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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MORTE SÚBITA - P.2 / J. K. Rowling
MORTE SÚBITA - P.2 / J. K. Rowling

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

MORTE SÚBITA

Segunda Parte

 

Andrew leu e releu aquele texto de ponta a ponta. Mentalmente, já o tinha repassado mil vezes. Podia fazer inúmeras acusações contra Simon, mas não existia um tribunal em que ele pudesse apresentar queixa formal contra o pai, em que ele pudesse apresentar como prova as lembranças que tinha do terror físico e da constante humilhação. Tudo que tinha eram as diversas infrações à lei de que ouvia Simon se vangloriar e, entre elas, escolheu dois exemplos específicos — o computador roubado e os trabalhos feitos às escondidas na gráfica, depois do expediente —, porque ambos estavam diretamente ligados ao lugar em que o pai trabalhava. Lá na gráfica, tinha gente que sabia que Simon fazia essas coisas e que pode­ria perfeitamente ter contado isso a qualquer pessoa: amigos ou família.

O seu estômago estava se revirando, exatamente como acontecia quan­do Simon perdia inteiramente o controle e partia para cima de quem es­tivesse à sua frente. Ver a própria traição em preto e branco na tela do computador era algo assustador.

— Que diabos você tá fazendo, pô? — perguntou Bola baixinho, falan­do bem perto do seu ouvido.

O tal velhote fedorento tinha ido embora. Bola tinha vindo para a baia ao seu lado e estava lendo o que ele tinha escrito.

Puta que pariu! — exclamou o garoto.

Andrew sentiu a boca seca. A sua mão jazia esquecida sobre o mouse.

Como entrou aí? — sussurrou Bola.

Usando a injeção SQL — respondeu Andrew. — Tá tudo na inter­net. Todas essas porras de segurança.

Bola parecia encantado. E profundamente impressionado. Andrew fi­cou meio satisfeito, meio apavorado ao ver a reação do amigo.

Você tem que...

Deixa eu fazer um pro Pombinho!

De jeito nenhum!

Andrew puxou o mouse, deixando-o fora do alcance de Bola. Aquele ato feio de deslealdade filial tinha nascido do caldo primordial de raiva, frustração e medo que transbordava dentro dele desde que se entendia por gente. Mas só via um jeito de convencer o amigo a guardar segredo.

Isso aqui não é brincadeira!

Releu a mensagem pela terceira vez e lhe deu um título. Podia sentir a empolgação de Bola ali ao seu lado, como se estivessem vendo mais uma daquelas sessões de filmes pornô. De repente, a vontade de impressionar ainda mais tomou conta de Andrew.

Olha só — disse ele, e trocou o nome de usuário de Barry para O_Fantasma_de_Barry_Fairbrother.

Bola caiu na gargalhada. Os dedos de Andrew se mexeram sobre o mouse. O cursor correu para o lado. Jamais saberia se teria levado aquilo tudo adiante se o amigo não estivesse espiando. Com um único clique, um novo título apareceu no alto da área de mensagens do site do Con­selho Distrital de Pagford: Por que Simon Price não deve ser eleito para o Conselho Distrital de Pagford.

Já lá fora, na calçada, um olhou para o outro, quase sem fôlego de tanto rir, ligeiramente abalados pelo que acabara de acontecer. Andrew pediu então os fósforos de Bola emprestados, pôs fogo no pedacinho de papel onde tinha rascunhado a tal mensagem e ficou vendo-o se desintegrar em frágeis flocos negros, que foram caindo no chão sujo para desaparecer sob os pés dos passantes.

 

Andrew saiu de Yarvil às três e meia, para ter certeza de estar de volta a Hilltop House antes das cinco. Bola foi com ele até o ponto do ônibus e, depois, numa decisão aparentemente inesperada, disse que achava que ainda ia ficar um pouquinho por ali.

Na verdade, ele tinha combinado, sem dar muita certeza, no entanto, que encontraria Krystal no shopping. Voltou então para o centro do co­mércio pensando no que Andrew tinha feito lá no cyber café e tentando destrinchar as suas próprias reações.

Tinha de admitir que estava impressionado. Estava até com uma cer­ta sensação de que tinham lhe roubado a cena. Andrew havia planejado aquilo tudo, sem contar para ninguém, e executado o plano com a maior eficiência. Tudo isso era admirável. Sentiu uma pontada de ciúme só de pensar que o amigo arquitetou tudo sem lhe dizer uma palavra, o que o fez achar que talvez devesse censurar Andrew por ter atacado o pai sob a capa do anonimato. Não havia, naquela atitude, algo de dissimulado, de excessivamente elaborado? Não teria sido mais autêntico ameaçar Simon cara a cara ou partir para a briga com ele?

É claro que Simon era um merda, mas, sem dúvida alguma, era um merda autêntico: fazia o que queria, quando queria, sem se submeter às restrições sociais ou à moral convencional. De repente lhe ocorreu que talvez devesse ficar do lado de Simon... Afinal, gostava tanto de fazer o pai de Andrew rir com piadas grosseiras e infames, em geral sobre gente que fazia as maiores burradas ou que se machucava em cenas tipo pastelão. Muitas vezes, Bola achou que preferia Simon, com as suas mudanças de humor, os seus acessos de fúria imprevisíveis, a Pombinho. Pelo menos o pai de Andrew era um adversário de peso, um antagonista sempre a postos...

Por outro lado, não tinha esquecido a lata de creosoto que caiu da pra­teleira, o rosto ensandecido e os punhos de Simon, o barulho assustador que ele ficou fazendo, o calor do xixi escorrendo pelas suas pernas, nem (talvez a lembrança mais vergonhosa) o desejo intenso, desesperado, de ver a mãe chegar e levá-lo dali, para um lugar seguro. Bola ainda não se sentia tão invulnerável a ponto de não compreender perfeitamente o de­sejo de revanche do amigo...

Com isso, o garoto voltou ao ponto de partida: Andrew tinha feito uma coisa ousada, engenhosa e potencialmente explosiva em termos de conseqüências. Mais uma vez, sentiu uma pontinha de tristeza por não ter sido ele a bolar aquele plano. Ultimamente, vinha tentando se livrar do hábito tão classe média de se fiar nas palavras, mas não era nada fácil deixar de lado um esporte em que ele era tão bom. Andando ali pelo piso encerado da entrada do shopping, pegou-se elaborando frases que acabariam com as pretensões tão presunçosas de Pombinho e deixariam o seu pai inteiramente nu diante de um público que debocharia dele...

Junto dos bancos que ficavam no meio do corredor, avistou Krystal com um grupinho de gente lá de Fields. Entre eles estavam Nikki, Leanne e Dane Tully. Bola nem hesitou ou sequer deu a mínima impressão de se preparar para aquele encontro. Simplesmente, continuou andando no mesmo ritmo, com as mãos nos bolsos, dirigindo-se para aquele monte de olhos críticos e curiosos que o mediam da cabeça aos tênis.

Tudo bom, Gordo? — exclamou Leanne.

Tudo — respondeu o garoto. Ela, então, cochichou alguma coisa com Nikki, que deu uma risadinha. Krystal começou a mascar o seu chi­clete furiosamente. Ficou meio vermelha, jogou o cabelo para trás, fazen­do dançar os brincos de argola, e puxou a calça de moletom para cima.

Tudo bom? — perguntou Bola, dirigindo-se exclusivamente a ela.

Tudo — respondeu a garota.

Mamãe tá sabendo que você saiu, Bola? — indagou Nikki.

E, diante daquele silêncio ávido, ele replicou, com toda a calma.

Tá, sim. Foi ela que me trouxe. Tá esperando lá no carro. Disse que eu podia dar uma rapidinha antes de voltar para lanchar em casa.

Todos caíram na gargalhada, exceto Krystal, que berrou:

Vai se foder, seu filho da puta metido! — Mas, pelo jeito, tinha gostado do que ouviu.

Tá fumando desses cigarros de enrolar? — resmungou Dane Tully, olhando para o bolso do casaco de Bola. O ferimento no seu lábio estava com uma casca bem preta.

TÔ.

É desses que o meu tio fuma — prosseguiu Dane. — Tá acabando com a porra do pulmão dele — acrescentou, mexendo na casca do ma­chucado.

Onde é que vocês vão? — perguntou Leanne, olhando para Bola e para Krystal.

Sei lá — disse a garota, sempre mascando chiclete e olhando para Bola de relance.

Ele, porém, deixou uma e outra sem resposta e se limitou a indicar a saída do shopping com um gesto meio brusco do polegar.

Té mais — disse Krystal, bem alto, à turminha que estava com ela.

Já Bola, como quem não quer nada, meio que ergueu a mão num

gesto de despedida e foi embora, com Krystal quase correndo ao seu lado. Ouviu mais risos enquanto se afastavam, mas nem ligou. Sabia que tinha se saído muito bem...

Onde é que a gente vai? — perguntou a garota.

Sei lá — respondeu ele. — Onde é que você vai geralmente?

Ela deu de ombros, sempre andando e mascando o seu chiclete. Saí­ram do shopping e foram andando pela rua principal. Estavam a alguma distância do parquinho onde tinham ido procurar alguma privacidade da outra vez.

É verdade que a sua mãe trouxe você até aqui? — indagou Krystal.

Claro que não, pô! Vim de ônibus, né?

A garota não ficou chateada com aquela resposta ríspida e continuou olhando as vitrines das lojas, onde o reflexo dos dois seguia lado a lado. Magricela e esquisitão, Bola era uma celebridade lá na escola. Até Dane achava ele engraçado.

Ele só tá te usando, sua vaca burra — esbravejou Ashlee Mellor quando as duas se encontraram, três dias atrás, na esquina da Foley Road. — Porque você é uma puta, que nem a sua mãe!

Ashlee era uma das garotas que andava com Krystal até o dia em que as duas brigaram por causa de um garoto. Todo mundo sabia que ela não era muito boa da cabeça: era dada a uns acessos de raiva ou de choro, e, na Winterdown, passava metade do tempo nas aulas de reforço e a outra metade na orientação educacional, o que já bastaria para demonstrar que ela não era lá muito capaz de avaliar o alcance das coisas. Mas Ashlee não parou por aí: foi puxar briga com Krystal no seu território, ali onde a rival tinha as costas quentes e ela não conhecia praticamente ninguém. Nikki, Jemma e Leanne ajudaram a encurralar e imobilizar Ashlee, e Krystal bateu e esmurrou onde pôde, até as suas mãos ficarem cobertas do sangue da boca da outra.

E nem se preocupou com eventuais repercussões.

Um bando de malucos e, ainda por cima, cagões — disse Krystal, referindo-se à garota e à sua família.

Mas as palavras de Ashlee tinham atingido em cheio uma das suas feridas abertas e doloridas. Por isso ficou tão contente quando Bola a pro­curou na escola no dia seguinte e, pela primeira vez, sugeriu que se en­contrassem no fim de semana. Correu para contar a Nikki e a Leanne que ia sair com Bola Wall no sábado e adorou ver o ar de surpresa no rosto das amigas. E, ainda por cima, ele apareceu na hora que tinha anunciado (ou menos de meia hora depois), bem na frente do pessoal com quem ela an­dava, e os dois saíram juntos do shopping. Era como se estivessem mesmo namorando.

O que andou fazendo? — perguntou Bola depois de uns bons cin­qüenta metros em silêncio, quando passavam de novo em frente ao cyber café. Sabia que tinha de manter algum tipo de comunicação com a garota, mesmo que estivesse pensando se conseguiriam encontrar algum lugarzinho mais discreto antes do tal parquinho, que ficava a meia hora de distância. Queria trepar com ela quando os dois estivessem chapados: estava curiosíssimo para saber como seria.

Fui lá no hospital ver a minha vó mais cedo. Ela teve um AVC — respondeu Krystal.

Dessa vez, a avó Cath não tentou falar, mas a garota teve a impressão de que ela sabia que a bisneta estava ali. Como Krystal havia imaginado, Terri estava se recusando a ir ao hospital, e, então, ela foi sozinha e passou uma hora inteirinha sentada ao lado da cama, até que teve de ir embora para não chegar tarde ao shopping.

Bola tinha mil curiosidades sobre detalhes da vida de Krystal, mas ape­nas porque ela era uma porta para a vida real que existia em Fields. Coisas assim particulares como visitas a hospitais não lhe interessavam a mínima.

E — acrescentou a garota, sem conseguir conter o orgulho — dei uma entrevista pro jornal.

Quê? — exclamou Bola, perplexo. — Por quê?

Pra falar de Fields — respondeu ela. — Contar como é crescer por lá.

(A jornalista tinha enfim conseguido localizar a sua casa e, quando Terri, muito a contragosto, acabou concordando, levou Krystal com ela para um café para conversarem. A mulher ficou o tempo todo perguntan­do se estudar na St. Thomas tinha sido bom para ela, se tinha modificado a sua vida de uma forma ou de outra. E pareceu meio impaciente e frus­trada com as respostas que Krystal lhe deu.

Como são as suas notas na escola? — indagou a jornalista, mas Krys­tal ficou na defensiva e tratou de se esquivar àquela pergunta.

O sr. Fairbrother disse que acreditava que essa experiência tinha ampliado os seus horizontes.

Krystal não sabia o que dizer sobre essa história de horizontes. Quando pensava na St. Thomas, o que se lembrava era daquele maravilhoso pátio do recreio, com o grande castanheiro que, todo ano, despejava aqueles frutos enormes e lustrosos em cima dos alunos. Nunca tinha visto essas castanhas até entrar para a St. Thomas. Antes de mais nada, gostava de usar uniforme, de ficar igual a todo mundo. Ficou empolgadíssima quan­do viu o nome do bisavô no memorial aos mortos da guerra, bem no meio da praça: Sd. Samuel Weedon. Só um outro garoto também tinha o so­brenome gravado ali no memorial: era o filho de um fazendeiro, que, aos nove anos, já sabia dirigir um trator e que uma vez levou uma ovelha para a sala de aula, no dia de apresentar "Novidades". Krystal nunca se es­queceu da sensação do focinho da ovelha sob a sua mão. Quando contou essa história para a avó Cath, ela lhe disse que, no passado, a família deles também era de agricultores.

Adorava o rio, verde e exuberante, onde iam para as atividades de con­tato com a natureza. Mas o melhor de tudo eram os jogos e as aulas de educação física. Era sempre a primeira a ser chamada para formar os ti­mes em qualquer esporte e ficava encantada com as reclamações da outra equipe quando ela era escolhida. E, às vezes, se lembrava também dos professores especiais que teve, principalmente a srta. Jameson, uma mo­cinha de cabelo louro e comprido, que andava sempre na moda. Na sua cabeça, Anne-Marie era meio parecida com a srta. Jameson.

Tinha também uns fragmentos de informação que Krystal gravou na memória de forma bem detalhada. Vulcões: eram formados por desloca­mentos de placas do solo. Tinham feito, na escola, umas miniaturas de vulcões, que depois foram enchidas com bicarbonato de sódio e deter­gente líquido e entraram em erupção em cima das bandejas de plástico. Krystal tinha adorado aquela atividade. Lembrava-se também dos vikings, com os seus barcos compridos e os capacetes com chifres, mas já tinha es­quecido quando eles chegaram às ilhas britânicas e por que foram para lá.

Mas havia outras lembranças da St. Thomas, entre as quais os comen­tários sussurrados que garotinhas da sua turma faziam a seu respeito. E tinha batido em uma ou duas delas. Quando a Assistência Social permitiu que voltasse para a sua mãe, o seu uniforme ficou tão apertado, tão curto e tão nojento que começaram a mandar umas cartas lá da escola, o que provocou uma briga feia entre Terri e a avó Cath. As outras meninas não queriam se misturar com ela, a não ser nas equipes esportivas. Lembrava-se perfeitamente do dia em que Lexie Mollison ficou circulando pela sala de aula, entregando uns envelopinhos cor-de-rosa que continham um convite para uma festa, e passou direto por ela, com o nariz empinado — pelo menos, era assim que Krystal revia a cena.

Só um ou outro colega a convidaram. Será que Bola ou a mãe dele lembravam que ela tinha ido uma vez a uma festa de aniversário na casa deles? A turma inteira tinha recebido convite, e a avó Cath lhe comprou um vestido todo bonito. Era por isso que sabia que no imenso quintal dos fundos da casa de Bola tinha um laguinho e um balanço pendurado numa macieira. Eles tinham comido gelatina e participado de uma corrida de sacos. Tessa tirou Krystal da tal corrida porque, na sua ânsia desesperada para ganhar uma medalha de plástico, ela empurrou outras crianças que estavam na sua frente. Uma delas ficou com o nariz sangrando.

Quer dizer que você gostava da St. Thomas? — perguntou a jorna­lista.

Gostava — respondeu Krystal, mas sabia que não estava transmitin­do a idéia que o sr. Fairbrother queria que ela transmitisse, e desejou que ele estivesse ali para ajudá-la. — É, gostava, sim.)

E a troco de que eles queriam falar com você sobre Fields? — per­guntou Bola.

Foi idéia do sr. Fairbrother — disse Krystal.

Depois de mais alguns minutos de silêncio, o garoto voltou a falar.

Você fuma?

O quê? Tipo maconha? Já fumei, com Dane.

Eu tenho aqui.

Conseguiu com Skye Kirby, né? — perguntou a garota. Bola achou que tinha percebido um certo tom divertido na voz dela, porque Skye era a opção mais fácil e mais segura para os garotos de classe média. Se fosse isso mesmo, achava até legal aquele deboche, que era autêntico...

Por quê? Você consegue com quem? — indagou ele, desta vez bas­tante interessado.

Sei lá. Foi Dane que arranjou.

Com Obbo? — sugeriu Bola.

Aquele filho da puta de merda! — exclamou a garota.

Qual o problema com ele?

Mas Krystal não tinha palavras para dizer o que havia de errado com Obbo e, mesmo que tivesse, não ia querer falar sobre aquela figura. Só o nome de Obbo já lhe dava arrepios. Às vezes, ele aparecia e se picava com Terri; outras vezes, os dois transavam e Krystal encontrava com ele na escada, fechando aquela braguilha imunda, sorrindo por detrás das lentes de fundo de garrafa. Vira e mexe, ele arranjava uns trabalhinhos para Terri, como esconder aqueles computadores, deixar uns estranhos dormirem na casa dela por uma noite ou fazer uns servicinhos cuja na­tureza a garota ignorava, mas que mantinham a sua mãe fora de casa por horas a fio.

Não muito tempo atrás, Krystal teve um pesadelo em que via a mãe es­ticada, esparramada e amarrada numa estrutura qualquer. O seu corpo era praticamente um imenso buraco aberto, como uma gigantesca galinha crua e depenada, e, no tal sonho, Obbo entrava e saía daquele interior cavernoso e fazia mil coisas ali dentro, enquanto a cabecinha de Terri se mostrava assustada e sombria. Krystal acordou enjoada, furiosa e morren­do de nojo.

Ele é um filho da puta! — disse ela.

É um sujeito alto, de cabeça raspada e umas tatuagens que sobem pelo pescoço? — perguntou Bola, que tinha matado aula pela segunda vez essa semana e passou uma hora sentado numa mureta, lá em Fields, só olhando. O careca tinha chamado a sua atenção, remexendo numas coisas na traseira de uma velha caminhonete branca.

Não. Esse aí é Pikey Pritchard — respondeu Krystal. — Você deve ter visto ele lá na Tarpen Road.

Qual é a dele?

Não sei — disse a garota. — Pergunta pro Dane. Ele é amigo do irmão de Pikey.

Mas ela gostou de ver que ele estava mesmo interessado. Bola nunca tinha se mostrado tão disposto a conversar com ela antes.

Pikey está na condicional.

Que que ele fez?

Atacou um sujeito com uma garrafa quebrada lá em Cross Keys.

Por quê?

E eu é que vou saber! Não tava lá pra ver... — exclamou Krystal.

Estava feliz da vida, o que sempre a deixava excessivamente confiante.

Sem contar a preocupação com a avó Cath (que, afinal de contas, ainda estava viva e talvez ainda pudesse se safar), essas últimas semanas tinham sido bem legais. Terri estava de novo seguindo o programa da Bellchapel, e Krystal não deixava Robbie faltar à escola. O bumbum do menino já estava quase bom. Aparentemente, a nova assistente social também estava satisfeita, como a colega dela sempre ficava. Krystal também estava indo à escola todos os dias, embora tenha faltado às sessões de orientação com Tessa, tanto na segunda quanto na quarta. Mas não saberia dizer por quê. Às vezes a gente perde a prática...

Voltou a olhar para Bola com o rabo do olho. Nunca tinha lhe passa­do pela cabeça se interessar por ele, não até aquele dia na tal festa lá na escola. Todo mundo conhecia Bola. Algumas das suas piadas circulavam como coisas engraçadas que passavam na televisão. (Krystal sempre fingia que tinha televisão em casa. Via uma porção de coisas na casa das amigas e na da avó Cath e, por isso, vinha conseguindo manter a farsa. "É mesmo, foi uma merda!" "Eu sei, quase mijei na calça", dizia ela quando os outros falavam dos programas que tinham visto.)

Bola ficou imaginando como seria ser atacado com uma garrafa que­brada, com o vidro pontiagudo cortando a carne tenra do nosso rosto. Chegou a sentir a queimação e as pontadas do ar batendo na pele rasgada, e o calor úmido do sangue que jorrava. Sentiu até uma espécie de formigamento na pele ao redor da boca, como se ela já estivesse cicatrizando.

Dane continua andando com uma faca? — perguntou ele.

Como é que você sabe que ele tem uma faca? — replicou Krystal.

Porque ele ameaçou Kevin Cooper com ela.

Ah, tá — disse Krystal. — Cooper é um babaca, né?

Se é — concordou o garoto.

Dane só anda com a faca por causa dos irmãos Riordon — acres­centou Krystal.

Bola adorava a tranqüilidade com que ela dizia aquelas coisas, acei­tando a necessidade de uma faca porque havia uma rixa e, portanto, a possibilidade de violência. Essa era a realidade crua da vida. Isso, sim, era o que realmente importava... Mais cedo, antes da chegada de Arf, Pom­binho estava insistindo para que Tessa lhe dissesse se os seus panfletos de campanha ficariam melhores em papel amarelo ou em papel branco...

Que tal entrar aqui? — sugeriu ele, depois de uns instantes.

A direita deles, havia um muro comprido de pedra, e os portões abertos deixavam ver mais pedras e vegetação.

Tá bom — disse Krystal. Só tinha entrado no cemitério uma vez, com Nikki e Leanne. Sentaram num túmulo, abriram umas latas de re­frigerante, não muito à vontade com o que estavam fazendo. Até que apa­receu uma mulher e começou a xingá-las aos berros. Quando estavam saindo, Leanne atirou uma lata vazia na tal mulher.

Mas aquilo ali era aberto demais, pensou Bola enquanto os dois se­guiam por uma ampla alameda de chão de concreto que ficava entre as sepulturas. Aquele gramado e aquelas pedras não escondiam absolu­tamente nada. De repente, o garoto avistou uns arbustos cerrados que formavam uma cerca, acompanhando o muro do outro lado. Pegou um caminho mais estreito que atravessava o cemitério, e Krystal o seguiu, com as mãos nos bolsos. Foram passando entre sepulturas retangulares cobertas de cascalho e lápides rachadas e ilegíveis. O cemitério era gran­de e bem-cuidado. Chegaram então ao ponto em que havia os túmulos mais novos, de mármore preto reluzente, com letras douradas e lugares onde se via que as pessoas tinham posto flores frescas para os mortos recentes.

 

             Lyndsey Kyle

             15 de setembro de 1960 — 26 de março de 2008

             Descanse em paz, mamãe.

 

É, acho que ali é um lugar legal — disse Bola, ao avistar o vão es­curo entre os arbustos espinhosos com as suas flores amarelas e o muro do cemitério.

Agachados, os dois penetraram naquele cantinho sombrio e úmido e sentaram no chão, com as costas apoiadas no muro frio. As lápides sumi­ram entre os troncos da planta, mas não havia qualquer forma humana entre elas. Com habilidade de quem entende do assunto, Bola preparou o baseado, na esperança de que Krystal estivesse vendo e ficasse impres­sionada.

Ela, porém, estava olhando para além do dossel de folhas escuras e luzidias, pensando em Anne-Marie, que (foi a tia Cheryl quem lhe con­tou) tinha ido visitar a avó Cath na quinta-feira. Se ao menos ela houvesse matado aula e ido ao hospital na mesma hora, as duas teriam enfim se conhecido. Tantas vezes imaginou como seria o seu encontro com An­ne-Marie, quando lhe diria "Sou sua irmã"... Nas suas fantasias, a outra ficava encantada. Depois disso, passavam a se ver com freqüência, e a irmã acabaria sugerindo que Krystal fosse morar com ela. A Anne-Marie imaginária tinha uma casa como a da avó Cath, limpa e bem-arrumada, só que muito mais moderna. Ultimamente, nas cenas que criava, Krystal passou a incluir um bebezinho rosado, deitado num berço todo enfeitado.

Pronto — disse Bola, estendendo o baseado para a garota. Ela deu uma tragada, prendeu a fumaça nos pulmões por alguns segundos, e a sua expressão foi se abrandando, tornando-se quase sonhadora, à medida que a maconha ia realizando a sua mágica.

Você não tem irmãos, né? — perguntou ela.

Não — respondeu o garoto, metendo a mão no bolso para ver se as camisinhas que tinha trazido estavam ali dentro.

Krystal lhe devolveu o cigarro, sentindo a cabeça rodar de um jeito gostoso. Bola deu uma tragada caprichada e soltou uns anéis de fumaça.

Sou adotado — disse ele, alguns instantes depois.

É mesmo? — indagou a garota, encarando-o com os olhos arregalados.

Com os sentidos assim amortecidos e aninhados, as confidências iam saindo com mais facilidade; tudo, aliás, ficava mais fácil.

A minha irmã foi adotada — disse ela, encantada com aquela coin­cidência e feliz da vida por falar de Anne-Marie.

É... Com certeza vim de uma família como a sua — observou Bola.

Mas Krystal não estava ouvindo; o que ela queria era falar.

Tenho uma irmã mais velha e um irmão também, Liam, mas, quan­do eu nasci, os dois já tinham sido levados embora.

Por quê? — perguntou o garoto, que, a essa altura, estava prestando mais atenção.

Na época, a minha mãe tava com Ritchie Adams — disse Krystal. Deu uma tragada profunda no baseado e soltou a fumaça num jato fino e comprido. — Ele é pirado. De verdade. Tá em prisão perpétua porque matou um cara. Era superviolento com mamãe e os meninos. Aí John e Sue vieram e levaram os dois. A Assistência Social se meteu na história, e John e Sue acabaram ficando com eles.

Deu mais uma tragada no baseado, pensando naquele período da sua pré-história, um tempo imerso em sangue, fúria, escuridão. Tinha ouvido muitas coisas sobre Ritchie Adams, contadas principalmente pela sua tia

Cheryl. Ele tinha apagado cigarros nos braços de Anne-Marie, na época com um ano de idade, e dado tantos chutes na menininha que ela teve as costelas fraturadas. Tinha arrebentado o rosto de Terri: ainda hoje dava para ver que o osso da maçã do lado esquerdo era mais afundado que o do lado direito. O vício da moça se acentuou de forma catastrófica. Apa­rentemente, a decisão de levar embora as duas crianças negligenciadas e seviciadas não abalou a tia Cheryl.

Tinha que ser assim — dizia ela.

John e Sue eram uns parentes afastados que não tinham filhos. Krystal nunca soube ao certo como e por que eles faziam parte da sua complicada árvore genealógica ou como realizaram aquilo que, nas palavras de Terri, tinha sido um verdadeiro rapto. Depois de muitas brigas judiciais, o casal foi autorizado a adotar as crianças. Terri, que ficou com Ritchie até ele ser preso, nunca voltou a ver Anne-Marie ou Liam, por motivos que a garota não entendia muito bem. Toda aquela história era coalhada de ódio, de coisas ditas que eram consideradas imperdoáveis, de ameaças, de ordens de restrição, e envolveu um monte de agentes do Serviço Social.

E quem é o seu pai? — perguntou Bola.

E o Grinfa — disse a garota, lutando para lembrar o verdadeiro nome do sujeito. — Barry... — murmurou ela, embora achasse que não era exa­tamente aquilo. — Barry Coates. Só uso o nome da minha mãe, Weedon.

A lembrança do rapaz morto por overdose caído lá no banheiro de Ter­ri voltou à sua cabeça, flutuando naquela fumaça doce e pesada. Krystal devolveu então o cigarro a Bola e recostou a cabeça na parede de pedra, erguendo os olhos para uma nesga de céu entrecortada de folhas escuras.

Bola ficou pensando no tal Ritchie Adams, que havia matado um ho­mem, e considerando a possibilidade de seu próprio pai biológico tam­bém estar numa prisão qualquer, um sujeito todo tatuado, como Pikey, atlético e musculoso. Mentalmente, comparou Pombinho com aquele homem autêntico, forte e duro. Sabia que havia sido afastado da mãe bio­lógica quando ainda era um bebê, porque havia fotos de Tessa segurando-o no colo, uma coisinha frágil como um passarinho, com um gorro de lã branca na cabeça. Tinha nascido prematuro. Tessa havia lhe contado umas poucas coisas, embora ele mesmo jamais tivesse perguntado nada. Sabia, por exemplo, que a sua mãe de verdade era muito jovem quando ele nasceu. Talvez fosse alguém como Krystal, a garota que dava para qual­quer um na escola...

A essa altura, já estava chapado. Pôs a mão na nuca de Krystal e a puxou para perto de si. Começou a beijá-la, enfiando bem a língua na sua boca. Com a outra mão, tateou, procurando os seios da garota. A sua cabeça estava confusa, as pernas e os braços, pesados. Até o seu tato pare­cia afetado. Com alguma dificuldade, pôs a mão por baixo da camiseta de Krystal, tentando enfiá-la dentro do sutiã. A boca da garota estava quente, com gosto de tabaco e de maconha, e os seus lábios estavam secos e ra­chados. A excitação de Bola estava ligeiramente entorpecida, como se ele estivesse recebendo todas as informações sensoriais através de uma manta invisível. Desta vez, levou muito mais tempo para tirar a roupa de Krystal e teve dificuldades com a camisinha, porque os seus dedos estavam rígidos e lentos. Lá pelas tantas, apoiou o cotovelo, com todo o peso do próprio corpo, na carne macia da axila da garota, que soltou um grito de dor.

Krystal estava mais seca que da outra vez, e Bola, decidido a levar adiante o que tinha vindo fazer ali, fez força para penetrar nela. O tempo parecia lento e pegajoso, mas ele podia ouvir a própria respiração acelera­da, o que o deixou tenso, porque ficou imaginando uma pessoa qualquer, agachada naquele vão escuro junto deles, espiando e ofegando no seu ouvido. Krystal gemeu um pouco. Assim, com a cabeça para trás, o nariz dela ficava bem maior, parecendo até um focinho. O garoto levantou a camiseta dela para ver aqueles seios brancos e macios se sacudindo ligei­ramente por baixo do sutiã aberto. Nem percebeu que ia gozar, e pareceu até que o seu grunhido de prazer tinha vindo do tal intruso.

Girou o corpo, saiu de cima de Krystal, tirou a camisinha e a jogou fora. Depois, fechou o zíper da calça, sentindo-se inquieto, olhando à sua volta para ver se estavam realmente sozinhos ali. A garota puxou a calça para cima com uma das mãos, baixou a camiseta com a outra e pôs os braços para trás tentando fechar o sutiã.

Enquanto estavam atrás daqueles arbustos, escureceu, e o céu ficou coberto de nuvens. Bola sentia um zumbido nos ouvidos; algo que pare­cia vir de longe. Estava com fome. O seu cérebro estava lerdo, mas, apa­rentemente, os seus ouvidos estavam hipersensíveis. Continuava sentindo aquele medo de estar sendo observado, talvez por cima do muro às suas costas. Quis ir embora.

— Vamos... — balbuciou então, e, sem esperar por Krystal, foi se arras­tando até sair de trás dos arbustos e se levantou, limpando as roupas. A uns duzentos metros, avistou um casal idoso agachado junto de uma sepul­tura. Estava louco para se livrar daqueles olhos-fantasma que podiam, ou não, ter visto ele trepar com Krystal Weedon. Ao mesmo tempo, porém, a tarefa de localizar o ponto de ônibus certo e fazer o trajeto até Pagford lhe parecia insuportavelmente difícil. Adoraria ser simplesmente transporta­do, de imediato, para o seu quarto lá no sótão.

Krystal tinha vindo atrás dele, com um andar meio trôpego. Parou, ajeitando a camiseta e olhando fixo para o gramado aos seus pés.

Puta que pariu! — murmurou ela.

Que foi? — exclamou Bola. — Vem, vamos embora.

É o sr. Fairbrother — disse a garota, sem sair do lugar.

Quê?

Krystal estava apontando para o túmulo diante deles. Ainda não tinha uma lápide, mas viam-se flores frescas ao seu redor.

Tá vendo? — perguntou ela, se agachando e mostrando os cartões grampeados às tiras de celofane. — É o sr. Fairbrother. — Reconhecia aquele nome com facilidade por causa das tantas cartas enviadas à sua casa, pedindo a permissão da sua mãe para ela embarcar no micro-ônibus. — "Pra Barry" — disse ela, esforçando-se para ler direito. — E esse aqui diz "Pro papai" — prosseguiu, praticamente soletrando — "de...".

Mas empacou diante dos nomes de Niamh e Siobhan.

E daí? — disse Bola. Na verdade, porém, a novidade o deixou apa­vorado. Aquele caixão de fibra trançada estava bem ali, debaixo deles, e, lá dentro, o corpo pequeno e a cara animada do melhor amigo de Pombi­nho, o sujeito que vira tantas vezes na sua casa, ia apodrecendo na terra. O Fantasma de Barry Fairbrother... Ficou aflito. Parecia até algum tipo de castigo...

Vamos! — exclamou, mas Krystal não se moveu. — O que foi?

Eu remava pra ele, né? — replicou ela, irritada.

Ah, claro...

Bola estava aflito como um cavalo nervoso, prestes a refugar.

Krystal continuava olhando o túmulo, abraçando o próprio corpo. Es­tava se sentindo vazia, triste e suja. Queria que não tivessem transado na­quele lugar, tão perto do sr. Fairbrother. Sentiu frio. À diferença de Bola, ela não estava de casaco.

Vamos — repetiu o garoto mais uma vez.

Ela o seguiu até a saída do cemitério, e nenhum dos dois disse nada. Krystal estava pensando no sr. Fairbrother. Ele sempre a chamava de "Krys", coisa que ninguém mais fazia. E ela gostava de ser "Krys". O sr. Fairbrother era divertido. Krystal estava com vontade de chorar.

Bola ia pensando se conseguiria arranjar um jeito engraçado de con­tar aquela história para Andrew: dizer que tinha ficado chapado; que tinha trepado com Krystal; que, de repente, baixou uma paranóia e ele ficou achando que tinha alguém vendo eles transarem. E, depois, quan­do saíram de trás da moita, viram que estavam bem pertinho do túmulo de Barry Fairbrother. Mas não conseguia achar graça nenhuma naquilo. Pelo menos, ainda não...

 

                             Duplicidade

7.25 Uma resolução não deve tratar sobre mais de um assunto (...).

Negligenciar essa regra geralmente compromete a clareza das discussões e pode levar a uma ação comprometida (...).

             Charles Arnold-Baker

             Administração dos Conselhos Locais

 

— ...saiu daqui correndo, fazendo um escândalo, dizendo que ela era uma vaca paquistanesa, e agora o jornal ligou, querendo uma declaração, por­que ela...

Parminder ouviu a voz da recepcionista, pouco mais alta que um sus­surro, quando passou pela porta entreaberta da sala dos funcionários. Com um movimento rápido e certeiro, a médica escancarou a porta e viu a recepcionista e a auxiliar de enfermagem sentadas, bem próximas uma da outra.

As duas se viraram de um salto.

Dra. Jawan...

Você se lembra do acordo de confidencialidade que assinou quando começou a trabalhar aqui, não lembra, Karen?

A recepcionista estava apavorada.

Lembro... Eu... Eu não estava... Laura já... Eu vim aqui só para dar esse recado. Ligaram da Gazeta de Yarvil e Adjacências. A sra. Weedon morreu, e uma das suas netas está dizendo...

E isso aí é para mim? — perguntou Parminder com frieza, apontan­do para o prontuário de um paciente na mão de Karen.

Ah, é sim — disse Karen, perturbada. — Ele queria ver o dr. Crawford, mas...

É melhor você voltar para o seu lugar.

Parminder pegou o prontuário, saiu da sala, furiosa, e voltou para a recepção. Ali, deu uma olhada nos pacientes e percebeu que não sabia quem devia chamar. Olhou para a pasta que estava segurando.

Sr. ... Sr. Mollison.

Howard se levantou, sorrindo, e se aproximou dela, com aquele jeito de andar adernando o corpo para um lado e para o outro que ela conhecia tão bem. A aversão veio como bílis à garganta de Parminder. Ela se virou, foi voltando para o consultório, e Howard a seguiu.

Tudo certinho com Parminder? — perguntou ele, enquanto fecha­va a porta e se acomodava na cadeira dos pacientes sem ter sido convidado a fazer isso.

Aquele era o seu jeito habitual de cumprimentar as pessoas, mas hoje parecia gozação.

Qual é o problema? — perguntou ela bruscamente.

Uma irritaçãozinha — disse ele. — Bem aqui. Preciso de um creme ou algo parecido.

Ele tirou a camisa de dentro da calça e a puxou um pouco para cima. Parminder viu uma área de pele muito vermelha, bem perto daquela pre­ga que a barriga dele fazia, caindo em cima das coxas.

Você precisa tirar a camisa — disse ela.

Só está coçando aqui.

Preciso examinar a região toda.

Ele suspirou e ficou de pé. E, enquanto desabotoava a camisa, per­guntou:

Você recebeu a pauta da reunião, que enviei hoje de manhã?

Não, não abri meus e-mails hoje.

Era mentira. Parminder tinha visto a pauta e ficou furiosa, mas não era hora de falar disso. Detestava que ele trouxesse assuntos do Conselho para o consultório. Via aquilo como uma maneira de lhe lembrar que havia um lugar onde ela estava subordinada a ele, mesmo que ali, naquela sala, pudesse mandar ele tirar a roupa.

Você pode, por favor... Tenho que olhar embaixo...

Ele suspendeu a enorme massa de carne. A parte de cima da calça apareceu e, depois dela, o cós. Com os braços cheios da própria gordura, ele sorriu para a médica. Ela chegou a cadeira mais perto e ficou com a cabeça na altura do cinto dele.

Uma ferida feia e escamosa tinha se alastrado na dobra escondida da barriga de Howard: era de um vermelho vivo, como uma queimadura, e ia de um lado a outro do abdômen, parecendo um imenso sorriso infeccionado. Parminder sentiu um cheiro de carne apodrecida chegar às suas narinas.

Intertrigo — disse ela — e neurodermatite circunscrita nesse ponto aqui, onde você coçou. Tudo bem, pode pôr a camisa de novo.

Ele deixou a barriga cair e pegou a camisa, sem se abalar.

Você vai ver que incluí na pauta da reunião o prédio da Bellchapel. Isso tem despertado um certo interesse da imprensa atualmente.

A médica estava digitando alguma coisa no computador e não res­pondeu.

A Gazeta de Yarvil e Adjacências — prosseguiu Howard. — Estou fazendo um artigo para eles. Os dois lados da questão — acrescentou, abotoando a camisa.

Parminder tentava não escutar o que ele dizia, mas o nome do jornal fez o aperto que sentia na boca do estômago piorar.

Quando foi a última vez que você mediu a pressão, Howard? Não estou vendo nenhum registro nos últimos seis meses.

Está tudo bem. Estou tomando remédio.

Vamos dar uma olhada mesmo assim. Já que está aqui...

Ele suspirou de novo e lentamente arregaçou a manga da camisa.

Vão publicar o artigo de Barry antes do meu — disse. — Você sabia que ele tinha enviado um artigo para o jornal? Sobre Fields?

Sabia — respondeu ela, mesmo achando que seria melhor não di­zer nada.

Você não teria uma cópia desse artigo, teria? Assim não corro o risco de dizer no meu algo que ele já tenha dito.

As mãos da médica tremiam segurando a braçadeira do aparelho de pressão, que não cabia no braço de Howard. Retirou-a e se levantou para pegar uma maior.

Não — respondeu, de costas para ele. — Nunca vi esse texto.

Howard ficou olhando a bombinha ser acionada e observou os pontei­ros no marcador com o sorriso indulgente de um homem que assiste a um ritual pagão.

Está muito alta — disse ela, quando o ponteiro marcou dezessete por dez.

Estou tomando um remédio para isso — insistiu ele, coçando o lugar onde a braçadeira tinha estado e puxando a manga para baixo. — O dr. Crawford acha que está tudo bem.

Ela deu uma olhada na lista de medicamentos aberta na tela do com­putador.

Você está tomando alodipina e bendroflumetiazida para a pressão, certo? E sinvastatina para o coração... Mas nenhum betabloqueador...

Por causa da minha asma — disse Howard, alisando a manga da camisa.

...Certo... E aspirina. — Ela se virou para olhar para ele. — Howard, todos os seus problemas de saúde se resumem a um só: a gordura. Já foi a um nutricionista?

Tenho uma delicatéssen há trinta e cinco anos — disse ele, sempre sorrindo. — Não preciso que ninguém me ensine nada sobre comida.

Algumas poucas mudanças no seu estilo de vida fariam uma dife­rença enorme. Se você conseguisse perder...

Com uma piscadela rápida, ele declarou com tranqüilidade:

Vamos facilitar as coisas. Preciso apenas de um creme para a coceira.

Descontando a raiva no teclado, Parminder prescreveu, ferozmente, cremes antifúngicos com corticoides, imprimiu a receita e a entregou a Howard sem dizer mais nenhuma palavra.

Muitíssimo obrigado — disse ele, enquanto se levantava. — E te­nha um ótimo dia.

 

— Que que você quer?

Com o corpo todo encolhido, Terri Weedon parecia ainda menor ali no vão da porta. Ela pôs as mãos ossudas, como garras, nos quadris, ten­tando parecer mais imponente, barrando a entrada da casa. Eram oito da manhã. Krystal tinha acabado de sair com Robbie.

Falar com você — disse a irmã. Grandalhona e com aquele jeitão masculino, usando um colete branco e calça de moletom, Cheryl deu uma tragada no cigarro, vislumbrou Terri através da fumaça e acrescen­tou: — Vó Cath morreu.

Quê?...

Vó Cath morreu — repetiu mais alto. — Você não tá nem aí, né? Terri tinha ouvido da primeira vez. A notícia a atingiu em cheio, e ela só perguntou para ouvir aquilo de novo e entender direito.

Você tá chapada? — perguntou Cheryl, encarando aquele rosto va­zio e tenso.

Não tô, nada. Vai se foder.

Era verdade. Terri não tinha usado nada de manhã, nem nas últimas três semanas. Mas não tinha do que se orgulhar. Não havia nenhum calendário com os dias riscados pendurado na cozinha. Uma vez, ficou sem usar nada por muito mais tempo, meses até. Obbo estava fora há quinze dias, o que tornou tudo mais fácil. Mas as suas coisas ainda estavam na velha lata de biscoitos, e a fissura queimava seu corpo frágil como um fogo eterno.

Morreu ontem. A filha da puta da Danielle só resolveu avisar agora de manhã — disse Cheryl. — Eu ia ao hospital hoje pra ver ela de novo. Danielle tá de olho na casa da vó Cath. Aquela vaca interesseira.

Já fazia muito tempo que Terri não ia à pequena casa geminada da Hope Street, mas quando Cheryl disse aquilo, pôde ver, nitidamente, as quinquilharias no aparador e as cortinas rendadas. Imaginou Danielle lá, surrupiando coisas, fuçando nos armários.

O velório é na terça, às nove, depois ela vai ser cremada.

Tá certo — respondeu Terri.

Temos direito a essa casa tanto quanto ela — disse Cheryl. — Vou dizer que a gente quer a nossa parte, tá?

Tá bom.

Ficou ali olhando e só entrou quando o cabelo amarelo e as tatuagens da irmã desapareceram na esquina.

A avó Cath estava morta. Fazia tempo que as duas não se falavam. Tô lavando as minhas mãos. Pra mim chega, Terri. Já chega. No entanto, nunca tinha deixado de ver Krystal, que era a queridinha dela. Foi até vê-la competir naqueles barcos estúpidos. E foi o nome de Krystal que ela disse no leito de morte, não o de Terri.

Tudo bem então, sua vaca velha. Tô nem aí. Agora já era.

Com um aperto no peito e o corpo tremendo, Terri andou pela cozi­nha fedida à procura de um cigarro, mas o que queria mesmo era a colher, o isqueiro e a agulha.

Era tarde demais para dizer à velha o que ela deveria ter dito. Tarde demais para ser de novo Terri-Baby. Meninas grandes não choram... Me­ninas grandes não choram... Muitos anos se passaram até que percebesse que a canção que a avó Cath cantava para ela, com aquela voz rouca de fumante, era na verdade "Sherry Baby".

As mãos de Terri vasculharam o lixo como vermes, procurando por ma­ços de cigarro, rasgando-os, encontrando-os todos vazios. Krystal deve ter fumado o último; ela era uma vaca interesseira, igual a Danielle, mexendo nas coisas da avó Cath, tentando esconder dos outros que ela tinha morrido.

Havia uma guimba boiando num prato engordurado. Terri a secou na camiseta e foi acendê-la na boca do fogão. Mentalmente, ouviu a própria voz quando tinha onze anos.

Quero que você seja a minha mamãe.

Não queria lembrar. Ficou encostada ali na pia, fumando, tentando pensar em outra coisa; por exemplo, na disputa que iria acontecer entre as suas irmãs mais velhas. Ninguém mexia com o casal Cheryl e Shane: eles estavam sempre prontos para a briga. Recentemente Shane jogou uns trapos em chamas na caixa de correio da casa de um filho da puta qual­quer. Foi por isso que tinha sido preso dessa última vez, e ainda estaria na cadeia se a casa não estivesse vazia na ocasião. Mas Danielle tinha armas que Cheryl não tinha: dinheiro e a sua própria casa, com telefone fixo. Conhecia pessoas nas repartições e sabia como falar com elas. Era do tipo que tinha sempre uma carta na manga.

Ainda assim, Terri duvidava que Danielle fosse ficar com a casa, mes­mo com as suas armas secretas. Não eram só elas três. A avó Cath teve muitos netos e bisnetos. Depois que Terri foi levada para uma instituição, o seu pai ainda teve mais filhos. Nove ao todo, pelos cálculos de Cheryl, de cinco mães diferentes. Terri não conhecia os seus meios-irmãos, mas Krystal lhe contou que a avó Cath tinha contato com eles.

Sério? — retrucou ela então. — Tomara que roubem tudo dela, aquela vaca velha e estúpida...

Então, ela conhecia o resto da família, mas eles não eram exatamente anjos, pelo que Terri tinha ouvido falar. Mas foi só com ela, que um dia já havia sido Terri-Baby, que a avó Cath cortou relações para sempre.

Quando você está limpo, lembranças e pensamentos diabólicos come­çam a brotar da escuridão dentro de você. Parece até que a sua cabeça está cheia de moscas pretas zumbindo sem parar e pousando por toda a parte.

Quero que você seja a minha mamãe.

A roupa que Terri estava usando hoje deixava o seu braço, o seu pes­coço e os seus ombros cheios de cicatrizes totalmente expostos, exibindo a pele retorcida em dobras e sulcos, que mais parecia um sorvete derreti­do. Quando tinha onze anos, ficou internada seis semanas na unidade de queimados do Hospital Geral South West.

(— Como isso aconteceu, meu bem? — perguntou a mãe da criança que estava na cama ao lado.

O pai tinha jogado uma frigideira de óleo fervendo em cima dela. E sua camiseta da Human League pegou fogo.

Foi um acidente — murmurou Terri. Era o que dizia para todo mundo, inclusive para a assistente social e as enfermeiras. Sabia que, no momento em que entregasse o pai, teria escolhido ser queimada viva.

A mãe foi embora logo depois que ela fez onze anos, deixando as três filhas para trás. Alguns dias depois, Danielle e Cheryl se mudaram para a casa dos namorados. Terri foi a única que ficou, tentando fazer batata frita para o pai e se agarrando à esperança de que a mãe iria voltar. Mes­mo passando pela agonia e o terror daqueles primeiros dias e noites no hospital, ficou contente de que aquilo houvesse acontecido, porque tinha certeza de que a mãe ia ficar sabendo e voltaria para buscá-la. O coração da menina disparava toda vez que ela ouvia uma movimentação na porta da enfermaria.

Mas, durante as seis longas semanas de dor e solidão, a única pessoa que apareceu para visitá-la foi a avó Cath. Naquelas tardes e noites tran­qüilas, a avó Cath vinha se sentar ao lado da neta, lembrando-lhe que devia dizer obrigada às enfermeiras, sempre rígida e de cara amarrada, que deixava escapar às vezes uma ternura inesperada.

A avó Cath comprou para ela uma boneca barata de plástico, com uma capa de chuva preta brilhante, mas quando a menina tirou a roupa da boneca não havia nada por baixo.

— Ela não tem calcinha, vó.

E a avó Cath deu uma risada. Ela nunca dava risadas.

Quero que você seja a minha mamãe.

Ela queria que a avó a levasse para casa. Pediu isso, e ela concordou. Às vezes Terri pensava naquelas seis semanas no hospital como a época mais feliz da sua vida, mesmo com a dor. Era tudo tão seguro, as pessoas eram boas e tomavam conta dela. Achou que iria para casa com a avó Cath, a casa com aquelas cortinas rendadas tão bonitas... Achou que não voltaria mais para o pai, não voltaria mais para aquele lugar em que a porta do quarto se abria com violência no meio da noite, fazendo balançar o pôster de David Essex que Cheryl tinha deixado para trás. Achou que não volta­ria mais para o pai e sua mão invasora se aproximando da cama, de onde ela implorava para que ele não...)

A Terri adulta jogou o filtro da guimba do cigarro no chão da co­zinha e saiu pela porta da frente. Estava precisando de algo mais for­te que nicotina. Passou pelo caminho do jardim e depois, já na rua, seguiu na mesma direção de Cheryl. Viu, de relance, dois vizinhos conversando na calçada, observando-a passar. Querem uma foto minha, porra? Aí podem levar pra casa. Terri sabia que era motivo permanente de fofocas, sabia o que diziam a seu respeito, às vezes chegavam a gritar isso na sua cara. A vaca arrogante da casa ao lado ia sempre reclamar no Conselho sobre o estado do quintal de Terri. Vão se foder, vão se foder, vão se foder...

Continuava caminhando, tentando escapar das lembranças.

Você nem sabe quem é o pai, né, sua puta? Tô lavando as minhas mãos, Terri. Pra mim chega, Terri.

Essa foi a última vez que as duas se falaram. A avó Cath a chamou do que todo mundo a chamava, e Terri respondeu na mesma moeda.

Vai se foder, então, sua vaca velha e desgraçada, vai se foder.

Ela nunca disse "Você me decepcionou, vó Cath". Nunca disse "Por que não ficou comigo?". Nunca disse "Amo você mais do que qualquer outra pessoa, vó Cath".

Ainda bem que Obbo já devia estar voltando. Era para ter chegado hoje; hoje ou amanhã. Ela tinha que conseguir pelo menos um pouco. Tinha que conseguir.

Tudo bem, Terri?

Viu Obbo por aí? — perguntou ela ao garoto que bebia e fumava, encostado no muro, do lado de fora da loja de bebidas. As cicatrizes nas suas costas estavam queimando novamente.

Ele fez que não com a cabeça, mascando chiclete e olhando para ela, de alto a baixo, com um sorrisinho malicioso. Terri saiu dali às pressas. Pensava na assistente social, em Krystal, em Robbie, e esses pensamentos a perturbavam: mais moscas zumbindo. Eram todos como os vizinhos que olhavam para ela, julgando tudo. Não entendiam a terrível urgência da sua necessidade.

(A avó Cath a pegou no hospital e a instalou num dos quartos da sua casa. Era o quarto mais limpo e mais bonito em que Terri já havia dormi­do. Nas três noites que passou ali, ela se sentava na cama depois que a avó Cath lhe dava um beijo de boa-noite e brincava com os enfeites no parapeito da janela. Havia um vaso com um buquê de flores de vidro que tilintavam, um peso de papel cor-de-rosa com uma concha dentro e, o favorito de Terri, um cavalo de cerâmica empinado, que sorria de um jeito bobo.

Gosto de cavalos — disse para a avó Cath.

Uns dias antes de sua mãe ir embora, Terri foi com a escola numa ex­posição de produtos agrícolas. A turma inteira foi ver um cavalo enorme, preto, de patas peludas. Ela tinha sido a única corajosa o bastante para tocar nele. O cheiro a deixou fascinada. Abraçou as patas do animal, que mais pareciam umas colunas terminando num teto maciço e branco, e sentiu a sua carne viva por baixo do pelo. A professora ficou lhe dizendo "Cuidado, Terri, cuidado", mas o homem velho que cuidava do cavalo sorriu para ela, afirmando que não havia perigo algum, que Samson não machucaria uma garota tão boazinha como ela.

O cavalo de cerâmica era de outra cor: amarelo, com a crina e a cauda pretas.

Pode ficar com ele — disse a avó Cath, e Terri conheceu a verda­deira felicidade.

Mas, no quarto dia, logo de manhã, o seu pai chegou.

Você vai pra casa comigo — disse ele, com um olhar que a aterrori­zou. — Não tem nada que ficar com a porra dessa vaca velha dedo-duro. Não mesmo. Você vai comigo, sua putinha.

A avó Cath estava tão assustada quanto Terri.

Mikey, não... — gritava ela. Alguns dos vizinhos espiavam pela ja­nela. A avó Cath segurava um dos braços de Terri, e o pai puxava o outro.

Você vem comigo!

Ele deu um soco no rosto da avó Cath e arrastou Terri para o carro. Quando chegou em casa, espancou a menina, sem saber onde estava ba­tendo e chutando.)

Viu Obbo por aí? — gritou Terri para a vizinha dele, a uns cinqüen­ta metros de distância. — Ele já chegou?

Sei lá — respondeu a mulher, virando as costas.

(Quando Michael não estava batendo em Terri, fazia outras coisas com ela, as coisas de que ela não podia falar. A avó Cath não voltou mais. Terri fugiu aos treze anos, mas não foi para a casa da avó, porque não queria que o pai a encontrasse. De qualquer forma, eles a pegaram e a puseram numa instituição.)

Terri esmurrou a porta de Obbo e ficou esperando. Tentou de novo, mas não tinha ninguém em casa. Então, deixou-se cair sentada no degrau da porta, tremendo, e começou a chorar.

Duas garotas da Winterdown que estavam matando aula ficaram olhando quando passaram por ela.

É a mãe de Krystal Weedon — disse uma delas bem alto.

A piranha? — perguntou a outra, o mais alto que pôde.

Aos prantos, Terri não teve forças para revidar. As garotas foram embora, rindo. — Sua puta! — xingou uma delas lá do fim da rua.

 

Gavin podia ter chamado Mary para discutirem sobre a recente troca de correspondência com a companhia de seguros no seu escritório, mas, em vez disso, preferiu ir até a casa dela. Deixou o fim da tarde livre caso ela o convidasse para ficar mais um pouco e comer alguma coisa. Mary era uma cozinheira fantástica.

O impulso instintivo de ficar longe do luto pungente de Mary tinha se dissipado com o contato mais regular que estavam tendo. Sempre gostou de Mary, mas no convívio social ela era ofuscada pelo marido. Não parecia se incomodar com esse papel de coadjuvante; pelo contrário, sempre dava a impressão de adorar a função de embelezar o cenário, rindo alegremen­te das piadas de Barry, feliz da vida pelo simples fato de estar com ele.

Gavin duvidava que Kay pudesse de alguma forma ser feliz desempe­nhando um papel secundário. Subia a Church Row, arranhando as mar­chas, pensando que ela ficaria ofendidíssima se lhe pedisse que modifi­casse seu comportamento ou mudasse de opinião só para satisfazer o seu companheiro, para deixá-lo feliz ou melhorar a sua auto-estima.

Ele achava que nunca tinha sido tão infeliz num relacionamento como agora. Mesmo nos momentos finais do caso com Lisa, havia tréguas tem­porárias, risadas, lembranças repentinas dos bons tempos. A situação com Kay parecia mais uma guerra. Às vezes chegava a esquecer que devia haver alguma afeição entre eles e ficava se perguntando se ela ao menos gostava dele.

Na manhã seguinte ao jantar de Miles e Samantha, tiveram a pior briga de todas por telefone. Kay chegou a desligar na cara dele. Por vinte e quatro horas inteiras, Gavin achou que aquele relacionamento tinha chegado ao fim e, apesar de ser exatamente isso o que queria, sentiu mais medo do que alívio. Em suas fantasias, Kay simplesmente ia embora de volta para Londres, mas a verdade é que agora ela estava presa a Pagford por causa do emprego e porque sua filha estudava na Winterdown. Imagi­nou que se esbarrariam o tempo todo naquele vilarejo minúsculo. Talvez ela até já estivesse envenenando a todos contra ele. Podia vê-la repetindo para Samantha ou para aquela velha enxerida da delicatéssen, que certa vez lhe deu carne de ganso, algumas das coisas que tinha lhe dito por telefone.

Tirei minha filha da escola, afastei ela dos amigos, deixei meu emprego e me mudei para cá só por sua causa, e você me trata como se eu fosse uma puta que você não tem que pagar!

As pessoas iam dizer que ele tinha agido muito mal. E talvez tivesse agi­do mal mesmo. Certamente houve um momento crucial em que deveria ter voltado atrás, só que ele não percebeu.

Gavin passou a semana inteira obcecado com a idéia de como seria ser visto como um canalha. Nunca tinha estado nessa situação antes. Quando Lisa o deixou, todos foram bons e solidários com ele, especialmente os Fairbrother. Culpa e pavor o atormentaram até que, na noite de domingo, ele entregou os pontos e pediu desculpas a Kay. Agora estava de volta aon­de não queria estar, e a odiava por isso.

Depois de estacionar o carro na entrada da casa dos Fairbrother, como fizera tantas e tantas vezes quando Barry estava vivo, dirigiu-se à porta da frente e notou que alguém tinha cortado a grama desde a última vez que esteve ali. Mary abriu a porta quase no mesmo instante em que ele tocou a campainha.

Oi, como... O que houve, Mary?

O rosto dela estava todo molhado, e os olhos brilhavam como diaman­tes por causa das lágrimas. Ela engoliu em seco uma ou duas vezes, sacu­diu a cabeça e, de repente, sem saber como nem por quê, Gavin se viu abraçando-a ali, na porta de entrada.

Aconteceu alguma coisa, Mary?

Sentiu ela fazer que sim com a cabeça. Extremamente consciente da posição delicada em que se encontravam, ali bem na porta da frente, com a rua toda por trás deles, Gavin resolveu levá-la para dentro de casa. Ela era pequena e frágil nos seus braços; as mãos se agarravam nele, o rosto pressionava o seu peito. Ele largou a pasta da forma mais delicada possí­vel, mas, com o barulho que ela fez ao bater no chão, Mary se afastou dele, ofegante, cobrindo a boca com a mão.

Me desculpe... Me desculpe... Ah, meu Deus, Gav...

O que aconteceu?

A voz dele soou diferente: forte, enérgica, controladora, parecia até o jeito como Miles falava às vezes durante uma crise no trabalho.

Alguém... Eu não... Alguém pôs...

Ela o levou até o escritório, atulhado, malcuidado, mas aconchegante, com os velhos troféus de remo de Barry nas prateleiras e uma fotografia grande e emoldurada pendurada na parede, em que se viam oito garotas dando socos no ar, com medalhas penduradas no pescoço. Mary apontou para a tela do computador, tremendo. Sem tirar o casaco, Gavin se sentou e ficou olhando para a área de mensagens no site do Conselho Distrital de Pagford.

Eu es-estava na delicatéssen hoje de manhã, e Maureen Lowe me disse que muitas pessoas tinham deixado mensagens de condolências no site... Então eu ia po-postar uma mensagem de a-agradecimento. E... Olhe...

Ele leu enquanto ela falava. Por que Simon Price não deve ser eleito para o Conselho Distrital de Pagford, postado pelo Fantasma de Barry Fairbrother.

Meu Deus! — exclamou Gavin, indignado.

Mary começou a chorar novamente. Gavin queria envolvê-la nos seus braços, mas ficou com medo de fazer isso, especialmente ali, naquela sala pequena e acolhedora, repleta da presença de Barry. Ele a pegou pelo braço e a levou até a cozinha.

Você precisa de um drinque — afirmou ele, com aquela voz forte e controladora, tão diferente da habitual. — Nada de café. Onde ficam as bebidas mesmo?

Antes que ela pudesse responder, ele se lembrou de que tinha visto Barry pegar as garrafas no armário várias vezes. Então, preparou um gim-tônica, a única bebida que ela tomava antes do jantar, pelo que sabia.

Gav, são quatro da tarde.

E daí? — retrucou ele, com aquela nova voz. — Beba tudo.

Uma risada nervosa interrompeu os soluços de Mary, que pegou o copo e começou a bebericar o gim-tônica. Ele apanhou um pedaço de papel-toalha para enxugar o rosto e os olhos dela.

Você é tão gentil, Gav. Não quer nada? Café ou... cerveja? — per­guntou Mary com outra risadinha, agora mais fraca.

Ele pegou uma garrafa na geladeira, tirou o casaco e se sentou em fren­te a ela na bancada que ficava no meio da cozinha. Depois de um tempo, quando já tinha bebido quase todo o gim, Mary ficou calma e serena outra vez, exatamente como ele sempre pensava nela.

Quem você acha que fez isso? — indagou ela.

Algum desgraçado — respondeu Gavin.

Todos eles agora estão brigando pela cadeira vaga no Conselho. Discutindo sobre Fields, como sempre. E ele ainda está lá, dando a sua opinião a respeito de tudo. O Fantasma de Barry Fairbrother. Quem sabe não é ele mesmo que está postando mensagens no site?

Gavin não sabia ao certo se aquilo era uma brincadeira, então esboçou um meio sorriso, que podia rapidamente ser apagado do rosto, se fosse necessário.

Sabe, gosto de pensar que, onde quer que esteja, ele está preocupa­do conosco, comigo e com as crianças. Mas duvido. Aposto que está mais preocupado com Krystal Weedon. Sabe o que provavelmente ele me diria se estivesse aqui?

Ela tomou o último gole da bebida. Gavin achava que não tinha posto muito gim na mistura, mas as bochechas dela já estavam vermelhas.

Não — disse, com cautela.

Diria que eu tenho com quem contar — prosseguiu Mary. Para o espanto de Gavin, havia raiva naquela voz que ele sempre acreditou ser apenas gentil. — É, ele diria: "Você tem a sua família, os seus amigos e as crianças para confortá-la, mas Krystal" — a voz de Mary foi ficando mais alta —, "Krystal não tem ninguém para tomar conta dela". Você sabe o que ele fez no nosso aniversário de casamento?

Não — respondeu Gavin outra vez.

Ficou escrevendo um artigo para o jornal da cidade a respeito de Krystal. De Krystal e de Fields. Esse maldito Fields. Tomara que eu nunca mais precise ouvir falar desse lugar. Já não era sem tempo. Quero outro gim. Ainda não bebi o bastante.

Surpreso, Gavin pegou o copo dela e foi até o armário das bebidas novamente. Sempre achou que o casamento de Barry e Mary era literal­mente perfeito. Nunca tinha lhe ocorrido que Mary pudesse não aprovar completamente todas as aventuras e cruzadas em que o sempre ocupado Barry se envolvia.

Treino de remo no fim da tarde, competições nos finais de semana — disse ela, mais alto que o tilintar do gelo que Gavin colocava no seu copo —, e na maioria das noites ele ficava na frente do computador, ten­tando conseguir apoio para ajudar Fields, e, levantando assuntos para a pauta das reuniões do Conselho. E todo mundo sempre dizia: "Barry não é maravilhoso?! É incrível como ele consegue fazer tudo isso, estar sempre pronto para ajudar, sempre tão envolvido com a comunidade..." — Ela tomou um bom gole do gim-tônica recém-preparado. — É, maravilhoso. Absolutamente maravilhoso. Até que isso o matou. No nosso aniversário de casamento, ele passou o dia inteiro correndo contra o prazo de entrega do artigo. E eles ainda nem o publicaram.

Gavin não conseguia tirar os olhos dela. A raiva e o álcool trouxeram cor àquele rosto novamente. Ela estava sentada bem ereta, e não encurvada e abatida como nos últimos tempos.

Foi isso que o matou — disse ela com toda a clareza, e sua voz ecoou pela cozinha. — Ele deu tudo para todo mundo. Menos para mim.

Desde o enterro de Barry, Gavin vinha nutrindo um sentimento de profunda insatisfação consigo mesmo, pensando no pequeno vazio que deixaria na comunidade caso morresse. Olhando para Mary, ficou pensan­do se não seria melhor deixar um vazio enorme no coração de uma pessoa só. Será que Barry não tinha percebido como Mary se sentia? Será que não havia se dado conta de que era um homem de sorte?

A porta da frente se abriu com estardalhaço. Eram as crianças chegan­do em casa. Dava para ouvir as suas vozes e os seus passos, o som dos tênis no chão e das mochilas jogadas.

Oi, Gav — disse Fergus, um rapaz de dezoito anos, que beijou a testa de Mary. — Você está bebendo, mãe?

É culpa minha — interviu Gavin. — Pode brigar comigo.

Os filhos dos Fairbrother eram adoráveis. Gavin gostava do modo como falavam com a mãe e a abraçavam, como conversam entre si e com ele. Eram francos, educados, engraçados. Pensou em Gaia e na sua fala agressiva, nos seus silêncios que mais pareciam vidro afiado, no seu jeito raivoso quando falava com ele.

Ainda nem falamos do seguro, Gav — lembrou Mary, e as crianças entraram na cozinha procurando algo para comer e beber.

Não tem problema — respondeu Gavin, sem pensar, mas logo se corrigiu. — Vamos para a sala de estar ou...?

Vamos.

Ela cambaleou um pouco ao se levantar da cadeira alta da bancada da cozinha, e mais uma vez ele segurou o seu braço.

Você vai ficar para o jantar, Gav? — perguntou Fergus.

Fique, se quiser — disse Mary. Uma onda de calor o inundou.

Adoraria — respondeu ele. — Obrigado.

 

— Muito triste — disse Howard Mollison, de pé, diante da lareira, balan­çando ligeiramente o corpo. — Muito triste, de fato.

Maureen tinha acabado de lhes dar a notícia da morte de Catherine Weedon. Sua amiga Karen, a recepcionista daquela noite, lhe contou tudo, inclusive a acusação da neta de Cath Weedon. Parecia satisfeita em dizer isso, franzindo o rosto numa expressão de reprovação. Samantha, que estava de mau humor, achou que ela tinha ficado com cara de ta­cho. Miles soltava interjeições de surpresa e pena, e Shirley olhava para o teto, fingindo não estar interessada naquilo. Odiava quando Maureen era o centro das atenções, trazendo novidades que ela deveria ser a primeira a saber.

Minha mãe conhecia a família antigamente — disse Howard a Sa­mantha, que já sabia disso. — Eram vizinhas na Hope Street. Cath até que era bastante decente lá do jeito dela, sabe? A casa estava sempre muito limpa, e ela trabalhou até os sessenta anos. Era uma batalhadora, a Cath Weedon, não importa que o resto da família não seja lá grande coisa...

Howard se deliciava elogiando quem merecia ser elogiado.

O marido perdeu o emprego quando fecharam a fábrica de aço. Um beberrão. É, as coisas não foram fáceis para Cath.

Samantha nem conseguia fingir interesse por aquele assunto. Feliz­mente Maureen o interrompeu.

E a Gazeta está atrás da dra. Jawanda — disse ela, com aquela voz rouca. — Imaginem como ela deve estar se sentindo agora que os jornais estão sabendo de tudo. A família está botando a boca no trombone, e com razão. Afinal, três dias caída naquela casa, sozinha... Você a conhece, Howard? Qual delas é Danielle Fowler?

Shirley, de avental, levantou-se e saiu da sala. Samantha tomou mais um gole de vinho, sorrindo.

Deixe-me ver, deixe-me ver... — revelou Howard. Ele se orgulha­va de conhecer quase todo mundo em Pagford, mas a última geração dos Weedon pertencia a Yarvil. — Não pode ser filha. Cath teve quatro meninos. Deve ser neta.

E ela quer abrir um inquérito — disse Maureen. — Bem, isso ia acabar assim mesmo. Eram favas contadas. Estou surpresa de que tenha demorado tanto. A dra. Jawanda não deu um antibiótico para o filho dos Hubbards, e ele acabou tendo que ser hospitalizado por causa da asma. Você sabe se ela fez a residência na Índia ou...?

Shirley, que estava na cozinha mexendo o molho da carne, ficou irri­tada, como sempre ficava, por Maureen estar monopolizando a conver­sa. Bem, pelo menos era assim que explicava o que estava acontecendo. Determinada a não voltar para a sala até que Maureen tivesse acabado, foi para o escritório checar se alguém tinha enviado mensagens de pêsa­mes para serem apresentadas na próxima reunião do Conselho Distrital. Como secretária, já estava organizando a pauta.

Howard!... Miles!... Venham ver isso aqui!

A voz de Shirley perdeu a sua suavidade habitual de flauta e soou es­tridente.

Howard saiu da sala de estar, adernando o corpo para um lado e para o outro, e foi seguido por Miles, que ainda estava com o terno usado o dia inteiro no trabalho. Os olhos de Maureen, caídos, avermelhados, com cílios espessos de tanto rimei, se fixaram no vão da porta da sala vazia como os de um cão de caça. Sua vontade de saber o que Shirley tinha encontrado ou visto era quase palpável. Os dedos de Maureen, garras de articulações grossas, cobertas por uma pele translúcida com manchas de leopardo, ficavam deslizando de um lado para o outro o crucifixo e a aliança pendurados na correntinha em volta do seu pescoço. Os sulcos profundos que iam do canto da boca até o queixo de Maureen sempre faziam Samantha se lembrar de um boneco de ventríloquo.

Por que você está sempre aqui?, perguntou Samantha à velha bem alto, mentalmente. Já não me bastava a solidão de ter que viver debaixo das asas de Howard e Shirley?

E o nojo cresceu como vômito dentro de Samantha. Queria segurar aquela sala atulhada e superaquecida nas mãos e esmagá-la até que a por­celana chinesa, a lareira e as fotos de Miles em porta-retratos dourados se estilhaçassem. E Maureen, cheia de rugas e toda maquiada, ficaria presa no meio dos escombros, berrando. Depois, pegaria tudo aquilo e jogaria bem longe, na direção do pôr do sol, como uma arremessadora celestial. A sala destruída com a bruxa velha lá dentro planaria pelos céus na sua imaginação e cairia no oceano ilimitado, deixando Samantha sozinha na quietude sem fim do universo.

Foi uma tarde terrível. Ela teve mais uma conversa assustadora com o contador e não se lembrava direito de como tinha voltado de Yarvil. Gos­taria de ter desabafado um pouco com Miles, mas o marido, depois de pôr a pasta no chão e tirar a gravata ainda no corredor de entrada, disse:

Você ainda não começou a jantar, começou?

Inspirou ostensivamente e depois respondeu a própria pergunta.

Não, ainda não. Ótimo, porque papai e mamãe nos convidaram para jantar. — E antes que ela pudesse dizer alguma coisa, ele acrescentou brus­camente: — Não tem nada a ver com o Conselho. É apenas para discutir­mos os preparativos para o aniversário de sessenta e cinco anos do papai.

A raiva era quase um alívio, encobrindo a ansiedade e o medo. Saman­tha seguiu Miles até o carro, acalentando a sensação de que ele não ligava para ela. Quando enfim ele perguntou, já na esquina do Evertree Crescent, "Como foi o seu dia?", ela respondeu: "Absolutamente fantástico."

Está querendo saber o que aconteceu? — indagou Maureen, que­brando o silêncio na sala de estar.

Samantha deu de ombros. Shirley sempre reunia os homens à sua vol­ta e deixava as mulheres no limbo. Samantha não daria à sogra a satisfação de demonstrar interesse.

O assoalho sob o tapete do corredor rangeu com os passos de elefante de Howard. Maureen estava de boca aberta de tanta ansiedade.

Ora, ora, ora — exclamou Howard, com o seu vozeirão, se arrastan­do de volta para a sala.

Eu estava dando uma olhada no site do Conselho para ver as justi­ficativas de não comparecimento — disse Shirley, vindo atrás dele ligeira­mente sem fôlego. — Para a próxima reunião...

Alguém postou acusações contra Simon Price — anunciou Miles a Samantha, passando à frente dos pais desta vez.

Que tipo de acusações? — perguntou ela.

Que ele anda envolvido em receptação de mercadoria roubada — respondeu Howard, agora já no centro das atenções — e passa a perna nos chefes, lá na gráfica.

Samantha ficou contente de não esboçar nenhuma reação. Não tinha a menor idéia de quem era esse tal de Simon Price.

Postaram com um pseudônimo — continuou Howard. — Um pseu­dônimo que não é lá de muito bom gosto.

É algo grosseiro? — perguntou Samantha. — Do tipo "A pica gran­de e grossa" ou algo do gênero?

A risada de Howard ecoou pela sala. Maureen gritou horrorizada, de um jeito bem afetado, mas Miles fechou a cara, e Shirley olhou para ela furiosa.

Não, não chega a tanto, Sammy — disse Howard. — Colocaram "O Fantasma de Barry Fairbrother".

Ah... — fez Samantha, com o sorriso desaparecendo aos poucos. Não gostou nada disso. Afinal, estava na ambulância quando enfiaram agulhas e tubos no corpo já quase sem vida de Barry. Viu ele morrer com aquela máscara, viu Mary segurando a sua mão, e ouviu os lamentos e o choro dela.

Ah, não, isso não é nada delicado — disse Maureen, saboreando cada palavra com a sua voz de sapo-boi. — Isso é bem desagradável. Pôr palavras na boca de um morto. Usar nomes em vão. Isso não está certo.

Não está, não — concordou Howard. Perdido em pensamentos, caminhou pela sala, pegou a garrafa de vinho, andou na direção de Sa­mantha e encheu-lhe o copo vazio. — Mas parece que alguém por aí não liga para o bom gosto. Só está interessado em tirar Simon Price da disputa.

Você está pensando o que eu estou pensando, papai? — perguntou Miles. — Não era melhor terem me atacado?

E como você sabe que não atacaram, Miles?

O que você está querendo dizer? — retrucou ele, prontamente.

Quero dizer — prosseguiu Howard, feliz em ser o centro de todas as atenções — que recebi uma carta anônima duas semanas atrás. Nada mui­to específico. Apenas dizia que você não era o mais indicado para ocupar o lugar de Fairbrother. Não ficaria surpreso de saber que essa carta tem a mesma origem do post. Fairbrother aparece nas duas, você viu?

Samantha deu um gole mais entusiasmado no vinho, que escorreu pelos cantos da sua boca até o queixo, exatamente onde, com o tempo, surgiriam os seus próprios sulcos de boneco de ventríloquo. Ela enxugou o rosto com a manga.

Onde está essa carta? — perguntou Miles, lutando para não parecer abalado.

Joguei fora. Era anônima. Não valia.

Não queríamos chatear você, querido — disse Shirley, dando uns tapinhas no braço do filho.

De todo modo, eles não devem ter nada contra você — assegurou Howard — ou teriam usado, como fizeram com Simon Price.

A esposa de Simon é uma moça adorável — disse Shirley, lamen­tando sinceramente. — Não consigo acreditar que Ruth soubesse que o marido estava metido em falcatruas. Ela é uma amiga lá do hospital — explicou para Maureen. — Enfermeira terceirizada.

Não seria a primeira esposa a não se dar conta do que acontece bem debaixo do seu nariz — retrucou Maureen, exibindo conhecimento de causa e sabedoria de vida.

É uma vergonha terem usado o nome de Barry Fairbrother — re­tomou Shirley, fingindo não ter escutado o que Maureen disse. — Nem pensaram na viúva, na família... O que importa são as suas pretensões. E sacrificariam tudo por elas.

Isso mostra bem o que vamos enfrentar — disse Howard, e coçou a parte debaixo da barriga, pensando. — Estrategicamente isso é inteligen­te. Vi desde o início que Price ia dividir os votos pró-Fields. Aluga-Ouvido não é boba nem nada. Ela também se deu conta disso e quis deixá-lo de fora.

Mas pode não ter nada a ver com Parminder e a eleição — retrucou Samantha. — Isso pode ter vindo de outra pessoa que não conhecemos, alguém que tenha raiva de Simon Price.

Ah, Sam — disse Shirley, com uma risadinha cristalina, abanando a cabeça. — Dá para ver que você é novata na política.

Ah, vai se foder, Shirley.

Então por que eles iam usar o nome de Barry Fairbrother? — per­guntou Miles, dirigindo-se à esposa num tom irritado.

Bem, postaram no site, não é? É a cadeira dele que está vaga.

E quem vai navegar no site do Conselho atrás desse tipo de informa­ção? Não — disse ele, com ar grave —, é alguém lá de dentro.

Alguém de dentro... Uma vez Libby disse a Samantha que podia haver milhares de microrganismos numa só gota de água de um lago. Eram todos completamente ridículos, pensou Samantha, sentados ali, na frente dos pratos comemorativos de Shirley, como se estivessem no gabinete do primeiro-ministro, como se um disse me disse no site do Conselho Distri­tal fosse um complô organizado, como se aquilo tudo realmente tivesse alguma importância.

Deliberadamente e de forma desafiadora, Samantha desviou a atenção de todos eles. Fixou o olhar na janela e no céu ainda claro do anoitecer, e pensou em Jake, o rapaz musculoso da banda favorita de Libby. Hoje, na hora do almoço, Samantha tinha ido comprar sanduíches e acabou levando também uma revista de música que trazia uma entrevista de Jake e seus colegas de banda. Havia muitas fotos.

É para Libby — disse à sua ajudante na loja.

Uau, olha só isso. Ah, eu não ia expulsar ele da minha cama, não... — comenta Carly, apontando para Jake. O rapaz estava sem camisa e com a cabeça jogada para trás, deixando à mostra o pescoço largo e forte. — Pena que ele só tem vinte e um anos. Não sou papa-anjo.

Carly tinha vinte e seis. Samantha não se importava com a diferença de idade entre Jake e ela. Comeu o sanduíche, leu a entrevista e olhou atentamente todas as fotos. Jake com as mãos numa barra sobre a cabeça, os bíceps saltados por debaixo da manga de uma camiseta preta; Jake com uma camisa branca aberta, deixando à mostra os músculos esculpidos do seu abdômen, acima do cós folgado da calça jeans.

Samantha bebeu o vinho de Howard e ficou olhando para o céu num ponto bem acima da cerca viva de alfena na qual havia uma delica­da tonalidade cor-de-rosa. Exatamente o mesmo tom de seus mamilos antes de escurecerem e aumentarem de tamanho com a gravidez e a amamentação. Ficou se imaginando aos dezenove anos, com Jake aos vinte e um, e aquela silhueta esguia novamente, as curvas precisas nos lugares certos, e uma barriga forte e lisa, que cabia confortavelmente no seu short branco tamanho P. Lembrou direitinho como era se sentar no colo de um rapaz com aquele short. O calor e a aspereza do brim exposto ao sol em contato com as suas coxas nuas, as mãos fortes do rapaz segurando a sua cintura fina. Imaginou também a respiração de Jake no seu pescoço. Ela se viraria para olhar dentro dos seus olhos azuis, che­gando bem perto daquelas maçãs do rosto tão salientes e da boca firme e bem-desenhada.

...lá no salão da igreja, vamos servir o bufê do Bucknoles — disse Howard. — Convidamos todo mundo, Aubrey e Julia... Todo mundo. Se tivermos sorte, será uma dupla comemoração: você no Conselho, e eu um ano mais jovem.

Samantha estava ligeiramente embriagada e excitada. Quando iriam comer? Percebeu que Shirley tinha saído da sala, e esperava que fosse para começar a pôr a mesa.

O telefone tocou bem ao seu lado, e ela deu um pulo. Antes que qual­quer um deles pudesse se mexer, Shirley voltou correndo. Tinha uma luva térmica florida numa das mãos e, com a outra, pegou o telefone.

Dois, dois, cinco, nove? — cantarolou, com uma inflexão aguda. — Ah... Olá, Ruth, querida!

Howard, Miles e Maureen ficaram paralisados e atentos. Shirley se vi­rou e lançou um olhar intenso para o marido, como se os seus olhos pu­dessem transmitir a voz de Ruth direto para dentro da cabeça dele.

Claro — disse Shirley. — Claro...

Samantha, que estava bem perto do telefone, podia ouvir a voz da ou­tra mulher, mas não conseguia entender o que ela dizia.

É mesmo?...

Maureen estava de boca aberta de novo, como se fosse um filhote de pássaro arcaico ou, quem sabe, um pterodáctilo, faminto por novidades regurgitadas.

Claro, querida, sei... Não... Não tem o menor problema... Não, não, vou explicar a Howard. Não, problema nenhum.

Os olhos pequenos e castanho-claros de Shirley não se desviaram dos de Howard, azuis, grandes e esbugalhados.

Ruth, querida — disse Shirley —, não quero preocupar você, mas já entrou no site do Conselho hoje?... Bem... é algo meio chato, mas acho que você tem que saber... Alguém postou uma coisa desagradável sobre Simon... Bem, é melhor você mesma ler, eu prefiro não... Certo, querida. Certo. Nos vemos na quarta. Claro. Tchau, tchau.

E desligou o telefone.

Ela não sabia de nada — declarou Miles.

Shirley confirmou com a cabeça.

Por que ela ligou?

O filho — disse Shirley. — Seu novo ajudante. Ele tem alergia a amendoim.

Muito conveniente numa delicatéssen — disse Howard.

Queria saber se você pode deixar uma injeção de adrenalina para ele na geladeira, só por precaução — disse Shirley.

Maureen fungou.

— Essas crianças de hoje em dia são todas alérgicas. A mão sem luva de Shirley continuava segurando o aparelho. Incons­cientemente, esperava sentir os tremores de terra vindo de Hilltop House pela linha telefônica.

 

Ruth ficou de pé, sozinha na sala de estar iluminada apenas pelo abajur, ainda agarrando com força o telefone que acabara de devolver à base.

Hilltop House era pequena e compacta. E era sempre muito fácil dizer exatamente onde cada um dos quatro Price estava, porque a velha casa conduzia, com eficácia, vozes, passos e sons de portas se abrindo e fechan­do. Ruth sabia que o marido ainda estava no banho, porque podia ouvir o boiler, debaixo da escada, apitando e estalando. Tinha esperado Simon abrir a água do chuveiro para ligar para Shirley, pois achava que ele podia pensar que até um simples pedido de uma injeção de adrenalina para uma emergência era confraternizar com o inimigo.

O computador ficava num dos cantos da sala de estar, bem à vista de Simon, que queria ter certeza de que ninguém estava fazendo as contas aumentarem pelas suas costas. Ruth largou o telefone e correu para o teclado.

Levou bastante tempo até que o site do Conselho de Pagford entrasse por completo. Com a mão trêmula, Ruth ajeitou os óculos de leitura na ponta do nariz e passou os olhos pela página, até que encontrou a área de mensagens. O nome do seu marido estava lá, em destaque, naquela frase assustadora: Por que Simon Price não deve ser eleito para o Conselho Distrital de Pagford.

Clicou duas vezes em cima do título, fazendo aparecer o parágrafo inteiro, e começou a ler. Tudo à sua volta parecia girar e balançar.

— Meu Deus — sussurrou.

O boiler tinha parado de estalar. Simon devia estar vestindo o pijama deixado sobre o aquecedor. Antes, ele já tinha fechado as cortinas da sala de estar, ligado o abajur e acendido a lareira. Assim poderia descer e se esticar no sofá para assistir ao telejornal.

Ruth sabia que teria que contar a ele. Não fazer isso, deixar que ele descobrisse por si só, simplesmente não era uma opção. Não conseguiria guardar aquilo só para si. Estava aterrorizada e se sentia culpada, embora não soubesse por quê.

Ela o ouviu descer as escadas e depois aparecer na porta da sala com o pijama azul de flanela.

Si — sussurrou.

O que foi? — perguntou ele, imediatamente irritado. Pela voz dela, sabia que alguma coisa tinha acontecido e que aquele seu programa mag­nífico, que combinava sofá, lareira e notícias, estava prestes a ser cance­lado.

Ruth apontou para a tela do computador, e com a outra mão tapou a boca de um jeito bobo, como se fosse uma menininha. Seu pavor o contaminou. Ele correu para o computador e olhou para a tela, já com as sobrancelhas franzidas. Simon não era exatamente um bom leitor. Lia palavra por palavra, linha por linha, com muita dificuldade e atenção.

Quando terminou, ficou mudo por um tempo, repassando mentalmen­te quem seriam os possíveis dedos-duros. Pensou no operador de empilhadeira que mascava chicletes e a quem tinha deixado para trás lá em Fields, quando foram pegar o novo computador. Pensou em Jim e Tommy, que faziam serviços sem nota por baixo dos panos, junto com ele. Alguém do trabalho deve ter falado. Ódio e medo se misturaram dentro dele gerando uma reação explosiva.

Correu até o pé da escada e gritou:

Vocês dois! Desçam aqui AGORA!

Ruth continuava tapando a boca com a mão. Simon sentiu uma von­tade sádica de dar um tapa naquela mão e dizer a ela que se controlasse, afinal de contas, era ele que estava na merda.

Andrew entrou na sala primeiro, e Paul veio logo atrás. Andrew viu as in­sígnias do Conselho Distrital de Pagford na tela do computador e a mãe, ta­pando a boca com a mão. Andando pelo tapete velho, com os pés descalços, teve a sensação de estar caindo vertiginosamente num elevador quebrado.

Alguém andou falando sobre coisas que comentei aqui dentro de casa — disse Simon, encarando os filhos.

Paul tinha trazido com ele o livro de exercícios de química, e o segura­va com as duas mãos, aberto na frente do peito. Andrew olhava fixo para o pai, tentando fazer uma cara de confusão e curiosidade.

Quem foi que contou que ficamos com um computador roubado? — perguntou Simon.

Eu não fui — disse Andrew.

Paul olhou para o pai, com os olhos arregalados, sem entender, tentan­do processar a pergunta. Andrew queria que o irmão falasse. Por que tinha que ser tão lento?

E? — grunhiu Simon.

Eu acho que não...

Você acha que não? Você acha que não contou a ninguém?

E, eu acho que não contei a nin...

Ah, isso é interessante — retrucou Simon, andando de um lado para o outro na frente de Paul. — Muito interessante.

Com um tapa, fez o livro de exercícios de Paul sair voando de suas mãos.

Tente se lembrar, seu merda — exclamou ele. — Tente se lembrar, porra! Você contou a alguém que ficamos com um computador roubado?

Roubado, não — respondeu Paul. — Não contei a ninguém... Acho que não contei a ninguém nem que tínhamos um computador novo.

Sei — disse Simon. — Então essa informação se espalhou como num passe de mágica, foi isso?

Ele apontava para a tela do computador.

Alguém falou, porra! — gritou ele. — Está na porra da intemeü E vou ter muita sorte se eu... não... perder... meu... emprego!

A cada uma dessas cinco palavras, ele dava um soco na cabeça de Paul. O garoto se encolhia e olhava para o chão. Um líquido escuro escorria da sua narina esquerda. Ele tinha sangramentos nasais várias vezes na semana.

E você? — berrou Simon para a mulher, que ainda estava paralisada ao lado do computador, com os olhos esbugalhados por trás dos óculos, a mão grudada na boca como uma mordaça. — O que você andou fofocando por aí, porra?!

Ruth conseguiu falar.

Nada, Si — sussurrou ela. — Quero dizer, a única pessoa para quem eu contei que tínhamos um computador novo foi a Shirley, e ela nunca...

Sua burra! Que porra de mulher burra! Por que você tinha que contar isso pra ele?

Você fez o quê? — perguntou Simon, baixinho.

Contei para a Shirley — disse Ruth, choramingando. — Mas não disse que era roubado, Si. Só disse que você tinha trazido um computador para casa...

Só isso?! Foi só essa merda que você disse a ela?! — rosnou Simon, e em seguida começou a gritar. — O babaca do filho dela está concorrendo à eleição. É claro que ela vai querer ter algo contra mim, porra!

Mas foi ela que me contou sobre a mensagem no site ainda agora, ela não teria...

Ele avançou na direção de Ruth e lhe deu um tapa na cara, como que­ria ter feito desde que viu aquela sua expressão abobalhada e assustada. Os óculos dela voaram pelo ar e se espatifaram na estante. Ele a acertou outra vez, com um soco que a fez desabar sobre a mesa do computador que ela tinha comprado, toda orgulhosa, com seu primeiro salário no Hospital Geral South West.

Andrew tinha feito uma promessa a si mesmo. Parecia se mover em câmera lenta, e tudo à sua volta era frio, pegajoso e levemente irreal.

Não bata nela — disse ele, colocando-se entre os pais. — Não...

Com o lábio cortado pelos próprios dentes, sob o impacto do soco de Simon, ele caiu para trás, por cima da mãe, que estava sobre o teclado. Simon lhe deu outro soco, acertando o braço do filho, que protegia o rosto. Andrew tentava se levantar e sair de cima da mãe. Simon estava completamente louco, batendo neles onde quer que pudesse atingi-los.

Não me diga o que fazer, porra, não me diga o que fazer, seu merdinha covarde, seu zero à esquerda cheio de espinhas...

Andrew caiu de joelhos, deixando o caminho livre, e Simon lhe deu um chute nas costelas. O garoto ouviu o irmão dizer de maneira patética "Para com isso!". O pai levantou a perna para chutar novamente as coste­las de Andrew, mas ele se esquivou. O pé de Simon acertou em cheio os tijolos da lareira e, de repente, de forma inacreditável, era ele que estava urrando de dor.

Meio cambaleando, Andrew tentou se levantar. Simon segurava com força os dedos do pé, dando uns pulos e praguejando com uma voz esganiçada. Ruth tinha desabado na cadeira giratória, soluçando, com o rosto entre as mãos. Andrew ficou de pé, sentindo na boca o gosto do próprio sangue.

Qualquer um poderia ter falado sobre o computador — disse ele, ofegante, preparado para mais violência. Sentia-se com mais coragem ago­ra que tinha começado, agora que a briga estava acontecendo de verdade. A espera o deixava nervoso, vendo a mandíbula do pai se projetar para a frente e ouvindo o desejo de violência crescer na sua voz. — Você disse que um dos seguranças tinha ficado ferido. Qualquer um poderia ter fala­do. Não fomos nós...

Não me... Seu merdinha... Quebrei a porra do dedo — arquejou Si­mon, caindo sentado numa poltrona, ainda segurando o pé. Parecia estar esperando alguma compaixão.

Andrew se imaginou pegando uma arma e atirando na cara do pai, vendo suas feições explodirem e os seus miolos se espalharem pela sala.

E Paulinha ficou menstruada outra vez, porra! — gritou Simon, olhando para Paul, que tentava estancar o sangue que lhe escorria do na­riz e pingava por entre os seus dedos. — Saia de cima do tapete! Saia de cima da porra do tapete, sua bichinha.

Paul saiu correndo da sala. Andrew apertou a gola da camiseta na boca, que latejava.

E a parte sobre os serviços sem nota? — perguntou Ruth, soluçan­do, com o rosto vermelho por causa do soco e as lágrimas escorrendo, uma a uma, pelo queixo. Andrew odiava vê-la assim, humilhada e patética; mas meio que a odiava também por fazer isso consigo mesma, quando qualquer idiota teria percebido... — Falaram de serviços sem nota. Shirley não sabia de nada disso, como ela poderia saber? Alguém na gráfica deve ter contado. Eu disse, Si, eu disse que você não devia aceitar esse tipo de trabalho, sempre fiquei preocupadíssima com...

Cale a boca, sua vaca chorona. Na hora de gastar o dinheiro você não ligava — berrou Simon, projetando mais uma vez a mandíbula.

Andrew quis gritar com a mãe para que ela ficasse quieta: ela ficava falando e falando, quando qualquer idiota via que o melhor a fazer era ficar quieto, e ficava quieta quando teria sido melhor gritar a plenos pul­mões. Será que não ia aprender nunca, nunca ia perceber o que podia acontecer?

Todos ficaram em silêncio por um minuto. Ruth esfregava os olhos com o dorso das mãos e fungava sem parar. Simon apertava o dedo que­brado com força, os dentes trincados, respirando alto. Andrew lambia o sangue do lábio, que ardia e estava começando a inchar.

Isso vai me custar a porra do emprego — disse Simon, olhando pela sala, com olhos arregalados, como se houvesse alguém ali que ele tivesse se esquecido de esmurrar. — Já andam mesmo falando em corte de pessoal na merda daquela gráfica. Vai ser o fim. Vai ser... — Deu um tapa no abajur que estava na beira da mesa, mas ele não quebrou, apenas rolou pelo chão. Simon o pegou, puxou com toda a força o fio da tomada, arrancando-o da parede, levantou o abajur acima da cabeça e o atirou em Andrew, que conseguiu se esquivar novamente.

Quem foi que falou, porra? — gritou Simon, quando o abajur atin­giu a parede e se partiu ao meio. — Alguém falou, cacete!

Foi algum desgraçado da gráfica — gritou Andrew, com o lábio inchado e latejando, parecendo um gomo de tangerina. — Você acha que fomos nós... Não acha que a essa altura já aprendemos a ficar de boca fechada?

Era como tentar decifrar um animal selvagem. Podia ver o movimento dos músculos na mandíbula do pai, mas também podia sentir que Simon estava pensando no que ele tinha dito.

Quando foi que colocaram isso aí? — rosnou para Ruth. — Olha aí! Qual é a data?

Ainda soluçando, ela olhou para o computador, quase encostando o nariz na tela, já que os seus óculos estavam quebrados.

Dia 15 — sussurrou.

15... Domingo — disse Simon. — Foi domingo, não foi?

Nem Andrew nem Ruth confirmaram. O garoto não podia acreditar na sua sorte, nem tampouco podia acreditar que ela iria durar.

Domingo — repetiu Simon. — Então qualquer um poderia ter... A porra desse dedo... — gritou, enquanto se levantava e, mancando de um jeito exagerado, foi se aproximando de Ruth. — Saia daí!

Ela pulou da cadeira e ficou observando-o ler de novo o parágrafo. Es­tava bufando como um animal, querendo desentupir as vias respiratórias. Andrew pensou que talvez pudesse estrangular o pai enquanto ele estava sentado ali, mas não havia nenhum fio à mão.

Alguém conseguiu tudo isso lá na gráfica — disse Simon, como se tivesse chegado a essa conclusão sozinho, sem escutar a mulher e o filho levantarem a hipótese para ele. Pôs as mãos no teclado e se voltou para Andrew. — Como é que eu me livro disso?

O quê?

Você não tem a porra da aula de informática? Como é que eu apago isso aqui?

Não dá... você não pode — disse Andrew. — Só o administrador do site pode fazer isso.

Então, você vai ser o administrador — retrucou Simon, ficando de pé e mandando Andrew se sentar na cadeira giratória.

Mas não posso ser o administrador — respondeu Andrew, com medo de que o pai estivesse se preparando para um segundo acesso de violência. — Tem que ter o nome do usuário e a senha.

Você não serve para porra nenhuma, não é mesmo?

Quando passou por ele, sempre mancando, Simon deu um empurrão em Andrew, bem no meio do peito, jogando-o contra a lareira.

Me passa o telefone aqui! — berrou Simon para a mulher, sentando na poltrona de novo.

Ruth foi pegar o aparelho, que estava a poucos centímetros de Simon, para entregá-lo ao marido. Ele o arrancou das suas mãos e começou a apertar as teclas com toda a força.

Andrew e Ruth ficaram esperando em silêncio Simon fazer as ligações, primeiro para Jim, depois para Tommy, os homens com quem tinha feito os tais trabalhos depois do expediente lá na gráfica. A fúria de Simon e a desconfiança de seus próprios cúmplices foram canalizadas pelo telefone em frases curtas e grossas, cheias de palavrões.

Paul não voltou mais para a sala. Talvez porque ainda estivesse tentan­do estancar o sangramento do nariz, ou, o que era mais provável, por estar apavorado. Andrew pensou que o irmão não estava sendo muito inteligen­te. O mais seguro era só deixar a sala quando o pai permitisse.

Assim que terminou as ligações, Simon estendeu o telefone para Ruth sem dizer nada. Ela o pegou e correu para devolvê-lo ao seu lugar.

Com o dedo quebrado latejando, Simon ficou sentado ali, pensando, suando com o calor da lareira, inundado de uma fúria impotente. A vio­lência com que tratou a mulher e filho não o abalava; não perdeu um minuto sequer pensando nisso. Uma coisa terrível tinha lhe acontecido, e era natural que explodisse com as pessoas mais próximas. A vida era assim mesmo. De todo modo, Ruth, aquela vaca estúpida, admitiu que tinha contado para Shirley.

Simon estava construindo sua própria cadeia dos fatos, tentando imagi­nar como as coisas tinham acontecido. Um filho da puta qualquer (e sus­peitava do operador da empilhadeira que mascava chicletes e tinha ficado indignado quando ele o deixou plantado em Fields) falou sobre ele com os Mollison (de algum modo meio incoerente, a confissão de Ruth de que tinha comentado sobre o computador com Shirley fazia essa hipótese parecer mais plausível), e eles (os Mollison, o establishment, o gorducho e a desagradável, que não deixavam ninguém ameaçar o seu poder) colo­caram aquela mensagem no site (Shirley, aquela vaca velha, controlava o site, o que confirmava essa teoria).

Foi a filha da puta da sua amiga — disse Simon à mulher, que ainda estava com o rosto molhado e os lábios trêmulos. — A filha da puta da Shirley. Foi ela que fez isso. Jogou meu nome na lama para me tirar do caminho do filho dela. E, foi ela, sim.

Mas, Si...

Cala a boca, cala a boca, sua estúpida, pensou Andrew.

Você continua do lado dela, não é? — rosnou Simon, fazendo men­ção de se levantar novamente.

Não! — gritou Ruth. Ele afundou de volta na poltrona, aliviado por poupar o pé machucado.

A direção da Harcourt-Walsh não ficaria nada feliz em saber daqueles servicinhos que eles faziam depois do expediente, pensou Simon. Ele é que não ficaria ali esperando para ver a maldita polícia chegar e começar a fuçar no computador. De repente, sentiu que precisava fazer alguma coisa com urgência.

Você — disse ele, apontando para Andrew. — Desligue o computa­dor. Tudo, os cabos inclusive. E venha comigo.

 

Coisas negadas, coisas não ditas, coisas escondidas e disfarçadas.

O lamacento rio Orr engoliu os destroços do computador roubado, atirado da velha ponte de pedra à meia-noite. Simon foi para o trabalho mancando por causa do dedo quebrado e disse a todo mundo que tinha escorregado na porta de casa. Ruth fez compressa de gelo nos hematomas e tratou de disfarçá-los de um jeito ou de outro, com um resto de base. Uma casca se formou no lábio de Andrew, como tinha acontecido com Dane Tully, e Paul teve outro sangramento nasal no ônibus da escola e, ao chegar lá, teve que ir direto para a enfermaria.

Shirley Mollison, que tinha ido fazer compras em Yarvil, só atendeu às repetidas ligações de Ruth no fim da tarde, quando os garotos já haviam chegado da escola. Da escada, Andrew ouviu a mãe falando lá na sala de estar. Sabia que Ruth estava tentando resolver as coisas antes que Simon voltasse para casa, porque ele seria capaz de tomar o telefone da mão dela só para xingar a sua amiga aos berros.

—- ...tudo um monte de mentiras absurdas — dizia enfaticamente —, mas ficaríamos agradecidos se você retirasse essa mensagem do site, Shirley.

Ao ouvir isso, Andrew fez uma careta, e o corte no lábio ainda inchado ameaçou abrir novamente. Odiava ouvir a mãe pedindo um favor àquela mulher. Naquele momento ficou chateado, de uma maneira irracional, porque o post ainda estava no ar. Mas depois se lembrou de que tinha escrito aquilo, o que acabou desencadeando tudo: os machucados no rosto da mãe, o seu próprio lábio cortado e a atmosfera de terror que impregnava a casa com a expectativa da volta de Simon.

Claro que entendo que você tem um monte de coisas... — dizia Ruth, de uma forma desprezivelmente covarde —, mas você pode imagi­nar como Simon seria prejudicado se as pessoas acreditassem...

Era assim mesmo que Ruth falava com Simon, pensou Andrew, nas ra­ras ocasiões em que se sentia obrigada a desafiá-lo: de forma subserviente, hesitante, sempre pedindo desculpas. Por que não exigia de uma vez que aquela mulher tirasse o post do ar? Por que era sempre tão covarde? Por que se humilhava tanto? Por que não largava seu pai?

Sempre achou que Ruth era diferente, boa, sem máculas. Quando criança, percebia os pais como duas criaturas completamente antagônicas entre si: um era mau e assustador; a outra, boa e generosa. Mas, à medida que foi crescendo, tinha se voltado duramente contra a cegueira solícita de Ruth, a sua defesa constante do pai, a sua inabalável lealdade a um falso ídolo.

Quando a ouviu desligar o telefone, Andrew desceu a escada fazendo bastante barulho, e a encontrou saindo da sala de estar.

Estava ligando para a mulher do site?

Estava — respondeu Ruth, com uma voz cansada. — Ela vai tirar de lá aquelas coisas sobre o papai, e então, se Deus quiser, essa história vai acabar.

Andrew sabia que a mãe era inteligente e muito mais habilidosa em relação à casa do que o desastrado do pai. Ela era capaz de se sustentar sozinha.

Se ela é sua amiga, por que não tirou o post do site imediatamen­te? — perguntou ele, seguindo a mãe até a cozinha. Pela primeira vez na vida, a pena que sentia de Ruth se misturava a um sentimento de frustra­ção que aumentava a sua raiva.

Ela está muito ocupada — disse Ruth.

Um dos seus olhos estava vermelho por causa do soco que Simon lhe dera.

Você disse que ela pode ter problemas por deixar coisas difamatórias no site, já que é ela quem controla o que aparece lá? Aprendemos isso na aula de infor...

Eu já disse, Andrew, ela vai tirar — retrucou Ruth, zangada.

Não tinha medo de mostrar aos filhos a raiva que sentia. Seria porque eles não batiam nela, ou por algum outro motivo? Andrew sabia que o rosto da mãe devia estar doendo tanto quanto a sua boca.

E aí, quem você acha que escreveu essas coisas sobre o papai? — perguntou o menino, aflito.

Ela se virou para ele, furiosa.

Não sei — respondeu ela —, mas, seja quem for, fez uma coisa desprezível, covarde. Todo mundo tem algo a esconder. O que aconteceria se o papai colocasse na internet algumas coisas que ele sabe sobre outras pessoas? Só que ele não faria isso.

Seria contra os princípios dele, não é? — disse Andrew.

Você não conhece o seu pai tão bem quanto pensa que conhece — gritou Ruth, com lágrimas nos olhos. — Saia daqui... Vá já fazer o dever de casa... Ou o que você quiser... mas saia daqui.

Andrew voltou para o quarto com fome, porque tinha descido para pe­gar alguma coisa para comer na cozinha. E ficou um bom tempo deitado na cama pensando. Será que aquele post tinha sido um erro terrível? Será que só quando Simon machucasse para valer alguém da família a sua mãe perceberia que ele não tinha nenhum princípio?

Nesse meio-tempo, no escritório de casa, a mais de um quilômetro de distância de Hilltop House, Shirley Mollison estava tentando lembrar como é que se deleta um post da área de mensagens do site. Posts eram tão raros por ali que ela normalmente os deixava no ar por mais de três

anos. Finalmente encontrou, no armário pesado no canto da sala, um guia simplificado que tinha feito para si mesma de como administrar o site, e então conseguiu, depois de várias tentativas frustradas, remover as acusações contra Simon. Fez isso apenas porque Ruth, de quem gostava, tinha lhe pedido. Não se sentia nem um pouco responsável pelo que havia acontecido.

No entanto, o fato de ter deletado o post não o removeria da cons­ciência daqueles que estavam profundamente interessados na disputa cada vez mais próxima pela cadeira de Barry. Parminder Jawanda copiou a tal mensagem no seu computador. Vira e mexe voltava a abri-la, sub­metendo cada frase a uma investigação pormenorizada, como se fosse uma legista examinando fibras num cadáver, procurando vestígios do DNA literário de Howard Mollison. Ele provavelmente fizera tudo o que podia para disfarçar seu tom característico, mas a médica estava certa de ter reconhecido seu pedantismo em trechos como "O sr. Price conhece por certo muito bem os processos de redução de custos" e em "poderia beneficiar o Conselho fornecendo os nomes dos seus contatos tão úteis".

Você não conhece Simon Price, Minda — disse Tessa Wall. Ela e Colin estavam jantando com os Jawanda na cozinha da antiga casa paro­quial, e Parminder falou sobre o post praticamente desde a hora em que eles cruzaram a soleira da porta. — É um homem muito desagradável, e muita gente não gosta dele. Mas, para ser sincera, não acredito que tenha sido Howard Mollison. Não consigo vê-lo fazendo algo tão óbvio.

Não se iluda, Tessa — disse Parminder. — Howard fará qualquer coisa para garantir que Miles seja eleito. Você vai ver. Agora ele vai pra cima do Colin.

Colin segurou o garfo com tanta força que Tessa viu os nós dos seus dedos ficarem brancos, e desejou que Parminder pensasse mais antes de falar. Ela, mais do que ninguém, sabia como Colin era. Chegou até a lhe receitar Prozac.

Vikram estava sentado na outra ponta da mesa, em silêncio. Seu belo rosto exibiu, de forma espontânea, um sorriso levemente irônico. Tessa se sentia intimidada diante do cirurgião, como sempre acontecia na presença de um homem bonito. Embora Parminder fosse uma das suas melhores amigas, Tessa praticamente não conhecia Vikram, que trabalhava muitas horas por dia e, ao contrário da mulher, quase não se envolvia nos assuntos de Pagford.

Eu falei sobre a pauta, não falei? — perguntou Parminder. — A da próxima reunião? Ele está propondo uma moção sobre Fields, a ser enca­minhada por nós ao comitê de Yarvil responsável pela revisão dos limites, e uma resolução para despejar a clínica de reabilitação. Está tentando correr com tudo isso, enquanto a cadeira de Barry está vaga.

Ela ficava levantando para ir buscar coisas, abrindo mais portas de armários do que o necessário, completamente distraída. Por duas vezes esqueceu o que tinha ido pegar e se sentou de novo, com as mãos vazias. Aonde quer que ela fosse, Vikram a observava, com aqueles seus olhos de cílios espessos.

Liguei para Howard ontem à noite — prosseguiu Parminder — e disse a ele que, antes de votar questões importantes, devíamos esperar até que estivéssemos com o número total de conselheiros. Ele riu e disse que não podíamos esperar. E que Yarvil quer saber a nossa opinião a respeito da revisão dos limites em curso. Mas ele está é com medo de Colin se eleger para a vaga de Barry, porque aí não vai ser tão fácil nos impor tudo isso. Mandei um e-mail para todo mundo que acho que vai votar conosco, para ver se não podem pressioná-lo a adiar a votação para a outra reunião... "O Fantasma de Barry Fairbrother" — acrescentou Parminder, ofegante. — Desgraçado. Ele não vai usar a morte de Barry para derrotá-lo. Não se eu puder impedir.

Tessa pensou ter visto Vikram crispar os lábios. A velha Pagford, lidera­da por Howard Mollison, geralmente perdoava Vikram pelos crimes que não podia perdoar à sua esposa: a tonalidade mais escura da pele, a inteli­gência e a riqueza (tudo o que, para Shirley Mollison, cheirava a soberba). Isso era extremamente injusto, pensou Tessa. Parminder trabalhava muito em todos os setores da vida de Pagford: festas escolares ou beneficentes, a clínica local e o Conselho Distrital, e sua recompensa era a aversão im­placável da velha guarda. Vikram, que raramente participava de qualquer uma dessas atividades, era bajulado, incensado, e todos se referiam a ele demonstrando grande aprovação.

Mollison é um megalomaníaco — disse Parminder nervosa, empur­rando a comida no prato. — Um tirano megalomaníaco.

Vikram largou o garfo e a faca, e se recostou na cadeira.

Então, por que ele está satisfeito com a presidência do Conselho Distrital? — perguntou Vikram. — Por que não tenta o Conselho Muni­cipal?

Porque para ele Pagford é o centro do universo — respondeu Par­minder. — Você não percebe: ele não deixaria de ser presidente do Conse­lho Distrital de Pagford nem para ser o primeiro-ministro. De todo modo, ele não precisa estar no Conselho em Yarvil; já tem Aubrey Fawley lá para impor a pauta. Tudo visando à revisão dos limites. Estão trabalhando juntos.

Parminder sentia a ausência de Barry como um fantasma à mesa. Ele teria explicado tudo a Vikram, fazendo-o dar boas risadas durante a expli­cação. Barry imitava perfeitamente a maneira de falar de Howard, o seu jeito de andar, com aqueles passos curtos, adernando o corpo de um lado para o outro, e as suas repentinas interrupções gastrointestinais.

Vivo dizendo que ela está ficando muito estressada — comentou Vikram com Tessa, que ficou horrorizada ao perceber que tinha corado levemente quando aqueles olhos escuros pousaram nela. — Você ficou sabendo daquela acusação absurda a respeito da senhora com enfisema?

Ficou. Tessa ficou sabendo. Todo mundo ficou sabendo. Temos mesmo que discutir isso na mesa do jantar? — cortou Parminder, e, levantando-se de um salto, começou a retirar os pratos.

Tessa tentou ajudá-la, mas Parminder lhe disse, de um jeito meio atra­vessado, para ficar onde estava. Vikram deu a Tessa um sorrisinho solidá­rio, fazendo com que ela sentisse um aperto na boca do estômago. Ela não conseguia se impedir de lembrar, enquanto Parminder tirava a mesa com estardalhaço, que os dois fizeram um casamento arranjado.

(— A família só faz as apresentações — disse Parminder, no início da amizade delas, meio na defensiva e chateada com a cara que Tessa tinha feito. — Ninguém obriga ninguém a se casar, sabe?!

No entanto, já tinha falado, em outras ocasiões, da enorme pressão que a sua mãe fazia para que ela arranjasse logo um marido.

Todos os pais siques querem que os seus filhos se casem. É uma verdadeira obsessão — comentou Parminder, com amargura.)

Colin não se lamentou quando viu o seu prato ser levado embora. A náusea que agitava o seu estômago estava muito pior do que quando ele e Tessa chegaram. Sentia-se tão distante dos seus três companheiros de jan­tar, como se estivesse encapsulado por uma espessa redoma de vidro. Era uma sensação com a qual estava bem familiarizado, a de se movimentar dentro de um globo gigante de preocupação, encerrado ali dentro, vendo os seus terrores passando e obscurecendo o mundo lá fora.

Tessa não o ajudava em nada: estava sendo deliberadamente indife­rente e nada solidária em relação à sua campanha para ocupar a vaga de Barry. Colin queria consultar Parminder a respeito dos panfletinhos que fizera para anunciar a sua candidatura, essa era a principal razão de terem ido jantar ali. Tessa, no entanto, não queria se envolver e se esquivava a qualquer conversa sobre o medo que aos poucos vinha tomando conta dele. Estava lhe negando uma válvula de escape.

Tentando ser tão frio quanto ela, fingindo que não estava, afinal, su­cumbindo à pressão que ele próprio se impusera, Colin não havia lhe dito nada sobre o telefonema que recebera na escola naquele dia. A jornalista da Gazeta de Yarvil e Adjacências queria falar sobre Krystal Weedon.

Será que tinha tocado nela?

Colin disse à tal jornalista que a escola não podia, de forma alguma, se pronunciar sobre um aluno e que ela deveria entrar em contato com os pais da menina.

— Já falei com Krystal — disse a voz do outro lado do telefone. —Que­ria apenas ter o seu...

Mas ele desligou o telefone, e o terror embaçou tudo à sua volta.

Por que queriam falar sobre Krystal? Por que tinham ligado para ele? Tinha feito alguma coisa? Será que tinha tocado nela? Será que ela tinha dado queixa?

O psicólogo havia lhe dito para não tentar confirmar ou contradizer o conteúdo desse tipo de pensamento. Tinha apenas que reconhecer a exis­tência dele e seguir em frente, como se tudo fosse absolutamente normal, mas isso era como tentar não coçar uma coceira insuportável. A revelação pública dos segredos sujos de Simon Price no site do Conselho o deixou muito abalado: o pavor da exposição, que dominou boa parte da sua vida, agora tinha um rosto, os seus traços eram os de um velho querubim, com um cérebro demoníaco fervilhando sob cachos grisalhos cobertos por um chapéu Sherlock Holmes e por trás de olhos esbugalhados e inquisidores. Ficou se lembrando das histórias que Barry contava sobre o inacreditável cérebro de estrategista do dono da delicatéssen e sobre a intricada rede de alianças que ligava os dezesseis membros do Conselho Distrital de Pagford.

Colin tinha imaginado várias vezes como poderia descobrir se tudo já estava acabado: um artigo cauteloso no jornal; rostos virados quando entrasse na Mollison & Lowe; um chamado da diretora à sua sala para uma conversa particular. Visualizou a sua queda milhares de vezes: a sua vergonha exposta e pendurada no seu pescoço, como um sino de leproso. Não daria mais para esconder nada, nunca mais. Seria demitido. E prova­velmente acabaria na prisão.

Colin — chamou Tessa baixinho. Vikram estava lhe oferecendo vinho.

Ela sabia muito bem o que estava se passando dentro daquela cabe­ça; não o que ele estava pensando exatamente, mas o tema da ansiedade do marido tinha sido constante durante anos. Sabia que Colin não podia controlar isso; essa era a matéria de que era feito. Anos antes, Tessa leu as palavras de W. B. Yeats e soube que eram uma verdade: "Uma piedade além de todo o dizer está escondida no coração do amor." Sorriu ao ler o poema e virou a página, consciente de que amava Colin e de que uma imensa parte desse amor era compaixão.

As vezes, no entanto, a sua paciência se esgotava. Às vezes ela também queria um pouco de atenção e encorajamento. Quando lhe contou que tinha recebido o diagnóstico final de portadora de diabetes tipo 2, ele ir­rompeu num ataque de pânico previsível, mas bastou convencê-lo de que não estava correndo risco iminente de morrer para ele depressa esquecer o assunto e voltar a mergulhar completamente nos seus planos eleitorais.

(Naquele dia, no café da manhã, ela verificou pela primeira vez a quan­tidade de açúcar no sangue com o glicosímetro. Depois pegou a seringa já com a insulina e a espetou na própria barriga. Doeu bem mais do que quando a habilidosa Parminder tinha feito isso.

Bola pegou a tigela de cereal e virou a cadeira, afastando-se dela, der­ramando leite na mesa, na manga da camisa do uniforme da escola e no chão da cozinha. Irritado, Colin deu um grito quando Bola cuspiu o que tinha na boca de volta na tigela e perguntou à mãe:

Você tem que fazer isso aqui na mesa?

Não seja grosseiro e pare de emporcalhar tudo — gritou Colin. — Sente-se direito. Limpe essa bagunça! Veja lá como você fala com a sua mãe. Peça desculpas!

Tessa puxou a agulha da barriga tão depressa que saiu um pouco de sangue.

Desculpe por ter vontade de vomitar quando você está tomando um pico no café da manhã, Tess — disse Bola, que estava debaixo da mesa, limpando o chão com um pedaço de papel-toalha.

Sua mãe não está "tomando um pico", ela está aplicando uma inje­ção! — vociferou Colin. — E não a chame de "Tess"!

Sei que você não gosta de agulhas, Stu — contemporizou Tessa, com os olhos cheios de lágrimas. Tinha se machucado e, além disso, esta­va abalada e muito zangada com os dois, sentimentos que ainda estavam bem presentes naquela noite.)

Por que será que Parminder não dava valor à atenção que recebia de Vikram? Colin nem notava quando ela estava estressada. Talvez haja algo de bom nessa história de casamento arranjado..., pensou Tessa com raiva. Minha mãe certamente não teria escolhido Colin para mim...

Para a sobremesa, Parminder espalhou pela mesa umas tigelas com salada de frutas. Tessa ficou imaginando, um pouco indignada, o que ela ofereceria a um convidado que não fosse diabético, e se consolou pensan­do na barra de chocolate que a esperava na geladeira de casa.

Parminder, que havia falado cinco vezes mais do que qualquer um deles durante o jantar, começou a reclamar da filha, Sukhvinder. Já tinha contado a Tessa, pelo telefone, sobre a traição da menina, e agora ia voltar ao assunto ali na mesa.

Garçonete de Howard Mollison. Eu não... Eu realmente não sei o que ela tem na cabeça. Mas Vikram...

Eles não têm nada na cabeça, Minda — afirmou Colin, quebrando o seu silêncio. — Adolescentes são assim mesmo. Não ligam para nada. São todos iguais.

Colin, que bobagem — cortou Tessa. — Eles não são todos iguais. Ficaríamos felizes se Stu arranjasse um emprego qualquer nos fins de se­mana. Não que seja uma possibilidade, longe disso.

...mas Vikram não se importa — retomou Parminder, ignorando a interrupção. — Ele não vê nada de errado nisso, não é?

Vikram respondeu com tranqüilidade:

E uma experiência de trabalho. Provavelmente ela não vai para a universidade. E não há vergonha nenhuma nisso. Não é mesmo para todo mundo. Acho que Ris vai se casar cedo e ser feliz.

Garçonete...

Bem, nem todo mundo tem vocação para os estudos acadêmicos, tem?

Não, ela certamente não tem vocação para os estudos acadêmicos — disse Parminder, quase tremendo de tanta raiva e tensão. — As notas dela são pavorosas... Não tem nenhuma aspiração, nenhuma ambição... Garçonete... "Vamos encarar os fatos, mãe, eu não vou pra universida­de"... Não, você certamente não vai, não com esse comportamento... De Howard Mollison... Ah, ele deve estar adorando isso... Minha filha indo lá com o chapéu na mão pedir um emprego. O que ela estava... O que ela estava pensando?

Você não gostaria que Stu arranjasse um emprego com alguém como Mollison — disse Colin para a mulher.

Não me importaria — rebateu Tessa. — Ficaria feliz da vida se ele mostrasse algum interesse por qualquer tipo de trabalho honesto. Pelo que sei, ele só se interessa por jogos de computador e...

Colin não sabia que Stuart fumava. Ela interrompeu a frase no meio, e o marido acrescentou:

Na verdade isso seria bem o tipo de coisa que Stuart faria. Se meter com alguém de quem não gostamos só para nos atingir. Ele adoraria fazer isso.

Pelo amor de Deus, Colin, Sukhvinder não está tentando atingir Minda — exclamou Tessa.

Então você acha que não estou sendo razoável? — perguntou Par­minder, indignada.

Não, não é isso — disse Tessa, sem acreditar na rapidez com que tinham sido envolvidos naquela confusão familiar. — Estou apenas di­zendo que não existem muitos lugares para um adolescente trabalhar em Pagford, ou existem?

E por que ela precisa trabalhar? — perguntou Parminder, erguen­do as mãos, num gesto de profunda exasperação. — O dinheiro que lhe damos não basta?

E diferente quando ganhamos com o nosso próprio trabalho, você sabe disso — respondeu.

Da sua cadeira, Tessa via uma parede coberta de fotografias dos filhos dos Jawanda. Já tinha se sentado ali antes e contou quantas vezes cada um deles aparecia nas fotos: Jaswant, dezoito; Rajpal, dezenove; e Sukhvinder, nove. Só uma única fotografia registrava um acontecimento específico na vida da filha mais nova: a equipe de remo da Winterdown, no dia em que elas derrotaram a da St. Anne. Barry deu a todos os pais uma cópia am­pliada dessa foto. Nela Sukhvinder e Krystal Weedon estavam no meio de um grupo de oito meninas, com os braços passados nos ombros umas das outras, sorrindo, radiantes, e pulando, o que fez a imagem ficar um pouco fora de foco.

Barry teria ajudado Parminder a ver as coisas do jeito certo, pensou ela. Ele tinha sido uma ponte entre mãe e filha, e ambas o adoravam.

Aquela não era a primeira vez que Tessa ficava se perguntando que diferença fazia ela não ter dado à luz o seu filho. Seria mais fácil aceitá-lo como um indivíduo completamente independente se ele fosse feito da sua carne e do seu sangue? O seu sangue ruim, cheio de glicose...

Bola recentemente tinha parado de chamá-la de "mãe". Ela teve que fingir que não ligava, porque Colin ficava possesso com aquilo, mas toda vez que Bola dizia "Tessa" era como se enfiassem uma agulha no seu coração.

Os quatro terminaram de comer a sobremesa em silêncio.

 

Lá no alto, na pequena casa branca acima do resto do vilarejo, Simon Price se angustiava e ficava remoendo sempre as mesmas idéias. Os dias se passaram. O post com aquela acusação tinha sumido da área de men­sagens, mas ele continuava paralisado. Retirar a sua candidatura poderia parecer admissão de culpa. A polícia não bateu à sua porta para investigar sobre o computador, e ele agora meio que lamentava tê-lo jogado da velha ponte. Por outro lado, não sabia ao certo se o homem por trás do balcão da oficina no sopé da colina tinha mesmo feito aquela cara feia, quando Simon pegou o seu cartão de crédito. Houve muitos boatos no trabalho sobre demissões, e ele ainda estava com medo de que o conteúdo daquele post chegasse aos ouvidos dos seus chefes, e que eles preferissem economi­zar as indenizações demitindo, por justa causa, a ele, Jim e Tommy.

Andrew só observava e esperava, perdendo as esperanças a cada dia. Tinha tentado mostrar ao mundo quem era o seu pai, e o mundo, pelo visto, apenas deu de ombros. O garoto achava que alguém da gráfica ou do Conselho iria se levantar e dizer a Simon um sonoro "não": ele não devia entrar na disputa, não servia para o cargo, não estava dentro dos padrões exigidos e não devia desgraçar a si mesmo e a sua família. Mas nada acon­teceu. Simon apenas parou de falar do Conselho e de dar telefonemas na esperança de angariar votos. E os folhetos que ele imprimiu depois do expediente ficaram intocados dentro de uma caixa na varanda.

Então, sem nenhum aviso ou alarde, veio a vitória. Na sexta à noite, ao descer as escadas às escuras para buscar alguma coisa para comer, Andrew ouviu Simon falando ao telefone da sala de estar num tom formal, e parou para escutar.

...retirando minha candidatura — dizia ele. — Claro. Bem, minhas circunstâncias pessoais mudaram, é uma questão pessoal. Claro. Claro. É, está certo. Ok. Obrigado.

Andrew ouviu o pai desligar o telefone.

Bem, tudo acabado — comunicou ele à mulher. — Estou fora, esses merdas conseguiram o que queriam.

Andrew ouviu a mãe dar uma resposta abafada e de incentivo, e antes que o garoto tivesse tempo de sair dali, Simon apareceu no corredor, ins­pirou fundo e gritou a primeira sílaba do seu nome. Mas logo percebeu que o filho estava bem ali, na sua frente.

O que está fazendo aí?

Metade do rosto de Simon estava na sombra; a outra metade, ilumina­da apenas pela luz que vinha da sala de estar.

Estou com sede — mentiu Andrew, pois sabia que o pai não gostava que eles pegassem comida.

Você começa a trabalhar com Mollison neste fim de semana, não é?

É.

Certo, então preste atenção. Quero que descubra tudo o que puder sobre esse desgraçado, entendeu? Toda a sujeira que puder desencavar. E sobre o filho dele também, se ouvir alguma coisa.

Tá bom — disse Andrew.

E vou colocar tudo na merda daquele site — prosseguiu Simon, voltando para a sala de estar. — Vou ser a porra do "Fantasma de Barry Fairbrother".

Enquanto tentava pegar alguma coisa para comer, tomando o maior cuidado para que ninguém desse falta de nada, tirando uma fatia aqui, um punhado ali, um refrão ecoava pela cabeça de Andrew: Peguei você, seu filho da puta. Peguei você.

Fez exatamente o que havia se proposto a fazer: Simon não tinha a me­nor idéia de quem tinha feito as suas ambições virarem pó. O idiota estava inclusive pedindo a ajuda de Andrew para se vingar. Uma reviravolta e tanto, já que quando contou aos pais que tinha conseguido um emprego na delicatéssen, Simon ficou furioso.

Seu babaquinha estúpido. E a porra da alergia?

Achei que era só tentar não comer amendoim — disse Andrew.

Não banque o espertinho comigo, seu Cara de Pizza. E se você comer sem querer, como aconteceu na St. Thomas? Acha que queremos passar por aquela porcaria toda de novo?

Mas Ruth tinha apoiado o filho, alegando que ele já era grande o bas­tante para se cuidar, para prestar atenção. Quando Simon saiu da sala, ela veio com aquela conversa de que ele só estava preocupado com o filho.

A única preocupação dele é ter que me levar pro hospital na hora daquela droga de programa de esportes que ele gosta de ver.

Andrew voltou para o quarto, sentou na cama, enfiando a comida na boca com uma das mãos e mandando mensagens de texto para Bola com a outra.

Achou que estava tudo resolvido, terminado, feito. Até então, nunca ti­nha precisado observar as primeiras bolhas minúsculas que surgem duran­te o processo de fermentação e que contêm, dentro de si, uma inevitável transformação alquímica.

 

Mudar-se para Pagford foi uma das piores coisas que aconteceram a Gaia Bawden. Exceto pelas visitas ocasionais que fizera ao pai em Reading, Londres era tudo o que ela conhecia. Gaia ficou tão surpresa na primeira vez que ouviu Kay dizer que queria se mudar para um minúsculo vilarejo da região do West Country, que só algumas semanas antes de isso acon­tecer levou a ameaça a sério. Pensou que aquilo era mais uma das idéias malucas da mãe, como a história das duas galinhas que comprou para o minúsculo quintal dos fundos da casa que tinham em Hackney (uma raposa matou as galinhas na semana seguinte), ou quando inventou de fazer geleia, logo ela, que praticamente nunca cozinhava, e acabou estra­gando metade das panelas da casa e ficando com a mão cheia de marcas de queimadura.

Gaia teve que abandonar os amigos que tinha desde o tempo da escola primária, a casa em que vivia desde os oito anos, os fins de semana em Londres, que estavam se tornando cada vez mais interessantes com todo o tipo de diversão que a cidade oferecia. De uma hora para outra, Gaia tinha sido arrastada, apesar das súplicas, ameaças e protestos, para uma vida que jamais sonhara existir. Ruas de paralelepípedos, nenhuma loja aberta depois das seis, uma vida comunitária que girava em torno da igre­ja, um lugar onde quase sempre se podia ouvir o canto dos pássaros e... nada mais: Gaia se sentia como se tivesse atravessado um portal para um lugar perdido no tempo.

Ela e Kay sempre foram muito ligadas uma à outra (já que o seu pai nun­ca tinha morado com elas e que os dois relacionamentos que a mãe teve de­pois disso nunca chegaram a ser coisa muito séria). Tinham algumas brigas, se consolavam nos momentos de tristeza e, com o passar dos anos, pareciam mais amigas que mãe e filha. Agora, no entanto, Gaia não via nada além de uma inimiga do outro lado da mesa da cozinha. O seu único desejo era voltar para Londres de qualquer maneira e, como vingança, deixar Kay bem infeliz. Não conseguia decidir qual seria a melhor punição: ser reprovada em todos os exames finais, ou passar e tentar convencer o pai a deixá-la mo­rar com ele, enquanto cursava o último ano da escola em Londres. Nesse meio-tempo, teria que viver nesse território alienígena, onde a sua aparência e o seu sotaque, que um dia haviam sido passaporte imediato para os mais seletos círculos sociais, se tornaram moeda estrangeira.

Gaia não tinha nenhum interesse em se tornar uma daquelas estu­dantes populares da Winterdown: achava aquelas garotas constrangedoras, com aquele sotaque do interior e as suas idéias patéticas sobre o que era diversão. A sua ligação deliberada com Sukhvinder Jawanda era, em parte, uma maneira de mostrar aos adolescentes populares que ela ria da cara deles, e também porque sentia uma afinidade natural naquele momento por todos os que estavam à margem.

O fato de Sukhvinder ter aceitado ser garçonete junto com ela fez a amizade das duas se fortalecer. Nos dois tempos de aula de biologia ge­nética que se seguiram, Gaia perdeu a cerimônia como nunca tinha feito antes, e Sukhvinder pôde enfim perceber, ao menos em parte, a misteriosa razão que levou essa recém-chegada bonita e descolada a se tornar sua amiga. Ajustando o foco do microscópio que dividiam, Gaia murmurou:

— Isso aqui é de uma brancura do cacete, né?

Sukhvinder se ouviu dizendo "É", antes mesmo de ter parado para pensar na pergunta. Gaia ainda estava falando, mas Sukhvinder só a ouvia parcialmente. "Uma brancura do cacete." É, achava que era isso mesmo.

Na St. Thomas, como era a única criança de pele escura na sala de aula, teve que se levantar e falar sobre a religião sique. Obediente, ficou de pé na frente da turma e contou a história do Guru Nanak, o fundador da religião, que desapareceu num rio e todos acreditaram que ele tivesse se afogado. Três dias depois, porém, ele ressurgiu das águas e anunciou: "Não há hindus, não há muçulmanos."

As outras crianças debocharam da idéia de alguém sobreviver debaixo da água por três dias. Sukhvinder não teve coragem de dizer que Jesus morreu e depois voltou à vida. Ela abreviou a história do Guru Nanak, desesperada para voltar para o seu lugar. Só tinha entrado num gurdwara umas poucas vezes na vida. Não havia nenhum desses templos sique em Pagford, e o único que havia em Yarvil era minúsculo e dominado, segun­do os seus pais, pelos chamars, que eram de uma casta diferente da deles. Sukhvinder nem ao menos entendia por que isso era tão importante, já que o Guru Nanak condenava explicitamente a distinção de castas. Era tudo muito confuso, e ela continuou a adorar ovos de Páscoa e a enfeitar árvores de Natal, e achava os livros que contavam a vida dos gurus e os dogmas dos Khalsa, que Parminder obrigava os filhos a ler, extremamente difíceis.

As visitas à família de sua mãe em Birmingham, naquelas ruas onde praticamente todo mundo tinha a pele escura e as lojas eram cheias de sáris e especiarias indianas, sempre a faziam se sentir estranha e desloca­da. Seus primos falavam tanto punjabi quanto inglês, e levavam uma vida urbana e sofisticada. As suas primas eram atraentes e estavam sempre na moda. Riam dos seus erres longos do interior e da sua total falta de senso estético, e Sukhvinder odiava que rissem dela. Quando Bola Wall ainda não tinha começado com aquele seu regime diário de tortura, quando na escola eles ainda não tinham sido divididos por níveis, obrigando-a a ter contato diário com Dane Tully, sempre gostou de voltar para Pagford. Naquela época, ali era o seu refúgio.

Enquanto estavam manuseando as lâminas, mantendo a cabeça baixa para não chamar a atenção da sra. Knight, Gaia começou a lhe contar mil coisas sobre a sua vida na Escola Gravener, em Hackney. As palavras iam brotando numa profusão, revelando um certo nervosismo. Descreveu os amigos que deixou para trás. Um deles, Harpreet, tinha o mesmo nome do primo mais velho de Sukhvinder. Falou sobre Sherelle, que era negra e a garota mais inteligente do seu grupo, e sobre Jen, cujo irmão tinha sido seu primeiro namorado.

Embora estivesse interessadíssima em tudo o que Gaia estava lhe con­tando, Sukhvinder não podia impedir que os seus pensamentos se disper­sassem. Ficou imaginando uma escola em que seu olho tivesse que lutar para destacar os componentes individuais de um caleidoscópio compos­to dos mais diversos tons de pele, indo do branco mingau de sempre ao marrom-avermelhado. Aqui na Winterdown, o cabelo preto-azulado das crianças asiáticas se destacava com facilidade naquela paisagem monó­tona. Num lugar como Gravener, tipos como Bola Wall e Dane Tully deviam ser a minoria.

Sukhvinder fez uma pergunta tímida:

Por que você veio para cá?

Porque minha mãe queria ficar perto do babaca do namorado dela - murmurou Gaia. — Gavin Hughes, sabe quem é?

Sukhvinder fez que não com a cabeça.

Com certeza você já deve ter ouvido eles trepando — disse Gaia.

A rua inteira ouve quando eles estão trepando. Deixe as suas janelas abertas uma noite dessas.

Sukhvinder tentava não parecer chocada, mas a idéia de ouvir os seus pais, os seus pais casados, fazendo sexo já era bem ruim. A própria Gaia estava vermelha; não por causa do constrangimento, pensou Sukhvinder, mas da raiva.

Ele vai dar um chute nela. Ela só está se enganando. Ele fica louco para sair de perto dela depois que eles trepam.

Sukhvinder nunca falaria da mãe dessa maneira, nem as gêmeas Fair­brother (que ainda eram, teoricamente, as suas melhores amigas). Niamh e Siobhan estavam dividindo um microscópio ali perto. Desde que tinham perdido o pai, pareciam ter se aproximado ainda mais, sempre escolhendo a companhia uma da outra e se afastando de Sukhvinder.

Andrew Price ficava olhando para Gaia quase o tempo todo por uma brecha no meio dos rostos brancos em volta delas. Sukhvinder, que havia notado, pensou que Gaia não tivesse visto, mas estava enganada. Gaia simplesmente não fazia a menor questão de olhar para ele também ou de se ajeitar, porque estava acostumada com essa história de garotos olhando para ela. Isso acontecia desde os seus doze anos. Quando ela tinha que mudar de sala, por exemplo, no intervalo das aulas, dois garotos do pe­núltimo ano ficavam circulando pelo corredor. Isso acontecia com tanta freqüência que não podia ser simples coincidência. E os dois eram bem mais bonitos que Andrew. No entanto, nenhum deles se comparava ao garoto com quem Gaia tinha perdido a virgindade pouco antes de vir para Pagford.

Gaia mal podia suportar a idéia de que Marco de Luca ainda estava vivo em algum lugar do universo e separado dela por cento e cinqüenta quilômetros de uma distância inútil e dolorosa.

Ele tem dezoito anos — disse ela. — É meio italiano e joga futebol muito bem. Está tentando fazer um teste para o time juvenil do Arsenal.

Gaia fez sexo com Marco quatro vezes antes de ir embora de Hackney e, em todas elas, roubou camisinhas da mesa de cabeceira de Kay. Meio que queria que a mãe soubesse até onde estava indo para deixar a sua mar­ca na memória de Marco, já que estava sendo obrigada a se separar dele.

Sukhvinder escutava fascinada, mas sem admitir que já tinha visto Marco na página do Facebook da sua nova amiga. Não havia nenhum garoto como ele em toda a Winterdown: ele se parecia com Johnny Depp.

Gaia se debruçou sobre a bancada, brincando meio distraída com o mi­croscópio, e lá do outro lado da sala Andrew Price continuava a observá-la, tomando cuidado para que Bola não percebesse.

Talvez ele seja fiel. Sherelle vai dar uma festa no sábado à noite e convidou ele. Ela me jurou que não vai deixar Marco ficar com ninguém. Merda, eu queria...

Ficou olhando para a bancada com aqueles seus olhos, com manchinhas esverdeadas, completamente enevoados, e Sukhvinder a observava humildemente, encantada com a sua aparência, perdida em admiração pela sua vida. Ter um outro mundo ao qual você está perfeitamente inte­grada, onde você tem um namorado que é jogador de futebol e um grupo de amigas devotadas e descoladas, lhe parecia uma situação admirável e invejável, mesmo que você tenha sido arrancada de lá à força.

Foram bater perna na rua na hora do almoço, algo que Sukhvinder quase nunca fazia. Ela e as gêmeas Fairbrother geralmente comiam na cantina da escola.

Enquanto faziam hora na calçada do lado de fora da loja de con­veniência onde tinham comprado sanduíches, ouviram um grito estri­dente.

A filha da puta da sua mãe matou minha vó!

Perplexos, todos os alunos da Winterdown que estavam aglomerados ali ficaram procurando de onde tinha vindo aquele grito. Sukhvinder fa­zia a mesma coisa, tão confusa como os demais. Então, de repente, viu Krystal Weedon do outro lado da rua, apontando para ela um dedo curto e grosso, como uma arma. Estava com quatro garotas, uma do lado da outra na beira da calçada, esperando para atravessar.

A filha da puta da sua mãe matou minha vó. Pode esperar, ela vai ter o que merece, e você também.

Sukhvinder sentiu o estômago revirar. Todo mundo olhava para ela. Duas meninas mais novas saíram dali correndo. Sukhvinder percebeu que as pessoas que estavam passando paravam e ficavam olhando interessadas. Krystal e a sua gangue estavam indóceis, pulando na ponta dos pés, espe­rando uma brecha para poder atravessar.

Do que ela está falando? — perguntou Gaia, mas Sukhvinder estava com a boca tão seca que não conseguia responder. Não adiantava correr. Não ia conseguir mesmo. Leanne Carter era a garota mais rápida do ano delas. O mundo estava parado. Só os carros pareciam se movimentar, lhe dando uns últimos segundos de segurança.

Então, Jaswant apareceu, acompanhada de vários garotos do último ano.

Tudo bem, Ris? — perguntou ela. — Aconteceu alguma coisa?

Jaswant não tinha ouvido Krystal gritar. Ela passou ali com os amigos por pura sorte. Do outro lado da rua, Krystal e as outras garotas cochi­chavam.

Nada — disse Sukhvinder, meio tonta de alívio com a trégua tem­porária. Não podia dizer a Jazz o que estava acontecendo na frente dos garotos. Dois deles tinham mais de um metro e oitenta. E estavam todos olhando para Gaia.

Jazz e os amigos se dirigiram para a porta da loja, e Sukhvinder, lan­çando um olhar aflito para Gaia, foi atrás deles. Pela vidraça, as duas vi­ram Krystal e as outras garotas indo embora, olhando para trás de vez em quando.

O que foi isso? — perguntou Gaia.

A bisavó dela, que era paciente da minha mãe, morreu — respon­deu Sukhvinder. Estava com tanta vontade de chorar que os músculos da sua garganta chegavam a doer.

Vaca idiota — exclamou Gaia.

O choro que Sukhvinder tinha conseguido segurar até agora não era só por causa do medo. Ela gostava muito de Krystal e sabia que a menina também gostava dela. Todas aquelas tardes no canal, as viagens de micro-ônibus... Ela conhecia cada pedacinho das costas e dos ombros de Krystal mais do que qualquer parte do seu próprio corpo.

Elas voltaram para a escola com Jaswant e os seus amigos. O garoto mais bonito começou a conversar com Gaia. E, quando passaram pelos portões, ele já estava implicando com ela por causa do sotaque londrino. Sukhvinder não estava vendo Krystal em lugar nenhum, mas avistou Bola a uma certa distância, andando com aquelas suas passadas largas ao lado de Andrew Price. Teria reconhecido aquela silhueta e aquele jeito de an­dar em qualquer lugar, da mesma maneira que algo instintivo nos faz per­ceber uma aranha atravessando o chão mal-iluminado na nossa direção.

A náusea se espalhava em ondas dentro dela à medida que se aproxima­vam do prédio da escola. De agora em diante seriam os dois: Bola e Krys­tal. Todo mundo sabia que eles estavam saindo. Na cabeça de Sukhvin­der, uma imagem bem nítida se formou: ela caída no chão, sangrando, Krystal e as garotas chutando o seu corpo, e Bola Wall assistindo a tudo e dando boas risadas.

Preciso ir ao banheiro — disse a Gaia. — Encontro você lá em cima.

Ela entrou correndo no primeiro banheiro feminino que viu, trancou-se em uma das cabines e se sentou no vaso, em cima da tampa fechada. Queria morrer... Ou desaparecer para sempre... Mas a superfície sólida das coisas se recusava a se dissolver ao seu redor, e o seu corpo, aquele odioso corpo hermafrodita, continuava, de um jeito obstinado e boçal, a viver...

Ouviu o sinal que indicava o início das aulas da tarde e, de um salto, saiu do banheiro correndo. Filas de estudantes se formavam ao longo do corredor. Ela deu as costas para todos e foi saindo do prédio.

Outros alunos matavam aula. Krystal fazia isso sempre, e Bola Wall também. Se ela pudesse ao menos ficar longe dali esta tarde, talvez con­seguisse pensar em algum jeito de se proteger antes de ter que voltar. Ou podia atravessar na frente de um carro. Imaginou o carro atingindo o seu corpo violentamente, e os seus ossos se partindo em mil pedaços. Em quanto tempo morreria, se fosse atropelada no meio da rua? Continuava

preferindo morrer afogada, a água fria e limpa pondo-a para dormir para sempre: um sono sem sonhos...

Sukhvinder? Sukhvinder!

Sentiu o estômago revirar mais uma vez. Tessa Wall estava correndo pelo estacionamento, indo na sua direção. Por um momento, teve uma idéia maluca: sair correndo, mas a inutilidade desse ato a conteve, e ela ficou parada, esperando Tessa alcançá-la, com ódio daquela sua cara sem graça e estúpida e do seu filho diabólico.

Sukhvinder, o que está fazendo? Aonde você está indo?

A menina não conseguia nem ao menos pensar numa mentira. Já sem esperanças, ela deu de ombros e se rendeu.

Tessa não tinha compromisso até as três horas. Devia levar Sukhvinder à secretaria para relatar a sua tentativa de fuga, mas, em vez disso, subiu com ela para a sua sala, com aquele panô do Nepal e o pôster da Fun­dação de Amparo à Criança e ao Adolescente. Sukhvinder nunca tinha estado lá antes.

Tessa falava, fazia pequenas pausas encorajadoras, falava mais um pou­co, e Sukhvinder ficou sentada ali, com as mãos suadas, olhando fixa­mente para os próprios sapatos. Tessa conhecia a sua mãe... Com certeza ia contar a Parminder que ela tinha tentado matar aula... Se ao menos conseguisse explicar por quê. Será que Tessa intercederia por ela? Poderia fazer isso? Não com o seu filho. Todo mundo sabia que ela não conseguia controlar Bola. Mas e Krystal? Krystal vinha muito à sala de orientação...

Será que ia apanhar se contasse? De toda forma, ia apanhar se não con­tasse. Krystal estava pronta para pôr toda a sua gangue atrás dela...

...alguma coisa com você, Sukhvinder?

A menina fez que sim com a cabeça. E Tessa a encorajou mais uma vez a falar:

Pode me contar o que foi?

Então Sukhvinder contou.

Ao escutá-la, tinha certeza de ter visto, na contração instantânea das sobrancelhas de Tessa, algo além da solidariedade. Talvez ela estivesse pensando na reação de Parminder ao saber o que estavam gritando pela rua sobre o tratamento que ela tinha dado à sra. Catherine Weedon. Sukhvinder havia pensado nisso também quando estava lá no banheiro, querendo morrer. Ou talvez a expressão de desagrado no rosto de Tessa fosse apenas relutância em ter que enfrentar Krystal Weedon. Sem dú­vida alguma, Krystal também era a sua favorita, como tinha sido do sr. Fairbrother.

Um senso de injustiça feroz e pungente irrompeu em meio a toda a sua tristeza, o seu medo, a sua aversão a si mesma. E varreu aquele emaranha­do de preocupações e ameaças que a aprisionava diariamente. Pensou em Krystal e nas suas colegas, esperando para fazê-la pagar por tudo. Pensou em Bola, sussurrando palavras perversas atrás dela em todas as aulas de matemática, e pensou na mensagem que tinha apagado da sua página no Facebook na noite anterior:

Lesbianismo (les.bi:a.nis.mo) sm. Homossexualismo feminino; safismo. [De lesbiano (= 'referente à ilha de Lesbos, Grécia') + -ismo.]

Não sei como ela sabe — disse Sukhvinder, com o coração tão ace­lerado que chegava a ouvir a própria pulsação.

Sabe...? — perguntou Tessa, ainda com uma expressão de preocu­pação.

Que houve uma acusação contra a mamãe por causa da bisavó dela. Krystal e a mãe não falam com o resto da família. Talvez... — continuou Sukhvinder — Bola tenha contado.

Bola? — repetiu Tessa, sem entender nada.

É, porque eles estão saindo — disse Sukhvinder. — Ele e Krystal... Eles estão saindo juntos. É, então ele pode ter contado a ela.

Ver o último vestígio daquela calma profissional sumir do rosto de Tes­sa lhe deu uma satisfação amarga.

 

Kay Bawden nunca mais quis pôr os pés na casa de Miles e Samantha. Não podia perdoá-los por terem testemunhado a demonstração de indife­rença de Gavin, nem podia esquecer a risada condescendente de Miles, a sua atitude em relação à Bellchapel, ou o modo insultante com que ele e Samantha falaram de Krystal Weedon.

Apesar de Gavin ter pedido desculpas e dado algumas demonstrações meio mornas de afeição, Kay não parava de pensar nele sentado bem juntinho de Mary no sofá, ajudando-a com os pratos e levando-a para casa na escuridão. Quando Gavin lhe contou, uns dias depois, que tinha jantado na casa de Mary, Kay teve que controlar um acesso de raiva, porque na sua casa, na Hope Street, ele nunca comeu nada além de torradas.

Ela não podia fazer nenhum comentário negativo sobre A Viúva, de quem Gavin falava como se fosse a própria Virgem Maria, mas com os Mollison era diferente.

Não gosto muito de Miles.

Ele não é exatamente meu melhor amigo.

Se quer saber, se ele for eleito vai ser uma catástrofe para a clínica de reabilitação.

Duvido que faça alguma diferença.

A apatia de Gavin e aquela indiferença pelo sofrimento das pessoas sempre a deixavam furiosa.

Não há ninguém lá que vá defender a Bellchapel?

Acho que o Colin Wall — respondeu Gavin.

Então, às oito horas da noite de segunda, Kay se dirigiu para a casa dos Wall e tocou a campainha. Da porta, ela podia ver o Ford Fiesta vermelho de Samantha Mollison estacionado três casas adiante. Ver aquilo acres­centou um pouco mais de sabor ao seu desejo de comprar aquela briga.

Uma mulher sem graça, baixinha e gorducha, vestindo uma saia de batique, veio abrir a porta.

Olá. Eu me chamo Kay Bawden e gostaria de falar com Colin Wall — disse ela.

Por um segundo, Tessa ficou simplesmente olhando para aquela jovem atraente, que ela nunca tinha visto antes, parada ali na sua porta. Uma idéia estranha passou pela sua cabeça: que Colin estava tendo um caso e que a sua amante tinha vindo contar tudo a ela.

Ah... Claro... Entre. Eu sou Tessa.

Kay limpou os pés com cuidado no capacho e seguiu Tessa até a sala de estar, que era menor e com móveis mais velhos que a dos Mollison, mas também mais aconchegante. Viu um homem alto, que estava ficando ca­reca e tinha uma testa grande, sentado numa poltrona com um notebook no colo e uma caneta na mão.

Colin, essa é Kay Bawden — disse Tessa. — Ela quer falar com você.

Tessa viu a expressão de surpresa e desconfiança no rosto de Colin e imediatamente soube que ele não conhecia aquela mulher. Imagina, pen­sou ela, um pouco envergonhada, o que você estava pensando?

Desculpe por aparecer assim, desse jeito, sem avisar — disse Kay, quando Colin se levantou para cumprimentá-la. — Queria ter ligado an­tes, mas vocês...

É, não estamos na lista — interrompeu Colin, observando-a com aqueles olhos minúsculos por trás das lentes dos óculos. — Por favor, sen­te-se.

Obrigada. É sobre a eleição — disse Kay. — A eleição para o Conse­lho Distrital. Você está concorrendo com Miles Mollison, não está?

Estou, sim — confirmou Colin, nervoso. Sabia quem era aquela mulher: a repórter que queria falar sobre Krystal. Eles finalmente o ti­nham encontrado... Tessa não devia tê-la deixado entrar.

Fiquei pensando se poderia ajudar de alguma forma — prosseguiu Kay. — Sou assistente social e trabalho principalmente em Fields. Posso lhe dar algumas informações e alguns números sobre a Clínica de Reabi­litação Bellchapel, que Mollison parece bem interessado em fechar. Me disseram que você é a favor da clínica. E que gostaria de mantê-la aberta.

Uma descarga de alívio e prazer quase o fez desmaiar.

Ah, sim, claro — disse Colin. — Gostaria de manter a clínica aber­ta, sim. Isso era o que o meu predecessor... Quero dizer, o antigo ocupante da cadeira... Barry Fairbrother... Ele certamente era contra o fechamento da clínica. E eu também sou.

Bem, tive uma conversa com Miles Mollison, e ele deixou bem claro que acha que não vale a pena manter a clínica aberta. Francamente, acho que ele não sabe de nada nem tem a menor idéia das causas e do tratamento da dependência química, e da diferença que a Bellchapel está fazendo. Se o Conselho Distrital negar a renovação do contrato para a ocupação do prédio e o Conselho Municipal cortar a verba, vamos correr o risco de deixar algumas pessoas muito vulneráveis sem nenhum tipo de apoio.

Claro, claro, é isso mesmo — disse Colin. — Eu concordo, claro.

Ele estava admirado e lisonjeado por essa mulher jovem e atraente ter saído de casa naquela noite para procurá-lo, se oferecendo como aliada.

Gostaria de uma xícara de chá ou café, Kay? — perguntou Tessa.

Ah, muito obrigada — respondeu Kay. — Aceito uma xícara de chá, Tessa. Sem açúcar, por favor.

Bola estava na cozinha, pegando comida na geladeira. Ele comia mui­to, o tempo todo, mas continuava esquelético, sem engordar nem um úni­co quilo sequer. Apesar de manifestar abertamente a sua aversão às inje­ções de Tessa, ele parecia não estar ligando que elas estivessem ali, numa caixa branca de medicamentos, bem perto do queijo.

Tessa pegou a chaleira e voltou a pensar no assunto que a consumia desde que Sukhvinder deu a entender, um pouco mais cedo, que Bola e Krystal "estavam saindo". Não perguntou nada ao filho e também não contou nada a Colin.

Quanto mais pensava nisso, mais certeza tinha de que não podia ser verdade. Sabia que Bola se tinha em tão alta conta que nenhuma garota seria boa o bastante para ele, especialmente uma garota como Krystal. Ele com certeza não...

Se rebaixaria? É isso? É isso o que você acha?

Quem está aí? — perguntou Bola, com a boca cheia de frango gela­do, enquanto a mãe colocava a chaleira no fogo.

Uma mulher que quer ajudar o papai a se eleger para o Conselho — respondeu Tessa, vasculhando o armário atrás de biscoitos.

Por quê? Ela tá a fim dele?

Deixe de ser bobo, Stu — disse Tessa, fazendo cara feia.

Ele tirou várias fatias de presunto de um pacote já aberto e foi enfian­do todas elas, uma a uma, na boca já cheia, como se fosse um mágico empurrando lenços de seda dentro da mão fechada. Bola às vezes ficava quase dez minutos na frente da geladeira aberta, abrindo vasilhas e potes, pegando pedaços de comida e botando direto na boca. Colin reprovava essa mania, como reprovava quase todos os outros aspectos do comporta­mento do filho.

Sério, por que ela quer ajudar? — perguntou ele, engolindo um pedaço de carne.

Ela quer que a Clínica de Reabilitação Bellchapel continue aberta.

É uma drogada?

Não, não é uma drogada — respondeu Tessa, irritada, porque notou que Bola tinha acabado com os últimos três biscoitos de chocolate e dei­xado os pacotes vazios na prateleira. — Ela é assistente social e acha que a clínica está fazendo um bom trabalho. Papai quer mantê-la funcionando, mas Miles Mollison acha que não vale a pena.

Não deve valer mesmo. Fields está cheio de cheiradores de cola e tomadores de pico.

Tessa sabia que se tivesse dito que Colin queria fechar a clínica, Bola teria argumentado imediatamente a favor da sua manutenção.

Você devia ser advogado, Stu — disse ela, quando a tampa da cha­leira começou a chacoalhar.

Ao voltar para a sala de estar com a bandeja, Tessa viu Kay mostrando a Colin um material impresso que ela tinha tirado de uma sacola grande.

...dois trabalhadores viciados, mantidos em parte graças ao Conse­lho e em parte graças à Associação de Combate ao Vício, uma instituição muito boa. E foi a assistente social na clínica, Nina, que me deu tudo isso... Ah, obrigada — disse Kay, sorrindo para Tessa, que pôs uma caneca de chá na mesinha ao seu lado.

Kay simpatizou de cara com os Wall, como nunca tinha acontecido com ninguém em Pagford. Tessa não a olhou de alto a baixo quando ela entrou na casa deles, não ficou procurando alguma imperfeição física nela, nem reparou no seu jeito de se vestir. O marido dela, embora nervo­so, parecia decente e sério na sua determinação de impedir o abandono de Fields.

Você é de Londres? — perguntou Tessa, percebendo o seu sotaque e mergulhando um biscoito no chá. Kay assentiu. — E o que a trouxe a Pagford?

Um relacionamento — disse Kay, sem o menor prazer em afirmar isso, mesmo agora que tinha se reconciliado oficialmente com Gavin. — Não entendo muito bem qual a relação do Conselho Distrital com a clíni­ca — retomou, voltando-se para Colin.

Ah, o Conselho é dono do prédio — explicou ele. — É uma antiga igreja. E o contrato está terminando.

Então essa seria uma maneira fácil de forçá-la a sair de lá.

Exatamente. Quando foi que você falou com Miles Mollison? — perguntou Colin, querendo saber se Miles tinha falado dele, mas também com medo do que ele poderia ter dito.

Jantamos juntos numa sexta, há uns quinze dias — explicou Kay. — Gavin e eu...

Ah, você é a namorada de Gavin — interrompeu Tessa.

Sou. E o assunto de Fields acabou vindo à tona...

Ah, claro... — disse Tessa.

...Miles falou sobre a Bellchapel, e eu fiquei muito... muito cons­ternada com a maneira como ele abordou todas aquelas questões. Eu lhe disse que estava trabalhando com uma família no momento — Kay se lembrou da indiscrição que tinha cometido mencionando os Weedon, e prosseguiu, tomando todo cuidado desta vez —, e que, se a mãe não re­cebesse a sua dose diária de metadona, muito provavelmente voltaria para as ruas.

Me parece que você está falando de Terri Weedon — comentou Tessa, com uma sensação estranha.

É... Estou. Estou falando dela, sim — admitiu Kay.

Tessa pegou outro biscoito.

Sou a orientadora educacional de Krystal na escola. Essa deve ser a segunda vez que a mãe dela se trata na Bellchapel, não é?

A terceira — respondeu Kay.

Conhecemos Krystal desde que ela tinha cinco anos. Ela foi da turma do nosso filho na escola primária — disse Tessa. — A vida dela foi muito difícil mesmo.

Muito — confirmou Kay. — E é impressionante que ela seja uma menina tão encantadora.

Ah, concordo plenamente — acrescentou Colin, com entusiasmo.

Tessa ergueu as sobrancelhas, lembrando-se de que Colin tinha se re­cusado terminantemente a anular a detenção de Krystal depois do episódio do riso no ginásio. Ficou se perguntando, então, com um aperto na boca do estômago, o que Colin diria se Sukhvinder não estivesse mentindo ou enganada. Mas com certeza estava. Ela era um menina tímida, ingênua. Provavelmente pegou o bonde andando... Ouviu mal alguma conversa...

A questão é que praticamente a única coisa que motiva Terri é o medo de perder os filhos — disse Kay. — Ela está no caminho certo no momento. A terapeuta que acompanha o seu caso na clínica me disse que ela está fazendo grandes progressos. Se a Bellchapel fechar, tudo vai por água abaixo novamente, e só Deus sabe o que vai acontecer com aquela família.

Isso tudo é muito útil — disse Colin, balançando a cabeça de um jeito que afetava importância, e fazendo anotações num arquivo novo no notebook. — Muito útil mesmo. Você disse que tem dados estatísticos dos pacientes que conseguiram ficar "limpos"?

Kay folheou o material impresso à procura dessa informação. Tessa teve a impressão de que Colin queria monopolizar a atenção de Kay. Ele sempre foi suscetível a boa aparência e a solidariedade.

Tessa mordeu mais um biscoito, ainda pensando em Krystal. As últi­mas sessões de orientação não tinham sido muito satisfatórias. Krystal estava arredia, e hoje não foi diferente. Conseguiu fazê-la prometer que não iria mais perseguir ou atormentar Sukhvinder Jawanda, mas a reação da menina mostrava claramente que estava desapontada com Tessa e que não confiava mais nela. A culpa era, provavelmente, da detenção que Colin lhe impusera. Tessa achava que elas tinham construído uma ligação forte o suficiente para resistir a tudo isso, embora soubesse que não era como a ligação que Krystal tinha com Barry.

(Tessa estava justamente lá no dia em que Barry levou um aparelho de remo para a escola, procurando candidatas para a equipe que queria formar. Ela tinha sido mandada ao ginásio, porque a professora de educa­ção física estava doente, e o único substituto que puderam encontrar num tempo tão curto era um homem.

As garotas do quarto ano, com os seus shorts e tops, começaram a dar risadinhas quando chegaram ao ginásio e souberam que a srta. Jarvis tinha faltado e encontraram, no lugar dela, dois estranhos. Tessa teve que repreen­der Krystal, Nikki e Leanne, que vieram para a frente e ficaram fazendo observações maliciosas sobre o professor substituto. Ele era um rapaz mui­to bonito que, infelizmente, corava com facilidade.

Barry, baixinho, de cabelo e barba castanho-avermelhados, vestia um agasalho de ginástica. Havia tirado a manhã de folga. Todo mun­do achou aquela idéia muito estranha e nada realista: escolas como a Winterdown não tinham equipes de remo. Niamh e Siobhan pareciam estar se divertindo, embora também estivessem constrangidas com a presença do pai.

Barry explicou que estava lá para formar uma equipe. Tinha consegui­do uma licença para usar a velha marina nas margens do canal de Yarvil. O remo era um esporte fabuloso e daria a elas e à escola a oportunidade de se destacar. Tessa se manteve bem perto de Krystal e das suas amigas, para vigiá-las. A pior parte das risadinhas já havia passado, mas ainda não estavam completamente sob controle.

Barry fez uma demonstração no aparelho de remo e perguntou se al­guém gostaria de experimentá-lo. Ninguém se apresentou.

— Krystal Weedon — disse Barry, apontando para ela. — Vi você se pendurando naquelas barras lá do parque. Você tem muita força nos bra­ços. Venha aqui experimentar.

Krystal ficou radiante de estar em evidência. Foi cambaleando de pro­pósito até o aparelho e se sentou nele. Mesmo com Tessa encarando as duas com firmeza, Nikki e Leanne caíram na gargalhada, e o resto da turma se juntou a elas.

Barry mostrou a Krystal o que fazer. O professor substituto observava Barry pôr as mãos da menina no manete de madeira com uma certa apreensão profissional, mas não disse nada.

Ela fingiu que puxava o manete com muito esforço, fazendo uma cara engraçada para Nikki e Leanne, e todo mundo riu outra vez.

Olhem para ela — disse Barry, sorrindo. — Leva o maior jeito para a coisa.

Seria mesmo verdade? Como não entendia nada de remo, Tessa não poderia avaliar.

Endireite as costas — disse Barry a ela — ou vai se machucar. Isso mesmo. Puxe... Puxe... Vejam como ela sabe... Já fez isso antes?

Krystal, então, endireitou as costas e fez tudo certo. Parou de ficar olhando para Nikki e Leanne e pegou o ritmo.

Excelente — elogiou Barry. — Olhem para isso... Excelente. É as­sim mesmo! E isso aí, garota. Agora de novo. De novo. E...

Isso dói! — gritou Krystal.

É claro que dói. Mas é assim que você vai ficar com os braços iguais aos da Jennifer Aniston — disse Barry.

Houve uma nova onda de risadas, mas, dessa vez, estavam rindo por causa dele. O que é que Barry tinha afinal? Sempre tão presente, tão natu­ral, sem necessidade de agradar a quem quer que fosse.

Tessa sabia muito bem que adolescentes morriam de medo de pare­cer ridículos. Aqueles que não tinham esse medo, e Deus sabe que havia alguns poucos no mundo dos adultos, exerciam uma autoridade natural sobre os jovens. Essas pessoas deviam ser obrigadas a dar aulas.

E descansar! — exclamou Barry, e Krystal desabou, com o rosto vermelho, esfregando os braços.

Vai ter que abrir mão do seu cigarrinho, Krystal — provocou Barry, e, dessa vez, o riso foi geral. — Ok, quem mais gostaria de experimentar?

Krystal se juntou ao resto da turma; já não estava rindo. Observava cada uma das novas remadoras com ciúmes e depois olhava fixamente para o rosto barbado de Barry, tentando perceber o que ele estava achando delas. Quando Carmen Lewis se atrapalhou toda, Barry pediu:

Mostre a elas como se faz, Krystal. — E o rosto da garota se ilumi­nou quando voltou para o aparelho.

Mas no fim da apresentação, quando Barry pediu que as interessadas em se candidatar a uma vaga na equipe levantassem a mão, Krystal per­maneceu de braços cruzados. Tessa viu que ela balançava a cabeça com desdém, ouvindo Nikki cochichar alguma coisa. Barry anotou os nomes das garotas interessadas e depois ergueu os olhos do papel.

E você, Krystal Weedon — afirmou ele, apontando para a menina. — Você está na lista também. E não balance essa cabeça para mim. Vou ficar muito chateado se você não estiver lá. Você tem um talento natural, e não gosto de ver talentos naturais serem desperdiçados. Krys... tal — disse em voz alta, pondo o nome dela na lista — Wee... don.

Será que Krystal pensou sobre o seu talento natural enquanto tomava banho depois da aula? Será que carregou o dia inteiro, para baixo e para cima, aquela idéia, como se tivesse recebido um cartão inesperado de Dia dos Namorados? Tessa não saberia dizer. O mais surpreendente de tudo, porém, exceto talvez para Barry, foi que ela apareceu para fazer os testes.)

Colin concordava vigorosamente com a cabeça à medida que Kay lhe mostrava as taxas de reincidência na Bellchapel.

Parminder tem que ver isso — disse ele. — Vou entregar uma cópia para ela. É, vai ser muito útil mesmo.

Sentindo-se ligeiramente enjoada, Tessa pegou um quarto biscoito.

 

Nas segundas-feiras, como Parminder sempre trabalhava até tarde e Vi­kram normalmente estava no hospital, os três filhos do casal botavam a mesa e preparavam o jantar para si mesmos. As vezes discutiam por bo­bagens; em outras riam o tempo todo. Hoje, porém, estavam tão absortos nos seus próprios pensamentos que o trabalho foi feito com uma eficiência fora do comum e quase em silêncio absoluto.

Sukhvinder não contou ao irmão nem à irmã que havia tentado ma­tar aula, nem que Krystal Weedon tinha ameaçado bater nela. Ultima­mente o seu hábito de guardar segredos estava ainda mais forte. Tinha verdadeiro pavor de fazer confidências, porque temia que elas pudessem revelar o mundo de estranheza que vivia dentro dela, o mundo em que Bola Wall parecia capaz de penetrar com uma facilidade assustadora. Ao mesmo tempo, sabia que os acontecimentos daquele dia não podiam ser escondidos indefinidamente. Tessa tinha lhe dito que pretendia ligar para Parminder.

Tenho que ligar para a sua mãe, Sukhvinder, é o que sempre faze­mos, mas vou explicar a ela por que você fez isso.

Sukhvinder quase sentiu um certo carinho por Tessa, mesmo ela sen­do a mãe de Bola Wall. Com medo da reação da sua própria mãe, uma minúscula fagulha de esperança se acendeu dentro ela, imaginando que Tessa pudesse interceder a seu favor. Será que a compreensão do desespe­ro de Sukhvinder poderia, enfim, provocar uma ruptura na desaprovação implacável da sua mãe, no seu desapontamento constante, no seu criticismo empedernido e sem fim?

Quando a porta da frente se abriu, ela ouviu a mãe falando punjabi.

Ah, não, essa maldita fazenda outra vez — rosnou Jaswant, que tinha aguçado os ouvidos para escutar.

Os Jawanda possuíam um pedaço de terra no Punjab que pertenceu aos seus antepassados e que Parminder, a filha mais velha, herdou do pai, já que ele não havia tido filhos homens. Jaswant e Sukhvinder já tinham conversado algumas vezes sobre o lugar que essa fazenda ocupava na vida da família. Elas achavam curioso, mas também divertido, que alguns dos seus parentes mais velhos vivessem na expectativa de que a família inteira fosse voltar para lá um dia. O pai de Parminder mandou dinheiro para a fazenda durante toda a sua vida. Ela estava arrendada para uns primos em segundo grau, que pareciam sempre zangados e amargurados. A família da mãe discutia com freqüência por causa da fazenda.

Vovó ficou furiosa e já está brigando outra vez — traduziu Jaswant, à medida que a voz abafada da mãe penetrava pela porta.

Parminder ensinou à primogênita alguma coisa de punjabi, e Jazz aprendeu ainda mais com os primos. Já Sukhvinder, por causa da sua dislexia tão acentuada, não foi capaz de aprender duas línguas ao mesmo tempo, e a mãe então acabou desistindo.

...Harpreet continua querendo vendê-la para a construção da es­trada...

Sukhvinder ouviu Parminder tirando os sapatos. Queria que a mãe não se aborrecesse com a fazenda, especialmente naquela noite, pois esse assunto nunca a deixava de bom humor. Quando Parminder empurrou a porta da cozinha, e o seu rosto parecia uma máscara de tanta tensão, Sukhvinder perdeu completamente a coragem.

Parminder acenou para Jaswant e Rajpal, depois apontou para Sukhvin­der e, em seguida, para uma das cadeiras da cozinha, indicando que ela devia se sentar e esperar a ligação terminar.

Jaswant e Rajpal saíram da cozinha rapidamente e foram para os seus quartos. Obedecendo ao comando silencioso da mãe, Sukhvinder ficou ali esperando, pregada à cadeira, junto à parede dos retratos, na qual sua relativa inadequação era exibida para quem quisesse ver. A ligação durou uma eternidade, até que finalmente Parminder se despediu e desligou.

Quando a mãe se virou, Sukhvinder soube de imediato, antes mesmo que qualquer palavra fosse dita, que tinha sido um engano alimentar es­peranças.

Então — disse Parminder —, Tessa ligou para falar comigo lá no trabalho. Acho que você sabe do que se trata.

Sukhvinder assentiu. A sua boca parecia cheia de bolas de algodão.

A ira de Parminder estourou como ondas numa correnteza, que iam arrastando Sukhvinder, impedindo-a de pôr os pés no chão ou de se le­vantar.

Por quê? Por quê? Você está imitando a garota de Londres outra vez?... Está tentando impressioná-la? Jazz e Raj nunca se comportaram desse jeito, nunca... Por que você faz isso? O que há de errado com você? Por acaso tem orgulho de ser preguiçosa e desleixada? Acha que é legal agir como uma delinqüente? Como você acha que me senti quando Tessa me contou? Ela ligou para o meu trabalho... Nunca fiquei tão envergo­nhada... Você só me dá desgosto, está me ouvindo? Você não tem tudo de que precisa aqui? Não ajudamos você? O que há de errado com você, Sukhvinder?

Desesperada, tentando interromper a fúria da mãe, ela mencionou o nome de Krystal Weedon...

Krystal Weedon! — gritou Parminder. — Aquela garota estúpida! Por que se importa com o que ela diz? Você disse a ela que tentei manter a droga da bisavó dela viva? Você disse isso a ela?

Eu... não...

Se vai ligar para o que os pares de Krystal Weedon dizem, então não há mais esperança para você. Talvez seja esse mesmo o seu mundo, não é, Sukhvinder? Você quer matar aula, trabalhar num café e desperdiçar todas as oportunidades de estudar que nós lhe damos? Acha que assim é mais fácil? Foi isso que você aprendeu com Krystal Weedon naquela equipe... a descer até o nível dela?

Sukhvinder pensou em Krystal e na sua gangue, impacientes para atra­vessar a rua, esperando por uma brecha no trânsito. O que podia fazer para que a sua mãe entendesse? Uma hora antes chegou a fantasiar timidamen­te sobre a possibilidade de, enfim, poder contar à mãe sobre Bola Wall...

Saia da minha frente! Vou falar com o seu pai quando ele chegar em casa... Saia daqui!

Sukhvinder subiu as escadas. Jaswant a chamou da porta do seu quarto.

O que foi essa gritaria toda?

Sukhvinder não respondeu. Foi direto para o próprio quarto, fechou a porta e se sentou na beira da cama.

O que há de errado com você, Sukhvinder?

Você só me dá desgosto.

Por acaso tem orgulho de ser preguiçosa e desleixada?

O que ela esperava? Ser abraçada calorosamente e confortada? Quan­do tinha sido abraçada e acolhida por Parminder? Havia mais conforto na lâmina afiada da gilete escondida no seu coelho de pelúcia; mas o desejo, que crescia e se tornava uma necessidade, de se cortar e de sangrar não podia ser satisfeito àquela hora, com a família acordada e o seu pai a ca­minho de casa.

O lago negro do desespero e da dor que existia em Sukhvinder e ansia­va por libertação estava em chamas, como se tivessem despejado combus­tível nas suas águas e ateado fogo.

Vamos ver como ela se sente.

Ela se levantou, deu uns poucos passos até o outro lado do quarto e se jogou bruscamente na cadeira da escrivaninha, debruçando-se sobre o teclado do computador.

Sukhvinder havia ficado quase tão interessada quanto Andrew Pri­ce quando o idiota daquele professor substituto tentou impressioná-los, dizendo que sacava tudo de computador. Ao contrário de Andrew e de outros garotos, Sukhvinder não tinha bombardeado o professor com per­guntas sobre hackers; simplesmente foi para casa em silêncio e encon­trou tudo on-line. Quase todo site moderno estava protegido contra a injeção SQL padrão, mas quando Sukhvinder ouviu a sua mãe discutin­do sobre o ataque anônimo ao site do Conselho Distrital, pensou que a segurança daquele site velho e precário devia ser mínima.

Sukhvinder sempre achou que digitar era melhor que escrever, e ler os códigos dos computadores, mais fácil do que uma longa sucessão de pala­vras. Não foi difícil encontrar um site que desse instruções precisas para a mais simples forma de injeção SQL. E então entrou no site do Conselho Distrital.

Levou apenas cinco minutos para hackear o site, e só porque da primei­ra vez ela transcreveu errado o código. Para o seu espanto, descobriu que quem quer que estivesse administrando o site não tinha removido o perfil do usuário de O_Fantasma_de_Barry_Fairbrother da base, apenas deletado o post. Seria brincadeira de criança, então, postar com o mesmo nome.

Sukhvinder levou muito mais tempo para escrever a mensagem do que para hackear o site. Tinha guardado aquela acusação secreta du­rante meses, desde a véspera do Ano-Novo, quando notou, surpresa, o rosto da mãe, às dez para a meia-noite, lá do canto da festa onde estava escondida. Digitou bem devagar. O corretor automático a ajudou com a ortografia.

Não teve medo de que Parminder fosse checar o histórico do seu com­putador. Sua mãe sabia tão pouco sobre ela e sobre o que acontecia na­quele quarto que jamais suspeitaria da filha preguiçosa, burra e desleixada.

Sukhvinder apertou o botão do mouse como se fosse um gatilho.

 

Na terça pela manhã, Krystal não levou Robbie para a escola. Em vez disso, o arrumou para o velório da avó Cath. Enquanto vestia o irmão com a calça menos surrada que ele tinha, que já estava uns bons cinco centímetros acima do seu tornozelo, tentava lhe explicar quem tinha sido a avó Cath, mas estava gastando saliva à toa. Robbie não se lembrava da avó Cath e nem sabia o que significava avó. Os únicos parentes que ele co­nhecia eram a mãe e a irmã. Apesar das insinuações e histórias que nunca eram exatamente as mesmas, Krystal sabia que Terri não tinha a menor idéia de quem era o pai dele.

Ouviu os passos da mãe na escada.

— Larga isso — disse para Robbie, que tinha pegado uma lata de cer­veja vazia debaixo da poltrona preferida de Terri. — Vem.

E saiu puxando Robbie pela mão até o corredor. Terri ainda estava com a calça do pijama e a camiseta suja com que tinha dormido, e com os pés descalços.

Ainda não se trocou? — perguntou Krystal.

Não vou, não — disse Terri, empurrando os filhos para entrar na cozinha. — Mudei de idéia.

Por quê?

Não vou — respondeu Terri, acendendo um cigarro numa das bo­cas do fogão. — Não tenho que ir merda nenhuma.

Krystal ainda estava segurando a mão de Robbie, que a puxava e se balançava.

Todo mundo vai — insistiu Krystal. — Cheryl e Shane e todo mundo.

E daí? — retrucou Terri, agressiva.

Krystal tinha medo que a mãe pulasse fora no último minuto. O velório a deixaria cara a cara com Danielle, a irmã que fingia que ela não existia, sem falar em todos os outros parentes que os haviam abandonado. Anne-Marie provavelmente estaria lá. Krystal tinha se agarrado a essa esperan­ça, como a uma tocha na escuridão, em todas as noites que chorou pela avó Cath e pelo sr. Fairbrother.

Você tem que ir — disse Krystal.

Tenho nada.

É a vó Cath — insistiu Krystal bem alto.

E daí? — retrucou Terri, novamente.

Ela fez um monte de coisas pra gente — rebateu Krystal.

Fez nada — cortou Terri.

Fez, sim — afirmou a garota, com o rosto quente e a mão agarrando a de Robbie com força.

Pra você, talvez — concordou Terri. — Não fez merda nenhuma pra mim. Se você quer ir se descabelar toda em cima da porra do caixão dela, pode ir. Eu vou ficar esperando aqui.

Pra quê? — perguntou Krystal.

É coisa minha.

A velha sombra já tão conhecida se instalou entre elas.

Obbo tá vindo aí, né?

É coisa minha — respondeu Terri, com uma dignidade patética.

Vem pro velório — disse Krystal, mais alto.

Vai você.

Vê se não usa porra nenhuma — ordenou Krystal, ainda mais alto.

Tá — disse Terri, mas se virou e ficou olhando pela vidraça suja da janela o caminho no meio da grama alta e cheia de lixo que chamavam de quintal dos fundos.

Robbie conseguiu se soltar e foi correndo para a sala de estar. Com as mãos enfiadas nos bolsos do moletom e levantando os ombros, Krys­tal decidia o que fazer. Tinha vontade de chorar só de pensar em não ir ao velório, mas o alívio de não ter que encarar aqueles olhos hostis, que encontrou algumas vezes na casa da avó, diminuía a sua tristeza. Estava zangada com Terri, mas, de alguma forma, entendia o lado dela. Você nem sabe quem é o pai, né, sua puta? Queria encontrar Anne-Marie, mas estava assustada.

Tá certo, vou ficar também.

Não precisa. Se você quer ir, vai. Não tô nem aí.

Mas como tinha certeza de que Obbo apareceria, Krystal ficou. Obbo esteve fora por mais de uma semana, por causa de algum propósito escuso. Krystal queria que ele tivesse morrido e nunca mais voltasse.

Para fazer alguma coisa, começou a arrumar a casa, fumando um dos cigarros enrolados à mão que Bola Wall tinha lhe dado. Não gostava des­ses cigarros, mas gostava de saber que era um presente dele. Estavam guar­dados naquela caixinha de jóias de plástico, junto com o relógio de Tessa.

Achou que não veria Bola nunca mais depois que eles treparam no ce­mitério, porque ele não tinha falado nada quando acabaram e mal se des­pediu ao ir embora. Mas depois disso, já haviam se encontrado no parquinho. E pelo visto ele tinha gostado mais dessa vez do que da última: não estavam chapados, e ele não fez as coisas tão depressa. Ficaram deitados um ao lado do outro, na grama, debaixo dos arbustos, fumando, e quando ela falou da morte da avó Cath, ele lhe contou que a mãe de Sukhvinder Jawanda tinha dado à sua bisavó a medicação errada ou algo parecido; não sabia muito bem o que havia acontecido.

Krystal ficou horrorizada. Então a avó Cath não precisava ter morri­do. Ainda podia estar na casinha toda arrumada da Hope Street, onde, se Krystal precisasse, encontraria o abrigo da cama confortável com lençóis limpos, da cozinha minúscula, repleta de comida e louça desparelhada, da televisãozinha no canto da sala de estar: Eu não quero ver porcaria, Krystal, desliga isso aí.

Krystal gostava de Sukhvinder, mas a mãe dela tinha matado a avó Cath. E não se deve fazer distinção entre os membros de uma tribo inimi­ga. Krystal declarou sua intenção de acabar com Sukhvinder, mas depois Tessa Wall entrou na história. Krystal não se lembrava dos detalhes do que Tessa lhe disse, mas parecia que Bola tinha entendido tudo errado, ou, pelo menos, não tinha entendido direito. Muito a contragosto, prometeu a Tessa não ir atrás de Sukhvinder, mas esse tipo de promessa só podia ser mesmo temporária no mundo em constante mudança de Krystal.

Larga isso — gritou Krystal para Robbie, que estava tentando abrir a tampa da lata de biscoitos onde Terri guardava as suas coisas.

Arrancou a lata das mãos do menino e a pegou como se estivesse segu­rando uma criatura viva, algo que fosse lutar para continuar vivendo e cuja destruição pudesse ter conseqüências terríveis. Havia uma imagem toda arranhada na tampa: uma carruagem cheia de bagagens empilhadas no teto, sendo puxada, pelo meio da neve, por quatro cavalos castanhos, com um cocheiro de cartola segurando uma cometa. Enquanto Terri fumava sentada na cozinha, Krystal levou a lata lá para cima e a escondeu no seu quarto. Robbie a seguiu.

Qué bincá no páque...

Às vezes ela o levava e o empurrava no balanço e no gira-gira.

Hoje não, Robbie.

O menino chorou até ela gritar para ele calar a boca.

Mais tarde, quando estava escuro — depois que Krystal havia feito o macarrão instantâneo de Robbie e lhe dado um banho, e quando o veló­rio já havia terminado há muito tempo —, Obbo bateu à porta da frente. Krystal o viu pela janela do quarto do irmão e tentou chegar lá embaixo primeiro, mas Terri já estava abrindo a porta.

E aí, Ter? — disse ele, ainda na soleira da porta, antes de ser con­vidado a entrar. — Me disseram que você me procurou semana passada.

Embora a irmã tivesse lhe dito para ficar no quarto, Robbie a seguiu e desceu a escada. Dava para sentir o cheiro do seu cabelo recém-lavado com xampu misturado ao cheiro de cigarro e de suor azedo que exalava de Obbo e da sua velha jaqueta de couro. Obbo já tinha tomado umas e outras, e, quando sorriu maliciosamente para ela, Krystal pôde sentir também o bafo de cerveja.

E aí, Obbo? — cumprimentou Terri, com aquele tom de voz con­ciliatório, acomodado, que Krystal não percebia em outras ocasiões, como que permitindo que aquele homem tivesse direitos naquela casa. — Onde você tava?

Bristol — respondeu ele. — Tá tudo bem, Ter?

Ela não quer nada — interrompeu Krystal.

Ele a observou, piscando por trás das lentes grossas dos óculos. Robbie estava agarrando a perna da irmã com tanta força que ela podia sentir as unhas dele enfiadas na sua pele.

Que que é isso, Ter? — gritou Obbo. — É a sua mãe?

Terri riu. Krystal o encarou, com Robbie sempre agarrado à sua coxa. E foi para ele que Obbo voltou o olhar enevoado.

E como tá o meu garoto?

Ele não é o seu garoto porra nenhuma.

Como é que você sabe? — perguntou Obbo calmamente, com um sorriso de deboche.

Vai se foder. Ela não quer nada. Diz pra ele — gritava Krystal para a mãe. — Diz pra ele que você não quer nada.

Assustada e aprisionada entre aquelas duas vontades tão mais fortes do que a dela própria, Terri disse:

Ele só veio ver...

Não veio ver nada — interrompeu Krystal. — Não veio ver porra ne­nhuma. Diz pra ele. Ela não quer nada — rosnou a garota, feroz, voltando-se para aquela cara sorridente de Obbo. — Ela tá limpa um tempão.

Verdade, Terri? — perguntou Obbo, ainda sorrindo.

É, é verdade — respondeu Krystal, já que Terri ficou muda. — Ela ainda tá na Bellchapel.

Não por muito tempo — retrucou Obbo.

Vai se foder! — exclamou Krystal, indignada.

Vão fechar ela — disse Obbo.

Vão mesmo? — indagou Terri, repentinamente em pânico. — Eles não vão fazer isso, vão?

Claro que vão — respondeu Obbo. — Tão fazendo uns cortes.

Você não sabe de nada — disse Krystal. — É mentira — acrescen­tou, voltando-se para a mãe. — Eles não avisaram nada, avisaram?

Cortes — insistiu Obbo, batendo nos bolsos cheios, à procura de cigarro.

Tão reavaliando o nosso caso — lembrou Krystal. — Você não pode usar nada. Não pode usar!

Que que é isso? — perguntou Obbo, brincando com o isqueiro, mas ninguém respondeu. Terri encarou a filha por não mais do que dois segundos. Baixou os olhos, relutante, e viu Robbie de pijama, ainda agar­rado à perna da irmã.

E, vou indo pra cama, Obbo — resmungou ela, sem olhar para ele. — A gente se vê outro dia.

Soube que a sua vó morreu — disse ele. — Cheryl veio me contar.

A dor contorceu o rosto de Terri. Ela parecia tão velha quanto a avó Cath.

É, eu vou pra cama. Vem, Robbie, vem comigo.

Robbie não quis se soltar de Krystal com Obbo ainda ali. Terri esten­deu aquela mão ossuda, que mais parecia uma garra.

E, vai, Robbie — insistiu Krystal com o menino. Dependendo do seu estado de espírito, Terri abraçava o filho como se ele fosse um ursinho de pelúcia; melhor Robbie que tomar pico. — Vai. Vai com a mamãe.

Algo na voz de Krystal tranqüilizou o menino, que deixou que Terri o levasse lá para cima.

Até mais — disse Krystal, sem olhar para Obbo, afastando-se dele bem depressa, indo na direção da cozinha. Tirou do bolso o último cigarro dado por Bola Wall e se debruçou sobre o fogão para acendê-lo. Ouviu a porta da frente se fechar e se sentiu vitoriosa. Vai se foder.

Você ficou com uma bunda bem gostosa, Krystal.

Com o susto, ela deu um pulo tão grande que chegou a esbarrar nuns pratos que estavam empilhados ali do lado, e um deles se espatifou naque­le chão imundo. Ele não tinha ido embora. Seguiu-a até a cozinha e agora estava olhando para o seu peito naquela camiseta apertada.

Vai se foder, porra — gritou ela.

Você já tá bem grandinha, hein?

Vai se foder, filho da puta.

Ouvi dizer que você dá isso tudo de graça — disse Obbo, se aproxi­mando. — Pode ganhar mais grana do que a sua mãe.

Seu filho da...

Obbo colocou uma das mãos no peito de Krystal. Ela usou toda a sua força para se livrar daquela mão, mas ele a segurou pelo pulso com a ou­tra. O cigarro que ela segurava queimou o rosto de Obbo, e ele lhe deu dois socos no ouvido. Mais pratos se espatifaram no chão, e então, enquan­to lutavam, ela escorregou e caiu, batendo com a parte de trás da cabeça. Ele montou em cima dela e começou a abaixar a sua calça.

Não, porra... Seu filho da puta... Não!

Sentia os dedos dele na sua barriga e percebeu que ele estava abrindo o zíper da própria calça... Tentou gritar, mas Obbo lhe deu uns tapas na cara... O cheiro daquele homem ficou impregnado nas suas narinas quan­do ele rosnou no seu ouvido:

Se gritar, vou cortar você.

Ele entrou nela. Estava doendo muito. Krystal ouvia os grunhidos dele e o seu próprio choro abafado. Estava até com vergonha do barulho que fazia, tão amedrontada e pequena debaixo dele.

Obbo gozou e saiu de cima dela. Mais que depressa, a garota puxou a calça para cima e ficou de pé, encarando-o. As lágrimas escorriam pelo seu rosto enquanto ele sorria com deboche.

Eu vou contar pro sr. Fairbrother — se ouviu dizer, soluçando. Não sabia de onde tinha tirado aquilo. Era a coisa mais idiota que podia ter dito.

Quem é esse merda? — perguntou Obbo, puxando o zíper e acen­dendo um cigarro, sem pressa, bloqueando a passagem. — Tá fodendo com ele também, tá, sua piranhinha?

Foi andando pelo corredor e saiu porta afora.

Krystal tremia como nunca antes na vida. Pensou que estivesse doen­te; podia sentir o cheiro dele em todo o seu corpo. A parte de trás da sua cabeça latejava. Havia uma dor dentro dela e aquela coisa úmida escorria para a sua calcinha. Foi para a sala de estar e ficou ali, de pé, tremendo, os braços envolvendo o próprio corpo. Então ficou com medo de que ele voltasse e correu até a porta da frente para trancá-la.

De volta à sala de estar, achou uma guimba de cigarro no cinzeiro e a acendeu. Desabou na poltrona de Terri, fumando, tremendo e soluçando. Ouviu passos na escada e deu um pulo. Terri entrou na sala, parecendo confusa e desconfiada.

O que você tem?

Krystal gaguejou algumas palavras.

Ele... Ele me fodeu.

O quê? — perguntou Terri.

Obbo... Ele...

Ele não ia fazer isso.

Era a mesma negação instintiva com a qual Terri encarava tudo na vida: ele não ia fazer isso, não, eu nunca, não, não usei.

Krystal voou para cima dela e a empurrou. Magra como estava, Terri caiu para trás no meio do corredor, gritando e xingando. Krystal correu para a porta que tinha acabado de trancar, atrapalhando-se toda para abri-la novamente, e saiu correndo de casa.

Já tinha andado uns vinte metros na escuridão da rua, ainda soluçando, quando pensou que Obbo podia estar observando tudo, esperando por ela ali fora. Cortou caminho, correndo pelo jardim de um vizinho, e fez um trajeto sinuoso, pelos fundos, para chegar à casa de Nikki. Durante todo esse tempo, sentia a umidade se espalhando na sua calcinha e achou que ia vomitar.

Krystal sabia que aquilo tinha sido um estupro. Era o que tinha aconte­cido com a irmã mais velha de Leanne no estacionamento de uma boate em Bristol. Sabia que algumas garotas teriam ido à polícia, ela sabia. Mas você não convida a polícia a entrar na sua casa quando a sua mãe é Terri Weedon.

Eu vou contar pro sr. Fairbrother.

Ela soluçava cada vez mais forte. Poderia ter contado para o sr. Fair­brother. Ele conheceu a realidade da vida. Um dos seus irmãos tinha ido em cana. Ele lhe contou histórias da sua adolescência. Não, não tinha sido como a dela — ninguém era tão baixo quanto ela, sabia disso —, mas, sim, como a de Nikki e a de Leanne. Eles ficaram sem dinheiro, a sua mãe comprou uma casa financiada pelo Conselho, mas não conse­guiu manter as prestações em dia. Eles tiveram que viver por um tempo num trailer emprestado por um tio.

O sr. Fairbrother tomava conta das coisas; ele resolvia as coisas. Foi à sua casa para conversar com Terri sobre o remo, porque tinha havido uma discussão, e ela estava se recusando a assinar os papéis para Krystal viajar com a equipe. E não ficou enojado ali, ou pelo menos não demonstrou ter ficado, o que dava na mesma. Terri, que não gostava de ninguém, não confiava em ninguém, chegou a dizer "Ele parece gente boa" e assinou.

Certa vez, o sr. Fairbrother lhe disse:

— Vai ser mais difícil para você do que para os outros, Krys. Foi mais difícil para mim também. Você pode fazer melhor. Não tem que seguir o mesmo caminho.

Ele estava falando de dar duro na escola e essas coisas, mas já era mui­to tarde para isso, e, de todo modo, ela achava tudo aquilo um monte de besteiras. Saber ler direito ia ajudar em que agora?

E como tá o meu garoto?

Ele não é o seu garoto porra nenhuma.

Como é que você sabe?

A irmã de Leanne tinha tomado a pílula do dia seguinte. Krystal per­guntaria a Leanne sobre essa tal pílula e ia tratar de conseguir uma. Não podia ter um filho de Obbo. Só de pensar nisso ficou com vontade de vomitar outra vez.

Vou cair fora daqui.

Chegou a pensar em Kay, mas logo descartou essa idéia: quase tão ruim quanto ir à polícia era contar a uma assistente social que Obbo entra­va e saía da sua casa, estuprando pessoas. Com certeza ela levaria Robbie embora se soubesse disso.

Uma voz clara e lúcida dentro da cabeça de Krystal estava falando com o sr. Fairbrother, o único adulto que dizia o que ela precisava ouvir, muito diferente da sra. Wall, tão bem-intencionada e tão cega, e da avó Cath, que se recusava a ouvir toda a verdade.

Vou tirar Robbie daqui. Como eu faço pra me mandar? Eu vou me mandar.

O seu único refúgio certo, a pequena casa na Hope Street, já estava sendo devorado por parentes disputando ninharias.

Quase correndo, dobrou uma esquina, onde havia um poste de luz, sempre olhando para trás para ver se Obbo, por acaso, a estava observando ou seguindo.

E, então, a resposta veio até ela, como se o sr. Fairbrother tivesse lhe mostrado o caminho.

Se ficasse grávida de Bola Wall, poderia ter a sua própria casa financia­da pelo Conselho. E poderia levar Robbie para morar com ela e o bebê, se Terri voltasse a tomar pico. E Obbo jamais entraria na sua casa, jamais. Ia pôr cadeados, correntes e fechaduras na porta, e a sua casa seria limpa, sempre limpa, como a da avó Cath.

Krystal praticamente corria pela rua escura e ia parando de soluçar aos poucos.

Os Wall provavelmente lhe dariam dinheiro. Eles eram assim. Podia imaginar a cara sem graça e preocupada de Tessa, debruçando-se sobre um berço. Krystal teria o neto deles.

Perderia Bola ficando grávida; eles sempre vão embora quando você está esperando um filho. Era o que via acontecer quase sempre em Fields.

Mas, talvez, ele pudesse se interessar; ele era muito estranho. Não que isso importasse de alguma forma. O seu interesse por ele, tirando a parte de ser essencial para o plano dar certo, tinha se reduzido a quase nada. O que ela queria era o bebê: ele era o meio para um determinado fim. Gostava de bebês. Amou Robbie desde sempre. Queria manter os dois a salvo, e juntos. Seria uma espécie de avó Cath para a sua família, melhor, mais jovem e mais amorosa.

Anne-Marie poderia visitá-los, já que Krystal não estaria mais com Ter­ri. Os seus filhos seriam primos. Uma imagem muito nítida de si mesma e de Anne-Marie se formou na cabeça da garota: estavam no portão da escola St. Thomas, em Pagford, acenando para duas garotinhas de vestidos azul-claros e meias curtas.

Como sempre, as luzes estavam acesas na casa de Nikki. Krystal come­çou a correr.

 

                           Lunáticos

5.11 Para a jurisprudência, os idiotas são considerados permanentemente incapacitados para o voto, mas as pessoas que sofrem de distúrbios mentais podem votar durante intervalos de lucidez.

             Charles Amold-Baker

             Administração dos Conselhos Locais

 

Samantha Mollison comprou os três DVDs lançados pela banda favorita de Libby. Ela os mantinha escondidos na gaveta de meias-calças, ao lado do diafragma. E já tinha uma história pronta para o caso de Miles encontrá-los: eram um presente para a filha. Algumas vezes no trabalho, quando não ha­via praticamente movimento algum, ela procurava fotos de Jake na internet. Numa dessas buscas — Jake de terno, mas sem camisa; Jake de jeans e colete branco —, descobriu que a banda ia tocar em Wembley dali a duas semanas.

Tinha uma amiga da época da faculdade que morava em West Ealing. Poderia ficar na casa dela e vender a idéia para Libby como uma chance única, uma oportunidade de ficarem juntas. Com um entusiasmo genuí­no, que já não sentia há muito tempo, Samantha conseguiu comprar dois ingressos para os melhores lugares do show. Quando chegou em casa na­quela noite, estava radiante com aquele segredo delicioso, quase como se estivesse vindo de um encontro.

Miles já estava na cozinha, ainda com o terno do trabalho e com o telefone na mão. Viu quando ela entrou, e sua expressão estava estranha, difícil de decifrar.

O que houve? — perguntou Samantha, ligeiramente na defensiva.

Não consigo falar com o papai. A droga do telefone está ocupado. Colocaram um novo post.

Samantha pareceu não compreender direito, então ele lhe explicou com impaciência:

O Fantasma de Barry Fairbrother! Outra mensagem! No site do Conselho.

Ah — disse ela, desenrolando a echarpe do pescoço. — Entendi.

É, acabei de encontrar com Betty Rossiter, chegando da rua. Ela sabia de tudo. Entrei na área de mensagens do site, mas não consegui ver. Mamãe já deve ter tirado do ar... Bem, espero que tenha feito isso mesmo. É ela quem vai estar na linha de fogo se Aluga-Ouvido procurar um advogado.

Dessa vez foi sobre Parminder Jawanda? — indagou Samantha, com um tom propositadamente indiferente. Não perguntou o que dizia o post porque estava decidida a não parecer intrometida e fofoqueira como Shirley e Maureen, e também por achar que já sabia o que tinham escrito: que Parminder era a responsável pela morte da velha Cath Weedon. Depois de um ou dois minutos, acrescentou, mostrando-se vagamente interessada: — Por que disse que a sua mãe vai estar na linha de fogo?

Ora, ela é a administradora do site, e portanto é responsável por divulgar conteúdo difamatório ou potencialmente difamatório. Não sei se ela e papai têm noção do quanto isso pode ser sério.

Você pode defender a sua mãe, ela ia adorar.

Miles não ouviu o que ela disse. Apertou a tecla de rediscagem e fran­ziu as sobrancelhas porque o celular do pai ainda estava ocupado.

Isso está começando a ficar sério — disse ele.

Você ficou bem feliz quando Simon Price foi atacado. Qual a dife­rença agora?

Se isso é uma campanha contra os membros do Conselho ou contra quem está se candidatando...

Samantha se virou para esconder o sorriso. Então, a preocupação dele não era com Shirley.

Mas por que alguém escreveria alguma coisa sobre você? — per­guntou ela, toda inocente. — Você não tem nada a esconder.

Talvez você fosse bem mais interessante se tivesse.

E aquela carta?

Que carta?

Deus do céu... Mamãe e papai disseram que receberam uma carta, uma carta anônima sobre mim. Diziam que eu não era adequado para ocupar o lugar de Barry Fairbrother.

Samantha abriu o congelador e ficou olhando para aquelas comidas pouco apetitosas ali dentro, consciente de que Miles não podia mais ver o seu rosto com a porta aberta.

Você não está achando que alguém tem alguma coisa contra você, está? — perguntou ela.

Não... Mas sou advogado, não sou? Deve ter gente por aí com raiva de mim. Não acho que essa coisa de carta anônima... Quero dizer, até agora o alvo tem sido apenas o outro lado, mas pode haver represálias... Não estou gostando nada do rumo que as coisas estão tomando.

Bem, política é assim mesmo, Miles — disse Samantha, nitidamen­te se divertindo. — É um negócio sujo.

Miles foi bufando para a sala, mas ela nem ligou. Seus pensamentos estavam voltados novamente para aquele rosto esculpido, aquelas sobran­celhas bem-desenhadas, aqueles músculos abdominais rígidos e defini­dos. Agora já tinha aprendido a maioria das músicas. Estava pensando em comprar uma camiseta da banda para usar — e uma para Libby também. Jake dançaria a apenas alguns metros dela. Ia se divertir como não fazia há anos.

Nesse meio-tempo, Howard andava de um lado para o outro, na delicatéssen fechada, com o celular grudado no ouvido. As persianas estavam abaixadas, e as luzes, acesas, e do outro lado do salão, depois do vão for­mado pelo arco aberto na parede, Shirley e Maureen se ocupavam com os preparativos para a inauguração do café, que aconteceria em breve. As duas desempacotavam louças e copos, falando em voz baixa, mas anima­das, e ouvindo Howard murmurar ao telefone monossilabicamente.

Sim... Hum, hum... Claro...

...gritando comigo — disse Shirley. — Gritando e xingando: "Tire essa maldita mensagem imediatamente." E eu respondi: "Vou tirar, dra. Jawanda, mas agradeceria se não dissesse palavrões."

Se ela tivesse falado comigo assim, eu teria deixado lá por mais al­gumas horas — disse Maureen.

Shirley sorriu. Foi exatamente o que ela tinha feito. Resolveu ir tomar uma xícara de chá, deixando o post anônimo sobre Parminder no site por mais uns quarenta e cinco minutos. Maureen e ela já tinham esmiuçado cada detalhe daquele post até deixarem à mostra todas as suas nuances. Havia muitas possibilidades para discussões posteriores, mas a fome ime­diata estava saciada. Shirley, no entanto, já pensava com voracidade no que iria acontecer, na reação de Parminder depois de ter o seu segredo revelado.

Então não pode ter sido ela que colocou o post sobre Simon Price — observou Maureen.

Não, obviamente não foi ela — concordou Shirley, enquanto enxu­gava a louça azul e branca que escolhera, deixando de lado a rosa, que era a preferida de Maureen. Às vezes, embora não diretamente envolvida nos negócios, Shirley gostava de lembrar a Maureen que ela ainda tinha uma influência imensa ali, uma vez que era a esposa de Howard.

Claro... — dizia ele ao telefone. — Mas não seria melhor que...? Hã, hã...

E quem você acha que fez isso? — perguntou Maureen.

Sinceramente, não faço a menor idéia — respondeu Shirley com uma voz extremamente educada, como quem diz que não se rebaixa a esse tipo de informação ou suspeita.

Alguém que conhece os Price e os Jawanda — concluiu Maureen.

Obviamente — disse Shirley.

Finalmente Howard desligou.

Aubrey concorda — disse para as duas, entrando no café com aque­le seu andar característico. Estava com a edição do dia da Gazeta de Yarvil e Adjacências nas mãos. — Muito fraco. Realmente muito fraco.

As duas mulheres levaram uns segundos para lembrar que deviam pa­recer interessadas no artigo póstumo de Barry Fairbrother, publicado no jornal local. O Fantasma de Barry era tão mais interessante...

Ah, é mesmo. Achei o artigo muito sem graça assim que o li — disse Shirley, se apressando em entrar no assunto.

A entrevista com Krystal Weedon foi mais engraçada — debochou Maureen. — Tentando nos fazer acreditar que ela tem algum interesse por arte. Só se o que ela chama de arte for rabiscar as carteiras da escola.

Howard deu uma gargalhada. Como desculpa para virar as costas, Shirley pegou do balcão a injeção de adrenalina de Andrew Price que Ruth tinha deixado na delicatéssen naquela manhã, para o caso de uma emergência. Shirley havia procurado se informar sobre isso no seu site de medicina favorito, e se sentia completamente apta a explicar como a adre­nalina agia no corpo. Como ninguém perguntou nada, ela pôs o pequeno tubo branco no armário e fechou a porta, fazendo tanto barulho quanto pôde para interromper algum outro dito espirituoso de Maureen.

O telefone tocou na mão imensa de Howard.

Alô? Ah, Miles, sei... Já sabemos sobre o post. Mamãe o viu esta manhã — disse ele, rindo. — Já, já tirou... Não sei... Acho que foi postado ontem... Ah, eu não diria isso. Há anos que todo mundo sabia dessa histó­ria de Aluga-Ouvido.

Mas o bom humor de Howard foi murchando à medida que Miles falava. Depois de um tempo, ele disse:

Sim, eu entendo... Claro. Não, não tinha pensado nisso por esse... Talvez seja melhor chamar alguém para dar uma olhada na segurança...

O som de um carro lá fora na praça, ao anoitecer, passou praticamente despercebido pelos três dentro da delicatéssen, mas o motorista viu a enor­me sombra de Howard Mollison se mexendo por trás das persianas cor de creme. Gavin pisava fundo, ansioso para ver Mary. A voz dela estava desesperada no telefone.

Quem está fazendo isso? Quem pode ser? Quem me odeia tanto assim?

Ninguém, Mary — disse ele. — Quem poderia odiar você? Não saia daí. Estou indo o mais rápido que posso.

Ele estacionou do lado de fora da casa, bateu a porta do carro com força e correu pelo caminho da entrada. Ela abriu a porta da frente antes que ele batesse. Mais uma vez os seus olhos estavam inchados, cheios de lágrimas, e ela estava usando um robe de chenile que ia até o chão e fazia com que parecesse mais baixa. Não era nem um pouco sedutor; era, na verdade, a antítese perfeita do quimono vermelho de Kay, mas a sua simplicidade, o seu desalinho indicavam que eles haviam alcançado um outro nível de intimidade.

Os quatro filhos de Mary estavam na sala. Ela, então, com um gesto, o chamou para a cozinha.

Eles sabem? — perguntou Gavin.

Só Fergus. Alguém na escola contou a ele. E pedi que não comen­tasse nada com os outros. Sinceramente, Gavin... estou chegando ao meu limite... O rancor...

Não é verdade — disse Gavin, e então a curiosidade suplantou o que havia de melhor dentro dele —, ou é?

Não! — exclamou ela, ultrajada. — Quer dizer... Não sei... Não a conheço... Mas fazê-lo falar desse jeito... Pôr palavras na sua boca... Eles não ligam para o que isso significa para mim?

E caiu no choro novamente. Gavin sentiu que não devia abraçá-la en­quanto estivesse vestindo aquele robe, e ficou feliz de não ter feito isso, pois Fergus entrou na cozinha logo em seguida.

Oi, Gav.

O garoto parecia cansado, mais velho do que era, com os seus dezoito anos. Gavin o viu abraçar Mary, e ela recostou a cabeça no ombro do fi­lho, esfregando os olhos na manga do robe, como uma criança.

Não acho que seja a mesma pessoa — observou Fergus, sem fazer qualquer preâmbulo. — Dei uma lida na mensagem de novo. O estilo é completamente diferente.

Ele tinha salvado a tal mensagem no celular e começou a lê-la em voz alta:

A conselheira dra. Parminder Jawanda, que se diz tão devotada a cuidar dos pobres e carentes da região, teve sempre um motivo secreto para as suas boas ações. Ela sempre foi...

Fergus, não — disse Mary, deixando-se cair numa das cadeiras da mesa da cozinha. — Não agüento isso. Juro que não consigo. E ainda por cima o artigo dele saiu no jornal de hoje...

Ela tapou o rosto com as mãos e recomeçou a chorar silenciosamen­te. Gavin, então, viu a Gazeta de Yarvil e Adjacências em cima da mesa. Nunca tinha lido esse jornal. Sem perguntar ou oferecer, foi até o armário e lhe preparou um drinque.

Obrigada, Gavin — disse ela, pensativa, quando ele lhe deu o copo.

Deve ter sido Howard Mollison — sugeriu, sentando-se ao lado dela. — Por causa do que Barry disse sobre ele.

Não acredito — retrucou Mary, enxugando os olhos com a mão. — É muito cruel. Ele nunca fez nada parecido quando Barry estava — e deu mais um soluço — vivo.

Voltando-se para o filho, pediu:

Jogue esse jornal fora, Fergus.

O garoto parecia confuso e magoado.

Mas e o artigo do...

Jogue fora! — insistiu Mary, com uma ponta de histeria na voz. — Posso ler no computador, se eu quiser. Foi a última coisa que ele fez no dia do nosso aniversário de casamento.

Fergus pegou o jornal em cima da mesa e ficou parado por um instan­te, olhando a mãe, que enterrou o rosto nas mãos de novo. Então, com um olhar rápido para Gavin, o rapaz saiu da cozinha, levando a Gazeta.

Depois de alguns minutos, quando Gavin achou que Fergus não iria mais voltar, pôs a mão no braço de Mary, acariciando-o para consolá-la. Ficaram ali sentados por um tempo, e ele se sentia muito mais feliz sem o jornal na mesa.

 

Parminder não iria trabalhar na manhã seguinte, mas tinha uma reunião em Yarvil. Assim que os filhos saíram para a escola, começou a organizar as coisas metodicamente, para ter certeza de que levaria tudo de que ia precisar. Quando o telefone tocou, ela levou um susto tão grande que deixou a bolsa cair no chão.

Alô? — atendeu, com um grito agudo. Do outro lado da linha, Tessa ficou preocupada.

Minda, sou eu... Você está bem?

Estou... estou... O toque do telefone me assustou — disse Parmin­der, recolhendo chaves, papéis, moedas e tampões pelo chão da cozinha. — O que foi?

Nada — disse Tessa. — Só estou ligando para conversar e saber como você está.

O assunto do post anônimo pairava entre elas como um monstro zombeteiro, se balançando na linha do telefone. Parminder quase não tinha deixado a amiga falar sobre isso durante a ligação da véspera. Ficou gri­tando sem parar:

É mentira, uma mentira imunda, e não venha me dizer que Howard Mollison não está por trás disso!

Tessa não ousou insistir naquele assunto.

Não posso falar agora — disse Parminder. — Tenho uma reunião em Yarvil. A revisão do caso de um menininho com classificação de po­tencial situação de risco.

Ah, tudo bem. Desculpe. Podemos nos falar mais tarde, então?

Claro — respondeu a médica. — Ótimo. Até mais tarde.

Parminder pegou as coisas que tinham caído da bolsa e saiu correndo de casa, voltando apressada do portão do jardim para ver se tinha trancado a porta direito.

Enquanto dirigia, várias vezes se deu conta de que não tinha noção do que se passara no último quilômetro, e dizia a si mesma, com raiva, para prestar atenção. Mas as palavras maliciosas do post anônimo voltavam a toda hora na sua cabeça. Ela já sabia o texto de cor.

A conselheira dra. Parminder Jawanda, que se diz tão devotada a cuidar dos pobres e carentes da região, teve sempre um motivo secreto para as suas boas ações. Ela sempre foi apaixonada por mim, e mal conseguia esconder isso cada vez que me olhava. Em todas as reuniões do Con­selho, sempre votou de acordo com o que eu lhe dissesse. Agora que estou morto, ela será inútil como conselheira, porque perdeu o cérebro que a comandava.

Tinha visto a mensagem na manhã do dia anterior, quando abriu o site do Conselho para checar a ata da última reunião. O choque foi quase físi­co: a sua respiração se acelerou e ela ficou ofegante, como nos momentos mais excruciantes do trabalho de parto, quando tentava se abstrair da dor, se libertando da agonia daquele momento.

Agora todo mundo saberia. Não havia onde se esconder. Os pensamentos mais estranhos passavam pela sua cabeça. Por exem­plo, o que a sua avó diria se soubesse que ela estava sendo acusada, em fórum público, de amar o marido de outra mulher, um gora, um homem branco, além de tudo. Quase conseguia ver a sua bebe cobrindo o rosto com uma das dobras do sári, sacudindo a cabeça e balançando o corpo para a frente e para trás, como fazia toda vez que um golpe duro atingia a família.

Alguns maridos iam querer saber se isso é verdade — tinha lhe dito Vikram na noite passada, e ela notou que havia uma contração diferente no seu sorriso sarcástico.

É claro que não é verdade — respondeu, com uma das mãos tre­mendo sobre a boca. — Como você pode me perguntar uma coisa dessas? É claro que não é verdade. Você o conhecia. Ele era meu amigo... Apenas um amigo!

Estava passando pela Bellchapel. Como é que tinha chegado até ali sem perceber? Dirigia de maneira perigosa, porque não estava prestando a mínima atenção.

Lembrou-se da noite em que ela e Vikram foram a um restaurante, quase vinte anos atrás, a noite em que concordaram em se casar. Ela lhe contou sobre o rebuliço que a família tinha feito quando Stephen Hoyle a levou em casa, e ele também achou que aquilo não tinha cabimento algum. Naquela época, ele tinha entendido. Mas não entendia quando era Howard Mollison que a acusava, e não os seus parentes tacanhos. Apa­rentemente, não percebia que goras podiam ser tacanhos, mentirosos e maldosos...

Parminder passou da entrada do retorno. Tinha de se concentrar, tinha de prestar atenção.

Estou atrasada? — perguntou, de longe, correndo pelo estaciona­mento, para se encontrar com Kay Bawden. Tinha visto a assistente social apenas uma vez na vida, quando ela foi ao seu consultório pegar uma receita de pílula anticoncepcional.

De jeito nenhum — disse Kay. — Estou esperando para ir com você até a sala de reunião porque lá dentro é um verdadeiro labirinto.

O Departamento de Assistência Social de Yarvil ficava num prédio de escritórios horroroso da década de 1970. Enquanto subiam no elevador, Parminder ficou se perguntando se Kay sabia sobre o post anônimo no site do Conselho, ou sobre as acusações feitas contra ela pela família de Catherine Weedon. Imaginou a porta do elevador se abrindo e uma fila de pessoas de toga esperando para acusá-la e condená-la. E se a reavaliação do caso de Robbie Weedon fosse apenas uma armadilha, e ela estivesse indo para o seu próprio julgamento...?

Kay a conduziu pelo corredor da instituição, deserto e em péssimo estado, até a sala de reunião. Três outras mulheres já estavam sentadas lá e sorriram para Parminder.

Essa é Nina, que trabalha com a mãe de Robbie na Bellchapel — disse Kay, sentando-se com as costas voltadas para as janelas com vene­zianas. — Essa é minha supervisora, Gillian, e essa é Louise Harper, que dirige a Pré-Escola Anchor Road. Dra. Parminder Jawanda, a médica de Robbie — acrescentou Kay.

Parminder aceitou um café. As outras quatro mulheres começaram a conversar sem a incluir.

(A conselheira dra. Parminder Jawanda, que se diz tão devotada a cuidar dos pobres e carentes da região...

Que se diz tão devotada. Howard Mollison, seu desgraçado. Ele sem­pre a achara uma hipócrita; Barry tinha lhe dito isso.

Ele pensa que, só porque vim de Fields, quero que Pagford seja ocupada pelos yarvilianos. Mas você, que é de classe média alta, ele acha que não tem o direito de estar do lado de Fields. Acha que você é uma hipócrita ou gosta de fazer confusão só para se divertir.)

...entender por que a família tem um médico de Pagford? — per­guntou uma das três assistentes sociais desconhecidas, cujo nome Parmin­der já tinha esquecido.

Muitas famílias em Fields têm registro de saúde em Pagford — disse Parminder imediatamente. — Mas acho que houve algum problema en­tre os Weedon e o médico...

É, eles foram expulsos da clínica de Cantermill — disse Kay, que tinha à sua frente uma pilha de papéis maior do que qualquer outra ali.

Terri atacou uma enfermeira. E então eles foram mandados para você. Há quanto tempo?

Quase cinco anos — respondeu Parminder, que tinha repassado todos os detalhes do caso na clínica.

(Ela tinha visto Howard na igreja, no velório de Barry, fingindo que estava rezando, com as mãos gordas e grandes postas diante do peito, e os Fawley ajoelhados ao seu lado. Parminder sabia que os cristãos supostamente acreditavam nisso. Ama ao teu próximo como a ti mes­mo... Se Howard fosse honesto, ele se viraria para o lado e rezaria para Aubrey...

Ela sempre foi apaixonada por mim, e mal conseguia esconder isso, cada vez que me olhava...

Será que não conseguia mesmo?)

...a última vez que você o viu, Parminder? — perguntou Kay.

Quando a irmã dele o levou à clínica por causa de uma infecção de ouvido — disse a médica. — Há uns dois meses.

E como estava a sua condição física geral na época? — perguntou uma das outras mulheres.

De uma maneira geral, ele estava bem — respondeu Parminder, retirando da bolsa a cópia de registros. — Eu o examinei cuidadosamente, porque... bem, porque conheço o histórico da família. Ele estava com peso adequado, embora eu duvide que a sua dieta seja saudável. Não tinha piolhos nem lêndeas ou algo do gênero. Estava um pouco assado, e lem­bro que a irmã disse que às vezes ele ainda fazia xixi na calça.

Elas põem fralda nele de vez em quando — disse Kay.

Mas você não teria maiores preocupações com relação à saúde dele? - indagou a mulher que tinha feito a primeira pergunta a Parminder.

Não havia nenhum sinal de maus-tratos — disse ela. — Tirei a roupa dele e examinei o seu corpo todo com bastante atenção. Não havia hematomas ou qualquer outro tipo de machucado.

Não há nenhum homem na casa — interveio Kay.

E a infecção no ouvido? — perguntou a supervisora.

Foi uma infecção bacteriana bastante comum, que provavelmente se aproveitou de uma virose. Nada de estranho nisso. Típico em crianças da idade dele.

Então, de um modo geral...

Já vi crianças em situações bem piores — acrescentou Parminder.

Você disse que foi a irmã que o levou à clínica e não a mãe? Você também é médica de Terri?

Acho que não vejo Terri lá na clínica há uns cinco anos — disse Parminder, e a supervisora se voltou para Nina.

Como ela está indo com a metadona?

(Ela sempre foi apaixonada por mim...

Talvez o Fantasma seja Shirley ou Maureen, e não Howard... Era mais o feitio delas ficar prestando atenção em todos os detalhes, quando ela estava ao lado de Barry, querendo captar alguma coisa com as suas mentes sujas de mulher velha..., pensou Parminder.)

...até agora por mais tempo no programa — disse Nina. — Ela tem falado muito na reavaliação do caso. Tenho a impressão de que sabe que está tendo a sua última chance. E ela não quer perder Robbie. Disse isso algumas vezes. Acho que você conseguiu que ela finalmente entendesse a situação, Kay. Percebo que ela está assumindo mais responsabilidades agora, pela primeira vez desde que a conheço.

Obrigada, mas não quero ficar muito entusiasmada. A situação ainda é bastante precária — disse Kay. Aquelas palavras cautelosas, po­rém, contrastavam com o leve e irrepreensível sorriso de satisfação em seu rosto. — E como vão as coisas na escola, Louise?

Bom, ele voltou — disse a quarta assistente social. — Há três sema­nas que não falta nem um dia sequer, o que é uma mudança e tanto. A irmã adolescente é que vai levá-lo. As roupas são pequenas demais para ele, e quase sempre sujas. Mas ele fala sobre a hora do banho e das refei­ções em casa.

E o comportamento?

Ele está atrasado no desenvolvimento. Sua linguagem é bem pobre, e ele não gosta de homens. Quando algum pai aparece na escola, ele não chega perto. Fica rodeando as professoras e ajudantes, e parece muito an­sioso. E uma ou duas vezes — acrescentou, virando uma página das suas anotações — ele fez com as menininhas menores ou perto delas gestos que imitavam nitidamente o ato sexual.

Seja qual for a nossa decisão, acho que ele não deve ser retirado da classificação de potencial situação de risco — disse Kay, e houve um murmúrio de aprovação na sala.

Parece que tudo depende de Terri permanecer no programa ou não — disse a supervisora, voltando-se para Nina — e de ficar longe das drogas.

É isso mesmo, com toda a certeza — concordou Kay. — Mas estou preocupada também com o fato de que, mesmo que fique sem usar he­roína, ela não seja uma mãe de verdade para Robbie. Parece que Krystal é que cuida dele, e ela tem dezesseis anos e um monte de problemas também.

(Parminder se lembrou do que ela disse para Sukhvinder duas noites atrás.

Krystal Weedon! Aquela garota estúpida! Foi isso que você aprendeu com a Krystal Weedon naquela equipe... a descer até o nível dela?

Barry gostava de Krystal. Via nela qualidades invisíveis aos olhos das outras pessoas.

Uma vez, já há um certo tempo, Parminder contou a Barry a história de Bhai Kanhaiya, o herói sique que cuidava das necessidades dos feridos em combate, fossem eles amigos ou inimigos. Quando lhe perguntaram por que ele ajudava a todos indiscriminadamente, Bhai Kanhaiya respon­deu que a luz de Deus brilha em todas as almas e que, por isso, ele não podia fazer distinção entre os homens.

A luz de Deus brilha em todas as almas.

Ela tinha chamado Krystal Weedon de estúpida e dito que ela era de um nível mais baixo.

Barry nunca teria dito isso.

Sentia-se envergonhada.)

...quando a bisavó dava a eles algum suporte em termos de cuidado, mas...

Ela morreu — disse Parminder, se apressando em dizer isso antes que alguém o fizesse. — Enfisema e AVC.

Isso mesmo — concordou Kay, ainda olhando para as próprias ano­tações. — Então voltamos a Terri. Ela esteve numa instituição quando era criança. Terri freqüenta os grupos de orientação para pais?

Já lhe oferecemos, mas ela não tinha nenhuma condição de fre­qüentar um grupo — explicou a representante da escola.

Se ela concordasse em participar de um grupo e o freqüentasse seriamente, seria um grande passo — observou Kay.

Se fecharmos — disse Nina, que trabalhava na Bellchapel, se diri­gindo a Parminder com um suspiro —, acho que ela vai ter que ir à sua clínica para receber a metadona.

Tenho medo que ela não vá — interrompeu Kay, antes que Parmin­der pudesse responder.

O que você quer dizer com isso? — perguntou a médica, zangada.

Todas as outras olharam para ela.

Apenas que pegar ônibus e se lembrar de compromissos não são o forte de Terri — disse Kay. — Para ir até a Bellchapel ela precisa apenas subir a rua.

Ah — disse Parminder, mortificada. — Claro. Me desculpe. Claro, acho que você tem toda a razão.

(Pensou que Kay estivesse se referindo à acusação contra ela por causa da morte de Catherine Weedon, que achasse que Terri Weedon não con­fiaria nela por causa disso.

Concentre-se no que elas estão dizendo. O que há de errado com você?)

Então, resumindo — propôs a supervisora, olhando para as suas pró­prias anotações. — Temos aqui um caso de negligência com intervalos de cuidados adequados. — Ela suspirou, mas havia mais exasperação do que tristeza nesse gesto. — A crise foi controlada. Terri não está mais se drogan­do, Robbie voltou para a escola, onde podemos ficar de olho nele, e não há nenhuma preocupação imediata quanto à sua segurança. Como disse Kay, ele deve permanecer na classificação de potencial situação de risco... E acho realmente que devemos marcar outra reunião sobre o caso daqui a um mês...

A reunião demorou mais uns quarenta minutos.

Depois Kay acompanhou Parminder até o estacionamento.

Foi ótimo você ter vindo pessoalmente. A maioria dos médicos só envia o relatório.

Eu tinha a manhã de folga — disse Parminder. A explicação para a sua presença na reunião era bem simples: odiava ficar sentada em casa sem ter o que fazer. Mas Kay achou que ela estava esperando mais elogios e não se fez de rogada.

Quando chegaram ao carro da médica, Kay lhe disse:

Você é membro do Conselho, não é? Colin lhe deu as estatísticas sobre Bellchapel que passei para ele?

— Deu, sim — respondeu Parminder. — Seria muito bom se pudés­semos conversar a respeito disso qualquer hora dessas. O assunto está na pauta da próxima reunião do Conselho.

Mas quando Kay foi embora, depois de lhe dar o seu número de tele­fone e lhe fazer mais alguns sinceros agradecimentos, Parminder voltou a pensar em Barry, no Fantasma e nos Mollison. Estava passando por Fields quando aquela idéia simples, que tanto tentou encobrir e abafar, conse­guiu finalmente romper a barreira das suas defesas.

Talvez eu o tenha amado realmente.

 

Andrew passou horas tentando decidir que roupa usar no seu primeiro dia de trabalho no Copper Kettle. Acabou escolhendo mesmo uma das roupas que estavam no encosto da cadeira no seu quarto. Uma espinha enorme tinha aparecido justamente hoje, com uma ponta de pus bri­lhante, no lado esquerdo do seu rosto. Andrew chegou ao cúmulo de tentar disfarçá-la com a base de Ruth, que pegou escondido da gaveta da penteadeira da mãe. Estava na cozinha na noite de sexta, pensando em Gaia e nas sete horas que passaria junto dela e que ainda iam demorar para chegar, quando o seu pai voltou do trabalho num estado que ele jamais tinha visto. Simon parecia assustado, quase desorientado.

Onde está a sua mãe?

Ruth estava vindo da despensa, toda animada.

Oi, Docinho de Coco. Como... O que houve?

Tive que pedir demissão.

Ruth pôs as mãos no rosto, horrorizada, depois correu para o marido e passou os braços pelo seu pescoço, abraçando-o.

Por quê? — sussurrou ela.

Aquela mensagem — disse Simon. — Na porra do site. Eles fizeram Jim e Tommy se demitirem também. Era pedir demissão ou justa causa. Um acordo de merda. Eles não vão me pagar nem o que deram a Brian Grant.

Andrew ficou absolutamente imóvel, petrificando-se devagar como uma estátua de culpa.

Merda — disse Simon, no ombro de Ruth.

Você vai arrumar outra coisa — sussurrou ela novamente.

Não aqui por perto — retrucou o marido.

Ele se sentou numa das cadeiras da cozinha, ainda de casaco, e ficou olhando em volta, aparentemente muito aturdido para falar qualquer coi­sa. Ruth ficava dando voltas ao seu redor, consternada, carinhosa e à beira das lágrimas. Andrew ficou contente de detectar naquele olhar catatônico de Simon traços do seu costumeiro exagero teatral. Isso o fez se sentir um pouco menos culpado. Simon continuava sentado sem dizer uma palavra sequer.

O jantar foi tenso. Paul, ao saber das novidades, ficou aterrorizado, porque o pai podia acusá-lo de ter causado tudo isso. No início da refeição, Simon agia como um mártir cristão, ferido, mas digno diante da persegui­ção implacável. Até que...

Vou pagar alguém para acertar aquele gordo filho da puta pelas costas — explodiu, enquanto engolia uma colherada do crumble de maçã, e a família entendeu que ele estava falando de Howard Mollison.

Sabe, Si, colocaram outra mensagem no site do Conselho — disse Ruth, ofegante. — Não foi apenas com você. Shir... Me contaram lá no trabalho. A mesma pessoa... o Fantasma de Barry Fairbrother... colocou algo terrível sobre a dra. Jawanda. Então Shirley e Howard chamaram alguém para dar uma olhada no site, e a pessoa descobriu que seja lá quem for que tenha escrito as mensagens estava usando o login de Barry Fairbrother. Então, para dar mais segurança, eles o removeram... da base de dados ou coisa que o valha...

E isso vai trazer a porra do meu emprego de volta?

Ruth não falou nada por alguns minutos.

Andrew estava nervoso com o que a sua mãe tinha acabado de contar. Era preocupante que O_Fantasma_de_Barry_Fairbrother estivesse sendo investigado, e assustador que outra pessoa tivesse seguido o seu exemplo.

Quem mais teria a idéia de usar o login de Barry Fairbrother, a não ser Bola? Mas por que Bola atacaria a dra. Jawanda? Ou era apenas mais uma maneira de implicar com Sukhvinder? Andrew não estava gostando nada disso...

Qual é o problema? — rosnou Simon do outro lado da mesa.

Nada... — murmurou Andrew, mas então decidiu acrescentar: — É que estou chocado... É... Por você ter perdido o emprego...

Ah, você está chocado, é? — vociferou Simon, e Paul deixou cair a colher, lambuzando-se todo de sorvete. — (Limpe isso, Paulinha, sua bichinha!) Esse é o mundo real, Cara de Pizza — gritou para Andrew. — Tem filhos da puta por toda a parte querendo derrubar a gente. Então você — e apontou para o filho mais velho —, trate de conseguir algum podre de Mollison, ou não precisa se preocupar em voltar para casa amanhã!

Si...

Simon empurrou a cadeira para trás, jogou longe a colher, que caiu no chão com estardalhaço, e saiu da cozinha, batendo a porta atrás de si. Andrew esperou pelo inevitável e não se decepcionou.

Foi um choque terrível para ele — sussurrou Ruth para os filhos, tremendo. — Depois de todos esses anos de dedicação à empresa... E ele está preocupado, porque não sabe como vai cuidar de nós...

Quando o despertador tocou às seis e meia da manhã seguinte, Andrew o desligou com um tapa e literalmente pulou da cama. Sentindo-se como se fosse Natal, ele se lavou e se vestiu apressadamente, mas depois gastou quarenta minutos cuidando do cabelo e do rosto, espalhando pequenas porções de base por cima das espinhas mais visíveis.

Ficou esperando que Simon estivesse no corredor quando passou na frente da porta do quarto dos pais, mas não havia ninguém ali, e, depois de engolir o café da manhã, saiu da garagem, pedalando a bicicleta de corrida de Simon, e desceu a colina em direção a Pagford.

Era uma manhã enevoada, o que prometia um belo dia de sol mais tarde. As persianas da delicatéssen ainda estavam abaixadas, mas a porta se abriu quando ele a empurrou, fazendo soar uma campainha.

Por aí não — gritou Howard, se arrastando na direção dele. — Você entra pelos fundos. E pode botar a bicicleta perto das lixeiras. Tire ela aí da frente.

Para chegar ao pequeno pátio de pedra, frio e úmido, nos fundos da de­licatéssen, passava-se por um beco estreito. O pátio era cercado por muros altos, e havia ali umas lixeiras industriais de metal e um alçapão que se abria para uma escada bem íngreme que levava ao porão.

Você pode prendê-la aí em qualquer lugar, desde que não atrapalhe a passagem — disse Howard, que apareceu na porta dos fundos, respiran­do com dificuldade e com o rosto todo suado. Enquanto Andrew lutava tentando fechar o cadeado da corrente, Howard enxugou a testa com o avental. — Certo, vamos começar pelo porão — disse ele, apontando para o alçapão, quando Andrew terminou de prender a bicicleta. — Desça e dê uma olhada lá embaixo.

Ele se debruçou sobre a abertura enquanto Andrew descia os degraus. Havia muitos anos Howard já não conseguia descer ao seu próprio porão. Maureen geralmente cambaleava escada abaixo e acima algumas vezes por semana. Mas agora que as mercadorias se acumulavam para a abertura do café, pernas mais jovens tinham se tornado indispensáveis.

Dê uma boa olhada em volta — gritou ele, quando já não podia mais ver Andrew. — Está vendo onde guardamos os bolos e a pâtisserie? Os grandes sacos de grãos de café e as caixas de chá? E, no canto, está vendo o papel higiênico e os sacos de lixo?

Estou vendo, sim — respondeu Andrew, e a sua voz ecoou lá das profundezas.

Você pode me chamar de sr. Mollison — disse Howard, com um tom levemente mordaz na voz rouca.

Lá embaixo, no porão, Andrew se perguntava se devia começar a fazer isso imediatamente.

Ok... sr. Mollison.

Soou meio debochado, e ele se apressou em tentar desfazer essa im­pressão com uma pergunta interessada.

O que tem dentro desses armários grandes?

Dê uma olhada — disse Howard, impaciente. — É para isso que está aí. Para saber onde deve guardar as coisas e onde deve ir buscá-las.

Howard ouviu os sons abafados de Andrew abrindo as portas pesadas do armário, e torceu para que o garoto não fosse muito idiota e não preci­sasse de muita orientação. A sua asma estava particularmente ruim hoje, o nível de pólen no ar devia estar bastante alto, e além disso havia todo o trabalho extra, a excitação e os pequenos aborrecimentos com a inaugura­ção do café. Estava suando tanto que talvez tivesse que ligar para Shirley lhe pedindo que trouxesse uma camisa limpa antes da abertura da loja.

O furgão chegou — gritou Howard, quando ouviu o barulho do motor do outro lado do beco. — Suba aqui. Você vai carregar as coisas até o porão e guardá-las nos lugares certos, ok? E me traga cinco litros de leite para o café, entendeu?

Entendi... sr. Mollison — disse Andrew lá de baixo.

Howard foi voltando lentamente para pegar a bombinha que tinha dei­xado no bolso do casaco pendurado na sala dos funcionários, atrás do bal­cão da delicatéssen. Depois de usá-la, sentiu-se muito melhor. Enxugando o rosto com o avental outra vez, sentou-se numa das cadeiras que rangiam para descansar um pouco.

Desde que foi ver a dra. Jawanda por causa da ferida na pele, Howard pensou várias vezes no que ela tinha falado sobre o seu peso: que era a origem de todos os seus problemas de saúde.

Obviamente, uma tolice. Vejam o garoto dos Hubbard: um varapau, com aquela asma violenta. Howard sempre tinha sido grande, desde que se entendia por gente. Nas pouquíssimas fotografias em que aparecia com o pai, que abandonou a família quando Howard tinha uns quatro, cinco anos, ele era apenas cheinho. Depois que o pai foi embora, a mãe pôs Howard sentado na cabeceira da mesa, entre ela e a avó, e ficava chateada se ele não repetisse o prato. Aos poucos, ele foi crescendo para preencher o espaço entre as duas mulheres. Aos doze anos, já pesava tanto quanto o pai que os tinha deixado. Howard então passou a associar um apetite voraz à masculinidade. O corpanzil era uma das suas características marcantes. E fora construído, com prazer, pelas mulheres que o amavam. Pensou que era típico de Aluga-Ouvido, aquela desmancha-prazeres castradora, querer que ele perdesse peso.

Mas, às vezes, nos momentos de fraqueza, quando ficava difícil respirar ou andar, Howard sentia medo. Era muito fácil para Shirley fingir que o marido nunca tinha estado em perigo, mas ele se lembrava das longas noites no hospital depois da cirurgia de ponte de safena, quando não con­seguia dormir com medo de que o seu coração vacilasse e parasse. Toda vez que via Vikram Jawanda, lembrava-se de que aqueles dedos escuros e longos tinham tocado o coração que batia no seu peito aberto. A cordia­lidade com que envolvia cada um desses encontros era a sua maneira de afastar o terror instintivo e primitivo. Tinham lhe dito no hospital, depois da cirurgia, que ele precisava perder um pouco de peso, mas já tinha ema­grecido naturalmente treze quilos por causa daquela comida horrorosa, e Shirley estava determinada a engordá-lo de novo assim que ele saísse de lá.

Howard ficou sentado por mais alguns minutos, desfrutando da facili­dade de respirar depois de usar a bombinha. O dia de hoje seria muito im­portante. Trinta e cinco anos atrás, ele apresentou a Pagford todas aquelas iguarias finas, com o entusiasmo de um aventureiro do século XVI voltan­do para casa com delícias do outro lado do mundo. E Pagford, depois de uma desconfiança inicial, começou a farejar timidamente o seu estoque com certa curiosidade. Pensou melancolicamente na mãe, que havia fa­lecido recentemente e que sempre tivera orgulho dele e do seu tino para os negócios. Queria que ela estivesse ali para ver o café. Howard se ergueu novamente, pegou o chapéu Sherlock Holmes do cabideiro e o colocou cuidadosamente na cabeça, como se estivesse coroando a si mesmo.

As novas garçonetes chegaram juntas às oito e meia. Ele tinha uma surpresa para elas.

Tomem, isso é para vocês — disse, segurando os uniformes, uns ves­tidos pretos com um aventalzinho branco de babado, exatamente como tinha imaginado. — Devem caber. Maureen disse que sabia o tamanho certo. Ela também vai usar um.

Gaia segurou o riso quando Maureen entrou na delicatéssen vindo do café e sorriu para elas. Ela estava usando tamancos Dr. Scholl com uma meia preta. E o seu vestido terminava uns cinco centímetros acima daque­les joelhos enrugados.

Vocês podem se trocar na sala dos funcionários, garotas — disse ela, indicando o lugar de onde Howard tinha acabado de sair.

Gaia já estava tirando a calça jeans no banheiro dos funcionários quan­do viu a expressão no rosto de Sukhvinder.

Que que há, Sukh? — perguntou.

O novo apelido lhe deu coragem para dizer o que, do contrário, seria incapaz de pronunciar.

Não posso vestir isso — sussurrou ela.

Por quê? — perguntou Gaia. — Vai ficar legal.

Mas o vestido preto tinha mangas curtas.

Não posso.

Por q... Minha nossa! — disse Gaia.

Sukhvinder tinha arregaçado as mangas do suéter. A parte interna dos seus braços estava coberta de cicatrizes e de cortes recém-fechados, que iam do pulso até quase o ombro.

Sukh — disse Gaia baixinho. — Que que você anda fazendo?

Sukhvinder balançou a cabeça, com os olhos cheios de lágrimas.

Gaia pensou por um momento e então disse:

Já sei... Venha.

Ela estava tirando a camiseta de manga comprida.

Alguém empurrou a porta com força, e o ferrolho, que não estava no lugar certo, se abriu: Andrew, suando em bicas, já ia entrando, carregando dois pacotes enormes de papel higiênico, quando um grito zangado de Gaia o deteve. Ele voltou tropeçando na direção de Maureen.

Elas estão se trocando lá dentro... — repreendeu-o Maureen, com um tom ferino na voz.

O sr. Mollison me disse para guardar esses pacotes no banheiro dos funcionários.

Caralho, caralho. Ela estava só de calcinha e sutiã. Ele tinha visto qua­se tudo.

Desculpe — gritou Andrew na frente da porta fechada. O seu rosto chegava a latejar de tão vermelho.

Punheteiro — resmungou Gaia do outro lado. Estava entregando a camiseta para Sukhvinder. — Ponha por baixo do vestido.

Vai ficar estranho.

Azar. Você arranja uma preta para a semana que vem. Vai pare­cer que você só usa mangas compridas. Nós contamos uma história qual­quer... Eczema, ela tá com eczema — anunciou Gaia, quando saíram da sala dos funcionários, vestidas e de avental. — Pelo braço todo. Tá soltando uma casquinha.

Ah... — disse Howard, olhando para os braços brancos da camiseta de Sukhvinder, e depois outra vez para Gaia, que estava deslumbrante, como ele havia imaginado.

Vou arranjar uma camiseta preta na semana que vem — disse Sukhvinder, incapaz de olhar nos olhos de Howard.

Tudo bem — exclamou ele, dando tapinhas na parte de baixo das costas de Gaia, bem acima da sua cintura, indicando que elas fossem para o café. — Preparem-se — disse a todos os funcionários. — Vamos abrir em alguns instantes... Por favor, Maureen, abra as portas!

Já havia um pequeno grupo de clientes esperando na calçada. Um car­taz do lado de fora dizia: Copper Kettle — Inauguração hoje — Primeiros cafés de graça!

Por horas a fio Andrew não viu mais Gaia. Howard o manteve ocupa­do, carregando leite e suco de fruta para cima e para baixo, pelas escadas do porão, e esfregando o chão da pequena cozinha dos fundos. E o seu horário de almoço foi antes do das duas garçonetes. Só vislumbrou Gaia rapidamente quando Howard o convocou lá no balcão do café, e eles se cruzaram, passando a poucos centímetros um do outro, ela indo na dire­ção da sala dos fundos.

Estamos cheios de trabalho, sr. Price — disse Howard, de muito bom humor. — Pegue um avental limpo e passe um pano nas mesas para mim, enquanto Gaia almoça.

Miles e Samantha Mollison se sentaram com as duas filhas e Shirley na mesa da janela.

Parece que as coisas estão indo às mil maravilhas, não é mesmo? — disse Shirley, dando uma olhadinha em volta. — Mas o que a garota dos Jawanda está usando por baixo do vestido?

Ataduras? — sugeriu Miles, apertando os olhos.

Oi, Sukhvinder — gritou Lexie, que a conhecia da escola primária.

Não grite, querida — repreendeu Shirley, o que deixou Samantha irritada.

Maureen saiu de trás do balcão com o seu vestido curto preto e o aven­tal de babado, e Shirley começou a rir.

Ah, querida — disse ela calmamente, vendo Maureen se aproximar radiante.

Era verdade, pensou Samantha, Maureen estava ridícula, especial­mente ao lado das duas garotas de dezesseis anos que usavam o mesmo uniforme, mas não daria a Shirley a satisfação de concordar com ela. Ela se virou ostensivamente para o outro lado, vendo o garoto que limpava as mesas ao redor. Ele era magro, mas tinha ombros suficien­temente largos. Dava para ver os seus músculos debaixo da camiseta folgada. Era incrível pensar que o traseiro grande e gordo de Miles já tinha sido tão pequeno e rijo... Então o garoto virou para a luz, e ela viu as suas espinhas.

Não está nada mal, não é? — disse Maureen, com aquela sua voz rouca, dirigindo-se a Miles. — O café ficou lotado o dia inteiro.

Certo, meninas — disse Miles. — E que tal se a gente aumentasse os lucros do vovô?

Samantha imediatamente pediu uma sopa quando Howard veio se ar­rastando lá da delicatéssen. Ele ficou andando de um lado para o outro o dia todo, entrando no café a cada dez minutos para cumprimentar os clientes e checar o dinheiro no caixa.

Um tremendo sucesso — disse a Miles, se apertando na mesa. — O que achou, Sammy? Ainda não tinha visto, tinha? Gostou da pintura na parede? E da louça?

Ah... — disse Samantha. — Está lindo.

Eu estava pensando em comemorar os meus sessenta e cinco anos aqui — disse Howard, distraidamente coçando a ferida que os cremes de Parminder ainda não tinham curado —, mas não é grande o suficiente. Acho que vamos ter que ficar com o salão da igreja.

Quando vai ser, vovô? — perguntou Lexie, toda animada. — Eu posso ir?

Dia 29. Você está com... dezesseis?... Claro que pode ir — disse Howard, feliz.

Dia 29? — perguntou Samantha. — Ah, mas...

Shirley lhe deu uma olhada.

Howard está planejando isso há meses. Temos falado sobre isso o tempo todo.

...é a noite do show de Libby — disse Samantha.

É alguma coisa da escola? — perguntou Howard.

Não — respondeu Libby. — Mamãe comprou ingressos para o show da minha banda favorita. É em Londres.

E eu vou junto — disse Samantha. — Ela não pode ir sozinha.

A mãe de Harriet falou que ela podia...

Já disse que, se você vai para Londres, eu vou com você, Libby.

Dia 29? — perguntou Miles, olhando feio para Samantha. — O dia seguinte à eleição?

Samantha soltou a gargalhada de deboche que tinha deixado de dar quando viu Maureen.

E o Conselho Distrital, Miles. Não vai haver coletiva de imprensa.

Bom, vamos sentir a sua falta, Sammy — disse Howard, se levan­tando com a ajuda do encosto da cadeira. — Melhor pegar um... Certo, Andrew, você já acabou aqui... Vá ver se precisamos de alguma coisa do porão.

Andrew teve de esperar ao lado do balcão que as pessoas passassem, indo e voltando do banheiro. Maureen estava entregando a Sukhvinder pratos de sanduíches.

Como está a sua mãe? — perguntou à garota repentinamente, como se a idéia tivesse acabado de lhe ocorrer.

Bem — respondeu Sukhvinder, ficando vermelha.

Não está muito chateada com aquelas coisas desagradáveis que es­creveram sobre ela no site do Conselho?

Não — disse Sukhvinder, com lágrimas nos olhos.

Andrew seguiu para o pátio dos fundos, que agora, no início da tarde, era quente e ensolarado. Ele tinha esperança de que Gaia estivesse ali, pegando um pouco de ar, mas ela devia ter ido para a sala dos funcioná­rios. Desapontado, acendeu um cigarro. Mal tinha acabado de aspirar a fumaça, Gaia surgiu do café. Havia terminado de almoçar e estava com uma lata de refrigerante na mão.

Oi — disse Andrew, com a boca seca.

Oi — disse ela. Então, depois de um ou dois minutos, perguntou:

Ei, por que aquele seu amigo é tão filho da puta com Sukhvinder? É pessoal ou ele é racista?

Ele não é racista — respondeu Andrew. E tirou o cigarro da boca, ten­tando manter as mãos firmes, sem tremer, mas não pôde pensar em mais nada para falar. O sol que batia nas lixeiras aquecia as suas costas suadas. A proximidade dela, naquele vestidinho preto apertado, o massacrava, especial­mente agora que já tinha vislumbrado o que havia ali debaixo. Deu mais uma tragada, sem saber quando se sentiu assim antes, tão deslumbrado, tão vivo.

O que foi que ela fez para ele, então?

A curva dos quadris para a cintura fina, a perfeição dos olhos grandes e cheios de manchinhas esverdeadas por cima da lata de Sprite. Andrew teve vontade de dizer: Nada, ele é um babaca. Posso bater nele se me deixar tocar em você...

Sukhvinder apareceu no pátio, piscando por causa da luz do sol. Esta­va muito desconfortável e com calor por causa da camiseta de Gaia.

Ele está chamando você — disse a garota.

Ele que espere — retrucou Gaia tranqüilamente. — Estou termi­nando aqui. Só gastei quarenta minutos da hora do almoço.

Andrew e Sukhvinder ficaram olhando a garota dar outro gole no refri­gerante, embasbacados com a sua arrogância e a sua beleza.

Aquela vaca velha estava dizendo alguma coisa sobre a sua mãe? — perguntou Gaia.

Sukhvinder assentiu.

Eu acho que deve ter sido o amigo dele — disse a garota, encarando An­drew novamente, e ele achou a ênfase no dele extremante sensual, mesmo que a intenção fosse depreciá-lo — que pôs a mensagem sobre a sua mãe no site.

Não pode ser — disse Andrew, e a sua voz vacilou ligeiramente.

Quem quer que tenha feito isso atacou o meu pai também, há duas semanas.

O quê? — perguntou Gaia. — A mesma pessoa postou alguma coisa sobre o seu pai?

Ele fez que sim, feliz com o interesse dela.

Alguma coisa sobre roubo, não foi? — perguntou Sukhvinder, com um atrevimento notável.

É — disse Andrew. — E ele foi mandado embora ontem. Então, a mãe dela — e encarou os olhos brilhantes de Gaia quase com firmeza — não é a única que está sofrendo.

Que merda — disse Gaia, virando a lata de cabeça para baixo e, em seguida, jogando-a na lixeira. — As pessoas aqui são completamente doidas.

 

O post sobre Parminder no site do Conselho fez os medos de Colin Wall atingirem níveis de pesadelo. Não tinha a menor idéia de onde os Mollison estavam recebendo informações, mas se sabiam disso sobre Parminder...

— Pelo amor de Deus, Colin! — exclamou Tessa. — E apenas uma fofoca maldosa! Não tem fundamento nenhum.

Mas Colin não teve coragem de acreditar nela. Era dado, por tempera­mento, a pensar que os outros também viviam escondendo segredos que os deixavam loucos. E nem ao menos podia encontrar algum conforto no fato de que tinha vivido a maior parte da sua vida adulta com medo de catástrofes que não aconteceram, porque, pela lei das probabilidades, isso não significava que elas não pudessem vir a acontecer de fato, um dia desses.

Estava pensando sobre a sua exposição iminente, como de costume, en­quanto voltava do açougue às duas e meia, e só percebeu onde estava quan­do o tumulto na frente do novo café chamou a sua atenção. Teria atravessa­do para o outro lado da praça se já não estivesse bem na frente do Copper Kettle. A proximidade com qualquer um dos Mollison agora o assustava. E, então, viu algo pela vidraça da janela do café que o fez entender tudo.

Quando entrou na cozinha de casa dez minutos depois, viu Tessa ao telefone, falando com a irmã. Colocou a perna de cordeiro na geladeira e subiu as escadas, direto para o quarto de Bola, no sótão. Empurrou a porta de repente e, como esperava, o quarto estava vazio.

Nem se lembrava da última vez em que tinha estado ali. O chão estava coberto de roupa suja. E havia um cheiro estranho, embora Bola deixasse sempre a clarabóia aberta. Colin notou uma caixa de fósforos grande so­bre a escrivaninha. Ele a abriu e viu, quase sem acreditar, pequenas baganas. Perto da caixa, ao lado do computador, para quem quisesse ver, havia uma embalagem daquelas folhas finas para enrolar cigarros.

O coração de Colin batia tão forte que parecia que ia sair pela boca.

Colin? Onde você está? — perguntou Tessa lá de baixo.

Aqui em cima! — grunhiu ele.

Ela apareceu na porta do quarto de Bola com um ar assustado, ansioso. Sem dizer nada, ele pegou a caixa de fósforos e mostrou a ela o que havia lá dentro.

Ah — exclamou Tessa baixinho.

Ele disse que ia sair com Andrew Price hoje — prosseguiu Colin. Tessa ficou assustada ao ver o músculo na mandíbula de Colin pulsando, para baixo e para cima. — Acabei de passar pelo novo café na praça, e Andrew Price está trabalhando lá, limpando as mesas. Então, onde está Stuart?

Por várias semanas, Tessa tinha fingido acreditar no filho quando ele dizia que ia sair com Andrew. Ela ficava afirmando para si mesma que Sukhvinder devia estar enganada em pensar que Bola estava saindo (ou teria de algum modo consentido em sair) com Krystal Weedon.

Não sei — respondeu ela. — Vamos descer que eu faço um chá para você. Vou ligar para ele.

Acho que vou esperar aqui — disse Colin, sentando-se na cama toda desarrumada.

Venha, Colin... Venha comigo — pediu Tessa.

Ela estava apavorada de deixá-lo ali no quarto. Não sabia o que ele po­dia achar nas gavetas ou na mochila de Bola. E não queria que ele ficasse vasculhando o computador ou debaixo da cama. Alimentava ainda mais segredos, recusando-se terminantemente a tirar aquela história a limpo.

Venha, Colin. Vamos lá para baixo — insistiu ela.

Não — disse Colin, e cruzou os braços como se fosse uma criança mimada, com aquele músculo saltando na mandíbula. — Usando dro­gas... O filho do vice-diretor!

Tessa se sentou na cadeira da escrivaninha em frente ao computador e começou a sentir que a mesma raiva de sempre tomava conta dela. Sa­bia que se preocupar consigo mesmo era uma conseqüência inevitável da doença de Colin, mas às vezes...

Muitos adolescentes experimentam... — principiou Tessa.

Você ainda o defende, não é? Será que não percebe que é justamen­te porque você está sempre passando a mão na cabeça de Stuart que ele acha que pode se safar de qualquer situação sem maiores conseqüências?

Ela estava tentando manter a raiva sob controle, porque sabia que de­via ser um elo entre os dois.

Desculpe, Colin, mas você e o seu trabalho não são as únicas coisas que existem...

Sei, então se eu for demitido...

Por que cargas-d'água você seria demitido?

Pelo amor de Deus — gritou Colin, indignado. — Isso tudo me atin­ge... As coisas já estão muito ruins... Ele é o aluno mais problemático da...

Isso não é verdade — retrucou Tessa. — Ninguém, a não ser você, acha que o Stuart é um adolescente problemático. Ele não é Dane Tully.

Mas está indo pelo mesmo caminho... Usando drogas...

Eu disse que você devia tê-lo mandado para a Paxton High. Sabia que, se ele fosse para a Winterdown, você ia achar que tudo o que ele fi­zesse era um ataque pessoal! Não me admira que ele esteja se rebelando, já que tudo o que ele faz ou deixa de fazer acaba se refletindo em você. Nunca quis que Stuart fosse para a sua escola.

E eu — explodiu Colin, se levantando da cama bruscamente — nunca o quis de jeito nenhum.

Não diga uma coisa dessas — gaguejou Tessa. — Sei que está com raiva... Mas não diga uma coisa dessas.

A porta da frente bateu lá embaixo. Tessa olhou ao seu redor, assustada, como se Bola pudesse se materializar instantaneamente ao lado deles. Mas não foi apenas o barulho que a assustou. Stuart nunca batia a porta; ele normalmente entrava e saía sorrateiramente, como se deslizasse por entre as frestas.

Ouviu os passos do filho na escada... Será que sabia ou suspeitava que eles estavam no seu quarto? Colin ficou esperando, com os punhos cer­rados ao lado do corpo. Tessa ouviu aquele último degrau que rangia, e então Bola apareceu na frente deles. Tinha certeza de que ele havia es­tudado aquela expressão antes de entrar: uma mistura de tédio e desdém.

Boa tarde — disse o garoto, olhando da mãe para o pai, rígido e tenso. Ele tinha a serenidade que Colin jamais teve. — Que surpresa!

Desesperada, Tessa tentou preparar o terreno.

Papai estava preocupado porque não sabíamos onde você estava — disse ela, com um tom de súplica na voz. — Você disse que ia sair com Arf hoje, mas papai viu...

E, mudança de planos — disse Bola.

Ele olhou de relance para o lugar onde tinha deixado a caixa de fósfo­ros.

Então você não quer nos contar onde esteve? — perguntou Colin. Havia manchas brancas em volta da sua boca.

Claro, se vocês querem saber... — respondeu Bola, e esperou pela reação deles.

Stu... — disse Tessa, meio sussurrando, meio gemendo.

Saí com Krystal Weedon — declarou ele.

Ah, Deus do céu, não, pensou Tessa. Não, não, não...

Você o quê? — indagou Colin, tão surpreso que se esqueceu de colocar agressividade na voz.

Eu saí com Krystal Weedon — repetiu Bola, um pouco mais alto.

E desde quando — disse Colin, depois de uma breve pausa — ela é sua amiga?

Tem um tempo — respondeu o garoto.

Tessa percebeu que o marido lutava para fazer uma pergunta absurda demais para ser formulada.

Você devia ter nos contado, Stu — disse ela.

Contado o quê? — perguntou ele.

Ela estava com medo de que aquela discussão tomasse um rumo peri­goso.

Aonde você estava indo — respondeu ela, levantando-se e tentando não demonstrar nenhuma emoção. — Da próxima vez, ligue para a gente.

Tessa olhou para Colin na esperança de que ele fosse seguir o seu exemplo, andando na direção da porta. Mas ele ficou parado no meio do quarto, olhando para Bola com horror.

Você está... envolvido com Krystal Weedon? — perguntou Colin.

Pai e filho se encararam. Colin era mais alto alguns centímetros, mas era Bola que tinha o poder.

"Envolvido"? — repetiu o garoto. — O que você quer dizer com "envolvido"?

Você sabe muito bem... — retrucou Colin, com o rosto ficando vermelho.

Você quer saber se eu tô trepando com ela?

O gritinho de Tessa, "Stu!", foi completamente abafado pelo berro de Colin, "Como é que você se atreve?!".

Bola ficou apenas olhando para Colin, com um sorriso de deboche. Tudo nele era desafio e ironia.

O quê?! — perguntou Bola.

Você está... — cada vez mais vermelho, Colin tentava achar as pa­lavras — ...dormindo com Krystal Weedon?

E se eu tivesse, algum problema? — objetou ele, e olhou para a mãe enquanto dizia: — Vocês estão tentando ajudar Krystal, não estão?

Ajudar...

Não estão tentando manter a clínica de reabilitação aberta pra aju­dar a família de Krystal?

O que isso tem a ver...?

Então não vejo problema nenhum se eu estiver saindo com ela.

E você está saindo com ela? — indagou Tessa rispidamente. Se Bola queria levar a discussão para esse lado, que fosse. — Você está saindo com ela, Stuart?

Seu sorriso de deboche a enojou. Ele não parecia nem disposto a fingir algum respeito.

Bom, como nós não transamos nem aqui nem na casa dela, sim, estou...

Colin levantou o braço com o punho cerrado e deu um soco, que acer­tou em cheio o rosto de Bola. O garoto, que estava prestando atenção na mãe, foi pego de surpresa. Ele cambaleou para o lado, bateu na escrivani­nha e caiu no chão. Mas, logo em seguida, já tinha se levantado, e Tessa agora estava entre os dois, de frente para o filho.

Atrás dela, Colin ficava repetindo: Seu desgraçado! Seu desgraçado!

Ah, é?! — disse Bola, agora sem o sorriso de deboche. — Melhor ser desgraçado do que ser um babaca que nem você!

Não! — gritava Tessa. -— Colin, saia daqui. Saia daqui!

Horrorizado, furioso e tremendo da cabeça aos pés, Colin hesitou um momento e depois saiu do quarto, pisando duro. Eles o ouviram tropeçar aqui e ali, descendo a escada.

Como você pôde? — sussurrou Tessa.

Como você pôde o quê, porra? — perguntou Stuart, e o olhar no seu rosto a deixou tão apreensiva que ela correu para trancar a porta do quarto.

Você está se aproveitando daquela garota, Stuart, e sabe disso, e a maneira como falou com o seu...

Porra nenhuma — gritou Bola, andando de um lado para o outro. Toda aquela aparência de indiferença tinha ido embora. — Não tô me aproveitando dela porra nenhuma. Ela sabe exatamente o que quer... Não é porque mora naquele bairro de merda que não sabe o que quer... A ver­dade é que você e Pombinho não querem que eu trepe com ela porque ela não é do mesmo nível...

Isso não é verdade — disse Tessa, muito embora fosse, e, apesar de toda a preocupação que tivesse com relação a Krystal, adoraria saber que Bola teve discernimento suficiente para usar camisinha.

Vocês são dois hipócritas de merda, você e Pombinho — disse ele, ainda andando de um lado para o outro. — Ficam repetindo todas essas babaquices sobre ajudar os Weedon, mas não querem...

Chega! — gritou Tessa. — Não se atreva a falar comigo desse jeito. Será que você não percebe... não entende... que está sendo muito egoísta...?

Não conseguiu ir adiante. Virou de costas, andou até a porta, furiosa., e saiu, batendo-a atrás de si.

Quando Tessa saiu do quarto, Bola estranhamente parou de andar de um lado para o outro e ficou olhando a porta fechada por alguns minu­tos. Então enfiou a mão no bolso, pegou um cigarro e o acendeu, sem se preocupar em soprar a fumaça pela claraboia. Ficou andando em círculos pelo quarto, e não tinha nenhum controle sobre os próprios pensamentos: imagens soltas, desconexas tomaram conta da sua cabeça, passando muito rápido numa onda de fúria.

Ele se lembrou de uma sexta-feira à noite, quase um ano antes, quando Tessa veio ao seu quarto lhe dizer que o pai queria levá-lo para jogar fute­bol com Barry e os filhos dele.

(—O quê?! — Bola ficou atordoado. Aquela proposta não tinha ne­nhum cabimento.

Só de brincadeira. E uma pelada — disse Tessa, começando a reco­lher a roupa suja pelo chão para evitar o olhar do filho.

Por quê?

— Papai acha que pode ser legal — respondeu Tessa, se abaixando para pegar uma camisa da escola. — Declan quer treinar, ou algo assim. Ele vai ter um jogo importante.

Na verdade, Bola jogava futebol muito bem. As pessoas achavam isso surpreendente; achavam que alguém como ele não devia gostar de espor­tes e, com certeza, desprezava essa coisa de time. Mas ele jogava como falava, com muita habilidade: driblava os adversários, fazia lançamentos, arriscava jogadas, sem se preocupar com o resultado.

Eu nem sabia que ele jogava.

Papai joga muito bem. Quando nos conhecemos, ele jogava duas vezes por semana — disse Tessa, impaciente. — Amanhã de manhã, às dez horas, certo? Vou lavar a sua calça de moletom.)

Bola deu uma tragada no cigarro, lembrando-se disso quase sem que­rer. Por que tinha concordado com aquilo? Hoje em dia, teria simples­mente se recusado a participar da farsa de Pombinho. Ficaria na cama até que eles cansassem de chamá-lo. Mas, um ano antes, ainda não sabia nada sobre autenticidade.

(Em vez disso, saiu de casa com Pombinho e suportou a caminhada de cinco minutos ao lado do pai, em silêncio absoluto; um e outro igualmen­te conscientes do abismo que os separava.

O campo pertencia à Escola St. Thomas. Estava ensolarado e vazio. Eles se dividiram em dois times de três, porque Declan tinha convidado um amigo para passar o fim de semana na casa dele. O tal amigo, que claramente admirava Bola, veio com ele e o seu pai.

Bola e Pombinho passavam um pelo outro em silêncio, enquanto Bar­ry, de longe o pior jogador, ficava encorajando, incentivando e aplaudindo o tempo todo, com aquele seu sotaque de Yarvil, correndo para cima e para baixo pelo campo que delimitaram usando suéteres. Quando Fergus marcou um gol, Barry correu na sua direção para que pulassem juntos, co­memorando, e batessem peito com peito, mas calculou mal a distância e deu uma cabeçada no queixo do filho. Os dois caíram no chão, Fergus ge­mendo de dor e rindo, e Barry pedindo desculpas em meio a gargalhadas de genuína alegria. Bola se pegou rindo daquela cena, mas então ouviu a risada forçada e desajeitada de Pombinho, e se afastou, de cara amarrada.

E então veio aquele momento, aquele momento constrangedor, la­mentável, quando o jogo estava empatado, e faltavam poucos minutos para o fim da partida. Ele conseguiu roubar a bola de Fergus, e Pombinho gritou:

— Vamos lá, cara!

"Cara". Pombinho nunca tinha usado essa expressão na vida. Aquilo soou vazio, forçado, digno de pena. Ele estava tentando ser como Barry, imitando aquele seu jeito espontâneo de encorajar os filhos. Pombinho estava querendo impressionar Barry.

A bola saiu voando dos seus pés como uma bala de canhão, e antes mesmo que atingisse o rosto desprevenido e abobalhado de Pombinho, antes que os seus óculos se quebrassem, antes que o sangue começasse a escorrer do seu supercílio, o garoto percebeu qual tinha sido a sua verda­deira intenção: ele quis efetivamente acertar Pombinho, e chutou aquela bola como uma punição.)

Os dois nunca mais jogaram futebol juntos. Aquela breve experiência, condenada ao fracasso, de relacionamento entre pai e filho foi arquivada como tantas outras antes dela.

E eu nunca o quis de jeito nenhum.

Tinha certeza de que escutou aquilo. Pombinho devia estar falando dele. Eles estavam no seu quarto. De quem mais estariam falando?

Não to nem aí, pensou Bola. Sempre tinha desconfiado disso. Só não sabia por que aquela sensação de frio se espalhava no seu peito. Bola reco­locou a cadeira da escrivaninha no lugar onde estava, antes de cair sobre ela ao ser atingido pelo soco de Pombinho. Uma reação autêntica teria sido tirar a mãe da frente e acertar um soco na cara dele também. Quebrar os seus óculos mais uma vez. Fazê-lo sangrar. Bola ficou com ódio de si mesmo por não ter feito isso.

Mas havia outras maneiras. Há anos vinha ouvindo coisas. E sabia mui­to mais sobre os medos absurdos do pai do que eles imaginavam.

Os seus dedos estavam mais vagarosos que de costume. A cinza do cigarro na sua boca caiu no teclado enquanto ele entrava no site do Con­selho Distrital. Semanas antes, tinha procurado por injeções SQL na in­ternet e achou o código que Andrew não quis lhe dar. Depois de analisar a área de mensagens por alguns minutos, fez o login, sem dificuldade, como Beth Rossiter, mudou o nome do usuário para O_Fantasma_de_Barry_Fairbrother e começou a digitar.

 

Shirley Mollison estava convencida de que o marido e o filho tinham exagerado: não podia ser tão perigoso assim deixar os posts do Fantasma no ar. Não conseguia ver em que essas mensagens eram piores que uma fofoca qualquer, e isso, pelo que soubesse, ainda não era punido por lei. Também não acreditava que a lei fosse tão tola e irracional a ponto de responsabilizá-la pelo que outra pessoa escreveu. Isso seria terrivelmente injusto. Por mais orgulho que tivesse do diploma de advogado de Miles, tinha certeza de que dessa vez ele estava redondamente enganado.

Checava as mensagens no site com mais freqüência do que Miles e Howard a tinham aconselhado a fazer, mas não porque estivesse com medo das possíveis conseqüências legais. Certa de que o Fantasma de Bar­ry Fairbrother ainda não havia concluído a tarefa que se impôs de destruir os que eram pró-Fields, estava ansiosa para ser a primeira a colocar os olhos no próximo post. Várias vezes por dia corria para o antigo quarto de Patrícia e entrava na página. As vezes um leve arrepio percorria o seu cor­po enquanto descascava batatas ou passava o aspirador de pó, e ela voava para o escritório, apenas para se desapontar mais uma vez.

Shirley sentia uma afinidade especial e secreta com o Fantasma. Ele escolhera o site dela como fórum para expor a hipocrisia dos oponentes de Howard, e isso lhe dava o orgulho de um naturalista que tinha criado um hábitat no qual espécies raras se dignavam a construir os seus ninhos. Mas não era só isso. Shirley apreciava a raiva do Fantasma, a sua ferocida­de, a sua audácia. Ela se perguntava quem poderia ser, visualizando um homem forte e sombrio ao lado dela e de Howard, apoiando-os, abrindo caminho para eles em meio aos adversários, que iam caindo à medida que ele os atingia com as suas próprias e repulsivas verdades.

De algum modo, nenhum dos homens de Pagford parecia digno de ser o Fantasma, e ficaria desapontada em saber que ele era um dos membros da facção anti-Fields que conhecia.

Isso se ele for realmente um homem — disse Maureen.

Bem-pensado — retrucou Howard.

Acho que é um homem — disse Shirley, tranqüilamente.

Quando Howard saiu para o café no domingo de manhã, Shirley, ain­da de robe e com uma xícara de chá na mão, foi direto para o escritório e entrou no site.

As fantasias de um vice-diretor, postado por O_Fantasma_de_Barry__ Fairbrother.

Ela se sentou com as mãos trêmulas, clicou no post e o leu, boquiaber­ta. Depois correu para o saguão, pegou o telefone e ligou para o café, mas estava ocupado.

Apenas cinco minutos depois, Parminder Jawanda, que agora tam­bém tinha o hábito de olhar as mensagens no site do Conselho com mais freqüência que antes, abriu a página e viu o tal post. Como Shirley, a sua reação imediata foi pegar o telefone.

Tessa e Colin Wall estavam tomando café da manhã sem o filho, que ainda dormia lá no quarto do sótão. Quando Tessa atendeu, Parminder nem deixou que a amiga acabasse de falar.

Tem um post sobre Colin no site do Conselho. Não sei como, mas não deixe que ele veja isso.

Os olhos assustados de Tessa se voltaram para o marido, mas Colin estava muito próximo do aparelho e ouviu cada palavra de Parminder.

Ligo para você mais tarde — disse Tessa, apressada. — Colin... — chamou ela, atrapalhando-se toda para desligar o aparelho. — Colin, es­pere...

Mas ele já tinha saído da cozinha, como uma bala, com aquele seu andar meio saltitante, os braços colados ao corpo, e Tessa teve que correr para alcançá-lo.

Talvez seja melhor não olhar... — pediu ela, mas a mão grande e ossuda de Colin já movimentava o mouse em cima da mesa. — Ou eu posso ler e...

 

As fantasias de um vice-diretor

Um dos homens que espera representar a nossa comunidade no Con­selho Distrital é Colin Wall, vice-diretor da Escola Secundária Winterdown. Os eleitores talvez se interessem em saber que Wall, um disciplinador severo, tem fantasias bem incomuns. O sr. Wall tem tanto medo que um aluno venha a acusá-lo de assédio sexual que freqüentemente tem que se ausentar do trabalho para se acalmar. Se o sr. Wall efetiva­mente acariciou um aluno do primeiro ano, isso é algo que o Fantasma não pode afirmar. No entanto, o fervor das suas fantasias febris sugere que, mesmo que ele não tenha feito isso, adoraria fazê-lo.

 

Foi Stuart que escreveu isso, pensou Tessa imediatamente.

O rosto de Colin estava assustador à luz que vinha do monitor. Era assim que ela imaginava que ele ficaria se tivesse um derrame.

Colin...

Eu acho que Fiona Shawcross contou para todo mundo — sussur­rou ele.

A catástrofe que havia temido desde sempre se abateu sobre ele. Era o fim de tudo. Sempre se imaginou tomando pílulas para dormir. Será que havia o suficiente em casa?

Tessa, que ficou momentaneamente confusa com aquela menção à diretora, retrucou:

Fiona não faria isso... De todo modo... ela não sabe...

Ela sabe que tenho TOC.

E, mas ela não sabe... do que você tem medo...

Sabe, sim — respondeu Colin. — Eu disse a ela na última vez em que tirei licença.

Por quê? — esbravejou Tessa. — Deus do céu, por que você foi contar isso a ela?

Queria explicar por que era tão importante que eu me afastasse um tempo — respondeu Colin, quase humilde. — Achei que ela tinha que saber como era sério.

Tessa controlou um desejo intenso de gritar com ele. A aversão que se podia perceber na forma como Fiona o tratava ou falava dele agora estava ex­plicada. Tessa nunca tinha gostado dela, sempre muito dura e pouco solidária.

Seja como for — disse ela —, não acho que Fiona tenha alguma coisa a ver com...

Não diretamente — interrompeu Colin, enxugando o suor de cima dos lábios com a mão trêmula. — Mas Mollison deve ter ouvido alguma fofoca sabe-se lá onde.

Não foi Mollison. Stuart escreveu isso, sei que foi ele. Tessa podia re­conhecer o filho em cada linha. Era impressionante que Colin não visse isso, que não tivesse ligado a mensagem à briga de ontem, ao soco que tinha dado no filho. Ele não pôde nem resistir a terminar com uma aliteração. Deve ter escrito todas as mensagens... Simon Price. Parminder. Tessa estava horrorizada.

Mas Colin não estava pensando em Stuart. Estava evocando pen­samentos tão vividos quanto lembranças, quanto impressões sensoriais, idéias violentas e vis: a mão que apalpava e agarrava quando ele ia pas­sando em meio à massa compacta de corpos juvenis; um grito de dor, o rosto contorcido de uma criança. E ele se perguntando incessantemen­te: tinha mesmo feito aquilo? Tinha gostado? Não conseguia se lembrar. Sabia apenas que continuava pensando naquilo, vendo aquilo aconte­cer, sentindo aquilo acontecer. Carnes macias em uniformes de algodão azul; apalpar e agarrar, dor, choque, violação. Quantas vezes? Não sabia. Ficava horas se perguntando quantas crianças conheciam o seu segredo, se elas tinham falado umas com as outras, quanto tempo levaria até que fosse descoberto.

Sem saber ao certo quantas vezes molestou alguém, e incapaz de confiar em si mesmo, Colin andava sempre carregado de papéis e pastas para manter as mãos ocupadas e não poder atacar ninguém, quando pas­sava pelos corredores. Gritava, pedindo ao bando de crianças que saísse da frente, que se afastasse para deixá-lo passar. Mas não adiantava. Sem­pre havia os atrasados, que passavam por ele correndo, esbarrando nele, e, com as mãos ocupadas, Colin imaginava outras formas de contatos inapropriados: um movimento de ombros para que o cotovelo roçasse num seio; um passo para o lado para garantir que os corpos se tocassem; uma perna acidentalmente enrascada para que sentisse a virilha na sua carne.

— Colin — disse Tessa.

Mas ele começou a chorar, soluçando tanto que o seu corpo grande e desengonçado se sacudia todo. E quando ela o abraçou e apertou o rosto contra o dele, as suas lágrimas se misturaram.

A alguns quilômetros de distância, em Hilltop House, Simon Price estava sentado na sala de estar, na frente de um computador novinho em folha. Ao ver Andrew sair pela manhã, de bicicleta, para o trabalho de fim de semana com Howard Mollison, e ao lembrar que teve que pagar o preço de mercado por aquele computador, Simon ficou irritado e ainda por cima se sentindo injustiçado. Não voltou a entrar no site do Conselho Distrital desde a noite em que havia jogado fora o computador roubado, mas hoje lhe ocorreu, por uma associação de idéias, checar se a mensa­gem que tinha lhe custado o emprego ainda estava lá, podendo ser vista por possíveis empregadores.

Não estava. Simon não sabia se devia isso à mulher, porque Ruth, por medo, não queria admitir que havia ligado para Shirley, mesmo que tives­se sido para pedir a remoção do post. Animado pelo fato de a mensagem não estar mais lá, procurou pelo post sobre Parminder, que também já havia sido removido.

Já estava quase fechando a página quando viu o post mais recente, intitulado As fantasias de um vice-diretor. Ele o leu duas vezes e então, sozinho na sala de estar, começou a rir. Foi uma risada selvagem, triunfante. Nunca tinha gostado daquele homem grande e saltitante, com aquela testa enorme. Era bom saber que, comparado a esse sujeito, ele próprio até que tinha se dado bem.

Ruth entrou na sala, sorrindo timidamente. Estava contente de ouvir Simon rir, porque ele andava num humor medonho desde que perdera o emprego.

Do que você está rindo?

Sabe o pai de Bola? Wall, o vice-diretor?... Ele é um maldito pedófilo.

O sorriso de Ruth desapareceu. E ela correu para ler o post.

Vou tomar um banho — disse Simon, no maior bom humor.

Ruth esperou até que ele tivesse saído da sala para ligar para a amiga Shirley e alertá-la sobre esse novo escândalo, mas o telefone dos Mollison estava ocupado.

Shirley tinha, finalmente, conseguido falar com Howard na delicatés­sen. Ela ainda estava de robe, e ele andava de um lado para o outro, na pequena sala atrás do balcão.

...estava tentando falar com você há um tempão...

Mo estava no telefone. O que está escrito? Devagar.

Shirley leu a mensagem sobre Colin, pronunciando cada palavra como se fosse uma apresentadora de jornal. Não chegou ao fim da mensagem; Howard a interrompeu antes.

Você copiou a mensagem em algum lugar?

O quê?

Está lendo da tela? Isso ainda está no site? Você ainda não tirou isso de lá?

Estou tirando agora — mentiu Shirley, assustada. — Pensei que você ia gostar...

Tire logo! Deus do céu, Shirley, isso está ficando fora de controle... Não podemos deixar esse tipo de coisa no site.

Só achei que você devia...

— Trate de se livrar disso imediatamente e conversamos quando eu chegar — gritou Howard.

Shirley ficou furiosa: eles nunca tinham levantado a voz um para o outro.

 

A próxima reunião do Conselho Distrital, a primeira depois da morte de Barry, seria fundamental para a batalha que vinha se travando com relação a Fields. Howard se recusou a adiar a votação sobre o futuro da Clínica de Reabilitação Bellchapel e sobre o desejo do vilarejo de transferir a jurisdi­ção do bairro para Yarvil.

Por isso Parminder tinha sugerido que ela, Colin e Kay se encontras­sem à noite, na véspera da reunião, para traçarem uma estratégia.

Pagford não pode decidir unilateralmente alterar os limites do distri­to, pode? — perguntou Kay.

Não — respondeu Parminder, com toda a paciência (Kay conti­nuava sendo uma recém-chegada) —, mas o Conselho Municipal con­sulta Pagford, e Howard está determinado a fazer com que a opinião dele seja aprovada.

O encontro foi na casa dos Wall, porque Tessa tinha pressionado Colin a convidá-las, para que pudesse ouvir a conversa. Tessa serviu o vinho, colocou uma vasilha grande com batata frita sobre a mesinha de centro e se sentou em silêncio, ouvindo os outros três falar.

Estava exausta e zangada. O post anônimo sobre Colin o fez ter uma das crises de ansiedade mais agudas que jamais tivera. Foi tão grave que ele não pôde ir à escola. Parminder sabia como ele estava doente — foi ela que assinou o atestado para justificar as faltas —, mas ainda assim o convocou para essa reunião estratégica, sem se importar, ao que parecia, com possíveis novas efusões de paranóia e angústia, com que Tessa teria de lidar durante a noite.

Há definitivamente uma indignação no ar com relação à maneira como os Mollison estão agindo — dizia Colin, naquele tom imponente e erudito que por vezes adotava quando fingia não saber o que eram o medo e a paranóia. — Eles pensam que podem falar em nome de Pagford, e acho que isso está começando a irritar as pessoas. Pelo menos foi essa a impressão que tive quando andei conversando com as pessoas.

Seria tão bom, pensou Tessa com amargura, se às vezes Colin pudesse usar essa capacidade de dissimulação em benefício dela. Algum tempo atrás, teria gostado de ser a única confidente dele, o repositório dos seus terrores e a fonte de toda a sua confiança, mas agora não ficava mais en­vaidecida com isso. Colin continuava acordando-a às duas da manhã para que, até as três e meia, ela o visse se balançar para a frente e para trás sentado na beira da cama, gemendo e chorando, dizendo que queria mor­rer, que não podia suportar aquilo, que desejava nunca ter se candidatado àquela cadeira, que estava arruinado...

Tessa ouviu os passos de Bola na escada e ficou tensa, mas o filho pas­sou pela porta aberta na direção da cozinha sem fazer nada, a não ser lançar um olhar sarcástico para Colin, que estava empoleirado num pufe de couro na frente da lareira, com os joelhos quase encostados no peito.

Talvez a candidatura de Miles esteja efetivamente desagradando a todos... Mesmo os que naturalmente apoiam os Mollison — disse Kay, esperançosa.

É possível — concordou Colin, balançando a cabeça.

Kay se virou para Parminder.

Você acha que o Conselho vai realmente votar para despejar a Bellchapel? Sei que as pessoas reclamam das agulhas descartáveis e dos vicia­dos perambulando pela vizinhança, mas a clínica fica a quilômetros de distância... Por que Pagford se incomoda tanto com isso?

Howard e Aubrey apoiam um ao outro — explicou Parminder, com o rosto tenso e umas olheiras arroxeadas. (Era ela que iria participar da reunião do Conselho no dia seguinte e lutar contra Howard Mollison e os seus comparsas sem Barry ao seu lado.) — Estão precisando fazer uns cortes nos gastos da administração municipal. Se Howard expulsa a clínica daquele prédio, vai ser muito mais caro encontrar outro lugar para abrigá-la. Fawley pode alegar então que os custos aumentaram e justificar assim o corte da verba do Conselho. Então, ele fará o possível para que Fields seja reintegrado a Yarvil.

Cansada de tantas explicações, Parminder fingiu que examinava a nova pilha de documentos sobre a Bellchapel que Kay havia levado, para descansar um pouco daquela conversa.

Por que estou fazendo isso?, perguntou a si mesma.

Podia ter ficado em casa, ao lado de Vikram, que estava assistindo a uma comédia na televisão com Jaswant e Rajpal quando ela saiu. O som da risada deles a abalou. Quando foi que ela tinha rido pela última vez? Por que estava ali, bebendo um vinho horroroso, lutando por uma clínica de que nunca ia precisar e pela moradia de pessoas de quem provavelmen­te não gostaria, se as conhecesse? Não era Bhai Kanhaiya, que não via diferença entre a alma dos aliados e dos inimigos; não via a luz de Deus brilhando em Howard Mollison. E tinha mais prazer em pensar na derro­ta de Howard do que na possibilidade de as crianças de Fields continua­rem freqüentando a St. Thomas ou de os viciados do bairro se curarem na Bellchapel, embora, de uma maneira fria e desapaixonada, reconhecesse que todas essas coisas eram boas...

(Mas sabia por que realmente estava fazendo aquilo tudo. Queria ven­cer por Barry. Ele lhe contou tudo sobre quando foi estudar na St. Tho­mas. Os seus colegas de turma o convidavam para brincar na casa deles. Como na época estava vivendo num trailer com a mãe e os dois irmãos, ficou encantado com aquelas casas limpas e confortáveis da Hope Street, deslumbrado com os casarões vitorianos da Church Row. Chegou a ir a uma festa de aniversário naquela casa estranha, com formato de cabeça de vaca, que acabou comprando, tempos depois, para criar os quatro filhos.

Ele se apaixonou por Pagford, com o seu rio, os seus campos e as suas casas de paredes sólidas. E se imaginava vivendo numa delas, com um jar­dim para brincar, uma árvore para pendurar um balanço, espaço e verde por todos os lados. Ele catava castanhas e as levava para Fields. Depois de brilhar na St. Thomas, onde sempre teve as melhores notas, Barry foi o primeiro da família a ir para a universidade.

Amor e ódio, pensou Parminder, um pouco assustada com a própria honestidade. Amor e ódio, é por isso que estou aqui...)

Virou a página de um dos documentos de Kay, fingindo que se con­centrava nele.

Kay ficou feliz por ver a doutora examinando atentamente os relatórios que ela havia trazido, já que teve muito trabalho e levou um bom tempo para aprontá-los. Não podia acreditar que alguém, depois de ler esse ma­terial, não ficasse imediatamente convencido de que a Clínica Bellchapel tinha que permanecer exatamente onde estava.

Mas para Kay, em meio a todas aquelas estatísticas, aqueles estudos de caso anônimos e depoimentos pessoais, só uma paciente naquela clínica interessava: Terri Weedon. Podia sentir que Terri estava diferente, o que a deixava a um só tempo orgulhosa e assustada. Ela vinha dando uns sinais bem frágeis de começar a ter algum controle sobre sua própria vida. Nos últimos tempos, por duas vezes, disse a Kay: "Eles não vão levar Robbie. Não vou deixar", e isso não era apenas uma agressividade impotente des­carregada contra o destino, mas uma verdadeira carta de intenções.

Eu levei ele pra escola ontem — disse a Kay, que cometeu o erro de demonstrar o seu espanto. — Por que essa cara, porra? Não acredita que levei ele pra merda da escola?

Se as portas da Bellchapel se fecharem para Terri, com certeza a es­trutura delicada que elas estavam tentando construir com os destroços de uma vida iria pelos ares, em mil pedaços. Terri parecia ter um medo visceral de Pagford que Kay não conseguia entender.

Odeio a porra daquele lugar — disse ela, quando Kay o mencionou por acaso.

Tudo que Kay sabia sobre a relação de Terri com Pagford era que a sua falecida avó sempre tinha morado no vilarejo. No entanto, a idéia de ver Terri obrigada a ir até lá toda semana para conseguir a metadona a deixava apavorada: achava que o seu auto-controle ia desmoronar e, com ele, a frágil segurança que a família vinha adquirindo.

Colin resolveu prosseguir de onde Parminder tinha parado, explicando a história de Fields; Kay assentia, entediada, dizendo "hã, hã", mas os seus pensamentos estavam muito longe dali.

Ele estava profundamente lisonjeado por ver essa mulher jovem e atraente beber cada uma das suas palavras. Sentia-se um pouco mais calmo essa noite, pela primeira vez desde que tinha lido aquele post já removido do site. Nenhuma das catástrofes que ficava imaginando quando se deitava na cama aconteceu. Não tinha sido demitido. Não precisou enfrentar uma multidão raivosa à sua porta. Ninguém no site do Conselho de Pagford, ou tampouco em nenhum outro site na inter­net (tinha feito várias pesquisas no Google), estava pedindo que fosse vigiado ou levado para a prisão.

Bola passou novamente pela porta aberta, tomando um iogurte às colheradas. Olhou de relance para a sala e, por um breve instante, encontrou os olhos de Colin, que imediatamente perdeu o fio do que estava dizendo.

...e... bem, sim, resumindo, é isso — concluiu ele, de forma lamen­tável. Voltou-se para Tessa em busca de confiança, mas a mulher estava olhando impassível para o nada. Colin ficou um pouco magoado. Achava que Tessa ia gostar de vê-lo se sentindo tão melhor, tão mais controlado, depois daquelas noites insones e miseráveis. A medonha sensação do pavor atacava o seu estômago, mas ficava bem ao lado de Parminder, que, como ele, era vítima e bode expiatório nessa história toda, e da assistente social jovem e bonita que lhe dava uma atenção solidária.

Ao contrário de Kay, Tessa havia escutado cada palavra que Colin tinha acabado de dizer sobre o direito de Fields permanecer ligado a Pagford. Não havia, na sua opinião, nenhuma convicção por trás das palavras de Colin. Ele queria acreditar no que Barry tinha acreditado, e queria derro­tar os Mollison porque era isso o que Barry queria fazer. Colin não gostava de Krystal Weedon, mas, como Barry gostava muito dela, admitia que de­via haver mais valor naquela garota do que ele podia perceber. Tessa sabia muito bem que ele era uma mistura estranha de arrogância e humildade, convicções inabaláveis e insegurança.

Estão completamente iludidos, pensou Tessa, olhando os três enquan­to examinavam um gráfico que Parminder tinha extraído das anotações de Kay. Pensam que vão reverter sessenta anos de raiva e ressentimento com algumas páginas de estatísticas. Nenhum deles era Barry. Ele tinha sido um exemplo vivo do que as pessoas propunham na teoria: através da educação, sair da pobreza para a riqueza, da falta de poder e dependên­cia para dar uma contribuição valiosa à sociedade. Será que não viam que advogados inúteis eles eram, comparados àquele homem que tinha morrido?

As pessoas estão muito irritadas porque os Mollison estão tentando comandar tudo — disse Colin.

E acho — reforçou Kay — que vai ser difícil para eles, depois de ler esse material, fingirem que a clínica não está fazendo um trabalho fundamental.

Nem todo mundo se esqueceu de Barry lá no Conselho — acres­centou Parminder, com um ligeiro tremor na voz.

Tessa percebeu que os seus dedos engordurados estavam tentando pe­gar alguma coisa no vazio. Enquanto os outros três falavam, ela acabou sozinha com a vasilha de batata frita.

 

Era uma manhã clara e quente, e o laboratório de informática da Winterdown foi ficando abafado à medida que a hora do almoço se aproximava, e as janelas sujas da sala salpicavam os monitores empoeirados com pontos de luz que ajudavam a desviar a atenção. Mesmo que Gaia e Bola não estivessem ali para distraí-lo, Andrew Price não conseguia se concentrar. Não pensava em outra coisa, a não ser na conversa dos pais que tinha es­cutado na noite anterior. Estavam pensando em se mudar para Reading, onde a irmã e o cunhado de Ruth moravam. Atento às vozes que vinham da porta aberta da cozinha, Andrew ficou parado no pequeno corredor escuro e ouviu tudo: aparentemente, Simon tinha recebido uma oferta de emprego, ou havia a possibilidade de receber, do tio que Andrew e Paul mal conheciam, porque o seu pai não gostava dele.

Vou ganhar menos — disse Simon.

Você não sabe. Ele não falou...

Deve ser. E tudo lá é mais caro.

Ruth fez um barulhinho indefinido. Quase sem respirar ali no corre­dor, Andrew poderia afirmar, apenas pelo simples fato de a sua mãe não ter se apressado em concordar com Simon, que ela queria ir.

O garoto achava impossível imaginar os seus pais morando em outra casa que não fosse Hilltop House, ou em outro cenário que não Pagford. Tinha certeza de que os dois viveriam ali para sempre. Ele, Andrew, um dia iria para Londres, mas Simon e Ruth ficariam enraizados àquele vale como árvores, até morrerem.

Pé ante pé, voltou para o quarto e ficou vendo pela janela as luzes cintilantes de Pagford no fundo escuro do vale entre as colinas. Parecia até que nunca tinha visto aquela paisagem antes. Em algum lugar lá embaixo, Bola estava fumando no seu quarto no sótão, provavelmente vendo sites de pornografia. Gaia também estava lá, absorta nos misteriosos rituais, típico das garotas. Ocorreu a Andrew que ela tinha passado por isso, foi ar­rancada do lugar em que vivia e transplantada para Pagford. Enfim teriam algo em comum. E sentiu um prazer melancólico ao pensar que, se fosse embora, partilharia algo com ela.

Mas Gaia não causou o seu próprio desenraizamento. Com um aperto na boca do estômago, pegou o celular e mandou uma mensagem para Bola:

Docinho de Coco tem oferta de emprego em Reading. Deve aceitar.

Bola ainda não havia respondido, e Andrew não o viu durante toda a manhã, porque não tinham as mesmas aulas naquele dia. Também não esteve com Bola nos últimos fins de semana, porque estava trabalhando no Copper Kettle. A última conversa que tiveram foi sobre o post de Bola falando de Pombinho no site do Conselho.

Acho que Tessa tá desconfiada — disse Bola. — Ela fica me olhan­do como se soubesse.

E o que você vai dizer? — murmurou Andrew, assustado.

Conhecia muito bem o desejo de glória e reconhecimento de Bola, e também a sua paixão por empunhar a verdade como uma arma, mas não tinha certeza se o amigo compreendia que o seu papel de protagonista nas atividades do Fantasma de Barry Fairbrother jamais devia ser revelado. Nunca havia sido muito fácil explicar a Bola o que era ter Simon como pai e, de um modo geral, estava ficando cada vez mais difícil explicar as coisas para o amigo.

Quando o professor de informática passou por ele e ficou parado num ângulo de onde não poderia vê-lo, Andrew buscou Reading na internet. A cidade era imensa em comparação a Pagford. Tinha um festival de música anual e ficava apenas a uns sessenta quilômetros de Londres. Deu uma olhada nos horários dos trens. Talvez pudesse ir à capital nos fins de sema­na, exatamente como fazia pegando o ônibus para Yarvil. Mas aquilo tudo parecia irreal: Pagford era tudo o que conhecia, e não conseguia imaginar a família existindo em outro lugar.

Na hora do almoço, foi direto para a rua procurar por Bola. Acendeu um cigarro assim que saiu do pátio e ficou feliz em ouvir, enquanto guar­dava o isqueiro no bolso, uma voz feminina, que disse:

E aí?!

Gaia e Sukhvinder o alcançaram.

Tudo bem? — perguntou ele, soprando a fumaça do cigarro longe do rosto lindo de Gaia.

Os três tinham agora alguma coisa que ninguém mais tinha. Dois fins de semana de trabalho no café haviam criado uma ligação tênue entre eles. Conheciam todo o repertório de frases de Howard e suportaram o interesse lascivo de Maureen pelas suas vidas particulares. Riram juntos dos joelhos enrugados da mulher, naquele vestido de garçonete curto demais, e trocaram, como comerciantes em terra estrangeira, pequenas pérolas de informação pessoal. As garotas sabiam que o pai de Andrew tinha perdido o emprego. Andrew e Sukhvinder sabiam que Gaia estava trabalhando para juntar dinheiro e comprar uma passagem de trem para Hackney. Gaia e Andrew sabiam que a mãe de Sukhvinder odiava que a filha trabalhasse para Howard Mollison.

Onde está o seu amigo Bola? — perguntou ela, quando os três co­meçaram a andar juntos.

Sei não — respondeu Andrew. — Não vi ele ainda.

Melhor assim — disse Gaia. — Quantos desse aí você fuma por dia?

Não fico contando — respondeu ele, animado ao ver o interesse dela. — Quer um?

Não — disse Gaia. — Detesto cigarro.

Imediatamente Andrew ficou imaginando se ela também detestava beijar quem fuma. Niamh Fairbrother não tinha reclamado quando ele enfiou a língua na sua boca, na festa da escola.

Marco não fuma? — perguntou Sukhvinder.

Não, ele é atleta — respondeu Gaia.

A essa altura, Andrew já estava quase acostumado à figura de Marco de Luca. Na verdade, havia algumas vantagens naquela situação: apaixonada por alguém de fora de Pagford, Gaia estava de certa forma protegida. Com o tempo, o impacto das fotografias dos dois juntos na página do Facebook já tinha se atenuado. Não conseguia decidir se aquilo era só um desejo seu ou não, mas achava que as mensagens que deixavam um para o outro por lá estavam se tomando menos freqüentes e menos carinhosas. Não podia saber o que acontecia pelo telefone ou por e-mail, mas tinha certeza, pelo rosto de Gaia quando alguém mencionava o nome de Marco, de que ela não estava muito animada.

Olha ele ali — disse Gaia.

Não, ela não estava falando do bonitão do Marco, mas de Bola Wall, que conversava com Dane Tully do lado de fora da loja de conveniência.

Sukhvinder parou de repente, mas Gaia a puxou pelo braço.

Você pode andar por onde quiser — disse Gaia, empurrando-a delicadamente e apertando os olhos, enquanto se aproximavam do lugar onde Bola e Dane estavam.

E aí, Arf! — saudou Bola, quando os três se aproximaram.

Fala — disse Andrew.

Tentando evitar problemas, principalmente que Bola resolvesse impli­car com Sukhvinder na frente de Gaia, perguntou:

Viu a minha mensagem?

Que mensagem? — perguntou Bola. — Ah, vi... Aquela história do Si? Você vai embora, então, é isso?

Disse aquilo de um jeito tão indiferente... Andrew só podia atribuir aquela atitude à presença de Dane Tully.

É, talvez — respondeu Andrew.

Pra onde você vai? — perguntou Gaia.

O meu pai recebeu uma oferta de emprego em Reading — disse Andrew.

Ah, é onde o meu pai mora — retrucou Gaia, surpresa. — Podemos sair juntos quando eu for pra lá. O festival é o máximo. Você quer um sanduíche, Sukh?

Andrew ficou tão atordoado com a proposta de Gaia que, quando conseguiu esboçar alguma reação, ela já tinha desaparecido dentro da loja de conveniência. Por um instante, o ponto de ônibus imundo, a loja de conveniência e até mesmo Dane Tully, com as suas tatuagens, a camiseta e a calça de moletom surradas, pareciam emanar uma luz celestial.

Até mais, tenho umas coisas pra fazer — disse Bola.

Dane deu uma risadinha. E antes que Andrew pudesse dizer qualquer coisa ou se oferecer para acompanhá-lo, Bola já tinha ido embora.

Bola sabia que Andrew ficaria perplexo e magoado com o seu compor­tamento indiferente, e estava contente com isso. Não quis entender por que estava contente ou por que aquele desejo generalizado de provocar sofrimento vinha sendo a sua emoção dominante nos últimos dias. Recen­temente, tinha decidido que questionar os seus próprios motivos era uma forma de inautenticidade; um aperfeiçoamento da sua filosofia, o que a tornava, de modo geral, mais fácil de ser seguida.

Enquanto se dirigia a Fields, Bola ia pensando no que tinha acontecido na sua casa, na noite anterior. A mãe entrou no seu quarto pela primeira vez desde que Pombinho lhe deu aquele soco.

(— Aquela mensagem sobre o seu pai no site do Conselho Distrital — disse ela. — Tenho que perguntar isso, Stuart, e espero... Stuart, foi você que escreveu aquela mensagem?

Ela levou alguns dias para criar coragem de acusá-lo, e ele estava pre­parado.

Não — respondeu.

Talvez tivesse sido mais autêntico dizer sim, mas tinha preferido não falar nada, e não via por que deveria se justificar para si mesmo.

Não foi você? — perguntou ela, sem alterar a voz ou a expressão do rosto.

Não — repetiu ele.

Porque muito, muito poucas pessoas sabem o que papai... com o que ele se preocupa.

É, mas não fui eu.

O post foi colocado na mesma noite em que você e papai tiveram aquela discussão e ele lhe deu...

Já disse que não fui eu.

Você sabe que ele é doente.

É, você vive me dizendo isso.

Eu vivo dizendo isso porque é verdade! Ele não pode evitar... Tem uma doença mental séria, que causa enorme angústia e sofrimento.

O celular de Bola deu um toque, e ele olhou de relance para a mensa­gem de Andrew, que aparecia na tela. O texto foi um verdadeiro soco na boca do estômago: Arf ia embora para sempre...

Estou falando com você, Stuart...

Tá bom... O que é?

Todos esses posts... Simon Price, Parminder, papai... Você conhece todas essas pessoas. Se está por trás de tudo isso...

Já disse, não fui eu.

...está causando um mal enorme. Um mal muito sério e terrível, Stuart, à vida das pessoas.

Bola tentou imaginar a vida sem Andrew. Eles se conheciam desde que tinham cinco anos.

Não fui eu — disse mais uma vez.

Um mal muito sério e terrível à vida das pessoas.

Foram eles que fizeram as suas próprias vidas, pensou com ironia, do­brando a esquina da Foley Road. As vítimas do Fantasma de Barry Fair­brother estavam atoladas na lama da hipocrisia e das mentiras, e não gos­tavam de escândalos. Eram insetos estúpidos que fugiam da luz brilhante. Não sabiam nada da vida real.

Viu uma casa logo à frente, com um pneu careca na grama no meio do quintal. Tinha uma forte desconfiança de que aquela fosse a casa de Krystal, e, quando viu o número, soube que tinha razão. Nunca estivera ali antes e nunca teria aceitado encontrá-la em casa, na hora do almoço, quinze dias atrás. Mas as coisas haviam mudado. Ele havia mudado.

Diziam que a mãe dela era prostituta. Com certeza era viciada. Krys­tal lhe disse que estaria sozinha em casa porque a mãe iria à Clínica de Reabilitação Bellchapel receber a sua dose de metadona. Bola ca­minhou pelo quintal sem diminuir o passo, mas com uma ansiedade inesperada.

Krystal estava olhando da janela do quarto para ver quando ele che­gasse. Fechou as portas de todos os cômodos lá embaixo, de modo que ele só pudesse ver o corredor. Pegou tudo o que estava espalhado e jogou dentro da sala e da cozinha. O carpete estava gasto e queimado em algu­mas partes, e o papel de parede, manchado, mas ela não podia fazer nada a respeito disso. Não tinha sobrado nenhum desinfetante com cheiro de pinho. Ela borrifou a cozinha e o banheiro, de onde vinha o cheiro ruim da casa, com um resto de água sanitária que conseguiu encontrar.

Quando Bola bateu, ela desceu correndo. Não tinham a tarde toda pela frente. Terri devia estar de volta com Robbie à uma hora. Não era muito tempo para se fazer um bebê.

Oi — disse ela, abrindo a porta.

Tudo bem? — perguntou Bola, soltando a fumaça do cigarro pelo nariz.

Não sabia muito bem o que esperava encontrar ali. A primeira impres­são que teve do interior da casa foi a de estar dentro de uma caixa encardida e vazia. Não havia móveis, e as portas fechadas à sua esquerda e em frente eram estranhamente ameaçadoras.

Estamos sozinhos? — perguntou o garoto, assim que cruzou a soleira da porta.

Estamos. Vamos lá pra cima. Pro meu quarto.

Ela o levou. Quanto mais se embrenhava na casa, pior ficava aquele cheiro de água sanitária misturado a imundície. Bola tentava não ligar. Todos os cômodos do andar de cima estavam com a porta fechada, exceto um. Krystal entrou nele.

O garoto não queria parecer chocado, mas não havia nada no quarto a não ser um colchão, coberto com um lençol e um edredom velho, e uma pequena pilha de roupas amontoadas no canto. Na parede, umas fotos recortadas de revistas foram grudadas com fita adesiva; era uma mistura de astros da música e outras celebridades.

Krystal tinha feito a colagem na véspera, imitando a que havia na pa­rede do quarto de Nikki. Como sabia que Bola viria, quis deixar o quarto mais acolhedor. Fechou as cortinas finas, o que deu uma tonalidade azu­lada à luz do dia.

Me dá um cigarro. Tô fissurada.

Ele acendeu um para ela. Estava mais nervosa do que nunca; ele a preferia convencida e experiente.

Não temos muito tempo — disse ela, com o cigarro na boca, come­çando a tirar a roupa. — Minha mãe vai voltar logo.

É, tá na Bellchapel, né? — perguntou Bola, tentando de algum modo recuperar aquela Krystal durona.

É — respondeu, sentando-se no colchão e tirando a calça de moletom.

O que vai acontecer se eles fecharem? — perguntou o garoto, tiran­do o blazer. — Ouvi dizer que estão pensando nisso.

Não sei — respondeu Krystal, mas na verdade estava assustada. A força de vontade da mãe, frágil e vulnerável como um passarinho ainda no ninho, podia vacilar com a mais ínfima ameaça.

Ela já estava só de calcinha e sutiã. Bola tirava os sapatos quando per­cebeu alguma coisa escondida debaixo das roupas amontoadas: a caixinha de jóias de plástico aberta e, enrolado dentro dela, um relógio que ele conhecia.

Isso é da minha mãe? — perguntou, surpreso.

O quê? — retrucou Krystal, em pânico. — Não — mentiu. — Era da minha vó Cath. Não...!

Ele o tirou da caixa.

É dela — disse o garoto, reconhecendo a pulseira.

Não é porra nenhuma.

A garota estava aterrorizada. Já tinha praticamente esquecido que tinha roubado aquele relógio e de quem ele era. Bola ficou calado, e ela não gostou nada daquilo.

O relógio na mão dele a um só tempo o desafiava e repreendia. Numa sucessão rápida de imagens, se viu indo embora, colocando-o descuidadamente no bolso, ou devolvendo-o a Krystal, dando de ombros.

É meu — disse ela.

Ele não queria dar uma de polícia. Queria ser sem lei. Mas só o devol­veu a ela e continuou tirando a roupa quando lembrou que aquele relógio tinha sido um presente de Pombinho. Vermelha, Krystal tirou a calcinha e o sutiã e entrou, nua, debaixo do edredom.

Bola se aproximou dela, de cueca samba-canção, segurando uma ca­misinha ainda na embalagem.

Não vamos precisar disso — disse ela, com firmeza. — Tô tomando pílula agora.

Ah, tá?

Ela se afastou para dar lugar a ele no colchão. Bola entrou debaixo do edredom.

Enquanto tirava a cueca, ficou se perguntando se ela estaria mentindo sobre a pílula como estava sobre o relógio. Mas queria experimentar sem camisinha, para variar.

Vai logo — sussurrou ela, pegando o pacotinho quadrado da mão dele e o atirando sobre o blazer largado no chão.

Bola imaginou Krystal grávida de um filho seu; a cara que Tessa e Pom­binho fariam quando lhes desse a notícia. Um filho em Fields, a sua carne e o seu sangue. Pombinho jamais agüentaria um baque desses.

Foi para cima dela. Isso, ele sabia, era a vida real.

 

Às seis e meia da tarde, Howard e Shirley Mollison entraram no salão da igreja de Pagford. Shirley estava carregando uma pilha de papéis, e Ho­ward usava o colar oficial de presidente do Conselho, decorado com as cores azul e branca das insígnias de Pagford.

O assoalho rangeu sob o peso maciço de Howard, enquanto ele se diri­gia à cabeceira das mesas arranhadas, que já estavam dispostas ali, uma co­lada à outra. Howard gostava tanto desse salão quanto da sua própria loja. As escoteiras o usavam nas terças, e o Instituto das Mulheres, nas quartas. Ele tinha sediado bazares beneficentes e comemorações de datas espe­ciais, recepções de casamento e velórios, e cheirava a todas essas coisas: a roupas usadas e café; a bolo caseiro e salada de batata; a poeira e corpos humanos; mas fundamentalmente a madeira envelhecida e pedra. Lustres em bronze batido pendiam das vigas do teto em grossos cabos pretos, e as portas de mogno entalhadas conduziam até a cozinha.

Shirley circulava de um lado para o outro, distribuindo papéis. Adora­va as reuniões do Conselho. Além de ficar orgulhosa e se divertir vendo Howard presidi-las, Maureen não participava delas. Como não tinha ne­nhuma obrigação oficial, devia se contentar com as migalhas que Shirley se dignasse a partilhar com ela.

Os outros conselheiros foram chegando sozinhos ou aos pares. Ho­ward os cumprimentava efusivamente, a voz trovejante ecoando pelas vi­gas do teto. Era raro os dezesseis membros do Conselho comparecerem às reuniões; hoje ele esperava que viessem doze.

Metade das cadeiras já estava ocupada quando Aubrey Fawley chegou, andando daquele seu jeito habitual, como se estivesse enfrentando uma ventania, parecendo fazer um grande esforço, com o tronco ligeiramente encurvado e a cabeça baixa.

Aubrey! — exclamou Howard, alegremente, e pela primeira vez se adiantou para cumprimentar um recém-chegado. — Como vai? E Julia? Receberam o meu convite?

Desculpe, eu não...

Para os meus sessenta e cinco anos? Aqui... no sábado... depois da eleição.

Ah, claro, claro. Howard, tem uma jovem lá fora... Ela disse que é da Gazeta de Yarvil e Adjacências. Alison qualquer coisa.

Ah... — replicou Howard. — Estranho. Acabei de mandar o meu artigo para ela, sabe, o que escrevi em resposta ao de Fairbrother... Talvez tenha alguma coisa a ver com isso. Vou até lá.

Ele se afastou, adernando o corpo de um lado para o outro, cheio de pressentimentos vagos. Parminder Jawanda entrou quando ele se aproxi­mava da porta. Com as sobrancelhas franzidas, como de costume, passou direto por ele, sem o cumprimentar, e pela primeira vez Howard não per­guntou "Tudo certinho com Parminder?".

Lá fora, no pátio, encontrou uma mulher jovem e loura, atarracada e de ombros largos, com uma aura de animação imperturbável, com a qual Howard se identificou de imediato. Ela estava segurando um notebook, observando as iniciais esculpidas na porta dupla.

Olá, olá — disse Howard, respirando com certa dificuldade. — Ali­son, não é? Howard Mollison. Você veio até aqui só para me dizer que escrevo muito mal?

Ela sorriu e apertou a mão que ele lhe estendeu.

Ah, não, gostamos do artigo — assegurou ela. — É que, como as coisas estão ficando bem interessantes, pensei em vir assistir à reunião. Tem algum problema? A presença de jornalistas é permitida, não é? Andei dando uma olhada no regulamento.

Ela se dirigia para a porta enquanto falava.

Claro, claro, os jornalistas podem assistir às reuniões do Conselho — disse Howard, seguindo-a. Deteve-se, porém, na porta do salão, num gesto cortês, para deixar que ela entrasse primeiro. — Exceto quando há casos que precisam ser discutidos a portas fechadas.

Ela o encarou, e ele pôde ver os seus dentes, mesmo na luz fraca do fim de tarde.

Como todas essas mensagens anônimas no seu site, fazendo acusa­ções? Do Fantasma de Barry Fairbrother?

Ah, querida — respondeu Howard, chiando a cada expiração e sor­rindo para ela. — Com certeza elas não interessam ao seu jornal. São só uns comentários tolos de internet.

Foram somente alguns? Disseram que a maior parte foi removida do site.

Não, não, estão enganados — respondeu Howard. — Foram apenas dois ou três, que eu saiba. Brincadeiras de mau gosto. Pessoalmente — acrescentou ele, improvisando mais que depressa —, acho que isso é coisa de garoto.

Garoto?

É, adolescentes se divertindo.

Adolescentes teriam como alvo os conselheiros distritais? — per­guntou ela, ainda sorrindo. — Ouvi dizer que uma das vítimas perdeu o emprego. Possivelmente por causa das alegações feitas contra ele no seu site.

Isso é novidade para mim — disse Howard, mentindo. Shirley tinha encontrado com Ruth lá no hospital na véspera e ficou sabendo dessa história.

Vi na pauta — disse Alison, quando os dois finalmente entraram na sala toda iluminada — que vocês vão discutir sobre a Bellchapel. O sr. Fairbrother e o senhor fizeram boas observações sobre os dois lados da questão nos seus artigos... Recebemos algumas cartas depois da publica­ção do texto do sr. Fairbrother. Meu editor ficou satisfeito. Qualquer coisa que faça as pessoas escreverem para o jornal...

É, li essas cartas — comentou Howard. — Ninguém parece ter nada de bom a dizer sobre a clínica, não é?

Os conselheiros à mesa estavam observando os dois. Alison Jenkins olhou para eles, com um sorriso imperturbável.

Deixe-me pegar uma cadeira para você —- disse Howard. Ligeira­mente ofegante, levantou uma delas e a colocou a uns trinta centímetros da mesa.

Obrigada — disse Alison, puxando a cadeira uns quinze centíme­tros mais para perto.

Senhoras e senhores — alertou Howard. — A imprensa estará pre­sente na nossa sessão de hoje à noite. Apresento-lhes a srta. Alison Jenkins, da Gazeta de Yarvil e Adjacências.

Alguns dos conselheiros se mostraram interessados na presença de Ali­son e até contentes com isso, mas a maioria parecia desconfiada. Howard voltou com dificuldade para o seu lugar na cabeceira da mesa, perto de Aubrey e Shirley, que o observavam sem entender nada.

O Fantasma de Barry Fairbrother — disse a eles, em voz baixa, enquanto se sentava com todo o cuidado numa cadeira de plástico (ti­nha quebrado uma delas duas reuniões antes). — E Bellchapel. Ah, aí está você, Tony — gritou ele, dando o maior susto em Aubrey. — Venha, Tony... E vamos dar mais uns minutinhos para Henry e Sheila chegarem também, pode ser?

O burburinho da conversa em volta da mesa estava levemente mais baixo do que de costume. Alison Jenkins já escrevia algo no seu notebook. Tudo culpa de Barry Fairbrother, pensou Howard, irritado. Ele era o conse­lheiro que convidava a imprensa para as reuniões. Por um breve instante, Howard pensou em Barry e no seu Fantasma como uma única e mesma pessoa, um encrenqueiro vivo ou morto.

Como Shirley, Parminder havia trazido um monte de papéis para a reunião. No alto daquela pilha estava a pauta, que ela fingia ler para não ter de falar com ninguém. Na verdade, estava pensando na mulher senta­da praticamente atrás dela. A Gazeta de Yarvil e Adjacências publicou uma nota sobre a morte de Catherine Weedon e a acusação da família contra a médica. O nome de Parminder não tinha sido citado, mas, sem dúvida alguma, a jornalista sabia quem ela era. Talvez Alison também soubesse do post anônimo a seu respeito no site do Conselho.

Calma! Você está ficando igual a Colin.

Howard já estava lendo as justificativas de não comparecimento e pe­dindo para alterar a ordem de alguns tópicos previstos na pauta, mas Par­minder mal podia ouvi-lo por causa do som do próprio sangue pulsando nos seus ouvidos.

Agora, a menos que alguém tenha alguma objeção — anunciou Howard —, vamos tratar dos itens oito e nove primeiro, porque o con­selheiro municipal Fawley tem novidades a respeito de ambos, e não vai poder ficar conosco por muito tempo...

Tenho que sair às oito e meia — disse Aubrey, olhando para o relógio.

...claro, então, a menos que haja alguma objeção... Ninguém?... A palavra é sua, Aubrey.

Aubrey começou a falar de um jeito simples e desapaixonado. Havia uma nova revisão de limites a caminho, e, pela primeira vez, fora de Pagford, manifestava-se o desejo de reintegrar Fields a Yarvil. Aparen­temente, arcar com os custos relativamente baixos que Pagford tinha com Fields era algo que valia a pena aos olhos daqueles que esperam trazer para Yarvil votos de oposição ao governo. Ali, eles fariam uma di­ferença considerável, ao passo que em Pagford, que desde os anos 1950 vinha se mantendo como um reduto conservador, eles estariam sendo desperdiçados. A coisa toda poderia ser feita a pretexto de simplificação e eficiência: afinal, Yarvil já fornece quase todos os serviços para o bairro.

Aubrey concluiu dizendo que, se Pagford realmente desejava eliminar aquele bairro da sua jurisdição, seria muito útil que o vilarejo comunicasse o seu desejo ao Conselho Municipal.

...uma mensagem clara e direta... — disse ele —, e acho que real­mente dessa vez...

Nunca funcionou antes — disse um fazendeiro, e ouviu-se um burburinho geral de concordância.

Mas agora vai funcionar, John. Nós nunca fomos convidados a dar a nossa opinião antes — retrucou Howard.

Não devíamos decidir qual é a nossa posição antes de declará-la publicamente? — perguntou Parminder, com voz gélida.

Certo — disse Howard, indiferente. — Gostaria de começar, dra. Jawanda?

Não sei quantas pessoas leram o artigo de Barry na Gazeta — prin­cipiou Parminder. Todos os rostos se voltaram para a médica, e ela tentou não pensar no post anônimo ou na jornalista sentada bem ali atrás. — Acho que ele apresenta argumentos convincentes para que Fields seja mantido como parte de Pagford.

Parminder viu Shirley, que estava escrevendo diligentemente, dar um sorrisinho para a caneta.

Dizendo como isso beneficiou pessoas como Krystal Weedon? — perguntou Betty, uma senhora idosa que estava na ponta da mesa. Parmin­der sempre odiou aquela mulher.

Lembrando que as pessoas que moram em Fields também fazem parte da nossa comunidade — respondeu ela.

Eles se consideram parte de Yarvil — disse o fazendeiro. — Sempre foi assim.

Eu me lembro do dia em que Krystal Weedon empurrou outra criança no rio durante um passeio da escola — afirmou Betty.

Não foi bem assim — contestou Parminder, com raiva. — Minha filha estava lá... Foram dois garotos brigando... De todo modo...

Ouvi dizer que tinha sido Krystal Weedon — insistiu Betty.

Ouviu errado — retrucou Parminder, tão exaltada que chegou a gritar.

Todos ficaram chocados. Ela também. O eco da sua voz reverberou nas paredes velhas. Parminder mal podia engolir; manteve a cabeça baixa, olhan­do fixamente para a pauta, e ouviu a voz de John vinda lá do outro lado.

Barry teria feito melhor se tivesse falado de si mesmo, e não daquela garota. Ele, sim, foi muito beneficiado por estudar na St. Thomas.

O problema é que, para cada Barry — disse outra mulher —, fica­mos com um monte de marginais.

Eles são gente de Yarvil, ponto final — sentenciou um homem. — Eles pertencem a Yarvil.

Isso não é verdade — rebateu Parminder, mantendo deliberadamente a voz baixa, embora todos tenham se calado para ouvi-la, esperando vê-la gritar outra vez. — Não é verdade mesmo. Vejam os Weedon. Esse era o ponto central do artigo de Barry. Eles são uma família de Pagford há muitas gerações, mas...

Mas se mudaram para Yarvil! — disse Betty.

Não havia moradia aqui — disse Parminder, lutando contra a pró­pria raiva —, e nenhum de vocês queria novas construções na periferia da cidade.

Vocês não estavam aqui, sinto muito — disse Betty, com o rosto vermelho, olhando ostensivamente para o lado oposto de Parminder. — Vocês não conhecem a história.

Todos começaram a falar ao mesmo tempo. De repente, havia uma sé­rie de grupinhos conversando, e Parminder não conseguia ouvir nada do que eles diziam. Com um nó na garganta, não se atrevia a olhar ninguém nos olhos.

Vamos votar? — perguntou Howard, gritando da cabeceira da mesa, e todos fizeram silêncio novamente. — Quem for a favor de informar ao Conselho Municipal que Pagford ficará feliz com a redefinição dos limi­tes, tirando Fields da nossa jurisdição, levante a mão.

As mãos de Parminder estavam fechadas no seu colo com tanta força que ela podia sentir as unhas entrando na própria carne. Houve um ruído de braços se erguendo ao redor dela.

Excelente! — exclamou Howard, e o êxtase na sua voz ressoou triunfante pelas vigas do teto. — Bem, Tony, Helen e eu vamos redigir um texto e o enviaremos a todos vocês. Se for aprovado, acabamos logo com isso. Excelente!

Alguns conselheiros aplaudiram. Os olhos de Parminder ficaram enevoados, e ela começou a piscar com força. A pauta parecia girar, entrando e saindo de foco. Fez-se um silêncio tão longo que ela acabou erguendo os olhos: Howard, em sua excitação, teve que recorrer à bombinha, e a maioria dos conselheiros o observava com ar solícito.

Bem, então — disse Howard, ainda chiando ao respirar. Pôs a bom­binha de lado, com o rosto vermelho e sorridente, e prosseguiu. — A me­nos que alguém tenha algo mais a acrescentar — fez uma ligeira pausa —, podemos passar ao item nove. A Bellchapel. Aubrey tem algo a nos dizer sobre essa questão também.

Barry não deixaria isso acontecer. Ele teria discutido. Teria feito John rir e votar conosco. Ele devia ter escrito sobre si mesmo e não sobre Krystal.., Eu o decepcionei.

Obrigado, Howard — disse Aubrey, enquanto o sangue latejava nos ouvidos de Parminder, e ela enfiava ainda mais as unhas nas palmas das mãos. — Como todos sabem, temos que fazer cortes drásticos na adminis­tração municipal...

Ela sempre foi apaixonada por mim, e mal conseguia esconder isso cada vez que me olhava...

...e um dos projetos que temos que examinar é a Bellchapel — pros­seguiu Aubrey. — Achei que devia dizer algumas palavras, porque, como sabem, o prédio pertence ao distrito de Pagford...

...e o contrato está chegando ao fim — acrescentou Howard. — É isso.

Mas ninguém está interessado naquele lugar, está? — perguntou um contador aposentado do outro lado da mesa. — Está em muito mau estado, pelo que ouvi dizer.

Ah, tenho certeza de que a gente pode achar um novo inquilino — disse Howard, com toda a tranqüilidade —, mas essa não é a questão. A questão aqui é saber se achamos que a clínica está fazendo um bom...

Essa não é a questão aqui, de jeito nenhum — disse Parminder, cortando-o. — Não é atribuição do Conselho Distrital decidir se a clínica está fazendo um bom trabalho ou não. Nós não destinamos recursos para financiar o trabalho deles. Então isso não é da nossa competência.

Mas somos os donos do prédio — disse Howard, ainda sorrindo, sempre educado —, então acredito que é natural que queiramos conside­rar...

Se vamos considerar as informações sobre o trabalho da clínica, acho que é muito importante que tenhamos um retrato justo do que é feito por lá — retrucou Parminder.

Me desculpe — disse Shirley, voltando-se para Parminder, piscando os olhos. — Mas será que poderia fazer a gentileza de não interromper o presidente, dra. Jawanda? É dificílimo tomar notas quando as pessoas falam junto com as outras. E agora fui eu que interrompi — acrescentou, sorrindo. — Me desculpe.

Imagino que a comunidade queira manter os recursos que arreca­damos com o prédio — disse Parminder, ignorando Shirley. — E, que eu saiba, não temos outro potencial inquilino em vista. Então me pergunto por que teríamos que considerar o fim do contrato com a clínica.

Eles não curam os pacientes — disse Betty. — Simplesmente lhes dão mais drogas. E eu ficaria bem feliz de vê-los fora dali.

Nós vamos ter que tomar decisões bem difíceis no Conselho Mu­nicipal — afirmou Aubrey Fawley. — O governo está querendo uma eco­nomia de mais de um bilhão das administrações locais. Não vamos poder continuar oferecendo determinados serviços como fazíamos antes. Essa é a realidade.

Parminder odiava o modo como os conselheiros agiam com Aubrey, bebendo as suas palavras ditas com aquela voz profunda e modulada, e as- sentindo gentilmente enquanto ele falava. Sabia perfeitamente que alguns deles a chamavam de Aluga-Ouvido.

Pesquisas mostram que o uso de drogas ilícitas aumenta durante períodos de recessão — disse Parminder.

Porque eles querem — falou Betty. — Ninguém os obriga a usar drogas.

A médica olhou ao seu redor, buscando apoio para o que tinha dito. Shirley sorriu para ela.

Vamos ter que fazer escolhas duras — disse Aubrey.

Então estão de acordo com Howard — interrompeu-o Parminder —, e já decidiram que vão dar à clínica um empurrãozinho, obrigando-a a sair do prédio.

Posso listar maneiras muito melhores de gastar o dinheiro do que com um bando de criminosos — disse o contador.

Eu cortaria todos os benefícios deles — declarou Betty.

Fui convidado para essa reunião para deixá-los a par do que está acontecendo na administração municipal — disse Aubrey calmamente. — Nada além disso, dra. Jawanda.

Helen — bradou Howard, apontando para outra conselheira, cuja mão estava levantada e que, havia alguns minutos, tentava dar a sua opi­nião.

Parminder não ouviu nada do que a mulher disse. Já tinha até se es­quecido da pilha de papéis que estava debaixo da pauta, à qual Kay Bawden dedicou tanto tempo: as estatísticas, o perfil dos casos de sucesso, a explicação dos benefícios do uso da metadona contra a dependência de heroína, estudos mostrando o custo financeiro e social dessa dependência. Tudo à sua volta parecia estar se dissolvendo, tornando-se ligeiramente irreal. Sabia que explodiria como jamais havia explodido na vida, e não havia mais como lamentar, prevenir ou fazer qualquer coisa, exceto ver acontecer. Era tarde, tarde demais...

...a cultura dos direitos adquiridos — disse Aubrey. — Pessoas que praticamente nunca trabalharam um dia sequer na vida.

E, convenhamos — pontificou Howard —, esse é um problema com uma solução muito simples. Parem de usar drogas.

Ele se virou para Parminder sorrindo, conciliador.

Chamam isso de abstinência, não é assim, dra. Jawanda?

Ah, então você acha que eles devem assumir a responsabilidade pelo seu vício e mudar o seu comportamento, é isso? — perguntou Parminder.

De forma simplificada, sim.

Antes que gastem mais dinheiro do governo.

Exata...

E você? — perguntou Parminder bem alto, enquanto a explosão silenciosa começava a tomar conta dela. — Sabe quantos milhares de li­bras você, Howard Mollison, custa ao serviço de saúde, por causa de sua incapacidade de parar de se empanturrar?

Uma mancha vermelho-escura intensa se espalhava pelo pescoço de Howard e ia subindo pelo seu rosto.

Sabe quanto a sua ponte de safena custou ao governo, e os remédios, e a sua longa estada no hospital? E as consultas médicas a que você vai por causa da asma, da pressão alta e daquela erupção cutânea horrorosa...? Tudo isso causado pela sua recusa em perder peso.

À medida que a voz de Parminder ia se transformando em gritos estri­dentes, outros conselheiros começaram a protestar em defesa de Howard. Shirley se pôs de pé, e Parminder continuava berrando, recolhendo os pa­péis que, sabe-se lá como, tinham se espalhado enquanto ela gesticulava.

E quanto ao sigilo médico? — berrava Shirley. — Ultrajante. Isso é absolutamente ultrajante.

Parminder já passava apressada pela porta, quando ouviu, a despeito do seu próprio choro convulsivo, Betty pedir a sua expulsão imediata do Conselho. Estava fugindo do salão sabendo que tinha provocado um cataclismo, e não queria mais nada além de ser tragada pela escuridão e desaparecer para sempre.

 

A Gazeta de Yarvil e Adjacências foi, no mínimo, excessivamente caute­losa ao relatar o que havia sido dito durante a mais cáustica reunião do Conselho Distrital de Pagford. Fez pouca diferença. O relato atenuado do jornal foi generosamente aumentado pelas vividas descrições das teste­munhas oculares, oferecidas por todos os que estiveram presentes, e ainda gerava um falatório indiscriminado. Para piorar ainda mais as coisas, uma matéria de primeira página detalhava os ataques anônimos na internet com o nome do homem morto, que, para citar Alison Jenkins, "causaram muita especulação e raiva. Ver reportagem integral na página quatro". Ain­da que os nomes dos acusados e os detalhes das suas supostas transgressões não tenham sido revelados, ver os termos "alegações sérias" e "atividades criminosas" impressos no papel perturbou Howard muito mais do que os posts originais.

Nós devíamos ter reforçado a segurança do site assim que o primei­ro post apareceu — disse ele, se dirigindo à mulher e à sócia em frente à lareira.

Uma chuvinha miúda de primavera batia na janela, e a grama es­cura reluzia com minúsculos pontinhos avermelhados de luz. Howard chegava a tremer e monopolizava todo o calor que emanava do carvão artificial. Por vários dias, quase todo cliente da delicatéssen e do café falava sobre os posts anônimos, sobre o Fantasma de Barry Fairbrother e sobre a explosão de Parminder Jawanda na reunião do Conselho. Ho­ward odiava que todos agora estivessem comentando o que ela lhe disse, aos berros. Pela primeira vez na vida, não se sentia à vontade na sua loja e estava preocupado com a sua reputação antes inabalável em Pagford. A eleição para a substituição de Barry Fairbrother no Conselho aconteceria no dia seguinte, e, se antes isso o deixava animado e otimista, agora gerava preocupação e nervosismo.

Toda essa história causou um mal enorme. Um mal enorme — re­petia ele.

A sua mão avançava pela barriga para se coçar, mas ele a tirava rapi­damente dali, suportando a coceira com a resignação de um mártir. Não esqueceria tão cedo o que a dra. Jawanda havia gritado para o Conselho e para a imprensa. Ele e Shirley já tinham examinado as determinações do Conselho Geral de Medicina, procurado o dr. Crawford e apresentado uma queixa formal. Parminder não tinha sido vista no trabalho desde en­tão, porque sem dúvida já se arrependera daquela explosão. No entanto, Howard não podia esquecer o que viu no seu rosto enquanto ela gritava. Nunca havia visto tanto ódio no rosto de um outro ser humano, e isso o deixou transtornado.

Daqui a pouco ninguém mais vai falar sobre isso — assegurou-lhe Shirley.

Não tenho tanta certeza — disse Howard. — Não tenho tanta cer­teza. Isso denigre a nossa imagem. A do Conselho. Brigas na frente da imprensa. Parece que estamos divididos. Aubrey disse que o Conselho Municipal não ficou nada satisfeito. Essa coisa toda enfraquece a nossa decisão sobre Fields. Bate-boca em público, tudo vai ficando enlameado... Fica parecendo que o Conselho não está falando em nome do vilarejo.

Mas estamos — disse Shirley, com uma risadinha. — Ninguém mais quer Fields em Pagford... Bem, quase ninguém.

A reportagem fez parecer que o nosso lado está se impondo sobre os pró-Fields. Que tentamos intimidá-los — disse Howard, sucumbindo à tentação de se coçar e fazendo isso com vontade. — Tudo bem que Au­brey sabe que não foi ninguém do nosso lado, mas não foi isso que aquela jornalista fez parecer. E vou lhe dizer uma coisa: se Yarvil nos fizer parecer desonestos e ineptos... Eles procuram por uma chance de nos colocar sob a sua jurisdição há anos.

Isso não vai acontecer — rebateu Shirley imediatamente. — Isso não pode acontecer.

Eu pensei que tivesse acabado — disse Howard, ignorando a mu­lher e falando de Fields. — Pensei que havíamos conseguido. Que tínha­mos nos livrado deles.

O artigo ao qual dedicara tanto tempo, explicando por que o bairro e a Clínica de Reabilitação Bellchapel drenavam os recursos de Pagford e manchavam o seu nome, tinha sido completamente obscurecido pelo es­cândalo da explosão de Parminder e pelo Fantasma de Barry Fairbrother. Howard agora já nem se lembrava do prazer que sentiu ao ler as acusações contra Simon Price, e que não lhe passara pela cabeça remover o tal post até que a mulher de Simon pediu que o tirassem de lá.

O Conselho Municipal me mandou um e-mail — disse ele a Mau­reen — com uma série de perguntas sobre o site. Queriam saber que pre­cauções estamos tomando para evitar a difamação. Acham que a seguran­ça é negligente.

Shirley, que viu nesse comentário uma crítica pessoal, retrucou fria­mente:

Eu disse que já cuidei disso, Howard.

O sobrinho de uns amigos do casal tinha passado por lá na véspera, en­quanto Howard estava no trabalho. O rapaz estava quase se formando em ciência da computação. Recomendou a Shirley que tirassem do ar aquele site ridiculamente fácil de ser hackeado e chamassem "alguém que saiba o que está fazendo" para desenvolver um novo.

Shirley mal entendeu todo o jargão técnico que ele havia usado. Sabia que hackear era violar sistemas ilegalmente, e, quando o estudante parou de falar aquela língua incompreensível, ficou toda confusa, com a impres­são de que o Fantasma havia conseguido de alguma maneira descobrir a senha das pessoas, talvez apenas perguntando a elas astuciosamente du­rante uma conversação casual.

Já tinha mandado e-mails pedindo a todos que trocassem as suas senhas e não as revelassem a ninguém. Era o que queria dizer com "já cuidei disso".

Quanto à sugestão de tirar do ar o site do qual era curadora e guardiã, Shirley não tomou nenhuma providência e nem sequer comentou o fato com Howard. Tinha medo de que um site com todas as medidas de segu­rança sugeridas por aquele rapaz pretensioso estivesse muito além das suas habilidades técnicas e administrativas. Já tinha atingido o limite da sua capacidade, mas estava determinada a manter o posto de administradora.

Se Miles for eleito... — principiou Shirley, mas logo foi interrompi­da pela voz grave de Maureen.

Vamos torcer para que toda essa coisa desagradável não arranhe a sua candidatura. Vamos torcer para que não haja nenhuma repercussão contra ele.

As pessoas sabem que Miles não tem nada a ver com isso — disse Shirley, com frieza.

Sabem mesmo? — retrucou Maureen, e Shirley a odiou. Como se atrevia a se sentar na sala dela e contradizê-la? E, o que era pior, Howard estava balançando a cabeça, concordando com Maureen.

Essa é a minha preocupação — disse ele. — E precisamos de Miles mais do que nunca, para dar novamente alguma coesão ao Conselho. De­pois que Aluga-Ouvido disse o que disse... depois de todo aquele tumulto... nós nem votamos sobre a Bellchapel. Precisamos de Miles.

Shirley já tinha saído da sala, num protesto mudo por Howard ter fi­cado do lado de Maureen. Foi para a cozinha preparar o chá, irritada, pensando se não devia levar só duas xícaras, para a outra entender que não era bem-vinda, afinal, ela bem que merecia.

No fundo, tudo o que sentia pelo Fantasma era uma admiração desa­fiadora. As acusações dele tinham exibido toda a verdade sobre pessoas das quais ela não gostava e a quem desprezava; pessoas que eram teimosas e destrutivas. Tinha certeza de que o eleitorado de Pagford veria as coisas como ela e votaria em Miles, e não naquele homem repulsivo, o tal Colin Wall.

Quando temos que ir votar? — perguntou Shirley, entrando na sala novamente com a bandeja de chá tilintando, e ignorando Maureen de forma proposital (porque era o nome do filho deles que todos marcariam na cédula).

Mas, para piorar a sua irritação, ouviu Howard sugerir que eles três fossem juntos, depois de fechar a loja.

Miles Mollison estava quase tão preocupado quanto o pai, achando que aquele clima de irritação sem precedentes nos dias que antecediam a eleição pudesse afetar as suas chances eleitorais. Naquela manhã, entrou na loja de conveniência da praça e ouviu um pedaço da conversa entre a mulher do caixa e um cliente já bem idoso.

...Mollison sempre achou que era o rei de Pagford — dizia o velho, sem ligar para a expressão impassível da atendente da loja. — Eu gostava de Barry Fairbrother. Foi uma tragédia. Uma tragédia. O filho do Mollison fez nossos testamentos, e achei ele muito metido a besta.

Ao ouvir isso, Miles ficou sem jeito, deu meia-volta e saiu dali, com o rosto pegando fogo como um garoto de escola. Perguntava-se se não teria sido este velho tão bem-articulado que enviou aquela carta anônima. A sua crença de que todos gostavam muito dele estava abalada, e ficou ten­tando imaginar como se sentiria se ninguém votasse nele no dia seguinte.

Quando estava se despindo para ir deitar naquela noite, ficou ob­servando o reflexo da esposa no espelho da penteadeira. Há dias Sa­mantha vinha sendo sarcástica sempre que ele mencionava a eleição. Gostaria de receber algum apoio, algum conforto naquela noite. E estava excitado também. Já fazia muito tempo. Parando para pensar, achou que havia sido na noite anterior à morte de Barry Fairbrother. Ela estava um pouco bêbada. Mas, nos últimos tempos, ela sempre precisava estar um pouco bêbada.

Como foi o trabalho? — perguntou ele, vendo-a tirar o sutiã na frente do espelho.

Samantha não respondeu imediatamente. Esfregou as marcas verme­lhas deixadas pelo sutiã apertado debaixo dos braços e então disse, sem olhar para Miles:

Estava mesmo querendo conversar com você sobre isso.

Detestava ter que tocar nesse assunto. Era algo que vinha adiando há semanas.

Roy acha que tenho que fechar a loja. Ela não está indo muito bem.

Não dava para lhe dizer até que ponto os negócios iam mal: isso seria um choque para Miles. Ela própria ficou chocada quando o contador ex­pôs a situação em termos bem claros. Ela já sabia e não sabia. É estranho como a nossa cabeça pode saber o que o coração se recusa a aceitar.

Ah — exclamou Miles. — Mas vai ficar com o site?

Vou.

Isso é bom — disse Miles, encorajando-a. Esperou quase um minu­to, em respeito à morte da loja, e então prosseguiu: — Imagino que você não tenha visto a Gazeta hoje.

Samantha pegou a camisola em cima do travesseiro, e ele deu uma boa olhada nos seios dela. Sem dúvida, sexo hoje o ajudaria a relaxar.

E uma pena, Sam — disse ele, engatinhando pela cama às suas costas e esperando que ela vestisse a camisola, para só então abraçá-la. — Essa história da loja. Era um lugarzinho fantástico. E já são quantos anos... dez?

Quatorze — respondeu ela.

Sabia o que ele queria. Pensou em dizer para ele ir se foder e fugir para o quarto de hóspedes, mas o problema era que então haveria discussão e ficaria um climão entre eles, e o que ela queria mais do que tudo no mundo era poder ir para Londres com Libby dali a dois dias, usando a camiseta que tinha comprado para as duas, e ficar bem perto de Jake e dos seus companheiros de banda por uma noite inteira. Samantha tinha depositado toda a sua felicidade na perspectiva daquela viagem. Mas não era só isso: o sexo podia amenizar o aborrecimento que Miles vinha de­monstrando por ela não ir ao aniversário de Howard.

Deixou então que ele a abraçasse e beijasse. Fechou os olhos, subiu em cima do marido e se imaginou cavalgando Jake numa praia deserta de areia branca, ela com dezenove anos, e ele com vinte e um. E gozou imaginando que Miles os observava, furioso, com um binóculo, de um pedalinho distante.

Às nove da manhã do dia da eleição para a vaga de Barry no Conselho Distrital, Parminder deixou a antiga casa paroquial e subiu a Church Row, para passar na casa dos Wall. Bateu à porta e esperou até que, finalmente, Colin apareceu.

Ele estava com olheiras profundas, os olhos vermelhos e o rosto encovado. A sua pele parecia ter se tornado mais fina, e as suas roupas, maiores. Ainda não tinha voltado ao trabalho. Saber que Parminder havia revelado informações médicas confidenciais sobre Howard em público aos berros interrompeu o processo ainda tão incipiente da sua recuperação. Aquele Colin robusto de algumas noites atrás, que se sentou no pufe de couro e fingia estar confiante na vitória, parecia nunca ter existido.

Está tudo bem? — perguntou ele, fechando a porta, desconfiado.

Está, sim — respondeu ela. — Pensei que você quisesse ir até o salão da igreja comigo para votarmos.

Eu... não — replicou ele, de forma quase inaudível. — Desculpe.

Sei como se sente, Colin — disse a médica em voz baixa, mas firme. — Mas, se não votar, eles vão vencer. E não vou deixar eles vencerem. Vou até lá e vou votar em você, e quero que venha comigo.

Parminder tinha sido efetivamente suspensa do trabalho. Os Mollison apresentaram queixa formal a todas as associações profissionais cujo endere­ço conseguiram achar, e o dr. Crawford aconselhou Parminder a tirar uma licença. Para a sua grande surpresa, ela se sentiu estranhamente aliviada.

Mas Colin insistia, fazendo que não com a cabeça. E Parminder achou que tinha visto lágrimas nos seus olhos.

Não consigo, Minda.

Consegue, sim — disse ela. — Você consegue, Colin! Tem que fazer frente a eles. Pense em Barry!

Não consigo... Desculpe... Eu...

Ele pareceu engasgar, e então caiu no choro. Colin já tinha chorado na frente dela antes, lá na clínica, soluçando convulsivamente, desespera­do com o peso do medo que carregava todos os dias da sua vida.

Venha comigo — disse ela, sem ficar constrangida, e o segurou pelo braço, conduzindo-o até a cozinha. Lá lhe estendeu um papel-toalha e o deixou se entregar ao choro. — Onde está Tessa?

No trabalho — gaguejou ele, enxugando os olhos.

Havia um convite para a festa de aniversário de sessenta e cinco anos de Howard Mollison na mesa da cozinha; alguém o tinha rasgado bem no meio.

Recebi um desses também — disse Parminder. — Antes de gritar com ele. Ouça, Colin. Votar...

Não consigo — sussurrou Colin.

...vai mostrar a eles que não nos derrotaram.

Mas eles nos derrotaram — respondeu Colin.

Parminder caiu na gargalhada. Depois de ficar olhando para ela por um instante, boquiaberto, Colin começou a rir também: uma risada sono­ra como o latido de um cachorro grande.

Certo, eles nos tiraram dos nossos empregos — disse Parminder —, e nenhum de nós está querendo sair de casa, mas, fora isso, acho que, na verdade, estamos muito bem.

Colin tirou os óculos e pressionou o papel-toalha nos olhos molhados, sorrindo.

Vamos lá, Colin. Quero votar em você. Ainda não acabou. Depois que eu perdi as estribeiras e disse a Howard que ele não era melhor do que um drogado na frente do Conselho inteiro e da imprensa local...

Colin começou a rir de novo, e ela ficou contente. Não o via rir assim desde o Ano-Novo, e foi Barry que o tinha feito rir.

...eles se esqueceram de votar o despejo da Clínica Bellchapel. En­tão, por favor, pegue o seu casaco. Vamos até lá juntos.

Colin parou de fungar e de dar risadinhas nervosas. Olhava as próprias mãos, esfregando uma na outra, como se as estivesse lavando.

Ainda temos uma chance, Colin. Você pode fazer a diferença. As pessoas não gostam dos Mollison. Se você entrar, vamos ficar numa posi­ção muito mais forte para lutar. Por favor, Colin.

Está certo — concordou ele, depois de alguns instantes, impressio­nado com a própria ousadia.

Era uma caminhada curta no ar fresco e puro, cada um segurando com força o seu título de eleitor. Não havia ninguém votando àquela hora no salão da igreja, exceto eles. Os dois fizeram um X ao lado do nome de Colin e saíram dali com a sensação de alívio de quem não foi apanhado em flagrante.

Até o meio-dia, Miles Mollison não tinha ido votar. Quando estava saindo do escritório, parou na porta da sala do seu sócio.

Estou indo votar, Gav — anunciou.

Gavin fez sinal mostrando que estava ao telefone; falava com a compa­nhia de seguros de Mary.

Ah... Desculpe... Estou indo votar, Shona — disse Miles, se virando para a secretária.

Não custava nada lembrar que contava com o apoio deles. Desceu a escada correndo e se dirigiu para o Copper Kettle, onde tinha combinado de encontrar a mulher, numa conversa breve depois do sexo da véspera, para que pudessem ir juntos até o salão da igreja.

Samantha passou a manhã em casa, deixando a loja aos cuidados da sua funcionária. Sabia que não podia mais adiar; tinha que contar a Carly que a loja ia fechar e que ela ficaria desempregada, mas não conseguiu fazer isso antes do fim de semana e do show em Londres. Quando Miles apareceu com aquele sorrisinho animado, foi tomada pela fúria.

Papai não vem? — foram as primeiras palavras dele.

Eles vão mais tarde, depois que fecharem a loja — respondeu Sa­mantha.

Havia duas senhoras votando quando ela e Miles chegaram lá. Saman­tha ficou esperando, olhando para os seus cabelos de um cinza-metálico, os seus casacos grossos e os seus tornozelos mais grossos ainda. Era assim que ela ficaria um dia. A mais curvada das duas notou a presença de Miles e, ao sair, sorriu e disse:

Acabei de votar em você!

Muito obrigado — disse Miles, encantado.

Samantha entrou na cabine de votação e ficou olhando para os dois nomes na cédula, Miles Mollison e Colin Wall, segurando o lápis que es­tava amarrado com um barbante. Então escreveu, desleixadamente, "Eu odeio Pagford" no meio da cédula, dobrou-a, atravessou a sala na direção da urna e a depositou lá dentro.

Obrigado, amor — disse Miles baixinho, dando um tapinha nas costas da mulher.

Tessa Wall, que jamais havia deixado de votar numa eleição, passou pela igreja quando voltava da escola para casa e não parou. Ruth e Simon Price ficaram o dia inteiro conversando sobre a possibilidade de se muda­rem para Reading. Ruth tinha jogado fora o título de eleitor deles quando limpou a mesa da cozinha para o jantar.

Gavin nunca teve a intenção de votar. Se Barry estivesse vivo e concor­rendo, ele votaria, mas não tinha vontade nenhuma de ajudar Miles a con­quistar mais um dos seus objetivos. Às cinco e meia, arrumou as suas coisas, irritado e triste, porque tinha esgotado de vez o estoque de desculpas para não ir jantar na casa de Kay. E, pelo visto, hoje seria particularmente desa­gradável, porque a companhia de seguros tinha lhe dado alguma esperança de que ia finalmente beneficiar Mary, e ele queria muito ir até a casa dela para lhe dar a notícia pessoalmente. Isso significava que teria que guardar as novidades até o dia seguinte, já que não ia desperdiçá-las pelo telefone.

Quando Kay abriu a porta daquele jeito apressado e zangado, Gavin soube que ela estava de mau humor.

Desculpe, hoje foi um dia terrível — disse Kay, embora ele não tivesse reclamado de nada; na verdade, mal tinham se cumprimentado. — Cheguei tarde em casa. Pretendia já estar com tudo quase pronto.

Do andar de cima vinha uma batida forte e repetitiva de bateria e um solo de guitarra estridente. Gavin achou incrível que os vizinhos não esti­vessem reclamando. Kay o viu olhando para o teto e disse:

Ah, Gaia está furiosa porque um garoto de quem ela gostava lá em Hackney começou a sair com outra garota.

Pegou a taça de vinho que já estava bebendo e tomou um generoso gole. Ficou com uma certa dor na consciência por ter chamado Marco de Luca de "um garoto". Ele praticamente se mudou para a casa delas, algu­mas semanas antes de deixarem Londres. Kay o tinha achado encantador, atencioso e prestativo. Gostaria de ter tido um filho como Marco.

Ela vai sobreviver — disse Kay, afastando tais lembranças, e voltou para as batatas que estavam no fogo. — Tem dezesseis anos, e, nessa idade, a gente se recupera logo. Pegue um pouco de vinho.

Gavin se sentou numa das cadeiras da mesa da cozinha, esperando que Kay conseguisse fazer Gaia diminuir o som. Ela tinha literalmente que gritar para superar a vibração da guitarra, o chacoalhar das tampas das pa­nelas e o barulho do exaustor. E, mais uma vez, ele desejava ardentemen­te a melancolia calma da cozinha de Mary, a sua gratidão, a necessidade que ela tinha dele.

O quê? — indagou ele bem alto, porque percebeu que Kay tinha lhe dito alguma coisa.

Perguntei se você votou.

Se eu votei?

Na eleição do Conselho Distrital — disse ela.

Não — respondeu Gavin. — Não estou nem aí para isso.

Não tinha certeza se ela tinha ouvido. Kay estava falando novamente, e apenas quando se virou para a mesa, com facas e garfos na mão, ele con­seguiu escutar o que ela dizia.

...um absurdo total, na verdade, os conselheiros estarem de con­luio com Aubrey Fawley. Eu acho que a Bellchapel vai fechar se Miles ganhar...

Foi escorrer as batatas na pia, e o barulho da água caindo abafou a voz dela de novo.

...se aquela idiota não tivesse perdido a calma, poderíamos ter uma chance melhor. Dei a ela um monte de material sobre a clínica, e acho que não usou nada. Ficou só gritando com Howard Mollison, dizendo que ele era enorme de gordo. O cúmulo da falta de profissio­nalismo...

Gavin tinha ouvido uns comentários sobre a explosão da dra. Jawanda, e achava aquilo tudo de certa forma engraçado.

...e toda essa incerteza é muito prejudicial para os funcionários da clínica, sem falar nos pacientes.

Mas Gavin não conseguia sentir nem pena nem indignação; apenas ficava muito chateado ao ver o interesse que Kay parecia ter pelas relações e personagens envolvidos nas misteriosas questões locais. Ainda por cima, isso mostrava claramente como ela estava criando raízes cada vez mais profundas em Pagford, e não ia ser fácil tirá-la dali.

Voltou-se para a janela e olhou o quintal lá fora, cuja grama estava bem alta. Tinha se oferecido para ajudar Mary e Fergus a cuidar do jardim deles no fim de semana. Com sorte, pensou, Mary iria convidá-lo para jantar outra vez, e, nesse caso, poderia faltar àquela festa de aniversário de Howard Mollison, que Miles pelo visto achava que ele não queria perder de jeito nenhum.

...queria manter os Weedon, mas não, Gillian disse que temos que dar vez a todos, que não podemos ficar escolhendo. Você diria que isso é ficar escolhendo?

Desculpe, o que disse?

Mattie está de volta — respondeu ela, e ele se esforçou muito para lembrar que Mattie era uma colega de trabalho, cujos casos ela estava cobrindo. Eu queria continuar trabalhando com os Weedon, porque às vezes você cria um vínculo especial com determinada família, mas Gillian não quer deixar. E muito doido isso.

Pelo que ouvi dizer, você deve ser a única pessoa no mundo que quer continuar com os Weedon — disse Gavin.

Kay teve que se munir de toda a sua força de vontade para não responder à altura. Foi tirar os filés de salmão do forno. A música de Gaia estava tão alta que podia senti-la vibrando na assadeira que largou em cima do fogão.

Gaia! — gritou ela, furiosa, correndo até a escada, e Gavin tomou o maior susto. — GAIA! Abaixe isso! Estou falando sério! ABAIXE ISSO!

Gaia baixou o volume da música quase imperceptivelmente. Kay vol­tou para a cozinha, bufando. A discussão com a filha, antes de Gavin che­gar, havia sido uma das piores que já tiveram. Gaia disse expressamente que pretendia ligar para o pai e pedir para ir morar com ele.

Bem, então boa sorte — gritou Kay.

Mas talvez Brendan dissesse sim. Ele a deixara quando Gaia tinha ape­nas um mês. Mas agora estava casado e com três outros filhos. Tinha uma casa enorme e um bom emprego. E se dissesse sim?

Gavin ficou contente de não terem que conversar enquanto comiam. O barulho ensurdecedor da música preenchia o silêncio, e ele podia pen­sar em Mary em paz. Contaria a ela amanhã que a companhia de seguros parecia interessada em fazer um acordo, e receberia sua gratidão e admi­ração.

Ele tinha quase limpado o prato quando percebeu que Kay não havia comido nada. Estava olhando para ele do outro lado da mesa, e a expres­são no seu rosto deixou Gavin preocupado. Será que, de algum modo, ele havia revelado os seus pensamentos mais íntimos?...

Lá em cima, a música de Gaia parou de repente, e a quietude pulsante que se seguiu o aterrorizou. Gavin desejou que Gaia pusesse depressa outra música nas alturas.

Você nem ao menos tenta — disse Kay, com um olhar triste. — Nem ao menos finge que se interessa, Gavin.

Ele tentou pegar o atalho mais fácil.

Kay, tive um dia cheio hoje — justificou ele. — Desculpe se não estava preparado para as minúcias da política local assim que entr...

Não estou falando da política local — retrucou ela. — Você se senta aí e parece que preferia estar em qualquer outro lugar... É... É ultrajante. O que você quer, Gavin?

Ele viu a cozinha, e o rosto suave de Mary.

Tenho que implorar para ver você — prosseguiu Kay —, e, quando vem aqui, só consegue deixar ainda mais claro que não queria ter vindo.

Queria que ele dissesse "isso não é verdade". Mas o momento em que ainda seria possível negar alguma coisa já havia passado. Estavam se apro­ximando, a uma velocidade crescente, da crise que Gavin a um só tempo temia e desejava ardentemente.

Diga o que você quer — pediu ela, exausta. — Só peço isso.

Os dois podiam sentir que a relação deles estava desmoronando sob o peso de tudo que Gavin se recusava a dizer. E foi com a sensação de estar pondo um fim à infelicidade dos dois que ele encontrou as palavras que não queria dizer em voz alta, talvez nunca, mas que, de algum modo, pareciam desculpar a ambos.

Eu não queria que isso acontecesse — disse Gavin, com toda a sin­ceridade. — Não tive a intenção. Sinto muito, Kay, mas acho que estou apaixonado por Mary Fairbrother.

Ele viu pela expressão no seu rosto que ela não estava preparada para isso.

Mary Fairbrother? — repetiu ela.

É — disse ele (e sentiu um certo prazer em falar sobre isso, embora sabendo que a estava ferindo. Nunca tinha sido capaz de falar sobre isso com ninguém) —acho que estou apaixonado por ela há muito tempo. Nunca admiti isso... Quero dizer, quando Barry estava vivo, eu nunca tive...

Pensei que ele fosse o seu melhor amigo — sussurrou ela.

E era.

Não faz nem um mês que ele morreu!

Gavin não gostou de ouvir isso.

Olhe — disse ele —, estou tentando ser honesto com você. Estou tentando ser correto.

Você está tentando ser correto?

Ele sempre tinha imaginado que tudo terminaria num acesso de fú­ria, mas ela ficou parada ali, olhando-o vestir o casaco, com lágrimas nos olhos.

Desculpe — disse Gavin, e saiu daquela casa pela última vez.

O que sentiu ao chegar à calçada foi uma onda de euforia, e correu para o carro. Poderia contar a Mary sobre a companhia de seguros ainda naquela noite.

 

                             Privilégio

7.32 A pessoa que fez uma declaração difamatória pode requerer privilégio se provar que o fez sem maldade e no cumprimento de um dever público.

                 Charles Arnold-Baker

                 Administração dos Conselhos Locais

 

Terri Weedon estava acostumada a ser abandonada. O primeiro e pior abandono tinha sido o de sua mãe, que nem sequer se despediu, simples­mente saiu de casa um dia, levando uma mala, enquanto Terri estava na escola.

Houve muitas assistentes sociais e cuidadoras depois que ela fugiu de casa aos quatorze anos, e algumas delas foram bastante boas, mas todas iam embora quando acabava o trabalho no fim do expediente. Cada nova partida acrescentava outra fina camada à crosta que encobria o seu ser.

Fez amigos nos abrigos, mas aos dezesseis anos todos iam embora, e a vida os dispersou. Conheceu Ritchie Adams e teve dois filhos com ele. Minúsculas coisinhas rosadas, puras e belas como nunca tinha visto nada igual no mundo: e tinham saído dela. Por duas vezes, durante algumas ho­ras felizes no hospital, sentiu-se como se ela mesma estivesse renascendo.

E então as crianças foram levadas embora, e ela nunca mais voltou a vê-las.

Grinfa a abandonou. A avó Cath a abandonou. Quase todo mundo tinha ido embora, quase ninguém ficou. A essa altura já devia estar acos­tumada.

Quando Mattie, a assistente social que cuidava do seu caso, reapare­ceu, Terri perguntou:

Cadê a outra?

Kay? Ela só me substituiu enquanto estive doente — disse Mattie. — E então, onde está Liam? Quer dizer... Robbie, não é?

Terri não gostava de Mattie. Por um único motivo: ela não tinha filhos. Como é que alguém que não tinha filhos podia lhe dizer como criar os seus? O que entendia disso? Na verdade, também não gostava de Kay... mas sentia uma sensação estranha quando estava com ela, o mesmo que sentia quando estava com a avó Cath, antes de ela a chamar de puta e lhe dizer que nunca mais queria voltar a vê-la... Dava para sentir que Kay — mesmo carregando aquelas pastas como todas as outras, mesmo insistindo em fazer a reavaliação do caso dela — queria que as coisas dessem certo para ela, e não apenas para os formulários. Dava realmente para sentir isso. Mas ela tinha ido embora, e com certeza já nem lembra que a gente existe, pensou Terri, furiosa.

Na sexta à tarde, Mattie contou a Terri que era quase certo que a Bell- chapel fosse fechar.

É pura política — disse rispidamente. — Querem economizar di­nheiro, e o tratamento com metadona é muito criticado no Conselho Municipal. Além disso, Pagford quer o prédio de volta. Tudo isso saiu no jornal, talvez você tenha visto.

Às vezes ela falava com Terri desse jeito, entrando numa conversa do tipo afinal-estamos-nisso-juntas, o que era chocante, porque ao mesmo tempo ela perguntava se Terri não estava se esquecendo de alimentar o filho. Mas dessa vez foi o que ela disse e não o modo como disse que dei­xou Terri zangada.

Vão fechar, é? — repetiu ela.

Parece que sim — respondeu Mattie, sem prestar muita atenção. — Mas isso não vai fazer diferença nenhuma para você. Bom, é claro que...

Terri começou três vezes o tratamento na Bellchapel. O interior empoeirado da antiga igreja, com as suas divisórias, os seus folhetos, o banheiro com aquela luz neon azulada (assim não dava para encontrar uma veia e se aplicar) tinham se tornado familiares, quase amigáveis. Ultimamente, começou a perceber uma mudança no jeito como os funcionários falavam com ela. No começo, todos esperavam que ela fracassasse novamente, mas aos poucos passaram a falar com ela exa­tamente como Kay falava: como se soubessem que havia uma pessoa ali dentro daquele seu corpo cheio de marcas de picadas e cicatrizes de queimadura.

...é claro que vai ser diferente, mas você pode pegar a metadona com o médico — disse Mattie. Ela folheou páginas e páginas do extenso dossiê com todas as informações sobre a vida de Terri. — Você tem regis­tro com a dra. Jawanda em Pagford, certo? Pagford... Por que ir tão longe?

Acertei uma enfermeira em Cantermill — respondeu Terri, com ar meio distraído.

Depois que Mattie foi embora, Terri ficou um bom tempo sentada naquela cadeira imunda da sala de estar, roendo as unhas até tirar sangue.

Quando Krystal chegou, trazendo Robbie da escola, Terri lhe contou que iam fechar a Bellchapel.

Ainda não tá nada certo — disse Krystal, com autoridade.

Como é que você sabe? — perguntou Terry. — Vão fechar, sim, e querem me mandar pra porra de Pagford, com aquela vaca que matou a vó Cath. Pra lá eu não vou nem morta.

Você tem que ir — retrucou a garota.

Krystal estava assim há dias, mandando na mãe, agindo como se ela fosse a adulta.

Não tenho que ir porra nenhuma — esbravejou Terri. — Sua vaca atrevida — acrescentou, só por precaução.

Se você começar a usar essa merda de novo — disse Krystal, com o rosto vermelho —, eles vão levar Robbie embora.

O menino, que ainda estava segurando a mão da irmã, começou a chorar.

Tá vendo? — gritaram as duas, uma para a outra.

É você que está fazendo isso com ele — disse Krystal, aos berros. — E a doutora não fez nada pra vó Cath. Cheryl é que fica falando merda. Aquela gente não sabe porra nenhuma!

E você é que sabe tudo, não é? — berrou Terri. — Você sabe de tudo quanto é merda...

Krystal cuspiu nela.

Sai daqui! — exclamou Terri, e, como a filha era maior e mais pesa­da que ela, pegou um sapato do chão e ameaçou jogá-lo na garota. — Sai daqui!

Vou sair mesmo — gritou Krystal. — E vou levar Robbie comigo. Você pode ficar aqui, fodendo com o merda do Obbo, e fazer outro filho com ele!

E antes que Terri pudesse detê-la, saiu arrastando Robbie, que conti­nuava a chorar.

Krystal foi com o irmão pedir abrigo na casa de Nikki. Nem lembrou que, àquela hora da tarde, ela ainda estaria perambulando pela rua. Foi a mãe de Nikki que abriu a porta, com o uniforme da loja de departamentos onde trabalhava.

Ele não pode ficar aqui — disse a mulher com firmeza, enquanto Robbie chorava e tentava se soltar da mão da irmã, que o segurava com força. — Onde está a sua mãe?

Em casa — respondeu Krystal, e tudo o que ela pretendia dizer se evaporou diante do olhar severo daquela mulher.

Então ela voltou com Robbie para a Foley Road, onde Terri, com um ar triunfante que chegava a ser cruel, agarrou o filho pelo braço, levou-o para dentro e barrou a entrada de Krystal.

— Já tá cheia dele — zombou Terri, e os seus gritos abafaram o choro do menino. — Cai fora.

E bateu a porta.

Naquela noite, Terri fez Robbie dormir junto com ela, no colchão. Ficou acordada, pensando que não precisava de Krystal para nada, mas sentia falta dela tanto quanto da heroína.

Krystal andava com muita raiva há vários dias. Aquilo que ela disse sobre Obbo...

(— Ela disse o quê? — perguntou ele, rindo, com ar incrédulo, quando se encontraram na rua, e Terri murmurou alguma coisa sobre Krystal estar chateada.)

...ele não faria aquilo. Não poderia ter feito aquilo.

Obbo era um dos poucos que tinham ficado por perto. Terri o conhe­cia desde os quinze anos. Freqüentaram a mesma escola, perambulavam por Yarvil quando ela estava no abrigo, tomavam sidra debaixo das árvores do caminho que passava pela fazenda ao lado de Fields. E dividiram o primeiro baseado.

Krystal nunca gostou dele. Ciúmes, pensou Terri, vendo Robbie dormir à luz do poste que entrava pelas cortinas finas. Puro ciúme. Ele fez mais por mim que qualquer outro, pensou Terri, desafiadora, porque para ela bon­dade não casava com abandono. Por isso todos os cuidados da avó Cath tinham sido aniquilados pela rejeição.

Mas Obbo a ajudou a se esconder de Ritchie, o pai dos seus dois filhos mais velhos, naquele dia que ela fugiu de casa, descalça e sangrando. Às vezes lhe dava heroína de graça. Para ela, isso era o mesmo que bondade. Procurar abrigo com ele era muito mais seguro que ir para aquela casinha da Hope Street, que certa vez, por três dias gloriosos, ela chegou a achar que fosse um lar.

Krystal não voltou no sábado pela manhã, mas isso não era novidade. Terri sabia que ela devia estar na casa de Nikki. Com raiva porque não havia praticamente nada para comer em casa e estava sem cigarro, e porque Rob­bie não parava de chorar chamando pela irmã, Terri entrou no quarto da filha e começou a revirar as roupas que encontrava, à procura de dinheiro ou quem sabe algum cigarro perdido. Alguma coisa fez barulho ao cair no chão quando ela afastou as velhas roupas de remo de Krystal, completamen­te amarrotadas. Viu então a caixinha de plástico, virada, com a medalha que Krystal tinha ganhado e o relógio de Tessa Wall debaixo dela.

Terri pegou o relógio e ficou olhando para ele. Era a primeira vez que o via. Ficou se perguntando onde Krystal teria arranjado aquilo. A primeira coisa que lhe passou pela cabeça foi que a filha o tivesse roubado, mas depois achou que poderia ter sido um presente da avó Cath, ou algo que ela houvesse deixado para a bisneta em testamento. E isso era mais pertur­bador do que a idéia do roubo. Pensar que aquela vaca falsa escondeu o relógio o tempo todo, muito bem-guardado, sem nunca tocar no assunto...

Terri enfiou o relógio no bolso da calça de moletom e chamou Robbie para ir com ela até a loja. Levou horas para calçar os sapatos nele. Acabou perdendo a paciência e lhe deu um tapa. Adoraria ir sozinha, mas as as­sistentes sociais não gostavam dessa história de deixar as crianças em casa, mesmo que, sem ele, ela fizesse tudo muito mais depressa.

Cadê Krystal? — perguntou Robbie, choramingando, enquanto a mãe o puxava pela mão. — Qué Krystal!

Não sei onde aquela piranha está — respondeu ela, arrastando-o pela rua.

Obbo estava na esquina do supermercado, conversando com dois ho­mens. Quando a viu, se despediu dos sujeitos, que foram embora.

Tudo bem, Ter?

Indo — mentiu. — Larga, Robbie.

Robbie estava agarrando sua perna magra com tanta força que chegava a machucar.

Escuta — disse Obbo —, você pode ficar com umas coisas pra mim por um tempo?

Que coisas? — perguntou Terri, arrancando Robbie da sua perna e o segurando pela mão.

Umas sacolas com umas coisas — respondeu Obbo. — Vai me que­brar um galhão, Ter.

Quanto tempo?

Só uns dias. Posso levar pra você hoje à noite?

Terri pensou em Krystal e no que ela diria se soubesse.

Tá certo, pode levar — disse Terri.

Ela se lembrou de outra coisa, então tirou o relógio de Tessa do bolso.

Queria vender isso, o que você acha?

Nada mau — respondeu Obbo, sentindo o peso do relógio na pal­ma da mão. — Dou vinte por ele. Posso levar hoje à noite também.

Terri achou que o relógio valesse mais, mas não queria contrariá-lo.

Tá bom, então.

Foi entrando no supermercado, de mãos dadas com Robbie, mas de repente se virou.

Não tô usando — disse ela. — Então não leva...

Tá de novo no tratamento? — perguntou ele, sorrindo para ela por trás das lentes grossas dos óculos. — Abre o olho, a Bellchapel vai fechar. Saiu no jornal.

É — respondeu ela, infeliz, e puxou Robbie para dentro do super­mercado. — Tô sabendo.

Não vou pra Pagford, pensou ela, pegando uns biscoitos na prateleira. Pra lá eu não vou.

Estava quase acostumada às críticas e à avaliação constantes, aos olha­res de esguelha dos que passavam por ela, aos insultos dos vizinhos, mas não iria de jeito nenhum para aquele vilarejo presunçoso receber ajuda hipócrita. Não iria viajar no tempo, uma vez por semana, para aquele lugar onde a avó Cath tinha dito que ficava com ela, mas depois a abando­nou. Teria que passar por aquela escolinha toda bonita que mandou umas cartas horríveis sobre Krystal, dizendo que as roupas dela estavam muito pequenas e muito sujas e que o seu comportamento era inaceitável. Tinha medo de encontrar os parentes já há muito esquecidos na Hope Street, disputando a casa da avó Cath. E do que Cheryl diria se soubesse que ela tinha ido procurar, por livre e espontânea vontade, a vaca paquistanesa que matou a avó Cath. Mais uma acusação contra ela, da família que a desprezava.

Ninguém vai me obrigar a ir pra porra daquele lugar — murmurou Terri em voz alta, puxando Robbie para o caixa.

 

— Prepare-se — disse Howard Mollison ao filho, em tom de provocação, ao meio-dia daquele sábado. — Mamãe vai postar o resultado da eleição no site. Quer esperar ou posso lhe contar agora?

Miles se virou instintivamente para Samantha, que estava sentada na frente dele na bancada, no meio da cozinha. Estavam tomando café antes que ela e Libby fossem para a estação, para irem ao show em Londres. Com o telefone colado ao ouvido, ele disse:

Pode falar.

Você venceu. Com folga. Quase cinqüenta por cento a mais que Wall.

Miles sorriu para a porta da cozinha.

Ok — disse ele, mantendo a voz o mais firme que pôde. — Bom saber.

Não desligue — pediu Howard. — Mamãe quer falar com você.

Parabéns, querido — exclamou Shirley, exultante. — Que notícia maravilhosa! Sabia que você ia vencer.

Obrigado, mamãe — disse Miles.

Bastaram aquelas duas palavras para Samantha entender tudo, mas ela tinha decidido não ser debochada nem sarcástica. A camiseta da banda já estava na mala, ela tinha feito o cabelo e comprado sapatos novos. Mal podia esperar para ir embora.

Então agora você é o conselheiro Mollison, não é? — perguntou ela, quando ele desligou.

Isso mesmo — confirmou o marido, com certa cautela.

Parabéns — disse ela. — Vai ser uma comemoração e tanto hoje à noite. Sinto muito não poder ir — mentiu, entusiasmada com a proximi­dade da fuga. Comovido, Miles se inclinou para a frente e apertou a mão dela.

Libby entrou na cozinha chorando e com o celular na mão.

O que houve? — perguntou Samantha, assustada.

Você pode ligar pra mãe da Harriet, por favor?

Por quê?

Você pode ligar, por favor?

Por quê, Libby?

Porque ela quer falar com você — prosseguiu a garota, enxugando os olhos e o nariz com o dorso da mão —, porque Harriet e eu tivemos uma briga feia. Você pode, por favor, ligar pra ela?

Samantha pegou o telefone e foi para a sala. Tinha apenas uma vaga idéia de quem era aquela mulher. Desde que as meninas entraram no internato, ela praticamente não tinha nenhum contato com os pais das amigas delas.

Sinto muitíssimo ter que fazer isso — disse a mãe de Harriet. — Pro­meti a Harriet que falaria com você. Já tentei explicar que não é que Libby não queira que ela vá... Você sabe como elas são amigas, e detesto ver as duas desse jeito...

Samantha olhou para o relógio. Tinham que sair em dez minutos, no máximo.

Harriet meteu na cabeça que Libby tinha um ingresso sobrando, mas não queria que ela fosse. Já disse a ela que não é verdade... Que você tinha ficado com o ingresso porque não queria que Libby fosse sozinha, não é?

Claro — replicou Samantha. — Ela não pode ir sozinha.

Eu sabia — disse a outra, e sua voz soou estranhamente triunfante. — Compreendo perfeitamente que você queira protegê-la, e nunca faria essa sugestão se não achasse que isso vai lhe poupar muita chatea­ção. É que as garotas são tão amigas... E Harriet é totalmente obcecada por essa banda estúpida... Pelo que a sua filha acabou de dizer a Har­riet no telefone, acho que ela também está louca para a amiga ir junto. Entendo perfeitamente por que você quer ficar de olho em Libby, mas acontece que a minha irmã vai levar as duas filhas ao show, então ha­verá um adulto lá com elas. Posso levar Libby e Harriet essa tarde, nós nos encontraríamos com minha irmã e as filhas na porta do estádio e poderíamos passar a noite na casa da minha irmã. Pode ficar tranqüila, minha irmã ou eu vamos estar com Libby o tempo todo.

Ah... E muito gentil da sua parte. Mas uma amiga minha — respon­deu Samantha, com um zumbido estranho nos ouvidos — está esperando por nós, entende...

Mas você pode ir visitar a sua amiga... O que estou querendo dizer é que não há necessidade nenhuma de você ir ao show, se vai haver sempre alguém mais com as meninas... E Harriet está absolutamente desesperada, desesperada mesmo... Não queria me meter, mas isso estava ameaçando a amizade delas... E é claro que compraríamos o seu ingresso — acrescen­tou ela, num tom menos efusivo.

Não havia mais nenhum lugar para ir, nenhum lugar para se esconder.

Ah — disse Samantha. — Claro, só achei que seria bom ir junto com ela.

Elas preferem ficar uma com a outra — disse a mãe de Harriet, com firmeza. — E você não vai ter que ficar agachada, atrás de um bando de

patricinhas, ha ha ha... Para a minha irmã não tem problema, ela só tem um metro e meio.

 

Para a decepção de Gavin, estava parecendo que, afinal, ele teria que comparecer à festa de aniversário de Howard Mollison. Se Mary, cliente do escritório e viúva do seu melhor amigo, tivesse pedido que ficasse para o jantar, ele consideraria essa justificativa mais do que suficiente para não ir... Mas Mary não disse nada. Ela recebeu a visita de alguns parentes e ficou estranhamente perturbada quando ele apareceu.

Ela não quer que eles saibam, pensou Gavin, consolando-se com essa suposta precaução de Mary, enquanto ela o acompanhava até a porta.

Voltou ao Smithy, relembrando a conversa que tinha tido com Kay.

Pensei que ele fosse o seu melhor amigo. Não faz nem um mês que ele morreu!

É, e estou cuidando dela por Barry, respondeu ele mentalmente. Tenho certeza que ele iria querer que fosse assim. Não esperávamos que isso fosse acontecer. Barry está morto. E isso não pode magoá-lo agora.

Sozinho no Smithy, procurou um terno limpo para ir à festa, porque o convite dizia "passeio completo", e ficou imaginando Pagford, aquele vilarejo fofoqueiro, se deliciando com a história de Gavin e Mary.

E daí?, pensou ele, impressionado com a própria coragem. Ela por acaso vai ficar sozinha para sempre? Acontece. Vou cuidar dela.

E, apesar da relutância em ir à festa, que, tinha certeza, seria enfado­nha e cansativa, estava envolto numa bolha de felicidade e entusiasmo.

Lá no alto, em Hilltop House, Andrew Price fazia um penteado dife­rente no cabelo, usando o secador da mãe. Nunca esteve tão ansioso para ir a uma festa como hoje. Ele, Gaia e Sukhvinder tinham sido contratados por Howard para servir as comidas e as bebidas aos convidados. E havia alugado um uniforme para Andrew, especialmente para a ocasião: camisa branca, calça preta e gravata-borboleta. Trabalharia ao lado de Gaia como garçom, e não como ajudante.

Mas havia mais um motivo para aquela ansiedade. Gaia tinha ter­minado com o lendário Marco de Luca. Ele a encontrou chorando nos fundos do Copper Kettle naquela tarde, quando saiu para fumar um cigarro.

Ele é que saiu perdendo — tinha dito Andrew, tentando evitar qual­quer traço de contentamento na voz.

Valeu, Andrew — respondera ela, fungando.

Seu viadinho — disse Simon, quando Andrew finalmente desligou o secador. Estava esperando para dizer isso há alguns minutos, de pé no corredor escuro, olhando pela porta entreaberta, vendo Andrew se arrumar na frente do espelho. O garoto levou o maior susto e depois riu. Seu bom humor desconcertou Simon. — Que figura! — exclamou o pai, ridicularizando-o, quando Andrew passou por ele no corredor de camisa e gravata. — Com essa gravatinha ridícula... Você está parecendo um imbecil.

Imbecil é você! Tá desempregado, e fui eu que fiz isso.

O sentimento de Andrew em relação ao que tinha feito ao pai mu­dava praticamente de hora em hora. Às vezes a culpa o massacrava, contaminando tudo, mas depois se dissolvia, deixando-o radiante com o seu triunfo secreto. Hoje à noite, esse pensamento aquecia ainda mais o entusiasmo que ardia no seu peito, por baixo da camisa branca fina, e fazia a pele do seu corpo inteiro formigar, prolongando o arre­pio provocado pelo ar frio da noite, enquanto ele descia a colina a toda pedalando a bicicleta de corrida de Simon. Estava empolgado, cheio de esperança. Gaia estava disponível e vulnerável. E o pai dela morava em Reading.

Quando ele chegou ao salão da igreja, Shirley Mollison estava do lado de fora, num vestido de festa, amarrando nas grades gigantescos balões de gás dourados que tinham a forma dos números seis e cinco.

Olá, Andrew — exclamou ela, quase cantarolando. — Não deixe a bicicleta aqui na entrada, por favor.

Ele seguiu pedalando até o lado da igreja, passando por um BMW ver­de, conversível, novinho em folha, estacionado a poucos metros da entra­da. Quando voltou, andou em volta do carro, dando uma olhada naquele interior luxuoso.

Que bom que você chegou, Andy!

Andrew percebeu imediatamente que o chefe estava tão bem-humorado e animado quanto ele mesmo. Parecia até um mágico, seguindo a caminho do salão com aquele imenso smoking de veludo. Havia apenas cinco ou seis pessoas aqui e ali: faltavam ainda vinte minutos para a festa começar. Havia balões azuis, brancos e dourados amarrados por todo lado. Numa enorme

mesa de madeira, pilhas de travessas estavam cobertas por panos de prato, e na parte mais alta do salão um DJ de meia-idade preparava os seus equi­pamentos.

Vá ajudar Maureen, Andrew, por favor.

Ela arrumava os copos do outro lado da mesa, sob a luz intensa e nada lisonjeira da luminária do teto.

Ora, ora, como você está bonito — grasnou ela, quando o garoto se aproximou.

Maureen usava um vestido muito curto, justo e brilhante, que revelava todos os contornos do seu corpo ossudo. Aqui e ali, porém, viam-se pregas e pneuzinhos inesperados, expostos pelo tecido inclemente. De algum lugar veio um "oi" meio abafado. Gaia estava agachada no chão, na frente de uma caixa de pratos.

Tire os copos das caixas, por favor, Andy — pediu Maureen —, e coloque tudo aqui em cima, onde vamos fazer o bar.

O garoto obedeceu. Enquanto estava abrindo uma das caixas, uma mu­lher que ele nunca tinha visto antes se aproximou, trazendo várias garrafas de champanhe.

Coloque isso na geladeira, por favor, se é que tem alguma aqui.

Ela tinha o nariz reto de Howard, os enormes olhos azuis de Howard e os cabelos encaracolados de Howard, e, embora os traços dele fossem meio femininos, suavizados pela gordura, a sua filha — só podia ser filha dele — não era nada bonita, ainda que fosse atraente, com as sobrancelhas grossas, os olhos grandes e uma covinha no queixo. Ela estava de calça comprida e camisa de seda, desabotoada na altura do pescoço. Depois de largar as garrafas em cima da mesa, afastou-se. Pelo seu jeito e por alguma coisa na qualidade das roupas que vestia, Andrew teve certeza de que ela era a dona daquele BMW lá fora.

Essa é a Patrícia — sussurrou Gaia no seu ouvido, e mais uma vez ele ficou arrepiado, como se tivesse levado um choque elétrico. — A filha de Howard.

E, dá pra ver — disse ele, muito mais interessado em observar Gaia abrindo uma garrafa de vodca e colocando uma dose num copo. Enquan­to ele olhava, ela bebeu tudo, de um gole só, sacudindo o corpo todo depois de fazer isso. Gaia mal tinha fechado a garrafa quando Maureen reapareceu ao lado deles com uma cuba de gelo.

Que velha assanhada — disse Gaia, vendo Maureen se afastar, e An­drew sentiu o cheiro do álcool na boca da garota. — Que roupa é aquela?

Ele riu, virou, mas parou de repente, porque Shirley estava bem ao lado deles com aquele seu sorrisinho meigo.

A srta. Jawanda ainda não chegou? — perguntou ela.

Deve estar chegando, acabou de me mandar uma mensagem — respondeu Gaia.

Mas Shirley não estava nem aí para Sukhvinder. Tinha escutado os comentários dos adolescentes, o que lhe devolveu o bom humor ligeira­mente abalado pelo prazer evidente de Maureen com a própria roupa. Não era fácil atingir uma autoestima tão cega, tão iludida, mas enquanto se afastava e caminhava na direção do DJ, Shirley planejava o que diria a Howard da próxima vez que o encontrasse sozinho.

Acho que os garotos estão... rindo de Maureen... É uma pena que esteja usando aquele vestido... Odeio vê-la fazendo papel de boba.

E como estava precisando de um pequeno estímulo essa noite, lembrou-se de que havia muitas coisas com que se alegrar. Ela, Howard e Mi­les estariam no Conselho juntos, e isso seria maravilhoso, simplesmente maravilhoso.

Perguntou ao DJ se ele sabia que a canção favorita de Howard era "The Green, Green Grass of Home", na versão de Tom Jones. O verde verdíssimo da relva do lar. Um clássico. Era mesmo a cara do marido. Olhou ao seu redor para ver se havia outros pequenos detalhes a serem resolvidos, mas deparou com o motivo pelo qual a sua felicidade naquela noite não seria tão perfeita como tinha sonhado.

Patrícia estava sozinha, observando as insígnias de Pagford na parede, sem fazer nenhum esforço para falar com quem quer que fosse. Shirley adoraria que Patrícia usasse uma saia de vez em quando, mas, pelo me­nos, ela tinha vindo sozinha. Teve medo de que houvesse mais alguém no BMW, e quando viu a filha descer do carro sem mais ninguém, achou que tinha saído no lucro.

Ninguém imagina que uma mãe possa não gostar do próprio filho; pelo contrário, espera-se que ela goste dele não importa o que aconteça, mesmo que ele não seja o que se espera, mesmo que venha a ser do tipo de pessoa que, se não fosse seu parente, você atravessaria a rua para evitar qualquer tipo de contato. Howard tinha uma visão menos rígida das coi­sas; até fazia piadinhas inofensivas quando Patrícia não estava presente. Shirley não conseguia alcançar esse nível de desprendimento. Sentiu-se obrigada a se aproximar da filha, numa esperança vaga e inconsciente de conseguir diluir a estranheza que, receava ela, todos percebiam na sua forma característica de se vestir e agir.

Quer alguma coisa para beber, querida?

Agora não — respondeu Patrícia, ainda olhando para as insígnias de Pagford. — Não passei muito bem ontem à noite. Acho que exagerei um pouco. Saímos para beber com os colegas de trabalho de Melly.

Shirley esboçou um sorriso para o brasão acima delas.

Melly está bem, obrigada por perguntar — disse Patricia.

Ah, que bom — replicou Shirley.

Gostei do convite — provocou Patricia. — Pat e acompanhante.

Desculpe, querida, mas é assim que se faz quando as pessoas..., você sabe, não são casadas.

Ah, é isso que diz no seu manual de etiqueta preferido, não é? Bem, Melly não quis vir, já que o nome dela nem ao menos estava no convite. Chegamos até a brigar, e acabei vindo sozinha. Deu certo, não?

Patricia saiu, pisando duro, em direção ao bar, deixando para trás uma Shirley meio trêmula. A raiva de Patricia era assustadora desde que ela era criança.

Está atrasada, srta. Jawanda — exclamou ela, recuperando a calma quando viu Sukhvinder se aproximar correndo, toda afobada. Na opinião de Shirley, a garota estava sendo um tanto ou quanto insolente, aparecen­do assim mesmo, depois do que a mãe tinha dito a Howard, ali, naquele mesmo salão. Ficou observando-a correr e se juntar a Andrew e Gaia, e pensou que diria a Howard que eles deviam dispensar Sukhvinder. Ela era mole, e com certeza aquele eczema que ela escondia debaixo da camiseta preta de mangas compridas era um problema em termos de higiene. Shir­ley decidiu que seria bom procurar, no seu site de medicina favorito, se aquilo era contagioso.

Os convidados começaram a chegar pontualmente às oito. Howard pe­diu a Gaia que ficasse ao seu lado na porta, para recolher os casacos, por­que queria que todos o vissem mandando e desmandando naquela garota de vestidinho preto com avental de babado e chamando-a pelo primeiro nome. Mas logo havia casacos demais para que ela os carregasse sozinha, então ele teve que chamar Andrew para ajudar também.

Pega uma garrafa — disse Gaia, dirigindo-se a Andrew, enquanto os dois penduravam os casacos, uns por cima dos outros, no minúsculo vestiário — e esconde lá na cozinha. A gente pode se revezar para ir lá tomar uns goles.

Ok — assentiu Andrew, encantado.

Gavin! — gritou Howard, quando o sócio do filho entrou pela porta sozinho, às oito e meia.

Kay não veio? — perguntou Shirley mais que depressa. (Maureen estava atrás da mesa, calçando uns sapatos altíssimos, cheios de brilho, então tinha pouco tempo para passar a sua frente.)

Não, ela infelizmente não pôde vir — respondeu Gavin, mas, para o seu horror, deu de cara com Gaia, que aguardava para levar o seu casaco.

A minha mãe podia vir, sim — disse a garota bem alto, encarando-o. — Mas você deu o fora nela, não foi, Gav?

Howard deu uns tapinhas no ombro de Gavin, fingindo não ter ouvido nada.

Ótimo ver você, pegue um drinque — acrescentou, com aquele seu vozeirão.

Shirley ficou impassível, mas a excitação daquele momento não se dis­persou rapidamente, e, ao receber os próximos convidados, estava meio confusa e distraída. Quando Maureen veio se juntar a eles, com aquele vestido horroroso e se equilibrando em cima dos saltos altíssimos, Shirley sentiu um imenso prazer em lhe contar baixinho:

Acabamos de ter uma ceninha muito constrangedora. Muito cons­trangedora. Gavin e a mãe de Gaia... Ah, querida... Se nós soubéssemos.

O quê? O que aconteceu?

Mas Shirley balançou a cabeça, saboreando o intenso prazer de frustrar a curiosidade de Maureen, e abriu bem os braços quando Miles, Saman­tha e Lexie entraram no salão.

Aqui está ele! O conselheiro Miles Mollison!

Samantha viu Shirley abraçar Miles como se não estivesse ali. Saiu tão bruscamente de um estado de felicidade e expectativa para o choque e a decepção que os seus pensamentos pareciam um zumbido constante, e ela tinha que fazer um esforço enorme para se dar conta do mundo à sua volta.

(Miles tinha dito:

Que ótimo. Então você pode ir à festa do papai. Ainda agora mesmo você estava dizendo...

É — respondeu ela —, eu sei. É ótimo, não é?

Mas ficou perplexo quando a viu de calça jeans e com a camiseta da banda, com a qual tinha se imaginado por mais de uma semana.

O traje é passeio completo.

Miles, é no salão da igreja de Pagford.

Eu sei, mas o convite...

Eu vou assim.)

Olá, Sammy — disse Howard. — Você está linda. Nem precisa se arrumar.

Ele a abraçou, lascivo como sempre, e lhe deu uma palmadinha no traseiro apertado dentro da calça jeans.

Samantha sorriu para Shirley de um jeito frio e forçado e passou direto por ela, encaminhando-se para o bar. Dentro dela, uma vozinha desagra­dável não parava de perguntar: Mas, afinal, o que achava que ia acontecer no show? O que estava querendo? O que esperava encontrar?

Nada. Só um pouco de diversão.

O sonho de braços jovens e musculosos, de muitas risadas; o que ela queria era uma espécie de catarse naquela noite, alguém segurando a sua cintura fina outra vez e o sabor picante do novo, do ainda inexplorado. A sua fantasia tinha perdido as asas e se espatifado no chão.

Eu só queria ver.

Você tá linda, Sammy.

Valeu, Pat.

Não via a cunhada há mais de um ano.

Gosto de você mais do que qualquer um nessa família, Pat.

Miles se aproximou e beijou a irmã.

Como vai? E Mel? Não veio?

Não, ela não quis vir — respondeu Patricia. Estava tomando cham­panhe, mas, pela cara que fez, parecia até que era vinagre. — O convite veio em nome de Pat e acompanhante... Foi uma briga horrível. Um a zero pra mamãe.

Ah, Pat, também não é assim — disse Miles, sorrindo.

Também não é assim o quê, porra?

Uma alegria furiosa tomou conta de Samantha: um pretexto para atacar.

É de uma grosseria do cacete convidar a companheira da sua irmã desse jeito, e você sabe disso, Miles. A sua mãe tinha que ter umas aulas de etiqueta, se quer saber.

Ele estava certamente mais gordo do que um ano atrás. Dava para ver o pescoço apertado no colarinho da camisa. Perdia o fôlego rapidamente.

E aquela mania de ficar parado, meio quicando nas pontas dos pés, que tinha herdado do pai não ajudava em nada. Samantha sentiu um nojo profundo do marido e se afastou, indo até a ponta da mesa, onde Andrew e Sukhvinder preparavam os drinques.

Tem gim? Quero um duplo.

Mal reconheceu Andrew. Ele lhe serviu uma dose, tentando não olhar para os seios dela, completamente à mostra naquela camiseta, mas era como tentar não apertar os olhos sob um sol forte.

Você conhece eles? — perguntou Samantha, depois de tomar a metade do gim-tônica de uma só vez.

Andrew ficou vermelho antes de conseguir pensar em alguma coisa para dizer. Para piorar ainda mais as coisas, ela deu uma risada cínica e acrescentou:

A banda. Estou falando da banda.

É, eu... É, já ouvi falar. Eu não... Não gosto muito...

É mesmo? — indagou ela, depois de virar o restante do gim. — Quero outro... por favor.

Ela percebeu então quem ele era: o garoto sem graça da delicatés­sen. Parecia mais velho naquele uniforme. Quem sabe aquelas semanas carregando caixas para cima e para baixo não tinham lhe dado alguns músculos.

Ah — exclamou Samantha, apontando para um homem que atra­vessava o salão cada vez mais cheio, indo na direção oposta —, olhe lá o Gavin. O segundo homem mais chato de Pagford, depois do meu marido, claro.

Saiu dali contente consigo mesma e segurando outro copo. O gim pro­vocou exatamente o efeito de que ela precisava, anestesiando-a e estimulando-a ao mesmo tempo. Enquanto andava, pensou: Ele gostou dos meus peitos; vamos ver o que acha da minha bunda.

Gavin viu Samantha se aproximando e tentou escapar, puxando con­versa com qualquer um... A pessoa mais próxima era Howard, e Gavin se infiltrou rapidamente no grupo que cercava o anfitrião.

Resolvi arriscar — dizia Howard para três outros homens. Gesticula­va com um charuto na mão e deixou cair um pouco da cinza no smoking de veludo. — Resolvi arriscar e arregacei as mangas. Simples assim. Sem fórmulas mágicas. Ninguém me ajudou... Ah, Sammy. Quem são esses rapazes?

Enquanto os quatro velhos olhavam para o grupo pop, esticado por causa dos seus seios, Samantha se virou para Gavin.

Oi — disse ela, se inclinando e forçando-o a beijá-la. — Kay não veio?

Não — respondeu Gavin, secamente.

Estamos falando de negócios, Sammy — declarou Howard, todo contente, e Samantha pensou na própria loja, falida e acabada. — Sempre fui um empreendedor — informou ao grupo, repetindo o que todos já estavam cansados de ouvir. — Simples assim. Não precisa de mais nada. Sempre fui um empreendedor.

Enorme e redondo, ele era como um sol de veludo em miniatura, irra­diando satisfação e contentamento. Graças ao brandy que tinha na mão, a sua voz já estava mais branda e agradável.

Estava disposto a correr o risco... Podia ter perdido tudo.

Bem, acho que a sua mãe é que poderia ter perdido tudo — corrigiu Samantha. — Hilda não hipotecou a casa para cobrir metade do dinheiro investido na loja?

Ela viu Howard piscar os olhos várias vezes, mas ele continuava sor­rindo.

Todo o crédito para minha mãe, então — disse ele —, por ter traba­lhado muito e economizado muito para dar ao filho um empurrão. Mul­tipliquei o que ela me deu, e estou devolvendo tudo à família... Pagando para as suas filhas estudarem na St. Anne, por exemplo. Tudo o que vai volta, não é, Sammy?

Ela esperava isso de Shirley, mas não de Howard. Os dois esvaziaram os seus copos. Samantha viu Gavin se afastar e não tentou detê-lo.

Gavin estava se perguntando se seria possível ir embora sem ser no­tado. Estava nervoso, e o barulho só piorava tudo. Desde que encontrou Gaia na entrada do salão, uma idéia terrível o assombrava. E se Kay tivesse contado tudo à filha? E se a garota soubesse que ele estava apaixonado por Mary Fairbrother, e tivesse contado a outras pessoas? Isso era perfeitamen­te possível vindo de uma garota vingativa de dezesseis anos.

A última coisa que queria era que o vilarejo inteiro soubesse que estava apaixonado por Mary antes que ele mesmo tivesse a chance de contar a ela. Pretendia falar com ela dali a uns meses, um ano talvez... Depois do primeiro aniversário da morte de Barry... E, nesse meio-tempo, iria alimentando as minúsculas sementes de confiança e dedicação que já es­tavam ali, até que Mary percebesse a realidade dos próprios sentimentos, exatamente como tinha acontecido com ele.

Não está bebendo nada, Gav! — disse Miles. — Temos que dar um jeito nisso.

Decidido, levou o sócio até a mesa de bebidas e pegou uma cerveja para ele. Enquanto isso, não parou de falar e, como Howard, exalava uma aura de felicidade e orgulho quase visível.

Você sabia que ganhei a eleição?

Gavin não sabia, mas não quis fingir surpresa.

É. Parabéns.

Como está Mary? — perguntou ele, alegremente; esta noite era amigo de todo o vilarejo que o tinha elegido. — Ela está bem?

Acho que sim...

Ouvi dizer que ela deve ir para Liverpool. Tomara que seja melhor para ela.

O quê? — perguntou Gavin, muito sério.

Maureen estava falando sobre isso hoje de manhã, que a irmã de Mary veio convencê-la a voltar para casa com as crianças. Ela ainda tem família em Liver...

A casa dela é aqui.

Acho que era Barry que gostava de Pagford. Não sei se Mary vai querer ficar aqui sem ele.

Gaia observava Gavin por uma fresta da porta da cozinha. Estava segu­rando um copo de papel com uma boa dose de vodca que Andrew tinha roubado para ela.

Esse cara é um filho da puta! — exclamou a garota. — Se ele não tivesse feito a minha mãe acreditar que gostava dela, a gente ainda estaria em Hackney. Ela é tão burra. Eu devia ter dito a ela que ele não estava assim tão a fim. Nunca chamava ela pra sair. Depois que eles trepavam, ele ficava louco pra ir embora.

Andrew, que estava arrumando mais sanduíches numa bandeja quase vazia, mal podia acreditar que ela falasse daquele jeito. A Gaia dos seus sonhos, que povoava todas as suas fantasias, era uma virgem, sexualmente criativa e aventureira. Não sabia o que a Gaia real tinha feito ou deixado de fazer com Marco de Luca. Mas, falando da mãe daquele jeito, ela pa­recia saber como os homens se comportavam depois do sexo se estivessem realmente interessados...

Bebe um pouco — disse ela, aproximando o copo de papel da boca de Andrew, quando ele já estava quase saindo com a bandeja. Ele tomou alguns goles de vodca, e com uma risadinha ela se afastou para deixá-lo passar, acrescentando: — Diz a Sukh pra dar um pulo aqui pra beber também.

O salão estava cheio e barulhento. Andrew deixou os sanduíches fres­cos sobre a mesa, mas ninguém parecia muito interessado em comida. Sukhvinder se virava para atender todos os pedidos na mesa das bebidas, mas muita gente começou a se servir sozinha.

Gaia tá chamando você lá na cozinha — disse Andrew, e a substi­tuiu. Nem precisava bancar o barman. Foi enchendo todos os copos que encontrava pela frente, deixando-os em cima da mesa para as pessoas se servirem.

Oi, Amendoim! — exclamou Lexie Mollison. — Você me dá um champanhe?

Eles estudaram juntos na St. Thomas, mas não se viam há muito tem­po. O seu jeito de falar tinha mudado um pouco depois que ela foi para a St. Anne. E ele detestava ser chamado de Amendoim.

Tá bem aí na sua frente — disse ele, apontando umas taças.

Lexie, você não vai beber — exclamou Samantha, surgindo do meio da multidão. — Nem pensar.

Vovô disse...

Não quero saber o que ele disse.

Todo mundo...

Já disse que não!

Lexie saiu batendo os pés. Andrew, contente de vê-la ir embora, sorriu para Samantha, e ficou surpreso quando ela sorriu para ele também.

Você responde assim aos seus pais?

Claro — disse ele, e ela riu. Os seus seios eram realmente imensos.

Senhoras e senhores — ecoou uma voz pelo microfone, e todo mundo parou para escutar Howard. — Queria dizer algumas palavras... A maioria de vocês provavelmente já sabe que o meu filho Miles foi eleito para o Conselho Distrital!

Os convidados aplaudiram, e Miles levantou o copo que tinha na mão acima da cabeça, agradecendo. Andrew ficou assustado ao ouvir Saman­tha dizer baixinho, mas de forma bem audível:

Uhu, seu merda!

Como ninguém vinha pegar bebidas, Andrew fugiu para a cozinha. Gaia e Sukhvinder estavam sozinhas, bebendo e rindo, e, quando o viram chegar, gritaram:

Andy!

Ele riu também.

Vocês estão bêbadas?

Estou — respondeu Gaia.

Não — respondeu Sukhvinder. — Mas ela está.

Tô nem aí — disse Gaia. — Mollison pode me mandar embora se quiser. Não preciso mais economizar pra comprar a passagem pra Hackney.

Ele nunca vai mandar você embora — disse Andrew, servindo-se de um pouco de vodca. — Você é a favorita dele.

É — concordou Gaia. — Velho babão.

E os três caíram na gargalhada.

A voz rouca de Maureen entrou pela porta da cozinha, amplificada pelo microfone.

Venha, então, Howard! Venha... Um dueto pelo seu aniversário! Venha. Senhoras e senhores... A canção favorita de Howard!

Os adolescentes se entreolharam horrorizados, mas se divertindo com aquilo. Gaia foi rindo e cambaleando até a porta, e a abriu.

Os primeiros acordes de "The Green, Green Grass of Home" ecoaram, e em seguida ouviram-se a voz de baixo de Howard e a de contralto grave de Maureen.

 

             The old home town looks the same,

             As I step down from the train...

 

"A velha cidade natal parece a mesma, assim que desço do trem..." Gavin era o único que estava ouvindo as gargalhadas. Olhou ao seu redor, mas tudo o que viu foram as portas da cozinha, escancaradas, ainda balan­çando um pouco.

Miles tinha saído para conversar com Aubrey e Julia Fawley, que che­garam mais tarde, cheios de sorrisos corteses. Gavin estava preso num re­demoinho de pavor e ansiedade. Aquela breve e iluminada sensação de liberdade e felicidade tinha sido obscurecida pela dupla ameaça de Gaia contar a todo mundo o que ele tinha dito à mãe dela e de Mary ir embora de Pagford para sempre. O que fazer?

 

           Down the lane I walk, with my sweet Mary,

           Hair ofgold and lips like cherries...

 

Kay não veio? — perguntou Samantha, enquanto ouviam "Pela estrada eu vou com a minha doce Mary, cabelos dourados e lábios de cereja...".

Ela se aproximou, debruçando-se sobre a mesa ao lado dele com um sorriso irônico.

Você já me perguntou isso — respondeu Gavin. — Não veio, não.

Está tudo bem entre vocês?

Isso não é da sua conta — replicou ele, sem conseguir se conter. Estava cansado do seu deboche e das suas constantes provocações. Os dois estavam sozinhos, talvez pela primeira vez, pois Miles ainda estava às voltas com os Fawley.

Ela fez questão de se mostrar chocada, chegou até a exagerar na rea­ção. Estava com os olhos vermelhos e caprichou na resposta que lhe deu. Pela primeira vez, Gavin se sentiu mais enojado do que intimidado.

Desculpe. Eu estava apenas...

Perguntando. Eu sei — disse ele, enquanto Howard e Maureen faziam uma dancinha, de braços dados.

Gostaria de ver você se arrumar. Você e Kay formam um belo par.

É. Mas gosto da minha liberdade — retrucou Gavin. — E não co­nheço muitos casais felizes.

Samantha tinha bebido muito para compreender totalmente aquela insinuação, mas ficou com a impressão de que era uma alfinetada.

O casamento é sempre um mistério para quem está de fora — disse ela, cautelosa. — Ninguém pode saber o que acontece entre duas pessoas, só elas mesmas. Você não devia julgar ninguém, Gavin.

Obrigado pelo conselho — rebateu ele, no limite da irritação. Colo­cou o copo de cerveja sobre a mesa e se dirigiu para o vestiário.

Samantha o viu se afastar, certa de que tinha levado a melhor na discussão. Depois voltou a sua atenção para a sogra, que estava no meio do salão, vendo Howard e Maureen cantarem. Saboreou a raiva de Shirley, que podia ser percebida claramente no sorriso mais frio e for­çado que o seu rosto já tinha exibido durante aquela noite. Ao longo de todos esses anos de convivência, Howard e Maureen sempre canta­ram juntos. Ele adorava cantar, e, no passado, Maureen já tinha feito backing vocais para uma banda de skiffle. Quando a música acabou,

Shirley bateu palmas apenas uma vez, como se estivesse chamando um lacaio. Samantha caiu na gargalhada e foi até o bar na ponta da mesa, mas ficou decepcionada quando não encontrou o garoto de gravata-borboleta por lá.

Andrew, Gaia e Sukhvinder ainda estavam rindo loucamente na co­zinha. Riam porque Howard e Maureen fizeram aquele dueto e porque já tinham tomado dois terços da garrafa de vodca, mas principalmen­te riam porque estavam rindo, alimentando os próprios risos até não agüentarem mais.

A janelinha que ficava sobre a pia, deixada entreaberta para que a co­zinha não ficasse muito abafada, balançou e se abriu, fazendo barulho. E eles viram a cabeça de Bola surgir na abertura.

Boa noite — disse o garoto. Certamente tinha subido em alguma coisa para alcançar a janela, porque deu para ouvir o barulho de algo caindo quando ele deu impulso com o corpo e veio aterrissar bem em cima do escorredor de louça, derrubando vários copos, que se espatifa­ram no chão.

No mesmo instante, Sukhvinder saiu da cozinha. E imediatamente Andrew soube que não queria que Bola ficasse ali. Apenas Gaia parecia não se importar com a presença dele. Ainda rindo, ela disse:

Sabia que esse lugar aqui tem porta?

Não brinca?! — retrucou Bola. — Cadê a bebida?

Essa é nossa — disse Gaia, segurando a garrafa nos braços como se fosse um bebê. — Andy pegou pra gente. Vai pegar uma pra você.

Sem problemas — disse Bola, impassível, e foi para o salão.

Preciso ir ao banheiro... — murmurou Gaia, escondendo de volta a garrafa debaixo da pia e saindo da cozinha também.

Andrew a seguiu. Sukhvinder tinha voltado para o bar. Gaia entrou no banheiro, e Bola estava encostado na mesa, com uma cerveja numa das mãos e um sanduíche na outra.

Achei que você não ia querer vir a essa festa — disse Andrew.

Fui convidado, cara — respondeu Bola. — Estava no convite. Fa­mília Wall.

Pombinho sabe que você está aqui?

Sei lá — respondeu o garoto. — Ele tá se escondendo. Afinal, não conseguiu a cadeira do velho Barry. Todo o tecido social vai ruir agora que Pombinho não estará lá para impedir isso. Puta que pariu, isso aqui tá uma droga — acrescentou ele, cuspindo um pedaço do sanduíche. — Quer um cigarro?

O salão estava tão barulhento, e os convidados já tão bêbados a essa altura, que ninguém mais parecia se importar com onde Andrew poderia estar. Quando chegaram lá fora, encontraram Patrícia Mollison, sozinha, encostada no seu carro esportivo, olhando para o céu estrelado e fumando.

Querem um desses? — ofereceu ela, estendendo-lhes o maço.

Depois de acender o cigarro dos garotos, ficou parada ali, com uma das mãos enfiada no bolso. Havia alguma coisa naquela mulher que intimida­va Andrew, e ele não conseguia nem ao menos olhar para Bola para ver o que ele achava.

Sou Pat — disse ela, depois de alguns segundos. — A filha de Howard e Shirley.

Oi — disse Andrew. — Eu sou Andrew.

Stuart — se apresentou Bola.

Aparentemente, ela não estava a fim de continuar aquela conversa. Andrew sentiu aquilo como uma espécie de elogio e tentou imitar a in­diferença dela. O silêncio foi rompido por passos e pelo som abafado de vozes femininas.

Gaia vinha puxando Sukhvinder pela mão. Estava rindo, e, ao vê-la, Andrew percebeu que o efeito da vodca não tinha diminuído absoluta­mente.

Você — disse a garota, dirigindo-se a Bola — tem sido um monstro com Sukhvinder.

Para com isso — exclamou a outra, tentando se livrar da mão da amiga. — Tô falando sério... Me solta...

Mas é verdade — insistiu Gaia, ofegante. — Um monstro! Andou postando umas coisas no Facebook dela?

Para! — gritou Sukhvinder, que conseguiu enfim se soltar e voltou correndo para o salão.

Você tem sido um monstro com ela — insistiu Gaia, agarrando-se à grade para se equilibrar. — Fica chamando ela de lésbica e aquelas coisas todas...

Não tem nada de mais em ser lésbica — disse Patrícia, estreitando os olhos por causa da fumaça do cigarro. — Mas, na idade de vocês, a gente acha que tem.

Andrew percebeu que Bola olhou para Pat com o rabo do olho.

Eu nunca disse que tinha problema. Era só sacanagem — explicou o garoto.

Gaia foi escorregando pela grade e sentou no chão frio, apoiando a cabeça nos braços.

Tá tudo bem? — perguntou Andrew. Se Bola não estivesse ali, ele bem que sentaria ao lado dela.

Tô muito bêbada — murmurou ela.

Talvez seja melhor meter o dedo na garganta de uma vez — sugeriu Patrícia, olhando para ela, com ar impassível.

Belo carro — disse Bola, observando o BMW.

Verdade — replicou Patrícia. — É novo. Ganho duas vezes mais do que meu irmão — prosseguiu ela. — Mas Miles é o Meni­no Jesus, o Messias... Conselheiro Mollison Segundo... de Pagford. Você gosta de Pagford? — perguntou, dirigindo-se a Bola, enquanto Andrew se preocupava com Gaia, que respirava fundo com a cabeça entre os joelhos.

Não — respondeu o garoto. — Isso aqui é o fim do mundo.

É... Eu pessoalmente vivia louca para ir embora. Conheceu Barry Fairbrother?

Mais ou menos — disse Bola.

Alguma coisa na voz do amigo deixou Andrew preocupado.

Ele era o meu mentor de literatura lá na St. Thomas — disse Patrí­cia, sempre com os olhos fixos no fim da rua. — Um cara legal. Adoraria ter vindo para o enterro, mas Melly e eu estávamos em Zermatt. Que história é essa de um Fantasma de Barry que está deixando a minha mãe tão empolgada?...

Alguém está postando umas coisas no site do Conselho — respon­deu Andrew mais que depressa, antes que Bola pudesse dizer alguma coi­sa. — Boatos e coisas do gênero.

É, minha mãe adora isso — observou Patrícia.

O que será que o Fantasma vai dizer no próximo post? — perguntou Bola, dando uma olhadela para o amigo.

É capaz de não ter mais post agora que a eleição acabou — balbu- ciou Andrew.

Ah, não sei, não — disse Bola. — Ainda pode ter mais coisa irritan­do o fantasma do velho Barry...

Bola sabia que estava deixando o amigo aflito, e adorava a idéia. An­drew vinha passando o tempo todo naquele emprego de merda, e logo, logo ia embora de Pagford. Bola não lhe devia nada. A verdadeira autenti­cidade não pode conviver com culpa e obrigação.

Melhorou? — perguntou Patricia, dirigindo-se a Gaia, que fez que sim com a cabeça, com o rosto ainda escondido. — O que foi que deixou você assim, a bebida ou o dueto?

Andrew deu uma risadinha, por educação, mas também porque queria desviar a conversa do assunto sobre o Fantasma de Barry Fairbrother.

Também fiquei com o estômago embrulhado — prosseguiu Patri­cia. — Maureen e meu pai cantando juntos, lado a lado, de braços dados. — Deu a última tragada profunda no cigarro, jogou a guimba no chão e pisou nela com o salto do sapato. — Quando eu tinha doze anos, peguei Maureen chupando o meu pai. E ele me deu uma nota de cinco para eu não contar nada para a minha mãe.

Andrew e Bola ficaram chocados, com medo até de olhar um para o outro. Patricia enxugou o rosto com o dorso da mão: estava chorando.

Eu não devia ter vindo a essa maldita festa — exclamou. — Sabia que não devia ter vindo.

Entrou no BMW, e os dois garotos ficaram olhando, atônitos, ela ligar o carro, dar marcha a ré e ir embora noite adentro.

Puta que pariu! — exclamou Bola.

Acho que vou vomitar — murmurou Gaia.

O sr. Mollison tá chamando... pra servir as bebidas.

Assim que deu o recado, Sukhvinder voltou para o salão.

Não consigo — sussurrou Gaia.

Andrew a deixou ali. Quando abriu a porta, chegou a se assustar com a barulheira que vinha do salão. Todo mundo estava dançando. Teve que se afastar para dar passagem a Aubrey e Julia Fawley. Já de costas para a festa, os dois pareciam bem contentes de sair dali.

Samantha Mollison não estava dançando. Continuava encostada na­quela mesa que, ainda agora mesmo, estava repleta de bebidas já servidas. Enquanto Sukhvinder se apressava em recolher os copos vazios, Andrew foi abrir a última caixa. Trouxe então os copos limpos para o salão e co­meçou a enchê-los.

Sua gravata está torta — disse Samantha, e se debruçou sobre a mesa para ajeitá-la. Constrangido, o garoto fugiu para a cozinha assim que ela o soltou. Entre cada leva de copos que ia botando na lava-louça, tomava um gole da vodca que tinha roubado. Queria ficar tão bêbado quanto Gaia: queria voltar àquele momento em que estavam rindo juntos loucamente, antes de Bola aparecer.

Dez minutos depois, voltou para ver como estavam as bebidas lá na mesa. Samantha continuava no mesmo lugar, com os olhos vidrados, e tinha à sua disposição vários copos recém-servidos. Howard saltitava no meio da pista de dança, com o suor a lhe escorrer pelo rosto, rindo às gar­galhadas de alguma coisa que Maureen tinha lhe dito. Abrindo caminho em meio à multidão, Andrew voltou lá para fora.

De início não conseguiu localizá-la, mas de repente viu os dois. Gaia e Bola estavam agarrados, a uns dez metros da porta, encostados nas grades do portão, os corpos bem colados, a língua de um na boca do outro.

- Andrew, desculpe, mas não consigo sozinha — disse Sukhvinder, às suas costas, meio desesperada. Mas então ela avistou Bola e Gaia, e deixou escapar algo que era um misto de grito e gemido. O garoto voltou com ela para o salão, inteiramente atordoado. Na cozinha, despejou o resto da vodca num copo e bebeu tudo de um só gole. Mecanicamente, encheu a pia e começou a lavar os copos que não cabiam na lava-louça.

O álcool não era como a maconha. Estava se sentindo vazio, mas tam­bém pronto para bater em alguém: em Bola, por exemplo.

Algum tempo depois, percebeu que o relógio de plástico da parede da cozinha tinha passado da meia-noite para uma hora e que as pessoas já estavam indo embora.

Ele devia ir pegar os casacos no vestiário. Bem que tentou fazer isso por alguns minutos, mas depois foi tropeçando para a cozinha, deixando a tarefa por conta de Sukhvinder.

Samantha estava recostada na geladeira, sozinha, com um copo na mão. Andrew percebeu que a sua visão não estava nada nítida, como se tudo à sua frente fosse uma série de fotogramas. Gaia não voltou. Com certeza já tinha ido embora com Bola há muito tempo. Samantha dizia alguma coisa. Ela também estava bêbada. A sua presença já não o deixava constrangido. Andrew começou a achar que logo, logo ia vomitar.

...odeio Pagford... — disse ela —, mas você ainda tem idade para cair fora daqui.

Verdade — concordou ele, sem conseguir sentir os próprios lábios. — E vou mesmo. Logo, logo.

Ela afastou o cabelo que lhe caía na testa e o chamou de querido. A imagem de Gaia com a língua enfiada na boca de Bola ameaçava fazer tudo desaparecer. Sentia o perfume de Samantha, vindo em ondas daque­la pele quente.

Essa banda é uma merda — disse ele, apontando para o peito dela, mas não achava que ela pudesse ouvi-lo.

A boca de Samantha era áspera e quente, e aqueles seus seios enormes estavam apertados contra o seu peito. As costas dela eram tão largas quan­to as dele...

Que porra é essa?!

Andrew estava caído em cima do escorredor de louça, e Samantha es­tava sendo arrastada para fora da cozinha por um homem grandalhão, de cabelo curto e grisalho. Tinha a vaga idéia de que algo ruim havia acon­tecido, mas a estranha inconsistência da realidade estava ficando cada vez mais forte. De repente, só havia uma coisa a fazer: correr até a lixeira e vomitar, vomitar, vomitar.

Desculpe, não dá pra entrar — dizia a voz de Sukhvinder. — Tem umas coisas empilhadas aqui atrás da porta.

Andrew amarrou bem o saco de lixo onde havia vomitado. Sukhvinder o ajudou a limpar a cozinha. Precisou vomitar mais duas vezes, mas em ambas as ocasiões conseguiu chegar ao banheiro.

eram quase duas horas da manhã quando Howard, suado, mas sorri­dente, veio agradecer e se despedir.

Vocês fizeram um ótimo trabalho — disse ele. — Até amanhã, en­tão. Um ótimo... Mas onde está a srta. Bawden?

Andrew deixou que Sukhvinder inventasse uma mentira qualquer. Lá fora, soltou a corrente que prendia a bicicleta de Simon e saiu pedalando pela escuridão.

O frio durante o longo caminho de volta até Hilltop House clareou as suas idéias, mas não amenizou nem a sua amargura, nem a sua tris­teza.

Será que ele tinha dito a Bola que estava a fim de Gaia? Talvez não, mas Bola sabia. Ele sabia que Bola sabia... Será que a essa hora eles esta­vam trepando?

Bom, mas estou mesmo indo embora, pensou o garoto, que ia empur­rando a bicicleta colina acima, com o tronco inclinado para a frente e tremendo de frio. Então, quero mais que eles se fodam...

Nesse momento, uma outra idéia lhe passou pela cabeça: É melhor mesmo eu ir embora... Será que ele tinha se agarrado com a mãe de Lexie Mollison? Será que o marido dela pegou os dois juntos? Isso aconteceu mesmo?

Estava com medo de Miles, mas também estava louco para contar essa história para Bola. Queria ver a cara que ele ia fazer...

Quando entrou em casa, exausto, ouviu a voz de Simon vindo lá da cozinha às escuras.

Guardou a bicicleta na garagem?

Ele estava sentado à mesa da cozinha, comendo uma tigela de cereais. Já eram quase duas e meia da madrugada.

Não conseguia dormir — disse Simon.

Por incrível que pareça, ele não estava zangado. Como Ruth não esta­va por perto, ele não precisava provar que era mais forte ou mais esperto que os filhos. Parecia pequeno e cansado.

Acho que vamos ter que nos mudar para Reading, Cara de Pizza — comentou ele. E aquilo era quase um tratado de paz.

Ligeiramente trêmulo, sentindo-se velho, confuso e terrivelmente cul­pado, Andrew quis dar ao pai algo que pudesse compensar o que ele tinha feito. Era hora de recuperar o equilíbrio e ver Simon como um aliado. Eles eram uma família. Iam embora juntos. Talvez em algum outro lugar as coisas fossem melhorar.

Tenho uma coisa pra você — disse o garoto. — Vem cá. Aprendi a fazer isso na escola.

E levou o pai até o computador.

 

Um céu azul enevoado se estendia como uma cúpula sobre Pagford e Fields. A luz do amanhecer reluziu na velha pedra do memorial de guerra no meio da praça, nas fachadas de concreto rachado da Foley Road, e tin­gia as paredes brancas de Hilltop House de um dourado pálido. Entrando no carro para mais um longo plantão no hospital, Ruth Price olhou para o rio Orr lá embaixo, brilhando ao longe como uma fita prateada, e achou que seria uma imensa injustiça outra pessoa possuir a sua casa e a sua vista dentro em breve.

A pouco mais de um quilômetro dali, na Church Row, Samantha Mollison ainda dormia a sono solto no quarto de hóspedes. A porta não tinha chave, mas ela tinha feito uma espécie de barricada com a poltrona, antes de desabar na cama, ainda meio vestida. Os sinais de uma forte dor de cabeça perturbavam o seu torpor, e o sol, que penetrava por uma fresta das cortinas, vinha cair como um raio laser bem no canto de um dos seus olhos. Ela se remexeu um pouco, nas profundezas daquela sonolência em que se encontrava, aflita, com a boca seca, e os seus sonhos eram estra­nhos e cheios de culpa.

Lá embaixo, na cozinha clara e limpa, Miles estava sentado, ereto e sozinho, fitando a geladeira, com uma xícara de chá intocada à sua frente. Mentalmente voltou a ver a cena em que se lançava sobre a esposa em­briagada, aos beijos com um garoto de dezesseis anos.

Três casas adiante, Bola Wall estava deitado no quarto, fumando, ainda com as roupas que tinha usado na festa de aniversário de Howard Molli­son. Quis passar a noite acordado, e conseguiu. Tinha a boca ligeiramente entorpecida e meio dormente pela quantidade de cigarros que havia fuma­do, mas o cansaço acabou provocando o efeito contrário ao que ele dese­java: não estava conseguindo pensar com clareza, mas a sua infelicidade e a sua apreensão estavam mais aguçadas que nunca.

Banhado de suor, Colin Wall acordou de mais um dos pesadelos que o atormentavam há anos. Sempre fazia coisas terríveis nos seus sonhos, aquelas coisas que passava o tempo todo temendo quando estava acorda­do. Dessa vez, tinha matado Barry Fairbrother, a polícia conseguiu encontrá-lo e veio lhe dizer que sabia que ele tinha eliminado Fairbrother. Já haviam feito a autópsia.

Olhando para a tão conhecida sombra do lustre no teto, Colin se per­guntou por que nunca tinha pensado na possibilidade de ter matado Barry; e de imediato a pergunta surgiu na sua mente: Como sabe que não matou?

No térreo, Tessa estava aplicando a injeção de insulina na barriga. Sa­bia que Bola tinha voltado para casa na noite anterior porque podia sentir o cheiro de cigarro que vinha lá de cima quando chegava perto da escada que levava ao seu quarto. Não sabia aonde ele tinha ido nem a que horas tinha voltado, o que a deixava assustada. Como as coisas tinham chegado a esse ponto?

Feliz da vida, Howard Mollison dormia profundamente na sua cama de casal. As cortinas estampadas cobriam-no de pétalas cor-de-rosa, protegendo-o de um despertar mais brusco, mas os seus chiados e os seus sonoros roncos já haviam acordado a sua esposa. Na cozinha, Shirley comia umas torradas e tomava um café, de óculos, envergando o seu robe de chenile. Via Maureen dançando de braços dados com o seu marido no salão da igreja, e ficou com tanta raiva que nem conseguia sentir o gosto do que estava comendo.

No Smithy, a alguns quilômetros do centro de Pagford, Gavin Hughes se ensaboava sob a ducha quente perguntando-se por que jamais tivera a coragem de outros homens, e como eles conseguiam fazer a escolha certa entre alternativas quase infinitas. No fundo desejava uma vida que havia vislumbrado, mas jamais experimentara. No entanto, essa mesma vida de­sejada o assustava. Escolher é algo perigoso: quando escolhemos, temos que abrir mão de todas as outras possibilidades.

Kay Bawden estava deitada na sua cama da Hope Street, acordada e exausta, ouvindo a quietude do amanhecer em Pagford e vendo Gaia, que dormia ao seu lado na cama de casal, pálida e sem forças à luz do dia que raiava. No chão, perto da garota, havia um balde que Kay decidira pôr ali, depois de levar a filha praticamente carregada até o banheiro várias vezes naquela madrugada e passar uma hora segurando o cabelo dela para que ele não entrasse na privada.

— Por que você nos trouxe pra cá? — choramingava Gaia, vomitando dentro do vaso sanitário. — Me larga. Me deixa em paz. Porra!... Odeio você.

Olhando o rosto da filha adormecida, Kay ficou se lembrando do bebezinho lindo que dormia ao seu lado, dezesseis anos atrás. Lembrou também que as duas choraram juntas quando ela se separou de Steve, seu companheiro por oito anos. Steve, que freqüentava as reuniões de pais da escola de Gaia e que a ensinou a andar de bicicleta. Pensou na fantasia que nutriu por tanto tempo (pensando bem agora, uma fantasia tão boba quanto a de Gaia, que aos quatro anos queria ter um unicórnio) de formar uma família com Gavin e finalmente dar a Gaia um verdadei­ro padrasto e uma bonita casa no campo. Sonhou tanto com um final feliz, com uma vida para a qual Gaia quisesse sempre voltar. Porque a partida da filha vinha se aproximando dela como um meteorito, e Kay via a perda de Gaia como uma catástrofe que poderia destruir o seu mundo.

Estendeu o braço por baixo do edredom e segurou o da filha. Ao tocar aque­le corpo quente que ela havia posto no mundo por acidente, Kay começou a chorar baixinho, mas com tanta violência que o colchão chegava a sacudir.

No final da Church Row, Parminder Jawanda colocou um casaco por cima da camisola e foi tomar café no quintal dos fundos. Sentada num banco de madeira, sob aquele sol ainda gélido, percebeu que um dia lindo se anunciava, mas parecia haver um bloqueio entre os seus olhos e o seu coração. O imenso peso que sentia no peito amortecia todo o resto.

A notícia da vitória de Miles Mollison na eleição para o Conselho Dis­trital não foi nenhuma surpresa, mas, ao ver o pequeno anúncio postado por Shirley no site da instituição, sentiu mais um lampejo daquela lou­cura que se havia apoderado dela na última reunião: um desejo de atacar quase imediatamente suplantado por uma profunda desesperança.

Vou renunciar ao cargo de conselheira — disse a Vikram. — Para que continuar?

Mas você gosta tanto — replicou ele.

Gostava, sim, mas quando Barry também fazia parte daquele Conselho. Era fácil pensar nele naquela manhã, quando tudo estava quieto, imóvel. Um homenzinho, de barba avermelhada... Ela tinha bem uns dez centíme­tros a mais que ele. Nunca sentiu a menor atração física por ele. O que era amor, afinal?, pensou Parminder, enquanto um vento brando soprava a cer­ca alta de ciprestes, que contornava o extenso gramado dos fundos da casa dos Jawanda. O amor é quando alguém preenchia um espaço na sua vida, um espaço que ficava inteiramente vazio quando essa pessoa ia embora?

Eu adorava rir, pensou Parminder. Sinto muita falta disso.

E foi a lembrança do riso que fez, enfim, as lágrimas brotarem dos seus olhos, escorrerem pelo seu nariz e caírem no café, formando uns minúsculos furinhos, que pareciam de pequenas balas de revólver. Estava chorando porque pelo visto nunca mais ia voltar a rir, e também porque na véspera, enquanto ouviam a música alegre que vinha lá do salão da igreja, Vikram lhe dissera:

Por que não vamos a Amritsar no verão?

O Templo Dourado, o santuário mais sagrado da religião à qual o seu marido era completamente indiferente. Entendeu de imediato o que Vi­kram estava tentando fazer. Pela primeira vez na vida, o tempo ficou sus­penso e vazio nas suas mãos. Nenhum dos dois sabia o que o Conselho Geral de Medicina decidiria a seu respeito se considerasse a sua atitude com relação a Howard Mollison uma violação à ética profissional.

Mandeep diz que o lugar é uma grande armadilha para turistas — replicou ela, rejeitando de vez a sugestão do marido.

Porque fui dizer aquilo?, perguntou-se Parminder, chorando ainda mais ali no jardim, com o café esfriando na xícara. Seria bom levar as crianças para conhecer Amritsar. Ele está tentando ser gentil. Porque não concordei?

Teve uma vaga sensação de haver traído algo ao recusar a visita ao Templo Dourado. A imagem do santuário surgiu em meio às suas lágrimas, com a cú­pula em forma de flor de lótus refletida num espelho de água, aquela cúpula de um mel brilhante, que se destacava contra um fundo de mármore branco.

Mãe.

Sukhvinder tinha vindo pelo gramado sem que ela notasse. Estava de jeans e com um suéter bem largo. Parminder se apressou em enxugar o rosto e apertou os olhos para enxergar melhor a filha, que estava contra o sol.

Não quero ir trabalhar hoje.

A reação de Parminder foi imediata, seguindo aquele mesmo espírito de contradição que a fizera recusar a viagem a Amritsar.

Você assumiu um compromisso, Sukhvinder.

Não tô me sentindo bem.

Você quer dizer que está cansada. Foi você que quis trabalhar. Ago­ra, cumpra com as suas obrigações.

Mas...

Você vai para o trabalho, sim — cortou a médica, e parecia até que ela estava pronunciando uma sentença. — Não vai dar aos Mollison mais um motivo para reclamarem.

Depois que a filha voltou para dentro de casa, Parminder se sentiu culpada. Esteve a ponto de chamá-la de volta. Limitou-se, porém, a pen­sar que precisava arranjar algum tempo para se sentar com Sukhvinder e conversar com ela sem brigar.

 

Krystal andava pela Foley Road no sol das primeiras horas da manhã, co­mendo uma banana. Não conseguia saber se gostava ou não daquela fruta com um sabor e uma textura tão estranhos. Ela e a mãe nunca compravam frutas.

A mãe de Nikki tinha acabado de expulsá-la de casa sem a menor ce­rimônia.

Temos coisas para fazer, Krystal — disse ela. — Vamos jantar na casa da avó de Nikki.

Depois disso, resolveu lhe dar aquela banana como café da manhã. Krystal foi embora sem reclamar. A família toda de Nikki mal cabia à mesa da cozinha.

Fields não ficava mais bonito banhado pelos raios de sol da manhã. Pelo contrário, a luz do dia realçava ainda mais a sujeira e os estragos, as rachaduras nas paredes de concreto, as janelas tapadas com tábuas e o lixo acumulado.

A praça de Pagford parecia recém-pintada sempre que o sol brilhava. Duas vezes por ano, as crianças da escola primária passavam pelo centro do vilarejo, duas a duas, em fila, a caminho da igreja, para o serviço religioso do Natal e da Páscoa. (Ninguém jamais quis dar a mão a Krystal. Bola havia dito a todo mundo que ela tinha piolho. Ela ficou se perguntando se ele ainda se lembrava disso.) Havia corbelhas cheias de flores, pinceladas de roxo, rosa e verde, e sempre que ela passava pelas jardineiras que ficavam na frente do Black Canon arrancava uma pétala de uma flor qualquer. De início, todas eram frescas e macias entre os seus dedos, mas logo escureciam e se tornavam pegajosas à medida que ela as esmagava. Em geral, se livrava delas esfregando a mão debaixo de um dos bancos de madeira da Igreja de São Miguel.

Entrou em casa e logo percebeu, pela porta aberta à sua esquerda, que Terri não tinha ido para a cama. Estava sentada na poltrona de sempre, de olhos fechados e com a boca aberta. Krystal bateu a porta com força, mas Terri nem se mexeu.

Mais que depressa, se aproximou da mãe e sacudiu o seu braço fino. A cabeça de Terri pendeu para a frente, encostando no seu peito encarquilhado, e ela soltou um ronco.

Krystal a soltou. A imagem do homem morto no banheiro voltou à sua memória.

Sua vaca estúpida — exclamou a garota.

Mas, de repente, percebeu que Robbie não estava por ali. Subiu a es­cada correndo, chamando por ele.

Tô aqui — ouviu-o dizer, por trás da porta fechada do quarto dela.

Quando forçou a porta e conseguiu abri-la, viu Robbie parado ali, nu. Atrás dele, deitado no seu colchão, sem camisa e coçando o peito, estava Obbo.

Tudo bem, Krys? — perguntou ele, com um risinho.

Ela passou a mão em Robbie e o carregou para o seu próprio quarto. As suas mãos tremiam tanto que ela levou horas para vesti-lo.

Ele fez alguma coisa com você? — perguntou ao menino, bem baixinho.

Tô com fome — disse Robbie.

Depois de vesti-lo, ela o pegou no colo e desceu correndo. Dava para ouvir Obbo circulando pelo seu quarto.

Que que ele tá fazendo aqui? — gritou ela, dirigindo-se a Terri, que estava inteiramente grogue, atirada na poltrona. — Por que que ele tava com Robbie?

O menino se debatia para sair do seu colo; ele odiava que gritassem.

E que porra é essa aí? — perguntou Krystal, sempre aos berros, per­cebendo só agora duas sacolas pretas no chão, ao lado da poltrona de Terri.

Nada — respondeu a mulher vagamente.

Mas Krystal já tinha aberto o zíper de uma delas.

Não é nada!!! — esbravejou Terri.

Ali dentro havia uns pacotes de haxixe, grandes como tijolos, embala­dos cuidadosamente em folhas de polietileno: Krystal, que mal sabia ler, que era praticamente incapaz de identificar metade dos legumes expostos num supermercado, que não fazia idéia do nome do primeiro-ministro, sabia perfeitamente que o conteúdo daquela sacola, se descoberto, signi­ficava prisão para a sua mãe. Viu, então, a lata com os cavalos e o cocheiro de cartola na tampa, meio escondida na poltrona em que Terri estava sentada.

Você usou — exclamou a garota, ofegante, como se uma calami­dade invisível houvesse desabado sobre ela e tudo ao seu redor estivesse destruído. — Você usou a porra da...

Ouviu Obbo descendo a escada e pegou Robbie no colo novamente. O menino começou a chorar e se debateu nos seus braços, assustado com a sua raiva, mas Krystal o segurou com toda a força.

Solta ele, porra — gritava Terri, inutilmente. Krystal já tinha aberto a porta e, correndo o mais rápido que podia, apesar do peso do irmão, que se debatia e gemia, voltou para a rua.

 

Shirley tomou banho e tirou uma roupa do armário enquanto Howard continuava a dormir, roncando. O sino da Igreja de São Miguel e Todos os Santos soando para o serviço das dez horas chegou aos seus ouvidos quando ela estava abotoando o casaco. Sempre achou que aquele barulho devia ser altíssimo na casa dos Jawanda, que moravam bem em frente, e torceu para que eles ouvissem aquele som como a proclamação, em altos brados, do apoio de Pagford aos velhos costumes e tradições, de que eles, obviamente, não faziam parte.

Sem pensar muito, porque era o que quase sempre fazia, Shirley saiu pelo corredor, entrou no antigo quarto de Patrícia e sentou-se na frente do computador.

A filha devia estar ali, dormindo no sofá-cama que Shirley havia pre­parado para ela. Mas era um alívio não ter que lidar com ela naquela ma­nhã. Howard, que ainda cantarolava "The Green, Green Grass of Home" quando chegaram de volta a Ambleside já de madrugada, só deu pela falta de Patrícia quando Shirley enfiou a chave na porta da frente.

Onde está Pat? — perguntou ele, num sussurro, recostado no portal.

Ah, ela ficou chateada porque Melly não quis vir — respondeu Shirley com um suspiro. — Tiveram uma briga ou algo assim... Deve ter voltado para casa para tentar acertar as coisas.

Sempre uma emoção extra — exclamou ele, esbarrando nas pare­des do estreito corredor, a caminho do quarto.

Shirley entrou no seu site de medicina favorito. Quando digitou a primeira letra do termo que queria procurar, o site exibiu novamente as definições das injeções de adrenalina. Ela então aproveitou para rever rapidamente como agiam e como deviam ser utilizadas, porque talvez ainda tivesse a chance de salvar a vida do rapazinho que trabalhava no café. Em seguida digitou com todo o cuidado a palavra "eczema", e ficou sabendo, não sem alguma decepção, que a doença não era in­fecciosa, e portanto não poderia ser usada como desculpa para demitir Sukhvinder Jawanda.

Por pura força do hábito, digitou o endereço do site do Conselho Dis­trital de Pagford e clicou na área de mensagens.

Agora era capaz de reconhecer de cara, só pelo formato e pelo tama­nho, o nome O_Fantasma_de_Barry_Fairbrother, exatamente como um apaixonado reconhece de imediato a nuca da mulher amada, ou a forma de seus ombros ou o seu jeito de andar.

Bastou uma olhada nas mensagens recentes para quase explodir de empolgação: o Fantasma não a tinha abandonado. Sabia que a explosão da dra. Jawanda não poderia passar em branco.

 

       O caso do representante máximo de Pagford

 

Leu a frase, mas a princípio não entendeu nada. Estava esperando ver ali o nome de Parminder. Leu de novo e quase perdeu o fôlego, como alguém que é atingido por um balde de água fria.

Há anos que Howard Mollison, o representante máximo de Pagford, e Maureen Lowe, moradora de longa data do vilarejo, são muito mais do que meros sócios. É do conhecimento de todos que Maureen prova re­gularmente os mais finos salames de Howard. Aparentemente a única pessoa que não está a par desse segredo é Shirley, esposa de Howard.

 

Paralisada na cadeira, Shirley pensou: Não é verdade. Não podia ser verdade.

Tinha desconfiado disso uma ou duas vezes... Chegou até a fazer algu­mas insinuações a Howard...

Não, não ia acreditar naquilo. Não podia acreditar naquilo. Mas os outros acreditariam. Acreditariam no Fantasma. Todos acredi­tavam nele.

Quando tentou remover a mensagem do site, atrapalhou-se toda, por­que as suas mãos pareciam até luvas vazias, inertes, desajeitadas. Enquanto aquela mensagem permanecesse ali, a cada segundo mais alguém poderia lê-la, acreditar nela, rir dela, transmiti-la para o jornal local... Howard e Maureen... Howard e Maureen...

A mensagem foi apagada. Shirley ficou sentada ali, olhando para o mo­nitor, com os pensamentos correndo como ratos numa caixa de vidro, ten­tando escapar, mas não havia nenhuma saída, nenhum apoio para os pés, nenhuma maneira de voltar para aquele lugar feliz onde ela vivia antes de ver aquela coisa horrorosa, exibida publicamente para o mundo inteiro ver... Ele tinha rido de Maureen.

Não, ela tinha rido de Maureen. Howard tinha rido de Kenneth.

Sempre juntos: nas férias, no trabalho, nos passeios de fim de semana...

 

...a única pessoa que não está a par desse segredo...

 

...ela e Howard não precisavam de sexo: dormindo há anos em camas separadas, tinham um acordo tácito...

 

...prova regularmente os mais finos salames de Howard...

 

(A mãe de Shirley estava viva ali no quarto ao seu lado: rindo e debo­chando dela, derramando o vinho que bebia... Shirley não suportava esse tipo de riso. Nunca conseguiu agüentar obscenidades e escárnio.)

Levantou-se de um salto, tropeçando nos pés da cadeira, e correu para o quarto. Howard ainda estava dormindo, deitado de barriga para cima, roncando como um porco.

Howard — disse ela. — Howard.

Ele demorou alguns minutos para acordar. Estava confuso e desorien­tado, mas, parada ali ao seu lado, Shirley ainda o via como um cavaleiro protetor que poderia salvá-la.

Howard, o Fantasma de Barry Fairbrother postou mais uma men­sagem.

Ligeiramente irritado por ter sido acordado assim tão bruscamente, Howard fez um grunhido e enfiou o rosto no travesseiro.

É sobre você — disse Shirley.

Em geral, ela e Howard não diziam claramente o que pensavam. E Shirley sempre gostou disso. Mas hoje queria ir direto ao assunto.

É sobre você — repetiu ela — e Maureen. Segundo ele, vocês têm... um caso.

Howard passou a mão enorme pelo rosto e esfregou os olhos. Shirley estava convencida de que ele os esfregou muito mais do que o necessário.

O quê? — indagou ele, enquanto tinha o rosto protegido pela mão.

Que você e Maureen têm um caso.

De onde ele tirou isso?

Não havia naquela pergunta negação, nem ofensa, nem riso de incre­dulidade. Apenas a preocupação com relação à fonte daquela informação.

Dali em diante, Shirley sempre se lembraria daquele momento como uma morte, uma vida efetivamente encerrada.

 

— Porra, Robbie! Cala a boca.

Krystal foi arrastando Robbie até um ponto de ônibus várias ruas adian­te, para que nem Obbo, nem Terri pudessem encontrá-los. Não sabia se tinha dinheiro para a passagem, mas estava decidida a ir para Pagford. A avó Cath tinha morrido, o sr. Fairbrother tinha morrido, mas Bola estava lá, e ela precisava engravidar dele.

Por que ele tava lá no quarto com você? — perguntou ela aos gritos, mas Robbie continuava chorando e não respondeu.

O celular de Terri estava quase sem bateria. Krystal ligou para Bola, mas caiu na caixa postal.

Lá na Church Row, o garoto estava ocupado, comendo umas torradas e ouvindo os pais terem mais uma daquelas conversas esquisitas no escritó­rio, do outro lado do corredor. Essa era uma ótima maneira de se desligar dos seus próprios pensamentos. No seu bolso, o telefone vibrou, mas ele não atendeu. Não havia ninguém com quem quisesse falar. Andrew não era. Não depois da noite de ontem.

Colin, você sabe muito bem o que deve fazer — dizia a sua mãe. Pela voz, parecia exausta. — Por favor, Colin...

Nós jantamos com eles no sábado à noite. Na véspera da morte dele. Fui eu que fiz o jantar. E se...

Colin, você não colocou nada na comida... Pelo amor de Deus! Eu estou aqui fazendo isso... Não tenho nada que fazer isso, Colin, você sabe muito bem que eu não tenho que entrar nesse jogo. É o seu TOC que está fazendo você pensar essas coisas.

Mas eu posso ter colocado, Tess. De repente me passou pela cabeça: e se eu pus alguma coisa...

Então por que é que nós estamos vivos, você, eu e Mary? Eles fize­ram uma autópsia, Colin!

Mas ninguém nos deu nenhum detalhe. Mary não nos disse nada. Acho que é por isso que ela não quer mais falar comigo. Está desconfiada.

Colin, pelo amor de Deus...

A voz de Tessa era agora um sussurro insistente, baixo demais para ser ouvido. O celular de Bola vibrou novamente. O garoto tirou o aparelho do bolso. Era o número de Krystal. Ele atendeu.

— Oi — disse Krystal, e ele ouviu alguma coisa que parecia uma crian­ça gritando. — A gente pode se encontrar?

Não sei, não — respondeu ele, bocejando. Estava pretendendo ir para a cama.

Tô indo pra Pagford de ônibus. A gente podia dar uma volta.

Na véspera, ele agarrou Gaia Bawden lá na grade, do lado de fora do salão da igreja, até ela o empurrar e começar a vomitar. Depois, quando ela começou a brigar com ele de novo, Bola decidiu voltar para casa e deixar ela ali.

Não sei, não — repetiu ele. Estava se sentindo muito cansado, mui­to triste.

Ah, vamos — insistiu a garota.

Bola ouviu a voz de Colin vindo lá do escritório.

Isso é o que você diz, mas será que ia aparecer? E se eu...

Não podemos continuar com isso, Colin... Você sabe que não deve levar essas idéias a sério.

Como pode dizer isso? Como não levar isso a sério? Se eu for o responsável...

Tá bom — disse Bola. — Encontro você daqui a vinte minutos em frente ao pub lá na praça.

 

Finalmente, Samantha teve que sair do quarto de hóspedes, porque estava com muita vontade de fazer xixi. Tomou uns goles de água gelada direto da torneira do banheiro até se sentir enjoada, engoliu dois comprimidos de paracetamol que apanhou no armário de remédios acima da pia e de­pois tomou um banho.

Vestiu-se sem se olhar no espelho. Fez tudo isso tentando distinguir algum ruído que lhe indicasse onde estaria Miles, mas a casa parecia com­pletamente silenciosa. Talvez ele tivesse levado Lexie a algum lugar, pen­sou ela, longe da mãe bêbada, devassa e papa-anjo...

(— Ele era da turma de Lexie na escola! — esbravejou Miles, quando ficaram sozinhos no quarto. Ela esperou até ele se afastar da porta, correu então para abri-la e fugiu para o quarto de hóspedes.)

A náusea e a mortificação a inundavam. Adoraria poder esquecer, apa­gar aquilo tudo, mas ainda via nitidamente o rosto do garoto quando ela se atirou sobre ele... Lembrava direitinho a sensação do corpo dele contra o seu, aquele corpo tão magro, tão jovem...

Se ao menos fosse Vikram Jawanda, poderia haver alguma dignida­de naquilo tudo... Estava precisando de um café. Não podia ficar ali no banheiro para sempre. Quando porém se virou para abrir a porta, viu o próprio reflexo no espelho e quase perdeu a coragem. Estava com o rosto inchado, mal podia abrir os olhos, e as linhas da sua pele pareciam mais acentuadas por causa da noite maldormida e da desidratação.

Ah, meu Deus, o que ele deve ter pensado de mim...

Miles estava sentado na cozinha quando ela entrou. Samantha nem olhou para o marido. Foi direto até o armário onde ficava o café. Mas, antes mesmo que abrisse a porta, ele lhe disse:

Tem café aqui.

Obrigada — murmurou ela, e encheu uma caneca com a bebida, evitando encará-lo.

Mandei Lexie para a casa dos meus pais — disse Miles. — Precisa­mos conversar.

Samantha se sentou.

Então vamos lá — disse ela.

"Vamos lá"... É tudo o que tem a dizer?

É você que quer conversar.

Ontem à noite, na festa de aniversário do meu pai, saí procurando você e fui encontrá-la agarrada com um garoto de dezesseis anos...

É, de dezesseis anos — confirmou Samantha. — Já é maior de idade. Menos mal.

Ele a olhava, atônito.

Você acha isso engraçado? Se me visse tão bêbado a ponto de nem me dar conta...

Mas eu me dei conta — interrompeu Samantha.

Recusava-se a ser outra Shirley, que encobria tudo com os panos quen­tes de uma ficção bem-comportada. Queria ser honesta, queria atravessar aquela espessa camada de complacência que encobria o rapaz que tinha amado um dia e que mal conseguia reconhecer.

Você se deu conta... de quê? — perguntou Miles.

Ficou tão óbvio que ele esperava constrangimento e arrependimento que ela quase riu.

De que estava beijando o garoto — respondeu Samantha.

Miles a encarou bem nos olhos, e ela perdeu a coragem, porque sabia exatamente o que ele diria em seguida.

E se Lexie tivesse entrado naquela cozinha?

Samantha não tinha resposta para aquela pergunta. A idéia de Lexie ficar sabendo do que tinha acontecido lhe deu vontade de fugir dali e nun­ca mais voltar... E se o garoto lhe contasse? Eles foram colegas de escola. Ela tinha esquecido como era Pagford...

Que diabos está acontecendo com você? — indagou o marido.

Estou... infeliz — respondeu Samantha.

Por quê? — perguntou ele, mas logo acrescentou: — É por causa da loja? É isso?

Também — replicou ela. — Mas odeio morar em Pagford. Odeio viver tão perto assim dos seus pais. E, às vezes — acrescentou, bem deva­gar —, odeio acordar ao seu lado.

Achou que Miles fosse ficar com raiva, ele porém se limitou a pergun­tar tranqüilamente:

Está dizendo que não me ama mais?

Não sei — respondeu Samantha.

Com a camisa aberta no pescoço, ele parecia mais magro. Pela primei­ra vez em muito tempo, ela achou que tinha visto alguém conhecido e vulnerável dentro daquele corpo que envelhecia e que estava sentado do outro lado da mesa. E ele ainda me quer, pensou, espantada, lembrando aquele rosto todo amassado que vira no espelho lá em cima.

Mas, na noite em que Barry Fairbrother morreu — acrescentou ela —, fiquei feliz por você ainda estar vivo. Acho que sonhei que estava mor­to... Acordei e sei que fiquei feliz quando ouvi a sua respiração.

Isso é... Isso é tudo o que tem a me dizer? Que ficou feliz por eu não estar morto?

E pensou que ele não estava zangado. Que bobagem... Ele só tinha ficado chocado.

Isso é tudo o que tem a me dizer? Você fica completamente bêbada na festa de aniversário do meu pai...

Seria melhor se não tivesse acontecido na maldita festa do seu pai? — perguntou ela, aos berros, pois a raiva dele provocava a sua própria. — Afinal, qual é o verdadeiro problema? Eu ter deixado você constrangido na frente da mamãe e do papai?

Você estava beijando um garoto de dezesseis anos...

Talvez ele seja o primeiro de muitos outros — gritou Samantha, levantando-se da mesa e colocando a caneca na pia com força. A asa da caneca quebrou e ficou na sua mão. — Você não entende, Miles? Não agüento mais! Odeio a porra da nossa vida, e odeio a porra dos seus pais...

...mas não se importa que eles paguem o colégio das meninas...

...odeio ver você se transformando no seu pai bem diante dos meus olhos...

...que nada, você simplesmente não gosta de me ver feliz quando está...

...porque o meu querido marido não dá a mínima para como estou me sentindo...

...tem tanta coisa para fazer por aqui, e você prefere ficar sentada em casa, emburrada...

...não pretendo ficar sentada em casa nunca mais, Miles...

...não vou pedir desculpas por participar das questões da comuni­dade...

...bem, eu estava falando sério quando disse que você era a pessoa menos indicada para ocupar o lugar dele.

O quê? — perguntou Miles, levantando-se tão bruscamente que a cadeira caiu para trás, mas Samantha já estava se dirigindo para a porta da cozinha.

Isso mesmo que você ouviu — respondeu ela, aos berros. — Como eu disse naquela carta, Miles, você é a pessoa menos indicada para ocupar o lugar de Barry Fairbrother. Ele era sincero.

A carta era sua?

Isso mesmo — disse ela, ofegante, com a mão na maçaneta da por­ta. — Fui eu que mandei aquela carta. Numa noite em que bebi demais enquanto você estava no telefone com a sua mãe. E — acrescentou, abrin­do a porta — também não votei em você.

A expressão dele a deixou furiosa. No corredor, ela calçou uns taman­cos, o primeiro par de sapatos que encontrou, e saiu porta afora, antes que ele pudesse alcançá-la.

 

A viagem levou Krystal de volta à infância. Por anos a fio, fez aquele cami­nho de ônibus sozinha para a St. Thomas. Sabia perfeitamente quando a velha abadia ia surgir, e mostrou as ruínas ao irmão.

Olha lá as ruínas daquele castelo bem grande!

Robbie estava com fome, mas o entusiasmo de andar de ônibus conse­guiu distraí-lo um pouco. Krystal continuava segurando firme a sua mão. Tinha prometido lhe dar alguma coisa para comer quando chegassem, mas não sabia como ia conseguir fazer isso. Talvez pudesse pedir dinheiro emprestado a Bola e comprar um saco de batatas fritas, além, é claro, da passagem de volta.

A minha escola era aqui — disse a garota. Robbie passava os dedos pelos vidros sujos da janela, criando umas formas abstratas. — Sua escola também vai ser aqui.

Quando lhe dessem uma casa, por causa da gravidez, com toda a cer­teza ia ser lá em Fields; ninguém quer comprar casas naquele bairro, por­que estão todas caindo aos pedaços. Mas Krystal achava que isso era até bom, porque, apesar do péssimo estado daquelas casas, Robbie e o bebê ficariam na área de abrangência da St. Thomas. De qualquer modo, era quase certo que os pais de Bola lhe dessem dinheiro para comprar uma máquina de lavar, pois ela ia ser a mãe do neto deles. Quem sabe até não iam ter televisão?

O ônibus ia descendo a ladeira rumo a Pagford, e Krystal avistou o rio reluzente, que podia ser visto por um breve instante, antes que a estrada chegasse ao ponto mais baixo do trajeto. Quando entrou para a equipe de remo, ficou decepcionada ao ver que não iam treinar no rio Orr, mas naquele canal velho e sujo lá de Yarvil.

Chegamos — disse a Robbie, enquanto o ônibus contornava lenta­mente a praça toda florida.

Bola tinha esquecido que esperar na porta do Black Canon significava ficar bem em frente à Mollison & Lowe e ao Copper Kettle. Ainda faltava mais de uma hora para o meio-dia, quando o café abria aos domingos, mas Bola não sabia com que antecedência Andrew tinha que chegar ao trabalho. Hoje não estava com a menor vontade de encontrar o seu mais antigo amigo, então ficou meio escondido na esquina do pub, e só apare­ceu quando o ônibus chegou.

O veículo foi embora, revelando Krystal e um menininho de aparência meio suja.

Sem entender nada, Bola se aproximou deles.

Esse aqui é o meu irmão — disse Krystal em tom agressivo, respon­dendo a algo que percebeu na expressão de Bola.

Ele teve que fazer mais um ajuste mental na sua concepção do que seria uma vida autêntica e sem disfarces. Andava meio fascinado pela idéia de engravidar Krystal (e mostrar a Pombinho o que os homens de verdade podem fazer de forma corriqueira e sem esforço), mas ver aquele garotinho agarrado à mão e à perna da irmã o deixou desconcertado.

Adoraria não ter concordado em se encontrar com Krystal. Ao lado dela, estava se sentindo ridículo. Quando a viu ali, no meio da praça, achou que seria mil vezes melhor estar naquela casa fedida e miserável.

Tem um dinheiro pra me emprestar? — perguntou a garota.

O quê? — replicou Bola, que estava lerdo de tão cansado. Já não lembrava por que quis passar a noite toda acordado, e a sua língua chegava a latejar de tanto que tinha fumado.

Dinheiro — repetiu Krystal. — Ele tá com fome, e perdi uma nota de cinco. Depois eu pago.

Bola enfiou a mão no bolso da calça jeans e encontrou uma nota toda amassada. De repente, não quis que ela achasse que ele era rico. Catou então lá no fundo todas as moedas que pôde encontrar.

Foram até a loja de conveniência, que ficava a dois quarteirões da pra­ça, e Bola esperou do lado de fora enquanto Krystal entrou para comprar um saco de batatas fritas e um chocolate. Ninguém disse nada, nem mes­mo Robbie, que parecia estar com medo de Bola. Finalmente, depois de dar as batatas ao irmão, Krystal perguntou:

Pra onde a gente vai?

Ele não estava achando que iriam trepar. Não com o menininho ali. Pensou em levá-la até o Pombal, era um lugar mais escondido, e ainda por cima aquilo seria a dessacralização definitiva da sua amizade com Andrew. Agora, já não devia nada a ninguém. Mas desistiu porque não podia nem pensar em foder com ela na frente de uma criança de três anos.

Ele vai ficar direitinho — disse Krystal. — Vai ganhar chocolate. Agora não, mais tarde — acrescentou, dirigindo-se a Robbie, que cho­ramingava pedindo o chocolate que estava na mão dela. — Depois de comer batata frita.

Saíram andando em direção à velha ponte de pedra.

Ele vai ficar direitinho — repetiu a garota. — Ele é obediente. Não é, Robbie? — disse ela, um pouco mais alto, dirigindo-se ao irmão.

Qué chocolate — pediu o menino.

Tá, daqui a pouco.

Sabia que ia precisar ser bem legal com Bola hoje. No ônibus, per­cebeu que ter levado Robbie tornaria as coisas mais difíceis, embora não houvesse outro jeito.

O que aconteceu com você?

Teve uma festa ontem à noite — respondeu Bola.

Ah, é? Quem tava lá?

Ela teve que esperar pela resposta porque o garoto bocejou, se espre- guiçando.

Arf Price. Sukhvinder Jawanda. Gaia Bawden.

Ela mora em Pagford? — perguntou Krystal, agressiva.

Mora, na Hope Street.

Sabia onde ela morava porque Andrew tinha deixado escapar essa infor­mação. O amigo nunca tinha lhe dito que gostava dela, mas, nas poucas ma­térias em que estavam na mesma turma, Bola reparou que ele passava quase o tempo todo olhando para a garota. Notou também que Andrew ficava bem atrapalhado quando estava perto de Gaia ou quando alguém falava dela.

Krystal, por sua vez, estava pensando na mãe de Gaia: a única assisten­te social de quem já gostou, a única que conseguiu alcançar a sua mãe. Então ela morava na Hope Street, na mesma rua que a avó Cath. E prova­velmente estava lá a essa hora. E se...

Mas Kay não estava mais com elas. Mattie tinha voltado a ser a sua assistente social. De todo modo, sabia que não tinha nada que ir incomodá-la em casa. Uma vez, Shane Tully seguiu a assistente social até a casa dela, e o juiz lhe deu ordem de restrição. Mas, antes, Shane já tinha tentado acertar um tijolo no para-brisa do carro da mulher...

Além disso, pensou Krystal, apertando os olhos quando, depois de uma curva, o rio quase a ofuscou com milhares de pontinhos brancos de luz, Kay continuava responsável pelos relatórios, pelo dossiê, e ainda detinha o poder de decisão. Ela parecia bem legal, mas nenhuma das soluções que encontrasse poderia manter Krystal e Robbie juntos...

Podíamos ir lá pra baixo — sugeriu a Bola, apontando para um local logo depois da ponte, onde a margem do rio ficava mais larga. — E Robbie podia ficar esperando aqui nesse banco.

A garota achou que podia ficar de olho no irmão e ao mesmo tempo conseguir que ele não visse nada. Não que ele nunca tivesse visto aquilo antes, naquela época em que Terri levava estranhos para casa.

No entanto, por mais cansado que estivesse, Bola não se conformava. Não ia conseguir transar na grama, na frente de um menino de três anos.

Não — disse ele, tentando parecer indiferente.

Ele não vai atrapalhar — replicou Krystal. — Vai ficar comendo chocolate. Nem vai perceber — acrescentou, sabendo perfeitamente que não era verdade. Robbie conhecia aquilo tudo bem demais. Houve até um problema na escola quando ele ficou imitando a posição cachorrinho numa outra criança.

Bola se lembrou de que a mãe de Krystal era prostituta. Detestava o que a garota estava sugerindo, mas isso não era demonstrar falta de auten­ticidade?

Qual o problema? — perguntou Krystal, num tom meio agressivo.

Nenhum — respondeu ele.

Dane Tully faria isso. Pikey Pritchard também. Pombinho, nem em um milhão de anos.

Krystal levou Robbie até o banco. Bola se abaixou para verificar se dava para ver, por cima do encosto daquele banco, o local onde eles iam ficar e achou que o menino certamente não veria nada. Em todo caso, ia tratar de fazer tudo o mais rápido possível.

Toma — disse Krystal, dirigindo-se ao irmão e lhe entregando a bar­ra de chocolate, que ele pegou todo animado. — Você só vai poder comer tudo se ficar sentado aqui um pouquinho, tá? Você vai ficar sentado aqui, e eu vou ficar logo ali, perto das plantas. Entendeu, Robbie?

Tendi — respondeu o menino, feliz da vida, com as bochechas já todas sujas de chocolate e caramelo.

Krystal saiu de fininho e desceu até a margem do rio, na esperança de que Bola não criasse problema em transar sem camisinha.

 

Gavin saiu de óculos escuros por causa do sol da manhã, mas nem por isso conseguiu se esconder: Samantha Mollison reconheceu imediata­mente o seu carro. Quando a viu andando pela calçada sozinha com as mãos nos bolsos e a cabeça baixa, dobrou à esquerda bruscamente. Em vez de seguir em frente para chegar à casa de Mary, atravessou a velha ponte de pedra e estacionou numa alameda transversal do outro lado do rio.

Não queria que Samantha o visse parando diante da casa de Mary. Aquilo não tinha a menor importância nos dias de semana, quando ele estava de terno, carregando sua pasta. Na verdade, não importava até ele admitir o que sentia por Mary. Mas agora importava, sim. Apesar de tudo, porém, a manhã estava linda, e uma caminhada lhe daria mais tempo.

Não tenho que tomar nenhuma decisão definitiva, pensou ele, atraves­sando a ponte a pé. Ali embaixo, viu um menininho sentado sozinho num banco, comendo chocolate. Não preciso dizer nada... Vou dançar confor­me a música...

Mas as palmas das suas mãos estavam úmidas. A idéia de Gaia contan­do às gêmeas Fairbrother que ele estava apaixonado pela mãe delas não lhe saiu da cabeça durante toda aquela noite maldormida.

Mary pareceu feliz ao vê-lo.

Não veio de carro? — perguntou ela, olhando para a rua às suas costas.

Estacionei lá perto do rio — respondeu Gavin. — Está um dia tão bonito que me deu vontade de andar a pé, e então me ocorreu que eu talvez pudesse aparar o seu gramado, se você quiser...

Ah, Graham já fez isso — disse ela —, mas é muita gentileza sua. Entre. Venha tomar um café.

Mary ficou falando enquanto circulava pela cozinha. Estava usando uma velha calça jeans cortada e uma camiseta. Aquela roupa deixava bem claro como ela tinha emagrecido, mas o seu cabelo brilhava de novo, exa­tamente como Gavin se lembrava dele. De onde estava, via as gêmeas deitadas numa manta estendida sobre a grama recém-cortada, ambas com fone de ouvido ligado aos iPods.

Como você está? — indagou Mary, sentando-se ao lado dele.

Não podia imaginar por que ela parecia tão preocupada. Lembrou en­tão que havia lhe contado na véspera que ele e Kay tinham terminado.

Estou bem — respondeu ele. — Acho que foi melhor assim.

Mary sorriu e lhe deu uns tapinhas no braço.

Ontem à noite — disse ele, sentindo a boca ligeiramente seca — alguém disse que talvez você vá embora daqui.

As notícias correm rápido em Pagford — exclamou ela. — Por en­quanto, é apenas uma idéia. Theresa quer que eu volte para Liverpool.

E o que os meninos estão achando disso?

Bem, vou esperar até junho por causa das provas de Fergus e das meninas. Com Declan é tudo mais fácil. É claro que nenhum de nós quer ir embora...

Ao dizer isso, começou a chorar. Gavin ficou tão feliz que estendeu o braço e pôs a mão no seu pulso delicado.

É claro que não...

...o túmulo de Barry.

Ah, claro — balbuciou Gavin, e a sua felicidade se apagou como uma vela.

Mary enxugou os olhos cheios de lágrimas com o dorso da mão. Gavin a achou um pouco mórbida. Na sua família, os mortos eram cremados. O enterro de Barry foi o segundo a que ele compareceu na vida, e detestou cada detalhe daquela cerimônia. Na sua opinião, as sepulturas eram ape­nas marcos para o lugar onde um cadáver estava se decompondo. Era uma idéia repulsiva, e, no entanto, as pessoas achavam que deviam ir visitá-las, levando flores, como se o morto pudesse se recuperar.

Mary tinha se levantado para pegar lenços de papel. Lá fora, na grama, as gêmeas usavam agora o mesmo fone de ouvido e balançavam a cabeça ao ritmo da mesma música.

Então Miles se elegeu para a vaga de Barry — comentou ela. — Daqui deu para ouvir as comemorações a noite inteira.

Bom, era a festa de... É, isso mesmo — concordou Gavin.

E Pagford está prestes a se ver livre de Fields — acrescentou ela.

É, parece que sim.

E agora, com Miles no Conselho, vai ficar mais fácil fechar a Bellchapel — concluiu ela.

Gavin, que não se interessava a mínima por essas histórias, sempre de­morava um pouco para lembrar o que era a Bellchapel.

É, acho que sim.

Então tudo que Barry queria está acabado — acrescentou ela.

As suas lágrimas tinham secado, e a indignação devolveu a cor ao seu rosto.

Eu sei — admitiu Gavin. — Isso é muito triste realmente.

Não sei, não — disse ela, ainda zangada e vermelha de raiva. — Por que Pagford tem que arcar com as despesas de Fields? Barry só con­seguia ver um lado da questão. Achava que todo mundo lá em Fields era como ele. Achava que Krystal Weedon era como ele, mas não é verdade. Nunca lhe passou pela cabeça que aquela gente de Fields pode ser feliz vivendo lá.

E — concordou Gavin, feliz da vida por ver que ela discordava de Barry, e sentindo como se a sombra do seu túmulo não estivesse mais ali entre eles. — Entendo o que quer dizer. Pelo que ouvi sobre Krystal Weedon...

Ele dedicou a ela mais tempo e mais atenção do que dedicava às próprias filhas — disse Mary. — E ela não deu um centavo para a coroa do enterro dele. As garotas me contaram. Toda a equipe de remo contribuiu, menos Krystal. E nem foi ao enterro, depois de tudo o que ele fez por ela.

É, isso mostra...

Desculpe, mas não consigo parar de pensar nessa história toda — interrompeu ela, agitada. — Não posso me impedir de pensar que ele ainda queria que eu me preocupasse com a maldita Krystal Weedon. Não consigo esquecer isso. No seu último dia de vida, não fez nada para me­lhorar aquela dor de cabeça terrível, porque ficou escrevendo a droga da­quele artigo.

Eu sei — disse Gavin. — Eu sei. Acho — principiou ele, com a sensação de estar pisando numa velha ponte de cordas — que essa é uma coisa típica dos homens. Miles é igual. Samantha não queria que ele se candidatasse para o Conselho, mas ele se candidatou. Sabe, tem homens que gostam mesmo do poder...

Barry não se interessava pelo poder — exclamou Mary, e Gavin rapidamente voltou atrás.

Não, não, claro que não. O que ele queria...

Ele simplesmente não podia evitar — interrompeu Mary. — Acha­va que todo mundo era como ele, que bastava estender a mão para que as pessoas começassem a melhorar.

É — disse Gavin —, o problema é que existem outras pessoas que podem precisar dessa mão... Na nossa própria casa...

Isso mesmo — concordou ela, recomeçando a chorar.

Mary — principiou Gavin, levantando da cadeira e se aproximando dela (agora estava naquela ponte de corda, sentindo um misto de pânico e ansiedade) —, olhe... eu sei que ainda é cedo... Quero dizer, é cedo demais... Mas você vai encontrar alguém.

Aos quarenta — disse ela, soluçando —, com quatro filhos...

Muitos homens — prosseguiu ele, mas mudou de idéia; não queria que ela achasse que tinha muitas opções. — O homem certo — corrigiu-se — não vai ligar para o fato de você ter filhos. De todo modo, eles são ótimos... Qualquer um gostaria de conviver com eles.

Ah, Gavin, você é tão bom — disse Mary, mais uma vez enxugando os olhos.

Ele passou o braço pelos seus ombros, e ela não tentou se desvencilhar. Ficaram assim, em silêncio, enquanto ela assoava o nariz, e depois ele percebeu que ela estava tentando se afastar.

Mary... — disse ele.

O quê?

Tenho que... Mary, acho que estou apaixonado por você.

Por alguns segundos, Gavin sentiu o imenso orgulho de um paraquedista que deixa a terra firme para se lançar no espaço infinito.

Mas ela se afastou.

Gavin. Eu...

Desculpe — disse ele, percebendo, assustado, a expressão de repul­sa que havia no seu rosto. — Queria que ficasse sabendo disso por mim. Disse a Kay que era por isso que queria me separar dela, e tive medo de que alguém pudesse vir lhe contar isso. Não teria dito nada por enquanto, poderia esperar meses, até anos — acrescentou, tentando trazer de volta o sorriso ao seu rosto e a disposição que ela demonstrou quando lhe disse que ele era tão bom.

Mas Mary fazia que não com a cabeça, com os braços cruzados diante do peito magro.

Gavin, eu nunca, jamais...

Esqueça o que eu disse — pediu ele, tolamente. — Vamos esquecer tudo isso.

Achei que você tivesse entendido — prosseguiu ela.

Ele concluiu que devia saber que ela estava aprisionada na armadura invisível da dor, e que aquilo devia protegê-la.

Mas eu entendo — mentiu. — Não teria lhe dito nada se...

Barry sempre disse que você tinha uma queda por mim.

Não — exclamou ele, aflito.

Acho você um homem tão bacana — disse ela, ofegante. — Mas eu não... Quer dizer, mesmo que eu...

Não — disse ele bem alto, tentando abafar a voz dela. — Eu enten­do. Ouça, é melhor eu ir embora.

Não precisa...

Mas agora ele quase a odiava. Tinha entendido o que ela estava tentan­do dizer: Mesmo que eu não estivesse sofrendo pela morte do meu marido, não ia querer você.

Aquela visita de Gavin tinha sido tão breve que, quando Mary, ligeira­mente trêmula, jogou fora o café na pia, ele ainda estava quente.

 

Howard disse a Shirley que não estava se sentindo muito bem, que achava melhor ficar na cama e descansar e que o Copper Kettle poderia passar uma tarde sem ele. Acrescentou:

Vou ligar para Mo.

Não, pode deixar que eu ligo — retrucou Shirley, prontamente. Quando fechou a porta do quarto, Shirley pensou: Ele está usando a desculpa do coração.

Howard tinha dito ainda "Não seja boba, Shirl", "Isso é bobagem, pura bobagem", e ela não insistiu. Todos aqueles anos evitando com cuidado os assuntos espinhosos (Shirley perdeu literalmente a fala quando a filha Patrícia, então com vinte e três anos, lhe disse: "Eu sou gay, mãe.") tinham feito algo se calar dentro dela. A campainha tocou. Lexie disse:

Papai me mandou vir pra cá. Ele e a mamãe têm que fazer alguma coisa. Cadê o vovô?

Na cama — respondeu Shirley. — Ele exagerou um pouco ontem à noite.

A festa tava ótima, não tava? — perguntou a garota.

Maravilhosa — concordou Shirley, sentindo uma tempestade se formar dentro dela.

Depois de um tempo, Shirley já estava cansada da tagarelice da neta.

Que tal almoçar lá no café? — sugeriu. — Howard — disse, então, aproximando-se da porta fechada do quarto —, estou levando Lexie para almoçar no café.

Pela voz parecia que ele tinha ficado preocupado; ela estava contente. Não tinha medo de Maureen. Encararia Maureen bem nos olhos...

No caminho, porém, lhe ocorreu que Howard podia ter ligado para Maureen assim que ela saiu de casa. Como era boba... Chegou a pen­sar que, se tivesse ligado para Maureen dizendo que Howard não es­tava se sentindo bem, ia impedir que eles se comunicassem... Estava esquecendo...

As ruas tão conhecidas e tão amadas pareciam diferentes, estranhas. Repassou os traços do retrato que exibia para aquele mundinho adorá­vel: esposa e mãe, voluntária do hospital, secretária do Conselho Distrital, primeira-dama do vilarejo. E Pagford sempre fora o seu espelho, refletindo naquele respeito polido o seu mérito e o seu valor. Mas o Fantasma tinha carimbado na superfície cristalina da sua vida uma revelação que anularia aquilo tudo: "o seu marido dormia com a sócia, e ela nunca desconfiou disso..."

Era só o que iam dizer quando alguém mencionasse o seu nome; era só disso que se lembrariam ao falar dela.

Empurrou a porta do café, a campainha tocou, e Lexie exclamou:

Olha lá, Amendoim Pricel

Howard está bem? — grasnou Maureen.

Só um pouco cansado — respondeu Shirley, dirigindo-se a uma mesa e se sentando. O seu coração batia tão depressa que ela se pergunta­va se não teria também um problema cardíaco.

Diga a ele que as garotas não apareceram — acrescentou Maureen, aborrecida, parada junto à sua mesa — e nem se deram o trabalho de avi­sar. Por sorte o movimento não está tão grande.

Lexie foi até o balcão para conversar com Andrew, que estava traba­lhando de garçom. Sentada ali sozinha, consciente dessa solidão pouco habitual, Shirley pensou em Mary Fairbrother, magra e empertigada no enterro de Barry, com a viuvez a envolvendo como o manto de uma rai­nha: a piedade, a admiração. Ao perder o marido, Mary tinha se tornado motivo, passivo e silencioso, da admiração de todos, ao passo que ela, liga­da a um homem que a havia traído, tinha sido atirada à sordidez, virado motivo de deboche...

(Tempos atrás, lá em Yarvil, alguns homens tinham feito umas piadas grosseiras com ela por causa da reputação da sua mãe, muito embora ela própria fosse a mais pura das criaturas.)

-— Vovô tá meio doente — dizia Lexie, dirigindo-se a Andrew. — O que que tem nesses bolos?

Ele se abaixou atrás do balcão, escondendo o rosto vermelho.

Eu agarrei a sua mãe.

Quase não veio trabalhar. Ficou com medo de que Howard fosse demi­ti-lo por ele ter beijado a sua nora, e ficou apavorado achando que Miles Mollison pudesse aparecer por lá, procurando por ele. Ao mesmo tempo, não era tão ingênuo a ponto de não saber que Samantha, que devia ter bem mais de quarenta, é que seria vista como a vilã da história. A sua de­fesa era simples: "Ela estava bêbada e me atacou."

Mas no seu constrangimento havia uma ligeira ponta de orgulho. Es­tava ansioso para ver Gaia, pois queria lhe contar que uma mulher adulta tinha ficado a fim dele. Esperava que pudessem rir juntos dessa história, como haviam rido de Maureen, mas que, no fundo, ela ficasse impres­sionada; e enquanto estivessem rindo, também pudesse descobrir o que ela tinha feito com Bola; até onde os dois tinham ido. Estava disposto a perdoá-la. Ela também estava bêbada. Mas Gaia não apareceu.

Foi buscar um guardanapo para Lexie e quase esbarrou na esposa do patrão, que estava parada junto do balcão, segurando a sua injeção de adrenalina.

— Howard me pediu para verificar uma coisa — disse Shirley. — E essa seringa não devia ficar guardada aqui. Vou botar ela lá nos fundos.

 

Quando já tinha comido mais da metade do chocolate, Robbie ficou com muita sede. Krystal não comprou nada para ele beber. Desceu do banco e se agachou na grama quentinha, de onde podia ver a irmã no meio dos arbustos com aquele estranho. Pouco depois, saiu andando pela margem do rio, na direção dos dois.

Tô com sede — choramingou o menino.

Sai daqui, Robbie — gritou Krystal. — Volta lá pro banco.

Qué água!

Merda, Robbie... fica lá no banco, daqui a pouquinho vou comprar alguma coisa pra você beber. Sai daqui!

Ele subiu de novo a margem escorregadia do rio, chorando. Estava acostumado a não ter o que queria, mas também a desobedecer, porque as regras e as broncas dos adultos eram absolutamente arbitrárias. Por isso, tinha aprendido a conquistar uns pequenos prazeres onde e quando pu­desse.

Como estava zangado com Krystal, afastou-se um pouco do banco e foi andando para a rua. Um homem de óculos escuros veio pela calçada na sua direção.

(Gavin esqueceu onde tinha deixado o carro. Saiu às pressas da casa de Mary e desceu a Church Row. Só percebeu que tinha virado para o lado errado quando chegou perto da casa de Miles e Samantha. Sem querer passar de novo pela casa dos Fairbrother, deu uma volta bem maior para chegar até a ponte.

Viu o menino sujo de chocolate, malcuidado e repugnante, e passou direto. A sua felicidade estava em frangalhos, quase desejou ir até a casa de Kay para que ela o consolasse em silêncio... Ela sempre era mais cari­nhosa quando ele estava triste. Aliás, foi por isso que se interessou por ela no começo.)

O barulhinho da água correndo só fez aumentar a sede de Robbie. Ele continuou chorando mais uns instantes, mudou de rumo e se afastou da ponte, voltando para o lugar onde Krystal estava escondida. Os arbustos tinham começado a balançar. Continuou andando, querendo beber algu­ma coisa. De repente, percebeu um buraco na cerca que ficava à esquerda da rua. Chegando lá, espiou pela brecha e viu um campo de futebol.

Robbie se esgueirou pela tal brecha e ficou olhando todo aquele verde, com aquelas castanheiras altas e as traves dos gols. Sabia o que era aquilo porque o seu primo Dane havia lhe mostrado como chutar uma bola lá no parquinho perto de casa. O menino nunca tinha visto tanto verde assim.

Uma mulher estava atravessando o campo, de braços cruzados e cabe­ça baixa.

(Samantha saiu andando sem rumo. Só queria andar, andar por qual­quer lugar, desde que não fosse perto da Church Row. Estava se fazendo mil perguntas e tinha chegado a muito poucas respostas; e uma das coi­sas que se perguntou foi se não teria exagerado quando contou a Miles que havia escrito aquela carta idiota quando estava bêbada, e que tinha mandado por puro despeito. Aquilo agora lhe parecia uma besteira muito grande...

Ao erguer os olhos, avistou Robbie. Nos fins de semana, era comum as crianças passarem por aquele buraco da cerca para brincar no campo de futebol. Até as suas filhas tinham feito isso quando eram mais novas.

Dirigiu-se para o portão e se afastou do rio, seguindo em direção à praça. Por mais que tentasse, não conseguia se livrar da aversão que sentia por si mesma.)

Robbie passou de volta pelo buraco na cerca e por alguns instantes foi atrás daquela mulher que andava depressa, mas logo a perdeu de vista. Não queria jogar fora o resto do chocolate que derretia na sua mão, mas estava com tanta sede... Talvez Krystal já tivesse acabado. Saiu andando, então, na direção contrária.

Ao se aproximar dos arbustos na margem do rio, percebeu que eles não estavam mais balançando e achou então que podia ir até lá.

Krystal — chamou ele.

Mas estava tudo vazio ali. Krystal tinha ido embora.

Robbie começou a chorar, chamando a irmã aos gritos. Voltou lá para cima e, desesperado, ficou olhando a rua para um lado e para o outro, mas não havia sinal dela.

Krystal — gritou ele.

Uma mulher de cabelo grisalho e curtinho, que seguia a passos rápidos pela outra calçada, olhou para ele, franzindo as sobrancelhas.

Shirley havia deixado Lexie no Copper Kettle, onde ela parecia estar contente, mas, no meio da praça, avistou Samantha, a última pessoa que gostaria de encontrar. Resolveu, então, seguir na direção oposta.

Apesar de estar andando depressa, continuou ouvindo o choro e os gritos do menino por um bom tempo. Ia segurando firme a seringa de adrenalina que levava no bolso. Não ia ser motivo de brincadeiras sórdi­das. Queria ser pura e objeto de piedade, como Mary Fairbrother. A raiva que sentia era tão grande, tão perigosa, que Shirley não conseguia sequer pensar direito; queria agir, punir, pôr um fim a tudo aquilo.

Pouco antes de chegar à velha ponte de pedra, viu uns arbustos balan­çarem à sua esquerda. Deu uma olhada, e o que viu de relance foi algo repulsivo, desprezível, e isso a deixou ainda mais decidida.

 

Sukhvinder estava andando por Pagford há mais tempo que Samantha. Saiu da antiga casa paroquial logo depois que a sua mãe lhe disse que ela tinha que ir para o trabalho, e desde então vagava pelas ruas, evitando as invisíveis zonas proibidas próximas à Church Row, à Hope Street e à praça.

Levava quase cinqüenta libras no bolso, o que havia ganhado no café e na festa, e também a gilete. Pensou em pegar também a caderneta da poupança, que ficava num arquivo no escritório do seu pai, mas Vikram estava sentado na sua escrivaninha. Esperou um pouco no ponto do ôni­bus para Yarvil, mas, quando viu Shirley e Lexie Mollison descendo a rua, tratou de sair dali.

A traição de Gaia havia sido brutal e inesperada. Agarrando-se com Bola Wall... Agora que tinha Gaia, ele ia largar Krystal. Sabia perfeitamen­te que qualquer garoto largaria qualquer garota por Gaia. Mas não agüen­taria ir trabalhar e ficar ouvindo a sua única aliada tentando convencê-la de que, na verdade, Bola era um cara legal.

O seu celular vibrou. Gaia já tinha lhe mandado duas mensagens.

 

               Eu tava mt doida ontem?

               Vc vai pro trab?

 

Nem uma palavra sobre Bola Wall. Nem uma palavra sobre se esfregar com o seu torturador. A nova mensagem perguntava: Vc tá ok?

Sukhvinder botou o celular no bolso novamente. Podia ir andando na direção de Yarvil e pegar o ônibus já fora do vilarejo, onde ninguém a veria. Os pais só dariam pela sua falta às cinco e meia, quando ela devia estar voltando do café.

Um plano desesperado foi se formando enquanto ela ia andando, can­sada e com calor: se conseguisse um lugar para ficar por menos de cin­qüenta libras... Tudo o que queria era ficar sozinha e usar a gilete.

Estava seguindo pela beira do rio; o Orr corria ao seu lado. Se atraves­sasse a ponte, poderia pegar a outra rua e chegar ao entroncamento da estrada.

Robbie! Robbie! Cadê você?

Era Krystal Weedon, correndo de um lado para o outro, na margem do rio. Bola Wall estava fumando, com uma das mãos no bolso, observando Krystal.

Sukhvinder dobrou à direita em direção à ponte, apavorada com a sim­ples perspectiva de que um dos dois pudesse notar a sua presença. Os gritos de Krystal ecoavam na água.

Sukhvinder avistou alguma coisa um pouco mais abaixo, no rio.

Antes mesmo de pensar no que fazia, as suas mãos já estavam na pedra quente, e, dando impulso, a garota subiu na mureta da ponte.

Ele está no rio, Krys! — gritou ela, e pulou na água. Cortou a perna num monitor quebrado de um computador, quando a correnteza a puxou para o fundo.

 

Ao abrir a porta do quarto, tudo o que Shirley viu foram duas camas vazias O seu plano de justiça exigia um Howard adormecido; ia ter que sugeru que ele voltasse para a cama.

Mas não se ouvia som algum vindo nem da cozinha, nem do banheiro. Shirley estava preocupada, achando que podia ter se desencontrado dele porque voltou para casa pela margem do rio. Vai ver que ele se vestiu e foi trabalhar; a essa altura podia estar com Maureen na salinha dos fundos, falando dela. Podia até estar planejando se divorciar dela para casar com Maureen, agora que o jogo tinha acabado e não havia mais por que fingir.

Entrou na sala de estar quase correndo, com a intenção de ligar para o Copper Kettle. Howard estava de pijama, caído no chão. Tinha o rosto arroxeado e os olhos esbugalhados. Pela boca, fazia um barulho sibilante. Com uma das mãos segurava o próprio peito quase sem forças. O paletó do pijama tinha subido. Dava para ver perfeitamente o pedaço de pele irritada onde ela planejava espetar a agulha.

Os olhos de Howard encontraram os seus num apelo mudo.

Shirley o encarou, aterrorizada, e saiu correndo da sala. A primeira coisa que fez foi esconder a seringa numa lata de biscoitos; depois a pegou de volta e a enfiou atrás dos livros de culinária.

Voltou correndo para a sala, pegou o telefone e ligou para a emergência.

Pagford? Para o chalé da margem do Orr. A ambulância já está a caminho.

Ah, muito obrigada, graças a Deus — disse Shirley, e estava quase desligando quando percebeu o que a mulher tinha dito e gritou: — Não, não, não é o chalé da margem do Orr...

Mas a telefonista já tinha desligado, e ela teve que ligar novamente. Estava tão apavorada que deixou cair o aparelho. No carpete, ao seu lado, aquele sibilar da respiração de Howard estava ficando cada vez mais fraco.

Não é o chalé da margem do Orr — gritou ela. — É para o Evertree Crescent, número trinta e seis, em Pagford... O meu marido está tendo um ataque cardíaco...

 

Na Church Row, Miles Mollison saiu correndo de casa, ainda de chinelo, e desceu a toda a ladeira íngreme até chegar à antiga casa paroquial, que ficava na esquina. Com a mão esquerda, começou a esmurrar a grossa porta de carvalho, enquanto com a direita tentava digitar o número do celular da sua mulher.

Sim? — disse Parminder, abrindo a porta.

É o meu pai — principiou Miles, ofegante — ...outro ataque car­díaco... Mamãe ligou para a ambulância... Você pode vir? Por favor!

Parminder já ia voltando para dentro de casa para pegar a sua maleta, mas se deteve.

Não posso — disse ela. — Estou impedida de exercer a medicina, Miles. Não posso.

Você está brincando... Por favor... A ambulância só vai chegar daqui a...

Não posso, Miles — repetiu ela.

Ele deu meia-volta e saiu correndo pelo portão, que estava aberto. Logo adiante, viu Samantha atravessando o jardim de casa. Gritou o seu nome, com a voz embargada, e ela se virou, surpresa. A princípio, achou que aquele pânico era por sua causa.

Papai... teve um ataque cardíaco... A ambulância está chegando... A maldita Parminder Jawanda não quis vir...

Meu Deus — exclamou Samantha. — Ah, meu Deus.

Entraram no carro às pressas e subiram a rua. Miles, de chinelo, Saman­tha, com aqueles tamancos que tinham feito várias bolhas nos seus pés.

Ouça, Miles, uma sirene... A ambulância já chegou...

Mas quando entraram no Evertree Crescent, não havia nada ali, e o barulho da sirene já tinha sumido.

Num gramado, a um quilômetro dali, Sukhvinder Jawanda vomitava a água do rio debaixo de um salgueiro, enquanto uma senhora idosa a en­volvia com umas mantas que já estavam quase tão encharcadas quanto as roupas da garota. Ali perto, o homem que estava passeando com o cachor­ro e tirou Sukhvinder da água, puxando-a pelo cabelo e pelo moletom, estava agachado junto a um corpo pequeno e inerte.

Sukhvinder teve a impressão de sentir Robbie se debater quando ela o pegou, mas talvez tenha sido a correnteza cruel do rio que o puxou com força, tentando arrancá-lo dos seus braços. Ela era boa nadadora, mas o Orr a puxou para o fundo, arrastando-a para onde bem quis, sem que ela pudesse resistir. A água a levou além da curva mais abaixo e a empurrou para a terra. Sukhvinder conseguiu gritar. E foi então que viu o homem com um cachorro correndo na sua direção.

Não tem jeito — disse o tal homem, que tinha passado vinte minu­tos tentando reanimar o corpinho de Robbie. — Ele se foi.

Sukhvinder começou a chorar e desabou no chão frio e úmido, tre­mendo desesperadamente. Quando se ouviu o som da sirene, já era tarde demais.

Enquanto isso, em Evertree Crescent, os paramédicos lutavam para deitar Howard na maca; Miles e Samantha tiveram que ajudar.

Vamos atrás da ambulância, você vai com papai — gritou para Shir­ley, que parecia atordoada e nada disposta a entrar no veículo.

Maureen, que acabara de despachar o último cliente do Copper Kettle, estava parada na soleira da entrada.

Quantas sirenes — disse ela, virando a cabeça para trás para falar com Andrew, que estava limpando as mesas, exausto. — Deve ter aconte­cido alguma coisa.

E respirou fundo, como se esperasse sentir o cheiro da tragédia no ar quente da tarde.

 

                     Pontos fracos dos grupos de voluntários

22.23 (...) O principal ponto fraco de tais grupos é que são difíceis de se constituir, propensos a se desintegrar (...).

                 Charles Arnold-Baker

                 Administração dos Conselhos Locais

 

Muitas e muitas vezes Colin Wall imaginou a polícia batendo à sua porta. Isso finalmente aconteceu ao anoitecer de um domingo: uma mulher e um homem vieram à sua casa, não para prendê-lo, mas procurando pelo seu filho.

Houve um acidente fatal, e "Stuart, não é isso?" foi uma das testemu­nhas.

Ele está?

Não — respondeu Tessa. — Ah, meu Deus... Robbie Weedon... Mas ele mora em Fields... Por que estava aqui?

A policial explicou, com toda a delicadeza, o que acreditavam que ti­nha acontecido.

Os adolescentes não ficaram de olho nele — foi a frase que usou.

Tessa achou que ia desmaiar.

Sabem onde ele está? — indagou o policial.

Não — respondeu Colin, abatido e com profundas olheiras. — Onde ele foi visto pela última vez?

Quando o nosso colega chegou ao local, parece que ele... bem, parece que ele fugiu.

Ah, meu Deus — exclamou Tessa novamente.

Ninguém atende — disse Colin com toda a calma; ele já tinha liga­do para o celular de Bola. — Temos que ir procurar por ele.

Colin passara a vida inteira se preparando para catástrofes. Estava pron­to. Pegou o casaco.

Vou tentar ligar para Arf — disse Tessa, correndo até o telefone.

As notícias trágicas ainda não tinham chegado a Hilltop House, que fi­cava lá no alto, isolada do vilarejo. O celular de Andrew tocou na cozinha.

...lô? — atendeu ele, com a boca cheia de torrada.

Andy? Aqui é Tessa Wall. Stu está com você?

Não — respondeu ele. — Desculpa.

Mas não lamentava que Bola não estivesse com ele.

Uma coisa aconteceu, Andy. Stu estava na beira do rio com Krystal Weedon. Ela trouxe o irmãozinho, e ele se afogou. Stu fugiu... fugiu para algum lugar. Tem idéia de onde ele possa estar?

Não — respondeu Andrew automaticamente, porque essa era a combinação que havia entre os dois. Nunca dizer nada aos pais.

Mas o horror do que ela tinha acabado de lhe contar se infiltrou pelo telefone como um nevoeiro pegajoso. De repente, tudo estava menos cla­ro, menos certo. Tessa já ia desligar.

Espera aí, sra. Wall — disse ele. — Acho que sei... Tem um lugar lá perto do rio...

Não acredito que ele esteja perto do rio agora — retrucou Tessa.

Andrew pensou por alguns segundos e foi ficando cada vez mais con­vencido de que Bola estava no Pombal.

É o único lugar que me passa pela cabeça — insistiu o garoto.

Então, me diga onde fica...

Tenho que levar a senhora lá.

Passo aí em dez minutos — gritou ela.

Colin já estava patrulhando as ruas de Pagford a pé. Tessa pegou o seu Nissan, subiu a estrada sinuosa da colina e viu Andrew à sua espera na esquina onde normalmente pegava o ônibus da escola. Ele foi lhe dando as indicações, enquanto cruzavam o vilarejo. Ao crepúsculo, as luzes da rua ficavam muito fracas.

Estacionaram perto das árvores, naquele local onde Andrew geralmen­te deixava a bicicleta de Simon. Tessa saiu do carro e seguiu o garoto pela beira da água, atônita e assustada.

Ele não pode estar aqui — disse ela.

É mais para lá — insistiu ele, apontando para a encosta escura e íngreme da colina Pargetter, que mergulhava no rio num ponto em que a margem se reduzia a uma estreita faixa de terra à beira da correnteza.

Ali onde? — indagou Tessa, apavorada.

Andrew sempre soube que, baixinha e gorducha como era, Tessa não conseguiria ir com ele.

Vou ver se ele está lá — disse Andrew. — É melhor a senhora espe­rar aqui.

Mas é muito perigoso! — gritou ela, para suplantar o ruído do rio caudaloso.

Sem prestar muita atenção ao que ela disse, Andrew começou a andar, apoiando as mãos e os pés nos lugares que já conhecia. Enquanto se esgueirava por aquela borda estreita, Tessa e ele tiveram a mesma idéia: que Bola podia ter caído, ou pulado, no rio que corria ensurdecedor bem perto dos pés do garoto.

Tessa ficou parada ali, na beira da água, até não conseguir mais ver Andrew. Afastou-se, então, tentando não chorar, pois afinal Stuart podia estar ali, e precisava conversar com ele com toda a calma. Pela primeira vez, pensou em Krystal. A polícia não tinha dito nada sobre a garota, e o pânico que sentiu por causa do filho superou qualquer outra preocupação...

Por favor, meu Deus, permita que eu encontre Stuart, pediu ela. Permita que eu encontre Stuart, por favor, meu Deus.

Tirou então o celular do bolso do casaco e ligou para Kay Bawden.

Não sei se você já está sabendo — disse ela aos gritos por causa do barulho da correnteza, e lhe contou toda a história.

Mas eu não sou mais a assistente social deles — disse Kay.

A alguns metros dali, Andrew chegou à entrada do Pombal. O buraco estava inteiramente às escuras; ele nunca tinha estado ali assim tão tarde. Deu um impulso e pulou lá para dentro.

Bola? — Percebeu um movimento qualquer lá no fundo. — Bola? Você tá aí?

Você tem fogo, Arf? — disse uma voz irreconhecível. — Deixei cair a porra dos fósforos.

Andrew pensou em avisar Tessa, mas como ela não sabia quanto tempo demorava para se chegar ao Pombal, podia esperar mais um pouco.

Estendeu o isqueiro. Àquela luz vacilante, viu que o rosto do amigo estava quase tão mudado quanto a sua voz. Bola estava com os olhos ver­melhos e o rosto todo inchado.

A chama se apagou. A brasa do cigarro de Bola brilhava no escuro.

Ele morreu? O irmão dela?

Nem tinha passado pela cabeça de Andrew que Bola não soubesse de nada.

Morreu — respondeu ele, e logo acrescentou: — Acho que sim. Foi o que... o que disseram.

Houve um momento de silêncio, e ele ouviu um grito baixo, mas estri­dente, saído da escuridão.

Sra. Wall — gritou Andrew, espichando a cabeça ao máximo para fora do buraco, pois assim o barulho do rio não deixava que ele ouvisse os soluços do amigo. — Sra. Wall, ele tá aqui!

 

A policial foi muito gentil ali no pequeno chalé abarrotado de coisas na margem do rio, onde a água fria agora se espalhava por cobertores, ca­deiras de chintz e tapetes gastos. A proprietária do lugar, uma senhora idosa, trouxe uma garrafa térmica com água quente e uma xícara de chá fervente, que Sukhvinder não conseguiu segurar porque tremia como vara verde. Aos trancos e barrancos, conseguiu balbuciar umas poucas infor­mações: o seu nome, o de Krystal e o do menininho morto que estava sendo levado na ambulância. O homem que passeava com o cachorro e que a tinha tirado do rio era praticamente surdo. Prestou depoimento aos policiais na sala ao lado, e Sukhvinder odiou ficar ouvindo o relato que ele fazia falando muito alto. Tinha prendido o cachorro, que gania sem parar, a uma árvore perto da janela.

Depois a polícia telefonou para os pais dela. Quando eles chegaram, Parminder, que vinha trazendo roupas limpas para a filha, tropeçou numa mesinha ao atravessar a sala e quebrou um dos enfeites da senhora. No minúsculo banheiro, os dois viram o corte profundo e sujo na perna da ga­rota, que sangrava e deixava manchas escuras no tapetinho. Vendo aquele ferimento, Parminder gritou para o marido, que estava agradecendo efusi­vamente a todos, e disse que tinham que levar Sukhvinder para o hospital.

A garota vomitou outra vez no carro, e a mãe, que estava ao seu lado no banco de trás, a limpava. Durante todo o caminho, os dois não pararam de falar em voz alta. Vikram ficava repetindo coisas como "ela vai ter que tomar anestesia", "sem dúvida alguma esse corte precisa levar pontos"; já Parminder, ali ao lado da filha, que tremia e ainda estava com vontade de vomitar, ficava dizendo "você podia ter morrido, você podia ter morrido".

Era como se ainda estivesse debaixo d'água, como se estivesse num lugar onde não podia respirar. Tentou interromper aquela ladainha e ser ouvida pelos pais.

Krystal sabe que ele morreu? — perguntou ela, tremendo muito. E Parminder teve que pedir que repetisse a pergunta várias vezes.

Não sei — respondeu ela enfim. — Você podia ter morrido, Ris.

No hospital, mandaram que ela se despisse novamente. Desta vez, po­rém, Parminder estava ao seu lado atrás das cortinas. E a garota só se deu conta do erro que tinha cometido quando viu a expressão horrorizada no rosto da mãe; mas a essa altura já era tarde demais.

Meu Deus — exclamou Parminder, segurando o braço da filha. — Meu Deus. O que você fez a si mesma?

Sukhvinder não sabia o que dizer. Então começou a chorar e a tremer incontrolavelmente, e Vikram gritou que todo mundo, inclusive Parmin­der, a deixasse em paz, e que se apressassem, que o corte precisava ser limpo e costurado, que ela precisava de anestesia e de um raio X.

Mais tarde, ela ficou deitada numa cama, com os pais, um de cada lado, acariciando as suas mãos. Ela estava quente, meio zonza, e a perna já não doía mais. Do lado de fora da janela, o céu estava escuro.

Howard Mollison teve outro ataque cardíaco. — Ouviu a mãe dizer ao pai. — Miles queria que eu fosse até lá.

Que cara de pau! — exclamou Vikram.

Mas, para a surpresa de Sukhvinder, os dois não falaram mais de Howard Mollison. Continuaram apenas acariciando as suas mãos, até que, pouco depois, ela adormeceu.

Do outro lado do prédio, numa salinha azul, com cadeiras de plástico e um aquário num dos cantos, Miles e Samantha estavam sentados ao lado de Shirley, os três aguardando notícias do centro cirúrgico. Miles continuava de chinelos.

Não acredito que Parminder Jawanda tenha se recusado a vir — disse ele pela enésima vez, com a voz embargada. Samantha se levantou, passou por Shirley e abraçou o marido, beijando o seu cabelo espesso, com fios grisalhos aqui e ali, e sentindo aquele cheiro familiar.

Shirley comentou com uma voz aguda e entrecortada:

Não me espanta nada que ela não tenha vindo. Não me espanta nada. Um absurdo.

Da sua antiga vida e das suas antigas certezas, tudo o que lhe restava era a possibilidade de atacar alvos conhecidos. O choque lhe tirara pratica­mente tudo: já não sabia mais em que podia acreditar, nem em que podia depositar alguma esperança. O homem lá no centro cirúrgico não era aquele com quem achava que tinha se casado. Se pudesse voltar àquele lugar feliz de segurança onde vivia antes de ler aquele post terrível...

Talvez devesse acabar com aquele site. Remover a área de mensagens inteirinha. Tinha medo de que o Fantasma pudesse voltar e dizer de novo aquela coisa horrível...

Queria ir para casa agora mesmo e tirar o site do ar. Além disso, assim que chegasse, poderia dar sumiço à injeção de adrenalina de uma vez por todas...

Ele viu... Tenho certeza de que ele viu...

Mas, na verdade, eu nunca faria isso... Não mesmo. Eu estava com rai­va. Eu nunca faria isso...

E se Howard sobrevivesse e as suas primeiras palavras fossem: "Ela saiu correndo da sala quando me viu. Ela não chamou a ambulância imediata­mente. Ela estava segurando uma seringa..."?

Mas então eu vou dizer que o cérebro dele tinha sido afetado, pensou Shirley, desafiadora.

E se ele morrer...

Ao seu lado, Samantha estava abraçada a Miles. Shirley não gostava nada disso; ela é que tinha que ser o centro das atenções; era o marido dela que estava lá em cima, lutando pela vida. Desejou ser como Mary Fairbrother, mimada e admirada, uma heroína trágica. Não era assim que ela tinha imaginado...

Shirley?

Ruth Price, com o uniforme de enfermeira, entrou correndo na sala, com uma expressão de solidariedade no rosto magro.

Acabei de saber... Não pude deixar de vir... Ah, Shirley, que horror, sinto muito.

Ruth, querida — exclamou Shirley, se levantando e deixando que a outra a abraçasse. — Quanta gentileza sua. Quanta gentileza.

Shirley gostou de apresentar a amiga do hospital a Miles e Samantha, e receber a sua piedade e bondade na frente deles. Foi uma pequena prova do que ela tinha imaginado ser a viuvez...

Mas Ruth precisava voltar ao trabalho, e Shirley se sentou novamente na sua cadeira de plástico, com aqueles pensamentos incômodos.

Ele vai ficar bom — murmurava Samantha, dirigindo-se a Miles, que tinha apoiado a cabeça no ombro da mulher. — Ele vai sair dessa. Como da outra vez.

Shirley ficou olhando um peixinho, brilhante como neon, que ia mui­to rápido, de um lado para o outro dentro do aquário. Era o passado que ela gostaria de poder mudar; o futuro era um vazio.

Alguém ligou para Mo? — perguntou Miles momentos depois, en­xugando os olhos com o dorso de uma das mãos e apertando com a outra a perna de Samantha. — Mamãe, quer que eu...

Não — interrompeu Shirley, rispidamente. — Vamos esperar... até termos alguma notícia.

Lá em cima, no centro cirúrgico, o corpo de Howard Mollison ultra­passava as bordas da mesa de cirurgia. O seu peito estava inteiramente aberto, exibindo as ruínas do trabalho realizado por Vikram Jawanda. De­zenove pessoas se dedicavam a consertar o estrago, enquanto as máquinas às quais Howard estava ligado continuavam a fazer um barulho baixo, contínuo e implacável, confirmando que ele ainda vivia.

E bem lá embaixo, nas entranhas do hospital, o corpo de Robbie Weedon jazia branco e frio no necrotério. Ninguém tinha ido com ele até o hospital, e ninguém tinha vindo vê-lo naquela gaveta metálica.

 

Andrew recusou a carona até Hilltop House. Tessa e Bola estavam, portan­to, sozinhos no carro.

Não quero ir pra casa — disse Bola.

Está bem — respondeu Tessa, e seguiu dirigindo, falando com Co­lin ao telefone. — Estou com ele aqui... Andy o encontrou. Daqui a pouco estamos de volta... E... E, vou, sim...

As lágrimas escorriam pelo rosto de Bola; o seu corpo o estava traindo. Exatamente como daquela vez, quando ficou com tanto medo de Simon Price que fez xixi na calça e a urina quente escorreu pela sua perna, en­charcando a sua meia. Agora o líquido quente e salgado escorria pelo seu rosto e caía no seu peito, deixando umas marquinhas que pareciam gotas de chuva.

Ficava imaginando o enterro. Um caixãozinho minúsculo.

Bem que não queria fazer aquilo com o menino ali tão perto.

Será que algum dia ia se livrar do peso da morte dessa criança?

Então você fugiu — disse Tessa, friamente, a despeito daquelas lá­grimas.

Tinha rezado para encontrá-lo com vida, mas agora o seu sentimento mais forte era de repulsa. As lágrimas do filho não a comoviam. Estava acostumada a ver homens chorarem. Parte dela estava com vergonha por ele não ter, afinal, se atirado no rio.

Krystal disse à polícia que vocês estavam juntos no meio dos arbus­tos. Vocês deixaram o menino sozinho, não foi?

Bola ficou atônito. Não podia acreditar na crueldade da mãe. Será que ela não entendia o desespero que o devorava, o horror, a sensação de ter sido contaminado?

Bom, espero que você tenha engravidado essa garota — disse Tessa. — Isso lhe daria um motivo para viver.

Sempre que dobrava uma esquina, Bola achava que ela o estava levan­do de volta para casa. Sempre teve mais medo de Pombinho, mas agora não via diferença alguma entre os seus pais. Queria sair do carro, mas ela tinha trancado as portas.

Sem mais nem menos, ela saiu da pista e freou o carro. Agarrado às laterais do seu banco, Bola percebeu que eles estavam no acostamento próximo ao entroncamento que ia dar em Yarvil. Assustado, achando que a mãe ia mandar que ele descesse do carro, virou para ela com o rosto todo inchado.

A sua mãe biológica — principiou Tessa, olhando-o de um jeito que ele nunca tinha visto antes, sem pena ou bondade — tinha quatorze anos. Pelo que nos disseram, achamos que era uma garota de classe média, muito inteligente. Ela se recusou terminantemente a dizer quem era o seu pai. Ninguém sabia se ela estava tentando proteger um namorado menor de idade ou se era coisa pior. Ficamos sabendo de tudo isso por garantia, no caso de você apresentar algum distúrbio mental ou físico. No caso — prosseguiu ela, falando com toda a clareza, como uma professora que dá ênfase à parte da matéria que vai cair na prova — de você ser o resultado de um incesto.

Bola olhou para o outro lado. Preferia mil vezes ter levado um tiro.

Eu estava desesperada para adotar você — acrescentou ela. — De­sesperada. Mas papai estava muito doente. Ele me disse: "Não posso fazer isso. Estou com medo de machucar o bebê. Preciso melhorar antes de pensarmos em adoção. E não posso fazer isso lidando com um recém-nascido." Mas eu estava tão decidida a adotar você que pressionei o seu pai para que ele mentisse, dizendo às assistentes sociais que estava muito bem, e fingisse ser uma pessoa feliz e normal. Levamos então você para casa. Você era muito pequeno, prematuro. Cinco dias depois da sua che­gada, Colin saiu da cama no meio da noite sem eu perceber, foi até a gara­gem, enfiou uma mangueira no escapamento do carro e tentou se matar, porque estava convencido de que tinha sufocado você. Ele quase morreu. Portanto, pode dizer que a culpa é minha — prosseguiu Tessa — se o começo de tudo foi ruim tanto para você quanto para o papai, e também pode me culpar por tudo o que aconteceu desde então. Mas vou lhe dizer uma coisa, Stuart. O seu pai passou a vida toda enfrentando coisas que ele nunca fez. Não espero que você entenda a coragem que ele tem. Mas — e nesse ponto a voz dela finalmente falhou, e Bola ouviu a mãe que ele conhecia —- ele ama você, Stuart.

Não conseguiu se impedir de acrescentar essa mentira. Hoje, pela pri­meira vez, teve certeza de que era mentira, e também de que tudo o que ela havia feito na vida, dizendo a si mesma que era o melhor caminho a tomar, não passou de um egoísmo cego, que só provocou transtornos e confusão à sua volta. Mas quem pode suportar que algumas estrelas já morreram, pensou ela, piscando os olhos para o céu; quem pode suportar saber que todas elas já morreram?

Virou a chave da ignição, engatou a marcha arranhando a caixa de câmbio e pegou a direção do entroncamento.

Não quero ir para Fields — exclamou Bola, apavorado.

Não estamos indo para Fields — disse ela. — Estou levando você para casa.

 

A polícia conseguiu, finalmente, encontrar Krystal Weedon, que corria desamparada pela margem do rio, já nos limites do vilarejo, e continuava chamando o irmão com a voz rouca. A policial que se aproximou dela a chamou pelo nome, e tentou lhe dar a notícia da maneira mais delicada possível. Mesmo assim, a garota se debateu, tentando afastar a mulher, que acabou levando-a quase à força para o carro. Krystal nem percebeu quando Bola desapareceu entre as árvores; ele já não existia mais para ela.

Os policiais a levaram para casa, mas, quando bateram à porta da fren­te, Terri se recusou a vir atender. Tinha visto o carro chegando por uma janela do andar de cima, e achou que a filha tivesse feito uma coisa im­pensável e imperdoável: contado aos meganhas que aquelas sacolas com o haxixe de Obbo estavam lá. Arrastou as tais sacolas lá para cima, enquanto os policiais esmurravam a porta, e só veio abrir quando viu que não tinha mais jeito.

Que que é? — gritou ela, por uma frestinha da porta.

Por três vezes a policial pediu para entrar, e Terri continuou recusando, perguntando insistentemente o que eles queriam. Alguns vizinhos come­çaram a espiar pelas janelas. Nem mesmo quando a policial lhe disse "É sobre o seu filho, Robbie", Terri entendeu o que estava acontecendo.

Ele tá ótimo. Não tem problema nenhum com ele. Ele tá com Krystal.

Nesse momento, porém, ela viu a filha, que se recusou a ficar dentro do carro e já estava andando pelo caminho do quintal. Os olhos de Terri desceram pelo corpo da garota até o ponto onde Robbie deveria estar, agarrado a ela, com medo daqueles homens estranhos.

Saiu de casa como uma bala, com os braços esticados e as mãos ossu­das, abertas como garras, e a policial teve que segurá-la pela cintura para afastá-la de Krystal, cujo rosto ela tentava arranhar.

Sua vaca! Sua vaca, que que você fez com Robbie?

Krystal se esquivou das duas mulheres, que praticamente lutavam, cor­reu para dentro de casa e bateu a porta.

Puta que pariu — murmurou o policial, bem baixinho.

Longe dali, na Hope Street, Kay e Gaia Bawden se encaravam no cor­redor escuro. Nenhuma das duas era alta o bastante para trocar a lâmpada que tinha queimado há alguns dias, e não tinham uma escada. Tinham passado o dia inteiro discutindo; quase chegavam a um acordo, mas volta­vam a se desentender. Finalmente, no momento em que a reconciliação parecia bem próxima, com Kay dizendo que também detestava Pagford, que tudo aquilo tinha sido um erro e que ia tentar dar um jeito de volta­rem para Londres, o seu celular tocou.

O irmão de Krystal Weedon morreu afogado — disse ela, num sus­surro, assim que desligou o telefone.

Ah — exclamou Gaia. Sabendo que devia demonstrar compaixão, mas temendo que a discussão sobre Londres fosse deixada de lado antes que ela tivesse conseguido uma promessa mais consistente da mãe, a garo­ta acrescentou com uma leve apreensão na voz: — Que triste!

Aconteceu aqui em Pagford — disse Kay. — Perto da estrada. Krys­tal estava com o filho de Tessa Wall.

Gaia ficou mais envergonhada ainda por ter deixado que Bola Wall a beijasse. Ele tinha um gosto horrível na boca, uma mistura de cigarro e cerveja, e tentou se aproveitar da bebedeira dela. Sabia perfeitamente que merecia coisa melhor que Bola Wall. Se tivesse sido Andy Price, não estaria se sentindo tão mal assim. Sukhvinder não tinha retornado as suas ligações o dia todo.

Ela vai desmoronar — disse Kay, com o olhar perdido.

Mas você não pode fazer nada, né? — retrucou Gaia.

Bem... — principiou Kay.

Ah, não, de novo não! — gritou Gaia. — É sempre, sempre a mesma coisa! Você já não é mais a assistente social deles. E eu? — acrescentou ela, sempre aos berros, batendo o pé no chão, como fazia quando era pequena.

O policial que estava na Foley Road já tinha chamado a assistente social responsável. Terri se debatia e berrava, tentando esmurrar a por­ta da frente. Lá de dentro vinha o barulho de móveis sendo arrastados para formar uma espécie de barricada. Os vizinhos já estavam chegando às portas das casas, assistindo fascinados ao ataque de Terri. De algum modo, o motivo daquilo tudo foi transmitido a esses espectadores pelos gritos incoerentes da mulher e pelo comportamento da polícia, que in­dicavam um mau presságio.

O menininho morreu — diziam uns aos outros. Ninguém se aproxi­mou para tentar acalmá-la ou consolá-la. Terri Weedon não tinha amigos.

— Vem comigo? — implorou Kay à filha emburrada. — Vou até lá ver se posso fazer alguma coisa. Quero saber como Krystal está. Ela não tem ninguém.

Aposto que ela tava trepando com Bola Wall quando isso aconteceu — exclamou Gaia, sempre gritando, mas este foi o seu último protesto. Poucos minutos depois, ela estava prendendo o cinto de segurança no velho Vauxhall de Kay, feliz, apesar de tudo, porque a mãe tinha pedido que ela fosse junto.

No momento em que chegavam ao entroncamento, Krystal tinha aca­bado de encontrar o que procurava: um saquinho com heroína, escondido no armário, do lado do aquecedor; era o último dos dois que Obbo tinha dado a Terri em pagamento pelo relógio de Tessa Wall. A garota pegou aquele saquinho, junto com as coisas da mãe, e levou tudo para o banhei­ro, único cômodo da casa que tinha tranca.

A sua tia Cheryl deve ter ficado sabendo o que tinha acontecido, por­que mesmo através de duas portas Krystal podia ouvir os seus gritos roucos misturados aos de Terri.

— Abre essa porta, sua vaca! Deixa a sua mãe entrar!

E os policiais também gritavam, tentando fazer as duas mulheres se calarem.

Krystal nunca tinha se picado antes, mas já tinha visto pessoas fazen­do isso inúmeras vezes. Conhecia aqueles barcos compridos, sabia fazer um vulcão em miniatura para a aula de ciências, e sabia também como esquentar a colher, e que era preciso usar uma bolinha de algodão para dissolver a heroína e funcionar como filtro na hora de encher a seringa. Sabia que a dobra interna do cotovelo era o melhor lugar para se achar uma veia e sabia que a agulha tinha que ficar o mais deitada possível sobre a pele. Sabia, porque tinha ouvido isso várias vezes, que os principiantes não agüentavam a mesma quantidade que os viciados podiam usar, e isso era bom, porque ela não estava mesmo querendo agüentar.

Robbie tinha morrido por sua culpa. Tentando salvá-lo, ela o tinha ma­tado. Várias imagens entrecortadas lhe passavam pela cabeça enquanto as suas mãos tentavam fazer o que precisava ser feito. O sr. Fairbrother cor­rendo pela margem do canal, com seu agasalho esportivo, acompanhando a equipe que remava. O rosto da avó Cath, com aquela expressão feroz de dor e amor. Robbie esperando por ela, na janela da casa da família subs­tituta, estranhamente limpo, pulando de felicidade ao vê-la se aproximar da porta.

Ouviu o policial chamando por ela pela abertura da caixa do correio, dizendo-lhe que não fizesse besteira, e a colega dele tentando acalmar Terri e Cheryl.

A agulha entrou com facilidade na veia de Krystal. Ela pressionou o êmbolo até o fundo, cheia de esperanças e sem remorso.

Quando Kay e Gaia chegaram e a polícia resolveu arrombar a porta, Krystal Weedon já tinha alcançado a sua única ambição: se juntar ao ir­mão num lugar onde ninguém mais poderia separá-los.

 

                       Combate à pobreza

13.5 Doações em benefício dos pobres (...) são consideradas caridade, e uma doação para os pobres é caridade mesmo que aconteça de ela vir a beneficiar os ricos (...).

               Charles Amold-Baker

               Administração dos Conselhos Locais

 

Quase três semanas depois que as sirenes ecoaram pelo vilarejo sonolento, numa manhã ensolarada de abril, Shirley Mollison estava sozinha no seu quarto, observando o próprio reflexo nas portas espelhadas do armário embutido. Dava uma última ajustada no vestido antes de ir para o South West, coisa que fazia agora diariamente. O cinto estava mais apertado quinze dias atrás, o seu cabelo grisalho estava precisando de um corte, e a careta que fazia por causa do sol que entrava no quarto podia perfeitamen­te ser a expressão do estado de espírito em que se encontrava.

Shirley havia passado um ano inteiro circulando pelas enfermarias do hospital, empurrando o carrinho dos livros, segurando pranchetas e flo­res, e nunca lhe passara pela cabeça que poderia se tornar uma daque­las pobres mulheres encurvadas, ao lado de uma cama qualquer, com as vidas inteiramente despedaçadas e os maridos abatidos e enfraquecidos. Howard não tinha se recuperado com a rapidez de sete anos atrás. Ain­da estava ligado a vários aparelhos que emitiam um bipe constante, todo encolhido, fraco, com uma cor horrorosa, completamente dependente e reclamando de tudo. Às vezes ela fingia que precisava ir ao banheiro para escapar do seu olhar sinistro.

Quando Miles a acompanhava ao hospital, podia deixá-lo conversando com Howard, o que se limitava ao monólogo constante sobre as últimas novidades de Pagford. Com o filho, alto como era, andando ao seu lado pelos corredores gélidos, Shirley se sentia muito melhor, mais visível e também mais protegida. Ele conversava gentilmente com as enfermeiras, estendia a mão para ela entrar e sair do carro e lhe devolvia aquela sensa­ção de ser uma criatura rara, digna de cuidado e proteção. Mas Miles não podia vir todos os dias e, para a profunda irritação de Shirley, pedia a Sa­mantha para lhe fazer companhia. O que não era absolutamente a mesma coisa, embora a nora fosse uma das poucas pessoas capazes de trazer um sorriso ao rosto arroxeado e vazio de Howard.

Aparentemente ninguém percebia como era assustador o silêncio que reinava na casa. Quando os médicos disseram à família que a recuperação de Howard levaria meses, Shirley teve esperanças de que o filho a cha­masse para ficar no quarto de hóspedes daquele casarão da Church Row, ou então que ele viesse, de vez em quando, dormir ali no chalé. Mas não: eles a deixaram sozinha, inteiramente só, a não ser por aqueles três dias dificílimos em que teve de bancar a anfitriã para Pat e Melly.

Eu nunca faria isso, repetia automaticamente para si mesma, no silên­cio da noite, quando não conseguia dormir. Na verdade, eu nunca faria isso... Não mesmo. Só estava com raiva. Eu nunca faria isso...

Tinha enterrado a injeção de adrenalina de Andrew na terra macia de­baixo do comedouro dos pássaros no jardim, como um pequeno cadáver. Nem gostava de lembrar que ela estava ali. Na primeira oportunidade, numa noite escura, véspera do dia da coleta do lixo, desenterrou a seringa e a jogou na lixeira de um vizinho.

Howard jamais falou sobre a seringa com ela nem com ninguém. Tam­pouco lhe perguntou por que tinha saído correndo quando o viu.

Shirley encontrava algum consolo desfiando acusações enérgicas con­tra pessoas que, na sua opinião inabalável, haviam provocado a desgraça que se abateu sobre a sua família. É claro que Parminder Jawanda era a primeira da lista, por sua recusa categórica em atender Howard. Em se­guida vinham os dois adolescentes que, por sua irresponsabilidade abjeta, haviam desviado a ambulância que, se não fosse assim, teria vindo buscar Howard mais cedo.

Talvez esse argumento fosse um pouco fraco, mas era uma prazerosa maneira de denegrir Stuart Wall e Krystal Weedon, e Shirley encontrava, no seu círculo imediato, vários conhecidos dispostos a lhe dar ouvidos. Além disso, andavam dizendo que o garoto dos Wall era o Fantasma de Barry Fairbrother. Ele tinha confessado isso aos pais, que telefonaram pes­soalmente às vítimas do filho para se desculpar. A identidade do Fantasma logo se espalhou pela comunidade, e isso, somado à notícia de que ele havia sido em parte responsável pelo afogamento de uma criança de três anos, fazia das acusações contra Stuart tanto um dever quanto um prazer.

Shirley era mais veemente em seus comentários que qualquer outro. Havia uma certa ferocidade nas suas censuras, que funcionavam como um pequeno exorcismo da admiração e da afinidade que ela sentira pelo Fantasma, e um repúdio daquele terrível último post que ninguém, pelo menos até agora, admitira ter visto. Os Wall não haviam telefonado para Shirley pedindo desculpas, mas ela estava sempre pronta, no caso de o ga­roto contar aos pais, ou no caso de alguém fazer algum comentário, para desferir um golpe final e definitivo na reputação de Stuart.

Ah, claro, Howard e eu ficamos sabendo disso — era o que preten­dia dizer, com uma dignidade glacial —, e acredito que foi esse choque que provocou o seu ataque cardíaco.

Na verdade, já tinha ensaiado essa frase em voz alta, na cozinha.

Descobrir se Stuart Wall de fato sabia alguma coisa sobre o seu marido e Maureen já não era tão urgente, porque Howard estava evidentemen­te incapacitado de voltar a envergonhá-la desse jeito, e talvez definitiva­mente; além disso, ninguém parecia estar comentando o assunto. E se o silêncio que dedicava a Howard, quando não podia evitar ficar sozinha com ele, era marcado por um sentimento de mágoa de ambos os lados, ela agora estava mais preparada para encarar a perspectiva da sua invalidez prolongada e da sua ausência no chalé com mais serenidade do que ima­ginava ser possível três semanas atrás.

A campainha soou, e Shirley correu para abrir a porta. Maureen estava parada ali, equilibrando-se em insensatos saltos altíssimos, usando um ves­tido verde-azulado brilhante e vulgar.

Entre, querida, como vai? — disse Shirley. — Vou pegar a minha bolsa.

Era melhor ir ao hospital até com Maureen do que sozinha. Maureen

não parecia se incomodar com a mudez de Howard. Falava e falava com aquele seu grasnido, e Shirley podia ficar sentada ali, em paz, envergando o seu sorrisinho meigo, e relaxar. De todo modo, como tinha assumido temporariamente o controle da parte de Howard nos negócios, Shirley vinha encontrando inúmeras maneiras de dissipar as suas suspeitas mais persistentes, dando várias bofetadas simbólicas em Maureen, ao discordar de qualquer decisão que ela tomasse.

Sabe o que está acontecendo lá no fim da rua? — perguntou a viú­va de Ken. — Lá na Igreja de São Miguel? O enterro de Robbie e Krystal Weedon.

Aqui? — retrucou Shirley, horrorizada.

Dizem que as pessoas se cotizaram — prosseguiu Maureen, trans­bordando de fofocas que Shirley desconhecia porque vivia agora nesse vaivém entre a casa e o hospital. — Não me pergunte quem. Mas eu não imaginava que a família fosse querer fazer o enterro assim tão perto do rio, não é mesmo?

(O menininho meio sujo e que dizia muito palavrão, cuja existência poucos conheciam e por quem só a mãe e a irmã tinham algum afeto especial, havia sofrido tamanha transformação no imaginário coletivo de Pagford depois de se afogar que agora, por todo lado, falava-se dele como o bebê da água, um querubim, um anjinho puro e delicado que todos ali teriam abraçado com amor e compaixão, se ao menos tivessem consegui­do salvá-lo.

Mas a agulha e a chama não exerceram nenhum efeito transforma­dor sobre a reputação de Krystal; pelo contrário, ela ficou definitivamente gravada na mente da velha Pagford como uma criatura desalmada, cuja busca por aquilo que os mais velhos gostavam de chamar de prazeres da carne havia provocado a morte de uma criança inocente.)

Shirley estava vestindo o casaco.

O incrível é que eu os vi naquele dia — disse ela, enrubescendo ligeiramente. — O menininho berrando perto de uns arbustos, e Krystal Weedon e Stuart Wall num outro...

Você viu? E eles estavam mesmo...? — perguntou Maureen, ávida.

Ah, sim... — respondeu Shirley. — Em plena luz do dia. A céu aberto. E o menino estava pertinho do rio quando eu o vi. Mais uns pas­sos, e ele já estaria lá dentro.

Algo no rosto de Maureen a perturbou.

Eu estava com muita pressa — disse Shirley, em tom áspero —, por­que Howard tinha dito que estava se sentindo mal e fiquei muito preocupa­da. Não queria nem sair de casa, mas Miles e Samantha mandaram Lexie para cá... Sinceramente, acho que eles tinham brigado... E Lexie quis ir ao café... Eu não estava com cabeça para nada, tudo que conseguia pensar era: Tenho que voltar para ficar perto de Howard... Só me dei conta de que os tinha visto bem mais tarde... E o mais assustador — prosseguiu Shirley, mais vermelha do que nunca, retomando o seu refrão favorito — é que, se Krystal Weedon não tivesse deixado aquela criança sozinha enquanto estava se divertido lá nos arbustos, a ambulância teria chegado muito mais depressa para atender Howard. Porque, você sabe, com dois chamados quase simultâ­neos para Pagford, as coisas ficaram um pouco confusas...

É claro — disse Maureen, interrompendo-a, quando se dirigiam para o carro, afinal já ouvira tudo aquilo antes. — Sabe, não consigo ima­ginar por que o funeral está sendo aqui em Pagford...

Adoraria propor que passassem pela igreja a caminho do hospital. Es­tava doida para ver como era essa tal família Weedon, e quem sabe até dar uma olhada naquela mãe viciada e degenerada, mas não conseguia achar um jeito de pedir isso.

Sabe, Shirley, tem uma coisa boa nisso tudo — acrescentou ela, en­quanto já estavam entrando no entroncamento. — Essa história de Fields está definitivamente encerrada. Isso deve ser um consolo para Howard. Mesmo que ele não possa comparecer às reuniões do Conselho por uns tempos, conseguiu o que pretendia.

 

Andrew Price descia a toda a ladeira íngreme que levava a Hilltop House, com o sol quente batendo nas suas costas e o vento agitando o seu cabe­lo. O olho roxo que conseguira há uma semana estava agora de um tom amarelo-esverdeado, com uma aparência, se é que isso é possível, bem pior do que quando ele apareceu na escola com o olho todo fechado. Dis­se aos professores que lhe perguntaram o que tinha acontecido que havia caído da bicicleta.

Estavam no recesso da Páscoa, e Gaia tinha lhe mandado uma mensa­gem de texto na véspera perguntando se ele ia ao enterro de Krystal no dia seguinte. Respondeu imediatamente que "sim" e agora, depois de muita indecisão, estava usando o seu melhor jeans e uma camisa cinza-escuro, porque não tinha terno.

Não sabia ao certo por que Gaia ia ao funeral, a menos que fosse para acompanhar Sukhvinder Jawanda, de quem ela parecia gostar mais do que nunca, agora que ia voltar para Londres com a mãe.

Mamãe disse que nunca devia ter vindo pra Pagford — declarou Gaia, toda feliz, a Andrew e Sukhvinder, quando os três estavam sentados na mureta ao lado da loja de conveniência na hora do almoço. — Ela sabe que o Gavin é o maior babaca.

Deu a Andrew o número do seu celular e disse que os dois iam sair juntos quando ela fosse a Reading ver o pai, e até falou, como quem não quer nada, sobre a possibilidade de levá-lo para conhecer os seus lugares preferidos em Londres, se ele aparecesse por lá. Ela estava distribuindo agrados a todos à sua volta, como um soldado prestes a voltar para casa, e as suas promessas, feitas de um jeito tão descontraído, tornaram a pers­pectiva da sua própria mudança mais atraente. Andrew recebeu a notícia de que os pais já tinham uma oferta por Hilltop House com um misto de empolgação e tristeza.

A curva acentuada para a Church Row, que sempre o animava, hoje só o deixou mais triste. Viu gente caminhando pelo cemitério e ficou se per­guntando como seria aquele enterro. Pela primeira vez naquela manhã, pensou em Krystal Weedon de uma forma mais concreta.

Uma lembrança, há tempos enterrada nos recantos mais profundos da sua mente, veio à tona: aquele dia em que, no pátio da St. Thomas, Bola, pretendendo fazer uma investigação desinteressada, lhe deu um amendoim escondido num marshmallow... Ainda hoje podia sentir a garganta ardendo e se fechando inexoravelmente. Lembrava que ten­tou gritar, que suas pernas ficaram fracas e que todas as crianças ao seu redor ficaram só olhando, impassíveis, estranhamente curiosas. Mas de repente ele ouviu o grito rouco de Krystal Weedon: "Andy Price tá tendo uma ação alérgica!"

Ela correu com aquelas pernas pequenas e fortes até a sala dos pro­fessores, e a diretora pegou Andrew e o levou às pressas à clínica que ficava nas redondezas, e lá o dr. Crawford lhe aplicou uma injeção de adrenalina. Ela foi a única que se lembrou do que a professora havia dito na aula, explicando aos alunos que Andrew tinha um problema de saúde que poderia pôr em risco a sua vida; ela foi a única que reconheceu os seus sintomas.

Krystal devia ter ganhado uma medalha de honra ao mérito, e talvez até um certificado de Aluna da Semana, mas, no dia seguinte (e Andrew se lembrava disso de forma tão nítida quanto se lembrava da própria crise), ela deu um soco tão forte na boca de Lexie Mollison que arrancou dois dentes da menina.

Com todo o cuidado, entrou com a bicicleta de Simon na garagem dos Wall e depois tocou a campainha com uma relutância que nunca tinha sen­tido antes. Tessa Wall abriu a porta, usando o seu melhor casaco cinza. An­drew estava chateado com ela. Por causa dela ficou com aquele olho roxo.

— Entre, Andy — disse Tessa, e o seu rosto estava tenso. — Só um minutinho.

Ele ficou esperando no corredor, onde o vitral da porta projetava no chão formas multicoloridas. Tessa foi até a cozinha, e Andrew avistou Bola, com o seu terno preto. O garoto estava todo encolhido numa cadei­ra, parecendo um bicho acuado, e tinha um dos braços erguido à frente da cabeça, como se estivesse se defendendo de uma surra.

Andrew virou de costas. Os dois não tinham voltado a se falar desde que ele levou Tessa até o Pombal. Há quinze dias Bola não ia à aula. Andrew lhe mandou uma ou duas mensagens de texto, mas ele não res­pondeu. A sua página do Facebook estava exatamente igual desde o dia da festa de aniversário de Howard.

Há uma semana, Tessa telefonou para os Price dizendo-lhes que Bola tinha confessado que havia postado as mensagens sob o pseudônimo O_ Fantasma_de_Barry_Fairbrother, e pediu mil desculpas por todos os pro­blemas que aquilo lhes causou.

Como é que ele sabia que eu tinha aquele computador? — vocife­rou Simon, avançando na direção de Andrew. — Como a porra do Bola Wall podia saber que eu fazia trabalhos depois do expediente lá na gráfica?

O único consolo de Andrew era que, se o pai soubesse a verdade, ig­noraria os protestos de Ruth e continuaria a esmurrá-lo até ele perder a consciência.

Andrew não sabia por que Bola tinha decidido fingir que era o autor de todos aqueles posts. Talvez por causa do seu eterno ego, da sua determina­ção em ser o cérebro por trás de tudo, o mais destrutivo, o mais cruel de todos. Ou talvez ele tenha pensado que estava tendo uma atitude nobre, assumindo a culpa por eles dois. De um jeito ou de outro, Bola tinha causado muito mais problemas do que imaginava; ele nunca soube exa­tamente, pensou Andrew, esperando ali no corredor, o que era viver com um pai como Simon Price, pois estava em segurança naquele quarto do sótão, com pais sensatos e civilizados.

Dava para ouvir que o casal Wall conversava em voz baixa, já que não tinham fechado a porta da cozinha.

Temos que sair agora — dizia Tessa. — Ele tem obrigação moral de ir, e vai.

Ele já foi bem castigado — retrucou a voz de Pombinho.

Não estou pedindo para ele ir como...

Não? — perguntou Pombinho, em tom ríspido. — Pelo amor de Deus, Tessa. Acha que querem ele por lá? Você vai. Stu pode ficar aqui comigo.

Um minuto depois, Tessa saiu da cozinha, puxando a porta com força.

Stu não vai, Andy — disse Tessa, e o garoto percebeu que ela estava furiosa. — Sinto muito.

Nenhum problema — murmurou ele. Na verdade, ficou contente com a notícia. Não achava que eles ainda tivessem o que dizer um ao ou­tro. E assim ele poderia sentar perto de Gaia.

 

Um pouco mais abaixo na Church Row, Samantha Mollison estava na janela da sala de estar, com um café na mão, olhando as pessoas passan­do na direção da Igreja de São Miguel e Todos os Santos. Quando viu Tessa Wall e um garoto ao seu lado, que achou que fosse Bola, ela quase engasgou.

Ah, meu Deus, ele está indo ao enterro — disse em voz alta, falando sozinha.

Então reconheceu Andrew, ficou vermelha e saiu da janela rapida­mente.

Samantha havia ficado trabalhando em casa, o notebook estava aberto em cima do sofá. Mas, de manhã, ela tinha colocado um velho vestido preto, se perguntando se devia ou não ir ao enterro de Krystal e Robbie Weedon. Achava que tinha poucos minutos para se decidir.

Nunca tinha dito uma palavra gentil sobre Krystal Weedon. Não se­ria então meio hipócrita ir ao enterro, só porque tinha chorado ao ler a notícia da sua morte na Gazeta de Yarvil e Adjacências, e porque o rosto bochechudo da garota aparecia sorrindo em todas as fotos da turma de Lexie na St. Thomas?

Deixou o café sobre a mesa, correu para o telefone e ligou para Miles, que estava no escritório.

Oi, meu bem — disse ele.

(Ela esteve sempre ao seu lado enquanto ele chorava de alívio ao lado do leito do hospital, onde Howard estava deitado, ligado a vários apare­lhos, mas ainda vivo.)

Oi — disse ela. — Tudo bem?

Tudo. A manhã foi bem difícil. Que bom que você ligou — acres­centou Miles. — Está tudo bem?

(Tinham feito amor na noite passada, e ela não fingiu que o marido era outra pessoa.)

O enterro vai começar — respondeu Samantha. — As pessoas estão passando...

Vinha guardando o que queria dizer havia quase três semanas, porque Howard estava no hospital, e não queria que Miles se lembrasse da briga terrível que tiveram. Mas já não estava agüentando mais.

...Miles, eu vi esse menino. Robbie Weedon. Vi, sim. — Samantha parecia em pânico, falava em tom de súplica. — Ele estava no campo de futebol da St. Thomas quando passei por lá naquela manhã.

No campo de futebol?

Pelo visto ele ficou vagando, enquanto os dois estavam... Ele estava sozinho — acrescentou ela, lembrando-se do menino sujo e mal-cuidado. Vinha se perguntando se teria ficado mais preocupada se a criança fosse mais limpinha, se de alguma forma inconsciente não teria confundido aqueles sinais evidentes de negligência com a desen­voltura, a dureza e a capacidade de se virar sozinho. — Achei que ele tinha ido brincar ali, mas não havia ninguém com ele. Robbie Weedon tinha apenas três anos e meio, Miles. Por que não perguntei a ele com quem estava?

Ei, ei — exclamou Miles, num tom que significava alguma coisa como "espere aí, não é bem assim", e ela sentiu um alívio imediato: Miles estava cuidando dela, e os seus olhos se encheram de lágrimas. — Você não tem culpa de nada. Como poderia saber? Deve ter achado que a mãe dele estava ali por perto, em algum lugar.

(Quer dizer que ele não a odiava; não achava que ela era má. Nos últi­mos tempos, vinha se comovendo com a capacidade que o marido tinha de perdoar.)

Não sei, não — retrucou ela, sem forças. — Quem sabe se eu tivesse falado com ele, Miles...

Ele nem estava perto do rio quando você o viu.

Mas estava perto da rua, pensou Samantha.

Nas últimas três semanas, um desejo de se dedicar a algo maior do que ela mesma vinha crescendo dentro dela. Dia após dia, ficava esperando que aquela nova necessidade tão estranha passasse (é assim que as pessoas se tornam religiosas, pensou Samantha, tentando rir de si mesma), mas, na verdade, ela parecia até ter se intensificado.

Miles — principiou ela —, o Conselho... Com o seu pai... E ainda por cima com a renúncia de Parminder Jawanda... Vocês vão ter que in­dicar dois nomes, não vão? — Conhecia perfeitamente aquele jargão; há anos que ouvia conversas sobre o assunto. — Quer dizer, não vão querer convocar mais uma eleição, a essa altura dos acontecimentos, não é?

De jeito nenhum.

Acho que Colin Wall podia ser um deles — disse ela, num ímpeto —, e andei pensando... e agora só com a loja on-line, tenho mais tempo... Eu talvez pudesse ser o outro.

Você? — perguntou Miles, perplexo.

Gostaria de participar mais — replicou Samantha.

Krystal Weedon morreu aos dezesseis anos, trancada no banheiro da­quela casa pequena e imunda na Foley Road... Samantha não tinha bebi­do nem uma taça de vinho nas últimas duas semanas. Achava que talvez fosse bom conhecer os argumentos em defesa da Clínica de Reabilitação Bellchapel.

O telefone estava tocando no número dez da Hope Street. Kay e Gaia já estavam atrasadas para o enterro de Krystal. Quando a garota perguntou quem estava falando, o seu rosto adorável se endureceu: ela parecia muito mais velha.

É Gavin — disse, dirigindo-se à mãe.

Eu não liguei para ele — sussurrou Kay, pegando o telefone nervosa como uma garota de escola.

Oi — disse Gavin. — Como é que você está?

Indo para o enterro — respondeu Kay, olhando fixo para a filha. — De Krystal e Robbie Weedon. Como pode imaginar, não estou lá muito bem.

Ah — exclamou Gavin. — Meu Deus, é verdade, me desculpe. Tinha me esquecido.

Teve a impressão de reconhecer aquele sobrenome na manchete da Gazeta de Yarvil e Adjacências e acabou afinal comprando um exemplar, com certa curiosidade. Achou que devia ter passado bem perto do lugar onde estavam os adolescentes e o menino, mas não se lembrava efetiva­mente de ter visto Robbie Weedon.

As últimas semanas foram bem estranhas. Andava sentindo muita falta de Barry. Não estava entendendo mais nada: quando devia estar mergulhado na tristeza porque Mary o tinha dispensado, tudo o que queria era tomar uma cerveja com o homem cuja mulher ele quis ter para si.

(Quando saiu da casa dela naquele dia, disse a si mesmo: "Está vendo, é nisso que dá querer roubar a vida do seu melhor amigo", e nem reparou que tinha cometido um ato falho.)

Olhe — disse ele —, será que você não gostaria de ir beber alguma coisa mais tarde?

Kay quase caiu na gargalhada.

Ela não quis saber de você, não foi?

E deu o telefone para Gaia desligar. Saíram de casa às pressas e seguiram para a praça quase correndo. Por alguns instantes, quando estavam passando na frente do Black Canon, Gaia segurou a mão da mãe.

Chegaram no momento em que os carros fúnebres despontavam no alto da rua, e se apressaram em entrar no cemitério enquanto os caixões vinham sendo transportados pela calçada.

(— Saia dessa janela, Stu — ordenou Colin Wall.

Mas Bola, que vinha tendo que conviver com a consciência da pró­pria covardia, se debruçou ainda mais, tentando provar que era capaz de agüentar ao menos aquilo...

Os caixões passaram naqueles carros grandes, de janelas pretas: o pri­meiro era rosa-choque, e ao vê-lo o garoto perdeu o fôlego; e o segundo, minúsculo, de um branco brilhante...

Colin ficou na frente do filho para protegê-lo daquela visão, mas era tarde demais. Mesmo assim, resolveu fechar as cortinas. Na penumbra da­quela sala de estar, onde o garoto confessou que tinha exposto a fraqueza do pai para todos; onde fez essa confissão na esperança de ser considerado por eles louco e doente; onde tentou assumir o máximo de culpa possível para que eles acabassem por espancá-lo, xingá-lo ou fazer com ele tudo aquilo que tinha consciência de merecer, Colin pôs a mão nas costas do filho com todo o carinho e o afastou da janela, levando-o para a cozinha ensolarada.)

Na frente da São Miguel e Todos os Santos, as pessoas que carre­gariam os caixões estavam se preparando para atravessar o pátio. Dane Tully era uma delas, com os seus brincos, a tatuagem de teia de aranha que ele próprio tinha feito no pescoço, e usando um sobretudo preto e pesado.

Os Jawanda esperaram com Kay e Gaia Bawden à sombra do teixo. Andrew Price circulava ali por perto, e Tessa Wall ficou um pouco mais afastada, com o rosto pálido e impassível. As outras pessoas reu­nidas formavam um grupo à parte junto das portas da igreja. Algumas delas tinham um ar atrevido, desafiador; outras pareciam resignadas e abatidas; outras ainda usavam roupas pretas baratas, mas a maioria estava de jeans ou agasalhos de moletom; uma garota estava com uma camiseta cortada e um piercing no umbigo, que refletia a luz do sol quando ela se mexia. Os caixões vieram entrando pelo pátio, reluzindo ao sol da manhã.

Foi Sukhvinder Jawanda que escolheu o caixão rosa para Krystal, por­que tinha certeza de que ela teria adorado. Aliás, foi Sukhvinder que fez quase tudo: organizou, escolheu, persuadiu. Parminder ficou olhando a filha disfarçadamente, procurando pretextos para tocar nela: afastar os ca­belos que lhe caíam nos olhos, ajeitar a gola do casaco.

Assim como Robbie saiu das águas do rio purificado e redimido aos olhos de Pagford, Sukhvinder Jawanda, que havia arriscado a vida ten­tando salvar o menino, tornou-se uma heroína. Graças ao artigo publi­cado sobre ela na Gazeta de Yarvil e Adjacências, à declaração pública de Maureen Lowe indicando o nome da garota para receber o prêmio especial da polícia, além do discurso que a diretora fez para toda a escola reunida, Sukhvinder soube, pela primeira vez na vida, o que era ofuscar os seus irmãos.

E odiou cada minuto de tudo isso. À noite voltava a sentir nos braços o peso do corpo do menino, arrastando-a para o fundo do rio; lembrava-se da tentação que sentiu de soltá-lo e poder se salvar, e se perguntava por quanto tempo teria resistido. A cicatriz na sua perna coçava e doía, se se mexesse ou ficasse parada. A notícia da morte de Krystal Weedon a deixou tão abalada que os seus pais decidiram levá-la a um terapeuta. Sukhvinder, porém, nunca mais voltou a se cortar desde que foi resgatada do rio; o afogamento iminente parecia ter expurgado aquela necessidade.

Então, no primeiro dia de volta às aulas depois de tudo o que aconte­ceu, com Bola Wall ainda ausente e com todos aqueles olhares de admira­ção que a acompanhavam pelos corredores, a garota ouviu dizer que Terri Weedon não tinha dinheiro para enterrar os filhos, que as sepulturas não teriam lápide e que os caixões seriam os mais baratos possíveis.

É muito triste mesmo, Ris — concordou Parminder naquela noite, quando a família estava reunida, jantando, diante da parede coberta de fotos. O tom da sua voz foi tão delicado quanto o daquela policial; agora não havia mais vestígio de rispidez quando Parminder falava com a filha.

Quero tentar convencer as pessoas a dar dinheiro — disse Sukhvinder.

Parminder e Vikram se entreolharam, sentados à mesa da cozinha.

Ambos se opunham à idéia de sair pelo vilarejo pedindo doações aos mo­radores para uma causa dessas, mas nenhum dos dois disse nada. Agora que tinham visto os braços da filha, temiam aborrecê-la, e a sombra do tal terapeuta ainda desconhecido parecia pairar sobre o convívio daquela família.

É — acrescentou Sukhvinder, com uma energia febril, que lembra­va até a da própria Parminder — acho que o enterro deveria ser aqui na Igreja de São Miguel. Como o do sr. Fairbrother. Krys sempre participava das cerimônias religiosas aqui, quando estávamos na St. Thomas. Aposto que nunca entrou em outra igreja na vida.

A luz de Deus brilha em todas as almas, pensou Parminder e, para sur­presa de Vikram, rapidamente aceitou.

— Claro. Vamos ver o que podemos fazer.

A maior parte das despesas foi paga pelos Jawanda e pelos Wall, mas Kay Bawden, Samantha Mollison e algumas das mães das integrantes da equipe de remo também contribuíram. Sukhvinder então fez questão de ir pessoalmente a Fields para dizer a Terri o que tinha feito e por quê; con­tou tudo sobre a equipe de remo e explicou por que o enterro de Krystal e Robbie devia ser na Igreja de São Miguel.

Parminder ficou particularmente preocupada, o que não era do seu feitio, com a idéia de Sukhvinder ir sozinha a Fields e ainda por cima naquela casa deplorável, mas a garota tinha certeza de que ia dar tudo certo. Os Weedon e os Tully sabiam que ela tinha tentado salvar a vida de Robbie. Dane Tully até parou de grunhir para ela na aula de inglês e mandou os amigos pararem também.

Terri concordou com tudo o que Sukhvinder sugeriu. Estava muito magra, suja, inteiramente passiva, falando apenas por monossílabos. E a garota ficou assustada com a aparência daquela mulher com os braços cheios de marcas e a boca desdentada; parecia que falava com um cadáver.

Dentro da igreja, a divisão foi nítida: os moradores de Fields ficaram nos bancos à esquerda, e os de Pagford, à direita. Shane e Cheryl Tully entraram junto com Terri e a levaram até o primeiro banco. Com um casaco que tinha o dobro do seu tamanho, a mulher mal parecia se dar conta de onde estava.

Um ao lado do outro, os dois caixões foram depositados em mesas dian­te do altar. Em cima do de Krystal havia um remo todo feito de crisântemos alaranjados; sobre o de Robbie, um ursinho de crisântemos brancos.

Kay Bawden se lembrou do quarto de Robbie, com aqueles poucos brinquedinhos vagabundos de plástico, e as suas mãos tremeram segu­rando o folheto do serviço fúnebre. Com toda a certeza ia haver um inquérito, porque o jornal local vinha fazendo uma campanha nesse sentido. Chegou a publicar uma matéria de capa sugerindo que o me­nino tinha sido deixado sob os cuidados de duas viciadas e que a sua morte poderia ter sido evitada, se não fosse pela negligência das assis­tentes sociais, que deveriam ter removido a criança para um lugar mais seguro. Mattie entrou de licença novamente, sob alegação de estresse, e a reavaliação do caso comandada por Kay estava sendo investigada. Ela se perguntava se isso pioraria ainda mais as suas chances de conseguir trabalho em Londres, já que todos os governos locais estavam reduzindo os seus quadros de assistentes sociais. E qual seria a reação de Gaia se tivessem que ficar em Pagford...? Ainda não tinha tido coragem de con­versar sobre isso com a filha.

Andrew olhou de relance para Gaia, e trocaram sorrisos tímidos. Lá em Hilltop House, Ruth já estava arrumando as coisas para a mudança. An­drew podia jurar que, com aquele seu jeito eternamente otimista, a mãe estava cheia de esperanças, achando que, ao se sacrificar abrindo mão daquela casa e da beleza das colinas, a sua família seria recompensada com um verdadeiro renascimento. Definitivamente presa a uma imagem de Simon que não levava em conta os seus acessos de fúria e as falcatruas, esperava que tudo aquilo ficasse para trás, como caixas esquecidas na mu­dança... Mas, pelo menos, pensava Andrew, quando fossem para Reading, ele ficaria mais perto de Londres. Gaia tinha lhe garantido que estava tão bêbada que nem percebeu o que estava fazendo com Bola... Quem sabe ela não ia convidar ele e Sukhvinder para irem à sua casa, depois do enter­ro, para comer alguma coisa...

Gaia, que nunca tinha estado na Igreja de São Miguel, ouvia distraidamente a ladainha do padre, deixando os olhos vagarem por aquele teto alto e estrelado e pelos vitrais coloridos e brilhantes. Havia coisas bonitas ali em Pagford. E agora que sabia que ia embora, estava achando que tal­vez fosse até sentir saudade...

Tessa Wall resolveu se sentar mais atrás, sozinha. Isso a deixou exa­tamente sob o olhar tranqüilo de são Miguel, que tinha o pé eterna­mente pousado naquele demônio de chifres e rabo, que se contorcia. Estava chorando desde que avistou os dois caixões brilhantes, e por mais que tentasse se conter, todos os que estavam por perto podiam ouvi­da soluçando baixinho. Temia que alguém da família Weedon pudesse identificá-la como a mãe de Bola e viesse lhe fazer acusações, mas nada disso aconteceu.

(A sua vida familiar estava de cabeça para baixo. Colin andava furioso com ela.

— O que você disse a Stu?

Ele queria um gostiuho da vida real — respondeu ela, chorando —, queria ver como era o lado sórdido da vida... Será que você não percebe o que isso tudo significa?

E então você resolveu lhe dizer que ele pode ser fruto de um incesto e que eu tentei me matar quando nós o adotamos?

Tessa passou anos tentando reconciliá-los, mas foi a morte de uma criança e o profundo conhecimento que Colin tinha do que era sentir culpa que conseguiram fazer isso. Na noite anterior, ouviu os dois con­versando lá no quarto de Bola e parou ao pé da escada para saber do que estavam falando.

...você pode tirar da cabeça essa história que a mamãe lhe contou — dizia Colin, em tom aborrecido. — Você não tem nenhuma anomalia mental nem física, não é mesmo? Então... pare de se preocupar. O terapeuta vai ajudá-lo com tudo isso...)

Tessa chorava e assoava o nariz no lenço já encharcado, pensando que não tinha feito nada por Krystal, encontrada morta no chão do banheiro... Ficaria aliviada se são Miguel descesse do seu vitral reluzente e viesse julgá-los a todos, decretando exatamente qual era a sua parcela de culpa naquelas mortes, naquelas vidas destruídas, naquele caos... Um dos filhos dos Tully, um menino irrequieto, lá do outro lado do corredor, pulou do banco em que estava, e o braço forte e tatuado de uma mulher o pegou, puxando-o de volta. O choro de Tessa foi interrompido por uma espécie de exclamação de surpresa. Tinha certeza de ter visto o relógio que havia perdido no pulso grosso daquela mulher.

Sukhvinder, que estava ouvindo Tessa chorar, ficou com pena dela, mas não teve coragem de se virar. Parminder estava com ódio de Tessa. Não houve como explicar à mãe sobre as cicatrizes no braço sem falar de Bola Wall. A garota implorou que ela não ligasse para os Wall, mas então Tessa ligou para Parminder, dizendo que Bola tinha assumido a culpa pelos posts com o pseudônimo O_Fantasma_de_Barry_Fairbrother no site do Conselho. A médica ficou tão furiosa que as duas não voltaram a se falar depois disso.

Sukhvinder achou tão estranho Bola assumir a culpa pela mensagem que ela própria tinha postado... Considerou aquilo quase como um pe­dido de desculpas. Sempre teve a impressão de que o garoto lia os seus pensamentos: será que ele sabia que ela tinha atacado a própria mãe? Sukhvinder se perguntava se seria capaz de dizer a verdade ao terapeuta, em quem os seus pais pareciam confiar tanto, e se algum dia conseguiria contar tudo a essa Parminder agora tão amável e arrependida...

Tentava acompanhar o serviço fúnebre, mas nada daquilo a estava aju­dando como tinha esperado. Ficou contente com o ursinho e o remo de crisântemos que a mãe de Lauren tinha feito; ficou contente por Gaia e Andy terem vindo, e também as garotas da equipe de remo, mas adoraria que as gêmeas Fairbrother não tivessem se recusado a comparecer.

(— Mamãe vai ficar chateada — disse-lhe Siobhan. — Sabe, ela acha que o papai se dedicava demais a Krystal.

Ah... — exclamou Sukhvinder, espantada.

E, ainda por cima — acrescentou Niamh —, mamãe não gostou nada da idéia de ser obrigada a ver o túmulo de Krystal sempre que a gente for visitar o do papai. Os dois provavelmente vão ficar bem, um perto do outro.

Sukhvinder achou que esses motivos eram mesquinhos e cruéis, mas parecia até um sacrilégio usar esses termos com relação à sra. Fairbrother. As gêmeas se afastaram, abraçadas sempre como andavam. Nos últimos tempos, tratavam Sukhvinder friamente por ela ter se bandeado para o lado daquela forasteira, Gaia Bawden.)

Sukhvinder esperou que alguém se levantasse para dizer quem era real­mente Krystal Weedon e o que ela tinha feito na vida, como o tio de Niamh e Siobhan tinha feito no funeral do sr. Fairbrother, mas a não ser pela breve menção às "vidas tragicamente ceifadas tão cedo" e à "família da nossa co­munidade, com raízes profundas em Pagford", o padre parecia determinado a pular os fatos.

Sukhvinder, então, voltou os seus pensamentos para aquele dia em que elas tinham disputado a final regional. O sr. Fairbrother levou a equipe toda de micro-ônibus para enfrentar as garotas da St. Anne. O canal atra­vessava o terreno do colégio particular, e ficou decidido que elas iam se trocar no ginásio de esportes da St. Anne e que a regata começaria lá.

Isso é conduta antiesportiva — disse o sr. Fairbrother durante o tra­jeto. — Elas vão ter a vantagem de competir em casa. Tentei mudar isso, mas eles não aceitaram. Não se deixem intimidar, certo?

Tô nem aí pra por...

Krys...

Tô nem aí pra vantagem delas.

Mas, quando chegaram lá, Sukhvinder ficou com medo. Aquele gra­mado imenso, verdinho e bem-cuidado, e aquele prédio grande, todo de pedra clara, com torreões e milhares de janelas: nunca tinha visto nada assim, a não ser em cartões-postais.

É igual ao Palácio de Buckingham! — gritou Lauren, lá de trás do ônibus. Krystal estava de boca aberta; às vezes ela era espontânea como uma criança.

Onde quer que elas fossem competir, os pais de todas as garotas e a bi­savó de Krystal ficavam esperando na linha de chegada. Sukhvinder tinha certeza de que não era a única a se sentir pequena, assustada, inferior, quando se aproximaram dos portões daquele prédio lindo.

Uma mulher com uma toga acadêmica veio cumprimentar o sr. Fair- brother, que estava com o seu indefectível agasalho de moletom.

Você deve ser a Winterdown!

Claro que não, porra! Ele tem cara de prédio por acaso? — excla­mou Krystal bem alto.

Era óbvio que a professora da St. Anne tinha ouvido aquilo, e o sr. Fairbrother se virou, tentando fazer cara feia para Krystal, mas as garotas podiam jurar que, na verdade, ele tinha achado engraçado. Todas come­çaram a rir e ainda estavam rindo quando o sr. Fairbrother as levou até a porta dos vestiários.

Rápido! — gritou ele, quando elas entraram.

As garotas da St. Anne já estavam lá dentro com a sua treinadora. As duas equipes se olharam de alto a baixo separadas pelos bancos. Sukhvin­der ficou impressionada com o cabelo das adversárias. Todas tinham ca­belo comprido e naturalmente brilhante; poderiam perfeitamente fazer anúncio de xampu. Já no time delas, Siobhan e Niamh tinham o cabelo cortado na altura do pescoço. O de Lauren era bem curtinho. Krystal fazia sempre um rabo, bem apertado e no alto da cabeça. E ela tinha o cabelo grosso e difícil de pentear, como a crina de um cavalo.

Achou que tinha visto duas das garotas da St. Anne rindo e cochichan­do, e teve certeza disso quando Krystal se levantou para encará-las e disse:

Pelo visto a merda de vocês tem cheiro de rosa, né?

O que foi que você disse?! — exclamou a treinadora.

Só pra saber — respondeu Krystal, com um arzinho doce, e virou de costas para tirar a calça de moletom.

A vontade de rir foi tão grande que ninguém conseguiu segurar. A equi­pe da Winterdown trocou de roupa rindo às gargalhadas. Krystal conti­nuou fazendo palhaçadas e ficou debochando quando a equipe da St. Anne saiu do vestiário.

Que gracinha — disse a última das garotas da fila.

Muito obrigada — respondeu Krystal. — Se quiser, deixo você dar uma olhadinha de novo mais tarde. Sei que vocês são um bando de sapa­tas — gritou ela —, enfiadas aqui sem nenhum garoto por perto!

Holly se dobrou de tanto rir e acabou batendo com a cabeça na porta do armário que estava aberta.

Olha a porra da porta, Hol — exclamou Krystal, encantada com a reação das colegas de equipe. — Sua cabeça vai fazer falta.

Enquanto desciam até o canal, Sukhvinder entendeu por que o sr. Fair­brother queria mudar o local da competição. Ele era o único torcendo por elas ali na largada. Já as suas adversárias contavam com o apoio de um monte de amigas gritando, aplaudindo e pulando, todas com o mesmo cabelo comprido e brilhante.

Olha lá! — gritou Krystal, apontando para o grupo. — É Lexie Mollison! Lembra quando eu arranquei os seus dentes, Lex?

Sukhvinder teve um acesso de riso. Estava feliz e orgulhosa, andando ali ao lado de Krystal, e percebia que as outras garotas também estavam. Alguma coisa no modo como Krystal enfrentava o mundo as protegia dos olhares curiosos, dos ataques sutis e daquele prédio ao fundo que mais parecia um palácio.

Mas, quando entraram no barco, sabia que até Krystal estava sentindo a pressão. Ela se virou para Sukhvinder, que sempre se sentava às suas costas. Estava segurando alguma coisa.

Meu amuleto da sorte — disse ela, e mostrou o que era.

Um coraçãozinho de plástico vermelho, preso a um chaveiro, com a foto do irmãozinho dela.

Prometi que vou levar uma medalha pra ele — disse Krystal.

É — retrucou Sukhvinder, tomada de fé e medo. — Vamos ganhar.

Verdade — concordou Krystal, virando de novo para a frente e en­fiando o tal coraçãozinho dentro do sutiã. — Elas não são páreo pra nós, gente! — gritou ela bem alto, para que toda a equipe a ouvisse. — E um bando de mosca-morta. Vamos lá!

Sukhvinder se lembrou do tiro de largada, da multidão entusiasma­da, dos seus músculos ardendo. Ela se lembrou da sensação maravilhosa ao ver o ritmo perfeito daqueles oito remos e do prazer daquela serieda­de profunda depois de terem rido tanto. Krystal venceu a prova por elas. Krystal anulou a tal vantagem que a St. Anne teria por competir em casa. Sukhvinder quis ser como ela: engraçada e durona, impossível de intimi­dar, sempre pronta para a briga.

Pediu duas coisas a Terri Weedon, que concordou com as duas, porque Terri sempre concordava com todo mundo. A medalha que ganharam na­quele dia estava no pescoço de Krystal na hora do enterro. O outro pedido veio no final do serviço fúnebre, e, dessa vez, o padre pareceu resignado ao anunciá-lo.

 

                     Good girl gone bad —

                     Take three —

                     Action.

                     No clouds in my storms...

                     Let it rain, I hydroplane into fame

                     Comin' down with the Dow Jones...

 

"Garota boazinha que virou má... Tomada três. Ação. Não existem nu­vens nas minhas tempestades... Pode chover, que eu hidroplano para a fama... Caindo junto com o Dow Jones..."

 

A família de Terri a conduziu até a porta, pelo tapete azul-royal do corredor central da igreja, e todas as pessoas ali evitaram olhá-la.

 

                                                                                J. K. Rowling  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

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