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MORTE PROIBIDA / Michael Connelly
MORTE PROIBIDA / Michael Connelly

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Três anos após a sua aposentadoria, Harry Bosch está de volta ao Departamento de Polícia de Los Angeles, Ao lado de sua antiga parceira Kiz Rider, o detetive é encaminhado para a Unidade de Casos Não Resolvidos. Logo em seu primeiro caso, Bosch vai tentar descobrir o mistério por trás do assassinato de uma adolescente, ocorrido há mais de 17 anos, um crime aparentemente cometido por questões raciais. Juntos, Harry e Kiz tentarão pôr um ponto final na investigação que frustrara toda a Los Angeles e deixara o verdadeiro culpado nas ruas.

 

 

 


 

 

 


PARTE UM
A Religião Azul
Capítulo 1

Dentro da prática e do protocolo do Departamento de Polícia de Los Angeles, um chamado dois-seis é o que gera a reação mais imediata, ao mesmo tempo que causa mais
medo atrás do colete à prova de balas. Pois é um chamado que freqüentemente acaba com uma carreira. A designação é composta do Código 2, que significa "responda
assim que for possível", acrescido do número 6, que representa o sexto andar do Parker Center, de onde o chefe de polícia comanda o departamento. O dois-seis origina-se
na sala do chefe e deve ser atendido imediatamente. Qualquer policial que goste da posição que ocupa no departamento atenderá sem demora.
O detetive Harry Bosch passara 25 anos no departamento, no seu primeiro período, e nem uma única vez recebera uma ordem para cumprimento imediato do chefe de polícia.
Na verdade, a não ser quando recebera seu crachá na academia em 1972, nunca mais apertara a mão de um chefe de polícia novamente ou falara pessoalmente com algum
deles. Havia durado na posição mais que diversos deles - e, é claro, vira-os em eventos da polícia e funerais -, mas simplesmente nunca cruzara com eles ao longo
do seu caminho. Na manhã do retorno à ativa após três anos de aposentadoria, recebeu seu primeiro dois-seis quando dava o nó na gravata diante do espelho do banheiro.
Era um ajudante do chefe ligando para o celular pessoal de Bosch. Bosch não se deu ao trabalho de perguntar como
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tinham descoberto o número. Estava implícito que ao gabinete do chefe era facultado entrar em contato com ele daquele modo. Bosch limitou-se a dizer que estaria
lá em uma hora, ao que o ajudante replicou que era esperado antes. Harry foi terminar o nó da gravata no carro e dirigiu o mais depressa que o trânsito permitiu
na via Expressa 101, em direção ao centro da cidade.
Precisou de exatamente 24 minutos, do momento em que desligou o celular até a hora em que cruzou a porta da sala do chefe no sexto andar do Parker Center. Achou
que devia ter batido um recorde qualquer, mesmo tendo estacionado irregularmente na rua Los Angeles, diante do QG da polícia. Se sabiam o número do seu celular,
sabiam também que proeza tinha sido vir de Hollywood Hills ao gabinete do chefe em menos de meia hora.
Mas o ajudante, um tenente chamado Hohman, encarou-o com olhos desinteressados e indicou um sofá forrado de plástico onde já havia duas outras pessoas esperando.
- Você está atrasado - disse ele. - Sente-se. Bosch decidiu não protestar, não tornar as coisas piores. Dirigiu-se ao sofá e sentou-se entre dois policiais uniformizados,
que já tinham se apropriado dos descansos de braço. Ambos estavam sentados rigidamente e não conversavam. Deviam ter recebido também um dois-seis.
Dez minutos se passaram. Os homens de uniforme foram chamados antes de Bosch, sendo dispensados pelo chefe em cinco minutos. Enquanto o segundo deles se encontrava
com o chefe, Bosch pensou ter ouvido vozes altas vindas lá de dentro, e quando o policial saiu seu rosto estava pálido. De alguma maneira, ele tinha feito merda
aos olhos do chefe, e o que se dizia - tendo chegado inclusive aos ouvidos aposentados de Bosch - era que esse novo chefe não tinha a menor tolerância com erros
estúpidos. Bosch tinha lido uma matéria no Times sobre um membro do gabinete rebaixado por não ter informado ao chefe que o filho de um vereador que geralmente votava
contra o departamento tinha sido preso dirigindo embriagado. O chefe soubera do acontecido quando o vereador telefonara para se queixar de que a polícia só prendera
o filho para importuná-lo, como se o departamento tivesse obrigado o garoto a tomar seis
martinis no Bar Marmount e, na volta para casa, entrar com a frente do carro no tronco de uma árvore da Mulholland.
Finalmente Hohman desligou o telefone e apontou o dedo para Bosch. Ele se levantou. Foi rapidamente encaminhado para uma sala de esquina com uma janela com vista
para a Union Station e a outra para os pátios ferroviários circundantes. Uma paisagem decente, mas não chegava a ser grande coisa. Não fazia mal, porque o prédio
ia ser demolido em breve. O departamento seria transferido para escritórios temporários, enquanto uma sede nova e moderna seria construída no mesmo lugar. O quartel-general
atual era chamado de Casa de Vidro pela plebe, supostamente porque não havia segredos guardados ali dentro. Bosch perguntou-se qual seria o apelido do novo QG.
O chefe de polícia estava atrás de uma mesa grande assinando documentos. Sem levantar os olhos, disse a Bosch que se sentasse. Em questão de trinta segundos, assinou
o último papel e levantou os olhos para ele. Sorriu.
- Queria recebê-lo e dar-lhe as boas-vindas na volta ao departamento.
Era marcante seu sotaque do leste, esticando as vogais abertas. Depaaartamento. O que era muito bom para Bosch. Em Los Angeles todo mundo vinha de algum outro lugar.
Ou pelo menos parecia. Era, ao mesmo tempo, a força e a fraqueza da cidade.
- É bom estar de volta - disse Bosch.
- Você entende que está aqui graças a mim. Não era uma pergunta.
- Sim, senhor, eu entendo.
- É evidente que examinei você em detalhe antes de aprovar seu retorno. Tinha preocupações quanto ao seu... digamos, estilo, mas o seu talento acabou por levar a
melhor. Pode agradecer também à sua parceira, Kizmin Rider, pelo esforço que fez em seu benefício. Ela é boa policial e confio nela. Ela confia em você.
- Já agradeci a ela, mas vou agradecer de novo.
- Sei que você se aposentou há menos de três anos, detetive Bosch, mas assim mesmo posso lhe garantir que o departamento para o qual está voltando não é o mesmo
que deixou.
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- Eu compreendo.
- Espero que sim. Está por dentro do acordo?
Pouco antes de Bosch deixar o departamento, o chefe anterior fora forçado a concordar com uma série de reformas a fim de impedir uma intervenção federal no Departamento
de Polícia de Los Angeles, o DPLA, após uma investigação feita pelo FBI de corrupção indiscriminada, violência e violação de direitos civis nas fileiras. O chefe
atual tinha que cumprir o acordo, caso contrário terminaria recebendo ordens do FBI. O que, a partir dele próprio até o menos graduado dos policiais, ninguém queria.
- Sim - respondeu Bosch. - Li a respeito.
- Ótimo. Fico satisfeito de ver que se manteve informado. E também tenho muita satisfação em dizer, a despeito do que você possa ter lido no Times, que estamos fazendo
grandes progressos e eu quero manter o ritmo. Estamos também tentando atualizar o departamento em termos de tecnologia. Temos avançado em termos de policiamento
comunitário. Estamos fazendo uma porção de coisas boas, detetive Bosch, muitas das quais poderão ser desfeitas aos olhos da comunidade se recorrermos aos métodos
antigos. Entende o que estou dizendo?
- Creio que sim.
- Seu retorno não está garantido. Você está em estágio probatório. Por um ano. Assim, considere-se um novato outra vez. Um recruta, o mais velho dos recrutas vivos,
se quiser. Aprovei seu retorno, mas posso também pôr você daqui para fora sem precisar de maiores razões no decurso de um ano. Não me dê motivo.
Bosch não respondeu. Achou que não tinha que fazê-lo.
- Na sexta-feira diplomaremos uma nova turma de cadetes na academia. Gostaria que fosse até lá.
- Senhor?
- Quero que esteja presente à formatura. Quero que veja a dedicação no rosto dos nossos jovens. Quero que volte a se familiarizar com as tradições deste departamento.
Acho que isso poderá ajudá-lo, ajudá-lo a se dedicar de novo.
- Se quer que eu vá, eu vou.
- Ótimo. Então eu o verei lá. Você se sentará na tenda VIP como meu convidado.
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Ele fez uma anotação sobre o convite em um bloco que estava em cima da mesa. Depois largou a caneta e levantou a mão para apontar um dedo para Bosch. Seu olhar tinha
um toque de fúria.
- Escute o que vou lhe dizer, Bosch. Jamais viole a lei para fazer com que ela seja cumprida. Jamais cumpra suas obrigações sem o respaldo da Constituição e sem
ser compassivo. Não aceitarei de outra forma. Esta cidade não aceitará de outra forma. Estamos combinados?
- Estamos.
- Então é hora de ir embora.
Bosch entendeu a deixa e pôs-se de pé. O chefe o surpreendeu levantando-se também e estendendo a mão. Bosch pensou que ele quisesse cumprimentá-lo e também estendeu
a mão. Mas o que o chefe fez foi entregar-lhe algo. Bosch baixou os olhos e viu o escudo dourado de detetive. Tinha inscrito nele o mesmo número antigo. Não fora
redistribuído. Bosch quase sorriu.
- Use-o bem - disse o chefe de polícia. - E com orgulho.
- É o que pretendo fazer.
Só então eles se apertaram as mãos, mas o chefe não sorriu.
- O coro das vozes esquecidas - disse ele.
- Como assim, chefe?
- É o que me vem à cabeça quando penso nos casos não resolvidos. Aquilo é uma verdadeira casa de horrores. A maior de nossas vergonhas. Todos aqueles casos. Todas
aquelas vozes. Cada um deles é como uma pedra atirada em um lago. As ondas se deslocam para fora, a partir do ponto em que a pedra fere a superfície da água, e viajam
pelo tempo e pelas pessoas. Famílias, amigos, vizinhos. Como podemos dizer que somos uma cidade, quando há tantas ondas, quando tantas vozes foram esquecidas por
este departamento?
Bosch soltou a mão dele e nada disse. Não havia resposta para
a pergunta do chefe.
- Mudei o nome da unidade quando assumi o departamento. Quero considerá-los casos não resolvidos. Não são casos sem solução, detetive. Eles nunca foram encerrados.
Não para algumas pessoas.
- Entendo.
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- Então vá lá e os esclareça. E por isso que está aqui. É por isso que precisamos de você e que você está aqui. É por esse motivo que estou me arriscando com você.
Prove que não esquecemos. Prove que em Los Angeles os casos nunca esfriam.
- Eu provarei.
Bosch o deixou lá, de pé, talvez um tanto assombrado pelas vozes. Como ele próprio. Pensou que aquela talvez tivesse sido a primeira vez em que se ligara em algum
nível com um chefe. No Exército dizem que você entra em combate e luta disposto a morrer pelos homens que o mandaram para a frente. Bosch nunca sentira isso no tempo
em que se deslocava ao longo da escuridão dos túneis no Vietnã. Via-se sozinho e tinha certeza de que estava lutando por si só, lutando para não ser feito prisioneiro,
lutando para permanecer vivo. Bosch levara isso a sério quando ingressara no departamento, sendo que às vezes chegara a pensar que estava combatendo a despeito dos
homens lá de cima. Agora as coisas talvez viessem a ser diferentes.
Já no corredor, Bosch pressionou o botão do elevador com mais força do que teria sido necessário. Vibrava de empolgação e energia, o que considerava compreensível.
O coro das vozes esquecidas. O chefe parecia conhecer a canção que elas entoavam. Certamente Bosch também. Gastara a maior parte da sua vida ouvindo-a.
Capítulo 2
Bosch saltou do elevador no andar de baixo, o quinto. Que também era território novo para ele. O quinto andar sempre tinha sido civil. Nele ficavam, basicamente,
muitos dos departamentos administrativos, de nível médio e baixo, em sua maioria ocupados por funcionários não obrigados a prestar juramento funcional, responsáveis
pelo orçamento, analistas, escreventes. Civis. Até aquele instante não tinha havido razão para ele ir ao quinto andar.
Não havia cartazes no saguão dos elevadores que indicassem a direção dos diferentes escritórios. Era o tipo do andar no qual você sabe para onde vai antes de saltar
do elevador. Não era o caso de Bosch. Os corredores do andar formavam a letra H, e ele seguiu a direção errada por duas vezes antes de dar com a porta marcada com
o número
503. Não havia mais nada escrito nela. Ele fez uma pausa antes de abri-la e pensou no significado do que estava fazendo, daquele recomeço. Sabia que era a coisa
certa. Era quase como se pudesse ouvir o coro das vozes esquecidas através da porta. As oito mil vozes.
Kiz Rider estava sentada em cima de uma mesa logo na entrada, bebericando um copo de café fumegante. A mesa parecia dessas destinadas a recepcionistas, mas Bosch
sabia, graças a seus freqüentes elefonemas nas semanas anteriores, que não havia recepcionistas naquela divisão. Faltava dinheiro para esse luxo. Rider levantou
o Pulso e sacudiu a cabeça, apontando para o relógio.
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- Pensei que tínhamos combinado oito horas - disse. - É assim que vai ser, parceiro? Você chegando na hora que lhe der na telha?
Bosch deu uma olhada no relógio. Oito e cinco. Encarou-a e sorriu. Rider sorriu também e disse:
- Estamos aqui.
Rider era baixa e tinha alguns quilos de peso em excesso. O cabelo era curto e começava a branquear. A tez era muito escura, o que tornava seu sorriso mais luminoso.
Ela deslizou de cima da mesa e pegou atrás do lugar em que estivera sentada um segundo copo de café para ele.
- Veja se lembrei certo.
Ele verificou e balançou a cabeça.
- Preto, exatamente como gosto dos meus parceiros.
- Engraçado. vou ter que elogiá-lo por isso.
Rider mostrou o caminho. O escritório parecia vazio. Era grande, mesmo para uma equipe de nove investigadores - quatro equipes de dois e um encarregado. As paredes
eram pintadas em um tom claro de azul, como Bosch freqüentemente via nas telas de computadores. Um carpete cinza cobria todo o chão. Não havia janelas. Nas posições
das paredes onde devia ter havido janelas, viam-se quadros murais ou fotos de cenas de crime antigas, bem emolduradas. Ao ver aquelas fotos em preto-e-branco, Bosch
podia dizer que os fotógrafos geralmente tinham posto nelas seus talentos artísticos à frente dos deveres técnicos. Eram pesadas na atmosfera e sombrias. Não mostravam
muitos detalhes das cenas de crimes.
Rider viu que ele estava vendo as fotos.
- Dizem que aquele escritor James Ellroy escolheu essas aí e mandou emoldurar para pôr no escritório - disse ela.
Rider levou-o a contornar uma parede parcial que dividia a sala em duas e entrou em um vão onde duas mesas cinzentas de aço tinham sido colocadas juntas de modo
que os detetives que as ocupassem ficassem de frente um para o outro. Ela deixou o café em cima de uma das mesas em que já havia uma pilha de pastas e objetos pessoais
como uma caneca de café cheia de canetas e um porta-retratos colocado em um ângulo tal que escondia a foto. Um laptop estava aberto e ligado. Rider tinha feito a
mudança para lá na semana anterior, enquanto Bosch era submetido aos
procedimentos finais, ou seja, fazia o exame médico e preparava o resto da papelada necessária a trazê-lo de volta ao trabalho.
A outra mesa estava limpa, vazia e esperando por ele. Bosch sentou-se e descansou o café. Conteve um sorriso da melhor maneira que pôde.
- Seja bem-vindo de volta, Roy - disse Rider.
Isso libertou o sorriso. Bosch achou ótimo ser chamado de Roy novamente. Era uma tradição respeitada por muitos dos detetives da divisão de homicídios da cidade.
Muitos anos antes, trabalhara na Divisão Hollywood um lendário detetive que era um profissional completo, e muitos dos detetives da Homicídios ainda em serviço foram
tutelados dele, em um ponto ou outro. Russel Kuster foi morto em um tiroteio em dia de folga em 1990. Mas seu hábito de chamar os outros de Roy
- fosse qual fosse o nome verdadeiro - foi mantido. Sua origem era obscura. Uns diziam que era porque Kuster tivera um parceiro que era fã de Roy Acuff, o cantor
country, e tudo começara com ele. Outros diziam que era porque Kuster gostava da idéia do tira de homicídios ser do tipo Roy Rogers, de chapéu branco, cavalgando
para salvar os necessitados, fazendo tudo direito. Não tinha mais importância. Bosch sabia que era uma honra simplesmente ser chamado de Roy outra vez.
Sentou-se. A cadeira era velha e cheia de protuberâncias, e com certeza o deixaria com dor nas costas se passasse muito tempo sentado nela. Mas esperava que não
fosse assim. Quando trabalhara na primeira vez como detetive de homicídios, vivera segundo o adágio Tira o rabo da cadeira e mete o pé na estrada. Não via qualquer
motivo para mudar agora.
- Onde está todo mundo? - perguntou ele.
- Tomando café. Eu esqueci. Eles me disseram na semana passada que a rotina é que todo mundo se encontre nas manhãs de segunda bem cedo para o café-da-manhã. Geralmente
vão ao Pacific. Só me lembrei quando cheguei aqui hoje de manhã e não encontrei ninguém, mas logo estarão de volta.
Bosch sabia que o Pacific Dining Car era um velho favorito do alto escalão do DPLA e da Divisão de Roubos e Homicídios. Sabia também algo mais.
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- Doze dólares o prato de ovos. Acho que isso significa que as horas extras da equipe são aprovadas.
Rider sorriu, confirmando.
- Acertou. Mas você não ia poder terminar seus ovos bacanas recebendo uma convocação urgentíssima do chefe.
- Soube da convocação, hem?
- Ainda me resta um ouvido. Recebeu seu distintivo?
- Recebi, sim. Ele me deu.
- Eu disse a ele que número você ia querer. Você confirmou?
- Puxa, Kiz, obrigado. Muito obrigado por tudo.
- Você já me agradeceu, parceiro. Não precisa repetir. Bosch assentiu e olhou à sua volta. Notou que na parede atrás
de Rider havia uma foto de dois detetives conversando ao lado de um corpo deitado no leito de concreto do rio Los Angeles. Parecia uma foto do início dos anos 1950,
a julgar pelos chapéus que os homens usavam.
- E então, por onde começamos? - perguntou.
- A equipe divide os casos antigos não resolvidos em blocos de três anos. Isso proporciona uma certa continuidade. Dizem que você passa a conhecer a época e algumas
das pessoas que trabalhavam no departamento. Há uma justaposição. E também ajuda a identificar os crimes seriais. Em dois anos, desencavaram quatro séries de crimes
de que ninguém tinha sabido.
Bosch balançou a cabeça. Estava impressionado.
- Que anos nos couberam? - perguntou.
- Cada equipe tem quatro ou cinco blocos de anos. Como somos a equipe mais nova, ficaremos com quatro.
Ela abriu a gaveta do meio de sua escrivaninha, tirou um pedaço de papel e passou-o às mãos dele.
Bosch/Rider - Designação de Casos
1966 1972 1987 1996
1967 1973 1988 1997
1968 1974 1989 1998
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Bosch estudou as seqüências de anos pelas quais seriam responsáveis. Estivera fora da cidade e no Vietnã na maior parte do primeiro bloco.
- O verão do amor - disse ele. - Perdi aquilo. Talvez seja isso o que há de errado comigo.
Mas na verdade Bosch falou só para dizer qualquer coisa. Notou que o segundo bloco incluía 1972, o ano em que ingressara na polícia. Lembrou-se de um chamado a que
atendera, em uma casa perto da avenida Vermont, no seu segundo dia de trabalho como patrulheiro. Uma mulher da costa leste pedira à polícia que verificasse o que
havia com sua mãe, que não atendia o telefone. Bosch encontrou-a afogada na banheira, as mãos e pés presos por trelas de cachorro. Seu cachorro morto estava na banheira
com ela. Ele se perguntou se o assassinato da velha senhora não seria um dos casos que ele agora teria a obrigação de resolver.
- Como chegaram a isso aí? Quer dizer, como definiram esses anos?
- Herdamos de outras equipes. Reduzimos a carga de trabalho delas. Na verdade, já tinham começado a investigar alguns casos dos anos que agora cabem a nós. E na
sexta-feira eu soube que houve um cold hit em 1988. Devemos começar com esse caso hoje. Acho que se poderia dizer que é seu presente de boas-vindas.
- O que você chama exatamente de cold hit?.
- É quando uma amostra de DNA ou uma impressão digital oculta encontrada no arquivo de um dos casos que estamos reabrindo, ao ser passada nos nossos computadores
ou nos bancos de dados do DOJ, bate com uma amostra de DNA ou uma digital lá existente.
- O que foi que aconteceu no nosso caso?
- Acho que foi uma equivalência de DNA. Saberemos ainda hoje.
- Não lhe disseram nada na semana passada? Eu poderia ter vindo no fim de semana, você sabe.
- Eu sei, Harry. Mas esse caso é velho. Não havia necessidade de correr no minuto em que nos entregassem um pedaço de papel. Trabalhar aqui é diferente. -,.,
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- É mesmo? Como assim?
Rider pareceu exasperada, mas, antes que pudesse responder, ouviram a porta se abrir e a sala começou a se encher de vozes. Rider saiu do cubículo, e Bosch seguiu-a.
Ela o apresentou aos outros membros. Dois dos detetives, Tim Mareia e Rick Jackson, Bosch conhecia de outros casos. Os outros dois pares eram Robert Renner com Victor
Robleto, e Kevin Robinson com Jan Nord. Bosch conhecia a todos, da mesma forma que Abel Pratt, o encarregado da unidade, de nome. Cada um deles era considerado um
dos melhores investigadores de homicídios da polícia.
Os cumprimentos foram cordiais e discretos, talvez demasiado formais. Bosch sabia que sua classificação ali naquela unidade provavelmente era vista com desconfiança.
Uma designação para aquela equipe provavelmente seria bastante cobiçada por detetives em todo o departamento. O fato de ter conseguido a indicação após quase três
anos de aposentado despertara indagações. Bosch sabia, como lhe lembrara o chefe de polícia, que tinha que agradecer a Rider por estar ali. O último cargo dela fora
no gabinete do chefe, como analista de diretrizes. Trocara os créditos que obtivera trabalhando com ele pela convocação de Bosch para voltar ao departamento e trabalhar
em casos não resolvidos ao seu lado.
Depois de todos os apertos de mão, Pratt convidou Bosch e Rider para um discurso particular de boas-vindas na sua sala. Pratt sentou-se à sua mesa, e os dois ficaram
nas cadeiras lado a lado à sua frente. Não havia espaço na sala para outros móveis.
Pratt era alguns anos mais jovem que Bosch, não tendo chegado ainda aos cinqüenta. Mantinha-se em forma e exibia o espírito de equipe da tão louvada Divisão de Roubos
e Homicídios, da qual a Unidade de Casos Não Resolvidos era apenas uma ramificação. Parecia ter confiança nos seus dotes pessoais e na sua capacidade de comando.
Tinha que ter. A Divisão de Roubos e Homicídios era responsável pelos casos mais difíceis da cidade. Bosch sabia que se alguém não acreditar que é mais inteligente,
mais durão e mais esperto que as pessoas que quer pegar, então está no lugar errado.
- O que eu realmente devia fazer era separar vocês - começou Pratt. - Fazer com que trabalhassem com caras já estabelecidos na
nidade, porque isto aqui é diferente do que fizeram no passado. Mas recebi ordens do sexto andar e não vou interferir. Ademais, estou sabendo que os dois tinham
antes uma química que funcionava. Assim, o negócio é esquecer o que eu devia fazer e falar um pouco sobre o que é trabalhar em casos não resolvidos. Kiz, sei que
você ouviu tudo isso na semana passada, mas vai ter que sofrer junto com ele, está certo?
- Claro - concordou Rider.
- Antes de qualquer coisa, esqueçam essa história de arquivamento de caso. Arquivamento de caso é papo furado. Não passa de um termo da mídia. Algo que aparece em
artigos de jornal. Arquivamento é piada. Uma maldita piada. Estamos aqui para dar respostas. Respostas que têm que ser suficientes. Assim, não se iludam sobre o
que estão fazendo aqui. Não iludam os membros das famílias com que vão tratar a respeito desses casos e não se deixem iludir por essas famílias.
Ele parou, aguardando uma reação que não veio. Bosch reparou que a foto da cena de crime presa na parede era de um homem que tombara em uma cabine telefônica varrida
de balas. O tipo de cabine que se vê em filmes antigos e no Farmer's Market ou ainda
no Phillipe's.
- Sem sombra de dúvida - prosseguiu Pratt -, esta equipe é o ponto mais nobre deste prédio. Uma cidade que esquece suas vítimas de homicídio é uma cidade perdida.
Aqui nós não esquecemos. Somos como o jogador que o técnico põe em campo no final do segundo tempo para virar o jogo. Somos os gênios do banco de reservas. Se nós
não pudermos, ninguém mais pode. Se fracassarmos, o jogo termina, porque somos o último recurso. Sim, claro, somos poucos para tanto trabalho. Temos oito mil casos
não resolvidos desde 1960. Mas somos destemidos. Mesmo que toda a nossa unidade esclareça apenas um caso por mês - 12 por ano -, estaremos fazendo alguma coisa.
Somos o último recurso, crianças. Se vocês trabalham com homicídios, é aqui que devem estar.
Bosch ficou impressionado com o fervor de Pratt. Podia ver sinceridade e mesmo dor em seus olhos. Assentiu, balançando a cabeça.
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Soube naquela hora que queria trabalhar para aquele homem, uma raridade na sua experiência no departamento.
- Só quero que não esqueçam que encerrar um caso não é a mesma coisa que ser capaz de virar o jogo - acrescentou Pratt.
- Certo - disse Bosch.
- Sei que os dois têm longa experiência em trabalhar com homicídios. Mas vão encontrar uma diferença marcante aqui. Que é o relacionamento com os casos.
- Relacionamento? - estranhou Bosch.
- Sim, relacionamento. O que quero dizer é que trabalhar com assassinatos recentes é algo completamente diferente. Você tem o corpo, tem a necropsia, dá as notícias
à família. Aqui você está lidando com vítimas que foram mortas há muito tempo. Não há necropsia, nem exames físicos da cena do crime. Você lida com os livros do
crime, ou seja, os arquivos do processo, com as fotos e desenhos da cena do crime, relatórios da necropsia e os exames de laboratório, transcrições de anotações
de investigadores e interrogatórios de testemunhas, quando consegue encontrá-los. E os demais registros. Quando você procura a família - e acredite em mim, você
não vai procurar a família enquanto não estiver absolutamente pronto para isso -, vai se entender com gente que já sofreu o choque e encontrou ou não meios de vencê-lo.
E desgastante. Espero que esteja preparado para isso.
- Obrigado pela advertência - agradeceu Bosch.
- Com homicídios recentes, é clínico, porque as coisas se movem depressa. Com os casos antigos, é emocional. Você vai ver o tributo cobrado pela violência ao longo
do tempo. Esteja preparado.
Pratt puxou uma grossa pasta azul de documentos que estava do lado da sua mesa para o centro e já ia empurrá-la na direção deles, quando se deteve.
- Outra coisa para a qual devem estar preparados é o departamento. Contem com arquivos incompletos ou desaparecidos. Contem com evidências físicas destruídas ou
desaparecidas. Esta unidade foi constituída há dois anos. Passamos os primeiros oito meses apenas examinando os registros e separando os casos que ficaram
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sem solução. Alimentamos os bancos de dados dos laboratórios com que foi possível, mas, mesmo quando conseguíamos um acerto,
éramos prejudicados pela falta de integridade
do caso. Tem sido péssimo, Tem sido frustrante. Ainda que não haja uma lei
determinando um tempo de prescrição nos casos de homicídio, estamos descobrindo que as evidências
e mesmo os arquivos dos casos foram rotineiramente descartados durante pelo menos uma administração.
"O que estou dizendo é que vocês vão descobrir que o maior obstáculo em alguns casos poderá muito bem ser o próprio Departamento de Polícia de Los Angeles.
- Alguém disse que houve um cola hit, um resultado positivo, em um caso pertencente a um dos anos que nos foram designados
- disse Bosch.
Ele já ouvira o suficiente. Só queria começar a fazer qualquer coisa.
- É verdade - confirmou Pratt. - Chegaremos lá em um segundo. Só vou terminar meu pequeno discurso. Afinal, não é sempre que consigo fazê-lo. Resumindo, o que tentamos
fazer aqui é aplicar nova tecnologia e novas técnicas a velhos casos. A tecnologia consiste, em essência, de três setores. DNA, impressões digitais e balística.
Em todas as três áreas, o progresso na análise comparativa foi fenomenal nos últimos dez anos. O problema com este departamento é que nunca se aplicou esse progresso
nos casos passados. Conseqüentemente, temos um número estimado de dois mil casos em que a evidência de DNA, embora colhida, nunca foi classificada e comparada. Desde
1960, temos quatro mil casos com impressões digitais que nunca foram cotejadas com as existentes nos bancos de dados dos nossos computadores. Ou melhor, não só dos
nossos como também do FBI, do DOJ, de qualquer outro órgão. Seria cômico se não fosse trágico. O mesmo acontece com a balística. Estamos descobrindo que na maioria
desses casos as evidências ainda estão lá, mas têm sido ignoradas.
Bosch balançou a cabeça, já sentindo a frustração de todas as famílias das vítimas, vendo os casos serem esvaziados pelo tempo, pela indiferença e pela incompetência.
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- Você vai descobrir também que as técnicas são diferentes. O policial de homicídios hoje é claramente melhor que um, digamos, de 1960 ou 1970. Ou de 1998. Assim,
mesmo antes de chegar à evidência física e rever os casos, você vai se deparar com coisas que lhe parecem óbvias agora, mas que não eram tão óbvias assim para o
policial que trabalhou na época do crime.
Pratt balançou a cabeça. Seu discurso estava terminado.
- Agora, ao trabalho - disse, empurrando o desbotado livro azul do crime por cima da mesa. - Assuma o caso. Ele é seu. Feche-o e ponha alguém na cadeia.
Capítulo 3

Depois de saírem da sala de Pratt, eles decidiram que Bosch providenciaria a próxima rodada de café, enquanto Rider começava a trabalhar no livro do crime. Sabiam
por experiências anteriores que ela lia mais depressa, e não fazia sentido dividir o livro. Ambos precisavam ler tudo da frente para trás, a fim de que a investigação
lhes fosse apresentada na seqüência linear em que ocorrera e fora documentada.
Bosch disse que lhe daria uma boa vantagem. Ia tomar um café na lanchonete só porque sentira falta. Da lanchonete, não do café.
- Então acho que isso me dá uns minutinhos para eu ir até o fim do corredor - disse Rider.
Depois que ela saiu para o banheiro, Bosch pegou a página com a listagem dos anos que tinham sido designados a eles e a pôs no bolso de dentro do paletó. Saiu da
sala 503 e pegou o elevador até o terceiro andar. Lá, atravessou a sala principal da Divisão de Roubos e Homicídios, dirigindo-se à sala do capitão.
A sala era dividida em duas. Uma, em que funcionava seu escritório de verdade, e a outra, apelidada de sala do crime. Esta era mobiliada com uma mesa comprida de
reuniões onde as investigações de homicídios eram discutidas e tinha as paredes dos dois lados forradas de prateleiras contendo livros de direito e os registros
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homicídios da cidade. Cada homicídio ocorrido em Los Angeles, começando desde mais de cem anos, estava listado naqueles diários de capa de couro. Havia décadas que
a rotina era atualizar os registros toda vez que um dos crimes era solucionado. Era a maneira fácil que o departamento tinha de determinar que casos ainda estavam
abertos ou tinham sido encerrados.
Bosch passou o dedo pelas lombadas dos livros. Cada uma delas indicava simplesmente HOMICÍDIOS e em seguida a lista dos anos registrados naquele livro. Nos primeiros
livros cabiam diversos anos. Mas por volta da década de 1980 o número de homicídios aumentou tanto, que cada um passou a ter os registros apenas de um único ano.
Bosch reparou então que o ano de 1988 fora dividido em dois livros, o que bastou para lhe dar uma boa idéia do motivo pelo qual aquele tinha sido destinado a ele
e a Rider, como membros recém-chegados à unidade de casos abertos e não solucionados. O recorde de assassinatos na cidade significaria também o recorde de casos
não solucionados.
Quando seu dedo encontrou o livro contendo os casos de 1972, ele puxou o tomo e sentou-se com ele à mesa. Folheou-o, passando os olhos nas histórias, ouvindo as
vozes. Encontrou o caso da velha senhora afogada na banheira. Nunca fora resolvido. Seguiu adiante, passou para 1973 e 1974, depois foi para o livro com os anos
de 1966, 1967 e 1968. Leu a respeito de Charles Manson e Robert Kennedy. Leu a respeito de gente de quem nunca ouvira falar, de quem nunca tomara conhecimento. Nomes
que tinham sido tomados deles, juntamente com tudo o que tinham tido ou que jamais teriam.
Enquanto seguia lendo os catálogos de horrores da cidade, Bosch sentiu uma força familiar começando a se apoderar dele e a correr novamente em suas veias. Apenas
uma hora de volta ao trabalho e já estava caçando um assassino. Não importava quanto tempo atrás o sangue tinha sido derramado. Havia um assassino no ar, e Bosch
estava chegando. Como o filho pródigo ao retornar, sabia que estava de volta ao seu lugar. Mais uma vez era batizado nas águas da única igreja verdadeira. A igreja
da religião azul. E sabia que haveria de encontrar sua salvação naqueles que havia muito
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estavam perdidos, que a encontraria naquelas bíblias mofadas onde os mortos eram arrumados em colunas, com fantasmas em todas as páginas.
- Harry Bosch!
Assustado com a intrusão, Bosch fechou o livro com força e levantou os olhos. O capitão Gabe Norona estava de pé na entrada da sala.
- Capitão.
- Seja bem-vindo!
Ele se adiantou e apertou vigorosamente a mão de Bosch.
- E bom estar de volta.
- Vejo que já o puseram para trabalhar. Bosch aquiesceu.
- Estou só meio que me familiarizando.
- Novas esperanças para os mortos. Harry Bosch novamente em ação.
Bosch ficou quieto. Não sabia se o capitão estava sendo sarcástico ou não.
- É o nome de um livro que li - disse Norona. -Oh.
- Bem, boa sorte para você. Vai lá e põe essa gente na cadeia.
- Esse é o plano.
O capitão apertou a mão dele de novo, desapareceu dentro da sua sala e fechou a porta.
Depois de ter seu momento sagrado arruinado pela intrusão, Bosch levantou-se e começou a recolocar os pesados catálogos de crimes de morte nos respectivos lugares
nas prateleiras. Quando terminou, saiu em busca da lanchonete.
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Capítulo 4
Kiz Rider quase tinha chegado à metade do livro azul quando Bosch voltou com nova rodada de café. Ela pegou seu copo diretamente da mão dele.
- Obrigada. Preciso de algo para me manter acordada.
- O quê? Você vai se sentar aí e me dizer que isso é chato comparado com colocar papéis em cima da mesa do chefe?
- Não, claro que não. E só toda essa concentração, a leitura em si. Você tem que conhecer o livro pelo avesso. Tem que estar alerta para as possibilidades.
Bosch notou que Rider tinha um bloco de papel ofício ao lado do livro e que a folha de cima estava quase cheia de anotações. Não dava para ler o que ela escrevera,
mas ele podia ver que a maioria das linhas terminava com um ponto de interrogação.
- Além do mais - acrescentou ela -, agora estou usando músculos diferentes. Músculos que eu não usava no sexto andar.
- Entendi. Você se incomoda se eu começar a leitura agora? - Por favor, esteja à vontade.
Ela abriu os anéis do fichário e tirou o maço gordo dos documentos que já tinha lido e passou-o para Bosch, que se sentara à sua mesa.
- Você tem outro bloco desses aí? - perguntou ele. - Só tenho um caderninho pequeno.
Ela deixou escapar um suspiro exagerado. Bosch sabia que era fneimento e que ela se sentia feliz por eles estarem trabalhando
juntos novamente. Rider passara a maior parte dos dois últimos anos avaliando linhas de conduta e localizando e eliminando problemas
para o novo chefe. Não era o verdadeiro trabalho de policial em que
ela era excelente. Este agora, sim, era.
Ela empurrou um bloco por cima da mesa para ele.
- Precisa de caneta também?
- Não, acho que posso me arranjar.
Bosch pôs os documentos à sua frente e começou a leitura. Estava pronto para o trabalho e não precisava de café para se ligar.
A primeira página do livro azul era uma fotografia colorida enfiada em uma capa plástica com três buracos. A foto era um retrato de anuário escolar de uma jovem
exoticamente atraente com olhos amendoados e de um verde espantoso a contrastar com a pele morena cor de café. Tinha o cabelo castanho encaracolado com o que pareciam
ser reflexos louros naturais onde se via o flash da câmera. Seus olhos eram luminosos, e o sorriso, sincero. Um sorriso que dizia que ela sabia coisas que ninguém
mais sabia. Bosch não a considerou bonita. Ainda não. Suas feições pareciam competir umas com as outras de maneira descoordenada. Mas é claro que ele sabia que a
falta de graça da adolescência com freqüência se atenua e se transforma em beleza depois.
Só que para Rebecca Verloren, de 16 anos, não haveria depois.
1988 seria o seu último ano de vida. O cold hit dizia respeito ao seu assassinato.
Becky, como família e amigos a chamavam, era a única filha de Muriel e Robert Verloren - Muriel, dona-de-casa; Robert, chef e proprietário em Malibu de um restaurante
muito conhecido, chamado Island House Grill. A família morava na rua Red Mesa, perto de uma estrada chamada passo de Santa Susana, em Chatsworth, canto noroeste
do conjunto de aldeias e vilarejos que formam Los Angeles. O quintal da casa dava para a encosta arborizada da Oat Mountain, que se erguia sobre Chatsworth e servia
como limite noroeste da cidade. Naquele verão, Becky estava passando da
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segunda para a terceira série na Hillside Preparatory School, uma escola particular na vizinha Porter Ranch, onde ela integrava o quadro de honra, a mãe trabalhava
como
voluntária na lanchonete e freqüentemente levava frango à moda da Jamaica e outras especialidades do restaurante de seu marido para a sala de refeições dos professores.
Na manhã do dia 6 de julho de 1988, os Verloren descobriram que a filha tinha desaparecido de casa. Encontraram a porta dos fundos aberta, embora tivessem certeza
de a terem trancado na noite anterior. Imaginando que a menina poderia ter saído para dar uma caminhada, eles esperaram, preocupados, por duas horas, mas ela não
voltara. Naquele dia, estava previsto que fosse para o restaurante com o pai a fim de trabalhar no turno do almoço como recepcionista assistente, e já passava muito
da hora de ir para Malibu. Enquanto a mãe telefonava para as amigas da filha tentando localizá-la, o pai subiu a encosta da colina atrás da casa à sua procura. Quando
desceu sem ter encontrado sinais de Becky, decidiram que era hora de chamar a polícia.
Patrulheiros da Divisão Devonshire foram chamados à casa. Não encontraram provas de arrombamento. Com base nisso e no fato de a garota pertencer a uma faixa etária
com uma das taxas mais elevadas de fugas da casa dos pais, o desaparecimento foi considerado uma possível situação de fuga e administrado como um caso rotineiro
de desaparecimento de pessoa. Isso tudo sob os protestos dos pais da menina desaparecida, que não acreditavam que ela tivesse fugido ou tivesse deixado a casa por
vontade própria.
Ficou provado que os pais estavam horrivelmente certos quando o corpo em decomposição de Becky Verloren foi encontrado escondido atrás do tronco caído de um carvalho,
a cerca de dez metros de uma trilha para passeios a cavalo na Oat Mountain, o morro que ficava nos fundos da casa dos Verloren. Uma mulher cavalgando o seu Appaloosa
se afastara da trilha para investigar o mau cheiro e dera com o corpo. A amazona poderia ter ignorado o mau cheiro, mas vira antes cartazes presos aos postes telefônicos
a respeito de uma garota desaparecida da área.
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Becky Verloren morrera a menos de quinhentos metros de casa.
É provável que o pai tivesse passado a alguns metros ou mesmo
centímetros do corpo quando subira o morro gritando o seu nome.
Mas naquela manhã não havia mau cheiro para chamar a atenção.
Bosch também era pai de uma garota. Embora vivesse longe dele, com a mãe, nunca estava muito longe de seus pensamentos. Imaginou um pai galgando a encosta íngreme
de um morro, a gritar por uma filha que jamais voltaria para casa.
Tentou se concentrar no livro.
A menina levara um tiro no peito. A arma, uma poderosa Colt
45 semi-automática, jazia no meio das folhas, perto do seu tornozelo esquerdo. Enquanto examinava as fotos da cena do crime, Bosch viu o que parecia ser uma queimadura
de contato no tecido azulclaro da camisola. O buraco da bala ficava diretamente sobre o coração, e Bosch soube, pelo calibre da arma e pelo ferimento de entrada,
que a morte devia ter sido imediata. O coração dela devia ter sido estilhaçado pelo projétil ao atravessar o corpo.
Por longo tempo, Bosch estudou as fotografias de Rebecca tal como fora encontrada. Suas mãos não haviam sido amarradas. Ela não fora amordaçada. O rosto estava virado
na direção do tronco caído. Não havia indicação de ferimentos defensivos de qualquer natureza. Não havia indicação de ter sido sexualmente molestada ou agredida.
O erro cometido pela polícia na interpretação do desaparecimento da garota foi acrescido inicialmente da interpretação também equivocada da cena da morte. A avaliação
da cena resultou em que a morte de Becky Verloren foi vista inicialmente como um provável suicídio. Assim sendo, o caso ficou sob a responsabilidade da equipe de
homicídios da divisão local e dos dois detetives que atenderam ao chamado, Ron Green e Arturo Garcia. A Divisão Devonshire naquele tempo era, e ainda é, a delegacia
mais tranqüila do DPLA. Representando uma grande comunidade-dormitório, com propriedades valiosíssimas e residentes quase que na totalidade da classe média alta,
Devonshire sempre tinha índices de criminalidade situados entre os menores de toda a cidade. Dentro do departamento, a delegacia era conhecida como um clube - o
Club
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Dev. Era um lugar procuradíssimo por policiais uniformizados e detetives com muitos anos de serviço e que se sentiam cansados, ou simplesmente tinham visto ação
suficiente. A Divisão Devonshire representava também a parte da cidade mais próximo da cidadezinha de Simi, uma comunidade quieta e relativamente sem crimes no condado
de Ventura, onde centenas de policiais do DPLA tinham escolhido residir. Servir em Devonshire tornava uma delícia o trajeto de casa para o trabalho e vice-versa
e assegurava ao felizardo a carga de trabalho mais leve do departamento.
Ao mesmo tempo em que lia os relatórios, Bosch não conseguia se esquecer do pedigree do Club Dev, como se fosse uma música que tocasse no fundo da sua cabeça. Sabia
que parte de sua tarefa ali era julgar o trabalho feito por Green e Garcia, determinar se eles tinham estado à altura da tarefa. Não os conhecera e não tivera experiência
profissional com eles. Não fazia idéia do nível de competência e de dedicação que tinham aplicado ao caso. Tinha havido o erro de interpretação inicial, quando a
morte da menina fora considerada um suicídio. Mas, pelo que o relato dava a entender, os investigadores pareciam ter se recuperado rapidamente e seguido adiante
com o caso. Os relatórios pareciam ser bem escritos, minuciosos e completos. Tudo indicava que haviam tomado medidas extras onde quer que fosse possível.
Ainda assim, Bosch sabia que um livro daqueles podia ser manipulado para dar essa impressão. A verdade seria revelada quando ele se aprofundasse mais e continuasse
sua própria investigação. Sabia que podia haver uma vasta diferença entre o que estava registrado e o que não estava.
De acordo com o livro do crime, Green e Garcia rapidamente reverteram as diretrizes investigativas quando o suicídio foi desconsiderado após a necropsia ter sido
feita, e a arma encontrada ao lado do corpo, analisada. O caso foi reclassificado como um homicídio disfarçado de suicídio.
Bosch foi primeiro examinar o que tinha sido descoberto na necropsia. Lera milhares de protocolos de necropsias, assim como assistira a centenas desses procedimentos.
Sabia passar por cima de todos os pesos, medidas e descrições da intervenção realizada para
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ir direto ao resumo e às fotografias anexadas. Previsivelmente, descobriu que a causa da morte fora um ferimento de arma de fogo no peito. A hora estimada da morte
se situava entre 0h e 2h do dia 6 de julho. O resumo dizia que nenhuma testemunha dissera ter ouvido o tiro, de modo que a hora da morte era estimada exclusivamente
através da medição da perda da temperatura do corpo.
As surpresas ficaram por conta de outros achados. Rebecca Verloren tinha cabelo comprido e grosso. No lado direito da base do seu pescoço, por trás do cabelo, o
legista encontrara uma pequena marca de queimadura circular mais ou menos do tamanho do botão de uma camisa oxford. A cinco centímetros dessa marca, havia uma outra,
muito menor que a primeira. A alta contagem de células brancas no sangue que cercava esses ferimentos indicava que ambos tinham sido causados próximo da hora da
morte, mas não exatamente na hora.
O relatório concluía que as queimaduras tinham sido causadas por uma pistola de choque, um aparelho portátil que emite poderosa descarga elétrica e deixa a vítima
inconsciente ou incapacitada por diversos minutos ou mesmo mais, dependendo da intensidade da descarga. Normalmente, uma pistola dessas deixaria duas marcas pequenas
e quase despercebidas na pele, indicando a localização dos dois contatos gêmeos. Mas se os pontos de contato do aparelho fossem sustentados de forma irregular de
encontro à pele, a descarga elétrica faria um arco e marcaria a pele da maneira vista no pescoço de Becky Verloren.
O resumo da necropsia também afirmava que o exame dos pés da vítima não encontrou depósitos do solo, cortes ou escoriações que comprovassem que a garota subira descalça
a encosta do morro no escuro.
Bosch tamborilou a caneta no livro e pensou a respeito. Sabia que ali estava um erro cometido por Green e Garcia. Se os pés da vítima tivessem sido examinados na
cena do crime, os dois teriam visto logo que o suicídio era uma armação. Não examinaram e perderam dois dias esperando a necropsia num fim de semana. Esses dois
dias, mais os outros dois perdidos quando a patrulha desconsiderou o chamado dos pais da vítima por concluir que se tratava de
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um caso de fuga, representaram uma falha séria em uma investigação de homicídio. Bosch começava a ver quanto o departamento prejudicara Rebecca Verloren.
O relatório da necropsia continha também os resultados de um exame das mãos da vítima a fim de determinar a presença de resíduos de pólvora. Embora tivessem sido
encontrados resíduos de pólvora na mão direita de Becky Verloren, nada havia na sua mão esquerda. Mesmo que a menina fosse destra, Bosch sabia que o exame era um
indicador de que ela não havia disparado a arma que a matara. Experiência - não importa o quão limitada - e bom senso teriam dito aos investigadores que a menina
precisaria usar as duas mãos para segurar apropriadamente a pesada pistola apontada contra o próprio peito e puxar o gatilho. O resultado seria a presença de resíduos
de pólvora em ambas as mãos.
Havia outro ponto a destacar no resumo da necropsia. O exame do corpo determinara que a vítima tinha sido sexualmente ativa, e escoriações nas paredes do útero indicavam
dilatação ginecológica recente e uma curetagem com a finalidade de eliminar uma gravidez. O auxiliar de legista que realizara a necropsia estimara que isso ocorrera
de quatro a seis semanas antes de sua morte.
Bosch leu o primeiro Resumo do Investigador, que fora escrito e adicionado ao livro depois de realizada a necropsia. Green e Garcia classificaram a morte como homicídio
e estabeleceram a teoria de que alguém entrara no quarto da garota enquanto ela dormia e a imobilizara com uma pistola de choque, carregando-a depois para fora do
quarto e da casa. Em seguida, ela fora conduzida encosta acima até um carvalho caído, onde o assassinato fora cometido e grosseiramente disfarçado de suicídio, no
que talvez, tenha sido uma decisão impulsiva do assassino. O relatório fora apresentado no dia 11 de julho, uma segunda-feira - cinco dias depois de Rebecca Verloren
ter sido deixada morta na encosta do morro.
Bosch passou em seguida para o relatório da análise da arma. Embora a necropsia tivesse produzido provas mais do que convincentes de uma encenação de suicídio, o
estudo da arma e da balística confirmava ainda mais a teoria.
A pistola não apresentava outras impressões digitais que não as da mão direita de Rebecca Verloren. A inexistência de impressões da sua mão esquerda ou de manchas
de qualquer tipo na pistola indicou aos investigadores que a arma fora cuidadosamente limpa antes de ser colocada na mão de Becky e depois virada para o seu peito
e disparada. Era provável que a vítima estivesse inconsciente - devido à ação da pistola de choque - quando ocorrera essa manipulação.
O estojo ejetado da pistola fora recuperado a menos de dois metros do corpo. Não havia digitais ou manchas nele, indicação de que a arma fora carregada com as mãos
enluvadas.
A evidência mais importante da investigação fora recuperada durante a análise da pistola em si. Na verdade, encontrada dentro da arma. A pistola era um modelo da
série Mark IV 8, manufaturada pela Colt em 1986, dois anos antes do assassinato. Uma de suas características era ter um cão comprido, o que dava à arma a reputação
de deixar um ferimento como se fosse uma "tatuagem" no atirador se a arma não fosse adequadamente manuseada. Isso geralmente ocorre quando, ao se empunhar a arma
com as duas mãos, a mão forte fica mais alta no cabo e, conseqüentemente, perto demais do cão. Pode então receber um choque doloroso quando o gatilho for puxado,
a arma disparar e o ferrolho voltar automaticamente para ejetar o estojo da bala. Quando este retorna à posição de tiro, belisca a pele da mão do atirador - geralmente
a pele entre o polegar e o indicador, com freqüência levando um pedaço para dentro da arma. Como tudo ocorre em uma fração de segundo, o atirador noviço com freqüência
fica sem saber o que foi que o "mordeu".
Foi exatamente isso que ocorreu com a arma usada para matar Rebecca Verloren. Quando um perito em armamento desmontou a arma, encontrou um pedacinho de pele e sangue
seco na parte de dentro do ferrolho. Não teria sido visto por alguém que examinasse o exterior da pistola e a limpasse de manchas de sangue e impressões digitais.
Green e Garcia acrescentaram a descoberta do perito em armamento à sua teoria investigativa. No segundo relatório do Resumo
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do Investigador, escreveram que aquela evidência indicava que o assassino colocara a mão de Rebecca Verloren por cima da arma e depois comprimira a boca do cano
contra seu peito. O assassino usara uma ou ambas as mãos para firmar a arma e acionar o gatilho com o dedo dela. A arma disparara, e o movimento do recuo do ferrolho
"tatuara" o assassino, levando um pedaço da sua pele para dentro da pistola.
Bosch notou que Green e Garcia não mencionaram a outra possibilidade. De que o pedaço de pele e o sangue encontrados já estivessem no interior da arma na noite do
crime, que a arma tivesse tatuado outra pessoa que não o assassino, por ter sido disparada antes do tiro que matara Becky.
Desconsiderando esse potencial descuido, o sangue e o tecido foram coletados e, embora já se soubesse pela necropsia que Becky Verloren não tinha ferimentos nas
mãos, um exame rotineiro de comparação de sangue fora realizado. O sangue recolhido da arma era do tipo O. O sangue de Becky Verloren era AB positivo. Os investigadores
concluíram que tinham o sangue do criminoso na arma. O sangue do criminoso então era do tipo O.
Mas em 1988 o uso da comparação de DNA em investigações criminais estava longe de ser algo comum e, mais importante, de ser uma prática aceita nos tribunais da Califórnia.
Os bancos de dados contendo resultados dos exames de DNA de criminosos ainda estavam por ser incluídos nos orçamentos e por ser criados. No decurso da investigação
de 1988, os detetives iriam comparar o tipo sangüíneo de suspeitos em potencial apenas quando estes surgissem. E ninguém apareceu como suspeito principal no assassinato
de Rebecca Verloren. O caso foi bastante trabalhado e por um longo tempo, mas no final nenhuma prisão foi feita. E acabou esquecido no arquivo.
- Até agora - disse Bosch em voz alta, sem se dar conta disso.
- Como? - perguntou Rider.
- Nada. Só estava pensando em voz alta.
- Quer começar a falar a respeito?
- Ainda não. Primeiro quero terminar de ler. Você já acabou? - Quase.
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- Você sabe a quem temos que agradecer por isso, não sabe? perguntou Bosch.
Ela o encarou sem entender.
- Não faço a menor idéia.
- Mel Gibson.
- De que você está falando?
- Quando Máquina Mortífera foi lançado? Mais ou menos nessa época, não foi?
- Acho que sim. Mas de que você está falando? Aqueles filmes eram tão irreais...
- Esse é o meu ponto. Que foi o filme que começou com essa história de segurar a arma de lado e com as duas mãos, uma em cima da outra. Temos sangue nessa pistola
porque o atirador era fã de Máquina Mortífera.
Rider sacudiu a cabeça sem se impressionar.
- Pois preste atenção - disse Bosch. - vou perguntar ao cara quando o pegarmos.
- Tudo bem, Harry, pergunte a ele.
- Mel Gibson salvou um bocado de vidas. Todos os caras que passaram a atirar de lado não conseguiam acertar merda nenhuma. Tínhamos que fazer dele tira honorário
ou algo assim.
- Tudo bem, Harry, vou continuar com a minha leitura, está certo? Quero acabar logo com isto.
- Claro, sem dúvida. Eu também.
Capítulo 5
Logo depois que a Unidade de Casos Não Resolvidos começou a atuar, o DNA colhido no caso Verloren foi enviado ao Departamento de Justiça da Califórnia, o DOJ. Junto
com ele foram enviadas amostras de dezenas de outros casos selecionados em um exame inicial dos homicídios não solucionados do departamento. O DOJ operava o banco
de dados básico de DNA do estado da Califórnia. A fila de espera para o atendimento dos pedidos de comparação encaminhados ao laboratório - que não tinha efetivo
ou recursos financeiros suficientes - era superior a um ano naquele tempo. Mas, devido à onda de pedidos feitos pela nova unidade do DPLA, foram precisos quase 18
meses para que a evidência do caso Verloren fosse preparada pelos analistas do DOJ e comparada com os milhares de perfis de DNA existentes no banco de dados do estado.
Produziu-se uma única equivalência, um cold hit, no jargão da turma que trabalhava com DNA.
Bosch examinou o laudo de uma página do DOJ desdobrada à sua frente. Afirmava que 12 dos 14 marcadores genéticos possíveis estabeleciam a equivalência do DNA colhido
na arma usada para matar Rebecca Verloren com o DNA de um homem chamado Roland Mackey, natural de Los Angeles e cujo último endereço conhecido era em Panorama. Bosch
sentiu o sangue circular mais depressa em suas veias quando leu o laudo. Panorama ficava no vale
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San Fernando, a não mais de 15 minutos de Chatsworth, mesmo orn o trânsito ruim. O que aumentava o nível de credibilidade do exame. Não que Bosch não acreditasse
na ciência. Ele acreditava, mas também sabia que era preciso mais que a ciência para convencer um júri além de uma dúvida razoável. Era necessário escorar o fato
científico com conexões de provas circunstanciais e do senso comum; esta era uma delas.
Bosch reparou na data do ofício de encaminhamento do relatório do DOJ.
- Você disse que acabou de receber isto? - perguntou a Rider.
- Exato. Acho que chegou na sexta-feira. Por quê?
- A data é de duas sextas-feiras atrás. Dez dias. Rider deu de ombros.
- Burocracia - disse ela. - Acho que leva tempo para sair de Sacramento e chegar aqui.
- Sei que o caso é antigo, mas eles podiam andar um pouco mais depressa.
Rider não respondeu. Bosch desistiu do assunto e continuou a ler. O DNA de Mackey estava no computador do DOJ porque a lei do estado da Califórnia determinava que
todos os condenados por crimes sexuais tivessem seu sangue e amostras de saliva enviados para classificação e inclusão no banco de dados. O crime que fizera com
que o DNA de Mackey fosse recolhido ficava na margem extrema das atribuições do estado. Dois anos antes ele fora condenado por comportamento obsceno em Los Angeles.
O relatório do DOJ não descrevia detalhes do crime, mas informava que ele fora posto em suspensão condicional da pena por 12 meses, uma indicação de que era um delito
leve.
Bosch ia escrever uma anotação no seu bloco, quando levantou os olhos e viu Rider fechando o livro do crime com a segunda metade dos documentos.
- Terminou?
- Terminei.
- E agora?
- Imaginei que, enquanto você acabava de ler, eu ia até o ESB e pegava a caixa.
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Bosch não teve problema para se lembrar do significado do que ela dissera. Tinha retornado com facilidade ao mundo dos acrônimos e do jargão policial. ESB era o
prédio destinado ao armazenamento das provas, o Evidence Storage Building, que ficava no conjunto Piper Tech. Ela ia lá para pegar todas as evidências físicas que
tinham sido guardadas do caso. Coisas como a arma do crime, a roupa da vítima e qualquer outro item acumulado na fase da investigação inicial. Geralmente tudo era
posto dentro de uma caixa de papelão lacrada com fita adesiva e colocada em uma prateleira. A exceção a esse tipo de armazenamento eram as provas biológicas e perecíveis
- como o sangue e a pele recuperados na arma do crime de Rebecca Verloren -, que eram guardadas nos cofres da Divisão de Investigação Científica.
- Parece uma boa idéia - aprovou Bosch. - Mas por que não procura primeiro o nome desse cara no Departamento de Trânsito e no NCIC para ver se consegue localizá-lo?
- Já fiz isso.
Ela virou o laptop para que Bosch pudesse ver a tela. Ele reconheceu a tela do National Crime Index Computer, o NCIC.
Adiantou-se e começou a rolar a tela para baixo, examinando atentamente as informações.
Rider passara o nome de Roland Mackey no NCIC e conseguira seu prontuário criminal. A condenação de dois anos antes por comportamento obsceno fora apenas a última
de uma série de prisões registradas desde o dia em que completara 18 anos - o mesmo ano do assassinato de Rebecca Verloren. Qualquer coisa que houvesse com data
anterior não constaria, porque as leis de proteção ao menor protegeriam essa parte do prontuário. A maioria dos crimes ali listados era contra a propriedade e relacionados
com drogas, começando com um roubo de carro e um arrombamento com furto aos 18 anos, duas condenações por posse de droga, duas prisões por dirigir embriagado, outra
acusação de arrombamento com roubo e uma receptação de artigos roubados. Havia também uma prisão por solicitar serviços de uma prostituta. Tudo considerado, era
a ficha de um criminoso menor e usuário de drogas. Tudo indicava que nunca chegara a ser mandado para a prisão estadual por
ualquer um de seus crimes. Quase sempre lhe davam uma segunj oportunidade; depois, ele fazia um acordo, era condenado, mas tinha a pena suspensa ou então passava
curtos períodos na cadeia do condado. Não passou mais de seis meses preso, após confessar ter receptado material roubado, já aos 28 anos de idade. Passou esse período
na instituição penal do condado denominada Wayside Honor Rancho.
Bosch recostou-se na cadeira depois que terminou de ler. Sentia-se apreensivo. Mackey tinha o tipo do prontuário que podia ser visto como preparatório para o crime
de morte. Mas no caso dele o crime de morte viera antes - quando Mackey tinha apenas 18 anos de idade -, e os pequenos crimes vieram depois. Não se ajustava.
- O quê? - perguntou Rider, sentindo o estado de espírito de Bosch.
- Não sei, acho que pensei que havia mais. Está na ordem inversa. O sujeito vai do homicídio para as pequenas violações? Não
se sustenta.
- Bem, o que tem aí é o que o apanharam fazendo. Não quer dizer que seja tudo o que fez.
Ele assentiu.
- E quando era menor de idade?
- Pode ser que haja alguma coisa. Provavelmente. Mas jamais vamos conseguir esses registros agora. Já devem ter desaparecido.
Era verdade. O estado se esforçava por proteger a privacidade dos delinqüentes juvenis. Os crimes cometidos por menores de idade raramente os acompanham no sistema
de justiça adulta. Mesmo assim, Bosch achava que neste caso devia haver crimes cometidos antes da maioridade que combinassem melhor com o aparente assassinato a
sangue-frio de uma menina de 16 anos de idade imobilizada com uma pistola de choque e retirada de dentro de sua casa. Bosch começou a experimentar uma sensação desagradável
acerca do caso em que estavam trabalhando. Começava a sentir que o tal Mackey não era o alvo. E sim um meio para atingir um alvo.
- Você já tentou descobrir o endereço com o Departamento de Trânsito?
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- Harry, isso já era. Você só tem de atualizar sua licença de motorista a cada quatro anos. Se quiser encontrar alguém, tem que procurar no AutoTrack.
Ela abriu o livro azul e passou uma folha de papel solta para ele. Era uma folha impressa por computador com as palavras AutoTrack em cima; ela explicou que era
uma firma contratada pelo departamento de polícia. Fornecia buscas realizadas em todos os bancos de dados públicos, inclusive departamentos de trânsito e companhias
de utilidade pública e televisão a cabo, assim como de empresas privadas que trabalhavam com informações de crédito, com a finalidade de determinar os antigos e
atuais endereços de um indivíduo. Bosch viu que o papel continha uma lista dos vários endereços de Roland Mackey desde o tempo em que tinha 18 anos. O endereço atual
e tudo mais referente a ele, inclusive carteira de motorista e registro do carro, remetiam a Panorama. Mas Rider traçara um círculo em
torno do endereço onde Mackey
residira dos 18 aos 20 anos - de 1988 até 1990. Era um apartamento no bulevar Topanga Canyon, em Chatsworth. Isso significava que Mackey morava bem perto da casa
de Rebecca Verloren à época do crime. Isso fez com que Bosch se sentisse um pouco melhor no tocante à evolução dos acontecimentos. A proximidade era uma peça importantíssima
no quebra-cabeça. Deixando de lado as apreensões de Bosch em relação ao prontuário criminal de Mackey, saber que ele morava na vizinhança de Rebecca Verloren em
1988 e que, por isso, podia tê-la visto ou conhecido representava um ponto forte na coluna dos positivos.
- Faz você se sentir melhor, Harry?
- Um pouquinho.
- Ótimo. Eu vou, então.
- Estarei aqui.
Depois que ela saiu, Bosch voltou ao seu estudo do livro do crime. O terceiro Resumo do Investigador concentrou-se em como o intruso teria entrado na casa. Os trincos
das portas e das janelas não mostravam sinais de comprometimento, e todas as chaves conhecidas da casa estavam de posse de membros da família e de uma governanta
que fora liberada de toda e qualquer suspeita. A teoria dos investigadores era de que o criminoso entrara na casa através
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da garagem, que havia sido deixada aberta, e depois se transferira para a casa através da porta de ligação com a garagem, que normalmente só era trancada quando
Robert Verloren chegava,
à noite.
De acordo com Robert Verloren, a porta estava aberta quando ele chegara em casa do seu restaurante, cerca das 22h30 de 5 de julho. Ele entrara, fechara a garagem
e trancara a porta. Pela teoria dos investigadores, o assassino já estava dentro de casa.
A explicação da garagem aberta, dada por Verloren, era que a filha tinha tirado a carteira de motorista recentemente e de vez em quando era autorizada a usar o carro
da mãe. No entanto ainda não adquirira o hábito de se lembrar de fechar a garagem ao sair de casa ou voltar e fora repreendida pelos pais em mais de uma ocasião
por causa disso. No final da tarde anterior ao seu seqüestro, Rebecca fora pegar roupa na lavanderia a pedido da mãe. Usara então o carro dela. Os investigadores
confirmaram que ela pegara a roupa às 17h15 e depois voltara para casa. Eles acreditavam que ela mais uma vez tivesse esquecido de fechar a garagem ou de trancar
a porta de ligação depois de voltar. Sua mãe dissera não ter verificado a porta naquela noite, presumindo, erradamente, que estivesse fechada.
Dois residentes na vizinhança, minuciosamente investigada após o crime, declararam ter visto a porta da garagem aberta naquela noite. Isso deixava a porta facilmente
acessível até a hora em que Robert Verloren chegara em casa.
Bosch pensou em quantas vezes durante todos aqueles anos vira o engano aparentemente inocente de alguém entregar uma das chaves de sua própria ruína. Uma tarefa
rotineira de pegar roupa na lavanderia podia ter proporcionado ao assassino um modo de entrar na casa. Becky Verloren podia, sem querer, ter montado o esquema da
própria morte.
Ele empurrou a cadeira para trás e se levantou. Terminara a revisão da primeira metade do livro. Decidiu pegar mais café antes de começar a segunda parte. Perguntou
de um modo geral no escritório se alguém queria alguma coisa da cafeteria e ouviu um pedido e café feito por Jean Nord. Desceu a escada até lá, encheu dois
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copos com o café da cafeteira. Pagou e foi até o balcão dos acessórios para pegar o creme e o açúcar de Nord. Enquanto servia uma dose de creme em um dos copos,
sentiu a presença de alguém ao seu lado no balcão. Abriu espaço, mas ninguém se adiantou para pegar nada. Virou-se na direção da pessoa e viu-se encarando o rosto
sorridente de Irvin S. Irving, o subchefe.
Nunca tinha havido qualquer amor perdido entre Bosch e Irving. Irving tinha sido em várias oportunidades tanto seu adversário quanto seu salvador involuntário no
departamento. Rider contara a Bosch, contudo, que Irving não se encontrava mais em uma posição favorável. Que tinha sido defenestrado do poder pelo novo chefe, que
lhe dera uma posição inexpressiva sediada fora do Parker Center.
- Achei que era você, detetive Bosch. Eu lhe pagaria um copo de café, mas vejo que já tem mais que suficiente. De qualquer modo, gostaria de se sentar comigo por
um minuto?
Bosch levantou os dois cafés que carregava.
- Estou no meio de algo, chefe. E tem uma pessoa me esperando para tomar um destes.
- Um minuto, detetive - disse Irving, sua voz adotando um tom ríspido. - O café ainda estará quente quando você chegar aonde tem que ir. Eu garanto.
Sem esperar resposta, ele se virou e se encaminhou para uma mesa
próxima. Bosch seguiu-o. Irving ainda usava a cabeça raspada e reluzente. A mandíbula musculosa
ainda era sua característica mais marcante. Ele escolheu uma cadeira e manteve-se empertigado, duro como um pau. Não parecia à vontade. Nada disse até Bosch se sentar.
O tom agradável voltou à sua voz.
- Eu só queria lhe dar as boas-vindas - disse.
Sorriu um sorriso de tubarão. Bosch hesitou como se tivesse que passar por cima de um alçapão antes de responder.
- É bom estar de volta, chefe.
- A Unidade de Casos Não Resolvidos. Acho que é o lugar apropriado para alguém com os seus conhecimentos.
Bosch tomou um gole do café escaldante. Não sabia se Irving acabara de cumprimentá-lo ou se o insultara. Queria ir embora.
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- Bem, vamos ver - disse ele. - Espero que sim. Acho que é melhor eu...
Irving levantou as mãos bem abertas, como se quisesse mostrar que não estava escondendo nada.
- É isso aí - disse ele. - Pode ir. Eu só queria lhe dar as boasvindas. E lhe agradecer.
Bosch hesitou, mas mordeu a isca.
- Agradecer-me por quê, chefe?
- Por proporcionar a minha ressurreição neste departamento. Bosch sacudiu a cabeça e sorriu, como se não tivesse compreendido.
- Não entendo, chefe. Como é que vou fazer uma coisa dessas? Quer dizer, o senhor está do outro lado da rua, no Anexo da Prefeitura, não está? O que é, Escritório
do Planejamento Estratégico ou algo assim? Pelo que sei, o senhor tem que deixar a arma
em casa.
Irving cruzou os braços e inclinou o corpo na direção de Bosch. Toda simulação de humor, falso ou não, evaporou-se. Ele falou com vigor, mas sem levantar a voz.
- Sim, é lá que estou. Mas garanto que não será por muito tempo. Não com gente como você sendo bem acolhida de volta ao departamento.
Neste ponto ele se recostou e adotou um jeito informal, como se estivesse entretido em uma conversa casual.
- Sabe o que você é, Bosch? Um pneu recauchutado. Esse novo chefe de polícia gosta de pôr pneus recauchutados no carro. Mas você sabe o que acontece com um recauchutado?
Rasga nas costuras. A fricção e o calor - ele não agüenta e rasga. E aí o que acontece? Estoura. E quando o carro sai da estrada.
Balançou a cabeça silenciosamente enquanto deixava Bosch Pensar no que ele dissera.
- Veja bem, Bosch, você é o meu bilhete de volta. Vai foder tudo e se me desculpa a linguagem. Está na sua história. E garantido. E quando você foder tudo o nosso
ilustre chefe novo vai se foder também por ter feito questão de botar um pneu recauchutado no nosSo carro.
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Ele sorriu. Bosch refletiu que só faltava um brinco de ouro para completar o quadro. Absolutamente igual ao Sr. Limpeza dos anúncios de sabão.
- E quando ele cair o valor da minha ação vai lá para cima. Sou um homem paciente. Esperei mais de quarenta anos neste departamento. Posso esperar mais.
Bosch esperou que houvesse mais, mas o discurso acabou. Irving balançou a cabeça uma vez e levantou-se. Bosch sentiu a raiva subir e formar um nó na garganta. Baixou
os olhos para as duas xícaras de café que segurava e sentiu-se como um idiota por ter ficado ali como um garoto de recados indefeso enquanto Irving acabava com ele.
Levantou-se e jogou os dois copos de café numa lata de lixo. Decidiu que, quando voltasse para a sala 503, diria a Jean Nord que fosse buscar seu maldito café.
Capítulo 6
Sentindo ainda o desconforto do confronto com Irving, Bosch pegou a segunda metade do livro do crime em cima de sua mesa e sentou-se. Concluiu que o melhor modo
de esquecer a ameaça que Irving representava era imergir no caso de novo. O que restava no arquivo do caso era um grosso maço de atualizações e relatórios secundários,
essas coisas que os investigadores sempre amontoam na parte de trás, relatórios que Bosch chamava de lingüetas de fechadura, porque sempre pareciam discrepantes,
mas assim mesmo podiam desvendar um caso quando vistos do ângulo certo ou arrumados um ao lado do outro segundo o padrão correto.
O primeiro era o laudo de um laboratório afirmando que fora impossível determinar exatamente desde quando as amostras de sangue e tecido da pele recolhidas na arma
do crime podiam estar lá. O documento dizia que, embora a maior parte da amostra tivesse sido preservada para fins de comparação, o exame das células do sangue selecionadas
por indicarem decomposição não era suficientemente extenso. O criminalista que tinha assinado o documento não podia afirmar que o sangue estivesse depositado na
arma "próximo ou na ocasião da morte".
Bosch sabia que aquele laudo era importantíssimo em termos da montagem da acusação de Roland Mackey. E também podia dar a Mackey a oportunidade de montar uma defesa
a partir da possibilidade
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de ter a posse da arma antes, mas não na época do crime. Seria um lance arriscado admitir estar de posse da arma do crime, mas a equivalência do DNA quase
que impunha a adoção desta estratégia. Com a ciência sendo incapaz de definir exatamente quando ocorrera o depósito de sangue e de tecido epidérmico na arma, Bosch
via aí um buraco na acusação. Por onde a defesa podia claramente se safar. Mais uma vez ele sentiu que o resultado positivo do exame de DNA que ligava Mackey à morte
de Rebecca Verloren perdia a força. A ciência ao mesmo tempo que dá também tira. Precisavam de mais.
A seguir vinha a perícia realizada pela Unidade de Armas de Fogo, incumbida de rastrear a identidade do proprietário da arma do crime. O número de série da Colt
tinha sido limado, mas fora recuperado no laboratório com a aplicação de um ácido que acentuava a compressão no metal onde o número tinha sido estampado durante
a fabricação. O número encontrado era o de uma arma comprada em 1987 do fabricante por uma loja de armas de Northridge. A loja a vendera no mesmo ano a um homem
que morava em Chatsworth, na avenida Winnetka. Fora participado o roubo da pistola pelo proprietário quando este tivera a casa arrombada no dia 2 de junho de 1988,
um mês antes de ter sido usada na morte de Rebecca Verloren.
As conclusões da perícia ajudavam o caso deles, porque, a menos que Mackey tivesse algum relacionamento com o proprietário original da pistola, o roubo encurtava
o período durante o qual Mackey teria estado de posse da arma. Tornava mais provável que ele estivesse de posse da arma na noite em que Becky Verloren fora seqüestrada
de sua casa e assassinada.
O boletim de ocorrência original do roubo com arrombamento também integrava o arquivo. O nome da vítima era Sam Weiss, _ que morava sozinho e trabalhava como técnico
de som na Warner Bros, em Burbank. Bosch estudou meticulosamente o boletim e encontrou apenas uma outra nota que despertasse interesse. Na seção destinada aos comentários
do policial que investigara o caso, este afirmara que Weiss tinha comprado recentemente a pistola para sua proteção, após ter recebido telefonemas anônimos com ameaças
por
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ser judeu. A vítima informara que não sabia como seu número, que não estava na lista, fora cair nas mãos de alguém, nem o que teria provocado as ameaças.
Bosch leu rapidamente o laudo seguinte, também preparado pela Unidade de Armas de Fogo, que identificava a pistola de choque usada no seqüestro. A distância de 5,8
centímetros entre os dois pontos de contato - como determinado pelas marcas de queimadura na carne da vítima - era característica única do modelo Profissional 100
fabricado por uma companhia chamada SafetyCharge, sediada em Downey. O modelo era vendido no balcão e por ordem postal, e havia mais de 12 mil Professional 100 distribuídas
à época do assassinato de Rebecca Verloren. Bosch sabia que, sem ter em mãos a pistola de choque usada, não havia como conectar as marcas do corpo de Becky Verloren
com algum proprietário. Beco sem saída.
Ele seguiu em frente, folheando uma série de fotos grandes tiradas na casa dos Verloren depois que o corpo fora encontrado na encosta do morro atrás da propriedade.
Bosch sabia que aquelas fotos eram do tipo tirar-o-seu-da-reta. O caso fora cuidado - ou descuidado - como uma situação descontrolada. O departamento não entrara
para valer senão depois que o corpo fora encontrado e uma necropsia concluíra que a morte da menina tinha sido homicídio. Cinco dias depois que a garota teve o desaparecimento
participado, a polícia voltou e transformou a casa em uma cena de crime. A questão era o que tinha sido perdido naqueles cinco dias.
As fotos incluíam tomadas exteriores e interiores de todas as três portas da casa - frente, fundos e garagem -, assim como diversos close-ups das trancas das janelas.
Havia também uma série feita no quarto de Becky Verloren. A primeira coisa que Bosch notou foi que a cama estava feita. Gostaria de saber se teria sido feita pelo
seqüestrador ou simplesmente pela mãe de Becky em algum instante durante os dias em que esperara a filha voltar para casa.
A cama era de quatro colunas, com uma colcha branca e rosa estampada com gatos e uma barra cor-de-rosa combinando. A colcha lembrou a Bosch uma outra, usada na cama
de sua filha. Parecia algo de que uma criança com muito menos de 16 anos gostaria, e
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ele se perguntou se Becky Verloren a guardara por razões nostálgicas ou como uma espécie de cobertor de segurança psicológica. A barra não atingia o chão de maneira
uniforme. Era uns cinco centímetros mais comprida, e por isso ora ficava dobrada para fora, ora metida para debaixo da cama.
Também havia fotos de sua escrivaninha e das mesinhas-de-cabeceira. O quarto era enfeitado com animais de pelúcia dos seus tempos de menina. Nas paredes havia pôsteres
de grupos de músicos que tinham ido e vindo. Havia um cartaz de um filme de John Travolta, três reaparições atrás. O quarto era muito limpo e arrumado, e mais uma
vez Bosch perguntou-se se estaria assim na manhã em que descobriram o desaparecimento de Rebecca Verloren ou se a mãe dela o teria arrumado enquanto aguardava o
retorno da filha.
Bosch sabia que as fotos deveriam ter sido tiradas como primeiro passo da investigação da cena do crime. Em nenhum ponto ele viu qualquer sinal de aplicação de pó
para levantamento de impressões digitais ou outra indicação da desordem que com certeza teria ocorrido com a intromissão de criminalistas.
As fotos eram seguidas no livro do crime por um pacote de resumos dos interrogatórios que os detetives realizaram com numerosos alunos da Hillside. Uma lista de
verificação na primeira página indicava que tinham falado com todos os colegas de classe de Becky Verloren e com cada rapaz que cursava os últimos graus da escola.
Havia também resumos dos interrogatórios com diversos professores da vítima e administradores da escola.
Incluída nesta seção, havia uma sinopse de uma entrevista telefônica realizada com um antigo namorado de Becky que se mudara para o Havaí no ano anterior ao crime.
Anexada a essa sinopse, havia uma declaração assinada pelo supervisor do adolescente confirmando que ele trabalhara no seu lava-carros em uma franquia de aluguel
de carros em Maui, tornando improvável que tivesse estado em Los Angeles para matá-la.
Havia um conjunto separado dos resumos dos interrogatórios dos empregados do Island House Grill, o restaurante de propriedade de Robert Verloren. Sua filha recém-começara
no verão a trabalhar no restaurante em regime de tempo parcial. Era ajudante de
recepcionista durante a hora do almoço. Sua obrigação era acompanhar os clientes até as mesas e lhes entregar os cardápios. Embora Bosch soubesse que os restaurantes
costumavam recorrer a tipos sem-destino para desempenhar funções inferiores da cozinha, Robert Verloren evitava contratar homens com antecedentes criminais, preferindo
recorrer aos surfistas e outros tipos independentes que pululavam nas praias de Malibu. Todos tinham tido contato limitado com Rebecca, que trabalhava no salão,
mas assim mesmo foram interrogados e dispensados pelos investigadores.
Havia também uma cronologia da vitima na qual os investigadores alinhavam os movimentos de Rebecca Verloren nos dias que antecederam o seu assassinato. Em 1988 o
4 de Julho caíra numa segunda-feira. Rebecca passou a maior parte do feriado sozinha em casa, a não ser por ter dormido com três amigas na noite de domingo na casa
de uma delas. Os resumos anexados dos interrogatórios das três garotas eram longos, mas não continham informações de valor investigativo.
Na segunda-feira, o feriado, ela permaneceu em casa até se dirigir ao parque Balboa com os pais a fim de assistir a uma queima de fogos. Foi uma rara noite de folga
para Robert Verloren, e ele insistiu em que a família ficasse junta, mesmo que Becky tivesse reclamado muito por não ter ido à festa de uma amiga na área de Porter
Ranch.
Na terça-feira, a rotina do verão recomeçou com Rebecca indo ao restaurante com o pai para cobrir o turno do almoço como recepcionista.
Às 5h, o pai a levou de
carro de volta para casa, onde ele ficou a tarde inteira, voltando ao restaurante na hora do jantar,
mais ou menos na mesma hora em que Rebecca usava o carro da mãe para ir pegar a roupa na lavanderia.
Bosch nada viu no cronograma que levantasse suspeitas, nada que os investigadores originais tivessem deixado passar.
A seguir, deu com a transcrição de uma entrevista formal com os pais da vítima. Teve lugar no recinto da Divisão Devonshire no dia 14 de julho, mais de uma semana
depois que a filha deles tinha sido dada como desaparecida. A essa altura, os detetives tinham acumulado muito conhecimento do caso e foram específicos em
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suas perguntas. Bosch leu a transcrição com todo cuidado, não só pelas respostas como pela compreensão que ela lhe daria do ponto de vista dos detetives naquele
ponto da investigação.
Caso n2 88-641, Verloren, Rebecca (DOD 6-7-88),
I/O A. Garcia, ns 993
14/7/88 - 14H15, Homicídios, Devonshire
GARCIA: Muito obrigado por terem vindo. Espero que não se incomodem, mas a sessão vai ser gravada para que possamos ter um registro. Como estão reagindo?
ROBT. VERLOREN: Como era de esperar. Estamos devastados. Não sabemos o que fazer.
MURIEL VERLOREN: Não conseguimos deixar de pensar: o que poderíamos ter feito para impedir que uma coisa dessas acontecesse com a nossa filhinha?
GREEN: Sentimos muito, sinceramente, Mas a senhora não pode se culpar pelo que aconteceu. Tanto quanto esteja ao nosso alcance afirmar, não foi nada que a senhora
ou o seu marido tenham feito ou deixado de fazer. Aconteceu. Não se culpe. Culpe o sujeito que fez isso.
GARCIA: E nós vamos pegá-lo. A senhora não tem que se preocupar com isso. Agora, temos umas perguntas que precisamos fazer. Algumas podem ser dolorosas, mas vamos
precisar das respostas se queremos mesmo prender o criminoso.
ROBT. VERLOREN: Você fala "o sujeito", "o criminoso". Há algum suspeito? Vocês sabem se foi um homem?
GARCIA: Não sabemos nada ao certo, senhor. Estamos trabalhando com base nas percentagens. Mas o senhor também tem aquela encosta íngreme atrás da sua casa. Becky
com toda a certeza foi carregada morro acima. Ela não era uma menina grande, mas nós definitivamente achamos que tinha que ser um homem.
MURIEL VERLOREN: Mas o senhor disse que ela não foi... que não houve ataque sexual.
GARCIA: E verdade, senhora. Mas isso não impede que o crime tenha tido motivação sexual ou que fosse de algum modo relacionado com sexo.
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ROBT. VERLOREN: Como assim?
GARCIA: Chegaremos lá, senhor. Se não se incomoda, deixe que façamos as nossas perguntas primeiro e depois então responderemos às suas, se fizer questão.
ROBT. VERLOREN: Vá em frente, por favor. Desculpe. É que não consigo entender o que aconteceu. É como se estivesse o tempo todo debaixo d'água.
GARCIA: Isso é totalmente compreensível. Como falei, os senhores têm toda a nossa simpatia. E do departamento também. Temos o mais alto escalão do departamento acompanhando
de muito perto este caso.
GREEN: Gostaríamos de começar voltando à época anterior ao desaparecimento de sua filha. Talvez um mês antes. Sua filha afastou-se de casa durante esse tempo?
ROBT. VERLOREN: O que vocês estão realmente querendo saber?
GARCIA: Ela esteve afastada de vocês por algum tempo?
ROBT. VERLOREN: Não. Becky tinha 16 anos. Estava na escola. Não saía sozinha.
GREEN: E o que me diz de dormir fora com as amigas?
MURIEL VERLOREN: Não, acho que não.
ROBT. VERLOREN: O que vocês estão procurando?
GREEN: Ela esteve adoentada no mês do desaparecimento ou no mês anterior?
MURIEL VERLOREN: Sim. Esteve resfriada na primeira semana depois do término das aulas. Atrasou o início do seu trabalho com Bob no restaurante.
GREEN: Ela esteve de cama?
MURIEL VERLOREN: Um bocado de tempo. Não vejo o que isso tenha a ver com...
GARCIA: Sra. Verloren, a sua filha procurou um médico nesse tempo?
MURIEL VERLOREN: Não, ela só disse que tinha que descansar. Para falar a verdade, nós pensamos que ela na verdade não queria ir trabalhar no restaurante. Não tinha
febre nem resfriado. Pensamos que estivesse simplesmente sendo preguiçosa.
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GARCIA: Ela não lhe confidenciou nessa ocasião que tinha engravidado?
MURIEL VERLOREN: O quê? Não!
ROBT. VERLOREN: Escute, detetive, o que está querendo nos dizer?
GREEN: A necropsia revelou que Becky foi submetida a um procedimento chamado dilatação e curetagem cerca de um mês antes da sua morte. Um aborto. Nosso palpite é
que ela estava descansando e se recuperando desse procedimento quando disse que estava resfriada.
GARCIA: Vocês não gostariam de fazer uma pausa agora?
GREEN: Por que todos nós não fazemos uma pausa? Vamos sair e tomar um copo d'água.
[Pausa]
GARCIA: Muito bem, estamos aqui de volta. Espero que vocês compreendam e nos desculpem. Não fazemos perguntas ou tentamos chocar para magoá-los. Precisamos seguir
a orientação regulamentar e empregar métodos que nos permitam coligir informações livres de percepções preconceituosas.
ROBT. VERLOREN: Nós compreendemos o que vocês estão fazendo. É parte de nossas vidas agora. Do que resta delas.
MURIEL VERLOREN: Vocês estão dizendo que nossa filha estava grávida e preferiu fazer um aborto?
GARCIA: Isso mesmo. E achamos que há uma possibilidade de que isso tenha a ver com o que aconteceu um mês depois. Tem alguma idéia de onde ela poderia ter ido para
realizar o aborto?
MURIEL VERLOREN: Não. Não tenho qualquer idéia a respeito. Nenhum de nós.
GARCIA: Alguma idéia de com quem poderia ter sido o relacionamento que resultou na gravidez? Em nossas conversas anteriores, os senhores disseram que ela não tinha
namorado.
MURIEL VERLOREN: Bem, obviamente acho que estávamos errados a esse respeito. Mas, não, não sabemos quem ela estava vendo ou quem poderia ter... feito isso.
GREEN: Algum de vocês leu o diário que sua filha escrevia?
ROBT. VERLOREN: Não, nem sequer sabíamos que ela escrevia um diário até que vocês o tivessem encontrado no seu quarto.
MURIEL VERLOREN: Eu queria ficar com o diário de Becky. Vocês vão devolver?
GREEN: Vamos ter que ficar com ele durante a investigação, mas no fim será entregue de volta a vocês.
GARCIA: Há diversas referências no diário a um indivíduo que aparece como MTL. Esta é uma pessoa que gostaríamos de identificar e com quem gostaríamos de conversar.
MURIEL VERLOREN: Eu não consigo me lembrar de ninguém com essas iniciais assim de imediato.
GREEN: Nós demos uma olhada no anuário da escola. Há um rapaz chamado Michael Lewis. Mas verificamos, e o seu nome do meio é Charles. Achamos que as iniciais sejam
um código ou uma abreviatura. Podia ser, por exemplo, My True Love - Meu Verdadeiro Amor.
MURIEL VERLOREN: Obviamente havia alguém de quem não tínhamos conhecimento, e que ela mantinha escondido de nós.
ROBT. VERLOREN: Não posso acreditar. O que vocês dois estão dizendo é que na verdade não conhecíamos a nossa filhinha.
GARCIA: Sinto muito, Bob. Às vezes, os danos causados por um caso como este vão longe e fundo. Mas nosso trabalho é ir até onde ele nos levar. E o que estamos fazendo
agora.
GREEN: Basicamente, precisamos seguir esta vertente da investigação e descobrir quem é MTL. O que significa que vamos ter que interrogar os amigos e conhecidos de
sua filha. Lamento, mas os comentários a esse respeito vão se espalhar.
ROBT. VERLOREN: Nós compreendemos, detetive. Saberemos lidar com o problema. Como dissemos no dia em que nos conhecemos, façam o que tiverem de fazer. Encontrem
a pessoa que fez isso. j
GARCIA: Muito obrigado, senhor. [Fim da entrevista, 14h40]
Bosch leu de novo a transcrição, desta vez fazendo anotações em seu bloco à medida que ia lendo. Só depois passou para transcrições de interrogatórios mais formais.
Foram realizados com as três maiores amigas de Becky Verloren, Tara Wood, Bailey Koster
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e Grace Tanaka. Nenhuma delas, contudo, afirmou ter tomado conhecimento da gravidez de Becky ou do relacionamento secreto que a causara. Todas três disseram não
tê-la visto na semana após o fim das aulas, porque ela não atendia o telefone, e quando ligavam para o aparelho da família, Muriel Verloren dizia que a filha estava
doente. Tara Wood, que dividia com Becky um esquema de trabalho de recepcionista no restaurante Island House Grill, disse que a amiga se mostrava melancólica e introvertida
nas semanas anteriores a seu assassinato, mas a razão para isso era desconhecida, pois ela repelia os esforços de Wood para descobrir o que havia de errado.
O livro do crime terminava com o arquivo da mídia. Ali Garcia e Green guardaram as matérias dos jornais que foram se acumulando nos primeiros estágios do caso. O
crime apareceu com mais destaque no Daily Nem do que no Times. O que era compreensível, já que o News circulava principalmente no vale de San Fernando, e o Times
costumava tratar o vale como um enteado indesejado, relegando as notícias emanadas de seus arredores às páginas internas.
Não houve cobertura do desaparecimento inicial de Becky Verloren. Os jornais obviamente viram o caso com os mesmos olhos da polícia. Mas, assim que o corpo foi encontrado,
saíram diversas matérias sobre a investigação, o funeral e o impacto que a morte da jovem tinha causado na sua escola. Houve inclusive uma matéria localizada no
restaurante de Verloren publicada no Times e que evidentemente tinha sido uma tentativa de tornar o caso significativo para a sua base de circulação, Westside. Um
restaurante em Malibu era algo a que os moradores de lá podiam se sentir ligados.
Ambos os jornais vinculavam a arma do crime a um roubo com arrombamento que acontecera um mês antes, mas nenhum dos dois explorou o anti-semitismo. Tampouco relatou
a prova de sangue recolhida na pistola. Bosch adivinhou que a recuperação do sangue e da pele eram o ás que os investigadores guardavam na manga, a única prova guardada
no bolso do colete, de modo a lhes dar uma vantagem se um suspeito importante viesse a ser identificado.
Finalmente, Bosch reparou que não havia entrevistas feitas pela mídia com os pais enlutados. Era evidente que os Verloren tinham
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preferido não exibir em público o que sentiam pela perda da filha. Bosch gostou disso neles. Ele tinha a impressão de que a mídia cada vez mais forçava as vítimas
de tragédias a sofrer em público, na frente das câmeras e nas matérias publicadas pelos jornais. Pais cujos filhos tinham sido assassinados
tornavam-se consultores quando outra criança era assassinada e outro casal era posto a sofrer na televisão. O que não agradava nem um pouco a Bosch, que achava que
o melhor modo de honrar
os mortos era mantê-los junto ao coração e não compartilhá-los com o mundo através do espectro eletrônico.
No final do livro havia uma bolsa contendo um envelope de papel manilha com a águia da logomarca do Times e o endereço num canto. Bosch tirou-o, abriu-o e encontrou
uma série de fotos coloridas grandes tiradas durante o funeral de Rebecca Verloren, uma semana após o assassinato. Tudo indicava que tinha havido um trato, as fotos
trocadas pelo acesso. Bosch se lembrava de ter feito tratos desse tipo no passado, quando não podia, por problemas de orçamento ou de programação, mandar o fotógrafo
da polícia cobrir um funeral. Prometia ao repórter que estava cobrindo a história uma exclusiva se o fotógrafo do jornal não se incomodasse de fazer uma série completa
de todas as pessoas que comparecessem ao serviço religioso. Nunca se sabe quando o criminoso decide aparecer para dar uma olhada na angústia e no sofrimento que
causou. Os repórteres normalmente aceitavam o trato. Los Angeles é um dos mais competitivos mercados de mídia do mundo, e os repórteres vivem ou morrem pelo acesso
que têm.
Bosch estudou as fotos, mas foi prejudicado ao procurar Roland Mackey, por não saber qual era sua aparência em 1988. As fotos que Kiz Rider havia tirado do computador
eram de sua prisão mais recente. Mostravam um homem que já ia ficando calvo, de cavanhaque e olhos escuros. Difícil superpor esse semblante a qualquer um daqueles
rostos de adolescentes reunidos para o enterro de um deles.
Durante algum tempo, ele estudou os pais de Becky Verloren em uma das fotos. Estavam junto da sepultura, amparados um no outro como se quisessem se defender de
um colapso. Lágrimas escorriam pelos seus rostos. Robert era preto, e Muriel, branca. Bosch
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compreendia agora onde a filha deles fora buscar sua beleza. A mistura de raças em uma criança freqüentemente se levanta acima das dificuldades sociais que normalmente
acompanham o processo de que resulta a sua graça.
Bosch pôs as fotos de lado e ficou pensando por um momento. Em nenhuma parte do livro do crime havia qualquer menção à possibilidade de a mistura racial ter representado
um papel no crime. Mas o fato de a pistola usada para matar Becky ter sido roubada de um homem ameaçado por causa de sua religião parecia ensejar a possibilidade
de haver pelo menos um vínculo tênue com o assassinato de uma garota mestiça.
A ausência de menção a esse fato no livro do crime não queria dizer nada. O aspecto da raça sempre era conservado em segredo no DPLA. Assinalar algo por escrito
era o mesmo que dar conhecimento daquilo a todo o departamento - resumos investigativos eram revistos o tempo todo nos casos mais quentes. Podia vazar e transformar-se
em algo diferente, político. Assim sendo, o fato de não existir uma referência a raças não era algo que aos olhos de Bosch prejudicasse a investigação. Pelo menos
por ora.
Guardou as fotos no envelope e fechou o livro do crime. Seu palpite era de que havia ali mais de trezentas páginas de documentos e fotos, e em nenhum lugar ou em
qualquer uma daquelas páginas vira o nome de Roland Mackey. Seria possível que Mackey tivesse escapado até mesmo de uma atenção periférica na investigação feita
tantos anos antes? Caso afirmativo, seria ele realmente o assassino?
Essas perguntas incomodavam Bosch. Ele sempre tentava conservar a fé no livro do crime, ou seja, geralmente acreditava nas respostas que estavam ali guardadas. Mas
desta vez estava tendo dificuldade em acreditar no cold hit. Não na ciência. Não tinha dúvida de que Mackey correspondia ao pedaço de pele e ao sangue encontrados
dentro da arma do crime. Mas acreditava que havia algo errado. Alguma coisa estava faltando.
Ele baixou os olhos para o seu bloco. Tinha feito algumas anotações. Na verdade, organizara uma lista das pessoas com quem desejava falar.
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Green e Garcia Mãe/Pai
escola/amigos/professores antigo namorado agente da condicional Mackey - escola?
Ele sabia que cada anotação que fizera era óbvia. Sabia que havia muito pouco além da correspondência do DNA, e mais uma vez se sentia apreensivo quanto a montar
um caso sem ter mais nada.
Estudava suas anotações, quando Kiz Rider voltou. Tinha as mãos vazias e não sorria.
- E então? - perguntou Bosch.
- Más notícias. A arma do crime desapareceu. Não sei se você leu o livro todo, mas há uma menção a um diário. A garota escrevia um diário. Desapareceu também. Tudo
desapareceu.
Capítulo 7
Decidiram que a melhor maneira de lidar com más notícias e discuti-las era comer. Além do mais, nada fazia Bosch ficar mais faminto do que passar a manhã inteira
estudando o arquivo de um crime. Foram para o Chinese Friends, um restaurante pequeno na Broadway, no fim do bairro chinês, onde sabiam que conseguiriam uma mesa
se fossem cedo. Era um lugar onde se podia comer bem sem praticamente gastar mais de cinco dólares. O problema era que enchia depressa, principalmente com o pessoal
do comando do Departamento de Bombeiros, os detetives de Parker Center e os burocratas da prefeitura. Quem não chegava antes do meio-dia tinha que pedir para viagem
e ir comer lá fora nos bancos dos ônibus, ao sol.
Deixaram o livro do crime no carro para não perturbar os outros freqüentadores do restaurante, onde as mesas eram tão perto umas das outras como carteiras de escola
pública. Trouxeram as anotações que tinham feito e discutiram o caso usando um código improvisado destinado a manter a conversa privada. Rider explicou que, ao se
referir ao desaparecimento da pistola e do diário, estava querendo dizer que nenhuma caixa com as provas do caso pudera ser encontrada durante uma hora de pesquisa
feita por dois funcionários. Bosch não se surpreendeu muito. Como já avisara Pratt, durante décadas o departamento fora descuidado com o arquivamento de
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evidências. As caixas eram registradas e guardadas em prateleiras na ordem cronológica e sem qualquer tipo de separação segundo a classificação dos crimes. Como
conseqüência, as provas de um homicídio podiam muito bem estar ao lado das provas de um arrombamento com roubo. E quando os funcionários do depósito examinavam periodicamente
as prateleiras para retirar o que dizia respeito a casos que já tinham prescrito, às vezes era apanhada a caixa errada. A segurança do depósito também era considerada
de baixa prioridade desde muitos anos. Não era difícil para uma pessoa com um crachá do DPLA ter acesso a qualquer prova de crime ali guardada. Assim, as caixas
eram sujeitas a furtos. Não era raro o desaparecimento de armas ou mesmo de outros indícios de casos famosos, como a Dália Negra, Charles Manson e os crimes do fabricante
de bonecas.
No caso Verloren, não havia indicação de furto da evidência. Provavelmente era mais um caso de incúria ao tentarem encontrar uma caixa guardada 17 anos atrás em
um depósito imenso lotado de caixas iguais.
- Vão achar - disse Bosch. - Talvez você consiga inclusive que seu amigo apareça lá às seis para instilar nas almas deles o temor a Deus. Aí então eles vão achar,
com toda certeza.
- E melhor que achem. O DNA de nada nos adianta sem aquela arma.
- Não estou sabendo disso.
- Harry, é a seqüência lógica das evidências. Você não pode entrar em um julgamento com o DNA e não ser capaz de mostrar aos jurados a arma onde ele foi colhido.
Não podemos sequer ir ao gabinete do promotor sem isso. Ele nos porá de lá para fora com um chute nos nossos rabos.
- Olhe, o que estou dizendo é que neste instante nós dois somos as únicas pessoas que sabem que não temos a arma. Podemos dar um jeito nisso.
- De que você está falando?
- Você não acha que isso vai acabar se resumindo a Mackey e nós em uma salinha de interrogatório? Quer dizer, mesmo que tivéssemos a arma, não poderíamos provar,
além de uma dúvida razoável, que ele deixou uma amostra do seu sangue na pistola
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enquanto atirava em Becky Verloren. A única coisa que podemos provar é que o sangue é dele. Se quer saber, tudo vai se resumir em uma confissão. Vamos pô-lo dentro
da salinha, atacá-lo com a amostra de DNA e ver como ele se comporta. É isso aí. Tudo o que estou dizendo é que deveríamos arranjar uns poucos acessórios cenográficos
para o interrogatório dele. Então iríamos até o depósito de armas e pegaríamos emprestada uma Colt 45, tirando-a de dentro da caixa quando estivéssemos na salinha
com ele. Tentaríamos convencê-lo de que temos a seqüência lógica das provas, e ele cederia ou não.
- Não gosto de truques.
- Truques fazem parte da nossa profissão. Não há nada de ilegal neles. Os próprios tribunais já disseram.
- Acho que vamos precisar mais do que DNA para dobrá-lo.
- Eu também. Eu estava pensando...
Bosch interrompeu-se e esperou enquanto a garçonete punha em cima da mesa dois pratos fumegantes. Bosch tinha pedido camarão com arroz frito, e Rider, costeletas
de porco. Sem uma palavra, ele levantou o prato e passou metade do conteúdo para o prato dela. Em seguida, pegou um garfo para tirar três das seis costeletas. Quase
sorriu enquanto estava fazendo isso. Estava de volta ao trabalho fazia menos de um dia, e os dois já tinham caído de novo no ritmo fácil da parceria antiga. Sentiu-se
feliz.
- Ei, o que Jerry Edgar tem aprontado? - perguntou Bosch.
- Não sei. Já não falo com ele há algum tempo. Nunca chegamos a resolver aquilo.
Bosch assentiu. Quando trabalhara na Divisão Hollywood com Rider, o efetivo era dividido em equipes de três. Jerry Edgar era o número três deles. Depois Bosch se
aposentara, e Rider fora promovida e transferida para o centro da cidade. Edgar ficara sozinho em Hollywood, sentindo-se isolado e esquecido. E agora que Bosch e
Rider trabalhavam juntos de novo, designados para a Roubos e Homicídios, havia apenas silêncio quanto a Edgar.
- O que você ia dizer, Harry, quando a comida chegou?
- Só que você está com a razão. Vamos precisar de mais. Estive pensando... eu soube que, desde o Onze de Setembro e a Lei Patriota, ficou mais fácil conseguir autorização
para escutas telefônicas.
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Ela comeu um pedaço de camarão antes de comentar.
- Sim, é verdade. É uma das coisas que eu monitorava para o chefe. Nossos pedidos aumentaram cerca de três mil por cento. E as aprovações também. Foi disseminada
a informação de que a escuta é uma ferramenta que agora podemos usar. Como iria funcionar aqui?
- Eu estava pensando em pôr um grampo em Mackey e depois plantar uma história no jornal. Sabe como é, dizendo que estamos trabalhando no caso de novo, mencionando
a arma, talvez falando em DNA - você sabe, uma novidade. Não vamos dizer que temos uma equivalência, mas que podemos conseguir uma. Depois nós nos sentamos, ficamos
vigiando e ouvindo o cara para ver o que acontece. Podíamos complementar fazendo uma visita, para ver se sacudimos um pouco as coisas.
Rider pensou na proposta enquanto comia uma costeleta de porco, que segurou com os dedos. Parecia apreensiva com alguma coisa, e não podia ser com a comida.
- Que é? - perguntou Bosch.
- Para quem ele telefonaria?
- Não sei. Para o assassino ou para o mandante.
Rider balançou a cabeça pensativamente enquanto mastigava.
- Não sei não, Harry. Você está de volta ao trabalho há menos de um dia, depois de três anos no bem-bom, e já está vendo coisas que não consigo ver. Acho que ainda
é o professor.
- Você é que está enferrujada de ficar sentada atrás de uma mesa enorme no sexto andar.
- Estou falando sério.
- Eu também. Mais ou menos. Esperei tempo demais para isso, e agora estou mais ou menos em alerta total, acho.
- Só quero que você me diga como vê esse caso, Harry. Não tem que me apresentar desculpas pelo seu instinto.
- Eu na verdade ainda não vejo um caso, e isso é parte do problema. O nome de Roland Mackey não está em parte alguma daquele liVro, e por si só isso já é um problemão.
Sabemos que ele morava na vizinhança, mas não temos nada que o ligue à vítima.
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- Do que você está falando? Nós temos a arma com o DNA de Mackey nela.
- O sangue dele o liga à arma, não à garota. Você leu o livro. Não podemos provar que o DNA de Mackey foi depositado na arma na hora do assassinato. Basta o laudo
que afirma isso para fazer o caso naufragar. Seria um buraco enorme na argumentação da promotoria, Kiz. Tão grande que o júri podia passar por dentro. Tudo o que
Mackey tem a fazer é se levantar e dizer: "Tudo bem, eu roubei a arma no arrombamento na avenida Winnetka. Depois subi o morro e dei uns tiros, imitando o Mel Gibson.
De repente, a maldita arma me deu uma beliscada, tirou um pedaço de carne da minha mão. Nunca vi acontecer isso com Mel nos filmes dele. Por isso fiquei furioso,
joguei a pistola no meio do mato e fui para casa fazer um curativo." O laudo do laboratório, o maldito laudo feito por nós mesmos, vai sustentar suas palavras, e
ponto final.
Rider não sorriu uma única vez durante a história de Bosch. Ele podia dizer que ela estava entendendo o seu raciocínio.
- É só isso que ele precisa fazer, Kiz, e já terá provocado uma dúvida razoável. Quanto a nós, não poderemos provar o contrário. Não temos digitais na cena, cabelo,
fibras, não temos nada. O que temos na verdade é o perfil dele, e se você desse uma olhada no seu prontuário antes de estarmos trabalhando nisto e de sabermos da
equivalência do DNA, jamais o teria classificado como um assassino. Talvez em um impulso repentino ou no calor da paixão. Mas nada desse tipo, com tudo planejado,
e certamente não aos 18 anos.
Rider sacudiu a cabeça quase melancolicamente.
- Poucas horas atrás, isso nos foi dado como um presente de boas-vindas. Era para ser um gol de placa...
- O fato de existir uma equivalência do DNA do sangue encontrado na pistola levou todo mundo a chegar prematuramente a uma conclusão.
É o problema hoje em dia. As pessoas pensam que a tecnologia resolve tudo sozinha, é uma barbada. Na verdade, o que acontece é que elas estão assistindo a televisão
demais.
- Esse é o seu jeito bizarro de dizer que não pensa assim?
- Ainda não sei o que estou pensando.
- Quer dizer então que ficamos de olho nele, grampeamos seu telefone, fazemos com que se assuste de alguma maneira e aí vemos para quem telefona e como age.
Bosch concordou.
- É o que estou pensando - confirmou.
- Precisamos antes da autorização de Pratt.
- Seguimos o regulamento. Exatamente como o chefe me falou hoje.
- Nossa! Temos aqui um novo Harry Bosch!
- Está olhando para ele.
- Antes de partirmos para o grampo, temos que terminar a diligência. É preciso ter certeza de que Roland Mackey não era conhecido de nenhuma das pessoas envolvidas
no crime. Se não era, vamos falar com Pratt sobre o grampo.
- Parece justo. O que mais você percebeu na sua leitura?
Ele queria ver se ela havia percebido a questão racial antes de explicitá-la.
- Só o que estava lá - respondeu Rider. - Deixei passar alguma coisa?
- Não sei - nada muito óbvio.
- Então o quê?
- Andei pensando... a garota era mestiça. Em 1988, ainda havia gente que não gostava da idéia. Adicione-se a isso o fato de a arma ter sido obtida em um roubo com
arrombamento. O sujeito que foi roubado era judeu. Disse que estava sendo hostilizado. E que por isso comprara a arma.
Rider balançou a cabeça pensativamente, enquanto terminava uma garfada de arroz.
- É algo a ser procurado - disse ela. - Mas não vejo nada no Comente que justifique assinalar isso como importante.
- Não havia coisa alguma no livro...
Comeram em silêncio por uns minutos. Bosch sempre achara que o Chinese Friends tinha o melhor e mais macio camarão que
ela já comera no arroz frito. As costelas
de porco, tão finas quanto os pratos de plástico em que vinham, também eram perfeitas. E Kiz tinha razão, eram melhores comidas com a mão.
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- O que você me diz de Green e Garcia?
- O que é que tem?
- Que grau você daria a eles pela investigação?
- Não sei. Talvez um C, se quisesse ser caridoso. Cometeram erros, perderam tempo. Depois do caso passado, tentaram se defender. E você?
- Mesma coisa. Eles escreveram um excelente livro do crime, mas o tempo todo você sente que estavam mesmo a fim de tirar o deles da reta. Como se soubessem que jamais
solucionariam o caso, mas querendo que o livro desse a impressão de que se esforçaram ao máximo.
Bosch concordou e deu uma olhada no bloco, que ele deixara na cadeira vazia ao seu lado. Viu a lista de pessoas a interrogar.
-Temos que conversar com os pais e Garcia e Green. Precisamos também de uma foto do Mackey. De quando ele tinha 18 anos.
- Sugiro deixar os pais de lado até que tenhamos conversado com todos os demais. Eles talvez sejam os mais importantes, mas devem ficar para o fim. Quero saber o
máximo possível antes de procurá-los 17 anos depois da morte da filha.
- Tudo bem. Talvez começar com a condicional. Ele só foi liberado um ano atrás. Provavelmente foi designado para Van Nuys.
- Certo. De lá, podemos ir falar com Art Garcia.
- Você o achou? Ele ainda anda por aí?
- Não tive que procurar. Ele agora é o comandante do Bureau do Vale.
Bosch fez que sim. Não estava surpreso. Garcia se dera bem. O posto de comandante o colocava logo abaixo do subchefe. Ou seja, era o segundo da linha de comando
das cinco divisões de polícia do Vale, inclusive Devonshire, onde anos antes trabalhara no caso Verloren.
Rider continuou:
- Além dos nossos projetos normais no gabinete do chefe, cada um dos assistentes especiais tinha que funcionar como uma espécie de ligação com um dos quatro bureaux.
Fui designada para o Bureau do Vale. Assim, o comandante Garcia e eu nos falávamos de tempos em tempos. Eu me entendia na maior parte das vezes com o pessoal dele,
ou o assistente Vartan, esse tipo de coisa.
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- Sei o que está dizendo - tenho uma parceira altamente relacionada. Você provavelmente andava dizendo a Vartan e Garcia como dirigir o Bureau do Vale.
Ela sacudiu a cabeça, fingindo-se aborrecida.
- Não chateia. Trabalhar no sexto andar me deu uma boa visão do departamento e de como ele funciona.
- Ou não. Por falar nisso, tem uma coisa que preciso lhe contar. -Que é?
- Esbarrei no Irving quando eu descia para pegar café. Logo depois que você saiu.
Rider ficou imediatamente preocupada.
- O que aconteceu? O que foi que ele disse?
- Não muito. Só me chamou de pneu recauchutado e disse que eu ia me dar muito mal, e que quando isso acontecesse o chefe iria cair comigo por ter me contratado de
volta. Depois, é claro, quando a poeira assentasse, o Sr. Limpeza estaria a postos para assumir a chefia.
- Nossa, Harry. Um dia no trabalho e você já está com Irving mordendo seus calcanhares?
Bosch levantou as mãos abertas, quase batendo no ombro de um homem sentado na mesa ao lado.
- Eu tinha ido pegar café. Ele estava lá. Foi ele que me abordou, Kiz. Eu estava tratando da minha vida. Juro.
Ela abaixou o rosto e continuou comendo sem olhar para Bosch, até que largou no prato a última costeleta meio comida.
- Não agüento mais, Harry. Vamos dar o fora daqui.
- Estou pronto.
Bosch deixou dinheiro mais que suficiente, e Rider disse que a próxima vez ficava por sua conta. Na rua, entraram no carro de Bosch, um utilitário esportivo Mercedes
preto, e atravessaram o bairro chinês até a entrada norte da Via Expressa 101. Fizeram todo o trajeto antes de Rider falar de novo a respeito de Irving.
- Harry, não leve o Irving na brincadeira - disse ela. - Tenha muito cuidado.
- Eu sou sempre cuidadoso, Kiz, e nunca levei Irving na brincadeira.
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- Só estou dizendo que ele foi passado para trás por duas vezes na hora de ser promovido. Pode estar ficando desesperado.
- E, mas você sabe o que eu não entendo? Por que o seu amigo não se livrou dele quando assumiu? Quer dizer, era mais fácil limpar a casa naquela hora. Empurrar Irving
para o outro lado da rua não põe fim à ameaça. Qualquer um sabe disso.
- Ele não pôde. Irving tem mais de quarenta anos de casa. Tem um monte de relacionamentos fora do departamento e na prefeitura. E sabe onde uma porção de corpos
estão enterrados. O chefe não podia fazer nada contra ele, a menos que tivesse certeza de que não haveria conseqüências negativas.
Mais silêncio. O trânsito de início de tarde na direção do Vale era leve. Sintonizaram o rádio na KFWB, o canal só de notícias e trânsito, e não havia problemas
à frente. Bosch checou a gasolina e viu que tinha meio tanque. Era bastante.
Bosch e Rider tinham combinado antes usar alternativamente os carros pessoais. Um carro do departamento tinha sido requisitado para ser usado por eles, mas ambos
sabiam que conseguir a requisição e aprovação era a parte fácil. Provavelmente se passariam meses, se não mais tempo, até eles chegarem a receber o carro. O departamento
não tinha um carro sobrando e tampouco dinheiro para comprar um novo. Requisitar um carro e obter a aprovação era simplesmente a burocracia necessária para que pudessem
cobrar do departamento a gasolina e a quilometragem dos seus carros particulares. Bosch sabia que com o tempo ele provavelmente rodaria tanto com o Mercedes que
a despesa do departamento com o reembolso seria maior que a compra do carro novo.
- Olha - disse ele, finalmente. - Sei o que está pensando, mesmo que não diga nada. Não é só comigo que está preocupada. Arriscou seu pescoço por minha causa e convenceu
seu chefe a me aceitar de volta. Acredite em mim, Kiz, sei que este... este pneu recauchutado não está rodando sozinho. Você não tem que se preocupar, e pode dizer
ao seu chefe que ele também não. Eu entendi. O pneu não vai estourar. Não haverá conseqüências negativas causadas por mim.
- Ótimo, Harry. Fico feliz em saber disso.
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Ele tentou pensar em algo que pudesse dizer para convencê-la mais. Sabia que palavras não passavam de palavras.
- Sabe de uma coisa, não sei se já cheguei a lhe dizer isto, mas, quando me aposentei, no princípio eu realmente gostei da nova vida. Sabe como é, ficar de fora
da equipe, flanando. Depois senti falta do que fazia e comecei a trabalhar de novo em investigações. Sozinho. De qualquer jeito, uma coisa que aconteceu foi que
passei a mancar.
- Mancar?
- Quase nada. Como se um dos saltos fosse mais baixo que o outro. Como se eu fosse torto.
- Bem, você examinou seus sapatos?
- Não precisei examinar meus sapatos. Não eram meus sapatos. Era minha arma.
Ele olhou para ela. Rider tinha os olhos fixos em frente, as sobrancelhas contraídas naquele V profundo que usava muito com ele. Ele olhou de novo para a estrada.
- Carreguei uma arma por tanto tempo, que, quando parei, sua ausência me desequilibrou. Fiquei torto.
- Harry, que história mais estranha.
Eles estavam chegando a passo Cahuenga. Bosch olhou pela janela procurando sua casa, aninhada entre outras nas dobras da elevação. Teve a impressão de vislumbrar
o deque dos fundos destacando-se sobre o mato marrom.
- Você quer ligar para o Garcia e ver se podemos dar um pulo até lá para conversar com ele? - perguntou.
- Pode deixar que eu telefono... assim que você chegar ao fim de sua história.
Bosch pensou por um longo momento antes de responder.
- A questão é que eu preciso da arma. Preciso do crachá. Caso contrário, fico desequilibrado. Preciso de tudo isso. OK?
Ele a fitou. Ela também olhou para ele, mas não respondeu.
- Eu sei o que ganhei com esta chance. Assim sendo, que se fodam Irving e seu conceito sobre mim. Não vou fazer merda.
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Capítulo 8
Vinte minutos mais tarde, saltaram em um dos lugares de que Bosch gostava menos na cidade: o órgão de sursis e condicionais do Departamento Correcional do estado,
em Van Nuys. Era um prédio de tijolos de um só andar cheio de gente esperando para falar com agentes de sursis e de condicionais, entregar amostras de urina, apresentar-se
segundo ordens do tribunal, entregar-se para ser encarcerada ou suplicar mais uma chance de liberdade. Um lugar onde o desespero, a humilhação e o ódio eram palpáveis
no ar. Um lugar onde Bosch tentava não estabelecer contato visual com ninguém.
Bosch e Rider tinham algo que nenhum dos outros tinha: crachás. Com eles os dois passaram à frente das filas e conseguiram uma audiência imediata com a agente a
quem Roland Mackey fora designado após sua prisão por comportamento obsceno e lascivo. Thelma Kibble trabalhava em um cubículo padrão do serviço público situado
em um salão repleto de muitos outros cubículos idênticos. Sua mesa e a única prateleira também padronizada estavam cobertas de pastas dos condenados que lhe competia
pastorear através dos procedimentos do sursis ou da condicional. Thelma Kibble era de estatura e porte médios. Seus olhos contrastavam lindamente com a pele bem
escura. Bosch e Rider apresentaram-se como detetives da Roubos e Homicídios. Havia uma só cadeira à frente da mesa de Kibble, de modo que os dois permaneceram de
pé.
- É de roubo ou de homicídio que estamos falando aqui? - perguntou ela.
- Homicídio - respondeu Rider.
- Então por que um de vocês não pega a cadeira do cubículo ao lado? A funcionária dele ainda está no almoço.
Bosch pegou a cadeira que ela indicara e a trouxe para ali. Depois que se sentaram, disse a Kibble que queriam dar uma olhada no prontuário de Roland Mackey. Deu
para ver que ela reconheceu o nome, mas não o caso.
- É um caso de suspensão de pena por conduta obscena que você recebeu dois anos atrás - explicou ele. - Ele saiu após 12 meses.
- Ah, então não é um caso corrente. Bem, preciso pegar lá no arquivo. Não me lem... oh, sim, eu me lembro. Roland Mackey, claro. Eu me diverti um bocado com esse
caso.
- Como assim? - perguntou Rider. Kibble sorriu.
- Digamos que ele tinha alguma dificuldade em ter que se apresentar a uma mulher de cor. Mas deixe-me pegar o arquivo para vermos direito os detalhes.
Ela conferiu a ortografia do nome de Mackey com eles e deixou o cubículo.
- Isso pode ajudar - disse Bosch. -O quê?
- Se ele teve um problema com ela, provavelmente terá com você. Talvez possamos usar isso.
Rider concordou, sem falar. Bosch viu que estava lendo um artigo de jornal preso com tachas à parede de fibra do cubículo. O papel ficara amarelado pelo tempo. Bosch
aproximou-se mais para ler, mas estava longe demais para ir além da manchete.
OFICIAL DE CONDICIONAL FERIDA É RECEBIDA COMO HEROÍNA
- O que é isso? - perguntou a Rider.
- Sei quem é Thelma Kibble - disse Rider. - Ela foi baleada alguns anos atrás. Foi à casa de uma ex-presidiária e alguém atirou
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nela. A ex-presidiária telefonou pedindo ajuda, mas caiu fora. Algo assim. Demos um prêmio a ela no BPO. Meu Deus, ela perdeu um bocado de peso.
Alguma coisa na história fez cair uma ficha na memória de Bosch também. Ele notou que havia duas outras fotos acompanhando a matéria. Uma era de Thelma Kibble de
pé na frente do prédio do Departamento Correcional, uma faixa saudando a sua volta presa no telhado. Rider tinha razão. Ela devia ter perdido uns quarenta quilos
desde aquela foto. De repente ele se lembrou de ter visto aquela faixa alguns anos antes, quando um de seus casos estava sendo julgado do outro lado da rua. Agora
se lembrava.
Então, alguma coisa na segunda foto atraiu seu olhar e sua memória. Era o retrato de identificação policial de uma mulher branca - a ex-condenada que morava na casa
em que Kibble fora baleada.
- Não foi essa mulher que atirou, foi? - perguntou ele.
- Não, essa foi quem pediu socorro, que a salvou. Ela desapareceu.
Bosch de repente se levantou e debruçou-se sobre a mesa, apoiando-se com as mãos nas pilhas de documentos. Examinou a foto de identidade policial. Era em preto-e-branco
e tinha escurecido, ao mesmo tempo que os recortes de jornal amarelaram com o tempo. Mas ele reconheceu o rosto no retrato. Tinha certeza. O cabelo e os olhos eram
diferentes. O nome debaixo da foto era diferente também. Mas ele tinha certeza de que encontrara aquela mulher em
Las Vegas um ano antes.
- Você está bagunçando meus arquivos.
Ele recuou imediatamente quando Kibble voltou.
- Desculpe. Eu só estava tentando ler a matéria.
- Notícia velha. Do tempo em que me acertaram. Muitos anos e muitos quilos atrás.
- Estive presente na reunião do Black Peace Officers quando você foi homenageada - disse Rider.
- É mesmo? - Kibble abriu um sorriso. - Aquela foi uma noite realmente linda para mim.
- O que aconteceu com a mulher? - indagou Bosch.
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- Cassie Black? Oh, ela ganhou o mundo. Ninguém mais a viu.
- Alguma acusação contra ela?
- O engraçado é que não é acusada de nada. Quer dizer, nós a autuamos porque fugiu, mas é tudo o que há contra ela. Não atirou em mim, pelo contrário. Tudo o que
fez foi salvar minha vida. Mas quanto à violação da condicional não pude fazer nada. Ela se mandou. Pelo que sei, o cara que atirou em mim pode ter acabado com a
sua vida, enterrando-a em algum ponto do deserto. Espero que não. Ela me fez um favorzão.
De repente, Bosch já não tinha mais tanta certeza de que a mulher que temporariamente morara ao seu lado no motel do aeroporto quando fora visitar a filha em
Las Vegas fosse Cassie Black. Sentou-se e nada disse.
- Então, encontrou o arquivo? - perguntou Rider.
- Aí está - disse Kibble. - Podem examinar. Mas se quiserem me fazer perguntas a respeito do rapaz é bom que façam agora. Minha lista de atendimentos da tarde começa
em cinco minutos. Se eu atrasar, vou ter um efeito dominó contaminando o resto do meu dia e acabarei saindo daqui tarde. O que não pode acontecer hoje. Tenho um
encontro.
Ela estava radiante com a perspectiva do encontro.
- Está bem. O que é que você se lembra de Mackey? Deu uma olhada no arquivo?
- Dei uma olhada, sim, quando vinha para cá com ele. Mackey só botou o pinto para fora, urinou e sacudiu. Usuário de drogas sem importância que se envolveu com religião
racial em algum ponto do caminho. Nada de sério. Eu até que me diverti quanto o tinha sob meu controle. Nada demais.
Rider abriu a pasta, e Bosch inclinou-se por cima do seu ombro para ler.
- Foi um caso de exibicionismo sexual? - perguntou ele.
- Na verdade, acho que você vai ver aí que o nosso rapaz teve um problema de anfetamina e bebida - muita bebida - e decidiu se aliviar no gramado da frente da casa
de alguém. Casualmente, uma garota de 13 anos de idade morava ali e estava batendo bola na cesta de basquete. O Sr. Mackev, ao vê-la, decidiu que, já que tinha
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posto seu pintinho de fora e ao vento, podia muito bem perguntar à menina se gostaria de pegar nele. Já falei que o pai da menina era da Divisão Metropolitana do
LAPD e que por acaso estava em casa na hora do incidente? Pois bem, ele saiu e jogou o Sr. Mackey no chão. Na verdade, mais tarde o Sr. Mackey reclamou que, por
coincidência, ou nem tanto, caíra no chão bem em cima da poça que tinha acabado de fazer. O que o deixara muito infeliz.
Kibble sorriu com a história. Bosch balançou a cabeça. A versão dela era mais pitoresca que o resumo arquivado.
- E ele aceitou um acordo e se safou.
- Exatamente. Conseguiu um acordo de suspensão de pena e veio para mim.
- Algum problema durante os 12 meses?
- Nada, a não ser o problema dele comigo. Pediu que o transferissem para outro agente, não conseguiu e ficou colado em mim. Ele se continha, mas estava lá, entende?
Por baixo. Não sei se o que o incomodava mais era eu ser negra ou ser mulher.
Ela olhou para Rider quando disse esta última parte, e Rider aquiesceu.
O arquivo continha detalhes dos crimes cometidos por Mackey e de sua vida. Também continha fotos tiradas durante prisões anteriores. Ia ser a base de informações
sobre Mackey. Havia coisa demais para tratarem ali na frente de Kibble.
- Podemos mandar copiar? - perguntou Bosch. - Gostaríamos também de pedir emprestada uma dessas fotos antigas, se for possível.
Os olhos de Kibble estreitaram-se por um momento.
- Vocês dois estão trabalhando num caso antigo, certo? Rider fez que sim.
- Muito antigo - disse.
- Um desses casos sem solução?
- Chamamos agora de casos não resolvidos - esclareceu Rider. Kibble balançou a cabeça pensativamente.
- Bem, nada me surpreende aqui neste lugar. Já vi gente roubar uma pizza congelada na loja e ser apanhada dois dias antes do fim de um período de supervisão de quatro
anos. Mas, pelo que me
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lembro desse tal de Mackey, ele não me parecia ter o instinto assassino. Se me perguntassem, eu diria que é do tipo que segue, e não do que tem seguidores.
- Boa avaliação - aprovou Bosch. - Não estamos seguros de que seja ele. Só sabemos que está envolvido.
Ele se levantou, pronto para ir embora.
- E a foto? - perguntou. - Uma fotocópia não será suficientemente clara.
- Pode levar, desde que me traga de volta. Preciso manter o arquivo completo. Pessoas como Mackey têm a tendência de voltar para os meus cuidados, entende o que
digo?
- Sei como é, e pode deixar que vamos devolver. Posso levar também uma cópia da sua história? Quero ler com calma.
Kibble deu uma olhada no recorte de jornal preso na parede do cubículo.
- Só não olhe para a fotografia. É a versão antiga de mim. Depois de saírem do prédio do Departaments Correcional,
Rider e Bosch atravessaram a rua para o Centro Cívico Van Nuys e avançaram por entre os dois tribunais para chegar à praça central. Sentaram-se em um banco ao lado
da biblioteca. O compromisso seguinte era com Arturo Garcia na Divisão Van Nuys do DPLA, que ficava também em um dos prédios no Centro Cívico, mas estavam adiantados
e quiseram estudar o arquivo da Correcional antes.
Encontraram narrativas detalhadas de todos os crimes pelos quais Roland Mackey fora preso desde o seu 18a aniversário. Havia também resumos biográficos usados pelos
agentes de sursis e condicional ao longo do ano para determinar aspectos de sua supervisão. Rider passou a Bosch os relatos de prisão e começou a estudar os detalhes
biográficos. Em seguida, interrompeu a leitura que fazia de um caso de roubo com arrombamento enunciando em voz alta os detalhes da biografia de Mackey que imaginava
serem pertinentes ao caso Verloren.
- Ele obteve um diploma de ensino médio no supletivo da escola secundária de Chatsworth no verão de 1988 - disse ela. - Isso
o coloca diretamente em Chatsworth.
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- Se o diploma foi de supletivo, é porque ele abandonou os estudos antes. Aí diz onde?
- Nada aqui. Diz que ele foi criado em Chatsworth. Família com problema. Pobrezinho. Morou com o pai, um soldador da fábrica da General Motors de Van Nuys. Não parece
material para a Hillside.
- Ainda precisamos verificar. Os pais sempre querem que os filhos façam o melhor. Se ele esteve na Hillside, conheceu Rebecca Verloren e depois foi embora, isso
explicaria o fato de não ter sido entrevistado em 1988.
Rider limitou-se a balançar a cabeça. Estava lendo.
- Esse cara nunca saiu do Vale - disse. - Todos os endereços dele são no Vale.
- Qual é o último endereço conhecido?
- Panorama. O mesmo informado pelo AutoTrack. Mas se ainda está aí provavelmente é antigo.
Bosch concordou. Qualquer um que tivesse passado pelo sistema tantas vezes quanto Mackey saberia que tinha que se mudar no dia seguinte ao final de um período de
prisão e suspensão condicional de pena. Não deixar um endereço com ninguém. Bosch e Rider iriam ao endereço de Panorama verificar, mas Bosch sabia que ele teria
ido embora. Para onde quer que tivesse se mudado, não tinha usado seu nome para abrir as contas de serviços públicos, da mesma forma que não atualizara a carteira
de motorista ou o certificado de propriedade do veículo. Estava voando abaixo do alcance do radar.
- Aqui diz que ele integrou o Wayside Whities - disse Rider, ao ler um relatório.
- Não é de espantar.
Wayside Whities era o nome de uma gangue de cadeia que tinha existido por anos a fio no Wayside Honor Rancho. Nas cadeias do condado geralmente se formavam gangues
segundo as divisões raciais, mais como meio de proteção do que como fruto de inimizades raciais. Não era raro descobrir que integrantes do Wayside Whities, com toda
a sua inclinação pró-nazista, eram, secretamente, judeus. Proteção é proteção. Era um modo de pertencer a um grupo e man-
ter a distância as agressões dos outros grupos. Era uma medida de sobrevivência. A filiação de Mackey ao grupo era apenas uma tênue conexão à teoria de Bosch de
que a questão racial podia ter tomado parte no caso Verloren.
- Mais alguma coisa quanto a isso? - perguntou ele.
- Não estou vendo.
- O que me diz da descrição física? Tatuagens?
Rider folheou a papelada e tirou um formulário de ingresso na cadeia.
- Sim, tatuagens - disse ela, lendo. - O nome dele mesmo em um bíceps, e acho que o nome de uma garota no outro. RaHoWa.
Ela soletrou, e Bosch começou a sentir que sua teoria estava se consolidando fortemente.
- Não é um nome - disse. - É um código. Significa Racial Holy War. As primeiras duas letras de cada palavra. Guerra Santa Racial. Acho que Green e Garcia não viram,
mas estava aí mesmo.
Ele podia sentir a adrenalina acelerando as batidas do seu coração.
- Olhe só para isto - disse Rider, com urgência. - Ele também tem o número 88 tatuado nas costas. O cara tem na pele um lembrete do que ele fez no ano de 1988.
- É mais ou menos isso - replicou Bosch. - E mais um código. Trabalhei em um desses casos de poder branco uma vez e me lembro de todos os códigos. Para esses sujeitos,
88 é o mesmo que um duplo H, porque H é a oitava letra do alfabeto. Oitenta e oito é H-H, e HH é Heil Hitler. Também usam 98 para Sieg Heil. Muito espertos, não?
- Ainda acho que o ano de 1988 pode ter algo a ver com isso.
- Talvez tenha mesmo. Viu alguma coisa a respeito do emprego dele?
- Parece que dirige um caminhão-reboque. Estava dirigindo um quando parou para fazer o xixi que lhe rendeu uma condenação por atentado ao pudor da última vez. Aqui
tem uma lista com três empregadores diferentes - todos serviços de reboque.
- Isso é muito bom. Já serve de começo.
- Nós o encontraremos.
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Bosch voltou os olhos de novo para o termo de prisão que tinha diante de si; era um roubo com arrombamento de 1990. Mackey tinha sido preso por um cão da polícia
na loja de um concessionário do cinema drive-in Pacific. Havia forçado a entrada de madrugada, com tudo fechado, fazendo disparar um alarme silencioso. Fez uma limpa
na caixa e encheu um saco plástico com duzentas barras de doce. Custou a sair porque resolveu ligar o aquecedor de queijo e preparar uns nachos para comer. Ainda
se encontrava dentro do cinema quando o policial que atendeu ao alarme mandou que seu animal entrasse. O relatório dizia que Mackey fora tratado por mordidas de
cachorro no braço esquerdo e na parte superior da coxa esquerda no Centro Médico do Condado e da Universidade do Sul da Califórnia antes de ser preso.
Dizia também que Mackey se confessara culpado do arrombamento e invasão, uma acusação menor, e fora sentenciado a 67 dias na cadeia de Van Nuys - e dois anos com
sursis.
O relatório seguinte era o da violação desse período de sursis por causa de uma prisão por assalto. Bosch ia ler o relatório, quando Rider tirou o maço de fotocópias
da sua mão.
- Está na hora de falar com Garcia - disse ela. - O sargento que trabalha com ele disse que se nos atrasarmos não o encontraremos.
Ela se levantou, e Bosch a seguiu. Avançaram na direção da Divisão Van Nuys. O Comando do Vale ficava no terceiro andar.
- Em 1990, Mackey foi apanhado em um roubo com arrombamento no antigo cinema drive-in Pacific - disse Bosch no trajeto.
- Exato.
- Era na Winnetka com Prairie. Há um multiplex lá agora. Ou seja, são cinco ou seis quarteirões de onde a arma de Verloren foi roubada dois anos antes. O arrombamento.
- O que é que você acha?
- Dois roubos com arrombamento separados por cinco quarteirões. Acho que ele talvez gostasse de operar naquela área. Acho que roubou a arma. Ou estava com a pessoa
que a roubou.
Rider aquiesceu, e eles subiram a escada do saguão da delegacia, onde pegaram o elevador a fim de percorrer o resto do trajeto até
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o Comando do Vale. Chegaram na hora certa, mas ainda assim tiveram que esperar.
- Eu me lembro desse drive-in - disse Bosch depois que se sentaram no sofá. - Fui lá algumas vezes quando garoto. O de Van Nuys também.
- Tínhamos um do nosso lado, na zona sul - disse Rider.
- Também transformaram em multiplex?
- Não, hoje é um estacionamento. Não vão aplicar esse montão de dinheiro lá.
- E o Magic Johnson?
Bosch sabia que o antigo astro de basquete do Lakers investira pesadamente na comunidade, inclusive abrindo cinemas.
- É um homem só.
- Um homem é um começo, acho eu.
Um homem com listas de P2 nas mangas do uniforme aproximou-se deles.
- O comandante os verá agora.
Capítulo 9
O comandante Arturo Garcia estava de pé atrás de sua mesa esperando que Bosch e Rider fossem trazidos pelo assistente uniformizado. Garcia também usava uniforme,
e o fazia bem e orgulhosamente. Tinha o cabelo grisalho cor de aço e um bigode tipo escova combinando. Transpirava a confiança que o departamento costumava exibir
antigamente e que ele lutava para recuperar.
- Detetives, entrem, entrem - disse ele. - Sentem-se aqui e contem a um velho profissional de homicídios como andam as coisas.
Eles se sentaram diante da mesa.
- Muito obrigada por nos ver tão rapidamente - agradeceu Rider. Bosch e Rider tinham decidido que ela ia assumir a liderança
nas conversas com Garcia, já que era mais familiarizada com ele por causa do tempo em que passara como ligação no gabinete do chefe. Bosch também não tinha certeza
se seria capaz de disfarçar o desgosto que sentia por Garcia e os erros e equívocos que ele e seu parceiro tinham cometido na investigação do caso Verloren.
- Bem, quando a Roubo e Homicídios pede, a gente tem de fabricar o tempo, certo?
Ele sorriu de novo.
- Na verdade, nós trabalhamos na Unidade de Casos Não Resolvidos - disse Rider.
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Garcia perdeu o sorriso, e por um momento Bosch pensou ter visto um brilho de dor surgir no seu olhar. Rider conseguira a entrevista por meio de uma assistente do
gabinete do comandante e não revelara em que caso estavam trabalhando.
- Becky Verloren - disse o comandante. Rider fez que sim.
-Como soube?
- Como eu soube? Fui eu que telefonei para aquele cara lá, o chefe da unidade, e disse que havia DNA nesse caso e que eles deviam ver se conseguiam uma equivalência
para a amostra.
- O detetive Pratt?
- Exatamente, o Pratt. Assim que a unidade se tornou operacional, telefonei para ele e disse que examinassem Becky Verloren,
1988. O que vocês têm aí? Uma equivalência, certo?
Rider assentiu.
- Temos uma equivalência perfeita.
- Quem? Espero há 17 anos por isso. Alguém do restaurante, certo?
Bosch fez uma pausa ao ouvir aquilo. Nos arquivos do caso havia interrogatórios de pessoas que trabalhavam no restaurante, mas nada que chamasse a atenção, nada
acima da rotina. Não havia nada nos resumos da investigação que apontasse para o restaurante. Ouvir agora da boca de um dos investigadores originais do crime que
o assassino vinha daquela direção não combinava nem um pouco com tudo o que tinham passado aquela manhã lendo.
- Na verdade, nada a ver com o restaurante - disse Rider. - A equivalência é com o DNA de um homem chamado Roland Mackey, que tinha 18 anos à época do crime. Morava
em Chatsworth. Não cremos que trabalhasse no restaurante.
Garcia franziu a testa, como se estivesse intrigado ou talvez desapontado.
- Esse nome significa alguma coisa para o senhor? - perguntou Hider. - Não passamos por ele em parte alguma do livro do crime.
Garcia sacudiu a cabeça.
- Não o localizo, mas já faz muito tempo. Quem é ele?
- Não sabemos quem é. Estamos apenas começando.
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- Tenho certeza de que eu teria lembrado o nome. O sangue dele estava na arma, certo?
- É o que temos. O tipo tem uma história. Roubos com arrombamento, receptação, drogas. Acreditamos que a arma possa ter sido apanhada num dos roubos.
- Com certeza - concordou Garcia, como se o seu entusiasmo pela idéia pudesse transformá-la em realidade.
- Nós conseguimos ligá-lo à arma, sem dúvida - disse Rider. Mas estamos procurando a ligação dele com a garota. Achamos que o senhor podia se lembrar de alguma coisa.
- Vocês já falaram com os pais dela?
- Ainda não. O senhor é a nossa primeira parada.
- - Pobre família. O crime acabou com aquela gente.
- O senhor continuou em contato com eles?
- Inicialmente, sim. Enquanto fui encarregado do caso. Mas quando fui promovido a tenente e voltei à patrulha tive que desistir do caso. Meio que perdi o contato
com eles depois disso. Era com Muriel, a mãe, que eu falava mais. O pai... Havia algo errado com ele. Saiu de casa, houve um divórcio, essas coisas todas. Ele perdeu
o restaurante. A última coisa que soube a seu respeito foi que estava morando na rua. Aparecia na casa de vez em quando e pedia dinheiro a Muriel.
- O que o fez pensar que era alguém do restaurante, quando entramos aqui?
Garcia sacudiu a cabeça como se se sentisse frustrado por não conseguir lembrar de alguma coisa.
- Não sei - respondeu. - Não consigo me lembrar. Era mais como um pressentimento. Havia qualquer coisa de errado no caso. Algo fora de esquadro.
- Como assim?
- Bem, você leu o livro, tenho certeza. Ela não foi estuprada. Foi carregada morro acima e fizeram com que tivesse a aparência de suicídio. Foi mal feito. Na verdade,
o que aconteceu foi uma execução. Quer dizer, não estamos falando do sujeito que estava passando e resolveu invadir a casa. Foi alguém que a queria morta. E que
entrou na casa ou mandou alguém entrar.
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- Acha que tinha a ver com a gravidez? - perguntou Rider. Garcia balançou a cabeça, concordando.
- Nós achamos que tinha ligação, mas nunca conseguimos provar.
- MTL. Nunca imaginou o que isso queria dizer? Garcia encarou Rider, a confusão estampada no rosto.
- Como?
- M-T-L. As iniciais que Rebecca usou no seu diário. O senhor falou nisso na entrevista formal com os pais dela. "My true love", "meu amor verdadeiro", lembra?
- Ah, sim, as iniciais. Como um código. Nunca soubemos ao certo. Nunca descobrimos quem era. Vocês estão procurando o diário?
Bosch aquiesceu em silêncio, e Rider falou.
- Estamos procurando tudo. O diário, a arma; toda a caixa com as provas do caso desapareceu em algum lugar do depósito.
Garcia sacudiu a cabeça como um homem que tivesse passado toda a carreira lidando com as frustrações do departamento.
- Não é de espantar. Sempre a mesma coisa, certo?
- Certo.
- Mas vou dizer uma coisa a vocês. Se encontrarem a caixa, não haverá nenhum diário dentro dela.
- Por quê?
- Porque eu o devolvi.
- Aos pais?
- À mãe. Como falei, fui promovido a tenente e transferido para o Bureau Sul. Ron Green já tinha se aposentado. Eu estava passando o caso adiante e sabia que aquilo
seria o fim de tudo. Ninguém ia dar atenção a ele como nós tínhamos dado. Assim, eu disse a Muriel que estava indo embora e lhe dei o diário da filha... Pobre mulher.
Foi como se o tempo tivesse parado para ela naquele dia de julho. Ficou imobilizada. Não andava para a frente nem Para trás. Lembro que fui vê-la antes de ir embora.
Tinha se passado mais ou menos um ano do crime. Ela me fez olhar o quarto de Becky. Estava intocado. Exatamente como na noite em que o criminoso a tirara de dentro
de casa.
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Rider balançou a cabeça sombriamente. Garcia nada mais disse. Bosch finalmente limpou a garganta, inclinou-se para a frente e ralou, repetindo a pergunta já feita
a Garcia.
- Quando entramos e dissemos que tínhamos uma correspondência de DNA, você achou que fosse do restaurante. Por quê?
Bosch olhou para Rider para ver se ela tinha se aborrecido por ele ter se intrometido no interrogatório. Não parecia.
- Não sei o motivo - respondeu Garcia. - Como eu disse, sempre tive a impressão de que pudesse vir daquele lado, pois nunca achei que tivéssemos conseguido algo
de concreto do lado do restaurante.
- Está se referindo ao pai? Garcia fez que sim.
- O pai era fora de esquadro. Nem sei se ainda falam isso. Era o que dizíamos naquele tempo.
- Como assim? - perguntou Rider. - Em que sentido o pai era fora de esquadro?
Antes que Garcia pudesse responder à pergunta, um de seus ajudantes uniformizados entrou no escritório.
- Comandante? Todos já estão na sala de reuniões, prontos para começar.
- OK, sargento. Já vou.
Depois que o sargento saiu, Garcia olhou para Rider como se tivesse esquecido a pergunta.
- Não há nada no livro do crime que jogue qualquer suspeita sobre o pai - disse ela. - Por que o senhor diz que ele era fora de esquadro... esquisito?
- Oh, não sei realmente explicar. Uma coisa meio instintiva. Ele nunca reagiu como se espera que um pai deva reagir, entende? Sereno demais. Nunca ficava com raiva,
nunca gritava - quer dizer, estamos falando de um crime bárbaro contra sua filhinha. Nunca chamou a mim ou Ron de lado e disse que gostaria de enfiar uma bala no
sujeito quando o encontrássemos. Eu esperava por isso.
No que dizia respeito a Bosch, todo mundo ainda era suspeito, mesmo que a amostra de DNA ligasse Mackey à arma do crime. Isso certamente incluía Robert Verloren.
Mas ele imediatamente desconsiderou o palpite de Garcia, baseado na reação emocional
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e ele esperava que o pai tivesse tido pelo assassinato da filha. Bosch
abia, depois de trabalhar em centenas de homicídios, que não havia
bsolutamente uma maneira de julgar essas reações ou de nutrir
suspeitas a partir delas. Vira todos os tipos de reação, e nunca com o
menor significado. Um dos caras que mais chorava e gritava, entre
tantos que já vira, acabara se revelando o assassino.
Ao desconsiderar o instinto e a suspeita de Garcia, Bosch estava também desconsiderando o próprio Garcia. Ele e Green tinham cometido erros iniciais, mas se recuperaram
e conduziram uma investigação estritamente segundo o manual. O livro do crime corroborava isso. Mas o palpite de Bosch agora era de que o que quer que tivesse sido
bem-feito provavelmente fora obra de Green. Devia ter suspeitado quando soubera que Garcia desistira de trabalhar em homicídios e passara à administração.
- Por quanto tempo você trabalhou com homicídios? - perguntou Bosch.
- Três anos.
- Sempre na Divisão Devonshire?
- Exatamente.
Bosch fez rapidamente as contas. Devonshire devia ter uma quantidade de casos pequena. Garcia trabalhara, talvez, em um máximo de 24 homicídios. Não tinha experiência
suficiente para se sair bem. Bosch decidiu ir em frente.
- O que me diz do seu parceiro? - perguntou. - Ele também pensava da mesma forma a respeito de Robert Verloren?
- Ele estava disposto, mais do que eu, a dar um pouco mais de corda ao cara.
- Você ainda mantém contato com ele?
- Com quem, o pai? -Não, Green.
- Não, ele se aposentou faz tempo.
- Eu sei, mas vocês ainda têm contato?
- Não, ele morreu. Aposentou-se e foi morar no condado de ttumboldt. Devia ter deixado a arma aqui. Tanto tempo disponíVgl e nada para fazer.
- Ele se matou?
Garcia concordou.
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Bosch olhou para o chão. Não fora a morte de Ron Green que o abalara. Ele não conhecia Green. Era a perda de uma conexão com o caso. Tinha certeza de que Garcia
não ia ajudar muito.
- Alguma questão racial? - perguntou Bosch, passando por cima da liderança de Rider mais uma vez.
- Questão racial? Nesse caso? Acho que não tem nada a ver.
- Casal misto, filha mestiça, a arma vindo de um roubo com arrombamento em que a vítima era ameaçada por questões religiosas.
- Isso já é forçar muito a barra. Vocês conseguiram alguma coisa com esse tal de Mackey?
- Talvez haja algo.
- Bem, não tivemos o luxo de dispor de um suspeito com nome e sobrenome com que trabalhar. Não vimos nenhum aspecto de atritos raciais naquilo de que dispúnhamos
naquele tempo.
Garcia falou vigorosamente, e Bosch viu que tinha tocado em um nervo exposto. Ele não gostara de ser criticado. Nenhum detetive gostava. Mesmo inexperiente.
- Sei que é fácil falar depois do caso passado - apressou-se a dizer Rider. - E como discutir na segunda-feira o gol perdido no domingo. Mas é só um detalhe que
estamos olhando.
Garcia pareceu apaziguado.
- Entendo - disse ele. - Fazer todo o esforço possível. Garcia se levantou.
- Bem, detetives, odeio apressar o fim da nossa conversa. Quisera que pudéssemos ficar o dia inteiro tratando do caso. Antigamente eu punha gente na cadeia. Hoje
vou a reuniões de orçamento e desdobramento do efetivo.
E o que você merece, pensou Bosch. Deu uma olhada em Rider, perguntando-se se ela compreenderia que ele a salvara de destino similar quando a convencera a ser sua
parceira na Unidade de Casos Não Resolvidos.
- Façam-me um favor - disse Garcia. - Quando prenderem o tal Mackey, me avisem. Talvez eu vá dar uma olhada no tipo. Espero por isso há muito tempo.
- Sem problema, senhor - prometeu Rider, desviando os olhos de Bosch. - Faremos isso. E se o senhor lembrar de alguma coisa que pôssã nos ajudar, ligue para nós.
Todos os meus números estão aqui.
Ela se levantou, colocando um cartão em cima da mesa.
- Pode deixar.
Garcia começou a contornar sua mesa para sair.
- Tem mais uma coisa que talvez precisemos que o senhor faça
- acrescentou Bosch.
Garcia parou de repente e encarou Bosch.
- Talvez tentemos espantar os passarinhos das árvores com uma história nos jornais. Seria bom se partisse do senhor. Sabe como é, antigo detetive de homicídios,
agora chefe, preocupado com um caso antigo, entra em contato com a nova Unidade de Casos Não Resolvidos e faz com que submetam a exame uma amostra de DNA coletada
no tempo do crime, e aí, surpresa, surge uma equivalência perfeita.
Garcia concordou, balançando a cabeça. Bosch podia garantir que aquela historieta era um tremendo afago no seu ego.
- É, podia dar certo. Estou à disposição de vocês para o que quiserem. Basta telefonar que daremos um jeito. O Daily News7. Tenho ligações lá. É o jornal do Vale.
- É, foi o que pensamos.
- Ótimo. Liguem para mim. Agora tenho que ir.
Ele saiu rapidamente da sala. Rider e Bosch se entreolharam e foram atrás. Lá fora, esperando o elevador, ela perguntou o que ele estava pretendendo quando falara
com o outro em plantar uma história no jornal.
- Ele é perfeito, porque não sabe do que está falando.
- Mas não é a nossa intenção. Só queremos ser cuidadosos.
- Não se preocupe. Vai dar certo.
O elevador parou e eles entraram. Estava vazio. Assim que a porta se fechou, Rider questionou Bosch.
- Harry, vamos acertar uma coisa agora de uma vez por todas. Ou somos parceiros ou não somos. Você deveria ter me avisado que ia atacá-lo com aquilo. Devíamos ter
conversado primeiro a respeito.
Bosch balançou a cabeça, concordando.
- Você tem razão - disse ele. - Somos parceiros. Não acontecerá de novo.
- Ótimo.
A porta do elevador abriu-se e ela saltou, deixando Bosch para trás.
Capítulo 10
A Escola Preparatória de Hillside era uma construção de desenho espanhol aninhada nas colinas de Porter Ranch. O campus era marcado pelos magníficos gramados verde-esmeralda
e o vulto intimidador das montanhas ao fundo. Montanhas, por sinal, que pareciam servir de berço e proteger a escola. Na visão de Bosch, era o tipo de escola que
qualquer pai desejaria que o filho freqüentasse. Pensou na própria filha, que em pouco mais de um ano começaria a estudar. Ia querer que ela se matriculasse numa
escola como aquela - pelo menos pelo lado de fora.
Ele e Rider seguiram a indicação de placas para ir aos escritórios da administração. Na recepção, Bosch mostrou o crachá e explicou que estavam ali para saber se
um estudante chamado Roland Mackey já tinha freqüentado algum dia Hillside. A funcionária desapareceu em uma sala na parte de trás, e logo apareceu um homem. Suas
características mais notáveis eram uma barriga do tamanho de uma bola de basquete e os óculos grossos instalados sob frondosas sobrancelhas. Atravessando a testa,
seu cabelo delimitava a linha perfeita de uma peruquinha.
- Meu nome é Gordon Stoddard, diretor aqui de Hillside. A Sra. Atkins me disse que são detetives. Mandei que ela verificasse aquele nome. Não me fez lembrar de nada,
e olhem que estou aqui há 25 anos. Sabem exatamente quando ele esteve matriculado? Ajudaria a pesquisa.
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Bosch ficou surpreso. Stoddard parecia estar com uns 45 anos. Devia ter ido para Hillside logo depois de terminar os estudos e nunca mais saíra. Bosch não saberia
dizer se aquilo depunha a favor do que pagavam ali aos professores ou da dedicação de Stoddard ao lugar. Mas, pelo que sabia de salários de professores, tanto do
ensino particular quanto do público, duvidava que fosse do pagamento.
- Estamos falando dos anos 1980, se é que ele freqüentou esta escola. É muito tempo para você se lembrar.
- Sim, mas tenho boa memória para alunos. A maioria deles. Não sou diretor há 25 anos. No princípio, eu era professor. Ensinei ciências e depois dirigi o departamento
de ciências.
- Lembra-se de Rebecca Verloren? - perguntou Rider. Stoddard empalideceu.
- Sim, para dizer a verdade, eu me lembro. Fui professor de ciências dela. É disso que se trata a sua visita aqui? Prenderam esse menino, Mackey? Quer dizer, ele
agora deve ser um homem. Foi ele?
-Não sabemos, senhor - apressou-se a responder Bosch. - Estamos revisando o caso, o nome dele surgiu e precisamos checar. Mais nada.
- Os senhores viram a placa? - perguntou Stoddard.
- Como?
- Lá fora, presa na parede do corredor principal. Há uma placa em homenagem a Rebecca. Seus colegas se cotizaram e mandaram fazer. Muito bonita, mas, claro, também
muito triste. Seja como for, serve a seu propósito. As pessoas que circulam pela Hillside se lembrarão de Rebecca Verloren.
- Não vimos. Vamos olhar quando sairmos.
- Muita gente ainda se lembra dela. Esta escola pode não pagar tão bem assim, e a maioria do corpo docente pode ter que trabalhar em outros empregos para se manter,
mas assim mesmo os professores são muito leais. Há diversos que deram aulas a Rebecca. Temos
Uma, a Sra. Sable, que estudou com ela e depois voltou para ensinar.
Na verdade, Bailey foi uma de suas boas amigas, acredito.
Bosch deu uma olhada em Rider, que levantou as sobrancelhas, tinham formulado um plano para se aproximar das amigas de Becky "erloren, mas eis que a oportunidade
se apresentava espontaneamente. Bosch reconhecera o nome Bailey. Uma das três amigas com
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quem Becky Verloren passara a noite dois dias antes do seu desaparecimento se chamava Bailey Koster.
Bosch sabia que era uma oportunidade e tanto para interrogar uma testemunha do caso. Se não falassem imediatamente com Sable, era provável que ela fosse tomar conhecimento
de Roland Mackey através de Stoddard. E Bosch não queria isso. Queria controlar o fluxo de informações do caso para os envolvidos.
- Ela está aqui hoje? - perguntou. - Podemos falar com ela? Stoddard olhou para o relógio na parede ao lado do balcão.
- Bem, ela está dando aula agora, mas a escola encerra o expediente em cerca de vinte minutos. Se não se incomodam de esperar, tenho certeza de que conseguirão falar
com ela.
- Não tem problema.
- Ótimo, vou mandar uma mensagem para a sua classe e fazer com que venha quando terminar a aula.
A Sra. Atkins, a encarregada do balcão de atendimento, apareceu por trás de Stoddard.
- Na verdade, se não se incomoda - disse Rider -, prefiro ir até a classe dela para conversar. Não queremos fazer com que se sinta desconfortável.
Bosch balançou a cabeça, confirmando as palavras de Rider. Ela estava na mesma freqüência que ele. Não queriam uma mensagem de qualquer tipo sendo entregue à Sra.
Sable. Não queriam que ela pensasse em Becky Verloren antes de estarem a seu lado, olhando e ouvindo.
- Tanto faz - disse Stoddard. - Ajam como quiserem.
Ele notou que a Sra. Atkins estava atrás, esperando, e pediulhe que contasse o que tinha encontrado.
- Não temos registro de Roland Mackey como aluno - disse ela.
- Encontrou alguém com o mesmo sobrenome? - perguntou Rider.
- Sim, houve um Mackey, primeiro nome Gregory, que foi nosso aluno em dois anos, 1996 e 1997.
Havia uma remotíssima possibilidade de que se tratasse de um irmão mais moço ou primo. Talvez fosse necessário examinar esse nome.
- Pode ver se há um endereço atual ou telefone de contato dele? -pediu Rider.
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A Sra. Atkins olhou para Stoddard em busca de aprovação, e ele aquiesceu. Ela desapareceu atrás da informação. Bosch checou o relógio da parede. Tinham quase vinte
minutos para matar.
- Sr. Stoddard, pode nos dizer se há anuários do final da década de 1980 que possamos examinar enquanto esperamos a Sra. Sable?
- Sim, claro, eu os levo à biblioteca e lá os apanho para vocês. No caminho para a biblioteca, Stoddard levou-os a ver a placa
que os colegas de turma de Rebecca Verloren tinham mandado fixar na parede do saguão principal. Tinha uma dedicatória simples, com o seu nome, os anos de nascimento
e morte, e a promessa juvenil NÓS SEMPRE NOS LEMBRAREMOS.
- Ela era uma garota doce - disse Stoddard. - Sempre envolvida. Sua família também. Que tragédia.
Stoddard usou a manga da camisa para limpar a poeira da fotografia laminada da sorridente Becky Verloren na placa.
A biblioteca era perto. Havia poucos estudantes sentados às mesas ou examinando as prateleiras, agora que o dia escolar se aproximava do fim. Com um sussurro, Stoddard
disse a Bosch e Rider que se sentassem e afastou-se. Menos de um minuto depois, voltava com três anuários que colocou em cima da mesa. Bosch viu que todos tinham
o nome Ventas estampado na capa, juntamente com o ano de sua publicação. Stoddard trouxera os anuários de 1986,
1987 e 1988.
- Esses são os últimos três anos - murmurou ele. - Lembro que ela começou aqui no primeiro ano, de modo que se quiserem anuários anteriores bastará que falem comigo.
Estão na prateleira.
Bosch balançou a cabeça.
- Está bem. Isto servirá por ora. Passaremos na sua sala antes de ir embora. Precisamos obter aquela informação com a Sra. Atkins de qualquer modo.
- OK, então deixo por conta de vocês.
- Oh, pode nos dizer onde fica a sala de aula da Sra. Sable? Stoddard informou o número da sala e explicou como chegar
lá saindo da biblioteca. Depois pediu licença, dizendo que tinha de voltar para sua sala. Antes de sair, cochichou qualquer coisa para uma mesa de meninos perto
da porta. Eles então puxaram as mochilas que tinham largado no chão e empurraram para debaixo da
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mesa, de modo a não impedir a passagem das pessoas. Alguma coisa no jeito como tinham largado as mochilas de qualquer maneira fez com que Bosch se lembrasse de como
os rapazes faziam a mesma coisa no Vietnã - largando as mochilas onde quer que se encontrassem, sem se importar com coisa alguma que não tirar aquele peso dos ombros.
Depois que Stoddard saiu, os meninos fizeram caretas na direção da porta por onde ele passara.
Rider pegou o anuário de 1988 na frente de Bosch, e ele pegou o de 1986. Bosch não esperava nada de valor, agora que a Sra. Atkins derrubara sua teoria de que Roland
Mackey freqüentara a escola até certo ponto e se desligara antes do assassinato. Já estava resignado com a idéia de que a ligação entre Mackey e Becky Verloren -
se é que havia - teria que ser encontrada em outro lugar.
Fez as contas de cabeça e folheou o livro até chegar às fotos da oitava série. Rapidamente encontrou o retrato de Becky Verloren. Estava de rabo-de-cavalo e aparelho
nos dentes. Sorria, mas sua aparência era de quem começava aquele período tipicamente desajeitado da pré-adolescência. Duvidava que ela se sentisse feliz com a aparência
que tinha naquele tempo. Examinou as séries de instantâneos mostrando os diferentes clubes e organizações da classe, e foi capaz de levantar todas as suas atividades
extracurriculares. Becky jogava futebol e aparecia nas fotos dos clubes de ciências e de arte e dos representantes de classes na direção do corpo de alunos. Em todas
as fotos estava sempre na fila de trás ou bem de lado. Bosch gostaria de saber se era colocada ali pelo fotógrafo ou se era uma posição onde se sentia à vontade.
Rider examinou com calma a edição de 1988. Verificou página por página, e em determinado ponto levantou o livro, quando estava vendo a seção do corpo docente. Apontou
uma foto do jovem Gordon Stoddard, que nesse tempo tinha cabelo muito mais comprido e não usava óculos. Também era mais magro e parecia ser muito mais forte.
- Olhe só o nosso diretor - disse ela. - Ninguém devia envelhecer.
- Mas todo mundo devia ter a chance de envelhecer - contrapôs ele.
Bosch passou para o anuário de 1987 e descobriu que as fotos <je Becky Verloren começaram a mostrar uma jovem que estava desabrochando. Sorriso mais cheio, mais
confiante. Se ainda estava de aparelho nos dentes, não se notava mais. Nas fotos de grupos, deslocara-se para a frente e para o centro. Nas fotos do órgão que representava
o corpo de alunos, ainda não era uma representante de classe, mas já tinha os braços cruzados numa pose de quem mandava. Sua postura e seu olhar firme dirigido para
a câmera disseram a Bosch que tinha tudo para ir longe na vida. Só que alguém a detivera.
Bosch folheou mais umas páginas e fechou o livro. Esperava que a sineta tocasse para que pudessem ir entrevistar Bailey Hoster Sable.
- Nada? - perguntou Rider.
- De valor, não. Mas é bom ver como eram as coisas. No seu tempo. No seu devido elemento.
- É verdade. Olhe só para isto.
Eles estavam sentados um em frente do outro. Ela virou o anuário de 1988 em cima da mesa para que ele pudesse ver. Rider finalmente tinha chegado às fotos do segundo
ano. A metade superior da página mostrava um rapaz e quatro garotas posando contra uma parede que Bosch reconheceu como sendo a entrada do estacionamento para estudantes.
Uma das garotas era Becky Verloren. A legenda da foto dizia LÍDERES ESTUDANTIS. Logo abaixo, os estudantes eram identificados, e suas posições, listadas. Becky Verloren
aparecia como representante do conselho de estudantes. Bailey Koster era a presidente da classe.
Rider tentou girar o livro de volta na sua direção, mas Bosch o segurou por um momento, estudando a foto. Podia dizer pela pose e estilo que Becky Verloren deixara
a falta de graça para trás. Não podia mais descrever aquela estudante como uma garota - estava a caminho de se transformar em uma jovem mulher atraente e confiante.
Largou o livro, e Rider o pegou de volta.
- Ela ia ser uma conquistadora - disse ele.
- Talvez já fosse. Talvez tenha escolhido o coração errado para conquistar.
- Alguma coisa nesse aí?
- Dê uma olhada.
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Ela folheou o anuário outra vez. As duas páginas que mostrou tinham fotos da viagem realizada pelo Clube de Arte à França no verão anterior. Havia fotos de cerca
de vinte estudantes, rapazes e moças e diversos pais ou professores em frente à Notre-Dame, no pátio do Louvre e em um barco turístico no Sena. Rider apontou para
Rebecca Verloren em uma das fotos.
- Ela foi à França - disse Bosch. - Que tal?
- Pode ter conhecido alguém lá. Talvez haja uma conexão internacional nesse caso. Pode ser que tenhamos que ir lá para verificar.
Rider estava tentando conter o riso.
- Exatamente. Acho bom você ir logo fazendo o requerimento. Entregue no sexto andar.
- Nossa, Harry, acho que o seu senso de humor continua aposentado.
- E, também acho.
A sineta tocou, encerrando a conversa e também as aulas daquele dia. Bosch e Rider se levantaram, largando os anuários em cima da mesa, e deixaram a biblioteca.
Seguiram as instruções dadas por Stoddard para chegar à sala de aula de Bailey Sable, tendo que se desviar ao longo do caminho dos estudantes que se apressavam para
deixar a escola. As garotas usavam saias escocesas e blusas brancas, e os meninos, calças caqui e camisas pólo brancas.
Deram uma espiada por uma porta semi-aberta e viram uma mulher sentada à mesa na frente de uma sala de aula. Ela não levantou os olhos dos papéis que devia estar
corrigindo. Bailey Sable não tinha a menor semelhança com a presidente da classe do segundo ano cuja foto Rider e Bosch tinham acabado de ver no anuário. O cabelo
agora era mais escuro e mais curto, o corpo mais largo e mais pesado. Como Stoddard, usava óculos. Bosch sabia que teria apenas uns trinta e poucos anos, mas parecia
mais velha.
Havia uma última aluna na sala. Era uma loura bonitinha que arrumava os livros dentro de uma mochila. Quando terminou, fechou o zíper e dirigiu-se para a porta.
- Até amanhã, Sra. Sable.
- Adeus, Kaitlyn.
A estudante dirigiu um olhar de curiosidade a Bosch e Rider quando passou por eles. Os detetives entraram na sala, e Bosch fechou a porta. O barulho fez Bailey Sable
levantar os olhos dos papéis.
- Posso ajudar? - perguntou ela. Bosch assumiu a liderança.
- Talvez possa, sim - disse ele. - O Sr. Stoddard disse que podíamos vê-la aqui na sua sala de aula.
Ele se aproximou da mesa. A professora dirigiu-lhes um olhar cauteloso.
- Vocês são pais de alunos?
- Não, somos detetives, Sra. Sable. Meu nome é Harry Bosch, e o dela é Kizmin Rider. Queremos lhe fazer algumas perguntas sobre Becky Verloren.
Ela reagiu como se tivesse levado um soco na barriga. Todos aqueles anos, e aquilo ainda tão perto da superfície.
- Oh, meu Deus! Oh, meu Deus! - disse ela.
- Pedimos desculpas por aparecer assim de uma hora para outra - disse Bosch.
- Aconteceu alguma coisa? Vocês descobriram quem...? Ela não terminou a frase.
- Bem, estamos trabalhando no caso de novo - explicou Bosch.
- E pode ser que a senhora seja capaz de nos ajudar.
- Como?
Bosch enfiou a mão no bolso do paletó e pegou o retrato de identificação policial tirado do arquivo da divisão de condicional. Era um retrato de Mackey como um ladrão
de carros de 18 anos de idade. Bosch colocou-o em cima da prova que estava sendo corrigida. Ela olhou para o retrato.
- Reconhece a pessoa dessa foto? - perguntou Bosch.
- Foi tirada 17 anos atrás - acrescentou Rider. - Mais ou menos à época da morte de Becky.
A professora examinou o olhar desafiador de Mackey para a câmera da polícia e nada disse por um longo tempo. Bosch olhou Para Rider e balançou a cabeça, sinal de
que ela talvez devesse assumir.
- Ele se parece com alguém que você ou Becky ou qualquer uma que suas amigas tivesse conhecido naquele tempo? - perguntou Rider.
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- Ele freqüentou a escola aqui? - perguntou Sable.
- Não, achamos que não. Mas sabemos que ele vivia na área.
- Ele é o assassino?
- Não sabemos. Só estamos tentando descobrir se há uma ligação entre Becky e ele.
- Qual é o seu nome?
Rider olhou para Bosch, e ele balançou a cabeça de novo.
- O nome é Roland Mackey. Já ouviu antes?
- Na verdade, não. Tenho dificuldade de lembrar as coisas. Quer dizer, os rostos de estranhos.
- Quer dizer então que definitivamente não é alguém que a senhora tivesse conhecido, certo?
- Definitivamente.
- Acha que Becky poderia tê-lo conhecido sem que a senhora soubesse?
Ela pensou por um longo momento antes de responder.
- Bem, é possível. Sabe como é, depois do caso passado veio a se saber que ela tinha engravidado. Eu não soube da gravidez de Becky, de modo que posso muito bem
não ter sabido da existência dele. Era o pai?
- Não sabemos.
De modo espontâneo, ela havia adiantado o interrogatório para o assunto seguinte de Bosch.
- Sra. Sable, nós sabemos que se passaram muitos anos - disse ele. - Se a senhora procurou proteger uma pessoa amiga naquele tempo, nós entendemos. Mas se sabe de
mais alguma coisa pode nos contar agora. Esta é provavelmente a última tentativa que alguém vai fazer para resolver esse crime.
- Refere-se ao fato de ela estar grávida? Eu realmente não sabia. Sinto muito. Fiquei tão chocada quanto todo mundo quando a polícia começou a fazer perguntas a
esse respeito.
- Se Becky fosse confiar a alguém um assunto como sua gravidez, não teria sido à senhora?
Mais uma vez ela não respondeu prontamente. Pensou um pouco.
- Não sei - disse, por fim. - Nós éramos muito íntimas, mas ela também era bastante íntima de algumas outras garotas. Quatro de nós estávamos juntas desde o primeiro
grau. Nesse tempo, nós nos
chamávamos de o Clube Kitty Cat, porque todas tinham gatos. Em énocas e em anos diferentes, uma de nós sempre ficava mais chegada de uma das outras. Mudava o tempo
todo. Mas, como grupo, sempre continuávamos juntas. Bosch balançou a cabeça,
- No verão em que mataram Becky, quem a senhora diria ser a mais íntima dela?
- Provavelmente Tara. Foi quem sentiu o maior baque. Bosch olhou para Rider, tentando se lembrar dos nomes das garotas com quem Becky estivera duas noites antes
de sua morte.
- Tara Wood? - perguntou Rider.
- Isso mesmo. As duas estiveram bastante juntas naquele verão, porque o pai de Becky tinha um restaurante em Malibu, e as duas trabalhavam lá- Dividiam um horário.
Naquele verão, a impressão que dava era de que só falavam a esse respeito.
- O que elas tanto conversavam? - perguntou Rider.
- Oh, sabe como é, as celebridades que apareciam no restaurante. Astros como Sean Penn e Charlie Sheen. E às vezes falavam sobre os caras que trabalhavam lá, e qual
deles era bonito. Nada que me interessasse muito, já que eu não trabalhava lá.
- Havia algum cara em particular a respeito de quem elas falassem?
Ela pensou por um momento antes de responder.
- Na verdade, não. Não que eu me lembre. Elas só gostavam de comentar porque eles eram muito diferentes. Surfistas, candidatos a atores. Tara e Becky eram garotas
do Vale. Foi como um choque cultural para elas.
- Ela namorava alguém do restaurante? - quis saber Bosch.
- Não que eu soubesse. Mas é como falei, eu não sabia da gravidez, de modo que havia obviamente alguém na vida dela de quem eu não tinha conhecimento. Ela guardou
segredo.
- Você tinha ciúmes delas porque trabalhavam lá? - indagou Rider.
- De jeito nenhum. Eu não tinha que trabalhar e estava muito feliz por isso.
Rider estava querendo chegar a algum ponto, e Bosch deixou que continuasse.
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- O que vocês faziam para se divertir quando estavam juntas?
- perguntou.
- Não sei, o de sempre - respondeu Sable. - íamos ao shopping e ao cinema, essas coisas.
- Quem tinha carro?
-Tara e eu. Tara tinha um conversível. Nós costumávamos ir... Ela se interrompeu ao se lembrar de algo.
- Que foi? - perguntou Rider.
- Acabo de me lembrar de que costumávamos ir muito ao parque Limekiln Canyon depois das aulas. Tara tinha um isopor na mala do carro, e o pai dela nunca notava se
ela pegava suas cervejas na geladeira. Um dia, a polícia nos mandou parar. Escondemos as cervejas debaixo das saias dos uniformes. O policial não percebeu.
Ela sorriu com a lembrança.
- Claro, agora que ensino aqui, estou sempre de olho nesse tipo de coisa. O uniforme é o mesmo.
- E como era antes de ela começar a trabalhar no restaurante?
- perguntou Bosch, trazendo a entrevista de volta para Rebecca Verloren. - Ela ficou doente por uma semana, imediatamente depois que as aulas acabaram. A senhora
a visitou ou conversou com ela nesse período?
- Tenho certeza que sim. Foi quando disseram que provavelmente ela havia interrompido a gravidez. Mas eu não sabia. Devo ter pensado que ela só estava doente, mais
nada. Na verdade, não sou capaz de me lembrar se conversamos naquela semana ou não.
- Os detetives daquele tempo fizeram a vocês todas essas perguntas?
- Fizeram, tenho certeza absoluta que fizeram.
- Aonde uma garota da Hillside iria se ficasse grávida? - perguntou Rider. - Quer dizer, naquele tempo.
- Você se refere a uma clínica ou um médico?
- Exatamente.
O pescoço de Bailey Sable ficou vermelho. Ela ficou envergonhada com a pergunta. Balançou a cabeça.
- Não sei. Mas foi realmente chocante, já que Becky acabou sendo, sabe, assassinada. Fez com que todas nós pensássemos que na verdade não conhecíamos a nossa amiga.
Foi triste porque
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percebi que ela não confiava em mim o suficiente para contar essas coisas. Você sabe, ainda penso nisso quando me lembro do que aconteceu naquela época.
- Becky tinha algum namorado do qual a senhora tivesse conhecimento? - perguntou Bosch.
- Não. Quer dizer, não naquele tempo. Ela teve um namorado quando estava no primeiro ano, mas ele se mudou para o Havaí com a família. Isso foi no verão anterior.
Depois, durante todo o ano letivo, acho que ela esteve sozinha. Você sabe, não ia a nenhum baile ou aos jogos com alguém. Mas acho que eu estava enganada.
- Por causa da gravidez - disse Rider.
- Sim, claro. Mais ou menos óbvio, não é?
- Quem era o pai? - perguntou Bosch, na esperança de que uma pergunta direta pudesse causar uma reação ante algo a ser investigado.
Mas Sable deu de ombros.
- Não tenho idéia e penso que nunca tive. Bosch assentiu. Não conseguira nada.
- E a separação do garoto que foi para o Havaí, como Becky lidou com isso? - perguntou ele.
- Bem, eu achei que partiu o coração de Becky. Foi realmente um baque. Tipo Romeu e Julieta.
- Como assim?
- Eles foram separados pelos pais.
- Os pais não queriam que eles namorassem?
- Não, o pai dele arranjou um emprego ou algo assim no Havaí. A família teve que se mudar, e isso separou os namorados.
Mais uma vez Bosch balançou a cabeça. Não sabia se alguma parcela das informações que estavam conseguindo obter era útil, mas sabia que era importante lançar a rede
o mais aberta possível.
- Sabe por onde anda Tara Wood atualmente? Sable sacudiu a cabeça.
- Tivemos uma reunião de dez anos, e Tara não veio. Perdi o contato com ela. Ainda falo com Grace Tanaka de vez em quando. Mas ela mora na área da baía de São Francisco,
de modo que não a vejo muito.
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- Pode nos dar o telefone dela?
- Claro, eu tenho aqui. '"'"''
Ela se abaixou, abriu uma gaveta e tirou sua bolsa. Enquanto pegava um caderninho de endereços, Bosch tirou a foto de Mackey de cima da mesa e guardou-a no bolso
do paletó. Quando Sable leu um número, foi Rider quem anotou em um bloquinbo.
- Cinco-um-zero - disse Rider. - Onde fica isso, Oakland?
- Ela mora em Hayward. Quer morar em São Francisco, mas lá é muito caro para o que ganha.
- O que ela faz?
- Ela é escultora em metal.
- Seu sobrenome ainda é Tanaka?
- É, ela nunca se casou. Ela...
-O quê?
- Bem, acabou que ela era gay.
- Como assim?
- O que quero dizer é que não sabíamos. Ela nunca nos contou. Mudou-se para lá, e uma vez, cerca de oito anos atrás, eu fui visitá-la, foi então que eu soube.
- Era óbvio?
- Era.
- Ela veio para a reunião dos dez anos da turma?
- Sim, veio. Foi divertido, mas também meio triste, porque as pessoas falavam sobre Becky e sobre como o crime nunca fora resolvido. Acho que provavelmente foi por
isso que Tara não compareceu. Não queria lembrar do que aconteceu a Becky.
- Bem, talvez consigamos mudar isso para a reunião dos vinte anos - disse Bosch, arrependendo-se na mesma hora do comentário irreverente. - Desculpe, não foi uma
coisa legal de dizer.
- Olhem, espero que vocês realmente mudem isso. Penso nela o tempo todo. Sempre querendo saber quem terá sido e por que nunca foram descobertos. Olho seu retrato
todos os dias na placa, quando entro na escola. É estranho. Ajudei a levantar o dinheiro para aquela placa quando fui presidente da classe.
- Descobertos? - indagou Bosch. -Como?
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- A senhora disse que nunca foram descobertos. Por que falou no plural?
- Não sei. Eles, ele, ela, o que for. Bosch assentiu.
- Sra. Sable, ficamos muito gratos pelo seu tempo - disse ele. - Poderia nos fazer um favor e não falar a respeito disto com ninguém? Não queremos que as pessoas
se preparem para falar conosco, entende o que quero dizer?
- Querem que sejam surpreendidas como eu fui?
- Exatamente. E se a senhora se lembrar de alguma coisa, qualquer coisa mesmo, a respeito do que deseje falar, minha parceira lhe dará um cartão com os nossos telefones.
- Está bem.
Ela parecia estar longe, devaneando. Os detetives se despediram e a deixaram com uma pilha de papéis para corrigir. Bosch achou que ela devia estar relembrando um
tempo em que quatro garotas eram as melhores amigas do mundo e o futuro reluzia à frente delas como um oceano.
Antes de sair, eles passaram pela secretaria a fim de ver se a escola tinha alguma informação atualizada para entrar em contato com a ex-aluna Tara Wood. Gordon
Stoddard fez a Sra. Atkins checar, mas a resposta foi negativa. Bosch perguntou se podia levar emprestado o anuário de 1988 para fazer cópias de algumas fotos, e
Stoddard deu sua aprovação.
Estou de saída - disse ele. - vou com vocês.
Foram batendo papo no caminho de volta à biblioteca, e Stoddard lhes deu o livro de 1988, que já tinha sido recolocado na prateleira. Ao se dirigirem para o estacionamento,
Stoddard mais uma vez parou com eles diante da placa em memória de Becky Verloren. Bosch passou os dedos nas letras em relevo do nome e
notou que as bordas estavam desgastadas pelos muitos anos em que Os alunos da Hillside tinham feito a mesma coisa.
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Capítulo 11
Rider encarregou-se do arquivo e do telefone, enquanto Bosch dirigia para Panorama, que ficava imediatamente a leste da 405 e do outro lado da linha da Divisão Devonshire.
A cidade de Panorama era um distrito destacado da zona norte de Van Nuys muitos anos antes, quando os residentes decidiram que precisavam se distanciar das conotações
negativas atribuídas a Van Nuys. Nada fora mudado, a não ser o nome da cidade e uns poucos nomes de ruas. Ainda assim, Panorama parecia limpa, bela e sem crimes,
e os residentes passaram a se sentir melhor a seu próprio respeito. No entanto muitos anos se passaram, e grupos de habitantes tinham requerido mais uma vez a mudança
dos nomes de seus bairros e o distanciamento, se não físico, pelo menos no que dizia respeito à imagem, das conotações negativas associadas ao nome Panorama. Bosch
achava que essa era uma das maneiras pelas quais Los Angeles vivia se reinventando. Como um escritor ou ator que vai mudando de nome para deixar para trás os fracassos
do passado e começar de novo, mesmo com os textos ou o rosto de sempre.
Conforme o esperado, Roland Mackey não foi mais encontrado na companhia de reboques onde trabalhara no seu período mais recente de suspensão de pena. Mas, também
conforme o esperado, o ex-condenado não era particularmente esperto quando se
tratava de disfarçar os próprios rastros. O arquivo continha toda a sua história profissional em uma vida passada basicamente em sursis ou liberdade condicional.
Tinha
dirigido um caminhão-reboque para duas outras firmas em períodos anteriores, sob a supervisão do estado. Fazendo-se passar por conhecida dele, Rider ligou para ambos
e facilmente localizou seu atual empregador: Tampa Reboques. Depois telefonou para a firma e perguntou se Mackey tinha ido trabalhar. Após um momento, fechou o telefone
e olhou para Bosch.
- Tampa Reboques. Chega às 4h.
Bosch verificou o relógio. Mackey se apresentaria para o trabalho em dez minutos.
- Vamos passar por lá e dar uma olhada nele. Checamos seu endereço depois. Tampa com quê?
- Tampa com Roscoe. Deve ser em frente ao hospital.
- O hospital fica na esquina de Roscoe com Reseda. Por que será que não a chamaram Reboques Roscoe?
- Certo. E o que fazemos depois de dar uma olhada em Mackey?
- Bem, nós o procuramos e perguntamos se ele matou Becky Verloren 17 anos atrás, ele responde sim e nós o levamos preso para a cidade.
- Não tem graça, Bosch.
- Não sei. O que você quer fazer depois?
- Checamos o endereço dele, como você disse, e aí acho que estaremos prontos para os pais. Penso que precisamos falar com eles sobre Mackey antes de montarmos o
esquema para pegá-lo... especialmente no jornal. Na minha opinião, damos uma passadinha na casa e vemos a mãe. Já que estamos aqui, é preferível ir logo.
- Se ela estiver lá - contrapôs ele. - Você verificou no AutoTrack
também?
- Não precisa. Ela estará aqui. Você ouviu o jeito de Garcia falar. O fantasma da filhinha habita aquela casa. Duvido que vá deixá-la.
Bosch achou que Rider devia estar com a razão, mas não disse nada. Seguiu para leste no bulevar Devonshire até a avenida Tampa e entrou no bulevar Roscoe. Chegaram
na interseção de Tampa com Roscoe poucos minutos antes das quatro. Tampa Reboques na
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verdade era um posto de gasolina Chevron com duas baias de mecânico. Bosch parou numa das vagas diante de uma pequena fileira de lojas do outro lado da rua e desligou
o motor.
Não ficou surpreendido quando o relógio deu quatro horas sem sinal de Roland Mackey. Não imaginava que ele fosse do tipo que se entusiasmasse na hora de ir para
o trabalho rebocar carros.
Eram 16h15 quando Rider perguntou:
- O que você acha? Será que meu telefonema chamou a atenção...
- Aí está ele.
Um Camaro de trinta anos com retoques de massa nos quatro pára-lamas entrou no posto de gasolina e parou perto do compressor de ar. Bosch só tinha vislumbrado as
feições do motorista, mas foi o suficiente. Abriu o porta-luvas e pegou o binóculo que comprara através de um catálogo recebido no avião para
Las Vegas. Afundou no banco e observou pelo binóculo. Mackey saltou do Camaro e se encaminhou para a garagem aberta do posto. Usava um uniforme com a calça azul-escura
e a
camisa também azul, em um tom mais claro. Tinha um escudo oval no lado esquerdo do peito que dizia Ro. Luvas de trabalho saíam de um dos bolsos traseiros da calça.
Dentro da garagem havia um velho Ford Taurus em cima de um elevador hidráulico e um homem trabalhando debaixo dele com uma ferramenta de ar comprimido. Quando Mackey
entrou, o homem com a ferramenta saiu e cumprimentou-o com um tapa indiferente na palma da sua mão. Mackey deu uma parada enquanto o homem lhe dizia qualquer coisa.
- Acho que ele está dizendo que telefonaram - disse Bosch. Parece que Mackey não ficou preocupado. Puxou um celular do
bolso. Está ligando para a pessoa que ele provavelmente imagina ter telefonado.
Lendo os lábios de Mackey, Bosch prosseguiu:
- Ei, você ligou para mim?
A conversa teve um fim rápido.
- Acho que não - disse Bosch.
Mackey guardou o telefone no bolso.
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- Ele tentou uma pessoa só - comentou Rider. - Não deve ter uma vida social muito animada.
- O nome que aparece no distintivo da camisa é Ro - lembrou Bosch. - Se o amigo dele disse que telefonaram perguntando por Roland, ele pode ter telefonado para a
única pessoa que o chama de Roland. Quem sabe seu velho pai, o soldador.
- O que ele está fazendo agora?
- Não posso vê-lo. Foi para os fundos.
- Talvez seja melhor a gente sair daqui antes que ele comece a investigar na vizinhança.
- Sem essa. Um telefonema, e você acha que ele vai começar a pensar que tem alguém atrás dele depois de 17 anos?
- Não, não por causa de Becky. Minha preocupação é com o que ele possa estar envolvido agora. Pode ser que tenhamos chegado no meio de alguma coisa da qual não fazemos
a menor idéia.
Bosch arriou o binóculo. Rider estava certa. Ele ligou o motor do carro.
- OK, já demos a nossa olhada - disse. - Vamos dar o fora. Visitar Muriel Verloren.
- Que tal Panorama?
- Panorama pode esperar. Nós sabemos que ele não mora mais naquele endereço. Verificar isso será mera formalidade.
Bosch começou a recuar.
- Você acha que devíamos telefonar para Muriel antes?
- Não. Vamos bater direto na sua porta.
- Somos bons nisso.
Capítulo 12

Em dez minutos eles estavam na frente da casa dos Verloren. O bairro onde Becky Verloren vivera ainda parecia agradável e seguro. Red Mesa era uma rua larga com
calçadas dos dois lados e sem carência de árvores frondosas. As casas, em sua maioria, tinham um único andar, telhado baixo e foram construídas em lotes extragrandes.
Nos anos 1960 eram as propriedades maiores que atraíam as famílias desejosas de se estabelecer no canto noroeste da cidade. Quarenta anos depois, as árvores crescidas
e adultas caracterizavam o bairro, que tinha profunda atração por elas.
A casa dos Verloren integrava o pequeno número das que tinham um segundo andar. Conservara o estilo clássico de casa de rancho, mas o telhado fora modificado para
incorporar a garagem de duas vagas. Bosch sabia, pelo que lera no livro do crime, que o quarto de Becky ficava nos fundos, em cima da garagem.
A porta da garagem estava fechada. Nada indicava que houvesse alguém em casa. Eles estacionaram na entrada de carros e se dirigiram à porta da frente. Quando Bosch
acionou a campainha, escutou o toque ecoar lá dentro, uma nota só, que, a seus ouvidos, pareceu distante e solitária.
Quem atendeu foi uma mulher que usava um vestido azul de enfiar pela cabeça, um vestido sem forma que a ajudava a esconder o próprio corpo, igualmente sem forma.
Usava sandálias rasteiras.
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O cabelo era tingido de um vermelho em que havia excesso de laranja. Parecia pintado em casa e não ter saído como o planejado, só que ela não percebera ou se importara.
Assim que abriu a porta, um gato cinza aproveitou e disparou para fora.
- Smoke, não vá ser atropelado! - gritou ela primeiro, com o gato. Depois virou-se para eles: - Pois não?
- Sra. Verloren? - perguntou Rider.
- Sim, o que desejam?
- Nós somos da polícia. Gostaríamos de falar com a senhora sobre a sua filha.
Assim que Rider pronunciou a palavra "polícia" e antes que chegasse a "filha", Muriel Verloren levou ambas as mãos à boca e reagiu como se estivesse tomando conhecimento
da morte da filha naquele momento.
- Oh, meu Deus! Oh, meu Deus! Diga que vocês o pegaram! Diga que vocês pegaram o filho da mãe que tirou minha filhinha de mim.
Rider estendeu o braço e colocou a mão no ombro da mulher para reconfortá-la.
- Não é assim tão simples - disse. - Podemos entrar e conversar?
Ela recuou e deixou que entrassem. Parecia estar murmurando qualquer coisa, e Bosch imaginou que fosse uma oração. Uma vez que estavam do lado de dentro, fechou
a porta, depois de soltar outro grito de advertência para o gato fugido.
A casa cheirava como se o gato não fugisse com a freqüência necessária. A sala de estar para onde foram conduzidos era bemarrumada, mas com a mobília velha e usada.
Sentia-se o odor inconfundível de urina de gato por toda parte. Bosch de repente arrependeu-se de não ter convidado Muriel Verloren para uma entrevista no Parker
Center, mas sabia que teria sido um erro. Ele e Rider precisavam ver a casa.
Sentaram-se lado a lado no sofá, e Muriel ficou com uma das Poltronas do outro lado da mesa de centro de tampo de vidro. Bosch notou marcas de patas no vidro.
- O que é? - perguntou ela, desesperada. - Alguma notícia?
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- Bem, acho que a notícia é que estamos investigando o caso de novo - respondeu Rider. - Eu sou a detetive Rider, e ele, o detetive Bosch. Trabalhamos para a Unidade
de Casos Não Resolvidos, com sede na chefia de polícia, no Parker Center.
No caminho para lá, Bosch e Rider tinham decidido ter cuidado com as informações que dariam a membros da família Verloren. Enquanto não conhecessem bem a situação
da família, era melhor colher informações do que dar.
- Tem alguma novidade? - perguntou Muriel, aflita.
- Bem, nós só estamos começando - respondeu Rider. - Estamos refazendo uma parte dos caminhos antigos. Tentando ganhar velocidade. Só queríamos passar aqui e lhe
dizer que estamos trabalhando no caso de novo.
Ela pareceu ficar um pouco desanimada. Devia ter pensado que, para a polícia aparecer tantos anos depois, devia ter acontecido algo de novo. Bosch sentiu uma pontada
de culpa por sonegar a informação de que tinham uma prova sólida como uma rocha de uma identificação por DNA - um cola hit - com que trabalhar, mas naquele momento
acreditava que era para o bem.
- Há umas coisinhas - disse ele, falando pela primeira vez. Primeiro, ao examinar os arquivos do caso, encontramos esta foto.
Ele tirou do bolso a foto de Roland Mackey com 18 anos e colocou-a na mesa de tampo de vidro na frente de Muriel. Ela imediatamente se debruçou para examiná-la.
- Não temos certeza de qual seria a ligação - continuou ele. Achamos que a senhora talvez reconhecesse esse homem e nos dissesse se o conheceu naquele tempo.
Ela continuou sem responder.
- É uma foto de 1988 - disse Bosch, para ver se ela dizia alguma coisa.
- Quem é ele? - perguntou ela finalmente.
- Não temos certeza. O nome é Roland Mackey. Tem um prontuário de pequenos crimes cometidos após a morte de sua filha. Não sabemos ao certo por que a foto dele estava
no arquivo. A senhora o reconhece?
- Perguntaram a Art ou Ron?

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Bosch ia começar a perguntar quem eram Art e Ron, quando se deu conta.
- Na verdade, o detetive Green se aposentou, e faleceu muito tempo atrás. O detetive Garcia agora é o comandante Garcia. Falamos com ele, sim, mas ele não pôde nos
ajudar com Mackey. E a senhora? Será que foi um dos conhecidos de sua filha? A senhora o reconhece?
- Talvez tenha sido um conhecido de Becky, sim. Há qualquer coisa nele que eu reconheço.
Bosch balançou a cabeça.
- Sabe como o reconhece ou de onde?
- Não, não me lembro. Por que não me dizem? Talvez isso acione minha memória.
Bosch deu uma olhada para Rider. Não era totalmente inesperado, mas as coisas sempre se complicavam quando os pais da vítima se mostravam tão ansiosos por ajudar,
que simplesmente perguntavam o que a polícia queria que dissessem. Muriel Verloren esperara por 17 anos que o assassino da filha fosse descoberto à luz do sistema
de justiça. Era evidente que ia escolher cuidadosamente respostas que não pudessem de jeito nenhum atrapalhar a possibilidade de isso acontecer. Àquela altura, podia
inclusive nem ter importância se fosse uma falsa luz. Os anos decorridos tinham sido cruéis para ela e para a memória da sua filha. Alguém ainda precisava pagar.
- Não podemos lhe dizer porque não sabemos, Sra. Verloren disse Bosch. - Pense nisso e nos diga se vier a se lembrar quem era ele.
Ela balançou a cabeça tristemente, como se considerasse que aquela era outra oportunidade perdida.
- Sra. Verloren, o que a senhora faz para viver? - perguntou Rider.
A pergunta trouxe a mulher que estava na frente deles de volta de suas lembranças e desejos.
- Vendo coisas. - A resposta dela teve um tom prático, despido de emoções. - On Une.
Eles esperaram mais explicações, que não vieram.
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- E mesmo? - disse Rider. - Como assim? Que coisas a senhora vende?
- Vendo o que encontro. vou a essas vendas que as pessoas organizam nos seus quintais. Encontro coisas. Livros, brinquedos, roupas. Esta manhã vendi duas argolas
de guardanapos por cinqüenta dólares. Eram muito antigas.
- Nós queríamos perguntar ao seu marido se ele reconhece a pessoa da foto - disse Bosch. - Sabe onde poderíamos encontrá-lo?
Ela sacudiu a cabeça.
- Em algum ponto do distrito dos brinquedos. Não tenho notícias dele há muito, muito tempo.
Um momento sombrio de silêncio sobreveio. As missões que atendiam aos sem-teto no centro de Los Angeles ficavam, em sua maioria, na orla da região onde havia diversas
quadras de fabricantes e atacadistas de brinquedos e até mesmo uns poucos varejistas. Não era raro encontrar sem-teto dormindo nos portais das lojas de brinquedos.
O que Muriel Verloren estava lhes dizendo era que seu marido tinha se perdido em um mundo de fragmentos humanos. Decaíra de dono de restaurante que recebia as estrelas
de Hollywood para uma vida de sem-teto nas ruas. Havia uma contradição, contudo. Ele ainda tinha uma casa. Não poderia permanecer ali por causa do que acontecera.
Sua esposa, contudo, jamais sairia.
- Quando vocês se divorciaram? - perguntou Rider.
-Nós nunca nos divorciamos. Sempre achei que Robert ia acordar e descobrir que, por mais longe que fosse, não conseguiria fugir do que nos aconteceu. Pensei que
entenderia isso e voltaria para casa. Ainda não aconteceu.
- A senhora acha que conhecia todos os amigos da sua filha? perguntou Bosch.
Muriel pensou um longo momento antes de responder.
- Até a manhã em que ela desapareceu, eu pensava. Mas aí descobrimos coisas. Ela guardava segredos. Isso é uma das coisas que mais me aborrece. Não que ela guardasse
segredos de nós, mas que pensasse que tinha que guardar. Acho que se ela tivesse nos procurado as coisas talvez tivessem sido diferentes.
- A senhora se refere à gravidez? Muriel balançou a cabeça.
- O que a faz pensar que a gravidez teve importância no que aconteceu a ela?
- É só um instinto de mãe. Não tenho provas. Só acho que começou com isso.
Bosch assentiu. Mas não podia culpar a filha pelos seus segredos. Quando tinha a idade dela Bosch era sozinho, sem pais de verdade. Não tinha idéia de como seria
esse relacionamento.
- Nós conversamos com o comandante Garcia - disse Rider. Ele disse que há alguns anos lhe devolveu o diário da sua filha. A senhora ainda o tem?
Muriel pareceu alarmada.
- Leio um trecho dele todas as noites. Vocês não vão tirá-lo de mim, vão? É a minha bíblia!
- Precisamos pedir emprestado para fazer uma cópia. O comandante Garcia devia ter feito naquele tempo, mas não fez.
- Não quero perdê-lo.
- Não vai perdê-lo, Sra. Verloren. Prometo. Tiramos uma cópia e devolvemos logo.
- Vão querer agora? Ele está do lado da minha cama.
- Vamos, sim, se não for incômodo para a senhora.
Muriel Verloren deixou-os e desapareceu em um corredor que se dirigia para o lado esquerdo da casa. Bosch virou-se para Rider e levantou as sobrancelhas, como se
perguntasse o que ela pensava. Rider encolheu os ombros, dando a entender que falariam depois sobre isso.
- Uma vez minha filha disse que queria outro gato - murmurou ele. - Minha ex disse que não, que um era bastante. Agora sei por quê.
Rider sorria despropositadamente, quando Muriel voltou carregando um livrinho de capa florida e as palavras "Meu Diário" gravadas em ouro. O ouro já começava a se
soltar, numa prova de que o diário era muito manuseado. Muriel entregou-o a Rider, que fez Questão de segurá-lo reverentemente.
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- Se não se incomoda, Sra. Verloren, gostaríamos de dar uma volta por aí - disse Bosch. - Precisamos fazer uma ligação do que vimos e lemos no livro com a planta-baixa
real da casa.
- Que livro?
- Desculpe. E jargão policial. Todos os registros das investigações realizadas por nós são arquivados em uma pasta grande de folhas soltas que chamamos de livro.
- Um livro do crime?
- É, isso mesmo. Tem problema se dermos uma volta por aí? Eu gostaria de dar uma olhada na porta de trás e também no terreno dos fundos.
Ela assinalou o lado para onde deviam ir com o braço erguido. Bosch e Rider se levantaram.
- Está tudo mudado - avisou Muriel. - Antigamente não havia casas. A gente saía porta afora e podia subir direto o morro. Mas ele foi cortado, formando terraços,
e construíram casas. Casas de milhões de dólares. Levantaram uma mansão bem no lugar em que minha filhinha foi encontrada. Odeio essa mansão.
Não havia nada o que dizer a isso. Bosch fez um gesto com a cabeça e seguiu-a no corredor pequeno que dava na cozinha. A porta do quintal tinha uma janela de vidro.
Muriel destrancou-a e todos saíram. O quintal era uma subida íngreme que ia dar num renque de eucaliptos. Por entre as árvores Bosch pôde ver a linha do telhado
de uma casa grande, com telhas em estilo espanhol.
- Antigamente era tudo aberto - disse Muriel. - Só árvores. Agora são casas. Tem um portão. Não me deixam subir a pé, como eu costumava fazer. Pensam que sou uma
mendiga ou algo assim, porque eu gostava de às vezes fazer um piquenique no lugar onde Becky se foi para sempre.
Bosch concordou e pensou por um momento em uma mãe fazendo um piquenique no lugar em que a filha fora assassinada. Tentou livrar-se da idéia e estudar o terreno
da encosta. Segundo a necropsia, Becky Verloren pesava 58 quilos. Mesmo sendo leve, teria sido uma luta subir com ela aquele aclive. Ele pensou na possibilidade
de ter havido mais de um assassino. Pensou em Bailey Sable dizendo eles.
113
Olhou para Muriel Verloren, que estava de pé, quieta e em silêncio, os olhos fechados. Tinha virado tanto a cabeça, que o sol
de fim de tarde aquecera seu rosto.
Bosch perguntou-se se seria algum tipo de comunhão com a filha perdida. Como se sentisse que ele a estava fitando, ela falou, mantendo os olhos fechados.
- Amo este lugar. Jamais sairei daqui.
- Podemos olhar o quarto de sua filha? - perguntou Bosch. Ela abriu os olhos.
- Limpem os pés quando entrarmos.
Ela os levou de volta pela cozinha e o corredor. A escada começava junto da porta que dava para a garagem. A porta estava aberta, e Bosch deu uma espiada em uma
minivan muito danificada cercada de pilhas de caixas e coisas que Muriel Verloren devia coletar. Notou também como a porta da garagem ficava perto da escada. Não
sabia se isso teria algum significado, mas lembrava de um relatório no livro do crime que sugeria que o assassino tinha se escondido em algum lugar e esperado que
a família fosse dormir. A garagem seria um esconderijo provável.
A escada era estreita, porque um dos lados era revestido até em cima com as coisas do comércio de quintal de Muriel. Rider foi à frente. Muriel fez um sinal para
que Bosch a seguisse e, quando ele passou, ela sussurrou:
- O senhor tem filhos?
Ele fez que sim, sabendo que a resposta ia doer.
- Tenho uma filha.
Ela respondeu balançando a cabeça.
- Nunca a perca de vista.
Bosch não disse que ela morava com a mãe, completamente fora de sua vista. Limitou-se a assentir e subir a escada.
No segundo andar havia um patamar e dois quartos, com um banheiro no meio. O quarto de Becky Verloren era o dos fundos,
com as janelas dando para o morro.
A porta estava fechada, e Muriel abriu-a. Quando entraram, foi como pisar em um túnel do tempo. O quarto não
sofrera uma única mudança desde as fotos tiradas 17
anos antes, que Bosch estudara no livro do crime. O resto da casa estava atulhado de lixo e
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detritos de uma vida desintegrada, mas o quarto onde Becky Verloren dormira, falara ao telefone e escrevera no seu diário secreto estava inalterado. Já estava sendo
preservado
por mais tempo do que fora o tempo de vida da garota.
Bosch entrou mais e olhou em torno silenciosamente. Nem mesmo o gato se metia ali. O ar tinha cheiro de limpo e fresco.
- Exatamente como na manhã em que ela se foi - disse Muriel,
- Exceto por eu ter feito a cama.
Bosch examinou o edredom com estampas de gatos. Ele passava por cima das bordas e sobrepunha-se à saia da cama, que se lançava graciosamente até o chão.
- Você e seu marido estavam dormindo do outro lado da casa, certo? - perguntou Bosch.
- Exato, Rebecca estava naquela idade em que fazia questão de sua privacidade. Há dois quartos no andar térreo, do outro lado da casa. Seu primeiro quarto era lá.
Mas quando fez 14 anos mudou-se para cá.
Bosch balançou a cabeça, concordando, e olhou em torno antes de perguntar mais alguma coisa.
- Com que freqüência vem aqui, Sra. Verloren? - quis saber Rider.
- Todo santo dia. Às vezes, quando não consigo dormir - o que acontece grande parte do tempo -, venho aqui e me deito, Não me deito sob as cobertas, entende? Só
quero deitar na cama dela.
Bosch percebeu que estava balançando a cabeça de novo, como se o que ela dissera fizesse sentido para ele. Adiantou-se até a penteadeira. Havia fotos enfiadas na
moldura do espelho. Bosch reconheceu a jovem Bailey Sable em uma delas. Havia também uma foto de Becky sozinha na frente da torre Eiffel, usando uma boina preta.
Nenhum dos participantes da viagem do Clube de Arte estava presente.
Também no espelho havia uma foto de um menino com Becky. A impressão que dava era de que passeavam na Disneylândia, mas também podia ser que estivessem apenas no
píer
de Santa Mônica.
-Quem é?
Muriel aproximou-se e olhou.
115
- O menino? Danny Kotchof. Seu primeiro namorado. Bosch fez que sim. O menino que tinha se mudado para o Havaí.
- Quando ele se mudou, ela sofreu muito - acrescentou Muriel.
- Quando exatamente foi isso?
- No verão anterior, em junho. Logo depois de ela cursar o primeiro ano, e Danny, o segundo. Ele era um ano mais velho.
- Por que a família dele se mudou, a senhora sabe?
- O pai de Danny trabalhava para uma empresa de locação de automóveis e foi transferido para uma nova franquia em Maui. Foi uma promoção.
Bosch deu uma olhada para Rider, querendo ver se ela captara o significado da informação que Muriel acabara de dar. Rider sacudiu a cabeça uma vez, sutilmente. Não
tinha captado. Mas Bosch fez questão de insistir.
- Danny freqüentou também a Hillside? - perguntou.
- Ah, sim, foi lá que se conheceram.
Bosch reparou que em cima da bancada da penteadeira havia um suvenir barato de um globo de neve com a torre Eiffel dentro. Um pouco da água tinha se evaporado, deixando
uma bolha na parte de cima do globo, e a ponta da torre saindo de dentro da água e se metendo na bolsa de ar.
- Danny fazia parte do Clube de Arte? - indagou Bosch. - Fez a viagem a Paris com ela?
- Não, eles se mudaram antes. Ele se mudou em junho, e o clube foi a Paris na última semana de agosto.
- Ela voltou a ver ou ter notícias dele novamente? - perguntou Bosch.
- Ah, sim, trocaram muitas cartas e também telefonemas. A princípio, todos dois telefonavam, mas ficou muito dispendioso, e aí Danny passou a fazer a maior parte
dos telefonemas. Toda noite antes de dormir. Isso durou até... Até que ela se foi.
Bosch adiantou-se e retirou o retrato da borda do espelho. Examinou detidamente o rosto de Danny Kotchof.
- O que aconteceu quando sua filha se foi? Como Danny descobriu? Como reagiu?
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- Bem... Nós ligamos para lá e contamos ao pai dele, para que pudesse se sentar com o filho e lhe dar a má notícia. Depois nos contaram que ele não aceitou bem.
Quem aceitaria?
- O pai contou a Danny. A senhora ou seu marido falaram diretamente com o menino?
- Não, mas Danny me escreveu uma longa carta a respeito de Becky e do quanto ela significava para ele. Muito triste e muito doce. Como tudo.
- Tenho certeza que sim. Ele veio para o funeral?
- Não, não veio. Seus, bem, seus pais acharam que seria melhor para ele se ficasse nas ilhas. O trauma, entende? O Sr. Kotchof telefonou e disse que ele não vinha.
Bosch fez que sim. Deu as costas para o espelho da penteadeira, metendo o retrato no bolso. Muriel não notou.
- E depois? Quer dizer, depois da carta. Ele entrou em contato com a senhora? Pelo telefone, talvez?
- Não, acho que não. Não depois da carta.
- A senhora ainda tem essa carta? - perguntou Rider.
- Claro, eu guardo tudo. Tenho uma gaveta cheia com as cartas que recebemos sobre Rebecca. Ela era uma garota amada.
- Precisamos pedir que nos empreste essa carta, Sra. Verloren
- disse Bosch. - Depois vamos precisar também que a senhora dê uma olhada em toda a gaveta.
- Por quê?
- Porque nunca se sabe - respondeu Bosch.
- Porque não queremos deixar pedra sobre pedra - acrescentou Rider. - Sabemos que vai desarrumar suas coisas, mas, por favor, lembre-se do que estamos fazendo. Queremos
encontrar a pessoa que fez isso com a sua filha. Já se passou muito tempo, mas isso não quer dizer que o criminoso possa continuar em liberdade.
Muriel Verloren concordou em silêncio. Tinha apanhado, distraidamente, um travesseirinho pequeno de cima da cama e o estava segurando com ambas as mãos em cima do
peito. Podia ter sido feito pela filha muitos anos atrás. Era um quadrado azul com um coração vermelho de feltro costurado no meio. Segurando-o, Muriel Verloren
mais parecia um alvo.

Capítulo 13
Enquanto Bosch dirigia, Rider lia a carta que Danny Kotchof escrevera para os Verloren após o assassinato de Becky. Só tinha uma página, preenchida basicamente com
suas apaixonadas lembranças da filha perdida por eles.
- "Tudo o que posso dizer é que sinto muitíssimo que isso tivesse que acontecer. Sentirei falta dela sempre. Amor, Danny." E isso aí.
- Quando foi posta no correio? Ela virou o envelope.
- Maui, 29 de julho de 1988.
- Com certeza, gastou um bocado de tempo escrevendo.
- Deve ter sido difícil para Danny. Por que tanto interesse nele, Harry?
- O fato é Garcia e Green se apoiaram em um telefonema para inocentá-lo. Você se lembra do que dizia no livro? Que o supervisor do garoto afirmara que ele estava
lavando carros na agência de locação de automóveis naquele dia e no dia seguinte. Não havia tempo para pegar um avião para L.A., matar Becky e voltar para casa a
tempo de trabalhar.
- E daí?
Daí que agora descobrimos pela Muriel que o pai dele administrava uma locadora de automóveis. Não havia uma palavra
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sobre isso no livro do crime. Será que Garcia e Green sabiam disso? Quanto quer apostar que era o pai dele quem administrava o lugar onde o filho lavava carros?
Quanto quer apostar que o supervisor que deu o álibi para o filho trabalhava para o pai?
- Cara, eu estava brincando quando falei em ir a Paris. Está parecendo que você quer arranjar uma viagem a Maui.
- Eu só não gosto de trabalho malfeito. Trabalho que deixa as pontas soltas. Temos que falar com Danny Kotchof e inocentá-lo nós mesmos. Se isso for possível, depois
de tantos anos.
- AutoTrack, Harry.
- Pode servir para encontrá-lo para nós. Não para inocentá-lo.
- Supondo que consigamos derrubar o álibi dele, você está querendo dizer que esse garoto de 16 anos saiu sorrateiramente do Havaí para a Califórnia, matou a antiga
namorada e voltou para o Havaí sem que ninguém visse?
- Talvez não tenha planejado desse jeito. E ele tinha 17 anos. Muriel disse que era um ano mais velho que Becky.
- Ah, sim, 17 - repetiu sarcasticamente, como se fosse fazer toda a diferença do mundo.
- Quando eu tinha 18 anos consegui uma licença do Vietnã para passar um tempo no Havaí. De lá você não era autorizado a ir para o território continental dos Estados
Unidos. Assim que cheguei ao Havaí, troquei de roupa, comprei uma mala com aparência de civil e passei direto pelos MP para pegar um avião para L.A. Ou seja, acho
que um garoto de 17 anos teria conseguido fazer a mesma coisa.
- Tudo bem, Harry. Você está certo.
- Olhe, só estou querendo dizer que foi um trabalho desmazelado. De acordo com o livro do crime, Garcia e Green inocentaram esse cara com um telefonema. Não tem
nada lá sobre verificação de vôos, e agora é tarde demais. Fico grilado.
- Eu entendo. Mas não se esqueça de que temos um triângulo lógico para completar. Podemos conectar Danny a Becky com facilidade, e a arma liga Becky a Mackey.
Mas o que liga Danny a Mackey?
Bosch assentiu. Era um bom ponto. Mas não o fez se sentir melhor a respeito de Danny Kotchof.
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- Outra coisa é o que ele escreveu na tal carta. Disse que sentia muito que aquilo tivesse que acontecer. Tivesse que acontecer o que isso quer dizer?
- É só uma maneira de dizer, Harry. Você não pode construir um caso com uma maneira de dizer.
- Não estou falando em construir um caso. Só queria saber por que preferiu se expressar assim.
- Se Danny Kotchof ainda estiver vivo, nós o encontraremos e você lhe fará essa pergunta diretamente.
Eles tinham passado por baixo da 405 e se encontravam na cidade de Panorama. Bosch deixou de lado a discussão sobre Danny Kotchof, e Rider trouxe à baila Muriel
Verloren.
- Ela congelou - disse Rider.
- E isso aí.
- Uma lástima. Não havia razão para que levassem a filha para o morro. Podiam ter matado todo mundo dentro da casa. De qualquer modo, foi o que fizeram.
Bosch achou que aquele era um modo muito duro de ver as coisas, mas nada disse.
- Levassem? - perguntou ele.
-O qUê?
- Você disse que não havia razão para que levassem a filha dos Verloren para cima do morro. Pareceu a Bailey Sable.
- Não sei. Olhando para o morro... Teria sido muito difícil para uma só pessoa, íngreme demais.
- É. u estava pensando a mesma coisa. Duas pessoas.
- Sua idéia de dar um susto em Mackey melhora. Se ele esteve presente, pode nos levar até o outro - seja Kotchof ou outro qualquer.
Bosch virou para o sul no bulevar Van Nuys e parou em frente a um conjunto habitacional já bem velho que ocupava metade do quarteirão. Chamava-se Panorama View Suites.
Havia um cartaz que dizia LOCAÇÃO DE APARTAMENTOS à esquerda das portas de vidro do saguão. O cartaz também dizia que as unidades estavam disponíveis em contratos
semanais ou mensais. Bosch pôs a transmissão automática em ponto morto.
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- Além de Kotchof, Harry, em que mais você está pensando?
- Eu estava pensando que posso localizar as outras duas amigas e conversar com elas. Talvez você possa falar com a lésbica. Mas o pai é minha prioridade... se pudermos
encontrá-lo.
- OK. Você fica com o pai, e eu fico com a lésbica. Talvez eu dê um pulo em São Francisco.
- É em Hayward, Rider, não em San Francisco. E se você precisar de ajuda conheço um inspetor lá que a localiza e economiza o custo da viagem a Los Angeles.
- Você realmente não sabe brincar, Harry. Eu gostaria de visitar minhas irmãs do norte.
- O chefe sabia a seu respeito?
- A princípio, não. Quando descobriu, não se incomodou. Bosch balançou a cabeça. Gostou do chefe por aquilo.
- O que mais? - perguntou Rider.
- Sam Weiss?
- De quem se trata?
- A vítima do roubo com arrombamento. O que teve a arma depois usada para matar a garota.
- Por que ele?
- Eles não tinham Roland Mackey naquele tempo. Talvez valha a pena ver se há uma ligação.
- Afirmativo.
- Depois disso, acho que estaremos prontos para montar o esquema com Mackey, ver como ele reage.
- Então vamos acabar logo com isso para ir falar com Pratt. Eles abriram as portas ao mesmo tempo e saltaram. Quando
Bosch contornou o carro, sentiu que Rider o estava olhando, estudando.
- Que foi? - perguntou ele.
- Tem mais uma coisa.
U
- Como assim?
- É você. Quando aparece uma ruga na sua sobrancelha esquerda, sei que está havendo alguma coisa.
- Minha ex-mulher dizia que eu não era um bom jogador de pôquer. Muita coisa para me denunciar.
- Bem, o que é?
- Ainda não sei. Qualquer coisa naquele quarto.
- Lá na casa? O quarto de Becky Verloren? Você achou esquisito o jeito como ela conserva o quarto?
- Não, na verdade acho isso legal. E outra coisa. Alguma coisa errada. Diferente. vou pensar nisso, e quando descobrir o que é falo com você.
- OK, Harry, é nisso que você é bom.
Eles passaram pela porta de vidro do Panorama View Suites. Em dez minutos confirmaram o que sabiam antes de entrar; que Mackey se mudara assim que terminara o período
de suspensão da pena.
Como esperado, não deixara o novo endereço.
Capítulo 14
Abel Pratt estava sentado à sua mesa comendo uma mistura de iogurte e flocos de milho em um pote de plástico. Fazia ao mesmo tempo barulho de sugar e de estalar
enquanto comia, e isso dava nos nervos de Bosch. Estavam sentados com ele fazia vinte minutos, atualizando-o nos progressos do dia.
- Que merda, ainda estou com fome - disse ele quando terminou a última colherada.
- O que é isso, a dieta de South Beach? - quis saber Rider.
- Não, é invenção minha. O que eu preciso mesmo é da dieta do South Bureau.
- É mesmo? E o que é a dieta do South Bureau?
Bosch sentiu que Rider ficara tensa. South Bureau era a divisão do departamento que abrangia quase toda a comunidade negra da cidade de Los Angeles. Ela agora devia
estar querendo saber se o que Pratt acabara de dizer escondia algum comentário racial. Bosch vira muitas vezes no departamento a elevação do sistema nós versus eles
a um ponto tal, que tiras brancos faziam comentários cheios de conotação racial na frente de tiras latinos ou negros simplesmente por acreditarem que, dentro da
organização, a cor azul do uniforme se sobrepunha à cor da pele. Rider estava prestes a descobrir se Pratt era um desses tiras.
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- Pode recolher sua antena, Rider - disse Pratt. - Só estou dizendo que trabalhei no South Bureau durante dez anos e nunca tive que me preocupar com meu peso. Lá
você está sempre correndo de um lado para o outro. Aí vim para a Roubos e Homicídios e ganhei sete quilos em dois anos. É triste.
Rider relaxou, e Bosch também.
- Levante o rabo da cadeira e vá bater nas portas - disse Bosch.
- Era esta a regra em Hollywood.
- Boa regra - comentou Pratt. - Mas é difícil de seguir quando botam você como encarregado. Tenho que ficar sentado aqui e ouvir o que vocês contam sobre bater nas
portas.
- Mas você fica com mais dinheiro - disse Rider.
- Ah, fico.
Era piada, porque, como supervisor, Pratt não podia ganhar hora extra. Mas os que estavam na equipe podiam, criando desta forma a possibilidade de alguns dos seus
detetives ganharem mais que ele, mesmo que fosse o chefe da unidade.
Pratt girou a cadeira, abriu uma pequena geladeira ao seu lado e pegou outro pote de iogurte.
- Que se foda - disse ele, sentando-se direito e abrindo o pote. Desta vez não acrescentou os flocos de milho. Bosch só teve
que agüentar o ruído com que ele sorvia as colheradas da gosma branca.
- OK, de volta ao trabalho - disse Pratt, boca cheia. - O que vocês estão me dizendo é que no fim do dia poderão ligar a arma a esse infeliz desse Mackey. Foi ele
quem a disparou. Mas vocês ainda não têm ninguém que o liguem à vítima, e por isso não lhe podem atribuir o tiro fatal.
- Isso e outras coisas - acrescentou Rider.
- Se eu fosse um advogado de defesa - continuou Pratt -, faria Mackey admitir culpa do arrombamento com roubo, porque isso já Prescreveu há muito tempo. Ele diria
que a pistola o "mordera" Quando ele a experimentara para se livrar dela... muito tempo antes de qualquer crime. Ele diria: "Não, senhor, eu não matei a menina com
ela, e o senhor não pode provar que matei. O senhor não Pode provar nem que pus os olhos em cima dela."
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Rider e Bosch concordaram, em silêncio.
- Em outras palavras, vocês não têm nada.
Mais uma vez eles concordaram em silêncio.
- Nada mau para um dia de trabalho. O que vão fazer a respeito?
- Queremos instalar uma escuta telefônica - respondeu Bosch.
- Dois, talvez três lugares. No celular dele, no telefone fixo e no aparelho do posto de gasolina. E depois um na sua casa, assim que verificarmos se ele tem uma
linha. Plantamos uma história no jornal dizendo que estamos trabalhando de novo no caso e nos asseguramos de que ele a leia. Depois vemos se ele fala com alguém.
- E o que o faz pensar que ele vai falar com alguém a respeito de um assassinato que possa ter ou não cometido 17 anos atrás?
- Como dissemos, até agora não conseguimos estabelecer uma ligação desse cara com a garota. De modo que achamos que deve haver alguém no meio. Ou Mackey a matou
para alguém ou conseguiu a arma para esse alguém matá-la com as próprias mãos.
- Há uma terceira possibilidade - acrescentou Rider. - Que ele tenha ajudado. A garota foi carregada uma íngreme encosta acima. Quem a levou era muito forte ou tinha
um ajudante.
Pratt comeu duas colheres de iogurte e examinou o fundo do pote com a testa franzida, antes de responder.
- OK, e o que me diz do jornal? Você vai preparar o que vai ser plantado?
-Achamos que sim. Vamos usar o comandante Garcia do Bureau do Vale. Ele trabalhou originalmente no caso. Nunca pode deixar de pensar no homem que escapou, esse tipo
de papo. O comandante diz que conhece alguém do Daily News.
- OK, está parecendo um plano. Escreva os mandados e me dê. O capitão tem que aprovar, e depois eles vão para o gabinete do promotor para aprovação antes de serem
levados ao juiz. Vai tomar algum tempo. Uma vez que consigamos um juiz que aprove, teremos que desviar as outras equipes do que estiverem fazendo para colocá-las
trabalhando no grampo enquanto vocês vigiam o cara.
Bosch e Rider se levantaram ao mesmo tempo. Bosch sentiu uma pequena descarga de adrenalina entrar na sua corrente sangüínea.
125
- Não há uma chance de que esse tal de Mackey esteja envolvido em alguma coisa agora, há? - perguntou Pratt.
- Como assim? - perguntou Bosch.
- Se conseguíssemos comprovar que ele está prestes a cometer um crime, nós provavelmente poderíamos expedir os mandados.
Bosch pensou um pouco.
- Não temos isso agora - disse. - Mas podemos providenciar.
- Ótimo. Ajudaria.
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Capítulo 15
Rider ficou encarregada do texto. Tinha familiaridade com o computador, e também com a linguagem legal. Bosch a vira utilizar esses talentos em diversas investigações
anteriores. Assim, a decisão deles foi tácita. Ela redigiria os mandados pedindo autorização do tribunal para rastrear e ouvir telefonemas feitos por ou para Roland
Mackey em seu telefone celular, no telefone do escritório do posto de gasolina onde trabalhava e no da sua casa, se ficasse comprovada a existência de um telefone
fixo lá. Seria um trabalho meticuloso; Rider teria que resumir o caso que tinham contra Mackey, assegurando-se de que a cadeia da lógica e da causa provável não
tivesse elos fracos. O que ela escrevesse tinha que convencer primeiro Pratt, depois o capitão Norona, em seguida o assistente de promotor encarregado de não permitir
que a polícia desconsiderasse as liberdades civis e, finalmente, o juiz que tinha as mesmas responsabilidades, mas que também responderia perante o eleitorado caso
cometesse um erro que viesse a explodir na sua cara. Tinham uma única chance e deviam aproveitá-la bem. Ou, por outra, Rider devia aproveitá-la bem.
Mas tudo isso veio depois de vencer a dificuldade inicial de conseguir os diferentes telefones de Mackey sem deixar transparecer ao suspeito que uma investigação
ia tomando forma em torno dele.
Começaram pela firma de reboques, que tinha um anúncio de meia página nas listas amarelas nos quais constavam dois telefones
dia e noite. A seguir, uma ligação para auxílio à lista estabeleceu que Mackey não tinha telefone fixo listado, privado ou não, em seu nome. Em outras palavras,
ou ele não tinha telefone em casa ou estava morando em uma casa onde o telefone era registrado no nome de outra pessoa. De qualquer modo, isso poderia ser visto
mais tarde, depois de determinarem a residência de Mackey.
O último e mais difícil foi o celular. Auxílio à lista não pode fornecer números de celulares. Checar cada empresa prestadora do serviço pode levar dias, se não
semanas, porque a maioria exige um mandado judicial para revelar o número de um cliente. Em vez de fazer isso, os investigadores rotineiramente utilizam artifícios
para conseguir os números que querem. Quase sempre é algo do tipo deixar mensagens inócuas nos lugares de trabalho das pessoas de modo que o número do celular possa
ser captado quando elas respondem. O mais popular desses recursos é o uso de mensagens padronizadas prometendo uma televisão ou um aparelho de DVD para as primeiras
cem pessoas que telefonarem. Isso, contudo, implica a instalação de uma linha não policial e também pode resultar em longos períodos de espera sem garantia de sucesso,
se o alvo mascarar o número do seu celular. Rider e Bosch não achavam que dispusessem de tanta fartura de tempo. Tinham tornado público o nome de Mackey e agora
precisavam se mover rapidamente na direção do objetivo.
- Não se preocupe - disse Bosch a Rider. - Tenho um plano.
- Então vou me sentar e observar o mestre.
Como sabia que Mackey estava de serviço no posto de gasolina, Bosch simplesmente ligou para lá e disse que precisava de um reboque. Mandaram que esperasse. Depois,
ele ouviu uma voz que acreditou pertencer a Roland Mackey.
Você precisa de reboque?
- Ou reboque ou uma chupeta na bateria. Não consigo dar a Partida.
-Onde?
- No estacionamento Albertson da Topanga com Devonshire. - Nós ficamos no fim da Tampa. Você pode arranjar alguém mais perto.
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- Eu sei, mas acontece que moro perto de vocês. Numa paralela à Roscoe, atrás do hospital.
- Tudo bem. Qual é o seu carro?
Bosch pensou no carro que tinha visto Mackey dirigindo antes. Decidiu forçar uma coincidência para forçá-lo a sair de cima do muro.
-Um Camaro 72. -Restaurado?
- Estou trabalhando nisso.
- Devo levar uns 15 minutos para chegar aí.
- OK, excelente. Qual é o seu nome?
-RO.
- Ro? Ro de quê... rolo compressor?
- Ro de Roland, cara. Estou a caminho.
Ele desligou. Bosch e Rider esperaram cinco minutos, durante os quais Bosch contou a ela o resto do plano e que parte desempenharia. Seu objetivo era conseguir duas
coisas: o número do celular de Mackey e o nome da operadora, de modo que o mandado autorizando a escuta pudesse ser endereçado à empresa certa.
Seguindo as instruções de Bosch, Rider ligou para o posto e começou a marcar uma revisão, entrando em grandes detalhes ao descrever o barulho que os freios faziam
ao serem acionados. Enquanto ela estava no meio do discurso, Bosch telefonou para o segundo telefone do posto que aparecia na lista. Como esperava, pediram que Rider
aguardasse. A ligação de Bosch foi atendida, e ele disse:
- Vocês têm um número que dê para falar com Ro? Ele está vindo para aplicar uma chupeta na minha bateria, e eu já consegui dar a partida no motor.
O colega de trabalho de Mackey respondeu do modo esperado:
- Tente o celular dele.
Ele deu o número, e Bosch levantou o polegar para Rider, que desligou sem se dar ao trabalho de terminar a encenação.
- Um já foi, falta outro - disse Bosch.
- Você ficou com a parte fácil - retrucou Rider.
Com o número do celular de Mackey na mão, Rider assumiu, enquanto Bosch ficava ouvindo na extensão.
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Revestindo a voz de um verniz burocrático desinteressado, ela ligou, e quando Mackey atendeu - presumivelmente ao mesmo tempo que procurava um Camaro 72 parado no
estacionamento de um shopping - anunciou ser da AT&T Celular, telefonando com uma notícia empolgante que lhe permitiria economizar dinheiro no seu atual plano de
ligações interurbanas.
- Papo furado - disse Mackey, interrompendo-a em meio ao discurso.
- Pois não, senhor?
- Eu disse papo furado. Mentira. Isso é um truque qualquer para me fazer trocar de operadora.
- Não entendo, senhor. Tenho o seu número aqui listado como sendo cliente da AT&T Celular. Não é esse o caso?
- Claro que não é o caso porra nenhuma. Sou da Sprint, gosto da Sprint e nem tenho nem quero um plano de serviço interurbano. Portanto, vá se foder. Está me ouvindo
agora?
Ele desligou, e Rider deu uma risada.
- Estamos lidando com um cara furioso - disse ela.
- Bem, ele dirigiu até Chatsworth para nada - disse Bosch. Eu também estaria furioso.
- O telefone dele é da Sprint - disse ela. - Posso seguir em frente com a papelada. Mas talvez você devesse ligar para ele, para que não fique desconfiado quando
o cara do posto disser que deu o número do celular dele.
Bosch concordou e ligou para o número de Mackey. Para sua sorte, caiu na caixa postal. Mackey provavelmente estava reclamando com o sujeito do posto por não ter
sido capaz de encontrar o carro que deveria rebocar. Bosch deixou um recado pedindo desculpas, mas conseguira fazer o carro pegar e estava tentando voltar para casa.
Fechou o telefone e olhou para Rider.
Os dois conversaram mais um pouco sobre o cronograma que Deveriam seguir e decidiram que ela ficaria exclusivamente encarregada dos mandados naquela noite e no dia
seguinte, acompanhando o andamento nos estágios de aprovação. Ela disse que queria que
Boch estivesse ao seu lado quando chegasse a hora da aprovação final. A presença dos dois no gabinete do juiz ajudaria a
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concretizar o trato. Até lá, Bosch seguiria com a parte operacional propriamente dita, rastreando os nomes restantes na lista que tinham organizado de pessoas a
serem interrogadas
e pondo em movimento a história que iria para o jornal. O cronograma seria muito importante. Não queriam que a história aparecesse no jornal antes que os telefones
usados por Mackey fossem grampeados. A chave do êxito residiria na cronometragem perfeita da cadeia de eventos.
- vou para casa, Harry - disse ela. - Posso dar a partida em tudo isso no meu laptop.
- Divirta'Se.
- O que você vai fazer?
- Tenho umas coisinhas que quero resolver hoje. Talvez dê um pulo até o distrito dos brinquedos.
- Sozinho?
- São apenas sem-teto.
- Você tem razão, mas oitenta por cento deles são sem-teto porque não batem bem. Tenha cuidado. Talvez seja melhor você ligar para a Divisão Central e pedir um carro.
Talvez possam ceder o "submarino" hoje.
O "submarino" era um carro para um só policial que atuava como auxiliar em operações de vigilância. Bosch, contudo, achou que não precisava de companhia. Garantiu
a Rider que ficaria bem e que ela poderia ir depois que lhe mostrasse como usar o AutoTrack.
- Bem, Harry, antes de tudo você precisa de um computador. No meu caso, usei o laptop.
Ele deu a volta para se colocar ao lado dela. Rider entrou no portal do AutoTrack, forneceu sua senha e chegou à página de busca.
- Com quem você vai querer começar? - perguntou ela.
- Que tal Robert Verloren?
Ela digitou o nome e estabeleceu os parâmetros de busca.
- É rápido esse mecanismo? - quis saber Bosch.
- Muito.
Em poucos minutos ela havia localizado uma trilha que a levaria ao pai de Rebecca Verloren. Mas não conseguiu ir além da casa de Chatsworth. Robert Verloren não
atualizara a carteira de motorista,
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não comprara imóvel, não se registrara para votar, não solicitara cartão de crédito ou tampouco tivera uma conta de luz, gás ou telefone em seu nome nos
últimos dez anos. Uma não-pessoa. Tinha desaparecido. Pelo menos da rede eletrônica.
- Deve estar ainda pelas ruas - disse Rider.
- Se ainda estiver vivo.
Rider digitou os nomes de Tara Wood e Daniel Kotchof, e o resultado indicava múltiplas correspondências para ambos. Mas, usando suas idades aproximadas e se concentrando
no Havaí e na Califórnia, estreitaram a busca para duas seqüências de endereços que acreditavam pertencer aos Tara Wood e Daniel Kotchof que interessavam. Wood podia
não ter ido à reunião de sua turma, mas não por morar longe. Ela apenas se mudara do Vale para Santa Mônica, do outro lado das montanhas. Já Daniel Kotchof, tudo
indicava que tinha retornado do Havaí muitos anos antes, morara em Venice por algum tempo e depois retornara a Maui, onde ficava seu endereço atual.
O último nome que Bosch deu a Rider para pesquisar foi o de Sam Weiss, a vítima do arrombamento cuja arma fora usada para matar Rebecca Verloren. Embora houvesse
centenas de nomes idênticos, foi fácil encontrar o desejado. Não se mudara da casa em que se dera o arrombamento. Tinha inclusive o mesmo número telefônico. Ele
mantivera sua posição.
Rider imprimiu tudo para Bosch e também lhe deu o número de Grace Tanaka, que tinham conseguido antes com Bailey Sable, na escola. Depois pegou tudo de que iria
precisar para trabalhar em casa nos requerimentos de mandados de busca.
- Se precisar, me chame pelo pager - disse, enquanto guardava o laptop em um estojo acolchoado.
Depois que ela saiu, Bosch checou o relógio por cima da porta de Pratt e viu que eram pouco mais de seis horas. Decidiu passar uma hora mais ou menos pesquisando
os nomes antes de sair Para o distrito dos brinquedos a fim de procurar Robert Verloren. Sabia que estava apenas adiando o início da busca naquela região cheia de
pessoas descartadas, algo que sem dúvida o deixaria deprimido. Assim, verificou de novo as horas e prometeu a
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si próprio que não passaria mais de uma hora trabalhando ao telefone.
Decidiu começar pelos mais próximos, mas rapidamente teve que mudar de plano. Os telefonemas para Tara Wood e Sam Weiss não foram atendidos, e ele foi remetido a
um sistema de mensagens automáticas. Deixou um recado para Tara Wood identificando-se, dando o seu celular e esclarecendo que o telefonema dizia respeito a Becky
Verloren. Esperava que a menção ao nome da amiga fosse o suficiente para deixá-la curiosa e extrair uma resposta dela. Com Sam Weiss, deixou apenas nome e número,
sem querer alertá-lo sobre o motivo do chamado, porque o roubo da pistola podia ser uma fonte de culpa para o homem que indiretamente proporcionara a arma que tinha
matado uma garota de 17 anos de idade.
Em seguida ligou o número de Grace Tanaka em Hayward, e ela atendeu ao sexto toque. Desde o princípio pareceu aborrecida com o telefonema, como se tivesse sido interrompida
em algo importante, mas os modos rudes e a voz áspera se suavizaram assim que Bosch disse que estava ligando acerca de Rebecca Verloren.
- Oh, meu Deus, aconteceu alguma coisa?
- O departamento está muito interessado em investigar novamente o caso - explicou Bosch. - Surgiu um nome. Trata-se de um indivíduo que pode ter estado envolvido
no caso em 1988, e estamos tentando descobrir se ele se relacionava de alguma forma com Becky ou com alguma das suas amigas.
- Qual é o nome dele? - apressou-se ela a dizer.
- Roland Mackey. Era uns dois anos mais velho que Becky. Não foi aluno da Hillside, mas morava em Chatsworth. O nome diz alguma coisa a você?
- Não, na verdade, não. Qual era a ligação dele? Era o pai?
- O pai?
- A polícia disse que ela estava grávida. Quer dizer que ela estivera grávida antes.
- Não, nós não sabemos se ele tinha esse tipo de relacionamento com Becky ou não. Quer dizer que você não reconhece o nome?
-Não.
- Ele é chamado pela primeira sílaba, Ro.
- Continuo sem reconhecer.
- E você está dizendo que não sabia da gravidez, certo?
- Não sabia. Nenhuma de nós sabia, quer dizer, as amigas dela.
Bosch assentiu, mesmo que ela não o estivesse vendo. Não disse nada, na esperança de que ela se sentisse pouco à vontade com o silêncio e dissesse qualquer coisa
de valor.
- Bem, você tem um retrato do homem? - perguntou ela finalmente.
Não era o que Bosch queria.
- Tenho - respondeu ele. - vou ter que imaginar um modo de ir até aí para que você possa dar uma olhada e ver se desperta alguma lembrança.
- Não pode simplesmente escanear o retrato e mandar por e-mail?
Bosch sabia o que ela estava querendo, e embora não fosse capaz de fazer sozinho imaginava que Kiz Rider provavelmente o fizesse.
- Acho que sim, acho que podemos fazer isso. Mas a minha parceira é que trabalha com o computador, e ela não está aqui no momento.
- vou lhe dar meu endereço, e ela pode me mandar quando voltar.
Bosch escreveu o endereço que Grace Tanaka ditou em seu bloquinho e disse que ela receberia o e-mail com o retrato na manhã seguinte.
- Mais alguma coisa, detetive?
Bosch sabia que podia terminar a ligação e dar a Rider uma chance de fazer amizade com Grace Tanaka depois que a foto fosSe remetida. Mas decidiu não perder a oportunidade
de começar a Despertar emoções e memórias. Talvez surgisse alguma coisa.
- Tenho só mais umas perguntas. Naquele verão, como você Definiria seu relacionamento com Becky?
- Como assim? Éramos amigas. Eu a conhecia desde o primeiro ano.
- Certo, bem, você era a mais íntima dela, na sua opinião?
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- Não, acho que devia ser a Tara.
Outra confirmação de que no fim Tara fora a amiga mais íntima de Becky.
- Então ela não lhe confidenciou que tinha ficado grávida?
- Não, já lhe falei, só vim a saber depois que ela apareceu morta.
- Ela era sua confidente?
- Irrestritamente?
- Detetive, aonde está querendo chegar?
- Ela sabia que você era gay?
- O que isso tem a ver?
- Só estou tentando formar um retrato do grupo, o Kitty Kat Club, acho que era assim que as quatro eram chamadas.
- Não - disse ela abruptamente. - Becky não sabia. Nenhuma delas sabia. Acho que nem eu mesma sabia naquele tempo. OK, detetive? Ficou satisfeito?
- Desculpe, Sra. Tanaka. Só estou tentando montar o quadro mais completo possível. Agradeço sua sinceridade. Uma última pergunta. Se Becky estivesse na clínica depois
da curetagem e precisasse de uma carona para casa por achar que não poderia dirigir, quem ela teria chamado?
Houve um longo silêncio antes que Grace Tanaka respondesse.
- Não sei, detetive. Eu teria esperado que ela me chamasse. Que eu fosse esse tipo de amiga. Mas obviamente foi alguma outra pessoa.
- Tara Wood?
- Você terá que perguntar a ela. Boa noite, detetive Bosch.
Ela desligou, e Bosch abriu o anuário para examinar o seu retrato. Grace Tanaka era uma asiática mignon, e a foto - já tão antiga
- não combinava com o timbre áspero da voz que acabara de ouvir ao telefone.
Bosch escreveu um bilhete para Rider com o endereço do e-mail de Grace Tanaka e instruções para escanear e enviar a foto de Mackey. Escreveu também um lembrete a
respeito de ter encontrado
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resistência da parte dela quando trouxera à baila o assunto de sua sexualidade. Deixou o bilhete em cima da mesa dela para que o visse assim que chegasse para
o trabalho.
Com isso, restava um último telefonema, que seria para Daniel Kotchof, que morava, segundo o AutoTrack, em Maui, onde eram duas horas a menos.
Discou o número obtido no AutoTrack, e quem atendeu foi uma mulher. Disse que era a esposa de Daniel Kotchof e que seu marido estava trabalhando no Four Seasons
Hotel, onde era gerente de hospitalidade. Bosch tocou para o telefone que ela lhe deu e foi atendido por Daniel Kotchof. Ele avisou que só poderia falar por uns
minutos e gastou quatro deles pondo Bosch em espera enquanto ia para um lugar mais reservado no hotel para poder falar à vontade. Quando finalmente voltou a atender,
a conversa começou de modo bastante improdutivo. Como Grace Tanaka, não reconheceu o nome Roland Mackey. Também pareceu tratar o telefonema como um aborrecimento
ou uma invasão. Explicou que estava casado e que tinha três filhos, e que raramente pensava em Becky Verloren. Lembrou a Bosch que ele e sua família tinham mudado
do continente um ano antes da morte de Becky.
- Mas fui levado a crer que, depois da sua mudança para o Havaí, vocês dois continuaram a se telefonar com muita freqüência - disse Bosch.
- Não sei quem lhe disse isso - retrucou Kotchof. - Quer dizer, nós nos falávamos. Especialmente no princípio. Eu tinha que ligar, porque os pais dela diziam que
era muito cara uma ligação de lá. Achei que fosse papo furado. Eles só me queriam fora de cena, mais nada. Assim, eu tinha que ligar, mas, afinal, de que adiantava?
Eu estava no Havaí, e ela em Los Angeles. O namoro tinha terminado, cara. E logo, logo, arranjei uma namorada aqui... que, de fato, atualmente é minha mulher. E
assim parei de ligar para Beck. Isso, até mais tarde, você sabe, quando eu soube o que tinha acontecido e o outro detetive me telefonou.
- Você soube antes de o detetive telefonar?
- Soube. A Sra. Verloren ligou para o meu pai, e ele me deu a notícia. Recebi também alguns telefonemas de amigos de lá por
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causa da morte dela. Sabiam que eu ia querer notícias. Foi estranho, cara, uma garota que eu conhecia ser liquidada daquele modo. Bosch pensou sobre o que mais poderia
perguntar. A história de Kotchof conflitava em certos detalhes com a narrativa de Muriel Verloren. Sabia que ia ter que acertar as discrepâncias em algum ponto.
E também o álibi de Kotchof continuava a incomodá-lo.
- Olhe, detetive, tenho que desligar - disse Kotchof. - Estou trabalhando. Tem mais alguma coisa?
- Só mais umas perguntas. Você se lembra de quanto tempo antes da morte de Rebecca você parou de ligar para ela?
- Não posso dizer ao certo. Foi por volta do fim do primeiro verão. Algo assim. Tinha se passado um bocado de tempo, quase
um ano.
Bosch decidiu dar uma sacudida em Kotchof para ver o que caía. Seria algo para ser feito em pessoa, mas não havia tempo ou dinheiro para uma viagem ao Havaí.
- Quer dizer então que o relacionamento de vocês estava definitivamente acabado quando ela morreu?
- Sim, com certeza.
Bosch refletiu que as chances de recuperar os registros dos telefonemas daquele tempo não eram muito altas.
- Quando vocês ainda se falavam, era sempre à mesma hora? Sabe como é, uma espécie de encontro marcado.
- Mais ou menos. Como aqui tem uma diferença de duas horas para menos, eu não podia ligar muito tarde. Geralmente eu telefonava logo depois do jantar, o que correspondia
à hora em que ela devia estar indo para a cama. Mas, como já disse, não demorou muito tempo.
- OK. Agora tenho que lhe fazer uma pergunta muito pessoal. Você fez sexo com Rebecca Verloren?
Pausa.
- O que isso tem a ver com o caso?
- Não posso explicar, Dan. Mas é parte da investigação e pode ter uma ligação com o caso. Você se importa de responder?
- Não.
Bosch aguardou, mas Kotchof não disse mais nada.
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- Essa é a sua resposta? - perguntou Bosch finalmente. - Vocês dois nunca fizeram sexo?
- Nunca. Ela dizia que não estava pronta, e eu não quis forçar a barra. Olhe, tenho que ir.
- OK, Dan, só mais um pouco. Tenho certeza de que você gostaria que pegássemos o cara que matou Rebecca, não gostaria?
- Claro, claro, só que estou trabalhando.
- Sim, você já me disse. Deixe que eu lhe pergunte: quando foi a última vez que viu Rebecca?
- Não me lembro da data exata, mas deve ter sido no dia em que nos mudamos. Quando nos despedimos. Aquela manhã.
- Você nunca voltou do Havaí depois que sua família mudou?
- Não, a princípio, não. Mas depois morei em Venice durante uns dois anos, após o término da escola. E retornei para cá.
- Mas não entre a data em que sua família se mudou e a data em que Rebecca foi assassinada. E isso que está dizendo?
- Afirmativo.
- Quer dizer então que se a testemunha com quem conversei tiver dito que o viu na cidade no feriado do 4 de Julho, imediatamente antes de Rebecca desaparecer, ela
estaria enganada?
- Com certeza, estaria totalmente enganada. Mas o que é que há? Eu já lhe disse. Nunca voltei lá. Tinha uma namorada nova. Quer dizer, não voltei para o funeral.
Quem lhe disse que me viu? Foi a Grace? Ela nunca gostou de mim... aquela sapatão. Sempre tentando me envolver em problemas com a Beck.
- Não posso lhe dizer quem foi, Dan. Do mesmo modo como ralei se você quiser me contar qualquer coisa em caráter confidencial.
- Seja quem for, é uma puta mentirosa - disse Kotchof, a voz hcando estridente. - Isso é uma porra de uma mentira! Vá estudar Seus registros, cara! Eu tinha um álibi.
Estava trabalhando no dia em que ela foi levada de casa e no dia seguinte também. Como poueria ter ido a Los Angeles e voltado? Quem quer que tenha lhe
contado isso é de uma falsidade total!
- Seu álibi é que é falso, Dan. Seu velho pode muito bem ter combinado tudo com o seu supervisor. Fácil, fácil.
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Passou-se um momento de silêncio antes da reação.
- Não sei do que você está falando. Meu pai não maquinou nada com ninguém, e isso é fato, porra. Tínhamos os cronogramas de trabalho, meu pai falou com os tiras,
e acabou. Agora você me vem 17 anos depois com essa merda? Está querendo me foder, porra?
- OK, Dan, vá com calma. Às vezes as pessoas cometem erros. Especialmente quando se trata de relembrar uma coisa passada tanto tempo atrás.
- Só me faltava essa, cara, ser arrastado a uma coisa dessas. Cara, eu tenho uma família aqui.
- Eu disse para ir com calma. Você não está sendo arrastado para coisa alguma. Isto é só um telefonema. Só uma conversa, está certo? Agora, há alguma coisa que você
possa ou queira me dizer para ajudar com esse troço?
- Não, eu já lhe disse tudo o que sei, o que é nada. E tenho que ir. Estou falando sério, tenho que ir mesmo.
- Você ficou zangado quando Rebecca lhe disse que estava grávida e que, obviamente, o pai era outro?
Como não houve resposta a princípio, Bosch tentou dar mais uma volta no parafuso.
- Especialmente se ela não tinha relações com você quando os dois estavam juntos.
Bosch deu-se conta de que tinha ido longe demais. Kotchof percebera que ele estava fazendo o joguinho do bom tira-mau tira com ele. Quando respondeu, tinha a voz
calma e modulada.
- Ela nunca me contou que estava grávida - disse ele. - Eu só soube depois, quando a história se tornou conhecida.
- É mesmo? Quem foi que lhe contou?
- Não me lembro. Um de meus amigos, eu acho.
- E mesmo? Porque Rebecca escrevia um diário. E você aparece em todas as páginas, cara. E ela diz que lhe contou e que você não ficou muito feliz com a notícia.
Agora Kotchof deu uma risada, e Bosch viu que tinha estragado tudo.
- Detetive, você não está com nada. E você quem está mentindo. Seu papo é realmente furado, cara. Quer dizer, eu assisto Lei e Ordem, sabe como é.
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- Assiste também CSí?
- Assisto, e daí?
- Bem, temos o DNA do assassino. Se houver uma equivalência com o DNA de alguém, o tombo vai ser grande. DNA é o maior de todos os elementos que podem fechar um
caso.
- Ótimo. Examine o meu, e talvez isso tudo possa ser dado por terminado.
Bosch sabia que ele estava recuando. Tinha que encerrar a ligação.
- OK, então, Dan, nós o informaremos a esse respeito. Enquanto isso, obrigado pela ajuda. Uma última pergunta: o que é gerente de hospitalidade?
- Aqui no hotel? Eu cuido das festas grandes, conferências, casamentos e coisas assim. Asseguro-me de que tudo corra tranqüilamente quando esses grupos grandes entram
aqui no hotel.
- Ah, bem, vou deixar você voltar ao seu trabalho. Tenha um bom dia.
Bosch desligou e permaneceu sentado, pensando no telefonema. Sentia-se envergonhado por ter forçado a barra daquele modo com Kotchof. Sabia que seu talento de interrogador
ficara em grande parte adormecido por três anos, mas isso não justificava a burrada. Sabia que tinha de melhorar, e quanto mais depressa, melhor.
À parte isso, havia muito conteúdo no telefonema sobre que ponderar. Não achara nada demais a reação furiosa de Kotchof à história de ter supostamente sido visto
em Los Angeles logo depois do crime. Afinal, Bosch inventara as testemunhas, e a reação furiosa de Kotchof certamente era justificada. O mais notável, contudo, fora
como a raiva de Kotchof se concentrara em Grace Tanaka. Talvez valesse a pena explorar mais o relacionamento deles, quem sabe por intermédio de Kiz Rider.
Bosch considerou também sua declaração sobre não ter conhecimento da gravidez de Rebecca Verloren. Instintivamente, acreditara nele. Tudo considerado, Kotchof não
saíra de sua lista de suspeitos, mas fora relegado a uma posição bem mais ao fundo. Ele discutiria depois as respostas dele com Rider e veria se ela concordava.
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A informação mais interessante colhida no telefonema referia-se ao conflito entre as lembranças de Kotchof e Muriel Verloren, a mãe da vítima. Muriel Verloren dissera
que Kotchof ligava para sua filha religiosamente, até o dia da morte dela. Ele afirmara que não fizera isso. Bosch não via razão para que Kotchof mentisse a esse
respeito. Se não tinha mentido, a lembrança de Muriel Verloren estava errada. Ou então sua filha mentira a respeito da identidade de quem ligava para ela todas as
noites antes de dormir. Como a garota ocultava um relacionamento e a gravidez, parecia bastante provável que tivessem existido mesmo os telefonemas todas as noites.
Só que não vinham de Kotchof. Partiam de outra pessoa, alguém que ele começava a chamar agora de Sr. X.
Depois de procurar o telefone de Muriel Verloren no livro do crime, Bosch ligou para sua casa. Pediu desculpas pela intrusão e disse que tinha umas perguntas suplementares
a fazer. Muriel disse que não se incomodava em ter que atender ao telefonema dele.
- O que o senhor quer saber?
- Eu vi um telefone em cima da mesinha ao lado da cama de sua filha. Ele é uma extensão do telefone da casa ou a linha era exclusiva dela?
- Becky tinha seu próprio número. Uma linha privada.
- Quer dizer então que, quando Daniel Kotchof telefonava de noite, era ela mesma quem atendia, certo?
- Exatamente. No quarto dela. Era o único aparelho.
- Então, a única maneira de a senhora saber que se tratava de Danny era através do que ela lhe dizia.
- Não, eu ouvia o telefone tocar às vezes. Ele ligava.
- O que eu quero dizer, Sra. Verloren, é que a senhora nunca atendeu os chamados e nunca falou com Danny Kotchof, certo?
- Certo. A linha era só dela.
- Quer dizer, como aquele telefone não tinha uma extensão, quando ele tocava e ela falava com alguém, o único modo de a senhora saber quem estava no outro lado da
linha era se ela lhe contasse. Está correto?
- Ah, sim. Acho que é isso mesmo. O senhor está querendo dizer que não era Danny quem ligava para ela em todas aquelas ocasiões?
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- Ainda não sei ao certo. Mas falei com ele no Havaí, e ele me disse que
parara de telefonar para sua filha muito tempo antes do crime. Tinha uma namorada nova,
sabe. No Havaí.
Esta informação foi digerida durante uma longa pausa. Finalmente Bosch falou no vazio.
- Tem alguma idéia de quem poderia ser a pessoa com quem ela falava, Sra. Verloren?
- Talvez uma de suas amigas.
- É possível - disse Bosch. - Será que a senhora pode pensar em alguém mais?
- Não estou gostando disso - reagiu ela prontamente. - E como se eu tivesse que aprender tudo de novo.
- Sinto muito, Sra. Verloren. Tentarei não incomodá-la com essas coisas, a menos que seja necessário. Lamento, mas agora é necessário. A senhora e seu marido chegaram
a alguma conclusão quanto à gravidez de Rebecca?
- Como assim? Nós só soubemos depois de tudo.
- Compreendo. O que eu quero saber é se a senhora acha que a gravidez se deveu a um relacionamento escondido ou foi um descuido cometido com alguém com quem ela
não estivesse tendo realmente um relacionamento?
- O senhor está falando de uma aventura de uma noite? E isso que está dizendo a respeito de minha filha?
- Não, minha senhora, não estou dizendo coisa alguma sobre sua filha. Estou simplesmente fazendo perguntas. Não quero aborrecê-la, e sim encontrar a pessoa que matou
Rebecca. E eu preciso saber tudo o que houver para saber.
- Nunca fomos capazes de explicar a gravidez dela, detetive respondeu Muriel Verloren com frieza. - Becky morreu e decidimos não explorar isso. Deixamos tudo por
conta da polícia e tentamos apenas lembrar a filha que conhecíamos e amávamos. O senhor disse que tem uma filha. Espero que compreenda.
- Acho que compreendo, sim. Muito obrigado pelas suas resPostas. Uma última pergunta, e não há qualquer pressão nela: a senhora estaria disposta a falar com o repórter
de um jornal sobre sua filha e o caso?
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- E por que faria uma coisa dessas? Não fiz antes. Não me agrada a idéia de tornar público o que houve.
- Admiro a sua posição. Mas agora eu ia querer que a senhora falasse, porque poderia nos ajudar a assustar o passarinho.
- O senhor quer dizer que isso pode levar a pessoa que fez isso a sair do esconderijo?
- Exatamente.
- Então não tenho nem que pensar. Conte comigo.
- Muito obrigado, Sra. Verloren. Eu aviso quando estiver na hora.
Capítulo 16
Abel Pratt saiu da sala com o paletó vestido. Viu Bosch sentado à sua mesa no cubículo usando dois dedos para digitar um relato da sua conversa telefônica com Muriel
Verloren. Os relatórios completos dos telefonemas dados para Grace Tanaka e Daniel Kotchof estavam em cima da mesa.
- Cadê a Kiz? - perguntou Pratt.
- Trabalhando nos mandados em casa. Ela pensa melhor lá.
- Não consigo pensar quando estou em casa. Só sei reagir. Tenho dois meninos. Gêmeos.
- Boa sorte.
- Eu mereço. vou para lá agora. Vejo você amanhã, Harry. -OK.
Mas Pratt não saiu. Bosch levantou os olhos do teclado para ele, pensando que talvez houvesse algo errado. Devia ser a máquina de escrever.
- Encontrei esta máquina em cima de uma mesa do outro lado
- explicou Bosch. - Parecia que não estava sendo usada por ninguém.
- E não estava. Quase todo mundo usa computador agora. Você é definitivamente um sujeito da velha escola, Harry.
- Acho que sim. E a Kiz que geralmente faz os relatórios, mas tenho algum tempo para matar.
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- Vai fazer serão?
- vou ter que dar uma passada na região dos sem-teto.
- Rua Cinco? O que é que você pretende lá?
- Achar o pai da nossa vítima. Pratt sacudiu a cabeça sombriamente.
- Já vimos esse filme antes. Bosch fez que sim.
- É uma barra - disse.
- Sem dúvida - concordou Pratt.
Bosch estava pensando em se oferecer para fazer companhia a Pratt, talvez ter uma boa conversa com ele e conhecê-lo melhor, quando seu celular começou a tocar. Tirou-o
do cinto e viu o nome Sam Weiss no visor do aparelho.
- É melhor eu atender.
- Certo, Harry. Cuidado lá, hem.
- Obrigado, chefe.
Ele abriu o telefone.
- Detetive Bosch - atendeu.
- Detetive?
Bosch se lembrou de que não deixara informações na mensagem para Weiss.
- Sr. Weiss, meu nome é Harry Bosch. Sou detetive e trabalho na polícia de Los Angeles. Gostaria de lhe fazer umas perguntas sobre uma investigação que estou conduzindo.
- Tenho todo o tempo de que o senhor precisar, detetive. Sua pergunta é sobre a arma?
Bosch foi apanhado de surpresa.
- Por que perguntaria isso, Sr. Weiss?
- Bem, porque sei que ela foi usada em um crime de morte que nunca foi resolvido. E isso é a única coisa a respeito da qual a polícia de Los Angeles pode querer
me fazer perguntas.
- Exatamente, senhor, é mesmo sobre a arma. Posso lhe falar a esse respeito?
- Se isso quer dizer que o senhor está tentando descobrir quem matou aquela garota, então pode me perguntar o que quiser.
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- Muito obrigado. Acho que a primeira coisa que eu gostaria que o senhor me dissesse é como e quando soube ou lhe disseram que a arma roubada fora usada em um homicídio.
- O assassinato dela saiu no jornal, e eu deduzi. Telefonei para o detetive encarregado do roubo na minha casa, perguntei e obtive a resposta que gostaria de não
ouvir.
- Por quê, Sr. Weiss?
- Porque passei a ter que conviver com isso.
- Mas o senhor não fez nada de errado.
- Eu sei, mas ter consciência de que não se fez nada de errado não faz com que a pessoa se sinta nem um pouco melhor. Comprei aquela arma porque estava tendo problemas
com um bando de criminosos. Queria proteção. Aí, a arma que comprei acabou sendo o instrumento da morte da pobre menina. Não pense que eu não tenha imaginado alternativas
que mudassem o que ocorreu. Ou seja, e se eu não tivesse sido tão obstinado? E se eu tivesse simplesmente levantado acampamento e me mudado, em vez de comprar aquela
maldita coisa? Entende o que lhe digo?
- Entendo, sim.
- Agora, o que mais posso lhe dizer, detetive?
- Pouca coisa. Telefonar para o senhor foi mais ou menos um tiro no escuro. Achei que talvez fosse mais fácil do que tentar descobrir o caminho através de 17 anos
de burocracia e história do departamento. Tenho aqui o relatório inicial do roubo com arrombamento, e o investigador encarregado foi John McClellan. O senhor se
lembra dele?
- Claro, lembro, sim.
- Ele chegou a resolver o caso?
- Não que eu saiba. A princípio, John pensou que pudesse ter uma ligação com os bandidos que tinham me ameaçado.
- E tinha?
- John me disse que não. Mas eu nunca tive certeza. Os ladrões realmente viraram o apartamento de pernas para o ar. Não foi como se estivessem realmente procurando
objetos para roubar. Eles estavam destruindo as coisas... meus pertences. Quando entrei em casa, senti muita raiva.
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- Por que fala no plural? A polícia achava que havia mais de um?
- John imaginava que deviam ter sido pelo menos dois ou três. Eu tinha estado fora apenas uma hora - tinha ido à loja. Um cara sozinho não podia ter causado tanto
estrago em tão pouco tempo.
- Segundo o relatório, foram levadas a arma, uma coleção de moedas e uma certa soma de dinheiro. Descobriu depois alguma coisa mais?
- Não, foi só isso. E foi o bastante. Pelo menos consegui recuperar a coleção de moedas, que era a coisa mais valiosa. Era de meu pai, quando menino.
- Como foi que a obteve de volta?
-John McClellan. Ele a trouxe aqui em casa umas duas semanas depois.
- Ele contou onde a encontrara?
- Numa loja de penhores em West Hollywood. E depois, é claro, sabemos o que aconteceu à arma. Mas ela não me foi devolvida. Aliás, de qualquer forma eu não a teria
aceitado.
- Eu compreendo, senhor. O detetive McClellan algum dia lhe disse quem ele pensava ser o autor do roubo? Ele tinha alguma teoria?
-John achava que tinha sido tão simplesmente uma quadrilha de malfeitores, sabe como é. Não os Chatsworth Eights.
- Sr. Weiss, aja como se eu não soubesse de nada. Quem eram os Chatsworth Eights?
- Uma quadrilha que atuava aqui no Vale. Todos garotos brancos. Skinheads. Que em 1988 cometeram inúmeros crimes aqui. Eram crimes de ódio, como os chamavam naquele
tempo nos jornais, o novo nome para crimes motivados por raça ou religião.
- O senhor chegou a ser alvo dessa quadrilha?
- É, comecei a receber telefonemas. A coisa típica: morte aos judeus.
- Mas aí a polícia disse que os Eights não cometeram o arrombamento.
- Exatamente.
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- Estranho, não é mesmo? Estranho, eles não terem visto qualquer ligação deles com o arrombamento da sua casa.
- Foi o que pensei na época, mas era ele o detetive, e não eu.
- O que teria motivado os Eights a escolhê-lo? Sei que é judeu, Sr. Weiss, mas por que o senhor?
- Simples. Um dos merdinhas era um garoto que morava no meu bairro, um tal Billy Burkhart. Quatro casas depois da minha. Pus um menorah na minha janela durante o
chanukah, e foi quando tudo começou.
- O que aconteceu a Burkhart?
- Foi para a cadeia. Não pelo que fez a mim, mas a outros. Prenderam-no, assim como a outros membros da quadrilha, por causa de outros crimes. Queimaram uma cruz
a poucas quadras de mim. No gramado da frente de uma família negra. E fizeram outras coisas. Coisas perversas, vandalismo. Também tentaram incendiar um templo.
- Mas não o arrombamento da sua casa.
- Isso mesmo. Foi o que a polícia me disse. Veja só, não havia coisas escritas ou indicações de motivação religiosa. A casa foi apenas revirada de cabeça para baixo.
Por isso não classificaram o arrombamento como crime de ódio.
Bosch hesitou, sem saber se haveria mais alguma coisa a perguntar. Decidiu que não tinha informações suficientes para formular perguntas inteligentes.
- OK, Sr. Weiss, agradeço muito pelo tempo que o senhor me dedicou. E peço desculpas por ter reavivado más lembranças.
- Não se preocupe com isso, detetive. Acredite em mim, elas não estavam adormecidas.
Bosch fechou o telefone. Tentou pensar com quem poderia falar a respeito daquilo. Não conhecia John McClellan, e as chances de ele ainda trabalhar na Divisão Devonshire,
17 anos depois, eram tênues. De repente, veio a lembrança: Jerry Edgar. Seu antigo parceiro na Divisão Hollywood fora transferido para a unidade de detetives de
Devonshire. Deveria estar trabalhando lá em 1988.
Bosch ligou para a Homicídios de Hollywood, mas foi atendido Por uma secretária eletrônica. Todo mundo tinha saído cedo. Ele
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discou então o número principal da unidade e perguntou se Edgar estava por perto. Bosch sabia que havia uma tabela com o destino do pessoal no balcão da frente.
O funcionário que atendeu disse que Edgar já tinha se retirado.
O terceiro telefonema foi para o celular de Jerry Edgar. Seu antigo parceiro atendeu prontamente.
- Vocês vão cedo para casa aí em Hollywood - disse Bosch.
- Que porra é... Harry, é você?
- Sou eu. Como vão as coisas, Jerry?
- Eu estava mesmo esperando que você me desse notícias. Está recomeçando hoje?
- O recruta mais velho do mundo. E já tendo que mostrar serviço. Kiz e eu estamos trabalhando em um caso de arrombamento.
Edgar não respondeu, e Bosch soube que mencionar Rider tinha sido um erro. O abismo entre eles não só ainda existia como também era evidente que congelara.
- De qualquer forma, preciso me servir desse seu poderoso cérebro. Trata-se de algo que remonta ao tempo do Club Dev.
- Quando?
- 1988. Os Chatsworth Eights. Lembra?
Houve silêncio, enquanto Edgar pensava por um momento.
- Sim, eu me lembro dos Eights, sim. Uns bostinhas brancos que achavam que cabeças raspadas a navalha e tatuagens os transformavam em homens. Fizeram um bocado de
merda e depois foram esmagados. Não duraram muito.
- Você se lembra de um cara chamado Roland Mackey? Teria uns 18 anos nessa época.
Após uma pausa, Edgar disse que não se lembrava do nome.
- Quem estava encarregado de trabalhar com eles? - quis saber Bosch.
- Não era com o Club Dev, cara. Tudo que dizia respeito a eles ia direto para o buraco do coelho. -APDU?
- Isso aí.
A Public Disorder Unit era uma equipe meio misteriosa sediada no centro da cidade, que coletava dados e informações sobre
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conspirações, mas que resolvera bem poucos casos. Nos idos de 1988,
devia estar sob a égide do então comandante Irvin Irving. Não
existia mais. Quando Irving ascendeu ao nível de subchefe, prontamente
a desmobilizou, com muita gente no departamento acreditando
que tivesse sido uma medida tomada para sua proteção,
distanciando-se de suas atividades.
- Isso não vai ajudar.
- Sinto muito. Em que você está trabalhando?
- O assassinato de uma garota na Oat Mountain.
- A que foi tirada de dentro de casa?
-Exato.
- Eu lembro. Não trabalhei no caso... tinha acabado de ingressar
no efetivo de detetives da Homicídios. Mas lembro. Você está
dizendo que os Eights estavam nele?
- Não. E que apareceu um nome que pode ter uma conexão
com o grupo. Talvez. Quer dizer então Eights significa mesmo o que
eu penso?
- Sem dúvida, 8 quer dizer H, 8-8 é H-H. E H-H significa Hei..
- Hitler. Era o que eu pensava.
Aí então Bosch se deu conta de que Kiz Rider tinha razão quando
dissera que o ano do crime podia ser significativo. Tanto o assassinato
quanto o resto dos crimes cometidos pelos Chatsworth Eights
tinham ocorrido em 1988. Eram coisas aparentemente pequenas
que se associavam. E agora Irvin Irving e a PDU também se misturavam ao caldeirão. O cola hit gerado por uma equivalência de DNA
de um tipo que ganhava a vida dirigindo um reboque estava se transformando em algo maior.
-Jerry, você se lembra de um cara que trabalhou em Devonshire,
(chamado John McClellan?
- John McClellan? Não, não lembro. Em que ele trabalhava?
- O nome dele aparece aqui no caso do arrombamento.
- Não, tenho certeza absoluta de que ele não era da equipe de
arrombamentos. Trabalhei lá antes de ir para a Homicídios. Não
havia nenhum John McClellan. Quem é?
- Como eu disse, só um nome em um relatório. vou descobrir.
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Bosch sabia que aquilo significava que McClellan devia pertencer aos quadros da PDU naquele tempo e que a investigação do arrombamento da casa de Sam Weiss havia
entrado na investigação dos Chatsworth Eights. Não fazia questão de discutir isso com Edgar.
- Jerry, então você era novo no efetivo da Homicídios naquele tempo?
- Exato.
- Conheceu bem Green e Garcia?
-Na verdade, não. Eu tinha acabado de chegar e eles não demoraram muito para sair. Green caiu fora, e cerca de um ano depois Garcia foi promovido a tenente.
- Pelo que você viu, qual era sua opinião a respeito deles?
- Como assim?
- Como detetives da Homicídios.
- Bem, Harry, eu tinha muito pouca experiência naquele tempo. Quer dizer, o que eu sabia? Ainda estava aprendendo. Mas o conceito que se tinha deles era que Green
sabia das coisas e Garcia funcionava como assistente. O que algumas pessoas diziam dele é que nem com espelho e pente era capaz de encontrar meleca no próprio bigode.
Bosch não respondeu. Rotulando Garcia de assistente, Edgar dizia que ele andava debaixo da asa do parceiro. Green era o verdadeiro policial da Homicídios, e Garcia,
o cara encarregado de pôr ordem na casa, tratando da burocracia e mantendo os arquivos atualizados. Muitas parcerias acabam assumindo essa forma de relacionamento.
Um detetive de primeira e seu assistente.
- Acho que ele não precisava - acrescentou Edgar.
- Não precisava de quê?
- Encontrar meleca no bigode. Ele tinha futuro, cara. Foi promovido a tenente e caiu fora. Sabe que ele atualmente é o subcomandante da divisão do Vale?
- Sei. Na verdade, se falar com ele talvez seja melhor não mencionar essa historinha do bigode.
- É, você tem razão.
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Bosch gastou mais algum tempo pensando no que aquilo podia significar para a investigação Verloren. Uma pequena rachadura se deslocava sob a superfície das coisas.
- Só isso, Harry?
- Eu soube que o Green deu um tiro na boca pouco depois de ter se aposentado.
- É, eu também soube. Não me lembro de ter me surpreendido. Ele sempre me pareceu carregar um fardo pesado demais, não sei por quê. Você vai investigar a PDU? Sabe
que aquilo foi dirigido pelo Irving, não sabe?
- Sei, Jerry, sei, sim. Mas duvido que venha a fazer isso.
- Tenha cuidado se fizer, meu amigo.
Bosch quis mudar de assunto antes de desligar. Não queria que a língua solta do antigo parceiro, que sempre fora um especialista em boatos, espalhasse a notícia
de que ia investigar Irving, agora que tinha de novo um crachá.
- E como vão as coisas em Hollywood? - perguntou.
- Acabamos de voltar para o escritório, depois de instalar o novo equipamento e dotar o prédio também de nova tecnologia contra terremotos. Você perdeu essa. Ficamos
presos lá em cima na lista de chamada por mais ou menos um ano.
- Como é agora?
- Agora é como um escritório de uma companhia de seguros. Temos pontos de distribuição e filtros de som entre as mesas. Tudo com aquele acabamento cinza típico do
governo. Legal, mas não é a mesma coisa.
- Sei como é.
- Depois deram mesas enormes para os chefões, com gavetas dos dois lados, e o restante de nós ficou com gavetas de um lado só.
Bosch sorriu. Pequenos descuidos como esses ganhavam enormes
importância no departamento, e os administradores que tomavam essas decisões nunca aprendiam. Como quando quase toda a
corregedoria se mudara do Parker Center
para o velho edifício tfradbury e se espalhara o boato entre a turma de baixo de que o Capitão tinha uma lareira na sala.
- E então, Jerry, o que você vai fazer?
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- A mesma coisa de sempre, claro. Tirar o rabo da cadeira e bater de porta em porta.
- Estou atento, cara.
- Cuidado com a retaguarda, Harry.
- Estou sempre de olho.
Depois de desligar, Bosch deixou-se ficar sentado por alguns momentos, imóvel, enquanto repassava mentalmente a conversa e os novos sentidos que ela trazia ao caso.
A existência de uma conexão entre a morte de Rebecca Verloren e a PDU significaria ter que começar tudo outra vez.
Desviou o olhar para o livro do crime, ainda aberto na página do relatório do arrombamento, e fixou-se nos garranchos que cobriam a linha destinada à assinatura
de John McClellan. Pegou o telefone, ligou para o Departamento de Operações do Parker Center e pediu ao atendente de serviço que localizasse um detetive chamado
John McClellan. Leu o número da identificação de McClellan que aparecia no relatório. Foi posto em espera e ficou quase certo de que o homem fosse lhe dizer que
McClellan tinha se aposentado. Afinal, já se haviam passado 17 anos.
Mas quando o atendente retornou trouxe a informação de que um policial chamado John McClellan, com o número de identificação que Bosch dera, agora era um tenente
classificado no Escritório de Planejamento Estratégico. As sinapses do cérebro de Bosch começaram a se ativar. Dezessete anos antes, McClellan trabalhara para Irving
na PDU. Agora, o órgão e a patente eram outros, mas McClellan continuava trabalhando para ele. E Irving, por acaso, esbarrara em Bosch na cafeteria do Parker Center
justamente no dia em que ele recebera um caso que tinha vínculos com a PDU.
- Caramba! - murmurou Bosch baixinho ao desligar.
Como um transatlântico iniciando uma curva, o caso ia vagarosa, segura e constantemente movendo-se em nova direção. Bosch podia sentir algo crescendo dentro do seu
peito. Pensou sobre a coincidência de Irving atravessando o seu caminho. Se é que fora coincidência, Bosch perguntou-se se naquele momento ele já saberia que caso
tinha passado às suas mãos.
O departamento enterrava segredos todos os dias. Era um fato conhecido. Mas quem teria pensado, 17 anos antes, que um teste químico realizado um dia em um laboratório
do DOJ, em Sacramento, pudesse enfiar uma pá na terra suja e revirado o passado, trazendo esse segredo à luz?
Capítulo 17
Dirigindo para casa, Bosch foi pensando nos muitos e diferentes meandros da investigação que iam surgindo. Sabia que tinha que manter os olhos no alvo. A evidência
era a chave. Os elementos de política departamental, possível corrupção e encobrimento da verdade prenunciavam ações executadas pelo alto escalão da polícia. Podia
ser ameaçador e representar um desvio do objetivo pretendido. Tinha que evitar isso e, ao mesmo tempo, desconfiar de seu significado.
Algum tempo depois, conseguiu afastar os pensamentos a respeito da sombra de Irving na investigação e se concentrar no caso. Seus pensamentos o levaram ao quarto
de Rebecca e como sua mãe o deixara inalterado. Gostaria de saber se era a perda da filha que fazia aquilo ou se teriam sido as circunstâncias da perda. E se você
perdesse um filho de causas naturais, acidentes ou uma circunstância como o divórcio? Ele mesmo tinha uma filha a quem raramente via. O que representava um peso,
com certeza. Sabia que, perto ou longe, sua filha o deixava completamente vulnerável, que ele poderia terminar como a mãe que preservava o quarto da filha como
um museu, ou o pai desde tanto tempo perdido para o mundo.
Mais do que essas questões, havia algo acerca do quarto que o incomodava. Não sabia precisar exatamente o que era, mas estava lá e o importunava. De cima da via
expressa elevada, ele olhou para
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Hollywood à sua esquerda. Havia ainda um pouco de luminosidade no céu, mas a noite estava começando. A escuridão tinha esperado bastante. Holofotes que ele sabia
balizarem a esquina de Hollywood com Vine riscavam o horizonte. Para ele, era bonito. Para ele, era seu lar.
Quando chegou em casa, no alto do morro, checou a correspondência e a secretária eletrônica, e depois tirou o terno que comprara para voltar ao trabalho. Pendurou-o
cuidadosamente no closet, refletindo que poderia usá-lo pelo menos mais uma vez antes de ter que levá-lo à lavanderia. Vestiu uma calça jeans azul, tênis pretos
e um pulôver também preto. Por fim, enfiou um paletó esporte que estava puído no ombro direito devido a seus hábitos econômicos talvez excessivos. Aí então entrou
de novo no seu carro e seguiu para o centro da cidade, Distrito dos Brinquedos.
Decidiu deixar o carro no estacionamento do museu em Japantown para não ter que se preocupar com a possibilidade de ter o carro arrombado ou vandalizado. Dali foi
andando até a rua Cinco, encontrando uma densidade crescente de sem-teto à medida que avançava. Os principais acampamentos de sem-teto da cidade e as missões que
os alimentam se estendem em um trecho de cinco quarteirões da rua Cinco ao sul da rua Los Angeles. As calçadas em frente às missões e aos hotéis-residência baratos
eram cobertas de caixas de papelão e carrinhos de compras de supermercado cheios com os escassos e imundos pertences daquela gente perdida. Era como se uma bomba
de desintegração social tivesse detonado, e os fragmentos de vidas avariadas e privadas de seus direitos civis tivessem sido arremessados por toda parte. Acima e
abaixo havia homens e mulheres gritando, gritos ininteligíveis ou simplesmente falácias lúgubres
dentro da noite. Era como uma cidade com sua própria lei e governo.
uma cidade ferida tão fundo que as bandagens aplicadas pelas fissões não era capazes de conter o sangramento.
Enquanto andava, Bosch notou que nem uma só vez lhe pediram dinheiro, cigarros ou qualquer outra coisa. A ironia não lhe passou
despercebida. Tudo indicava que o lugar com a mais alta concenraÇão de pessoas sem-teto na cidade era também o lugar onde um
adão era menos assediado com pedidos, ou mesmo outras coisas.
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A Missão Los Angeles e o Exército de Salvação tinham importantes centros de atendimento ali. Bosch decidiu começar com eles. Tinha uma foto da carteira de motorista
de Robert Verloren tirada
12 anos antes e uma outra ainda mais antiga tirada no funeral da filha. Mostrou ambas às pessoas que operavam os centros de ajuda e aos funcionários das cozinhas
que punham comida gratuita em centenas de pratos todos os dias. Obteve poucas respostas, até que um dos atendentes se lembrou de Verloren como um "cliente" que aparecia
na fila da bóia com regularidade até poucos anos atrás.
- Já faz algum tempo - disse o homem. - Não o tenho visto. Depois de gastar uma hora em cada centro, Bosch começou a
descer a rua, entrando nas missões de menor porte e hotéis baratos e mostrando as fotos. Obteve alguns poucos reconhecimentos, mas nada recente, nada que o levasse
a encontrar uma pessoa que desaparecera por completo da tela do radar humano tantos anos antes. Trabalhou até 22h30 e decidiu que ia voltar no dia seguinte para
terminar de investigar minuciosamente a rua. Sentia-se deprimido ao caminhar de volta para Japantown não só pelo ambiente em que imergira, como também por terem
se reduzido suas esperanças de encontrar Robert Verloren. Assim, foi caminhando de cabeça baixa, mãos enfiadas nos bolsos, e não viu os dois homens senão quando
eles já o tinham visto. Eles saíram das reentrâncias de duas lojas de brinquedos, uma do lado da outra, quando Bosch passou. Um bloqueou seu caminho. O outro colocou-se
atrás dele. Bosch parou.
- Ei, missionário - disse o que estava na frente.
Na pouquíssima luz oriunda de um poste situado a meio quarteirão de distância, Bosch vislumbrou o brilho de uma lâmina ao lado do corpo do homem. Virou-se com cuidado
para examinar o de trás. Era menor. Não podia garantir, mas teve a impressão de que tinha apenas um bloco de concreto na mão. Ou um pedaço de
meio-fio quebrado. Ambos estavam vestidos em camadas, uma visão COmum naquela parte da cidade. Um era negro, e o outro, branco.
- As cozinhas estão todas fechadas, e nós ainda estamos com fome - disse o armado com a faca. - Tem uma graninha para
nós? Sabe como é, a gente podia pedir emprestado.
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Bosch sacudiu a cabeça.
- Não, na verdade, não.
- Não mesmo? Tem certeza, garoto? Pois a impressão que você dá é de que tem uma carteira gorda e bela para nós.
Uma onda de ódio cego cresceu dentro de Bosch. Em um momento de concentração pura, ele soube o que podia e ia fazer. Ia sacar da arma e enfiar uma bala naqueles
dois. No mesmo instante, soube que se safaria após uma investigação superficial do departamento. O brilho da lâmina era o bilhete de liberdade de Bosch, e ele sabia
disso. Os homens que o cercavam não sabiam com quem tinham se metido. Era como quando estivera nos túneis, tantos anos antes. Tudo reduzido a uma opção simples.
Nada senão matar ou morrer. Havia algo de absolutamente puro naquela situação, nenhuma área cinzenta ou espaço para mais alguma coisa.
Aí então, de repente, o momento mudou. Bosch viu que o homem da faca o encarava atentamente, lendo qualquer coisa nos seus olhos, um predador avaliando outro. Ele
de repente pareceu diminuir de tamanho em uma medida quase imperceptível. E recuou, sem ter fisicamente recuado.
Bosch sabia que se considera que certas pessoas sejam leitoras de mentes. Na verdade, são leitoras de rostos. Seu talento consta de saber interpretar as miríades
de construções musculares dos olhos, boca, sobrancelhas. Daí decodificam a intenção. Bosch tinha um certo nível de talento nisso. Sua ex-mulher ganhava a vida jogando
pôquer porque era dotada desse talento em dose mais alta. O homem da faca também sabia o seu tanto. O que certamente salvoulhe a vida nesta ocasião.
- Ah, esquece - disse ele.
Deu um passo para trás na direção da reentrância da loja.
- Tenha uma boa noite, missionário - disse ele, desaparecendo no escuro.
Bosch fez uma meia-volta e encarou o outro homem. Sem uma Palavra, ele também recuou para se esconder e aguardar a próxima vítima.
Bosch deu uma olhada para os dois lados da rua. Parecia desera agora. Ele se virou e continuou a caminhar na direção do seu
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carro. No caminho, sacou do celular e ligou para a Divisão Central das patrulhas. Falou com o sargento de plantão sobre os dois homens que acabara de encontrar e
pediu que mandassem uma viatura policial.
- Esse tipo de coisa acontece em todos os quarteirões desse buraco do inferno - disse o sargento. - O que você quer que eu faça?
- Que mande um carro e dê uma sacudidela neles. Eles vão pensar duas vezes antes de tentar de novo com outra pessoa.
- Bem, por que você mesmo não fez nada?
- Porque estou trabalhando em um caso, sargento, e não posso deixar de lado o que estou fazendo para fazer o seu trabalho ou preencher seus formulários.
- Olhe aqui, meu camarada, não precisa me dizer como fazer meu trabalho. Vocês de terno são todos iguais. Pensa...
- Sargento, vou ler os relatórios de crimes pela manhã. Se alguém tiver sido atacado nesta área e os suspeitos forem uma dupla de um negro com um branco, você vai
ter mais detetives de terno à sua volta que Men's Warehouse. Posso garantir.
Bosch fechou o celular, cortando um último protesto do sargento de plantão. Apertou o passo, pegou seu carro e iniciou o caminho de volta para a Via Expressa 101.
Em seguida voltou para o Vale.
Capítulo 18
Encontrar um esconderijo de onde pudesse ver a firma de reboques foi difícil. Os dois conjuntos de lojas localizadas nas outras esquinas estavam fechados, e seus
estacionamentos, vazios. Bosch ficaria muito evidente se parasse o carro num ou noutro. O posto de gasolina concorrente, na terceira esquina, ainda estava aberto,
e, por isso, não podia ser utilizado como local de vigilância. Depois de avaliar a situação, Bosch estacionou na Roscoe, a um quarteirão de distância, e foi a pé
para o cruzamento. Imitando os seus quase assaltantes de menos de uma hora antes, encontrou uma reentrância sombria em uma das áreas de lojas de onde podia observar
o posto onde funcionava a Tampa Reboques. Sabia que o problema com aquela sua escolha seria voltar para o carro suficientemente depressa para não perder Mackey de
vista quando ele terminasse seu turno.
O anúncio da lista telefônica dizia que a Tampa Reboques oferecia serviços 24 horas. Mas se aproximava a meia-noite, e Bosch estava apostando que Mackey, tendo entrado
de serviço às 16h, estaria saindo em breve. Ou seria substituído por um outro motorista que pegasse à meia-noite ou então ficaria de plantão a noite inteira.
Era em ocasiões como aquela que Bosch pensava em fumar de novo. Fumar sempre parecia fazer o tempo andar mais depressa e
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cortava um pouco o nível de ansiedade que sempre sobe durante uma vigilância. Mas já não fumava fazia mais de quatro anos e não queria interromper o progresso. Ter
descoberto dois anos antes que era pai o ajudara a vencer ocasionais fraquezas. Não fosse pela filha, provavelmente estaria fumando de novo. Mas, na melhor das hipóteses,
tinha controlado o vício. De modo algum podia dizer que o vencera.
Pegou o celular e colocou-o em um ângulo tal que não atrapalhasse a vista do posto, enquanto teclava o número da casa de Kiz Rider. Ela não atendeu. Tentou o celular
e também não obteve resposta. Concluiu que ela devia ter desligado todos os telefones para se concentrar na redação dos mandados. Já trabalhara assim no passado.
Sabia que devia ter deixado o pager ligado para emergências, mas não achava que as notícias que conseguira reunir durante os telefonemas dados de noite chegassem
a constituir emergência. Decidiu esperar até vê-la de manhã, quando lhe diria tudo que descobrira.
Pôs o telefone no bolso e levou o binóculo aos olhos. Através das paredes de vidro do escritório do posto, era possível ver Mackey sentado atrás de uma mesa cinzenta
já bastante castigada pelo uso. Havia também outro homem com um uniforme azul similar. Devia ter sido uma noite bem monótona. Os dois homens tinham os pés apoiados
em cima da mesa e olhavam para qualquer coisa no alto na parede acima da porta de entrada. Não dava para ver, mas,
pelas mudanças de luminosidade no aposento, Bosch deduziu que se tratava de uma televisão.
O telefone de Bosch tocou e ele o tirou do bolso e atendeu sem abaixar o binóculo. Não checou a tela, porque imaginou que fosse Kiz Rider chamando depois de perceber
que perdera uma ligação sua.
-Oi.
- Detetive Bosch?
Não era Rider. Bosch abaixou o binóculo.
- Pois não, aqui é Bosch. O que deseja?
- Aqui é Tara Wood. Recebi seu recado.
- Oh, sim, obrigado por me ligar.
- Achei que era o número do seu celular. Sinto muito ligar tão tarde. É que acabo de chegar em casa. Só ia deixar um recado.
- Sem problema. Ainda estou trabalhando.
Bosch empregou o mesmo processo de entrevistar que usara com os outros. Só que, ao mesmo tempo que mencionava o nome de Roland Mackey, checava o próprio Mackey com
a ajuda do binóculo. Ele ainda estava sentado à mesa, assistindo à televisão. Tal como as outras amigas de Rebecca Verloren, Tara Wood não reconheceu o nome do motorista
de reboque. Bosch acrescentou uma nova pergunta, querendo saber se por acaso ela se lembrava dos Chatsworth Eights, mas sua memória mostrou-se igualmente vaga quanto
a isso. Por fim, perguntou-lhe se podia continuar a entrevista no dia seguinte, quando lhe mostraria um retrato de Mackey. Ela concordou, mas disse que ele teria
que ir aos estúdios de televisão da CBS, onde trabalhava como publicitária. Bosch sabia que a CBS ficava perto do Mercado do Produtor, um de seus lugares favoritos
na cidade. Decidiu que podia ir ao mercado, talvez almoçar um bom prato de quiabo, depois ir ver Tara Wood para lhe mostrar a foto de Roland Mackey e perguntar a
respeito da gravidez de Rebecca Verloren. Marcou o encontro para uma hora da tarde, e ela garantiu que estaria em sua sala.
- Isso tudo é tão antigo - comentou ela. - Você trabalha em uma equipe de casos arquivados?
-Na verdade, chamamos de Unidade de Casos Não Resolvidos.
- Você sabe, temos um seriado chamado Cold Case. Passa nas noites de sábado. É um dos programas em que trabalho. Estou pensando... talvez você pudesse visitar o
estúdio e conhecer alguns dos seus equivalentes da telinha. Tenho certeza de que vão adorar conhecê-lo.
Bosch percebeu que ela podia estar querendo aproveitar um ângulo publicitário qualquer. Olhou pelo binóculo e viu Mackey ainda Sentado no mesmo lugar assistindo
à televisão, e, por um momento) pensou em tentar usar o interesse dela no jogo que iam encenar.
Rapidamente arquivou a idéia, concluindo que seria mais fácil começar
o jogo plantando uma história num jornal. -
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- Sim, talvez, mas acho que isso teria que esperar um pouco. Estamos totalmente dedicados a este caso agora, e eu preciso mesmo falar com você amanhã.
- Sem problema. Eu realmente espero que encontrem quem estão procurando. Desde que fui designada para trabalhar nessa série, tenho pensado muito em Rebecca. Sabe,
imaginando se estaria acontecendo alguma coisa de parecido com o que ocorre nos nossos episódios. Aí, de repente, você ligou. E estranho, mas no bom sentido. Eu
o vejo amanhã, detetive.
Bosch desejou boa-noite e desligou.
Poucos minutos depois, à meia-noite, as luzes do posto foram apagadas. Bosch sabia que a oferta de um serviço de reboque durante 24 horas não era traduzida obrigatoriamente
por ficar aberto as 24 horas de cada dia. Mackey ou outro motorista provavelmente ficavam de plantão o resto do tempo.
Bosch esgueirou-se para fora do seu esconderijo e saiu correndo pela Roscoe até o ponto onde deixara o carro. Justo quando chegou, ouviu o ronco grave do Camaro
de Mackey voltando à vida. Ligou o motor do Mercedes, afastou-se do meio-fio e recuou na direção do cruzamento. Quando lá chegou e parou no sinal vermelho, viu o
Camaro com os pára-lamas pintados de cinza atravessar o cruzamento e dirigir-se para o sul pela Tampa. Esperou um momento, viu se não vinha carro em alguma das pistas
do cruzamento e avançou o sinal para seguir o Camaro.
A primeira parada de Mackey foi em um bar chamado Side Pocket. Era no bulevar Sepulveda, em Van Nuys, perto da linha da estrada de ferro. Um lugarzinho pequeno com
um letreiro de néon azul e as janelas protegidas por grades pintadas de preto. Bosch tinha uma idéia de como deveria ser do lado de dentro e do tipo de homens
que lá estariam. Antes de deixar o carro, tirou o casaco esporte e embrulhou nele a arma, as algemas e o carregador extra,
colocando tudo no chão, na frente do banco do passageiro. Saltou. trancou a porta e dirigiu-se para o bar, puxando a camisa para
fora da calça enquanto andava.
O lado de dentro era como esperava. Duas mesas de sinuca, um bar sem bancos e uma fileira de cabines de madeira todas cheias
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de arranhões e marcas. Mesmo que fumar lá dentro fosse ilegal, a fumaça azulada era pesada, suspensa como um fantasma sob a luz de cada mesa. Ninguém se queixava.
A maioria dos homens tomava sua bebida pura, e de pé. Quase todos tinham correntes nas carteiras e tatuagens nos antebraços. Mesmo com as mudanças em sua aparência,
Bosch sabia que ia se destacar, deixando bem claro não pertencer àquele ambiente. Mas aí viu uma abertura pouco iluminada no ponto onde o bar fazia uma curva sob
a televisão montada no canto. Esgueirou-se até lá e debruçou-se sobre o bar, esperando que aquilo o ajudasse a se esconder.
A mulher do bar, uma criatura com ar de cansada e um colete de couro sobre uma camiseta, ignorou Bosch por algum tempo, mas não tinha problema. Ele não estava ali
para beber. Bosch viu que Mackey colocava moedas de 25 centavos em cima de uma das mesas de sinuca e esperava sua vez de jogar. Também ele não pediu bebida.
Os dez minutos seguintes, Mackey passou examinando um sortimento de tacos nos cabides presos às paredes, até que encontrou um que agradou. Depois ficou por ali mesmo,
esperando e conversando com alguns dos homens que permaneciam em torno da mesa de jogo. Não parecia ser nada mais que uma conversa comum, como se conhecesse aquela
gente só de jogar sinuca em outras noites.
Enquanto aguardava e observava, bebendo devagar a cerveja e a dose de uísque que a moça do bar finalmente lhe entregara, Bosch a princípio achou que também o estivessem
observando, mas depois se deu conta de que todos estavam apenas de olhos fixos na tela da televisão, situada a menos de trinta centímetros acima da sua cabeça.
Finalmente chegou a vez de Mackey jogar, e aí ele demonstrou Ser bom naquilo. Rapidamente ganhou o controle da mesa e derrotou sete adversários, ganhando dinheiro
ou cerveja de todos os Seus oponentes. Depois de meia hora, pareceu se cansar da falta de
competição e relaxou. O oitavo oponente o venceu, depois que Mackey errou
uma bola oito limpa. Ele aceitou bem a derrota e jogou uma nota de cinco dólares em cima do feltro verde antes de ir
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embora. Pela contagem de Bosch, ele estava pelo menos 25 dólares e três cervejas mais rico.
Mackey levou sua Rolling Rock para um espaço em cima do balcão do bar, o que, para Bosch, serviu como dica para bater em retirada. Pôs uma nota de dez sob o copinho
vazio de uísque e virou-se, sem dar o rosto para Mackey. Saiu do bar e voltou para o carro. A primeira coisa que fez foi pôr a arma de volta no quadril direito,
cabo para a frente. Deu a partida no motor e pegou o bulevar Sepulveda, dirigindo um quarteirão para o sul. Fez a curva e parou encostado no meio-fio, diante de
um hidrante. Dali tinha um bom ângulo de visão sobre a porta da frente do Side Pocket e estava em posição de seguir Mackey pelo bulevar Sepulveda rumo ao norte,
para Panorama.
Só que Bosch tinha se enganado. Mackey seguiu na direção contrária de Panorama. O que significava que ele tinha que fazer uma curva de 180 graus no Sepulveda, se
quisesse segui-lo. Sua manobra seria facilmente visível no retrovisor de Mackey, e por isso ele esperou até que o Camaro ficasse bem pequeno em seu espelho lateral.
Quando viu que o sinal do Camaro começou a piscar, meteu o pé no acelerador e levou o velocímetro a 180. Quase se deu mal, compensando demais no volante, mas corrigiu
prontamente a direção e desceu o Sepulveda. Virou à direita na Victory e emparelhou com o Camaro no sinal da passagem elevada 405. Mackey, entretanto, ficou fora
da rodovia e continuou pela Victory, para oeste.
Com Bosch empregando uma variedade de manobras para evitar ser descoberto, Mackey seguiu por toda a Woodland Hills. Na Mariano, uma rua larga perto da Via Expressa
101, ele finalmente tomou uma entrada de carros comprida e estacionou ao lado de uma casa pequena. Bosch passou direto, estacionou mais adiante, saltou e voltou
a pé. Ouviu a porta da frente da casa se fechando e depois viu a luz da varanda ser apagada.
Olhou em torno e deu-se conta de que aquela era uma região de lotes do tipo "bandeira". Quando fora feita a primeira divisão de terrenos, décadas atrás, as propriedades
foram cortadas em terrenos
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grandes, porque sua destinação eram a criação de cavalos e o plantio de produtos hortigranjeiros. Então a cidade cresceu e os cavalos e as verduras foram expulsos
pelo progresso. Os lotes foram novamente divididos, e da nova divisão resultaram um terreno na frente, com a testada voltada para a rua, e outro terreno nos fundos,
com o acesso garantido por um corredor estreito e comprido preservado na lateral do terreno - o mastro da bandeira.
Não era fácil observar dali da frente o que se passava no terreno dos fundos. Bosch esgueirou-se pela comprida entrada de automóveis, vigiando ao mesmo tempo a casa
do love da frente e a casa de Mackey, no fundo. Mackey tinha estacionado o Camaro ao lado de uma picape Ford 150 aos pedaços. O que significava que Mackey morava
com alguém.
Quando chegou mais perto, Bosch parou para anotar a placa da F 150 e reparou em um velho adesivo preso no pára-choque da picape que dizia: O ÚLTIMO AMERICANO A ABANDONAR
L.A. POR FAVOR LEVE A BANDEIRA. Achou que era mais uma pincelada no que ele já sentia como sendo um quadro emergente.
Tão silenciosamente quanto pôde, Bosch seguiu pelo caminho de pedra que corria ao lado da casa. Esta era construída sobre sapatas da altura do joelho, o que o impedia
de ver o que havia no seu interior. Ao chegar no fundo, ouviu vozes e percebeu que era a televisão, ao ver o clarão azul ondulante nas persianas do cômodo dos fundos.
Começou a atravessar o quintal, quando, de repente, seu telefone começou a tocar. Desligou o som mais do que depressa. Ao mesmo tempo, fez rapidamente o caminho
de volta e percorreu a entrada de carros já correndo. Só então parou para ver se ouvia algum som às suas costas, mas não ouviu nada. Já da rua, quando examinou a
casa, nada viu que lhe desse razão para acreditar que o trinar do seu telefone tivesse sido ouvido dentro da casa, acima do barulho da televisão.
Bosch sabia que fora por pouco. Estava ofegante. Caminhou de volta para o carro tentando recobrar as forças e se recuperar do que quase fora um desastre. Tal como
acontecera com a mal conduzida entrevista com Daniel Kotchof, sabia que estava mostrando sinais de estar fora de forma. Tinha se esquecido de desligar o som do
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telefone antes de esgueirar-se ao lado da casa. Um erro que poderia ter detonado tudo e que talvez o tivesse feito defrontar-se com o alvo de sua investigação. Três
anos atrás, antes de se aposentar, uma coisa dessas jamais teria acontecido. Lembrou-se do que Irving dissera a seu respeito, que não passava de um pneu recauchutado
que iria ceder nas costuras, acabando por explodir.
Dentro do carro, ele checou a lista de chamadas recebidas e viu que fora Kiz Rider quem ligara. Telefonou para ela.
- Harry, vi aqui no celular que você me telefonou faz algum tempo. Eu estava com tudo desligado. O que é que há?
- Pouca coisa. Eu queria saber como andavam as coisas.
- Bem, estão andando. Estou com tudo estruturado e quase toda a parte escrita feita. Termino amanhã de manhã, e aí começo a percorrer os trâmites.
- Ótimo.
- É isso aí. Estou prestes a dar a noite por encerrada. E você? Encontrou Robert Verloren?
- Ainda não. Mas tenho um endereço para você. Segui Mackey depois que ele largou o trabalho. Ele tem uma casinha perto da via expressa em Woodland Hills. Pode ser
que haja uma linha telefônica lá que você queira acrescentar ao mandado.
- Excelente. Pode me dar o endereço. Deve ser bastante fácil verificar. Mas não sei se quero você seguindo o suspeito sozinho. Não é inteligente, Harry.
- Tínhamos de descobrir o endereço.
Não ia lhe contar a mancada que dera. Passou o endereço e esperou um momento enquanto ela escrevia.
- Tenho outra coisa - acrescentou ele. - Andei dando uns telefonemas.
- Você andou muito ocupado para o primeiro dia de volta ao trabalho. O que foi que conseguiu?
Bosch contou todas as ligações que fizera e recebera depois que ela saíra. Rider não fez perguntas e se manteve em silêncio quando ele acabou.
- Agora você está atualizada - disse Bosch. - O que acha?
- Acho que talvez haja um quadro se formando, Harry.
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- E. Eu estou pensando a mesma coisa. Além do mais, tem essa coisa do ano. 1988. Acho que você acertou em algo quando pensou nessa hipótese. Talvez esses panacas
estivessem querendo provar qualquer coisa. O problema é que vai tudo parar debaixo da porta da PDU. Não se sabe onde vai terminar. Irving certamente jogou tudo no
incinerador de evidências do ESB, o prédio destinado ao armazenamento das provas.
- Em absoluto. Quando o novo chefe assumiu, quis uma avaliação ampla de tudo. Quis saber onde os corpos tinham sido enterrados. Embora não tenha me envolvido, tomei
conhecimento de que muitos dos arquivos da PDU foram guardados depois que a unidade foi dissolvida. Grande parte foi posta por Irving em Arquivos Especiais.
- Arquivos Especiais? Que diabo é isso?
- Significa apenas acesso limitado. Você precisa ter aprovação do comando para consultar. Está tudo no porão de Parker Center. Compõe-se basicamente de investigações
internas. Política. Troços perigosos. Esse negócio de Chatsworth não parece ter realmente o perfil adequado, a menos que seja ligado a alguma outra coisa.
-Como o quê?
- Alguém na cidade ou no departamento.
"Alguém na cidade" era uma pessoa poderosa na política da cidade.
- Você pode ir até lá e ver se ainda existe algum arquivo sobre isso? O que me diz do seu chapa do sexto andar? Talvez ele...
- Posso tentar.
- Então tente.
- Primeira coisa amanhã. E você? Pensei que fosse sair hoje de noite para encontrar Robert Verloren e tomo conhecimento agora
de que andou seguindo o nosso suspeito.
- Eu fui lá. Mas não o encontrei.
Ele a pôs a par de sua incursão no Distrito dos Brinquedos, deixando de fora o encontro com os pretensos ladrões. Preferia não contar esse incidente e o fiasco do
telefone celular atrás da casa de Mackey.
- vou voltar lá amanhã de manhã - disse ele em conclusão.
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- OK, Harry. Está parecendo um plano. Devo estar com o mandado pronto quando você chegar. E vou dar uma olhada nos arquivos da PDU.
Bosch hesitou, mas decidiu não ocultar advertências ou preocupações de sua parceira. Olhou para a rua escura através do
pára-brisa; podia ouvir o silvo da via expressa próxima.
- Kiz, tenha cuidado.
- Como assim, Harry?
- Você sabe o que significa dizer que um caso tem alto jingo?
- Sim, significa que tem gente do alto escalão com os dedos na torta.
- Isso mesmo.
- E aí?
- Tenha cuidado. Essa coisa tem as digitais de Irving por toda parte. Não é óbvio, mas estão lá.
- Acha que o encontro dele com você na cafeteria não foi coincidência?
- Não acredito em coincidências. Não assim.
Seguiu-se um longo momento de silêncio antes de Rider responder.
- Tudo bem, Harry, vou tomar cuidado. Mas sem vácuos, certo? Vamos chegar aonde for preciso, sejam quais forem as conseqüências. Ou todos têm importância ou ninguém
tem, lembra?
- Lembro, claro. Vejo você amanhã.
- Boa noite, Harry.
Ela desligou, e Harry ficou sentado no carro por longo tempo antes de girar a chave.
Capítulo 19
Bosch deu a partida no motor, fez uma curva de 180 graus na Mariano e passou pela entrada de carros da casa de Mackey. Parecia estar tudo quieto agora por lá. Não
viu luzes atrás das janelas.
Pegou a via expressa e seguiu para leste cortando o Vale até entrar em passo Cahuenga. A caminho, puxou o celular e ligou para a central, pedindo que a despachante
verificasse a placa da picape Ford ao lado da qual Mackey tinha estacionado. Tratava-se de um tal William Burkhart, 37 anos de idade, com prontuário criminal dos
anos 1980 e nada mais nos últimos 15 anos. A despachante deu a Bosch os números do Código Penal da Califórnia que violara, porque eles estavam listados no computador.
Bosch reconheceu imediatamente agressão com circunstâncias agravantes e receptação de objetos furtados. Mas havia uma acusaÇão datada de 1988 com um código do qual
ele não se lembrava.
- Será que tem alguém aí que possa me dizer do que se trata? Perguntou, na esperança de que o movimento estivesse calmo o bastante para que a despachante pudesse
ela própria procurar. Bosch tinha certeza de que havia exemplares do código penal ao seu
alcanCe, porque era comum os policiais que estavam em campo perguntaern
os números corretos dos artigos que definiam crimes e delitos, um meio de prepararem notificações.
- Espere aí.
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Ele esperou. Enquanto isso, saiu na Barham e pegou a Woodrow Wilson para subir o morro na direção de sua casa.
- Detetive?
- Ainda aqui.
- Aquilo se refere a uma violação chamada crime de ódio... crime cometido por preconceito, ódio racial ou religioso.
- OK. Muito obrigado por ter procurado.
- Sem problema.
Bosch parou o carro no abrigo coberto e desligou o motor. O sujeito que morava com Mackey, ou que era o seu senhorio, tinha sido acusado de crime de ódio em 1988
- o mesmo ano do assassinato de Rebecca Verloren. William Burkhart provavelmente era o mesmo Billy Burkhart que Sam Weiss identificara como vizinho e um dos seus
perseguidores. Bosch não sabia como tudo aquilo se ajustava, mas sabia que era parte de um mesmo quadro. Devia ter trazido para casa o arquivo de Mackey do Departamento
Correcional. Agora estava cansado demais para voltar ao centro e pegar. Decidiu que ia dar a noite por encerrada e leria tudo de cabo a rabo no dia seguinte, quando
chegasse no escritório. Pegaria também o arquivo com os detalhes da prisão de William Burkhart por crime de ódio.
A casa estava silenciosa quando entrou. Ele pegou o telefone, apanhou uma cerveja na geladeira e foi para o deque contemplar a cidade. No caminho, ligou o aparelho
de som, que sempre tinha um CD pronto para ser tocado. Em pouco tempo estava ouvindo a voz de Boz Scaggs nos alto-falantes de fora. Cantava "For Ali We Know".
A canção competia com o ruído abafado dos carros na via expressa lá embaixo. Bosch deu uma espiada e viu que não havia os fachos de luz dos holofotes cortando o
céu a partir dos estúdios da Universal. Já era tarde demais para isso. Ainda assim, a paisagem era cativante, do jeito como só podia ser à noite. Lá embaixo, a cidade
cintilava como um milhão de sonhos, nem todos bons.
Bosch pensou em telefonar de novo para Kiz Rider e comentar com ela a conexão William Burkhart, mas decidiu deixar para de manhã. Contemplou a visão da cidade e
sentiu-se satisfeito com os
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acontecimentos e realizações do dia. Sentia-se, contudo, um tanto deprimido. Saber que o alto escalão está envolvido em operações de acobertamento e conspiração
resulta em baixo astral.
O homem com a faca não estivera muito longe da verdade ao chamá-lo de missionário. Quase acertara em cheio. Bosch sabia que tinha uma missão em vida, e agora, depois
de três anos, estava de volta no ritmo certo. No entanto não conseguia obrigar-se a acreditar que tudo fosse tão bom como parecia. Sentia que havia algo lá fora
além daquelas luzes e sonhos, algo que ele não conseguia enxergar. Que estava à sua espera.
Clicou no telefone e ouviu um tom de discar ininterrupto. Significava que não tinha recados. De qualquer maneira, apertou o botão para ouvir recados e recuperou
um que salvara da semana anterior. Era a vozinha de sua filha, gravada na noite em que ela e a mãe viajaram para longe.
- Olá, papai - disse ela. - Boa noite, papai.
Foi tudo o que disse, mas era o suficiente. Bosch salvou o recado para a próxima vez em que precisasse e depois desligou.
PARTE DOIS
Corrupção e Acobertamento no Alto Escalão
Capítulo 20
No dia seguinte, às 7h50, Bosch estava de volta na Nickel, o apelido da rua Cinco. Observava a fila da comida no abrigo Metro Shelter e não tirava o olho de Robert
Verloren, de volta à cozinha, atrás do balcão térmico. Tivera sorte. De manhã cedo, fora quase como se tivesse havido uma mudança de turno entre os sem-teto. Quem
tinha palmilhado as ruas escuras curava-se agora das derrotas da noite no sono da embriaguez. Era substituído pelo primeiro turno dos sem-teto, pessoas inteligentes
o bastante para se esconderem da rua à noite. A intenção de Bosch fora começar de novo pelos grandes centros de distribuição de comida e prosseguir daí. Deixara
o carro mais uma vez em Japantown, e, ao entrar na zona dos sem-teto, começara a mostrar a foto de Verloren às pessoas mais lúcidas que encontrava, e quase que imediatamente
fora obtendo respostas. As pessoas do turno da manhã reconheciam Verloren. Algumas diziam ter visto o homem da foto por ali, mas que agora ele era muito mais velho.
Até que Bosch esbarrara em um homem que, sem titubear, dissera: "Ah, sim, é o chef', e apontara na direÇão do abrigo Metro.
O Metro era um dos menores abrigos que se agrupavam em torno do Exército de Salvação e da Missão Los Angeles e
destinava-se a atender o excesso de habitantes das ruas, particularmente nos rneses de inverno, quando a temperatura mais amena de Los Angeles
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atraía migrantes de pontos mais frios ao norte. Esses centros menores não dispunham de recursos para assegurar três refeições substanciais por dia e, conforme combinação,
especializavam-se em um só serviço. Ali no Metro, o serviço era o café-da-manhã, que começava às 7h todos os dias. Quando Bosch chegara, a fila de homens e mulheres
cambaleantes e desgrenhados saía porta afora, e no lado de dentro as fileiras compridas de mesas rústicas estavam lotadas. Era voz das calçadas que o Metro tinha
o melhor café-da-manhã da Nickel.
Bosch abrira caminho mostrando o crachá e logo vira Verloren na cozinha, em um ponto além das mesas de servir. Não lhe pareceu que estivesse fazendo um determinado
serviço em particular. De fato, era mais como se estivesse verificando a preparação de diversas coisas e dava a impressão de ser o encarregado. Estava bemvestido,
com uma camisa branca de dois bolsos e calças pretas, um impecável avental branco abaixo dos joelhos e um chapéu alto de chef.
O café-da-manhã consistia de ovos mexidos com pimentões vermelhos e verdes, batatas fritas, canjica e salsichas em rodelas. A aparência e o cheiro pareceram ótimos
a Bosch, que saíra de casa sem comer nada para não perder tempo. À direita da linha de servir havia um ponto de café com duas grandes cafeteiras do tipo self-service.
Ao lado, cabides contendo copos de porcelana grossa, já lascados e amarelados pelo tempo. Bosch pegou um deles, encheu com o café preto fumegante, tomou um gole
e ficou esperando. Quando Verloren se encaminhou para a mesa de servir usando a barra do avental para segurar uma pesada panela de recompletamento de ovos, Bosch
entrou em cena.
- Ei, chefe! - exclamou, acima do estrépito dos talheres que serviam a comida e das vozes.
Verloren levantou a cabeça, e Bosch viu que ele imediatamente concluíra que não se tratava de um "cliente" comum. Tal como na noite anterior, Bosch estava vestido
informalmente, mas Verloren talvez tivesse adivinhado que se tratava de um tira. Afastou-se da mesa de servir e aproximou-se. Mas não cobriu todo o espaço. Parecia
haver uma linha invisível no chão que servia de linha de demarcação
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entre a cozinha e o espaço destinado a comer. Verloren não a cruzou. Permaneceu do seu lado, usando o avental para segurar a panela de servir quase vazia que
tinha tirado do balcão térmico.
- Posso ajudar? - perguntou ele.
- Sim, tem um minuto? Eu gostaria de falar com você.
- Não, eu não tenho um minuto. Estou no meio do café.
- É sobre sua filha.
Bosch percebeu a ligeira hesitação nos olhos dele. Ele os baixou por um minuto e depois encarou Bosch.
- Você é da polícia? - perguntou. Bosch assentiu.
- Posso pelo menos acabar com esta leva? Estamos colocando as últimas bandejas agora.
- Sem problema.
- Quer comer? Você parece com fome.
- Bem...
Bosch olhou em torno para as mesas lotadas. Não tinha idéia de onde poderia sentar. Sabia que aqueles lugares tinham o mesmo tipo de protocolo tácito que as prisões.
Acrescentando-se o alto grau de doença mental presente na população dos sem-teto, era possível estar cruzando alguma linha importante só pelo lugar que escolhesse.
- Venha comigo - disse Verloren. - Temos uma mesa nos fundos.
Bosch virou-se para Verloren, mas ele já estava voltando para a cozinha. Seguiu-o e foi levado através das áreas de cozinha e preParação de alimentos para um aposento
nos fundos onde havia uma mesa de aço inox com uma bandeja cheia em cima.
- Sente-se.
Verloren removeu a bandeja. Parecia um garçom ou um maítre querendo que o cliente tivesse uma mesa perfeita. Bosch agradeceu e sentou-se.
- Volto logo.
No que pareceu ser menos de um minuto, Verloren trouxe um Prato com todas as coisas que Bosch vira no balcão térmico. Quando
ele serviu os talheres, Bosch percebeu o tremor em suas mãos.
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- Muito obrigado, mas eu estava pensando, vai dar para todo mundo? Sabe, vai ter comida para todos que aparecerem?
- Não vamos dispensar ninguém hoje. Quem chegar a tempo vai ter comida. Como está seu café?
- Excelente, obrigado. Sabe, não é como se eu não quisesse ter sentado lá dentro. E que eu simplesmente não sabia onde me sentar.
- Eu compreendo. Não precisa explicar. Preciso tirar umas bandejas, e depois podemos conversar. Houve uma prisão?
Bosch encarou-o. Havia um brilho esperançoso, talvez súplice, nos olhos de Verloren.
- Ainda não - respondeu Bosch. - Mas estamos chegando perto de alguma coisa.
- Voltarei assim que puder. Coma. Chamo esse prato de ovos mexidos à Malibu.
Bosch olhou para o prato. Verloren voltou para a cozinha.
Os ovos eram bons. Da mesma forma, toda a refeição. Sem torrada, mas aí já era querer demais. A área de repouso onde ele estava ficava entre a cozinha e o aposento
amplo onde dois homens operavam a máquina industrial de lavar pratos. Era alto o nível de ruído, com o barulho que vinha das duas direções ricocheteando nas paredes
revestidas de azulejos cinzentos. Havia uma porta de duas folhas que dava na viela dos fundos. Uma das folhas estava aberta, permitindo que entrasse o ar frio, o
que mantinha a distância o vapor da máquina de lavar pratos e o calor da cozinha.
Depois que terminou o que tinha no prato e bebeu o resto do café, Bosch levantou-se e saiu para dar um telefonema longe de todo aquele barulho. Na mesma hora, viu
que a viela era um verdadeiro acampamento. As paredes dos fundos das missões de um lado e os depósitos de brinquedos e outros artigos alinhavam-se lado a lado com
barracos de papelão e lona. Fazia silêncio. Provavelmente eram os abrigos do pessoal da noite. Não é que não houvesse lugar para eles nos dormitórios das missões.
E que as camas lá vinham com regras básicas anexadas, e os sem-teto não queriam se submeter a elas.
Bosch ligou para o celular de Kiz Rider, e ela atendeu prontamente. Já estava na sala 503 e tinha acabado de distribuir o
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pedido de autorização judicial para instalação de grampeamento. Bosch falou baixo.
- Encontrei o pai.
- Bom trabalho, Harry. Você não perdeu a mão. O que foi que ele disse? Reconheceu Mackey?
- Ainda não falei com ele.
Bosch explicou a situação e perguntou se havia alguma novidade no lado dela.
- O mandado está em cima da mesa do capitão. Abel vai interferir se não tivermos notícias de uma decisão até as dez, e aí entra
na corrente.
- Você chegou aí bem cedo?
- O mais cedo que pude. Queria terminar com isso.
- Chegou a ter uma chance de ler o diário da menina ontem à noite?
- Cheguei. Li na cama. Não adianta muito. Segredinhos de colegial. Amores não correspondidos, paixonites de uma semana, coisas desse tipo. MTL é mencionado, mas
sem uma pista de sua identidade. Pode inclusive ser uma fantasia, ela dizendo como ele é especial. Acho que Garcia agiu certo ao devolvê-lo para a mãe. Não vai nos
ajudar.
- MTL aparece no diário como ele?
- Puxa, Harry, essa foi boa. Não notei. Estou com o diário aqui e vou checar. Você sabe alguma coisa que eu não sei?
- Não, só quero ver se não deixo furo. E Danny Kotchof? Ele aparece no diário?
- No princípio. E mencionado pelo nome. Depois desaparece, e o misterioso MTL assume.
- O Sr. X...
- Escute, estarei lá em cima no sexto andar daqui a pouco. Verei se consigo acesso àqueles arquivos antigos de que falamos.
Bosch observou que Rider não se referira aos arquivos como sendo da PDU. Talvez Pratt ou outra pessoa se encontrasse por perto e ela estivesse se precavendo para
não ser ouvida.
- Tem alguém aí, Kiz?
- Exatamente.
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- Tome todo cuidado, certo?
- Pode deixar.
- Ótimo. Boa sorte. A propósito, você encontrou o telefone da casa da rua Mariano?
- Encontrei. Tem um telefone e está no nome de William Burkhart. Deve rachar o aluguel com ele. Esse cara é só uns dois anos mais velho que Mackey, e sua ficha inclui
um crime de ódio. Nada recentemente. Mas esse ocorreu em 1988.
- E adivinhe só - disse Bosch -, ele também era vizinho de Sam Weiss. Devo ter deixado esta de fora ontem à noite quando conversamos.
- E muita informação.
- Exato. Sabe, tenho pensado numa coisa. Como é que pode o celular de Mackey não aparecer no AutoTrack?
- Estou na sua frente nessa. Verifiquei o número, e não é dele. Está registrado em nome de Belinda Messier. Mora na Melba, também em Woodland Hills. Ficha limpa,
a não ser por uns trocinhos de tráfico. Pode ser a namorada dele.
- Pode ser.
- Quando tiver tempo, vou rastreá-la. Estou sentindo algo aqui, Harry. As coisas estão se ajustando. Todo esse negócio do 88. Tentei pegar o arquivo sobre crimes
de ódio, mas...
-PDU?
- Exatamente. E essa é a razão pela qual vou ao sexto.
- Certo. Mais alguma coisa?
- A primeira coisa que fiz ao chegar foi ver se o pessoal do ESB já tinha encontrado a caixa de evidências. Ainda não. E ainda não temos a arma. Não sei se ela terá
sido colocada em local errado. Não sei agora se foi colocada erradamente ou se foi levada.
- É - concordou Bosch, pensando a mesma coisa. Se o caso tivesse suas raízes dentro do próprio departamento, as evidências poderiam ter sido propositada e permanentemente
perdidas.
- Muito bem - disse Bosch. - Antes que eu faça este interrogatório aqui, voltemos ao diário um instante. Há alguma coisa a respeito da gravidez?
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- Não, ela não escreveu a respeito. Os registros são datados, e ela parou de escrever no final de abril. Talvez tenha sido quando descobriu que estava grávida. Pode
ser que tenha parado de escrever por imaginar que os pais poderiam estar lendo secretamente o seu diário.
- Ela menciona pontos de reunião? Você sabe, lugares que freqüentava, essas coisas?
- Ela menciona mesmo é um monte de filmes - respondeu Rider.
- Não diz com quem via os filmes mas sim que via tais e tais filmes e o que achava deles. Você está pensando em quê? Em como Rebecca passou a ser um alvo para Mackey?
Eles precisavam saber onde os caminhos de Mackey e Rebecca Verloren tinham se cruzado. Não saber isso era um furo no caso, fosse qual fosse a motivação do crime.
Onde Mackey tinha entrado em contato com Verloren a fim de transformá-la em seu alvo?
- Cinemas - disse ele. - Pode ser que tenham se encontrado em algum cinema.
- Exatamente. E se você se lembrar de que todos os cinemas do Vale ficam em shoppings, a zona de possível encontro se alarga ainda mais.
- E algo para se pensar.
Bosch disse que iria para o escritório depois que conversasse com Robert Verloren, e os dois desligaram. Quando voltou à sala de descanso, o barulho lhe pareceu
ainda mais alto. A distribuição de refeições terminara, e as máquinas de lavar louça funcionavam ruidosamente. Bosch sentou-se novamente e reparou que haviam retirado
seu prato. Tentou recapitular a conversa com Rider. Sabia que um shopping center podia funcionar como uma imensa encruzilhada, um lugar onde seria fácil alguém como
Mackey ter cruzado seu caminho com uma Pessoa como Rebecca Verloren. Não sabia dizer se o crime poderia ter nascido de um encontro casual - ao ver uma garota com
uma óbvia Mistura de raças no rosto, cabelo e olhos, ele teria ficado irado a ponto de segui-la até em casa, para mais tarde voltar com outros ou mesttto sozinho
a fim de seqüestrá-la e matá-la?
Parecia um tiro no escuro, mas a maioria das teorias começa sob a forma de tiros no escuro. Pensou na investigação original e
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na possibilidade de ela ter sido maculada por alguém de dentro do departamento. Não havia nada no livro do crime que sequer sugerisse o ângulo racial. Mas em 1988
o departamento teria feito tudo o que pudesse para evitar a questão. O departamento e a cidade de Los Angeles tinham um ponto cego na retina. Uma infecção de animosidades
raciais supurava sob a superfície em 1988, mas tanto o departamento quanto a cidade não enxergavam. O tumor finalmente veio a furo uns poucos anos mais tarde, e
a cidade foi destroçada por três dias de sérios distúrbios de rua, os piores em um quarto de século. Bosch tinha que levar em conta que a investigação do assassinato
de Rebecca Verloren podia ter sido retardada com a finalidade de manter a doença sob a superfície.
- Pronto?
Bosch levantou os olhos e viu Robert Verloren de pé ao seu lado. Tinha o rosto suado pelo esforço e agora segurava o chapéu de chef na mão. Seu braço ainda tremia
ligeiramente.
- Sim, claro. Quer se sentar? Verloren se sentou diante de Bosch.
- É sempre desse jeito? - perguntou. - Assim lotado?
- Todas as manhãs. Hoje servimos 162 refeições. Muita gente conta conosco. Não, espere, 163 pratos. Esqueci do seu. O que achou?
- Estava excelente. Muito obrigado, eu estava mesmo precisando de combustível.
- Minha especialidade.
- Um pouco diferente de cozinhar para Johnny Carson e o jet set de Malibu, hem?
- É, mas não sinto falta daquilo. Em absoluto. Foi apenas uma parada no caminho enquanto não encontrava o meu lugar. Mas estou aqui agora, graças ao Senhor Jesus,
e é aqui que desejo estar.
Bosch assentiu. Intencionalmente ou não, Verloren estava comunicando que sua nova vida fora encontrada através da
intervenção da fé. Pela experiência de Bosch,
as pessoas que mais falavam sobre isso com freqüência eram as menos seguras em sua fé.
- Como me encontrou? - quis saber Verloren.
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- Minha parceira e eu conversamos com sua mulher ontem, e ela nos contou que, a julgar pela última vez que tivera notícias suas, você estaria aqui. Comecei a procurar
ontem à noite.
- Eu não andaria por essas ruas à noite, se fosse você.
Havia uma ligeira cadência caribenha no seu jeito de falar. Algo que devia ter desaparecido com o tempo.
- Pensei que ia encontrá-lo na fila, não servindo a fila.
- Há não muito tempo eu ainda estava na fila. Tive que passar por isso para chegar onde me encontro agora.
Bosch balançou a cabeça. Já ouvira antes aqueles mantras de um dia de cada vez.
- Há quanto tempo você está sóbrio? Verloren sorriu.
- Desta vez? Há três anos e pouco.
- Olhe, não quero obrigá-lo a reviver o trauma de 17 anos atrás, mas reabrimos o caso.
- Tudo bem, detetive. Eu reabro o caso toda noite quando fecho os olhos, e toda manhã quando faço minhas preces a Jesus.
Bosch balançou a cabeça de novo.
- Quer conversar aqui mesmo, dar uma volta ou ir até o Parker Center, onde poderemos nos sentar em uma sala tranqüila?
- Aqui é bom. Sinto-me confortável aqui.
- Tudo bem, então deixe que eu fale um pouco sobre o que está acontecendo. Trabalho para uma unidade que trata de casos não resolvidos. Estamos trabalhando no assassinato
de sua filha porque temos algumas informações novas.
- Que informações?
Bosch decidiu usar uma abordagem diferente com ele. Enquanto tinha sonegado informações à mãe, decidiu abrir o jogo com o pai.
- Temos uma equivalência entre o sangue encontrado na arma usada no crime e o sangue de um indivíduo que temos certeza de que morava em Chatsworth à época do crime.
O mesmo DNA. Sabe o que é isso?
Verloren fez que sim.
- Sei. Como no caso de O. J. Simpson. ""--
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- Trata-se de uma equivalência perfeita. Não quer dizer que ele tenha assassinado Rebecca, mas significa que esteve próximo do crime, o que nos aproxima mais também.
-Quem é?
- Chego lá num minuto. Primeiro, Sr. Verloren, quero lhe fazer umas perguntas a seu próprio respeito e relativamente ao caso.
- A meu respeito?
Bosch sentiu que a tensão crescia. A pele em torno dos olhos de Verloren ficou mais esticada. Talvez tivesse sido descuidado com aquele homem, tomando a sua posição
na cozinha como um sinal de saúde e esquecendo do aviso que Rider lhe dera sobre a população dos sem-teto.
- Bem - disse -, eu gostaria de saber um pouco sobre o que lhe aconteceu durante esse tempo decorrido após o crime que levou Rebecca.
- O que isso tem a ver com o caso?
- Talvez nada, mas eu quero saber.
- O que aconteceu comigo foi que tropecei e caí dentro de um buraco negro. Levei longo tempo para ver a luz e a saída. Você tem filhos?
- Um. Uma garota.
- Então sabe o que estou querendo dizer. Você perde um filho do jeito que eu perdi a minha, e pronto, meu amigo, acabou. Você vira uma garrafa vazia jogada pela
janela. O carro continua a viagem, mas você fica ali à margem da estrada, quebrado.
Bosch aquiesceu. Entendia aquilo. Vivia uma vida de berrante vulnerabilidade, sabendo que o que podia acontecer em uma cidade distante seria capaz de fazer com que
ele vivesse ou morresse, ou então que caísse no mesmo buraco negro de Verloren.
- Depois da morte de sua filha você perdeu seu restaurante?
- Exato. E foi a melhor coisa que podia ter acontecido. Precisava daquilo para descobrir quem eu realmente era. E para abrir meu caminho aqui.
Bosch sabia que defesas emocionais como aquela eram frágeisPela lógica de Verloren, a morte da filha fora a melhor coisa que poderia ter lhe acontecido porque levara
à perda do restaurante,
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desencadeando todas as maravilhosas descobertas pessoais que ele tinha feito. Papo furado, e os dois homens sentados à mesa sabiam disso; só que um deles não podia
admitir.
- Sr. Verloren, fale comigo - disse Bosch -, guarde todo esse papo aprendido nas lições de auto-ajuda para as suas reuniões e essa gente andrajosa da fila de famintos.
Conte para mim como foi que tropeçou. Conte como foi que caiu no buraco negro.
- Mas foi isso que aconteceu.
- Nem todo mundo que perde um filho cai tão fundo. Você não é a única pessoa a quem aconteceu uma coisa dessas. Há quem termine na televisão, outros se candidatam
ao Congresso. O que foi que lhe aconteceu? Por que o senhor é tão diferente? E não me diga que é porque amava mais a sua filha. Nós todos amamos nossos filhos.
Verloren ficou em silêncio por um momento e comprimiu com força os lábios enquanto se recompunha. Bosch podia ver que o irritara. Mas não havia outro jeito. Precisava
forçar as coisas.
- Está certo - disse Verloren finalmente. - Está certo.
Mas foi só. Bosch podia ver os músculos do seu queixo trabalhando. A dor dos últimos 17 anos se instalou no seu rosto. Bosch podia ver com clareza cada detalhe.
Como se fosse um cardápio. Entradas, pratos principais, sobremesas. Frustrações, raiva, perda irreparável.
- Está certo o quê, Sr. Verloren?
Verloren balançou a cabeça. Removeu a barricada final.
- Culpei vocês, mas na verdade tenho que culpar a mim mesmo. Abandonei minha filha à própria morte, detetive. Depois, o único lugar em que pude me esconder foi a
garrafa. A garrafa se abre no buraco negro. Você me entende?
Bosch balançou a cabeça.
- Estou tentando. Diga-me o que quer dizer com "culpei vocês. "Vocês" quem? Os tiras? As pessoas brancas?
- Refiro-me a todos.
Verloren virou na cadeira de modo a ficar com as costas encostadas na parede de azulejos perto da mesa. Ficou olhando para a viela pela porta aberta. Não encarou
Bosch.
Bosch preferia contato
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to visual direto, mas preferiu deixar o barco rolar enquanto Verloren estivesse falando.
- Vamos então começar pelos tiras - disse. - Por que você culpa os tiras? O que eles fizeram?
- Você espera que eu lhe fale a respeito do que vocês fizeram? Bosch pensou cuidadosamente antes de responder. Sentiu que
aquele era o ponto crucial da entrevista e que aquele homem tinha algo de importante a declarar.
- Começamos com o fato de que você amava sua filha, certo?
- Naturalmente.
- Pois bem, senhor Verloren, o que aconteceu a ela jamais deveria ter acontecido. Não posso fazer nada a esse respeito. Mas posso tentar falar em nome dela. É por
isso que estou aqui. O que os tiras fizeram 17 anos atrás não é o que eu vou fazer. De qualquer modo, eles, em sua maioria, já morreram. Se o senhor ainda ama sua
filha, se ama a lembrança dela, então me contará a história. E me ajudará a falar por ela. É o seu único modo de compensar o que fez naquele tempo.
Verloren começou a balançar a cabeça no meio da peroração de Bosch. Bosch soube que o ganhara, que ele se abriria. Tinha a ver com redenção. Não importava quantos
anos tinham se passado. Redenção era sempre a oportunidade de ouro.
Uma lágrima escorreu pela face esquerda de Verloren, quase imperceptível na pele escura. Um homem envergando um uniforme branco da cozinha bastante sujo entrou na
área de repouso com uma prancheta na mão, e Bosch fez rapidamente um gesto mandando que se afastasse de Verloren. E esperou, até que finalmente ele falou.
- Eu preferi a mim em detrimento dela, e no fim me perdi de qualquer modo - disse ele.
- Como foi que isso aconteceu?
Verloren cobriu a boca com uma das mãos, como se tentasse impedir que os segredos se dispersassem. Finalmente abaixou a mão e falou.
- Li um dia no jornal que minha filha tinha sido morta com uma arma roubada em um arrombamento. Green e Garcia não
tinham me contado isso. Aí pedi uma explicação ao detetive Green, e ele me disse que o dono da arma a comprara porque estava com medo. Ele era judeu e tinha recebido
ameaças. Achei... Ele se interrompeu, e Bosch teve que motivá-lo.
- Achou que Rebecca talvez tivesse sido assassinada por ser mestiça? Porque o pai dela era negro?
Verloren fez que sim.
- Achei, sim, porque de tempos em tempos havia um comentário ou qualquer coisa. Não era todo mundo que via a beleza de Becky. Não do jeito como nós víamos. Eu queria
morar no Westside, mas Muriel era lá de cima. Aquilo era o seu lar.
- O que foi que Green lhe disse?
- Ele me disse que não, que não tinha nada a ver. Que eles tinham investigado isso, mas não havia a menor possibilidade. A reação deles... Não me pareceu correta.
Eles estavam ignorando a minha suspeita, foi o que achei. Insisti, continuei telefonando e perguntando. Até que por fim falei com um cliente que eu tinha no restaurante
e que era membro da comissão de polícia. Contei tudo, e ele me disse que mandaria investigar para mim.
Verloren balançou a cabeça, concordando, mais para si próprio que para Bosch. Estava fortalecendo sua fé nas ações dele como um pai procurando justiça para sua filha.
- E então, o que aconteceu?
- Recebi uma visita de dois policiais.
- Green e Garcia?
- Não, não. Outros. Foram ao meu restaurante.
- Sabe os nomes deles? Verloren sacudiu a cabeça.
- Eles nunca me disseram seus nomes. Só me mostraram os crachás. Eram detetives, acho eu. Disseram que eu estava errado em
forçar a mão com Green. Disseram que era melhor eu recuar, porque só estava pondo lenha na fogueira. Foi isso mesmo que disseram, lenha na fogueira. Como se o problema
fosse eu, e não minha filha.
Ele sacudiu a cabeça tensamente, a raiva ainda viva após tantos anos. Bosch fez uma pergunta óbvia, óbvia porque ele sabia muito bem como o DPLA trabalhava naquele
tempo.
188
- Eles o ameaçaram?
Verloren soltou um bufo.
- Sim, eles me ameaçaram - respondeu, falando baixo. - Disseram que sabiam que minha filha estava grávida, mas que não tinham conseguido encontrar a clínica onde
ela tinha ido abortar. Não havia portanto tecido celular que pudessem usar para identificar o pai. Impossível dizer quem era ou quem não era. E, assim, bastaria
que eles fizessem umas perguntas sobre mim e ela, como com o meu cliente na comissão de polícia, e os boatos começariam a circular. Disseram que bastaria fazer umas
perguntinhas nos lugares certos, e em breve as pessoas iam começar a pensar que era eu.
Bosch não interrompeu. A raiva que o invadia era tanta que ele sentia um nó na garganta.
- Eles disseram que seria difícil manter meu negócio se todo mundo imaginasse que eu tinha... Que eu tinha feito aquilo à minha filha...
Mais lágrimas escorreram pelo rosto escuro de Verloren. Que nada fez para interromper seu fluxo.
- E assim eu fiz o que eles queriam. Recuei e deixei tudo de lado. Parei de botar lenha na fogueira. Disse a mim mesmo que não fazia mal, que aquilo não traria Becky
de volta. Assim, nunca mais entrei em contato com o detetive Green... e eles nunca resolveram o caso. Após algum tempo, comecei a beber para esquecer o que tinha
perdido e o que tinha feito, colocando a mim mesmo, meu orgulho, minha reputação e meu negócio à frente de minha filha. E em muito pouco tempo, antes que eu me desse
conta, entrei no buraco negro sobre o qual lhe falei. Caí e ainda estou escalando para ver se saio.
Após um momento, ele se virou e olhou para Bosch.
- Que tal a história, detetive?
- Sinto muito, Sr. Verloren. Sinto muito que tenha acontecido. Toda ela.
- É a história que queria ouvir?
- Eu só queria saber a verdade. Acredite ou não, vai me ajudar. Vai me ajudar a falar por ela. E capaz de descrever os dois homens que o procuraram?
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Verloren sacudiu a cabeça.
- Já faz muito tempo. Provavelmente eu não os reconheceria nem que estivessem na minha frente. Oh, sim, claro, lembro que os dois eram brancos. Sempre achei que
um deles se parecia com o Sr. Limpeza do anúncio, porque sua cabeça era escanhoada e ele tinha a mania de parar com os braços cruzados que nem o cara na garrafa.
Bosch aquiesceu e sentia a raiva trabalhando nos músculos dos seus ombros. Sabia muito bem quem era Sr. Limpeza.
- Até que ponto sua mulher soube disso? - perguntou, conseguindo manter a voz calma.
Verloren sacudiu a cabeça.
- Muriel não soube de nada disso. Escondi dela. O fardo era
meu.
Verloren enxugou o rosto, dando a impressão de que se sentia aliviado por finalmente ter contado sua história.
Bosch enfiou a mão no bolso de trás e tirou uma velha foto de Roland Mackey, que colocou em cima da mesa diante de Verloren.
- Reconhece esse garoto?
Verloren olhou a foto por algum tempo antes de sacudir a cabeça em negativa.
- Eu deveria reconhecer? Quem é?
- O nome é Roland Mackey. Era dois anos mais velho que sua filha em 1988. Não freqüentou a mesma escola em Hillside, mas morava em Chatsworth.
Bosch esperou por uma reação que não veio. Verloren limitouse a fixar os olhos na foto em cima da mesa.
- Esta é uma foto de identificação policial. O que foi que ele fez?
- Roubou um carro. Mas tem um histórico de associação com extremistas do poder branco. Dentro e fora da cadeia. O nome significa alguma coisa para você?
- Não. Deveria?
- Não sei. Só estou perguntando. Pode se lembrar se sua filha alguma vez mencionou o nome dele ou talvez de alguém
chamado Ro?
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Verloren sacudiu a cabeça.
- O que estamos tentando descobrir é se eles poderiam ter se conhecido em algum lugar. O Vale é muito grande. Eles podiam...
- Que escola ele freqüentou?
- Chatsworth High, mas não se formou. Obteve um diploma de ensino médio por supletivo.
- Rebecca fez um curso de motorista na Chatsworth High no verão anterior à data prevista para o seu exame.
- Quer dizer, em 1987? Verloren fez que sim.
- vou verificar.
Mas Bosch não pensou que fosse uma boa pista. Mackey abandonara a escola antes do verão de 1987 e não voltara para tirar seu diploma de supletivo senão em 1988.
Ainda assim, valia a pena uma verificação meticulosa.
- E o cinema? Ela gostava de ir ao cinema e ao shopping? Verloren deu de ombros.
- Ela era uma garota de 16 anos. Claro que gostava de cinema. A maior parte de suas amigas tinha carro. Assim que faziam 16 anos e se motorizavam, iam a todos os
lugares. Minha mulher dizia que era a febre do cinema, do shopping e da Madonna.
- Que shoppings? Que cinemas?
- Iam muito ao Northridge Mall, porque era perto, sabe como é. Gostavam também de ir ao drive-in da Winnetka. Assim podiam ficar sentadas dentro do carro e falar
durante o filme. Uma das garotas tinha um conversível, e elas gostavam de andar nele.
Bosch concentrou-se no drive-in. Tinha se esquecido dele quando conversara sobre cinemas com Rider algum tempo antes. Mas Roland Mackey tinha sido preso por arrombamento
e roubo no mesmo drive-in da Winnetka. Isso fazia dele uma possibilidade importante como ponto de encontro de Becky Verloren e Roland Mackey.
- Com que freqüência Rebecca e as amigas gostavam de ir ao drive-in?
- Acho que gostavam de ir nas noites de sexta, quando estreavam os novos filmes.
- Elas encontravam os rapazes lá?
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- Eu diria que sim. Você sabe, tudo isto não passa de suposições feitas depois do caso passado. Não havia nada de errado ou de extraordinário no fato de nossa filha
ir ao cinema com as amigas e se encontrar com rapazes e não sei o que mais. Só depois que acontece o pior é que as pessoas perguntam: "Como é que pode vocês não
saberem com quem ela estava?" Pois pensávamos que tudo estivesse bem. Nós a mandamos para a melhor escola que encontramos. Suas amigas eram de boas famílias. Não
podíamos ficar de olho nela todos os minutos do dia. Nas noites de sexta - diabos, quase todas as noites -, eu trabalhava até tarde no restaurante.
- Eu compreendo. Não o estou julgando como pai, Sr. Verloren. Não vejo nada de errado nisso, entende? Só estou jogando uma rede. Procuro coletar todas as informações
que puder, porque nunca se sabe o que poderá ser importante.
- Pode ser, mas essa rede rasgou e ficou presa nas rochas muito tempo atrás.
- Talvez não.
- Acha que foi esse tal Mackey?
- Ele está ligado de algum modo, é só o que sabemos ao certo. Saberemos mais muito em breve. Eu prometo.
Verloren virou-se e olhou diretamente nos olhos de Bosch pela primeira vez durante a entrevista.
- Quando chegar nesse ponto, você falará por ela, não é mesmo, detetive?
Bosch balançou a cabeça vagarosamente Achou que sabia o que Verloren estava querendo.
- Sim, senhor. Falarei.
193
Capítulo 21
Kiz Rider estava sentada à sua mesa com os braços cruzados, como se tivesse esperado por Bosch a manhã inteira. Tinha uma expressão sombria no rosto, e Bosch sabia
que havia algo.
- Conseguiu o arquivo da PDU? - perguntou ele.
- Só pude olhar. Não fui autorizada a retirá-lo de lá.
Bosch balançou a cabeça. E sentou-se na sua cadeira em frente à dela.
- Coisa boa? - perguntou ele.
- Depende do ponto de vista.
- Bem, também arranhei alguma coisa.
Ele olhou em torno. A porta de Abel Pratt estava aberta, e Bosch pôde vê-lo lá dentro, inclinado sobre sua pequena geladeira. Àquela distância, Pratt podia ouvir
tudo o que dissessem. Não era que Bosch não confiasse nele. Confiava. Mas não queria colocá-lo em posição de ouvir algo que ele não queria ou que não estava pronto
para ouvir. Exatamente como quando Rider e ele tinham falado ao telefone um pouco antes.
Ele encarou a parceira.
- Quer dar uma volta?
- Quero, sim.
Eles se levantaram para sair. Quando Bosch passou pela porta de Pratt, viu que ele estava agora ao telefone. Chamou a aten-
ção dele e fez a mímica de beber de um copo apontando depois para Pratt. Sacudindo a cabeça negativamente para a oferta de café, Pratt levantou um pote de iogurte
como para dizer que tinha tudo de que precisava. Bosch distinguiu pequenos grumos verdes no iogurte. Tentou pensar em uma fruta verde e só conseguiu se lembrar de
kiwi. Ao se afastar, começou a refletir que o único modo possível de piorar o gosto do iogurte seria pondo kiwi dentro dele.
Pegaram o elevador, desceram no saguão e saíram pela porta da frente na direção do chafariz.
- Aonde você pretende ir? - perguntou Kiz.
- Depende do quanto haja para falar.
- Provavelmente muito.
- Da última vez em que trabalhei no Parker Center, eu fumava. Quando precisava caminhar e pensar, ia até a Union Station e comprava cigarros numa loja que havia
lá. Eu gostava daquele lugar. Tem umas cadeiras confortáveis no hall principal. Ou pelo menos tinha.
- Parece bom para mim.
Eles saíram nessa direção, pegando a rua Los Angeles para o norte. O primeiro prédio pelo qual passaram foi o prédio federal, e Bosch notou que as barreiras de concreto
erigidas em 2001, para manter a distância veículos potencialmente armados de bombas, ainda se encontravam lá. A ameaça de perigo não parecia incomodar as pessoas
na fila que se estendia em toda a extensão da calçada em frente ao prédio. Aguardavam sua vez para serem atendidas nos escritórios da imigração, todas tendo em mãos
a papelada exigida e em condições de provar serem bons cidadãos. Elas esperavam sob os mosaicos da fachada que retratavam pessoas vestidas como anjos, olhos voltados
para cima, esperando pelo céu.
- Por que não começa, Harry? - sugeriu Rider. - Fale-me sobre Robert Verloren.
Bosch caminhou um pouco mais antes de começar.
- Gostei do cara - disse ele. - Está saindo do buraco à custa de muito trabalho. Prepara cento e tantos cafés-da-manhã por dia. Comi um prato e posso dizer que era
coisa fina.
194
- E tenho certeza de que dá de dez a zero nos preços do Pacific Dining Car. O que foi que ele lhe deu que o deixou tão zangado?
- De que é que você está falando?
- Você me adivinha, eu adivinho você. Sei que ele lhe disse algo que o fez explodir.
Bosch assentiu. Com certeza, não parecia terem se passado três anos desde que tinham trabalhado juntos.
- Irving. Pelo menos, é o que eu acho.
- Fale logo.
Bosch levou-a pela história que Verloren lhe contara menos de uma hora antes. Terminou com a descrição que ele fizera, mesmo que limitada, dos dois homens com crachás
que o foram ameaçar em seu restaurante para que desistisse de explorar o ângulo racial.
- É bem tipo Irving para mim - disse Rider.
- E um dos seus lacaios. Pode ter sido McClellan.
- Talvez. Você acha que Verloren estava bem? Ele anda pela Nickel há muito tempo.
- Acho que sim. Ele afirma estar sóbrio há três anos seguidos desta vez. Mas você sabe como é, ficar remoendo uma coisa durante
17 anos faz com que em pouco tempo as percepções se transformem em
fatos. Ainda assim, tudo o que disse parece se ajustar ao quadro geral. Acho que interferiram nesse
caso, Kiz. As investigações caminhavam em uma direção, e eles as desviaram para outra. Talvez soubessem o que estava por vir, que a cidade ia pegar fogo. Rodney
King não foi a gasolina. Foi apenas o fósforo. As coisas vinham se agravando, e talvez a cúpula, ao ver esse caso, tenha dito que, para o bem comum, era preciso
tomar o rumo oposto. E assim foi sacri' ficada a justiça devida a Rebecca Verloren.
Eles estavam atravessando a Via Expressa 101 na passarela da rua Los Angeles. Oito pistas de trânsito lento fumegavam debaixo deles. O sol brilhava, refletindo-se
nos pára-brisas, prédios e con' creto. Bosch pôs seus óculos de lente espelhada.
O trânsito era barulhento também, e Rider teve que erguer a
voz.
- Não combina com você, Harry.
- O quê?
195
- Procurar uma boa razão para a cúpula ter feito algo tão errado. Você geralmente procura o ângulo sinistro.
- Você está querendo me dizer que encontrou o ângulo sinistro no arquivo da PDU?
Ela assentiu, abatida.
- Acho que sim - respondeu.
- E deixaram você simplesmente entrar lá numa boa e pegar o arquivo?
- A primeira coisa que fiz hoje de manhã foi falar com o homem. Levei para ele um copo de café do Starbucks - ele odeia café de cafeteria -, e com isso entrei para
conversar. Contei o que tínhamos e o que eu queria; para encurtar a história, ele confia em mim. Assim, de certa forma me autorizou a dar uma olhada nos Arquivos
Especiais.
- A PDU foi criada e extinta antes de ele ocupar a posição atual. Ele sabia a respeito?
- Tenho certeza de que depois que assumiu foi instruído a respeito. Talvez até mesmo antes.
- Você lhe falou especificamente sobre Mackey e o grupo dos Chatsworth Eights?
- Não especificamente. Só lhe falei que o caso que pegamos era conectado a uma antiga investigação da PDU, e eu precisava ter acesso aos Arquivos Especiais para
dar uma olhada num documento. Ele mandou o tenente Hohman comigo. Entramos, encontramos o arquivo e eu tive que examiná-lo enquanto o tenente ficava sentado do outro
lado da mesa, na minha frente. Sabe, Harry? Há uma quantidade infernal de arquivos lá.
- Onde todos os corpos estão enterrados...
Bosch queria dizer mais uma coisa, mas não sabia ao certo como. Rider olhou para ele e leu seu pensamento.
- O que é, Harry?
Ele não falou nada, mas ela esperou.
- Kiz, você disse que o homem do sexto andar confia em você. Você confia nele?
Ela o encarou diretamente nos olhos quando respondeu.
- Assim como confio em você, Harry.
196
Bosch sustentou seu olhar.
- É o bastante para mim.
Rider fez um movimento no sentido de descer a Arcádia, mas Bosch apontou na direção do velho povoado, o lugar onde a Cidade dos Anjos fora fundada. Ele queria seguir
pelo caminho mais longo.
- Faz tempo que não piso lá. Vamos dar uma olhada. Atravessaram o pátio circular onde os padres abençoavam os
animais todos os domingos de páscoa e passaram pelo Instituto Cultural Mexicano. Acompanharam a galeria em curva de estandes que vendiam lembranças baratas e churros.
Música de mariachi gravada jorrava de alto-falantes invisíveis, mas em contraponto distinguia-se bem o som de uma guitarra ao vivo.
O músico estava sentado em um banco na frente da casa denominada Ávila Adobe. Bosch e Rider pararam e ficaram ouvindo enquanto o velho tocava uma balada mexicana
que ele julgou ter ouvido antes mas que não foi capaz de identificar.
Bosch estudou a estrutura de paredes de adobe às costas do músico e perguntou-se se dom Francisco Ávila tivera idéia do que estava ajudando a pôr em movimento quando
reclamara o direito àquele ponto em 1818. Uma cidade cresceria alta e ampla a partir dali. Uma cidade tão grande quanto tantas outras. E igualmente perversa. Uma
cidade de destinação, uma cidade de invenção e reinvenção. Um lugar onde o sonho parecia tão fácil de alcançar quanto o letreiro que tinham posto em cima do morro,
mas um lugar onde a realidade sempre era algo diferente. A estrada para o letreiro em cima do morro tinha um portão trancado no meio do caminho.
Era uma cidade cheia de ricos e destituídos, de astros e extras, de cinema, de motoristas e passageiros, de caçadores e caça. Uma cidade de contrastes. De gordos
e famintos e pouco espaço entre eles. Mas uma cidade que, a despeito de tudo isso, ainda tinha filas e mais filas de pessoas atrás das barreiras de concreto contra
bombas, esperando para entrar e permanecer morando nela.
Bosch puxou um maço de notas do bolso e largou cinco dólarés na cesta do velho músico. Depois, ele e Rider cortaram caminho através da velha Cucamonga Winery,
passando pelos espaços
197
onde antes ficavam os tonéis transformados agora em galerias e boxes de pintores, e saíram na Alameda. Atravessaram a rua para a estação de trem, a torre do relógio
se agigantando diante deles. Na calçada da frente passaram por um relógio de sol com uma inscrição talhada no pedestal de granito.
Visão para Ver
Fé para Crer
Coragem para Fazer
A Union Station foi projetada para refletir a cidade a que servia e o meio ambiente em que deveria funcionar. Era um cadinho onde se misturavam estilos arquitetônicos
- colonial espanhol, missioneiro, streamline moderne, art déco, sudoeste e mourisco entre eles. Bosch costumava andar até ali não só para comprar cigarros, como
também para se renovar um pouco. Ir até a Union Station era como visitar uma igreja, uma catedral onde as linhas graciosas do desenho, função e orgulho cívico se
entrecruzavam. Na sala de espera central, as vozes dos viajantes se levantavam nos altos espaços vazios e se transformavam em um coro de lânguidos murmúrios.
- Amo este lugar - disse Rider. - Você viu um filme chamado Blade Runnerl
Bosch fez que sim. Tinha visto.
- Aqui era o posto da polícia, certo? - perguntou ele. -Exatamente.
- Você viu True Confessíons? - perguntou ele. -Não, é bom?
- É, você devia ver. Outra visão da Dália Negra e de corrupção no DPLA.
Ela gemeu.
- Obrigada, mas não acho que esteja precisando disso agora. Eles compraram café no Union Bagel e se encaminharam para
a sala de espera, onde as fileiras de poltronas de couro marrom lembravam fileiras de luxuosos bancos de igreja. Bosch olhou para cima,
como sempre se sentia tentado a fazer. Lá estavam os seis imensos
198
candelabros, 12 metros acima de suas cabeças, em duas fileiras. Rider olhou para cima também.
Bosch apontou então as duas poltronas lado a lado perto da banca de jornal. Sentaram-se no macio couro acolchoado e puseram os copos de café em cima dos largos descansos
de braço de madeira.
- Está pronto a conversar agora? - perguntou Rider.
- Se você está - respondeu ele. - O que havia nos papéis que você viu nos Arquivos Especiais? O que era tão sinistro?
- Para começar, Mackey estava lá.
- Como suspeito no caso Verloren?
- Não, o arquivo nada tem a ver com o caso Verloren. O caso, aliás, mal aparece na tela do monitor quando se abre o arquivo. Trata-se de uma investigação que foi
encerrada e fechada antes mesmo da gravidez de Rebecca Verloren, que dirá da noite em que foi seqüestrada de sua cama.
- Está certo, então o que isso tem a ver conosco?
- Talvez nada e talvez tudo. Sabe o cara com quem Mackey mora, William Burkhart?
-Sei.
- Ele está lá também. Só que naquele tempo era mais conhecido como Billy Blitzkrieg. Era o seu apelido na gangue dos Eights.
-OK.
- Em março de 1988, Billy Blitzkrieg ficou na geladeira um ano por ter vandalizado uma sinagoga em North Hollywood. Dano à propriedade, pinturas nas paredes, defecação,
o pacote completo.
- O crime de ódio. Ele foi o único a ser apanhado? Ela concordou.
- Conseguiram identificar uma digital em uma lata de spray encontrada em uma sarjeta a cerca de uma quadra da sinagoga. Foi como o pegaram. Se não fizesse um acordo,
seria transformado em exemplo, e ele sabia disso.
Bosch balançou a cabeça, em silêncio. Não queria dizer nada que interrompesse o fluxo do discurso de Rider.
- Tanto nos relatórios como na imprensa, Burkhart - ou Blilykrieg ou como quer que queira chamá-lo - foi retratado como
199
líderdos Eights. Disseram que ele designara 1988 como ano de levante racial e étnico em homenagem a seu bem-amado Adolf Hitler. Você conhece a besteirada. RaHoWa,
vingança
do lixo branco e tudo mais. Eles circulavam por toda parte metidos nas camisas dos Minnesota Vikings... Vikings evidentemente por simbolizarem raça pura. Todos usavam
o número 88.
- Estou percebendo o quadro.
- De qualquer forma, havia muita coisa contra Burkhart. Um caso completo na questão da sinagoga e também os federais ansiosos por organizar uma dança de direitos
civis em cima de sua cabeça pequena e pontuda. Havia muitos crimes, começando logo no início do ano, quando eles saudaram o ano novo queimando uma cruz no gramado
da casa de uma família negra em Chatsworth. Depois disso houve mais cruzes incendiadas, telefonemas intimidantes, ameaças de bombas. O arrombamento da sinagoga.
Chegaram inclusive a vandalizar um centro de atendimento diurno judeu em Encino. Tudo isso ocorreu no início de janeiro. Eles começaram também a circular pelas esquinas
das ruas, pegando trabalhadores mexicanos e levando para o meio do deserto, onde os espancavam ou abandonavam, ou as duas coisas, o mais comum. Para usar a terminologia
deles, procuravam fomentar a desarmonia, o que, segundo acreditavam, contribuiria para a futura separação das raças.
- E, já ouvi essa cantilena.
- Muito bem, como eu disse, eles estavam prontos para transformar Burkhart no garoto-propaganda de tudo isso, e, se tivessem levado o caso para a Justiça, ele poderia
terminar com um mínimo de dez anos em um presídio federal.
- O que seria bem fácil. Ele tinha aceitado o acordo. Rider assentiu.
- Ele pegou um ano em Wayside e cinco anos de condicional. O resto desapareceu. E os Eights desapareceram juntos. Simplesmente se dissolveram, e foi o fim da ameaça.
Tudo isso aconteceu lá pelo fim de março, muito antes do caso Verloren.
Ao mesmo tempo que pensava no que estava ouvindo, Bosch observava uma mulher apressada puxando uma menina pela mão
e indo para o portão que dava para os trilhos
do Metroline. Ela também
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arrastava uma mala pesada e estava concentrada no portão à sua frente. A criança era puxada com o rosto virado para
cima, admirando o teto. Ela sorria. Bosch
olhou para cima a fim de descobrir o motivo pelo qual a menininha sorria e viu um balão de gás preso em um dos painéis abobadados do teto. A desventura de uma criança
era o sorriso secreto de outra. O balão era branco e laranja e tinha a forma de um peixe, e, por causa da filha, Bosch sabia que se tratava de um personagem de desenho
animado chamado Nemo. Teve um vislumbre de sua filha, mas com a mesma rapidez livrou-se dele para que pudesse se concentrar. Olhou para sua parceira.
- E onde estava Mackey enquanto tudo isso acontecia?
- Ele era o mais fraquinho da ninhada - respondeu Rider. - Um dos favoritos do mestre. Era visto como o recruta perfeito. Não completou o curso secundário, não tinha
uma vida ou perspectivas de vida. Conseguira uma condicional por causa de roubo de carro, e seu prontuário de menor estava cheio de roubos de carro, arrombamentos
e drogas. Assim sendo, era o tipo do cara que eles procuravam. Um perdedor que podia ser moldado em um combatente branco. Mas, uma vez que deram a partida no processo,
descobriram que ele era - para usar uma frase de Burkhart - mais burro que o negro que caiu da barca. Parece que teve que ser dispensado das incursões de grafitagem
porque não era capaz de soletrar sequer o vocabulário racista básico. Na verdade seu apelido no grupo passou a ser Wej. Não por ser parecido com wedge, de wedge
open, arrombar uma porta. Wej de jew, judeu, escrito ao contrário. Que foi como ele escreveu a palavra uma vez na parede da sinagoga.
- Disléxico?
- Eu diria que sim. Bosch sacudiu a cabeça.
- Mesmo com as revelações surgidas na cena do caso Verloren, não estou vendo esse cara.
- Concordo. Acho que ele teve uma participação, mas coisa muito pequena. Não tem cabeça para grande coisa.
Bosch decidiu deixar de lado Mackey e voltar ao início do rélatório dela.
201
- Se eles tinham todas essas informações sobre esses caras, como é que pode só o Burkhart ter sido preso?
- Já estou chegando lá.
- É aí que entram os interesses da cúpula?
- Exatamente. O caso é que Burkhart era um líder dos Eights, mas não o líder.
-Ah.
- O líder foi identificado como um cara chamado Richard Ross. Era mais velho que os demais. Acreditava verdadeiramente em tudo aquilo. Tinha 21 anos, era hábil no
uso das palavras e foi quem recrutou Burkhart, assim como a maioria dos outros, e quem pôs o projeto em andamento.
Bosch balançou a cabeça. Richard Ross era um nome comum, mas ele sabia onde a coisa toda ia parar.
- Esse Richard Ross se chamava Richard Ross Júnior?
- Exatamente. O menino-prodígio do capitão Ross.
O capitão Richard Ross chefiara a Corregedoria da Polícia durante a primeira parte da carreira de Bosch no departamento. Estava aposentado agora.
Para Bosch, as peças do resto da história foram para o lugar.
- Aí então mantiveram o filho fora do caso e salvaram o pai e o resto do departamento da vergonha - disse ele. - Puseram a culpa toda em cima de Burkhart, que era
o segundo em comando de Ross. Burkhart foi preso em Wayside, e o grupo se desmantelou.
Registre-se tudo como uma malsucedida aventura da juventude.
- Você pegou o espírito da coisa - confirmou ela.
- Deixe que eu adivinhe o resto: todas as informações foram dadas por Richard Ross Júnior.
- Você é muito bom, Harry. Foi parte do acordo. Richard Júnior dedurou todo mundo, e foi tudo de que a PDU precisou para
acabar com o grupo sem muito alarde. Júnior
só teve que se afastar.
- Tudo em um dia de trabalho para Irving.
- E sabe o que acho engraçado? Desconfio que Irving seja um nome judaico.
Bosch sacudiu a cabeça.
- Seja ou não judaico, não é muito engraçado - disse ele.
202
- E, eu sei.
- A menos que Irving tenha visto um ângulo favorável.
- l elo que li nas entrelinhas do relatório, eu diria que ele viu todos os ângulos.
- O acordo deu a Irving o controle da Corregedoria. Quero dizer, controle real e absoluto sobre quem era investigado e como as investigações eram conduzidas. Ele
pôs Ross no seu bolso. O que explica muita coisa que aconteceu naquele tempo.
- A maior parte aconteceu antes do meu tempo.
- Assim, eles deram um jeito nos Eights, e Irving ganhou a sorte grande, passando a ter Richard Ross Sênior como membro do grupo de seus seguidores - disse Bosch,
pensando em voz alta. - Mas aí Rebecca Verloren morre com um tiro dado por uma pistola roubada de um cara que os Eights haviam intimidado, uma pistola provavelmente
roubada por um dos merdinhas que eles acabavam de libertar. Todo o trato viria abaixo se o assassino voltasse aos Eights e depois os transformasse em cúmplices.
- Exatamente. Por isso eles se metem e distorcem a investigação. Desviam-na de tal modo que ninguém mais vai querer se mexer.
- Hlhos-da-puta - murmurou Bosch.
- Pobre Harry. Você ainda deve ter muito da ferrugem causada pela sua demissão. Pensou que eles talvez estivessem tentando salvar a cidade de pegar fogo. Não foi
nada assim tão heróico.
- Não, só estavam tentando salvar o próprio rabo e a posição que o acordo com Ross lhes dera. Dera a Irving.
- Isso tudo não passa de suposição - advertiu Rider.
- E, nós só estamos lendo na porra das entrelinhas.
Bosch sentiu a mais forte vontade de fumar um cigarro que sentira naquele ano. Deu uma olhada na banca e viu todos os maços nas prateleiras por trás do balcão. Desviou
os olhos para o balão de gás preso no teto. Pensou em como Nemo estaria se sentindo
lá.
- Quando Ross se aposentou? - perguntou ele.
- Em 1991. Ficou por lá até completar os 25 anos de serviço - eles lhe permitiram isso - e então se aposentou. Eu verifiquei. Ele se mudou para o Idaho. Investiguei
também o nome do Júnior, e ele
203
tinha se mudado, inclusive antes do pai. Provavelmente para um daqueles enclaves de brancos fechados onde ele deve se sentir em casa.
- E provavelmente deu boas gargalhadas quando o departamento desmoronou depois de Rodney King, em 1992.
- Provavelmente, mas não por muito tempo. Ele morreu em um acidente causado por dirigir embriagado em 1993. Estava voltando de um comício contra o governo em uma
área rural muito isolada. O que vai, volta, eu acho.
Bosch sentiu-se atingido por um golpe surdo na boca do estômago. Tinha começado a gostar da idéia de Richard Ross Jr. para o assassinato de Verloren. Ele podia ter
usado Mackey para obter a arma e talvez para ajudar a carregar a vítima morro acima. Mas agora via que Ross Jr. estava morto. Será que aquela investigação os estava
levando para um beco sem saída? Será que ao fim de tudo teriam que voltar a falar com os pais de Rebecca Verloren e lhes dizer que sua filha morta havia tanto tempo
fora tirada deles por uma pessoa que também morrera? Que tipo de justiça seria essa?
- Sei o que está pensando - disse Rider. - Ele podia ter sido o nosso homem. Mas penso que não. De acordo com os registros, ele obteve sua carteira de motorista
do Idaho em maio de 1988. Supostamente já se encontrava lá quando Verloren foi liquidada.
- É. Supostamente.
Bosch não se deixou convencer por uma simples verificação nos computadores do Departamento de Trânsito e puxou novamente todas as informações através dos filtros
para ver se aparecia alguma outra coisa.
- Muito bem, vamos rever tudo por um minuto, para ver se compreendi tudo direito. Em 1988, tivemos um bando de garotos do Vale que se chamavam de Eights e zanzavam
por lá envergando camisas de um time de futebol tentando dar o pontapé inicial em uma guerra santa racial. O departamento dá uma olhada e logo descobre que o cérebro
que está por trás desse grupo é o filho do nosso capitão Ross, chefe da Corregedoria. O comandante Irving
avalia o lado para onde o vento está soprando e pensa: "Hum, acho que POSSO usar isso em meu benefício." Assim, descarta a idéia de Perseguir Richard Júnior e sacrifica
William "Billy Blitz" Burkhart
204
aos deuses da Justiça no lugar dele. Os Eights se fragmentam, gol para os mocinhos. E Richard Júnior se manda numa boa, gol para Irving, que agora tem Richard Sênior
no bolso. Todos vivem felizes para sempre. Errei alguma coisa?
- Na verdade, é Billy Blitzkrieg.
- Que seja. Blitzkrieg. O fato é que toda essa história estava terminada no início da primavera, certo?
- Lá para os fins de março. E no início de maio Richard Ross Júnior se mudou para o Idaho.
- OK, então em junho alguém arromba a casa de Sam Weiss e rouba sua arma. E em julho - um dia depois do aniversário da nossa terra, nada menos - uma garota mestiça
é levada de sua casa e assassinada. Não é estuprada, mas assassinada - o que é importante não esquecer. O assassinato é realizado de modo a que pareça suicídio.
Mas a encenação é malfeita; de acordo com todas as aparências, por alguém que era novo no ramo. Garcia e Green pegam o caso, acabam entendendo o que se passa e conduzem
uma investigação que não os leva a parte alguma, porque, quer eles soubessem quer não, foram empurrados na direção errada Agora, 17 anos depois, a arma do crime
é inquestionavelmente ligada a uma pessoa que apenas a poucos meses antes do crime perambulava por aí na companhia dos Eights. O que estou esquecendo aqui?
- Acho que você não deixou passar nada.
- A questão então é a seguinte: será que os Eights na verdade não tinham sido extintos? Será que continuaram a fomentar distúrbios raciais, só que passando a disfarçar
o modo como assinavam o que faziam? E aumentaram o valor da aposta para incluir assassinato?
Rider sacudiu lentamente a cabeça.
- Tudo é possível, mas não faz sentido. Os Eights tinham a ver com demonstrações - demonstrações públicas. Queimar cruzes e pintar sinagogas. Não se trata de nenhuma
demonstração matar uma pessoa e tentar disfarçar o homicídio como suicídio.
Bosch assentiu. Ela estava com a razão. O que dissera fluíra com lógica perfeita.
205
- Pode ser então que soubessem que estavam com o DPLA nas suas costas - disse ele. - Talvez alguns deles tivessem continuado a operar, mas no estilo de um movimento
subterrâneo.
- Como eu disse, tudo é possível.
- OK, então nós temos Ross Júnior supostamente lá no Idaho, e Burkhart recolhido a Wayside. Os dois líderes. O que resta além de Mackey?
- Há cinco outros nomes no arquivo. Nenhum deles pulou em cima de mim.
- Essa é a nossa lista de suspeitos por enquanto. Precisamos examinar seus nomes e ver de onde vieram... espere aí. Burkhart ainda estaria em Wayside? Você disse
que ele pegou um ano certo? Isso significa que ele estaria solto em cinco ou seis meses a menos que tivesse se metido em confusão lá dentro. Quando foi exatamente
que ele entrou?
Rider sacudiu a cabeça.
- Não, sua entrada no Wayside teria sido no fim de março ou no início de abril. Não podia ter...
- Não importa sua entrada. Quando ele foi apanhado? Quando foi o negócio da sinagoga?
- Foi em janeiro. Início de janeiro. Tenho a data exata no arquivo.
- Está certo, início de janeiro. Você disse que as digitais em uma lata de tinta inculparam Burkhart. O que nos leva de volta a 1988, quando provavelmente eles ainda
não tinham a ajuda dos computadores para esse tipo de coisa... uma semana, talvez, em um caso quente como aquele? Se pegaram Burkhart lá pelo final de janeiro, e
ele não pagou fiança...
Bosch abriu os braços, palmas das mãos para cima, permitindo Que Rider terminasse.
- Fevereiro, março, abril, maio, junho - disse ela, empolgada. - Cinco meses. Com as fórmulas para redução do tempo de condenaÇão que eles usavam, ele podia facilmente
estar em liberdade em Julho!
Bosch concordou. O sistema carcerário do condado recebia presos aguardando julgamento ou condenados a sentenças de um ano
206
ou menos. Fazia décadas que o sistema estava superlotado, tendo que obedecer ao limite máximo de população carcerária determinado pelo tribunal. O resultado final
foi o estabelecimento de uma rotina de libertação precoce de reclusos utilizando-se um sistema de contagem de tempo que flutuava de acordo com a população total
e que chegava a possibilitar ao prisioneiro ganhar três dias para cada um passado na cadeia.
- Está parecendo bom, Harry.
- Talvez bom demais. Temos que completar o plano.
- Quando voltarmos, vou ver no computador quando foi que ele deixou Wayside. Qual a influência disso sobre o grampo?
- Acho que vamos seguir em frente com a idéia. Se a data da saída de Wayside se ajustar, ficamos de olho em Mackey e Burkhart. A idéia ainda é assustar Mackey, porque
ele é o mais fraco dos dois. Aproveitaremos quando ele estiver no trabalho e longe de Burkhart. Se estivermos certos, ele ligará para Burkhart.
Bosch se levantou.
- Mas ainda temos que pesquisar os outros nomes, os outros membros dos Eights - acrescentou ele.
Rider não se levantou. Levantou os olhos para ele.
- Você acha que isso vai dar certo? Bosch deu de ombros.
- Tem que dar.
Ele contemplou a enorme estação. Verificou rostos e olhos, esperando que alguém desviasse rapidamente o olhar. Meio que esperava ver Irving em meio à multidão dos
viajantes. Sr. Limpeza em cena. Era o que Bosch pensava quando Irving aparecia em uma cena de crime
Rider levantou-se. Os dois largaram os copos vazios em uma lixeira próxima e se encaminharam para a porta da frente da estação. Ao chegarem lá, Bosch olhou novamente
para trás, mais uma vez procurando alguém que os estivesse seguindo. Sabia que agora tinham que considerar essa possibilidade. O lugar que fora tão caloroso e convidativo
vinte minutos atrás agora despertava suspeitas e se mostrava ameaçador. As vozes que ressoavam em seu interior não eram mais murmúrios graciosos. Havia um tom cortante
nelas. Soavam coléricas.
207
Ao saírem, ele notou que o sol tinha se escondido atrás das nuvens. Não ia precisar dos óculos de sol na caminhada de volta.
- Sinto muito, Harry - disse Rider.
- Por quê?
- Pensei que ia ser diferente, a sua volta. Agora aqui estamos nós, no seu primeiro trabalho após o retorno, e do que se trata? Um caso em que tudo indica a existência
de corrupção e acobertamento da parte do comando da polícia.
Bosch balançou a cabeça, na mesma hora em que pisavam de novo na calçada da frente. Ele viu o relógio de sol e as palavras gravadas na base de granito. Seus olhos
demoraram-se na última linha.
Coragem para Fazer
- Eu não estou preocupado - disse ele. - Mas eles deveriam
estar.
Capítulo 22
- Afirmativo - respondeu o comandante Garcia quando Bosch perguntou se estava pronto.
Bosch assentiu e foi até a porta fazer entrar as duas mulheres do Daily News.
- Oi, sou McKenzie Ward - disse a da frente. Era obviamente a repórter. A outra carregava a câmera e um tripé.
- E eu sou Emmy Ward - disse a fotógrafa.
- Irmãs? - perguntou Garcia, embora a resposta fosse bastante óbvia por causa do muito que as duas mulheres, ambas em seus vinte e tantos anos, eram parecidas: duas
louras atraentes com largos sorrisos.
- Sou a mais velha - disse McKenzie. - Mas não muito. Todos se apertaram as mãos.
- Como duas irmãs conseguem trabalhar no mesmo jornal e depois na cobertura da mesma matéria? - quis saber Garcia.
- Eu já trabalhava no News fazia alguns anos, e aí Emmy se candidatou. Não tem nada de mais. Trabalhamos juntas muitas vezes. E só uma questão de sorte saber quem
recebe a missão de fazer as fotos. Hoje trabalhamos juntas. Amanhã, talvez não.
- Posso ir tirando logo as fotos? - perguntou Emmy. - Tenho outra missão. Preciso correr atrás logo depois desta.
- Claro - disse Garcia, sempre afável. - Onde quer que eu fique?
209
Emmy tirou uma foto de Garcia sentado à mesa de reuniões com o Hvro do crime aberto à sua frente. Bosch o trouxera para usar
como objeto de cena. À medida que a sessão
de fotos prosseguia, Rosch e McKenzie Ward ficaram de lado e conversaram despreopadamente. Antes tinham falado bastante ao telefone. Ela concordara com o plano.
Se conseguisse publicar a história no dia seguinte, seria a primeira da fila para a entrevista exclusiva quando pegassem o criminoso. Mas não concordara com facilidade.
Garcia tinha sido inábil em sua abordagem, antes de entregar a responsabilidade pela negociação a Bosch. Bosch foi esperto o bastante para saber que nenhum jornalista
permitiria que a polícia determinasse quando uma matéria seria publicada e como seria escrita. Assim, concentrou-se no quando, e não no como. Partiu da idéia de
que McKenzie Ward queria e podia escrever uma história que serviria aos seus propósitos. Precisava apenas que ela fosse publicada o mais cedo possível. Kiz Rider
tinha uma entrevista marcada com o juiz naquela tarde. Se o pedido de escuta fosse aprovado, o jogo começaria na manhã seguinte.
- Você ligou para Muriel Verloren? - perguntou a jornalista a Bosch.
- Liguei, ela vai ficar em casa a tarde inteira e está pronta para falar.
- Peguei os recortes e li tudo o que foi publicado... "eu tinha 8 anos naquele tempo", esse tipo de coisa. Havia diversas menções ao pai e ao seu restaurante. Ele
estará presente também?
-- Acho que não. Ele desapareceu. De qualquer modo, é mais uma história de mãe. E ela quem conserva o quarto da filha intocado há 17 anos. Ela disse que você podia
fotografar lá também se quisesse.
- Disse mesmo?
- Disse.
Bosch viu que ela concentrava sua atenção na foto que estava sendo feita com Garcia e soube o que devia estar pensando. A mãe no quarto da filha morta congelado
no tempo seria uma foto muito melhor que um tira velho sentado a uma mesa com um arquivo de folhas soltas à sua frente.
210
- Então vou ter que dar um telefonema para ver se consigo ficar com a
Emmy.
- Vá em frente.
Ela deixou o escritório, provavelmente porque não queria que Garcia a ouvisse dizendo ao seu editor que precisava que Emmy permanecesse com ela porque tinha uma
foto melhor com a mãe.
Estava de volta em três minutos e fez um gesto de cabeça para Bosch, que o interpretou como sendo uma confirmação de que Emmy ficaria com ela.
- Então está combinado que sai amanhã? - perguntou ele, só para se assegurar mais uma vez.
- Está programado para a janela - dependendo da arte. Meu editor queria segurar para domingo, para preparar uma matéria maior e mais caprichada, mas eu disse que
estávamos sendo competitivos. Sempre que podemos passar a perna no Times em alguma história, nós passamos.
- E, mas o que ele vai dizer quando o Times não publicar nada? Vai saber que você o tapeou.
- Não, vai pensar que o Times matou a história porque nós pássamos a frente. Acontece a toda hora.
Bosch balançou a cabeça pensativamente.
- O que foi que você quis dizer quando mencionou que estava programado para a janela?
- Nós publicamos uma coluna de notícia todos os dias com uma foto na primeira página. Chamamos de janela porque está no centro da página. E também porque você pode
ver a arte na janela das caixas de jornais na rua. E um local de destaque.
- Excelente.
Bosch sentia-se empolgado com a repercussão que a história ia ter.
- Se vocês me ferrarem com essa matéria, não vou esquecer disse McKenzie, sem levantar a voz.
Havia uma ameaça no seu tom de voz, a repórter durona vindo à superfície. Bosch levantou ambas as mãos num gesto
largo, como se nada tivesse a esconder.
- Isso não vai acontecer. Você vai ter a exclusiva. Assim Que pegarmos alguém, eu chamo você e somente você.
211
- Muito obrigada. Agora, vamos repassar as regras do jogo. Posso citar o seu nome na história, mas você não quer aparecer nas fotos, certo?
- Certo. Pode ser que eu tenha que fazer algum trabalho secreto neste caso, e não quero meu rosto no jornal.
- Entendi. Que trabalho?
- Nunca se sabe. Só quero manter essa opção em aberto. Além do mais, a foto do comandante é mais adequada. Ele trabalhou nesse caso mais tempo do que eu.
- Bem, acho que tenho praticamente tudo de que preciso dos recortes e do nosso telefonema, mas ainda quero me sentar com vocês dois por uns minutos.
- O que você precisar.
- Feito - disse Emmy poucos minutos depois, e começou a desmontar seu equipamento.
- Ligue para a edição de fotos - disse sua irmã. - Acho que houve uma mudança, e você vai ficar comigo.
- Oh - fez Emmy, sem parecer se importar.
- Por que não liga lá de fora enquanto nós tocamos a entrevista? - sugeriu McKenzie. - Quero começar a escrever o mais cedo possível.
A repórter e Bosch se sentaram à mesa com Garcia enquanto a fotógrafa saía para verificar sua nova missão. Mckenzie começou perguntando a Garcia o que ficara entalado
dentro dele a respeito daquele caso durante tanto tempo e o que o fizera reabri-lo através da Unidade de Casos Não Resolvidos. Enquanto Garcia divagava, falando
sobre os fantasmas que às vezes assombram os policiais, Bosch sentiu subir no seu íntimo o nível do desprezo que tinha por ele. Sabia o que a repórter não sabia:
que Garcia, consciente ou inconscientemente, tinha permitido que a investigação fosse posta de lado 17 anos antes. O fato de ele aparentemente não saber que sua
lrivestigação fora adulterada parecia a Bosch, de algum modo, o menor pecado. Ainda assim, ainda que não aparecessem sinais de corrupção pessoal ou de ele ter cedido
a pressões oriundas dos escalões mais altos do departamento, demonstrava, no mínimo, incompetência.
212
Após mais algumas perguntas formuladas a Garcia, a repórter voltou sua atenção para Bosch e perguntou o que havia de novo no caso, 17 anos depois.
- O principal é que agora temos o DNA do atirador - disse ele,
- Tecido e sangue encontrados na arma do crime foram preservados pela nossa Divisão de Investigação Científica. Temos a esperança de que a análise dessa amostra
nos permita verificar sua equivalência com a de uma amostra que se encontra no banco de dados do DOJ ou então usá-la em comparações para eliminar ou identificar
suspeitos. Estamos em meio ao processo de retornar a todos os envolvidos no caso. Quem quer que pareça suspeito terá seu DNA comparado com a amostra que está em
nossas mãos. Isso é algo que o comandante Garcia não podia fazer em 1988. Esperamos que esta possibilidade agora altere o quadro.
Bosch explicou como a arma extraíra uma amostra do DNA da pessoa que a disparara. A repórter pareceu muito interessada em como aquilo acontecera de forma inteiramente
fortuita e fez anotações detalhadas.
Bosch sentiu-se satisfeito. A história da arma e do DNA era o que ele queria mesmo que aparecesse no jornal. Queria que Mackey lesse a matéria e soubesse que era
o seu DNA que estava nas mãos da polícia. Que estava sendo analisado e comparado. Ele devia saber se havia uma amostra do seu sangue no banco de dados do DOJ. A
esperança era de que isso o fizesse entrar em pânico. Talvez ele tentasse fugir, talvez cometesse um erro e desse um telefonema no qual discutisse o crime. Um erro
era tudo de que Bosch precisava.
- Quanto tempo até termos os resultados do DOJ? - perguntou McKenzie.
Bosch inquietou-se. Estava tentando não mentir diretamente para a jornalista.
- Bem, isso é difícil de dizer - respondeu. - O DOJ prioriza os pedidos de comparação, e há sempre uma cópia de segurança. Devemos ter algo em alguns dias.
Bosch ficou satisfeito com a resposta que deu, mas aí a jornalista veio e atirou outra granada dentro da sua trincheira.
213
- E o que me diz da questão racial? - perguntou ela. - Li todos os recortes e parece que nada foi dito de um modo ou de outro sobre o fato de a garota ser mestiça.
Acha que isso desempenhou algum papel na motivação do crime?
Bosch desviou o olhar para Garcia e ficou na expectativa de que ele respondesse primeiro.
- O caso foi totalmente explorado a respeito dessa questão nos idos de 1988 - disse Garcia. - Não encontramos nada que comprovasse a existência de um ângulo racial.
Provavelmente essa é a razão pela qual não encontrou referências nos recortes.
A jornalista voltou sua atenção para Bosch, querendo saber também o que o atual investigador diria a respeito da mesma pergunta.
- Examinamos minuciosamente tudo o que foi arquivado no que chamamos de livro do crime e não há nada que possa amparar a idéia de motivação racial no caso - disse
Bosch. - Obviamente nós nos encontramos em pleno processo de reexaminar tudo, de cabo a rabo, e é claro que estamos de olho em qualquer coisa que possa ter tomado
parte na motivação do crime.
Ele a encarou e preparou-se para a não-aceitação da sua resposta e mais pressão da parte dela. Chegou a pensar em acrescentar qualquer coisa que insinuasse um ângulo
racial na história. Podia ser que melhorasse as chances de algum tipo de reação da parte de Mackey. Mas podia também servir de dica para que ele soubesse como estavam
perto de pegá-lo. Decidiu deixar sua resposta como estava.
Em vez de insistir mais naquela pergunta, a jornalista fechou o bloco de notas.
- Acho que tenho o necessário por ora - disse ela. - vou conVersar com a Sra. Verloren e voltar depressa para escrever tudo a
tempo de sair amanhã. Há algum número em que eu possa encontrá-lo, detetive Bosch? Rapidamente, se for preciso?
oosch sabia que ela ficava com vantagem. Relutantemente, deu
o número do seu celular, sabendo que aquilo queria dizer que no
futuro ela teria uma linha direta com ele e a usaria no que dissesse
respeito a qualquer caso ou história. Era o último pagamento no
trato que tinham feito.
214
Todo mundo se levantou, e Bosch reparou que Emmy Ward voltara discretamente e ficara sentada perto da porta durante a entrevista. Ele e Garcia agradeceram a ambas
por terem ido e se despediram. Bosch permaneceu na sala com Garcia.
- Acho que foi boa - disse Garcia, depois que a porta foi fechada.
- Espero que sim - disse Bosch. - Custou-me um novo número do celular. Eu tinha este número há três anos. Agora vou ter que mudar e notificar todo mundo do novo
número. Uma grande chatice, é o que vai ser.
Garcia ignorou a reclamação.
- Como vocês podem ter certeza de que esse tal de Mackey vai ler essa história?
- Não podemos. Na verdade, acreditamos que ele seja disléxico. Pode inclusive nem ser capaz de ler.
O queixo de Garcia caiu.
- Então o que estamos fazendo?
- Bem, nós temos um plano para ter certeza de que ele tomará conhecimento da história. Não se preocupe com isso. Esse lado está coberto. Há também outro nome que
surgiu ontem. Um cara que se associava com Mackey de vez em quando. O nome dele é William Burkhart. Na época em que ocorreu o caso, era conhecido como Billy Blitzkrieg.
Faz com que se lembre de algo?
Garcia caprichou na sua melhor cara de quem estava querendo relembrar algo, parecida com a que fizera para a câmera da fotógrafa do jornal, e deslocou-se atrás da
sua mesa.
- Acho que não consigo me lembrar - disse.
- Bem, não tem importância.
Garcia permaneceu sentado, mas inclinado sobre a mesa, olhando para sua lista.
- Vejamos. O que tenho agora?
- Tem a mim, comandante - respondeu Bosch. Garcia o encarou.
- Como?
- Preciso de mais alguns minutos para esclarecer um pouco o que vem por aí.
215
- O que vem por aí? Você está se referindo ao novo cara, o tal Blitzkrieg?
- Sim, e também à pergunta feita pela jornalista e que nós respondemos com uma mentira. A questão racial.
Bosch viu que as feições de Garcia pareciam ter sido esculpidas em pedra.
- Não menti para ela e tampouco para você ontem. Nós não achamos nada. Não vimos um ângulo racial no caso.
-Nós?
- Meu parceiro e eu.
- Tem certeza?
O telefone em cima da mesa dele tocou. Garcia pegou-o com raiva e disse:
- Nenhuma chamada, nenhuma intromissão. - Largou-o de volta no descanso. - Detetive, quero que se lembre com quem está falando - disse Garcia, controladamente. -
Agora, que merda é essa de me perguntar se tenho certeza? O que está querendo dizer?
- Com todo o devido respeito ao seu posto, senhor, o caso foi desviado da questão racial em 1988. Acredito no senhor quando diz que não viu nada disso. Não fosse
assim, não teria telefonado para Pratt na Unidade de Casos Não Resolvidos para lembrar-lhe que havia uma amostra de DNA nesse caso. Mas, se o senhor não sabia o
que estava acontecendo, então seu parceiro com certeza sabia. Alguma vez o detetive Green lhe falou acerca da pressão exercida sobre ele pelo comando nesse caso?
- Ron Green foi o melhor detetive que conheci ou com quem trabalhei. Não vou permitir que você denigra sua reputação.
Eles estavam a pouco mais de um metro um do outro, a mesa entre eles, os olhares beligerantes fixos um no outro.
- Não estou interessado em reputações. Estou interessado na verdade. Você disse ontem que ele se matara com um tiro na boca POUCOS anos depois desse caso. Por quê?
Ele deixou algum bilhete?
- O fardo, detetive. Ele não conseguia mais suportar o fardo. Ele se sentia perseguido pelos que escaparam.
- O que me diz dos que ele deixou escapar? Garcia sacudiu o dedo furioso para Bosch.
216
- Como se atreve a dizer uma coisa dessas, porra? Você está pisando em gelo fino, Bosch. Posso dar um telefonema para o sexto andar, e você estará na rua antes do
final do expediente. Está me entendendo? Você acaba de voltar da aposentadoria, e isso o torna descartável - basta um único telefonema. Está me entendendo?
- Claro. Completamente.
Bosch sentou-se em uma das cadeiras que ficava em frente à mesa de Garcia na esperança de que assim iria neutralizar um pouco a tensão que se instalara na sala.
Garcia hesitou e acabou por sentar-se também.
- Considero o que você acabou de me falar inteiramente ofensivo - disse ele, a raiva já removida da voz.
- Sinto muito, comandante. Eu estava tentando ver o que o senhor sabia.
- Não compreendo.
- Sinto muito, senhor, mas o caso foi definitivamente bloqueado pela cadeia de comando. Não quero entrar nos detalhes dos nomes a esta altura dos acontecimentos.
Alguns dos envolvidos ainda se encontram em serviço ativo. Mas penso que esse caso girou em torno de questões raciais - a conexão com Mackey e agora com Burkhart
prova isso. Se naquele tempo não se tinha Mackey ou Burkhart, tinha-se a pistola, além de outras coisas. Eu precisava descobrir se o senhor havia tomado parte no
que houve. Sou capaz de dizer agora pela sua reação que não tomou.
- Mas está dizendo que meu parceiro estava envolvido e guardou segredo de mim.
Bosch balançou a cabeça, confirmando.
- Impossível - protestou Garcia. - Ron e eu éramos íntimos. -Todos os parceiros são, comandante. Mas nem tanto. Pelo que
entendo, o senhor cuidava da burocracia e dos arquivos, e Green tocava o caso. Se ele encontrou resistência dentro do departamento, pode ter decidido mantê-lo de
fora. Acho que foi o que ele fez. Talvez o estivesse protegendo, talvez estivesse se sentindo humi' lhado por ser vulnerável à pressão.
Garcia baixou os olhos, até então fixos nos de Bosch, e desviou o olhar para a mesa. Bosch podia afirmar que estava
217
relembrando algo. Alguma coisa nas suas feições de pedra se quebrou e cedeu.
- Acho que talvez eu soubesse que havia algo errado - disse, baixinho. - Lá pelo meio do caminho.
- Como assim?
- Logo no início decidimos dividir os pais. Ron ficou com o pai, e eu com a mãe. Sabe como é, para estabelecer relacionamentos. Ron estava tendo problemas com o
pai. Ele era um tanto instável. Foi passivo o tempo todo e de repente começou a pegar no pé de Ron atrás de resultados. Mas havia algo mais, e Ron escondeu de mim.
- O senhor indagou o que era?
- Claro. Ele só me disse que o pai era uma pessoa difícil. Que era um paranóico a respeito de raças, que achava que a filha fora morta por causa disso. E aí ele
me disse algo de que me lembro até hoje. Disse: "Não podemos ir lá." Foi só isso que disse, mas me impressionou porque não era próprio do Ron Green que eu conhecia.
Não podemos ir. O Ron Green que eu conhecia era capaz de ir aonde quer que as investigações o levassem. Não havia impedimentos com ele. Não até aquele caso.
Garcia levantou os olhos para Bosch, e Bosch balançou a cabeça, seu modo de agradecer ao outro por ter se aberto.
- Acha que tem algo a ver com o que aconteceu depois? - perguntou Bosch.
- Você se refere ao suicídio?
- Exato.
- Pode ser. Eu não sei. Tudo é possível. Depois desse caso, nós como que tomamos direções diferentes. O negócio com essa coisa de parceiros é que, uma vez que o
trabalho cessa, não há mais muito assunto.
- E verdade - concordou Bosch.
- Eu estava numa reunião de comando na 77a - fora designado Para lá depois que me promoveram a tenente. Foi quando descobri que ele estava morto. A informação veio
através de uma notícia oficial. Acho que isso mostra o quão separados estávamos. Eu soube que ele tinha se matado uma semana depois do caso passado.
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Bosch limitou-se a balançar a cabeça. Não havia o que dizer
- Acho que tenho uma reunião do meu pessoal agora, detetive
- continuou Garcia. - Está na hora de você ir.
- Pois não. Mas, sabe, eu estava pensando, para pressionarem tanto Ron Green, eles precisavam ter algo que pudessem usar para constrangê-lo. Lembra de algo assim?
Lembra de alguma queixa contra ele correndo na Corregedoria?
Garcia sacudiu a cabeça. Não estava dizendo não à pergunta de Bosch. Estava dizendo alguma outra coisa.
- Você sabe, este departamento sempre teve mais tiras designados para investigar outros tiras do que para investigar assassinatos. Sempre achei que se um dia alcançasse
o topo ia mudar isso.
- O senhor está dizendo que havia uma investigação rolando contra ele?
- Estou dizendo que era raro aqui no departamento não ter nada na sua ficha. Havia uma queixa contra Ron, claro. Ele fora acusado de agredir um suspeito. Mentira.
O garoto batera com a cabeça quando Ron tentava colocá-lo na parte de trás do carro e precisava levar alguns pontos. Nada de mais, certo? Acontece que o garoto tinha
conhecimentos, e a Corregedoria não quis largar o osso.
- Quer dizer então que podem ter usado isso para forçar Green a conduzir o caso Verloren do jeito que queriam.
- Podem, dependendo de até que ponto você acredite em teorias conspiratórias.
No que diz respeito ao DPLA, eu acredito piamente, pensou Bosch, mas não disse nada.
- OK, senhor, penso que tenho o quadro - foi o que ele disse.
- vou andando.
Levantou-se para sair.
- Eu compreendo que você precise saber de tudo isso - disse Garcia. - Só não gostei do jeito como você me intimidou.
- Sinto muito, senhor.
- Não, você não sente, detetive Bosch. Na verdade, não sente. Bosch nada disse. Deslocou-se para a porta e abriu-a. Olhou
para Garcia e tentou imaginar algo que dizer. Nada lhe veio à cabeça. Virou-se e saiu, fechando a porta.
Capítulo 23
Kiz Rider ainda estava sentada na área de espera da sala de audiência da juíza Anne Demchack quando Bosch chegou. Ele tinha ficado preso no trânsito de meio da tarde
na volta de Van Nuys para o centro da cidade e achara inclusive que não ia chegar a tempo. Rider lia uma revista, e o primeiro pensamento de Bosch foi que àquela
altura dos acontecimentos ele seria incapaz de folhear despreocupadamente qualquer coisa. Estava num ponto em que sua atenção não podia se dividir. Era tudo ou nada.
De um modo estranho, achava aquilo parecido com surfar, algo que não fazia desde o verão de 1964, quando fugira de um lar adotivo e passara a viver na praia. Muitos
anos tinham se passado, mas ele ainda se lembrava do túnel de água. O objetivo era entrar inteiramente dentro do tubo, ficar onde a água o envolvesse por completo,
onde não houvesse nada senão a água e o deslocamento. Bosch estava dentro do tubo agora. Nada havia senão o caso.
- Há quanto tempo está aqui? - perguntou ele. Rider consultou o relógio.
- Cerca de quarenta minutos.
- Ela está lá dentro com o pedido esse tempo todo?
- Afirmativo.
-Preocupada? ...
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- Não. Já estive com ela antes. Uma vez, em um caso de Hollywood, depois que você se aposentou. Ela só é meticulosa. Lê cada página. Demora, mas é das boas.
- A matéria vai sair no jornal de amanhã. Precisamos que ela assine hoje.
- Eu sei, Harry. Relaxe. Calma.
Bosch continuou de pé. Havia um rodízio entre os juizes para a concessão de mandados. Ter caído com a Demchack fora uma questão de sorte.
- Nunca tratei com ela antes. O que era antes de ser juíza? Promotora?
- Não. Do lado contrário. Defensora pública.
Bosch gemeu. Sua experiência dizia que defensores que passavam a ser juizes sempre levavam consigo a sombra de sua lealdade para com os acusados.
- Estamos ferrados.
- Não, não estamos. Ficaremos bem. Por favor, sente-se. Você está me deixando nervosa.
-Será que a Judy Champagne ainda está no serviço ativo? Tal vez fosse melhor requerermos a ela.
Judy Champagne tinha sido promotora e era casada com um ex-policial. Costumavam dizer que ele pescava os bandidos, e ela os cozinhava. Quando passara a ser juíza,
tornara-se a favorita de Bosch para atender aos seus pedidos de mandados. Não porque fosse parcial, em favor dos tiras. Não era. No fim, era justa, exatamente com
o que Bosch podia contar.
- Ela ainda é juíza, mas nós não podemos sair procurando quem nos dê os mandados que desejamos no prédio. Você sabe disso, Harry. Agora, quer fazer o favor de se
sentar? Tenho algo a lhe mostrar.
Bosch sentou-se numa cadeira ao lado da dela.
- O quê?
- Tenho o processo de suspensão de pena de Burkhart aqui comigo.
Ela puxou uma pasta da sua bolsa, abriu-a e empurrou-a na direção de Bosch por cima da mesinha de centro. Bateu com a
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ponta da unha em uma linha do formulário de soltura. Bosch inclinou-se para ler.
"Libertado de Wayside no dia 12 de julho de 1988. Compareceu para suspensão da pena e liberdade condicional em Van Nuys no dia 5."
Ele se endireitou e encarou-a.
- Então ele está no jogo.
- Absolutamente. Eles o pegaram pelo vandalismo na sinagoga em 26 de janeiro. Ele não pagou fiança e conseguiu dar o fora de Wayside cinco meses mais tarde. Está
totalmente no jogo, Harry. Cinco de julho é o dia do crime Verloren.
Bosch sentiu uma onda de empolgação ao ver as coisas dando a impressão de se ajustarem.
- OK, ótimo. Você chegou a incluir o nome dele no mandado?
- O nome dele está lá, sim, mas sem muito destaque. Mackey ainda é o elo direto por causa da arma.
Bosch fez que sim e olhou para o outro lado da sala, onde a escriturária da juíza se sentava normalmente. A placa do nome em cima da mesa dizia KATHY CHRZANOWSKI,
e Bosch se perguntou como se deveria pronunciar o sobrenome dela e onde estaria. Depois decidiu não pensar no que estava acontecendo dentro da sala de audiência
da juíza.
- Quer ouvir as últimas do comandante Garcia? - perguntou ele.
Rider estava guardando o documento de soltura na bolsa.
- Claro.
Bosch gastou os dez minutos seguintes contando sua visita ao gabinete de Garcia, a entrevista do jornal e as revelações do
comandante no final.
- Acha que ele contou tudo? - perguntou ela.
- Você se refere a quanto ele sabia do que aconteceu naquele tempo? Não, mas me contou tudo o que estava disposto a contar.
- Acho que ele deve ter tomado parte no trato. Não consigo imaginar um parceiro fazendo um acordo a respeito do qual o outro
não tenha conhecimento. Não um acordo dessa importância.
222
- Então, se ele fazia parte, por que iria telefonar para Pratt e sugerir-lhe que investigasse o DNA coletado na arma nos bancos de dados do DOJ l Não seria o caso
de continuar sentado em cima disso, como fez nesses 17 anos?
- Não obrigatoriamente. Uma consciência culpada opera de modo estranho, Harry. Pode ser que Garcia, depois de remoer o que aconteceu durante estes 17 anos, tenha
decidido falar com Pratt para se sentir melhor. Além disso, se por acaso estivesse envolvido juntamente com Irving, pode ter se sentido seguro em dar o telefonema
para Pratt depois que Irving foi posto de lado pelo novo chefe.
Bosch pensou na reação de Garcia quando ele disse que Green podia ter se matado por se sentir perseguido pelos que ele deixara escapar. Podia ser que Garcia tivesse
se zangado por ter sido ele, na verdade, quem se sentira perseguido.
- Não sei - disse Bosch. - Talvez...
O celular de Bosch tocou. Quando ele o tirou do bolso, Rider lembrou:
- É melhor desligar antes de entrarmos para falar com a juíza. É uma coisa que ela não tolera que toque na sala de audiência. Eu soube que confiscou o telefone de
um promotor.
Bosch fez que sim, abriu o telefone e disse alô.
- Detetive Bosch?
- Pois não.
- Aqui é Tara Wood. Eu achei que tínhamos um compromisso.
Antes que ela terminasse a frase, ocorreu a Bosch que tinha esquecido do encontro na CBS e do prato de quiabo que estava
planejando comer no almoço. Sequer tivera
tempo de almoçar.
- Tara, sinceramente, sinto muito. Surgiu algo, e nós tivemos que correr atrás. Eu devia ter telefonado para você, mas me esqueci. vou precisar remarcar nosso encontro,
se você ainda estiver disposta a conversar comigo depois disso.
- Certo, claro, sem problema. É que estavam aqui comigo dois escritores do seriado. Iam tentar conversar com você.
- Que seriado?
- Cola Case. Lembra, eu lhe disse que temos um...
223
- Ah, sim, o seriado da televisão. Bem, peço desculpas.
Bosch já não se sentia mais tão mal. Tara Wood estivera tentando usar a entrevista para trabalhar um ângulo publicitário de algum tipo. Gostaria de saber se ainda
restava nela algum sentimento por Rebecca Verloren. Como adivinhando seus pensamentos, ela perguntou como andavam as coisas.
- Tem alguma coisa acontecendo no caso? É por isso que você não pôde vir?
- Mais ou menos. Estamos fazendo algum progresso, mas não há nada que eu possa lhe dizer agora... aliás, há uma coisa. Você chegou a pensar no nome que mencionei
na outra noite? Roland Mackey? Caiu alguma ficha?
- Não, nada.
- Tenho outro nome. O que me diz de William Burkhart? Talvez Bill Burkhart?
Houve um longo silêncio enquanto Tara vasculhava a memória.
- Não, sinto muito. Acho que não conheço.
- E o que me diz do nome Billy Blitzkrieg?
- Billy Blitzkrieg? Você está brincando, não?
- Não, por quê, você reconhece?
- Não, não reconheço. E que parece um astro de heavy metal ou algo assim.
- Não é. Mas tem certeza de que nunca ouviu falar em nenhum desses nomes?
- Sinto muito, detetive.
Bosch ergueu o rosto e viu que uma mulher junto à porta aberta das dependências da juíza os chamava; Rider olhou para ele e passou um dedo pela garganta.
- Olhe, Tara, preciso ir agora. vou telefonar para você e acertar uma nova entrevista assim que puder. Mais uma vez, aceite
minhas desculpas. Ligo para você em
breve. Muito obrigado.
Fechou o telefone antes que ela pudesse responder, desligou e, Seguindo atrás de Rider, passou pela porta mantida aberta por uma mulher que Bosch supôs fosse Kathy
Chrzanowsky.
As persianas estavam puxadas, cobrindo totalmente as janelas que iam do chão ao teto no outro lado da sala. Uma única
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luminária em cima da escrivaninha iluminava o ambiente. Sentada atrás dessa escrivaninha, Bosch viu uma mulher que parecia ter sessenta e muitos anos. Parecia pequena,
atrás da mesa enorme de madeira escura. Tinha o rosto bondoso, e isso deu a Bosch esperança de que sairiam dali com a sua aprovação para a escuta telefônica.
- Detetives, entrem e sentem-se - disse ela. - Desculpem por tê-los feito esperar.
- Sem problema, meritíssima - disse Rider. - Agradecemos o seu interesse em examinar esse assunto minuciosamente.
Bosch e Rider se sentaram em duas cadeiras diante da mesa da juíza, que não estava de toga. Bosch notou que a toga tinha ficado pendurada em um cabide no canto.
Perto, na parede, havia uma foto emoldurada de Demchak com um ministro da Corte Suprema notoriamente liberal. Bosch sentiu um nó no estômago. Depois, em cima da
mesa, viu dois porta-retratos. Um deles tinha a foto de um homem mais velho com um rapaz, ambos segurando tacos de golfe. O marido dela e talvez um neto. A outra
foto era de uma garota com uns nove, dez anos, sentada em um balanço. Mas as cores estavam desbotadas, mostrando que era uma foto antiga. Talvez fosse sua filha.
Bosch começou a pensar que a conexão com as crianças talvez fizesse a diferença.
- Vocês parecem estar com muita pressa neste caso - disse a juíza. - Há alguma razão?
Bosch olhou para Rider, e ela se inclinou um pouco para a frente a fim de responder. O espetáculo agora ficava por conta dela. Ele só estava ali como reforço, sinalizando
a importância que atribuíam ao pedido que estava sendo feito. Tiras às vezes têm que funcionar como lobistas.
- Sim, meritíssima, há duas razões - começou Rider. - A principal é que nós acreditamos que sairá um artigo no Daily News de amanhã que poderá fazer o nosso principal
suspeito, Roland Mackey, entrar em contato com outros suspeitos - um dos quais está listado no mandado - e falar a respeito do crime. Como a senhora pode ver na
nossa exposição de motivos, embora tenhamos apenas Mackey ligado diretamente ao crime, acreditamos que haja mais de um indivíduo envolvido. Se estivermos gravando
as conversas dele
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depois que o jornal sair, seremos capazes de identificar os outros envolvidos através dos seus telefonemas e de suas conversas.
A juíza assentiu, mas sem olhar para eles. Tinha os olhos voltados para os formulários. A expressão séria de suas feições fez com que Bosch começasse a ter um mau
pressentimento. Após alguns momentos de silêncio, ela perguntou:
- E a outra razão para tanta pressa?
- Ah, sim - disse Rider, aparentemente tendo esquecido. - A outra razão é que acreditamos que Roland Mackey possa ainda estar envolvido em atividades criminosas.
A esta altura, não sabemos exatamente quais seriam, mas acreditamos que, quanto mais cedo possamos começar a ouvir suas conversas, mais cedo seremos capazes de averiguar
isso e, conseqüentemente, de impedir que alguém se torne sua vítima. Como a senhora pode ver no nosso pedido, sabemos que ele esteve envolvido pelo menos em um crime
de morte antes. É por isso que não deveríamos perder tempo.
Bosch admirou a resposta dada por Rider. Fora cuidadosamente planejada para exercer bastante pressão na juíza. Afinal, ela era eleita pela população. Tinha que considerar
as conseqüências de uma possível negativa. Se Mackey cometesse um crime que pudesse ter sido impedido caso a polícia houvesse grampeado seus telefonemas, ela poderia
ser responsabilizada pelo eleitorado, que não se deixaria impressionar muito pelo fato de que ela estivera tentando salvaguardar os direitos pessoais de Mackey.
- Entendo - disse Demchak friamente em resposta a Rider. - E qual é a causa provável que a faz crer que ele esteja atualmente
engajado em atividades criminais, já que aqui não aparece especificado nenhum crime?
- Várias coisas, juíza. O Sr. Mackey terminou um período de suspensão de culpa por crime sexual 12 meses atrás e imediatamente se mudou para um novo endereço onde
seu nome não aparece listado em qualquer contrato de locação ou documento assinado. Não deixou endereço com a antiga locatária ou no correio para onde SUa correspondência
pudesse ser enviada. Reside na mesma propriedade que um ex-condenado com quem esteve antes engajado em atividade criminosa devidamente documentada. Trata-se de
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William Burkhart, cujo nome também foi listado em nosso pedido. Como a senhora pode ver, Mackey está usando um telefone que não foi registrado em seu nome. Está
claramente voando abaixo do radar, meritíssima. Todas essas coisas juntas pintam um quadro de alguém que está tomando precauções para ocultar seu envolvimento em
atividades criminais.
- Ou de alguém que esteja apenas querendo evitar intromissões da parte do governo - contrapôs a juíza. - Ainda está muito frágil, detetive. Vocês têm algo mais?
Eu precisaria de algo mais.
Rider deu uma olhada de viés para Bosch, olhos arregalados. A confiança que manifestara na sala de espera a estava abandonando. Bosch sabia que sua parceira tinha
apostado tudo no documento que preparara e nos comentários ali na sala de audiência. O que restava? Ele pigarreou e inclinou-se para frente a fim de falar pela primeira
vez.
- Os crimes em que ele tomou parte juntamente com o homem com quem reside agora foram crimes de ódio, juíza. Esses sujeitos feriram e ameaçaram muita gente. Muita
gente.
Ele se recostou na cadeira, esperando ter conseguido elevar um pouco mais a pressão.
- E há quanto tempo ocorreram esses crimes? - quis saber a juíza.
- Eles foram levados a juízo nos anos 1980 - respondeu Bosch -, mas quem sabe por quanto tempo mais continuaram com suas ações criminosas? A associação desses dois
homens obviamente teve prosseguimento.
A juíza nada disse por outro minuto, enquanto parecia ler e reler o resumo do pedido formulado por Rider. Uma luzinha vermelha ao lado da mesa foi acesa. Bosch deduziu
que, o que quer que fosse acontecer na sala do tribunal, estava pronto para começar. Todos os advogados e partes envolvidas estavam presentes.
Finalmente a juíza Demchak sacudiu a cabeça.
- Acho que vocês não conseguiram, detetives. Têm o suspeito com a arma, mas não na cena do crime. Ele poderia ter manuseado a arma dias ou semanas antes do crime.
Ela indicou com um gesto desdenhoso os papéis espalhados à sua frente.
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- Essa história de ele ter assaltado um cinema drive-in onde a vítima e suas amigas gostavam de ir é muito frágil, na melhor das hipóteses. Vocês realmente me puseram
em apuros aqui, pedindo que eu aprove algo que simplesmente não está aqui.
- Mas está, sim - disse Bosch. - Nós sabemos que está. Rider pôs a mão no seu braço, um aviso para que não pusesse
tudo a perder.
- Eu não estou vendo, detetive - disse Demchak. - O que vocês estão me pedindo é que os salve. Vocês não têm uma causa provável e estão pedindo que eu compense a
diferença. Não posso. Não do jeito que está.
- Meritíssima - disse Rider -, se o mandado não for assinado, perderemos a oportunidade gerada pela matéria do jornal.
A juíza sorriu.
- Isso não tem nada a ver comigo e com as minhas obrigações, detetive. Você sabe disso. Não sou um braço do departamento de polícia. Sou independente e tenho que
lidar com os fatos do caso como são apresentados a mim.
- A vítima era mestiça - disse Bosch. - Esse sujeito é um autor comprovado de crimes de ódio. Ele roubou a arma que foi usada para matar uma garota de raça mista.
A conexão é essa.
- Não é uma conexão de evidência, detetive. E uma conexão circunstancial de inferência.
Bosch encarou a juíza por um momento, e a juíza fitou um ponto à direita.
- A senhora tem filhos, juíza? - perguntou ele. A cor subiu imediatamente ao rosto da juíza.
- O que isso teria a ver com o caso?
- Meritíssima - interrompeu Rider. - Nós voltaremos depois de reformular o pedido.
- Não - disse Bosch. - Não vamos voltar. Precisamos disso agora, juíza. Esse tipo está solto há 17 anos. E se tivesse sido sua filha? A senhora poderia deixar passar?
Rebecca Verloren era filha única.
Os olhos da juíza Demchak ficaram sombrios. E quando ela falou havia ao mesmo tempo em sua voz toques de calma e raiva.
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- Não estou deixando nada passar, detetive. Acontece que sou a única pessoa nesta sala a examinar detidamente o assunto. E posso acrescentar que, se você continuar
a insultar e questionar esta corte, eu então decretarei sua prisão por desrespeito. Posso ter um oficial de justiça aqui em cinco segundos. Talvez você pudesse usar
o tempo de isolamento para avaliar as deficiências do seu pedido.
Bosch continuou a pressionar, sem se intimidar.
- A mãe dela ainda mora na mesma casa - disse ele. - O quarto de onde sua filha foi levada está exatamente como era no dia em que foi assassinada. Tanto o quarto
quanto a mãe estão congelados no tempo.
- Esses fatos não são pertinentes a este pedido.
- O pai dela transformou-se em um bêbado. Perdeu o restaurante que tinha, perdeu a esposa, perdeu a própria casa. Visitei-o na rua Cinco hoje de manhã. É onde mora
atualmente. Sei que também não é pertinente, mas achei que a senhora podia querer tomar conhecimento. Talvez não tenhamos fatos suficientes para a senhora, mas temos
muitas reverberações, meritíssima.
A juíza sustentou seu olhar, e Bosch soube que ou seria preso ou receberia o mandado assinado. Sem meio-termo. Após um momento, viu o vislumbre da dor nos olhos
dela. Quem quer que viva nas trincheiras do sistema da justiça criminal - qualquer dos lados
- adquire esse olhar após algum tempo.
- Muito bem, detetive - disse ela finalmente.
Abaixou os olhos e rabiscou uma assinatura na linha de baixo da última página e começou a preencher os espaços que regulavam a extensão da escuta autorizada.
- Mas ainda não estou convencida - disse ela, asperamente. E por isso estou concedendo 72 horas.
- Meritíssima - disse Bosch.
Mas Rider pôs de novo a mão no braço dele, tentando impedir que transformasse o sim em não. E foi ela que falou.
- Meritíssima, 72 horas é um tempo muito curto para uma coisa dessas. Esperávamos poder contar pelo menos com uma semana.
- Vocês disseram que o artigo será publicado amanhã - respon' deu a juíza.
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- Sim, meritíssima, é o que supomos, mas...
- Logo vocês tomarão conhecimento de alguma coisa. Se acharem que será preciso mais tempo, voltem na sexta-feira e tentem me convencer. Setenta e duas horas, com
resumos diários entregues toda manhã. Se eu não receber os resumos, mando prender os dois por desrespeito. Não vou permitir que essa escuta se estenda a vida inteira
à toa. Se o que constar dos resumos não tiver nada a ver com o caso, cancelo o mandado antes. Ficamos entendidos?
- Sim, meritíssima - disseram Bosch e Rider em uníssono.
- Ótimo. Agora tenho uma reunião na minha sala de tribunal. Vocês têm que ir embora, e eu preciso voltar ao trabalho.
Rider reuniu a papelada, e os dois agradeceram. Quando já se dirigiam para a porta, a juíza Demchak exclamou:
- Detetive Bosch?
Bosch fez meia-volta e encarou-a.
- Sim, juíza?
- Você viu a foto, não viu? Da minha filha. Adivinhou que tenho uma filha, única.
Bosch fitou-a por um momento e assentiu.
- Eu também tenho - disse ele. - Sei como é.
Ela sustentou o olhar dele por um momento antes de falar.
- Pode ir agora - disse. Bosch fez que sim e seguiu Rider porta afora.
Capítulo 24
Eles não falaram um com o outro enquanto não deixaram o prédio do tribunal. Era como se quisessem dar o fora dali sem arriscar a sorte, como se, dizendo uma só palavra
a respeito do que acontecera, isso fosse ecoar de volta e fazer a juíza mudar de idéia. Agora que tinham a assinatura dela nos formulários, tudo o que interessava
era sumir dali.
Uma vez na calçada, diante do monolítico tribunal, Bosch olhou para Rider e sorriu.
- Por pouco - disse ele.
Ela sorriu e balançou a cabeça em sinal de aprovação.
- Reverberações, hem? Você quase ultrapassou a linha vermelha. Achei que ia ter que descer e providenciar uma fiança.
Eles começaram a caminhar na direção do Parker Center. Bosch pegou o telefone e ligou.
- E, foi quase - concordou ele. - Mas conseguimos. Quer dizer a Abel para organizar a reunião com os outros?
- vou falar com ele. Só estava esperando chegarmos lá. Bosch checou o telefone e viu que tinha uma ligação perdida e
uma mensagem. Não reconheceu o número, mas o código de área era
818 - Vale. Checou a mensagem e ouviu a voz que não queria ouvir
- Detetive Bosch, aqui é McKenzie Ward, do News. Preciso lhe falar sobre Roland Mackey o mais breve possível. Preciso ter
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notícias suas ou talvez me veja obrigada a sustar a matéria. Ligue para mim.
- Merda - disse Bosch, ao mesmo tempo que apagava a mensagem.
- Que foi? - perguntou Rider.
- A jornalista. Eu disse a Muriel Verloren que não tocasse no nome de Mackey. Mas parece que ela deixou escapar. Ou isso ou a jornalista anda conversando com alguma
outra pessoa.
- Merda.
- Foi o que eu disse.
Eles caminharam mais um pouco sem falar. Bosch ia pensando em um jeito de lidar com a repórter. Tinham que conservar Mackey fora da matéria ou ele provavelmente
iria desaparecer sem se dar ao trabalho de falar com ninguém.
- O que você vai fazer? - perguntou finalmente Rider.
- Não sei. Tentar convencê-la a esquecer. Mentir para ela, se for preciso. O fato é que ela não pode pôr o nome dele na história.
- Mas ela tem que publicar essa matéria, Harry. Nós só dispomos de 72 horas.
- Eu sei. Preciso pensar.
Ele abriu o celular e ligou para Muriel Verloren. Ela atendeu, e ele perguntou como fora a entrevista. Muriel disse que tudo fora bem e que estava satisfeita por
ter terminado.
- Tiraram fotos?
- Sim. Queriam fotos do quarto. Não me senti bem abrindo o quarto de Becky assim para eles. Mas abri.
- Eu compreendo. Muito obrigado pelo que fez. Só quero que se lembre que a matéria vai nos ajudar. Estamos chegando perto, e a publicação dessa matéria no jornal
vai acelerar os acontecimentos. Nós agradecemos muito pelo que fez.
- Se vai ajudar, fico satisfeita em ter feito.
- Excelente. Deixe-me perguntar uma outra coisa. Você mencionou o nome de Roland Mackey à jornalista?
- Não, você me pediu que não dissesse nada. Eu não disse.
- Tem certeza?
- Tenho mais que certeza. Ela me perguntou o que vocês tinham me dito, mas eu não disse nada a respeito dele. Por quê?
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-Nenhum motivo especial. Só queria me certificar, mais nada. Muito obrigado, Muriel. Telefono para você assim que tivermos notícias.
Harry fechou o telefone. Não achava que Muriel fosse mentir para ele. A jornalista devia ter outra fonte.
- E então? - quis saber Rider.
- Muriel não contou nada a ela.
- Então quem contou?
- Boa pergunta.
O celular começou a vibrar e tocar enquanto Bosch ainda o segurava. Ele reconheceu o número que apareceu no visor.
- E ela, a repórter. vou ter que atender. Ele atendeu.
- Detetive Bosch, aqui é McKenzie Ward. Estou em cima do prazo final para fechar a matéria e precisamos conversar.
- Certo. Acabo de receber sua mensagem. Desliguei o telefone porque estava no tribunal.
- Por que você não me falou de Roland Mackey?
- De que você está falando?
- Roland Mackey. Fui informada de que vocês já têm um suspeito, um tal de Roland Mackey.
- Quem lhe disse? "
- Isso não importa. O que importa é que você escondeu de mim uma informação chave. Roland Mackey é o seu suspeito principal? Deixe que eu adivinhe. Você está fazendo
jogo duplo, e deu essa informação para o Times.
Bosch teve que pensar depressa. A jornalista parecia pressionada e aborrecida. Um repórter com raiva podia ser um problema. Ele tinha de acalmar a situação e ao
mesmo tempo descartar o nome de Mackey. Pelo menos quanto a um aspecto, ele se tranqüilizou: ela não tinha mencionado a ligação do DNA encontrado na arma com Mackey.
O que o fez pensar que a fonte de informação dela era de fora do departamento. Alguém com informação limitada.
- Em primeiro lugar, não estou falando com o Times a esse respeito. Desde que a história seja publicada amanhã, você é a única pessoa que a tem. Em segundo lugar,
tem importância, sim, onde
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você conseguiu esse nome, porque sua informação está errada. Estou tentando ajudá-la, McKenzie. Pode cometer um grande erro se colocar o nome dele na matéria. Pode
inclusive ser processada.
- Mas quem é ele?
- Quem é a sua fonte?
- Você sabe que não posso lhe dizer isso.
- Por que não?
Bosch queria ganhar tempo a fim de pensar em uma solução. Enquanto a jornalista ia recitando uma resposta padronizada sobre leis de proteção às fontes, Bosch ia
ticando mentalmente os nomes das pessoas de fora do departamento de polícia com quem ele e Rider tinham falado a respeito de Mackey. As três amigas de Rebecca Verloren
- Tara Wood, Bailey Sable e Grace Tanaka. Havia também Robert Verloren, Danny Kotchof, Thelma Kibble, a agente da condicional, e Gordon Stoddard, o diretor da escola,
bem como a Sra. Atkins, a secretária que procurara o nome de Mackey nos arquivos da escola.
Havia também a juíza Demchak, mas Bosch desconsiderou essa hipótese por considerá-la impossível. A mensagem de Ward tinha sido deixada na caixa postal do seu celular
enquanto ele e Rider ainda estavam com a juíza Demchak. A idéia de que a juíza poderia ter ligado para a jornalista quando estava sozinha na sua sala estudando
os pedidos de quebra de sigilo telefônico parecia fora de questão. Se nem sequer sabia da matéria prestes a ser publicada no jornal, que dirá o nome da repórter
responsável por ela.
Bosch imaginou que, por causa das restrições de tempo, a jornalista simplesmente voltara ao jornal e dera alguns telefonemas para finalizar a história. Obtivera
o nome de Roland Mackey com alguém Para quem telefonara. Bosch não acreditava que ela tivesse conseguido localizar ou mesmo contactar Robert Verloren nas poucas
horas decorridas após a entrevista com o comandante Garcia. Também desconsiderou Grace Tanaka e Danny Kotchof, porque não moravam em Los Angeles. Sem o nome de Mackey,
não havia ligação com Deliria Kibble, a agente da condicional. Assim, restavam Tara
Wood e a escola - Stoddard, Sable ou a secretária. A resposta mais óbvia era
a escola, porque seria o vínculo mais fácil de ser estabelecido
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pela jornalista. Bosch sentiu-se melhor e achou que já tinha condições de conter a ameaça.
- Alô? Detetive? Alô?
- Sim, desculpe, estou tentando me desviar do trânsito aqui.
- Então, qual é a sua resposta? Quem é Roland Mackey?
- Não é ninguém. Uma ponta solta, uma questão não resolvida. Ou era. Porque já conseguimos prendê-la.
- Explique.
- Olhe, nós herdamos esse caso, certo? Bem, no decorrer de todos esses anos o livro do crime foi engavetado, recuperado e andou um bocado por aí. As coisas ficaram
desarrumadas. Desse modo, parte do que tivemos que fazer foi um serviço básico de dona-decasa. Tivemos que arrumar tudo. Encontramos um retrato desse tal Roland
Mackey perdido no livro e não tínhamos certeza de quem ele era e qual seria sua ligação com o caso. Quando fizemos as nossas entrevistas para conhecer os protagonistas
da história, mostramos a foto a algumas pessoas para ver se sabiam de quem se tratava e qual seria sua relação com Rebecca Verloren. Em nenhum instante, McKenzie,
dissemos a alguém que se tratava de um suspeito importante. Essa é a verdade. Assim, ou você está exagerando ou quem mencionou o nome dele para você estava exagerando.
Houve um silêncio, e Bosch adivinhou que ela deveria estar recapitulando a entrevista em que lhe tinham dado o nome de Mackey.
- Mas então quem é ele? - perguntou ela finalmente.
- Simplesmente um sujeito com um prontuário policial quando era menor de idade. Morava em Chatsworth naquele tempo. Fazia ponto no velho drive-in da Winnetka, que
aparentemente era freqüentado também por Rebecca e sua turma. Mas acontece que em 1988 ele foi inocentado de tudo. Só viemos a saber disso depois que mostramos a
foto a diversas pessoas.
Era uma mistura de verdade com nuances da verdade. Mais uma vez a jornalista ficou em silêncio, enquanto considerava a resposta que ele dera.
- Quem lhe falou a respeito dele, Gordon Stoddard ou BaileY Sable? - perguntou Bosch. - Levamos a foto à escola para ver se ele
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se encaixava, e acabou que ele nem sequer tinha sido aluro lá. Depois disso, desistimos.
- Tem certeza do que disse?
- Olhe, faça o que quiser, mas se puser o nome do cara no jornal simplesmente porque interrogamos as pessoas a seu respeito, pode ser que receba telefonemas dele
e de seu advogado. Fizemos perguntas sobre Roland Mackey a muita gente, McKenzie. E o nosso trabalho.
Mais silêncio. Bosch achou que indicava ter ele conseguido desarmar a bomba.
- Nós fomos até a escola ver o anuário e copiar umas fotos - disse McKenzie Ward finalmente. - E descobrimos que vocês tinham levado o único do ano de 1988 que
havia na biblioteca.
Era seu meio de confirmar que Bosch acertara, mas sem denunciar a fonte.
- Sinto muito quanto ao anuário. Ele está na minha mesa. Não sei de quanto tempo você dispõe, mas pode mandar
alguém pegar se quiser.
- Não, não há tempo. Fotografamos a placa que está no saguão da escola. Vai funcionar. Além disso, encontramos uma foto -
da vítima em nossos arquivos. Usaremos isso.
- Eu vi a placa. E bem legal.
- Eles estão muito orgulhosos disso.
- Então estamos acertados, McKenzie?
- Sim, tudo bem. Só fiquei um pouco irritada quando achei que você estava me escondendo alguma coisa importante.
- Não tenho nada importante para contar. Por enquanto
- Está bem, então é melhor eu ir terminar a matéria.
- Ainda vai sair na janela de amanhã?
- Se eu conseguir terminá-la. Ligue para mim amanhã e me diga o que achou.
- vou ligar.
Bosch fechou o telefone e olhou para Rider.
- Acho que nos safamos - disse ele.
- Puxa, Harry, você realmente fez chover hoje. O trapaceiro ardiloso. Você provavelmente conseguiria convencer uma zebra a se despir das listras.
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Bosch sorriu. Em seguida levantou os olhos para o Anexo da Prefeitura na rua Spring. Banido do Parker Center, Irvin Irving agora operava a partir do Anexo. Bosch
perguntou-se se o Sr. Limpeza estaria olhando para eles de detrás de uma das janelas espelhadas do Escritório de Planejamento Estratégico. Teve uma idéia.
-Kiz?
-O quê?
- Você conhece McClellan?
- Não, na verdade, não.
- Mas sabe como ele é?
- Claro. Eu o via nas reuniões do comando. Irving parou de ir depois que foi transferido para o Anexo. A maior parte das vezes, mandava McClellan como seu representante.
- Então você saberia reconhecê-lo?
- Claro. Mas de que está falando, Harry?
- Talvez devêssemos ir falar com ele, assustá-lo um pouco, e mandar um recado para o Irving. -Agora?
- Por que não? Estamos aqui.
Ele fez um gesto indicando o Anexo.
- Não temos tempo, Harry. Além do mais, para que procurar uma briga que podemos evitar? Não lidemos com Irving enquanto não formos obrigados.
- Está certo, Kiz. Mas vamos ter que lidar com ele. Sei que vamos.
Não falaram de novo, cada um concentrado nos seus pensamentos a respeito do caso, até que chegaram à Casa de Vidro.
Capítulo 25
Abel Pratt convocou todos os membros da Unidade de Casos em Aberto para uma reunião, assim como os quatro outros detetives da Roubos e Homicídios emprestados para
a operação de vigilância. A reunião ficou por conta de Bosch e Rider, que empreenderam um passeio verbal pelo caso que durou meia hora. Em um quadro de avisos atrás
deles, os dois prenderam ampliações das fotos mais recentes das carteiras de motorista de Roland Mackey e William Burkhart. Os outros detetives fizeram poucas perguntas.
Bosch e Rider entregaram então o comando do espetáculo de volta a Pratt.
- Está certo, vamos precisar de todo mundo - disse ele. - Trabalharemos em equipes de seis - dois pares na sala de som, dois pares cuidando de Mackey e dois pares
em cima de Burkhart. Quero
as equipes aqui da nossa unidade com Mackey e na sala de vigilância, as quatro que vieram emprestados da Roubos e Homicídios vigiarão Burkhart. Kiz e Harry têm precedência
e querem o segundo turno de Mackey. Os demais definam como vão querer cobrir os turnos remanescentes. Começamos amanhã de manhã às seis, justo na hora em que o jornal
estará chegando às ruas.
O plano traduzia-se em seis pares de detetives trabalhando em turnos de 12 horas. As substituições eram realizadas às 6h e 18h.
Como o caso era deles, Bosch e Rider
tiveram o privilégio de escolher
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os turnos em primeiro lugar e preferiram ficar com a cobertura de Mackey no turno que começava às 18h. O que significava trabalhar durante a noite, mas o
palpite de Bosch era de que, se Mackey fosse agir ou telefonar, seria de noite. E ele queria estar presente quando isso acontecesse.
Eles iam alternar com uma das outra equipes. As demais alternariam o trabalho na Cidade da Indústria, onde uma empresa particular chamada Listen Tech tinha o que
podia ser chamado de um centro de grampos usado por todas as agências policiais do condado de Los Angeles. Esse negócio de sentar-se dentro de um furgão perto do
poste telefônico que sustentava a linha grampeada era coisa do passado. A Listen Tech proporcionava um centro silencioso, dotado de ar condicionado, onde havia consoles
eletrônicos destinados a monitorar e gravar conversas originadas ou recebidas por quaisquer dos números telefônicos do país, inclusive celulares. Havia inclusive
uma cafeteria com café fresco e máquinas de venda automáticas. Pizza poderia ser entregue, se fosse o caso.
A Listen Tech podia proporcionar a escuta de até noventa linhas de cada vez. Rider contara a Bosch que a firma fora criada em
2001, quando as agências com atribuições policiais começaram a se aproveitar das leis mais abrangentes que regulavam o assunto. Uma companhia particular percebera
a oportunidade e entrara no mercado com centros de grampeamento regionais, conhecidos como salas de som. Facilitavam o trabalho. Mas ainda assim havia regras a seguir.
- Vamos ter alguma dificuldade na sala de som - avisou Pratt.
- A lei ainda requer que cada linha seja monitorada por um único indivíduo - nada de escutar duas linhas ao mesmo tempo. Mas precisamos monitorar três linhas com
dois tiras, porque isso é tudo o que temos. Como fazer então para cumprir a missão e ainda continuar dentro da lei? Alternamos. Uma linha é do celular de Mackey.
Vamos monitorá-la o tempo todo. As outras duas são secundárias, e é aí que alternamos. Elas são da casa onde ele mora e do posto onde trabalha. Vamos ficar com a
primeira linha quando ele estiver em casa, e depois, das quatro à meia-noite, no seu horário de trabalho, passamos para a linha do posto. Não importa quantas
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linhas estivermos realmente escutando, ainda assim teremos 24 horas de identificadores de chamadas funcionando nas três.
-Não podemos pedir mais reforços à Roubos e Homicídios para cobrir a terceira linha? - perguntou Rider.
Pratt sacudiu a cabeça.
- O capitão Norona nos deu quatro companheiros, e é isso aí
- respondeu Pratt. - Não perderemos muito, contudo. Como falei, teremos a identificação das chamadas.
A identificação de chamadas fazia parte do processo de grampeamento telefônico. Enquanto os investigadores eram autorizados a escutar as ligações das linhas monitoradas,
o equipamento registrava todos os telefonemas que entravam e saíam em todas as linhas listadas no mandado judicial, mesmo que não estivessem sendo monitoradas. Com
isso, os investigadores disporiam de uma lista com o tempo e a duração de cada chamada, assim como dos números discados nas ligações para fora e dos números dos
telefones dos quais se originavam as chamadas recebidas.
- Alguma pergunta? - quis saber Pratt.
Bosch achou que não fossem perguntar nada. O plano era bastante simples. Mas aí um detetive da equipe, chamado Renner, levantou a mão, e Pratt acenou para ele.
- Essa operação tem autorização para pagar horas extras?
- Tem, sim - respondeu Pratt. - Mas, como falei antes, temos somente 72 horas autorizadas no mandado.
- Bem, tomara que leve as 72 inteiras - disse Renner. - Tenho que pagar a colônia de férias do meu filho em Malibu.
Os outros riram.
Tim Mareia e Rick Jackson se apresentaram como voluntários Para compor a equipe que ia trabalhar com Bosch e Rider. Os outros quatro foram para a sala de som, com
Renner e Robleto pegando o turno do dia, e Robinson e Nord ficando com o mesmo turno de Bosch e Rider. O centro da Listen Tech era bonito e confortável, mas alguns
policiais não gostavam de ficar confinados, fossem quais fossem as circunstâncias. Alguns sempre escolhiam trabalhar na rua, e, como Mareia e Jackson, Bosch sabia
que era um deles.
240
Pratt encerrou a reunião entregando uma folha de papel com o número do celular de todos e o canal de rádio que seria usado durante a vigilância.
- Para quem for trabalhar na rua, tenho aparelhos de radiocomunicação disponíveis esperando lá no depósito de equipamento disse Pratt. - Não se esqueçam de manter
o rádio ligado. Harry, Kiz, esqueci de alguma coisa?
- Não, acho que você tratou de tudo - respondeu Rider.
- Já que o nosso tempo é curto - disse Bosch -, Kiz e eu estamos bolando qualquer coisa para impulsionar a ação, se não tivermos sinais positivos amanhã à noite.
Assim que tenhamos o artigo do jornal nas mãos, temos que nos assegurar de que ele o veja.
- Como é que ele vai ler o jornal se é disléxico? - indagou Renner.
- Ele tem um diploma de segundo grau. Tem que saber ler. Nós só temos que nos assegurar de que tenha o jornal diante de seus olhos.
Todo mundo concordou, e Pratt deu a palavra final.
- OK, pessoal, é isso aí. Estarei em contato com cada um de vocês o tempo todo, dia e noite. Fiquem numa boa e tenham cuidado com esses caras. Não queremos nada
dando a volta e nos atingindo. Vocês que vão pegar o primeiro turno podem estar querendo ir para casa agora e pegar uma boa noite de sono. Não se esqueçam de que
o tempo de validade do mandado não pára. Temos até a noite de sexta-feira, depois vira abóbora. Assim, vão até lá e peguem o que houver. Nós somos aqueles que encerram
os casos. Assim, vamos encerrar esse.
Bosch e Rider se levantaram e conversaram sobre o caso por uns poucos minutos; depois, Bosch retornou ao seu cubículo. Lá, pegou a cópia dos documentos da condicional
de Mackey, que ainda não tivera chance de ler por completo.
O documento era um anexo suplementar, o que significava que Mackey era repetidamente preso e seguira uma difícil jornada pelo sistema de justiça criminal, com os
relatórios e as transcrições do tribunal sendo simplesmente acrescentadas na parte de cima do arquivo. Assim sendo, os relatórios estavam catalogados na ordem
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cronológica inversa. Bosch estava mais interessado nos primeiros anos de Mackey, e foi para a parte de trás do arquivo com a idéia de seguir a ordem cronológica
normal.
A primeira prisão de Mackey como adulto veio apenas um mês depois de ele ter completado 18 anos. Em agosto de 1987, foi preso por furto de carro e pelo que os relatórios
subseqüentes classificaram de passeio no carro roubado. Mackey morava em uma casa naquele tempo, e roubou o Corvette de um vizinho. O vizinho o deixara na entrada
da garagem com o motor ligado para pegar os óculos escuros que tinha esquecido. Mackey aproveitou, pulou dentro do carro e saiu.
Mackey confessou-se culpado, e o relatório anterior ao julgamento contido no arquivo citava seu prontuário juvenil, mas não mencionava os Chatsworth Eights. Em setembro
de 1987, o jovem ladrão de carros foi condenado a um ano e posto em liberdade condicional por um juiz da Corte Suprema, que tentou convencê-lo a abandonar a vida
criminosa.
A transcrição da audiência em que foi promulgada a sentença constava do arquivo. Bosch leu a preleção de duas páginas do juiz. Nela, ele dizia já ter visto rapazes
como Mackey centenas de vezes antes. Avisava a Mackey que ele estava à beira do mesmo precipício que os demais. Um crime simples podia ser a lição de uma vida ou
o primeiro passo na descida do abismo. O juiz instou com Mackey para que não seguisse o caminho errado. Recomendou-lhe que pensasse muito e que tomasse a decisão
certa do caminho a seguir.
As palavras de advertência obviamente caíram em ouvidos moucos. Seis semanas mais tarde, Mackey foi preso por ter assaltado uma casa do bairro enquanto o casal que
lá morava estava fora, trabalhando. Mackey cortara o alarme, mas a interrupção da corrente Métrica fora registrada na sede da companhia que instalara o
sistema
de segurança e um carro-patrulha foi enviado. Quando Mackey Saiu pela porta dos fundos carregando uma câmera de vídeo e
diversos outros aparelhos eletrônicos e jóias,
dois policiais o esperavam de armas em punho.
Tendo em vista que Mackey estava em liberdade condicional Por causa do roubo do carro, ficou preso no xadrez do condado.
242
Após 36 dias, compareceu diante do mesmo juiz e, de acordo com a transcrição, implorou perdão e mais uma chance. Desta vez, constava do relatório que precedia a
sentença o resultado do exame indicando que Mackey era usuário de maconha e ele começara a conviver com um grupo de rapazes da área de Chatsworth de comportamento
condenável.
Bosch sabia que era bem provável que esses rapazes fossem os Chatsworth Eights. Eram os primeiros dias de dezembro, e o plano de terror com que homenageariam Adolf
Hitler seria desencadeado em mais algumas semanas. Mas nada disso aparecia no relatório, que se limitava a dizer que Mackey passara a andar com a turma errada. Ao
sentenciar Mackey, o juiz não teria sabido o quão errada
essa turma era.
Mackey foi condenado a três anos de prisão, abatido o tempo já cumprido. Também recebeu dois anos de condicional. O juiz, sabendo que a prisão seria uma escola de
aperfeiçoamento para um jovem criminoso como Mackey, estava lhe dando uma chance e, ao mesmo tempo, tentando discipliná-lo. Mackey saiu livre do tribunal, mas o
juiz impôs uma série de restrições pesadas à sua condicional. Elas incluíam testes semanais para verificação de uso de drogas, a manutenção de um emprego proveitoso
e a exigência de que o estudante que abandonara os estudos conseguisse seu diploma do ensino médio em nove meses. O juiz disse a Mackey que, se ele deixasse de cumprir
qualquer parte da sentença, seria mandado para uma prisão estadual a fim de completar os três anos de sentença.
- O senhor pode considerar minha decisão severa, Sr. Mackey
- disse o juiz, conforme a transcrição. - Mas eu a considero muito generosa. Estou lhe dando uma última chance aqui. Se falhar, sem dúvida alguma irá para a prisão.
A sociedade dará por terminadas suas tentativas de ajudá-lo e simplesmente o afastará. O senhor entende isso?
- Sim, meritíssimo - disse Mackey.
O arquivo continha os relatórios escolares exigidos pelo tribunal. Mackey obtivera seu diploma do supletivo em agosto de 1988, pouco mais de um mês após Rebecca
Verloren ter sido seqüestrada de sua cama e assassinada.
243
A despeito dos admiráveis esforços do juiz para desviar Mackey de uma vida criminosa, Bosch teve que ponderar que esses esforços tinham custado a vida de Rebecca
Verloren. Quer ele houvesse puxado o gatilho ou não, tivera a posse da arma que a matara. Seria razoável imaginar que essa cadeia de eventos teria sido rompida se
Mackey houvesse sido posto atrás das grades? Bosch não poderia afirmar. Podia ser que ele simplesmente tivesse desempenhado o papel de ter entregado a arma do crime.
Se não fosse ele, poderia ter sido qualquer outro. Bosch sabia que não fazia sentido especular sobre o que poderia e não poderia ter acontecido.
- Alguma coisa?
Bosch levantou os olhos dos seus pensamentos. Rider estava de pé diante de sua mesa. Ele fechou o arquivo com um gesto rápido.
- Não, não, na verdade, nada. Eu estava lendo o arquivo relativo à liberdade condicional. O princípio de tudo. Um juiz interessou-se por ele, mas depois acabou praticamente
deixando-o de lado. O máximo que conseguiu foi fazer Mackey tirar um diploma de segundo grau.
- O que foi bastante útil para ele, não?
- Com certeza.
Bosch não disse mais nada. Ele próprio só tinha o supletivo, o mesmo diploma de Mackey. Também ficara diante de um juiz uma vez, por ter roubado um carro. O carro
em que dera uma volta para se distrair também fora um Corvette. Só que não era do vizinho, e sim do pai adotivo. Bosch o levara como se estivesse dizendo
foda-se.
Mas foi seu pai adotivo quem disse o foda-se definitivo. Bosch foi mandado de volta para o reformatório, a fim de aprender a ser independente.
- Minha mãe morreu quando eu tinha 11 anos - disse Bosch subitamente.
Rider virou-se para ele, levantando uma das sobrancelhas em sinal de espanto.
- Eu sei. Mas por que você foi se lembrar disso agora?
- Não sei. Passei um bocado de tempo no reformatório depois da morte dela. Quer dizer, passei algumas temporadas com famílias que cuidavam de mim, mas nunca durei
muito tempo. Sempre voltava.
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Rider esperou, mas ele não ptosseguiu.
- E então? - insistiu ela.
- Bem, não tínhamos gangues no reformatório - disse ele. Mas havia uma espécie de segregação natural. Sabe como é. Os brancos ficam juntos. Os negros. Os hispânicos.
Naquele tempo, lá não havia asiáticos.
- O que você está querendo dizer? Que sente pena do panaca do Mackey?
-Não.
- Ele matou uma garota ou pelo menos ajudou alguém a matá-la.
- Eu sei, Kiz. Não é esse o meu ponto.
- Qual é o seu ponto então?
- Não sei. Estou divagando, sabe como é, sobre o que leva as pessoas a trilharem caminhos diferentes. Como será que ele veio a se transformar em um sujeito rancoroso,
cheio de ódio? Como não segui o mesmo caminho?
- Harry, você está pensando demais. Vá para casa e tenha uma boa noite de sono. Vai precisar, porque amanhã não vai poder dormir nem um minuto.
Bosch fez que sim, mas não se moveu.
- Como é? Não vai sair?
- Daqui a pouco. Você está de saída?
- Estou, a menos que você queira que eu o acompanhe até o setor de costumes da Divisão Hollywood.
- Pode deixar, vou ficar bem. A gente conversa amanhã, depois de receber o jornal.
- Tudo bem, mas não sei ao certo onde posso comprar o Daily News na zona sul. Pode ser que tenha de lhe telefonar para que leia a matéria para mim.
O Daily News circulava amplamente no Vale, mas às vezes era difícil de localizar em outro ponto da cidade. Rider morava perto de Inglewood, no mesmo bairro onde
fora criada.
- Boa idéia. Ligue para mim, e eu leio. Tem uma caixa perto da minha casa, na parte baixa do morro.
Ela abriu uma das gavetas da mesa e pegou a bolsa. Olhou para Bosch e levantou de novo a sobrancelha.
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- Você tem certeza de que vai querer se marcar desse jeito? Ela estava falando do plano deles para forçar a barra em cima
de Mackey no dia seguinte.
-Tenho que estar em condições. Além do mais, posso usar mangas compridas por algum tempo. Ainda não é verão.
- Mas, e se não for necessário? E se ele ler a história no jornal, pegar o telefone e abrir o jogo?
- Alguma coisa me diz que isso não vai acontecer. De qualquer modo, não é permanente. Vicki Landreth me disse que dura no máximo duas semanas, dependendo da freqüência
com que a pessoa tome banho. Não é como aquelas tatuagens de hena que os garotos fazem no píer de Santa Mônica. Aquelas duram mais.
Rider concordou, balançando a cabeça.
- OK, Harry. Pego você de manhã então.
- Até amanhã, Kiz. Tenha uma boa noite. Ela começou a sair do cubículo.
- Kiz! - exclamou ele.
- Que é? - Ela parou e virou-se para olhar para ele.
- O que você acha? Feliz por estar de volta?
Ela sabia do que ele estava falando. Estar de volta à Homicídios.
- Ah, sim, Harry, estou muito feliz. E terei uma vertigem de felicidade quando pegarmos esse cavaleiro do cavalo baio e solucionarmos o mistério.
- Falou - disse Bosch.
Depois que ela saiu, Bosch ficou pensando por alguns minutos sobre qual teria sido a intenção dela ao chamar Mackey de cavaleiro de um cavalo baio. Devia ser alguma
referência bíblica, mas não conseguiu atinar qual seria. Talvez na região dela fosse
o que algumas pessoas chamavam de racistas. Decidiu perguntar no dia seguinte. Começou a examinar de novo os documentos do arquivo, mas pouco tempo depois desistiu.
Tinha que se concentrar no aqui e agora. Não no passado. Tampouco nas escolhas feitas e nos caminhos não trilhados. Levantou-se e meteu o
arquivo da condicional e o livro do crime debaixo do braço. Se nada acontecesse no dia seguinte durante seu turno de
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vigilância, aquilo podia dar uma boa leitura. Meteu a cabeça na sala de Abel Pratt para se despedir.
- Boa sorte, Harry - disse Pratt. - Encerre esse caso.
- É o que faremos.
Capítulo 26
Bosch parou no estacionamento dos fundos e entrou na Divisão Hollywood pela porta de trás. Fazia muito tempo desde que estivera ali, e ele logo viu que estava diferente.
A renovação de que Edgar falara, para dotar o prédio de nova tecnologia contra terremotos, aparentemente alterara cada espaço. Ele encontrou a sala de vigilância
no lugar onde antes havia um tanque, cela, área de retenção. Descobriu também que os patrulheiros tinham agora uma sala para escrever seus relatórios, mesmo que
para isso o bureau de detetives tivesse cedido um pouco de espaço.
Antes de subir a escada para a unidade de costumes, precisava passar pelo bureau de detetives para ver se conseguia pegar um arquivo. Desceu o corredor dos fundos,
passando por um sargento patrulheiro chamado McDonald, cujo primeiro nome foi incapaz de lembrar.
- Ei, Harry, está de volta? Faz muito tempo que não vejo você, cara.
- Estou de volta, Seis.
- Legal.
Seis era o designativo de rádio para a Divisão Hollywood. ChaWar o sargento da patrulha de Seis era o mesmo que chamar um detetive da Homicídios de Roy. Funcionou,
e Bosch conseguiu se safar numa boa de sua desgraciosa falha de memória. Foi só
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quando chegou ao final do corredor que se lembrou de que o nome do sargento era Bob.
A unidade de homicídios ficava nos fundos da ampla sala de detetives. Edgard estava certo na sua descrição. Aquilo não se parecia em nada com um bureau de detetives
que Bosch já tivesse visto. Era cinza e árido. Parecia um galpão onde loquazes operadores de telemarketing passavam a perna em velhinhas ou firmas oferecendo pelos
olhos da cara canetas ou residência de férias de tempo compartilhado. Reconheceu o topo da cabeça de Edgar aparecendo por cima das partições de som que separavam
os cubículos. Parecia ser o único remanescente em todo o escritório. Era tarde, mas não tão tarde.
Bosch aproximou-se e olhou por cima da divisória. Edgar estava de cabeça baixa e resolvia as palavras cruzadas do Times. Aquilo sempre fora uma espécie de ritual
para Edgar. Ele trabalhava no problema o dia inteiro, até quando ia ao banheiro, quando lanchava e quando participava de operações de vigilância. Não gostava de
voltar para casa sem ter terminado as palavras cruzadas do dia.
Edgar não percebeu a presença de Bosch. Bosch recuou silenciosamente e entrou no cubículo ao lado. Ali, ergueu com cuidado a tampa de aço da lata de lixo que ficava
ao pé da mesa e saiu de novo, indo colocar-se bem atrás de Edgard. Aí então endireitou o corpo e deixou a tampa cair em cima do linóleo cinza novo de uma altura
aproximada de 1,20m. O barulho resultante foi alto e agudo, quase como um tiro. Edgar deu um pulo da cadeira, e o lápis das palavras cruzadas voou para o teto. Já
ia gritar qualquer coisa, quando viu Bosch.
- Que droga, Bosch!
- Como vai você, Jerry? - disse Harry, mal conseguindo falar de tanto rir.
- Que droga, Bosch!
- E, você já disse isso. Pelo que vejo, as coisas estão bem devagar aqui em Hollywood hoje.
- O que é que você está fazendo aqui? Quer dizer, sem falar nesse susto filho-da-puta?
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- Estou trabalhando, cara. Tenho hora marcada com a desenhista da seção de disfarces lá em cima. O que é que você está fazendo?
- Estou terminando. Faltava pouco para ir embora.
Bosch inclinou-se um pouco para a frente e viu que as palavras cruzadas estavam quase inteiramente preenchidas. Havia diversas marcas de borracha. Edgar sempre usava
lápis, justamente para poder apagar. Bosch notou que o velho dicionário vermelho estava em cima da mesa.
- Dando o golpe de novo, Jerry? Você sabe que não devia estar usando o dicionário desse modo.
Edgar recostou-se na cadeira. Parecia exasperado pelo susto, e agora pelo interrogatório.
- Sem essa. Posso fazer o que me der na telha. Não há regras, Harry. Por que não vai lá para cima e me deixa em paz? Mande passar um delineador nos olhos e vá rodar
bolsinha.
- Como queira. Você seria meu primeiro cliente.
- Está bem, está bem. Há alguma coisa de que precise aqui ou só passou para torrar o meu saco?
Edgar finalmente sorriu, e Bosch soube que estava tudo bem entre eles.
- Um pouco de ambos - disse Bosch. - Preciso pegar um documento antigo. Onde vocês guardam os arquivos aqui neste palácio?
- E coisa muito velha? Já começaram a mandar a papelada para a cidade, para ser microfilmada.
- Deve ser do ano 2000. Você se lembra de Michael Allen Smith?
Edgar balançou a cabeça.
- Claro que me lembro. Um cara como eu não ia se esquecer uo Smith. O que é que você quer com ele?
- Só o seu retrato. O arquivo ainda está por aqui?
- Claro, tudo que for assim tão recente ainda está aqui. Siga-me.
Edgar conduziu Bosch até uma porta fechada. Ele tinha a chave
e em pouco tempo os dois se viram dentro de uma sala pequena
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com as paredes cobertas de prateleiras cheias de arquivos de folhas soltas e capa azul. Edgar localizou o livro do crime de Michael Allen Smith, retirou-o da
estante e soltou-o na mão de Bosch. Era pesado. Tinha sido um caso difícil.
Bosch levou-o para o cubículo ao lado do de Edgar e começou a folhear até chegar à seção de fotografias que mostravam a parte superior do torso de Smith e diversos
closes de suas tatuagens. Suas marcas tinham sido usadas para identificá-lo e acusá-lo do assassinato de três prostitutos cinco anos antes. Bosch, Edgar e Rider
tinham trabalhado no caso. Smith era um partidário declarado da supremacia branca que contratava secretamente travestis negros que pegava no bulevar Santa Mônica.
Depois, cheio de culpa por ter cruzado as fronteiras sexuais e raciais, matava-os. De alguma maneira, desse modo ele se sentia melhor a respeito de suas transgressões.
A pista principal para resolver o caso viera quando Rider encontrara um prostituto que vira uma das vítimas entrar em uma van com um cliente. Ele descreveu uma tatuagem
inconfundível na mão do tal cliente. Isso acabou por levá-los a Smith, que tinha colecionado uma variedade de tatuagens nas várias prisões do país em que andara.
Ele foi julgado, condenado e mandado para o corredor da morte, onde ainda estava driblando a agulha letal com uma barragem de apelações legais.
Bosch removeu as fotos que mostravam o pescoço, as mãos e o braço esquerdo de Smith, tudo decorado com tinta da prisão.
- Preciso disto aqui enquanto estiver lá em cima. Se você sair e tiver que trancar a sala dos arquivos, posso deixar em cima da sua mesa.
Edgar balançou a cabeça, concordando.
- Tudo bem. Em que está se metendo, cara? Vai fazer essa mef' da em você?
- Exatamente. Quero ficar como Mike. Edgar estreitou os olhos.
- Tem a ver com aquela história dos Chatswortri Eights de que falamos ontem?
Bosch sorriu.
- Sabe, Jerry, você devia ser detetive. E muito bom nisso.
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Edgar fez uma careta para indicar que era capaz de aturar mais outra investida sarcástica.
- Vai cortar o cabelo que nem ele também?
- Nada disso, não pretendo ir tão longe assim - respondeu Bosch. - Estou pensando em me fazer passar por um skinhead arrependido.
- Entendi.
-Escute, você vai estar ocupado hoje, Edgar? - perguntou Bosch. - Se quiser esperar um pouco e terminar suas palavras cruzadas, podemos depois ir comer um bife no
Musso's.
Só de falar, Bosch sentiu vontade de comer o bife. E de tomar uma vodca-martíni.
- Não vai dar, Harry. Tenho que subir o morro e ir até o Sportmen's Lodge para a festa de aposentadoria da Sheree Riley. Por isso eu estava fazendo hora aqui. Esperando
o trânsito melhorar.
Sheree Riley era uma investigadora especializada em crimes sexuais. Bosch trabalhara com ela em uma ocasião, mas nunca tinham sido muito íntimos. Quando sexo e homicídio
se entrelaçavam, os casos geralmente eram tão brutais e difíceis que não havia muito espaço para outra coisa que não o trabalho. Bosch não sabia que ela estava se
aposentando.
-Talvez possamos comer esse bife em outra ocasião -disse Edgar. -Tudo bem?
- Beleza, Jerry. Divirta-se lá em cima e diga a ela que mandei um abraço e votos de boa sorte. E obrigado pelas fotos. vou deixar tudo em cima da sua mesa.
Bosch saiu andando na direção do corredor, mas ouviu Edgar soltar uma praga. Virou-se e viu o antigo parceiro de pé e examinando o cubículo com os braços abertos.
- Onde terá ido parar a merda do meu lápis?
Bosch examinou o chão, mas não viu nada. Levantou os olhos e viu o lápis preso no material acústico que forrava o teto bem
acima da cabeça de Edgar.
- Jerry, às vezes o que sobe não desce.
Edgar levantou os olhos e viu o lápis. Precisou de dois pulos Para pegá-lo.
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A porta para a unidade de disfarces no segundo andar estava trancada, mas isso não era incomum. Bosch bateu e foi prontamente atendido por uma agente secreta que
ele não reconheceu.
- Vicki está? Ela está me esperando.
- Então entra.
A agente recuou e deixou Bosch entrar. A sala não tinha sofrido qualquer modificação drástica por conta da obra. Era uma sala comprida, com bancadas de trabalho
dos dois lados. Acima do espaço destinado a cada agente havia o pôster de um filme. Na Divisão Hollywood, apenas filmes rodados ali na divisão tinham permissão para
adornar as paredes. Ele encontrou Vicki Landreth no espaço sob o pôster de Bine Neon Night, um filme que Bosch não vira. Ela e a outra agente que abrira a porta
eram as únicas pessoas ali presentes. Bosch adivinhou que todos os demais estavam nas ruas para o turno da noite.
- Oi, Bosch - cumprimentou Landreth.
- Oi, Vic. Ainda tem tempo para me atender?
- Para você, querido, sempre arranjarei tempo.
Landreth fora maquiadora em Hollywood. Um dia, vinte anos atrás, fora convencida por um dos policiais que trabalhavam em sua folga como seguranças no estúdio a entrar
em um programa destinado a acompanhá-lo durante o seu plantão de serviço na polícia. O cara estava só tentando uma abordagem romântica, na esperança de que ela se
empolgasse no plantão e que isso os levasse a alguma outra coisa. Levou mesmo foi à inscrição de Landreth na academia de polícia, onde ela se formou como policial
da reserva, trabalhando duas vezes por mês em serviço de patrulha, onde quer que fosse necessário. Depois, alguém na unidade de costumes descobriu o que ela fazia
no seu emprego diurno e pediu que passasse a dar seus dois plantões lá, onde poderia ser muito útil fazendo com que policiais disfarçados ficassem mais parecidos
com prostitutas, cafetões, usuários de drogas e moradores de rua. Em pouco tempo, Vicki achou o trabalho policial mais interessante que o trabalho no cinema. Abandonou
a indústria de filmes e tornou-se policial em tempo integral. Seu talento como maquiadora era altamente requisitado, e seu lugar na Divisão Hollywood, garantido.
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Bosch mostrou-lhe as fotos de Michael Allen Smith, e ela as estudou por uns momentos.
- Cara legal, hem? - disse, finalmente.
- Um dos melhores.
- E você quer tudo isso feito hoje?
- Não, eu estava pensando em raios no pescoço. E talvez no bíceps, se for possível.
- E tudo coisa de cadeia. Nem um pingo de arte. Uma cor só. Posso fazer.
Ela o levou até uma das oficinas de maquiagem, onde ele se sentou em um banco ao lado de uma estante cheia de várias tintas e pós corporais. Na prateleira de cima
havia diversas cabeças de manequim com perucas e barbas. Sob ela tinham sido colados os nomes de vários supervisores da divisão.
Bosch tirou a camisa e a gravata. Usava uma camiseta por baixo.
- Quero que as falsas tatuagens sejam vistas, mas não quero nada evidente demais - disse ele. - Eu estava pensando se seria possível fazê-las de modo que, usando
camiseta como esta, partes delas aparecessem. O bastante para saber o que eram e o que significavam.
- Sem problema. Agüente firme.
Landreth usou um pedaço de giz para marcar na pele dele as linhas correspondentes às mangas da camiseta e à gola.
- Estas serão as linhas da visibilidade - explicou. - Agora, basta me dizer quanto vai querer que fique acima e abaixo delas.
- Entendi.
- Agora tire tudo, Harry.
Ela falou com indisfarçável sensualidade na voz. Bosch puxou a camiseta por cima da cabeça e jogou-a em cima da cadeira, onde já se encontravam a camisa social e
a gravata. Virou-se então e viu que Landreth estudava seu peito e ombros. Ela se adiantou um pouco e tocou na cicatriz que ele tinha no ombro esquerdo.
- Esta é nova - disse.
- E velha.
- Bem, faz um bocado de tempo que não o vejo nu, Harry.
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- É, acho que sim.
- Foi no tempo em que você era um menino de azul e podia me convencer a fazer qualquer coisa, até mesmo a ingressar na polícia.
- Convenci você a entrar no meu carro, não no departamento. Culpe a si própria por isso.
Bosch, envergonhado, sentiu que ruborizava. A ligação deles de vinte anos atrás acabara sem outra razão a não ser que nenhum dos dois procurava compromisso. Seguiram
por caminhos diferentes, mas permaneceram bons amigos, especialmente quando Bosch fora transferido para a equipe de homicídios da Divisão Hollywood e passaram a
trabalhar no mesmo prédio.
- Olhe só você ficando vermelho - disse Landreth. - Depois de todos esses anos.
- Bem, você sabe...
Ele não disse mais nada. Landreth fez seu banquinho sobre rodas rolar para mais perto de Bosch. Levantou a mão e esfregou o polegar sobre a tatuagem de um rato na
parte superior do braço direito.
- Eu me lembro desta - disse ela. - Não está se conservando bem, está?
Landreth tinha razão. Com o tempo, aquela tatuagem que ele fizera no Vietnã perdera a definição, e as cores tinham borrado. O desenho do rato com uma metralhadora
emergindo de um túnel não era reconhecível. A tatuagem parecia uma contusão dolorosa.
- Eu mesmo não estou me conservando direito, Vicki - respondeu Bosch.
Ela ignorou a lamúria e começou o trabalho. Primeiro usou um lápis delineador de olhos para traçar o esboço das tatuagens no corpo dele. Michael Allen Smith tinha
o que ele chamara de colarinho da Gestapo tatuado no pescoço. Em cada lado do pescoço havia os dois raios da insígnia da SS. Aquilo simbolizava os emblemas
afixados nas pontas do colarinho do uniforme usado pelas tropas de elite de Hitler. Landreth desenhou aquilo na pele de Bosch fácil e rapidamente. Ele sentiu cócegas
e teve dificuldade em permanecer quieto. Em seguida foi a vez do bíceps.
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- Que braço?
- Acho que era o esquerdo.
Ele estava pensando na cena que planejava representar com Mackey. Achou que as chances seriam melhores se ele terminasse sentado à direita de Mackey, e não à esquerda.
Assim, seu braço esquerdo estaria na linha de visada de Mackey.
Landreth pediu que ele segurasse a foto do braço de Smith no alto, perto do seu próprio braço, para que ela pudesse copiar. Smith tinha tatuada no bíceps uma caveira
com uma suástica dentro de um círculo. Embora Smith nunca tivesse confessado os crimes de que era acusado, sempre fora bastante franco sobre suas crenças racistas
e a origem das muitas marcas que tinha no corpo. A caveira no bíceps, ele disse ter sido copiada de um pôster de propaganda da Segunda Guerra Mundial.
A mudança do trabalho do pescoço para o braço permitiu a Bosch respirar com mais facilidade, e a Landreth entabular conversa.
- Então, quais são as novidades com você? -Nada.
- A aposentadoria estava chata?
- Pode-se dizer que sim.
- O que fez para passar o tempo, Harry?
- Trabalhei em dois casos antigos, mas a maior parte do tempo passei em
Las Vegas, tentando conhecer minha filha.
Ela recuou do trabalho que estava fazendo e levantou a cabeça para Harry, com surpresa nos olhos.
- E, eu também fiquei espantado quando descobri.
- Que idade?
- Quase seis.
- Você ainda vai ser capaz de vê-la, agora que está trabalhando de novo aqui?
- Isso não importa, ela não está lá.
- Onde está então?
- Sua mãe a levou para passar um ano em Hong Kong.
- Hong Kong? O que havia lá?
- Um trabalho. Ela assinou um contrato de um ano.
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- Ela não o consultou sobre sua ida?
- Eu não sei se "consultou" é a palavra adequada. Ela me disse que estava indo. Falei com um advogado sobre isso, e não havia muito que eu pudesse fazer.
- Não é justo, Harry.
- Estou bem. Falo com ela toda semana. Assim que eu tiver direito a algum período de férias, darei um jeito de ir lá.
- Não estou dizendo que não é justo com você, e sim com ela. Uma garota deve crescer perto do pai.
Bosch assentiu, porque era tudo o que podia fazer. Poucos minutos depois, Landreth terminou de desenhar os esboços, abriu um estojo e tirou um vidro de tinta para
tatuagem de Hollywood, juntamente com um aplicador que parecia uma caneta.
- Isto é azul Bic - disse ela. - E o que a maioria dos tatuadores usa nas cadeias. Não vou perfurar a pele, de modo que deve sair em duas semanas.
- Deve?
- A maior parte das vezes, sai. No entanto fiz um trabalho com um ator que não deu certo. Pus um ás de espadas no braço dele. E ele não saiu. Quer dizer, não saiu
de todo. O cara acabou tendo de mandar fazer uma tatuagem de verdade em cima do meu trabalho. Não ficou muito satisfeito.
- Exatamente como vou ficar, se esses raios no pescoço permanecerem aí o resto da vida. Antes de começar a pôr esse troço em mim, Vicki...
Ele se deteve quando percebeu que ela estava rindo.
- Estou brincando, Bosch. E mágica de Hollywood. Sai com duas boas escovadelas, OK?
- OK, então.
- Então agüente firme e me deixe trabalhar.
Ela continuou aplicando a tinta azul-escura ao desenho feito a lápis na pele de Bosch. Passava regularmente um pano em cima e repetia a todo instante instruções
para que ele parasse de respirar, obtendo sempre a mesma resposta de que não conseguia. Em meia hora a operação estava terminada. Ela lhe deu um espelho de mão,
e Bosch estudou seu pescoço. Achou bom, no sentido de que lhe
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pareceu ser de verdade. Também achou estranho ver aqueles sinais de ódio em sua própria pele.
- Posso vestir a camisa?
- Espere mais um pouco.
Ela tocou na cicatriz do ombro mais uma vez.
- Isto aqui foi quando você levou aquele tiro no túnel? -Foi.
- Pobre Harry.
- Seria mais certo dizer Sortudo Harry.
Ela começou a guardar seu equipamento, enquanto ele permaneceu sentado sem camisa e se sentindo sem graça por causa disso.
- E então, qual é a missão hoje? - perguntou ele, só para dizer alguma coisa.
- Para mim? Nada. Estou de saída.
- Já terminou?
-Nós trabalhamos hoje só um turno de dia. Prostitutas invadindo o hotel perto do centro Kodak. Não podemos ter uma coisa dessas na nova Hollywood, podemos? Assim,
prendemos quatro delas.
- Desculpe, Vicki. Eu não sabia que estava retendo você aqui. Poderia ter vindo antes. Diabos, eu estava lá embaixo batendo papo com o Edgar antes de subir. Você
devia ter dito que só estava me esperando.
- Tudo bem. Foi bom ver você de novo. E eu também queria lhe dizer que estou feliz por vê-lo de novo trabalhando conosco.
Bosch de repente se lembrou de uma coisa.
- Ei, você quer ir jantar no Musso ou vai subir para a festa no Sportmen's Lodge?
- Esquece o Sportmen's Lodge. Essas coisas me lembram demais as festas de fim de filmagem. Eu também não gostava delas.
- Então, o que é que você acha?
- Não sei se quero ser vista no Musso a lado de um porco racista tão óbvio.
Desta vez Bosch soube que ela estava brincando. Ele sorriu, ela sorriu e disse que o jantar era uma boa.
- vou, com uma condição. -Qual é?
- Que você vista de novo sua camisa.
Capítulo 27
Sem precisar de despertador, Bosch acordou ás 5h30. Aquilo não era incomum para ele. Era o que acontecia quando surfava o tubo da onda de um caso. As horas de vigília
se sobrepunham às horas de sono. Você fazia tudo o que podia para permanecer em cima da prancha e dentro do tubo. Embora não estivesse escalado para começar o trabalho
senão dali a mais de 12 horas, sabia que aquele seria um dia importantíssimo. Não conseguiu mais dormir.
Na escuridão e no ambiente desconhecido, ele se vestiu e foi até a cozinha, onde encontrou um bloco para escrever lembretes de compras na mercearia. Escreveu um
bilhete e deixou na frente da cafeteira automática, que vira Vicki Landreth ajustar na noite anterior para começar a preparar o café às 7h. No bilhete, dizia pouco
mais que obrigado pela noite e adeus. Nada de promessas ou "até a próxima". Bosch sabia que ela não estaria esperando coisa alguma. Ambos sabiam que pouco mudara
nos vinte anos entre suas ligações. Gostavam um do outro, sem dúvida, mas isso não era o bastante para construir uma casa em cima.
As ruas entre a casa de Vicki Landreth em Los Feliz e passo Cahuenga, onde ficava a dele, estavam nubladas e cinzentas. AS pessoas passavam dirigindo com os faróis
dos carros acesos, ou pof que tinham passado a noite inteira dirigindo ou porque achavam que assim podiam ajudar a fazer o mundo acordar. Bosch sabia que
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a madrugada nada tinha a ver com o anoitecer. A madrugada era sempre feia, como se o sol fosse desajeitado e estivesse com pressa. O crepúsculo do anoitecer era
mais suave, a lua mais graciosa. Talvez porque a luz fosse mais paciente. Na vida e na natureza, pensou Bosch, a escuridão sempre espera.
Tentou expulsar da mente as lembranças da noite anterior, para se concentrar apenas no caso. Sabia que os outros naquela hora estariam entrando em posição na rua
Mariano, em Woodland Hills e na sala de som da Listen Tech na Cidade da Indústria. Enquanto Roland Mackey dormia, as forças da justiça silenciosamente iam se fechando
em torno dele. Era assim que Bosch enxergava o quadro. Era isso que o animava daquele modo. Ainda acreditava ser pouco provável que tivesse sido Mackey a pessoa
que puxara o gatilho para matar Rebecca Verloren. Mas não tinha dúvida de que ele fornecera a arma e que isso os levaria ao assassino, que podia ser William Burkhart
ou qualquer outra pessoa.
Bosch entrou no estacionamento na frente de Poquito Mas, no sopé do morro onde ficava sua casa. Deixou o motor do Mercedes ligado, saltou e foi até a fila de caixas
automáticas de vender jornais. Viu o rosto de Rebecca Verloren olhando para ele através do plástico manchado da caixa. Sentiu uma pontada e uma ligeira modificação
no ritmo cardíaco. Não importava o que a história dissesse, eles agora estavam no jogo.
Deixou cair as moedas na caixa e pegou um jornal. Repetiu o processo e pegou um segundo jornal. Um para os arquivos, e o outro para Mackey. Não se deu ao trabalho
de ler a matéria senão depois de subir o morro e ver-se de novo em casa. Acionou a máquina de café e leu a história ali mesmo na cozinha, de pé. A foto da janela
era de Muriel Verloren sentada na cama da filha. O quarto estava arrumado, e a cama feita com perfeição, inclusive a saia que ia até o chão. Havia também um retrato
de Rebecca inserido no canto superior. Por acaso, os arquivos do Daily News tinham a mesma foto do anuário da escola. A manchete dizia A LONGA VIGÍLIA DE UMA MÃE.
A foto do quarto era creditada a Emerson Ward, com Emmy Ward, evidentemente, usando seu nome verdadeiro. Debaixo dela
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havia uma legenda: "Muriel Verloren sentada no quarto da filha. O quarto, assim como a dor da Sra. Verloren, permaneceu inr ^ do pelo tempo." a'
Debaixo da foto e acima do corpo da história, via-se o que repórter certa vez dissera a Bosch que se chamava lide - uma
descrição da história. Dizia: "ATORMENTADA:
Muriel Verloren esperou 17 anos para saber quem tirou a vida de sua filha. Em um esforço reno vado, o DPLA pode estar perto de descobrir."
Bosch achou perfeito. Se e quando Mackey visse aquilo, sentiria o dedo gelado do medo no seu peito. Ansiosamente, ele leu o artigo
Por McKenzie Ward, da Redação
-, Dezessete anos atrás contados neste verão, uma jovem e bela estudante chamada Rebecca Verloren foi seqüestrada de dentro de sua casa em Chatsworth e brutalmente
assassinada em Oat Mountain. O crime nunca foi resolvido, deixando no rastro uma família estilhaçada, policiais atormentados e uma comunidade que não viu o encerramento
do caso.
Mas no que representa uma medida de esperança para a mãe da vítima, o Departamento de Polícia de Los Angeles desencadeou uma nova investigação que talvez obtenha
resultados e resulte no encerramento da tragédia que se abateu sobre Muriel Verlcren, a mãe da vítima. Desta vez, os detetives têm algo que não tinham em 1988: o
DNA do assassino.
A Unidade de Casos Não Resolvidos do DPLA começou a se concentrar intensamente no caso Verloren depois que um dos detetives originais - agora comandante de área
do Vale - insistiu, há dois anos, quando a equipe foi formada para investigar casos arquivados sem terem sido solucionados, para que fosse reaberto.
"Assim que eu soube que íamos começar a examinar casos antigos, peguei o telefone para falar com eles", disse ontem o comandante Arturo Garcia em seu gabinete no
centro de comando do Bureau do Vale. "Esse caso nunca saiu de minha cabeça. Aquela linda menina subtraída de sua casa daquele jeito. Nenhum assassinato em nossa
sociedade é aceitável, mas esse doeu mais do que a maioria. Tem me perseguido todos esses anos."
Muriel Verloren, a mãe de Rebecca, continuou a viver na mesma casa da rua chamada Red Mesa de onde sua filha de 16 anos foi retirada. O quarto de Rebecca permanece
inalterado desde a noite em que ela foi carregada para fora de casa pela porta dos fundos para nunca mais voltar.
"Não quero mudar nada", disse a mãe chorosa ontem, ao mesmo tempo que alisava a colcha da cama de sua filha. "E minha maneira de permanecer perto dela. Nunca modificarei
este quarto e nunca sairei desta casa."
O detetive Harry Bosch, designado para retomar a investigação, contou a este jornal que há agora diversos indícios promissores no caso. A maior ajuda é, sem dúvida,
o grande progresso tecnológico a partir de 1988. Sangue que não pertencia a Rebecca Verloren foi encontrado no interior da arma do crime. Bosch explicou que o cão
da pistola "mordeu" a mão do atirador, tirando uma amostra de sangue e pele. Em 1988, o sangue só podia ser analisado, classificado e preservado. Agora, pode ser
ligado diretamente a um suspeito. O desafio é descobrir quem ele é.
"O caso foi investigado detalhadamente antes", disse Bosch. "Centenas de pessoas foram interrogadas, e centenas de pistas seguidas. Estamos refazendo tudo, mas nossas
verdadeiras esperanças repousam no DNA. Deverá resolver o caso, acho eu."
O detetive explicou que, embora a vítima não tenha sido atacada sexualmente, havia elementos de natureza psicossexual no crime. Dez anos antes, o Departamento de
Justiça do Estado dera início a um banco de dados contendo amostras do DNA de todas as pessoas condenadas por crimes sexuais. O DNA do caso Verloren está em processo
de comparação com as amostras arquivadas. Bosch acredita ser provável que o assassinato de Rebecca Verloren não tenha sido um crime isolado.
"Acho que é pouco provável que o assassino tenha cometido apenas aquele assassinato e depois levado uma existência obediente à lei. A natureza desse delito indica
que essa pessoa provavelmente cometeu outros crimes. Se alguma vez foi apanhado e o seu DNA está guardado em um banco de dados, será apenas uma questão de tempo
identificá-lo.
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Rebecca foi levada de sua casa na calada da noite de 5 de julho de 1988. Por três dias, a polícia e membros da comunidade a procuraram. Uma mulher que passeava a
cavalo pelas trilhas da montanha encontrou o corpo escondido por uma árvore caída. Embora a investigação tenha revelado muitas coisas, inclusive que Rebecca havia
feito um aborto seis semanas antes da sua morte, a polícia foi incapaz de determinar quem fora seu assassino e como ele entrara na casa.
Nos anos que se passaram, o crime ecoou através de muitas vidas, os pais da vítima se separaram e Muriel Verloren não sabe dizer onde o marido, Robert Verloren,
antigo restaurateur de Malibu, se encontra hoje em dia. Segundo ela, a desintegração do casamento dos Verloren foi diretamente resultante da tensão e da mágoa gerada
pelo assassinato da filha.
Um dos investigadores originais do caso, Ronald Green, aposentou-se cedo e mais tarde cometeu suicídio. Garcia disse acreditar que o caso Verloren tenha desempenhado
papel importante na decisão de seu antigo parceiro de acabar com a própria vida.
"Ronnie levava tudo muito a sério, e eu acho que isso sempre o incomodou", declarou Garcia.
Na escola onde Rebecca foi uma estudante popular, a Hillside Preparatory School, há um lembrete diário de sua vida e sua morte. Uma placa mandada fazer pelos colegas
de classe permanece afixada na parede do corredor principal daquela escola exclusiva.
"Não queremos jamais esquecer uma pessoa como Rebecca", disse o diretor Gordon Stoddard, que era professor quando Verloren estudava na Hillside.
Uma das amigas e colegas de Rebecca agora ensina na escola onde ambas estudaram. Bailey Koster Sable passou uma noite com Rebecca apenas 48 horas antes de ela ter
sido assassinada. A perda a persegue desde então, e ela afirma que ainda pensa na amiga o tempo todo.
"Penso porque a impressão que tenho é que isso poderia ter acontecido a qualquer pessoa", disse Sable ontem, depois da última aula. "O que me faz repetir sempre
a mesma pergunta - por que ela?"
Esta é a pergunta que a polícia de Los Angeles espera finalmente responder em breve.
263
Bosch examinou a foto da página interna com a continuação da matéria. Mostrava Bailey Sable e Gordon Stoddard de pé, um de cada lado da placa na parede da Hillside.
Tinha sido tirada também por Emerson Ward. A legenda dizia: "AMIGA E PROFESSOR; Bailey Sable freqüentou a escola com Rebecca Verloren, e Gordon Stoddard era o professor
de ciências. Agora diretor da escola, Stoddard diz: 'Becky era uma boa menina. Isso não devia ter acontecido."'
Bosch serviu café em uma caneca e leu a história de novo enquanto ia tomando o café. Em dado instante, empolgado, pegou o telefone que ficava em cima do balcão e
ligou para a casa de Kizmin Rider. Ela atendeu com a voz abafada.
- Kiz, a matéria é perfeita. Ela escreveu tudo o que queríamos.
- Harry? Que horas são, Harry?
- Quase sete. O jogo começou.
- Harry, temos que trabalhar a noite toda. O que você está fazendo acordado? Que negócio é esse de me telefonar às 7h?
Bosch percebeu seu erro.
- Desculpe. É que fiquei empolgado.
- Telefone de novo dentro de duas horas.
Ela desligou. Não havia nada de agradável no tom da sua voz.
Sem se intimidar, ele pegou uma folha de papel no bolso do paletó. Eram os números de telefones que Pratt passara durante a reunião. Bosch discou o número do celular
de Tim Mareia.
- E Bosch - disse ele. - Vocês estão em posição?
- Sim, estamos aqui.
- Alguma coisa acontecendo?
- Absolutamente nada, por ora. Imaginamos que o cara trabalhou até meia-noite ontem, e por isso vai dormir até tarde.
- O carro dele está aí? O Camaro?
- Sim, Harry, está aqui.
- OK. Você leu a história que saiu no jornal?
- Ainda não. Mas temos duas equipes vigiando esta casa, para Mackey e Burkhart. Estamos prestes a fazer uma pausa para tomar café e pegar o jornal.
- Ótimo. Vai funcionar.
- Tomara.
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Depois de desligar, Bosch percebeu que até que Mackey 0 Burkhart saíssem haveria vigilância dupla na casa. Era uma perda de tempo e dinheiro, mas ele não via como
contornar esse problema Impossível precisar quando um dos dois alvos da vigilância podia sair da casa. Sabiam muito pouco a respeito de Burkhart. Nem sequer se ele
tinha um emprego.
Bosch ligou a seguir para Renner na sala de som da Listen Tech. Era o detetive mais antigo da equipe e usara sua antigüidade para conseguir ser escalado, juntamente
com seu parceiro, para o turno do dia no serviço de escuta.
- Alguma coisa? - perguntou-lhe Bosch.
- Ainda não, mas você será o primeiro a saber.
Bosch agradeceu e desligou. Consultou o relógio. Ainda não eram 7h30 e ele sabia que ia ter que esperar um longo dia para seu turno começar. Encheu de novo a caneca
de café e voltou a se concentrar no jornal. A foto do quarto da garota morta o incomodava de um jeito que ele não era capaz de definir. Havia alguma coisa ali que
ele não era capaz de identificar com precisão. Fechou os olhos, contou até cinco e abriu-os de novo, na esperança de que o truque revelasse alguma fresta. Mas a
foto não revelou seu segredo. Quando o senso de frustração começou a dominá-lo, o telefone tocou.
Era Rider.
- Ótimo, agora não consigo dormir de novo. É melhor você estar aceso hoje de noite, Harry, porque eu não estarei.
- Sinto muito, Kiz. Eu vou estar.
- Leia a matéria do jornal para mim.
Ele leu, e, quando terminou, Rider parecia ter sido contamina' da por um pouco de sua empolgação. Ambos sabiam que aquela história serviria perfeitamente para provocar
uma reação de Mackey. A questão-chave era assegurar-se de que viesse e lesse aquilo, e Bosch e Rider achavam que tinham se preparado para cobrir esse ponto.
- Tudo bem, Harry, vou sair. Tenho umas coisinhas para fazer hoje.
- Está certo, Kiz, vejo você lá. Que tal nos encontrarmos às
17h45 na Tampa, uma quadra ao sul do posto de gasolina?
- Estarei lá, a menos que aconteça algo antes.
- Eu também.
Depois de desligar, Bosch entrou no quarto e trocou de roupa,
escolhendo uma que fosse confortável durante uma vigilância que
ia durar a noite toda e também útil para o teatro que ia armar para
Mackey. Pegou uma camiseta branca muito lavada e que tinha encolhido, de modo que as mangas estavam apertadas e eram curtas
nos bíceps. Antes de vestir uma camisa social por cima, checou sua
aparência no espelho. A metade da caveira estava exposta, e os
raios da SS apareciam um pouco acima da gola, no pescoço.
As tatuagens pareciam mais autênticas que na noite anterior. Ele tomara uma chuveirada na casa de Vicki Landreth, e ela lhe dissera que a água ia borrar ligeiramente
a tinta, como era o caso na maior parte das tatuagens feitas nas prisões. Advertira-o também de que a tinta ia começar a sair toda depois de dois ou três banhos,
e que, se necessário, ela poderia reforçar a aparência inicial com outras aplicações. Bosch explicara que não planejava precisar das tatuagens por mais que um dia.
Era tudo ou nada - elas funcionariam ou não quando ele entrasse em ação.
Vestiu uma camisa de mangas compridas e botão na ponta do colarinho por cima da camiseta. Verificou no espelho e achou que podia ver detalhes do crânio tatuado através
do tecido. A grossa suástica negra na coroa também aparecia.
Pronto para ir, mas com muitas horas a esperar até que chegasse o momento em que seria necessário, Bosch ficou andando nervosamente de um lado para outro na sala,
imaginando o que fazer. Decidiu ligar para a filha, esperando que sua vozinha doce e sua alegria recarregassem suas energias para o resto do dia.
Pegou o número do Intercontinental Hotel em Kowloon num adesivo que prendera na geladeira e digitou no telefone. Seriam quase 20h lá. Sua filha ainda estaria acordada.
Mas quando a ligação fez soar o telefone do quarto de Eleanor Wish não houve resposta. Ele ficou sem saber se teria errado as contas da diferença de horário. Talvez
fosse cedo demais. Ou tarde.
Depois de seis toques, um serviço de atendimento respondeu, dando a Bosch instruções em inglês e cantonês para deixar uma mensagem. Ele deixou um recado curto para
Eleanor e sua filha e desligou.
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Sem querer agora demorar-se a pensar na menina e por onde andaria, Bosch abriu o livro do crime e começou a estudar seu conteúdo mais uma vez, sempre procurando
detalhes do caso que ele poderia ter deixado de lado. A despeito de tudo o que descobrira sobre o caso e de como fora desviado do rumo certo pelas autoridades, ele
ainda acreditava no livro. Acreditava que as respostas dos mistérios eram sempre encontradas nos detalhes.
Terminou de ler do princípio ao fim e já ia pegar a cópia do arquivo da condicional de Mackey, quando pensou em algo e ligou para Muriel Verloren. Ela estava em
casa.
- Você viu a história no jornal? - perguntou ele.
- Vi, e me fez ficar triste.
- Por quê?
- Porque torna tudo muito real. E eu já tinha empurrado o que aconteceu para um cantinho da minha memória.
- Sinto muito, mas isso vai nos ajudar. Eu garanto. Estou satisfeito por você ter dado a entrevista. Muito obrigado.
- O que for para ajudar, estou disposta a fazer.
- Muito obrigado, Muriel. Escute só. Quero lhe dizer que encontrei seu marido. Falei com ele ontem de manhã.
Houve um longo intervalo antes de ela falar.
- E mesmo? Onde ele está?
- Lá na rua Cinco. Dirige um sopão para os sem-teto. Serve café-da-manhã para eles. É em um abrigo chamado Metro Shelter. Achei que você gostaria de saber.
Outro silêncio. Bosch achou que ela estivesse querendo fazer perguntas e esperou.
- Quer dizer que ele trabalha lá?
- Trabalha. Está sóbrio agora. Disse que não bebe há três anos. Acho que ele primeiro foi até lá atrás de uma refeição e depois como que abriu caminho. Agora dirige
a cozinha. E a comida é ótima. Comi lá ontem.
- Entendo.
- Olhe aqui, tenho um número que ele me deu. Não é uma linha direta. Ele não tem telefone na sua sala. E na cozinha, e ele está lá todas as manhãs. Disse que o movimento
diminui depois das 9h.
- Está certo.
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- Você quer o número, Muriel?
O silêncio que se seguiu a essa pergunta foi tão longo, que Bosch finalmente respondeu, ele próprio.
- vou lhe dizer uma coisa, Muriel. O número dele está comigo, e se algum dia você o quiser basta ligar para mim. Está bem assim?
- Ótimo, detetive Bosch. Muito obrigada.
- Sem problema. vou ter que sair agora. Estamos esperando novidades no caso hoje.
- Por favor, ligue para mim.
- Será o primeiro telefonema que vou dar.
Depois de desligar, Bosch percebeu que falar sobre o café-damanhã o deixara com fome. Já era quase meio-dia, e ele não tinha comido nada desde o bife do Musso na
noite anterior. Decidiu que era melhor descansar um pouco e depois comer antes de ir para assumir o turno da vigilância. Comeria no Dupar de Studio City. Era bem
no caminho de Northridge. Panquecas eram a comida perfeita para quem ia trabalhar numa missão de vigilância. Pediria uma pilha de panquecas amanteigadas, e elas
se acomodariam no seu estômago como argila e o manteriam acordado a noite toda se fosse necessário.
No quarto de dormir, ele deitou-se de costas e fechou os olhos. Tentou pensar no caso, mas sua mente vagueou para o dia, quando estava bêbado, em que mandara fazer
a tatuagem no braço em um estúdio imundo de Saigon. Enquanto ia caindo no sono, lembrou-se do homem com sua agulha, seu sorriso e o cheiro do seu corpo. Lembrou
que ele dissera: "Tem certeza? Lembre-se de que ficará marcado para sempre com isso."
Bosch respondera com um sorriso, antes de dizer:
- Já estou marcado.
Depois, no seu sonho, o rosto sorridente do homem transformou-se no de Vicki Landreth. O batom de Vicki borrava toda a sua boca. Ela empunhava uma agulha de tatuagem
zumbindo.
- Você está pronto, Michael? - disse ela.
- Eu não sou Michael.
- Está bem então. Não importa quem você seja. Todo mundo está fugindo da agulha. Mas ninguém escapa.
Capítulo 28
Kiz Rider já se encontrava no ponto de encontro quando Bosch chegou. Ele saltou do Mercedes e levou o livro do crime e os outros arquivos para o carro dela, um Taurus
branco descaracterizado.
- Tem espaço na mala? - perguntou ele antes de entrar.
- Está vazia. Por quê?
- Abra. Esqueci de deixar meu pneu de reserva em casa.
Ele voltou ao seu carro, um utilitário esportivo Mercedes, tirou o pneu sobressalente da parte de trás e o transferiu para a mala do carro de Rider. Usando uma chave
de parafusos do jogo de ferramentas, removeu as placas do Mercedes e também jogou na mala do Taurus. Em seguida, entrou, e eles subiram a avenida Tampa até o shopping
center que ficava na frente do posto de gasolina onde Mackey trabalhava. A equipe diuma, Mareia e Jackson, esperava dentro do carro, no estacionamento.
A vaga ao lado deles estava vazia, e Rider aproveitou-a. Todos baixaram os vidros para que pudessem conversar e transferir os dois aparelhos de radiocomunicação
sem ter que sair dos respectivos carros. Bosch pegou os rádios, mas sabia que ele e Rider
não os usariam.
- E então? - perguntou Bosch.
- Nada - respondeu Jackson. - Parece que estamos bombeando um poço seco aqui, Harry.
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- Absolutamente nada? - quis saber Rider.
- Absolutamente nenhuma indicação de que ele tenha visto o jornal ou que alguém que ele conheça tenha visto. Checamos com a sala de som vinte minutos atrás, e o
cara não recebeu um único telefonema, muito menos a respeito disso. Não recebeu sequer um pedido de reboque.
Bosch assentiu. Ainda não estava preocupado. Às vezes as coisas precisam de um empurrãozinho, e era isso que ele estava pronto para fazer.
- Espero que tenha um bom plano, Harry - disse Mareia. Ele estava do lado do motorista no carro deles, enquanto Bosch viera sentado ao lado de Rider.
- Você quer ficar por aqui? - replicou Bosch. - Não adianta esperar se não vai haver ação. Estou pronto para ir.
Jackson acenou afirmativamente.
- Não me importo - disse ele. - Você vai precisar de reforço?
- Duvido. Só vou plantar uma semente. Mas nunca se sabe. Mal não pode fazer.
- Está bem. De qualquer maneira, vamos dar uma olhada. Só como medida de garantia, qual será seu sinal de pedido de socorro?
Bosch não tinha pensado em como mandaria um sinal de que as coisas tinham saído erradas e que precisava de reforço.
- Acho que meto a mão na buzina - disse. - Ou você ouvirá os tiros.
Ele sorriu, e todo mundo concordou. Depois, Rider recuou para sair da vaga e se dirigir para a avenida Tampa, onde estava o carro dele.
- Tem certeza disso? - indagou ela quando parou ao lado do Mercedes.
- Certeza absoluta.
Ele havia notado no trajeto que ela trouxera uma pasta tipo Sanfona, que estava no descanso de braço entre os dois bancos.
- Que é isso?
-Já que você me acordou cedo, decidi trabalhar. Rastreei o paradeiro dos outros cinco membros dos Chatsworth Eights.
- Grande trabalho. Algum deles ainda mora por aqui?
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- Dois ainda estão na área. Mas parece que se livraram de suas chamadas imprudências da juventude. Ficha limpa. Emprego decentes.
- E os outros?
- O único que parece ainda acreditar na causa é um sujeito chamado Frank Simmons. Mudou-se do Oregon para cá quando fazia o segundo grau. Dois anos depois, ingressou
nos Eights. Agora vive em Fresno. Mas cumpriu dois anos em Obispo por vender metralhadoras.
- Eu talvez possa usar isso. Quando esteve aqui?
- Espere um segundo.
Ela abriu o arquivo e procurou até puxar uma pasta de papel manilha com o nome Frank Simmons. Abriu-a e mostrou a Bosch um retrato dele tirado na cadeia.
- Seis anos atrás - disse ela. - Ele foi libertado há seis anos. Bosch estudou o foto, memorizando os detalhes - Simmons
tinha cabelo escuro curto e olhos escuros. Sua pele era muito pálida, e seu rosto apresentava cicatrizes de acne, que ele tentava disfarçar deixando crescer um cavanhaque
que o deixava com cara de mais durão.
- Onde foi o caso, aqui?
- Na verdade, foi em Fresno. Tudo indica que ele se mudou para lá depois dos problemas havidos aqui.
- Para quem estava vendendo a metralhadora?
- Telefonei para a agência do FBI de Fresno e conversei com o agente. Ele não quis cooperar comigo enquanto não me checou. Ainda estou esperando que me ligue de
volta.
- Ótimo.
- Tenho a sensação de que o FBI ainda tem muito interesse no Sr. Simmons e que o agente não está a fim de compartilhar o que sabe.
Bosch assentiu.
- Onde Simmons morava na época do caso Verloren?
- Não sei dizer. Simmons era um dos mais jovens, de modo que provavelmente ainda morava com os pais. A pesquisa no AutoTrack não vai além de 1990. Nessa altura,
estava em Fresno.
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- Assim, a menos que seus pais tenham se mudado depois dessa história, ele provavelmente estava no Vale.
- É possível.
- OK, isso foi uma boa, Kiz. Pode ser que eu consiga usar alguma coisa dessa história. Siga-me até a parte de cima do Balboa Park com a Woodley. Acho que é um bom
local. Tem um campo de golfe lá com estacionamento. Haverá um monte de carros. Vai ser possível estacionar lá e com um bom disfarce.
-OK.
- Diga aos outros.
Ele pegou o crachá de couro com o distintivo, as algemas e a pistola de serviço, e pôs tudo no chão do carro.
- Harry, você tem alguma proteção?
- Tenho você, certo?
- Estou falando sério.
- Tenho, Kiz, estou com uma pistolinha no tornozelo. vou estar bem.
Ele saltou e entrou no seu próprio carro. Durante o percurso até o Balboa Park, foi ensaiando a peça mentalmente. Estava preparado e empolgado.
Dez minutos mais tarde, parou no acostamento da rua do parque, desligou o motor e saltou. Foi até o lado direito dianteiro do carro e deixou escapar o ar do pneu
pela válvula. Sabendo que alguns caminhões-reboque atualmente eram equipados com um compressor de ar, abriu o canivete e cortou a haste da válvula do pneu. O pneu
teria que ser reparado. Não reenchido.
Tudo pronto, abriu o celular e ligou para o posto de gasolina onde Mackey trabalhava. Disse que necessitava de um reboque e mandaram que ele esperasse. Um minuto
inteiro se passou até que outra voz fosse ouvida. Era Roland Mackey.
- Do que você precisa?
- Preciso de um reboque. Tenho um pneu vazio e parece que a válvula está ferrada.
- Que carro é?
- Um Mercedes preto utilitário esportivo.
- E o sobressalente?
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- Foi roubado por um crio... foi roubado quando parei na SouthCentral na semana passada.
- Uma pena. Não devia ter parado lá.
- Não tive escolha. Pode me rebocar ou não?
- OK, OK. Onde é que você está?
Bosch explicou. Era bastante próximo para que desta vez Mackey não tentasse convencê-lo a chamar outro serviço de reboque.
- Está bem, dez minutos - disse Mackey. - Fica me esperando
no carro.
- Não tenho mesmo para onde ir.
Bosch fechou o telefone e abriu a tampa de trás do Mercedes. Puxou as fraldas da camisa social e tirou-a. Deixou na mala. As novas tatuagens falsas ficaram parcialmente
exibidas. Ele se sentou na tampa traseira e esperou. Dois minutos mais tarde, o celular vibrou. Era Rider.
- Harry, eles me passaram o áudio do seu telefonema lá da ListenTech. Você foi bastante convincente.
- Ótimo.
- Acabei de falar com os caras. Mackey está se deslocando. Eles o acompanham.
- OK. Estou pronto.
- Estou meio arrependida de não termos providenciado um microfone preso no seu corpo. Nunca se sabe o que um camarada desses vai dizer.
- Arriscado demais para quando se está só de camiseta. Além disso, as chances de o sujeito dizer a um estranho que foi ele quem matou a garota que está na história
do jornal são provavelmente menores que as de ganhar a loteria sem jogar.
-Acho que sim.
- Tenho que ir, Kiz. v
- Boa sorte, Harry. Tenha cuidado.
- Sempre.
Ele fechou o telefone.
Capítulo 29
O caminhão-reboque reduziu a velocidade ao se aproximar do Mercedes. Bosch levantou os olhos da parte inferior da porta de trás, onde estava sentado debaixo da sombra
da parte de cima, lendo o Daily News. Acenou com o jornal para o motorista do caminhão e pôs-se de pé. O reboque passou ao lado e depois ocupou o acostamento na
frente do Mercedes. Em seguida, recuou até ficar a um metro e meio de distância. Seu motorista saltou. Era Roland Mackey.
Mackey estava usando luvas de couro sujas de graxa nas palmas. Em vez de acusar a presença de Bosch, caminhou até a frente do Mercedes e deu uma olhada no pneu arriado.
Quando Bosch se aproximou, ainda segurando o jornal, Mackey agachou-se e examinou a válvula do pneu. Dobrou-a para a frente e para trás, expondo o corte.
- Mais parece que foi cortada - disse Mackey.
- Quem sabe um pedaço de vidro na rua ou coisa assim - sugeriu Bosch.
- E sem sobressalente. Não é uma merda?
Ele levantou os olhos, cerrando-os por causa da luz do sol que começava a se pôr atrás de Bosch.
- Não precisa me dizer - replicou Bosch.
- Bem, posso rebocar e depois mandar o outro rapaz pôr uma válvula nova no pneu. Leva 15 minutos, uma vez que chegarmos lá.
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- Ótimo. Pode providenciar.
- Pagamento pelo Automóvel Clube ou pelo seguro?
- Não, dinheiro à vista.
Mackey informou que seriam 85 dólares pelo reboque, mais 10 dólares referentes a cada milha que o carro fosse rebocado. A troca da válvula implicaria um custo
de 25 dólares, mais o preço da válvula.
- Ótimo, vá em frente - repetiu Bosch.
Mackey levantou-se e olhou para Bosch. Deu a impressão de olhar diretamente para o seu pescoço e depois desviar os olhos. Nada disse a respeito das tatuagens.
- Você devia fechar a porta de trás - disse ele. - A menos que queira jogar tudo fora no caminho.
Ele sorriu. Uma amostra do humor do pessoal que dirigia caminhões-reboque.
- vou pegar minha camisa - disse Bosch. - Tudo bem se eu for com você?
- A menos que prefira chamar um táxi e viajar em grande estilo.
- Prefiro andar do lado de uma pessoa que fale inglês. Mackey deu uma risada enquanto Bosch ia até a traseira do seu
carro. Depois, Bosch ficou de lado enquanto Macjcey realizava os procedimentos para prender o carro ao guindaste'. Não levou mais que dez minutos para que estivesse
ao lado do caminhão, baixando uma alavanca que erguia a frente do Mercedes. Depois que considerou ter atingido uma boa altura, Mackey checou todas as correntes e
equipamentos e disse que estava pronto para ir. Quando Bosch entrou na cabine do caminhão, trazia a camisa em cima do braço e o jornal na mão, dobrado de tal modo
que dava para ver a foto de Rebecca Verloren.
- Este troço tem ar-condicionado? - perguntou Bosch quando fechou a porta. - Eu estava suando em bicas lá fora.
- Nós dois. Você devia ter ficado dentro do seu carro, com o ar ligado, enquanto esperava. Esta merda aqui não tem ar no verão nem calor no inverno. Que nem minha
ex.
Mais humor de caminhoneiro, supôs Bosch. Mackey passou'lhe uma prancheta com uma folha de informações e uma caneta presa.
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- Preencha isso aí. Depois a gente sai.
Bosch começou a preencher com o nome falso e endereço que usara antes. Mackey pegou o microfone que estava preso no painel e falou.
-Oi, Kenny.
Poucos momentos depois veio a resposta.
- Prossiga.
- Diga ao Spider para não ir embora. Estou levando um pneu que vai precisar de válvula.
- Ele não vai gostar. Já se lavou.
- Diga a ele. Desligo.
Mackey recolocou o microfone no descanso.
- Acha que ele vai ficar? - perguntou Bosch.
- E melhor torcer. Se ele não ficar, você vai ter que esperar até amanhã.
- Não posso. Tenho que pegar a estrada de novo.
- E mesmo? Para onde vai?
- Barstow.
Mackey deu a partida e girou o corpo para a esquerda para ver se vinha alguém ou se podia sair do acostamento e pegar a estrada. Não podia ver Bosch daquela posição.
O detetive rapidamente levantou a manga esquerda da camiseta para deixar visível mais da metade da tatuagem da caveira.
O caminhão finalmente entrou na rua, e Mackey acelerou. Pela sua janela, Bosch viu os carros de Rider e outra equipe de vigilância no estacionamento do campo de
golfe. Pôs o cotovelo em cima do peitoril da janela aberta e a mão na parte superior. Fora do ponto de visão de Mackey, pôde dar o sinal de positivo para o pessoal
da equipe de vigilância.
- O que tem lá em Barstow? - perguntou Mackey.
- Minha casa, só a minha casa.
- O que você andou fazendo por aqui?
- Uma coisa e outra.
- E o que me diz de South-Central? O que andou fazendo com aquela gente lá na semana passada?
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Bosch entendeu a referência a "aquela gente" como dizendo rés peito à população predominante de negros na zona ao sul de Lo Angeles. Virou-se e encarou Mackey deliberadamente,
como se estivesse dizendo que ele fazia perguntas demais.
- Uma coisa e outra - respondeu, sem mudar o tom de voz.
- Tudo bem - respondeu Mackey, tirando as mãos do volante num gesto de desistência.
- Mas posso lhe dizer uma coisa, não importa o que andei fazendo, é simplesmente impossível manter a porra desta cidade direito cara.
Mackey sorriu.
- Sei o que quer dizer - disse.
Bosch achou que estavam perto de compartilhar mais que simples papo furado. Acreditava que Mackey tivesse reparado nas tatuagens e estava tentando arrancar dele
um sinal que indicasse o tipo de pessoa que era. O momento parecia adequado para outro sutil movimento na direção do artigo do jornal.
Bosch largou o jornal no banco entre ele e Mackey, assegurando-se de que a foto de Rebecca Verloren ainda estivesse para cima. Começou então a vestir a camisa social,
inclinando-se para a frente e estendendo os braços. Não olhou para Mackey, mas sabia que a caveira no seu braço esquerdo ficaria bem à mostra. Enfiou primeiro o
braço direito, ajeitou a camisa nas costas e então enfiou o braço esquerdo na manga. Por fim, recostou-se e começou a abotoar a camisa.
- Muito terceiro mundo para mim isto aqui - disse Bosch.
- Concordo com você.
- Sério? E você é daqui?
- Minha vida inteira.
- Pois bem, meu chapa, você devia pegar sua família - se é que tem família - e a bandeira e ir embora. Simplesmente ir embora da porra deste lugar.
Mackey riu e balançou a cabeça.
- Tenho um amigo que diz a mesma coisa. O tempo todo.
- É, bem, não chega a ser uma idéia original. O rádio interrompeu o ritmo da conversa.
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-Ei, Ro?
Mackey pegou o microfone.
- Oi, Ken.
- vou dar um pulo no KFC enquanto o Spider espera você. Quer alguma coisa?
- Não, eu vou depois. Desligo.
Ele pendurou o microfone no descanso, e os dois seguiram em silêncio por uns momentos, enquanto Bosch imaginava um modo de fazer com que a conversa prosseguisse
na direção certa. Mackey descera o bulevar Burbank e virara à direita. Subiam agora a Tampa. Depois iam virar à direita, e aí seria uma linha reta até o posto. Em
menos de dez minutos a viagem estaria terminada.
Mas coube a Mackey tocar a conversa.
- E então, onde foi que cumpriu pena? - perguntou ele, de repente.
Bosch esperou um pouco para não deixar transparecer seu entusiasmo.
- Do que você está falando?
-Vi suas tatuagens, cara. Não tem importância. Mas ou são feitas em casa ou na prisão. Isso é óbvio. Bosch assentiu.
- Obispo. Passei cinco anos lá.
- É mesmo? Por quê?
Bosch virou-se e encarou-o de novo.
- Uma coisa e outra. - Mackey balançou a cabeça, evidentemente sem se incomodar
com a relutância do seu passageiro em se abrir.
- Não tem problema, cara. Um amigo meu esteve lá. Final dos anos 1990. Disse que não era tão ruim. Um lugar mais pra colarinhobranco. Sem a crioulada que tem nos
outros lugares, pelo menos.
Bosch ficou em silêncio por um longo tempo. Sabia que Mackey estava usando aquele papo racial como uma espécie de senha. Se respondesse de modo adequado, seria aceito.
Como um código.
- É - disse Bosch, concordando com a cabeça. - Isso tornava as condições lá um pouco mais suportáveis. Mas não devo ter conhecido o seu amigo. Saí de lá no início
de 1998.
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- Frank Simmons. Era esse o nome dele. Esteve lá só por uns meses ou algo assim. Era de Fresno.
- Frank Simmons, de Fresno - repetiu Bosch, como se estivesse tentando lembrar do nome. - Acho que não o conheci.
- Ele é boa gente. Bosch concordou.
- Um cara tinha chegado poucas semanas antes de eu sair de lá - disse. - Soube que era de Fresno. Mas, cara, faltava pouco tempo para mim, e eu não ia fazer novas
amizades, entende o que quero dizer?
- E, tudo bem. Eu só estava pensando, sabe.
- O seu chapa tinha cabelo escuro e o rosto com uma porção de cicatrizes de espinhas?
Mackey começou a sorrir e balançar a cabeça.
- E ele! É Frank. A gente costumava chamar o Frank de Cara de Cratera do Lago Cratera.
- E eu tenho certeza de que ele ficava feliz com isso.
O caminhão-reboque virou na Tampa e dirigiu-se para o norte. Bosch sabia que poderia ter mais tempo com Mackey no posto enquanto o pneu estivesse sendo consertado,
mas não dava para contar com isso. Ninguém podia garantir que não haveria outro chamado ou uma infinidade de outras distrações. Tinha que terminar a encenação e
plantar a semente agora, enquanto estava sozinho com seu alvo. Pegou o jornal e segurou-o no colo, fingindo que lia as manchetes. Tinha que imaginar um modo de conduzir
naturalmente a conversa para o artigo sobre o caso Verloren.
Mackey tirou a mão direita do volante e descalçou a luva mordendo a ponta de um dos dedos. Lembrou a Bosch o jeito de uma criança. Depois ele estendeu a mão para
Bosch.
- A propósito, meu nome é Ro. Bosch apertou a mão dele.
- Ro?
- Ro de Roland Mackey. Prazer em conhecê-lo.
- George Reichert - disse Bosch, dando o nome que ele tinha inventado com todo cuidado.
- Reichert? Alemão, certo?
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- Quer dizer "coração do Reich".
- Legal. É, acho que isso explica o Mercedes. Você sabe, lido com automóveis o dia inteiro. Pode-se dizer muita coisa sobre as pessoas a partir dos carros que elas
têm e do modo como cuidam deles.
- Pode crer.
Bosch viu agora o caminho direto para o seu objetivo. Mais uma vez, Mackey tinha ajudado involuntariamente.
- Engenharia alemã - disse Bosch. - Os melhores fabricantes de automóveis do mundo. Qual é o seu carro quando você não está dirigindo este caminhão?
- Estou restaurando um Camaro 72. Vai ficar muito maneiro quando eu terminar.
- Foi um bom ano esse - comentou Bosch.
- É, mas eu não compraria nada fabricado em Detroit atualmente. Você sabe quem fabrica os nossos carros, não sabe? A porra dessa gente de lama. Eu não teria um,
e muito menos deixaria minha família entrar nele.
- Na Alemanha - respondeu Bosch -, você vai numa fábrica e todo mundo tem olhos azuis, entende o que quero dizer? Vi fotos.
Mackey concordou, pensativamente. Bosch achou que estava na hora de dar um lance direto. Desdobrou o jornal no colo. Segurou-o de modo a que a primeira página pudesse
ser vista, com a história completa do caso Verloren.
- Por falar em gente de lama - disse ele -, você leu esta história?
- Não, o que diz aí?
- E sobre uma mãe que ficou sentada numa cama chorando a morte da filha morta há 17 anos. A filha era mestiça. Gente de lama. E a polícia ainda está trabalhando
no caso. O que quero dizer, cara, é: quem se importa?
Mackey deu uma olhada no jornal e viu a foto de Rebecca Verloren. Mas nada disse, e seu rosto não evidenciou qualquer sinal de reconhecimento. Bosch abaixou o jornal,
para não ficar evidente demais. Dobrou-o de novo e largou-o em cima do banco entre eles. Resolveu insistir mais um pouco.
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- Veja bem, você mistura as raças daquele jeito e acha que vai conseguir o quê? - perguntou Bosch.
- Exatamente - respondeu Mackey.
Não foi uma resposta vigorosa. Foi quase hesitante, como se Mackey estivesse pensando em alguma outra coisa. Bosch tomou isso como um bom sinal. Talvez ele tivesse
sentido um frio descer pela espinha. Quem sabe, pela primeira vez em 17 anos.
Bosch decidiu que aquela fora sua melhor tentativa. Se insistisse mais, poderia cruzar a linha da obviedade e entregar-se. Decidiu seguir o resto da viagem em silêncio,
e Mackey aparentemente tomou a mesma decisão.
Umas poucas quadras à frente, contudo, Mackey desviou o caminhão para ultrapassar um Ford Pinto que se deslocava vagarosamente.
- Você acredita que ainda tem um carro desses andando por aí?
- exclamou ele, impaciente.
Ao passarem pelo carro, Bosch viu um homem de ascendência asiática todo encolhido atrás do volante. Devia ser cambojano.
- Que tipo - disse Mackey quando viu o motorista. - Olha só. Ele deu um golpe de direção a fim de voltar para a pista em que
estava antes, espremendo o Ford Pinto entre o Mercedes rebocado e uma fila de carros estacionados ao longo do meio-fio. O motorista não teve outra saída senão meter
o pé no freio. A risada de Mackey impediu que fosse ouvida a fraca buzinada do Ford Pinto.
- Vá se foder! - berrou Mackey. - Volte para a porra do seu barco!
Ele olhou para Bosch em busca de aprovação, e Bosch sorriu, a coisa mais difícil que teve que fazer durante longo espaço de
tempo.
- Ei, cara, aquele carro que você quase jogou em cima daquele cara é meu - disse, num falso protesto.
- Ei, você esteve no Vietnã? - perguntou Mackey.
- Por quê?
- Porque sim, cara. Você esteve lá, não esteve?
- E daí?
- E daí, cara, eu tive um amigo que esteve lá. Ele diz que liquidavam merdinhas como aquele sujeito lá atrás por nada. Uma dU'
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zia deles no café-da-manhã e outra dúzia no almoço. Eu gostaria de ter estado lá, é só o que digo.
Bosch desviou os olhos dele e virou-se para a janela ao seu lado. A declaração feita por Mackey deixara uma abertura para que lhe fizesse perguntas sobre armas e
matar gente. Mas não pôde se forçar a dizer qualquer coisa. Naquele instante, só queria afastar-se de Mackey.
Mackey continuou tagarelando.
- Eu me apresentei como voluntário para a Guerra do Golfo, a primeira, mas eles não quiseram me aceitar.
Bosch recuperou-se um pouco e voltou à encenação.
- Por que não? - indagou.
-Não sei. Precisavam da minha vaga para um crioulo, eu acho.
- Ou talvez você tivesse um prontuário criminal.
Bosch tinha se voltado para ele ao dizer isso, mas imediatamente achou que tinha usado um tom acusatório demais. Mackey virou-se e sustentou o olhar dele por tanto
tempo quanto foi possível, até retornar a atenção para a rua.
- Tenho prontuário, sim, cara, grande coisa. Ainda assim, eles poderiam ter me usado lá.
A conversa morreu ali, e em poucos quarteirões mais estavam entrando no posto de gasolina.
- Acho que não vai ser preciso pôr o carro na oficina - disse Mackey. - Spider pode tirar a roda enquanto o carro está no reboque. Vamos andar depressa.
- Como queira - disse Bosch. - Tem certeza de que ele ainda não saiu?
- Não, olha ele ali.
Quando passaram pelas duas baias da oficina, um homem emergiu das sombras e dirigiu-se para a parte de trás do caminhão. Segurava uma máquina pneumática numa das
mãos, e o cabo do ar comprimido na outra. Bosch viu a teia de aranha tatuada no seu Pescoço. Azul de prisão. Alguma coisa no rosto dele chamou imediatamente a atenção
de Bosch como familiar. Em um rápido instante de pavor, imaginou que conhecia o homem, por ter lidado com ele
nos seus tempos de tira. Ou o prendera ou interrogara, talvez mesmo
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o tivesse mandado para a prisão onde ele tinha feito a tatuagem da teia de aranha.
Subitamente Bosch soube que tinha que permanecer a distância do homem chamado Spider. Pegou o celular no cinto.
- Tudo bem se eu ficar aqui e der um telefonema? - perguntou a Mackey, que estava saltando do caminhão.
- Claro, vá em frente. Não demora muito.
Mackey fechou a porta, deixando Bosch sozinho na cabine do caminhão. Quando ouviu o barulho da máquina tirando os parafusos da roda do seu carro, fechou o vidro
e ligou para o celular de Rider.
- Como vai indo? - perguntou ela, como um cumprimento.
- Ia bem até a hora em que chegamos no posto - respondeu ele, falando baixo. - Acho que conheço o mecânico. Se ele me reconhecer, será um problema.
- Você está querendo dizer que ele talvez saiba que você é tira?
- Exatamente.
- Merda.
- Exatamente.
- O que você quer que façamos? Tim e Rick ainda estão zanzando por aí.
- Ligue para eles e conte o que está acontecendo. Diga para não fazerem nada até eu conseguir escapar. vou ficar dentro do caminhão o tempo que conseguir. Se eu
segurar o telefone como se estivesse falando, poderei impedi-lo de ver meu rosto.
-OK.
- Só estou torcendo para que Mackey não queira me apresentar a ele. Acho que impressionei Mackey, e ele pode querer me exibir.
- OK, Harry, agüente firme, e nós entramos em ação se for preciso...
- Não estou preocupado comigo. Estou preocupado com a encenação que...
- Ei, ele vem aí.
Justo na hora em que ela falou, bateram com força na porta. Bosch abaixou o telefone e virou-se, para ver Mackey
encarando-o. Desceu o vidro.
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- Está pronto - disse ele.
-Já?
- É isso aí. Você pode ir comigo ao escritório e pagar enquanto ele repõe a roda no carro. Vai estar em casa em duas horas, se tanto.
- Ótimo.
Segurando o celular perto da orelha direita, Bosch saltou do caminhão e dirigiu-se para o escritório, não permitindo a Spider em momento algum uma visão nítida do
seu rosto. Falou com Rider enquanto andava.
- Parece que daqui a pouco vou sair daqui - disse.
- Ótimo - disse ela. - O homem em questão está colocando a sua roda. Cuidado quando sair.
- vou me cuidar.
Uma vez no pequeno escritório, Bosch fechou o celular. Mackey sentou-se a uma mesa suja de graxa e atulhada de coisas. Levou alguns segundos para usar uma calculadora
e chegar ao total da despesa do reboque e reparo da válvula.
- Dá 125 dólares redondos - disse ele. - Sete quilômetros e meio de reboque e três pratas pela válvula.
Bosch sentou-se diante da mesa e puxou o maço de dinheiro.
- Pode me dar um recibo?
Enquanto contava seis notas de vinte e uma de cinco, ele ouviu o barulho da máquina apertando as porcas. A roda estava sendo recolocada. Estendeu a mão com o dinheiro,
mas Mackey estava ocupado olhando para um recado escrito em um papel adesivo que tinha encontrado preso em cima da mesa. Ele o segurou num ângulo que permitia que
Bosch o lesse.
Ro - Para sua informação. Visa telefonou para confirmar o emprego na sua solicitação.
Bosch leu o recado em segundos, mas Mackey ficou olhando por longo tempo até finalmente largar o papel em cima da mesa e pegar o dinheiro. Guardou-o depois na gaveta,
e então começou a procurar um bloco de recibos nessa mesma gaveta. Estava demorando muito.
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- É o Kenny quem geralmente faz os recibos - disse ele. - E ele foi pegar umas garotas.
Bosch já ia dizer para que ele não se incomodasse com o recibo quando ouviu o barulho de passos às suas costas e soube que alguém entrara no escritório. Não se virou,
para o caso de ser Spider.
Bosch sabia que aquele era o momento difícil. Ou Mackey o apresentaria ao outro ou
não.
- Está bem, Spider - disse Mackey.
- Então vou me mandar.
- Tudo bem, cara, obrigado por ter ficado. Pego você amanhã. Spider foi embora sem que Bosch tivesse se virado uma única
vez. Mackey encontrou o bloco que estava procurando na gaveta do centro e escrevinhou qualquer coisa numa folha que passou a Bosch. Era um recibo em branco em que
ele escrevera 125 dólares com uma caligrafia infantil na parte de baixo.
- Pode preencher o que falta - disse Mackey quando se levantou. - vou arriar seu carro, e você vai poder ir embora.
Bosch o seguiu, lembrando que deixara o jornal em cima do banco do caminhão. Ficou sem saber se deveria deixá-lo lá ou se inventaria uma desculpa para voltar ao
caminhão, pegá-lo e deixálo no escritório, onde sabia que Mackey assistia a televisão quando não acontecia nada no seu turno.
Decidiu deixar onde estava. Plantara a semente o melhor que pudera. Já era hora de recuar e ver o que nasceria dela.
O Mercedes já estava no chão. Bosch encaminhou-se para a porta do motorista. Mackey guardava o equipamento na parte de trás do caminhão.
- Obrigado, Roland.
- Basta Ro, cara - respondeu Mackey. - E você se cuida. Faça um favor a si próprio e fique fora da South-Central.
- Não se preocupe comigo - disse Bosch. - vou ficar longe de lá. Mackey sorriu e piscou um olho quando descalçou a luva de
novo e ofereceu a mão a Bosch. Este a apertou e retribuiu o sorriso. Depois baixou os olhos e viu uma pequena cicatriz branca na parte carnuda entre o polegar direito
de Mackey e o indicador. A tatuagem de uma Colt 45.
- Vejo você mais tarde - disse.
Capítulo 30
Bosch foi para o ponto onde tinha se encontrado com Rider no início do turno e onde ela o esperava agora. Estacionou e foi até o Taurus.
- Essa foi por pouco - disse Rider. - Você provavelmente conhecia o sujeito. O nome é Jerry Townsend. Caiu a ficha? Checamos a placa da picape dele quando ele saiu
do posto e conseguimos a identidade.
-Jerry Townsend? Não, não me lembro do nome. Reconheci o rosto.
- Foi condenado por homicídio em 1996. Passou seis anos na cadeia. Parece que foi um caso de agressão doméstica, mas só conseguimos tirar isso do computador. Aposto
que, se tivéssemos conseguido o prontuário dele, seu nome ia aparecer. Explicaria o fato de tê-lo reconhecido.
- Acha que ele estaria ligado ao caso que estamos investigando?
- Duvido. O mais provável é que o dono do posto de gasolina, quem quer que seja, não se incomoda de contratar ex-presidiários. Salários menores, sabe como é. E se
ele está ajudando a quem precisa, quem vai reclamar?
- Bem, vamos voltar e ver o que acontece.
- Como você se saiu com Mackey?
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- Muito bem. Fiz tudo, menos ler a históriapara ele. Não demonstrou nada, nenhum sinal de reconhecimento, nada, mas a semente foi lançada.
- Ele viu as tatuagens?
- Viu, funcionaram bem. Começou a fazer perguntas logo depois de vê-las. Seu arquivo do Simmons foi ótimo também. O nome apareceu na conversa. Ainda que isso possa
não ter qualquer valor, Mackey tinha uma cicatriz na mão ao lado do polegar direito. Da mordida da Colt.
- Harry, você cobriu tudo. Acho que só nos resta agora sentar para ver o que acontece.
- Os outros foram embora?
- Assim que voltarmos ao posto, irão.
Quando atingiram a interseção de Tampa com Roscoe, viram o caminhão-reboque de Mackey esperando para seguir pela Roscoe na direção oeste.
- Ele está a caminho - disse Bosch. - Por que ninguém nos disse? Justo quando falou, o celular de Rider tocou. Ela o passou para
Bosch a fim de poder se concentrar na direção. Passou para a pista de fora para poder seguir Mackey na Roscoe. Bosch abriu o celular dela. Era Tim Mareia. Ele explicou
que Mackey saíra sem que tivessem telefonado para o posto pedindo um reboque. Jackson checara com a sala de som. Não tinha havido telefonemas nas linhas que eles
estavam monitorando.
- Está bem - disse Bosch. - Ele falou qualquer coisa sobre pegar comida quando eu estava no caminhão. Talvez seja isso, ele indo atrás do seu jantar.
- Talvez.
- OK, Tim, estamos com ele agora. Obrigado por ter ficado aíAgradeça ao Rick também.
- Boa sorte, Harry.
Rider e Bosch seguiram o caminhão-reboque até um centro comercial e viram Mackey entrar em uma loja de comida rápida chamada Subway. Não levou o jornal que Bosch
deixara no caminhão, e depois de pegar a comida sentou-se a uma das mesas internas
e começou a comer.
287
- Você vai sentir fome, Harry? - perguntou Rider. - Agora podia ser uma boa oportunidade.
- Comi no Dupar no caminho, de modo que vou estar bem. A menos que a gente veja um Cupid's por aí. Eu comeria um cachorro-quente de lá.
- De jeito nenhum. Essa é uma coisa de que me livrei depois que você se aposentou. Não como mais lixo.
- Como assim? Nós comíamos bem. Não íamos comer no Musso toda quinta-feira?
- Se você acha que empadão de frango é uma refeição saudável, eu concordo, nós comíamos bem. Só que estou falando sobre missões de vigilância. Soube do que houve
com Feijão e Arroz em Hollywood?
Feijão e Arroz era o apelido de uma dupla de detetives da Divisão Hollywood cujos verdadeiros nomes eram Choi e Ortega. Estavam lá quando Bosch trabalhava na divisão.
- Não, o que aconteceu?
- Estavam em uma operação de vigilância de uns caras que andavam matando prostitutas de rua, e Ortega resolve comer um cachorro-quente sentado no carro. De repente
começa a se engasgar e não consegue se livrar. Vai ficando roxo e apontando para o pescoço. Choi, abestalhado, perguntando: porra, o que é que há? Até que finalmente
Feijão pula fora do carro, e Choi descobre o que estava acontecendo. Contorna o parceiro para lhe aplicar o procedimento Heimlich, abraça-o pelas costas e aperta
com toda a força. O cachorro-quente voa em cima da capota do carro. E a missão de vigilância é arruinada.
Bosch riu enquanto ia imaginando a cena. Sabia que aquela história nunca seria esquecida dentro da divisão. Não enquanto houvesse gente como Edgar para contá-la
e recontá-la a quem quer que fosse transferido para lá.
- Bem, veja, eles não têm uma loja da Cupid's lá em Hollywood
- disse ele. - Se ele estivesse comendo um bom e macio cachorro da Cupid's, isso não teria ocorrido.
- Não quero saber, Harry. Nada de cachorros-quentes em missões de vigilância. Nada de lixo. Essa é minha nova regra. Não quero que fiquem falando de mim durante
o resto dos meus dias...
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O celular de Bosch tocou. Era Robinson, que trabalhava no turno da noite com Nord na sala de som.
- Eles acabam de receber um chamado para reboque, e chamaram Mackey. Ele não deve estar no posto.
Bosch explicou a situação e pediu desculpas por não ter mantido a sala de som informada.
- Onde será o reboque? - perguntou ele.
- E um acidente no Reseda com a Parthenia. Acho que houve morte. O carro vai ter que ser rebocado para uma concessionária.
- OK, estamos com ele.
Poucos minutos depois, Mackey saiu do restaurante carregando um copo de refrigerante grande com um canudo espetado. Eles o seguiram até o bulevar Reseda com a rua
Parthenia, onde um Toyota cuja frente tinha entrado até a metade da carroceria fora empurrado para fora da pista de rolamento principal. Outro caminhãO'reboque estava
acabando de levantar o outro carro, um enorme utilitário esportivo cuja traseira fora realinhada pelo acidente. Mackey falou rapidamente com o outro motorista -
cortesia profissional - e foi trabalhar com o Toyota. Um carro-patrulha do DPLA estava parado no estacionamento do centro comercial da esquina, e o policial dentro
dele escrevia um relatório. Bosch não viu motoristas, o que talvez fosse sinal de que todos deviam ter sido transportados para um prontosocorro por causa da gravidade
dos ferimentos.
Mackey rebocou o Toyota para uma concessionária bem longe, no bulevar Van Nuys. Enquanto ele estava lá, deixando o carro acidentado na oficina, Bosch recebeu outro
telefonema. Robinson disse que Mackey tinha sido chamado de novo. Desta vez para o Northridge Fashion Center, onde uma funcionária da livraria Borders precisava
de uma chupeta para fazer a bateria pegar.
- Esse cara não vai ter tempo para ler o jornal se continuar ocupado assim - comentou Rider depois que Bosch a pôs a par dos acontecimentos.
- Não sei não - disse Bosch. - Estou na dúvida se ele saberá ler.
- Você se refere à dislexia?
- Sim, mas não só isso. Não o vi lendo ou escrevendo nada. Ele me disse que eu preenchesse a nota do serviço de reboque. Depois,
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ou não queria ou não sabia preencher o recibo. Além disso, teve o bilhete para ele que estava em cima da mesa.
- Que bilhete?
- Ele o pegou e ficou olhando por longo tempo, mas não fiquei realmente seguro de que soubesse o que estava escrito ali.
- Você leu? O que dizia?
- Era um bilhete do pessoal do turno do dia. Telefonaram do Visa para que ele confirmasse o emprego numa proposta, acho eu.
Rider franziu a testa.
- O que foi? - indagou Bosch.
- Parece esquisito ele querer um cartão de crédito. Isso tornaria fácil encontrá-lo, o que eu penso ser algo que estava tentando evitar.
- Talvez comece a se sentir em segurança.
Mackey foi da concessionária Toyota direto para o Northridge Fashion Center, onde fez o carro da mulher pegar com uma chupetá na bateria. Depois pegou o caminhão
e voltou para a base. Eram
22h quando entrou no posto. As esperanças declinantes de Bosch ganharam novo alento quando ele olhou pelo binóculo do outro lado da rua e viu Mackey se dirigindo
para o escritório.
- Pode ser que ainda estejamos no jogo - disse para Rider. - Ele está levando o jornal.
Foi difícil ficar de olho em Mackey dentro do posto. O escritório da frente tinha paredes de vidro dos dois lados e não era problema. Mas as portas da garagem
estavam fechadas, e muitas vezes parecia que Mackey ia desaparecer lá dentro, onde Bosch não podia vê-lo.
- Quer que eu fique com o binóculo por algum tempo? - sugeriu Rider.
Bosch abaixou o binóculo e encarou-a. Mal podia distinguir suas feições na escuridão do carro.
- Não, estou bem. De qualquer modo, você está dirigindo o tempo todo. Por que não descansa? Acordei-a cedo hoje de manhã.
Ele ajeitou de novo o binóculo nos olhos.
- Eu estou bem - respondeu Rider. - A qualquer momento que precise descansar um pouco...
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- Além do mais - acrescentou Bosch - eu me sinto meio responsável por esse sujeito.
- Como assim?
- Você sabe. Essa coisa toda, quer dizer, nós podíamos simplesmente ter levado Mackey para a sala de interrogatório, na tentativa de dobrá-lo. Em vez disso, encenamos
tudo isso. É meu plano. Sou o responsável.
- Ainda podemos espremer Mackey. Se isto não funcionar, provavelmente será o que teremos que fazer.
O celular de Bosch tocou.
- Talvez seja o que estamos esperando - disse ele, ao atender. Era Nord.
- Pensei que você havia dito que o cara tinha um diploma, Harry.
- Ele tem, sim. O que está acontecendo?
- Mackey acaba de telefonar pedindo a uma pessoa que leia o jornal para ele.
Bosch endireitou-se no banco. Estavam no jogo. Não tinha importância a maneira pela qual a história seria comunicada a Mackey; o importante é que ele tinha querido
saber o que estava escrito ali.
- Para quem ele ligou?
- Uma mulher chamada Michelle Murphy. Deu a impressão de ser uma antiga namorada. Perguntou se ela ainda recebia o jornal diariamente, como se não tivesse mais certeza.
Ela disse que sim, e ele lhe pediu que lesse a história.
- Eles se falaram depois que acabou a leitura?
- Sim. Ela perguntou se ele conhecia a garota de que tratava a história. Mackey disse que não, mas depois acrescentou: "Eu conheci a arma." Assim mesmo, sem mais
aquela. Aí ela disse que não queria saber mais nada e encerrou o papo. Os dois desligaram.
Bosch pensou no que acabara de ouvir. A encenação funcionara. Ele chutara uma pedra que não tinha sido movida durante 17 anos. Estava empolgado, e podia sentir a
adrenalina
correndo no sangue.
- Dá para mandar a gravação para nós aqui? - perguntou. Quero ouvir.
-Acho que sim - respondeu Nord. - vou pegar um desses técni' cos que andam voando por aqui... ei, Harry, ligo depois. Mackey está dando um telefonema.
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- Certo, não esqueça.
Bosch desligou rapidamente, para que Nord pudesse voltar para o seu monitor. Cheio de entusiasmo, contou a Rider o telefonema de Mackey para Michelle Murphy. Dava
para ver que ela também se empolgara.
- É, Harry, podemos estar de volta aos negócios.
Bosch estava olhando para Mackey pelo binóculo. Sentado à sua mesa no escritório, ele falava ao celular.
- Vamos, Mackey - sussurrou Bosch. - Despeje tudo. Conte-nos a história.
Mas ele logo fechou o celular. Bosch viu que a ligação tinha sido muito curta.
Dez segundos depois, Nord ligou de novo para Bosch.
- Ele acaba de ligar para Billy Blitzkrieg.
- O que foi que disse?
- "Pode ser que eu esteja com um problema" e "pode ser que eu precise me mandar". Depois, Burkhart interrompeu-o e disse: "Não importa o que seja, não fale pelo
telefone." Assim, eles concordaram em se encontrar depois que Mackey sair do trabalho.
-Onde?
- Parece que seria em casa. Mackey perguntou se Burkhart estaria acordado, e ele disse que sim. Depois Mackey quis saber se Belinda estaria lá, e Burkhart respondeu
assegurando que ela estaria dormindo e que Mackey não deveria se preocupar com ela. Terminaram assim.
Bosch sentiu imediatamente o poderoso golpe que abalou suas esperanças de terminar o caso naquela noite. Se Mackey se encontrasse com Burkhart dentro de casa, não
ouviriam o que seria dito. Ficariam de fora sem ouvir a confissão, depois de tanto trabalho para montar aquela operação de vigilância.
- Ligue para mim se ele fizer novos telefonemas - disse Bosch rapidamente, desligando em seguida.
Virou-se para Rider, que aguardava ansiosamente no escuro.
- Má notícia? - perguntou ela. Obviamente percebera alguma coisa no tom de voz com que ele falara com Nord.
- Má notícia.
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Ele lhe contou sobre os telefonemas e o obstáculo que enfrentariam se Mackey se encontrasse com Burkhart a portas fechadas para discutir seu "problema".
- Não é tão ruim, Harry - disse ela, depois de ouvir tudo. - Ele fez uma sólida admissão à mulher chamada Michelle Murphy, e uma admissão menos importante a Burkhart.
Mas estamos chegando perto, de modo que você não tem que ficar deprimido. Vamos raciocinar. O que podemos fazer para obrigá-los a se encontrarem fora da casa? Como
num Starbucks ou algo semelhante.
- É, certo, pedindo um latte,
- Você sabe o que eu quero dizer.
- Mesmo que os espantemos, como vamos fazer para nos aproximar? Não podemos. Tem que ser um telefonema. Esse é o ponto fraco - o meu ponto fraco - de todo esse negócio.
- Só temos que ficar sentados e ver o que acontece. E tudo o que podemos fazer agora. Olhe, seria bom se ouvíssemos a conversa deles, mas, não sendo possível, paciência.
Já temos Mackey no telefone admitindo a possibilidade de ter que se mandar. Se ele fizer isso, se fugir, isso poderá ser visto por qualquer júri como uma confissão
de culpa. E se você somar isso com o que já temos gravado, talvez tenhamos o bastante para espremer mais coisas dele quando finalmente o pegarmos. Conclusão: nem
tudo está perdido, certo?
- Certo.
- Quer que eu ligue para Abel? Ele gostaria de saber.
- Certo, boa idéia, ligue para ele. Não há nada para dizer, mas vá em frente.
- Calma, Harry.
Bosch encerrou a conversa levantando o binóculo e apontando para Mackey. Ele ainda estava sentado à sua mesa e parecia imerso em profundos pensamentos. O segundo
homem do turno da noite, que Bosch presumiu fosse Kenny, estava sentado na outra cadeira, com o rosto levantado para a televisão. Ria de alguma coisa a que estava
assistindo.
Mackey não estava rindo nem vendo tevê. Mantinha o rosto abaixado. Estava revendo alguma coisa na memória.
Os noventa minutos de vigilância até meia-noite foram os mais longos da vida de Bosch. Enquanto esperavam que o posto
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fechasse e Mackey seguisse para o seu encontro com Burkhart, nada aconteceu. Os telefones guardaram silêncio, Mackey não se mexeu do seu lugar na mesa, e Bosch não
conseguiu
imaginar nenhum plano para evitar o encontro de Mackey com Burkhart ou para se
infiltrar de algum modo. Foi como se tudo tivesse ficado imobilizado
até que o relógio bateu as 12 horas.
Finalmente as luzes de fora do posto foram apagadas e os dois homens fecharam o negócio. Quando Mackey saiu, carregava o jornal que não conseguia ler. Bosch sabia
que ele iria mostrá-lo a Burkhart e muito provavelmente os dois discutiriam o
crime.
- E nós não estaremos lá - resmungou Bosch enquanto seguia Mackey com o binóculo.
Mackey entrou no Camaro e acelerou fortemente o motor depois de ligá-lo. Em seguida pegou a avenida Tampa e seguiu para
o sul na direção da sua casa, o planejado
local do encontro.
Rider esperou um tempo adequado e saiu da vaga, atravessou as pistas da Tampa que seguiam para o norte e tomou também o rumo sul. Bosch ligou para Nord na sala de
som e avisou-lhe que MackeY deixara o posto e que a escuta devia ser transferida para a linha da
casa.
As luzes do carro de Mackey estavam três quadras à frente- O trânsito era quase nenhum, e Rider manteve uma distância segura. Quando passaram pelo estacionamento
onde Bosch deixara o carro, ele deu uma checada só para ver se o Mercedes ainda
estava lá.
- Opa - exclamou Rider.
Bosch virou-se para a frente a tempo de ver o carro de Mackey completar uma rápida curva de 180 graus. Ele agora voltava para
o norte, na direção de Bosch e Rider.
- Harry, o que eu faço? - perguntou ela.
- Nada. Não faça nada óbvio.
- Ele está voltando direto de encontro a nós. Deve ter visto que estava sendo seguido!
- Agüente firme. Talvez ele tenha visto meu carro estacionado lá.
O ronco grave do motor do Camaro foi ouvido muito antes de
o carro chegar. Um ronco ameaçador e maligno, como um monstro rugindo e querendo pegá-los.
Capítulo 31
O velho Camaro passou cantando pneu e sem hesitação por Bosch e Rider. Avançou o sinal na Saticoy e continuou em frente. Bosch viu que suas luzes desapareciam mais
ao norte.
- O que foi isso? - indagou Rider. - Você acha que ele sabe que está sendo seguido?
- Eu não...
O celular de Bosch tocou, e ele atendeu prontamente. Era Robinson.
- Ele acaba de receber um chamado do Automóvel Clube. Deu a impressão de ficar furioso, mas acho que foi obrigado a atender.
- Você quer dizer que ele tem um reboque para fazer?
- Exato. Acho que, se não atendesse, iriam procurar outra em' presa, e isso poderia significar problema. Tipo perder as chamadas do Automóvel Clube.
- Onde é o reboque?
- Um carro enguiçado na Reagan. Do lado oeste, perto do viaduto da avenida Tampa. E perto. Ele disse que estava a caminho.
- OK. Deixe conosco.
Bosch fechou o telefone e disse a Rider que voltasse, que o disfarce continuava intacto e que Mackey estava simplesmente correndo para pegar o caminhão-reboque.
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Quando eles se viram novamente no cruzamento de Tampa com Roscoe, o caminhão estava saindo do posto de gasolina às escuras. Mackey não estava a fim de perder tempo.
Como sabiam qual o destino de Mackey, Rider podia se dar ao luxo de ficar bem para trás e não se arriscar a aparecer no retrovisor do caminhão-reboque. Seguiram
rumo ao norte pela Tampa na direção da via expressa. A Reagan era a via expressa 118, que corria no sentido leste-oeste cortando o trecho norte do Vale. Era uma
das poucas vias expressas que não apresentavam movimento intenso
24 horas por dia. Havia recebido o nome do antigo governador e presidente e levava a Simi, onde ficava a biblioteca presidencial Reagan. Ainda assim, tinha sido
chocante para Bosch ouvir Robinson usar o nome Reagan. Para ele, era simplesmente Via Expressa 118.
Para entrar nela e pegar a direção oeste na 118, era preciso descer uma rampa que saía da avenida Tampa para as dez pistas da via expressa. Rider reduziu, deixou-se
ficar para trás, e eles viram o caminhão-reboque virar à esquerda e descer a rampa, fora de suas vistas. Ela então encostou e fez a mesma curva. Já estavam na rampa,
começando a descer, quando perceberam imediatamente o problema com que se depararam. O carro enguiçado não se encontrava na via expressa, como dissera Nord, e sim
na rampa de acesso. Eles estavam se aproximando muito depressa do caminhão-reboque, que tinha parado no acostamento da rampa a cerca de cinqüenta metros. As luzes
do seu alerta traseiro estavam acesas, e ele recuava na direção de um carrinho vermelho que
parara no estacionamento, as luzes de emergência piscando.
- O que vamos fazer, Harry? - indagou Rider. - Se pararmos aqui, vai ficar demasiado óbvio.
Rider tinha razão. Eles seriam inevitavelmente desmascarados.
- Siga em frente - respondeu ele.
Ele tinha que pensar depressa. Sabia que, uma vez na via expressa, poderiam parar no acostamento e esperar que o caminhão de Mackey passasse rebocando o carrinho
vermelho. Mas era arriscado. Mackey podia reconhecer o carro de Rider ou mesmo parar para ver se precisavam de ajuda. Se visse Bosch, todo o esquema de vigilância
estaria perdido.
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- Você tem um mapa?
- Debaixo do banco.
Rider passou ao lado do carro enguiçado e do caminhão-reboque, enquanto Bosch se abaixava para pegar o mapa da cidade. Quando se afastaram o suficiente, ele acendeu
a luz interior do teto e pôs-se a folhear o guia. O Thomas era a bíblia de quem dirigia em Los Angeles. Bosch tinha anos de experiência com ele e rapidamente achou
a página que representava a zona da cidade em que se encontravam.
- A próxima saída é na Porter Ranch - disse ele. - A menos de dois quilômetros. Saímos lá, dobramos à direita, e à direita de novo na Rinaldi. Isso vai nos levar
de volta à Tampa. Ou ficamos esperando em cima do viaduto ou continuamos circulando.
- Acho melhor esperar em cima - disse Rider. - Circular sempre pela mesma rampa, no mesmo carro, pode fazê-lo desconfiar.
- Parece que temos um plano.
- Não gosto, mas não temos escolha.
A distância até a saída de Porter Ranch foi coberta rapidamente.
- Você prestou atenção no carro rebocado? - perguntou Bosch.
- Carrinho estrangeiro pequeno - respondeu Rider. - Dava a impressão de haver uma pessoa atrás do volante, mais nada. As luzes do caminhão eram brilhantes demais
para se poder enxergar mais alguma coisa.
Rider manteve a velocidade até entrarem na pista de saída para Porter Ranch. Seguindo as instruções, ela dobrou à direita duas vezes e logo estavam voltando na direção
da Tampa. Foram parados no sinal da Corbin, mas Rider avançou-o depois de se assegurar de que não vinha ninguém. Menos de três minutos após terem ultrapassado o
caminhão-reboque, estavam de volta à avenida Tampa. Rider parou no acostamento no meio do viaduto. Bosch abriu sua porta.
- vou dar uma olhada - disse ele.
Saltou do carro. Naquele ângulo, ele não conseguia ver o caminhão, mas as luzes em cima da cabine lançavam um clarão acima da rampa de acesso.
- Harry, pegue aqui! - exclamou Rider.
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Ele se esticou para enfiar o braço dentro do carro e pegou o radiotransmissor que Rider lhe estendia.
Recuou caminhando ao longo do viaduto. A via expressa não tinha muito trânsito, mas o barulho ainda era enorme com os carros passando atrás dele. Quando ele chegou
no topo da rampa e olhou para baixo, precisou de alguns segundos para ajustar sua visão, porque as luzes da traseira do caminhão-reboque eram ofuscantes.
Mas logo percebeu que as luzes piscantes do carro enguiçado não estavam mais lá. Olhou mais de perto e viu que o carro não se encontrava mais no acostamento. Seu
olhar desceu a rampa até a via expressa onde iam desaparecendo na distância as luzes vermelhas traseiras de dezenas de carros que se deslocavam para oeste.
Voltou de novo a atenção para o reboque. Tudo quieto. Nem sinal de Mackey.
Bosch levou o rádio à boca e ajustou o microfone.
- Kiz?
- Sim, Harry.
- É melhor dar uma chegada até aqui.
Bosch começou a descer a rampa. Enquanto o fazia, sacou da arma e levou-a ao lado do corpo. Em trinta segundos, as luzes do carro de Rider piscavam às suas costas.
Ela estacionou no acostamento, saltou com uma lanterna, e os dois continuaram a descer juntos a rampa.
- O que está acontecendo, Harry?
- Não sei.
Não havia sinal de Mackey dentro ou em torno do caminhãoreboque. Bosch sentiu um nó no peito. Sabia instintivamente que havia alguma coisa errada. Quanto mais perto
chegavam, mais certeza ele tinha.
- O que vamos dizer se ele estiver aqui e tudo estiver OK? murmurou Rider.
- Mas não está - retrucou Bosch.
A luz da parte de trás do caminhão era quase ofuscante, e Bosch sabia que eles estavam em posição vulnerável. Não conseguia ver ninguém na cabine. Deslocou-se para
a sua direita, para que ele e
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Rider se separassem. Ela não poderia se mover para a esquerda, p0r. que então estaria caminhando na rampa de entrada.
Um caminhão do tipo cavalo-mecânico passou, soltando uma rajada de vento com cheiro de petróleo, fazendo um barulhão terrível e sacudindo o viaduto como um terremoto.
Bosch continuava sem ver ninguém adiante.
Bosch e Rider não se comunicaram. O barulho do trânsito que passava na via expressa, logo abaixo do local onde se encontravam, ecoava ali de um modo que os obrigaria
a gritar, e isso perturbaria sua concentração.
Eles chegaram juntos quando atingiram o caminhão-reboque. Bosch checou a cabine e não descobriu sinal de Mackey. O motor ainda estava ligado. Ele voltou para a retaguarda
e examinou o solo iluminado pelas luzes da traseira do caminhão. Havia marcas pretas de pneus levando diretamente para a tampa traseira do caminhão. E, em cima do
cascalho, lá estava uma das luvas de couro que ele tinha visto Mackey usando algumas horas antes.
- Empreste isso aqui - disse ele, pegando a lanterna de Rider. Notou que era um dos modelos mais curtos e de borracha aprovados pela chefia de polícia, depois que
um policial fora filmado espancando um suspeito com uma daquelas lanternas do modelo antigo, de aço e pesadas.
Bosch apontou o facho da luz para a tampa de trás do caminhão, passando-o para o lado de baixo, que tinha ficado na sombra por causa da luz clara das luzes de cima.
O sangue brilhou vivamente no aço escuro. Não podia ser confundido com óleo. Era vermelho e real como a vida. Bosch agachou-se e apontou a luz para debaixo do caminhão.
Estava escuro ali também, tornando o local ainda mais impenetrável à visão pelo brilho das luzes de cima.
Ele viu o corpo de Mackey esmagado de encontro ao eixo traseiro do diferencial. Toda a metade do seu rosto estava banhada em sangue, devido a uma laceração comprida
e funda que cortara o lado esquerdo da sua cabeça. A camisa do seu uniforme azul agora era marrom na frente, devido ao sangue de outros ferimentos ainda invisíveis.
A região da braguilha da calça estava manchada de
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sangue, urina ou ambos. O único braço que Bosch podia ver estava dobrado estranhamente no antebraço, e um osso denteado e branco projetava-se para fora da carne.
Descansava
sobre o peito de Mackey qUe arfava com respirações irregulares. Ele ainda estava vivo.
- Ah, meu Deus! - exclamou Rider atrás de Bosch.
- Chame uma ambulância! - ordenou Bosch, começando a rastejar debaixo do caminhão.
Ao ouvir o barulho dos pés de Rider, fazendo esmagar o cascalho enquanto corria para o seu carro e o rádio, ele se deslocou para tão perto de Mackey quanto pôde.
Sabia que podia estar destruindo uma cena de crime, mas tinha que se aproximar.
- Ro, você pode me ouvir? Ro, quem fez isso?
Mackey pareceu estremecer ao ouvir seu nome. Sua boca começou a se mover, e foi aí que Bosch viu que sua mandíbula fora quebrada ou deslocada. Seus movimentos eram
descoordenados. Mackey devia estar tentando falar pela primeira vez.
- Leve tanto tempo quanto precisar, Ro. Mas diga quem fez isso. Você viu quem foi?
Mackey falou qualquer coisa, mas um carro passou velozmente pela rampa de acesso e abafou o seu murmúrio.
- Diga-me de novo, Ro. Diga de novo.
Bosch adiantou-se mais ainda e colocou a cabeça perto da boca de Mackey. O que ouviu foi meio arquejo, meio murmúrio.
- ...sworth...
Ele recuou e olhou para Mackey. Focalizou a luz no seu rosto na esperança de que o estimulasse. Viu que a estrutura óssea em torno do seu olho esquerdo também tinha
sido esmagada e perdia sangue. Ele não ia se salvar.
- Ro, se você tem alguma coisa a dizer, diga agora. Você matou Rebecca Verloren? Onde você estava naquela noite?
Bosch inclinou-se para diante novamente. Mas se Mackey disse algo, isso foi abafado pelo barulho de outro carro que passou. Quando Bosch recuou para olhar de novo
para ele, achou que devia ter morrido. Encostou dois dedos na lateral ensangüentada do pescoço de Mackey, mas não conseguiu encontrar pulso.
- Ro? Roland, você ainda está comigo?
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O único olho ileso estava semi-aberto. Bosch focalizou a luz da lanterna para cima dele e não viu reação da pupila. Mackey tinha morrido.
Bosch rastejou cuidadosamente para sair de debaixo do caminhão. Rider o esperava de pé, os braços cruzados rigidamente na frente do corpo.
- Ambulância a caminho - disse ela.
- Dispense a ambulância, Kiz. Ele devolveu a lanterna.
- Harry, se você acha que ele está morto, os paramédicos confirmarão.
- Não se preocupe, Mackey está morto. Eles só vão se meter aí debaixo e estragar a nossa cena do crime. Dispense a ambulância.
- Ele falou alguma coisa?
- Tive a impressão de que ele disse "Chatsworth". Mais nada. Se disse algo mais, não pude ouvir.
Rider parecia agora estar andando de um lado para outro, numa trilha pequena. Ela ia e vinha, para trás e para a frente.
- Ai, meu Deus - disse. - Acho que vou vomitar.
- Então recue, afaste-se daqui, vá para longe da cena.
Ela foi para trás do seu carro. Bosch também se sentia nauseado, mas sabia que era capaz de se controlar. Não era o fato de ter visto o corpo dilacerado e quebrado
de Mackey que estava fazendo a bile subir à sua garganta. Ele, da mesma forma que Rider, tinha visto coisas muito piores. As circunstâncias é que eram nauseantes.
Sabia, por instinto, que aquilo não fora um acidente. Tinha que ter sido um assassinato. E fora ele quem pusera todas aquelas engrenagens em movimento.
Sentia-se nauseado porque acabara de fazer com que Roland Mackey fosse morto. E com a morte dele podia ter perdido o último e melhor vínculo com o assassino de Rebecca
Verloren.

PARTE TRÊS
A Escuridão Espreita
Capítulo 32
A rampa de acesso da avenida Tampa para a Via Expressa Ronald Reagan foi fechada, e o tráfego desviado pela Rinaldi até o acesso de Porter Ranch. A rampa ficou inteiramente
tomada por viaturas da polícia. A Divisão de Investigação Científica do DPLA, a Patrulha Rodoviária da Califórnia e a Divisão Médico-Legal estavam todas ali representadas,
juntamente com membros da Unidade de Casos Não Resolvidos. Abel Pratt dera uns telefonemas e conseguira o controle do caso pela sua unidade. Tendo em vista que o
assassinato de Roland Mackey acontecera em uma rampa de acesso a uma via expressa estadual, o caso tecnicamente pertencia à jurisdição da Patrulha Rodoviária. Mas
a Patrulha ficou mais que feliz em passá-lo adiante, especialmente porque a morte era vista como parte de uma investigação em andamento do DPLA. Em outras palavras,
o DPLA ia ter como limpar sua própria sujeira.
Na verdade, o comandante do quartel local da Patrulha Rodoviária ofereceu seu melhor especialista em acidentes, e Pratt ficou com ele. Além disso, Pratt reuniu alguns
dos melhores técnicos de laboratório forense que o departamento pôde convocar, tudo no meio da noite.
Durante a investigação da cena do crime, Bosch e Rider passaram a maior parte do tempo sentados no banco de trás do carro de Pratt, onde foram interrogados demoradamente
pelo próprio Pratt
304
e depois por Tim Mareia e Rick Jackson, que foram chamados em casa para liderar a investigação da morte de Mackey. Como Bosch e Rider haviam tomado parte em alguns
eventos e testemunhado outros, foi determinado que não conduzissem a investigação do caso. Tratava-se de uma formalidade técnica. Não havia dúvida de que continuariam
a tocar o caso Verloren, e que, ao fazê-lo, estariam obviamente perseguindo também o assassino de Roland Mackey.
Por volta das 3h, os técnicos se reuniram com os detetives da Homicídios a fim de avaliarem o que sabiam até ali. O corpo de Mackey acabara de ser removido de debaixo
do caminhão, e a cena do crime fora minuciosamente fotografada, filmada em vídeo e desenhada. Era agora considerada uma cena aberta, e todo mundo podia andar livremente
por ali.
Pratt pediu ao investigador da Patrulha Rodoviária, um homem alto chamado David Allmand, que falasse primeiro. Allmand usou uma lanterna de laser para delinear as
marcas de pneus no pavimento e no cascalho, marcas essas que ele acreditava resultarem do acidente com Mackey. Apontou também a parte de trás do caminhão-reboque,
onde círculos de giz tinham sido traçados para destacar diversos arranhões, mossas e rachaduras na pesada tampa de aço. Disse que sua conclusão era a mesma a que
Bosch e Rider tinham chegado segundos depois de encontrarem Mackey. Ele fora assassinado.
- As marcas de pneus nos dizem que a vítima deu uma guinada no caminhão-reboque de modo a passar para o acostamento, a cerca de trinta metros deste ponto. - disse
Allmand. - É provável que tenha dado esse golpe de direção para evitar colidir com o veículo avariado que já estava ali. Depois, o caminhão-reboque veio a ocupar
esta posição em que se encontra agora. O motorista pôs a transmissão em porto morto e puxou o freio de mão antes de sair da cabine. Se estava com pressa, como algumas
das informações acessórias indicam, pode ter saído da cabine e vindo diretamente para cá, a fim de abaixar o guindaste. Foi onde o pegaram.
- O veículo avariado obviamente não estava avariado. Seu motorista meteu o pé no acelerador e ele saltou para a frente, atingindo o motorista do caminhão e imprensando-o
contra a parte de trás
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do caminhão e o conjunto do reboque. A fim de poder efetuar o reboque, a vítima teria que se inclinar nesse ponto, para liberar o mecanismo do gancho. É provável
que estivesse fazendo justamente isso quando foi atingido, o que explicaria os ferimentos na cabeça. O rosto bateu em primeiro lugar. Há sangue no braço do reboque.
Allmand correu o ponto luminoso vermelho do laser sobre o conjunto do gancho do caminhão-reboque para ilustrar o que dizia.
- Depois, o carro recuou - continuou ele -, e é aí que temos as marcas esfriadas no asfalto. Em seguida, ele acelerou outra vez para a frente visando atingir de
novo a vítima, que, provavelmente, já estaria fatalmente ferida por conta do primeiro impacto. Mas ainda não morrera. É bem provável que tenha caído no chão com
o primeiro impacto e, com suas últimas forças, rastejado para debaixo do caminhão, querendo evitar a segunda batida. De um modo ou de outro, o carro bateu no caminhão-reboque
uma segunda vez. E, é claro, a vítima sucumbiu aos ferimentos enquanto ainda se encontrava debaixo do caminhão.
Allmand fez uma pausa para que fizessem perguntas, mas só conseguiu um silêncio inflexível. Bosch não foi capaz de pensar em nada para dizer. Nada tendo a responder,
Allmand terminou o relatório apontando para duas linhas de marcas de pneus feitas no asfalto e no cascalho.
- A distância entre os eixos do veiculo agressor indica que ele não é muito grande - disse ele. - Isso reduzirá um pouco o universo de busca. Trata-se provavelmente
de um carrinho estrangeiro. Tirei as medidas, e assim que consultar meus catálogos de fabricantes terei condições de apresentar uma lista de carros que poderiam
ter deixado essas marcas. Os senhores serão informados.
Ninguém disse nada, e Allmand usou a lanterna de laser para indicar um pontinho de óleo no asfalto.
- Sabemos também que o veículo agressor estava vazando óleo. Não é um grande vazamento, mas será importante para permitir ao promotor determinar quanto tempo o assassino
esteve parado aqui esperando a vítima. Uma vez que o veículo seja recuperado, poderemos cronometrar o vazamento e apresentar uma estimativa de quanto tempo terá
sido necessário para gerar uma mancha desse tamanho.
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Pratt balançou a cabeça.
- É bom saber disso - comentou.
Pratt agradeceu a Allmand e pediu ao assistente do legista, Ravi Patel, que apresentasse um relato preliminar do exame feito no corpo. Patel começou pela lista dos
numerosos ossos fraturados e ferimentos óbvios a partir de um exame externo do corpo. Afirmou que o impacto provavelmente fraturara o crânio de Mackey, esmagara
a órbita do olho esquerdo e deslocara a mandíbula. Os quadris tinham sido esmagados juntamente com o lado esquerdo da parte superior do torso. O braço e o fêmur
esquerdos também tinham sido quebrados.
- É provável que esses ferimentos todos tenham sido causados pelo impacto inicial - disse ele. - A vítima devia estar de pé, e o impacto veio da retaguarda, do lado
direito.
- Ele teria sido capaz de rastejar para debaixo do caminhão? perguntou Rick Jackson.
- E possível - respondeu Patel. - Temos visto o instinto de sobrevivência possibilitar às pessoas ações surpreendentes. Não saberei ao certo enquanto não o necropsiar,
mas o que temos visto em casos como este é que a forte compressão perfura os pulmões, que se enchem de sangue. Mas isso leva tempo. Ele poderia ter rastejado para
onde imaginava que estaria em segurança.
Foi morrer afogado no próprio sangue ao lado da via expressa, pensou Bosch.
Quem falou a seguir foi o principal investigador especializado em cenas de crime, que por acaso era o irmão de Ravi Patel, Raj. Bosch os conhecia de casos anteriores
e sabia que estavam entre os melhores.
Raj Patel apresentou os fundamentos da investigação da cena do crime e disse que os esforços de Mackey para salvar sua vida, rastejando para debaixo do caminhão,
podiam, em última análise, permitir que os investigadores pegassem o assassino.
- O segundo impacto no caminhão deu-se sem que houvesse um corpo para servir de anteparo. Foi metal contra metal. Tivemos assim transferência tanto de metal quanto
de tinta, e coletamos diversas amostras. E se vocês encontrarem o veículo que fez isso
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poderemos comprovar com uma equivalência que terá cem por cento de precisão.
Um foco de luz em toda aquela escuridão, pensou Bosch.
Depois que Patel terminou, a cena do crime começou a se dissolver, com os investigadores seguindo para desempenhar várias missões que Pratt queria terminadas antes
que toda a unidade fosse se reunir às 9h no Pacific Dining Car para discutir o caso.
Mareia e Jackson tinham sido designados para revistar a casa de Mackey. O que acarretava acordar um juiz no meio da noite para conseguir um mandado de busca assinado,
já que Mackey morava junto com William Burkhart, e Burkhart era um possível suspeito do assassinato. A casa- com Burkhart presumivelmente dentro dela
- estava sob vigilância na hora em que Mackey fora esmagado na via expressa. Mesmo assim, Burkhart podia ter mandado alguém levar a cabo o assassinato, e era visto
como suspeito até que fosse inocentado de envolvimento.
Um dos primeiros telefonemas que Bosch e Rider deram depois que encontraram Mackey debaixo do caminhão-reboque foi para Kehoe e Bradshaw, os dois detetives da Homicídios
que vigiavam a casa na rua Mariano. Eles foram imediatamente até a casa e prenderam Burkhart e uma mulher identificada como Belinda Messier.
Os dois agora aguardavam para serem interrogados no Parker Center, e Bosch e Rider receberam de Pratt a incumbência de interrogá-los.
Mas quando se viraram para subir a rampa da saída da via expressa e pegar o carro de Rider, Pratt pediu que esperassem.
Juntou-se a eles e falou baixo, de modo que
nenhum dos remanescentes na cena do crime pudesse ouvir.
- Acho que não preciso dizer a vocês que, com este caso, vamos pisar numa chapa quente - disse ele.
- Nós sabemos - disse Rider.
- Não sei que forma de revisão vamos ter, mas penso que
podemos contar com uma.
- Estaremos prontos - afirmou Rider.
- Vocês podem querer conversar a esse respeito no caminho para o centro da cidade - sugeriu Pratt. - Para se certificarem de que todo mundo falará a mesma língua.
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Bosch sabia que Pratt estava lhes dizendo para acertar a história que iriam contar de modo que pudesse ser apresentada em uníssono e à luz do que melhor lhes atendia,
mesmo que fossem interrogados separadamente.
- Nós estaremos bem - disse Rider.
Pratt deu uma olhada em Bosch e desviou os olhos, voltando-se para o caminhão-reboque.
- Eu sei - disse Bosch. - Sou eu o recruta. Se alguém tiver que levar um tombo por causa disso, serei eu. Sem problema. Tudo foi idéia minha.
- Harry - disse Rider. - Isso não...
- O plano era meu - interrompeu Bosch. - Sou eu o cara.
- Bem, não precisa ser assim - disse Pratt. - Quanto mais cedo resolvermos este caso, melhor será para todos nós. O sucesso varre para bem longe uma porção de porcarias.
Assim sendo, fechemos a porra desse caso na hora do café-da-manhã.
- Falou, chefe - disse Rider.
Quando Bosch e Rider subiram a rampa, nada falaram.
Capítulo 33
O Parker Center estava deserto quando chegaram. Embora diversas unidades investigativas atuassem a partir do prédio-sede, seus dias eram basicamente preenchidos
com as atividades de comando e serviços de apoio. Ele não ganhava vida senão depois do nascer do sol. No elevador, Bosch e Rider se separaram, Bosch indo diretamente
para a Divisão de Roubos e Homicídios no terceiro andar, substituir Kehoe e Bradshaw, enquanto Rider dava um pulo no escritório da Unidade de Casos Não Resolvidos
para pegar o documento que preparara antes sobre William Burkhart.
- Até já - disse ela a Bosch quando ele saltou. - Espero que Kehoe e Bradshaw tenham feito café.
Bosch saltou do elevador e virou para pegar o corredor que ia dar nas portas duplas da Divisão de Roubos e Homicídios.
- O que foi que eu lhe disse sobre pneus recauchutados?
Bosch virou-se. Era Irving, vindo do corredor oposto. Não havia nada daquele lado a não ser serviços de computação, e Bosch adivinhou que ele deveria ter estado
à sua espera no corredor. Tentou não demonstrar surpresa ao ver que Irving já sabia o que acontecera na via expressa.
- O que está fazendo aqui?
- Oh, eu queria começar cedo. Vai ser um grande dia.
- É mesmo?
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- Vai, claro. E eu vou lhe dar um aviso. Pela manhã, a mídia será alertada pela merda que você fez no meio da noite. Será dito aos repórteres como você usou o homem
chamado Mackey como isca, apenas para deixá-lo morrer de um modo horrível. Haverá perguntas sobre como um detetive aposentado pode ter sido autorizado a voltar
ao departamento para fazer uma coisa dessas. Mas não se preocupe. Essas perguntas serão provavelmente destinadas ao chefe de polícia que pôs todo o processo em movimento.
Bosch riu e sacudiu a cabeça, agindo como se não sentisse a ameaça.
- Só isso? - perguntou.
- Estarei também insistindo com o chefe da Corregedoria para que abra uma investigação sobre como você conduziu a investigação, detetive Bosch. Acho melhor você
não se habituar com esta volta.
Bosch deu um passo na direção de Irving, esperando virar parte da ameaça contra ele.
- Ótimo, chefe, faça isso. Espero que também prepare o comandante para o que eu contarei aos seus investigadores, assim como aos repórteres sobre a sua própria culpa
em tudo isso.
Houve uma longa pausa antes que Irving mordesse a isca.
- Que tolice é essa agora?
- Esse homem com quem está tão preocupado agora por ter servido de isca é o mesmo que você libertou 17 anos atrás, chefe. Para que pudesse fazer seu acordo com Richard
Ross. Mackey devia ter ido para a cadeia. Assim não teria usado a pistola de um dos seus pequenos roubos para matar uma garota inocente de 16 anos.
Bosch esperou, mas Irving nada disse.
- E verdade - prosseguiu Bosch após um instante. - Posso ter o sangue de Roland Mackey em minhas mãos, mas você tem o de Rebecca Verloren nas suas. Vai procurar
a mídia e a Corregedoria com isso? Pois vá, faça o melhor que puder e veremos como tudo acaba.
Os olhos de Irving foram ficando contraídos. Ele deu um Pas' só na direção de Bosch, até que os rostos dos dois homens ficaram separados apenas por uma questão de
centímetros.
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- Você está errado, Bosch. Todos aqueles garotos naquele tempo, todos eles, foram inocentados de envolvimento no caso Verloren.
- É mesmo? Como? Quem foi que os inocentou? Green e Garcia certamente não foram. Eles foram afastados dos garotos por você. Da mesma forma que o pai da garota. Você
e um dos seus asseclas o afastaram com ameaças também.
Bosch apontou um dedo para o peito de Irving.
- Você deixou que assassinos saíssem livres - continuou - para que pudesse cumprir o acordo.
Apareceu uma necessidade premente na voz de Irving quando ele respondeu.
- Você está completamente errado - disse ele. - Pensa realmente que nós deixaríamos criminosos saírem livres?
Bosch sacudiu a cabeça, deu um passo para trás e quase riu.
- Para dizer a verdade, penso.
- Preste atenção, Bosch. Nós checamos os álibis de cada um daqueles garotos. Estavam todos limpos. Para alguns, nós éramos os álibis, porque ainda os vigiávamos.
Mas primeiro nós nos asseguramos de que cada membro daquele grupo estava limpo no caso Verloren, e só depois dissemos a Green e Garcia para se afastarem. Falamos
com o pai também, mas ele não quis ouvir.
- Aí então você se livrou dele, certo, chefe? Empurrou-o dentro de um buraco.
- Certas coisas têm de ser feitas. A cidade estava muito tensa naquele tempo. Não podíamos deixar que o pai dela ficasse dizendo coisas que não eram verdadeiras.
- Não me venha com esse papo furado de pelo-bem-da-comunidade, chefe. Você tinha seu acordo, e isso era tudo o que importava. Você tinha Ross e a Corregedoria no
bolso e queria continuar assim. Só que estava completamente enganado. O DNA prova isso. Mackey está ligado ao caso Verloren, e sua investigação não valeu de nada.
- Não, espere um minuto. O DNA só prova uma coisa: que ele tinha a pistola. Li a história que você plantou no jornal hoje. O DNA liga Mackey à pistola, não ao crime.
312
Bosch fez um sinal repudiando Irving. Sabia que não adiantava nada ficar discutindo com ele. Sua única esperança era de que a ameaça que lhe fizera de procurar a
mídia e a Corregedoria neutralizasse a de Irving. Acreditava que se encontravam num impasse.
- Quem verificou os álibis? - perguntou Bosch calmamente. Irving não respondeu.
- Deixe que eu adivinhe. McClellan. As digitais dele estão por toda parte.
Mais uma vez, Irving não respondeu. Era como tivesse se deixado levar pela lembrança do que acontecera 17 anos atrás.
- Chefe, quero que chame seu assecla. Sei que ele ainda trabalha para você. Diga que quero saber a respeito dos álibis. Quero detalhes. Quero relatórios. Quero tudo
o que ele tiver, às 7h de hoje, será o fim. Faremos o que tivermos de fazer e veremos de que lado a ficha cai.
Bosch estava prestes a se virar para ir embora, quando Irving finalmente falou.
- Não há relatórios dos álibis - disse ele. - Nunca teria havido nenhum.
Bosch ouviu a porta do elevador abrir, e em pouco tempo Rider apareceu, carregando uma pasta. Ela parou de repente ao ver o confronto. Mas não disse nada.
- Não há relatórios? - disse Bosch para Irving. - Então é melhor torcer para que ele tenha uma boa memória. Boa noite, chefe.
Bosch virou-se e saiu pelo corredor. Rider apressou-se para emparelhar com ele. Ela olhou por cima do ombro a fim de assegurarse de que Irving não os seguia. Depois
que passaram pelas portas duplas que davam na Divisão de Roubos e Homicídios, ela falou.
- Estamos encrencados, Harry? Ele vai entregar isso ao homem do sexto andar?
Bosch olhou para ela. A mistura de apreensão e pavor que viu no seu rosto lhe disse o quão importante seria sua resposta.
- Não se depender de mim - disse.
Capítulo 34
William Burkhart e Belinda Messier estavam sendo mantidos em salas de inquirição separadas. Bosch e Rider decidiram levar Belinda Messier primeiro, para que Burkhart
tivesse que ficar esperando e imaginando coisas. Daria também tempo a eles para que Mareia e Jackson conseguissem o mandado e entrassem na casa da rua Mariano. O
que encontrassem lá poderia ser útil durante o interrogatório de Burkhart.
Belinda Messier tinha aparecido na investigação antes. O celular com que Mackey andava era registrado no nome dela. No resumo que Kehoe e Bradshaw tinham feito quando
eles chegaram, ela foi descrita como namorada de Burkhart. Falara espontaneamente quando os detetives da Homicídios os levaram presos. Depois, falara muito pouco.
Belinda Messier era uma mulher pequena, com o cabelo castanho-claro emoldurando-lhe o rosto. Sua aparência escondia a pessoa durona que depois provou ser. Pediu
para ver um advogado no momento em que Rider e Bosch entraram no quarto.
- Por que quer ver um advogado? - quis saber Bosch. - Acha que está presa?
- Está me dizendo que posso ir embora? Ela se levantou.
314
- Sente-se - disse Bosch. - Roland Mackey foi morto esta noite e você pode estar em perigo também. Está em prisão preventiva visando à sua proteção. Isso significa
que não vai sair daqui enquanto não resolvermos algumas questões.
- Não sei de nada. Passei a noite toda com Billy, até que vocês da polícia apareceram lá em casa.
Durante os 45 minutos seguintes, as informações que ela deixou passar foram dadas com a maior contrariedade. Explicou ter conhecido Mackey através de Burkhart e
que concordara em fazer uma assinatura de telefone celular e entregar o aparelho a ele, porque Mackey não tinha crédito. Contou aos detetives que Burkhart não trabalhava,
vivendo de uma indenização por perdas e danos que recebera por conta de um acidente de carro sofrido dois anos antes. Comprara a casa da rua Mariano com o dinheiro
e cobrava aluguel a Mackey. Quando perguntada sobre as antigas ligações dos dois homens com os grupos do poder branco, ela simulou surpresa. Quando perguntada sobre
a minúscula suástica que tinha tatuada na pele entre o polegar direito e o indicador, respondeu que achava tratar-se de um símbolo navajo de boa sorte.
- Sabe quem matou Roland Mackey? - perguntou Bosch, depois de um longo preâmbulo de perguntas.
- Não. Ele era realmente um cara legal. É tudo o que sei.
- O que foi que o seu namorado disse depois que Mackey telefonou para ele?
- Nada. Só que ia ficar acordado e conversar com Ro sobre alguma coisa quando ele chegasse em casa. Disse que talvez tivessem que sair para proteger sua privacidade.
- Mais nada?
- Mais nada.
Eles insistiram com ela diversas vezes e a partir de diversos ângulos, com Bosch e Rider alternando a liderança do processo, mas o interrogatório nada produziu que
tivesse real valor para a investigação.
Burkhart foi depois dela, mas, antes de ele ser interrogado, Bosch telefonou para Mareia e Jackson.
- Vocês ainda estão na casa? - perguntou Bosch a Mareia.
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- Estamos, sim, mas ainda não encontramos nada.
- Nenhum celular?
- Até agora, nenhum. Acha que Burkhart pode ter saído enquanto Kehoe e Bradshaw estavam aí?
- Tudo é possível - respondeu Bosch -, mas eu duvido. Eles não dormiram.
Houve silêncio por um momento enquanto eles pensavam sobre as informações disponíveis, e depois foi Mareia quem falou.
- Quanto tempo se passou entre a hora em que Mackey foi morto e a sua ligação para Kehoe e Bradshaw mandando prendê-lo?
Bosch recapitulou suas ações na via expressa antes de responder.
- Foi bem rápido - disse finalmente. - Dez minutos no máximo.
- Então aí está - disse Mareia. - Ir da Via expressa 118 em Porter Ranch até a rua Mariano em Woodland Hills em um máximo de dez minutos? E sem ser visto pelos nossos?
De jeito nenhum. Não foi Burkhart. Kehoe e Bradshaw são o álibi dele.
- E nenhum celular na casa...
Eles já sabiam que o telefone fixo da casa não fora usado, porque nenhuma ligação fora registrada no equipamento de monitoração da ListenTech.
- Não mesmo - disse Mareia. - Nenhum celular e nenhuma ligação feita no telefone fixo. Não acho que ele seja o nosso cara.
Bosch ainda não estava pronto para concordar. Agradeceu, desligou e transmitiu a má notícia a Rider.
- E o que fazemos com ele então? - perguntou ela.
- Bem, Burkhart pode não ser o nosso cara na morte do Mackey, mas Mackey ligou para ele depois que tomou conhecimento da história. Ainda gosto dele para o caso Verloren.
- Mas não faz sentido. Quem quer que tenha matado Mackey foi obrigatoriamente seu parceiro no caso Verloren, a menos que você esteja querendo dizer que o que aconteceu
na rampa não passou de uma monumental coincidência.
Bosch sacudiu a cabeça.
- Não, não estou dizendo isso. Só estamos deixando passar alguma coisa. Burkhart teve que fazer uma mensagem sair de dentro daquela casa.
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- Tipo disque-assassino ou algo assim? Não acredito, Harry. Bosch assentiu agora. Sabia que ela estava certa. Aquilo não
fechava.
- Está bem, então vamos entrar lá e ver o que ele tem a dizer a seu favor.
Rider concordou, e eles gastaram alguns minutos discutindo uma estratégia de trabalho antes de seguir pelo corredor atrás da sala da equipe e entrar na sala de interrogatório
onde Burkhart esperava.
A sala estava abafada e recendendo ao cheiro de corpo de Burkhart, e Bosch deixou a porta aberta. Burkhart estava de cabeça baixa, apoiada nos braços cruzados em
cima da mesa. Como não acordou do sono simulado, Bosch chutou a perna da sua cadeira, e isso fez com que ele levantasse a cabeça.
- Acorde para ser feliz, Billy Blitzkrieg - disse Bosch.
O cabelo de Burkhart, desgrenhado e escuro, caía pesadamente em torno do seu rosto branco pastoso. Ele não devia sair muito de casa, a não ser de noite.
- Quero um advogado - disse Burkhart.
- Todos nós queremos. Mas as primeiras coisas vêm primeiro. Meu nome é Bosch, e o dela é Rider. Você se chama William Burkhart e está preso por suspeita de homicídio.
Rider começou a ler os direitos dele, mas Burkhart interrompeu-a.
- Vocês estão loucos? Nunca saí de casa. Minha namorada esteve lá comigo o tempo todo.
Bosch levou um dedo aos lábios.
- Deixe que ela termine, Billy, e depois você pode mentir o quanto quiser.
Rider terminou de ler os direitos que estavam escritos nas costas de um dos seus cartões. Em seguida Bosch assumiu.
- Agora, você estava dizendo...
- O que estou dizendo é que vocês estão ferrados. Eu estava em casa o tempo todo, e tenho uma testemunha para comprovar. Além do mais, Ro era meu amigo. Por que
iria matá-lo? Isto não passa da porra de uma piada; então, por que não vai em frente e chama o advogado para que me tire daqui?
317
- Terminou, Bill? Porque tenho uma notícia para você. Não estamos falando a respeito de Roland Mackey. Trata-se de levar você
17 anos atrás, para Rebecca Verloren. Lembra dela? Você e Mackey? A garota que vocês levaram para cima do morro? Pois é disso que estamos falando aqui.
Burkhart não demonstrou coisa alguma. Bosch tinha esperado um sinal qualquer que lhe dissesse que estava no caminho certo.
- Não sei do que está falando - disse Burkhart, o rosto tão impassível quanto uma pedra.
- Temos você gravado em fita. Mackey ligou ontem à noite. Acabou, Burkhart. Dezessete anos é muito tempo, mas acabou.
- Vocês não têm merda nenhuma. Se é verdade que têm uma fita, tudo o que vão poder escutar é eu dizendo para ele calar a boca. Não tenho celular e não confio em
celulares. E meu comportamento padrão. Se ele ia começar a me contar seus problemas, eu não queria que contasse usando um maldito celular. E quanto a essa tal de
Rebecca não sei das quantas, não sei absolutamente de nada. Acho que você devia ter perguntado ao Ro enquanto teve chance.
Ele olhou para Bosch e piscou um olho. Bosch sentiu ímpetos de pular em cima da mesa e dar-lhe um murro. Mas conteve-se.
Eles brigaram verbalmente por mais vinte minutos, mas nem
Bosch nem Rider conseguiram causar a menor mossa na armadura
de Burkhart. Até que ele resolveu parar de tomar parte na discussão,
dizendo mais uma vez que queria um advogado e não respondendo
mais às perguntas que se seguiram.
Rider e Bosch deixaram a sala para discutir suas opções, que, concordaram, eram mínimas. Tinham montado um blefe. Burkhart pagara para ver, e agora
só lhes restavam três alternativas: autuá-lo como elemento suspeito, chamar seu advogado ou libertá-lo.
- Não temos nada, Harry - disse Rider. - Não devemos nos enganar. Digo que devemos soltá-lo.
Bosch assentiu. Sabia que era verdade. Eles não tinham um caso, e era bem provável que nunca viessem a ter um. Mackey, a única ligação direta com Rebecca Verloren,
morrera. O próprio plano de Bosch causara a sua perda. Agora teriam que voltar 17 anos no tempo, fazer uma investigação completa da vida de Burkhart e
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procurar algo que tivesse sido esquecido, escondido ou ignorado 17 anos atrás. A depressão resultante da situação do caso começou a se abater sobre ele como um
cobertor de chumbo.
Bosch abriu o telefone e ligou mais uma vez para Mareia.
- Alguma coisa?
- Nada, Harry. Nenhum telefone, nenhuma evidência, nada.
- OK, só para você saber, vamos liberar Burkhart. Pode ser que ele apareça aí daqui a pouco.
- Ótimo. Ele não vai gostar do que vai encontrar.
- Muito bom.
Bosch fechou o telefone e olhou para Rider. Seus olhos contavam a história. Desastre. Sabia que a deixara mal. Pela primeira vez, achou que Irving estava certo -
talvez não devesse ter voltado.
- vou dizer a Burkhart que ele é um homem livre. Depois que se afastou um pouco, ela o chamou.
- Harry, eu não o culpo. Ele a encarou.
- Estive do seu lado em cada passo. Era um bom plano. Bosch fez que sim.
- Obrigado, Kiz.
Bosch foi para casa pensando em tomar uma chuveirada, vestir roupa limpa e talvez fechar os olhos por algum tempo antes de voltar para a cidade e tomar parte na
reunião na unidade. Mais uma vez, atravessou uma cidade que acabava de acordar para mais um dia. E mais uma vez ela pareceu feia a seus olhos, cheia de arestas aguçadas
e banhada em uma claridade ofuscante. Tudo lhe parecia feio naquele instante.
Bosch não ansiava pela reunião da unidade. Sabia que todos os olhos estariam em cima dele. Todo mundo ali compreendia que seus atos seriam agora analisados e criticados,
após a morte de Mackey. Todos compreendiam também que, se estivessem procurando uma razão para uma ameaça potencial às suas carreiras, não tinham que procurar mais
longe.
Bosch jogou as chaves em cima do balcão da cozinha e verificou o telefone. Nenhuma mensagem. Deu uma olhada no relógio e determinou que tinha pelo menos duas horas
antes de precisar sair para o Pacific Dining Car. Ao ver a hora, lembrou-se do ultimato que dera a Irving durante o confronto que tinham tido no corredor em frente
à Roubos e Homicídios. Mas Bosch duvidava que viria a ter notícias de Irving ou McClellan agora. A impressão que tinha era de que todo mundo estava pagando para
ver seus blefes.
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Sabia que dormir por duas horas não era realmente uma opção, não com tanta coisa pesando sobre sua cabeça. Tinha levado o livro do crime e as pastas acumuladas para
casa. Decidiu que era melhor trabalhar. Sabia que, quando tudo mais ia errado, sempre havia o livro do crime. Tinha que conservar os olhos fixos no prêmio. O caso.
Preparou a cafeteira elétrica, tomou uma chuveirada de cinco minutos e depois foi trabalhar, relendo o livro do crime, com uma versão remasterizada de Kind ofBlue
tocando ao fundo no aparelho de CD.
A sensação de que deixara passar alguma coisa, que o perseguia desde o princípio, fez-se presente de novo. Ele sentiu que seria assombrado pelo caso, que o carregaria
em sua mente para sempre, a menos que conseguisse descobrir o que estava faltando. Sabia também que, se ia encontrar isso em alguma parte, só poderia ser no livro.
Decidiu que desta vez não leria os documentos na ordem em que tinham sido colocados pelos primeiros investigadores do caso. Abriu os anéis de aço centrais que seguravam
as folhas e tirou todos os documentos. Depois começou a reler em ordem aleatória, demorando-se, assegurando-se de que absorvia cada nome, cada palavra, cada foto.
Quinze minutos mais tarde, estava examinando de novo as fotos da cena do crime tiradas no quarto de dormir de Rebecca Verloren, quando ouviu a porta de um carro
bater diante de sua casa. Curioso para ver quem estaria estacionando ali tão cedo,
levantou-se e foi até a porta. Pelo olho mágico, viu um homem se aproximando sozinho.
Era difícil vê-lo com clareza através da lente convexa do olho mágico. Bosch abriu a porta de qualquer maneira, antes que o homem tivesse chance de bater.
O homem cuja aproximação fora observada não se surpreendeu. Pelo seu jeitão, Bosch podia dizer que era tira.
- McClellan? Ele assentiu.
- Tenente McClellan. E eu presumo que você seja o detetive Bosch.
- Você podia ter telefonado.
Bosch recuou para deixar que o outro homem passasse. Nenhum dos dois teve a iniciativa de um cumprimento. Bosch considerou típico de Irving mandar um homem à sua
casa. Procedimento padrão na estratégia de intimidação tipo sei-onde-é-que-você mora.
- Achei que seria melhor conversarmos cara a cara - disse McClellan.
- Você pensou? Ou foi o chefe Irving que pensou? McClellan era um homem grande, com o cabelo cor de areia
quase transparente e bochechas amplas e rubicundas. Bosch achou que uma boa descrição dele seria "bem-alimentado". Suas bochechas ganharam um pouco mais de cor quando
ele ouviu a pergunta de Bosch.
- Olhe, estou aqui para cooperar com você, detetive.
- Ótimo. Posso lhe oferecer alguma coisa? Tenho água.
- Água será ótimo.
Bosch entrou na cozinha, escolheu o copo mais empoeirado que havia no armário e encheu-o com água da torneira. Desligou a cafeteira. Não ia dar boa vida a McClellan.
Quando retomou à sala, McClellan estava apreciando a paisagem através da porta de correr e além do deque. O ar estava claro. Mas ainda era cedo.
- Bela vista - disse McClellan.
- Eu sei. Não vejo nenhuma pasta ou documento na sua mão, tenente. Espero que não seja uma visita social ou do tipo daquelas que você fez a Robert Verloren 17 anos
atrás.
McClellan virou-se para Bosch e aceitou o copo d'água e o insulto com a mesma expressão vazia.
- Não há pastas ou documentos. Se havia, desapareceram muitos anos atrás.
- O que é então? Você está aqui para tentar me convencer com suas lembranças?
- Para dizer a verdade, eu me lembro muito bem daquele período. Você tem que compreender uma coisa: eu era um detetive de Primeiro grau designado para trabalhar
na PDU. Se me davam um
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trabalho para fazer, eu fazia. Você não questiona o comando numa situação dessas. Você vai lá e faz, ou está fora.
- Então você era apenas um bom soldado cumprindo seu dever. Entendo. O que me diz dos Chatsworth Eights e do caso Verloren? O que me diz dos álibis?
- Havia oito personagens principais nos Eights. Inocentei todos eles. E não pense você que os inocentei só porque me deu na telha. Mandaram que eu visse se algum
daqueles baderneiros podia estar envolvido. E foi o que eu fiz, e descobri que todos estavam limpos. Pelo menos em se tratando de homicídio.
- Fale-me sobre William Burkhart e Roland Mackey. McClellan sentou-se na poltrona ao lado da televisão e deixou
o copo d'água, ainda cheio, na mesa de centro. Bosch desligou Miles Davis no meio de "Freddie Freeloader" e permaneceu de pé, com as mãos nos bolsos, perto das portas
de correr.
- Bem, em primeiro lugar, Burkhart foi fácil. Nós já o estávamos vigiando naquela noite.
- Explique isso.
- Ele tinha acabado de sair de Wayside poucos dias antes. Recebemos uma dica de que ele estava a fim de reavivar a questão racial, de modo que achamos prudente ficar
de olho nele para ver se ia querer começar tudo de novo.
- Quem ordenou isso?
McClellan limitou-se a olhar para Bosch.
- Irving, claro - respondeu o próprio Bosch. - Tinha que fazer respeitar o trato. Então a PDU estava vigiando Burkhart. Quem
maic f
mais:
- Quand saiu, Burkhart juntou-se a dois caras do grupo antigoUm chamado Withers, e o outro, Simmons. Parecia que planejavam algo, mas na noite em questão eles ficaram
em um salão de sinuca na avenida Tampa bebendo até cair chapados. Um álibi sólido. Dois agentes secretos estiveram com eles o tempo todo. E isso que estou aqui para
lhe dizer. Todos eles tinham álibis sólidos.
- É mesmo? Bem, agora me fale de Mackey. A PDU não o esta' vá vigiando, estava?
- Não, Mackey, não.
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- Então, como o álibi dele era sólido?
- O que me lembro de Mackey é que, na noite em que a garota foi levada da sua casa, ele estava na Chatsworth tendo aula. Ele estudava à noite, queria obter seu diploma
de ensino médio.
- Na verdade, era o do supletivo. Não é exatamente a mesma coisa que um diploma de ensino médio.
- É verdade. Um juiz determinou que ele obtivesse o diploma como imposição da condicional. Só que ele tinha que ser aprovado e não estava indo bem. E por isso recebia
aulas de reforço nas noites de folga - as noites em que não havia aulas comuns. E na noite em que a menina foi seqüestrada ele estava com seu tutor. Eu confirmei
isso.
Bosch sacudiu a cabeça. McClellan estava tentando enganá-lo com aquele papo furado todo.
- Você está querendo me dizer que Mackey teve aula com seu tutor no meio da noite? Ou está querendo me tapear ou acreditou nas mentiras de Mackey e do seu tutor.
Quem era esse tutor?
- Não, não, eles estiveram juntos mais cedo. Não me lembro do nome do cara agora, mas eles tinham acabado lá pelas
11h e depois saíram tomando direções diferentes.
Mackey foi para casa.
Bosch ficou atônito.
- Isso não é álibi, tenente! Duas da manhã, foi a hora em que ela morreu. Você não sabia disso?
- Claro que sabia. Mas a hora da morte não era o único ponto do álibi. Eu recebi os relatórios das investigações feitas pelo pessoal que trabalhou no caso. Não houve
entrada forçada na casa. E o pai tinha feito uma ronda e verificado todas as portas e janelas depois que chegou em casa às 22h. Isso significa que o assassino já
deveria estar dentro da casa nessa hora. Ele estava lá dentro escondido, esperando que todos fossem dormir.
Bosch sentou-se no sofá e inclinou-se para a frente, cotovelos sobre os joelhos. De repente percebia que McClellan estava certo e que tudo era diferente. Ele vira
os mesmos relatórios que McClellan vira 17 anos antes, mas não registrara seu significado. O assassino estava dentro da casa na hora em que Robert Verloren chegara
do trabalho.
324
Aquilo mudava muita coisa, Bosch sabia. Mudava não só o modo como via a primeira investigação, como também a sua própria investigação.
Sem se dar conta do turbilhão interior de Bosch, McClellan continuou.
- Assim, Mackey não poderia ter chegado na casa antes do pai da menina, porque estava com seu tutor. Inocentado. Todos aqueles moleques tinham que ser inocentados.
Assim, fiz um relatório verbal ao meu chefe, que depois falou com os dois caras que trabalhavam no caso. E isso foi o fim de tudo, até que esse negócio de amostra
de DNA surgiu.
Bosch estava balançando a cabeça afirmativamente enquanto ouvia o que McClellan dizia, mas na verdade pensava em outras coisas.
- Se Mackey estava limpo, como você explica a existência do seu DNA na arma do crime?
McClellan pareceu estupefato. Sacudiu a cabeça.
- Não sei o que dizer. Não posso explicar isso. Eu o inocentei de envolvimento no crime, mas ele deve...
Não completou a frase. Bosch achou que ele devia estar realmente magoado com a idéia de que podia ter ajudado um assassino, ou no mínimo a pessoa que fornecera a
arma para a execução de um crime, a se safar. Foi como se, de repente, ele tivesse sabido que tinha sido corrompido por Irving. Pareceu esmagado.
- Irving ainda está planejando levar tudo isso ao conhecimento da mídia e da Corregedoria? - perguntou Bosch em voz baixa.
McClellan sacudiu a cabeça vagarosamente.
- Não. Ele me pediu que eu lhe desse o recado. Que um acordo só é um acordo se os dois lados cumprirem o combinado. Ponto final.
- Uma última pergunta - disse Bosch. - A caixa de evidências do caso Verloren desapareceu. Sabe de alguma coisa a esse respeito?
McClellan encarou-o. Bosch viu que tinha insultado muito o homem.
- Eu tinha que perguntar - explicou-se.
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- Tudo o que sei é que essas coisas desapareceram do lugar em que estavam - disse McClellan com a mandíbula tensa. - Qualquer um pode ter sumido com ela nesses
17 anos. Mas não fui eu.
Bosch assentiu e se levantou.
- Bem, tenho que voltar a trabalhar nesse caso - disse.
McClellan entendeu a deixa e levantou-se. Parecia ter engolido a raiva causada pela última
pergunta, talvez aceitando a explicação de Bosch de que tinha que ter perguntado. - Está certo, detetive - disse ele. - Boa sorte com esse caso. Espero
que pegue o cara. E estou falando sério. Ele estendeu a mão para Bosch. Bosch não conhecia a história dele. Não conhecia todas as circunstâncias de sua
vida na PDU em 1988. Mas pareceu-lhe que McClellan estava saindo de sua casa com um fardo maior do que aquele que trouxera consigo ao entrar. Assim, Bosch
decidiu que podia apertar sua mão.
Depois que McClellan saiu, Bosch sentou-se de novo, pensando naquela idéia de assassino de Rebecca Verloren ter se escondido
dentro da casa. Levantou-se e foi até a mesa da sala de jantar, onde Ptinha espalhado os arquivos do livro do crime. As fotos do quarto da menina morta estavam
no centro. Ele procurou nos relatórios até encontrar o do investigador da cena do crime sobre a análise de impressões digitais ocultas.
O documento tinha diversas páginas e continha a análise de diversas impressões digitais colhidas em superfícies na casa dos Verloen. O resumo principal
concluía que nenhuma das digitais colhidas na casa era desconhecida, e, sendo provável portanto que o suspeilo ou suspeitos tivessem usado luvas ou simplesmente
evitado tocar em superfícies que retivessem impressões. Desta vez, Bosch leu o relatório de forma diferente e na sua totalidade. Desta vez, ele não estava
interessado em análises. Queria saber onde os técnicos tinham procurado impressões digitais.
O documento era datado de um dia depois da descoberta do corpo de Rebecca. Detalhava uma busca de rotina de impressões digitais em uma casa de família. Todas as
superfícies externas foram laminadas. Todas as maçanetas e trincos. Peitoris e esquadrias. Todo lugar que fosse lógico pensar que o assassino/seqüestrador
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pudesse ter tocado durante o crime. Diversas impressões nos peitoris e trincos foram recuperadas e definidas como pertencentes a Robert Verloren, mas o relatório
afirmava que não tinha sido possível colher impressões de boa qualidade das maçanetas da casa. Uma observação dizia que isso não era raro, porque, quando a maçaneta
é acionada, normalmente as impressões digitais ficam borradas.
Foi no que não tinha sido incluído no relatório que Bosch viu a abertura através da qual o assassino podia ter escapado. A equipe da cena do crime tinha entrado
na casa um dia depois que o corpo da vítima fora descoberto. Então, o caso já tinha sido interpretado erradamente duas vezes: primeiro, como sendo de pessoa desaparecida;
segundo, como suicídio. Além de tudo isso, quando finalmente fora montada uma investigação de homicídio, a equipe de busca de digitais ocultas foi mandada às cegas.
Não havia compreensão do que significava o caso àquela altura. A busca de impressões digitais e outras evidências, como cabelos ou fibras, nunca ultrapassou os limites
do óbvio, nunca foi além da superfície das coisas.
Bosch sabia que era tarde demais agora. Muitos anos tinham se passado. Um gato vagava pela casa, e quem sabe quantos objetos de venda de garagens tinham entrado
e saído da casa onde um dia um assassino tinha se escondido e aguardado.
Seus olhos caíram então na seqüência de fotos em cima da mesa, e ele percebeu algo. O quarto de Rebecca era o único que não tinha sido contaminado com a passagem
do tempo. Era como um museu, com seu trabalho de arte embalado e quase que hermeticamente lacrado.
Bosch espalhou as fotos do quarto à sua frente. Alguma coisa a respeito daquelas fotos o vinha corroendo desde a primeira vez que as vira. Ainda não conseguia definir
o que era, mas sentia sua urgência, fosse o que fosse. Estudou as fotos da escrivaninha e da mesinha-de-cabeceira, e depois as do armário aberto. Por fim examinou
a cama.
Lembrou da foto que tinha sido publicada e pegou o segundo exemplar do jornal na pasta que continha todos os relatórios e documentos acumulados durante a reinvestigação
do caso. Desdobrou
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o jornal e estudou a foto tirada por Emmy Ward, comparando-a depois com as fotos tiradas 17 anos antes.
O quarto parecia exatamente o mesmo, como se não tivesse sido tocado pela dor que dele emanava, da mesma forma que o calor emana de um forno. Depois notou uma pequena
diferença. Na foto do Daily News, a cama fora cuidadosamente alisada e endireitada antes por Muriel. Nas fotos mais antigas, tiradas pelo pessoal da cena do crime,
a cama fora feita, mas a saia pregueada que dava o acabamento da roupa de cama até o chão estava afofada para fora em um dos lados da cama e para dentro no pé.
Os olhos de Bosch moveram-se para trás e para a frente, de uma foto para outra. Ele sentiu que algo se soltava dentro dele. O sangue circulou mais depressa. Fora
aquilo que o incomodara. O detalhe que não estava certo.
- Para dentro e para fora - disse, falando sozinho.
Era possível, ele sabia, que a saia pregueada tivesse sido empurrada para baixo no pé da cama por alguém que rastejasse para se esconder ali. Da mesma forma, era
possível que a saia tivesse sido afofada para fora no lado da cama quando a mesma pessoa tivesse deslizado ou rastejado para sair.
Depois que todo mundo estivesse dormindo.
- Para dentro e para fora - disse Bosch de novo. Continuou estudando. Sabia que não tinham sido encontradas
na casa digitais capazes de serem lidas. Mas somente superfícies óbvias tinham sido examinadas. Isso não significava necessariamente que o assassino usara luvas.
Significava apenas que fora esperto o bastante para não tocar em lugares óbvios com as mãos nuas, ou borrara as impressões digitais quando necessário. Mesmo que
tivesse usado luvas ao entrar na casa, será que não as teria removido enquanto esperava - possivelmente por horas - debaixo da cama?
Valia a pena uma tentativa. Bosch foi até a cozinha, ligou para a SID, uma divisão especializada na investigação de cenas de crimes, e pediu para falar com Raj Patel.
- Raj, o que é que você está fazendo?
- Catalogando as evidências que reunimos ontem à noite na via expressa.
328
- Preciso do seu melhor homem em busca de digitais para se encontrar comigo em Chatsworth.
- Agora?
- Agora mesmo, Raj. Pode ser que mais tarde eu não tenha sequer um emprego. Temos que fazer isso agora.
- E o que é que vamos fazer?
- Quero levantar uma cama e examinar debaixo. É importante, Raj. Se encontrarmos algo, isso nos levará ao assassino.
Houve um curto silêncio, até que Patel respondeu.
- Eu sou o meu melhor homem de digitais, Harry. Qual é o endereço?
- Obrigado, Raj.
Ele deu o endereço a Patel e desligou o telefone. Tamborilou os dedos no balcão da cozinha, pensando se deveria chamar Kiz Rider. Ela estava tão angustiada e desencorajada
quando saíram do Parker Center, que afirmara só querer ir para casa dormir. Deveria acordá-la no segundo dia depois disso? Sabia que não era esta realmente a pergunta.
A pergunta era se deveria esperar para saber se havia alguma coisa debaixo da cama antes de contar a ela e reno-
var suas esperanças.
Decidiu não telefonar enquanto não tivesse algo de concreto para lhe dizer. Assim, pegou o telefone e ligou para Muriel Verloren. Disse-lhe que estava a caminho.
Capítulo 36
Bosch chegou atrasado à reunião da equipe no Pacific Dining Car, por causa do trânsito que vinha do Vale. Todos estavam acomodados em uma área privada nos fundos
do restaurante. Muitos já tinham diante de si os pratos de comida.
Sua empolgação devia ser evidente. Pratt interrompeu um relatório de Tim Mareia para olhar para Bosch e dizer:
- Ou você teve sorte durante o tempo em que esteve fora ou simplesmente não liga a mínima para o mar de merda em que estamos afundados.
- Eu tive sorte - disse Bosch, pegando a única cadeira vazia e sentando-se. - Mas não como você está imaginando. Raj Patel acaba de colher a impressão de uma palma
de mão e dois dedos num sarrafo de madeira que estava embaixo da cama de Rebecca Verloren.
- Muito bom - disse Pratt secamente. - E o que isso significa?
- Significa que, assim que Raj fizer a comparação com o que há
nos bancos de dados, talvez tenhamos o nosso assassino.
- Como assim? - perguntou Rider.
Bosch não chegara a ligar para ela. Pôde sentir uma vibração hostil em sua voz.
- Eu não quis acordá-la - disse Bosch à sua parceira. Depois, para os outros: - Eu estava examinando o relatório original sobre digitais ocultas no registro do crime.
Verifiquei que os técnicos
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foram colher as impressões no dia seguinte àquele em que o corpo da menina foi encontrado. Não voltaram lá depois que se tornou uma forte possibilidade a hipótese
de o seqüestrador ter entrado na casa mais cedo, quando a garagem ainda estava aberta, e se escondido em algum lugar até que todos dormissem.
- Por que a cama? - quis saber Pratt.
- As fotos da cena do crime mostravam que a saia pregueada que dá o acabamento da coberta da cama tinha sido empurrada para dentro. Como se alguém tivesse rastejado
por ali. O pessoal não viu porque não era isso que estava sendo procurado.
- Bom trabalho, Bosch - disse Pratt. - Se Raj conseguir encontrar uma equivalência perfeita, nós mudamos de rumo e vamos em frente. Tudo bem, voltemos aos nossos
relatórios. Você pode checar com sua parceira, para ver o que perdeu até agora.
Pratt se virou então para Robinson e Nord na outra ponta da mesa comprida e disse:
- O que foi que vocês conseguiram na questão do pedido do caminhão-reboque?
- Nada que ajude muito - respondeu Nord. - O telefonema entrou depois que tínhamos transferido o monitoramento para a linha da casa de Burkhart, e por isso não temos
uma gravação dele. Mas temos a listagem dos telefonemas que foram dados, e nela
pode-se ver que a ligação foi diretamente para a Tampa Reboques antes de ser transferida
para o serviço de atendimento do Automóvel Clube. A ligação foi feita em um telefone público ao lado do SevenEleven na avenida Tampa, perto do acesso da via expressa.
Ele provavelmente deu o telefonema, depois se dirigiu para a rampa de acesso e ficou lá esperando.
- Digitais no telefone?
- Pedimos a Raj para dar uma olhada depois que ele liberou a cena do crime - respondeu Robinson. - O telefone foi limpo.
- Dá para imaginar - disse Pratt. - Você falou com o Automóvel Clube?
- Falei. A única ajuda foi dizerem que a pessoa que ligou era um homem.
Ele virou-se para Bosch.
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- Você tem mais alguma coisa para nos dizer que a sua parceira não nos tenha contado?
- Provavelmente só mais uns detalhes. Parece que Burkhart estava limpo ontem à noite, da mesma forma que no caso Verloren Em ambas as noites ele estava, por acaso,
sob vigilância do DPLA.
Rider fechou a cara de novo para Bosch. Ele tinha ainda mais informações que ela não sabia. Bosch desviou os olhos.
- Bem, é simplesmente perfeito - disse Pratt. - Então, o que isso nos deixa, pessoal?
- Bem, basicamente o nosso plano de plantar a-notícia no jornal produziu efeito contrário ao desejado - disse Rider. - Pode ter funcionado no que diz respeito a
fazer com que Mackey quisesse falar sobre Verloren, mas ele nunca teve a chance. Uma outra pessoa leu a história.
- Essa outra pessoa sendo o verdadeiro assassino.
- Exatamente - concordou Rider. - A pessoa a quem Mackey ajudou e/ou deu a arma 17 anos atrás. Essa pessoa também viu a história e sabia que não era o seu sangue
que estava na pistola, que só podia ser então de Mackey. Mackey, portanto, era a ligação com ele, e por isso teria que morrer.
- Como foi que ele montou o esquema para matar Mackey?
- Ou ele foi esperto o bastante para deduzir que a história publicada no jornal era plantada e que nós estaríamos de olho em Mackey, ou simplesmente concluiu que
o melhor meio para tirar Mackey do caminho era o que usou. Conseguir pegá-lo sozinho. Como eu disse, o tipo é esperto. Escolheu lugar e hora em que Mackey estaria
sozinho e vulnerável. Na rampa de entrada você está em um nível superior ao da via expressa. Mesmo com os faróis do caminhão acesos, ninguém veria quem se encontrava
mais acima.
- Era também uma boa localização para o caso de Mackey estar sendo seguido - acrescentou Nord. - O criminoso sabia que o carro que seguisse o caminhão teria que
passar direto, e então ele teria Mackey sozinho.
- Vocês não estão dando crédito demais a esse sujeito? - indagou Pratt. - Como ele poderia saber que os tiras estavam de olho em Mackey? Só por causa de um artigo
de jornal? Esqueçam.
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Nem Bosch nem Rider responderam, e todo mundo digeriu silenciosamente a sugestão silenciosa de que o assassino tinha uma ligação com o departamento ou, mais especificamente,
com a investigação.
- Muito bem, o que temos mais? - perguntou Pratt. - Acho que o silêncio a respeito disso tudo vai durar no máximo mais 24 horas. Depois o caso vai para os jornais
e para o sexto andar. Se não resolvermos isso antes, podem ter certeza de que vai haver choro e ranger de dentes. O que fazemos?
- Pegamos o registro dos telefonemas - disse Bosch, falando por si e por Rider. - E começamos de lá.
Ele andara pensando no bilhete destinado a Mackey que vira na mesa do posto de gasolina na véspera. Um telefonema para confirmar o emprego numa proposta do Visa.
Como observara Rider ao saber disso, Mackey não era homem de andar por aí deixando o rastro de um cartão de crédito. Era algo que não combinava.
- Temos aqui todos os registros impressos - disse Robinson. A linha mais movimentada era a do posto. Todos os tipos de chamados comerciais.
- OK, Harry, Kiz, vocês querem os registros? Rider olhou primeiro para Bosch e depois para Pratt.
- Se é o que Harry quer - respondeu ela. - Ele parece estar em uma maré de sorte hoje.
Como se obedecesse a uma deixa, o celular de Bosch começou a tocar. Ele olhou para a tela. Era Raj Patel.
- Vamos ver a qualidade da minha maré de sorte agora - disse, ao abrir o telefone.
Patel disse que tinha uma notícia boa e outra má.
- A boa notícia é que ainda temos em nossos registros as digitais do pessoal da casa. As digitais ocultas que detectamos esta manhã não batem com nenhuma delas.
Você encontrou alguém novo, Harry. Pode ser que seja o seu assassino.
Aquilo significava que as amostras das impressões digitais da família Verloren e pessoas amigas que freqüentavam a casa com acesso apropriado ainda estavam guardadas
no laboratório de impressões da SID. E nenhuma delas correspondia às impressões de
333
dedos e palma da mão recuperadas naquela manhã. E claro que impressões digitais não podem ser datadas, e era possível que as impressões achadas naquela manhã tivessem
sido deixadas por quem tivesse montado a cama. Mas parecia improvável. Elas tinham sido colhidas do lado de dentro de um sarrafo de madeira. Parecia muito provável
que seu dono tivesse estado debaixo da cama.
- E a má notícia? - perguntou Bosch.
- Acabei de comparar as impressões encontradas hoje com todas as existentes no sistema da Califórnia. Nenhuma equivalência
- E o FBI?
- É o próximo passo, mas não será tão rápido. Eles têm que processar o meu pedido. vou insistir para que o serviço seja feito com urgência, mas você sabe como essas
coisas funcionam.
- Eu sei, Raj. Ligue para mim quando souber o resultado. E obrigado pelo esforço.
Bosch fechou o telefone. Sentia um abatimento profundo, e seu rosto o demonstrava, o que fez com que os outros adivinhassem qual tinha sido o resultado antes que
ele abrisse a boca para dar a notícia.
- Não foi encontrada nenhuma equivalência no banco de dados do DOJ - disse ele. - Vão tentar o banco do FBI, mas vai demorar um pouco.
- Merda! - exclamou Renner.
- Por falar em Raj Patel - disse Pratt -, o irmão dele programou a necropsia para as
11h de hoje. Quero uma equipe nossa lá. Quem se apresenta?
Renner levantou frouxamente a mão. Ele e Robleto iam assistir. Era uma missão fácil, se não se ligasse para o visual.
A reunião foi interrompida depois que Pratt designou Robinson e Nord para o posto de gasolina, onde deveriam interrogar as pessoas com quem Mackey trabalhara. Mareia
e Jackson iam começar a reunir os relatórios para a montagem do livro do crime relativo ao assassinato de Mackey. Ainda eram os investigadores principais e comandariam
as ações da sala 503.
Pratt examinou a conta, dividiu por nove e disse a todos que entrassem com dez dólares cada. Significava que Bosch teria que
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entrar com sua parte mesmo que não tivesse tomado nem um cafezinho. Ele não protestou. Era o preço que pagava por ter chegado tarde e por ser o cara que os colocara
naquela situação.
Quando todo mundo se levantou, ele atraiu o olhar de Rider.
- Você veio diretamente para cá ou pegou carona com alguém?
- Abel me deu uma carona.
- Quer voltar comigo?
- Claro.
Do lado de fora do restaurante, ela guardou silêncio enquanto esperavam que o manobrista trouxesse o carro dele. Ficou olhando para o grande boi de plástico que
ficava no topo do cartaz do restaurante. Tinha debaixo do braço um arquivo com as relações dos telefonemas dados ou recebidos nos números autorizados pela juíza.
Finalmente o carro chegou e eles entraram. Antes de sair do estacionamento, Bosch virou-se para ela.
- Tudo bem, pode falar - disse ele.
- Dizer o quê?
- O que está querendo dizer para se sentir melhor.
- Você deveria ter me telefonado, Harry, mais nada.
- Olhe, Kiz, eu a chamei ontem, e você não gostou. Só agi segundo uma experiência recente.
- Desta vez foi diferente, e você sabe. Você me telefonou ontem porque estava empolgado com alguma coisa. Hoje tratava-se de seguir uma pista. Eu deveria ter ido
com você. E não tomar conhecimento da sua descoberta só na hora em que você apareceu e contou para todo mundo. Foi embaraçoso, Harry. Obrigado por ter me deixado
tão sem graça.
Bosch balançou a cabeça em sinal de contrição.
- Você tem razão. Eu devia ter ligado quando estava indo para a reunião. Simplesmente esqueci. Sabia que estava atrasado, tinha ambas as mãos no volante e só queria
chegar.
Ela não disse nada, e ele finalmente perguntou:
- Podemos voltar a resolver o caso agora?
Ela encolheu os ombros, e ele finalmente engrenou o carro. No caminho para
o Parker Center, tentou passar-lhe todos os detalhes
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que não mencionara durante a reunião no restaurante. Contou a visita de McClellan à sua casa, e como isso o tinha levado à descoberta das impressões digitais debaixo
da cama.
Vinte minutos mais tarde, estavam de volta ao cubículo em que trabalhavam na sala 503. Bosch finalmente tinha uma xícara de café à sua frente. Os dois se sentaram
diante um do outro e abriram os formulários com o registro dos telefonemas de entrada e saída entre eles.
Bosch concentrou-se nos telefonemas do posto de gasolina. A listagem tinha pelo menos uns duzentos telefonemas registrados saindo ou entrando dos dois telefones
do posto - entre as 6h, quando começara a escuta, e as 16h, quando Mackey se apresentara para trabalhar, e Renner e Robleto passaram a monitorar a linha pessoalmente.
Bosch examinou tudo; assim de pronto, nada lhe pareceu familiar. Muitos dos telefonemas tinham alguma relação comercial claramente evidente no nome do assinante.
Muitos outros vinham do centro de atendimento da Automóvel Clube, e eram, provavelmente, pedidos de reboque.
Havia diversas chamadas oriundas de telefones pessoais. Bosch examinou detidamente cada nome, mas nada lhe atraiu a atenção. Nenhuma das pessoas que apareciam ali
era um dos atores definidos do caso.
Havia quatro registros na listagem atribuídos ao Visa, todos com o mesmo número. Bosch pegou o telefone e ligou para lá. Não ouviu a campainha tocar. A única coisa
que ouviu foi o ruído barulhento típico de uma ligação com um computador. Foi tão alto que até mesmo Rider escutou.
- Que foi isso? Bosch desligou.
- Não sei. Há quatro registros do Visa, mas... espere um minuto. Ele percebeu que os telefonemas do Visa eram de saída.
- Esquece, eram ligações de saída. Esse deve ser o número que a máquina liga quando você usa o cartão de crédito para pagar. Não é isso. Não há telefonema de entrada
listado como oriundo do Visa.
Bosch pegou o telefone de novo e ligou para o celular de Nord.
- Vocês ainda estão no posto de gasolina?
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Ela deu uma risada.
- Mal acabamos com Hollywood. Estaremos lá em meia hora
- Quando chegarem lá, pergunte a eles a respeito de uma mensagem telefônica para Mackey ontem. Algo sobre confirmar um pedido de crédito. Pergunte o que se lembram
do telefonema e, mais importante, a que horas foi dado. Tente conseguir a hora exata, se for possível. Faça essas perguntas assim que chegar, e depois ligue para
mim.
- Sim, senhor. Vai querer também que apanhemos sua roupa na lavanderia?
Bosch percebeu que aquela seria uma péssima manhã para ofender alguém.
- Desculpe - disse ele. - Estamos trabalhando aqui na maior pressão.
- E não estamos todos nós? Eu telefono assim que falarmos com
o cara.
Nord desligou. Bosch pôs o telefone de lado e olhou para Rider. Ela examinava o retrato de Rebecca Verloren no anuário que tinham pegado na escola.
- O que está pensando? - perguntou ela sem olhar para Bosch.
- Esse negócio do Visa me preocupa.
- Eu sei, mas o que está pensando?
- Bem, supondo que você seja o criminoso e que conseguiu a arma com Mackey.
- Está desistindo completamente de Burkhart? Você ontem estava achando que fosse ele.
- Digamos que os fatos estejam me persuadindo. Por ora, OK?
- OK, continue.
- Está bem, então você é o criminoso e conseguiu a pistola com Mackey. Mackey é a única pessoa do mundo que pode indiciar você. Só que 17 anos se passaram e nada
jamais aconteceu. Você se sente segura e talvez nem saiba mais onde ele viva.
-OK.
- Então, você pega o jornal ontem, vê o retrato de Rebecca, lê a história e fica sabendo que a polícia tem o DNA do criminoso. Mas você sabe que o sangue não é o
seu, de modo que só pode ser
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um grande blefe dos tiras, ou então é o sangue de Mackey. É nessa hora que você decide.
- Que Mackey tem que morrer.
- Exatamente. Os tiras estão chegando perto. Ele tem que sumir. Mas como encontrá-lo? Bem, Mackey passou sua vida inteira
- quando não estava na cadeia - dirigindo um caminhão-reboque. Se você sabia disso, faz exatamente o que nós fizemos. Pega as Páginas Amarelas e começa a ligar para
as companhias que prestam serviço de reboque.
Rider levantou-se e foi para a série de arquivos de aço que se alinhavam ao longo da parede de trás do cubículo. Os catálogos telefônicos estavam empilhados de qualquer
maneira em cima deles. Ela teve que ficar na ponta dos pés para pegar o referente ao Vale. Voltou e abriu nas páginas anunciando serviços de reboque. Correu o dedo
pela listagem até alcançar o Tampa Reboques, onde Mackey tinha trabalhado. Recuou para a empresa que aparecia na listagem antes da Tampa, uma companhia chamada Serviços
de Reboque Missão Difícil. Pegou o telefone e ligou para lá. Bosch ouviu apenas o lado dela da conversa.
- Por favor, com quem estou falando? Ela aguardou um momento.
- Meu Nome é Kizmin Rider, do Departamento de Polícia de Los Angeles. Estou investigando um caso de fraude e gostaria de saber se você pode responder a uma pergunta.
Rider balançou a cabeça quando evidentemente responderam com um sim.
- O suspeito que estou estudando costuma telefonar para empresas e se identificar como empregado do Visa. Depois, tenta confirmar o emprego de alguém dizendo que
é exigência de uma empresa de cartão de crédito. Isso faz com que se lembre de algo? Temos uma informação de que esse indivíduo atuou no Vale ontem. Ele gosta de
atacar empresas automotivas.
Rider esperou enquanto ouvia a resposta à sua pergunta. Olhou para Bosch, mas não deu indicação de nada.
- Sim, pode pô-la na linha, por favor?
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Rider repetiu a ladainha toda com essa outra pessoa e fez a mesma pergunta. Então inclinou-se um pouco para a frente e pareceu tomar uma postura mais tensa. Cobriu
o bocal com a mão e olhou para Bosch.
- Bingo - disse ela.
Retornou a atenção ao telefonema e ouviu mais um pouco.
- Homem ou mulher? Escreveu qualquer coisa.
- E a que horas foi isso?
Fez outra anotação, e Bosch levantou-se para ter condições de ler o que ela escrevera. Leu "homem, aproximadamente 13h30" em um bloco de rascunho. Enquanto ela prosseguia
com o telefonema, ele consultou o registro dos telefonemas e viu que entrara um telefonema na Tampa Reboques às 13h40. Era de um número pessoal. O prefixo indicava
que se tratava de um celular. Nem o nome nem o número queriam dizer alguma coisa para Bosch. Mas isso não importava. Ele concluiu que estavam chegando perto de algo.
Rider terminou a ligação perguntando se a sua interlocutora se lembrava do nome que o suposto empregado do Visa tentara confirmar. Depois de ter evidentemente obtido
uma resposta negativa, ela perguntou: "O que você me diz do nome Roland Mackey?"
Esperou.
- Tem certeza? - perguntou. - OK, muito obrigada pelo seu tempo, Karen.
Ela desligou e olhou para Bosch. A empolgação nos seus olhos apagou tudo o que restara do problema da descoberta das impressões digitais.
- Você tinha razão. Eles receberam um telefonema. Mesma coisa. Ela inclusive lembrou o nome de Roland Mackey assim que eu disse. Harry, de alguma maneira alguém
estava seguindo Mackey o tempo todo em que o vigiávamos.
- E agora a situação vai se inverter e nós vamos rastrear essa pessoa. Se em sua busca a pessoa foi vindo de cima para baixo, a li' nha seguinte do catálogo era
da Tampa Reboques. O registro mostra um telefonema às 13h40, dado por alguém chamado Amanda
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Sobek. Não reconheço o nome, mas pode ser o telefonema que estamos procurando.
- Amanda Sobek - disse Rider, enquanto abria seu laptop. Vejamos o que o AutoTrack tem a seu respeito.
Enquanto Rider procurava o que havia sob aquele nome, Bosch recebeu um telefonema de Robinson, que chegara com Nord ao Tampa Reboques.
- Harry, o cara do turno do dia diz que a ligação foi feita entre
13h30 e 14h. Ele sabe porque foi justo quando voltava do almoço e teve que sair para um reboque às 14h. Pedido do Automóvel Clube.
- Quem ligou pelo Visa era homem ou mulher?
- Homem.
- OK, mais alguma coisa?
- Sim, tendo confirmado que Mackey trabalhava aqui, o cara do Visa perguntou qual era o horário dele.
- OK. Você pode fazer ao cara do turno do dia uma outra pergunta?
- Ele está bem aqui.
- Pergunte se ele tem uma cliente chamada Sobek. Amanda Sobek.
Bosch esperou enquanto a pergunta estava sendo feita. -Nada. Nenhum cliente com esse nome - respondeu Robinson.
- É boa notícia, Harry?
- Vai funcionar.
Depois de fechar o telefone, Bosch levantou-se e deu a volta para ver a tela do laptop de Rider. Contou a ela o que Robinson acabara de dizer.
- Alguma coisa sobre Amanda Sobek? - perguntou.
- Sim, aqui está. Mora na zona oeste do Vale, avenida Farralone, em Chatsworth. Mas não tem muita coisa aqui. Nada de cartões de crédito. Nada de hipoteca. Acho
que isso significa que está tudo em nome do marido. Ela pode ser uma dona de casa. Estou entrando pelo endereço para ver se levanto informações sobre ele.
Bosch abriu o anuário da classe de Rebecca Verloren e folheou as páginas à procura dos nomes Amanda ou Sobek.
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- Aqui está - disse Rider. - Mark Sobek. Tudo basicamente no nome dele, e parece ser um bocado de coisa. Quatro carros, duas casas, montes de cartões de crédito.
- Não havia ninguém chamado Sobek na classe dela - disse Bosch. - Mas havia duas garotas com o nome de Amanda, Reynolds e Riordan. Será que é uma delas?
Rider sacudiu a cabeça.
- Acho que não. Pela idade. Aqui diz que Amanda Sobek tem
41 anos. Isso a deixa oito anos mais velha que Rebecca. Alguma coisa não se ajusta. Acha que deveríamos simplesmente ligar para ela?
Bosch fechou o anuário com uma batida. Rider pulou na cadeira com o susto.
- Não - respondeu ele. - Vamos apenas sair.
- Para onde? Falar com ela?
- Exato. Hora de levantar o rabo da cadeira e meter o pé na estrada.
Ela fuzilou Bosch com um olhar que deixava bem claro não ter achado muita graça.
- Não estou me referindo especificamente ao seu rabo. É uma maneira de dizer. Vamos.
Ela começou a se levantar.
- Você está terrivelmente petulante para alguém que pode não ter mais um emprego no fim do dia.
- É o único modo de ser, Kiz. A escuridão espreita. Mas virá, não importa o que você faça.
Ele liderou o caminho na saída da sala.
Capítulo 37
O endereço da avenida Farralone fornecido pelo AutoTrack levou Bosch e Rider a uma mansão estilo mediterrâneo que deveria medir mais de quinhentos metros quadrados.
Tinha uma garagem separada com quatro portas de madeira escurecida, e janelas de uma suíte para hóspedes que ficava no segundo andar. Os detetives tiveram que ver
tudo isso através do portão de ferro trabalhado, enquanto esperavam que alguém atendesse o interfone. Finalmente foi ouvida uma voz na caixinha quadrada presa a
um poste ao lado da janela aberta de Bosch.
- Sim, quem é?
Voz de mulher. Parecia jovem.
- Amanda Sobek? - perguntou Bosch em resposta.
- Não, aqui é a assistente dela. Quem são vocês dois? Bosch olhou de novo e viu a lente da câmera. Estavam sendo
vistos, assim como ouvidos. Sacou o crachá e segurou-o a um palmo da lente.
- Polícia - disse. - Precisamos falar com Amanda ou Mark Sobek.
- A respeito de quê?
- Assunto policial. Abra o portão, por favor, minha senhora. Esperaram, e Bosch já estava a ponto de tocar o botão de novo,
quando o portão começou a se abrir vagarosamente. Eles entraram
342
343
e estacionaram na pista circular diante do pórtico de dois
andares.
- Talvez valha a pena matar o motorista de um caminhão-reboque para proteger um lugar como este - disse Bosch baixinho quando desligou o motor.
A porta foi aberta antes que eles chegassem lá por uma mulher de 20 e tantos anos. Usava saia e blusa brancas. A assistente.
- E você é? - perguntou Bosch.
- Melody Lane. Trabalho para a Sra. Sobek.
- Ela está? - indagou Rider.
- Sim, está se vestindo e já vai descer. Podem esperar na sala de estar.
Eles foram conduzidos pelo corredor de entrada, onde havia uma mesa com diversas fotos de família em exposição. A família parecia ser marido, mulher e duas filhas
adolescentes. Seguiram Melody até uma suntuosa sala de estar com imensas janelas dando para o Parque Estadual Santa Susana e para a Oat Mountain, mais além.
Bosch checou o relógio. Quase meio-dia. Melody notou.
- Ela não estava dormindo. Trabalhou mais cedo e foi tomar banho. Vai descer...
Não precisou terminar a frase. Uma mulher atraente de calça comprida branca e blusa aberta sobre uma camisa de gaze rosa entrou apressadamente na sala.
- O que é? Houve alguma coisa? Minhas filhas estão bem?
- A senhora é Amanda Sobek? - perguntou Bosch.
- Claro que sou. O que há de errado? Por que vocês estão aqui? Bosch apontou para o grupo de sofá e poltronas no centro da
Sala.
- Por que não nos sentamos, Sra. Sobek?
- Só quero que me diga se há algo de errado.
O pânico nas suas feições pareceu real a Bosch. Ele começou a pensar que tinham tomado a direção errada em algum ponto do caminho.
- Nada está errado - disse ele. - Não se trata de suas filhas. Suas filhas estão ótimas.
-É Mark?
- Não, Sra. Sobek. Tanto quanto tenhamos conhecimento, ele está bem. Vamos sentar.
Ela finalmente se acalmou e caminhou rapidamente para a poltrona grande ao lado direito do sofá. Bosch circulou em torno de uma mesinha de centro e sentou no sofá.
Rider ficou com uma das poltronas restantes, Bosch identificou-se e mostrou sua identidade de novo. Notou que o vidro do tampo da mesa não tinha uma única mancha.
- Estamos conduzindo uma investigação sobre a qual não posso lhe falar. Preciso lhe fazer algumas perguntas sobre seu telefone celular.
- Meu telefone celular? Vocês quase me matam de susto por causa do meu telefone celular?
- Na verdade, é uma investigação muito séria, Sra. Sobek. Seu celular está com a senhora?
- Na minha bolsa. Querem vê-lo?
- Não, ainda não. A senhora pode me dizer quando o usou ontem?
Sobek sacudiu a cabeça como se aquela fosse uma pergunta sem sentido.
- Não sei. De manhã, liguei para Melody, da academia. Não consigo me lembrar de quando. Fui para a loja e de lá telefonei para minhas filhas para ver se estavam
voltando para casa. Não consigo me lembrar de outra ligação que porventura tenha feito. Estive em casa o dia inteiro, a não ser pelo tempo em que fiquei na academia.
Em casa, não uso o celular, só o telefone fixo.
A apreensão de Bosch aumentava. Em algum ponto eles tinham feito um movimento errado.
- Alguma outra pessoa poderia ter usado o seu telefone? - quis saber Rider.
- Minhas filhas têm seus próprios telefones. Da mesma forma Melody. Não compreendo isso.
Bosch puxou a página da listagem dos telefonemas do bolso de dentro do paletó e leu em voz alta o número do telefone que tinha ligado para a Tampa Reboques.
- E o seu número? - perguntou ele.
344
- Não, é de minha filha. Kaitlyn.
Bosch inclinou-se um pouco para a frente. Aquilo mudava as coisas mais ainda.
- De sua filha? Onde ela estava ontem?
- Eu já disse. Na escola. E ela não usou o telefone até o final das aulas, porque é proibido na escola.
- Que escola ela freqüenta? - perguntou Rider.
- Hillside. Em Porter Ranch.
Bosch recostou-se no sofá e olhou para Rider. Alguma coisa acabara de fazer uma volta completa. Não podia garantir, mas sentia que se tratava de algo importante.
Amanda Sobek leu as expressões de seus rostos.
- O que foi? - perguntou. - Há alguma coisa de errado com a escola?
- Não que nós saibamos, minha senhora - respondeu Bosch. Em que ano está sua filha?
- No segundo.
- Ela tem uma professora chamada Bailey Sable? - quis saber Rider.
Sobek assentiu.
- Ela é sua professora de inglês e orientadora.
- Há alguma razão pela qual a Sra. Sable possa ter pedido emprestado o telefone de sua filha ontem? - perguntou Rider.
Amanda Sobek deu de ombros.
- Não consigo imaginar. Vocês têm que entender como tudo isso é estranho para mim. Todas essas perguntas. O telefone dela foi usado para fazer alguma ameaça ou algo
assim? Isso tem a ver com alguma atividade terrorista?
-Não, senhora - disse Bosch. - Mas é um assunto sério. Temos que ir à escola agora e conversar com sua filha. Gostaríamos que viesse conosco e estivesse lá enquanto
falamos com ela.
- Ela precisa de um advogado?
- Não creio que seja o caso, madame. Bosch levantou-se.
- Melody pode ir também? Quero que Melody me acompanhe.
- Escute, diga a Melody que nos encontre lá. Assim ela poderá trazê-la de volta se precisarmos ir a algum outro lugar.
Capítulo 38
O trajeto até a escola Hillside foi feito em silêncio. Bosch desejava falar com Rider, para discutir esta última guinada, mas não queria fazê-lo na presença de Amanda
Sobek. Assim, todos guardaram silêncio até que sua passageira perguntou se podia ligar para o marido, e Bosch disse que estava bem. Mas ela não conseguiu completar
a ligação e deixou um recado, em uma voz que beirava o histerismo, pedindo-lhe que a chamasse assim que pudesse.
Quando chegaram à escola, era hora de almoço. Ao entrarem no corredor principal que ia dar na administração, ouviram a turbulenta colisão de vozes que vinha da cafeteria.
A Sra. Atkins encontrava-se atrás do balcão de atendimento no escritório. Pareceu um pouco confusa quando viu Amanda Sobek na companhia dos dois detetives. Bosch
pediu para ver o diretor Stoddard.
- O Sr. Stoddard foi almoçar fora hoje - informou a Sra. Atkins.
- Há algo que eu possa fazer para ajudar?
- Sim, nós gostaríamos de ver Kaitlyn Sobek. A Sra. Sobek estará ao nosso lado quando falarmos com ela.
- Agora?
- Sim, Sra. Atkins. Agora. Eu ficaria agradecido se a senhora ou qualquer outro funcionário da escola pudesse
trazê-la. Será melhor se as outras crianças não a virem acompanhada pela polícia.
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- Eu posso ir buscá-la - ofereceu-se Amanda.
- Não - negou Bosch rapidamente. - Nós queremos ver as duas ao mesmo tempo.
Era um modo polido de dizer que não queria que ela questionasse a filha a respeito do celular antes que a polícia o fizesse.
- Eu vou à cafeteria e a encontro - disse a Sra. Atkins. - Podem usar a sala do diretor para a sua... conversa.
- Muito obrigado, Sra. Atkins - agradeceu Bosch.
Ela levou quase cinco minutos para voltar com Kaitlyn Sobek. Enquanto esperavam, Melody Lane chegou, e Bosch disse a Amanda que sua assistente teria que esperar
do lado de fora. A garota acompanhou Bosch, Rider e a mãe até a sala de espera do gabinete do diretor, onde havia uma mesa redonda com seis cadeiras.
Depois que todos se sentaram, Bosch fez um gesto para Rider, e ela assumiu. Achava que seria melhor que uma mulher conduzisse o interrogatório de uma garota, e Rider
compreendeu isso sem discussão. Ela explicou a Kaitlyn que estavam investigando um telefonema que tinha sido dado com o seu celular às 13h40 do dia anterior. A garota
interrompeu imediatamente.
- Impossível - falou.
- Por quê? - indagou Rider. - Tínhamos uma escuta eletrônica na linha que foi chamada. Não temos dúvida de que a ligação foi feita com o seu telefone.
- Eu estava na escola ontem. Não somos autorizadas a usar o telefone celular durante as aulas.
A garota parecia nervosa. Bosch era capaz de afirmar que estava mentindo, mas não conseguia imaginar no que poderia ser. Talvez estivesse mentindo porque a mãe se
encontrava na sala.
- Onde está o seu telefone neste instante? - perguntou Rider.
- Na mochila dentro do meu armário. E está desligado.
- Era lá que estava ontem às 13h40? -Era.
Ela desviou o olhar de Rider enquanto mentia. Era fácil ver o que estava pensando, e Bosch não tinha dúvida de que Rider estava tendo a mesma impressão que ele.
347
- Kaitlyn, isto é uma investigação muito séria - disse Rider em tom conciliador. - Se você estiver mentindo para nós, poderá se meter numa encrenca grande.
- Kaitlyn, não minta! - ordenou Amanda Sobek vigorosamente.
- Sra. Sobek, vamos permanecer calmos - disse Rider. - Kaitlyn, essa escuta eletrônica de que falei produz registros computadorizados que não mentem. Seu celular
foi usado para fazer uma ligação. Não há dúvida. Quer dizer então que é possível que alguém tenha aberto ontem o seu armário e usado o celular?
Ela deu de ombros.
- Tudo é possível, acho eu.
- OK, e quem poderia ter feito isso?
- Não sei, foi você quem disse que pode ter acontecido assim. Bosch pigarreou, o que atraiu a atenção da garota. Ele olhou
duro para ela e disse:
- Acho que talvez seja melhor irmos para a sede da polícia, na cidade. Não acho que aqui seja o local mais adequado para conversarmos.
Ele começou a empurrar a cadeira para trás a fim de se levantar.
- Kaitlyn, o que está acontecendo aqui? - interveio Amanda.
- Essa gente não está brincando. Para quem você telefonou?
- Ninguém, certo?
- Não, não está certo.
- Eu não estava com o telefone, só isso... Ele tinha sido confiscado.
- Quem confiscou o seu telefone?
- A Sra. Sable - respondeu a garota.
- Porquê?
- Porque não somos autorizadas a usar celular dentro da escola depois que toca a sineta da reunião matinal. Ontem, Rita, que é minha melhor amiga, não apareceu na
escola. Por isso tentei enviar-lhe uma mensagem de texto durante a reunião, para ver se ela estava bem, e a Sra. Sable me pegou.
- E tomou seu telefone?
- Sim, tomou.
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A cabeça de Bosch começou a trabalhar a toda, tentando colocar Bailey Koster Sable no molde do assassino de Rebecca Verloren. De cara, uma coisa não funcionava.
Bailey Koster, aos 16 anos, não poderia ter carregado o corpo desmaiado da amiga morro acima.
- Por que mentiu para nós? - quis saber Rider.
- Porque eu não queria que ela - a garota indicou a mãe com o queixo - soubesse que eu estava encrencada.
- Kaitlyn, não se mente para a polícia - gritou Amanda. - Não me interessa o que...
- Sra. Sobek, a senhora pode falar com ela mais tarde - disse Bosch. - Vamos continuar.
- Quando recebeu seu telefone de volta, Kaitlyn? - perguntou Rider.
- No fim do dia.
- Quer dizer então que a Sra. Sable ficou com o seu telefone o dia inteiro?
- Sim, quer dizer, não. Não o dia inteiro.
- Bem, quem ficou com ele então?
- Não sei. Quando tiram seu telefone, dizem para pegá-lo no fim do dia no gabinete do diretor. Foi o que eu fiz. O Sr. Stoddard me entregou o celular de volta.
Gordon Stoddard. As peças do quebra-cabeça imediatamente começaram a se ajustar. Bosch sentiu-se dentro do túnel de água, com o caso e seus detalhes girando à sua
volta. Era a onda da claridade e da dádiva. Tudo de repente ficou compreensível. Stoddard. A última palavra pronunciada por Mackey: Chatsworth... Stoddard era professor
de Rebecca. Era íntimo dela. Era seu amante e era quem telefonava todas as noites. Tudo se ajustava.
Sr. X.
Bosch levantou-se e saiu da sala sem uma palavra. Passou pela porta da sala de Stoddard. Estava aberta, e a mesa, vazia. Foi até o balcão da frente.
- Sra. Atkins, onde está o Sr. Stoddard?
- Esteve aqui agora mesmo e saiu.
- Para onde?
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- Não Sei. Talvez a cafeteria. Eu disse a ele que o senhor e a detetive Rider estavam aqui conversando com a Kaitlyn.
- E ele saiu em seguida?
- Sim. Oh, acabo de me lembrar... ele pode ter ido ao estacionamento. Disse que tinha comprado um carro novo hoje. Talvez o esteja mostrando a um dos professores.
- Que tipo de carro? Ele disse?
- Um Lexus. Disse que o modelo tinha um número, mas eu esqueci qual.
- Ele tem uma vaga marcada?
- Tem, sim, na primeira fileira à direita, quando você sai do saguão de entrada.
Bosch virou-se e dirigiu-se para a porta do corredor. Estava lotada com alunos que tinham saído da cafeteria para as aulas do período da tarde. Bosch começou a avançar
através da multidão, desviando-se aqui e ali e ganhando velocidade. Logo conseguiu se livrar e passou a correr. Entrou no estacionamento e imediatamente virou à
direita. Encontrou uma vaga vazia com o nome Stoddard pintado no meio-fio.
Fez meia-volta para ir pegar Rider. Estava tirando o celular do cinto, quando viu um borrão prateado à sua direita. Era um carro que vinha direto na sua direção,
e não havia mais tempo para sair da frente.
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Capítulo 39
Ajudaram Bosch a se sentar no asfalto.
- Harry, você está bem?
Quando voltou o foco, ele viu que era Rider. Balançou a cabeça, trêmulo. Tentou se lembrar do que acabara de acontecer.
- Foi Stoddard - disse ele. - Veio direto em cima de mim.
- De carro?
Bosch riu. Tinha deixado a parte do carro de fora.
- É, seu carro novo. Um Lexus prata.
Ele começou a se levantar. Rider pôs uma das mãos no seu ombro para detê-lo.
- Espere um minuto. Tem certeza de que está bem? Sente alguma dor?
- Só dói a cabeça.
Ele finalmente se lembrou.
- Bati com ela quando caí - disse. - Saí da frente dele com um pulo. Vi os seus olhos, sabe? A raiva, é o que quero dizer.
- Deixe que eu veja seus olhos.
Bosch encarou-a, e Rider segurou seu queixo enquanto examinava suas pupilas.
- Você parece bem - disse ela.
- OK, então. Eu fico aqui sentado por um segundo enquanto você vai lá dentro e pega o endereço da casa de Stoddard com a Sra. Atkins.
Rider concordou.
- Tudo bem. Espere aqui.
- Depressa. Temos que encontrá-lo.
Ela correu de volta para a escola. Bosch levantou o braço e apalpou a cabeça. Ficara com um galo na parte de trás. Relembrou de novo a cena, agora com mais clareza.
Tinha visto o rosto de Stoddard atrás do pára-brisa. Furioso, contorcido.
Mas aí ele dera um golpe de direção para a esquerda, enquanto Bosch saltava na direção contrária.
Bosch decidiu telefonar e pedir um boletim de procurado para Stoddard. Só então viu que o celular não estava na sua cintura. Examinou a área em torno e viu o aparelho
no asfalto, perto do pneu traseiro de um BMW. Engatinhou até lá, pegou-o e se levantou.
Ao se levantar, Bosch teve uma leve vertigem e foi obrigado a se apoiar no carro. Subitamente, uma voz eletrônica disse: "Por favor, afaste-se do carro!"
Ele tirou a mão e começou a caminhar para a parte do estacionamento onde deixara o Mercedes. No caminho, telefonou para o despachante central da polícia e solicitou
um boletim de busca para Stoddard e seu Lexus prata.
Bosch fechou o telefone e prendeu-o ao cinto. Entrou no seu carro, deu a partida e levou-o para a entrada, de modo que estivesse pronto para sair assim que Rider
aparecesse com o endereço de Stoddard.
Depois do que pareceu uma espera interminável, Rider finalmente apareceu e trotou até o Mercedes. Mas foi para o lado de Bosch, abriu a porta e fez um gesto para
que ele saísse.
- Não é longe - anunciou. - É uma casa na Chase, transversal à Winnetka. Mas você não vai dirigir, deixe comigo.
Bosch sabia que discutir seria perda de tempo. Saltou, contornou o carro pela frente tão rapidamente quanto seu equilíbrio permitiu e entrou do lado do carona. Rider
acelerou, e eles saíram do estacionamento.
Enquanto Rider se preocupava com o trajeto na direção da casa de Stoddard, Bosch pediu reforço à patrulha da Divisão Devonshire
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e depois telefonou para Abel Pratt a fim de contar as revelações da manhã.
- Aonde você pensa que ele está indo? - quis saber Pratt.
- Não tenho a menor idéia.
- Ele tem tendências suicidas?
- Não tenho idéia.
Pratt ficou em silêncio por um momento enquanto digeria as informações dadas por Bosch. Fez mais umas perguntas sobre detalhes secundários e desligou.
- Acho que ele gostou - comentou Bosch com Rider. - Diz que se pegarmos esse cara iremos transformar um limão em uma limonada.
- Ótimo - replicou Rider. - Podemos levantar suas digitais do escritório ou da casa e comparar com o que foi colhido debaixo da cama. Aí então saberemos se é ele
ou não.
- Não se preocupe, nós vamos pegá-lo.
- Harry, o que é que você está pensando? Stoddard e Mackey mataram Rebecca juntos?
-Não sei, mas me lembro bem da foto dele no anuário. Parecia bastante magro, em forma. Devia ser capaz de carregá-la morro acima sozinho. Nunca saberemos, a menos
que o encontremos e lhe perguntemos diretamente.
Rider concordou, balançando a cabeça.
- A questão principal - disse ela então - é como Stoddard entrou em ligação com Mackey.
- A arma.
- Eu sei. Está na cara. Refiro-me a como terá ele conhecido Mackey naquele tempo? Onde o caminho deles se cruza, e como ele o conheceu tão bem a ponto de pedir-lhe
a arma?
- Acho que estava diante de nós o tempo todo - disse Bosch.
- E Mackey me disse com a sua última palavra.
- Chatsworth?
- Chatsworth High.
- Como assim?
- Naquele verão, ele estava obtendo o seu diploma de supletivo na Chatsworth High. Na noite do crime, o álibi de Mackey foi
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justamente o seu tutor. Talvez tenhaisido o contrário. Talvez Mackey tenha sido o álibi do tutor.
- Stoddard?
- Ele nos disse naquele primeiro dia que todos os professores da Hillside tinham outros empregos. Talvez Stoddard estivesse trabalhando como tutor. Talvez fosse
ele o tutor de Mackey.
- É muito talvez junto, Harry.
- É por isso que temos que encontrar Stoddard antes que ele faça alguma coisa contra sua própria integridade.
- Acha que ele seja suicida? Você disse a Abel que não sabia.
- Não sei de nada ao certo. Mas lá no estacionamento ele desviou o carro de mim no último minuto. O que me faz pensar que quer ferir uma única pessoa.
- Ele próprio? Talvez estivesse preocupado apenas em não amassar
o carro novo.
- Talvez.
Rider virou na Winnetka, uma rua de quatro pistas, e começou a andar mais depressa. Estavam quase chegando à casa de Stoddard. Bosch ia em silêncio, pensando no
que poderia estar à espera deles mais adiante. Rider finalmente virou para oeste na Chase, e lá estava, um pouco mais adiante, um carro-patrulha preto-e-branco com
ambas as portas abertas. Rider parou atrás dele, e os dois saltaram rapidamente. Bosch sacou a arma que levava à cintura e prosseguiu com ela ao lado do corpo. Rider
acertara ao dizer que Stoddard talvez só tivesse querido preservar o carro novo quando evitara atropelar Bosch.
A porta da frente da casinha típica do tempo da Segunda Guerra Mundial estava aberta. Não havia sinal dos patrulheiros. Bosch olhou para Rider e viu que ela também
tinha sacado sua arma. Estavam prontos para entrar. Bosch girou diante da porta:
- Detetives entrando!
Ele ultrapassou a soleira da porta e ouviu a reação vinda de dentro da casa.
- Está limpo! Está limpo!
Bosch não relaxou ou abaixou a arma quando entrou na sala. Examinou tudo. Não havia ninguém. Deu uma olhada na mesinha
354
de centro e viu o Daily News do dia anterior aberto, a história de Rebecca Verloren para cima.
- Patrulha saindo! - exclamou uma voz vinda do corredor à direita.
Logo dois policiais apareceram no corredor e entraram na sala. Suas armas apontavam para o chão. Bosch relaxou e abaixou a sua também.
- Tudo limpo - disse o patrulheiro com as listas de P2 no uniforme. - Encontramos a porta aberta e entramos. Há algo que vocês devem ver aqui no quarto de dormir.
O patrulheiro foi na frente, e Bosch e Rider o seguiram. Entraram em um corredor pequeno, passaram pelas portas abertas do banheiro e do quartinho usado como escritório.
Entraram no quarto de dormir, e o patrulheiro apontou uma caixa de madeira aberta em cima da cama. A caixa tinha um forro de espuma recortado na forma de um revólver
de cano comprido. A caixa estava vazia. Ao lado do recorte em forma de revólver havia um outro retangular, certamente destinado à caixa de balas. Estava vazio também,
mas a caixa podia ser vista ao lado da cama.
- Ele foi atrás de alguém? - perguntou o P2. Bosch não levantou os olhos da caixa.
- Provavelmente só dele mesmo - respondeu. - Um de vocês tem luvas? As minhas ficaram no carro.
- Aqui - disse o P2.
Ele puxou um par de luvas de látex de um pequeno compartimento no cinto de equipamentos. Entregou a Bosch, que as calçou e pegou a caixa de balas. Abriu-a e puxou
uma bandejinha plástica em que as balas eram armazenadas. Havia apenas uma faltando.
Bosch ficou com o olhar fixo no espaço deixado pela bala que faltava, pensando, quando Rider chamou sua atenção segurando seu cotovelo. Ele olhou para ela e seguiu
seu olhar até a mesinha que ficava do outro lado da cama.
Havia uma fotografia emoldurada de Rebecca Verloren. Um instantâneo dela de pé em um campo gramado, com a torre Eiffel atrás. Usava uma boina preta e sorria com
naturalidade. Bosch achou que a expressão dos seus olhos era sincera e demonstrava amor pela pessoa que fitava.
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- Ele não aparecia em nenhuma das fotos do anuário porque estava atrás da câmera - disse Bosch.
Rider balançou a cabeça. Ela também entrara no túnel de água.
- Foi onde tudo começou - disse ela. - Foi onde ela se apaixonou por ele.
Eles ficaram olhando em sombrio silêncio por uns poucos momentos, até que o P2 falou.
- Detetives, podemos nos retirar?
- Não - respondeu Bosch. - Precisamos que vocês fiquem e cuidem da casa até que o pessoal da cena do crime chegue. E estejam prontos para o caso de ele voltar.
- Vocês estão indo? - perguntou o P2.
- Estamos.
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Capítulo 40
Voltaram rapidamente para o carro de Bosch, e Rider mais uma vez sentou-se atrás do volante.
- Para onde? - perguntou ela, ao ligar o motor.
- Casa dos Verloren - disse Bosch. - E depressa.
- O que você está pensando?
-Na foto que o jornal estampou, com Muriel sentada na cama. Mostrava como o quarto está igual ao que sempre foi, não é? Rider pensou por um momento e por fim assentiu.
- Certo.
Rider entendeu. A foto mostrava que o quarto de Rebecca se mantivera inalterado desde a noite em que ela fora morta. Aquilo podia ter desencadeado alguma coisa em
Stoddard. O desejo de algo perdido muito tempo atrás. A foto era como um oásis, um lembrete de um lugar perfeito onde nada acontecera de errado.
Rider acelerou com força, e o carro deu um pulo para a frente. Bosch abriu o celular, ligou para a central e pediu outro reforço, para encontrá-los na casa de Muriel
Verloren. Aproveitou para atualizar o boletim sobre Stoddard, descrevendo-o agora como armado e possivelmente 5150 - o que significava mentalmente instável. Soube,
ao fechar o telefone, que ele e Rider estavam perto da casa Verloren e chegariam lá primeiro. Seu telefonema seguinte foi para Muriel Verloren, mas ninguém atendeu.
Quando a secretária eletrônica atendeu, desligou o telefone.
- Não respondem.
Viraram a esquina da rua Red Mesa cinco minutos depois, e os olhos de Bosch imediatamente se fixaram no carro prateado estacionado em um ângulo esquisito contra
o meio-fio, na frente da casa dos Verloren. Era o Lexus que tinha investido contra ele no estacionamento da escola. Rider parou ao lado dele, e, mais uma vez, saltaram
rapidamente, as armas prontas para serem usadas.
A porta da frente da casa estava entreaberta. Usando gestos, eles tomaram posição, um em cada lado da porta. Então Bosch empurrou-a e entrou. Rider seguiu-o, e os
dois se dirigiram imediatamente para a sala de estar.
Muriel Verloren estava no chão. Havia uma caixa de papelão e outros materiais de embalagem ao seu lado. Uma fita adesiva marrom clara tinha sido passada diversas
vezes em torno de sua cabeça e rosto como mordaça, e usada para prender suas mãos e tornozelos. Rider encostou-a no sofá e levou um dedo aos lábios para que fizesse
silêncio.
- Muriel, ele está na casa? - murmurou.
Muriel fez que sim, os olhos arregalados e assustados.
- No quarto de Rebecca? Muriel assentiu novamente.
- Você ouviu um tiro?
Muriel sacudiu a cabeça negativamente e emitiu um som abafado que teria sido um grito se não fosse a fita que fechava sua boca.
- Você tem que ficar quieta - murmurou Rider. - Se eu tirar essa fita, você vai ter que ficar muito quieta.
Muriel balançou a cabeça intensamente, e Rider começou a trabalhar na retirada da fita. Bosch aproximou-se.
- vou até o quarto.
- Espere, Harry - ordenou Rider, a voz pouco mais alto que um sussurro. - Vamos juntos. Solte os tornozelos dela.
Bosch começou a soltar a fita que prendia os pés de Muriel. Rider finalmente soltou a fita da boca e puxou-a para baixo por cima do seu queixo. O tempo todo, ia
tentando acalmá-la.
- É o professor de Becky - murmurou Muriel, a voz intensa mas não alta. - Está armado.
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Rider começou a trabalhar nos pulsos.
- OK - disse. - Nós sabemos lidar com isso.
- O que ele está fazendo? - quis saber Muriel. - Foi ele...?
- Foi ele, sim.
Muriel Verloren deixou escapar um suspiro longo, alto e agoniado. Estava com as mãos e os pés livres, e eles a ajudaram a ficar de pé.
- Vamos subir agora para o quarto de Rebecca - disse Rider. Precisamos que você saia da casa.
Eles começaram a conduzi-la na direção do corredor de entrada.
- Não posso sair. Ele está no quarto dela. Não posso...
- Você tem que sair, Muriel - interveio Bosch asperamente. Não é seguro aqui. Vá para a casa de uma vizinha.
- Não conheço meus vizinhos.
- Muriel, você tem que sair - insistiu Rider. - Vá para a rua. Há mais policiais chegando. Acene para eles e diga que já estamos aqui.
Eles a puseram na rua e depois trancaram a porta.
- Não deixem que ele estrague o quarto! - Ouviram-na suplicar do outro lado. - É tudo o que me resta!
Bosch e Rider avançaram até o corredor dos fundos e subiram a escada o mais silenciosamente que conseguiram. Depois se posicionaram um de cada lado da porta do quarto
de Rebecca.
Bosch lançou um olhar para Rider. Ambos sabiam que dispunham de pouco tempo. Quando chegassem as unidades de reforço, a situação mudaria. Era uma clássica situação
de suicídio forçado pela polícia. Aquela era única chance que eles talvez tivessem de pegar Stoddard antes de ele próprio ou um tira da SWAT meter uma bala na sua
cabeça.
Rider apontou para a maçaneta, e Bosch estendeu o braço e tentou girá-la silenciosamente. Ele sacudiu a cabeça. A porta estava trancada.
Usaram sinais de mão para esquematizar um plano, balançaram a cabeça quando estavam prontos, e então Bosch recuou um pouco no corredor e se preparou para meter
o calcanhar na porta
359
junto da maçaneta. Sabia que tinha que conseguir com uma só tentativa. Depois disso, perderiam a vantagem da surpresa.
- Quem está aí?
Era Stoddard, e sua voz vinha através da porta. Fim do elemento surpresa. Bosch apontou para Rider e fez um gesto indicando silêncio. A falação ficaria por conta
dele.
- Sr. Stoddard, aqui é o detetive Bosch. Como vai?
- Não muito bem.
- É, parece que as coisas saíram do controle, não é mesmo? Stoddard não respondeu.
- vou lhe dizer uma coisa. O senhor realmente precisa pensar em largar essa arma e sair. Tem sorte de que eu esteja aqui. Acabo de vir ver como estava a Sra. Verloren.
Mas meu parceiro e a equipe da SWAT chegarão logo. O senhor não vai querer se meter com a SWAT. A hora de sair daí é agora.
- Só quero que saibam que eu a amava, mais nada.
Bosch hesitou antes de falar. Deu uma olhada para Rider e depois para a porta. Podia levar as coisas de dois modos. Obter uma confissão agora ou convencê-lo a sair
da casa e salvar sua vida. As duas coisas eram possíveis, mas talvez não prováveis.
- E o que foi que aconteceu então? - perguntou ele. Decorreu um longo silêncio antes de Stoddard falar.
- O que aconteceu foi que ela quis ter o bebê e não entendeu que isso arruinaria tudo. Tivemos que nos livrar da criança, e depois ela mudou de idéia.
- Sobre o bebê?
- Sobre mim. Sobre tudo.
Bosch não respondeu. Após alguns momentos, Stoddard falou de novo.
- Eu a amava. -Mas a matou.
- Eu cometo erros.
- Como naquela noite?
- Não quero falar a respeito daquela noite. Quero me lembrar de todas as ocasiões que antecederam aquela noite.
- Acho que não lhe tiro a razão.
360
Bosch olhou para Rider e ergueu três dedos. Iam fazer uma contagem de três. Rider assentiu. Ela estava pronta. Bosch abaixou um dedo.
- Sabe o que não entendo, Sr. Stoddard? Ele abaixou o segundo dedo.
-O quê? - perguntou Stoddard.
Bosch abaixou o terceiro dedo, levantou a perna direita e golpeou a porta. Ela cedeu facilmente e se abriu com um estrondo. O impulso de Bosch o fez entrar no quarto
logo depois. Ele levantou a arma e virou-se para a cama.
Stoddard não estava ali.
Bosch continuou a girar o corpo, vislumbrando a imagem de Stoddard refletida no espelho. Ele estava levantando a boca do cano do revólver para sua boca.
Bosch ouviu Rider gritar, e o corpo dela passou a toda velocidade pela porta quando ela se atirou sobre Stoddard.
O disparo de uma arma sacudiu o quarto, ao mesmo tempo que Rider e Bosch se atiraram no chão. O revólver caiu da mão de Stoddard e bateu estrepitosamente no chão.
Bosch lançou-se rapidamente contra os dois e usou todo o seu peso sobre Stoddard, enquanto Rider rolava para longe.
- Kiz, você está machucada?
Não houve resposta. Bosch tentou olhar para ela, ao mesmo tempo que mantinha Stoddard sob controle. Rider segurava com uma das mãos o lado esquerdo da cabeça.
-Kiz?
- Não fui atingida! - gritou ela. - Só estou surda de um ouvido. Stoddard tentou se levantar, mesmo com todo o peso de Bosch
em cima dele.
- Por favor! - implorou ele.
Com o antebraço, Bosch deu um golpe em um dos braços com que Stoddard se apoiava, derrubando-o. Seu peito bateu no chão, e Bosch rapidamente puxou-lhe o braço para
trás e o algemou. Depois de um pequeno esforço, puxou o outro braço também e completou a colocação das algemas. Só então se abaixou e falou com Stoddard:
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- Por favor o quê?
- Por favor, me deixe morrer.
Bosch levantou-se e puxou Stoddard, pondo-o de pé.
- Seria fácil demais para você, Stoddard. Seria como deixá-lo escapar de novo.
Bosch virou-se para Rider, que também se levantara. Viu que alguns fios do seu cabelo tinham sido chamuscados pelo tiro. Fora realmente muito perto.
- Você vai ficar bem?
- Assim que a campainha parar de tocar no meu ouvido. Bosch levantou a cabeça e viu o buraco da bala no teto. Na
mesma hora ouviu o barulho das sirenes se aproximando. Agarrou Stoddard pelo cotovelo e puxou-o na direção da porta do quarto.
- vou descer e pôr este sujeito em um carro. Vamos autuá-lo em Devonshire e ficar com ele lá até o dia da denúncia.
Rider aquiesceu, mas Bosch podia ver que ela ainda estava lidando com o que acabara de acontecer. O zunido no seu ouvido era um lembrete de que o pior não tinha
acontecido por muitíssimo pouco.
Bosch foi segurando Stoddard pelo braço enquanto o conduziu escadas abaixo. Quando chegaram na sala, Stoddard virou-se para ele, com desespero na voz.
- Você podia fazer agora.
- Fazer o quê?
- Atirar em mim. Diga que fugi. Tire uma das algemas e diga que me soltei. Você queria me matar, não queria?
Bosch parou e encarou-o.
- Sim, queria. Mas isso ia ser muito bom para você. Você vai ter que pagar pelo que fez com aquela garota e sua família. E apenas liquidar você aqui não daria para
pagar o juro desses 17 anos.
Bosch deu-lhe um safanão na direção da porta. Os dois homens pisaram no gramado da frente justo quando um carro-patrulha parou diante da casa e desligou a sirene.
Pela aerodinâmica barra de luzes em cima do teto, Bosch viu que se tratava de um dos carros novos de que ouvira falar, dotado do equipamento mais moderno que existia.
O departamento podia comprar apenas um pequeno número deles em cada ciclo orçamentário.
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O carro deu a Bosch uma idéia. Ele levantou a mão e circulou o dedo no ar, fazendo o sinal de tudo limpo.
Enquanto conduzia Stoddard, viu Muriel Verloren caminhando de volta para casa. Tinha os olhos fixos em Stoddard. E a boca aberta parecia soltar um silencioso grito
de horror. Ela começou a correr na direção deles.
Capítulo 41
Bosch foi sentado no banco de trás do carro-patrulha com Stoddard, a caminho da Divisão Devonshire. Rider foi deixada na casa dos Verloren, para acalmar Muriel e
ser examinada pelos paramédicos. Quando a liberassem, iria dirigindo o carro de Bosch até a delegacia.
O percurso seria coberto em apenas dez minutos. Bosch sabia que tinha que tentar conseguir que Stoddard falasse rapidamente. A primeira coisa que fez foi ler para
o diretor da escola seus direitos. Stoddard tinha admitido algumas coisas quando ainda refugiado no quarto de Rebecca Verloren, mas o uso dessa admissão no tribunal
era questionável, porque nada fora gravado, e ele não fora alertado antes sobre seus direitos, o que incluía permanecer em silêncio.
Depois de ler a advertência Miranda escrita em um cartão que pedira antes a Rider, Bosch simplesmente perguntou:
- Agora, você quer falar comigo?
Stoddard estava um pouco inclinado para a frente, porque tinha as mãos algemadas nas costas. O queixo, de tão abaixado, quase encostava no peito.
- O que há para falar? - perguntou ele.
- Não sei. Na verdade, nem tem que falar. Nós temos você. Atos e evidências... temos tudo de que precisamos. Eu só pensei que você quisesse explicar as coisas, mais
nada. Numa hora dessas, muita gente quer apenas se explicar.
Stoddard nada disse a princípio. O carro estava seguindo para a leste no bulevar Devonshire, e a delegacia ficava talvez a uns
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cinco quilômetros. Antes, quando conversara com os dois patrulheiros do lado de fora do carro, Bosch dissera ao motorista que fosse devagar.
- Engraçado - disse Stoddard finalmente.
- O que é engraçado?
- Sou professor de ciências, sabia? Quer dizer, antes de ser diretor eu era professor de ciências. Chefe do departamento de ciências.
- Sim.
- Eu dava aulas de DNA para os meus alunos. Sempre disse a eles que o DNA era o segredo da vida. Decodifique o DNA e decodificará a própria vida.
- Sim.
- E agora... Agora, bem, o DNA é usado para decodificar a morte. É o segredo da morte. Não sei. Acho que na verdade não é engraçado. No meu caso, é mais irônico.
- Se é o que você diz.
- Um cara que ensina DNA é apanhado pelo DNA. Stoddard começou a rir.
- Ei, é uma boa manchete - disse ele. - Não se esqueça de passar para os jornalistas.
Bosch adiantou-se e usou uma chave para abrir as algemas de Stoddard. Depois o algemou de novo com as mãos na frente do corpo, para que ele pudesse se sentar direito.
- Lá na casa você disse que a amava - comentou Bosch. Stoddard assentiu.
- É verdade. Eu a amava. Ainda a amo.
- Jeito engraçado de demonstrar, não é mesmo?
- Não foi planejado. Nada foi planejado naquela noite. Eu a estivera observando, mais nada. Sempre que podia eu a observava. Passava por lá o tempo todo. Segui-a
quando ela tinha que pegar o carro. Eu a observava no trabalho também.
- E o tempo todo você tinha uma arma.
- Não, a arma era para mim, não para ela. Mas...
- Você descobriu que era mais fácil matá-la do que se matar.
- Naquela noite... Vi que a porta da garagem estava aberta. Entrei. Não sei ao certo por quê. Eu pensava usar a arma em mim
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mesmo. Em cima da cama dela. Seria meu modo de demonstrar minha devoção.
- Mas foi para debaixo da cama, ao invés de para cima.
- Eu tinha de pensar.
- Onde estava Mackey?
- Mackey? Não sei onde ele estava.
- Ele não estava com você? Ele não o ajudou?
- Ele me deu a arma. Nós fizemos um acordo. A pistola pelo diploma. Eu era professor dele. E também seu tutor. Era meu emprego de verão.
- Mas ele não estava com você naquela noite? Você a carregou morro acima sozinho?
Os olhos de Stoddard estavam abertos e perdidos na distância, mesmo que seu foco estivesse nas costas do banco da frente.
- Eu era forte naquela época - disse, num sussurro.
O carro passou pela abertura no muro de concreto que cercava os fundos da Divisão Devonshire. Stoddard olhou pela janela. Ver tantos carros-patrulha e a parte dos
fundos da delegacia deve ter feito com que ele despertasse e percebesse sua real situação.
- Não quero mais falar - disse ele.
- Tudo bem - respondeu Bosch. - Nós o poremos em uma sala de detenção e lhe conseguiremos um advogado, se assim desejar.
O carro parou na frente de uma porta dupla, e Bosch saltou. Deu a volta e tirou Stoddard, conduzindo-o depois para dentro. O bureau de detetives era no segundo andar.
Pegaram o elevador e foram recebidos pelo tenente encarregado dos detetives da Divisão Devonshire. Bosch tinha ligado para ele da casa dos Verloren. Uma sala de
interrogatório esperava por Stoddard. Bosch o pôs sentado em uma cadeira e algemou um dos seus pulsos a um anel de metal aparafusado no centro da mesa.
- Sente-se - disse Bosch. - Já volto.
À porta, ele se deteve e olhou para Stoddard. Decidiu tentar uma última jogada.
- E, para dizer a verdade, acho que a sua história não é verdadeira.
Stoddard o encarou, a surpresa estampada no seu rosto.
- Como assim? Eu a amava. Eu não queria...
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- Você a seguiu com um único propósito. Matá-la. Ela o rejeitou. Você não conseguiu aceitar isso, e quis vê-la morta. Agora, 17 anos mais tarde, está querendo contar
tudo de outra maneira, algo tipo Romeu e Julieta ou coisa assim. Você é um covarde, Stoddard. Você a seguiu e a matou, e devia assumir o que fez.
- Não, você está errado. Eu tinha a arma só para mim mesmo. Bosch recuou, aproximou-se da mesa e abaixou-se para falar
com Stoddard.
- É mesmo? E o que me diz da pistola de choque, Stoddard, era para você mesmo também? Você a deixou fora da sua história, não deixou? Por que ia precisar de uma
pistola de choque se entrou lá para se matar?
Stoddard ficou em silêncio. Era quase como se 17 anos depois tivesse que apagar a Professional 100 da sua memória.
- Temos aqui um homicídio de primeiro grau e uma mentira na espera - disse Bosch. - Você vai assumir tudo, Stoddard. Jamais pensou em se matar. Nem naquele tempo
nem tampouco hoje.
- Acho que agora eu quero um advogado - disse Stoddard.
- Sim, claro que quer.
Bosch saiu da sala e seguiu pelo corredor até uma porta aberta. Era a sala de monitoramento. O tenente e um dos patrulheiros que tinham ido à casa dos Verloren estavam
ali no espaço muito pequeno da sala. Havia duas telas de vídeo. Numa delas, Bosch viu Stoddard sentado na sala de interrogatório. O ângulo da câmera era o do canto
de cima da sala. Stoddard parecia estar olhando inexpressivamente para a parede.
A imagem da outra tela estava imobilizada. Mostrava Bosch e Stoddard no banco de trás do carro-patrulha.
- Como ficou o som? - quis saber Bosch.
- Beleza - respondeu o tenente. - Pegamos tudo. Tirar as algemas foi um toque excelente. Aproximou o rosto dele da câmera.
O tenente acionou um botão, e a imagem começou a se mover. Bosch pôde ouvir a voz de Stoddard claramente. Ele balançou a cabeça. O carro-patrulha era equipado com
uma câmera fixa no painel para filmar transporte de prisioneiros e interrupções de trânsito entre outras coisas. Para o transporte de Stoddard, o microfone do interior
do carro tinha sido ligado, e o do exterior, fechado.
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Funcionara perfeitamente. A admissão feita por Stoddard sentado no banco de trás ajudaria a selar o caso. Bosch não tinha a menor preocupação no tocante a isso.
Agradeceu ao tenente e ao patrulheiro e perguntou se podia usar uma mesa para dar uns telefonemas.
Em primeiro lugar, Bosch ligou para Abel Pratt a fim de pô-lo a par dos acontecimentos e assegurar-lhe que Rider ficara abalada, mas, exceto por isso, estava bem.
Disse que era preciso conseguir que uma equipe da divisão de cenas de crime fosse às casas de Stoddard e da família Verloren a fim de processar as respectivas cenas.
Que era preciso pedir e conseguir que um mandado de busca fosse aprovado antes que a equipe entrasse na casa de Stoddard. Explicou que a acusação a Stoddard estava
prestes a ser registrada, e ele, a ter as impressões digitais colhidas. Impressões essas que precisariam ser comparadas às encontradas no sarrafo encontrado sob
a cama de Rebecca Verloren. Ele terminou falando sobre o vídeo feito durante o percurso até a delegacia e a admissão feita por Stoddard.
- Tudo sólido e registrado em teipe - disse Bosch. - Tudo obtido após a leitura dos direitos dele.
- Muito bem, Harry - elogiou Pratt. - Acho que não temos que nos preocupar com isso.
- Não com o caso, pelo menos.
Querendo dizer que Stoddard ia ser acusado sem problemas, mas que ele não tinha certeza se conseguiria se sair bem na revisão do seu modo de conduzir o caso.
- E difícil discutir com os resultados - replicou Pratt.
- Veremos.
Bosch começou a receber sinal de que havia uma linha em espera no seu telefone. Disse a Pratt que tinha de desligar e clicou para receber a nova chamada. Era McKenzie
Ward, do Daily News.
- Minha irmã estava ouvindo o scanner no laboratório de fotografia - disse, urgentemente. - Disse que uma unidade de reforço e uma ambulância foram mandadas à casa
dos Verloren. Ela reconheceu o endereço.
- Está certo.
- O que está havendo, detetive? Temos um trato, lembra?
- Sim, eu me lembro. E já ia mesmo ligar para você.
Capítulo 42
A cozinha do Metro Shelter estava às escuras. Bosch foi até o pequeno saguão do hotel ao lado e falou com o homem atrás do guichê de vidro. Perguntou qual era o
número do quarto de Robert Verloren.
- Ele já foi, cara.
Algo a respeito do caráter definitivo do seu tom de voz escavou um vazio no peito de Bosch. Não lhe pareceu que ele estava querendo dizer que Verloren tirara a noite
de folga.
- O que você quer dizer com isso?
- Que ele foi embora. Fez o negócio dele e se foi. Ponto final. Bosch deu mais um passo na direção do guichê. O homem tinha
um livro aberto no balcão e não levantara os olhos de suas páginas amareladas.
- Ei, olhe para mim.
O homem colocou o livro aberto em cima do balcão com a capa para cima, a fim de não perder sua página, e olhou para cima. Bosch mostrou a ele sua identidade, olhou
para baixo e viu que o livro era chamado Ask the Dust.
- Sim, policial.
Bosch fitou o homem diretamente em seus olhos cansados.
- O que você quer dizer com isso de "ele fez o negócio dele e se foi"?
O homem deu de ombros.
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- Chegou bêbado. Só temos uma regra por aqui. Sem bebida. Sem bêbados.
- Ele foi despedido? O homem assentiu.
- E o quarto dele?
- O quarto vem com o emprego. Como eu disse, ele se foi.
- Para onde?
O homem deu de ombros mais uma vez. Apontou a porta que dava para a calçada da rua Cinco. Estava dizendo a Bosch que Verloren estava na rua, em algum lugar.
- Acontece - disse ele.
- Quando ele se foi?
- Ontem. Foram vocês, tiras, que fizeram ele voltar a beber, você sabe.
- Como assim?
- Eu soube que um tira apareceu por aqui e disse alguma merda a ele, não sei o quê. Mas isso aconteceu imediatamente antes, sabe como é? Ele saiu do trabalho, foi
para a rua e tomou gosto de novo. Foi isso aí. Tudo o que sei é que agora precisamos de um novo chef, porque o cara que está quebrando o galho no lugar dele não
sabe nem fazer ovo mexido.
Bosch nada disse. Afastou-se do guichê e foi para a porta. Do lado de fora do abrigo, a rua fervilhava de gente. Os bêbados e os despojados. Pessoas que se escondiam
dos outros e de si próprias. Pessoas fugindo do passado, de coisas que tinham feito e de coisas que não tinham feito.
Bosch sabia que a história seria publicada pela manhã. Quisera tê-la contado a Robert Verloren pessoalmente.
Decidiu que iria procurá-lo. Não sabia o que a notícia que tinha a lhe dar produziria nele. Não sabia se iria empurrá-lo mais fundo no buraco ou se o ajudaria a
sair. Talvez nada pudesse ajudá-lo. O mundo estava cheio de pessoas que não conseguiam superar seus problemas. Não havia como fechar os casos e não havia paz. A
verdade não liberta a pessoa. Mas possibilita que ela vença as dificuldades. Era o que diria a ele. Verloren poderia caminhar na direção da luz e galgar e abrir
caminho com esforço para sair do buraco.
Bosch empurrou a porta e saiu dento da noite.
Capítulo 43
O campo de parada da Academia de Polícia ficava aninhado como um tapete verde contra uma das colinas cobertas de árvores do Elysian Park. Era um lugar bonito e sombreado
e falava bem da tradição de que o chefe de polícia queria que Bosch se lembrasse.
Às 8h, após uma noite de buscas infrutíferas por Robert Verloren, Bosch apresentou-se à mesa de controle da cerimônia de formatura e foi acompanhado para o local
que lhe havia sido designado na plataforma debaixo do toldo das autoridades. Havia quatro fileiras de cadeiras arrumadas atrás do púlpito no qual os discursos seriam
feitos. O lugar de Bosch dava para o campo de parada onde os cadetes marchariam e depois se deteriam em formação e seriam inspecionados.
Bosch estava de uniforme de gala. Era a tradição na cerimônia de graduação dos novos policiais. Dar as boas-vindas aos novos envergando o uniforme. Bosch chegou
cedo. Ficou sentado sozinho, a ouvir a banda da polícia tocar antigos sucessos. Quando os outros convidados VIP se sentaram, nenhum tomou conhecimento dele. Em sua
maioria, eram políticos e dignitários, e também uns poucos veteranos do Corpo de Fuzileiros Navais que haviam combatido no Iraque e que exibiam no peito a condecoração
concedida aos feridos em combate, a Purple Heart.
A pele de Bosch estava irritada debaixo do colarinho engoma' do e do nó da gravata apertado. Passara quase uma hora no banho
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esfregando a tinta da falsa tatuagem, na esperança de que todas as coisas feias que haviam no caso fossem, junto com a tinta, ralo abaixo.
Não notou a aproximação do subchefe Irvin Irving, até que o cadete que o acompanhara disse:
- Com licença, senhor.
Bosch levantou os olhos e viu que Irving estava sendo acomodado ao seu lado. Endireitou-se e apanhou seu programa, que tinha deixado na cadeira destinada a Irving.
- Divirta-se, senhor - disse o cadete antes de fazer uma enérgica meia-volta e sair em busca de outro VIP.
Irving nada disse a princípio. Gastou um monte de tempo para se ajeitar confortavelmente e espiar em torno para ver quem poderia estar de olho neles. Os dois estavam
na primeira fila, usando dois dos melhores lugares que havia. Finalmente ele falou, sem se virar ou olhar para Bosch.
- O que está acontecendo aqui, Bosch?
- Você me diz, chefe.
Foi a vez de Bosch olhar em torno para ver se havia alguém vigiando-os. Era óbvio que não era por acaso que estavam sentados um ao lado do outro. Bosch não acreditava
em coincidências. Não assim.
- O chefe disse que queria me ver aqui - disse ele. - Convidoume na segunda-feira, quando me devolveu o crachá.
- Bom para você.
Mais cinco minutos se passaram sem que Irving falasse de novo. O toldo estava quase cheio, exceto pelos lugares reservados para o chefe de polícia e sua esposa na
primeira fila. Irving murmurou agora:
- Você teve uma semana terrível, detetive. Aterrissou na merda e se levantou cheirando como uma rosa. Parabéns.
Bosch assentiu. Era uma avaliação precisa.
- E você, chefe? Foi apenas mais uma semana no escritório? Irving não respondeu. Bosch pensou nos lugares em que tinha
procurado Robert Verloren na noite anterior. Pensou nas feições de Muriel Verloren ao ver o assassino da filha sendo levado para o
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carro-patrulha. Tivera que se apressar e pôr logo Stoddard no banco de trás a fim de mantê-la longe dele.
- Foi tudo por sua causa - disse Bosch serenamente.
- De que está falando?
- Dezessete anos, é disso que estou falando. Você fez seu homem checar os álibis dos Eights. Ele não sabia que Gordon Stoddard era também professor da menina. Se
Green e Garcia tivessem examinado os álibis - como teria sido certo -, teriam encontrado Stoddard e estabelecido facilmente a ligação. Dezessete anos atrás. Todo
esse tempo se deve a você.
Irving virou-se totalmente na cadeira para encarar Bosch.
- Nós tínhamos um acordo, detetive. Quebre-o e eu encontrarei outros modos de pegar você. Espero que isso fique bem entendido.
- Sim, claro, como queira, chefe. Mas você se esquece de uma coisa. Não sou o único que sabe a seu respeito. O que pretende, fazer mais acordos com todo mundo? Todo
repórter, todo tira? Cada mãe e pai que tiver de viver com a vida vazia por causa do que você fez?
- Fale baixo - disse Irving entre os dentes.
Bosch respondeu em um tom de voz calmo e quieto.
- Já falei tudo que queria.
- Pois bem, deixe que eu lhe diga uma coisa. Não terminei com você. Se eu descobrir...
A frase ficou no meio quando o chefe de polícia entrou com sua esposa. Irving endireitou-se na cadeira quando a música soou com mais volume, e o espetáculo começou.
Vinte e quatro cadetes com distintivos novos e reluzentes nos peitos uniformizados desfilaram pelo campo de parada e tomaram posição diante do toldo das autoridades.
Houve um número exagerado de discursos preliminares. Depois, a inspeção dos novos policiais tomou tempo demais. Mas por fim o programa chegou ao principal evento,
as tradicionais observações do chefe de polícia. O homem que levara Bosch de volta ao departamento parecia calmo e equilibrado diante do púlpito. Falou de reconstruir
por completo o departamento de polícia, começando
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pelos 24 novos policiais que estavam ali diante dele. Disse que estava falando de reconstruir tanto a imagem quanto a prática do departamento. Disse muitas das coisas
que dissera a Bosch na manhã de segunda-feira. Instou com os novos policiais para que jamais violassem a lei visando cumprir a lei. Para que cumprissem suas obrigações
constitucional e compassivamente em todas as ocasiões.
Mas surpreendeu Bosch com o fecho do seu discurso.
- Eu gostaria de chamar a atenção de vocês para dois policiais que aqui estão como meus convidados. Um chegando, o outro saindo. O detetive Harry Bosch retornou
a este departamento esta semana, após uns poucos anos de aposentadoria. Acho que ele aprendeu durante suas longas férias que não é possível ensinar truques novos
a um cachorro velho.
Ouviram-se risos polidos da multidão que se encontrava do outro lado do campo de parada, famílias e amigos dos cadetes. O chefe continuou.
- Assim, ele voltou ao seio da família do DPLA e já atuou de modo admirável. Colocou-se no caminho do perigo pelo bem da comunidade. Ontem, ele e sua parceira resolveram
um homicídio cometido há 17 anos e que era como um espinho fincado nesta comunidade. Nós damos as boas-vindas ao detetive Bosch na sua volta ao aprisco.
A multidão aplaudiu. Bosch sentiu o rosto quente, abaixou a cabeça e olhou para as mãos.
- Eu gostaria também de agradecer ao subchefe Irvin S. Irving por estar aqui hoje - continuou o chefe. - O chefe Irving serve neste departamento há quase 45 anos.
Não há atualmente quem seja mais antigo do que ele. Sua decisão de se aposentar hoje e de tornar esta cerimônia de formatura sua última ação, quando ainda de posse
do seu crachá, é um final adequado para o seu tempo de serviço. Nós lhe agradecemos pelos serviços prestados a este departamento e a esta cidade.
Os aplausos que saudaram Irving foram muito mais altos e demorados que os destinados a Bosch. As pessoas começaram a se levantar em homenagem ao homem que servira
ao departamento e à cidade por tão longo tempo. Bosch virou-se lentamente para a sua
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direita, de modo que pudesse ver o rosto de Irving, e soube no instante em que viu os olhos do subchefe que ele fora apanhado de surpresa. Tinha sido forçado a se
aposentar.
Em pouco tempo todos estavam de pé e batendo palmas, e até Bosch sentiu-se compelido a fazer o mesmo por um homem a quem desprezava. Sabia exatamente quem tinha
maquinado a queda de Irving. Se Irving protestasse ou tentasse de algum modo recuperar sua posição, iria defrontar-se com um caso interno levantado por Kizmin Rider.
E não havia dúvida sobre quem perderia esse. Absolutamente nenhuma dúvida.
O que Bosch não sabia era quando isso tinha sido planejado. Bosch pensou em Rider sentada à sua mesa na sala 503, esperando por ele com café, preto, como sabia que
ele gostava. Saberia ela naquele momento a que caso pertencia a equivalência de DNA encontrada e aonde levaria? Ele se lembrava da data do relatório do DOJ. Já tinha
dez dias na hora em que o lera. O que acontecera durante aqueles dez dias?
Bosch não sabia e nem tinha certeza de que se importava. A política do departamento era conduzida no sexto andar. Bosch trabalhava no 503, e esta seria sua posição
sempre. Sem problema.
Depois que terminou o discurso, o chefe se afastou do microfone. Entregou a cada cadete, um por um, o certificado de conclusão do curso de treinamento feito na academia
e posou para uma foto apertando a mão do diplomado. Tudo muito rápido, organizado e coreografado com perfeição. Três helicópteros da polícia sobrevoaram o campo
de parada em formação, e os cadetes encerraram a cerimônia lançando seus bonés para cima.
Bosch lembrou-se do dia em que, mais de trinta anos antes, tinha jogado seu boné para o ar. Sorriu com a lembrança. Não restara ninguém de sua classe. Ou estavam
mortos, ou tinham se aposentado. Ou fracassado. Cabia a ele conduzir a bandeira e a tradição. Combater o bom combate.
Quando a cerimônia terminou e a multidão correu para o campo a fim de se congratular com os novos policiais, Bosch viu que Irving se levantava e atravessava o campo
de parada na direção da saída. Não parou para ninguém, nem mesmo para aqueles que lhe estendiam a mão querendo cumprimentá-lo e agradecer-lhe.
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- Detetive, você teve uma semana cheia.
Bosch virou-se. Era o chefe de polícia. Ele balançou a cabeça. Não sabia o que dizer.
- Muito obrigado por ter vindo - disse o chefe. - Como vai a detetive Rider?
- Tirou o dia de folga. Levou um tiro ontem e escapou por pouco.
- Eu soube. Algum de vocês vai estar presente na entrevista coletiva de hoje?
- Bem, ela está de folga, e eu pensei em pular fora, se puder.
- Nós damos um jeito. Estou sabendo que vocês deram a história para o Daily News. Agora os outros estão reclamando. Vamos ter que montar um show para satisfazer
todo mundo.
- Eu devia à repórter do News a publicação da primeira matéria.
- Sim, eu compreendo.
- Quando a poeira assentar, ainda vou ter um emprego, chefe?
- Claro, detetive Bosch. Como em qualquer investigação, escolhas têm que ser feitas. Escolhas difíceis. Você tomou as melhores decisões que poderia ter tomado. Haverá
uma revisão do caso, mas não creio que você terá problema.
Bosch assentiu. Quase agradeceu, mas concluiu que não devia. Limitou-se a encarar o homem.
- Há alguma coisa que queira me perguntar, detetive? Bosch balançou a cabeça de novo.
- Eu estava pensando... - falou.
- Em quê?
- O caso começou com um ofício do DOJ, e que já tinha dez dias quando chegou às minhas mãos. Queria saber por que foi guardado para mim. Acho que estou querendo
perguntar o que você sabia e quando soube.
- Isso tem alguma importância agora?
Bosch indicou com o queixo a direção que Irving acabara de tomar.
- Talvez - respondeu. - Eu não sei. Ele não vai simplesmente desaparecer. Irá procurar a mídia. Ou um advogado.
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- Ele sabe que se fizer isso estará cometendo um erro. Que haverá conseqüências. Ele não é burro.
Bosch só balançou a cabeça. O chefe estudou-o por um momento antes de falar de novo.
- Você ainda parece preocupado, detetive. Lembra do que lhe disse na segunda-feira? Que tinha revisto cuidadosamente o seu caso e sua carreira antes de tomar a decisão
de aceitá-lo de volta.
Bosch continuou olhando para ele.
- Eu estava falando sério - disse o chefe. - Estudei-o e acho que sei alguma coisa a seu respeito. Você está neste mundo apenas para uma coisa, detetive Bosch. E
agora tem uma oportunidade de fazer aquilo para o que nasceu, de continuar a desempenhar sua missão. Alguma outra coisa teria importância depois disso?
Bosch sustentou o olhar dele por longo tempo antes de responder.
- Acho que o que eu queria realmente perguntar era sobre o que disse outro dia. Aquilo sobre o coro das vozes esquecidas, as ondas circulares que viajam pelo tempo
e pelas pessoas. Estava falando sério? Ou só queria me dar corda para eu ir atrás de Irving por você?
O sangue espalhou-se rapidamente pelas faces do chefe de polícia. Seus olhos desviaram-se dos de Bosch enquanto ele compunha sua resposta. Depois encarou de novo
o detetive, e desta vez foram seus olhos que sustentaram os dele.
- Fui absolutamente sincero em cada palavra que pronunciei. E você não se esqueça. Volte para a sala 503 e feche os casos, detetive Bosch. É para isso que está aqui.
Feche os casos ou eu acharei uma razão para acabar com você. Entendeu?
Bosch não se sentiu ameaçado. Gostou da resposta do chefe. Fez com que se sentisse melhor. Balançou a cabeça.
- Entendi.
O chefe levantou a mão e pegou Bosch pelo braço.
- Ótimo. Agora vamos tirar uma foto com alguns desses jovens que ingressaram na nossa família hoje. Talvez eles possam aprender algo conosco. Talvez nós possamos
aprender algo com eles.
Quando se deslocaram para a multidão, Bosch deu uma olhada na direção que Irving tomara. Mas ele desaparecera muito tempo atrás.
Capítulo 44
Bosch procurou Robert Verloren durante três das sete noites seguintes, mas não o encontrou senão quando era tarde demais.
Uma semana depois da graduação na Academia de Polícia, Bosch e Rider estavam sentados um diante do outro às respectivas mesas, dando os toques finais no caso montado
contra Gordon Stoddard. O acusado tinha sido denunciado na Corte Municipal de San Fernando no início da semana e se declarara inocente. Agora a dança legal tinha
começado. Os dois detetives tinham que montar um documento de acusação bem abrangente que descrevesse o caso contra Stoddard. Esse documento seria dado ao promotor
e usado nas negociações com o advogado de defesa de Stoddard. Depois do encontro com Muriel Verloren, assim como com Bosch e Rider, o promotor determinava a estratégia
do caso. Se Stoddard preferisse ir a julgamento, o Estado procuraria conseguir a pena de morte com base na lei que condena as emboscadas. A alternativa para Stoddard
evitar a pena de morte era declarar-se culpado de homicídio em primeiro grau, em um acordo que o mandaria para a prisão perpétua sem possibilidade de condicional.
De qualquer modo, o resumo do caso que Bosch e Rider estavam redigindo seria de vital importância, porque mostraria a Stoddard e seu advogado a força das evidências
que tinham. Reforçaria a posição deles, obrigaria Stoddard a escolher entre a horrível
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alternativa de uma vida dentro de uma cela e a arriscada na tentativa de ser inocentado por um júri.
Fora uma boa semana até ali. Rider se recuperara da bala de Stoddard que quase a matara e demonstrava total comando de seu talento em montar o resumo de um caso.
Bosch passara quase toda a segunda-feira revendo a investigação com um investigador da Corregedoria e fora inocentado no dia seguinte. O veredicto de "nenhuma medida
tomada" significava que ele estava inocentado pelo departamento, muito embora as histórias que saíam na mídia a respeito do caso continuassem a questionar as ações
do Departamento ao usar Roland Mackey como isca.
Bosch estava pronto para passar à investigação seguinte. Já tinha inclusive dito a Rider que queria estudar o caso da mulher que encontrara afogada na banheira no
seu primeiro dia como policial. Eles o pegariam assim que terminassem com a papelada a respeito de Stoddard.
Abel Pratt saiu da sua sala e entrou no cubículo deles. Estava extremamente pálido. Com um gesto de cabeça, indicou a tela do monitor de Rider.
- Estão trabalhando no Stoddard? - perguntou.
- Estamos - confirmou Rider. - O que é que há?
- Pode dar por terminado. Ele está morto. Ninguém disse nada por um longo momento.
- Morto? - perguntou Rider finalmente. - Como assim, morto?
- Morto dentro da sua cela na cadeia de Van Nuys. Dois ferimentos de faca no pescoço.
- Ele se matou? - perguntou Bosch. - Não creio que ele tivesse alguma arma escondida.
- Não, alguém fez o serviço para ele. Bosch endireitou-se na cadeira.
- Espere um minuto... ele estava no andar especial em regime de isolamento. Ninguém poderia...
- Alguém o matou hoje de manhã - interrompeu Pratt. - E esta é a pior parte.
Pratt levantou um bloquinho que segurava. Nele, algumas anotações tinham sido feitas. Ele as leu.
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-Na segunda-feira à noite, um homem foi preso no bulevar Van Nuys por embriaguez e conduta desordeira. Ele também agrediu um dos policiais que o prenderam. Foi identificado
rotineiramente e preso na cadeia de Van Nuys. Não tinha identidade e disse chamarse Robert Light. No dia seguinte, ao ser denunciado, confessou-se culpado de todas
as acusações, e o juiz lhe deu uma semana na cadeia de Van Nuys. Suas impressões digitais ainda não haviam sido conferidas no computador.
Bosch sentiu um nó na boca do estômago. Ficou apavorado. Sabia o que vinha pela frente. Pratt continuou, usando as anotações para construir a narrativa.
- O homem que disse chamar-se Robert Light foi designado para o serviço de cozinha porque alegou e demonstrou ter experiência de restaurante. Hoje de manhã, ele
trocou de serviço com um dos outros presos destacados na cozinha e foi empurrando o carrinho com as refeições para os presos que estavam no andar especial. De acordo
com os dois guardas que testemunharam a cena, quando Stoddard se aproximou da janela de correr na porta de sua cela a fim de receber a bandeja de comida, Robert
Light enfiou os braços por entre as grades e o agarrou. Em seguida, golpeou-o repetidamente com um punhal feito de uma colher apontada e amolada. Stoddard tinha
dois buracos no pescoço antes que os guardas subjugassem o agressor. Mas eles chegaram tarde demais. A carótida de Stoddard fora cortada, e ele sangrou na cela antes
que pudessem conseguir socorro para ele.
Pratt silenciou, mas Bosch e Rider não fizeram perguntas.
- Por coincidência - recomeçou Pratt -, as impressões digitais de Robert Light finalmente entraram no banco de dados quase que ao mesmo tempo em que ele estava matando
Stoddard. O computador apresentou um fantasma - ou seja, prisioneiro que deu nome falso. O nome verdadeiro, como estou certo de que vocês já adivinharam, era Robert
Verloren.
Bosch virou-se para Rider, mas não foi capaz de sustentar o olhar dela por muito tempo. Olhou para o tampo de sua mesa. Sentia como se tivesse levado um murro. Fechou
os olhos e esfregou o rosto com as mãos. Sentia que, de algum modo, aquilo acontecera por
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culpa sua. Robert Verloren estava sob sua responsabilidade durante a investigação. Deveria tê-lo encontrado. ....;
- Que tal essa para fechar o caso? - disse Pratt. Bosch abaixou as mãos e levantou-se. Olhou para Pratt.
- Onde ele está?
- Verloren? Ainda estão com ele lá. A Divisão de Homicídios de Van Nuys assumiu o caso.
- vou até lá.
- O que é que você vai fazer lá? - perguntou Rider.
- Não sei. O que puder.
Ele saiu do cubículo, deixando Rider e Pratt para trás. Uma vez no corredor, acionou o botão do elevador e esperou. O peso que sentia no peito não passava. Sabia
que era culpa o que sentia, a certeza de que não estava pronto para o caso e que seus erros tinham custado caro.
- A culpa não é sua, Harry. Ele fez o que esperou durante 17 anos para fazer.
Bosch virou-se. Rider o acompanhara.
- Eu deveria tê-lo achado primeiro.
- Ele não queria ser encontrado. Tinha um plano. A porta do elevador se abriu. Estava vazio.
- Seja o que for que você vai fazer - disse Rider -, eu vou junto.
Ele assentiu. Estar com ela facilitaria. Fez um gesto para que ela entrasse no elevador e seguiu-a. No caminho para o térreo, sentiu uma decisão crescer no seu íntimo.
A decisão de cumprir a missão. De nunca esquecer Robert, Muriel e Rebecca Verloren ao longo do caminho. E prometeu sempre falar pelos mortos.

 

 

                                                   Michael Connelly         

 

 

 

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