou-lhe o rosto impecável, à luz do sol.

- Não - respondeu Kate. - Ela compreenderá. É uma mulher maravilhosamente compreensiva. Esta manhã confessou que desejava não ter de ir, também, ao funeral. Ficou sozinha com ele, ontem à noite, e depois disse-me que se sentia contente por Sir Richard estar, enfim, em paz, junto dos seus antepassados, entre os quais fora sempre o seu lugar.

Ao fitá-la, John perguntou a si mesmo se Lady Mary lhe teria dito alguma coisa a respeito da sua verdadeira identidade. Saberia Kate que era filha do filho de Sir Richard e, portanto, sua neta?

- Kate, olhe para mim!

Obedeceu imediatamente, levantou a cabeça e corou, ao ver o seu sorriso.

- Diga, John.

Lady Mary disse-lhe alguma coisa acerca de uma criança? De uma criança? Não. De que criança?

Calou-se, pensativa, e acrescentou:

- Disse, isso sim, que desejava muito ter dado a Sir Richard um filho e que sabia ser sua a culpa de ele não ter tido um herdeiro. Mas eu afirmei-lhe que a culpa, não podia ser sua, pois ela desejava filhos tanto como ele- um filho, ao menos, por causa do castelo.

- Que respondeu ela?

- Que não valia a pena falar no assunto. A seguir, não sei porquê, disse-me que a rainha Isabel estivera neste castelo, depois de Essex ter sido decapitado. Amava-o, compreende, embora ele tivesse metade da sua idade. Mas nunca disse nada, depois de ele morrer. O seu lema era Video et taceo, o que era um bom lema para uma mulher, afirmou Lady Mary sobretudo para uma mulher apaixonada por um homem.

- Vejo e calo - murmurou John. - É uma boa divisa para   todos nós.

Fez-se silencio, entre ambos.

- Agora não quer o castelo, suponho? - perguntou Kate, libertando as mãos e metendo-as nas algibeiras do vestido. John’ respondeu-lhe devagar, com muitas pausas para reflectir:

- Seria fácil para mim fugir dele... fugir dele e esquecer. Sim, o castelo enche-me o coração de horror e de amor. É um castelo muito, muito velho... e até os castelos devem ter mal dentro deles, quando vivem tanto tempo... Mas o mal não está no castelo e, sim, nas pessoas que o usaram para o mal. Vê como o sol bate nas torres, Kate? Vê como é lindo?

Puxou-a e olharam por entre os teixos.

- É uma obra de arte e desejo tão pouco a sua destruição como desejaria a de um livro ou de um quadro. Quero que gerações de pessoas - gerações novas - o vejam e apreciem e o purifiquem através de uma vida nova.

E leva-o?

- Sim, creio que isso foi legal e voluntariamente estabelecido. Mas deixarei qualquer coisa em seu lugar: uma bela quinta moderna, equipada com os melhores maquinismos. Meu pai gostará... e Lady Mary viverá perto e verá - a terra florir.

- E eu estarei com ela - declarou Kate, em voz - baixa.

- Engana-se - afirmou John, com firmeza. - Ela não lho permitirá. Se a conheço - e creio, que a conheço -, não lho permitirá. E eu também não permitirei! Viverá no outro lado do oceano, num país novo, minha Katezinha., Com o homem que lhe quer.

Kate respirou fundo e tentou rir-se.

- Como pode ter a certeza de... de tudo! - exclamou. Com que facilidade o diz!

John segurou-lhe a cara entre as mãos e pediu:

- Diga-me: enganei-me.

Trocaram um longo olhar - muito mais do que um olhar -, e ele viu, através daqueles fundos olhos cor de violeta, o coração da mulher que escolhera. Kate, pelo seu lado, viu um homem que podia adorar.... que adorava!

- Não! - respondeu. E, passados momentos:

- Continuaremos a viver no   castelo, depois de ele ser transferido para o Connecticut?

- Não; - respondeu-lhe, sem   hesitar. - Não viveremos nele. Nem nós nem ninguém, nunca mais. Moraremos numa casa nova, os - dois, com aposentos para Lady Mary, se a ela agradar a ideia de um país novo, de outra vida... sem fantasmas.

- Oh, lembra-se de tudo. - exclamou, extasiada. Beijaram-se, então - que outra coisa podiam fazer?! -, e só se separaram quando os sinos da igreja dobraram... Não, quando tocaram!

- Ouça... - segredou Kate.- Lady Mary disse que não queria que dobrassem afinados, mas, sim, que tocassem uma canção que ele costumava cantar, quando eram novos... «Não quero o cheiro nem o som da morte....», disse ao vigário.

Hesitou e, com um sorriso terno, pediu:

- Posso ir um bocadinho para junto dela, John? Até tudo acabar? Terei o resto da vida para passar a seu lado... Como recusar-lhe um pedido, agora ou jamais? Acenou-lhe com a cabeça? a sorrir, e sentou-se num banco do jardim, de onde, por cima dos altos teixos, via o castelo recortado no céu azul.

- Esperarei - disse. 

 

                                                                  Pearl S. Buck

 

 

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