Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MORTE NO TEATRO LA FENICE / Donna Leon
MORTE NO TEATRO LA FENICE / Donna Leon

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT 

 

 

Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

 

O RENOMADO diretor de orquestra alemão Helmut Wellauer aparece morto, aparentemente envenenado por uma xícara de café com cianureto potássico, durante uma representação da ópera La Traviata no célebre teatro veneziano La Fenice. Até o comissário Brunetti, acostumado a confusa criminalidade de Veneza, se surpreende pela quantidade de inimigos que o músico deixou em seu caminho para o topo. Mas quantos teriam motivos suficientes para matá-lo?
O comissário Brunetti, armado só com sua paciência e sagacidade, resolve nesta novela policial seu primeiro caso, embarcando em uma viagem de exploração do mundo, muitas vezes obscuro, tanto da ópera quanto da família da vítima, e acaba retirando uma conclusão surpreendente.

 

 


Um

O TERCEIRO aviso, que anunciava que a ópera iria prosseguir, soou discretamente nos salões de descanso e nos bares do teatro La Fenice. O público apagou os cigarros, apurou as bebidas, concluiu as conversas e se dispôs a voltar aos seus locais. Na sala, brilhantemente iluminada durante o entreato, se ouvia o surdo bulício dos que entravam. Aqui refulgia uma joia, ali uma estola de visom se ajustava a um ombro desnudo ou uma unha sacudia o pó de uma echarpe de seda. Primeiro se encheram os andares, depois a plateia e, por último, as três fileiras de palco.


Diminuíram as luzes, a sala ficou na penumbra e renasceu a expectativa criada pela representação em andamento, enquanto o público esperava que o diretor de orquestra voltasse a subir no pódio. Pouco a pouco, se apagou o murmúrio de vozes, cessou a movimentação dos músicos e se fez o silêncio total que anunciava a disposição dos presentes de presenciar o terceiro e último ato. O silêncio se dilatava, se fazia mais denso. No primeiro anfiteatro soou uma tosse, seguida de um golpe seco de um livro, ou de uma bolsa, contra o chão. A porta do fosso da orquestra continuava fechada.


Os primeiros em começar a falar foram os músicos. Um segundo violino se inclinou para a mulher que estava ao seu lado e perguntou se já havia feito planos para as férias. Na segunda fila, um fagote disse a um oboé que no dia seguinte começava a liquidação da Benetton. O público do palco proscênio, que era o que melhor via os músicos, não demorou em imitar seus cochichos. Outro tanto fizeram em seguida os que enchiam os anfiteatros e, por último, os ocupantes das cadeiras da plateia, como se os mais ricos fossem também os mais relutantes a se permitir esta falta de disciplina.


O murmúrio crescia. Passavam-se os minutos. De repente, se abriram as pesadas cortinas do palco e, por uma estreita abertura do veludo verde, apareceu Amadeo Fasini, o gerente do teatro, com ar constrangido. O técnico de iluminação que ocupava a cabine situada encima do segundo andar, desconcertado, decidiu enfocá-lo com um brilhante feixe branco, deslumbrando Fasini, que protegeu os olhos com o antebraço, como para se proteger de um golpe, e começou:


— Senhoras e cavalheiros... Interrompeu-se e, com a mão esquerda, fez furiosos sinais ao técnico que, ao notar seu erro, apagou o foco. Superada sua cegueira momentânea, o homem voltou a começar: — Senhoras e cavalheiros, lamento ter que lhes comunicar que o maestro Wellauer não poderá continuar dirigindo a orquestra. Na sala cresciam os murmúrios, cabeças se viravam e rangiam sedas, porém ele prosseguiu, alheio ao ruído: — Ocupará seu lugar o maestro Longhi. Antes que o murmúrio do público afogasse sua voz, Fasini perguntou em tom estudadamente tranquilo: — Temos algum médico na sala?


Seguiu-se a pergunta uma longa pausa, e os assistentes começaram a olhar ao redor: quem se ofereceria? Passou-se quase um minuto. Por fim, em uma das primeiras filas da plateia, uma mão se levantou lentamente e uma mulher se pôs de pé. Fasini fez um sinal a um dos acomodadores que estavam ao fundo da sala, e o jovem se adiantou rapidamente até o extremo da fila onde se encontrava a mulher.


— Doutora, disse Fasini com uma voz que fazia pensar que era ele quem precisava de assistência médica, — Tenha a bondade de subir aos bastidores. O acomodador a acompanhará.


O gerente levantou o olhar para a parte alta da escura sala, tentou sorrir, não conseguiu e abandonou a tentativa.


— Peço-lhes, senhoras e cavalheiros, que desculpem o incidente. A apresentação continuará.


Fasini deu meia volta e começou a caminhar, procurando a abertura da cortina pela qual havia saído. Umas mãos invisíveis lhe cortaram o caminho e o homem se encontrou no deteriorado caramanchão em que Violetta morreria. A suas costas, na sala, ouviu os discretos aplausos que saudavam o diretor suplente que acabava de subir ao pódio. Fasini foi rodeado por uma multidão de cantores do coro e músicos, tão curiosos quanto o público e muito mais inquisitivos. Normalmente, o elevado de sua posição eximia Fasini do trato com estes modestos membros do elenco, porém agora não conseguiu escapar às suas perguntas.


— Não é nada, não é nada, disse sem olhar para ninguém, e agitou as mãos, tentando afugentar do cenário aquele tropel de gente.


Estava terminando o prelúdio e rapidamente se abriria a cortina e apareceria Violetta, que estava agora sentada com ar nervoso na borda do catre situado no centro da cena. Fasini redobrou a energia de seus gestos, e cantores e músicos esvaziaram o cenário, ainda que continuassem cochichando nos bastidores. Ele lhes lançou um furioso “Silêncio” e ficou esperando a que a ordem surtisse efeito. Quando viu que a cortina começava a se abrir, saiu pela direita, onde se reuniu com o diretor de cena e a doutora. Esta era uma mulher baixinha, de cabelo negro, que estava debaixo de um letreiro de PROIBIDO FUMAR com um cigarro sem acender na mão.


— Boa noite, doutora, disse Fasini com um sorriso forçado. Ela guardou o cigarro no bolso do casaco e lhe apertou a mão.

— Que aconteceu? Perguntou finalmente no momento em que, atrás deles, Violetta começava a ler a carta de Pére Germont. Fasini esfregou as mãos, como se o movimento pudesse ajudá-lo a decidir o que dizer.

— O maestro Wellauer foi... Começou, porém não encontrou uma maneira satisfatória de terminar a frase.

— Está doente? Perguntou a doutora com impaciência.

— Não, não, doente, não, disse Fasini, que outra vez ficou sem palavras e voltou a esfregar as mãos.

— Talvez seja preferível que eu o veja, disse a mulher em tom de interrogação. — Está no teatro? Como Fasini continuasse mudo, ela perguntou: — Ou levaram para algum outro lugar? Este foi o empurrão que o gerente precisava.

— Não, não. Está no camarim.

— Então é melhor entrarmos, não?

— Sim, naturalmente, doutora, concordou ele, se alegrando pela sugestão.


Levou-a para a direita, onde havia um piano de cauda e uma harpa coberta com um pano de um verde desvaído, e ao longo de um estreito corredor. Ao chegar ao fundo, na frente de uma porta fechada, parou. Diante da porta havia um homem alto.


— Matteo, começou Fasini, olhando para a mulher, — A doutora...

— Zorzi, disse ela simplesmente. Não era momento para apresentações formais.


Na chegada de seu superior e de uma pessoa a que se dava o título de doutora, para Matteo faltou tempo para se afastar da porta. Fasini se adiantou, entreabriu a porta, voltou a olhar por cima do ombro e convidou a doutora a acompanhá-lo ao interior do pequeno aposento.


A morte havia desfigurado as feições do homem que estava caído sobre a poltrona situada no centro do camarim. Tinha os olhos abertos para o vazio e um ricto feroz nos lábios. O corpo estava de lado e a cabeça, afundada no respaldo. No duro reluzente peito da camisa havia um fio escuro. No principio, a doutora pensou que fosse sangue, mas, ao se adiantar mais um passo, mais do que ver, sentiu o aroma de café. Não menos peculiar era o olor que se misturava com o do café: um olor acre de amêndoas amargas que ela só conhecia por referências.


A doutora Zorzi já havia visto muita morte, e não precisava consultar o pulso; não obstante, pôs os dedos da mão direita debaixo da mandíbula do morto. Nada. Porém a pele ainda estava quente. Deu um passo atrás e olhou ao redor. No chão, diante do homem, havia um prato e a xícara do café que havia manchado a camisa. Ajoelhou-se, colocou o dorso dos dedos nas costas da xícara e a sentiu fria. A mulher se ergueu e olhou aos dois homens, que estavam na porta, contentes de que fosse ela quem prosseguisse com o morto.


— Avisaram a polícia? Perguntou.

— Sim, sim, murmurou Fasini, sem ter ouvido realmente a pergunta.

— Senhor, disse ela então, falando devagar e em voz bastante alta como para se fazer ouvir com clareza, — Eu nada posso fazer. Este é assunto da polícia. Foram avisados?

— Sim, repetiu o gerente, porém continuava sem dar sinais de ter entendido suas palavras. Olhava fixamente o morto, tentando medir o horror do que via, e a magnitude do escândalo.


Afastando-o bruscamente com um empurrão, a mulher saiu ao corredor. O ajudante do gerente a seguiu.


— Ligue agora para a polícia, ordenou ela.


Quando o homem, depois de mover a cabeça afirmativamente, se afastou, ela colocou a mão no bolso, em busca do cigarro, apanhou-o e acendeu. Aspirou o fumo profundamente e olhou o relógio. A mão esquerda de Mickey estava entre dez e o onze e a direita, no sete. A doutora se apoiou na parede e esperou a chegada da polícia.


* * *


Dois

COMO estavam em Veneza, a polícia chegou de barco, e a luz azul piscava no teto da cabine. A embarcação atracou no pequeno canal que passava por trás do teatro e dela desembarcaram quatro homens, três de uniforme azul e um à paisana. Subiram rapidamente pela estreita rua lateral até a entrada de artistas, onde o porteiro, prevenido de sua chegada, apertou o botão que liberava a porta. O homem apontou em silêncio para uma escada. No primeiro patamar, aguardava-os o aturdido gerente, que fez menção de estender a mão ao homem vestido à paisana , que parecia o chefe, porém em seguida se esqueceu de sua intenção e deu meia volta, dizendo por cima do ombro:


— Por aqui. Levou-os por um curto corredor até a porta do camarim do diretor, onde parou e, reduzido outra vez à mímica, apontou para o interior.


Guido Brunetti, comissário de polícia, foi o primeiro a entrar. Ao ver o corpo caído na poltrona, levantou uma mão para indicar aos agentes de uniforme que ficassem na porta. Era evidente que o homem estava morto: tinha o corpo arqueado para trás e o rosto crispado em uma fisionomia estranha. Não era necessário procurar sinais de vida; não haveria. Aquele rosto era tão familiar a Brunetti como à maioria dos habitantes do mundo ocidental, se não por tê-lo visto frente a uma orquestra, mas porque durante mais de quatro décadas sua mandíbula quadrada teutônica e suas melenas, que havia conservado negra como o azeviche, pois já havia passado dos sessenta, haviam aparecido regularmente nas capas das revistas e dos jornais.


Brunetti o havia visto dirigir duas vezes, há anos, e o concerto estivera mais pendente do diretor do que da orquestra. Na época o corpo de Wellauer oscilava no pódio como preso no abraço de um demônio ou de uma divindade. A mão esquerda, entreaberta, parecia querer arrancar o som dos violinos. Na direita, a batuta era um arma que apontava agora aqui, agora ali, um raio que desatava torrentes de música. Porém agora a morte havia borrado de sua pessoa todo vestígio de divindade e lhe havia posto a máscara sarcástica do demônio. Brunetti passeou o olhar pelo camarim. Viu a xícara no chão e, próximo da xícara, o prato. Este explicava as manchas escuras da camisa e, com certeza, a horrível crispação do rosto. Sem parar de se aproximar do morto, Brunetti fazia inventário com o olhar, com curiosidade, sem fazer deduções. Era um homem de aspecto extraordinariamente belo: o nó da gravata, impecável, o cabelo, mais curto do que ditava a moda; até as orelhas estavam grudadas contra a cabeça, como se quisessem passar inadvertidas. Sua indumentária era tipicamente italiana. Seu acento levava ao veneziano. Seus olhos eram todo polícia.


Inclinando-se, tocou o dorso do pulso do morto. Sentiu a pele fria e seca ao tato. Deu outra olhada ao redor e se voltou para um dos homens que estava nas suas costas. Pediu-lhe que chamasse o legista e o fotógrafo. Ordenou a outro dos agentes que descesse para falar com o porteiro. Quantas pessoas havia no teatro nessa noite? Que fizesse uma lista. E disse ao terceiro agente que queria os nomes de quem teria falado com o maestro antes da função ou durante os entreatos. O comissário abriu uma porta da esquerda que dava a um pequeno banheiro. A única janela estava fechada, o mesmo que a do camarim. No armário havia um paletó e três camisas brancas engomadas.


Voltou ao camarim e se aproximou novamente do cadáver. Com o dorso da mão, abriu o paletó, colocou os dedos no bolso interior do peito e, lentamente, puxou um lenço segurando-o por uma ponta. No bolso não havia mais nada. Repetiu o processo com os bolsos laterais, onde encontrou os objetos habituais: umas notas de liras de pequeno valor, uma chave com uma etiqueta de plástico, provavelmente do camarim, um pente, outro lenço. Não queria mover o corpo antes que o fotografassem, e deixou para mais adiante os bolsos da calça. Os três agentes, uma vez confirmada a existência de um cadáver, haviam ido cumprir as ordens de Brunetti. O gerente do teatro havia desaparecido. Brunetti saiu ao corredor, esperando encontrá-lo ali, com intenção de perguntar quanto tempo fazia que haviam descoberto o cadáver. Porém só viu a uma mulher pequena, de cabelo negro, que estava apoiada na parede, fumando um cigarro. Até eles chegavam ondas de música.


— Que é isso? Perguntou Brunetti.

— La Traviata, disse a mulher secamente

— Eu sei. A apresentação continua?

— “Ainda que o mundo afunde”, respondeu ela com uma entonação que somente se imprime nas solenidades.

— É de La Traviata? Perguntou ele.

— Não; de Turandot, disse ela com voz serena.

— Pois me parece que por respeito ao morto... Ela deu de ombros, jogou o cigarro no chão de cimento e amassou-o com o pé. — Você é...? Perguntou ele finalmente.

— Bárbara Zorzi, e, ainda que ele não havia pedido detalhes, concluiu: — Doutora Bárbara Zorzi. Estava na sala, pediram um médico, subi e vi o cadáver. Eram exatamente dez e trinta e cinco. O corpo ainda estava quente. A xícara estava fria.

— Tocou-o?

— Só com o dorso dos dedos. Pensei que podia ser importante saber se ainda estava quente. Não estava. Apanhou outro cigarro do bolso e lhe ofereceu um. Não pareceu surpreendê-la que ele recusasse e acendeu o seu.

— Algo mais, doutora?

— Cheira a cianureto, respondeu ela. — Li algo sobre este veneno e nas aulas de farmacologia o estudamos uma vez, ainda que o professor não nos deixou nem sentir seu cheiro. Dizia que até os vapores são perigosos.

— É tão tóxico assim?

— Sim. Agora não lembro exatamente o pouco que se precisa para matar uma pessoa, porém não chega a um grão. E é instantâneo. Tudo para, o coração, os pulmões... Antes que a xícara chegasse ao chão, ele já devia estar morto ou, pelo menos, inconsciente.

— Você o conhecia? Ela moveu a cabeça negativamente.

— Não mais que qualquer aficionado de ópera. Ou qualquer leitor da GENTE, disse ela, se referindo a uma revista de fofocas que para ele era difícil crer que aquela mulher lesse. Ela o olhou e perguntou: — Isso é tudo?

— Creio que sim, doutora. Terá a bondade de dar seu nome a um de meus homens, para se precisarmos entrar em contato com você?

— Zorzi, Bárbara, disse ela, sem modificar em seu tom oficial. — Na lista telefônica não tem outra. Deixou cair o cigarro, pisou e lhe estendeu a mão.

— Boa noite. Espero que as coisas não fiquem piores.


O comissário não sabia se ela queria dizer piores para o maestro, para o teatro, para a cidade ou para ele, então se limitou a mover a cabeça de cima a baixo em sinal de agradecimento enquanto lhe apertava a mão. Quando ela se foi, Brunetti pensou na estranha semelhança que havia entre seu trabalho e o de um médico. Ambos coincidiam ao lado dos cadáveres e ambos faziam a mesma pergunta: “Por quê?” Mas, quando encontravam a resposta, seus caminhos se separavam: o médico retrocedia no tempo, em busca da causa física e ele se movia para adiante, em busca do responsável.


Quinze minutos depois, chegava o legista, acompanhado do fotógrafo e de dois maqueiros de jaleco branco que seriam os encarregados de trasladar o cadáver ao Hospital Civil. Brunetti cumprimentou afavelmente o Doutor Rizzardi e lhe indicou a hora aproximada da morte. Juntos entraram no camarim. Rizzardi, um homem muito magro, pôs luvas de látex, consultou o relógio automaticamente e se ajoelhou ao lado do cadáver. Brunetti o observou enquanto examinava a vítima, estranhamente comovido ao ver que tratava o morto com o mesmo respeito que dedicaria a um paciente vivo, com suavidade e até com mimo, ajudando com mãos experientes os movimentos dos membros que começavam a ficar rígidos.


— Poderia esvaziar os bolsos, doutor? Perguntou Brunetti, que não tinha luvas e não queria agregar suas impressões a as que pudesse ter nos objetos. O doutor obedeceu, porém não encontrou mais que uma carteira, talvez de crocodilo, que apanhou segurando-a por uma ponta e deixou cima da mesa que tinha a seu lado. O médico se pôs em pé e retirou as luvas.

— Veneno. É evidente. Eu diria que cianureto. E mais, estou certo, porém não posso dizer oficialmente até depois da autópsia. De qualquer maneira, pela forma como o corpo está dobrado para atrás, não pode ser nada mais. Brunetti observou que havia fechado os olhos do morto e tratado de suavizar os rictos de seus lábios. — É Wellauer, não é? Disse o médico, apesar da pergunta ser desnecessária.


Brunetti moveu a cabeça afirmativamente e Rizzardi exclamou:


— O prefeito não vai gostar nada.

— Pois que o prefeito se encargue de descobrir quem o fez, disse Brunetti secamente.

— Desculpe; foi uma estupidez. Perdoe, Guido. Devemos pensar na família.


Como se estivesse esperando a melhor hora, um dos três policiais de uniforme apareceu na porta e fez um sinal a Brunetti que, ao sair do camarim, viu Fasini ao lado de uma mulher que supôs ser filha do maestro. Era muito alta, mais que o gerente e até mais que Brunetti, com uma coroa de cabelo louro que realçava sua estatura. Como o maestro, tinha os pômulos de corte eslavo e os olhos de um azul pálido quase glacial. Quando a mulher viu Brunetti sair do camarim, deu dois passos rápidos até ele.


— Aconteceu algo? Perguntou em italiano com forte acento estrangeiro. — O que foi?

— Lamento, senhorita, começou Brunetti. Ela o atalhou imperiosamente.

— Que aconteceu ao meu marido? Apesar da surpresa, Brunetti teve a presença de espírito suficiente para se mover para a direita, fechando a passagem ao camarim.

— Senhora, perdoe, porém é preferível que não entre.


Por que será que sempre sabem o que vai dizer? É o tom ou é uma espécie de instinto animal o que os faz perceber a morte em sua voz antes que dê a notícia? A mulher cambaleou para um lado, como se a tivessem empurrado, bateu com os quadris no teclado do piano, e um som discordante encheu o corredor. Então, procurando o equilíbrio, estendeu o braço com rigidez e a palma de sua mão arrancou outro queixume das teclas. Disse algo em uma língua que Brunetti não entendeu e levou a mão à boca com um gesto de mão tão melodramático que por força tinha que ser espontâneo. Nesse momento, pareceu ao comissário que havia passado a vida fazendo isto as pessoas, dizendo que um ser querido morrera ou, pior, que fora assassinado. Sergio, seu irmão, era radiologista e tinha que levar no jaleco uma plaquinha metálica que mudava de cor se ele se expunha a uma quantidade perigosa de radiação. Se ele levasse uma placa sensível à tristeza, a dor ou à morte, há tempos que teria mudado de cor permanentemente. Ela abriu os olhos e encarou-o.


— Quero vê-lo.

— Me parece que é melhor que não o veja, respondeu ele, sabendo positivamente que era assim.

— Que aconteceu? Ela se esforçava por recobrar a calma, e conseguiu.

— Creio que foi veneno, disse ele, ainda que tivesse certeza.

— O mataram? Perguntou ela com um assombro que parecia autêntico. Ou ensaiado.

— Sinto muito, senhora. Neste momento, não posso dar uma resposta. Há alguém que possa acompanhá-la a sua casa? A suas costas, o comissário ouviu uma explosão de aplausos que se prolongavam e flutuavam em ondas. Ela parecia não ouvi-los, do mesmo modo que parecia não ter ouvido a pergunta, e olhava movendo os lábios em silêncio. — Há no teatro alguém que possa acompanhá-la a sua casa, senhora? Ela concordou, entendendo por fim.

— Sim, sim, disse, e agregou com voz mais suave: — Tenho que me sentar. Ele já esperava isto: o impacto da realidade que segue ao primeiro momento de aturdimento, e estava preparado. É o que fulmina as pessoas.


Segurou-a pelo braço e a levou até o fundo da área dos bastidores. Ainda que alta, era muito magra e rápida. Na esquerda, viu uma pequena cabine com painéis de iluminação e aparelhos que não conhecia. Sentou-a numa cadeira e fez um sinal a um dos agentes de uniforme, que vinha de uma lateral cheia de gente vestida de época, que cumprimentava e formava cordões enquanto a cortina se fechava.


— Desça ao bar e traga uma dose de conhaque e um copo de água, ordenou o comissário.


A senhora Wellauer estava sentada na cadeira de madeira, se aferrando ao assento com as mãos e olhando fixamente para o chão. Movia a cabeça negativamente, como respondendo a uma conversa interior.


— Senhora, senhora, seus amigos estão no teatro? Ela prosseguiu seu monólogo silencioso, sem atendê-lo. — Senhora, repetiu ele, colocando uma mão no ombro, — Seus amigos estão aqui?

— Welti, disse a mulher, sem levantar o olhar. — Disse-lhes que nos encontraríamos aqui. O agente voltou com as bebidas. Brunetti apanhou o conhaque.

— Beba, senhora, disse. Ela bebeu distraidamente. Outro tanto fez com o copo de água, como se não notasse a diferença.

— Quando o viu, senhora?

— Como?

— Quando o viu?

— Helmut?

— Sim, senhora. Quando o viu?

— Viemos juntos. Em seguida, subi aos bastidores depois... Sua voz se apagou.

— Depois do quê, senhora? Perguntou ele. Ela escudrinhou seu rosto antes de responder.

— Depois do segundo ato. Porém não conversamos. Cheguei tarde. Disse-me só... Não, não me disse nada.


Ele não poderia dizer se a confusão da mulher se devia à impressão ou a dificuldades com o idioma, porém era indubitável que não estava em condições de responder as perguntas. As suas costas, continuavam soando ondas de aplausos enquanto os intérpretes agradeciam. Ela desviou o olhar e abaixou a cabeça, ainda que já parecia ter terminado a conversa consigo mesma. O comissário disse ao agente que permanecesse junto à mulher, que uns amigos subiriam para buscá-la e que podiam ir embora. Voltou então ao camarim. O legista e o fotógrafo, que havia chegado enquanto Brunetti falava com a senhora Wellauer, já saíam.


— Deseja algo mais? Perguntou o doutor Rizzardi a Brunetti.

— Não. A autópsia?

— Amanhã.

— Você a fará? Rizzardi pensou um momento antes de responder.

— Não estou de plantão, porém já que examinei o cadáver, provavelmente, o promotor me pedirá que eu a faça.

— A que horas?

— Após as onze. Terei terminado na primeira hora da tarde.

— Lá estarei, disse Brunetti.

— Não é necessário, Guido. Não precisará que vá a San Michele. Ligue. Ou eu ligarei para sua sala.

— Obrigado, Ettore, porém eu preferiria ir. Faz muito tempo que não vou ali, e quero visitar a sepultura de meu pai.

— Como quiser. Apertaram as mãos, e Rizzardi foi até a porta. Ali parou um momento e agregou: — Era o último dos grandes, Guido. Não deveria morrer assim. Sinto muito que tenha acontecido isto.

— Eu também sinto, Ettore. O médico se foi e atrás dele saiu o fotógrafo. Então um dos dois maqueiros que estavam na janela, fumando e olhando as pessoas que passavam pelo pequeno campo contíguo ao teatro, deu meia volta e se aproximou do cadáver, que estava no chão.

— Podemos levá-lo? Perguntou com indiferença.

— Não, disse Brunetti. — Esperem até que todo o mundo tenha saído do teatro. O que havia ficado na janela, jogou o cigarro na rua e se colocou no outro extremo do corpo.

— Isso pode demorar muito tempo, não é? Perguntou sem dissimular o mau humor. Era baixo e fornido e falava com acento napolitano.

— Não sei quanto demorará, porém esperem até que o teatro esteja vazio. O napolitano subiu o punho de seu jaleco branco e olhou o relógio com eloquência.

— É que nosso turno termina à meia-noite, e, se tivermos que esperar muito, não chegaremos ao hospital antes disso. Seu colega então explicou:

— O regulamento do sindicato diz que não nos pode obrigar a trabalhar depois que termine o turno, a não ser que tenha nos avisado com vinte e quatro horas de antecedência. Não sei o que se esperará que façamos com isto. Apontou o cadáver com a ponta do sapato, como se fosse algo que teriam encontrado na rua.


Momentaneamente, Brunetti se sentiu tentado a brigar com eles. Porém em seguida venceu a tentação.


— Vocês ficarão aqui e não abrirão essa porta até que eu autorize. Como eles não responderam, perguntou: — Entenderam? Continuava sem chegar a resposta. — Entenderam? Repetiu.

— É que o regulamento do sindicato...

— À merda o sindicato e à merda o regulamento, explodiu Brunetti. — Se o retirarem daqui antes que eu autorize, vão para a cadeia. Não quero que se organize um espetáculo aí fora. Então esperem até que eu os avise. Sem voltar a perguntar se haviam entendido, Brunetti deu meia volta e saiu do camarim batendo a porta.


No espaço aberto que havia no extremo do corredor, o comissário encontrou o caos, um contínuo ir e vir de gente, uns com roupa de rua e outros com traje de cena. Por sua maneira de olharem para a porta do camarim, compreendeu que a notícia já havia corrido. E continuava correndo: uma cabeça se juntava a outra e esta se voltava bruscamente para a porta do fundo do corredor, que escondia algo que no momento só podia ser motivo de conjectura. Queriam ver o corpo? Ou só queriam ter algo para falar no bar no dia seguinte? Quando o comissário voltou para onde havia deixado a senhora Wellauer, encontrou com ela um homem e uma mulher, os dois, de muito mais idade. A mulher estava ajoelhada e abraçava a viúva, que já não fazia nada para conter os soluços. O agente de uniforme se aproximou de Brunetti.


— Já lhe disse que podiam ir embora, disse Brunetti.

— Quer que eu vá com eles, senhor?

— Sim. Disseram-lhe onde mora?

— Próximo de San Moisé.

— Bem. Não é longe, disse Brunetti, e agregou: — Que não falem com ninguém. Pensando nos jornalistas, que já estariam sabendo do acontecido. — Não a retire pela entrada de pessoal. Descubra se há outra saída.

— Sim, senhor, respondeu o agente, cumprimentando marcialmente. Brunetti gostaria que os maqueiros vissem isso.

— Senhor? Ouviu às suas costas, e ao se virar viu ao cabo Miotti, o mais jovem dos três agentes que havia trazido.

— Que foi, Miotti?

— Tenho a lista de todas as pessoas que estavam aqui nesta noite: coros, orquestra, ajudantes e cantores.

— Quantos são?

— Mais de cem, senhor, disse o jovem com um suspiro, como se desculpando pelas centenas de horas de trabalho que aquela lista pressagiava.

— Bem, disse Brunetti, e encolheu os ombros. — Desça para perguntar ao porteiro que identificação se precisa para entrar por essa porta. O cabo escrevia em um bloco enquanto Brunetti falava. — Por que outro lugar se pode entrar? Se pode se ir aos bastidores desde a sala? Com quem chegou o maestro nesta noite? A que horas? Entrou alguém em seu camarim durante a apresentação? E o café, veio do bar ou foi trazido de fora? Ficou pensativo um momento. — E veja se consegue descobrir sobre mensagens, cartas, ligações telefônicas...

— Algo mais, senhor? Perguntou Miotti.

— Ligue para a chefatura. Que entrem em contato com a polícia alemã. Antes que Miotti pudesse fazer uma objeção, o comissário disse: — Peça que avisem à intérprete de alemão, como se chama?

— Boldacci, senhor.

— Sim. Diga que lhe peçam que ligue para a polícia alemã. Não interessa se é muito tarde. Que nos enviem o dossiê completo de Wellauer. Amanhã pela manhã, se for possível.

— Sim, senhor.


Brunetti concordou. O agente o cumprimentou e, com o bloco na mão, retrocedeu até a escada que o levaria à entrada dos artistas.


— Uma coisa mais, cabo, disse Brunetti se dirigindo às costas do agente que se afastava.

— Sim, senhor? Disse o homem parando no alto da escada.

— Seja educado.


Miotti concordou, deu meia volta e desapareceu. O poder dizer isto a um agente sem medo de ofendê-lo era uma das razões pelas quais Brunetti se alegrava de que tinham voltado a destiná-lo a Veneza, depois de ficar cinco anos em Nápoles. Apesar de que fazia mais de vinte minutos que os intérpretes haviam acabado de sair de cena, os bastidores continuavam concorridos, e as pessoas não davam sinais de pensar em ir embora. Os que pareciam mais conscientes de suas obrigações passavam entre os demais recolhendo os acessórios do vestuário: cintos, bengalas, perucas. Brunetti cruzou com um homem que levava nos braços algo que parecia um animal morto e que acabou sendo um monte de perucas femininas. Então, da área situada atrás da cortina, viu vindo Follin, o agente que havia enviado para avisar o legista. O homem chegou junto a Brunetti e disse:


— Pensei que você gostaria de falar com os cantores, senhor, e lhes pedi que esperassem. E o diretor também. Não gostaram, porém expliquei o que havia acontecido e aceitaram. De qualquer maneira, continuam sem gostar.


“Cantores de ópera”, pensou Brunetti sem se dar conta. E repetiu o pensamento conscientemente: “Cantores de ópera.”


— Bem feito. Onde estão?

— Lá em cima, senhor, disse o agente apontando uma escada que subia aos andares altos do teatro. Entregou a Brunetti um programa da função daquela noite. Brunetti repassou a lista de nomes, dos quais reconheceu um ou dois, e começou a subir a escada.

— Quem é o mais impaciente, Follin? Perguntou quando chegaram.

— A senhora Petrelli, a soprano, respondeu o agente, apontando uma porta no fundo do corredor, à direita.

— Bem, disse Brunetti, indo para a esquerda. — Então deixaremos a senhora Petrelli para o final. O sorriso de Follin fez com que Brunetti se perguntasse como teria sido a conversa entre o meticuloso policial e a recalcitrante prima donna.


“Francesco Dardi - Giorgio Germont”, dizia o cartaz datilografado grudado na porta do primeiro camarim da esquerda. O comissário deu dois golpes com os nós dos dedos e imediatamente ouviu uma voz que dizia: “Avanti!” Sentado diante do toucador, retirando a maquiagem, estava o barítono cujo nome Brunetti havia reconhecido. Francesco Dardi era de baixa estatura e tinha um abdômen volumoso que agora apertava contra a borda do toucador ao se inclinar para adiante para se ver no espelho.


— Perdoem que não me levante, senhores, disse enquanto limpava cuidadosamente a sombra do olho esquerdo. Brunetti assentiu em silêncio.


Ao cabo de um momento, Dardi interrompeu a operação, olhou para os dois homens pelo espelho e perguntou, enquanto continuava esfregando:


— Então?

— Está sabendo do que aconteceu nesta noite? Perguntou Brunetti.

— Refere-se à Wellauer?

— Sim.


Como sua pergunta não suscitara mais que este monossílabo, Dardi soltou a toalhinha e se voltou, encarando os policiais.


— Se puder ajudá-los em algo, senhores, disse, olhando a Brunetti. Esta atitude já era mais do agrado de Brunetti, que sorriu e respondeu afavelmente:

— Talvez possa. O comissário olhou o papel que tinha na mão, como se não lembrasse o nome de seu interlocutor. — Signor Dardi, como já sabe, nesta noite morreu o maestro Wellauer. O cantor respondeu com um leve movimento de cabeça, nada mais. Brunetti prosseguiu: — Gostaria que me dissesse tudo quanto possa acerca desata noite, do acontecido durante os dois primeiros atos da apresentação. Fez uma pausa, e Dardi voltou a mover a cabeça, porém não disse nada. — Viu o maestro esta noite?

— Vi por um momento, disse Dardi, que agora se voltou para o toucador e continuou retirando a maquiagem. — Ao chegar, o vi falar com um eletricista, sobre algo do primeiro ato. Disse-lhe “Buona sera” e subi ao camarim, para me maquiar. Como pode ver, agregou, apontando o seu rosto no espelho, — Requer muito tempo.

— Que horas eram? Perguntou Brunetti.

— Após as sete. Talvez sete e quinze, porém não muito mais tarde.

— E depois não voltou a vê-lo?

— Quer dizer aqui em cima ou nos bastidores?

— As duas coisas.

— Depois disso, só o vi do cenário, enquanto estava no pódio.

— Estava com alguma outra pessoa quando você o viu?

— Como lhe disse, estava com um eletricista.

— Sim, me lembro. Não o viu com ninguém mais?

— Com Franco Santore. No bar. Vi que falavam, porém eu já saía. Apesar de que havia reconhecido o nome, Brunetti perguntou:

— Quem é esse senhor Santore?


Dardi não pareceu surpreso pelo alarde de ignorância de Brunetti. Ao fim e ao cabo, como iria um policial reconhecer o nome de um dos diretores teatrais mais famosos da Itália?


— É o diretor, explicou Dardi, jogando a toalhinha cima do toucador. — Ele montou esta ópera. O cantor apanhou uma gravata de seda que estava ao extremo direito do toucador, deslizou-a por baixo do colarinho da camisa e começou a fazer o nó com esmero. — Alguma outra coisa? Perguntou com voz neutra.

— Não. Creio que isso é tudo. Muito obrigado por sua colaboração. Se tivermos que voltar a falar com você, senhor Dardi, onde podemos encontrá-lo?

— No Gritti. O cantor lançou a Brunetti um olhar de perplexidade, como se quisesse saber se em Veneza havia outros hotéis, porém temesse perguntar. Brunetti repetiu o agradecimento e saiu para o corredor seguido de Follin.

— Agora, o tenor, disse olhando o programa que tinha na mão. Follin assentiu e o levou até uma porta do outro lado do corredor.


Brunetti bateu com os nós dos dedos, esperou e não ouviu nada. Voltou a bater e no interior soou um ruído que o comissário decidiu tomar por um convite a entrar. No camarim encontrou um homem baixo e magro, completamente vestido e pronto para sair à rua, com o paletó dobrado sobre o braço da poltrona, e sentado em uma atitude aprendida na escola de arte dramática para expressar “irritação e impaciência”.


— Ah, senhor Echevest, exclamou Brunetti efusivamente, estendendo a mão de maneira que o outro não tivesse que se levantar para apertá-la. — É uma grande honra cumprimentá-lo pessoalmente. Se Brunetti tivesse assistido a mesma escola de arte dramática, esta poderia ser sua demonstração de “rendida admiração ante portentoso talento”.


Como o gelo do riacho que descongela na chegada da primavera, a cólera de Echevest se desfez no calor da adulação de Brunetti. Com certa dificuldade, o jovem tenor se levantou da poltrona e fez uma pequena reverência.


— Com quem tenho o honra de falar? Perguntou em italiano com leve acento estrangeiro.

— Comissário Brunetti, senhor. Represento a polícia neste caso.

— Ah, sim, respondeu o outro, como se tivesse ouvido falar da polícia remotamente, porém tivesse esquecido. — Vocês vieram por todo este... Interrompeu-se e fez um desmaiado gesto de mão, como se esperasse que alguém lhe apontasse as palavras adequadas. E as palavras chegaram: — ...Este trágico acontecimento.

— Correto. Trágico e lamentável, adicionou Brunetti, sem afastar os olhos dos do tenor. — Seria muito trabalho responder a umas perguntas?

— Claro que não, respondeu Echevest, sentando em sua cadeira, não sem antes levantar graciosamente a calça, para preservar o afiado vinco. — Encantado. Sua morte é uma grande perca para o mundo da música. Ante semelhante afirmativa, Brunetti só conseguiu inclinar a cabeça reverentemente durante um momento antes de perguntar:

— A que horas chegou ao teatro? Echevest pensou um momento antes de responder.

— Eu diria que sete e meia. Atrasei-me. Haviam me entretido, compreende? Disse o tenor, insinuando com seu tom a ideia de que, muito a pesar, tivera que abandonar lençóis e companhia feminina.

— Por que se atrasou? Perguntou Brunetti, consciente de que o outro não esperava esta pergunta e curioso por ver em que consistia a insinuação.

— Fui cortar o cabelo, respondeu o tenor.

— Poderia me dar o nome de seu cabeleireiro? Perguntou Brunetti cortesmente.


O tenor deu o nome de uma barbearia situada a poucas ruas do teatro. Brunetti olhou para Follin, que tomou nota. No dia seguinte comprovaria.


— E viu o maestro quando chegou ao teatro?

— Não; não vi ninguém. Antes que Brunetti pudesse expressar estranheza, Echevest explicou: — É que não entrei pela porta dos atores, sabe? Entrei pelo fosso da orquestra.

— Não sabia que se pudesse entrar por ali, disse Brunetti, recebendo com interesse a notícia deste acesso aos bastidores.

— Habitualmente, não se pode, disse Echevest olhando as mãos. — Porém um amigo me deixou entrar, para que não tivesse que passar pela entrada de atores.

— Poderia me explicar por quê, senhor Echevest?


O tenor levantou uma mão em gesto de mão depreciativo e a deixou flutuar languidamente ante eles, como esperando que esquecesse a pergunta ou que não precisasse responder. Não fez nem um nem outro. Então pôs a mão em cima da outra e disse, simplesmente:


— Porque tinha medo.

— Medo?

— Do maestro. Já havia chegado tarde em dois ensaios, e ele ficou furioso e gritou comigo. Podia ser muito desagradável quando se irritava. Não tinha vontade de aguentar outra gritaria. Brunetti suspeitava que unicamente o respeito com os mortos havia impedido que seu interlocutor utilizasse uma palavra mais forte que “desagradável”.

— Então entrou por lá para não encontrá-lo?

— Sim.

— Viu ou falou com ele em algum momento? Menos enquanto dirigia.

— Não. Brunetti se pôs de pé e esboçou outra vez seu teatral sorriso.

— Muito obrigado por seu tempo, senhor Echevest.

— Foi um prazer, respondeu o tenor se levantando por sua vez. Olhou para Follin, em seguida para Brunetti e perguntou: — Já posso ir?

— Claro. Só me diga onde se hospeda.

— No Gritti, respondeu ele, com a mesma estranheza que Dardi. Era suficiente para fazer duvidar de que existisse outro hotel na cidade.


* * *


Três

AO SAIR do camarim, Brunetti encontrou Miotti esperando. O jovem lhe explicou que Franco Santore, o diretor, havia se negado a esperar e havia dito que quem desejasse falar com ele o encontraria no Hotel Fenice, contíguo ao teatro. Brunetti concordou, recebendo com alívio a prova de que havia outros hotéis na cidade.


— Isso nos deixa unicamente a soprano, disse Brunetti, avançando pelo corredor. Na porta estava cravado o cartaz de rigor. “Flavia Petrelli - Violetta Valéry.” Debaixo havia uma linha de sinais que pareciam caracteres chineses, traçados com fina pena negra. O comissário bateu à porta e, com um movimento de cabeça, indicou a seus dois subordinados que esperassem fora.

— Avanti! Ouviu, e abriu a porta.


No aposento esperavam duas mulheres, e Brunetti descobriu com surpresa que não sabia qual delas era a soprano. Como todos os italianos, havia ouvido falar de “la Petrelli”, porém a havia visto atuar uma só vez, há anos, e recordava vagamente as fotos que os jornais haviam publicado. A mais morena das duas mulheres estava de costas para o toucador e a outra ocupava uma cadeira junto à parede do fundo. Nenhuma das duas falou ao ele entrar, e Brunetti aproveitou o silêncio para examiná-las.


Calculou que a que estava de pé teria uns trinta anos. Vestia camisa púrpura e uma saia negra que lhe roçava as botas. Umas botas negras, de salto baixo e pele de luva. Brunetti recordava vagamente ter ouvido sua mulher comentar, quando passavam diante da vitrine da Fratelli Rossetti, que era um escândalo que alguém pudesse gastar meio milhão de liras em botas. As botas eram estas, Brunetti estava certo. A mulher tinha uma cabeleira negra que lhe chegava até os ombros, de um encaracolado natural, e que seria perfeita ainda que a cortasse com uma serra. Seus olhos tinham uma cor verde azeitona, um verde que lhe fez pensar em contas de vidro e, ao recordar as botas, em esmeraldas. A mulher da cadeira parecia ter vários anos a mais e usava o cabelo, em que brilhavam mechas grisalhas, muito curto, como aqueles imperadores romanos dos séculos da decadência. A severidade do corte acentuava a pureza de seus traços.


O comissário deu uns passos para a mulher que estava sentada e fez um movimento que podia se interpretar como uma reverência.


— Senhora Petrelli? Ela assentiu porém não disse nada. — Muito honrado em conhecê-la ainda que lamento que venha a ser em tão desgraçadas circunstâncias.


Por ser aquela mulher uma das cantoras de ópera mais importantes do momento, não conseguiu resistir a tentação de falar na pomposa linguagem da ópera, como se estivesse interpretando um papel. Ela voltou a mover a cabeça, sem fazer nada para aliviar do peso da conversa.


— Gostaria falar com você sobre a morte do maestro Wellauer. Olhou à outra mulher e adicionou: — E também com você... Deixou a frase em suspenso, convidando a que alguma delas lhe dissesse o nome.

— Brett Lynch, disse a cantora, — Minha secretária e amiga.

— É um nome norte-americano? Perguntou o comissário à aludida.

— Correto, se adiantou a responder a senhora Petrelli.

— Então não seria preferível que falássemos em inglês? Perguntou ele, um pouco ufano da facilidade com que podia passar de um a outro idioma.

— Seria preferível que conversássemos em italiano, disse a norte-americana, falando pela primeira vez e utilizando um italiano sem acento. O comissário não conseguiu dissimular a surpresa, que foi observada pelas duas mulheres. — A não ser que deseje falar em veneziano, adicionou ela sem o menor esforço no dialeto local, pronunciando-o à perfeição. — Porém talvez Flavia tivesse dificuldades para seguir o que dizemos. O comissário pensou então que demoraria muito tempo em voltar a se presumir poliglota.

— Em italiano então, disse se voltando para a senhora Petrelli. — Tem inconveniente em responder a umas perguntas?

— Claro que não, respondeu ela. — Quer sentar, senhor...?

— Brunetti. Comissário de polícia. O título não pareceu impressioná-la.

— Quer se sentar, Doutor Brunetti?

— Não, muito obrigado. Apanhou um bloco no bolso, a caneta enfiada entre suas páginas e se dispôs a fazer como se tomasse notas, coisa que rara vez fazia, já que preferia que, durante o primeiro interrogatório, seu olhar e sua mente vagassem com liberdade. A senhora Petrelli esperou que retirasse a tampa da caneta para perguntar:

— Que deseja saber?

— Esta noite, viu o maestro ou falou com ele? E, antes que ela pudesse responder, pontualizou: — Aparte de quando estava atuando, naturalmente.

— O justo para lhe dizer “Buona sera” quando cheguei e nos desejar mutuamente “In boca al lupo”. Nada mais.

— E essa foi a única vez que falou com o maestro?


Antes de responder, ela olhou à outra mulher. Ele manteve os olhos fixos na soprano, pelo que ignorava a expressão da outra. A pausa se prolongava, mas, antes que pudesse repetir a pergunta, ela disse por fim:


— Não; não voltei a vê-lo. Do cenário, sim, claro; porém não conversamos mais.

— Nem uma palavra?

— Nem uma palavra, disse ela sem titubear.

— E durante os entreatos? Onde você estava?

— Aqui. Com a senhorita Lynch.

— E você, senhorita Lynch? Perguntou ele, pronunciando o sobrenome corretamente, ainda que teve que se concentrar para consegui-lo. — Onde estava durante a representação?

— Durante quase todo o primeiro ato, aqui, no camarim. Desci para o “Sempre libera”, porém depois voltei a subir. E fiquei aqui durante o resto da função, respondeu ela tranquilamente.


O comissário olhou a desnuda habitação, procurando algo que pudesse tê-la mantido ocupada durante tanto tempo. Ela notou o olhar e apanhou do bolso da saia um delgado rolo. Ele viu que estava escrito em caracteres chineses como os que havia observado no rótulo da porta.


— Estive lendo, explicou, mostrando o livrinho. Sorria afavelmente, como se estivesse disposta a comentar o texto, se ele pedisse.

— E você falou com o maestro Wellauer nesta noite?

— Como lhe disse a senhora Petrelli, o cumprimentamos ao entrar. Depois, não voltei a vê-lo. Brunetti reprimiu o impulso de objetar que não, senhorita, a senhora Petrelli não havia dito que tinham chegado juntas, e a deixou continuar. — De onde eu estava, entre bastidores, não o via, e durante os dois entreatos não me movi daqui.

— Ficou aqui, com a senhora Petrelli? Agora foi a norte-americana quem olhou à outra mulher antes de responder.

— Sim, com a senhora Petrelli, como ela lhe disse.


Brunetti fechou o bloco, onde que não havia escrito nada mais que o sobrenome da norte-americana, como para plasmar todo o horror de uma palavra de uma só sílaba e cinco consoantes.


— No caso de que tenha mais perguntas, onde posso encontrá-la, senhora Petrelli?

— Cannaregio 6134, disse ela. Era uma área residencial da cidade, o que surpreendeu ao comissário.

— É seu apartamento, senhora?

— Não; é o meu, disse a outra mulher. — Também eu estarei ali. Ele voltou a abrir o bloco e anotou o endereço. Em seguida, perguntou:

— E o telefone? Ela o deu também, e adicionou que não aparecia na lista. Em seguida explicou que a casa era próxima da Basílica de Santi Giovanni e Paolo. Assumindo um ar oficial, o comissário se inclinou ligeiramente e disse: — Muito obrigado, senhoras, e lamento muito as dificuldades do momento.


Se estas palavras lhes pareceram estranhas, nenhuma das duas mulheres deixou transparecer. Depois de se despedir cortesmente, o comissário saiu do camarim e precedeu os dois agentes que lhe esperavam na porta pela estreita escada que descia aos bastidores. Ao pé da escada esperava o terceiro agente.


— E bem? Perguntou Brunetti. O homem sorriu, satisfeito de ter algo interessante para dizer.

— Tanto Santore, o diretor, como Petrelli falaram com ele no camarim. Santore entrou antes da representação e ela, no primeiro entreato.

— Quem disse isto?

— Um cenógrafo. Segundo ele, Santore parecia muito chateado ao sair, porém é só uma impressão. Não ouviu gritos nem nada.

— E a senhora Petrelli?

— Bem, o homem diz que não está certo de que fosse Petrelli, porém usava um vestido azul.

— Usa um vestido azul no primeiro ato, comentou Miotti. Brunetti olhou-o interrogativamente. Miotti havia baixado a cabeça antes de responder?

— A semana passada vi um ensaio, senhor. E, no primeiro ato, usa um vestido azul.

— Obrigado, Miotti, disse Brunetti com voz átona.

— É minha garota, senhor. Seu primo canta no coro e nos dá entradas. Brunetti assentiu com um sorriso, porém teria preferido não saber do detalhe. O agente que fazia o relatório levantou o punho para olhar o relógio.

— Continue, disse Brunetti.

— Diz que a viu sair no final do entreato, e que parecia chateada, muito chateada.

— Ao final do primeiro entreato?

— Sim, senhor. Disso está certo. Brunetti, que havia captado o movimento do agente, disse então:

— É tarde, e me parece que pouco mais podemos fazer aqui esta noite. Os outros olharam o teatro vazio. — Amanhã, vejam se encontram alguém mais que a tenha visto. Ou tenha visto outra pessoa entrar. Seus rostos se iluminaram ao ouvi-lo falar amanhã. — Isso é tudo por hoje. Podem ir embora. Quando os homens se afastavam, gritou: — Miotti, já levaram o cadáver para o hospital?

— Não sei, senhor, disse o agente, quase contrito, como se temesse que sua ignorância pudesse lhe fazer perder o mérito adquirido há um momento.

— Espere aqui enquanto vou ver, disse Brunetti.


Foi ao camarim e abriu a porta sem se preocupar em bater. Os dois maqueiros estavam sentados nas cadeiras, com os pés em cima da mesinha de centro. A seu lado, no chão, tapado com um lençol e completamente esquecido, jazia um dos maiores músicos do século. Quando Brunetti entrou, os homens levantaram o olhar, porém não se moveram.


— Já podem levá-lo ao hospital, disse, deu meia volta e saiu do camarim, fechando a porta.


Miotti continuava onde o havia deixado, folheando um bloco similar ao que tinha Brunetti.


— Vamos tomar um copo, disse Brunetti. — Provavelmente, o hotel é o único lugar que estará aberto a esta hora. Suspirou, já cansado. — E me cairá bem um gole. Começou a andar para a esquerda, porém viu que voltava aos bastidores. A escada havia desaparecido. Estava há tanto tempo no teatro, subindo e descendo escadas e percorrendo corredores que ficara totalmente desorientado e não tinha ideia de como sair. Miotti lhe tocou ligeiramente no braço e disse:

— Por aqui, senhor. Levando-o para a esquerda, onde estava a escada pela qual haviam subido há mais de duas horas.


Abaixo, o porteiro, ao ver o uniforme de Miotti, colocou a mão debaixo do mostrador frente ao que estava sentado e apertou o botão que desbloqueava a porta. Com um gesto de mão, o homem lhes indicou que só tinham que empurrar. Como sabia que Miotti já havia interrogado o homem acerca de quem havia entrado e saído por aquela porta durante a noite, Brunetti não se preocupou em lhe fazer mais perguntas, e saiu diretamente ao deserto campo que se estendia além da porta. Antes de entrar na estreita rua que levava ao hotel, Miotti perguntou:


— Precisará de mim para isto, senhor?

— Não tenha escrúpulos em tomar um copo estando de uniforme, disse Brunetti.

— Não é isso, senhor. Talvez o garoto estivesse cansado.

— Que é então?

— Senhor, o porteiro é amigo de meu pai, e pensei que, se voltar e convidá-lo a tomar um copo, talvez me diga algo mais. Como Brunetti não respondesse, o jovem adicionou rapidamente: — Foi só uma ideia, senhor. Não quero...

— Uma boa ideia. Muito boa. Volte e fale com ele. O verei de manhã. Não precisa chegar antes das nove.

— Obrigado, senhor, disse Miotti com um amplo sorriso. O jovem levou a mão ao gorro em um respeitoso cumprimento que Brunetti respondeu agitando a mão com negligencia, e voltou ao teatro.


* * *


Quatro

BRUNETTI subiu para o hotel, ainda iluminado a esta hora da noite quando o resto da cidade estava escuro e adormecido. Veneza, antigamente a capital da dissipação de todo um continente, havia se convertido em uma cidade provinciana e dorminhoca que, depois das nove ou das dez da noite, praticamente deixava de existir. Durante o verão, enquanto os turistas pagavam e o sol brilhava, desempoava suas fases de cortesã, porém no inverno era uma velha cansada, amiga de se deitar cedo, e deixava suas ruas silenciosas aos gatos e as recordações.


Mas, para Brunetti, estas eram as horas onde mais bela era a cidade, as horas onde ele, veneziano até a medula, podia vislumbrar vestígios da glória de antanho. A noite ocultava o musgo que cobria as escadarias dos palazzi do Gran Canal, tapava as gretas das igrejas e dissimulava os descascados das fachadas dos edifícios públicos. Como muitas mulheres de certa idade, a cidade precisava da penumbra para aparentar a beleza perdida. A barca que, de dia, espargia detergente, à noite, era uma forma nebulosa que navegava para um destino misterioso. As névoas, tão frequentes nestes dias invernais, transformavam pessoas e objetos e até podiam converter os adolescentes que vagavam pelas ruas compartilhando um cigarro, em misteriosos fantasmas do passado.


O comissário levantou o olhar para as estrelas, que se viam claramente sobre a rua sem iluminar, e notou sua beleza. Com sua imagem gravada na mente, seguiu andando para o hotel. O vestíbulo, deserto, tinha o aspecto de abandono comum aos lugares públicos à noite. O porteiro estava sentado atrás do mostrador da recepção, com a cadeira inclinada para a parede e as folhas rosa do diário esportivo do dia aberta ante si. Um velho com avental de listras verdes e negras limpava o sabão que antes havia espalhado pelo chão de mármore. Quando Brunetti, que havia pisado no sabão, viu que não podia cruzar o vestíbulo sem sujar a área já limpa, olhou o velho e disse:


— Scusi.

— Não importa, disse o homem indo atrás ele com a escova. O que lia o jornal não se preocupou em levantar o olhar.


Brunetti passou ao salão do hotel. Havia seis ou sete grupos de banquetas situadas ao redor de mesinhas baixas. Brunetti as ultrapassou e se reuniu com o único ocupante do salão. Se havia que acreditar no que diziam os jornais, este homem era o melhor diretor cênico da Itália. Há dois anos, Brunetti havia visto no teatro Goldoni uma obra de Pirandello dirigida por ele, e o impressionou mais a montagem que a interpretação, que era medíocre. Santore era um homossexual reconhecido, porém no mundo do teatro, em que o casamento entre um homem e uma mulher se considera estranho, sua vida privada nunca foi impedimento para o êxito. E agora alguém dizia tê-lo visto sair muito alterado do camarim de um homem que pouco depois era vítima de uma morte violenta.


Santore se levantou ao ver Brunetti se aproximar. Os dois homens estreitaram a mão e se apresentaram. Santore tinha estatura e complexão medianas, e o rosto de um boxeador ao final de uma carreira pouco afortunada: nariz amassado e de poros abertos, boca grande, de lábios carnosos e húmidos. Perguntou a Brunetti se queria uma bebida, e daquela boca saíram palavras pronunciadas com o mais puro acento florentino e a modulação de um ator. Brunetti pensou que assim devia falar Dante. Brunetti aceitou o conhaque que Santore lhe ofereceu e este foi em busca das bebidas. Ao ficar sozinho, Brunetti olhou o livro que o outro havia deixado aberto na mesa e o puxou para si. Santore voltou trazendo em cada mão um copo Napoleón com uma generosa dose de conhaque.


— Obrigado, disse Brunetti, bebendo um grande gole. Apontou o livro, após decidir que este lhe oferecia uma maneira de iniciar a conversa melhor que as perguntas de rigor de onde estivera e que havia feito. — Ésquilo? Santore sorriu, dissimulando a surpresa que poderia lhe causar que um policial lesse um título escrito em grego. — Lê por distração ou por obrigação?

— Digamos que por obrigação, respondeu Santore tomando um gole do conhaque. — Dentro de três semanas, começo a trabalhar em uma montagem de Agamenon em Roma.

— Representarão em grego? Perguntou Brunetti, porém era evidente que conhecia a resposta de antemão.

— Não; na tradução. Santore guardou silêncio um momento e cedeu à curiosidade. — Como é que um policial lê grego? Brunetti fez girar o líquido no copo.

— Fiz quatro cursos. Porém isso faz muito tempo e esqueci quase tudo.

— Porém ainda reconhece Ésquilo.

— Conheço as letras. É a única coisa. Bebeu outro gole e adicionou: — Um fato que sempre gostei nos gregos é que mantinham a violência fora de cena.

— Diferente de nós? Perguntou Santore, e pontualizou: — Diferente do desta noite?

— Sim, diferente do desta noite, admitiu Brunetti, sem se perguntar como Santore podia saber que a morte fora violenta: o teatro era pequeno, e com certeza já havia sabido antes que chegasse a polícia e inclusive antes que os avisassem. — Falou com ele esta noite? Não era necessário dar nomes.

— Sim. Trocamos umas palavras antes que começasse a função. Encontramo-nos no bar e fomos ao seu camarim. Ali começou uma discussão. Santore falava sem vacilações. — Não lembro se chegamos a gritar, porém levantamos a voz.

— Qual era a causa da discussão? Perguntou Brunetti, com a mesma tranquilidade com que falaria com um velho amigo, e certo de que a resposta que ouviria seria a verdade.

— Havíamos chegado a um acordo verbal acerca desta montagem. Eu cumpri minha parte e Helmut se negava a cumprir a dele.


Em lugar de pedir esclarecimentos, Brunetti apurou o conhaque, deixou o copo na mesa e ficou esperando a que o outro continuasse. Santore segurava o copo com as duas mãos e o fazia girar lentamente.


— Eu concordei em dirigir esta ópera porque queria ajudar um amigo meu a conseguir trabalho no festival de Halle deste verão. Não é um grande festival, nem o papel era importante, porém Helmut poderia recomendar meu amigo aos diretores. Ele tinha que dirigir uma ópera ali. Santore levou o copo aos lábios e bebeu um gole. — Esta foi a causa da discussão.

— Que disseram?

— Não estou certo de recordar tudo o que eu disse nem o que ele disse, porém lembro de ter dito que o que ele havia feito me parecia uma sacanagem e uma imoralidade. Suspirou. — Quando se discutia com Helmut, sempre acabava se falando como ele.

— E o que ele respondeu?

— Riu.

— Por quê? Antes de responder, Santore perguntou:

— Quer outro copo? Eu vou querer.


Brunetti concordou, agradecido. Desta vez, enquanto Santore se ausentava, ele apoiou a cabeça no respaldo e fechou os olhos. Abriu-os quando ouviu se aproximar os passos de Santore. Tomou o copo que o outro lhe oferecia e perguntou, como se a conversa não tivesse se interrompido:


— Por que riu? Santore se sentou em sua banqueta, segurando o copo com uma mão.

— Em parte, suponho, porque Helmut achava estar acima da moral comum. Ou talvez achasse ter criado sua própria moral, distinta e melhor que a nossa. Como Brunetti não fizera nenhum comentário, prosseguiu: — É quase como se só ele tivesse direito a definir a moral, como se pensasse que ninguém mais era digno de utilizar essa palavra. Encolheu os ombros e bebeu.

— Por que havia de pensar tal coisa?

— Porque sou homossexual, respondeu Santore simplesmente, sugerindo que ele considerava a questão tão importante como poderia ser a escolha de um jornal.

— Por essa razão se negou a ajudar seu amigo?

— Sim, respondeu Santore. — No princípio, dizia que Saverio não era muito bom, que não tinha experiência. Porém a verdadeira razão saiu depois, quando me acusou de pedir um favor para o meu par. Se inclinou para adiante e deixou o copo na mesa. — Helmut sempre se considerou uma espécie de guardião da moral pública, disse, e então retificou: — Havia se considerado.

— E é? Perguntou Brunetti.

— É quem, quê? Perguntou Santore, surpreso, descuidando da gramática.

— Esse cantor é seu par?

— Não. Nada disso. Por desgraça.

— É homossexual?

— Tampouco.

— Então por que Wellauer não quis ajudá-lo? Santore olhou fixamente a Brunetti e perguntou:

— Que sabe dele?

— Muito pouco, e só coisas de sua carreira profissional, o que publicaram as revistas e os jornais durante os anos. Porém dele, de sua vida particular, nada. E Brunetti era consciente de que teria que indagar dela, porque aí tinha que estar, como sempre estava, a causa da morte.


Em vista de que Santore não dizia nada, Brunetti lhe apertou:


— Não se deve falar mal dos mortos, vero?

— Nem de alguém com quem tenha que voltar a trabalhar, adicionou Santore. Brunetti se surpreendeu a si mesmo ao responder:

— Não creio que isso seja factível neste caso. E que mal poderia se dizer dele?


Santore contemplava o rosto do policial como se este fosse um ator ou um cantor, e tivesse que decidir que papel faria na obra.


— São, mais que nada, rumores, disse por fim.

— Que rumores?

— Rumores de que era nazista. Ninguém sabe a ciência certa ou, se sabe, cala. E, se alguém disse algo alguma vez, já se esqueceu, foi parar ali aonde não chega a memória. Quando os nazistas estavam no poder, trabalhou para eles. Até havia se dito que dirigia concertos particulares para o Führer. Porém ele argumentava que tinha que fazê-lo para salvar os músicos de sua orquestra que eram judeus. E o certo é que os judeus da orquestra conseguiram sobreviver à guerra. A mesma que ele sobreviveu. Porém sua reputação não se ressentiu por sua atividade naqueles anos, nem pelos concertos íntimos para o Führer. Depois da guerra, prosseguiu Santore com voz estranhamente serena, — Disse que ele se sentia “moralmente oposto” ao nazismo e que havia dirigido contra sua vontade. Tomou um pequeno gole de conhaque. — Não tenho ideia do que possa ter de verdade em tudo isso, nem se era membro do partido, nem qual era sua implicação. Nem me importo.

— Então por que mencionou? Perguntou Brunetti. Santore soltou uma gargalhada que encheu o espaço vazio do salão:

— Suponho que porque creio que é verdade.

— Poderia ser, sorriu Brunetti.

— E, porque me importaria?

— Isso, também poderia ser, concordou Brunetti. Deixaram que o silêncio se prolongasse, até que Brunetti perguntou:

— Que você sabe na realidade?

— Sei que dava concertos durante a guerra. Sei que a filha de um de seus músicos foi lhe suplicar que ajudasse o seu pai. E que o músico sobreviveu à guerra.

— E a filha?

— A filha também sobreviveu.

— Então? Perguntou Brunetti.

— Nada, suponho. Santore encolheu os ombros. — Além disso, sempre foi fácil esquecer o passado do homem e pensar só em seu gênio. Não houve outro como ele e, sinto dizer, não haverá ninguém que possa ocupar seu posto.

— Por isso você concordou a montar esta ópera para ele, porque era conveniente esquecer seu passado? Era uma pergunta, não uma acusação, e como pergunta a tomou Santore.

— Sim, respondeu em voz baixa. — Decidi dirigi-la para que meu amigo tivesse a oportunidade de cantar com ele. Convinha-me esquecer tudo o que sabia ou suspeitava ou, pelo menos, prescindir disso. Porém agora já não importa mais.


Brunetti viu aparecer uma ideia no rosto de Santore.


— Porém agora já não poderá cantar com Helmut, adicionou, para dar a entender a Brunetti que em nenhum momento havia perdido de vista o motivo da conversa: — O que indica que eu não tinha por que matá-lo.

— Sim; parece plausível, concedeu Brunetti sem aparente interesse, e perguntou: — Havia trabalhado antes com ele?

— Sim. Há seis anos. Em Berlim.

— Naquela época sua homossexualidade não trouxe nenhum inconveniente?

— Não; isso nunca foi obstáculo, uma vez que eu era muito famoso para que ele quisesse trabalhar comigo. Era conhecida a atitude de Helmut, que se considerava uma espécie de anjo custódio da moral do ocidente e dos princípios bíblicos; mas, neste meio, se não quiser trabalhar com homossexuais, não pode fazer nada. Helmut havia feito uma espécie de trégua conosco.

— E vocês, com ele?

— Claro. Como músico, estava tão próximo da perfeição como poderia estar um mortal. Podia se transigir com o homem pelo privilégio de trabalhar com o músico.

— Havia em seu carácter algo mais que o desgostasse? Santore pensou antes de responder a isto.

— Não; não havia nada mais dele que me repugnasse. Os alemães não me são simpáticos, e ele era muito germânico. Porém não falamos de simpatia ou antipatia. Era aquele sentido de superioridade moral que tinha, como se fosse um farol em um mundo de trevas. Santore fez uma careta. — Não foi uma frase afortunada. Culpa da hora, ou do conhaque. Além disso, era um ancião, e está morto. Brunetti insistiu sobre uma pergunta anterior:

— Que você lhe disse durante a discussão?

— As coisas que se costuma dizer quando se discute, disse Santore com gesto de cansaço. — Eu o chamei de embusteiro e ele me chamou de maricas. Em seguida eu disse coisas desagradáveis acerca da obra, da música e de sua maneira de dirigir a orquestra, e ele me disse outro tanto da montagem. O de sempre. Apoiou-se pesadamente no respaldo da banqueta.

— Ameaçou você? O olhar de Santore saltou para o rosto de Brunetti sem dissimular a estupefacção.

— Era um ancião.

— Sente que tenha morrido? Esta era outra pergunta inesperada. O diretor pensou antes de responder.

— Por ele, como pessoa, não sinto. Por sua esposa, sim. Será... Deixou a frase sem terminar. — A morte do músico eu deploro profundamente. Era velho e estava no final de sua carreira. E creio que ele sabia.

— Que quer dizer?

— Sua maneira de dirigir já não tinha o brilho de antes, nem o brio. Eu não sou músico e não posso precisar mais. Porém faltava algo. Moveu a cabeça. — Ou talvez só me pareça, por causa da raiva.

— Falou disto com alguma outra pessoa?

— Não; ninguém apresenta queixas contra Deus. Fez uma pausa. — Bem, sim, comentei com Flavia.

— A senhora Petrelli?

— Sim

— E o que ela disse?

— Ela já havia trabalhado antes com ele. Com frequência, creio. Estava preocupada pelo muito que havia observado. Falou-me disso uma vez.

— Que lhe disse?

— Nada concretamente; só que era como trabalhar com um diretor principiante, sem experiência.

— Alguém mais o mencionou?

— Não, ninguém; pelo menos, comigo.

— Estava no teatro esta noite seu amigo Saverio?

— Saverio está em Nápoles, respondeu Santore com frieza.

— Compreendo. Uma pergunta idiota. Dissipou-se o ambiente de amigável intimidade. — Quanto tempo pensa ficar em Veneza, senhor Santore?

— Geralmente, se tudo correr bem, vou embora depois da primeira representação. Porém a morte de Helmut mudou tudo. Provavelmente, ficarei uns dias, até que o novo diretor tenha se familiarizado com a obra. Em vista de que Brunetti não fez nenhum comentário, perguntou: —Me permitirá regressar a Florença?

— Quando?

— Dentro de três dias. Quatro. Tenho que ficar pelo menos para a representação seguinte com o novo diretor. Porém depois gostaria de retornar para casa.

— Não há razão para que não se vá, disse Brunetti. E se pôs de pé. — A única coisa que precisamos é um endereço onde possamos localizá-lo. Pode dá-lo amanhã no teatro a um de meus homens. Estendeu a mão. Santore se levantou e a apertou. — Obrigado pelo conhaque. E boa sorte com o Agamenon. Santore sorriu em sinal de agradecimento e Brunetti se foi, sem mais nada dizer.


* * *


Cinco

BRUNETTI decidiu ir para casa andando, para desfrutar das estrelas e das ruas solitárias. Parou diante do hotel, calculando distâncias. O plano da cidade que cada veneziano tem impresso na mente lhe indicava que o caminho mais curto era pela Ponte de Rialto. Cortando pelo Campo de San Fantin e um labirinto de ruelas, sairia na ponte. Não cruzou com ninguém e tinha a estranha sensação de se encontrar só na cidade adormecida. Em San Luca, passou diante da farmácia, um dos poucos lugares que ficavam abertos toda a noite, e da estação, onde dormiam os sem casa e os loucos.


Já estava perto da água, com a ponte à direita. Tipicamente veneziano: visto de longe, parecia alta, porém ao se aproximar se via firmemente assentado no barro da cidade. Do outro lado da ponte, cruzou o mercado, agora deserto. Geralmente, passar por aqui era um calvário, porque se precisava abrir passagem aos empurrões e cotoveladas. A rua ficava abarrotada de bandos de turistas que se apertavam entre as barracas de verduras de um lado e as lojas de souvenires da pior espécie do outro; porém agora tinha toda a rua para si e podia caminhar em paz. Diante dele, no centro da calçada, um par se abraçava se pegando pelos quadris, cegos à beleza que os envolvia, mas, talvez, inspirados por ela.


Na altura do relógio, dobrou para a esquerda, contente de estar quase em casa. Ao cabo de cinco minutos, chegava a Biancat, a floricultura, sua loja favorita, cujas vitrines ofereciam todos os dias à cidade uma explosão de beleza. Esta noite, através do húmido vidro, resplandeciam rosas amarelas em grandes vasos e, atrás, se via uma nuvem de pálidos jasmins. Passou depressa diante da segunda vitrine, cheia de misteriosas orquídeas, uma flor que sempre lhe havia parecido um pouco canibal. Abriu a porta do palazzo em que vivia, se animando, como fazia sempre que chegava cansado, para subir os noventa e quatro degraus que o separavam de seu apartamento no quarto andar. O proprietário anterior havia construído ilegalmente aquele apartamento há mais de trinta anos, pelo simples procedimento de agregar um andar ao edifício, sem se preocupar em solicitar alguma permissão. Esta circunstância foi silenciada quando, há dez anos, Brunetti comprou o apartamento, e desde então vivia no perpétuo temor de receber um requerimento para que o legalizasse. Tremia ante a sobre-humana tarefa de conseguir as permissões que legalizariam a existência do apartamento e seu direito a habitá-lo. A circunstância de que ele estivesse vivendo naquelas paredes seria o de menos. Os subornos seriam gigantescos.


Abriu a porta, sentindo com agrado o calor e a grata mescla de aromas que ele associava com o apartamento: a lavanda, a cera, o cheiro da cozinha; era um ambiente que, de um modo que não conseguia explicar, sugeria uma calma que neutralizava a diária dose de loucura de seu trabalho.


— É você, Guido? Gritou Paola da sala. Gostaria de saber a quem mais podia esperar sua mulher as duas da madrugada, porém se reservou a pergunta.

— Sim, respondeu retirando os sapatos e o casaco, e começando a reconhecer nesse momento como estava cansado.

— Quer um chá? Ela foi ao seu encontro e lhe deu um beijo na face.


Ele concordou, sem tentar ocultar o cansaço. Seguiu-a até a cozinha e se sentou enquanto sua mulher colocava água para ferver. Paola apanhou de um armário uma bolsa de ervas, cheirou-a e perguntou:


— Verbena?

— Bem, respondeu ele. Estava tão cansado que lhe era indiferente.


Ela jogou um punhado de folhas secas no bule de porcelana que fora da avó de seu marido, se aproximou deste por trás e lhe deu um beijo na cabeça, onde começava a rarear o cabelo.


— Que aconteceu?

— No La Fenice envenenaram o diretor da orquestra.

— Wellauer?

— Sim.


Ela lhe pôs as mãos nos ombros e os apertou ligeiramente de um modo reconfortante. Não havia necessidade de falar; os dois sabiam a algazarra que armaria a imprensa, reclamando que se descobrisse rapidamente o culpado. Tanto ele como Paola já poderiam recitar os editoriais que apareceriam pela manhã e que estavam sendo escritos neste mesmo momento. Da panela que estava no fogo saiu um jorro de vapor e Paola foi até o fogão e colocou a água no bule. Como sempre, a simples presença de sua mulher era um bálsamo para o espírito do comissário; agradava-o observar a serena eficácia com que ela se movia e fazia as coisas. Paola tinha a tez clara e o cabelo acobreado que se vê em muitos retratos das venezianas do século XVII. Não era uma beleza segundo os cânones; tinha o nariz um pouco comprido e o queixo mais que um pouco enérgico. Porém ele gostava das duas coisas.


— Alguma ideia? Perguntou ela, levando à mesa o bule e duas xícaras. Sentou-se frente a ele, serviu o aromático chá, foi outra vez ao armário e voltou com um grande jarro de mel.

— Ainda é cedo, disse ele, colocando uma colher cheia de mel na xícara. Mexeu o líquido e seguiu falando ao ritmo que marcava o barulho da colher. — Temos uma esposa jovem, uma soprano que mentiu ao dizer que não havia visto o maestro a sós nesta noite e um diretor gay que discutiu com a vítima pouco antes de sua morte.

— Por que não vende o roteiro? Parece uma série da televisão.

— E temos um gênio envenenado, adicionou ele.

— Sim; isso também. Paola tomou um gole de chá e soprou para esfriá-lo. — A esposa é muito jovem?

— Poderia ser sua filha. Trinta anos de diferença, diria eu.

— Ok, disse ela, utilizando um dos americanismos aos que era tão aficionada. — Eu garanto que foi a esposa.


Apesar de que ele havia pedido mais de uma vez que não o fizesse, ela se obstinava em eleger um suspeito no princípio de cada investigação em que ele trabalhava, e sempre se equivocava, porque sempre optava pela escolha mais óbvia. Uma vez, sem poder conter a irritação, Brunetti perguntou por que insistia em fazer isso e ela explicou que, depois de ter escrito sua tese sobre Henry James, se considerava com direito de optar pela obviedade na vida real, já que em suas novelas nunca a havia encontrado. Brunetti não conseguira que deixasse de eleger um suspeito e, mais, que o escolhesse com um pouco de sutileza.


— O que significa, disse ele, sem deixar de remexer a colher, — Que descobriremos que foi alguém do coro.

— Ou o mordomo.

— Hum, concordou ele, e bebeu o chá.


Permaneceram em amigável silêncio até que terminaram o chá. Ele pôs as xícaras na pia e o bule, em área segura.


* * *


Seis

NA MANHÃ SEGUINTE em que foi encontrado o cadáver do diretor de orquestra, Brunetti chegou a sua sala um pouco antes das nove e descobriu que havia acontecido um fato quase tão extraordinário como o da véspera: seu superior imediato, o vicequestore Giuseppe Patta, já se encontrava em sua sala e há quase meia hora estava procurando Brunetti. Assim lhe foi comunicado, primeiro, pelo porteiro, mesmo na entrada do edifício, depois, por um agente, na escada e, por último, por seu secretário e os outros dois comissários da cidade. Brunetti, sem se apressar, repassou o correio, perguntou a central se havia ligações para ele e, finalmente, desceu a escada que levava a sala de seu superior. O cavaliere Giuseppe Patta fora enviado a Veneza há três anos, dentro de um plano concebido para injetar sangue novo no sistema de investigação criminal. Neste caso, o sangue era siciliano, e havia resultado incompatível com o veneziano.


Patta usava piteira de ônix e, às vezes, bengala com punho de prata. Ainda que, desde o primeiro dia, Brunetti havia olhado a piteira com perplexidade e a bengala com regozijo, tentou não formar uma opinião até ter trabalhado com o homem tempo suficiente para decidir se a afetação que denotava o uso de tais acessórios era justificada. Brunetti demorou menos de um mês para concluir que, se bem que os acessórios se harmonizavam com a estampa do homem, nada justificava a afetação. A jornada de trabalho do vicequestore incluía um sossegado café a cada manhã na terraza do Gritti no verão, e no Florian's no inverno, além de um almoço na piscina do Cipriani ou no Harry's Bar. Por norma geral, lá pelas quatro, Patta decidia que “amanhã será outro dia”. Um dia muito curto, certamente. Brunetti havia descoberto também que, para se dirigir a Patta, havia que usar o título de “vicequestore” ou o mais augusto ainda “cavaliere”, apesar de que não estava muito claro seu direito a algum dos dois. E não dizer tu, fórmula familiar própria de subalternos.


Patta preferia que não o molestasse com os detalhes mais crus dos assassinatos e demais sórdidos acontecimentos. Uma das poucas coisas que podiam impulsioná-lo a enrugar as belas ondas da testa eram os jornais insinuarem que a polícia estava negligente no desempenho de suas funções. Não importava se se tratava de uma criança que havia conseguido romper um cordão policial para dar uma flor a um dignitário estrangeiro, ou de africanos que foram vistos vendendo droga na rua. Toda sugestão de que a polícia não exercia o controle absoluto dos habitantes da cidade provocava em Patta surtos de indignação que manifestava aos seus três comissários por meio de longos memorandos, segundo os quais as faltas por omissão da polícia eram infinitamente mais execráveis que os crimes cometidos pela população delinquente. Aceitando uma sugestão dos jornais, Patta havia declarado vários “alertas contra o crime”, para os quais elegia um delito como elegeria um suculento bife no restaurante, e anunciava nos jornais que, no curso da semana, o delito em questão seria erradicado ou, quando menos, reduzido à mínima expressão. Brunetti, quando lia algo acerca do último “alerta contra o crime”, porque, geralmente, esta informação só lhe chegava através da imprensa, não podia parar de pensar na cena do filme CASABLANCA onde o chefe de polícia ordenava que prendessem “os suspeitos de costume”. Declarava-se o “alerta”, uns quantos adolescentes eram sentenciados a um mês de cadeia e as coisas voltavam à normalidade, até que uma campanha da imprensa provocasse outro “alerta”.


Brunetti havia pensado mais de uma vez que em Veneza o índice de criminalidade era baixo, um dos mais baixos da Europa e, claro, o mais baixo da Itália, porque os delinquentes, a maioria, ladrões, simplesmente, não sabiam como sair da cidade. Só alguém que vivesse ali podia se orientar na rede de ruas estreitas e saber qual delas não tinha saída e qual desembocava em um canal. E os venezianos eram gente de ordem, se mais não, porque sua tradição e história lhes haviam infundido um grande respeito pela propriedade privada e a convicção da imperiosa necessidade de salvaguardá-la. De modo que havia pouca criminalidade e quando acontecia um ato de violência ou, excepcionalmente um assassinato, o culpado era descoberto rapidamente e com facilidade: o marido, o vizinho, o sócio. Por norma geral, a única coisa que havia de se fazer era deter os suspeitos de costume. Porém Brunetti sabia que a morte de Wellauer seria diferente. Era um homem famoso, sem dúvida o diretor de orquestra mais famoso da época, e fora assassinado na ópera de Veneza. Como o caso fora designado a Brunetti, o vicequestore o faria diretamente responsável por toda a publicidade desfavorável que pudesse recair na polícia.


Brunetti bateu à porta e esperou permissão para entrar. Quando se ouviu o grito, empurrou a porta e viu Patta onde imaginava encontrá-lo: sentado detrás de sua enorme mesa e inclinado sobre um papel ao que fazia importante a atenção que ele lhe dedicava. Inclusive em um país de homens bem parecidos, Patta chamava a atenção com seu perfil de estátua romana, seus olhos separados e penetrantes e seu corpo de atleta, apesar de já ter ultrapassado os cinquenta. Quando o fotografavam para os jornais, costumava oferecer o perfil esquerdo.


— Ah, por fim, disse, dando a entender que Brunetti chegava com várias horas de atraso. — Achei que ia ter que esperar toda a manhã, adicionou, o que, na opinião de Brunetti, era exagerar a nota. Como o recém-chegado não respondesse, Patta perguntou: — Que me trouxe? Brunetti apanhou Il Gazzettino da manhã do bolso e respondeu:

— O jornal, senhor. Veio na primeira página. E, antes que Patta pudesse impedir, leu: — “Morte de um grande maestro. Suspeita-se que foi assassinado.” Estendeu o diário ao seu superior. Patta manteve a voz calma porém rechaçou o diário com um gesto de mão.

— Isso já li. Referia-me ao que já descobriu.


Brunetti apanhou o bloco do bolso do casaco. Nele não havia escrito nada mais que o nome, endereço e telefone da norte-americana, porém enquanto Patta o tivesse ali de pé, não poderia saber que as páginas estavam quase em branco. Enfaticamente, o comissário humedeceu o dedo e passou várias folhas com lentidão.


— A porta do camarim não estava fechada com chave, nem havia chave na fechadura. Isto significa que qualquer um conseguiria entrar e sair durante a apresentação.

— Onde estava o veneno?

— No café, suponho. Não saberei até depois da autópsia e do relatório do laboratório.

— Quando é a autópsia?

— Esta manhã, segundo eu creio. As onze.

— Bem. Que mais? Brunetti voltou a folha e contemplou mais brancura.

— Falei com os cantores no teatro. O barítono viu o maestro, porém só o cumprimentou ao passar. O tenor diz que não o viu e a soprano, que só o viu quando chegou ao teatro. Olhou para Patta, que esperava. — O tenor diz a verdade. A soprano mente.

— Por que afirma isso? Perguntou Patta secamente.

— Porque acho que é a verdade, senhor. Com ostensível paciência, como se falasse com uma criança idiota, Patta perguntou:

— E por que acha, comissário?

— Porque a viram entrar no camarim durante o primeiro entreato. Brunetti não se preocupou em esclarecer que isso só fora dito por uma testemunha e que ainda não fora confirmado. Durante a conversa com ela, lhe pareceu que não dizia a verdade, talvez sobre isso ou talvez sobre alguma outra coisa. — Também falei com o diretor, prosseguiu Brunetti. — Teve uma discussão com o maestro antes que começasse a função. Porém não voltou a vê-lo durante a representação. Acredito que diz a verdade. Patta não se preocupou em perguntar por que ele acreditava.

— Algo mais?

— Ontem à noite enviei uma mensagem à polícia de Berlim. Folheou o bloco afanosamente. — A mensagem saiu as...

— Isso não importa, cortou Patta. — Que responderam?

— Hoje nos enviarão por fax um relatório completo, com tudo o que tenham sobre Wellauer e sua esposa.

— Que há da esposa? Falou com ela?

— Só umas palavras. Estava muito afetada. Não me pareceu que estivesse em condições de responder perguntas.

— Onde ela estava?

— Quando falamos?

— Não; durante a representação.

— Sentada na plateia. Disse-me que durante o segundo entreato subiu para ver o marido porém não chegou a falar com ele porque era tarde.

— Está me dizendo que ela estava na área de bastidores quando ele morreu? Perguntou Patta com tanta veemência que Brunetti pensou que seu superior não precisaria de mais nada para detê-la pelo assassinato.

— Sim, porém não sei se chegou a entrar no camarim.

— Bem, pois procure descobrir. Até o próprio Patta compreendeu que seu tom era excessivamente seco, e disse: — Sente-se, Brunetti.

— Obrigado, senhor, disse o comissário fechando o bloco e guardando-o no bolso antes de sentar frente ao superior. Sabia que a poltrona de Patta era uns centímetros mais alto que a sua, algo que o vicequestore considerava que, sem dúvida, lhe proporcionava uma sutil vantagem psicológica.

— Quanto tempo ela esteve nos bastidores?

— Não sei, senhor. Estava muito transtornada quando falei com ela, e suas palavras não eram muito coerentes.

— Conseguiu entrar no camarim? Perguntou Patta.

— Talvez. Não sei.

— Me dá a impressão de que você tenta procurar desculpas, disse Patta, e adicionou: — É bonita? Brunetti compreendeu que Patta devia estar sabendo da diferença de idade que havia entre a vítima e a viúva.

— Se gostar de louras altas... Disse Brunetti.

— Você gosta?

— Minha esposa não permitiria, senhor. Patta tentou reconduzir a conversa.

— Alguém mais entrou no camarim durante a representação? De onde veio o café?

— Há um bar no andar de baixo do teatro. Provavelmente dali.

— Descubra.

— Sim, senhor.

— Agora preste atenção, Brunetti. Brunetti concordou— Quero o nome de todas as pessoas que estiveram nesse camarim e seus arredores. E quero saber mais coisas da esposa. Quanto tempo estão casados, de onde é, etecetera. Brunetti concordou. — Brunetti? Perguntou Patta bruscamente.

— Sim, senhor?

— Por que não toma nota? Brunetti se permitiu um finíssimo sorriso.

— Oh, eu nunca esqueço nada do que o senhor diz, senhor. Patta optou por tomar a resposta ao pé da letra.

— Não acredito que a mulher não chegou a falar com ele. As pessoas não começam a fazer uma coisa para em seguida deixá-la sem terminar. Estou certo de que aqui termos algo. Provavelmente, algo relacionado com a diferença de idade.


Corria o rumor de que Patta havia estudado em dois cursos de psicologia na Universidade de Palermo antes de mudar para advocacia. De qualquer maneira, se formou sem ter se destacado excessivamente como estudante e, pouco depois, e em consequência da importância de seu pai no partido democrata-cristão, foi nomeado comissário de polícia. E agora, ao cabo de mais de vinte anos, era vicequestore da polícia de Veneza. Já que, pelo visto, Patta havia terminado de dar ordens, Brunetti se preparou para o que viria em seguida, o discurso sobre a honra da cidade. Como a noite segue ao dia, se seguiram a este pensamento as palavras de Patta:


— Talvez você não compreenda, comissário, porém esse homem era um dos artistas mais famosos de nossa era. E o mataram aqui, em nossa Veneza... Nome que sempre soava um pouco ridículo quando pronunciado por Patta, com seu acento siciliano. — Devemos fazer tudo o quanto esteja em nossa mão para que este crime seja esclarecido. Não podemos consentir que manche a reputação, a honra, de nossa cidade. Havia momentos em que Brunetti se via tentado a tomar nota do que dizia aquele homem.


Enquanto Patta continuava perorando, Brunetti pensou que, se falasse da gloriosa história musical da cidade, aquela tarde levaria flores a Paola.


— Esta é a cidade de Vivaldi. Aqui esteve Mozart. Estamos em dívida com o mundo da música.


“Lírios”, pensou; eram as flores que mais a agradavam. E os poria no jarro azul de Murano.


— Quero que deixe tudo e que se dedique por inteiro a este caso. Andei repassando as listas de serviço, prosseguiu Patta, e Brunetti se surpreendeu de que o outro conhecesse sua existência, — E designei dois homens para que o ajudem.


“Se forem Alvise e Riverre, levarei duas dúzias.”


— Alvise e Riverre. São dois bons elementos, muito responsáveis. Traduzido livremente: leais a Patta. — E quero progressos. Entendido?

— Sim, senhor, respondeu Brunetti suavemente.

— Bem. Isso é tudo. Agora tenho trabalho, e estou certo de que a você não faltarão coisas para fazer.

— Não, senhor, disse Brunetti, se levantando e indo até a porta. Perguntava-se qual seria o último disparo. Patta não havia passado suas últimas férias em Londres?

— E boa caça, Brunetti.


Efetivamente, Londres.


— Obrigado, senhor, respondeu o comissário candidamente, ao sair da sala.


* * *


Sete

NO DECORRER da hora seguinte, Brunetti se ocupou em ler o relato do crime nos quatro maiores jornais. Il Gazzettino, como era de se esperar, dedicou toda a primeira página, afirmando que o crime de certa forma comprometia a cidade e a punha em perigo. O editorial afirmava que a polícia devia achar o responsável o mais rápido possível, não apenas para fazer justiça, mas também para tirar essa mancha da reputação de Veneza. Lendo a matéria, Brunetti refletiu que Patta tinha lido esse artigo em vez de esperar por seu costumeiro L’Osservatore Romano, que só chegava às bancas às dez. La Repubblica via o ocorrido à luz de recentes acontecimentos políticos, sugerindo que entre eles havia uma relação tão sutil que só o jornalista, ou um psiquiatra, poderia perceber. O Corriere delia Sera falava como se o homem tivesse morrido em sua cama, dedicando uma página inteira a uma análise objetiva de sua contribuição ao mundo da música e chamando a atenção para o fato de que Wellauer defendera a causa de determinados compositores modernos.


Brunetti deixara o L’Unità por último. Como era de se prever, o jornal bradava a primeira coisa que viera à cabeça do redator-chefe: vingança, o que ele parecia confundir com justiça. Um editorial aludia vagamente à eterna teoria de tramas secretas e escabrosas, que existiam entre os grandes desse mundo, e evocava, o que também não era nenhuma surpresa, o velho Sindona, morto em sua cela, se indagando, de forma claramente retórica, se não havia alguma conexão oculta entre as duas mortes, tão terrivelmente semelhantes. Excetuando-se o fato de ambas as vítimas serem velhos, mortos por envenenamento, Brunetti não conseguia ver a mínima semelhança entre os dois casos. Mais uma vez, Brunetti começou a refletir sobre a possível vantagem da censura à imprensa. No passado, os alemães tinham se acomodado com um governo que a impunha, e o governo americano parecia lidar bem com uma população que a reclamava.


Ele voltou à longa história do Corriere e jogou os outros três jornais na cesta de lixo. Leu o artigo inteiro pela segunda vez, tomando notas de vez em quando. Se não o maior maestro do mundo, Wellauer figurava pelo menos entre os primeiros. Começara a reger antes da última guerra, sendo considerado o prodígio do Conservatório de Berlim. O artigo não falava muito dos anos da guerra, salvo que ele continuara a reger em sua Alemanha natal. Foi na década de 50 que sua carreira tomou impulso e ele entrou para o cenário internacional, indo de um continente a outro para dar um único concerto, depois partindo para um terceiro para reger uma ópera. Em meio às lantejoulas da fama e aos refletores da glória, continuou sendo o músico consumado, conseguindo extrair precisão e delicadeza de qualquer orquestra que dirigisse, insistindo na absoluta fidelidade à partitura original. Mesmo a reputação que adquirira de ser imperioso e de temperamento difícil empalidecia diante do reconhecimento universal de sua absoluta dedicação à sua arte. O artigo pouco falava de sua vida pessoal, exceto para informar que sua atual esposa era a terceira e que a segunda se suicidara, vinte anos atrás. Informava também que ele tinha residências em Berlim, Gstaad, Nova Iorque e Veneza.


A fotografia reproduzida na primeira página não era recente. Nela, Wellauer aparecia de perfil, falando com Maria Callas, que estava em trajes de cena e era evidentemente a pessoa que o fotógrafo queria retratar. Pareceu-lhe estranho que o jornal publicasse uma fotografia tirada havia pelo menos trinta anos. Ele se inclinou e pegou de volta o Gazzettino. Como de costume, este trazia uma foto do lugar onde ocorrera a morte, a fachada pesada e simétrica do teatro La Fenice. Ao lado havia uma foto da entrada dos artistas, pela qual passavam dois homens uniformizados carregando alguma coisa. Embaixo, uma foto do maestro visto de frente, produzida para publicidade: gravata branca, cabeleira abundante e cor de prata penteada para trás, rosto anguloso. Os olhos, de traços ligeiramente eslavos, pareciam estranhamente claros sob as espessas sobrancelhas negras que os sombreavam. O nariz era comprido demais para o rosto, mas o efeito daqueles olhos era tão forte que o pequeno defeito nem merecia ser mencionado. A boca era grande, os lábios cheios e carnudos, em estranho e sensual contraste com a austeridade dos olhos. Brunetti tentou se lembrar do rosto tal como o vira na noite anterior, hirto e distorcido pela morte, porém a força daquela foto era suficiente para apagar aquela imagem. Fitou aqueles olhos claros e tentou imaginar um ódio forte o bastante para levar alguém a destruir aquele homem.


Suas especulações foram interrompidas pela chegada de uma das secretárias, que trazia o relatório da polícia de Berlim, já traduzido para o italiano. Antes de começar a sua leitura, Brunetti se lembrou de que Wellauer era uma espécie de monumento vivo, e os alemães estavam sempre em busca de heróis, portanto o que ele iria ler provavelmente refletiria ambas as coisas. Isso significava que algumas verdades estariam ali apenas em forma de insinuação... Ou de omissão. Muitos músicos não pertenceram ao partido nazista? Mas quem se lembrava disso agora, depois de tantos anos? Ele abriu o relatório e começou a ler o texto em italiano, pois nada sabia de alemão. Wellauer não tinha nenhum antecedente criminal, nem mesmo uma violação das leis de trânsito. Seu apartamento em Gstaad fora assaltado duas vezes; nos dois casos nada fora recuperado, ninguém fora preso, e o seguro honrara os contratos, embora as perdas tivessem sido enormes.


Brunetti percorreu mais dois parágrafos de uma exatidão germânica e finalmente chegou ao suicídio da segunda esposa. Ela se enforcara no porão de sua casa em Munique em abril de 1968, em seguida a um longo período de depressão, nas palavras do relatório. Não foi encontrada nenhuma carta explicando as razões do suicídio. Ela deixara três filhos: dois meninos gêmeos, então com sete anos, e uma menina, com doze anos. O próprio Wellauer descobrira o corpo e, depois do funeral, entrou num período de reclusão que durou seis meses. A polícia só voltou a prestar atenção nele quando se casara há dois anos atrás, com Elizabeth Balintffy, uma médica húngara que exercia a profissão; ligada a um alemão em primeiras núpcias, se divorciara dele três anos antes de se casar com Wellauer. Ela não tinha antecedentes criminais, nem na Alemanha nem na Hungria. Tinha apenas uma filha do primeiro casamento, Alexandra, agora com treze anos.


Brunetti procurou, em vão, alguma referência sobre o que Wellauer fizera durante a guerra. Falava-se de seu primeiro casamento, em 1936, com a filha de um industrial alemão, e de seu divórcio depois da guerra. Entre essas duas datas, o homem parecia não ter existido, o que, para Brunetti, era uma mostra mais do que evidente do que ele estivera fazendo ou, de certo modo, do que andara apoiando. Essa suspeita, porém, dificilmente poderia ser confirmada, ainda mais num relatório oficial da polícia alemã. Wellauer era, em suma, tão impoluto quanto um homem poderia ser. Não obstante, alguém pusera cianureto em seu café. A experiência mostrara a Brunetti que as pessoas se matavam basicamente por dois motivos: dinheiro e sexo. Em que ordem, não tinha importância, e quase sempre o segundo era chamado de amor, mas ele encontrara, em quinze anos de trabalho na polícia criminal, poucas exceções a essa regra.


Pouco antes das onze, acabara de ler o relatório da polícia alemã. Ligou para o laboratório e foi informado de que nada tinha sido feito, nenhuma impressão digital colhida da xícara ou de outras superfícies no camarim, que continuava interditado, o que motivou, segundo lhe disseram, alguns telefonemas do teatro reclamando da demora na liberação da sala. Brunetti protestou um pouco contra o atraso, mas sabia que de nada adiantaria. Falou rapidamente com Miotti, que disse não ter conseguido nenhuma informação a mais do porteiro na noite anterior, exceto que o maestro era um sujeito frio, a esposa muito agradável e amistosa, e que ele não gostava nem um pouco de La Petrelli. O porteiro não deu nenhuma outra explicação, dizendo apenas que era antipática, o que lhe parecia suficiente. Não havia necessidade de mandar Alvise ou Riverre para colher impressões digitais, pelo menos até que o laboratório pudesse determinar se havia outras impressões que não as do maestro na xícara. Quanto a isso, não havia a menor pressa.


Contrariado por ver que perderia o almoço, Brunetti saiu de seu escritório pouco depois do meio-dia e foi andando até o bar da esquina, onde comeu um sanduíche e tomou um copo de vinho, sem apreciar nenhum dos dois. Embora todos no bar soubessem quem ele era, ninguém lhe fez perguntas sobre a morte, se bem que um senhor de idade tenha se permitido virar ostensivamente as páginas de seu jornal. Brunetti foi para o ponto de San Zaccaria e pegou o barco número 5, que o levaria a San Michele, passando pelo Arsenal e por trás da ilha. Ele raramente visitava o cemitério, não sendo dado ao culto dos mortos, tão comum entre os italianos.


Ele viera aqui no passado; na verdade, uma de suas memórias mais remotas era a de ter sido levado ao cemitério quando criança, para ver o túmulo de sua avó, morta em Treviso durante um bombardeio daquela cidade pelos aliados. Brunetti se lembrava de quão coloridos eram os túmulos, cobertos de flores, e com que precisão cada lote era separado dos outros, delimitado por seu retângulo de gramado, que parecia ser cortado com tesoura de unha. E em meio a tudo aquilo, a expressão de tristeza dos rostos, quase todos de mulheres, que chegavam trazendo braçadas de flores. Eram lúgubres e abatidas, como se seu amor pelas cores e pela limpeza se exaurisse no cuidado com os espíritos confiados à terra, de forma que dele não restasse nada para elas mesmas.


Agora, uns trinta e cinco anos depois, os túmulos continuavam igualmente impecáveis, as cores das flores tinham o mesmo brilho, mas as pessoas que passavam entre eles pareciam pertencer ao mundo dos vivos: não eram mais aqueles espectros do pós-guerra. O túmulo do seu pai, não muito longe do de Stravinsky, era fácil de encontrar. O russo nada tinha a temer: ele iria ficar ali, intocado, enquanto durasse o cemitério ou as pessoas se lembrassem de sua música. A situação do jazigo de seu pai era muito mais precária, porque já estava chegando o dia em que seu túmulo iria ser aberto e os ossos retirados para serem colocados num dos ossuários que se amontoavam no longo muro do cemitério.


Não obstante, o túmulo estava bem cuidado; seu irmão era mais consciencioso que ele. Os cravos do vaso de vidro do túmulo tinham sido colocados havia pouco tempo; se tivessem sido colocados antes, a geada de três noites atrás os teria matado. Brunetti se curvou e retirou as folhas mortas que o vento levara para junto do vaso. Ele se levantou, depois se abaixou novamente para pegar uma ponta de cigarro que estava junto da lápide. Levantou-se de novo e olhou a foto que a ornava. Viu seus próprios olhos, seu próprio queixo e as duas orelhas grandes que haviam saltado uma geração, para reaparecer nos netos.


— Adeus, papai, disse, e não conseguiu pensar em mais nada para dizer. Foi até o fim da fileira de túmulos e jogou a ponta de cigarro num latão de metal fixado no chão.


No escritório do cemitério, declinou seu nome e seu posto e foi levado a uma pequena sala de espera por um homem que lhe pediu para esperar, que o doutor logo viria falar com ele. Não havia nada para ler na sala, então ele se contentou em olhar pela única janela, que dava para o claustro em torno do qual se erguiam os edifícios do cemitério.


No começo de sua carreira, Brunetti quis assistir à autópsia da vítima do primeiro homicídio que investigara, uma prostituta morta pelo cafetão. Ele acompanhou atentamente a chegada do corpo ao anfiteatro, empurrado no carrinho, olhou, fascinado, quando o lençol branco foi retirado para expor um corpo quase perfeito. E quando o médico ergueu o escalpelo para fazer a longa e profunda incisão, Brunetti tombou para frente e desmaiou em meio aos estudantes de Medicina junto dos quais se encontrava. Eles o levaram calmamente para o hall e o deixaram, tonto, numa cadeira, voltando imediatamente para assistir à aula. Desde então, ele vira vítimas de muitos assassinatos, vira o corpo humano estraçalhado por facas, armas de fogo e até por bombas, mas nunca se acostumara a olhar para eles calmamente, e nunca mais conseguiu se obrigar a assistir à violação calculada de uma autópsia.


A porta da salinha de espera se abriu e Rizzardi entrou, vestido de forma tão impecável como estivera na noite anterior. Ele cheirava a sabonete caro, e não ao formol que Brunetti não conseguia deixar de associar à profissão dele.


— Boa tarde, Guido, disse ele, estendendo a mão. — Sinto que tenha se dado ao trabalho de vir até aqui. Eu podia muito bem ter telefonado para você para contar o pouco que descobri.

— Não há problema, Ettore; eu queria vir aqui mesmo. Não vou ter o que fazer até que aqueles tontos do laboratório me mandem o relatório. E certamente é muito cedo para falar com a viúva.

— Então me deixe passar o que sei, disse o médico, fechando os olhos e começando a recitar de memória. Brunetti tirou o bloco de notas do bolso e se pôs a anotar o que o outro falava. — O homem estava muito bem de saúde. Se eu não soubesse a sua idade, setenta e quatro, poderia pensar se tratar de alguém pelo menos dez anos mais moço, com pouco mais ou pouco menos de sessenta anos. Excelente tônus muscular, provavelmente pela prática de exercícios, somada a um corpo de modo geral saudável. Nenhum sinal de doença nos órgãos internos. Provavelmente não bebia; o fígado era perfeito. Difícil ver isso num homem com essa idade. Não fumava, embora eu suponha que tenha fumado há muitos anos, vindo a parar depois. Eu diria que ele podia viver mais uns dez ou vinte anos. Tendo terminado, abriu os olhos e fitou Brunetti.

— E a causa da morte? Perguntou Brunetti.

— Cianureto de potássio. No café. Ele deve ter ingerido cerca de trinta miligramas, mais que o bastante para matá-lo. O médico parou um instante e depois continuou. — Nunca tinha visto isso antes. Um efeito notável. Sua voz se extinguiu e ele caiu num devaneio que deixou Brunetti incomodado. Depois de um momento, Brunetti perguntou:

— É tão rápido quanto se lê na literatura sobre o assunto?

— Sim, acho que sim, respondeu o médico. — Como eu disse, nunca tinha visto um caso antes, na vida real. Meu conhecimento era apenas livresco.

— É instantâneo? Rizzardi pensou um pouco antes de responder.

— Sim, acho que sim, ou tão próximo disso que dá no mesmo. Ele deve ter tido tempo para pensar no que estava acontecendo, mas deve ter imaginado que se tratava de um derrame cerebral ou um ataque cardíaco. De qualquer modo, muito antes de poder ter uma ideia do que se passava, ele já estava morto.

— Qual a causa precisa da morte?

— Tudo para. Tudo simplesmente para de funcionar: coração, pulmões, cérebro.

— Em segundos?

— Sim. Cinco. No máximo dez.

— Não é de estranhar que eles o usem, disse Brunetti.

— Quem?

— Os espiões, nos romances de espionagem. Com cápsulas escondidas em dentes ocos.

— Humm, fez Rizzardi. Se ele achou o comentário de Brunetti esquisito, não deu nenhuma mostra disso. — Sim, não há dúvida de que é rápido, mas há outros que são ainda mais rápidos. Em resposta à expressão interrogativa de Brunetti, ele explicou: — A neurotoxina que causa o botulismo. A mesma quantidade que o matou poderia matar metade da Itália.


Como não havia nenhum proveito a tirar do tema, independentemente do evidente entusiasmo do doutor por ele, Brunetti mudou de assunto.


— Mais alguma coisa?

— Parece que ele esteve fazendo um tratamento nas últimas semanas. Você sabe se ele teve algum resfriado ou gripe, ou alguma coisa do tipo?

— Não, disse Brunetti, balançando a cabeça. — Não sabemos de nada ainda. Por quê?

— Há sinais de injeções. Não há nenhum indício de uso abusivo de drogas, por isso suponho que eram antibióticos, talvez vitamina, um procedimento normal. Na verdade, as marcas eram tão pequenas que talvez nem tenham sido injeções; talvez fossem apenas arranhões.

— Mas não eram drogas, não é?

— Muito pouco provável, disse Rizzardi. — Ele podia facilmente aplicar uma injeção na nádega direita, era destro, mas uma pessoa destra não poderia aplicar em si mesma uma injeção no braço direito ou na nádega esquerda, pelo menos não no lugar onde encontrei a marca. E como eu disse, ele estava muitíssimo bem de saúde. E eu teria visto sinais de uso de drogas se os houvesse. Ele parou um instante. — Além disso, tornou, — Não sei ao certo o que são. No meu relatório, vou registrá-las apenas como sangramentos subcutâneos. Pelo tom de sua voz, Brunetti percebeu que ele considerava aquelas marcas uma coisa sem importância e já se arrependia de ter tocado no assunto.

— Mais alguma coisa?

— Não, nada. Quem quer que tenha feito isso lhe roubou pelo menos dez anos de vida.


Como era seu costume, Rizzardi não manifestou, provavelmente porque não sentia, curiosidade alguma sobre quem poderia ter cometido o crime. Brunetti conhecia o médico havia anos, e ele nunca perguntava nada sobre o criminoso. Em alguns casos se mostrava especialmente interessado, e mesmo fascinado, por algum modo inventivo de matar, mas parecia nunca se preocupar em saber quem fora o autor do crime e se fora descoberto.


— Obrigado, Ettore, disse Brunetti, apertando a mão do médico. — Gostaria que o pessoal do laboratório despachasse logo.

— Duvido que a curiosidade deles seja maior que a minha, disse Rizzardi, novamente confirmando em Brunetti a convicção de que nunca entenderia aquele homem.


* * *


Oito

VOLTANDO à cidade, de barco, ele decidiu ir procurar Flavia Petrelli, sem aviso prévio, para saber se por acaso ela se lembrara de ter falado com o maestro na noite anterior. Animado pela sensação de ter algo a fazer, Brunetti desceu do barco em Fundamente Nuove e tomou a direção do hospital, que era parede-meia com a basílica de San Giovanni e Paolo. Como todos os endereços de Veneza, o que a americana lhe dera praticamente nada significava, numa cidade com apenas seis nomes diferentes de ruas e um sistema de numeração totalmente aleatório. A única maneira de encontrá-lo era ir à igreja e perguntar a alguém que morava por ali. Devia ser fácil localizá-la. Os estrangeiros costumam morar nas regiões mais elegantes de Veneza, não nos quarteirões da classe média bem estabelecida, e bem raros eram os que davam a impressão de ter nascido na cidade, como Brett Lynch.


Em frente à igreja, ele perguntou primeiro pelo número, depois pela americana, mas a mulher parecia não ter ideia de onde encontrá-los. Ela lhe disse que procurasse Maria e dissesse o nome, como se esperasse que Brunetti soubesse exatamente quem era essa Maria. A mulher lhe disse que Maria tinha uma banca de revistas em frente à escola, e que se ela não soubesse onde a americana morava é que esta não morava nas redondezas. No final da ponte em frente à basílica, ele encontrou Maria, mulher de cabelos brancos e idade difícil de imaginar, sentada dentro de seu quiosque e distribuindo jornais com se eles fossem oráculos e ela, uma sacerdotisa. Brunetti lhe disse o número que estava procurando.


— Ah, é a senhorita Lynch, ela informou com um sorriso, pronunciando o nome à italiana, com duas sílabas. — Siga reto pela Calle della Testa e dobre a primeira à direita, quarta campainha, e o senhor não se importaria de levar o jornal para ela?


O policial chegou à porta sem dificuldade. O nome estava gravado numa placa de cobre gasta e escurecida pelo tempo, que ficava próxima à campainha. Ele tocou uma vez e, depois de um momento, uma voz no interfone lhe perguntou quem era. Ele resistiu ao impulso de dizer que tinha vindo entregar os jornais e apenas deu o nome e posto. A pessoa com quem falou não disse nada, mas a porta se abriu à sua frente, para que ele entrasse no edifício. Havia um único lance de escadas à sua direita, e começou a subir, observando com prazer a leve concavidade que centenas de anos de uso tinham escavado em cada degrau. A inclinação que o obrigava a andar no centro da escada lhe agradava. Subiu dois lances, depois um terceiro. Na quarta volta, a escada se alargou de repente e os degraus de mármore originais, gastos, tinham sido substituídos por placas de mármore da Ístria bem talhado. Essa parte do edifício tinha sofrido uma ampla restauração, e muito recentemente.


Os degraus terminavam numa porta preta de metal. Ao se aproximar, sentiu que estava sendo observado através do minúsculo olho mágico que havia acima da fechadura mais alta. Antes que pudesse levantar a mão para bater, a porta foi aberta por Brett Lynch, que se pôs de lado e esperou que ele entrasse. Ele murmurou um “Permesso” sem o qual nenhum italiano se permitiria entrar em casa de outro. Ela sorriu, mas não lhe estendeu a mão e deu meia-volta para conduzi-lo, pelo corredor, até a sala de estar.


Brunetti se surpreendeu ao se encontrar num amplo espaço aberto, com não menos de dez por quinze metros. O assoalho de madeira era feito daquelas sólidas vigas de carvalho usadas na sustentação dos telhados mais antigos da cidade. A pintura e o gesso das paredes tinham sido retirados, deixando à mostra os tijolos originais. O mais admirável naquela sala era a extraordinária claridade que a banhava, vinda das claraboias, em número de seis, dispostas aos pares de cada lado do teto inclinado. “Quem quer que tenha conseguido autorização para modificar a estrutura externa de um edifício tão antigo”, pensou Brunetti, ou tinha amigos influentes ou subornara tanto o prefeito como o urbanista da cidade. E aquilo fora feito há pouco tempo; o cheiro de madeira fresca lhe dizia isso.


Ele desviou a atenção da casa para sua dona. Na noite anterior, não notara como ela era alta, alta daquele jeito anguloso que os americanos pareciam achar atraente. Mas observou que seu corpo nada tinha da fragilidade que em geral vem de par com aquela estatura. Parecia saudável, em boa forma, qualidade que era realçada pela pele e olhos claros. Brunetti sentiu que a estava fitando, impressionado com a inteligência daqueles olhos, impressionado também com o fato de estar procurando encontrar neles astúcia e dissimulação. Ele se espantava com sua própria recusa em aceitá-la pelo que ela parecia ser: uma mulher sedutora e inteligente.


Flavia Petrelli estava sentada, numa pose que lhe pareceu artística, à esquerda de uma das grandes janelas que tomavam o lado esquerdo da sala e através da qual, à distância, ele via o campanário de San Marcos. Ela se limitou a um pequeno sinal com a cabeça, a que ele respondeu, dizendo em seguida à outra:


— Eu trouxe os seus jornais.


Brunetti teve o cuidado de lhe estender os jornais com a primeira página à vista, dobrado de forma que ela pudesse ver as fotografias e ler as manchetes bombásticas. Ela lhes lançou um olhar e dobrou os jornais rapidamente.


— Muito obrigada, disse, jogando-os numa mesa baixa.

— Dou-lhe os parabéns pela sua casa, miss Lynch.

— Obrigada, foi sua resposta lacônica.

— Não é comum ver tanta luz, tantas claraboias num edifício antigo como este, disse ele em tom inquisitivo.

— Não é mesmo? Ela devolveu em tom brando.

— Vamos, comissário, interrompeu Flavia Petrelli, — Certamente o senhor não veio aqui para discutir arquitetura de interiores. Como para atenuar a rudeza de sua amiga, Brett Lynch disse:

— Por favor, sente, dottor Brunetti, levando-o a um sofá baixo em frente a uma comprida mesa de vidro no centro da sala. — Quer um café? Perguntou ela, mas apenas pró-forma.


Embora não estivesse com vontade de tomar café, ele disse que aceitava, só para ver como a cantora reagiria a sua indicação de que iria se demorar um pouco e que não estava com nenhuma pressa. Ela voltou a atenção para uma partitura que estava em seu colo e o ignorou enquanto a amiga saía para fazer o café.


Enquanto a americana se ocupava com o café e Petrelli se ocupava em ignorá-lo, ele olhou com bastante atenção o apartamento. A parede à sua frente estava cheia de livros do nível do assoalho até o teto. Ele reconhecia os italianos com facilidade, pois na lombada destes os títulos eram escritos de baixo para cima ao passo que nos ingleses costuma ser de cima para baixo. Mais da metade dos livros eram escritos em caracteres que ele supunha serem chineses. Todos pareciam ter sido lidos mais de uma vez. Aqui e ali, entre os volumes, havia peças de cerâmica, vasos e pequenas figuras humanas, que lhe pareciam vagamente orientais. Uma prateleira estava cheia de caixas de CDs que davam a impressão de serem óperas em versão integral. A sua esquerda havia um equipamento estereofônico, e nas extremidades, duas grandes caixas de som colocadas sobre apoios de madeira. Os únicos quadros na parede eram pinturas abstratas que nada lhe diziam.


Pouco tempo depois, Lynch voltou da cozinha trazendo uma bandeja de prata sobre a qual havia duas pequenas xícaras de café expresso, colheres e um açucareiro de prata. Agora, ele observou, ela estava usando jeans italianíssimos e outro par de botas iguais às da noite anterior, mas de um marrom-escuro avermelhado. Uma cor para cada dia da semana? O que havia naquela mulher que o irritava tanto? O fato de ser uma estrangeira que falava sua língua tão bem quanto ele e vivia numa casa que ele não poderia sequer sonhar em ter? Ela pôs a xícara à sua frente e Brunetti agradeceu, esperando que ela se sentasse. Ele ofereceu açúcar, mas ela balançou a cabeça, recusando. Brunetti pôs duas colheres de açúcar no próprio café e se reinstalou no sofá.


— Acabo de chegar de San Michele, disse ele para entabular a conversa. — A causa da morte foi cianureto de potássio. Ela levou o copo aos lábios e o sorveu. — Estava no café. Ela depôs a xícara no pires e recolocou-os na mesa. Flavia Petrelli levantou os olhos da partitura, mas foi a outra que falou.

— Então pelo menos foi rápido. Foi muita delicadeza da parte de quem fez isso. Ela se voltou para a amiga. — Você quer café, Flavia? Brunetti achou aquilo um pouco teatral, mas ignorou a interrupção e fez a pergunta que ela evidentemente queria introduzir com aquela observação.

— Devo concluir disso que não gostava do maestro, miss Lynch?

— Não, disse ela fitando-o. — Eu não gostava dele e ele não gostava de mim.

— Havia alguma razão especial para isso? Ela fez um gesto de desdém.

— Nós discordávamos sobre muitas coisas. “Aquilo”, pensou Brunetti, devia parecer uma explicação suficiente para ele. Ele se voltou para Petrelli.

— Sua relação com o maestro era diferente da de sua amiga? Ela fechou a partitura e colocou-a cuidadosamente aos seus pés antes de responder.

— Sim, era. Helmut e eu muitas vezes trabalhávamos bem juntos. Tínhamos muito respeito profissional um pelo outro.

— E pessoal?

— Isso também, claro, respondeu ela rápido. — Mas nossas relações eram essencialmente profissionais.

— E quais eram, se é que me permite, seus sentimentos pessoais em relação ao maestro? Ainda que estivesse preparada para a pergunta, ela pareceu não gostar de ouvi-la.


Petrelli se mexeu em sua poltrona, e ele ficou surpreso ao ver como a mulher deixava transparecer seu embaraço diante da pergunta. Durante anos ele lera sobre a cantora e sabia que era uma atriz, que podia ter uma atuação muito melhor do que aquela. Se ela tivesse alguma coisa a esconder em sua relação com Wellauer, saberia como fazê-lo; não iria ficar se torcendo na poltrona como uma escolar quando perguntada sobre seu primeiro namorado. Ele deixou que o silêncio se prolongasse, se abstendo intencionalmente de repetir a pergunta. Finalmente, ela respondeu, com certa hesitação.


— Eu não gostava dele. Como a cantora não acrescentou mais nada, Brunetti retomou a palavra.

— Se me permite repetir a pergunta que fiz a miss Lynch, havia uma razão especial para isso?


“Como estamos delicados”, pensou ele. O velho jaz, frio e eviscerado, do outro lado da laguna, e aqui estamos nós em amenidades gramaticais, um subjuntivo aqui, um condicional ali: A senhora poderia fazer a gentileza de me dizer? Pode me dizer, por favor? Por um momento, Brunetti pensou que gostaria de estar de volta a Nápoles, onde passara todos aqueles anos horríveis lidando com pessoas que ignoravam a sutileza das palavras e que reagiam com socos e pontapés. Petrelli interrompeu seu devaneio.


— Não havia nenhum motivo real. Ele simplesmente era antipático. “Ah”, pensou Brunetti ouvindo aquela palavra novamente, como isso é muito melhor que qualquer resposta alambicada! Bastava apresentar essa explicação para qualquer desentendimento humano, dizer que alguém era antipático, que alguma troca de cordialidade não se dera entre duas pessoas, que tudo se tornava milagrosamente claro, em princípio. Era vago e insuficiente, mas parecia que ele não iria conseguir mais que aquilo.

— E era recíproco? Perguntou ele, imperturbável. — Existia alguma coisa na senhora de que o maestro não gostava?


Ela lançou um olhar a Brett Lynch, que estava novamente sorvendo um pouco do café. Se se passou alguma coisa entre elas, Brunetti não notou. Finalmente, como se estivesse insatisfeita com o papel que estava representando, Petrelli levantou a mão com os dedos bem abertos, gesto que o policial reconheceu: era o mesmo gesto que ela fizera interpretando La Norma, para uma foto de publicidade que os jornais reproduziram naquele mesmo dia. Estendeu o braço de forma dramática e disse:


— Basta. Estou farta de tudo isso. Brunetti ficou fascinado com aquela mudança de atitude, pois o gesto representava anos de transformação. Ela se levantou abruptamente, e a rigidez desapareceu de sua expressão. Voltou-se para encará-la. — Fatalmente o senhor ouvirá isso mais cedo ou mais tarde, portanto é melhor que eu lhe conte. Ele ouviu o leve barulho de porcelana quando a outra colocou o pires na mesa, mas manteve os olhos na cantora. — O maestro me acusou de ser lésbica, e acusou Brett de ser minha amante. Ela parou por um instante esperando para ver o que ele iria responder. Como Brunetti não disse nada, ela continuou. — Começou no terceiro dia de ensaio. Nada direto ou claro; era só a maneira como falava comigo, a forma como se referia a Brett. Petrelli parou mais uma vez, esperando que ele fizesse algum comentário, mas mais uma vez Brunetti se manteve calado. — No final da primeira semana, eu lhe disse alguma coisa, e isso levou a uma discussão ao fim da qual ele disse que iria escrever para meu marido. Parou para se corrigir. — Meu ex-marido. Ela esperou para ver o efeito dessa revelação sobre o comissário.

— Por que ele faria isso? Perguntou Brunetti curioso.

— Meu marido é espanhol. Mas meu divórcio foi feito na Itália. Assim, ficou determinado que tenho a custódia de meus filhos. Se meu marido apresentasse uma acusação contra mim neste país... Ela deixou que sua voz sumisse, deixando claro o risco que corria de perder a custódia dos filhos.

— E seus filhos?

— Estão na escola, que é onde devem estar. Nós moramos em Milão, e é lá que eles frequentam a escola. Não acho que seja certo arrastá-los para onde quer que eu vá cantar. Ela se aproximou mais dele e sentou na ponta do sofá.


Quando ele olhou para a americana, viu que ela estava sentada com o rosto voltado para a janela, olhando para o campanário, quase como se aquela conversa nada tivesse a ver com ela. Por um bom tempo, ninguém disse nada. Brunetti pensava no que Petrelli lhe dissera e se perguntava se aquilo era a causa de sua aversão instintiva pela americana. Ele e Paola tinham amigos com preferências sexuais bem variadas, de forma que achava que, mesmo que a acusação fosse verdadeira, o motivo não podia ser aquele.


— E então? Disse finalmente a cantora.

— Então o quê? Perguntou ele.

— O senhor não vai perguntar se é verdade? Ele repeliu a pergunta balançando a cabeça.

— Se é verdade ou não, é irrelevante. O importante é saber se Wellauer seria capaz de cumprir a ameaça de falar ao seu marido. Brett Lynch se voltara para lhe lançar um olhar interrogativo. Quando ela falou, foi num tom normal.

— Ele faria isso. Todos que o conheciam sabiam que era capaz de fazê-lo. E o marido de Flavia iria fazer o impossível para conseguir a custódia dos filhos. Quando ela pronunciou o nome da amiga olhou para ela, e o olhar que trocaram se prolongou por um momento. A americana se recostou em seu sofá, enfiou as mãos nos bolsos e estendeu os pés para frente.


Brunetti examinou-a. Será que eram aquelas botas brilhantes, a exibição impudente de riqueza naquele apartamento que o enchiam de tanto ressentimento contra ela? Ele tentou desanuviar a mente, vê-la pela primeira vez, uma mulher mal entrada na casa dos trinta que oferecera sua hospitalidade e, agora, parecia estar oferecendo sua confiança. Ao contrário de sua patroa, se é que Petrelli o era, ela não se dava ao trabalho de exibir gestos dramáticos nem tentava realçar com artifícios a beleza aguda de seu rosto anglo-saxão. Ele observou que as mechas de sua cabeleira, de um corte perfeito, estavam úmidas na altura da nuca, como se há pouco tivesse saído do banho ou de uma ducha. Voltando sua atenção para Flavia Petrelli, observou que também ela tinha o frescor e o perfume de uma mulher recém-saída do banho. De repente se viu presa de uma fantasia erótica em que as duas mulheres, nuas, abraçadas, se banhavam no chuveiro, seios contra seios, e ficou impressionado com a força que aquela visão tinha sobre ele. Oh, meu Deus, como seria muito mais fácil estar em Nápoles, onde imperava a lei do soco e do pontapé. A americana livrou-o do devaneio.


— Isso quer dizer que o senhor acha que Flavia poderia ter cometido o crime? Ou que eu poderia?

— É cedo demais para esse tipo de hipótese, disse ele, embora não fosse bem verdade. — É cedo demais para falar em suspeitos.

— Mas não é cedo demais para falar de motivos, replicou a cantora.

— Não, não é, ele concordou. Brunetti não precisava salientar que estava claro que ela tinha um.

— Suponho que isso queira dizer que eu também tenho um motivo, acrescentou sua amiga, numa das mais estranhas declarações de amor que Brunetti jamais ouvira. Ou amizade? Ou lealdade para com a patroa? E as pessoas diziam que os italianos eram complicados! Ele resolveu contemporizar.

— Como eu disse, é muito cedo para falar de suspeitos. Brunetti resolveu mudar de assunto. — Por quanto tempo vai ficar na cidade, signora?

— Até o fim da temporada, disse ela. — Mais umas duas semanas. Até o fim do mês. Mas eu gostaria de voltar a Milão nos fins de semana. Isso foi dito como uma afirmação, mas estava claro que ela estava pedindo permissão. Ele aquiesceu, com um gesto que indicava compreensão e permissão da polícia para sair da cidade. Petrelli continuou. — Depois disso, não sei. Não tenho nenhum compromisso até... Ela fez uma pausa, olhando para a amiga, que veio em seu socorro imediatamente. — Covent Garden, em cinco de janeiro.

— E a senhora vai ficar na Itália até essa data? Perguntou ele.

— Certamente. Aqui ou em Milão.

— E a senhorita Lynch? Perguntou ele se voltando para a americana. Ela lhe lançou um olhar tão frio quanto sua resposta.

— Eu também vou ficar em Milão. Embora não fosse necessário, acrescentou: — Com Flavia.


Ele tirou o bloco de anotações do bolso e perguntou se podiam lhe dar o endereço onde estariam em Milão. Flavia Petrelli lhe deu a informação e, sem que Brunetti pedisse, deu também o número do telefone. Ele anotou os dois, pôs o bloco no bolso e se levantou.


— Obrigado às senhoras pela atenção e pelo tempo que me concederam, disse em tom formal.

— O senhor vai querer falar comigo novamente? Perguntou a cantora.

— Isso depende do que outras pessoas me disserem, respondeu Brunetti, lamentando a ameaça velada que a frase continha, mas não a sua franqueza. Entendendo apenas a primeira, ela pegou sua partitura e abriu-a, colocando-a no colo. Ele não a interessava mais.


Brunetti se dirigiu à porta e passou num raio de sol que iluminava o soalho. Olhando para o lugar de onde vinha, se voltou para a americana e finalmente perguntou:


— Como a senhorita conseguiu essas claraboias? Ela tomou a sua frente, entrou no corredor e parou diante da porta.

— O senhor quer dizer as próprias claraboias ou a permissão para fazê-las?

— A permissão.

— Eu subornei o arquiteto responsável, respondeu ela sorrindo.

— Quanto pagou? Ele perguntou automaticamente, calculando a área total das janelas. Ao todo seis, com um metro quadrado cada uma. Ela vivera em Veneza tempo bastante para não se ofender com a indelicadeza da pergunta. Deu um riso ainda mais aberto.

— Doze milhões de liras, respondeu como se estivesse dizendo a temperatura externa. A cifra corresponde, calculou Brunetti, à metade do meu salário por cada janela. — Mas isso foi há dois anos, acrescentou ela, à guisa de explicação. — Ouvi falar que depois disso os preços aumentaram.


Ele balançou a cabeça. Em Veneza, até a propina estava sujeita à inflação.


Eles se apertaram as mãos à porta, e Brunetti se surpreendeu com o riso caloroso que ela lhe deu, como se a conversa sobre o suborno tivesse criado certa cumplicidade entre eles. Ela lhe agradeceu por ter vindo, embora não precisasse fazer isso. Ele respondeu com a mesma delicadeza e no mesmo tom sinceramente caloroso. Foi preciso tão pouco para ganhá-lo? O fato de não esconder que era capaz de subornar alguém a tornara mais humana? Ele se despediu e ficou pensando sobre esse último ponto enquanto descia as escadas, novamente contente de sentir o chão irregular sob seus pés.


* * *


Nove

DE VOLTA à sua sala, Brunetti foi informado de que os policiais Alvise e Riverre tinham ido ao apartamento do maestro, revistado os seus pertences e voltado com diversos documentos que estavam sendo traduzidos para o italiano. Ele ligou para o laboratório, mas ainda não tinham encontrado impressões digitais, embora tivessem confirmado o óbvio: que o veneno estava no café. Miotti tinha sumido; talvez ainda estivesse no teatro. Sem saber o que fazer e ciente de que logo teria que falar também com a viúva, Brunetti ligou para a casa dela lhe perguntou se poderia recebê-lo naquela tarde. Depois de uma hesitação inicial, perfeitamente compreensível, ela lhe pediu que fosse às quatro horas. Ele revirou suas gavetas até descobrir meio pacote de bussolai, espécie de biscoito salgado veneziano de que ele tanto gostava. Comeu-os enquanto examinava as anotações que fizera do relatório da polícia alemã.


Meia hora antes de seu encontro com a Sra. Wellauer, ele saiu de seu escritório e foi andando devagar até a Praça San Marcos. No caminho, parou para olhar as vitrines, impressionado, como sempre ficava ao passar pelo centro da cidade, de ver a rapidez com que mudavam o tipo de produto que estava sendo exposto. Parecia-lhe que todas as lojas que serviam à população local, farmácias, sapatarias, mercearias, estavam desaparecendo lenta e inexoravelmente, substituídas por butiques e lojas de suvenir para turistas, cheias de gôndolas fluorescentes de Taiwan e máscaras de papel machê de Hong Kong. Os comerciantes atendiam não às necessidades dos moradores locais, mas aos desejos dos turistas. Ele se perguntava quanto tempo levaria para que toda a cidade se transformasse num museu, um lugar apenas para ser visitado e não onde se pudesse morar.


Como se para reforçar suas reflexões, um grupo de turistas extemporâneos passou por ele acompanhado de alguém que os protegia com um guarda-chuva aberto. Tendo a água à sua esquerda, passou pela piazza, espantado por ver que as pessoas achavam os pombos mais interessantes que a basílica. Atravessou a ponte depois de campo San Moisè, dobrou à direita uma, duas vezes, e entrou numa calle estreita que terminava numa pesada porta de madeira maciça. Tocou a campainha e uma voz mecânica, incorpórea, lhe perguntou quem era. Brunetti falou seu nome e, segundos mais tarde, ouviu o barulho da trava sendo aberta. Entrou num vestíbulo reformado havia pouco tempo; as vigas do teto tinham sido descobertas e suntuosamente envernizadas. O assoalho, ele o percebeu com seu olhar veneziano, era feito de placas de mármore formando figuras geométricas de ondas e remoinhos. Por sua delicada ondulação, ele supôs que se tratasse do revestimento original, talvez do começo do século XV.


Começou a subir a escadaria monumental, de amplos degraus. Em cada patamar, havia apenas uma única porta de metal; o fato de haver só uma porta era uma mostra de riqueza, e o metal, desejo de protegê-la. As placas metálicas lhe diziam que continuasse a subir. Os degraus terminaram, cinco andares acima, diante de outra porta de metal. Ele tocou a campainha e um pouco depois foi recebido pela mulher com quem falara no teatro na noite anterior, a viúva do maestro. Ele apertou a mão que ela lhe estendeu, murmurou, “Permesso”, e entrou. Não havia nenhum sinal de que ela tivesse dormido na noite anterior. Estava sem nenhuma maquiagem, e isso acentuava a grande palidez do seu rosto, que contrastava com as olheiras escuras. Mas a despeito de se encontrar à beira da exaustão, continuava bonita. Podia contar com a ossatura das maçãs do rosto para chegar a uma idade avançada com toda a tranquilidade, e as linhas perfeitas de seu nariz sempre iriam fazer com que as pessoas se voltassem para vê-la novamente.


— Sou o comissário Brunetti. Nós conversamos ontem à noite.

— Sim, eu me lembro, respondeu ela. — Venha por aqui.


Levou-o por um corredor a um grande escritório. A um canto, havia uma lareira com o fogo baixo. Próximo a esta, duas cadeiras separadas por uma mesa. Convidou-o com um gesto a que se sentasse numa delas, e sentou na outra. Na mesa havia um cigarro aceso, num cinzeiro cheio. Atrás dela havia uma grande janela pela qual o policial via os telhados cor de ocre da cidade. Nas paredes estavam pendurados quadros que seus filhos insistiam em chamar de pinturas, de verdade.


— Gostaria de tomar um drinque, dottor Brunetti? Ou talvez chá? Ela repetia as frases em italiano como se as tivesse aprendido de cor de um manual, mas ele achou interessante que ela conhecesse sua qualificação.

— Por favor, signora, não precisa se incomodar, respondeu Brunetti com a mesma polidez.

— Dois de seus policiais estiveram aqui esta manhã. Eles levaram algumas coisas. Era evidente que seu italiano não lhe permitia nomear adequadamente as coisas que tinham sido levadas.

— Não seria melhor que falássemos em inglês? Perguntou ele nessa língua.

— Ah, sim, disse ela sorrindo pela primeira vez e lhe dando uma ideia de quão bela poderia ser. — Vai ser muito mais fácil para mim. Suas feições se suavizaram, e alguns sinais de tensão desapareceram. Até o seu corpo pareceu relaxar quando a dificuldade da língua foi superada. — Vim muito poucas vezes a Veneza e fico incomodada com meu péssimo italiano. Em outras circunstâncias, caberia negar essa afirmação e elogiar sua desenvoltura em falar a língua.

— Eu imagino, respondeu ele, — Como deve ser difícil para a senhora e quero apresentar meus pêsames à senhora e a sua família. Por que as palavras que usamos para a morte sempre soam tão inadequadas, tão flagrantemente falsas? — Ele era um grande músico, e a perda para o mundo da música é enorme. Mas tenho certeza de que a sua é ainda maior. Pomposo e artificial, no entanto foi o melhor que ele pôde dizer. Brunetti observou que havia muitos telegramas junto do cinzeiro mais próximo, alguns abertos, outros não. Ela devia estar ouvindo a mesma coisa o dia inteiro, porém não deu nenhum sinal disso.

— Obrigada, respondeu com simplicidade.


Ela pôs a mão no bolso do suéter e tirou um maço de cigarros. Tirou um cigarro do maço e levou-o aos lábios, mas então viu o outro cigarro aceso no cinzeiro. Colocou o cigarro e o maço na mesa e pegou o que estava no cinzeiro. Deu uma grande tragada, reteve a fumaça por algum tempo antes de expeli-la, evidentemente a contragosto.


— Sim, ele vai fazer falta no mundo da música, disse ela. Antes que Brunetti pudesse refletir sobre a estranheza desse comentário, ela acrescentou: — E aqui também. Embora só houvesse um milímetro de cinza na ponta do cigarro, ela tentou fazer com que caísse no cinzeiro; depois, se inclinou para frente e raspou-o na borda do cinzeiro como se estivesse apontando um lápis.


Ele tirou do bolso o bloco de anotações, abriu-o na página em que anotava os novos livros que queria ler. Brunetti notara na noite anterior que ela era quase bela, e que não havia dúvida de que o era sob certa luz e sob certos ângulos. Sob o cansaço que lhe toldava as faces naquele dia, aquela beleza ainda era visível. Tinha olhos azuis bem separados e cabelos loiros naturais, que agora estavam penteados para trás e presos.


— O senhor sabe o que o matou? Perguntou ela.

— Falei com o legista esta manhã. Foi cianureto de potássio. Estava no café que ele bebeu.

— Foi tão rápido. Pelo menos há esse consolo.

— Sim, concordou Brunetti. — Deve ter sido quase instantâneo. Ele rabiscou alguma coisa em seu bloco. — A senhora conhece esse veneno? Ela lhe lançou um rápido olhar antes de responder.

— Não mais do que qualquer outro médico conhece. Ele virou uma página.

— O legista disse que não é muito fácil conseguir cianureto, mentiu. Como ela nada respondeu, ele continuou. — Como estava o seu marido ontem à noite, signora? Havia algo estranho ou especial em seu comportamento? Continuando a roçar a ponta do cigarro na borda do cinzeiro, ela respondeu:

— Não, acho que seu comportamento estava normal.

— E como era seu comportamento habitual?

— Um pouco tenso, um pouco voltado para si mesmo. Ele não gostava de falar com ninguém antes de uma apresentação ou durante os intervalos. Não queria que nada o perturbasse. Aquilo pareceu a Brunetti bastante normal.

— Ele não parecia um pouco mais nervoso na noite passada? Ela pensou um pouco.

— Não, acho que não. Fomos andando a pé para o teatro por volta das sete horas. Bem perto disso. Ele aquiesceu. — Fui me sentar em meu lugar, embora ainda fosse muito cedo. Os empregados estavam acostumados a me ver nos ensaios, por isso me deixaram entrar. Helmut foi trocar de roupa nos bastidores e dar uma olhada na partitura.

— Desculpe-me, signora, mas tenho a impressão de ter lido num dos jornais que seu marido era famoso por reger sem partitura. Ela sorriu a esse comentário.

— É, ele regia sim. Mas sempre tinha uma no camarim, que consultava antes da apresentação e nos intervalos.

— Era talvez por isso que ele não gostava de ser interrompido nos intervalos?

— Sim.

— A senhora disse que foi aos bastidores falar com ele na noite passada. Ela não disse, por isso ele perguntou: — Isso era comum?

— Não. Como lhe disse, ele não gostava de que ninguém falasse com ele durante a apresentação. Dizia que isso o desconcentrava. Mas na noite passada Helmut me pediu para ir vê-lo depois do segundo ato.

— A senhora estava com alguém quando ele pediu isso?

— O senhor quer saber se eu tenho uma testemunha de que ele me pediu que fosse vê-lo? Perguntou ela com certa tensão na voz. Brunetti fez que sim com a cabeça. — Não, dottor Brunetti, não tenho testemunha. Mas fiquei surpresa.

— Por quê?

— Porque Helmut raramente fazia coisas... Nem sei bem como dizer, fora do comum. Ele raramente fazia alguma coisa fora de sua rotina. Por isso me surpreendeu o seu pedido de que o fosse procurar no intervalo.

— Mas a senhora foi?

— Sim, fui.

— Por que ele queria falar com a senhora?

— Não sei. Encontrei alguns amigos no foyer e parei para falar com eles por alguns minutos. Eu me esquecera de que durante uma apresentação não se pode ir aos bastidores saindo da plateia, que é preciso subir as escadas que levam aos camarotes. Por isso, quando finalmente consegui chegar ao camarim dele, já estava tocando o segundo sinal do fim do intervalo.

— A senhora falou com ele? Ela hesitou por muito tempo antes de responder.

— Sim, mal deu tempo de dizer olá e lhe perguntar o que queria falar comigo. Mas quando ouvimos... Neste ponto ela fez uma pequena pausa e apagou o cigarro. Levou um bom tempo fazendo isso, fazendo girar muitas vezes a ponta do cigarro no cinzeiro. Finalmente o largou e continuou a falar, mas algo tinha mudado em sua voz. — Ouvimos o segundo sinal. Não havia tempo para falar nada. Eu lhe disse que o veria depois da apresentação e voltei para meu lugar. Cheguei no momento exato em que as luzes estavam se apagando. Esperei que a cortina subisse e o espetáculo continuasse, mas como o senhor sabe... O senhor sabe o que aconteceu.

— Só então a senhora percebeu que alguma coisa estava errada? Ela pegou o maço e tirou outro cigarro. Brunetti o acendeu com um isqueiro que havia sobre a mesa.

— Obrigada, disse ela, se voltando para evitar que a fumaça fosse na direção do policial.

— E só então a senhora percebeu que alguma coisa estava errada? Repetiu ele.

— Sim.

— Nas últimas semanas o comportamento de seu marido apresentou alguma mudança? Como a viúva não respondeu, ele acrescentou: — Ele lhe pareceu nervoso, irritado?

— Eu entendi a pergunta, disse ela secamente, depois lhe lançou um olhar nervoso. — Desculpe. Ele achou que era preferível ficar calado a aceitar expressamente suas desculpas. Ela levou certo tempo para falar. — Não, ele parecia o mesmo de sempre. Ele sempre gostou da Traviata e amava esta cidade.

— E os ensaios foram bem? Sem problemas?

— Acho que não entendi sua pergunta.

— Seu marido teve algum problema com outras pessoas que trabalhavam no espetáculo?

— Não, não que eu saiba, respondeu ela depois de uma pequena pausa. Brunetti achou que já era hora de fazer perguntas mais pessoais. Ele passou algumas páginas do bloco de anotações.

— Quem mora nesta casa, signora? Ela não traiu nenhum sinal de surpresa diante da brusca mudança de assunto.

— Meu marido, eu e uma criada que dorme aqui.

— Há quanto tempo essa criada trabalha para a senhora?

— Ela trabalhou para Helmut por cerca de vinte anos, acho. Só a conheci quando vim a Veneza pela primeira vez.

— E quando foi isso?

— Há dois anos.

— Sim? Disse ele, encorajando-a.

— Ela fica aqui no apartamento o ano inteiro, quando estamos fora. E imediatamente se corrigiu. — Quando não estávamos aqui.

— O nome dela?

— Hilda Breddes.

— Ela não é italiana?

— Não, é belga. Ele anotou essa informação.

— Há quanto tempo a senhora estava casada com o maestro?

— Dois anos. Conhecemo-nos em Berlim, onde eu estava trabalhando.

— Em que circunstâncias?

— Ele estava regendo Tristão. Eu fui aos bastidores com alguns amigos meus que também eram amigos dele. Fomos todos jantar depois da apresentação.

— Depois de quanto tempo vocês se casaram?

— Uns seis meses. Ela se ocupou em apontar o cigarro.

— A senhora disse que trabalhava em Berlim, embora seja húngara. Como ela nada disse, ele continuou. — Isso não é verdade?

— Sim. Sou húngara de nascimento. Mas agora sou cidadã alemã. Meu primeiro marido, como o senhor já deve saber, era alemão, e eu adotei essa nacionalidade quando mudamos para a Alemanha depois que nos casamos.


Ela apagou o cigarro e fitou Brunetti, como se lhe dissesse que agora ia dar toda atenção a suas perguntas. Ele imaginou que ela tinha decidido se concentrar naqueles detalhes factuais já conhecidos de todos. Todas as respostas sobre seus casamentos tinham sido verdadeiras; ele sabia disso porque Paola, viciada nessa imprensa marrom, lhe dera todos os detalhes naquela manhã.


— Isso não é algo excepcional?

— O quê?

— Conseguir autorização para mudar para a Alemanha e adotar cidadania alemã. Ela sorriu a isso, mas não, pensou ele, por achar divertido.

— Não tão excepcional quanto os senhores, aqui no Ocidente, parecem pensar. Havia certo desprezo naquela resposta? — Eu era uma mulher casada, casada com um alemão. Seu trabalho na Hungria terminara, e ele voltou ao seu país. Pedi permissão para ir com ele e ela me foi concedida. Mesmo sob o antigo governo, não éramos selvagens. A família é muito importante para os húngaros. Pela forma como a viúva falou, ela parecia achar que, para os italianos, a família tinha pouca importância.

— Ele é o pai de sua filha? Era evidente que a pergunta a tomara de surpresa.

— Quem?

— Seu primeiro marido.

— Sim, é. Ela pegou outro cigarro.

— Ele ainda mora na Alemanha? Perguntou Brunetti quando ela acendeu o cigarro, embora soubesse que ele era professor da Universidade de Heidelberg.

— Sim, mora.

— Quer dizer então que antes de casar com o maestro a senhora era médica?

— Comissário, principiou ela numa voz cheia de uma raiva que pouco fazia para conter ou disfarçar. — Eu ainda sou médica, e sempre serei médica. No momento, não estou exercendo, mas, pode acreditar, ainda sou médica.

— Desculpe-me, doutora, disse ele, falando com franqueza e lamentando sua estupidez. Mudou então de assunto. — Sua filha mora aqui com a senhora? Ele a viu se inclinar compulsivamente para o maço de cigarros e depois estender a mão para pegar o cigarro aceso.

— Não, ela mora com os avós em Munique. Seria muito difícil para ela frequentar uma escola em língua estrangeira enquanto estivéssemos aqui, por isso decidimos que seria melhor que estudasse em Munique.

— Com os pais de seu ex-marido?

— Sim.

— Quantos anos sua filha tem?

— Treze. Sua própria filha, Chiara, tinha a mesma idade, e ele imaginou o quanto seria ruim obrigá-la a frequentar uma escola em outro país.

— A senhora vai voltar a clinicar agora? Ela pensou um pouco antes de responder.

— Não sei. Talvez. Gostaria de tratar de pessoas. Mas é muito cedo para falar sobre isso. Brunetti inclinou a cabeça, num mudo assentimento.

— Se me permite, senhora, e quero que me desculpe desde já por minha pergunta, pode me dizer se seu marido tomou algumas providências em termos financeiros?

— O senhor quer saber para onde vai o dinheiro? Perguntou ela de forma mais que direta.

— Sim. Ela respondeu depressa.

— Sei apenas o que Helmut me falou. Não fizemos nenhum contrato legal, nada por escrito, como fazem atualmente as pessoas que se casam. Ela parecia rejeitar aquela ideia. — Pelo que entendo, cinco pessoas herdarão seus bens.

— Quem são elas?

— Seus filhos dos primeiros casamentos. Ele teve um do primeiro e três do segundo. E eu.

— E sua filha?

— Não, disse ela imediatamente. — Só os filhos dele. Parecia natural a Brunetti que um homem quisesse deixar a fortuna para seus próprios filhos.

— A senhora tem alguma ideia do valor dos bens? As viúvas em geral sabem disso, e em geral dizem que não sabem.

— Acho que é muito dinheiro. Mas o advogado dele ou o empresário podem lhe informar sobre isso melhor do que eu. Parecia-lhe estranho, mas ela dava a impressão de que realmente não sabia. E, mais estranho ainda, parecia não se preocupar com isso. Os sinais de cansaço que ele vira ao entrar aumentaram durante a conversa. A linha de seus ombros parecia menos reta; dois vincos partiam do nariz, indo até os cantos da boca.

— Tenho só mais algumas perguntas, disse ele.

— Quer beber alguma coisa? Era claro que ela se limitava ao meramente formal.

— Obrigado, mas não. Farei estas perguntas e depois vou embora. Ela aquiesceu com um gesto cansado, quase como se soubesse que eram justamente aquelas perguntas que ele viera fazer. — Signora, gostaria de saber como eram suas relações com o seu marido. Ele notou que ela foi ficando cada vez mais distante e mais esquiva. Brunetti foi mais claro. — A diferença de idade entre ele a senhora era considerável.

— Sim, era. Ele permaneceu calado, esperando. Finalmente ela respondeu, sem dar a impressão de estar se desculpando, e Brunetti apreciou isso nela: — Ele era trinta e sete anos mais velho que eu. Isso significava que ela era alguns anos mais velha do que ele imaginara, exatamente da idade de Paola. Wellauer era oito anos mais novo que o avô de Brunetti. Por mais estranho que aquilo lhe parecesse, Brunetti procurou disfarçar o que lhe ia pela cabeça. Como seria para aquela mulher ter um marido quase duas gerações mais velho que ela? Ele percebeu que ela estava constrangida com a intensidade de seu olhar, por isso desviou os olhos por um instante, como se estivesse pensando em como formular sua próxima pergunta.

— A diferença de idade criava alguma dificuldade em seu casamento? Quão transparente era o véu de eufemismos que sempre envolvia esse tipo de união. Embora polida, a pergunta tinha um certo quê de voyeurismo, e ele estava embaraçado com aquilo. O silêncio se prolongou tanto que ele não saberia dizer o motivo: se sua curiosidade ou o aborrecimento que lhe causava a forma artificial como fora expressa. Súbito, com voz muito cansada, ela respondeu. — Dada a nossa diferença de idade, de geração, víamos o mundo de pontos de vista muito diferentes, mas me casei com ele porque estava apaixonada.


O instinto de Brunetti lhe disse que acabara de ouvir a pura verdade, porém o mesmo instinto lhe soprou que ele ouvira apenas o singular. Por compaixão, se absteve de indagar sobre a omissão. Para indicar que tinha terminado, ele fechou o bloco e colocou-o no bolso.


— Obrigado, signora. Foi muita gentileza sua me receber nestas circunstâncias. Hesitou um pouco, receando cair de novo em eufemismos ou banalidades. — A senhora tomou as providências para o funeral?

— Amanhã. Às dez. Em San Moisè. Helmut amava esta cidade e sempre desejou ter o privilégio de ser sepultado aqui. O pouco que Brunetti ouvira e lera sobre o maestro o fez duvidar de que o morto pudesse considerar privilégio algo que não aquilo que ele tinha o poder de conceder, mas talvez Veneza tivesse grandeza suficiente para ser uma exceção.

— Espero que a senhora não tenha nenhuma objeção a que eu compareça.

— Claro que não.

— Tenho mais uma pergunta, também dolorosa, a fazer. A senhora sabe de alguém que pudesse desejar o mal a seu marido? Há alguém com quem ele tenha brigado há pouco tempo, alguém que ele pudesse ter razão para temer? Ela deu um leve sorriso, mas foi um sorriso.

— O senhor quer saber, perguntou, — Se acho que havia alguém que pudesse querer matá-lo? Brunetti aquiesceu. — Sua carreira foi muito longa, e tenho certeza de que ele incomodou muita gente durante esse tempo. Algumas pessoas não gostavam dele, sem dúvida. Mas não posso pensar em ninguém que pudesse querer fazer isso. Ela deslizou maquinalmente o dedo pelo braço da cadeira. — E ninguém que gostasse de música poderia fazer isso. Brunetti se levantou e estendeu a mão.


— Obrigado, signora, por seu tempo e por sua paciência. Ela se levantou e apertou a mão dele. — Por favor, não precisa se incomodar, disse ele, para que ela não o acompanhasse até a porta.


Ela recusou a sugestão balançando a cabeça e levou-o até o vestíbulo. A porta, se apertaram as mãos novamente, ambos em silêncio. Ele saiu do apartamento perturbado com o encontro, sem saber ao certo se a razão disso eram as banalidades e o excesso de gentilezas de sua parte ou algo que não fora capaz de captar.


* * *


Dez

NESSE meio tempo caíra a noite; aquela escuridão súbita do começo do inverno vinha se somar ao triste manto de desolação que pairava sobre a cidade até a libertação trazida pela primavera. Ele preferiu não voltar ao escritório para não correr o risco de se aborrecer caso ainda não tivesse chegado o relatório do laboratório e estava sem a mínima vontade de reler o relatório da polícia alemã. Enquanto andava, refletiu sobre quão pouco ficara sabendo sobre o morto. Não, na verdade ele tinha muitas informações, mas todas incrivelmente fora de foco, muito formais e impessoais. Um gênio, um homófobo, adorado no mundo da música, um homem capaz de inspirar amor numa mulher com metade de sua idade, mas ainda assim um homem cuja substância lhe escapava. Brunetti dispunha de alguns fatos, porém nada sabia sobre a realidade. Continuando a andar, ele pensou nas fontes de informação às quais podia recorrer. Tinha à sua disposição os recursos da Interpol, a total cooperação da polícia alemã, e a importância do seu posto lhe permitia mobilizar todo o sistema policial da Itália. Ora, obviamente a maneira mais segura de conseguir informações confiáveis sobre o homem era recorrer à fonte mais infalível de toda informação, a fofoca.


Seria um exagero dizer que Brunetti não gostava dos pais de Paola, o conde e a condessa Falier, contudo seria igualmente exagero dizer que gostava deles. Eles o espantavam da mesma maneira que um casal de grous espantaria alguém acostumado a jogar amendoim aos pombos no parque. Pertenciam a uma espécie rara e elegante, e Brunetti, que já os conhecia havia quase duas décadas, tinha que admitir possuir sentimentos bastante ambíguos quanto à perspectiva de seu inevitável desaparecimento. O conde Falier, que podia apontar dois doges entre seus ancestrais do lado materno, tinha uma árvore genealógica que remontava ao século X e que ele nunca perdia a oportunidade de exibir. Havia cruzados nos ramos dessa árvore, um ou dois cardeais, um compositor não muito importante, e o antigo embaixador italiano na corte do rei Zog da Albânia. A mãe de Paola era florentina, mas seus pais tinham vindo morar em Veneza logo depois de seu nascimento. Eles afirmavam descender dos Mediei e, numa espécie de jogo de xadrez genealógico, que exercia um estranho fascínio sobre as pessoas de seu círculo, ela apontava o parentesco dos doges da família do marido com um papa e um milionário da indústria têxtil, do cardeal com um primo de Petrarca, do compositor com um famoso castrato, o qual, infelizmente, não deixou descendência, e do embaixador com o banqueiro de Garibaldi.


Moravam num palazzo que pertencia aos Falieri havia pelo menos três séculos; o edifício, imenso, labiríntico, junto ao Grand Canal, era praticamente impossível de aquecer no inverno e só resistia aos ataques do tempo, da água e da poluição industrial graças ao trabalho constante de um exército de pedreiros, mestres de obras, encanadores e eletricistas, que se uniam sob o comando do próprio conde naquele combate contínuo e tão tipicamente veneziano. Brunetti nunca contara o número de aposentos do palazzo e nunca se sentira à vontade para perguntar quantos eram. O edifício, de quatro pavimentos, era rodeado por canais em três lados, e o fundo dava para uma igreja desconsagrada. Ele só ia ao palazzo por ocasião de festas oficiais: a véspera de Natal, quando iam comer peixe e trocar presentes; o aniversário do conde Orazio, quando, por alguma razão misteriosa, se comia faisão e novamente se ofereciam presentes; e na Páscoa, quando se servia pasta fagioli e se assistia aos fogos de artifício queimados na Praça San Marcos. Seus filhos adoravam ir à casa dos avós nessas ocasiões, e ele sabia que costumavam ir, sozinhos ou acompanhados de Paola, visitá-los algumas vezes por ano. Ele preferia achar que era por causa do palazzo e das possibilidades de exploração que oferecia, entretanto alimentava a incômoda suspeita de que eles gostavam dos avós e da companhia deles, o que lhe causava grande perplexidade.


O conde estava nas finanças. Naqueles dezessete anos em que Brunetti estava casado com Paola, essa fora a única descrição que ouviu da profissão do sogro. Não se dizia que ele era um financista, sem dúvida porque isso poderia sugerir alguma atividade manual, como contar dinheiro ou ir ao escritório. Não, o conde estava nas finanças, da mesma maneira que os Beers estavam nas minas e Von Thyssen, no aço. A condessa, por sua vez, estava na sociedade, o que significava que era vista na noite de gala que abria a temporada das quatro maiores óperas da Itália, que ela organizava concertos em benefício da Cruz Vermelha, e todo ano dava um baile de máscaras para quatrocentas pessoas no carnaval.


De sua parte, Brunetti ganhava pouco mais que três milhões de liras por mês como comissário de polícia, soma que, por seus cálculos, era apenas um pouco mais que o seu sogro pagava pelo direito de deixar o barco em frente ao palazzo. Uma década atrás, o conde tentara convencer Brunetti a deixar a polícia para fazer carreira, com o seu apoio, na área bancária. Vivia dizendo que Brunetti não devia passar a vida em companhia de sonegadores, espancadores de mulheres, proxenetas, ladrões e degenerados. Essas propostas cessaram abruptamente num Natal em que, perdendo a paciência, Brunetti lhe disse que, embora ele e o conde trabalhassem com pessoas de mesma laia, ele pelo menos tinha o consolo de poder prendê-las, ao passo que o conde era obrigado a convidá-las para jantar. Por isso, foi com certa apreensão que, naquela noite, Brunetti perguntou a Paola se eles poderiam comparecer à festa que os pais dela iriam dar na noite seguinte para celebrar a abertura de uma nova exposição de pinturas francesas impressionistas no Palácio dos Doges.


— Mas como você soube da festa? Perguntou Paola espantada.

— Li no jornal.

— Uma festa de meus pais... E você ficou sabendo pelo jornal? Aquilo parecia uma afronta à concepção atávica que Paola tinha de família.

— Sim, mas você vai perguntar a eles?

— Guido, normalmente eu tenho que fazer ameaças para conseguir que vá à ceia de Natal na casa de meus pais, e agora de repente você quer ir a uma festa deles. Por quê?

— Porque eu preciso falar com o tipo de gente que frequenta esse tipo de coisa.


Paola, que estava lendo e avaliando trabalhos de seus alunos quando ele entrou, pôs a caneta sobre a mesa com todo o cuidado e lhe lançou o olhar com que costumava reagir ao emprego de termos grosseiros. Embora estes não fossem raros nos trabalhos que corrigia, não estava acostumada a ouvi-los de seu marido. Ela o olhou demoradamente, formulando uma daquelas respostas que Brunetti tanto apreciava e tanto temia.


— Duvido que eles nem sequer pudessem pensar em recusar, dada a elegância de seu pedido, disse ela; depois pegou a caneta e tornou a se debruçar sobre os trabalhos.


Era tarde e ele sabia que Paola estava cansada, por isso ele foi ao balcão preparar um café.


— Você sabe que não consegue dormir quando toma café tão tarde, disse ela, sabendo o que o marido estava fazendo pelo ruído que vinha da cozinha. Brunetti passou por ela e lhe despenteou os cabelos.

— Vou pensar em alguma coisa para fazer. Paola soltou um resmungo e riscou uma frase.

— Por que você quer encontrar essas pessoas?

— Para descobrir o máximo que puder sobre Wellauer. Tenho lido bastante sobre o grande gênio que era, sobre sua carreira, sobre suas mulheres, mas não tenho ideia a respeito de que tipo de homem na realidade ele era.

— E você acha que o tipo de gente, disse ela com grande ênfase, — Que frequenta meus pais, pode ter informações sobre ele?

— Quero saber de sua vida particular, e é justamente esse tipo de pessoa que está a par do que quero saber.

— Esse é o tipo de coisa que você pode ler na Stop. Ele sempre se surpreendia com o fato de que uma pessoa que dava aula de Literatura Inglesa na universidade tivesse tanta intimidade com a imprensa marrom.

— Paola, disse ele, — Quero descobrir coisas verdadeiras sobre ele. Stop é o tipo de publicação onde você lê sobre os abortos de Madre Teresa. Ela resmungou e virou uma página, deixando um rastro raivoso de tinta vermelha atrás dela.


Brunetti abriu a geladeira, tirou uma garrafa de leite e pôs um pouco para esquentar numa panela. Há muito ele sabia que, por mais que acrescentasse leite, ela se recusaria a aceitar uma xícara de café, insistindo em que isso a manteria acordada. No entanto, uma vez que ele punha o café na xícara, Paola vinha roubar um pouquinho e terminava por tomar quase tudo, para depois dormir como uma pedra. Ele tirou do armário um pacote de biscoitos doces que costumavam comprar para as crianças e deu uma olhada para ver quantos tinham sobrado. Quando o café terminou de passar para a parte de cima da cafeteira, ele o despejou numa caneca, acrescentando o leite fumegante e um pouco de açúcar, menos do que ele gostava, e foi se sentar diante de Paola. Distraidamente, ainda concentrada na página que tinha diante de si, ela estendeu a mão e tomou um pouco de café antes mesmo que ele tivesse tempo de tomar o primeiro gole. Quando ela o pôs de volta sobre a mesa, Brunetti envolveu a caneca com as mãos, mas ainda não tomou o café. Ela virou uma página, estendeu a mão para a caneca e olhou para o marido quando este se recusou a soltá-la.


— Eh? Resmungou ela.

— Só depois que você prometer ligar para a sua mãe. Paola tentou puxar as mãos do marido, mas como ele as manteve firmes, ela escreveu um palavrão nelas com sua caneta vermelha.

— Você vai ter que ir de terno.

— Eu sempre uso terno quando vou visitar seus pais.

— Quando você usa terno, nunca dá a impressão de estar satisfeito.

— Está bem, disse Brunetti sorrindo. — Prometo vestir um terno e parecer muito feliz por estar usando um. Você vai ligar para a sua mãe?

— Está bem. Mas eu estava falando sério quanto ao terno.

— Sim, meu tesouro, disse ele carinhosamente. Ele largou a caneca e empurrou-a em sua direção. Quando ela acabou de tomar mais um gole, Brunetti tirou um biscoito do pacote e mergulhou-o no café.

— Que coisa mais repugnante, disse ela sorrindo.

— Coisa de camponês, concordou ele, enfiando o biscoito na boca.


Paola nunca falava muito sobre como tinha sido ser criada no palazzo com uma ama inglesa e um bando de criados, mas se alguma coisa ele sabia daqueles anos era que nunca lhe permitiram molhar pão ou biscoito no leite ou no café. Ele considerava aquilo uma grande falha em sua educação e insistia em que seus filhos deviam poder fazer isso. Ela terminara por concordar, embora com bastante relutância. Nenhum dos dois filhos, ele sempre lembrava à esposa, mostrou graves indícios de degradação moral ou física por causa disso. Pela forma como ela rabiscava às pressas um comentário ao pé de uma página, ele percebeu que, por aquela noite, ela já estava no limite de sua paciência.


— Estou tão cansada desses cabeças de vento, Guido, disse Paola pondo a tampa na caneta e jogando-a na mesa. — Acho que eu preferiria lidar com assassinos. Pelo menos eles podem ser punidos.


Se o café não tivesse acabado, ele empurraria a caneca para ela. Em vez disso, se levantou e pegou uma garrafa de grappa do armário. Foi o único consolo em que pôde pensar naquele momento.


— Que beleza, disse ela. — Primeiro café, agora grappa. Não vamos conseguir dormir nunca.

— E se a gente tentasse manter um ao outro acordado? Ele perguntou. Ela corou.


* * *


Onze

NA MANHÃ seguinte, chegou à Questura às oito, levando consigo os jornais do dia, que leu rapidamente. Havia pouca informação nova; quase tudo tinha sido noticiado no dia anterior. Os informes sobre a carreira de Wellauer eram mais longos, os clamores de que o assassino devia ser levado à justiça, mais estridentes, mas não havia nada que Brunetti não soubesse.


O relatório do laboratório estava em sua mesa. As únicas impressões digitais na xícara, nas quais se encontraram resíduos de cianureto, eram do próprio Wellauer. No camarim havia tantas outras impressões que seria impossível examiná-las todas. Ele decidiu deixar de lado a pista das impressões digitais. Como as únicas que havia na xícara eram do maestro, não via sentido em identificar todas as outras encontradas na sala. Junto com o relatório sobre as impressões digitais, havia uma lista de objetos encontrados no camarim. Ele se lembrava de ter visto a maioria deles: a partitura de La Traviata, com todas as páginas cheias de anotações nas margens em caracteres góticos, feitas por Wellauer; um pente, uma carteira, dinheiro; as roupas que o maestro estava usando e as que se encontravam no closet; um lenço e um cartucho de balas de menta. Havia também um relógio Rolex, uma caneta e uma pequena caderneta de endereços.


Os policiais que foram à casa do maestro, no caso, não se podia falar de busca, escreveram um relatório, mas como não tinham ideia do que deveriam procurar Brunetti tinha pouca esperança de que ele contivesse alguma coisa interessante ou importante. Apesar disso, leu com toda a atenção. O maestro tinha um guarda-roupa notavelmente completo para um homem que passava apenas poucas semanas por ano na cidade. Brunetti ficou fascinado com a precisão das observações sobre as roupas: Casaco preto traspassado de cashmere (Duca D’Aosta); suéter cobalto e cor de ferrugem, tamanho 52 (Missoni). Por um momento ele imaginou ter perdido o rumo, indo parar numa butique Valentino e não no comissariado de polícia. Leu depressa o resto do relatório e encontrou no final, como temia, as assinaturas de Alvise e Riverre, os dois tiras que tinham escrito, um ano antes, a propósito de um cadáver tirado do mar na Praia do Lido: Parece ter morrido por asfixia. Ele voltou ao relatório. A signora parecia não partilhar o interesse do marido por roupas. E, pelo que tinha lido, Alvise e Riverre não pareciam ter em alta conta o gosto da esposa do maestro. Botas Varese, apenas um par. Casaco de lã, sem marca. Em compensação, pareceram ter ficado impressionados com a biblioteca, que descreveram como, grande, em três línguas, mais uma quarta que parece ser o húngaro.


Brunetti virou mais uma página. Havia dois quartos de hóspede no apartamento, cada um com seu banheiro próprio. Toalhas limpas, closets vazios, sabonete Christian Dior. Não havia nem um traço da filha da senhora Wellauer; nada no relatório indicava a presença do terceiro membro da família. Em nenhum dos quartos vazios havia roupas de adolescente, livros, ou outros objetos. Lembrando-se de como ele vivia tropeçando em sinais da presença da filha, Brunetti achou aquilo estranho. A Sra. Wellauer explicara que a filha frequentava uma escola em Munique. Então se tratava de uma criança extraordinária, que conseguia levar consigo todos os seus pertences, aonde quer que fosse.


Havia uma descrição do quarto da criada belga, que os dois policiais devem ter achado pobremente mobiliado, e da própria criada, que lhes pareceu submissa mas prestativa. O último a ser descrito foi o escritório do maestro, onde eles encontraram documentos. Alguns tinham sido levados à polícia e examinados pela tradutora de alemão, que explicou, numa página acrescentada ao relatório, se tratar de transações comerciais e contratos. Uma agenda fora examinada e julgada sem interesse.


Brunetti resolveu procurar os dois autores do relatório, se poupando da irritação de ter que esperar que atendessem ao pedido de que fossem ao seu escritório. Como já eram quase nove horas, sabia que podia encontrá-los no bar situado do outro lado da ponte dei Greci, no final da rua. Aquela conclusão era inescapável, não pela hora precisa, mas porque ainda não era meio-dia. Por mais que temesse a indicação daqueles dois para trabalhar com ele em algum caso, Brunetti não conseguia deixar de gostar deles. Alvise era um homem atarracado, beirando os cinquenta anos, quase uma caricatura do siciliano de pele escura, com a ressalva de que era de Tarvisio, na fronteira com a Áustria. Ele era considerado o especialista da casa em música popular, porque certa vez, quinze anos atrás, conseguira um programa autografado por Mina, a rainha da canção popular italiana. Com o passar dos anos, esse evento foi tomando proporções cada vez maiores, o que também aconteceu com a própria Mina, à força de ser contado e recontado, a ponto de Alvise agora sugerir, com os olhos brilhantes de desejo satisfeito, que houvera muito mais entre ele e a cantora. A história parecia não ser minimamente afetada pelo fato de que a heroína era bem mais alta que Alvise e duas vezes mais corpulenta que ele.


Riverre, seu parceiro, era um palermitano de cabelos ruivos cujo único interesse na vida era futebol e mulheres, nessa ordem. O ponto alto de sua vida foi ter escapado ileso do famoso tumulto do estádio de futebol de Bruxelas. Ele recheava o relato do que fizera naquele dia, antes da chegada da polícia belga, com histórias de conquistas de mulheres, em geral estrangeiras, que, pelo que ele dizia, se rendiam irresistivelmente ao seu charme. Brunetti os encontrou, como previra, no balcão do bar. Riverre estava lendo o jornal de esportes e Alvise conversava com Arianna, a dona do bar. Os dois só notaram a chegada de Brunetti quando este pediu um café. Alvise lhe deu um sorriso e Riverre só desviou a atenção do jornal para cumprimentar seu superior.


— Mais dois cafés, Arianna, disse Alvise. — Todos por minha conta.


Brunetti percebeu a manobra que visava torná-lo devedor de seu subordinado. Quando os três cafés chegaram, Riverre se juntou a eles e o jornal se transformou milagrosamente num dossiê de capa azul, que agora estava aberto sobre o balcão. Brunetti pôs duas colheres de açúcar na xícara e mexeu o café.


— Vocês é que foram à casa do maestro, não é?

— Sim, senhor, respondeu vivamente Alvise.

— E que casa! Completou Riverre.

— Eu estava acabando de ver o relatório.

— Arianna, traga uns brioches.

— Li com toda a atenção.

— Obrigado, senhor.

— Principalmente os comentários sobre o guarda-roupa dele. Pelo que senti, vocês não gostaram muito dos ternos ingleses.

— Não, senhor, respondeu Riverre que, como de costume, não entendeu nada. — Acho que as calças são muito largas nas pernas. Alvise, fazendo um movimento em direção ao dossiê, deu uma cotovelada no companheiro, talvez mais forte do que o necessário.

— Mais alguma coisa, senhor? Perguntou ele.

— Sim. Quando estiveram lá, não notaram alguma coisa que indicasse a presença da filha da signora?

— Ela tem uma filha, senhor? A pergunta, naturalmente, foi feita por Riverre.

— É por isso que estou perguntando. Havia algum sinal da existência de uma criança? Livros? Roupas?


Ambos pareceram mergulhar em profunda reflexão. Riverre fitou o espaço, que lhe pareceu muito mais perto do que a outros, e Alvise olhou para o chão, as mãos enfiadas no bolso do uniforme. O minuto de praxe se passou antes que ambos respondessem.


— Não, senhor, disseram ao mesmo tempo, quase como se tivessem ensaiado.

— Absolutamente nada? Novamente o espaço para um, o chão para o outro, depois a resposta em coro.

— Não, senhor.

— Vocês falaram com a criada, a belga? Riverre virou os olhos ao se lembrar da criada, sugerindo que o tempo passado com aquela lesma era tempo perdido, mesmo ela sendo estrangeira. Alvise se contentou em dizer:

— Sim, senhor.

— E ela disse alguma coisa que lhes pareceu importante? Riverre tomou fôlego, se preparando para responder, mas seu parceiro foi mais rápido.

— Não exatamente o que ela disse, senhor. Mas tive a impressão de que ela não gosta da patroa. Riverre não podia deixar passar aquilo e perguntou, com um sorriso feio:

— O que ela pode não ter gostado ali? Pronunciando com ênfase a última palavra. Brunetti lançou-lhe um olhar glacial e se dirigiu ao outro.

— Por quê?

— Nada de muito preciso, principiou ele. Riverre deu um risinho de desprezo. Não é preciso dizer mais sobre a eficiência dos olhares glaciais.

— Como eu estava dizendo, senhor, não era nada muito concreto, mas ela parecia muito mais... Formal quando a viúva estava presente. Difícil imaginar que ela conseguisse ser mais formal do que quando estava conosco, mas era essa a impressão que dava. Acho que ela parecia mais... Fria na presença da senhora, principalmente quando tinha que falar com ela.

— E quando foi isso?

— Logo que chegamos. Nós lhe perguntamos se podíamos dar uma olhada no apartamento, em suas coisas. Pela maneira como nos respondeu, estou falando da senhora Wellauer, senhor, parece que não gostou muito da ideia. Mas ela nos disse que sim, chamou a criada e disse para nos mostrar onde estavam as coisas do marido. Foi nesse momento, quando estavam falando uma com a outra, que a criada pareceu... Bem, fria. Depois, quando estava falando conosco, parecia um pouco melhor. Não que se mostrasse cordial ou coisa assim, afinal de contas, ela é belga, mas estava melhor conosco, mais à vontade conosco do que na presença da outra.

— Vocês voltaram a falar com a viúva?

— Só na hora de sair, senhor. Estávamos levando os papéis. Ela não gostou que levássemos os documentos conosco. Foi só um olhar, mas foi essa a impressão que nos deu. Nós lhe perguntamos se podíamos levar os documentos. Tínhamos que fazer isso. É o regulamento.

— Sim, eu sei, respondeu Brunetti. — Mais alguma coisa?

— Sim, interveio Riverre.

— O quê?

— Ela não se importou que olhássemos suas roupas e os closets. Mandou a criada nos acompanhar, nem fez questão de vir ela mesma. Mas quando nos dirigimos à sala onde estavam os documentos, ela nos acompanhou e pediu à criada que esperasse do lado de fora. Ela não gostou de nos ver mexendo naquilo, senhor, documentos e outras coisas.

— Que coisas?

— Pareciam documentos oficiais, senhor. Tudo em alemão, e trouxemos para cá para serem traduzidos.

— Sim, eu li no relatório. O que foi feito dos documentos depois de traduzidos?

— Não sei, senhor, respondeu Alvise. — Ou estão com a tradutora ou já foram devolvidos.

— Riverre, você podia ver isso para mim?

— Agora, senhor?

— Sim, agora.

— Sim, senhor. Ele fez um arremedo de continência e saiu do bar o mais devagar que pôde.

— E... Riverre! Chamou Brunetti quando o outro já estava saindo. Riverre se voltou, esperando ser chamado de volta e não precisar ir até a Questura e subir dois lances de escada. — Se os documentos estiverem lá, peça que os mandem ao meu escritório. Brunetti pegou um dos brioches do prato à sua frente e mordeu-o, depois pediu a Arianna que preparasse mais um café. — Quando vocês estavam lá, notaram alguma outra coisa?

— Que coisa, senhor? Indagou Alvise, como se eles tivessem que observar só o que lhes fosse mandado.

— Qualquer coisa. Você falou da tensão entre as duas. Alguma delas se comportou de uma forma que lhe pareceu estranha? Alvise pensou um pouco e deu uma mordida num brioche.

— Não, senhor. Vendo que Brunetti ficou decepcionado com a resposta, acrescentou: — Só quando pegamos os documentos.

— Você tem alguma ideia do que são?

— Não, senhor. Só que sua atitude foi muito diferente da que teve quando examinamos seus objetos pessoais, como se aquilo não tivesse nenhuma importância. Eu imagino que as pessoas não devem gostar que fiquem mexendo em suas roupas. Mas documentos são apenas documentos. Percebendo que essa última observação despertara o interesse de Brunetti, ele foi ficando cada vez mais loquaz. — Mas isso talvez porque ele era um gênio. E claro que não entendo nada desse tipo de música. Brunetti se preparou para o inevitável. — A única cantora que conheço pessoalmente é Mina, e ela nunca cantou com ele. Mas como eu estava dizendo, se ele era famoso, talvez os papéis sejam importantes. Devia ter coisas sobre música neles, não é? Naquela altura, Riverre havia chegado de volta.

— Sinto muito, senhor, mas os papéis já foram devolvidos.

— Como? Pelo correio?

— Não, senhor, a própria tradutora os levou. Ela disse que com certeza a viúva iria precisar deles. Brunetti pegou a carteira e pôs uma nota de dez mil liras no balcão antes que os outros pudessem protestar.

— Obrigado, senhor, disseram ambos.

— Não há de quê. Quando ele se voltou para sair, os dois não o acompanharam, embora fizessem continência.


O porteiro da Questura lhe disse que o vicequestore Patta queria falar com ele imediatamente em seu gabinete.


— Gesú Bambino, disse Brunetti para si mesmo, uma expressão que aprendera de sua mãe que, como ele, só a usava quando estava no limite da paciência.


Bateu à porta do seu superior e teve o cuidado de esperar pelo Avanti! Antes de entrar. Como ele esperava, encontrou Patta atrás de sua mesa, com uma pilha de dossiês dispostos em leque à sua frente. Ele ignorou Brunetti por um momento, continuando a ler o papel que tinha na mão. Brunetti se limitou a examinar os traços esmaecidos do afresco que havia muito fora pintado no teto. Patta levantou a cabeça de repente, fingiu surpresa em ver Brunetti.


— Onde o senhor está? Brunetti simulou a mesma confusão fingida de Patta, como se achasse a pergunta curiosa mas não quisesse chamar a atenção para isso.

— Em sua sala, senhor.

— Não, não. Quero saber onde o senhor está no caso. Indicando com um gesto uma das cadeiras douradas em frente à sua mesa, ele pegou a caneta e começou a tamborilar no desktop.

— Conversei com a viúva e duas das pessoas que estiveram no camarim. Falei com o legista e sei a causa da morte.

— Sei de tudo isso, disse Patta, aumentando o ritmo das batidas da caneta, sem fazer o menor esforço para esconder a irritação. — Em outras palavras, o senhor não descobriu nada importante?

— Sim, senhor. Acho que se pode dizer isso.

— Sabe, Brunetti, refleti muito sobre essa investigação e acho que seria conveniente tirar o senhor do caso. A voz de Patta estava carregada de ameaça, como se ele tivesse passado a noite anterior folheando seu exemplar de Maquiavel.

— Sim, senhor.

— Acho que poderia entregar o caso a outra pessoa. Talvez assim conseguíssemos algum progresso nas investigações.

— Acho que Mariani no momento não está trabalhando em nenhum caso.


Só à custa de um extraordinário esforço Patta conseguiu se conter e não estremecer à menção do nome do mais jovem dos outros dois comissários, homem de caráter irrepreensível e de estupidez insondável, que todos sabiam ter conseguido o posto por ser sobrinho do ex-prefeito. Brunetti sabia que o terceiro comissário estava investigando o tráfico de drogas no porto de Marghera.


— Ou talvez o senhor mesmo possa assumi-lo, disse Brunetti, acrescentando depois de um silêncio enervante, — Senhor.

— Sim, essa possibilidade sempre existe, disse Patta, que ou não entendeu a impertinência de seu subordinado ou resolveu ignorá-la. Ele pegou um maço de cigarros russos de sua mesa e encaixou um deles em sua piteira de ônix. “Muito bonita”, pensou Brunetti; e as cores combinam. — Eu o chamei porque tenho recebido telefonemas da imprensa e de Pessoas do Alto Escalão. Pela forma como pronunciou essas palavras, se notava que usara iniciais maiúsculas. — E todos estão preocupados porque o senhor não fez nada. Dessa vez a ênfase foi colocada duramente em, “O senhor”. Patta tirou algumas delicadas baforadas do cigarro e fitou Brunetti. — O senhor está me ouvindo? Eles não estão nada satisfeitos.

— Sei muito bem como é isso, senhor. Tenho em minhas mãos o cadáver de um gênio e ninguém a quem incriminar. Era só impressão sua ou Patta estava repetindo mentalmente, para si mesmo, aquela fala brilhante, para usá-la naquele dia à hora do almoço?

— Sim, exatamente, disse Patta. Seus lábios novamente se movimentaram: — E ninguém a quem incriminar. Brunetti nunca ouvira antes o homem expressar de forma tão clara seu conceito de justiça. Talvez Patta fosse repetir aquelas palavras durante o almoço. — De agora em diante, Brunetti, quero um relatório por escrito na minha mesa às... Ele parou um pouco, tentando se lembrar da hora em que o comissariado abria, — Às oito, disse ele, conseguindo acertar.

— Sim, senhor. É só isso? Pouca diferença fazia para Brunetti se o relatório fosse verbal ou por escrito; ele continuaria sem nada a dizer até ter uma ideia mais clara do homem que fora assassinado. Gênio ou não, a pergunta continuava a exigir resposta.

— Não. Não é só isso. Quais são os planos do senhor hoje?

— Vou ao enterro. Vai ser daqui a uns vinte minutos. E quero examinar seus documentos pessoalmente.

— Só isso?

— Sim, senhor. Patta bufou, exprimindo seu desprezo.

— Não é de surpreender que não estejamos chegando a parte alguma.


Aquilo parecia o sinal de que a conversa tinha se encerrado; Brunetti se levantou e se dirigiu à porta, se perguntando a que distância estaria dela no momento em que Patta o lembraria do relatório escrito. Pelos seus cálculos ele ainda estava a três passos da porta quando ouviu:


— Lembre-se, às oito horas.


A conversa com Patta fez que ele chegasse à igreja de San Moisè só poucos minutos antes das dez. O barco negro que levava o caixão coberto de flores já estava atracado à margem do canal, e três homens de ternos azuis se azafamavam para colocar o féretro no carrinho de metal que o conduziria à porta da igreja. Na multidão de pessoas que se concentravam no adro, Brunetti reconheceu alguns rostos venezianos conhecidos, os repórteres e fotógrafos de sempre, mas não avistou a viúva; ela já devia ter entrado. Quando os três homens chegaram às portas, um quarto homem se juntou a eles, e levantando o caixão, colocaram-no nos ombros com a facilidade que lhes dava a longa experiência e subiram os dois degraus baixos da igreja. Brunetti se juntou às pessoas que entraram na igreja. Ele viu os homens levarem o caixão à nave central, depositando-o em seguida num suporte baixo diante do altar principal.


Brunetti sentou na ponta de um banco no fundo da igreja apinhada de gente. Olhando por entre as cabeças, a custo conseguia divisar a primeira fileira, onde a viúva, de preto, estava sentada entre um homem e uma mulher grisalhos, provavelmente os mesmos que ele vira com ela no teatro. Atrás dela, sozinha num banco, estava uma mulher de preto; Brunetti imaginou que fosse a criada. Embora nada esperasse da missa, Brunetti se surpreendeu com a austeridade da cerimônia. O mais espantoso era a ausência total de música, nem mesmo alguns acordes do órgão. As palavras familiares pairavam sobre a cabeça das pessoas, se pronunciaram as bênçãos e se fizeram as aspersões imemoriais. Dada a sua simplicidade, a missa foi breve.


Brunetti esperou na extremidade do banco que o caixão e os últimos acompanhantes saíssem da igreja. Do lado de fora, os flashes pipocavam e os repórteres rodeavam a viúva, que se encolhia e procurava se proteger se colando ao senhor que a acompanhava. Sem pensar, Brunetti abriu caminho por entre a multidão e lhe tomou o outro braço. Ele reconhecera alguns dos fotógrafos; estes o conheciam e Brunetti ordenou que os deixassem passar. Os homens que rodeavam a viúva recuaram, deixando o caminho aberto até o cais. Apoiando a Sra. Wellauer, ele a levou até o barco que a esperava, ajudou-a a subir nele, seguindo-a, depois, até a cabine. O casal idoso se juntou a ela; a senhora pôs o braço nos ombros da viúva, e o homem apenas sentou ao lado dela e lhe tomou a mão. Brunetti ficou à porta da cabine e seguiu com os olhos o barco fúnebre que avançava lentamente pelo canal. Quando eles já estavam suficientemente longe da igreja e da multidão, Brunetti, baixando a cabeça, voltou à cabine.


— Obrigada, disse a Sra. Wellauer, sem procurar esconder as lágrimas. Ele não soube o que responder.


O barco entrou no Grand Canal e dobrou à esquerda, em direção a San Marcos, por onde teriam que passar para chegar ao cemitério. Brunetti voltou à porta da cabine e ficou olhando para fora, por discrição e respeito pela dor da viúva. Eles passaram ao lado do campanário, diante da fachada retangular, qual tabuleiro de damas, do Palácio dos Doges, e diante da alegre desordem das cúpulas. Quando estavam se aproximando do canal do Arsenal, Brunetti subiu ao convés e perguntou ao barqueiro se podia parar no píer do Palasport. Em seguida foi mais uma vez à cabine, onde os três ocupantes estavam conversando em voz baixa.


— Dottor Brunetti, disse a viúva.Ele se voltou. — Obrigada mais uma vez. Aquilo era mais do que eu podia suportar.


Ele fez um movimento com a cabeça, concordando. O barco começou a fazer o grande giro à esquerda que o levaria ao canal do Arsenal.


— Gostaria de falar com a senhora novamente, disse ele. — Quando for conveniente para a senhora.

— É necessário?

— Sim, creio que sim. O ronco do motor se fez mais grave no momento em que o barco se aproximou do molhe do lado direito do canal.

— Quando?

— Amanhã? Nem ela nem os outros dois deram mostras de terem se ofendido.

— Está bem, disse ela. — À tarde.

— Obrigado, disse ele enquanto o barco balançava junto ao píer.


Ninguém respondeu e ele saiu da cabine, saltou do barco para a plataforma e esperou enquanto o barco retomava o seu lugar atrás do que levava o caixão. Depois o cortejo rumou para as águas mais profundas da laguna.


* * *


Doze

COMO MUITOS dos palazzi do Grand Canal, inicialmente só se podia chegar ao Palácio Falier de barco, e os convidados tinham que passar por quatro degraus baixos que iam até o píer. Mas há muito que essa entrada fora fechada com uma pesada grade de metal que só era aberta quando se recebiam grandes entregas, feitas de barco. Nessa época de decadência, os convidados chegavam a pé, vindos fosse de Cà Rezzonico, a estação do vaporetto mais próxima, fosse de outras partes da cidade. Brunetti e Paola chegaram ao palazzo a pé, passando pela universidade, atravessando em seguida o campo San Barnaba, depois dobrando à esquerda e andando ao longo do estreito canal que levava à entrada lateral do palazzo. Eles tocaram a campainha. Paola nunca vira o homem que os recebeu. Provavelmente um extra contratado para a soirée.


— Pelo menos ele não está de calções nem peruca, comentou Brunetti enquanto subiam a escada externa. O jovem não se dera ao trabalho de perguntar quem eram ou se tinham sido convidados. Ele sabia a lista de convidados de cor, com os respectivos rostos, ou, o que era mais provável, não se importava com quem introduzia no palácio.


Quando estavam no alto da escadaria, ouviram música vinda da esquerda, onde ficavam os três enormes salões de recepção. Orientando-se pelo som, entraram num corredor ladeado de espelhos, acompanhados por seu reflexo esmaecido. As grandes portas de carvalho do primeiro salão estavam abertas. De dentro vinha luz, música e o cheiro de flores e de perfumes caros. A luz que banhava o salão vinha de dois gigantescos lustres em cristal de Murano, cobertos de anjinhos e de cupidos brincalhões, que pendiam de um teto com afrescos, e de candelabros ao longo das paredes. A música era conduzida por um trio que, postado num canto, tocava o repertório mais batido de Vivaldi. Quanto ao perfume, era exalado pelo bando que abrilhantava o lugar: o das mulheres, que se entregavam a conversas ainda mais brilhantes e coloridas que seus trajes.


Poucos minutos depois que os viu entrar, o conde veio até eles, se inclinou para beijar o rosto de Paola e estendeu a mão ao seu genro. Era um homem alto, beirando os setenta anos, que não fazia nenhum esforço para disfarçar o fato de que estava ficando calvo; usava cabelos curtos em volta da tonsura, o que lhe dava um ar de monge muito estudioso. Paola herdara seus olhos castanhos e a boca grande, mas felizmente fora poupada do grande nariz aristocrático adunco que era o traço mais marcante do rosto de seu pai. Seu smoking era tão bem-feito que mesmo que fosse cor-de-rosa a única coisa que iria chamar a atenção das pessoas seria a perfeição do corte.


— Sua mãe está encantada por vocês dois terem vindo. A ênfase em, vocês dois se devia ao fato de que era a primeira vez que Brunetti comparecia a uma de suas festas. — Espero que se divirtam.

— Tenho certeza de que vamos nos divertir, respondeu Brunetti pelos dois. Durante dezessete anos ele evitara chamar o sogro de alguma coisa. Não podia usar o título nem chamar o homem de papai. Chamá-lo pelo primeiro nome, Orazio, seria intimo demais, e soaria como o velho apelo à igualdade social. Por isso Brunetti jogava com paráfrases, evitando chamá-lo até mesmo de signore. Mas eles chegaram a um acordo tácito de se chamarem por você, embora lhes custasse algum esforço usar esse tratamento familiar.


O conde viu sua esposa atravessando a sala, sorriu e fez um sinal para que viesse se juntar a eles. Ela se esquivou por entre a multidão com um misto de graça e traquejo social que Brunetti invejou, parando para beijar alguém aqui, tocar no braço de alguém ali. Ele apreciava a condessa, empertigada e cerimoniosa com suas pérolas e seus recamos de musselina negra. Como sempre, ela calçava sapatos de bico fino e saltos altos como paralelepípedos, sem nem com isso conseguir chegar a altura dos ombros do marido.


— Paola, Paola, exclamou ela, sem tentar esconder seu prazer em ver a filha única. — Estou muito contente que tenha finalmente conseguido trazer Guido com você. Ela parou de falar um instante para beijar ambos. — Gosto muito de ver vocês aqui e não apenas no Natal e por ocasião daqueles horríveis fogos de artifício. A condessa não tinha papas na língua.

— Vamos, disse o Conde, — Vou lhe dar algo para beber, Guido.

— Obrigado, respondeu este, se dirigindo em seguida a Paola e à sogra. — Querem que traga alguma coisa?

— Não, não. Mamma e eu vamos tomar um copo daqui a pouco.


O conde Falier atravessou o salão com Brunetti, parando de vez em quando para trocar um cumprimento ou algumas palavras com um ou outro convidado. No bar, ele pediu champanhe para si mesmo e um uísque para o genro. Quando ele ofereceu o copo a Brunetti, perguntou:


— Imagino que está aqui a serviço, não é?

— Sim, é, respondeu Brunetti, satisfeito com a franqueza do outro.

— Ótimo, então não perdi meu tempo.

— Não estou entendendo muito bem... Disse Brunetti. O conde fez um aceno a uma mulher enorme que acabara de se instalar na frente do piano.

— Paola me falou que você está trabalhando nessa história do Wellauer. Não é bom para a cidade um crime como esse. Ao falar, o conde não podia reprimir uma expressão de desaprovação para com um regente que se deixou matar, principalmente na temporada das recepções sociais. — De qualquer modo, quando Paola nos disse que vocês dois queriam vir à recepção, telefonei para algumas pessoas. Imaginei que você gostaria de saber alguma coisa sobre a situação financeira do maestro.

— Sim, tem razão. Será que existia alguma informação que o conde não pudesse conseguir, bastando para isso pegar o telefone e discar o número certo? — Posso saber o que descobriu?

— Ele não era tão rico como se pensava.


Brunetti esperou que aquilo fosse traduzido em números que fizessem algum sentido para ele. Não havia dúvida de que ele e o conde tinham conceitos muito diferentes do que constituía riqueza.


— O conjunto de seu patrimônio, carteira de ações e bens imóveis, com certeza não ultrapassa os dez milhões de marcos. Ele tem quatro milhões de francos na Suíça, depositados em um banco de Lugano, mas duvido que a receita federal alemã tenha ouvido falar disso. Enquanto Brunetti estava calculando que levaria cerca de trezentos e cinquenta anos para ganhar aquela soma, o conde acrescentou: — O que ganhava com gravações e apresentações lhe rendia pelo menos três a quatro milhões de marcos por ano.

— Entendo, disse Brunetti. — E o testamento?

— Não consegui obter uma cópia dele, se desculpou o conde. Como o homem morrera havia apenas dois dias, Brunetti concluiu que aquilo não era uma falha grave. — Mas os bens vão ser divididos igualmente entre os filhos do maestro e sua mulher. Fala-se, porém, que ele tentou entrar em contato com seus advogados poucas semanas antes de morrer; ninguém sabe por quê, e pode não ter nada a ver com o testamento.

— O que quer dizer com ‘tentou entrar em contato’?

— Ele ligou para o escritório de seus advogados em Berlim, mas ao que parece a ligação estava ruim, e ele não ligou mais.

— Alguma das pessoas com quem falou revelou algo sobre a vida pessoal de Wellauer?


O copo que o conde estava levando à boca parou de forma tão súbita que um pouco do líquido claro caiu na lapela de seu smoking. Ele fitou Brunetti atônito, como se todas as reservas que tivera em relação ao genro durante quase vinte anos acabassem de se mostrar justificadas.


— O que acha que eu sou? Um espião?

— Desculpe-me, disse Brunetti, oferecendo ao conde o lenço para enxugar a lapela. — É o trabalho. Eu esqueci.

— Entendo, concordou o conde, embora a inflexão de voz não indicasse nenhuma aprovação. — Vou ver se encontro Paola e a mãe. Ele se afastou levando o lenço de Brunetti, o qual imaginou que seria lavado, engomado e passado, e mandado de volta por um portador especial.


Brunetti se afastou do bar e mergulhou no mar de gente para também procurar sua mulher. Ele conhecia muitos dos que estavam no salão, porém de forma indireta. Embora nunca tivesse sido apresentado à maioria deles, sabia de seus escândalos, de suas histórias, de seus negócios e de seus casos, Isso em parte por ser policial, em parte por morar numa cidade provinciana onde o mexerico era uma verdadeira religião e onde, se o cristianismo não fosse a religião oficial, se renderia culto ao deus Boato. Durante os mais de cinco minutos que levou para achar Paola, cumprimentou muitas pessoas e recusou convites para tomar mais um drinque. A condessa sumira; seu marido com certeza a advertira do risco de contaminação moral que havia na sala. Quando Paola veio ao seu encontro, tomou-o pelo braço e cochichou em seu ouvido.


— Encontrei o que você está procurando.

— Uma maneira de sair daqui? Disse ele, mas só para si mesmo. Com ela, ele se continha um pouco. — O que é?

— A encarnação da própria fofoca. Estudamos juntos na universidade.

— Quem? Onde? Perguntou Brunetti, se interessando pelos convidados pela primeira vez naquela noite.

— Ele está ali adiante, na porta que dá para a sacada.


Paola cutucou-o com o cotovelo e apontou com o queixo um homem que estava do outro lado da sala, na janela francesa central que dava para o canal. O homem parecia ter a mesma idade de Paola, embora desse a impressão de ter tido muito mais dificuldade para chegar a ela. A essa distância, tudo o que Brunetti conseguia ver era uma barba curta, já um tanto grisalha, e um casaco preto que parecia ser de veludo.


— Vamos, vou apresentá-lo a você. Para encorajá-lo, ela puxou Brunetti pelo braço e atravessou o salão para ir ao encontro do homem. Este sorriu quando viu Paola se aproximando. Seu nariz era chato, como se tivesse sido quebrado, e os olhos eram tristes, como se seu coração tivesse tido o mesmo destino. Ele parecia um estivador que escrevesse poesia.

— Ah, a encantadora Paola, disse ele quando ela se aproximou. Passou o copo em que estava bebendo para a mão esquerda, tomou com a direita a mão de Paola e se inclinou para beijar o ar um pouco acima desta. — E este, disse, se voltando para Brunetti, — Deve ser o famoso Guido, de quem todos nos cansamos de ouvir falar durante muito mais tempo do que me parece discreto lembrar. Ele tomou a mão de Brunetti e apertou-a firmemente, sem tentar disfarçar o olhar atento com que o examinava.

— Pare com isso, Dami. E pare de olhar para Guido como se ele fosse uma pintura.

— Força do hábito, meu tesouro, examinar e esmiuçar tudo o que olho. A próxima coisa a fazer será tirar o terno dele e tentar descobrir a etiqueta.


Nada disso fazia sentido para Brunetti, cuja confusão devia ser evidente para os outros dois, porque o homem se apressou a explicar.


— Pelo que vejo, Paola nunca vai nos apresentar, e com certeza ela preferiu guardar segredo sobre nosso passado comum. Antes que Brunetti tivesse tempo de responder a essa insinuação, ele continuou. — Sou Demetriano Padovani, ex-colega de classe de sua bela esposa e atualmente crítico de arte. Ele fez uma pequena mesura.


Para Brunetti, assim como para muitos italianos, aquele nome era familiar. Ele era o brilhante crítico de arte do momento, o terror dos pintores e dos diretores de museus. Paola e Brunetti liam seus artigos deliciados, entretanto este não sabia que eles tinham estudado juntos na universidade. O outro homem pegou mais um copo da bandeja de um garçom que ia passando.


— Devo pedir desculpas a você, Guido, — Se é que posso tomar a liberdade de chamá-lo de Guido já no primeiro encontro e tratá-lo por você, sinal de uma crescente promiscuidade linguística e social , e confessar que passei anos odiando-o. O embaraço de Brunetti diante dessa observação lhe causava evidente prazer. — Naqueles tempos negros em que éramos estudantes e todos estávamos desesperadamente apaixonados por sua Paola, todos morríamos de ciúmes e, admito, amaldiçoava aquele Guido que parecia ter descido das estrelas para roubar o coração da nossa adorada Paola. Primeiro, ela queria saber tudo sobre ele, depois entrou na fase do ‘Será que ele vai me convidar a tomar um café?’, que logo se transformou em ‘Você acha que ele gosta de mim?’, até que todos nós, apesar de loucos de amor por aquela cabeça-de-vento, estávamos a ponto de estrangulá-la e jogá-la num canal numa noite sombria, só para nos livrar do sinistro incubo Guido e poder nos preparar tranquilamente para as provas. Deliciando-se com o óbvio constrangimento de Paola, ele continuou. — E aí ela se casou com ele. Isto é, com você. Para grande satisfação nossa, pois nada é tão eficiente contra os loucos excessos do amor... Aqui ele fez uma pausa para tomar um gole da bebida, acrescentando em seguida: — ...Como o casamento. Contente por ter feito Paola corar e Brunetti olhar em volta procurando mais um copo de bebida, Padovani continuou. — Foi realmente muito bom que tenha casado com ela, Guido, senão nenhum de nós conseguiria ser aprovado, tal era nossa paixão pela garota.

— Foi o único motivo que me levou a casar com ela, respondeu Guido. Padovani entendeu.

— E por essa caridade que você nos fez, me deixe oferecer-lhe um drinque. O que você gostaria de beber?

— Uísque para nós dois, respondeu Paola. — Mas volte logo. Quero falar com você, acrescentou.


Padovani baixou a cabeça numa submissão fingida e se lançou à perseguição de um garçom, deslizando majestosa e polidamente como um iate enquanto abria caminho através da multidão. Logo ele estava de volta, com três copos nas mãos.


— Você continua escrevendo para L’Unitá? Perguntou Paola quando ele lhe passou o drinque.


Ao ouvir o nome do jornal, Padovani enfiou a cabeça entre os ombros e lançou em torno de si olhares conspiratórios, com fingido terror. Ele fez um psiu teatral, sinalizando para que eles se aproximassem mais. Num murmúrio, ele lhes disse:


— Não ousem pronunciar o nome desse jornal nesta sala, senão o seu pai vai mandar os criados me expulsarem da casa. Embora o tom de voz de Padovani não deixasse dúvida de que estava brincando, Brunetti desconfiou que ele estava muito mais perto da verdade do que imaginava.


O crítico se endireitou completamente, sorveu um pouco de sua bebida e assumiu um tom de voz quase declamatório.


— Paola, minha querida, será possível que você tenha abandonado seus ideais de juventude e já não leia a voz proletária do Partido Comunista? Desculpe-me, ele se corrigiu, o partido da esquerda democrática? Cabeças se voltaram quando se ouviu aquele nome, mas ele continuou. — Deus do céu, não me diga que você passou a aceitar a sua época e que começou a ler o Corriere ou, pior ainda, La Repubblica, o resmungo da classe média disfarçado de resmungo da classe baixa?

— Não, nós lemos L’Osservatore Romano, disse Brunetti, nomeando o órgão oficial do Vaticano, que ainda continuava a condenar o divórcio, o aborto e o mito pernicioso da igualdade da mulher.

— Quanta sabedoria da parte, de vocês, disse Padovani, com voz melíflua. — No entanto, visto que vocês leem essas gloriosas páginas, desconhecem que eu sou, embora humildemente, a voz do julgamento artístico para as massas combatentes. Ele baixou um pouco a voz e continuou, imitando perfeitamente as vozes pomposas dos noticiaristas da RAI anunciando a queda do último governo. — Sou o representante do operário clarividente. Em mim, vocês veem o crítico de voz rude e de dedo sujo que busca os valores da verdadeira arte proletária em meio ao caos moderno. Padovani inclinou a cabeça num mudo cumprimento a alguém que passava e continuou. — É uma pena que vocês não conheçam meu trabalho. Talvez eu possa enviar cópias dos meus artigos mais recentes. Pena que eu não os traga comigo, mas imagino que mesmo os gênios devem mostrar uma certa humildade, por mais espúria que seja. Eles começaram a se divertir com aquilo, por isso ele continuou. — Um dos que mais gosto, entre meus trabalhos recentes, é um artigo que escrevi no mês passado sobre uma exposição de arte cubana contemporânea, sabem como é, tratores e abacaxis sorridentes. Fez uma careta de desespero até que conseguiu lembrar as palavras exatas de seu comentário. — Eu elogiei, como posso chamá-la, a maravilhosa simetria de suas formas refinadas e sua integridade intencional. Ele se inclinou para frente e cochichou no ouvido de Paola, mas tão alto que Brunetti não teve nenhuma dificuldade em ouvir. — Tirei isso de outro que escrevi há dois anos sobre blocos de madeira poloneses, em que elogiei, se não me falha a memória, “a refinada simetria das formas intencionais”.

— E você vai para o trabalho assim? Perguntou Paola olhando para seu casaco de veludo.

— Você está a mesma deliciosa malvada de sempre, Paola. Ele sorriu, se inclinando para beijá-la levemente no rosto. — Porém, para responder a sua pergunta, meu anjo, não, não acho que seja conveniente levar esses trajes ostentatórios ao reduto da classe operária. Eu uso uma roupa mais adequada, isto é, calças horríveis que seriam recusadas até pelo marido de minha empregada e um casaco que meu sobrinho ia dar aos pobres. Também não costumo, disse ele, levantando a mão para evitar qualquer interrupção ou pergunta, — Ir para lá de Maserati. Acho que isso seria uma enorme falta de gosto; além disso, é muito difícil encontrar estacionamento em Roma. Eu resolvi o problema, por algum tempo, pedindo emprestado o Fiat de minha empregada para ir ao trabalho. Mas então o carro começou a se encher de multas, e eu perdi horas levando o comissário de polícia para almoçar para ver se eles davam um jeito nelas. Por isso, agora eu simplesmente pego um táxi de minha casa e desço bem perto do trabalho, onde entrego meu artigo semanal, falo raivosamente sobre justiça social, saio e vou a uma pequena pasticceria adorável, onde me delicio com belas massas. Depois vou para casa e fico jiboiando na banheira e lendo Proust. E é assim que, continuou ele, — Tanto de um lado como de outro, a verdade é escamoteada. Era uma citação de um soneto de Shakespeare, um dos textos aos quais ele dedicou sete anos para se graduar em Literatura Inglesa em Oxford. — Mas você deve estar querendo alguma coisa, alguma informação, caríssima Paola, disse Padovani com uma franqueza um tanto destoante, ou pelo menos destoante do personagem que ele estava interpretando. — Primeiro seu próprio pai telefona e me convida para esta festa, depois você gruda em mim feito um carrapato, e duvido que fizesse isso a menos que quisesse me pedir alguma coisa. E como o divino Guido está aqui com você, muito provavelmente o que você está querendo é informação. E como sei exatamente o que Guido faz para ganhar a vida, só posso imaginar que tem algo a ver com o escândalo que abalou nossa bela cidade, depois de ter emudecido o mundo da música, tirando da face do planeta a “Nasty Piece Of Work”. O uso da expressão em inglês teve o efeito desejado de deixar os outros dois atônitos. Ele cobriu a boca com a mão e deu um risinho de pura satisfação.

— Oh, Dami, você sabia. Por que não nos disse nada? Embora Padovani respondesse com voz firme, Brunetti notou que seus olhos brilhavam, talvez por efeito do álcool, talvez por algum outro motivo. Mas pouco importava aquilo, contanto que ele explicasse seu último comentário. — Vamos, disse Paola. — Das pessoas que conheço, você é a única que pode saber alguma coisa sobre ele. Padovani lhe lançou um olhar neutro.

— E você espera que eu conspurque a memória de um homem que ainda não esfriou em seu túmulo? “Pelo visto”, pensou Brunetti, aquilo só poderia divertir ainda mais Padovani.

— Estou surpresa de que você tenha esperado tanto tempo para isso, disse Paola. Padovani deu a esse comentário a atenção que ele merecia.

— Você tem razão, Paola. Vou lhe contar tudo, — Isto é, se o encantador Guido trouxer para nós três drinques enormes. Se ele não fizer isso agora mesmo, vou começar a praguejar contra o tédio previsível ao qual seus pais mais uma vez me submeteram; e não só a mim, noto com espanto, mas a metade das pessoas mais famosas da cidade. Então, se voltando para Brunetti: — Ou, melhor ainda, Guido, se você conseguir uma garrafa inteira, nós três poderemos nos refugiar numa das muitas salas mal decoradas que, infelizmente, existem na casa de seus sogros. Entretanto, ele não tinha terminado e se voltou para Paola. — E lá, você, usando o charme de sua beleza, e seu marido, seus horríveis métodos policiais, poderão extrair de mim a feia, suja e desagradável verdade. Depois do quê, se você desejar, ou talvez, ele fez uma pausa e fitou longamente Brunetti, — Vocês dois, poderão conseguir o que quiserem de mim.


Ah, então é isso, compreendeu de repente o policial, surpreso de ter ignorado todas as pistas. Paola lançou a Brunetti um olhar de advertência totalmente desnecessário. Ele gostava dos exageros daquele sujeito. E não tinha dúvidas de que o convite, ainda que feito daquela forma brutal, era absolutamente sincero; não havia nenhum motivo para se irritar. Brunetti saiu, como lhe fora sugerido, para tentar conseguir uma garrafa de uísque. Algo que podia dar uma ideia da hospitalidade do conde ou da negligência dos empregados foi o fato de que bastou pedir para que lhe dessem uma garrafa de Glenfiddich. Quando ele voltou, encontrou-os de braços dados, cochichando feito conspiradores. Padovani pediu que Paola se calasse e explicou a Brunetti:


— Eu estava perguntando a ela se, caso eu tivesse cometido um crime hediondo, como dizer à mãe dela o que penso das cortinas, você iria me levar à polícia e me bater até eu confessar.

— Como você acha que consegui isto? Perguntou Brunetti, exibindo a garrafa. Padovani e Paola sorriram.

— Leve-nos, Paola, ordenou o escritor, — A um lugar onde possamos nos deliciar com isto, ou então, olhando Brunetti pelo canto dos olhos, — Um com o outro. Sempre prática, Paola disse:

— Podemos usar a sala de costura, e saiu com eles do salão principal, passando por uma série de pesadas portas duplas. Então, como Ariadne, ela os levou sem hesitações por um corredor, dobrou à esquerda, entrou em outro, passou pela biblioteca, chegando finalmente a uma sala menor, na qual havia um grande número de poltronas cobertas de delicados brocados e dispostas em semicírculo diante de um enorme aparelho de televisão.

— Sala de costura? Perguntou Padovani.

— Antes de Dinastia, explicou Paola. Padovani se deixou cair na poltrona mais ampla da sala e pôs os pés calçados com couro de qualidade sobre a mesa entalhada.

— Right, darling, shoot, disse ele em inglês, sem dúvida por causa da mera presença da televisão. Como nenhum dos dois lhe perguntou nada, ele os encorajou. — O que vocês querem saber sobre o falecido Wellauer, homem cuja morte, pelo que sei, ninguém lamenta?

— Quem poderia querer vê-lo morto? Perguntou Brunetti.

— Você é muito direto, não é? Não é de estranhar que Paola tenha capitulado com uma rapidez assustadora. Mas para responder a sua pergunta eu precisaria ter um verdadeiro catálogo telefônico. Ele parou de falar por um instante e levantou o copo para que pusessem uísque. Brunetti encheu o copo, pôs também no seu e um pouco menos no de Paola. — Você quer que eu vá contando na ordem cronológica, ou talvez por nacionalidade, ou em função do tipo de voz ou preferências sexuais? Ele pôs o copo no braço da poltrona e continuou, devagar. — O nosso Wellauer não nasceu ontem, e as razões pelas quais as pessoas o odiavam são tão antigas quanto ele. Você deve ter ouvido a história de que ele foi nazista na época da guerra. Era impossível para ele fazê-los parar; por isso, como bom alemão que era, simplesmente os ignorou. E ninguém pareceu se importar com isso. De modo algum. De resto, ninguém se preocupa muito mesmo, não é? Vejam o caso de Waldheim.

— Ouvi boatos a respeito disso, disse Brunetti. Padovani sorveu um pouco do uísque, pensando em como articular o que tinha a dizer.

— Muito bem, que tal dividirmos por nacionalidade? Há pelo menos três americanos cujos nomes posso declinar, dois alemães e uma meia dúzia de italianos que ficariam felizes em vê-lo morto.

— Mas isso não quer dizer que eles o mataram, disse Paola.


Padovani aquiesceu, plenamente de acordo. Livrou-se dos sapatos e sentou sobre as plantas dos pés com as pernas dobradas e os joelhos separados. Ele podia querer criticar o gosto da duquesa, mas por nada neste mundo sujaria seu brocado.


— Wellauer foi nazista. Não há dúvida sobre isso. Sua segunda mulher se suicidou, o que deve merecer sua atenção. A primeira o deixou depois de sete anos e, ainda que fosse filha de um dos homens mais ricos da Alemanha, Wellauer lhe concedeu uma generosa pensão. Na época se falou que ele se entregava a práticas sexuais repugnantes, mas isso, continuou ele, tomando mais uma golada de uísque, — Foi numa época em que se pensava haver práticas sexuais que pudessem ser repugnantes. Antes que vocês perguntem: não, não sei que práticas sexuais eram.

— Você nos diria se soubesse? Perguntou Brunetti. Padovani deu de ombros.

— Agora falemos do lado profissional. Ele praticou a chantagem sexual de forma notória. A lista de sopranos e meios-sopranos que cantaram para ele pode lhes dar uma ideia: brilhantes jovens desconhecidas que de repente conseguiam o papel de Tosca ou de Dorabella, e desapareciam com a mesma rapidez. Ele era tão competente que lhe permitiam essas fraquezas. Além disso, muitas pessoas não sabem distinguir uma grande cantora de uma cantora competente, de forma que poucos perceberam e não houve uma perda lastimável com isso. E temos que lhe creditar o fato de que, pelo menos, todas eram cantoras competentes. Umas poucas chegaram a se tornar grandes cantoras, mas provavelmente teriam conseguido isso sem ele.


Para Brunetti, aquilo não parecia suficiente para levar a um homicídio.


— Aqui temos as carreiras que ele estimulou, mas há outras tantas que ele contribuiu para arruinar, especialmente entre os que partilham minhas preferências sexuais e... Acrescentou, tomando mais um pouco de uísque, — ...De mulheres que não gostam de homens. O finado maestro era incapaz de acreditar não ser capaz de exercer atração sobre alguma mulher. Se eu fosse você, ia investigar o aspecto sexual. A resposta pode não estar nisso, mas pode ser um bom ponto de partida. Contudo, disse ele, apontando com o copo o enorme aparelho de televisão, — Isso pode ser apenas o resultado da superexposição a essa coisa aí.


Padovani pareceu ter se dado conta de quão insatisfatórias foram àquelas informações, por isso acrescentou:


— Na Itália, há pelo menos três pessoas que tinham boas razões para odiá-lo. Um está cantando no coro da Bari Opera Company. Ele poderia ter se tornado um importante barítono verdiano se não tivesse, nos horríveis anos sessenta, cometido o erro de não se preocupar em esconder do maestro suas preferências sexuais. Ouvi falar que ele chegou a se insinuar para o próprio maestro, mas não acredito que alguém pudesse ser estúpido a esse ponto. Deve ser pura invenção. Seja lá por que tenha sido, o fato é que Wellauer, pelo que dizem, soprou seu nome a um colunista amigo seu e este logo começou a escrever uns artigos. É por isso que agora ele está cantando em Bari, no coro. O segundo dá aulas de teoria musical no conservatório de Palermo. Não sei bem o que aconteceu entre eles, mas ele era um maestro que recebia excelente cobertura da mídia. Isso foi há uns dez anos, porém sua carreira murchou após uma série de artigos devastadores. Neste caso, reconheço, não tenho informações de primeira mão, mas se fala que Wellauer tem algo a ver com os artigos desfavoráveis. Quanto à terceira pessoa, sua lembrança só desperta um eco distante em minha mente de comadre, mas está ligada a alguém que mora aqui. Ao ver a surpresa de seus interlocutores, se apressou em se corrigir. — Não, não aqui no palazzo. Em Veneza. Mas dificilmente ela estaria em condições de fazer alguma coisa, pois deve estar na casa dos oitenta anos e dizem viver reclusa. E não tenho certeza de saber a versão correta da história, nem mesmo de me lembrar dela. Quando percebeu o olhar de Paola, levantou o copo à guisa de desculpa e explicou: — É esta droga aqui. Destrói os neurônios. Ou os come.


Ele fez girar o líquido dentro do copo, observando as pequenas ondas que criava, esperando que elas gerassem a maré da memória.


— Vou lhes contar o que lembro ou o que penso que lembro. Seu nome é Clemenza Santina. Como nenhum dos dois deu mostras de conhecer esse nome, Padovani explicou: — Ela era uma das sopranos mais famosas pouco antes da guerra. Aconteceu com ela o mesmo que aconteceu com Rosa Ponselle na América, descobriram-na quando cantava num music-hall com suas duas irmãs e poucos meses depois estava cantando no La Scala. Era uma dessas vozes naturais e perfeitas que surgem muito poucas vezes a cada século. No entanto, ela nunca gravou nada, por isso a única lembrança que temos dela é o que as pessoas ouviram, o que elas recordam. Ele percebeu a crescente impaciência do casal e voltou ao assunto. — Houve alguma coisa entre ela e Wellauer, ou entre ele e uma das irmãs dela. Não consigo lembrar o que foi, nem quem me contou, mas ela teria tentado matá-lo, ou o teria ameaçado disso. Ele agitou o copo no ar e Brunetti percebeu o quanto o homem estava bêbado. — De qualquer modo, acho que alguém foi morto ou morreu, ou talvez tenha havido só uma ameaça. Talvez amanhã de manhã eu me lembre. Ou talvez não seja importante.

— Por que você se lembrou dela? Perguntou Brunetti.

— Porque ela fez o papel de Violleta com ele. Antes da guerra. Alguém com quem conversei, não me lembro quem, me disse que tentaram entrevistá-la há pouco tempo... Deixem-me pensar um minuto. Mais uma vez ele consultou o copo, e mais uma vez a lembrança voltou numa grande golada de uísque. — Narciso. Foi ele. Ele estava fazendo uma matéria sobre as grandes cantoras do passado e foi procurá-la, mas ela se recusou a falar com ele, e não foi nada gentil. Nem ao menos abriu a porta, acho que ele falou isso. E aí ele me contou a história que ouviu do caso entre ela e Wellauer, antes da guerra. Em Roma, acho.

— Ele disse onde ela mora?

— Não, não disse. Mas posso ligar para ele amanhã de manhã e perguntar.


Efeito do álcool ou da conversa, que já se arrastava por muito tempo, o fato é que Padovani ia perdendo rapidamente a sua verve. Sob os olhos de Brunetti, o estilo afetado e enfatuado foi murchando, e finalmente ele se tornou um homem de meia-idade com uma barba espessa e um começo de barriga, sentado sobre os próprios pés, mostrando um pouco da panturrilha acima das meias de seda pretas. Paola parecia cansada ou simplesmente já não aguentava mais ter que sustentar aquele nível de sarcasmo universitário de seu ex-colega de turma? O próprio Brunetti parecia ter chegado àquele ponto de equilíbrio em que, se continuasse a beber, não tardaria a ficar um pouco alto e alegre, e, se parasse, logo voltaria a ficar sóbrio e com uma disposição de espírito mais sombria. Decidindo-se pela segunda opção, pôs o copo no chão embaixo da cadeira, certo de que seria encontrado, antes do amanhecer, por algum criado que estivesse fazendo uma ronda. Paola também largou o copo e deslizou para o canto do sofá. Ela olhou para Padovani, esperando que se mexesse, mas ele fez um sinal para que se fossem. Ele pegou a garrafa da mesa e pôs uma boa dose no copo.


— Vou terminar de beber isto antes de voltar para a festa. Brunetti se perguntava se se aborrecera com a conversa tanto quanto Paola parecia ter se aborrecido. Os três trocaram mais alguns ditos espirituosos, e Padovani prometeu ligar na manhã seguinte, se conseguisse o endereço da soprano.


Paola conduziu Brunetti de volta às luzes e à música, através do labirinto do palazzo. Quando eles entraram no salão principal, notaram que chegara mais gente e que a música aumentara de volume, acompanhando o ritmo das conversas. Brunetti olhou em volta, morto de tédio só de olhar aquelas pessoas bem vestidas, bem nutridas, bem-educadas. Notou que Paola adivinhava seus sentimentos e estava prestes a sugerir que fossem embora, quando reconheceu uma pessoa. Perto do bar, com um copo numa mão e um cigarro na outra, estava a médica que examinara o corpo de Wellauer, declarando-o morto. Na ocasião, Brunetti se perguntara como alguém vestido de jeans conseguira chegar à plateia. Esta noite ela estava vestida da mesma forma, calças cinza e um casaco preto, com uma evidente despreocupação com a própria aparência que Brunetti consideraria impossível numa mulher italiana. Disse a Paola que vira uma pessoa com quem queria falar e ela respondeu que iria procurar os pais para agradecê-los pela festa. Eles se separaram, e Brunetti atravessou o salão para falar com a médica cujo nome esquecera. Ela não procurou esconder que o reconhecera e que se lembrava dele.


— Boa noite, comissário, disse ela quando Brunetti se aproximou.

— Boa noite, doutora, respondeu ele, acrescentando, como se os dois já tivessem cumprido suficientemente as regras da etiqueta: — Meu nome é Guido.

— E o meu é Bárbara.

— Como esta cidade é pequena, comentou ele. Assim formulado, esse comentário banal permitia que ele, um homem formal, evitasse ter que escolher entre tratá-la intimamente por você ou formalmente por senhora.

— Mais cedo ou mais tarde, todo mundo encontra todo mundo, ela concordou, evitando com a mesma habilidade se dirigir diretamente a ele. Resolvendo-se por um formal a senhora, ele disse:

— Desculpe-me por não ter agradecido à senhora pela ajuda naquela noite. Ela deu de ombros.

— Meu diagnóstico estava certo?

— Sim, respondeu ele, se perguntando como a médica poderia ter deixado de ler sobre aquilo todos os dias nos jornais da cidade. — Estava no café, como a senhora disse.

— Foi a impressão que tive. Mas devo confessar que reconheci o cheiro só por causa dos livros de Agatha Christie.

— Eu também. Foi a única vez que senti o cheiro na vida real. Os dois fingiram não notar o quão inadequado era este último termo. Ela apagou o cigarro no vaso de uma palmeira do tamanho de uma laranjeira.

— Como se pode conseguir a droga? Perguntou ela.

— É o que eu queria lhe perguntar, doutora. Ela pensou um pouco.

— Numa farmácia, num laboratório, mas tenho certeza de que a substância é controlada.

— É e não é. Sendo italiana, ela entendeu imediatamente.

— Quer dizer que pode desaparecer e ninguém informar o desaparecimento ou nem se dar conta disso?

— Sim, acho que sim. Um dos meus homens está verificando nas farmácias da cidade, mas nunca poderíamos checar todas as fábricas de Marghera ou de Mestre.

— Ele serve para revelar filmes, não é?

— Sim, e entra também na composição de alguns produtos petroquímicos.

— Em Marghera há droga bastante para manter seu homem ocupado.

— Receio que por muitos dias, admitiu ele. Notando que a bebida dela acabara, ele perguntou se queria que lhe servisse outra.

— Não, obrigada. Acho que já bebi bastante do champanhe do conde por esta noite.

— A senhora já veio a outras recepções aqui? Perguntou ele francamente curioso.

— Sim, algumas vezes. Ele sempre me convida e quando estou livre procuro vir.

— Por quê? A pergunta escapou antes que ele tivesse tempo de pensar.

— Ele é meu paciente.

— A senhora é médica dele? Brunetti estava surpreso demais para disfarçar sua reação. Ela sorriu. E, o que era mais significativo, seu riso era absolutamente natural, sem sombra de ressentimento.

— Se ele é meu paciente, pode se concluir que sou a médica dele. Ela abrandou o tom de voz. — Meu consultório é logo do outro lado do campo. A princípio, eu era médica dos criados do conde. Um ano e meio atrás, porém, encontrei-o quando vim visitar um deles, e começamos a conversar.

— Sobre o quê? Brunetti estava espantado só em pensar na possibilidade de o conde fazer coisas banais como conversar, principalmente com uma pessoa tão despretensiosa como aquela jovem.

— Da primeira vez, falamos sobre a criada, que estava com gripe, mas quando voltei, não sei por que começamos a falar sobre poesia grega. E isso levou a uma discussão, se não me falha a memória, sobre os historiadores gregos e romanos. O conde tem uma predileção especial por Tucídides. Como frequentei o curso clássico, pude falar sobre o assunto sem me expor ao ridículo, e o conde chegou à conclusão de que eu devia ser uma boa médica. Agora ele aparece de vez em quando em meu consultório e conversamos sobre Tucídides e Estrabão. Ela se encostou na parede e cruzou os pés. — Ele se parece muito com outros pacientes meus. Eles vêm me falar de doenças que não têm e de dores que não sentem. A conversa do conde é mais interessante, mas acho que não há nenhuma diferença importante entre eles. Ele é solitário e idoso como eles, e como eles precisa de alguém com quem conversar.


Brunetti ficou mudo diante daquele comentário sobre o conde. Solitário? Um homem que podia pegar o telefone e ter acesso às informações confidenciais de um banco suíço? Um homem capaz de conhecer os termos de um testamento mesmo antes de o morto ser enterrado? Solitário a ponto de sentir necessidade de ir conversar sobre historiadores gregos com sua médica?


— Às vezes ele também fala do senhor, ela revelou. — Sobre todos de sua casa.

— E mesmo?

— Sim. Ele tem fotografias de todos na carteira. Ele já me mostrou muitas vezes. Sua, de sua esposa, das crianças.

— Por que está me dizendo isso, doutora?

— Como lhe disse, ele é um velho solitário. E é meu paciente, portanto procuro fazer o que posso para ajudá-lo.

— Doutora, a senhora costuma aceitar pacientes particulares? Se ela percebeu aonde aquela conversa iria parar, não deu mostras disso.

— A maioria dos meus pacientes é do sistema público de saúde.

— Quantos pacientes particulares tem a senhora, doutora?

— Acho que isso não lhe diz respeito, comissário.

— Não, acho que não, reconheceu Brunetti. — A senhora responderia a uma pergunta sobre suas opiniões políticas? Essa era uma questão que, na Itália, ainda tinha algum significado, pois os partidos então não eram todos cópias uns dos outros.

— Sou comunista, naturalmente, ainda que o rótulo tenha mudado.

— E a senhora aceita como paciente um dos homens mais ricos de Veneza?

— Claro, por que não deveria fazer isso?

— Acabei de lhe dizer. Porque ele é um homem riquíssimo.

— E o que isso tem a ver com o fato de eu aceitá-lo ou não como cliente?

— Eu pensei que...

— Que eu tinha que recusá-lo como cliente porque ele é rico e pode ter médicos melhores? É isso o que o senhor quer dizer, comissário? Disse a médica, sem fazer nenhum esforço para disfarçar a raiva. — Isso não é apenas uma ofensa pessoal, trai uma visão simplista do mundo. Acho que nada disso me surpreende. A última afirmação fez Brunetti se perguntar sobre o que o conde falara sobre ele em suas conversas com a médica.


Ele sentiu que havia perdido todo o controle da conversa. Não queria ofender, não queria insinuar que o conde poderia ter médicos melhores. Surpreendia-lhe o fato de o conde tê-la aceito.


— Doutora, por favor, disse ele, levantando a mão. — Desculpe-me, mas o mundo onde trabalho é um mundo simplista. Há gente boa... Ela estava ouvindo, por isso ele ousou acrescentar, com um sorriso: — ...Como nós. Ela teve a cortesia de corresponder ao sorriso. — E há pessoas que violam a lei.

— Estou entendendo, disse ela, mas ainda com a mesma raiva. — E isso nos dá o direito de dividir o mundo em dois grupos, aquele a que pertencemos e aquele em que estão todos os demais? E eu tenho que cuidar das pessoas que têm a mesma posição política que eu e deixar os outros morrerem? O senhor dá a impressão de ver as coisas como num filme de caubói, os mocinhos e os bandidos, não havendo a menor dificuldade em distinguir uns e outros. Procurando se defender, Brunetti disse:

— Eu não disse que lei, disse apenas a lei.

— Em sua visão de mundo não existe apenas uma lei, a lei do Estado? Seu desprezo era franco, e ele esperava que fosse pela lei do Estado, e não por ele.

— Não, não acho, respondeu ele. Ela ergueu as mãos.

— Se agora vamos tirar Deus de seu sossego no céu para enfiá-lo na conversa, vou pegar um pouco mais de champanhe.

— Não, me permita... Disse ele, lhe tirando o copo da mão. Logo Brunetti voltou com um novo copo de champanhe e um pouco de água mineral para ele mesmo. A médica aceitou o champanhe e lhe agradeceu com um sorriso absolutamente amistoso e normal. Ela bebericou um pouco.

— E essa sua lei? Ela disse isso com um interesse tão sincero e com tal falta de rancor que o incidente de há pouco parecia esquecido. De ambas as partes, pensou ele.

— Não há dúvida de que a nossa lei é insuficiente, principiou ele, se surpreendendo em se ver falando aquilo, pois dedicara toda a sua carreira a defendê-la. — Precisamos de uma mais humana, ou talvez mais compassiva. Ele parou, pensando em como se sentia idiota em dizer aquilo. E, o que era pior, em acreditar no que dizia.

— Seria realmente maravilhoso, disse ela com uma candura que o fez imediatamente desconfiar. — Mas isso não iria interferir na sua profissão? Afinal de contas, o seu trabalho é fazer cumprir a outra lei, a lei do Estado.

— Na verdade, elas são uma só. Percebendo como aquilo soava ainda mais estúpido e sem sentido, ele acrescentou: — Normalmente.

— Mas não sempre?

— Não, nem sempre.

— E quando não são?

— Tento descobrir o ponto de intercessão em que elas coincidem.

— E se não coincidirem?

— Então eu faço o que tenho que fazer. Ela deu uma gargalhada tão espontânea que ele riu também, se dando conta de como sua atitude parecia com a de John Wayne antes de partir para o tiroteio final.

— Peço desculpas por ter lhe armado uma cilada, Guido. De verdade. Se isso lhe servir de consolo, afirmo que é o mesmo tipo de decisão que nós, médicos, temos que tomar, embora nem sempre seja assim, quando aquilo que pensamos ser o certo não coincide com o que a lei diz que é.


Ele foi salvo, ambos foram, por Paola, que se aproximou deles e lhe perguntou se estava pronto para ir embora.


— Paola, disse ele, se voltando para apresentá-la à outra mulher. — Esta é a médica de seu pai, disse ele, esperando surpreendê-la.

— Oh, Barbara, exclamou Paola. — Fico muito contente em conhecê-la. Meu pai fala de você o tempo todo. Lamento só tê-la conhecido agora.


Brunetti ficou observando e ouvindo-as falar, admirado da facilidade com que as mulheres conseguem demonstrar que se gostam, de sua extraordinária confiança recíproca, já no primeiro encontro. Unidas pela mesma preocupação pelo homem que ele sempre achou frio e distante, essas duas mulheres estavam conversando como se já se conhecessem há anos. Não havia nada daquela agressiva cobrança moral que marcara sua conversa com a médica. Ela e Paola tinham feito uma espécie de avaliação instantânea e ficaram contentes com o que encontraram. Ele sempre observara esse fenômeno, mas receava nunca poder entendê-lo. Brunetti tinha a mesma capacidade de se tornar rapidamente amigo de outro homem, contudo, não sabia bem por quê, a intimidade logo se detinha num nível bem superficial. A intimidade imediata que ele tinha sob os olhos ia bastante fundo, chegando a um ponto central onde se detinha, só temporariamente, enquanto não vinha o próximo encontro, onde avançaria ainda mais. Elas tinham chegado à etapa em que discutiam Raffaele, o único neto do conde, quando de repente se lembraram de que Brunetti estava presente. Pela forma como este se apoiava ora num pé, ora no outro, Paola percebeu que ele estava cansado e querendo ir embora.


— Desculpe-me, Barbara, por ter contado tudo isso sobre Raffaele. Agora você tem duas gerações com que se preocupar, e não uma.

— Não, é bom ter outra visão sobre as crianças. Ele se preocupa tanto com elas. E tem tanto orgulho de vocês dois. Brunetti levou algum tempo para entender que ela se referia a ele mesmo e a Paola. Aquela estava se revelando uma noite de estranhas surpresas.


Não percebeu como aconteceu aquilo, mas as duas mulheres entenderam que já era tempo de se despedirem. A médica colocou o copo na mesa ao seu lado, e Paola se voltou para tomar o braço dele no mesmo instante. Elas se despediram, e ele ficou novamente surpreso com a forma como a médica foi muito mais calorosa com sua mulher que com ele.


* * *


Treze

PARA SUA INFELICIDADE, era na manhã seguinte que seu relatório devia estar na mesa de Patta, antes das oito. Visto que o relógio, logo que ele acordou, estava marcando oito e quinze, era evidente que isso não seria possível. Meia hora depois, tendo recuperado um pouco a aparência humana, Brunetti foi até a cozinha e encontrou Paola lendo L’Unità, o que o lembrou de que era terça-feira. Por motivos que ele nunca conseguiu entender, ela lia um jornal diferente a cada manhã, cobrindo todo o espectro político da direita para a esquerda, e as línguas do francês ao inglês. Anos atrás, quando a conhecera e a entendia ainda menos, ele lhe perguntou sobre aquilo. Sua resposta, só mais tarde ele veio a entender, fazia muito sentido: “Quero ver de quantas formas diferentes se podem dizer as mesmas mentiras”. Nada do que ele lera nos anos seguintes nem sequer chegara perto de sugerir que a visão de Paola estava errada. Hoje era a mentira dos comunistas; amanhã seria a vez dos democratas cristãos. Ele se inclinou e beijou-a na nuca. Ela soltou um resmungo mas não tirou os olhos do jornal. Sem dizer nada, apontou para o balcão à sua esquerda, onde havia um prato de brioches frescos. Ele se serviu de café, pôs três colheres de açúcar e sentou do lado oposto ao dela. Paola virou uma página.


— Novidades? Perguntou ele, mordendo um brioche.

— Mais ou menos. Estamos sem governo desde ontem à tarde. O presidente está tentando formar um, mas parece que não está conseguindo. E na padaria, hoje de manhã, todo mundo só falava da nova onda de frio. Não é de estranhar que a gente tenha o governo que tem. Bem... Disse ela, se demorando um pouco em observar a foto do mais recente candidato à investidura, — ...Talvez não. Ninguém merece uma coisa dessas.

— O que mais? Perguntou ele, entrando na rotina de duas décadas. Isso lhe permitia saber o que estava acontecendo sem precisar ler os jornais, e em geral ter uma ideia precisa do estado de humor de sua mulher.

— Greve de trens na próxima semana, em protesto contra a demissão de um maquinista que se embebedou e provocou a colisão de dois trens. Os homens que trabalhavam com o tal maquinista vinham reclamando dele há meses, mas ninguém lhes dava atenção. Então três pessoas morreram. E agora que foi demitido os mesmos que reclamavam dele estão ameaçando fazer greve de protesto contra sua demissão. Ela virou uma página. Ele pegou mais um brioche. — Ameaça de novos ataques terroristas. Talvez isso mantenha os turistas afastados. Mais uma página. — Comentário sobre a abertura da temporada lírica em Roma. Maestro lamentável. Dami me disse ontem à noite que a orquestra tem reclamado dele há semanas, desde o começo dos ensaios, mas que ninguém deu a mínima. Faz sentido. Se ninguém deu ouvidos aos maquinistas, por que dariam ouvidos a músicos que têm que suportar o maestro durante os ensaios? Ele pôs a xícara na mesa de forma tão brusca que respingou um pouco de café. A única reação de Paola foi puxar o jornal para mais perto.

— O que você disse?

— Humm? Fez ela, sem ouvir o que ele dizia.

— O que você disse sobre o maestro? Ela olhou para ele por causa de seu tom, não pelo que dissera.

— O quê?

— O que você disse sobre o maestro? Como acontecia com muitas de suas observações feitas no café da manhã, aquela parecia ter sido esquecida imediatamente depois de ter sido dita. Ela voltou para a página onde aparecia a notícia e examinou-a novamente.

— Ah, sim, a orquestra. Se tivessem se dado ao trabalho de prestar atenção ao que os músicos diziam, iam descobrir que era um mau maestro. Afinal de contas, ninguém melhor que eles para avaliar a competência de um músico, não é mesmo?

— Paola, disse Brunetti afastando o jornal da frente dela, — Se nós não fôssemos casados eu largaria minha mulher para ficar com você.


Ele ficou satisfeito em ver que a surpreendera; era uma coisa que raramente conseguia. Saiu deixando-a na cozinha, olhando-o por cima dos óculos para leitura e sem ter entendido direito o que acabara de fazer. Brunetti desceu os noventa e nove degraus, ansioso para chegar ao trabalho e começar a dar alguns telefonemas.


Quando chegou, quinze minutos depois, ainda não havia nem sinal de Patta, por isso ele ditou um curto parágrafo e mandou que fosse colocado na mesa de seu superior. Feito isso, ligou para a redação do Gazzetino e pediu para falar com Salvatore Rezzonico, o crítico de música. Disseram-lhe que ele não estava na redação e que poderia estar em sua casa ou no conservatório. Quando finalmente conseguiu localizar o homem, em sua casa, e lhe explicou o que queria, Rezzonico concordou em falar com ele ainda naquela manhã, no conservatório, onde daria uma aula às onze. Em seguida, Brunetti ligou para o dentista; certa vez este dissera ter um primo que era primeiro violino na orquestra do La Fenice. Brunetti conseguiu combinar um encontro com o violinista, que se chamava Traverso, antes da apresentação daquela noite.


Ele passou a meia hora seguinte falando com Miotti, que voltou do teatro praticamente sem novidades, exceto o fato de que um outro integrante do coro afirmava com certeza ter visto Flavia Petrelli entrar no camarim do maestro depois do primeiro ato. Miotti descobrira também a razão da evidente antipatia do porteiro pela soprano: ele achava que ela tinha um caso com l’americana. Além disso, Miotti não descobrira mais nada. Brunetti mandou que ele fosse pesquisar nos arquivos do Gazzetino sobre um escândalo envolvendo o maestro e uma cantora italiana, antes da guerra. Ele evitou o olhar de Miotti em reação a essa vagueza e disse que devia haver um fichário temático que poderia facilitar as coisas.


Brunetti saiu do escritório e, atravessando a cidade, chegou ao conservatório de música, situado numa pracinha, próximo à ponte da Academia. Depois de muito perguntar, conseguiu achar, no terceiro andar, a sala de aula do professor, onde este esperava por ele ou por seus alunos. Como sempre acontece em Veneza, Brunetti reconheceu o homem, visto ter passado por ele muitas vezes naquela parte da cidade. Embora nunca tivessem se falado, a forma calorosa como o homem o recebeu indicava que, pela mesma razão, Brunetti não lhe era estranho. Rezzonico era um homenzinho pálido e com unhas muitíssimo bem cuidadas. Barba bem aparada, cabelos curtos, trajava um terno cinza-escuro e uma gravata escura, como se procurasse se vestir bem para exercer a função de professor.


— O que posso fazer pelo senhor, comissário? Perguntou ele depois que Brunetti se apresentou e se sentou em uma das muitas carteiras que havia na sala.

— É sobre o maestro Wellauer.

— Ah, sim, respondeu Rezzonico, assumindo, como era de se esperar, um tom mais solene. — Uma grande perda para o mundo da música. Brunetti esperou que se passasse o tempo regulamentar, depois continuou.

— O senhor ia fazer a crítica da performance da Traviata para os jornais, professor?

— Sim, ia.

— Mas a crítica não foi publicada?

— Não, resolvemos, isto é, o editor decidiu, que, por respeito ao maestro e também porque a apresentação não foi completa, iríamos esperar o trabalho do novo maestro e fazer a crítica de uma de suas performances.

— E o senhor escreveu essa crítica?

— Sim. Foi publicada esta manhã.

— Desculpe-me, professor, mas não tive tempo de lê-la. O senhor pode me dizer se ela foi favorável?

— De modo geral, sim. Os cantores são bons, e Petrelli é soberba. Com certeza ela é a única soprano intérprete de Verdi, isto é, a única verdadeira intérprete. O tenor não é tão bom, mas ainda é muito jovem, e acho que sua voz vai amadurecer.

— E o maestro?

— Como disse em meu comentário, qualquer um que empunhasse a batuta nessas circunstâncias teria muitas dificuldades a enfrentar. Não é nada fácil reger uma orquestra que foi ensaiada por outro.

— Sim, entendo.

— Mas, levando em contas todas as dificuldades com que deparou, continuou o professor, — Ele se saiu muito bem. É um jovem realmente muito talentoso, e parece ter uma sensibilidade especial para Verdi.

— E quanto ao maestro Wellauer?

— Como?

— Se o senhor tivesse escrito uma crítica da noite de estreia, da apresentação iniciada por Wellauer, o que diria?

— Sobre a apresentação como um todo ou sobre a do maestro?

— Sobre ambas. Era evidente que a pergunta embaraçava o professor.

— Não sei bem como responder. Com a morte do maestro, isso perdeu o sentido.

— Mas se o senhor tivesse escrito a crítica, o que diria da performance de Wellauer?


O professor inclinou a cadeira para trás e cruzou as mãos na nuca, da mesmíssima forma como os professores de Brunetti, ele bem lembrava, faziam. Rezzonico ficou naquela posição por alguns instantes, pensando sobre a pergunta, depois deixou que a cadeira voltasse à posição normal.


— Receio que a crítica teria sido diferente.

— Diferente como, professor?

— No que diz respeito aos cantores, seria a mesma. A signora Petrelli é sempre magnífica. O tenor cantou bem, como eu disse, e, à medida que for ganhando experiência no palco, a tendência é que melhore. Na noite da estreia, eles cantaram da mesma forma, mas o resultado foi diferente. Notando a confusão de Brunetti, ele tentou explicar. — Sabe, eu teria que fazer abstração dos muitos anos de atuação do maestro. Era difícil ouvir a música naquela noite sem compará-la com a que seu gênio nos fez escutar durante todos aqueles anos. Deixe-me tentar explicar, continuou ele. — Durante a apresentação, é o maestro que mantém a unidade do conjunto, cuida para que os cantores respeitem o andamento, que a orquestra lhes dê apoio, que as entradas se façam no momento exato, ou, se preferir, que a orquestra e o palco se mantenham em sincronia. Cabe a ele também cuidar para que a orquestra não toque alto demais, que a subida dos crescendi seja sentida, sem se sobrepor, porém, à voz dos cantores. Quando um maestro percebe que isso está acontecendo, ele pode fazer que toquem mais docemente com um movimento da batuta ou colocando um dedo nos lábios. Para ilustrar, o músico fez os gestos que Brunetti vira em muitos concertos e óperas. — Ele deve também, o tempo todo, estar atento a tudo: coro, cantores, orquestra, mantendo-os em equilíbrio perfeito. Se ele não fizer isso, é um fiasco total, e tudo o que se ouve são partes separadas e não a ópera como um todo, constituindo uma unidade.

— E naquela noite, naquela noite em que o maestro morreu?

— Estava faltando esse trabalho de coordenação. Havia momentos em que a orquestra tocava tão alto que eu não conseguia ouvir os cantores, e tenho certeza de que eles próprios tinham dificuldade de ouvir uns aos outros. Em outros momentos, a orquestra tocava rápido demais e os cantores tinham que se esforçar para acompanhá-la. Ou o contrário.

— Será que mais alguém no teatro percebeu isso, professor? Rezzonico ergueu as sobrancelhas e torceu o nariz com desprezo.

— Comissário, não sei o que o senhor sabe do público veneziano, mas a coisa mais lisonjeira que se pode dizer sobre dele é que é insensível. As pessoas não vão ao teatro para ouvir música ou belas vozes; elas vão para serem vistas com suas roupas novas por seus amigos, e os amigos estão lá pelas mesmas razões. Você poderia trazer uma bandinha da menor aldeia da Sicília e colocá-la para tocar no fosso da orquestra que ninguém na plateia iria notar a diferença. Se o figurino for luxuoso e a montagem espetacular, é sucesso garantido. Se a ópera for moderna ou se os cantores forem estrangeiros, pode apostar no fracasso. O professor se deu conta de que aquilo estava virando um discurso, por isso baixou a voz. — Mas para responder à sua pergunta: duvido que muita gente no teatro tenha percebido o que estava acontecendo.

— E os outros críticos? O professor torceu o nariz novamente.

— Com exceção de Narciso, do La Repubblica, nenhum deles é músico. Alguns simplesmente vão aos ensaios e então escrevem suas críticas. Alguns nem ao menos são capazes de ler uma partitura. Não, não há ninguém que tenha critério entre eles.

— A que o senhor atribui o fracasso, se é que se pode falar assim, do maestro Wellauer?

— As possibilidades são muitas. Uma noite ruim. Ele era um homem idoso, afinal de contas. Podia estar perturbado com alguma coisa que tenha acontecido antes da performance. Ora, por mais ridículo que possa parecer, pode ter sido uma mera indigestão. Mas, seja lá o que tenha sido, ele não tinha o menor controle sobre a música naquela noite. Ela lhe escapou; a orquestra fez o que quis, e os cantores tentaram acompanhá-la. Podia-se perceber, em suma, que na verdade ele não estava regendo.

— Mais alguma coisa, professor?

— O senhor quer dizer... Sobre a música?

— Isso, ou qualquer outra coisa. Rezzonico pensou por um momento, dessa vez cruzando as mãos no colo, para finalmente dizer:

— Isto talvez vá soar estranho. E soa estranho para mim porque não sei por que digo ou por que acredito nisso. Mas acho que ele sabia.

— Como?

— Wellauer. Acho que ele sabia.

— Sobre a música? Ele sabia o que estava acontecendo?

— Sim.

— Por que o senhor diz isso, professor?

— Foi depois da cena do segundo ato em que Germont pai vem fazer o pedido a Violetta. Rezzonico olhou para Brunetti para ver se ele conhecia a história da ópera. Brunetti balançou a cabeça afirmativamente, e o professor continuou. — É uma cena que normalmente provoca muitos aplausos, principalmente quando se têm cantores bons como Dardi e Petrelli. Como era esse o caso, houve um longo aplauso. Durante o aplauso, olhei para o maestro. Ele pôs a batuta no pódio e tive a estranha impressão de que estava prestes a sair, simplesmente descer do pódio e ir embora. Não sei se vi ou inventei isso, mas ele parecia prestes a fazer isso quando os aplausos cessaram e os primeiros violinos levantaram seus arcos. Wellauer os viu, fez um sinal e pegou a batuta. E a ópera continuou, mas fiquei com a impressão de que, se o maestro não tivesse visto o movimento deles, simplesmente teria ido embora dali.

— Mais alguém percebeu isso?

— Não sei. Ninguém com quem falei quis comentar muito a performance, e o pouco que se falou foi com muita reserva. Eu estava num camarote do lado esquerdo, de forma que podia vê-lo muito bem. Acho que todos os demais estavam olhando para os cantores. Mais tarde, quando ouvi o anúncio de que ele não poderia continuar, imaginei que tinha sofrido um ataque qualquer. Mas não que fora assassinado.

— O que essas outras pessoas disseram?

— Como lhe disse, todos foram um tanto cautelosos, pois não queriam dizer nada contra Wellauer, agora que ele morreu. No entanto, umas poucas pessoas concordaram em dizer que a performance foi decepcionante. Só isso.

— Li seu artigo sobre a carreira de Wellauer, professor. O senhor fala muitíssimo bem dele.

— Ele foi um dos grandes músicos do século. Um gênio.

— O senhor não menciona a última performance, professor.

— Não se pode condenar um homem por uma noite ruim, comissário, principalmente quando toda sua carreira foi tão extraordinária.

— Sim, eu sei; nem por uma noite ruim nem por uma coisa ruim.

— Exatamente, concordou o outro, voltando a atenção para duas jovens que acabavam de entrar na sala, cada uma com uma pesada partitura na mão. — Se o senhor me dá licença, comissário, meus alunos estão começando a chegar, e logo vou começar a minha aula.

— Naturalmente, professor, disse Brunetti se levantando e estendendo a mão. — Muito obrigado pela atenção e pela ajuda. O outro murmurou alguma coisa em resposta, porém Brunetti teve a impressão de que a atenção do professor se voltara completamente para seus alunos. Ele saiu da sala, desceu os grandes degraus, chegando ao campo San Stefano.


Era um campo pelo qual passava com bastante frequência, por isso ele conhecia não apenas muitas das pessoas que lá trabalhavam, nos bares e nas lojas, como até mesmo os cachorros que andavam e vagabundavam por ali. Aquecendo-se preguiçosamente ao pálido sol estava um buldogue branco e rosado cuja falta de focinho sempre causava um certo mal-estar em Brunetti. Havia também aquele animalzinho chinês esquisito, linguiça com pelos, de uma feiura tremenda. Por fim ele viu, refestelado na frente da loja de cerâmicas, o vira-lata preto que passava o dia inteiro tão imóvel que muita gente poderia tomá-lo por uma das cerâmicas postas à venda. Brunetti resolveu tomar um café no Caffè Paolin. O estabelecimento ainda tinha mesas na calçada, mas as únicas pessoas que estavam nelas naquele dia eram estrangeiros, tentando desesperadamente convencer a si mesmos que estava quente o bastante para tomarem um cappuccino numa mesa ao ar livre. Os mais sensatos entravam no café.


Ele trocou um bom-dia com o garçom, que foi sensato o suficiente para não perguntar se tinha alguma novidade sobre o caso. Numa cidade onde não havia nenhum tipo de segredo, as pessoas tinham desenvolvido a capacidade de evitar perguntas diretas e se contentar com comentários banais. Brunetti sabia que, por mais que aquela história se arrastasse, nenhuma das pessoas com quem se encontrava naquele nível, garçons, jornaleiros, empregados de banco, iria lhe dizer uma palavra sobre o caso.


Depois de engolir seu expresso, ele se sentiu impaciente, mas não para ir almoçar, como parecia ser o caso de todos à sua volta. Ligou para o escritório e lhe disseram que o senhor Padovani ligara e deixara um nome e um endereço para ele. Nenhum recado, só o nome: Clemenza Santina, e o endereço: Corte Mosca, Giudecca.


* * *


Quatorze

A ILHA de Giudecca era uma parte de Veneza que Brunetti raramente visitava. Visível da Praça San Marcos, visível, na verdade, de muitos lugares e não se distanciando de alguns deles mais que uma centena de metros, ela se encontrava, porém, num estranho isolamento do resto da cidade. As histórias terríveis que os jornais publicavam com frequência sobre crianças mordidas por ratos e pessoas que morriam de overdose pareciam acontecer sempre em Giudecca. Nem mesmo a presença de um monarca destronado ou a de uma estrela de cinema dos anos 50 podiam livrá-la da imagem de um lugar decadente e sinistro onde aconteciam coisas escabrosas. Brunetti, assim como boa parte dos venezianos, normalmente ia àquele lugar em julho, para a festa do Redentor, em celebração ao fim da peste, ocorrido em 1576. Durante dois dias, uma ponte composta de barcos unia Giudecca à ilha principal, permitindo aos fiéis ir a pé até a igreja do Redentor, para render graças à intervenção divina, que por tantas vezes salvou ou poupou a cidade.


De pé no convés do vaporetto (linha 8) que singrava as ondas, ele olhava ao longe o inferno industrial de Marghera; as chaminés das fábricas soltavam grandes nuvens de fumaça que, sopradas insidiosamente pelos ventos acima das águas da laguna, terminavam por corroer o mármore branco de Veneza. Ele se perguntava que intercessão divina poderia salvar a cidade da maré negra de óleo, essa peste moderna que cobria as águas da laguna e já havia destruído, aos milhões, os caranguejos que povoavam seus pesadelos de infância. Que Redentor poderia salvar a cidade daquele véu de fumaça esverdeada que pouco a pouco transformava o mármore em merengue? Homem de pouca fé, Brunetti não conseguia imaginar nenhuma salvação, humana ou divina.


Ele desceu na parada Zittele, dobrou à esquerda e andou margeando o canal, procurando a Corte Mosca. Às suas costas do outro lado das águas, estava a cidade, cintilando à luz do pálido sol de inverno. Passou pela igreja, agora fechada para a siesta de Deus, e viu, logo adiante dela, a entrada para o pátio. Estreita, baixa e mergulhada na penumbra, a passagem cheirava a urina de gato. No final do túnel de pedra, se encontrou próximo a um jardim exuberante, no centro do pátio interno, onde as plantas vicejavam na mais total desordem. De um lado do pátio, um animalzinho que devia ser um gato estava comendo os restos de algum passarinho. Ao ruído dos seus passos, o gato se escondeu sob uma roseira, sem largar o que estava comendo. Uma porta empenada se abria na parede, do outro lado do pátio. Para chegar até ela, Brunetti teve que afastar, por várias vezes, os ramos espinhosos. Ele bateu, esperou, depois esmurrou a porta.


Após alguns minutos a porta se abriu cerca de um palmo e dois olhos o fitaram. Ele explicou que estava procurando a Sra. Santina. Os olhos o examinaram, cheios de perplexidade, e recuaram para a completa escuridão da casa. Considerando a debilidade devida à idade avançada, ele repetiu a pergunta, dessa vez quase gritando. Abriu-se então um pequeno orifício sob os dois olhos e uma voz masculina lhe disse que a senhora morava do outro lado do pátio. Brunetti se voltou e olhou o jardim. Próximo à entrada do túnel, mas quase escondida por um monte de folhas e galhos em decomposição, havia outra porta baixa. Quando ele se voltou para agradecer, a porta se fechou brutalmente. Com muito cuidado, ele cruzou o jardim e bateu na outra porta.


Dessa vez Brunetti teve que esperar ainda por mais tempo. Quando a porta se abriu, ele viu um par de olhos na mesma altura que os da outra porta, e se perguntou se aquela criatura conseguira de alguma forma correr de uma casa para a outra. Contudo, observando melhor, percebeu que aqueles olhos eram mais claros e que o rosto era sem dúvida o de uma mulher, embora, como o outro, coberto de rugas e engelhado de frio.


— Sim? Perguntou ela, olhando para ele. Era uma velhinha baixinha, envolta em mantas e cachecóis. Por baixo da última manta se via uma nesga do que parecia ser uma camisola de flanela. Ela calçava um par de grossos chinelos de lã, iguais aos que a avó dele costumava usar. Por cima de tudo isso, um grande casaco masculino, desabotoado.

— Signora Santina?

— O que o senhor quer? Ouvindo aquela voz, alta e aguda por causa da idade era difícil acreditar que pertencia a uma das grandes cantoras do pré-guerra. Naquela voz, também, ele sentia toda a desconfiança em relação à autoridade, instintiva nos italianos, especialmente os mais velhos. Essa desconfiança o ensinara a adiar o mais possível a revelação de que era um policial.

— Signora, disse ele, se inclinando para frente e falando alto e com voz clara, — Gostaria de falar com a senhora sobre o maestro Helmut Wellauer. Nada parecia indicar, na expressão de seu rosto, que ela ouvira falar da morte do maestro.

— O senhor não precisa gritar, não sou surda. O que o senhor é, um jornalista? Como o outro?

— Não, senhora. Não sou. Mas gostaria de falar com a senhora sobre o maestro. Agora Brunetti falava com toda a cautela, atento às reações que provocava. — Sei que a senhora cantou com ele. Em seus dias de glória. A essa palavra, o olhar dela se tornou subitamente atento, se suavizando um pouco. Ela o examinou, procurando um músico por trás da conservadora gravata azul.

— Sim, eu cantei com ele. Mas isso foi há muito tempo.

— Sim, senhora, sei disso. Mas ficaria honrado se a senhora se dispusesse a falar sobre sua carreira.

— Minha carreira junto com ele, é isso o que o senhor quer dizer? Brunetti percebeu o exato momento em que ela se deu conta de quem, ou o quê, ele era. — O senhor é um policial, não é? Perguntou ela como se aquilo lhe tivesse chegado como um cheiro e não como uma ideia. Ela apertou mais o casaco contra si, cruzando os braços sobre o peito.

— Sim, senhora, sou, mas sempre fui um admirador seu.

— Então por que o senhor nunca veio aqui antes? Mentiroso. Ela disse aquilo como uma mera constatação, sem a menor raiva. — Mas vou falar com o senhor. Se eu não fizer isso, o senhor vai voltar com uma ordem do juiz. Ela se voltou abruptamente, e recuou para a escuridão. — Vamos, entre. Não posso me dar ao luxo de aquecer o pátio inteiro.


Ele a seguiu e imediatamente se sentiu incomodado pelo grande frio e pela umidade. Talvez pelo fato de ter saído tão bruscamente do sol, o cômodo parecia ainda mais frio que o pátio. Ela deslizou por trás dele e fechou a porta, separando-o completamente da luz e da lembrança do calor. Com o pé, ela empurrou um grosso rolo de flanela para com ele fechar a abertura sob a porta. Depois trancou a porta a chave e passou o ferrolho. Com um policial dentro de casa, ela fechou a porta o mais que pôde.


— Por aqui, murmurou ela, e entrou num longo corredor. Brunetti foi obrigado a esperar até seus olhos se acostumarem à escuridão, antes de poder segui-la pelo corredor úmido; eles chegaram a uma pequena cozinha, também escura, no centro da qual havia um velho aquecedor a querosene. A mais fraca das chamas bruxuleava em sua base; uma pesada poltrona, tão cheia de cobertores quanto sua dona de mantas, estava junto ao aquecedor. — Imagino que o senhor deseja café, disse ela enquanto fechava a porta da cozinha, novamente chutando trapos enrolados para fechar a abertura embaixo da porta.

— É muita gentileza de sua parte, senhora, disse ele.


Ela apontou uma cadeira de espaldar reto em frente à sua, e Brunetti se adiantou para sentar nela, não sem antes observar que a cobertura de vime trançado estava gasta ou estragada em vários lugares. Sentou com todo o cuidado e percorreu o aposento com os olhos. Viu os sinais de uma pobreza desesperada: a pia de cimento com apenas uma torneira, a inexistência de geladeira ou fogão, manchas de bolor nas paredes. Mais do que ver, ele sentia o cheiro da pobreza, cheirava-a no ar fétido, o cheiro de esgoto comum a todas as habitações térreas de Veneza, restos de salame e de queijo à temperatura ambiente sobre o balcão, uma pobreza denunciada também pelo odor azedo de roupas não lavadas que vinha dos cobertores e xales amontoados na cadeira da velha senhora. Com movimentos contidos pela idade e pela falta de espaço, ela derramou café de uma cafeteira numa pequena caçarola e caminhou com passos hesitantes até o fogareiro a querosene, em cima do qual pôs a caçarola. Andou devagar até a pia e voltou para colocar duas xícaras trincadas na mesa ao lado de sua poltrona.


Repetiu ainda uma vez os mesmos passos, voltando então com um pequeno açucareiro de cristal com um montículo de açúcar sujo e empedrado. Enfiando o dedo na caçarola e considerando a temperatura adequada, ela derramou o líquido nas duas xícaras, uma das quais empurrou em sua direção sem maior cuidado. Depois lambeu o dedo para limpá-lo. Em seguida, se inclinou sobre a poltrona para afastar as mantas e, como alguém que se preparasse para se deitar numa cama, sentou na cadeira. Automaticamente, como se depois de muito treino, as mantas deslizaram das costas e dos braços da poltrona, cobrindo-a. Estendeu a mão para pegar a xícara da mesa ao seu lado, e ele notou que as mãos dela eram deformadas e cheias de nós por causa da artrite, de tal modo que a esquerda se transformou numa espécie de gancho, com o polegar apontando. Brunetti imaginou que a mesma doença era a causa de sua lentidão. E então, como o frio e a umidade continuavam a dominar seu corpo, ele pensou em como seria para ela morar num apartamento como aquele. Nenhum dos dois dissera uma palavra enquanto ela preparava o café. Agora ambos estavam num silêncio quase agradável, quando ela se inclinou para frente e disse:


— Pegue um pouco de açúcar. Ela não fez nenhum movimento para sair de sob suas mantas. Brunetti pegou a única colher e conseguiu tirar um pedaço do açúcar.

— Permita-me, signora, disse ele colocando o açúcar na xícara dela, e mexendo o café com a colher. Conseguiu retirar outro pedaço de açúcar e colocou-o em sua própria xícara, onde ele ficou duro e insolúvel. O líquido que Brunetti sorveu era espesso, morno e letal. Um pedaço de açúcar veio se chocar contra seus dentes sem nada ter feito para adoçar o gosto amargo do café. Ele tomou outro gole, depois o colocou sobre a mesa. A Sra. Santina não tocou no seu.


Ele sentou novamente na cadeira e, sem tentar disfarçar sua curiosidade, olhou em volta. Se esperasse encontrar algum sinal de uma carreira tão meteórica como breve, estava enganado. Nenhum pôster de antigas estreias pendia daquelas paredes, nenhuma foto da cantora vestida a caráter. O único objeto que poderia ser um indício de seu passado era uma grande fotografia numa moldura de prata que estava em cima de uma cômoda cheia de rachaduras. Dispostas em V numa pose arranjada, três jovens mulheres, na verdade mocinhas, sentadas, sorrindo para a câmera. Ainda ignorando a xícara ao seu lado, ela perguntou abruptamente:


— O que o senhor deseja saber?

— É verdade que a senhora cantou com ele, signora?

— Sim, na temporada de 1937. Mas não aqui.

— Onde?

— Em Munique.

— E qual foi a ópera, signora?

— Don Giovanni. Os alemães sempre foram loucos por seus compositores. E os austríacos. Por isso lhes demos Mozart. Depois acrescentou, com certo tom de desprezo: — E Wagner. E naturalmente ele lhes deu Wagner. Ele amava Wagner.

— Quem? Wellauer?

— Não. Uimbianchino, disse ela, usando o termo que significa caiador, apelido dado a Hitler, conhecido por ser um pintor medíocre, expressando com isso o sentimento que custara a vida a inúmeras pessoas.

— E o maestro também gostava de Wagner?

— Ele gostava de tudo de que o outro gostava, disse ela com um desprezo que não procurou dissimular. — Mas tinha seu gosto pessoal por Wagner. Todos eles gostam. A melancolia e o sofrimento. Eles gostam disso. Acho que gostam do sofrimento. O deles e o dos outros. Ignorando isso, ele perguntou:

— A senhora conheceu bem o maestro? Ela desviou os olhos de Brunetti, fitou a fotografia e em seguida as próprias mãos, que ela mantinha sempre separadas, como se mesmo o mínimo contato pudesse provocar dor.

— Sim, eu o conhecia muito bem, disse enfim. Depois do que lhe pareceu um longo tempo, Brunetti fez outra pergunta.

— O que pode me dizer sobre ele, signora?

— Ele era vaidoso, disse ela finalmente. — Mas com razão. Ele era o maior maestro com quem trabalhei. Não cantei com todos; minha carreira foi curta demais. Mas entre aqueles com quem cantei ele era o melhor. Não sei como conseguia aquilo, mas ele podia pegar qualquer música, por mais conhecida que fosse, e fazê-la parecer nova, como se nunca tivesse sido executada ou ouvida antes. Os músicos em geral não gostavam dele, mas o respeitavam. Ele conseguia fazê-los tocar como anjos.

— A senhora disse que sua própria carreira foi muito curta. O que a interrompeu? Ela o fitou, mas não lhe perguntou como uma pessoa que dizia ser sua fã poderia ignorar a história. Afinal de contas, ele era um policial, e eles sempre mentem. Sobre qualquer coisa.

— Recusei-me a cantar para o Duce. Foi em Roma, na abertura da temporada de 1938. Norma. O diretor veio pessoalmente aos bastidores, pouco antes de se abrirem as cortinas, e me disse que tínhamos a honra de ter Mussolini na plateia naquela noite. E... Ela hesitou, como se procurasse uma maneira de explicar aquilo. — E eu era jovem e corajosa, e disse que não iria cantar. Era jovem e famosa, e achava que podia fazer uma coisa daquelas e que minha fama iria me proteger. Pensava que os italianos amavam a arte da música o bastante para que eu pudesse fazer isso impunemente. Ela balançou a cabeça a essa ideia.

— O que aconteceu, signora?

— Eu não cantei. Não cantei aquela noite, e nunca mais cantei em público. Ele não podia me matar por causa daquela atitude, por não cantar, mas podia me prender. Fiquei em minha casa em Roma até o final da guerra e, quando ela acabou, nunca mais cantei. Ela mudou de posição na poltrona. — Não quero falar sobre isso.

— Então falemos sobre o maestro. A senhora se lembra de mais alguma coisa sobre ele? Embora nenhum dos dois tivesse mencionado a sua morte, ambos falavam dele como de um morto.

— Não, nada.

— É verdade, signora, que teve desentendimentos com ele?

— Eu o conheci há cinquenta anos. Ela deu um suspiro. — Que importância pode ter isso?

— Signora, eu só quero ter uma ideia de como ele era. Tudo o que sei dele é sua música, que era bela, e seu corpo, que tive oportunidade de ver e que não o era. Quanto mais eu souber sobre ele, mais poderei entender como foi sua morte.

— Foi veneno, não foi?

— Sim.

— Perfeito. Não havia nenhuma maldade, nenhum sarcasmo em sua voz. Ela disse aquilo como quem comentasse uma passagem de música ou um prato. Brunetti notou que agora suas mãos estavam juntas e que seus dedos se entrelaçavam e se separavam nervosamente. — Mas lamento que alguém o tenha matado. O que significava aquilo? Pensou ele. — Eu preferiria que fosse suicídio, porque assim ele perderia a vida e também danaria a alma. Seu tom continuava neutro, desapaixonado.


Brunetti tiritava de frio; começou a bater os dentes. Num movimento quase involuntário, se levantou da cadeira e começou a andar em volta para esquentar um pouco os membros. Quando chegou à cômoda, parou diante da fotografia e examinou-a. As três moças usavam os trajes extravagantes dos anos 30: vestidos longos rendados que iam até o chão, sapatos de bico aberto e saltos muito altos. As três tinham a mesma boca em forma de coração e sobrancelhas finíssimas. Sob a maquiagem e o cabelo frisado, podia-se ver que eram muito jovens. Elas estavam dispostas em ordem decrescente de idade. A mais velha, que estava à esquerda, teria uns vinte e poucos anos e a do meio era um pouco mais nova. A última, quase uma criança, mal entrara na adolescência.


— Qual delas é a senhora?

— A que está entre as duas. Eu era a do meio.

— E as outras duas?

— Clara. Ela era a mais velha. E Camilla, a caçula. Éramos uma boa família italiana. Minha mãe teve seis filhos em doze anos, três meninas e três meninos.

— Suas irmãs também cantavam? Ela deu um suspiro, depois um risinho cético.

— Houve um tempo em que toda a Itália conhecia as irmãs Santina, as Três Cs. Mas isso foi há muito tempo, como o senhor poderia saber? Brunetti viu a maneira como ela olhava a fotografia e se perguntou se, para ela, todas continuavam como na fotografia, jovens e bonitas. — Começamos cantando em music-halls, depois dos filmes. Éramos muito pobres, por isso nós, as filhas, cantávamos para ganhar algum dinheiro. Começamos a ser reconhecidas, e passamos a ganhar mais dinheiro. Terminei por descobrir que eu tinha uma voz muito boa, então comecei a cantar em teatros, mas Camilla e Clara continuaram cantando em music-halls. Ela parou de falar e pegou o café, tomou-o em três goles e depois escondeu as mãos sob o calor de suas mantas.

— O seu desentendimento com ele tem algo a ver com suas irmãs? Sua voz se tornou de repente cansada e velha.

— Que importância pode ter uma coisa tão antiga?

— Tem algo a ver com elas, signora? Sua voz se elevou ao nível de soprano.

— Por que o senhor quer saber? Que importância tem isso? Ele está morto. Elas morreram. Todos estão mortos. Ela ajeitou melhor as mantas para se proteger do frio e da frieza da voz do policial. Brunetti esperou que ela continuasse, entretanto a única coisa que lhe chegava aos ouvidos era o sopro e o chiado do aquecedor a querosene, em sua vã tentativa de vencer o frio glacial da sala.


Passaram-se minutos. Brunetti ainda sentia o gosto amargo do café em sua boca, e nada podia fazer para atenuar o frio que continuava a penetrar-lhe os ossos. Finalmente, ela voltou a falar, dessa vez num tom definitivo.


— Se o senhor já terminou o seu café, pode ir embora.


Ele foi até a mesa e levou as duas xícaras para a pia. Quando se voltou, ela já se desvencilhara de sua pilha de mantas e estava na porta da sala. Ela tomou a sua frente e foi andando com seu passo hesitante pelo longo corredor que, se é que era possível, estava ainda mais frio que a sala. Devagar, mexendo nas chaves e na fechadura com suas mãos deformadas, puxou os ferrolhos e abriu a porta apenas o suficiente para que ele pudesse sair. Quando se voltou para agradecer, ouviu o barulho do correr dos ferrolhos. Embora fizesse um pouco de frio, pois o inverno estava começando, Brunetti soltou um suspiro de alívio e de prazer ao sentir a fraca carícia do sol da tarde em suas costas.


* * *


Quinze

NO BARCO que o levava de volta à ilha principal, Brunetti tentou pensar em quem poderia lhe explicar o que acontecera entre a cantora e Wellauer. E entre ele e a irmã dela. O nome que lhe ocorreu foi o de Michele Narasconi, um amigo seu que morava em Roma e que conseguia viver de seus escritos sobre música e sobre viagens. O pai de Michele, agora aposentado, desenvolvera o mesmo tipo de atividade, porém com muito mais sucesso. Durante duas décadas ele fora o principal cronista de frivolidades da Itália, uma nação com uma extraordinária demanda desse tipo de informação. O velho escrevera, durante anos, colunas semanais em Gente e Oggi, e milhões de leitores esperavam ansiosos seus informes, veracidade era o que menos importava, sobre os vários escândalos da família Savoia, estrelas do palco e da tela, e o cortejo interminável de príncipes de segunda ordem que insistiam em migrar para a Itália antes e depois de abdicarem. Embora não soubesse ao certo o que estava procurando, Brunetti sabia que o pai de Michele era a pessoa que devia ser consultada. Brunetti esperou chegar ao seu escritório para fazer a ligação. Fazia tanto tempo que não falava com Michele que teve que pedir o número à telefonista. Enquanto o telefone chamava, ele pensava em como perguntar o que queria sem ofender o amigo.


— Alô. Narasconi, atendeu uma voz feminina.

— Ciao, Roberta, disse ele. — Aqui é Guido.

— Oh, Guido, é tão bom falar com você novamente. Como vai você? E Paola? E as crianças?

— Estamos todos bem, Roberta. Ouça, Michele está aí?

— Sim, espere um pouco que vou chamá-lo. Ele ouviu o ruído surdo do fone sendo colocado de lado e a voz dela chamando o marido. Seguiram-se vários ruídos e depois a voz de Michele. — Ciao, Guido. Como vai, o que você deseja? O riso que se seguiu à pergunta eliminava qualquer possibilidade de malícia. Brunetti decidiu não gastar tempo e energia com rodeios.

— Michele, desta vez preciso apelar para a memória de seu pai. É uma coisa muito antiga para a sua. Como está ele?

— Continua trabalhando. A RAI quer que ele escreva um programa sobre os primeiros tempos da televisão. Se ele escrever, eu o aviso para que possa ver. O que você quer saber? Repórter por instinto e por profissão, Michele não perdia tempo.

— Quero saber se ele se lembra de uma cantora de ópera chamada Clemenza Santina. Ela atuou antes da guerra. Michele deu um curto assobio.

— O nome me parece familiar, embora eu não saiba por quê. Se for da época da guerra, com certeza meu pai vai lembrar.

— Havia duas outras irmãs. As três eram cantoras, explicou Brunetti.

— Sim. Agora estou lembrando. As Cantoras Cs, ou as Belas Cs; uma coisa assim. O que quer saber sobre elas?

— Qualquer coisa, qualquer coisa de que ele se lembre.

— Tem a ver com o caso Wellauer? Perguntou Michele, com uma intuição que raramente falhava.

— Sim. Dessa vez, Michele deu um longo assobio.

— É você que está com o caso?

— Sim. Mais um assobio.

— Não o invejo, Guido. A imprensa vai comer você vivo se não descobrir o autor do crime. Escândalo na República. Crime contra a Arte. Toda essa conversa. Brunetti, que havia três dias só ouvia aquilo, disse simplesmente:

— Eu sei. A resposta de Michele foi imediata.

— Desculpe, Guido, desculpe. O que quer que pergunte a meu pai?

— Se na época correu algum boato sobre um incidente envolvendo Wellauer e as irmãs.

— O tipo de coisa que costumam comentar?

— Sim, ou qualquer outro boato. Na época ele estava casado. Não sei se isso é importante.

— Com a tal que se suicidou? Então Michele também lera os jornais.

— Não; essa foi a segunda. Ele ainda estava casado com a primeira. E seria bom se seu pai se lembrasse de alguma coisa sobre essa história também. Mas tudo isso aconteceu antes da guerra, em 38, 39.

— Ela não teve uns problemas políticos? Insultou Hitler ou algo assim?

— Mussolini. Ela ficou em prisão domiciliar durante a guerra. Se ela tivesse insultado Hitler, teria sido morta. Quero saber como eram suas relações com Wellauer. E, se possível, as das irmãs também.

— É urgente, Guido?

— Muito.

— Bem. Encontrei papai hoje de manhã, mas posso ir vê-lo à noite. Ele vai ficar muito contente. Vai se sentir importante por recorrerem à sua memória. Você sabe como ele gosta de falar sobre o passado.

— Sim, eu sei. Foi a única pessoa que me ocorreu, Michele. Seu amigo sorriu a esse comentário. Lisonja é sempre lisonja, e não importa se é verdadeira ou não.

— Vou dizer isso a ele, Guido. Depois, parando de sorrir, ele perguntou: — E quanto a Wellauer? Isso era o máximo que Michele se permitia perguntar.

— Nada ainda. Havia mais de mil pessoas no teatro na noite em que aconteceu.

— Há alguma relação com a história de Santina?

— Não sei, Michele. Não posso saber até ouvir o que o seu pai tem a dizer.

— Muito bem. Ligo para você hoje à noite depois de falar com ele. Com certeza vai ser tarde da noite. Posso ligar?

— Sim. Vou estar em casa. Ou então Paola. E obrigado, Michele.

— Por nada, Guido. Além do mais, papai vai ficar orgulhoso por você ter se lembrado dele.

— Ele é o único.

— Não vou esquecer de dizer a ele.


Nenhum dos dois se deu ao trabalho de dizer que precisavam se encontrar; nenhum dos dois tinha tempo de atravessar metade do país para ver um velho amigo. Em vez disso, eles se despediram e se desejaram boa sorte. Quando terminou de falar com Michele, Brunetti se deu conta de que já era hora de voltar ao apartamento de Wellauer para ter a segunda conversa com a viúva. Ele deixou um recado para Miotti informando-o de que não voltaria ao escritório naquela tarde, rabiscou um pequeno relatório e pediu às secretárias que o deixassem na mesa de Patta às oito da manhã.


Chegou alguns minutos atrasado ao apartamento do maestro. Dessa vez foi recebido à porta pela criada, a mulher que estava no segundo banco da igreja na missa de corpo presente. Brunetti se apresentou, lhe deu o casaco e perguntou-lhe se poderia trocar umas palavrinhas com ela depois de conversar com a signora. Ela balançou a cabeça e disse apenas:


— Si, levando-o em seguida à sala onde conversara com a viúva dois dias antes.


Ela se levantou e atravessou a sala para vir lhe apertar a mão. “O tempo que se passara desde a primeira conversa em nada melhorara o seu aspecto”, pensou Brunetti, observando as olheiras, a pele mais seca, mais áspera. Ela voltou ao lugar onde estava e Brunetti viu que não havia nada perto dela, nenhum livro, nenhuma revista, nenhuma costura. Ao que parecia, ela estivera sentada ali esperando a sua chegada, ou o futuro. Ela se sentou e acendeu um cigarro. Estendeu o maço para ele, oferecendo-lhe um.


— Desculpe-me, esqueci que o senhor não fuma, disse ela em inglês. Ele se sentou na mesma cadeira em que sentara na primeira conversa, mas dessa vez não se deu ao trabalho de ficar fazendo cena com o bloco de notas.

— Signora, preciso lhe fazer algumas perguntas, disse ele. Como a viúva não reagiu, continuou. — São perguntas delicadas e eu preferiria não ter que fazê-las, principalmente nas atuais circunstâncias.

— Mas o senhor precisa das respostas, não é?

— Sim.

— Então, receio que tenha de fazê-las, dottor Brunetti. Ele percebeu que ela estava sendo meramente literal, não severa, por isso não disse nada. — Por que o senhor precisa fazer essas perguntas?

— Porque elas podem me ajudar a encontrar o responsável pela morte de seu marido.

— E isso faz alguma diferença?

— Faz diferença o quê, signora?

— Quem matou meu marido.

— Para a senhora não faz?

— Não, não faz a menor diferença. Nunca fez. Ele está morto e não há como trazê-lo de volta. Que me importa quem fez isso e por que o fez?

— A senhora não quer vingança? Perguntou ele antes de se lembrar de que ela não era italiana. Ela inclinou a cabeça para trás e olhou-o através da fumaça do cigarro.

— Ah, sim, comissário. Tenho um grande desejo de vingança. Sempre tive. Acho que as pessoas devem ser punidas pelo mal que fazem.

— E isso não é o mesmo que vingança? Perguntou ele.

— O senhor pode julgar melhor que eu, dottor Brunetti. Ela desviou os olhos do policial. Antes de se dar conta, Brunetti falou impaciente.

— Signora, eu gostaria de fazer algumas perguntas e gostaria de obter respostas francas.

— Então faça suas perguntas que eu respondo.

— Eu disse que queria respostas francas.

— Está bem, então terá respostas francas.

— Gostaria de saber a opinião de seu marido sobre certos tipos de comportamento sexual. A pergunta, não havia dúvida, surpreendeu-a.

— O que quer dizer com isso?

— Ouvi dizer que seu marido tinha aversão especial pelo homossexualismo. Brunetti teve a impressão de que não era esse tipo de pergunta que ela estava esperando.

— Sim, ele tinha.

— A senhora tem alguma ideia do porquê disso? Ela apagou o cigarro e se recostou na cadeira, cruzando os braços.

— O que é isso, psicologia? Daqui a pouco o senhor vai dizer que Wellauer era homossexual e que durante todos esses anos disfarçou a culpa do modo tradicional, odiando os homossexuais? Brunetti já tinha visto esse fenômeno acontecer muitas vezes, porém não achava que fosse o caso de Wellauer, por isso não disse nada. Ela forçou um sorriso de desprezo àquela ideia. — Acredite-me, comissário, Wellauer não era o que o senhor pensa que ele era. Brunetti bem sabia que poucas pessoas são o que parecem. Ele ficou calado, esperando o que ela iria dizer em seguida. — Não nego que ele não gostava de homossexuais. Qualquer um que trabalhasse com ele iria notar. Mas não porque ele temesse isso em si mesmo. Estive casada com ele por dois anos, e não havia nada de homossexual nele, posso lhe garantir. Acho que era contra o homossexualismo porque este contraria o conceito que Wellauer tinha de ordem do universo, um ideal platônico de comportamento humano. Brunetti já ouvira explicações mais estranhas que essa.

— Ele também odiava as lésbicas?

— Sim, mas o homossexualismo masculino o incomodava mais, talvez porque o comportamento deles costume ser mais escandaloso. Se for preciso explicar, acho que ele tinha certa curiosidade erótica em relação às lésbicas, como muitos homens. Mas é uma coisa que nunca discutimos.


Durante sua carreira, Brunetti falara com muitas viúvas, interrogara muitas, contudo poucas se mostraram tão objetivas em relação aos seus maridos como aquela mulher o fazia. Ele se perguntou se o motivo estava na própria viúva ou no homem cuja morte ela parecia não lamentar.


— Havia alguns homens, homossexuais, a quem ele detestasse especialmente?

— Não, respondeu ela imediatamente. — Ao que parece, isso dependia de com quem estava trabalhando na ocasião.

— Ele tinha preconceito profissional contra eles?

— Isso seria impossível nesse ambiente. Há homossexuais demais. Helmut não gostava deles, mas conseguia trabalhar com eles, quando necessário.

— E, quando trabalhava com eles, lhes dava um tratamento diferente do que dava às outras pessoas?

— Comissário, espero que o senhor não esteja imaginando uma história de assassinato homossexual, alguém que matou Wellauer por causa de um comentário cruel ou de um contrato cancelado.

— Houve gente que matou por muito menos.

— Não vale a pena falar sobre isso, respondeu ela secamente. — O senhor tem mais alguma pergunta a fazer?


Brunetti hesitou, se sentindo ele próprio constrangido com a pergunta que faria a seguir. Pensou com seus botões que era como um padre, um médico, e o que as pessoas lhe diziam não ia adiante, mas ele sabia que aquilo não era verdade. Sabia que não iria respeitar nenhuma confidencia, se esta pudesse levá-lo à pessoa que estava procurando.


— Minha próxima pergunta não é de ordem geral nem sobre as opiniões do maestro. Ele fez uma pausa, na esperança de que ela compreendesse e tomasse a iniciativa de lhe dar algumas informações. Isso não aconteceu. — Refiro-me especificamente a suas relações com o seu marido. Elas tinham alguma peculiaridade? Brunetti notou que ela estava tentando se controlar para não se levantar da cadeira. Ela passou o dedo médio pelo lábio inferior algumas vezes, o cotovelo apoiado no braço da cadeira.

— Imagino que o senhor esteja se referindo às minhas relações sexuais com o meu marido. Ele aquiesceu. — E suponho que podia ficar furiosa e perguntar o que o senhor quer dizer, sendo as coisas como são nos dias de hoje, com “peculiaridades”. Mas vou lhe dizer simplesmente que não, não havia nada de “peculiar” em nossas relações sexuais, e é só isso que tenho a lhe dizer. Ela respondera a suas perguntas. Se lhe contara a verdade, era outra história, que ele preferiu deixar de lado por enquanto.

— A senhora sabe se ele estava tendo problemas com algum cantor nesse espetáculo? Ou com qualquer outra pessoa que estava trabalhando nele?

— Não mais que o de costume. Todos sabem que o diretor é homossexual e que corre o boato de que a soprano também é.

— A senhora os conhece?

— Nunca falei com Santore, a não ser para dizer bom dia nos ensaios. Flavia eu conheço, embora não muito bem. Encontrei-me com ela em festas e conversamos.

— O que a senhora acha dela?

— Acho que é uma cantora extraordinária! Helmut também achava isso, respondeu ela, se fingindo de desentendida.

— E pessoalmente?

— Pessoalmente, acho que ela é encantadora. Talvez lhe falte um pouco de senso de humor, às vezes, mas é uma pessoa encantadora, com quem podemos conversar por horas. E é surpreendentemente inteligente. A maioria das cantoras não é. Era evidente que ela continuava se fingindo de desentendida e só iria responder quando ele lhe perguntasse de forma direta.

— E os boatos?

— Nunca achei que fossem importantes o suficiente para me dar ao trabalho de pensar sobre eles nem um minuto sequer.

— E seu marido?

— Acho que ele acreditava na história. Não, minto. Tenho certeza de que ele acreditava. Certa noite ele falou alguma coisa sobre isso. Não lembro o que disse exatamente, mas deixou bem claro que acreditava no que andavam dizendo.

— Isso não bastou para convencer a senhora?

— Comissário, disse ela aparentando uma paciência exagerada, — Acho que o senhor não entendeu o que estou dizendo. A questão não é saber se Helmut podia me convencer ou não da verdade desses boatos. A questão é que ele não conseguia me convencer de que aquilo tinha importância. Por isso esqueci a história até ainda pouco, quando o senhor me perguntou. Ele não deu nenhuma mostra de que concordava. Em vez disso, perguntou:

— E Santore? Seu marido fez algum comentário especial sobre ele?

— Não que eu me lembre. Ela acendeu mais um cigarro. — Esse é um assunto sobre o qual nunca chegamos a um acordo. Eu não tinha paciência com o preconceito dele, e ele sabia disso, por isso evitávamos, os dois, tocar no assunto. Helmut tinha tal consciência profissional que conseguia abstrair seus sentimentos pessoais. Era uma das coisas que eu amava nele.

— A senhora lhe era fiel? Era uma pergunta que ela parecia esperar.

— Sim, acho que sim, respondeu, depois de um longo silêncio.

— Receio não saber como interpretar a sua resposta, senhora, disse Brunetti.

— Isso vai depender do que o senhor entende por “fiel”. Sim, ele também achava, mas achava também que o sentido da palavra era relativamente claro, mesmo na Itália. De repente, Brunetti se sentiu muito cansado de tudo aquilo.

— A senhora manteve relações sexuais com outra pessoa enquanto esteve casada com ele? Sua resposta foi imediata.

— Não. Brunetti sabia o que era esperado dele, por isso perguntou:

— Então por que falou que “acha” que sim?

— Por nada. Eu simplesmente estava cansada de perguntas previsíveis.

— E eu, de respostas imprevisíveis, retrucou ele.

— Sim. Imagino que o senhor devia estar mesmo. Ela sorriu, lhe dando uma trégua.


Como ele não estava usando o truque do bloco de notas, não podia indicar que a conversa terminara colocando-o no bolso. Levantou-se então e disse:


— Há mais uma coisa.

— Sim?

— Os documentos dele foram devolvidos ontem de manhã. Gostaria que me permitisse dar mais uma olhada neles.

— Não foi para isso que os senhores os levaram? Perguntou ela, sem fazer o menor esforço para esconder sua irritação.

— Houve um engano na Questura. Os tradutores os examinaram, mas os devolveram antes que eu pudesse examiná-los. Peço-lhe desculpas pelo incômodo, mas gostaria, se possível, de examiná-los agora. Gostaria também de falar com a sua criada. Falei com ela rapidamente quando cheguei, mas gostaria de lhe fazer algumas perguntas.

— Os documentos de Helmut estão em seu escritório. É a segunda porta à esquerda. Ela preferiu fingir não ter ouvido a pergunta dele sobre a criada e permaneceu sentada, sem se dar ao trabalho de lhe estender a mão. Ficou observando-o enquanto ele saía da sala, depois continuou a esperar o futuro.


Brunetti entrou no corredor e chegou à porta que ela lhe indicara. A primeira coisa que viu quando entrou na sala foi o envelope pardo da Questura, colocado sobre a mesa, fechado, ainda cheio de documentos. Sentou à mesa e puxou o envelope para perto de si. Só então olhou pela janela e observou a paisagem que se descortinava dali. À distância, divisava o altivo campanário de San Marcos e, à sua esquerda, a fachada severa do La Fenice. A custo ele desviou a atenção da janela e abriu o envelope. Brunetti deixou de lado os documentos, cuja tradução já lera. Ele sabia se tratar de contratos, cartas de fiança, projetos de gravações, que considerou sem importância para o caso.


Tirou três fotografias de um envelope. Como era de se esperar, o relatório que ele leu não fazia nenhuma menção às fotos, provavelmente porque nada estava escrito nelas. A primeira era de Wellauer e de sua mulher, tirada num lago. Eles estavam corados e saudáveis, e Brunetti teve que fazer um esforço para se lembrar de que o maestro tinha mais de setenta anos quando a fotografia foi tirada, porque, pensava, Wellauer não parecia muito mais velho que ele próprio. A segunda fotografia era de uma menina de pé ao lado de um pônei de aspecto dócil. Ela segurava as rédeas do cavalo com uma das mãos e um dos pés estava erguido, a meio caminho entre o chão e o estribo. Sua cabeça estava virada de forma um tanto desajeitada, pois certamente fora chamada pelo fotógrafo no momento em que estava prestes a montar. Era alta, esguia e tinha os mesmos cabelos loiros da mãe, descendo em duas longas tranças sob o boné de equitação. Pega de surpresa, ela não teve tempo de sorrir e parecia estranhamente sombria.


A terceira fotografia era dos três juntos. A menina, quase tão alta quanto à mãe, mas parecendo pouco graciosa mesmo naquela pose simples, estava no centro, os adultos um pouco atrás, se enlaçando com os braços. A menina parecia um pouco mais nova que na outra foto. Os três sorriam sem naturalidade para a câmera. O último objeto contido no envelope era uma agenda encadernada em couro, com o ano gravado em ouro na capa. Brunetti a abriu e folheou. Os nomes dos dias estavam escritos em alemão, e sob muitos deles se liam anotações naquela letra gótica angulosa que ele lembrava ter visto na partitura da Traviata. A maioria das anotações eram nomes de lugares e de óperas ou programas de concertos:


— Salz—dg; — Viena—Bailo; — Bonn—Moz 40; — Ldn—Cosi. Outras pareciam ser notas pessoais ou, pelo menos, sem relação com música: —Von S — 5 da tarde; — Erich & H — 8; — D&G chá — Demel — 4.


Partindo da data da morte do maestro, ele foi voltando as páginas que cobriam um total de três meses. Ele tinha uma agenda tão carregada que poderia exaurir um homem com metade da idade de Wellauer, uma lista de compromissos que ia ficando cada vez mais densa à medida que recuava no tempo. Interessado nesse aumento gradual, Brunetti abriu a agenda na parte referente a agosto e passou a ler daí por diante; dessa forma, viu a tendência de forma invertida, uma diminuição gradual no número de jantares, de chás, de almoços. Pegou uma folha de papel de uma das gavetas da mesa e logo montou um pequeno quadro: compromissos pessoais à direita, música à esquerda. Em agosto e setembro, exceto num período de duas semanas, em que não havia quase nenhuma anotação, houve certo tipo de compromisso quase diariamente. Em outubro, o número começou a decrescer e perto do final do mês quase não havia nenhum compromisso social. Mesmo os compromissos profissionais se reduziram de pelo menos dois por semana para apenas um ou dois em algumas semanas.


Ele pulou para o ano seguinte, que Wellauer nunca iria ver, e descobriu uma anotação para o final de janeiro. — Ldn — Cosi. O que chamou a atenção de Brunetti foi a pequena marca depois do nome da ópera. Era um ponto de interrogação ou apenas um acento mal grafado? Brunetti pegou outra folha de papel e fez uma segunda lista, dessa vez com as notas pessoais, a partir do mês de outubro. Para o dia seis: — Erich & H — 9 da noite. Já familiarizado com aqueles nomes, conseguia entender a anotação. Para o dia sete: — Erich — 8 da manhã. Dia quinze: — Petra & Nicolai — 8 da noite, e depois não havia nada até o dia 27, onde se lia a anotação — Erich — 8 da manhã. Parecia-lhe um horário esquisito para encontrar um amigo. A última anotação desse tipo foi feita dois dias antes de eles viajarem para Veneza: — Erich — 9 da manhã. E era só isso, exceto pela anotação que Brunetti leu referente ao dia 13 de novembro: — Veneza — Trav.


Brunetti fechou a agenda e recolocou-a no envelope, junto com as fotografias e documentos, dobrou os papéis onde fizera suas anotações e voltou à sala onde ficara a Sra. Wellauer. Ela estava no mesmo lugar, sentada em frente à lareira, fumando.


— O senhor acabou? Perguntou ela, quando ele entrou.

— Sim, terminei. Ainda segurando os papéis, ele disse: — Folheando a agenda de seu marido, observei que nos últimos meses ele teve muito menos atividades que no passado. Havia um motivo especial para isso? Ela pensou um pouco antes de responder.

— Helmut disse que estava se sentindo cansado, que já não tinha a energia de antes. Encontrávamos alguns amigos, mas não tanto como antes, como o senhor notou. Porém nem tudo o que fazíamos estava registrado na agenda.

— Eu não sabia disso. Mas estou interessado nessa sua mudança. A senhora não disse nada sobre isso quando perguntei sobre ele.

— Como o senhor deve lembrar, comissário, o senhor me perguntou sobre as minhas relações sexuais com meu marido. Infelizmente, elas não estão registradas na agenda.

— Observei que o nome Erich aparece com grande frequência.

— E por que isso pode ser importante?

— Eu não disse que é importante, signora; eu simplesmente disse que o nome aparece regularmente nos últimos meses de vida de seu marido. Ele aparece quase sempre junto com a inicial “H”, mas também sozinho.

— Eu lhe disse que nem todos os nossos compromissos eram anotados na agenda.

— Mas esses eram importantes o bastante para que seu marido os anotasse. Pode me dizer quem é esse Erich?

— É Erich. Erich e Hedwig Steinbrunner. Eram os amigos mais antigos de Helmut.

— E não da senhora?

— Eles se tornaram meus amigos, mas Helmut os conhecia há mais de quarenta anos e eu, apenas há dois anos, por isso os considero mais amigos de Helmut que meus.

— Entendo. A senhora poderia me dar o endereço deles?

— Comissário, não sei em que isso pode ser importante.

— Eu lhe expliquei por que penso que é importante. Se a senhora não deseja me dar o endereço, tenho certeza de que há outros amigos de seu marido que podem fornecê-lo.


Ela deu um nome de rua e explicou que ficava em Berlim, depois esperou enquanto ele pegava a caneta, colocando-a sobre a folha que tinha na mão. Quando Brunetti estava pronto para anotar, ela ditou devagar, soletrando cada palavra, inclusive o Strasse. Ele achou que foi uma forma um tanto excessiva de salientar sua estupidez.


— É só isso? Perguntou ela quando ele terminou de anotar.

— Sim, signora. Muito obrigado. Agora posso falar com sua criada?

— Não vejo em que isso poderia ajudar. Ele ignorou o comentário.

— Ela está aqui no apartamento?


Sem dizer nada, a Sra. Wellauer ficou de pé e foi até um canto da sala onde havia uma cordinha pendendo da parede. Ela a puxou, ainda calada, e foi se postar em frente à janela que dava para os telhados da cidade. Logo depois, a porta se abriu e a criada entrou na sala. Brunetti esperou que a signora Wellauer dissesse alguma coisa, no entanto ela permaneceu rígida, em frente à janela, ignorando ambos. Sem outra escolha, Brunetti falou de modo que ela ouvisse o que dizia à criada.


— Senhora Breddes, se possível, gostaria de lhe falar. A criada aquiesceu, mas não disse nada. — Talvez pudéssemos ir ao escritório do maestro, disse ele, mas a viúva continuou firme, se recusando a arredar o pé da janela. Brunetti foi até a porta e fez sinal para que a criada entrasse antes dele. Ele tomou o corredor, se dirigindo ao já então conhecido escritório. Uma vez neste, fechou a porta e indicou uma cadeira à criada. Ela se sentou, e ele retomou a cadeira que usara enquanto examinava os documentos.


Ela devia estar na casa dos cinquenta anos e usava uma roupa preta que tanto poderia ser um uniforme como um sinal de luto. O comprimento da saia, que ia até metade da perna, estava fora de moda, e o corte salientava a magreza do corpo, a estreiteza dos ombros, o peito chato. O rosto combinava perfeitamente com o corpo, os olhos demasiado pequenos e o nariz grande demais. Ela lhe lembrava, sentada tesa na beira do assento, uma daquelas aves marinhas pernaltas e de bico longo que costumavam pousar nos pilares que margeiam os canais.


— Gostaria de lhe fazer algumas perguntas, senhora Breddes.

— Senhorita, corrigiu ela automaticamente.

— Acho que não há problema em falarmos em italiano, não é?

— Claro que não. Há dez anos que moro aqui. Ela disse isso como se a pergunta a tivesse ofendido.

— Por quanto tempo a senhorita trabalhou para o maestro?

— Vinte anos. Dez na Alemanha e agora dez anos aqui. Quando o maestro comprou o apartamento aqui, ele me chamou para cuidar dele. Concordei. Eu seria capaz de ir a qualquer lugar pelo maestro. Pela maneira como falou, Brunetti imaginou que ela considerava viver num apartamento de dez aposentos em Veneza uma espécie de sacrifício a que se submetia apenas por causa de sua dedicação ao patrão.

— A senhorita é a responsável por esta casa?

— Sim. Estou aqui praticamente desde que ele o comprou. Ele veio e deu instruções sobre os móveis e os quadros. Eu fiquei encarregada de organizar tudo e de cuidar da casa na sua ausência.

— E quando ele estava aqui?

— Era eu quem cuidava também.

— Com que frequência ele vinha a Veneza?

— Duas ou três vezes por ano. Raramente mais que isso.

— Ele vinha a trabalho? Para reger?

— Às vezes. Mas vinha também para visitar amigos, a bienal. Ela falava como se aquilo tudo não passasse de frivolidades.

— Quando ele estava aqui, quais eram as suas responsabilidades?

— Eu cozinhava, mas quando havia festas vinha um cozinheiro italiano. Escolhia as flores. Supervisionava o trabalho das criadas. Elas são italianas. Isso, pelo que Brunetti entendeu, explicava a necessidade de supervisão.

— Quem fazia as compras da casa? A comida? Os vinhos?

— Quando o maestro estava aqui, eu programava as refeições e mandava as empregadas todos os dias a Rialto para comprar legumes frescos. Brunetti considerou que ela já estava pronta para ouvir as perguntas que realmente interessavam.

— Quer dizer então que quando o maestro se casou a senhora já trabalhava para ele aqui?

— Sim.

— Isso provocou alguma mudança? Quer dizer, quando ele vinha a Veneza.

— Não sei o que o senhor quer dizer, disse ela, embora fosse evidente que sabia.

— Na administração da casa. Suas responsabilidades mudaram depois que o maestro se casou?

— Não. Às vezes a signora cozinhava, mas não era muito frequente.

— Mais alguma coisa?

— Não.

— A presença da filha da signora trouxe algum problema para a senhorita?

— Não. Ela comia muita fruta. Mas não causava nenhum problema.

— Entendo, entendo, disse Brunetti, pegando um pedaço de papel do bolso e rabiscando distraidamente algumas palavras. — Diga-me, senhorita Breddes, durante as duas últimas semanas em que o maestro esteve aqui a senhorita notou alguma coisa... Bem, alguma diferença em seu comportamento, alguma coisa que lhe chamou a atenção por ser especial? Ela permaneceu calada, as mãos cruzadas no regaço. Por fim, falou:

— Não estou entendendo.

— Ele lhe pareceu um tanto estranho? Silêncio. — Bem, se não um tanto estranho, e Brunetti sorriu, como se quisesse fazê-la entender como aquilo era difícil para ele, — Um pouco diferente, fora do normal. Como ela continuasse calada, ele acrescentou: — Tenho certeza de que a senhorita deve ter notado alguma coisa, pois conhecia o maestro há muito tempo e com certeza estava mais familiarizada com ele que qualquer outra pessoa da casa. Era uma lisonja bem pouco discreta, porém isso não queria dizer que o truque não fosse funcionar.

— O senhor quer dizer em relação ao trabalho?

— Bem, principiou ele, com um sorriso de cumplicidade, — Podia ser em relação ao trabalho ou em relação a qualquer coisa. Talvez alguma coisa pessoal, algo que não tivesse a ver com a carreira dele ou com a música. Como lhe disse, tenho certeza de que a sua familiaridade com o maestro lhe permitiria notar alguma coisa desse tipo. Observando a isca balançando em frente a ela, Brunetti resolveu aproximá-la ainda mais. — Como a senhora o conhecia há tanto tempo, pode ter notado coisas que a outros passariam despercebidas.

— Sim, é verdade, admitiu. Ela passou nervosamente a língua pelos lábios, se aproximando um pouco mais da isca. Ele ficou calado, imóvel, para não agitar a água. A mulher começou a mexer maquinalmente num dos botões de sua roupa, puxando-o para frente e para trás, num movimento semicircular. Por fim resolveu falar. — Havia alguma coisa, mas não sei se é importante.

— Bem, talvez seja. Lembre-se, senhorita, qualquer coisa que me disser pode ser útil ao maestro. Algo lhe dizia que ela ficaria cega à estupidez daquela afirmação. Ele pôs a caneta sobre a mesa, cruzou as mãos, como um padre, e esperou que ela falasse.

— Havia duas coisas. Desde que ele chegou, desta última vez, parecia cada vez mais distraído, como se seus pensamentos estivessem em outro lugar. Não, não é bem isso. Era como se ele não se importasse mais com o que se passava à sua volta. Sua voz sumiu, podia se perceber que não estava satisfeito.

— Talvez a senhorita possa me dar um exemplo desse comportamento, disse ele encorajando-a. Ela balançou a cabeça, pois não gostara nada da ideia.

— Não, não estou falando direito. Não sei como explicar. Antigamente, ele me perguntava o que acontecera enquanto ele esteve fora, perguntava sobre a casa, sobre as empregadas, sobre o que eu tinha que fazer. Será que ela estava corando? — O maestro sabia que eu gosto de música, que eu ia a concertos e óperas quando ele estava fora, e sempre queria saber o que eu tinha visto e ouvido. Mas desta vez, quando ele chegou, não aconteceu nada disso. O maestro disse olá quando chegou, perguntou como eu estava, mas não pareceu se importar com o que eu lhe disse. Várias vezes, não, foi só uma vez, tive que ir ao seu escritório perguntar a que horas queria que o jantar fosse servido. Ele tinha ensaio naquela tarde e eu não sabia a que horas devia acabar, por isso fui ao escritório para perguntar. Eu bati e entrei, da forma como sempre fiz. No entanto ele me ignorou, fingiu que não me viu e me fez esperar alguns minutos enquanto terminava de escrever. Não sei por que fez isso, mas ele me deixou ali esperando, como um serviçal. Finalmente, fiquei tão sem jeito que queria sumir dali. Depois de vinte anos de serviço, ele não podia fazer aquilo comigo. Ficar ali esperando feito um criminoso na frente do juiz. Enquanto ela falava, Brunetti viu seus olhos se inflamarem à lembrança da humilhação. — Por fim, quando me voltei para deixar o escritório, ele levantou os olhos e agiu como se só então tivesse me visto. Como se tivesse aparecido de repente para lhe fazer uma pergunta. Perguntei-lhe quando estaria de volta para o jantar. Receio que tenha falado em tom de raiva. Levantei a voz para ele, pela primeira vez em vinte anos. Mas ele ignorou isso e me disse simplesmente a que horas pretendia voltar. Acho que então se arrependeu da maneira como tinha me tratado, porque me disse que as flores que eu escolhera eram muito bonitas. Ele sempre gostava de ter flores na casa quando estava aqui. Sua voz sumiu, pela segunda vez; depois ela deu uma informação despropositada. — Quem nos fornece as flores é Biancat. Vêm do outro lado do Grand Canal.


Brunetti não sabia se estava ouvindo uma história de humilhação ou de dor, ou de ambas. Ser criada durante vinte anos é certamente conquistar o direito de não ser tratada como uma criada.


— Houve outras coisas também, mas não prestei muita atenção a elas na ocasião.

— Que coisas?

— Ele parecia... Disse ela, procurando uma maneira de contar sem dizer algo que lhe ocorrera. — Ele parecia mais velho. É verdade que já não o encontrava havia um ano, porém ele parecia muito mais velho. Ele sempre parecera tão jovem, tão cheio de vida... Mas desta vez ele parecia um velho. Para demonstrar o que acabara de dizer, ela acrescentou: — Ele começou a usar óculos, mas não para ler.

— Isso lhe pareceu estranho, senhorita?

— Sim. As pessoas de minha idade geralmente começam a usar óculos para ler, para ver de perto, mas o maestro não os usava para leitura.

— Como a senhorita sabe?

— Porque às vezes eu levava chá para ele à tarde e o encontrava lendo, mas sem os óculos. Quando ele me via, os colocava, ou simplesmente fazia um sinal para que eu deixasse a bandeja, como se não quisesse ser incomodado ou interrompido. Ela parou.

— A senhorita falou que havia duas coisas. Pode me dizer qual era a outra?

— Acho que é melhor não dizer, ela respondeu nervosamente.

— Se não for importante, será esquecida. Mas, se for, pode nos ajudar a descobrir o culpado.

— Eu não tenho certeza; não tenho nenhuma certeza, disse ela fraquejando. — É só uma coisa que tive a impressão de sentir. Entre eles. A maneira como ela pronunciou a última palavra não deixava a menor dúvida sobre quem eram eles. Brunetti não disse nada, decidido a esperar que ela abrisse o jogo. — Desta vez eles estavam diferentes. Antes, estavam sempre... Não sei como dizer. Ficavam juntos, sempre juntos, falando, dividindo as coisas, se tocando. O tom de voz mostrava o quanto ela desaprovava a forma como as pessoas casadas se comportam. — Mas desta vez, quando chegaram, eles estavam diferentes um com o outro. Nada que uma pessoa de fora pudesse notar. Continuavam muito gentis um com o outro, mas não se tocavam mais, como faziam antes, quando não havia ninguém vendo. Entretanto, ao que parece, ela sim. A criada olhou para ele. — Mas acho que nada disso tem importância.

— Eu acho que sim, senhorita. A senhorita tem alguma ideia da causa dessa frieza entre eles? Brunetti viu a resposta, ou pelo menos a possibilidade de uma resposta, brilhar nos olhos dela, porém imediatamente sumiu. Ele se perguntou se ela se dera conta de que seus olhos a haviam traído. — A senhorita não tem nenhuma ideia? Insistiu, compreendendo imediatamente que tinha ido longe demais.

— Não, nenhuma. Ela balançou a cabeça negativamente, como para se livrar daquilo de uma vez por todas.

— A senhorita sabe se alguma outra criada pode ter notado isso? Ela se empertigou na cadeira.

— Esse não é o tipo de assunto que eu discutiria com criadas.

— Sim, claro, claro, murmurou ele. — Eu não quis insinuar isso. Dava para perceber que a criada já estava começando a se arrepender do que dissera. Era melhor minimizar o que ela dissera para que não hesitasse em repeti-lo, caso fosse necessário, ou acrescentar mais alguma coisa, se é que ainda era possível. — Aprecio muito o que me contou, senhorita. Isso confirma o que já sabia de outras fontes. Creio que nem é preciso dizer que tudo o que foi dito vai ser tratado como algo estritamente confidencial. Se a senhorita se lembrar de mais alguma coisa, me ligue na Questura, por favor.

— Não quero que o senhor pense... Principiou ela, mas não conseguiu achar uma palavra que definisse o que acabara de fazer.

— Pode ficar certa de que só penso que a senhorita continua sendo leal ao maestro. Como aquilo era verdade, era o mínimo que Brunetti podia lhe oferecer. As linhas do seu rosto se suavizaram um pouco. Ele se levantou e lhe estendeu a mão. A dela era pequena, de passarinho, surpreendentemente frágil. Ela o conduziu pelo corredor à porta do apartamento, desapareceu por um momento e voltou com o casaco dele. — Diga-me, senhorita, quais são os seus planos agora? Vai ficar em Veneza? Ela olhou para o policial como se ele fosse um louco que a tivesse parado na rua.

— Não. Pretendo voltar para Ghent o mais rápido possível.

— A senhorita tem uma ideia de quando vai partir?

— A senhora Wellauer precisa decidir o que vai fazer com o apartamento. Vou ficar até ela fazer isso, depois vou para minha terra natal.


Dizendo isso, ela lhe abriu a porta e fechou-a silenciosamente atrás dele. Enquanto descia os degraus, Brunetti parou no primeiro patamar e olhou pela janela. Ao longe, o anjo que fica no alto do campanário abria suas asas abençoando a cidade e todos os seus habitantes. “Mesmo que se passe o exílio na mais bela cidade do mundo”, pensou Brunetti, o exílio continua sendo exílio.


* * *


Dezesseis

COMO ELE ESTAVA bem perto do teatro, se dirigiu diretamente para lá, parando apenas para comer um sanduíche com um copo de cerveja. Na verdade não estava com fome, apenas com o vago mal-estar que sentia toda vez que passava muito tempo sem comer. Na entrada dos artistas, mostrou sua carteira de identidade e perguntou se o Sr. Traverso já havia chegado. O porteiro lhe disse que Traverso chegara há quinze minutos e que estava esperando pelo comissário no bar que ficava nos bastidores. Brunetti encontrou um homem alto e de aspecto cadavérico que se parecia muito com o primo, o dentista de Brunetti. O barulho e a confusão provocados pelas muitas pessoas que iam e vinham, com e sem trajes de cena, dificultavam a conversa entre eles, por isso Brunetti sugeriu que procurassem um lugar mais tranquilo.


— Desculpe-me, disse o músico. — Devia ter pensado nisso. O único lugar aonde podemos ir é um dos camarins que não estão sendo usados. O homem pôs o dinheiro no balcão do bar, pegou a caixa com o violino e saiu na frente, conduzindo Brunetti através do teatro, alcançando as escadas que este usara da primeira vez que estivera lá. No alto da escada, uma mulher corpulenta, com uma bata azul, veio lhes perguntar o que desejavam.


Traverso trocou algumas palavras com ela, explicando quem era Brunetti e o que ele queria. Ela aquiesceu e conduziu-os por um corredor estreito. Tirando um enorme molho de chaves do bolso, abriu uma porta e se afastou um pouco para que eles pudessem entrar. Era um lugar em que não havia nenhum glamour teatral, apenas uma salinha com duas cadeiras, uma de cada lado de uma mesa baixa e um banco em frente a um espelho. Eles se sentaram nas cadeiras, um de frente para o outro.


— Durante os ensaios, o senhor notou alguma coisa não habitual? Perguntou Brunetti. Como não queria sugerir o que estava querendo descobrir, Brunetti fez essa pergunta de ordem bem geral, tão geral, pensou ele, que praticamente não tinha sentido.

— O senhor se refere à apresentação? Ou ao maestro?

— Refiro-me aos dois, a ambos.

— A apresentação? A mise-en-scène e os cenários eram novos, mas os trajes já tinham sido usados duas vezes. Contudo, os cantores são bons, exceto o tenor. Merecia morrer. Mas não é culpa dele. É por causa da má direção, do maestro. Todos nos perguntávamos o que se esperava de nós. Bem, talvez não no começo, mas na segunda semana. Acho que estávamos tocando de memória. Não sei se me faço entender.

— O senhor poderia ser mais preciso?

— Era Wellauer; era como se ele tivesse envelhecido de repente. Eu já tinha tocado com ele antes. Duas vezes. O melhor maestro com quem trabalhei. Não há ninguém como ele, embora muitos procurem imitá-lo. Da última vez, tocamos Cosi com ele. Nunca tocamos tão bem. Só que desta vez não foi assim. De repente ele ficou velho. Era como se não estivesse prestando atenção ao que estava fazendo. Vez por outra, quando estávamos num crescendo, ele fuzilava com um olhar e com a batuta alguém que estivesse atrasado um oitavo do tempo que fosse. Era magnífico. Mas no resto do tempo era um vale-tudo. Porém, ninguém dizia nada. Cada um de nós parecia ter decidido consigo mesmo tocar a música tal como estava na partitura e se orientar pelo primeiro violino. Acho que a coisa funcionou. O maestro parecia contente com aquilo. Mas não era como nos outros tempos.

— O senhor acha que o maestro percebia o que estava acontecendo?

— O senhor quer dizer se ele sabia que estávamos tocando mal?

— Sim.

— Ele devia saber, sim. Um sujeito não pode ser o melhor regente do mundo e não ouvir o que sua orquestra está executando, pode? Mas era como se na maior parte do tempo ele estivesse pensando em outra coisa. Como se não estivesse ali, como se não estivesse prestando atenção.

— E quanto à noite da apresentação? O senhor notou alguma coisa anormal?

— Não. Não notei. Estávamos todos muito preocupados em tocar em sintonia, para evitar um desastre.

— Nada mesmo? Ele não falou com ninguém de um jeito estranho?

— Naquela noite ele não falou com ninguém. Nós só o vimos quando ele veio se encontrar conosco no fosso da orquestra e subiu no pódio. O músico fez uma pausa, vasculhando a memória. — Estou lembrando uma coisa, mas não sei se vale a pena dizer.

— O quê?

— Foi no fim do segundo ato, logo depois da grande cena em que Alfredo joga dinheiro a Violetta. Não sei como os cantores conseguiram se sair daquilo. Estávamos na maior confusão. Bem, a cena acabou, o público, essa gente não tem ouvidos, começou a aplaudir e o maestro deu um risinho de quem acabou de ouvir uma coisa engraçada. Então largou a batuta. Não a jogou no pódio, como costumava fazer. Soltou-a com todo o cuidado, e sorriu novamente. Depois, desceu do pódio e foi para os bastidores. Essa foi a última vez que o vi. Imaginei que estivesse sorrindo porque o ato acabara e o resto iria ser mais fácil. Aí mudaram o maestro para o terceiro ato. Ele olhou o relógio. — Talvez não seja bem isso que o senhor está procurando. O músico pegou a caixa com o violino, e Brunetti lhe disse:

— Uma última coisa. Será que o resto da orquestra notou? Não o sorriso, mas que ele estava diferente?

— Muitos deles notaram, principalmente os que tinham tocado com ele antes. Quanto aos outros, não saberia dizer. Trabalhamos com maestros tão ruins que não sei se notam alguma diferença entre eles. Talvez eu tenha prestado mais atenção ao maestro por causa de meu pai. Ele notou que Brunetti não tinha entendido e explicou. — Meu pai tem oitenta e sete anos. Ele faz a mesma coisa: olha por cima dos óculos para nós como se estivéssemos escondendo algum segredo dele e quisesse saber o que é. Ele consultou novamente o relógio. — Tenho que ir embora. Faltam apenas dez minutos para começar o espetáculo.

— Obrigado pela ajuda, disse Brunetti, embora não soubesse ao certo o que fazer com o que o músico lhe dissera.

— Sinto como se tudo não passasse de meras impressões. Nada mais que isso. Mas espero que possa ajudar.

— Será que há algum problema se eu ficar no teatro durante o espetáculo? Perguntou Brunetti.

— Não, acho que não. Mas quando sair avise Lúcia, para que ela feche esta sala à chave. Em seguida, acrescentou apressadamente: — Tenho que ir.

— Obrigado mais uma vez.

— Por nada. Trocaram um aperto de mão e o músico saiu.


Brunetti continuou na sala, pensando em aproveitar a oportunidade para ver como era o movimento de pessoas nos bastidores durante a apresentação e durante os intervalos e com que facilidade se poderia entrar e sair do camarim do maestro sem ser notado. Ficou na sala por uns quinze minutos, se sentindo grato pela oportunidade de estar sozinho num lugar tranquilo. Pouco a pouco, todo o barulho que chegava até ele cessou e ele imaginou que os cantores deviam ter descido para tomar seus lugares no palco. Continuou na sala, desfrutando o silêncio. Brunetti ouviu a abertura, abafada pelos tabiques, e achou que já era tempo de ir ao camarim do maestro. No corredor, olhou em volta tentando descobrir onde estava a mulher que os levara à sala, mas não a viu. Como devia cuidar para que a porta fosse fechada, foi pelo corredor até a escada, olhou para baixo.


— Signora Lúcia, chamou, porém ninguém respondeu. Foi até o camarim mais próximo e bateu, sem ouvir resposta. Nem no segundo. No terceiro, alguém disse: “Avanti” e ele abriu a porta, pronto para explicar que deixara a porta aberta e que era necessário fechá-la a chave. — Signora Lúcia, principiou ele entrando na sala, mas estacou quando viu Brett Lynch sentada confortavelmente numa poltrona, com um livro aberto no colo e um copo de vinho tinto na mão. Ela ficou tão surpresa quanto ele, no entanto se recompôs mais rapidamente.

— Boa noite, comissário. Posso ajudá-lo em alguma coisa? Ela colocou o copo na mesa próxima à poltrona, fechou o livro e sorriu.

— Queria avisar a senhora Lúcia que podia fechar a porta do outro camarim, explicou.

— Com certeza ela está lá embaixo, olhando dos bastidores. É uma grande fã de Flavia. Quando ela subir, lhe digo que pode fechar a porta a chave. Não se preocupe, vão cuidar disso.

— É muita gentileza sua. Você não está vendo o espetáculo?

— Não, respondeu ela. Percebendo a reação dele, ela perguntou: — Isso o surpreende?

— Não sei se sim ou se não. Mas se eu perguntei é porque sim. O sorriso com que ela respondeu à observação agradou a Brunetti porque não era o tipo de reação que esperava da americana e também porque suavizava as linhas de seu rosto anguloso.

— Se o senhor prometer não contar a Flavia, eu vou confessar que não gosto muito de Verdi nem da Traviata.

— Por que não? Perguntou ele, intrigado com a revelação de que a secretária e amiga, vamos chamar assim, da mais famosa soprano de Verdi não gostava de Verdi.

— Por favor, comissário, sente, convidou ela, indicando uma poltrona diante da sua. — Não vai acontecer lá grande coisa, ela olhou o relógio rapidamente, nos próximos vinte e quatro minutos. Brunetti sentou na poltrona que ela lhe indicara, mudou de posição para que ficasse bem voltada para a dela e perguntou:

— Por que a senhora não gosta de Verdi?

— Não é bem isso. Gosto de algumas músicas. Otelo, por exemplo. Mas não é do século que me agrada.

— Qual a senhorita prefere? Ele perguntou, embora já imaginasse o que ela iria responder. Rica, americana, de espírito moderno, só poderia gostar do século em que vivia, o século que fez dela o que ela era.

— O século dezoito, respondeu ela, para surpresa do policial. — Mozart e Handel; e, por meus pecados, Flavia não mostra interesse em cantar nenhum dos dois.

— A senhorita tentou convertê-la? Ela pegou o copo, tomou mais um pouco de vinho e recolocou-o na mesa.

— Eu a converti a algumas coisas, mas me parece impossível tentar afastá-la de Verdi.

— Para grande sorte nossa, respondeu ele, adotando o seu tom de ironia, que insinuava muito mais do que dizia. — Mas sempre lhe restam outras coisas. Ela o surpreendeu dando uma gargalhada, e ele se surpreendeu acompanhando-a.

— Bem, está feito, confessei. Agora acho que podemos falar como seres humanos e não como personagens de um romance barato.

— Seria muito melhor assim, signorina.

— Meu nome é Brett, e sei que o seu é Guido, disse ela, passando a tratá-lo informalmente e com isso dando o primeiro passo para um relacionamento mais próximo. Ela se levantou da poltrona e foi até uma pequena pia a um canto. Pegou a garrafa que lá estava e pôs vinho em outro copo, veio com os dois na mão e ofereceu um a ele. — O senhor voltou aqui para falar com Flavia? Perguntou ela.

— Não, não pretendia isso. Mas vou ter que falar com ela mais cedo ou mais tarde.

— Por quê?

— Para perguntar o que ela foi fazer no camarim de Wellauer depois do primeiro ato. Ela não mostrou nenhum sinal de surpresa. — Você tem uma ideia do motivo?

— Por que o senhor diz que ela esteve lá?

— Porque pelo menos duas pessoas a viram entrar. Depois do primeiro ato.

— Mas não depois do segundo?

— Não, não depois do segundo.

— Ela estava aqui, comigo, depois do segundo ato.

— Da última vez que conversamos, você também disse que ela estava com você depois do primeiro ato. E não estava. Por que eu deveria acreditar que está falando a verdade agora, quando mentiu da outra vez? Brunetti tomou um gole de vinho. Barolo, e muito bom.

— É a verdade.

— Por que eu acreditaria nisso?

— Acho que na verdade o senhor não tem motivo para isso. Ela tomou mais um pouco de vinho, como se os dois tivessem toda a noite para conversar. — Mas ela estava. Ela esvaziou o copo e pôs mais um pouco de vinho nele. — Flavia foi vê-lo depois do primeiro ato. Ela me contou. Havia dias que ele vinha fazendo a maior guerra de nervos com ela, ameaçando-a de escrever para seu ex-marido. Tanto que ela resolveu ir falar com ele.

— O momento não me parece bem escolhido. Durante uma apresentação.

— Flavia é assim mesmo. Ela não pensa muito no que está fazendo. Ela simplesmente age, faz o que quer fazer. Essa é uma das razões pelas quais é uma grande cantora.

— Deve ser difícil conviver com isso. Ela sorriu.

— É, mas tem suas compensações.

— O que ela lhe contou? Perguntou Brunetti. Como a americana não entendeu a pergunta, ele acrescentou: — Da conversa com Wellauer.

— Disse que eles discutiram. Ele não deu uma resposta clara sobre se escrevera ou não ao marido dela. Ela só falou isso, mas ainda estava tremendo de raiva quando voltou para cá. Não sei como conseguiu cantar.

— E ele escreveu ao marido dela?

— Não sei. Ela não falou mais nada sobre isso. Desde aquela noite. Ela notou a surpresa dele. — Como eu lhe disse, Flavia é assim. Quando está cantando, não gosta de falar sobre nada que a esteja preocupando. Depois acrescentou, em tom de pesar: — Ela também não gosta de falar quando não está cantando. Diz que lhe tira a concentração pensar em qualquer coisa que não seja música. E acho que todo mundo tem se contentado com essa explicação. Como também é o meu caso.

— Wellauer seria capaz de escrever ao marido dela?

— O homem era capaz de qualquer coisa. Pode acreditar. Ele se via como uma espécie de guardião da moral. Não suportava saber que alguém vivia fora de seus padrões de certo e errado. Enlouquecia só de pensar que alguém fosse capaz de ousar tal atitude. Ele achava que tinha um direito divino de fazer justiça, a justiça dele.

— E o que Flavia seria capaz de fazer?

— Flavia?

— Sim. A pergunta não a surpreendeu.

— Não sei. Acho que ela não seria capaz de fazer aquilo, não a sangue-frio. Ela seria capaz de fazer qualquer coisa para manter a guarda dos filhos, mas não acho... Não, dessa maneira não. Além do mais, ela não iria sair por aí carregando veneno, iria? A americana parecia aliviada de ter pensado naquilo. — Mas a coisa ainda não acabou. Se houver um processo ou um simples depoimento, então virá a público tudo o que discutiram, não é? Brunetti aquiesceu. — E para o marido dela seria o bastante.

— Não sei se é bem assim, disse Brunetti.

— Ora, vamos, respondeu ela, ríspida. — Estamos na Itália, na terra da família feliz, a sagrada família. Ela pode ter quantos amantes quiser, desde que sejam homens. Seria uma forma de reentronizar o pai, uma espécie de pai, na casa. Mas no momento em que isto vier a público, ela não vai ter nenhuma chance contra ele.

— Não acha que está exagerando?

— Exagerando o quê? Perguntou ela. — Minha vida nunca foi segredo. Sempre fui rica o bastante para não precisar me preocupar com o que as pessoas pensam ou falam de mim. Mas isso não as impedia de falar. Por isso, ainda que nada pudesse ser provado contra nós, pense só no que um juiz inteligente iria dizer: “A soprano com uma secretária milionária”. A coisa saltaria aos olhos.

— Ela podia mentir, disse Brunetti, sugerindo o perjúrio.

— Com um juiz italiano, penso que não faria muita diferença. Além do mais, acho que ela não iria mentir. Não sobre esse assunto. Flavia realmente acha que está acima da lei. Ela pareceu se arrepender imediatamente do que acabara de dizer. — Mas ela é só de falar, como no palco. É capaz de gritar, de se enfurecer, mas isso não passa de gestos. Nunca soube de um ato de violência de sua parte contra ninguém. São só palavras.


Brunetti era italiano o bastante para saber que as palavras podiam facilmente se transformar em outra coisa, ainda mais se tratando de uma mãe lutando por seus filhos, porém guardou esse pensamento consigo.


— Você não se importa se lhe fizer algumas perguntas pessoais?


Ela soltou um suspiro de cansaço, já prevendo o que estava por vir, e balançou a cabeça afirmativamente.


— Alguém já tentou fazer chantagem contra uma de vocês? Com certeza não era aquele tipo de pergunta que ela temia.

— Não, nunca. Nem a mim nem a Flavia, ou pelo menos ela nunca me falou nada disso.

— E as crianças? Como é seu relacionamento com elas?

— Ótimo. Paolo tem treze e Vittoria, oito, de forma que pelo menos ele pode ter uma ideia do que está acontecendo. Mas também nesse caso Flavia não contou nada a eles, nada foi dito. Ela deu de ombros, magnânima, e com aquele gesto deixou de ser italiana, se mostrando totalmente americana.

— E o futuro?

— Você quer dizer a velhice? Quando então iremos juntas tomar chá da tarde no Florian’s? O quadro era muito mais sereno do que Brunetti imaginara, mas ele aquiesceu. — Não tenho ideia. Quando estou com ela, não consigo trabalhar, por isso tenho que me decidir quanto a isso, saber o que realmente quero.

— Qual é o seu trabalho?

— Sou arqueóloga. Faço pesquisas na China. Foi assim que encontrei Flavia. Participei da organização de uma exposição de arte chinesa no Palácio dos Doges, há três anos. Os mandachuvas a convidaram porque ela estava cantando Lúcia no La Scala. E então ela foi à recepção que se seguiu à inauguração. Logo depois tive que ir a Xian; é lá que estão sendo feitas as escavações em que estou trabalhando. Somos apenas três, três ocidentais. E já estou afastada há três meses, e agora tenho que voltar para lá, senão serei substituída.

— São aqueles soldados? Perguntou ele, ainda se lembrando das estátuas de terracota da exposição, cada uma com traços individuais e semelhantes ao retrato de um homem.

— Aquilo foi só o começo, disse ela. — Há milhares delas, mais do que podemos imaginar. Nem ao menos começamos a escavar o tesouro no túmulo central. Você não imagina quanta burocracia administrativa temos que enfrentar. Mas no outono passado conseguimos permissão para trabalhar no túmulo do tesouro. Do pouco que vi, vai ser a maior descoberta arqueológica desde a do túmulo de Tutancâmon. Na verdade, não haverá nada que se compare, quando começarmos a retirar o que está enterrado lá.


Brunetti sempre achou que a paixão dos eruditos era uma invenção de pessoas que escreviam livros, uma tentativa de torná-los mais humanos. Observando-a, ele se deu conta do quanto se enganara.


— Mesmo seus instrumentos são bonitos, mesmo as tigelinhas em que os operários comiam.

— E se você não voltar para lá?

— Se eu não voltar, perco tudo isso. Não a fama. Só os chineses a merecem. Mas a oportunidade de ver aquelas coisas, de tocá-las, de ter uma ideia bastante aproximada de como eram as pessoas que as produziram. Se eu não voltar, perco tudo isso.

— E essas coisas são mais importantes para você que isto aqui? Perguntou ele, abarcando com um gesto o camarim.

— Essa não é uma pergunta que se faça. Ela fez seu próprio gesto largo, abrangendo com ele a penteadeira com seus cosméticos, os trajes de cena pendurados atrás da porta, as perucas nos respectivos suportes. — Este tipo de coisa não é o meu futuro. O meu é feito de vasos, de fragmentos, de restos de uma civilização de milhares de anos. E Flavia está aqui, em meio a isto. Dentro de cinco anos, ela será a maior cantora de Verdi do mundo. Acho que aí não há lugar para mim. É algo de que ela ainda não se deu conta, mas eu já lhe disse como Flavia é. Ela só vai pensar nisso quando acontecer.

— Mas você pensou, não é?

— Naturalmente.

— O que vai fazer?

— Ver o que acontece aqui, com essa história toda. Ela repetiu o gesto, dessa vez abarcando a morte que tivera lugar naquele teatro há quatro noites. — Então vou voltar para a China. Ou pelo menos acho que vou.

— Assim, sem mais nem menos?

— Não “sem mais nem menos”, mas de qualquer forma vou.

— Você acha que vale a pena? Perguntou ele.

— O que vale a pena?

— A China. Ela deu de ombros novamente.

— É o meu trabalho. É o que faço. E é também uma coisa que amo. Não posso passar a minha vida sentada em camarins, lendo poesia chinesa e esperando que a ópera acabe para que eu possa viver minha vida.

— Já contou a ela?

— Já contou a mim o quê? Perguntou Flavia Petrelli, fazendo uma entrada absolutamente teatral e batendo a porta atrás de si. Ela atravessou a sala qual um barco seguido de sua esteira, a cauda de um vestido azul-claro. “Estava totalmente transfigurada, radiante, tão linda quanto uma mulher podia ser”, pensou Brunetti. E isso não se devia à roupa ou à maquiagem; Flavia estava vestida de acordo com o que ela era e com o que fazia. Isso a transfigurara. Seu olhar deslizou pela sala, notou os dois copos e como os outros dois estavam à vontade. — Ela me disse o quê? Perguntou pela segunda vez.

— Que ela não gosta da Traviata, disse Brunetti. — Achei estranho encontrá-la aqui lendo, enquanto a senhora cantava, e ela explicou que não é a sua ópera preferida.

— Também é muito estranho encontrá-lo aqui, comissário. E eu sei que esta ópera não está entre as suas prediletas. Ela não deixou transparecer nenhum sinal de que não acreditara nele. Brunetti se levantou à sua entrada. Flavia passou em frente dele, pegou um dos copos do balcão e encheu-o com água mineral, que bebeu em quatro goladas. Encheu-o novamente e tomou metade do conteúdo. — É como estar numa sauna, com todos aqueles refletores. Terminou de tomar a água e devolveu o copo ao balcão. — Sobre o que estavam falando?

— Ele lhe disse, Flavia. La Traviata.

— É mentira, replicou a cantora. — Mas não tenho tempo para falar sobre isso. Se voltando para Brunetti, ela disse com a voz cheia de cólera e o tom agudo que tem a voz das cantoras que acabam de cantar: — Pode fazer a gentileza de sair do meu camarim? Eu gostaria de me trocar para o próximo ato.

— Claro, signora, disse ele, com toda a polidez. Fazendo um aceno para Brett, que lhe respondeu com um breve sorriso, permanecendo, porém, em sua poltrona, Brunetti saiu depressa da sala. Do lado de fora ele parou e tentou ouvir alguma coisa, o ouvido próximo à porta, sem a menor vergonha do que estava fazendo. Mas o que quer que tenham conversado, falaram em voz baixa.


A mulher de bata azul apareceu no topo da escada. Brunetti se afastou rapidamente da porta e se dirigiu a ela. Explicou-lhe que ela já podia fechar o camarim a chave, sorriu, agradeceu e desceu as escadas chegando aos bastidores, onde encontrou uma desordem que o surpreendeu. Mulheres de vestido longo, encostadas às paredes, fumavam e riam. Um grupo de homens de smoking falava de futebol. E empregados do teatro iam e vinham em todos os sentidos, trazendo samambaias de papel e bandejas nas quais se encontravam colados copos de champanhe. O camarim do maestro ficava no pequeno corredor à direita, e nele se encontrava, com a porta fechada, o novo maestro. Brunetti ficou no fim do corredor por pelo menos dez minutos, e ninguém veio lhe perguntar quem ele era ou o que estava fazendo ali. Finalmente, soou uma campainha e um homem de barba, de casaco e gravata foi passando, pelos grupos dos bastidores, um a um, apontando em várias direções e enviando-os às tarefas que deles se esperavam.


O maestro saiu do camarim, fechou a porta atrás de si e passou por Brunetti sem prestar atenção nele. Logo que ele se foi, Brunetti percorreu o corredor e entrou na sala. Ninguém o viu entrar ou, se viu, não se deu ao trabalho de perguntar o que ele estava fazendo ali. Nada havia mudado na sala desde a noite do crime, exceto que havia uma pequena xícara e um pires na mesa, e não no chão. Ele ficou no camarim por um instante, depois saiu. Sua saída foi tão pouco notada quanto sua entrada, e isso apenas quatro dias depois que um homem fora assassinado naquela sala.


* * *


Dezessete

QUANDO Brunetti chegou em casa, já estava muito tarde para levar Paola e as crianças para jantar, como ele lhes prometera para aquela noite; além do mais, enquanto subia as escadas sentiu o cheiro de alho e de sálvia. Ao entrar no apartamento, ficou por um instante totalmente desorientado, pois a voz de Flavia Petrelli, que ele ouvira pela última vez interpretando Violetta vinte minutos antes, estava cantando o segundo ato em sua sala de estar. Brunetti deu dois passos rápidos e absolutamente involuntários para frente, e logo se lembrou de que a ópera estava sendo transmitida ao vivo pela televisão. Paola não era grande apreciadora de ópera; estava assistindo ao programa para tentar descobrir qual dos cantores poderia ser o assassino. E ele tinha certeza de que essa sua curiosidade era partilhada em milhões de lares, em toda a Itália. Da sala de estar, ele ouviu a voz de sua filha Chiara gritar:


— Papai já chegou, depois do que Violetta pediu a Alfredo que a deixasse para sempre.


Ele entrou na sala justamente no momento em que o tenor jogou um punhado de notas de dinheiro no rosto de Flavia Petrelli. Ela se prostrou no chão, graciosamente, em lágrimas; o pai de Alfredo atravessou o palco para recriminar o filho, e Chiara perguntou:


— Por que ele fez isso, papai? Eu pensei que ele gostava dela. Ela olhou para ele, levantando os olhos do que parecia ser uma tarefa escolar e, como o pai não respondeu, repetiu a pergunta. — Por que ele fez isso?

— Ele pensou que ela estava saindo com outro homem, foi a resposta mais convincente que Brunetti conseguiu dar, à guisa de explicação.

— E que diferença isso podia fazer? Eles não estavam casados nem nada.

— Ciao, Guido, disse Paola, da cozinha.

— Bem, insistiu Chiara. — Por que ele está com tanta raiva? Brunetti foi ao aparelho de televisão e abaixou o volume, se perguntando o que fazia os adolescentes ficarem surdos. Pela forma como ela segurava e agitava o lápis no ar, ele percebeu que a filha não iria desistir facilmente. Resolveu contemporizar.

— Eles estavam morando juntos, não estavam?

— Sim, e daí?

— Bem, quando as pessoas moram juntas, normalmente elas não saem com outras pessoas.

— Mas ela não estava saindo com ninguém. Ela só fingiu para que ele achasse que ela estava.

— Acho que ele acreditou nisso e ficou com ciúmes.

— Ele não tinha nenhum motivo para ter ciúmes. Ela o ama de verdade. Qualquer um pode ver isso. Ele é um cretino! Além do mais, o dinheiro é dela, não é?

— Hmm, fez ele para ganhar tempo, tentando se lembrar da trama da ópera.

— Por que ele não saiu para procurar um emprego? Enquanto ela o sustentasse, tinha todo o direito de fazer o que bem quisesse. O público aplaudiu calorosamente.

— Nem sempre é assim, meu anjo.

— Bem, às vezes é, não é, papai? Por que não? Com a maioria dos meus amigos, quando suas mães não trabalham como mamãe, os pais geralmente decidem sobre tudo: para onde vão nas férias, tudo. E alguns deles arrumam até amantes. Este último comentário foi feito sem muita segurança, em tom mais de pergunta que de afirmação. — E eles fazem isso porque são eles que ganham o dinheiro, por isso dizem aos outros o que devem fazer. Nem a própria Paola, pensou Brunetti, teria feito uma síntese tão perfeita do sistema capitalista. Na verdade, foi a voz da própria esposa que ele ouviu nos comentários da filha.

— As coisas não são tão simples, querida. Ele afrouxou o nó da gravata. — Chiara, será que você pode ser um anjo de candura e ir à cozinha pegar um copo de vinho para seu pobre e velho pai?

— Claro. Ela largou o lápis, ansiosa para abandonar aquele assunto. — Branco ou tinto?

— Veja se tem algum Prosecco. Se não tiver, pode me trazer um que você ache que vou gostar. No jargão da família, isso significava que ela podia pegar o vinho que ela própria queria provar.


Brunetti se deixou cair no sofá e tirou os sapatos, apoiando os pés na mesinha. Ouviu a voz do locutor fazendo uma resenha, aliás absolutamente inútil, dos acontecimentos dos últimos dias. O tom sensacionalista fazia com que soassem como uma ópera do pior repertório verdista. Chiara voltou à sala. Ela era alta, meio desastrada. De longe, Brunetti sabia quando era ela que estava lavando a louça, pois a casa se enchia de barulho de pratos batendo uns contra os outros. Mas era bonita, e talvez se tornasse bela, com os olhos muito separados e a leve penugem sob as orelhas que enchiam seu coração de ternura quando a luz incidia sobre ela sob certos ângulos.


— Fragolino, disse a menina atrás dele, e lhe passou o copo, conseguindo derramar apenas uma gota, assim mesmo no chão. — Posso tomar um golinho? Mamãe não queria que eu abrisse. Ela disse que só tem mais uma garrafa além dessa, mas eu disse que você está muito cansado, então ela falou que podia abrir. Mesmo antes de ele consentir, ela pegou o copo de volta e tomou um gole. — Como é que um vinho pode ter cheiro de morango, papai? E como é possível que, quando as crianças estão bem-dispostas em relação a você, você sabe tudo e, quando elas ficam com raiva, você não sabe nada?

— É a uva. Ela tem cheiro de morango, por isso o vinho fica com o mesmo cheiro. Ele cheirou, depois provou, a verdade do que dissera. — Você está fazendo suas tarefas?

— Sim, de matemática, disse ela, pronunciando a palavra com um entusiasmo que o surpreendia. Mas era a própria Chiara, lembrou o pai, que lhe explicava os extratos bancários a cada três meses e que iria fazer a declaração de imposto de renda dele no próximo mês de maio.

— Que parte da matemática? Perguntou ele, fingindo estar interessado.

— Oh, o senhor não ia entender, papai. Depois, rápida como um raio: — Quando o senhor vai comprar um computador para mim?

— Quando ganhar na loteria. Brunetti desconfiava que seu sogro ia dar a ela um laptop de presente de Natal e ele não gostava da ideia nem de não gostar da ideia.

— Oh, papai, você sempre diz isso. Chiara se sentou na frente dele, apoiou os pés na mesa que havia entre eles, colando as plantas dos seus nas plantas dos pés do pai. Ela empurrou de leve o pé dele. — Maria Rinaldi tem, Fabrizio também, e nunca vou conseguir ir bem na escola, bem de verdade, se não tiver um computador.

— Parece que você vai indo muito bem usando o lápis.

— Claro que dá para fazer isso. Mas isso me toma um tempo danado.

— Não é melhor para sua mente se você a exercita, em vez de deixar a máquina fazer isso?

— Isso é uma bobagem, papai. O cérebro não é um músculo. Estudamos isso em biologia. Além disso, você não vai sair pela cidade para conseguir informações se pode usar o telefone para isso, não é? Ele apertou os pés contra os da filha, mas não respondeu. — Não é mesmo, papai?

— E o que você faria com o tempo que economizasse?

— Eu iria resolver problemas mais complicados. O computador não faz isso por mim, papai. É sério. Só torna as coisas mais rápidas. E apenas uma máquina que soma e subtrai um milhão de vezes mais rápido que nós.

— Você tem ideia de quanto custa uma coisa dessas?

— Claro. O pequeno Toshiba que eu quero custa dois milhões de liras.


Por sorte, Paola entrou na sala naquele momento, senão ele teria que dizer a Chiara quais as suas chances de ganhar um computador daqueles. Como aquilo a levaria a falar no avô, Brunetti ficou duplamente contente em ver Paola. Ela trazia a garrafa do Fragolino e outro copo. No mesmo instante, o vozerio na televisão foi diminuindo, sendo substituído pelo prelúdio do terceiro ato. Paola colocou a garrafa na mesa e se sentou no braço da poltrona dele. Na tela, a cortina se abriu, mostrando uma peça nua. Era difícil para Brunetti reconhecer Flavia Petrelli, que ele vira na plenitude de sua beleza pouco mais de meia hora antes, na frágil silhueta envolta num xale, prostrada num divã, com uma mão que pendia molemente, roçando o chão. Ela se parecia mais com a Sra. Santina que com uma famosa cortesã. As olheiras escuras, a dor dos lábios distendidos exprimiam de forma convincente a enfermidade e o desespero. Até a sua voz, quando pediu a Annina que desse o pouco dinheiro que tinha aos pobres, era fraca, cheia de dor e sofrimento.


— Ma é muito boa, disse Paola. Brunetti fez sinal para que ela se calasse. Eles ficaram assistindo.

— E ele é um cretino, acrescentou Chiara quando Alfredo entrou na sala e tomou Violetta em seus braços.

— Psiiiu, fizeram os dois para a filha. Ela voltou aos seus números, murmurando: — Idiota, mas alto o bastante para que os pais a ouvissem.


Brunetti observou o rosto de Petrelli se transformar com a alegria do reencontro, viu-o resplandecer de pura alegria. Juntos, eles fizeram planos para o futuro que nunca haveriam de viver, e sua voz mudou; ele ouviu-a renascer em toda a sua força e limpidez. A alegria fê-la se levantar, erguer os braços ao céu.


— Sinto-me renascer, exclamou Violetta; depois disso, como se tratava de uma ópera, ela caiu imediatamente e morreu.

— Eu ainda acho que ele é um idiota, insistiu Chiara quando Alfredo começou a se lamentar, sob os aplausos arrebatados do público. — Mesmo que ela não morresse, como eles iriam se sustentar? Será que ela ia voltar a fazer o que fazia antes de conhecê-lo? Brunetti queria saber o quanto sua filha sabia sobre aquele tipo de coisa. Tendo dado sua opinião, Chiara escreveu uma longa fileira de números na parte inferior de sua folha de papel, colocou-a entre as folhas do livro de matemática e fechou-o.

— Eu não sabia que ela era tão boa, disse Paola respeitosamente, ignorando por completo os comentários de sua filha. — Como ela é? A pergunta era bem ao seu estilo. O envolvimento da mulher num caso de homicídio não foi bastante para despertar o interesse de Paola por ela, até ver do que ela era capaz em cena.

— É uma cantora como qualquer outra, disse ele.

— Sim, e Reagan era um ator como qualquer outro, disse Paola.

— Ela é arrogante, teme perder a guarda dos filhos, gosta de usar marrom.

— Vamos comer, disse Chiara. — Estou morta de fome.

— Então ponha a mesa que num minuto vamos comer. Chiara se levantou da cadeira cheia de má vontade e se dirigiu à cozinha, mas não sem antes comentar:

— E agora imagino que você vai fazer papai dizer como ela é de verdade, e como sempre eu vou perder a melhor parte. Uma das grandes tristezas da vida de Chiara era o fato de nunca conseguir informação do pai que pudesse usar para obter popularidade na escola.

— Eu me pergunto, disse Paola colocando vinho nos dois copos, — Como ela aprendeu a interpretar daquela forma. Tive uma tia que morreu de tuberculose anos atrás, quando eu era mocinha, e ainda me lembro de seu aspecto, do jeito como mexia as mãos nervosamente todo o tempo, exatamente como ela fez no palco, apertando uma contra a outra e abandonando-as separadas no colo. Depois, de uma forma abrupta que era bem sua: — Você acha que foi ela? Ele deu de ombros.

— Pode ter sido. Todo mundo se esforça para me mostrar que ela é o tipo latino vulcânico, a personificação da paixão, brandindo um punhal ao menor insulto. Mas você acabou de ver o seu talento para a representação: nada nos prova que ela não é fria, calculista e perfeitamente capaz de ter agido a sangue-frio. Além disso, acho que ela é inteligente.

— E a sua amiga?

— A americana?

— Sim.

— Ela, não sei. Disse-me que Petrelli procurou o maestro depois do primeiro ato, mas só para discutir com ele.

— Sobre o quê?

— Ele a estava ameaçando de contar ao marido dela sobre seu caso com Brett. Paola não traiu a menor surpresa ao ouvi-lo falar da americana usando o primeiro nome.

— Ela tem filhos?

— Sim. Dois.

— Então a ameaça é séria. E quanto à outra, Brett, como você a chama. Você acha que poderia ter sido a autora?

— Não, acho que não. Esse caso não é tão importante na vida dela. Ou ela não quer que seja. Não, é muito improvável.

— Você ainda não respondeu à minha pergunta sobre Petrelli.

— Vamos, Paola, você sabe que nunca acerto quando tento trabalhar na base da intuição, quando eu suspeito demais ou cedo demais. Sobre ela, não saberia dizer. A única coisa que sei é que isso deve ter algo a ver com o passado dele.

— Muito bem, disse ela se conformando em deixar as coisas naquele pé. — Vamos comer. Temos frango, alcachofra e uma garrafa de Soave.

— Deus seja louvado, disse ele se levantando e puxando-a do braço da poltrona. Juntos, foram para a cozinha.


Como sempre, um minuto antes do jantar ser servido e quando todos estavam se preparando para comer, Raffaele, primogênito e herdeiro de Brunetti, saiu do quarto. Ele tinha quinze anos, era alto para a sua idade e tinha as feições e os gestos muito parecidos com os do pai. Em tudo o mais, não se parecia em nada com ninguém da família e com certeza negaria a possibilidade de que seu comportamento se parecesse com o de qualquer outra pessoa, viva ou morta. Raffaele descobrira por si mesmo que o mundo é corrupto e o sistema injusto, e que os detentores do poder só estavam interessados no poder, em nada mais. Visto ter sido a primeira pessoa a fazer essa descoberta com tal força e pureza, ele insistia em mostrar total desprezo pelas criaturas ainda não iluminadas pela graça de sua visão. Isso incluía, naturalmente, sua família, com a provável exceção de Chiara, a quem ele eximia da culpa social por ser muito jovem e porque podia contar com metade da mesada dela. O avô também, ninguém sabia como, conseguira passar pelo fundo da agulha.


Raffaele frequentava o liceo, onde devia se preparar para o curso universitário, porém tivera um baixo rendimento no ano anterior e nos últimos tempos estava falando em abandonar os estudos, visto que, a educação é apenas mais um aspecto do sistema que oprime os operários. E, deixando a escola, ele não tinha intenção de procurar emprego, pois este o submeteria ao sistema que oprime os operários. Portanto, para evitar ser oprimido, iria deixar de estudar e não iria procurar emprego. Brunetti achava aquela simplicidade de espírito de Raffaele absolutamente jesuítica. Raffaele se deixou cair numa cadeira e apoiou os cotovelos na mesa. O pai perguntou como ele estava, pois esse era um assunto passível de ser abordado.


— Ok.

— Passe o pão, Raffi, pediu Chiara.

— Não coma esse dente de alho, Chiara. Você vai ficar com o cheiro por muitos dias, disse Paola.

— O frango está bom, comentou Brunetti. — Abro outra garrafa de vinho?

— Sim, exclamou Chiara com voz aguda, estendendo o copo. — Ainda não bebi nada.


Brunetti pegou a segunda garrafa da geladeira e abriu-a. Andou em volta da mesa, colocando vinho no copo de cada um deles. De pé atrás do filho, apoiou a mão no ombro do rapaz quando se inclinou para servi-lo. Raffaele sacudiu os ombros para se livrar da mão do pai, depois tentou disfarçar o gesto estendendo a mão para pegar alcachofra, que ele nunca comia.


— O que tem de sobremesa?

— Frutas.

— Não tem bolo?

— Gulosa, disse Raffaele, como mera constatação e não uma crítica.

— Querem jogar Monopólio depois do jantar? Perguntou Paola. Antes que os filhos tivessem tempo de responder, ela estabeleceu as condições. — Só se já fizeram as tarefas da escola.

— A minha, eu já fiz, disse Chiara.

— Eu também, mentiu Raffaele.

— Vou ser a banqueira, disse Chiara.

— O tubarão burguês, corrigiu Raffaele.

— Os dois lavam os pratos, ordenou Paola, — Depois nós jogamos. Ao primeiro grito de protesto, ela determinou: — Ninguém aqui vai jogar Monopólio nesta mesa antes de os pratos serem tirados, lavados e guardados no armário. Quando Raffaele abriu a boca para protestar, ela se voltou para ele. — E se essa é uma maneira burguesa de ver as coisas, tanto pior. Comer frango também é um comportamento burguês, mas não vi ninguém reclamar disso. Por isso, lavem a louça e depois jogamos.


Brunetti sempre se surpreendia em ver que Paola falava com Raffaele naquele tom sem provocar escândalo. Sempre que ele esboçava uma recriminação ao filho, a cena acabava com bater de portas e mágoas que duravam dias. Percebendo que fora obrigado a calar o bico, Raffaele demonstrou a sua raiva pegando os pratos bruscamente e colocando-os sem o menor cuidado na pia. Brunetti demonstrou a sua levando a garrafa e o copo para a sala de estar para esperar o barulho inevitável, sinal de que Paola fora obedecida, embora de má vontade.


— Pelo menos ele não está fabricando bombas no quarto, disse Paola à guisa de consolo quando veio se juntar a ele na sala. Da cozinha vinha o ruído abafado que indicava que Raffaele estava lavando os pratos e o barulho inquietante indicando que Chiara os estava enxugando e guardando. De vez em quando se ouviam bruscas explosões de riso.

— Você achaque ele vai ficar bem? Perguntou Brunetti.

— Enquanto ela conseguir fazer que ele ria, acho que não precisamos nos preocupar. Raffaele não seria capaz de maltratar Chiara e não o imagino agredindo ninguém. Brunetti não sabia ao certo como aquele comentário poderia tranquilizá-lo em sua preocupação com o filho, mas estava disposto a aceitá-lo como uma espécie de consolo. Chiara pôs a cabeça na sala e gritou:

— Raffi está arrumando o jogo. Venham, vamos jogar.


Quando eles chegaram, o tabuleiro do Monopólio estava no centro da mesa da cozinha, e Chiara, à força de sua insistência, era a banqueira, e já estava preparando as pilhas de dinheiro. Por unanimidade, Paola estava proibida de ser a banqueira, pois muitas vezes, ao longo dos anos, fora surpreendida trapaceando. Raffaele, com certeza querendo evitar ser acusado de avareza, recusou. E como Brunetti já tinha preocupações demais com o jogo para assumir a responsabilidade adicional de ser banqueiro, a banqueira era sempre Chiara, que adorava contar e recolher o dinheiro, pagar e trocar. Eles jogaram os dados para saber quem seria o primeiro. Raffaele perdeu e teve que ser o último, o que bastou para deixar os outros três nervosos desde o início. A necessidade que o rapaz tinha de vencer o jogo era tal que muitas vezes Brunetti jogava mal para que o filho tivesse mais chances.


Meia hora depois, Chiara estava de posse de todos os verdes: Via Roma, Corso Impero e Largo Augusto. Raffaele tinha dois vermelhos e estava precisando apenas da Via Marco Polo, que estava com Brunetti, para completar sua série. Depois de mais quatro rodadas, Brunetti se deixou convencer a trocar a propriedade vermelha que estava faltando a Raffaele pelo Acquedotto e mais cinquenta mil liras. As regras da família proibiam quaisquer comentários, mas isso não impediu Chiara de dar um forte pontapé no irmão por baixo da mesa. Como era de se esperar, Raffaele reclamou da injustiça.


— Pare com isso, Chiara. Se ele quer fazer um mau negócio, é problema dele. E isso vinha de um rapaz que queria pôr abaixo todo o sistema capitalista.


Brunetti passou as escrituras a Raffaele e este imediatamente construiu hotéis nas três propriedades. Enquanto Raffaele se ocupava com essa operação e ficava atento para que Chiara trocasse o dinheiro sem se enganar, Brunetti notou que Paola estava surripiando, com a maior tranquilidade, um pequeno maço de notas de dez mil liras da pilha do banqueiro. Ela levantou os olhos, percebeu que seu marido a vira roubando dos próprios filhos e lhe deu um sorriso encantador. Um policial casado com uma ladra e tendo como filhos uma maluca por computador e um anarquista.


Na rodada seguinte, Brunetti caiu num dos novos hotéis do filho e teve que lhe dar tudo o que tinha. Paola de repente descobriu que tinha dinheiro bastante para construir seis hotéis, mas pelo menos teve a sabedoria de evitar os olhos do marido quando passou o dinheiro para o banqueiro. Ele afundou em sua cadeira e ficou observando o jogo se encaminhar para o desfecho que sua perda para Raffaele tornara inevitável. O cotovelo de Paola começou a deslizar furtivamente em direção à pilha de notas de dez mil liras, porém ela foi detida por um olhar glacial de Chiara. Esta, por sua vez, não conseguiu convencer Raffaele a lhe vender seu Parco delia Vittoria, caiu duas vezes seguidas nos hotéis vermelhos e faliu. Paola ainda resistiu por mais duas rodadas, depois caiu no hotel da Viale Constantino e não pôde pagar.


O jogo acabou. Raffaele, de dono de um império imobiliário se transformou imediatamente num inimigo da classe dirigente; Chiara foi assaltar a geladeira; Paola bocejou e disse que era hora de ir para a cama. Brunetti a seguiu, refletindo que o comissário de polícia da Sereníssima República passara mais uma noite na busca inexorável do culpado pela morte do maestro mais famoso de seu tempo.


* * *


Dezoito

O TELEFONEMA de Michele foi à uma da manhã e tirou Brunetti de um sono agitado. Ele atendeu ao quarto toque e falou seu nome.


— Guido, aqui é Michele.

— Michele, repetiu ele bobamente, tentando lembrar se conhecia alguém chamado Michele. Obrigou-se a abrir os olhos e se lembrou. — Michele, Michele... Ótimo. Que bom que você ligou. Brunetti acendeu o abajur do criado-mudo, sentou e se encostou na cabeceira da cama. Paola continuou a dormir como uma pedra, ao seu lado.

— Eu conversei com meu pai e ele se lembrou de toda a história.

— E então?

— Foi exatamente como você disse: se há alguma coisa a saber, ele sabe.

— Pare de se vangloriar e fale.

— Correu a história de que havia um caso entre Wellauer e a irmã que cantava ópera, Clemenza. Papai não conseguiu lembrar onde foi, mas sabe que começou na Alemanha, onde ela estava cantando com o maestro. Houve uma cena desagradável entre a mulher do maestro e La Santina, numa festa, depois de uma apresentação. Elas trocaram insultos e Wellauer foi embora... Michele parou para causar impressão, —... Com Santina. A série de apresentações terminou, em 1937 ou 1938, segundo meu pai; — Santina foi cantar em Roma, e Wellauer foi para casa ouvir música de pancadaria. Michele morreu de rir de seu infame jogo de palavras, mas Brunetti não. — Parece que ele conseguiu consertar as coisas com a esposa. Papai disse que havia muita coisa mesmo a consertar, naquela ocasião e depois.

— Quer dizer que a situação era essa? Perguntou Brunetti.

— Sim. Ele era o pior dos mulherengos. Ou o melhor, dependendo do ponto de vista. Eles se divorciaram depois da guerra.

— Por causa desse tipo de coisa?

— Papai não tem muita certeza sobre isso. Mas é muito provável que sim. Pode ser também pelo fato de ele ter escolhido o lado errado.

— E o que aconteceu quando Santina voltou para a Itália?

— Ele veio para reger Norma, a ópera que Santina se recusou a cantar. Sabe alguma coisa sobre isso?

— Sim. O caso era descrito no dossiê que Miotti lhe entregara, contendo recortes fotocopiados de jornais de Roma e de Veneza, de décadas atrás.

— Eles encontraram outra soprano, e Wellauer teve grande sucesso.

— E o que aconteceu depois? Ela continuou a se encontrar com ele?

— É aí que as coisas começam a ficar nebulosas, é o que diz meu pai. Alguns dizem que eles ficaram juntos por algum tempo. Outros dizem que ele cortou relações com ela desde que ela parou de cantar.

— E quanto às irmãs?

— Ao que parece, quando Clemenza parou de cantar, Wellauer começou a comer uma das outras duas. Michele sempre foi desbocado, principalmente quando falava de mulheres.

— E então?

— A relação durou algum tempo. E então ela teve que fazer o que na época era chamado de operação ilegal. Mesmo naquela época não era difícil conseguir fazer um aborto, pelo que diz meu pai, caso você conhecesse as pessoas certas. E Wellauer conhecia. Para a maioria das pessoas não ficou muito claro em que circunstâncias aconteceu, mas o fato é que ela morreu. Não se tinha nem certeza de que o filho era dele, mas parece que as pessoas achavam que sim.

— E depois?

— Bem, como já disse, ela morreu. Nada chegou a ser publicado nos jornais, naturalmente. Naquela época esse tipo de coisa não podia ser publicado. E os jornais disseram apenas que ela morreu “de um mal súbito”. Bem, em certo sentido foi isso mesmo.

— E quanto à outra irmã?

— Papai acha que ela foi morar na Argentina, imediatamente após a guerra ou um pouco depois. Ele acha que ela deve ter morrido lá, mas muitos anos depois. Quer que papai tente descobrir?

— Não, Michele. Ela não é importante no caso. Seu pai se lembra de mais alguma coisa?

— Só que conheceu Wellauer, há cerca de quinze anos. Não gostou dele, porém não soube dizer exatamente por que razão. Simplesmente não gostou. Brunetti sentiu pelo tom de voz de Michele que este deixava de falar como amigo, passando a falar como jornalista. — Será que isso vai ajudar em alguma coisa, Guido?

— Não sei, Michele. Eu só queria ter uma ideia de como o homem era, e queria saber alguma coisa sobre Santina.

— Bem, agora você sabe, disse Michele de forma lacônica, sentindo o policial na última fala de Brunetti.

— Ouça, Michele, pode ser que isso leve a alguma coisa, mas ainda não sei.

— Ótimo, ótimo. Se é assim... Ele não se resolvia a lhe pedir um favor.

— Se isso resultar em algo importante, ligo para você, Michele.

— Sim, sim. Faça isso, Guido. Está tarde e com certeza você quer voltar a dormir. Se precisar de mais alguma coisa, ligue para mim, está bem?

— Ligo, sim. E obrigado, Michele. Por favor, agradeça a seu pai por mim.

— É ele que agradece a você. Isso o fez se sentir de novo importante. Boa noite, Guido.


Antes que Brunetti pudesse dizer alguma coisa, o outro desligou. Ele apagou a luz e se meteu sob os cobertores, sentindo apenas o quanto o quarto estava frio. No escuro, a única coisa que conseguia evocar era a fotografia da sala de Santina, com as três irmãs cuidadosamente dispostas em V. Uma morrera por causa de Wellauer, outra talvez tenha perdido a carreira por tê-lo conhecido. Apenas a mais nova escapou dele, e para isso teve que ir para a Argentina.


* * *


Dezenove

NA MANHÃ SEGUINTE, bem cedo, Brunetti, ainda tonto de sono, foi à cozinha enquanto Paola dormia e começou a fazer o café. Foi ao banheiro, molhou o rosto e secou-o com a toalha, evitando os olhos do homem que estava no espelho. Antes do café, não confiava em ninguém. Voltou à cozinha no exato momento em que a cafeteira entrava em ebulição. Nem se deu ao trabalho de praguejar, apenas tirou-a do fogo e desligou o gás. Em seguida despejou o café numa xícara, pôs três colheres de açúcar e foi com ela para o terraço, do lado oeste, na esperança de que o frio da manhã o acordasse caso o café não conseguisse.


Com a barba hirsuta, amarfanhada, Brunetti se postou no terraço e fitou um ponto no horizonte onde começavam os Alpes Dolomitas. Devia ter chovido muito à noite, porque as montanhas surgiram como se tivessem se aproximado de mansinho, aproveitando a escuridão, para se tornarem magicamente visíveis no ar límpido. Elas iriam com certeza se encapotar e desaparecer antes do anoitecer, escondidas pelas nuvens de fumaça expelidas incessantemente pelas fábricas do continente ou pela névoa que vinha da laguna. Do lado esquerdo, os sinos de San Paolo chamavam os fiéis para a missa das seis e meia. Lá embaixo, na casa do outro lado da calle, as cortinas se abriram e um homem despido apareceu na janela, ignorando totalmente que Brunetti o via do alto de seu apartamento. De repente surgiram por trás do homem duas mãos, de unhas vermelhas, abraçando-o por trás. O homem sorriu, se afastou da janela e as cortinas se fecharam novamente.


O frio da manhã começou a incomodar Brunetti, obrigando-o a voltar para a cozinha, feliz por sentir o seu calor e por ver que Paola estava lá, sentada à mesa e com uma aparência muito melhor do que a que devia ser permitida antes das nove da manhã. Ela lhe deu um alegre bom dia e ele respondeu com um resmungo. Ele pôs a xícara vazia na pia e pegou uma outra, cheia de leite quente, que Paola colocara no balcão para ele. A primeira xícara começara a transformá-lo num ser humano; essa segunda completaria a tarefa.


— Foi Michele que ligou ontem à noite?

— Hum. Ele esfregou o rosto; tomou mais café. Ela pegou uma revista da ponta da mesa e começou a folhear, tomando café em sua caneca. Ainda não são sete horas e ela está olhando casacos Giorgio Armani. Ela virou uma página. Ele coçou o ombro. O tempo passava.

— Foi Michele que telefonou ontem à noite?

— Sim. Ela ficou contente de ter conseguido extrair uma palavra dele e não perguntou mais nada. — Ele me contou sobre Wellauer e Santina.

— Há quanto tempo aconteceu o caso?

— Há uns quarenta anos, depois da guerra. Não, foi pouco antes, portanto faz mais de cinquenta anos.

— O que aconteceu?

— Ele engravidou a irmã dela, e ela morreu depois de ter feito um aborto.

— Santina lhe contou isso?

— Nem uma palavra.

— O que você vai fazer?

— Vou ter que falar com ela novamente.

— Esta manhã?

— Não; tenho que ir à Questura. Esta tarde. Amanhã. Ele se deu conta de quanto hesitava em voltar àquele frio e àquela miséria.

— Se você for, use os sapatos marrons. Eles o protegeriam do frio; nada o protegeria, nem a ninguém, da miséria.

— Sim, obrigado, disse ele. — Não quer tomar banho antes de mim? Perguntou, se lembrando de que naquela manhã ela teria aula logo cedo.

— Não, pode ir você. Vou fazer mais café quando terminar de tomar este.


Ao passar por ela, Brunetti se inclinou para lhe beijar a cabeça, se perguntando como sua mulher conseguia se manter gentil, e mesmo amistosa, com aquele ser resmungão em que ele se transformava de manhã. Ele aspirou o perfume de flores de seu xampu e notou que os cabelos um pouco acima das têmporas estavam levemente grisalhos. Era a primeira vez que o notava, e se inclinou para beijá-la novamente, trêmulo diante da fragilidade daquela mulher.


* * *


Quando chegou ao escritório, juntou todos os documentos e relatórios sobre a morte do maestro e começou a reler um por um, de ponta a ponta, alguns pela terceira ou quarta vez. Os relatórios traduzidos do alemão, com sua excessiva preocupação com o detalhe, como a lista dos objetos levados da casa de Wellauer nos dois assaltos, verdadeiros monumentos à eficiência germânica, eram de enlouquecer. A sua quase total falta de informação sobre as atividades do maestro, pessoais ou profissionais, durante a guerra, também evidenciava uma habilidade igualmente germânica em escamotear uma verdade simplesmente ignorando-a. Considerando a personalidade do então presidente da Áustria, Brunetti era obrigado a reconhecer que a tática era bastante eficiente.


Fora o próprio Wellauer que descobrira o cadáver de sua segunda esposa. Antes de se enforcar no porão, ela dera um telefonema a uma amiga convidando-a para tomar um chá, atitude que traía uma mescla de macabro e de mundano que perturbava Brunetti toda vez que lia o relatório. A mulher se atrasou e só chegou depois que Wellauer já tinha encontrado o corpo e telefonado para a polícia. Isso significa que ele podia muito bem ter encontrado, e destruído, qualquer coisa que ela pudesse ter deixado, um bilhete, uma carta. Paola lhe dera o telefone de Padovani e lhe disse que o jornalista pretendia voltar a Roma no dia seguinte. Sabendo que as despesas do almoço podiam ser lançadas em seu relatório de gastos como entrevista com uma testemunha, Brunetti ligou para Padovani e o convidou para almoçar no Galleggiante, um restaurante de que gostava muito, mas a que raramente podia ir. Padovani concordou em encontrar com ele à uma.


Ele ligou para o escritório de tradução e pediu que a tradutora encarregada dos documentos em alemão fosse procurá-lo. Quando ela chegou, uma jovem a quem costumava cumprimentar nos corredores do edifício, ele explicou que precisava ligar para Berlim e que precisaria de sua ajuda se seu interlocutor não falasse inglês ou italiano. Brunetti ligou para o número que a Sra. Wellauer lhe dera. Depois do quarto toque, uma voz de mulher atendeu rispidamente, os alemães sempre lhe pareciam ríspidos. “Steinbrunner”. Passou o fone para a tradutora e entendeu o que ela falou o bastante para deduzir que o médico não estava em casa, que era para onde tinha ligado, mas no consultório. Fez sinal para que a tradutora fizesse a ligação seguinte e a ouviu explicar quem era e por que estava ligando. Ela ergueu a mão pedindo que esperasse, passando depois o telefone. Brunetti pensou que acontecera um milagre e que o Dr. Steinbrunner estaria atendendo à ligação em italiano. Em vez de uma voz humana, ele gastou vários segundos ouvindo uma música melosa e insípida que atravessava os Alpes num telefonema pago pela cidade de Veneza. Ele passou o telefone para a tradutora e ficou observando-a batucar ao ritmo da música enquanto esperava. De repente ela aproximou mais o telefone do ouvido e falou alguma coisa em alemão. Pronunciou mais algumas frases e depois se voltou para Brunetti.


— A recepcionista está transferindo a ligação para ele. Ela disse que ele fala inglês. Quer falar com ele, então? Ele aquiesceu. Pegou o telefone, mas fez sinal para que ela ficasse.

— Espere para ver se o inglês dele é tão bom quanto o seu alemão. Antes que conseguisse terminar a frase, ouviu uma voz profunda do outro lado da linha.

— Aqui é o doutor Steinbrunner. Posso saber com quem estou falando? Brunetti se apresentou e fez sinal à tradutora de que podia ir embora. Antes de ir, ela se inclinou sobre a mesa e empurrou em sua direção um bloco de notas e um lápis. — Sim, comissário, em que posso ajudá-lo?

— Estou investigando a morte do maestro Wellauer e a esposa dele me falou que o senhor era muito amigo dele.

— Sim, era. Minha mulher e eu éramos amigos dele há muitos anos. Sua morte foi um choque para nós.

— Não tenho dúvida quanto a isso, doutor.

— Eu queria ir ao funeral, mas minha mulher está muito mal de saúde e não pode viajar, e eu não queria ir sem ela.

— Tenho certeza de que a senhora Wellauer entende a sua situação, disse ele, surpreso com o caráter internacional das banalidades.

— Falei com Elizabeth, disse o médico. — Parece que ela está reagindo bem. Alguma coisa no tom de voz de Steinbrunner levou Brunetti a comentar:

— Ela me pareceu um pouco... Não sei como dizer. Tive a impressão de que ela não queria que eu falasse com o senhor, doutor. Como o médico não respondeu, ele acrescentou: — Talvez a morte ainda seja recente demais para ela querer se lembrar de tempos mais felizes.

— Sim, é possível, respondeu o médico secamente, como se pensasse que a verdade era bem outra.

— Doutor, posso lhe fazer algumas perguntas?

— Claro.

— Examinei a agenda do maestro e vi que nos últimos meses ele se encontrou com o senhor e com sua esposa muitas vezes.

— Sim, jantamos juntos umas três ou quatro vezes.

— Mas algumas vezes ele se encontrou só com o senhor, de manhã bem cedo. Imaginei que se tratasse de um encontro profissional, isto é, que ele procurou o senhor como médico e não como amigo. Depois de uma pausa, acrescentou: — Doutor, se me permite, posso saber se o senhor é.... Ele parou, não querendo ofendê-lo perguntando se era apenas clínico geral. — Desculpe-me, esqueci a palavra em inglês. Pode me dizer qual a sua especialidade?

— Nariz, ouvido e garganta. Mas principalmente garganta. Aliás foi por causa disso que vim a conhecer Helmut, há anos. Há muitos anos. A voz dele ficou mais calorosa ao dizer isso. — Sou conhecido aqui na Alemanha como o “médico dos cantores”. Brunetti se perguntou se ele se surpreendera de ter que informar alguém disso.

— Ele o procurou porque algum de seus cantores estava com problemas de voz? Ou ele próprio?

— Não, ele não tinha nenhum problema de garganta ou de voz. Na primeira vez ele quis que almoçássemos juntos, mas para falar sobre uma de suas cantoras.

— Depois disso, doutor, houve outros encontros matinais, anotados na agenda.

— Sim, me encontrei com ele duas vezes. Na primeira, ele veio ao meu consultório e me pediu que o examinasse. Uma semana depois, lhe dei o resultado dos exames.

— Pode me dizer que resultados foram esses?

— Antes de responder, pode me dizer por que acha que isso é importante?

— Parece que o maestro estava muito preocupado, angustiado com alguma coisa. É o que me disseram várias pessoas com quem conversei aqui. Por isso estou tentando descobrir o porquê disso e saber de tudo o que pudesse estar influenciando o seu estado de espírito.

— Não consigo ver que importância isso poderia ter.

— Doutor, eu estou tentando descobrir o máximo sobre o estado de saúde dele. Lembre-se, qualquer informação que obtiver pode me ajudar a descobrir o responsável por sua morte e fazer que seja punido. Paola costumava lhe dizer que a única maneira de convencer um alemão era invocar a lei. A rapidez com que o homem reagiu parecia provar que ela tinha razão.

— Sendo assim, tenho todo o interesse em ajudá-lo.

— Que tipo de exame ele fez?

— Como lhe disse, ele não tinha nenhum problema de voz e de garganta. Visão perfeita. Havia, contudo, uma pequena perda de audição, e fora isso que o motivara a se submeter aos exames.

— E qual foi o resultado desses exames, doutor?

— Como já disse, uma pequena perda de audição. Mínima. O tipo de coisa que se pode esperar num homem de sua idade. Imediatamente o médico se corrigiu. — De nossa idade.

— Quando o senhor o examinou, doutor? Os encontros registrados na agenda são de outubro.

— Sim, foi nesse mês, sim. Tenho que consultar minhas anotações para lhe dar as datas exatas, mas foi mais ou menos nessa época.

— E o senhor se lembra exatamente do resultado dos exames?

— Não, não lembro. Mas com certeza a perda era de menos de dez por cento, do contrário eu me lembraria.

— É uma perda significativa, doutor?

— Não, não é.

— É perceptível?

— Perceptível?

— Ela poderia interferir em sua atividade de regente?

— Era exatamente o que Helmut queria saber. Eu lhe disse que não se tratava de nada muito grave, que a perda mal podia ser mensurada. Ele confiou na minha palavra. No mesmo dia, porém, tive que lhe dar outra notícia, e essa o perturbou.

— De que se tratava?

— Ele me encaminhou uma jovem cantora porque ela estava tendo problemas vocais. Descobri que ela estava com nódulos nas cordas vocais que deviam ser removidos cirurgicamente. Disse a Helmut que ela só poderia voltar a cantar seis meses depois. Ele estava querendo que ela cantasse com ele em Munique na primavera, mas seria impossível.

— O senhor se lembra de mais alguma coisa?

— Não, nada em especial. Ele me disse que quando voltasse de Veneza iríamos nos encontrar, mas entendi que seria um encontro social, em que nossas mulheres também estariam presentes. Brunetti percebeu uma leve hesitação na voz do interlocutor e perguntou:

— Mais alguma coisa, doutor?

— Ele me perguntou se eu conhecia alguém em Veneza que pudesse recomendar. Um médico. Eu lhe disse que deixasse de ser bobo, que estava saudável feito um cavalo. Se ele ficasse doente, a ópera conseguiria os melhores médicos. Mas ele insistiu, queria saber se eu podia indicar alguém.

— Um especialista?

— Sim. Terminei por lhe dar o nome de um médico a quem eu tinha consultado algumas vezes. Ele dá aulas na Universidade de Pádua.

— Seu nome?

— Valerio Treponti. Ele tem um consultório particular na cidade, mas não tenho o seu telefone. Helmut não me pediu o número, se contentando com a indicação do nome.

— O senhor lembra se ele anotou o nome?

— Não, não anotou. Na verdade, na ocasião pensei que ele estava sendo apenas teimoso. Além do mais, a verdadeira razão do nosso encontro era discutir o caso da cantora.

— Uma última pergunta, doutor.

— Sim?

— Das últimas vezes em que o viu, o senhor notou alguma mudança nele, algum indício de que estava ansioso ou preocupado com alguma coisa? A resposta de Steinbrunner só veio depois de um longo silêncio.

— Talvez houvesse alguma coisa, mas não saberia dizer o quê.

— O senhor perguntou a ele sobre isso?

— Esse tipo de pergunta ninguém ousaria fazer a Wellauer. Brunetti se conteve para não dizer que uma amizade de quarenta anos permitiria isso. Em vez disso, ele perguntou:

— O senhor tem alguma ideia do que poderia ser? O silêncio do médico foi tão longo quanto o anterior.

— Acho que tinha algo a ver com Elizabeth. Foi por isso que não perguntei nada a Helmut. Ele sempre se mostrou hipersensível no que dizia respeito a ela, à diferença de idade entre eles. Mas talvez o senhor possa perguntar a ela, comissário.

— Sim, doutor. Pretendo fazer isso.

— Ótimo. Mais alguma coisa? Se não, tenho que voltar aos meus pacientes.

— Não, nada mais. Foi muita gentileza de sua parte falar comigo. O senhor ajudou muito.

— Espero que sim. Espero que consiga descobrir o culpado e que ele seja punido.

— Pode estar certo de que farei o que puder para isso, doutor. Brunetti disse isso para ser gentil, sem acrescentar que estava interessado em descobrir o culpado e não se preocupava nem um pouco quanto à punição. No entanto, talvez os alemães encarassem a coisa de outro ângulo.


Logo em seguida, Brunetti ligou para a telefônica e pediu o número do doutor Valerio Treponti, em Pádua. Quando conseguiu ligar para o consultório, lhe disseram que Treponti estava em consulta com um paciente e não podia atender o telefone. Brunetti explicou quem era, disse que era urgente e que iria esperar na linha. Enquanto esperava, aproveitou para folhear os jornais do dia. A morte de Wellauer saíra dos grandes jornais do país; estava presente no Gazzetino, na segunda página da segunda seção, porque estava sendo criada uma bolsa com seu nome no conservatório de música. Houve um pequeno estalido na linha e ele ouviu uma voz profunda e sonora.


— Treponti.

— Doutor, aqui é o comissário Brunetti, da polícia de Veneza.

— Já me disseram. O que o senhor deseja?

— Gostaria de saber se no mês passado o senhor atendeu um paciente alto, já idoso, que falava italiano muito bem mas com sotaque alemão.

— Que idade ele tinha?

— Cerca de setenta anos.

— O senhor está se referindo a um austríaco. Como é o nome dele? Doerr? Sim, acho que é Hilmar Doerr. Ele não era alemão; era austríaco. Na verdade, não faz muita diferença. O que o senhor gostaria de saber sobre ele?

— O senhor pode descrevê-lo, doutor?

— Tem certeza de que é importante? Tenho seis pacientes na sala de espera e devo estar no hospital dentro de uma hora.

— O senhor não poderia descrevê-lo para mim?

— Já não descrevi? Alto, olhos azuis, na casa dos sessenta, setenta.

— Quando o senhor o atendeu? Brunetti ouviu, do outro lado da linha, uma voz dizer alguma coisa. Depois não ouviu mais nada, porque o médico cobriu o fone com a mão. Passou-se um minuto, e então ele voltou, parecendo ainda mais apressado e impaciente.

— Comissário, eu não posso falar com o senhor agora. Tenho coisas importantes a fazer. Brunetti ignorou a objeção.

— O senhor pode me receber hoje, doutor, se eu for ao seu consultório?

— Às cinco da tarde. O senhor terá vinte minutos. Aqui. Ele desligou antes que Brunetti pudesse perguntar o endereço. Com toda a paciência, tentando manter a calma, ele discou novamente e perguntou à mulher que atendeu se podia lhe fornecer o endereço do consultório. Quando ela o fez, Brunetti agradeceu com toda a gentileza e desligou.


Ficou por alguns instantes pensando em qual seria a melhor maneira de ir a Pádua. Patta, ele sabia, requisitaria um carro, um motorista e talvez uma escolta de dois motociclistas para o caso de haver muitos terroristas na estrada. O posto de Brunetti lhe dava direito a um carro, mas como queria economizar tempo ligou para a estação a fim de saber o horário de partida do próximo trem para Pádua. O trem para Milão lhe permitiria chegar ao consultório do médico às cinco. Ele teria que ir diretamente para a estação depois do almoço com Padovani.


* * *


Vinte

PADOVANI estava esperando dentro do restaurante quando Brunetti chegou. O jornalista estava sentado entre o bar e o balcão envidraçado com vários antepastos: litorinas, sibas, camarões. Eles trocaram um breve aperto de mão e logo foram levados a sua mesa pela signora Antonia, a altiva garçonete que reinava suprema no restaurante. Uma vez sentados, eles adiaram a discussão sobre crime e fofocas enquanto confabulavam com a signora Antonia sobre o almoço. Embora existisse um menu escrito, poucos clientes habituais se davam ao trabalho de consultá-lo; alguns nunca chegaram a vê-lo. As sugestões para o dia e as especialidades da casa estavam gravadas na memória de Antonia. Ela desfiou rapidamente sua lista, pura formalidade, como bem sabia Brunetti, e decidiu que o que os dois homens iriam comer era um antipasto di maré, risoto de camarão, e um branzino grelhado, que ela lhes garantiu terem sido trazidos fresquinhos, naquela manhã, do mercado de peixes. Padovani perguntou se seria possível, ou se a signora Antonia recomendava, que se servisse uma salada verde. Ela deu a esse pedido toda a atenção que merecia, aprovou-o, disse que eles deviam tomar uma garrafa de vinho branco da casa e foi buscá-la. Quando o vinho já estava na mesa e o primeiro copo já havia sido servido, Brunetti perguntou a Padovani se tinha muito trabalho a fazer antes de partir de Veneza. O crítico explicou que tinha dois vernissages para cobrir, um em Treviso e outro em Milão, mas certamente ele faria a cobertura por telefone.


— Você liga para o jornal depois de ver as exposições?

— Oh, não, respondeu Padovani. Ele quebrou um pãozinho em dois e começou a comê-lo. — Eu faço tudo por telefone.

— Crítica de arte? Perguntou Brunetti. — Crítica de pinturas?

— Claro, respondeu Padovani. — Você não acha que vou perder meu tempo vendo aquelas porcarias, vai? Quando ele notou a estupefação de Brunetti, explicou: — Conheço o trabalho de ambos os pintores, que nada valem. Ambos alugaram as galerias e ambos vão mandar amigos para comprar alguns quadros. O primeiro, ou melhor, a primeira, é mulher de um advogado de Milão, e o outro é filho de um neurocirurgião de Treviso, proprietário de uma das clínicas mais caras da província. Ambos têm tempo de sobra para não fazer nada, por isso resolveram se tornar artistas. Pronunciou essa última palavra com um desprezo que não procurou disfarçar.


Padovani parou de falar, afundou em sua cadeira e abriu um grande sorriso quando a signora Antonia colocou os pratos ovais do antepasto diante deles.


— Que tipo de comentário você escreve?

— Ah, isso depende, disse Padovani, espetando com o garfo um pedaço de polvo. — Para o filho do médico, digo que ele mostra completa ignorância da cor e do traço. Mas o advogado é amigo de um dos diretores do jornal, por isso sua esposa “demonstra grande domínio da composição e do desenho”, quando na verdade não é capaz de desenhar um quadrado sem que ele pareça um triângulo.

— Isso o aborrece?

— O quê, escrever algo em que não acredito? Perguntou Padovani, partindo mais um pão.

— Sim.

— No início, acho que sim. Mas depois me dei conta de que era a única maneira de ficar livre para escrever os artigos que realmente me interessavam. Ele viu o olhar de Brunetti e sorriu. — Vamos, Guido, não venha me dizer que nunca ignorou um indício ou que nunca escreveu um relatório de forma a insinuar algo contrário ao que sugeriam seus indícios. Antes que ele tivesse tempo de responder, Antonia voltou. Padovani acabou de comer o último camarão de seu prato e sorriu para ela. — Delicioso, signora. Ela recolheu o prato dele, depois o de Brunetti. Ela voltou imediatamente com o risoto, fumegante e apetitoso. Quando viu Padovani estender a mão para pegar o sal que estava na mesa, Antonia disse:

— Já tem sal suficiente. Ele afastou a mão como se tivesse sofrido uma queimadura e pegou o garfo.

— Ora, Guido, você não me convidou a vir aqui, à custa do município, espero, para conversar sobre a minha carreira, nem para examinar minha consciência. Você me disse que queria mais informações.

— Gostaria de saber o que mais você descobriu sobre Santina. Com todo o cuidado, Padovani tirou um pedacinho de casca de camarão da boca e o colocou num canto do prato.

— Receio ter que pagar o meu almoço.

— Por quê?

— Porque não sei mais nada sobre ela. Narciso já estava de saída quando liguei, e ele só teve tempo de me dar o endereço. Por isso só sei o que lhe disse ontem à noite. Desculpe-me. Brunetti achou inconveniente da parte do outro o comentário sobre pagar o próprio almoço.

— Bem, então você poderia me falar sobre as outras pessoas envolvidas.

— Confesso, Guido, que me esforcei bastante. Liguei para muitos amigos daqui, de Milão e de Roma; basta você dizer os nomes e me transformarei em uma verdadeira fonte de informações.

— Flavia Petrelli?

— Ah, a divina Flavia. Ele pôs uma garfada de risoto na boca e disse estar excelente. — Você gostaria de saber também sobre a igualmente divina senhorita Lynch, não é?

— Eu gostaria que você me dissesse tudo o que sabe sobre as duas. Padovani comeu um pouco mais de risoto, depois o afastou para um lado.

— Você quer me fazer perguntas específicas ou quer que eu simplesmente vá falando o que me ocorrer?

— Acho que a segunda forma é melhor.

— Sim. Sem dúvida. Sempre me dizem isso. Ele tomou um pouco de vinho e começou. — Não lembro onde Flavia estudou. Provavelmente em Roma. De qualquer modo, o inesperado aconteceu, como sempre acontece, e lhe pediram no último minuto que substituísse a Caballé, que estava doente. Ela o fez, os críticos ficaram fascinados e Flavia ficou famosa da noite para o dia. Ele se inclinou para frente e tocou as costas da mão de Brunetti com um dedo. — Acho que, para efeito dramático, seria mais conveniente dividir a história em duas partes: vida profissional e vida pessoal. Brunetti aquiesceu. — Isso, quanto à vida profissional, ela ficou famosa, continuou famosa, continua famosa. Padovani tomou mais um pouco de vinho e se serviu de mais. — Agora passemos à vida pessoal. Entra o marido. Ela estava cantando no Liceo em Barcelona, dois ou três anos depois de seu sucesso em Roma. Ele era um sujeito importante na Espanha, da indústria de plásticos, acho; seja como for, alguma coisa muito chata e muito lucrativa. De qualquer modo, rios de dinheiro, legiões de amigos com mansões e nomes importantes. Romance de conto de fadas, coroas de flores, caminhões de presentes onde quer que ela estivesse cantando, joias, as tentações habituais, e La Petrelli, que na verdade não passa de uma moça provinciana de uma cidadezinha perto de Trento, terminou por ceder, se apaixonou e casou com ele. E com suas fábricas, seus plásticos e seus amigos importantes.


Antonia veio e levou seus pratos, lançando um olhar de desaprovação para o de Padovani, que ainda estava meio cheio.


— Ela continuou sua carreira e foi ficando mais e mais famosa. Ele parecia gostar de viajar com ela, gostava de ser o marido latino da famosa diva, de conhecer mais pessoas famosas, de ver a própria foto nos jornais, todo esse tipo de coisa de que as pessoas de sua classe precisam. Então vieram os filhos, mas ela continuou cantando e se tornando a cada dia mais famosa. Porém, logo ficou evidente que a lua-de-mel acabara. Ela cancelou uma apresentação, depois outra. Logo depois disso, parou de cantar por um ano, que passou na Espanha com ele. Antonia se aproximou da mesa com uma grande bandeja de metal com o branzino. Ela o depositou na mesinha de serviço, cortou habilmente dois pedaços do peixe de carne branca e colocou os pratos com as respectivas porções diante dos dois clientes.

— Espero que gostem disto. Os homens trocaram um olhar, em silenciosa aceitação da ameaça.

— Obrigado, signora, disse Padovani. — Pode me trazer a salada?

— Quando acabar o peixe, disse ela, e voltou para a cozinha. “Este”, pensou Brunetti, é um dos melhores restaurantes da cidade. Padovani comeu um pouco do peixe.

— Então ela voltou a cantar, de forma tão brusca quanto havia parado. Durante o período em que não cantara para o público, sua voz se tornara mais ampla, adquirindo esse timbre extraordinário que tem atualmente. No entanto, já não se via mais o marido; houve uma separação discreta e um divórcio ainda mais discreto, realizado aqui e, quando se tornou possível, foi confirmado também na Espanha.

— Qual foi o motivo do divórcio? Perguntou Brunetti. Padovani levantou a mão para conter a impaciência do policial.

— Tudo a seu tempo. Quero que minha narrativa tenha o ritmo de um romance do século XIX. Então, como eu disse, ela começou a cantar novamente, a nossa Flavia, com uma voz mais estupenda que nunca. Mas nunca a víamos. Não a víamos em jantares, em festas, em apresentações de outros cantores. Ela se tornara uma espécie de reclusa, vivia tranquilamente com seus filhos em Milão, onde cantava com regularidade. Ele se debruçou sobre a mesa. — O suspense está aumentando?

— É de tirar o fôlego, confessou Brunetti, levando à boca mais um pouco de peixe. — E o divórcio? Padovani sorriu.

— Bem que Paola me avisou que você é um bisbilhoteiro. Está bem, está bem, você terá a verdade. Mas, infelizmente, a verdade, como sempre acontece, é bastante banal. Acontece que ele batia nela regularmente, e de forma bastante severa. Ele devia achar que é assim que um homem de verdade tem que tratar a esposa. Ele deu de ombros. — Mas não sei.

— Então ela o deixou?

— Só quando ele a agrediu a ponto de ter que baixar num hospital. Mesmo na Espanha há pessoas que consideram esse tipo de comportamento intolerável. Ela foi para a embaixada italiana com os filhos. Sem dinheiro e sem passaportes. Nosso embaixador à época, como todos eles, era um sujeito servil e tentou mandá-la de volta para o marido. A esposa dele, porém, uma siciliana, e que ninguém diga uma palavra contra os sicilianos, se plantou nos serviços consulares até que foram emitidos três passaportes; depois pegou o carro e levou Flavia e os filhos ao aeroporto, onde comprou três passagens de primeira classe para Milão, por conta da embaixada, e ficou com eles até o avião levantar voo. Ela ouvira Flavia cantar Odabella três anos antes e, ao que parece, achou que aquilo era o mínimo que devia fazer pela cantora.


Brunetti se viu perguntando a si mesmo o que isso teria a ver com a morte de Wellauer e, desconfiado com o tom irônico de Padovani, se perguntava também o quanto de verdade havia naquilo. Como se tivesse lido os pensamentos de Brunetti, Padovani se inclinou para frente.


— É verdade. Pode acreditar.

— Como você ficou sabendo de tudo isso?

— Guido, você trabalha como policial tempo suficiente para saber que quando a pessoa chega a um certo nível de notoriedade já não existem segredos. Brunetti sorriu, concordando, e Padovani continuou. — Agora vem a parte mais interessante, a volta de nossa heroína à vida. E a causa, como sempre nesse tipo de história, foi o amor. Ou pelo menos, disse ele depois de pensar um pouco, — A luxúria.


Brunetti, sabendo da satisfação do outro com a história que estava contando, ficou tentado a se vingar revelando a Antonia que Padovani não comera o peixe todo, mas o escondera no guardanapo.


— Seu período de reclusão durou quase três anos. Em seguida houve uma série de... Digamos, relacionamentos. O primeiro foi com um tenor com quem ela estava cantando. Um tenor muito medíocre, se diga de passagem, mas, felizmente para ela, um homem encantador. Infelizmente para ela, porém, ele tinha uma esposa igualmente encantadora, para a qual mais que depressa voltou. Depois vieram, em rápida sucessão, Padovani começou a contá-los nos dedos enquanto os nomeava, — Um barítono, outro tenor, um bailarino ou talvez o diretor, não tenho muita certeza, um médico que parece ter chegado de mansinho, sem ninguém notar, e finalmente, maravilha das maravilhas, um contratenor. E então, da mesma forma brusca como começara, a coisa parou. O mesmo fez Padovani, quando Antonia pôs a salada à sua frente. Ele a temperou, colocando vinagre demais para o gosto de Brunetti. — Ela não foi vista com ninguém durante um ano inteiro. E de repente a americana entrou em cena, parecendo ter conquistado a divina Flavia. Percebendo o interesse de Brunetti, ele perguntou: — Você a conhece?

— Sim.

— E o que acha dela?

— Gosto dela.

— Eu também, concordou Padovani. — Essa história dela com Flavia não faz sentido. Brunetti se sentia constrangido em mostrar interesse pelo assunto, por isso não pediu a Padovani mais informações sobre ela. Entretanto, não era preciso pedir que o outro se estendesse sobre o tema. — Elas se conheceram há cerca de três anos, durante a exposição de arte chinesa. Foram vistas algumas vezes depois disso, almoçando juntas, indo ao teatro, mas aí a americana teve que voltar à China. Padovani abandonou de repente o seu tom malicioso. — Li os livros dela sobre arte chinesa, os dois que foram traduzidos para o italiano e o menor em inglês. Se ela não é a mais importante arqueóloga da atualidade, logo haverá de ser. Não sei o que ela vê na Flavia, pois esta, embora possa ser um gênio, é uma espécie de prostituta.

— Sim, mas e o amor? Perguntou Brunetti. Depois emendou a pergunta, seguindo o exemplo de Padovani. — Ou a luxúria?

— Para gente como Flavia não há problema; isso não as impede de trabalhar. Mas a outra tem em suas mãos uma das mais importantes descobertas arqueológicas de nosso tempo, e creio que é sensata e inteligente o suficiente para... Padovani parou de repente, pegou o copo de vinho e o esvaziou. — Desculpe-me. Eu nunca me deixo embalar desse jeito. Deve ser influência da nobre Antonia. Mesmo tendo consciência de que o assunto em nada interessava à investigação, Brunetti não conseguiu se impedir de perguntar:

— Ela foi a primeira... Mulher na vida de Petrelli?

— Acho que não, mas as outras foram casos passageiros.

— E este é diferente?

— Para qual das duas?

— Para ambas.

— Como já dura uns três anos, eu diria que sim, é sério. Para ambas. Padovani pegou a última folhinha de sua tigela de salada. — Talvez eu esteja sendo injusto com Flavia. Porque esse caso tem lhe custado muito caro.

— Como assim?

— Há muitas cantoras lésbicas, explicou ele. — É estranho que quase todas elas sejam meios-sopranos. Mas o problema não é esse. A dificuldade é que elas são muito mais hostilizadas que seus colegas homossexuais. Por isso nenhuma delas ousa falar sobre a própria vida, e a maioria é discreta e procura apresentar a amante como secretária ou agente. Porém, é difícil para Flavia disfarçar Brett de alguma coisa. Por isso as pessoas comentam, e tenho certeza de que cochicham e lhes lançam olhares oblíquos quando chegam juntas a algum lugar. Bastou a Brunetti se lembrar do tom de voz do porteiro para constatar a verdade do que o outro acabara de dizer.

— Você esteve no apartamento delas?

— Aquelas claraboias... Disse Padovani, e ambos riram.

— Como ela conseguiu aquilo? Perguntou Brunetti, a quem impediram de instalar simples janelas isolantes.

— Ela é de uma das famílias mais tradicionais dos Estados Unidos. Amealhou seu dinheiro há mais de duzentos anos; se tornou muito respeitável. Um tio dela lhe deixou o apartamento, um tio que ganhou no jogo há cerca de cinquenta anos. Quanto às claraboias, dizem que ela tentou conseguir alguém para fazê-las, mas ninguém queria levantar um dedo sem o devido alvará. Então ela própria simplesmente subiu no teto, tirou as telhas, fez as aberturas no telhado e pôs as armações.

— E ninguém a viu fazendo isso? Em Veneza basta segurar um martelo em frente a um edifício para que todos os telefones entrem em ação nas casas da redondeza. — Ninguém chamou a polícia?

— Você viu a que altura ficam as claraboias. Quem a visse ali não poderia saber o que ela estava fazendo e iria imaginar que estava simplesmente verificando o estado do telhado ou pondo uma telha no lugar.

— E depois?

— Quando as claraboias estavam em seu lugar, ela ligou para a prefeitura e disse o que tinha feito. Pediu que mandassem alguém para calcular o valor da multa.

— E aí? Indagou Brunetti, espantado de ver um estrangeiro se sair com uma solução tão ao estilo italiano.

— Eles foram até lá alguns meses depois. Porém, quando chegaram ao apartamento e viram um trabalho tão bem feito, não queriam acreditar que ela mesmo o fizera e insistiram para que ela lhes desse o nome dos “cúmplices”. Ela repetiu que ela mesma fizera o trabalho, e eles continuaram sem acreditar. Finalmente, ela pegou o telefone, ligou para o gabinete do prefeito e pediu para falar com “Lúcio”. E isso às barbas de dois arquitetos da prefeitura, que a olhavam de metro em punho. Ela trocou algumas palavras com “Lúcio”, passou o telefone para um dos arquitetos e disse que o prefeito queria falar com ele.


Padovani representou toda a cena, terminando por passar um telefone invisível por cima da mesa.


— Então o prefeito trocou algumas palavras com eles, e os arquitetos subiram no telhado, mediram as claraboias, calcularam o valor da multa e ela os mandou de volta à prefeitura com um cheque nas mãos. Brunetti jogou a cabeça para trás rindo tão alto que chamou a atenção das pessoas em volta. — Espere, você ainda não sabe da melhor, disse Padovani. — O cheque foi descontado e ela nunca recebeu nenhum comprovante de que pagara uma multa. E me disseram que as claraboias figuram devidamente nas plantas que compõem o cadastro da cidade. Eles riram juntos dessa vitória da inteligência sobre a autoridade.

— E de onde vem todo esse dinheiro? Perguntou Brunetti.

— Deus meu, quem sabe? De onde vem o dinheiro dos americanos. Aço. Ferrovias. Sabe como são as coisas lá. Não importa se você mata ou rouba para conseguir o dinheiro. O negócio é mantê-lo por uns cem anos, e aí a família se torna aristocrata.

— Isso é muito diferente do que se passa aqui?

— Claro, disse Padovani sorrindo. — Aqui temos que segurar o dinheiro por quinhentos anos antes de nos tornar aristocratas. E há outra diferença. Na Itália, você tem que se vestir bem. Na América, é difícil saber quem são os milionários e quem são os serviçais. Lembrando-se das botas de Brett, Brunetti quis objetar. Contudo, era impossível interromper Padovani, que voltara a tomar impulso. — Eles têm uma revista. Não consigo lembrar o nome, mas todo ano publicam uma lista das pessoas mais ricas da América. Só os nomes e de onde vem o dinheiro. Acho que eles devem ter medo de publicar suas fotos. As poucas que publicam bastam para que a gente pense que o dinheiro realmente é a fonte de todo o mal ou, pelo menos, do mau gosto. Todas as mulheres parecem ter sido defumadas sobre uma fogueira. E os homens, meu Deus, os homens. Por Deus, quem os veste? Você acha que eles comem plástico?


A volta repentina de Antonia impediu que Brunetti respondesse a essa questão. Ela perguntou se eles queriam frutas ou bolo como sobremesa. Demonstrando estar com pressa, ambos disseram que preferiam café no lugar da sobremesa. Ela não gostou nada daquilo, mas retirou a mesa.


— Para responder a sua pergunta, disse Padovani quando ela se foi, — Não sei de onde vem o dinheiro, mas parece que a fonte é inesgotável. O tio dela foi bastante generoso com vários hospitais e sociedades beneficentes da cidade, e ao que parece ela faz o mesmo, embora a maioria de suas doações se destine a restaurações.

— Quer dizer que isso explica a mãozinha de “Lúcio”.

— Com toda a certeza.

— E quanto a sua vida pessoal?


Padovani lhe lançou um olhar estranho; ele se dera conta, a certa altura da conversa, de quão pouco aquilo tinha a ver com a investigação da morte de Wellauer. No entanto, isso não o impediria de contar o que sabia. Afinal de contas, o grande charme do mexerico está em sua total inutilidade.


— Muito pouco. Quer dizer, não se tem certeza de nada. Ela parece sempre ter praticado esse mesmo culto, se é que me entende, mas pouco se sabe sobre sua vida particular antes de vir para cá.

— E quando foi isso?

— Há cerca de sete anos. Isto é, desde que passou a morar aqui. Ela passou muitos anos aqui, com o tio, quando era criança.

— Isso explica por que fala veneziano. Padovani sorriu.

— É estranho ouvir alguém que não é dos nossos falando-o, não é mesmo?

— Sim.


A essa altura, Antonia voltou com os cafés, trazendo também dois copinhos de grappa, que ela disse ser cortesia do restaurante. Embora nenhum dos dois quisesse tomar aquele líquido forte, eles fingiram experimentar e elogiaram a sua qualidade. Ela saiu, desconfiada, e Brunetti surpreendeu-a se voltando e olhando para eles da porta da cozinha, como se esperasse que os dois derramassem a grappa nos vasos de planta.


— O que mais você sabe sobre a vida privada dela? Perguntou Brunetti, sem disfarçar a curiosidade.

— Ela a mantém realmente muito privada, acho. Tenho um amigo em Nova Iorque que estudou com ela. Harvard, naturalmente. Depois Yale. Em seguida, foi para Taiwan e depois para a China continental. Ela foi um dos primeiros arqueólogos ocidentais a trabalhar lá. Em 83 ou 84, acho. Ela escreveu seu primeiro livro nessa época, quando estava em Taiwan.

— Ela não é jovem demais para já ter feito tudo isso?

— Sim, acho que sim. Mas ela é muito, muito boa.


Antonia passou perto deles, levando café para a mesa vizinha, e Brunetti lhe pediu a conta sem dizer nada, apenas fazendo o gesto de preencher um cheque. Ela balançou a cabeça.


— Espero que alguma coisa possa lhe ser útil, disse Padovani, com sinceridade.

— Eu também, respondeu Brunetti, sem querer admitir que não seria e tampouco que simplesmente estava interessado nas duas mulheres.

— Se eu puder ajudar de outra forma, por favor, ligue, disse Padovani. — A gente poderia vir aqui novamente. Mas se viermos peço que traga com você dois policiais bem parrudos para me protegerem da... Ah, signora Antonia, disse ele com toda a naturalidade quando ela se aproximou da mesa e colocou a conta em frente a Brunetti. — Comemos maravilhosamente bem e espero voltar aqui o mais rápido possível. O efeito daquela lisonja espantou Brunetti. Pela primeira vez naquela tarde, Antonia sorriu para eles, um sorriso radiante e de puro prazer que revelava covinhas dos dois lados da boca e dentes perfeitos e brilhantes. Brunetti invejou a técnica de Padovani; ela seria muito útil para interrogar suspeitos.


* * *


Vinte e Um

O TREM Veneza-Milão se arrastou vagarosamente pelo elevado que liga Veneza ao continente e logo estava passando à direita do pesadelo industrial de Marghera. Como alguém que não consegue impedir que a língua mexa num dente dolorido, Brunetti não conseguia desviar os olhos da floresta de gruas e chaminés que se erguiam em meio ao miasma morfético que os ventos sopravam em direção à laguna e Veneza. Logo depois de Mestre, campos áridos castigados pelo inverno substituíam o câncer industrial, mas nem por isso a paisagem era mais animadora. Depois da seca devastadora do verão, a maioria dos campos estava coberto com milharais cujas magras espigas, resultado do custo proibitivo da irrigação, não valia a pena colher.


O trem se atrasou apenas dez minutos e ele chegou pontualmente ao encontro com o médico, cujo consultório ficava num edifício moderno não muito longe da universidade. Como bom veneziano, Brunetti nem pensou em usar o elevador e subiu as escadas até o terceiro andar. Quando abriu a porta do consultório, viu que a sala de espera se encontrava vazia, exceto por uma mulher de uniforme branco sentada atrás da mesa.


— O doutor vai recebê-lo agora, disse ela quando ele entrou, sem se dar ao trabalho de perguntar quem era. Será que dava tanto na vista? Foi o que Brunetti, mais uma vez, se perguntou.


O Dr. Treponti era um homem baixo e elegante, de barba curta bem aparada e olhos castanhos um pouco aumentados pelas grossas lentes dos óculos. Suas faces eram redondas e protuberantes como as de um hamster, e ele trazia na cintura algo que parecia uma bolsa marsupial. Não sorriu quando Brunetti entrou, mas estendeu a mão. Indicando uma cadeira em frente a sua mesa, esperou que Brunetti se sentasse antes de voltar a sentar.


— O que o senhor gostaria de saber? Perguntou ele. Brunetti tirou do bolso um pequeno folheto publicitário com a foto do maestro e passou-o ao médico.

— Este é o homem que procurou o senhor? O homem que afirmou ser austríaco? O médico pegou a foto, examinou-a rapidamente e devolveu-a a Brunetti.

— Sim, é ele.

— Por que ele o procurou, doutor?

— Você não vai me dizer quem é ele? Por que a polícia está interessada nele? O nome dele com certeza não é Hilmar Doerr... Brunetti se perguntava, espantado, como alguém morando na Itália podia ignorar a morte do maestro, mas respondeu apenas:

— Vou lhe dizer depois que o senhor me contar tudo o que sabe sobre ele, doutor. Antes que o outro pudesse objetar, ele acrescentou: — Não quero que nada do que o senhor tem para me dizer seja influenciado por essa informação.

— Não se trata de política, não é? Perguntou o médico, com aquele profundo tom de desconfiança bem italiano, quando se refere a esse tipo de assunto.

— Não, não tem nada a ver com política. Dou-lhe minha palavra. Ainda que o valor da palavra de Brunetti pudesse não ser tão evidente ao médico, ele concordou.

— Muito bem. Ele abriu o envelope de papel manilha que estava sobre a mesa e disse: — A enfermeira que trabalha para mim vai lhe passar uma cópia disto.

— Obrigado, doutor.

— Como já sabe, ele me disse que se chamava Doerr, que era austríaco e morava em Veneza. Como não tinha direito a atendimento médico pela previdência italiana, veio fazer uma consulta particular. Não vi nenhum motivo para não acreditar nele. Enquanto falava, o médico examinava as anotações feitas em papel pautado. Brunetti pôde observar a caligrafia perfeita das anotações, ainda que, da posição em que se encontrava, só as pudesse ver invertidas. — Ele me disse que sofrerá certa perda de audição nos últimos meses e gostaria que eu o examinasse. Isso foi... Disse o médico voltando à primeira página do dossiê, — ... No dia 3 de novembro. — Fiz os exames de rotina, continuou o médico, — E constatei que realmente houvera, como ele disse, uma perda significativa de audição. Antecipando a pergunta de Brunetti, o médico tratou de responder a ela. — Calculei que ele tinha entre sessenta e setenta por cento da audição normal. O que me surpreendeu foi a sua afirmação de que nunca tivera problemas de audição antes; eles surgiram de forma repentina, há cerca de um mês.

— Esse tipo de coisa é comum em homens da idade dele?

— Ele me disse que tinha sessenta e dois anos. Isso também deve ser mentira, não? Se você me disser a idade verdadeira, posso responder à sua pergunta com mais precisão.

— Ele tinha setenta e quatro anos. Ao ouvir isso, o Dr. Treponti voltou à primeira página, riscou alguma coisa e escreveu a correção um pouco acima.

— Acho que isso não muda nada, disse ele. — Pelo menos não substancialmente. A degradação foi brutal e, se tratando de tecido nervoso, irreversível.

— Tem certeza disso, doutor? Ele nem se preocupou em responder.

— Dada a gravidade da perda, sugeri que voltasse dentro de duas semanas, quando então repeti os exames e verifiquei que a perda de audição se agravara ainda mais. Também irreversível.

— De quanto foi essa perda?

— Eu calcularia, nova consulta às anotações, — Em mais dez por cento. Talvez um pouquinho mais.

— O senhor podia fazer alguma coisa para ajudá-lo?

— Sugeri que usasse um desses novos aparelhos auditivos. Eu esperava, sem na verdade acreditar muito, que isso o ajudasse.

— E ele fez isso?

— Não sei.

— Como assim?

— Ele não voltou mais ao meu consultório. Brunetti pensou por um instante. A segunda consulta fora feita quando os ensaios da ópera já estavam bem adiantados.

— O senhor pode me falar sobre esses aparelhos auditivos?

— São bem pequenos e colocados em óculos de lentes neutras ou corretoras. Eles funcionam segundo o princípio... Ele parou. — Não vejo em que isso possa ser importante para o caso. Em vez de explicar, Brunetti perguntou:

— Eles poderiam ajudá-lo?

— É difícil dizer. Muito do que a gente ouve não é bem pelos ouvidos. Vendo a perplexidade de Brunetti, ele explicou: — Nós todos fazemos um bocado de leitura labial e completamos as palavras mal ouvidas baseando-nos no contexto das que ouvimos bem. Quando as pessoas usam aparelhos auditivos é porque finalmente admitiram a ideia de que sua audição não está muito boa. Por isso todos os outros sentidos passam a funcionar de forma mais intensa, tentando preencher os claros dos sinais e das mensagens. E como a única coisa acrescentada é o aparelho auditivo, elas acreditam que a melhora se deve ao aparelho, quando na verdade o que acontece é que seus outros sentidos estão se apurando ao máximo para compensar a perda auditiva.

— Foi o que aconteceu no presente caso?

— Como lhe disse, não sei ao certo. Quando pus o aparelho, na segunda consulta, ele afirmou que estava ouvindo melhor. Ele respondeu melhor a minhas perguntas, mas isso acontece com todos os pacientes, independentemente de uma melhora física real. Fico na frente deles fazendo perguntas, voltado para eles. Nos exames, em que as vozes chegam até eles através do aparelho e não há sinais visuais, raramente se constata alguma melhora, pelo menos em casos como o dele. Brunetti refletiu sobre tudo isso.

— Doutor, o senhor afirmou que a segunda consulta revelou um considerável aumento da perda auditiva. O senhor tem ideia do que poderia ter causado uma perda dessa magnitude, e de forma tão súbita?


Podia-se perceber por seu sorriso que o médico já esperava a pergunta. Ele cruzou as mãos num gesto bastante semelhante ao de um médico de novela.


— Poderia ser a idade, mas com certeza isso não explicaria uma perda tão repentina como a dele. Poderia ser uma súbita infecção de ouvido, mas nesse caso ele sentiria dor, porém não se queixou de dores nem de perda de equilíbrio; só que disse não sentir nenhum desses sintomas. Poderia ser o uso continuado de diuréticos, mas ele afirmou não estar tomando nenhum.

— O senhor discutiu tudo isso com ele, doutor?

— Claro que sim. Ele se mostrou muito mais preocupado com o problema que todos os pacientes que tive, e ele tinha o direito de saber.

— Naturalmente. Mais calmo, o médico continuou.

— Outra possibilidade de que lhe falei foi o uso de antibióticos. Ele parecia interessado nessa possibilidade, e eu lhe expliquei que só uma dosagem excepcionalmente alta teria aquele efeito.

— Antibióticos? Perguntou Brunetti.

— Sim. Um dos efeitos colaterais, não muito comum, mas perfeitamente possível, é uma lesão no nervo auditivo. No entanto, como já disse, a dose teria que ser muito grande. Perguntei-lhe se estava tomando algum, e ele disse que não. Assim, tendo excluído todas essas hipóteses, a única explicação possível era a idade avançada. Como médico, essa explicação não me pareceu satisfatória, e ainda não me parece. Ele olhou o calendário. — Se eu o examinasse agora, depois de passado bastante tempo, poderia pelo menos verificar o progresso da deterioração. Se ela continuasse no mesmo ritmo que observei na segunda consulta, a esta altura eleja estaria completamente surdo. A menos, naturalmente, que por engano eu não tenha notado a existência de uma infecção ou que esta não tenha sido detectada pelos exames a que o submeti. Ele fechou o dossiê. — Você acha que ele volta para outra consulta?

— O homem morreu, revelou Brunetti sem rodeios. A expressão do médico não traiu nenhuma reação.

— Pode me dizer a causa da morte? Perguntou ele, se apressando em se explicar. — Gostaria de saber para o caso de ter havido uma infecção que não consegui descobrir.

— Ele foi envenenado.

— Envenenado, repetiu o médico. — Entendo, entendo. Ele refletiu por um instante e depois perguntou, num tom estranhamente desconfiado, reconhecendo que agora a vantagem estava com Brunetti:

— Que tipo de veneno?

— Cianureto.

— Oh, fez ele desapontado.

— Isso é importante, doutor?

— Se tivesse sido arsênico, poderia ter havido certa perda de audição do tipo da que ele teve. Isso, é claro, no caso de ter recebido pequenas doses por um longo período de tempo. Mas cianureto... Não, acho que não. O médico refletiu um pouco sobre isso, abriu o dossiê, redigiu uma breve anotação, depois fez um forte traço horizontal sob as palavras que acabara de escrever. — Fizeram uma autópsia? Acho que em casos como esse é obrigatório.

— Sim.

— E examinaram os ouvidos dele?

— Acho que não se deu atenção especial ao aparelho auditivo.

— É pena, disse o médico, se corrigindo em seguida. — Mas acho que não iriam descobrir nada. O médico fechou os olhos e Brunetti compreendeu que ele estava folheando mentalmente seus manuais, parando aqui e ali para ler um trecho com mais atenção. Finalmente abriu os olhos e olhou para Brunetti. — Não, não daria para perceber nada. Brunetti ficou de pé.

— Se a enfermeira pudesse fazer o favor de tirar uma cópia do prontuário, doutor, eu não tomaria mais o seu tempo.

— Sim, claro, disse o médico se levantando e seguindo Brunetti até a porta. Na entrada, ele passou o prontuário à mulher de branco, lhe pedindo que tirasse uma cópia para o comissário, se voltando em seguida para uma paciente que chegara enquanto ele conversava com o policial. — Signora Mosca, pode entrar, disse o médico. Ele fez um aceno para Brunetti e entrou em sua sala em seguida à mulher e fechou a porta.


A enfermeira voltou e lhe passou a cópia do prontuário, ainda quente da copiadora. Brunetti agradeceu e foi embora. No elevador, que ele se lembrou de tomar, abriu o prontuário e leu a última anotação:


— Paciente morreu de envenenamento por cianureto. Efeitos do tratamento sugerido desconhecidos.


* * *


Vinte e Dois

ELE CHEGOU em casa antes das oito e ficou sabendo que Paola levara os filhos ao cinema. Ela deixara um bilhete dizendo que uma mulher telefonara duas vezes naquela tarde, mas não deixara o nome. Deu uma olhada na geladeira e encontrou apenas salame, queijo e um saquinho plástico com azeitonas pretas. Pôs tudo na mesa, depois foi pegar uma garrafa de vinho tinto e um copo. Jogou uma azeitona na boca, despejou vinho no copo e cuspiu o caroço na mão. Olhou em volta para tentar achar um lugar onde o colocar, enquanto comia outra azeitona. E mais uma. Finalmente, ele os colocou na lixeira que ficava debaixo da pia. Cortou duas fatias de pão, pôs um pouco de salame entre uma e outra, e se serviu de mais vinho. Havia um exemplar de Época em cima da mesa, que Paola com certeza estivera lendo. Brunetti se sentou, abriu a revista e mordeu o sanduíche. E o telefone tocou. Ainda mastigando, andou devagar até a sala, esperando que o telefone parasse de tocar antes que o alcançasse. Ao sétimo sinal, ele pegou o fone e disse seu nome.


— Alô, aqui é Brett, disse ela rapidamente. — Desculpe-me por ligar para sua casa, mas eu gostaria de falar com você. Se for possível.

— É importante? Perguntou ele, sabendo que era, uma vez que ela ligara, mas com a esperança de que não fosse.

— Sim. Trata-se de Flavia. Disso ele também sabia. — Ela recebeu uma carta do advogado. Nem era preciso perguntar do advogado de quem. — E nós conversamos sobre a discussão que ela teve com ele. Este ele só podia ser Wellauer. Brunetti sabia que devia se oferecer para ir encontrá-la, porém não estava muito disposto a isso. — Guido, está me ouvindo? Ele sentiu a tensão em sua voz, da mesma forma como percebia o seu esforço para manter a calma.

— Sim. Onde você está?

— Estou ligando de casa. Mas não posso falar com você aqui. O leve tremor de sua voz fez com que de repente Brunetti quisesse encontrá-la.

— Escute, Brett. Conhece o Giro Bar, bem perto de Santa Marina?

— Sim.

— Encontro você lá daqui a quinze minutos.

— Obrigada, Guido.

— Quinze minutos, repetiu ele e desligou. Ele rabiscou um recado para Paola, dizendo que saíra, e desceu as escadas comendo o resto do sanduíche.


O Giro era um lugar enfumaçado e sombrio, um dos poucos bares da cidade que ficavam abertos depois das dez da noite. Ele mudara de proprietário alguns meses antes e os novos donos tinham feito o possível para tornar o ambiente mais agradável, colocando cortinas brancas e música animada. Mas o resultado é que perdeu a característica de bar onde os amigos se encontram para tomar um café ou um drinque, sem conseguir se transformar num bar da moda. Não tinha nem charme nem classe, apenas vinhos caros demais e muita fumaça. Brunetti a viu já ao entrar, sentada a uma mesa do fundo, olhando para a porta e por sua vez sendo observada por quatro rapazes que estavam de pé, no bar, bebendo vinho tinto em copos pequenos e conversando entre si em voz alta para impressioná-la. Brunetti se sentiu observado por eles quando se aproximou da mesa de Brett. O sorriso caloroso que ela lhe deu fez com que se sentisse satisfeito por ter vindo.


— Obrigada, disse ela simplesmente.

— Fale-me da carta. Ela olhou para a mesa. Suas mãos, pousadas sobre esta, não se moveram dali enquanto durou seu relato.

— É de um advogado de Milão, o mesmo que cuidou do divórcio. Ele diz que foi informado de que Flavia estava levando “uma vida imoral e contra a natureza”, os termos eram esses. Ela me mostrou a carta. “Uma vida imoral e contra a natureza.” Brett olhou para ele e tentou sorrir. — Acho que se refere a mim, não é? Ela levantou uma mão, cingindo o nada. — Não consigo acreditar nisso, disse, balançando a cabeça de um lado para o outro. — Ele dizia que abririam um processo contra ela e pedir... E pediriam que os filhos voltassem à custódia do pai. A carta era um comunicado oficial de sua intenção. Ela parou e cobriu os olhos com uma mão. — Eles estão nos comunicando oficialmente. Brett cobriu a boca com a mão, como para reter as palavras. — Não, a nós, não. Comunicando a Flavia. O processo vai ser reaberto.


Brunetti sentiu a aproximação de um garçom e fez um gesto vigoroso para que ele se afastasse. Quando o homem já estava a uma distância em que não podia ouvir o que diziam, perguntou:


— O que mais? Ela tentou, como ele bem viu, fazer com que as palavras saíssem da boca, mas não conseguiu. Ela olhou para ele e lhe deu um sorriso nervoso, o mesmo que Chiara costumava dar quando fazia alguma coisa errada e não queria contar a ele. Ela murmurou alguma coisa e abaixou a cabeça. — Como, Brett? Não ouvi. Ela olhou para a mesa.

— Eu tinha que contar a alguém. Não tinha mais ninguém.

— Mais ninguém? Ela passara boa parte da vida naquela cidade, e não havia ninguém a quem pudesse contar aquilo, apenas ao policial cujo trabalho era descobrir se ela amava uma assassina?

— Ninguém?

— Eu não falei a ninguém sobre Flavia, disse ela, mas desta vez sustentando o olhar. — Ela disse que não queria mexericos, que isso poderia prejudicar sua carreira. Nunca conversei com ninguém sobre ela. Sobre nós. Naquele instante, Brunetti se lembrou do que Padovani dissera sobre a paixão de Paola por ele, de como contava para todos os amigos e não conseguia falar de outra coisa. A sociedade lhe permitia não apenas essa alegria, como também manifestá-la publicamente. E esta mulher estivera apaixonada, não podia haver dúvida quanto a isso, por três anos e não contara a ninguém. Exceto a ele. O policial.

— Seu nome foi citado na carta? Ela balançou a cabeça, negativamente. — E quanto a Flavia. O que ela diz? Mordendo os lábios, ele levantou uma mão e apontou o próprio coração. — Ela põe a culpa em você?


Da mesma forma que Chiara, ela balançou a cabeça afirmativamente e passou as costas da mão no nariz. A mão ficou úmida e brilhante. Brunetti lhe passou o seu lenço e ela parecia não saber o que fazer com ele; ficou segurando-o na mão, as lágrimas escorrendo dos olhos, o nariz gotejando. Sentindo-se um pouco idiota, mas se lembrando de que afinal de contas era pai de uma filha adolescente, pegou o lenço e passou delicadamente em seu rosto. Brett teve um sobressalto e tomou o lenço da mão dele. Enxugou as faces, assoou o nariz e pôs o lenço no próprio bolso; era o segundo que ele perdia naquela semana.


— Ela disse que a culpa era minha, que nada disso teria acontecido se não fosse por mim. Falava com voz tensa, rouca. Fez uma careta. — O pior é que é verdade. Sei muito bem que de certa forma essa acusação é estúpida, mas do jeito como ela coloca as coisas sou obrigada a reconhecer que é verdade.

— A carta dizia a origem da informação?

— Não. Mas só pode ter sido Wellauer.

— Ótimo. Ela o olhou surpresa.

— Como ótimo? O advogado disse que vai pedir a revisão do processo. Toda a história vai vir a público.

— Brett, disse ele em tom calmo. — Pense um pouco. Se a testemunha dele era Wellauer, ele teria que testemunhar num tribunal. E, mesmo que estivesse vivo, ele nunca iria se envolver numa coisa desse tipo. É só uma ameaça.

— Mas de qualquer forma, se o advogado entrar com uma ação...

— Ele só está tentando amedrontar vocês. E veja como está conseguindo. Nenhum tribunal, mesmo um tribunal italiano, iria aceitar uma acusação na base do ouvi dizer, e essa carta não passa disso, sem que a pessoa que a escreveu possa apresentar provas. Brunetti a observou enquanto ela considerava essa informação. — Não há nenhuma prova, há?

— O que quer dizer com prova?

— Cartas. Sei lá. Conversas.

— Não, não há nada desse tipo. Nunca escrevi nada, nem mesmo da China. E Flavia está sempre ocupada demais para escrever.

— E os amigos dela? Eles sabem?

— Não sei. Não é um tipo de coisa que se goste de comentar.

— Então acho que vocês não têm com o que se preocupar. Brett tentou sorrir, tentou se convencer de que de certa forma ele conseguira tirá-la do desespero, lhe devolvendo a confiança.

— É mesmo?

— Sim, disse ele sorrindo. — Eu convivo o tempo todo com advogados, e sei que o que este quer é apenas amedrontá-las e ameaçá-las.

— Bem, principiou ela dando um sorriso que se transformou num soluço, — Com certeza ele conseguiu isso. Depois, em voz mais baixa: — O filho da puta. Com isso, Brunetti pensou que já podia pedir dois conhaques, que o garçom se apressou em trazer. Quando a bebida chegou, Brett disse:

— Ela foi horrível.


Ele tomou um gole do conhaque e esperou que ela continuasse.


— Ela disse coisas horríveis.

— Todo mundo faz isso às vezes.

— Eu não, replicou ela imediatamente, e Brunetti achou que ela falava a verdade, que usava a língua como um instrumento, e não como uma arma.

— Ela vai esquecer isso, Brett. As pessoas que falam esse tipo de coisa sempre esquecem. Ela deu de ombros, considerando isso irrelevante. Ela com certeza não iria esquecer. — O que você vai fazer? Perguntou ele, realmente interessado em saber.

— Vou para casa ver se Flavia está lá. Ver o que acontece.


De repente Brunetti se deu conta de que nunca se preocupara em saber se Petrelli tinha sua própria casa na cidade, de que nunca investigara o seu comportamento antes ou depois da morte de Wellauer. Ele seria assim tão fácil de enganar? Seria tão diferente do resto dos homens, mostre um rosto bonito, chore um pouco, pareça ser inteligente e honesta, e ele simplesmente elimina a possibilidade de você ter matado um homem ou contratado alguém para fazê-lo? Brunetti ficou assustado em ver como aquela mulher o desarmara. Ele pegou algumas notas do bolso e deixou-as cair sobre a mesa.


— Sim, é uma boa ideia, disse finalmente, empurrando a cadeira para trás e se pondo de pé. Ele percebeu a insegurança de Brett ao vê-lo passar de uma atitude amistosa para a de um estranho. Nem isso ele conseguia fazer bem. — Vou com você até San Giovanni e Paolo.


Lá fora, como era noite e porque era hábito seu, ele tomou o braço dela enquanto andavam. Nenhum dos dois falou nada. Ele tinha consciência de sua feminilidade, sentia o arco amplo de seus quadris e o quanto era agradável tê-la junto a si quando passavam pelas pessoas nas ruas estreitas. Tudo isso lhe passou pela cabeça enquanto a conduzia de volta para a sua casa e para a sua amante.


Eles se disseram até logo sob a estátua de Colleoni, nada mais que isso, um simples até logo.


* * *


Vinte e Três

BRUNETTI atravessou novamente a pé a cidade adormecida, perturbado com o que acabara de ouvir. Ele pensava que sabia alguma coisa sobre o amor, tendo aprendido sobre isso com Paola. Mas seria ele uma pessoa convencional a ponto de o amor daquela mulher, pois não havia dúvida de que se tratava realmente de amor, tivesse que lhe permanecer alheio porque não se enquadrava nas suas ideias? Rejeitou esses pensamentos como o pior tipo de sentimentalismo, se concentrando na pergunta que se fizera no bar: será que sua simpatia por aquela mulher, a atração que alguma coisa nela exercia sobre ele tornara-o cego para aquilo que deveria estar fazendo? Flavia Petrelli certamente não parecia ser uma pessoa que mata a sangue-frio. Ele não tinha nenhuma dúvida de que, num momento de raiva ou de paixão, ela seria capaz de matar alguém; a maioria das pessoas é. No caso da cantora, seria uma faca nas costelas ou um empurrão escada abaixo, e não veneno, administrado friamente, quase sem paixão. Quem, então? A irmã da Argentina? Ela teria voltado e vingado a morte de sua irmã? Depois de ter esperado meio século? A hipótese era ridícula.


Quem, então? Não o diretor, Santore. Não se faz isso por causa do cancelamento do contrato de um amigo. Depois de uma vida dedicada ao teatro, Santore com certeza tinha muitos contatos e conseguiria facilmente outro papel para seu protegido, ainda que este tivesse pouquíssimo talento. Mesmo se ele não tivesse talento nenhum. Sobrava a viúva, mas o instinto de Brunetti lhe dizia que o sofrimento dela era real e que sua falta de interesse em procurar o responsável não era motivada pela necessidade de se proteger. Ela parecia querer proteger o defunto, e isso fez Brunetti voltar ao ponto de partida, precisando e querendo saber mais sobre o passado do homem, sobre seu caráter, sobre as falhas em sua cuidadosa pose de retidão moral que levariam uma pessoa a colocar veneno em seu café. Brunetti se sentia incomodado pelo fato de não gostar de Wellauer; ele não sentia nem um pouco daquela compaixão indignada que sentia por aqueles cujas vidas foram roubadas. Brunetti não podia se impedir de acreditar que, não conseguia exprimir de forma mais clara, Wellauer fora, de certa forma, corresponsável por sua própria morte. Ele bufou; todo mundo de certa forma é corresponsável pela própria morte. Contudo, por mais que tentasse, essa ideia não o abandonava nem se tornava mais clara, e por isso ele continuava procurando o detalhe que podia estar relacionado a essa morte, e continuava sem o achar.


* * *


A manhã seguinte foi tão melancólica quanto seu estado de ânimo. Formara-se um intenso nevoeiro durante a noite, não vindo do mar, mas das águas acima das quais a cidade se erguia. Quando ele saiu à rua, frias volutas de vapor d’água vieram roçar o seu rosto, se insinuando na gola de seu casaco. Só se podiam ver alguns metros à frente; um pouco mais adiante, tudo se perdia no nevoeiro, os edifícios desapareciam completamente, como se tivessem ido embora. Fantasmas envoltos numa névoa tremeluzente e argêntea passavam por ele na rua, dando a impressão de flutuar como se estivessem desencarnados. Se ele os acompanhava com o olhar, logo desapareciam, engolidos pela espessa camada de bruma que enchia as ruas estreitas e que pairava sobre as águas feito uma maldição. A intuição e uma grande experiência lhe diziam que não haveria serviço de barco no Grand Canal; o nevoeiro estava forte demais para isso. Brunetti caminhava um tanto às cegas, deixando que seus pés o guiassem e que décadas de familiaridade com pontes, ruas e encruzilhadas o fizessem chegar ao Zattere e ao embarcadouro onde os barcos 5 e 8 paravam, a caminho de Giudecca.


O serviço estava muito limitado, e os barcos, sem a menor preocupação com os horários, surgiam do nevoeiro ao acaso, com a tela de radar acesa. Ele esperou durante quinze minutos até que um número 5 chegou de repente e abalroou o embarcadouro, sacudindo-o e fazendo com que algumas pessoas que nele se encontravam perdessem o equilíbrio e caíssem umas sobre as outras. Só o radar conseguia se orientar; as pessoas se amontoaram na cabine, cegas como toupeiras na areia.


Quando saiu do barco, Brunetti não teve alternativa senão andar para frente até quase tocar os edifícios fronteiros ao embarcadouro. Mantendo-os sempre à distância de um braço, ele andou em direção do lugar onde, pelo que lembrava, ficava a passagem do túnel. Quando chegou a uma abertura na linha dos edifícios, entrou por ela, ainda sem ter certeza de que se tratava da Corte Mosca. Não conseguiu ler a placa, embora ela estivesse apenas alguns centímetros acima de sua cabeça. A umidade intensificara o cheiro de urina de gato; o frio tornava-o mais penetrante. As plantas mortas do pátio agora jaziam sob um manto de neblina. Ele bateu à porta uma vez e em seguida com mais força. Ouviu-a gritar de dentro da casa:


— Quem é?

— O comissário Brunetti.


Mais uma vez ele ouviu o lento e raivoso roçar de metal contra metal quando ela abriu os pesados ferrolhos da porta, puxando-a para si. O grande aumento da umidade obrigou-a, a certa altura, a puxá-la um pouco para cima, para evitar que um ressalto no piso a impedisse de abrir. Ainda usando seu casaco, dessa vez todo abotoado, ela não se deu ao trabalho de lhe perguntar o que queria. Afastou-se apenas o bastante para que Brunetti entrasse, depois bateu a porta atrás dele. Mais uma vez ela a fechou com todo o cuidado antes de conduzi-lo pelo corredor estreito. Chegando à cozinha, ele foi sentar junto ao aquecedor, e ela parou de modo a empurrar com o pé os trapos para a abertura sob a porta. Santina se arrastou até sua poltrona e se deixou cair nela, e logo estava envolta em mantas e xales.


— O senhor voltou.

— Sim.

— O que deseja?

— A mesma coisa que da outra vez.

— E o que é? Sou uma mulher idosa, e não me lembro das coisas. A expressão inteligente de seus olhos negava isso.

— Gostaria de saber algumas coisas sobre sua irmã. Sem se dar ao trabalho de perguntar sobre qual das duas, ela indagou:

— O que o senhor quer saber?

— Não quero que reviva a sua dor, senhora, mas preciso saber mais sobre Wellauer para que possa entender por que ele morreu.

— E se ele tiver merecido morrer?

— Signora, todos nós merecemos morrer, mas ninguém tem o direito de decidir isso por nós.

— Por Deus, disse ela com um risinho. — O senhor é um verdadeiro jesuíta, não é? E quem decidiu quando minha irmã devia morrer? E quem decidiu como seria essa morte? De forma tão súbita como surgira, sua raiva cessou, e ela perguntou novamente: — O que o senhor quer saber?

— Estou informado de sua ligação com ele. Sei que correu o boato de que Wellauer engravidou a sua irmã. E sei que ela morreu em Roma em 1939.

— Ela não morreu apenas. Ela se esvaiu em sangue até morrer. Disse isso num tom sinistro como o sangue e a morte. — Ela sangrou até a morte num quarto de hotel, o quarto em que ele a colocou depois do aborto, e onde nunca foi visitá-la. Em seu rosto, a dor da velhice lutava com a dor da lembrança. — Quando a encontraram, ela já estava morta há um dia. Talvez dois. E se passou mais um dia antes que eu fosse informada da sua morte. Eu estava em prisão domiciliar, mas os amigos vieram me avisar. Saí de casa. Tive que bater num policial para fazer isso, derrubá-lo no chão e chutar o seu rosto, para poder sair. Mas saí. E nenhuma das pessoas que me viram chutá-lo, nenhuma delas parou para ajudá-lo. — Meus amigos foram comigo, continuou Santina, — Para onde ela estava. Tudo o que era preciso fazer já fora feito; e nós a enterramos naquele dia mesmo. Não contamos com a presença de nenhum padre, por causa da forma como ela morreu. Por isso, simplesmente a enterramos. A sepultura era muito pequena. Sua voz sumiu, sufocada pelo peso da memória.


Ele já assistira muitas vezes a cenas como essa, no passado, por isso teve o discernimento de se manter calado. As palavras tinham se libertado, e ela não iria parar até dizê-las todas, se libertando delas. Brunetti esperou, pacientemente, vivendo o passado junto com ela.


— Vestimo-la toda de branco. Depois a enterramos naquela sepultura minúscula. Aquele buraco minúsculo. Voltei para minha casa após o funeral e eles me prenderam. Mas como eu já estava presa, não fazia a mínima diferença. Perguntei-lhes pelo policial, e disseram que ele estava bem. Pedi-lhe desculpas quando o encontrei mais tarde. Depois da guerra, quando os aliados estavam na cidade, ele ficou escondido no porão de minha casa por um mês, até que sua mãe veio e o levou. Eu não nada tinha contra ele, nenhuma razão para lhe querer mal.

— Como aconteceu? Ela olhou para ele sem entender. — Sua irmã e Wellauer. Ela passou a língua nos lábios e contemplou as mãos deformadas, que mal se podiam ver entre as mantas.

— Eu os apresentei. Wellauer ficou sabendo como começara minha carreira de cantora, por isso quando elas vieram a Alemanha para me ver cantar ele me pediu que o apresentasse a Clara e a pequena Camilla.

— A senhora já estava envolvida com ele naquela época?

— O senhor quer saber se ele já era meu amante?

— Sim.

— Sim, era. A relação começou quase imediatamente, quando fui para lá cantar.

— E o caso dele com sua irmã?


A cabeça dela se projetou para trás, como se ele a tivesse golpeado. Inclinou-se para frente, e Brunetti pensou que ela ia bater nele. Em vez disso, cuspiu. Uma pequena gota de saliva aquosa caiu em sua coxa e lentamente se infiltrou no tecido de sua calça. Ele estava perturbado demais para limpá-la.


— Vá para o diabo. Vocês são todos iguais. Sempre iguais, bradou descontrolada, com raiva. — Vocês olham para alguma coisa e veem sujeira onde querem ver. Ela falava cada vez mais alto, repetindo com desprezo as palavras dele. — O caso dele com minha irmã. O caso dele. Ela se inclinou para Brunetti, os olhos franzidos de ódio, e sussurrou: — Minha irmã tinha doze anos. Doze anos. Nós a enterramos com o vestido da primeira comunhão; ela era apenas uma criança. Uma menininha. — Ele a estuprou, senhor policial, continuou Santina. — Ele não teve nenhum caso com minha irmãzinha. Ele a estuprou. Da primeira vez, e muitas outras, quando então a ameaçou, ameaçou-a de dizer para mim que menina má era ela. E, quando ela ficou grávida, ele nos mandou de volta a Roma. E eu não sabia nada da história. Porque ele ainda era meu amante. Fazendo amor comigo e estuprando minha irmã. O senhor está entendendo, senhor policial, por que estou feliz que ele tenha morrido e por que eu disse que ele merecia morrer? Seu rosto estava transtornado pela raiva que ela trazia dentro de si havia meio século. — O senhor quer saber toda a história, senhor policial?


Brunetti aquiesceu. Agora ele via, compreendia.


— Ele voltou para Roma, para dirigir a Norma em que eu deveria cantar. E ela lhe disse que estava grávida. Estava assustada demais para nos contar, com medo de que a acusássemos de ser uma menina má. Então ele providenciou o aborto, e em seguida a levou para o quarto de hotel. Largou-a lá, e ela sangrou até morrer. E, quando morreu, não tinha mais que doze anos.


Brunetti viu a mão dela se erguer de entre as mantas e xales, viu-a tentar bater nele. Bastou-lhe recuar um pouco a cabeça para evitar o golpe. Ela bateu com a mão no braço da cadeira, que era de madeira, e gritou de dor. Ela se levantou bruscamente da cadeira, espalhando xales e mantas pelo chão.


— Saia de minha casa, seu porco. Porco!


Brunetti pulou da cadeira fugindo dela, por pouco não tropeçou na perna da cadeira, e saiu esbarrando pelo corredor, fugindo daquele acesso de raiva, enquanto ela o seguia com a mão erguida. Ela parou, ofegante, enquanto ele tentava abrir os ferrolhos. Já no pátio, Brunetti ainda a ouvia gritar contra ele, contra Wellauer, contra o mundo. Ela bateu a porta e a aferrolhou, continuando a vociferar. Viu-se do lado de fora tiritando no nevoeiro, perturbado com a raiva que provocara na cantora. Forçou-se a respirar fundo, para esquecer aquele primeiro instante em que ela o amedrontara; o momento em que ficou realmente assustado com o terrível turbilhão de lembranças que a fizera se precipitar da cadeira, investindo contra ele.


* * *


Vinte e Quatro

BRUNETTI teve de esperar mais de uma hora no ancoradouro e, quando o número 5 chegou, estava completamente gelado. Não ocorrera nenhuma mudança no tempo, por isso durante a travessia para San Zaccaria ele se refugiou na cabine muito mal aquecida, fitando a névoa branca que se condensava nos vidros das janelas. Chegando à Questura, se dirigiu a sua sala, ignorando as poucas pessoas que o cumprimentaram. Entrou e fechou a porta, mas não tirou o casaco, esperando se aquecer um pouco. Imagens se atropelavam em sua mente. Ele viu a velha senhora, possessa, gritando atrás dele no corredor frio; via as três irmãs dispostas em V; viu a menininha jazendo morta em seu vestido de primeira comunhão. E ele via tudo, via a trama, via o plano.


Finalmente, tirou o casaco e jogou-o nas costas de uma cadeira. Depois, se pôs a mexer na desordem dos papéis acumulados sobre sua mesa. Foi afastando pastas e dossiês, até conseguir achar o relatório de capa verde da autópsia. Na segunda página achou o detalhe que lhe tinha ficado na memória: Rizzardi anotara as pequenas marcas no braço e nas nádegas, considerando-as apenas marcas de sangramento subcutâneo, de causa desconhecida. Nenhum dos dois médicos com quem tinha conversado afirmou ter aplicado nenhuma injeção no maestro. No entanto, um homem casado com uma médica não precisa marcar uma consulta para tomar uma injeção. Brunetti achou também que ele não precisava ter um encontro marcado para falar com aquela médica. Ele voltou à pilha de papéis, encontrou o relatório da polícia alemã e começou a ler até achar alguma coisa que lhe ficara na memória. O primeiro marido de Elizabeth Wellauer, o pai de Alexandra, não apenas ensinava na Universidade de Heidelberg como também era chefe do Departamento de Farmacologia. Ela se encontrou com ele quando ia para Veneza.


* * *


— Sim? Disse Elizabeth Wellauer quando abriu a porta para ele.

— Desculpe-me por incomodá-la mais uma vez, signora, mas há uma informação nova, e eu gostaria de lhe fazer mais algumas perguntas.

— Sobre o quê? Perguntou ela, sem mover um dedo para abrir mais a porta.

— O resultado da autópsia de seu marido, explicou ele, certo de que aquilo seria bastante para fazê-la abrir.


Num gesto brusco e nada elegante, ela abriu a porta e se afastou para que ele entrasse. Em silêncio, ela o levou à sala onde tiveram as duas conversas anteriores e apontou para a cadeira que eleja estava começando a considerar sua. Brunetti esperou que a viúva acendesse o cigarro, gesto tão natural nela que ele já não lhe dava a mínima atenção.


— Quando a autópsia foi feita, começou ele sem rodeios, — O legista me disse que encontrou pequenas marcas no corpo de seu marido que podiam ter sido causadas por algum tipo de injeção. O mesmo está dito em seu relatório. Brunetti fez uma pausa, lhe dando tempo para que ela fornecesse, por iniciativa própria, alguma explicação. Como esta não veio, ele continuou: — O doutor Rizzardi disse que as marcas podiam derivar de injeções de vários tipos: drogas, vitaminas, antibióticos. Disse também que os lugares onde se encontram as marcas eliminam a possibilidade de as injeções terem sido autoaplicadas. Ele era destro, não era?

— Sim.

— As marcas do braço também eram do lado direito, por isso ele não podia ter aplicado essas injeções em si mesmo. Ele se permitiu uma pequena pausa. — Isto é, no caso de se tratar de injeções mesmo. Mais uma pausa. — A senhora deu essas injeções em seu marido? Ela o ignorou, por isso ele repetiu a pergunta. — A senhora deu essas injeções em seu marido? Nenhuma resposta. — A senhora entendeu a minha pergunta? A senhora deu as injeções em seu marido?

— Eram vitaminas, respondeu ela finalmente.

— Que tipo de vitaminas?

— B 12.

— Onde a senhora as conseguiu? Com seu ex-marido? A pergunta, não havia dúvida, tomou-a de surpresa. Ela balançou a cabeça, negando veementemente.

— Não, ele não teve nada a ver com isso. Eu fiz uma receita quando ainda estávamos em Berlim. Helmut se queixara de que andava cansado, por isso sugeri que tomasse uma série de injeções de vitamina B 12. Eleja fizera isso no passado, e as injeções o tinham ajudado.

— Quando a senhora começou a aplicar as injeções?

— Não me lembro exatamente. Há umas seis semanas.

— E ele não apresentou melhoras?

— Como?

— Seu marido. Ele melhorou com as injeções? Elas tiveram o efeito esperado? Ela lhe lançou um olhar penetrante quando ele fez essa segunda pergunta, mas respondeu calmamente.

— Não, parecem não ter adiantado muito. Por isso, depois de seis ou sete, resolvi suspendê-las.

— Quem decidiu isso foi a senhora ou o seu marido?

— Que diferença faz? Elas não estavam adiantando, por isso ele parou de tomá-las.

— Acho que faz uma grande diferença se foi ele ou a senhora que tomou a decisão. E acho que a senhora sabe disso.

— Acho que a decisão foi dele.

— Onde o remédio foi comprado? Aqui na Itália?

— Não, não tenho licença para trabalhar aqui. Foi em Berlim, antes de virmos para cá.

— Entendo. O farmacêutico deve ter um registro disso, não é?

— Sim. Acho que sim. Mas não lembro onde foram compradas.

— Quer dizer então que a senhora prescreveu a receita e comprou a medicação numa farmácia qualquer?

— Sim.

— Por quanto tempo viveu em Berlim, senhora?

— Por dez anos. Não sei que importância pode ter isso.

— Porque me parece estranho que um médico tenha morado por dez anos numa cidade e não seja cliente de nenhuma farmácia. Ou que o maestro não tivesse o costume de comprar remédios numa farmácia determinada. Sua resposta atrasou apenas um segundo.

— Ele tinha. Ambos tínhamos. Mas naquele dia eu não estava em casa quando fiz a prescrição, por isso a levei à primeira farmácia que encontrei e comprei o remédio.

— Mas com certeza a senhora se lembra de qual foi a farmácia. Não faz tanto tempo assim. Ela olhou pela janela, se concentrando, tentando se lembrar. Depois se voltou para ele.

— Desculpe-me, mas não consigo lembrar onde foi.

— Não tem importância, senhora, disse Brunetti em tom sumário. — Com certeza a polícia de Berlim descobrirá isso para nós. Ela olhou para ele, surpresa ou algo mais que isso. — E tenho certeza de que eles vão descobrir que receita era aquela, que tipo de... Ele fez uma pausa antes de pronunciar a última palavra, —... Vitamina.


Embora o cigarro ainda estivesse aceso no cinzeiro, ela estendeu a mão para pegar o maço, depois mudou de ideia e passou simplesmente a girá-lo com a ponta do dedo, fazendo-o se deslocar exatamente um quarto de volta de cada vez.


— Podemos parar com isso agora? Ela perguntou em tom neutro. — Nunca gostei de jogos, e parece que o senhor também não é muito bom nisso.


Ao longo dos anos ele vira aquilo acontecer inúmeras vezes, as pessoas chegarem a um ponto em que não podiam ir mais adiante, o ponto em que se viam obrigadas, ainda que com relutância, a dizer a verdade. Como uma cidade sitiada: a primeira linha de defesa cede, depois as tropas dessa linha batem em retirada, primeira concessão ao assédio inimigo. Dependendo do tipo de defesa, o desfecho do combate é rápido ou a coisa se arrasta, empacando ao pé de um ou outro baluarte; pode acontecer um contra-ataque, e pode não acontecer nada. Entretanto, o primeiro movimento é sempre igual; era quase com alívio que as pessoas se livravam do peso da mentira, para finalmente abrir as portas da verdade.


— Não era vitamina. O senhor já sabe, não? Perguntou ela. Ele concordou. — E o senhor sabe o que era?

— Não, não sei exatamente o que era. Acho que algum antibiótico. Não sei qual, mas acho que isso não importa.

— Não, não importa. Ela o olhou com um meio sorriso, a tristeza expressa nos olhos. — Netilmicina. Acho que esse é o nome que tem na Itália. A receita foi aviada na farmácia Ritter, umas três ruas antes da entrada do zoológico. Não haveria a menor dificuldade em encontrá-la.

— O que a senhora disse ao seu marido que era?

— O mesmo que disse ao senhor, vitamina B 12.

— Quantas injeções a senhora aplicou nele?

— Seis, num intervalo de seis dias.

— Depois de quanto tempo ele começou a notar o efeito?

— Algumas semanas. A essa altura não conversávamos muito um com o outro, mas ele ainda me via como médica e me consultou sobre o cansaço que vinha sentindo. Depois me consultou sobre o ouvido.

— E o que a senhora lhe disse?

— Lembrei-o da idade e disse também que poderia ser um efeito colateral, temporário, das vitaminas. Foi estupidez minha. Tenho livros de medicina em casa e ele podia muito bem verificar o que eu lhe dizia.

— E ele fez isso?

— Não, não fez. Ele confiava em mim. Eu era a médica, dele, entende?

— Então como ele descobriu? Como ele começou a suspeitar?

— Ele foi consultar Erich. O senhor deve saber disso, ou não estaria aqui fazendo essas perguntas. Já quando estávamos aqui, ele começou a usar óculos com um aparelho auditivo, e assim fiquei sabendo que fora consultar outro médico. Quando sugeri mais uma injeção, ele recusou. Aquela altura ele já sabia, claro, mas não sei como descobriu. Pelo outro médico? Perguntou ela. Brunetti concordou mais uma vez. Ela lhe deu o mesmo sorriso triste.

— E o que aconteceu então, signora?

— Viemos a Veneza no meio do tratamento. Na verdade, eu lhe dei a última injeção nesta sala. Já então ele devia saber, mas se recusava a acreditar no que sabia. Ela fechou os olhos e esfregou-os com as mãos. — É muito difícil saber quando ele se deu conta de tudo.

— Quando a senhora se deu conta de que ele sabia?

— Deve ter sido há cerca de duas semanas. De certa forma, me surpreende o fato de ter demorado tanto, mas deve ser porque nos amávamos muito. Ela o olhou de frente ao dizer isso. — Ele sabia o quanto eu o amava. Por isso não acreditava que eu tinha feito aquilo com ele. Ela sorriu amargamente. — Houve momentos, depois que comecei com isso tudo, em que eu mesma não acreditava, quando eu me lembrava de quanto o amava.

— Quando a senhora imagina que ele descobriu que tipo de injeção era?

— Uma noite eu estava aqui, lendo. Eu não havia ido ao ensaio naquele dia, como costumava fazer. Era muito doloroso ouvir a música, as cordas soando pessimamente, as entradas muito adiantadas ou muito atrasadas, sabendo que eu causara aquilo, tão certo como se tivesse tirado a batuta das mãos dele e a ficasse agitando ao acaso no ar. Ela parou de falar, como se ainda estivesse ouvindo a música dissonante dos ensaios. — Eu estava aqui, lendo, ou tentando ler, e ouvi... Ela levantou os olhos nesse instante e, com o tom de um ator que recita um aparte num teatro cheio de gente, disse: — Meu Deus, é difícil evitar essa palavra, não é? Para depois voltar ao seu papel. — Ele chegou mais cedo, tinha voltado mais cedo do teatro. Eu ouvi os seus passos pelo corredor, entrando na sala. Ele ainda estava de casaco, e trazia nas mãos a partitura de La Traviata. Era uma de suas óperas favoritas. Ele gostava de regê-la. Ele chegou e ficou de pé ali, exatamente ali, disse ela, apontando para um espaço vazio entre eles. — Ele olhou para mim e perguntou: “Você fez isso, não fez?”. Ela continuou olhando para a porta, como a esperar que as palavras fossem repetidas.

— Você respondeu?

— Eu lhe devia isso, não? Respondeu ela, em tom calmo e racional. — Sim, eu confirmei.

— Qual a reação dele?

— Ele saiu. Não da casa, apenas da sala. E então tentamos não nos ver mais, pelo menos não antes da estreia.

— Ele lhe fez alguma ameaça? Ele a ameaçou de chamar a polícia? De punir a senhora? Ela pareceu surpresa com essa pergunta.

— De que adiantaria isso? Se o senhor conversou com o médico, ele deve ter dito que o dano é permanente. A polícia não poderia fazer nada, ninguém podia fazer nada para que ele recuperasse a audição. E não havia maneira de me punir. Ela parou um pouco para acender outro cigarro. — Exceto fazendo o que ele fez, acrescentou ela.

— E o que foi? Perguntou Brunetti. Ela o enfrentou abertamente.

— Se o senhor está bem informado como parece, deve saber isso também. Ele sustentou o olhar dela, sem a menor expressão no rosto.

— Ainda tenho duas perguntas, signora. A primeira é uma pergunta franca, que faço porque não sei a resposta. E a segunda é mais simples, e acho que já sei a resposta.

— Então comece pela segunda, disse ela.

— É a respeito do seu marido. Por que ele procuraria punir a senhora dessa forma?

— Com a expressão “dessa forma” o senhor se refere ao fato de fazer parecer que eu o matei?

— Sim.


Ele notou o esforço que ela fazia para falar, viu as palavras começando a se formar e depois escapar, esquecidas. Finalmente ela falou, em voz baixa.


— Ele se considerava acima da lei. Acho que acreditava que era o seu gênio que lhe dava esse poder, esse direito. E Deus é testemunha que todos o reforçávamos nisso. Fizemos dele um deus da música, e nós nos prostrávamos e o adorávamos. Ela parou de falar e olhou para o policial. — Desculpe-me; não estou respondendo à sua pergunta. O senhor queria saber se ele era capaz de tentar fazer parecer que eu fui a responsável. Mas, como o senhor vê, disse ela, levantando as mãos como se quisesse extrair dele a compreensão, — Eu fui a responsável. Portanto, ele tinha o direito de fazer isso comigo. Teria sido menos terrível se eu o tivesse matado; isso teria mantido o deus intocado.


Ela se calou, mas Brunetti se guardou de fazer qualquer comentário.


— Estou tentando fazer o senhor entender como ele encarou o fato. Eu o conhecia tão bem, sabia como se sentia, o que pensava. Ela parou mais uma vez, depois continuou em seu esforço para fazê-lo entender. — Aconteceu uma coisa estranha comigo depois que ele morreu e comecei a me dar conta de como ele tivera o cuidado de me chamar aos bastidores e me deixar entrar em seu camarim. Pareceu-me então, e ainda me parece, que ele tinha o direito de fazer o que fez, para me punir. De certa maneira, ele era a sua música. E eu a matei, em vez de matá-lo. Antes de morrer, ele já estava morto. Matei sua alma. Percebi isso durante os ensaios, quando o vi tentando enxergar por cima dos óculos e tentando ouvir, com o inócuo aparelho auditivo, o que estava acontecendo com a música. E ele não conseguia ouvir. Não conseguia ouvir. Ela balançou a cabeça diante de algo que não conseguia compreender. — Ele não tinha que me punir, senhor Brunetti. Isso já estava feito. Já passei o tempo que tinha que passar no inferno. Ela cruzou as mãos no regaço e continuou. — Aí, na noite da estreia, ele me disse o que ia fazer. Quando ela notou a surpresa de Brunetti, explicou: — Não, ele não me disse com todas as letras, não foi bem assim. Na ocasião, não entendi.

— Isso aconteceu quando você foi ao camarim dele? Perguntou Brunetti.

— Sim.

— O que aconteceu?

— A princípio, ele não disse nada ao me ver na porta. Simplesmente olhou para mim. Mas deve ter visto alguém no corredor, atrás de mim. Talvez tenha pensado que essa pessoa queria entrar no camarim. Ela baixou a cabeça, cansada. — Eu não sei. Tudo o que ele disse parecia ter sido ensaiado: o que Tosca diz quando vê o corpo de Cavaradossi, “Finire cosi, finire cosi”. Na ocasião eu não entendi, terminar assim, terminar assim, porém devia ter entendido. Ela diz isso pouco antes de se matar, mas eu não entendi. Na ocasião, não. Brunetti se surpreendeu ao ver um riso quase divertido brilhar fugazmente em seu rosto. — Isso era bem dele, ser dramático no último minuto. Na verdade, melodramático. Surpreende-me que ele tenha tirado suas últimas palavras de uma ópera de Puccini. Ela olhou para ele, séria. — Espero que isso não soe estranho. Mas pensei que ele gostaria de ser lembrado citando algo de Mozart. Ou de Wagner.


Brunetti assistiu à sua luta contra uma crescente histeria. Ele se levantou e foi a um armário que havia entre as duas janelas e pôs um pouco de conhaque num copo. Ficou por um instante com o copo na mão, e olhou para o campanário de San Marcos. Depois voltou para perto dela e lhe ofereceu o copo. Sem muita consciência do que estava fazendo, ela o pegou e tomou um pouco da bebida. Brunetti voltou à janela e continuou a fitar o campanário. Quando se convenceu de que este continuava como sempre fora, sentou novamente à frente dela.


— Pode me dizer por que fez aquilo, signora? Sua expressão de espanto nada tinha de fingida.

— Se o senhor foi inteligente o bastante para descobrir como fiz, com certeza deve saber por que fiz. Ele balançou a cabeça.

— Não vou dizer o que imagino porque, se por acaso estiver enganado, vou desonrar a memória desse homem. No momento em que pronunciava aquelas palavras, Brunetti se sentia como um personagem de um libreto de Puccini.

— Isso quer dizer que o senhor entende, não é? Perguntou ela, se inclinando para pôr o copo ainda cheio de conhaque perto do maço de cigarros.

— Sua própria filha, signora?


Ela mordeu o lábio superior e assentiu com um movimento de cabeça que mal se podia perceber. Quando ela parou de morder os lábios, Brunetti viu neles a marca branca dos dentes. Ela estendeu a mão para o maço de cigarros, pegou-o, passou para a outra mão e falou em voz tão baixa que ele teve que se inclinar para frente para conseguir ouvi-la.


— Eu não fazia a menor ideia, disse ela, sacudindo a cabeça em repulsa ao horror que sentia. — Alex não tem nenhum gosto especial por música. Ela nem ao menos sabia quem era ele quando comecei a me encontrar com ele. Quando eu disse que queria me casar com ele, ela pareceu interessada. Depois, quando lhe disse que ele tinha uma fazenda e que tinha cavalos, ela ficou interessadíssima. É a única coisa de que gosta realmente, cavalos, como a heroína de um livro infantil inglês. Cavalos e livros sobre cavalos. Ela tinha onze anos quando nos casamos. Eles se davam bem. Depois, quando descobriu quem ele era, acho que seus colegas lhe disseram, pareceu um pouco assustada com ele, mas isso passou. Helmut era muito bom com as crianças. Ela parou e fez uma careta diante da ironia grotesca do que acabara de dizer. — E então. E então. E então, repetia, incapaz de se libertar das malhas da memória. — Naquele verão, eu precisei voltar para Budapeste. Para ver minha mãe, que não estava muito bem de saúde. Helmut falou que eu não devia me preocupar com isso, que não haveria problemas. Peguei um táxi e fui para o aeroporto. O aeroporto estava fechado. Não me lembro bem por quê. Talvez uma greve. Um problema com os funcionários da alfândega. Ela olhou para o policial. — Não importa por que o aeroporto estava fechado não é?

— Não, signora.

— Ficamos esperando por muito tempo, mais de uma hora, e então nos informaram de que todos os voos tinham sido cancelados e que o aeroporto só voltaria a funcionar na manhã seguinte. Peguei outro táxi e voltei para casa. Entrei em casa. As luzes estavam apagadas, por isso subi as escadas. Como Alex sempre teve um sono agitado, fui ao seu quarto ver como estava. Ver como estava. Ela olhou para ele, o rosto vazio, sem expressão. Quando cheguei no alto das escadas, eu a ouvi. Pensei que ela estava tendo um pesadelo. Não era um grito, só um barulho. Como um animal. Só um barulho. Só isso. E fui ao seu quarto. Ele estava lá. Com ela. O mais estranho disso tudo, continuou ela num tom absolutamente calmo, como se estivesse contando um fato misterioso e quisesse ouvir a opinião dele, — É que não me lembro do que aconteceu. É verdade que sei que ele foi embora, mas não me lembro nem do que eu lhe disse, nem do que ele me disse. Fiquei com Alex naquela noite. Depois, prosseguiu, — Alguns dias depois, ele me disse que Alex tivera um pesadelo. Ela deu um sorriso de tristeza e de incredulidade. — Foi só o que ele disse. Nunca falamos sobre isso. Mandei Alex para a casa dos avós, para que continuasse os estudos morando com eles. E nunca falamos sobre esse assunto. Oh, como éramos modernos, como éramos civilizados. Naturalmente, paramos de dormir juntos; e paramos de ficar juntos. E Alex se fora.

— Os avós dela souberam do que acontecera? Com um rápido movimento de cabeça ela disse que não.

— Não; eu disse a eles o que disse a todo mundo, que eu não queria que ela interrompesse os estudos quando viéssemos a Veneza.

— Quando a senhora decidiu fazer o que fez? Perguntou Brunetti. Ela deu de ombros.

— Não sei. Um dia, simplesmente, a ideia estava lá. A única coisa realmente importante para ele, a única coisa que ele amava de verdade era a sua música; por isso decidi que era aquilo que eu ia tirar dele. Na época, achei que era muito justo.

— E agora? Ela refletiu muito sobre a pergunta.

— Sim, ainda me parece justo. Tudo o que aconteceu me parece justo. Mas a questão não é essa, não é? Para Brunetti já não havia mais nenhuma questão. Ela desaparecera; não havia nem mensagem, nem lição. Tratava-se apenas do mal de que o homem é capaz e da grande perda que daí resulta. — E agora, o que vai acontecer? Disse ela, e sua voz parecia subitamente cansada.

— Não sei, respondeu ele francamente. — A senhora tem alguma ideia de onde ele conseguiu o cianureto? Ela deu de ombros, como se achasse aquilo irrelevante.

— As possibilidades são várias, disse. — Ele tinha um amigo químico; ou talvez tenha recorrido aos amigos do passado. Quando ela viu o ar de perplexidade de Brunetti, explicou: — Da época da guerra. Ele fez muitos amigos poderosos naquela época, e muitos deles ainda hoje são pessoas importantes.

— Quer dizer que os boatos sobre ele eram verdadeiros?

— Não sei. Antes de nos casarmos, ele disse que era tudo mentira, e acreditei nele. Agora não acredito mais nisso. Ela confessou isso em tom amargo, depois se obrigou a voltar à sua explicação. — Não sei onde ele conseguiu, mas sei que não teria nenhuma dificuldade para isso. Ela deu novamente aquele sorriso triste. — Naturalmente que eu podia conseguir o veneno. Ele sabia disso.

— Podia conseguir? Como?

— Não viemos para Veneza juntos. Parei em Heidelberg por dois dias quando estava vindo para cá, para encontrar meu ex-marido. “E este”, pensou Brunetti, era professor de farmacologia.

— O maestro sabia que a senhora estava lá? Ela fez que sim com a cabeça.

— Eu e meu primeiro marido continuamos amigos e ainda temos bens em comum.

— A senhora lhe contou o que aconteceu?

— Claro que não, disse ela, levantando a voz pela primeira vez.

— Onde a senhora se encontrou com ele?

— Na universidade. Fui encontrá-lo no laboratório. Ele está pesquisando uma nova droga para minimizar os efeitos do mal de Parkinson. Ele me mostrou as instalações e depois fomos almoçar juntos.

— O maestro soube disso? Ela deu de ombros.

— Não sei. Posso até ter contado a ele. É provável que tenha contado. Estava muito difícil inventar alguma coisa sobre o que conversar. Esse era um assunto neutro, e certamente ficamos contentes em ter o que conversar.

— A senhora e o maestro alguma vez conversaram sobre o que aconteceu? Ela nem precisava perguntar a que o policial estava se referindo.

— Não.

— Alguma vez falaram do futuro? O que iriam fazer?

— Não, não de forma direta.

— O que a senhora quer dizer com isso?

— Certo dia, quando eu estava chegando em casa e ele estava indo ao ensaio, ele disse: “Espere até acabar La Traviata”. Pensei que ele queria dizer que então poderíamos decidir o que fazer. Mas eu já decidira me separar dele. Já tinha escrito para dois hospitais, um em Budapeste, outro em Augsburgo, e já falara com meu ex-marido para conseguir um lugar para mim em um hospital.


“De uma maneira ou de outra”, pensou Brunetti, ela estava comprometida. Havia provas de que estava planejando um futuro separada dele, ainda antes de sua morte. Agora estava viúva, e riquíssima. E, se o caso com sua filha viesse a público, havia provas também de que, em sua viagem para Veneza, parara para falar com o pai da menina, homem que com certeza tinha acesso ao veneno que matou o maestro. Nenhum juiz italiano iria condenar uma mulher pelo que ela havia feito, se ela contasse o que acontecera com sua filha. Considerando as provas de que Brunetti dispunha, o testemunho de Santina sobre sua irmã, as conversas com os médicos e mesmo o suicídio de sua segunda esposa, à época em que sua filha tinha doze anos, nenhum tribunal da Itália a acusaria de homicídio. Entretanto, tudo isso teria que ser confirmado pelo testemunho da menina, da menina crescida que amava os cavalos e ainda era uma criança.


Brunetti sabia que aquela mulher nunca permitiria que a filha testemunhasse, independentemente das consequências que aquilo traria para ele própria. Além disso, ele sabia que nunca permitiria que aquilo acontecesse. E sem o testemunho da filha? Havia a óbvia frieza entre os dois, o acesso fácil que ela tinha ao veneno, sua presença no camarim naquela noite, em flagrante contraste com seu comportamento habitual. Tudo aquilo parecia muito verdadeiro. Se ela fosse acusada apenas de ter dado injeções que lhe destruiriam a audição, isso a livraria da acusação de homicídio, mas à custa de envolver a filha no processo. Ele sabia que aquilo era impossível.


— Antes de ele morrer, antes de tudo isso acontecer, principiou Brunetti, deixando que ela interpretasse como quisesse o “tudo isso”, — Seu marido mostrou preocupação com a própria idade? Ele receava a decadência física? Ela parou um pouco antes de responder, espantada com a falta de propósito da pergunta.

— Sim, falamos sobre isso. Não sempre, mas uma ou duas vezes. Uma vez, quando todos tínhamos bebido um pouco a mais, falamos disso com Erich e Hedwig.

— E o que ele disse?

— Se eu não me engano foi Erich. Ele disse que se no futuro alguma coisa o impedisse de trabalhar, não que o impedisse de exercer seu trabalho de cirurgião, mas que fizesse com que já não fosse o mesmo, incapaz de exercer a medicina, ele disse que, sendo médico, sabia como resolver o problema. — Era muito tarde, continuou ela. — Estávamos todos muito cansados, por isso a conversa ficou muito mais grave do que deveria ser. Ele disse isso e então Helmut afirmou que o entendia perfeitamente e que faria a mesma coisa.

— A senhora acha que o doutor Steinbrunner ainda se lembra dessa conversa?

— Acho que sim. Foi no último verão. Na noite do nosso aniversário de casamento.

— Seu marido falou alguma coisa mais específica que isso? Antes que ela tivesse tempo de responder, Brunetti acrescentou: — Em presença de outras pessoas?

— O senhor quer saber se há testemunhas disso? Ele fez que sim.

— Não, não que eu lembre. Mas naquela noite a conversa era tão séria que não havia dúvida para nenhum de nós sobre o que eles quiseram dizer.

— E seus amigos se lembrarão da conversa lhe dando o mesmo significado que a senhora lhe dá?

— Sim. Acho que sim. Acho que eles não viam com bons olhos o fato de eu ser esposa de Helmut. Depois de dizer isso, ela levantou os olhos arregalados de terror. — Você acha que eles sabiam?


Brunetti balançou a cabeça negativamente, esperando poder convencê-la de que eles não sabiam, não poderiam saber nada daquilo sobre ele, e ficou em silêncio. Contudo, Brunetti não tinha nenhum motivo para acreditar naquilo. Ele mudou de assunto.


— A senhora se lembra de outra ocasião em que seu marido falou desse assunto?

— Há as cartas que ele escreveu para mim antes do nosso casamento.

— O que ele dizia nessas cartas?

— Ele brincava, tentando minimizar nossa diferença de idade. Dizia que eu nunca haveria de ter o trabalho de ficar cuidando de um marido velho e imprestável, que ele trataria de evitar que isso acontecesse.

— A senhora ainda tem essas cartas? Ela inclinou a cabeça e disse calmamente:

— Sim. Ainda guardo comigo tudo o que ele me deu, todas as cartas que me escreveu.

— Ainda não entendo como a senhora pôde fazer isso, disse ele. Pelo seu tom de voz, se notava que ele não estava chocado nem escandalizado, simplesmente intrigado.

— Eu também não sei como pude fazê-lo. Pensei tanto sobre isso que provavelmente inventei novas razões que explicassem meu ato, novas justificativas. Para puni-lo? Ou talvez eu quisesse torná-lo fraco a ponto de torná-lo absolutamente, completamente dependente de mim. Ou talvez eu soubesse que ele iria fazer o que fez. Ou simplesmente já não sei mais e acho que nunca vou entender por quê. Brunetti achou que ela tinha terminado, porém ela acrescentou, com voz gélida: — Mas estou satisfeita de tê-lo feito, e o faria novamente.


Ele desviou o olhar. Como Brunetti não era advogado, não saberia dizer a natureza daquele crime. Agressão? Roubo? Se você rouba a audição de alguém, o que está roubando? O crime é ainda mais grave se a audição da vítima é mais importante para ela que para a maioria das pessoas?


— Acredita que ele a chamou ao seu camarim para que se pensasse que era a culpada pela morte dele?

— Não sei, pode muito bem ter sido isso. Ele acreditava em justiça. No entanto, se ele quisesse isso, poderia ter arranjado as coisas de forma a me comprometer ainda mais. Desde aquela noite tenho pensado nisso. Talvez ele tenha deixado as coisas nesse pé para que eu nunca tivesse certeza do que ele pretendia. E, sendo assim, ele não seria responsável pelo que quer que me acontecesse em decorrência disso. Ela deu um pequeno sorriso. — Helmut era um homem muito complexo. Brunetti se inclinou para ela e pôs a mão em seu braço.

— Signora, ouça com toda a atenção o que aconteceu durante esta nossa conversa, disse ele, após tomar uma decisão, pensando em Chiara, e tendo a certeza de que estava fazendo o que era correto. — Conversamos sobre a forma como seu marido falou à senhora do medo diante da progressiva surdez que o acometia. Surpresa, ela quis protestar.

— Mas... Ele a interrompeu antes que ela pudesse continuar.

— Ele lhe contou sobre a surdez, do medo que ela lhe infundia. Que procurara o amigo Erich na Alemanha e depois um outro médico, em Pádua, e que ambos lhe disseram que estava ficando surdo. Isso explica o comportamento dele aqui, sua evidente depressão. E que a senhora me afirmou temer que ele se suicidasse quando se desse conta de que sua carreira chegara ao fim, de que ele não tinha mais nenhum futuro como músico. Sua voz revelava todo o cansaço que sentia. Quando ela esboçou um protesto, Brunetti disse apenas: — A única pessoa que iria sofrer com a revelação da verdade é a única pessoa inocente. Ela foi obrigada a se calar diante da verdade daquela afirmação.

— Como pude fazer tudo aquilo? Ele não tinha ideia de como devia aconselhá-la; nunca antes ajudara um criminoso a conseguir um álibi ou a escamotear os indícios de um crime.

— O importante aqui é que a senhora me falou sobre a surdez dele. Tudo o mais decorrerá disso. Ela olhou para Brunetti, ainda espantada, e ele lhe falou como se ela fosse uma criança obtusa que se recusasse a entender uma lição. — A senhora me falou isso da segunda vez em que conversamos. Contou-me que ele estava tendo sérios problemas de audição e conversara com seu amigo Erich. Ela quis protestar mais uma vez, e ele teve vontade de sacudi-la para tirá-la daquele embotamento. — Ele também disse à senhora que procurara outro médico. Eu registrarei tudo isso em meu relatório sobre a nossa conversa.

— Por que o senhor está fazendo isso? Perguntou ela finalmente. Ele fez um gesto evasivo.

— Por que está fazendo isso? Ela repetiu.

— Porque a senhora não o matou.

— E o resto? E o que eu fiz a ele?

— Não há nenhuma forma de fazer a senhora pagar por isso sem fazer que sua filha sofra ainda mais. Abalada com a verdade daquela afirmação, ela se encolheu.

— O que mais devo fazer? Perguntou ela, se mostrando obediente.

— Ainda não sei bem. Não se esqueça de que falamos sobre isso já da primeira vez em que estive aqui. Ela ia começar a falar, mas parou.

— O quê?

— Nada, nada. Brunetti se pôs de pé de repente. Sentia-se constrangido de ficar ali sentado, conspirando.

— Então é só isso. Acho que a senhora vai ter que testemunhar diante do juiz de instrução.

— O senhor estará presente?

— Sim. A essa altura já terei terminado meu relatório e dado minha opinião.

— E qual será sua opinião?

— Será a verdade, signora. Ela falou num tom normal.

— Já não sei mais qual é a verdade.

— Vou dizer ao procuratore que minha investigação revelou que seu marido se suicidou quando percebeu que estava ficando surdo. Foi exatamente isso o que aconteceu.

— Sim, repetiu ela. — Foi exatamente assim.


Brunetti a deixou sentada na sala onde ela dera a última injeção no marido.


* * *


Vinte e Cinco

ÀS OITO DA MANHÃ do dia seguinte, como lhe tinha sido ordenado, Brunetti colocou seu relatório na mesa do vicequestore, onde o papel permaneceu até a chegada deste, logo depois das onze. Após atender a três telefonemas pessoais e ler o jornal de economia, o vicequestore se dignou a ler o relatório e achou-o interessante e esclarecedor:


Minhas investigações me levaram a concluir que o maestro Helmut Wellauer tirou a própria vida porque estava ficando progressivamente surdo.

1. Nos últimos meses, sua audição se deteriorara a ponto de lhe restar apenas quarenta por cento da capacidade normal. (Ver entrevistas anexas com os doutores Steinbrunner e Treponti, bem como relatórios médicos igualmente anexos.).

2. Essa perda de audição dificultava, cada vez mais, o seu trabalho de maestro. (Ver entrevistas anexas com o professor Rezzonico e com o senhor Traverso.)

3. O maestro se encontrava profundamente deprimido. (Ver entrevistas anexas com a senhora Wellauer e com a senhora Breddes.)

4. Ele tinha acesso ao veneno que foi usado. (Ver entrevistas com a senhora Wellauer e com o doutor Steinbrunner.)

5. O maestro declarou ser favorável à ideia do suicídio, caso não pudesse mais exercer o seu trabalho de músico. (Ver entrevista telefônica anexa com o doutor Steinbrunner e correspondência pessoal a ser encaminhada em breve.)

Considerando-se a importância dessas informações, além da exclusão de suspeitos que tivessem ao mesmo tempo motivos e oportunidade para cometer o crime, só posso concluir que o maestro resolveu se suicidar motivado pela própria surdez.

Respeitosamente,

Guido Brunetti

Comissário de Polícia


— Suspeitei disso desde o início, naturalmente, disse Patta a Brunetti, que atendera ao pedido de seu chefe para ir ao seu escritório discutir o caso. — Mas não quis dizer nada para não interferir nas suas investigações.

— Foi muita bondade de sua parte, disse Brunetti. — E muito inteligente. Ele fitou a fachada da igreja de San Lorenzo, parte da qual podia ser vista por sobre os ombros de seu superior.

— Era inimaginável que alguém amante da música pudesse fazer uma coisa dessas. Era evidente que Patta se incluía entre esses admiradores. — A esposa dele diz aqui... Começou ele consultando o relatório.


Dessa vez Brunetti se concentrou no alfinete ornado de um pequeno diamante em forma de rosa que Patta usava em sua gravata vermelha;


— ... Que ele estava “visivelmente perturbado”. Essa referência convenceu Brunetti de que Patta realmente lera o relatório, acontecimento absolutamente raro. — Por mais revoltante que seja o comportamento dessas duas mulheres, continuou Patta, fazendo com a boca um pequeno gesto de censura a algo que não constava do relatório, — Nenhuma das duas tinha o perfil psicológico de um assassino.


Sabe se lá o que seja isso.


— E a viúva... Impossível, ainda que seja estrangeira. Aqui, Patta se deu ao trabalho de explicar, embora Brunetti não tivesse pedido nenhum esclarecimento. — Nenhuma mãe poderia ter agido com tal sangue-frio. Há nelas um instinto que as impede de fazer esse tipo de coisa. Ele sorriu, satisfeito com a agudeza de sua observação, e Brunetti também sorriu, contente de ouvi-la. — Hoje almoço com o prefeito, disse Patta em tom indiferente, como se aquilo fizesse parte de sua rotina, — E vou lhe expor os resultados de nossa investigação. Ouvindo aquele plural, Brunetti teve certeza de que no almoço com o prefeito ele voltaria para o singular, mas não na terceira pessoa.

— E só isso, senhor? Perguntou polidamente Brunetti. Patta levantou os olhos do relatório, que parecia estar decorando.

— Sim, é só isso.

— E o procuratore? O senhor o informará também? Perguntou Brunetti, esperando que Patta se encarregasse também dessa tarefa, conferindo, assim, o peso de sua autoridade a todas as recomendações, feitas ao corregedor, para que se encerrasse o caso.

— Sim, eu me encarrego disso. Pela expressão do rosto de Patta, Brunetti percebeu que seu chefe estava considerando a possibilidade de convidar o corregedor para almoçar com o prefeito, mas depois decidiu não fazer isso. — Vou providenciar isso quando voltar do almoço com Sua Excelência. “Isso”, pensou Brunetti, lhe permitiria brilhar em duas cenas, em vez de uma. Brunetti se levantou.

— Então vou voltar à minha sala, senhor.

— Sim, sim, murmurou Patta um tanto alheio, ainda absorvido na leitura. — E, comissário, disse Patta às suas costas.

— Sim, senhor, respondeu Brunetti, se voltando e rindo enquanto pensava nas condições da aposta daquele dia.

— Obrigado por sua ajuda.

— Não há de quê, senhor, disse, decidindo que uma dúzia de rosas vermelhas seria bastante.


* * *


Sete meses depois, chegou uma carta para Brunetti endereçada à Questura. Chamaram-lhe a atenção os selos, dois retângulos lilases enquadrados por uma caligrafia delicada e sob as quais se lia: People’s Republic of China. Ele não conhecia ninguém na China. Não havia o endereço do remetente no envelope. Brunetti o abriu e nele encontrou uma foto polaroide de uma coroa ornada de joias. Não se podia calcular o tamanho, mas, se fosse destinada a uma cabeça humana, as pedras que circundavam a joia central deviam ser do tamanho de ovos de pomba. Rubis? Nenhuma outra pedra de que conseguia se lembrar se parecia tanto com sangue. A pedra central, maciça e quadrada, só podia ser um diamante. Ele virou a foto e leu no verso:


Aqui está uma parte da beleza para a qual eu voltei.

B. Lynch.


Não havia nenhuma outra mensagem. Nada mais no envelope.

 

 

                                                   Donna Leon         

 

 

 

                          Voltar a serie

 

 

 

 

      

 

 

O melhor da literatura para todos os gostos e idades